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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PORTAL DO DESTINO / Agatha Christie
PORTAL DO DESTINO / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PORTAL DO DESTINO

 

LIVRO I

     A RESPEITO DE LIVROS    

     — LIVROS — explodiu Tuppence, mal-humorada.

     — O que houve? — perguntou Tommy. Do outro lado da sala Tuppence o encarou.

     — São esses livros.

     — Entendo o seu problema — respondeu Thomas Beresford.

     Em frente a Tuppence havia três grandes caixotes. Ainda estavam cheios de livros, embora ela já tivesse guardado muitos deles.

     — É inacreditável — disse Tuppence.

     — O que, o espaço que eles ocupam?

     — Isso.

     — Está tentando colocá-los todos nas estantes?

     — Nem sei o que estou tentando fazer, aí é que está o caso. Não sei realmente o que quero. Ah, Deus! — suspirou Tuppence.

     — Ora — disse o marido, — não pensei que tivesse esses problemas. Você sempre sabe, até bem demais, o que quer fazer.

     — O caso é que estamos envelhecendo e... vamos ser francos... o reumatismo começa a nos atrapalhar. Já é difícil nos esticar para colocar livros lá em cima ou levantar algum peso. E quando nos abaixamos é ruim ficar em pé novamente.

     — É, esta é uma boa descrição das nossas incapacidades físicas.

     — Sabe, foi maravilhoso poder comprar esta nova casa, justamente no lugar onde queríamos viver. É a casa de nossos sonhos, com algumas modificações, é claro.

     — Tivemos que unir duas salas numa só — disse Tommy — e construímos o que você chama de varanda, e que para mim é um pórtico.

     — Vai ficar ótima! — disse Tuppence com convicção.

     — Acha que nem vou reconhecê-la quando ficar pronta?

     — Não exatamente, mas quando eu tiver terminado, você ficará encantado e dirá: "Mas que esposa inteligente, criativa e habilidosa, a minha!"

     — Preciso lembrar-me de dizer exatamente isso — disse Tommy.

     — Não vai ser preciso. Será óbvio, evidente.

     — E o problema dos livros?

     — Bem, trouxemos dois ou três caixotes de livros conosco, depois de vender os que não nos interessavam. Só trouxemos aqueles dos quais não queríamos nos separar. E o pessoal que nos vendeu a casa, não me lembro o nome deles agora, queria levar pouca coisa e nos ofereceram os móveis e os livros. Então...

     — Fizemos algumas ofertas — completou Tommy.

     — É, menos do que esperavam que fizéssemos, a mobília e os objetos eram horríveis. Felizmente não tínhamos que ficar com eles! Mas quando vi os livros para crianças lá embaixo na sala de estar, havia alguns que tinham sido meus prediletos e acho que ainda são, resolvi que gostaria de ficar com eles. Lembra-se da história de Ándrocles e o Leão, de Andrew Lang? Li-o quando tinha oito anos.

     — Tuppence, você já lia aos oito anos?

     — Já, aprendi com cinco. Quando eu era pequena, as crianças dessa idade já liam. Acho que nem era preciso aprender. Alguém lia as histórias alto e se você gostava podia pegar mais tarde na estante e olhá-las sozinho, até que um dia descobria que sabia lê-las, sem nunca ter aprendido a soletrar, ou coisa semelhante. Depois as coisas se complicaram, nunca aprendi ortografia corretamente, mas se tivessem me ensinado quando tinha quatro anos, teria aprendido com perfeição. Meu pai ensinou-me a somar, subtrair e multiplicar. Dizia que a tabuada de multiplicação era a coisa mais útil que se podia aprender na vida. Eu sabia fazer aquelas divisões enormes, também.

     — Ele deve ter sido um homem inteligente!

     — Não acho que fosse muito inteligente — disse Tuppence — mas era bom, muito bom.

     — Estamos saindo do assunto.

     — É, como eu dizia, adorei a idéia de ler Ándrocles e o Leão novamente. Havia uma história sobre "um dia de minha vida em Eton", escrita por um aluno de Eton. Não sei por que achava isto interessante, mas o certo é que achava. Era um dos meus livros prediletos. Havia resumos de clássicos, livros de Mrs. Molesworth, O Relógio Cuco, A Fazenda dos Quatro Ventos.

     — Espere aí — disse Tommy, — não é preciso uma descrição completa dos amores literários da sua infância.

     — O importante é que não se pode mais comprá-los hoje em dia. As novas edições geralmente foram modificadas, com outras ilustrações. Nem reconheci Alice no País das Maravilhas quando o vi, outro dia. Estava todo diferente. Ainda se podem achar as histórias de Mrs. Molesworth, alguns contos de fada como Rosa, Azul e Amarelo e muitos que me deliciaram mais tarde. Livros de Stanley Weyman e coisas assim. Desses há muitos aqui na casa.

     — Compreendo, você sentiu-se tentada. Era uma boa compra — disse Tommy.

     — Mais do que isto. Este assunto o está aborrecendo?

     — Não, estou muito interessado, continue.

     — Comprei-os a um preço muito baixo, acredite. E aqui estão eles, junto com os nossos livros.

     Só que são tantos, que as prateleiras novas não vão ser suficientes. Haverá lugar para mais livros lá no seu querido escritório, lá embaixo?

     — Não, não há Tuppence. Não há lugar nem para os meus.

     — Ah, Deus, isso sempre nos acontece. Acha melhor construir mais uma sala?

     — Não, vamos economizar. Você mesmo disse isso anteontem, lembra-se?

     — Isso foi anteontem, as coisas mudam — disse Tuppen-ce. — O que vou fazer é colocar agora nas prateleiras os livros que queremos conservar. Mais tarde resolveremos o que fazer com os outros, deve haver hospitais de crianças e outros lugares onde estejam interessados em livros.

     — Podíamos vendê-los.

     — Não creio que alguém os queira comprar. Não são valiosos, ou coisa parecida.

     — Nunca se sabe — disse Tommy. — Pode ser que algum desses livros esgotados esteja sendo procurado há muito tempo, por algum negociante do ramo.

     — Vamos guardá-los por hora. Estou folheando um a um para ver se ainda me lembro se os quero. Estou tentando separá-los em gêneros, aventuras, histórias de fadas, histórias para crianças muito pequenas, aqueles contos sobre escolas onde as crianças eram sempre muito ricas, L. T. Meade, acho. Achei uns livros que costumávamos ler para Débora quando era pequena. Nós duas gostávamos do Ursinho Puff, e não achávamos grande coisa a Galinhazinha Cimenta.

     — Você está se cansando. É bom parar um pouco — disse Tommy.

     — É, acho que sim. Se ao menos pudesse arrumar este lado da sala e guardar os livros...

     — Está bem, vou ajudá-la.

     Tommy pegou um caixote e virou-o para que os livros caíssem. Pegou uma braçada deles e colocou na estante.

     — Estou arrumando por ordem de tamanho, fica melhor.

     — Não chamo a isso de arrumação — reclamou Tuppence.

     — Por hora será suficiente. Mais tarde poderemos separá-los melhor, algum dia chuvoso, quando não tivermos nada melhor para fazer.

     — O problema é que sempre temos algo melhor para fazer.

     — Bem, já arrumei mais sete. Só falta agora aquele canto lá em cima. Será que aquela cadeira agüenta o meu peso? Preciso alcançar a prateleira lá de cima.

     Tommy subiu na cadeira com todo cuidado. Conseguiu colocar na estante uma pilha de livros que Tuppence lhe entregou, mas os três últimos caíram desastradamente por cima dela.

     — Ai, isso doeu.

     — Não pude evitar, você me entregou muitos de uma vez só.

     Tuppence deu uns passos para trás:

     — Está ótimo assim. Se você colocar este ali na segunda prateleira, estará terminado este caixote. Ainda bem. Hoje estou arrumando os que comprei, talvez achemos algo valioso.

     — Talvez — disse Tommy.

     — Tenho um palpite de que encontraremos uma, preciosidade, alguma coisa que vale muito dinheiro.

     — E o que faremos? Vamos vender o livro?

     — Pode ser. Também podemos exibi-lo disfarçadamente aos outros dizendo: "Vejam que descoberta interessante nós fizemos!" Tenho certeza de que descobriremos alguma coisa.

     — O quê? Algum livro velho e querido do qual já tinha se esquecido?

     — Mais do que isso. Estou pensando em algo surpreendente e assustador. Algo que modificará nossas vidas.

     — Ah, Tuppence! Você tem uma imaginação maravilhosa! Acho maia provável encontrarmos algo que seja um desastre total.

     — Tolice. É preciso ter esperanças. É a coisa mais necessária para se viver, a esperança. Lembra-se? Eu sempre tenho esperança.

     — Sei que você tem — disse Tommy e suspirou. — Muitas vezes lamentei esse lato.

 

     A FLECHA NEGRA    

     MRS. THOMAS Beresford colocou O Relógio Cuco, de Mrs. Molesworth, num espaço vazio na terceira prateleira a contar de baixo. Ali estavam os outros livros da mesma autora. Tuppence escolheu A Sala da Tapeçaria e folheou-o pensativamente. Talvez lesse A Fazenda dos Quatro Ventos. Desse não se lembrava muito bem. Suas mãos hesitaram... Tommy chegaria logo.

     Estava progredindo. Com toda a certeza. Se ao menos não parasse para reler os antigos favoritos. .. Era muito agradável, mas levava tanto tempo. Quando Tommy lhe perguntava todas as noites ao chegar em casa como iam as coisas, respondia: — Vão muito bem! — e usava todo o seu tato para impedi-lo de subir e olhar a arrumação das estantes. Levava muito tempo. Instalar-se numa casa sempre levava mais tempo de que se esperava. E como havia gente irritante, eletricistas por exemplo. Chegavam e não contentes com o que tinham feito da última vez, abriam mais buracos no assoalho, onde a dona da casa desprevenida quase se despencava, sendo salva à última hora pelo ele-tricista que estava no andar de baixo.

     — Algumas vezes — dissera Tuppence — gostaria de não ter saído de Bartons Acre.

     — Lembre-se do telhado da sala de jantar — Tommy respondera — e do sótão e do que aconteceu com a garagem. O carro quase a demoliu.

     — Talvez você pudesse reformá-la.

     — Não — dissera Tommy. — Era necessário, praticamente, reconstruí-la. Foi melhor mudar-nos.

     Algum dia esta casa ficará muito agradável. Tenho certeza disso. Haverá lugar para todas as coisas que quisermos fazer.

     — Você quer dizer para guardar tudo que quisermos.

     — Isso mesmo — respondera Tommy. — Guardamos coisas demais. Concordo plenamente com você.

     Tuppence pensou se algum dia a casa estaria finalmente arrumada. Parecera tão fácil, mas como as coisas tinham se complicado. Parte das dificuldades eram os livros, certamente.

     — Se eu fosse uma menininha normal, de hoje em dia, não teria aprendido a ler tão cedo e com tanta facilidade — dissera Tuppence. — Hoje, crianças de quatro, cinco ou seis anos não sabem ler. Às vezes, nem quando chegam aos dez ou onze. Não sei por que achávamos tão fácil. Todos sabía-mos ler: eu, meu vizinho Martin, Jennifer, que morava na esquina, Cyril e Winifred. Todos nós. Não sabíamos soletrar corretamente, mas líamos tudo. Acho que aprendíamos perguntando às pessoas. Lembro-me dos anúncios que nos fascinavam, quando íamos chegando a Londres de trem. As Pílulas para o Fígado do Dr. Cárter. Imaginava para que serviriam. Ai, meu Deus, preciso me concentrar no que estou fazendo.

     Apanhou mais alguns livros e por quase uma hora ficou entretida com Alice no País do Espelho, e com Desconhecidos na História, de Charlotte Yong. Depois hesitou ante o grosso volume de O Colar de Margaridas.

     — Preciso reler este aqui. Quantos anos se passaram desde que o li!

     — O que disse, senhora?

     — Nada, não — disse Tuppence ao seu fiel criado Albert, que aparecera na porta.

     — Pensei que a senhora tinha me chamado. Não tocou a campainha?

     — Não. Só encostei nela quando subi na cadeira para pegar um livro.

     — Quer que eu pegue algum livro para a senhora?

     — Bem, seria ótimo. Tenho medo de cair dessas cadeiras. Algumas estão com as pernas bambas e outras escorregam.

     — Algum livro em particular?

     — Bem, ainda faltam as três prateleiras de cima. Alcance-me os livros da segunda. Quero ver o que há por aí.

     Albert subiu na cadeira e depois de sacudir os livros, um a um, para retirar a poeira, entregou-os a Tuppence, que os recebeu com entusiasmo:

     — Veja só o que está aqui! Quantos livros de Stanley Weyman: O Amuleto, Em Busca do Tesouro, O Cocar Vermelho. Adoro todos eles. Costumava lê-los quando tinha dez ou onze anos. Talvez encontremos O Prisioneiro de Zenda — Tuppence suspirou de prazer com a idéia. — O Prisioneiro de Zenda foi o primeiro romance que li. A Princesa Flávia, o Rei da Ruritânia, Rudolph Rassendyl. Até sonhávamos com ele.

     Albert estendeu-lhe mais livros.

     — Ah, esses são para crianças pequenas. Preciso colocar todos juntos. E aqui está A Ilha do Tesouro. É divertido, mas já o li outra vez e creio ter visto dois filmes sobre ele. Não gosto de filmes baseados em livros. Nunca são a mesma coisa. Aqui está Raptado. Sempre gostei deste.

     Albert tentou pegar uma pilha grande demais de livros e Catriona caiu na cabeça de Tuppence.

     — Desculpe-me senhora. Sinto muito.

     — Está tudo bem — disse Tuppence. — Não faz mal. Há mais algum livro de Stevenson aí em cima?

     Albert entregou-lhe mais uma pilha com muito cuidado. Tuppence exclamou entusiasmada:

     — A Flecha Negra. Que ótimo! Este foi um dos primeiros livros que li na minha vida! Acho que nunca o leu, não é, Albert? Não é do seu tempo. Deixe-me pensar. Havia um quadro na parede, e olhos que viam através dos olhos da figura, era assustador. Maravilhoso, mesmo. A Flecha Negra, a Inglaterra de Ricardo III: "O gato, o rato e Lovell, o cão, governam a Inglaterra com o porco". O porco era Ricardo, naturalmente. Hoje em dia, há livros que defendem Ricardo, dizem até que era formidável. Mas eu não acredito. Shakespeare também não acreditava, e faz Ricardo dizer, no início da peça: "Provarei que sou um infame."

     — Quer mais livros, senhora?

     — Não, obrigada, Albert. Acho que estou muito cansada para continuar.

     — Está certo, senhora. A propósito, o senhor telefonou e disse que chegaria meia hora atrasado.

     — Não tem importância — disse Tuppence. Sentou-se, abriu A Flecha Negra, e mergulhou na leitura.

     — Meu Deus, que livro maravilhoso. Vou gostar de lê-lo novamente. Lembro-me tão pouco, era tão interessante.

     Fez-se silêncio. Albert voltou à cozinha. Tuppence recostou-se confortavelmente na velha poltrona. O tempo passou. Mrs. Beresford relembrava as alegrias do passado relendo A Flecha Negra de Robert Louis Stevenson. Na cozinha o tempo passava também enquanto Albert dedicava-se ao fogão. Um carro chegou e Albert dirigiu-se à porta lateral

     — Quer que eu guarde o carro na garagem, senhor?

     — Não — disse Tommy. — Pode deixar. Deve estar ocupado com o jantar. Cheguei muito atrasado?

     — Não, senhor. Até menos do que disse que chegaria.

     Tommy guardou o carro e entrou na cozinha esfregando as mãos.

     — Está frio lá fora. Onde está Tuppence?

     — A senhora está lá em cima com os livros.

     — Ela ainda está às voltas com aqueles livros terríveis?

     — Está. Arrumou muitos hoje, mas passou grande parte do tempo lendo.

     — Mas que coisa! — disse Tommy. — O que teremos para o jantar?

     — Filé de linguado com limão, senhor. Não vai demorar.

     — Pode servir daqui a uns quinze minutos. Quero tomar um banho primeiro.

     No andar de cima Tuppence ainda estava entretida com A Flecha Negra. Havia rugas de concentração na sua testa. Tinha descoberto uma coisa esquisita. Na página 64 ou 65, não podia ver bem, alguém sublinhara algumas palavras. Tuppence passara o último quarto de hora examinando o caso. As palavras eram salteadas, não era, portanto, um trecho que alguém julgara importante. Tinham sido sublinhadas com tinta vermelha. Tuppence leu-as baixinho.

     — Não, não faz sentido.

     Pegou algumas folhas de papel que estavam sobre a escrivaninha. Eram amostras enviadas pela gráfica, impressas com o novo endereço, Os Loureiros, para que os Beresford fizessem a sua escolha.

     — Que nome bobo — disse Tuppence — mas se o trocarmos novamente a correspondência pode se extraviar.

     Copiou as palavras e notou algo que não reparara antes.

     — Ah, assim é diferente. Riscou algumas letras no papel.

     — Finalmente a achei — disse a voz de Tommy. — O jantar está quase pronto. Como vão os livros?

     — Isto é um quebra-cabeça. Não consigo entender.

     — Não consegue entender o quê?

     — Bem, eu estava lendo A Flecha Negra do Stevenson, muito distraída, quando cheguei a esta página onde há uma coisa estranha. Algumas palavras foram sublinhadas com tinta vermelha.

     — Isto é normal — disse Tommy. — Muita gente marca os livros, nem sempre com tinta vermelha, é claro. Frases que gostaríamos de lembrar, citações e coisas semelhantes. Você sabe disso.

     — Sei, mas não é isso que acontece aqui — disse Tuppence. — São as letras.

     O que quer dizer, são as letras? — perguntou Tommy.

     — Olhe aqui.

     Tommy sentou-se no braço da poltrona e leu: "Matcham segurou grito Jack pulou ruína dedos janela juntos sinal... ora, isso não faz sentido, é bobagem.

     — Foi o que pensei a princípio. Mas não é bobagem, Tommy.

     Embaixo, sinos tocaram.

     — O jantar está servido.

     — Isto pode esperar — disse Tuppence. — Tenho que lhe contar agora. Mais tarde talvez possamos fazer alguma coisa. É muito estranho realmente. Preciso lhe contar.

     — Pois conte. É mais outra das suas fantásticas descobertas?

     — Não, não creio. Olhe, separei as letras. Nesta página, veja bem, o "M" de Matcham e o "a" estão sublinhados. Não são as palavras que queriam destacar e sim as letras. A seguir o "r" de segurou, e o "y" da palavra seguinte, o "j" de Jack, o "1" de pulou, o "r" de ruína, o "d" de dedos, o "a" de janela, o "n" de juntos, o "n" de sinal.

     — Chega, pelo amor de Deus — disse Tommy.

     — Espere um pouco — disse Tuppence. — Preciso descobrir. Vê agora por que escrevi esta lista? Veja, vamos pegar as letras e escrevê-las em ordem. As quatro primeiras formam M-A-R-Y. Mary.

     — Muito bem. Alguém chamava-se Mary. Deve ter sido alguma criança, com espírito inventivo, que escreveu seu nome no livro. As pessoas vivem fazendo isso.

     — Olhe aqui — disse Tuppence. — A é uma palavra é J-O-R-D-A-N

     — Não está vendo? Mary Jordan — disse Tommy. — Agora já sabe o nome todo dela. Mary Jordan.

     — Mas este livro não pertencia a ela. No início está escrito numa caligrafia bem infantil, "Alexander". Alexander Parkinson, acho.

     — Acha que isto é importante?

     — Naturalmente que é — disse Tuppence.

     — Venha, estou com fome.

     — Tenha calma — disse Tuppence. — Vou ler para você o que dizem as letras sublinhadas neste trecho. Não vejo mais nenhuma nas próximas páginas. Tenho a certeza agora de que só as letras são importantes, não as palavras. N-Ã-O, não; M-O-R-R-E-U, morreu; N-A-T-U-R-A-L-M-E-N-T-E, naturalmente. Mary Jordan não morreu naturalmente. Vê agora? E depois vem: "Foi um de nós. Acho que sei quem". É tudo, não encontro mais nada. Fascinante, não acha?

     — Olhe aqui, Tuppence, você não está pretendendo fazer nada sobre isto, está?

     — Do que está falando?

     — Ora, você está achando que há algum mistério.

     — Bem, para mim o mistério existe — disse Tuppence. — "Mary Jordan não morreu naturalmente. Foi um de nós. Acho que sei quem". Tommy, você tem que concordar que é muito curioso.

    

     UMA VISITA AO CEMITÉRIO    

     — TUPPENCE — chamou Tommy, ao chegar em casa.

     Ninguém respondeu. Aborrecido, subiu correndo os degraus e entrou no hall do andar térreo. Na sua pressa, quase tropeçou num buraco aberto no assoalho e exclamou indignado:

     — Mais um desses eletricistas idiotas e descuidados!

     Não era a primeira vez que isto lhe acontecia. Os eletricistas chegavam com um ar eficiente e otimista e começavam a trabalhar.

     — Falta pouco, está quase pronto — eles diziam. — Voltaremos à tarde. — E não voltavam. Tommy nem se admirava mais. Já se habituara aos hábitos de trabalho de encanadores, eletricistas e os outros companheiros do ramo das construções. Todos chegavam animados, faziam comentários otimistas, saíam para buscar alguma coisa e não voltavam. Podia-se telefonar à vontade que, ou o número estava errado, ou eles tinham saído, ou não trabalhavam mais ali. Tudo que era possível fazer era esperar e tomar cuidado para não torcer o tornozelo ou cair em algum buraco. Ele se preocupava mais com a possibilidade de Tuppence se machucar, do que com ele. Chamou novamente:

     — Tuppence, Tuppence!

     Estava preocupado. Tuppence era o tipo de pessoa que sempre corria o risco de se queimar no fogão ou de derramar a água fervendo da chaleira. Sempre prometia, quando ele saía de casa, que seguiria à risca seus sábios conselhos. Não, ela só ia sair para comprar um pacote de manteiga, e isso não era perigoso, era?

     — No seu caso, eu acho que é — dizia Tommy.

     — Ora, não seja bobo.

     — Não é bobagem, não — respondera Tommy. — Estou tentando ser um marido cuidadoso para preservar a minha propriedade favorita, embora eu nem saiba por que a considero assim. ..

     — Porque sou encantadora, atraente, ótima companheira e tomo conta de você muito bem.

     — Isso pode ser verdade — disse Tommy — mas eu podia lhe citar uma lista diferente.

     — Não faça isso. Acho que não vou gostar dela. Sei que você tem muitas queixas arquivadas contra mim. Mas não se preocupe, tudo estará bem. Quando chegar é só chamar que estarei aqui.

     E agora, onde estava ela?

     — Mulherzinha terrível — disse Tommy. — Saiu outra vez.

     Subiu à sala onde ela estivera na véspera. Deve estar lendo outro livro e imaginando coisas sobre algumas palavras que alguma criança tola sublinhou com tinta vermelha! Ou à procura de Mary Jordan, seja quem for; Mary, que não morreu de morte natural. Sem querer, ele também estava interessado. Devia ter acontecido há muito tempo. Os últimos donos da casa chamavam-se Jones e tinham morado ali uns três ou quatro anos. Essa criança que escrevera no livro de Stevenson vivera na casa há muitos anos. De qualquer maneira, Tuppence não estava ali e não havia nenhum livro fora da estante.

     — Em que diabo de lugar ela se meteu?

     Thomas desceu, chamando por ela. Ninguém respondeu. O casaco dela não estava pendurado na entrada. Onde teria ido? Onde estava Hannibal?

     — Hannibal, Hannibal, aqui Hannibal, aqui.

     Hannibal não apareceu. Bem, pelo menos ele está com ela, pensou Tommy. Não deixará ninguém fazer mal a Tuppence. Ele é que poderia atacar alguém. Era muito sociável quando o levavam numa visita, mas as pessoas que quisessem entrar em qualquer casa em que ele morasse, eram consideradas suspeitas, decididamente. Estava sempre pronto a enfrentar qualquer perigo, a latir e a morder se fosse necessário.

     Thomas andou um pouco pela calçada, mas não viu nenhum sinal de uma mulher de altura média com um casaco vermelho vivo, levando um cachorrinho preto. Finalmente, meio zangado, voltou para casa.

     Um cheiro apetitoso o recebeu. Foi direto para a cozinha, onde Tuppence, às voltas com o fogão, deu-lhe um sorriso de boas-vindas.

     — Você chegou tarde — disse-lhe ela. — Que tal o cheiro? Gostoso, não acha? Esta torta tem alguns ingredientes diferentes dessa vez, uns temperos que achei na horta. Pelo menos acho que são temperos.

     — Se não forem, logo saberemos — disse Tommy. — Talvez sejam ervas venenosas, folhas de di-gitalis com um ar inocente! Onde você se meteu?

     — Levei Hannibal para passear.

     Nesse momento Hannibal se manifestou. Pulou em cima de Tommy, dando-lhe uma recepção tão entusiasmada que quase o derrubou. Era um cãozinho preto, de pêlo lustroso, com manchas castanhas nas costas e nos dois lados do focinho. Era um Manchester terrier de ótimo pedigree e se achava mais importante e mais aristocrático do que qualquer outro cão que conhecia.

     — Ora, pois eu andei por ai a sua procura. Onde se meteu com esse tempo ruim?

     — Não estava muito ruim, não. Só muito úmido e enevoado. Estou um tanto cansada.

     — Onde foi? Fazer compras?

     — Não, as lojas fecham cedo hoje. Não.... Fui ao cemitério.

     — Que idéia fúnebre — disse Tommy. — O que foi fazer no cemitério?

     — Fui olhar as sepulturas.

     — Está ficando cada vez mais fúnebre. E Hannibal se distraiu?

     — Tive de prendê-lo na coleira. Alguém com jeito de sacristão ia saindo da igreja e achei que Hannibal podia não simpatizar com ele. Bem, é melhor não indispor as pessoas contra nós logo de saída, não é?

     — O que foi fazer no cemitério?

     — Ver a espécie de gente que está enterrada lá. Está um bocado cheio. Data do início de mil e oitocentos, e acho que há umas duas pessoas que nasceram ainda no século anterior, mas as datas já estão muito apagadas.

     — Ainda não vejo o que foi fazer no cemitério.

     — Estava investigando — disse Tuppence.

     — Investigando o quê?

     — Queria ver se havia algum Jordan enterrado lá.

     — Que coisa, você ainda está nessa? Estava procurando...

     — Bem, Mary Jordan morreu. E sabemos que, apesar do livro dizer que ela não morreu de morte natural, deve ter sido enterrada em algum lugar não?

     — É inegável — disse Tommy. — Pode ser que tenha sido enterrada no jardim.

     — Não acho isso plausível — disse Tuppence — porque esse menino chamado Alexander, obviamente, achava que tinha descoberto uma coisa muito importante sobre a morte dela. Se ele foi o único a saber disso, se ninguém mais descobriu, então ela foi enterrada normalmente e...

     — E ninguém falou em crime — sugeriu Thomas.

     — Isso mesmo. Ela pode ter sido envenenada, golpeada na cabeça, atropelada, empurrada num abismo... posso imaginar o assassinato dela de muitas maneiras.

     — Tenho a certeza de que pode. Pelo menos sei que você tem um bom coração, Tuppence, e que não iria pôr em execução as suas idéias.

     — Mas não havia nenhuma Mary Jordan no cemitério Nem nenhuma outra pessoa com esse sobrenome.

     — Deve ter ficado desapontada — disse Thomas. — Será que esta coisa que você está cozinhando está pronta? Tenho uma fome terrível. O cheiro está ótimo.

     — Está no ponto. Vamos comer assim que você tiver lavado as mãos.    

    

     UMA PORÇÃO DE PARKINSON

     HAVIA uma porção de Parkinson — disse Tuppence enquanto comiam. — Uma montanha deles, que viveram há muito tempo. Velhos, crianças, casais. É muitos Capes, Griffins, Overwoods e Underwoods.

     — Tenho um amigo chamado George Underwood, mas não conheço nenhum Overwood.

     — Esta era uma menina, Rose Overwood.

     — Que nome esquisito! — disse Tommy. — Não combina. Preciso chamar aqueles eletricistas. Tenha cuidado, Tuppence, ou você vai cair naquele buraco lá em cima.

     — E morrerei de morte natural.

     — Não, morrerá de curiosidade. Conhece aquele ditado: "A curiosidade matou um gato"?

     — Você não sente curiosidade?

     — Não vejo razão para isso. O que temos de sobremesa?

     — Torta com creme.

     — Hum, a refeição estava deliciosa, Tuppence.

     — Ótimo que você tenha gostado.

     — Que pacote é aquele perto da porta dos fundos? O vinho que encomendamos?

     — Não — disse Tuppence, — são bulbos. Tulipas. Vou falar com o velho Isaac sobre eles.

     — Onde vai plantá-los?

     — Ao longo da aléia principal do jardim.

    

     — Aquele velho tem jeito de quem vai morrer a qualquer minuto.

     — Não acho — disse Tuppence. — Isaac é muito forte. Já descobri que os bons jardineiros ficam melhores com a idade. Mas se algum grandalhão, por volta dos trinta e cinco, disser que sempre quis trabalhar num jardim, pode ter certeza de que não vai prestar para nada. Só vai querer varrer algumas folhas e cada vez que você quiser plantar alguma coisa, dirá que é a época errada. E a época certa, não chega nunca. Mas o Isaac é maravilhoso. Entende de tudo. Bem, vou ver se ele já chegou.

     — Daqui a pouco estarei lá também.

     Tuppence e Isaac passaram momentos agradáveis desempacotando os bulbos e discutindo sobre o lugar onde ficariam mais bonitos. Havia tulipas de floração precoce no começo de fevereiro, lindas espécies híbridas, belíssimas tulipas de hastes longas que floriam em maio ou junho. Serviriam para artísticos arranjos para enfeitar a casa, ou para despertar inveja e ciúme aos visitantes, ao longo do caminho que levava à porta da entrada. Talvez até despertassem a sensibilidade do entregador de carne e dos quitandeiros.

     Às quatro horas, Tuppence preparou um bule marrom cheio de chá bem forte na cozinha, colocou-o na bandeja com um bule de leite e o açucareiro, e chamou Isaac para tomar uma xícara antes de ir embora. Foi então à procura de Tommy. Creio que deve estar dormindo em algum lugar, pensou ela. Uma cabeça surgiu de um sinistro buraco no assoalho.

     — Já terminei, madame — disse o eletricista. — Não precisa mais tomar cuidado. Está tudo consertado. Amanhã vou começar a trabalhar lá em cima.

     — Espero que sim — disse Tuppence. — O senhor viu Mr. Beresford em algum lugar?

     — O seu marido? Está lá em cima. Ouvi o barulho de alguma coisa pesada caindo ao chão. Devem ter sido livros.

     — Livros? Minha nossa!

     O eletricista retirou-se para o seu mundo particular sob o corredor e Tuppence subiu ao sótão que tinha sido transformado numa pequena biblioteca ocupada, no momento, pelos livros de crianças. Tommy estava sentado numa escadinha rodeado de livros. Havia falhas consideráveis nas estantes.

     — Então estava olhando os livros, não é? — disse Tuppence. — E fingia que não estava nem interessado! Você desarrumou um bocado de livros que eu já tinha arranjado direitinho.

     — Sinto muito — disse Tommy — mas achei que talvez fosse uma boa idéia dar uma olhada.

     — Encontrou palavras sublinhadas em mais algum livro?

     — Não, nenhuma.

     — Que pena.

     — Acho que esse menino, Alexander Parkinson, era meio preguiçoso. É verdade que arranjou um método trabalhoso, mas bem que poderia ter deixado mais algumas informações a respeito do caso Jordan.

     — Perguntei ao velho Isaac. Ele conheceu muita gente por aqui, mas diz que não se lembra de nenhum Jordan.

     — O que vai fazer com aquele abajur de bronze que está perto da porta? — perguntou Tommy enquanto desciam.

     — Vou levá-lo ao Bazar do Elefante Branco.

     — Por quê?

     — Ah, sempre me aborreceu. Acho que o compramos no estrangeiro, não foi?

     — É, acho que estávamos doidos. Concordo que é horrível, e pesado demais, também.

     — Mas Miss Sanderson ficou toda satisfeita quando lhe disse que poderia ficar com ele. Ofereceu-se para mandar buscá-lo, mas eu disse que o levaria de carro hoje.

     — Posso levá-lo se quiser.

     — Obrigada, prefiro ir.

     — É melhor eu ir junto e carregá-lo para você.

     — Não é necessário. Arranjarei alguém para fazer isso.

     — Tem outras razões para querer ir só, não é?

     — Bem, acho que gostaria de conversar um pouco com o pessoal.

     — Não sei bem o que está pretendendo fazer, Tuppence. Mas vejo que há alguma coisa, pelo brilho de seus olhos.

     — Leve Hannibal para passear — disse Tuppence. — Não posso levá-lo para o bazar. Não quero me meter numa briga de cachorros.

     — Está bem. Vamos passear, Hannibal?

     Hannibal disse sim, como de hábito. Tinha meios inconfundíveis de se fazer entender, requebrava o corpo, sacudia a cauda, levantava e abaixava a pata e esfregava a cabeça na perna de Tommy. Naturalmente, caro amigo, ele parecia dizer, é para isso que você existe. Vamos dar um delicioso passeio. Tomara que haja muitos cheiros para farejar!

     — Venha — disse Tommy, — vou levar a guia e desta vez não fuja para a rua, hem? Aquele ônibus quase o pegou.

     Hannibal olhou-o com a expressão de um cachorro muito bonzinho e obediente, o que não era verdade, mas bem que ele conseguia enganar muita gente! Tommy colocou o abajur no carro, reclamando do peso. Depois que Tuppence virou a esquina, ele saiu com Hannibal e andou até a ruazinha da igreja, onde havia pouco tráfego. Ali retirou a guia da coleira e Hannibal agradeceu o privilégio rosnando e farejando uns tufos de grama que cresciam na calçada. Se soubesse falar diria: Por aqui passou um cachorrão. Deve ter sido aquele dálmata. Detesto dálmatas. Se o encontrar, vou mordê-lo. Ah, uma cadelinha passou por aqui. Gostaria de conhecê-la. Será que mora nesta casa?

     — Hannibal, saia daí, esta casa não é a sua!

     Hannibal fingiu não ouvir. Correu para trás da casa, mas um latido forte por trás da porta da cozinha fez com que voltasse correndo, obedientemente, para perto de Tommy.

     — Bom menino — disse este.

     Quando precisar de mim, é só chamar, respondeu Hannibal.

     Ao chegar ao portão do cemitério, ao lado da igreja, o cão, que tinha o dom de alterar seu tamanho conforme as circunstâncias exigissem, esgueirou-se entre as traves sem dificuldades.

     — Volte aqui, Hannibal, não pode entrar no cemitério!

     Se Hannibal pudesse responder, diria: Mas eu já estou aqui, meu amo! E corria alegremente pelos caminhos do cemitério como se estivesse num jardim agradabilíssimo.

