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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Lua do Lobo / Nora Roberts
A Lua do Lobo / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Lua do Lobo

 

A Lua do Lobo é um romance entre uma mulher-lobo e um veterinário que pode ser capaz de curá-la, um convincente conto de fadas gótico.

Simone se encontra em um grande dilema, está interessada no novo veterinário, Gabe Kirby. Mas ela tem um segredo que não pode compartilhar com ninguém, certamente não com o Gabe. Uma história apaixonante, que parece não durar o suficiente.

 

Itália - Em algum lugar das Montanhas Piamontesas.

            Como um pincel submerso no crepúsculo, o sol que ficava brilhava pelo vale e melava de sombras bordeadas de prata o bosque. Esses últimos raios chamejantes não durariam, mas sim logo desapareceria brandamente para esconder-se depois dos picos e abandonar o céu com um azul suave e arroxeado.

            Simone moveu seus ombros, trocando o peso de sua mochila enquanto via a noite reptar pelos selvagens limites do Valgrisenche.

            Ao menos estava bastante segura de que ali era onde se encontrava. Tinha vagado fora do caminho - por pouco que fora - horas antes. Mas não lhe importava. Havia ido pela aventura, pela emoção. Pela liberdade.

            E se estava um poquito perdida em uma área remota das montanhas italianas, o que? Estava nas montanhas italianas, e isso era o que contava.

            Em qualquer caso, tinha seu compasso, seus livros de guia, e todas as provisões necessárias. Amanhã cruzaria a França... França, pensou com um ligeiro baile com as botas de montanha.

            De qualquer modo, se lhe ocorria, se não decidia ficar neste lado da fronteira outro dia ou dois antes de continuar com sua viagem. Esta viagem gloriosa e pessoal.

            Acamparia, mas ainda não. A luz estava desvanecendo-se, mas o pôr-do-sol era tão espetacular, vermelhos e dourados pintados sobre o céu ocidental. Sempre tinha acreditado que o crepúsculo era o mais mágico dos momentos. Um emocionante silêncio que deveria ser saboreado antes de que se sangrasse na noite.

            Assim seguiria o ocaso por um momento, encheria-se os pulmões com o agudo aroma penetrante de pinheiros do bosque, e veria o sol agonizante afundar-se sobre, dentro e depois dos picos cobertos de neve.

            Tinha estado bem em ir depois da temporada do verão, bem em tomar-se este ano para permitir-se tudo o que tinha sonhado toda sua vida.

            Tinha provado massa em Roma, embebedou-se no Spoleto, comprado uma ornamentada cruz de prata a um vendedor em Veneza, e tinha tido um romance de três dias bobamente intenso em Florência.

            Mas a maior parte do tempo ficava fora do caminho marcado, desfrutando das excursões através dos vales e colinas, através dos campos de girassóis, dos vinhedos.

            Durante um terço inteiro de seus dezoito anos tinha estado apanhada na cidade, encarcerada pelo destino e o sistema. Tinha sido forçada a seguir as regras e tinha marcado cada dia desde seu décimo segundo aniversário como um dia mais próximo à liberdade.

            Agora estava aqui, seguindo um sonho. O sonho de seus pais, sabia. Estava vivendo-o por eles. Se tivessem vivido, teriam vindo muito antes que isto. Eles, os três, tivessem visto e saboreado, e cheirado e experiente.

            Tocou com os dedos a pesada cruz que pendurava ao redor de seu pescoço e viu como os últimos raios de sol gotejavam sob os picos.

            Eles o teriam adorado.

            Colocou sua mochila mais comodamente e começou a caminhar novamente. Havia muita energia dentro dele para acomodar-se para a noite. As estrelas já estavam titilando, e o céu era claro como um espelho. Tinha sua lanterna e podia seguir a seu nariz e seu compasso até que estivesse cansada.

            Outra hora, disse-se a si mesmo, então escolheria um sítio e o chamaria sua habitação. Faria algumas notas em seu diário de viagem à luz da lua.

            Era quente para ser outubro nas montanhas, e o exercício a mantinha cômodo com apenas sua gasta jaqueta de jeans. Quase seis semanas de senderismo tinham agregado músculos a sua constituição usualmente flácida.

            Sua prima, um ano menor que ela, já tinha começado a crescer seios quando Simone se mudou à ordenada casa regulamentada no Saint Paul. E Patty nunca se cansava de provocá-la por sua falta de formas.

            Ou de mexericar a respeito da Simone pelas menores infrações, às vezes fabricadas.

            Assim tinha aprendido a arrumar-lhe deixar-se levar e contar os dias.

            "Me olhe agora, Patty, cadela com dentes de coelho". Estirou os braços e levantou um em uma exagerada flexão de biceps. Estou virtualmente musculosa.

            Tinha cortado ela mesma seu cabelo loiro ensolarado antes de abandonar Saint Paul, como uma espécie de ritual, e por practicidade.

            Menos cabelo, menos do que ocupar-se enquanto viajava. Estava crescendo um pouquinho desgrenhado ao redor de seu rosto triangular, com a franja caindo em seus olhos e o resto crescendo como puas. Possivelmente não era precisamente o melhor look para ela, mas era diferente.

            Pensou que seria divertido dar o gosto de um corte de cabelo em Paris. Possivelmente tingir-lhe magenta. Radical.

            Suas botas maciças ressoaram sobre as pedras, levantaram pó, enquanto a branca lua cheia começava a elevar-se.

            Estava o suficientemente iluminado para apagar a lanterna. Andou à luz da lua, deslumbrada pela enorme bola que navegava pelo céu índigo, encantada quando uma voluta de nuvens se deslizou sobre o branco e voltou a desaparecer.

            Observando-a, começou a cantar a canção "Irmã lua" de Sting. A seus pés, uma fina névoa começou a deslizar-se, defumar-se e arrastar-se, como serpentes, ao redor de seus tornozelos.

            Quando o uivo se elevou e ecoou, ela se deteve com um tropeção. O calafrio foi como uma lança direto a sua pança, uma folha de gelo que congelava as vísceras.

            Instintivamente, olhou para trás e fez um torpe círculo enquanto sua respiração soprava em um grito afogado.

            Então riu de si mesmo. Estúpida reação reflito, disse-se a si mesmo. Provavelmente era um cão, o cão de alguém correndo pelo bosque. E embora fosse um lobo - embora fosse - os lobos não caçavam pessoas, nem as incomodavam. Essas eram coisas de Hollywood.

            Mas quando o uivo correu pelo ar outra vez - perto, estava mais perto? - cada nervo primitivo ficou em alerta. Acelerou seus passos, e procurou a navalha Suíça em seu bolso.

            Nada importante, exortou-se. Se era um lobo, só estava fora procurando coelhos ou ratos, ou o que fosse que os lobos gostavam de comer. Ou estava esperando conseguir uma entrevista com outro lobo. Não estava interessado nela.

            Que tão longe estava a aldeia seguinte?, perguntou-se, e começou a trotar, seus músculos protestando enquanto os castigava com uma íngreme ascensão. Só tinha que chegar à aldeia, ou a uma casa ou granja. Algo que tivesse pessoas, luz e ruído.

            Sem respiração, deteve-se para escutar e não ouviu nada mais que o sussurro dos pinheiros com seus borde chapeados gravados pela luz da lua navegante.

            Seus ombros começaram a relaxar-se, e então o ouviu. Um rangido. Havia movimento nas árvores, sigiloso, lhe espreitem, que a fazia pensar em Hollywood outra vez.

            Filmes de degoladores e de monstros.

            Mas foi pior quando pôde ver, ou acreditou poder ver, sua vaga forma. Muito grande para ser um cão. E a luz da lua fez cintilar seus olhos, ferozes e amarelos enquanto se fundia em sombras mais profundas com um grunhido denso e úmido.

            Correu, correu cega e surda com um medo primitivo, com o coração estrangulado, correu através das sombras e a luz da lua sem pensar em nenhuma direção nem defesa, só em escapar.

            E nunca o ouviu vir.

            Surgiu da escuridão, saltou sobre suas costas e a enviou caindo para diante em uma queda total, que lhe rasgou os joelhos e as palmas. A faca saiu disparada de sua mão, e com chiados discordantes, ofegantes, tentou abrir-se caminho para frente.

            Rasgou-lhe a mochila, e os sons selvagens e famintos fizeram que suas extremidades se voltassem gelatina até enquanto seus pés se revolviam. Algo afiado rastelou seu braço. Algo pior perfurou seu ombro.

            A dor era negra e brilhante e, combinado com o medo, fez que seu corpo se levantasse de um empurrão, arqueando-se e corcoveando contra o peso em suas costas.

            O aroma disso, e de seu próprio sangue, afogaram-na enquanto a arrastava.

            Ela viu o que não podia ser, um monstro de pesadelo elevando-se sobre ela à dura luz da lua. Seu comprido e lustroso focinho estava manchado de sangue, e seus olhos - amarelos e dementes - cintilavam com uma horrível fome.

            Seus gritos ressonaram enquanto o golpeava e açoitava, enquanto via as fauces abrirem-se. Viu o brilho de presas.

            Novamente, as afundou no ombro, e a dor foi além dos gritos, além da razão. Debilitando-se, ela o empurrou, com as mãos empurrando dentro da pelagem, e sentindo o enfurecido coração debaixo.

            Então seus dedos se aferraram à cruz de prata. Soluçando, balbuciando de terror, cravou-a dentro dessa escorregadia pele. Essa vez o grito não foi humano, não foi dela. O sangue se derramou em sua mão e o corpo do lobo se agitou sobre o seu. Ela o cravou outra vez, balbuciando locamente, seus olhos cegos de lágrimas, suor e sangue.

            Então ficou sozinha, sangrando no chão, estremecendo-se de frio. E olhando fixamente a lua cheia branca.

 

Maine - Onze anos mais tarde...

            Como fazia uma vez por mês, Simone carregou sua caminhonete com o que pensava que eram suas loções e poções. Assobiou chamando a seu cão, esperou até que Amico saiu saltando dos bosques onde tinha estado perseguindo esquilos nas árvores - um passatempo favorito - e correu pela grama para saltar dentro da cabine da caminhonete.

            Como sempre fazia, sentou-se em seu lado do assento e tirou sua enorme cabeça marrom pela janela, à expectativa da viagem.

            Ela acendeu o estéreo, pôs a caminhonete em marcha e começou a viagem de quinze quilômetros ao povoado. A distância era deliberada; não muito longe do povoado, por sua própria conveniência. E não muito perto, por sua própria preferência. Tal como o povoado do Eden Springs era uma eleição deliberada.

            Pequeno, mas não tão pequeno que todos soubessem os assuntos de todos. O bastante pitoresco para atrair turistas, para que sua empresa pudesse, e o fazia, beneficiar-se deles.

            Tinha sua solidão, os bosques, os escarpados e um trabalho que a satisfaziam. Tinha visto tanto do mundo como tinha querido ver.

            Encaminhou-se à costa com as janelas abertas, a brisa de setembro entrando enquanto Coldplay saía. Seu cabelo, um loiro beijado por sol, dançava. Levava-o murcho, para que as pontas despontadas se detiveram justo em cima de suas omoplatas. Um comprimento conveniente que podia deixar solto ou atar, com o que podia jogar se estava de humor, ou esquecer se estava ocupada.

            Seus olhos eram de um verde salpicado de dourado que sentavam bem com os extremos de diamante de seu queixo e maçãs do rosto. Seus jeans, botas e jaqueta de couro eram todos comodamente gastos e cobriam um corpo que era implacavelmente disciplinado. Como o era sua mente.

            Simone sabia que a disciplina era a chave para a sobrevivência.

            Desfrutou da viagem, um pequeno prazer, com o aroma do mar salgando o ar, o aroma de seu cão enfraquecendo-o. O céu era azul forte e brilhantemente claro. Mas ela cheirava a chuva, muito longe, sobre a água.

            Chegaria ao subir a lua.

            As casas se voltavam mais abundantes e mais próximas enquanto passava o ponto médio entre seu lar e o povoado. Encantadas Cape Cods, ordenadas pecuaristas, antiquadas "caixas de sal". A gente começava a dispersar-se, aproximando-se mais perto de seu isolamento.

            Não podia fazer-se nada.

            Checou seu relógio. Tinha uma consulta no veterinário; um pequeno detalhe que estava ocultando ao Amico enquanto fora possível. Mas havia bastante tempo para fazer a entrega e ocupar-se do que necessitasse sua atenção antes de levar ao Amico ao consultório para seus exames e vacinas.

            O tráfego ficou mais denso, tão pouco como era. A seu lado, Amico soltou um pequeno gemido de alegria. Ela sabia que ele adorava olhar os outros automóveis, a gente dentro deles, o movimento, quase tanto como gostava de pular pelos bosques em casa e perseguir à fauna e flora.

            Girou em uma rua lateral, logo em outra, dirigindo com calma pelos estreitos caminhos antes de dobrar no mísero exterior de sua pequena loja.

            Ela a tinha chamado "Lua" e tinha eleito sua localização com tanta precisão como fazia todo o resto. Essa parte do povoado contava com muito tráfico pedestre, local e turista.

            Tinha chegado cedo deliberadamente, antes de que sua encarregada ou sua empregada do meio-período aparecessem. Teria tempo para descarregar, checar seu inventário e fazer qualquer ajuste que desejasse.

            Logo depois de estacionar, deixou sair ao Amico, deu-lhe a ordem de sentar-se e ficar quieto. Ele não infringiria a ordem mais do que abriria as asas e se poria a voar.

            Carregando caixas, abriu a porta traseira e lhe assobiou. Ele passou rapidamente junto a ela enquanto carregava caixas dentro da loja. Simone aspirou os aromas a romeiro e camomila, sutis sotaques de atanasia e espinheiro. Dúzias de fragrâncias corriam por seus sentidos enquanto depositava o estoque mais novo sobre o mostrador.

            Garrafas claras e quadradas de tamanhos variados estavam cheias de loções e natas, sais de banho e geléias. Suas cores, suaves ou brilhantes, iluminavam a tênue luz.

            Havia sabões e bálsamos, perfume e tônicos. Todos feitos por sua própria mão, de suas próprias receitas, com suas próprias ervas.

            Isso mudaria logo, pensou, acendendo as luzes. Não se podia deter o progresso. Seu serviço em linha estava começando a prosperar repentinamente e necessitaria contratar mais ajuda, passar parte da produção a outros.

            Havia dinheiro que fazer, e precisava fazê-lo.

            Saiu em busca de mais estoque, empilhando caixas. Logo começou a descarregá-las.

            Notou que os produtos para o cuidado da pele sempre se vendiam bem. E os produtos para banho saíam zumbindo pela porta. Tinha sido inteligente ao adicionar umas poucas gotas de corante de comida ao gel de banho Musgo irlandês. Os clientes gostavam dessas cores profundas.

            As velas eram tão populares que estava pensando em começar outra linha.

            Passou uma hora feliz substituindo ou adicionando os estoques e se permitiu um brilho de orgulho e satisfação. O fracasso, disse-se a si mesmo, tinha-a conduzido ao êxito.

            E cedo ou tarde, prometeu-se, encontraria o que mais necessitava.

            - Muito bem, bebê.

            Com considerável pesar, tirou a correia de sua bolsa. Amico a observou, olhoua ela, e agachou a cabeça como se Simone o tivesse ameaçado com um taco de beisebol.

            - Sinto muito, sei que é insultante, mas as regras são regras. - agachou-se para sujeitá-la a seu brilhante colar vermelho. - Não é que não confie em ti. - Seus olhos sustentaram o olhar dos dele enquanto se inclinava, nariz a focinho. - Mas há uma lei de correias, e não queremos problemas. Assim que retornemos - murmurou, esfregando a bochecha contra a pele dele, - tiramo-la.

            Cruzou para a porta, colocando os óculos de sol contra a luz cintilante.

            - Será um dia difícil para ti - disse-lhe enquanto começavam a caminhar pela vereda. - Mas tem que te manter são, verdade? Em forma e bom estado. O doutor Greene só quer te cuidar.

            Simone fez as duas quadras e meia lentamente, para dar tempo ao Amico para preparar-se para o que era, para ele, uma experiência muito pouco feliz. E caminhou lenta por si mesma, para prolongar esse estranho passeio por uma vereda onde havia gente fazendo suas coisas e suas vidas.

            - Farei-te ovos mexidos quando chegarmos a casa. Sabe que adora os ovos. Porei-lhes queijo, e isto será só uma lembrança. Então faremos...

            Levantou a cabeça bruscamente, e Amico cravou os talões automaticamente. Simone captou um aroma, elementar e masculino, que fez que seu sistema se agitasse. O comichão na parte inferior de seu abdômen se converteu em desejo.

            E ele correu dobrando a esquina, com o cabelo escuro voando, botas de lona gastas batendo no pavimento com um som que para os ouvidos dela eram como disparos.

            Ele se deteve dando uma derrapagem, evitando uma colisão e logo sorriu. Um sorriso lento, preguiçosa, do estilo "olá-tudo bem".

            Ela viu seu rosto... Não podia ver nada mais. Pele morena sobre ossos fortes, rodeada pelo halo de uma ondulada massa de cabelo negro úmido. Sua boca se via como se tivesse sido gravada em seu rosto, esculpida ali. Seus olhos eram marrons, de um profundo e suntuoso marrom. Podia vê-los através dos escuros óculos que ele levava.

            Ela os conhecia.

            - Olá. Sinto muito. - Sua voz era como uma carícia sobre a pele nua e fez que o sangue nadasse na cabeça da Simone. - Chego tarde. É uma das minhas?

            O enjôo estava mudando para outra coisa, uma profunda e dolorosa necessidade.

            - Tua?

            - É minha consulta das oito? Né... Simone e Amico?

            - O doutor Greene é...

            Ela podia sentir um som, primitivo e desesperado, arranhando no fundo de sua garganta.

            - Ah, não se inteirou? - Sacudindo a cabeça, ele abriu a porta do escritório do veterinário. - Tivemos alguns problemas com isso. Substituí-o um par de semanas atrás. O tio Pete - o doutor Greene - teve um ataque de anginas mais ou menos um mês atrás. A tia Mary ficou firme a respeito de aposentar-se. Ele ainda consulta, mas me mudei de Portland para cá. Queria fazê-lo de qualquer modo. Gabe - disse, lhe oferecendo a mão. - Gabe Kirby.

            Ela não o tocou, não se atrevia, e teve o engenho para fazer um sinal com a mão ao Amico. O cão se sentou e ofereceu amavelmente sua pata.

            Com uma gargalhada, Gabe a aceitou.

            - Um prazer te conhecer. Adiante. - Entrou na sala de espera e falou diretamente com a mulher encarregada do escritório. - Não chego tarde. Meu paciente chega cedo, e estivemos fora nos conhecendo.

            - Chega tarde. Quatro minutos. Olá, Simone. Amico! - Tinha um rosto amplo, coroado com um ondulada arbusto de cabelo em um tom de vermelho nunca visto na natureza. - Como está, formoso?

            Simone lhe fez o sinal de soltar para que pudesse saltar ao redor do escritório para que o mimassem.

            - Bom dia, Eileen. - Disciplina, recordou-se Simone a si mesmo. A disciplina significava sobrevivência. Sua voz era tranqüila e calma. - Lamento pelo doutor Greene.

            - Oh, ele está bem. Tem tempo para pescar e sentar-se em sua rede. O único inconveniente para ele é que Mary está vigiando sua dieta como um falcão. E está ameaçando fazendo que se inscreva para uma aula de ioga.

            - Quando o vir, lhe diga que eu disse que se cuide.

            - Direi. Vejo que conheceu este.

            - Fala de mim desse modo porque me colocava sob seus pés cada vez que vinha de visita quando eu era pequeno.

            Ele estava apoiado contra a escrivaninha, despreocupado, com todo o tempo do mundo, mas seus olhos a olhavam fixamente, e ela viu o estado de alerta, o intelecto e o interesse.

            - Estamos preparados para o Amico?

            - Tudo preparado. - O telefone sobre o escritório do Eileen começou a soar. - Não se preocupe, Simone. É jovem e tem problemas para começar a mover-se pelas manhãs, mas é um bom veterinário.

            - Não cheguei tarde - disse Gabe outra vez, dando-se volta para a sala de exame. - Venham. Então, me diga, Amico, como te estiveste sentindo? Alguma queixa?

            - Ele está bem. - Simone se concentrou em regular sua respiração, enfocar-se em seu cão, que começou a tremer quando ingressaram na sala de exame. - Fica nervoso antes de uma revisão.

            - Está bem. Eu também o faço. Especialmente quando envolve i-n-j-e-ç-õ-e-s.

            Ela as arrumou para sorrir.

            - Não gosta.

            - Isso é porque não está louco, verdade, moço? - Voltou a agachar-se, passando as mãos pelo rosto do Amico, seu corpo, para suas pernas, esfregando-o brincalhão, enquanto (ela notou) essas mãos de dedos largos checavam sua constituição, seus ossos. - Que cão arrumado. Uma pelagem boa e sã, olhos claros. Olhos formosos - corrigiu, sorrindo ao olhá-los. - Alguém te ama.

            Havia uma rocha no peito da Simone, pressionando contra seu coração até ficar tatuado como um pássaro apanhado. Mas sua voz foi serena e clara.

            - Sim, assim é.

            - Vejamos quanto pesas, companheiro.

            Antes que Gabe pudesse conduzir o cão para a balança, Simone estalou os dedos diretamente. Amico subiu à balança.

            - Um cão inteligente. E em estado para lutar.

            Tomou a tabela, fez algumas notas. E estava cantarolando uma canção em voz baixa.

            Qual era? "Mulher bonita", deu-se conta Simone, e não pôde decidir se se sentia adulada ou envergonhada.

            - Subiremo-lo à mesa. Dará-me algum problema quando revisar seus dentes e suas orelhas?

            - Não. Amico, sobe. - Obedientemente, o cão se agachou e saltou sobre a mesa. - Sedersi. Sente.

            - Genial - disse Gabe quando Amico se sentou. Estava sorrindo novamente, diretamente a ela, todo interesse. - Isso é italiano?

            - Sim.

            Gabe tomou seu otoscópio e fez brilhar a luz nas orelhas do Amico.

            - É italiana?

            - Uma parte de mim.

            - Eu também, em alguma parte longínqua do lado de minha mãe. Faz muito que vivem aqui?

            - Quase três anos.

            - É um lugar agradável. Estava acostumado a vir e passar o tempo com meu tio quando era pequeno. Adorava estar rodeado de animais. Ainda o faço. Bom moço, é um bom moço.

            Ofereceu ao Amico um par de guloseimas para cães.

            O cão olhou a Simone e as engoliu quando lhe fez o sinal para que tomasse.

            - São, também. Faremos esta parte tão rápido como podemos. Quer tomar a cabeça, lhe falar?

            Simone deu um passo adiante, concentrando-se no aroma de seu cão, no aroma do gato e do humano que acabavam de entrar na sala de espera. No aroma do anti-séptico, nos aromas da sala traseira, onde punham aos mascotes recuperando-se de cirurgias.

            Em algo exceto o aroma do homem.

            Murmurou em italiano, em inglês, acariciando as orelhas do Amico, lhe dizendo que fora valente. Pela extremidade do olho, viu o Gabe beliscar parte da pele do cão e deslizar a agulha dentro.

            Amico piscou, tremeu um pouquito, mas não fez nenhum som.

            - Já está, o pior passou. É um bom cão, Amico. Um cão muito bom.

            Tirou mais guloseimas, e tanto o homem como o animal olharam a Simone em busca de aprovação.

            - Adiante, Amico.

