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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FONTE ESQUECIDA / Cecile Aubry
A FONTE ESQUECIDA / Cecile Aubry

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A FONTE ESQUECIDA

 

Prisca continuava invisível...

 

Veronique Juvet sem uniforme parecia uma azeitona espetada num palito. Foi pelo menos o que pensou o comandante de bordo Jacques Launay quando ela surgiu à sua frente no meio do átrio de Orly Sul, com os negros cabelos cortados rente em volta duma cabecita redonda, o longo corpo apertado numas jeans e uma camisola que modelava uma muito juvenil ausência de formas.

 

Mas que encantador sorriso! Impetuosamente e sem tomar o fôlego, ela exclamava:

 

”Não viste a minha irmã? Estou farta de a procurar por toda a parte.

 

Prisca? Não só a vi, como passei uns dez minutos a tentar fazê-la compreender toda a poesia de um domingo em Orly. Ela respondeu-me que Gilbert Bécaud não é da sua geração, que estava à tua espera há duas horas e que ansiava por um mergulho numa piscina... Ela tem razão, aliás... Que calor! Está no bar, lá em cima, em frente do terceiro café gelado. Um senhor gordo de óculos devora-a com os olhos.”

 

Véronique desatou a rir:

 

”Pobrezinha!”

 

E desapareceu, deslizando através da multidão.

 

Regressos de Julho, partidas de Agosto...

 

Jacques Launay seguiu com os olhos a delgada silhueta, que se virou a meia altura na escada rolante para lhe enviar a graça do famoso sorriso e a gentileza dum piscar de olhos, ao qual ele, certamente, correspondeu.

 

”Uma hospedeira como as outras”, disse consigo Launay. ”Elas são todas encantadoras.” Encolheu os ombros e afastou-se. Não se fica apaixonado aos trinta e dois anos por uma rapariga magra que se volta para nos sorrir.

 

No entanto, lançou um olhar para a escada, sentiu-se aborrecido consigo próprio por o ter feito e encaminhou-se para a saída. No parque de estacionamento esperava-o o seu carro, e depois uma boa noite em casa duns amigos. Um garoto, de cabeça baixa, veio chocar com as suas pernas, gritando:

 

”Mamã, não há carrinhos!

 

Ao fundo do átrio, à tua frente, vai ver”, sugeriu Launay.

 

E pensou que não se lembrara de perguntar a Véronique Juvet o que é que ela tinha intenção de fazer durante os oito dias de férias...

 

”Ah! Até que enfim!”, gemeu Prisca. As duas irmãs riam beijando-se. ”Tive de fazer horas extraordinárias explicou Véronique, por causa da Yvette, que...

 

Já sei. As raparigas precisam sempre de ti para as substituir. Sobretudo ao domingo. Eu sufoco!”

 

Os fatos colavam-se à pele, apesar do ar condicionado.

 

Atirando para trás da orelha uma massa de cabelos castanhos, Prisca ergueu para a irmã um olhar divertido. Era essa a sua única semelhança, esse olhar, o do pai. Claro para uma, escuro para outra, ele tinha o mesmo brilho de alegria, a mesma vitalidade.

 

As pessoas comprimiam-se em vagas numa porta ou noutra, emergindo umas atrás das outras das escadas rolantes. Adeuses, encontros, peles brancas, peles queimadas pelo sol, vozes suaves nos microfones estabilizadores:

 

”O avião vindo de Madrid, voo IT 830...”

 

Trinta e cinco minutos de atraso trazia aquele. Dacar, Marráquexe, Tunes ou Roma... Viagens, férias... Férias!

 

”Sabes quem me fez companhia?
Jacques Launay.

 

Pois foi. Ele é muito giro.

 

Achas?

 

À procura de cigarros, Véronique mergulhou o nariz muito curto na grande bolsa de pano azul deslavado que lhe fazia as vezes de mala.

 

A expressão divertida acentuou-se no olhar cinzento-esverdeado pousado nela.

 

”Um tipo estupendo e um piloto excepcional dizia Véronique. franzindo umas sobrancelhas invisíveis sob a franja negra. O género sério. Simpatizo imenso com ele.

 

Mmm! aquiesceu Prisca. E eu acho-o giro. Adorava tê-lo por cunhado.”

 

Engolindo o fumo e as palavras, Véronique desatou num discurso sem sentido a propósito da amizade fiel e da camaradagem...

 

”Que mania que tu tens de arranjar romances... Isso é mesmo da tua idade! Se eu caísse sob o encanto de todos os comandantes de bordo na minha profissão! Para mim, o prestígio do uniforme... Oh! Prisca...

 

Que foi?

 

A mais nova procurava descobrir o que provocara de repente esse acento patético na voz da irmã.

 

”Terrível! continuava Véronique no mesmo tom de piedade. Launay tinha-me dito, mas eu pensava que ele exagerava... É uma loucura o que ela mudou

 

Mas quem?

 

Lá em baixo, na porta 12... aquela mulher que traz um grande chapéu branco.

 

Aquela estilo velha pega americana com a boca de lado?”

 

Véronique lançou a Prisca um olhar agastado:

 

”Ela não tem nada de velha pega. É Clara Verneuil.”

 

Clara Verneuil...

 

A mãe de David. O David dum mês de Agosto, há oito anos...

 

David e os seus olhos claros, que mergulhavam no rebentar das vagas, na maré cheia...

 

David fixava o horizonte com a expressão má que tinha às vezes para responder às perguntas que Prisca lhe fazia: ”Não, a minha mãe não vem. Ela nunca vem.”

 

David remando contra a corrente e contra o vento de leste, sorrindo a uma Prisca de dez anos, gelada, escondida no fundo da canoa: ”Não tenhas medo, era capaz de remar até Curaçau, se quisesse.” A palavra mágica ressoava ainda na memória de Prisca, como sinónimo de mares longínquos, de ilhas Sob-o-Vento, de licor e de petróleo em qualquer parte ao largo da Venezuela.

 

David sorria. O dóri subia nas vagas, cavalgava uma crista, deslizava no escavado aterrador das montanhas de água ao ranger dos toletes, o bater ritmado dos remos... David que enfrentava o perigo como se este favorecesse o seu anseio para paragens que só ele atingiria.

 

Quando ele, finalmente, encalhara o dóri na areia, num último impulso da maré enchente e do vento, Prisca sentira os olhos embaciarem-se porque, confusamente, receava nunca mais acompanhar David para além do molhe; nunca mais ela saberia para que horizontes ele conduziria, sem ela, a sua imaginação e a sua vida.

 

Todavia, na véspera da sua partida, enquanto ela corria até ao extremo da falésia pelo meio das ervas e dos cardos da Guimorais, sem se preocupar com as esfoladelas, no sítio onde o rochedo a pique mergulha no mar, quando ela ficava imobilizada para ver melhor o céu, onde todos os cinzentos se misturavam com o verde sombrio das vagas, e ela sentia a chuva vergastar-lhe o rosto, penetrando através da lã da camisola até à pele, quando ela rira de alegria perante essa batalha que o vento oferece a todos os obstáculos que se erguem à sua passagem, David dissera:

 

”Há coisas que tu podes compreender. Com a tua irmã, já assim não é.”

 

Misteriosas palavras, que ficaram inexplicáveis como todas aquelas que David queria confiar a quem
sabia escutá-lo... O David de outrora, o David de um único mês de Agosto.

 

”Pobre Clara! Era tão bonita... continuou a voz de Véronique ao lado de Prisca. Era-o ainda há seis meses, precisamente antes do seu acidente. Lembras-te? Eu contei-te: Tive-a como passageira no voo Paris-Roma. Acho que ela vai muitas vezes a Roma. Estava só. Ocupei-me dela o mais que pude, mas não ousei dizer-lhe quem era e ela não me reconheceu. Não é de admirar, eu não me pareço nada com o que era aos quinze anos e ela só foi uma vez a Saint-MaJo. Nem foi um dia todo. Tu eras muito pequena, não podes lembrar-te...

 

Lembro-me muito bem.

 

Verdade? E também te lembras de David?”

 

David pusera a Vila Adèle de pernas para o ar. Da cave ao sótão, ele procurava, explorava: preparava ”a festa”. Ninguém tivera o direito de o seguir e ainda menos de o ajudar. Ele relegara para a cozinha a governanta inglesa, Miss Barbara, que todos consideravam como tendo alguma autoridade sobre ele, e a gorda Mélie, que a tinha sem a querer, porque dessa gostava ele.

 

Da janela do quarto, na casa ao lado, Prisca via-o arrancar os cortinados, arrancar o papel colorido, fazendo estranhas flores que espetava em cima dos horríveis losangos castanhos das armações das bambinelas. Agitava-se como um louco, transportando móveis que disfarçava sob o brilho das cores das suas bizarras decorações. Então gritara: ”Anda cá ver!”

 

Ela sentia as pernas frouxas ao descer as escadas, impressionada por saber que era a única a descobrir esse templo edificado à glória da legendária pessoa que era a mãe de David. Mas acrescentara:

 

”Se a tua irmã quiser, pode vir também” E elas tinham ido.
Era prodigioso e louco. Surrealista. Encantador. Nada de paredes aos losangos castanhos, desaparecidos os abomináveis móveis de falsos estilos variados; David fizera do sombrio salãozinho um encantamento. O franzido ousado duma vela de barco às riscas vermelhas e brancas dividia a sala, aumentando-lhe as proporções ao suprimir-lhe uma das janelas; quanto à segunda, estava escancarada sobre a única beleza da Vila Adèle: a sua vista para o mar, tendo, ao longe”, a massa do Grand Be, assaltado pelos turistas na maré baixa, e a ilha de Césembre, toda azul sobre horizontes mal definidos.

 

Véronique notou sobretudo essa fantástica pirâmide de livros coroada de um tinteiro com uma pena.

 

”Porquê estes livros e a pena de gaivota?

 

Chateaubriand respondeu sobriamente David. O escritor no cume da sua glória.

 

Não está mal. Não está mal de todo apreciava Véronique. E a vela do barco, onde é que a arranjaste? Roubaste-a?”

 

Como se, na verdade, os meios de conseguir uma tal perfeição decorativa tivessem a menor importância!

 

David aceitara o ”não está mal, não está mal de todo” de Véronique com a impassibilidade que convém ao génio. A alusão ao possível roubo da grande vela não merecia senão um pouco mais de altivez, mas pareceu incomodado por não obter de Prisca senão o olhar de cão apaixonado e submisso. Queria mais. E quando David queria qualquer coisa com paixão tornava-se brusco.

 

”Enfim”, proferiu ele com um acento e um olhar igualmente violentos, ”é mais está bem ou está mal?”

 

Presa pelo azul implacável de dois olhos que não pestanejavam, Prisca procurou uma dessas palavras mágicas e incompreensíveis que ele empregava:

 

”É... é orgíaco”, murmurou ela. ”É como comer um gelado quando está muito calor e se tem sede.”

 

Toda a gente conhecia o gosto exagerado de Prisca por gelados; David humanizou a sua altivez. O olhar azul de lobelia adoçou-se até ao tom dos miosótis:


”Sim”, reconheceu ele, plenamente consciente da graça que concedia. ”Antes era como se se comesse mexilhões podres depois dum almoço na DuchesseAnne.”

 

Satisfeita, Prisca percebeu então que ele a compreendera.

 

E esperaram por Clara Verneuil.

 

Aproveitando do jardim do Hotel Armorie para mergulhar na sombra dum maciço de hortenses, Véronique não perdeu a cena da chegada. Ela declarou que Clara Verneuil tivera, ao ver a decoração do salão, a mesma reacção que Prisca e ainda mais entusiasmo. Clara anunciara que viera por uma semana.

 

Partiu nessa mesma noite.

 

David, que comprara um caderninho para apontar o que não queria esquecer, escrevera: ”Apresentação das duas Juvet.” Elas frequentavam o maciço de cardos azuis da falésia, o pequeno ruivo da ponta do molhe que vendia gelados e o lavagante à armórica da Duchesse-Ana.

 

Mas Clara mal olhou para as jovens Juvet entre duas vapas de jornalistas e de fotósrafos, a multidão de pessoas que, tendo-a reconhecido, abandonavam a visita ao túmulo de Chateaubriand e desfilavam, pobres formigas, de carnet de autógrafos na mão.

 

Sorridente, ela acolhia-os. Desfilavam diante da Vila Adèle, seus admiradores, sem mesmo notar a estapafúrdia decoração do salão. Quando finalmente ela decidiu encerrar a sessão, fechando-se na medonha cozinha vermelha, onde jantou em companhia do filho, de Miss Barbara e da gorda Mélie, que fora sua criada de quarto antes de ser promovida a mulher de confiança aquela a quem se podia entregar tudo, desde o estojo das jóias à educação de David...

 

Escondida no meio das hortenses, Véronique assistiu à fuga sem glória de Clara Verneuil, pela porta das traseiras e pelo jardim do hotel, para o carro que esperava ”a estrela”. Um novo filme em perspectiva. O seu empresário chamava-a. Quanto ao filho...


Véronique contou que ele recusara beijar Clara e que ela chorava.

 

Depois...

 

Uma vez o carro desaparecido, David mergulhara no salão da Vila Adèle, onde se fechara. Rasgara as flores de papel, desmoronara a pirâmide de livros, arrancara a vela e fechara sobre um sol-pôr triunfal a única janela aberta para a glória escarlate da tarde. Miss Barbara, então, foi nadar sozinha no mar, contando com rigorosa disciplina as duas mil braçadas que se impunha todos os dias. Graças a isso, continuava delgada e moralmente intacta, apesar da ausência de David, que recusava acompanhá-la. Desde então, é preciso confessá-lo, as coisas foram de mal a pior.

 

Prisca retirou da algibeira a fotografia com dedicatória onde sorria o lindíssimo rosto de Clara Verneuil e rasgou-a até a transformar em confetti. Ela mantinha em relação a David uma alma de bebé são-bernardo. Mas ele não lhe parecia reconhecido por isso. Pelo menos na aparência.

 

Um dia escreveu uma carta que enviou pelo correio a Véronique. Foi o Sr. Juvet quem, por inadvertência, abriu o sobrescrito. Depois de ler as primeiras palavras, continuou, e a coisa terminou com a maior arrelia da sua vida.

 

Véronique saiu duma longa entrevista com o pai com as faces vermelhas e de olhos molhados. Ela estava inocente, pobrezinha, era evidente. Mas daí em diante ela foi proibida, e Prisca também, de ”perder o seu tempo com esse vadio do jovem David Wilson”.

 

Que David se chamasse Wilson e não Verneuil era já qualquer coisa de inesperado, mas, além disso, hesitantes confidências da irmã fizeram descobrir a Prisca que relações completamente clandestinas ligavam Véronique a David. Soube também que ”o papá não compreendia absolutamente nada a respeito do amor e despedaçava a vida da filha mais velha”.

 

Teve de concluir que, embora o papá tivesse uma mentalidade tirânica, David traía em relação a ela, Prisca, qualquer coisa de inexprimível, mas muito forte, pois preferira-lhe Véronique.

 

E experimentou um sentimento horrível, desconhecido, doloroso, e que ignorava: um terrível acesso de ciúmes.

 

Mas não durou muito tempo... Véronique partiu para a pesca dos camarões com o garoto ruivo da ponta do molhe e Prisca deitava um olhar cada vez menos ansioso para David, que lhe sorria sempre que a encontrava, chamando-lhe estranhamente ”gaivota”. Passando por cima da ordem do pai, ela atreveu-se a dirigir a palavra a David para lhe perguntar em que é que ela podia parecer-se com uma gaivota. Ele respondeu:

 

”Em nada. Mas eu adoro as gaivotas.”

 

Prisca fez-lhe então notar que ele preferia Véronique às gaivotas, o que parecia evidente depois do escândalo da carta.

 

Com o dedo do pé tão dourado como o resto da sua pessoa, David virou de pernas para o ar um pequeno caranguejo espantado:

 

”A minha carta?... Idiotices. Era a brincar. Eu podia explicar tudo ao teu pai, mas não vale a pena. Eu nunca beijei a tua irmã. É bonita, mas não me interessa. Eu não posso falar com ela. Ela não é como tu e eu. É diferente de nós, compreendes?”

 

Prisca tentou entrar no círculo mágico que David criava de novo com palavras. Virando o pequeno caranguejo, que fugiu a andar de lado até ao abrigo providencial duma grande pedra franjada de algas, ela reflectiu. Os seus pés, que se enterravam, formavam duas poças de água na areia húmida.

 

”Queres dizer murmurou ela que Véronique não pensa absolutamente como... como nós?

 

Quero.”

 

E ele foi-se embora, gingão à maneira dos marinheiros do porto. Delgado e alto, os cabelos em desordem, como de costume, tão descolorados pelo mar e pelo sol que pareciam quase brancos. ”Um andar de pequeno fauno”, pensava a Sr.a Juvet com uma indulgência que certamente não era partilhada pelo marido. É bonito! A ponto de as pessoas se virarem no molhe quando David passava. Havia sempre alguém para seguir com os olhos o seu andar descuidado e para lhe sorrir.

 

Como se sorri ao Sol ao abrir a janela.

 

Prisca sabia, pela maneira como ele a olhava, que um novo mistério se preparava. Mais palavras. Aquelas com que se sonha e que ficam guardadas profun damente na memória com a felicidade que provocam.

 

”A ti”, dissera ele um dia, ”nunca te esquecerei. E quando fores mais velha, falarei contigo.”

 

Era um mês de Agosto. O mês de Agosto de há oito anos...


”Prisca! Estás a ouvir-me? A que horas é que iremos chegar a casa?”

 

Véronique arrasta a irmã para a grande escada da aerogare. Por uns momentos, o empregado do bar segue-as com os olhos: uma imagem de revista, a dessas duas raparigas. Bonitas!, cada uma no seu género. Suspira enquanto abre três garrafas de cerveja a pensar noutra coisa.

 

Véronique e Prisca dirigem-se para o P 6, onde está estacionado o Austin ao sol.

 

”Espero que tenha vindo alguém esperá-la disse Véronique.

 

De quem estás a falar?

 

De Clara Verneuil, evidentemente. Sentes-te doente, Prisca? Acho-te estranha e estás tão pálida! Parece que não estás cá.

 

Sinto-me muito bem.”

 

Como era de esperar, o interior do carro era um autêntico forno. Véronique serve-se da porta como dum leque:

 

”Aquilo pode-se arranjar com a cirurgia estética.

 

O quê?... Ah!, as cicatrizes?

 

Com certeza... Mas ela nunca mais ficará com a mesma cara. E depois isso leva muito tempo e na sua profissão penso que se é esquecido depressa. Que maravilhosa actriz! Viste-a no último filme? Um com o Delon. Esqueci-me como se chamava. Vi-o em Dacar com o Jacques Launay.”

 

Prisca sorri. Fúria de Véronique:

 

”Deixa mas é de troçar todas as vezes que pronuncio esse nome! Nunca te aconteceu sentires-te em segurança ao pé dum amigo? Eu podia viver com Launay  numa ilha deserta, que não teria o menor problema... Permites que conduza? Tu hoje não estás nos teus dias.”

 

Prisca estende-lhe as chaves.

 

”Mas não, minha querida, estas são as chaves de casa. São as do carro! E atenção a esse cartão, é o do estacionamento.”

 

O cartão voa para debaixo dos pés duma indiana vestida de musselina e de pulseiras de ouro. Prisca precipita-se, apanha-o, pede desculpa, e recebe o olhar de dois admiráveis olhos bovinos. Volta a sentar-se no assento do carro. Véronique abriu já todos os vidros e arranca, eficaz, segura de si. Prisca delega na irmã toda a responsabilidade. Sente-se feliz com isso e o seu suspiro bem o diz.

 

”O papá continua com a sua aborrecida crise de reumatismo?”, pergunta Véronique. ”Estou muito contente de voltar para casa. Trata de dar a entender discretamente à mamã que ela não é obrigada a empanturrar-me para tentar que eu engorde... A propósito de Launay, ele disse-me uma quantidade de coisas acerca de Clara Verneuil. Sabes que foi ele quem a levou ao Rio precisamente para esse filme, o último. Ele convidou-a para a cabina de comando e parece que conversaram muito. Ele também é um dos seus fans... Imaginas lá o que eu invejei essa mulher quando tinha quinze anos! No dia em que ela foi a Saint-Malo e em que ficou deslumbrada diante da miscelânea que David arranjara no salão... Que rapaz tão parvo!”

 

Um louco acabava de as ultrapassar na auto-estrada, flagrantemente em excesso de velocidade. Véronique carregou no klaxon. Um desgraçado 4 L à. frente do Austin pareceu assustar-se.

 

”Não tenha medo, senhor, que eu não vou entrar pelo seu carro dentro”, comentou Véronique.

 

Depois lançou um olhar triunfante à irmã:

 

”Já sei o nome! Era o Jogos de Sombras, um filme policial. Vai vê-lo. Fantástico. Que é que eu estava a dizer?

 

A miscelânea na Vila Adèle.

 

Ah, pois!... Conservei o autógrafo que Clara Verneuil me deu. Uma fotografia. Ela deu-te uma também, mas tu rasgaste-a no dia seguinte, e todos perguntámos porquê. Lembras-te?

 

Eu... lembro-me.

 

Que idade deve ela ter agora? Aí uns quarenta e cinco... talvez mais.

 

E David?

 

A minha idade. Lembro-me que nós tínhamos apenas alguns dias de diferença. Ele também faz anos em Agosto.

 

Eu queria dizer... Sabes que é feito dele?

 

Sei, por Launay. Durante essa viagem para o Rio, ela falou no filho. Parece que ele é fotógrafo ou jornalista... ou as duas coisas. Trabalha numa agência do lado do Odéon. Rue de 1’Ancienne-Comédie, acho eu. Enfim, estava a trabalhar há seis meses.

 

É engraçado murmurou Prisca, ele, que tinha horror a essa gente.”

 

O Austin teve de afrouxar ao aproximarem-se da porta de Orleães. 30 de Julho e hora de ponta!

 

David, um 30 de Julho, pela primeira vez... há oito anos.

 

Ele trazia uma mala, Miss Barbara outra e a gorda Mélie arquejava atrás deles. Véronique anunciara:

 

”Olha! Ingleses.”

 

Por causa dos cabelos louros e do ar impassível dos dois primeiros, talvez. Ele, David, olhara-as a torrar ao sol, meio nuas, no seu minúsculo terraço. De repente, apontando ferozmente para a Vila Adèle, com o dedo, atirara:

 

”Já viram alguma coisa tão feia como esta casa? Vocês não têm lá muita sorte em morar mesmo ao lado dela.

 

Davy querido esganiçara-se Miss Barbara, se tivesses a gentileza de me ajudar, em vez de estar para aí a zombar.”

 

David detestava-a, a ela e aos seus dons de educadora.


Mas quando Mélie saía da sua cozinha para vir instalar-se na sala, sentia-se feliz.

 

Uma tarde, de tricot na mão e sem mesmo erguer os olhos, ela dissera:

 

”Apetecia-me mesmo jogar uma partida de cartas.”

 

David estava de pé, imóvel no enquadramento da janela aberta sobre um sol-pôr vermelho, vermelho que se reflectia nos seus cabelos, sobre o rosto impassível de Barbara, sobre o avental azul de Mélie. Tudo chamejava, até mesmo o horroroso veludo cor de granada do canapé.

 

Mélie repetiu:

 

”Gostava mesmo duma partida de cartas. Tu não, David?”

 

Ele virara-se. E Prisca nunca vira uma cólera assim num olhar.

 

”Não tenhas tanto trabalho para me fazeres pensar noulra coisa, Mélie. Eu sei que ela não virá. Ela está-se nas tintas para mim. Ela prefere os seus nojentos jornalistas. Uns atrasados mentais, uns corruptos!

 

David, pára de dizeres horrores!”, ordenara Miss Barbara.

 

Passavam dois dias da visita de Clara Verneuil e o sombrio salãozinho retomara o seu aspecto lastimoso

 

”Que é que lhe pode interessar a si o que eu digo ou o que eu penso? Tape os ouvidos, só Mélie é que pode compreender.”

 

Ele gritava, repentinamente enfurecido, lançando tais insultos que Prisca sentira vontade de fugir. Ela não tinha o direito de ouvir, nem ela nem os últimos passeantes do molhe. Gostaria de ter fechado a janela e desaparecer, mas não o ousava. Encostada a uma poltrona tão feia como o sofá, ela esperava o fim da tempestade, como a impassível Barbara, lamentando que em casa dos Juvet se esquecessem das horas e que Vêronique não aparecesse com o seu eterno: ”A mama mandou-me vir buscar-te, Prisca.”

 

Véronique não aparecia, a janela continuava aberta e David clamava a sua raiva, o seu desespero contra uma mãe demasiado brilhante e demasiado longínqua... ausente.

 

Acalmou-se tão subitamente como se enfurecera. Então Barbara expôs um certo número de verdades. Frente ao céu escarlate, excessivo, violento, o seu sangue-frio tinha qualquer coisa de cómico. David, após um silêncio, acabava de exclamar:

 

”Se ao menos ela tivesse posto os pés nesta casa antes de nos ter aqui plantado por um mês, talvez ela tivesse remorsos. Não, nem mesmo assim. Ela veio, viu e achou isto... confortável.

 

A casa pouco importa, Davy, ela é muito feia e está arranjada de forma horrorosa, concordo expôs a voz pacífica de Barbara. Mas tem a praia, o seu barco, uma esplêndida bicicleta para ir onde lhe apetecer. Tem tudo o que se pode desejar para um mês de férias sãs e desportivas. Não olhe esses móveis, se os acha feios, Davy, pense antes no desgosto da sua mãe se ela soubesse como estava esta tarde, tão ingrato! A sua profissão não lhe permite libertar-se quando ela quer, você sabe isso muito bem... Ela veio passar um dia consigo, você devia estar orgulhoso por isso, em vez de lhe querer mal, porque você tem o capricho de lhe exigir uma presença contínua.”

 

Mélie tricotava e calava-se. Véronique chegou finalmente e começou a frase fatídica: ”Prisca, a mamã...”, mas calou-se quando viu o olhar de David.

 

Ignorando que levava até à explosão essa grande bolha de sofrimento que inchava o coração de David, Miss Barbara continuou:

 

”Não esqueça, peço-lhe, que, se a sua mãe estivesse aqui, David, você não abandonaria por causa dela nem o barco, nem a bicicleta, nem a companhia dos amigos, em particular o ruivo da ponta do molhe, que tem um vocabulário que eu acho tão chocante! Você é dum egoísmo inacreditável, Davy!”

 

E Miss Barbara, tornando a encavalitar os óculos no nariz, mergulhou de novo na leitura.

 

Se as palavras puderem aparentar-se com as cores, as de David foram tão violentas como os tons sangrentos do crepúsculo.

 

”Eu sou como o meu pai!”

 

Ouviu-se um grande riso na escada, depois uma porta a bater, e foi então que Miss Barbara, sem o menor traço de emoção, advertiu Prisca, que surgia de debaixo da poltrona.

 

”Que é que achava, menina, dum passeio até à ponta do molhe, com a sua irmã, bem entendido, se ela quiser?”

 

O ”menina” pareceu ridículo a Prisca e o ar da noite sem interesse; por isso ergueu para o sólido arcaboiço de Miss Barbara um olhar enfurecido e lhe deu a conhecer que era a hora de voltar para casa, o que Véronique confirmou. Evitando a porta, que a inglesa se dispunha a franquear, a ”menina” saltou pelo parapeito da janela, daí para o molhe e estacou de repente... porque do alto da Vila Adèle vinha uma voz bem conhecida e que voltara ao seu natural:

 

”Boa noite, minha gaivota!”

 

David sorria na varanda, um boné americano na cabeça, com a pala a tapar-lhe os olhos, nada incomodado com o seu ar francamente canalha.

 

”Minha” gaivota em vez do habitual ”gaivota”... Seria o mesmo que ”o meu” remo, ”o meu” barco, ”a minha” bicicleta? Ou era uma manifestação muito particular e muito enigmática de favor especial?

 

”Minha” gaivota, em todo o caso, agradou a Prisca. Ela sorriu. A expressão possessiva entrou-lhe no coração nesse dia e aparentemente nunca mais de lá saíra...

 

Para o diabo David e a sua mãe actriz, com as suas aparições imprevistas em Orly, que faziam voltar tudo à baila.

 

David... um mês para toda uma vida... Ele nunca mais voltara nem a Sillon, nem a Paramé, nem a SaintMalo. Nunca mais voltara. O pequeno ruivo da ponta do molhe servia agora na Duchesse-Anne as lagostas à armórica e chateaubriands bearneses. Todos os anos, assim que Prisca transpunha as lajes da porta SaintVincent, ele perguntava:

 

”Tiveste notícias de David?” Mas David ria-se das amizades que deixava atrás de si. Nem um telefonema, nem uma carta em oito anos. ”Mesmo assim, era um rapaz estranho”, disse Véronique como num eco. ”Tenho a impressão de que ele seguiu por mau caminho. Sabes... as raparigas, a droga, o álcool... tantos disparates!”

 

O olhar de repente agressivo de Prisca virou-se para o perfil da irmã:

 

”Como é que sabes? Clara Verneuil com certeza

 

que não contou essas coisas a Launay! Não. Com certeza que não. Mas...” Véronique oferece ao pára-brisas a gentileza do seu sorriso, sem notar o olhar destruidor que não a larga, e conclui: ”Mas um dia eu vi-o em Orly. Terrivelmente belo. Reconheci-o muito bem, continua a parecer-se imenso com a mãe.

 

Nunca me disseste que o tinhas encontrado.

 

Não? Esqueci-me. Há mais ou menos um ano. Ele nem sequer me olhou. Eu estava à espera de embarcar, tive o tempo todo para o observar.

 

Porque é que não lhe falaste?

 

Para lhe dizer o quê? Que tivéramos, ele e eu, um vago flirt de férias quando tínhamos ambos quinze anos?

 

E depois?

 

Depois o quê?

 

Como estava ele?

 

Nojento. Jeans desfiadas, cabelos sujos, boca flácida e olhar vago. Mas belo, isso é incontestável. Mesmo assim, tive uma impressão desagradável. Estava com uma rapariga nitidamente mais velha do que ele e tão feia!... Horrível. Para ser franca, não tive lá muita vontade de me lançar ao seu pescoço! Parecia drogado. Parecia mesmo.

 

Tu vês drogados em toda a parte!

- Talvez. Pelo menos, parece. Lamento é a mãe. Tu viste-a há bocado, apesar desse acidente de automóvel que a desfigurou; ela é sempre impecável, sensacional.

 

Mas quanto a David, dizias tu...?

 

Nada. Pode ser que exagere. Tenho horror a rapazes de barba e cabelos compridos.”

 

Dessa vez o engarrafamento era tal que Véronique teve tempo de olhar a irmã, e os seus olhos escuros arredondaram-se, espantados:

 

”Prisca, por piedade, deixa tranquila essa planta de Paris! É inútil fazê-la em papas. Acho que é urgente partir para Saint-Malo, tu estás completamente arrasada.

 

Eu fico em Paris”, declarou Prisca.

 

De espantado, o olhar de Véronique tornou-se inquieto:

 

”Estás doida?

 

É um sinal de loucura querer ficar em Paris durante o mês de Agosto?

 

Mas, enfim, para fazer o quê? E quando é que decidiste isso?

 

Agora!”

 

O motor parou de repente sob o choque, Véronique nem consegue meter as mudanças. Prisca desatou a rir. Um riso ardente de alegria, um riso que a liberta... e seduz o senhor ao lado na fila dos automóveis apertados uns contra os outros.

 

”Estafermo!”, sussurra Véronique. ”Pesca quem quiseres, mas não homens de sessenta anos com uma verruga na cara!”

 

Prisca sempre se sentira bem no meio das tempestades que provocava com uma voz doce, foi o que pensou a mãe ao sacudir mais do que o necessário a caçarola onde fritavam as batatas, sem se esquecer de dar uma olhadela para o termostato do forno, no qual corava o frango.

 

Véronique entrou na cozinha em passinhos de lã: ”As coisas vão mal cochichou ela, tu devias vir,

 

o papá começa a ter o olhar brilhante dos maus dias. Prepara qualquer coisa para beber, isso acalmá-los-á.”

 

Sorriam as duas, felizes por estarem juntas, muito próximas uma da outra. O apartamento da Rue Gabrielle, mesmo no alto de Montmartre, nunca deixara de ser um ”ninho de felicidade” desde há vinte e cinco anos.

 

O Poleiro, como lhe chamava Véronique, possuía o seu folclore: maldiziam-se os seus cinco andares sem elevador, mas a ideia de um dinâmico empreiteiro se apoderar da velha madeira da escada e do seu corrimão de ferro mal seguro para transformar tudo num sólido horror fazia-os tremer.

 

Transposta a porta, o Poleiro oferecia generosamente três níveis, da sala ao terraço, em cima do telhado, ligados por quarenta e oito degraus tão estreitos que nenhum aspirador lá passava sem bater na parede dum lado e nos varões do corrimão do outro, apesar da destreza de que Marguerite Juvet dava provas durante a sua quotidiana hora de lida da casa, que ela considerava e com razão como uma hora de ginástica.

 

Daí talvez a sua silhueta, que se mantinha juvenil aos quarenta e oito anos, e um bom humor à prova de bala. Marguerite consolava-se de tudo diante das janelas escancaradas sobre um Paris cor de malva, pensando no privilégio de dominar a toalha de poluição estendida sobre a cidade e persuadida de que à altitude de Montmartre a sua ninhada respirava um ar puro.

 

Uma sombra no quadro: esse terraço donde Veronique, desde a infância, erguia um nariz sonhador para o céu, espiando os aviões do 14 de Julho, que ela preferia aos pombos de todo o ano.

 

Daí a tornar-se hospedeira do ar não houvera senão um passo alegremente dado depois de seis meses de treino de saltos em pára-quedas precaução inútil, mas exigida pelo papá, uma série de estudos necessários e um concurso brilhantemente conseguido.

 

E eis uma Véronique voando daí em diante para todos os azimutes, para mal de sua mãe, cuja ansiedade bem escondida fazia a admiração de Paul. Paul Juvet, o marido, que um amor tenaz enfeitiçava e que subia ao Poleiro, depois das suas horas de repartição, sempre com a mesma pressa, apesar dos famosos vinte e cinco anos de casamento.

 

Em resumo: sabia bem viver no Poleiro. Disso estavam conscientes as duas irmãs Juvet, se bem que a sua maneira de o exprimirem fosse diferente: Véronique partia com frequência, mas gritava a sua alegria de voltar; Prisca, a água adormecida, o jardim fechado, sentia as suas ternuras, mas calava-se. Excepto quando, por espírito de contradição, sem dúvida, contestava as opiniões do pai, indo até ao ponto de defender a torre de Montparnasse, sobre a qual, todas as manhãs, ao despertar, e desde a sua construção, Paul Juvet lançava o anátema, estigmatizando a fealdade desse paralelepípedo acinzentado escandalosamente plantado diante dos seus olhos, estragando ”o seu” Paris.

 

Prisca nunca fora fácil de domesticar.

 

”Eu fico em Paris dignou-se ela explicar, sem se emocionar com os olhares intrigados que a família pousava nela porque achei um meio de aqui ganhar dinheiro durante o mês de Agosto. É tão simples e tãoj sórdido como isso! Eu não vejo o que há de extraordinário era ser vendedora num armazém de calçado!... Vou substituir uma amiga que vai de férias. Ela propôs-mo e eu aceitei. Estava hesitante... Acabo de aceitar. E pronto. Não me criaram, verdade ou não, no princípio de que é bom trabalhar e desolador não fazer nada? Podia ainda acrescentar que sou maior há três meses e que nessas condições...

 

Ninguém contesta a tua maioridade! afirmou

 

o pai com um clarão divertido no fundo dos olhos cinzento-esverdeados, tão parecidos com os que o olhavam da forma mais agressiva. E estou encantado por te ver cheia de ardor, quando esta manhã mantinhas com a mesma paixão que precisavas pelo menos de dois meses de férias, depois do curso dos liceus, antes de pensares em produzir o mais pequeno esforço...

 

Intelectual! cortou Prisca. Mas eu posso muito bem descansar o espírito vendendo sapatos.

 

Compreendo... Também nos disseste como estavas impaciente por voltar a encontrar as tuas amigas de Saint-Malo e de que maneira o mar te parecia necessário à saúde. És difícil de acompanhar, minha querida. Admiro a rapidez com que mudas de opinião.”

 

A voz de Paul Juvet tornou-se mais seca: ”Seria indiscreto perguntar-te as verdadeiras razões que te obrigam a ficar aqui?

 

Pronto! Exactamente o que eu detesto. As perguntas, a tirania, a falta de confiança. Tu exageras, papá”, disse Prisca, com ar grave.