     — Diabo de cachorro! — resmungou Tommy, entrando e correndo atrás de Hannibal que já estava na outra extremidade do cemitério e parecia decidido a fazer uma visita à igreja. Tommy, entretanto alcançou-o a tempo e prendeu o fujão que, muito satisfeito, balançava a cauda, como se aquilo fizesse parte dos seus planos. "Sei que está me prendendo porque sou um cachorro muito valioso," pa-recia dizer. Como não houvesse ninguém ali para dizer que era proibido, Tommy resolveu continuar o passeio pelo cemitério, talvez para conferir as descobertas de Tuppence.

     Examinou primeiro um velho e gasto monumento de pedra, perto de uma pequena porta lateral da igreja. Era provavelmente um dos mais antigos. Havia vários por ali, com datas do século dezenove, mas esse mereceu um exame mais demorado de Tommy.

     — Estranho — disse ele. — Muito estranho.

     Hannibal olhou-o. Não entendia por que seu dono estava tão interessado no túmulo. Não havia nada ali que pudesse interessar um cachorro. Sentou-se, olhando o dono com um ar inquisitivo.

 

     O BAZAR DO ELEFANTE BRANCO

     O ABAJUR de bronze de Tuppence, horroroso na opinião dela, foi recebido calorosamente.

     — Que delicadeza a sua, Mrs. Beresford, trazer-nos algo tão bonito e interessante. Suponho que o comprou em suas viagens fora do país.

     — Sim, nós o compramos no Egito — disse Tuppence.

     Não tinha muita certeza, pois já o comprara há oito ou dez anos. Não sabia se fora em Damasco, Bagdá ou no Teerã, mas como o Egito estava muito em moda no momento, achou que assim o abajur ficaria mais interessante. Depois ele tinha um jeitão meio egípcio, e se não fora feito lá, pelo menos era de inspiração egípcia.

     — Mas é grande demais para a nossa casa — explicou.

     — Acho aue deveríamos rifá-lo — disse Miss Little.

     Miss Little era uma espécie de supervisora do bazar. Seu apelido era "o arquivo" principalmente porque estava sempre bem informada do que acontecia na paróquia. Era uma mulher grande e volumosa que desmentia o seu sobrenome. Chamavam-na Dotty, diminutivo de Dorothy.

     — Virá ao bazar, Mrs. Beresford?

     — Certamente, mal posso esperar para comprar algumas coisas. Acho ótima a idéia do bazar, o que parece um elefante branco para alguém pode ser uma pérola preciosa para outra pessoa.

     — Preciso repetir essa frase para o vigário — disse Mrs. Price-Ridley, uma senhora angulosa, com dentes demais. — Ele vai achar engraçado.

     — Vou comprar essa bacia de papier-mâché — disse Tuppence erguendo-a como um troféu — se estiver ainda à venda amanhã.

     — Mas existem lindas bacias de plástico, hoje.

     — Não gosto muito de plástico — disse Tuppence; — essa bacia é muito jeitosa, você pode enchê-la de louças que elas não se quebrarão. E esse antigo abridor de latas com uma cabeça de touro, não se vê mais disto!

     — Acho os abridores elétricos bem mais práticos.

     A conversa prosseguiu nesse teor até que Tuppence perguntou se poderia ajudar em alguma coisa.

     — Ah, Mrs. Beresford, acho que a senhora deve ter muita sensibilidade artística. Que tal arrumar a vitrina de antiguidades?

     — Posso tentar. Se não estiver saindo a seu gosto, avise-me.

     — É ótimo ter mais alguém para ajudar. A senhora já acabou a arrumação de sua casa?

     — Calculei que já tivesse acabado a essa altura, mas ainda falta muita coisa. Meu maior problema são os eletricistas, carpinteiros e o resto do pessoal. Não acabam nunca.

     Formou-se um debate para decidirem quais eram os piores, se os eletricistas ou se os operários da companhia de gás.

     — Os bombeiros são piores — declarou Miss Little com firmeza, — pois têm que vir lá de Lower Stamford. Os eletricistas vêm só de Wellbank.

     A chegada do vigário, que apareceu para dizer umas palavras animadoras às senhoras, interrompeu a conversa.

     — Soube muita coisa a respeito da senhora e de seu marido — disse ele a Tuppence. — Devem ter tido uma vida fascinante! Creio que não gostam muito de falar a respeito da maravilhosa atuação que tiveram na última guerra, não é?

     — Ah, conte-nos senhor vigário — disse uma das senhoras que arrumava o balcão das geléias.

     — Não posso, contaram-me muito confidencialmente. Creio que a vi passeando pelo cemitério ontem, Mrs. Beresford.

     — Estive na igreja também. O senhor tem dois vitrais muito bonitos.

     — Um deles é do século quatorze, mas a maior parte já é da era vitoriana.

     — Vi que há muitos Parkinson enterrados no cemitério.

     — É verdade, houve muita gente da família Parkinson morando aqui, mas eu não os conheci. Acho que deve ter conhecido alguns, não é Mrs. Lupton?

     Mrs. Lupton, uma senhora idosa que andava com o auxílio de duas bengalas, sorriu.

     — Sim, lembro-me quando a velha Mrs. Parkinson, que morava no solar da família, ainda vivia. Era uma mulher maravilhosa.

     — Vi também os túmulos de alguns Sommers e Chattertons.

     — Vejo que a senhora está interessada no nosso passado — disse o vigário.

     — Creio ter ouvido falar numa Jordan, terá sido Annie ou Mary? — Tuppence olhou em volta com um ar interrogativo, mas o nome Jordan parecia não ter despertado nenhum interesse.

     — Alguém já teve uma cozinheira chamada Susan Jordan. Acho que foi Mrs. Blackwell. Mas não era grande coisa, só ficou alguns meses.

     — Isso aconteceu há muito tempo?

     — Não, há mais ou menos uns oito ou dez anos, no máximo.

     — Ainda há algum, Parkinson morando por aqui?

     — Não, foram-se há muito tempo. Creio que uma delas casou-se com um primo e foram viver em Quênia.

     — Mrs. Lupton — chamou Tuppence, sabendo que a velha senhora trabalhava no hospital de crianças local, — a senhora quer uns livros para as suas crianças? São velhos, vieram junto com a mobília antiga que compramos com a casa.

     — É muita delicadeza sua, Mrs. Beresford, mas ganhamos uma porção deles, em edições modernas. Não creio que as crianças gostem muito de ler livros antigos.

     — É uma pena que a senhora pense assim — disse Tuppence. — Eu adorava os livros da minha infância e muitos tinham sido da minha avó, quando era pequena. Era desses que eu gostava mais. Nunca me esquecerei da Ilha do Tesouro, da Fazenda dos Quatro Ventos e dos livros de Stanley Weyman. — Tuppence resignou-se ao fracasso e dando uma olhada no relógio disse que era tarde e despediu-se.

     Entrando em casa, após deixar o carro na garagem, foi recebida por Albert que lhe perguntou:

     — Gostaria de uma xícara de chá, senhora? Deve estar cansada.

     — Não, obrigada. Elas me ofereceram chá lá no bazar. Com um bolo muito gostoso, por sinal. Os pãezinhos é que estavam horríveis.

     — É difícil fazer pãezinhos, quase tão difícil quanto roscas fritas. Ah — e Albert suspirou — Amy sabia fazer umas rosquinhas deliciosas!

     — Isso mesmo. Ninguém sabia fazê-las como ela.

     Amy tinha sido a esposa de Albert, falecida há alguns anos. Na opinião de Tuppence, Amy soubera fazer tortas deliciosas, mas as suas rosquinhas nunca tinham sido grande coisa.

     — Nunca consegui fazer rosquinhas que prestassem — disse Tuppence.

     — Ah, e preciso um dom especial.

     — Onde está Mr. Beresford? Saiu?

     — Não senhora. Está lá em cima no sótão, quero dizer, na nova biblioteca.

     — O que está fazendo lá em cima? — perguntou Tuppence surpreendida.

     — Olhando os livros, eu acho. Fazendo uma arrumação.

     — Estou achando isso esquisito. Ele foi meio indelicado conosco por causa daqueles livros.

     — Creio que foi porque não entendia como a senhora podia se interessar tanto por eles. Ele prefere uns livros mais sérios, livros científicos, não é?

     — Vou subir e tirá-lo de lá — disse Tuppence.

     — Onde está Hannibal?

     — Acho que está lá em cima também.

     Nesse instante Hannibal apareceu. Depois de latir ferozmente, como achava ser sua obrigação como cão de guarda, tinha deduzido corretamente que fora a sua dona quem entrara e não algum ladrão de pratarias. Descera as escadas rebolando o corpo, a língua de fora, balançando a cauda.

     — Você está contente em ver sua mãe, não é? — disse Tuppence.

     Hannibal concordou com tanta veemência que quase a derrubou.

     — Devagar, devagar. Não quer me matar, não é? Onde está seu dono? Lá em cima?

     Hannibal entendeu. Subiu correndo um lance de escadas e olhou para ela, esperando que o seguisse.

     — Bem, nunca pensei encontrá-lo aqui — disse Tuppence, meio sem fôlego, ao ver Tommy sobre uma escadinha de madeira remexendo nos livros.

     — O que está fazendo? Pensei que tinha ido levar Hannibal para passear.

     — Nós fomos passear — disse Tommy. — Lá no cemitério.

     — O que foram fazer lá? Acho que não é permitido cachorro entrar no cemitério.

     — Ele estava preso e não fui eu quem o levei. Ele é que me levou. Parece gostar muito lá do cemitério.

     — Espero que ele não se acostume com a idéia

     — disse Tuppence. — Sabe como ele é. Gosta de manter os hábitos. Se ele se habituar a ir ao cemitério todos os dias, vai ser um problema para nós.

     — Ele quer lhe contar que é mais inteligente do que nós dois.

     — O que quer dizer com isso? — perguntou Tuppence.

     — Divertiu-se muito? — disse Tommy mudando de assunto.

     — Bem, eu não diria isso. Todas foram muito amáveis e delicadas comigo e pode ser que eu aprenda a distingui-las. Mas de saída, é difícil, sabe? Todas usam roupas parecidas e não sei quem é quem.. Se ao menos tivesse alguma muito bonita ou muito feia, seria mais fácil.

     — Eu ia lhe contar sobre a nossa esperteza, minha e de Hannibal.

     — Se não me engano, tinha dito que o esperto era o Hannibal.

     Tommy estendeu a mão e pegou um livro na estante a sua frente.

     — "Raptado" — ele leu. — Mais um livro de Robert Louis Stevenson. Alguém gostava muito dele. Alexander Parkinson. A Flecha Negra, Raptado, Catriona e mais dois, todos dados a Alexander por uma avó carinhosa e por uma tia.

     — E daí? — perguntou Tuppence.

     — Achei seu túmulo — disse Tommy.

     — Achou o quê?

     — Foi Hannibal quem achou. Está bem no canto, perto de uma pequena porta lateral da igreja. Acho que é a porta da sacristia. Está muito apagado e mal conservado. Alexander Richard Parkinson tinha quatorze anos de idade quando morreu. Hannibal estava farejando o túmulo. Consegui pegá-lo e 11 a inscrição, apesar de estar muito apagada.

     — Quatorze anos — disse Tuppence. — Pobre menino.

     — É, é muito triste.

     — Alguma coisa o preocupa — disse Tuppence. — O que é?

     — Sabe, comecei a imaginar coisas. Acho que você me contagiou. Isso é o pior em você. Quando se interessa por algo, acaba fazendo com que os outros se interessem também.

     — Não vejo ainda qual é o problema.

     — Fiquei pensando se não teria sido uma questão de causa e efeito.

     — O quê, Tommy?

     — Pensava em Alexander Parkinson, que se deu ao trabalho de escrever, em código, uma mensagem secreta em seu livro. "Mary Jordan não morreu naturalmente " Suponhamos que fosse verdade. O que acontece a seguir? Alexander Parkinson morre.

     — Você não está achando que...

     — Talvez — disse Tommy. — O fato de ele morrer aos quatorze anos fez com que começasse a pensar. Naturalmente não há nada escrito no túmulo sobre a causa de sua morte. Só: "Em Deus encontrarás a alegria plena". Bem, ele sabia algo que era perigoso para alguém. E morreu.

     — Acha que foi assassinado? Pode ser só imaginação sua.

     — Foi você quem começou, lembra-se?

     — Acho que nunca descobriremos nada, embora continuemos a imaginar coisas. Faz tempo demais.

     — Deve ter sido mais ou menos na época em que investigávamos o caso de Jane Finn.

     Entreolharam-se e começaram a pensar no passado.

    

          PROBLEMAS

     MUITA gente acha que uma mudança poderá ser até divertida, e que será um agradável exercício até para os empregados dá companhia de mudanças, mas a maioria das vezes não é isso que acontece.

     É necessário fazer ou restabelecer relações com eletricistas, pedreiros, carpinteiros, pintores, colocadores de papel de parede, vendedores de geladeiras, fogões e aparelhos elétricos, estofadores, fornecedores de cortinas, linóleos e tapetes. Todos os dias, além do aue estava no programa, aparece sempre uma dúzia de pessoas. Algumas aguardadas com ansiedade e outras que já tinham até sido esquecidas.

     Mas, pouco a pouco, Tuppence começou a anunciar o término de várias tarefas, com suspiros de alívio.

     — Acho que a cozinha está quase perfeita. Só falta encontrar um depósito adequado para a farinha de trigo.

     — Isso é muito importante? — perguntou Tommy.

     — De certo que é. A farinha é vendida em pacotes de um quilo e meio, e as latas que tenho só dão para um quilo. É uma pena, são tão bonitinhas, cada uma com uma flor diferente.

     Dias depois, Tuppence reclamou:

     — Que nome tolo tem esta casa! "Os Loureiros". Não vejo o porquê. Não encontrei nenhum loureiro. Poderiam tê-la chamado "Os Olmos". Acho o olmo uma árvore muito simpática.

     — Parece que no tempo dos Waddington ela teve outro nome.

     — Faço uma confusão danada com esses nomes todos. Depois dos Waddington vieram os Jones, o pessoal que nos vendeu a casa. E antes deles, os Blackmore? E há muito tempo atrás os Parkinson, montanhas de Parkinson. Tenho ouvido falar muito deles.

     — Quando foi isso?

     — Para ser sincera, eu é que tenho perguntado muito sobre eles — disse Tuppence. — Se pudesse descobrir alguma coisa, poderíamos prosseguir com o nosso problema.

     — Está falando de Mary Jordan?

     — O problema não é só esse. Veja, a mensagem dizia: "Mary Jordan não morreu naturalmente". E depois prosseguia: "Foi um de nós". Será que "um de nós" queria dizer alguém da família Parkinson, ou qualquer pessoa que vivia na casa? Digamos que houvesse dois ou três Parkinson, algum velho avô, uma tia com um nome diferente mas ainda da família, e uma copeira, uma cozinheira, talvez uma governante, e uma faxineira, quem sabe? De qualquer modo, "um de nós" pode ter incluído muita gente. Mary Jordan pode ter sido uma empregada. E por que razão alguém queria que ela morresse? E esse alguém deve tê-la matado. .. Bem, depois de amanhã, de manhã, vou a outra reunião.

     — Você está indo a muitas reuniões ultimamente.

     — É um jeito de conhecer os vizinhos e as outras pessoas da aldeia. Essa aqui não é muito grande, e as pessoas sempre falam de seus velhos parentes e conhecidos. Vou tentar obter alguma coisa de Mrs. Griffin. Ela parece ser alguém aqui na vizinhança. Parece dirigir a todos com eficiência. Manda no vigário, no médico, na enfermeira da comarca e no resto do pessoal.

     — Será que a enfermeira não seria útil?

     — Não creio. A que serviu por aqui no tempo dos Parkinson já morreu. E esta é muito recente, não tem nenhuma curiosidade sobre o lugar. Acho que nem sabe que os Parkinson existiram.

     — Gostaria de poder esquecer todos esses Parkinson! — disse Tommy, meio desesperado.

     — Acha que daí não teríamos nenhum problema?

     — Lá vem você com problemas. . .

     — Foi a Beatrice.

     — Que Beatrice?

     — Quem me ensinou a usar esse termo. Acho que foi a Elizabeth que fazia a limpeza antes da Beatrice. Estava sempre me chamando para dizer: "Madame, eu estou com um problema." Daí a Beatrice também começou a usar esta frase e eu acabei pegando o hábito.

     — É. Vamos admitir isto: você tem um problema ... eu tenho um problema... nós temos problemas! — E Tommy deu um suspiro e saiu.

     Tuppence desceu as escadas devagar, sacudindo a cabeça. Hannibal chegou-se a ela, sacudindo a cauda, esperançoso.

     — Não Hannibal, você já deu o seu passeio matinal.

     Hannibal não desistiu, tentou convencê-la por vários meios caninos de que gostaria muito de passear outra vez. Por fim, desiludido, desceu as escadas e começou a latir para uma moça um tanto descabelada, que empunhava um aspirador de pó, como se estivesse prestes a mordê-la.

     — Não deixe que ele me morda — gritou Beatrice.

     — Ele não vai mordê-la — disse Tuppence. — Está só fingindo.

     — Pois acho que um dia desses ele vai me morder de verdade — disse Beatrice, acrescentando: — Gostaria de falar com a senhora um momento.

     — O que há?

     — Bem, eu tenho um problema.

     — Achei mesmo que era isso — disse Tuppence. — Que espécie de problema? E, por falar nisso, conheceu por aqui alguma família ou alguma pessoa chamada Jordan?

     — Jordan? Bem, eu não sei. Conheci uns Johnson, um policial e um carteiro. Esse foi até meu namorado — disse Beatrice dando uma risadinha.

     — Nunca ouviu falar de uma Mary Jordan, que morreu?

     Beatrice sacudiu a cabeça negando e voltou ao ataque.

     — É sobre o meu problema, senhora!

     — Ah, sim, o seu problema.

     — Espero que não se aborreça de eu lhe fazer uma pergunta, mas estou numa enrascada e não estou gostando disso.

     — Se me contar depressa... Tenho que ir a uma reunião.

     — Na casa de Mrs. Barber, não é?

     — Bem, agora qual é o problema?

     — É sobre um casaco. Achei tão bonito. Foi lá no Simmonds; entrei, experimentei e achei lindo. Tinha uma mancha perto da bainha, mas quase não aparecia.

     — Sim, o que mais?

     — Achei que estava barato por causa disto. E comprei. Quando cheguei em casa vi que tinha uma etiqueta marcando seis libras e eu só paguei três e setenta. Daí, achei que não estava direito. Voltei à loja e levei o casaco. Mas a pequena que o vendeu... o nome dela é Gladys... ficou aflitíssima. Eu disse que pagava a diferença e ela disse: "Não, não pode. Já está registrado. Isto vai me causar complica-ções".

     — Por que haveria de causar complicações?

     — Eu também achei que não. Mas ela disse que achariam que tinha sido negligente, não tinha olhado a etiqueta e que poderiam despedi-la.

     — Creio que não — disse Tuppence. — Você agiu corretamente.

     — Mas aí é que está. Ela tanto fez, começou a chorar e tudo mais, então eu peguei o casaco e vim embora. E agora não sei se roubei a loja ou não.

     — Olhe — disse Tuppence, — eu já estou velha demais para saber o que é correto fazer nos dias de hoje. As lojas são diferentes das do meu tempo e os preços também. Talvez você pudesse dar o dinheiro a Gladys e ela resolveria a situação de algum modo.

     — Mas imagine se ela ficasse com o dinheiro para ela. Então seria ela a ladra e não eu.

     — A vida é difícil, não é? Mas creio que você tem que resolver esse caso sozinha. Se não pode confiar na sua amiga. ..

     — Ela não é uma amiga de verdade. Só a conheço das vezes que faço compras lá. Ouvi falar que perdeu o seu último emprego por causa de uma dúvida a respeito de dinheiro.

     Tuppence, já meio afobada, sugeriu:

     — Neste caso, eu não faria nada. Empregou um tom tão firme que Hannibal

     decidiu oferecer o seu apoio. Começou a latir para Beatrice e atacou o aspirador que considerava um dos seus piores inimigos. "Não confio nada neste aspirador, vou atacá-lo", latiu ele.

     — Fique quieto, Hannibal. Pare de latir. Não vá morder ninguém nem coisa alguma na minha ausência, viu? Estou atrasada.

     E Tuppence saiu apressadamente.

     — Problemas — disse Tuppence, enquanto descia a ladeira da Rua do Pomar. Será que alguma dessas casas tinha um pomar?, pensou. Parecia pouco provável.

     Mrs. Barber a recebeu com evidente prazer. Ofereceu-lhe alguns éclairs de aspecto delicioso.

     — Que beleza! — disse Tuppence — A senhora os comprou na confeitaria Batterby?

     — Não, não. Foi minha tia quem os fez. Ela é maravilhosa, sabe fazer coisas deliciosas.

     — É muito difícil fazer éclairs. Nunca consegui fazê-los direito.

     — Parece que o segredo está na qualidade da farinha.

     As senhoras tomaram o seu café e conversaram sobre as dificuldades da arte culinária.

     — Mrs. Bolland estava falando sobre a senhora um dia desses.

     — Quem é Mrs. Bolland? — perguntou Tuppence.

     — Ela mora perto da casa do vigário. Sua família é muito antiga aqui. Contou-nos como costumava vir até aqui quando era criança. Adorava as groselhas que "havia no jardim. E também as ameixas Rainha-Cláudia. É praticamente impossível encontrar essas ameixas hoje em dia. Existem uma parecidas, mas o gosto é diferente.

     Todas concordaram que as frutas não tinham mais o mesmo sabor da época de sua infância.

     — Meu tio-avô tinha árvores de Rainha-Cláudia — disse Tuppence.

     — Aquele que era cónego em Anchester? O Cónego Henderson morou aqui com sua irmã. Aliás, aconteceu uma coisa muito triste. Um dia, ela estava comendo bolo de cominho e uma das sementes desceu pelo caminho errado, ela engasgou-se, e não houve jeito, morreu.

     — Que coisa triste — disse Mrs. Barber. — Muito triste. Uma das minhas primas também morreu engasgada com um pedaço de carneiro. São coisas que acontecem. Até de soluços a gente morre.

    

     MAIS PROBLEMAS

     — POSSO falar um momento com a senhora?

     — Oh meu Deus! — suspirou Tuppence. — Mais problemas?

     Descia da biblioteca limpando a poeira de seu costume mais elegante e estava pensando em pôr um chapeuzinho de penas para ir a um chá. Fora convidada por uma nova amiga que conhecera no Bazar do Elefante Branco. Não era hora para ouvir Beatrice falar de suas dificuldades.

     — Não senhora, não são mais problemas não. Acho que é algo que lhe interessa.

     — Ah! — exclamou Tuppence, ainda desconfiada. — Estou um pouco apressada, pois tenho que ir a um chá.

     — Bem, noutro dia a senhora me perguntou se eu ouvira falar de uma Mary Jordan. E eu pensei que fosse Mary Johnson. Sabe, eu conheci uma Belinda Johnson que trabalhava no correio, há muitos anos.

     — É, eu sei — disse Tuppence. — Havia também um policial chamado Johnson. Você já me disse.

     — Bem, essa minha amiga, chamada Gwenda, ela trabalha numa loja ao lado do correio, onde vendem envelopes, cartões, e até presentes na época de natal.

     — Sei qual é, a loja de Mrs. Garrison.

     — Essa mesmo, só que não é mais de Mrs. Garrison. Mas de qualquer maneira, Gwenda disse que já ouviu falar de uma Mary Jordan que morou aqui muito tempo atrás. E que a senhora ia se interessar pela história. Ela morou aqui nesta casa.

     — Na Casa dos Loureiros?

     — É, só que naquele tempo o nome não era esse. Mas a minha amiga disse que ouviu contar alguma história triste sobre essa Mary. Parece que-ela morreu de um acidente ou coisa parecida.

     — Sabe se ela morava nesta casa quando morreu? Ela fazia parte da família?

     — Não, a família chamava-se Parker. Parker ou Parkinston, não sei bem. Acho que ela estava hospedada aqui. Mrs. Griffin é capaz de saber mais coisas sobre isso. A senhora conhece Mrs. Griffin?

     — Muito ligeiramente — respondeu Tuppence. — Aliás, o chá desta tarde é lá na casa dela. Conhecia-a no bazar outro dia.

     — Ela é muito velha. Mais velha do que parece, mas a sua memória ainda é muito boa. Acho que era madrinha de um filho dos Parkinston.

     — Qual era o nome dele?

     — Acho que era Alec. Alec ou Alex, parece.

     — O que aconteceu com ele? Cresceu e entrou para a marinha ou para o exército ou coisa semelhante?

     — Não senhora. Ele morreu. Acho que, está enterrado aqui. Teve uma daquelas doenças que ninguém dava jeito naquele tempo. Uma doença com nome de gente.

     — Mal de Hodgkins, talvez?

     — Não, não era essa. Uma doença que dá no sangue. Hoje em dia parece que eles trocam o sangue da pessoa, mas mesmo assim, não adianta. Mrs. Billing... da loja de doces, sabe... ela perdeu uma menina com sete anos dessa doença. Dá muito em crianças.

     — Leucemia? — sugeriu Tuppence.

     — É, isso mesmo! Mas dizem que um dia haverá cura. Como aquelas vacinas para tifo, sabe?

     — Pobre menino — disse Tuppence.

     — Ele não era muito pequeno. Já freqüentava o colégio. Devia ter uns treze ou quatorze anos.

     — Foi uma pena de qualquer maneira — Tuppence fez uma pausa. — Estou um pouco atrasada. É melhor me apressar.

     — Essa Mrs. Griffin sabe um bocado de coisas. Coisas que ela ouviu contar quando era pequena. Gosta muito de contar histórias sobre as famílias que viveram aqui. Cada escândalo! Parece que naqueles tempos, na era vitoriana ou eduardiana, sei lá, deve ter sido vitoriosa, pois a Rainha Vitória ainda estava viva... parece que o pessoal da alta sociedade daquele tempo não era sopa!

     — Que interessante! — disse Tuppence.

     — Parece que as moças faziam coisas que não deviam — continuou Beatrice, achando que a conversa estava ficando animada.

     — Não creio — atalhou Tuppence. — Acho que elas tinham uma vida até muito austera. Casavam-se muito cedo, a maioria das vezes com outros nobres.

     — Ah! — suspirou Beatrice, — moças de sorte. Deviam ter lindas roupas, ir às corridas e aos bailes nos palácios.

     — Creio que iam a muitos bailes, sim.

     — Sabe, uma vez conheci uma moça e a avó dela tinha sido empregada numa dessas casas grã-finas, onde se recebia muita gente. Uma vez, o Príncipe de Gales daquele tempo, o que depois foi Eduardo VII, esteve lá. Ela disse que ele era muito amável, com os criados e com todos. E ela guardou o sabonete que ele tinha usado para lavar as mãos. Uma vez, ela até mostrou para nós.

     — Que interessante! — disse Tuppence. — Época fascinante aquela, não? O Príncipe esteve aqui nos loureiros também?

     — Não, infelizmente. Nada de príncipes, nem condes, nem marqueses. Nem mesmo um lorde ou uma lady. Os donos da casa eram muito ricos, mas viviam do comércio. E comércio não é uma coisa muito chique, não é?

     — Depende — disse Tuppence. — É melhor eu ir andando.

     — É, acho que está na hora, sim, senhora.

     — É melhor eu colocar um chapéu. O meu cabelo está meio despenteado.

     — É, a senhora entrou com a cabeça nas teias de aranha. Vou limpá-las para que isso não aconteça outra vez.

     Tuppence desceu as escadas correndo.

     — Alexander deve ter feito isto muitas vezes. E ele sabia que tinha sido "um deles". Não consigo parar de pensar nisto.

    

          MRS. GRIFFIN

     — FOI ótimo a senhora e o seu marido terem vindo morar aqui, Mrs. Beresford — disse Mrs. Griffin enquanto servia o chá. — Açúcar? Leite?

     Ofereceu um prato de sanduíches e Tuppence serviu-se.

     — É tão importante ter vizinhos simpáticos com quem se tenha algo em comum, não acha? A senhora já conhecia esta região do país?

     — Não, nem um pouco — disse Tuppence. — Os corretores nos enviaram descrições de muitas casas, e percorremos várias delas. Algumas eram horrorosas. Imagine que uma era anunciada como "possuindo todo o encanto do velho mundo".

     — Posso ter uma idéia, devia ter um telhado em petições de miséria e umidade por todos os cantos. Quando dizem "totalmente modernizada", provavelmente estará cheia de aparelhos elétricos desnecessários e cercada de casas horrorosas. Mas a Casa dos Loureiros é uma graça. Mesmo assim a senhora provavelmente teve que modificar muitas coisas nela, não?

     — Deve ter sido habitada por diversas famílias, não é?

     — Hoje em dia as pessoas não se fixam muito aos lugares. Lembro-me dos Cuthbertsons, dos Red-lands, dos Seymours e por último os Jones.

     — Qual a razão de a terem chamado "A Casa dos Loureiros"?

     — Ora, devem ter gostado do nome. Pensando bem, há muito tempo atrás, na época dos Parkinson, havia uns loureiros ao longo da entrada, naquela curva, sabe. Um grupo deles, incluindo alguns daquela variedade manchada. Daqueles não gosto muito.

     — Também não — concordou Tuppence. — Parece ter havido muitos Parkinson por aqui.

     — Sim, creio que moraram na sua casa mais tempo do que qualquer outra família.

     — Ninguém sabe me contar muita coisa sobre

     eles.

     — É que já faz muito tempo, querida. E depois ... depois do que houve, não é de admirar que tenham vendido a casa.

     — O que foi, acharam que a casa dava azar? — perguntou Tuppence aproveitando a chance. — O lugar não era saudável ou coisa parecida?

     — Não, o problema não foi com a casa. Foi com a família. Bem, foi durante a Primeira Guerra Mundial que a desgraça aconteceu. Ninguém queria acreditar." Minha avó costumava falar sobre o caso. Segredos da Marinha teriam sido revelados, planos para um novo submarino, parece. Falou-se que uma moça que morava com os Parkinson também estaria envolvida no caso.

     — Chamava-se Mary Jordan?

     — É, isso mesmo. Disseram depois que o seu nome verdadeiro não era esse. Parece que o menino, filho dos donos da casa, já suspeitava dela há muito tempo. Um bom menino, o Alexander, muito inteligente.

    

     LIVRO II

     MUITO TEMPO ATRÁS

     CHOVIA. Tuppence estava escolhendo uns cartões de aniversário no correio quase vazio. Pessoas depositavam cartas na caixa do lado de fora ou compravam selos às pressas e tratavam logo de voltar a suas casas. Não era uma tarde boa para compras. Escolhi bem a ocasião, pensou Tup-pence.

     Gwenda, que ela havia reconhecido facilmente pela descrição de Beatrice, mostrava-se interessada em ajudá-la. Gwenda era a vendedora da lojinha que existia em função do Correio de Sua Majestade. Esse era administrado por uma senhora idosa, de cabelos grisalhos.

     Gwenda, que gostava de falar, sempre se interessava pelos novos habitantes da aldeia. Vivia feliz entre todos aqueles cartões com mensagens de amor, felicitações, boas-festas, papéis de carta, chocolates e enfeites de porcelana. Ela e Tuppence já estavam em grandes conversas:

     — Fico satisfeita que esteja morando na "Cabana dos Príncipes"!

     — Pensei que se chamasse "A Casa dos Loureiros".

     — Nada disso, acho que o nome não é esse não. Mas os donos gostam de mudar o nome das casas.

     — É, parece que é verdade — concordou Tuppence. — Até mesmo nós já pensamos em trocar o nome dela. A propósito, Beatrice disse que você conheceu uma moça chamada Mary Jordan que morou lá.

     — Eu não a conheci, mas ouvi falar nela. Foi durante a guerra, não esta última, aquela outra em que havia zepelins.

     — É, já ouvi falar deles.

     — Foi em 1914 ou 1915 que eles chegavam até Londres, vinham à noite; devia ser pavoroso, não?

     — Bem, nem tanto. Não eram tão assustadores como as bombas voadoras da última guerra. A gente tinha uma sensação estranha, como se eles estivessem nos seguindo pelas ruas.

     — Vocês passavam a noite no metrô, não é verdade? Tinha uma amiga em Londres que ia todas as noites para a mesma estação do metrô.

     — Não estávamos em Londres nesta última guerra, mas acho que eu não gostaria de passar as noites no metrô.

     — Essa minha amiga Jenny adorava! Achava divertido mesmo, todos já tinham seus lugares marcados, os amigos esperavam pela gente, o pessoal levava sanduíches; conversavam e se divertiam a noite inteira. Os trens andavam o tempo todo sem parar. Quando a guerra acabou e ela voltou para casa, não conseguia se acostumar, achava tudo sem graça.

     — Mas voltando a Mary Jordan...

     — Já faz muito tempo que ouvi minha avó falar sobre ela. Dizia que tinha uns cabelos louros muito lindos. Ela era alemã, uma fraulein como as chamavam. Era uma espécie de governanta, tomava conta das crianças. Tinha trabalhado com a família de um oficial da Marinha, lá na Escócia, parece. Depois veio trabalhar aqui com os Parks ou Perkins, sei lá. Tinha folga uma vez por semana e ia sempre a Londres, e era lá que entregava as coisas, não sei bem o que eram, talvez coisas que roubasse.

     — Ela foi surpreendida roubando alguma coisa?

     — Acho que não, mas estavam começando a suspeitar dela quando adoeceu e morreu.

     — De que ela morreu? Foi aqui, no hospital?

     — Naquele tempo não havia hospital aqui. Disseram que a cozinheira se enganou, confundiu folhas de erva dedaleira com espinafre ou alface, sei lá. Parece que a dedaleira tem um veneno mortal chamado digital ou coisa semelhante. Chamaram o médico e ele fez o que pôde, mas não adiantou.

     — Havia muitas pessoas na casa quando isso aconteceu?

     — Parece que sempre havia muita gente: hóspedes, crianças, babá, governante, e sempre festas. Foi o que minha avó contou. E o velho Mr. Bodlicott também fala sobre essas coisas às vezes, aquele velho jardineiro que vai a sua casa. No começo parece que o acusaram de colher as plantas erradas, mas depois descobriram que tinha sido alguém da casa que resolvera pegar alguns legumes e fizera a confusão. Parece que o espinafre estava plantado perto de uns pés de dedaleira, e no inquérito disseram que era possível alguém colher umas folhas do veneno junto, por engano. De qualquer maneira foi uma coisa triste porque a minha avó dizia que ela era muito linda mesmo.

     — E ela costumava ir a Londres todas as semanas?

     — Costumava sim, dizia que tinha amigos lá. Era estrangeira e então falaram que era uma espiã alemã.

     — E ela era?

     — Acho qut não. Ela tinha muitos amigos. Os oficiais da Marinha e os militares do Campo Shelton gostavam dela.

     — Ficou provado que era espiã?

     — Acho que não. Isso foi o que as pessoas começaram a dizer. Mas isso foi há muito tempo, não foi na última guerra, não. Foi antes de 1914. Naquele tempo era moda ter babás estrangeiras. Francesas e até alemãs. Minha avó dizia que ela tinha muito jeito com as crianças. Todo mundo gostava dela.

     — Nessa época é que ela trabalhava na Casa dos Loureiros?