            - Assim é bilíngüe - disse Gabe enquanto Amico mordiscava delicadamente as guloseimas de sua palma. - Treinou-o você mesma?

            - Sim.

            - Você...?

            - Sinto muito, realmente devemos ir. Amico. - Fez um gesto para o chão e voltou a prender sua correia na coleira. - Obrigado. - Simone saiu rapidamente do escritório, dizendo adeus a Eileen. - Farei que Shelley traga um cheque pela revisão e as injeções. Tenho que ir.

            - Não há problema. Só... - Eileen fechou os lábios quando a porta se fechou de um golpe detrás da Simone. - Bom, estava apressada.

            - Sim. - Gabe cruzou para o escritório e lhe ofereceu um sorriso a seus seguintes pacientes. - Estarei com vocês em só um minuto. - Então se inclinou perto do Eileen e lhe falou em voz baixa. - Quero que me conte tudo sobre ela, assim que estejamos livres aqui. Nenhum detalhe será muito pequeno para escapar a meu interesse. Mas só me diga isto, por agora... É casada, comprometida, complicada?

            - Nenhum... Que eu saiba.

            - Bem. A vida vale a pena ser vivida.

            Fora, Simone caminhou rapidamente, lutando por encher seus sentidos com algo que tivesse à mão. Fumaça do escapamento dos automóveis, o aroma do pão da padaria, a loção de barbear com forte aroma de pinheiro de um homem que passava com pressa a seu lado.

            Suas mãos queriam tremer, agora que podia relaxar (um pouquinho) aquele rígido controle.

            Nunca antes tinha experimentado algo como isto, mas sabia o que era. Luxúria e desejo e uma necessidade desesperada.

            Nunca antes tinha visto o Gabe, mas o tinha conhecido, o tinha reconhecido.

            Sabendo que não podia enfrentar a ninguém, não ainda, rodeou a quadra, evitando sua própria loja e indo direto a sua caminhonete. Dentro, concedeu-se um minuto mais, descansando sua cabeça sobre o volante enquanto Amico lhe fuçava a bochecha com preocupação.

            Tinha reconhecido o único que nunca poderia ter.

            Um companheiro.

 

            Em onze anos, Simone tinha vivido em sete lugares. Tinha sido sua própria norma estrita não permitir-se afeiçoar-se muito a qualquer sítio, a nada. A ninguém.

            Tinha duas metas na vida. A primeira era a sobrevivência; a segunda, encontrar uma cura para a infecção que vivia dentro dela. Para obter essas metas, necessitava viver apartada. Estar apartada.

            Não tinha família, ou aqueles a quem tinha deixado atrás no St. Paul onze anos antes não estavam mais interessados nela que ela neles. Não podia arriscar a vizinhos, amigos, amantes. A intimidade, ou sequer a pretensão de intimidade, era muito perigosa.

            Não tinha esperado afeiçoar-se tanto com esta pequena fatia de Maine. Tinha vivido nos espaços muito abertos de Montana, nos muito altos bosques de Washington, na costa açoitada pelo vento de Nova Scotia. Nenhum desses lugares, ou qualquer dos outros nos que se estabeleceu brevemente ou estado de passagem, tinha chegado a ela como o verde bosque de Nova a Inglaterra, com as praias extensas e rochosas, os escarpados desiguais do leste de Maine.

            Assim que ficou, rompendo sua própria política, e tinha começado a pensar na casa que tinha escolhido por propósitos específicos e práticos como lar.

            Então o tinha visto, tinha-o cheirado, tinha-lhe falado. Agora se temia que deveria seguir adiante, outra vez, em vez de arriscar as conseqüências.

            Mas acreditava que estava perto, a ponto de encontrar as respostas. Tinha-o acreditado antes, admitia-o. Tinha permitido que suas esperanças crescessem, só para as ver feitas pedacinhos uma e outra vez, quando a lua tomava.

            Podia evadi-lo. Evitar às pessoas era uma habilidade bem aperfeiçoada. Simone sabia como negar-se a si mesmo. Havia outros veterinários. E se seu corpo requeria uma liberação sexual com um companheiro, poderia encontrar a outro homem facilmente. Tinha-o feito antes. Um veloz emparelhamento na escuridão, simples e básico como a comida ou a bebida.

            Não havia uma boa razão para voltar a ver o Gabe, e não ganharia nada pensando nele.

            Só precisava era de trabalho.

            A cozinha da velha casa era um hervidero de atividade. Simone fazia uso dos oceanos de encimeras, a volumosa cozinha, o computador com sua lista de produtos e suas fórmulas. Agradava-lhe a ensolarada brilhantismo dessa habitação tanto como sua prática distribuição. A mulher que era desejava o sol tanto como o que estava dentro seu desejava a lua.

            Agradava-lhe trabalhar ali pelas manhãs, fervendo ervas a fogo lento na cozinha, fazendo infusões com elas, absorvendo os aromas enquanto cozinhava, moía ou ralava. Aqui também experimentava. Os clientes podiam ser ferozmente leais aos padrões, mas desfrutavam e pagavam pelos produtos novos.

            Pensou que o novo gel para mãos, com sua base de algas que ela mesma tinha compilado com a maré baixa, seria um êxito.

            Quanto mais obtivesse com seu negócio, recordou-se enquanto filtrava o líquido esfriado em um bol, mais tinha que investir em seu outro trabalho. Em sua busca pessoal.

            Moveu-se por sua cozinha, controlando panelas, recipientes, garrafas, com o cabelo pacote com uma velha borracha para o cabelo, os pés descalços, sua velha camisa caindo sobre o quadril dos jeans.

            Enquanto trabalhava escutava o último best-seller do Robert Parker em áudio. Sua companhia consistia de personagens em livros ou filmes, canções no estéreo.

            Eles, e Amico, eram o único que Simone necessitava.

            O único, recordou-se a si mesmo, que podia ter.

            Spenser a mantinha entretida, divertindo-a e intrigando-a, até que parou para dar uma caminhada e tomar um almoço ligeiro.

            Amico se afastou rapidamente e retornou correndo enquanto Simone vagava pelos bosques. Assim seriam os bosques hoje, e não os escarpados. Dava igual, decidiu, já que tinha passado um tempo desde que tivesse checado seus pôsteres de "propriedade privada", e sua reação ao Gabe tinha recordado seus limites.

            Os mosquitos zumbiam a seu redor enquanto caminhava. Nunca a picavam. Simone supunha que o instinto do inseto lhe advertia que não tomasse um lanche de seu sangue.

            Sentou-se à fresca sombra junto a seu arroio fracote e lhe serpenteiem para compartilhar com seu cão o sándwich de salada de ovo que tinha preparado.

            O sangue era o assunto, pensou. A chave. Era sangue o que corria tanto em homens como em bestas. Tinha estudado hematologia, tinha incontáveis livros e páginas Web sobre o tema. Tinha passado anos investigando infecções sangüíneas e vírus, mas não era médica.

            Não tinha visto um doutor em quase onze anos. Não se atrevia. Igualmente, estava em estado de perfeita saúde... Exceto por essa molesta enfermidade no sangue que convertia-a em uma besta cega, lunática durante três dias de cada mês.

            Mas além disso, pensou com um meio sorriso, estava preparada.

            Não lhe tinha ido tão mal para uma mulher com sua educação, médios e discapacidad. Tinha seu próprio negócio que mantinha ao - ha, ha, ha - lobo longe de sua porta.

            Tinha

            Seu próprio lar, um leal companheiro canino. Tinha uma enorme reserva de livros em áudio, CDs e DVDs, que de qualquer modo com freqüência eram melhores companhia que os humanos.

            Tinha visto bastante do mundo e levava uma vida relativamente normal e satisfeita para ser uma licántropo.

            Extraiu as duas pastilhas que tinha feito, estudou-as. Se esta última fórmula funcionasse, poderia estar curada. Poderia ficar livre da lua.

            Ou não.

            Deixou-as cair em sua boca e as fez descer com a limonada fresca que tinha levado consigo. Saberia em poucos dias mais. E se a nova dose não funcionava, com o tempo outra o faria.

            Jamais deixaria de tentá-lo.

            Uma vez tinha pensado que se tornou louca. Mas não. Perguntou-se se a morte era a única escapatória, mas a morte era o caminho dos covardes.

            Simone tinha superado sua própria incredulidade, dúvidas e desespero. Tinha derrotado à solidão, à fúria e ao sofrimento.

            O que ficava era determinação.

            - Poderia ser pior, certo? - murmurou ao Amico, lhe acariciando perezosamente a pelagem enquanto ambas dormitavam sob a luz salpicada. - Poderiam ser umas centenas de anos atrás. Então teria sido perseguida pelos aldeãos e disparada com balas de prata. - Tirou a pesada cruz que levava sob a camisa. - Ou isto poderia me haver matado. - Fez girar a prata para que apanhasse uma piscada de luz do sol. - Estar morta é muitíssimo pior que comer salada de ovo no bosque pela tarde. Mas vagabundear por aqui não completará nada do trabalho de laboratório.

            Deu uma ligeira esfregada ao Amico antes de colocar a bandeja e a taça térmica dentro do saco de lona que usava como bolsa de almoço. Passeando de volta, tomou tempo para escolher algumas floresça silvestres, algumas bagos, todo útil para seu trabalho. Quando sua bolsa colectora esteve cheia, abriu-se passo para tomar o caminho curto até a casa.

            Simone captou o aroma do mesmo tempo que Amico. Tanto a mulher como o cão entraram em alerta, e enquanto Amico soltava um grunhido suave de advertência, o apoiou uma mão sobre a cabeça.

            Necessitava um minuto para reunir suas defesas antes de sair do bosque para enfrentar ao homem ao que mais queria evitar.

            Ele estava parado junto a uma caminhonete, muito mais brilhante e elegante que a dela, via-se como um brinquedo. O sol o dourava, ou isso pareceu a Simone, porque a luz brilhava ao redor dele, apanhada nas pontas de seu cabelo e o acendiam como uma chama.

            O desejo estalou dentro da Simone como uma avalanche, levando os perigosos escombros de amor, esperança e desejo. Alagariam-na se o permitia. Afogariam-na.

            Assim não o permitiria, não mais do que se permitiu esconder-se nos bosques como um coelho assustado.

            Falou-lhe em voz baixa ao Amico, liberando o de sua postura de vigilância para que pudesse ir trotando a saudar o visitante.

            Gabe olhou como o cão se aproximava e sorriu do modo que Simone sabia que lhe sorriam os amantes de animais aos cães grandes e formosos.

            - Aí está, muchacho. Como vai tudo? O que está fazendo? - agachou-se para acariciá-lo e arranhá-lo, e Simone sentiu que se o fazia água a boca pela maneira em que as mãos dele se deslizavam sobre a pelagem. - Onde está sua garota? - Levantou o olhar e a viu. - Olá.

            - Olá.

            Ela atravessou o pátio, agudamente consciente da calidez do sol, o comichão da brisa em sua pele. O aroma do sabão dele, com apenas um toque de limão.

            - Saiu a caminhar? É um dia formoso para fazê-lo.

            - Sim.

            Havia canela no fôlego do Gabe, doce e atrativo.

            - Estava a ponto de procurar um pouco de papel e te deixar uma nota. Tive uma visita a domicilio por aqui perto. Uma cabra anêmica.

            - Oh.

            - Que lindo lugar. Tranqüilo. Uma casa genial. Tem café?

            - Né... - Simone apreciava o direto, economizava tempo. Mas não o tinha estado esperando. - Não, não tenho. Não o bebo.

            - Para nada? Alguma vez? Como te mantém direita? E o que há com o chá? Uma bebida suave? Água? Gatorade? Qualquer bebida social que possa utilizar como desculpa para ter uma conversação contigo.

            - Sobre o que?

            - De algo. - A brisa despenteava seu cabelo como suaves dedos. - Vamos, Simone, não me faça furar meus próprios pneumáticos para poder te pedir usar seu telefone.

            - Não tem um telefone celular?

            Gabe voltou a sorrir e disparou um par de buracos mais no escudo dela.

            - Direi que a bateria está morta. Até poderia ser verdade.

            É mais seguro e mais inteligente fazê-lo partir, ela se recordou. Mas, na realidade, que dano haveria?

            - Tenho limonada fresca.

            - Resulta que adoro a limonada fresca.

            Simone se voltou para a casa, com cuidado de manter ao cão entre eles.

            - Não sei de nenhuma cabra na vizinhança, anêmica ou de outro modo.

            - Só tive que dirigir doze ou treze quilômetros fora do caminho para estar na vizinhança. É realmente uma casa genial. Um pouco horripilante e misteriosa com todos esses gabletes e seus tetos de chapéu de bruxa. Eu gosto das velhas casas horripilantes.

            - Aparentemente eu também.

            Simone o conduziu para o fundo, para entrar diretamente na cozinha. Quando tirou a chave de seu bolso, Gabe não fez nenhum comentário. Mas ela pôde ver em seus olhos que se perguntava por que ela se incomodaria em fechar com chave só para dar um passeio por seu próprio bosque.

            - Wow. - Gabe deu uma olhada comprida e ampla à cozinha, suas largas mesas, as faiscantes panelas de esmalte, as meadas de ervas penduradas, as garrafas e tigelas alinhadas como em um desfile militar. - Que habitação. Cheira como um jardim e se vê como uma dessas cozinhas que vê nos programas de chefs da televisão.

            Havia dois tamboretes sem respaldo na ilha da cozinha. Gabe se deslizou sobre um deles comodamente, enquanto continuava estudando. Os armários tinham todos a frente de vidro repartido. Através deles podia ver mais garrafas, todas precisamente etiquetadas. Mais do que assumiu que eram utensílios, provisões, ingredientes.

            A baixela se limitava a um par de pratos e tigelas, umas poucas taças e taças. Por isso se via, pensou Gabe, a dama não oferecia muito entretenimento.

            - Como te meteu nisto das ervas?

            Simone tomou um dos copos antes de ir à geladeira em busca da jarra de limonada.

            - Um interesse meu que decidi converter em ganho.

            - Passei por sua loja ontem. Um lugar com classe. Interessante, também. O máximo que sei sobre as ervas é que o orégano sabe realmente bem sobre a pizza. Obrigado. - Tomou o copo que ela oferecia. - O que é isso?

            Moveu a cabeça para uma das ervas pendentes.

            - Prunella, também chamada sã-todo.

            - E o faz? Sanar tudo?

            - Em gargarejos, é boa para a dor de garganta.

            - Está-te observando... E a mim. - Tomando um gole de limonada, Gabe olhou ao Amico. - Está esperando que lhe diga se pode relaxar-se ou se deveria estar preparado para me acompanhar fora. Nunca vi a um cão mais em sintonia com seu amo.

            - Isso quer dizer que não decidi se me relaxar ou te acompanhar fora.

            - Bastante. A coisa é que senti, bom, uma pequena explosão o outro dia, assim que te vi. Essa espécie de assunto de "eu era hora de que aparecesses". - encolheu os ombros e golpeou a ponta de sua bota de lona no flanco da encimera enquanto se dava volta. - Soa estranho, mas é assim. E me pareceu que você também sentiu algo.

            - É atrativo - disse Simone sem alterar a voz. - Agrada a meu cão e ele tem um julgamento excelente. Naturalmente, haveria algum interesse. Mas...

            - Não temos que nos colocar nos "peros" e danificá-lo tudo, verdade? - Gabe apoiou seus cotovelos sobre a mesada. Simone notou que tinha braços largos, e uns poucos arranhões novos na palma da mão. - me deixe te dar um rápido repasse. Trinta e três anos, solteiro. Estive perto do conceito de matrimônio uma vez, mas não pegou. Cresci como um menino de cidade com o coração de um menino de campo, e não posso recordar não ter querido ser veterinário. Sou bom nisso.

            - Vi-o por mim mesma.

            - Não faz mal reforçá-lo. Eu gosto de beisebol e dos filmes de ação, das novelas de mistério. E provavelmente estou um pouquito muito afeiçoado com os Simpsons, mas não vejo nada mau nisso. Não faz mal a ninguém. Posso cozinhar sempre e quando isso signifique um microondas, e o maior crime que admitirei nos conhecendo tão brevemente é ter copiado as respostas da Ursella Ridgeport para um exame final de história norte-americana na secundária. Obtivemos um oito.

            Simone não estava acostumada a ser encantada ou surpreendida. Ele estava conseguindo fazer ambas.

            - Mas...

            - Um tipo duro.

            - Realmente não socializo.

            - Essa é uma regra estrita ou mas bem um programa? Porque há um restaurante no Bucksport... É carnívora, certo?

            - E um pouco mais - murmurou ela.

            - Bom, têm uns filés assombrosos. Uma boa mudança dos frutos do mar locais. Está simplesmente mal sentar-se a comer um sozinho, assim que me estaria fazendo um favor enorme se viesse comigo.

            Oh deus, tinha que lhe gostar de além de querer esfregar seu corpo nu em cima do dele?

            - E deveria te fazer um favor porque...?

            - Não posso me concentrar apropiadamente em meu trabalho por estar me perguntando a respeito de ti. Não quererá que meus pacientes sofram porque não devorou um filé comigo.

            Simone lhe tirou o copo e o levou até a pia.

            - Tem cão?

            - Em realidade tenho o olho posto em um cachorrito da cria de um paciente. A mamãe é uma raça mista que esterilizarei em troca do cachorrinho. Perdi a meu cão, Kirk, pelo câncer seis meses atrás.

            - Sinto muito. - Simone se deu volta e teve que refrear o impulso de tocá-lo. - É muito duro.

            - Ele estava acostumado a cantar.

            - Perdão?

            - Cantar, junto com a rádio, especialmente se era algo comovedor. "Dock of the Bay" era uma de seus favoritas. Estranho isso. Tinha dezesseis anos, teve uma boa vida. Embora nunca é o suficientemente longa.

            - Não, não o é. Kirk? É viciado em Viajem às Estrelas além de obcecado com os Simpsons?

            - Reivindiquei o direito ao mundo de cerebritos adolescentes quando lhe pus esse nome.

            - Nunca foi um cerebrito. Os meninos que se vêem como você podem paquerar com os limites do universo cerebrito, mas nunca chegam a seu centro. Estão muito ocupados recolhendo garotas com nomes como Ursella.

            O sorriso do Gabe foi tranqüila e atractivamente ardilosa.

            - Ela era inteligente e formosa, o que podia fazer? Não posso resistir ao cérebro e a beleza, e parece que às mulheres com nomes exóticos.

            - O nome de meu avô era Simon. Não é tão estranho.

            E essa, pensou Gabe com um pouco de prazer, era a primeira coisa pessoal que conseguia lhe tirar.

            - Simone. - Respirou fundo. - Simplesmente canta. Simone, de formosos olhos verdes, jantar comigo. Não me faça rogar.

            O instinto era o que ela conhecia... Seus perigos. Mas o seguiu, dando a volta a encimera, enfrentando-o quando ele girou para ela sobre o tamborete.

            Simone se moveu rapidamente, antes de que o pensamento racional pudesse vencer à necessidade primária. Tomando o rosto do Gabe entre suas mãos, descendeu e esmagou sua boca contra a dele.

 

            Era como cair de cabeça de um escarpado para logo descobrir que tinha jogada asas.

            O choque o açoitou primeiro, logo a velocidade, depois a emoção de estar ao vôo. Gabe não estava consciente de haver-se movido até que esteve de pé, até que suas mãos ficaram enredadas no cabelo da Simone e seu coração bombeou de vida contra o dela.

            O calor dela se derramou dentro do dele até que seu sangue jogou fumaça e ardeu, até que seus sentidos ficaram aturdidos. Tanto que ficou parado, cambaleando-se, quando Simone o separou de uma cotovelada e deu um passo atrás.

            - O convite para jantar era só outra desculpa. Quer te deitar comigo.

            - O que? - Gabe ouviu as palavras, mas com a maioria de seu sangue drenada fora de sua cabeça, estava-lhe custando as compreender. Tinha havido tanto ouro nos olhos dela antes? Tanto dourado que o verde era como uma bruma debaixo? - Né... Só vou ficar me sentado aqui um minuto mais, se não te incomodar. Sinto-me um poquito golpeado. - Olhou ao cão que estava sentado como desde que tinham entrado. Como um soldado em serviço de guarda. - Não. Sim.

            Foi o turno da Simone de ver-se confundida.

            - O que significa isso?

            - Não, o convite para jantar não era uma desculpa. - Seus olhos, tão ricos e marrons, estavam fixados nos dela. - Eu gostaria de passar algum tempo contigo, chegar a te conhecer. E sim, quero me deitar contigo. Tomou um curso para aprender a beijar assim, ou é simplesmente inato? E se for o primeiro, onde posso me inscrever?

            - É gracioso - decidiu Simone.

            - Sinto-me bastante gracioso neste momento. Também sinto, com um pouco de vergonha, que minhas pupilas se converteram em pequenos corações. Devido a isso, agora estou preparado para rogar.

            O sabor do Gabe, viril e apaixonado, com esse encantador pingo de canela, seguia em seus lábios, em sua língua. Simone queria aproximar-se a ele e mordiscar-lhe o pescoço.

            - Não me levo bem com a gente.

            - Está-te levando bem comigo. Bom sinal para mais adiante.

            Ela negou com a cabeça.

            - Perguntou por mim, verdade? Na cidade. Então, como é o assunto com esta tal Simone? O que se diz dela? E terá ouvido que prefere estar sozinha, não mesclar-se muito. É bastante agradável, mas um pouquito estranha.

            - Bastante perto. E se perguntou por mim, deve ter ouvido que o doutor Kirby põe muito volume à música ou o televisor a maioria das noites. Quase sempre chega tarde a sua primeira entrevista. Só uns minutos, mas o tempo é tempo. E não é nada como o doc Greene, se me perguntar.

            - Em um par de anos será o doc Kirby, e eu seguirei sendo a estranha senhora das ervas que vive no bosque nos subúrbios da cidade.

            - Uma mulher de mistério. - Gabe levantou a mão e passou os dedos pelas pontas do cabelo da Simone. - Mencionei que eu gosto dos mistérios?

            - Você não gostaria do meu. Mas jantarei contigo. Aqui, amanhã de noite. Eu cozinharei.

            Ele a olhou piscando e logo as comissuras de sua boca se arquearam.

            - Sério?

            - Sim, mas agora tenho que me pôr a trabalhar. Assim vai-te.

            - Muito bem.

            Gabe ficou de pé imediatamente. Inteligente, decidiu Simone. O suficientemente inteligente como para não pressionar sua sorte ou lhe dar a possibilidade de mudar de idéia.

            - A que hora amanhã?

            - Às sete.

            - Aqui estarei. Há alguma possibilidade de que diga ao Amico que fique quieto para poder te beijar de novo?

            - Não. Possivelmente amanhã. - Simone foi até a porta e a abriu. - Adeus.

            Foi primeiro para o cão e estirou uma mão. Viu os olhos do Amico deslizar-se para sua ama antes de levantar a pata para saudá-lo.

            - Vemo-nos, companheiro. - Atravessou a porta e ficou ali parado um momento, estudando o rosto dela. - Adeus, Simone.

            Ela travou a porta detrás dele e atravessou a casa para as janelas do frente para esperar que partisse.

            Uma prova, disse-se a si mesmo. Isso era o que seria, uma espécie de prova. Para ver como dirigiria a noite, estar com ele. Só um experimento.

            E que mentira era.

            Mas não tinha que ser um engano, assegurou-se a si mesmo. Se estava tão perto como esperava de uma cura, não era tanto risco.

            Além disso, tinha deslocado riscos antes. Tinha tido amantes antes.

            Mas não um casal, recordou-se.

            Tinha-o desejado, desejado seu sabor e senti-lo. A mais básica e natural das necessidades humanas. Mas o que havia dentro seu também o tinha desejado. O que estava nela tinha querido afundar as presas na carne, saborear seu sangue.

            Não para alimentar-se, esse instinto o compreendia. A não ser para transformar. Para convertê-lo no que ela era, para não seguir estando sozinha.

            Isso nunca o permitiria.

            Apressando-se, foi à porta do porão e tomou a chave que levava junto com a cruz ao redor de seu pescoço. Abriu a porta, acendeu as luzes e logo, com Amico a seu lado, fechou-a com chave detrás dele.

            Além de sua localização, a cozinha e os bosques, um dos maiores argumentos de venda da casa tinha sido seu enorme porão.

            Tinha abafado as janelas com tijolos e instalado luzes fluorescentes. Utilizava as velhas prateleiras, onde alguma vez tinham estado armazenadas conservas e latas, para as provisões.

            Tinha instalado uma televisão, um video-gravador, um computador e uma mesa de trabalho para adicionar ao extenso banco de trabalho deixado ali pelos prévios inquilinos.

            Havia um sofá e um cama de armar, embora poucas vezes os usava. E uma enorme geladeira utilizada principalmente para conservar amostras. O freezer estava cheio de carne.

            Um sistema de segurança de alarmes lhe advertia quando alguém se aproximava da casa enquanto ela estava escondida no laboratório. Raras vezes acontecia, mas a segurança valia o preço.

            Os pisos eram de concreto, as paredes de pedra e grosas. Uma velha banheira enorme de ferro fundido se encontrava em uma esquina. Um pequeno e eficiente laboratório sortido sob uma das janelas muradas.

            Na parede do fundo havia uma cela, de dois metros e cinqüenta de comprimento por um e oitenta de largura.

            Solto, Amico foi para sua cômoda cama de cão, rodeou-a três vezes e se instalou para uma sesta pela tarde.

            Simone acendeu seu computador e se sentou para fazer algumas notas. Era importante, disse-se, detalhar sua reação ao Gabe. Era diferente, e isso o convertia em uma anomalia. Qualquer mudança em sua condição - física, emocional, mental - era religiosamente registrada.

            Estou apaixonada!, queria escrever. Seu nome é Gabriel Kirby, e tem mãos formosas e faz brincadeiras. Quando o beijei me senti tão viva, tão humana. Tem formosos olhos marrons e quando me olham algo se acende em meu coração.

            Mas não o fez. Em troca, anotou o nome, a idade e ocupação dele, adicionou detalhes importantes de seus dois encontros, e qualificou seus sentimentos por ele como uma forte reação física e emocional.

            Anotou o que tinha comido esse dia, e adicionou a hora em que tinha tomado sua última dose de pílulas.

            Usou a banheira e um sabão feito por ela mesma para esfregar suas mãos. Enquanto isso tentou manter sua mente em branco, para manter a esperança a raia.

            Movendo-se para a mesa de trabalho, furou-se o dedo e colocou duas gotas de sangue em um porta-objetos.

            Estudou-a através do microscópio e sentiu uma pequena sacudida dessa esperança reprimida. Havia uma mudança. Depois de quase uma década de estudar seu próprio sangue, não podia confundir uma mudança.

            Moveu o porta-objetos a seu computador e começou uma análise.

            A infecção seguia presente. Não necessitava tecnologia que lhe dissesse o que sentia, mas havia um ligeiro aumento de células sãs, normais.

            Pôs a amostra da semana anterior na página para um estudo de lado a lado. Sim, sim, havia mudança, mas muito pequena. Não o suficiente depois de três meses inteiros com esta fórmula.

            Deveria haver mais. Ela necessitava mais. Talvez incrementar a dose outra vez. Ou ajustar a fórmula, aumentando a quantidade de escutelaria ou sarsaparrilha. Ou ambas.

            Jogou a cabeça atrás e fechou os olhos. Onze anos, e logo que tinha começado. Ervas e drogas, soros experimentais obtidos ilegalmente, e a um elevado preço.

            Rezas e encantamentos, remédios e purgações. Da bruxaria à ciência, tinha tentado tudo. E ainda a mudança em seu sangue era tão ligeira que não haveria diferença quando a lua cheia saísse.

            Seria ela quem mudaria, com dor e miséria. Encerrada por sua própria mão na cela para conter o monstro no que se converteria. Vigiada pela única coisa no mundo em que podia confiar sem reservas.

            O cão que a amava.

            Durante três noites, Simone andava de um lado a outro nessa cela. Isso andava de um lado a outro, grunhindo e desejando a caça. Uma nova matança. Sangue quente.

            Todas as demais noites era uma mulher, igualmente encerrada.

            Tinha saudades do amor, ser tocada e contida. Desejava a conexão, desejava saber que quando pedisse ajuda haveria uma mão ali para tomá-la.

            Mas não tinha direito, recordou-se, a ter saudades ou desejar. Nenhum direito a amar.

            Nunca deveria havê-lo deixado entrar em seu lar. Tinha-o inspirado, pensou, e tinha aspirado a visão do que poderia ser se não fosse por esse momento que havia feito em pedaços sua vida.

            E agora que o tinha feito, estava pronta para chorar e gemer porque seu progresso não era suficiente. Deveria estar alegrando-se de que houvesse um pouco de progresso.

            E deveria ficar a trabalhar para obter mais.

            Simone trabalhou até tarde essa noite, detendo-se só para alimentar ao Amico e deixá-lo sair a correr. Encerrada em seu laboratório, ajustou sua fórmula. Quando as pílulas estavam preparadas, anotou o tempo. Tragou-as.

            Fechou o laboratório, fechando com trava a porta do porão atrás de si antes de ir fora a assobiar ao Amico.

            Mas primeiro ficou na escuridão, debaixo dessa lua em quarto crescente.

            Podia sentir sua influência, sua luz, dedos provocadores que se estiravam para ela nessas últimas noites antes da mudança.

            No silêncio, podia ouvir o mar jogando-se contra os escarpados, e soube que se ia até ali tão perto da mudança, não necessitaria luz que a guiasse. Sua visão noturna, sempre aguda do ataque, aumentava ainda mais enquanto a lua crescia.

            O perfume da água chegou a ela, salgado e fresco. Sofria, tudo o que era humano nela sofria porque não havia ninguém a seu lado, ninguém para compartilhar a quietude e a beleza da noite.

            Estava sozinha, já fora ali no alpendre, nos escarpados, profundo nos bosques, estava em uma jaula. E tinha procurado a chave durante onze largos anos.

            Por que não podia permitir-se sentir amor quando chegava como uma flecha ao coração? Por que devia negar a dor, o ardor e a alegria disso?

            Sem importar o que fora durante trinta e seis dias ao ano, todos outros dias, todas as outras noites, era uma mulher.

            Parada, sozinha, ouviu o vôo de asas - o caçador - no profundo do bosque. E o repentino grito - o caçado - enquanto as garras perfuravam a carne.

            E no singelo alpendre de sua tranqüila casa, farejou o sangue. Fresco e quente.

            Quase podia saboreá-lo.

 

            - Seguirá sendo um moço - assegurou-lhe Gabe ao cruzamento de cocker-terrier enquanto o preparava para a cirurgia. - Os testículos não fazem ao homem.

            Imaginava que, se seu atual paciente pudesse falar, a resposta seria: Sim? Me passe esse bisturi, doc, e provemos essa teoria contigo.

            - Poderá parecer um pouquito bárbaro de seu ponto de vista, mas me acredite, é o melhor.

            Usou mantas de água quente para rebater qualquer possibilidade de hipotermia. O cachorrinho era jovem, de apenas oito semanas, e havia riscos e benefícios ao castrar tão logo. As malhas pediátricas eram friáveis e precisavam ser dirigidos com muito cuidado, mas a juventude do paciente fazia que a hemostasia precisa fosse pouca.

            Depois de ter preparado o campo, fez sua incisão na linha média.

            Trabalhava com precisão, suas mãos hábeis e peritas. Tinha a Michelle Grant em seu reprodutor dos CDs na sala de operações, caso que isso acalmaria ao cachorrito, inconsciente ou não. Mantinha um olho na respiração do cachorrito enquanto operava e logo começava a fechar.

            - Não esteve tão mal, né? - murmurou. - Não levou muito tempo, e não sentirá saudades.

            Quando teve terminado, fez notas em sua tabela e sua assistente cirúrgica preparou tudo para o próximo paciente. Enquanto se colocavam ataduras e panos novos, e se dispunham os instrumentos, Gabe ficou com o cachorrinho em recuperação.

            O paciente despertou rapidamente, com um pequeno movimento de cauda ao ver o Gabe.

            - Eileen? - Apareceu a cabeça para a sala de espera. - Chama à mamãe do Frankie e lhe diga que saiu bem. Teremo-lo aqui até o meio-dia e logo poderá ir-se.

            Exceto pelas emergências, Gabe agendava as cirurgias de sete a onze uma manhã por semana. A maioria de seus pacientes eram ambulatórios e poderiam ir a casa com suas famílias antes do final das horas de consulta. Alguns poderiam precisar ser monitorados.

            Não era estranho que ele passasse a noite depois das cirurgias em seu escritório.

            Ao meio dia, comeu rapidamente um pouco do frango agridoce que Eileen tinha pedido para ele, tomando-o em seu escritório enquanto repassava pranchas e fazia chamadas de seguimento de seus pacientes.

            E pensou, quando teve dois minutos livres, na Simone.

            O que era o que tinha? Tinha uma aparência fascinante. Não era realmente formosa, certamente não em um sentido clássico, não com tantos ângulos. Ao mesmo tempo, todos esses pontos e planos davam a seu rosto uma aparência afiada e vital.

            Agradava-lhe o modo em que se via com jeans e botas, e a maneira em que sua camisa tinha estado desgastada no pescoço e as mangas. Como cheirava igual a sua cozinha, como um jardim secreto e estranho.

            E estava esse sorriso, lenta e reacia a florescer. Fazia que queria provocá-la para que saísse o mais freqüente possível.

            Fora o que fora, quando estava perto dela não podia lhe tirar os olhos de cima.

            Era um poquito fria, ou tímida. Ainda não tinha decidido qual. Ou o tinha sido até que lhe tinha plantado esse beijo que fazia pulsar com força o sangue em sua cozinha.

            E de onde tinha vindo isso? Gabe se recostou em sua cadeira, escorando a base de um pé no bordo, balançando-se adiante e atrás enquanto olhava fixo o teto e revivia o momento.

            Em um momento parecia que Simone estava a ponto de espantá-lo fora de sua porta, e ao seguinte o estava beijando até deixá-lo sem cérebro.

            E "sem cérebro" era exatamente o término. Sua mente se apagou bruscamente, assim tinha sido todo calor e sensações, todo sabor e texturas.

            Ela era uma solitária, uma mulher - de acordo com suas fontes - que não tinha amigos íntimos. Fazia seu trabalho, não ocasionava problemas, e se mantinha reservada, junto a seu genial cão. Era proprietária de um negócio, proporcionava o estoque, mas não se ocupava do funcionamento. Nunca, ou quase nunca, tratava com os clientes. Os detalhes eram vagos. Ninguém podia dizer com certeza de onde tinha vindo.

            Era um mistério metido dentro de um mistério e rodeado por um quebra-cabeças. Mas como, admitia Gabe, podia ser parte do atrativo de sua parte. Adorava descobrir coisas.

            Possivelmente ela só estava interessada no sexo, e o usaria, montaria-o a um galope até que ele estivesse estremecendo-se de esgotamento.

            Pensava que provavelmente poderia viver com isso.

            Sorrindo, saiu a tomar suas entrevistas da tarde. E sublinhou sua nota mental de comprar vinho e flores antes de sair da cidade.

 

            Simone não estava pensando nele. Sua mente estava muito ocupada para fazer lugar para os planos de jantar com um homem. Sua última análise de sangue não mostrava nenhuma melhora. O vírus seguia sendo viável, continuava crescendo com força, de fato. Simplesmente mudava para adaptar-se à invasão do soro.

            Tinha tido êxito ao estimular a célula B, e sabia por provas prévias que as divisões celulares tinham começado. Mas não tinham contínuo, não o suficiente como para que as células de plasma secretassem suficientes anticorpos para atar a bactéria.

            A infecção seguia ali, atroz.

            Tinha visto isto antes. Muitas vezes. Mas esta vez tinha tido tantas esperanças. Esta vez tinha estado tão segura de que se encontrava ao limite de um grande avanço.

            Fazia outra prova de DNA e ainda seguia estudando cuidadosamente os resultados. Isso fazia doer a cabeça. O trabalho de laboratório a deprimia, embora já fosse quase como uma segunda natureza para ela. Avaliou, como tinha feito antes, vender seu negócio, recolocar-se uma vez mais. E tomar um trabalho como técnica de laboratório.

            Teria acesso a equipes mais sofisticadas desse modo, mais recursos, mais informação atual.

            O microscópio de elétrons recondicionado lhe havia custado milhares. Um laboratório de máximo nível teria novos equipamentos. Melhores equipamentos.

            Mas haveria perguntas que não poderia responder, exames físicos que não poderia tomar. Não estava segura de poder suportar o contato diário com outras pessoas. Também tinha passado por tudo isso antes, e era muito, muito pior que estar sozinha.

            Estar com a gente, vê-la ocupar-se da bendita normalidade de suas vidas e não ser parte de quem e o que eram eles era o aspecto mais crítico de sua condição.

            Podia dirigir a dor, podia dirigir a violência que a rasgava durante três noites cada mês. Mas não podia suportar a solidão a menos que estivesse sozinha.

            Anos atrás se prometeu a si mesmo, quando tinha compreendido e aceito o que lhe tinha acontecido, que encontraria um modo de curar-se. Que seria normal outra vez antes de seu aniversário número trinta.

            Trinta, pensou com um suspiro cansado, parecia toda uma vida aos dezoito.

            Agora quase estava ali, e a infecção ainda se gerava dentro dela.

            E seguia sozinha.

            Não tinha sentido queixar-se, recordou a si mesma. Só tinha começado a provar a nova fórmula. Ainda havia tempo até a lua cheia. Ainda havia tempo para que o soro funcionasse.

            - Deixa-o a um lado, Simone - disse-se. - Deixa-o a um lado durante algumas horas e pensa com normalidade. Sem um pouco de normalidade, ficará louca.

            Pensa no jantar, decidiu enquanto retornava acima. Espaguete, esperar pelas almôndegas. A carne vermelha não era uma boa idéia estando tão perto do ciclo. Ao menos não, tendo companhia.

            Teria companhia, não vozes lendo um livro ou rostos na televisão. Companhia humana. Tinha passado muito, muito tempo desde que se permitiu jantar com um homem. Muito menos em seu próprio território.

            Mas era bom. Era normal. Devia continuar fazendo coisas normais, cada dia, ou quando estivesse bem não saberia como fazê-lo.

            Assim começou a preparar o molho, usando suas próprias ervas, deixando que seu aroma enchesse o ar de seu lar.

            E limpou, tarefas domésticas combinadas com uma meticulosa busca para estar segura de que tudo referente a sua condição estivesse guardado.

            Limpou e ordenou os cômodos que ele não tinha razões para visitar. No que considerava seu centro pessoal de médios, registrou a sala: Um enorme sofá cômodo, a indulgência de uma gigantesca televisão de parede.

            Ao Gabe pareceria estranho que entre as centenas de sua coleção tivesse todos os filmes disponíveis em VHS ou DVD a respeito de homens lobo? Não seria capaz de lhe explicar mais do que podia explicar-se a si mesmo porquê estava tão forçada a vê-los.

            Deixou esse pensamento de lado e arrumou composição fresca em um tigela.

            Logo se preparou. Uma longa ducha, creme para sua pele. Deixaria o cabelo solto. Livre e liberado. Voltando-se para o espelho, tirou seu cabelo de cima de seu ombro esquerdo e deixou à vista a pequena tatuagem de uma lua cheia.

            Agora pensava que esse tinha sido um ato tolo e juvenil. Marcar-se a si mesmo com um símbolo de sua enfermidade. Mas servia para lhe recordar o que ela era, cada dia. Não só com a lua cheia, mas também cada dia. E quando estivesse curada, recordaria-lhe o que tinha sobrevivido.

            Vestiu-se singela, informal com camisa e calças, mas escolheu tecidos suaves. Do tipo que aos homens gostava de tocar. A camisa sedosa de cinza prateado apanhava bem a luz... E apanharia a vista.

            Se decidia tomar ao Gabe como amante, tinha direito, certo? Direito ao prazer e a companhia. Seria cuidadosa, muito, muito cuidadosa. Manteria o controle.

            Não o machucaria. Não poderia machucar a outro ser humano.

            Fechou os dedos ao redor da cruz, sentiu o calor da prata contra sua pele.

            De retorno na cozinha, tomou outra dose de suas pílulas antes de pôr a mesa. As velas seriam óbvias ou simplesmente atmosféricas? E se tinha que debater algo tão básico, tinha passado muito tempo sem companhia humana.

            Levantou a cabeça, ao igual a Amico, e segundos mais tarde o som de pneumáticos sobre cascalho foi claramente audível. O cão foi com ela à porta da frente, sentando-se obedientemente ante a ordem dela quando abriu a porta.

            Voltou a fazê-la arder, só vê-lo. E essa retorcida necessidade em seu interior se burlou de todas suas alegações sobre o controle e o cuidado. Ele carregava uma bolsa em uma mão, e um buquê de lírios listrados na outra.

            Em toda sua vida, ninguém lhe tinha levado flores.

            - Olá. Trago presentes.

            Simone tomou os lírios.

            - São formosos.

            - Tenho um grande osso de couro cru aqui, se estiver bem.

            - Obrigado, mas não quero arruinar o jantar.

            Gabe riu, e com os lábios ainda curvados, inclinou-se sobre as flores para tocar com seus lábios os dela.

            - Muito bem, o daremos ao cão. Mas nos toca tomar o vinho. Não sabia o que havia no menu, assim trouxe branco e tinto.

            - Não te escapa nada, verdade?

            - Minha mãe não criou a nenhum parvo.

            Gabe olhou a sala de estar. As paredes estavam pintadas de um verde quente e profundo. Como um bosque, pensou. O suporte sobre a chaminé de pedra onde as chamas ardiam tinha castiçais de ferro e pálidas velas verdes que apostava que ela mesma tinha feito. Os móveis eram escassos, mas o que havia era toda cor e comodidade.

            - Uma pintura genial.

            Fez um gesto para o óleo em cima da lareira. Era uma cena de bosque, profunda de sombras, e um lago que se voltava leitoso à luz de uma lua cheia branca.

            - Sim, agrada-me.

            Havia outra arte; notou que era tudo de paisagens, paisagens selvagens e solitárias alcançadas pela luz da lua. Não havia pessoas em nenhuma das pinturas, e nenhuma só fotografia.

            - Tem algo com a lua - comentou ele, e olhou a Simone. Pensou que ela o estudava, como o cão, especulativamente. - A arte, o nome de sua loja.

            - Sim, tenho algo com a lua.

            - Possivelmente poderíamos sair a passear pelos escarpados mais tarde. Olhá-la sobre a água. Não sei em que fase está, mas...

            - Crescente, quase cheia.

            - Genial. Conhece as luas.

            - Intimamente.

            - Está bem se der o osso ao Amico?

            - Oferece-o.

            Gabe o tirou da bolsa e o sustentou.

            - Aqui tem, moço. - Mas Amico ficou sentado sem fazer um movimento. Então Simone murmurou em italiano e o cão se inclinou para diante, fechou os dentes sobre o osso e moveu a cauda. - Imagino que poderia ter sido um filé cru - comentou Gabe, - com o mesmo resultado. Que cão.

            - É um tesouro. Estou na cozinha. Comeremos espaguete.

            - Cheira muito bem. E demonstra quão inteligente foi escolher um par de vinhos italianos. - Aplaudiu a bolsa enquanto entravam na cozinha. - Este Chianti se supõe que seja bastante assombroso. Abro-o?

            - Muito bem. - Alcançou-lhe um saca-rolha. - Ainda falta um pouquito para o jantar.

            - Não há problema. - Gabe tirou a jaqueta e logo abriu o vinho. Deixou-o a um lado, junto ao saca-rolha. - Simone. Isto vai soar estranho.

            - Raras vezes me surpreende o estranho.

            - Hoje estava pensando, tentando deduzir porquê estou tendo uma reação tão forte para ti. E não posso. Assim pensei, possivelmente é só sexo... E o que tem isso de mau? Mas não é. Não quando estou aqui parado te olhando, não é.

            Ela baixou duas taças.

            - O que é, então?

            - Não sei. Mas é o tipo de coisa em que quero saber todo tipo de coisas sobre ti. Em que quero me sentar em alguma parte e falar contigo por horas, o qual é estranho considerando que só tivemos duas conversas antes. É o tipo de assunto no que penso em como soa sua voz, e o modo em que te move. E isso soa patético. É só que é verdade.

            - Mas não sabe todo tipo de coisas sobre mim, certo?

            - Quase nada. Assim conta-me o tudo.

            Ela serve o vinho e depois procurou um vaso para as flores.

            - Nasci em Saint Louis - começou a dizer enquanto o enchia com água. - Filha única. Vivi ali até que tinha doze anos, tive uma infância normal até os doze anos. Meus pais morreram em um acidente de automóveis. Eu saí dele com um braço quebrado e uma comoção cerebral.

            - Isso é duro.

            Havia compaixão na voz do Gabe, mas não do tipo muito sensível, compassivo. Tal como havia consolo, mas não intrusão, no ligeiro toque de sua mão no braço dela.

            - Muito. Mudei a Saint Paul para viver com minha tia e tio. Eram muito estritos e não estavam nada emocionados de cuidar de uma menina, mas estavam muito preocupados com sua imagem para fugir a seu dever. Que foi só o que eu era para eles. Tinham uma filha próxima a minha idade, a detestável e perfeita Patty. Nem sequer estivemos perto de ser amigas. Ela, e meus tios, asseguraram-se de que eu recordasse quem era a filha, e quem era a órfã deslocada. Nunca foram abusivos, e nunca foram amorosos.

            - Sempre pensei que a retenção de amor é uma espécie de abuso.

            Ela o olhou enquanto começava a acomodar os lírios no vaso.

            - Tem um bom coração. Nem todo mundo o tem. Fui mantida e fiz o que me diziam durante seis anos, porque a alternativa era um lar de acolhida.

            - Melhor o mal conhecido?

            - Sim, exatamente. Esperei o momento oportuno. Quando tinha dezoito, parti. Havia dinheiro do seguro que me chegou então, e um pequeno fideicomisso da venda de nossa casa em Saint Louis. Planejava ir à universidade. Não tinha idéia do que queria ser ou fazer, assim decidi tomar um ano livre primeiro e fazer algo que meus pais sempre falavam de fazer. Percorrer a Europa.

            - Sozinha?

            - Sim, sozinha.

            Simone tomou um gole de seu vinho então, apoiando-se na encimera. Alguma vez antes lhe tinha contado tanto a alguém? Da noite em que tudo tinha mudado para ela?

            Não, a ninguém. Qual teria sido o sentido?

            - Estava emocionada por estar sozinha, por não ter horários, porque ninguém me dissesse o que fazer. Era tanto uma aventura como uma peregrinação para mim. Andei como mochileira através da Itália. - Levantou sua taça em forma de saudação. - Isto é muito bom. De qualquer modo, quando retornei a casa, desenvolvi um interesse pelas ervas. As estudei, experimentei, e comecei um pequeno negócio por internet, vendendo produtos para o cuidado da pele e do cabelo, esse tipo de coisas. Expandi-o, com o tempo me mudei aqui e abri a loja. E aqui estou.

            - Há um enorme montão de coisas entre ser mochileira na Itália e aqui estou.

            - Um montão muito grande - concordou ela, e tirou vegetais frescos para uma salada.

            - A que outro sítio foi além da Itália?

            - As circunstâncias fizeram necessário que cortasse minha viagem. Mas vi um pouquito da Itália e França antes de retornar a casa.

            - Que circunstâncias?

            - Pessoais.

            - Muito bem, falando de circunstâncias pessoais, estiveste apaixonada alguma vez?

            - Não. Levianamente envolta algumas vezes. Sexualmente envolta algumas vezes. Mas nunca estive apaixonada. Possivelmente até agora.

            Simone continuou fatiando cogumelos, muito finos, até que as mãos do Gabe chegaram a seus ombros.

            - Eu tampouco - murmurou ele.

            - Provavelmente não seja amor. Na realidade não acontece à primeira vista.

            - O que sabe? - Fez-a girar para que o enfrentasse. - Nunca te aconteceu antes.

            - Sei o que faz falta mais que isto. - Este salto do coração, este desejo. - Faz falta confiança, e respeito, e honestidade. E tempo.

            - Tomemos um pouco de tempo. - Gabe descendeu a cabeça para esfregar seus lábios sobre os dela. - E vejamos se obteremos o resto.

            - Tempo. - Ela colocou uma mão entre ambos para fazê-lo retroceder. - É um problema para mim.

            - Por que?

            - Para te contar isso, deveria confiar em ti e ser muito honesta. - As arrumou para sorrir. - E não tive o tempo suficiente para te conhecer e fazer isso.

            - Podemos começar esta noite.

            - Isso é o que faremos.

            Gabe lhe tirou a mão de entre eles e a beijou.

            - E trabalharemos nisso amanhã.

            - Talvez o faremos.

 

            Era extraordinário relaxar em sua própria casa, jantando, com um homem que não só a atraía em muitíssimos níveis, mas também além o fazia sentir como se fosse algo que tivessem feito antes, e poderiam voltar a fazer, cada vez que ela quisesse.

            Alguém que a fazia sentir normal. Simplesmente uma mulher, comendo massa e bebendo vinho com um homem.

            Durante algumas horas, podia deixar a lua crescente fora de sua mente e imaginar como poderia ser se sua vida fosse ordinária outra vez.

            - Como encontrou esta casa? - perguntou-lhe Gabe. - Este lugar em Maine?

            - Eu gosto do espaço, e tinha o que eu estava procurando.

            - Viveu em Montana. - Observou-a enquanto ela enroscava espaguete em seu garfo. - Têm grande quantidade de espaço ali.

            - Possivelmente muito. - Moveu um ombro. - Eu gostava ali, e desfrutava de... Poderíamos dizer, da textura da terra. Mas era muito fácil me isolar, e cheguei a um ponto em que compreendi a diferença entre ser auto-suficiente e reservada, e o isolamento. Esteve alguma vez no oeste?

            - Passei uma semana selvagem em San Diego nas férias uma vez.

            Os lábios da Simone se curvaram.

            - Isso não conta.

            - Não diria isso se tivesse estado ali. De qualquer modo, alegra-me que te tenha decidido por esta costa, aqui. Mas bom, se tivesse aparecido uma percevejo em um mapa e terminado em Duluth, teria te encontrado.

            - Duluth?

            - Onde seja. Não importa. - Gabe se estirou e apoiou uma mão na dela. - Crie no destino, Simone?

            Ela olhou a mão dele, os fortes dedos sobre os seus.

            - Obsessivamente.

            - Eu também. Minha mãe sempre está me cuidando. Gabriel, quando vais jogar raízes com uma agradável moça e me dará netos? Quando minha avó a ouve, diz-lhe que me deixe em paz. Deixa tranqüilo ao moço, diz-lhe, ele já está apaixonado. É só que ainda não a conheceu. Agora que o tenho feito, sei exatamente o que queria dizer.

            - Há um comprido caminho de jantar espaguete a jogar raízes. E não sabe se sou uma moça agradável.

            - Muito bem, me diga o mais mau que tenha feito.

            O sangue, jorrando quente dentro de sua boca, devorando presas enquanto a fome demente, a selvagem emoção da caça ardia através dela como um fogo negro.

            Simplesmente negou com a cabeça.

            - Posso te garantir que supera fazer cola em um exame de história. Minha viagem a Europa... - disse lentamente. - Ali aconteceram coisas que me mudaram. Passei um longo tempo me ocupando disso e tentando encontrar... Meu caminho de volta.

            - Um romance amalucado com um italiano com muita lábia que resultou estar casado e com cinco filhos?

            - Oh. Oxalá. Nada de romances adúlteros. Nenhum romance que importasse.

            - Algo te entristece sob tudo isso. Quem te machucou?

            - Nunca o conheci. Mas o bom que resultou disso, uma vez que o digeri, é que jurei que eu nunca machucaria a ninguém do mesmo modo, jamais. - Simone se levantou para começar a levantar a mesa. - O que me leva a ti.

            - Tem medo de que te machuque?

            - Seria o primeiro que poderia, porque é o primeiro que me importa. Mas...

            - Espera um segundo. - Gabe ficou de pé, detendo-a. Olhando-a aos olhos, tirou-lhe os pratos da mão e os deixou a um lado. - Não posso prometer que não farei algo estúpido ou o arruinarei. A vida está cheia de estupidezes e confusões, e eu tenho minha parte. Mas, Simone... - Tomou o rosto entre as mãos. - Farei o melhor que possa. E meu melhor não é mau pela metade.

            - Tenho medo de ti - murmurou ela. - E por ti. E não posso explicá-lo.

            - Correrei o risco. O que tem que ti?

            Gabe desceu até que sua boca encontrou a da Simone, até que encontrou a resposta.

            Esse murro de necessidade, um contundente golpe ao sistema, deixou-o estremecido e dando voltas. Era como se tivesse esperado este beijo toda sua vida, como se tudo o que tivesse passado antes fora só um prelúdio a este simples encontro dos lábios. Enquanto o desejo prosseguia, atraiu-a mais, pinçou mais profundo. Escuro, perigoso e embriagador, o sabor dela o invadiu. Conquistou-o.

            - Simone.

            - Ainda não, ainda não.

            Ela necessitava mais, porque o que conseguia dele era esperança. Era luz. Fortes e brilhantes raios que venciam as sombras com as que vivia, dia detrás dia. Força, coração e doçura, a essência dele emanava dentro dele. E a aliviava.

            - Necessito-te muito. - Simone pressionou seu rosto contra o ombro dele, memorizando seu aroma. - Não pode ser real. Não pode estar bem.

            - Nunca hei sentido um pouco mais real, mais correto. Me deixe estar contigo. - Sua boca se moveu pela mandíbula dela, dando pequenas dentadas provocadoras. - me deixe te amar. Quero sentir como é estar dentro de ti.

            Ela soltou uma risada pela metade.

            - Não tem idéia.

            Toma-o, murmurava-lhe sua mente enquanto as mãos do Gabe se moviam sobre ela. Ser tomada. Que dano podia fazer? Possivelmente o amor era a resposta. Como podia isso ser mais irracional que o resto?

            Aqui e agora, pensou, enquanto o aroma dele zumbia através de seus sentidos, enquanto podia ouvir o urgente batimento do coração de seu coração, sentir o calor de seu sangue dando voltas justo sob sua pele.

            E então o que? Como podia ser amor, como podia responder algo quando era uma mentira?

            - Gabe.

            - Não pense. Não pensemos. Só... Oh, demônios. - Amaldiçoando, apartou-se e extraiu seu telefone do bolso. - Sinto muito. Não te mova. Não pense. Sim, Gabe Kirby -disse respondendo. Ela viu sua expressão trocar, essa luz de luxúria e humor passando rapidamente a preocupação. - Onde? Está bem. Não, tranqüilize-se. Estarei ali em dez minutos. Mantenha-o quente, mantenha-o quieto. Dez minutos. - Colocou o telefone novamente em seu bolso incluso enquanto procurava sua jaqueta. - Sinto muito, emergência. Devo ir. Um pastor alemão, ferido por um automóvel. Estão esperando com ele fora de meu escritório. Não sei que tão mau nem quanto tempo. Poderia...

            - Não se preocupe. - Simone foi rapidamente com ele à porta. - Só vai. Te ocupe dele.

            - Nos vejamos amanhã. - deu a volta na porta e a atraiu para um beijo duro e rápido. - Pelo amor de deus, nos vejamos amanhã.

            - Sim. Amanhã. Vai. Boa sorte.

            - Chamarei-te.

            E já estava correndo para seu automóvel.

            Viu-o retroceder, afastar-se velozmente, e então caiu contra a ombreira da porta. O cão estava em boas mãos, pensou. Mãos bondosas. E era melhor que o tivessem chamado. Melhor para ele e para ela.

            Lhe dava esperança, pensou, e o que podia lhe dar ela além de um susto e sofrimento? A menos, disse-se a si mesmo e passou os dedos sobre sua cruz de prata, que encontrasse a cura.

            - Voltemos a trabalhar, Amico.

            Trabalhou durante toda a noite, e justo antes do amanhecer se enroscou com o Amico na cama dele para dormir umas poucas horas. Os sonhos lupinos vieram, como o faziam com freqüência quando a lua estava quase cheia e seu sistema muito cansado para resistir. Assim sonhou sobre correr de noite, com o poder pulsando através dela, com a fome roendo sua pança. Sonhou sobre caçar, seguindo o aroma, seus olhos tão agudos que cortavam a escuridão.

            No sonho tinha um só propósito, e nenhuma restrição de consciencia que a atasse. Voou através da noite, livre para tomar o que desejava com presa e garra.

            Rastreando, espreitando a aquele que desejava. Nesse último salto, viu o rosto dele, o terror, a repulsão em seus olhos. E quando mordeu sua carne, ela não conheceu nada exceto o prazer.

            Despertou com o aroma do Gabe em sua pele, e suas próprias lágrimas nas bochechas.

            Simone o buscou. Atuar de outro modo tivesse sido covarde. Nenhum sonho, sem importar quão horroroso, a converteria em uma covarde agora. Antes de ir ao escritório do Gabe, entrou em Lua com novos estoques.

            Tinha calculado para chegar justo antes de abrir. Embora ouviu a Shelley dando voltas no frente, Simone se moveu silenciosamente, trabalhando no depósito.

            A música apareceu, do tipo de instrumentais New Age que Shelley parecia pensar que foram melhor com o tom dos produtos. A Simone não importava se punha a Enya ou Iron Maiden, sempre e quando os produtos se movessem.

            Necessitava mais equipamentos para seu laboratório, mais das drogas que só podia conseguir, e a um preço atroz, através do mercado negro.

            E se o risco que estava preparando-se para correr com o Gabe se voltava para esbofeteá-la, necessitaria dinheiro corrente.

            Escutou os passos que se aproximavam e logo o sobressaltado uivo da Shelley quando sua gerente abriu a porta do depósito.

            - Deus! Não sabia que estava aqui atrás. Deu-me um susto de morte. Amico! Doçura.

            Shelley se agachou para intercambiar amistosas saudações com o cão.

            Shelley media pouco mais de um e cinqüenta. Toda cabelo castanho dramático com reflexos e energia, com uma bonita cara com sardas e um dom para o drama. Vestia cores brilhantes. A eleição de hoje eram calças muito curtas verde grama e uma jaqueta entalhada, e montões de braceletes repiqueteantes.

            Até sem seus sentidos realçados, Simone supôs que tivesse ouvido a mulher aproximar-se de uma quadra de distância.

            Ela era do tipo aberto, enganador e alegre com a que Simone pensava que tivesse desfrutado sendo amigas, se se tivesse permitido as ter. Alguém com quem seria capaz de sentar-se, mediante bebidas e muitas risadas. Tal como era, levavam-se bastante bem, e Shelley, com sua personalidade vivaz e alma organizada, era uma eleição ideal para dirigir a loja.

            - Não esperava que viesse até a semana próxima - disse Shelley.

            - Terminei um pouco de estoque, e como tinha um par de coisas que fazer na cidade, pensei em trazer agora.

            - Genial. Espero que tenha feito mais dessa nova composição. Bosque outonal? Já está voando pela porta, e nos estamos ficando curtas com as almofadinhas para olhos. Simone, adoro a nova nata para mãos, a que tem algas. É como magia, e estive, ha ha, vendendo-o mão à mão como louca. Ia enviar te uma lista de inventário hoje.

            - Eu me ocuparei disso.

            - Vê-te fabulosa. - Inclinando a cabeça, Shelley estudou o rosto da Simone. - Recarregada, diria. Tem alguma nova nata mágica que não está compartilhando com o resto de nós ainda?

            O amor se notava, como nos contos e novelas? Punha estrelas em seus olhos, rosas em suas bochechas?

            - Não, mas estou trabalhando em um par de coisas.

            - Quando o tiver engarrafado, alegrará-me prová-lo, seja o que seja. Quer um pouco de chá? Estou preparando de nossa Rodela de Limão.

            - Não, obrigado. Tenho um par de coisas, como pinjente, que atender. - Enganchou a correia do Amico. Começou a sair, mas logo duvidou. - Shelley, me deixe te perguntar algo hipotético.

            - Dispara.

            - Se estivesse interessada em alguém, em um homem...

            - Sempre estou interessada em um homem.

            - Então, quando o está, muito interessada, e há algo que converteste em uma política estrita manter em privado, sente que tem que abrir essa porta, ser completamente sincera?

            - É algo hipotético bastante pesado.

            - Suponho que sim.

            - Diria que depende do tema privado. Se for que passei dez anos no cárcere federal, então provavelmente o diria. Se for mais como que me fiz uma lipoaspiração, bom, tenho direito a meus pequenos secretos.

            - Assim, quanto mais importante seja, mais necessário é ser sincera.

            - Bom, se me tivesse feito uma lipo, consideraria-o bastante importante, mas sim. Mas diria que depende de quão profundo é o interesse, de ambas as partes.

            - Isso é o que pensei. Obrigado.

            Simone refletiu que teria que julgá-lo, enquanto conduzia ao Amico para o consultório do veterinário. Teria que estar segura de que seus próprios sentimentos, necessidades e esperanças não estavam tingindo sua percepção dos dele.

            Se ele a amava, ela tinha que dizer-lhe antes de que as coisas seguissem adiante. Não só porque era o correto, mas sim pelo amparo do Gabe.

            Se era só um amor de ambas as partes, poderia viver com isso. Tinha vivido com menos. Então manteria seu segredo e desfrutaria do Gabe dentro de sua própria zona de segurança.

            Fora da porta, agachou-se para tranqüilizar ao cão.

            - Só uma visita, isso é tudo. Entramos e saímos rápido, e nada de revisões para ti.

            Entrou justo quando Gabe saía da sala de exame junto a um enorme homem com barba que levava um diminuto gatinho amarelo em suas enormes mãos.

            Seus olhos se encontraram e ela soube que o amor, ao menos de sua parte, não estava nem perto disso.

            - Trudy está preparada - disse Gabe, arranhando detrás das orelhas da gata. - Não mais trocitos de mesa, inclusive se rogar.

            - Obrigado, Doc.

            Enquanto ia para o escritório, a gata arqueou o lombo e vaiou a Simone.

            - Céus, senhorita, sinto muito. Está um pouquito molesta, isso é tudo. - O homem aproximou mais à gata ao barril de seu peito enquanto ela cuspia e se arqueava. - Seu cão provavelmente a pôs nervosa.

            - Não há problema.

            Simone se moveu a um lado, sabendo que não era Amico quem punha nervosa à gata.

            - Vamos atrás. Cinco minutos - disse Gabe ao Eileen, logo tomou a mão da Simone e a levou a sala de exame.

            - Só estava...

            Mas ele deteve suas palavras com sua boca, fez que a sua se deslizasse no beijo, deixando cair a correia para que seus braços pudessem fechar-se ao redor dele.

            - Eu também - murmurou Gabe. - Toda a noite. Se foste dizer que estava pensando em mim.

            - Em realidade, ia dizer te... Agora meu cérebro está emaranhado.

            - Enquanto o está, escapemos pela porta traseira, corramos para o bosque e façamos o amor como coelhos.

            - Acredito que havia um coelho em sua sala de espera.

            - Oh, sim. Muffy. Por que a gente lhe dá nomes tão vergonhosos aos animais? Muito bem, seremos adultos e responsáveis. - Mas primeiro lhe mordiscou o lóbulo. - Hoje termino de atender às cinco. Posso estar em sua casa às cinco e quinze. Logo correremos para o bosque e faremos o amor como Muffy.

            - Isso sonha próximo à perfeição, mas necessito um par de dias.

            - Bom, terei que tomar algumas vitaminas, mas farei o melhor que possa.

            Fez-a rir, e só por isso Simone poderia amá-lo.

            - Aplaudo seu otimismo, mas quis dizer que necessito um par de dias antes de voltar a ver-te. Necessito que me dê até o sábado.

            - Que tal se almoçarmos hoje? Esperaremos pela maratona sexual. Só almoçar.

            - No sábado. Perto das quatro. Não mais tarde que as quatro e meia. Por favor.

            - Está bem. Mas...

            - Necessito até o sábado. E necessito que me diga se me ama. Ou se isto é só físico para ti. E está bem se for... Só físico. Deitarei-me contigo, porque desejo-te. Sem compromissos, sem promessas. Não as necessito. Mas se for mais, quero sabê-lo. Agora não. - Tocou os lábios dele com seus dedos antes de que pudesse falar.

            - Agora não, não. No sábado.

            - É uma criatura estranha e fascinante, Simone.

            Ela tomou a correia do Amico.

            - Realmente o sou. Como está o pastor alemão?

            - Beanie? Vê o que digo dos nomes? É um cão afortunado. Contusões, lacerações e uma perna quebrada. Estará bem.

            - Alegra-me ouvir isso. Está fazendo esperar aos pacientes, deveria ir. Verei-te no sábado.

            - Não cozinhe. - Resistente a deixá-la ir, tomou a mão novamente. - Pediremos pizza ou algo.

            - Ou algo - repetiu ela e, soltando sua mão, foi.

 

            Simone travou as portas, pôs os alarmes, desconectou o telefone. Durante dois dias, viveu no laboratório, dormindo da momentos só quando seu corpo se negava a funcionar, inclusive estimulantes que se arriscava a tomar.

            Aumentou a dose de badana, adicionou íris prismática, e embora sabia que era perigoso ingerir mesclas sem prova, bombeou mais das drogas do mercado negro em seu sistema.

            Quando o resultado a pôs doente, arrastou-se de retorno ao trabalho e tentou com uma fórmula diferente.

            Sentia-se um pouquito louca.

            E por que não, pensou enquanto esmagava espinheiro com o morteiro. Desejaria estar louca, que tudo isto estivesse em sua mente. Bombardeou seu sistema com echinacea, bebendo-a como se fora chá gelado, seguindo o conselho do Nei Jing, que as enfermidades quentes deveriam ser esfriadas.

            E até se sentia quente, uma caldeira ardendo dentro dela, enquanto estudava seu próprio sangue sob o microscópio, enquanto fazia intermináveis provas.

            Mas o ciclo estava em cima dela. Não necessitava uma janela, não precisava ver o céu para saber que o sol estava caindo. Sentia essa atração, o inescapável agarro pela lua dentro dela, tão fortemente, tão indubitavelmente como mãos cavando em seu ventre.

            Deu os passos finais, passos que tinha tomado três vezes por mês, cada mês, durante mais de uma década. A agitação, a rajada formigante já estava se arrastando sob sua pele, reptando debaixo dela, como pequenos demônios acendendo tochas em seu sangue.

            Fechou a jaula detrás dela. Sentou-se no chão enquanto Amico tomava seu lugar junto aos degraus do porão. Ali meditou durante o tempo que ficava, lutando com sua mente contra o monstro que se escondia dentro dela, esperando converter-se.

            Quando a mudança começou, ela o combateu, batalhou contra a dor enquanto o suor brotava quente sobre ela. Disciplina. Controle. Sentou-se, estremecendo, com os olhos fechados, sua mente e corpo tão quietos como podia obter.

            E então estava sendo rasgada em pedaços. Rasgada fora de si mesma; rasgada dentro de si mesmo, com os horrorosos sons de seus próprios ossos estalando, mudando, alargando-se enquanto sua pele se estirava para dar capacidade ao impossível.

            Sua visão se aguçou. Não podia detê-lo. Assim olhou com horror com os olhos agora mais amarelos que verdes como seus dedos se estendiam, até que uma pelagem dourada cobriu-os, e as letais garras se sobressaíram.

            Simone gritou, ninguém para ouvi-la, gritou contra a dor e a fúria. Gritou novamente quando a fúria se converteu em uma escura e horrível emoção.

            Gritou até que o grito se converteu em um uivo ululante.

 

            Ele nunca tinha sabido que os dias fossem tão longos, ou que as noites fossem tão escuras e solitárias. Tinha-a chamado uma dúzia de vezes - possivelmente mais - mas ela não tinha respondido. Só tinha obtido, ao tomá-la moléstia, essa sua voz suave e tranqüila lhe dizendo que deixasse uma mensagem.

            Assim as tinha deixado, algumas sem sentido e outras urgentes, algumas frustradas e outras parvas. Algo, tinha pensado, para incitá-la a que lhe devolvesse a chamada.

            Era um homem louco, podia admiti-lo. Estava louco por voltar a vê-la, por voltar a tocá-la. Por ter uma maldita conversa. Era pedir muito?

            Mas não, ela tinha que ser toda misteriosa e inalcançável.

            E mais fascinante para ele que nunca.

            Provavelmente era parte de seu plano professor, decidiu enquanto conduzia através da chuvosa tarde de sábado. Deixar lunático ao homem para que prometesse qualquer coisa.

            E bom, talvez o faria.

            Sentia-se açoitado por um raio.

            Havia flores no assento a seu lado. Margaridas amarelas esta vez. Simplesmente, Simone não lhe dava a impressão de ser a variedade de mulher de rosas vermelhas.

            E uma

            Garrafa de champagne. O autêntico.

            Já imaginava sentados no chão frente ao fogo bebendo, fazendo o amor, falando, fazendo o amor outra vez, dormindo juntos só para despertar e deslizar-se ao amor e os murmúrios uma vez mais.

            Tinha dado volta seus horários para sair na metade da tarde do sábado. E pagaria por isso com entrevistas extra durante a semana seguinte. Mas o único que importava era que Simone estava esperando-o.

            Deteve-se detrás da caminhonete dela, tomou o champagne e as flores e logo correu sob a chuva para a porta do frente.

            Ela abriu antes de que pudesse bater, mas o sorriso de saudação do Gabe se desvaneceu ao ver seu rosto. Havia manchas de fadiga sob seus olhos, escuras contra a palidez de sua pele. E seus olhos se viam muito brilhosos, febris.

            - Bebê, está doente.

            Quando ele levantou a mão para checar a febre em sua frente, ela deu um passo atrás.

            - Não, só cansada. Passa. Estive te esperando.

            - Escuta ao doutor Gabe. Te recoste ali na poltrona. Prepararei-te um pouco de sopa.

            - Não tenho fome. - Mas a teria. Logo. - Essas necessitam água.

            - Ocuparei-me disso. Deveria me haver dito que não se sentia bem. Teria vindo ver como estava. Viu ao doutor... O doutor de pessoas?