 

Momento crucial, em que Véronique se apressou a propor um ”dedo” de aperitivo.

 

”Se precisas de dinheYo para gastar... começou Marguerite Juvet.

 

Eu tenho sobretudo é necessidade que evitem dirigir a minha vida nos seus ínfimos pormenores.”. Prisca encerrava-se na sua concha, valia mais não insistir. Um silêncio inquietante instalou-se enquanto veronique servia a cada um uma segunda dose de vinho moscatel.

 

E onde é esse armazém de calçado? Arriscou a Sr.a Juvet, acompanhando a sua pergunta dum suspiro resignado.

 

No cruzamento do Odéon. Quase à esquina do Boulevard Saint-Germain e da Rue de PAncienneComédie.”

 

Véronique dirigiu um olhar interessado para a irmã, mas baixou-o logo, de tal modo o de Prisca estava cheio de arrogância combativa:

 

”Se ao menos tivesses prevenido um pouco mais cedo... arriscou a mais velha com a evidente preocupação de acalmar toda a gente.

 

Era tudo o que te pedíamos acrescentou a mãe. Ter-nos-ia dado um pouco mais de desenvoltura. Compreendes que era inútil alugar a casa de SaintMalo se uma só vai lá passar oito dias e a outra não porá lá os pés. Pessoalmente, uma viagem agradava-me muito mais e o teu pai sonha com a montanha, com trutas e regatos. Tu é que adoras a água salgada e a areia sobre as fatias de pão da merenda.

 

Oh... gemeu Prisca, esquecendo o seu direito à contestação, estou desolada. Uma viagem aonde?

 

Bem... onde é que há montanhas, trutas e rios?” As duas raparigas desataram a rir, Paul Juvet pousou na mulher um olhar cuja sedução não fora gasta por anos de vida em comum e o incidente foi encerrado.

 

”Para a mesa”, disse Marguerite Juvet, ”ainda tenho as malas para fazer.”

 

Não se discutiram mais as decisões de Prisca. O Poleiro reencontrou a sua felicidade e, nesse domingo à noite, as duas raparigas tiveram o espectáculo duns pais que as esqueciam, assim como, talvez, esquecessem a sua idade. Terna e secreta intimidade construída de recordações, que Véronique, um pouco perturbada, observava com inveja, pensando no que seria a sua vida dentro de vinte e cinco anos se desposasse... Jacques Launay.

 

Prisca não imaginava senão o presente e o que podia ser se por acaso... Prisca, nesse recanto pessoal que só a ela pertencia, tornasse a encontrar o David mítico da sua infância.

 

O Poleiro parecia terrivelmente deserto desde que eles tinham partido, agitando as mãos às janelas do carro.

 

Frigorífico cheio, recomendações feitas: ”Atenção ao gás! Não te esqueças de fechar a porta à chave quando saíres. Não abras a porta a ninguém sem pôr a corrente na porta. Fecha as janelas quando chover, toma cuidado com a planta e sobretudo não regues os cactos. Não entupas o lava-louças da cozinha, alimenta-te como deve ser, não percas o dinheiro e... Ah!, não te esqueças de desligar o ferro quando passares.”

 

Precauções úteis apenas para menos duma semana, pois Véronique passaria inspecção e poria tudo em ordem em casa antes de retomar o seu posto num daqueles Boeing que ela tanto amava. Ninguém imaginava, bem entendido, que Prisca fosse capaz de manter a casa senão à sua maneira, isto é, virando-a de alto a baixo.

 

De cabelos enrolados no alto da cabeça, mergulhou num banho morno ideal. ”Entrevista no armazém às nove horas. Veste-te como quiseres, mas correcta e bem penteada.”

 

Prisca chafurdava, pensando na voz de Nicole e na sua fala precipitada: ”O importante é não te enganares na caixa quando arrumares os sapatos e sobretudo não misturar os pares, pois isso é uma catástrofe, nunca mais se tornam a encontrar. Não te inquietes, eu explico-te como é. O mais difícil é ser delicada com os clientes... Algumas vezes aparece-te pela frente uma mulher extraordinária que não ousa pedir-te que abras as caixas e que parece perguntar se, por acaso, não te ficariam a doer os rins por lhe calçares sapatos. Mas isso é raro. Com os homens é mais fácil, em ge’al sabem o que querem. Ou então leva-los a comprar um modelo a teu gosto, com um pouco de conversa. Mas nada de brincadeiras! É preciso estar certa do que ele deseja e é preferível não vender nada a depois ter uma reclamação.”

 

Discurso dito ao telefone na véspera à noite. Uma Nicole muito conhecedora da sua vida, que tinha, logo de início, dado um grito de espanto:

 

”Julgava que tinhas ido para Saint-Malo!

 

Finalmente, consegui não ir.

 

Apareces um pouco tarde, o patrão já arranjou alguém. Mas ele hesita em contratar a rapariga, porque parece que o género dela não lhe agrada. Tu, com o aspecto que tens, deves ser mesmo uma ratoeira para os clientes; uma rapariga jeitosa dá sempre bom aspecto a uma loja. Todas as vezes que tu lá vais, o patrão agita-se de alegria. Vou telefonar-lhe, ele autorizou-me a fazê-lo, se eu encontrasse alguém até esta noite. Volto a telefonar-te dentro de dez minutos.”

 

Um quarto de hora mais tarde tocava o telefone.

 

”Tudo arranjado, Prisca, ele está de acordo. Quanto ao ordenado, paga-te menos do que a mim; compreendes, tu és uma principiante. Não te importas?

 

Com certeza. Nicole, conheces uma agência de imprensa, ou qualquer coisa no género, na Rue de l’Ancienne-Comédie?”

 

Ruídos no telefone e finalmente: ”Queres dizer a OROP, talvez?

 

A OROP é uma agência de imprensa?

 

Julgo que sim. Vejo saírem de lá fotógrafos. Um deles até comprou um par de botas lá. É por cima do Newman... Interessas-te por agências de imprensa?

 

Interesso. Não, eu... Era por curiosidade.”

 

A voz espantada no fim do fio ficou em suspenso um instante antes de retomar a alegria habitual:

 

”Enfim, isso é lá contigo. Então, até amanhã. Não deixes de estar à hora. Adeus, minha querida, tenho um assado no forno a queimar-se.”

 

Prisca saiu do banho, borrifou-se de água-de-colónia e foi para a cozinha aquecer o café que preparara na véspera. Enrolada numa toalha turca vermelha, reflectia.

 

OROP. Porque é que não estaria no anuário?

 

Folheou de novo a lista por ruas. OROP, lá estava Com as letras todas. Como é que não vira? OROP. agência de imprensa. Pegou no telefone. Afinal, que arriscava ela?

 

Não obteve resposta. Evidente que era cedo de mais. Ridículo chamar uma agência de imprensa às sete horas da manhã numa segunda-feira. E, além disso, estúpido tentar encontrar David. Para lhe dizer o quê? ”Soube que a tua mãe teve um desastre de automóvel. Soube-o pela imprensa e pela rádio há seis meses e até pela televisão, mas não disse nada senão hoje. Foi um pouco como uma martelada na cabeça. Sabes, Véronique está convencida de que... de que tu te drogas. Eu acho isso degradante, quero impedir-te disso porque... porque te amo, David, sempre te amei. Lembras-te quando eu tinha dez anos?”

 

Idiota. Nunca lhe telefonaria, nunca bateria à porta dessa agência. Resolvera perder as férias e era tudo. E os amigos que estavam à espera dela: Gael, Yannick, Soisic, esse velho Gégé com os seus olhos à flor do rosto, e o seu companheiro Michel. Todos furiosos pela navegação. Como ela. Eles iriam participar na corrida Cowes-Dinard a bordo do barco de Yannick, uma bela escuna bem lançada, rápida. Prisca sonhara com isso todo o ano. E na verdade, estava convencionado, eles iam fazer a corrida para cruzeiros. Melhor perspectiva que morrer de solidão todas as noites, fechada num Poleiro deserto. Quem ficava em Paris no mês de Agosto? Aquele estúpido do Bernard Conte com a sua colecção de sorrisos ternos. Ele insistira: ”Se ficares, poderemos encontrar-nos?”

 

Não faria um sinal a Bernard Conte mesmo que, preparando-se para a E. N. A., ele estivesse votado aos mais altos destinos.

 

École Nationale d’Administration. (N. do T.)

 

Prisca bebeu o café em pequenos goles, comeu um bocado de pão e vestiu-se. Saia plissada, camisola, muito colegial. No último instante substituiu a saia por umas calças de tecido cor-de-rosa, arranjou-se, limpou-se e viu que finalmente eram oito horas. Depois de ter fechado cuidadosamente a porta do apartamento, desceu a correr os cinco andares da escada.

 

...dia S’nhora Peuchet!

 

...dia, Prisca, vais trabalhar?

 

Vou.

 

Se precisares que te leve lá acima o leite ou qualquer petisco de vez em quando, diz-me. A tua mãe pediu-me que olhasse por ti.”

 

Boa alma! Ela animava os serões, loquaz e atento cérbero de bigoudis, porteira do prédio há vinte e dois anos. Conhecera ”os teus pais quando eram jovens”, ”Véronique bebé”; quanto a Prisca: ”Vi-te nascer, minha filha, por isso não venhas cá com histórias. Se te aborreceres lá em cima, vem jantar cá, isso não me faz diferença nenhuma. Conversamos um bocado e depois vemos a televisão.”

 

Amável perspectiva!

 

”Obrigada! Tenho de me despachar, até logo, tenho medo de chegar atrasada.

 

Põe-te a andar depressa.” A voz áspera perseguiu Prisca:

 

”Não sei como é que fazes para correr com essas socas como as que vocês trazem nos pés. Mas que ideia de moda esta!”

 

Era bom saber que ela existia com a sua vassoura e a sua rede azul na cabeça. Prisca agitou a mão e correu mais depressa.

 

Ao sair do metro, podia ter atravessado o Boulevard Saint-Germain em diagonal. Os carros deixavam largos intervalos entre si. Acabada a vaga ininterrupta, a frente cerrada dos pára-choques, os peões bloqueados no passeio, à espera do sinal vermelho. O cruzamento do Odéon, sem a fauna habitual, parecia triste e, do alto do seu pedestal, Danton vigiava prédios de janelas fechadas.

 

Mas o encanto dum Paris ainda adormecido às oito e meia num calor já pesado duma manhã de Agosto transeuntes dispersos apressando-se ao longo das lojas de grades fechadas exaltava Prisca. Como quando se está à beira duma aventura. Acontecesse o que acontecesse, já o era para ela o viver sozinha.

 

Na loja, portas fechadas: chegava meia hora mais cedo.

 

Prisca deambulou ao longo das ruas.

 

Às nove menos cinco apareceu Nicole, baixinha, de ancas redondas, empoleirada numas solas duma altura assombrosa:

 

”Encontraste?

 

Encontrei o quê?”

 

Olhar ligeiramente pasmado de Nicole, que contemplava uma Prisca parada diante do armazém Newman. ”Não procuravas a OROP?

 

Eu? Não. Eu... Enfim, procurava.

 

É ali, estás a ver?”

 

Perto da grande porta, várias placas de cobre e de mármore, das quais uma indicava que a OROP se situava no segundo andar. A própria Prisca se sentiu espantada de ali estar, tinha na verdade vontade de renunciar a tudo. E então... o comboio do meio-dia para Saint-Malo... a chegada na grande lufada de ar do mar alto...

 

Sim. Mas, depois, ela não teria o ar malicioso. Véronique já tinha prevenido Gégé e os outros de que ficava em Paris. As explicações...

 

Prisca seguiu Nicole, que a arrastava em passinhos apressados:

 

”O que está a abrir a porta é o patrão. A mulher chega ao meio-dia e é ela que fecha. Muito tarde. Algumas vezes já depois das oito da noite, depende da clientela. Mas tu ficarás livre às seis em ponto, ou então pedes horas extraordinárias. Percebeste? É preciso não nos deixarmos levar. Nota, não há problemas, eles são correctos. Mesmo gentis, no fundo. De vez em quando, podes fazer-lhes uma gentileza. Fica mais um bocado sem exigir nada.”

 

Gentis, era verdade. O primeiro dia passou-se bem, apesar de alguma barafunda quando Prisca, ao procurar o modelo B 37, trouxe à cliente o G 42, um enorme botim de Inverno para homem. Pânico.

 

No fim do dia, começava a ter a mão segura, o sorriso colado aos lábios, o diagnóstico infalível:

 

”O que lhe convém é um quatro e meio italiano, minha senhora.”

 

E achava-o.

 

Nicole partiu tranquilizada. Prisca lamentou menos o sacrifício das férias a esse ponto de interrogação que o seu David mítico representava. Porque era bem por causa dele que ela ficava. Com a esperança de o encontrar. Era preciso ser lúcida e confessá-lo. Uma intuição mais forte do que qualquer razão a impelia: ele tinha necessidade de auxílio, estava convencida disso, e considerava-se a única capaz de lho dar.

 

A amizade. Apenas.

 

Não. A ternura. Um estranho sentimento que a conduziu, assim que saiu da loja, para a OROP. À pressa.

 

Subia o segundo andar duma escada sombria quando um desajeitado a ultrapassou carregado com um embaraçoso material de reportagem e ignorando as regras elementares da delicadeza.

 

Precipitou-se pela agência, cuja porta bateu atrás dele.

 

Isto, pelo menos, permitira a Prisca notar que ela se abria a toda a gente e que era inútil tocar. Entrou. Um vestíbulo pequeno e deserto acolheu-a com o barulho de outra porta que acabava também de bater. Havia outras três do mesmo género, fechadas.

 

Prisca ouviu o ritmo duma máquina de escrever, o som duma conversa cujo sentido não teve a indiscrição de compreender. Contemplou um cartaz de 1930 colado na parede. Muito à moda, a retrospectiva. Esperou. A OROP cheirava a dobre de finados dos capitalistas dos tempos passados. Imaginava-se nessa entrada a mudança de velhos locatários preocupados em não deixar nada atrás deles a não ser o que não podiam levar: a beleza dos soalhos, que inúmeras camadas de cera tinham tornado brilhantes, e a bela curva dum nicho cujo vaso ou estátua devia oferecer-se aos amadores nalgum antiquário. A pintura e a moldura da cornija do tecto eram da época! E mais nova só a inverosímil aparelhagem eléctrica. Enquanto a secretária de pinho envernizado mal mostrava o seu tamanho e a lâmpada que iluminava o telefone o seu último Secob. Assim como o telex e o computador, cuja miniaturização Prisca, como rapariga do seu tempo, admirou.

 

Ao fim de alguns minutos, que lhe pareceram longos viu aparecer uma rapariga de óculos que agarrou O telefone (este tivera a boa ideia de tocar), tomou notas, desligou, depois ergueu uma sobrancelha interrogadora para Prisca, que gaguejou uma pergunta a respeito de David Wilson.

 

Isto fez descer a sobrancelha à altura normal e despertou o olhar atrás dos óculos. Prisca, cada vez menos à vontade, sentiu-se observada, julgada, sem apelo e em dois segundos.

 

”Eu vou ver”, disse a jovem secretária.

 

Ela desapareceu pela porta da direita. Prisca ouviu-a chamar um certo Bertrand e ouviu, infelizmente, o cochichar que se seguiu:

 

”Mais uma que pergunta pelo David. Que é que eu vou dizer?”

 

Uma vontade louca de desaparecer fez Prisca correr para a escada, quando atrás dela se precipitou o tal Bertrand:

 

”Eh!”, disse ele.

 

Virando-se para lhe enviar um olhar de duquesa ofendida, Prisca reconheceu o desajeitado de há pouco, agora sem os aparelhos. De frente não era rebarbativo, sorria abertamente.

 

”David está em viagem disse ele.

 

Ah! disse Prisca, consciente de ter o ar estúpido e suspeitando que era urgente pôr as coisas no seu devido lugar: É um amigo de infância explicou ela. Não o vejo há anos, mas soube que ele há seis meses trabalhava aqui. Então vim cá à sorte... Ele trabalha aqui... em princípio.” Prisca pareceu não reparar no ”em princípio”, que todavia a intrigava. Teve um sorriso que desejava parecesse desenvolto e lançou com todo o à-vontade de que se julgava capaz: ”Muito bem, vou-lhe enviar uma palavra para lhe lembrar os nossos bolos de areia. Quando é que ele regressa? Se eu o soubesse!”

 

O tom de Bertrand exprimia o cansaço da amizade desinteressada e traída. O que imobilizou Prisca. Mas, recordando o cochichar sem equívoco da secretária, sentiu-se corar até aos cabelos. Teria preferido engolir a língua a insistir.

 

”Tanto pior”, exclamou ela com o tom mais desprendido. ”Até depois e obrigada.”

 

Partiu num tal arrebatamento que na escada falhou um degrau, escorregou e foi cair em voo planado no patim do primeiro andar. O género de situação que provoca inevitavelmente o riso.

 

Mas não. Alguém a ergueu, com pulso sólido:

 

”Apoie-se em mim. Magoou-se?

 

O... o tornozelo, mas não é nada.

 

Essa ideia de correr numa escada velha com socas dessas nos pés!

 

Foi o que disse a porteira do Poleiro... quero dizer, da minha casa.”

 

Tentava rir. Um riso um pouco forçado, porque o tornozelo, que inchava a olhos vistos, lhe doía imenso. Bertrand contemplava-a:

 

”Vai ficar com um lindo tom de violeta e depois tornar-se-á amarelo... Eu levo-a a uma farmácia.

 

Obrigada, não vale a pena incomodar-se.

 

Você não pode andar com o pé nesse estado. Onde é que você ia?

 

Para casa.

 

Eu levo-a na moto.

 

Isso, agradeço-lhe. Mas... e o seu trabalho?

 

Acabou. Estou livre. De facto, você não quer jantar comigo? Sou estúpido, mas não sou mau. E estou a estoirar de fome.”

 

Ele aproveitava-se da ocasião, mas era divertido e tinha uns olhos bons dourados de cão de caça sob sobrancelhas de grifo, um nariz arrebitado e um pouco de acne. O género de rapaz feio e gentil que inspira confiança.

 

E, depois, conhecia David.

 

Prisca ergueu para ele um olhar sorridente, se bem que um pouco crispado: o tornozelo doía-lhe de verdade.

 

”Porque não?”, disse ela.

 

Só tiveram de atravessar a rua para ir ao pub. Prisca sofria, Bertrand amparava-a. Parecia encantado com isso.

 

Ainda era cedo, não tiveram senão a dificuldade da escolha para encontrar mesa. Instalaram-se numa box. Quando Bertrand segurou na ementa, Prisca reparou que ele usava aliança.

 

”Você já é casado?

 

Já? Tenho vinte e seis anos.

 

Nunca o teria imaginado.

 

Ah, sim! A corda ao pescoço há um ano. A minha mulher está de férias no Midi com o bebé. É por isso que eu tenho fome e saudades. Sempre ocupam um lugar tal, estes animaizinhos! Só nos apercebemos disso quando se vão. Aborreço-me de morte. A minha filha só tem seis semanas, mas que mulher! E a mãe... sem comentários. Obrigado por me fazer companhia. Como vai o seu tornozelo?

 

Não muito mal.

 

Estenda a perna em cima do banco, ficará melhor.”

 

Ela obedeceu. Ele sorria, contente de viver. Os olhos dourados fixavam Prisca sem ambiguidade, com simpatia. Ele encomendou uma enorme refeição, prometendo ajudar Prisca na sua parte.

 

E depois, de repente, mesmo entre o escalope milanês e a salada, abordou-se a questão espinhosa:

 

”O teu David causa-me problemas.”

 

Rompido o gelo há muito, sentiam-se à vontade um com o outro, e o tratamento por tu seguiu-se com facilidade. Prisca contara a aparição de Clara Verneuil em Orly, as recordações que tinham surgido. Bertrand não perdia uma palavra do que ela dizia, nem urna garfada do que tinha no prato. Contentava-se em acenar com a cabeça. Era ela que falava. E depois, de, repente, ela compreendeu que os sentimentos que expe-i rimentava pelo David da sua infância deviam ser fas-J tidiosos, dum romantismo desordenado, absolutamente! super-retro. Achou-se ridícula. Parara. Mudou de tom:

 

”David dá-te problemas? Que género de problemas?”

 

Bertrand aceitou com simplicidade a metade do escalope que Prisca acabava de cortar e lhe punha no prato. Tranquilamente, observava-a, julgava-a, como se hesitasse em se confiar.

 

”Sabes...”, disse por fim. ”David não é o género de rapaz de quem se possa falar a qualquer pessoa. Tu creio que podes compreendê-lo. À primeira vista, ele é impossível, ponto final. Mas, na verdade, é mais complicado do que isso!

 

”Tem uma mãe que odeia e adora ao mesmo tempo. Um pai que quase não conheceu, o empresário da mãe, acho eu, um inglês. Eles divorciaram-se rapidamente. Nada caminhava bem, segundo o que consegui compreender, nem a sua intimidade, nem a vida profissional. Depois, Clara Verneuil tornou-se uma vedeta e Edward Wilson tem agora uma boa situação em Londres. Mas demasiado tarde. Ele, por causa do carácter de Clara ela não é simples! -, desinteressou-se do filho. Pelo seu lado, David nada fez para o atrair, detesta-o. Enfim, como vês... tudo uma embrulhada. O que te digo, adivinhei-o mais ou menos através de tudo o que David me contava, e ele tem horror às confidências. Bom.

 

”Para continuar o retrato enfim... tentar!, com as raparigas ele é revoltante: assim que elas se prendem, deixa-as. E elas, coitadas, prendem-se todas a ele... Ele pretende ter horror à sua profissão de repórter, mas desempenha-a com paixão. Detesta-se a si próprio, tem tentado tudo para se destruir: a droga, o álcool, o erotismo, a castidade por crise... seja o que for. Em resumo, um emaranhado de contradições! Uma comédia perpétua. E ao mesmo tempo uma tal riqueza!... Ele é dotado, o diabo, de todos os pontos de vista.”

 

Um suspiro eloquente pontuou este arrebatamento de admiração; depois, Bertrand engoliu uma garfada de escalope antes de explicar:

 

”Conheci-o há três anos. Destruído, esfomeado, deixara tudo: a mãe, o luxo, os estudos. Dos pais não aceitava nem um cêntimo, nem um sentimento. Nada. Consegui metê-lo no jornal onde trabalhava e alberguei-o em minha casa. Um provisoriamente que tem durado até agora... O pior dos parasitas. O mais terrível dos egoístas. E depois ele chega com um ramo de flores, um cheque, o mais inocente dos sorrisos. Perdoamos-lhe... e a coisa recomeça. Pede emprestado, desaparece, volta, reembolsa. Tentei pô-lo na ma quando me casei. Partiu. Três meses depois voltava, e em que estado!... Então, recebemo-lo.

 

”A minha mulher tem-no feito andar a toque de caixa. Ela é espantosa, a Valerie: um metro e cinquenta e oito, quarenta e um quilos, mas uma energia! David tem um medo dela!, mas ao mesmo tempo ela diverte-o. Ela tem-lhe feito muito bem. Ele tornou-se quase razoável, trabalhava regularmente.

 

”Mas depois encontrou Renaud. Então é que os verdadeiros aborrecimentos começaram...

 

Renaud?

 

Um garoto. Tem catorze anos. Arrastava-se pela Rue de Buci quando saía das aulas, onde, bem entendido, ele não ligava nenhuma a nada. David encontrava-o quando saía da agência. De tempos a tempos. E em breve todos os dias. Renaud tomou o hábito de subir até ao escritório sem dizer água vai ou de entrar inesperadamente em nossa casa. Valerie pretendia que ele procurava um calor que não encontrava em casa dele. A mãe cose numa casa de pronto-a-vestir e não deve estar muitas vezes em casa. O pai é um representante comercial, raramente lá está. Não é o dinheiro que falta, e os dois mais jovens, Renaud e a irmã, têm tudo o que lhes é preciso. Apenas... eles são como árvores ao vento, falta-lhes a estaca para as obrigar a crescer direitas. O pai tem crises de cólera ou de autoridade tão imprevisíveis como aterradoras... Renaud tem medo delas. Há outros dois irmãos e irmãs mais velhos, mas não se ocupam senão de si próprios. Em suma, Renaud é um adolescente sozinho que vive a sua vida. Entãol tomou-se de adoração por David, que lhe pagava na mesma moeda. Porque David gosta de garotos engraçado, hem? Adora as crianças. Nunca as acha suficientemente felizes, nunca suficientemente amadas.

 

”E acontece que já há algum tempo o nosso Renaud perdera o sorriso. Na noite da sua última visita, parecia mesmo aterrado. Dois rapazes que ele conhecia acabavam de ser presos por causa duma história de roubo num Unipreço. Estás a ver o género... cleptómanos, esses garotos. E Renaud fazia parte do grupo. Então quis fugir, passar uma fronteira qualquer, tudo para não ter de voltar a encontrar-se diante do pai. O pai aterrorizava-o ainda mais do que a brigada de menores. O pai era a obsessão. Renaud suplicou a David que o ajudasse e David cedeu. Ele está semnre pronto a ajudar os revoltados, os inquietos. E então se se trata duma criança...

 

”Tudo isto soube eu quando já era demasiado tarde por uma carta que David deixou debaixo do telefone, imagina tu!, em minha casa, quando partiu... porque esse imbecil levou o garoto. Sob o pretexto de o fazer passar para Espanha, confiou-o a uma mulher que, parece, o criou a ele, David Uma certa Mélie.

 

Eu conheci-a disse Prisca. Recordo-me dela. ela adorava David.

 

Não deve ter mudado. Ela agora habita numa aldeia dos Pirenéus: Saint-Savin, por cima de Arselès Gazost. Há apenas quinze dias que foi e ainda não voltou. O mais importante é que ele tinha de fazer uma reportagem na Dordonha para a agência. E fê-la. Enviou o texto e as fotografias. Dele e de Renaud, nada de notícias. Desaparecidos. Escrevi a Mélie. Nada de resposta. E ela não tem telefone.

 

Mas David não tem mesmo a intenção de fazer esse garoto passar a fronteira?

 

Não creio que ele seja louco a esse ponto. Suponho antes que ele tente acalmá-lo. Conta com a influência dessa Mélie, que é o equilíbrio em pessoa, parece. Eu já não estou tão convencido disso desde que ela não respondeu à minha carta. Só tenho uma solução: ir até lá.

 

Porque é que não dizes à polícia isso que acabas de me contar? perguntou Prisca. Ou então aos pais de Renaud. Quinze dias a imaginar as piores catástrofes, o filho desaparecido, deve ser horroroso.

 

É horroroso. E, bem entendido, eles têm andado à procura do garoto por todos os meios possíveis; hás-de imaginar se eu não me informei a esse respeito. Simplesmente, David é meu amigo. Ele raptou esse garoto com as melhores intenções deste mundo, e no fim da sua carta pede-me que me cale aconteça o que acontecer. Um segredo pesado para guardar! Sinto-me doente com isto. Não disse nada, nem sequer a Valérie.

 

Então porquê a mim?

 

Porque tu o amas. Tu amas o David, Prisca. Talvez não o David real, mas vem tudo a dar no mesmo.”

 

O bom olhar dourado de cão de caça perscrutou o que lhe estava em frente, tão ingenuamente espantado, tão intenso. E depois ambos se desviaram e um silêncio que nunca mais acabava instalou-se entre eles.

 

”Quer dizer...”, tentou Prisca finalmente.

 

Notando que a sua voz soava estranha, calou-se.

 

O riso de Bertrand tornou a pôr as coisas no seu lugar:

 

”Quer dizer nada resmungou ele. O teu poético adolescente bronzeado de Saint-Malo é uma espécie de louco que segue os seus impulsos, os quais provocam catástrofes. Amanhã de manhã tomo o avião para Lourdes, de lá o autocarro até Argelès, outro para Saint-Savin. Entro em casa da Mélie e trago-os pelo pescoço, aos dois energúmenos, quer eles queiram, quer não. E digo-te que não me dá jeito nenhum, porque tenho o meu trabalho, ganho a minha vida, como compreendes. Tinha precisamente uma reportagem sobre o filme que o Belmondo está a fazer. Mais um trabalho que me foge, e se era bem pago! Tanto pior para as botas de Valerie e o vestido de Caroline.

 

Caroline?

 

A minha filha. É duma vaidade, apesar de só ter três semanas! Sob esse aspecto, é a mãe chapada. E são duma exigência!”

 

Prisca desatou a rir. Essas complicações duma existência desordenada, em tão grande contraste com a bem-aventurada calma da família Juvet, pareciam-lhe tão divertidas! Um rápido regresso ao bom senso sustou-lhe o riso. Demasiado tarde. Ela dissera:

 

”E se fosse lá eu?”

 

O rosto transfigurado de Bertrand mostrou-lhe que esse rapaz simples sabia aproveitar as ocasiões:

 

”A casa de Mélie? Nos Pirenéus?

 

Sim, a casa de Mélie.”

 

O entusiasmo de Prisca baixara uma oitava, enquanto a Gaivota batia as asas...

 

”Diabo!”, disse o honesto Bertrand, ”não tinha pensado nisso. Mas isso era uma ideia.”

 

Se ao menos ele a tivesse achado excêntrica! Mas não. Já estava a organizar as coisas.

 

Ao saírem da mesa, estava resolvido, e os argumentos da razão todos passados para o lado da aventura. Bertrand disse ainda a Prisca que, como as mulheres eram mais persuasivas do que os homens, David seria forçosamente seduzido, logo inclinado a ceder-lhe.

 

”Além do mais, tu conheces a Mélie. Mais uma vantagem. Quanto ao armazém de calçado...”

 

Valerie tinha uma ”colega” estudante e com pouco dinheiro, como é costume, que ficaria com certeza encantada de resolver o problema de Prisca. Em resumo, impossível voltar atrás. Presa pela sua palavra, Prisca estava lançada, contra vontade, numa expedição cuja audácia nem ela media bem.

 

Quanto à Gaivota, ela voaria, encantada!

 

De tal medo que a tímida Prisca, confundida com a temerária Gaivota, voltou ao Poleiro decidida a aceitar o risco. Escreveu aos pais uma longa carta tão evasiva e desprovida de sentido que a meteu na caixa do correio sem ter ousado tornar a lê-la.

 

Feito isto, sentiu o coração menos leve do que ela pensava. Todavia, subiu para arranjar a mala, mas começou por ligar o tornozelo. Depois dormiu o sono agitado das consciências atormentadas.

 

No dia seguinte, logo de madrugada, Bertrand veio buscá-la para a conduzir a Orly. Ele ocupara-se de tudo nos mínimos pormenores. Uma pérola! Trazia mesmo dinheiro, no caso de Prisca precisar. Ela declarou-se suficientemente fornecida e no último momento abandonou a mala por um saco que não continha senão uma camisola com um mínimo de roupa interior e os seus objectos de toucador.

 

Como Bertrand dizia:

 

”Na pior das hipóteses, vais por dois dias.”

 

Estava tão feliz por se desembaraçar daquela espiga! Quando chegou o momento, pôs tanta gentileza no seu adeus que Prisca lhe sorriu sem rancor. A cada um o seu BA... Ia salvar uns pais da angústia, recuperar um garoto em fuga e reconduzi-lo ao caminho direito... Então? O David da sua infância. Esse não a intimidava. Mas o outro, o verdadeiro...!

 

Esse David, o desconhecido, que a pouco e pouco ia tomando consistência, numa sequência de reflexões inquietas. A Gaivota tornou a dobrar as asas, enquanto Prisca reconhecia melhor o absurdo que acabava de deixar infiltrar na sua vida.

 

Subiu para o avião como a vítima que vai para o sacrifício.


A Bigorre seduziu Prisca ao primeiro olhar, logo que saiu do aeroporto de Lourdes, mas mais ainda ao segundo, quando, num dos mais belos vales do Lavedan, descobriu Argelès-Gazost, a sua localização, o seu terraço, dominado pela torre Mendaigne e pelas montanhas a toda à volta.

 

Como os autocarros para Saint-Savin não partiam ao fim da manhã, teve tempo de admirar a velha cidade.

 

O terceiro olhar deixou-a espantada, quando, do terrapleno que ladeia um dos lados da praça principal em Saint-Savin, que domina a torrente de Pau e o vale de Argelès, viu perfilar-se a silhueta do pico Longo no imenso panorama dos cimos azulados.

 

A cidade encantou-a, velhas casas de telhados de ardósia tão elegantemente curvados, arcadas de grossos pilares de madeira, encanto antiquado de lojas cujas montras, de taipais, ninguém, felizmente, modernizara. Tudo a entusiasmava. E, depois, em Saint-Savin há a igreja, vestígio admirável da grande abadia beneditina do século xII, cujo abade era senhor da povoação.

 

Saciada de beleza, Prisca foi, de coração a bater, à procura de Mélie.

 

Informar-se não era difícil, toda a gente a conhecia. Faltava trepar, já fora da aldeia, o caminho particularmente pouco indicado para alguém cujo tornozelo está torcido e que teima em trazer saltos altos.

 

Em contrapartida, Prisca não teve dificuldade em descobrir a casa que lhe haviam descrito: ”Você vê uma roseira vermelha, não tem de que se enganar, é a mais linda cá da terra. Mas cuidado com o cão...”

 

Era enorme, esse cão. Parecia um urso branco deitado atravessado no caminho, cuja largura ocupava totalmente.

 

Pouco tranquila, Prisca viu-o erguer a orelha quando ela tentou abrir o portão do jardim.

 

”Deitado, César!”, gritou uma voz, que Prisca reconheceu imediatamente.

 

A avantajada silhueta de Mélie surgia à porta da casa sob a floração das rosas vermelhas. Tinha engordado mais. Mas sempre alerta, apesar da gordura, precipitou-se sobre um bando de patinhos, que enxotou com grandes gritos e gestos dos braços, até a ninhada se refugiar na vedação, cuja porta fechou.

 

”Se vem à procura de foie gras gritou ela do fundo do jardim, agora não tenho, vendi-o todo a semana passada. Só tenho algumas terrinas de empadas. Se isso lhe interessa... Nem foie, nem empadas respondeu Prisca, que não entrava por causa do cão. Mas gostaria de falar consigo dum pouco mais perto! Então empurre o portão, que ele abre-se. César não lhe dirá nada, desde que eu a autorize.”

 

Prisca pousou uma mão hesitante na cabeça do enorme animal branco, que a acompanhou ao seu lado enquanto ela atravessava o jardim. Mélie esperava de mãos nas ancas e toda risonha:

 

”Palavra de honra, que os dois são engraçados, a menina e o meu cão, cada um no seu género! A Bela e o Monstro!”

 

Um grande riso sublinhou a apreciação. Riso ao qual Prisca fez eco, mas saltando ao pescoço de Mélie, sufocada, enquanto lhe pespegava um beijo sonoro em cada face. Isto seria o bastante para inquietar a boa mulher sobre a sanidade mental da sua visitante se Prisca não lhe tivesse gritado aos ouvidos:

 

”Não me reconheces? Sou Prisca... Prisca Juvet, Saint-Malo, a areia sobre as fatias de pão da merenda, na Vila Adèle...

 

Aaaaah!...”, ululou Mélie.

 

Tinha a cara toda vermelha e os olhos húmidos de emoção.

 

”Se me lembro de ti, nem tu imaginas! Sabes lá! Deixa-me olhar para ti. Nunca te teria reconhecido, bonita como estás! Ora esta, que surpresa! Que idade tens tu? Dezasseis, dezassete?

 

Dezoito.

 

Ah, bom! Maior, segundo o Sr. Presidente! Com isso, vês tu, não estou eu de acordo, porque com dezoito anos não se é mais do que uma garota. Que é que os teus pais pensam disso? E como estão eles? Ah, eram umas pessoas muito simpáticas. E a tua irmã mais velha? Mas entra, vais-me contar tudo à frente dum bom pequeno-almoço. Tu ainda não comeste, pois não?

 

Não, não”, balbuciou Prisca.

 

Ela pensava com terror e felicidade que de um minuto para o outro David podia surgir, que ia encontrá-lo talvez na cozinha, ou sentado diante duma chaminé, ou...

 

”Estava ocupada a preparar isto continuava Mélie, tu vais-me dando as novidades. E não te inquietes acrescentou, baixando a voz com ares gulosos com o foie gras, eu guardo sempre um bocado para os amigos. Anda, vem! Eh!, mas agora penso eu: tu estás sozinha ou com outras pessoas? Podes convidá-los, certamente. A não ser que estejas de passagem, e não tenhas tempo de entrar...

 

Tenho, tenho afirmou Prisca, feliz por ser tão bem acolhida e olhando de soslaio para todos os lados, para o caso de David... Tenho o tempo todo.”