     — Mas não era esse o nome. Ela morava lá, sim. E sabia pintar quadros. Pintou até um retrato de uma velha tia-avó minha. Mas a tia Fanny dizia que tinha saido muito velha no retrato. Ela também fez um retrato de um menino da casa. Está lá na casa de Mrs. Griffin. Foi esse menino que desco-briu coisas sobre a Mary. Acho que ele era afilhado de Mrs. Griffin.

     — Deve ter sido Alexander Parkinson.

     — É, esse mesmo. Ele está enterrado perto da igreja.

    

     MATILDE, BEM-AMADO E O QUIOSQUE

     NA manhã seguinte, Tuppence saiu à procura do velho Isaac, que em ocasiões formais era chamado de Mr. Bodlicott. Isaac Bodlicott era uma figura popular na aldeia por duas razões: era muito velho, andava pelos noventa anos, e entendia praticamente de tudo. Sabia consertar um número inacreditável de coisas. Se alguém precisasse de um bombeiro, e não achasse, o velho Isaac dava um jeito. Problemas de esgoto, de água, aquecedor enguiçado, curto-circuitos, não eram mistérios para Mr. Bodlicott. Cobrava muito menos que os profissionais técnicos no assunto e seus consertos eram, muitas vezes, surpreendentemente geniais. Entendia de carpintaria, de fechaduras emperradas, pendurava quadros — que ficavam meio tortos, às vezes — e sabia consertar até molas de poltronas decrépitas. A única desvantagem dos seus serviços era que falava praticamente o tempo todo, só parando para consertar a dentadura que volta e meia atrapalhava a sua dicção. A memória do velho Isaac era fantástica. Suas lembranças dos acontecimentos passados da vida da aldeia eram, às vezes, literalmente inacreditáveis, pois gostava de adicionar detalhes meio duvidosos a velhas histórias.

     — A senhora ficaria espantada se eu lhe contasse tudo que sei sobre aquele caso. Todo mundo pensa que sabe o que aconteceu, mas estão enganados, completamente enganados. Foi a irmã mais velha, sabe? Parecia tão distinta... Foi o cachorro do açougueiro que forneceu a pista. Seguiu-a até aquela casa, Ah, se eu lhe contasse tudo. E o caso da velha Mrs. Atkins. Ninguém sabia que ela tinha um revólver em casa. Mas uma vez que ela me chamou para consertar um armário alto que tem na sala, as dobradiças estavam ruins, eu vi na gaveta o revólver embrulhado junto com uns sapatos brancos de cetim, ela disse que eram do casamento da avó dela. Mas o revólver, foi o filho que trouxera da África, de uma caçada de elefantes, e ele ensinou a velha a atirar. Sabe o que ela fazia? Ficava sentada junto à janela da sala e, quando alguém aparecia na entrada, fazia pontaria por cima da cabeça deles e atirava. Todos se apavoravam e corriam. Ela disse que fazia aquilo para ninguém perturbar os passarinhos, era doida por passarinhos. Seria incapaz de atirar nos bichinhos, nunca faria uma coisa destas. E a Mrs. Letherby? Quase a prenderam, roubava coisas nas lojas. E, no entanto, era cheia do dinheiro.

     Enquanto Mr. Bodlicott consertava a clarabóia do banheiro, Tuppence ficou imaginando uma forma de fazer com que o velho falasse no assunto que a interessava, os segredos que pareciam estar escondidos naquela casa. O velho Isaac não se fazia de rogado para atender aos chamados de gente nova na aldeia. Um dos prazeres de sua vida era conhecer gente, pessoas de fora a quem ele pudesse deslumbrar com suas reminiscências. Os antigos conhecidos muitas vezes não tinham mais paciência para ouvi-las outra vez, mas uma audiência nova era algo que merecia ser saboreado. E gostava também de demonstrar suas extensas habilidades, enquanto isso.

     — O velho Joe teve muita sorte. Podia ter cortado o rosto.

     — É, podia mesmo.

     — Olhe, naquele canto tem cacos de vidro ainda.

     — Estou vendo, mas não houve tempo para limpar.

     — É, mas não se pode arriscar com vidro quebrado. Basta uma lasquinha para causar uma desgraça. Foi o que aconteceu a Mrs. Lavinia Shotacomb, morreu com uma artéria cortada. A senhora não acreditaria, mas...

     Tuppence não se sentiu tentada a ouvir outra vez a história de Miss Lavinia, uma velhinha quase cega e muito surda.

     — Creio — interveio ela antes que Isaac se entusiasmasse com o caso — que você deve saber de muitas coisas estranhas que aconteceram nessa aldeia.

     — É, muitas vezes se pensa que alguém é uma coisa e no fim, vai ver, é uma coisa muito diferente.

     — Uma pessoa pode ser uma espiã ou uma criminosa, não é? — sugeriu Tuppence, mas o velho Isaac não mordeu a isca, abaixou-se e Catou um pedacinho de vidro.

     — Isso podia entrar no seu pé.

     Tuppence viu que a clarabóia não conseguira despertar nada de interessante na memória do velho e sugeriu que fossem dar uma espiada na pequena estufa que ficava junto à parede da sala de jantar. Seus vidros estavam quase todos quebrados. Será que valeria a pena consertar ou era melhor deitá-la abaixo? Isaac se animou com o novo problema. Vamos descer e dar uma olhada. Deram a volta à casa até a construção.

     — Ah, o quiosque — disse Isaac.

     — Quiosque? — estranhou Tuppence.

     — Mrs. Lottie Jones o chamava de quiosque. Acho que é um nome japonês. Isso não é uma estufa de verdade como algumas casas antigas amda têm, para samambaias e avencas, sabe. As crianças costumavam guardar brinquedos aqui.

     — Podemos entrar? — perguntou Tuppence, tentando ver através de um vidro muito sujo. — Parece que há uma porção de coisas aí dentro.

     — Bem, se ninguém tirou, os brinquedos ainda devem estar aí. Matilde e o Bem-amado pelo menos. Havia cadeiras quebradas, também. Veja, está quase caindo. Acho que não serve mais para nada. A chave deve estar no mesmo lugar.

     — Que mesmo lugar?

     — No galpão. Por aqui.

     Seguiram pelo jardim até um barraco que mal merecia o nome de galpão. Depois de remover alguns ramos de árvores e chutar algumas maçãs podres, Isaac abriu a porta com um empurrão. Penduradas num prego, por trás de um velho capacho, estavam quatro chaves enferrujadas.

     — As chaves de Lindop, o último jardineiro que morou aqui. Um empalhador de cadeiras aposentado que não sabia fazer nada direito. Vamos ver o quiosque?

     — Vamos — concordou Tuppence, curiosa.

     Depois da aplicação de um pouco de óleo, que Isaac descobriu miraculosamente em algum lugar, a fechadura funcionou perfeitamente e a porta abriu-se com um rangido para que Tuppence e o seu guia entrassem.

     — Bem, aqui estamos — disse Isaac com ar de quem achara que o esforço não valera a pena. — Bom para o lixo, não é?

     — Mas que cavalo interessante! — disse Tuppence.

     — É a Matilde.

     — Matilde?

     — Foi uma rainha, acho que a mulher de Guilherme, o conquistador. É americana. Foi o padrinho de uma das crianças que a trouxe da América.

     — Que crianças?

     — Um dos filhos dos Bassington.. Deve estar toda enferrujada.

     Matilde tinha sido um cavalo e tanto, algum dia. Era quase do tamanho de uma égua de verdade. Só restavam poucos fios do que fora antigamente uma crina respeitável, e uma das orelhas estava quebrada. As pernas separavam-se em ân-gulo embaixo.

     — É diferente dos outros cavalos de brinquedo que já vi.

     — É, os outros se balançam para frente e para trás, mas esse anda aos pulos, primeiro as patas da frente, depois as de trás. Tem um mecanismo formidável. Vou lhe mostrar.

     — Tenha cuidado — disse Tuppence, — não vá se espetar em algum prego, nem vá cair.

     — Ah, já fazem uns cinqüenta anos que andei na Matilde mas ainda me lembro como é. Ela ainda está bem sólida, não está caindo aos pedaços não — e com um movimento súbito e inesperado o velho pulou em cima de Matilde. O cavalo deu um pulo para frente.

     — Que tal?

     — Esplêndido — aplaudiu Tuppence.

     — As crianças adoravam este brinquedo. Miss Jenny costumava andar nele todos os dias.

     — Quem era Miss Jenny?

     — A menina mais velha, que tinha o tal padrinho americano. Ele deu a ela o Bem-amado também.

     Tuppence olhou-o interrogativamente.

     — É o nome daquele cavalinho que puxa aquele carro ali no canto. Miss Pamela descia o morro com ele. Sempre muito séria, ela levava o carro até em cima do morro, sentava e deixava que ele descesse sozinho enquanto ela ia freando com os pés. Muitas vezes ela ia cair dentro da cerca viva.

     — O que não devia ser muito agradável.

     — Mas quase sempre ela conseguia parar antes. Às vezes eu estava preparando o canteiro das rosas de natal ou aparando a grama, e a via brincar desse jeito horas seguidas. E sempre muito séria. Não gostava que falassem com ela. Queria se concentrar na sua brincadeira de faz-de-conta.

     — Que brincadeira era esta?

     — Parece que ela imaginava que era uma rainha em fuga. Mary, rainha... da Irlanda ou da Escócia?

     — Mary, rainha da Escócia.

     — Isso mesmo. Ela dizia que era a rainha e estava fugindo dos seus inimigos. Ia para a Inglaterra pedir ajuda a Elizabeth, só que eu acho que a Elizabeth não foi uma ajuda muito boa, não.

     — De que família eram elas?

     — Da família Lister.

     Escondendo o seu desapontamento, Tuppence perguntou:

     — Conheceu uma moça chamada Mary Jordan?

     — Sei quem é, mas não a conheci pessoalmente, isso foi um pouco antes do meu tempo. Está falando na espiã alemã, não?

     — Todos já ouviram falar nela aqui, parece.

     — É, a fraulein, como a chamavam. Já é tempo de a senhora começar a pensar nos legumes que vai plantar. Se quer ter vagens, é hora de semeá-las, e já é preciso pensar nas ervilhas. Alface seria uma boa idéia também, não? Tão tenra e fresquinha.

     — O senhor já deve ter trabalhado em muitos jardins dessa redondeza.

     — É, já trabalhei em quase todas as casas. A maioria dos jardineiros não entendia grande coisa e às vezes eu dava uma mãozinha nos trabalhos mais delicados. Uma vez aconteceu uma tragédia aqui nesta casa por causa de uma confusão a respeito de plantas. Mas isso foi antes do meu tempo.

     — Foi com a dedaleira, não?

     — Vejo que a senhora já está por dentro. Foi há muito tempo, várias pessoas ficaram intoxicadas, e uma delas morreu. Um velho amigo me contou essa história.

     — Deve ter sido a fraulein.

     — Eu não sei nada disso, não.

     — Talvez eu esteja enganada — disse Tuppence. — Será que poderia levar o Bem-amado lá para cima do morro onde a Pamela brincava? Se é que o morro ainda está no mesmo lugar.

     — O que é que a senhora acha? Na certa que está, coberto de capim, como sempre. Mas é melhor tomar cuidado, a ferrugem pode ter corroído o Bem-amado. Vou dar uma limpeza nele antes.

     — Ótimo — disse Tuppence. — Mais tarde podia fazer uma lista dos legumes que vamos plantar.

     — Pode ficar tranqüila que não plantarei espinafre junto com dedaleira. Não quero que lhe aconteça nada na sua casa nova. É um lindo lugar para quem tem um pouco de dinheiro para gastar nele.

     — Muito obrigada — sorriu Tuppence.

     — Vou dar um jeito no Bem-amado para que não desmonte com a senhora. Está muito velho, mas as coisas velhas às vezes funcionam melhor do que as novas. Um primo meu consertou uma bicicleta que tinha andado encostada uns quarenta anos. Foi só pôr um pouco de óleo e ela andou. Um pouquinho de óleo pede fazer milagres.

    

     ACREDITE EM COISAS IMPOSSÍVEIS

     — QUE idéia! — exclamou Tommy.

     Estava acostumado a encontrar Tuppence nos lugares mais estranhos quando chegava em casa, mas assim também era demais.

     Não vira sinal dela dentro da casa, e lá fora uma chuvinha miúda caia. Talvez esteja ocupada no jardim, pensou e saiu para procurá-la. Foi então que disse:

     — Que idéia!

     — Olá. Tommy, voltou mais cedo hoje, não é?

     — O que é isso?

     — O Bem-amado.

     — O quê?

     — O nome dele é Bem-amado.

     — É pequeno demais para você.

     — Na certa que é. É um brinquedo para crianças pequenas que não sabem andar de bicicleta ainda. Não tem pedais, mas se você o levar até lá em cima do morro, ele desce sozinho com o peso.

     — E vem se esborrachar aqui embaixo. Era isto que você estava tentando fazer.

     — Não — disse Tuppence, — a gente usa os pés como freios. Quer que eu faça uma demonstração?

     — Não precisa' não. Está começando a chover. Só queria saber por que estava fazendo isso, não deve ser muito divertido.

     — Na verdade — confessou Tuppence, — é melo assustador. Mas eu queria saber como era e...

     — Resolveu perguntar à cerca viva, não é?

     — Ora, não zombe, é que eu estava prosseguindo com as investigações dos nossos problemas.

     — Que problemas, mulher?

     — Fiquei pensando que poderia haver mais coisas escondidas nessa casa e resolvi dar uma olhada no que estava guardado, há muitos anos pelo jeito, naquela espécie de estufa engraçada. E achei a Matilde, um cavalo de balanço com um buraco no estômago.

     — Buraco no estômago?

     — Isso mesmo. Devem ter sido as crianças que meteram um bocado de coisas lá dentro. Folhas velhas, papéis sujos, pedaços de pano que tinham sido usados para limpar coisas.

     — Venha, vamos entrar.

     — Bem, Tommy — disse Tuppence aquecendo os pés na lareira da sala de estar, — conte-me as novidades. Foi ver a exposição na Galeria do Hotel Ritz'

     — Não, para falar a verdade, não tive tempo.

     — Como? Pensei que tivesse saído justamente para isso.

     — Bem, não é sempre que a gente faz o que disse que ia fazer.

     — Você deve ter ido a algum lugar e feito alguma coisa.

     — Achei um bom lugar para estacionar o carro.

     — Isso é bom. Onde é?

     — Perto de Hounslow.

     — O que foi fazer lá?

     — Bem, só estacionei o carro e peguei o metrô para Londres.

     — Você está com um ar culpado. Será que eu tenho uma rival em Hounslow?

     — Não, e você vai gostar do que eu andei fazendo...

     — Comprou algum presente para mim?

     — Não, e por falar nisso, nunca sei o que devo comprar para você.

     — Ora, pois acerta quase sempre — animou-o Tuppence. — Então o que andou fazendo?

     — Eu também andei pesquisando.

     — Pesquisando o quê? Espero que não tenham sido os preços de cortadores de grama.

     — Que idéia!

     — Ora, você está sempre olhando os catálogos, deve estar doido para comprar um.

     — No momento o que estou fazendo é uma pesquisa histórica, de crimes antigos. Crimes cometidos há mais de sessenta anos.

     — Conte logo, ande, Tommy!

     — Fui a Londres e coloquei certas engrenagens em movimento.

     — Pois de certa maneira — disse Tuppence — estive fazendo o mesmo que você. Só que nossos métodos são diferentes.

     — Então nós estamos realmente envolvidos no problema de Mary Jordan, não é? O mistério de Mary Jordan está começando a tomar forma.

     — E é um nome tão comum. Não devia ser verdadeiro, se ela era alemã. Mas mesmo sendo inglesa podia ser espiã, como dizem.

     — Acho que é lenda essa história dela ser alemã.

     — Tommy, diga-me, o que fez?

     — Bem, há diversas maneiras de se obterem informações.

     — Sobre coisas que aconteceram há muito tempo?

     — É, maneiras diferentes do que remexer em brinquedos velhos, fazer perguntas a senhoras idosas, interrogar um velho jardineiro que provavelmente lhe contará tudo trocado, ou perturbar o expediente do correio perguntando às funcionárias o que diziam suas tias-avós.

     — Todos esses meios deram algum resultado, mesmo que tenha sido pequeno.

     — Os meus também darão.

     — A quem você foi fazer perguntas?

     — Não é bem assim Tuppence. Deve saber que temos relações com pessoas que têm meios de obter informações, ou pelo menos sabem a quem pagar para obter dados autênticos, dignos de confiança.

     — E aonde eles vão procurar esses dados?

     — Ora, para começar, no Registro Civil, pesquisando certidões de nascimento, de óbito, casamento. Podem-se obter informações em testamentos, também, há casamentos que só foram registrados em igrejas. Há gente especializada em fazer isso.

     — Está gastando muito dinheiro nisso? — perguntou Tuppence. — Pensei que íamos economizar depois da mudança.

     — Acho que é um dinheiro bem empregado, já que você está tão interessada nesse assunto.

     — E descobriu alguma coisa?

     — Não tão depressa, Tuppence. Temos que esperar os resultados.

     — Acha que se descobrir onde Mary Jordan nasceu, isso será um ponto de partida para descobrir mais coisas sobre ela?

     — Não é só isso. Estou mais interessado em atestados de óbito com a causa mortis, e há arquivos de jornais que podem ser estudados. De qualquer maneira, foi bom reencontrar velhas amizades, que nos podem ser úteis nesse caso. Muita coisa depende de se conhecer a pessoa certa.

     — É a pura verdade. Sei disso por experiência própria.

     — Nossos métodos não são iguais — disse Tommy. — Mas os seus são tão bons como os meus. Nunca me esquecerei do dia em que entrei na Pensão Sans Souci e vi você lá, sentada, fazendo tricô, fingindo ser uma tal de Mrs. Blenkensop!

     — É, porque eu não acreditava em pesquisas, nem em fazer outros pesquisarem em meu lugar.

     — Não, mesmo. E se escondeu' num armário perto de onde eu estava sendo entrevistado de uma maneira um tanto estranha e descobriu para onde eu estava sendo mandado, e o que teria de fazer lá. E chegou lá primeiro. Foi isso que fez, bisbilhotar. Nem mais, nem menos. Um método muito desonroso.

     — Que dá resultados muito satisfatórios — disse Tuppence.

     — É, você sabe o caminho certo para conseguir as coisas. É um dom que você tem.

     — Bem, creio que algum dia saberemos tudo o que aconteceu aqui. Mas acho difícil acreditar que tenham acontecido coisas anormais, que haja alguma coisa importante escondida aqui.

     — Lembre-se daquela canção: "Acredite em coisas impossíveis".

     — Estou cansada, falta um quarto para as onze, acho que vou me deitar. Estou, com muito sono, e muito suja de tanto remexer naqueles brinquedos velhos e empoeirados. Acho que ainda há mais coisas naquele tal quiosque. Antes de dormir preciso tirar todas essas teias de aranha.

     — E lembre-se da canção.

     — Sei fazer isso melhor do que você.

     — Você me surpreende, muitas vezes — disse Tommy.

     — Mas quem costuma ter razão é você e não eu, o que me amola, às vezes. Mas nós temos que passar por essas provações. Quem é mesmo que costumava dizer isso a toda hora?

     — Deixe pra lá — disse Tommy. — Vá tirar a poeira dos anos de cima de você. Que acha do Isaac como jardineiro?

     — Ele se acha ótimo. Vamos ver.

     — Infelizmente não sabemos quase nada sobre jardinagem. Mas isso é outro problema.    

    

     EXCURSÃO NO BEM-AMADO, OXFORD E CAMBRIDGE

     — É MELHOR tomar o meu café do que ficar pensando em coisas impossíveis — disse Tuppence ao encher a xícara. Examinou com interesse um prato com apetitosos rins cercando ovos estrelados que estava sobre o aparador.

     — Vou deixar esta tarefa para Tommy. Ele que prossiga com suas pesquisas. Vamos ver o que vai conseguir — e experimentando os rins acrescentou: — Que bom poder comer de verdade de manhã.

     Há muito ela se contentava com uma xícara de café e uma laranjada ou suco de grape fruit, o que resolvia muito bem os problemas de peso, mas que não era muito satisfatório para o apetite. O contraste daquela refeição quente era consolador para os seus sucos digestivos.

     — Creio que os Parkinson deviam ter uma refeição semelhante de manhã. Ovos fritos ou escaldados e bacon e talvez perdiz fria, como contam os velhos romances. As crianças eram consideradas tão sem importância que só podiam comer as pernas. Mas podiam pegar com as mãos, pelo menos.

     Parou de mastigar o último pedaço de rim. Barulhos estranhos chegavam até ela.

     — Nossa, alguém desafinou!

     Com uma torrada na mão, perguntou a Alfred, que entrava na sala:

     — Algum operário está tocando sanfona ou coisa semelhante?

     — Não, é o cavalheiro que veio ver o piano.

     — Ver o que, no piano?

     — Veio afinar. A senhora me pediu para arranjar um afinador.

     — Deus, como você foi rápido. É mesmo maravilhoso.

     Alfred gostou do elogio, mas com um ar de quem achava que era muito merecido; era realmente formidável como ele podia executar rapidamente os pedidas mais estranhos que recebia de Tommy e Tuppence.

     — Ele disse que o piano estava precisando realmente ser afinado.

     — Também acho.

     Tuppence tomou mais meia xícara de café e foi até a sala de estar onde um jovem estava ocupado com o piano que parecia meio envergonhado de expor assim as suas entranhas.

     — Bom dia, senhora — disse o jovem.

     — Bom dia. Que bom que o senhor veio.

     — O piano precisava ser afinado mesmo.

     — Sim — concordou Tuppence. — Sei disso. Acabamos de nos mudar e calculei que a mudança não lhe faria nenhum bem. Há muito tempo ele não era afinado.

     — Isso se vê — disse o jovem e tocou dois acordes alegres em um tom maior e um muito melancólico em dó menor.

     — A senhora tem um belo instrumento.

     — É um piano Erard. Já atravessou maus pedaços no bombardeio de Londres. Nossa casa foi atingida, mas felizmente estávamos fora e o estrago foi maior no exterior.

     — É, por dentro está bom. Não vai ser necessário mexer em muita coisa.

     Tiveram um agradável bate-papo, enquanto o jovem tocava os acordes iniciais de um prelúdio de Chopin, e daí passava para o Danúbio Azul. Finalmente anunciou que tinha terminado o serviço:

     — Mas é melhor eu dar uma repassada daqui a alguns dias. Pode ser que não tenha notado alguma coisa que precisasse ser consertada.

     Despediram-se com a cordialidade de pessoas que acabam de descobrir que tinham idéias semelhantes sobre música em geral, e a alegria que um piano pode oferecer.

     — Essa casa deve ter precisado de muitas reformas — disse ele olhando em volta.

     — É, já estava vazia há algum tempo quando a compramos.

     — Sei que já teve muito donos.

     — Deve ter uma longa história — aproveitou Tuppence. — Tantas pessoas viveram aqui, muita coisa deve ter acontecido.

     — A senhora deve estar pensando no que houve durante a primeira guerra.

     — Algo a ver com segredos militares, não foi?

     — Falou-se muito nisso, mas não sei nada certo.

     — Foi muito antes do seu tempo — consolou-o Tuppence, olhando o rosto jovem do seu companheiro.

     Depois que ele saiu, sentou-se ao piano. O prelúdio que o afinador tocara fez com que Tuppence relembrasse um outro prelúdio de Chopin, Chuva Caindo no Telhado. Seus últimos acordes transformaram-se numa canção, que Tuppence acompanhou cantando baixinho:

     "Onde está, onde está, meu bem-amado Por onde meu bem-amado andará? Na mata, dos pássaros ouve-se o chamado Quando o meu bem-amado voltará?"

     — Acho que não é esse o tom. Mas está ótimo, felizmente. Que prazer tocá-lo novamente. Onde está, onde está meu bem-amado? Bem-amado? Isto deve ser uma inspiração, um sinal. Vou ver o que aconteceu com ele.

     Calçou os sapatos de sola grossa, vestiu um suéter e saiu para o jardim. O Bem-amado tinha sido guardado no estábulo vazio em vez do quiosque. Tuppence levou-o para cima do morro e fez-lhe uma limpeza rápida com um espanador que trouxera para retirar algumas teias de aranha que restavam em alguns cantos. Sentou no carro e deu um impulso, animando-o a mostrar as suas habilidades que ainda resistiam ao tempo e ao uso.

     — Vamos meu Bem-amado, desça o morro, mas não vá muito depressa — disse ela preparando-se para frear com os pés se fosse necessário.

     A princípio o Bem-amado não parecia muito disposto a correr, mas quando a ladeira tornou-se mais inclinada, animou-se e Tuppence foi terminar a corrida numa posição muito pouco confortável dentro da cerca viva.

     — Isso não foi muito agradável — disse ela libertando-se dos galhos espinhentos. Depois de sacudir como pôde a roupa, deu uma olhada em volta. Estava num trecho onde os arbustos, muito densos, quase fechavam a passagem. Havia rododendros e hortênsias. O local ficaria lindo na época da floração, mas no momento não havia grande beleza nele. Percebeu, escondida sob os arbustos, uma antiga aléia. Ainda podia se ver para onde ia. Tuppence forçou a passagem por entre os galhos e foi. seguindo o caminho morro acima. Pelo jeito ninguém passava por ali há anos.

     — Onde irá dar? Deve haver uma razão para ela.

     Mas à medida que a trilha parecia hesitar e mudava de direção, Tuppence começou a duvidar. Sentia-se tonta como Alice no País das Maravilhas. Os arbustos rarearam e viu loureiros, provavelmente os que tinham dado nome à casa. A trilha tornou-se pedregosa ao passar sob eles e de repente chegou a quatro degraus cobertos de musgo que davam acesso a uma espécie de santuário. Nele, um pedestal com uma estátua de pedra, um menino com uma cesta na cabeça, já muito estragado pelo tempo. Uma lembrança voltou a Tuppence:

     — Isso marca uma época, minha tia Sarah tinha um bem igual em seu jardim. E ela gostava de loureiros, também.

     Sua memória levou-a de volta à casa de tia Sarah, em dias de sua infância. Ali, aos seis anos, brincava de cavalgar cavalos imaginários, cavalos brancos com longas crinas ondulantes. Na sua fantasia, à medida que subia a trilha sob as faias, atravessava campos verdejantes, até chegar a um nicho semelhante àquele com o mesmo menino com a cesta. Tuppence, cavalgando o seu corcel, sempre levava algo para colocar na cesta, uma oferenda para o deus. E fazia então um pedido que era atendido quase sempre.

     Mas eu fazia trapaça, não era honesta — pensou Tuppence sentando-se num degrau. — Pedia algo que sabia que ia acontecer e assim tinha a sensação de que o lugar era mesmo mágico e que o deus atenderá ao meu pedido. Um deus menino meio gorducho. Mas como era divertido inventar alguma coisa e acreditar nela!

     Suspirou e desceu a trilha até encontrar o caminho de volta à casa.

     O quiosque estava no mesmo caos da véspera, Matilde sempre com a sua cara triste e desamparada. Mas dois objetos atraíram a atenção de Tuppence. Dois bancos redondos de porcelana com cisnes pintados à volta. Um deles era azul escuro e o outro azul claro.

     — Ora, já vi bancos iguais a esses quando era criança, na varanda da casa de uma de minhas tias. Costumávamos chamá-los de Oxford e Cambridge. Iguaizinhos, com cisnes e tudo. E com o mesmo orifício em forma de S para colocar coisas dentro. Vou pedir a Isaac para lavá-los bem e colocá-los na varanda ou pórtico, como Tommy prefere. Podemos usá-los quando o tempo melhorar.

     Virou-se para sair, mas atrapalhou-se com as pernas de Matilde, e tropeçou.

     — Meu Deus, o que foi que fiz?

     O que fizera fora enganchar o pé no banco azul escuro de porcelana que rolou pelo chão até bater na parede e partir-se em pedaços.

     — Ah, acabei com o Oxford. Vamos ter que nos contentar com o Cambridge. Não há jeito de colar o Oxford, há pedaços demais.

     Suspirou e perguntou-se o que Tommy estaria fazendo.

    

     Tommy trocava idéias com alguns velhos amigos.

     — O mundo está muito diferente agora — disse o Coronel Atkinson. — Soube que você e sua mulher, Prudence... ela tem um apelido, Tuppence, não é?... Bem, soube que vocês foram morar no campo, perto de Hollowquay. O que os atraiu para lá? Alguma coisa em particular?

     — A casa estava com um bom preço — disse Tommy.

     — Que sorte, não? Precisa me dar o seu endereço. Qual é o nome da propriedade?

     — Acho que vamos chamá-la A Cabana do Cedro, há um cedro muito bonito lá. Mas o nome antigo era A Casa dos Loureiros; acho isso com um sabor muito vitoriano.

     — A Casa dos Loureiros, em Hollowquay! Que diabo de coisa você está tramando? Vamos, conte-me!

     Tommy olhou para o rosto envelhecido onde um bigode branco despontava.

     — Está a serviço do país novamente — insistiu o Coronel.

     — Não, estou muito velho para isso. Já me aposentei dessa espécie de trabalho.

     — Não acredito muito. Talvez tenham-lhe instruído para dizer isso. Há muita coisa que não foi descoberta sobre aquele caso.

     — Que caso? — perguntou Tommy.

     — Você deve ter lido ou ouvido qualquer coisa a respeito do escândalo Cardington. Estourou depois do caso das cartas e o caso dos planos do submarino de Emlyn Johnson.

     — Ah, lembro-me vagamente.

     — Foi o submarino que chamou a atenção para o caso. Mas o que realmente importava eram as cartas. Se alguém tivesse conseguido obtê-las teria sido um desastre. Denunciariam pessoas que eram naquele momento da mais completa confiança do governo. É impressionante como pode acontecer isso, não é? Mas muitas vezes os traidores são as últimas pessoas de quem suspeitaríamos, ótimos camaradas, de absoluta confiança. Muitos deles jamais foram descobertos — o Coronel piscou para Tommy. — Creio que mandaram você dar uma olhada, meu caro.

     — Uma olhada em quê?

     — Na Casa dos Loureiros. O pessoal da segurança revistou-a toda. Pensavam que havia provas valiosas escondidas em algum lugar da casa. Correram boatos de que teriam sido mandados para o exterior, talvez a Itália, mas muita gente ainda acha que podem estar escondidas lá. É urna casa, como você sabe, com porões, pisos de lajotas e outros lugares sugestivos. Vamos, admita que está na caçada outra vez, meu caro Tommy.

     — Asseguro-lhe que não trabalho mais nisso.

     — Ah, era o que todos acreditavam quando você estava naquela outra casa, no começo da última guerra. E acabou prendendo aquele alemão, e a mulher do livro de contos infantis. Bom trabalho, aquele, E agora está seguindo outra pista!

     — Tolice — disse Tommy. — Não pense nisso, estou aposentado.

     — Não, sua raposa velha, você ainda é melhor do que qualquer desses jovens. E fica aí com essa cara de inocente. Mas acho que não devia mesmo fazer-lhe perguntas. Segredo de estado, não é? Mas de qualquer maneira, tenha cuidado com sua mulher. Ela sempre se arrisca demais. Escapou por um triz naquele caso do M ou N.

     — Tuppence está interessada somente na história da casa, quem morou lá e quando, retratos de velhos moradores e tudo o mais. Isso e o jardim. Está muito interessada em catálogos de flores.

     — Bem, se dentro de um ano nada tiver acontecido, talvez eu acredite nisso. Mas eu o conheço e conheço Mrs. Beresford também. Um casal maravilhoso. Aposto que descobrirão alguma coisa. Tome nota, se aqueles papéis vierem à tona, terão um efeito muito grande na vida política e muita gente não vai gostar. Homens considerados atual-mente modelos de retidão. Mas que podem ser perigosos, não se esqueça disso, perigosos. Tenha cuidado e faça com que sua mulher tenha cuidado, também.

     — As suas idéias estão começando a me interessar.

     — Então vá em frente, mas tome conta de Mrs. Tuppence. Gosto dela, é uma boa moça, sempre foi e sempre será!

     — Ela não é mais uma moça.

     — Não diga isso! E nem se acostume a dizer. Sua mulher é uma em mil. Mas coitado de quem ela suspeitar. Provavelmente deve estar atrás de alguém agora.

     — Acho mais provável que tenha ido tomar chá na casa de alguma velhota.

     — Olhe que velhotas podem ser ótimas fontes de informação. Crianças pequenas também. Pessoas de quem menos se espera podem apontar a verdade escondida. Poderia lhe contar cada coisa...

     — Acredito, Coronel.

     — Bem, não posso revelar segredos — e o Coronel Atkinson balançou a cabeça.

    

     Voltando para casa, Tommy mal via a paisagem que fugia rapidamente pela janela do trem. Sua imaginação estava presa às palavras do Coronel.

     — Ele costuma estar por dentro das coisas. Mas que interesse poderia ter isto agora? Faz tanto tempo, não deve ter mais importância. Agora só se fala no Mercado Comum Europeu, novas idéias surgiram. Mas as famílias importantes continuam no poder. Seus novos membros, cuja lealdade não foi testada, podem ser influenciados por novos credos. Ou podem querer reviver velhas idéias. A Inglaterra está mudando, ou será sempre a mesma? Com lodo por baixo de superfície serena. O mar não é só água cristalina até as conchas que jazem no fundo. Há uma camada escura e pega-josa que deve ser suprimida. Mas aqui em Hollowquay? Não acredito. Hollowquay é uma lembrança do passado, uma aldeia de pescadores que teve grande impulso e chegou a ser conhecida como a Riviera inglesa. Mas agora só tem movimento em agosto, na estação de veraneio. A maioria das pessoas prefere fazer excursões fora do país.

     — Como foi? — perguntou Tuppence, enquanto tomavam o café na sala de estar, após o jantar. — Divertiu-se muito? Como vão seus velhos amigos?

     — Os mesmos de sempre. Como estava sua velha amiga?

     — Acabei não indo à casa dela. O afinador veio ver o piano e choveu a tarde inteira. Foi pena, ela podia ter-me contado alguma coisa interessante.

     — Pois o meu amigo contou-me algo que realmente me surpreendeu. O que acha daqui, Tuppence?

     — Daqui desta casa?

     — Não, de Hollowquay.

     — Acho que é um bom lugar.

     — E qual é o significado que você dá a esse "bom"?

     — Um bom lugar é um lugar onde coisas não acontecem, onde não se quer que elas aconteçam. E onde a gente se alegra com esse fato.

     — Acho que isso é um ponto de vista próprio de nossa idade.

     — Não, não creio que seja só isso. É bom saber que há lugares onde coisas ruins não acontecem. Embora hoje quase tenha me acontecido uma.

     — O que aconteceu? Andou fazendo alguma bobagem, Tuppence?

     — Naturalmente que não.

     — Então o que foi?

     — Lembra-se daqueles vidros em cima da estufa? Um deles estava meio frouxo e hoje caiu quase em cima de minha cabeça. Podia ter-me cortado toda.

     — Você não está machucada, está? — perguntou Tommy, olhando-a.

     — Não, tive muita sorte. Mas levei aquele susto.

     — Temos que mandar aquele seu velho faz-tudo, o Isaac, verificar todos os vidros. Não quero que lhe aconteça nada, Tuppence.

