Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Um caso de Identidade / Arthur Conan Doyle
Um caso de Identidade / Arthur Conan Doyle

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Um caso de Identidade  

                          

     Meu caro amigo, - disse Sherlock Holmes, quando sentávamos um de cada lado da lareira em seus aposentos na Baker Street - a vida é infinitamente mais estranha do que qualquer fantasia concebida pelo homem. Não ousaria imaginar coisas que são meros lugares-comuns da existência. Se pudéssemos voar por aquela janela de mãos dadas, pairar sobre esta grande cidade, levantar delicadamente os telhados e espiar as coisas esquisitas que estão acontecendo, as estranhas coincidências, os planos, os objetivos cruzados, acontecimentos trabalhando através de gerações e levantando aos resultados mais absurdos, isso tornaria toda a ficção, com suas conclusões óbvias, corriqueira e desinteressante.

     - Não estou convencido de que isso é verdade - respondi. - Os casos nos jornais são, em geral, vulgares e desprovidos de imaginação. Na polícia o realismo chega a um limite extremo, mas o resultado é, pode-se dizer, nem fascinante nem artístico.

     - Uma certa seleção e discrição deve ser usada para produzir um efeito - observou Holmes. - Isso falta nos relatórios de polícia, onde se lê talvez as banalidades dos juízes e não os detalhes que para um observador contêm a essência vital da questão. Pode crer, não há nada mais insólito e corriqueiro.

     Sorri e abanei a cabeça. - Compreendo que você ache isso - disse. - Evidentemente, em sua posição de conselheiro extra-oficial e de dar assistência a quem está mistificado, em três continentes, você entra em contato com tudo que há de estranho e bizarro. Mas aqui - peguei o jornal que caíra no chão - podemos testar isso na prática. Eis a primeira manchete: “Marido trata mulher com crueldade”. Estende-se por meia coluna, mas sei tudo o que vai suceder. Existe, naturalmente, a outra mulher, a bebida, o empurrão, a pancada, a irmã ou senhoria que tem pena dela. O escritor mais cru não poderia inventar nada mais nu e cru.

     Na verdade, seu exemplo é infeliz para seu argumento - disse Holmes, tirando o jornal das minhas mãos e lançando um olhar no artigo. - É um caso da separação e por acaso investiguei alguns detalhes dele. O marido não bebia, não havia nenhuma outra mulher, e a queixa quanto ao comportamento dele consistia em que adquirira o hábito de terminar todas as refeições tirando a dentadura e atirando-a na esposa, o que você há de convir não é coisa que ocorra à imaginação do escritor comum. Tome uma pitada de rapé, Doutor, e reconheça que ganhei alguns pontos com esse seu exemplo.

     Estendeu uma caixinha de rapé de ouro velho, com uma enorme ametista no centro. O resplendor estava em contraste com sua maneira simples de viver e não pude deixar de fazer um comentário.

     - Ah, - disse ele - esqueci que não o vejo há várias semanas. É uma pequena lembrança do Rei da Boêmia pelo meu auxilio do caso dos papéis de Irene Adler.

     - E o anel? - perguntei, olhando um maravilhoso brilhante que reluzia em seu dedo.

     - Veio da família reinante da Holanda, mas o assunto em relação ao qual os servi é de tal delicadeza que não posso confiá-lo nem a você, que teve a bondade de escrever sobre um ou dois dos meus pequenos problemas.

     - E tem algum a estudar no momento? - perguntei, interessado.

     - Uns dez ou doze, mas nenhum muito interessante. São importantes, compreende, sem serem interessantes. Realmente, descobri que é geralmente em assuntos não muito importantes que há campo para observação e para rápida análise de causa e efeito que dá tanto encanto a uma investigação. Os crimes maiores tendem a ser mais simples, pois quanto maior o crime, geralmente mais óbvio é o motivo. Nesses casos, exceto um que me foi referido de Marselha, não há nenhum ponto interessante. É possível, entretanto, que tenha algo melhor dentro de poucos minutos, por aí vem um de meus clientes, se não me engano.

     Erguera-se e ficara de pé espiando por entre as cortinas a rua sombria de Londres. Olhando por sobre seu ombro, vi que na calçada oposta estava uma mulher corpulenta com um abrigo de peles no pescoço e uma enorme pluma vermelha em um chapéu de abas largas, inclinado sobre uma orelha à maneira da Duquesa de Devonshire. Debaixo dessa imensa proteção, espreitava nossas janelas, nervosa e cheia de hesitação, enquanto o corpo oscilava de um lado para o outro e os dedos mexiam inquietos com os botões das luvas. De repente, num arremesso, como o nadador que se atira n'água, atravessou rapidamente a rua e ouvimos o som agudo da campainha.