 

Fazia fresco na casa de persianas meio fechadas. Cheirava bem aos velhos móveis envernizados e às ervas da montanha, odor misturado ao fumo do fricassé de cebola de que só Mélie possuía a receita e sobretudo ”o jeito”.

 

A ex-criada de quarto de Clara Verneuil lançou-se num rosário de perguntas, às quais Prisca nunca mais acabava de responder. Foi preciso que ela dissesse tudo da família, dos seus estudos, da irmã... Mas de David nem uma palavra. Parecia que Mélie o esquecera. Se não houvesse a carta deixada a Bertrand, Prisca podia pensar que em Saint-Savin ninguém o tinha visto.

 

Como levar a conversa até ele? Prisca foi a primeira a entrar no assunto no momento em que se sentou à mesa.

 

”Onde está David? Julgava encontrá-lo em tua casa com o seu amiguinho Renaud.”

 

Silêncio e mudança de atmosfera. Contraída, Mélie serve o foie sem comentários. Inquieta, Prisca pergunta a si própria se o seu excesso de franqueza não comprometeu tudo.

 

”Não vejo o David desde o último Natal”, resmunga finalmente a velha Mélie, desabrida, desaparecida toda a alegria. ”E não conheço esse Renaud.”

 

Um pouco desconcertada, Prisca observa-a. É difícil de discernir se Mélie mente deliberadamente ou não. Na dúvida, vale mais contar a sequência dos acontecimentos, incluindo a conversa com Bertrand. Prisca acrescenta o seu ponto de vista pessoal sobre o perigo que David corre escondendo um rapaz que os pais e a polícia procuram.

 

Pela maneira como Mélie a escuta, limpando de vez em quando a cara com o lenço, de olhos fixos numa torrada esplêndida e da qual não come migalha, não mais, aliás, do que o delicioso fígado de pato, Prisca tem a convicção de que ela está ao corrente e deseja esconder o que sabe.

 

”Mélie...”, suplica Prisca depois de um longo silêncio. ”Sei que adoras o David. Sei que ele sempre obteve de ti o que quis. Mas desta vez não é um serviço que lhe prestas. Devias tê-lo convencido a voltar a Paris. Tudo isto vai acabar mal.”

 

Duas profundas rugas se escavaram no rosto de Mélie.

 

”O que David me pede”, murmura ela, ”eu faço.”

 

Como para se justificar, acrescenta:

 

”Ele nunca teve mais ninguém no mundo senão eu... senão eu para o amar como ele deve ser amado e dar-lhe confiança. E depois”, exclama ela de repente combativa, ”ele tem razão em ajudar essa criança. Sem ele, que é que lhe teria acontecido? O garoto teria feito uma asneira qualquer e a polícia tinha-o apanhado.

 

Aterrorizado, em qualquer caso. Tinham-no amachucado com belos discursos e recambiado para os pais. Ele não está maduro para isso. Sei o que digo, não estou a fazer romance, e David também não. Este garoto, primeiro que tudo, tem necessidade de calma, senão’nada se conseguirá dele. Apenas revolta, e mais cedo ou mais tarde recomeçará com os disparates e as fugas. É preciso mostrar-lhe que neste mundo há pelo menos alguém capaz de ir até ao fim com ele. É o que David está a fazer e ele sabe ao que se arrisca: a prisão por desvio de menor, nem mais nem menos! Mas ele fá-lo como gostaria que, em caso semelhante, alguém o fizesse por ele quando tinha a idade de Renaud. Compreendes?... É talvez um louco, o meu David. Um louco por causa desse rancor antigo que arrasta contra o pai e contra a mãe. Um louco, pois ele tem mais coração do que os outros e nunca o soube mostrar senão a mim e a esse gaiato. Mas nunca duma maneira razoável. Ele mete-se sempre em apuros. Sempre...”

 

As lágrimas correm pelo rosto de Mélie. Lágrimas de amor, de desespero.

 

”Se ao menos ele tivesse prevenido os pais de Renaud murmurou Prisca.

 

Sim disse Mélie.

 

E então?

 

Então, ele disse-me que o faria.

 

Mas não o fez!”

 

Mélie suspira. Ela está torturada e Prisca tem pena dela: ”Não és tu que tens de te ocupar disso disse ela docemente. Mas eu tenho de encontrar David. Quero salvá-lo, Mélie, estás a compreender? Há quanto tempo saíram eles da tua casa?

 

Eles estão... num sítio para os lados de Pont d Espagne.”

 

Mélie abdica. Já não tem forças para defender uma ma causa. Sente-se velha de mais... e há essa jovem a sua frente. Mergulha um olhar hesitante, quase tímido, no de Prisca. Mas pouco a pouco vai retomando a esperança. Começa a falar, pronta agora a todas as confidências:

 

”Há autocarros que sobem lá acima. Depois será preciso procurar. Com certeza que eles não ficaram no meio dos turistas. Talvez tenham passado a fronteira, como o garoto queria.

 

Mas David...

 

David não tinha a intenção de o ajudar a passar para o outro lado. Verdade. No entanto, com ele alguma vez se sabe? Quando chegaram aqui, há dez dias... Não, espera... doze. Uma quinta-feira. A quinta-feira de há duas semanas. Vinham da Dordonha. Foi o que eles me disseram... Falei com David dos pais, da polícia, do seu futuro... Aposto que esqueceu tudo. Desde que o garoto esteja contente, ele também deve estar. Tanto pior para nós, tanto pior para aqueles que se preocupam com ele, pois ele nem pensa já nisso. É assim, o David.”

 

Há amargura na voz de Mélie.

 

”Mesmo assim como ele é terminou ela, com o melhor e o pior, quando vem procurar-me eu sinto-me muito feliz. Enchi-lhe um grande saco. Eles têm com que se tapar e que comer, asseguro-te! E eles aí foram! David instalou o garoto e o saco na moto. Sei que passaram a Pont d’Espagne porque a minha filha tem o quiosque lá em cima, e David deixou lá a moto. Disse-lhe que ia passear para a montanha. Isso acontece todas as vezes que me vem visitar e não há nada de extraordinário... A minha filha não me falou do gaiato. Devia estar escondido. E pronto. Doze dias. Doze dias que eles andam a passear e que não me dão notícias. À força de me calar, isto começava a sufocar-me... Todos os dias escuto a rádio, tenho ouvido o nome: Renaud Chapuis, desaparecido de casa dos pais desde... 17 de Julho. Isso põe-me doente. Estou velha de mais para correr atrás deles... Também não tenho a coragem de ir à polícia contar o que sei.

 

Felizmente!”, exclamou Prisca, combativa por sua vez.

 

Um tal entusiasmo seduz Mélie, cujo temperamento, pouco inclinado à melancolia, volta a encontrar ao mesmo tempo alegria e optimismo.

 

”Ah disse ela, estou contente por teres vindo. Tu é que poderás explicar aos pais do pequeno o que se passou aqui.

 

E como?!”, disse Prisca.

 

Mélie olha para ela. Sorriem-se, contentes uma e outra, cúmplices e ligadas, cada uma à sua maneira, ao mesmo personagem. Verdadeiro ou falso? David... quem é ele? Um egoísta, um orgulhoso, um recalcado, um doente? Uma natureza excepcional? Quem, afinal, quem?

 

Prisca tem tentado inventá-lo através de todos os testemunhos e das suas próprias recordações.

 

”A que horas é o autocarro para Pont d’Espagne?”

 

Há admiração no olhar de Mélie. Talvez ela tenha a visão clara da teimosia de Prisca, igual à de David. Ambos, em suma, mostram o mesmo talento, o mesmo encanto em obter o que desejam. Doçura discreta e sedução... Mélie perde aí a sua lucidez.

 

”Há autocarros de meia em meia hora. Mas ao menos”, recomenda ela, ”se quiseres partir agora, espera que eu te vá buscar uma pele de carneiro. E leva o cão... Sim, sim, insisto. Eles aceitarão o César no autocarro, se eu lhes pedir. Ele nunca se perde na montanha. Ajuda-te a encontrar o caminho. A pele de carneiro é por causa do frio. Até se bate os dentes, aqui, assim que cai a noite. Ah, e depois as alpergatas. Tem-las? Não davas dez passos na montanha com isso que trazes nos pés.”

 

Prisca aceitou comprar alpergatas, mas recusou a pele de carneiro, demasiado pesada e pouco cómoda... Quanto a César, foi igualmente recusado. Prisca desejava encontrar-se livre, só e sem ajuda. Sentia que a utilidade segura do cão seria anulada pelo facto de David, ao reconhecê-lo, adivinhar imediatamente e de longe talvez com que fim o perseguiam. Ele devia andar desconfiado...

 

Enfim, ao acaso do instinto e guiada pela emoção, Prisca subiu no autocarro das 15.50, furiosa por partir tão tarde, mas erguendo mesmo assim uma mão graciosa e descontraída para Mélie, que um vento de pânico agitava:

 

”Sê prudente”, gritou Mélie quando o autocarro arrancava (Deus!, se a família Juvet tivesse ouvido aquilo!). ”Aconteça o que acontecer, espero-te esta noite. Quer o encontres, quer não, não percas o último autocarro e vem dormir cá.”

 

Prisca gritou que talvez...

 

O autocarro arrancou cortando os ”sim” e os ”talvez”, assim como as promessas odiosas. De qualquer modo... Sim, de qualquer modo, Mélie pensou que esta se parecia com o outro e que ela, Amélie Lesage, nunca teria senão os seus olhos para chorar e o seu bom humor natural para sobreviver.

 

César, enorme e calmo, suportava sem se mexer a multidão que o rodeava com prudência. Assoando-se uma última vez, Mélie meteu o lenço, feito numa bola, no fundo da algibeira do avental.

 

”Ah, César”, murmurou ela.

 

Exclamação de que César, plácido, ignorou os subentendidos e que acentuou com um grande espirro. Então, Mélie e ele, conscientes duma reconfortante amizade recíproca, voltaram para casa.

 

Em Pont d’Espagne, pelas quatro e meia da tarde, as pessoas acotovelavam-se. Recordações, caramelos, banalidades de toda a espécie, passeios de mula, esplendor duma cascata gigante, excursões ao lago de Gaube... as distracções não faltavam e todas as raças do globo caminhavam lado a lado.

 

Prisca enrolou as calças por cima dos joelhos, calçou as alpergatas novas e, saco ao ombro, mais pesado pelo inútil par de socas, sentiu-se mais baixa, mas mais sólida. De nariz no ar, sorvia um ar mais leve apesar da multidão.

 

Quiosques, havia uma quantidade deles, mas todos cercados de gente. Prisca fixou no entanto a dona de um deles: rechonchuda, fazia tanto lembrar Mélie que à passagem a Gaivota, batendo com a asa, lançou a frase preparada no autocarro:

 

”A moto de David ainda aí está?

 

Está, está responderam-lhe sem a menor admiração. Então como vão as coisas lá pelo acampamento? Você é que veio às compras para ele?

 

Alegre e eficaz, a filha de Mélie tirava a cápsula, estendia as garrafas, recolhia o dinheiro, gritando o seu bom humor, que enfeitava com um riso sonoro como o da mãe.

 

Na realidade, como se chamava ela? Ah, sim... Christine.

 

”Sim senhor”, exclamou ela, ”David disse-me que havia lindas raparigas lá onde ele estava, e vejo que ele não mentiu!”

 

A coisa estava a tornar-se interessante; Prisca aproximou-se:

 

”Viu-o há muito tempo?

 

Uns dois ou três dias... Nem isso! Espere... foi anteontem. Você não faz parte do grupo?

 

Ainda não. Não sabe onde é que eles estão acampados?

 

Ah, isso é que não, minha pobre menina. Para tirar três palavras a David não é lá muito fácil. Comprou-me pão, esteve a ouvir a rádio aí num canto, disse-me que estava em boa companhia, e pronto. Tornou a ir-se embora. Pensei que se tratasse de lindas raparigas porque, esbelto como ele é, a gente pensa logo isso, compreende. Comprou também presunto, queijo, bombons, com que alimentar um regimento.

 

Devia ter contado à sua mãe que vira David anteontem. Ela tinha ficado contente.

 

Ah, a menina conhece-a! exclamou Christine, cujos olhos sorridentes desapareciam nas rugas duma simpática cara rosada. Eu tinha-lhe dado notícias, se tivesse podido, mas há uma semana que não desço a Saint-Savin. É o auge da estação, há gente de manhã à noite e até durante a noite, algumas vezes. O meu marido, esse, às vezes, nem dorme cá: é guia de excursões. Olhe, agora, anda ele a fazer a volta dos lagos com oito pessoas. Não o vejo senão daqui a dois ou três dias! Pobre mamã! Espero que ela não se preocupe demasiado!”

 

Inocente Christine! Fora das confidências! Prisca beijou-a com efusão da parte de Mélie e tentou informar-se sobre a espécie de abrigo que David possuía.

 

”A mínima ideia”, gritou Christine, que não sabia moderar o tom da voz à força de gritar o preço das cervejas. ”Vá ver ao longo do rio depois do parque de campismo e procure... Boa sorte!”

 

Cheia de esperança, Prisca subiu ao assalto do vale elevado onde se espraiava o rio entre duas margens planas e verdes que as tendas semeavam de cores variadas.

 

Deu uma volta por cada uma. Sem resultado. Mas uma mulher que cozinhava diante da última disse-lhe que a partir dali começava ”a reserva”, onde ninguém estava autorizado a acampar.

 

Nada mais tentador para os fora-da-lei.

 

Munida desta informação e de toda a paciência, Prisca decidiu trepar por um caminho de cabras que ziguezagueava pelo flanco da montanha em direcção a um lago à beira do qual, disse-lhe um passeante, havia um refúgio. Depois duma hora de caminho aproximadamente, devia vê-lo.

 

O ar sentia-se já mais fresco. Na planície, o Sol ainda devia estar muito alto, mas a sua descida atrás dos grandes cumes do oeste começava. Prisca calculou que não devia ter à sua frente mais de duas horas até ao crepúsculo. Era pouco.

 

Em direcção ao sul, em qualquer parte do horizonte que a noite começava a cobrir de sombra, talvez além em baixo, onde umas estreitas faixas de neve subsistiam, apesar do sol de Agosto, achava-se a fronteira.

 

E nessa imensa paisagem mas de que lado, em que direcção? David e Renaud estavam escondidos. Antes da fronteira. Porque, se não a tinham transposto assim que tinham chegado, porque se teriam decidido a fazê-lo há dois dias? ”Anteontem”, dissera Christine, e David tinha-lhe comprado ”com que alimentar um regimento”. Não se levam tantas provisões quando se decide passar clandestinamente de França para Espanha.

 

Prisca caminhava sem demasiada fadiga, descobrindo uma nova solidão, diferente daquela do mar que ela amava.

 

A montanha não lhe metia medo. Nem sequer a noite, prestes a cair: dormiria no refúgio de que o passeante lhe falara. De repente, lembrou-se de que não tinha trazido nada para comer, e nesse momento sentiu que tinha fome; esfumadas as delícias do almoço de Mélie! Fora estúpida em não se ter fornecido ao menos com uma sanduíche no quiosque de Christine. Teve a tentação de retroceder antes de a noite tombar. Mas continuou. Esperava até à manhã do dia seguinte. Tanto pior para a refeição da noite.

 

O vate desvanecia-se atrás de si. As manchas coloridas, onde viviam em sociedade campistas menos aventureiros do que os dois loucos que ela perseguia, tornaram-se minúsculas.

 

Pelas sete horas, uma cortina de bruma que em breve se tornou tão espessa como uma nuvem cobriu-as. Por cima desse aleodão começava a fazer frio. Lago e refúgio continuavam invisíveis No entanto, havia mais de uma hora que Prisca caminhava. Através da abertura ainda luminosa do oeste, entre dois picos erguidos como duas sombras ameaçadoras, um céu de tom ruivo anunciava o começo iminente da noite.

 

E ela caiu de repente. O caminho tornou-se imediatamente indistinto... Os olhos de Prisca iam-se habituando à obscuridade, e ela reencontrou uma parte do seu optimismo ao ver uma grande pedra pintada de branco. Não sabia o que ela significava, mas aquilo fez-lhe lembrar que ali, como no mar, o caminho a seguir só está balizado para os iniciados.

 

A partir daí, só prosseguiu o seu caminho apenas por obstinação. Não distinguia mais nada a vinte passos. Precisava de encontrar o refúgio. O tornozelo, outra vez inchado, doía-lhe, insidiosamente.

 

Qualquer coisa fluiu quase debaixo dos seus pés. um animalzinho invisível. Isto fê-la sobressaltar, tropeçou, caiu, esfolando as palmas das mãos. Um medo pânico se apoderava dela, a sua imaginação enlouquecida via sombras que se moviam, roçar de asas impalpáveis aterrorizavam-na, e teve vontade de gritar um nome, um só... David!

 

Em vez disso, praguejou.

 

Como nos tempos da sua infância, como Gégé. Soisic e o ruivo da ponta do molhe; uma boa praga saída da profundidade dos tempos que a aliviou:

 

”Quando o mar bate nas rochas, quem se amola é o mexilhão!”

 

Repetiu-o duas vezes e desatou a rir na gigantesca solidão.

 

Ergueu os olhos para o céu, cuja claridade esbranquiçada recortava o emaranhado dos cimos. Era preciso dormir. Depois se veria. Dormir aqui e esperar a luz.

 

Era pedregoso e além disso húmido. Tanto pior. Teve um pensamento enternecido para a pele de carneiro tão tolamente recusada, depois lembrou-se de César. Ele tê-la-ia conservado quente e, sem dúvida, sabia onde se encontravam o lago e o refúgio.

 

Encolhida entre dois rochedos, depois de ter desembaraçado das pedras aguçadas o lugar de que tinha necessidade para se enroscar, pensou em Montmartre, no Poleiro, na felicidade dum banho quente e. adormeceu

 

A madrugada glacial acordou-a. Não sentia nem as mãos nem os pés, e uma terrível dor num ombro obrigou-a a verificar que afinal não tinha desembaraçado a terra de todos os calhaus. Mas o espectáculo que ela descobriu à luz do dia deslumbrou-a. A tal ponto que esqueceu tudo o que não fosse esse belo lago dum azul profundo de safira cercado de ocre e rosa ao pé de cabeços de formas suaves dispostos em círculo e toucados do verde das campinas.

 

Uma floresta de pinheiros crespos vestia dum verde diferente, mais sombrio, a vertente alcandorada. Na sua orla o lago. E o seu refúgio a algumas centenas de metros, construído à antiga: pedras secas e o telhado bicudo de ardósia, encurvado na beira, descendo quase até rente ao chão.

 

Seria aquele que Prisca procurava na véspera ou outro? Pouco importava. Ela correu, ignorando o peso do tornozelo, a dor no ombro. Era bom de mais descobrir num sítio daqueles esse humilde, bom e corajoso testemunho de civilização: uma casa.

 

Estava aberta, mas vazia. Nem um bocadinho de feno, nem a mais pequena parcela de comida. Prisca apanhou algumas hastes e raminhos, arrancou um pouco de erva seca na rocha e, abençoando todos os demónios do Inferno por a terem feito tomar o vício de fumar, tirou o isqueiro do fundo do saco.

 

Em breve se pôde aquecer a um fogo que ela alimentava com tudo o que achava que pudesse transformar-se em combustível. O fogo fumegava, flamejava, crepitava, ao mesmo tempo que um sol ainda velado de bruma matinal se elevava, e Prisca suspirou de satisfação perante essa paisagem de sonho.

 

E sonhou... com café com leite e croissants quentes, costeletas e frango, com tudo o que se pudesse comer. Mas toda a esperança era vã, porque não se via a correr atrás duma lebre, assassinando-a e devorando-a depois de a ter assado na sua fogueira; assim, contentou-se em ir beber um pouco de água gelada do lago.

 

O que lhe fez muito bem.

 

E de repente teve vontade de se lavar naquela água azul. Com o pé atirou com uma alpergata cheia de terra, depois com a outra. O resto da roupa foi-se juntar a elas. Nua, naquela grande solidão, encharcou-se da cabeça aos pés, feliz por ter a coragem de o fazer, com o corpo logo a seguir a arder, por causa da reacção. Secou-se diante do seu fogo, tornou a vestir-se e penteou os cabelos.

 

Sentia-se cada vez mais esfomeada, mas tão repousada que já perguntava a si própria se não iria continuar a sua exploração antes de retomar o caminho para Pont d’Espagne. quando viu, no cimo dum cabeço, lá longe, para leste, um ponto vermelho.

 

Aquilo mexia e estava acompanhado dum outro ponto de cor indefinível àquela distância. Mas tratava-se, sem dúvida possível, de dois seres humanos, o que, contra toda a previsão, cortou a respiração a Prisca, a pontos de se tornar incapaz de se precipitar a galope para esse longínquo cume, donde, aliás, as duas silhuetas tinham desaparecido.

 

Escolheu pontos de referência para não confundir aquela crista com outra: o alinhamento dum grupo de pinheiros e uma rocha cinzenta, que se recortava. Julgava-se no mar! Começou a caminhar, calma, tomando todas as precauções e de coração a bater.

 

O pior é que na montanha as linhas rectas não existem. A partir da primeira elevação, os pontos de referência tinham-se transformado e o cabeço que ela pretendia atingir tanto estava à direita como à esquerda.

 

Para falar verdade, já não o reconhecia. Julgou percorrer quilómetros num verdadeiro dédalo de vales e de cristas sem tornar a ver o menor ponto vermelho. Parecia-lhe que o cabeço recuava à medida que ela avançava... ou então tratava-se de outro.

 

Precisou de subir outra vez, descer uma quantidade de vertentes, perder e reencontrar os seus pontos de referência, antes de chegar a uma altura donde, estupefacta, viu o seu tufo de pinheiros e o rochedo tão próximos, mas... do outro lado duma corrente de água. E lá em baixo fervilhava, no escavado dum leito estreito entre duas muralhas a pique.

 

Nem pensar em passar.

 

Prisca pensou subir o curso da corrente, na esperança louca de descobrir um vau. Teve de se afastar para contornar uma massa rochosa de arestas cortantes, impossível de escalar, e depois voltar a um pendor do cimo do qual descobriu finalmente a passagem ideal.

 

Depois de um quarto de hora de esforços musculares e de riscos, chegou abaixo, à margem do rio, que aí se alargava, procurando caminho entre ilhotas de verdura onde cresciam árvores muito direitas e muito altas. Era o local sonhado para o inocente cordeiro do fabulista encontrar o lobo. A água transparente, cheia de manchas de luz, tocava levemente as pedrinhas do leito com o ruído contínuo do seu fluxo entre as margens atapetadas de erva curta, onde Prisca viu florir um rododendro de flores pálidas que, na sua candura e ignorância da montanha, tomou pelo raro edelvaisse.

 

A encantadora doçura desse lugar tirou-lhe toda a coragem, e, de repente, sentiu-se sem forças. Deu ainda três ou quatro passos vacilantes...

 

”Eh, David!”, gritou atrás dela uma voz ainda pouco firme no tom grave. ”Ela caiu!”

 

A emoção fez que Prisca, esgotada, estivesse quase na verdade a perder a consciência. Ao mesmo tempo, por nada deste mundo se deixaria desfalecer, porque, estendida com o nariz na erva, esperava, de coração rendido, o som duma outra voz.

 

Mas nada se ouviu.

 

Finalmente, dois pés nus de tamanho respeitável e cor de broa de mel aproximaram-se do seu rosto. Um deles deslizou sob o seu ombro dorido e virou-a, mais ou menos como se ela fosse um coelho morto.

 

Em qualquer outra altura, Prisca teria reagido com vigor, mas precisava de tempo para recuperar a consciência e encontrar qualquer coisa para dizer. Ficou pois inerte, sem forças, estendida no fundo do prado, de olhos fechados e rosto de mármore, aureolada de cabelos castanhos. Ignorando até que ponto o espectáculo podia ser encantador, espantava-se de não ouvir nada, perguntando se iriam deixá-la ali ou se decidiriam vir em seu auxílio.

 

Um assobio de admiração quebrou o silêncio.

 

”Se está morta, é pena”, começou a voz recentemente mudada, ”porque ela tem cá uma carroçaria notável, e, quanto à cara, também não é nada má.”

 

Lisonjeada pelo cumprimento, Prisca esperava a reacção do... outro.

 

Nem uma palavra. Sentiu-se erguida, levada... Arriscou um olhar através das pestanas, viu cabelos louros, uma barba curta da mesma cor, um perfil firme que lembrava o de Clara Verneuil.

 

Então tornou a fechar os olhos e deixou-se ir na doçura do momento presente.

 

Era bom deixar pousar a cabeça nesse ombro nu, quente contra a sua face, ser balançada ao ritmo dum andar fácil, como se, nos braços de David, ela não pesasse mais do que uma criança. Para obter a eternidade desse instante, julgou-se capaz de nunca mais abrir os olhos. Sentia-se lúcida e desprovida de vontade, fraca e feliz por isso, quando a voz tão esperada resmungou mesmo perto do seu ouvido:

 

”Que droga, esta rapariga! Bem podia ter ido passear para outro lado!”

 

Para alguém que tivesse um bocadinho de orgulho, aquele era o momento de dar a sua opinião sobre um acolhimento tão reconfortante. Mas Prisca preferiu ignorar o sentido das palavras e reter apenas a agradável sonoridade da voz. Absolutamente absurdo estragar o romantismo do encontro por um acesso inconveniente de mau humor.

 

David! Esse desconhecido chamado David...

 

Ele não a reconhecera, e ainda bem. O grão de especiaria que torna picante o molho onde se embebe a simplicidade do pão quotidiano! Prisca não lamentava já a pele de carneiro que, protegendo-a do frio, teria amolecido a sua silhueta; nem César, cujo faro infalível, levando-a mais depressa e direita a David, teria, ao mesmo tempo, e mais seguramente que um discurso, varrido todo o mistério.

 

Prisca prolongava o jogo. Deixou-se pousar inerte, no chão duro, que adivinhou perto do rio pelo barulho que a corrente fazia. Sonhava com palavras murmuradas, quando recebeu em pleno rosto uma tromba de água gelada seguida duma bofetada tão bem aplicada que recuperou duma vez forças e razão.

 

Era de mais! Erguida dum salto, de boca aberta para criticar de maneira violenta o vigor do tratamento, reencontrou o olhar azul sombrio, irónico e sorridente. Um olhar que ela conhecia. Um olhar que cortava rente os furores mais justificados. Tão bem que, a escorrer, sentindo-se ridícula, fechou a boca e tornou a sentar-se.

 

”Isso vai melhor?”, perguntou David, sempre tão amavelmente espirituoso.

 

Perto dele, o adolescente de camisola vermelha, livre de toda a inquietação no caso de a ter tido, torcia-se a rir.

 

David, esse, trazia apenas umas jeans desfiadas em baixo. Meio nu, seguro de si e dum poder de sedução que devia produzir sobre todas as mulheres mais ou menos o mesmo efeito, examinava Prisca com ar apreciador.

 

Ela detestou-o.

 

”Pode-se saber o que o diverte?”, perguntou ela secamente.

 

O sorriso acentou-se mais, mas não houve resposta, nem comentário. O adolescente guinchou a sua alegria, pois, brandindo um par de socas que acabava de tirar com toda a seriedade do saco de Prisca, clamou entre dois soluços:

 

”Olha para estas coisas! Quinze centímetros de saltos, meu velho. Pior que a minha irmã. Mas essa é na rua que usa as andas, não é para explorar os cumes nevados!”

 

De repente ficou sério, e acrescentou:

 

”Olha, David, estou muito contente por ela estar viva, mas receio que não regule lá muito bem. Que é que vamos fazer? Não somos psiquiatras!”

 

David continuava a sorrir, exasperante de pretensiosismo na sua maneira de marcar um interesse demasiado evidente para uma Prisca abandonada, sob o seu olhar, de toda a dignidade. Raivosa, ela sentiu-se corar por ter podido apreciar o pequeno passeio de há pouco com a cabeça apoiada no ombro quente e de olhos fechados.

 

”Creio que ela está sã de espírito”, murmurou David com uma voz suave. ”Não está em tão má forma como parece, tenho mesmo a impressão de que não está completamente desmaiada. Ela deve é adorar que se ocupem dela.”

 

Debruçou-se, afastou da testa de Prisca umas madeixas de cabelos molhados:

 

”Estou enganado?”

 

Ela desejava que um cataclismo a fizesse desaparecer para sempre naquele instante.

 

”Pergunto a mim próprio donde vem esta deliciosa e muda criatura”, continuou ele no tom aliciante que devia empregar para seduzir o número considerável de queridinhas que procuravam por ele na agência. ”De Pont d’Espagne ou do lago de Gaube? Caída do teleférico, talvez, e perdida? Pobre pequena! É muito mau dormir sozinha entre duas pedras, sabes bem.”

 

A bofetada açoutou, clara, precisa, seguida doutra do outro lado.

 

”Ai!”, disse Renaud por simpatia pela vítima.

 

Mas David continuava a sorrir, imperturbável, e Prisca teve vontade de se servir da barba dele como dum punching-ball.

 

”Ela tem génio”, notou Renaud. ”É como a minha irmã quando algum tem a ideia de lhe fazer um galanteio. São todas a mesma coisa. Tu deste-lhe uma e ela dá-te logo duas. Verdade se diga que, estas duas, tu tinhas feito tudo para as levares, David. É preciso não vexar as raparigas.”

 

Depois de dizer isto, fez estendal das suas maneiras corteses, rindo, gargalhando e por fim ajoelhando-se aos pés de Prisca:

 

”Há muito tempo que estávamos a observar-te, sabes? Perguntávamos a nós próprios se estavas interessada em passar para Espanha com as tuas calcinhas cor-de-rosa! Foi David quem te viu primeiro, ontem à noite, no caminho de cabras. Então esta manhã procurámos-te, vimos-te acordar e seguimos-te até ao lago. Observámos-te a acender o lume, que fazia uma grande fumarada, e depois...”

 

”Ignobilmente”, pensou Prisca, David tinha um ar divertido:

 

”Um pouco de discrição”, disse ele.

 

Comportavam-se como dois vadios. Tão estúpidos, grosseiros, vulgares tanto um como o outro. Prisca disse para si que nunca mais era capaz de sentir por David a menor simpatia.

 

Quanto a Renaud, esse continuou a cacarejar:

 

”Uma aparição! Vénus no banho! Então, censura! David é um tipo correcto. Empurrou-me para trás com um pontapé precisamente quando as coisas começavam a tornar-se interessantes, e voltámos para o nosso poiso.” Novos cacarejos, grandes gargalhadas. Toda a gama: ”Mesmo assim, voltámos ao pé de ti porque, à força de andares às voltas, fazias-nos pena, parecias o Polegarzinho perdido na floresta! E coxeavas, coxeavas tanto, que no fim teríamos aparecido, para te ajudar, mas... pumba! Reviraste o olho. Estavas mesmo a representar? Tinhas-nos visto, tinhas ou não?

 

Ela não coxeava a fingir, tem o pé esquerdo que parece uma batata, a sério notou com generosidade David. Isto deve doer-lhe muito.”

 

Debruçou-se com o seu horroroso sorriso cujo significado Prisca compreendia agora. Com o pretexto de apalpar o tornozelo, ia pôr-lhe a mão sobre o joelho quando o seu olhar cruzou com outro verde-acinzentado glacial, desdenhoso, tão desprovido de coquetismo, tão desencorajante e finalmente tão belo, que se ergueu, de sorriso apagado.

 

”Bom disse ele mudando de tom e, dessa vez, enfim, natural. Que podemos fazer para a ajudar?

 

Gostava de comer qualquer coisa”, disse Prisca. Ela olhava-os a ambos com a sua maneira directa,

 

fria, sem agressividade inútil. E tinha também uma autoridade de que David era o primeiro a sentir-lhe o peso, mas que deve ter dominado Renaud, que perguntou:

 

”És capaz de andar? Temos tudo o que precisas no nosso abrigo. Habitamos na ilha, lá em baixo, no meio do rio.

 

Posso andar muito bem. Vim desde Pont d’Espagne... como viram.”

 

Não era uma alfinetada, era uma observação realista feita no tom que ela teria feito mal abandonar, pois ele obtivera um sucesso inesperado de virar a situação: tomavam-na a sério. O futuro surgia menos negro e a discussão possível. Enquanto esperava, era obrigada a reconhecer que lhe doía. E era preciso atravessar quase toda a largura da água em equilíbrio sobre pedras oscilantes. Renaud estava a executar um número de volteio que não teria sido reprovado por um cabrito da montanha.

 

Diminuída por causa do tornozelo doente, Prisca tinha de confessar a si própria que aquilo não lhe era nada fácil. David estendeu-lhe a mão, que ela aceitou.

 

”Desculpa-me por há bocado”, disse ele.

 

O barulho do rio levou as palavras, que Prisca mais adivinhou do que entendeu e que punham as coisas outra vez no seu lugar. Tentou voltar a encontrar para David o sorriso Juvet, o que Jacques Launay apreciava e que dava a Véronique essa doçura gentil, esse encanto ao qual o comandante de bordo não resistia. Em Prisca foi mais um ricto por causa das vinte e quatro horas de jejum e de exercícios. Sentia-se gelada. Já não podia mais...

 

”É melhor que eu te leve”, disse David quase tímido.

 

Ela acenou com a cabeça. Ele tomou-a nos braços com a mesma facilidade, mas desta vez Prisca não teve o menor desejo de se deixar embalar pelos seus estúpidos sonhos românticos. Acabava de descobrir uma realidade dura que varria as recordações, um novo David de quem ignorava tudo. Aqui acabava o sonho e começava a vida.

 

David chegou à ilha em poucas passadas.

 

”É aqui”, disse ele, depondo-a sobre uma relva esponjosa.

 

Renaud preparava já um fogo diante duma espécie de abrigo construído entre duas árvores com um grande monte de pedras apanhadas no leito do rio. Umjecto de silvas, de ramos, dava a esta bizarra construção um aspecto desgrenhado. Mesmo assim, tudo aquilo parecia sólido e suficientemente confortável para dois. Era sobretudo um pouco infantil, e Prisca susteve um sorriso: David e Renaud brincavam aos índios! Jogo que convinha a Renaud e ao qual David, adivinhava a gentileza de se prestar. Todavia, a solidão começava a tornar-se-lhes pesada: Prisca notou a ingenuidade, o prazer visível, com que aqueles ”duros” lhe faziam a honra da sua cabana, como se se tratasse dum palácio. Da parte de Renaud, isso não a espantou. Mas a candura de David, gabando-lhe a astuciosa disposição das pedras, espantava-a, se bem que ela fizesse tudo para o esconder. Pensou que essa alma em princípio perdida se tornava demasiado fácil de recuperar. Perdoou-lhe os gracejos de mau gosto, o sorriso exasperante e todo o resto. Depois, acautelando-se para não perder os seus grandes ares ofendidos, admirou, como eles esperavam, a obra de arte.

 

Sentiam-se felizes por receber uma convidada, mas um pouco desconcertados com a sua atitude. Renaud sobretudo, que envidava todos os seus esforços para parecer... mundano.

 

Prisca reconheceu as vitualhas de Christine, incluindo os bilhetes-postais e vestígios de caramelos. Renaud sacudiu o fundo do saco:

 

”Um bombom? É tudo o que temos como aperitivo.

 

Obrigada respondeu Prisca, tomá-lo-ei antes à sobremesa, se não te importas.

 

Oh!, oh!”, disse imediatamente o rapaz, espantado com tanta distinção.

 

Devorava Prisca com os olhos, como se ela fosse um animal raro, ou uma dessas heroínas de contos de fadas cujos nomes ele esquecera, mas não a nobreza.

 

David calava-se. Evitava mesmo olhá-la. Seria que via agora que há pouco forçara a dose? Renaud e ele, querendo mostrar-se cada um o mais horrível possível, desejariam provar mutuamente a sua capacidade no género?... Deviam lamentá-lo. Em todo o caso, eles estavam menos à vontade do que Prisca. Ela sentiu uma enorme vontade de rir.

 

David cortava grandes fatias de pão.

 

”Isto serve de prato disse ele. É assim que comemos. Que preferes para começar? Paio, presunto, queijo? Há bastante. Come o que te apetecer, mas é sempre a mesma ementa. Umas vezes começamos ao contrário, para parecer diferente. Nota que, se quiseres, também temos caixas de conserva e uma enorme quantidade de massas.

 

Dá-me qualquer coisa e pela ordem que quiseres disse Prisca. Tenho a impressão de que não como há oito dias.”

 

David estendeu uma fatia de presunto em cima do pão, e logo às primeiras dentadas ela se sentiu melhor. Renaud foi a correr pescar ao rio ”a garrafa que estava a refrescar”, uma água pura como já não se encontra senão na montanha. Um luxo. Prisca pensava, enquanto a bebia, que a vida, ali, tinha o poder de fazer esquecer as outras coisas e as outras pessoas. Até as mais graves responsabilidades...