     — Acho que há sempre uma coisa errada numa casa velha.

     — O que há de errado nesta aqui?

     — Por que pergunta?

     — Por causa de algo que ouvi hoje.

     — Isso não me parece possível, Tommy.

     — Pois é. Com toda essa aparência respeitável e inocente, toda pintadinha de novo.

     — Mas isso foi obra nossa. Estava bem ruinzinha e estragada quando a compramos.

     — Por isso foi barata.

     — O que soube, Tommy?

     — Aquele velho bigodudo, o Monty, mandou você tomar cuidado e disse que eu tomasse conta de você, que era necessário tomar precaução neste lugar.

     — Que diabo de coisa ele estava sugerindo com isso?

     — Tuppence, o que pensaria você se lhe dissesse que ele insinuou que estávamos aqui em .serviço ativo? Que tínhamos sido mandados pelo departamento de segurança para descobrir o que havia de errado com este lugar?

     — Diria que você ou o velho estava imaginando coisas.

     — Pois ele acha que estamos aqui numa missão para descobrir alguma coisa.

     — Que coisa?

     — Algo escondido nesta casa.

     — Ele deve estar doido.

     — Sabe, também pensava assim, mas já não estou tão certo — O que há nesta casa para ser encontrado? Um tesouro escondido, as jóias da coroa russa estarão enterradas no porão?

     — Não, não é um tesouro. É algo que significa perigo para alguém.

     — Que estranho... — disse Tuppence.

     — Por que diz isso, já achou alguma coisa?

     — Não, na certa que não. Mas houve um escândalo nesta casa, realmente. Soube através de pessoas que ouviram falar, por velhos parentes. Mary Jordan estava envolvida, mas tudo parece ter sido abafado.

     — Anda fantasiando coisa, Tuppence? Quer reviver o passado, os dias de aventura da nossa juventude, quando descobrimos o misterioso Mr. Brown?

     — Que idéia, Tommy. Já faz tanto tempo. "Os jovens aventureiros", assim nos chamávamos. Não parece mais ter sido verdade.

     — Mas foi. Muita coisa em que não queremos acreditar é verdade. O velho Monty diz que esse caso ocorreu há sessenta ou setenta anos.

     — O que disse ele afinal?

     — Falou que havia cartas ou papéis que criariam um grande escândalo político, uma reviravolta. Esses papéis desmascarariam alguém que está no poder e não deveria estar.

     — Algo do tempo de Mary Jordan? Acho que você andou sonhando no trem.

     — Talvez, realmente parece inacreditável.

     — Mas já que moramos aqui, podemos dar uma olhadela — disse Tuppence passeando os olhos pelo aposento; — mas não creio que haja nada.

     — Tanta gente já viveu aqui, famílias e famílias. Só se estiver no sótão ou no porão ou debaixo das lajes do caramanchão.

     — Isso vai ser divertido. Quando não tivermos mais nada que fazer ou já estivermos cansados de plantar bulbos de tulipa, vamos procurar um pouco por aí. Admitindo que eu quisesse esconder alguma coisa, onde será que a colocaria, onde seria mais provável que ninguém encontrasse?

     — Não sei, talvez em algum bule de chá.

     Tuppence levantou-se, subiu num banquinho e tirou um bule chinês de uma estante que ficava sobre a lareira.

     — Não há nada aqui.

     — Era um lugar pouco provável.

     — Acha — perguntou Tuppence animada com a idéia — que alguém tentou acabar comigo afrouxando o vidro da clarabóia?

     — É pouco provável. Só se queriam pegar o velho Isaac.

     — Que pena, gostaria de pensar que escapei por um fio.

     — É melhor tomar cuidado, se não vou ter que tomar conta de você.

     — Você se preocupa demais comigo.

     — Devia gostar de ter um marido que se preocupa com você.

     — Ninguém tentou descarrilar o trem ou atirar em você?

     — Não — respondeu Tommy. — Mas talvez seja melhor verificar os freios do carro antes de sair nele outra vez. Naturalmente isso tudo é ridículo.

     — Naturalmente — concordou Tuppence, — absolutamente ridículo. Mas de qualquer maneira é até divertido admitir estas possibilidades.

     — Então Alexander teria morrido porque sabia demais.

     — Ele sabia algo sobre a morte de Mary Jordan. "Foi um de nós" — os olhos de Tuppence animaram-se. — Temos que descobrir quem eram esses NÓS. Temos que voltar ao passado, e descobrir o porquê desse crime. Aí está uma coisa que nunca fizemos antes.

    

     MÉTODOS DE PESQUISA

     — ONDE se meteu, Tuppence? — perguntou seú marido ao voltar ao refúgio familiar no dia seguinte.

     — O último lugar em que estive foi o porão.

     — Vê-se logo, está com o cabelo cheio de teias de aranha.

     — Não havia outro jeito, o porão está cheic delas. Mas não achei nada a não ser umas garrafas de bay-rum.

     — Aquele rum feito com folhas de pimenta da Jamaica?

     — Esse mesmo, mas acho que não serve para beber.

     — Não, os homens o usavam no cabelo.

     — Ah, estou me lembrando de um tio que o usava . Um amigo trazia da América. Mas de qualquer forma, não dá para esconder nada numa garrafa de rum.

     — Então era isso que estava fazendo, procurando coisas.

     — Tinha que começar por algum lugar — disse Tuppence. — Se o seu amigo disse a verdade, há alguma coisa escondida por aí. Mas é difícil imaginar em que lugar, os móveis são trocados quando uma casa muda de dono. É pouco provável que reste alguma coisa daquela época.

     — Então, por que alguém havia de querer feri-la e fazer com que saiamos daqui, a não ser que haja nesta casa algo que não queira que encontremos?

     — Bem, isso e uma possibilidade, mas pode não ser verdadeira. De qualquer forma, não foi um dia inteiramente perdido. Encontrei uma coisa.

     — Tem relação com Mary Jordan?

     — Pode ser. O porão não deu em nada, tinha só uma lâmpada muito velha, com vidro vermelho, que se usava para revelar fotografias, e as garrafas de bay-rum. E não creio que se pudesse esconder alguma coisa debaixo daquele chão. Havia mais uns baús velhos e duas malas tão decrépitas que se desmanchariam com um pontapé. Uma decepção completa.

     — Uma pena — disse Tommy.

     — Mas achei umas coisas interessantes. Vou lhe contar depois de tirar essas teias de aranha.

     — Uma boa idéia. Vou gostar mais de olhar para você depois disto.

     — Ah, queria que me achasse linda toda vez que olhasse para mim, apesar da minha idade.

     — Minha querida, acho-a lindíssima. Umas teias de aranha que estão no seu pescoço me lembram até um retrato da imperatriz Eugênia. Tinha um cacho bem igualzinho a esse. Só que o seu tem uma aranha.

     — Nossa! — exclamou Tuppence, tirando a aranha com a mão.

     Quando desceu mais tarde, após a limpeza, encontrou Tommy com um copo na mão.

     — Não está me oferecendo bay-rum, não é? — disse ela desconfiada. — Sabe qual seria um bom esconderijo? O estômago de Matilde.

     — Não estou entendendo.

     — Matilde é o cavalo de balanço. Sabia que tinha um buraco no estômago porque Isaac me contara. Mas cheio de papéis velhos. Nada de interesse. Mas é um bom esconderijo, não acha?

     — É uma idéia.

     — O Bem-amado também. Olhei por baixo do banco estofado, mas não há nada lá. Comecei a pensar outra vez e lembrei-me das estantes de livros. Podem-se esconder papéis dentro de livros.

     — Pensei que tínhamos terminado de arrumar os livros — disse Tommy desanimado.

     — Não, ainda falta a prateleira de baixo.

     — Essa é mais fácil, pelo menos não é necessário usar escada.

     — Foi o que pensei. Sentei-me no chão e dei uma olhada. A maioria eram livros com velhos sermões escritos por um pastor metodista, não havia nada neles. Mas por trás havia um buraco cheio de papéis e livros rasgados. Consegui tirar um grande, encapado com papel marrom. Imagine o que era.

     — Não tenho idéia. Algo valioso como uma primeira edição do Robinson Crusoé?

     — Não, um álbum de aniversário.

     — O que é isso?

     — Eram comuns antigamente. Creio que este é da época dos Parkinson, ou até mais antigo. Está muito estragado, mas talvez haja alguma coisa interessante nele. Não tive tempo de olhar bem.

     — Acha aue pede haver algum papel dentro dele?

     — Isso não. Mas há nomes e datas que podem nos interessar. Não havia mais nada na prateleira. Mas falta ver nos armários embutidos.

     — E a mobília? Talvez tenha gavetas secretas.

     — Tommy, lembre-se de que toda a mobília desta casa já era nossa. Só deixaram, além dos livros, as coisas do quiosque, brinquedos velhos e bancos de jardim. Não há mais nada do tempo dos Parkinson. Mas achei uma coisa interessante.

     — O quê?

     — Menus de porcelana.

     — Menus de porcelana?

     — Estavam naquele armário perto da despensa, que não conseguíamos abrir. Encontrei a chave, lá numa caixa no quiosque. Com um pouco de óleo consegui abrir a porta. O armário estava vazio, só alguma louça quebrada, provavelmente dos últimos donos da casa. Mas na prateleira de cima achei uma pilha de peças retangulares de porcelana, com menus escritos. Isso se usava antigamente nas festas, lembra-se? E que coisas fascinantes eles comiam! Refeições realmente deliciosas.

     Com um consommé e uma sopa cremosa, duas espécies de peixe, duas entradas, e uma salada. Depois vinha o assado e um sorvete de frutas. E por último, acredite se quiser, salada de lagosta!

     — Nossa, Tuppence. Chega, não agüento mais.

     — São muito antigos, muito mesmo. Talvez signifiquem alguma coisa.

     — O que acha que pode descobrir com isso?

     — Bem, talvez o álbum revele alguma pista. Estava lá o nome de Winifred Morrisson.

     — E daí?

     — Winifred Morrisson era o nome de solteira da velha Mrs. Griffin. É uma das moradoras mais antigas daqui. Já tomei chá com ela; lembra-se de coisas que aconteceram ainda antes de sua época. Talvez saiba algo sobre as pessoas que foram a esse tal aniversário do álbum. Pode ser que dê em alguma coisa.

     — Pode ser — concordou Tommy, meio céptico. — Ainda penso...

     — Pensa o quê?

     — Não sei o que pensar — respondeu Tommy. — Ou pelo menos... Ah, desisto. Admito que estou interessado.

     — E você, descobriu alguma coisa?

     — Não tive tempo. Mas arranjei novas fontes de informação. Sabe aquela mulher sobre quem lhe falei, que é ótima nesse serviço? Pois encarreguei-a de um trabalho.

     — Tomara que dê resultado. Isso pode ser tolice, mas é divertido.

     — Não tenho certeza de que vá ser tão divertido quanto está pensando.

     — Não faz mal, pelo menos teremos feito o que estava ao nosso alcance.

     — Mas não saia por aí fazendo tudo que está ao seu alcance, não. É exatamente isto que me preocupa quando estou longe de você.

    

     MR. ROBINSON

     — O QUE será que Tuppence está fazendo? — disse Tommy suspirando.

     — Desculpe-me, não ouvi bem o que disse. Tommy virou-se para olhar Miss Collodon

     mais de perto. Era muito magra, com cabelos grisalhos que ainda apresentavam vestígios de um banho de água oxigenada com o qual tentara parecer mais jovem, sem resultado. Agora ela estava experimentando um tom sofisticado de cinza, mais apropriado para uma senhora de mais de sessenta, dedicada a pesquisas. Tinha uma expressão de superioridade ascética e um jeito de quem confiava plenamente nas próprias habilidades.

     — Não foi nada, Miss Collodon, só um pensamento que tive.

     O que será, pensou Tommy cuidando-se para não falar em voz alta, que ela pretende fazer hoje? Aposto que alguma tolice. Pode até se matar com aquele brinquedo obsoleto, ou fraturar algum osso. A bacia provavelmente. Tuppence deve estar fazendo ou alguma tolice, ou alguma coisa muito perigosa. Isto mesmo, perigosa. Era difícil afastar Tuppence do perigo. A mente de Tommy vagou por vários acidentes do passado. Uma citação lhe ocorreu e disse alto:

     — Portais do Destino...

    

     Não passe caravana, cala a tua canção

     E escuta o silêncio, pois os pássaros estão mortos,

     Mas quem canta como um pássaro?

    

     Miss Collodonprontamente identificou o autor:

     — Flecker — disse ela. — Flecker. — E continuou:

     — "Caravana da morte... Caverna trágica, Forte do Medo."

     Tommy olhou-a espantado até compreender que Miss Collodon pensara que ele lhe trouxera um problema poético para ser resolvido, para descobrir o poeta e o livro de onde fora tirado. Decididamente ela entendia de coisas demais.

     — Estava preocupado com minha mulher — desculpou-se Tommy.

     — Oh — disse Miss Collodon olhando-o com uma expressão diferente. Complicações matrimoniais, ela deduziu. Acho que vou indicar-lhe uma agência especializada em ajudar casais a se ajustarem.

     Tommy acrescentou rapidamente:

     — Já obteve alguma informação a respeito do assunto de que lhe falei anteontem?

     — Ah, sim, não foi muito difícil. O Registro Civil é de grande ajuda nesses casos. Não sei se vai encontrar o que procura, mas aqui está unia lista com nomes, endereços, datas de nascimento, casamentos e mortes.

     — Nossa, quantas Mary Jordans achou?

     — Uma Mary, uma Maria e uma Polly Jordan. Uma Mollie Jordan, também. Não sei se alguma delas é quem o senhor procura — disse Miss Collodon entregando a Tommy uma folha datilografada.

     — Obrigado. Muito obrigado.

     — Há vários endereços também. Não consegui descobrir o do Major Dalrymple, as pessoas se mudam toda hora, hoje em dia. Mas acho que conseguirei a informação dentro de dois dias. Este é o endereço do Dr. Heseltine, está morando em Surbiton.

     — Obrigado. Acho que começarei por ele.

     — O senhor tem mais alguma pergunta?

     — Tenho aqui uma lista de seis. Talvez alguma delas esteja fora da sua especialidade.

     Miss Collodon tranqüilizou-o:

     — Ora Mr. Beresford, tenho que abranger um campo muito amplo nesta minha profissão. O que é preciso em primeiro lugar é saber onde conseguir a informação. Já me perguntaram as coisas mais estranhas, mas hoje em dia a maior parte são detalhes legais sobre testamentos, escritores querendo dados para seus livros, informações sobre empregos no exterior ou problemas de imigração. Tenho que entender de muitos assuntos.

     — É tenho a certeza de que entende.

     — Até de ajuda a alcoólatras. Há muitas sociedades que se especializam nisso. Tenho uma lista grande. São muito compreensivas e de toda confiança.

     — Lembrar-me-ei disso — disse Tommy! — se for necessário. Pode depender do que eu conseguir hoje.

     — Oh, o senhor não parece ter esse problema!

     — Meu nariz não está vermelho, não é?

     — Mas isto costuma ser pior nas mulheres. É difícil fazer com que larguem o vício. Muitas vezes parecem ótimas, tomando a sua limonada, quando de repente, numa festa, pronto! Volta tudo.

     Miss Collodon olhou o relógio.

     — Sinto muito, mas está na minha hora. Tenho um compromisso na Rua Grosvenor.

     — Obrigado por tudo — disse Tommy amavelmente, abrindo a porta para que ela saísse. De volta a sua mesa, desabafou:

     — Preciso contar a Tuppence. O primeiro resultado de minhas pesquisas foi convencer uma auxiliar de que minha mulher bebe e o nosso casamento está se desintegrando por causa disto. O que vai me acontecer agora?

     Aconteceu um encontro num restaurante modesto perto da Tottenham Court.

     — Meu caro Tom, juro que não o reconheci — disse um homem idoso, levantando-se de sua cadeira.

     — Acredito, de ruivo não tenho mais nada.

     — Estamos todos grisalhos. Como vai de saúde?

     — A mesma de sempre. Deteriorando-se devagarzinho.

     — Há quanto tempo não o vejo? Uns dois anos ou dez?

     — Nem tanto. Encontramo-nos no jantar dos Gatos Malteses, no outono passado, não se lembra?

     — Isso mesmo. Parece que o restaurante fechou, mas ia mesmo acontecer, o lugar era muito agradável, mas que comida ruinzinha. O que anda fazendo, meu caro? Ainda está metido em espionagem?

     — Não tenho mais nada a ver com isso.

     — Você está desperdiçando suas habilidades.

     — E você, Costeleta?

     — Ah, já estou velho demais para servir meu país dessa maneira. São esses jovens ansiosos, recém-saídos das universidades, que fazem a espionagem de hoje. Onde está você agora? Mandei-lhe um cartão de natal este ano, verdade que só o coloquei no correio em janeiro, mas foi devolvido com um carimbo de "não mora neste endereço".

     — Estamos no campo agora. Perto do mar, em Hollowquay.

     — Hollowquay? Lembra-me alguma coisa. Aconteceu algo dentro da sua especialidade ali, não foi?

     — Mas não na minha época. Ouvi falar disto depois que nos mudamos. Histórias que se passaram há mais de sessenta anos.

     — Planos de um submarino vendidos a outro país, não? Nem me lembro mais a qual. O Japão ou a Rússia, talvez. Eram tempos de lindas espiãs que se encontravam com o terceiro secretário da embaixada em Regent Park, ou coisa parecida. Pelo menos nos livros.

     — Quero lhe fazer uma pergunta, Costeleta.

     — Pois faça. Tenho tido uma vida muito pacata, sabe. Lembra-se da Margery?

     — Naturalmente que me lembro. Quase fui à seu casamento.

     — É, você tomou o trem errado. Ele ia para a Escócia em vez de Southall. Mas você não perdeu nada.

     — Não houve o casamento?

     — Houve, sim. Mas não durou muito, um ano e meio e estava tudo acabado. Ela casou-se novamente e eu não. Mas vou vivendo muito bem. Moro em Little Pollon, há um ótimo campo de golfe lá. Minha irmã mora comigo, é viúva e tem algum dinheiro e nos damos muito bem. Ela é meio surda, mas é só uma questão de gritar um pouquinho.

     — Disse que ouviu falar de Hollowquay? Houve realmente espionagem lá?

     — Para ser franco, não me lembro bem. Mas causou sensação na época. Jovem oficial da Marinha, acima de qualquer suspeita, noventa por cento britânico, grau cento e cinco em confiança, e que não era nada disso afinal. A serviço da... não me lembro mais o país, deve ter sido a Alemanha. Antes da guerra de 1914.

     — Havia uma mulher ligada a ele.

     — Creio que se chamava Mary Jordan. Não tenho mais certeza. Parece que a mulher do tal oficial achava que ele ganhava pouco, ela é que queria mais dinheiro, e entrou em contato com os russos. Russos nada, estou fazendo confusão. Mas isto é uma história muito velha. O que tem a ver com você? E o que aconteceu com aquela mulher envolvida naquele caso do Lusitânia? Jane Fish, não era?

     — Jane Finn. Casou-se com um americano.

     — Ah, muito bem. Parece que estamos sempre relembrando velhos conhecidos. E se já estão mortos, ficamos muito espantados, pois não tínhamos pensado nessa hipótese. Mas se estão vivos ficamos mais surpreendidos ainda. É um mundo muito complicado.

     Tommy concordava quando o garçom apareceu. O que iam comer? Daí em diante a conversa passou para assuntos gastronômicos.

    

     À tarde Tommy tinha outro encontro marcado. Desta vez com um homem grisalho e desanimado, que obviamente tinha pressa em desfazer-se dele.

     — Bem, realmente não tenho informações precisas. Houve um escândalo na época, mas sabe como essas coisas não duram. A imprensa logo descobre outro escândalo para explorar e tudo é esquecido.

     E discorreu brevemente sobre fatos que confirmavam essa conclusão, mas logo prosseguiu:

     — Talvez isso possa lhe ajudar. Marquei uma hora para o senhor neste endereço É um ótimo sujeito, sabe de tudo. É realmente o máximo. Uma das minhas filhas é afilhada dele, e ele é sempre muito amável, procura me atender sempre que é possível. Falei-lhe sobre o seu caso e disse que já tinha ouvido falar a seu respeito e que podia atendê-lo. As 3 e 45. Aqui está o endereço do seu escritório na cidade. Já foi apresentado a ele?

     — Acho que não — disse Tommy olhando o cartão.

     — Não vai dar muito pela aparência dele. Gran-dão e amarelo. Mas é o máximo. Boa sorte, amigo.

    

     Tommy, tendo conseguido achar o tal escritório a tempo, foi recebido por um homem entre 35 e 40 anos, que parecia determinado a enfrentar todos os perigos. Tommy sentiu-se suspeito de estar tramando um atentado contra o maioral ou a sua equipe inteira, ou de carregar uma bomba escondida. Ficou um bocado nervoso.

     — O senhor diz que tem um encontro com Mr. Robinson, A que horas? Ah, 3 e 45 — consultou uma ficha. — Mr. Thomas Beresford?

     — Sim — disse Tommy.

     — Assine aqui, por favor. Tommy assinou.

     — Johnson.

     Um jovem meio nervoso, de uns 32 anos, surgiu como uma aparição de trás de uma porta de vidro.

     — Senhor?

     — Leve Mr. Beresford ao quarto andar para ver Mr. Robinson.

     — Sim, senhor.

     O jovem conduziu-o a um elevador que parecia mal intencionado em relação aos seres humanos.

     Quase esmagou Tommy quando entrou fechándose a um milímetro de suas costas.

     — Está frio, não? - disse Johnson ansioso por mostrar-se amável com alguém que era admitido à intimidade do chefão.

     — É, as tardes têm estado frias.

     — Alguns dizem que é a poluição, outros que é o gás natural que estamos retirando do Mar do Norte.

        Ah, não cinha ouvido falar nisso.

     Ao fim do corredor do quarto andar, Johnson anunciou:

     — Mr. Beresford está aqui, senhor.

     Tommy entrou. Atrás de uma mesa imensa, que parecia encher a sala, estava sentado um homem enorme e pesado. Como o amigo de Tommy avisara, tinha um rosto largo e a pele amarelada. Sua nacionalidade podia ser qualquer uma, alemã, austríaca, talvez até fosse japçnês. Provavelmente era cem por cento inglês.

     — Ah, Mr. Beresford.

     Mr. Robinson levantou-se e estendeu a mão.

     — Sinto tomar o seu tempo — disse Tommy. Achava que já tinha visto Mr. Robinson antes e que ficara intimidado na ocasião, pois obviamente ele era alguém muito importante, isso sentia-se logo.

     — O senhor quer uma informação, mas seu amigo só me fez um resumo muito breve.

     — Não devia lhe incomodar. Talvez seja sem importância. É somente.. .

     — Uma idéia?

     — E em parte é da minha mulher.

     — Já ouvi falar nela e no senhor também. A última vez foi no caso M ou N ou vice-versa. Lembro-me de que o senhor prendeu aquele comandante, não foi? O tal nazista disfarçado em oficial inglês. Sei que não há mais criancinhas no jardim de infância. Mas o senhor e sua senhora fizeram um bom trabalho. A pista foi fornecida por um versinho de crianças, não é?

     — Lembra-se disto? — perguntou Tommy, com novo respeito.

     — Veio a minha cabeça neste minuto. Versinhos tão conhecidos que ninguém pensaria que tivessem algum significado oculto. Mas o que há agora? Está envolvido em alguma coisa?

     — Nada de maior, realmente. É só que...

     — Vamos, fale. Sente-se e ponha os pés para cima antes. É muito importante na nossa idade.

     — É, agora só nos resta morrer, no devido tempo.

     — Nada disso, depois que atravessamos uma certa fase, podemos continuar a viver praticamente para sempre.

     — Bem, para ser breve, nos mudamos para uma nova casa, e os antigos moradores nos venderam alguns livros antigos, na maioria livros de criança. Num deles, minha mulher encontrou palavras com letras sublinhadas, que reunidas formavam uma frase. E essa frase talvez lhe pareça bobagem.

     — Ótimo, se parece bobagem, quero saber.

     — A frase dizia "Mary Jordan não morreu naturalmente. Deve ter sido um de nós".

     — Muito interessante — disse Mr. Robinson. — Nunca encontrei nada semelhante. Sabe quem escreveu? Tem alguma pista?

     — Parece ter sido um menino de idade escolar, membro da família Parkinson, que morava na casa então. Alexander Parkinson; está enterrado lá no cemitério.

     — Parkinson, o nome é familiar, mas não me lembro de detalhes.

     — E estamos tentando saber quem era Mary Jordan.

     — Porque ela não morreu de morte natural. É, está dentro da sua especialidade. Já conseguiu descobrir alguma coisa?

     — Nada, realmente. Ninguém sabe maiores detalhes sobre ela. Só que era uma espécie de babá, uma governante estrangeira.

     — De que ela morreu?

     — Dizem que envenenada por uma mistura de folhas de dedaleira com espinafre, colhidas na horta por engano. Mas não creio que isso matasse ninguém.

     — Eu também não. Mas se alguém servisse um café ou um coquetel à Mary Jordan com uma dose forte de um alcalóide de digitalina, ela morreria e tudo seria atribuído às folhas de dedaleira. Mas o menino Alexander era esperto demais para acreditar nisso, não? Ele tinha outras idéias. Quando foi isso, Beresford?

     — Antes da Primeira Guerra Mundial. Rumores antigos dizem que ela era uma espiã alemã.

     — Lembro-me do caso, causou grande sensação. Todo alemão que trabalhava na Inglaterra antes de 1914 era acusado de ser espião, e o oficial inglês, envolvido no caso, era considerado acima de qualquer suspeita. Mas isso foi há muito, muito tempo. Acho que a imprensa nunca desencavou esse fato e explorou-o para divertir o público.

     — Só consigo ter uma idéia muito vaga sobre o assunto.

     — É, passou-se há muito tempo. O que despertou o interesse do público na época foi o roubo dos planos secretos de um submarino, e de aviões também. Mas havia o lado político, o caso envolvia pessoas de "total integridade". Integridade meio duvidosa, muitas vezes. Nesta última guerra — continuou .Mr. Robinson — houve gente que dizia que a nossa única chance era juntarmo-nos a Hitler. Estavam todos interessados em abolir a pobreza e a injustiça, Franco na Espanha, Mussolini com seus discursos pomposos. Antes das guerras há muita gente envolvida nessas atividades subversivas e muitos deles nunca são descobertos.

     — O senhor parece saber de tudo. Desculpe o meu interesse, mas é realmente fascinante entrar em contato com alguém que está por dentro dos acontecimentos.

     — Já fiz parte da panelinha muitas vezes, vivi muito tempo nos bastidores dos fatos. Ouve-se muita coisa e os amigos que participaram dos acontecimentos também falam. Deve saber disso.

     — É verdade. Através de velhos amigos tenho sabido de coisas que outros ouviram contar e assim por diante.

     — Foi assim que agiu até aqui.

     — O problema — disse Tommy — é que não sei se estamos certos ou se esta nossa preocupação é bobagem de nossa parte. Veja, compramos uma casa agradável, já está toda arrumada, e começamos a trabalhar no jardim. Realmente não quero me envolver com esse tipo de coisa novamente, é só curiosidade. Mas não conseguimos deixar de pensar no que aconteceu há tanto tempo e no por quê. Só não vejo a finalidade disso, não vai adiantar nada a ninguém.

     — Mas o senhor quer saber. Os seres humanos são assim. E isto nos leva a explorar a lua, o fundo dos oceanos, a achar oxigênio fornecido pelo mar e não pela vegetação. A curiosidade nos leva sempre a descobrir coisas novas. Sem ela seríamos tartarugas. Uma tartaruga tem uma vida muito calma, dorme o inverno todo, e pelo que sei, come grama todo o verão. Não é uma vida interessante, mas é tranqüila. Por outro lado...

     — Eu diria que o homem se parece com o mangusto.

     — Ótimo. Vejo que é leitor de Kipling. Fico satisfeito, Kipling não é tão apreciado hoje como devia, mas era estupendo. Seus contos são muito bons mesmo. Deviam ser mais lidos.

     — Não quero fazer um papel ridículo intrometendo-me em coisas que não me dizem respeito, nem a ninguém mais.

     — Isto nunca se sabe — disse Mr. Robinson.

     Nesta altura Tommy já se sentia culpado de estar tomando o tempo de um personagem tão importante.

     — Não é uma simples curiosidade da minha parte.

     — O senhor quer agradar à sua mulher, não é? Já ouvi falar nela, mas não tive o prazer de conhecê-la. Deve ser uma pessoa maravilhosa, não?

     — Na minha opinião, é.

     — Gosto de ouvir isso, gosto de pessoas que se mantêm unidas, que apreciam o seu casamento e conservam-no.

     — Talvez já seja uma velha tartaruga, suponho. Mas estamos velhos e aposentados e embora tenhamos uma boa saúde para nossa idade, não queremos mais nos envolver, nem nos intrometer em nada. É só. ..

     — Eu sei, não precisa se desculpar. O senhor quer saber e Mrs. Beresford também. Pelo que ouvi falar dela, acabará arranjando um meio de saber de alguma forma. É um palpite meu.

     — Acha mais provável ela descobrir do que eu?

     — Talvez não esteja tão interessado quanto ela, mas tem grande capacidade para encontrar fontes de informação e chegará à solução. Olhe que não é fácil, num caso antigo como esse.

     — Não vejo um motivo para prosseguir nesta investigação. Afinal Mary Jordan já está morta.

     — Sim, isto é verdade. Mas pode-se julgar alguém de uma maneira errada, por causa do que se ouviu ou se leu a respeito.

     — Está insinuando que temos idéias erradas a respeito de Mary Jordan? Ela não tinha importância?

     — Não, ela pode ter tido muita importância. — Mr. Robinson olhou o relógio. — Infelizmente tenho um encontro dentro de dez minutos com um camarada muito chato, mas muito importante. Tem um alto cargo no governo, e é preciso viver com ele, não é? Gostaria de ter o privilégio seu e de sua mulher, de poder ver as coisas só sob o por to de vista de um cidadão fora da vida pública Sei alguns dos fatos dessa história e talvez ainda possa contar-lhe algum dia. Mas como são um assunto encerrado, não haverá lucro nenhum nisso. Uma coisa posso lhe dizer que provavelmente o ajudará em suas investigações: O comandante envolvido nesse caso foi julgado e cumpriu a sua pena, muito merecida por sinal. Era um traidor e pronto. Mas Mary Jordan...

     — Sim?

     — Quer saber quem ela era, pois vou lhe contar. Mary Jordan era uma espiã, mas não uma espiã inimiga. Ouça, meu caro — disse Mr. Robinson abaixando o tom da voz e debruçando-se sobre a mesa, — ela trabalhava para nós.

    

     LIVRO III

     MARY JORDAN

     — MAS isto altera tudo — disse Tuppence.

     — É — concordou Tommy, — foi uma surpresa enorme.

     — Por que ele lhe contou?

     — Não sei, deve ter seus motivos.

     — Como é ele, Tommy?

     — Bem, é alto, gordo e meio amarelado, um tipo muito comum. Mas a gente percebe a sua importância. Como disse o meu amigo, ele é o máximo.

     — Parece estar se referindo a um cantor de musica pop.

     — De tanto ouvir, acabei aprendendo o termo.

     — Ainda acho que ele lhe revelou uma informação secreta.

     — Talvez não importe mais, já faz muito tempo. E pense bem nos fatos que vêm a público, hoje em dia. Sabe-se tudo que alguém fez, disse, escreveu e até pensou. Coisas que eram abafadas antigamente. Hoje não se esconde mais nada.

     — Mas isto me deixa confusa, estava tudo errado, não?

     — O quê?

     — O ângulo em que estávamos vendo as coisas. Olhe, o menino, o Alexander... aparentemente foi ele, não?.. Nos informou, com um atraso de sessenta anos, da morte de Mary Jordan. Alguém da família, ou da casa, era responsável. Mas nós nem sabíamos quem era ela e isso era um impasse.

     — Eu que o diga! — falou Tommy.

     — Até descobrirmos que tinha sido... aparentemente outra vez... uma espiã alemã.

     — Mas agora sabemos a verdade: era o contrário.

     — Ela era uma espiã inglesa.

     — Devia ser do departamento de segurança ou da espionagem, qualquer que fosse o nome do departamento. E foi mandada para cá para investigar provavelmente o tal oficial dos planos. Talvez houvesse por aqui um grupo de agentes alemães preparando os acontecimentos para a guerra.

     — Deve ter acontecido isso mesmo.

     — E "um de nós" deve incluir mais gente do que supúnhamos. Pode ter sido alguém da vizinhança que estava na casa ou entrou por alguma razão. Mafy Jordan morreu porque descobriram o que estava fazendo, e o menino suspeitou ou sabia da verdade.

     — Ela devia estar fingindo ser uma espiã alemã para fazer amizade com o tal comandante; já que não sabemos o seu nome vamos chamá-lo de X.

     — Ouvi falar de um agente inimigo que morava numa cabana perto do cais; era o cabeça de uma grande organização. Pretendiam convencer o povo a juntar-se à Alemanha. Gente muito altruísta. . .

     — Puxa, que confusão! Planos roubados, papéis secretos, espionagem, assassinato, isto está parecendo um romance de Philips Oppenheim!

     — Não há nenhuma confusão, Tuppence. É muito simples. Mary Jordan estava aqui para descobrir alguma coisa e descobriu-a. Quando o comandante X e seus amigos viram que ela tinha descoberto. ..

     — Pronto, resolveram silenciá-la.

     — É, mas antes ela deve ter conseguido apoderar-se de papéis importantes, ou talvez fossem cartas e não teve tempo de entregá-las.

     — Mas sobre a morte dela, se foi em conseqüência de comida envenenada, e todos ficaram doentes, não deve ter sido alguém da casa.

     — Tuppence, veja as coisas dessa maneira: era fácil alguém colocar na cozinha as verduras misturadas com uma quantidade de folhas de dedaleira, que as pessoas passassem mal mas de forma alguma morressem. O médico seria chamado, e pela análise da comida provavelmente descobriria a causa.

     — Mas nesse caso ninguém devia ter morrido.

     — Mas imagine que alguém oferecesse a Mary Jordan um café com uma dose mortal do mesmo veneno da comida. Bem, todos pensariam que ela morrera porque era particularmente alérgica ao veneno da dedaleira.

     — Ou talvez ela tivesse, como os outros, simplesmente passado mal, e no dia seguinte alguém lhe oferecesse um chá com o tal veneno.

     — Agora sua cabeça está funcionando bem, Tuppence!

     — Mas o realmente importante não é o como, é o quem. Praticamente qualquer pessoa poderia ter entrado na casa com uma carta falsa de apresentação, dizendo-se interessado em ver o jardim ou coisa semelhante, não acha?

     — Creio que sim.

     — Para mim há algo nesta casa que justifica o que me aconteceu.

     — O que foi, Tuppence?

     — As rodas do diabo daquele carrinho caíram fora quando eu descia o morro, e fui cair de cabeça dentro da cerca viva. Quase me esborrachei toda. Podia ter sido um acidente sério. Aquele velho tolo, o Isaac, tinha-me assegurado que o brinquedo era seguro e estava em ordem.

     — E não estava?