     - Já vi esses sintomas antes - disse Holmes, jogando o cigarro na lareira. - Oscilar na calçada sempre significa um caso amoroso. Gostaria de conselhos, mas receia que o assunto seja delicado demais para ser comunicado a alguém. E mesmo aqui ainda podemos discriminar. Quando uma mulher foi gravemente enganada por um homem ela não oscila e o sintoma usual é um puxador de campainha quebrado. Aqui podemos assumir que se trata de um caso amoroso, mas que a jovem não está zangada e sim perplexa, ou magoada. Mas aí vem ela em pessoa para esclarecer o assunto.

     Enquanto falava, ouviu-se uma pancada na porta e o rapazinho de libré entrou para anunciar a Srta. Mary Sutherland, enquanto a própria avançava atrás de sua pequena figura como um navio mercante atrás de um rebocador. Sherlock Holmes a recebeu com a cortesia fácil pela qual era famoso e, fechando a porta, levou-a a uma poltrona, olhando-a minuciosamente, conquanto de maneira abstrata, como lhe era habitual.

     - A senhorita não acha - disse finalmente - que com sua miopia é um tanto cansativo bater tanto a máquina?

     - No princípio era mesmo - ela respondeu - mas agora sei onde estão as letras sem precisar olhar. - Percebendo, então, o verdadeiro significado de palavras, teve um sobressalto e olhou-o com medo e espanto estampados seu rosto largo e bem-humorado. - O senhor ouviu falar de mim, Sr. Holmes - exclamou - senão como poderia saber isso? Vim ao senhor porque a Sra. Etherege, cujo marido o senhor encontrou tão facilmente quando a polícia e todo mundo mais o consideravam morto, o recomendou altamente. Oh, Sr. Holmes, como gostaria que o senhor fizesse o mesmo por mim. Não sou rica, mas ainda tenho cem libras por ano do que ganho com a datilografia e as daria de bom grado para saber o que foi feito do Sr. Hosmer Angel.

     - Por que veio me consultar com tanta pressa? - perguntou Sherlock, juntando as pontas dos dedos e olhando o teto.

     Novamente um olhar de surpresa espalhou-se pelo rosto da Srta. Maryland.

     - Saí às pressas - disse - porque fiquei zangada de ver como o Sr. Windibank, isto é, meu pai, estava levando tudo na calma. Não quis ir à polícia, e não quis vir ao senhor e finalmente, como ele não ia fazer nada e continuava dizendo que não havia nada de errado, fiquei furiosa e peguei minhas coisas às pressas e vim ver o senhor.

     - Seu pai? - disse Holmes.

     - Sim, meu padrasto. Eu o chamo de pai, embora soe engraçado, pois é somente cinco anos e dois meses mais velho que eu.

     - E sua mãe ainda vive?

     - Ah, sim, mamãe está viva e muito bem. Não fiquei nada contente, Sr. Holmes, quando ela casou novamente logo depois da morte de meu pai, e com um homem que é quase quinze anos mais moço do que ela. Meu pai era bombeiro em Tottenham Court Road e deixou um bom negócio de herança, que mamãe continuou com o Sr. Hardy, o assistente. Mas, quando casou com o Sr. Windibank ele fez com que ela vendesse o negócio, pois ele era superior como vendedor de vinhos. Conseguiu quatro mil e setenta libras por tudo, que não foi nem a metade do que papai conseguiria se fosse vivo.

     Esperava que Sherlock Holmes ficasse impaciente com essa narrativa, conseqüente, mas, ao contrário, ele ouvia com a maior atenção concentrada.

     - Sua pequena renda - perguntou - vem da venda do negócio?

     - Oh, não senhor, isso é separado, foi deixado para mim por meu Tio Ned de Auckland. São títulos da Nova Zelândia que rendem 4 112%. Duas mil e quinhentas libras, mas só posso mexer nos juros.

     - A senhorita me interessa muito - disse Holmes. - E como recebe a considerável quantia de cem por ano, e mais o que ganha com seu trabalho, sem dúvida a senhorita viaja um pouco e se diverte bastante. Creio que uma moça solteira pode viver muito bem com uma renda de cerca de sessenta libras por ano.

     - Poderia viver com muito menos, Sr. Holmes, mas compreenda que enquanto eu viver em casa não quero ser um fardo para eles, por isso usam meu dinheiro para as despesas. Claro que isso é só enquanto eu ficar com eles. O Sr. Windibank recebe os juros todos os trimestres e dá o dinheiro para minha mãe, e eu vivo muito bem com o que ganho com minha máquina de escrever. Cobro dois pences por página e muitas vezes bato quinze a vinte páginas por dia.