 

Olhou David.

 

Parecia que ele assumia a dele à sua maneira e alcançava mesmo, em certa medida, o êxito. Bastava, para que se ficasse persuadido disso, recordar o que tinham dito primeiro Bertrand e depois Mélie em relação a Renaud, do seu terror, do seu desequilíbrio, e vê-lo agora. O seu rosto mostrava melhor que alegria. Uma forma de felicidade.

 

”Que fazem vocês todo o dia? perguntou Prisca.

 

O que Renaud quer”, respondeu David. E Renaud teve um sorriso orgulhoso:

 

”Porque David”, explicou ele, ”é o meu camarada.” Era evidente. Havia uma tal confiança nesta maneira de o exprimir, uma amizade tão resplandecente! Prisca compreendeu melhor do que em casa de Mélie porque é que David não voltava para Paris: ele ocupava-se verdadeiramente de Renaud. E, sobretudo, deixava à criança a liberdade de escolher, de decidir, de assumir. Prisca reconhecia que aquela não era uma má terapêutica, o mal era que ela fazia o desespero dos pais, amotinava a polícia e arriscava também David... ao banco dos réus, face à justiça.

 

Isso, esquecia-o ele, ou estava-se nas tintas, pois o tratamento administrado a Renaud produzia bons resultados. E tanto pior para o desespero dos pais! Estranha moral essa, em que a amizade se junta por vezes ao amor num maravilhoso egoísmo a dois, donde todos os outros são excluídos.

 

Fácil de compreender e difícil de admitir! Porque, enfim, David e Renaud não podiam continuar a viver muito tempo como duas aves ao acaso, uma protegendo a outra, perdidas na montanha!

 

O adolescente chafurdava no rio, saltando de pedra em pedra em direcção à margem, à procura de lenha para o fogo. David, meio deitado, parecia absorto na contemplação da corrente. De vez em quando atirava uma pedra à água, como se esse passatempo fosse a finalidade da sua vida.

 

Na realidade, ele vigiava Renaud. Prisca reparou nisso quando o viu responder a um sinal do garoto. Isso devia ter uma relação com a fogueira, porque David remexeu as brasas para arderem melhor e fazerem menos fumo. Tinham medo de ser notados. Em qualquer caso, Renaud receava-o, e David entrava no jogo.

 

Prisca terminou a refeição. Nunca se teria julgado capaz de engolir uma tal quantidade de alimento. Um apetite assim divertia David:

 

”Queres mais guisado, ou preferes sardinhas? É só abrir uma lata.”

 

De boca cheia, ela abanou a cabeça. Saciada, aquecida, achava a vida agradável e o problema Renaud menos grave do que o que parecia.

 

”Se quiseres, posso fazer-te café.

 

Boa ideia. David...”

 

Ele olhou-a espantado por ela ter pronunciado o seu nome:!

 

”Que é?

 

Não te aborreces?

 

Aqui? Nunca. Tenho muito trabalho.” Sorriu e explicou: ”O garoto. E depois... gosto disto. Ninguém pode aborrecer-se na montanha, há imensas coisas a descobrir.

 

No mar também não disse Prisca, quando se gosta dele.

 

Hum!”, rematou David.

 

Ele lançara-lhe um olhar. Desviou-se. Ela admirava-se de que ele não procurasse saber o que fazia ela na montanha tendo por único equipamento um saco de mão, uma única camisola e umas socas.

 

Teve de admitir que ele não era curioso. Ou então evitava uma conversa que iria dar oportunidade a perguntas, seria preciso explicar a sua presença ali e a de Renaud, mentir. David não tinha com certeza nenhuma vontade disso. Em contrapartida, abstinha-se de se ocupar do caso dela.

 

Comportavam-se pois como se, durante toda uma eternidade, tivessem vivido numa ilha no meio dum rio, sabendo o suficiente um do outro para não sentirem nenhum desejo de trocar a menor ideia.

 

Prisca sentiu, todavia, que David a observava, às escondidas. Se ela soubesse o que ele pensava! Na verdade, ela não lhe recordaria nada?... Ela entrava no jogo, sempre à espera que ele adivinhasse, esperando nem ela sabia o quê. O instinto, o baque no coração?

 

Um dia ele dissera:

 

”Onde estiveres, e durante toda a minha vida, se me chamares em teu socorro, eu acorrerei.”

 

Isto fora há tanto tempo! Uma manhã, na praia de Paramé, ele estava empoleirado no cimo dum rochedo que avançava para o mar e Prisca, em baixo, apanhara em pleno peito uma onda da maré, que estava a encher. Quando ela emergira de toda aquela água, ela vira-o no mesmo lugar, o céu ao fundo, com um braço estendido para ela. Ele dissera outra vez:

 

”Reconhecer-te-ei seja onde for e quando for. Nunca esqueças o que acabo de te dizer.”

 

Mergulhara lá de cima e ferira o nariz na areia.

 

Prisca esteve quase a desatar a rir a essa recordação e procurou David com os olhos.

 

Ele estava atrás dela, fazendo curiosos efeitos de rastejo para introduzir uma parte de si próprio na abertura do abrigo, demasiado exígua para o seu tamanho. Tornou a sair com uma caçarola na mão. Uma bela caçarola que fazia parte do trem de Mélie. Ela devia-lha ter cedido com pouca vontade Lá dentro estavam amontoados um copo, açúcar e uma caixa de café em pó.

 

David despejou tudo aos pés de Prisca e estendeu o braço para encher de água a caçarola: o abastecimento de líquido, na ilha, necessitava apenas dum esforço mínimo. Parecia mais complicado manter em equilíbrio em cima dumas pedras, e por cima do fogo, um recipiente cheio de água. David lá o conseguiu. Procedia com uma prudente economia de gestos, de palavras e com habilidade... Sempre fora habilidoso.

 

Mas na verdade ele não animava a conversa. Todas as tentativas de Prisca, respondia com vagas onomatopeias, e o silêncio voltava a cair. Ele nem sequer lhe perguntara o nome.

 

Renaud veio depor uma braçada de lenha junto do fogo e, desdenhando o futuro café, declarou que era a sua vez de ir ver o que se passava.

 

”De acordo”, pronunciou David.

 

Grande esforço da sua parte!

 

Renaud tornou a partir. Prisca viu-o depois sobre a crista mais próxima, destacando-se no céu luminoso. Eles tinham de se colocar, cada um por sua vez, nos sítios altos para vigiar as eventuais patrulhas dos guardas. Era provavelmente a principal das suas ocupações.

 

Já não se ouvia, outra vez, senão o crepitar do fogo e em breve o ligeiro cantarolar da água, que começava a ferver.

 

David mergulhou a lâmina da sua faca no pó de café, do qual deitou uma boa porção no fundo do copo. Essa faca, Prisca reconheceu-a imediatamente. Datava daquele mês de Agosto em Saint-Malo...

 

Ela fora com David à cutelaria. Nunca mais acabava de escolher, impossível de encontrar absolutamente o que ele queria. Por fim, Prisca, que já estava farta, estendera-lhe aquela porque era encarnada, com uma argola para pendurar no cinto, e tinha de lado uma placazinha de prata que representava um leão. Ela dissera:

 

”Leva esta, é a que eu prefiro.”

 

E David comprara-a...

 

Ela tirou-lha das mãos. Depois devolveu-lha. Sorria.

 

”É uma faca de escuteiro”, disse David, supondo que ela troçava, ”mas tenho-a há tanto tempo...”

 

Com a ponta da lâmina mexeu o açúcar no fundo do copo, que depois estendeu a Prisca.

 

”E tu? perguntou ela.

 

Tomo depois, só há um copo. Tínhamos dois...

 

mas o outro partiu-se.”

 

Ele viu-a beber. Ela julgou que, como há pouco, ele se virasse e começasse a atirar pedras para a água. Nada disso. Já não a deixava com os olhos. Estudava-lhe o rosto, observando-o com um ar sério quase tão incómodo como o interesse equívoco de antes de almoço. De nariz no copo, Prisca bebeu em pequenas goladas o café muito quente, cujo gosto nem sentia. Quando finalmente o exame cessou subitamente, ela pôde retomar o fôlego. Depois disso, deu-se ao luxo dum pequeno estudo pessoal. Cada um por sua vez. Mas de David ela já não via senão umas costas queimadas pelo sol e uma nuca pálida sob uns cabelos demasiado compridos.

 

Ele arrancou uma erva, que começou a mascar, de ar ausente, de braços apoiados nos joelhos. Por um instante virou-se para Prisca, depois retomou a mesma posição, tendo-se virado o suficiente para realçar a linha firme do seu nariz, tão fino e direito como o de Clara Verneuil. Parecia-se tanto com a mãe que com certeza lho deviam dizer, e talvez fosse essa a razão por que ele deixava desenvolver um sistema piloso que, dissimulando em parte os seus traços, o transformava num desses Cristos da rua, quase todos idênticos.

 

Mas isso não conseguia desfeá-lo. Com quinze anos, ele detestava essa famosa beleza com que, com cochichos e olhares admirativos, lhes massacravam os ouvidos. Esse era mesmo um dos seus principais complexos! Pode-se ter tanto horror de ser belo como de ser feio.

 

Prisca deixava correr os pensamentos ao som do sussurro da água. Por isso sobressaltou-se ao ouvir a voz de David, tão pouco a esperava!

 

”Tu não queres mesmo que te trate do tornozelo?

 

Eu nunca disse que não queria.

 

É verdade”, disse David.

 

Pousou nela um olhar divertido e acrescentou:

 

”Era pior.”

 

Alguns instantes depois, enquanto ele massajava conscienciosamente o inchaço, atirou sem levantar a cabeça:

 

”Poderei dizer-te que és bela sem tu teres vontade de me assassinar?”

 

Prisca desatou a rir e ambos se sentiram mais à vontade.

 

Para além da cascata, na vertente ao longe apareceu a mancha vermelha da camisola de Renaud. Agitava os braços e David ergueu-se para lhe responder da mesma maneira. Isto devia querer dizer: ”Corre tudo bem, não há problemas.” Ou qualquer coisa semelhante. Um código conhecido só deles, mas cuja importância só tinha equivalente no ar sério com que eles gesticulavam.

 

Continuavam a brincar aos índios!

 

Mesmo assim, era um pouco difícil. A mancha vermelha desceu por uma vertente abaixo e depois perdeu-se numa extensão verde e malva.

 

”Lá vai ele a galope outra vez. Uma verdadeira lebre disse David, só sabe fugir.

 

Ensina-o a fazer frente, como os gatos.”

 

Se ela o tivesse picado com um alfinete, ele não teria reagido com mais brusquidão. Era ele quem fazia frente e mergulhava um olhar agudo no de Prisca:

 

”Porque é que dizes isso?

 

Não tenho razão?

 

Tens. Vem mesmo a calhar.

 

Ah, bom. Não tenho o direito de vir mesmo a propósito?

 

Decididamente! murmurou David.

 

Decididamente o quê?”

 

A resposta foi um risinho curto, como se David troçasse de si próprio. Encolhendo os ombros, sentou-se finalmente ao pé de Prisca, descontraído e sorridente.

 

”Inacreditável! disse ele. Inacreditável como tu me fazes lembrar uma garota que conheci há muito tempo. Tinha os mesmos olhos que tu, a mesma maneira de engolir as palavras e de agredir as pessoas. E depois, de repente, esses olhares graves... Inacreditável! Digo-te já para que não me pespegues outro par de bofetadas: era alguém extraordinário. Uma rapariga excepcional. Nunca a esqueci... Bom, posso continuar?

 

Podes, podes!”

 

Ele lançou-se na narração de recordações que amava Deus, como era bom ouvi-lo! Maravilhoso saber que para ele também elas existiam. Por nada deste mundo ela o teria interrompido. Ele contava agora o encantamento da infância deles, que ela voltava a encontrar junto dele, com ele, e quando ele se equivocava, misturando a cronologia dos factos, esquecendo os nomes, confundindo o pequeno ruivo do molhe com Gégé e os seus olhos à flor da testa, ela murmurou um nome, restabeleceu as coisas...

 

Ele ficou um instante imóvel, estupidificado pela evidência. E depois, de repente, ela sentiu-se erguida do solo, esmagada contra um peito duro por uns braços ferozmente musculosos, enquanto, no limite da sufocação, ela o ouvia rugir entre duas gargalhadas:

 

”Idiota! Minha pobre idiota! Minha imbecil, não podias dizer-mo logo?

 

Será que, ao menos, te recordas do meu nome?”, acabou ela por articular.

 

A resposta foi uma tareia de injúrias, de insultos de toda a espécie, à mistura de acessos de riso louco antes de dizer esse nome: Prisca... que ele gritou ao espaço, ao rio, e que os ecos da montanha multiplicaram até ao infinito. E ele ria ainda, despenteando-lhe os cabelos, sacudindo-lhe os ombros, tão candidamente feliz por voltar a encontrá-la que ela tinha lágrimas nos olhos.

 

Quando finalmente se acalmou, afastou-a um pouco de si e, formando uma frase normal, perguntou:

 

”Mas porque é que representaste esta comédia ridícula?

 

A princípio por causa de... por causa do lago, creio eu.”

 

O riso de David recomeçou com mais vontade. Dissolvia-se no ar como no tempo da sua adolescência, subia em agudo, descia para o grave, tão sonoro... que a mancha da camisola vermelha reapareceu na outra margem e a voz de Renaud gritou:

 

”Que é que aconteceu? Pode-se saber?”

 

Não houve resposta e Renaud, exprimindo com vigor o seu descontentamento, desapareceu sem que os outros tivessem sequer pensado nele.

 

”Pergunto que importância pode ter isso. A beira do lago! dizia David. Uma gaivota nua. O que eu troço da gaivota sem penas! Eu, que te conheci com os joelhos esfolados e o nariz lambuzado de doces. Ah, não, na verdade, a beira do lago, zero. Não tem importância. Vamos, conta lá. Que é que pretendes daqui? Andavas à minha procura? Não me admirava nada isso de ti.

 

Por causa de Renaud.”

 

David inclinou a cabeça com esse sorriso dos olhos que já não o deixava:

 

”Por causa do Renaud, com certeza! Sempre a tua mentalidade de são-bernardo! Não mudaste. Já com dez anos tu me vigiavas. A quantidade de caranguejos e de medusas que me fizeste tornar a deitar à água com lágrimas de enternecimento. Bom, falemos a sério. Suponho que viste a Mélie...

 

Vi. E o teu amigo Bertrand, em Paris.”

 

Ele ficou com um ar verdadeiramente espantado:

 

”Mas como é que foi tudo isso?”

 

Prisca ia lançar-se nas suas explicações quando, diante de David e do seu sorriso, compreendeu que não havia nenhumas. Os seus motivos pareceram-lhe nebulosos, confusos e impossíveis de formular. Tentou no entanto achar alguma:

 

”Foi o acaso”, titubeou ela. ”Enfim, não, mas... Vi a tua mãe em Orly... o seu acidente... aquela cicatriz junto da boca... Pensei em ti e então...”

 

Sentiu-se triste. Repentinamente triste.

 

David ia-se-lhe confiar, ela sabia-o, sem reticências. Era exactamente o que ela desejara ao deixar Paris e não sentia com isso nenhuma alegria. O seu amigo de infância provava-lhe a sua amizade para além dos anos de separação, ela devia ter-lhe saltado ao pescoço como ele fizera, e havia qualquer coisa nela pronta a repeli-lo.

 

Ele falava, falava... Da mãe não disse uma palavra. Mas de Renaud!... Falava dele, dele e dos seus problemas, tão longamente que a tarde estava quase passada. Renaud!, a sua grande preocupação.

 

Então Prisca abanava a cabeça, participava, respondia, dava sábios conselhos, mas não experimentava nenhuma exaltação.

 

O entusiasmo que a conduzira desaparecera e ela perguntava a si própria porquê. Querido David, tão amigo!

 

Ele interrogava-a:

 

”Tu, que és uma rapariga equilibrada...”

 

E depois, para terminar:

 

”Se eu tivesse uma irmã, gostava que se parecesse contigo... Fizeste uma cara! Aborreço-te?”

 

Oh, aquela falta de entusiasmo contra a qual ela lutava, aquele pânico diante dum abismo cuja profundidade ela não media! Aquele nada de repente...

 

”Dói-me a cabeça, David.

 

Que cretino eu sou, estou a fatigar-te com as minhas histórias, que pateta; vamos, deita-te e descansa.”

 

Ela tinha uma terrível vontade de o fazer. Fechar os olhos, escutar David, mas pelo menos não ter de responder. Ele enrolou-lhe uma camisola debaixo da nuca e cobriu-a com um casaco grosso. E ela, com uma voz grossa que vinha do Diabo:

 

”Conta, agora. Conta, assim está melhor.

 

Já contei muito. Amanhã temos tempo.

 

Mas...

 

Tu ficas connosco amanhã. Não podes andar com o tornozelo nesse estado. E depois tenho muitas coisas para te dizer. Não imaginas como me sinto feliz e tranquilo ao pé de ti. É a amizade, a verdadeira. E, como vês, voltou logo. Teria podido durar sempre.

 

Nada te impedia de me mandares um postal notou Prisca. Tinhas a nossa direcção, a de Véronique e a minha, continua a ser a mesma.”

 

David teve um sorriso:

 

”Sempre a mesma direcção! A minha mãe e eu passamos a nossa vida a mudar-nos. Ela adora mudar de casa, e eu fazia que me pusessem na rua em todas as pensões onde ela me encaixava. Fosse em que país fosse. Ela pagava cada vez mais e eu ia cada vez mais depressa.

 

A propósito da tua mãe...

 

Oh, não disse David de ar extenuado. Falemos doutra coisa. A tua irmã continua a ser bonita?”

 

Ele olhava Prisca, outra vez feliz. ”A minha irmã vai muito bem. É hospedeira do ar e está quase casada com um comandante de bordo.

 

Ah”, disse David com uma indiferença que encantou Prisca.

 

Ela sacudiu-se como um cão quando sai da água. ”Que é que tens?

 

Não sei. Tenho qualquer coisa desequilibrada na cabeça.

 

Continuas com dores?

 

Nada.”

 

David desatou a rir e Prisca disse consigo que ele tinha ao menos o dom de a distrair. Mas quem a ajudaria a desenvencilhar a trapalhada de ideias informes, sem pés nem cabeça, no meio das quais se debatia?

 

”Tenho pensado muito em vocês as duas declarava David. Sobretudo nos últimos anos. Muitas vezes. Estive quase para te telefonar.

 

A mim? Porquê?

 

Não faças perguntas idiotas, já te disse porquê... porque tu és a recordação da minha infância, da minha adolescência. Tu és a minha recordação... Bertrand contou-te que eu fugi de casa uma bela manhã há quatro anos?”

 

Prisca acenou com a cabeça. Ela tornava a ver a boca defeituosa de Clara Verneuil; David não estava lá para acolher a mãe, que estava sozinha. Muito sozinha. Ele ocupava-se era de Renaud.

 

”Na véspera da minha partida dizia David, arrumei uma quantidade de papelada em casa. Encontrei a minha velha agenda com a tua direcção e o teu número de telefone... escrito pela tua mão, minha amiguinha, uma má caligrafia de bebé, com a tinta já meio apagada.

 

Porque não me telefonaste?”

 

David reencontrou a expressão faunesca de antigamente:

 

”Porque algumas vezes as meninas que crescem são horríveis.”

 

E acrescentou:

 

”Tinha um medo terrível de ficar decepcionado. Não falo do físico, mas do resto.”

 

E bateu várias vezes na testa para mostrar o que queria dizer:

 

”O físico, estou-me nas tintas. Raparigas bonitas há-as aí por todos os cantos. Mas gaivotas... é raro.”

 

Os seus olhos brilhantes exprimiam uma tal ternura que a impressão bizarra, desconfortável, se apagou. Prisca reencontrou o gosto de viver como um peixe récém-pescado que se atira de novo à água. Ela escutou a voz de David levando-a para longe da sua miragem. De novo o David. A amizade reencontrada.

 

Ele agarrara-a pelos ombros, erguia-a quase, e apertava-a de encontro a ele com uma gentileza de irmão mais velho que voltava:

 

”Diabo!”, disse ele, ”estou mesmo contente.”

 

Tomou o seu rosto entre as mãos, mergulhou no fundo das suas pupilas verde-acinzentadas um olhar encantado:

 

”Está tudo lá dentro, tudo o que eu amo... o mar e as gaivotas, o céu de hoje com o seu sol. Prisca, minha doçura, não me olhes assim, pareces uma esfinge. Em que pensas tu?”

 

Ter-lhe-ia sido impossível dizer-lho: ela sonhava com o que seria a sua vida se de repente, agora, os lábios de David se aproximassem dos seus e se...

 

Ele pespegou um sólido beijo em cada uma das suas faces e libertou-lhe o rosto:

 

”Aposto que esse patife do Bertrand te contou uma quantidade de coisas que teria feito melhor calar. Era nisso que estavas a pensar? Ele disse que eu, um corrompido, e sobretudo com as raparigas, eu... É verdade. Mas não tenhas medo, não sou assim tão desprezível como se podia pensar, há um certo número de princípios que respeito. E algumas pessoas...”

 

Houve uma grande doçura na sua voz:

 

”Tu, por exemplo”, acrescentou ele.

 

E acentuou as suas palavras com um bom riso, bateu no ombro de Prisca e levantou-se. De pé diante dela, ele parecia enorme:

 

”Vou à procura de Renaud”, disse ele. ”Aquele animalzinho anda a caçar com meios proibidos. Tem a mania de pôr armadilhas por toda a parte. Nunca apanha nada e nós ficamos condenados ao presunto ou às salsichas, mas arrisca-se a quebrar o pescoço.”

 

Prisca fez um movimento para se levantar.

 

”Não, tu ficas a descansar. Se tiveres coragem, aquece um pouco de água com uma mão-cheia de sal grosso, que encontras na cabana, e põe o pé lá dentro. O mais quente que puderes aguentar. Vais ver que amanhã o teu tornozelo estará muito melhor.

 

Mas amanhã de manhã, David começou Prisca, eu...

 

Tu estarás ainda connosco cortou David, calçando umas sapatilhas velhas.

 

Escuta, eu...

 

Cala-te. Até prova em contrário, quem manda sou eu: o direito de mais velho! E depois tu sabes muito bem que eu sou uma pessoa grosseira.”

 

O seu riso afastou-se enquanto ele ia atravessando o rio com aquela mesma graça gentil que tinha em adolescente, quando escalava as falésias da Guimorais.

 

Na outra margem virou-se, fazendo um gesto de adeus um pouco indolente. Sempre essa economia de movimento, essa descontracção. Prisca olhou-o muito tempo enquanto ele caminhava com o seu passo largo, o que o levava outrora duma ponta do molhe à outra sob o olhar espantado de alguns inocentes turistas que se extasiavam perante o esplendor juvenil dos seus quinze anos.

 

Desapareceu atrás da parede aveludada duma rocha em forma de ovo, azulada como um dorso de baleia. Prisca erguera-se para o ver durante mais tempo... Dormir, repousar, nem pensar nisso. Resolveu explorar a ilhota. Encontrou, atirados ao acaso, fatos, que, por reflexo, juntou, e, como um cordão estendido entre duas arvorezitas parecia esperar uma improvável barrela, procurou sabão. Descobriu um bocado debaixo do abrigo, em companhia de sal, duma quantidade de caixas de conservas e duma impressionante reserva de massas. Estariam eles condenados ao presunto e às salsichas por preguiça ou preparar-se-iam para um cerco?

 

Na ponta da ilha, junto da ”garrafa a refrescar”, estava pendurado por um cordão um cesto, no qual Prisca descobriu um pacote de manteiga num balde de plástico. Outra vez Mélie! O carregamento durante a expedição devia ter parecido pesado! Ela imaginou os largos ombros de David curvados sob o peso do saco. Isso fê-la rir.

 

Tanto pior para o direito do mais velho: ela sentia-se com força para tomar as rédeas do governo. Uma vez mais, reparou na criancice da situação, e, já que era preciso uma squaw nesse jogo de índios, lavou, limpou, depois abriu uma caixa de molho de tomate. À falta de ralador, cortou um bocado de queijo em bocadinhos para o único prato que descobriu e pôs água a aquecer, não para escaldar o tornozelo, mas para cozer spaghetti.

 

Já eram perto de sete horas no seu relógio quando tudo ficou pronto. David não aparecia com o seu jovem... cativo.

 

Já a montanha se tornava violeta e refrescava ao vento da tarde quando um clamor assinalou nas paragens imediatas a presença de ”o terrível”. Vozes virando para o agudo com o acampamento de gritinhos cacarejados numa tendência irónica:

 

”Palavra de honra, David, isto é Bizâncio. Ela amima-nos com uma panela de cozido.”

 

Mas Prisca não só notou o salto no seu peito, essa onda de pânico que se apoderava dela sem que tivesse necessidade de se virar para o ver. Aplicava-se a soprar no lume, e quando levantou a cabeça viu David embarcar na ilha como um capitão corsário que se juntasse à sua tripulação, arrastando atrás de si o grumete cambaleando na torrente, tomado de alegria, como se tivesse bebido.

 

David!... Ele debruçava-se, trocista, fraternal:

 

”Então, minha gaivota, vamos ser engordados? Que admirável donazinha de casa! Como é gentil! E tão poético, uma linda criatura a escorrer a massa!”

 

Ela escorria-a sobre a raqueta de ténis. Tudo o que encontrara para fazer de passador. Ouviu perto dela um gemido queixoso que parecia um uivo:

 

”David, a minha raqueta! Ela picou-me a minha raq... Não! Olha para ela! Vamos lá socorrer as raparigas que encontramos à beira dos rios!”

 

Ela despejou com serenidade a água da caçarola e deitou-lhe lá dentro o spaghetti. Depois disso, achou que devia explicar:

 

”Achei curioso que vocês trouxessem só uma raqueta, pelo que concluí que ela era destinada a outros fins que não a arremessar bolas.

 

Ela veio do celeiro da Mélie gritou Renaud; ela tinha-ma dado.”

 

Apoderou-se dela e limpou-a com amor. Prisca ergueu para o seu fraternal amigo um olhar tão indiferente quanto possível:

 

”Boa caça? perguntou ela.

 

Nada suspirou David. No seu sabaí, esta noite, as lebres dançarão ao luar. Paz à sua festa. Nem uma faltará.”

 

Acentuou esta tirada lírica com uma sólida palmada na cabeça de Renaud:

 

”Ele vai fazer disso uma tragédia, pobre pequeno. É estranho, ele conservou as características do homem de Neanderthal, data da pré-história; mataria com um sílex, se fosse preciso, e comeria a carne crua das suas vítimas. Não é assim, Querubim?

 

Que é lá isso?! resmungou o garoto. Julgas que tens muita graça?”

 

Que corrida misteriosa dera a ambos essas cores e essa alegria? A sua felicidade não seria talvez senão o simples atractivo duma cumplicidade que fazia o orgulho de Renaud, apagava a sua susceptibilidade, mas em que David perdia em cada minuto um pouco mais da sua autoridade de adulto. Mas ele parecia feliz por isso. Alegrar-se-ia por ganhar a admiração e a adoração dessa criança? Essa fórmula de educação transformava-se, infelizmente, em demagogia, fraqueza de que Renaud abusava:

 

”Passa-me o meu casaco, David, tenho frio.” Ele não se deslocaria para ir buscar qualquer coisa para se cobrir e bania a menor fórmula de delicadeza. Era evidente que David não o exigia. Foi ao abrigo procurar entre os fatos que Prisca tão bem arrumara e atirou a Renaud um velho gabão cortado no tecido azul de que eram feitos antigamente os capotes militares. O abafo chegava-lhe até aos joelhos e ele correu a rebolar-se voluptuosamente na erva enlameada da borda-d’agua. Para alguém que tinha frio, era estranho. Mas Prisca conservou o seu sorriso angélico... E esteve quase a perdê-lo quando David vociferou com uma voz cavernosa:

 

”Mais respeito por essa antiguidade, meu patife. Isso fez a guerra, essa capa, meu paspalhão. A boa guerra, que mata! Ah, ah, cantemos um hino à gloriosa carnificina!

 

’Não é sopa, é guisado’ espantou-se Renaud com uma alegre ferocidade, com os pulsos ossudos a sair do capote para marcar o compasso.

 

Allans enfants de la patrie’i, continuou David com uma voz sepulcral.

 

Isto devia ser prodigiosamente engraçado, e eles divertiram-se um bom bocado. Depois, Renaud, com os braços estendidos como um espantalho na sua ampla réplica, berrou para pôr fim à desafinada cacofonia:

 

”Cala-te!... Isso pode chocar”, acompanhando este rudimentar convite ao silêncio com um gesto com o queixo em direcção da intrusa, em direcção da imperturbável Prisca, que mexia o molho de tomate no fundo da caçarola, onde a massa transbordava.

 

”Oh”, disse ela, serena, ”não se incomodem por minha causa, cada um se divirta como lhe apetecer, mesmo da maneira mais infantil. Não é verdade, David?”

 

Ele deitou-lhe um olhar assassino, depois meteu os braços nas mangas dum pulôver. A cabeça desapareceu em seguida. Ela emergiu da abertura resolutamente agressiva... e Prisca viu virar-se para ela um olhar azul inocente por cima dum terno sorriso.

 

A voz de David fez-se inquietadora de doçura:

 

”Segundo a tua opinião, cantar com um tom sério, trágico, os hinos sagrados é então prova de maturidade?... É possível. Possível, sim, pois ao som desta música é o que o pai de Mélie partiu para a guerra; e depois o marido, na outra guerra seguinte.”

 

O tom de David subiu, uma veia inchada na sua testa:

 

”Resultado? Quase nada. Um pequeno buraco nos rins.

 

”Salvaram o marido de Mélie. Morreu vinte e sete anos mais tarde, velho e paralítico. Não há muito tempo. Mas durante vinte e sete anos, por causa do seu buraco nos rins, não pôde fazer senão amanhar de vez em quando um canteiro de batatas no seu jardim. E como a sua pensão de invalidez não era gorda, foi preciso que Mélie aumentasse o orçamento para criar Christine conforme as suas ambições.

 

”Então, ela foi arranjar os vestidos da minha mãe. E também cozinhava. Admiravelmente bem. E depois ela era alegre. E, por cima da obrigação, quando eu nasci, dedicou-se-me. Como vês, ela servia para tudo, a Mélie. A pérola das criadas! Uma boa criada gorda para uma adorável jovem de quem se vendia o talento, o rosto e o corpo à custa de grande publicidade. Não é uma bela história, tudo isto, para servir de fundo à Marselhesa?

 

”Boa Mélie, doce Clara, cujo único erro foi ter tido um filho. Por acaso. Um erro, em suma. Um entusiasmo desastroso. Mas quem não teria cometido essa imprudência no lugar de Clara: o seu empresário era tão encantador, tão atencioso... Ah!...”, suspirou David, ”querido papá!”

 

Desatou a rir. Renaud calava-se, fascinado. E Prisca, ajoelhada diante da caçarola, onde há muito se derretera a manteiga misturada com o molho de tomate e a massa, escutava esse rir, cuja amargura a gelava. Com a varinha em suspenso porque não encontrara outra espécie de colher, ela esperava o fim da crise, que veio tão brutalmente como começara.

 

Não houve mais nada além do silêncio. Um silêncio apenas perturbado pelo rugir afastado de cascata e o murmúrio da água na calma do entardecer.

 

David, imóvel, olhava Prisca.

 

”Minha gaivota...”, disse ele com uma doçura que fazia mal.

 

E afastou-se. Foi encostar-se a uma árvore no extremo da ilhota: corsário sem alegria espiando o horizonte ao pé do seu mastro; comandante solitário dum lúgubre navio encalhado entre os altos cumes... A sua cabeleira tomava reflexos de ocre, enquanto a montanha, do lado do oeste, oferecia o seu flanco aos últimos raios dum sombrio ouro vermelho.

 

”Não ligues”, cochichou Renaud ao ouvido de Prisca.

 

Ela sentia por ele uma ternura nova ao vê-lo junto dela, acocorado sob o seu capote demasiado grande. O fim do dia emprestava a sua tristeza vinda da imensidade dos tempos à dor de David.

 

”Isto dá-lhe de vez em quando. Mistura tudo. As guerras, as crianças, que não era preciso terem nascido, a mãe. Algumas vezes, o pai. É um tipo engraçado, o David. É uma espécie de...” O garoto hesitava, procurando a palavra:

 

”De anarquista complexado”, afirmou, orgulhoso da sua expressão.

 

Renaud, com a carita mal lavada virada para Prisca, oferecia a melancolia de um olhar um pouco inquieto e de forma inesperada inteligente. Os seus olhos interrogavam como se quisessem adivinhar a apreciação que ela iria fazer sobre David e, eventualmente, rectificá-la.

 

Ele fungou. Devia ter apanhado uma constipação.

 

”Ele falou-me de ti, sabes? disse ele, esperando o calor duma reacção.

 

Ah disse Prisca, que se obstinava em mexer com a varinha uma papa já suficientemente mexida.

 

Não é lá muito frequente ele falar de raparigas”, insistiu Renaud.

 

Prisca teimava em evitar a conversa, como se aquela comida que ameaçava ficar queimada monopolizasse todas as suas faculdades. Renaud acrescentou com uma ligeira irritação:

 

”Tu és importante para ele, sabes? É isso que eu queria dizer-te. Olha, não foi ele que me disse, eu é que adivinhou.

 

Que adivinhei rectificou Prisca.

 

Ora!”, rematou Renaud, encolhendo os ombros. Com um longo olhar duvidoso, avaliou Prisca e

 

depois chegou à conclusão, clara:

 

”Tu és muito bonita, mas não és lá muito esperta.” E, desgostoso, foi ter com David. Sentou-se aos pés dele. Três passos atrás. Como um bom cão fiel, amante e ajuizado.

 

Evidentemente que aquilo não podia durar muito. Um minuto mais tarde já estava de pé, berrando às montanhas, às costas de David e àquela rapariga muda preocupada com a sua caçarola:

 

”Então, está quase pronto? Tenho fome!

 

Estou à vossa espera”, vociferou Prisca no mesmo tom, o que teve pelo menos a vantagem de agitar a imóvel figura de proa.

 

David, desaparecidas toda a violência, agressividade ou amargura, parecia ter esquecido a sua tirada. Veio com indolência e graça examinar o conteúdo da caçarola, seguindo com os olhos o gesto de Prisca, que lhe deitava por cima o queijo cortado em finas tiras.

 

”Corta-me um pouco de presunto aos bocadinhos”, disse ela.

 

David obedeceu e, quando acabou, deitou-o também, como lhe pediam, na caçarola. Foi preciso mexer outra vez. Os fios de queijo derretido escorriam de maneira satisfatória. Prisca pescou um spaghetti e provou:

 

”Não está mau. Comam.

 

Com quê? perguntou Renaud, atacado outra vez dum dos seus exasperantes acessos de hilaridade cacarejante. Pratos partidos, garfos perdidos explicou, lacónico. Havia um buraco no saco, perdeu-se tudo pelo caminho... Ouve lá, David, quando foste a Pont d’Espagne, outro dia, podias ter pensado em trazer alguns, eu tinha-te dito.

 

Esqueci-me”, disse David.

 

Encolheu os ombros e olhou para Prisca com um ar compungido. Ela desatou num riso louco, cujo contágio atingiu os outros.

 

”Bom, então que é que se faz das tuas massas?”, cacarejou Renaud. ”Atiramo-las à água? Corta pão, David, ficamos pelo serviço de todos os dias.”

 

Empunhava já a caçarola, que Prisca defendia com uma aspereza que forçou a admiração do assaltante. Seguiu-se um assobio de apreciação e esta exclamação:

 

”Seja como for, tu é que não tens nada de massa.

 

Vocês podem aparar uns pauzinhos, não podem? Os Chineses fazem-no muito bem.”

 

Imperturbável, olhava-os de alto a baixo... O riso louco voltou ainda com mais força. Eles aparavam pauzinhos e, como dessa comunidade estava excluída toda a etiqueta, Prisca começou a servir-se a si própria em primeiro lugar, para tirar da caçarola o que podia. Ao ver isto, Renaud atirou-se ao petisco, com os dedos, clamando que o pai lhe ensinara aquele método experimentado em Marrocos quando do seu serviço militar

 

”Toma!”, disse David, ”tu falas do teu pai!”

 

Renaud esteve quase a estrangulá-lo:

 

”Eu estou a falar do serviço militar do meu pai em Marrocos”, gritou ele de olhar negro, ”não estou a falar do meu pai como ele é agora.”