            - Não é necessário. - Como ele queria preocupar-se, deixou-o. Deu-lhe um vaso quando chegaram à cozinha para que pudesse enchê-lo para as margaridas. - Sei o que me acontece. Preparei-te um pouco de café. Por que não...?

            - Simone. - Deixou cair as flores no vaso e se deu volta para tomar a dos ombros. - Posso servir meu próprio café. Vá recostar-te. Tenha fome ou não, necessita comer algo e logo descansar um pouco. Uma vez que faça o primeiro, irá acima à cama. Eu dormirei no sofá.

            - Não é uma grande entrevista. - deu-se volta para tocar a garrafa de champagne que Gabe tinha deixado sobre a encimera. - O que tem que isto?

            - Poremo-lo na geladeira e podemos abri-lo quando te estiver sentindo melhor. E se isso não acontece amanhã pela manhã, levarei-te ao médico.

            - Temos que falar.

            - Pode falar quando estiver na horizontal. Tem um pouco de sopa de frango e macarrão por aqui?

            Gabe se apartou para abrir as portas da despensa em uma busca. Havia chuva em seu cabelo, pequenas gotas que cintilavam contra o negro. Simone podia cheirá-la sobre ele, cheirar sua frescura enquanto ele bisbilhotava em sua cozinha para encontrar algo que lhe desse consolo.

            Tinha levado champagne e flores e queria lhe fazer uma sopa.

            Ficou de pé, perfurada por algo mais doce que a dor. E arrojou os braços ao redor dele, pressionando a bochecha contra suas costas.

            - É um em um milhão. Oh, deus, espero que seja meu um em um milhão.

            - Quero-te na cama, e não para poder fazer o que quiser contigo. Vou servir te sopa condensada em vez de champagne francês, e logo te colocarei com cuidado na cama enquanto vigio no sofá. - Gabe se deu volta e tocou a fronte dela com os lábios de um modo que Simone soube que estava checando sua febre. - Se isso não é amor, Simone, não tenho um nome para isso.

            - Esquece a sopa por agora, mas obrigado. Venha e sente-se. Há coisas que tenho que te contar, e não há muito tempo.

            Agora o rosto dele estava quase tão pálido como o dela.

            - Está verdadeiramente doente? Acontece-te algo mau?

            - Tenho... Chamaremo-lo uma condição. Não é nada que imagine e não é muito grave. Para mim. Venha te sentar, quererá te sentar, e lhe explicarei isso.

            - Está começando a me assustar.

            - Sei.

            Simone manteve sua mão na sua enquanto o levava a sala de estar. Tudo se via tão acolhedor, tão singelo, pensou. Mas não era, não podia ser.

            Era o risco maior que jamais correria, mas ali estava ele, o prêmio mais importante que poderia esperar ganhar, sentado em seu sofá, vendo-se tenso e preocupado.

            Veria-se até pior quando ela terminasse. E quando terminasse, ele seria dela ou estaria deixando rastros.

            - Aconteceu na Itália - começou. - Eu tinha dezoito anos. Somente. Tão feliz de estar sozinha pela primeira vez. Tinha tudo por diante. Sabe como é isso?

            - Sim. - Gabe tirou o echarpe de cima do apoyabrazos do sofá e o colocou no regaço. - Crê que é dono do mundo, e que só tem que começar a cobrar.

            - Sim. Eu estava... Sufocada é o modo de dizê-lo, suponho, com meus tios. Comportava-me como eles queriam que me comportasse, tinha muito cuidado de fazer o que se esperava. De outro modo, não sabia o que me passaria. Assim era calada, estudiosa, obediente. E marcava os dias em meu calendário mental até que pudesse abrir a chave dessa fechadura e escapar. Chegou-me dinheiro quando cumpri os dezoito. Dinheiro do seguro, um pequeno fideicomisso. Não toneladas de dinheiro, mas o suficiente para me arrumar isso, para me dar um pouco de liberdade, para financiar esse viagem à Europa que queria tão desesperadamente. E tinha trabalhado durante os verões desde que tinha dezesseis, economizando tanto dinheiro como podia. Ia à universidade, mas o adiei por um ano. Aos dezoito, parecia que tinha todo o tempo do mundo, e as possibilidades eram infinitas.

            Seus dedos estavam puxando a borda do xale. Gabe tomou a mão e a acariciou.

            - Disse que foi sozinha.

            - Queria estar sozinha, mais que nada. - Que impiedosa ironia, pensou, que esse desejo tivesse sido concedido. - Conhecer gente, sim. Me sentar em cafés e ter brilhantes conversas com gente fascinante. E o fiz, do modo em que alguém o faz a essa idade... Ou a gente acredita que o faz. Queria ver Roma, Paris e Londres, e todas as pequenas aldeias na campina. Queria me sentar em um bar na Irlanda e ouvir música. Queria muito.

            Ele sacudiu a cabeça.

            - Não muito. Queria ser feliz. Ser você mesma.

            - Deus, sim. Queria tocar tudo, ver tudo. Absorver tudo. Tinha sonhado com isso tanto tempo, e ali estava, olhando o Duomo em Florência, bebendo vinho e flertando com os garçons em Roma, sentada no topo de uma colina na Toscana. Nenhum tour estruturado para mim. Nenhuma estrutura. Estava farta disso. Por isso é que estava fazendo uma excursão em uma área remota do Piamonte no outono, poucos meses depois de meu décimo oitavo aniversário. Sozinha, observando um glorioso entardecer, caminhando enquanto chegava o crepúsculo, suave e tão adorável. Era incrivelmente romântico, e pacífico e emocionante ao mesmo tempo. Ia caminhar para a França.

            - Oh, bebê. - Instintivamente, lhe apertou as mãos. Ela havia dito que alguém a tinha machucado. E ela não o tinha conhecido. - Foi violada?

            - Não. - Simone se deu conta de que não era certo de tudo. De que outro modo chamar à invasão de seu corpo, o horror? - Não... Não sexualmente.

            Deteve-se um momento. Estava dando rodeios quando precisava terminar com isso rapidamente. E entretanto, não tinha Gabe que sabê-lo tudo? Não necessitava ela fazer-lhe ver, que acreditasse?

            - Deveria ter acampado perto de uma das aldeias, ou ido a uma casa ou granja. Algo. Mas tinha dezoito e era imortal, e queria experimentar a noite nas montanhas, sozinha. A lua cheia. Ouvi algo e pensei, Oh, Cristo, é isso um lobo? Há lobos aqui acima? Mas um lobo não estaria interessado em mim. Então o ouvi uivar. Senti o medo golpear meu pescoço como uma tocha, inclusive quando me disse que os lobos não incomodavam às pessoas. As pessoas não eram suas presas.

            Arrojou o xale a um lado, ficou de pé e foi para o fogo a atiçar os troncos, embora sabia que a chama não a esquentaria.

            - Foi tudo muito rápido. Caminhei mais rápido. Podia ouvir minhas botas ressonando nas pedras. Tinha uma navalha da Suíça no bolso. Lembrei de pegá-la. Vi-o, sua forma, e corri. Atacou-me por trás. Minha mochila me salvou. Derrubou-me e pude senti-lo rasgando a bolsa, com sua respiração em minha nuca. - Simone esfregou os braços, esfregou-os com força, e manteve seus olhos enfocados nas chamas saltando. - Os sons que fazia... Famintos, selvagens. Desumanos. Gritei. Acredito que gritei. Perdi minha faca. Não me teria ajudado, de qualquer modo. - deu-se volta, soube que tinha que enfrentá-lo com o resto. Os olhos do Gabe estavam cravados nela. - Devo ter lutado, mas o recordo me arranhando, e a dor era incrível. Ainda pior quando colocou seus dentes em meu ombro. Poderia me haver matado então, e teria terminado. Mas eu tinha isto. - Tirou a cruz de debaixo de sua camisa e deixou que pendurasse da corrente. - Apunhalei-o com esta cruz, pelo pânico, a dor e o desespero. Vi-o só um instante, e logo nada claro, mas cravei a ponta da cruz nele, e gritou. Jazi ali sozinha, olhando a lua. Não recordo depois disso, devo me haver desacordado. Disseram-me que uns excursionistas me encontraram pela manhã, e me tiraram das montanhas. Disseram-me que tive sorte de não haver sangrado até morrer. Mais afortunada, disseram, que o homem o que encontraram morto. Mas o estranho sobre ele foi que estava melado de sangue, mas só tinha duas pequenas feridas. Uma espetada na bochecha, outro no jugular.

            - Defesa própria, Simone. Tinha que...

            - Não, espera. Tenho que dizê-lo tudo. Disseram que era um ermitão. Esse homem que encontraram morto e melado de sangue. Um homem estranho, muito estranho que vivia sozinho nas colinas. Devia ter sido ele quem me atacou, mas não era estranho que minhas feridas se vissem como se tivessem sido infligidas por alguma espécie de besta? As marcas de garras, a mordida em meu ombro. Mas olhe quão rápido estava sarando. Sim, era uma garota muito afortunada.

            - Simone. - Gabe se levantou para ir lentamente para ela, tomou os ombros com suas amáveis mãos. - Ele era HIV-positivo? Contagiou-te a AIDS?

            - Não. Mas está no caminho. É a respeito do sangue. Fiquei na Europa, fui a França. Em um par de semanas me senti melhor, melhor que nunca antes em minha vida. Um mês depois do ataque, estava acampando novamente. Sozinha. Graças a deus, sozinha. Enquanto o sol descia, comecei a me sentir agitada, quente e enfebrada. Muita energia. Os nervos estalando sob minha pele. Houve uma dor dilaceradora, como se algo estivesse me rasgando de dentro para fora. Senti-o vir, senti-o abrir caminho através de mim, fora de mim. Converter-se em mim. E cacei, cheirei a carne, o sangue. Só um cervo. Alimentei-me dele, e a matança foi tão emocionante como o festim.

            - Estava alucinando.

            Simone liberou suas mãos, não podia permitir que a tocasse agora.

            - Pela manhã, despertei nua, coberta de sangue, a mais de um quilômetro e meio de meu acampamento. Encolhida ao lado do que restava do cervo. A noite seguinte foi o mesmo, e a noite depois me atei a uma árvore. Fui a um médico local, disse-lhe que me acontecia algo mau. Não descobriu nada no exame. Eu estava sã, mas me faria uma análise de sangue. Antes de enviar meu sangue ao laboratório, observou uma mancha sob o microscópio. Estava perplexo. De algum modo, a mostra devia ter se poluído. Não podia explicá-lo. Não podia explicar como havia células sangüíneas caninas junto às humanas. Não era possível, alguma espécie de engano. Tomei a amostra de sangue e parti. Retornei aos Estados Unidos. Levei a amostra a um doutor norte-americano. Que diabos sabia esse tipo na França? Mas o doutor norte-americano estava igualmente desconcertado, queria saber de onde tinha obtido a amostra. De quem ou do que era? Saí, escapei. Li tudo o que pude encontrar sobre afecções sangüíneas, enfermidades, infecções. E pensei no que me tinha acontecido nas montanhas, na cruz de prata. Soube. Sabia da noite em que muduei, mas como podia aceitar isso? Esse filme de terror de Hollywood? Provaria que era outra coisa.

            - Simone, vamos sentar nos. Precisa te sentar.

            - Não. - Apartou-lhe a mão quando ele tentou aproximar-se. - Escuta. Uma semana antes da seguinte lua cheia, aluguei uma cabana. Comprei cadeias, uma filmadora, um tripé. Quando chegou o momento, instalei a câmara, algemei-me, e me sentei no piso a esperar. Quando aconteceu, tentei combatê-lo, mas era muito forte. Pela manhã, tinha a fita. Vi-me mesma, vi o que me acontecia. Fiquei ali as três noites inteiras, com medo de ir a qualquer lugar, de ver qualquer um.

            Depois do ciclo, fui à biblioteca e encontrei o nome para o que era. Licántropo.

            - Simone. - Gabe respirou larga e tranqüilamente, e embora ela tentou apartar-se, suas mãos lhe esfregaram os braços de cima abaixo. - Foi atacada, traumatizada.

            Converteste o homem em uma besta, um monstro... Porque isso é o que foi. Um depredador, mas humano. A licantropia é uma desordem psicológica.

            - É se pensar que te converte em um lobo. Mas se o faz, é uma desordem fisiológica. Não me crê. - Tocou-lhe a bochecha com uma mão, sabendo que poderia ser a última vez que ele o permitia. - Não espero que o faça. Estaria preocupada com ti se aceitasse tudo isto só com minha palavra.

            - Acredito que foi atacada, ferida e forçada a te defender. E o choque, o trauma do que te passou, especialmente em um momento tão vulnerável de sua vida, causou um severo dor emocional. Posso te ajudar. Quero te ajudar.

            - Crê que estou louca - expôs Simone. - Mas não te parte.

            - Não acredito que esteja louca, acredito que está doente. Por que partiria quando o que mais quero é estar contigo?

            - Precisa ver. Precisava ouvir o que não contei a ninguém mais, e precisa ver o que não permiti que ninguém mais veja. E uma vez que o faça, se terminar comigo, não te culparei. Mas necessito que venha comigo agora, só me dê um pouco mais de tempo.

            - Quero te ajudar. Acredito que posso te ajudar se...

            - Deus, espero que tenha razão. Só venha. Preciso ir para baixo. Será o entardecer logo.

            Gabe foi com ela, com o cão trotando pacientemente detrás deles. Simone destravou a porta do porão e voltou a fechá-la quando estiveram do outro lado.

            Ouviu-o conter a respiração quando ele viu seu laboratório, a cela, as câmaras e o equipamento debaixo.

            - Está assustado - começou a lhe dizer. - E está confuso.

            - Essa é a versão leve. Pelo amor de deus, Simone, não vou acreditar que é alguma espécie de científica louca, ou a versão feminina de Oz.

            - Oz? - Ela se deteve e o olhou com os olhos como pratos. - Oz, do Buffy? Olha Buffy a Caça vampiros?

            - Vi-a um par de vezes. Está bem, sim, e então? Para mim tem muito mais sentido ver um programa de televisão bem escrito que você pense que é uma mulher-lobo.

            - Em realidade, prefiro o termo lycan. Mulher-lobo provoca imagens de velhos filmes de terror. Lon Chaney ou quem é que anda tropeçando na bruma com um par de calças apertadas, sobre duas pernas. Buffy o levou mais perto da realidade.

            - Oh, sim, a realidade. - Gabe se esfregou a nuca e ela viu como lutava por ter paciência. - Não pode seguir vivendo assim. Se confia em mim o suficiente para me contar tudo isto, então confie em mim o suficiente para deixar encontrar aos médicos adequados, os tratamentos adequados para ti.

            - Uma imagem vale mais que mil palavras. Há gravações. - Foi para a câmara com tripé. - Gravo cada mudança, estudo as fitas para ver se houver alguma melhora, alguma alteração. Pode as estudar por ti mesmo se quiser. Ou usar os equipamentos que tenho aqui, estudar as amostras de sangue.

            - Está-te auto-medicando. - Gabe fez um gesto para os frascos, as ervas, as garrafas de pílulas. E sua paciência se quebrou. - Maldita seja, Simone, isto tem que parar. Vai parar.

            - Meu mais querido desejo. - Que estranho, pensou, quanto mais se zangava ele, mais tranqüila estava ela. - Se não acontecer nada depois da queda do sol, farei o que queira. Verei qualquer doutor, farei qualquer prova, ingressarei no quarto acolchoado mais próxima. Juro-o.

            - E um inferno que o fará.

            Sim, pensou, mais tranqüila se voltava... E o olhou com o que era quase um sorriso.

            - É prepotente quando está zangado. Interessante.

            - Posso me pôr muito mais agressivo.

            - Não posso recordar a última vez que alguém esteve ativamente furioso comigo, ou molesto por mim. Terei que decidir se me agrada. Só peço que me dê os próximos vinte minutos, e que me prometa... Que me jure, que não importa o que acontecer, não tentará te aproximar de menos de um metro da jaula.

            - Não vais te encerrar aí dentro.

            - Vinte minutos. Não é muito pedir quando te dei minha palavra de que farei o que seja que creia melhor se tiver razão e eu estou equivocada.

            Ele arrojou as mão ao ar, uma espécie de aquiescencia frustrada e silenciosa.

            - Amico não permitirá que te aproxime da jaula, mas não quero que tenha que te machucar. Prometa-me isso.

            - Bem. Tem minha palavra. Não me aproximarei da jaula. E em vinte minutos, você e eu vamos sentar nos e deduzir o melhor modo em que posso te ajudar.

            - Muito bem. - Ela foi para a câmara e a ligou. - As chaves da porta do porão estão ali, sobre a mesa. Se quer ir, entenderei. Só fecha detrás de ti. Toma isto. - tirou a cruz. - Deixa-a se for. Eu não posso sair - continuou, caminhando para a jaula e trabalhando com a combinação do primeiro de três musculosos ferrolhos. - Não posso dirigir as combinações em minha forma lycan. - Gabe amaldiçoou em voz baixa, mas ela o ouviu. Com a porta aberta, deu a volta, manteve seus olhos nos dele e desabotoou a camisa. - Acreditará que pode me ajudar quando começar, mas não pode. Se tenta correr para a jaula, Amico te deterá.

            Ela tirou a camisa e desabotoou o soutien.

            Os olhos do Gabe se entrecerraram.

            - Simone, isto é uma espécie de sedução pervertida e única, é...?

            - Mantém sua palavra - interrompeu-o ela, e tirou os jeans. - Não vejo o sentido em arruinar boa roupa três vezes por mês.

            - Prática. E realmente formosa.

            Ela fechou a porta da jaula e colocou o primeiro cadeado.

            - Não pensará isso dentro de poucos minutos. - Queria caminhar, mover-se. Essa febre agitada estava arrastando-se sobre sua pele. Mas ficou quieta uma vez que as travas estavam postas. - Há um porta-objetos sob o microscópio. Deixei-o para que o veja. Não o microscópio de elétrons... Ocuparemo-nos disso mais tarde.

            - Tem um microscópio de elétrons?

            Ela quase sorriu para ouvir a surpresa em sua voz, e viu o brilho de interesse em seu rosto enquanto olhava mais de perto seus equipamentos.

            - Mais tarde. Adiante, olhe a mostra comum. Me diga o que pensa.

            - Há uma mulher nua parada detrás das barras, e você quer que brinque com seu equipamento de química? Não é que não seja um equipamento de química genial, mas a mulher nua ganha. Fácil.

            Simone ouviu sua própria risada e apoiou sua fronte contra as barras.

            - Sigo me apaixonando por ti. Só joga uma olhada.

            Lhe dando o gosto, ele foi para ali, inclinou-se sobre o microscópio e ajustou o foco.

            - Uma amostra de sangue - murmurou. - Células estranhas. Alguma espécie de infecção. Não raiva... Não exatamente. Nunca vi nada como isto. - Intrigado, trocou de postura. - A primeira vista é... Não é canino, mas o é. É humano, mas não o é. De onde tirou isto?

            Gabe se endireitou e se voltou para a jaula. E seu coração saltou a sua garganta.

            Simone estava coberta em suor, tremendo, com os dedos apertados ao redor das barras. E esses dedos estavam... Mau. Muito compridos, muito... Tensos.

            Com as unhas afiadas e negras. Seus olhos estavam nos dele, e cheios de pena, cheios de dor, e começando a brilhar. Viu que não com lágrimas... Ou não só com lágrimas. Havia algo feroz e furioso ardendo através da umidade.

            Alguma espécie de ilusão, disse-se a si mesmo. Alguma espécie de truque elaborado.

            - Simone...

            - Jurou-o. - Ela vaiou as palavras enquanto ele se movia instintivamente para ela e Amico grunhia gravemente e bloqueava seu caminho. - Mantem afastado. Não te aproxime a mim. Deus. Oh, deus!

            Gabe a viu morder o lábio, mordê-lo para conter um grito. O sangue se escorria por seu queixo, e o mesmo queixo começou a estirar-se, a alongar-se e estreitar-se.

            Inclusive enquanto sua mente racional negava o que seus olhos viam frente a sim, Gabe ouviu algo horroroso, como ossos triturando-se.

            Então Simone gritou, caindo ao chão de concreto, caindo em quatro patas enquanto sua coluna se arqueava e estalava, enquanto o cabelo, dourado e espesso, se estendia sobre sua pele.

            Nenhuma ilusão. Nenhum truque. E seguia sendo impossível.

            - Maria, mãe de deus.

            Ele tropeçou para trás, golpeando seu quadril contra a mesa e causando que as garrafas e os frascos fizessem ruído.

            E o que estava na jaula jogou a cabeça atrás, com sua longa garganta lustrosa movendo-se enquanto uivava com terrível alegria.

 

            Simone despertou como sempre o fazia depois da mudança. Desorientada e dolorida. Como se apenas se recuperasse de uma enfermidade larga e debilitante.

            E despertou com fome. Canina, o que ao princípio a desconcertou. Até que recordou que não tinha posto nada de carne na jaula com ela. Um tolo ponto de vaidade, supôs. Não tinha querido que Gabe a visse alimentando-se.

            Gabe. Fez-se um novelo mais apertadamente sobre si mesmo, uma compressa de corpo inteiro sobre a tristeza. Agora ele tinha visto. Agora sabia. Nunca seria capaz de voltar a olhá-la do mesmo modo, não com desejo ou afeto. Certamente, não com amor.

            Mas se não o tinha julgado mal por completo, uma vez que superasse o impacto e o horror, poderia ser capaz de ajudar.

            Obrigou-se a levantar-se. Ainda podia cheirar ao lobo. Seu aroma seguiria pego a sua pele muito depois de que seu corpo fora sua outra vez, e esse fedor, até depois de tantos anos, revolvia-lhe o estômago.

            Tomaria uma ducha longa e quente, o tiraria esfregando-o. Logo comeria e trabalharia. E esperaria. Se Gabe retornava, pensou enquanto destravava a jaula, o que tinha feito valeria o preço. Ele não a amaria, não do modo em que ela sempre o amaria, mas a ajudaria. A bondade nele o exigiria.

            Se estava equivocada, se ele não retornava, voltaria a mudar-se. Possivelmente iria ao Canadá esta vez. Ele poderia dizer a alguém, é obvio, mas ninguém lhe acreditaria. Sem embargo, seria melhor de qualquer modo que se mudasse, que se localizasse em algum outro sítio.

            Ficou os jeans e se deteve com os dedos no botão da cremalheira enquanto olhava fixamente a cama do Amico.

            Amico estava sentado no amplo almofadão, olhando-a, esperando sua ordem. Ao lado do cão, Gabe estava escancarado. Dormindo.

            Não estava desorientada agora, estava simplesmente atordoada. Sem pensar, terminou de vestir-se e apagou a câmara. Liberou o Amico de sua postura vigilante com uma ordem sussurrada. Até enquanto o cão se parava, Gabe se moveu.

            Seus olhos se abriram piscando. Ela quis lhe acariciar a bochecha, o cabelo. As pestanas. Mas manteve as mãos a seus flancos enquanto se agachava.

            - Ficou.

            - Não? - Os olhos do Gabe estiveram sonolentos um momento, mas ela os viu aguçar-se incluso enquanto esfregava as mãos sobre seu rosto, e para seu cabelo alvoroçado.

            - Sim. Devo ter cansado como pedra por um momento. Quem o teria pensado? Viria-me bem um café.

            - Subirei a preparar um pouco.

            - Que horas são?

            - Cedo. Mal acaba de amanhecer.

            Lhe olhou o pulso. Não levava relógio.

            - Como sabe?

            - Sempre sei. - Simone se endireitou e se recordou que devia manter um pouco de distância, pelo bem de ambos. - Porei a fazer o café e logo preciso tomar banho.

            Terá perguntas. Tentarei as responder.

            - Muito bem.

            Simone subiu as escadas com o cão a seu lado. Mas não olhou atrás enquanto destravava a porta, ou quando a fechou detrás dele.

            Que parvo era que suas mãos tremessem agora, pensou. Depois de tudo o que tinha passado, tudo o que tinha suportado, tremeria e se estremeceria agora? Jogou grãos moídos sobre a encimera enquanto os media e os deixava ali. Limparia-os mais tarde. Só tinha que fazer café - uma tarefa singela, diária - e logo poderia tomar banho. Necessitava o calor, o sabão, a limpeza.

            Necessitava tempo a sós antes de enfrentar a lástima e a condenação que veria nos olhos do Gabe.

            Ouviu-o entrar.

            - Não levará muito tempo - disse-lhe rapidamente. - te sirva. Se tiver fome, eu... - atirou-se para trás, afastou-se quando ele lhe aproximou. - Não. Não me toque agora. Seu aroma segue sobre mim. - Movendo-se com rapidez, destravou a porta traseira e a abriu de um puxão para deixar sair ao cão. O ar estava cheio de brumas e aromas matutinos, e isso a fez querer chorar. - Descerei em uns minutos. Teve que obrigar-se a não sair correndo.

            Começou a despir-se quando chegou à porta de seu dormitório, tirando as peças de roupa, as atirando a um lado enquanto se apressava a entrar em banho. Sua respiração estava pega em sua garganta, rasgando-se em ofegos quando pôs a água tão quente como pensou que poderia suportá-la.

            Sim, queria chorar, mas não poderia haver dito porquê. Ele tinha ficado, e sua compaixão era mais do que podia pedir. Mais do que podia esperar. Assim só apoiou suas mãos contra os azulejos quando se meteu debaixo do jorro de água. E fechou os olhos com força contra a inútil debilidade das lágrimas.

            Levantou outra vez a cabeça, lentamente, quando o cheirou, e seus olhos já estavam procurando quando Gabe apartou a cortina do banho com o cotovelo.

            - Também me viria bem uma ducha - disse casualmente enquanto tirava a camisa.

            - Não o faça.

            - Não tem sentido ser tímida agora. Já te vi nua. - Ele se despiu e entrou detrás da Simone. - Jesus, está bastante quente para ti?

            O corpo dela ficou rígido quando ele riscou seus dedos sobre o ombro, sobre a única cicatriz que tinha do ataque. Essa mordida que a tinha mudado.

            - Como pode me tocar?

            - Como posso não fazê-lo? E o que é isto daqui?

            Gabe roçou esses dedos sobre seu outro ombro, e a pequena tatuagem de uma lua cheia.

            - Um aviso, de que sempre é parte de mim. Necessito...

            Ficou calada, sacudiu a cabeça. Quando procurou o sabão, ele tomou primeiro e começou a lhe ensaboar as costas.

            - Me deixe te dar uma mão.

            - Não seja bom. - Lhe quebrou a voz. Fez falta toda sua vontade para recompô-la. - Necessito um pouco de tempo para me adaptar antes de poder digerir a bondade.

            - Muito bem, contida a bondade. - Seus lábios se deslizaram sobre a pele úmida da Simone, justo na curva de seu pescoço e ombro, enquanto suas mãos ensaboadas deslizavam-se para cima para encontrar seus seios. - Qual é sua postura em relação à luxúria?

            - Não pode me desejar agora.

            - Não posso começar a lhe dizer quão equivocada está nesse ponto. Dê a volta, me olhe.

            Gabe não esperou, mas sim a aferrou com firmeza e a moveu. A água correu sobre ela, pulsando sobre o murcho cabelo loiro. Era a vergonha em seus olhos, a mesma que tinha visto quando o tinha despertado e logo na cozinha, o que lhe disse que ela necessitava mais que seu amor, mais que qualquer palavra prometedora que ele podia lhe oferecer.

            Simone necessitava seu desejo.

            - Tenho uma só pergunta agora, e é porquê evita dizer meu nome.

            - Não o faço.

            - Sim o faz. Por que?

            - Porque os nomes são pessoais. Porque pensei que seria mais singelo afastar-se, para os dois.

            Ele a recostou, com as costas contra a parede da ducha, com suas mãos correndo sobre ela, descendo por seus flancos, subindo por seus flancos, através de seu cabelo.

            - Diga-o agora. - Seus lábios tocaram os da Simone e se retiraram. - Diga meu nome agora, porque ninguém irá a nenhuma parte.

            - Gabe. - Simone conteve um soluço. - Gabriel. - Arrojou seus braços ao redor dele. - Gabe.

            - Simone.

            E então sua boca se estrelou contra a dela, não com bondade, não com paciência, a não ser com uma fome e uma exigência que acenderam as sombras de seu coração.

            - Não é lástima - conseguiu dizer enquanto as ávidas mãos dele exploravam e tomavam.

            - Sente isto como lástima?

            - Não. - Com uma risada, com um gemido, Simone se arqueou para trás para deixar que a boca dele se desse um festim. - Não.

            Seu corpo era comprido e elegante, os músculos suspensórios e tensos, a pele suave como pétalas de rosa empapados de rocio. Estava tremendo novamente, mas agora Gabe sabia que era a excitação o que a estremecia. Uma necessidade que levou sua boca a dele em um beijo interminável, de lábios quentes e úmidos, e línguas que procuravam.

            Começou a sair vapor, mas o calor quase abrasador da água não era nada agora, um calafrio comparado com o fogo que se acendia e ardia dentro do Gabe.

            Pressionou sua boca contra a cicatriz no ombro dela em um gesto de aceitação. Quem fora, o que fora que fosse Simone, era dela. E queria cada parte dela.

            - Necessito-te tanto. - Ela se fechou a seu redor. - Não sabia que poderia necessitar tanto a alguém.

            - Só está começando, para os dois.

            Agarrou-a pelos quadris e ela se escorou para ele, abriu-se para ele, olhou seus olhos enquanto Gabe se deslizava em seu interior. Ele tomou lentamente, deliberadamente, inclusive quando a visão dela se voltou imprecisa e ele se perguntou se se consumiria antes da liberação. Tomou enquanto a cabeça da Simone caía para trás, quando gritou.

            E quando suas mãos se deslizaram lassas pelas costas molhadas do Gabe, e seu prolongado e grave gemido se deslizou sobre sua pele, tomou a ambos.

            Era a primeira vez que Simone podia recordar sentir-se tímida com um homem. O acanhamento não era parte de sua natureza, mas se sentia extranhamente tímida agora enquanto vestia-se frente a ele.

            - Sei que temos que falar.

            - Sim, assim é.

            - Tenho que comer. Preciso comer.

            Gabe se aproximou e lhe levantou o queixo.

            - Também precisa dormir. Está exausta.

            - Farei-o, dormirei. Mais tarde. Irei preparar o café da manhã.

            - Eu o farei.

            - Não. Preciso fazer algo. Manter as mãos ocupadas.

            Simone baixou, tirou alguns ovos. Como queria que Amico compreendesse o lugar do Gabe na casa, pediu ao Gabe que o alimentasse.

            - Não pensei que estaria aqui esta manhã.

            - Aonde creste que iria?

            - A qualquer sítio exceto aqui. - Como seu sistema seguia morrendo por carne, começou a preparar toucinho em uma frigideira. - Você viu o que sou. Mas está aqui e não disse nada.

            - Vi o que te aconteceu e tenho muito que dizer. Começarei dizendo que não o teria acreditado em menos que o visse acontecer. Poderia ter alhado todas as gravações que tem, e dei uma olhada a algumas delas durante a noite, mas não o teria acreditado. Não é o tipo de coisa que se supõe que creia quando é um adulto. E cordato. - Quando Simone não disse nada, Gabe foi para ela e a tocou brandamente no ombro. - Doeu-te.

            - A mudança é dolorosa, sim.

            - Provaste com analgésicos, sedativos, algo para aliviar a transição?

            - De vez em quando. Não ajudam muito, e não detêm a mudança. Nada o faz. Ainda.

            - Está provando ervas.

            - Assim foi como me coloquei com elas. Combatendo, pensei, o sobrenatural com o natural. Provei feitiços. Bruxaria, vodu, encantamentos, poções e loções. Ciência médica, ciência paranormal. Tive onze anos para provar.

            Onze anos, pensou Gabe. Sozinha. Como o tinha suportado?

            - Encontraste a alguém com a mesma afecção?

            - Não. Assombraria-te saber quanta gente pensa que é licántropo. Há páginas Web dedicadas a isso, e todo tipo de contos sobre mulheres e homens lobo. Mas nunca encontrei ninguém que esteja realmente infectado.

            - Um termo interessante. Infecção. - Ele bebeu seu café enquanto ela rompia ovos em um tigela. - Li algumas de suas notas. Uma infecção sangüínea, que altera o DNA e de algum modo se combina com a canina. Uma infecção rábica que não só resiste mas também evita a produção de anticorpos.

            - Um tipo de infecção sangüínea. Mas não é raiva.

            - Não. Uma prima longínqua. Onde obteve as drogas, Simone?

            - Ilegalmente. Pelo mercado negro.

            - Não pode seguir te auto-medicando deste modo, usando drogas experimentais... E não todas elas para humanos, com efeitos secundários ou conseqüências desconhecidas.

            - Não posso pensar em um efeito secundário ou conseqüência mais prejudicial que lhe uivar à lua cada mês.

            Ele fechou uma mão ao redor de seu pulso até que ela se deteve e se encontrou com seu olhar.

            - O que tem que a psicose, paralisia, apoplexia, embolismo? Provemos com a morte.

            - Considerei tudo isso, e os riscos valem a pena.

            - Sozinha, em um laboratório no porão.

            - Qual é a alternativa? - Simone liberou seu braço e bateu os ovos com vontades. - Fazê-lo público? Viajar até o Johns Hopkins, por exemplo, e lhes dizer "hey, meninos, vejam isto"?

            - Entre dois extremos há muito espaço, muitas opções.

            - Me converter em lobo cada mês é bastante condenadamente extremo, e também o seriam os compromissos com os programas de entrevistas que obteria se isto se sabe alguma vez.

            - Seria um verdadeiro êxito com o público no Letterman. Os estúpidos truques de mascotes nunca seriam o mesmo.

            A risada saiu como um bufo antes de que Simone pudesse detê-la, e a metade da tensão que pressionava seus ombros desaparecia.

            - Pode brincar?

            - Sinto muito, bebê. Eu...

            - Não. Pode brincar. - Simone tomou o tempo necessário para deixar o tigela, tomar o rosto entre as mãos e pressionar seus lábios forte e rapidamente sobre os dele. - estive procurando um milagre, e chegou correndo para mim à volta de uma esquina. Não foi. Tocou-me, fez o amor comigo quando pensei que te daria repulsão. - Com um suspiro, jogou os ovos na frigideira. - E está aqui parado esperando que cozinhe estes estúpidos ovos e fazendo brincadeiras. É racional. Maravilha-me que possa estar aqui, ser gracioso e racional depois do que viu.

            Como estava ali, ele tomou uma tira de toucinho que ela tinha deixado em um prato e se chamuscou a ponta dos dedos.

            - Não vou dizer te que não me espantei - disse-lhe enquanto passava o toucinho de uma mão a outra para esfriá-lo. - Sigo-o estando, mas estou trabalhando nisso.

            - O resultado final, sim? O resultado final é que não posso experimentar opções estabelecidas. Estava espantado, Gabe, porque isso é o que sou. Um espanto.

            - Não o é. Tem uma enfermidade.

            - E se não encontrar uma cura, serei assim toda minha vida. Se não me deixar louca ou me levar ao suicídio, viverei uma vida muito longa. Um dos felizes benefícios desta enfermidade é uma saúde robusta. Ridiculamente. Nem sequer me escorreu o nariz desde que tinha dezoito. E feridas? Isto prova.

            Antes de que ele se desse conta do que estava fazendo, Simone apoiou a mão contra um flanco da frigideira. Gabe esteve em cima de um salto, lhe liberando a mão de um puxão.

            - Que problema tem? Me deixe ver. Onde está o kit de primeiros auxílios?

            Tentou arrastá-la até a pia e não pôde movê-la nem um centímetro.

            - Mais forte do que pareço, especialmente durante o ciclo. Como saro muito rápido, anormalmente. Olhe. - Levantou a palma. - Só lhe dê um minuto.

            Ele observou, fascinado, como a feia queimadura, vermelho aceso da ponta dos dedos ao pulso, voltava-se de um rosa curado, encolhia-se e desaparecia.

            - Lindo truque. - Inspirou, exalou. - Não volte a fazê-lo.

            - Pensei em me matar - disse com calma. - Mas isso é me dar por vencida, e não estou preparada para me dar por vencida. Há uma cura, e devo encontrá-la.

            Gabe deu volta sua mão curada e lhe beijou a palma.

            - Encontraremo-la.

            Simone se voltou para a cozinha, levantando os ovos antes de que se queimassem, e lutou por dominar suas emoções.

            - Por que está tão disposto a aceitar, e mais que aceitar, a me ajudar? A estar aqui esta manhã, falando disto, que deveria ser horroroso e repulsivo para ti, enquanto eu preparo toucinho e ovos?

            - Muitas razões. Uma? O toucinho e os ovos são porque tenho fome. Outra é que é duro não aceitar o que vê com seus próprios olhos. Além disso, o cientista em mim está bastante fascinado... E lhe adicione um pouco de ironia. Quero dizer, wow, o veterinário e a mulher-lobo. Sinto muito, lycan. O veterinário e a lycan. É como se fosse o destino.

            - Se tivesse podido sair dessa jaula ontem à noite, tivesse-te feito pedaços. Entende-o?

            - Sim. - Gabe pensava que entendia, bastante. - Tentou sair durante um momento. Jogou-te contra as barras. Sem seus assombrosos súper poderes de cura, estaria arroxeada esta manhã. E estaria mentindo se não admitisse que me assustei como a merda, mesmo que te conformou em caminhar pela jaula, grunhir e uivar. Sabe também como me senti? - Ela negou com a cabeça e manteve os olhos apartados enquanto servia o café da manhã. - Estupefato, cheio de humildade, comovido além de as palavras porque confiasse tanto em mim. Inclusive honrado, Simone, que compartilhasse comigo algo que ocultaste a todos outros durante mais de um terço de sua vida. Teve tanta fé em mim. Então chegamos a enorme razão global pela que estou aqui parado esta manhã, falando contigo sobre isto e esperando que comamos esses ovos em um segundo. Isso seria porque te amo.

 

            Pela primeira vez em dias, Simone dormiu em calma. Possivelmente era a esperança, ou o amor, ou ter ao Gabe dormitando a seu lado durante uma larga sesta de domingo pela manhã, mas os sonhos de mudanças não a seguiram.

            Antes de que ele abrisse esta porta dentro dele, tivesse considerado que dormir durante o ciclo era uma perda de tempo precioso. Agora era uma renovação de energias e forças, e despertou vibrando com ambas.

            Surpreendeu-se ao descobrir que ele não estava, e como uma idiota perdidamente apaixonada correu para a janela e suspirou com alivio ao ver que sua caminhonete seguia na entrada.

            - Bom, Amico, me olhe. - aplaudiu-se o peito para que o cão pudesse saltar sobre ele felizmente e lhe plantar as patas em seus ombros enquanto lhe arranhava a cabeça com as mãos. - Uma lycan apaixonada. Rompi uma enorme promessa comigo mesma, certo? Nunca me envolver emocionalmente, nunca me apegar emocionalmente. Com nada nem com ninguém. Mas também a rompi contigo, e isso funcionou, verdade? Deus, não permita que arruíne sua vida.

            Simone dançou com o cão, um dos jogos favoritos dele, e logo se deixou cair para lutar com ele antes de baixar para deixá-lo sair a correr.

            O outono era cortante no ar, e seu frio havia tornado as árvores douradas e vermelhos, alaranjado cabaça e amarelo queimado. O outono significava que o sol se punha mais cedo, e as noites se estiravam mais e mais longas. Logo suas horas como lobo rivalizariam com suas horas como mulher.

            Teria menos e menos tempo para trabalhar, para ser, e mais tempo apanhada dentro da besta.

            Desejava o verão, o interminável verão com seus dias longos e brilhantes, e suas noites curtas. Como temia a chegada do inverno, com suas luas sombrias e brancas.

            Fechou a porta e o deixou fora. E seguiu o aroma do Gabe até seu laboratório.

            - Hey. - Lhe dedicou um prolongado olhar, do tipo que parecia passear casualmente sobre seu rosto mas que media cada centímetro. - Tinha esperado que dormisse mais.

            - Não durmo muito durante o ciclo. Geralmente tenho sonhos. São perturbadores. - Gabe estava rodeado de livros, cópias de arquivos em papel, e a tela da computador estava enche com uma análise de uma de suas amostras de sangue. - O que está fazendo?

            - Nos fortalecendo. Tenho que me colocar nisto para me atualizar aqui. Alguma vez considerou te colocar na medicina? Seus informes são excelentes.

            - Fiz algum trabalho de laboratório aqui e lá, mas era para mim. Estou mais feliz fazendo sabões de ervas e natas para a pele. Eu gosto dos aromas e as texturas. Os laboratórios são frios e estéreis. Se eu... Quando eu - corrigiu-se, - encontrar uma cura, não quero voltar a olhar através de um microscópio.

            - Suponho que isso anula qualquer idéia de que trabalhe comigo. - tornou-se para trás na cadeira, e embora seu tom tivesse sido ligeiro, ela viu algo mais escuro em seu rosto. - Preciso falar contigo sobre alguns de seus experimentos, e o fato de que tem, com alguma regularidade, ingerido substâncias venenosas.

            - Sou cuidadosa com as quantidades e as combinações. Os pacientes com câncer são rotineiramente bombardeados com venenos.

            - Simone...

            - Tenho que matar o que está dentro de mim. Não posso fazê-lo com aspirinas, pelo amor de deus.

            - E por suas notas - continuou ele no mesmo tom duro, - estou consciente de que consideraste a possibilidade de que se matas o que estiver dentro de ti, o acompanhará nisso.

            - Não quero morrer. Não tenho desejos de morrer. Superei isso. Em meu vigésimo aniversário me preparei um banho quente. Bebi três taças de vinho branco barato. Tirei as lâminas de barbear. Tinha ao Sarah McLachlan no estéreo. Estava preparada para fazê-lo, para terminá-lo.

            - Por que não o fez?

            - Porque me dei conta de que é uma merda. O que me aconteceu não é justo, não está bem, nem sequer é natural. Mas, e isso o que? Não vou ficar me atirada e morrer por sua culpa. Mas se morro lutando contra isto, está bem.

            - Estou completamente louco por ti - expôs Gabe com calma. - Terminalmente apaixonado. E sendo do tipo egoísta, não deixarei que lhe morra e me deixe feito pedaços o coração e a mente pela perda do amor de minha vida. Assim eliminemos os venenos e as drogas que não foram estudadas no momento, e nos concentremos em soluções menos radicais. Vejo que provaste com um curso de raiva em 1999.

            - Obviamente, falhou.

            - Sim, mas há uma diminuição de comportamento maníaco, de violência, nas gravações que seguiram ao curso. Você mesma o notou.

            Ela inclinou a cabeça e arqueou as sobrancelhas.

            - Mas é gracioso, não estou satisfeita sendo uma espécie de lycan mais amistosa. E se estudou as gravações e as notas, verá que embora estava menos nervosa, não me teria sentado amavelmente e te teria devotado a pata se me dava um lindo presente. Teria te arrancado a mão de uma dentada e a teria comido com Milk-Bones.

            - Segue sendo algo com o que continuar. E embora haja estado te ocupando, estudando e vivendo com isto, não passaste anos estudando medicina veterinária, nem praticando-a.

            Farei algumas tarefas com o Centro de Veterinária Biológica. Verei se posso obter um ângulo ali. E quero uma amostra de sangue depois da mudança.

            - E como te propõe fazer isso? Se colocar um pé dentro da jaula, serei eu quem extrai sangue. Teu.

            - Não se está sedada. Tenho uma arma tranqüilizante no automóvel.

            - Vais disparar me?

            - Sim. - Gabe se reclinou o suficiente para subir um pé à mesa. A postura despreocupada, o cabelo alvoroçado ao redor de seu rosto, faziam-no ver como um homem discutindo onde poderiam jantar mais tarde. - Estou esperando que esteja de acordo com isso. Mas se não, farei-o de qualquer modo. Não será capaz de objetar uma vez que esteja encerrada.

            - Amico estaria...

            - Sedado, também, se fôr necessário. - E ali estava esse aço novamente, notou Simone. - Pode lhe dar a ordem de que me obedeça, ou lhe darei uma linda sesta enquanto faço o trabalho. Necessitamos tua amostra, Simone, em forma lycan. Para comparações, para estudos. Nunca tomaste uma. Tal como nunca foste capaz de provar nenhuma das drogas ou soros com o lycan.

            - Bom, dificilmente poderia...

            - Não, não poderia. - Ele assentiu e sua expressão era determinada. - Mas eu posso. É momento de que deixe que o doutor Gabe o tente.

            Simone estava aterrada. Não por si mesmo; fazia tempo que se tornou imune a temer por si mesmo. Mas sim por ele. O que se o tranqüilizador só parecia funcionar, ou se passava o efeito enquanto ele estava na jaula com ela?

            Tinham-no discutido, com cada objeção que teve. Mas o sol se estava pondo, ela estava na jaula, e ele estava enchendo serenamente o tranqüilizador.

            - Usa uma dose dupla - disse-lhe.

            - Quem é o doutor aqui, jovenzinha? Alguma vez sedaste um lobo?

            - E você? - respondeu-lhe ela.

            - Não, mas tive minha parte com cães. Cavalos. Gatos. Vacas. Porcos. Todo tipo de répteis, incluindo uma pitón. Por que, no nome de tudo o que é sagrado e correto, quereria alguém uma pitón como mascote?

            - Um lycan não é um mascote, ou um maldito animal de granja. Aumenta a dose, Gabe. Por favor.

            Ele a olhou e seu rosto ficou tenso de preocupação.

            - Está começando - disse-lhe, brandamente.

            Pensava que ela necessitava que o dissessem? Pensava que ela não o podia sentir? Estava ardendo dentro dele, brilhante como uma febre, abrasando seus ossos e sangue. Olharia-a com lástima agora? Em minutos ela seria o suficientemente forte para fazê-lo pedaços, para lhe rasgar a garganta e beber seu sangue. E ele se atrevia a sentir pena por ela?

            Te aproxime. Sim, mais perto. Ela tomaria, não para matá-lo, a não ser para a mudança. Isso era o que queria, mais que nada, profundo nas vísceras do que vivia em ela. Profundo, no que ela era, queria-o a ele. Igual a ela.

            Para emparelhar-se como loucos.

            - Não! Oh, deus, não!

            Com as mãos fechadas sobre as barras, Simone retrocedeu, retorcida de dor e um terrível desejo. Ouviu-se si mesmo gritando, até que as palavras se converteram em grunhidos.

            Gabe tinha que esperar, esperar até que a mudança fora completa. E se obrigou a olhá-lo, com o coração palpitando e as mãos tremendo. Ouviu-a lhe rogando que não se aproximasse dela, que não destravasse a jaula, até que suas palavras se voltaram densas e incompreensíveis. Até que já não eram palavras.

            E Simone era isso. A coisa que passeava pela jaula, com as garras ressonando no concreto, as presas reluzindo sob as duras luzes. Essa vez não se arrojou contra as barras, mas sim o observou, com calculadora paciência nesses olhos dementes.

            Ele se aproximou, tanto como se atrevia, com o Amico a seu lado, grunhindo baixo.

            - Sinto muito, bebê - murmurou Gabe e disparou o dardo.

            Golpeou ao lycan debaixo, do flanco direito. Então se voltou louco, saltando, girando enquanto tentava alcançar a fonte da espetada. Enquanto seus movimentos voltavam-se lentos, Gabe foi procurar uma seringa esterilizada para tomar sangue, e outra cheia do soro que tinha ajudado a Simone a preparar essa tarde. Juntou outros frascos, um bisturi, um estetoscópio e anotou a hora.

            No chão da jaula, o lycan jazia inconsciente. Só outro paciente, disse-se Gabe a si mesmo enquanto se aproximava da porta. Usando as combinações que Simone lhe tinha dado, abriu cada fechadura. O suor se estava reunindo na base de sua coluna enquanto abria a porta lentamente.

            Tomou o pulso. Sua pelagem era suave, sedoso, como o cabelo da Simone. Ouviu seu ritmo cardíaco. Forte e constante. Gravou-o tudo na fita. A seguir tomou o sangue, beliscando automaticamente uma dobra de pele antes de deslizar dentro a agulha. Observou seu rosto - feroz e extranhamente formoso - e quando não viu nenhuma reação, respirou com mais facilidade.

            Dinamicamente então, tomou amostras de pele, de cabelo. Mediu seu comprimento, e desejou fugazmente ter pensado em uma balança para obter seu peso. Mas não estava seguro de ter podido levantar o peso morto de uma fêmea lycan totalmente desenvolvida sobre a balança em qualquer caso.

            Injetou-lhe o soro, e porque a amava, passou sua mão, uma vez, por toda a extensão de seu corpo.

            - Possivelmente dormirá o resto do tempo. Dará-te um pouco de paz.

            Levantando-se, caminhou para trás e fechou a jaula. Travou-a. Levou suas amostras à mesa de trabalho e preparou o porta-objetos.

            Durante uma hora as estudou, fez notas e contemplou teorias.

            Quando voltou a olhar para a jaula, não se tinha movido. Deveria estar voltando em si agora, pensou. Não podia ter estado tão errado na dose, em seu cálculo do peso. Pensou no soro e teve um momento de pânico de que Simone tivesse agregado algo à fórmula enquanto ele se encontrava acima.

            Estava na porta da jaula outra vez, com as mãos na primeira fechadura, quando checou por si mesmo. Estava respirando, podia ver isso. Esperaria outros trinta minutos e logo, se tinha que entrar, levaria a pistola tranqüilizadora com ele.

            Voltou a dar-se volta, vacilou.

            Foi o ressonante latido do Amico o que o fez girar.

            Moveu-se como um raio. De estar estendido de barriga para baixo a estar em cuclillas, a um salto, tudo em um impreciso movimento de velocidade e poder. Gabe viu seus olhos, brilhantes, alerta. Amarelo bordeado de vermelho. Cambaleou-se para trás. As garras que se lançavam através das barras rastelaram seus bíceps antes de que ele caísse e rodasse fora de seu alcance.

            Latidos, rugidos, grunhidos, ricocheteavam nas paredes enquanto ele jazia ofegando, com a mão fechada em sua ferida. Na jaula, o lycan se levantou sobre suas pernas traseiras, estirou-se sobre as barras e uivou com fúria.

 

            - Como pôde ser tão descuidado?

            Como estava chorando, Gabe se sentou enquanto Simone lhe tirava a atadura e examinava a ferida que ele já tinha medicado. Ela tinha cheirado seu sangue, e o anti-séptico, antes de ter saído da jaula ao amanhecer.

            - Não fui descuidado. - Quase, pensou ele enquanto recordava que quase tinha aberto a jaula. - E está longe de ser o primeiro arranhão que tive na linha do dever.

            Deveria ter visto o pedaço que me tirou um caniche em meu primeiro ano de práticas.

            - Não é uma brincadeira.

            - Quem está brincando? - Gabe se levantou a outra manga e assinalou uma marca justo debaixo de seu cotovelo. - Olhe essa cicatriz. O pequeno filho de puta tinha dentes como um tubarão.

            - Deu-me as costas.

            - A isso. - Gabe tinha decidido que era melhor deixar em claro essa distinção. - Sim, fiz-o. Foi meu engano. Mas entre o Amico, e meus próprios reflexos felinos, o único que obtive foram um par de arranhões.

            - Rasgos.

            - Semântica. De qualquer modo, nenhum dano permanente, certo?

            Era uma pergunta, uma com a que Simone estava segura de que ele tinha lutado por horas. Sozinho.

            - Não. Precisa uma mordida. Dente na carne, saliva e sangue. Isto doerá. - Examinou a ferida, quatro largos talhos, e decidiu que não poderia curá-lo melhor pelo que ele tinha feito. Que parva de ter pensado o contrário. - Provavelmente ficará cicatriz.

            - Adiciona-a a minha coleção.

            - Poderia ter sido muito, muito pior.

            - Estou consciente.

            - Não, não o está. E isso é minha culpa. - Simone se apartou, indo à porta da cozinha para abri-la de repente. As brumas de outono faziam que as árvores se vissem como se estivessem flutuando em um rio baixo. O inverno, pensou, reptando mais perto . - Não te teria matado. Soube do instante em que te vi, soube que... E lhe deveria haver isso dito. O que há em mim é primitivo. E o sangue, caçar e alimentar-se, não é a única necessidade primária. Não te teria matado - repetiu, e se voltou para ele. - Teria te mudado. Teria te obrigado a que eu você gostasse. Desejava isso.

            Gabe ficou de pé e foi para a cozinha a procurar mais café. Simone podia ver que o tinha sacudido, que lhe tinha dado algo a considerar que não tinha cruzado por sua mente.

            - Crê que me dizer isso fará que saia pela porta?

            - Não. Sente algo por mim e agora está envolto nisto. Mas não pode confiar em mim.

            - Tem razão em um e dois, está equivocada em três. - Deixou a taça com um estalo impaciente. - Não posso imaginar o que passaste, o que suporta cada hora de cada dia. Está além do imaginável. Observei-te, vi as gravações, e te estou olhando agora mesmo, me perguntando se teria a metade de guelra que você. Primitivo, disse. É primitivo, e seus instintos são sobreviver, alimentar-se, aparearse. Não o pode culpar por isso, e tampouco a ti.

            - Lhe deveria haver isso dito.

            - Acaba de fazê-lo. As coisas vão rápido entre nós - disse antes de que ela pudesse falar. - Mas o fato é que não estivemos muito tempo nesta situação. Esta situação muito intensa e estranha. Não te contei que em uma ocasião me deitei com uma mulher uma só vez por nenhuma razão mais que porque ela estava ali. Em realidade, não qualificou como uma noite, só um par de horas de sério sexo. Ela não me importava, esqueci seu nome à manhã seguinte. Foi primitivo. Vai a recriminar-me.

            - Os homens são porcos. Todos sabem isso. - Simone foi para ele. - Nunca antes amei a ninguém. Não sei o que fazer com isso.

            - Descobriremo-lo no caminho. - Gabe se agachou para lhe roçar os lábios, logo se afundou neles e se aferrou quando os braços dela o rodearam com força. - O deduziremos tudo. Temos quatro semanas antes da próxima lua cheia. Vejamos aonde nos leva.

            A esperança doía, mas como podia Simone dizer-lhe.

            - Tenho que retornar a minha casa, limpar, me pôr a trabalhar. - Gabe a beijou outra vez antes de afastar-se brandamente. - Mas voltarei, logo que termine de atender. Trarei pizza.

            - A pizza é boa.

            - E começaremos a descobrir seriamente.

 

            Simone não tinha sabido como seria ter alguém em sua vida. Alguém com quem compartilhar as pequenas coisas, as coisas enormes. Ter alguém que a fizesse rir ou pensar, que ignorasse seu mau humor ou lhe devolvesse maus humores próprios, era uma espécie de milagre.

            Uma vez lhe havia dito que não tinha sido feliz desde que parou nas montanhas da Itália e tinha visto o sol ficar. Ele só tinha sorrido desse modo lento e satisfeito dele, e lhe havia dito que retornariam a esse lugar exato algum dia.

            Gabe levou um cachorrinho, um revoltoso maço de cabelos e energia ao que chamou Butch. Ao princípio Amico estava muito solene e territorial para reconhecer a presença de outro cão, muito menos um buliçoso cachorrinho. Mas em uma semana, esteve pulando e brincando com ele como se Butch fosse seu mascote pessoal.

            Normal, pensou Simone, tudo tão normal, com o jantar preparando-se e os cães no pátio. Noites fazendo o amor preguiçosa ou desesperadamente. Conversações diante de velas, com música no estéreo. Velas que ela mesma tinha feito, titilando enquanto eles dançavam, e um fogo baixo na lareira enquanto o vento de outubro gemia nas janelas como uma mulher solitária.

            Normal, se a gente esquecia as horas que passavam trabalhando no laboratório, em um porão com uma jaula e o aroma de um animal selvagem no ar, que ninguém podia disfarçar.

            Se ignorava os sonhos que começavam a rondá-la enquanto a lua crescente ia enchendo.

            Simone viu um corvo uma manhã, negro e lustroso, bicando as sementes em sua manjedoura. O céu era dolorosamente azul sobre sua cabeça, e embora as árvores fazia tempo que tinham passado seu melhor momento, algumas folhas seguiam pendurando obstinadamente, assim flamejavam ao sol. Era formoso, o tipo de cena que merecia ser capturada em lente ou tecido. Os atrevidos cores daquelas últimas folhas agonizavam contra o azul puro e duro do céu.

            Mas ela viu o corvo, com as brilhantes asas negras, e quando sentiu que o que estava nela se agitava, tão ansiosa como o ave, soube que as semanas passadas de trabalho não tinham feito diferença.

            - Muda com a lua - disse Gabe enquanto preparavam outra amostra em um porta-objetos. - O que tem um pouco de lógica. Química corporal, marés, o ciclo lunar. Mas isso não explica porquê tem estas sensações, os sentidos realçados e todo isso fora do ciclo de três dias.

            - Está sempre ali. É parte de mim, no sangue.

            - No sangue - concordou ele. - Uma infecção, e uma que, até agora, resiste as interações célula-célula que produzem anticorpos. Percorremos, ou você o havia feito antes de que eu chegasse, um comprido caminho para identificar essa infecção. Uma forma mutante de raiva.

            - Esse é um termo muito simples.

            Gabe podia ouvir a fadiga, o desânimo em sua voz.

            - Às vezes o simples é o melhor. Esta infecção alterou a química de seu sangue, seu DNA. E quando muda, essa química, esse DNA é alterado novamente... Ligeira, sutilmente, mas quando pomos as amostras lado a lado, estudando o incrivelmente genial micrográfico de elétrons, a mudança é aparente.

            - Não é transcendental. O DNA é mais distintivamente canino quando estou em forma lycan.

            - Pensa, Simone, não reaja. Pensa. - Ele pegou uma taça, para seu café, e bebeu o chá de ervas dela. - Ahh - foi sua opinião antes de deixá-lo, e pegar a outra taça. - Qualquer mudança no DNA é transcendental. Deveria ser condenadamente impossível. Mas o teu muda cada mês. E olhe isto. - Bebendo seu café, Gabe foi para o computador para lhe mostrar uma análise. - Olhe o que acontece quando medicamos o sangue com o antídoto. As células mudam outra vez. Não só estão rechaçando o antibiótico, estão mudando, só o suficiente para deixá-lo inútil. O que temos que fazer é as enganar.

            - Como?

            Ele se estirou para lhe acariciar o cabelo.

            - Trabalhando nisso.

            Mas Simone o seguia.

            - Se as células pensassem que estão sendo atacadas por uma coisa, e reagissem, ou tentassem reagir, então poderia administrar um antídoto secundário. Algo assim como as apanhar na linha de fogo.

            - Essa é a idéia. Precisamos encontrar dois, não um.

            - É uma boa idéia. - A Simone gostava do modo em que a mão dele passava casualmente por seu traseiro quando ela ficava de pé. - tentei algo similar antes, mesclar um sedativo suave com os antibióticos. Valeriana e escutelaria, acónito...

            - Nada de acónito - interrompeu-a. - Nada de venenos.

            Franzindo o cenho, ela tragou o chá.

            - Sei o que estou fazendo com as ervas.

            - Não há dúvidas sobre isso. - Para mantê-la desequilibrada, ele a puxou pela sua saia. - Deus, cheira bem. Sempre o faz, e tem essa pele... Te relaxe um minuto. Que ervas tomas para te relaxar?

            Ela lutou por não suspirar.

            - A camomila é boa. Lavanda.

            - E o que para um afrodisíaco?

            - Fenogreco.

            Ele riu tão forte que quase a deixou cair ao chão.

            - Está-o inventando.

            - O que crie que estive pondo em seu café todas as manhãs?

            Com outra risada, ele apertou seus braços ao redor dela.

            - Bom, segue fazendo-o. Desse modo nunca seremos um velho casal aborrecido de casados.

            Ela se afastou de um salto como se ele a tivesse cravado com um atiçador.

            - Casados? Do que está falando?

            Gabe ficou onde estava, com o mesmo sorriso fácil em seu rosto.

            - Ainda não lhe pedi isso? Onde está minha lista de tarefas pendentes?

            Aplaudiu-se os bolsos.

            - Não posso me casar, Gabe. Não é possível para mim.

            - Claro que o é. Voamos a Las Vegas, encontramos uma capela de mau gosto (é uma fantasia pessoal minha) e o fazemos enquanto um imitador do Elvis canta "Love me Tender" desafinado.

            - Não.

            - Muito bem, anula ao imitador do Elvis, mas insisto na capela de mau gosto. Um menino não pode renunciar a todos seus sonhos.

            - Não posso me casar contigo, com ninguém. Nem sequer posso considerá-lo enquanto seja assim.

            - Tenta com um pouquinho de otimismo, Simone. Encontraremos a cura. Embora leve um mês, um ano, dez anos. Enquanto estamos procurando, quero uma vida contigo.

            Quero viver aqui contigo, e dizer coisas como: "Oh, sim, minha esposa tem uma loja genial a um par de quadras daqui".

            O coração da Simone se estremeceu em seu peito.

            - Poderia levar dez anos. Poderia levar vinte.

            - E se o faz, teremos nossas vidas, viveremo-las e durante três noites por mês, adaptaremo-las.

            - Não posso ter filhos. Bom, não sei se não posso - disse antes que ele pudesse responder. - Mas não poderia arriscá-lo, não poderia arriscar acontecer o que está em mim a um menino. Sangue a sangue.

            Gabe se recostou e ela pôde ver que ele não o tinha pensado, ainda não.

            - Muito bem, tem razão. Está a adoção.

            - Oh, pensa, Gabriel! Como explica a um menino que mamãe tem que encerrar-se em uma jaula agora, para não matar a ninguém. Como poderia arriscar a possibilidade de que algo saísse mau, algum engano, e machucaria a um menino inocente?

            - Acredito que haveria modos de dirigir tudo isso, mas entendo o que está dizendo. Há muitos casais felizes, Simone, que não podem ter filhos ou escolhem não os ter.

            - Gabe. - Sua voz, seu coração, seus olhos se suavizaram enquanto ia para ele e lhe tocava a bochecha. - Tem meninos e cercas brancas escritas por todos lados. Não posso te dar isso, e não te porei em uma posição em que seja incapaz dos ter.

            - Há algo que não está tomando em conta, e está começando a me irritar. - Gabe ficou de pé, tomou os braços por debaixo dos cotovelos e a pôs bruscamente em ponta de pés. - Amo-te. O amor significa que agüenta quando as coisas são difíceis, quando são estranhas, quando são tristes, quando são dolorosas. Estou contigo; te acostume. Assusta-te o matrimônio, bem.

            - Não estou assustada, é que...

            - Convencerei-te com o tempo. - A puxou para diante para que seus corpos chocassem, para que sua boca se fechasse sobre a dela e afogasse sua maldição. - Posso esperar.# -Está vivendo em um mundo de fantasia.

            - Deito-me com uma mulher-lobo, que esperas?

            Simone não sorriria. Não riria.

            - Tenta isto. Como apresentaria a sua família? A sua mãe?

            - Diria-lhe: "Mamãe, esta é Simone, a mulher que amo. Não é formosa? Inteligente, também, e empreendedora. Uma condenada boa cozinheira. Passaria por cima a parte em que é, ha ha, um animal na cama, porque as mães não precisam saber tudo. Que mais? Oh, sim. Fala italiano e tem um cão genial. Três noites por mês, não é adequada para viver, mas além disso, é perfeita.

            - Eu poderei ser a lycan - disse ela depois de um momento, - mas você é o lunático.

            - Somos todos vítimas da luz da lua. - O alarme do computador soou. - Hora de sua próxima dose.

            Gabe foi procurar um vial e uma seringa nova. Sem dizer nada, Simone enrolou sua manga. Não havia marca da injeção da manhã. A diminuta picada se havia fechado menos de um minuto depois da aplicação.

            Lhe pôs fitas no braço e tamborilou a veia.

            - Não, não olhe a agulha, me olhe a mim. Disse-te que dói menos.

            - Não dói quando o faz.

            Lhe sorriu enquanto deslizava a agulha sob a pele.

            - Só tome um minuto. Adoro seus olhos, hei-te dito isso? O modo em que o dourado salpica sobre o verde, como pequenos pontos de luz do sol. Quando fazemos o amor, quando estou dentro de ti, o verde se torna mais profundo, o dourado mais brilhante. Vou passar minha vida fazendo mudar seus olhos, Simone.

            - Às vezes acredito que te estou imaginando, te criando dentro de minha cabeça para não ficar louca.

            - Sou muito bom para ser real. - Gabe se desfez da agulha e deslizou sua mão pelo braço dela para tomar o pulso. - Como se sente?

            - Bem. Igual.

            - Nada de enjôos, náuseas.

            - Não, nada.

            Ele se inclinou sobre a mesa para fazer notas.

            - Nenhum impulso de te perseguir a cauda, montar minha perna?

            - Ha ha.

            - Daremo-lhe outros trinta minutos, logo checaremos seus vitais e tomaremos outra amostra. - Gabe retornou para ela, baixou-lhe a manga, abotoou-lhe o punho, e logo depositou um beijo em seu pulso. - vamos passear a nossos cães.

 

            O lobo chegou com a lua de outubro. A lua do caçador. Retornou outra vez, uivando com a lua Castora de novembro, passeando por sua jaula, desejando sangue embora durante as três noites as nuvens cobriram a luz e deixaram o céu negro como a morte.

            Dezembro chegou, trazendo neve, e suas longas e frias noites.

            Eles adaptaram o soro, e em dez minutos, Simone estava estremecendo-se com calafrios e febre.

            - Foi demente deixar que me pressionasse a subir a dose antes de que a provássemos.

            - Teria me injetado sozinha quando não estivesse aqui.

            - Sei. Está ardendo. - Gabe colocou a manta ao redor dela mais firmemente enquanto Simone jazia no cama de armar que ele havia trazido para poder dormir durante o ciclo. - Tem mais de 41 graus. Necessita um hospital.

            - Não posso. Sabe que não posso. Uma análise e tudo termina para mim. Sabe o que me farão. - Sua mão impaciente aferrou a dele, e sentiu como varas ardentes. - Serei um espanto. Passará, Gabe. Passará.

            - É muito alta. Levarei-te acima, à banheira. Para te esfriar.

            - Sonho. - A cabeça da Simone pendurava sobre o ombro dele até enquanto seu corpo se estremecia. - Posso te cheirar quando sonho. Te cheirar no sonho.

            - Está bem - tranqüilizou-a ele enquanto a carregava pelo primeiro lance de escadas.

            - Sonhos? São sonhos? Não pode correr o bastante rápido. Adoro quando corre, e cheiro o medo. É delicioso.

            - Shh.

            Ele a abraçou mais forte, com os dois cães seguindo-os detrás, queixando enquanto ele a carregava pela casa, por volta do segundo piso.

            - Espreitando, caçando. Posso saborear seu sangue antes de morder. Enche-me a garganta. Quero me afogar nela.

            Gabe a depositou na cama e correu ao banho para encher a banheira com água fria. Simone estava retorcendo-se na cama quando retornou, como uma mulher excitada por um amante.

            - Como eu. Finalmente como eu.

            Gabe a despiu e ela começou a convulsionar. Ele teve que conter cada instinto para não abraçá-la, esperar - e rezar - enquanto o ataque seguia seu curso.

            Notou que os cães sabiam. O jovem Butch tremia enquanto grunhia e retrocedia; Amico grunhia gravemente enquanto se enfurecia. Eles sabiam o que ele podia ver.

            Os olhos da Simone estavam mau. Não eram só bolinhas douradas agora. O dourado se estava estendendo, absorvendo ao verde. Gabe a levantou, encerrando-a contra seu corpo enquanto ela se sacudia. Ele podia ouvir a mudança, a transformação dos ossos.

            Rogos pelos dois correram por sua mente enquanto a depositava na água fria.

            - Simone, me escute. Simone. Pode lutar contra isto. Não é o momento. É a febre. Tem que contê-lo, afastá-lo, até que baixemos a febre.

            - Não posso. Quero. Ele quer. Sai daqui. Corre.

            - Me olhe, me olhe. - Havia garras sob a água, estalando contra a porcelana. - te defenda. É forte, segue sendo mais forte.

            - A faca. A faca de prata. No penteadeira, mostrei-lhe isso. - A mão dela, terminada em afiadas garras negras, fecharam-se sobre o braço dele. Tiraram-lhe sangue. - Busca-a. Usa-a.

            - Nem agora, nem nunca. - O sangue do Gabe gotejou dentro da água, tingindo-a. - Amo-te. Luta.

            A cabeça da Simone se tornou para trás; seu rosto estreitando-se e alargando-se era uma máscara de dor e luta. Então ficou frouxa e deslizaria para baixo da água se ele não a houvesse sustentado.

            - Não. Não voltaremos a usar essa fórmula.

            - Me escute. - Simone se sentia enjoada, débil, mas como ela mesma enquanto Gabe a ajudava a colocar uma bata. - Nunca estive doente, nem um só dia do ataque. Olhe. - Levantou a manga solta da bata e lhe mostrou a débil marca onde a agulha tinha mordido sua pele. - Está sanando, mas não rapidamente, não tão rápido. Isso significa algo.

            - Sim, significa que poderia te haver matado. E significa que essa fórmula, essa dose, produziu uma febre perigosamente alta que a sua vez provocou um ataque, que a seu vez tirou o lobo... Ou quase. Uma semana inteira antes do ciclo.

            - Era mais débil. Disse que eu era mais forte. Ouvi-te, e tinha razão. Lutava por sair, por ti, para tomar, Gabe. Mas não o fez. Não pôde. Eu fui mais forte.

            - Sim, e te vê como se pudesse passar dois assaltos com um bebê que engatinha e perder.

            - Não estou dizendo que não o sinto. De fato, realmente quero me recostar. - Para simplificá-lo, ele a levantou em seus braços e a carregou pela habitação até a cama. - Estava acostumado a pensar que os homens carregarem as mulheres era sexista. É divertido como trocam as percepções.

            - Nunca estive tão assustado. - Gabe apoiou sua frente sobre a dela. - Inclusive a primeira vez que vi... Compreende, Simone? Nunca estive tão assustado. Pensei que ia perder-te.

            - Ajudou-me a ganhar. Nunca antes ganhei. É embriagador. Queria sair e eu o detive. Se posso ganhar uma vez, posso voltar a fazê-lo. Podemos ganhar. - Ela voltou sua bochecha para a dele. - Nunca acreditei realmente. Pretendia fazê-lo, ordenava-me fazê-lo, mas por dentro, nunca acreditei que pudesse ganhar. Temos que fazer provas. Agora mesmo.

            - Você fica na cama. Segue tendo uma febre baixa, e sua cor não é boa. Trarei o que necessito e pode descansar aqui enquanto faço as provas.

            - Posso descansar abaixo. - Ela enredou o cabelo dele em seu dedo e lhe sorriu. - Se me levar.

 

            - Ele também estava doente. Por isso é que lutava por sair, por isso não pôde obtê-lo.

            Simone se tinha recuperado rapidamente, já estava levantada, caminhando pelo laboratório, estudando amostras e análise no computador com sua bata agitando-se ao redor de suas pernas.

            - Não será, mas bem, que estava doente, e que a febre (outra espécie de infecção) permitiu-lhe manifestar-se sem o ciclo lunar?

            - É todo o mesmo... Esse é o verdadeiro ponto. A febre, e deveríamos ter obtido uma amostra de sangue enquanto estava cravando, provocou a mudança, mas o debilitou, deu-me a possibilidade de combatê-lo. Estava doente, estava assustado. Pode morrer. Não sei porquê nunca antes pensei nisto. - Seus olhos estavam brilhantes outra vez, quase febris, quando girou para ele. - Esta poderia ser a resposta.

            - Precisa baixar a velocidade.

            - Não, temos que acelerar. Ainda há tempo antes de que a lua cheia volte a tirá-lo, em um estado debilitado. Para usar esse momento, Gabe, quando estou entre forma humana e lycan.

            - O qual significa te injetar com uma droga que eleva sua temperatura corporal a níveis perigosos e potencialmente fatais. O qual provoca uma febre que poderia resultar em dano cerebral, paralisia, apoplexia, inclusive a morte.

            - Não há risco de dano cerebral até depois de que a febre passe os 42 graus.

            - Estava em 41 e subindo - respondeu-lhe ele bruscamente. - Pelo amor de deus, teve um ataque.

            - Retornei. Eu retornei. E com circunstâncias mais controladas, poderíamos diminuir os danos. Gabe, estão fazendo provas agora, e tendo muito êxito ao tratar células cancerígenas com óxido de ferro, esquentando as células e lhes dando febre. Hipertermia com fluídos magnéticos. Li sobre isso.

            - Não tem câncer, Simone.

            - Mas utilizando essa teoria, poderíamos atacar as células lycan. O que são a não ser uma forma de câncer? E tem um metabolismo mais acelerado que o meu. Você mesmo chegou a isso.

            O que ele não tinha concluído até agora era que a cura poderia matá-la.

            - Não é seguro, Simone, nem sequer próximo a seguro. E este tipo de risco não vale sua vida. Podemos trabalhar com isso, sim, começar a investigar e fazer provas com esta teoria. Mas não vou colocar te algo em seu sistema que poderia te matar. É progresso - disse mais brandamente e se estirou para ela. - Um grande passo. Trabalharemos no problema.

            Simone sabia que ele tinha razão. Lógica, científica, racionalmente. Podiam e deviam fazer mais provas, realizar estudos adicionais, continuar fazendo análise no computador.

            Podiam seguir acontecendo quase cada noite no laboratório, concentrados em sua afecção, nadando em equações, fórmulas e teorias. E temendo à lua cheia.

            Ela estava farta disso. Farta de si mesmo.

            Jazia ao lado do Gabe, incapaz de dormir.

            Tinha sido mais singelo quando estava sozinha, quando era capaz de cortar com qualquer outra coisa e concentrar-se só em si mesmo, em sua missão. Seu Santo Graal.

            Tinha

            Sido mais simples quando só tinha tido um cão devoto e bem treinado para captar seus afetos. Então não tinha a ninguém mais a quem consultar, por quem preocupar-se, a quem tomar em conta.

            Ninguém a quem amar.

            Não tinha perdido tempo valioso em preguiçosas manhãs de domingo, ou tolas conversações, ou em sonhar acordada planos impossíveis para um futuro impossível.

            Deveria romper a relação, apartá-lo, convencer o de que não o amava ou o desejava. Poderia fazê-lo, calorosa ou fríamente. Começar uma briga, ser maliciosa e cruel.

            Ou simplesmente congelá-lo com desinteresse. Estaria melhor, e também ele.

            E isso era ridículo.

            Suspirando, ficou de flanco para estudar ao Gabe enquanto dormia. Não era tão estúpida, e estava longe de ser tão egoísta. Não tinha intenções de renunciar a ele, de insultar o amor que compartilhavam negando-o, ou condenar-se a si mesmo a uma existência vazia, desarraigada, unidimensional.

            Tinha a seu amante em sua cama, seu guerreiro ferido que até agora levava a insígnia de feridas que ela - isso - tinha-lhe dado. Dormia sobre o lado esquerdo, sempre, e às vezes de noite as arrumava para manobrar-se de tal modo que seu corpo ficasse quase diagonal sobre o colchão, com a perna direita enganchada sobre as dela, justo em cima dos joelhos.

            Como poderia renunciar a isso?

            Seus cães dormiam aconchegados juntos aos pés da cama. O telefone celular do Gabe estava enganchado em seu carregador sobre o penteadeira. Seu creme de barbear encontrava ao lado do enxágüe bocal dela no gabinete de remédios, e suas roupas estavam mescladas com as da Simone no cesto.

            Não, nunca renunciaria a isso. Não jogaria ao lixo o dom do amor, ou o tesouro da normalidade que ele tinha levado a sua vida. Mas tampouco o veria erodir-se, roer-se pelas exigências e a violência do que vivia dentro dela.

            Sabia o que tinha que fazer, não só para manter o que tinham, mas também para abrir a possibilidade de mais.

            Quando ele partiu ao trabalho, depois de uma rotina matutina, uma manhã maravilhosa, de pão-doces doces e cães, beijos na cozinha e sua última saída desenfreada pela porta, ela se encerrou no laboratório.

            Não lhe contaria sobre a prova que faria... Até depois. Usando uma amostra de sangue lycan que Gabe tinha tomado, verteu algumas gotas em uma placa petri e a esquentou a 40 graus.

            Não gostavam, meditou, estudando as células. Mas se adaptavam.

            Mas quando adicionou o soro, as células lutaram com força. Absorveram-no. Esse metabolismo, pensou novamente. Veloz e faminto e confundindo o soro com combustível.

            - Sim, comam-no. Comam muito. Toma segundos, bastardo.

            Fez notas, começou uma análise no computador e logo soltou um grito de desespero quando as células voltaram para seu estado prévio.

            - Rechaça-o. Maldição! - Golpeou o punho contra a mesa e se conteve. - Pensa. Pensa. Alimenta-se, debilita-se, se doente. Quanto tempo tomou?

            Checou a hora e logo procurou entre os arquivos até encontrar as notas do Gabe do episódio da noite anterior.

            E viu como podia fazer-se.

            Levou-lhe a maior parte do dia realizar cada passo, esperar os resultados, analisar. Preparou as seringas, etiquetou-as e se sentou para escrever uma carta ao Gabe que esperava que ele não tivesse que ler.

 

            "Já é quase o entardecer. Há tão pouca luz em dezembro. Sabe que chamam a Lua Cheia Fria à lua de dezembro? É a mais fria das luas, e sempre tem sido - por razões que não posso entender nem explicar - a mais difícil de enfrentar para mim.

            A Lua Cheia do Lobo não é até janeiro, mas todas foram a lua do lobo para mim, da primeira mudança. Espero - não acredito - não ter que enfrentar outra lua do lobo.

            Sei que estará zangado, e terá direito a estar. Somos uma equipe, você e eu, e essa união aconteceu tão inesperadamente para mim. Tão belamente. Tinha-me acostumado tanto a compartilhar só comigo a fealdade, a violência e a dor, que posso não te haver demonstrado nunca, ou dito com a freqüência suficiente, o suficientemente bem, o que significa para mim.

            Tudo, Gabriel. Simplesmente tudo.

            Não teria chegado tão longe sem ti e não serei capaz de terminar sem ti. Assim, seguimos sendo uma equipe. Vou começar sem ti. Devo fazê-lo, mas o final estará em suas mãos. As únicas mãos nas que confiei além das minhas.

            Encontrei a resposta. Acredito com meu coração, minha mente, minhas vísceras. Sei que é perigoso e que poderia me custar mais do que qualquer de nós quer pagar.

            Um risco calculado. Ontem à noite disse que o risco não valia minha vida.

            Eu não tinha vida, Gabe, até ti. Tive umas poucas semanas, preciosas semanas, de liberdade, alegria e aventura antes de que mudar em algo que nunca pode ser livre.

            Por isso, aprendi a estar sozinha, não só a aceitá-lo, mas também a que eu gostasse. A desejá-lo. Aprendi a não pensar mais à frente do momento, as necessidades imediatas, o que devia fazer-se. Vivi para a cura, e embora a tivesse encontrado, sozinha, não estou segura de que teria trocado.

            Mas tenho uma vida agora, e vale qualquer risco.

            Já mudei, e não perderei no que me converti, ou o que ainda poderia ser. Quero esta vida contigo, uma família contigo. Quero caminhar à luz da lua, me deleitar na luz da branca lua cheia contigo.

            Me ajude.

            Sabia que nenhuma vez disse a ninguém essa palavra, exceto a ti? De algum modo, é mais intensa que "amo-te".

            Não estou fazendo isto por ti. Não detesta quando alguém faz algo que não quer, e tenta justificá-lo dizendo que o tem feito por ti? Estou fazendo isto por mim. E te pedindo que o termine por mim.

            E se falharmos, por favor, deve saber que vivi mais, fui mais feliz e me hei sentido mais real nestes últimos meses que jamais em toda minha vida.

            Amo-te,

            Simone"

 

            Selou a carta e a deixou sob o travesseiro do cama de armar. Logo, tomando as seringas, foi para a jaula. Aferrou seus tornozelos e logo seus pulsos com os grilhões que tinha chumbado na parede essa tarde. E se sentou a esperar.

 

            Gabe tinha estado sentindo-se estranho todo o dia, como se de algum modo uma lasca se colocou justo debaixo de seu coração. Queria chegar em casa, sentar-se no sofá ao lado da Simone com as pernas enredadas e tomar uma cerveja. Queria olhá-la na cara, ouvir sua voz, possivelmente assegurar-se de que tudo estava bem entre eles.

            O que era estúpido, sabia. Não havia se tornado ela por volta dele essa manhã, antes de que qualquer dos dois estivesse totalmente acordado? Deslizando-se sobre ele, recordou Gabe enquanto girava na entrada. Rodeando-o. Mãos, lábios, cabelo, pele.

            Mas tinha havido uma urgência no modo em que se moveu sobre ele, um desespero na rapidez. A mesma urgência, o mesmo desespero que tinha havido em sua mão - a adorável mão humana da Simone com suas bestiais garras negras - quando lhe tinha agarrado o braço na noite anterior.

            A ferida pulsava um pouquinho, como se quisesse lhe recordar, e se encontrou pegando as rosas brancas que tinha levado para ela e correndo para a porta.

            Já estava escuro, e neve nova tinha caído essa tarde. Só um centímetro, suficiente para fazer que tudo se visse limpo e branco à luz da lua. Levantou a olhar antes de entrar, olhou a bola quase cheia viajando pelo céu.

            Lhe pareceu fria e desumana.

            Dentro estava quente e fragrante. Agora sabia que ela usava ervas e novelo até para limpar. Cera de abelhas e saponaria, oxálida e sementes de avelã, para que a casa sempre cheirasse como um jardim ou um bosque.

            Arrojou as chaves dentro de uma tigela e a chamou com uma saudação enquanto vagava para a cozinha. Simone não estava ali, e tampouco havia nada fervendo na cozinha.

            Malcriou-se nessa área. Podia admiti-lo e sem vergonha. Era um homem, depois de tudo, e se havia um homem que não lhe agradasse chegar em casa, a uma mulher formosa e uma comida quente, bom, Gabe se compadecia dele.

            Olhou para a porta da cozinha, e tudo dentro dele se encolheu quando viu que a tinha deixado destravada.

            Soube, até antes de saltar para a porta e sair disparado pelos degraus, soube.

            E mesmo assim, o que viu o assustou.

            Simone se tinha encadeado à parede traseira da jaula. Mas tinha deixado suficiente espaço para ser capaz de usar a seringa. Butch saltou para frente, ladrando como saudação, só para tornar-se atrás ante o grito do Gabe.

            - Parece. - A voz dela era completamente tranqüila. - Necessito sua ajuda agora. Necessito que...

            - Onde estão as chaves? - Gabe estava dentro da jaula, tironeando das cadeias. - Onde estão as chaves destas malditas coisas?

            - Não as encontrará a tempo. Por favor, me escute. Escuta enquanto sigo lúcida. Te enfureça mais tarde.

            - Muito tarde.

            Gabe apoiou um pé sobre a parede, e embora soube que era impossível, tentou liberar o parafuso.

            - Tem que administrar a outra dose. Ali, na caixa de segurança. Tem que esperar até a mudança, até o momento em que estejamos apanhados juntos, lutando um contra o outro... Até o momento em que lhe permita pensar que ganhou. Saberá quando. Sei que saberá.

            - Maldita seja, Simone. - Ele puxou a cadeia contra a parede. - Poderia morrer aqui, encadeada como um animal.

            - Não me deixe. - Não tinha querido dizer isso, tornar-lhe em cima, mas a febre já estava ardendo dentro dela. - Fiz as análises, Gabe. Trabalhei todo o dia, e encontrei o final para o que começamos ontem à noite. Para a cura que me ajudou a encontrar. Para a cura que já tinha encontrado.

            - Hipótese, teorema, não concludente.

            - Encontrou-a. Li todas suas notas e sabia que este era o modo. Pode adaptar-se à febre, mas lhe leva tempo. A febre o debilita primeiro. Ambas as partes de mim estarão doentes, quase indefesas.

            Ele se agachou frente a ela. Seu rosto já estava ruborizado pela febre, escorregadio pelo suor. Seus olhos frágeis, mas seguiam sendo seus olhos.

            - Me diga onde pôs as chaves, Simone. Deixa que me ocupe de ti.

            - A segunda injeção... - Seu corpo se estremeceu, e as palavras raiaram sua ressecada garganta como ácido. - Destruirá-o, mas só quando tiver saído, quase fora. Quase fora, Gabe. Enquanto siga lutando, ainda doente. E fora de seu ciclo natural. É muito forte com a lua. Essa foi sua conclusão, e é a minha.

            - O que há na segunda injeção? - Aferrou-lhe os braços e enterrou seus dedos quando ela negou com a cabeça. - Não farei isto às cegas, Simone. Ficarei aqui sentado e deixarei que tome primeiro.

            - Esta não é uma maldita história O'Henry. Corto-me o cabelo, você vende seu relógio. - Um humor irritado cintilou no rosto dela. - Jesus. Acónito. Acónito é o principal. É apropriado, verdade?

            - Veneno.

            - Não suficiente para me matar, juro-o. Quero viver, e não posso seguir vivendo deste modo. Acónito. A lenda diz que repele ao homem lobo. - Conseguiu rir. - Façamo-lo realidade. Mata-o, Gabe. Mata-o por mim. Juro que não permitirei que isto seja o último que te peça.

            Quando ela começou a ter o ataque, ele a amorteceu da parede para que não se machucasse com a pedra. Pelos sessenta segundos mais compridos de sua vida, Gabe a viu convulsionar.

            Quando seus olhos voltaram a clarear, ela procurou a mão dele.

            - Escrevi-te uma carta.

            - Shh. Me deixe ver como está.

            - Já quase é Natal. Quero uma árvore este ano. Nunca me incomodo. Dezembro é o mais difícil. Arma uma árvore. Luzes.

            - Seguro. - O pulso da Simone era veloz, débil. - Escolheremos uma amanhã.

            - Poderia ser como eu. - Sua voz era rouca e maliciosa por debaixo. - Somos fortes. Assombrosos, poderosos, livres.

            Seus olhos estavam mudando, e o sorriso que separava seus lábios era selvagem.

            - Rechaça-o, Simone. Fica comigo.

            - Cedo ou tarde, vontade. - Ela se arqueou para cima, para a dor ou longe dele, Gabe não podia sabê-lo. E quando ela voltou a ficar frouxa, seus olhos reluzentes, lágrimas pela fúria. - Não me faça retornar. - Disse as palavras chiando os dentes. - Por favor, me ame o suficiente para fazer isto. Me ajude.

            Ela lutou. Seu corpo se estirou e se encolheu, seu rosto se estreitou e voltou a encher-se. As garras se cravaram no chão de concreto, e deixaram seus adoráveis dedos ensangüentados.

            Estava consumindo-a, Gabe podia vê-lo. Minando-a. Matando-a. Mas ela seguia batalhando, e ele podia ouvir o pânico e a fúria nos rugidos quando o lobo brigava por sair à superfície.

            O cabelo dourado brotou da pele da Simone. Presas largas e ferozes cintilaram. Ele podia vê-la debaixo, a sombra da Simone nos olhos, na expressão dolorosamente humana enquanto o focinho começava a formar-se.

            - Amo-te, mais que o suficiente.

            Gabe tomou a seringa e, com terror enchendo seu coração, cravou-a através da pelagem e o couro.

            O lobo gritou. Ou ela o fez. Gabe já não podia diferenciá-lo. O que estava encadeado à parede começou a rodar e corcovear, uma mulher, um lobo, logo uma terrível combinação de ambos. Tentou mordê-lo, com ferozes presas saindo como lanças de sua boca. Chorou, lágrimas humanas derramadas de olhos selvagens.

            O sangue se escorria dos pulsos e dos tornozelos enquanto violentos puxões faziam que o aço mordesse a carne. E essa vez, quando uivou, foi um grito de agonia e de terror.

            Quando paralisou, só houve silêncio.

            Gabe se deu conta de que agora podia ouvir os cães. Esqueceu-se deles. Choramingavam fora da jaula. Mas dentro só estava Simone, pálida e quieta como a morte.

            Havia um pulso. O fraco e veloz batimento do coração quase quebrou ao Gabe, tanto que seu corpo se estremeceu quando apoiou os lábios sobre os dela. Obrigou-se a levantar-se, ir à cama de armar em busca da manta e o travesseiro. Encontrando a carta, levou-a com ele. Pôs a Simone tão cômoda como podia, checou seu pulso outra vez, seu ritmo cardíaco, e logo se sentou a seu lado a ler.

            Quando Simone despertou, foi em sua própria cama, com uma luz baixa ardendo. Doíam-lhe a cabeça e o corpo, e só se moveu para tentar encontrar comodidade.

            Mas a mão que se apoiou em sua frente fez que abrisse os olhos. Que o visse.

            - Encontrei as chaves. Aqui tem. - Levantou-lhe a cabeça, sustentou um copo contra seus lábios. - Bebe. É só água por agora.

            Sabia como ambrósia. Cansada, apoiou a cabeça no braço do Gabe.

            - Me perdoe.

            - Já chegaremos a isso, me acredite. Como se sente?

            - Dói-me a cabeça. Dói-me tudo. Mi...

            Levantou o braço e franziu o cenho ante a atadura sobre o pulso.

            - Você mesma te cortou um pouco. - A voz do Gabe era muito estranha a seus ouvidos, um tremor sob a calma. - Não é sério, mas seguro que doerá.

            - Assim é. Quanto tempo estive desmaiada?

            - Três horas, vinte e três minutos. Sou vago nos segundos.

            - Quase três horas e meia? Segue doendo.

            Começou a arrancar a atadura, mas ele lhe agarrou a mão.

            - Não o faça. Fará que sangre outra vez.

            - Não se curou.

            - O corpo humano é um milagre - disse ele brandamente. - Mas tem que lhe dar um pouco de tempo para curar-se depois de um insulto.

            - Humano... - Seus lábios tremeram. - desapareceu. Posso senti-lo. - Simone pressionou uma mão contra seu coração, contra seu estômago. - Ou mais precisamente, não posso senti-lo. Temos que fazer provas para estar seguros, mas...

            - Eu as fiz, com amostras de sangue que tão atentamente proporcionou. Tem células sangüíneas muito bonitas, Simone. Células sangüíneas muito normais e bonitas. Células sãs.

            Ela conteve a respiração com um soluço, logo o soltou e deixou que ele a abraçasse forte enquanto chorava.

            - A próxima vez que venha para casa para te encontrar encadeada à parede, espero que seja um convite para algumas ataduras amistosas.

            Ela conseguiu rir chorosamente.

            - Seguro.

            - Li sua carta. - Ele a atirou para trás para lhe beijar as bochechas, os lábios. - Tem esta noite livre, para descansar e te recuperar, mas amanhã começaremos com essa vida.

            - Muito bem. - Simone se moveu para que ele pudesse apoiar as costas contra a cabeceira, e ela pudesse acomodar-se na curva de seu ombro. - Quem cuidará dos cães quando formos a Las Vegas?

            Quando a lua de dezembro, a Lua Cheia Fria, elevou-se com um branco sorvete contra o negro céu, Simone ficou parada com neve até a metade das panturrilhas a inspirar a noite.

            - Passou tanto tempo desde que a vi - disse, e entrelaçou seus dedos com os do Gabe. - Pus fotografias e pinturas dela na casa, mas não são nada comparadas com o real. Poderia ficar aqui olhando-a por horas.

            Ele se estirou para lhe pôr a boina de lã inteira sobre as orelhas.

            - Exceto que está gelando aqui fora.

            - Exceto por isso.

            Ela riu e se balançou para fechar seus braços ao redor do pescoço dele.

            Detrás deles, sua casa - a casa de ambos, corrigiu-se Simone - estava brilhante com luzes festivas. E a árvore que tinham decorado estava emoldurado pela janela, cintilando.

            Ela apoiou a cabeça em seu ombro e viu seus cães abrirem passo na neve. Só necessitavam, decidiu, era essa cerca de estacas.

            - Tenho algo para ti.

            Poderia ficar assim, pensou, envolta ao redor dele à luz da lua, para sempre. Só uma mulher, abraçando e sendo abraçada pelo homem ao que amava.

            - O que poderia ser?

            Gabe extraiu o anel de seu bolso e a fez baixar a mão para que ambos o vissem deslizar-se no dedo da Simone.

            - A seguir será Elvis. Isto fecha o trato.

            - É formoso.

            A alegria lhe fechou a garganta e lhe fez arder os olhos. A banda chapeada - ele tinha sabido que quereria prata - estava vistosamente gravada com estrelas e meias luas. E a pedra, redonda e cheia como a lua, era de um delicado azul esbranquiçado.

            - Desprezei a rota do diamante, muito tradicional. Isto é pedra lunar - disse-lhe. - Parecia o correto para nós, para mim, dar-lhe isso para que o leve enquanto construímos juntos essa vida.

            - Uma vez me perguntou se acreditava no destino. - Simone falou cuidadosamente e com as lágrimas espessando sua voz. - Agora mais que nunca. E não trocaria nada do que me aconteceu, nem um só momento. - Rindo, ela estirou os braços e deu uma volta. - Deu-me a lua.

            Gabe a apanhou e deu voltas com ela.

            - Já me ocuparei do sol e as estrelas.

            - Ocuparemo-nos delas. - Ela levantou as mãos, com a pedra lunar brilhando em seu dedo, e as apoiou nas bochechas do Gabe. - Realmente quis fazer isto.

            Esmagou seus lábios com os dela, enfraqueceu-os com os dela enquanto os raios dessa fria lua cheia convertiam a neve em um brilhante azul esbranquiçado.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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