     - Deixou bem clara sua posição - disse Holmes. - Este é meu amigo, Dr. Watson. Pode falar em frente dele com toda franqueza. Agora tenha a bondade de nos contar sobre sua ligação com o Sr. Hosmer Angel.

     O rosto da Srta. Sutherland ficou corado e ela brincou nervosamente com a franja da jaqueta. - Encontrei-o pela primeira vez no baile - disse. - Eles costumavam mandar entradas para papai quando era vivo e depois se lembraram de nós e mandaram para mamãe. O Sr. Windibank não queria que nós fossemos. Nunca queria que fôssemos a lugar nenhum. Ficava furioso até quando eu queria ir a um piquenique da escola num domingo. Mas dessa vez eu resolvi ir, e ia mesmo, pois que direito tinha ele de me proibir? Ele disse que essas pessoas não eram dignas de nós, e todos os amigos de meu pai iam estar lá. E disse que eu não tinha nenhuma roupa decente para usar, e meu veludo roxo que não tinha nem tirado da gaveta, muito menos usado. Finalmente, quando viu que não podia fazer nada, foi para a França em viagem de negócios e nós fomos, mamãe e eu, com o Sr. Hardy, que tinha sido assistente de papai, e foi lá que conheci o Sr. Hosmer Angel.

     - Imagino - disse Holmes - que quando o Sr. Windibank voltou da França ficou muito aborrecido porque a senhorita foi ao baile.

     - Ora, até que ele se portou muito bem. Riu, me lembro, e encolheu os ombros e disse que não adiantava nada negar alguma coisa a uma mulher, pois ela arranjava um jeito de fazer o que quisesse.

     - Bem. Então no baile dos gasistas a senhorita conheceu um cavalheiro chamado Hosmer Angel.

     - Sim, senhor. Nos conhecemos naquela noite e ele nos visitou no dia seguinte para saber se tínhamos chegado em casa bem e depois disso nos encontramos... isto é, Sr. Holmes, eu o encontrei duas vezes. Depois disso, papai voltou e o Sr. Hosmer Angel não podia mais ir em casa.

     Bem, o senhor compreende, papai não gostava disso. Não queria; e costumava dizer que uma mulher devia se sentir feliz em casa, com sua própria família. Mas como eu dizia à minha mãe, uma mulher quer família, para começar, e eu ainda não tinha a minha.

     - Mas o Sr. Hosmer Angel não fez nenhuma tentativa para vê-la novamente.

     - Bem, meu pai ia à França novamente dentro de uma semana, e Hosmer escreveu e disse que era melhor e mais seguro não viajar. Podíamos nos escrever nesse ínterim e ele costumava mandar uma todos os dias. Eu pegava a correspondência todas as manhãs, assim meu pai não precisava saber nada.

     - A senhora estava noiva dele nessa ocasião?

     - Ah, sim, Sr. Holmes. Ficamos noivos depois do primeiro passeio que Hosmer... o Sr. Angel... era tesoureiro em uma firma na Rua Lea... e...

     - Que firma?

     - Esse é o problema, Sr. Holmes, não sei.

     - E onde ele morava? Dormia no escritório. E não sabe o endereço?

     - Não... só que era na Rua Leacadenhall.

     - Para onde mandava suas cartas, então?

     - Para a agência de correio da Rua Leadenhall, para serem apanhadas lá. Ele disse que se eu mandasse para o escritório os outros empregados iam fazer pouco dele por receber cartas de uma moça, então sugeri bater a máquina, como ele fazia com as dele, mas não quis, disse que quando eu escrevia à mão sentia que vinham diretamente de mim, mas, quando eram datilografadas, a máquina se colocava entre nós. Isso mostra como ele gostava de mim, Sr. Holmes, e como pensava em todas essas coisinhas.

     - Muito sugestivo - disse Holmes. - É um antigo axioma meu que as pequenas coisas são infinitamente mais importantes. Pode lembrar-se de outras pequenas coisas sobre o Sr. Hosmer Angel?

     - Era muito tímido, Sr. Holmes. Preferia andar comigo no entardecer; quando escurecia, em vez de durante o dia, porque dizia que detestava chamar atenção. Era muito retraído e um verdadeiro cavalheiro. Até sua voz era delicada. Contou que tinha tido uma séria infecção das amígdalas quando era criança e isso o deixara com a garganta enfraquecida. e uma maneira de falar um pouco hesitante, em voz muito baixa. Andava sempre muito bem-vestido, muito limpo, e tinha olhos fracos, como eu. Ele ouvia com a maior atenção concentrada.

     - Bem, e o que aconteceu quando o Sr. Windibank, seu padrasto, voltou da França?