 

Todavia, aquelas cambiantes difíceis de apreender não lhe tiravam o apetite, e conseguiu despejar metade do conteúdo da caçarola antes de David engolir uma garfada. Depois, repleto, manifestou a sua gratidão, dignando-se felicitar Prisca:

 

”Uma maravilha!”

 

Seguiu-se um comentário sobre a boa educação marroquina:

 

”Eles só se servem de três dedos da mão direita e não sujam mais nada, parece. Pergunto a mim próprio como é que eles fazem.”

 

Contemplava as mãos vermelhas de tomate até aos pulsos e foi muito civilmente lavá-las na corrente. Ao fazer isso, declarou que tinha sono e anunciou que se ia deitar.

 

”Isso, isso disse David, boa ideia. Parecia aliviado. Não fiques com os dois sacos-cama, se faz favor, um como colchão e o outro a fazer de colcha. Deixa um para Prisca.

 

Mmm resmungou o encantador garoto. De qualquer modo, dentro de uma hora acordo e vamos jogar às cartas todos três. De acordo?

 

Claro que reparou Prisca vocês não têm copos, nem pratos, nem talheres, mas não se esqueceram nem da raqueta sem bolas, nem das cartas!

 

E porque não, minha menina? suspirou Renaud, paternal. Nem toda a gente tem o espírito burguês!”

 

Satisfeito sem dúvida com esta última tirada, desapareceu atrás do abrigo, donde gritou que o não fossem perturbar. Pudor legítimo, que ninguém tinha intenção de não respeitar. Depois tornou a aparecer abotoando os calções, berrou ”Boa noite” e deslizou para dentro da cabana. Não o ouviram mais.

 

”Ufa! suspirou David.

 

Ele vai mesmo acordar para jogar às cartas?

 

Certamente que não! Ele tem um sono de chumbo, dorme doze horas seguidas, e ainda é preciso cantar a Traviata para o acordar.”

 

David continuou a pescar um a um os spaghetti já frios. O clarão do fogo iluminava-lhe o rosto, que ele erguia de vez em quando para olhar Prisca. Então sorria. Mas calava-se.

 

Terminada a refeição, foi lavar os poucos utensílios que tinham servido e declarou que com a lata de molho de tomate podia fazer uma colher. À falta de alicate que cortasse, servia-se duma faca de cabo. Não se ouvia senão o barulho delicado da lâmina contra a chapa, o murmúrio da água, a cascata ao longe e o ligeiro crepitar do fogo que se ia extinguindo.

 

Como antigamente, David fazia o que queria com as mãos...

 

Prisca perguntava a si própria como abordar o assunto do regresso. O de Renaud? O de David?

 

”O teu patrão já anda a resmungar disse ela por fim. Segundo Bertrand, ele anda mesmo de muito mau humor. Ela inventava, Bertrand não dissera nada a esse respeito Se te interessas em conservar o lugar naquela agência, acho que...

 

O trabalho que se faz lá não me interessa.

 

Mesmo assim, é um emprego.

 

Pois sim, minha querida”, disse ele com uma indiferença sorridente.

 

Era aquilo também, David, teimoso como recua de mulas, mas risonho. Precisamente o que era preciso para fazer renunciar a tirar-lhe qualquer palavra mais durante muito tempo. Tanto mais que ele martelava entre duas grandes pedras a embalagem de folha, como se isso representasse a única finalidade da sua existência.

 

Mas a teimosia de Prisca não tinha quebra. Ela reuniu a sua coragem e obliquou para um caminho de través: o mais perigoso dos caminhos.

 

”Se nós falássemos de Renaud?”

 

Resultado inesperado. David abandonou a embalagem de folha e a pedra-martelo.

 

”De acordo, falemos disse ele. Queres que agarre nesse garoto pela pele das costas e o leve aos pais, quer ele queira, quer não? A isso eu respondo-te já: não.

 

Porquê?

 

Porque não temos o direito de impor a um indivíduo, mesmo que ele seja uma criança, aquilo que o revolta.

 

Se uma criança brinca com fósforos com perigo de pegar fogo à casa, tu deixa-la?

 

Eu não lhe tiro os fósforos, explico-lhe que eles são perigosos.

 

E se ela não compreender?

 

Oh, Prisca, por amor de Deus, deixa-me em paz com a tua santa razão! Eu estou ao corrente do caso particular de Renaud. Ele voltará para casa quando tiver compreendido que não é rejeitado pelo pai, isto é, por toda a gente. Por agora, ele considera-me como seu escravo, isso tranquiliza-o. Eu sou o seu amigo. Obterei dele o que quiser... em breve. Já consegui tirar-lhe a obsessão da fronteira, levei-o várias vezes até um refúgio que está mesmo no limite, disse-lhe que passar para o outro lado não tinha nenhum interesse, que o encontrariam facilmente e que estávamos muito bem aqui. Isto já entrou no seu cérebro, mas não sem dificuldade!... Hei-de recuperá-lo, dêem-me tempo para isso.

 

Ele desapareceu há dezasseis dias... Pensa nos pais, apesar de tudo!”

 

A noite, tão pálida como a da véspera, dava às montanhas o mesmo aspecto espectral e desenhava duramente os traços de David em claro-escuro. De novo a violência surgia na voz que se apaixonava, na intensidade do olhar onde dançava o clarão do fogo.

 

”Essas pessoas não fizeram o seu dever para com os filhos. Não os amaram como deviam. Não basta pôr uma criança no mundo, também é importante compreendê-la... Estás a ouvir o que eu digo, Prisca?

 

Com certeza.

 

Tu és a única, a única no mundo a quem...”

 

O fio ténue das palavras, tão frágeis... Era preciso que ele continuasse. E ela não sabia como o ajudar a isso.

 

Ela adivinhou as palavras mais do que as ouviu:

 

”Dá-me a tua mão.”

 

Havia uma tal angústia nessa forma de procurar um reconforto e tanta autoridade na maneira de agarrar aquela mão oferecida, de se apoderar dela como se tomasse posse dela para sempre... Mas ele tornou a pô-la sobre o joelho de Prisca e, sem a olhar, começou a falar em pequenas frases curtas, entrecortadas. Parecia que elas o incomodavam e que queria desembaraçar-se delas o mais depressa possível:

 

”Renaud sofre do mesmo que eu na sua idade. Não é divertido estar só. De facto, não se está. Mas julga-se. É impossível de suportar. É-se capaz de tudo para provar aos outros que se existe, para atrair a sua atenção. E depois não se gosta de si próprio. Então, procura-se. Precisa-se de alguém que nos tire dali. Mas não qualquer pessoa. Escolhe-se. Há por vezes uma pessoa, uma só, que nos interessa, e é preciso que isso dê certo, é preciso que isso corresponda, é-se exigente... Renaud queria que o pai o tomasse a sério; ele receia o pai, mas admira-o. Até mesmo, adora-o.. Eu. pobre imbecil, escolhera a minha mãe.”

 

Um riso de escárnio acentuou a palavra tão amargamente dita.

 

”À primeira vista, isto parecia bastante natural. Mas ela tinha outra coisa a fazer sem ser detectar o que eu tinha na cabeça. Em suma, eu escolhera mal. Foi pena. Tanto pior, passou! Ao passo que Renaud...”

 

David ergueu para Prisca um olhar afogado em sombra e julgou ver um sorriso, que o tornou furioso:

 

”De que é que te estás a rir?”, invectivou ele. ”É assim tão ridículo ter amado uma mãe como a minha e tê-la detestado com o mesmo vigor?”

 

Prisca sacudiu a cabeça:

 

”Nem ridículo, nem original disse ela docemente. Não estava a troçar. Sorria porque tu te julgas único no mundo, com Renaud, a ter tido esse género de problemas. Todos nós passamos por isso.

 

Tu não. Tens uns pais fantásticos.

 

Sim... mas encontrei outra razão para me desesperar.”

 

David procurou os olhos de Prisca, ainda iluminados pelo que restava das brasas:

 

”Apaixonada?”

 

Ela sorriu.

 

”Se assim quisermos. Adorei uma espécie de louco que me tomava por uma gaivota e que eu julgava obcecado pela minha irmã mais velha. Isso deu-me complexos para toda a vida, devo estar gravemente traumatizada!”

 

O riso de David salpicou a noite. Depois depôs um beijo na mão que voltara a segurar. De novo a abandonou. Prisca notou com uma secreta esperança que ele parecia aliviado:

 

”Gosto mais assim disse ele. Se me tivesses dito que te martirizavas por causa dum tipo bastante bruto para não te adorar, eu teria sido capaz de lhe ir partir a cara imediatamente.

 

Mmm”, murmurou Prisca.

 

Com esta boa, corajosa e tão sedutora amizade, ela voltava a encontrar o gosto amargo da solidão de que ele tão bem falava. Sentiu uma vontade louca de lhe dizer a sua maneira de pensar sobre a falta de discernimento de que ele dava prova. O orgulho reteve-a. Por isso, exclamou com uma ligeireza que diminuía o sentido das palavras:

 

”Economiza os teus murros, David! É de ti que eu gosto, tu sabes isso há muito tempo.”

 

Ele riu outra vez, tranquilo, apenas enternecido por ouvir a confidência que não o perturbava. Seria o fumo que causaria ardor no nariz de Prisca e lhe fazia subir as lágrimas aos olhos? Ela afastou-o com a mão.

 

”Está bem, está bem, eu sei!”, dizia David. ”Senão, julgas que me cobriria de ridículo falando-te dos meus velhos complexos? Aliás, era apenas para que compreendesses Renaud. Estás-me a ouvir, Prisca, ou estás a sonhar?”

 

Uma vez mais lhe agarrava a mão, que se soltou, e David, por um instante, pareceu espantado com isso. Mas, vendo Prisca obstinar-se com o fumo quase inexistente, julgou ajudá-la soprando as brasas para espevitar o fogo.

 

”Compreendes”, explicou ele entre duas respirações, o olhar escondido alegremente dum rosto um pouco húmido, mas que os cabelos velavam em parte, ”foi a mim que Renaud escolheu para substituir o pai. Ideia engraçada, má escolha, mas é assim. Então, para estar à altura, era preciso que me pusesse à sua disposição. O que fiz. Teria agido da mesma maneira fosse com que garoto fosse no mesmo caso. Em recordação de... mim próprio.”

 

Esfalfava-se a soprar, o que o fez tossir. Erguendo-se, acabou:

 

”Uma maneira de dar prazer a mim próprio. Comporto-me com Renaud como teria gostado que Clara agisse comigo: compreensão e amor incondicional. Perco o meu recalcamento, em suma. Muito interessante para um psiquiatra e... estúpido, confesso. Porque, no fundo, Renaud por si próprio é-me bastante indiferente. É o cérebro dele que me apaixona com todas as suas fantasias... Sou um parvo, minha gaivota, desta vez como das outras. Valia mais falar doutra coisa.”

 

Levantou-se para juntar ramos num feixe, que deitou no lume. Imediatamente a chama subiu até aos rostos e Prisca ergueu-se dum salto.

 

Terminado o sortilégio. David expulsara a emoção.

 

Fê-la renascer, brusca, quando estendeu o braço para cercar os ombros de Prisca e a aproximar de si. De pé, observavam o fogo que crepitava.

 

”Então, minha gaivota, dá-me uma solução: que devo fazer do meu castigo?

 

Eu acho... balbuciou Prisca, que teria dado tudo no mundo, nesse instante, para mandar Renaud para o diabo, para sempre, eu penso que deves confiá-lo a Mélie, voltar para Paris sem perda de um minuto e ir imediatamente a casa dos pais dele para os tranquilizar.

 

Já te disse que essa gente me aborrece. Não saberei falar com eles. Mas tu...

 

Eu!”

 

Os olhos cinzento-esverdeados fulminavam David. Repelindo violentamente os desfalecimentos ambíguos, Prisca atirou-lhe à cara, por atacado, um certo número de verdades acerca daqueles que pretendem dedicar-se, e que criam por isso as situações mais inextrincáveis, a fim de terem a alegria de trespassarem para cima dos outros as estopadas que lhes incumbem

 

David respondeu, no mesmo tom, que nunca pedira a ninguém que se metesse nas coisas que lhe diziam respeito e, já que Prisca era capaz de se imiscuir da maneira menos discreta na sua vida, achava bastante aborrecido que ela recusasse prestar-lhe o mais pequeno serviço.

 

Esta gritaria perturbou a noite... e o sono de Renaud. Desperto em sobressalto, ouviu um rosário de insultos do género:

 

”Tu não passas duma burguesa!

 

E tu dum cobarde que se julga um pensador.

 

Permitir-se julgar as pessoas, que pretensão!

 

Meu pobre David, eu não te julgo, desprezo-te.

 

Minha pobre pequena, quanto a gaivota, tu não passas dum papagaio.

 

Ah, sim? E tu, tu és capaz de esconder a tua falta de personalidade sob uma horrível barba.”

 

A horrível barba provocou um silêncio inquietante. Depois, a voz depreciativa de David concluiu:

 

”Pequeno coração, pequeno corpo, pequeno espírito, pequeno cérebro!”

 

Quádrupla injúria, que caiu numa Prisca finalmente aniquilada. Ah, mas não por muito tempo. A contenda recomeçou e depressa atingiu o furor; Renaud, de espírito ainda imbuído das visões fantásticas (ele sonhava com o sabbat das lebres ao luar), apercebeu-se de que se tratava dele. Sem delicadezas, certamente:

 

”Nunca vi nada mais lamentável”, atirava Prisca, desdenhosa. ”Deixas-te levar por um pequeno vadio que teve a desgraça, numa crise grave da sua vida, de encontrar um simplório como tu. Não é prestar-lhe um serviço aguentar-lhe os caprichos sob pretexto de lhe extirpar não sei que psicose que se cura geralmente, na sua idade, com um bom duche ou uma boa tareia, é uma questão de escolha.”

 

Podia-se recear que aquilo continuasse muito tempo naquele tom. A suave Prisca, metamorfoseada em fúria, lançava em turbilhão tudo o que lhe passava pela cabeça e Renaud perguntava a si próprio o que é que David esperava para a fazer calar. Ou então, seguindo o código moral masculino (segundo Renaud), face às gritarias femininas, ele devia virar-lhe as costas e bater-lhe com a porta na cara.

 

Completamente acordado, Renaud recordou-se de que ali não havia porta, mas um rio. Para honra do sexo forte, esperou que David o tivesse transposto a correr e que escalasse agora a crista onde se realizava o encontro das lebres ao luar.

 

Pensamento vão, pois a voz muito próxima de David ordenava: ”Cala-te, vais acordar o garoto.”

 

Pois bem, não, ela não se calava. Ela apenas baixou o tom uma oitava e voltou à torneira aberta da censura contínua.

 

”Tu não percebes nada disto”, cortou David, melodramático. ”Se eu o abandono, Renaud é capaz de se suicidar, disse-mo ele.”

 

Aquela fedúncia da Prisca ousava desatar a rir:

 

”Ele? Não penses nisso.

 

Eu conheço-o melhor do que tu.

 

E eu juro-te que é um famoso comediante. Ele não é parvo e acha agradável esta pequena estada na montanha em companhia dum louco que o julga desequilibrado. Põe-no perante as suas responsabilidades em vez de o apoiar. Ele está cheio de qualidades, esse garoto. Mas tu estraga-lo.”

 

Bastante lisonjeado, Renaud prestava atenção, esperando a nomenclatura das qualidades de que ”estava cheio”.

 

Mas, ai, David abandonava-o. Foi evidente quando ele concedeu:

 

”De acordo, ele não está tão desesperado como gostaria de fazer crer.”

 

Que dizer, que fazer, para se vingar dum julgamento demasiado lúcido? Nada. Nada era suficientemente duro. Com uma tempestade na cabeça, Renaud cont’nuava pois mudo no calor do ninho, arquitectando pirâmides de ideias, destruindo-as, não as achando suficientemente maquiavélicas para o seu desejo, enquanto, lá fora, estalava uma nova disputa. Era reconfortante pensar que, pelo menos, passavam, por sua causa, uma noite horrível.

 

Chegou o instante em que David, fora de si, remexeu o abrigo à procura do segundo colchão. Quando o achou, atirou-o a Prisca, intimando-a que fosse dormir e o deixasse em paz. O que esteve quase a desencadear uma nova fúria da parte daquela rapariga irritável sobre o capítulo da delicadeza que ela achava que lhe era devida.

 

David deixou-a ali, resmungando que ela nada tinha duma gaivota, mas tudo dum caimão. Apoderou-se do saco, da sua bolsa de toilette, e desapareceu. Para longe.

 

Ao cabo dum momento e para seu grande espanto, Renaud ouviu um barulho estranho: qualquer coisa que pareciam fungadelas. Depois, e isso foi claro, ouviu uns soluços, ali, perto dele. Então deu uma olhadela, discreta, e, à luz bizarra da Lua que penetrava no abrigo, viu o saco-cama que continha o caimão agitado de sobressaltos. Uma cabeleira sombria emergia numa das extremidades, mas não o rosto: esse estava escondido entre os dois braços dobrados.

 

Renaud não pôde deixar de sentir uma satisfação má. Prisca estava a chorar. Chorava mesmo muito!

 

”Remorsos”, pensou Renaud, e virou-se no seu colchão, saboreando uma vingança cujo fio segurava finalmente.

 

Mas para pôr o seu plano em execução era indispensável que os outros dois dormissem e bem... Por isso decidiu esperar que os soluços desesperados se transformassem em respiração regular; não tardou muito tempo.

 

Então saiu do saco e deitou um olhar para o exterior. Falsa manobra! Esteve quase a dar com o nariz em David, que se aproximava. Felizmente, fazia tão escuro que Renaud pôde mergulhar no seu saco-cama e enrolar-se nele sem ser visto. Permitiu-se mesmo roncar um pouco para tranquilizar. Mas David não tinha nenhuma intenção de se ocupar dele: foi para o caimão que ele se dirigiu... Debruçou-se, escutou a respiração calma, pousou uma mão sobre os cabelos despenteados e depois, erguendo-se, afastou-se.

 

Maneira de agir que deixou Renaud espantado. Na sua opinião, se um rapaz arriscar um gesto terno, deve pelo menos assegurar-se de que o objecto do seu interesse está acordado. Senão, gesto gratuito. Inútil. Bizarro.

 

Pondo a si próprio mil perguntas sobre o estado mental de David, Renaud espera por prudência um minuto ou dois, sai de novo do saco e arrisca um olhar para um interstício das pedras: desconfiava da porta, enfim, daquilo que lhe fazia as vezes, isto é. do buraco escancarado da entrada.

 

O que viu deixou-o anelante... era de ficar embasbacado! Lá, diante do fogo, armado duma navalha e dum espelho minúsculo, David sacrificava a sua bem-amada barba.

 

Renaud esteve quase para fugir. Mas, pensando na sua vingança, conteve-se, enfiou com uma destreza silenciosa calças e camisola, apoderou-se do velho gabão, e depois, de sandálias na mão, saiu a rastejar, deu de gatas a volta à cabana e, ao abrigo desse resguardo que o escondia, atravessou a corrente.

 

Depois galopou a direito em frente no meio da noite, à velocidade duma lebre atrasada para o sabbat.

 

O dia mal rompia quando Prisca acordou. Deixou correr um breve olhar por aquilo que via pela abertura do abrigo: verde, malva, dourado... a montanha. Escutou o sussurro da água com o barulho surdo da cascata ao longe.

 

O saco vazio, junto dela, fez-lhe pensar que David e Renaud viviam como os animais, levantavam-se de madrugada e adormeciam ao pôr do Sol.

 

Excepto ontem... Era preciso esquecer aquela noite interminável para David e para ela; o serão na noite demasiado calma, na confusão das emoções complicadas, as palavras que ultrapassavam o pensamento, a violência... e sobretudo o desejo daquilo que não acontecia.

 

Prisca tornou a fechar os olhos, maravilhada por encontrar sem desespero imagens, palavras, que a perturbavam na véspera. Desejava estar feliz, liberta e lúcida: que David se comportasse duma forma ou de outra já não tinha a mesma importância, que ele não sentisse por ela senão amizade continuava um desgosto que confessava a si própria, mas apenas isso. Bastava que ele existisse, que ele errasse em qualquer parte no meio do verde, do malva ou do dourado dessa montanha. Na sua presença, mesmo amigável, mesmo indiferente, Prisca sentia-se mais feliz do que jamais tinha sido. Talvez a felicidade fosse isso: contentar-se em aceitar as coisas como elas são.

 

Achou-se sublime, sentindo com isso um legítimo orgulho, e, bocejando como se suspirasse no confortável calor do colchão, pensou no pequeno-almoço. Tinha uma fome de lobo.

 

O frio surpreendeu-a quando saiu do saco de dormir. Despertou-a completamente, atirando-a para fora toda a tremer, mas contente por sentir que o pé esquerdo quase não lhe doía.

 

Mas eis que de repente, em bloco, tanto a sabedoria como a serenidade desapareceram. ”Ele” estava ali, adormecido ao pé do pinheiro no extremo da ilhota, com a gola dum grande capote de pele de carneiro levantada sobre a cabeça, a tapar-lhe a cara, e as pernas enroladas num cobertor.

 

Prisca correu para ele. Sentia vontade de o abanar, gritando-lhe a sua alegria no meio duma onda de votos delirantes. Outra vez a confusão! Este pensamento conteve-a.

 

De facto ela continuava lá, imóvel, contemplando timidamente o homem da sua vida, do qual via apenas um tufo de cabelos louros numa extremidade e, na outra, dois pés que saíam, nus.

 

Ela tapou-lhos com prudência, o que provocou um grunhido. Depois, a pele de carneiro afastou-se precisamente o suficiente para descobrir uns olhos azuis que piscavam ao sol num rosto sorridente e... imberbe! Quanto aos cabelos...

 

Pregada ao chão, Prisca contemplava aquilo com uma expressão que pareceu encantar David. Ele emitiu um segundo grunhido, dos mais satisfeitos desta vez, e ergueu-se, fixando com humor a gaivota assombrada:

 

”Dormiste bem?

 

Dormi, ah... dormi, muito bem, e tu?

 

Como um urso resmungou David, espreguiçando-se... polar, evidentemente. Que frio, esta noite! Sonhei com um banco de gelo, era idílico.”

 

Parecia de um bom humor ruidoso, embora esfregasse as costas doridas. Os seus olhos não deixavam Prisca:

 

”Diabo!”, começou ele, passando uma mão pelas faces lisas, mas pálidas, enquanto o nariz, a testa e as maçãs do rosto pareciam crestados. ”Tu estás com um ar decepcionado.”

 

A sua alegria era evidente.

 

”De maneira nenhuma!”, apressou-se Prisca a afirmar, reencontrando a boa disposição.

 

Ele observava-a, divertido, sorrindo de todo esse rosto novo, onde o sítio da barba, desenhado a branco, não provocava certamente o melhor efeito; mas esse maxilar pálido não era nada em comparação com o corte dos cabelos! Cortados de altura variada à volta da cabeça, evocavam aquelas meadas de seda amarela que se põem na cabeça das bonecas de pano. Véronique, no seu quarto, tinha uma de lã que se parecia com ele.

 

”Que massacre! não pôde Prisca deixar de gemer. Com que é que cortaste isso?

 

A horrível barba?... Com uma navalha. Não é o melhor instrumento para este género de sacrifício? Julgava que te dava prazer, mas pela tua cara já vejo que me enganei. Eu já desconfiava um pouco, nota... Ah! suspirou David, sem perder por isso uma parcela de alegria e encarando sempre uma Prisca desolada, as mulheres são impossíveis. Vamos lá tomar a sério os seus caprichos. Engano! Não conseguem senão iludi-los.”

 

Mas como Prisca continuava fechada num silêncio inquieto, ele acrescentou, falsamente confuso:

 

”Aborrecido, minha querida, serão precisos pelo menos mais seis meses para que ela torne a crescer.

 

Não estou a falar da barba! A barba está óptima. Aliás atirou Prisca com uma cólera fora de propósito, eu achei foi um horror a cabeça que tu tinhas, mas isso não era uma razão para cortar os cabelos às naifadas.

 

À tesourada rectificou David, delicioso de gentileza. Tenho uma.

 

Vai buscá-la.

 

Agora?

 

Agora, pois, porque não? disse Prisca, exasperada. E deixa de me olhar com esse sorriso estúpido. Quando é que tu, David, te decidirás a tornar-te adulto? Que necessidade tens tu de te tornar ridículo em todas as ocasiões? Não podes andar pela rua com um cabelo assim! Vou tentar arranjar isso.

 

Nós não estamos na rua notou David. Por agora, só tu é que me vês. O aspecto exterior das pessoas tem assim tanta importância para ti?

 

Bem sabes que não”, disse Prisca num tom indefinível.

 

Ela pensava que ele podia cortar o cabelo rente, pintar os cabelos de encarnado-vivo ou transformar-se de qualquer modo que isso nada mudaria para ela. E a essa grande certeza de o amar que lhe invadia o coração, mais uma vez, sorriu. Um pouco tristemente.

 

Ele não fez nenhuma pergunta, nem procurou aprofundar o mistério daquela melancolia. Queria ser discreto. Sempre a boa, velha e incondicional afeição.

 

Seria assim, já que ele o queria.

 

Prisca encolheu os ombros. Estava pronta para assumir o seu papel. E até para suportar esse riso, quando ele a tomou nos seus braços. Um beijo ardente, terno e... tão desprovido de perturbação!

 

”Adoro-te”, disse ele. ”Não sei como pude passar sem ti durante oito anos.”

 

Deixou-a tão subitamente como a tinha agarrado e foi vasculhar no saco que estava ao pé da fogueira apagada. Daí, brandiu com orgulho uma tesoura de unhas:

 

”Isto serve?

 

Preferia a naifa!”

 

Mas Prisca, mesmo assim, agarrou o que ele lhe estendia.

 

”Senta-te”, ordenou ela, ”e não te mexas.”

 

Demorou, ela aplicava-se. Madeixas caíam em quantidade.

 

”Céus! disse David ao vê-las amontoarem-se à sua volta.

 

Estou a endireitar explicou Prisca. Não te inquietes, eu conheço a técnica: estou habituada a cortar os cabelos de toda a família. Até os do meu pai.

 

Céus! repetiu David, ele usa-os em escova, a tua mãe em capacho e a tua irmã estilo bonzo?

 

Cala-te. Não paras de virar a cabeça, e isso incomoda-me.”

 

Ele dignou-se ficar quieto. De lábios cerrados, Prisca continuava o seu trabalho em silêncio. As suas mãos activavam-se, procuravam o pente, davam pancadinhas nos cabelos. David agarrou uma e depôs nela um beijo:

 

”Tens umas mãos bonitas. São suaves. Quando eras pequena, elas eram ásperas. Lembras-te do dia em que eu cortei o polegar com a grande faca da cozinha? Foste tu quem me tratou. Barbara estava furiosa, Mélie louca, mas tu não desististe. Era preciso que fosses tu a tratar desse dedo. Sempre foste teimosa, minha gaivota! Oh, Prisca! É prodigioso lembrarmo-nos de todas estas coisas! Teimosa como uma burrinha adorável. Lembras-te quando...

 

Acabei”, disse Prisca.

 

Tendo tomado o partido dele da amizade fraternal, ela insistia em não se comover mais do que o razoável com as delicadas recordações dum tempo já passado. O polegar de David! É verdade... Ela sentira-se doente ao ver o sangue que ele perdia. Doente, apaixonada e estúpida. E depois também! Ela andou à volta do David de hoje, magnífico de imobilidade sob uma massa de madeixas curtas sabiamente dispostas na testa, à volta das orelhas e no pescoço. Declarou-se satisfeita.

 

”Se faço asneira, é uma catástrofe, mas quando consigo fica melhor do que em qualquer cabeleireiro.

 

Com certeza suspirou David, estóico, tenho direito à catástrofe.”

 

Parecia troçar dela.

 

”Não, afirmo-te que está bem. Queres ver?” Ela segurava à frente dele o minúsculo espelho descoberto no saco de toilette. Ele nem sequer o olhou. Era Prisca quem ele olhava. Com uma divertida expressão donde, pela primeira vez, a ironia estava ausente. Uma Prisca crispada de atenção perante a obra-prima realizada. Ele agarrou o espelho e virou-o para ela. Então, ela viu-se a si própria um pouco vermelha, o cabelo em desordem, o pescoço livre num camiseiro demasiado aberto e amarrotado.

 

”Oh! disse ela, franzindo as sobrancelhas, pareço uma maluca. Uma maluca bastante bonita...”

 

Ela imobilizou-se, espantada do tom que a voz de David tomara. Nunca a ouvira tão tensa, um pouco velada. E o olhar dele parecia-se com a voz.

 

Emoção fugidia, de que ele pareceu querer desembaraçar-se numa gargalhada que soava falso. Tão falso como a rudeza do gesto quando despenteou os cabelos de Prisca como o teria feito a uma criança.

 

”Desembaraça mas é essa juba disse ele, se fores capaz. Eu trato da fogueira e do café. Acho que deves ter fome.

 

Uma fome terrível.”

 

Agarrando no pente, ela dirigiu-se para o rio, borrifou-se às mãos-cheias de água, limpou-se como pôde, isto é, com o lenço de assoar. Tornou a pôr, tanto quanto possível, um pouco de ordem nas suas vestes. Foi ajudar David a apanhar lenha para fazer a fogueira.

 

Estavam calados. Os gestos que faziam em conjunto tomavam um ar de rotina que agradava a Prisca: uma vida simplificada, de cujo ar natural ela gostava. Mas quando ouviu David agradecer-lhe delicadamente, friamente, pelo corte dos cabelos, sentiu-se despojada da alegria intensa que sentira há pouco, o espaço dum olhar, tocada por uma ideia que talvez...

 

Tentou sacudir a melancolia que se apoderava dela, de voltar a encontrar as belas resoluções do despertar. Não era fácil. E menos ainda observando David. Ele tinha aquela expressão que Mélie chamava antigamente ”os seus ares de concha fechada”. Nada nem ninguém podia então atingi-lo. Prisca aprendera a conhecer esse poder que ele tinha de se isolar, de se refugiar na indiferença, que se transformava em ausência. Mas hoje isso atingia quase o aspecto de agressividade.

 

O Sol, já alto, banhava todo o vale. Sem uma aragem, estava um calor pesado. Prisca viu David passar uma mão pelo rosto e pensou que ele sentia a arder as faces demasiado pálidas.

 

”Quando chegares à noite, tens o sítio da barba a arder”, disse ela com uma alegria forçada. ”Não tens um creme qualquer para te proteger?”

 

Ele não respondeu. As queimaduras do sol eram-lhe tão indiferentes como o café que beberam depois em pequenos goles e o pão com manteiga que comeram em silêncio. David não era mais do que uma porta fechada.

 

Prisca tentou conservar o seu bom humor, lavou na corrente a caçarola e o único copo, tentando dizer o que lhe vinha à cabeça com aquele jeito muito especial que geralmente não provocava a melancolia naqueles que a escutavam.

 

Mas nada de réplica. Ela acabou por se cansar do monólogo. Interrompendo-se de repente no meio duma frase, tocou no ombro de David:

 

”Que é que tu tens?

 

Esta noite vai chover”, disse ele, contemplando o céu.

 

Levantara-se e caminhava ao longo do rio. Não podia exprimir melhor o seu desejo de estar só; no entanto, ela correu para ele e agarrou-lhe na mão, sem reflectir, porque alguma coisa não estava a correr bem e isso não era suportável.

 

”David”, murmurou ela, ”diz-me...”

 

Ele deitou-lhe um olhar que ela viu hostil.

 

Uma animosidade tão marcada, tão inesperada, que ela largou-lhe a mão e ficou pregada ao chão. Olhava-o sem compreender.

 

”Vou-te reconduzir a Pont d’Espagne disse ele.

 

Porquê?”, não pôde Prisca deixar de murmurar. Tinha a impressão de que o chão lhe fugia debaixo dos pés, como naqueles pesadelos onde vamos a cair cada vez mais depressa nas profundezas aterradoras, onde nos sentimos aterrorizados, sem nunca atingirmos o horrível e inevitável fim. Para Prisca, esse era um dos terrores nocturnos da sua infância e ela voltava a encontrar, quase física, a mesma angústia.

 

Gostaria de ter tido a coragem de confessar a sua verdade, como quem pede socorro, de se lançar nos seus braços... Mas tudo a retinha. Sobretudo ele. Esse rosto fechado, aquela voz rude com que ele atirava sem erguer o tom:

 

”Não deves ficar aqui. Vais voltar para Paris.” Ela não achava uma palavra para lhe dizer. Apenas podia pensar que viver sem David não era viver. O tempo... todo esse tempo antes de ser velha, todos esses dias, essas horas sem interesse porque David não a amava.

 

E ele, sempre com essa voz seca: ”Vou acordar Renaud para o prevenir.” Ela engoliu a saliva, fazendo um esforço enorme para parecer indiferente:

 

”Há muito tempo que ele partiu para dispor as armadilhas às lebres”, conseguiu ela articular, espantada de ouvir a própria voz, no fim de tudo com tom habitual.

 

David pareceu espantado: ”Partiu? Ele ter-me-ia avisado.

 

Vai ver... Ele já não estava no abrigo quando eu acordei.”

 

Ele foi, e Prisca viu-o em seguida vasculhar a ilhota, como se Renaud se pudesse ter metido em qualquer buraco para dormir.

 

Voltou a sentar-se junto da fogueira, já não falava na partida. Ela pensou primeiro que sempre ganhara alguma coisa. Depois teve a impressão de que a ausência de Renaud era indiferente a David, e foi ela, então, que se inquietou:

 

”Ele não costuma fazer este género de escapadas?

 

Costuma, mas não tão cedo. Vou procurá-lo. Depois vou-te levar.”

 

Uma obsessão, decididamente. Queria desembaraçar-se dela.

 

Quando voltou, era perto de meio-dia; vinha furioso, estafado e sem Renaud.

 

Prisca teve tempo de passar dez vezes do desespero à mais maravilhosa das esperanças e, como tudo lhe parecesse inútil, voltara a ficar serena. Para que transformar uma picada de alfinete num ataque à mão armada? Aliás, David parecia ter esquecido o seu estranho comportamento de há pouco e a refeição passou-se o melhor possível, dissecando o presunto, o pensamento e a obra de Camus. Assunto vasto!

 

Dois velhos companheiros absolutamente à vontade.

 

Às duas e meia, Prisca olhou o relógio e começou a ficar realmente inquieta com Renaud.

 

David, esse, não, pois voltou com paixão ao L’Etranger. Sufocava Prisca com os seus pontos de vista: era um rio, uma maré, um desfraldar de ideias. Subjugada a princípio, mesmo assim Prisca ousou interrompê-lo, quebrando o entusiasmo, para lhe fazer notar que eram quase três horas e que Renaud não se avistava.

 

”Queres que vamos procurá-lo juntos?”

 

Deram uma grande volta até ao lago. Um ao lado do outro como antigamente, felizes como então. David parava por vezes, radiante, para sublinhar com um gesto a sua descolagem para as altas esferas. David tinha belas ideias, generosas e um pouco loucas. Reconstruía o mundo com Prisca, que se deixava arrastar sem dificuldade na maravilhosa utopia das revoluções justas e pacíficas.

 

”Tu és fantástica”, disse ele de repente. ”Nunca conversei assim com uma rapariga.”

 

Tinham percorrido quilómetros sem sentirem fadiga. O lago estendia-se à frente deles, azul-escuro, como um charco no escavado das montanhas, cercado do verde tenro das pastagens no meio do grande marulho dolente dos vales.

 

”É belo como o mar”, disse Prisca.

 

Estava sentada numa rocha e David, de pé a alguns passos dela, olhava-a.

 

”Tu”, disse ele, ”tu és o mar.”

 

Ele tinha o olhar límpido dos dias felizes da sua adolescência, os dias dos seus arrebatamentos quando falava de Curaçau, das grandes aventuras imaginárias e das outras, das verdadeiras, as que ele queria viver.

 

”Porque te fizeste jornalista? perguntou Prisca de repente. Tu odiavas aqueles que andavam de roda da tua mãe.

 

Aqueles que andavam de roda da minha mãe nunca escreveram uma linha que não cheirasse a falsidade atirou David. Ela acabou por se julgar a personagem que eles tinham fabricado. Prestou-se ao jogo da perpétua comédia. Queria agradar-lhes, receava-os, dependia deles. Fizeram dela uma mercadoria... uma mercadoria que já não os interessa agora, que ela é menos nova.

 

Quando é que a viste?”, perguntou Prisca muito docemente.

 

Ela sabia que penetrava num domínio interdito. Clara fazia parte das rejeições de David, era mesmo a principal. Ele respondeu-lhe, mas com voz áspera que recalcava a piedade:

 

”Depois do acidente. Ela estava na clínica, no Rio.

 

E depois?

 

Nunca mais.”

 

Ele tinha uma expressão fria, aquela dureza que acentuava as linhas puras, demasiado regulares, do seu rosto. Quando se animava, tornava-se diferente, só se via o calor do olhar, e era assim que Prisca o preferia.

 

”Sabes como é que ela teve o acidente?”

 

Prisca hesitou:

 

”Não, eu... Os jornais disseram...

 

Os jornais contaram o que o encarregado da publicidade do filme que ela estava a filmar quis dizer-lhes. De facto, ela ia no carro dum tipo. Ela amava-o... E ele nem sequer foi à clínica. Nunca mais o tornará a ver. Toda a sua vida foi assim. Ela detesta as aventuras, mas tem muitas porque acredita num milagre. No amor. E cada vez é mais uma desilusão. Ela teima, quer que a adorem, e ela, ela, é capaz de amar com paixão, uma profundidade que nem se supõe... Mas nunca notou que tinha em casa alguém que é como ela e que teria, talvez, podido salvá-la de tudo isso. Só soube pôr o filho no mundo, mas isso não era o género de amor que desejava. Pobre Clara. Não lhe resta mais nada.”

 

A velha amargura voltava à voz de David, nunca o tinha deixado. Era a mesma, antigamente: ”A minha mãe não virá. Ela nunca vem...”

 

E asora, porque se julgava semelhante a Clara, ou porque receava parecer-se com ela, recusava o amor, aquilo que lhe davam, aquilo que ele podia dar. Do amor, ele não via senão a caricatura, a paixão que morre e revive sem cessar, a eterna aventura, demasiado curta, a procura do intangível amor.

 

E ele fugia.

 

Preferia dedicar-se às crianças. Aos amigos, talvez. E ainda assim! Destes mesmo desconfiava, fazendo por os chocar e impedindo-os de o amar. Apenas Mélie lhe caíra em graça. Mélie, que ele vinha ver, à qual fazia o dom desta tão rara e tão preciosa prova de dedicação: a sua confiança.

 

”David...”, murmurou Prisca.

 

Ele interrogou-a com os olhos.

 

”David, esta manhã...

 

Sim disse ele, esta manhã?...”

 

Fez um gesto que afastava uma má recordação, mas não se escondia. Veio junto de Prisca, agarrou-lhe a cara entre as mãos... Ela sentiu-se afogada na doçura do olhar que ele pousou nela. Viu-lhe pela primeira vez esse sorriso, marcado de gravidade e de bondade:

 

”Tu és bela, Prisca. Demasiado bela. E eu sou apenas um imbecil com reacções absurdas. Eu...” Fechou os olhos um segundo e depois a sua voz continuou mais calma: ”Sabes que estavas uma verdadeira catástrofe, esta manhã? Terrivelmente desejável. E eu julguei que não resistia ao desejo de te agarrar e de te guardar. Compreendes?”

 

Ela sentia-se... morta. De alepria. E acreditou no seu amor, na eternidade dessa perturbação que ele despertava nela. Mas David afastava-se, e, quando ela o ouviu de novo, ele virava-lhe as costas, a longa silhueta desenhada no azul profundo do lago.

 

”Mesmo que tu sonhes dizia a voz de David... mesmo que tenhas a loucura de tomar por amor aquilo que é apenas solidão e acaso por nos encontrarmos sós nesta montanha... e mesmo que tu venhas ter comigo, tu... eu impedir-to-ei. Não tens nada a recear, minha gaivota. Nada a recear.

 

David!”

 

Ela sentira um arrebatamento.

 

”Oh, David...”

 

Ele rodeou-a com o braço quando a viu tão perto dele. Ela pousou-lhe a cabeça no ombro e foi preciso que ele adivinhasse mais as palavras do que as ouvisse. Eram aquelas que esperava, que pressentia, mas nas quais não queria acreditar, um sopro apenas audível, mas que para ele se tornava num tumulto que o perturbava:

 

”Amo-te, David! Bem sabes, sempre te amei.”

 

E depois o silêncio. Um minuto que parecia eterno na imobilidade absoluta antes de David poder encontrar as decisões que resolvera tomar e pelas quais lutava desde manhã, esse caminho razoável da enorme ternura pronta a dar mais do que o que recebe. A ternura que se inquieta e receia destruir.

 

”Eu também te amo”, disse ele. ”Amo-te muito, creio. Quero dizer-te como devo amar-te. Tu és o único ser no mundo que amo verdadeiramente. Tirando Mélie. O único que respeito.”

 

Ele viu os olhos de mar erguidos para ele...

 

Então agarrou na mão de Prisca e levou-a. Caminharam muito tempo sem dizer palavra. Depois, de repente, como se isso representasse a conclusão dos seus pensamentos, ele desgrenhou os cabelos de Prisca, com aquele gesto meigo que já tivera. Mais longe, enquanto escalavam um caminho de cabra, apertou-lhe muito a mão que continuava a não largar.

 

”Indecente gaiato disse ele.

 

Velho louco”, retorquiu Prisca com um furor reconfortante para a saúde moral que experimentava

 

Ele desatou a rir.

 

”Ufa!, volto a encontrar-te. Há pouco estive quase a pensar que a minha irmãzinha me estava a seduzir. Que pânico!

 

Não sou tua irmã replicou friamente Prisca. Também não sou louca, tenho os pés bem assentes na terra, deixa de imaginar que sou uma espécie de atrasada super-romântica com crises de exaltação súbitas ou um objecto frágil que é preciso proteger. Tenho dezoito anos, sou maior e revacinada. Sinto-me responsável. Pronto, é tudo, David.”

 

Ele deitou-lhe um olhar feroz, deixou-lhe a mão e caminhou à frente, sem se ocupar do que ela fazia lá atrás. Mas dez metros decorridos afrouxou o andamento. Ela viu-o sorrir por cima do ombro e, como tinha o olhar sombrio de tragédia, ele agarrou-lhe outra vez a mão e puxou-a para si.

 

”Idiota! disse ele. Veneno!

 

Obrigada. Mas é melhor mudares as tuas fórmulas. Já me trataste de veneno há oito anos, e isso valeu-te uma pazada de areia em cheio na cara.

 

Mesmo na pêra, minha querida! Era o que terias dito nessa altura... Felizmente que não há areia aqui.

 

Mas há pedras. Quais preferes, as redondas ou as bicudas?”

 

Ele arrancou-lhe as duas que ela acabava de apanhar e atirou-as para o lago que brilhava, lá longe, por baixo deles, azul, como uma toalha que tivesse sido estendida entre o verde dos pinhais e a doçura dos prados. As pedras transpuseram a vertente, fazendo ricochete contra os obstáculos com um barulhinho cavo que se ia afastando, mas que se ouvia no espantoso silêncio da natureza.

 

Por fim, pararam ao lado uma da outra, a redonda e a pontiaguda.

 

”Se o quiseres fazer...”, disse Prisca.

 

Deitou-lhe um relancear de olhos, o do vencido que prepara a sua vingança! Pronta para a conquista paciente, mas obstinada, ela escarneceu-o, e o seu riso desiludido acompanhou a sua marcha. Estavam no alto duma crista e, à volta deles, podiam ver uma extensão imensa... mas de Renaud, nem vestígios.

 

”Se ele tivesse fugido, tinha levado comida; ele não é assim tão estúpido e não é o género de rapaz que possa viver do ar e do tempo. Come como os passarinhos: mais ou menos o peso dele, em vinte e quatro horas!

 

Tens a certeza de que ele não levou nada?

 

Tenho, já fui ver. Levou o velho gabão e mais nada. Devia estar frio quando saiu.

 

Com certeza antes do nascer do Sol. Quando eu acordei, mal amanhecera. Espero que não lhe tenha acontecido nada murmurou Prisca.

 

Não aconteceu nada. Está à espreita das lebres em qualquer parte, no fundo de alguma ravina, e esqueceu-se das horas. Quando o encontrarmos, hei-de dizer-lhe o que penso sobre isso.

 

No entanto disse outra vez Prisca, é absolutamente anormal que não tenha voltado para almoçar, não achas? Com ou sem relógio, e mesmo esquecendo-se das horas, deve ter fome.

 

Sim admitiu David.

 

Muito menos tranquilo do que queria parecer, ele sugeriu que Renaud voltara talvez à ilha por outro caminho diferente do do lago. Era o que Prisca esperava.

 

Desceram a vertente pedregosa rapidamente. David segurava o braço de Prisca:

 

”O teu tornozelo...”, dissera ele apenas.

 

Renaud não estava na ilhota.

 

”Ele deve ter-nos ouvido a noite passada”, deixou escapar finalmente David.

 

Prisca lançou-lhe um olhar de pânico: ele acabava de dizer alto o que ela pensava há muito tempo. Mas ele parecia resolvido a dissimular a sua inquietação:

 

”Ficou aí amuado num canto para nos ralar... Se calhar, até nos seguiu toda a tarde. É impossível vê-lo neste matagal, se ele não se manifestar. É tão manhoso para se esconder como as suas lebres.”

 

Estavam fatigados, um e outro. David sentou-se na erva, estendeu as grandes pernas e mergulhou os pés no rio sem tirar as alpergatas. Prisca atirou-se a um naco de pão e tornou a examinar as suas preocupações. Imaginava todas as hipóteses possíveis, desde a queda num abismo até ao afogamento ou hidrocussão por ter mergulhado em qualquer lago gelado...

 

O que fez David correr a toda a velocidade para um possível salvamento.

 

Três vezes partiu, voltou e partiu. Nada.

 

Uma quarta vez correu ao acaso. Prisca ouviu-o muito tempo gritar o nome sem se preocupar com o chamar a atenção dos guardas, enquanto ela própria errava pelo seu lado chamando Renaud a plenos pulmões.

 

Eram perto de seis horas da tarde quando Prisca viu voltar David, que a chamou. Correu para ele: ”Viste-o?

 

Não. Mas encontrei o marido da Christine, que descia para Pont d’Espagne com o seu grupo de turistas. Cruzaram-se com o garoto à hora do almoço.”

 

David correra e recuperava lentamente o fôlego, as palavras vinham aos poucos:

 

”Eles falaram-lhe... Era longe daqui, em direcção ao sul. Segundo a sua descrição, só podia ser Renaud: camisola vermelha, um velho gabão traçado, de cotim azul. Assegurou que andava em excursão no caminho dos lagos com uns colegas, tomou mesmo a precaução de dizer que estava um adulto com eles... o pai dele! David riu: Inventa um pai ideal, assim de vez em quando. Contou que procuravam o refúgio de Aulnes... é perto da fronteira espanhola.

 

É preciso prevenir a polícia imediatamente, David!

 

Não. Aliás, isso levaria mais tempo do que ir procurá-lo.

 

Mas, afinal exclamou Prisca, tu és inconsciente ou quê? Não achas que a brincadeira já durou demasiado?

 

Não te irrites disse David suavemente.

 

Achas que estou inquieto?

 

É isso que acho estranho! Não tens nada ar disso. Ontem não falavas senão dos estados de alma de Renaud, dizias que ele era capaz de se suicidar, e hoje, que ele está verdadeiramente em perigo, desinteressas-te dele?”

 

Ela tinha lágrimas de enervamento nos olhos ao seguir David, que se dirigia para o rio e para a ilhota.

 

”Que é que esperas para correr à procura dele?”, gritou ela. ”Julgas que vais encontrá-lo adormecido no abrigo? Venho de lá, ele não está, não percas tempo!”

 

Compreendeu finalmente quando viu David agarrar o saco alpino depois de ter atravessado o rio em três passadas. Já ele enchia o saco de comida e de vestuário. Envergou um segundo pulôver antes de se dignar explicar, com uma indiferença que Prisca reconheceu afectada:

 

”Nada de dramas, peço-te. O garoto parecia muito descontraído, segundo o que me disse Daniel, o marido de Christine; um bom guia, sabes, tem bom golpe de vista para ver se as pessoas têm medo ou não. Parece que Renaud estava apenas fatigado, mas de muito bom humor. Mas tinha fome. Aceitou uma ração de pão e queijo e depois inventou uma história. Pretendeu que o pai e os colegas o esperavam do outro lado da vertente invisível, bem entendido e que o tinham mandado ir ter com o guia, que tinham avistado de longe com os seus turistas, para indagar se estavam no bom caminho. Tudo isto parecia plausível, Daniel acreditou-o (eu não o desenganei, aliás), deu as informações necessárias. Desenhou até uma planta, que confiou a Renaud, indicando os limites que deviam seguir para chegar ao refúgio. Recomendou ao pequeno que andasse depressa por causa do mau tempo que estava anunciado para a noite. É verdade: olha!”

 

David mostrava o céu coberto do lado do oeste, por cima das cristas mais altas, onde ainda persistiam alguns vestígios de neve. A montanha, sorridente duas horas antes, tomava um aspecto hostil e a sua cor mudava como a do mar antes do temporal.

 

Prisca estremeceu.

 

”Uma bela tempestade em perspectivadisse David.

 

Estás a imaginar essa criança sozinha no meio dela?

 

Dentro de algumas horas, já não estará só.”

 

David procurava tranquilizá-la, mas não era difícil adivinhar a sua inquietação. Verificava o conteúdo do saco, desaparecida toda a inacção. A sua actividade, os seus gestos precisos, indicavam a urgência do socorro a levar, e o ar sério com que se preparava para isso provava uma longa experiência da montanha.

 

Prisca imaginava-o correndo as cristas durante os anos em que o perdera de vista, correndo para Pont d’Espagne a toda a hora durante as férias, que passava junto de Mélie, na casinha de Saint-Savin. Teve a certeza de que David conhecia bem aquela parte da montanha e que não a receava. Ele não podia perder-se no dédalo de montes eriçados ou cabeludos. Mas, por instinto, como os marinheiros prevêem o motim e o furor desse mar que respeitam, ele observava a tempestade que chegava. E essa hostilidade abordava-a ele sem temeridade. Confessou:

 

”Mesmo assim, uma bela negrura, lá em cima resmungou. Já me estava a cheirar desde manhã. Tudo depende agora do vento... Teremos o mais forte pelas costas, a menos que vire.

 

Teremos?”, aventou simplesmente Prisca.

 

Ela olhava-o com a expressão que devia ter nas manhãs de Natal da sua infância quando o pai lhe agarrava pela mão e a levava até à surpresa dos brinquedos diante da chaminé...

 

”Levas-me?

 

Evidentemente! Os rios transbordam depois das tempestades. Não vou deixar-te sozinha neste buraco. Outra das ideias de Renaud, este pedaço de terra no meio da água. Ele tem a loucura das ilhas desertas!... Bom bom tempo, vamos lá, mas esta noite! De qualquer modo, não ficaríamos aqui.

 

Irias levar-me a Pont d’Espagne?”

 

Ele mimoseou-a com um olhar meio trocista, meio furioso, depois atirou-lhe uma camisola que devia pertencer a Renaud:

 

”Veste isso, em vez de dizeres asneiras. Escolhe o que quiseres nesse bazar e enfia tudo o que puderes, porque vai fazer frio esta noite. E deixa o coquetismo para outra altura, peço-te.”

 

David, por sua vez, no interior do abrigo, no meio da desordem das roupas, tirava uns calções de Renaud, um abafo de lã e um casacão de pele de carneiro, daqueles que usavam antigamente os pastores. Depois de reflectir, meteu-o no seu saco, preferindo para Prisca um blusão de cabedal sujo, mas macio:

 

”Menos pesado para ti”, explicou.

 

Ela maravilhava-se com essa calma. Era um outro David, e Prisca sentiu com isso uma nova emoção. Pela primeira vez, via-o perante uma realidade dura contra a qual ele se preparava para se bater, longe dos sonhos e da utopia. Era reconfortante.

 

Um par de peúgas de lã grossa e rija, esfarelada por inúmeras lavagens, e dois sapatos grossos e encarquilhados na ponta como peixes fritos vieram juntar-se ao resto do equipamento improvisado aos pés de Prisca.

 

”Pronto disse David, tens o que é preciso. Espero que isso te agrade! De qualquer modo, é preciso preparares-te para as coisas seguirem. Não se pode partir para uma caminhada destas de sapatilhas. E o teu tornozelo?

 

Vai indo. Cá me arranjarei para que isto siga! acrescentou ela, sorrindo.

 

Vai ser preciso andar depressa, sabes?

 

Não tenho cem anos.

 

Oh, não! assentiu David, e teve também um sorriso. Mas desconfio de ti como se tivesses dois mil, feiticeira!”

 

Deixou-a só. Ela entrou no abrigo para se arranjar.

 

”E se ele não estiver no refúgio? gritou ela, procurando em vão um cinto para segurar as calças, demasiado largas na cintura.

 

Está respondeu a voz tranquila de David.

 

Quando Daniel e os seus turistas o encontraram, eram duas horas da tarde. Se Renaud caminhasse normalmente, teria chegado a Aulnes três horas depois. Mas eu conheço-o, ele pára de meia em meia hora para devanear de nariz no ar e admirar a paisagem... É um poeta, este Renaud! Distrai-se com ninharias, diz que isso o afasta da Rue de Buci. Se não estou enganado, não deve ainda ter chegado, mas já não está longe. Ele vai perceber que a tempestade vai estalar. Seringuei-o tanto a esse respeito, que tem um medo louco do mau tempo. Isso vai servir-lhe de alguma coisa. Aposto tudo o que quiseres que ele vai passar a noite no refúgio; e nós vamos lá buscá-lo antes da madrugada.

 

Tens a certeza?”

 

Ela ouviu o riso de David:

 

”Tenho! Ele não é idiota, nem suicida, pese embora o que eu te possa ter contado a noite passada. Além de tudo isto, é hábil que nem uma cabra. Chegará ao refúgio de Aulnes e não irá mais longe, estou seguro do que te prometo.

 

Porque tens o dom da vista dupla, evidentemente”, disse Prisca, aparecendo à entrada do abrigo adornada dos pés à cabeça.

 

Consciente de estar ridícula com os seus trajos demasiado grandes ou demasiado pequenos, esperava uma grande gargalhada, como antigamente, quando David deitava sobre a sua débil pessoa um olhar duvidoso antes de a embarcar numa das suas selvagens aventuras.

 

Tal como antigamente e com a mesma timidez, Prisca fez-lhe notar que estava pronta.

 

Não houve nenhum riso. Apenas um olhar que a envolveu toda, estagnou um instante no fundo das suas pupilas e se furtou. Sem comentários. Mas quando David se baixou para lhe atacar os sapatos, ela ouviu-o resmungar:

 

”Pergunto a mim próprio como é que tu te arranjas para estares mais bonita do que nunca com esse amontoado de roupas velhas às costas. Inacreditável!”

 

Prisca deu ao cumprimento o seu justo valor e sentiu-se cheia de esperança. Mas não pensou menos por isso que se parecia com um espantalho e que, além do mais, ia morrer de calor enquanto marchasse. Mas não eram horas para recriminações.

 

”Tudo isso vem do sótão da Mélie”, explicou David, puxando os atacadores evidentemente de primeira qualidade, do ponto de vista de solidez, dada a força que ele empregava; ”eu tinha trazido esses grandes sapatos para Renaud, mas não lhe serviram, eram muito pequenos; datam dos meus dez ou doze anos. Uma sorte que caibas lá dentro! São confortáveis para uma longa caminhada e, além disso, conservar-te-ão quentes os tornozelos. Sentes-te em forma?”

 

Em forma? Mais ou menos. Havia sempre aquela ansiedade pungente a respeito de Renaud e a fadiga da jornada. Mas a inquietação continuava toda pessoal, pois David não duvidava encontrar o seu protegido ressonando no refúgio à hora incerta em que eles lá chegassem...

 

Ele ergueu-se, pronto a partir, afivelou o saco e pô-lo às costas com um golpe de rins. Parecia pesado. Depois enfiou sem delicadezas um boné de lã acinzentada na cabeça de Prisca e contemplou a obra-prima: cobria-lhe a testa, descia sobre a nuca, encerrando a massa dos cabelos, cujas longas madeixas caíam, enquadrando um rosto preocupado... mas feliz, no fim de contas.

 

”Nada te faz feia, hem!”, murmurou David.

 

Parecia querer-lhe mal por isso.

 

Atado o saco e afivelado o cinto, ele estendeu a Prisca a lanterna eléctrica. Depois agarrou-lhe a mão livre e arrastou-a pelo vau da corrente, por trás do abrigo, precisamente por onde Renaud passara aproximadamente doze horas antes.

 

Do outro lado, ele puxou-a rudemente para a fazer transpor o espaço desde a última pedra até à margem. Com a mesma energia, reteve-a, quando, atirada com a cabeça para a frente, ela ia bater de nariz contra um rochedo que parecia colocado ali de propósito. Atirada contra David no impulso, com o boné ao contrário a esconder-lhe um olho, ela conseguiu observar com o outro o olhar sombrio dum David feroz:

 

”Isto começa bem”, disse ele. ”Não te aguentas nos pés?”

 

Repô-la na posição vertical e no caminho direito. Atrás dele. Recambiada sem uma queixa para os papéis subalternos da condição feminina, Prisca teve de rever todos os seus princípios progressistas e não teve coragem senão para endireitar com um murro a posição do boné. Sinal evidente de mau humor. Quanto à contestação, teve de a engolir.


Tentou caminhar com um passo modesto, isto é, adaptado ao de David, pensando em lhe provar, à força de paciência, que, como boa squaw, saberia igualar o homem forte, o senhor, o horrível indivíduo cujas costas, ou, antes, o saco que ele trazia, ela mimoseava com olhares fulgurantes.

 

”Não fiques para trás”, achou ele por bem ordenar, sem mesmo se dignar virar-se.

 

Obediente, ela seguiu no encalço dele.

 

Desta vez, ele virou para ela uma face amável de buldogue:

 

”Se não és capaz de caminhar convenientemente, é melhor dizer já rugiu ele. Vou-te pôr no refúgio do lago, onde estarás abrigada, e eu parto sozinho.

 

Se estás aborrecido de me levares!”, clamou Prisca.

 

Mas, nesse instante, o olhar que mergulhou no seu destruiu tudo o que não fosse deslumbramento, compreensão total, a própria essência da felicidade. Tudo o que uma comunicação de alma pode dar.

 

E David desviou o olhar. A sua voz perdera toda a rudeza:

 

”Tenta caminhar pelo meu passo. Tanto quanto possível, sempre à mesma distância. Fatigamo-nos menos seguindo aquele que vai à frente. Daqui a Aulnes temos para umas seis horas. No mínimo. Porque há as paragens obrigatórias. Isto vai ser duro.

 

Eu sei disse Prisca.


Tu sabes resmungou David entre dentes. Tu julgas que sabes tudo.”

 

Contemplou-a um instante antes de acrescentar:

 

”E não tens medo. As gaivotas não têm medo de nada, não é verdade?”

 

Pergunta à qual a doçura do tom dava um duplo sentido; prevenção contra essa noite de solidão; perigo das palavras, dos olhares mais perigosos do que a tempestade. David queria estar friamente lúcido. Era como se tivesse dito: ”Atenção, isto não durará. Comigo, isto nunca dura. Desconfia.”

 

Prisca recordou-se das palavras de Bertrand: ”Assim que uma rapariga se prende a ele, deixa-a. Ele tem horror ao amor, não acredita nele.”

 

Ela gostaria de lhe ter dito que a sua certeza nele não tinha quebra, que não dava lugar a nenhuma dúvida; que sabia que estava pronta a sofrer, se ele o exigisse; que oferecia a David o absoluto da sua ternura, mesmo que não tivesse nada a esperar dele.

 

”Não”, disse ela. ”Eu não tenho medo.”

 

Com um gesto terno, prudente, David impeliu para as costas de Prisca as longas madeixas de cabelos.

 

”Tens razão, minha gaivota”, murmurou ele. ”Eu disse-te que nada tinhas a recear. Tu não.”

 

Era a conclusão, o resultado do combate no segredo da sua consciência e, definitiva, a decisão irrevogável, que gelou Prisca. Mas teve a coragem de sorrir. Ele forçou a alegria:

 

”Nada de choraminguices se te doerem os pés e não me venhas contar a tua vida enquanto marcharmos, isso corta a respiração. Vamos, a caminho.”

 

E tornou a partir à frente.

 

De vez em quando, David voltava-se para deitar uma olhadela a Prisca. Mas não dizia palavra. O céu estava negro do lado do poente. Uma linha vermelha vai-se aí infiltrando, horizontal, sob a espessura das nuvens, e o céu inteiro flameja. Incêndio trágico do dia que se extingue, lentamente. E a noite chega.

 

Quando ela cai, duma escuridão absoluta, densa, e quando apenas o feixe da lanterna ilumina os seus passos, já eles caminhavam há duas horas. David anuncia uma paragem. Distinguem-se apenas as silhuetas das montanhas sublinhadas nos cumes de traços brancos. O serem tão pouco visíveis torna-as esmagadoras.

 

Pela primeira vez, a tempestade ribomba, surda, ao longe. Prisca sente a pele húmida debaixo das suas vestes demasiado pesadas. Primeiro, apenas uma gota de água vem esmagar-se contra a sua face, pesada e tépida como uma lágrima. Depois, uma rajada de vento bate-lhe no rosto com um furor que lhe corta a respiração. Em breve, anunciado por um assobio agudo, um outro golpe de vento, ligeiro, levanta a terra seca... Prisca ouve a praga de David: apanham nos olhos uma poeira fina, que os cega, tão dolorosa como um punhado de areia lançada por mão hostil. E de repente, depois das primeiras gotas que se precipitam, vem um dilúvio brutal: uma tromba de água duma incrível força cai do céu escuro.

 

David procura a mão de Prisca. O seu anorak aberto bate ao vento, brilhante de chuva à luz da lanterna.

 

”Isso vai ou não? pergunta ele.

 

Como um gato debaixo dum duche! E vejo tanto como uma toupeira na sua galeria, mas é prodigioso!”

 

Ela ouve o riso de David na noite. Ele agarra a lanterna e aproxima Prisca de si, aperta-a pela cintura, erguendo-a quase. Arrasta-a a correr. Curvados, o rosto a arder sob a fustigação do vento e da chuva, lutam os dois contra a violência da tempestade, ensurdecidos pelos formidáveis trovões, precedidos pelas fulgurações repentinas, fantásticas. Uma delas ilumina a cadeia inteira, os seus abismos, os seus vales, os seus cumes, e Prisca adivinha assim um vale mesmo por baixo deles. Mais alto, um emaranhado, um amontoado de rochedos enormes empilhados numa desordem que desafia o equilíbrio. É para lá que David se dirige.

 

Depois que se encarregou simultaneamente do saco muito pesado e de Prisca, que se defende com dificuldade desta loucura de água, de tumulto e de vento, ele tem mais dificuldade do que ela. Arquejante, escala todavia a vertente abrupta a correr e ela deixa-se levar por essa energia, maravilhada de não sentir nenhum receio. É David quem a guia, agarrando-a quando ela choca com as pedras que rolam sob os seus pés, arrastadas por uma multidão de pequenas torrentes que correm pela vertente a pique. Nenhuma vegetação trava nem a água. nem as pedras. Todavia, é preciso caminhar, correr, escalar essa montanha louca, tentar reter a respiração; e Prisca trepa, confiante nesse braço que a ampara. Obrigados sem cessar a contornar obstáculos, rochedos que não vêem à sua frente senão no último momento, eles vão no limite das suas forças, mas esse limite recua a cada passo. Luta exaltante que os une, em que cada um, inconscientemente, prova ao outro a sua coragem e, de certa maneira, o seu amor.

 

Sem abrandar o andamento, David expulsa com as costas da mão a água. o suor que lhe corre para os olhos, quase o cegando.

 

”Diabo! disse ele, para uma primeira vez não está nada mal.

 

Pensas... pensas que isto vai durar muito tempo?”, soluça Prisca em pleno esforço.

 

Ela teima em conservar o ritmo, tentando pesar menos no braço que a ajuda. É preciso gritar para se fazerem ouvir.

 

”Está bonito!”, grita a voz de David. ”Espero que o telhado do abrigo de Aulnes não esteja esburacado, senão Renaud está...”

 

Um estrondo fenomenal leva o resto da frase. Desta vez, o relâmpago mal precedeu o ruído do trovão, dilacerante, seguido dum ribombo com longas repercussões sem fim e que ainda vibravam quando a montanha se ilumina de novo sob uma descarga eléctrica duma intensidade extrema. Um risco fulgurante se desenha numa linha crua, num assombro geral, crepitante, fantástica, ao mesmo tempo que explode uma tal deflagração que Prisca, instintivamente, leva as duas mãos aos ouvidos.

 

É o espectáculo embrutecedor que, desde as origens do homem, fere de espanto, paralisa a razão, prende os seres num terror supersticioso perante o poder que se manifesta à sua frente e o aterroriza: a trovoada.

 

É o medo primitivo, Prisca sente-o. E, de repente, ela grita, o braço estendido para um pinheiro único, uma árvore gigantesca e solitária que se incendeia como uma tocha a uma distância aparentemente tão reduzida que, hipnotizada, ela julgou poder tocar-lhe com a mão. Uma vez incendiada, a árvore desaparece, recortada, reduzida a nada, afogada sob as torrentes de água.

 

Prisca sentiu o braço de David crispar-se em volta dela. Ambos imóveis, esquecem a chuva que os gela e não ouvem senão as pancadas dos seus corações; os dois não são mais do que um bloco com um único coração cujo ritmo enlouquece de sufocação e fadiga. Todavia, alguns segundos depois, David teima em brincar e a sua voz tenta não trair nenhum nervosismo:

 

”É uma sorte que haja árvores nesta região! Ainda há algumas para nos servirem de pára-raios. Uma sorte repetiu ele, e Prisca percebe uma curiosa quebra na sua entoação. Sinto-me... feliz concluiu ele por verificar que a trovoada prefere as árvores aos homens. Não serve de nada escondermo-nos, é o que eu esperava!

 

Caiu tão perto! murmura Prisca a tremer durante um instante de acalmia, enquanto os ribombos se afastam em rajadas.

 

Perto? Não disse David. Conheço essa árvore que foi fulminada. Ou, melhor, conhecia-a. Está a mais de quinhentos metros de nós. No entanto, é verdade que ela parecia ao alcance da mão, de repente.”

 

Retomam a corrida. Mas, de repente, um novo caos de fim do mundo abala o céu, um relâmpago ilumina o matagal... dir-se-ia que um rochedo oscilava lá no alto. Ilusão apenas perceptível, e, todavia, David, com um gesto brusco, puxou Prisca para fora da pista que seguem e atirou-se com ela para baixo dum pendor do flanco da vertente. Ela não distingue a expressão do rosto, mas conhece a ansiedade de David nessa maneira brutal com que ele lhe esmafa o braço para a obrigar a manter-se colada à terra lamacenta e gelada.

 

Depois há um outro relâmpago que faz fulgurar em plena luz o assombroso movimento da pedra. É, na noite monstruosa, um balançar que hesita, o dum ébrio cambaleando antes de cair sob os néons duma cidade de pesadelo.

 

E, de repente, cai.

 

Irrealidade dum segundo... a enorme massa de nedra parece planar ao retardador antes da queda violenta, a derrocada que os olhos não podem seguir na obscuridade que voltara, mas que Prisca e David ouvem até ao esmagamento no fundo do vale.

 

A seguir veio o ribombar da trovoada difusa, longa: outro trovão estala algures, mais longe.

 

Depois, uma explosão muito próxima, mais forte talvez do que todas as outras, sacode a montanha. Dir-se-ia que esta se desloca sob o choque; resplandece, luminada de maneira quase contínua pelos relâmpados, que se difundem por toda a parte num gigantesco fogo-de-artifício; electrizada, ela exibe o enorme esplendor das suas formas e da sua imobilidade. David sabe que. amanhã, o caudal das águas, que abrem sulcos, a intensidade do barulho, que desloca aqui e ali um bloco de pedra, terão mudado um pouco a paisagem; as árvores mortas, lavadas pela trovoada e cortadas, balizarão a passagem das tempestades. Mas ela, a montanha, apenas arranhada, oferecerá ao Sol nascente a impassível doçura dos seus outeiros verdes e a beleza dos seus flancos lisos ou arborizados densamente até às cristas dos cumes. Ela será sorridente e pura. Calma. Nada terá mudado verdadeiramente.

 

E todavia...

 

Nesta fantasmagoria, dois jovens arriscam a vida. E uma criança, talvez. E outros também que tinham partido de saco às costas ao sol e que a noite pode ter surpreendido.

 

Dois jovens... O rochedo rolou a alguns passos deles. A sua força, o seu único instinto durante segundos: sentirem-se vivos. Depois, David roça com os lábios o barrete de lã ensopado:

 

”Perdão pelas emoções, minha querida sopra ele um pouco arquejante. Eu devia tê-lo previsto. Porcaria de rochedo! Mas, mesmo assim, quando uma chaminé nos cai em cima da cabeça na Avenida da ópera, também se fica um bocado espantado, não é verdade? Malvada noite! Para dizer a verdade, eu tive medo. Tu não?

 

Mais ainda do que imaginas! E além disso tenho um frio! Que frio!”

 

Prisca não consegue ouvir o que David lhe grita agora ao ouvido, de tal modo a tempestade voltara ainda mais intensa. Ela fustiga, passada a curta treva, com um vigor concentrado, uma nova selvajaria. Mas o braço de David substitui as palavras: ele conduz, encoraja.

 

A pista não é mais do que uma torrente onde eles chafurdam às cegas, trepando sob o dilúvio gelado que os traspassa, retomando a corrida, as pernas moles, os músculos doloridos, embrutecidos pelo espectáculo de relâmpagos alternados na fabulosa desordem que rasga a noite.

 

É preciso subir e subir mais antes de chegar ao dédalo do matagal, no qual David se embrenha levando Prisca pela mão.

 

As alternativas de luz e sombra dão um aspecto aterrorizador à arquitectura dos grandes blocos abandonados aí pelo glaciar dos tempos pré-históricos. Na amálgama das rochas desenha-se um corredor de circunvoluções complicadas que David parece conhecer. Não hesita. Conduz Prisca na anarquia desse enorme jogo de construções, cujos bizarros elementos formam uma sequência de fendas estreitas, de abóbadas obscuras. Mas aqui, ao menos, a chuva e o vento só dificilmente penetram.

 

Os arriscados meandros nos quais David guia Prisca desembocam numa passagem estreita e sombria que se abre em breve numa espécie de nicho sem saída. A lanterna ilumina um solo rochoso, mas seco, e uma abóbada em ogiva, quase regular.

 

”Ufa!”, disse David, ”cá estamos.”

 

Depois do barulho louco, a paz vem do silêncio; um silêncio relativo, porque os ribombos dos trovões se ouvem mesmo ali, se bem que atenuados. Na segurança do abrigo, o pesadelo desvanece-se com os seus sortilégios.

 

O suspiro de David tem qualquer coisa de ingénuo, como o das crianças saciadas que não têm senão um desejo: dormir. O seu olhar percorre com visível satisfação a pequena gruta bem seca e depois, divertido, apoia-se em Prisca:

 

”E dizer que eu tinha medo de que tu não pudesses seguir-me!”

 

Maneira muito pessoal de manifestar a sua estima. Prisca, durante um instante, quase acreditou que ele vai apertar-lhe a mão ou dar-lhe um abraço, como o vencedor duma corrida de fundo recebe nos braços, sobre a linha de chegada, o seu concorrente imediato: o segundo.

 

Mas não. Ele desamarra o saco, que larga para trás das costas, e deixa-se cair num monte de ervas secas Pôs a lanterna perto dele, e Prisca repara nos seus traços abatidos. Está na verdade fatigado. No entanto, torna a levantar-se:

 

”Primeiro que tudo, fogo”, disse ele.

 

Prisca repara então num monte de achas e de ramos num canto e cinza entre três pedras perto da entrada. ”Que é isto, uma gruta arranjada, um refúgio?

 

Arranjada... é dizer muito rectifica David, que acende o lume. Mas é um buraco que os pastores conhecem. Nada de mais seguro como abrigo. Um autêntico blackhaus com trinta metros de granito por cima da cabeça. É mais sólido do que betão, isto resistiria a um exército de bombardeiros, isto...

 

Oh, obrigada corta Prisca. Já temos bastantes problemas. Quando penso em Renaud! Ele conhece este sítio?”

 

David franze as sobrancelhas:

 

”Conhece. Mas tem um medo terrível dele. Chama-lhe ’o esconderijo do urso’. Sozinho, não punha aqui os pés por nada deste mundo. Deve ter sido por isso que ele não se quis cá esconder, suponho. Estava muito perto daqui quando encontrou o guia e os turistas.”

 

Prisca abanou a cabeça. Está menos segura do que David de encontrar Renaud no refúgio de Aulnes. Aliás, estará ele tão certo disso como diz?