     — Não, mais tarde ele me disse que alguém devia ter mexido nas rodas, para elas terem caído com tal facilidade.

     — Tuppence, já notou que este é o segundo ou o terceiro acidente a nos acontecer? Lembra-se daquelas estantes que quase desabaram sobre mim outro dia?

     — Alguém estará tentando livrar-se de nós? Mas isso...

     — Isso quer dizer que há alguma coisa aqui nesta casa.

     Ficaram silenciosos. Tuppence abriu a boca para falar e desistiu, umas três vezes, a testa franzida. Foi Tommy quem perguntou finalmente:

     — O que disse mesmo o velho sobre o Bem-amado?

     — Que estava muito estragado e não era de admirar ter acontecido uma coisa destas. Mas que na véspera vira uns meninos brincando com o carro e podia ser que um deles tivesse afrouxado as rodas de brincadeira.

     — Talvez, há esse tipo de crianças.

     — Mas você continua achando que foi proposital, planejado para me machucar, não é? Parece meio impossível.

     — Tudo depende das circunstâncias. Imagine que queiram nos afastar daqui. E não deve ser por causa da casa, não havia mais ninguém interessado nela quando a compramos.

     — Não, ela estava precisando de muitas reformas e o seu estilo não está mais na moda, por isso o preço era baixo.

     — É, devem querer nos afastar porque estamos nos intrometendo muito, fazendo perguntas demais.

     — Não devem estar querendo nos matar, mas eles ficariam bem satisfeitos se chegássemos à conclusão de que não gostamos da casa afinal, querem nos obrigar a vender a casa e dar o fora.

     — Que eles são esses?

     — O outro lado. Vamos dizer que são eles contra nós.

     — Será que o velho Isaac está metido nisso? — preocupou-se Tuppence.

     — Ele é muito velho, deve saber alguma coisa; já vive aqui há muito tempo. Se alguém o subornasse com uma nota de cinco libras, acha que ele sabotaria o Bem-amado?

     — Não, não tem miolos para isso.

     — Não é preciso miolos para desatarraxar uns parafusos de maneira que se soltem na próxima descida do morro.

     — Ainda acho que isso tudo pode ser bobagem nossa.

     — Mas Mary Jordan existiu e morou aqui enquanto espionava o comandante X.

     — Esta história de comandante X não tem graça. Precisamos descobrir o nome dele.

     — Está certo, Tuppence. Agora suponhamos que Mary descobriu alguma coisa e tenha escrito uma carta.

     — E escondeu no oco de uma árvore onde mais tarde alguém a iria pegar. Não, isso é coisa de romance de amor antigo. Mas ela poderia ter escrito uma carta em código com a aparência de uma mensagem de namorados, não podia?

     — Que idéia romântica, querida. Mas acho difícil descobrir o que se passou realmente agora, passados tantos anos.

     — Não vamos desistir, não é Tommy?

     — Às vezes me dá vontade.

     — Mas não consegue parar de pensar nesse assunto, nem eu tampouco. Se tivesse que desistir, perderia até o apetite. E os Parkinson? Estariam ligados ao inimigo?

     — Na minha opinião, não. Acho que Mary Jordan usou o emprego na casa deles como uma justificativa para estar aqui em Hollowquay e tentar entrar em contato com o inimigo fingindo ser uma espiã alemã.

     — E a casa também podia estar sendo usada como ponto de encontro. Mas então, como é que tanta gente morou aqui e nunca descobriu nada?

     — Mas não era gente como você, Tuppence. Curiosa como um mangusto, metendo o nariz em livros velhos e descobrindo coisas. Provavelmente os outros donos nunca mexeram neles, deviam estar guardados em algum quarto fora de uso. Pode ser que as coisas escondidas por Mary, num lugar que ela julgava seguro, ainda estejam lá. Isso é uma idéia fascinante, não?

     E alguém está com medo de que achemos essa coisa. Devem ter revistado a casa sem resultado, mas não têm certeza de que não esteja aqui. Oh, Tommy! Vou procurar fora da casa também!

     — Que está pretendendo? Vai revolver a horta?

     — O porão, o sótão, os velhos armários, tudo. Quem sabe?

     — Ora, Tuppence, justamente quando íamos gozar uma velhice tranqüila!

     — Por falar em velhice, não tinha pensado ainda no abrigo dos Velhinhos aposentados.

     — Pelo amor de Deus, Tuppence, tome cuidado. Ficaria tomando conta de você, se não tivesse de ir a Londres saber o resultado das pesquisas.

     — Pois eu vou pesquisar por aqui mesmo.

    

          TUPPENCE PESQUISA

     — SERÁ que estou incomodando a senhora, vindo sem avisar antes? — perguntou Tuppence. — Talvez fosse melhor ter telefonado, mas como não era nada importante, achei que poderia voltar mais tarde se estivesse ocupada. Não se acanhe, não vou ficar ofendida.

     — De maneira alguma, fico muito satisfeita em vê-la, Mrs. Beresford — disse Mrs. Griffin.

     Acomodou-se melhor na cadeira e olhou para a ansiosa Tuppence com uma expressão de prazer genuíno.

     — A vinda de gente nova para este lugar é uma alegria para todos. Já estamos tão habituados aos vizinhos antigos que é um prazer ver uma cara nova. Venham jantar comigo um dia desses. Não sei a hora em que seu marido chega em casa. Ele vai a Londres quase todos os dias, não é?

     — Vai sim. É muita delicadeza sua. Quero que venha ver a casa, quando estiver arrumada. Parece que este dia nunca chega!

     — É, uma casa nunca está como se quer — disse Mrs. Griffin.

     Mrs. Griffin tinha noventa e quatro anos, como Tuppence sabia através de suas fontes de informação: empregadas, o velho Isaac, Gladys do correio e várias outras. Mantinha uma postura empertigada para livrar-se das dores reumáticas nas costas, o que lhe dava um ar de uma pessoa muito mais jo-vem. Os cabelos, puxados para cima e amarrados com um lenço de renda, lembravam a Tuppence uma de suas tias-avós. Mrs. Griffin usava óculos bifocais e um aparelho de surdez, que raramente utilizava. Tinha ainda muita vivacidade e parecia capaz de alcançar os cem anos de idade e até de chegar aos cento e dez.

     — O que tem feito ultimamente? — perguntou Mrs. Griffin. — A Doroty... Mrs. Rogers, sabe ... contou-me que os eletricistas já terminaram o serviço. Ela já foi minha empregada e agora faz a limpeza duas vezes por semana.

     — É, graças a Deus. Vivia caindo nos buracos que eles abriam. Mrs. Griffin, vim trazer-lhe uma coisa, talvez ache bobagem. Mas encontrei-a fazendo uma arrumação nas estantes. Descobrimos uma porção de livros que havia na casa, a maioria livros de criança, muito antigos, mas alguns tinham sido meus prediletos na infância.

     — Ah, deve ter ficado animada só com a idéia de lê-los novamente. Talvez tenha achado O Prisioneiro de Zenda! Foi o primeiro romance que li. Gostei tanto! Minha avó já tinha lido em seu tempo. Naquela época não encorajavam as crianças a lerem romances. Minha mãe e minha avó só permitiam que lêssemos História e outros assuntos sérios de manhã. Romances eram considerados diversão e só podiam ser lidos à tarde.

     — Era isso mesmo — disse Tuppence. — Gostei muito de ler Mrs. Molesworth outra vez.

     — Ah, já sei: A Sala da Tapeçaria...

     — Não era ótimo? Reli muitos livros deliciosos. Mas eu lhe trouxe uma coisa que encontrei num buraco por trás da prateleira de baixo. Estava cheio de papéis, livros amarrotados e isso aqui

     E Tuppence mostrou um embrulho de papel pardo.

     — É um álbum de aniversário, muito antigo. E tem o seu nome. A senhora me disse que se chamava Winifred Morrisson, não era?

     — Sim, minha querida, isso mesmo.

     — Talvez a senhora se divirta, olhando-o. Deve ter o nome de velhos amigos seus.

     — Foi muito amável da sua parte, gostarei muito de vê-lo. As lembranças do passado são muito doces na velhice. Foi uma lembrança delicada, a sua.

     — Está meio desbotado e um pouco rasgado.

     — Ora, ora, um álbum de aniversário. Naquele tempo todo mundo tinha um, depois passou a moda. Você escrevia seu nome no álbum de sua amiga e ela escrevia no seu — disse Mrs. Griffin folheando o livro. — Ah! Isto me leva ao passado. Helen Gilbert, naturalmente, e Daisy Sherfield, ela estava sempre tirando o aparelho dos dentes, porque a incomodava... Edie Crone, Margaret Dickson. E que bela caligrafia, muito melhor do que a de hoje em dia. Mal consigo entender as cartas de meus sobrinhos, parecem hieróglifos. E a Mollie Short gaguejava, coitada. Como me lembro delas todas!

     — Muitas delas devem estar... — Tuppence parou com medo de melindrar a velha senhora.

     — Sim, está certa, minha cara. A maioria já morreu, mas não todas. Ainda tenho algumas das minhas companheiras de infância bem vivas. Não aqui, pois casaram-se e foram morar em outros lugares, algumas com oficiais. Duas das minhas amigas mais antigas moram em Northumberland.

     — Não vejo o nome dos Parkinson aqui. O álbum não é do tempo deles?

     — Você está interessada nos Parkinson, não está?

     — É verdade — admitiu Tuppence. — É pura curiosidade, mas vendo os livros me interessei pelo menino, Alexander Parkinson, e outro dia encontrei seu túmulo. Morreu ainda garoto, não foi? Isto me fez pensar ainda mais nele.

     — Ele morreu muito novo, sim. Todos acharam que foi uma pena. Era muito inteligente e na certa teria um futuro brilhante. Não morreu de doença, foi uma intoxicação com comida estragada num piquenique que o matou. Foi Mrs. Henderson quem me contou, ela conheceu os Parkinson.

     — Mrs. Henderson? — perguntou Tuppence.

     — Você não a conhece. Mora num abrigo de velhos chamado Meadowside; fica a uns quinze ou vinte quilômetros daqui. Devia ir vê-la. Ela pode lhe contar muita coisa sobre a sua casa. Chamava-se O Ninho das Andorinhas naquela época Como é mesmo o nome hoje?

     — A Casa dos Loureiros.

     — Mrs. Henderson é mais velha do que eu, embora fosse a caçula de uma família muito grande. Foi uma espécie de dama de companhia e enfermeira de Mrs. Beddingfield, a dona do Ninho das Andorinhas na época. Vá vê-la, gosta muito de falar nos tempos antigos.

     — Talvez eia não goste.

     — Ora, querida, gostará na certa. Diga-lhe que eu sugeri a visita. Minha irmã Rosemary e eu vamos vê-la às vezes, mas há muito tempo não tenho podido sair. E você também poderia procurar Mrs. Henley; mora na Cabana da Macieira, uma outra pensão para gente idosa. Não tem a mesma classe da outra, mas o pessoal diverte-se fazendo mexericos. Certamente irão adorar a sua visita, vai quebrar a monotonia.

    

     TOMMY E TUPPENCE TROCAM IDÉIAS

     — PARECE cansada, Tuppence — disse Tommy depois do jantar, quando Tuppence deixou-se cair numa poltrona dando suspiros de alívio.

     — Cansada? Estou morta!

     — Que andou fazendo? Não andou trabalhando no jardim, não é?

     — Não é cansaço físico, não. É estafa mental.

     — Pensar é mesmo uma coisa exaustiva, concordo com você. Mas onde andou pensando? Não me parece que tenha conseguido tirar muita coisa de Mrs. Griffin anteontem.

     — A primeira visita de hoje não foi grande coisa, mas a outra deu resultado, pelo menos acho que sim — disse Tuppence pescando uma caderneta de anotações de tamanho respeitável lá do fundo da bolsa.

     — Veja, tomei algumas notas. Levei os menus de porcelana, sabe?

     — E qual foi o resultado?

     — De saída despertou o apetite de todos. Acredita que eles se lembravam deste jantar aqui?

     — Eles quem?

     — Não me lembro dos nomes, anotei mais as coisas que disseram. Mas ficaram entusiasmados com esse menu; tinha sido uma festa e tanto. Tinham servido salada de lagosta depois do assado, era o supra-sumo da elegância na época e foi a primeira vez que a provaram.

     — Isso não acrescenta nada ao que sabemos.

     — Escute só: lembravam-se também porque tinha sido o dia do recenseamento.

     — O quê?

     — Sabe o que é um recenseamento, não sabe? Tivemos um o ano passado. Todos dizem quem está na sua casa naquele dia, antigamente parece que assinavam o nome. Os velhinhos todos reclamaram do recenseamento moderno, acharam bisbilhotice do governo querer saber quantos e quem são os seus filhos, imagine como fica gente solteira com filhos! É uma coisa muito indiscreta, segundo eles.

     — Se soubermos a data exata desse recenseamento talvez isso nos ajude.

     — Você pode obter os dados do recenseamento?

     — Deve ser fácil, conhecendo a pessoa certa.

     — Lembravam-se dos mexericos sobre Mary Jordan. Era difícil acreditar que fosse espiã, tão boazinha; todos gostavam dela? Mas não a deviam ter contratado sabendo que tinha sangue alemão.

     Tuppence acabou o seu café e recostou-se na cadeira.

     — Mais alguma coisa? — perguntou Tommy.

     — Bem, começaram a falar sobre coisas escondidas. Alguém contou uma história sobre um testamento achado dentro de um vaso chinês. E papéis que teriam sido levados para Oxford ou para Cambridge, não tenho certeza. Mas isso me pareceu uma história sem pé nem cabeça.

     — Deve ter sido o sobrinho universitário de algum dos velhos que levou algo que não devia para Oxford ou Cambridge. Mas alguém havia conhecido Mary Jordan?

     — Não, só ouviram falar dela através de outras pessoas, parentes ou um almirante qualquer.

     — Falaram sobre sua morte?

     — Sim, sabiam do episódio do espinafre misturado com a dedaleira. Todos ficaram bons, menos ela.

     — Aqui a história confere.

     — Mas foi muita gente falando ao mesmo tempo, de espiões, venenos em piqueniques e tudo mais. Ninguém sabia a data exata de nada. Sabe como são os velhos, quando passaram dos oitenta gostam de exagerar a idade, mas quando ainda estão nos setenta, dizem que têm cinqüenta e dois.

     — "Mary Jordan não morreu naturalmente" — disse Tommy pensativo. — Será que Alexander falou com algum policial sobre suas suspeitas?

     — Talvez tenha falado demais e por causa disso resolveram matá-lo.

     — Sabemos a data da morte de Alexander pela inscrição do túmulo, mas não sabemos quando Mary Jordan morreu. Mas ainda vamos descobrir

     — disse Tommy. — Vá fazendo uma lista do que já sabe, nomes e datas. É surpreendente como isto pode ajudar.

     — Nessa hora seus amigos são muito úteis — disse Tuppence, com uma ponta de inveja.

     — Os seus também.

     — Não muito.

     — Olhe, você faz as pessoas se mexerem. Foi procurar uma velha com um álbum antigo. Daí passou para um monte de gente e obteve uma porção de histórias antigas de avós, tios-avós, velhos almirantes, histórias de espionagem. Juntem-se a isso algumas datas e algumas informações precisas e quem sabe o que irá resultar?

     — Quem teriam sido os tais estudantes que levaram algo para a escola?

     — Isso não deve ter nada a ver com o nosso caso. Poderíamos procurar médicos e velhos clérigos, mas já se passou muito tempo. Não iríamos conseguir nada com isso.

     — Alguém fez mais alguma gracinha com você?

     — Não, ninguém tentou me matar nos últimos dias. Não fui convidada para nenhum piquenique, os freios do carro estão em ordem e a lata de inseticida no galpão nem foi aberta ainda.

     — O velho Isaac deve estar esperando você aparecer com uns sanduíches.

     — Ah, coitado do Isaac. Não fale mais mal dele, está ficando muito meu amigo. Queria me lembrar de uma coisa...

     — O quê?

     — É sobre o Isaac, mas me esqueci. Deixa para lá. Conheci uma velhinha que escondia seus brincos dentro das luvas de lã quando ia dormir; a tal que pensava estar sendo envenenada. E uma outra escondia o seu dinheiro dentro de uma caixa de louça das que se vêem nas igrejas escritas "para os órfãos" e desamparados". Quando estava cheia, ela quebrava e arranjava outra. Achava que ninguém roubaria os órfãos e desamparados!

     — Você não encontrou, nas suas arrumações dos livros, algum de sermões com cara de serem bem chatos?

     — Não, por quê?

     — Seria um bom lugar para esconder alguma coisa, um livro bem maçante que ninguém iria querer ler. Era só cortar a parte central.

     — Não vi,-não. Não me lembro de nenhum.

     — Você o leria?

     — Na certa que não.

     — Aí está. Pode ter jogado fora. Mas algum dia ainda escreveremos um livro chamado Quem Matou Mary Jordan.

     — Pois me parece pouco provável — disse Tuppence desanimadamente.

    

          MATILDE É OPERADA

     — O QUE vai fazer hoje à tarde, Tuppence? Vai continuar me ajudando com esta lista de nomes e datas?

     — Já cansei, Tommy. Isto é muito exaustivo, e volta e meia faço aquela confusão, não?

     — É, algumas trapalhadas você fez mesmo.

     — Não devia ser tão mais preciso do que eu, Tommy. Às vezes isso me irrita um pouco.

     — O que vai fazer em vez disso?

     — Uma soneca seria uma boa idéia, mas acho que vou abrir a barriga da Matilde.

     — Que idéias violentas são essas?

     — A Matilde, do quiosque.

     — Quem é essa?

     — O cavalo de balanço que tem um buraco no estômago, quero ver o que há lá dentro. Quer me dar uma mãozinha?

     — Não estou com muita vontade, não.

     — O senhor quer fazer a gentileza de me ajudar? — pediu com delicadeza exagerada Tuppence.

     — Com um pedido desses não posso recusar — disse Tommy suspirando. — De qualquer forma, é melhor do que fazer listas. Isaac está por aí?

     — Não, é sua tarde de folga, mas não o quero mesmo por perto. Acho que já arranquei dele todas as informações que tinha.

     — Ele sabe mais coisas do que pensa, tem uma memória ótima. Reparei isto outro dia quando conversávamos.

     — Deve ter mais de oitenta anos.

     — Mas lembra-se muito bem de coisas acontecidas há mais de meio século.

     — Bem, vamos operar a Matilde. Vou vestir umas roupas mais velhas porque há muita sujeira e teias de aranha por lá, e a nossa próxima paciente não está muito limpa.

     — Se Isaac estivesse por aí poderia virá-la de barriga para cima para que pudéssemos alcançar o campo operatório mais facilmente.

     — Sim, senhor cirurgião.

     — Temos que remover os corpos estranhos que prejudicam a sua saúde. Que tal pintá-la depois? Os gêmeos de Débora gostarão de andar nela na sua próxima visita.

     — É, eles vão adorar, embora já tenham muitos brinquedos caros. E as crianças gostam tanto de improvisar. São capazes de se divertir com barbantes e de fazer bonecos de faz-de-conta com trapos!

     — Vamos, Matilde está esperando.

     Não foi fácil virar Matilde, era bem pesada, cheia de parafusos que arranharam a mão de Tuppence e puxaram o fio do suéter de estimação de Tommy que exclamou indignado:

     — Diabo de cavalo!

     — Devia ter ido para a fogueira há muito tempo!

     Neste momento o velho Isaac apareceu.

     — O que é isso? O que vão fazer com esse cavalo? Posso ajudá-los? Querem que o tire daqui?

     — Não é necessário — acalmou-o Tuppence. — Só queremos virá-lo para alcançar o buraco da barriga.

     — Para que vão fazer isto, quem lhes deu essa idéia maluca? Pretendem achar alguma coisa?

     — Só velharias provavelmente — disse Tommy — Queremos fazer uma limpeza por aqui. É um bom lugar para guardar um jogo de croquet, talvez, e coisas assim.

     — Já houve um campo de croquet lá no roseiral, de tamanho pequeno. Bem antes da minha época. Mas o senhor não deve acreditar no que dizem por aí. Todo mundo gosta de contar lorotas, histórias de coisas escondidas e tudo mais. Vai ver é tudo mentira.

     — Isaac, como sabe que houve um campo de croquet?

     — Naquele canto ali, havia um jogo de malhos e bolas há séculos atrás. Não sei se sobrou alguma coisa.

     Tuppence largou Matilde e foi dar uma espiada numa velha caixa de madeira encostada à parede. Abriu a tampa com dificuldade e descobriu uma desbotada bola azul, uma vermelha e um malho empenado, cobertos por um monte de teias de aranha.

     — Foi no tempo de Mrs. Faulkner; ela participou até de torneios.

     — Aonde? Em Wimbledon? — perguntou a incrédula Tuppence.

     — Não, aqui mesmo. Ainda há retratos no fotógrafo.

     — Fotógrafo?

     — No Durrance, o fotógrafo da aldeia. A senhora o conhece, não é?

     — Sim, ele vende filmes.

     — Isto mesmo. Ele é c neto ou bisneto do velho Durrance e vende toda espécie de cartões e filmes. Mas o velho tirava retratos das pessoas. Outro dia mesmo apareceu lá uma mulher querendo um retrato da sua bisavó. Parece que tinha queimado ou perdido o seu e estava procurando o negativo. Há um bocado de álbuns antigos lá em algum canto.

     — Álbuns — disse Tuppence pensativamente.

     — Ajude-nos aqui, Isaac.

     Tommy enfiou o braço dentro da barriga da Matilde e tirou de lá uma bola de borracha estourada que já havia sido amarela e vermelha algum dia.

     — Esconderijo genial esse!

     — Devem ter sido as crianças — disse o velho. — Houve um rapazinho que costumava usar isso como caixa de correio. Metia cartas aí dentro.

     — Cartas? Para quem?

     — Alguma namorada, mas isto aconteceu antes da minha época.

     — É, tudo foi antes da sua época, não Isaac? — disse Tuppence enquanto o velho saía a pretexto de fechar as venezianas.

     Tommy tirou o casaco.

     — É inacreditável que nunca ninguém tenha feito uma limpeza nisso — disse Tuppence examinando seu braço sujo e arranhado.

     — Por que alguém haveria de ter essa idéia?

     — Tem razão — disse Tuppence. — Mas nós a tivemos, não?

     — Só porque não temos nada melhor para fazer. Mas na minha opinião isso não vai dar em nada. Ai, me arranhei — reclamou Tommy retirando um cachecol de tricô que já servira de refeição a muitas traças.

     — Cuidado com os pregos, Tuppence.

     A pescaria de Tuppence resultou numa roda de carro de criança.

     — Estamos perdendo nosso tempo.

     — Mas vamos até o fim, já que começamos. Só espero que não haja minhocas por aqui.

     — Minhocas gostam de viver debaixo da terra, Tuppence. Não achariam graça nenhuma na Matilde.

     — Achei um papel de agulhas, todas enferrujadas.

     — Alguma criança não gostava de costurar.

     — Ei, isso tem jeito de livro! — disse Tuppence extraindo das entranhas de Matilde um volume, quase irreconhecível, com as folhas soltas e manchadas e a encadernação em pedaços.

     — É um livro de francês: Pour les Enfants. Le Petit Precepteur.

     — Mais uma criança sem vontade de estudar a lição. Fingiu ter perdido o livro, escondido para sempre dentro da Matilde, a boa Matilde.

     — Deve ter sido difícil colocar as coisas dentro dela.

     — Para uma criança era fácil. Era só se ajoelhar e pronto. Ai, que coisa escorregadia, parece a pele de um animal.

     — Será um coelho morto?

     — Não, não tem pelos — disse Tuppence retirando a mão cautelosamente.

     — Parece uma carteira, e de um couro muito bom.

     — E pelo jeito está cheia. Imagine se for dinheiro, notas de vinte libras, hem? O dinheiro daquele tempo era de um papel muito bom, talvez não esteja estragado.

     — Melhor ainda se fossem moedas de ouro. Tive uma tia que tinha uma bolsa cheia delas, bem gordas e reluzentes, para o caso do pais ser invadido pela França, imagine. Nas ocasiões especiais, como a ida para o colégio, a gente ganhava uma, se fosse um sobrinho predileto, é claro. Eu vivia sonhando em ter uma bolsa como a dela, cheiinha de lindos soberanos de ouro.

     — Vamos lá para fora ver isso melhor. Está muito abafado aqui.

     Fora do quiosque viram que o achado era uma carteira de boa qualidade, ainda em condições razoáveis.

     — Não está nem mofada, lá dentro deve ser bem seco.

     — Parecem cartas, mas estão tão apagadas e velhas que nem sei se poderemos lê-las.

     Com muito cuidado Tommy esticou o papel amarelado. A letra era grande e tinha sido escrita com tinta azul bem escura.

     — Mudança do lugar de encontro — leu Tommy. — Ken Garden junto Peter Pan, quarta 25, 15:30, Joanna.

     — Encontramos alguma coisa finalmente — disse Tuppence.

     — Alguém devia ir a Londres, ao Kensington Garden e entregar os documentos, provavelmente, a uma pessoa que esperaria perto da estátua de Peter Pan. Mas quem colocou isto na Matilde?

     — Não deve ter sido uma criança, foi alguém que morava na casa e podia entrar aqui sem ser notado.

     Tuppence embrulhou a carteira no lenço que levava ao pescoço.

     — Se houvesse papéis soltos lá dentro provavelmente virariam pó ao serem tocados, não? — disse ela enquanto voltavam à casa.

     Na mesa do hall havia um pacote desajeitado. Albert, que saía da sala de jantar, explicou:

     — Deixaram esse pacote aí de manhã para a senhora.

     — O que será? — disse Tuppence desamarrando e abrindo o embrulho de papel pardo. — É um álbum. Aqui está uma nota, de Mrs. Griffin.

     "Querida Mrs. Beresford. Foi muita gentileza sua trazer-me o álbum de aniversário aquele dia. Tive muito prazer em vê-lo e relembrar amigos do passado. Tinha-me esquecido do nome completo deles todos. Dias atrás encontrei esse álbum, foi da minha avó. Entre os retratos reparei em alguns da família Parkinson, eles eram amigos dela. Como a senhora está tão interessada na história de sua casa e nas pessoas que moraram nela, talvez goste de vê-los. Nãc é necessário devolver o álbum pois não tem maior importância para mim. A minha casa está cheia de coisas de velhos parentes, ima-gine que outro dia encontrei numa gaveta no sótão seis papéis de agulha. Devem ter uns cem anos de idade. Era minha avó quem costumava dar às empregadas de presente de Natal um papel de agulhas. Deve tê-los comprado em alguma liquidação para durar mais de um ano. Fiquei triste com tamanho desperdício."

     — Um álbum de retratos — disse Tuppence. — Deve ser distraído; vamos olhá-lo.

     Sentaram-se no sofá da sala. O álbum era típico da época, e os retratos estavam muito desbotados mas ainda dava para perceber as fisionomias. Volta e meia Tuppence reconhecia os jardins de sua casa.

     — Olhe, a cerca-viva, e aqui está o Bem-amado com um menino engraçadinho sentado nele. E aqui as glicínias e o capim-dos-pampas. Isso parece uma festa no jardim, quanta gente em volta dessa mesa. Os nomes estão escritos embaixo. Ma-bel, não era nenhuma beleza essa Mabel. E esses quem são?

     — Charles e Edmund — disse Tommy, — e andaram jogando tênis; que raquetes esquisitas. Aqui está o William e o Major Coates.

     — Olhe Tommy. .. Mary!

     — É ela mesma, Mary Jordan. Está escrito embaixo.

     — E como era bonita, muito bonita mesmo. Está um pouco desbotado, mas é maravilhoso poder vê-la!

     — Quem terá tirado esses retratos?

     — Pode ter sido o fotógrafo que Isaac mencionou. O tal Durrance. Ainda vou lá dar uma olhada nos seus álbuns velhos.

     Tommy tinha fechado o álbum e estava abrindo uma carta que viera pelo correio.

     — Algo interessante? — perguntou Tuppen-ce examinando umas contas.

     — Talvez seja. Vou a Londres amanhã outra vez.

     — Ver aqueles seus informantes?

     — Não, vou ver um Coronel Pikeaway que mora em Harrow Way, perto de Londres.

     — Eu o conheço?

     — Já devo ter falado nele, vive envolvido numa nuvem de fumaça. Tem pastilhas para tosse ai?

     — Devem ter sobrado algumas do ano passado. Não tinha percebido que você estava com tosse.

     — Não estou, mas vou precisar delas na casa do Coronel. Não adianta nem a gente olhar para as janelas que ele não liga para a indireta. Tudo está sempre fechado e ele fuma sem parar.

     — Para que ele quer vê-lo?

     — Não sei — disse Tommy. — Mas fala em Robinson.

     — O tal grandão que entende de tudo?

     — Esse mesmo.

     — Não há um ditado que diz: "Pecados antigos têm longas sombras"? Deve ser o caso do que aconteceu aqui. Quer vir comigo ao tal fotógrafo esta tarde?

     — Estou com vontade de tomar um banho de mar.

     — Com esse frio?

     — Não tem importância. Preciso mesmo de algo frio e revigorante para tirar o gosto de todas aquelas teias de aranha. Sinto-as em todo corpo, orelhas, pescoço, até entre os dedos do pé!

     — Bem, então aproveite. Vou ver o tal Mr. Durrel ou era Durrance? Olhe, ainda não abriu esta carta.

     — Ah, não vi. Talvez seja importante. É da minha pesquisadora, a tal que anda por toda a Inglaterra revolvendo os registros, os arquivos de jornal e o serviço de recenseamento. É um bocado eficiente.

     — Eficiente e bonita?

     — Se é bonita nunca notei.

     — Ainda bem — disse Tuppence. — Sabe Tommy, tenho medo de que na sua idade vá ficar com idéias perigosas quando encontrar uma bela ajudante!

     — Você não aprecia o marido fiel que tem.

     — As minhas amigas dizem que nunca se pode ter certeza a respeito dos maridos.

     — Você tem a espécie errada de amigas — disse Tommy.

    

     UM ENCONTRO COM O CORONEL PIKEAWAY

     TOMMY atravessou o Regent Park e passou por lugares que não via há anos. Lembrou-se do apartamento onde morava com Tuppence perto do Belsize Park e do cachorro que adorava passear ali. Toda vez que saíam para fazer compras, aquele cachorro teimoso, o James, um Sealyham de natureza obstinada, deitava o corpo comprido como uma salsicha na calçada e punha a língua de fora, como se estivesse completamente exausto. Os transeuntes todos apiedavam-se do pobrezinho:

     — Coitadinho, está tão sem fôlego, será que os donos não percebem como está cansado?

     Tommy puxava a guia, tentando persuadir James a seguir na direção oposta ao parque.

     — Tommy, não pode carregá-lo um pouco? — pedia Tuppence.

     — Ele é pesado demais.

     E lá estava o esperto James novamente na direção desejada.

     — Está certo — desistia Tuppence. — Vamos deixar as compras para mais tarde, agora vamos levar James aonde ele quer ir. Não há mesmo jeito de persuadi-lo a nos acompanhar.

     O cão sacudia a cauda, todo satisfeito, ótimo, parecia dizer, vamos todos ao parque. Quase sempre conseguia o seu intento.

     A última vez que Tommy vira o Coronel Pikeaway, fora numa sala cheia de fumaça em Blomsbury. O novo endereço era uma casa comum e pequena, perto do lugar de nascimento de Keats. Nada tinha de interessante ou atraente. Tommy tocou a campainha e foi atendido por uma mulher com uma cara de feiticeira, de nariz pontudo e queixo agressivo, aue o encarou com hostilidade.

     — Queria ver o Coronel Pikeaway por favor.

     — Não sei se vai ser possível — disse a bruxa. — Quem é o senhor?

     — Meu nome é Beresford.

     — Ah, pode entrar, ele está esperando.

     — Posso estacionar o carro aqui em frente?

     — Se não vai demorar... É raro passar um guarda por aqui. É melhor trancar o carro.

     Depois de obedecer às instruções, Tommy seguiu a velha.

     — É lá em cima — explicou ela.

     Já nas escadas sentia-se um cheiro forte de fumo. A bruxa bateu numa porta, abriu-a e anunciou:

     — Está aqui a pessoa que o senhor esperava.

     Tommy penetrou numa atmosfera densa e quase irrespirável de tanta fumaça, e pensou que provavelmente reconheceria o Coronel sem o seu halo inesquecível de nicotina.

     Um homem velho, sentado em uma poltrona esfarrapada, com rasgão nos braços, disse:

     — Feche logo a porta, Mrs. Copes, para o ar frio não entrar.

     Que pena, seria uma ótima idéia, pensou Tommy, sem outro remédio senão tentar respirar com precaução.

     — Há quanto tempo não o vejo, Thomas Beresford? — perguntou o Coronel.

     Tommy não teve tempo de fazer o cálculo,

     — A última vez foi com aquele seu amigo, não foi? Não me lembro mais o nome dele, mas não importa. Julieta disse que uma rosa seria perfumada mesmo não se chamando rosa. Que falas tolas Shakespeare coloca na boca de seus persona-gens às vezes, não acha? Mas o pobre coitado era poeta. Não gosto muito de Romeu e Julieta, ha gente demais se suicidando por amor, mas isso acontece na vida real. Sente-se, meu rapaz.

     Para aceitar o convite Tommy colocou no chão cuidadosamente uma pilha de livros que estava em cima da única cadeira disponível.

     — Pode empurrá-los, era só uma coisa que estava pesquisando. Mas está com ótima aparência, só um pouco mais velho. Já teve algum ataque das coronárias?

     — Não — disse Tommy.

     — Ótimo, há gente demais sofrendo do coração por aí; pensam que o mundo vai parar sem eles, acham-se importantes demais. Será que também pensa assim?

     — Não me julgo importante, vou gostar muito de descansar um pouco afinal.

     — Isto é esplêndido — disse o Coronel. — Mas vai aparecer muita gente para atrapalhar seu descanso. Quem os mandou àquela casa? O Robinson me falou, sempre o mesmo, gordo, pálido e cada vez mais rico. Tem um ótimo faro para di-nheiro também. Por que o procurou?

     — Bem, quando compramos aquela casa e minha mulher descobriu que tinha um segredo antigo, um amigo sugeriu-nos que procurássemos Mr. Robinson.

     — Não conheço sua esposa, mas sei que é muito inteligente. Ela fez um grande trabalho naquele caso do M ou N, não foi?

     — Isso mesmo.

     — E estão investigando novamente. Já desconfiavam de alguma coisa antes?

     — O senhor está enganado. Resolvemos nos mudar porque estávamos cansados de morar num apartamento e o preço do aluguel estava sempre aumentando.

     — Os senhorios de hoje são terríveis. Agora na casa nova ü faut cultiver son jardin — disse o Coronel pulando inesperadamente para o francês. — Preciso praticar, o Mercado Comum esta aí, não é? Mas por que foram para o Ninho das Andorinhas?

     — O nome atual é A Casa dos Loureiros.

     — Quando era menino, a estrada de acesso às casas costumava ser coberta periodicamente de pedregulhos e era moda plantar loureiros de cada lado, ou os de folhas verdes e brilhantes ou aquela variedade de folhas manchadas. Na certa essa casa também os tinha.