     - O Sr. Hosmer Angel foi lá em casa de novo e propôs que nos casássemos antes de papai voltar. Ele estava muito sério e me fez jurar sobre a Bíblia que, não importa o que acontecesse, eu sempre seria fiel a ele. Mamãe disse que ele tinha razão em me fazer jurar, que era sinal de sua paixão por mim. Mamãe era do lado dele desde o princípio e até parecia gostar dele mais do que eu. Então, quando começaram a falar em casamento dentro de uma semana, comecei a perguntar sobre papai, mas ambos disseram que não importava, bastava contar a ele depois do casamento, e mamãe disse que ela tomaria conta de tudo. Não gostei disso, Sr. Holmes. Era engraçado pedir seu consentimento, pois ele era só uns anos mais velho do que eu, mas não queria fazer nada escondido, então escrevi a papai em Bordeaux, onde a Compainha tinha escritórios, mas a carta foi devolvida a mim na manhã do casamento.

     - Não o encontrou, então?

     - Não, porque ele voltara para a Inglaterra antes de ela chegar.

     - Isso foi azar. O casamento estava marcado, então, para a sexta-feira. Ia ser na igreja?

     - Sim, senhor, mas muito simples. Era para ser na Igreja St. Saviour, perto de King's Cross, e depois íamos almoçar no Hotel St. Pancras. Hosmer nos veio buscar num cabriolé, mas como éramos duas e não cabiam três, ele nos fez entrar e tomou um caleche de quatro rodas, que era o único carro de aluguel na rua àquela hora. Chegamos primeiro à igreja e quando o caleche chegou, ficamos esperando que ele saltasse mas ninguém saltou e quando o cocheiro desceu da boléia e olhou dentro, não havia ninguém; o cocheiro disse que não podia imaginar o que tinha acontecido, pois vira direitinho quando ele subiu. Isso foi sexta-feira passada, Sr. Holmes, e não vi nem ouvi nada desde então que possa dar sequer uma idéia do que aconteceu com ele.

     - Parece que a senhora sofreu uma grande injustiça - disse Holmes.

     - Ah, não senhor. Ele era bom demais para me fazer qualquer mal. Ora, a manhã inteira ele ficou me dizendo que não importava o que acontecesse, eu devia ser fiel a ele; e que mesmo que alguma coisa completamente inesperada sucedesse para nos separar, eu me devia lembrar sempre que estava comprometida com ele e que ele voltaria para mim mais cedo ou mais tarde. Era uma conversa um pouco estranha para o dia do casamento, mas o que aconteceu prova que havia uma razão.

     - Isso é bem verdade. Sua opinião, então, é que alguma catástrofe inesperada ocorreu com ele?

     - Sim, senhor. Acredito que ele viu algum perigo, ou não teria falado... E então o que ele percebeu, aconteceu.

     - Mas não tem a menor noção do que poderia ter sido?

     - Nenhuma.

     - Mais uma pergunta: como sua mãe reagiu nessa circunstâncias?

     - Ela ficou muito zangada e disse que eu nunca mais deveria mencionar isto.

     - E seu pai? Contou-lhe tudo?

     - Sim, e parece que ele pensou como eu, que alguma coisa grave tinha acontecido e que eu teria notícias de Hosmer algum dia. Como ele disse, por que razão alguém me levaria até a porta da igreja e depois me deixaria? Se ele tivesse pedido dinheiro emprestado, ou se tivesse se casado comigo e transferido meu dinheiro para ele, aí haveria uma razão. Mas Hosmer era muito cuidadoso quanto a dinheiro e nunca olharia para um tostão meu. Mas então o que poderia ter acontecido? E por que ele não escreveu? Oh, fico quase o tempo todo pensando nisso! E não consigo fechar os olhos de noite. - Tirou um lenço da bolsa e começou a soluçar.

     - Estudarei o caso para a senhorita - disse Holmes, erguendo-se - e não tenho dúvida de que chegaremos a algum resultado definitivo. Por enquanto, deixe que eu carregue esse fardo e não pense mais no assunto. Acima de tudo, apague o Sr. Hosmer Angel de sua mente, como ele se apagou em sua vida.

     - Então acha que nunca mais o verei?

     - Receio que não.

     - Mas o que aconteceu com ele?

     - Esse problema fica em minhas mãos. Gostaria de uma descrição exata assim como cartas dele que a senhora possa me emprestar.

     - Pus um anúncio no Chronicle sábado passado - ela disse. - Aqui está o jornal, e aqui estão quatro cartas dele.

     - Obrigado. E seu endereço?

     - Lyon Place, 31, Camberwell.

     - Qual endereço do escritório de seu pai?

     - Ele viaja para a firma Westhouse & Marbank, os grandes importadores de vinho, na Rua Fenchurch.