 

Ele acaba de preparar o fogo, espalha um pouco de ervas por cima da madeira seca e procura o isqueiro. Acha-o na algibeira, mas encharcado, recusando acender-se. Então vasculha no saco. Tem fósforos num saquinho de plástico, com duas velas, que acende para economizar as pilhas da lanterna. Depois, ocupa-se do fogo, e em breve a madeira arde com chamas altas, diante das quais ele e Prisca tremem.

 

David sacode-se como um cão ao sair da água, desembaraça-se do seu anorak, a escorrer, e volta a instalar-se sobre o monte de erva com um resmungo de prazer que faz rir Prisca.

 

Ela continua de pé, ocupada a torcer o barrete de lã: a água que o ensopa dava para encher uma caçarola.

 

”Ainda estamos muito longe do refúgio de Aulnes? pergunta ela.

 

Meio caminho, mais ou menos responde David, lacónico. Caminhámos muito depressa, deves estar morta.

 

Não; mesmo assim, o pior são os pés. Doem-me que eu sei lá.

 

Tira os sapatos.

 

Não temos tempo.

 

Temos. É preciso descansar; senão, é impossível chegar até lá.”

 

Então Prisca tira imediatamente os sapatos, desata com os dedos entorpecidos os laços que o frio e a chuva endureceram. David faz o mesmo em cima do seu monte de ervas, e ao mesmo tempo olha para ela:

 

”Apesar de tudo”, disse ele, ”espantaste-me. Tu voas, minha gaivota, voas na tempestade, e isso é vexatório pata um pobre humano como eu... Por acaso não querias pousar as tuas patinhas sobre este monte de feno? É muito confortável, sabes?”

 

As peúgas de Prisca fazem um barulho engraçado, um floc-floc ridículo a cada passo, o que provoca uma juvenil crise de riso louco. A calma. E ela deixa-se cair perto de David, encharcada, congelada, mas feliz por ter acabado por um tempo com a selvajaria da noite.

 

Riem ambos e é bom, faz bem.

 

David apodera-se do saco, donde tira a pele de carneiro.

 

”Tira tudo o que está molhado”, disse ele, ”e mete-te aí dentro.”

 

Ele próprio se desembaraça das peúgas, das camisolas. Está tudo bom para torcer.

 

”Desculpa”, murmura ele quando, enrolando-se no velho cobertor que tirara também do saco, deixa cair as calças.

 

Prisca faz o mesmo debaixo do seu casacão. Viram as costas um para o outro, perturbados por uma intimidade necessária, mas um pouco ridícula. Felizmente, há no saco umas jeans secas para David e umas calças cor-de-rosa de Prisca. Ela encontra também as suas sapatilhas. David trouxera quase tudo.

 

”Fiz bem”, afirma ele sem a menor modéstia, ”porque, amanhã, o que ficou na ilha estará a flutuar em qualquer parte no Gave, entre Pont d’Espagne e Cauterets! Um duche daqueles vai fazer uma bela cheia. Mas não durará senão algumas horas...”

 

Prisca aceita o augúrio, não percebe nada disso. Estende as roupas molhadas à volta do fogo pensando em Renaud, o que não a torna eufórica, e David abre umas latas de conserva. Um guisado que eles nem se deram ao trabalho de aquecer, de tal modo estavam esfomeados, e ervilhas, que tanto um como outro detestam e que nessa noite lhes parecem o supra-sumo da gastronomia. Comer, à vontade de cada um, levanta o moral. Para o café, David vai buscar a água que escorre ao longo dos rochedos, para lá da passagem estreita da entrada. A empresa não é difícil: podia-se encher uma bateria de bacias num tempo recorde.

 

Volta cheio de alegria: a tempestade está a afastar-se. Evidentemente que a chuva continua a cair com abundância e o vento sopra num furacão.

 

Prisca recebe a novidade sem entusiasmo excessivo. Renaud não lhe sai da cabeça. E de que maneira! O assunto continua subjacente entre David e ela, mas eles evitam-no. É demasiado aflitivo. E, depois, falar não resolve enigmas. Renaud está no refúgio de Aulnes, esperam que assim seja, pronto. Se ele nunca lá tivesse estado...

 

”Vamos dormir uma hora disse David. É o tempo de as roupas enxugarem e depois vamos para o dilúvio outra vez.

 

Gostava mais de partir já. De qualquer modo, sinto-me incapaz de dormir.”

 

Um silêncio. E depois a voz de David, muito suave: ”Tenta não pensar em Renaud. Não serve de nada.” Explica que o vento de leste acaba de se levantar. Se ele se mantiver e não mudar, expulsará a chuva. Um pouco de repouso, roupa seca, que permitirá, passado o pior da tempestade, caminhar mais depressa, Para recuperar o tempo perdido.

 

Anuncia claramente que está resolvido a fazer o que decidiu sem passar a sua hora de sono a discutir. Abastece a fogueira de lenha, vai estender-se sobre o feno e fecha os olhos.

 

Frieza súbita, que desespera Prisca. Ela não consegue habituar-se a estes saltos bruscos de humor. E ei-la sentada junto do fogo, enrolada, os joelhos entre os braços, pensando no drama de Renaud e em tudo o que a separa de David. Os seus pensamentos melancólicos, juntando-se uns aos outros, mergulham-na numa tristeza cada vez mais sombria, e, como a fadiga ajuda, acha-se em breve no fundo dum abismo de desolação: a felicidade não era para ela. Essa felicidade que queria conquistar, que imaginara, sonhara, julgara possível por um instante... Ilusão a perder! David troça de tudo, não tem coração. Não a ama. Nunca a amará. Duas estúpidas lágrimas brotam dos olhos de Prisca.

 

Deita-se no chão duro, na esperança vã de se meter por ele abaixo para sempre. Que pena não podermos desaparecer à vontade, por nossa simples vontade, quando o futuro nos parece insuportável!

 

E a existência completamente indigna de ser vivida.

 

Havia razão para acordar em sobressalto: David cantava!

 

Ou, melhor, vestido, pronto a partir, tendo acabado de encher o saco com o que apanhava mais ou menos espalhado pela gruta, berrava o começo, muito aproximado, da 5.a Sinfonia de Beethoven. Maneira eficaz de tocar a despertar.

 

Prisca desatou a rir.

 

”Não é possível!”, exclamou David, interrompendo ao mesmo tempo o concerto e os arranjos.

 

Precipitou-se para a ex-caixa de ervilhas cheia de café a ferver, que trouxe a Prisca, recomendando-lhe que não se queimasse. Comovida por tão delicadas atenções, ela estava quase a cair indefesa num impulso de enternecimento quando ele lhe ordenou de maneira lacónica:

 

”Engole isso e cala-te.”

 

David comunicou-lhe então que ela dormira mais de uma hora, o que a fez dar um salto; ela pensava que não estivera adormecida senão alguns minutos.

 

”Devias ter-me sacudido mais cedo.

 

Bem o fiz. Mas quando tu dormes, minha querida, dormes mesmo!... Agora despacha-te, eu espero-te lá fora.”

 

Agarrou o saco e saiu sem um olhar.

 

As velas eram apenas duas chamazinhas vacilantes no meio de poças de cera e da fogueira não restavam senão umas poucas brasas... Renunciando a queimar os lábios na folha, Prisca abandonou o café e procurou as vestimentas na penumbra. Achando-as dobradas perto dela, ao alcance da mão e quase secas, compreendeu que dormira metida numa fofa cama de feno, quando se lembrava de se ter deitado na rocha nua, diante do fogo.

 

Então, a não ser que fosse sonâmbula...

 

Tinham-na enrolado no cobertor por cima do casacão de pele de carneiro, tinham cuidado dos sapatos ainda húmidos e mais encarquilhados do que nunca, mas limpos da lama que os cobria: sinais evidentes duma ternura tão atenta que o gosto de viver voltou a galope, o bom humor subiu ao zénite e Prisca ficou pronta em cinco minutos. Bebeu o café já frio e depois, embaraçada com a pele de carneiro, com o cobertor debaixo dum braço e as calças cor-de-rosa e as sapatilhas debaixo do outro, correu para o seu amor.

 

Ele estava lá, precisamente à saída da gruta, encostado com um ombro à rocha, a fumar um cigarro. Prisca disse para consigo que provavelmente ele herdara do pai essa impassibilidade toda britânica, impassibilidade que ela tentava igualar mantendo nas justas proporções o seu entusiasmo. Mas não podia impedir os seus olhos de brilharem.

 

”Obrigada”, disse ela, ”obrigada pelo monte de feno.”

 

Um clarão divertido alegrou o olhar azul de David:

 

”Não podia deixar-te dormir em cima da pedra.”

 

Ele amontoava a trouxe-mouxe a pele de carneiro, o cobertor, as calças cor-de-rosa e as sapatilhas. Depois atou o saco e, ao passar as correias pelos ombros, acrescentou:

 

”Tu choravas a dormir.

 

Eu, estava a chorar? acrescentou Prisca, horrorizada, lembrando-se do seu desânimo.

 

Estavas murmurou David, como uma menina. As lágrimas corriam-te pelas faces enquanto dormias.”

 

Quando ele ergueu os olhos, Prisca viu que ele sorria. Ela teria querido morrer.

 

”Devo ter tido um pesadelo”, afirmou ela, envergonhada. ”Acontece a toda a gente. E se nós saíssemos deste buraco?”

 

De pé, o saco às costas, ele observava-a. Abanou a cabeça. Alguma coisa de suave passou pelo seu rosto, uma doçura. Apertou inutilmente uma correia bem apertada à volta da cintura, e Prisca ouviu-o dizer:

 

”Um pesadelo, certamente. A inquietação por causa de Renaud. Era isso, não? Porque se se tratasse... doutra coisa, seria tão estúpido! Nada nem ninguém merece uma lágrima de gaivota.”

 

Seria o clarão da lanterna eléctrica que mudava a sua expressão? Ele parecia tão pálido... Prisca teve vontade de lhe gritar que chegara a altura duma explicação clara entre eles, que gostar muito dela não significava nada, que ele se enganava a respeito de si próprio, que ela sabia que ele estava tão perturbado como ela. Mas David agarrou-lhe na mão e arrastou-a no dédalo da vegetação. Mais protector do que nunca, recomendou-lhe que baixasse a cabeça para transpor uma passagem difícil. A sua voz estava calma. Não se tinham já explicado? Entendida a causa, tomada a resolução, insistir não fazia sentido.

 

Mas o absurdo é tão tenaz! Então, quando o vento glacial açoitou Prisca na noite tão sombria como o labirinto de que saíam, quando ela ouviu outra vez ribombar ao longe a tempestade, quando sentiu a sua solidão junto desse David cuja mão agarrava, que amava, que julgava compreender e que era tão difícil de alcançar, tão estranho, quando isto a abateu, Prisca, de voz desesperada, encontrou a única maneira de clamar a sua perturbação:

 

”Detesto esta montanha. Estou farta. Oh!, David, já não posso mais.”

 

Ela continuava lá na obscuridade. Sozinha. David largara-lhe a mão. Obstinadamente, ele afastava-se dela, e o feixe da lanterna iluminava à frente dele a terra já menos ensopada, as rochas a luzir. O vento, que soprava com violência, gemendo a sua queixa na imensidade invisível, sem formas, sem cores, ampliava, levava o desespero de Prisca e a sua fraqueza. Toda ela era enternecimento por si própria.

 

Mas depois pensou em Renaud.

 

Em Renaud nessa noite horrorosa, Renaud que não tinha ninguém junto dele para o ajudar. Ele devia esperar, aterrorizado talvez, e a sua espera seria mais longa por causa dela, porque ela ousava retardar o socorro que David lhe levava. Então sentiu vergonha e a coragem voltou. Lançou se no turbilhão de noite e de vento com novas forças. Foi ela que meteu a mão na de Davíd.

 

”Que sorte”, disse ela, ”já não chove.”

 

Sentiu que ele apertava com força a mão que ela lhe confiava. Era como se ele tivesse dito: ”Eu estou contigo, muito perto de ti, penses tu o que pensares, ainda não compreendeste?” A noite pareceu menos negra e o vento menos cortante. Retomaram o caminho.

 

Desceram muito depressa a vertente que tão penosamente tinham escalado antes da paragem na gruta. Depois David obliquou para a direita e tiveram o vento contra eles.

 

Foram ao longo duma torrente que Prisca identificou pelo barulho. Depois houve uma escalada difícil antes de finalmente chegarem a um planalto onde o caminho se tornava fácil. Por baixo deles roncava uma cascata para a qual David dirigiu um feixe da lanterna:

 

”Isto chama-se ’Vaca Mijona’”, gritou ele para dominar o barulho. ”Compreendes a alusão? Não é do melhor gosto, mas diz bem o que quer dizer! Bela cascata! De dia e ao sol é esplêndida... Agora tudo vai bem, minha gaivota, até Aulnes. Já passámos o pior.”

 

Era verdade. A partir daí caminharam ajudados pelo vento, que os empurrava de lado. Não lhes dava nem nas costas nem na cara, e bastava inclinar um pouco a cabeça para já não sentir a sua fustigação. As encostas e as vertentes pareceram a Prisca menos pronunciadas e ela caminhava sem fadiga atrás de David e na mesma cadência rápida. Porque ele ia depressa, encontrando para cada passo o lugar exacto, para os milhares de passos que Prisca seguia com um automatismo perfeito. Ela apanhara o ritmo, ajustando-se com segurança ao andamento do seu guia, cujos calcanhares e cujas costas ela visava, incansavelmente, na curta zona de luz da lanterna eléctrica.

 

Depois, a noite começou a empalidecer, ao mesmo tempo que o vento, que tinha, por momentos, uma breve cólera, um assobio, se acalmava... Depressa se tornou uma brisa ligeira, que deixava os ouvidos a zumbir ainda da sua fúria recente e o rosto a arder dos seus ataques. Fazia-se acariciante com o nascer do dia, e a montanha, finalmente, preparava-se para sorrir.

 

A pálida claridade por cima dos picos do lado de leste passou ao cor-de-rosa e depois ao dourado. Todos os verdes começaram a viver, e Prisca quebrou o ritmo para se juntar a David em duas longas passadas. Caminhou ao lado dele. Tudo era suave, límpido à frente deles, e os cambiantes de cores delicadas avivadas pelas chuvas da noite cantavam ao sol-nascente.

 

”Não é belo?”, disse David.

 

Passou um braço à volta dos ombros de Prisca. Mas não parou. O Sol, que subia, começava a aquecer a terra ensopada de água, que deixava escapar cortinas transparentes de bruma, infinitamente ligeiras, que se esfiapavam ao menor obstáculo. Faziam-se, desfaziam-se, e o céu tomava uns tons de pérola rosada...

 

Caminhavam, e era como a primeira manhã do mundo.

 

”Vês a crista cinzenta, lá em baixo?

 

Vejo disse Prisca.

 

Precisamente para lá dela, veremos o vale alto, o lago e o refúgio de Aulnes.

 

Quanto tempo levamos ainda para lá chegar?

 

Apenas uns vinte minutos.

 

Tenho a impressão de ter apanhado um murro na cabeça; tu não? Estou grogue e meio-surda.

 

Tanto melhor murmurou David. Tenho uma coisa difícil para te dizer... Quero que o saibas, tenho necessidade de to dizer e quase preferia que não o ouvisses.”

 

Crispava o braço em volta dos ombros de Prisca, mas não a olhava, e nada, parecia, lhe teria feito abrandar a cadência do seu andar.

 

”Eu... eu não sou o género de tipo com quem se casa”, atirou ele muito depressa, como se aquilo lhe queimasse os lábios.

 

Deu alguns passos sem acrescentar nada. Prisca também se calava, demasiado comovida para o contradizer, enlouquecida por aquelas palavras que ele acabava de pronunciar. Sabia que elas eram a primeira falha numa carapaça de que David se queria libertar., Finalmente, ele ousava exprimir essa obsessão pesadíssima que Prisca nele sentira desde que o reencontrara, e a sua voz baixa, perturbada, que tremia um pouco, dava a medida da sua emoção:

 

”Nunca me casarei. Nunca estarei à altura, compreendes... Não se pode contar comigo. Mesmo que eu tivesse uma mulher por quem estivesse louco, mesmo que a amasse com todas as minhas forças, se eu a amasse mais do que tudo no mundo, eu sei que... que a faria sofrer. Sem o querer. É assim, Prisca. Eu queria que tu compreendesses... que tu soubesses... Se eu pudesse dar a minha vida a alguém, se me sentisse capaz disso, se estivesse seguro de mim, era a ti que eu a daria. Pronto. Está dito e fez-me bem ir até ao fundo da verdade. Estive quase a dizer-te isto... diante do lago, lembras-te, ontem à tarde. E de manhã. E esta noite. E há pouco... todo o tempo. Mas não tinha coragem. Sentia-te tão... eu sou um tipo que não presta, minha gaivota... minha pequenina... mete isto na cabeça. Não se confia a vida ao acaso e eu sou o acaso. Oh, Prisca, ajuda-me, eu queria que tu compreendesses. Daria fosse o que fosse para que tu fosses feliz, verdadeiramente, e sempre. Amo-te como não amei ninguém no mundo. É... terrível eu...

 

Quem te fala em casamento?”, disse docemente Prisca. Então... Então, ele deteve-se. Estacou. E olhava-a, espantado: ”Mas”, disse ele, ”porque tu és tu! Enfim, Prisca, tu és louca? Eu sou um tipo impossível, mas não sou um patife. Digo-te que te amo, eu não...”

 

Ela ergueu o rosto para ele. Os seus braços vieram prender-se em volta do pescoço de David. E ele afundava-se nos olhos cor do mar, no infinito dessa ternura oferecida, no desejo insensato, quase doloroso, dos seus lab’os entreabertos, tão perto dos seus.

 

Então, os seus braços fecharam-se sobre ela com tanta força, um tal arrebatamento, que a montanha, o céu, o dia que nascia, na sua fresca beleza, se dissolviam em redor deles; nada existia além deles dois num só ser, e as palavras loucas, as palavras de delírio que David pronunciava, as palavras perdidas no perfume único, tão misterioso, dos cabelos castanhos, na doçura dessa pele que roçava pela sua boca. Um mundo a descobrir, um deslumbramento sem fim, sem limites.

 

E, pela primeira vez na sua vida, Prisca sentiu o fogo secreto, desconhecido, duma febre que a tomava toda.

 

”Amo-te...”, murmurava David ”Amo-te, se tu soubesses... Meu amor...”

 

Os seus lábios encontraram-se e o tempo não existiu mais. Nada existia além da fonte na qual eles bebiam o passado, a intensidade do presente, o encantamento do futuro esperado, sonhado, desejado. O seu amor. Uma promessa. Uma comunhão.

 

”Minha garota que eu amo.. minha mulher”, disse David.

 

As palavras sussurradas brotaram dos seus lábios.

 

E David pegou de novo na mão de Prisca, apertando-lha até lhe fazer doer; depois retomaram a marcha no meio do belo Verão que estavam a viver, no meio da alegria radiosa do seu próprio nascimento, tão fresco, tão puro como o do dia.

 

Prisca sorria. O acaso! Ele, o acaso? Ele não sabia, não sabia nada do que era. Ele não se conhecia a si próprio, ignorava a própria força e a qualidade do que podia oferecer.

 

O David de antigamente... o David de sempre... o David para o melhor e para o pior. Ninguém no mundo o amara como ela o amava, como ela estava segura de o amar. ”Sempre” tomava um sentido para ela. E ela sorria, esquecendo o que não fosse essa palavra. Fosse o que fosse que acontecesse, fossem quais fossem os obstáculos que pudessem surgir por causa da vida, ela amá-lo-ia. Para além de si própria e para sempre.

 

Então, Prisca soube o que era a felicidade e a necessidade de a partilhar, de a lançar com prodigalidade a quem lhe estendesse as mãos. Ela tinha tanto, tanto a dar, dessa felicidade, desse amor, que se pôs a correr, apesar da fadiga, quando viu o refúgio de Aulnes. Era preciso que Renaud estivesse lá. Era preciso porque um milagre atrai outro e a alegria, quando é muito grande, não pode ser ferida. Hoje, não. O mundo, hoje, o de Prisca, devia ser feliz.

 

A porta estava fechada.

 

Quando David pousou a mão sobre o trinco para abrir, teve uma hesitação. Como se duvidasse, ele, que afirmara a sua certeza de encontrar Renaud em Aulnes, como se confessasse que nunca tivera a certeza disso. Foi Prisca quem empurrou a porta. E violentamente. A dúvida, a infelicidade, não tinham nenhuma razão de existir, ela não queria que isso existisse, e gritou:

 

”Não tenhas medo, Renaud, finalmente, cá estamos.”

 

Mas ela não viu nada. Apenas um monte de ervas, como na gruta. Erva amassada, húmida, sobre um solo lamacento onde estagnavam poças de água. A chuva penetrara aí como em toda a parte, mas de Renaud não havia sinais.

 

Até que do vigamento tomba uma voz aterrada:

 

”Vocês levaram tempo!”

 

Estava lá em cima, deitado ao comprido, em equilíbrio precário, sobre a trave mestra, com o nariz lambuzado de lama, enrolado, muito magro no velho gabão azul claro. É tão lamentável!

 

Foi só o tempo de o ver e já David, liberto do saco, que salpicou tudo ao cair na lama, trepava. Agarrou Renaud como se apanha sobre o ramo o passarinho caído do ninho, e, na verdade, dava vontade de aquecer o garoto entre as mãos para o fazer reviver. Ele soluçava, acrescentando ainda a humidade das faces à do pobre farrapo que o cobria.

 

Prisca tirara do saco a pele de carneiro e o cobertor; ela cobriu-o nos braços de David, que o levou para o s’ol. O céu lavado tomava uma bela cor azul suave a leste, mais profunda a oeste.

 

E Renaud continuava a chorar, sacudido de espasmos que parecia impossível fazer parar. David depusera-o sobre os seus pés e, agarrando-o com uma mão, esfregava-lhe as costas com uma energia que ameaçava arrancar-lhe a pele. Prisca foi procurar lenha. Havia-a em quantidade, mas molhada. Mas não interessava, ela amontoava-a em cima do monte de erva que esperava que estivesse menos húmida e procurava fósforos.

 

Estava já a arder, com uma fumarada enorme, enquanto David despia Renaud, friccionando-lhe o peito, os braços, na frescura soalheira da manhã. Depois enrolou-o como uma múmia na pele de carneiro bem apertada e com o cobertor por cima. Vasculhou no saco para procurar uma garrafa achatada: rum, que obrigou Renaud a engolir; uma boa golada misturada de lágrimas. Depois correu ao lago a buscar água, que pôs ao lume, e, finalmente, Prisca e ele soltaram o mesmo suspiro: aquele com que se acolhe a ressurreição dum afogado. O garoto tentava sorrir!

 

Eles olharam-se, sorriram por sua vez, depois acocoraram-se, num belo conjunto, ao lado daquele salsichão que jazia diante do fogo, que tentava erguer-se e que tinha o nome de Renaud.

 

”Vocês não são lá muito faladores!”, disse ele fungando.

 

Prisca ria e chorava ao mesmo tempo, embalando, como se sacode uma salada, a parte de cima do salsichão, donde emergia a carantonha ainda salpicada de lama e os cabelos negros, colados e embaraçados:

 

”Como é que vai isso, hem?, diz lá. Vamos fazer-te um grogue com muito açúcar. Onde é que te dói? Não tens nada partido? Meu pobre palerma, não tens vergonha de ter feito uma coisa destas?”

 

Ela acaricia-lhe a nuca cheia de lama, aperta-o contra o peito, amima-o com uma ternura maternal que nada consegue perturbar.

 

”Vocês não têm ar de terem tido lá muito medo...”, resmunga a voz que muda tão depressa do agudo para o grave que David e Prisca desatam a rir. ”Não vejo o que é que isto tem de divertido!”, conclui Renaud, cuja voz carrega no supergrave.

 

E não carrega menos, e sem escrúpulos, no suave arredondado sensível sob o blusão de cabedal contra o qual Prisca lhe apoia a cabeça hirsuta; ele deixa-se acarinhar, e bastante voluptuosamente, é preciso diVê-lo! Tão bem que David o puxa daí com uma sacudidela, perguntando-lhe, de olhar severo, o que lhe passou pela cabeça quando desalvorou, em plena noite, apesar das recomendações, ordens e conselhos, dados e repetidos com sabedoria e prodigalidade, por ele, David, durante os quinze dias da sua vida em comum.

 

”Eu queria pregar-lhes uma partida confessa Renaud. Ouvi-os falar. Não é divertido compreender-se que se está a mais e que não se é tomado a sério... Então parti. Mas depois reflecti.

 

Ah! suspiraram em conjunto Prisca e David, levados pela mesma esperança.

 

É verdade, reflecti repete Renaud, sentencioso. Pensei mesmo tanto que tenho a cabeça como uma abóbora... Vocês apanharam a tempestade em cima?

 

E de que maneira! disse David. Tu ainda não tinhas chegado quando estalou?

 

Já. Mas o telhado foi pelo ar, as paredes também, tudo ia pelos ares, e falas tu dum refúgio! Eu tive medo que tudo se desmoronasse, e então saí. Mas tive mesmo de entrar, só ouvia era estalar, uivar, e depois a chuva e os relâmpagos...!”

 

Renaud conserva ainda o pânico nos olhos.

 

”No interior era a inundação continua ele, eu chafurdava num verdadeiro lago, e não via nada, e tinha fome, e nunca tinha tido tanto frio na minha vida. Disse para mim que ia estoirar ou que era preciso encontrar qualquer coisa, e foi então que pensei nas vigas. Tacteei na escuridão e trepei lá para cima. Passei lá a noite. Sem dormir, tinha medo de mais. E foi assim que reflecti tanto... Ia partir quando vocês chegaram.

 

Partir para onde? grita Prisca, aterrada por

 

essa nova catástrofe, cujo verdadeiro sentido escapava a todos três.

 

Bem! fez a voz que estava a mudar, teria voltado para Pont d’Espagne.”

 

O ”ufa” apenas chegou aos lábios extinguiu-se nas gargantas dos outros dois porque Renaud acrescenta:

 

”Ter-me-ia deitado à cascata. Ou então...

 

Ou então? murmura Prisca.

 

Ou então teria ido à polícia. Primeiro a prisão, depois não sei dentro de quantos anos regressaria a casa. Talvez o meu pai tivesse reflectido durante todo esse tempo... Talvez fosse ver-me à cadeia, hem. David? Onde é que metem os menores? Se não for muito longe de nossa casa, ele irá ver-me, creio eu. Talvez pudéssemos explicarmo-nos, e, depois, quando me soltarem, talvez ele não me ponha na rua, sobretudo a minha mãe, eu conheço-a, deve dizer-lhe que esqueça. Deve ser assim, não achas, David?

 

Será assim disse David, estendendo ao garoto o único copo cheio dum grogue a ferver com dois comprimidos de aspirina descobertos no saco de toilette. Será assim, excepto que tu não irás para a cadeia... Tu não sabias que os teus companheiros andavam a roubar nos Unipreço, não é verdade, Renaud?

 

Sabia! Eu não tive tempo de roubar, mas eles...

 

Tu não sabias! afirma Prisca, notável de autoridade.

 

. Ah! diz Renaud, cujo cérebro finalmente funciona. De acordo. Sorri. Vocês os dois são catitas!”

 

E ei-lo radiante a engolir o seu grogue, queimando-se sem dar por isso, de tal modo o rum e os seus pensamentos o põem eufórico. As suas pupilas, duma quente cor escura, vão de Prisca a David; tirou da pelede carneiro e do cobertor precisamente o que era preciso das mãos e dos braços nus para segurar o copo e  nada tem de ingenuidade. É mesmo bastante provocante e nada envergonhada, tanto que M. Wilson perde a sua impassibilidade britânica e recomenda um pouco de discrição que diabo! Mete as mãos para dentro, rapaz e tu (meu amor), tu tens sem dúvida nenhuma outra coisa para fazer em vez de apaparicar esse monstro de voz a mudar, e que o teu blusão de cabedal tão encantadoramente entumescido... excita.

 

Fala assim o olhar azul de David. Renaud está tão consciente disso que desata a rir e esconde outra vez debaixo da pele o braço culpado, o que rodeava demasiado ternamente a doce Prisca.

 

”Estou saturado da montanha”, disse ele.

 

Conclusão brutal de toda a confusão. E acrescenta, provando assim que a sua noite de solidão e de tempestade não o fizera nem louco, nem estúpido:

 

”Ora, então, eu não sabia o que os tipos faziam nos Unipreço; eu não podia adivinhar que eles se divertiam a saltar por cima da legalidade. Se tivesse sabido! Mas eu era amigo desses tipos, pois. Até ao momento em que compreendi que eles eram uns vadios. Porque os prenderam. Então tive medo de ser tomado por companheiro deles o que eu era e fugi.

 

Com quem?”, pergunta Prisca inquieta.

 

Ela encontra o olhar ligeiramente malicioso e inteligente do jovem Renaud, que a mede de alto a baixo:

 

”Como: com quem? Julgas que sou algum anjinho? Com ninguém, toma! Sozinho. Felizmente, encontrei David, que viera ver Mélie e que andava em passeio pelos lagos. Vimo-nos, reconhecemo-nos, falámo-nos. Confessei-lhe que havia quinze dias que andava por ali em plena natureza, e, como ele é um camarada honesto e tudo, trouxe-me com toda a pompa para casa de meus pais. Está bem assim?”

 

Prisca tem o mais adorável e reconhecido dos sorrisos, mas David franze as sobrancelhas.

 

”Mas que trapalhada é essa? Tu vais dizer toda a verdade, e pronto. No que me diz respeito...

 

Deixa o Renaud falar corta Prisca, enviando ao garoto um olhar cúmplice e confiante.

 

Assim continua Renaud, não meto David no assunto, senão ele é que ia parar à cadeia, e tu (contempla uns longos cílios que velam um inocente olhar cinzento-esverdeado), tu serias forçada a levar-lhe laranjas...”

 

Mas eis que volta ao seu normal, assim como a uma parte do seu pânico:

 

”Digam lá, vocês os dois, eu não sou um infame, pois não? Eu não os meto na minha história, mas vocês ajudam-me a sair dela, não é verdade? Quem é que irá falar ao meu pai? És tu, David, ou é ela?

 

Eu”, disse David ao mesmo tempo que Prisca. Olham-se os dois. Verdadeiramente, olhos nos olhos.

”Eu”, repete David.

 

E Prisca não o contradiz.

 

Assunto fechado. Uma bela brisa de ternura volteia entre Renaud e Prisca. Excitante ternura, mesmo assim, súplica de não exagerar nesse sentido! As graças de ursinho enervam David, que se apressa, para não ter de manifestar o seu mau humor, a confeccionar uma refeição com tudo o que encontra no saco: guisado e damascos com calda. Em quantidade. Uma caixa para cada um. Renaud lambe os lábios e recalcitra por causa dos biscoitos que David esqueceu na ilhota. Pode-se ter coração grande e estômago exigente. Empanrurram-no de doce, havia ainda uma caixa.

 

Tudo se acalma. Até o apetite de Renaud. Ousam esperar que ele não tenha apanhado uma pneumonia, nem sequer uma constipação. Tornam a vesti-lo com tudo o que têm de mais ou menos seco e dá-lhe cada um a mão do seu lado.

 

Em frente para oito horas de caminho. Não deve ser longe disso!

 

Dizer que chegaram a casa de Mélie perto das seis horas da tarde, os três na moto e mais o saco enorme, é falso: na verdade, caíram em frente da porta, incluindo a moto, exangues, aparvalhados e arrastando uns saltos que sentiam que lhes subiam até aos joelhos.

 

Isto quando Mélie recebia uns clientes vindos à procura de fígado de pato, o que não melhorava as coisas.

 

A Sr.a Amélie Lesage (de amável reputação) mandou embora os clientes tão vigorosamente que é provável que passem algumas luas antes de ela os tornar a ver. A menos, mais provavelmente ainda, que não os torne a ver nunca mais. Em resumo: finalmente sós e fechada a porta, começou-se por fazer calar César, que, enlouquecido, se atirava a David, incapaz de resistir a semelhante assalto das enormes patas dum corpo forte e duma goela aberta, sem falar das lambidelas ásperas sobre um rosto queimado pelo sol, pelo vento e pela chuva.

 

Bem.

 

Depois, Mélie, que conservava o sangue-frio, deitou toda a gente. Em seguida deu de comer ao único dos três que não estava em estado semicomatoso, isto é, David; Prisca e Renaud tinham adormecido assim que se deitaram.

 

David não resistiu muito mais; apenas o suficiente, mesmo assim, para dizer que, amanhã de madrugada, toda a gente a caminho de Paris: avião para Prisca; Renaud e ele de moto; e para reconhecer também, a gaguejar de fadiga, que estava apaixonado, mas apaixonado mesmo! Nem pensar na possibilidade de existir sem Prisca.

 

Bem, outra vez.

 

Mélie não se comove. É o género de coisa que ela acha natural e previsível. David, chocado, aproveita a ocasião para lhe provar, com a voz pastosa, que um amor como o que Prisca e ele partilham é... excepcional, louco, inacreditável, prodigioso. Mélie opina e observa-lhe que ele já não encontra palavras e que irá chegar o momento em que não saberá já o que diz. Ela cerca-o como quando ele tinha seis anos, enquanto ele continua a falar da sua loucura, do remorso de arrastar aquele ser miraculoso, fantástico produto da sua época, Prisca, a única!, numa aventura sem razão, sem...

 

”Não te calarás resmunga Mélie, ou precisas dum duche frio para te acalmar?

 

Tu não compreendes, Mélie, ela ama-me!

 

Está bem. E depois?

 

Mas eu não posso torná-la feliz, eu... Tu sabes bem como eu sou.

 

Ah, sim?

 

Mas então é a catástrofe; eu amo-a, compreendes? Mas posso ou não posso falar a sério contigo?

 

Oh, lá, lá. Podes”, diz Mélie, afastando-se nos bicos dos pés.

 

Apaga a luz, sai, fecha a porta do quarto atrás de si. Escuta, e ouve do outro lado um autoritário mas confuso: ”Mélie!...” Então volta a encontrar os seus modos de há vinte anos e atira, feroz:

 

”Basta!, David, são horas de dormir.”

 

Ah, mas ele ama essa pequena, pois bem, é tudo. Já que ela também o ama, que ele durma em paz. E sem cuidados. Aos três anos ele já era assim: ”Mélie, eu gostaria muito de chocolate, mas...” Sempre os mas! Que feitio de rapaz.

 

Mélie presta atenção... mais nada. Ele dorme. Que lhe faça bom proveito e que a noite lhe traga, tanto quanto possível, um pouco de simplicidade.

 

Quanto à outra... Ah, essa! Reconfortante, bela e Sentil. Eh!, eh!, não há dúvida de que ela o ama. Que bela descoberta que esse idiota acaba de fazer!

 

Mélie vai em pequenos passos até à porta a seguir, entra...

 

Sim, ali dorme-se, e bem. Braços dobrados sob a almofada, um amontoado de cabelos castanhos, tão compridos... a doçura, a delicadeza... como é belo! Dorme, minha linda, tu és feita para ele.

 

Agora o terceiro. Esse ronca, tal um constipado, como ele está, atravessado na cama de Christine. Mélie tapa-o. Amanhã, uma boa inalação, um banho quente, mel, leite a escaldar, e a constipação desaparecerá. Meu Deus, como é gentil esse pequeno moreno com o nariz todo pelado e os cabelos ondulados cheios de lama. Vai ser preciso lavá-los e penteá-los bem antes de voltar para casa dele. Enfim... cada coisa a seu tempo.

 

A gorda Mélie dirige-se para o seu quarto, onde entra com um suspiro de satisfação. César ergue para ela os olhos dourados e vai estender-se, como todas as noites, atravessado na porta. Tudo está bem. Clara... ei-lo no bom caminho, o teu filho, finalmente! Por causa duma gaivota teimosa. É o que ele precisava, este grande complicado. E é ela, estou convencida, quem o há-de conduzir na vida. Isto, por exemplo, Mélie era capaz de apostar: o mais forte dos dois é ela, com os seus ares de sair dum conto de fadas. Ele não.

 

As molas do colchão estalam quando Mélie se estende. E clac!, apaga a luz... A boa noite que a si própria vai oferecer depois de todas as que passou a consumir-se, por causa dos dois rapazes primeiro e da garota em seguida.

 

A moto rola no limite dos 90 regulamentares com Prisca atrás, não muito tranquila, ela, que nunca montou semelhante aparelho, excepto ontem, com o garoto, que, além do mais, lhe atirava a cada solavanco pontapés às canelas, e berrando que ”as raparigas eram na verdade uma complicação levá-las de Pont d’Espagne numa Kawa 950!”

 

Hoje vão sós, David e ela. Renaud, de barriga cheia, sujeita-se ao pente e à escova, à água-de-colónia e a tudo o que era preciso, com um pouco de moral a mais da parte de Mélie, ao corrente do que se passava com ele: ela sabe fazer as coisas.

 

Atravessam Tarbes. Muito depressa. Rue du Marechal Foch (o marechal nasceu lá). A catedral. E David segue para Lourdes. Ele não ia deixar Prisca tomar o autocarro, sobretudo às sete horas da manhã.

 

Não sabem a que horas Mélie se levantou, também não sabem como é que ela fez as coisas, mas as calças cor-de-rosa, a camisa, estão lavadas e passadas a ferro e as incríveis socas estão engraxadas. Quanto a David, encontrou o que precisava limpo, dobrado, em cima duma cadeira perto da cama. É assim a Mélie! Sem contar que ao abrirem os olhos tiveram o nariz agradadavelmente desperto por um odor a café e a pão torrado.

 

Renaud chamou a atenção geral quando começou a berrar que ”Um cão, não, o cão é mesmo um cão!”, porque César, demonstrada toda a afeição a David, viera deitar-se em cima do estômago do Querubim, maneira de lhe provar que não tinha por ele nenhuma antipatia. Em plena forma, Renaud, tinha o nariz tapado, o que acrescentava uma pronúncia fanhosa às curiosas flutuações da sua voz. Tinha devorado metade dum pão, um boião de mel, um pouco de foi gras acidentalmente, empada, enfim... precisamente o necessário. Depois disso, empanturrado, cochichara ao ouvido de Mélie não sei que palermice que ela rira a bom rir. Tudo isto por causa de David e Prisca, que pareciam mergulhados numa bruma cor-de-rosa e estavam de mão dada.

 

David pára a moto diante da entrada do aeródromo, deserto àquela hora, à excepção dum grupo de peregrinos, a quem Prisca vai juntar-se: voo não sei quantos, primeira partida para Paris.

 

Olham o casal: o rapaz alto e louro, de pele aço breada, e a rapariga de olhos cor de mar. Sorriem-lhes... eles fazem parte do milagre depois de Bernadette e da sua gruta em Massabielle, a sua fonte reencontrada. Eles são a felicidade e o amor, desejar-se-ia para eles a eternidade. Então sorriem-lhes. Naturalmente que eles não vêem nada. Eles só vêem os minutos que lhes restam antes de serem separados.

 

”Dizes-me? Dizes-me o que se passar em casa dos pais de Renaud. E depois passas pela agência.

 

Por tua casa, primeiro.

 

Não. Prometes, David?”

 

Ele promete tudo o que ela quiser, acompanha-a até ao limite, beija-a, é preciso que uma hospedeira lhe feche a porta de vidro no nariz para o impedir de ir até ao avião. Dir-se-ia que se separam por anos, há qualquer coisa de húmido nos seus olhos: aquelas horas um sem o outro, essa viagem sem ele, esse regresso a Saint-Savin sem ela, os quilómetros depois com Renaud, toda a França... sem ele, sem ela.

 

E essa silhueta, longa, delgada, que se afasta, que se volta para um gesto de adeus. Ela é ligeira, apesar dos seus ridículos sapatos, ela é única e cor-de-rosa, toda cor-de-rosa no cinzento-azulado da manhã que desponta. Ao lado de quem irá ela no avião? O ciúme espicaça já. Por nada... porque ninguém no mundo devia ter o direito de pousar os olhos nela. Ninguém. E David, o liberal, o tolerante, sente-se de repente uma natureza de muçulmano reaccionário: tê-la para ele só, enclausurá-la, encerrá-la num lugar extraordinário, viver dela unicamente.

 

Ele troça de si próprio, das suas imaginações, deseja todas as liberdades para ela, agita os braços, se bem que ela já não possa vê-lo, apercebe-se dum tom cor-de-rosa que sobe a escada até à plataforma e desaparece no avião.

 

Tem a impressão de não ter podido respirar até aí, suspirando quando passa uma rapariga de uniforme. Ela olha-o, vira-se um instante e afasta-se. Para David, por muito encantadora que ela seja, ela é invisível. Essas coisas sentem-se e a pequena hospedeira tem como que um ligeiro pesar, muito ligeiro. Mas, mesmo assim, um pesar.

 

David atravessa o vestíbulo do aeródromo e sai para o grande sol de Agosto. Ele quer lá saber do sol, da moto que monta, da estrada que percorre. Uma única coisa o obceca: os olhos de mar. Ele não os vê senão a eles, de tal modo que em Tarbes, cujas ruas tão bem conhece, se engana duas vezes.

 

Em Argelès já está refeito.

 

E Mélie, em Saint-Savin, acolhe-o à porta do jardim com um Renaud tão brilhante e furioso que David desata a rir.

 

Em Orly, Prisca toma um táxi tanto pior para as economias e vai direita ao armazém de sapatos do cruzamento do Odéon.

 

Acolhimento discreto.

 

O patrão, um pouco frio, confessa estar satisfeito com essa Catherine, a substituta fornecida por Bertrand... Uma substituta adorável, pronta a continuar e encantada com a sua sorte: um temperamento agradável. Prisca, confusa, jura que seguramente! nunca ousaria comportar-se como se comportara se um acontecimento de primordial importância não tivesse... O patrão acede e pede-lhe notícias do velho tio doente.

 

Depois de um: ”Oh, an...” de Prisca, que cai das nuvens, Catherine atalha com rapidez que o bom homem vai indubitavelmente muito melhor. Mas esse pobre velho tio é esquecido com tanta facilidade quanto não existe, todos o sabem ou desconfiam. Uma invenção de Bertrand: era preciso encontrar qualquer coisa...

 

Do lado do patrão, a atmosfera aquece, apesar dos olhares suspeitos da esposa, que não desarma e cumprimenta Prisca pelo seu bom aspecto: o tio, no seu leito de dor, não a impediu de se bronzear lindamente! É de crer que um sol ardente entrava pelo quarto do doente... Apesar destas insinuações ácidas, Prisca é convidada a retomar o seu trabalho terça-feira de manhã, pois segunda-feira estão encerrados e hoje, sábado, o dia já vai em metade.

 

Prisca corre para Catherine para lhe agradecer com dois beijos cheios de emoção e sai do armazém ainda mais confusa do que lá entrara.

 

Sábado! Seis dias antes, voava para Lourdes. Seis dias que transtornaram, mudaram, transformaram, a sua vida. Já não vê nada da mesma forma, sente-se maravilhada, flutuando nas nuvens... pensa em David... Em David, que ela espera.

 

E corre direita à agência.

 

Nada de Bertrand. Deixa-lhe um recado. Podia ter sido um longo romance, mas resumia-se a três palavras: ”Tudo corre bem.”

 

Depois disso, corre ao Poleiro, onde primeiro a acolhe a porteira, espantada era de estar por menos! depois os cinco andares, que Prisca vê com outros olhos, como todo o resto. A Sr.a Peuchet, recomposta do seu espanto, grita-lhe de baixo qualquer coisa que ela não ouve a respeito de Véronique.

 

Ela vasculha no saco à procura da chave... que acaba por encontrar. O que é notável depois da epopeia que acaba de viver com o saco e o seu conteúdo. Entra.

 

Há um papel debaixo da porta.

 

”Voltei de urgência por tua causa. Carta assombrosa recebida em Saint-Malo. Pais muito inquietos. Não saias de casa antes do meu regresso. Saí apenas por pouco tempo, tenho de te falar.”

 

Letra miúda, redonda, realista e equilibrada: Véronique. Deve ser a mesma mensagem que ela deixava debaixo da porta todas as vezes que saía, de há dias para cá, porque o papel está amachucado e sujo.

 

Em todo o caso, ela não tarda a voltar, com os olhos vermelhos... e com Jacques Launay. Prisca ouviu a corrida pela escada, depois a chave na fechadura. A porta abre-se num repelão (a Sr.a Peuchet deve tê-la avisado). Ao ver a cara deles, Prisca tem vontade de erguer o cotovelo como as crianças: dão a impressão de que, em perfeito conjunto, vão atacá-la com dois pares de bofetadas. Mas não! Eles deixam-se cair, Véronique numa poltrona, Jacques a seus pés... Por fim, ele põe-se de pé, mas segura-lhe a mão, e Prisca não pode deixar de sorrir.

 

”De qualquer modo grita Véronique, tu exageras.

 

Expliquei tudo na minha carta à mamã”, faz notar Prisca com um tom natural, frisando a inconsciência.

 

O que provoca um flamejar perigoso no olhar negro da irmã:

 

”’Expliquei tudo!’ exclama ela de voz vibrante. Ninguém percebeu nada. Um emaranhado de absurdos, a tua carta, era de pensar que estavas embriagada quando a escreveste. E depois que história é essa desse velho tio? Que vem aqui fazer esse tio doente? Nós já não temos tios. Tu mentes, tu estás doida, tu...

 

Nunca falei de nenhum tio velho na minha carta. Vocês passaram pelo armazém de calçado?

 

Evidentemente. E daí à agência OROP, graças à vendedora.

 

Então vocês viram o Bertrand?

 

Nós, o que vimos foi uma espécie de animal tacanho, de boca cozida, que Jacques esteve quase a deitar abaixo com um murro.

 

Pobre Bertrand!”

 

Jacques Launay tem o olhar severo:

 

”Vamos lá, Prisca, lá por seres maior há três meses, não podes dar-te ao luxo de desapareceres nos Pirenéus para correr à procura dum rapaz que conheceste aos dez anos e que nunca mais tornaste a ver!... Com certeza que não pensas, aliás, que alguém acreditou uma palavra de semelhante história. É idiota. Conta lá, onde é que estiveste?

 

Nos Pirenéus, caro cunhado.

 

O quê? Eu...

 

Suponho que é a esse título que te ocupas dos meus assuntos!”, corta Prisca, olímpica, ajeitando uma almofada sobre o divã para se instalar mais comodamente.

 

Não chega a ter tempo de estender as pernas, pois Véronique toma-lhe o lugar, de olhar assassino:

 

”Assim que cheguei, telefonei a Jacques, há três dias. Para que me ajudasse. Estava em pânico, imagina tu. Por sorte, ele encontrava-se em casa, era já tarde. Ele veio imediatamente, é na verdade um amigo, e proíbo que...”

 

Os adoráveis olhos de mar sorriem com limpidez.

 

”Proíbo-te que...”, continua Véronique.

 

Mas não prossegue.

 

O comandante de bordo parece perturbado. Preferia sem dúvida manter o comando de qualquer Boeing, voando em qualquer direcção, em vez de se comportar como um imbecil entre duas raparigas encantadoras, das quais uma lhe interessa particularmente. Sobretudo desde que os destemperos da segunda lhe deram ocasião de viver três dias sem quase deixar a primeira. Véronique, inquieta, tem um poder de sedução tanto maw quanto a sua necessidade de ser protegida, consolada, reconfortada, no que o comandante Jacques Launay se empregou com uma dedicação muito particular e uma felicidade de que não suspeitava. O suave e tão encantador sorriso Juvet recompensou-o bem. Finalmente! Launay está apaixonado, confessa a si próprio, e Véronique se bem que terrivelmente ajuizada e discreta não parece tão feroz como seria de recear.

 

Quanto à rapariga sentada junto da irmã mais velha, parece possuir um temperamento fora do comum, um carácter forte na teimosia e uma vontade muito assente de guardar para ela, o que lhe dá esse brilho novo, esse misterioso esplendor. Pois bem, já que está ali, quente do seu segredo, que o guarde e que a deixem em paz.

 

Jacques sorri-lhe:

 

”Cunhado ou não”, disse ele, ”convido-as as duas para almoçar.”

 

Não espera pela resposta, agarra cada uma pelo braço e condu-las com um vigor de que Véronique admira a virilidade para a porta.

 

Após essa refeição, desaparecimento furtivo de Jacques e de Véronique.

 

Sem dúvida, atingiram a serenidade: não fizeram nenhuma pergunta desde os hors-d’oeuvre até à sobremesa, e tudo se passou pelo melhor. Restaurante agradável e vinho generoso, Prisca sente os seus efeitos no terceiro andar, quando trepa de novo para o Poleiro, com as pernas esfalfadas e a cabeça cabeceando de sono.

 

Lá em cima, bate com a porta, fecha-se à chave, trepa os vinte e três degraus da minúscula escada interior que a conduz ao seu quarto-cela. Deita um olhar sonhador aos seus livros, aos seus discos, à sua mesa de trabalho, a esse mundo fechado que foi o seu durante dezoito anos e que já não reconhece. Deixa-se cair sobre a cama: estendida, de olhos fechados, pensa-se melhor.

 

David rola com Renaud atrás. Esta noite estarão lá. Ou talvez amanhã, se a estrada for demasiado longa, se lhes der a fantasia de dormirem em qualquer estalagem, nesta noite. Telefonará ele?... É preciso não exigir nada de David. Ele não prometeu nada, excepto passar pela agência assim que chegasse. Mas nesta noite será muito tarde e amanhã, domingo, não estará ninguém na OROP. Nem um nem outro pensaram nisso. Eles nem sabiam sequer em que dia estavam; em qualquer caso, isso não tinha nenhum sentido para eles. Só existiam um para o outro no indefinido do tempo.

 

Talvez ele telefone... David não deve cair na cilada, debater-se-ia. David é livre. Livre ainda para desaparecer, fugir, esquecer. Aconteça o que acontecer, ele estará sempre em frente de Prisca, ela assim o quer. O amor, o verdadeiro amor, não forja cadeias, conserva as mãos abertas, dá. E quando o milagre acontece, quando um outro amor lhe faz o dom insensato de querer dar por sua vez, ele não aparra, fica maravilhado.

 

Sim, David é livre. Mas Prisca espera. Espera a cada segundo um telefonema, que toma no seu espírito uma importância enorme à medida que passam as horas, porque ele seria a prova de que ela continua presente no pensamento de David. Ela quer esse telefonema.

 

Ele torna-se-lhe necessário. Ele representará a dúvida se não vier.

 

A dúvida que se insinua. Por tão pouco!...

 

Prisca acaba por adormecer, esgotada com as suas próprias contradições. É talvez isso, finalmente, o amor: generosidade e egoísmo. Em igualdade.

 

Quando finalmente o telefone soa, Prisca sobressalta-se, sai impetuosamente do quarto. De cabeça pesada, corre pela escada estreita. Arquejante, agarra o auscultador:

 

”Alo!”

 

Véronique. É gentil, mas decepcionante:

 

”Estavas a dormir?

 

Um pouco.

 

Profundamente! Percebo isso pela tua voz. Escuta, querida, eu... Launay tem de estar no Bourget esta noite, e, como qualquer idiota, deixou o carro na revisão numa garagem perto da casa dele. Não está pronto, por isso eu vou buscar o meu para o ir levar. Não ficas muito aborrecida? Se eu não chegar a horas de jantar, encontras o necessário no frigorífico. Até logo... Prisca?

 

Diz...

 

Como vai isso? Tens a voz triste.

 

Não tenho nada. Um beijo, saudades ao Launay. A propósito, se ele não se decidir, pede-o em casamento, ele é muito simpático!”

 

Um riso abafado do outro lado do fio e Véronique desliga. Estão juntos e felizes. Têm muita sorte.

 

Uma quantidade de coisas parece ser urgente fazer em casa: lavagem, passagem a ferro, arrumações. Prisca dedica-se a isso com raiva. Uma maneira de fazer passar o nervosismo sobre os objectos. Depois a Sr.a Peuchet sobe com o correio e o leite. Pequena conversa. Perguntas insidosas. Precisamente nesse instante, toca o telefone! O estômago de Prisca dá um pulo. Ela também.

 

E ela espera essa voz adorada. Deformada, bizarra, mas é bem ele que berra no meio dum barulho confuso:

 

”Estamos num restaurante para viajantes. Não penses que consiga chegar a Paris esta noite! Estoirado, Renaud. Vamos talvez jantar aqui, dormir, e só partimos quando for manhã. E tu, como vão as coisas?

 

Bem.”

 

(Oh, a secura dessa palavra quando se tem tanto para dizer! E essa Sr.a Peuchet que não despega! E a voz que parece tão fria lá longe, no restaurante para viajantes, lá não se sabe onde, com tanto barulho à volta!)

 

”Que é que tens?

 

Nada, David, ouço-te mal.. Presta atenção à estrada.

 

Não tenhas medo! Eu velo pela conservação da alma. Até amanhã.

 

Até amanhã!”

 

E pronto. Uma confusão na cabeça, a prova maravilhosa, o telefonema... acabado. E não tinham dito nada porque tinham a garganta apertada, o cérebro vazio e o corpo a flutuar. Esqueceram as palavras ternas, as perguntas e as respostas, as réplicas imaginadas, os votos renovados, a litania elaborada durante horas de espera. Tudo! Mais nada. Excepto a voz e o olhar da Sr.a Peuchet, que interrogam:

 

”Um amigo vem ver-te amanhã?”

 

A horrível criatura, cheia de subentendidos! Para quê a sua intromissão? Prisca põe-na lá fora tão delicadamente quanto possível. Ela não tem mais do que uma tarde e uma noite para se lembrar do que não disse e do que devia ter dito em trinta segundos de comunicação perturbada.

 

Nunca mais! Nunca mais se servirá do telefone para falar a David. Que máquina estúpida, insípida, morta. Que objecto horrível!

 

Mas a alegria voltou, imensa, gigantesca: ele telefonara. Tanto pior se ele ficou aborrecido com a dúzia de palavras sem alma que ela pronunciou ao todo. Ele telefonou. Um elo entre o que podia não ser senão uma ilusão e o que vai ser.

 

O que já não pode não ser.

 

Domingo.

 

Ao meio-dia, Prisca não podia manter-se no mesmo lugar. Véronique paira num doce devaneio desde a véspera à noite. Entrou muito tarde e está a descascar uma quantidade excessiva de batatas. A imaginação de cada uma voa. Num avião junto dum certo comandante de bordo no que diz respeito a Véronique. Para Prisca, na Rue du Buci, onde David e Renaud devem ter chegado. Mas, quanto a notícias, nada.

 

Às três horas, ainda sem nenhum sinal, a angústia instala-se: acidente, diversas catástrofes? David preso, Renaud entre dois sólidos representantes da brigada de menores? Prisca passa tudo em revista. Por fim, acaba por contar a verdade, duma tirada e em soluços, à irmã. A verdade pura... com censura no que respeita aos sentimentos de David e aos seus. Mas não é lá muito útil ser dotada duma intuição invulgar para adivinhar. Véronique apressa-se a telefonar a uma amiga, depois correr ao seu encontro, a fim de desembaraçar o Poleiro da sua presença... no caso de David vir. Atenção delicada, que Prisca aprecia.

 

Ei-la só de novo. E espera. Outra vez!

 

Às cinco horas, o telefone toca. Já não era sem tempo, o espírito de Prisca ameaçava ficar vazio, sinal evidente duma depressão nervosa próxima. David está lá em baixo, telefona-lhe dum café à esquina da rua:

 

”Posso ir aí?

 

Com certeza, estou à tua espera. David...

 

Que é?

 

Despacha-te.

 

O. K. Qual é o andar?

 

Quinto. Eu vou abrir a porta. Diz lá... nada de grave?

 

Não. Eu já te conto.”

 

Mas quando ele surgiu, três minutos mais tarde, à porta que Prisca já tinha aberta, não conta nada. Ele está ali. Tudo desaparece para ela, excepto ele. Ela para ele. Não têm uma palavra, uma ideia. Não há senão aquele olhar azul, a impaciência que os olhos de mar aí lêem, de repente, esses braços que se fecham em volta de Prisca, essa loucura outra vez, essa paixão que arrebata tudo, que morre e renasce mais intensa por se ter acalmado um instante.

 

”Minha fonte... minha fonte esquecida... Volto a encontrar-te... a ti.” E depois, felizes como crianças com a sua juventude, com a novidade nascida entre eles, com o seu abandono puríssimo na sua liberdade, riem e olham-se.

 

”Juízo, minha doçura”, murmura David. ”Diz-me que tenha juízo.”

 

Ela fecha a porta e pega na mão de David. Guia-o até ao divã, senta-se perto dele, muito direita, sorridente:

 

”Conta!”

 

Ele começa por um profundo suspiro que o faz parecer muito jovem, quase adolescente, com essa alegria no fundo dos olhos que não deixam os de Prisca e dizem... dizem muito mais do que as palavras. Entretanto, conta:

 

”Chegámos às onze horas. Escondi Renaud diante duma bebida no café da esquina e subi a casa dos pais dele. E pronto.

 

E é tudo?

 

Não, começa aqui. A família estava toda lá: o irmão, as irmãs, o pai e a mãe. Falei com o pai. Fechamo-nos numa salinha, o quarto duma das filhas, creio eu, e disse-lhe tudo. O problema de A a Z, incluindo a admiração beata que Renaud tem por ele... Aí acrescentei um pouco. Um tipo bem, sabes. Mas tem-se portado mal com o garoto... Eu compreendo-o! Talvez eu não procedesse melhor do que ele no seu lugar; de qualquer modo, é sempre mais fácil para alguém que está de lado como eu. Ele chorava, dir-se-ia uma criança. Não sou capaz de te contar, é... não são coisas que se contem. Depois, ele é que foi buscar o filho diante da bebida. E eu deixei-os tranquilos.

 

E a mãe?

 

Mal a vi. Não teve tempo de me dizer o que pensava de mim, nem o que eu mereço... O pai também não, aliás. Agora, que os conheço, não sei como pude... Pronto, aí está, eles recuperaram o filho e eu creio que as coisas vão correr bem entre eles. Tudo se teria composto mais cedo se eu não me tenho metido. Isto faz parte das coisas que tu me obrigaste a compreender.

 

Acabaste com os teus complexos?

 

Prisca...

 

Diz.

 

Amo-te.” Ela sorri: ”Eu sei.”

 

David engole a saliva, dir-se-ia o cábula da aula obrigado a aparecer diante do inspector: ”Fui visitar o dono da agência.

 

Como é que fizeste?

 

Eu prometera-to.

 

Sim, mas é domingo!

 

Telefonei para casa dele quando saí de casa dos pais de Renaud. Eu tinha o número do seu telefone no campo, ele passa os fins-de-semana no vale de Chevreuse. Atendeu-me a mulher, que lhe passou o telefone. Ele disse-me que o fosse ver imediatamente. Então, evidentemente, corri a casa dele... Começou a moer-me o juízo; se tu o conhecesses, já vias o que deve ter sido. Nada de delicadezas! Depois anunciou-me que me dava a minha última oportunidade antes de me pôr na rua se eu fizesse ainda o... enfim, um idiota. E sabes o que me propôs? Adivinha

 

Como queres que eu adivinhe?

 

Aquilo que eu lhe peço há dois anos: uma verdadeira reportagem, uma verdadeira responsabilidade e massa para pagar tudo! Ele manda-me ir ver o que se passa na Etiópia. Em pormenor. Com fotografias a apoiar.”

 

Os olhos de Prisca tornaram-se maiores:

 

”David! Um país em plena revolução! E se não conseguires regressar, se...”

 

David tem o seu sorriso de outrora, o das grandes aventuras, o do vento e da corrente ao longo do molhe de Saint-Malo: ”... eu podia remar até Curaçau!” O cinzento-esverdeado e o azul mergulham mais uma vez num mesmo olhar. Mas David está longe dali, muito longe, na Etiópia:

 

”Voltarei, sabes muito bem. Por tua causa.”

 

Continuará ele a troçar?

 

”Compreendes, no meu regresso... Prisca, sentias-te muito ridícula se te chamasses Sr.a Wilson?”

 

Ela não se mexeu, nem estremeceu, nem baixou os cílios, e todavia duas lágrimas surgem, incham, trasbordam das pálpebras e deslizam-lhe pelas faces. Duas lágrimas sobre um sorriso. Murmura:

 

”Idiota!”

 

E ele, com uma profunda convicção:

 

”Pior do que isso. Um monstro. Mas amo-te demasiado. Serás capaz de me suportar?

 

Meu amor...”

 

Primeiro são as suas mãos que se juntam, depois os seus lábios, gravemente. O seu verdadeiro casamento antes daquele que o registo civil e o padre legalizarão e santificarão.

 

”O meu pai fez-me protestante disse David.

 

Eu sou católica disse Prisca. Que importância tem isso? David...

 

Ha...

 

Amanhã é preciso que...

 

Parto esta noite, meu amor. Esta noite ou nunca, foi o que o patrão me gritou aos ouvidos.”

 

Um abismo se abre, onde Prisca se afunda o tempo dum segundo, mas nada o deixa transparecer:

 

”E o bilhete, o passaporte, os vistos? pergunta ela.

 

Não há problema. Passei por casa de Bertrand precisamente antes de vir para aqui. Encontrei-o de bruços na alcatifa a escutar Bach. Quando entrei, teve um choque! Ele ocupa-se de tudo. Conhece uma quantidade de pessoas, tem amigos na maioria das embaixadas. Mesmo ao domingo, ele consegue desembaraçar-se. Inacreditável, esse tipo! Com o meu passaporte e o meu cartão da imprensa, jurou-me que eu teria o visto em duas horas. O bilhete de avião está pronto, vou buscá-lo a Roissy, quando chegar.

 

A que horas?

 

Tarde. 21.40 a descolagem. Temos ainda uma quantidade enorme de minutos para passar juntos, minha gaivota.”

 

Prisca sacode a cabeça. Docemente, muito docemente, sugere:

 

”Eu queria que tu amanhã fosses ver a tua mãe. Será imediatamente. Tens de ir vê-la antes de partir.”

 

David ergueu-se de rosto fechado. Um movimento de enfado. E depois olha Prisca. Sorrindo de novo, encolhe os ombros:

 

”O teu ladozinho são-bernardo continua na mesma? Tens de reconduzir o filho à mãe? Um pouco fora de moda, não achas? Muito, muito melodramático e aborrecido! Vê-la-ei quando regressar. Esta noite é dedicada a ti e a mim. Insisto nisso.

 

Eu também.

 

Então deixa Clara onde ela está. Não tenho nenhuma necessidade de ser hipócrita.

 

Achas que ela está em Paris?

 

Está, sem dúvida. Não falemos mais disso, Prisca, que me aborreces.”

 

Por momentos enfrentam-se, tão teimosos um como o outro. Prisca é a mais tenaz: estende-lhe o telefone com o sorriso Juvet em estado puro, da sedução em aumento de voltagem. David resmunga. Mas marca um número, o que parece provar que o sabe de cor. apesar de todas as mudanças de residência de que acusa a mãe.

 

Clara Verneuil, sem maquilhagem, com aquela cicatriz que lhe deforma a boca, está muito diferente do que era, muito lastimável. Mas o seu olhar, quando o pousa em David, nada perdera da sua beleza. E David sente, apesar do mau humor, uma nuvem de sentimentos subir-lhe à garganta.

 

Pela primeira vez na sua vida, tem vontade de proteger essa mulher que é sua mãe, de se confiar a ela. Um novo calor entre eles. Pode falar. Mas ainda não é fácil. Então, abruptamente, diz o essencial:

 

”Vou-me casar.”

 

Os gestos também não são simples.

 

Beijou-a ao entrar, foi tudo. Agora tem vontade de lhe agarrar as mãos, de a lamentar, e também de deitar a esta cara que já não é a de uma deusa as censuras que cultivou durante o tempo da sua infância, da sua adolescência. O desprezo, a piedade, a admiração, em confusão. Em vez disso, fala de Prisca. Mas não como ele queria, com uma espécie de desprendimento que continua a ser exterior, que não é ele, que não é ela. Até ao momento em que ouve a voz cuja sonoridade grave não mudou, que é sempre bela... uma voz baixa, muito doce, muito terna também:

 

”Tu ama-la!”

 

Então David olha a mãe. O que se passa entre eles é mais do que um reconhecimento. É a sua identidade que eles descobrem. Não aquela que se vê, a semelhança física. A outra, a da alma, a do coração. Essa sensibilidade, esses sofrimentos, demasiado facilmente possíveis para um e outro, eles não os exprimem da mesma maneira, mas sentem-nos, sabem que sentem os mesmos.

 

”Como ela tem sorte!”, murmura Clara.

 

É a soma de todas as suas decepções em poucas palavras, é dizer a David, também, o seu desgosto de não o ter reconhecido mais cedo, de o ter negligenciado por uma carreira, por uma busca, sobretudo, cuja amargura ela agora conhece.

 

O homem que é seu filho para uma jovem desconhecida, ela é que não teve a felicidade de o encontrar.

 

Mas tem um sorriso, o mais belo que David lhe viu. Esse sorriso é o esquecimento de si própria e a paz. É uma nova juventude terna, pois ele admite e encontra a sua alegria num amor que não é o seu.

 

Então, David, bruscamente, toma a mãe nos braços e beija-a como talvez nunca o tivesse feito.

 

”Tu”, disse ele, ”vais-me fazer o favor de sair do teu buraco, de te sacudir um pouco, de te vestir e te mostrar. Eu direi à minha gaivota que te venha ver.”

 

Afasta Clara de si, contemplando-a um instante com uma ponta de desconfiança no fundo dos olhos, e acrescenta:

 

”Ela é muito bonita, sabes?”

 

Uma afirmação inquieta que pede uma resposta.

 

E ela vem, essa resposta, depois dum momento. Um silêncio.

 

Há na voz de Clara o resto dum sofrimento, o reflexo duma amargura dominada. E, nesse abandono, uma total sinceridade:

 

”As jovens e belas raparigas já não me fazem medo, David. Diz a essa rapariga que será bem-vinda. Gostarei dela.”

 

”Minha gaivota... não tenho tempo de te ir dizer adeus, estou em casa de Bertrand, pego nas minhas coisas e vou a correr, o avião descola dentro de quarenta minutos. Sabes, a minha mãe... não, conto-te quando voltar. É muito longo! Em resumo, ela beija-te, e eu amo-te. Amo-te, meu amor... Desliga depressa! Desliga, ou mando esse avião para o diabo e vou ter contigo.

 

Era o que podias fazer de melhor! Demasiado tarde. Ela partiu.”

 

David fica estupidificado, de telefone na mão, no estúdio deserto do seu amigo Bertrand, que deve ter tido de sair outra vez, pois o passaporte, o visto recente e o cartão de imprensa, o material de reportagem completo nos seus estojos, sacos e sacolas, estão lá, bem à vista, com uma nota garatujada no canto dum calendário: ”Grande felizardo, não esqueças nada e até já em Roissy. Se ousares perder o avião, estrangulo-te.” Está tudo arranjado, impecável.

 

”Quem está ao telefone?

 

Véronique! Mesmo assim, bom dia. David Wilson, não te apresento os meus cumprimentos: quando apareces ao fim de oito anos, não é para semear a calma na nossa família! Encontrei uma carta debaixo da porta que te valeria a polícia toda de Franca atrás de ti se Prisca não tivesse dezoito anos e três meses.

 

Que é que...

 

Não faças perguntas, corre a Roissy, e, se acontecer alguma coisa que seja a um cabelo da minha irmã, eu...

 

Mas onde está ela?

 

Em Roissy, evidentemente! Mato-me a dizer-to. Pronta para embarcar para a Etiópia no teu avião, voo KS 867, descolagem às 21.40. É isto ou não?

 

É, mas não se trata dela...”

 

A voz furiosa troa na outra extremidade do fio:

 

”Ah, julgas que se pode discutir com a minha irmã quando se lhe mete uma coisa na cabeça? Se fosse possível, eu estaria no meu carro, a passar com todos os sinais vermelhos, para correr para junto dela. Na verdade, meu pobre rapaz, tu não a conheces! Corre, em vez de falar.”

 

Quando ela desliga, ouve-se um ruído seco.

 

Na imensa aerogare de Rossy, David corre, passadas a polícia e a alfândega, o bilhete no blusão, os aparelhos de fotografia a baterem-lhe nas ancas, as duas mãos presas aos sacos, um dos quais contém, além duma rima de película, o seu estojo de toilette, dois slips e duas camisas ao todo e para tudo. A seu lado, Bertrand galopa em passo ginástico, brandindo um cartão de imprensa e um livre-trânsito que lhe permite transpor as passagens. Encontraram-se no balcão da recepção.

 

”Porta 82, idiota, não estamos lá!

 

Mas ela?

 

Ela o quê? Ela está à tua espera no embarcadouro, com certeza. Que rapariga! Um demónio.

 

Tu nunca devias... grita David trepando a três e três os degraus duma escada rolante que já sobe bastante depressa. Nunca te hei-de perdoar, tu...”

 

É mais um arquejar do que uma conversa. Bertrand faz o que pode para a seguir, assim como à corrida muito desportiva de David:

 

”Nunca hás-de perdoar-me o quê? Ela apareceu na embaixada com o passaporte quando eu lá estava a lutar pelo teu visto. Se a tivesses visto! Um tigre! Disse-me: ’Preciso dum.’ ’Um quê?’, pergunto-lhe eu. ’Um visto.’ E num tom! Meu velho, eu, a Prisca, não sei como se resiste, é pior do que a minha mulher! Fiz um destes barulhos com o meu amigo da embaixada que nem queiras saber! Contei que ela tinha perdido o seu cartão de imprensa, que era uma questão de vida ou de morte para ela (isto tem ar de ser verdade), que era preciso que ela te acompanhasse. Enfim o quê... Consegui-lhe o visto... Porta 82, já te disse, mais longe. Com a breca, David, só tens três minutos!”

 

Então, David vê-a, sozinha, junto da hospedeira e do comissário de recepção, no balcão do embarcadouro, porta 82. Os outros passageiros já estão a bordo. E ela aí vem a correr para o homem da sua vida para lhe arrancar o bilhete e o levar o mais depressa possível à hospedeira, que estende um cartão verde: ”Despachem-se!”

 

David agarra a gaivota em pleno voo:

 

”Proíbo-te...

 

Não é o momento, David, terás todo o tempo para me proibir o que quiseres no avião, anda!

 

Mas, precisamente...

 

David, por piedade, tenho muito amor às coisas que estão na minha mala e ela já está registada, anda!

 

Prisca!

 

David! Anda, ou nunca mais te dirigirei a palavra, juro-te. Essa reportagem é a oportunidade da tua carreira, não tens o direito de a perder. Se me amas...

 

Se ousas...”

 

O resto perde-se porque eles desaparecem no passadiço, que vibra ao ritmo da sua corrida. Bertrand agita o braço na cancela, mas eles nem sequer se voltam!

 

Bertrand permanece ali, de nariz encostado à vidraça, como um manequim numa boutique. Imagina o passadiço a recolher-se como a ponte duma eclusa logo após os seus últimos passos, enquanto eles se engolfam no avião e oferecem aos que os vêem o espectáculo da sua felicidade e também a sua agitação. Entretanto, calmamente, a porta era fechada.

 

Ei-lo longe, esse avião, com as suas vigias iluminadas, minúsculas na noite. Uma fila de pequeninas luzinhas que arrancam quase imediatamente...

 

E Bertrand, ainda esfalfado, dá um suspiro que o liberta. O comissário aproxima-se dele:

 

”A jovem esqueceu isto sobre o balcão.” Estende um postal que representa o aeroporto. No verso, Prisca escreveu a direcção dos pais em SaintMalo, colou um selo e garatujou estas palavras: ”David e eu partimos para uma pequena viagem, não será longa e estamos muito felizes. Beijo-vos. Até breve!” ”E esta! exclama Bertrand.

 

Envio o postal? pergunta o comissário, imperturbável.

 

Sim, obrigado”, diz Bertrand, contemplando a caligrafia de Prisca.

 

Lá em cima, verde, vermelho... As luzes de posição dum avião.

 

Prisca meteu a mão na de David.

 

”Então, a tua mãe?

 

Apesar da sua zanga, ele exclama:

 

”Prometi-lhe que irias vê-la durante a minha ausência!”

 

Prisca está muito tranquila na sua vitória.

 

A hospedeira passa e sorri-lhes. Já devia estar embotada. Mas aqueles dois...

 

O seu sorriso torna-se mais pessoal.

 

Bertrand dirigiu-se ao telefone. A reacção: chama a mulher.

 

”Vou ter contigo, estou farto. Tanto pior para o trabalho. Rolarei toda a noite, mas sigo já. Que dias, minha querida!”

 

No outro extremo do fio a voz a que não falta uma nota de humor:

 

”David?

 

Sim. Mas desta vez passamo-lo de mão.” Valerie adivinha antes que lhe tenham dito: ”Como é que ela se chama?

 

Prisca. Pior que tu, meu amor! Estou derreado. Eles vogam no azul, com destino à Etiópia. Estás encostada a qualquer coisa? Então digo-te tudo: David continua louco. Mas de amor. E é contagioso.”

 

Um riso, lá longe, no Midi. E depois: ”Tem atenção à estrada...”

 

                                                                                            Cecile Aubry

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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