     — O senhor a conheceu?

     — Não, nunca estive lá, mas lembro-me bem da comoção causada pelo caso. Foi uma fase perigosa para o país. Pelo que Mr. Robinson me contou, o senhor procura informações sobre uma moça chamada Mary Jordan, não é? Quer saber como era? Veja aquela fotografia à esquerda sobre a lareira.

     Tommy levantou-se para olhar o retrato: era bem típico da época em que fora tirado, mostrava uma bela moça com o rosto emoldurado por um grande chapéu, segurando um ramo de rosas

     — Um pouco ridículo para o gosto de hoje, não? Era muito bonita, mas não teve sorte. Morreu muito jovem, foi uma tragédia.

     — Nada sei sobre ela — disse Tommy.

     — É, ninguém mais deve lembrar-se dela — assentiu o Coronel.

     — Na aldeia julgam que era uma espiã alemã, mas Mr. Robinson informou-me o contrário.

     — É, ela era do nosso grupo e fez um bom trabalho, mas foi descoberta. Não sei os detalhes. Sempre houve confusões neste país, no mundo inteiro aliás. Sempre houve e parece que sempre haverá. Até no tempo das Cruzadas. Como foram ter aquela idéia de formar exércitos para libertar Je-rusalém!

     — Há alguma confusão no país agora?

     — Naturalmente, sempre há.

     — De que espécie?

     — Não sei bem, mas chegaram a apelar para mim, para um velho como eu. Querem saber de histórias passadas, de pessoas envolvidas em outras ocasiões. Querem descobrir segredos envolvidos nas brumas do passado. Você e sua mulher já prestaram bons serviços, querem fazer isto novamente?

     — Não sei, já estou velho agora. Acredita quí posso fazer alguma coisa?

     — Você me parece mais saudável do que a maioria dos homens de sua idade, está até melhor do que certos homens mais novos. E sua mulher tinha um ótimo faro, melhor que um cão de caça.

     Tommy sorriu.

     — Mas o que posso fazer? Ninguém me disse nada, nem me deram nenhuma instrução.

     — E acho que não o farão. Não podem falar, o próprio Robinson tem medo de dizer demais. Mas deve ver que o mundo continua o mesmo, por toda parte violência, materialismo, rebeliões, sadismo, quase como nos tempos da juventude hitleriana. O Mercado Comum é uma coisa muito boa, a Europa precisa se unir. Mas uma união real de povos civilizados, com idéias e princípios civilizados. É preciso estar alerta aos sinais de perigo, e é aí que funciona aquele grandalhão.

     — Mr. Robinson?

     — É, já quiseram dar-lhe um título de nobreza, mas ele não se interessou. Está muito ocupado, sabe que o dinheiro é a mola do mundo, conhece todas as fortunas conseguidas com o tráfico de drogas. Hoje há idolatria do dinheiro, não para comprar uma bela casa e dois Rolls-Royces, mas para subverter as velhas crenças, a crença na honestidade e no comércio justo. Os fortes devem ajudar os fracos, os ricos financiar os pobres. A honestidade e a bondade precisam ser admiradas novamente.

     Hoje o que importa é o mundo das finanças, o que está fazendo, quem está promoyendo, onde está indo o dinheiro. Temos que descobrir quem são os herdeiros dos poderosos do passado, manobrando por trás dos bastidores. O Ninho das Andorinhas foi uma espécie de quartel-general do mal. E o mal voltou mais tarde a Hollowquay. Lembra-se de Jonathan Kane?

     — Só do nome, mais nada — disse Tommy.

     — Era um fascista, mas antes que Hitler mostrasse a espécie de monstro que era. Naquele tempo muita gente acreditava ser o fascismo uma ótima solução para o mundo. Jonathan Kane teve seguidores de todas as idades, tinha planos de po-der e conhecia os segredos de muitas pessoas. Usou chantagem para conseguir seus fins. Temos medo de que outros usem esses segredos outra vez; por isso devem ter sido bem guardados. Há muitos segredos perigosos sobre armas secretas que não chegaram a ser usadas, e são um perigo para a paz e para a humanidade. Acha que isto é fantasia de um velho?

     — Não, o senhor sempre teve conhecimento de muitas coisas.

     — Não acha isto fantástico demais?

     — Nada é fantástico demais. Cheguei a esta conclusão durante a minha vida. As coisas mais absurdas podem ser verdadeiras. Mas o senhor deve compreender que não tenho nenhum conhecimento científico, meu campo sempre foi a segurança.

     — Deve haver alguém por trás do seu problema em Hollowquay e pode ser muito importante. Você sempre fez bem o seu trabalho e sua mulher tem um ótimo faro. Mulheres têm jeito para isso, quando são novas e bonitas usam as armas de Mata Hari. Eu tive uma tia-avó capaz de descobrir qualquer segredo. Acidentalmente, vocês estão no lugar certo. Um casal comum, aposentado, amável, e um dia poderão ouvir algo importante numa conversa.

     — Lá ainda se fala do escândalo e dos planos roubados. Mas ninguém parece ter informações precisas a esse respeito.

     — Já é um começo. Escute, Jonathan Kane morou por ali. Era popular na vizinhança, pode ter deixado discípulos fiéis. Pesquisem, procurem, mas pelo amor de Deus, tenham cuidado. Tome conta da Prudence.

     — Tuppence, é como a chamo.

     — Então tenha cuidado com a Tuppence, com o que comem e bebem, e com as pessoas que se aproximam, querendo fazer amizade. Tudo o que lhes parecer estranho ou pouco comum pode ser uma pista.

     — Faremos o possível, mas já estamos velhos e sabemos muito pouco. Talvez não consigamos nada.

     — Você não sabe, mas pode deduzir.

     — É o que Tuppence faz. Acha que há algo escondido na casa.

     — É possível. Outros já pensaram nisso, mas não acharam nada. Talvez não tenham procurado bem. Muitas famílias já viveram lá, os Lestranges, os Mortimers e os Parkinson. Um dos Parkinson foi importante nesse caso.

     — Alexander Parkinson?

     — Então já sabe? Como descobriu?

     — Ele deixou uma mensagem num livro de Stevenson: "Mary Jordan não morreu naturalmente. Foi um de nós."

     — Há um ditado: "O destino de cada um já nasce com a pessoa." Mas vocês podem prosseguir. Vamos, atravessem o Portal do Destino.

    

     O PORTAL DO DESTINO

     A LOJA de Mr. Durrance ficava numa esquina. Na vitrina havia duas fotografias de casamentos, um bebezinho nu num tapete, um grupo em roupa de banho e dois jovens barbudos com suas namoradas. As fotografias não eram grande coisa e algumas já estavam desbotadas. Havia também cartões endereçados "Ao meu marido" e "A minha esposa", algumas carteiras baratas e papel de cartas estampado com flores.

     Tuppence examinou a mercadoria, olhou o preço de alguns itens e esperou pelo término de uma conversa sobre as qualidades de determinada máquina de retratos. Enquanto uma senhora de idade, com cabelos grisalhos e olhos sem brilho, atendia um outro freguês, um jovem de longos cabelos claros, com ares de dono, aproximou-se de Tuppence e perguntou:

     — Posso ajudá-la?

     — Bem, estou interessada em álbuns de fotografias.

     — Só tenho um ou talvez dois; hoje a maioria das pessoas prefere slides, sabe?

     — Sei, mas coleciono álbuns antigos, como este aqui — disse Tuppence mostrando o álbum enviado por Mrs. Griffin.

     — Ah, é bem antigo, deve ter mais de cinqüenta anos. Todos faziam álbuns naquela época.

     — O senhor terá algum desses por aí? Como colecionadora interesso-me muito por eles.

     — É, hoje em dia parece ser moda colecionar as coisas mais estranhas, não? Não sei se tenho algum tão antigo como o seu, mas posso dar uma olhada — disse Mr. Durrance abrindo uma gaveta.

     — Há muito tempo ando querendo arrumar isto, mas não pensei em encontrar alguém interessado em comprar essas coisas. Tenho muitos retratos de velhos casamentos, mas nunca ninguém interessou-se por eles. Às vezes aparecem mães querendo saber se temos o negativo de velhos retratos de seus filhos quando bebês, retratos horrorosos em sua maioria. E volta e meia a polícia aparece querendo identificar algum suspeito de roubo ou assassinato, alguém que já morou aqui e pode ter tirado algum retrato. - Isto até anima um pouco o ambiente! — disse Mr. Durrance sorrindo.

     — O senhor interessa-se por crimes, não?

     — É, gosto de ler os jornais. Viu aquela história sobre um homem suspeito de ter matado a mulher uns seis meses atrás? Uns acham que ela ainda está viva e outros dizem que está enterrada em algum lugar.

     Tuppence pensou que embora a conversa estivesse animada, não estava dando em nada, e resolveu apressar as coisas.

     — O senhor terá alguma fotografia de uma moça chamada Mary Jordan? Ela morreu aqui há uns sessenta anos.

     — Só se estiver nas coisas de meu pai; ele não gosta de jogar nada fora e se ouviu falar nela, ainda deve se lembrar. Essa Mary não é a tal espiã que tinha um pai alemão ou russo, sei lá?

     — Essa mesma, tomara que encontre o retrato.

     — Vou procurar quando tiver tempo e, se encontrar, avisarei a senhora. É escritora, por acaso? — disse Mr. Durrance, animando-se.

     — Não faço disso uma profissão, mas estou escrevendo um pequeno livro sobre os fatos interessantes ocorridos nos últimos cem anos, crimes e coisas assim. Velhas fotografias dariam excelentes ilustrações.

     — Vou fazer o possível para ajudá-la. O seu trabalho deve ser muito interessante.

     — Também me interesso por uma família de nome Parkinson, que antigamente morou em minha casa.

     — Ah, a senhora mora no Ninho das Andorinhas, lá em cima do morro. O nome agora é A Casa dos Loureiros, não?

     — É, mas as andorinhas ainda fazem seus ninhos lá no meu telhado.

     — É um nome engraçado para uma casa.

     Achando que tinha iniciado relações satisfatórias com Mr. Durrance, Tuppence comprou alguns cartões-postais e o papel de carta florido e despediu-se. Resolvera dar mais uma olhada no quiosque antes de entrar em casa. Ao aproximar-se, deteve-se. Um monte de roupas velhas estava junto à porta do quiosque. Alguém esqueceu isso por aqui, pensou Tuppence apressando o passo. Mas não era só um monte de roupas velhas, alguém estava vestido com elas. Tuppence abaixou-se e depois, segurando-se na porta, ergueu-se devagar.

     — Isaac, meu pobre velho, está morto. Alguém vinha pela aléia e ela chamou:

     — Albert, Albert, uma coisa horrível aconteceu. O velho Isaac está morto. Acho que alguém o matou.

    

          O INQUÉRITO

     O MÉDICO prestou seu depoimento. Duas testemunhas que passavam pelo portão do jardim foram ouvidas, a família depôs sobre o estado de saúde do velho. Dois possíveis inimigos, adolescentes que haviam sido admoestados por ele, foram chamados pela polícia e protestaram inocência. Seus patrões, incluindo Mrs. Prudence Beresford e Mr. Thomas Beresford, depuseram. Finalmente chegaram a um veredicto: assassinato por pessoa ou pessoas desconhecidas.

     Tommy colocou um braço em volta dos ombros de Tuppence enquanto passavam por um grupo de curiosos à saída do inquérito.

     — Você esteve ótima, Tuppence — disse ele quando entraram no jardim. — Falou muito claro e em tom audível. O juiz gostou do seu depoimento.

     — Oh, Tommy, que interessa o meu depoimento? O pobre Isaac está morto, com a cabeça arrebentada.

     — Alguém devia ter rancor dele.

     — Mas por quê?

     — Não sei.

     — Terá sido por nossa causa, Tommy?

     — O que quer dizer, Tuppence?

     — É este lugar, essa nossa linda casa nova, este jardim. Será mesmo um bom lugar para nós? Nós pensávamos que era.

     — Ainda penso assim, querida.

     — Você é mais otimista do que eu. Tenho uma sensação desagradável de que algo está errado aqui. É o passado.

     — Não fale mais nela.

     — Em Mary Jordan? — perguntou Tuppence baixinho. — Mas que importância pode ter o passado? Não devia significar mais nada.

     — O passado não devia interferir com o presente, não é? Mas na verdade ele interfere e de um modo estranho.

     — Acha que muitas coisas acontecem por causa do passado?

     — É como se fosse uma corrente como esta sua. Formada por elos, e com contas entre eles.

     — Tommy, não estamos mais investigando o passado, agora isto é pessoal. A morte do velho Isaac muda tudo. Pobre Isaac, morto em nosso jardim.

     — Ele era muito velho.

     — Mas você ouviu o depoimento médico, não ouviu? Alguém o matou. Mas quem? E por quê?

     — Por que não tentam nos matar se nós somos a causa?

     — Talvez cheguem a isso. Talvez ele pudesse ou fosse nos contar alguma coisa. Imagine que tenha ameaçado alguém de falar-nos sobre a moça ou sobre os Parkinson, ou de algum segredo escondido. Resolveram então silenciá-lo. Mas se não fosse o nosso interesse pelo caso, isto não teria acon-tecido.

     — Não se exalte assim, Tuppence.

     — Tenho que ficar exaltada. Agora isso é um assunto pessoal. Não é mais um divertimento, estamos procurando um assassino. Não sabemos quem é, mas vamos descobrir. Não se trata mais do passado, mas de agora. Foi aqui que aconteceu, seis dias atrás, aqui no nosso jardim. Vou agir como um cão de caça e você vai prosseguir com suas pesquisas.

     — Tuppence, acredita que temos uma chance?

     — Não sei como, mas vamos descobrir. Foi uma coisa má e cruel que matou o velho Isaac.

     Andorinhas passaram em revoada sobre suas cabeças.

     — Podemos mudar o nome da casa novamente — disse Tommy.

     — Quer chamá-la de O Ninho das Andorinhas — Tuppence acompanhou com os olhos o vôo dos pássaros e depois voltou-se para o portão do jardim.

     — Como era mesmo aquele poema que sua pesquisadora conhecia? Falava em Portal da Morte, não?

     — Não, Portal do Destino.

     — O destino, pobre velho. O nosso portão do jardim, para Isaac, foi o Portal do Destino.

     — Não se sinta tão culpada, Tuppence.

     — Talvez algum dia esta casa ainda mereça o nome de O Ninho das Andorinhas.

     Continuaram pela aléia até ver uma mulher em pé, na soleira da porta de entrada.

     — Quem será? — estranhou Tommy.

     — Já a vi antes — disse Tuppence. — Acho que é da familia de Isaac, mas não tenho certeza. Moram todos juntos, três ou quatro meninos, uma menina, esta mulher e uma outra.

     A mulher dirigiu-se para eles.

     — A senhora é Mrs. Beresford?

     — Sou.

     — A senhora não me conhece, sou a nora de Isaac. Fui casada com seu filho Stephen. Ele morreu há uns cinco ou seis anos num acidente. Um caminhão na auto-estrada. O senhor — disse ela olhando para Tommy — mandou flores para o enterro, não foi? Isaac trabalhava aqui, não?

     — Sim, ele trabalhava para nós. Foi horrível o que aconteceu.

     — Vim lhe agradecer. O senhor mandou umas flores muito bonitas, um bocado legais e o ramo era grande para valer.

     — Isaac foi uma grande ajuda quando nos mudamos — disse Tuppence; — resolveu muitos problemas pois conhecia o lugar das coisas. E nos ensinou muito sobre jardinagem.

     — É, ele entendia do seu trabalho, mas não podia mais fazer muita coisa, estava muito velho e não gostava de se abaixar. Sofria de lumbago e não conseguia mais fazer tudo que queria.

     — Era muito bom e foi um grande auxilio — defendeu-o Tuppence firmemente. — Conhecia bem o lugar e as pessoas daqui e nos ajudou bastante.

     — É, sabia de todos os mexericos do lugar. A família dele já morava aqui antes dele nascer. Bem, madame, não vou incomodá-la mais, vim só para agradecer.

     — Foi muito amável, obrigada — disse Tuppence.

     — A senhora vai precisar de alguém para trabalhar no jardim, não?

     — Sim, nós não entendemos muito do assunto — Tuppence hesitou um pouco, talvez não fosse a ocasião certa. — A senhora talvez conheça alguém interessado em trabalhar para nós.

     — Não sei, vou ver. Posso mandar o Henry, meu filho, até achar alguém. Bem, até logo.

     — Como era o nome todo do Isaac? Não consigo lembrar-me — disse Tommy ao entrar.

     — Isaac Bodlicott, se não me engano.

     — Então ela deve ser Mrs. Bodlicott.

     — E mora com toda a família em Marshton Road. Acha que ela sabe quem matou o velho? — perguntou Tuppence.

     — Não creio. Não tinha jeito de quem sabia.

     — Isso é difícil de dizer, não?

     — Para mim, ela só veio agradecer as flores. Não parecia guardar rancor, ou ter vontade de vingar-se.

     — Pode ser — disse Tuppence pensativamente.

    

     UM TIO É LEMBRADO

     NA manhã seguinte, quando Tuppence conversava com um eletricista que viera consertar uns defeitos da instalação, Albert interrompeu-a:

     — Há um menino aí querendo falar com a senhora.

     — Quem é?

     — Não perguntei, está esperando lá fora.

     Tuppence colocou o chapéu de sol na cabeça de qualquer maneira e desceu. Fora, um menino de uns doze ou treze anos, mexia os pés inquieto.

     — A senhora estava me esperando, não é?

     — Você é o Henry Bodlicott, não?

     — Isso mesmo, sou sobrinho daquele homem que morreu. Sabe, eu nunca tinha visto um inquérito!

     Henry parecia ter achado o acontecimento tão divertido, que Tuppence quase perguntou se ele gostara.

     — Foi muito triste o que aconteceu com o seu tio.

     — Ah, bem, ele era muito velho, não ia durar muito mesmo.

     No inverno tossia a noite toda, a gente nem podia dormir! A mãe me disse que a alface precisa ser repicada. Sei onde ela está plantada porque às vezes vinha conversar com o velho Izzy enquanto ele trabalhava. Se a senhora quiser, posso fazer este serviço.

     — Ótimo, vamos dar uma olhada. Foram andando juntos até a horta.

     — Olhe aqui — disse Henry, — foram plantadas juntinhas e agora é preciso separar para elas crescerem.

     — Não entendo muito de alfaces, nem de legumes. Só entendo um pouquinho de flores. Você quer ficar trabalhando aqui rio jardim?

     — Oh, não, ainda vou à escola e entrego os jornais e no verão trabalho na colheita das frutas, sabe?

     — Que pena, mas se souber de alguém... Deixe-me ver o que vai fazer com essa alface — disse Tuppence olhando o trabalho do menino.

     — Agora está direito, tudo certinho. Essa qualidade é boa, dura um tempão.

     — Bem, muito obrigada.

     Tuppence ia andando em direção à casa quando notou que perdera o lenço. Voltou e Henry veio ver o que tinha acontecido.

     — Perdi meu lenço. Ah, ali está ele, no arbusto.

     O menino entregou-o e em vez de ir embora, ficou lá, de pé, mexendo os pés, inquieto. Pôs o dedo no nariz e depois coçou a orelha:

     — A senhora fica zangada se eu perguntar uma coisa?

     — O quê? — disse Tuppence encorajando-o. Henry ficou vermelho e sem jeito.

     — Bem, é que ouvi falar, o pessoal anda dizendo... Bem, dizem que a senhora pegou espiões na última guerra. A senhora e o seu marido tiveram um bocado de aventuras. São do Serviço Secreto, não é? São agentes da pesada, mesmo — disse o menino olhando-a com admiração.

     — É, algo parecido — concordou Tuppencç.

     — Legal! Posso contar para o meu amigo Clarence? Ele tem um nome esquisito e a turma mexe com ele, mas é um cara legal. Vai achar um bocado emocionante saber que a senhora é um agente secreto!

     — Mas isso foi há muito tempo, em 1940. —, Foi divertido ou a senhora teve medo?

     — As duas coisas. Acho que tive medo a maior parte do tempo.

     — É, mas é natural que a senhora tivesse, não é? O esquisito é a senhora vir morar aqui para se meter num caso parecido. O Clarence me contou que o tal espião pego pela senhora era um nazista disfarçado em comandante da Marinha inglesa.

     — Mais ou menos isso.

     — Deve ter sido por isso que a senhora veio para cá. Por causa dos tais planos do submarino. É o que dizem por aí.

     — Mas não foi por isso, não. Esta casa é muito agradável e gostamos muito dela. Só ouvi falar nessas histórias depois, mas nada sei sobre elas.

     — Bem, se eu descobrir alguma coisa, venho lhe contar.

     — Como o seu amigo Clarence descobriu tantas coisas?

     — Foi o Mick, que morou lá perto do ferreiro, quem contou. Ele já foi-se embora daqui, mas estava por dentro de tudo. E o nosso tio, o velho Isaac, também falava nessas coisas.

     — Então ele sabia disso? — perguntou Tuppence.

     — Claro, pensei que talvez tenha sido por isso que o mataram. Ele podia contar para a senhora o que sabia e acabaram com ele. Tiveram medo da polícia e, pronto, acabaram com o velho.

     — Veja se consegue lembrar-se de alguma coisa dita por ele que possa ser importante. Talvez possamos descobrir quem o matou.

     — No começo pensamos que fosse acidente. Sabe, o coração dele não estava bom e às vezes ficava tonto, podia ter caído. Mas o mataram mesmo, não é? A senhora sabe por quê?

     Tuppence olhou para Henry. Pareciam dois cães policiais seguindo a mesma pista, pensou.

     — Nós dois gostaríamos de saber, não é, Henry? Você que é seu parente e eu que fui sua amiga. Você tem alguma idéia?

     — Olhe, o tio Izzy dizia que muita gente tinha raiva dele porque sabia de coisas que tinham acontecido. Mas como ele sempre falava de gente que já morreu, não sei quem era. A senhora vai deixar eu trabalhar também nessa investigação?

     — Se você prometer guardar segredo. Não vá falar sobre isso para todos os seus amigos porque daí a história se espalha.

     — E eles podem dizer aos bandidos e eles atacarem a senhora e Mr. Beresford, não é?

     — Podem sim, e preferiria que não o fizessem.

     — Olhe, se eu souber de alguma coisa, apareço me oferecendo para fazer algum serviço. Está bem assim? Daí nós podemos conversar sozinhos sem ninguém ouvir. No momento não sei de nada, mas tenho amigos — Henry assumiu um ar copiado de algum filme da televisão. — A senhora vai ver só o que vou descobrir.

     — Tenha cuidado, Henry. Você compreende como isso é necessário?

     — Pode deixar, vou ser muito cuidadoso. O tio Isaac falava que havia esconderijos aqui e encontros secretos. A mãe nem ligava nem o meu irmão Johnny. Mas o Clarence e eu ouvíamos tudo, ele dizia para mim: "Chuck, isto parece um filme!"

     — Você ouviu falar em Mary Jordan?

     — Na certa. A moça alemã que roubou os planos, não foi?

     — Isso mesmo — disse Tuppence pedindo mentalmente desculpas ao espírito de Mary Jordan.

     — Dizem que era muito bonita, como uma artista de cinema.    

     — Você está sem fôlego e parece animada — disse Tommy ao ver Tuppence entrar pela porta lateral. — Andou trabalhando demais no jardim?

     — Não, não estava fazendo nada. Só olhando as alfaces e escutando um menino falar.

     — Veio se oferecer para trabalhar no jardim?

     — Não, embora isso fosse uma boa idéia — disse Tuppence. — Ele só estava expressando a sua admiração.

     — Do quê? Do jardim ou do seu chapéu de palha?

     — Do meu passado.

     — O quê?

     — Estava entusiasmado por estar falando com uma agente do Serviço Secreto que prendera um espião alemão.

     — Nossa, até quando vão se lembrar disso?

     — Não faço muita questão que esqueçam. É até agradável ser uma celebridade.

     — Não deixa de ter razão.

     — E neste caso, isso pode ser útil.

     — Que idade tem o menino?

     — É meio magrela, mas deve ter uns doze anos. Tem um amigo chamado Clarence.

     — Que importância tem isso?

     — Eles gostariam de se aliar a nós e ajudar na investigação.

     — Acha que podem saber alguma coisa com a idade deles?

     — Olhe, o menino estava ansioso para participar de nossas aventuras e falou em coisas importantes que estariam escondidas aqui. Aparentemente o velho Isaac sabia o lugar.

     — Tuppence, tenha cuidado. Se alguém matou Isaac porque pensou que ele tinha nos dito alguma coisa, esse alguém pode esperar numa esquina escura por você e tentar usar o mesmo método outra vez. E atribuiriam o caso a algum ladrão.

     — É, velhas senhoras meio artríticas são mesmo uma boa presa para essa espécie de gente. Que tal eu andar com uma pistola?

     — Não, decididamente não — disse Tommy.

     — Por quê? Acha que posso me enganar e machucar alguém?

     — Não, mas é provável que tropece e se fira com ela.

     — Ah, não vou fazer uma estupidez dessas!

     — Pois eu acho que é bem capaz.

     — Que tal um canivete?

     — Não, Tuppence. O melhor é você andar por aí com um ar bem inocente, espalhando o boato de que não está satisfeita com a casa e pensa em se mudar.

     — Para quem digo isso?

     — Para qualquer pessoa, a notícia vai se espalhar logo.

     — É, posso até ver isso. E você, vai dizer a mesma coisa?

     — Mais ou menos, talvez que a casa está nos dando muita despesa.

     — Mas, pretende prosseguir, não, Tommy?

     — Vou continuar as pesquisas. Você tem algum plano?

     — Pode ser que eu consiga alguma coisa daquele menino. O tal Henry vulgo Chuck, ou seria Clarence o seu nome?

    

     BRIGADA JUVENIL

     UMA manhã, depois da saída de Tommy para Londres, Tuppence andou pela casa tentando achar uma tarefa que a entusiasmasse, mas não teve nenhuma idéia brilhante. Afinal, com a sensação de voltar ao passado, resolveu-se pela pequena biblioteca do sótão e percorreu as estantes devagar, olhando os títulos. Tinha certeza de ter visto todos os livros de criança. Alexander Parkinson não revelara mais segredos.

     Estava em pé, passando os dedos entre os cabelos, a testa franzida, olhando a prateleira de livros de teologia, cujas encadernações estavam se desmanchando, quando Albert entrou:

     — Querem ver a senhora lá embaixo.

     — Quem é? Algum conhecido?

     — É um grupo de meninos com umas duas meninas talvez. Devem estar querendo alguma subscrição. Um deles chama-se Clarence.

     Será que a conversa de ontem já produziu resultados? Pensou Tuppence. Valia a pena ir ver.

     Ao chegar embaixo virou-se interrogativamente para seu guia.

     — Não os deixei entrar — disse Albert. — Talvez não fosse seguro. Estão lá fora no jardim; estão esperando pela senhora perto de uma mina de ouro. Onde é isso?

     — Lá depois do roseiral e do canteiro de dálias há um pequeno lago que já teve peixinhos dourados. Dê-me minhas botas e minha capa, vou preparada para o caso de alguém pretender me empurrar na água.

     — É melhor vestir logo a capa, senhora, parece que vai chover.

     — Ai, chuva e mais chuva, é só o que temos.

     Um grupo animado, com uns dez ou doze garotos e duas meninas de cabelos compridos, esperava por Tuppence. Quando ela se aproximou, um deles gritou, numa voz esganiçada:

     — Aí vem ela! Quem vai falar? É melhor você George, é você sempre quem fala as coisas.

     — Mas hoje é meu dia — disse Clarence.

     — Fique quieto, Clarrie. A sua voz é fina e vai logo começar a tossir se falar.

     — Olhe aqui seu, esse negócio é meu, entende?

     — Bom dia para todos — disse Tuppence interrompendo a discussão. — Queriam falar comigo? De que se trata?

     — Nós temos uma informação para a senhora — disse Clarence. — É o que a senhora estava querendo, não é?

     — Depende da espécie de informação — disse Tuppence.

     — Não é nada de agora, é coisa antiga.

     — É uma informação histórica — disse uma das meninas que parecia ser a mentora intelectual do grupo. — Se a senhora está pesquisando o passado isso vai lhe interessar.

     — Entendo — disse Tuppence. — Por que chamam este lugar de mina de ouro?

     Um dos meninos explicou:

     — Por causa dos peixinhos dourados que havia aqui. Com umas caudas compridas, vinham lá do Japão no tempo de Mrs. Forrester.

     — Isso foi há uns dez anos atrás.

     — Que nada, há mais de cinqüenta isso sim.

     — Eles comiam o rabo dos outros e depois morriam flutuando de barriga para cima — informou um menino pequeno.

     — Mas não há mais peixes para se ver — disse Tuppence. — O que vocês queriam?

     Todos falaram ao mesmo tempo até que Tuppence agitou a mão pedindo calma.

     — Um de cada vez, por favor.

     — Se a senhora quer saber de coisas escondidas na sua casa, coisas muito importantes mesmo, tem que ir ao PCP.

     — Ir aonde?

     — Ao PCP, a senhora não conhece? É o Palace Clube dos Pensionistas.

     — Pelo nome deve ser um local muito grã-fino.

     — Ih, não é náo — disse um menino de uns nove anos. — Só tem um monte de coroas aposentados mexericando. O pessoal diz que eles gostam de contar uma porção de mentiras sobre a vida deles.

     — Onde é este PCP? — perguntou Tuppence.

     — É lá no outro lado da aldeia, perto de Morton Cross. Os pensionistas podem jogar bingo e outras coisas. Acho que se divertem apesar de serem um bocado velhos e meio cegos ou surdos. Parece que gostam de se reunir.

     — Talvez seja mesmo uma boa idéia ir visitá-los — disse Tupitence. — Qual seria a melhor hora para isso?

     — De tarde é melhor. Se eles estão esperando visitas, têm direito a um chá mais caprichado, com biscoitos recheados e até com torradinhas. O que é que você quer. Fred?

     Um menino deu um passo à frente e fez uma inclinação pomposa para Tuppence.

     — Terei muito prazer em acompanhá-la. Três e meia é uma hora conveniente para a senhora?

     — Poxa, para que tanta complicação? — reclamou Clarence.

     — Gostarei muito de ir com você — disse Tuppence e acrescentou olhando o lago: — É mesmo uma pena que não haja mais peixinhos aqui.

     — A senhora devia ter visto um que tinha cinco caudas. Sabe, uma vez o cachorro de Mrs. Fagget caiu lá dentro da água.

     — Não era de Mrs. Fagget seu bobo, era de Miss French.

     — O cachorro afogou-se? — perguntou Tuppence.

     — Não, era um filhotinho e a mãe dele, a cadela, chamou Miss Isabel que estava colhendo maçãs lá no pomar, puxando-a pelo vestido, até que ela veio e salvou o cachorrinho. Mas o vestido dela ficou todo estragado com a lama.

     — Quanta coisa já aconteceu nesta casa, não é? Bem, talvez dois ou três de vocês queiram me acompanhar até ao clube.

     A confusão se estabeleceu. Sou eu... Você não... A Betty não pode ... até que Tuppence resolveu intervir.

     — Bem, resolvam e estejam aqui às três e meia.

     — A senhora vai gostar — disse Clarence.

     — Será de interesse histórico — disse a menina intelectual.

     — Cale a boca, Janet — disse Clarence e virou-se para Tuppence. — Desde que ela foi para o ginásio ficou assim. Agora se acha muito importante, os pais disseram que o primário não chegava para ela. Hum!

    

     Enquanto almoçava pensou se realmente as crianças viriam buscá-la para o PCP. Existiria mesmo tal clube ou tudo não passaria de uma brincadeira? Mas seria divertido se aparecesse alguém. E na hora marcada a delegação chegou. Pontualmente às três e meia a campainha tocou. Tuppence levantou-se da poltrona junto à lareira e colocou um chapéu impermeável, porque provavelmente iria chover, quando Albert apareceu para acompanhá-la até a porta.

     — A senhora não vai sair por aí com qualquer um, não é? — disse ele.

     — Albert, já ouviu falar no PCP, um clube de pensionistas?

     — Conheço sim. É uma construção recente, logo depois da reitoria, à direita. Foi feita especialmente para os velhinhos. Há jogos e as senhoras da paróquia organizam concertos e coisas assim.

     A frente do trio estava Janet, na certa por causa de sua superioridade intelectual, no meio

     Clarence e por fim um menino meio vesgo chamado Bert.

     — Boa tarde, Mrs. Beresford. Ficamos felizes com a sua companhia. Talvez seja melhor a senhora levar um guarda-chuva, a previsão do tempo não é muito favorável hoje — disse Janet.

     — Como vou na mesma direção, vou acompanhá-los um pouco — disse Albert.

     Ele quer me proteger, pensou Tuppence. Talvez seja bom embora não acredite que Janet, Clarence ou Bert representem perigo.

     Depois de uma caminhada de uns vinte minutos, chegaram a um edifício de tijolos vermelhos, onde foram recebidos por uma mulher gorda de uns setenta anos.

     — Que ótimo, as nossas visitas chegaram — disse ela, dando palmadinhas nas costas de Tuppence. — Muito obrigada, Janet. Vocês não precisam esperar, meninos.

     — Oh, creio que eles ficarão desapontados se não puderem ficar para o chá — disse Janet.

     — Ah, está bem, hoje não temos muita gente mesmo. Achei melhor para náo atordoar muito Mrs. Beresford. Janet, por favor, vá à cozinha e diga a Mollie que pode servir.

     Tuppence não podia dizer que não viera para tomar chá, e este apareceu rapidamente. Logo que consumiram o chá fraco com biscoitos e uns sanduíches de atum pouco apetitosos, todos ficaram sem saber o que dizer, até que um velhinho que pareceu a Tuppence ter uns cem anos, sentou-se ao seu lado de maneira decidida.

     — Como eu sou o mais velho aqui, é melhor ser o primeiro a falar com a senhora, my lady — disse ele dando a Tuppence um título de nobreza. — Conheço mais histórias do tempo antigo que todos os outros, tudo que já aconteceu por essas bandas, pode ter certeza.

     — Acredito — interveio Tuppence apressadamente, antes que ele começasse a falar de algum assunto que não a interessasse. — E sobre a época que antecedeu a Primeira Guerra Mundial? O senhor ou alguém de sua família saberia de alguma coisa?

     — Como não — disse o velho. — Meu tio Len sabia de todos os detalhes. Igualzinho como o que aconteceu depois, antes da última guerra, naquela casa perto do cais. Um daqueles fascistas como o tal Mussolini fez um bocado de confusão, até comícios ele fez.

     — Na primeira guerra houve uma moça chamada Mary Jordan, não foi? — perguntou Tuppence sem saber se estava agindo com cautela.

     — Houve sim, era um pedaço de bonita. Arrancava qualquer segredo dos marinheiros e dos soldados.

     Uma velhinha começou a cantar numa voz trêmula:

     "As moças amam um marinheiro, As moças amam um marinheiro, E você sabe, oh meu amigo, Os marinheiros são um perigo."

     — Chega Maudie, não agüento mais essa música. A senhora veio aqui para saber umas coisas. Sabe, aquelas histórias de um tesouro escondido que causou toda aquela confusão.

     — Gostaria muito de ouvi-las, sim — disse Tuppence animada.

     — Foi antes de 1944, todo mundo começou a falar e foi aquela animação.

     — Falaram numa corrida de barcos — disse uma velhinha. — Uma competição entre Oxford e Cambridge. Quando eu era moça, uma vez fui a Londres assistir a uma corrida sob as pontes. Foi uma beleza, sabe? Ainda me lembro que Oxford ganhou.

     — Que tolice — disse uma senhora de aspecto severo, o cabelo cinzento puxado num coque. — Sei mais do que todos vocês. Minha tia-avó Mathilda conhecia bem o caso. Houve muito falatório, e todos andaram procurando a tal mina de ouro. Para mim era uma barra de ouro trazida da Austrália.

     — Isso não tem nenhum sentido — disse um velho que fumava um cachimbo com um ar de supremo desdém por seus semelhantes. — Eles confundiram tudo com os peixinhos dourados. Que ignorância!

     — A coisa devia valer muito dinheiro ou não teria sido escondida — disse mais alguém. — Veio gente do governo e da polícia e procuraram poi toda a parte, mas não acharam nada.

     — É porque não seguiram as pistas direito. As pistas existem, é só saber procurar — disse outra velhinha balançando-se numa cadeira. — As pistas existem.

     — Isto é muito interessante — disse Tuppence. — Mas onde estão essas pistas? Na aldeia ou em que lugar?

     Foi uma pergunta infeliz, pois houve pelo menos seis respostas diferentes e todas ao mesmo tempo.

     — No campo, perto de Tower West — disse alguém.

     — Que nada, é perto de Little Kenny.

     — Nada disso, é na caverna perto do mar. Lá onde havia um túnel de contrabandistas.

     — Foi um barco da armada espanhola que afundou ali, cheio de dobrões de ouro. São de quem achar.

    

     TUPPENCE É ATACADA

     — MAS que foi isso Tuppence? — disse Tom-my ao chegar àquela noite. — Parece tão cansada! O que andou fazendo?

     — Estou mesmo muito cansada, nem sei se vou me recuperar algum dia.

     — Mas o que foi? Andou subindo em escadas e arrumando mais livros ou coisa assim?

     — Não, não quero saber de livros nunca mais. Já estou cansada de tantos livros.

     — Bem, o que andou fazendo então?

     — Daqui a pouco você vai saber. É melhor tomar alguma coisa antes. Talvez um coquetel ou um uísque, e faça uma dose para mim também, por favor!

     Quando ela contou a Tommy os acontecimentos da tarde e a visita ao PCP, ele exclamou:

     — Santo Deus, você se mete em caaa uma, Tuppence! Que tal achou?

     — Nem sei, seis pessoas falando ao mesmo tempo, de uma maneira caótica e cada qual uma coisa diferente, não dá nem para julgar. Mas acho que consegui captar algumas idéias.

     — Que idéias?

     — Bem, há muitas lendas sobre um tesouro escondido aqui, que tem ligação com a guerra de 1914.

     — Nós já sabíamos disso, não?

     — Mas há várias histórias diferentes que sobreviveram até hoje, transmitidas dentro das famílias. E uma delas deve ser a verdadeira.

     — Perdida entre todas as outras.

     — Exatamente, como uma agulha num palheiro.

     — E como vai descobrir qual é a verdadeira?

     — Primeiro vou selecionar algumas possibilidades, Tommy. Depois, estou pensando em falar com as pessoas separadamente, para ver se consigo entender bem o que seus tios Len ou Mathilda ou Jonhny disseram. E examinar cada coisa, Você tem outra idéia?

     — Se ao menos tivéssemos certeza do que estamos procurando!

     — Bem, barras de ouro de um navio espanhol não devem ser, nem acredito que haja alguma coisa escondida na caverna dos contrabandistas.

     — Só se for algum carregamento do bom conhaque francês, o que eu gostaria muito de achar, pelo jeito em que vão as coisas. Mas pode ser alguma carta de amor proibido, com a qual fizeram chantagem sessenta anos atrás, mas que não tem nenhuma importância hoje. Mas tenho uma boa notícia.

     — Sobre o quê?

     — O recenseamento; soube que realmente foi no ano da morte de Mary Jordan, tenho os dados aqui. Agora só falta procurar as pessoas certas para conseguir uma relação das que estavam aqui na casa dos Parkinson naquela noite.

     — Isso pode ser muito útil. Como descobriu?

     — Pelos métodos de pesquisa de Miss Collodon.

     — Estou ficando com ciúmes dela.

     — Não precisa ficar não, Tuppence. Ela é muito brava, me dá uns foras terríveis e não é nenhuma beleza.

     — Ainda bem. Tommy, vamos jantar, acho que estou tonta é de tentar entender dezesseis velhinhos ao mesmo tempo.

    

     Albert ofereceu-lhes uma refeição bem satisfatória. Embora fosse um cozinheiro variável, às vezes tinha seus momentos de gênio, como o soufflê de queijo daquela noite.

     — Está ótimo — disse Tuppence e Tommy concordou, ambos muito absorvidos na comida para trocarem mais idéias.

     Depois da segunda xícara de café, Tuppence recostou-se na poltrona, deu um suspiro profundo e disse:

     — Agora, sinto-me outra. Onde estávamos mesmo? Ah, quer me dar minha bolsa, por favor?

     — Está aí bem no seu pé, junto da poltrona. Do outro lado.

     Tuppence pegou a bolsa.

     — Foi um ótimo presente. E é de crocodilo verdadeiro, só que é um pouco difícil guardar as coisas dentro dela.

     — E pelo jeito mais difícil ainda de tirar — disse Tommy.

     — Práticas mesmo são aquelas sacolas de palha. Dá para a gente guardar qualquer coisa — disse Tuppence conseguindo alguma coisa depois de muita luta.

     — O que é? A lista da lavanderia?

     — Não, é uma caderneta velha que usei para anotar o que me diziam. Já tinha feito uma lista, só que muitas coisas não parecem ter nenhum sentido. O tal recenseamento de que falou está anotado aqui. Só que eu não tinha a mínima idéia de que modo poderia ajudar. Mrs. Henderson e Dodo foram nomes que Mrs. Griffin mencionou. E isto aqui, ah, Oxford e Cambridge, parece que era um palpite de corrida de barcos.

     — Tuppence, que importância isto pode ter?

     — Não sei, estou anotando tudo. Pode ser que encontremos alguma pista no meio disto tudo, assim como encontramos a tal frase do Alexander entre todos aqueles livros. Por falar nisso, encontrei um pedacinho de papel amarelo com três palavras escritas a lápis. Ou foi dentro do Catriona ou dentro de As Sombras do Trono.

     — Li este livro quando era menino, é sobre a revolução francesa.

     — As três palavras são: Grin, Hen e Lo. Será algum código?

     — Desculpe-me, Tuppence, mas para mim isso não tem sentido.

     Tuppence ficou pensativa.

     — Oxford e Cambridge, estou me lembrando de alguma coisa.

     — Do seu Bem-amado talvez? — perguntou Tommy rindo.

     — Pare de rir, seu bobo. É serio. Grin — Hen — Lo. Não quer dizer nada... Oh!

     — Que oh foi esse, Tuppence?

     — Oh, Tommy, tive uma idéia! É tão claro!

     — O que é claro, mulher?

     — Grin — hen — lo, leia ao contrário: Lo-hengrin, naturalmente. Lohengrin, a ópera de Wagner, o cisne, Tommy! O cisne!

     — Aonde você viu um cisne, Tuppence?

     — Em Oxford e Cambridge. São os nomes daqueles banquinhos redondos de louça para o jardim. Têm um lindo cisne pintado à volta. Lembra-se dos banquinhos, um azul escuro e o outro azul claro? Foi Isaac quem disse que um era Oxford e o outro Cambridge.

     — E você quebrou o Oxford, não foi?

     — Quebrei, mas o Cambridge ainda está lá. Não percebe? Havia algo escondido dentro daqueles cisnes. Tommy, vamos até lá. Está lá no quiosque.

     — Não às onze horas da noite, nada disso.

     — Amanhã, então. Você não precisa ir a Londres amanhã, não é?

     — Não.

     — Então fica para amanhã.

     — A senhora está providenciando alguém para cuidar do jardim? — perguntou Albert. — Já trabalhei nesse serviço uma vez, mas não entendo nada de legumes. Por falar nisso, há um menino aí querendo falar com a senhora.

     — Aquele menino de cabelhos vermelhos?

     — Não, o outro de cabeleira comprida, loura, meio suja. Acho que seu nome é Clarence.

     — Tuppence encontrou o menino sentado numa velha cadeira de vime na varanda, regalando-se com um pacote de batatas fritas e uma grande barra de chocolate.

     — Bom dia, dona — disse Clarence. — Vim ver se podia ajudar.

     — Bem, estamos mesmo precisando de ajuda no jardim. Você às vezes dava uma mãozinha ao Isaac, não é?

     — É, às vezes. Não sei grande coisa, mas acho que o velho também não sabia. Mas ele falava um bocado, dizia que tinha sido jardineiro-chefe daquele casarão perto do rio, a casa do Mr. Bolingo; hoje é até uma escola. Mas minha avó dizia que era mentira.

     — Isso não tem importância, Clarence. No momento estava pretendendo continuar a limpeza daquela pequena estufa.

     — A senhora estava falando do quiosque?

     — Isso mesmo. Como sabe o nome?

     — Ah, todo mundo fala assim. É um nome japonês, não?

     — Venha comigo, Clarence.

     Tommy, Tuppence, Hannibal, Clarence e Albert, que resolvera trocar a lavagem dos pratos por algo mais interessante, seguiram em fila pela aléia do jardim. Volta e meia Hannibal abandonava a formação, quando um cheiro prometedor o atraía.

     — De que raça é esse cachorro, nem? — perguntou Clarence. — Falaram que serve para caçar ratos.

     — É verdade — disse Tommy. — É um Manchester terrier.

     Percebendo que falavam a seu respeito, Hannibal animou-se, sacudindo o rabo e se rebolando todo. Depois sentou-se com um ar orgulhoso.

     — Ele morde, não é? — disse Clarence.

     — É um ótimo cão de guarda; toma muito cuidado comigo — disse Tuppence.

     — Quando eu não estou por perto — acrescentou Tommy.

     — O carteiro disse que quase levou uma mordida outro dia.

     — É, ele gosta mesmo de implicar com os carteiros. Quem viu a chave do quiosque? — perguntou Tuppence.

     — Eu sei, está lá no galpão perto dos vasos

     — disse Clarence e daí a pouco voltava com uma chave enferrujada mas que tinha sinais de óleo.

     — Isto deve ter sido obra de Isaac.

     Aberta a porta, viram o banquinho de louça com o cisne pintado à volta, limpo e reluzente. Obviamente Isaac o tinha lavado e polido com a intenção de colocá-lo na varanda quando o tempo melhorasse.

     — Onde está o outro, o azul escuro? Isaac dizia que se chamavam Oxford e Cambridge — disse Clarence.

     — Quebrou-se. Sobrou este azul claro, deve ser o Cambridge. Não vejo como alcançar o interior desse banquinho, Tommy.

     — Bem, só quebrando, como fez com o outro.

     — Que abertura engraçada essa em cima! — disse Clarence. — Dá para botar uma carta, até parece caixa do correio.

     — Você teve uma idéia inteligente, Clarence, disse Tommy.

     Clarence ficou todo satisfeito:

     — O senhor sabe que este banco desatarraxa? Eu vi o Isaac fazer isto uma vez. É só virar de cabeça para baixo e ir virando. Se estiver duro é só botar óleo, foi o que ele fez.

     Tommy seguiu a sugestão e por alguns momentos parecia que a idéia não ia dar resultados mas de repente a base começou a: girar e dali a pouco soltou-se completamente.

     — Deve estar cheio de sujeira — disse. Clarence.

     Hannibal veio cooperar. Nada ficava bem feito sem a sua participação, pensava ele. Precisava dar uma mãozinha, ou melhor, uma cheirada. Meteu o focinho, mas o cheiro não o agradou.

     — Não é nada apetitoso, não é? — disse Tuppence, olhando a sujeira lá dentro.

     — Ai — gemeu Clarence.

     — O que foi?

     — Tem um prego aí dentro, e alguma coisa pendurada nele. Àqui está — e Clarence mostrou um pequeno embrulho de lona encerada.

     Hannibal sentou-se perto de Tuppence e rosnou.

     — O que há, Hannibal?

     O cão rosnou outra vez. Tuppence abaixou-se e passou a mão pela cabeça dele.

     — Você sabia, Clarence, que toda vez que lhe dão um osso, ele esconde? Outro dia estava guardando um debaixo da minha almofada e, quando me viu, correu e foi cavar um buraco bem no meio do canteiro das palmas para escondê-lo. Ele sempre guarda ossos para um caso de muita necessidade.

     Hannibal farejou o embrulho retirado das entranhas de Cambridge. De repente, virou-se e latiu.

     — Veja se há alguém aí fora, Tommy, pode ser o jardineiro que Mrs. Herring me prometeu outro dia.

     Tommy abriu a porta e saiu acompanhada pelo cão.

     — Não há ninguém aqui, Tuppence.

     Hannibal deu um latido, rosnou outra vez e começou a latir cada vez mais alto.

     — Parece que há alguma coisa naquela moita de capim-dos-pampas. Talvez seja algum cachorra desenterrando um osso do Hannibal. Pode ser também um coelho, mas o Hannibal gosta de coelhos e nem se dá ao trabalho de correr atrás deles.

     Hannibal farejava a moita latindo e virando a cabeça para Tommy.

     — Deve ser um gato. Ele detesta gatos.

     — Pare, Hannibal, volte aqui — chamou Tuppence.

     — O cão ouviu mas não desistiu de seu intento e continuou a latir furiosamente.

     — Pare com isso — dizia Tommy quando ouviram duas explosões.

     — Nossa, há alguém atirando nos coelhos — disse Tuppence.

     — Entre, entre logo no quiosque, Tuppence — gritou Toraray.

     Algo zumbiu em seus ouvidos enquanto Hannibal investia contra a moita.

     — Ele está correndo atrás de alguém — disse Tommy. — Alguém desceu o morro correndo.

     — Quem era? — perguntou Tuppence com voz fraca.

     — Você está bem, Tuppence?

     — Não muito, algo me atingiu aqui perto do ombro. O que houve?

     — Atiraram em nós. Alguém que estava escondido naquela moita.

     — Você acha que estavam nos observando? — perguntou Tuppence.

     — Deve ter sido um irlandês do Exército de Libertação — disse Clarence. — Talvez seja um atentado.

     — Não me parece um caso político — disse Tuppence.

     — Vamos logo, vamos entrar em casa, Tuppence. Você também, Clarence, venham.

     Tinham dado a volta à casa quando Hannibal reapareceu de repente. Tinha subido o morro correndo e estava sem fôlego. A seu modo, tentou persuadir Tommy a acompanhá-lo, puxando-o pela perna da calça na direção de onde viera.

     — Ele quer que eu vá com ele pegar o homem.

     — Não vá não, Tommy. Não quero que você leve um tiro. Quem iria tomar conta de mim? Vamos entrar logo.

     No hall Tommy pegou o telefone.

     — Para quem está ligando?

     — Polícia. Pode ser que ainda peguem o camarada.

     — Acho bom alguém amarrar o meu ombro. O sangue está manchando meu suéter de estimação.

     — Não é o suéter que importa, Tuppence. Albert apareceu com um estojo de primeiros-socorros.

     — Atiraram na senhora! Mas o que falta acontecer neste país?

     — Acha melhor ir para o hospital, Tuppence?

     — Não, não é preciso, é só passar um antis-séptico e fazer um curativo. Mas não passe iodo que arde. Você guardou aquela coisa direito?

     — Que coisa?

     — A coisa que retiramos do Cambridge. O tal pacote pendurado no prego. Deve ser importante. Eles estavam olhando, se tentaram nos matar é porque era muito importante

    

     HANNIBAL ENTRA EM AÇÃO

     EM seu escritório Tommy conversava com o inspetor Norris, um agente da polícia.

     — Com um pouco de sorte chegaremos a um resultado, Mr. Beresford — disse o inspetor. — O Dr. Crossfield está cuidando de sua esposa, não é?

     — Está, mas felizmente o ferimento não é grave. A bala passou de raspão, mas sangrou bastante. O Dr. Crossfield disse que não há perigo, ela vai ficar boa logo.

     — Ela não é mais uma criança, não é?

     — Sim, já tem mais de setenta. Nós dois estamos envelhecendo — disse Tommy.

     — Tenho ouvido falar muito em sua esposa, desde que se mudaram. Todos gostam dela. Ouvi muitos comentários sobre o passado de ambos.

     — Não vale a pena falar sobre isso — disse Tommy.

     — Não se pode apagar o passado, tenha sido bom ou mal. Nem o criminoso nem o herói escapam de sua sombra. Uma coisa eu posso lhe assegurar: faremos o possível para prender o assaltante. Pode descrevê-lo?

     — Não, só o vi a distância, de costas, com o nosso cão correndo atrás dele, mas deve ser jovem, pois corria muito bem.

     — Temos muitos problemas com adolescentes.

     — Acho que era mais velho — disse Tommy.

     — O senhor recebeu algum telefonema ou alguma carta pedindo dinheiro — perguntou o inspetor, — ou talvez pressionando-o para sair daqui?

     — Não, nem uma coisa nem outra.

     — Soube que vai a Londres quase todos os dias durante a semana, não é?

     — Vou sim, quer saber algum detalhe?

     — Não, mas sugiro que não se afaste de casa com tanta freqüência. Se fosse possivel o senhor ficar tomando conta de sua esposa. ..

     — Já estava pensando nisso, inspetor. Tenho uma boa desculpa para deixar meus compromissos em Londres.

     — Bem, nós vamos fazer o possível para controlar a situação e tentar agarrar esse camarada.

     — Se não é indiscrição minha — perguntou Tommy, — o senhor suspeita de alguém? Tem alguma idéia sobre o motivo?

     — Bem, Mr. Beresford, há muitos camaradas por aqui sobre ouem sabemos muito mais do que imaginam. A melhor forma de poder agarrá-los é ficar de olho neles, para descobrir se estão sozinhos ou se são mandados por alguém. Mas este caso não me parece ser trabalho de gente do local.

     — Por que acha isto?

     — Foram algumas informações recebidas de meus superiores.

     Tommy e o inspetor entreolharam-se. Ficaram silenciosos por alguns minutos antes que o inspetor Norris dissesse:

     — Se me permite um conselho...

     — Naturalmente — disse Tommy.

     — O senhor está precisando de ajuda no jardim.

     — Nosso jardineiro foi morto, como o senhor sabe.

     — Bom sujeito, o velho Isaac, não? Às vezes exagerava um pouco as suas histórias, mas era uma pessoa de confiança.

     — Ninguém descobriu nada sobre o seu assassinato, não é?

     — Bem, a verdade leva tempo para aparecer. O inquérito foi só um começo. Mas, Mr. Beresford, se aparecer alguém que já trabalhou para Mr. Solomon, oferecendo-se como jardineiro, eu o aconselharia a contratá-lo.

     — Para Mr. Solomon, não foi? — perguntou Tommy.

     O inspetor sorriu.

     — Esse Mr. Solomon já morreu, mas morou aqui durante muitos anos e tinha vários jardineiros a seu serviço. Esse tal deve ter entre trinta e quarenta anos e talvez se apresente com o nome de Crispin. Se fosse o senhor não aceitaria outra pessoa, é um conselho que lhe dou.

     — Entendo — disse Tommy.

     — Vamos prosseguir as investigações, talvez tenhamos que ir a Londres.

     — Gostaria de afastar Tuppence um pouco daqui, mas creio que dificilmente o conseguirei.

     — As mulheres são muito dificeis — disse o inspetor Norris.

     Mais tarde, sentado à cabeceira de Tuppence, vendo-a comer uvas, Tommy repetiu este comentário do inspetor.

     — Você sempre come os caroços das uvas...

     — Dá muito trabalho tirá-los; não devem fazer mal.

     — Se não fizeram até hoje, é porque não vão fazer mais mesmo, não é?

     — A polícia desconfia de alguém, Tommy?

     — O inspetor Norris pensa que foi alguém de fora.

     — Que mais disse ele?

     — Disse que as mulheres são difíceis de controlar.

     — E você tem coragem de repetir, não é?

     Tommy sorriu e levantou-se.

     — Vou dar uns telefonemas para Londres. Vou ficar em casa por uns dias.

     — Não há necessidade, Tommy. Estou segura aqui. Albert pode tomar conta das coisas, e estou bem com o Dr. Crossfield cuidando de mim como uma galinha choca. Ele é muito bondoso.

     — Vou fazer umas compras para Albert. Você quer alguma cojsa?

     — Pode me arranjar um melão? Ando com vontade de comer frutas.

     — Pois não, senhora.

     Tommy telefonou para Londres.

     — Coronel Pikeaway?

     — É o Thomas Beresford quem fala?

     — O senhor reconheceu minha voz? Queria lhe falar uma coisa.

     — É sobre o acidente de Tuppence? Já soube — disse o Coronel. — Não precisa falar. Fique em casa uns dias, não venha a Londres e avise-me se acontecer alguma coisa.

     — Tenho algo para lhe entregar.

     — Guarde-o por alguns dias. Tuppence pensará num bom lugar para escondê-lo.

     — Ela é perita emesconder coisas, tanto quanto o Hannibal.

     — Ele correu atrás do homem que atirou em vocês, não foi?

     — O senhor sabe de tudo, não, Coronel?

     — É o nosso ofício, rapaz.

     — Escute: Nosso cão conseguiu dar-lhe uma dentada, pelo jeito. Trouxe um pedaço das calças na boca.

    

     OXFORD, CAMBRIDGE E LOHENGRIN

     — PONTUAL como sempre — disse o Coronel Pikeaway soltando uma baforada. — Desculpe ter insistido que viesse com urgência, mas precisava vê-lo.

     — Como o senhor já deve saber temos tido algumas novidades ultimamente.

     — Por que eu deveria saber, hem?

     — É o seu ofício, não é?

     O Coronel riu.

     — Tem razão. Sua mulher escapou por pouco, não?

     — O ferimento foi pequeno mas poderia ter sido muito mais grave; o senhor já deve conhecer os detalhes, não?

     — Uma coisa que me entusiasmou foi sua mulher deduzir o significado de grin — hen — lo, lo — hen — grin. Genial, não foi?

     — E eis aqui o resultado. Escondi-o na lata de farinha; tive receio de mandá-lo pelo correio.

     — E estava certo.

     — São cartas guardadas dentro de uma pequena lata de metal. A lata estava costurada num pedaço de lona encerada, pendurada em um prego dentro do cisne azul claro, o banquinho vitoriano de louça.

     — Lembro-me deles, minha tia tinha um par na varanda.

     — As cartas não estão em bom estado, mas creio que seus peritos resolverão esse problema, não é?

     — É, eles sabem lidar com Isso.

     — E aqui esta uma lista que Tuppence e eu fizemos. Vê aí Cambridge e Oxford, não é? Esta é uma pista que não será mais necessária. Há uns três ou quatro nomes, talvez um deles signifique alguma coisa para o senhor.

     — Esta lista me parece bem interessante.

     — Quando atiraram em nós, chamei a policia.

     — Fez bem.

     — Quando fui à delegacia, no dia seguinte, fui apresentado a um oficial novo por lá, o inspetor Norris.

     — É, deve estar em serviço especial, provavelmente — disse o Coronel, tirando uma baforada.

     Tommy tossiu.

     — O senhor o conhece?

     — Pode confiar nele, está encarregado da investigação, o pessoal local talvez possa descobrir se alguém os seguia, ou andava fazendo perguntas sobre o que faziam. Beresford, não acha uma boa idéia sair de lá agora e trazer a sua mulher?

     — Não creio que consiga fazer isto. Nem o senhor poderia tirar Tuppence de lá agora. Ela não está muito ferida, e entusiasmou-se com a idéia de oue estamos perto de conseguir resultados, embora nem saibamos quem estamos procurando.

     — Tudo que podem fazer é bisbilhotar — disse o Coronel batendo os dedos na caixa de metal. — Esta caixa vai nos revelar muitas coisas interessantes, as pessoas envolvidas na conspiração, gente que fazia um trabalho sujo por trás dos bastidores.

     — Mas certamente. ..

     — Sei o que ia dizer, estão todos mortos, não é? É verdade, mas é importante saber o que estava programado. Talvez outras pessoas estejam levando avante as mesmas idéias. Com outros personagens o grupo talvez persista. Sabe, se as pessoas são suficientemente coesas e firmes em suas idéias é assustador o que podem conseguir, ou inspirar outros a conseguir.

     — Posso fazer uma pergunta?

     — Naturalmente, mas não posso lhe garantir uma resposta.

     — O nome Solomon tem algum significado para o senhor? O inspetor Norris o mencionou.

     — Pode confiar no inspetor — disse o Coronel. — Mas este Mr. Solomon já morreu. Volta e meia usamos o seu nome, é muito útil poder usar uma pessoa real como referência. Ele era muito respeitado na vizinhança. Foi uma sorte para nós vocês terem ido morar na Casa dos Loureiros. Mas não queremos que isto se transforme num desastre para você e sua senhora. Suspeite de tudo e de todos, Beresford. É a melhor política.

     —Há dois seres por lá em quem tenho confiança. Um é o Albert, que trabalha para nós há muitos anos.

     — Lembro-me dele, um rapaz de cabelos vermelhos.

     — Não é mais um rapaz agora.

     — Quem é o outro?

     — Meu cão Hannibal.

     — Tem toda razão. Acho que foi o Dr. Watts fluem disse: "Os cães adoram latir e morder, é de sua natureza." De que raça é?

     — É um Manchester terrier.

     — Ah, tem uma pelagem preta e castanha, não é? Não é tão grande como um Dobbermann, mas é um cão que conhece o seu dever.

    

     UMA VISITA DE MISS MULLINS

     ALBERT saiu pela porta lateral da casa e foi ao encontro de Tuppence que passeava pelo jardim.

     — Há uma senhora esperando para vê-la.

     — Senhora? Quem é?

     — Chama-se Miss Mullins, foi Mrs. Griffin quem a mandou aqui.

     — É sobre o jardim, não é?

     — Ela falou qualquer coisa sobre o jardim, sim.

     — Pode trazê-la aqui — disse Tuppence. Reassumindo seu papel de mordomo eficiente,

     Albert retornou dentro em pouco com uma mulher de aspecto pouco feminino, metida numas calças grossas de tweed e num velho suéter.

     — Está um vento frio esta manhã, não? — disse ela com uma voz profunda e um pouco rouca. — Meu nome é Miss Mullins. Mrs. Griffin disse-me que a senhora estava precisando de ajuda no jardim.

     — Bom dia — disse Tuppence estendendo-lhe a mão, — é um prazer. Realmente, estamos precisando de ajuda, sim.

     — Não faz muito tempo que a senhora veio para cá, não é?

     — Bem, o tempo que os operários ficaram na casa me pareceram séculos.

     Miss Mullins deu uma risada.

     — Sei o que é ter obras em casa. Mas se a senhora tivesse se mudado mesmo com as obras, nada teria ficado à seu gosto. O jardim é bonito, mas está muito abandonado, não é?

     — É, os últimos moradores parece que não ligavam muito para ele.

     — Não os conheci, mas chamavam-se Jones. Sempre morei do outro lado da cidade, perto da campina. Trabalho em duas casas lá, dois dias numa e um na outra. Mas uma vez só na semana é muito pouco para se tratar bem de um jardim. O velho Isaac trabalhava aqui, não? Bom sujeito, pena ter sido morto por aqueles assaltantes baratos. Ainda não descobriram nada, não é? Esses assaltantes andam em bando, e quanto mais joyens mais perigosos. Lindas magnólias a senhora tem aqui. Na minha opinião, esta qualidade é a melhor.

     — Os legumes estão me preocupando mais no momento.

     — Ah, a senhora quer uma boa horta. Sabe que a maioria das pessoas acaba desanimando e preferindo comprar os legumes? É mais prático.

     — Gosto muito de batatinhas novas, e de ervilhas e de vagens também — disse Tuppence. — São mais gostosas quando bem tenrinhas.

     — A senhora tem razão. Nada como legumes bem novinhos e frescos.

     Albert apareceu de repente.

     — Telefonema de Mrs. Redcliffe. Ela quer saber se a senhora pode almoçar lá amanhã.

     — Diga a ela que sinto muito, mas tenho dé ir a Londres. Albert, espere um pouco. Quer entregar isto a Mr. Beresford? — disse Tuppence retirando da bolsa uma caderneta onde escreveu algumas palavras. — Diga a Mr. Beresford que estou aqu: no jardim com Miss Mullins. Este é o endereço da pessoa a quem ele está escrevendo.

     — Pois não, senhora — disse Albert e desapareceu enquanto Tuppence voltava ao assunto da horta.

     — Três dias de trabalho já é bastante, não é?

     — Bem, para quem mora lá do outro lado... Tenho uma casinha lá

     Neste momento Tommy apareceu com Hannibal correndo à sua volta. O cão foi o primeiro a chegar. Deteve-se um momento e então avançou sobre Miss Muilins latindo. Ela recuou alarmada.

     — Este é o nosso terrível cão — disse Tuppence. — Mas é raro ele morder, o carteiro tem sido sua única vítima.

     — Todos os cachorros mordem os carteiros, ou pelo menos tentam — disse Miss Mullins.

     — Este é um bom cão de guarda. Não deixa ninguém se aproximar da casa e acha que sua principal função é me defender — disse Tuppence.

     — Hoje em dia isto é muito bom.

     — Há muitos roubos por aí, não é? Muitos de nossos amigos já foram roubados em plena luz do dia. É bom que saibam que temos um ótimo cão de guarda.

     — A senhora tem razão.

     — Este é o meu marido. Esta é Miss Mullins, Tcmmy, Miss Griffin amavelmente disse-lhe que precisávamos de alguém para cuidar do jardim.

     — O serviço talvez seja muito pesado para a senhora, Miss Mullins.

     — Naturalmente que não — disse ela-em sua voz grossa. — Posso usar uma pá tão bem quanto qualquer um. í; preciso revolver a terra e colocar estrume. A terra precisa ser bem preparada, é isso o importante.

     Hannibal continuava a latir.

     — É melhor levá-lo para dentro, Tommy. Ele está muito protetor esta manhã. Não quer entrar e tornar alguma coisa conosco, Miss Mullins? Podemos conversar mais sobre esse assunto.

     Depois que prenderam Hannibal na cozinha, Miss Mullins aceitou um cálice de xerez. Fez algumas sugestões, olhou no relógio e disse que precisava ir.

     — Tenho um encontro, não posso chegar atrasada — disse ela, despedindo-se apressadamente.

     — Não me parece haver nada de errado com ela — disse Tuppence.

     — Mas não podemos ter certeza.

     — Podíamos pedir informações sobre ela.

     — Agora você deve estar cansada de tanto passear pelo jardim. É melhor ir repousar. Vamos deixar o nosso passeio para outra tarde.

    

     UMA CONVERSA NO JARDIM

     — ENTENDEU bem, Albert? — disse Tommy.

     Estavam juntos na copa, onde Albert lavava a louça do chá que trouxera do quarto de Tuppence.

     — Sim, senhor — disse Albert, — entendi.

     — É bom prestar atenção ao Hannibal. Ele o alertará.

     — É um cão ajuizado, não confia em todo mundo.

     — É, ele não é desses que sacodem a cauda para as pessoas erradas. Hannibal tem uma boa intuição. Mas você já entendeu o que tem a fazer, não?

     — Mas no caso de a senhora resolver outra coisa, o que faço? Digo a ela ou...

     — Terá que usar diplomacia, Albert. Obriguei-a a ficar na cama hoje. Ela fica sob sua responsabilidade.

     Albert abriu a porta da frente para um jovem de terno de tweed e olhou para Tommy em dúvida Mas antes que dissesse alguma coisa o visitante entrou, com um sorriso amável.

     — Mr. Beresford, soube que precisa de alguém para trabalhar no jardim. Ele está precisando de uma boa poda, não é? Já trabalhei para Mr. Solomon alguns anos atrás. O senhor deve ter ouvido falar nele.

     — Sim, já ouvi falar em Mr. Solomon.

     — Meu nome é Angus Crispin. Podemos dar uma olhada no serviço?

     — É tempo de alguém dar uma boa arrumação aqui — disse Mr. Crispin, enquanto Tommy o conduzia pela horta.

     — Aqui já houve uma plantação de espinafre. E ali já plantaram melões — disse Tommy apontando para uma latada.

     — O senhor está bem informado sobre tudo isso, não?

     — Bem, os visitantes gostam de falar sobre como era o jardim antes, as velhinhas sempre se lembram da disposição dos canteiros de flores. Até o próprio Alexander Parkinson parece ter espalhado entre os colegas o caso do espinafre.

     — Deve ter sido um menino e tanto.

     — Ele devia ser fã de histórias policiais. Foi ele quem deixou uma frase em código num livro de Stevenson, A Flecha Negra, e despertou a curiosidade de Tuppence.

     — É um livro divertido, não? Li-o há uns cinco anos. Quando eu trabalhava para...— Mr. Crispin hesitou.

     — Mr. Solomon? — sugeriu Tommy.

     — Isto mesmo. Ouvi o velho Isaac contar muitas histórias, ele tinha quase cem anos, não? Trabalhou para o senhor pelo que me contaram.

     — E era estupendo, levando-se em consideração a sua idade. Também gostava de nos contar suas histórias. Por falar em velhas histórias, obtive ontem uma lista interessante.

     — Lista de quê?

     — Do recenseamento. Houve um recenseamento, o dia está marcado na lista que vou lhe dar. Foi uma data importante e havia uma grande festa na casa. Todos os presentes constam da lista.

     — Isso pode ser uma informação muito valiosa, uma lista de pessoas que estavam na casa num dia X. Ótimo. O senhor mudou-se para cá há pouco tempo, não é?

     — É verdade, mas não sei se vamos ficar — respondeu Tommy.

     — Não gosta daqui? Uma casa tão agradável, e o jardim ficará uma beleza se suprimirmos algumas árvores supérfluas e alguns arbustos que pelo jeito não vão florir mais. Não compreendo a sua vontade de mudar.

     — Há muitas lembranças desagradáveis do passado nesta casa.

     — Que importância pode ter o passado?   

     perguntou Mr. Crispin.

     — Nenhuma, poderíamos pensar. Mas é só falar nele que as pessoas se tornam vivas e reais novamente. O senhor está realmente disposto a trabalhar no jardim?

     — Como não! A jardinagem é o meu hobby favorito.

     — Uma tal de Miss Mullins esteve aqui ontem.

     — Miss Mullins? Miss Mullins? Trabalha como jardineira?

     — Parece que sim. Foi uma velhinha chamada Mrs. Griffin quem a indicou.

     — O senhor a contratou?

     — Não ficou nada resolvido — disse Tommy. — Por falar nisso, temos um bom cão de guarda aqui, um Manchester terrier.

     — Eles são ótimos vigias. Deve achar-se responsável por sua mulher e acompanhá-la a todos os lugares, não é verdade?

     — Isso mesmo — disse Tommy. — Ele está preparado para defendê-la até a morte.

     — São grandes cães, afetuosos e obstinados. E têm dentes muito aguçados, vou ter que tomar cuidado com ele.

     — No momento, ele está lá em cima. Não há perigo.

     — Miss Mullins — disse Mr. Crispin pensativo, — é interessante.

     — Por quê?

     — Bem, talvez eu a conheça com outro nome Diga-me, ela tem entre cinqüenta e sessenta anos?

     — Sim, e um ar de uma típica habitante do campo.

     — É ela mesmo. Tem parentes por aqui. Isaac poderia lhe falar sobre ela provavelmente. Soube que voltou há pouco tempo para cá. Tudo está combinando.

     — O senhor deve saber muitas coisas a respeito deste lugar.

     — Nem tanto assim. O velho Isaac sim, tinha uma ótima memória. Nesses clubes para gente idosa fala-se muito do passado embora se exagere multas vezes. O velho Isaac devia saber demais.

     — É uma vergonha o que fizeram com o velho. Gostaria de acertar contas com quem o matou. Era uma ótima pessoa e nos ajudou muito. Venha, vamos continuar o passeio — disse Tommy.

    

     HANNIBAL E MR. CRISPIN EM SERVIÇO ATIVO

     — PODE entrar — disse Tuppence ao ouvir Albert bater à porta do quarto.

     — É aquela senhora que esteve aqui outro dia, Miss Mullins — disse Albert, enfiando a cabeça pela fresta. — Quer falar sobre o jardim; disse-lhe que a senhora estava de cama e talvez não a recebesse.

     — Recebo sim, Albert.

     — Ia-lhe trazer o café da manhã agora.

     — Pois traga uma xícara para ela também. Dá para duas, não?

     — O que faço com Hannibal? Não é melhor trancá-lo na cozinha?

     — Não, ele não vai gostar nada da idéia. Prenda-o ali no banheiro.

     Totalmente indignado, Hannibal permitiu de mau grado que Albert o empurrasse para o banheiro e fechasse a porta. Latiu seu protesto várias vezes.

     — Pare com isso — gritou Tuppence. — Pare coin isso!

     Hannibal obedeceu quanto aos latidos, mas deitou-se com o nariz na fresta da porta e começou a rosnar ameaçadoramente.

     — Não queria incomodá-la, Mrs. Beresford — disse Miss Mullins entrando. — Mas pensei que a senhora gostaria de ver este livro sobre jardins. Há sugestões sobre o que plantar nesta época do ano. Veja só que arbustos bonitos... e dão-se bem nesse solo daqui, embora haja gente que diga o contrário. Oh, é muita delicadeza sua, vou aceitar uma xícara de café. Posso servi-la? É difícil para a senhora deitada aí. Será... — Miss Mullins olhou "para Albert que delicadamente trouxe-lhe uma cadeira.

     — Está bem assim, Miss?

     — Está ótimo. Parece que tocaram a campainha lá embaixo.

     — Deve ser o leiteiro ou o quitandeiro — disse Albert. — Com licença.

     Hannibal rosnou de noyo quando Albert fechou a porta.

     — É o cachorro — explicou Tuppence. — Está muito zangado por não poder participar da festa, mas ele é muito barulhento.

     — Quer açúcar, Mrs. Beresford?

     — Só uma colher, não é preciso leite. Depois de encher a xícara com café e oferecê-la

     a Tuppence, Miss Mullins tropeçou e caiu sobre a mesinha de cabeceira com uma exclamação de pena.

     — Machucou-se? — perguntou Tuppence.

     — Não, mas quebrei o seu vaso. Sou tão desajeitada. .. como fui quebrar este vaso tão lindo? O que a senhora não vai pensar de mim? Foi um acidente, asseguro-lhe.

     — Naturalmente — disse Tuppence com bondade. — Deixe-me ver. Ora, podia ser pior. Quebrou-se ao meio, é fácil colá-lo outra vez. Nem vai aparecer.

     — Estou tão encabulada — declarou Miss Mullins. — A senhora não deve estar se sentindo bem, eu não deveria ter vindo hoje, mas tive tanta vontade de lhe mostrar o livro...

     Hannibal começou a latir novamente.

     — Oh, o pobre cachorrinho — disse Miss Mullins. — Posso soltá-lo?

     — É melhor não, não se pode confiar nele às vezes.

     — Parece a campainha outra vez. 

     — £ o telefone. Pode deixar que Albert atenderá lá embaixo.

     Mas foi Tommy quem atendeu.

     — Alô — disse ele. — Sim, entendi. Um inimigo, decididamente um inimigo. Sim, nós já tomamos nossas precauções. Muito obrigado.

     Desligou c telefone e olhou para Mr. Crispin.

     — Era um aviso?

     — Era — disse Tommy.

     — É difícil saber quem é amigo ou inimigo, não é?

     — E às vezes pode ser tarde demais quando descobrimos. Portal do Destino, Caverna da Tragédia — disse Tommy.

     Mr. Crispin olhou-o surpreso.

     — Desculpe-me, esta casa nos despertou o vício da poesia.

     — É Flecker, não? Portões de Bagdá ou de Damasco?

     — Venha, vamos subir. Tuppence não tem nada realmente, nem um resfriado, está só descansando.

     — Levei café lá em cima — disse Albert reaparecendo, — com uma xícara extra para Miss Mul-lins. Ela está lá com um livro sobre jardinagem.

     — Entendo — disse Tommy. — Parece que vai tudo bem. Onde está Hannibal?

     — Fechei-o no banheiro. Fiz exatamente como o senhor mandou

     Tommy subiu com Mr. Crispin atrás. Depois de bater à porta de Tuppence, entrou. Dentro do banheiro Hannibal deu um último latido de aviso e pulou sobre a porta, o trinco cedeu e ele investiu a todo vapor rosnando furiosamente para Miss Mullins.

     — Meu Deus! — exclamou Tuppence.

     — Boni menino esse Hannibal — disse Tommy para Mr. Crispin. — Reconhece o inimigo, não é?

     — Deu-me uma dentada feia — disse Miss Mullins levantando-se com uma cara furiosa para Hannibal.

     — Pela segunda vez, não foi? — perguntou Tommy. — Já a tinha expulsado daquela moita, não?

     — Há quanto tempo não a via, Dodo minha querida — disse Mr. Crispin. — Desculpe-me, Miss Mullins, não estou atualizado. É seu nome de casada ou virou Miss Mullins agora?

     Ela ergueu-se e olhou para Tuppence, Tommy e Mr. Crispin.

     — Pensei que o seu nome fosse Dodo. Acho que vamos embora agora, querida. Prazer em conhecê-la Mrs. Beresford. Ouça um conselho de amigo: Não beba este café.

     — Deixe-me ajudá-la — disse Miss Mullins adiantando-se. No mesmo instante Mr. Crispin colocou-se entre ela e Tuppence.

     — Nada disso, Dodo minha querida. Eu não faria isso — disse ele. — A xícara pertence à casa e, sabe, será uma boa idéia fazer uma análise química de seu conteúdo. É tão fácil colocar veneno numa xícara e oferecê-la a uma inválida, não é? Você trouxe uma dose escondida, não foi?

     Hannibal estava ansioso para expulsar Miss Mullins do quarto.

     — Ele quer levá-la até a porta — disse Tommy. — Faz muita questão disso. Adora morder as pessoas quando se despedem. Ah, Albert, você estava aí fora. Viu o que aconteceu?

     — Vi, sim senhor. Observei pelo buraco da fechadura. Ela pôs alguma coisa na xícara da patroa. Com muita habilidade, parecia um mágico, mas eu a vi.

     — Não sei do que está falando — disse Miss Mullins. — Preciso ir agora, tenho um encontro importante.

     E despencou-se pelas escadas com Hannibal em seus calcanhares, seguido por Crispin com a sua cara tranqüila de sempre.

     — Espero que ela corra bastante, senão Hannibal a pega — disse Tuppence. — Que magnífico cão de guarda ele é!

     — Aquele era Mr. Crispin, Tuppence. Chegou em boa hora, não foi? Devia estar esperando para ver o que acontecia. Cuidado com a xícara e o café. Vou arranjar um vidro para guardá-lo. Vai ser analisado e descobriremos o que está aí deniro. Agora ponha seu quimono mais bonito e venha tomar um drinque comigo lá embaixo.

     — Provavelmente nunca descobriremos o que estava por trás disso tudo — disse Tuppence sacudindo a cabeça desolada e indo até a lareira.

     — Quer colocar mais uma acha? — disse Tommy. — Deixe-me fazer isto. Não deve se mover muito.

     — Meu braço está bom, Tommy. Não o quebrei nem nada, foi só um arranhão feio.

     — Foi um ferimento a bala, Tuppence. Pode vangloriar-se de ter sido ferida numa guerra.

     — Que coisa, parecia mesmo uma guerra.

     — Não se aborreça, acertamos afinal as contas com Miss Mullins.

     — Hannibal foi genial, não?

     — Sim, ele nos deu um aviso muito claro — disse Tommy. — Ele a farejou na moita. Tem um faro excelente.

     — Você não pode dizer o mesmo de mim. Achei que ela era uma resposta às minhas preces, esqueci até que esperávamos alguém recomendado pelo tal Solomon. O que Mr. Crispin lhe contou? É muito provável que seu nome nem seja Mr. Crispin.

     — É, não deve ser.

     — Ele veio aqui para investigar? Para mim, é gente demais.

     — Penso que foi mandado para garantir a sua segurança.

     — E a sua também, suponho. Onde está ele agora?

     — Deve estar às voltas com Miss Mullins.

     — Sabe, essa confusão toda me deu uma fome terrível. Adoraria comer caranguejo ensopado com um pouquinho de curry.

     — Ah, então você está bem novamente. Fico satisfeito em vê-la com esse apetite todo.

     — Então você já sabia que foi Miss Mullins, vestida de homem, quem se escondeu naquela moita e atirou em nós?

     — E deduzimos que tentaria outra vez, aproveitando-se do fato de você estar fraca e de cama.

     — É, lá veio ela cheia de solicitude feminina.

     — E nossos preparativos funcionaram. Lá estava Albert, em guarda permanente, observando tudo o que ela fazia.

     — E trazendo convenientemente uma bandeja com café e duas xícaras — disse Tuppence.

     — Você viu Mullins, ou Dodo, como Crispin a chamou, colocar alguma coisa em seu café?

     — Não, Tommy, confesso que não vi. Ela fingiu tropeçar e quebrou aquele vaso distraindo a minha atenção. Nem vi nada.

     — Mas Albert viu. Estava na porta de atalaia e viu tudo.

     — Foi ótima idéia deixar Hannibal preso no banheiro com a porta fechada só com o trinco. Hannibal sabe abri-lo quando quer, com o ímpeto de um tigre de bengala.

     — É uma boa comparação.

     — E agora Mr. Crispin, ou qualquer que seja o seu nome, deve estar concluindo sua investigação, embora eu não veja qual a ligação que Miss Mullins possa ter com Mary Jordan ou com um camarada perigoso como Jonathan Kane, que nem existe mais.

     — Mas pode haver uma edição nova dele. Há por aí muitos jovens amantes de violência a qualquer preço e muitos superfascistas que sentem saudades de Hitler e seus companheiros.

     — Acabei de reler O Conde Hannibal de Stanley Weyman, era de Alexander.

     — O que achou?

     — Bem, estava pensando nessas ondas de violência que se repetem. Imagine todas aquelas pobres crianças indo para as Cruzadas, cheias de alegria e vaidosas por terem sido escolhidas pelo Senhor para libertar Jerusalém, pensando que o mar se abriria para deixá-las passar, como a Moisés. E hoje em dia todos esses jovens que vão parar na justiça, porque assaltaram algum pobre velho para roubar-lhe seus vinténs. E o massacre de São Bartolomeu. Li num jornal que uma Universidade bem conhecida recebeu esses novos fascistas. Ah, creio que ninguém nos esclarecerá nada. Será que Mr. Crispin ainda vai achar mais alguma coisa por aqui? Vai voltar para tomar conta de mim e de você, Tommy?

     — Não preciso de ninguém para tomar conta de mim.

     — Ora, deixe de ser arrogante.

     — Ele deverá vir despedir-se, pois é um rapaz muito educado, e, além disso, deve querer saber se você já está boa.

     — Ah, o médico já deu um jeito nisso — disse Tuppence.

     — Sabe que Mr. Crispin é um ótimo jardineiro? Ele trabalhou realmente na casa de Mr. Solomon, que era seu amigo, por algum tempo. E assim pode dar referências perfeitamente legítimas.

     — É preciso pensar em tudo, não é?

     A campainha da frente tocou e Hannibal pulou como um tigre para atacar qualquer intruso que invadisse o recinto sob sua guarda. Tommy voltou com um envelope.

     — É para nós dois — disse Tommy abrindo-o. — Bem, isto abre novas perspectivas para o futuro.

     — O que é?

     — Um convite de Mr. Robinson para jantarmos com ele daqui a duas semanas, quando você tiver se recuperado de todo. O jantar é em sua casa de campo, em Sussex.

     — Acha que ele nos contará alguma coisa?

     — É possível.

     — Vou levar a minha lista. Já sei até de cor: "A Flecha Negra, Alexander Parkinson. Oxford e Cambridge, Grin-hen-lo, O estômago de Matilde, Caim e Abel, Bem-amado..."

     — Chega, Tuppence. Isso parece coisa de louco.

     — É mesmo. Será que haverá alguém além de Mr. Robinson?

     — Talvez o Coronel Pikeaway.

     — Neste caso vou levar minhas pastilhas para tosse, não é? Tenho muita vontade de conhecer Mr. Robinson. Não acredito que seja tão grande e gordo como dizem. Oh, Tommy, não é na outra semana que deverá chegar Débora com as crianças?

     — Não, felizmente isso já é agora, na próxima.

     — Ainda bem, então está tudo certo! — disse Tuppence.

    

     OS PÁSSAROS VOAM PARA O SUL

     — O CARRO chegou?

     Tuppence foi à varanda ver se algum carro tinha aparecido na curva da estrada; esperava com ansiedade a chegada de sua filha Débora com as três crianças. Albert apareceu na porta lateral.

     — Não eram eles, não, senhora. Foi o quitandeiro. Os ovos subiram de novo. Não voto mais no Governo, vou dar uma chance aos liberais!

     — Quer que eu vá preparar a sobremesa de morangos para esta noite?

     — Não é necessário, senhora. Já a vi preparar o pavê muitas vezes e aprendi a fazê-lo.

     — Ótimo, está se tornando um grande mestre-cuca, Albert. É a sobremesa favorita de Janet.

     — E fiz também pasteizinhos de geléia para o menino Andrew.

     — Os quartos estão prontos, Albert?

     — Estão, Mrs. Shackleberry deu uma boa ajuda hoje de manhã. E no banheiro de Miss Débora coloquei o sabonete Guerlain de sândalo. É o sabonete predileto dela.

     Tuppence suspirou aliviada ao saber que estava tudo em ordem para a chegada de sua família. Ouviu-se uma buzina e alguns segundos depois um carro dirigido por Tommy entrou, depositando os hóspedes nos degraus da varanda: Débora, ainda uma bonita mulher aos quarenta anos, Andrew com 15, Janet de onze e Rosalie de sete.

     — Olá, vovó — gritou Andrew.

     — Onde está Hannibal? — perguntou Janet?

     — Quero lanchar — reclamou Rosalie, com vontade de chorar.

     Houve cumprimentos gerais enquanto Albert se encarregava dos tesouros da família que incluíam um aquário com peixinhos dourados e um porquinho-da-índia numa gaiola.

     — Então esta é a sua casa nova — disse Débora abraçando a mãe. — Gosto dela, gosto muito dela mesmo.

     — Vamos dar uma volta no jardim? — convidou Janet.

     — Depois do chá — disse Tommy.

     — Quero lanchar — repetiu Rosalie, com medo de que se esquecessem daquela necessidade básica.

     O chá foi servido na sala de jantar para a satisfação de todos.

     — O que andou acontecendo com você, mãe? — perguntou Débora depois, quando estavam todos ao ar livre, as crianças correndo a explorar os prazeres do jardim, acompanhadas de Tommy e Hannibal, que também corria participando da alegria geral.

     Débora, achando que a mãe precisava de uma mão firme e de uma proteção segura, perguntou:

     — O que andou fazendo, mãe?

     — Ah, agora já estamos confortavelmente instalados.

     — Você andou fazendo das suas, não é verdade, papai?

     Tommy voltava com Rosalie às costas, enquanto Janet explorava o novo território e Andrew passeava tentando assumir um ar adulto.

     — Andou fazendo alguma — Débora voltou ao ataque. — Você esteve novamente bancando a Mrs. Blenkensop, ninguém consegue segurá-la, não é? Derek soube de coisas e me escreveu contando — disse acentuando o nome do irmão.

     — Como foi que Derek soube? — perguntou Tuppence?

     — Derek sempre descobre tudo. E você também, papai — Débora virou-se para o pai. — Você também está nesta. Pensei que tinham vindo para cá descansar, viver uma vida calma e divertir-se afinal.

     — É, a idéia era esta — disse Tommy — mas o destino traçou outros planos.

     — Portal do Destino — disse Tuppence, — Caverna da Tragédia, O Forte do Medo.

     — Flecker — identificou Andrew, um erudito em formação. Gostava de poesia e tinha planos de tornar-se poeta. Prosseguiu:

     — São quatro as portas de Damasco, Portal do Destino, A Entrada do Deserto, Caverna da Tragédia.

    

     O Forte do Medo.

     Não passa, Caravana, ou passa sem cantar. Você já ouviu o silêncio dos pássaros mortos. Ou alguma coisa que chore como um pássaro?" Como uma ilustração singularmente adequada, pássaros voaram do telhado sobre suas cabeças.

     — Que pássaros são esses, vovó? — perguntou Janet.

     — Andorinhas indo para o sul — disse Tuppence.

     — Elas não vão voltar mais?

     — Voltarão, sim, no próximo verão.

     — E passarão sob o Portal do Destino. — disse Andrew todo satisfeito.

     — Esta casa já se chamou O Ninho das Andorinhas — disse Tuppence.

     — Mas você vai embora, não é? Papai escreveu que estava procurando outra casa.

     — Por quê? — perguntou Janet.

     — Vou lhe dar algumas razões — disse Tommy tirando do bolso uma folha de papel e lendo alto: — A Flecha Negra, Alexander Parkinson. Oxford e Cambridge, Grin-hen-Lo.. .

     — Nada disso, Tommy! Esta lista é minha, você não tem nada a ver com ela.

     — O que é isto? — perguntou Janet.

     — Parece uma lista de indícios de uma história de detetives — disse Andrew, que em seus momentos menos poéticos era fã desse gênero de literatura.

     — É isto mesmo, e é esta a razão pela qual estamos procurando outra casa.

     — Mas eu gosto desta aqui — reclamou, Janet. — É linda.

     — É uma casa muito bonita, e tem biscoitos de chocolate — disse Rosalie lembrando-se do lanche.

     — Gosto dela, — disse Andrew com a entonação de um autocrático Czar de Todas as Rússias.

     — Por que não gosta dela, vovó? — perguntou Janet.

     — Mas eu gosto sim — disse Tuppence com um entusiasmo súbito. — Quero morar aqui, para sempre.

     — Portal do Destino — disse Andrew, — É um nome fascinante.

     — Poderíamos batizá-la novamente de O Ninho das Andorinhas — disse Tuppence.

     — Por que não escrevem uma história com aquela lista? — sugeriu Andrew.

     — É muito complicada — disse Débora. — Quem iria ler um livro desses?

     — Você ficaria surpresa se visse o que as pessoas são capazes de ler e com prazer! — disse Tom-my, e olhou para Tuppence.

     — Posso comprar tinta amanhã? — perguntou Andrew. — Se Albert me desse uma mãozinha, podíamos pintar o novo nome no portão.

     — E no próximo verão as andorinhas saberiam que podiam voltar! — disse Janet.

     — Não é uma má idéia — concluiu Débora.

     — "La Reine le veult" — disse Tommy fazendo uma reverência para sua filha, que considerava seu privilégio, na família, dar o consentimento real.

    

     ÚLTIMAS PALAVRAS: JANTAR COM MR. ROBINSON

     — O JANTAR estava uma delícia — disse Tup-pence aos seus companheiros de refeição. Tinham deixado a mesa e estavam agora na biblioteca, onde o café era servido.

     Mr. Robinson, tão pálido e até maior do que Tuppence o imaginara, sorria atrás de um belíssimo bule George II. Ao seu lado estava Mr. Crispin, que agora parecia se chamar Horsham. O Coronel Pike-away sentou-se ao lado de Tommy que lhe ofereceu um dos seus próprios cigarros.

     — Eu nunca fumo depois do jantar — respondeu o Coronel com uma expressão de surpresa.

     Miss Collodon, que Tuppence achara um tanto alarmante, disse:

     — É verdade, Coronel? Que coisa interessante! — E virando-se para Tuppence: — Como o seu cachorro é bem comportado, Mrs. Beresford!

     Hannibal, deitado sob a mesa com a cabeça nos pés de Tuppence, olhou-a com sua enganadora expressão angelical e balançou a cauda delicadamente.

     — Pensei que fosse um cachorro bravo — disse Mr. Robinson com um olhar maroto para Tuppence.

     — Quando ele é convidado para uma festa, tem maneiras muito educadas — disse Tuppence. — Adora isso, acha que está sendo prestigiado e comporta-se de acordo com a ocasião. — Virou-se para Mr. Robinson. — Foi realmente uma delicadeza muito grande a sua, convidá-lo e oferecer-lhe um prato de fígado. Ele adora fígado.

     — Todos os cães adoram fígado — disse Mr. Robinson e olhou para Crispin-Horsham. — Mas se eu fosse à casa de Mr. e Mrs. Beresford corria o risco de ser recebido a dentadas, não?

     — Hannibal leva muito a sério os seus deveres — disse Mr. Crispin. — É um cão de guarda e não se esquece disto.

     — E como oficial da Segurança, você compreende bem os seus sentimentos, não é? — disse Mr. Robinson com um ar brincalhão.

     — A senhora e seu marido fizeram um trabalho notável, estamos muito gratos. O Coronel Pikeaway contou-me que foi a senhora quem começou tudo.

     — Simplesmente aconteceu — disse Tuppence encabulada. — Fiquei curiosa, quis descobrir o que acontecera e. . .

     — Eu sei. E agora a senhora também deve sentir curiosidade em saber o que estava por trás daquilo tudo, não é?

     Tuppence ficou ainda mais sem jeito e suas palavras tornaram-se um pouco incoerentes:

     — Oh, naturalmente. Mas sei que é segredo e não devemos fazer perguntas. Compreendo perfeitamente, o senhor não poderia responder.

     — Ao contrário, sou eu quem tenho uma pergunta a fazer à senhora, e gostaria que satisfizesse minha curiosidade.

     Tuppence olhou-o espantada.

     — Não posso imaginar o que possa ser.

     — A senhora tem aí uma lista... foi o que seu marido me disse. Sei que é propriedade sua, mas sinto-me muito curioso.

     Seus olhos brilhavam. Tuppence chegou à conclusão de que gostava muito de Mr. Robinson. Ficou silenciosa por uns momentos, tossiu e remexeu em sua bolsa de toalete.

     — É um tanto tola, parece até meio louca — disse ela.

     — Louco, louco, o mundo inteiro é louco — disse Mr. Robinson inesperadamente. — Assim falou Hans Sachs sentado sob uma árvore em Os Mestres Cantores, a minha ópera favorita. E como ele estava certo!

     Pegou a folha de papel que ela lhe estendia

     — Pode ler alto se quiser, não me importo — disse Tuppence.

     Mr. Robinson deu uma olhada e entregou-a a Crispin.

     — Leia você, Angus. Tem uma voz mais clara do que a minha.

     Mr. Crispin pegou o papel e leu em sua agradável voz de tenor: A Flecha Negra Alexander Parkinson Mary Jordan não morreu naturalmente. Oxford e Cambridge. Grin-hen-Lo. Quiosque.

     Estômago da Matilde. Caim e Abel. Bem-amado.

     Parou, olhando para o dono da casa que se virou para Tuppence:

     — Minha cara, quero cumprimentá-la, tem uma mente fora do comum. É notável como, partindo desta lista, pôde chegar às suas descobertas finais.

     — Tommy contribuiu muito — disse Tuppence.

     — Foi você quem me empurrou — disse Tommy.

     — Foi uma bela investigação — disse o Coronel Pikeaway.

     — A data do recenseamento esclareceu muitas coisas — disse Tommy.

     — Vocês são realmente um casal bem dotado — disse Mr Robinson. Olhou para Tuppence e sorriu. — Deduzo que embora não queiram ser indiscretos, querem saber o que aconteceu.

     — Oh! — exclamou Tuppence. — Então vai nos contar? Que maravilha!

     — Uma parte começa com os Parkinson, como deduziram — começou Mr. Robinson. — Isto é, num passado remoto. Minha bisavó era uma Parkinson. Através dela é que sei de alguns detalhes.

     "A moça. conhecida como Mary Jordan trabalhava para nós. Tinha conhecidos na Marinha. Sua mãe era austríaca e ela falava alemão fluentemente. Como seu marido sabe, há certos documentos que dentro em breve serão divulgados. A tendência atual do pensamento político é que o sigilo não deve ser preservado indefinidamente. Há coisas em nossos arquivos que devem ser divulgadas por fazerem parte da historia do país.

     "Nos próximos dois anos deverão ser publicados uns três ou quatro volumes com documentos provando a autenticidade de certos fatos. Os acontecimentos que envolveram O Ninho das Andorinhas certamente serão incluídos. Os segredos transpiram — isso sempre acontece em tempos de guerra ou na época que antecede a elas. Havia políticos de grande prestígio e alguns jornalistas de renome que usaram sua influência erradamente.

     "Já antes da primeira guerra, homens tramavam contra seu próprio país. Depois vieram os jovens universitários, que eram partidários fervorosos e algumas vezes membros ativos do Partido Comunista, sem que ninguém soubesse. E muito mais perigoso ainda, o fascismo entrou em moda e progra-mou uma eventual união com Hitler, o Amante da Paz, terminando assim rapidamente em guerra.

     "E assim por diante. Por trás dos bastidores a ação é contínua. Já aconteceu antes e, sem dúvida, acontecerá sempre. Uma quinta-coluna ativa e perigosa, chefiada por homens que acreditam nela, por homens que buscam o ganho financeiro e por outros que querem o poder. Deve ser uma leitura fascinante.

     "Com que freqüência as mesmas frases foram ditas: "O velho B.? Um traidor? Loucura, ele jamais faria isso, é de confiança absoluta!" A velha história, sempre a mesma coisa. No mundo das finanças, nas forças armadas, na política, sempre há aquele homem honesto que inspira confiança e amizade, completamente fora de qualquer suspeita. É esse o homem adequado para esse serviço sujo, o homem que venderia uma mina de ouro dentro do Hotel Ritz.

     "A cidadezinha onde mora, Mrs. Beresford, tornou-se o quartel-general de um certo grupo antes da Primeira Guerra Mundial. Era uma cidadezinha tão agradável, tão típica do velho mundo, com tanta gente boa morando ali, todos patriotas colaborando no esforço de guerra.

     "Um bom porto militar, um simpático e jovem Comandante da Marinha, de boa família, o pai fora almirante, eis alguns ingredientes.

     "Um bom médico clinicava ali, muito amado por seus pacientes que confiavam todas as suas preocupações a ele, um clínico geral. Ninguém sabia que tivera um treinamento especial em guerra química — gases venenosos.

     "E mais tarde, antes da segunda guerra, Mr. Kane, deveria ser Caim o seu nome, morou numa linda cabana de telhado de palha perto do cais. Tinha seu próprio credo político, nada de fascismo, não senhor. Só Paz Antes de Tudo, para salvar o mundo, um credo que ganhava adeptos rapidamente no Continente e em numerosos países do além-mar.

     "Não é isso realmente o que quer saber, Mrs. Beresford, mas é o pano de fundo, um plano cuidadosamente tramado.

     "E Mary Jordan foi mandada para lá, para descobrir, se possível, o que estava acontecendo. Ela nasceu antes de mim, mas senti admiração pelo seu trabalho quando ouvi a sua história e gostaria de tê-la conhecido. Obviamente ela tinha caráter e personalidade.

     "Mary era seu nome de batismo, embora fosse conhecida por Mollie. Foi uma tragédia ter morrido tão cedo."

     Mr. Robinson fez uma pausa.

     Tuppence estivera olhando um retrato numa parede que lhe parecia familiar. Era um esboço de uma cabeça de menino.

     — Mas aquele não é...

     — É sim — disse Mr. Robinson. — É Alexander Parkinson. Tinha onze anos na época. Era o neto de uma tia-avó minha. Foi assim que Mary foi trabalhar na casa dos Parkinson como governante das crianças. Parecia um posto de observação seguro. Ninguém previu o que iria acontecer.

     — Foi algum dos Parkinson? — perguntou Tuppence.

     — Não, minha cara. Os Parkinson nunca estiveram envolvidos de nenhuma maneira. Mas havia outras pessoas, hóspedes e amigos, na casa aquela noite. Foi o seu Thomas quem descobriu que na noite do envenenamento geral houve aquele recenseamento. Os nomes de todas as pessoas presentes constam na lista juntamente com os nomes das pessoas da família. Um dos nomes era significativo. A filha do médico local, sobre quem lhes falei, veio visitar seu pai com dois amigos e pediu aos Parkinson para hospedá-la por uma noite. Os amigos nada tinham de errado, mas seu pai e ela estavam profundamente envolvidos nos acontecimentos. Foi ela quem, a pretexto de ajudar aos Parkinson no jardim algumas semanas antes, havia plantado pés de dedaleira jun-to aos espinafres. Foi ela quem, naquele dia fatal, colhera os legumes para o jantar. A intoxicação dos participantes do jantar foi encarada como um desses lamentáveis acidentes que acontecem algumas vezes. Sobre a morte de Mary, o médico testemunhou que já tivera conhecimento de caso semelhante. Este testemunho levou ao veredicto de morte acidental. O fato de que um cálice caíra ao chão e se espatifara no jantar não foi mencionado.

     "E essa história poderia ter-se repetido, Mrs. Beresford. Atiraram na senhora e, mais tarde, uma mulher dizendo chamar-se Miss Mullins tentou envenenar o seu café. Parece que ela é neta de uma sobrinha do médico criminoso e antes da segunda guerra foi discípula de Jonathan Kane. Foi por isso que Horsham a conhecia. Já sabemos que foi ela quem matou o velho Isaac. Mas o seu cachorro não a suportou e agiu prontamente.

     "Temos que tratar agora de um personagem ainda mais sinistro. O médico bondoso, e jovial que era idolatrado por todos, mas que parece ter sido o responsável pela morte de Mary Jordan. Tinha ampios interesses científicos, era perito em venenos e realizou um trabalho pioneiro em bacteriologia. Foram precisos sessenta anos para que esses fatos fossem conhecidos. Só Alexander Parkinson, um esco-lar naquela altura, teve alguma intuição da verdade.

     — Mary Jordan não morreu naturalmente — disse Tuppence baixinho. — Deve ter sido um de nós. Foi o médico quem descobriu o que Mary andava fazendo?

     — Não, o médico nem suspeitara. Mas alguém o fez. Até então ela tivera êxito total. O Comandante da Marinha acreditara em seu papel como tinha sido planejado. Passara a ela planos e informações cuidadosamente falsificados, de pouca im-portânica, que ela entregava a pessoas em Londres seguindo instruções detalhadas. A estátua de Peter Pan em Kensington Garden era um dos lugares de encontro. Sabemos até quais os funcionários e as embaixadas que estavam envolvidas... Mas isto já é passado, Mrs. Beresford. Um passado muito remoto.

     O Coronel Pikeawty tossiu e prosseguiu:

     — Mas a história se repete, Mrs. Beresford. Mais cedo ou mais tarde todos aprendem isto. Um núcleo formou-se recentemente em Hollowquay. Pessoas com conhecimentos dos fatos puseram a roda em movimento. Talvez Miss Mullins tenha voltado por causa disto. Certos esconderijos foram usados novamente, houve encontros secretos. Dinheiro começou a aparecer. Foi para descobrir de onde vinha e para onde ia que chamaram Mr. Robinson. Foi então que Mr. Beresford apareceu com informações que nos interessaram. Tudo combinava com o que já suspeitávamos. Um pano de fundo era preparado. Uma figura importante na política do país preparava-se para dirigir o movimento. Um homem de boa reputação, conseguindo cada dia mais adeptos e seguidores fiéis. O golpe em ação novamente. Um homem de grande integridade, amante da paz, não é fascismo, não. Só parece fascismo. Paz para todos e lucros para os que cooperarem.

     — E isto ainda prossegue? — perguntou Tup-pence de olhos arregalados.

     — Bem, agora já sabemos tudo que era preciso saber. E em parte devido a sua contribuição. O conteúdo do cavalo de balanço foi muito esclarecedor.

     — Matilde! — exclamou Tuppence. — Fico tão satisfeita. Mal poderia imaginar, imagine, a barriga de Matilde!

     — Os cavalos são uns animais maravilhosos — disse o Coronel Pikeaway. — Nunca se pode prever o que vão fazer, isto desde o Cavalo de Tróia.

     — Mas se isto não acabou — disse Tuppence. — E com as crianças lá...

     — Não se preocupe — disse Mr. Crispin. — Aquela área da Inglaterra está limpa. O ninho das vespas foi derrubado. Já se pode viver lá com tranqüilidade. Temos razões para acreditar que transferiram as operações para a vizinhança de Bury St. Edmonds. E estaremos de olho nos senhores, não se preocupem.

     Tuppence deu um suspiro de alívio.

     — Obrigada por me dizer isto. Sabe, minha Débora e suas três crianças volta e meia virão passar temporadas conosco.

     — Não precisa se preocupar — disse Mr. Robinson. — Mas os senhores não adotaram aquela criança do caso do M ou N, a menina do livro de versos?

     — Betty? — perguntou Tuppence. — Nós a adotamos, sim. Ela saiu-se muito bem na universidade e agora está na África fazendo pesquisas sobre o modo de vida dos nativos. Há muitos jovens interessados nisso. Ela é um amor, e está muito feliz.

     Mr. Robinson pigarreou e levantou-se.

     — Quero propor um brinde a Mr. e Mrs. Beresford, em reconhecimento ao serviço que prestaram ao país.

     Foi ouvido com entusiasmo.

     — Se me permitem, quero propor mais um brinde — disse Mr. Robinson. — Para Hannibal.

     — Veja Hannibal — disse Tuppence alisando-lhe a cabeça. — Beberam à sua saúde. É uma distinção tão grande quanto ser armado cavalheiro ou receber uma medalha. Eu estive lendo O Conde Hannibal, de Stanley Weyman, um dia destes.

     — Lembro-me dele, li-o quando menino — disse Mr. Robinson. — "Quem tocar meu irmão, toca Tavanne", não era assim? Pikeaway, concorda comigo? Venha Hannibal, re me permite vou tocar-lhe o ombro.

     Balançando gentilmente a cauda, Hannibal andou em sua direção e recebeu um tapinha no dorso.

     — Por meio deste, faço-o conde deste reino.

     — Conde Hannibal, que beleza! — exclamou Tuppence. — Agora é que ele vai ficar mesmo orgulhoso!

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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