     - Obrigado. Suas declarações foram muito claras. Deixe os papéis aqui... Lembre-se do conselho que lhe dei.

     - O senhor é muito bondoso, Sr. Holmes, mas não posso fazer isso. Sou fiel a Hosmer. Estarei pronta para ele quando voltar.

     Apesar do chapéu absurdo e do rosto pouco expressivo, havia algo nobre nessa fé singela de nossa cliente que inspirava respeito. Depositou o pacote de papéis sobre a mesa e saiu, prometendo voltar novamente quando fosse chamada.

     Sherlock Holmes; ficou sentado em silêncio por uns minutos com os dedos coladas, as pernas esticadas à frente e os olhos grudados no teto. Tirou, então, do descanso o velho cachimbo de barro que era seu conselheiro e, após acendê-lo, recostou-se na poltrona, envolto em nuvens espessas de fumaça, com um ar profundamente langoroso.

     - Um estudo interessante, aquela moça - observou. - Achei-a muito mais interessante que seu pequeno problema que, por falar nisso, é bastante comum. Se consultar meus arquivos, encontrará casos paralelos, como Andover em 1877, e um caso parecido em Haia o ano passado. A idéia é muito velha, mas havia um ou dois detalhes que eram novidade para mim. Mas a moça em si mesma foi altamente instrutiva.

     - Parece que você viu muito nela que é completamente invisível para mim - comentei.

     - Invisível, não. Você não observou bem, Watson. Não sabia onde olhar, e assim perdeu tudo que era importante. Não consigo fazer você compreender a importância das mangas, a sugestão das unhas dos polegares, ou as grandes conseqüências de um cordão de sapatos. Agora, o que você deduziu da aparência daquela moça? Descreva.

     - Bem, usava um chapéu de palha de abas largas, cor cinzenta, com uma pluma vermelho-tijolo. O casaco era preto, bordado, com uma franja de pequenos ornamentos de azeviche. O vestido era marrom, mais escuro que café, com um babadinho de pelúcia roxa no pescoço e nas mangas. As luvas eram cinzentas e havia um buraco no indicador direito. Não vi suas botas. Usava brincos de ouro pequenos, redondos, pendurados e tinha aparência de ter algum dinheiro, de uma maneira vulgar, confortável, meio relaxada.

     Sherlock Holmes bateu palmas mansamente e sorriu.

     - Realmente, Watson, você está fazendo grandes progressos. Saiu-se muito bem mesmo. É verdade que não viu nada importante, mas aprendeu o método e tem um bom olho para cores. Nunca confie na impressão geral, amigo, concentre-se nos detalhes. Em um homem talvez seja melhor observar primeiro os joelhos das calças. Na mulher, olho sempre para as mangas. Como você observou, essa moça tinha pelúcia nas mangas, e a pelúcia é uma fazenda excelente para mostrar vestígios. A linha dupla, pouco acima do punho, onde a datilógrafa encosta na mesa, estava lindamente definida. A máquina de costura manual deixa uma marca semelhante, mas somente no braço esquerdo e do lado mais longe do polegar, em vez de ser na parte mais larga, como nesse caso. Olhei então para o rosto e, vendo a depressão causada por óculos nos dois lados do nariz, comentei sobre miopia e datilografia, o que pareceu surpreendê-la.

     - Surpreendeu a mim.

     - Mas certamente era óbvio. Fiquei, então, muito surpreso e interessado quando olhei para baixo e vi que, embora as botas que usava não fossem totalmente diferentes, não eram realmente um par, pois uma tinha a biqueira decorada e a outra era completamente simples. Uma estava abotoada somente em dois botões de cinco, e a outra em três, salteados. Ora, quando você vem bem-arrumada em tudo mais, mas saiu de casa com botas díspares; não é nenhuma grande dedução dizer que saiu às pressas. Escrevera um bilhete antes de sair de casa, após estar toda vestida. Você viu que a luva direita estava rota; aparentemente não notou que tanto a luva quanto o dedo estavam manchados de tinta roxa. Tinha de ser esta manhã, ou a mancha não estaria ainda tão visível no dedo. Tudo isso é muito divertido, embora bastante elementar, mas é hora de trabalhar, Watson. Incomoda-se de ler para mim a descrição de Angel no anúncio?

     Coloquei o recorte perto da luz. “Desaparecido” - dizia - “na manhã do sábado um cavalheiro chamado Hosmer Angel. Cerca de 1,68, robusto, tez morena, cabelos pretos, ligeiramente careca no topo, costeletas pretas, óculos escuros, ligeiro defeito de fala. Vestindo, quando visto pela última vez, sobrecasaca preta com lapelas de seda, colete preto, corrente de 'Albert' e calças cinzas de tweed Harris, com polainas marrons sobre botina de elástico. Sabe-se que trabalhava em um escritório na Rua Leadenhali. Qualquer pessoa que...” etc. etc.

     - Está bem - disse Holmes. - Quanto às cartas - continuou, lançando olhar para o pacote - são muito comuns. Nenhuma pista do Sr. Angel, nada de excepcional, exceto que cita Balzac uma vez ou outra. Há algo, entretanto, que sem dúvida impressionará você.

     - São datilografadas - comentei.

     - Não só isso, mas a assinatura também. Veja a precisão de “Hosmer” no fim da página. Existe uma data, veja, mas não o endereço, só o nome da rua, o que é bastante vago.

     - De quê?

     - Meu caro amigo, será possível que você não veja como isso influencia?

     - Não posso dizer que vejo, a não ser que ele quisesse negar a autoria das cartas, se houvesse alguma ação por quebra de promessa movida contra. Não, não é isso. Bem, vou escrever duas cartas que devem resolver a questão. Uma é para uma firma na cidade, a outra é para o padrasto da moça, Windibank, perguntando se pode vir aqui amanhã às seis horas da tarde. É melhor tratar de negócios com os homens da família. E agora, Doutor, podemos fazer nada até chegarem as respostas a essas cartas, portanto, vamos arquivar nosso pequeno problema por enquanto.

     Tinha razões de sobra para acreditar nos sutis poderes de raciocínio do amigo e em sua extraordinária energia quando em ação e senti que devia ter bases muito sólidas para manter essa atitude confiante em face ao mistério singular que lhe fora solicitado resolver. Só o vira fracassar uma vez, no caso do Rei da Boêmia e a fotografia de Irene Adler, mas quando lembrava o estranho caso do Sinal dos Quatro e as extraordinárias circunstâncias ligadas ao Estudo em Vermelho, sentia que só uma trama extremamente complicada escaparia a seus poderes de análise.

     Deixei-o, então, fumando ainda o cachimbo preto de barro, convicto de que ao voltar na noite seguinte veria que tinha nas mãos todas as chaves que nos levariam à identidade do noivo desaparecido da Srta. Mary Sutherland.

     Um caso profissional de grande gravidade me ocupou nessa ocasião e passei o dia inteiro ao lado da cama de um paciente. Eram quase seis horas quando consegui me liberar e pegar um cabriolé para ir à Baker Street, receoso de chegar tarde demais para assistir ao final de nosso pequeno mistério. Encontrei Sherlock Holmes sozinho, entretanto, meio adormecido, enroscado no fundo de sua poltrona. Uma coleção formidável de vidros e tubos de ensaio e o odor acre de ácido clorídrico demonstravam que passara o dia fazendo aquelas experiências químicas de que tanto gostava.

     - Então, já encontrou a solução? - perguntei ao entrar.

     - Sim, era o bissulfato de baritina.

     - Não, não, do mistério - exclamei.

     - Estava pensando no sal em que estava trabalhando. Não havia mistério nenhum, como eu disse ontem, embora alguns detalhes fossem interessantes. O único inconveniente é que não há lei nenhuma, receio muito, que se aplique a esse patife.

     - Quem era ele, e qual seu objetivo em abandonar a Srta. Sutherland?

     Mal dissera essas palavras e Holmes ainda não abrira a boca para responder, quando ouvimos passos pesados na passagem e uma batida à porta.

     - É o padrasto da moça, o Sr. James Windibank - disse Holmes. - Escreveu dizendo que estaria aqui às seis. Entre!

     O homem que entrou era de altura média, robusto, de uns trinta anos de idade, barbeado, moreno, com um jeito insinuante e afável e um par de olhos cinzentos extremamente agudos e penetrantes. Lançou um olhar inquiridor a nós ambos, colocou a cartola reluzente sobre o móvel da sala e, com ligeiro cumprimento de cabeça, sentou-se na cadeira mais próxima.

     - Boa noite, Sr. James Windibank - disse Holmes. - Creio que isto aqui é uma carta datilografada pelo senhor, na qual marcou vir aqui às seis horas.

     - Sim, senhor. Receio estar um pouco atrasado, mas não sou totalmente dono de mim mesmo, sabe. Sinto muito que a Srta. Sutherland o tenha incomodado sobre esse assunto, pois acho muito melhor não lavar esse tipo de roupa em público. Ela veio muito contra minha vontade, mas é uma moça muito excitável, muito impulsiva, como deve ter observado, e não é fácil controlá-la quando mete uma idéia na cabeça. Evidentemente, não está ligado às autoridades oficiais, mas não é nada agradável um problema de família como esse espalhado por aí afora.

     - Tenho absoluta certeza de que conseguirei descobrir o Sr. Hosmer Angel - disse Holmes calmamente..

     O Sr. Windibank levou um susto e deixou cair as luvas.

     - Estou muito tenso em ouvir isso - disse.

     - É uma coisa curiosa - observou Holmes - que uma máquina de escrever tenha realmente tanta personalidade quanto a caligrafia de uma pessoa.

     Podem ser novas em folha, mas não há duas máquinas que escrevam letras exatas; umas ficam mais gastas que outras, e algumas gastam mais de um lado que de outro. Repare nesse seu bilhete, Sr. Windibank, o “e” um pouco borrado e um defeito pequeno na curva superior do s. Há dezessete características, mas esses dois são os mais óbvios.

     - Uso essa máquina para toda a correspondência no escritório; está um pouco gasta - respondeu nosso visitante, olhando atentamente para Holmes com seus olhinhos muito vivos.

     - E agora lhe vou mostrar o que é realmente um estudo muito interesse, Sr. Windibank - continuou Holmes. - Estou pensando em escrever, dia desses, mais uma pequena monografia sobre a máquina de escrever e sua relação com o crime. É um assunto ao qual tenho me dedicado bastante; tenho aqui quatro cartas que aparentemente se originaram do homem desaparecido. São todas batidas à máquina. Em todas elas, não só os “es” e os “rs” estão defeituosos, como poderá observar, se quiser usar a minha assistência, a presença das outras dezessete características que mencionei.

     O Sr. Windibank saltou da cadeira e pegou o chapéu. - Não posso perder tempo com esse tipo de conversa fantástica, Sr. Holmes - disse. - Se pegar esse homem, vá pegá-lo e avise-me quando estiver tudo acabado.

     - Certamente - disse Holmes, dando uns passos à frente, então, que já o peguei!

     - O quê! Onde? - gritou o Sr. Windibank, com o rosto subitamente convulso e olhando em volta como um rato preso em ratoeira.

     - Ah, assim não... assim não - disse Holmes com toda suavidade. - Não o deixo sair dessa, Sr. Windibank. É transparente demais, e não foi nada esperto o senhor dizer que seria impossível para mim resolver uma questão simples. Isso mesmo. Sente-se, e vamos conversar.

     Nosso visitante caiu em uma cadeira com a fisionomia arrasada e o suor escorrendo na testa. - Não... não me poderão processar - balbuciou.

     - Receio que esteja certo. Mas aqui entre nós, Windibank, de uma maneira mesquinha, foi o golpe mais cruel, egoísta e desnaturado que jamais vi. Agora vou relatar o que sucedeu e contradiga-me se estiver errado. O homem sentava na cadeira com a cabeça afundada no peito, como se estivesse completamente aniquilado. Holmes estendeu as pernas e apoiou os pés no canto da lareira, e recostando-se com as mãos nos bolsos começou a falar mais para si mesmo do que para nós, pelo que parecia.

     - O homem casou-se com uma mulher muito mais velha que ele pelo dinheiro dela - disse - e desfrutava o uso do dinheiro da filha, enquanto ela vivesse com eles. Era uma quantia considerável para pessoas na sua posição, e sua perda teria feito uma grande diferença. Valia a pena fazer um esforço para conservá-la. A filha tinha uma personalidade afável e boa, era afetiva e meiga, portanto, era evidente que, com suas qualidades pessoais e sua pequena renda, não ficaria solteira muito tempo. Seu casamento significaria, naturalmente, a perda de cem libras por ano. Então que faz seu padrasto para evitar isso? Adota a estratégia de mantê-la fechada em casa e proibir que procure a companhia de pessoas de sua idade. Mas cedo verificou que isso não daria certo para sempre. Ela ficou irriquieta, insistiu em seus direitos e finalmente anunciou sua decisão firme de ir a um certo baile. E o que faz seu esperto padrasto então? Concebe uma idéia que dá mais crédito à sua imaginação que a seu coração. Com a cumplicidade e assistência de sua mulher, disfarçou-se, cobriu esses olhos penetrantes com óculos escuros, mascarou o rosto com costeletas e bigode espessos, abaixou a voz vibrante para um murmúrio insinuante e, muito seguro devido à miopia da moça, aparece como o Sr. Hosmer Angel, afastando os possíveis namorados pela técnica de se tornar um deles.

     - Foi só uma brincadeira de início - gemeu nosso visitante. - Nunca pensamos que ela se envolvesse dessa maneira.

     - Talvez não. Seja como for, a moça se envolveu profundamente e, convencida de que seu padrasto estava na França, nunca poderia por um só momento suspeitar da traição. Ficou lisonjeada pela atenção do cavalheiro e o efeito foi muito aumentado pela admiração, expressa em altas vozes, de sua mãe. Então o Sr. Angel começou a visitar a casa, pois era óbvio que deveria ir o mais longe possível, para obter um resultado satisfatório. Houve vários encontros, e um noivado, que finalmente iria garantir que a afeição da moça não se virasse para outro. Mas não era possível dissimular para sempre. Essas viagens fingidas à França eram realmente muito incômodas. O que restava fazer era, evidentemente, dar um final tão dramático que deixaria uma impressão permanente na pobre moça, que evitaria que ela olhasse para qualquer outro pretendente por muito tempo. Daí os tais votos de fidelidade feitos sobre a Bíblia, e daí também as alusões à possibilidade de alguma coisa acontecer na própria manhã do casamento. James Windibank queria que a Srta. Sutherland ficasse tão amarrada a Hosmer Angel, e tão incerta quanto ao que lhe havia sucedido, que durante dez anos ou mais, pelo menos, não ouvisse nenhum outro homem. Levou-a até a porta da igreja, e então, como não podia ir mais longe, desapareceu convenientemente com o velho truque de entrar por uma porta do carro de quatro rodas e sair pela outra. Acho que isso foi o que sucedeu, Sr. Windibank.

     Nosso visitante recobrara algo de sua auto-segurança enquanto Holmes falava e agora ergueu-se da cadeira com uma expressão de frio desprezo.

     - Pode ser que tenha sido assim, e pode ser que não, Sr. Holmes. O senhor é tão esperto, deve ser esperto bastante para saber que é quem está rompendo com a lei agora, não eu. Não fiz nada ilegal desde o começo, mas enquanto ficar com a porta trancada, o senhor está exposto a acusação por assalto e coerção ilegal.

     - A lei não pode, como diz, tocá-lo - disse Holmes, destrancando e abrindo a porta - no entanto não existe um homem que mais mereça. Se a moça tem um irmão ou um amigo, ele deveria dar-lhe uma surra de chicote. Por Deus! - continuou, enrubescendo ao ver a zombaria no rosto do homem - não é parte de meu dever para com meus clientes, mas tenho um chicote bem à mão e acho que vou... - Deu dois passos rápidos à frente, mas antes que pudesse pôr a mão no chicote, ouviu o rumor de passos apressados na escada, a pesada porta batendo e o Sr. James Windibank correndo a toda velocidade pela rua.

     - Mas que patife de sangue-frio! - disse Holmes, rindo e atirando-se uma vez mais em sua cadeira. - Esse camarada irá de crime em crime até fazer realmente mau, e então acabará na forca. Esse caso, em certos aspectos, foi completamente desinteressante.

     - Não consigo acompanhar todos os passos de seu raciocínio.

     - Ora, era óbvio desde o começo que esse tal de Sr. Hosmer Angel devia ter um motivo muito forte para agir de forma tão curiosa, e era igualmente óbvio que o único homem beneficiado por esse incidente, pelo que sabíamos, era o padrasto. Depois o fato de que os dois homens nunca apareciam juntos, um só aparecendo quando o outro estava fora, era bastante sugestivo. Assim como os óculos e a estranha voz, que indicavam disfarce, como também as costeletas. Essas minhas suspeitas foram todas confirmadas pelo fato de bater sua assinatura a máquina, que, naturalmente, implicava que a letra do tio era familiar à moça e que ela reconheceria mesmo essa pequena escrita. Veja esses fatos isolados, aliados a outros menores, apontando na mesma direção.

     - E como os verificou?

     - Uma vez tendo localizado meu homem, foi fácil obter corroboração da firma para a qual ele trabalhava. Tomei a descrição do anúncio, tirei tudo que poderia ser um disfarce: costeletas, óculos, a voz, pedindo que me informassem se coincidia com a descrição de um de seus caixeiros viajantes. Já havia notado as peculiaridades da máquina de escrever, e escrevi para o próprio homem, pedindo que viesse aqui. Como esperava, sua resposta foi batida a máquina, e revelava os mesmos detalhes triviais, mas característicos. A volta do correio me trouxe uma carta de Westhouse & Marbank, da Rua Fenchurch, dizendo que a descrição se enquadrava perfeitamente à de seu empregado James Windibank. E foi tudo!

     - E a Srta. Sutherland?

     - Se contar a ela, não vai me acreditar. Lembre-se do velho provérbio persa: 'Há perigo para aquele que pega o filhote do tigre, e perigo também há para aquele que rouba a ilusão de uma mulher”. Há tanta sabedoria em Hafiz quanto em Horácio, e o mesmo conhecimento da vida.

 

                                                                                            Arthur Conan Doyle

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades