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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Supremacia Bourne / Robert Ludlum
A Supremacia Bourne / Robert Ludlum

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Supremacia Bourne

                      

Kowloon. A fervilhante extensão final da China que não é parte do norte, exceto em espírito... mas o espírito vai fundo e penetra pelas cavernas das almas dos homens, sem qualquer consideração pelos aspectos práticos, duros e irrelevantes das fronteiras políticas. A terra e a água são a mesma coisa, e é a vontade do espírito que determina como o homem as usará...  outra vez sem qualquer consideração por abstrações como a liberdade inútil ou o confinamento de que se pode escapar. A preocupação é apenas com barrigas vazias, com as barrigas das mulheres, as barrigas das crianças. Sobrevivência. Não há mais nada. Todo o resto é estrume espalhado pelos campos inférteis.

Era o pôr-do-sol, e tanto em Kowloon como no outro lado de Victoria Harbor, na ilha de Hong Kong, um manto invisível baixava gradativamente sobre o caos do dia no território. Os estridentes Aiyas! dos mascates das ruas eram abafados pelas sombras, enquanto negociações discretas nos níveis superiores das estruturas frias e imponentes, de vidro e aço, que marcavam a silhueta da colônia terminavam com acenos de cabeça e dar de ombros, e breves sorrisos de silenciosa aquiescência. A noite estava chegando, anunciada por um ofuscante sol laranja, penetrando por uma imensa, irregular e fragmentada muralha de nuvens a oeste — hastes bem definidas de energia inflexível, prestes a mergulharem além do horizonte, relutantes em permitirem que aquela parte do mundo esquecesse a luz.

Em breve a escuridão se estenderia pelo céu, mas não por baixo. Ali, as luzes feéricas de invenção humana iluminariam o mundo com fulgor — essa parte do mundo em que a terra e a água são avenidas de acesso e conflito. E com o interminável e estridente carnaval noturno, outros jogos começariam, jogos que a raça humana deveria ter abandonado com a primeira luz da Criação. Mas não havia vida humana então... e assim, quem podia registrar? Quem sabia? Quem se importava? A morte não era uma mercadoria.

Uma pequena embarcação, o potente motor contrastando com o exterior em péssimas condições, avançava em alta velocidade pelo Canal Lamma, contornando a costa, em direção ao porto. Para um observador desinteressado, seria apenas mais uma xiao wanju, o legado ao primogênito de um pescador outrora insignificante que obtivera uma pequena fortuna... uma noite de sorte incrível no mahjong, haxixe do Triângulo, jóias contrabandeadas de Macau, quem se importava como? O filho poderia lançar suas redes ou transportar sua mercadoria com mais eficiência, usando um hélice veloz em vez da vela lenta de um junco ou o lento motor de uma sampana. Mesmo os guardas chineses da fronteira e as patrulhas marítimas ao largo das praias de Shenzhen Wan não disparavam contra aqueles transgressores de menor importância; nada significavam, e quem sabia quantas famílias além dos Novos Territórios no continente poderiam se beneficiar? Podia ser até a família de um deles. As doces ervas das colinas ainda podiam encher as barrigas... talvez as deles mesmos. Quem se importava? Que viessem. E que fossem.

A pequena embarcação com a lona Bimini envolvendo os dois lados da cabine de proa diminuiu a velocidade e ziguezagueou cautelosamente pela flotilha dispersa de juncos e sampanas, voltando aos apinhados atracadouros em Aberdeen. Uns após outros, os tripulantes dessas embarcações gritaram insultos irados para a intrusa, seu motor insolente e sua esteira ainda mais insolente. Mas todos se tornavam estranhamente silenciosos quando a agressiva intrusa passava; alguma coisa sob a lona reprimia as súbitas explosões de fúria.

A embarcação disparou pelo corredor do porto, uma trilha de água escura, agora margeado pelas luzes brilhantes da ilha de Hong Kong à direita e de Kowloon à esquerda. Três minutos depois o motor de popa mudou de maneira audível para o registro mais baixo, enquanto o costado passava devagar por duas barcaças imundas atracadas, esgueirando-se para um espaço vazio no lado oeste do Tsim Sha-tsui, o apinhado e valorizado cais de Kowloon. As hordas estridentes de mercadores, preparando suas armadilhas noturnas para os turistas, não prestaram a menor atenção; era apenas mais uma jigi voltando da pescaria. Quem se importava?

Depois, como já acontecera com os tripulantes das embarcações no canal, as pessoas nos estandes mais próximos da insignificante intrusa, começaram a se aquietar. Vozes excitadas silenciaram, em meio a estridentes ordens e contra-ordens, enquanto os olhos eram atraídos para um vulto subindo a escada escura e oleosa para o píer.

Era um homem santo. O corpo estava envolto por um cafetã branco, que acentuava a altura e a magreza... muito alto para um Zhongguo ren, talvez com mais de um metro e oitenta. Mas pouco se podia ver do rosto, pois a túnica era folgada e a brisa soprava o tecido branco pelas feições morenas, ressaltando o branco dos olhos... olhos determinados, olhos fanáticos. Qualquer um podia perceber que não era um sacerdote comum. Era um heshang, um eleito, escolhido pelos anciãos de muita sabedoria, que podiam perceber o conhecimento espiritual interior de um jovem monge destinado a coisas mais elevadas. E não fazia mal que um monge assim fosse alto e esguio, que tivesse olhos de fogo. Tais homens santos atraíam atenção para si mesmos, para a sua presença — para seus olhos —, e a decorrência era contribuições generosas, tanto por medo como por reverência; principalmente por medo. Talvez aquele heshang viesse de uma das seitas místicas que vagueavam pelas colinas e florestas de Guangze ou de uma fraternidade religiosa das montanhas da distante Qing Gaoyuan — descendentes, ao que se dizia, de um povo dos longínquos Himalaias — sempre muito ostentosos e a que geralmente se devia temer, pois poucos compreendiam os seus obscuros ensinamentos. Eram ensinamentos versados em suavidade, mas com insinuações sutis de agonia indescritível, caso suas lições fossem ignoradas. Havia agonia demais na terra e na água... quem precisava de mais? Assim, era melhor dar aos espíritos, aos olhos de fogo. Talvez ficasse registrado. Em algum lugar.

O vulto de branco passou lentamente pelas multidões que se abriam à sua frente no cais, passou pelo congestionado píer da Star Ferry e desapareceu no crescente pandemônio do Tsim Sha-tsui. O momento passara, os estandes retomaram à sua histeria.

O sacerdote encaminhou-se para leste, pela Salisbury Road, até alcançar o Peninsula Hotel, cuja elegância discreta estava perdendo a batalha contra o ambiente ao redor. Virou para o norte pela Nathan Road, seguindo até o começo da Golden Mile, a rua das ruas, exuberante, em que multidões opostas clamavam por atenção. Tanto os nativos quanto os turistas observavam o imponente homem santo em sua passagem pelas lojas apinhadas e vielas abarrotadas de mercadorias, discotecas de três andares e cafés eróticos, onde cartazes enormes e amadorísticos apregoavam os encantos orientais, por cima de estandes que ofereciam as iguarias fumegantes do dim sum. Andou por quase dez minutos pelo carnaval esfuziante, de vez em quando respondendo a olhares com ligeiros acenos de cabeça, duas vezes sacudindo-a com firmeza ao dar ordens para o mesmo Zhongguo ren baixo e musculoso, que alternadamente o seguia e depois o ultrapassava, com passos rápidos, que pareciam de uma dança, virando-se para contemplar os olhos ardentes à procura de um sinal.

O sinal veio — dois bruscos acenos de cabeça —, e o sacerdote virou-se e passou pela entrada de cortina de contas de um cabaré ruidoso. O Zhongguo ren permaneceu do lado de fora, a mão discretamente por baixo da túnica folgada, os olhos correndo pela rua frenética, um lugar que não podia entender. Era uma insanidade! Uma afronta! Mas ele era o tudi; protegeria o homem santo com sua própria vida, por maior que fosse a agressão à sua sensibilidade

No interior do cabaré, as intensas camadas de fumaça eram cortadas por luzes coloridas errantes, a maior turbilhonando em círculos e se concentrando num palco elevado, onde um grupo de rock ululava num frenesi ensurdecedor, uma mistura incrível de punk e Extremo Oriente. Calças pretas lustrosas, bem justas e malfeitas, tremiam vertiginosamente em pernas compridas e esguias, por baixo de blusões pretos de couro, sobre camisas brancas de seda abertas até a cintura, cada cabeça raspada, cada rosto grotesco, pintados, para acentuar seu caráter oriental essencialmente passivo. E como a enfatizar o conflito entre Oriente e Ocidente, a música dissonante parava de vez em quando, de maneira inesperada, e afloravam os acordes melancólicos de uma melodia chinesa simples, enquanto os vultos se enrijeciam sob o bombardeio turbilhonante dos refletores.

O sacerdote permaneceu imóvel por um momento, contemplando a sala vasta e apinhada. Diversos fregueses, em graus variados de embriaguez, fitaram-no das mesas. Vários rolaram moedas em sua direção antes de se virarem para o outro lado, uns poucos se levantaram, largaram dólares de Hong Kong ao lado de seus drinques e se encaminharam para a porta. O heshang estava causando efeito, mas não o desejado pelo homem obeso, de smoking, que se aproximou dele.

— Posso servi-lo em alguma coisa, Homem Santo? — indagou o gerente do cabaré.

O sacerdote inclinou-se para a frente e sussurrou no ouvido do homem, pronunciando um nome. Os olhos do gerente se arregalaram, ele fez uma reverência e depois gesticulou para uma mesa pequena, junto à parede. O sacerdote acenou com a cabeça em agradecimento e acompanhou o gerente até a cadeira, enquanto os fregueses próximos olhavam, contrafeitos. O gerente inclinou-se e disse, com uma reverência que não sentia:

— Gostaria de tomar algum refresco, Homem Santo?

— Leite de cabra, se por acaso tiver. Se não, água pura será mais do que suficiente. E obrigado.

— É um privilégio do estabelecimento.

O gerente fez outra reverencia e afastou-se, tentando definir o dialeto lento e suave que não conseguia identificar. Mas não importava. Aquele sacerdote alto, de túnica branca., tinha negócios a tratar com o laoban, e isso era tudo o que importava. Chegara mesmo a pronunciar o nome do laoban, um nome raramente falado na Golden Mile. Naquela noite em particular, o poderoso taipan estava ali.., numa sala que não admitiria publicamente conhecer. Mas não cabia ao gerente informar ao laoban que o sacerdote se encontrava no cabaré; o homem de túnica deixara isso bem claro. Insistira que naquela noite a priva cidade devia ser absoluta. Quando o augusto taipan desejasse recebê-lo, um homem viria encontrá-lo. E assim tinha de ser; era a maneira do discreto laoban, um dos mais ricos e ilustres taipans de Hong Kong.

— Mande um garoto da cozinha sair à rua para providenciar leite de cabra —ordenou o gerente asperamente ao responsável pelo andar. — E diga a ele para se apressar. A existência de sua fétida prole vai depender disso.

O homem santo permaneceu sentado à mesa, passivamente, os olhos ardentes agora mais suaves, observando a atividade insensata, ao que tudo indicava sem condenar nem aceitar, mas apenas com a compaixão de um pai a contemplar filhos desgarrados.

Abruptamente, através das luzes em movimento, houve uma claridade intrometida. A várias mesas de distância, um fósforo forte se acendeu e apagou. Depois outro e finalmente um terceiro, este último levantado para uma cigarrilha preta e comprida. A sucessão de clarões de fósforos atraiu a atenção do sacerdote. Virou a cabeça lentamente na direção da chama, fixando-se no chinês solitário, barbudo e rudemente vestido que se desenhava na fumaça. Os olhos se encontraram; o aceno de cabeça do homem santo foi quase imperceptível, mal chegou a ser um movimento? sendo correspondido por um gesto também quase indefinível, enquanto o fósforo se extinguia.

Segundos depois, a mesa do fumante rudemente vestido pegou fogo, e as chamas se elevavam da superfície, espalhando-se depressa por todos os artigos de papel que ali estavam — guardanapos, cardápios, cestas de dim sum, em erupções isoladas de desastre em potencial. O desgrenhado chinês gritou e virou a mesa, com o maior estardalhaço, enquanto garçons corriam, berrando, na direção das chamas. Fregueses por todos os lados se levantaram, enquanto o fogo no chão — filetes de chamas azuis — inexplicavelmente se espalhava em torno dos pés a baterem. O pandemônio aumentou, enquanto as pessoas tentavam apagar as pequenas fogueiras com toalhas de mesa e aventais. O gerente e seus assistentes gesticulavam freneticamente, gritando que estava tudo sob controle, o perigo já passara. O conjunto de rock passou a tocar com uma intensidade ainda maior, tentando atrair a multidão de volta à sua órbita, afastando-a da área do pânico que já definhava.

E, de repente, houve um distúrbio ainda maior, uma erupção mais violenta. Dois empregados do cabaré colidiram com o Zhongguo ren em trajes esfarrapados, cuja negligência e fósforos enormes haviam causado o incêndio. Ele reagiu com cuteladas rápidas de Wing Chun — as mãos rígidas acertando em omoplatas e gargantas — enquanto os pés acertavam em barrigas, jogando os dois shi-ji para cima dos fregueses ao redor. A agressão física aumentou o pânico, o caos. O corpulento gerente, agora gritando, tentou intervir e também caiu, atordoado por um pontapé bem colocado nas costelas. O Zhongguo ren barbudo pegou então uma cadeira e jogou-a contra os vultos que berravam perto do homem caído, enquanto três outros garçons se metiam na confusão, em defesa de seu Zongguan. Homens e mulheres que apenas poucos segundos antes se limitavam a gritar passaram agora a sacudir os braços, agredindo qualquer um e todos que estivessem próximos. O grupo de rock atingiu seu limite máximo, a dissonância frenética à altura da cena. O tumulto era total, e o atarracado camponês olhou para o outro lado da sala, na direção da mesa pequena junto da parede. O sacerdote desaparecera.

O Zhongguo ren barbudo pegou uma segunda cadeira e espatifou-a contra uma mesa próxima, depois sacudiu uma perna quebrada para a multidão. Não faltava muito agora, mas aqueles poucos momentos eram cruciais.

O sacerdote passou pela porta do outro lado, na parede ao lado da entrada do cabaré. Fechou-a depressa, ajustando os olhos à semi-escuridão do corredor comprido e estreito. O braço direito estava rígido por baixo das dobras da túnica branca, o esquerdo estendido em diagonal pela cintura, também oculto pelo pano branco. No fim do corredor, a não mais que sete ou oito metros, um homem surpreso afastou-se abruptamente da parede, a mão direita enfiada sob o paletó para sacar, de um coldre invisível no ombro, um revólver enorme e de grosso calibre. O homem santo acenou com a cabeça, devagar, impassível, repetidamente, enquanto se adiantava, em passos graciosos, apropriados a uma procissão religiosa.

— Amita-fo, Amita-fo — murmurou ele suavemente, várias vezes, enquanto se aproximava do homem. — Tudo é sereno, tudo é paz, os espíritos assim querem.

— Jou matyeh? — O guarda estava ao lado de uma porta; empurrou a arma para a frente e acrescentou, no cantonês gutural de quem foi criado nos povoados do norte. — Está perdido, sacerdote? O que está fazendo aqui? Saia! Não pode entrar aqui!

— Amita-fo, Amita-fo...

— Saia! Agora!

O guarda não teve qualquer chance. O sacerdote puxou, das dobras na cintura, uma faca de gume duplo, fina como uma navalha. Passou-a pelo pulso do homem, quase separando do braço a mão que empunhava a arma, e depois passou a lâmina, com precisão cirúrgica, pela garganta de seu oponente; ar e sangue esguicharam, a cabeça foi arremessada para trás, numa massa de vermelho brilhante. O guarda caiu ao chão, já um cadáver.

Sem a menor hesitação, o sacerdote-assassino guardou a faca manchada de sangue na túnica e do lado direito tirou uma pequena metralhadora Uzi, o pente curvo com mais munição do que precisaria. Levantou o pé e lançou-o contra a porta com a força de um tigre das montanhas, depois correu para o interior, ao encontro do que sabia estar ali.

Cinco homens — Zhongguo ren — estavam sentados em torno de uma mesa, com bules de chá e copos de uísque forte perto de cada um; não havia papéis escritos em qualquer parte, não havia anotações ou memorandos, apenas ouvidos e olhos vigilantes. E à medida que cada par de olhos se virou em choque, os rostos se contorceram em pânico. Dois negociantes bem vestidos enfiaram as mãos por dentro dos paletós impecáveis, enquanto giravam em suas cadeiras; outro se jogou sob a mesa, enquanto os dois restantes se levantavam de um pulo, gritando, e corriam inutilmente para as paredes forradas de seda, desesperados, rogando por um perdão, mesmo sabendo que não haveria nenhum. Uma saraivada implacável atingiu os Zhongguo ren. O sangue jorrou de ferimentos fatais, crânios foram crivados de balas, olhos perfurados, bocas dilaceradas, num vermelho intenso, em gritos sufocados de morte. As paredes, o chão e a mesa envernizada reluziam de maneira chocante, com a prova sangrenta da morte. Por toda parte. Estava acabado.

O assassino contemplou sua obra. Satisfeito, ajoelhou-se ao lado de uma poça grande e estagnada de sangue, e passou nela o indicador. Tirou um pedaço de pano escuro da manga esquerda e estendeu-o por cima do que fizera. Levantou-se e saiu correndo da sala, desabotoando a túnica branca enquanto atravessava o corredor escuro; a túnica estava inteiramente aberta quando chegou à porta de ligação com o cabaré. Removeu a faca do tecido e ajeitou-a na bainha à cintura. Unindo as dobras do tecido com uma das mãos, o capuz no lugar, a arma letal segura do lado, abriu a porta e passou para o caos ruidoso, que não apresentava qualquer sinal de diminuir. Mas também por que deveria ser diferente? Ele se ausentara por apenas trinta segundos, não mais do que isso, e seu homem era bem treinado.

— Faai-di! — O grito partiu do camponês barbudo e atarracado de Cantão, a três metros de distância, que virava outra mesa e riscava mais um fósforo, largando-o no chão. — A polícia vai chegar a qualquer momento! O homem do bar acabava de pegar o telefone! Eu vi!

O sacerdote-assassino tirou a túnica do corpo e o capuz da cabeça. Às luzes frenéticas, seu rosto era tão macabro quanto o de qualquer componente do grupo de rock. Uma maquilagem intensa contornava os olhos, linhas brancas definindo o formato de cada um, o rosto de um castanho anormal.

— Siga na minha frente! — ordenou ele ao camponês.

Largou a túnica e a Uzi no chão, ao lado da porta, depois tirou um par de finas luvas cirúrgicas e guardou-as na calça de flanela.

Chamar a polícia para um cabaré na Golden Mile não era uma decisão tomada facilmente. Havia multas altas para administração insatisfatória, penalidades rigorosas pelos riscos para os turistas. A polícia conhecia esses riscos e agia rapidamente quando eles ocorriam. O assassino correu atrás do camponês de Cantão, que se juntou à multidão em pânico na entrada do cabaré, gritando para sair. O pequeno homem era um touro; os corpos à frente se afastaram sob a força de seus golpes. Os dois passaram pela porta e saíram para a rua, onde outra multidão se concentrara, gritando perguntas e epítetos, gozando o infortúnio do estabelecimento. Esgueiraram-se pelos espectadores excitados, e outro chinês baixo e musculoso, que esperava lá fora, acompanhou-os. Este pegou o braço do sacerdote sem hábito e levou-o para o mais estreito dos becos, onde tirou duas toalhas de baixo da túnica. Uma era macia e seca, a outra estava dentro de um plástico, quente, úmida e perfumada.

O assassino pegou a toalha úmida e começou a esfregá-la no rosto, em torno dos olhos, pela carne exposta do pescoço. Virou a toalha e repetiu o processo, com pressão ainda maior, limpando as têmporas e a linha dos cabelos, até que a pele branca apareceu. Enxugou-se com a segunda toalha, alisou os cabelos escuros e endireitou a gravata por cima da camisa creme, sob o blazer azul-marinho.

— Jau! — ordenou ele a seus dois companheiros, que saí ram correndo e desapareceram no meio da multidão.

E um ocidental solitário e bem-vestido saiu para a rua dos prazeres orientais.

Dentro do cabaré, o nervoso gerente censurava o homem do bar por ter chamado a jing cha; as multas cairiam em sua cabeça de merda! Pois a comoção inexplicavelmente se desvanecera, deixando os fregueses aturdidos. Garçons acalmavam os fregueses, dando tapinhas em ombros e removendo os destroços da confusão, endireitando mesas, providenciando novas cadeiras e distribuindo doses grátis de uísque. O grupo de rock concentrou-se nas músicas modernas prediletas e a ordem foi restabelecida, tão depressa quanto fora abalada. Com um pouco de sorte, pensou o gerente de smoking, a explicação de que um barman mais afoito confundira um bêbado beligerante com algo mais grave seria aceitável para a polícia.

E, de repente, todos os pensamentos de multas e pressão oficial se desvaneceram quando se olhos foram atraídos para um pano branco no chão, no outro lado da sala... diante da porta para as salas internas. Pano branco, um branco imaculado... o sacerdote? A porta! O laoban! A reunião! Respiração ofegante, o rosto coberto de suor, o obeso gerente correu entre as mesas até a túnica descartada. Ajoelhou-se, os olhos arregalados, prendendo a respiração ao ver o cano escuro de uma arma estranha saindo por baixo das dobras brancas. E o que o deixou sufocado, em seu terror que se avolumava, foi a visão de pequenas manchas e filetes finos de sangue lustroso e ainda não de todo seco no pano.

— Go hai maiyeh?

A pergunta foi feita por um segundo homem de smoking, só que sem o realce conferido pela faixa — na verdade, irmão do gerente e seu primeiro-assistente. E ele acrescentou uma imprecação, baixinho, enquanto o irmão recolhia a arma de aparência estranha na túnica manchada de sangue:

— Oh, maldito seja o cristão Jesus!

— Venha! — ordenou o gerente, levantando-se e encaminhando-se para a porta.

— A polícia! — protestou o irmão. — Um de nós tem de esperar aqui, falar com os guardas, acalmá-los, fazer o que for possível.

— Talvez não possamos fazer outra coisa que não oferecer as nossas cabeças! Depressa!

A prova estava no corredor escuro. O guarda abatido estava caído num rio do próprio sangue, a arma empunhada por uma mão quase que totalmente cortada do pulso. E a prova se tornava completa e irrefutável na sala de reunião. Cinco cadáveres ensangüentados estavam espalhados ali, numa confusão terrível. Um deles, de forma específica, chocante, atraiu o interesse horrorizado do gerente. Aproximou-se do corpo e crânio perfurados. Com um lenço, limpou o sangue e contemplou o rosto.

— Estamos perdidos — balbuciou ele. — Kowloon está perdida, Hong Kong está perdida, tudo está perdido.

— Como assim?

— Este homem é o Vice-Primeiro-Ministro da República Popular, sucessor do próprio Presidente.

— Olhe aqui!

O irmão primeiro-assistente estava inclinado sobre o corpo do laoban morto. Ao lado do cadáver ensangüentado, crivado de balas, havia um lenço preto. Estava aberto, os arabescos brancos exibindo manchas vermelhas. O irmão levantou o lenço e descobriu aturdido o que estava escrito no círculo de sangue por baixo: JASON BOURNE.

O gerente levantou-se de um pulo.

— Grande Jesus Cristão! — exclamou ele, o corpo inteiro tremendo. — Ele voltou! O assassino está de novo na Ásia! Jason Bourne! Ele voltou!

 

O sol mergulhava por trás das Montanhas Sangre de Cristo, na região central do Cobrado, enquanto o helicóptero Cobra emergia ruidosamente da claridade intensa — uma gigantesca silhueta em movimento — e descia para o limiar da floresta na encosta. A pista de concreto ficava a várias dezenas de metros de uma casa grande e retangular, de madeira e vidro grosso. Além dos geradores e discos de comunicações camuflados, não havia qualquer outra estrutura à vista. Arvores altas formavam uma muralha compacta, escondendo a casa de todos os forasteiros. Os pilotos daqueles aparelhos extremamente manobráveis eram recrutados entre os oficiais superiores do complexo de Cheyenne, em Cobrado Springs. Nenhum deles tinha patente inferior à de coronel, e todos haviam sido submetidos ao crivo do Conselho de Segurança Nacional, em Washington. Nunca falavam de suas viagens ao refúgio na montanha; o destino era sempre eliminado dos planos de vôo. As instruções eram transmitidas pelo rádio depois que os helicópteros já estavam no ar. O local não constava de qualquer mapa público, e seu sistema de comunicações estava além do escrutínio de aliados e inimigos. A segurança era total; tinha de ser. Aquele era um lugar para estrategistas; seu trabalho era tão sensível e freqüentemente acarretava implicações globais tão delicadas que os planejadores não podiam ser vistos juntos fora dos prédios do governo ou mesmo lá dentro, jamais em salas contíguas com portas de ligação. Havia olhos hostis e inquisitivos por toda parte — tanto aliados como inimigos — que estavam a par do trabalho daqueles homens; se os observassem juntos, os alarmes disparariam no mundo inteiro. O inimigo era vigilante, e os aliados resguardavam ciosamente os seus feudos de informações.

As portas do Cobra se abriram. Uma escada de aço foi baixada e um homem obviamente aturdido desceu para a luz dos refletores. Estava acompanhado por um general-de-divisão. O civil era esguio, de meia-idade, estatura mediana, vestia um terno listrado, camisa branca e gravata estampada. Mesmo ao sopro forte das pás do rotor em desaceleração, seu aprumo impecável se manteve intacto, como se fosse algo muito importante para ele e que não podia ser afetado. Ele seguiu o general, subindo um caminho de concreto até uma porta no lado da casa. A porta foi aberta quando os dois se aproximaram. Mas só o civil entrou; o general acenou com a cabeça, oferecendo uma saudação informal, que os militares veteranos reservam para os paisanos e oficiais do mesmo posto.

— Foi um prazer conhecê-lo, Sr. McAllister — disse o general. — Será levado de volta por outro.

— Não vai entrar?

— Nunca estive aí dentro — respondeu o general, sorrindo. — Apenas me certifico de que é de fato a pessoa e a levo do Ponto B ao Ponto C.

— Parece um desperdício para alguém do seu posto, general.

— Provavelmente não é — comentou o militar, sem acrescentar qualquer outro comentário. — E agora tenho outros deveres a cumprir. Adeus.

McAllister avançou por um corredor comprido, acompanhado agora por um homem corpulento, de rosto jovial, bem vestido, que apresentava todas as características externas de um agente da Segurança Interna — fisicamente ágil e competente, anônimo numa multidão.

— Fez boa viagem, senhor? — perguntou o homem mais jovem.

— E alguém pode fazer uma boa viagem numa coisa daquelas?

O guarda riu.

— Por aqui, senhor.

Passaram por várias portas, nos dois lados do corredor, chegando à extremidade, onde havia uma porta dupla maior, com duas luzes vermelhas nos cantos superiores, esquerdo e direito. Eram câmaras em circuitos separados. Edward McAllister não via artefatos assim desde que deixara Hong Kong, dois anos antes... e mesmo então porque fora designado por um breve período para o MI-6 do Serviço de Informações britânico, Setor Especial, para consultas. Em sua opinião, os britânicos pareciam paranóicos em questões de segurança. Jamais compreendera aquela gente, especialmente depois que lhe concederam uma citação por lhes prestar um serviço mínimo, que eles já deviam para começo de conversa dominar por completo. O guarda bateu na porta, houve um discreto estalido e ele a abriu, dizendo:

— Seu outro convidado, senhor.

— Muito obrigado — agradeceu uma voz.

O atônito McAllister reconheceu a voz no mesmo instante, de dezenas de noticiários de rádio e televisão, ao longo dos anos, as inflexões aprendidas numa escola preparatória exclusiva e diversas universidades de prestígio, com uma carreira de pós-graduação nas Ilhas Britânicas. Mas não houve tempo para se recompor. O homem de cabelos grisalhos, impecavelmente vestido, rosto alongado e vincado, que acusava os seus setenta e tantos anos, levantou-se de trás de uma mesa grande e atravessou a sala cautelosamente, com a mão estendida.

— Que bom que tenha vindo, Sr. Subsecretário! Posso me apresentar? Sou Raymond Havilland.

— Sei quem é, Sr. Embaixador. É um privilégio conhecê-lo, senhor.

— Embaixador sem pasta, McAllister, o que significa que só restou pouco privilégio. Mas ainda há muito trabalho.

— Não posso imaginar qualquer Presidente dos Estados Unidos nos últimos vinte anos que tenha sobrevivido sem o senhor.

— Alguns se confundiram, Sr. Subsecretário. Mas com sua experiência no Departamento de Estado, desconfio que sabe disso melhor do que eu. — O diplomata virou a cabeça. — Eu gostaria de apresentá-lo a John Reilly. Jack é um desses associados do Conselho de Segurança Nacional muito bem informados, sobre os quais não deveríamos ter qualquer conhecimento. Mas ele não é tão assustador, não é?

— Espero que não — murmurou McAllister, atravessando a sala e indo apertar a mão de Reilly, que se levantara de uma das duas cadeiras de couro na frente da mesa. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Reilly.

— O prazer é meu, Sr. Subsecretário — disse o homem um tanto obeso, de cabelos ruivos e testa sardenta.

Os olhos por trás dos óculos de aros de aço não transmitiam qualquer jovialidade; eram penetrantes e frios. Encaminhando-se para trás da mesa e indicando a cadeira vazia à direita para McAllister, Havilland disse:

— O Sr. Reilly está aqui para cuidar que eu me mantenha na linha. Pelo que compreendo, isso significa que há algumas coisas que posso dizer, outras não, e umas poucas que só ele pode dizer. — O embaixador sentou. — Se isso lhe parece enigmático, Sr. Subsecretário, receio que seja tudo o que posso lhe oferecer a essa altura.

— O que aconteceu durante as últimas cinco horas, desde que recebi a ordem para me apresentar na Base Andrews da Força Aérea, tem sido um enigma, Embaixador Havilland. Não tenho a menor idéia do motivo pelo qual me trouxeram até aqui.

— Pois então vou explicar, em termos gerais —disse Havilland, olhando para Reilly e inclinando-se por cima da mesa. — Está em condições de prestar um serviço extraordinário a seu país... e a interesses muito além deste país... superando qualquer coisa que possa ter feito durante a sua longa e notável carreira.

McAllister estudou o rosto austero do embaixador, sem saber como responder.

— Minha carreira no Departamento de Estado tem sido satisfatória e, espero, profissional, mas não pode ser classificada de notável, no sentido mais amplo da palavra. Para ser franco, as oportunidades nunca se apresentaram.

— Há uma agora. E se encontra numa posição excepcional para realizá-la.

— De que forma? E por quê?

— O Extremo Oriente — respondeu o diplomata, com uma estranha inflexão na voz, como se a resposta constituísse uma indagação. — Está no Departamento de Estado há mais de vinte anos, desde que concluiu o curso de doutorado em Estudos do Extremo Oriente, em Harvard. Serviu a seu país de maneira louvável, passando muitos anos na Ásia. Desde que voltou de seu último posto, seus julgamentos foram extremamente valiosos na formulação da política para aquela parte conturbada do mundo. É considerado um brilhante analista.

— Agradeço suas palavras, mas quero lembrar que havia outros na Ásia. E muitos outros, que alcançaram uma posição igual ou superior à minha.

— Acidentes de percurso, Sr. Subsecretário. Vamos falar francamente: tem se saído muito bem.

— Mas o que me distingue dos outros? Por que sou mais qualificado para essa oportunidade do que eles?

— Porque nenhum outro se compara ao senhor como um especialista nos problemas internos da República Popular da China... creio que desempenhou um papel fundamental nas conferências comerciais entre Washington e Pequim. Além disso, nenhum dos outros passou sete anos em Hong Kong. — Raymond Havilland fez então uma pausa e depois acrescentou: — E, finalmente, nenhum outro em nossos postos asiáticos jamais foi designado ou aceito pelo MI-Seis britânico, Setor Especial.

— Ahn... — McAllister compreendeu que a última qualificação, que lhe parecia a menos importante, tinha um certo significado para o diplomata. — Meu trabalho no serviço de informações foi mínimo, Sr. Embaixador. A aceitação do Setor Especial foi baseada mais em sua própria... desinformação; creio que é esta a palavra, do que em qualquer talento especial meu. Eles simplesmente acreditavam nos conjuntos errados de fatos e as somas não conferiam. Não levei muito tempo para encontrar os “dados corretos”, como me lembro que eles disseram.

— Eles confiaram em você, McAllister. E ainda confiam.

— Posso presumir que essa confiança é essencial para essa oportunidade, qualquer que seja?

— Claro. É vital.

— E posso agora saber qual é a oportunidade?

— Pode sim. — Havilland olhou para o terceiro participante da reunião, o homem do Conselho de Segurança Nacional. — Se quiser...

— Muito bem, é a minha vez — disse Reilly, um tanto afável.

Deslocou o tronco enorme na cadeira e fitou McAllister, os olhos ainda rígidos, mas sem a frieza que haviam exibido antes, como se agora pedisse por alguma compreensão.

— Nossas vozes estão sendo gravadas neste momento... é seu direito constitucional saber disso... mas é um direito bilateral. Deve jurar que vai manter em segredo absoluto as informações que lhe serão transmitidas aqui, não apenas no interesse da segurança nacional, mas também no interesse possivelmente mais amplo de condições mundiais específicas. Sei que tudo isso parece uma isca para aguçar seu apetite, mas não é essa a intenção. Estamos falando muito sério. Vai concordar com isso? Se violar o juramento pode ser processado em julgamento secreto, sob os estatutos de sigilo da segurança nacional.

— Como posso concordar com uma condição dessas se ainda não tenho a menor idéia de qual é a informação?

— Posso lhe oferecer uma idéia geral e será suficiente para responder sim ou não. Se a resposta for não, será levado de volta a Washington. Ninguém sairá perdendo.

— Pode falar.

— Muito bem. — Reilly falava em tom calmo e suave. — Vamos discutir determinados eventos que ocorreram no passado... não a história antiga, mas também não acontecimentos atuais. As ações foram repudiadas... enterradas, para ser mais preciso. Isso lhe parece familiar, Sr. Subsecretário?

— Sou do Departamento de Estado. Enterramos o passado quando não há qualquer sentido em revelá-lo. As circunstâncias mudam, os julgamentos feitos de boa fé ontem podem se tornar um problema amanhã. Não podemos controlar essas mudanças, e o mesmo acontece com os russos e chineses.

— É isso mesmo! — exclamou Havilland.

— Ainda não — objetou Reilly, levantando a mão para o embaixador. — O subsecretário é evidentemente um diplomata experiente. Não disse sim nem não. —O homem do CSN tornou a fitar McAllister, os olhos por trás dos óculos de aros de aço outra vez penetrantes e frios. — Qual é a sua resposta, Sr. Subsecretário? Quer continuar ou prefere parar por aqui?

— Uma parte de mim quer se levantar e sair daqui o mais depressa possível — respondeu McAllister, olhando alternadamente para os dois homens. — A outra parte quer ficar. — Fez uma pausa, os olhos se fixando em Reilly, depois acrescentou: — Quer tenha sido essa a sua intenção ou não, o fato é que meu apetite está aguçado.

— É um preço muito alto a pagar por sentir fome —comentou o irlandês.

— É mais do que isso. — O subsecretário falava suave- mente. — Sou um profissional... e se sou o homem de que precisa, então não tenho opção, não é mesmo?

— Infelizmente, preciso ouvir uma resposta direta — insistiu Reilly. — Quer que eu repita a pergunta?

— Não será necessário. — McAllister franziu o rosto, concentrado em algum pensamento. — Eu, Edward Newington McAllister, compreendo perfeitamente que tudo o que se disser durante esta reunião... — Fez uma pausa, fitando Reilly nos olhos. — Presumo que vai preencher os detalhes, como horário, local e pessoas presentes.

— Data, local, hora e minuto, identificações... tudo está sendo devidamente registrado.

— Obrigado. Vou querer uma cópia antes de ir embora.

— Não tem problema. — Sem altear a voz, Reilly olhou para a frente e deu uma ordem. — Por favor, anote isso.Quero uma cópia desta gravação para o participante no momento de sua partida. Providencie também o equipamento para ele verificar o conteúdo no local. Vou rubricar a cópia... Continue, por favor, Sr. McAllister.

— Agradeço a presteza... Em relação ao que se disser nesta reunião, aceito a condição de sigilo absoluto. Não falarei com ninguém a respeito de qualquer aspecto da conversa, a menos que seja instruído em contrário, pessoalmente, pelo Embaixador Havilland. Compreendo também que posso ser processado em julgamento secreto se violar este acordo. Contudo, se tal julgamento vier a ocorrer, reservo-me o direito de confrontar meus acusadores, não suas declarações ou depoimentos. Acrescento isto porque não posso conceber quaisquer circunstâncias em que pudesse violar o juramento que acabo de prestar.

— Mas há circunstâncias em que isso pode acontecer — ressaltou Reilly, gentilmente.

— Não pelo meu código.

— Extremo maltrato físico, agentes químicos, ser enganado por homens e mulheres mais experientes. Há sempre meios, Sr. Subsecretário.

— Faço questão de repetir. Caso eu venha a ser processado algum dia... e isso já aconteceu com outros... reservo-me o direito de confrontar qualquer um e todos os meus acusadores.

— Está certo. Reilly tornou a olhar para a frente e disse: — Encerre a gravação e desligue os microfones. Confirme.

— Confirmado — respondeu uma voz estranha, saindo de um alto-falante em algum lugar por cima. — Vocês estão agora... desligados.

— Continue, Sr. Embaixador — disse o homem de cabelos ruivos. — Só vou interromper quando julgar necessário.

— Tenho certeza que sim, Jack. —Havilland virou-se para McAllister. — Retiro minha declaração anterior. Ele é mesmo um terror. Depois de quarenta e tantos anos de serviço, me aparece um fedelho ruivo que deveria fazer uma dieta para me dizer quando devo me calar.

Os três homens sorriram; o idoso embaixador conhecia o momento e o método para reduzir a tensão. Reilly sacudiu a cabeça e abriu os braços, com expressão jovial.

— Eu nunca faria isso, senhor... ou, pelo menos, não de maneira muito óbvia.

— O que acha, McAllister? Vamos desertar para Moscou e dizer que foi ele o recrutador. Os russos provavelmente nos dariam dachas e ele iria para Leavenworth.

— O senhor receberia a dacha, Sr. Embaixador. Eu partilharia um apartamento com uma dúzia de siberianos. Não, obrigado. Não é a mim que ele está interrompendo.

— Muito bom. Fico surpreso que nenhum daqueles intrometidos bem-intencionados do Gabinete Oval jamais o tenha escolhido para a sua equipe ou pelo menos o tivesse mandado para a ONU.

— Eles nem tinham conhecimento da minha existência.

— Essa situação vai mudar. — Havilland ficou abrupta- mente sério. Fez uma pausa, olhando para o subsecretário, depois continuou, em voz mais baixa: — Já ouviu falar alguma vez no nome de Jason Bourne?

— Como alguém que trabalhou na Ásia poderia deixar de ouvir? — respondeu McAllister. — De trinta e cinco a quarenta assassinatos, o assassino de aluguel que se esquivou a todas as armadilhas. Um matador patológico, cuja única moral era o preço do crime. Dizem que era americano... que é americano, não sei direito, pois desapareceu por completo... e que era um padre despojado do hábito, um importador que roubou milhões, um desertor da Legião Estrangeira francesa e só Deus sabe quantas outras histórias. A única coisa que sei com certeza é que ele nunca foi apanhado e que nosso fracasso em capturá-lo foi um fardo para a diplomacia americana em todo o Extremo Oriente.

— Havia algum padrão em suas vítimas?

— Absolutamente nenhum. Foram as mais variadas, a torto e a direito, pode-se dizer assim. Dois banqueiros aqui, três adidos ali... significando agentes da CIA... um ministro de estado de Délhi, um industrial de Cingapura e numerosos... até demais... políticos, de um modo geral homens decentes. Seus carros eram bombardeados nas ruas, os apartamentos explodidos. Houve também maridos e esposas infiéis, amantes de todos os tipos, envolvidos em vários escândalos. Não havia ninguém que não matasse, nenhum método que fosse muito brutal ou aviltante para ele. Oferecia soluções finais para egos feridos... Não havia padrão nenhum, apenas dinheiro. A oferta mais alta. Ele era um monstro... é um monstro, se ainda está vivo.

Mais uma vez, Havilland inclinou-se para a frente, os olhos fixados no Subsecretário de Estado.

— Disse que ele desapareceu por completo. Apenas isso? Não soube de mais nada, não ouviu quaisquer rumores ou informações confidenciais de nossas embaixadas ou consulados na Ásia?

— É claro que houve rumores, mas nenhum jamais foi confirmado. A história que ouvi com mais freqüência veio da polícia de Macau, onde a presença de Bourne foi constatada pela última vez. Disseram que ele não estava morto nem aposentado. Em vez disso, seguira para a Europa, à procura de clientes mais ricos. Se for verdade, pode ser apenas a metade da história. A polícia também declarou que diversos informantes revelaram que vários contratos saíram errados para Bourne. Em um caso, ele matou o homem errado, uma figura eminente do submundo malasiano. Em outro, teria estuprado a mulher de um cliente. Talvez o círculo estivesse se fechando sobre Bourne... e talvez não.

— Como assim?

— A maioria de nós aceitou a primeira metade da história não a segunda. Bourne não mataria o homem errado, especialmente alguém assim; não cometia esse tipo de erro. E se violentou a mulher de um cliente... o que é duvidoso... seria por ódio ou vingança. Teria obrigado o marido manietado a assistir e depois mataria os dois. A maioria de nós presumiu que a primeira história era a verdadeira. Bourne foi para a Europa, onde havia peixes maiores para fritar... e matar.

— Vocês estavam condicionados a aceitar essa versão — comentou Havilland, recostando-se na cadeira.

— Como assim?

— O único homem que Jason Bourne matou na Ásia pós- Vietnam foi um agente furioso que tentou matá-lo.

McAllister estava aturdido.

— Não estou entendendo.

— O Jason Bourne que acaba de descrever nunca existiu. Era um mito.

— Não pode estar falando sério.

— Estou sim. Foram tempos turbulentos no Extremo Oriente. As redes de tráfico de tóxicos, operando do Triângulo Dourado, travavam uma guerra desorganizada e secreta. Cônsules, vice-cônsules, policiais, políticos, quadrilhas de criminosos, patrulhas de fronteira... as ordens sociais mais altas e mais baixas... todos estavam sendo afetados. Dinheiro em quantidades incríveis era o instrumento de corrupção. Sempre e onde quer que ocorresse um assassinato bem divulgado... independente das circunstâncias ou de quem fosse acusado... Bourne entrava em cena e assumia o crédito pela morte.

— Ele era o assassino — insistiu um confuso McAllister. — Havia os sinais, os seus sinais! Todo mundo sabia disso!

— Todo mundo presumia, Sr. Subsecretário. Um telefonema irônico para a polícia, uma pequena peça de roupa enviada pelo correio, um lenço preto encontrado nas moitas no dia seguinte. Tudo era parte da estratégia.

— Estratégia? Mas do que está falando?

— Jason Bourne... O Jason Bourne original... era um assassino condenado, um fugitivo que morreu com uma bala na cabeça, num lugar chamado Tam Quan, nos últimos meses da guerra no Vietnam. Foi uma execução na selva. O homem era um traidor. O cadáver ficou lá para apodrecer... ele simplesmente desapareceu. Vários anos depois, o homem que o executou assumiu sua identidade para um dos nossos projetos, um projeto que quase deu certo, que deveria ter dado certo, mas que acabou fracassando.

— Corno assim?

— Escapou do nosso controle. Esse homem... um homem de bravura excepcional... passou três anos trabalhando para nós com o nome de Jason Bourne. Foi ferido, e o resultado foi uma amnésia. Ele perdeu a memória, não sabia quem era nem quem deveria ser.

— Santo Deus!

— Ele estava entre o fogo e a frigideira. Com a ajuda de um médico alcoólatra numa ilha do Mediterrâneo, tentou reconstituir sua vida, sua identidade. Mas, infelizmente, não conseguiu. Ele fracassou, mas a mulher que o amparara não. Seus instintos eram acurados; tinha certeza de que ele não era um assassino. Deliberadamente, forçou-o a analisar suas palavras, a avaliar seus talentos, até efetuar os contatos que o levariam de volta a nós. Acontece que nós, embora possuindo o mais sofisticado serviço de informações do mundo, não demos atenção ao fator humano. Preparamos uma armadilha para matá-lo...

— Devo interromper, Sr. Embaixador — disse Reilly.

— Por quê? — protestou Havilland. — Foi o que fizemos, e a conversa não está mais sendo gravada.

— Um indivíduo tomou essa decisão, não o governo dos Estados Unidos. isso deve ficar bem claro, senhor.

— Está certo — concordou Havilland, acenando com a cabeça. — Seu nome era Conklin, mas isso é irrelevante, Jack .

O pessoal do governo aceitou. Simplesmente aconteceu.

— O pessoal do governo também contribuiu para salvar sua vida.

— Só depois do fato consumado — murmurou Havilland.

— Mas por quê? — indagou McAllister, agora inclinado para a frente, fascinado pela estranha história. — Ele era um dos nossos. Por que alguém haveria de querer matá-lo?

— Sua perda de memória foi encarada como outra coisa. Acreditou-se erroneamente que ele mudara de lado, que matara três dos seus controles e sumira com muito dinheiro... fundos do governo, num total de quase cinco milhões de dólares.

— Cinco milhões? — Atônito, o subsecretário de Estado arriou lentamente na cadeira. —Recursos dessa magnitude estavam à disposição dele pessoalmente?

— Estavam —respondeu o embaixador. — E também eram parte do projeto, da estratégia.

— Presumo que é nisso que o silêncio se torna necessário... no projeto.

— É indispensável — interveio Reilly. — Não por causa do projeto em si... apesar de não termos apresentado desculpas pela operação... mas por causa do homem que recrutamos para se tornar Jason Bourne e do lugar de onde ele saiu.

— A história está cada vez mais enigmática.

— Vai ficar claro.

— Falem sobre o projeto, por favor.

Reilly olhou para Raymond Havilland, que acenou com a cabeça e disse:

— Criamos um assassino a fim de atrair para uma armadilha o mais terrível assassino da Europa.

— Carlos?

— Capta as coisas depressa, Sr. Subsecretário.

— Quem mais podia ser? Na Ásia, Bourne e o Chacal estavam sendo constantemente comparados.

— Essas comparações foram devidamente incentivadas — explicou Havilland. — E muitas vezes ampliadas e espalhadas pelos estrategistas do projeto, um grupo conhecido como Casa de Pedra 71. O nome derivou de uma casa segura na Rua 71, em Nova York, onde o ressuscitado Jason Bourne foi treinado. Era o posto de comando do projeto, e não deve esquecer esse nome.

— Estou entendendo... — murmurou McAllister, pensativo. — As comparações, aumentando a reputação de Bourne, serviam como um desafio a Carlos. Foi nesta altura que Bourne se transferiu para a Europa... a fim de levar o desafio diretamente ao Chacal. Para forçá-lo a se expor, confrontando o desafiante.

— Muito perspicaz, Sr. Subsecretário. Em suma, era essa mesmo a estratégia.

— Era extraordinária, brilhante mesmo. E não é necessário ser um perito para se compreender isso. Deus sabe que eu não sou.

— Mas pode se tornar...

— E disse que o homem que se tornou Bourne, o assassino mítico, passou três anos representando o papel e depois foi ferido...

— Levou um tiro —interrompeu Havilland. — Membranas do crânio foram destruídas.

— E ele perdeu a memória?

— Completamente.

— Que coisa terrível!

— Apesar de tudo o que lhe aconteceu e com a ajuda da tal mulher... ela era uma economista que trabalhava para o governo canadense, diga-se de passagem... ele chegou bem perto de descobrir tudo. Não acha que é uma história extraordinária?,

— É simplesmente incrível. Mas que espécie de homem faria isso... seria capaz de fazer isso?

O ruivo John Reilly tossiu de leve; o embaixador olhou para ele e passou-lhe a palavra.

— Estamos chegando agora ao ponto zero — anunciou o cão de guarda, deslocando o corpanzil na cadeira para fitar McAllister. — Se ainda tem alguma dúvida, talvez eu aceite que pule fora agora.

— Não gosto de me repetir. Já tem a sua gravação.

— A vontade é sua.

— Imagino que isso é outra maneira que vocês têm de dizer que pode não haver sequer um julgamento.

— Eu nunca diria isso.

McAllister engoliu em seco, sustentando o olhar calmo do homem do CSN. Depois de um momento, virou-se para Havilland e disse:

— Continue, por favor, Sr. Embaixador. Quem é esse homem? De onde ele veio?

— Seu nome é David Webb. É no momento professor- associado de Estudos Orientais numa pequena universidade no Maine. Casou com a canadense que literalmente o guiou para fora de seu labirinto. Sem ela, Webb teria sido morto... mas também sem ele, a canadense acabaria como um cadáver em Zurique.

— Extraordinário! — murmurou McAllister, a voz quase inaudível.

— Ela é a segunda esposa de Webb. Seu primeiro casamento terminou num ato trágico de massacre brutal... o momento em que sua história começou para nós. Há alguns anos, Webb era um jovem diplomata, servindo em Phnom Penh, um brilhante estudioso do Extremo Oriente, que falava fluente- mente várias línguas orientais e era casado com uma tailandesa, a quem conhecera no curso de pós-graduação. Tinham dois filhos e moravam numa casa à beira do rio. Era uma vida ideal para um homem assim. Combinava o conhecimento de que Washington precisava na região com a oportunidade de viver em seu próprio museu. Foi então que começou a escalada no Vietnam. E veio a manhã em que um caça a jato solitário... ninguém sabe realmente de que lado, mas também ninguém jamais disse isso a Webb... sobrevoou o local em baixa altitude e metralhou sua mulher e filhos, enquanto brincavam na água. Os corpos ficaram crivados de balas. Flutuaram para a margem do rio, enquanto Webb tentava alcançá-los. Ele recolheu-os, gritando impotente para o avião que desaparecia lá em cima.

— Que coisa horrível! — sussurrou McAllister.

— Foi nessa ocasião que Webb se transformou. Virou um homem que nunca fora, que nunca se imaginara capaz de ser. Tornou-se um guerrilheiro, conhecido como Delta.

— Delta? — repetiu o subsecretário de Estado. — Um guerrilheiro? Não estou entendendo.

— Nem poderia. — Havilland olhou para Reilly e depois voltou a se fixar em McAllister. — Como Jack deixou bem claro, estamos agora no ponto zero. Webb foi para Saigon, dominado pelo ódio. Ironicamente, através dos esforços de um agente da CIA chamado Conklin, que anos mais tarde tentou matá-lo, ingressou numa unidade de operações clandestinas chamada Medusa. Jamais se usavam nomes em Medusa, apenas as letras do alfabeto grego... e Webb tornou-se Delta Um.

— Medusa? Nunca ouvi falar.

— Ponto zero — disse Reilly. — O arquivo de Medusa ainda é secreto, mas recebemos permissão para uma revelação limitada neste caso. Os grupos da Medusa eram integrados por elementos internacionais que conheciam os territórios norte e sul do Vietnam. Para ser franco, quase todos eram criminosos... traficantes de tóxicos, ouro, armas, jóias, toda e qualquer espécie de contrabando. Havia também assassinos, fugitivos condenados à morte à revelia... e um punhado de colonos cujos negócios tinham sido confiscados, pelos dois lados. Contavam conosco... o Tio Grande... para resolver todos os seus problemas, em troca de se infiltrarem em áreas inimigas, matando os suspeitos de colaboração com os vietcongues e os chefes de aldeia que julgávamos hostis, além de promoverem, sempre que possível, a fuga de prisioneiros de guerra. Eram equipes de assassinato... esquadrões da morte, se preferir assim... e isso explica quase tudo. Mas é claro que nunca o diremos. Erros foram cometidos, milhões roubados. E é claro também que a maioria daquele pessoal nunca seria aceita em qualquer exército civilizado, inclusive Webb.

— Com seus antecedentes, suas credenciais acadêmicas, como ele pôde ingressar voluntariamente num grupo assim?

— Webb tinha um motivo irresistível — comentou Havilland. — Para ele, aquele avião em Phnom Penh era norte-vietnamita.

— Alguns diziam que ele era louco — continuou Reilly. — Outros afirmavam que era um tático extraordinário, o supremo guerrilheiro, capaz de compreender a mente oriental e líder dos mais agressivos grupos da Medusa, temido pelo Comando de Saigon tanto quanto pelo inimigo. Webb era incontrolável, as únicas regras que seguia eram as suas. Parecia empenhado numa caçada pessoal, à procura do homem que pilotara aquele avião e destruíra sua vida. Tornou-se a sua guerra, a sua ira; quanto mais violenta ficava, mais satisfatória para ele... ou talvez mais o aproximasse de seu desejo de morte.

— Morte?...?

O subsecretário de Estado deixou a palavra pairando no ar.

— Era a teoria predominante na ocasião — explicou o embaixador.

— A guerra terminou para Webb... ou Delta... tão desastrosamente quanto para o resto de nós — acrescentou Reilly. — Talvez pior, porque nada restou para ele. Não havia mais propósito, nada para atacar, ninguém para matar. Até que o abordamos e lhe oferecemos uma razão para continuar a viver. Ou talvez uma razão para continuar a tentar morrer.

— Transformando-se em Bourne e saindo à procura de Carlos, o Chacal — arrematou McAllister.

— Exatamente — confirmou o homem do Conselho de Segurança Nacional.

Houve um breve momento de silêncio, rompido por Havilland:

— Precisamos de sua volta.

As palavras foram pronunciadas suavemente, mas caíram como um machado em madeira dura.

— Carlos tornou a aparecer?

O embaixador sacudiu a cabeça.

— Não na Europa. Precisamos dele de volta na Ásia, e não podemos desperdiçar um minuto sequer.

— Alguém mais? Outro... alvo? — McAllister engoliu em seco, involuntariamente. — Já falaram com ele?

— Não podemos abordá-lo. Não diretamente.

— Por que não?

— Ele não nos deixaria passar por sua porta. Não confia em qualquer coisa ou pessoa de Washington; não se pode culpá-lo por isso. Por dias e semanas ele gritou por socorro, mas não quisemos escutar. Em vez disso, tentamos matá-lo.

— Devo objetar outra vez — interveio Reilly. —Não fomos nós. Foi um indivíduo, com base numa informação errada. E o governo investe no momento mais de quatrocentos mil dólares por ano num programa de proteção a Webb.

— De que ele escarnece. Acha que não passa de uma ar-

madilha para Carlos, caso o Chacal venha a descobri-lo. Está convencido de que vocês não se importam com ele e não sei se está muito longe da verdade. Ele viu Carlos. O fato de que o rosto ainda não entrou em foco em sua mente é algo que Carlos desconhece. O Chacal tem todos os motivos para procurar Webb. E se isso acontecer, vocês terão a sua segunda oportunidade.

— As possibilidades de Carlos encontrá-lo são tão remotas que se tornam praticamente inexistentes. Os registros da Casa de Pedra estão enterrados; e mesmo que isso não acontecesse, não contêm qualquer informação atualizada sobre o paradeiro de Webb ou o que ele faz.

— Não venha com essa, Sr. Reilly — protestou Havilland, irritado. — Os registros revelam seus antecedentes e qualificações. Com base nisso, até que ponto seria difícil? Ele é obviamente um acadêmico.

— Não estou lhe fazendo qualquer oposição, Sr. Embaixador — respondeu Reilly, um tanto abrandado. — Só quero deixar tudo bem claro. Vamos ser francos. Webb tem de ser tratado com o maior cuidado. Já recuperou grande parte de sua memória, mas não toda. De qualquer forma, recordou o bastante sobre Medusa para constituir uma ameaça considerável aos interesses do país.

— Como assim? — indagou McAllister. — Talvez não tenha sido a melhor e provavelmente não foi a pior, mas foi em suma uma estratégia militar em tempo de guerra.

— Uma estratégia que não foi aprovada, não foi registrada e nem reconhecida. Não há qualquer documento oficial.

— Como é possível? A operação foi financiada, e quando recursos são aplicados...

— Não precisa me explicar os regulamentos — interrompeu-o o obeso agente de informações. — Não estamos sendo gravados agora, mas não esqueça que tenho o seu juramento.

— É essa a sua resposta?

— Não. É a seguinte: não há estatuto de limitação e prescrição dos crimes de guerra, Sr. Subsecretário... e assassinatos e outros crimes violentos foram cometidos contra nossas próprias forças e contra o pessoal aliado. De um modo geral, foram cometidos por assassinos e ladrões no processo de saquear, estuprar e matar. Quase todos eram criminosos patológicos. Por mais eficaz que tenha sido sob muitos aspectos, Medusa foi um erro trágico, nascido do ódio e da frustração numa situação em que a vitória era impossível. De que adiantaria reabrir todas as velhas feridas? Além dos processos contra nós, iríamos nos tornar parias aos olhos de grande parte do mundo civilizado.

— Com já mencionei, não acreditamos em reabrir feridas no Departamento de Estado — comentou McAllister suave- mente, com alguma relutância. Voltando-se para o embaixador, acrescentou: — Estou começando a compreender. Quer que eu entre em contato com esse David Webb e tente persuadi-lo a voltar à Ásia. Para outro projeto, outro alvo... embora eu nunca tenha usado antes, em toda a minha vida, a palavra nesse contexto. E presumo que pedem a minha ajuda porque há paralelos evidentes no início de nossas carreiras... somos homens da Ásia. Assim, presumivelmente, temos percepções comuns em relação ao Extremo Oriente. E acham que ele vai me escutar.

— Essencialmente, é isso.

— Contudo, assegura que ele não quer qualquer contato conosco. É onde minha compreensão falha. Como eu poderia conseguir alguma coisa?

— Faremos tudo juntos. E como ele outrora fazia as regras para si mesmo, também vamos fazê-las agora. É indispensável.

— Por causa de um homem que vocês querem que seja morto?

— “Eliminado” é uma palavra mais apropriada. Tem de ser feito.

— E Webb pode fazê-lo?

— Não. Jason Bourne pode. Nós o despachamos sozinho para a clandestinidade por três anos, sob uma pressão extraordinária... e de repente ele perdeu a memória, passou a ser caçado como um animal. Apesar disso, conservou a capacidade de se infiltrar e matar. Estou sendo um tanto rude.

— Posso compreender. Já que não estamos sendo gravados... e caso isso ainda aconteça... — O subsecretário lançou um olhar de desaprovação para Reilly, que sacudiu a cabeça e deu de ombros. — Posso saber quem é o alvo?

— Pode, sim... e quero que grave o nome na memória, 

Sr. Subsecretário. É um ministro de Estado chinês, Sheng Chou Yang.

McAllister corou, furioso.

— Não preciso gravar o nome e acho que sabe disso muito bem. Ele trabalhava no grupo de planejamento econômico chinês e ambos participamos de conferências comerciais em Pequim, no final dos anos setenta. Li muito a seu respeito, analisei-o. Sheng era meu equivalente e eu não podia fazer por menos... um fato que desconfio que o senhor também sabe.

— Acha mesmo? — O embaixador de cabelos grisalhos alteou as sobrancelhas escuras e ignorou a censura. — E o que os seus estudos revelaram? O que aprendeu a respeito de Sheng?

— Ele era considerado muito inteligente, muito ambicioso... mas isso fica evidente por sua ascensão na hierarquia de Pequim. Foi reconhecido por observadores do Comitê Central há alguns anos, na Universidade Fudan, em Xangai. Inicialmente porque conhecia muito bem a língua inglesa e porque possuía uma noção firme e até mesmo sofisticada da economia ocidental.

— E que mais?

— Foi considerado um material promissor e, depois de uma doutrinação profunda, enviaram-no para a Escola de Economia de Londres, a fim de realizar estudos de pós-graduação. E foi assim que a coisa pegou.

— Pode explicar isso?

— Sheng é um marxista irredutível em termos de estado centralizado, mas tem um saudável respeito pelos lucros capitalistas.

— Ahn... — murmurou Havilland. — Quer dizer que ele aceita o fracasso do sistema soviético?

— Atribuiu esse fracasso à tendência russa para a corrupção e a conformidade insensata nos escalões superiores e o álcool nas camadas inferiores. Para seu crédito, eliminou uma parcela considerável desses abusos nos centros industriais.

— Não parece que ele foi treinado na IBM?

— Sheng é responsável por muitas das novas políticas comerciais da República Popular da China. E, com isso, ganhou muito dinheiro pan seu país. — O subsecretário de Estado tornou a se inclinar para a frente, os olhos intensos, uma expressão espantada... talvez atordoada fosse uma definição mais acurada. —Por que alguém no Ocidente haveria de querer Sheng morto? É um absurdo! Ele é nosso aliado econômico, um fator de estabilização política na maior nação do mundo, que se opõe a nós ideologicamente! Por intermédio dele e de outros homens iguais, conseguimos chegar a vários acordos. Sem ele, qualquer que seja o curso, há o risco de desastre. Sou um analista profissional da China, Sr. Embaixador. E insisto: o que está sugerindo é um absurdo. Um homem do seu gabarito deveria reconhecer isso antes de qualquer outro.

O idoso diplomata fitou seu acusador nos olhos com expressão firme, e quando falou foi devagar, escolhendo as palavras com todo cuidado:

— Há poucos momentos, estávamos no ponto zero. Um ex-funcionário do serviço diplomático chamado David Webb tornou-se Jason Bourne para um propósito. Da mesma forma, Sheng Chou Yang não é o homem que você conhece, não é o homem que estudou como seu equivalente. Ele virou esse homem com um propósito.

— Mas do que está falando? — protestou McAllister, na defensiva. — Tudo o que eu disse a respeito de Sheng está registrado... em registros oficiais... a maioria ultra-secreta e somente para os olhos de quem está autorizado.

— Somente para os olhos? — repetiu o embaixador, em tom de cansaço. — Para os ouvidos e para as línguas também... mexendo tão depressa quanto um tigre abana a cauda. Porque um carimbo oficial foi acrescentado a observações registradas, consultadas por homens que não têm a menor idéia de onde vieram as informações... estão lá e isso é suficiente. Mas não é, Sr. Subsecretário. Nunca foi.

— É evidente que possui outras informações de que não disponho — disse friamente o homem do Departamento de Estado. — Se é que é mesmo informação, e não desinformação. O homem que descrevi... o homem que conheci... é Sheng Chou Yang.

— Assim como o David Webb que lhe descrevemos era Jason Bourne?... Por favor, não fique irritado. Não estou fazendo um jogo. É importante que compreenda que Sheng não é o homem que conheceu. Nunca foi.

— Então quem conheci? Quem era o homem que participou daquelas conferências?

— Ele é um traidor, Sr. Subsecretário. Sheng Chou Yang é um traidor de seu país. Quando sua traição for desmascarada... como é inevitável... Pequim vai responsabilizar o Mundo Livre. As conseqüências desse erro irremediável são inconcebíveis. Contudo, não há qualquer dúvida quanto a seu propósito.

— Sheng... um traidor? Não posso acreditar! Ele é idolatrado em Pequim! Um dia ainda vai se tornar presidente!

— Se isso acontecer, a China será governada por um nacionalista fanático, cujas raízes ideológicas estão em Formosa.

— Está louco... completamente louco! Mas espere um instante! Disse que ele tinha um objetivo... “não há qualquer dúvida quanto a seu propósito”, foi o que falou.

— Sheng e seu pessoal tencionam assumir o controle de Hong Kong. Ele está preparando uma blitz econômica secreta, pondo todo o comércio e todas as instituições econômicas do território sob o controle de uma comissão “neutra”, uma espécie de câmara de compensação, aprovada por Pequim... o que significa aprovada por ele. O instrumento para isso será o tratado britânico que expira em 1997, e sua comissão constitui um prelúdio supostamente razoável à anexação e controle. Vai acontecer quando o caminho estiver livre para Sheng, quando não houver mais obstáculos à sua frente. Quando sua palavra for a única que conta em questões econômicas. Pode ser dentro de um ou dois meses. Ou daqui a uma semana.

— Acha mesmo que Pequim concordou com isso? — pro testou McAllister. — Está errado. Isso é uma loucura! A República Popular jamais vai tocar em Hong Kong em termos substantivos. Afinal, os chineses movimentam sessenta por cento de sua economia através do território. Os Acordos da China garantem cinqüenta anos de Zona Econômica Livre, e Sheng é um dos signatários, o mais importante!

— Mas Sheng não é Sheng... não como o conhece.

— Mas então quem ele é?

— Prepare-se para uma surpresa, Sr. Subsecretário. Sheng Chou Yang é o primogênito de um industrial de Xangai que fez sua fortuna no mundo corrupto da velha China, o Kuomintang de Cbiang Kai-shek. Quando ficou patente que a revolução  de Mao seria vitoriosa, a família fugiu, como aconteceu com tantos latifundiários e senhores da guerra, levando tudo o que podiam transferir. O velho é agora um dos mais poderosos taipans de Hong Kong... mas não sabemos exatamente qual deles. A colônia vai se tornar uma propriedade sua e da família, por cortesia de um ministro de Pequim, que por acaso é seu filho mais querido. E suprema ironia, a vingança final do patriarca... Hong Kong será controlada pelos próprios homens que corromperam a China Nacionalista. Durante anos eles exploraram o país sem qualquer consciência, lucrando com o trabalho árduo de um povo faminto e privado de qualquer direito, abrindo caminho para a revolução de Mao. E se isso lhe parece o jargão comunista, devo ressaltar que a maior parte é embaraçosamente acurada. Agora, alguns fanáticos, criminosos de colarinho branco, liderados por um maníaco, querem recuperar o que nenhum tribunal internacional da história jamais lhes concederia.

Havilland fez uma pausa e depois exclamou furioso uma única palavra:

— Maníacos!

— Mas se não sabe quem é esse taipan, como pode ter certeza de que qualquer parte da história é verdadeira?

— As fontes são ultra-secretas, mas foram confirmadas — interveio Reilly. — A história foi ouvida pela primeira vez em Formosa. Nosso informante original foi um membro do gabinete nacionalista, que achava que era um plano desastroso, que só podia levar a um derramamento de sangue em todo o Extremo Oriente. E nos suplicou que impedíssemos a sua consumação. Foi encontrado morto na manhã seguinte, com três balas na cabeça e a garganta cortada... para os chineses, isso significa um traidor morto. Desde então, cinco outras pessoas foram assassinadas, os corpos mutilados da mesma forma. É verdade. A conspiração está em pleno andamento e baseada em Hong Kong.

— Mas é uma insanidade!

— Para ser mais objetivo, nunca dará certo — declarou Havilland. — Se houvesse uma oração para o caso, poderíamos olhar para o outro lado e até dizer Vá com Deus! Mas não é possível. A coisa vai estourar, como aconteceu com a conspiração de Lin Piao contra Mao Tsé-tung em 1972. E quando isso acontecer, Pequim vai culpar o dinheiro americano e formosino, em cumplicidade com o britânico... além da aquiescência silenciosa das principais instituições financeiras do mundo. Oito anos de progresso econômico serão destruídos de um momento para o outro porque um grupo de fanáticos quer vingança. Em suas palavras, Sr. Subsecretário, a República Popular é uma nação desconfiada e turbulenta... e se me permite acrescentar algumas observações dos talentos que me atribui... tem um governo que pode se tornar paranóico a qualquer instante, obcecado com a traição, tanto interna como externa. A China vai acreditar que o mundo está empenhado em isolá-la economicamente, afastá-la dos mercados internacionais e subjugá-la, enquanto os russos sorriem no outro lado das fronteiras do norte. Vai reagir com rapidez e fúria, confiscando tudo, absorvendo tudo. Suas tropas vão ocupar Kowloon, a ilha, assim como os florescentes Territórios Novos. Investimentos de trilhões estarão perdidos. Sem a competência da colônia, o comércio vai definhar, uma força de trabalho de milhões de pessoas ficará no caos... a fome e a doença vão predominar. O Extremo Oriente vai pegar fogo, e o resultado final pode ser o desencadeamento de uma guerra em que nenhum de nós quer sequer pensar.

— Santo Deus! — balbuciou McAllister. — Isso não pode acontecer!

— Tem razão, não pode mesmo.

— Mas por que Webb?

— Não Webb — corrigiu Havilland. — Jason Bourne.

— Está certo. Por que Bourne?

— Porque espalhou-se por Kowloon a notícia de que ele já está lá.

— O quê?

— E sabemos que ele não está.

— O que disse?

— Ele atacou. Ele foi morto. Ele voltou à Ásia.

— Webb?

— Não, Bourne. O mito.

— Não estou entendendo mais nada!

— Posso lhe garantir que Sheng Chou Yang está entendendo muito bem.

— Como assim?

— Ele o trouxe de volta. Os talentos de Jason Bourne estão outra vez à venda... e, como sempre, seu cliente está além da possibilidade de descoberta. Nesse caso, o cliente é o mais improvável que se possa imaginar. Um eminente porta-voz da República Popular, que precisa eliminar sua oposição, tanto em Hong Kong como em Pequim. Durante os últimos seis meses, diversas vozes poderosas no Comitê Central de Pequim se tornaram estranhamente silenciosas. Segundo os anúncios oficiais do governo, vários membros morreram, o que é compreensível, levando-se em consideração a idade avançada de quase todos. Dois morreram supostamente em acidentes... um deles num desastre de avião, o outro de hemorragia cerebral quando escalava as montanhas de Shaoguan... se não é verdade, pelos menos é imaginativo. E mais outro foi “removido”... um eufemismo para cair em desgraça. E, finalmente, o caso mais extraordinário, o vice-primeiro-ministro da República Popular foi assassinado em Kowloon, quando ninguém em Pequim sabia que ele estava lá. Foi um episódio macabro, cinco homens massacrados no Tsim Sha Tsui, com o assassino deixando seu cartão de visitas. O nome Jason Bourne estava escrito a sangue no chão. Um ego de impostor exibia o crédito pela matança.

McAllister piscou várias vezes, os olhos se deslocando de um lado para outro, rapidamente, a esmo.

— Tudo isso está muito além da minha capacidade. — Uma pausa e ele voltou a ser um profissional, olhando firme para Havilland e indagando: — Existe alguma ligação?

O embaixador acenou com a cabeça.

— Os relatórios de nosso serviço de informações são específicos. Todos esses homens se opunham às políticas de Sheng... alguns abertamente, outros cautelosamente. O vice-primeiro-ministro, um velho revolucionário e veterano da Longa Marcha de Mao, era especialmente franco. Não suportava o arrivista Sheng. Mas o que estava fazendo secretamente em Kowloon, em companhia de banqueiros? Pequim não foi capaz de responder. Assim, para resguardar as aparências, era necessário que o assassinato nunca tivesse ocorrido. Com a sua cremação, ele tornou-se uma não-pessoa.

— E com o “cartão de visitas” do assassino.., o nome escrito em sangue... o segundo vínculo é com Sheng — comentou o subsecretário de Estado, a voz quase trêmula, enquanto massa geava nervosamente a testa. — Por que ele faria isso? Por que deixaria o seu nome?

— Ele está no negócio e foi um massacre espetacular. Está começando a compreender agora?

— Não tenho certeza do que está querendo dizer com isso.

— Para nós, esse novo Bourne é o caminho direto para Sheng Chou Yang. É a nossa armadilha. Um impostor está se apresentando como o mito, mas se o mito original descobrir e remover o original, estará em condições de alcançar Sheng. É realmente muito simples. O Jason Bourne que nós criamos vai substituir esse novo assassino que está usando o seu nome. Depois de assumir a posição necessária, o nosso Jason Bourne envia um alarme urgente... aconteceu algo drástico que ameaça toda a estratégia de Sheng... e Sheng tem de reagir. Não pode evitá-lo, pois sua segurança tem de ser absoluta, suas mãos precisam estar limpas. Ele será obrigado a se manifestar, quanto menos não seja para matar seu pistoleiro de aluguel, eliminar qualquer associação. E quando isso acontecer, desta vez não vamos falhar.

— É um círculo — disse McAllister, quase num sussurro, enquanto olhava fixamente para o embaixador. — E por tudo o que me falou, Webb não vai chegar nem perto, muito menos aceitar sua participação.

— Nesse caso, devemos lhe oferecer um motivo muito forte para agir —sugeriu Havilland, suavemente. —Em minha profissão... vamos ser francos, sempre foi a minha profissão... procuramos por padrões, padrões que levem um homem a entrar em ação.

Franzindo o rosto, os olhos fundos e vazios, o idoso embaixador recostou-se na cadeira; era evidente que não estava em paz consigo mesmo.

— Às vezes, são realizações terríveis.., até mesmo repulsivas... mas não se pode deixar de avaliar o bem maior, os benefícios maiores. Para todos.

— Isso não me diz nada.

— David Webb tornou-se .Jason Bourne essencialmente por um motivo... o mesmo motivo que o levou para Medusa. Uma esposa lhe foi tirada; seus filhos e a mãe de seus filhos foram mortos.

— Oh, não...

— É nesse ponto que eu me retiro — murmurou Reilly, levantando-se

 

Marie! Oh, Deus, Marie, aconteceu de novo! Uma comporta se abriu e não pude controlar a situação. Bem que tentei, minha querida, tentei com o maior empenho, mas acabei sendo engolfado... fui arrastado pela correnteza e estava me afogando! Sei o que você vai dizer se eu lhe contar. É por isso que não vou contar, mesmo sabendo que você vai ver em meus olhos, ouvir em minha voz... de alguma forma, só você sabe como. Vai dizer que eu deveria ter ido para casa ao seu encontro, conversar com você, ficar com você. Poderíamos então resolver tudo juntos. Juntos! Oh, Deus! O quanto você pode suportar? O quanto eu posso ser injusto? Por quanto tempo pode continuar assim? Eu a amo tanto, de tantas maneiras, que há ocasiões em que tenho de fazer tudo sozinho. Quanto menos não seja para lhe proporcionar uma folga por algum tempo, para deixá-la respirar por algum tempo, sem ficar com os nervos à flor da pele enquanto cuida de mim. Mas deve compreender, meu amor, que eu posso fazer! Fiz esta noite e me acalmei. Estou completamente calmo agora, estou bem agora. E voltarei para casa agora, voltarei para você, melhor do que me encontrava antes. Tenho de voltar, porque sem você não me resta coisa alguma.

O rosto encharcado de suor, o training grudado ao corpo, David Webb corria ofegante pela relva fria do campo escuro, passando pelas arquibancadas e subindo pelo caminho cimentado para o ginásio da universidade. O sol de outono desaparecera por trás dos prédios de pedra do campas, seu fulgor incendiava o céu vespertino, enquanto pairava sobre os distantes bosques do Maine. O frio de outono era penetrante e ele estremeceu. Não era o que os seus médicos desejavam.

Não obstante, ele seguira os conselhos médicos; fora um daqueles dias. Os médicos do governo haviam lhe dito que se houvesse ocasiões — e certamente ocorreriam —em que imagens súbitas e perturbadoras ou fragmentos de memórias aflorassem em sua mente, a melhor maneira de controlar a situação era com um exercício físico vigoroso. Seus eletrocardiogramas indicavam um coração saudável, os pulmões se encontravam num estado razoável, apesar de ele ser bastante tolo para fumar; e como o corpo tinha condições de agüentar a punição, era a melhor maneira de aliviar a mente. O que precisava em momentos assim era de serenidade.

— O que há de errado com uns poucos drinques e cigarros? — ele dissera aos médicos, enunciando a sua preferência genuína. — O coração bate mais depressa, o corpo não sofre e a mente certamente se torna mais aliviada.

— São depressivos — fora a resposta do único homem que ele escutava. — Não passam de estimulantes artificiais que só servem para conduzir a uma depressão adicional, a uma ansiedade ainda maior. Corra, nade ou faça amor com sua esposa... ou qualquer outra mulher, diga-se de passagem. Não seja um idiota para voltar aqui como um inválido... Se não se importa com você, pelo menos pense em mim. Trabalhei muito com você, seu ingrato. Vá logo embora, Webb. Pegue a sua vida... o que pode se lembrar... e trate de aproveitá-la. Está melhor do que a maioria das pessoas. Não se esqueça disso ou vou cancelar os nossos porres mensais controlados nos bares de nossa escolha e você que se dane. E que se dane de qualquer forma, porque vou sentir saudade de nossos porres... Vá embora, David. Está na hora de você ir.

Morris Panov era a única pessoa além de Marie que podia alcançá-lo. O que de certa forma era irônico, pois inicialmente Mo não era um dos médicos do governo; o psiquiatra não solicitara nem lhe fora oferecida a autorização de segurança para ouvir os detalhes secretos dos antecedentes de David Webb, em que estava sepultada a mentira de Jason Bourne. Mesmo assim, Panov se impusera, ameaçando as revelações mais embaraçosas se não lhe concedessem autorização e uma participação na terapia subseqüente. Seu raciocínio era simples, pois quando David estivera prestes a ser liquidado por homens desinformados, que estavam convencidos de que ele tinha de morrer, essa desinformação fora involuntariamente fornecida por Panov, deixando-o furioso pela maneira como acontecera. Ele fora abordado em pânico por alguém que não era propenso ao pânico e que fizera perguntas “hipotéticas” sobre um agente secreto possivelmente perturbado, numa situação potencialmente explosiva. Suas respostas foram contidas e equivocas; não podia e não faria o diagnóstico de um paciente que nunca vira... mas era possível e havia até precedentes, embora é claro que nada podia ser considerado sequer remotamente relevante, sem um exame físico e psiquiátrico. A palavra chave era nada; não deveria ter dito nada, conforme declarou depois. Pois suas palavras nos ouvidos de amadores selaram a ordem para a execução de Webb — a sentença de morte de “Jason Bourne” — um ato que só malograra no último instante, graças ao próprio David, enquanto os carrascos do esquadrão da morte ainda se encontravam em suas posições invisíveis.

Não apenas Morris Panov ingressara na junta médica no Hospital Walter Reed e posteriormente no complexo médico na Virginia, mas também literalmente comandara o espetáculo... o espetáculo de Webb. O filho da puta está com amnésia, seus imbecis! Vem tentando dizer isso a vocês há semanas, num inglês perfeitamente lúcido.., desconfio que lúcido demais para a mentalidade distorcida de vocês.

Haviam trabalhado juntos por meses, como médico e paciente.. e finalmente como amigos. Ajudara muito que Marie adorasse Mo... Santo Deus, como ela precisava de um aliado! O fardo que David fora para a esposa era indescritível, desde aqueles primeiros dias na Suíça, quando ela começara a compreender a angústia interior do homem que a mantinha cativa, até o momento em que assumira o compromisso — contra a vontade violenta dele — de ajudá-lo, jamais acreditando no que ele próprio acreditava, dizendo-lhe insistentemente que não era o assassino que se considerava, não era o criminoso que os outros diziam ser. A convicção de Marie tornara-se como uma âncora nos mares turbulentos de David, seu amor fora a base de uma sanidade a emergir. Sem Marie, ele era um homem sem amor, descartado e morto; sem Mo Panov era pouco mais que um vegetal. Mas com os dois a ampará-lo, estava afastando as nuvens turbilhonantes e tornando a encontrar o sol.

Fora por isso que ele optara por uma hora de corrida em torno da pista deserta e fria, em vez de seguir para casa, depois do seminário ao final da tarde. Os seminários semanais muitas vezes se prolongavam além da hora marcada para terminar; por isso, Marie nunca planejava o jantar, sabendo que sairiam para comer fora, os dois guardas discretos em algum lugar na escuridão por trás... como o que andava agora por trás dele pelo campo, quase invisível, o outro sem dúvida no interior do ginásio. Que loucura! Ou será que não?

O que o levara ao “exercício vigoroso” sugerido por Panov fora uma imagem que surgira de súbito em sua mente, enquanto estava conferindo provas de seus alunos, várias horas antes, na sala. Era um rosto... um rosto que conhecia e de que se lembrava, um rosto que amava muito. Um rosto de garoto que envelhecera em sua tela interior, até chegar a um retrato completo de uniforme, desfocado, imperfeito, mas uma parte dele. Enquanto lágrimas silenciosas rolavam por suas faces, ele compreendera que se tratava do irmão morto de que lhe haviam falado, o prisioneiro de guerra que resgatara na selva de Tam Quan anos antes, em meio a explosões terríveis e um traidor que executara, chamado Jason Bourne. Não fora capaz de controlar as imagens violentas e fragmentadas; mal conseguira chegar ao fim do seminário encurtado e saíra mais cedo alegando uma dor de cabeça muito forte. Precisava aliviar as pressões, aceitar ou rejeitar as camadas a descascar da memória, com a ajuda da razão, que lhe dizia para ir ao campo e correr contra o vento, qualquer vento forte., Não podia sobrecarregar Marie cada vez que uma comporta arrebentava; amava-a demais para isso. Quando podia cuidar pessoalmente, tinha de fazê-lo. Era um compromisso que assumira consigo mesmo.

Abriu a porta pesada, especulando por um instante por que a entrada de cada ginásio era projetada com o peso de uma ponte levadiça. Entrou e atravessou o chão de pedra, passando por uma arcada e descendo por um corredor de paredes brancas, até chegar à porta do vestiário dos professores. Ficou satisfeito porque o vestiário estava vazio; não sentia a menor disposição para uma conversa inconseqüente, e se tivesse de mantê-la, certamente pareceria mal-humorado, até mesmo estranho. Podia também dispensar os olhares curiosos que provavelmente provocaria. Estava quase na beira; tinha de voltar gradativamente, lentamente, primeiro dentro de si mesmo, depois com Marie. Oh, Deus, quando tudo aquilo acabaria? Quanto podia pedir a ela? Mas também nunca precisava pedir... Marie dava sem que lhe fosse pedido.

Webb alcançou a fileira de armários. O seu ficava quase no fim. Foi andando por entre o banco de madeira comprido e os armários de metal ligados. Os olhos foram subitamente atraídos para um objeto à frente. Correu em sua direção; um bilhete dobrado estava preso na porta de seu armário. Pegou-o e abriu-o: Sua esposa telefonou. Quer que você ligue para ela assim que puder. Diz que é urgente. Ralph.

O zelador do ginásio poderia demonstrar um mínimo de inteligência para sair e gritar por ele!, pensou Webb irritado, enquanto girava a combinação e abria o armário. Depois de vasculhar os bolsos da calça à procura de moedas, foi até o telefone público na parede. Inseriu uma moeda, perturbado ao constatar que a mão tremia. E de repente compreendeu o motivo. Marie nunca usava a palavra “urgente”. Evitava palavras assim.

— Alô?

— O que houve?

— Achei que você estaria aí — disse Marie. — A panacéia de Mo, a que ele garante que vai curá-lo, se não provocar antes uma parada cardíaca.

— O que houve?

— Venha para casa, David. Tem alguém aqui que deseja falar com você. Depressa, querido.

O Subsecretário de Estado Edward McAllister reduziu sua apresentação a um mínimo, mas incluiu determinados fatos para indicar a Webb que não era dos escalões inferiores do Departamento. Por outro lado, não exagerou sua importância; era o burocrata seguro, confiante de que qualquer competência que possuía podia acarretar mudanças na administração.

— Se quiser, Sr. Webb, nosso assunto pode esperar até que vista alguma roupa mais confortável.

David ainda estava de shorts e camisa de malha, manchados de suor, pois pegara suas roupas no armário e deixara o ginásio apressado, voltando de carro para casa.

— É melhor não —disse ele. —Não creio que o seu assunto possa esperar... a julgar pelo lugar de onde vem, Sr. McAllister.

— Sente-se, David. — Marie St. Jacques Webb entrou na sala, trazendo duas toalhas. —Sente-se também, Sr. McAllister.

Ela entregou uma toalha a Webb, enquanto os homens sentavam, de frente um para o outro, ao lado da lareira apagada. Marie foi postar-se atrás do marido e começou a enxugar seu pescoço e ombros com a segunda toalha, a luz de um abajur acentuando a tonalidade avermelhada de seus cabelos castanhos, as feições adoráveis, na sombra, os olhos fixados no homem do Departamento de Estado.

— Por favor, comece a falar — acrescentou ela. — Como já combinamos, tenho autorização do governo para ouvir qualquer coisa que possa dizer.

— Houve alguma dúvida? —indagou David, olhando para ela e depois para o visitante, sem fazer qualquer tentativa de disfarçar sua hostilidade.

— Absolutamente nenhuma — respondeu McAllister, sorrindo de modo contrafeito, mas sincero. — Ninguém que tenha tomado conhecimento das contribuições de sua esposa se atreveria a excluí-la. Onde outros fracassaram, ela foi bem-sucedida.

— Isso diz tudo — concordou Webb. — Sem dizer nada, é claro.

— Ei, David, pare com isso. Relaxe.

— Desculpe. Ela tem razão. — Webb tentou sorrir, mas não conseguiu muito bem. — Estou sendo preconceituoso e não devia... não é mesmo?

— Eu diria que tem todo o direito de ser — comentou o subsecretário. — Tenho certeza de que eu seria, se estivesse no seu lugar. Apesar de nossos antecedentes serem muito parecidos... também servi no Extremo Oriente por alguns anos... ninguém jamais me teria considerado para a missão que o senhor assumiu. Aquilo por que passou está anos-luz além de mim.

— E além de mim também. Obviamente.

— Não do meu ponto de vista. Deus sabe que o fracasso não foi seu.

— Agora está sendo gentil. Não é ofensa, mas gentileza demais... de sua posição... me deixa nervoso.

— Pois então vamos tratar imediatamente do problema que me trouxe aqui, está bem?

— Por favor.

— E espero que não tenha me julgado com muito rigor. Não sou seu inimigo, Sr. Webb. Quero ser seu amigo. Posso apertar botões que podem ajudá-lo, protegê-lo.

— Do quê?

— De uma coisa que ninguém esperava.

— Pode falar.

— Daqui a trinta minutos, sua segurança será dobrada — anunciou McAllister, os olhos fixos nos de David. — Essa é a minha decisão e vou quadruplicá-la, se julgar necessário. Todas as chegadas ao campus serão investigadas, o terreno será examinado de hora em hora. Os guardas em rodízio não serão mais parte do cenário, simplesmente mantendo-o à vista. Em vez disso, eles ficarão muito à vista. Tudo bastante óbvio e, espero, ameaçador.

— Oh, Deus! — Webb inclinou-se abruptamente para a frente. —É Carlos!

— Achamos que não— respondeu o homem do Departamento de Estado, sacudindo a cabeça. — Não podemos excluir Carlos, mas é uma possibilidade muito remota, altamente improvável.

— Ahn... — murmurou Webb. — Deve ser isso mesmo. Se fosse o Chacal, seus homens estariam espalhados por toda parte e fora de vista. Deixariam que ele viesse para cima de mim e só então o pegariam... e se eu fosse morto, o custo seria aceitável.

— Não para mim. Não precisa acreditar nisso, mas estou falando sério.

— Obrigado. Mas qual é o problema?

— Sua ficha foi violada... isto é, o arquivo de Casa de Pedra foi violado.

— Violado? Uma revelação não-autorizada?

— Não a princípio. Houve autorização, porque estava ocorrendo uma crise... e, de certa forma, não tínhamos alternativa. E de repente tudo escapou ao controle e agora estamos preocupados. Pelo senhor.

— Volte atrás, por favor. Quem teve acesso ao arquivo?

— Um homem de dentro. Suas credenciais eram as melhores, ninguém podia questioná-las.

— Quem era ele?

— Um homem do MI-Seis britânico, operando de Hong Kong, em quem a CIA confiava há muitos anos. Ele chegou a Washington e foi procurar diretamente seu contato na Agência, pedindo que lhe providenciasse tudo o que havia sobre Jason Bourne. Alegou que havia uma crise no território em decorrência direta do projeto Casa de Pedra. Também deixou claro que para haver uma troca de informações importantes entre os serviços britânico e americano... continuar a haver... era melhor que o seu pedido fosse atendido.sem demora.

— Ele precisava apresentar um motivo muito bom.

— E foi o que aconteceu.

McAllister fez uma pausa, nervoso, piscando os olhos e esfregando a testa com os dedos estendidos.

— E qual foi?

— Jason Bourne está de volta — respondeu McAllister, suavemente, —Tornou a matar. Em Kowloon.

Marie deixou escapar uma exclamação aturdida; apertou o ombro direito do marido, os olhos grandes e castanhos com uma expressão furiosa, assustada. Ficou olhando fixamente, em silêncio, para o homem do Departamento de Estado. Webb não se mexeu. Em vez disso, estudou McAllister, como um homem que estivesse observando uma cobra.

— Mas que história é essa? — sussurrou ele, para no instante seguinte altear a voz ao acrescentar: — Jason Bourne... aquele Jason Bourne... não existe mais. Nunca existiu!

— Você sabe disso e nós também. Na Ásia, porém, a sua tenda está bem viva. Sua criação, Sr. Webb... e uma criação brilhante, se quer saber minha opinião.

— Não estou interessado em sua opinião, Sr. McAllister. — David retirou a mão da esposa de seu ombro e levantou-se. — Em que esse agente do MI-Seis estava trabalhando? Qual é a sua idade? Qual é o seu fator de estabilidade, seu registro? Deviam ter uma ficha atualizada do homem.

— Claro que tínhamos, e não havia nada de irregular. Londres confirmou sua extraordinária folha de serviços, sua situação atual, além das informações que ele nos trouxe. Como chefe de posto do MI-Seis, ele foi chamado pela polícia de Kowloon-Hong Kong, por causa da natureza potencialmente explosiva dos acontecimentos. O próprio Foreign Office estava por trás dele.

— Errado!—gritou Webb, sacudindo a cabeça. Uma pausa e ele continuou, baixando a voz: — Ele foi usado, Sr. McAllister. Alguém lhe pagou uma pequena fortuna para obter aquele arquivo. E ele usou a única mentira que daria certo e todos vocês engoliram!

— Infelizmente, não é mentira... não pelo que ele sabia. Acreditou nas evidências, e Londres também acredita. Um Jason Bourne está de volta à Ásia.

— E se eu lhe dissesse que não seria a primeira vez que o controle central é alimentado com uma mentira, a fim de que um homem que trabalha demais, corre muitos riscos e é mal pago possa virar? Tantos anos, tantos perigos e ele nada tem em retribuição. Resolve então aproveitar a oportunidade que lhe proporciona uma pensão substancial pelo resto da vida. Nesse caso, aquele arquivo.

— Se foi isso, não vai lhe adiantar muita coisa. Ele morreu.

— Ele o quê?

— Foi baleado mortalmente em Kowloon, há duas noites, em sua sala, uma hora depois de chegar a Hong Kong.

— Mas isso não pode acontecer! — exclamou David, aturdido. — Um homem que troca de lado sempre providencia algum apoio. Faz um dossiê contra seu benfeitor antes de cometer o ato, informando-o que se alguma coisa lhe acontecer será entregue às pessoas certas. É o seu seguro... sua única garantia.

— Ele estava limpo — insistiu McAllister.

— Ou era estúpido.

— Ninguém pensa assim.

— E o que pensam?

— Que ele estava investigando um caso extraordinário que poderia eclodir na maior violência pelos submundos de Hong Kong e Macau. O crime organizado se torna de repente completamente desorganizado, uma situação não muito diferente das guerras das tongs, as sociedades secretas chinesas, nos anos vinte e trinta. As mortes vão se acumulando. Quadrilhas rivais promovem distúrbios, os cais se transformam em campos de batalha, armazéns e até mesmo navios cargueiros são explodidos por vingança ou para eliminar concorrentes. As vezes só é necessária a existência de várias facções poderosas e beligerantes... e um Jason Bourne ao fundo.

— Mas como não existe nenhum Jason Bourne, é trabalho da polícia, e não do MI-Seis.

— O Sr. McAllister acaba de dizer que o homem foi chamado pela polícia de Hong Kong — interveio Marie, lançando um olhar duro para o subsecretário de Estado. — E parece evidente que o MI-Seis concordou com a decisão. Por quê?

— Não é nada disso! — insistiu David, inflexível, a respiração ofegante.

— Jason Bourne não foi uma criação das autoridades policiais — protestou Marie, virando-se para o marido. — Foi criado pelo serviço secreto americano, por intermédio do Departamento de Estado. Mas desconfio que o MI-Seis entrou no caso por um motivo mais importante do que a descoberta de um assassino que se faz passar por Jason Bourne. Estou certa, Sr. McAllister?

— Está sim, Sra. Webb. Um motivo muito mais importante. Em nossas discussões, nos últimos dois dias, diversos membros de nossa seção concluíram que a senhora compreenderia a situação muito melhor do que nós. Vamos dizer que se trata de um problema econômico que pode levar a uma terrível agitação política, não apenas em Hong Kong, mas no mundo inteiro. É uma economista altamente considerada pelo governo canadense. Já assessorou embaixadores e delegações canadenses no mundo inteiro.

— Vocês dois se importariam de explicar ao homem que equilibra o orçamento por aqui?

— Este não  é um momento para se permitir  distúrbios

no mercado de Hong Kong, Sr. Webb, nem mesmo... e talvez especialmente... em seu mercado ilegal. Distúrbios acompanhados por violência dão a impressão de instabilidade do governo, até mesmo de uma instabilidade mais profunda. Este não é um momento para dar aos expansionistas da China Vermelha mais munição do que eles já possuem.

— E que mais, por favor?

— O tratado de 1997 — respondeu Marie. — Falta apenas uma década para o prazo terminar. É por isso que os novos Acordos estão sendo negociados com Pequim. Apesar disso, todo mundo está nervoso, todo mundo está apreensivo, é melhor ninguém balançar o barco. Estabilidade e tranqüilidade são essenciais agora.

David olhou para ela e depois tornou a se fixar em McAllister. Acenou com a cabeça.

— Estou entendendo. Costumo ler os jornais e revistas... mas acontece que não é um assunto sobre o qual eu tenha profundos conhecimentos.

— Os interesses de meu marido são outros — informou Marie a McAllister. — O estudo dos povos e suas civilizações.

— Isso mesmo — confirmou David. — E daí?

— Eu me interesso por dinheiro e o constante intercâmbio de dinheiro... sua expansão, os mercados e suas flutuações... a estabilidade ou sua carência. E se Hong Kong não for qualquer outra coisa, é dinheiro. Trata-se mais ou menos de seu único produto. A colônia não tem praticamente qualquer outra razão para existir. Suas indústrias morreriam sem dinheiro; sem a entrada de água, a bomba puxa em seco.

— E se a estabilidade acaba, vem o caos — acrescentou McAllister. — Era a desculpa dos velhos senhores da guerra na China. A República Popular avança para suprimir o caos, reprime os agitadores e subitamente nada mais resta, além de um gigante desajeitado a cuidar de toda a colônia e dos Novos Territórios. As cabeças mais frias de Pequim são ignoradas, em favor dos elementos mais agressivos, que querem salvar as aparências, através do controle militar. Os bancos sofrem um colapso, o comércio de todo o Extremo Oriente é paralisado. O caos.

— E a República Popular faria isso?

— Hong Kong, Kowloon, Macau e todos os territórios fazem parte de sua “grande nação sob o céu”... até os Acordos da China deixam isso bem claro. Constituem uma só entidade, e os orientais, como sabe muito bem, não toleram uma criança desobediente.

— Está querendo me dizer que um homem se passando por Jason Bourne pode fazer isso... pode provocar esse tipo de crise? Não posso acreditar.

— Parece uma história extraordinária, mas pode perfeitamente acontecer. O problema é que o mito o acompanha, esse é o fator hipnótico. Muitos assassinatos lhe são atribuídos, quanto menos não seja para distanciar os verdadeiros assassinos dos locais... conspiradores políticos fanáticos, tanto da direita como da esquerda usando a imagem letal de Bourne. Quando se pensa mais um pouco a respeito, não se conclui que foi exatamente assim que se criou o mito? Sempre que alguém de importância, em qualquer lugar da China Meridional, era assassinado, você, como Jason Bourne, cuidava para que a morte lhe fosse creditada. Ao final de dois anos, você era notório, embora só tivesse na verdade matado um homem, um informante bêbado de Macau que tentou estrangulá-lo.

— Não me lembro disso — murmurou David.

O homem do Departamento de Estado acenou com a cabeça em simpatia.

— Foi o que me disseram. Mas se os homens assassinados forem personalidades políticas poderosas... como o governador da Coroa, um negociador da República Popular ou qualquer outra pessoa assim... então toda a colônia entra em alvoroço. — McAllister fez uma pausa, sacudindo a cabeça como a encerrar o assunto, com uma expressão de cansaço. — Mas isso é uma preocupação nossa e não sua. Posso lhe garantir que temos os melhores homens da comunidade de informações trabalhando no caso. Seu problema, Sr. Webb, é a sua própria pessoa. E neste momento, por uma questão de consciência, é também um problema meu. Precisamos protegê-lo.

— Aquele arquivo nunca deveria ter sido entregue a ninguém — comentou Marie, friamente.

— Não tínhamos opção. Trabalhamos em estreita colaboração com os britânicos. Precisávamos provar que Casa de Pedra estava acabada, encerrada por completo. Que seu marido estava a milhares de quilômetros de Hong Kong.

— Disse onde ele estava? — gritou Marie. — Mas como pôde fazer isso?

— Não tínhamos opção — repetiu McAllister, tornando a esfregar a testa. —Devemos cooperar quando afloram determinadas crises. Tenho certeza de que pode compreender isso.

— O que não posso compreender, antes de mais nada, é por que havia um arquivo sobre meu marido! — protestou Marie, furiosa. — Era uma operação de sigilo, sigilo absoluto!

— O financiamento do Congresso a operações secretas exigia isso. É a lei.

— Não me venha com essa —berrou David, também furioso. — Já que está tão bem informado a meu respeito, então sabe também de onde saí. E quero que me responda uma coisa: onde estão todos os registros da Medusa?

— É uma coisa que não posso responder.

— Pois acaba de fazê-lo.

— O Dr. Panov pediu a vocês que destruíssem todos os arquivos de Casa de Pedra — insistiu Marie. — Ou pelo menos que usassem nomes falsos. Mas estou vendo que nem isso fizeram. Que espécie de homens são?

— Eu teria concordado com as duas coisas! — exclamou McAllister, com uma veemência súbita e surpreendente. — Lamento muito, Sra. Webb. Perdoe-me. Foi antes do meu tempo... E também me sinto ofendido. É possível que esteja certa, talvez nunca devesse existir um arquivo. Há sempre meios...

— Não me venha com essas besteiras — interrompeu-o David, a voz abafada. —É tudo parte de outra estratégia, outra armadilha. Vocês querem Carlos e não se importam com os meios para agarrá-lo.

— Eu me importo, Sr. Webb... e também não precisa acreditar nisso. O que representa o Chacal para mim... ou para a Seção do Extremo Oriente? É um problema europeu.

— Está querendo dizer que passei três anos de minha vida caçando um homem que não significava absolutamente nada?

— Claro que não. Os tempos mudam, as perspectivas mudam. E às vezes tudo se torna completamente inútil.

— Oh, Deus!

— Relaxe, David —murmurou Marie, sua atenção se concentrando por um instante no homem do Departamento de Estado, muito pálido, as mãos apertando os braços da cadeira. — Vamos todos relaxar. — Depois, ela fitou o marido nos olhos e acrescentou: — Aconteceu alguma coisa esta tarde, não é mesmo?

— Eu lhe contarei depois.

— Está certo. — Marie virou-se para McAllister, enquanto David tomava a sentar, o rosto contraído e cansado, mais velho do que parecia poucos minutos antes. — Não é verdade que tudo o que nos disse até agora está levando a alguma conclusão? Não há mais alguma coisa que quer que a gente saiba?

— Tem toda razão... e não é fácil para mim. Não esqueçam, por favor, que só recentemente fui designado e recebi plena autorização para conhecer o dossiê secreto do Sr. Webb.

— Inclusive a história de sua esposa e filhos no Camboja?

— Inclusive.

— Pois então diga logo o que tem a falar, por favor.

McAllister tornou a estender os dedos finos e massageou nervosamente a testa.

— Pelo que descobrimos... e Londres confirmou há cinco horas... é possível que seu marido seja um alvo. Um homem quer matá-lo.

— Mas não Carlos, não o Chacal — murmurou David, inclinando-se para a frente.

— Isso mesmo. Ou pelo menos ainda não conseguimos estabelecer qualquer ligação.

— E o que vocês sabem? — indagou Marie, sentando no braço da poltrona de David. — O que já descobriram?

— O agente do MI-Seis em Kowloon tinha muitos documentos confidenciais em sua sala, alguns dos quais poderiam ser vendidos por muito dinheiro em Hong Kong. Contudo, só levaram o arquivo sobre Casa de Pedra... o arquivo sobre Jason Bourne. Foi a confirmação que Londres nos forneceu. É como se fosse um aviso: ele é o homem que queremos, apenas Jason Bourne.

— Mas por quê? — gritou Marie, a mão apertando o pulso de David

— Porque alguém foi morto — respondeu David, calmamente. — E outra pessoa quer acertar as contas.

— E nisso que estamos trabalhando — confirmou McAllister, acenando com a cabeça. —E já fizemos algum progresso.

— Quem foi morto? — perguntou o ex-Jason Bourne.

— Antes de responder, quero que saiba que tudo o que temos é o que nosso pessoal em Hong Kong conseguiu descobrir. De um modo geral, não passa de especulação. Não existe qualquer prova. E lembre-se de que eles estão trabalhando sozinhos.

— Como assim? Onde estavam os britânicos? Afinal, vocês lhes entregaram o arquivo de Casa de Pedra!

— Eles nos deram a prova de que um homem foi morto por alguém que se identificou como a criação de Casa de Pedra, a nossa criação... você. Mas não estavam dispostos a identificar suas fontes, assim como também não revelamos os nossos contatos, Nosso pessoal tem trabalhado vinte e quatro horas por dia, sondando todas as possibilidades, tentando descobrir quem foram as fontes principais do MI-Seis, na suposição de que uma delas tenha sido responsável pela morte. Depararam com um rumor em Macau... mas chegaram à conclusão de que era apenas um rumor.

— Repito a minha pergunta — insistiu David. — Quem foi morto?

— Uma mulher — respondeu o homem do Departamento de Estado. — A esposa de um banqueiro de Hong Kong chamado Yao Ming, um taipan cujo banco é apenas uma fração de sua vasta fortuna. Sua riqueza é tão grande que ele tem sido bem recebido até em Pequim, como investidor e consultor. É um homem influente, poderoso, a um ponto indescritível.

— Quais foram as circunstâncias?

— Horríveis, mas não excepcionais. A esposa era uma atriz de importância menor que participou de diversos filmes dos irmãos Shaw, bem mais moça do que ele. Era também tão fiel quanto uma cadela no cio, se me permitem falar assim...

— Por favor, continue — disse Marie.

— O marido fingia ignorar isso. Ela era o seu troféu, jovem e bonita. A mulher também pertencia ao jet set da colônia, que tem a sua quota de personagens repulsivos. Num fim de semana, jogando alto nos cassinos de Macau, no outro apostando nas corridas de cavalos em Cingapura ou voando para as Pescadores, a fim de assistir às competições de roleta russa nas casas de ópio, milhares e milhares de dólares sendo apostados em quem vai morrer primeiro, enquanto dois homens sentam frente a frente, separados por uma mesa pequena, girando o tambor de um revólver com uma só bala. Há uma pequena diferença da roleta russa tradicional, pois eles apontam o revólver um para o outro. E é claro que, em tudo isso, há também um consumo indiscriminado de tóxicos, O último amante da mulher foi um distribuidor. Os fornecedores dele eram de Guangzhou, suas rotas, os canais a leste da fronteira de Lok Ma Chau.

— Segundo os relatórios que conheço, é um dos percursos mais amplos, com muito tráfico passando por lá — interrompeu David. —Por que se concentraram nele... em sua operação?

— Porque sua operação, como tão apropriadamente chamou, estava se tornando rapidamente a única na cidade, ou pelo menos naquele percurso. Ele estava sistematicamente eliminando os concorrentes, subornando as patrulhas marítimas chinesas para afundar suas embarcações e liquidar os tripulantes, Ao que parece, suas medidas eram eficazes, pois muitos corpos crivados de balas flutuaram até os brejos lamacentos e as margens do rio. As facções estavam em guerra e o distribuidor... o amante da jovem esposa... foi marcado para execução.

— Nas circunstâncias, ele deveria estar consciente dessa possibilidade. E deve ter se cercado de uma dúzia de guarda- costas.

— Acertou de novo. E esse tipo de segurança exige os talentos de uma lenda. Seus inimigos contrataram essa lenda.

— Bourne — murmurou David, sacudindo a cabeça e fechando os olhos.

— Isso mesmo, Há duas semanas o traficante e a esposa de Yao Ming foram mortos na cama, no Hotel Lisboa, em Macau, E foi um massacre sangrento. Os corpos ficaram quase irreconhecíveis. A arma do crime foi uma metralhadora Uzi. O incidente foi abafado. As autoridades da polícia e do governo foram subornadas com muito dinheiro... dinheiro de um taipan.

— Deixe-me adivinhar o resto — disse David, numa voz sem qualquer inflexão. — A Uzi. Foi a mesma arma usada num crime anterior atribuído a esse Bourne.

— Uma arma igual foi deixada no lado de fora de uma sala de reuniões num cabaré no Tsim Sha Tsui de Kowloon. Havia cinco cadáveres na sala. Três das vítimas estavam entre os mais ricos homens de negócios da colônia. Os britânicos não quiseram fornecer mais informações, apenas nos mostraram algumas fotografias bem ilustrativas.

— Esse taipan, Yao Ming... — murmurou David. — O marido da atriz. Ele é a ligação que seu pessoal encontrou, não é mesmo?

— Descobriram que ele era uma das fontes do MI-Seis. Suas Ligações em Pequim o transformavam num contribuinte importante para o serviço secreto. Ele era muito valioso.

— E depois sua esposa foi morta, sua amada e jovem esposa...

— Eu diria o seu amado troféu — interveio McAllister. — Tiraram o seu troféu.

— Tem razão. O troféu é muito mais importante do que a esposa.

— Passei muitos anos no Extremo Oriente. Há uma expressão para isso... creio que em mandarim... mas não consigo me lembrar qual é.

— Ren you jiaqian — disse David. — O preço da imagem de um homem.

— Acho que é isso mesmo.

— Só pode ser. O homem do MI-Seis foi procurado por seu contato transtornado, o taipan, recebeu a ordem de obter a ficha de Jason Bourne, o assassino que matou sua esposa... seu troféu... ou, em poucas palavras, o serviço secreto britânico poderia não receber mais informações das fontes em Pequim.

— Foi o que o nosso pessoal concluiu. E o agente do MI-Seis acabou sendo liquidado, porque Yao Ming não podia se permitir a menor associação com Bourne. O taipan tem de permanecer inatingível, intocável. Quer vingança, mas não com qualquer possibilidade de ser descoberto.

— O que dizem os britânicos? — indagou Marie.

— Em termos bem objetivos, disseram que deveríamos permanecer à distância de toda a situação. Londres foi rude. Fizemos a maior confusão com Casa de Pedra e não querem a nossa inépcia em Hong Kong durante estes momentos difíceis.

— Eles já confrontaram Yao Ming? — indagou David, observando atentamente o subsecretário.

— Quando mencionei o nome, disseram que era inadmissível. Para dizer a verdade, ficaram surpresos, mas isso não alterou a posição que assumiram. Se houve alguma diferença, mostraram-se foi ainda mais irritados.

— Um intocável — murmurou David.

— Provavelmente querem continuar a usá-lo.

— Apesar do que ele fez? — interveio Marie. — Apesar do que já pode ter feito e do que ainda pode fazer a meu marido?

— É um mundo diferente — respondeu McAllister, suavemente.

— Cooperaram com eles...

— Não havia alternativa.

— Pois então insistam que cooperem com vocês. Exijam!

— Se isso acontecesse, eles poderiam exigir outras coisas de nós. Não é possível.

— Mentirosos! — exclamou Marie, virando o rosto, repugnada.

— Não contei nenhuma mentira, Sra. Webb.

— Por que será que eu não confio no senhor? — indagou David.

— Provavelmente porque não pode confiar em seu governo, Sr. Webb... e não tem muitos motivos para confiar. Só posso lhe dizer que sou um homem de consciência. Pode ou não aceitar essa declaração... me aceitar ou não... mas enquanto isso providenciarei para que permaneça são e salvo.

— O senhor me olha de uma maneira estranha... por quê?

— Porque nunca estive na situação em que me encontro agora.

A campainha da porta soou. Sacudindo a cabeça ao som, Marie levantou-se e atravessou rapidamente a sala, até o vestíbulo. Abriu a porta. Por um momento, prendeu a respiração, olhando aturdida para os dois homens, parados lado a lado, ambos levantando carteiras de plástico preto, com suas identificações, um emblema prateado no topo, uma águia gravada, refletindo à luz das luzes da varanda. Mais além, encostado no meio-fio, havia um segundo sedã escuro; dentro, podia-se ver as silhuetas de outros homens e o brilho de um cigarro aceso... outros homens, outros guardas. Marie sentiu vontade de gritar, mas não o fez.

Edward McAllister acomodou-se no lugar do passageiro do seu carro do Departamento de Estado e olhou pela janela fechada para o vulto parado na porta. O ex-Jason Bourne estava imóvel, os olhos rigidamente fixos no visitante de partida.

— Vamos sair daqui — disse McAllister ao motorista, um homem mais ou menos de sua idade, calvo, com óculos de aros de tartaruga.

O carro arrancou, o motorista cauteloso, na rua estranha e estreita, arborizada, a um quarteirão da praia rochosa, na pequena cidade do Maine. Nenhum dos dois falou por vários minutos; o silêncio foi finalmente rompido pelo motorista:

— Como correu tudo?

— Como? — repetiu McAllister. — O embaixador poderia dizer: “Todas as peças estão no lugar.” A fundação está lá, a lógica está lá; o trabalho missionário foi concluído.

— Fico contente em saber disso.

— Fica mesmo? Pois então também estou contente. — McAllister levantou a mão direita trêmula, os dedos finos massageando a têmpora. — Não, não estou! Ao contrário, estou me sentindo muito mal!

— Sinto muito...

— E por falar em trabalho missionário, eu sou um cristão. Ou seja, eu creio... nada tão exagerado como ser um crente fervoroso, achar que nasci de novo, ensinar na escola dominical ou me prostrar no templo. Mas eu acredito. Minha esposa e eu vamos à igreja episcopaliana pelo menos duas vezes por mês e meus dois filhos são acólitos. Sou generoso porque quero ser. Pode compreender isso?

— Claro. Não tenho esses sentimentos, mas compreendo.

— Mas acabo de sair da casa daquele homem!

— Ei, fique calmo. Qual é o problema?

McAllister olhava fixamente para a frente, os faróis que corriam em sentido contrário criando sombras que passavam por seu rosto. E murmurou:

— Que Deus tenha misericórdia de minha alma..

 

Gritos preencheram subitamente a escuridão, uma cacofonia de vozes rugindo, cada vez mais próxima e mais intensa. E depois os corpos impetuosos os envolviam, corriam à frente, berrando, os rostos contorcidos em frenesi. Webb caiu de joelhos, cobrindo o rosto e o pescoço com as mãos, da melhor forma que podia, balançando os ombros para a frente e para trás, vigorosamente, criando um alvo em movimento dentro do círculo de ataque. As roupas escuras constituíam um fator positivo nas sombras, mas de nada adiantaria se houvesse uma rajada indiscriminada, liquidando também pelo menos um dos guardas. Só que as balas nem sempre eram a escolha de um assassino. Havia os dardos... mísseis letais com veneno, disparados por armas de ar comprimido, perfurando a carne exposta, provocando a morte em poucos minutos. Ou segundos.

Uma mão apertou seu ombro. Ele virou-se abruptamente, levantando o braço e desalojando a mão, enquanto dava um passo para a esquerda, agachando-se como um animal.

— Está bem, Professor? —indagou o guarda à sua direita, sorrindo ao clarão da lanterna.

— O que aconteceu?

— Não é sensacional? —gritou o guarda da esquerda, aproximando-se, enquanto David levantava.

— O quê?

— Garotos com esse espírito. Deixa a gente feliz só de assistir.

Estava acabado. A área do campus se encontrava outra vez em silêncio; à distância, entre os prédios de pedra junto das quadras de esporte e do estádio, podia-se avistar as chamas de uma fogueira, através das arquibancadas vazias. Uma festa do futebol americano alcançava o seu clímax, e os guardas estavam rindo.

— O que acha, Professor? — acrescentou o homem da esquerda. — Não se sente melhor agora, conosco aqui e todo o resto?

Estava acabado. A loucura auto-infligida terminara. Ou será que não? Por que seu peito latejava tanto? Por que se sentia tão atordoado, tão assustado? Alguma coisa estava errada.

— Por que toda essa parada me perturba? — indagou David, ao café da manhã, na copa da velha casa vitoriana alugada.

— Sente falta de seus passeios pela praia — comentou Marie, ajeitando o único ovo pochê do marido sobre a única fatia de torrada. — Coma isto antes de fumar um cigarro.

— Não é isso. A coisa me perturba. Há uma semana que sou um alvo numa galeria de tiro superficialmente protegida. Ocorreu-se ontem à tarde.

— Como assim? — Marie despejou a água e pôs a panela na pia da cozinha, os olhos fixos em David. — Seis homens estão ao seu redor, quatro nos “flancos” você disse, dois outros espiando tudo à frente e atrás.

— Uma parada.

— Por que chama assim?

— Não sei. Todos estão em seus lugares. marchando ao rufar dos tambores. Não sei.

— Mas sente alguma coisa?

— Acho que sim.

— Pois então me conte. Esses seus sentimentos já me salvaram a vida, no Guisan Quai, em Zurique. Eu gostaria de ouvir... isto é, talvez não goste, mas é melhor.

David rompeu a gema do ovo na torrada.

— Pode imaginar como seria fácil para alguém... alguém que parecesse bastante jovem para se passar por estudante... passar por mim num caminho e disparar um dardo com uma arma de ar comprimido? Poderia encobrir o som com uma tosse ou uma risada e eu ficaria com cem centímetros cúbicos de estricnina na corrente sangüínea.

— Você sabe muito mais sobre essas coisas do que eu.

— Tem toda razão. Porque seria assim que eu faria.

— Nada disso. Seria assim que Jason Bourne faria... não você.

— Muito bem, estou me projetando. O que não invalida o pensamento.

— O que aconteceu ontem à tarde?

David ficou brincando com a torrada e o ovo em seu prato.

— O seminário terminou depois da hora prevista, como sempre. Estava escurecendo, os guardas assumiram suas posições e começamos a atravessar o campus, a caminho do estacionamento. Havia uma festa da torcida... nossa insignificante equipe de futebol americano vai enfrentar outra, também insignificante, mas muito grande para nós. A multidão passou por nós... garotos correndo para uma fogueira por trás das arquibancadas, berrando, entoando canções de luta, numa animação cada vez maior. E pensei: Vai ser agora. Este é o momento em que vai acontecer, se é que alguma coisa vai acontecer. E pode estar certa de que durante aqueles poucos momentos eu fui Bourne. Agachei-me, dei um passo para o lado, observei todos que podia ver... estava à beira do pânico.

— E que mais? —indagou Marie, preocupada com o silêncio repentino do marido.

— Meus supostos guardas estavam olhando ao redor e rindo. Os dois na frente estavam se divertindo com a cena.

— E isso o deixou perturbado?

— Instintivamente. Eu era um alvo vulnerável, no meio de uma multidão excitada. Os nervos diziam isso; a mente não precisava fazê-lo.

— Quem está falando agora?

— Não tenho certeza. Sei apenas que durante aqueles poucos momentos nada fazia sentido para mim. E apenas poucos segundos depois, como a ressaltar os sentimentos que eu não expressara, o homem por trás de mim, à esquerda, aproximou-se e disse mais ou menos o seguinte: “Não é sensacional ver garotos com esse tipo de espírito? Não o faz se sentir bem?” Murmurei alguma coisa insana e ele acrescentou... e repito as suas palavras com exatidão... “O que acha, Professor? Não se sente melhor agora, conosco aqui e todo o resto?” — David fez uma pausa, levantando os olhos para a mulher. — Eu me sentia melhor agora... eu?

— Ele sabia qual era a função deles — protestou Marie. — Proteger você... Tenho certeza de que estava perguntando se você se sentia mais seguro.

— Será mesmo? E o que eles pensavam? Aquela multidão de garotos a berrar, a semi-escuridão, os corpos indefinidos, rostos obscuros... e ele aderindo à confusão, rindo... todos estavam rindo. Estão mesmo aqui para me proteger?

— O que mais poderia ser?

— Não sei. Talvez simplesmente eu tenha passado por onde eles jamais estiveram. Talvez eu esteja apenas pensando demais, pensando em McAllister e seus olhos. Exceto pelas piscadelas, eram olhos de peixe morto. Podia-se ler naqueles olhos qualquer coisa que se quisesse... dependendo da maneira como se sentia.

— O que ele disse a você foi um choque — comentou Marie, encostando-se na pia, os braços cruzados sob os seios, observando o marido atentamente. — Não podia deixar de ter um efeito terrível sobre você. Teve em mim.

— Provavelmente é isso mesmo — concordou David, acenando com a cabeça. — É irônico, mas assim como há muitas coisas que eu gostaria de lembrar, há muitas outras que eu gostaria de esquecer.

— Por que não telefona para McAllister e diz.a ele o que está sentindo, o que pensa? Tem os telefones dele, de casa e do escritório. Mo Panov lhe diria para fazer isso.

— Tem razão, Mo diria isso. — David comeu a torrada com ovo sem muita vontade. — “Se há um meio de se livrar de uma ansiedade específica, então trate de aproveitá-lo o mais depressa possível”... seria isso que ele diria.

— Pois então faça-o.

David sorriu, com o mesmo entusiasmo com que comia a torrada com ovo.

— Talvez eu faça, talvez não. Prefiro não anunciar uma

paranóia latente, passiva, recorrente ou como quer que eles chamem. Mo voaria até aqui e viraria minha cabeça pelo avesso.

— Se ele não vier, eu bem que posso fazer isso.

— Ni shi nühaizi — disse David, usando o guardanapo de papel, enquanto levantava e se aproximava de Marie.

— E o que isso significa, meu inescrutável marido e amante de número 87?

— Deusa cadela. Significa, numa tradução livre, que você é uma garota pequena... e não tão pequena assim... e que ainda posso vencê-la três em cada cinco vezes na cama, onde há coisas melhores para fazer do que lhe dar uma surra.

— Tudo isso numa frase tão curta?

— Não desperdiçamos palavras... pintamos quadros. E agora tenho de partir. A aula esta manhã vai ser sobre Rama II do Sião e suas pretensões aos estados malaios no início do século XIX. É um pé no saco, mas importante. E o pior é que tenho um estudante de intercâmbio de Moulmein, na Birmânia, e acho que ele sabe mais do que eu.

— Sião? — murmurou Marie, segurando-o pelo braço. — É a Tailândia.

— Isso mesmo, é a Tailândia agora.

— Sua esposa, seus filhos... não dói, David?

Ele fitou-a com um amor intenso.

— Não pode doer tanto quando não posso ver muito claramente. E às vezes torço para nunca poder.

— Não penso assim. Quero que você os veja, ouça, sinta. E saiba que eu também os amo.

— Oh, Deus!

Ele abraçou-a, os corpos se unindo num calor e afeição que somente aos dois pertencia.

A linha estava ocupada pela segunda vez e por isso David repôs o fone no gancho e voltou a concentrar sua atenção no Sião sob Rama II de W. F. Vella, a fim de verificar se o estudante birmanês estava certo sobre o conflito de Rama II com o sultão de Kedah, pela disposição da ilha de Penang. Era um momento de confrontação nos rarefeitos bosques acadêmicos; os pagodes de Moulmein da poesia de Kipling haviam sido substituídos por um esperto estudante de pós-graduação que não tinha qualquer respeito por seus superiores... Kipling compreenderia tal situação e trataria de combatê-la.

Houve uma batida na porta que foi aberta antes que David pudesse dizer para a pessoa entrar. Era um dos guardas, o homem que lhe falara ao final da tarde anterior, durante a concentração que antecedia o jogo... no meio da multidão, entre o barulho, intrometendo-se em seus medos.

— Tudo bem, Professor?

— Tudo bem. Seu nome Jim, não é mesmo?

— Não, Johnny. E não tem importância. Não esperamos que grave os nossos nomes direito.

— Algum problema?

— Justamente o oposto, senhor. Vim me despedir... em nome de todos, o contingente inteiro. Está tudo limpo e pode voltar à vida normal. Recebemos ordens para nos apresentarmos a B-Um-L.

— Como?

— Parece meio tolo, não acha? Em vez de dizer “Voltar ao quartel-general”, eles chamam de B-Um-L, como se alguém pudesse não entender.

— Eu não entendo.

— Base-Um-Langley. Somos da CIA, nós seis, mas acho que já sabia disso.

— Estão indo embora? Todos vocês?

— Isso mesmo.

— Mas pensei... pensei que houvesse uma crise aqui.

— Está tudo limpo.

— Não recebi o aviso de ninguém. McAllister não me disse nada.

— Desculpe, mas não o conheço. Acabamos de receber a ordem.

— Não pode simplesmente aparecer e dizer que vão embora sem nenhuma explicação! Fui informado de que eu era um alvo! Que um homem em Hong Kong queria me matar!

— Não sei se recebeu essa informação ou se apenas imaginou, mas sei que temos um legítimo problema A-um em Newport News. Temos de nos apresentar e nos lançar na nova missão.

— Um legítimo A-um...? E como eu fico?

— Descanse bastante, Professor. Disseram-nos que está precisando.

O agente da CIA virou-se abruptamente, passou pela porta e fechou-a.

Não sei se recebeu essa informação ou se apenas imaginou... O que acha, Professor? Não se sente melhor agora, conosco aqui e todo o resto?

Parada...? Charada!

Onde estava o telefone de McAllister? Onde? Guardara duas cópias, uma em casa e outra na gaveta da escrivaninha... não, na carteira! Encontrou a anotação. O corpo todo tremia, de medo e raiva, enquanto discava.

— Gabinete do Sr. McAllister — disse uma voz de mulher.

— Pensei que fosse sua linha particular. Foi o que ele me disse.

— O Sr. McAllister está ausente de Washington, senhor. Quando isso acontece, devemos receber e registrar as ligações.

— Registrar as ligações? Mas onde ele está?

— Não sei, senhor. Sou do serviço de secretaria. Ele telefona para cá de dois em dois dias. Quem devo informar que ligou?

— Isso não é o bastante! Meu nome é Webb... Jason Webb... não, David Webb! Preciso falar com ele agora! Imediatamente!

— Vou transferir a ligação para o departamento que está cuidando dos chamados urgentes...

Webb bateu o telefone. Tinha o número da casa de McAllister; discou-o.

— Alô?

Outra voz de mulher.

— O Sr. McAllister, por favor.

— Ele não está. Se quiser deixar seu nome e telefone, darei o recado.

— Quando?

— Ele deve telefonar amanhã ou depois. É o que sempre faz.

— Precisa me dar o telefone do lugar onde ele se encontra agora, Sra. McAllister... é a Sra. McAllister, não é mesmo?

— Espero que sim, depois de dezoito anos. Quem deseja falar com meu marido?

— Webb... David Webb.

— Mas é claro! Edward raramente fala do trabalho... e é claro que não o fez no seu caso... mas comentou que você e sua linda esposa são extremamente simpáticos. Nosso filho mais velho, que está na escola preparatória, parece muito interessado pela sua universidade. No último ano as suas notas caíram um pouco e as médias não foram muito altas, mas ele tem uma perspectiva da vida maravilhosa e entusiasmada, tenho certeza de que seria...

— Sra. McAllister — interrompeu-a David, bruscamente — preciso falar com seu marido o mais depressa possível!

— Lamento muito, mas acho que não será possível. Ele está no Extremo Oriente e é claro que não tenho um telefone em que posso encontrá-lo lá. Em emergências, sempre ligamos para o Departamento de Estado.

David desligou. Tinha de alertar — telefonar — Marie. A linha deveria estar desocupada agora; estava ocupada há quase uma hora e não havia ninguém com quem sua esposa pudesse falar por tanto tempo, nem mesmo o pai, a mãe ou os dois irmãos no Canadá. Havia a mais profunda afeição entre todos, mas ela era uma independente do Ontário. Não era francófila como o pai nem doméstica como a mãe; embora adorasse os irmãos, também não se incluía entre os lassos rústicos e francos, como eles. Descobrira outra vida nas camadas estratificadas da economia superior, com um doutorado e um ótimo emprego no governo canadense. E, finalmente, casara com um americano.

Quel dommage!

A linha ainda estava ocupada! Mas que droga, Marie!

E de repente David ficou imóvel, o corpo inteiro se transformando por um instante num bloco de gelo. Mal podia se mexer, mas mesmo assim se esforçou e saiu correndo da pequena sala, atravessando o corredor com tanta velocidade que esbarrou em três estudantes e outro professor, jogando dois contra as paredes e os outros no chão; era um homem subitamente possuído.

Chegando na frente da casa, ele pisou no freio, o carro parando com um ranger. David saltou e subiu correndo o caminho até a porta. Estacou abruptamente. os olhos arregalados, prendendo a respiração. A porta estava aberta e no painel afun-

dado estava impressa a marca de uma mão em vermelho... sangue.

David entrou correndo, derrubando tudo em seu caminho. Móveis viraram e abajures se espatifaram, enquanto ele revistava o andar térreo. E depois subiu, as mãos rígidas como se fossem blocos de granito, todos os nervos alertas a qualquer som, o instinto de matador tão aguçado e nítido quanto a mancha vermelha que vira na porta. Por um momento, compreendia e aceitava o fato de que era o assassino — animal letal — que Jason Bourne fora. Se a esposa estivesse lá em cima, mataria quem quer que tentasse fazer mal a ela... ou que já tivesse feito.

Deitado de bruços no chão, David empurrou a porta do quarto.

A explosão destruiu a parede do corredor. Ele rolou sob o impacto para o outro lado; não tinha arma, mas dispunha de um isqueiro. Revistou os bolsos da calça, retirando todas as anotações rabiscadas que os professores sempre guardam. Reuniu-as, virou-se para a esquerda e acendeu o isqueiro; a chama foi imediata. Jogou a tocha em fogo no interior do quarto, enquanto comprimia as costas contra a parede e se levantava, virando a cabeça para as outras duas portas do segundo andar, fechadas. Golpeou com os pés, um estrondo depois de outro, enquanto se jogava pelo assoalho e rolava para as sombras.

Nada. Os dois cômodos estavam vazios. Se houvesse um inimigo ali, então estava no quarto. Mas, a esta altura, a colcha pegara fogo. As chamas se elevavam gradativamente para o teto. Só restavam poucos segundos.

Agora!

Mergulhou para o interior do quarto, pegando a colcha em chamas e girando-a num círculo, enquanto se agachava e rolava pelo chão, espalhando cinzas por toda parte. Durante todo o tempo, esperava um impacto frio que nem gelo no ombro ou braço, mas sabendo que poderia superar e dominar o inimigo. Oh, Deus! Era outra vez Jason Bourne!

Não havia nada. Sua Marie não estava ali; nada havia além de um artefato primitivo, feito com barbante, que disparara uma espingarda, apontada para matar, quando abrisse a porta do quarto. David apagou as chamas com os correu para o abajur na mesinha-de-cabeceira e acendeu-o.

Marie! Marie!

E foi então que ele viu. Um bilhete no travesseiro de Marie: “Uma esposa por uma esposa, Jason Bourne. Ela está ferida, mas não morta, enquanto a minha está morta. Sabe onde me encontrar e a ela, se for discreto e afortunado. Talvez possamos chegar a um acordo, pois também tenho inimigos. Se não for possível, o que é a morte de mais uma filha?”

David gritou, caindo sobre os travesseiros, tentando abafar a indignação e o horror que subiam por sua garganta, procurando reprimir a dor que lhe lateja nas têmporas. Depois virou-se e olhou para o teto, dominado por uma passividade terrível e brutal. Coisas esquecidas afloraram subitamente... coisas que jamais revelara, nem mesmo para Morris Panov. De corpos arriando sob a sua faca, tombando sob a sua arma de fogo... não eram mortes imaginárias, mas reais. Haviam-no transformado no que não era, mas fizeram um bom trabalho. Ele se tornara a imagem do homem que não deveria ser. Tornara-se esse homem. Sobrevivera... sem saber quem era.

E agora conhecia os dois homens em seu íntimo que constituíam seu ser completo. Sempre se lembraria de um porque era o homem que queria ser, mas no momento tinha de ser o outro... o homem que desprezava.

Jason Bourne levantou-se e foi ao armário embutido, onde havia uma gaveta trancada, a terceira na escrivaninha do móvel. Levantou a mão e pegou uma chave presa com uma fita adesiva no teto do armário. Inseriu-a na fechadura e abriu a gaveta. Lá dentro, havia duas automáticas desmontadas, quatro rolos de arame fino que podia esconder nas palmas das mãos, três passaportes legais em três nomes diferentes e seis cargas de explosivo plastique, que poderiam destruir cômodos inteiros. Usaria uma ou todas. David Webb encontraria a esposa. Ou Jason Bourne se tomaria o terrorista com quem ninguém jamais sonhara, nem mesmo nos sonhos mais delirantes. Não se importava... coisas demais lhe haviam sido arrebatadas. Não suportaria mais.

Bourne ajustou as diversas peças e pôs um pente de balas na segunda automática. Estava pronto. Voltou à cama e deitou, olhando para o teto. Sabia que a logística acabaria se definindo.

 

E a caçada começaria. Encontraria Marie... viva ou morta... e se ela estivesse morta, ele mataria, mataria e continuaria a matar!

Quem quer que fosse o culpado, não escaparia dele. Nem de Jason Bourne.

 

Mal conseguindo se controlar, ele compreendeu que a calma era impossível. A mão apertou a automática, enquanto a mente turbilhonava em rajadas surrealistas e rápidas, à medida que uma opção após outra afloravam em sua cabeça. Acima de tudo, não podia ficar parado; tinha de se manter em movimento. Tinha de se levantar e entrar em ação!

O Departamento de Estado. Os homens que conhecera durante os últimos meses no remoto e secreto complexo médico da Virginia... aqueles homens insistentes e obcecados que o interrogaram implacavelmente, mostrando dezenas de fotografias, até que Mo Panov lhes ordenara que parassem. Descobrira seus nomes e os anotara, pensando que um dia poderia querer saber quem eram... sem qualquer outro motivo que não a desconfiança instintiva; eram os homens que haviam tentado matá-lo apenas poucos meses antes. Contudo, nunca lhes perguntara seus nomes e eles também não os revelaram, exceto como Harry, BilI ou Sam, presumivelmente na teoria de que as identidades concretas só serviriam para aumentar sua confusão. Mas, discretamente, ele lera os crachás de identificação, anotando os nomes, depois que se retiravam, em pedaços de papel, que guardara com seus pertences pessoais na gaveta da cômoda. Quando Marie o visitava, o que acontecia todos os dias, ele lhe entregava os nomes e recomendava que os escondesse na casa... e escondesse bem.

Posteriormente, Marie admitira que obedecera às suas instruções, embora achasse que suas suspeitas eram exageradas, um caso de destruição além do necessário. Até a manhã em que, poucos minutos depois de uma sessão acalorada com os homens de Washington, David lhe pedira que deixasse imediatamente o complexo médico, seguindo de carro para o banco em que tinha um cofre e fazendo o seguinte: pôr uma pequena mecha de seus cabelos no fundo inferior esquerdo do cofre, trancá-lo, sair do banco e voltar duas horas depois, a fim de verificar se os cabelos ainda estavam ali.

Não estavam. Marie prendera bem a mecha; não poderia cair se o cofre não fosse aberto. Ela a encontrara no chão de ladrilhos da caixa-forte do banco.

— Como soube? — indagara Marie.

— Um dos meus amigáveis interrogadores ficou irritado e tentou me provocar. Mo saíra da sala por alguns minutos e ele quase me acusou de fingir, de esconder as coisas. Eu sabia que você viria me visitar e resolvi fazer uma experiência. Queria conferir pessoalmente até que ponto eles iriam... até que ponto poderiam ir.

Nada fora sagrado então e nada era sagrado agora. Tudo era simétrico demais. Os guardas haviam sido retirados, suas próprias reações condescendentemente questionadas, como se fosse ele quem pedira a proteção adicional e nunca tivesse existido a insistência de um certo Edward McAllister. Horas depois, Marie fora seqüestrada, de acordo com um roteiro detalhado com muita precisão por um homem nervoso de olhos de peixe morto. E agora esse mesmo McAllister se encontrava subitamente a vinte e cinco mil quilômetros de distância do seu autodeterminado ponto zero. O subsecretário teria mudado de lado? Fora comprado em Hong Kong? Traíra Washington, assim como o homem a quem jurara proteger? Afinal, o que estava acontecendo? O que quer que fosse, entre os segredos profanos estava o codinome Medusa. Nunca fora mencionado durante os interrogatórios, não houvera qualquer alusão a respeito. Era como se o batalhão ignorado de psicóticos e assassinos nunca houvesse existido; sua história fora eliminada dos registros. Mas essa história podia ser reconstituída.... e seria por aí que ele começaria.

David deixou o quarto e desceu para o seu estúdio, outrora

uma pequena biblioteca ao lado do vestíbulo, na velha casa vitoriana. Sentou à escrivaninha, abriu a última gaveta e retirou diversos cadernos de anotações e outros papéis. Pegou uma espátula de latão e levantou o fundo falso; havia ali outros papéis. Era um sortimento vago e confuso de recordações fragmentadas, imagens que lhe haviam surgido nas horas mais inesperadas, de dia e de noite. Havia pedaços de papel e páginas arrancadas de pequenos blocos de anotações, papéis timbrados diversos, em que ele anotara as cenas e palavras que explodiam em sua cabeça. Era uma massa de evocações dolorosas, muitas tão torturadas que não podia partilhá-las com Marie, temendo que a dor fosse grande demais, as revelações de Jason Bourne excessivamente brutais, que a esposa não seria capaz de confrontar. Entre os segredos ali registrados estavam os nomes dos peritos em operações clandestinas que o haviam interrogado tão intensamente na Virginia.

Os olhos de David se focalizaram de repente na arma terrível, de grosso calibre, na beira da mesa. Sem percebê-lo, trouxera a arma do quarto; contemplou-a fixamente por um momento, depois pegou o telefone. Era o começo da hora mais angustiante e irritante de sua vida, pois a cada momento Marie ficava mais longe.

As duas primeiras ligações foram atendidas por esposas ou amantes; os homens que tentava encontrar subitamente não estavam, quando ele se identificava. Ainda estavam à margem! Os homens não fariam contato sem ele e essa autorização estava sendo negada. Oh, Deus, ele deveria ter imaginado!

— Alô?

— É a residência de Lanier?

— É, sim.

— Quero falar com William Lanier, por favor. Diga a ele que é urgente, um alerta Cento e Dezesseis. Meu nome é Thompson. Departamento de Estado.

— Um momento, por favor — respondeu a mulher, obviamente preocupada.

Alguns segundos depois uma voz de homem perguntou:

— Quem está falando?

— Aqui é David Webb. Lembra-se de Jason Bourne, não é mesmo?

— Webb? — Houve uma pausa, povoada pela respiração de Lanier. — Por que disse que seu nome era Thompson? Foi um alerta da Casa Branca?

— Tive a impressão de que você poderia não querer falar comigo. Entre as coisas de que me lembro, está a de que vocês não fazem contato com determinadas pessoas sem autorização. Estão fora dos limites. Simplesmente comunicam a tentativa de contato.

— Então presumo que também se lembra que é altamente irregular ligar para alguém como eu por um telefone domiciliar.

— Telefone domiciliar? Isso inclui agora a proibição de falar com as pessoas no lugar em que moram?

— Você sabe muito bem do que estou falando.

— Expliquei que era uma emergência.

— Não pode ter nada a ver comigo — protestou Lanier. — Você é um arquivo morto em minha seção...

— Completamente morto?

— Não foi isso o que falei. Só quis dizer que você não está mais entre as minhas atribuições, e a política é não interferir com o trabalho dos outros.

— Que outros? — indagou David, bruscamente

— Como vou saber?

— Está insinuando que não tem o menor interesse pelo que posso lhe dizer?

— Não tem a menor importância se estou interessado ou não. Você não consta de qualquer das minhas listas e isso é tudo o que preciso saber. Se tem alguma coisa a dizer, ligue para o seu contato autorizado.

— Já tentei. A esposa disse que ele estava no Extremo Oriente.

— Experimente o escritório. Certamente alguém por lá vai processá-lo

— Sei disso e não me agrada ser processado. Quero falar com alguém que eu conheça... e conheço você, Bill. Está lembra do? Era “BilI” na Virginia... foi assim que você me disse para chamá-lo. Estava interessado demais no que eu tinha a dizer naquela ocasião.

— Era outro tempo, agora é diferente. Não posso ajudá-lo, Webb, porque não posso aconselhá-lo. Não importa o que você me diga, não posso responder. Não estou atualizado sobre a sua situação... há quase um ano que não tenho qualquer informação. Seu contato é que está a par de tudo... E tenho certeza de que poderá encontrá-lo. Torne a ligar para o Departamento de Estado. E, agora, vou desligar.

— Medusa — sussurrou David. —. Está me entendendo, Lanier? Medusa.

— Medusa o quê? Está tentando me dizer alguma coisa?

— Vou revelar tudo, está me ouvindo? Vou denunciar toda aquela sujeira, a menos que me dêem as respostas que estou querendo!

— Por que em vez disso não se deixa processar? — disse friamente o homem das operações secretas. — Ou então se interne num hospital.

Houve um estalido abrupto e David, suando, também desligou. Lanier não tinha conhecimento de Medusa. Se soubesse alguma coisa, teria permanecido ao telefone, descobrindo tudo o que pudesse, pois Medusa cruzava as linhas de “política” e de estar “atualizado”. Mas Lanier também era um dos interrogadores mais jovens, não devia ter mais do que trinta e três ou trinta e quatro anos; era muito inteligente, mas não um veterano do serviço. Alguém uns poucos anos mais velho provavelmente teria recebido autorização para saber de tudo, seria informado sobre o batalhão renegado que ainda era mantido sob sigilo absoluto. David estudou os nomes na lista e os telefones correspondentes. Tornou a tirar o fone do gancho.

— Alô?

Uma voz de homem.

— É Samuel Teasdale?

— Isso mesmo. Quem está falando?

— Fico contente por ter sido você a ter atendido e não sua esposa.

— O padrão da esposa, sempre que possível — comentou Teasdale, subitamente cauteloso, — Só que a minha não está mais disponível. Neste momento viaja por algum lugar do Caribe, em companhia de alguém que nunca conheci. Agora que já conhece a história da minha vida, pode me dizer quem é você?

— Jason Bourne... está lembrado?

— Webb?

— Eu me lembro vagamente desse nome.

— Por que está me telefonando?

— Você se mostrou cordial. Lá na Virginia, disse-me para tratá-lo por Sam.

— Está bem, Davey, está bem. Tem toda razão. Eu lhe disse que me chamasse de 5am... é assim que os amigos me tratam, Sam... — Teasdale estava surpreso, transtornado, procurando por palavras. — Mas isso aconteceu há quase um ano, Davey. Você conhece as regras. Uma pessoa é designada para lhe falar, no local ou no Departamento de Estado. É essa a pessoa com quem deve manter contato... a pessoa que está a par de tudo.

— E você não está, Sam?

— Não em relação a você. Lembro a diretiva que chegou a nossas mesas duas semanas depois que você deixou a Virginia. Todos os pedidos de informações relativos ao “referido indivíduo” devem ser encaminhados à Seção tal e tal, tendo o “referido indivíduo” acesso total e contato direto com agentes no local e no Departamento.

— Os agentes... se é isso que eles eram... foram removidos, e meu contato de acesso total e direto desapareceu.

— Ora, não venha com essa — protestou Teasdale, suavemente, desconfiado. — Isso é absurdo. Não pode ter acontecido.

— Mas aconteceu! — berrou David. — E minha esposa também aconteceu!

— O que houve com sua esposa? Do que está falando?

— Ela desapareceu, seu filho da puta... todos vocês não passam de filhos da puta! Deixaram que acontecesse! — David segurou o pulso da mão que empunhava o telefone, apertando com toda força para impedir que tremesse. — Quero respostas, Sam. Quero saber quem deu a ordem, quem virou. Tenho uma idéia do responsável, mas preciso de respostas para agarrá-lo... agarrar a todos vocês, se for necessário.

— Pare por aí! — interrompeu Teasdale, furioso. — Se está tentando me comprometer, quero que saiba que está fazendo um péssimo trabalho! Ninguém vai me neutralizar! Se quer berrar, então procure os seus psiquiatras, não a mim! Não sou obrigado a falar com você. Tudo o que tenho de fazer é informar que você me telefonou, providência que tomarei assim que desligar. E quero acrescentar que não vou permitir que ninguém jogue um balde de merda na minha cabeça. Trate de cuidar bem dessa sua cabeça!

— Medusa! — berrou David. — Ninguém quer falar sobre o codinome Medusa, não é mesmo? Até hoje a história continua muito bem escondida, não é mesmo?

Não houve um estalido desta vez. Teasdale não desligou. Em vez disso, falou incisivamente, a voz não deixando transparecer qualquer comentário:

— Rumores... Como os arquivos de Hoover... dão para algumas histórias enquanto se toma uns tragos, mas não valem coisa alguma.

— Não sou um rumor, Sam. Eu vivo, respiro, vou ao banheiro e suo... como estou suando neste momento. Isso não é um rumor.

— Teve seus problemas, Davey.

— Eu estava lá! Lutei com Medusa! Algumas pessoas diziam que eu era o melhor... ou o pior. Por isso é que fui escolhido, por isso me tornei Jason Bourne.

— Não sei de nada a respeito. Nunca discutimos o problema, e portanto não posso saber. Alguma vez falamos a respeito, Davey?

— Pare de usar essa porta desse nome! Eu não sou Davey!

— Éramos “5am” e “Davey” na Virginia... não se lembra?

— Isso não importa! Todos estávamos empenhados em jogos. Morris Panov era o nosso árbitro, até o dia em que você resolveu endurecer.

— Pedi desculpas — disse Teasdale, gentilmente. —Todos temos maus dias. Já lhe falei sobre minha esposa.

— Não estou interessado em sua esposa, mas na minha! E vou desmascarar Medusa, a menos que obtenha algumas respostas, alguma ajuda!

— Tenho certeza de que poderá obter qualquer ajuda que julgar necessária se falar com seu contato no Departamento de Estado.

— Ele não está lá! Sumiu por completo!

— Então peça para falar com o substituto imediato. E vai ser processado.

— Processado? Oh, Deus, o que você é afinal? Um robô?

— Apenas um homem tentando realizar seu trabalho, Sr. Webb... e temo não poder fazer mais nada para ajudá-lo. Boa noite.

Houve um estalido e Teasdale não estava mais na linha.

Havia outro homem, pensou David, numa intensidade febril, olhando para a lista, estreitando os olhos invadidos pelo suor. Um homem tranqüilo, menos áspero que os outros, um sulista, cuja fala lenta e arrastada era uma cobertura para uma mente ágil ou a resistência a um trabalho em que se sentia contrafeito. Não havia tempo para invenção.

— E da residência de Babcock?

— Claro — respondeu uma voz de mulher, suave e musical. —Não o nosso lar, é claro, como sempre faço questão de ressaltar, mas residimos aqui.

— Posso falar com Harry Babcock, por favor?

— E posso saber quem deseja falar, por favor? Ele pode estar lá fora no jardim com as crianças, mas também pode ter ido ao parque. É muito bem iluminado hoje em dia... não como antes... e não se precisa temer por sua segurança, desde que se permaneça...

Uma cobertura para mentes ágeis, tanto o Sr. como a Sra. Harry Babcock.

— Meu nome é Reardon e sou do Departamento de Estado. Há uma mensagem urgente para o Sr. Babcock. Minhas instruções são para encontrá-lo o mais depressa possível. Trata-se de uma emergência.

Houve o eco de um fone sendo coberto, com sons abafados mais além, Harry Babcock entrou na linha, a fala lenta e incisiva.

— Não conheço nenhum Sr. Reardon. Todas as minhas mensagens são transmitidas por um controle que se identifica. É um controle, senhor?

— Nunca soube de ninguém que viesse do jardim ou do parque no outro lado da rua tão depressa, Sr. Babcock.

— Não é extraordinário? Talvez eu devesse estar correndo nos Jogos Olímpicos. Mas conheço sua voz, só não consigo identificar o nome.

— Que tal Jason Bourne?

A pausa foi breve... uma mente muito ágil.

— Esse nome já ficou no passado distante, não é mesmo? Eu diria que há cerca de um ano. É você, não é, David?

Não era uma pergunta.

— Sou eu mesmo, Harry. Preciso conversar com você.

— Nada disso, David. Deve falar com outros, não comigo.

— Está me dizendo que fui cortado?

— Eu não seria tão brusco e descortês, David. Teria o maior prazer em ouvir como você e a simpática Sra. Webb estão indo em sua nova vida. Massachusetts, não é mesmo?

— Maine.

— Isso mesmo. Desculpe. Está tudo bem? Como tenho certeza que compreende, meus colegas e eu estamos envolvidos com tantos problemas que não pudemos nos manter em contato com o seu caso.

— Alguém disse que vocês estavam proibidos de se envolverem.

— Acho que ninguém tentou.

— Quero conversar, Babcock — disse David, bruscamente.

— Mas eu não quero —respondeu Harry Babcock, incisivo, a voz quase glacial. — Sigo os regulamentos e, para ser franco, você está cortado para homens como eu. Não questiono os motivos... as coisas mudam, sempre mudam.

— Medusa! — exclamou David. — Não vamos falar a meu respeito, mas sim sobre Medusa!

A pausa foi mais prolongada do que antes. Quando Babcock falou, as palavras eram mais frias do que nunca:

— Este telefone é seguro, Webb, por isso vou dizer tudo o que quero. Você quase.foi liquidado há um ano e teria sido um erro. Nós o lamentaríamos sinceramente. Mas se romper os fios, não haverá qualquer lamentação amanhã. Exceto, é claro, de parte de sua esposa.

— Seu filho da puta! Ela desapareceu! Alguém a levou! E vocês canalhas deixaram que acontecesse!

— Não tenho a menor idéia do que está falando.

— Meus guardas foram retirados, todos eles, até o último, e minha mulher foi seqüestrada. Quero respostas, Babcock, ou vou revelar tudo o que sei. E agora faça exatamente o que eu mandar ou haverá lamentações como nunca sonhou... para todos vocês, suas mulheres, seus filhos órfãos... pode pensar em todo mundo que vai caber. Ou já esqueceu que sou Jason Bourne?

— O que não esqueci é que você é um maníaco. Com ameaças assim, só vai conseguir que enviemos uma equipe à sua procura. Ao melhor estilo Medusa. Gosta da idéia?

Subitamente, um zumbido intenso entrou na linha; era ensurdecedor, estridente, levando David a afastar o fone do ouvido. E, depois, a voz calma de uma telefonista comunicou:

— Estamos interrompendo a ligação para uma emergência. Pode falar, Cobrado.

— É Jason Bourne quem está na linha? — indagou uma voz de homem com sotaque da Costa Atlântica dos Estados Unidos, uma voz refinada, aristocrática.

— Sou David Webb.

— Claro que sim... mas também é Jason Bourne.

— Era — murmurou David, hipnotizado por algo que não podia definir.

— As linhas conflitantes de identidade se misturam, Sr. Webb. Especialmente para alguém que passou por tanta coisa.

— Mas quem é você?

— Um amigo, pode estar certo. E um amigo adverte alguém a quem chama de amigo. Fez algumas acusações afrontosas a alguns dos mais dedicados servidores de nosso país, homens que nunca permitirão o desaparecimento de cinco milhões de dólares... um dinheiro que continua inexplicado até hoje.

— Quer me revistar?

— Não, assim como também não estou interessado em investigar os caminhos tortuosos pelos quais sua eficiente esposa escondeu o dinheiro em uma dúzia de bancos europeus...

— Ela sumiu! Foram seus homens dedicados os responsáveis?

— Descreveram você como alguém com esgotamento nervoso... “frenético”, para ser mais preciso... a fazer acusações espantosas, relacionadas com sua esposa.

— Relativas a... Essa não! Ela foi seqüestrada de nossa casa! E alguém a está mantendo cativa porque me quer!

— Tem certeza?

— Pergunte ao peixe morto do McAllister. A história é

dele, inclusive o bilhete. E de repente ele está no outro lado do mundo!

— Um bilhete?   

— Muito claro. Muito específico. É história de McAllister e ele deixou que acontecesse! Vocês deixaram que acontecesse!

— Talvez você devesse examinar o bilhete mais atentamente.

— Por quê?

— Não importa. Pode se tomar tudo mais claro para você com alguma ajuda... ajuda psiquiátrica.

— Como assim?

— Pode estar certo de que queremos fazer tudo o que for possível por você. Passou por muita coisa... mais do que qualquer homem deveria passar... e sua extraordinária contribuição não pode ser ignorada, mesmo que o caso seja levado a um tribunal. Pusemos você na situação e ficaremos do seu lado... mesmo que isso implique violar leis, coagir tribunais.

— Mas do que está falando? — berrou David.

— Um respeitável médico militar matou a esposa, tragicamente, há alguns anos. A história saiu nos jornais. A tensão tornou-se demais. E as pressões sobre você foram dez vezes maiores.

— Não acredito nisso!

— Vamos pôr as coisas de outra maneira, Sr. Bourne.

— Eu não sou Bourne!

— Está certo, Sr. Webb. Vou ser franco.

— Já é um passo à frente!

— O senhor não está bem. Passou por oito meses de tratamento psiquiátrico... e ainda há uma boa parte de sua vida de que não consegue se lembrar. Nem mesmo sabia o seu nome. Está tudo nos registros médicos, registros meticulosos que deixam bem claro o estado avançado de sua doença mental, sua compulsão para a violência e rejeição obsessiva da própria identidade. E, em seu tormento, o senhor fantasia, finge ser pessoas que não é. Parece ter a compulsão de ser alguém que não o senhor mesmo.

— isso é loucura e sabe muito bem! Tudo mentira!

— “Loucura” é uma palavra dura, Sr. Webb, e as mentiras não são minhas. Contudo, é meu dever proteger nosso governo da calúnia, das acusações infundadas que podem prejudicar seriamente o país.

— Por exemplo?

— Sua fantasia secundária sobre uma organização desconhecida que chama de Medusa. Tenho certeza de que sua esposa vai voltar... se ela puder, Sr. Webb. Mas se persistir nessa fantasia, nessa invenção de sua mente torturada que o senhor chama Medusa, vamos considerá-lo um esquizofrênico paranóico, um mentiroso patológico propenso à violência incontrolável e à auto-ilusão, Se um homem assim alega que a esposa está desaparecida, quem sabe para onde a viagem patológica pode levá-lo? Estou sendo claro?

David fechou os olhos, o suor escorrendo pelo rosto.

— Muito claro — murmurou ele, desligando.

Paranóico... patológico. Miseráveis! Tornou a abrir os olhos, querendo descarregar a raiva arremetendo contra alguma coisa... qualquer coisa! Mas de repente ficou imóvel, enquanto outro pensamento lhe ocorria, o pensamento óbvio. Morris Panov! Mo classificaria os três monstros pelo que ele sabia que eram. Incompetentes e mentirosos, manipuladores e protetores egoístas de burocracias corruptas... e possivelmente ainda pior, muito pior. David estendeu a mão para o telefone e, tremendo, discou o número que tantas vezes no passado lhe trouxera uma voz tranqüilizante e racional, proporcionando um senso de valor, quando sentia que muito pouco de valor restava em sua pessoa.

— David, que prazer ouvi-lo! — exclamou Panov, com uma afeição genuína.  

— O prazer não será tão grande, Mo. É o pior telefonema que já lhe dei.

— Ora, David, está sendo dramático demais. Passamos por muita coisa...

— Escute!— berrou David. Ela desapareceu! Eles a seqüestraram!

As palavras saíram num jorro, as seqüências carecendo de ordem, os tempos confusos.

— Pare, David! — ordenou Panov, — Volte atrás. Quero ouvir tudo desde o começo. Quando esse homem foi procurá-lo... depois que... depois das lembranças de seu irmão.

— Que homem?

— O homem do Departamento de Estado.

— Está bem, está bem! McAllister era o seu nome.

— Comece daí. Nomes, títulos, posições. E soletre o nome daquele banqueiro em Hong Kong. E, pelo amor de Deus, fale devagar!               

David tornou a apertar o pulso que empunhava o fone. Começou de novo, impondo um falso controle à voz; tornou-se estridente, tensa, adquirindo velocidade involuntariamente. Acabou conseguindo relatar tudo que podia lembrar, sabendo horrorizado que não se lembrara de tudo. Espaços em branco desconhecidos acarretavam-lhe uma profunda angústia. Estavam voltando... os terríveis espaços em branco. Dissera tudo o que podia dizer no momento; não restava mais nada.

— David — começou Mo Panov, firmemente —, quero que faça uma coisa por mim. Agora.

— O quê?

— Pode lhe parecer uma tolice, até mesmo um tanto absurdo, mas sugiro que desça a rua até a praia e faça uma caminhada pela beira d’água. Meia hora, quarenta e cinco minutos, só isso. Escute a arrebentação, as ondas quebrando nos rochedos.

— Não pode estar falando sério!

— Claro que estou, David. Lembra que concordamos um dia que havia ocasiões em que as pessoas deveriam pôr a cabeça na geladeira... e Deus sabe que faço isso com mais freqüência do que um psiquiatra relativamente respeitado deveria fazer. As coisas podem nos sufocar, e antes de fazermos qualquer coisa, precisamos nos livrar de um pouco da confusão. Faça o que estou pedindo, David. Voltarei a lhe telefonar assim que puder, não devo demorar mais que uma hora. E quero você mais calmo do que está agora.

Era uma loucura, mas como acontecia com tanta coisa que Panov sugeria, suavemente, às vezes casualmente, havia verdade em suas palavras. David caminhou pela praia fria e rochosa, jamais esquecendo por um instante sequer o que acontecera; se foi pela mudança de cenário, o vento ou o barulho incessante e repetitivo do mar, o fato é que se descobriu a respirar mais firmemente... ainda profundamente, tão trêmulo quanto antes, mas sem os registros mais altos da histeria. Olhou para o relógio, o mostrador luminoso ressaltado pelo luar. Caminhara de um lado para outro por trinta e dois minutos; era toda a indulgência que podia suportar. Subiu pelo caminho através das dunas cobertas por uma vegetação rasteira e alcançou a rua, encaminhando-se para sua casa, acelerando a cada passo.

Sentou na cadeira atrás da escrivaninha, os olhos fixados no telefone, que começou a tocar. Atendeu antes que a campainha parasse.

— Mo?

— Sim.

— Estava muito frio na praia. Obrigado.

— Eu é que devo agradecer.

— O que descobriu?

E foi então que a extensão do pesadelo começou.

— Há quanto tempo Marie desapareceu, David?

— Não sei com certeza. Uma hora, duas, talvez mais. Mas o que isso tem a ver com qualquer coisa?

— Ela não poderia ter saído para fazer compras? Ou vocês dois tiveram uma briga e ela resolveu passar algum tempo sozinha? Ambos sabemos que as coisas se tornam às vezes muito difíceis para ela... você mesmo faz questão de ressaltar isso.

— Mas do que está falando? Há um bilhete explicando tudo! E sangue... a impressão de uma mão em sangue!

— Já mencionou isso antes, mas são pistas incriminadoras. Por que alguém faria isso?

— Como eu vou saber? Foi feito... eles fizeram! Está tudo aqui!

— Chamou a polícia?       

— Claro que não! Não é um caso para a polícia! E para nós... para mim! Será que não pode compreender isso? O que descobriu? Por que está falando assim?

— Porque tenho. Em todas as sessões, em todos os meses em que conversamos, nunca dissemos qualquer coisa que não a verdade um para o outro, porque a verdade é o que você precisa saber.

— Pelo amor de Deus, Mo, é Marie!

— Deixe-me acabar, por favor, David. Se eles estão mentindo... e já mentiram antes... vou descobrir e denunciá-los. Não poderia fazer outra coisa. Mas vou relatar exatamente o que eles me disseram, qual a história que o segundo homem da Seção do Extremo Oriente me contou e o que falou o chefe de segurança do Departamento de Estado, de acordo com o registro oficial dos acontecimentos.

— Registro oficial?

— Isso mesmo. Ele disse que você procurou o controle de segurança há pouco mais de uma semana. Segundo o registro, estava bastante agitado...

— Eu os procurei?

— Foi o que ele disse.. Segundo o registro, você alegou que recebera ameaças. Sua fala estava “incoerente”.., foi a palavra que eles usaram... e exigiu uma segurança adicional imediatamente. Por causa da indicação de confidencial em sua ficha, o pedido foi encaminhado aos escalões superiores, que decidiram: “Vamos dar o que ele quer. É melhor esfriá-lo.”

— Não posso acreditar!

— Isso não é tudo, David. E quero que me escute, porque escutei o que você disse.

— Está bem. Continue.

— Assim é melhor. Calma. Fique frio... não, risque a palavra “frio”.

— Por favor, continue.

— Depois que as patrulhas estavam postadas... novamente segundo os registros... você entrou em contato mais duas vezes, queixando-se de que os guardas não estavam cumprindo o seu dever. Disse que bebiam em seus carros na frente de sua casa, que riam de você quando o acompanhavam pelo campus, que eles... e aqui vou reproduzir literalmente... “escarneciam do que deveriam estar fazendo”. Gravei essa frase.

— Escarneciam?               

— Calma, David. Estou chegando ao fim dos registros. Você fez um último contato, declarando enfaticamente que queria que todos fossem removidos... que os guardas eram seus inimigos, os homens que queriam matá-lo. Em suma, você convertera os homens que tentavam protegê-lo em inimigos que iriam atacá-lo.

— E tenho certeza que isso se ajusta perfeitamente a uma dessas conclusões psiquiátricas idiotas de que estou convertendo... ou pervertendo.., minhas ansiedades em paranóia.

— Tem razão, ajusta-se perfeitamente — murmurou Panov. — Até demais.

— O que disse o segundo homem do Extremo Oriente?

Panov permaneceu em silêncio por um momento.

— Não é o que você quer ouvir, David, mas ele foi inflexível. Nunca ouviram falar de um banqueiro ou de qualquer taipan influente chamado Yao Ming. Disse que, pela situação atual de Hong Kong, teria memorizado o dossiê se tal pessoa existisse.

— Ele acha que inventei tudo? O nome, a esposa, a ligação com os tóxicos, os lugares, as circunstâncias... a reação britânica! Pelo amor de Deus, eu não poderia inventar essas coisas, mesmo que quisesse!

— Seria mesmo demais para você — concordou o psiquiatra, suavemente. — E também está ouvindo pela primeira vez tudo o que acabei de lhe contar e nada faz sentido. Não é assim que costuma recordar as coisas.

— Mo, é tudo mentira! Nunca entrei em contato com o Departamento de Estado. McAllister esteve aqui e contou a nós dois tudo o que lhe relatei, inclusive a história de Yao Ming E agora ela desapareceu e me deixaram uma pista para seguir. Por quê? Pelo amor de Deus, o que estão querendo fazer conosco?

— Perguntei por McAllister —informou Panov, o tom subitamente furioso. — O segundo homem do Extremo Oriente verificou com o setor de trânsito do Departamento de Estado e tornou a me ligar. McAllister voou para Hong Kong há duas semanas. Assim, de acordo com sua agenda meticulosa, não poderia ter ido à sua casa no Maine.

— Mas ele esteve aqui!

— Acho que acredito em você.

— O que isso significa?

— Entre outras coisas, que posso perceber a verdade em sua voz, às vezes mesmo quando você não pode. E também que a expressão “escarnecer” de alguma coisa geralmente não consta do vocabulário de um psicótico em estado de grande agitação... certamente não no seu, mesmo nos momentos mais delirantes.

— Não estou entendendo.

— Alguém conferiu onde você trabalhava e o que fazia

para viver e concluiu que seria apropriado acrescentar uma linguagem mais elevada. O que se chama de cor local, em seu caso. — Uma pausa e Panov explodiu: — Santo Deus, o que estão fazendo?

— Trancando-me no starting gate** — murmurou David. — Estão me forçando a sair em busca do que querem.

— Filhos da puta!

— É o que se chama de recrutamento. — David olhava fixamente para a parede. — Mantenha-se a distância, Mo, pois não há nada que possa fazer. Eles ajustaram todas as peças em seus devidos lugares. Estou recrutado.

David desligou. Atordoado, deixou o pequeno escritório e foi parar no vestíbulo vitoriano, contemplando os móveis virados, os abajures quebrados, porcelanas e vidros espalhados pelo chão da sala de estar. E nesse instante afloraram as palavras que Panov pronunciara no início da terrível conversa: “São pistas incriminadoras”.

Percebendo apenas vagamente para onde seus passos o levavam, aproximou-se da porta da frente e abriu-a. Forçou-se a olhar para a mão gravada no centro do painel superior, o sangue seco escuro à luz das lâmpadas da varanda. Chegou mais perto e examinou-a.

Era a impressão de uma mão, mas não uma mão impressa. Havia o contorno de uma mão — a impressão, a palma, os dedos estendidos — mas não as falhas na forma sangrenta, não as superposições ou depressões que uma mão sangrando deixaria ao ser comprimida contra a madeira dura, nenhuma marca de identificação, nenhuma parte isolada que gravaria as suas características específicas. Era como uma sombra achatada e colorida de um pedaço de vitral, sem outros planos que não a impressão única. Uma luva? Uma luva de borracha?

David desviou os olhos e encaminhou-se lentamente para a escada do meio do vestíbulo, os pensamentos se concentrando hesitantes em outras palavras, pronunciadas por outro homem. Um homem estranho, com uma voz hipnótica.

Talvez você devesse examinar o bilhete mais atentamente... Pode se tornar tudo mais claro para você com alguma ajuda... ajuda psiquiátrica.

David soltou um grito súbito, o terror se avolumando em seu íntimo, enquanto corria para a escada e subia para o quarto. Parou e ficou olhando fixamente para o bilhete datilografado na cama. Pegou-o com um medo repulsivo e levou-o para a penteadeira de Marie. Acendeu o abajur e examinou-o sob a luz.

Se o coração em seu peito pudesse explodir, então teria acabado naquele momento. Em vez disso, Jason Bourne estudou o bilhete friamente.

Os erres um pouco inclinados e irregulares estavam ali, assim como os dês, as hastes superiores incompletas, partidas no meio da marca.

Filhos da puta!

O bilhete fora escrito em sua própria máquina.

Recrutamento.

 

David sentou nos rochedos por cima da praia, sabendo que tinha de pensar com toda lucidez. Precisava definir o que tinha pela frente e o que esperavam dele, para depois formular um plano melhor do que a trama de quem quer que o estivesse manipulando. Acima de tudo, sabia que não podia se entregar ao pânico, nem mesmo à percepção do pânico, pois um homem em pânico era perigoso, um risco a ser eliminado. Se fosse além da conta, só estaria assegurando a morte de Marie e a sua; era muito simples. Tudo era frágil... violentamente frágil.

David Webb estava fora de cogitação. Jason Bourne tinha de assumir o controle. Oh, Deus! Era uma loucura! Mo Panov lhe recomendara que andasse pela praia — como Webb — e agora ele estava sentado ali — como Bourne — pensando nas coisas da maneira como Bourne pensaria. Tinha de negar uma parte de si mesmo e aceitar a parte oposta.

Estranhamente. não era impossível, nem mesmo intolerável, pois Marie dependia de sua ação. Seu amor, seu único amor... Não pense assim. Jason Bourne falou: Ela é um bem precioso que tiraram de você! Trate de recuperá-la. Jason Bourne falou: Não, não é um simples bem precioso, é minha vida!

Jason Bourne: Então viole todas as regras! Descubra-a! Traga-a de volta!

David Webb: Não sei como. Ajude-me!

Pois então me use! Use tudo o que aprendeu comigo. Tem os instrumentos, há anos que os possui. Era o melhor em Medusa. Acima de tudo, havia controle. Você pregava isso, vivia assim. E permaneceu vivo.

Controle.

Uma palavra muito simples. Uma demanda terrível.

David desceu dos rochedos e subiu outra vez o caminho pela vegetação rasteira, retornando à velha casa vitoriana, detestando o seu vazio repentino, assustador e injusto. Enquanto andava, um nome passou num relance por seus pensamentos; depois voltou e persistiu. Lentamente, o rosto que pertencia a esse nome entrou em foco... bem devagar, pois o homem despertava ódio em David, um sentimento que não era menos intenso do que a tristeza que também evocava.

Alexander Conklin tentara matá-lo — duas vezes — e quase conseguira. E Alex Conklin — segundo o seu depoimento, suas numerosas sessões psiquiátricas com Mo Panov e as vagas recordações que David pudera fornecer — fora um amigo íntimo do funcionário do serviço diplomático de David Webb, sua esposa tailandesa e seus filhos, no Camboja, uma vida inteira atrás. Quando a morte caíra do céu, enchendo o rio com círculos de sangue, David fugira às cegas para Saigon, dominado por uma raiva incontrolável. Fora seu amigo na CIA, Alex Conklin, quem lhe encontrara um lugar no batalhão ilegítimo que chamavam Medusa.

Se puder sobreviver ao treinamento na selva, será um homem como eles querem. Mas tome cuidado com eles... com todos eles, sem exceção, em cada minuto. São capazes de cortarem seu braço para ficarem com o relógio. Eram essas as palavras que David lembrava e também recordava, especificamente, que haviam sido pronunciadas pela voz de Alexander Conklin.

Ele sobrevivera ao treinamento brutal e se tomara Delta. Nenhum outro nome, apenas uma progressão no alfabeto. Delta Um. E depois da guerra Delta se tornara Caim. Caim é para Delta e Delta é para Carlos. Fora esse o desafio lançado a Carlos, o assassino. Criado por Casa de Pedra 71, um assassino chamado Caim pegaria o Chacal.

Fora como Caim, um nome que o submundo da Europa sabia que era na verdade o Jason Bourne da Ásia, que David acabara sendo traído por Conklin. Um simples ato de fé da parte de Alex poderia ter feito toda a diferença. Mas Alex não pudera encontrar qualquer base dentro de si para oferecê-lo; sua amargura pessoal impedia essa caridade. Acreditara no pior do ex-amigo, porque seu senso de martírio o levava a querer acreditar. Provocara seu amor-próprio ferido, convencendo-o de que era melhor do que o ex-amigo. Em seu trabalho com Medusa, Conklin tivera o pé direito destruído por uma mina de terra, o que encerrara a sua brilhante carreira como estrategista de campo. Um homem aleijado não podia continuar em ação no campo, onde uma crescente reputação talvez o conduzisse por caminhos ascendentes já percorridos por homens como Allen Dulles e James Angleton; e Conklin não possuía os talentos indispensáveis para a luta interna burocrática em Langley. Ele começara a definhar, um tático outrora extraordinário a observar os talentos inferiores ultrapassarem-no, sua competência só procurada em segredo, a cabeça de Medusa sempre nos bastidores, perigoso, alguém para se manter a distância.

Dois anos de castração imposta, até que um homem conhecido como Monge — um Rasputin das operações secretas — procurara-o porque um certo David Webb fora escolhido para uma missão extraordinária e Conklin o conhecia há anos. Casa de Pedra 71 estava criada, Jason Bourne tornara-se o seu produto, e Carlos o Chacal, o alvo. E durante trinta e dois meses Conklin controlara a operação, a mais secreta de todas as operações secretas, até que tudo desmoronara com o desaparecimento de Jason Bourne e a retirada de mais de cinco milhões de dólares da conta da missão em Zurique.

Sem qualquer indício em contrário, Conklin presumira o pior. O lendário Bourne resolvera virar; a vida no mundo clandestino se tornara insuportável para ele, e a tentação de mais de cinco milhões de dólares fora grande demais para resistir. Ainda mais para alguém conhecido como o camaleão, um especialista em cobertura total, que falava várias línguas e podia mudar de aparência e estilo de vida com tão pouco esforço que era capaz de literalmente desaparecer. Uma armadilha para um assassino fora armada e depois a isca sumira, revelando um ladrão ardiloso. Para o entrevado Alexander Conklin, não era apenas o ato de um traidor, mas também uma traição intolerável. Considerando tudo o que fora feito com ele, seu pé agora apenas um peso morto e desajeitado, inserido cirurgicamente em carne roubada, uma carreira outrora brilhante para sempre perdida, a vida pessoal uma solidão que só podia ser preenchida com a entrega total à Agência — uma devoção que não tinha retribuição — que direito tinha qualquer outro de mudar de lado? Que outro homem dera tanto quanto ele?

Assim, seu antigo amigo íntimo, David Webb, transformara-se no inimigo, Jason Bourne. E não somente o inimigo, mas uma obsessão. Ajudara a criar o mito; haveria agora de destruí-lo. A primeira tentativa fora com dois assassinos profissionais, nos arredores de Paris.

David estremeceu ao recordar, ainda contemplando um derrotado Conklin se afastando a claudicar, o vulto entrevado sob a mira de sua arma.

A segunda tentativa estava ainda enevoada para David. Talvez nunca a lembrasse completamente. Ocorrera na casa segura da operação, na Rua 71, em Nova York, uma engenhosa armadilha montada por Conklin, que malograra pelos esforços histéricos de David para sobreviver e, estranhamente, pela presença de Carlos, o Chacal.

Mais tarde, quando a verdade se tornara conhecida, de que o “traidor” não cometera qualquer traição, mas em vez disso sofria de uma aberração mental chamada amnésia, Conklin desmoronara. Durante os meses angustiantes da convalescença de David, na Virginia, Alex tentara repetidamente encontrar o antigo amigo íntimo, a fim de explicar, contar a sua parte da terrível história... e pedir desculpas, com todas as fibras do seu ser.

David, no entanto, não tinha o perdão em sua alma. E declarara:

— Se ele passar por aquela porta, vou matá-lo.

Isso vai mudar agora, pensou David, enquanto avançava apressado pela rua, a caminho de casa. Quaisquer que fossem os defeitos e traições de Conklin, poucos homens na comunidade de informações possuíam os conhecimentos e fontes que ele acumulara ao longo da vida. Há meses que David não pensava em Alex; lembrou-se dele agora, recordando de repente a última vez em que seu nome aparecera numa conversa. Mo Panov apresentara seu veredicto:

— Não posso ajudá-lo, porque ele não quer ser ajudado. Vai levar a sua última garrafa de fel para a vasta e negra sala de operações no céu aberto em seu crânio misericordiosamente morto. Ficarei surpreso se ele sobreviver à sua aposentadoria ao final do ano. Por outro lado, se ele continuar bebendo como está, podem metê-lo numa camisa-de-força e tirá-lo de circulação. Juro que não sei como ele consegue trabalhar todos os dias. Aquela pensão é uma tremenda terapia de sobrevivência... melhor do que qualquer coisa que Freud nos tenha deixado.

Panov fizera o comentário há mais de cinco meses. Conklin ainda estava no mesmo lugar.

Desculpe, Mo. A sobrevivência dele, de um jeito ou de outro, não é problema meu. Pelo que me diz respeito, ele já está morto.

Não está morto agora, pensou David, enquanto subia correndo os degraus da varanda vitoriana. Alex Conklin estava muito vivo, bêbado ou não; e mesmo que estivesse preservado em bourbon, ainda tinha as suas fontes, os contatos que cultivara durante uma vida inteira de devoção ao mundo da espionagem, que acabara por rejeitá-lo. Era um mundo em que as dívidas eram cobradas e pagas por medo.

Alexander Conklin. Número Um na lista de alvos de Jason Bourne.

David abriu a porta e mais uma vez parou no vestíbulo, só que seus olhos não viam os escombros. Em vez disso, o lógico nele ordenou-lhe que voltasse ao estúdio e iniciasse o processo; não havia nada além de confusão sem ordem imposta, e a confusão levava a indagações... algo que não podia se permitir agora. Tudo devia ser preciso na realidade que estava criando, a fim de desviar a curiosidade da realidade que existia.

Sentou-se à mesa e tentou se concentrar. Lá estava o sempre presente caderno de espiral da College Shop. David abriu a capa grossa para a primeira folha pautada e estendeu a mão para um lápis... Não conseguia pegá-lo! A mão se sacudia tanto que todo o corpo tremia. Prendeu a respiração e fechou a mão, comprimindo-a até que as unhas penetraram na carne. Cerrou os olhos, tornou a abri-los, forçando a mão a voltar ao lápis, ordenando que cumprisse sua função. Devagar, de forma um tanto desajeitada, os dedos agarraram o lápis amarelo. levando-o à posição correta. As palavras saíam quase ilegíveis, mas estavam ali.

A universidade — telefonar reitor e diretor do departamento. Crise na família, não Canadá — pode ser verificado. Invente — talvez um irmão na Europa. Uma licença — uma licença rápida. Mas imediato. Vai se manter em contato.

Casa — ligar para administradora, a mesma história. Pedir a Jack para verificar periodicamente. Ele tem a chave. Ligar termostato em 15°C.

Correspondência — preencher formulário no correio. Reter toda correspondência.

Jornais — cancelar.

As pequenas coisas, todas as malditas pequenas coisas — o trivial cotidiano insignificante adquiria uma enorme importância e precisava cuidar de tudo, a fim de que não houvesse qualquer sinal de partida brusca, sem um retorno planejado. Isso era vital; tinha de se lembrar em cada palavra que dissesse. As perguntas deviam ser reduzidas a um mínimo, as especulações inevitáveis mantidas em proporções controláveis, o que significa que precisava confrontar a conclusão óbvia de que os guarda-costas recentes estavam de alguma forma relacionados com a licença. Para romper a ligação, o meio mais plausível era enfatizar a curta duração da licença e enfrentar a questão com um repúdio direto. Por exemplo: “Diga-se de passagem, se estão especulando se isso tem alguma coisa a ver com minha preocupação pela segurança pessoal, quero que saibam que não há a menor relação. Aquilo é um capítulo encerrado. Afinal, não sou tão importante assim.” Saberia melhor como responder ao conversar com o reitor da universidade e o diretor do departamento; suas reações o orientariam. Se é que alguma coisa poderia orientá-lo. Se é que fosse capaz de pensar. Não vacile agora... continue em frente! Mexa esse lápis! Encha a página com coisas a fazer... e depois outra página e mais outra! Passaportes, iniciais em carteiras ou camisas correspondendo aos nomes usados; reservas em aviões — vôos de conexão, nada de viagens diretas... Oh, Deus, para onde? Marie onde você está?

Pare com isso! Controle-se. Você é capaz, tem de ser capaz.

Não tem alternativa; portanto, seja o que já foi outrora. Sinta o gelo. Seja o gelo.

Inesperadamente, a carapaça que ele estava construindo ao seu redor foi estilhaçada pelo som ensurdecedor da campainha do telefone, em cima da mesa, a poucos centímetros da mão. David olhou para o aparelho, engolindo em seco, imaginando se conseguiria parecer sequer remotamente normal. A campainha tornou a soar, numa terrível insistência. Você não tem alternativa.

Atendeu, apertando o fone com tanta força que as articulações ficaram brancas. E conseguiu balbuciar uma única palavra:

— Alô?

— Aqui é o centro telefônico especial, de comunicação por satélite...

— Como? O que foi que disse?

— Tenho uma ligação para o Sr. Webb. É ele quem está falando?

— É, sim.

E no instante seguinte o mundo que David conhecia explodiu em mil espelhos partidos, cada um oferecendo uma imagem de tormento indescritível.

— David

— Marie?

— Não entre em pânico, querido! Está me entendendo? Não entre em pânico!

A voz saía em meio à estática; ela fazia um esforço para não gritar, mas não conseguia se controlar.

— Você está bem? O bilhete dizia que estava machucada... ferida!

— Estou bem. Apenas alguns arranhões, mais nada

— Onde você está?

— No outro lado do oceano, e tenho certeza que dirão isso a você. Mas não sei direito. Eles me doparam.

— Oh, Deus! Não consigo mais suportar! Eles levaram você!

— Trate de se controlar, David. Sei o que isso está fazendo com você, mas eles não sabem. Entende o que estou dizendo? Eles não sabem.

Marie estava enviando uma mensagem codificada; não era

difícil decifrar. Ele tinha de ser o homem que odiava. Tinha de ser Jason Bourne, e o assassino estava vivo e muito bem, residindo no corpo de David Webb.

— Está certo. Tem toda razão. Eu já estava começando a enlouquecer.

— Sua voz está sendo amplificada...

— Era de imaginar.

— Estão deixando eu falar com você para que saiba que estou viva.

— Machucaram você?

— Não intencionalmente

— O que significam “arranhões”?

— Eu me debati. E lutei. Não se esqueça de que fui criada num rancho.

— Oh, não...

— David, por favor! Não deixe que eles façam isso com você!

— Comigo? É com você!

— Sei disso, querido. Acho que estão testando você. Pode compreender?

Novamente a mensagem. Jason Bourne pelo bem dos dois... por suas vidas.

— Claro, claro. — Ele diminuiu a intensidade da voz, tentando se controlar. — Quando aconteceu?

— Esta manhã, cerca de uma hora depois que você saiu.

— Esta manhã? Oh, Deus, o dia inteiro! Como foi?

— Bateram na porta. Dois homens...

— Quem?

— Só tenho permissão para dizer que são do Extremo Oriente. Na verdade, não sei mais nada além disso. Convidaram-me a acompanhá-los e recusei. Corri para a cozinha e avistei uma faca. Atingi um dos homens na mão.

— A marca na porta...

— Não estou entendendo.

— Não tem importância.

— Um homem quer falar com você, David. Escute o que ele tem a dizer, mas não com raiva, não com fúria... pode compreender?

— Claro que posso. Está certo. Compreendo.

A voz do homem entrou na linha. Era hesitante, mas precisa, quase britânica na pronúncia, alguém que aprendera inglês com um inglês ou com alguém que vivera na Inglaterra. Mesmo assim, era inconfundivelmente oriental; o sotaque era do sul da China, o tom, as vogais curtas e as consoantes bruscas indicando que era cantonês.

— Não queremos fazer mal algum à sua esposa, Sr. Webb, mas será inevitável, se não houver outro jeito.

— Eu não faria isso, se fosse você — respondeu David, friamente.

— É Jason Bourne quem está falando?

— Isso mesmo.

— O reconhecimento é o primeiro passo em nosso acordo.

— Que acordo?

— Você tirou uma coisa de grande valor de um homem.

— E vocês me tiraram uma coisa de grande valor.

— Ela está viva.

— E é bom que continue assim.

— A outra pessoa está morta. Você a matou.

— Tem certeza?

Bourne não concordaria prontamente, a menos que isso atendesse a seus propósitos.

— Temos certeza.

— Qual é a prova?

— Você foi visto. Um homem alto, que permaneceu nas sombras e correu pelos corredores do hotel, descendo pela escada de emergência, com a agilidade de um lince.

— Então não fui realmente visto, não é mesmo? Nem poderia. Eu estava a milhares de quilômetros de distância.

Bourne sempre se daria uma opção.

— Nesta era de aviões rápidos, que diferença faz a distância? — O oriental fez uma pausa e depois acrescentou, bruscamente: — Cancelou suas aulas por um período de cinco dias, há duas semanas e meia.

— E se eu lhe dissesse que compareci a um simpósio sobre as dinastias Sung e Yuan em Boston... o que estava de acordo com minhas funções...

O homem interrompeu-o cortesmente:

— Fico surpreso por Jason Bourne empregar uma desculpa tão lamentavelmente fraca.

Ele não queria ir a Boston. O simpósio estava a anos-luz de suas aulas, mas fora convidado oficialmente. O pedido viera de Washington, do Programa de Intercâmbio Cultural, através do Departamento de Estudos Orientais da universidade. Oh, Deus, todas as peças se ajustavam!

— Desculpa para quê?

— Para estar onde não estava. Uma enorme multidão se confundindo no recinto, certas pessoas pagas para jurar que o viram.

— Isso é ridículo, para não dizer obviamente amadorístico. Não pago a ninguém.

— Você foi pago.

— É mesmo? Como?

— Através do mesmo banco que já usou antes. Em Zurique. O Gemeinschaft, em Zurique... na Bahnhofstrasse, é claro.

— E estranho que eu não tenha recebido um extrato — comentou David, prestando toda atenção.

— Quando era Jason Bourne, na Europa, nunca precisou disso, pois sua conta era de três zeros... a mais confidencial, o que significa absolutamente secreta na Suíça. Contudo, encontramos a cópia de uma transferência para o Gemeinschaft entre os papéis de um homem... um homem morto, é claro.

— Foi o que imaginei. Mas não o homem que eu supostamente matei.

— Claro que não. Era o homem que ordenou a morte do outro... juntamente com um galardão muito apreciado de meu empregador.

— Um galardão não é um troféu?

— As duas coisas são conquistadas, Sr. Bourne. Mas já chega. Você é você. Vá para o Regent Hotel, em Kowloon. Registre-se sob qualquer nome que quiser, mas peça a suíte seis-nove-zero,,, diga que acha que foi feita uma reserva.

— Muito conveniente. Meus próprios aposentos.

— Vai poupar tempo.

— Mas levarei algum tempo para arrumar tudo por aqui.

— Temos certeza de que não vai provocar alarme e agirá o mais depressa que puder. Esteja lá no final da semana.

— Pode contar com as duas coisas. Coloque minha esposa de volta na linha.

— Lamento, mas não posso fazer isso.

— Mas você pode ouvir tudo o que dissermos!

— Falará com ela em Kowloon.

Houve um estalido ressonante e David não pôde ouvir mais nada na linha além da estática. Desligou; apertara o fone com tanta força que estava com uma cãibra entre o polegar e o indicador. Conseguiu retirar a mão cerrada e sacudiu-a vigorosamente. Sentia-se grato porque a dor lhe permitia retornar à realidade de maneira mais gradativa. Segurou a mão direita com a esquerda, prendendo-a firmemente. Comprimiu o polegar esquerdo na cãibra. Enquanto observava os dedos relaxarem, compreendeu o que tinha de fazer... e fazer sem desperdiçar uma hora nas questões triviais insignificantes que se tornavam agora tão importantes. Tinha de entrar em contato com Conklin em Washington, o rato de esgoto que tentara matá-lo, em plena luz do dia, na Rua 71, em Nova York. Alex, bêbado ou sóbrio, não fazia distinção entre as horas do dia e da noite, assim como as operações que conhecia tão bem, pois não havia noite e dia quando se tratava de seu trabalho. Havia apenas a luz fria de lâmpadas fluorescentes em escritórios que nunca fechavam. Se fosse necessário, ele pressionaria Alexander Conklin até que o sangue esguichasse dos olhos do rato de esgoto; descobriria o que precisava saber, pois tinha certeza de que Conklin era capaz de obter a informação.

David levantou-se, meio trôpego, deixou o estúdio e foi para a cozinha, onde se serviu de um drinque, outra vez grato porque a mão, embora ainda trêmula, já se mostrava um pouco mais controlável.

Podia delegar algumas coisas. Jason Bourne jamais delegava qualquer coisa, mas ele ainda era David Webb e havia diversas pessoas no campus em que podia confiar... certamente não com a verdade, mas com uma mentira útil. Ao voltar ao estúdio e ao telefone, ele já escolhera o seu conduto. Essa não, conduto! Uma palavra do passado da qual ele pensara estar livre para esquecer. Mas o rapaz faria o que ele pedisse; afinal, a tese de mestrado do estudante de pós-graduação seria analisada por seu conselheiro, um certo David Webb. Aproveite a vantagem,quer seja a escuridão total ou a luz do sol ofuscante, mas use-a para assustar ou use-a com compaixão, o que funcionar melhor.

— James? Aqui é David Webb.

— Oi, Sr. Webb. Onde foi que me estrepei?

— Não é nada disso, um. Estou com um problema e precisando de uma ajuda extracurricular. Está interessado? Vai exigir algum tempo.

— Neste fim de semana? Durante o jogo?

— Não. Apenas amanhã de manhã. Talvez uma hora, se tanto. E depois uma pequena bonificação em termos de seu curriculum vitae, se é que isso não parece uma coisa insignificante.

— Pode falar.

— Confidencialmente... e eu agradeceria se mantivesse assim... terei de me ausentar por uma semana, talvez duas. Estou prestes a ligar para os poderes constituídos e sugerir que você fique no meu lugar. Não vai ser problema para você. É a derrubada dos manchus e os acordos sino-soviéticos, que parecem bastante familiares hoje.

— De 1900 a 1912 — disse o candidato a mestrado, com absoluta confiança.

— Pode refinar um pouco... e não esqueça os japoneses, Port Arthur e o velho Teddy Roosevelt. Apresente tudo e faça comparações. É o que eu faria.

— Pode ser feito... e será feito. Consultarei as fontes. Que tal amanhã?

— Tenho de partir esta noite, um. Minha esposa já viajou. Tem um lápis à mão?

— Claro.

— Sabe o que dizem sobre o acúmulo de jornais e correspondência. Quero que ligue para o serviço de entrega do jornal e procure a agência do correio, pedindo que guardem tudo... assine qualquer coisa que for necessária. Depois, ligue para a Administradora Scully, aqui na cidade, fale com Jack ou Adele e diga...

O candidato a mestrado estava recrutado. O telefonema seguinte foi muito mais fácil do que David esperava, já que o reitor da universidade se preparava para um jantar em sua homenagem e estava muito mais interessado no discurso que faria do que na licença de um obscuro — embora insólito — professor-associado.

— Por favor, fale com o diretor do departamento, Sr. Wedd. Estou preocupado neste momento em levantar recursos para a universidade.

Não foi tão fácil tratar com o diretor do departamento.

— Tem alguma relação com os homens que circulavam com você na semana passada, David? Afinal, meu velho, sou uma das poucas pessoas por aqui que sabem que você esteve envolvido com coisas secretas lá em Washington.

— Não tem a menor relação, Doug. Aquilo foi um absurdo desde o começo, o que não acontece agora. Meu irmão sofreu um grave acidente, seu carro ficou totalmente destruído. Tenho de passar alguns dias em Paris, talvez uma semana. É só isso.

— Estive em Paris há dois anos. Os motoristas por lá são inteiramente doidos.

— Não são piores que os de Boston, Doug, e muito melhores que os do Cairo.

— Acho que posso dar um jeito. Uma semana não é tanto tempo assim, e Johnson passou quase um mês ausente, com pneumonia...

— Já tomei as providências necessárias... dependendo de sua aprovação, é claro; Jim Crowther. um aluno do mestrado, ficará no meu lugar. É uma matéria que ele conhece e tenho certeza de que fará um bom trabalho.

— Ah, sim, Crowther... um rapaz brilhante, apesar da barba. Jamais confiei em barbas, mas também estava aqui nos anos sessenta.

— Tente deixar crescer a barba. Pode libertá-lo.

— Vou ignorar o comentário. Tem certeza de que não tem nada a ver com aquele pessoal do Departamento de Estado? Preciso saber de todos os fatos, David. Como é o nome de seu irmão? Em que hospital de Paris ele está?

— Não sei qual é o hospital, mas Marie provavelmente sabe. Ela partiu esta manhã. Até a volta, Doug. Ligarei para você amanhã ou depois. Tenho de ir agora para o Aeroporto Logan de Boston.

— David...

— O que é?

— Por que tenho a sensação de que você não está sendo absolutamente sincero?

David se lembrou.

— Porque nunca estive antes nessa situação... pedir um favor a um amigo por causa de alguém em quem eu preferia não pensar.

E David desligou.

O vôo de Boston para Washington foi irritante, por causa de um professor fossilizado de pedantismo — um curso que David nunca fizera — que sentou ao seu lado. A voz do homem era tão exasperantemente autêntica quanto o tom solene do experiente ator de televisão que assumia o papel de douto veterano de uma corretora e insistia:

— Eles merecem!

A frase se repetiu interminavelmente na cabeça de David, independente do que o professor dizia... e ele não parava de falar. Só quando pousaram no Aeroporto Nacional é que o pedante admitiu a verdade:

— Fui um chato, mas peço que me perdoe. Tenho pavor de voar e por isso não parei de falar. Uma tolice, não acha?

— Não acho, não. Mas por que não disse logo? Não é nenhum crime.

— Imagino que me omiti com medo da pressão de um igual ou de uma condenação desdenhosa.

— Lembrarei disso na próxima vez em que sentar ao lado de alguém como você. — David sorriu. — Talvez eu pudesse ajudar.

— É muita gentileza sua. E muita sinceridade. Obrigado... muito obrigado.

— Não foi nada.

David foi pegar sua mala e saiu do terminal à procura de um táxi. Ficou contrariado porque os táxis não estavam aceitando passageiros isolados, mas insistindo em levar duas ou três pessoas que seguissem na mesma direção. Foi uma mulher que sentou ao seu lado no banco de trás, uma mulher atraente, que usou a linguagem do corpo, em combinação com os olhos suplicantes. Não fazia sentido para ele e por isso David não fez sentido para a mulher, mas agradeceu a ela por deixá-lo primeiro.

Registrou-se no Jefferson Hotel, na Rua 16, sob um nome falso, inventado no momento. O hotel, no entanto, fora escolhido com extremo cuidado; ficava a um quarteirão e meio do apartamento de Conklin, o mesmo apartamento em que o servidor da CIA vivia há quase vinte anos, quando não estava em campo. Fora um endereço que David fizera questão de descobrir, antes de deixar a Virginia... outra vez o instinto, a desconfiança visceral. Ele tinha também o número de um telefone, mas sabia que era inútil; não podia ligar para Conklin. O ex-estrategista de operações secretas erguera defesas, mais mentais do que físicas, e David queria confrontar um homem despreparado. Não haveria qualquer aviso, apenas uma presença cobrando uma divida, que deveria ser paga agora.

David consultou o relógio; faltavam dez minutos para ameia-noite, um momento tão bom quanto outro qualquer e melhor do que a maioria. Tomou um banho, trocou de camisa e tirou da mala uma das duas armas desmontadas, tirando-a do saco grosso, revestido internamente com papel laminado. Juntou as peças, testou o mecanismo de disparo, empurrou o pente na câmara. Estendeu a arma e estudou sua mão, satisfeito ao constatar que não havia mais qualquer tremor. Sentia-se limpo e discreto. Oito horas antes não teria acreditado que pudesse empunhar uma arma, pois teria medo de que disparasse. Mas isso fora oito horas antes, não era mais agora. A arma era agora uma parte integrante dele, algo com que se sentia perfeita mente á vontade, uma extensão de Jason Bourne.

Deixou o Jefferson e desceu a Rua 16, virando à direita na esquina e notando os números decrescentes dos velhos prédios de apartamentos... muito antigos, lembrando-o das velhas casas com fachada de pedra do Upper East Side de Nova York. Havia uma lógica curiosa na observação, levando-se em consideração o papel de Conklin no projeto Casa de Pedra, refletiu David. A casa segura do projeto em Manhattan era uma estrutura estranha, estofada, com um vidro azulado nas janelas superiores. Ele podia agora vê-la nitidamente, ouvir as vozes com clareza, sem realmente compreender... a fábrica de incubação de Jason Bourne.

Faça de novo!

Quem é o rosto?

Quais são os seus antecedentes? Seu método de matar?

Errado! Você está errado! Faça de novo!

Quem é este? Qual a ligação com Carlos?

Pense! Não pode haver erros!

Uma casa de pedra. Onde o seu outro eu fora criado, o homem de que tanto precisava agora.

Lá estava, o apartamento de Conklin. Era no segundo andar, de frente. As luzes estavam acesas; Alex se encontrava em casa e acordado. David atravessou a rua, consciente de que uma chuva fina e enevoada povoara subitamente o ar, difundindo o clarão dos lampiões, halos por baixo dos globos de vidro ondulados. Subiu os degraus e abriu a porta do pequeno saguão; entrou e estudou os nomes nas caixas de correspondência dos seis apartamentos. Cada uma tinha um círculo perfurado por baixo do nome, pelo qual o visitante se anunciava.

Não havia tempo para qualquer invenção complicada. Se o veredicto de Panov era acurado, sua voz seria suficiente. Apertou o botão de Conklin e esperou por uma resposta, que só veio depois de quase um minuto.

— Quem está ai?

— Harry Babcock — disse David, exagerando o sotaque. — Preciso falar com você, Alex.

— Harry? Mas o que... Claro, claro, pode subir!

A campainha zumbiu, parou por um instante... um dedo momentaneamente deslocado.

David entrou e subiu correndo a escada estreita para o segundo andar, torcendo para estar na frente da porta quando Conklin a abrisse. Chegou menos de um segundo antes de Alex, que com os olhos apenas parcialmente focalizados puxou a porta e começou a gritar. David adiantou-se, pondo a mão no rosto de Conklin, dando-lhe uma chave de braço e fechando a porta com o pé.

Não atacava uma pessoa fisicamente há muito tempo, há tanto tempo que não podia lembrar com precisão. Devia parecer estranho, até mesmo incômodo, mas não era nenhuma das duas coisas. Ao contrário, era perfeitamente natural. Oh, Deus!

— Vou retirar a mão, Alex. Mas se você começar a gritar, a mão volta. E não vai sobreviver se isso acontecer. Entendido?

David retirou a mão ,empurrando ao mesmo tempo a cabeça de Conklin.

— É uma surpresa e tanto —murmurou o homem da CIA, tossindo e cambaleando trÔpego, ao ser solto. — E também pede por um drinque.

— Aposto que tem sido uma dieta constante.

— Somos o que somos.

Meio desajeitado, ConkLin abaixou-se para pegar um copo vazio na mesinha ã frente de um sofá grande e muito usado. Levou-o para uni bar encostado na parede, feito com uma placa de cobre, onde garrafas idênticas de bourbon estavam alinhadas numa fila única. Não havia coqueteleiras nem água, apenas um balde de gelo; não era um bar para as visitas. Era para o anfitrião, o metal reluzente proclamando que se tratava de uma extravagância que o residente se permitia. O resto da sala não tinha a mesma classe. De certa forma, aquele bar de cobre era uma declaração.

— A que devo este prazer duvidoso? — indagou Conklin, servindo-se de uma dose. — Recusou-se a me receber na Virginia... disse que me mataria, e isso é um fato. Foi mesmo o que disse. Você me mataria se eu passasse por aquela porta... foram suas palavras.

— Você está bêbado.

— Provavelmente. Mas é o que quase sempre acontece a esta hora. Quer começar com um sermão? Não vai adiantar nada, mas pode.fazer uma tentativa, se quiser.

— Está doente.

— Não, estou bêbado. Foi o que você disse antes. Estou me repetindo?

— Ad nauseam.

— Desculpe por isso. — Conklin largou a garrafa no bar, tomou vários goles do copo, olhou para David. — Não passei por sua porta, você é que passou pela minha. mas suponho que isso é irrelevante. Veio aqui para finalmente executar a ameaça, consumar a profecia, converter os erros passados em acertos ou como quer que prefira chamar? Duvido muito que esse volume um tanto óbvio por baixo de seu paletó seja uma garrafa de uísque.

— Não sinto mais o impulso irresistível de vê-lo morto,

mas ainda assim posso matá-lo. Você tem condições para provocar esse impulso com a maior facilidade.

— Fascinante. Como eu faria isso?

— Basta não me fornecer o que preciso... e tenho certeza de que você pode fornecer.

— Deve saber de alguma coisa que desconheço.

— Sei que tem vinte anos de operações secretas e que conhece muito bem a maioria.

— História —murmurou o homem da CIA, tomando outro gole.

— Pode ser ressuscitada. Ao contrário da minha, sua memória está intacta. A minha é limitada, o que já não acontece com a sua. Preciso de informações, preciso de respostas.

— Sobre o quê? Para quê?

— Seqüestraram minha esposa — respondeu David simplesmente, uma simplicidade de gelo. — Levaram Marie.

Os olhos de Conklin piscaram, através do olhar fixo.

— Diga de novo. Acho que não ouvi direito.

— Ouviu, sim! E vocês, filhos da puta, estão por trás dessa história nojenta!

— Eu não! Eu não faria isso... não poderia! Mas o que está dizendo afinal? Marie desapareceu?

— Está num avião sobrevoando o Pacífico. E devo acompanhá-la. Vou voar para Kowloon.

— Está louco! Perdeu o juízo!

— Preste atenção, Alex, preste muita atenção a tudo o que vou dizer...

As palavras tornaram a sair rapidamente, mas agora com um controle que não conseguira na conversa com Morris Panov. Embriagado, Conklin tinha percepções mais aguçadas do que a maioria dos homens sóbrios na comunidade de informações, e era indispensável que ele compreendesse. David não podia se permitir qualquer lapso na narrativa; tinha de ser clara e objetiva desde o início... desde o momento em que falara com Marie pelo telefone do ginásio e a ouvira dizer: “Venha para casa, David. Tem alguém aqui que deseja falar com você. Depressa, querido.”

Enquanto ele falava, Conklin claudicou através da sala e

foi sentar-se no sofá, os olhos jamais se desviando do rosto de David. Quando David terminou de descrever o hotel da esquina, Conklin sacudiu a cabeça e estendeu a mão para o copo.

— É fantástico — murmurou ele, depois de um período de silêncio, de concentração intensa a lutar contra os vapores do álcool. Tornou a largar o copo. — É como se uma estratégia fosse montada e perdesse o fio.

— Perdesse o fio?

— Escapasse ao controle.

— Como?

— Não sei —continuou o antigo tático, tremendo um pouco, fazendo um esforço para não engrolar as palavras. — Você recebe um roteiro que pode ou não ser acurado, depois os alvos mudam... sua esposa por você... e a peça é cancelada. Você reage de maneira previsível, mas quando menciona Medusa é informado em termos expressos que será liquidado se persistir.

— Era de se esperar.

— Não é assim que se prepara um alvo. Subitamente sua mulher passa para um plano secundário, e Medusa é o perigo predominante. Alguém calculou mal. Alguma coisa perdeu o fio, alguma coisa aconteceu.

— Você tem o resto desta noite e o dia de amanhã para me obter algumas respostas. Estou no vôo das sete da noite para Hong Kong.

Conklin inclinou-se para a frente, sacudindo a cabeça devagar. A trêmula mão direita tornou a se estender para pegar o copo com bourbon.

— Está no lado errado da cidade —murmurou ele, tomando um gole. — Pensei que sabia disso, já que fez uma alusão ao meu elixir. Sou inútil para você. Estou fora dos limites, um autêntico caso de cesta de lixo. Ninguém me diz nada... e por que deveriam? Não passo de uma relíquia, Webb. Ninguém quer ter qualquer relação comigo. Estou liquidado, mais um passo e ficarei além da salvação... o que acredito ser uma expressão gravada nessa sua cabeça doida.

— Tem razão. Sei o que significa: “Mate-o. Ele sabe demais.”

— E talvez você queira me empurrar para esse ponto, não é? Dê-lhe corda, desperte a Medusa adormecida, cuide para que ele receba o que merece dos seus. Seria uma retribuição justa.

— Você me pôs nessa situação —comentou David, tirando a arma do coldre sob o paletó.

— É verdade. — Conklin acenou com a cabeça, olhando para a arma. — Porque conheci Delta e para mim qualquer coisa era possível... vi você em ação. Deus do céu, você estourou a cabeça de um homem... um dos seus próprios homens... em Tam Quan só porque acreditava... não sabia com certeza, apenas acreditava... que ele estava transmitindo pelo rádio a posição de um pelotão na Trilha Ho Chi Minh! Não houve acusações, não houve defesa, apenas mais uma execução sumária na selva. Por acaso você estava certo, mas também podia estar enganado. Podia tê-lo pressionado, detido, talvez conseguíssemos descobrir algumas coisas por seu intermédio. Mas Delta não admitia essas atitudes. Criava as suas próprias regras. E por isso era claro que podia ter virado em Zurique!

— Não me lembro dos detalhes específicos sobre Tam Quan, mas outros sabiam de tudo — disse David, com uma raiva sob controle. — Precisava tirar nove homens de lá... e não havia lugar para um décimo que poderia nos retardar ou mesmo nos liquidar, denunciando a nossa posição.

— Muito bem! São suas regras! É bastante inventivo; portanto, encontre um paralelo aqui e pelo amor de Deus puxe o gatilho como fez com ele... nosso genuíno Jason Bourne! Eu lhe disse em Paris para fazer isso! — Respirando fundo, Conklin fez uma pausa, fixando os olhos injetados em David. E depois de uma pausa, acrescentou num sussurro queixoso: — Eu lhe disse naquela ocasião e torno a pedir agora. Liquide-me. Não tenho coragem de fazê-lo pessoalmente.

— Éramos amigos, Alex! — gritou David. — Você estava sempre em nossa casa! Comia conosco e brincava com as crianças! Nadava com elas no rio!

Oh, Deus! Estava tudo voltando. As imagens, os rostos... Oh, não, os rostos... Os corpos flutuando em círculos de água e sangue... Controle-se! Rejeite tudo isso! Rejeite! E tem de ser agora. Agora!

— Isso aconteceu em outra terra, David. Além do mais...

Acho que você não quer que eu complete a frase.

— Além do mais, aquela mulher está morta. Prefiro que não repita a frase.

— E nada mais importa — disse Conklin, a voz rouca tomando mais um pouco do uísque. — Éramos ambos eruditos, não é mesmo?... Não posso ajudá-lo.

— Pode, sim. E vai.

— Esqueça, soldado. Não há a menor possibilidade.

— Dívidas devem ser pagas. E estou cobrando as suas.

— Sinto muito. Pode puxar esse gatilho a qualquer momento que quiser. Mas se não o fizer, quero que saiba que não vou me pôr além da salvação e perder tudo o que estou para ganhar... e ganhar de forma legítima. Se me permitirem ir para o pasto, pode estar certo de que vou pastar muito bem. Eles já levaram demais. Quero um pouco de volta.

O agente da CIA levantou-se e atravessou a sala desajeitadamente, voltando ao bar de cobre. Claudicava ainda mais do que David podia lembrar; o pé direito não era mais útil que um coto se arrastando pelo chão, o esforço dolorosamente óbvio.

— A perna está pior, não é mesmo? — perguntou David, bruscamente.

— Posso viver com isso.

— E pode também morrer com isso. — David levantou a automática. — Porque eu não posso viver sem minha mulher e você não se importa com isso. Sabe no que isso o transforma, Alex? Depois de tudo o que fez com a gente, de todas as mentiras, as armadilhas, a escória que usou para nos pegar...

— A você! — interrompeu Conklin, enchendo o copo e olhando para a arma. —Não a ela.

— Mate um de nós e matará os dois... mas você não é capaz de compreender isso.

— Nunca tive esse luxo.

— Sua nojenta autocompaixão não permitiria. Quer apenas chafurdar sozinho e deixar que a bebida pense por você. “Por causa de uma porra de uma mina, lá se vai o Diretor, o Monge, o Raposa Cinzenta... o Angleton dos anos oitenta.” Você é patético. Tem sua vida, sua mente...

— Pois acabe com tudo! Atire! Puxe o gatilho mas me deixe alguma coisa.

Conklin tomou subitamente todo o uísque do copo, seguindo-se uma tosse prolongada, com ânsias de vômito, o corpo todo se sacudindo. Depois do espasmo, ele fitou David, os olhos marejados de lágrimas, as veias vermelhas saltadas.

— Acha que eu não tentaria ajudá-lo se pudesse, seu filho da puta? — balbuciou ele, a voz rouca. — Acha que gosto de todo esse ‘pensamento’ a que me entrego? É você quem está sendo obtuso, David, é você quem está sendo obstinado. Não pode compreender, não é?

O homem da CIA estendeu o copo para a frente, segurando-o com dois dedos, deixou-o cair; espatifou-se, e os fragmentos voaram em todas as direções. E depois voltou a falar, a voz estridente, monótona, enquanto por baixo dos olhos remelentos um sorriso triste se insinuava nos lábios:

— Não posso suportar outro fracasso, velho amigo. E pode estar certo de que eu fracassaria. Mataria vocês dois, e acho que não poderia viver com isso.

David baixou a arma.

— Não com o que você tem na cabeça, não com o que descobriu. De qualquer forma, vou correr o risco. Minhas opções são limitadas, e escolho você. Para ser franco, não conheço mais ninguém. Além disso, tenho várias idéias, talvez mesmo um plano, mas precisa ser armado com a maior rapidez.

— É mesmo?

Conklin encostou-se no bar, para se apoiar.

— Posso fazer um café, Alex?

 

O café puro teve o efeito de deixar Conklin um pouco sóbrio, mas não tanto quanto a confiança de David nele. O ex-Jason Bourne respeitava os talentos de seu mais implacável inimigo do passado, e deixou-o compreender isso. Conversaram até quatro horas da madrugada, refinando os contornos indefinidos de uma estratégia, baseando-a na realidade, mas levando-a muito além. E à medida que o álcool diminuía, Conklin foi funcionando cada vez melhor. Passou a dar forma ao que David formulara apenas vagamente. Percebeu a solidez básica das idéias de David e encontrou as palavras para expressá-las.

— Está descrevendo uma situação de crise crescente, baseada no fato do seqüestro de Marie, depois confundindo-a com mentiras. Mas, como disse, tudo tem de ser feito em alta velocidade, atingindo-os com força e depressa, sem trégua.

— Use a verdade completa primeiro — interveio David, falando rapidamente. —Cheguei aqui com a ameaça de matá-lo. Fiz acusações baseado em tudo o que aconteceu... da história de McAllister à declaração de Babcock de que mandariam um grupo de execução à minha procura... até aquela voz anglicizada de gelo seco que me disse que parasse e desistisse de Medusa ou me chamariam de louco e me internariam num hospício. Nada disso pode ser negado. Aconteceu e estou ameaçando denunciar tudo, inclusive Medusa.

— Pois então vamos passar para a grande mentira — disse Conklin. servindo mais café. — Uma saída tão discreta que vai lançar tudo e todos na maior confusão.

— Como?

— Ainda não sei. Teremos de pensar a respeito. Deve ser algo totalmente inesperado, algo que vai desnortear os estrategistas... quem quer que sejam. O instinto me diz que em algum ponto eles perderam o controle. Se estou certo, um deles terá de fazer contato.

— Pois então pegue suas anotações — insistiu David. — Comece a analisá-los e descubra cinco ou seis pessoas que sejam competidoras lógicas.

— Isso pode levar horas, até mesmo dias. As barricadas estão levantadas e eu precisaria contorná-las. Não dispomos de tempo... você não dispõe de tempo.

— Tem de haver tempo! Comece a agir!

— Há um meio melhor, David. Panov o indicou a você.

— Mo?

— Sim. Os registros no Departamento de Estado... os registros oficiais.

— Os registros...? — David esquecera momentaneamente, o que não acontecera com Conklin. — Como assim?

— É por onde começaram a criar o novo arquivo sobre você. Entrarei em contato com a Segurança Interna com outra versão, pelo menos uma variação que pedirá respostas de alguém... se é que estou certo, se é que a coisa perdeu o fio. Os registros não passam de um instrumento, apenas registram, não confirmam a acurácia. Mas o pessoal da segurança responsável pelos registros vai disparar os foguetes se pensar que houve alguma interferência no sistema. E farão o trabalho por nós... Ainda assim, precisamos da mentira.

— Alex... —murmurou David, inclinando-se para a frente, em sua cadeira diante do sofá comprido e velho. — Há poucos momentos você usou o termo “saída”...

— Significa simplesmente uma interferência no roteiro, um rompimento do padrão.

— Sei o que significa... mas o que me diz de usarmos aqui literalmente? Não uma mera “saída”, mas uma ‘fuga”. Estão me chamando de patológico, esquizofrênico... isso significa que

fantasio, às vezes digo a verdade e às vezes não, supostamente não sou capaz de perceber a diferença.

— É exatamente o que estão dizendo — confirmou Conklin. — Alguns podem até acreditar. E daí?

— Por que não levamos até o fim? Diremos que Marie fugiu, conseguiu escapar. Entrou em contato comigo e estou indo encontrá-la.

Alex franziu o rosto, depois os olhos foram se arregalando gradativamente, as rugas desaparecendo.

— É perfeito — murmurou ele. — É simplesmente perfeito! A confusão vai se espalhar como fogo em mato seco. Em qualquer operação tão profunda, apenas dois ou três homens estão a par de todos os detalhes. Os outros são mantidos na ignorância. Pode imaginar algo assim? Um seqüestro sancionado oficialmente! Uns poucos no núcleo podem entrar em pânico e colidir entre si, tentando salvar a pele. Muito bom, Sr. Bourne.

Estranhamente, David não se ressentiu com o comentário, limitou-se a aceitá-lo, sem pensar.

— Estamos ambos exaustos — disse ele, levantando-se. — Sabemos para onde estamos indo. Assim, vamos dormir um pouco e repassar tudo pela manhã. Você e eu aprendemos há muitos anos a diferença entre um pouco de sono e absolutamente nenhum.

— Vai voltar para o hotel?

— Claro que não — respondeu David, contemplando o rosto pálido e contraído do homem da CIA. — Só quero que me arrume um cobertor. Ficarei aqui mesmo, na frente do bar.

— Deveria também ter aprendido quando não precisa se preocupar com algumas coisas — comentou Alex, levantando-se do sofá e claudicando em direção a um armário embutido perto do pequeno vestíbulo. —Se esta vai ser minha última aventura... de um jeito ou de outro... darei o melhor de mim. Pode até servir para me definir algumas coisas.

Ele virou-se, depois de pegar um cobertor e um travesseiro no armário, e acrescentou:

— Acho que se pode classificar de um estranho pressentimento, mas sabe o que fiz ontem à noite, depois do trabalho?

— Claro que sei. Entre outras pistas, há um copo quebrado no chão.

— Antes disso.

— O que foi?

— Passei por um supermercado e comprei uma tonelada de comida. Carne, ovos, leite... até mesmo aquele grude que chamam de mingau de aveia. Nunca faço isso.

— Estava precisando de uma tonelada de comida. Isso acontece.

— Quando acontece, vou a um restaurante.

— Onde está querendo chegar?

— Você dorme; o sofá é bastante grande. Eu vou comer. Quero pensar mais um pouco. Farei um bife, talvez alguns ovos.

— Precisa dormir.

— Duas horas ou duas e meia serão suficientes. E depois provavelmente comerei um pouco daquele horrível mingau de aveia.

Alexander Conklin atravessou o corredor do quarto andar do Departamento de Estado, o claudicar reduzido pela pura força de vontade, a dor maior por causa disso. Sabia o que estava lhe acontecendo: tinha um trabalho pela frente que queria muito realizar bem, até mesmo de forma brilhante, se é que a expressão ainda tinha alguma relevância para ele. Alex compreendia que meses de abuso como sangue e o corpo não podiam ser superados em poucas horas, mas podia convocar alguma coisa do seu íntimo. Era um senso de autoridade, misturado com uma ira justificada. Ah, que ironia! Um ano antes ele queria destruir o homem que chamavam de Jason Bourne; agora, era uma obsessão repentina e crescente ajudar David Webb... porque erradamente tentara matar Jason Bourne. Sabia que essa atitude poderia lançá-lo numa situação sem salvação, mas era certo que assumisse o risco. Talvez a consciência nem sempre produzisse covardes. Às vezes fazia um homem se sentir melhor consigo mesmo.

E também parecer melhor, refletiu ele. Forçara-se a andar muito mais quarteirões do que deveria, deixando que o frio vento de outono nas ruas acrescentasse alguma cor a seu rosto, o que há anos não acontecia. Combinando com a barba bem feita e um terno listrado devidamente passado que há meses não usava, não tinha agora muita semelhança com o homem que David encontrara na noite anterior. O resto era representa-

ção, ele sabia disso também, enquanto se aproximava das sacrossantas portas do Chefe de Segurança Interna do Departamento de Estado.

Pouco tempo se perdeu em formalidades, ainda menos em conversa informal. A pedido de Conklin — leia-se exigência da Agência —, um assessor saiu da sala. Ele fitou o rude general que fora do G-2 do Exército e agora comandava a Segurança Interna do Departamento de Estado. Alex tencionava assumir o controle com suas primeiras palavras.

— Não estou aqui numa missão diplomática entre serviços, General... é General, não é mesmo?

— Ainda sou chamado assim.

— Por isso, não estou preocupado em ser diplomático, entende?

— Entendo pelo menos que estou começando a não gostar de você.

— Eis aí algo que não me preocupa absolutamente. O que me interessa é um homem chamado David Webb.

— O que há com ele?

— O fato de reconhecer o nome tão prontamente não é muito tranqüilizador. O que está acontecendo, General?

— Quer um megafone, idiota?

— Quero respostas, Cabo... é isso o que você e este serviço são para nós.

— Tome cuidado, Conklin. Quando me telefonou, com sua suposta emergência e a devida confirmação, resolvi fazer algumas consultas. Essa sua grande reputação anda um pouco cambaleante hoje em dia, e uso o termo com perfeito cabimento. Não passa de um bêbado e isso não é segredo para ninguém. Assim, tem menos de um minuto para dizer o que quer, antes de ser expulso. E pode escolher.., o elevador ou a janela.

Alex calculara a probabilidade de o fato de beber ser telegrafada. Fitou nos olhos o chefe da Segurança Interna e falou calmamente, até suavemente:

— General, vou responder a essa acusação com uma frase. Se algum dia chegar aos ouvidos de outra pessoa, saberei de onde partiu, e a Agência também saberá. — Conklin fez uma pausa, os olhos penetrantes. — Nossos perfis são muitas vezes o que queremos que sejam, por motivos que não podemos reve-

lar. Tenho certeza de que compreende o que estou querendo dizer.

O homem do Departamento de Estado sustentou o olhar de Alex com uma expressão relutantemente compreensiva.

— Essa não! — murmurou ele. — Costumávamos promover a desonra dos homens que mandávamos para Berlim.

— Muitas vezes por sugestão nossa — confirmou Conklin, acenando com a cabeça. — E isso é tudo o que falaremos do assunto.

— Está certo. Eu estava alheio ao assunto, mas posso garantir que o perfil projetado está dando certo. Fui informado por um dos seus subdiretores que era melhor me manter a distância de meia sala do seu bafo.

— Nem mesmo quero saber quem foi, General, porque posso rir na cara dele. Se quer saber a verdade, eu não bebo.

Alex experimentou uma compulsão infantil de cruzar os dedos fora de vista, as pernas ou até os dedos dos pés. Mas nenhum método lhe ocorreu no momento, e ele acrescentou bruscamente, a voz inflexível:

— Vamos voltar a David Webb.

— Qual é seu interesse?

— Meu interesse? Minha vida, soldado! Alguma coisa está acontecendo e quero saber o que é. O filho da puta entrou à força em meu apartamento ontem à noite e ameaçou me matar. Fez algumas acusações absurdas, indicando homens de sua folha de pagamento, como Harry Babcock, Samuel Teasdale e William Lanier. Fomos conferir. Eles estão em sua divisão de operações secretas, em plena ação. Afinal, o que eles fizeram? Um deles chegou a declarar que mandariam um grupo de execução à procura de Webb. Mas como alguém pode falar assim? Outro lhe disse que voltasse para o hospital... ele esteve em dois hospitais e em nossa clínica conjunta muito particular na Virginia... nós todos o internamos lá... e saiu com a ficha limpa. Também tem alguns segredos na cabeça que nenhum de nós quer que sejam divulgados. O problema é que esse homem está prestes a explodir por causa de alguma coisa que vocês, seus idiotas, fizeram, deixaram acontecer ou fecharam os olhos quando ocorreu. Ele alega que tem provas de que vocês voltaram à sua vida e a viraram pelo avesso, que lhe prepararam uma armadilha e levaram o que ele tinha de mais precioso.

— Mas qual é a prova? — indagou o aturdido general.

— Ele falou com a esposa — respondeu Conklin, a voz subitamente sem qualquer inflexão.

— E daí?

— Ela foi tirada de casa por dois homens que a doparam e meteram num jato particular, levando-a para a Costa do Pacífico.

— Está querendo dizer que ela foi seqüestrada?

— Exatamente. E o que deve deixar vocês preocupados é que ela ouviu os dois homens conversando com o piloto e concluiu que toda a história suja tinha alguma relação com o Departamento de Estado... por motivos desconhecidos... houve até menção ao nome de McAllister. Para sua informação, ele é um dos subsecretários para o Extremo Oriente.

— Mas isso é uma loucura!

— E vai ser mais do que uma loucura... para todos nós. Ela escapou durante uma escala para reabastecimento em San Francisco. Foi quando entrou em contato com Webb no Maine. Ele está indo encontrá-la... só Deus sabe onde... e é melhor que vocês providenciem algumas boas respostas, a menos que possam provar que o homem é um lunático e que talvez tenha matado a mulher... e torço para que possam... que não houve nenhum seqüestro... e sinceramente espero que não tenha havido.

— Ele é mesmo doido! — exclamou o chefe da Segurança Interna do Departamento de Estado. — Li os registros. Tinha de ler... alguém ligou ontem à noite para falar sobre esse Webb. Não me pergunte quem, pois não posso revelar.

— Mas o que está acontecendo afinal? — indagou Conklin, inclinando-se através da mesa, as má na beirada, tanto para se apoiar quanto para aumentar o efeito.

— Ele é paranóico! O que mais posso dizer? Inventa coisas e acredita nelas.

— Não foi isso que os médicos do governo concluíram — comentou Conklin, friamente. —Acontece que sei alguma coisa a respeito.

— Mas eu não sei de nada!

— E provavelmente nunca saberá. Mas como membro sobrevivente da operação Casa de Pedra, procure alguém que possa me dizer as palavras certas e me deixar tranqüilo. Alguém por aqui abriu uma lata de vermes que precisamos tampar o mais depressa possível.

Conklin tirou do bolso um caderninho de anotações e uma caneta esferográfica; escreveu um número, rasgou a folha e largou-a na mesa.

— É um telefone seguro; uma verificação só levaria a um endereço falso. — Os olhos de Conklin eram duros, a voz firme, o ligeiro tremor contribuindo para torná-la ainda mais ameaçadora. — Deve ser usado entre três e quatro horas desta tarde, em nenhum outro momento. Providencie para que alguém entre em contato comigo. Não quero saber quem vai ser ou como você vai fazer. Talvez tenha de convocar uma de suas famosas conferências de política, mas quero respostas... nós queremos respostas.

— Pode estar completamente enganado, e sabe disso!

— Espero que tenha razão. Mas se eu não estiver, vocês aqui vão ser crucificados... e de maneira impiedosa... por entrarem em território proibido.

David estava grato por haver tantas coisas a fazer, pois sem isso poderia mergulhar num limbo mental e ficar paralisado pela tensão de saber tanto e ao mesmo tempo tão pouco. Depois que Conklin partira para Langley, ele voltara ao hotel e iniciara a lista inevitável. Listas contribuíam para acalmá-lo; eram preliminares à atividade necessária e o forçavam a se concentrar em questões específicas, em vez de pensar nos motivos de cada escolha. Remoer as razões entrevaria sua mente tão gravemente quanto a mina aleijara o pé direito de Conklin. Também não podia pensar em Alex, pois havia incontáveis possibilidades e impossibilidades. Nem podia telefonar para o seu antigo inimigo. Conklin era meticuloso; era de fato o melhor. O ex-estrategista projetava cada ação e a subseqüente reação. Sua primeira conclusão fora a de que, minutos depois de ligar para o chefe da Segurança Interna do Departamento de Estado, outros telefones seriam usados e dois seriam indubitavelmente grampeados. Ambos seus. O do apartamento e o telefone que usava em Langley.

Por isso, a fim de evitar quaisquer interrupções ou interceptações, ele não tencionava voltar ao escritório. Iria se encontrar com David mais tarde, trinta minutos antes de sua partida para Hong Kong.

— Acha que chegou aqui sem que ninguém o seguisse? — ele dissera a David. — Não tenho tanta certeza. Eles estão programando-o e sempre que alguém aperta um teclado fica de olho no número constante.

— Quer fazer o favor de falar inglês? Ou mandarim? Posso entender essas línguas, não essa merda que você fala.

— Podem ter posto um microfone debaixo de sua cama. Só espero que você não seja de falar dormindo.

Não haveria contato até se encontrarem no saguão do Aeroporto DulIes. Era por isso que David se encontrava agora numa loja de malas na Wyoming Avenue. Comprou uma grande bolsa de viagem, a fim de substituir sua mala; já se descartara da maior parte das roupas que trouxera. Coisas — precauções — estavam lhe voltando, entre as quais o risco injustificado de esperar na área de bagagem de um aeroporto. Como queria o anonimato maior da classe econômica, era melhor duas peças de bagagem. Compraria o que precisasse onde quer que estivesse, o que significava que precisava de bastante dinheiro, para isso e quaisquer emergências. Esse fato determinou sua parada seguinte, um banco na Rua 14.

Um ano atrás, enquanto os investigadores do governo examinavam o que restava de sua memória, Marie retirara discretamente os fundos que David deixara no Gemeinschaft Bank, em Zurique, bem como o dinheiro que ele transferira para Paris como Jason Bourne. Despachara o dinheiro para as Ilhas Caimãs, onde conhecia um banqueiro canadense, abrindo uma conta convenientemente confidencial. Considerando o que Washington fizera com seu marido —os danos à sua mente, o sofrimento físico e quase a perda da vida, porque muitos homens se recusa ram a ouvir os seus pedidos de socorro —, Marie não estava exigindo tanto assim do governo. Se David decidisse iniciar um processo —o que, apesar de tudo, não estava fora de cogitação —, qualquer advogado esperto arrancaria nos tribunais uma indenização superior a dez milhões de dólares, não apenas cinco milhões.

Ela expusera seus pensamentos sobre uma possível indenização a um extremamente nervoso subdiretor da CIA. Não discutira os fundos desaparecidos, a não ser para comentar que, com o seu treinamento financeiro, sentia-se consternada por saber que tão pouca proteção era dispensada aos dólares arduamente ganhos dos contribuintes americanos. Formulara a crítica com voz chocada, embora gentil, mas seus olhos diziam outra coisa. Deixara evidente que se tratava de uma mulher muito inteligente e altamente motivada, e seu recado fora entendido. Homens mais sábios e cautelosos perceberam a lógica de suas especulações e concluíram que era melhor esquecer o assunto. Os fundos estavam sob o código ultra-secreto, apenas para apropriações de emergência.

Sempre que precisavam de um dinheiro extra — para uma viagem, um carro, a casa — Marie ou David telefonava para o banqueiro nas Caimãs, que transferia um crédito para alguma das cinco dúzias de bancos correspondentes na Europa, Estados Unidos, Ilhas do Pacífico e Extremo Oriente, com exceção das Filipinas.

De uma cabine telefônica na Wyoming Avenue, David fez uma ligação a cobrar, espantando um pouco o banqueiro amigo pela quantia que queria imediatamente e os fundos que precisava ter disponíveis em Hong Kong. A ligação a cobrar custou menos de oito dólares; o dinheiro a ser transferido passava de meio milhão de dólares.

— Posso presumir, David, que minha querida amiga, a sábia e gloriosa Marie, aprova a operação?

— Foi ela quem me pediu que ligasse para você. Disse que não pode perder tempo com insignificâncias.

— É típico dela. Os bancos que vai usar serão...

David transpôs as portas de vidro grosso do banco na Rua 14 e passou vinte irritantes minutos com um vice-presidente que tentou ao máximo tornar-se um amigo instantâneo, e saiu com cinqüenta mil dólares, quarenta mil em notas de quinhentos e o resto misturado.

Pegou um táxi e seguiu para um apartamento em North West, onde vivia um homem que conhecera em seus dias como Jason Bourne, um homem que fizera um trabalho extraordinário para Casa de Pedra 71 do Departamento de Estado. Era um preto de cabelos prateados que fora motorista de táxi até o dia em que um passageiro deixara uma câmara Hasselblad em seu carro e nunca a reclamara. Por vários anos, o motorista experimentara e acabara encontrando a sua verdadeira vocação. Em termos simples, ele era um gênio em “alteração” — sua especialidade eram passaportes, carteiras de motorista com fotografia e outros documentos de identidade para os que se encontravam em conflito com a lei, especialmente com prisão decretada. David não se lembrara do homem, mas sob a hipnose de Panov dissera o seu nome — por mais improvável que pudesse parecer, era Cactus — e Mo levara o fotógrafo à Virginia, a fim de ajudar a reavivar uma parte da memória de David. Na primeira visita, transpareceram afeição e preocupação nos olhos do preto idoso. Embora lhe fosse bastante inconveniente, ele pedira permissão a Panov para visitar David uma vez por semana.

— Por que, Cactus?

— Ele está perturbado, senhor. Percebi isso através da lente há cerca de dois anos. Alguma coisa está faltando nele, mas apesar disso é um bom homem. Posso conversar com ele. E gosto dele, senhor.

— Venha quando quiser, Cactus. E, por favor, acabe com esse negócio de “senhor”. Reserve esse privilégio para mim... senhor.

— Puxa, como os tempos mudam. Chamo um dos meus netos de um bom negrinho e ele quer me arrebentar a cabeça.

— E bem que deveria... senhor.

David saltou do táxi e pediu ao motorista para esperar, mas ele recusou. David deu-lhe uma gorjeta mínima e subiu o caminho de pedra coberto de plantas, que levava à velha casa. Sob alguns aspectos, fazia-o lembrar da casa no Maine, muito grande, muito frágil e precisando de reparos. Ele e Marie haviam decidido comprar uma casa na praia assim que passasse um ano; não ficaria bem um professor-associado recém-nomeado se instalar no distrito mais caro. Tocou a campainha.

A porta foi aberta, e Cactus, estreitando os olhos por baixo de uma pala verde, cumprimentou-o casualmente, como se estivessem se encontrando a todo instante.

— Tem calotas no seu carro, David?

— Não estou de carro nem de táxi, O motorista não quis esperar.

— Deve ter ouvido todos aqueles rumores infundados espalhados pela imprensa fascista. Não dou importância às histórias. Só tenho três metralhadoras nas janelas. Vamos, entre logo. Tenho sentido saudade. Por que não telefonou para este velho amigo?

— Seu número não está na lista, Cactus.

— Deve ter havido um esquecimento.

Conversaram por vários minutos na cozinha de Cactus, por tempo suficiente para que o fotógrafo-especialista compreendesse que David estava com pressa. O velho levou David para seu estúdio, colocou seus três passaportes sob uma lâmpada para estudá-los e instruiu ao cliente para sentar na frente de uma câmara com a lente aberta.

— Vamos tornar os cabelos mais claros, mas não tão louro como você ficou depois de Paris. A tonalidade varia com a claridade, e podemos usar as mesmas fotos dessas coisinhas com diferenças consideráveis... ainda conservando o rosto. Vamos deixar as sobrancelhas de lado, pois acabaria virando a maior confusão.

— E os olhos?

— Não há tempo para aquelas lindas lentes de contato que arrumaram para você antes, mas podemos dar um jeito. Há óculos comuns com os prismas certos coloridos nos lugares certos. Você fica com olhos azuis, castanhos ou pretos, como quiser.

— Quero os três.

— São bem caros, David... e só com dinheiro na mão.

— Tenho bastante comigo.

— Então não deixe a notícia se espalhar.

— Agora, os cabelos. Quem?

— Nesta mesma rua. Uma sócia minha que tinha um salão de beleza até que os tiras resolveram verificar os quartos por cima. Ela faz um bom trabalho. Vou levá-lo até lá.

Uma hora mais tarde, David saiu de baixo de um secador de cabelos no cubículo pequeno e bem-iluminado, contemplando os resultados no espelho grande. A proprietária do estranho salão, uma preta baixa com cabelos grisalhos impecáveis e olhos avaliadores, postou-se ao seu lado.

— É você, mas não é você — comentou ela, primeiro acenando com a cabeça e depois sacudindo-a. — Devo reconhecer que foi um bom trabalho.

Realmente, concluiu David, observando-se atentamente. Os cabelos escuros estavam agora não apenas muito mais claros, mas também combinavam com a tonalidade da pele de seu rosto. Além disso, os cabelos pareciam ter agora uma textura mais leve, uma aparência arrumada mas também casual... um penteado elegante e informal, como diziam os anúncios. O homem que contemplava era ao mesmo tempo ele próprio e outra pessoa que tinha uma semelhança extraordinária... mas não era ele.

— Concordo plenamente — murmurou David. — Está muito bom. Quanto?

— Trezentos dólares. Isso inclui, é claro, cinco pacotes de xampu especial com instruções para o uso e a boca mais fechada de Washington. A primeira coisa vai durar por uns dois meses, a outra, pelo resto de sua vida.

— Você é maravilhosa. —David tirou do bolso o prendedor de dinheiro de couro, contou as notas e entregou-as. — Cactus disse que você ligaria para ele quando acabássemos.

— Não há necessidade. Ele calculou bem o tempo. Está na sala de visitas.

— Sala de visitas?

— Na verdade não passa de um corredor com um sofazinho e um abajur, mas gosto de chamar de sala de visitas. Não acha que soa mais simpático?

A sessão de fotografia correu depressa, interrompida por Cactus para alterar as sobrancelhas com uma escova de dentes e um spray para as três fotos separadas, para a mudança de camisa e paletó — o preto idoso tinha um guarda-roupa à altura de uma loja de aluguel de roupas — e finalmente para dois óculos diferentes, de aros de tartaruga e aros de aço, que alteraram seus olhos castanho-claros respectivamente para azuis e castanho-escuros, para dois dos passaportes. Depois, como um cirurgião meticuloso, o especialista tratou de ajustar as fotos em seus lugares, efetuando as perfurações originais do Departamento de Estado com extrema habilidade, sob uma enorme lente de aumento, usando um instrumento de sua invenção. Ao terminar, entregou os três passaportes para aprovação de David.

— Não há nenhum inspetor da alfândega que possa pegar esses passaportes — comentou Cactus, confiante.

— Parecem mais autênticos do que antes.

— Fiz uma limpeza, o que significa que acrescentei alguns vincos e um pouco de envelhecimento.

— Um trabalho sensacional, velho amigo... mais velho do que posso me lembrar, e sei disso. Quanto lhe devo?

— Não tenho a menor idéia. Foi um trabalho pequeno e tem sido um ano muito bom, com toda essa confusão por aí...

— Quanto, Cactus?

— O que acha que está bom? Não sei como você está na folha de pagamento de Tio Sam.

— Estou muito bem, obrigado.

— Quinhentos está ótimo.

— Pode me chamar um táxi?

— Demora muito e ainda se tem de torcer para que o motorista venha até aqui. Meu neto está à sua espera. Vai levá-lo para onde quiser. Ele é como eu, não faz perguntas. E você está com pressa, David, dá para perceber. Vamos embora. Eu o acompanharei até a porta.

— Obrigado. Deixarei o dinheiro aqui no balcão.

— Está certo.

Tirando o dinheiro do bolso, de costas para Cactus, David contou seis notas de quinhentos dólares e deixou-as no lado mais escuro do balcão do estúdio. Os passaportes a mil dólares cada eram uma pechincha, mas deixar mais do que isso poderia ofender o velho amigo.

David voltou ao hotel, deixando o carro a vários quarteirões de distância, no meio de um cruzamento movimentado, a fim de que o neto de Cactus não ficasse comprometido por um endereço. O rapaz estava cursando a Universidade Americana; embora obviamente adorasse o avó, era também óbvio que estava apreensivo com seu envolvimento nas atividades do velho.

— Vou saltar aqui — disse David, no tráfego engarrafado.

— Obrigado — murmurou o jovem preto, a voz calma

e jovial, os olhos inteligentes demonstrando alívio. — Não sabe como agradeço.

David fitou-o nos olhos.

— Por que fez isso? Afinal, para alguém que vai ser advogado, acho que deveria estar com as antenas ligadas em torno de Cactus o tempo todo.

— E estou, constantemente. Mas ele é um velho sensacional, que tem feito muito por mim E ainda me disse uma coisa. Falou que seria um privilégio para mim conhecer você, que talvez daqui a alguns anos ele me conte quem era o estranho em meu carro.

— Espero poder voltar muito mais cedo e lhe contar pessoalmente. Não creio que eu seja um privilégio, mas há uma história para contar que pode acabar nos livros jurídicos. Adeus.

De volta ao quarto no hotel, David enfrentou uma lista final, que não precisava ser escrita, pois já conhecia todos os itens. Tinha que selecionar as poucas roupas que levaria na bolsa grande de vôo e livrar-se de todo o resto, inclusive das duas armas que trouxera do Maine, em sua indignação. Uma coisa era desmontar armas e embrulhar as peças em papel laminado, outra muito diferente era conduzi-las por um portão de segurança. Seriam descobertas; ele seria detido. Tinha de limpá-las meticulosamente, destruir os percussores e largá-las num ralo de esgoto. Compraria uma arma em Hong Kong; não seria difícil.

Havia uma última coisa que precisava fazer, uma coisa angustiante. Tinha de se forçar a sentar e reconstituir tudo o que fora dito por Edward McAllister naquele início de noite no Maine... tudo o que haviam falado, especialmente as palavras de Marie. Alguma coisa estava enterrada em algum ponto daquela hora tensa de revelação e confrontação e David sabia que a perdera... e continuava perdendo.

Olhou para o relógio. Eram três e trinta e sete; o dia estava passando depressa, nervosamente. Ele precisava manter o controle. Oh, Marte, onde você está?

Conklin pôs o copo com ginger ale pura no balcão sujo e escalavrado do bar imundo na Rua 9. Era um freguês habitual pelo simples motivo de que ninguém em seu círculo profissional — e no que restava do círculo social — jamais passaria por aquelas portas de vidro. Havia uma certa liberdade no conhecimento e os outros fregueses aceitavam-no, o “manco” que sempre tirava a gravata no momento em que entrava, claudicando até um banco ao lado da máquina de pinball, na extremidade do balcão. E sempre que isso acontecia, havia um copo grosso cheio de bourbon à sua espera. Além disso, o proprietário-bartender não tinha objeções quanto a Alex receber telefonemas na cabine antiquada junto à parede. Era o seu “telefone seguro”, e estava tocando agora.

Conklin arrastou-se pelo assoalho, entrou na velha cabine, fechou a porta e tirou o fone do gancho.

— Alô?

— É da Casa de Pedra? —perguntou uma voz de homem, com sotaque estranho.

— Eu estive lá. Você também?

— Não, não estive, mas tenho acesso a todo o arquivo, a toda a confusão.

A voz!, pensou Alex. Como David a descrevera? Anglicizada? Um sotaque do meio-atlântico, refinada, certamente não tinha nada de vulgar. Era o mesmo homem. Os gnomos tinham trabalhado; eles haviam feito algum progresso. Alguém estava com medo.

— Nesse caso tenho certeza de que sua memória pode lembrar tudo o que registrei, pois eu estive lá e escrevi tudo... do princípio ao fim. Fatos, nomes, eventos, circunstâncias, antecedentes... tudo mesmo, inclusive a história que Webb me contou ontem à noite.

— Então posso presumir que se alguma coisa terrível acontecer, seu volumoso relatório pode acabar num subcomitê do Senado ou com uma matilha de cães de guarda da Câmara dos Representantes. Estou certo?

— Fico contente que possamos nos compreender.

— Não vai adiantar coisa alguma — comentou o homem, condescendente.

— Se alguma coisa terrível acontecer, eu não me importaria, não é mesmo?

— Está prestes a se aposentar. E bebe muito.

— Nem sempre. Há geralmente um motivo para as duas coisas em se tratando de um homem da minha idade e competência. Não poderiam estar ligadas a um determinado arquivo?

— Esqueça. Vamos conversar.

— Não antes de você dizer alguma coisa mais próxima. Afinal, Casa de Pedra vazou aqui e ali. A referência não é substantiva.

— Está certo. Medusa.

— Mais forte... mas ainda não o suficiente.

— Muito bem. A criação de Jason Bourne. O Monge.

— Mais quente.

— Fundos desaparecidos... sem prestação de contas e jamais recuperados... estimados em torno de cinco milhões de dólares. Zurique, Paris e outros pontos a oeste.

— Houve rumores. Preciso de uma pedra fundamental.

— Pois vou lhe dar. A execução de Jason Bourne. A data foi 23 de maio, em Tam Quan... e o mesmo dia, em Nova York, quatro anos depois. Na Rua 71. Casa de Pedra 71.

Conklin fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o vazio na garganta.

— Está certo — murmurou ele. — Você entrou no círculo.

— Não posso lhe dar meu nome.

— E o que vai dar?

— Uma palavra: Recue.

— Acha que vou aceitar?

— Tem de aceitar — disse a voz, as palavras incisivas. — Bourne é necessário no lugar para onde está indo.

— Bourne? — repetiu Alex, olhando fixamente para o aparelho.

— Isso mesmo, Jason Bourne. Ele não pode ser recrutado pelos meios normais, e ambos sabemos disso.

— E por isso seqüestram sua esposa? Mas que animais!

— Ela nada sofrerá.

— Não pode garantir isso. Não tem o controle absoluto da situação. Deve estar usando segundas e terceiras pessoas neste momento. Se bem conheço meu ofício... e pode estar certo de que conheço mesmo... eles provavelmente foram contratados no escuro, a fim de que ninguém possa chegar a vocês por intermédio deles. Nem mesmo sabe quem são... Oh, Deus, você não teria me telefonado se soubesse! Se pudesse entrar em contato com eles e obter as confirmações que deseja, não estaria falando comigo!

Houve uma pausa antes que a voz refinada voltasse a se manifestar:

— Então ambos mentimos, não é mesmo, Sr. Conklin? Não houve fuga da mulher, não houve telefonema para Webb. Não houve nada. Estava pescando e eu também, ambos acabamos de mãos vazias.

— É uma autêntica barracuda, Sr. Sem-Nome.

— Já passou por onde estou, Sr. Conklin. Inclusive por David Webb... E agora, o que pode me dizer?

Alex sentiu de novo o vazio na garganta, desta vez acompanhado por uma pontada de dor no peito.

— Você os perdeu, não é mesmo? — balbuciou ele. Perdeu a mulher.

— Quarenta e oito horas não é permanente — respondeu a voz, cautelosa.

— Mas vem tentando tudo para fazer contato! — acusou Conklin. — Chamou os seus condutos, o pessoal que contratou os cegos, e subitamente eles não estavam.., não pôde encontrá-los. Oh, Deus, você perdeu o controle! Perdeu o fio! Alguém interferiu em sua estratégia e não tem a menor idéia de quem seja. Ele entrou em seu roteiro e roubou-o de você!

— Nossas salvaguardas são amplas — protestou o homem, sem a convicção que demonstrara antes. — Os melhores homens no campo estão atuando em cada distrito.

— Inclusive McAllister? Em Kowloon? Hong Kong?

— Sabe disso?

— Sei.

— McAllister é um idiota, mas é bom no que faz. E é verdade, ele está lá. Não estamos em pânico. Vamos recuperar.

— Recuperar o quê?—indagou Alex, dominado pela raiva. — A mercadoria? Sua estratégia fracassou! Alguém mais está no comando. Por que ele lhe devolveria a mercadoria? Matou a mulher de Webb, Sr. Sem-Nome! O que pensava que estava fazendo?

— Queríamos apenas levá-lo até lá — respondeu a voz. na defensiva. — Explicar as coisas, mostrar a ele. Precisamos dele.

Ele parou de falar por um momento. Ao recomeçar, já estava outra vez sereno:

— E. pelo que sabemos, tudo ainda está ligado. As comunicações são notoriamente ruins naquela parte do mundo.

— Há desculpa para tudo neste negócio.

— Na maioria dos negócios, Sr. Conklin... Como interpreta a nova situação? Agora sou eu quem está perguntando... e com absoluta sinceridade. Tem alguma reputação.

— Tinha, Sem-Nome.

— Reputações não podem ser tiradas ou negadas, apenas aumentadas... em termos positivos ou negativos, é claro.

— É uma fonte de informações desautorizadas, e sabe disso.

— Também estou certo. Dizem que você era um dos melhores. Qual a sua interpretação?

Alex sacudiu a cabeça, dentro da cabine; o ar era abafado, o barulho do lado de fora do seu telefone “seguro” aumentava cada vez mais no bar miserável da Rua 9.

— O que eu disse antes. Alguém descobriu o que vocês estavam planejando... a pressão sobre Webb... e decidiu assumir o controle.

— Mas por quê?

— Porque essa pessoa, quem quer que seja, deseja Jason Bourne muito mais do que vocês — arrematou Alex, desligando em seguida.

Eram seis e vinte e oito quando Conklin entrou no saguão do Aeroporto Dulles. Esperara num táxi no final da rua do hotel de David e o seguira, dando instruções precisas ao motorista. Acertara em cheio, mas não havia sentido em sobrecarregar David com o conhecimento. Dois Plymouths cinzas seguiram o táxi de David, alternando as posições durante o percurso. Então era assim Um certo Alexander Conklin podia ser crucificado, mas também era possível que isso não acontecesse. As pessoas no Departamento de Estado estavam se comportando de maneira estúpida, pensou ele, enquanto anotava as placas dos Plymouths. Foi localizar David num reservado escuro no fundo do restaurante no aeroporto.

— É você, não é mesmo? — murmurou Alex, arrastando o pé morto para o banco. — É verdade que os louros se divertem mais?

— Deu certo em Paris. O que descobriu?

— Descobri vermes por baixo das pedras que não conseguem encontrar o caminho para a luz do dia. Mas também eles não saberiam o que fazer com a luz do sol, não é mesmo?

— A luz do sol ilumina, o que já não acontece com você. Corte as besteiras, Alex. Tenho de passar pelo portão dentro de poucos minutos.

— Em poucas palavras, eles criaram uma estratégia para atrair você a Kowloon. Baseava-se numa experiência anterior...

— Pode pular essa parte — interrompeu-o David. — Por quê?

— O homem disse que precisavam de você. Não de você... Webb. Precisavam de Bourne.

— Porque dizem que Bourne já se encontra lá. Relatei o que McAllister me contou. Ele entrou nisso?

— Não. Claro que não ia me entregar tanto, mas talvez eu possa usar a informação para pressioná-los. Mas ele me disse outra coisa, David, e você tem de saber. Não conseguem localizar seus condutos, e por isso não sabem quem são os cegos ou o que está acontecendo. Acham que é temporário, mas perderam Marie. Alguém mais quer você por lá e assumiu o controle.

David levou a mão à testa, os olhos fechados. Subitamente, em silêncio, as lágrimas rolaram por suas faces.

— Estou de volta, Alex. De volta a tanta coisa que não posso lembrar. Eu a amo muito e preciso demais dela!

— Pare com isso! — ordenou Conklin. — Você me deixou claro ontem à noite que eu ainda tinha uma mente, embora o corpo já não fosse a mesma coisa. Mas você tem as duas coisas. Aplique toda pressão neles!

— Como?

— Seja o que eles querem que se torne... seja o camaleão! Seja Jason Bourne!            

— Já tem tanto tempo...

— Você ainda é capaz de fazê-lo. Desempenhe o papel que lhe deram.

— Não tenho alternativa, não é mesmo?

Pelos alto-falantes, soou a última chamada do vôo 26 para Hong Kong.

Havilland, o de cabelos grisalhos, repôs o fone no gancho, recostou-se na cadeira e olhou para McAllister, no outro lado da sala. O subsecretário de Estado estava parado ao lado de um enorme globo terrestre a girar, empoleirado sobre um tripé todo ornamentado, na frente de uma estante. O dedo indicador estava pousado na região meridional da China, mas os olhos se fixavam no embaixador.

— Está feito —anunciou o diplomata. — Ele está no avião para Kowloon.

— Deus sabe que é uma coisa horrível — murmurou McAllister

— Sei que parece assim para você, mas deve avaliar as vantagens antes de fazer um julgamento. Estamos livres agora. Não somos mais responsáveis pelos eventos que ocorrerem. Estão sendo manipulados por uma parte desconhecida.

— Que somos nós! Repito: Deus sabe que é uma coisa horrível!

— Seu Deus considerou as conseqüências se fracassarmos?

— Somos dotados de livre-arbítrio. Somente nossa ética nos restringe.

— Uma banalidade, Sr. Subsecretário. Devemos pensar no bem maior.

— Há também um ser humano, um homem que.estamos manipulando, levando-o de volta a seus pesadelos. Acha que temos esse direito?

— Não temos alternativa. Ele é capaz de fazer o que ninguém mais pode... se lhe dermos um motivo para tal.

McAllister tornou a girar o globo, que ficou rodando enquanto ele se encaminhava para a mesa.

— Talvez eu não devesse dizê-lo, mas vou falar assim mesmo — murmurou ele, parando na frente de Raymond Havilland. — Acho que você é o homem mais imoral que já conheci.

— Uma questão de aparências, Sr. Subsecretário. Tenho uma graça salvadora que se sobrepõe a todos os pecados que já cometi. Farei qualquer coisa, assumirei as piores venalidades. a fim de impedir que este planeta exploda. E isso inclui a vida de um certo David Webb... conhecido no lugar em que eu o quero como Jason Bourne.

 

A neblina erguia-se como camadas de echarpes diáfanas sobre Victoria Harbor, enquanto o enorme jato circulava, no acesso final ao Aeroporto Kai-tak. O nevoeiro do início da manhã era denso, a promessa de um dia úmido na colônia. Lá embaixo, na água, os juncos e sampanas balançavam ao lado dos cargueiros, barcaças e barcas de vários níveis, além das patrulhas marítimas ocasionais que circulavam pelo porto. Enquanto o avião descia para o aeroporto de Kowloon, as fileiras irregulares de edifícios na ilha de Hong Kong adquiriram a aparência de gigantes de alabastro, estendendo-se pela neblina e refletindo os primeiros raios penetrantes do sol da manhã.

David estudou a paisagem lá embaixo, tanto como alguém sob uma terrível tensão quanto como um homem consumido por uma curiosidade estranhamente desligada. Marie estava em algum lugar daquele território fervilhante e superpovoado... esse era o seu pensamento predominante e a coisa mais angustiante em que pensar. Apesar disso, outra parte dele era como um cientista dominado por uma ansiedade fria, espiando pela lente embaçada de um microscópio, tentando discernir o que o olho e a mente pudessem compreender. O conhecido e o desconhecido se juntavam, e o resultado era a confusão e o medo. Durante as sessões com Panov na Virginia, David lera e relera centenas de folhetos de turismo ilustrados, descrevendo todos os lugares em que se sabia que o mítico Jason Bourne estivera; fora um exercício contínuo e muitas vezes doloroso de auto-sondagem. Fragmentos lhe ocorriam em relances de reconhecimento, mui tos eram breves e confusos demais, outros prolongados, as recordações súbitas espantosamente acuradas, as descrições suas, não as dos manuais dos agentes de viagens. Olhando para baixo agora, viu muito do que sabia que conhecia, mas não podia lembrar especificamente. Por isso, desviou os olhos e concentrou-se no dia que teria pela frente.

Telegrafara para o Regent Hotel em Kowloon, do Aeroporto Dulles, solicitando um quarto por uma semana, em nome de Howard Cruett, a identidade no refinado passaporte de olhos azuis de Cactus. E acrescentara: “Creio que já foram tomadas providências por nossa firma para a suíte seis-nove-zero, se estiver disponível. O dia da chegada está confirmado, o vôo não.”

A suíte estaria disponível. O que precisava descobrir era quem a tornara disponível. Seria o primeiro passo em direção a Marie. E antes, depois ou durante o processo, havia coisas para comprar... algumas seriam simples de comprar, outras não, mas não seria impossível descobrir até as mais inacessíveis. Aquela era Hong Kong, a colônia da sobrevivência e dos instrumentos de sobrevivência. Era também o único lugar civilizado do mundo em que as religiões floresciam, mas o único deus comumente reconhecido por crentes e descrentes era o dinheiro. Como Marie dissera:

— Não tem outra razão para existir.

A manhã morna recendia aos odores de uma humanidade apinhada e apressada; estranhamente, porém, os cheiros não eram desagradáveis. As calçadas estavam sendo freneticamente lavadas com mangueiras, o vapor se elevando dos pavimentos que secavam ao sol. A fragrância de ervas fervendo em óleo espalhava-se pelas ruas estreitas, saindo de carrocinhas e barracas clamando por atenção. Os ruídos se acumulavam, transformavam-se numa sucessão de crescendos constantes, exigindo aceitação e uma venda ou pelo menos uma negociação. Hong Kong era a essência da sobrevivência; era preciso trabalhar furiosamente, ou não se sobrevivia. Adam Smith estava superado e desatualizado; nunca poderia conceber um mundo assim. Escarnecia das disciplinas que ele projetara para uma economia de livre mercado; era uma loucura. Era Hong Kong.

David ergueu a mão para chamar um táxi, sabendo que já fizera isso antes, conhecendo as portas de saída para as quais se encaminhara depois da demora enfadonha na alfândega, convencido de que já passara pelas ruas por que o motorista o conduzia... não realmente lembrando, mas de certa forma conhecendo. Era ao mesmo tempo confortador e profundamente assustador. Conhecia e não conhecia. Era um fantoche sendo manipulado no palco de seu próprio espetáculo secundário e não sabia quem era o títere e quem o controlava.

— Foi um engano — disse David ao recepcionista, no outro lado do balcão de mármore oval, no meio do saguão do Regent. —Não quero uma suíte. Prefiro algo menor. Um quarto simples ou de casal servirá.

— Mas as providências já foram tomadas, Sr. Cruett — respondeu o desconcertado recepcionista, usando o nome no passaporte falso de David.

— Quem cuidou disso?

O jovem oriental verificou a assinatura na lista de reservas do computador.

— A reserva foi autorizada pelo assistente da gerência, Sr. Liang.

— Nesse caso, por cortesia, devo falar com o Sr. Liang, não é mesmo?

— Receio que será necessário. Não sei se há qualquer outra acomodação disponível.

— Não tem problema. Encontrarei outro hotel.

— é considerado um hóspede muito importante, senhor. Espere um instante que vou falar com o Sr. Liang. -

David acenou com a cabeça, enquanto o recepcionista, com a reserva na mão, passava por baixo do balcão na extremidade esquerda e atravessava apressado o saguão apinhado, a caminho de uma porta no outro lado. David correu os olhos pelo saguão opulento, que num certo sentido começava lá fora, no imenso pátio circular, com seus chafarizes altos, e estendia-se pelas elegantes portas de vidro, atravessando o chão de mármore para um semicírculo de janelas altas, de vidro fumê, por cima de  Victoria Harbor. A cena em constante movimento além era um acréscimo hipnótico à mise en scène do salão curvo na frente da parede de vidros de cor suave. Havia dezenas de mesinhas e sofás de couro, a maioria ocupada, com garçons e garçonetes uniformizados circulando de um lado para o outro. Era uma arena em que turistas e negociadores igualmente podiam contemplar o panorama do comércio do porto, apresentado à frente dos altos prédios da ilha de Hong Kong, à distância. A visão marinha lá fora era familiar a David, mas nada mais. Nunca antes estivera no interior daquele hotel extravagante; ou pelo menos nada do que via ali despertava-lhe qualquer lampejo de reconhecimento.

Subitamente, seus olhos foram atraídos para a visão do recepcionista atravessando o saguão apressado, vários passos à frente de um oriental de meia-idade, obviamente o assistente da gerência do Regent, Sr. Liang. O homem mais jovem tornou a passar por baixo do balcão e retomou sua posição na frente de David, os olhos obsequiosos se arregalando ao máximo que podiam, em expectativa. Segundos depois o executivo do hotel chegou, fazendo uma ligeira mesura de cintura como convinha à sua posição profissional.

— Este é o Sr. Liang, senhor — anunciou o recepcionista.

— Em que posso servi-lo? — disse o homem. — E posso acrescentar que é um prazer recebê-lo como nosso hóspede?

David sorriu e sacudiu a cabeça, polidamente.

— Infelizmente, talvez isso tenha de ficar para outra ocasião.

— Está insatisfeito com as acomodações que lhe foram reservadas, Sr. Cruett?

— Claro que não. E provavelmente até gostaria muito. Mas, como eu disse a seu jovem funcionário, prefiro aposentos menores, um quarto de solteiro ou mesmo de casal, mas não uma suíte. Contudo, fui informado de que talvez não haja qualquer outra coisa disponível.

— Seu telegrama mencionava expressamente a suíte seis- noventa, senhor.

— Sei disso e peço desculpas. Foi obra de um representante de vendas solícito demais. — David franziu o rosto, numa expressão amigável e inquisitiva, depois indagou, cortesmente: —  Por falar nisso, quem tomou as providências necessárias? Tenho certeza de que não fui eu.

— Talvez o seu representante — sugeriu Liang, os olhos evasivos.

— O representante de vendas? Ele não teria autoridade para tanto. Disse que foi uma das companhias daqui. Não podemos aceitar, é claro, mas eu gostaria de saber quem fez uma oferta tão generosa. Estou certo, Sr. Liang, já que autorizou pessoalmente a reserva, que pode me dar a informação.

Os olhos neutros tornaram-se mais distantes, depois piscaram; era o bastante para David, mas a farsa tinha de ser levada até o fim.

— Creio que um dos nossos funcionários... e temos muitos... veio me procurar com a solicitação, senhor. Há sempre muitas reservas, temos um movimento tão grande, que não posso me lembrar direito.

— Deve haver instruções sobre a conta.

— Temos muitos clientes honrados, cuja palavra pelo telefone é suficiente.

— Hong Kong mudou.

— Está sempre mudando, Sr. Cruett. É possível que seu anfitrião tencione lhe contar pessoalmente. Não seria apropriado que eu me intrometesse em tais desejos.

— Seu senso de confiança é admirável.

— Apoiado por um código de conta em nosso computador, naturalmente.

Liang ensaiou um sorriso; era falso.

— Já que não tem mais nada, vou ver se me arranjo por mim mesmo. Tenho amigos no Pen, no outro lado da rua — disse David, referindo-se ao reverenciado Peninsula Hotel

— Não será necessário. Podemos providenciar novas acomodações.

— Mas seu recepcionista disse...

— Ele não é o gerente-assistente do Regent, senhor.

Liang lançou um rápido olhar furioso ao jovem por trás do balcão, que se apressou em protestar, defensivo:

— A tela mostra que não há mais nada disponível!

— Cale-se! — Liang sorriu no instante seguinte, tão falso quanto antes, consciente de que indubitavelmente perdera a  parada junto com o controle. — Ele é muito jovem.., todos são jovens e inexperientes... mas muito inteligente, com muita boa vontade... Mantemos vários quartos em reserva para ocasiões de mal-entendidos.

Tornou a olhar para o recepcionista e falou asperamente, enquanto sorria:

— Ting, ruan-ji! — E continuou a falar, rapidamente, em chinês, cada palavra compreendida por um impassível David: —Preste atenção, seu frango sem osso! Não ofereça informações em minha presença, a menos que eu peça! Vai ser jogado na lata de lixo se fizer isso de novo. E agora ponha esse idiota no quarto dois-zero-dois. Está relacionado como reservado; tire- o da lista e tome todas as providências necessárias.

Liang, o sorriso artificial ainda mais acentuado, virou-se para David.

— É um quarto muito agradável, Sr. Cruett, com uma esplêndida vista do porto.

A disputa estava encerrada, e o vencedor minimizou a vitória com um agradecimento persuasivo.

— Muito obrigado — disse David, fitando os olhos do subitamente inseguro Liang. — Vai me poupar o trabalho de telefonar para toda a cidade, avisando às pessoas onde estou hospedado.

Ele parou, a mão direita parcialmente levantada, um homem prestes a continuar. David Webb estava agindo com base em um de vários instintos... instintos desenvolvidos por Jason Bourne. Sabia que era o momento de incutir medo.

— Quando fala em um quarto com uma esplêndida vista, presumo que está querendo dizer you hao jingse de fang jian. Estou certo? Ou meu chinês é muito ruim?

Liang ficou aturdido por um momento, antes de responder, suavemente:

— Eu não poderia formular de maneira melhor. O recepcionista providenciará tudo. Espero que aproveite bem sua estada conosco, Sr. Cruett.

— A satisfação deve ser medida pelos resultados, Sr. Liang. Este é um provérbio chinês muito antigo ou muito novo, não me lembro qual dos dois.

— Desconfio que é novo, Sr. Cruett. É ativo demais para

a reflexão passiva, que é a alma de Confúcio, como tenho certeza que sabe.

— Isso não é um resultado?

— É rápido demais para mim, senhor. — Liang fez uma mesura. — Se precisar de mais alguma coisa, não hesite em me procurar.

— Acho que não será necessário, mas de qualquer forma obrigado. Para ser franco, foi um vôo longo e desagradável, por isso vou pedir à telefonista para não completar as ligações até a hora do jantar.

— É mesmo? — A insegurança de Liang tornou-se acentuada demais; ele era um homem amedrontado. — Mas certamente, se houver alguma emergência...

— Não há nada que não possa esperar. E como não estou na suíte seis-noventa, a telefonista pode simplesmente dizer que sou esperado mais tarde. Não acha que é plausível? Estou muito cansado. Obrigado por tudo, Sr. Liang.

— Eu é que agradeço, Sr. Cruett.

Liang fez outra mesura, observando os olhos de David à procura de um último sinal. Não encontrou nenhum e virou-se depressa, nervosamente, voltando para sua sala.

Faça o inesperado. Confunda o inimigo, deixe-o surpreso. — Jason Bourne. Ou teria sido Alexander Conklin?

— É um ótimo quarto, senhor! — exclamou o aliviado recepcionista. — Tenho certeza de que vai ficar muito satisfeito.

— O Sr. Liang é muito atencioso. Eu gostaria de demonstrar meu agradecimento... e é o que farei, por sua ajuda. — David tirou do bolso o prendedor de dinheiro de couro, removeu discretamente uma nota de vinte dólares americanos. Estendeu a mão para um aperto, a nota escondida. — Quando o Sr. Liang encerra seu expediente?

O aturdido mas exultante recepcionista olhou para a direita e a esquerda enquanto falava, em frases desconexas:

— É muito gentil, senhor. Não é necessário, senhor, mas obrigado, senhor, O Sr. Liang deixa o escritório todas as tardes às cinco horas. Eu também saio a esta hora. Claro que continuaria se a gerência solicitasse, pois me esforço para fazer o melhor que posso, pela honra do hotel.

— Tenho certeza disso — comentou David. — E devo

acrescentar que o faz com muita competência. Minha chave, por favor. A bagagem deve chegar mais tarde. Atrasou por causa de uma troca de avião.

— Não tem problema, senhor!

David sentou na cadeira ao lado da janela, olhando através do porto para a ilha de Hong Kong. Nomes afloraram em-sua mente, acompanhados por imagens— Causeway Bay, Wanchai, Repulse Bay, Aberdeen, o Mandarin e, finalmente, tão nítido a distância, Victoria Peak, com sua vista impressionante de toda a colônia. Depois viu, em sua imaginação, as massas de humanidade circulando pelas ruas apinhadas, pitorescas e quase sempre sujas, os saguões e salões de hotéis sempre cheios, sob a luz suave dos lustres de ouro filigranado, os remanescentes bem-vestidos do império misturando-se relutantes com os emergentes empresários chineses... a velha coroa e o dinheiro novo precisavam chegar a um acordo... Vielas... Por algum motivo, vielas abarrotadas e desmanteladas entraram em foco. Vultos correndo pelos caminhos estreitos, esbarrando em gaiolas de passarinhos guinchando e cobras de vários tamanhos a se contorcerem... mercadorias de mascates nos degraus inferiores da escada do comércio no território. Homens e mulheres de todas as idades, de crianças a anciãos, estavam vestidos em trapos, uma fumaça densa e pungente se enroscava lentamente para cima, preenchendo o espaço entre os prédios em deterioração, difundindo a claridade, aumentando a aparência sinistra das paredes de pedras escuras, enegrecidas pelo uso e desuso. Viu tudo, e tudo possuía um significado, mas não podia compreender. Os detalhes específicos se esquivavam; não tinha pontes de referência, e era frustrante.

Marie estava por lá! Precisava encontrá-la! Levantou-se de um pulo, desesperado, querendo bater com a cabeça na parede, a fim de desanuviar a confusão. Mas sabia que não adiantaria... nada adiantaria, exceto o tempo, e não podia suportar a pressão do tempo. Tinha de encontrá-la, mantê-la, protegê-la, como Marie outrora o protegera, ao acreditar nele, quando ele próprio não acreditava. David passou pelo espelho por cima da cômoda e contemplou seu rosto pálido e desfigurado. Uma coisa era evidente. Precisava planejar e agir depressa, mas não como o homem que observava no espelho. Tinha de recorrer a tudo o que aprendera e esquecera como Jason Bourne. De algum lugar em seu íntimo, tinha de convocar o passado esquivo e confiar nos instintos não-lembrados.

Dera o primeiro passo; a ligação era sólida e sabia disso. De um jeito ou de outro, Liang lhe proporcionaria alguma coisa, provavelmente o nível mais baixo de informação, mas seria um começo... um nome, um lugar ou um ponto de correspondência, um contato inicial que levaria a outro e mais outro. O que precisava fazer era entrar em ação rapidamente, com tudo o que tivesse, sem dar tempo ao inimigo para manobrar, pressionar quem quer que alcançasse para posições de fala-e-sobrevive ou fica-calado-e-morre... e cumprir a ameaça. Para realizar qualquer coisa, no entanto, devia estar preparado. Tinha de comprar coisas, providenciar uma excursão pela colônia. Queria uma hora ou mais para observar do banco traseiro de um cano, desencavando da memória avariada qualquer coisa que pudesse.

Pegou uma lista telefônica do hotel, encadernada em couro vermelho, sentou-se na beira da cama e abriu-a, folheando as páginas rapidamente. O New World Shopping Centre, um complexo magnífico em cinco andares, reúne sob o mesmo teto os melhores produtos dos quatro cantos do mundo... Exagero à parte, o “complexo” ficava ao lado do hotel; serviria a seus propósitos. Limusines disponíveis. Temos uma frota de carros Daimlerier para alugar por hora ou por dia, para negócios ou passeio: turísticos. Por favor, entre em contato com a portaria. Disque 62. Limusines significavam também motoristas experientes, conhecedores dos caminhos confusos, das ruas secundárias, das estradas e dos padrões de tráfego de Hong Kong, Kowloon e dos Novos Territórios... e conhecendo ainda muitas outras coisas. Tais homens conheciam os prós e contras, as profundezas inferiores das cidades que serviam. A menos que estivesse enganado — e o instinto lhe dizia que não estava —, uma necessidade adicional seria atendida. Precisava de uma arma. E, finalmente, havia um banco no Distrito Central de Hong Kong que mantinha um acordo com uma instituição similar a milhares de quilômetros de distância, nas Ilhas Caimãs. Tinha de entrar nesse banco, assinar o que fosse necessário e sair com mais dinheiro do que qualquer homem são levaria em Hong Kong... ou em qualquer outro lugar do mundo, diga-se de passagem. Encontraria algum lugar para guardar o dinheiro, mas não em um banco, onde o horário de funcionamento limitava a sua disponibilidade. Jason Bourne sabia: Prometa a um homem sua vida e geralmente ele vai cooperar; prometa-lhe sua vida e muito dinheiro, e o efeito cumulativo levará à submissão total.

David pegou o bloco e o lápis ao lado do telefone, na mesinha-de-cabeceira; iniciou outra lista. As coisas pequenas assomavam-se maiores a cada hora que passava, e não lhe restavam muitas horas. Faltavam poucos minutos para as onze horas. O porto agora faiscava ao sol quase a pino. Tinha muitas coisas para fazer antes das quatro e meia, quando tencionava postar-se discretamente em algum lugar nas proximidades da saída dos empregados, dentro da garagem subterrânea do hotel, ou onde quer que descobrisse que poderia seguir e acuar o pálido Liang, sua primeira conexão.

Três minutos depois a lista estava pronta. Rasgou a folha, levantou-se da cama e foi pegar o paletó na cadeira. Abrupta- mente, o telefone tocou, rompendo o silêncio do quarto de hotel. David teve de fechar os olhos, contrair todos os músculos dos braços e da barriga, a fim de não correr para atender, esperando além da esperança pelo som da voz de Marie, mesmo como uma cativa. Não devia atender. Instinto. Jason Bourne. Não tinha controles. Se atendesse, ele passaria a ser o controlado. Deixou o telefone tocar, angustiado, enquanto atravessava o quarto e saía pela porta.

Passavam dez minutos de meio-dia quando voltou, carregando diversas bolsas de plástico fino de várias lojas do centro comercial. Largou as bolsas na cama e começou a retirar as compras. Entre os artigos, havia uma capa escura e leve, um chapéu de lona escuro, um par de tênis cinzentos, uma calça preta e um blusão também preto; eram as roupas que usaria à noite. Havia outras coisas: um rolo de linha de pesca com resistência para trinta e três quilos, com dois anzóis do tamanho da palma da mão, através dos quais se podia passar um pedaço de um metro da linha e prender nas duas extremidades, um peso de papel de meio quilo, no formato de um haltere em miniatura, de latão, um furador de gelo e um facão de caça com bainha, bastante afiado, gume duplo, com uma lâmina estreita de dez centímetros. Essas eram as armas silenciosas que levaria sempre, de dia e à noite. Só restava providenciar mais um item; haveria de encontrá-lo.

Enquanto estudava as compras, concentrado nos anzóis e na linha de pesca, David tornou-se consciente de um piscar de luz pequeno e sutil. Pisca, pára... pisca, pára. Era desconcertante, porque não podia localizar a fonte; como acontecia com tanta freqüência, teve de especular se havia mesmo uma fonte ou se a intromissão era apenas uma aberração de sua mente. E depois seus olhos foram atraídos para a mesinha-de cabeceira; os raios do sol entravam pelas janelas abertas para o porto, derramando-se sobre o telefone, mas a luz pulsante estava ali, no canto inferior esquerdo do aparelho... quase imperceptível, mas ali. Era o sinal de mensagem, um pequeno ponto vermelho que brilhava por um segundo, escurecia por um segundo, depois voltava a piscar, sempre nesses intervalos. Uma mensagem não era uma ligação, refletiu David. Foi até a mesa, estudou as instruções no cartão de plástico e depois pegou o fone; apertou o botão apropriado.

— Pois não, Sr, Cruett? — disse a telefonista, de sua mesa computadorizada.

— Há alguma mensagem para mim?

— Há, sim, senhor. O Sr. Liang está tentando localizá-lo...

— Pensei que minhas instruções tivessem sido claras — interrompeu-a David. — Não deveria haver ligações até que eu desse uma contra-ordem à mesa.

— Desculpe, senhor, mas o Sr. Liang é o gerente-assistente... o superior quando o gerente não está no hotel... como acontece esta manhã... esta tarde. Ele nos disse que é urgente. Vem telefonando para o senhor a intervalos de poucos minutos, durante a última hora. Vou avisá-lo agora, senhor.

David desligou. Não estava pronto para Liang ou, mais propriamente, Liang não estava pronto para ele... pelo menos não da maneira como o queria. Liang estava nervoso, possivelmente à beira do pânico, pois era o primeiro e o mais baixo contato e fracassara em deixar o alvo onde deveria, numa suíte grampeada, em que o inimigo poderia ouvir cada palavra. Mas à beira do pânico não era suficiente. David queria Liang além da beira. A maneira mais rápida de levá-lo a esse estado era não permitir qualquer contato, nenhuma discussão, nenhuma explicação para o fato de o alvo recrutado se esquivar ao laço.

David tirou as roupas da cama e guardou-as em duas gavetas da cômoda, juntamente com as coisas que estavam na bolsa de vôo; arrumou os anzóis e a linha de pesca entre as camadas de tecido. Pôs o peso de papel em cima de um cardápio do serviço de quarto e meteu a faca de caça no bolso do paletó. Olhou para o furador de gelo e foi subitamente invadido por um pensamento, também nascido de um estranho instinto: um homem consumido pela ansiedade reagiria além do necessário à visão inesperada de algo assustador. A imagem sinistra o chocaria, aprofundando seus medos. David tirou um lenço do bolsinho do paletó, abaixou-se para o furador e limpou o cabo. Pegando o instrumento letal com o lenço, caminhou rapidamente para o pequeno vestíbulo, calculou o nível dos olhos e cravou o furador na parede branca, em frente à porta. O telefone tocou e tornou a tocar, incessantemente, como se estivesse em frenesi. David deixou o quarto e atravessou apressado o corredor, na direção dos elevadores; entrou no corredor lateral e ficou observando.

Não se enganara. Os painéis de metal reluzentes se abriram e Liang saiu correndo do elevador do meio, avançando pelo corredor onde ficava o quarto de David. Passando pelos elevadores, David foi postar-se no canto de seu corredor. Podia ver o nervoso Liang tocar a campainha insistentemente, depois bater na porta, com crescente persistência.

Outro elevador se abriu e dois casais saíram, rindo. Um dos homens olhou curioso para David, depois deu de ombros, enquanto o grupo seguia para a esquerda. David tornou a concentrar sua atenção em Liang. O gerente-assistente estava agora frenético, tocando a campainha e batendo na porta. Parou de repente e encostou o ouvido na madeira; satisfeito, enfiou a mão no bolso e retirou um molho de chaves. David recuou prontamente quando Liang virou-se para olhar a um lado e outro, enquanto inseria a chave na fechadura. David não precisava ver; bastava ouvir.

Não esperou muito tempo. Um grito gutural abafado foi seguido pelo estrondo da porta. O furador de gelo causara seu efeito. David voltou correndo para o seu santuário, além do último elevador, outra vez comprimindo o corpo contra a parede; e ficou observando. Liang estava visivelmente abalado, a respiração irregular, profunda, enquanto apertava repetidamente o botão do elevador. Uma campainha soou e as portas do segundo elevador se abriram, O gerente-assistente entrou apressado.

David não tinha qualquer plano específico, mas sabia vagamente o que tinha de fazer, pois não havia outro meio. Desceu o corredor, passando pelos elevadores, correu pela distância restante até o seu quarto. Entrou e encaminhou-se para o telefone na mesinha-de-cabeceira, apertando os dígitos que gravara na memória.

— Portaria — disse uma voz jovial, que não parecia oriental; provavelmente era indiana.

— Estou falando com o porteiro-chefe? — indagou David.

— Está, sim, senhor.

— Não com um assistente?

— Não, senhor. Gostaria de falar com algum assistente específico? Talvez alguém para resolver um problema?

— Não — respondeu David, suavemente. — Quero falar com você mesmo. Tenho uma situação que deve ser tratada com absoluto sigilo. Posso contar com você? Estou disposto a ser generoso.

— É hóspede do hotel?

— Sou, sim.

— E não há nada de impróprio envolvido, é claro. Nada que possa prejudicar o estabelecimento.

— Só vai aumentar sua reputação, ajudando executivos cautelosos que desejam trazer negócios para o território. E muitos negócios.

— Estou a seu serviço, senhor.

Ficou acertado que uma limusine Daimlerler com o mais experiente motorista disponível, iria buscá-lo dentro de dez minutos, na saída do pátio na Salisbury Road. O porteiro estaria ao lado do carro e receberia, por seu sigilo, duzentos dólares americanos, cerca de mil e quinhentos dólares de Hong Kong. Não haveria o nome de qualquer pessoa no registro do aluguel — que seria pago em dinheiro, por vinte e quatro horas — apenas o nome de uma firma escolhido ao acaso. E o “Sr. Cruett”, escoltado por um empregado do hotel, poderia usar um elevador de serviço para o nível inferior do Regent, onde havia uma saída que levava ao New World Centre, com acesso direto ao ponto de encontro na Salisbury Road.

As cortesias trocadas e o dinheiro passando de mãos, David acomodou-se no banco traseiro do Daimlerler e confrontou o rosto vincado e cansado de um motorista uniformizado de meia-idade, cuja expressão esgotada foi apenas parcialmente atenuada por uma tentativa de ser amável.

— Seja bem-vindo, senhor. Meu nome é Pak-fei e vou me esforçar ao máximo para lhe prestar um serviço excelente. Diga-me para onde quer ir e o levarei. Conheço tudo.

— Eu estava contando com isso — respondeu David, suavemente.

— Como, senhor?

— Wo bushi luke — disse David, anunciando que não era um turista. E continuou em chinês: — Mas como há anos não venho aqui, quero efetuar um reconhecimento. Que tal a excursão normal e chata pela ilha e depois uma rápida viagem por Kowloon? Tenho de voltar mais ou menos dentro de duas horas... E daqui por diante vamos falar inglês.

— Seu chinês é muito bom... de alta classe, mas compreendo tudo o que diz. Mas apenas duas zhongtou...

— Horas — corrigiu-o David. — Não se esqueça de que estamos falando em inglês e não quero ser mal interpretado. Mas essas duas horas e sua gorjeta, assim como as restantes vinte e duas horas e a gorjeta por elas, vão depender da maneira como nos daremos, está certo?

— Claro! — exclamou Pak-fei, o motorista, acelerando o Daimlerler e entrando no tráfego insuportável da Salisbury Road. — Vou me esforçar para oferecer um excelente serviço!

Foi o que aconteceu, e os nomes e imagens que ocorreram a David no quarto do hotel foram reforçados pelos equivalentes concretos. Ele conhecia as ruas do Distrito Central, reconheceu o Mandarin Hotel e o Hong Kong Club, assim como a Chater Square, com o Supremo Tribunal da colônia, em frente aos grandes bancos de Hong Kong. Percorrera as pistas de pedestres apinhadas para a confusão total que era a Star Ferry, a permanente ligação da ilha de Kowloon por barcas. Queen’s Road, Hillier, Possession Street, a extravagante Wanchai... tudo lhe voltou, no sentido de que já estivera ali, já estivera naqueles lugares, conhecia-os, conhecia as ruas, até mesmo os atalhos para ir de uma parte a outra. Reconheceu o caminho sinuoso para a Aberdeen, prevendo a vista dos pomposos restaurantes flutuantes e, mais além, o incrível congestionamento de juncos e sampanas do povo dos barcos, uma gigantesca comunidade flutuante das pessoas eternamente despojadas; podia até ouvir o estardalhaço e gritos dos jogadores de mah-jongg, apostando encarniçadamente, sob o brilho difuso de lanternas a balançar, à noite. Conhecera homens e mulheres — contatos e condutos, refletiu ele — nas praias de Shek O e Big Wave, nadara nas águas apinhadas de Repulse Bay, com suas enormes estátuas de imitação e a elegância decadente do velho hotel colonial. Já vira tudo, conhecia tudo, mas não podia relacionar com nada.

Consultou o relógio; já estavam passeando há quase duas horas. Havia uma última parada a fazer na ilha e depois submeteria Pak-fei ao teste.

— Volte para a Chater Square —disse ele. —Tenho negócios a tratar em um dos bancos. Pode ficar me esperando.

O dinheiro não era apenas um lubrificante social e industrial; em quantidades bastante grandes, era também um passaporte para a maneabilidade. Sem dinheiro, homens em fuga ficavam entravados, as opções limitadas, os que estavam em perseguição muitas vezes eram frustrados pela carência de meios para manter a caçada. E quanto mais dinheiro, mais fácil liberá-lo; prova disso é a luta de um homem cujos recursos não lhe permitem solicitar mais que um empréstimo de quinhentos dólares, em comparação com a relativa facilidade de outro que tem uma linha de crédito de quinhentos mil dólares. Foi o que aconteceu com David no banco de Chater Square. Os acertos foram rápidos e profissionais; sem comentários, uma pasta de executivo foi providenciada para o transporte dos fundos, houve a oferta de um guarda para acompanhá-lo até o hotel, caso se sentisse mais seguro assim. Ele recusou, assinou os documentos necessários e não foram feitas mais perguntas. David voltou ao carro na movimentada rua.

Inclinou-se para a frente, pousando a mão esquerda no tecido macio do estofamento do banco, a poucos centímetros da cabeça do motorista. Segurava uma nota de cem dólares americanos entre o polegar e o indicador.

— Pak-fei, preciso de uma arma.

Lentamente, o motorista virou a cabeça. Olhou para a nota, depois virou-se ainda mais para fitar David. Desapareceram a exuberância artificial, o desejo arrogante de agradar. Em vez disso, a expressão no rosto vincado era passiva, os olhos distantes.

— Kowloon — murmurou ele. — No Mongkok.

E Pak-fei pegou a nota de cem dólares.

 

A limusine Daimler arrastava-se pela rua congestionada em Mongkok, uma massa urbana que possuía a distinção nada invejável de ser o distrito mais densamente povoado na história da humanidade. E povoado, cabe ressaltar, quase que exclusiva mente por chineses. Um rosto ocidental era uma raridade tão grande que atraía olhares curiosos, ao mesmo tempo hostis e divertidos. Nenhum homem ou mulher branca jamais era encorajado a ir a. Mongkok depois do escurecer; nenhum Oriental Cotton Club existia ali. Não era uma questão de racismo, mas o reconhecimento da realidade. Havia pouco espaço para os seus ... e eles zelavam pelos seus como todos os chineses o faziam, desde as primeiras dinastias. A família era tudo, e muitas famílias viviam não na miséria, mas nos limites de um único cômodo, com uma única cama, esteiras espalhadas pelo chão rude mas sempre limpo. Por toda parte a presença de pequenas sacadas confirmava as exigências de higiene, já que ninguém aparecia nelas, a não ser para pendurar interminavelmente a roupa lavada. Essas sacadas abertas ocupavam os lados de prédios de apartamentos adjacentes e pareciam estar em constante agitação, as brisas soprando contra as imensas paredes de pano, fazendo com que trajes de todos os tipos dançassem no lugar, às dezenas de milhares, prova adicional dos números extraordinários que habitavam a área.

E não se podia dizer que Mongkok fosse pobre. Por toda parte se avistavam ricos tecidos coloridos, o vermelho intenso sendo o ímã predominante. Podia-se contemplar cartazes enormes e requintados sempre que os olhos se erguiam acima das multidões; anúncios que se elevavam sucessivamente por três andares de altura margeavam as ruas e vielas, os caracteres chineses enfáticos, em suas tentativas de seduzir os consumi dores. Havia dinheiro em Mongkok, dinheiro discreto, assim como dinheiro histérico, mas nem sempre legítimo. O que não havia era excesso de espaço, e o que havia pertencia aos seus, não a forasteiros, a menos que um forasteiro — trazido por um dos seus — também trouxesse dinheiro para alimentar a máquina insaciável que produzia uma enorme variedade de bens terrenos e alguns não tão terrenos assim. Era uma questão de saber onde procurar e dispor do dinheiro para pagar o preço. Pak-fei, o motorista, sabia onde procurar, e Jason Bourne dispunha do dinheiro.

— Vou parar e dar um telefonema — disse Pak-fei, estacionando atrás de um caminhão, em fila dupla. — Trancarei o carro e voltarei depressa.

— Isso é necessário?

— À pasta é sua, senhor, não minha.

Santo Deus, pensou David, como ele era idiota! Não levara em consideração a pasta de executivo. Estava carregando mais de trezentos mil dólares no coração de Mongkok como se fosse seu almoço. Pegou a alça, puxando a valise para o colo, e verificou os fechos; estavam seguros, mas se os botões fossem comprimidos, mesmo que de leve, a tampa se abriria. Gritou para o motorista, que já saltara do carro:

— Traga-me um rolo de fita! Fita adesiva!

Era tarde demais. Os sons da rua eram ensurdecedores, as multidões pareciam um manto humano em movimento, havia gente por toda parte. E subitamente, uma centena de pares de olhos espiavam de todos os lados, rostos contorcidos se comprimiam contra o vidro — por todos os lados — e David era o centro de um vulcão que acabara de entrar em erupção. Podia ouvir os gritos inquisitivos de Bin go ah? e Chong man tui, mais ou menos o equivalente em inglês a”Quem é ele?” e “Uma boca que está cheia” ou, combinando, “Quem é o mandachuva?” Sentiu-se um animal enjaulado, sendo estudado por uma horda de bestas de outra espécie, talvez malignas. Apertou a pasta, olhando fixamente para a frente, enquanto duas mãos começavam a se introduzir pelo estreito espaço no alto da janela à direita. Lentamente, estendeu a mão para a faca de caça em seu bolso. Os dedos passaram pela abertura.

— Jau! — berrou Pak-fei, abrindo caminho pela multidão. — Este é um taipan muito importante, e a polícia lá na rua vai despejar óleo fervendo nos genitais de vocês se o incomodarem! Afastem-se, afastem-se!

Ele destrancou aporta, sentou ao volante e tornou a batê-la, com toda força, em meio a imprecações furiosas. Ligou o carro, acelerou, comprimiu a mão contra a buzina poderosa e assim a manteve, aumentando a cacofonia a proporções insuportáveis, enquanto o mar de corpos, devagar, relutante, se abria. O Daimler arremeteu aos solavancos pela rua estreita.

— Para onde estamos indo? — gritou David. — Pensei que já estivéssemos no lugar!

— O mercador com quem vai negociar transferiu sua base de operações, senhor, o que é bom, pois este não é um dos pontos mais agradáveis de Mongkok.

— Deveria ter telefonado primeiro. À situação lá atrás não foi das mais cômodas.

— Se me permite, senhor, gostaria de corrigir a impressão de serviço imperfeito — disse Pak-fei, olhando para David pelo retrovisor. — Sabemos agora que não está sendo seguido. E, em conseqüência, eu não serei seguido até o lugar para onde vou levá-lo.

— Mas do que está falando?

— Entra com as mãos vazias num banco na Chater Square e quando sai as mãos não estão mais vazias. Carregam uma pasta.

— E daí?

David observava atentamente os olhos do motorista, que a todo instante se fixavam em seu rosto.

— Nenhum guarda o acompanhou, e há pessoas más que ficam vigiando gente como o senhor.., e muitas vezes avisos são transmitidos por outras pessoas más lá de dentro. Estamos em tempos difíceis e por isso era melhor ter certeza neste caso.

— E tem certeza... agora.

— Tenho, sim, senhor. — Pak-fei sorriu. — Um automóvel nos seguindo numa rua secundária em Mongkok é facilmente visto.

— Então não houve telefonema.

— Claro que houve, senhor. Sempre se deve telefonar antes. Mas foi muito rápido e depois voltei pela calçada sem o quepe, por muitos metros. Não havia homens irados em automóveis, nenhum saltou para correr pela rua. Agora posso levá-lo ao mercador bastante aliviado.

— Também fico aliviado — murmurou David, especulando por que Jason Bourne o abandonara temporariamente. — E nem mesmo sabia que deveria estar preocupado... com a possibilidade de alguém me seguir.

As densas multidões de Mongkok foram se tomando mais ralas, enquanto os prédios ficavam mais baixos. David pôde divisar as águas de Victoria Harbor por trás de altas cercas de metal. Além das barricadas intimidativas, havia incontáveis armazéns, ao longo das docas onde os navios cargueiros atracavam, onde enormes guindastes se arrastavam e rangiam, levando os containers para os porões. Pak-fei virou na entrada de um armazém isolado, de um só andar; parecia deserto, com asfalto por toda parte, apenas dois carros à vista, O portão estava fechado; um guarda saiu de um cubículo de vidro e encaminhou-se para o Daimler com uma prancheta na mão.

— Não vai encontrar meu nome numa lista —disse Pak-fei, em chinês e com singular autoridade, enquanto o guarda se aproximava. — Avise ao Sr. Wu Song que o Regent Número Cinco está aqui e traz um taipan que é tão digno quanto ele. Ele nos espera.

O guarda acenou com a cabeça, estreitando os olhos ao sol da tarde, a fim de vislumbrar o importante passageiro.

— Aiya! — gritou Pak-fei pela impertinência do homem. Virando-se, ele fitou David e acrescentou, enquanto o guarda corria para o telefone: — Não deve me interpretar mal, senhor. O uso do nome do meu ótimo hotel não tem nada a ver com meu ótimo hotel. Na verdade, se o Sr. Liang ou qualquer outro soubesse que mencionei seu nome num negócio como este, eu seria afastado do meu emprego. Significa apenas que nasci no quinto dia do quinto mês no ano de nosso Senhor Cristão de 1935.

— Pode deixar que não contarei a ninguém — disse David, sorrindo interiormente, ao pensar que Jason Bourne, no final das contas, não o abandonara.

O mito que ele fora outrora conhecia os caminhos que levavam aos contatos certos — e os conhecia às cegas —, e esse homem ainda existia no fundo de David Webb.

A sala branca com cortinas do armazém, cheia de mostruários horizontais trancados, não diferia de um museu exibindo artefatos de civilizações do passado, como instrumentos primitivos, insetos fossilizados, esculturas místicas de religiões antigas. A diferença estava nos objetos. Ali estavam armas de todos os tipos, desde pequenas armas de baixo calibre e rifles a metralhadoras automáticas de mil tiros, com pentes espiralados em armações quase sem peso e foguetes guiados por laser a serem disparados do ombro, um arsenal para terroristas. Dois homens de terno montavam guarda, um no lado de fora da entrada da sala, outro dentro. Como era de se esperar, o primeiro fez uma mesura de desculpa e passou um detector eletrônico pelas roupas de David e seu motorista. Depois, estendeu a mão para a pasta de David, que a afastou, sacudiu a cabeça e gesticulou para o detector. O guarda passou-o pela superfície da pasta, conferindo os mostradores.

— Documentos particulares — disse David em chinês ao surpreso guarda, enquanto entrava na sala.

Ele levou quase um minuto inteiro para absorver o que via, livrar-se de sua incredulidade. Percebeu os avisos em letras grandes — Proibido Fumar — em inglês, francês e chinês, espalhados por todas as paredes, especulou por que estariam ali. Nada estava exposto. Apertou a pasta em sua mão como se fosse uma corda de salvação num mundo que enlouquecera com instrumentos de violência.

— Huanying! — exclamou uma voz, seguida pelo aparecimento de um homem de aspecto jovem.

Ele saiu de uma porta almofadada, usando um daqueles ternos europeus bem justos que exageram os ombros e comprimem a cintura, as abas traseiras do paletó ondulando como uma cauda de pavão, o produto de designers determinados a serem elegantes, mesmo ao custo de neutralizar a imagem masculina.

— Este é o Sr. Wu Song, senhor — disse Pak-fei, fazendo uma reverência primeiro para o mercador e depois para David. — Não é necessário dar seu nome, senhor.

— Bu! — disse o jovem mercador, apontando para a pasta de David. — Bu jing ya!

— Seu cliente, Sr. Song, fala chinês fluentemente. — O motorista virou-se para David. — Como ouviu, senhor, o Sr. Song protesta contra a presença de sua pasta.

— Não pode sair de minha mão — declarou David.

— Então não pode haver uma discussão de negócios séria — interveio Wu Song, num inglês impecável.

— Por que não? Seu homem verificou. Não tem armas dentro, e mesmo que houvesse e eu tentasse abrir, tenho a impressão de que eu estaria no chão antes de levantar a tampa.

— E plástico? —indagou Wu Song. —Microfones de plástico levando a gravadores em que o conteúdo de metal é tão pequeno que permanece ignorado até pelos detectadores mais sofisticados?

— Está sendo paranóico.

— Como dizem em seu país, isso faz parte do ofício.

— Seu conhecimento de expressões idiomáticas é tão bom quanto seu inglês.

— Universidade de Columbia, 1973.

— Formou-se em armamentos?

— Não. Em marketing.

— Aiya! — gritou Pak-fei.

Mas já era tarde demais. O rápido diálogo encobrira o movimento dos guardas; eles haviam atravessado a sala e, no último instante, se lançaram sobre David e o motorista.

Jason Bourne virou-se, deslocando o braço do atacante de seu ombro, prendendo-o por baixo do seu e torcendo-o, forçando o homem para baixo. Com toda força, bateu com a valise no rosto oriental. Os movimentos estavam lhe voltando. A violência retornava, como acontecera com um amnésico aturdido num barco de pesca, além da arrebentação de uma ilha do Mediterrâneo. Tanto esquecido, tanto inexplicado, mas lembrado. O homem caiu no chão, atordoado, enquanto seu companheiro se virava em fúria para David, depois de derrubar o motorista. Correu para a frente, as mãos levantadas num impulso em diagonal, o peito e os ombros largos constituindo a base do aríete duplo. David largou a pasta, pulou para a direita e tornou a girar, também para a direita, o pé esquerdo saindo do chão e atingindo o chinês na virilha, com tanta força que o homem se dobrou ao meio, gritando. No mesmo instante, David golpeou-o com o pé direito, a ponta acertando a garganta do atacante, direta mente abaixo do queixo; o homem rolou pelo chão, a respiração ofegante, uma das mãos na virilha, a outra comprimindo o pescoço. O primeiro guarda fez menção de se levantar; Bourne adiantou-se e bateu com o joelho no peito do homem, lançando-o no centro da sala, onde ele caiu inconsciente, por baixo de um mostruário.

O jovem mercador de armas estava perplexo. Testemunhara o inconcebível, esperando a qualquer momento que o que via se invertesse e seus guardas saíssem vitoriosos. E de repente, de maneira inequívoca, compreendeu que isso não iria acontecer. Saiu correndo em pânico para a porta almofadada, alcançando-a no mesmo instante em que David o alcançava. Segurando-lhe os ombros com enchimento, David girou o mercador de volta pela sala. Wu Song tropeçou nos próprios pés e caiu; levantou as mãos, suplicando:

— Não, por favor! Pare! Não posso suportar um confronto físico! Leve o que quiser!

— Não pode suportar o quê?

— Você me ouviu! Fico doente!

— Para que acha que serve tudo isso? — gritou David, gesticulando com o braço pela sala.

—Atendo a uma demanda, e é tudo. Leve o que quiser, mas não me toque. Por favor!

Repugnado, David encaminhou-se para o motorista caído, que estava se pondo de joelhos, um filete de sangue a escorrer-lhe do canto da boca.

— Eu pago pelo que levo — disse ele ao negociante de armas, enquanto segurava o braço do motorista e o ajudava a se levantar. — Está bem?

— Está se metendo numa grande encrenca, senhor — balbuciou Pak-fei, as mãos trêmulas, medo nos olhos.

— Não tem nada a ver com você. E Wu Song sabe disso não é mesmo, Wu?

— Eu trouxe você aqui! — insistiu o motorista.

— Para fazer uma compra. Assim, vamos acabar logo com isso. Mas, primeiro, amarre os dois guardas. Use as cortinas. Pode rasgá-las.

Pak-fei olhou suplicante para o jovem mercador.

— Grande Jesus Cristão, faça o que ele manda! — gritou Wu Song. — Ele vai me bater! Pegue as cortinas! Amarre os dois, seu imbecil!

Três minutos depois David tinha na mão uma arma de aparência estranha, volumosa, mas não grande. Era uma arma bastante moderna; o cilindro perfurado que era o silenciador se ajustava pneumaticamente, reduzindo a contagem de decibéis de um disparo a um mero estalido alto — mas não mais do que um estalido — sem afetar a precisão a curta distância. Tinha nove balas, os pentes removidos e inseridos na base da coronha em poucos segundos; havia três pentes de reserva, um total de trinta e seis balas, a potência de fogo de uma Magnum.357 numa arma com a metade do tamanho e peso de uma Colt.45.

— Extraordinária — murmurou David, olhando para os guardas amarrados e um trêmulo Pak-fei. — Quem a projetou?

Tanta competência estava lhe voltando. Tanto reconhecimento. De onde?

— Como um americano, talvez possa ofendê-lo — respondeu Wu Song. — É um homem de Bristol, Connecticut, que compreendeu que a companhia para a qual trabalha nunca o recompensaria adequadamente por sua invenção. Através de intermediários, procurou o mercado clandestino internacional e vendeu-a pelo lance mais alto.

— Seu?

— Não faço investimentos, apenas vendo.

— É verdade, eu tinha esquecido. Você atende a uma demanda.

— Exatamente.

— Você paga a quem?

— Deposito o dinheiro numa conta numerada em Cingapura. Não sei de nada. E sou protegido, é claro. Tudo está aqui sob consignação.

— Entendo. Quanto custa esta arma?

— Pode levá-la. É um presente meu.

— Você fede. E não aceito presentes de pessoas que cheiram mal. Quanto?

Wu Song engoliu em seco.

— O preço na lista é de oitocentos dólares americanos.

David enfiou a mão no bolso esquerdo e tirou as notas que guardara ali. Contou oito notas de cem dólares e entregou-as ao negociante de armas.

— Pagamento integral — disse ele.

— Certo.

— Amarre-o — ordenou David, virando-se para o apreensivo Pak-fei. — E não precisa ficar preocupado. Amarre-o logo!

— Faça o que ele está mandando, seu idiota!

— E depois leve os três para fora. Pelo lado do armazém junto do carro. Tome cuidado para não ser visto pelo guarda no portão.

— Depressa! — gritou Song. — Ele está furioso!

— Tem toda razão — confirmou David.

Quatro minutos depois os dois guardas e Wu Song passaram pela porta externa para o intenso sol da tarde, que se tomava ainda mais forte com os reflexos ondulantes nas águas de Victoria Harbor. Os joelhos e braços estavam amarrados com pano rasgado das cortinas, e por isso os movimentos eram hesitantes e trôpegos. O silêncio era garantido por chumaços de pano enfiados nas bocas dos guardas. Tais precauções não eram necessárias para o jovem mercador; ele estava apavorado.

Sozinho na sala, David pôs no chão a pasta recuperada e circulou rapidamente, estudando as armas nos mostruários, até encontrar o que queria. Quebrou o vidro com a coronha de sua arma e estendeu a mão para os artefatos que usaria — armas cobiçadas por terroristas em toda pane — granadas de tempo, cada uma com o impacto de uma bomba de dez. quilos. Como ele sabia? De onde vinha o seu conhecimento?

Retirou seis granadas e verificou cada carga da bateria. Como podia fazer isso? Como sabia onde procurar, o que comprimir? Não importava. Ele sabia. Olhou para o relógio.

Ligou o mecanismo de tempo de todas e saiu correndo pelos mostruários, quebrando os vidros e largando uma granada em cada um. Só lhe restava uma granada e ainda havia dois mostruários; levantou os olhos para os avisos Proibido Fumar em três línguas e tomou outra decisão. Correu, para a porta almofadada, abriu-a e viu o que esperava encontrar. Jogou lá dentro a última granada.

David tornou a conferir o relógio, pegou a pasta e saiu, fazendo questão de parecer no controle absoluto da situação. Aproximou-se do Daimler pelo lado do armazém em que Park-fei parecia estar pedindo desculpas a seus prisioneiros, suando profusamente. O motorista estava sendo alternadamente censurado e consolado por Wu Song, que queria apenas ser poupado de qualquer violência adicional.

— Leve-os para o quebra-mar. — ordenou David, apontando para a muralha de pedra que se erguia por cima das águas do porto.

Wu Song fitou-o fixamente e indagou:

— Quem é você?

O momento chegara. Tinha de ser agora.

David tornou a olhar para o relógio, enquanto se aproximava do negociante de armas. Pegou Wu Song pelo cotovelo e empurrou o apavorado chinês pelo lado do prédio, até um ponto em que as palavras baixas não seriam ouvidas pelos outros.

— Meu nome é Jason Bourne.

— Jason Bour...!

O oriental engasgou, reagindo como se um estilete tivesse perfurado sua garganta, os olhos testemunhando o ato final e violento de sua própria morte.

— E se tem alguma idéia sobre restaurar um ego ferido pela punição de alguém... como meu motorista, por exemplo... é melhor esquecer. Saberei onde encontrá-lo. — David fez uma pausa, por apenas uma fração de segundo. — É um homem privilegiado, Wu, mas com esse privilégio vem uma responsabilidade. Por determinados motivos, você pode ser interrogado e não espero que minta... de qualquer forma, duvido que seja muito bom em mentir... pode dizer que nos encontramos. Aceito isso. Pode até dizer que o roubei, se quiser. Mas se der uma descrição minha acurada, então é melhor estar no outro lado do mundo... e morto. Seria menos doloroso para você.

O graduado de Columbia ficou completamente imóvel, o

lábio inferior tremendo, enquanto fitava fixamente o oponente. David sustentou o olhar em silêncio, acenando com a cabeça uma vez. Soltou o braço de Wu Song e voltou para junto de Pak-fei e dos dois guardas amarrados, deixando o mercador em pânico com seus pensamentos desesperados.

— Faça o que eu mandei, Pak-fei — disse David, olhando mais uma vez para o relógio. — Leve-os para o quebra-mar e diga para se deitarem. Explique que ficarei cobrindo-os com a arma, até passarmos pelo portão. Creio que o empregador deles vai confirmar que sou um atirador relativamente eficiente.

O motorista gritou as ordens em chinês, relutante, fazendo uma mesura para o negociante de armas. Wu Song seguiu na frente dos outros, encaminhando-se desajeitado para o quebra- mar, a cerca de setenta metros de distância. David deu uma olhada no interior do Daimler.

— Jogue-me as chaves! — gritou ele para Pak-fei, — E depressa!

David pegou as chaves no ar e sentou-se ao volante. Ligou o motor, engrenou o Daimler e acompanhou a estranha procissão pelo asfalto por trás do armazém.

Wu Song e os dois guardas deitaram-se de bruços no chão. David saltou do carro, deixando o motor ligado, correu pela traseira para o outro lado, a arma recentemente comprada na mão, o silenciador fixado.

— Entre no carro e vamos embora! —gritou para Pak-fei. — Depressa!

O motorista embarcou, aturdido. David disparou três tiros, estalidos que levantaram o asfalto poucos centímetros à frente da cara de cada prisioneiro. Foi o suficiente; todos os três rolaram em pânico para a muralha de pedra. David sentou no banco da frente, ao lado do motorista.

— Vamos logo! — disse ele, lançando um último olhar ao relógio, a arma estendida pela janela, apontando na direção geral dos três corpos estendidos no chão. — Agora!

O portão foi aberto para o respeitável taipan na respeitável limusine. O Daimler passou em disparada e virou à direita no tráfego em velocidade da estrada de pista dupla que levava a Mongkok.

— Diminua a velocidade! — ordenou David. — E pare à beira da estrada, na terra.

— Esses motoristas são malucos, senhor. Estão acelerando porque sabem que dentro de poucos minutos mal conseguirão andar. Será difícil voltar à estrada.

— Acho que não.

E aconteceu. As explosões ocorreram uma após a outra, três, quatro, cinco... seis. O isolado armazém de um andar foi arremessado em fragmentos para o céu, as chamas e a densa fumaça preta preenchendo o ar por cima da terra e do porto, levando automóveis, caminhões e ônibus a pararem na estrada, com rangidos de freios.

— O senhor? — gritou Pak-fei, escancarando a boca, os olhos esbugalhados se fixando em David.

— Eu estive lá.

— Nós estivemos, senhor! Sou um homem morto! Aiya!

— Não, Pak-fei, não é. Está devidamente protegido. Aceite a minha palavra. Nunca mais ouvirá falar do Sr. Wu Song. Desconfio que ele vai para o outro lado do mundo, provavelmente para o Irã, a fim de ensinar marketing aos mullahs. Não sei quem mais poderia aceitá-lo.

— Mas por quê? E como, senhor?

— Ele está liquidado. Negociava com o que se chama “consignação”, o que significa que paga à medida que a mercadoria é vendida. Está me entendendo?

— Acho que sim, senhor.

— Ele não tem mais mercadoria alguma, só que não foi vendida. Simplesmente desapareceu.

— Como, senhor?

— Ele guardava bananas de dinamite e caixas de explosivo plástico na sala dos fundos. Eram coisas primitivas demais para ficar nos mostruários. E também muito volumosas.

— E o que aconteceu, senhor?

— Eu não devia ter fumado um cigarro... Vamos embora, Pak-fei. Tenho de voltar a Kowloon.

Ao entrarem no Tsim Sha Tsui, os movimentos da cabeça a se virar constantemente de Pak-fei se intrometeram nos pensamentos de David. O motorista não parava de observá-lo.

— O que é, Pak-fei?

— Não tenho certeza, senhor. Estou apavorado, é claro.

— Não acreditou no que eu lhe disse... que não tem nada a temer?

— Não é isso, senhor. Acho que devo acreditar, pois vi o que fez e vi a cara de Wu Song quando falou com ele. Acho que é por sua causa que estou assustado, mas também penso que pode ser um engano, pois me protegeu. Estava nos olhos de Wu Song. Não sei explicar direito.

— Não se preocupe. — David meteu a mão no bolso para pegar dinheiro. —Você é casado, Pak-fei? Ou tem uma namorada... ou um namorado? Não faz diferença.

— Sou casado, senhor. E com dois filhos crescidos, que têm bons empregos. Eles contribuem. Meu ídolo doméstico está e boa situação.

— E agora vai ficar ainda melhor. Vá para casa e pegue sua esposa... os filhos também, se quiser... e saia passeando, Pak-fei. Siga para os Novos Territórios, percorrendo muitos quilômetros. Pare e faça uma boa refeição em Tuen Mun ou Yuen Long. E depois passeie mais um pouco. Deixe que sua família aproveite este excelente automóvel.

— Para que, senhor?

— Uma xiao xin — explicou Ddvid, com o dinheiro na mão. — O que chamamos em inglês de uma pequena mentira inofensiva, que não prejudica ninguém. Quero que a quilometragem no carro corresponda ao lugar para onde me levou esta tarde... e à noite.

— Onde, senhor?

— Levou o Sr. Cruett primeiro para Lo Wu e depois passou pela base da serra até Lok Ma Chau.

— São os pontos de entrada na República Popular.

— Isso mesmo. — David tirou duas notas de cem dólares e depois uma terceira. — Acha que pode se lembrar e calcular a quilometragem certa?

— Claro, senhor.

— E acha que pode dizer que saltei do carro em Lok Ma Chau e subi pelas colinas durante cerca de uma hora? — acrescentou David, o dedo numa quarta nota de cem dólares.

— Dez horas se quiser, senhor. Não preciso dormir.

— Uma hora está ótimo. — David estendeu os quatrocentos

dólares diante dos olhos surpresos do motorista. — E saberei se não cumprir o nosso acordo

— Não precisa se preocupar, senhor! — Pak-fei, uma das mãos no volante, a outra pegando as notas. — Vou buscar minha esposa, os filhos, os pais dela e também os meus. Este animal que estou conduzindo é bastante grande para doze pessoas. Obrigado, senhor! Muito obrigado!

— Deixe-me a cerca de dez ruas da Salisbury Road e saia desta área. Não quero que o carro seja visto em Kowloon.

— Não seria possível, senhor. Estaremos em Lo Wu, em Le Ma Chau!

— A partir de amanhã de manhã, pode dizer o que quiser. Não estarei mais aqui. Vou embora esta noite. Nunca mais me verá.

— Entendo, senhor.

— Nosso acordo está fechado, Pak-fei.

Os pensamentos de Jason Bourne retornaram a uma estratégia que se tornava mais definida a cada movimento que fazia. E cada movimento o levava para mais perto de Marie. Tudo estava mais frio agora. Havia uma certa liberdade em ser o que não era.

Desempenhe o papel que lhe deram... Esteja em toda parte ao mesmo tempo. Aplique toda a pressão neles.

Às cinco e dois um Liang visivelmente perturbado transpôs rapidamente as portas de vidro do Regent. Olhou ao redor, bastante nervoso, observando os hóspedes que chegavam e partiam, depois virou à esquerda e desceu apressado para a rampa que levava à rua. David observava-o através da água que esguichava dos chafarizes, no outro lado do pátio. Usando isso como cobertura, David correu pela área movimentada, esquivando-se dos carros; chegou à rampa e desceu atrás de Liang para a Salisbury Road.

Ele parou no meio do caminho para a rua e virou-se, inclinando o corpo e o rosto para a esquerda. O chinês estacara abruptamente, o corpo inclinado para a frente, como uma pessoa ansiosa e com pressa faz quando se lembra de repente de alguma coisa ou muda de idéia. Só podia ser a segunda alternativa, pensou David, enquanto virava a cabeça cautelosamente e observava Liang atravessar apressado a entrada de carros e se encaminhar para o apinhado New World Shopping Centre. David sabia que o perderia no meio da multidão se não se apressasse; por isso, levantou as mãos, interrompendo o tráfego, e desceu correndo a rampa, em diagonal, em meio às buzinas estridentes e gritos furiosos dos motoristas. Chegou ao passeio do centro comercial, suando, ansioso. Não podia ver Liang! O mar de rostos orientais tornou-se um borrão, parecendo iguais, mas ao mesmo tempo diferentes. Onde estava ele? David correu para a frente, murmurando desculpas à medida que esbarrava em corpos e rostos aturdidos... e lá estava ele! Tinha certeza de que era Liang... mas não muita certezas não realmente. Vira um vulto de terno escuro virar na entrada do caminho para o porto, uma longa extensão de concreto por cima da água, em que as pessoas pescavam, passeavam ou realizavam os seus exercícios de tai chi pela manhã. Contudo, ele vira apenas as costas de um homem; se não fosse Liang, ele deixaria a rua e o perderia por completo. Instinto. Não o seu; mas o de Bourne... os olhos de Jason Bourne.

David desatou a correr, encaminhando-se para a entrada em arcada do passeio. O horizonte de edifícios de Hong Kong faiscava ao sol, a distância, o movimento no porto era intenso, com o final dos trabalhos do dia nas águas. Diminuiu a velocidade ao passar pela arcada; não havia outro caminho para voltar à Salisbury Road. O passeio era um beco sem saída que avançava pelo cais, o que acarretava uma pergunta, além de proporcionar uma resposta a outra. Por que Liang — se é que era mesmo Liang — se metera num beco sem saída? O que o atraía? Um contato, um ponto de correspondência, uma transmissão? O que quer que fosse, significava que o chinês não considerara a possibilidade de estar sendo seguido; essa era a resposta imediata de que David precisava. Dizia-lhe o que precisava saber. Sua presa estava em pânico; o inesperado só podia levá-lo a um pânico ainda maior.

Os olhos de Jason Bourne não mentiram. Era mesmo Liang, mas a primeira pergunta permaneceu sem resposta, aumentada até pelo que David viu. Entre os milhares e milhares de telefones públicos em Kowloon — em arcadas apinhadas e em recessos escuros de saguões discretos —, Liang escolhera um telefone na parede interna do passeio. Era exposto, aberto, no meio de um caminho largo, que era um beco sem saída. Não fazia sentido; até o amador mais insignificante possuía os instintos protetores básicos. Quando em pânico, procurava cobertura.

Liang enfiou a mão no bolso para pegar moedas. Subitamente, como se ordenado por uma voz interior, David compreendeu que não podia permitir que a ligação se efetuasse. Quando fosse feita, ele é que tinha de fazê-la. Era parte de sua estratégia, uma parte que o levaria para mais perto de Marie! O controle devia estar em suas mãos, não com os outros!

Começou a correr, seguindo direto para a proteção de plástico branco do telefone público, querendo gritar, mas sabendo que precisava chegar mais perto para ser ouvido acima do barulho no cais. O chinês acabara de discar; em algum lugar, um telefone estava tocando.

— Liang! — berrou David. — Largue esse telefone! Se quer viver, desligue e saia daí!

O chinês virou-se, o rosto uma máscara rígida de terror.

— Você! — gritou ele histericamente, comprimindo as costas contra o plástico branco. — Não... não! Não agora! Não aqui!

Os estampidos soaram de repente, rajadas que se acrescentaram aos sons incontáveis do porto. O pandemônio dominou o passeio, enquanto as pessoas gritavam, jogando-se no chão ou correndo em todas as direções, para longe do terror da morte instantânea.


 

— Aiya! — berrou Liang, mergulhando para o lado do telefone, enquanto as balas iam se cravar na parede do passeio e passavam zunindo por cima.

David avançou para o chinês, rastejando, enquanto tirava a faca da bainha.

— Não! —. gritou Liang, enquanto David, deitado de lado, agarrava-o pela frente da camisa e empurrava a lâmina para seu queixo, rompendo a pele, tirando sangue. — Não faça isso! Aiii!

O grito histérico se perdeu no pandemônio no caminho.

— Dê-me o número! Agora!

— Não faça isso comigo! Juro que não sabia que era uma armadilha!

— Não é uma armadilha para mim, Liang — murmurou David, ofegante, o suor escorrendo pelo rosto. — É para você!

— Para mim? Você está louco! Por que logo eu?

— Porque eles já sabem que estou aqui, e você me viu, falou comigo. Deu seu telefonema, e eles não podem permitir que continue vivo.

— Mas por quê?

— Recebeu o número de um telefone. Fez o seu trabalho e eles não podem deixar pistas.

— Isso não explica nada!

— Talvez meu nome explique. Eu me chamo Jason Bourne.

— Oh, Deus! — balbuciou Liang, o rosto pálido, os lábios entreabertos, fitando David.

— Você é uma pista, Liang. E por isso se tornou um homem morto.

— Não! Não! — O chinês sacudiu a cabeça. — Não pode ser! Não conheço ninguém, só sei o telefone! É uma sala vazia no New World Centre, um telefone instalado em caráter temporário. Por favor! O número é três-quatro-quatro-zero-um. Não me mate, Sr. Bourne! Pelo amor de nosso Deus Cristão, não me mate!

— Se eu pensasse que a armadilha era para mim, já haveria sangue por toda a sua garganta, não no queixo... Três-quatro-quatro-zero-um?

— Isso mesmo!

O tiroteio cessou da mesma forma súbita e inesperada como começara.

— O New World Centre fica ao lado, não é mesmo? Uma daquelas janelas lá em cima.

— Isso mesmo! — Liang estremeceu, incapaz de desviar os olhos do rosto de David. Fechou-os com toda força, as lágrimas escorrendo por baixo das pálpebras, enquanto sacudia a cabeça vigorosamente. — Nunca vi você! Juro pela cruz do santo Jesus!

— Às vezes eu me pergunto se estou em Hong Kong ou no Vaticano.

David levantou a cabeça e olhou ao redor. Ao longo de todo o passeio, pessoas apavoradas começavam a se levantar, hesitantes. Mães agarravam filhos, homens seguravam mulheres, homens, mulheres e crianças ficavam de joelhos, depois de pé;. e subitamente houve uma debandada em massa para a arcada que levava à Salisbury Road.

— Recebeu ordem para dar o telefonema daqui, não é mesmo? — indagou David rapidamente, tomando a se concentrar no assustado gerente-assistente.

— Isso mesmo, senhor.

— Por quê? Eles explicaram o motivo?

— Explicaram, senhor.

— Pelo amor de Deus, abra os olhos!

— Está bem, senhor. — Liang obedeceu, desviando os olhos enquanto continuava a falar: — Disseram que não confiavam no hóspede que pedisse a suíte seis-nove-zero. Era um homem que poderia obrigar outro a dizer mentiras. Por isso, queriam me observar quando eu lhes falasse... Sr. Bourne... não, eu não disse isso! Sr. Cruett... passei o dia inteiro tentando lhe falar, Sr. Cruett! Queria que soubesse que eu estava sendo insistentemente pressionado, Sr. Cruett. Eles não paravam de me telefonar. Queriam saber quando eu os chamaria... daqui. E eu dizia que o senhor ainda não havia chegado. O que mais podia fazer? Ao tentar localizá-lo constantemente, eu estava querendo avisá-lo. Não é óbvio, senhor?

— O óbvio é que você não passa de um imbecil.

— Não estou preparado para esse tipo de trabalho.

— E por que aceitou?

— Dinheiro, senhor. Eu estava com Chiang, com o Kuomintang. Tenho esposa e cinco filhos... dois filhos e três filhas. Tinha de escapar. Eles verificam os antecedentes e nos dão rótulos incontestáveis, sem apelação. Sou um homem culto, senhor. Universidade de Fudan, o segundo da minha turma... possuía meu próprio hotel em Xangai. Mas tudo isso não tem a menor importância agora. Quando Pequim assumir o controle, serei um homem morto, toda a minha família vai morrer. E agora vem me dizer que já posso me considerar um homem morto. O que vou fazer?

— Pequim... não vai tocar na colônia, não vai mudar coisa alguma — comentou David, lembrando os comentários de Marie naquela noite terrível, depois que McAllister fora embora. — A menos que os fanáticos tomem o poder.

— Todos eles são loucos, senhor. Não acredite em qualquer outra coisa. Não conhece direito aquela gente.

— Talvez não. Mas conheço alguns de vocês. E, para ser franco, prefiro não conhecê-los.

— “Aquele que está sem pecado que atire a primeira pe dra”, senhor.

— Pedras, mas não as bolsas de prata da corrupção de Chiang, não é mesmo?

— Como, senhor?

— Quais são os nomes de suas três filhas? Responda depressa!

— São... são.. Wang... Wang Sim...

— Esqueça! — David olhou para a arcada. — Ni bushi ren! Você não é um homem, é um porco! Passe bem, Liang do Kuomintang. Passe bem enquanto eles permitirem. Se quer saber, não estou absolutamente interessado no que possa acontecer com você.

David levantou-se, pronto para se jogar outra vez no chão, ao primeiro clarão irregular em uma janela lá em cima, à esquerda. Os olhos de Jason Bourne eram bastante acurados; não havia nada. David juntou-se à multidão que corria para a arcada e saiu para a Salisbury Road.

Ele fez a ligação de uma arcada congestionada e barulhenta ao lado da Nathan Road. Comprimiu o indicador no ouvido direito para escutar melhor.

— Wei? — disse uma voz de homem.

— Aqui é Bourne e falarei inglês. Onde está minha esposa?

— Wode tian ah! Dizem que fala nossa língua em numerosos dialetos.

— Já faz muito tempo e quero deixar tudo bem claro. Perguntei por minha esposa.

— Liang deu este número?

— Ele não tinha alternativa.

— E também está morto.

— Não me importo com o que faça, mas se estivesse no seu lugar pensaria muito antes de matá-lo.

— Por quê? Ele é inferior a um verme.

— Porque escolheu um idiota... pior do que isso, um idiota histérico. Ele falou com pessoas demais. Uma telefonista me informou que ele ligava para mim a intervalos de poucos minutos...

— Ligava para você?

— Cheguei esta manhã. Onde está minha esposa?

— Liang, o mentiroso!

— Não esperava que eu ficasse naquela suíte, não é mesmo? Mandei que ele me arrumasse outro quarto. Fomos vistos conversando... discutindo... na presença de meia dúzia de empregados do hotel. A polícia vai procurar por um americano rico que desapareceu.

— A calça de Liang está suja — disse o chin — Talvez seja o suficiente.

— É suficiente. E agora vamos falar sobre o paradeiro de minha esposa.

— Já ouvi. Não sou privilegiado com essa informação.

— Pois então chame alguém que saiba de tudo. Agora!

— Vai se encontrar com outros que sabem mais.

— Quando?

— Entraremos em contato com você. Em que quarto está?

— Eu ligo para você. Tem quinze minutos.

— Está me dando ordens?

— Sei onde você se encontra, em que janela, em que sala... é muito relaxado com o seu rifle. Deveria ter protegido o cano. A luz do sol reflete no metal, o que é básico. Em trinta segundos estarei a trinta metros de sua porta, mas você não sabe onde estou e não pode deixar esse telefone.

— Não acredito em você!

— Então experimente. Não está me observando agora, mas eu estou observando você. Tem quinze minutos, e quando tornar a ligar, quero falar com minha esposa.

— Ela não está aqui!

— Se eu achasse que estava, você já seria um homem morto, a cabeça separada do corpo por uma faca e jogada pela janela, para se juntar ao resto do lixo no porto. Se pensa que estou exagerando, verifique por aí. Pergunte às pessoas que já lidaram comigo. Pergunte ao seu taipan, o Yao Ming que não existe.

— Não posso fazer sua esposa aparecer de repente, Jason Bourne! — gritou o assustado capanga.

— Descubra o telefone em que poderei falar com ela. Ou ouço a voz de minha esposa... falando comigo... ou não tem mais nada. Exceto o seu cadáver sem cabeça e um lenço preto no pescoço sangrando. Quinze minutos!

David desligou e limpou o suor do rosto. Conseguira. A mente e as palavras eram de Jason Bourne... voltara a um tempo apenas vagamente lembrado e instintivamente sabia o que fazer, o que dizer, o que ameaçar. Havia uma lição em algum ponto. A aparência era muito mais importante do que a realidade. Ou havia uma realidade em seu íntimo, clamando para sair, querendo o controle, dizendo a David Webb para confiar no homem dentro dele?

David deixou a arcada opressivamente apinhada e virou à direita na calçada também abarrotada. A Milha Dourada do Tsim Sha Tsui estava se preparando para os jogos noturnos, e o mesmo acontecia com ele. Podia voltar ao hotel agora; o gerente-assistente estaria a quilômetros de distância, presumivelmente comprando uma passagem de avião para Formosa, se havia algum fundo de verdade em todas as suas declarações histéricas. David usaria o elevador de serviço para chegar a seu quarto, pois sempre havia a possibilidade de outros o aguardarem no saguão, embora duvidasse. O estande de tiro numa sala vazia no New World Centre não era um posto de comando e o atirador não era um comandante, mas apenas um retransmissor, agora apavorado, temendo por sua vida.

A cada passo pela Nathan Road, a respiração de David se tornava mais esbaforida, o peito batia mais forte. Dentro de doze minutos ouviria a voz de Marie. Oh, Deus, como queria ouvi-la! Tinha de ouvir! Era a única coisa que o manteria são, a única coisa que importava.

— Seus quinze minutos se esgotaram — disse David, sentado na beira da cama, tentando controlar o coração disparado, especulando se o eco rápido poderia ser ouvido pelo telefone como o escutava, torcendo para que não provocasse qualquer tremor em sua voz.

— Ligue para cinco-dois-seis-cinco-três.

— Cinco? — David reconheceu a estação. — Ela está em Hong Kong, não em Kowloon.

— Ela será transferida imediatamente.

— Tornarei a ligar para você depois de falar com ela.

— Não há necessidade, Jason Bourne. Homens que sabem de tudo estarão lá e vão falar com você. Minha parte está encerrada e você nunca me viu.

— Nem preciso ver. Uma fotografia será tirada quando sair dessa sala, mas não saberá de onde nem por quem. Provavelmente vai avistar uma porção de pessoas... no corredor, elevador ou saguão... mas não saberá qual tem uma câmara cuja lente parece um botão no paletó ou um emblema na bolsa. Passe bem, assecla. Tenha bons pensamentos.

David apertou a lingüeta do aparelho, cortando a ligação; esperou três segundos, soltou-a, ouviu o som de ligar, comprimiu os botões. Podia escutar a campainha. Oh, Deus, não conseguia mais suportar!

— Wei?

— Aqui é Bourne. Ponha minha esposa na linha.

— Como queira.

— David?

— Você está bem? — gritou David, à beira da histeria.

— Apenas cansada, meu querido, .mas isso é tudo. E vocêestá bem?

— Eles machucaram você... tocaram em você?

— Não, David. Têm sido muito gentis, para dizer a verdade. Mas você sabe como fico cansada às vezes. Lembra daquela semana em Zurique, quando você queria visitar o Fraumünster e os museus, sair para velejar no Limmat e eu disse que não agüentaria?

Não houvera nenhuma semana em Zurique. Apenas o pesadelo de uma única noite, quando os dois quase perderam a vida. Ele enfrentando seus executores em potencial na Steppdeckstrasse, ela quase estuprada, condenada à morte na deserta margem do rio, no Guisan Quai. O que Marie estava tentando lhe dizer?

— Claro que lembro.

— Então não deve se preocupar comigo, querido. Graças a Deus que você está aqui! Eles me prometeram que estaremos juntos em breve. Será como Paris, David. Lembra de Paris, quando eu pensava que perderia você? Mas você veio ao meu encontro e ambos sabíamos para onde ir. Aquela rua adorável, com as árvores de um verde escuro e...

— Já chega, Sra. Webb — interveio uma voz de homem, fazendo uma breve pausa e logo acrescentando, diretamente no fone: — Ou devo dizer Sra. Bourne?

— Pense, David, e tome cuidado! — gritou Marie, ao fundo. — E não se preocupe, querido! Aquela rua adorável, com as árvores verdes, minha árvore predileta...

— Ting zhi! — gritou o homem, dando uma ordem em

chinês. — Levem-na daqui! Ela está dando informações! Depressa! Não a deixem falar!

— Faça mal a ela de qualquer forma e vai se arrepender pelo resto de sua curta vida — disse David, a voz gelada. — Juro por Cristo que o encontrarei.

— Não há motivo para ser desagradável até agora — respondeu o homem, falando devagar, o tom sincero. — Ouviu sua esposa. Ela tem sido bem tratada. Não tem queixas.

— Alguma coisa está errada com ela! O que vocês fizeram que ela não pode me dizer?

— É apenas a tensão, Sr. Bourne. E ela estava lhe dizendo alguma coisa, não pode haver qualquer dúvida, em sua ansiedade, tentando descrever este local... de maneira errada, devo acrescentar... mas mesmo que a informação fosse acurada, seria tão inútil para você quanto o número do telefone. Ela está a caminho de outro apartamento, um dos milhões que existem em Hong Kong. Por que haveríamos de lhe fazer algum mal? Seria contraproducente. Um grande taipan quer conhecer você.

— Yao Ming?

— Como você, ele usa vários nomes. Talvez possam chegar a um acordo.

— Ou chegamos ou ele está morto. E você também.

— Acredito no que diz, Jason Bourne. Matou um parente meu que estava além do seu alcance, em sua própria ilha-fortaleza, em Lantau. Tenho certeza de que se lembra.

— Não mantenho registros. Yao Ming. Quando?

— Esta noite.

— Onde?

— Deve compreender que ele é um homem bastante conhecido e por isso o encontro deve ser num lugar insólito.

— Posso escolher?

— Isso é inaceitável. Não insista. Lembre-se que estamos com sua esposa.

David ficou tenso; estava perdendo o controle de que precisava desesperadamente.

— Diga onde.

— A Cidade Murada. Presumimos que a conhece.

— Já ouvi falar a respeito. — David tentou focalizar a memória que lhe restava. — O mais repulsivo cortiço da face da terra, se bem me lembro.

— O que mais poderia ser? É a única possessão legal da República Popular em toda a colônia. Até mesmo o abominável Mao Tsé-tung deu permissão para que nossa polícia fizesse uma limpeza. Mas os servidores públicos não são tão bem pagos como deveriam. Por isso, o lugar continua essencialmente o mesmo.

— A que horas?

— Depois do escurecer, mas antes de o bazar fechar. Entre nove e meia e quinze para as dez, pontualmente.

— Corno vou encontrar esse Yao Ming... que não é Yao Ming?

— Há uma mulher no primeiro quarteirão do mercado que vende entranhas de cobra como afrodisíaco, especialmente de naja. Procure-a e pergunte onde existe uma bem grande. Ela dirá quais os degraus que deve usar, que viela seguir. E haverá alguém à sua espera.

— Talvez eu nunca consiga chegar lá. A cor da minha pele não é bem-vinda no lugar.

— Ninguém lhe fará mal. Mas sugiro que não use roupas vistosas nem jóias caras.

— Jóias?

— Se tiver um relógio de alto preço, não o use.

Eles cortariam seu braço por um relógio. Medusa. Que assim fosse.

— Obrigado pelo aviso,

— Só mais uma coisa. Não pense em alertar as autoridades ou seu consulado numa tentativa imprudente de comprometer o taipan. Se o fizer, sua esposa morrerá.

— Isso não era necessário.

— Com Jason Bourne, tudo é necessário. Será devidamente vigiado

— De nove e meia às nove e quarenta e cinco.

David desligou e levantou-se da cama. Foi até a janela e olhou para o porto. O que era? O que Marie estava tentando lhe dizer?

...você sabe como fico cansada às vezes.

Não, ele não sabia. Marie era uma mulher forte, criada num rancho de Ontario, jamais se queixava de cansaço.

... não deve se preocupar comigo, querido.

Uma súplica tola e ela devia saber disso. Marie não desperdiçava momentos preciosos com tolices. A menos... ela estaria divagando de maneira incoerente?

Será como Paris, David... ambos sabíamos para onde ir... aquela rua adorável, com as árvores de um verde-escuro...

Não, ela não estava divagando, apenas dava essa impressão; havia uma mensagem. Mas qual? Qual era a rua adorável, com “árvores de um verde-escuro”? Nada lhe ocorria, e isso o estava levando à loucura. Falhava a Marie. Ela enviava um sinal e ele não conseguia entender.

Pense, David, e tome cuidado!... não se preocupe, querido! Aquela rua adorável, com as árvores verdes, minha árvore predileta...

Que rua adorável? Que árvores verdes, que árvore predileta? Nada fazia sentido... mas devia fazer! Ele deveria ser capaz de reagir, não ficar olhando por uma janela, a memória vazia. Socorro! Socorro!, ele gritou silenciosamente para ninguém.

Uma voz interior lhe disse para não se fixar no que não podia compreender. Havia coisas por fazer; não podia seguir voluntariamente para um encontro no campo escolhido pelo inimigo sem algum conhecimento prévio, sem algumas cartas para usar como trunfos... Sugiro que não use roupas vistosas... Não seriam vistosas de qualquer forma, pensou David, mas agora seria justamente algo oposto... e inesperado.

Durante os meses em que se livrara das camadas de Jason Bourne, um tema se repetira incessantemente. Mudança, mu dança, mudança. Bourne era um mestre da mudança; chamavam-no “o camaleão”, um homem que podia se fundir com qualquer ambiente, na maior facilidade. Não como algo grotesco, uma caricatura de peruca e nariz de cera, mas como alguém que podia adaptar os elementos essenciais da aparência ao ambiente imediato, de tal forma que as pessoas que haviam encontrado o “assassino” — raramente, no entanto, em plena luz ou parado bem perto — ofereciam as descrições mais variadas do homem caçado por toda Ásia e Europa. Os detalhes estavam sempre em conflito: os cabelos eram escuros ou claros; os olhos castanhos, azuis ou manchados; a pele pálida, bronzeada ou inchada; as roupas bem feitas e discretas, se o encontro ocorria num café elegante e pouco iluminado, ou amarrotadas e ordinárias, se a confrontação era no cais ou nas profundezas inferiores de uma cidade. Mudança. Sem esforço com um mínimo de artifícios. David Webb confiaria no camaleão que tinha dentro de si. Queda livre. Vá para onde Jason Bourne determinar.

Depois de saltar do Daimler, ele fora para o Península Hotel e alugara um quarto, depositando a pasta com o dinheiro no cofre do hotel. Tivera a presença de espírito de se registrar sob o nome no terceiro passaporte falso de Cactus. Se houvesse homens á sua procura, usariam o nome, que ele registrara no Regent; era tudo o que tinham.

Atravessando a Salisbury Road, usou o elevador de serviço, seguiu apressado para o seu quarto e pôs as poucas roupas de que precisava em sua bolsa de vôo. Mas não cancelou a hospedagem no Regent. Se homens saíssem à sua procura, queria que vigiassem onde não estava.

Depois de instalado no Peninsula, tinha tempo para comer alguma coisa e excursionar por várias lojas, até o anoitecer. Quando chegasse o momento, estaria na Cidade Murada... antes das nove e meia. Jason Bourne estava dando as ordens e David Webb tinha de obedecer.

A Cidade Murada de Kowloon não tinha qualquer muralha visível ao redor, mas é tão nitidamente definida que parece haver uma, feita com o aço mais duro. É sentida instantaneamente no congestionado mercado que se estende pela rua, na frente de prédios escuros e desmantelados, autênticas choças empilhadas umas por cima das outras, dando a impressão de que a qualquer momento todo o complexo em ruínas pode desabar, deixando apenas escombros, onde antes havia escombros armados. Mas há uma força enganadora, que se encontra ao descer um pequeno lance de degraus para o interior do cortiço interminável. Abaixo do nível da rua, há vielas calçadas com pedras, que na maioria dos casos são túneis que passam sob as frágeis estruturas. Em corredores imundos, mendigos aleijados competem com prostitutas seminuas e traficantes de tóxicos, à luz fantasmagórica de lâmpadas expostas, pendentes de fios que correm pelas paredes de pedra. Uma umidade pútrida impregna tudo; só há decadência e podridão, mas a força do tempo endureceu essa decomposição, petrificando-a.

Dentro das vielas repulsivas, sem qualquer ordem ou equilíbrio, há escadas estreitas e mal-iluminadas, que levam a uma sucessão vertical de apartamentos miseráveis, a média se elevando a três andares, sendo que dois acima da superfície. No interior dos cômodos pequenos e dilapidados, vende-se a mais ampla variedade de narcóticos e sexo. Tudo se encontra além do alcance da polícia — um acerto tácito de todas as partes — pois poucas autoridades da colônia se arriscam a penetrar pelas entranhas da Cidade Murada. É o seu próprio inferno auto-suficiente. Que assim fosse.

Lá fora, no mercado que ocupa a rua coalhada de lixo, onde nenhum tráfego é permitido, mesas imundas, em que se empilham mercadorias refugadas e/ou roubadas, ficam espremidas entre barracas cobertas de fuligem, nas quais bolsões de vapor se elevam de enormes caldeirões de óleo fervendo, em que pedaços suspeitos de carne, aves e cobras são continuamente mergulhados, depois removidos e largados sobre folhas de jornal, para venda imediata. As multidões se deslocam sob a luz fraca dos lampiões de um vendedor para outro, barganhando em vozes estridentes, gritando sem parar, comprando e vendendo. Há também os mascates de meio-fio, homens e mulheres em andrajos, sem barracas ou mesas, as mercadorias espalhadas na calçada. Ficam acocorados por trás de quinquilharias e jóias de fantasia, a maior parte roubada das docas, de gaiolas com besouros rastejando e passarinhos esvoaçando.

Perto da entrada do estranho e fétido bazar sentava uma mulher solitária e musculosa, num banquinho de madeira, as pernas grossas entreabertas, esfolando cobras e removendo-lhes as entranhas, os olhos escuros aparentemente obcecados pela serpente se contorcendo em suas mãos. Nos dois lados havia sacos de aniagem em movimento, de vez em quando se convulsionando, quando os répteis condenados se atacavam uns aos outros, numa fúria sibilante, enlouquecidos pelo cativeiro. Sob o pé direito descalço da mulher havia uma enorme naja, o corpo preto imóvel e ereto, os olhos pequenos firmes, hipnotizados pela multidão em movimento constante. A imundície do mercado era uma barricada apropriada à Cidade Murada sem mura lha que ficava além.

Virando a esquina no lado oposto do comprido bazar, um vulto desgrenhado entrou na multidão em movimento. O homem vestia um terno marrom ordinário e folgado, a calça enorme, o paletó muito grande, mas apertado nos ombros encurvados. Um chapéu de aba larga, preto e inconfundivelmente oriental, projetava uma sombra permanente em seu rosto. O andar era lento, como convinha a um homem parando na frente de várias barracas e mesas, examinando as mercadorias; mas apenas uma vez ele estendeu a mão hesitante para o bolso, a fim de efetuar uma única compra. O corpo todo parecia vergado, como um homem que passara anos empenhado em trabalho duro nos campos ou nas docas, a dieta nunca suficiente para sustentar um organismo de que tanto se exigia. Havia ainda uma certa tristeza nesse homem, um senso de inutilidade derivado de muito pouco, muito tarde e muito dispendioso, para a mente e o corpo. Era o reconhecimento da impotência, de orgulho abandonado, pois não havia nada de que se orgulhar; o preço da sobrevivência fora demais. E esse homem, esse vulto encurvado que, hesitante, comprou um cone de jornal com um suspeito peixe frito, não era diferente de muitos outros que circulavam pelo mercado... na verdade, podia-se até dizer que ele não se diferenciava em nada dos demais. Aproximou-se da mulher musculosa que estava arrancando as entranhas de uma cobra ainda a estrebuchar.

— Onde está a maior? — perguntou Jason Bourne, em chinês, os olhos fixados na naja imóvel, a gordura escorrendo do jornal sobre a mão esquerda.

— Chegou cedo — respondeu a mulher, sem qualquer expressão definida. — Está escuro, mas veio antes da hora.

— Fui chamado às pressas. Questiona as instruções do taipan?

— Ele é um miserável ordinário para um taipan — exclamou a mulher, num cantonês gutural. — Que me importa? Desça os degraus por trás de mim e pegue a primeira viela à esquerda. Uma puta estará esperando quinze ou vinte metros adiante. Ela espera pelo homem branco para levá-lo ao taipan... Você é o homem branco? Não posso dizer com esta luz e seu chinês é bom... mas não parece um homem branco, não usa roupas de homem branco.

— Se estivesse no meu lugar, faria questão de parecer um homem branco, vestir como um homem branco, se alguém mandasse que viesse até aqui?

— Eu faria questão como mil demônios de mostrar que era de Qing Gaoyan! — respondeu a mulher, rindo e mostrando os dentes podres. — Especialmente se você leva dinheiro. Está com dinheiro... nosso Zhongguo ren?

— Você me lisonjeia, mas não estou.

— Você mente. Os brancos mentem com palavras celestiais sobre dinheiro.

— Está bem, minto. Espero que sua cobra não me ataque por isso.

— Seu tolo! Ele é velho, não tem mais presas, não tem veneno. Mas é a imagem celestial do órgão de um homem. E me traz dinheiro. Você vai me dar dinheiro?

— Por um serviço, posso dar.

— Aiya! Você quer este velho corpo, deve ter um machado na calça. Corte a puta, não a mim!

— Não um machado, apenas palavras — disse Bourne, enfiando a mão direita no bolso da calça.

Ele retirou uma nota de cem dólares americanos e aproximou-a do rosto da vendedora de entranhas de serpentes, mantendo-a fora da vista dos outros mascates.

— Aiya... aiya! — murmurou a mulher, enquanto Jason afastava a nota de seus dedos ávidos.

A cobra morta caiu entre as pernas da mulher.

— O serviço — repetiu Bourne. — Como pensou que eu era um dos seus, espero que outros pensem da mesma forma. Tudo o que quero que você faça é dizer a quem perguntar que o homem branco nunca apareceu. Está certo?

— Está! Dê-me o dinheiro!

— O serviço?

— Você comprou cobras! Cobras! O que sei de um homem branco? Ele nunca apareceu! Tome aqui! Leve sua cobra! Faça amor!

A mulher pegou a nota, recolheu as entranhas com a mão

e meteu numa bolsa de plástico, em que havia um logotipo. Dizia Christian Dior.

Permanecendo encurvado, Bourne fez duas mesuras rápidas e afastou-se da multidão. Foi largar as entranhas da cobra na sarjeta, bastante longe de qualquer lampião para não ser notado. Segurando o cone pingando com o peixe fedorento, ele fingia repetidamente comer, enquanto descia lentamente os degraus e entrava nas profundezas fervilhantes da Cidade Murada. Olhou para o relógio, deixando cair o peixe. Eram nove e quinze; as patrulhas do taipan estariam assumindo as posições.

Precisava conhecer a extensão da segurança do banqueiro. Queria que fosse verdade a mentira que dissera ao atirador numa sala vazia por cima do passeio do porto. Em vez de ser vigiado, queria vigiar. Memorizaria cada rosto, cada função na estrutura de comando, a rapidez com que cada guarda tomava uma decisão sob pressão, o equipamento de comunicações; acima de tudo, queria descobrir onde havia fraquezas na segurança do taipan. David compreendia que Jason Bourne estava assumindo o controle; havia um objetivo no que ele estava fazendo. O bilhete do banqueiro começara com as palavras Uma esposa por uma esposa... Só era necessário trocar uma palavra. Um taipan por uma esposa.

Bourne entrou na viela à esquerda e percorreu várias dezenas de metros, passando por cenas que ignorou escrupulosa- mente; um residente da Cidade Murada se comportaria assim. Numa escada escura, uma mulher de joelhos realizava o ato pelo qual estava sendo paga, o homem de pé, com o dinheiro na mão, por cima da sua cabeça; um jovem casal, dois viciados óbvios quase em frenesi, suplicavam a um homem num dispendioso blusão preto de couro; um garotinho, fumando um cigarro de maconha, urinava contra a parede de pedra; um mendigo sem pernas passava ruidosamente em sua prancha com rodas pelas pedras do calçamento, entoando “Bong ngo, bong ngo!”, uma súplica por esmolas; em outra escada mal-iluminada um cafetão bem-vestido ameaçava uma de suas prostitutas com o desfiguramento facial se ela não produzisse mais dinheiro. David Webb refletiu que não estava na Disneylândia. Jason Bourne estudava a viela como se fosse uma zona de combate por trás das linhas inimigas. Eram nove e vinte e quatro. Os soldados deviam estar se colocando em seus postos. O homem externo e o homem interno viraram e começaram a voltar.

A prostituta do banqueiro estava assumindo sua posição, a blusa vermelha desabotoada, mal cobrindo os seios pequenos; a abertura tradicional na saia preta subia até a coxa. Era uma caricatura. O “homem branco” não devia cometer qualquer erro. Ponto um: Acentuar o óbvio. Uma coisa a lembrar; a sutileza não era tão importante. Vários metros atrás da mulher, um homem falava por um rádio portátil; ele alcançou a mulher, sacudiu a cabeça e se afastou apressado para a extremidade da viela, onde ficavam os degraus. Bourne parou, a postura arriada, virou-se para a parede. Passos soaram atrás dele, apressados, determinados, o ritmo se acelerando. Um segundo chinês aproximou-se e passou, um homenzinho de meia-idade, num terno escuro, gravata, sapatos tão engraxados que brilhavam. Não era um cidadão da Cidade Murada; sua expressão era uma mistura de apreensão e repulsa. Tinha a aparência e o comportamento de um executivo que recebia a ordem de cumprir deveres que considerava desagradáveis. Um homem da companhia, meticuloso, submisso, preocupado com o resultado final, pois as cifras não mentiam. Um banqueiro?

Jason estudou a fileira irregular de escadas; o homem saíra de uma delas. O som dos passos fora abrupto e recente; a julgar pelo ritmo, não haviam começado a mais de sessenta ou setenta metros de distância. A terceira escada à esquerda ou a quarta à direita. Em um dos apartamentos por cima de uma das duas escadas havia um taipan que esperava por sua visita. Bourne precisava descobrir qual e em que nível. O taipan tinha de ficar surpreso, até mesmo chocado. Tinha de compreender com quem estava lidando e o que suas ações lhe custariam.

Jason recomeçou a andar, agora assumindo a postura de um bêbado; as palavras de uma antiga canção mandarim lhe ocorreram. “Me li hua cherng zhang liu yue”, entoou ele, baixinho, balançando e batendo de leve na parede, enquanto se aproximava da prostituta.

— Tenho dinheiro — disse ele jovialmente, as palavras num chinês impreciso. — E você, linda mulher, tem o que preciso. Para onde vamos?

— Para lugar nenhum, bêbado maluco. Fique longe de mim.

— Bong ngo! Cheng bong ngo! — berrou o mendigo sem pernas, avançando ruídosamente pela viela. — Cheng gong ngo!

— Jau! — gritou a mulher. — Saia daqui antes que eu chute seu corpo inútil para fora da prancha, Loo Mi! Já disse para você não interferir com os negócios!

— Esse bêbado ordinário é negócio? Posso lhe arrumar alguém melhor!

— Ele não é meu negócio, querido. É uma irritação. Estou esperando por alguém.

— Então vou cortar os pés dele! — gritou a figura grotesca, tirando um cutelo da prancha.

— Mas que diabo está fazendo? — rugiu Bourne, em inglês, metendo o pé no peito do mendigo e empurrando o homem-tronco e sua prancha para a parede oposta.

— Há leis aqui! — berrou o mendigo, a voz estridente. Atacou um aleijado! Está roubando um aleijado!

— Pode me processar — disse Jason, virando-se para a mulher, enquanto o mendigo se afastava.

— Você... fala inglês.

A prostituta estava aturdida.

— E você também.

— Fala chinês, mas não é chinês.

— Em espírito, talvez. Estava à sua procura.

— Você é o homem?

— Sou.

— Vou levar você ao taipan.

— Não. Basta que me diga qual é a escada e o andar.

— Não são essas as minhas instruções.

— São as instruções novas, dadas pelo taipan. Duvida de suas novas instruções?

— Devem ser transmitidas.pelo homem que é o chefe dos outros.

— O pequeno Zhongguo ren, de terno escuro?

— Ele diz tudo para a gente. E paga pelo taipan.

— A quem ele paga?

— Pergunte a ele pessoalmente.

— O taipan quer saber. — Bourne enfiou a mão no bolso

e tirou um maço de notas dobradas. — Ele me disse para dar dinheiro extra a você, se cooperar comigo. Acha que seu chefe pode estar enganando-o.

A mulher recuou para a parede, olhando alternadamente para o dinheiro e para o rosto de Bourne.

— Se estiver mentindo...

— Por que eu mentiria? O taipan quer falar comigo e você sabe disso. Deve me levar até ele. Foi o taipan quem me disse para me vestir assim, me comportar assim, encontrar você e vigiar seus homens. Como eu saberia de você se ele não tivesse me contado?

— Lá em cima no mercado. Devia falar com alguém antes de vir para cá.

— Não estive lá. Desci direto. — Jason removeu várias notas. — Nós dois estamos trabalhando para o taipan. Tome aqui. Ele quer que você pegue isto e vá embora. Mas não deve subir para a rua.

Ele estendeu o dinheiro.

— O taipan é generoso — disse a prostituta, estendendo a mão para o dinheiro.

— Qual é a escada? —indagou Bourne, puxando o dinheiro de volta. — Que andar? O taipan não sabia.

— Ali — respondeu a mulher, apontando para a parede do outro lado. — A terceira escada, segundo andar. E agora me dê o dinheiro.

— Quem está recebendo do chefe? Diga depressa.

— No mercado tem a mulher das cobras, o velho ladrão vendendo correntes de ouro falso do norte e o homem do peixe e carne estragados.

— Isso é tudo?

— É, sim.

— O taipan tem razão, está sendo enganado. Ele ficará grato a você. — Bourne desdobrou outra nota. — Mas quero ser justo. Além do que está com o rádio, quantos outros trabalham para o chefe?

— Três outros, também com rádios — disse a prostituta, os olhos fixos no dinheiro, a mão avançando devagar.

— Pegue isto e vá embora. Siga por aquele lado, e não suba a rua.

A mulher pegou as notas e saiu correndo pela viela, os saltos altos ressoando, o vulto desaparecendo na semi-escuridão, Bourne ficou observando até que ela sumiu, depois virou-se e percorreu apressado o caminho para os degraus. Tornou a assumir a aparência encurvada, subindo para a rua. Três guardas e um homem no comando. Ele sabia o que tinha de fazer e precisava ser feito rapidamente. Eram nove e trinta e seis. Um taipan por uma esposa.

Encontrou o primeiro guarda conversando com o peixeiro, nervosamente, com gestos bruscos. O barulho da multidão era um obstáculo. O peixeiro não parava de sacudir a cabeça. Bourne escolheu um homem corpulento perto do guarda; saiu correndo e empurrou o inocente espectador para cima do guarda, dando um. passo para o lado, enquanto o homem do taipan recuava. Na breve confusão que se seguiu, Jason puxou o aturdido guarda para o lado, acertando-o na base da garganta com os nós dos dedos; virou-o quando ele começou a cair e, com a mão rígida, golpeou a sua nuca, no alto da espinha. Arrastou o homem inconsciente pela calçada, pedindo desculpas à multidão em chinês por seu amigo bêbado. Largou o guarda nos escombros de uma loja, pegou o rádio e quebrou-o.

O segundo homem do taipan não exigiu essa tática. Estava à margem da multidão, sozinho, gritando pelo rádio. Bourne aproximou-se; sua figura lamentável não representava qualquer ameaça e ele estendeu a mão, como se fosse um mendigo. O guarda acenou-lhe para que se afastasse; foi o último gesto de que ele se lembraria, pois Bourne pegou seu pulso, torceu-o e quebrou o braço do homem. Quatorze segundos depois, o segundo guarda do taipan estava caído nas sombras, sobre uma pilha de lixo, o rádio destruído.

O terceiro guarda estava em conferência com a mulher das cobras. Para satisfação de Bourne, ela também sacudia a cabeça, como o peixeiro fizera; havia uma certa lealdade na Cidade Murada em relação aos subornos, O homem tirou o rádio do bolso, mas não teve chance de usá-lo. Jason correu, pegou a velha naja desdentada e jogou sua cabeça na cara do homem. O arquejo horrorizado, seguido por um grito, era toda a reação de que Jason Bourne precisava. Os nervos na garganta constituem uma magnífica rede de fibras imobilizadoras, ligando os órgãos do corpo ao sistema nervoso central. Bourne agiu rapidamente e outra vez arrastou a vítima pela multidão, pedindo desculpas profusamente. Deixou o guarda inconsciente num ponto escuro do concreto. Aproximou o rádio do ouvido; não havia nada no receptor. Eram nove e quarenta. Restava o chefe dos homens.

O pequeno chinês de meia-idade, no terno elegante e sapa tos bem engraxados, corria de um lado para outro, tentando localizar seus homens, relutante em fazer o menor contato físico com as hordas em torno das barracas e mesas dos vendedores. Sua visão era dificultada pela pequena altura. Bourne observou para onde ele estava indo, correu na sua frente, depois virou-se abruptamente e desferiu o punho com toda força contra o baixo-ventre do executivo. Enquanto o chinês vergava, Jason passou o braço esquerdo por sua cintura e levantou-o. Carregou o corpo inerte para um trecho da calçada em que dois homens estavam sentados, balançando, passando uma garrafa de um para outro. Jason desferiu uma cutelada no pescoço do banqueiro e largou-o entre os dois homens. Apesar do torpor mental em que se encontravam, os dois bêbados providenciariam para que seu novo companheiro permanecesse inconsciente por um tempo considerável. Havia bolsos a vasculhar, roupas e um par de sapatos a serem removidos. Tudo isso valeria um preço; e qualquer que fosse a quantia que eles conseguiriam obter por seus esforços, já seria uma gratificação e tanto. Eram nove e quarenta e três.

Bourne não manteve mais a postura encurvada; o camaleão desaparecera. Correu através da rua transbordante de humanidade e desceu os degraus, entrando na viela. Conseguira! Eliminara a Guarda Pretoriana. Um taipan por uma esposa! Chegou à escada — a terceira, na parede da direita — e sacou a arma extraordinária que comprara de um negociante de armas em Mongkok. O mais silenciosamente possível, experimentando cada degrau com o pé, ele subiu para o segundo andar. Preparou-se diante da porta, equilibrando o peso, levantou a perna esquerda e acertou com toda força a madeira fina.

A porta foi arrombada. Jason pulou para o interior do cómodo, agachando-se, a arma estendida.

Três homens o fitavam, formando um semicírculo, cada

um com uma arma apontada para sua cabeça. Por trás deles, vestindo um traje de seda branca, um enorme chinês estava sentado numa cadeira. O homem acenou com a cabeça para os guardas.

Ele perdera. Jason Bourne calculara errado e David Webb morreria. Muito mais angustiante, ele sabia que em breve se seguiria a morte de Marie. Deixe-os disparar, pensou David. Puxar os gatilhos, acabando misericordiosamente com tudo. Ele matara a única coisa que importava em sua vida,

— Atirem, seus miseráveis! Atirem!


 

— Seja bem-vindo, Sr. Bourne disse o homem grande no traje de seda branca, acenando para que os guardas se afastassem. — Presumo que percebe a lógica de pôr sua arma no chão e empurrá-la para longe. Sabe que realmente não há alternativa.

David olhou para os três chineses; o homem no centro puxava para trás o cão da automática. David pôs a arma no chão e empurrou-a para a frente.

— Estava me esperando, não é? —indagou ele suavemente, enquanto o guarda à sua direita pegava a arma.

— Não sabíamos o que esperar... exceto o inesperado. Como conseguiu? Meus homens estão mortos?

— Não. Estão machucados e inconscientes, mas não mortos.

— Extraordinário. Pensava que me encontraria sozinho aqui?

— Fui informado de que estava em companhia de seu chefe e três outros, não de seis. Concluí que era lógico. Achei que mais homens chamaria atenção.

— Foi por isso que esses homens chegaram mais cedo, a fim de tomar as primeiras providências, não saindo deste buraco desde então. Calculei que poderia querer me capturar para trocar por sua esposa.

— É óbvio que ela não tem nada a ver com isso. Solte-a. Ela não pode lhe fazer mal. Mate-me, mas deixe-a partir.

— Pi ge! — disse o banqueiro, ordenando que dois dos guardas saíssem do apartamento; eles fizeram uma mesura e se retiraram apressados. Tornando a se virar para David, ele acrescentou: — Este homem vai ficar. Além da imensa lealdade que tem a mim, não fala nem compreende uma só palavra de inglês.

— Vejo que confia em seu pessoal.

— Não confio em ninguém.

O financista gesticulou para uma velha cadeira de madeira no outro lado da sala miserável, revelando no gesto um Rolex de ouro no pulso, diamantes incrustados em torno do mostrador, combinando com as abotoaduras.

— Sente-se. Não medi esforços e investi muito dinheiro para promover este encontro.

— O chefe dos seus homens... presumo que seja essa a sua função... — disse Bourne, estudando cada detalhe da sala enquanto se encaminhava para a cadeira —, recomendou que não usasse um relógio caro ao vir aqui. Acho que você não deu atenção ao aviso.

— Cheguei num cafetã sujo, com as mangas bastante largas para esconder o relógio. E observando suas roupas, tenho certeza de que o Camaleão compreende.

— Você é Yao Ming — murmurou David, sentando.

— É um nome que uso e estou certo de que entende. O Camaleão passa por muitos formatos e cores.

— Não matei sua esposa... nem o homem que por acaso estava com ela.

— Sei disso, Sr. Webb.

— Você o quê?

David levantou-se bruscamente, e o guarda deu um passo rápido em sua direção, a arma apontada.

— Sente-se — repetiu o banqueiro. — Não alarme meu devotado amigo ou ambos podemos lamentar, você muito mais do que eu.

— Sabia que não fui eu e ainda assim fez isso conosco!

— Sente-se logo, por favor.

— Quero uma resposta! — exclamou David, tornando a sentar.

— Porque você é o verdadeiro Jason Bourne. É por isso que está aqui, é por isso que sua esposa permanece sob a minha custódia e assim continuará até você realizar o que tenho a lhe pedir.

— Falei com ela.

— Sei que falou. Eu permiti.

— Ela parecia diferente... mesmo se levando em consideração as circunstâncias. É uma mulher forte, mais forte do que eu estava naquelas terríveis semanas na Suíça e Paris. Alguma coisa está errada com ela. Foi drogada?

— Claro que não.

— Está machucada?

— Em espírito, talvez, mas não por qualquer outra forma. Mas devo dizer que ela será machucada e morrerá se você se recusar. Preciso ser mais claro?

— É um homem morto, taipan.

— O verdadeiro Bourne fala. Isso é ótimo. Justamente o que preciso.

— Explique tudo.

— Estou sendo acossado por alguém que usa o seu nome — começou o taipan, a voz dura, a intensidade aumentando. —E muito mais severamente... que os espíritos me perdoem... do que a perda de uma jovem esposa. Por todos os lados, em todas as áreas, o terrorista, esse novo Jason Bourne, ataca. Mata meus homens, explode carregamentos de mercadorias valiosas, ameaça outros taipans de morte se fizerem negócios comigo. Seus honorários exorbitantes são pagos por meus inimigos, em Hong Kong e Macau, nos canais da Deep Bay e até no norte, nas próprias províncias.

— Tem uma porção de inimigos.

— Meus interesses são amplos.

— O que também acontecia, pelo que me disseram, com o homem que não matei em Macau.

— Por mais estranho que pareça, ele e eu não éramos inimigos — disse o banqueiro, respirando fundo, apertando o braço da cadeira, num esforço para se controlar. —Em determinadas áreas, nossos interesses convergiam. Foi assim que ele conheceu minha esposa.

— Muito conveniente. Ativos partilhados.

— Está sendo ofensivo.

— Não são minhas regras — respondeu Bourne, os olhos frios fixos no rosto do oriental. —Entre logo no assunto. Minha esposa está viva e a quero de volta, sem qualquer marca ou sequer uma voz alteada contra ela. Se lhe fizerem mal, por qualquer forma, você e seus Zhongguo ren não serão adversários para o que farei.

— Não está em condições de fazer ameaças, Sr. Webb.

— Webb não está — concordou o homem que fora outrora o mais caçado na Ásia e Europa. — Bourne está.

O oriental olhou firme para Jason, depois acenou com a cabeça duas vezes e baixou os olhos, para além do olhar de Webb.

— Sua audácia está no mesmo nível de sua arrogância. Vamos ao assunto. É muito simples, muito claro.

O taipan subitamente cerrou a mão direita, levantou o punho e bateu com força no frágil braço da cadeira decrépita.

— Quero provas contra os meus inimigos! — gritou ele, os olhos furiosos espiando por trás de duas paredes de carne intumescida, parcialmente fechadas. —A única maneira de conseguir isso é você me trazer esse impostor tão verossímil que toma o seu lugar! Quero ele na minha frente, observando-me, enquanto sente a vida deixá-lo em agonia, até me contar tudo o que preciso saber! Traga-o para mim, Jason Bourne!

O banqueiro respirou fundo e depois acrescentou, suavemente:

— Então, e só então, voltará a se encontrar com sua esposa.

David ficou olhando fixamente para o taipan, em silêncio, por um longo tempo, antes de perguntar:

— O que o faz pensar que posso consegui-lo?

— Quem melhor para capturar um farsante do que o original?

— Palavras — disse David. — Que não fazem o menor sentido.

— Ele estudou você. Analisou seus métodos, suas técnicas.

Não poderia passar por você se não tivesse feito isso. Descubra-o! Capture-o com as táticas que você criou pessoalmente.

— Só isso?

— Terá ajuda. Vários nomes e descrições, homens que estou convencido de que têm um envolvimento com esse novo assassino que usa um velho nome.

— Em Macau?

— Nunca! Não deve ser em Macau! Não pode haver qualquer alusão, ab nenhuma referência, ao incidente no Hotel Lisboa. Está acabado, encerrado; você nada sabe a respeito. Minha pessoa não pode ser associada de jeito nenhum com o que você está fazendo. Não tem nada a ver comigo. Se você aflorar, está caçando um homem que assumiu sua identidade. Está se protegendo, se defendendo. Algo perfeitamente natural, nas circunstâncias.

— Pensei que queria provas...

— Vão aparecer, quando me trouxer o impostor — gritou o taipan.

— Se não é em Macau, onde então?

— Aqui, em Kowloon. No Tsim Sha Tsui. Cinco homens foram liquidados na sala dos fundos de um cabaré, entre os quais um banqueiro... como eu, um taipan, meu sócio em diversas ocasiões e não menos influente... assim como outros três cujas identidades foram ocultas. Ao que tudo indica, foi uma decisão do governo. Nunca descobri quem eram.

— Mas sabe quem era o quinto homem.

— Ele trabalhava para mim. Foi meu representante naquela reunião. Se eu tivesse comparecido, seu homônimo teria me matado. é por onde você começa, aqui em Kowloon, no Tsim Sha Tsui. Eu lhe darei os nomes dos dois mortos conhecidos e as identidades de muitos homens que eram inimigos de ambos, agora meus inimigos também. E um último aviso, Sr. Bourne. Caso tente descobrir quem eu sou, a ordem será rápida, a execução ainda mais rápida. Sua esposa morrerá.

— E você também. Dê-me os nomes.

— Estão neste papel — disse o homem que usava o nome Yao Ming, enfiando a mão no bolso do traje de seda branca. — Foram datilografados por uma estenógrafa pública no Mandarin. Não haveria sentido em tentar localizar uma máquina de escrever específica.

— Uma perda de tempo — comentou Bourne, pegando o papel. — Deve haver vinte milhões de máquinas de escrever em Hong Kong.               

— Mas não tantos taipans com o meu tamanho de cintura, não é mesmo?

— Eis uma coisa que não esquecerei.

— Eu já contava com isso.

— Como posso entrar em contato com você?

— Não pode. Nunca. Este encontro jamais ocorreu.

— Então por que aconteceu? Por que tudo aconteceu? Digamos que eu consiga descobrir e capturar esse cretino que se intitula Bourne... e não há qualquer certeza... o que farei com ele? Deixo-o nos degraus da Cidade Murada?

— Pode ser uma esplêndida idéia. Drogado, ninguém lhe prestaria a menor atenção, além de lhe revistar os bolsos.

— Eu prestaria a maior atenção. Um prêmio por um prêmio, taipan. Quero uma. garantia absoluta. Quero minha esposa de volta.

— O que consideraria tal garantia?

— Primeiro, a voz dela ao telefone, convencendo-me de que está ilesa. Depois, quero vê-la.., por exemplo, andando de um lado para outro da rua, sozinha, sem ninguém por perto.

— Jason Bourne fala?

— Isso mesmo,

— Está certo. Desenvolvemos uma indústria de alta tecnologia aqui em Hong Kong, pode perguntar a qualquer pessoa no ramo da eletrônica em seu país. No fundo desta página tem o número de um telefone. Quando e se.. e apenas quando e se... o impostor estiver em suas mãos, ligue para esse número e repita várias vezes as palavras “mulher-serpente”...

— Medusa — sussurrou Jason, interrompendo-o. —Aerotransportada.

O taipan arqueou as sobrancelhas, com uma expressão neutra.

— Naturalmente, eu estava me referindo à mulher no bazar.

— Estava coisa nenhuma. Continue.

— Como eu disse, repita as palavras várias vezes, até ouvir uma série de estalidos...

— Ligando outro número, ou números — interveio Bourne outra vez.

— Creio que está relacionado com o som das palavras — confirmou o taipan. — Não acha engenhoso?

— É o que se chama de programação de recepção auditiva, os instrumentos acionados por uma impressão vocal.

— Como não está impressionado, deixe-me enfatizar a condição sob a qual a ligação pode ser efetuada. E pelo bem de sua esposa, espero que isso o impressione. A ligação só deve ser efetuada quando você estiver preparado para entregar o impostor poucos minutos depois. Caso você ou qualquer outro use o número e as palavras de código sem essa garantia, eu saberei que está havendo uma busca nas linhas. Nesse caso, sua esposa será morta e o cadáver desfigurado de uma mulher branca, sem identificação, será jogado nas águas ao largo de nossas ilhas. Estou sendo claro?

Engolindo em seco, reprimindo a fúria, apesar do medo angustiante, Bourne respondeu friamente:

— A condição está perfeitamente compreendida. E agora compreenda a minha condição. Quando e se eu fizer essa ligação, quero falar com minha esposa... não em poucos minutos, mas em segundos. Se isso não acontecer, quem estiver na linha vai ouvir o tiro e você saberá que seu assassino, o prêmio que diz que tem de obter, terá a cabeça estourada. Terá trinta segundos.

— Sua condição está compreendida e será atendida. Eu diria que a conferência está encerrada, Jason Bourne.

— Quero minha arma. Está com um dos guardas que se retiraram.

— Será entregue quando sair.

— Ele aceitará minha palavra?

— Não será necessário. Se você sair daqui, ele deve lhe entregar. Um cadáver não tem necessidade de arma.

O que resta das imponentes mansões da extravagante era colonial de Hong Kong está no alto das colinas, por cima da cidade, numa área conhecida como Victoria Peak, a maior montanha da ilha, o ponto culminante de todo o território. Ali, graciosos jardins complementam caminhos margeados por roseiras, que levam a mirantes e varandas, de onde os ricos contemplam os esplendores do porto lá embaixo e as ilhas externas a distância. As residências com as vistas mais invejáveis são versões adulteradas das grandes casas da Jamaica. São intrincadas, de pé-direito alto; os cômodos fluem de um para outro nos ângulos mais inesperados, a fim de aproveitar as brisas de verão durante essa estação longa e sufocante; por toda parte há madeira entalhada e envernizada, cercando e reforçando janelas, feitas para resistir aos ventos e às chuvas do inverno na montanha. A força e o conforto se unem nessas mansões menores, os projetos determinados pelo clima.

Uma das casas no distrito de Peak, no entanto, diferia das outras. Não no tamanho, força ou elegância, não na beleza dos jardins, que talvez fossem mais amplos que muitos dos vizinhos, não na imponência do portão ou na altura do muro de pedra que cercava a propriedade. Parte do que a fazia parecer diferente era o senso de isolamento que a envolvia, especialmente à noite, quando apenas umas poucas luzes se mantinham acesas nos numerosos cômodos e nenhum som escapava das janelas ou dos jardins. Era como se a casa fosse praticamente desabitada; certamente não havia ali qualquer indício de frivolidade. Mas o que a diferenciava drasticamente eram os homens no portão e outros iguais que se podia avistar da estrada, patrulhando o terreno, além do muro. Estavam armados e em uniformes de campanha. Eram fuzileiros americanos.

A propriedade fora arrendada pelo Consulado dos Estados Unidos, por determinação do Conselho de Segurança Nacional. A qualquer indagação, o consulado deveria comentar apenas que durante o mês seguinte numerosos representantes do governo e da indústria americana deveriam chegar à colônia, em momentos diversos e indeterminados, e a segurança e a eficácia das acomodações justificavam o aluguel. Era tudo o que o consulado sabia. Contudo, um pessoal selecionado do MI-Seis britânico, Setor Especial, recebera mais alguma informação, já que sua cooperação era julgada necessária e fora autorizada por Londres. Só que as informações eram limitadas ao que era necessário saber de imediato, algo com que Londres também concordara. Os que se encontravam nos mais altos escalões dos dois governos, inclusive os assessores do Presidente dos Estados Unidos e da Primeira-Ministra da Inglaterra, haviam chegado à mesma conclusão: quaisquer revelações sobre a verdadeira natureza da propriedade em Victoria Peak poderiam ter conseqüências catastróficas para o Extremo Oriente e o mundo. Era uma casa segura, o quartel-general de uma operação secreta tão sensível que até mesmo o Presidente e a Primeira-Ministra pouco sabiam dos detalhes, conhecendo plenamente apenas os objetivos.

Um pequeno sedã subiu para o portão. No mesmo instante, potentes refletores foram acionados, ofuscando o motorista, que levantou o braço para proteger os olhos. Dois fuzileiros se aproximaram, um em cada lado do veículo, empunhando suas armas.

— Já deviam conhecer o carro a esta altura — comentou o enorme oriental num traje de seda branca, olhando através da janela aberta.

— Conhecemos o carro, Major Lin — respondeu o cabo à esquerda. — Mas precisamos nos certificar do motorista.

— Quem poderia se passar por mim? —gracejou o enorme major.

— O Homem-Montanha, senhor — respondeu o fuzileiro à direita.

— Ah, sim, estou lembrando. Um campeão americano de luta-livre.

— Meu avô sempre falava nele.

— Obrigado, filho. Podia pelo menos ter dito seu pai. Posso seguir adiante ou estou preso?

— Vamos apagar os refletores e abrir o portão, senhor — disse o primeiro fuzileiro. — Antes que eu me esqueça, Major, obrigado pelo nome daquele restaurante em Wanchai. É um lugar de classe e não estoura a nossa fortuna.

— Mas, infelizmente, não encontrou nenhuma Suzie Wong.

— Quem, senhor?

— Não importa. O portão, por favor.

Dentro da casa, na biblioteca que fora convertida em escritório, o Subsecretário do Estado Edward Newington McAllister sentava-se por trás de uma escrivaninha, estudando as páginas de um dossiê, sob a luz forte de um abajur, fazendo marcas nas margens, ao lado de determinados parágrafos e linhas. Estava absorvido na leitura, em total concentração. O interfone soou e ele teve de forçar os olhos e a mão para o aparelho.

— O que é? — Escutou por um instante e depois acrescentou: — Mande-o entrar, é claro.

McAllister desligou e voltou a atenção ao dossiê à sua frente, o lápis na mão. No alto da página que estava lendo havia as mesmas palavras, na mesma posição, que se repetiam em cada página: Ultra Máximo Secreto. R.P.C. Interno. Sheng  Chou Yang.

A porta se abriu e o imenso Major Lin Wenzu, do Serviço Secreto Britânico, MI-Seis, Setor Especial, Hong Kong, entrou e fechou a porta, sorrindo para McAllister, que permanecera absorvido no dossiê.

— Continua o mesmo, hem, Edward? Enterrado nas palavras... há um padrão, uma linha a seguir.

— Eu gostaria de poder encontrá-la — murmurou o subsecretário de Estado, lendo febrilmente.

— E vai encontrar, .meu amigo. Qualquer que seja.

— Falarei com você dentro de um momento.

— Não há pressa. —O major tirou o Rolex e as abotoaduras de ouro. Colocou na mesa e acrescentou: — É uma pena devolver essas coisas. Emprestam certa presença à minha presença. Mas devo lhe tirar o chapéu, Edward. Não são básicas para o meu guarda-roupa, mas foi perfeito, como sempre acontece em Hong Kong, até para alguém do meu tamanho.

— Tem razão — concordou o subsecretário, ainda absorvido na leitura.

O Major Lin sentou na cadeira de couro preto na frente da mesa, permanecendo em silêncio por quase um minuto. Era evidente que não podia se conter por mais tempo.

— Posso ajudá-lo em alguma coisa, Edward? Ou, sendo mais objetivo, há alguma coisa relacionada com o trabalho em questão? Algo que possa me dizer a respeito?

— Receio que não, Lin.

— Terá de nos contar, mais cedo ou mais tarde. Nossos superiores em Londres terão de nos contar. “Façam o que ele pedir”, disseram eles. “Registrem todas as conversas e instruções, mas sigam suas ordens e aconselhem-no.” Aconselhar? Não há conselho, apenas tática. Um homem num escritório desocupado disparando quatro balas na parede do passeio do porto, seis na água, o resto cartuchos de pólvora seca... graças a Deus que não houve paradas cardíacas... e críamos a situação que você quer. Isso é algo que podemos compreender...

— Concluo que tudo correu muito bem.

— Houve um tremendo tumulto, se é isso o que está querendo dizer com “muito bem”.

— É isso mesmo.

McAllister recostou-se na cadeira, os dedos esguios da mão direita massageando a têmpora.

— Ponto marcado, meu amigo. O autêntico Jason Bourne foi convencido e entrou em ação. De quebra, você terá de pagar pela hospitalização de um homem com o braço quebrado e dois outros que alegam ainda se encontrarem em estado de choque, com os pescoços extremamente doídos. O quarto ficou embaraçado demais para dizer qualquer coisa.

— Bourne é muito bom no que faz... no que fazia.

— Ele é letal, Edward.

— Creio que você conseguiu controlá-lo.

— Pensando em cada segundo que ele tornaria a agir e destruiria toda aquela sala. Fiquei apavorado. O homem é um maníaco. A propósito, por que ele deve se manter a distância de Macau? É uma restrição estranha.

— Não há nada que ele não possa fazer aqui. Os assassinatos ocorreram aqui. Os clientes do impostor estão obviamente aqui em Hong Kong, e não em Macau.

— Como sempre, isso não é resposta.

— Vamos pôr a situação sob outro ângulo, e isso é o máximo que posso lhe dizer. Na verdade, você já sabe, pois desempenhou o papel esta noite. A mentira sobre a jovem esposa do mítico taipan e seu amante, assassinados em Macau. Tem alguma idéia a respeito?

— Um artifício engenhoso — comentou Lin, franzindo o rosto. — Poucos atos de vingança são tão prontamente compreendidos quanto o “olho por olho”. De certa forma, é a base de sua estratégia... até onde eu sei.

— O que acha que Webb faria se descobrisse que não passa de uma mentira?

— Ele não poderia descobrir. Você deixou bem claro que as mortes foram abafadas.

— Está subestimando-o. Chegando a Macau, ele viraria todas as latas de lixo para descobrir quem é esse taipan. Interrogaria todos os porteiros e até as camareiras... provavelmente ameaçaria ou subornaria uma dúzia de empregados do Hotel Lisboa e a maioria dos policiais, até descobrir a verdade.

— Mas temos sua esposa e isso não é mentira. Ele agirá de acordo.

— Só que numa dimensão diferente. O que quer que ele pense agora... e certamente deve ter suspeitas... não pode saber, não pode ter certeza. Mas se investigar em Macau e descobrir a verdade, terá provas de que foi enganado por seu governo.

— Como, especificamente?

Porque a mentira lhe foi transmitida por um alto funcionário do Departamento de Estado... para ser mais preciso, eu. E em sua opinião, ele já foi traído antes.

— Até aí nós sabemos.

— Quero um homem em plantão permanente na imigração em Macau... vinte e quatro horas por dia. Arrume pessoas em quem possa confiar e entregue fotografias, mas não transmita qualquer informação. Ofereça uma gratificação para quem quer que o localize e lhe telefone.

— Pode ser feito, mas tenho certeza de que ele não se arriscaria. Está convencido de que tem tudo contra ele. Basta haver um informante no hotel ou na polícia e sua esposa morre. Ele não correria esse risco.

— E nós também não podemos correr o risco, por mais remoto que seja. Se ele descobrir que está sendo usado outra vez... traído outra vez... pode ficar completamente perturbado e fazer e dizer coisas que teriam conseqüências inimagináveis para todos nós. Para ser franco, se ele seguir para Macau, pode se tornar um terrível perigo, em vez do trunfo que pensamos ter criado.

— Solução final? — murmurou o major.

— Não posso usar essa expressão.

— Não creio que será necessário chegar a esse ponto. Fui bastante convincentes Bati com a mão na cadeira e alteei a voz de maneira eficaz. “Sua esposa vai morrer!”, berrei. Ele acreditou em mim. Eu deveria ter estudado para ator.

— Trabalhou muito bem.

— Foi um desempenho à altura de Akim Tamiroff.

— Quem?

— Por favor. Já passei por isso no portão.

— Não estou entendendo.

— Esqueça. Em Cambridge, disseram que eu conheceria pessoas como você. Tive um professor de História Oriental que declarou que vocês não largam nada, todos vocês. Insistem em guardar os segredos porque os Zhongguo ren são inferiores, não podem compreender. É o que acontece neste caso, yang quizi?

— Claro que não.

— Então o que estamos fazendo? Posso entender o óbvio. Recrutamos um homem que se encontra em posição singular para caçar um assassino, porque o assassino o está encarnando... encarnando o homem que ele era. Mas chegar a esse ponto... seqüestrar sua esposa, envolver a nós, todos esses jogos elaborados e perigosos... Para falar a verdade, Edward, quando você me apresentou o roteiro, não pude deixar de questionar Londres. E eles me disseram: “Siga as ordens. E acima de tudo, fique calado.” Mas, como acabei de falar, não é suficiente. Precisamos saber mais. Sem isso, como o Setor Especial pode assumir qual quer responsabilidade?

— Por enquanto, a responsabilidade é nossa, as decisões são nossas. Londres concordou com isso. Eles não concordariam se não estivessem convencidos de que era a melhor maneira. Tudo deve ser contido. Não há qualquer margem para vazamento ou erro de cálculo. — McAllister inclinou-se para a frente, unindo as mãos, as articulações embranquecendo pela pressão aplicada. — Uma coisa posso lhe dizer, Lin. Juro por Deus que eu gostaria que não fosse uma responsabilidade nossa, especialmente comigo tão próximo do centro. Não que eu tome as decisões finais, mas preferia não tomar nenhuma. Não sou qualificado.

— Eu não diria isso, Edward. Você é um dos homens mais meticulosos que já conheci, e provou isso há dois anos. É um analista brilhante. Não precisa possuir pessoalmente a competência, desde que receba ordens de alguém que a tenha. Tudo o que precisa é de compreensão e convicção... e a convicção está estampada em seu rosto transtornado. Fará o que é certo, se lhe couber a execução.

— Acho que devo agradecer.

— O que você queria foi realizado esta noite. Assim, saberá em breve se o seu caçador ressuscitado ainda conserva a antiga capacidade. Durante os próximos dias, poderemos acompanhar os acontecimentos, mais isso será tudo. Já estão fora do nosso controle. Bourne inicia a sua perigosa jornada.

— Quer dizer que ele tem os nomes?

— Os nomes autênticos, Edward. Alguns dos piores membros do submundo de Hong Kong e Macau... soldados dos escalões superiores que cumprem ordens, comandantes que promovem negócios e acertam contratos, os mais violentos. Se há alguém no território que conheça esse impostor-assassino, pode estar certo de que seu nome consta da lista.

— Vamos iniciar a segunda etapa. Muito bom. — McAllister separou as mãos e olhou para o relógio. — Puxa, eu não tinha a menor idéia da hora. Foi um dia comprido para você. Não precisava devolver o Rolex e as abotoaduras esta noite.

— Eu sabia disso.

— Então por que veio?

— Não quero sobrecarregá-lo ainda, mas podemos ter um problema imprevisto. Pelo menos uma coisa que você não levou em consideração, talvez tolamente.

— O que é?

— Talvez a mulher esteja doente. O marido teve essa impressão quando falou com ela.

— Está falando sério?

— Não podemos excluir essa possibilidade... o médico não pode excluí-la.

— O médico?

— Achei que não havia necessidade de alarmar você. Convoquei um dos nossos médicos há vários dias... um homem de absoluta confiança. Ela não estava comendo e se queixava de náusea. O médico disse que podia ser ansiedade ou depressão, talvez mesmo um vírus. Receitou antibióticos e tranqüilizantes brandos. Ela não melhorou. Ao contrário, seu estado deteriorou-se rapidamente. Ela se tornou apática, tem acessos de tremedeira, a mente parece vaguear. E posso lhe assegurar que se trata de uma mulher que não é dada a essas coisas.

— Mas claro que não é! — exclamou o subsecretário, piscando os olhos rapidamente, os lábios contraídos. — O que podemos fazer?

— O médico acha que ela deve ser internada imediatamente no hospital para exames.

— Mas não pode ser! Isso está fora de cogitação!

O Major Lin levantou-se e avançou até a mesa, lentamente.

— Não conheço os desdobramentos da operação, Edward, mas posso determinar vários objetivos básicos, especialmente um. E não posso deixar de lhe perguntar uma coisa: o que acontece com David Webb se sua esposa está gravemente doente? O que acontece com seu Jason Bourne se ela morrer?


 

— Preciso da ficha médica dela o mais depressa que puder providenciar, Major. É uma ordem, senhor, de um ex-tenente do Corpo Médico de Sua Majestade.

Ele é o médico inglês que me examinou. É muito cortês, mas frio, e desconfio que é um médico excepcional. Está desconcertado, o que é ótimo.

— Vamos providenciar. Há sempre meios. Disse que ela não foi capaz de informar o nome de seu médico nos Estados Unidos?

Esse é o chinês enorme que sempre se mostra polido... insinuante até, embora pareça sincero. Ele tem sido gentil comigo, assim como seus homens também são gentis. Está cumprindo ordens — todos estão — mas não sabe por quê.

— Mesmo em momentos de lucidez, ela não se lembra de muita coisa, o que não é nada animador. Pode ser um mecanismo de defesa, indicando que ela está consciente da doença progressiva que deseja bloquear e apagar.

— Ela não é desse tipo, Doutor. É uma mulher forte.

— A força psicológica é relativa, Major. Muitas vezes os mais fortes são avessos a aceitar a própria mortalidade. O ego se recusa. Providencie a sua ficha médica. Preciso tê-la de qualquer maneira.

— Um homem vai entrar em contato com Washington e

o pessoal por lá cuidará de tudo. Sabem onde ela mora, suas condições, em poucos minutos falarão com os vizinhos. Alguém nos dirá. Descobriremos quem é o médico.

— Quero tudo na impressão de computador, transmissão por satélite. Dispomos do equipamento.

— Qualquer transmissão de informações deve ser recebida em nosso escritório.

— Pois então irei com você. Dê-me só mais alguns minutos.

— Está temeroso, não é mesmo, Doutor?

— Se for um caso de distúrbio neurológico, é sempre um problema assustador, Major. Se o seu pessoal puder trabalhar depressa, talvez eu consiga falar pessoalmente com o médico dela. Isso seria o ideal.

— Não descobriu nada em seus exames?

— Apenas possibilidades, nada de concreto. Há dor aqui e não há dor ali. Determinei uma tomografia cerebral computadorizada esta manhã.

— Está mesmo assustado.

— Apavorado, Major.

Todos vocês estão reagindo exatamente como eu queria. Ah, que fome! Comerei por cinco horas seguidas quando sair daqui... e vou sair! Será que você compreendeu, David? Entendeu o que eu estava lhe dizendo? Os bordos têm folhas de bordos; são tão comuns, querido, tão identificáveis! A folha única é Canadá. A embaixada! E aqui em Hong Kong é o consulado! Foi o que fizemos em Paris, meu querido! Foi terrível naquela ocasião, mas não será terrível agora. Lá em Ottawa informei a muita gente, pessoas que estavam sendo enviadas para todos os cantos do mundo. Sua memória está embotada, meu amor, mas a minha não... E você deve compreender, David, que. as pessoas com que lidei então não são muito diferentes das pessoas que agora me mantêm cativa. Sob alguns aspectos, é claro, não passam de robôs; mas são também indivíduos, que pensam, especulam e questionam por que lhes ordenam que façam determinadas coisas. Mas seguem os regulamentos, querido, porque se não o fizerem terão referências desfavoráveis em suas folhas de serviço, o que equivale a um destino pior do que a demissão — que raramente acontece — porque significa a ausência de promoção, o limbo. Têm sido muito gentis comigo — juro que é verdade —, como se estivessem constrangidos pelas ordens que receberam. Mas, apesar disso, cumprem suas obrigações. Acham que estou doente e se preocupam comigo, uma preocupação genuína. Eles não são criminosos nem carrascos, meu doce David. São burocratas à procura de orientação! São burocratas, David! Toda essa história incrível tem a palavra GOVERNO estampada por toda parte! Tenho certeza! Foi com pessoas assim que trabalhei por muitos anos. Eu era uma delas!

Marie abriu os olhos. A porta. estava fechada, o quarto vazio, mas ela sabia que havia um guarda lá fora... ouvira o major chinês dando as instruções. Ninguém tinha permissão para entrar em seu quarto, a não ser o médico inglês e duas enfermeiras específicas, que o guarda conhecera, e que ficariam de plantão até de manhã. Ela conhecia as regras, e com esse conhecimento poderia violá-las.

Ela sentou — Puxa, que fome! — e achou uma graça sombria ao pensamento de seus vizinhos no Maine sendo interrogados a respeito de seu médico. Mal conhecia os vizinhos e não havia médico nenhum. Residiam na cidade universitária há menos de três meses, desde o final do verão, para os preparativos de David. Com todos os problemas de alugar uma casa, descobrir o que a nova esposa de um novo professor-associado devia fazer ou ser, encontrar as lojas necessárias, providenciar roupa de cama e mesa — cuidar das mil e uma coisas que uma mulher precisa fazer para criar um lar — não houvera tempo para pensar num médico. Afinal, haviam convivido com médicos por oito meses e, à exceção de Mo Panov, ela teria a maior satisfação em nunca mais ter contato com outro.

Acima de tudo, havia David, lutando para escapar de seus túneis pessoais, como ele os chamava, esforçando-se ao máximo para não deixar transparecer a angústia, tão grato quando havia luz e memória. Como ele devorava os livros, como se regozijava quando lhe voltavam trechos amplos de história! Mas a alegria era contrabalançada pela angústia de compreender que segmentos de sua própria vida ainda se mantinham esquivos. E muitas vezes, à noite, ela sentia o colchão ondular e sabia que David estava deixando a cama para ficar sozinho, com seus pensamentos indefinidos e imagens obsedantes. Ela esperava alguns minutos e depois saía para o corredor, ia sentar nos degraus e ficava escutando. E de vez em quando acontecia: o choro suave de um homem forte e orgulhoso em agonia. Ela o procurava e David se virava; o constrangimento e o sofrimento eram demais. Ela dizia:

— Não está lutando sozinho, querido. Estamos lutando juntos. Da mesma forma como fizemos antes.

Ele falava então, relutante a princípio, depois se expandindo, as palavras saindo cada vez mais depressa, até que as comportas se rompiam e David encontrava coisas, descobria coisas. Árvores, David! Minha árvore predileta, o bordo. A folha de bordo, David! O consulado, meu querido! Ela tinha trabalho a fazer. Levantou a mão e apertou a campanhia para chamar a enfermeira.

Dois minutos depois a porta se abriu e uma chinesa de quarenta e poucos anos entrou, o uniforme de enfermeira engomado e imaculado.

— Em que posso servi-la, minha querida? — perguntou ela, jovialmente, num inglês de sotaque agradável.

— Estou muito cansada, mas não consigo dormir. Posso tomar uma pílula que me ajude?

— Vou falar com o médico. Ele ainda está no hospital. Tenho certeza de que não haverá problema.

A enfermeira se retirou e Marie saiu da cama. Foi até a porta, a camisola folgada do hospital escorregando do ombro esquerdo, o ar-condicionado e a abertura nas costas lhe provocando calafrios. Abriu a porta, surpreendendo o guarda jovem e musculoso, sentado numa cadeira, à direita.

— Pois não, Sra.?...

O guarda levantou-se de um pulo.

— Psiu!—ordenou Marie, levando o indicador aos lábios. — Entre aqui! Depressa!

Aturdido, o jovem chinês seguiu-a para o interior do quarto. Marie foi rapidamente para a cama e se deitou, mas não puxou as cobertas. Inclinou o ombro direito, a camisola escorregando, segura apenas pela protuberância do seio.

— Venha aqui! —sussurrou ela. — Não quero que ninguém mais me escute!

— O que é, senhora? — indagou o guarda., os olhos evitando a carne exposta de Marie e se concentrando em vez disso em seu rosto e nos compridos cabelos castanho-avermelhados Ele deu vários passos para a frente, mas ainda se manteve a distância. — A porta está fechada. Ninguém pode ouvir.

— Quero que você...

O sussurro de Marie tornou-se inaudível.

— Nem mesmo eu posso ouvi-la, senhora — comentou o guarda, chegando mais perto.

— Você é o mais simpático dos meus guardas. Tem sido muito gentil comigo.

— Não havia razão para me comportar de outra forma, senhora.

— Sabe por que estou sendo detida?

— Para sua própria segurança — mentiu o guarda, uma expressão neutra.

— Ahn...

Marie ouviu os passos lá fora se aproximando. Mudou a posição do corpo; a camisola se deslocou, deixando as pernas à mostra. A porta foi aberta e a enfermeira entrou.

— Como? — A chinesa estava espantada. Era evidente que seus olhos contemplavam uma cena desagradável. Olhou para o embaraçado guarda, enquanto Marie se cobria. — Eu me perguntava por que você não estava lá fora.

— A senhora pediu para falar comigo — respondeu o guarda, recuando.

A enfermeira lançou um olhar rápido para Marie.

— Foi isso mesmo?

— Se é o que ele diz...

— Isso é um absurdo — disse o guarda musculoso, encaminhando-se para a porta e abrindo-a. — A senhora não está bem. Sua mente se perde. E ela diz coisas tolas.

Ele passou pela porta e fechou-a. A enfermeira tornou a olhar para Marie, desta vez com expressão inquisitiva.

— Está se sentindo bem?

— Minha mente não se perde e não sou eu quem diz coisas tolas. Mas faço o que me mandam. — Marie fez uma pausa e depois acrescentou: — Quando aquele major imenso deixar o hospital, venha falar comigo, por favor. Tenho uma coisa para lhe dizer.

— Lamento, mas não posso fazer isso. Deve descansar. Pegue este sedativo. Vou buscar um copo d’água.

— Você é uma mulher — disse Marie, olhando fixamente para a enfermeira.

— Isso mesmo.

A chinesa pós um pequeno copo de papel com água na mesinha-de-cabeceira, junto com a pílula, e voltou para a porta. Lançou um último e inquisitivo olhar para a paciente e depois saiu.

Marie se levantou e foi silenciosamente até a porta. Encostou o ouvido no painel de metal; ouviu lá fora, no corredor, os sons abafados de uma conversa rápida, obviamente em chinês. Independente do que se dizia e da maneira como se fosse resolvida a conversa breve e excitada, ela plantara a semente. Trabalhe o visual, ressaltara Jason Bourne muitas vezes, durante o inferno por que haviam passado na Europa. É mais eficaz do que qualquer outra coisa. As pessoas tirarão as conclusões que você quer com base no que virem, muito mais do que pelas mentiras mais convincentes que puder lhes contar.

Ela foi até o armário e abriu-o. Haviam deixado no apartamento as poucas coisas que compraram para ela em Hong Kong, mas estavam guardados ali a calça comprida, a blusa e os sapatos com que chegara ao hospital; não ocorrera a ninguém tirá-los. Por que deveriam fazer isso? Podiam constatar que ela era uma mulher muito doente. Os tremores e espasmos convenceram a todos; era algo que podiam ver. Jason Bourne compreenderia. Marie olhou para o pequeno telefone branco na mesinha-de-cabeceira. Era um aparelho independente, os botões embutidos. Ela especulou, embora não houvesse ninguém que pudesse chamar. Foi até a mesa e pegou o telefone. Estava mudo, como já esperava. Havia a campainha para chamar a enfermeira; era tudo o que precisava e tudo o que lhe permitiam.

Foi até a janela e levantou a persiana branca só para se deparar com a noite. As luzes coloridas e ofuscantes de Hong Kong iluminavam o céu, e ela estava mais próxima do céu do que do solo. Como David diria... ou melhor, Jason: Que assim seja. A porta. O corredor.

Que assim fosse.

Marie foi até a pia. A escova e a pasta de dentes fornecidas

 pelo hospital ainda se encontravam nos invólucros de plástico; o sabonete também não fora usado, ainda estava na embalagem do fabricante, as palavras garantindo pureza além do hálito de anjos.

Ao lado ficava o banheiro; nada tinha de diferente, exceto uma caixa de toalhas higiênicas, com um cartaz pequeno, em quatro línguas, explicando o que não se devia fazer com elas. Marie voltou ao quarto. O que estava procurando? O que quer que fosse, não encontrara.

Estude tudo. Vai encontrar alguma coisa que poderá usar. Palavras de Jason; não de David. E foi então que ela viu.

Em determinados leitos de hospital — e aquele era assim — há uma alavanca ao pé da cama que, virada para um lado ou outro, o abaixa ou levanta. Essa alavanca pode ser removida — e muitas vezes o é — quando o paciente está recebendo soro ou se o médico deseja que permaneça numa determinada posição, como em tração, por exemplo. Uma enfermeira pode retirá-la, comprimindo-a e depois virando-a para a esquerda, antes de puxá-la. Isso é feito com freqüência durante as horas de visita, quando as pessoas podem ceder ao desejo do paciente de mudar de posição, contra a determinação do médico. Marie conhecia aquele leito e conhecia aquela alavanca. Quando David se recuperava dos ferimentos recebidos em Casa de Pedra 71, fora mantido vivo por alimentação intravenosa; Marie observara as enfermeiras. O sofrimento de seu futuro marido era mais do que ela podia suportar, e as enfermeiras estavam obviamente consciente de que, em seu desejo de tornar as coisas mais fáceis para ele, poderia prejudicar o tratamento médico. Ela sabia como remover a alavanca, que se tornava então um maneável instrumento de ferro.

Ela retirou-a e voltou à cama, escondendo a alavanca por baixo das cobertas. Esperou, pensando como eram diferentes seus dois homens... reunidos em um só. Seu amante, Jason, podia ser frio e paciente, aguardando o momento de entrar em ação, confiando na violência para garantir a sobrevivência. E seu marido, David, sempre generoso, tão disposto a escutar, o estudioso, evitando a violência a qualquer custo, porque já passara por tudo e detestava o sofrimento e ansiedade — acima de tudo, odiava a necessidade de eliminar os próprios sentimentos e se tornar um mero animal. E agora ele estava sendo chamado a se tornar o homem que detestava. David, meu David! Mantenha a sua sanidade! Eu o amo tanto!

Ruídos no corredor. Marie olhou para o relógio na mesinha-de-cabeceira. Dezesseis minutos haviam transcorrido. Ela pôs as mãos por cima das cobertas, enquanto a enfermeira entrava no quarto; baixou as pálpebras, como se estivesse sonolenta.

— Muito bem, minha cara — murmurou a chinesa, dando vários passos pelo interior do quarto. — Você me comoveu, não posso negar. Mas tenho ordens... instruções expressas a seu respeito. O major e seu médico já foram embora. E agora pode me dizer o que queria.

— Não... agora — balbuciou Marie, a cabeça descaindo, o rosto mais adormecido do que desperto. — Estou muito cansada. Tomei... a pílula.

— Tem algum problema com o guarda lá fora?

— Ele é doente... Nunca me toca... não me importo. Ele me arruma coisas... estou tão cansada...

— O que está querendo dizer com “doente”?

— Ele... gosta de olhar para mulheres... Não... me incomoda quando estou dormindo.

Marie fechou os olhos.

— Zang! — murmurou a enfermeira. —O safado, o safado!

Ela girou abruptamente nos calcanhares, saiu pela porta, fechou-a e disse ao guarda:

— A mulher está dormindo! Pode me entender?

— É uma sorte celestial.

— Ela diz que você nunca a toca.

— Nunca sequer pensei nisso.

— Pois não pense agora!

— Não preciso dos seus sermões, enfermeira megera. Tenho um trabalho a realizar.

— Pois então cuide apenas disso! Falarei com o Major Lin Wenzu de manhã!

A enfermeira lançou um último olhar furioso para o guarda e depois afastou-se pelo corredor, o ritmo e a postura agressivos.

— Ei, você! — O sussurro áspero veio da porta de Marie, que estava ligeiramente entreaberta. Ela abriu-a mais um pouco e acrescentou: — Aquela enfermeira! Quem é ela?

— Pensei que estava dormindo, senhora — disse o aturdido guarda.

— Ela me disse que ia contar isso a você.

— Como?.

— Ela vai voltar para mim! Diz que há portas de ligação com os outros quartos. Quem é ela?

— O que tem com ela?

— Não fale! Não olhe para mim! Ela vai ver você!

— Ela se afastou pelo corredor, virando à direita.

— Nunca se pode saber. E é melhor um demônio que se conhece do que outro que não se conhece. Entende o que estou querendo dizer, não é mesmo?

— Nunca sei o que as pessoas estão querendo dizer! — alegou o guarda, em fala suave, mas incisiva. — Não tenho a menor idéia do que ela fala e também não consigo entendê-la, senhora.

— Entre aqui. Depressa! Acho que ela é uma comunista! De Pequim!

— Pequim?

— Não vou com ela!

Marie puxou a porta e meteu-se por trás. O guarda entrou rápido no quarto e a porta foi fechada. O quarto estava escuro, a única iluminação vinha do banheiro, bastante reduzida pela porta quase fechada. O homem podia ser visto, mas não podia ver.

— Onde está, senhora? Fique calma. Ela não vai levá-la a parte alguma...

O guarda não conseguiu dizer mais nada. Marie acertou com a alavanca de ferro na base de seu crânio, com a força de uma mulher criada num rancho de Ontario, acostumada a manejar o relho, O guarda perdeu os sentidos; ela ajoelhou-se e começou a trabalhar rapidamente.

O chinês era musculoso, mas não grande, não alto. Marie não era grande, mas era alta para uma mulher. Com um jeito aqui e outro ali, as roupas e sapatos do guarda serviriam para uma saída rápida. Mas seus cabelos constituíam um problema. Correu os olhos pelo quarto. Estude tudo. Vai encontrar alguma coisa que poderá usar. E encontrou. Pendendo de uma barra cromada, na mesinha-de-cabeceira, havia uma toalha de rosto. Marie pegou-a, empilhou os cabelos no alto da cabeça e ajeitou a toalha ao redor. Não havia qualquer dúvida de que parecia absurdo e não resistiria a um exame mais atento, mas à primeira vista dava a impressão de ser uma espécie de turbante.

Só de cueca e meias, o guarda gemeu e começou a se erguer, mas logo recaiu na inconsciência. Marie correu para o armário, pegou suas roupas e foi até a porta, entreabrindo-a cautelosamente, apenas dois ou três centímetros. Duas enfermeiras — uma oriental, a outra européia — conversavam em voz baixa no corredor. A chinesa não era a mulher que voltara para ouvir sua queixa contra o guarda. Outra enfermeira apareceu, acenou com a cabeça para as duas e seguiu direto para uma porta no outro lado. Era um armário de roupa de cama. Um telefone tocou no posto de controle do andar, a cerca de quinze metros de distância, pelo corredor; à frente da mesa circular, o corredor se bifurcava. Um cartaz de Saída estava pendurado do teto, a flecha apontando para a direita. As duas enfermeiras em conversa se viraram e começaram a seguir para a mesa; a terceira deixou o armário, carregando uma pilha de lençóis. A fuga mais certa é realizada em etapas, aproveitando qualquer confusão que ocorra.

Marie saiu do quarto e atravessou o corredor até o armário embutido da roupa de cama. Era grande, deu para ela entrar e fechar a porta. Subitamente, o rugido de protesto de uma mulher povoou o corredor, deixando-a paralisada. Podia ouvir passos correndo, se aproximando, depois mais passos.

— O guarda! — berrou a enfermeira chinesa, em inglês. — Onde está aquele guarda safado?

Marie abriu uma fresta da porta do armário. Três enfermeiras excitadas estavam na porta de seu quarto; e entraram correndo.

— Você! Tirou suas roupas! Zangsile homem safado! Procurem no banheiro!

— Você! — gritou o guarda, a voz trêmula. — Deixou a mulher escapar! Vai ser responsável perante meus superiores!

— Largue-me, homem repulsivo! Você mente!

— E uma comunista! De Pequim!

Marie saiu do armário embutido, uma pilha de toalhas no

ombro, correu para o corredor que se bifurcava e a placa de Saída.

— Chamem o Major Lin! Peguei uma espiã comunista!

— Chamem a policia! Ele é um pervertido!

Deixando o prédio do hospital, Marie correu para o estacionamento, encaminhando-se para a área mais escura. Sentou-se ofegante nas sombras, entre dois carros. Tinha de pensar; precisava avaliar a situação. Não podia cometer qualquer erro. Largou as toalhas e suas roupas, começou a vasculhar os bolsos da roupa do guarda, procurando por uma carteira. Encontrou-a, abriu-a, contou o dinheiro, na semi-escuridão. Havia pouco mais de seiscentos dólares de Hong Kong, o que representava pouco menos de cem dólares americanos. Mal dava para um quarto de hotel; e depois viu um cartão de crédito, emitido por um banco de Kowloon. Não saia de casa sem isso. Se fosse necessário, apresentaria o cartão — apenas se fosse necessário — e se conseguisse encontrar um quarto de hotel. Tirou o dinheiro e o cartão de plástico da carteira, tornou a guardá-la no bolso, iniciou o processo meio sem jeito de trocar de roupa, enquanto estudava as ruas além do terreno do hospital. Para seu alívio, estavam apinhadas, e a multidão constituía a sua segurança imediata.

Um carro apareceu de repente no estacionamento, os pneus rangendo, indo parar diante da porta de EMERGÊNCIA. Marie levantou-se e olhou pelas janelas do automóvel. O corpulento major chinês e o frio e meticuloso médico saltaram do carro e correram para a entrada. Enquanto eles desapareciam no outro lado, Marie saía correndo do estacionamento para a rua.

Ela andou por horas, parando para se empanturrar em uma lanchonete, até que não agüentava mais a visão de outro hambúrguer. Foi ao banheiro e contemplou-se no espelho. Emagrecera e estava com olheiras, mas afora isso parecia bem. Os cabelos no entanto constituíam um problema. Estariam vasculhando Hong Kong à sua procura, e os primeiros itens de qualquer descrição seriam os cabelos e a altura. Nada podia fazer quanto à altura, mas era possível modificar drasticamente os cabelos. Foi a uma farmácia e comprou rolinhos e grampos. Depois,

lembrando o que Jason lhe pedira para fazer em Paris, quando sua fotografia aparecera nos jornais, puxou os cabelos para trás, prendendo-os num coque e comprimindo os lados contra a cabeça, O resultado era um rosto mais carrancudo, acentuado pela perda de peso e ausência de maquilagem. Era o efeito que Jason — David — quisera em Paris... Não, refletiu ela, não era David em Paris. Era Jason Bourne. E era noite, como  fora em Paris.

— Por que está fazendo isso, dona? — indagou uma balconista, parada perto do espelho, no balcão de cosméticos. — Tem cabelos muito bonitos.

— Estou cansada de escová-los. Só isso.

Marie deixou a farmácia, comprou sandálias sem saltos de um mascate na rua e uma imitação de bolsa Gucci de outro, os Gês virados para baixo. Restava-lhe o equivalente a 45 dólares americanos e não tinha ainda a menor idéia de onde passaria a noite. Era ao mesmo tempo muito tarde e muito cedo para ir ao consulado. Uma canadense chegando depois de meia-noite e pedindo abrigo provocaria alarme; além disso, ainda não tivera tempo para definir a melhor maneira de apresentar seu pedido. Para onde poderia ir? Precisava dormir. Não faça qualquer movimento quando estiver exausta. A margem para um erro torna-se grande demais. O descanso é uma arma. Não se esqueça disso.

Ela passou por uma arcada que estava fechando. Um jovem casal americano, de jeans, estava barganhando com o proprietário de uma barraquinha de camisetas.

— Ei, pare com isso, cara — disse o rapaz. — Não quer fazer mais uma venda esta noite? Vai diminuir um pouco o seu lucro, mas ainda ficará com alguns dineros em seu bolso, não é mesmo?

— Nada de dineros — protestou o vendedor, sorrindo. — Somente dólares, e está me oferecendo muito pouco. Tenho filhos. Está tirando a comida preciosa de suas bocas.

— Provavelmente ele possui um restaurante — comentou a garota.

— Querem um restaurante? Uma autêntica comida chinesa?

— Ei, você acertou em cheio, Lacy!

— Meu terceiro primo por parte de pai tem uma barraca excelente a duas ruas daqui. Tudo muito barato e muito bom.

— Esqueça — disse o rapaz. — Quatro dólares americanos pelas seis camisas. Pegue ou largue.

— Eu pego. Mas só porque você é muito forte para mim.

O mascate pegou as notas estendidas e meteu as camisas numa sacola de papel.

— Você é uma maravilha, Buzz. — A garota beijou-o no rosto e riu. — Ele ainda está operando com uma margem de lucro de quatrocentos por cento.

— Esse é o problema de vocês, graduadas em economia. Não levam em conta a estética. Farejar a caça, o prazer do conflito verbal!

— Se algum dia casarmos, vou sustentá-lo pelo resto de minha vida miserável, seu grande negociador.

As oportunidades vão surgir. Reconheça-as e trate de aproveitá-las. Marie aproximou-se dos jovens.

— Com licença — disse ela, dirigindo-se basicamente à moça. — Ouvi vocês falando...

— Eu não fui sensacional? — interrompeu o rapaz.

— Muito bom — respondeu Marie. — Mas desconfio que sua amiga tem razão. Aquelas camisetas certamente custaram a ele menos de 25 cents cada uma.

— Quatrocentos por cento — interveio a moça, balançando a cabeça. — Keystone afortunado.

— Quem é esse cara?

— É um termo de joalheria —explicou Marie. — Significa cem por cento.

— Estou cercado por filistéias! — exclamou o rapaz. — Sou estudante de História da Arte e algum dia serei diretor do Metropolitan!

— Só não deve tentar comprá-lo — comentou a moça, virando-se em seguida para Marie. — Não interprete mal. Não somos inconseqüentes, estamos apenas nos divertindo. E não deixamos que falasse o que queria.

— É uma situação bastante embaraçosa, mas o fato é que meu avião atrasou um dia e perdi a excursão pela China. O hotel está lotado e pensei...

— Precisa de um lugar para se refestelar? — interrompeu o estudante de História da Arte.

— Isso mesmo. Para ser franca, meus recursos são adequados, mas limitados. Sou professora no Maine... de economia, lamento dizer.

— Não precisa lamentar — disse a moça, sorrindo.

— Vou me juntar ao grupo amanhã... mas infelizmente será amanhã, não esta noite.

— Não podemos ajudá-la, Lacy?

— Claro que podemos. Nossa escola tem um acordo com a Universidade Chinesa de Hong Kong.

— Não é grande coisa em termos de serviço, mas o preço é ótimo — acrescentou o rapaz. — Três dólares americanos por noite. Mas como eles são antediluvianos!

— O que ele está querendo dizer é que há um código puritano. Os sexos são separados.

— Garotos e meninas juntos... — entoou o estudante de História da Arte. — Uma ova que estão!

Marie sentou na cama na vasta sala, sob um teto de quinze metros de altura; presumia que era um ginásio. Ao seu redor, muitas moças dormiam e outras continuavam acordadas. A maioria estava silenciosa, mas umas poucas roncavam, outras acendiam cigarros e havia corridas esporádicas para o banheiro, onde as lâmpadas fluorescentes permaneciam acesas. Ela estava entre crianças e desejava ser uma criança agora, livre dos terrores que espreitavam por toda parte. David, preciso de você! Pensa que eu sou forte, mas não consigo mais agüentar, querido! O que vou fazer? Como posso fazer?

Estude tudo. Vai encontrar alguma coisa que poderá usar. — Jason Bourne.


 

A chuva era torrencial, esburacando a areia, tamborilando nos refletores que iluminavam as grotescas estátuas de Repulse Bay — reproduções de enormes deuses chineses, mitos irados do Oriente em poses furiosas, algumas se erguendo até dez metros de altura. A praia escura estava deserta, mas havia multidões no velho hotel lá em cima, à beira da estrada, assim como no anacrônico estande de hambúrguer, no outro lado. Havia turistas e ilhéus, pessoas que foram à baía para tomar um drinque ou comer alguma coisa, contemplando as estátuas ameaçadoras que repeliam quaisquer espíritos malignos que pudessem emergir do mar. O súbito aguaceiro forçara as pessoas a entrarem; muitas esperavam que a tempestade amainasse para voltarem para suas casas.

Encharcado, Bourne agachava-se nas moitas,a seis ou sete metros da base de um ídolo de aparência feroz, no meio do caminho que descia para a praia. Removeu a água do rosto, olhando fixamente para os degraus de concreto que levavam à entrada do velho Colonial Hotel. Esperava pelo terceiro nome na lista do taipan.

O primeiro homem tentara prendê-lo numa armadilha na Star Ferry, o ponto de encontro combinado, mas Jason, com as mesmas roupas que usara na Cidade Murada, percebera as duas

patrulhas à espreita. Não fora tão fácil como procurar homens com rádios, mas também não fora muito difícil. Na terceira viagem através do porto, não tendo Bourne aparecido na janela designada no lado de boreste, os mesmos dois homens haviam passado por seu contato duas vezes, cada um falando rapidamente e depois seguindo para direções opostas, os olhos fixos em seu superior. Jason esperara até que a barca se aproximasse do cais e os passageiros se encaminhassem em massa para a rampa de saída na proa. Acertara o chinês à direita com um golpe nos rins, enquanto passava no meio da multidão, depois golpeara sua cabeça com o pesado peso de papel de latão; os passageiros seguiam apressados na semi-escuridão. Bourne atravessara entre os bancos vazios do outro lado; enfrentara o segundo homem, enfiando-lhe a arma na barriga, e levara-o para a popa. Empurrara o homem pela amurada e jogara-o no mar; enquanto o apito da barca cortava a noite, indicando que atracava no cais de Kowloon. Fora então procurar o contato, junto à janela, no meio da barca.

— Você cumpriu sua palavra — dissera Jason.  Desculpe ter me atrasado.

— Foi você quem telefonou?

Os olhos do contato estudaram surpresos as roupas maltrapilhas de Bourne.

— Isso mesmo.

— Não parece um homem com o dinheiro de que falou pelo telefone,

— Tem direito a essa opinião.

Bourne tirara do bolso um maço de notas americanas dobradas, o valor de mil dólares visível.

— Você é mesmo o homem. — O chinês olhara rapidamente por cima dos ombros de Jason, antes de indagar, ansioso: — O que você quer?

— Informações sobre alguém para alugar que diz se chamar Jason Bourne.

— Procurou a pessoa errada.

— Pagarei muito bem.

— Não tenho nada para vender.

— Acho que tem. — Bourne guardara o dinheiro e sacara a arma, chegando mais perto do homem, enquanto os passageiros de Kowloon embarcavam. — Vai me contar o que estou querendo saber por um preço ou será obrigado a me dizer tudo por sua vida.

— Só sei de uma coisa — protestara o chinês. — Minha gente não quer nada com ele!

— Por que não?

— Ele não é o mesmo homem.

— Como assim?

Jason prendera a respiração, observando o homem atentamente.

— Ele assume riscos que jamais correria antes. — O chinês tornara a olhar além de Bourne, o suor aflorando em sua testa. — Ele volta depois de dois anos. Quem sabe o que aconteceu? Bebida, narcóticos, doença de prostitutas... quem pode saber?

— O que está querendo dizer com “riscos”?

— Exatamente o que falei. Ele entra num cabaré no Tsim Sha Tsui... está havendo um tumulto, a polícia se encontra a caminho. Mas ele entra assim mesmo e mata cinco homens. Poderia ter sido apanhado, seus clientes descobertos. Jamais faria uma coisa assim há dois anos.

— Você pode estar interpretando a seqüência pelo avesso — comentara Jason Bourne. —Talvez ele tenha entrado... como um homem... e provocado o tumulto. Mata como esse homem e escapa como outro, aproveitando a confusão.

O oriental fitara por um instante os olhos de Jason, subitamente mais assustado do que antes, tornando a contemplar as roupas maltrapilhas.

— É bem possível — murmurara ele, a voz trêmula, agora sacudindo a cabeça para uma lado e depois para outro.

— Como se pode entrar em contato com esse Bourne?

— Não sei... juro pelos espíritos! Por que me faz essas perguntas?

— Como? — insistira Jason., inclinando-se para o homem, suas testas se encostando, a arma comprimida contra o baixo-ventre do oriental. — Se não querem nada com ele, devem saber onde ele pode ser encontrado, onde se pode fazer o conta to. Vamos, responda logo: onde?

— Oh, Jesus Cristão!

— Não é dele que quero saber! Bourne!

— Macau! Corre o rumor de que sua base é Macau. E juro que isso é tudo o que sei!

O homem olhava em pânico para a esquerda e a direita.

— Se está tentando descobrir os seus dois homens, não precisa mais se preocupar que vou lhe dizer onde estão — comentara Jason. — Um deles está caído ali, inconsciente, e espero que o outro saiba nadar.

— Aqueles homens são... Quem é você?

— Acho que você já sabe — respondera Bourne. — Vá para a popa da barca e fique por lá. Se der um passo para a frente antes de atracarmos, nunca mais será capaz de dar outro passo.

— Oh, Deus, você é...

— Eu não terminaria essa.frase, se fosse você.

O segundo nome estava acompanhado por um endereço improvável, um restaurante na Causeway Bay especialista em cozinha francesa clássica. De acordo com breves anotações de Yao Ming, o homem se comportava como o gerente, mas era na verdade o proprietário. Vários garçons eram tão hábeis com armas de fogo quanto com bandejas. O endereço residencial do contato não era conhecido; todos os seus negócios eram realizados no restaurante e desconfiava-se que ele não tinha uma residência permanente. Bourne voltara ao Peninsula, tirara o paletó e o chapéu e atravessara rapidamente o saguão apinhado até o elevador; um casal bem-vestido tentara não demonstrar choque por sua aparência. Ele sorrira e murmurara, à guisa de desculpas:

— Uma caçada ao tesouro da companhia. Uma bobagem, não é mesmo?

No quarto, ele se permitira uns poucos momentos para ser David Webb outra vez. Fora um erro; não pudera suportar a suspensão do fluxo de pensamento de Bourne. Eu sou ele de novo. Tenho de ser. Ele sabe o que fazer. Eu não sei! Livrara-se da sujeira da Cidade Murada e da umidade opressiva da Star Ferry com um banho de chuveiro, fizera a barba que aflorava no rosto e se vestira para um jantar em estilo francês.

Eu vou descobri-lo, Marie! Juro por Deus que vou descobri-lo! Era uma promessa de David Webb, mas era Jason Bourne quem gritava em fúria.

O restaurante mais parecia um requintado salão de jantar rococó no Boulevard Montaigne em Paris do que uma estrutura de um só andar em Hong Kong. Lustres intricados pendiam do teto, as lâmpadas pequenas irradiavam uma claridade suave, velas envoltas por vidro bruxuleavam nas mesas, com os linhos mais puros, os melhores cristais e pratarias.

— Infelizmente, monsieur, não temos mesas disponíveis esta noite — dissera o maître, o único francês visível.

— Disseram-me para perguntar por Jiang Yu e falar que era urgente — respondera Bourne, mostrando uma nota de cem dólares americanos. — Acha que ele poderia encontrar alguma coisa, se isto o encontrasse?

— Eu encontrarei, monsieur. — O maître apertara a mão de Jason sutilmente, recebendo o dinheiro. — Jiang Yu é um excelente membro de nossa pequena comunidade, mas sou eu quem seleciona. Comprenez-vouz?

— Absolument.

— Bien! Tem o rosto de um homem simpático e sofisticado. Por aqui, monsieur, por favor.

O jantar não chegaria a ser desfrutado; os eventos ocorreram muito depressa. Minutos depois da chegada de seu drinque, um chinês esguio, vestido de preto, aproximara-se da mesa. Se havia alguma coisa estranha nele, pensara David Webb, era a tonalidade mais escura da pele e a obliqüidade mais acentuada dos olhos. Era evidente que tinha sangue malásio. Pare com isso!, ordenara Bourne. Não vai nos adiantar coisa alguma!

— Pediu para falar comigo? — dissera o gerente, os olhos esquadrinhando o rosto que o fitava. — Em que posso servi-lo?

— Primeiro, sentando-se.

— E irregular sentar com os fregueses, senhor.

— Nem tanto... não se você é proprietário do restaurante. Por favor, sente-se.

— Por acaso é outra cansativa intromissão do Serviço de Impostos? Se for, espero que aprecie seu jantar, pelo qual vai pagar. Minhas contas estão cm absoluta ordem, perfeitamente precisas.

— Se pensa que sou britânico, então não prestou atenção às minhas palavras. E se por “cansativa” está se referindo a

meio milhão de dólares, então é melhor sumir da minha frente e me deixar apreciar o jantar.

Bourne recostara-se no reservado, pegando o copo com a mão esquerda para tomar um gole. A mão direita estava oculta.

— Quem o mandou? — perguntara o oriental de sangue misturado, enquanto sentava.

— Afaste-se da beira. Quero conversar com você discretamente.

— Está certo. — Jiang Yu se postara diretamente em frente a Bourne. — Devo perguntar outra vez: quem mandou você?

— E eu devo perguntar: gosta dos filmes americanos? Especialmente dos nossos westerns?

— Claro que gosto. Os filmes americanos são muito bonitos e admiro acima de tudo os filmes do Velho Oeste. Muito poéticos na retaliação, violentos com plenos motivos. Estou dizendo as palavras corretas?

— Está, sim. Porque neste exato momento você está em um filme.

— Como assim?

— Tenho uma arma muito especial por baixo da mesa. E aponta para entre as suas pernas. — Em apenas um segundo, Jason puxara a toalha, levantara a arma para mostrar o cano e tornara a ocultá-la. —Tem um silenciador que reduz o barulho de um 45 a um mero estalar de rolha de champanhe, mas não o impacto. Liao jie ma?

— Liao jie... — dissera o oriental, rígido, respirando fundo em seu medo. — Está com o Setor Especial?

— Não estou com ninguém, a não ser comigo mesmo.

— Quer dizer que não há meio milhão de dólares?

— Há tudo o que considere que a sua vida vale.

— Por que eu?

— Seu nome está numa lista —respondera Bourne, falando a verdade.

— Para execução? —- balbuciara o chinês, ofegante, o rosto contorcido.

— Isso depende de você.

— Devo-lhe pagar para não me matar?

— De certa forma, é isso mesmo.

— Não ando com meio milhão de dólares nos bolsos. Nem guardo tanto dinheiro no restaurante.

— Então me pague com outra coisa.

— O quê? Quanto? Está me deixando confuso.

— Informações, em vez de dinheiro.

— Que informações? — indagara o chinês, o medo se transformando em pânico. — Que informações eu poderia ter? Por que veio a mim?

— Porque tem se envolvido com um homem que quero encontrar. O homem de aluguel que se diz Jason Bourne.

— Não! Nunca aconteceu!

As mãos do oriental começaram a tremer. As veias em sua garganta latejavam, os olhos desviaram-se do rosto de Jason pela primeira vez. Ele mentira.

— Você é um mentiroso — dissera Bourne suavemente, empurrando o braço direito ainda mais por baixo da mesa, enquanto se inclinava para a frente. — Fez a conexão em Macau.

— Macau, sim! Mas não houve qualquer conexão! Juro pelas sepulturas de minha família por gerações!

— Está muito próximo de perder o estômago e a vida. Foi enviado a Macau para fazer contato com ele.

— Fui enviado, mas não cheguei a fazer contato!

— Prove. Como faria o contato?

— O francês. Eu deveria ficar no alto da escadaria da queimada Basílica de São Paulo, na Calçada, usando um lenço preto no pescoço. Quando um homem se aproximasse de mim... um francês... e comentasse sobre a beleza das ruínas, eu deveria dizer as seguintes palavras: “Caim é por Delta.” Se ele respondesse “E Carlos é por Caim”, eu deveria aceitá-lo como o vínculo com Jason Bourne. Mas juro que ele nunca... .

Bourne não ouvira o restante dos protestos do homem. Explosões sucessivas irromperam em sua mente, que fora lançada no passado. Uma luz branca ofuscante enchera seus olhos, os sons estrondosos eram insuportáveis. Caim é por Delta e Carlos é por Caim... Caim é por Delta! Delta Um é Caim! Medusa se mexe; a serpente se livra da pele. Caim está em Paris e Carlos será seu! Eram as palavras, os códigos, os desafios lançados ao Chacal. Eu sou Caim e sou superior e estou aqui! Venha me encontrar, Chacal! Eu o desafio a encontrar Caim, pois ele mata melhor do que você. É melhor me encontrar antes que eu encontre você, Carlos. Não é adversário para Caim!

Santo Deus! Quem no outro lado do mundo conheceria essas palavras... poderia conhecê-las? Estavam trancadas nos arquivos mais profundos das operações secretas! Eram uma ligação direta com Medusa!

Bourne quase apertara o gatilho da automática escondida, tão súbito fora o choque da incrível revelação. Removera o indicador, colocando-o além da guarda do gatilho; estivera perto de matar um homem por revelar uma informação extraordinária. Mas como poderia ter acontecido? Quem era o conduto para o novo “Jason Bourne” que tinha conhecimento dessas coisas?

Ele compreendera que precisava voltar. Seu silêncio estava denunciando-o, revelando seu -espanto. O chinês fitava-o fixa mente, a mão se estendendo além da beira do reservado.

—Puxe essa mão ou seus colhões e seu estômago vão virar picadinho.

O ombro do oriental levantara abruptamente e a mão aparecera sobre a mesa.

— O que contei é a pura verdade. O francês não apareceu. Se não, eu lhe contaria tudo. E você também contaria, se estivesse no meu lugar. Só protejo a mim mesmo.

— Quem mandou você para fazer o contato? Quem lhe deu as palavras para usar?

— Sinceramente, não sei de nada a respeito e você deve acreditar nisso. Tudo é feito por telefone, através de intermediários, que só conhecem as informações que transmitem. A prova da integridade está na chegada dos fundos com que me pagam.

— E como chegam esses fundos? Alguém tem de entregar a você.

— Alguém que não existe, que também foi contratado. Um anfitrião desconhecido de um jantar de luxo pede para falar com o gerente. Aceito seus elogios e durante a conversa um envelope passa para as minhas mãos. E tenho dez mil dólares americanos para fazer contato com o francês.

— E o que ocorre em seguida? Como você faz o contato?

— E preciso ir a Macau, ao cassino Kam Pek, no centro. É freqüentado quase que exclusivamente por chineses, pois  oferece os jogos de fan-tan e dai-sui. Passa-se pela Mesa Cinco e se deixa o telefone de um hotel em Macau... não um telefone particular... e um nome, qualquer nome... não o próprio, é claro.

— Ele liga para esse número?

— Pode ligar e pode não ligar. Você passa vinte e quatro horas em Macau. Se ele não ligar nesse período, você foi recusado, porque o francês não tem tempo para você.

— São essas as regras?

— Exatamente. Fui recusado duas vezes e na única vez em que houve aceitação ele não apareceu em Calçada.

— Por que acha que foi recusado? Por que acha que ele não apareceu?

— Não tenho a menor idéia. Talvez ele tivesse negócios demais para o seu matador. Talvez eu tenha dito as coisas erradas nas duas primeiras ocasiões. Talvez na terceira vez ele concluísse que havia homens suspeitos em Calçada, homens que pensou estarem comigo e terem más intenções em relação à sua pessoa. Não havia ninguém assim, é claro, mas não há apelação.

— Mesa Cinco — murmurara Bourne. — Os crupiês.

— Os crupiês mudam constantemente. Seu acordo é com a mesa. Creio que há um pagamento geral. Dividido entre todos. E com toda certeza ele não vai pessoalmente ao Kam Pek... deve contratar uma prostituta das ruas. É muito cauteloso, um verdadeiro profissional.

— Conhece alguma outra pessoa que tenha tentado entrar em contato com esse Bourne? — indagara Bourne. — Saberei se estiver mentindo.

— Acho que saberia mesmo. O senhor está obcecado... o que não é da minha conta... e me acuou na primeira negativa. Não, senhor, não sei. É a pura verdade, porque não me agrada a perspectiva de te as entranhas estouradas com o estalido de uma rolha de champanhe.

— Não poderia ser mais objetivo. Nas palavras de outro homem, acho que acredito em você.

— Acredite, senhor. Sou apenas um mensageiro... talvez dos mais caros, é verdade, mas assim mesmo um mero mensageiro.

— Pelo que estou informado, seus garçons são outra coisa.

— Não estão se mostrando muito observadores.

— De qualquer forma, você vai me acompanhar até a porta.

E agora havia o terceiro nome, um terceiro homem, no aguaceiro em Repulse Bay.

O contato reagira ao código:

— Ecoutez, monsieur. “Caim é por Delta e Carlos é por Caim.”

— Deveríamos nos encontrar em Macau! — gritara o homem pelo telefone. — Onde você estava?

— Ocupado — respondera Jason.

— Pode estar muito atrasado. Meu cliente dispõe de pouco tempo e está a par de tudo. Soube que seu homem anda por outras bandas. E ficou contrariado. Você prometeu, Francês!

— Onde ele pensa que meu homem anda?

— Em outro trabalho, é claro. E lhe contaram até os detalhes.

— Pois ele está enganado. O homem se encontra disponível, se o preço for coberto.

— Torne a me ligar dentro de alguns minutos. Falarei com meu cliente e verificarei se devemos continuar a conversa.

Bourne tornara a telefonar cinco minutos depois. Fora dado o consentimento, marcado o encontro. Repulse Bay. Uma hora da madrugada. A estátua do deus da guerra, no meio da descida para a praia, à esquerda, na direção do píer. O contato usaria um lenço preto no pescoço; o código seria o mesmo.

Jason olhou para o relógio; era uma e doze. O contato estava atrasado, e a chuva não era problema... ao contrário, era uma vantagem, uma cobertura natural. Bourne esquadrinhara cada palmo da área de encontro, doze metros em todas as direções com uma vista direta para a estátua. Cuidara disso depois da hora marcada, ocupando os minutos, enquanto vigiava o caminho até a estátua. Até agora, não havia nada de irregular. Nenhuma perspectiva de armadilha.

O Zhongguo ren finalmente surgiu, os ombros vergados, enquanto descia correndo os degraus, debaixo da chuva, a postura do corpo lhe permitindo esquivar-se do aguaceiro. Aproximou-se da estátua do deus da guerra e parou ao chegar perto do ídolo enorme e irado. Contornou os refletores, mas o que se pôde ver por um breve instante de seu rosto transmitia apenas raiva por não avistar ninguém.

Francês! Francês!

Bourne correu de volta pela folhagem na direção dos degraus, efetuando mais um reconhecimento antes do encontro, reduzindo sua vulnerabilidade. Contornou o enorme poste de pedra que margeava a escadaria e olhou através da chuva para a parte superior do caminho que levava ao hotel. E divisou o que esperava não ver. Um homem de capa e chapéu saiu do velho Colonial Hotel e desatou a correr. Parou no meio do caminho para a escadaria, tirando alguma coisa do bolso; virou-se, houve um pequeno clarão... respondido no mesmo instante por um brilho correspondente, numa das janelas do apinhado saguão. Pequenas lanternas. Sinais. Um sentinela estava a caminho de um posto avançado, enquanto seu intermediário ou apoio confirmava as comunicações. Jason tornou a se virar e retornou pelo caminho que percorrera através dos arbustos encharcados.

— Francês, onde você está?

— Aqui!

— Por que não respondeu antes? Onde?

— Bem em frente. No meio dos arbustos. Venha depressa!

O contato aproximou-se da folhagem; estava quase em cima. Bourne levantou-se de um pulo e agarrou-o, virando-o e empurrando-o pelas moitas molhadas, ao mesmo tempo em que lhe tapava a boca com a mão esquerda.

— Se quer viver, não faça qualquer barulho!

Avançando uns dez metros pela vegetação, Jason empurrou o contato contra o tronco de uma árvore.

— Quem está com você? —. perguntou ele bruscamente, retirando a mão devagar da boca do homem.

— Comigo? Não tem ninguém comigo!

— Não minta! — Bourne sacou a arma e encostou-a na garganta do homem. O chinês jogou a cabeça para trás, os olhos arregalados, a boca entreaberta. —Não tenho tempo para armadilhas! Não tenho tempo nenhum!

— E não tem ninguém comigo! Minha palavra nessas questões é a minha própria vida! Sem isso, não tenho profissão!

Bourne observou atentamente o homem. Tornou a pôr a

arma no cinto, pegou o contato pelo braço e empurrou-o para a direita.

— Venha comigo. E não faça barulho.

Noventa segundos depois Jason e o contato haviam rastejado pela vegetação encharcada para uma área da trilha a vinte e tantos metros a oeste do imenso ídolo. O aguaceiro encobrira quaisquer ruídos que poderiam ser captados numa noite seca. Subitamente, Bourne segurou o oriental pelo ombro, obrigando-o a parar. O sentinela podia ser divisado à frente, agachado, através do facho de um refletor da estátua, desaparecendo um instante depois. Foi apenas por um breve instante, mas era o suficiente. Bourne olhou para o contato.

O chinês estava aturdido. Não conseguia desviar os olhos da área de luz pela qual o sentinela passara. Os pensamentos lhe surgiam rápidos, o terror se acumulava; era patente em seu olhar.

— Si — ele murmurou. — Jiagian!

— Em simples palavras inglesas — disse Jason, através da chuva. — Aquele homem é um executor?

— Shi!... Sim.

— O que você me trouxe?

— Tudo — balbuciou o contato, ainda em choque. — O primeiro pagamento, as instruções... tudo.

— Um cliente não manda dinheiro se vai matar o homem que está contratando.

— Sei disso — murmurou o contato, balançando a cabeça e fechando os olhos. — É a mim que eles querem matar.

Suas palavras para Liang no passeio do cais haviam sido proféticas, pensou Bourne. Não é uma armadilha para mim... É para você... Já fez o seu trabalho e eles não podem deixar qualquer pista... Não podem permitir que você continue a viver.

— Há outro lá em cima, no hotel. Vi quando trocaram um sinal com lanternas. Foi por isso que não pude lhe responder por vários minutos.

O chinês virou-se e fitou Jason; não havia qualquer auto- compaixão em seus olhos.

— Os riscos da minha profissão — disse ele, simplesmente. — Como dizem os tolos, vou me juntar a meus ancestrais... e espero que eles não sejam tão tolos. Tome aqui.

O contato enfiou a mão no bolso interno e retirou um envelope, acrescentando:

— Está tudo aqui.

— Conferiu?

— Só o dinheiro. Está todo aí. Eu não me encontraria com o Francês com menos do que ele pediu, e o resto não é da minha conta. — De repente, o homem observou Bourne atentamente, piscando os olhos sob o aguaceiro. — Mas você não é o Francês!

— Adivinhou — disse Jason. — As coisas aconteceram muito depressa para você esta noite.

— Quem é você?

— Apenas alguém que apareceu no mesmo lugar em que você se encontrava. Quanto dinheiro trouxe?

— Trinta mil dólares americanos.

— Se esse é o primeiro pagamento, então o alvo deve ser alguém muito importante.

— Presumo que sim.

— Fique com o dinheiro.

— Como? O que foi que disse?

— Já esqueceu que não sou o Francês?

— Não estou entendendo.

— Não quero sequer as instruções. Tenho certeza de que alguém com o seu calibre profissional pode tirar todo o proveito. Um homem paga bem pelas informações que podem ajudá-lo... e paga muito mais por sua vida.

— Mas por que você faria isso?

— Porque nada disso me interessa. Só tenho uma preocupação. Quero o homem que se chama Bourne, e não tenho tempo a perder. Você recebe o que acabei de lhe oferecer e mais um dividendo... tirarei você vivo daqui, mesmo que tenha de deixar dois cadáveres na baía. Mas você precisa me entregar o que lhe pedi pelo telefone. Disse que seu cliente contou que o assassino do Francês estava indo para outro lugar. Onde? Onde está Bourne?

— Está falando muito depressa...

— Já disse que não tenho tempo a perder. Fale logo. Se recusar, vou embora e seu cliente mata você. Escolha o que preferir.

— Shenzen — balbuciou o contato, como se o nome o apavorasse.

— Na China? Há um alvo em Shenzen?

— É o que se pode presumir. Meu cliente rico tem fontes em Queen’s Road.

— O que é isso?

— O consulado da República Popular. Foi concedido um visto excepcional. Ao que tudo indica, foi tudo resolvido por uma alta autoridade em Pequim. A fonte não sabia por que, e quando questionou a decisão, foi afastada da seção. E informou a meu cliente. Por dinheiro, é claro.

— Por que o visto foi excepcional?

— Porque não houve o período de espera e o requerente não apareceu no consulado. Duas coisas sem precedentes.

— Ainda assim, foi apenas um visto.

— Na República Popular não existe nada como “apenas um visto”. Muito menos para um homem branco que viaja sozinho, com um passaporte duvidoso emitido em Macau.

— Macau?

— Sim.

— Qual é a data de entrada?

— Amanhã. A fronteira de Lo Wu.

Jason estudou o contato.

— Disse que seu cliente tem fontes no consulado. Você também tem?

— O que está pensando vai custar muito dinheiro, porque o risco é enorme.

Bourne levantou a cabeça e olhou pela chuva para o ídolo iluminado. Havia movimento, o sentinela procurava por seu alvo.

— Espere aqui — murmurou ele.

O trem do início da manhã de Kowloon para a fronteira de Lo Wu não chegava a demorar uma hora para cobrir o percurso. A compreensão de que estava na China levou menos de dez segundos.

Longa Vida para a República Popular!

Não havia necessidade do ponto de exclamação, já que os guardas da fronteira assumiam a posição. Eram rígidos, arrogantes, martelavam os passaportes com seus carimbos de borracha com a fúria de adolescentes hostis. Só que havia um sistema de apoio melhor. Além dos guardas, havia uma falange de moças em uniformes, sorrindo, por trás de várias mesas compridas, sobre as quais estavam pilhas de folhetos exaltando a beleza e as virtudes de sua terra e seu sistema. Se havia hipocrisia em suas posturas, ela não transparecia.

Bourne dera ao contato traído e marcado a quantia de sete mil dólares pelo visto. Era válido por cinco dias. O objetivo da visita estava indicado como “investimentos na Zona Econômica”; era renovável no serviço de imigração em Shenzen, com a prova do investimento, juntamente com a presença confirmadora de um banqueiro chinês, através do qual o dinheiro deveria ser aplicado. Em gratidão e sem custo adicional, o contato fornecera o nome de um banqueiro de Shenzen que poderia facilmente oferecer ao “Sr. Cruett” as melhores possibilidades de investimentos; o referido Sr. Cruett ainda estava hospedado no Regent Hotel, em Hong Kong. E houvera mais um bônus do homem cuja vida ele salvara em Repulse Bay: a descrição do homem viajando com um passaporte de Macau e atravessando a fronteira em Lo Wu. Tinha “um metro e oitenta e cinco de altura, oitenta e quatro quilos, pele branca, cabelos castanho-claros”. Jason ficara aturdido com a informação, recordando inconscientemente os dados constantes de seu próprio documento de identidade: “Alt. 1,85; Peso —85 kg; Sexo — Masc.; Cor — Branca; Cab. — Cast.-Claros”. Uma estranha sensação de medo o dominara. Não o medo da confrontação; queria isso, acima de tudo, pois desejava Marie de volta mais do que qualquer outra coisa no mundo. Em vez disso, o que havia era o horror por ser responsável pela criação de um monstro. Um semeador da morte, originário de ‘um vírus letal que ele desenvolvera no laboratório de sua mente e corpo.

Fora no primeiro trem que partira de Kowloon, ocupado quase que inteiramente por mão-de-obra especializada e pelos executivos permitidos — seduzidos — na Zona Econômica Livre de Shenzen da República Popular, na esperança de atrair investimentos estrangeiros. Em cada parada, no caminho para a fronteira, mais e mais passageiros embarcaram. Bourne circulara pelos vagões, observando atentamente cada um dos homens

brancos, um total de apenas quatorze, ao chegarem a Lo Wu. Nenhum deles se ajustava sequer vagamente à descrição do homem de Macau... a descrição de si mesmo. O novo “Jason Bourne” seguiria em outro trem. O original esperaria no outro lado da fronteira. E estava esperando agora.

Durante as quatro horas que passou ali, explicou dezesseis vezes ao inquisitivo pessoal da fronteira que aguardava um sócio nos negócios; obviamente, não entendera direito a programação e pegaram um trem antes do horário combinado. Como acontece com as pessoas em qualquer país estrangeiro, mas especialmente no Oriente, o fato de um americano cortês se esforçar para ser compreendido na língua dos nativos era positivamente benéfico. Ofereceram-lhe quatro xícaras de café, sete de chá quente, e duas moças uniformizadas riram muito ao lhe entregarem um sorvete chinês em casquinha, muito doce. Ele aceitou tudo, pois agir de outra forma seria grosseria, e desde que a maioria dos membros da Quadrilha dos Quatro literalmente perdera a cabeça, ser rude era perigoso, exceto para os guardas da fronteira.

Eram onze e dez. Os passageiros emergiam do corredor descoberto, comprido, murado, depois de passarem pelo serviço de imigração. Eram quase todos turistas, quase todos brancos, quase todos aturdidos e intimidados por estarem ali. A maioria se encontrava em pequenos grupos turísticos, acompanhados por guias — um de Hong Kong, outro da República Popular — que falavam de maneira aceitável o inglês, alemão ou francês e alguns, relutantemente, o japonês, pois esses visitantes tão detestados traziam mais dinheiro do que Marx ou Confúcio jamais haviam possuído. Jason observava cada branco com o máximo de atenção. Os muitos que tinham mais de um metro e oitenta de altura eram jovens demais, velhos demais, corpulentos. demais, magros demais ou óbvios demais em suas calças verdes ou amarelas para serem o homem de Macau.

Espere! Aquele ali! Um homem mais velho, num terno de gabardine castanho-amarelada, que parecia um turista de estatura mediana, claudicando, tornou-se de repente mais alto... e não estava mancando! Ele desceu rapidamente os degraus por entre a multidão e correu para o enorme estacionamento, ocupado por ônibus e furgões de turismo, além de uns poucos táxis, com um ZHAN — fora de serviço — nas janelas da frente. Bourne correu atrás do homem, esquivando-se por entre os corpos à sua frente, sem se preocupar com quem empurrava para o lado. Era o homem... o homem de Macau!

— Ei, você está louco? Ralph, ele me empurroul

— Empurre de volta. O que quer que eu faça?

— Faça alguma coisa!

— Ele já foi.

O homem de terno de gabardine pulou pela porta aberta de um furgão verde-escuro, com as janelas escuras, que segundo os caracteres chineses pertencia a um departamento chamado Santuário dos Pássaros de Chutang. A porta foi fechada e o veículo no mesmo instante arrancou de sua vaga no estacionamento, derrapando ao ultrapassar outros veículos na pista de saída. Bourne estava frenético; não podia deixar o homem sumir! Havia um táxi velho à sua direita, o motor ligado, em ponto morto. Ele abriu a porta, recebendo um grito em reação.

— Zhan! — berrou o motorista.

— Shi ma? — gritou Jason, tirando do bolso dinheiro americano suficiente para garantir cinco anos de fausto na República Popular.

— Aiya!

— Zou!—ordenou Bourne, sentando-se no banco da frente e apontando para o furgão, que virava no semicírculo. E acrescentou em cantonês: — Acompanhe aquele carro e poderá iniciar o seu próprio negócio na zona. Eu lhe prometo!

Marie, estou tão perto! Sei que é ele! Vou pegá-lo! Ele é meu agora! E é a nossa salvação!

O furgão passou pela saída, acelerando, seguiu para o sul no primeiro cruzamento, evitando a praça grande, abarrotada de ônibus e multidões de turistas, e evitando o fluxo interminável de bicicletas nas ruas. O motorista do táxi aproximou-se do furgão numa estrada primitiva, pavimentada mais com argila dura do que com asfalto. O veículo de janelas escuras podia ser visto à frente, iniciando uma curva longa, depois de ultrapassar um caminhão aberto que transportava maquinaria agrícola. Um ônibus de turismo se encontrava na extremidade da curva, balançando na estrada, por trás do caminhão.

Bourne olhou além do furgão; havia colinas à frente, a

estrada começava a subir. E depois outro ônibus de turismo apareceu, por trás deles.

— Schumchun — disse o motorista.

— Bin do? — perguntou Jason.

— O sistema de abastecimento de água de Schumchun — explicou o motorista, em chinês. — Um reservatório muito bonito, um dos lagos mais belos da China. Manda sua água para o sul, até Kowloon e Hong Kong. Fica cheio de visitantes nesta época do ano. A paisagem de outono é uma beleza.

O furgão acelerou de repente, já subindo, afastando-se do caminhão e do ônibus.

— Não pode ir mais depressa? Ultrapasse o ônibus e o caminhão!

— Tem muitas curvas à frente.

— Tente!

O motorista pisou o acelerador e ultrapassou o ônibus, deixando de bater por uma questão de centímetros, ao ser forçado a retornar a seu lado da estrada por um caminhão militar que vinha em sentido contrário, com dois soldados na cabine. Tanto os soldados como os guias do ônibus de turismo gritaram para eles através das janelas abertas.

— Vão dormir com suas mães horrendas! —gritou o motorista em resposta, inebriado por seu momento de triunfo, apenas para se defrontar com o caminhão largo, transportando maquinaria agrícola, bloqueando a passagem.

Estavam entrando numa curva fechada para a direita. Bourne segurou a janela e inclinou-se para fora ao máximo possível, a fim de ver o que havia pela frente.

— Não há nenhum carro! — gritou ele para o motorista, através do vento. — Vá em frente! Pode ultrapassar! Agora!

O motorista obedeceu, levando o velho táxi ao seu limite, os pneus rangendo na argila dura, derrapando perigosamente na frente do caminhão. Outra curva, também fechada, agora para a esquerda, a subida mais íngreme. À frente, havia uma reta, subindo por uma colina alta. Não se podia ver o furgão em parte alguma; desaparecera além da crista da colina.

— Kuai! — gritou Bourne. — Não pode fazer este carro ir mais depressa?

— Nunca andou tão depressa! Acho que os espíritos vão

explodir o motor! O que você vai fazer se isso acontecer? Levei cinco anos para comprar esta máquina profana e muitos subornos para poder trabalhar na Zona!

O táxi chegou ao topo da colina e começou a descer rapidamente para um enorme vale, à beira de um vasto lago, que parecia se estender por quilômetros. À distância, Bourne podia avistar montanhas de picos nevados e ilhas verdes pontilhando as águas azuis-esverdeadas, até onde a vista podia alcançar. O táxi foi parar ao lado de um pagode grande, vermelho e dourado, o acesso por uma escada comprida, de concreto envernizado. Os balcões abertos davam para o lago. Barraquinhas de refrescos e lojas de antiguidades espalhavam-se em torno do estacionamento, onde se encontravam quatro ônibus de turismo, com os guias bilíngües gritando instruções e suplicando aos seus turistas que não entrassem nos veículos errados, ao final do passeio.

O furgão de janelas escuras não estava em parte alguma. Bourne moveu a cabeça rapidamente, procurando em todas as direções. Onde estava?

— Para onde vai aquela estrada? —perguntou ele ao motorista, apontando.

— Vai para a estação das bombas. Ninguém tem permissão para descer por ali. A estrada é patrulhada pelo exército. Depois da curva, tem uma cerca alta e uma casa da guarda.

— Espere aqui.

Jason saltou do táxi e começou a se encaminhar para a estrada proibida, desejando ter uma câmara ou um guia... alguma coisa que o caracterizasse como turista. Nas circunstâncias, o melhor que podia fazer era assumir o andar hesitante e a expressão de olhos arregalados de um excursionista. Nenhum objeto era insignificante demais para sua inspeção. Aproximou-se da curva, no caminho mal pavimentado; viu a cerca alta e depois a casa da guarda. Uma barra de metal comprida estendia-se pela estrada, e dois soldados se encontravam ali, conversando, de costas para ele, olhando para o outro lado... na direção de dois veículos estacionados lado a lado, mais abaixo, junto a uma estrutura de concreto quadrada, pintada de marrom. Um dos veículos era o furgão de janelas escuras e o outro, um sedã marrom. O furgão começou a andar. Estava se encaminhando para a barreira!

Os pensamentos de Bourne foram rápidos. Não estava armado; era inútil sequer considerar a possibilidade de levar uma arma através da fronteira. Se tentasse deter o furgão e tirar o matador de lá de dentro, o tumulto atrairia os guardas, os rifles poderiam disparar implacavelmente. Portanto, tinha de atrair o homem de Macau para fora... por sua livre e espontânea vontade. Jason estava preparado para o resto; haveria de dominar o impostor, de um jeito ou de outro. Haveria de levá-lo de volta através da fronteira... de um jeito ou de outro. Nenhum homem era adversário para ele; não havia olhos, garganta ou virilha a salvo de um ataque rápido e agonizante. David Webb jamais enfrentara essa realidade. Bourne a vivera.

Havia um jeito!

Jason correu de volta ao início da curva deserta da estrada, além da vista da barreira e dos soldados. Reassumiu a pose do turista fascinado e ficou escutando. O motor do furgão caiu para ponto morto; o ranger de metal significava que a cancela estava sendo levantada. Só mais alguns momentos. Bourne manteve-se em sua posição nas moitas, ao lado da estrada. O furgão contornou a curva, enquanto ele calculava seus movimentos com precisão.

E de repente estava ali, na frente do veículo grande, com uma expressão apavorada, girando para o lado, abaixo da janela do motorista, batendo com a palma na porta e soltando um grito de dor, como se tivesse sido atropelado, talvez morto. E se jogou no chão, enquanto o furgão parava; o motorista saltou, um inocente prestes a protestar sua inocência. Não teve oportunidade de fazê-lo. O braço de Jason se estendeu e agarrou o homem pelo tornozelo, puxando-o e derrubando-o. O homem foi bater com a cabeça no lado do furgão e escorregou inconsciente para o chão. Bourne arrastou-o para a traseira do furgão, por baixo das janelas escuras. O casaco do homem estava estofado; era uma arma, algo previsível, considerando-se a carga transportada. Jason tirou-a e esperou pelo homem de Macau.

Ele não apareceu. O que não era lógico.

Bourne foi para a frente do furgão, segurou na beira do

assento, no lado do motorista, levantou-se abruptamente, a arma de prontidão, esquadrinhando a traseira do veículo.

Não havia ninguém. Estava vazio.

Saltou e foi até o motorista, cuspiu em sua cara, deu-lhe alguns tapas, até que recuperasse a consciência.

— Nali — sussurrou Bourne, o tom ríspido. — Onde ficou o homem que estava aqui?

— Lá atrás! — respondeu o motorista, em cantonês, sacudindo a cabeça. — No carro oficial, com um homem que ninguém conhece. Poupe a minha vida miserável! Tenho sete filhos!

— Volte para o volante. — Bourne levantou o homem e empurrou-o para a porta aberta. — E saia daqui o mais depressa que puder.

Não havia necessidade de qualquer outro conselho. O furgão disparou da área do reservatório de Schumchun, derrapando na curva para a entrada principal com tamanha velocidade que Jason pensou que despencaria pela margem. Um homem que ninguém conhece. O que isso significava? Não importava, o homem de Macau estava acuado. Encontrava-se num sedã marrom, além do portão da estrada proibida. Bourne voltou ao táxi e sentou no banco da frente; o dinheiro espalhado fora removido do chão.

— Está satisfeito? — disse o motorista. — Terei dez vezes o que largou em meus pés indignos?

— Corta essa, Charlie Chan. Um carro vai sair por aquela estrada da casa das bombas e você fará exatamente o que eu mandar. Está me entendendo?

— E você compreende dez vezes a quantia que deixou em meu táxi velho e sem valor?

— Compreendo perfeitamente. Pode ser quinze vezes, se fizer direito o seu trabalho. Vá para a saída do estacionamento. Não sei quanto tempo teremos de esperar.

— Tempo é dinheiro, senhor.

— Ora, cale essa boca!

A espera foi mais ou menos de vinte minutos. O sedã marrom apareceu e Bourne viu o que não percebera antes. As janelas eram ainda mais escuras que as do furgão; quem quer que se encontrasse lá dentro, estava invisível. E foi nesse instante que Jason ouviu as últimas palavras que desejava ouvir.

— Fique com o seu dinheiro — murmurou o motorista. — Voltarei para Lo Wu. Nunca vi você.

— Por quê?

— Aquele carro é do governo... um dos veículos oficiais do nosso governo... e não serei eu quem vai segui-lo.

— Ei, espere um pouco! Espere! Vinte vezes o que lhe dei, com uma gratificação adicional se tudo correr bem. Até eu dar outra instrução, pode ficar bem atrás do carro. Sou apenas um turista que quer conhecer a região. Não... espere! Vou lhe mostrar uma coisa! Meu visto diz que vim aqui para investir dinheiro. E os investidores têm permissão para olhar por aí!

— Vinte vezes? — repetiu o motorista, fitando Jason atentamente. — Qual a minha garantia de que vai cumprir sua promessa?

— Deixarei o dinheiro no assento, entre nós. Você está guiando; pode fazer uma porção de coisas com este carro para as quais eu não estaria preparado. Não vou tentar pegar o dinheiro de volta.

— Está bem. Mas vou ficar bem atrás. Conheço estas estradas. Não há muitos lugares por onde se passar.

Cerca de trinta e cinco minutos depois, com o sedã marrom ainda à vista, mas bem na frente, o motorista voltou a falar:

— Eles vão para o aeroporto.

— Que aeroporto?

— É usado pelas autoridades do governo e homens ricos do sul.

— Pessoas investindo em fábricas... na indústria?

— Esta é a Zona Econômica.

— Sou um investidor — murmurou Bourne. É o que diz o meu visto. Vamos em frente. Chegue mais perto. Depressa!

— Há outros cinco veículos entre nós e combinamos... eu fico bem para trás.

— Até eu dar outra instrução! A situação mudou. Tenho dinheiro. Estou investindo na China.

— Seremos parados no portão. E haverá telefonemas.

— Tenho o nome de um banqueiro em Shenzen.

— Ele tem seu nome, senhor? E está com uma lista das firmas chinesas com que vem negociando? Em caso positivo, pode ter uma boa conversa no portão. Mas se o banqueiro de Shenzen não o conhecer, será detido por prestar informação falsa. Sua permanência na China será tão longa quanto for necessário para investigá-lo meticulosamente. Semanas, meses.

— Tenho de alcançar aquele carro!

— Se chegar perto daquele carro, será fuzilado.

— Mas que diabo! — exclamou Jason em inglês, para logo depois voltar ao chinês: — Não tenho tempo para explicar, mas preciso ver o homem que está naquele carro.

— Isso não é da minha conta — disse o motorista, frio e cauteloso.

— Vá até o portão — ordenou Bourne. — Sou um passageiro que pegou em Lo Wu, e isso é tudo. Pode deixar que eu falo tudo.

— Está pedindo demais. Não quero ser visto em companhia de alguém como você.

— Faça o que estou mandando — disse Jason, tirando a arma do cinto.

As batidas em seu peito eram insuportáveis. Bourne estava parado ao lado de uma janela grande, olhando para o aeroporto. O terminal era pequeno, para viajantes privilegiados. A visão incongruente de despreocupados executivos ocidentais carregando pastas e raquetes de tênis enervava Jason, por causa do contraste extremo com os guardas uniformizados, de pé, em posições rígidas. Óleo e água eram aparentemente compatíveis.

Falando em inglês para o intérprete, que traduzira acuradamente para o oficial da guarda, ele alegara ser um confuso executivo, instruído pelo consulado na Queen’s Road, em Hong Kong, a ir ao aeroporto para se encontrar com uma alta autoridade que viria de avião de Pequim. Indicara o nome de um homem que conhecera rapidamente no Departamento de Estado em Washington, mas tinha certeza de que o reconheceria. Insinuara que a reunião contava com o beneplácito de homens importantes no Comitê Central. Recebera um passe que limitava seus movimentos ao terminal e depois indagara se o táxi podia permanecer no aeroporto, para o caso de precisar de transporte mais tarde. O pedido fora atendido.

— Se quer seu dinheiro, tem de ficar — ele dissera ao

motorista, em cantonês, enquanto recolhia as notas dobradas entre os dois.

— Tem uma arma e olhos furiosos. Sei que pode matar.

Jason fitara-o nos olhos.

— A última coisa no mundo que quero é matar o homem naquele carro. Eu só mataria para proteger sua vida.

O sedã marrom com as janelas opacas não estava no estacionamento. Bourne caminhara tão depressa quanto julgara apropriado para o terminal, indo se postar junto à janela, onde se encontrava agora, as têmporas latejando de ira e frustração, pois lá fora, no campo, podia divisar o carro do governo. Estava estacionado na pista, a não mais de quinze metros de distância, mas uma impenetrável muralha de vidro o separava do homem... e da libertação. E subitamente, o sedã disparou para a frente, na direção de um jato de tamanho médio, a várias centenas de metros para o norte, na pista. Bourne aguçou a vista, desejando estar munido de um binóculo. E depois compreendeu que seria inútil; o carro fez a volta na cauda do avião e desapareceu de seu campo de visão.

Mas que droga!

Poucos segundos depois o jato começou a taxiar para a cabeceira da pista, enquanto o sedã marrom voltava na direção do estacionamento e da saída.

O que ele podia fazer? Não posso ser deixado assim! Ele está ali! Ele é meu e está ali! E vai escapar! Bourne correu para o primeiro balcão, assumindo a atitude de um homem profundamente perturbado.

— O avião que está prestes a decolar! Eu deveria estar nele! Vai para Xangai e as pessoas em Pequim disseram que eu deveria estar nele! Mandem parar!

A funcionária atrás do balcão pegou o telefone. Discou rapidamente, depois deixou escapar um suspiro de alívio pelos lábios contraídos.

— Aquele não é o seu avião, senhor. Ele está voando para Guangdong.

— Para onde?

— A fronteira de Macau, senhor.

“Nunca! Não deve ser em Macau!”, gritara o taipan.

A ordem será rápida, a execução ainda mais rápida! Sua esposa morrerá!”

Macau. Mesa Cinco. O cassino de Kam Pek.

 

“Se ele seguir para Macau”, dissera McAllister, suavemente, “pode se tornar um terrível perigo...”

“Solução final?”

“Não posso usar essa expressão.”


 

— Você não vai me dizer isso! Não pode dizer! — Edward Newington McAllister levantou-se da cadeira de um pulo. — É inaceitável! Não posso admitir! Não vou ouvir!

— É melhor ouvir, Edward — disse o Major Lin Wenzu. — Aconteceu.

— A culpa é minha — acrescentou o médico inglês, parado diante da mesa, na mansão em Victoria Peak, fitando o americano. Todos os sintomas que ela apresentava levavam a um prognóstico de rápida deterioração neurológica. Perda de concentração e de foco visual, falta de apetite e uma correspondente perda de peso... e o que era mais significativo, os espasmos, quando ocorria uma total ausência de controle motor. Pensei sinceramente que o processo degenerativo alcançara uma crise negativa...

— E o que isso significa?

— Que ela estava morrendo. Claro que não em uma questão de horas, nem mesmo dias ou semanas. Mas o curso parecia irreversível.

— Poderia estar certo?

— Nada me agradaria mais do que concluir que estava certo, que meu diagnóstico foi pelo menos aceitável. Mas não posso. Nos termos mais simples, fui ludibriado.

— Quer dizer que foi golpeado?

— Figuradamente, foi o que aconteceu. E onde dói mais, Sr. Subsecretário. No meu orgulho profissional. Aquela mulher me enganou com sua encenação e provavelmente não sabe a diferença entre fêmur e febre. Tudo o que ela fez foi calculado, dos apelos à enfermeira até agredir o guarda e tirar suas roupas. Todos os seus movimentos foram planejados, e o único distúrbio foi meu.

— Oh, Deus, tenho de falar com Havilland!

— O Embaixador Havilland? — indagou Lin, arqueando as sobrancelhas.

McAllister virou-se para ele.

— Esqueça que ouviu isso.

— Não vou repetir, mas também não posso esquecer. As coisas estão mais claras, Londres está mais clara. Está falando do Estado-Maior, do próprio Olimpo.

— Não mencione esse nome para ninguém, doutor — disse McAllister.

— Já esqueci. E não tenho certeza se sequer sei quem ele é.

— O que posso dizer? O que você vai fazer?

— Tudo o que for humanamente possível — respondeu o major. — Dividimos Hong Kong e Kowloon em seções. Estamos investigando cada hotel, examinando meticulosamente os registros. Alertamos a polícia e as patrulhas marítimas. Todos têm cópias da descrição da mulher e receberam a instrução de que encontrá-la é uma preocupação prioritária do território...

— Mas o que você disse? Como pôde explicar?

— Pude dar uma ajuda nesse ponto — interveio o médico. — Tendo em vista a minha estupidez, era o mínimo que eu podia fazer. Emiti um alerta módico. Com isso, pudemos recrutar a ajuda de equipes paramédicas, que foram enviadas de todos os hospitais, embora permanecendo em contato pelo rádio para outras emergências, é claro. Estão esquadrinhando as ruas.

— Que espécie de alerta médico? — perguntou McAllister bruscamente.

— Um mínimo de informações, mas do tipo que cria o maior alvoroço. A mulher visitou uma ilha não-identificada no Estreito de Luzon, proibida aos viajantes internacionais por causa de uma doença virulenta, transmitida por talheres sujos.

— Com essa classificação — acrescentou Lin — nosso bom doutor eliminou qualquer hesitação de parte das equipes em abordá-la e detê-la. Não que fossem fazer isso, mas todo cesto tem sua maçã menos do que perfeita, e não podemos permitir nenhuma. Acredito sinceramente que vamos encontrá-la, Edward. Todos sabemos que ela se destaca numa multidão. Alta, atraente, com aqueles cabelos... e há mais de mil pessoas à sua procura.

— Torço para que você esteja certo, mas não posso deixar de me preocupar. Ela foi treinada por um camaleão — disse McAllister.

— Como?

— Não é nada, doutor — interveio o major. — Apenas um termo técnico em nossa profissão.

— Preciso do arquivo, todo ele!

— Para que, Edward?

— Eles foram caçados na Europa. Agora estão separados, mas ainda são caçados. O que fizeram naquela ocasião? O que vão fazer agora?

— Um fio da meada? Um padrão?

— Sempre existe — murmurou McAllister, esfregando a têmpora direita. — Com licença, senhores, mas tenho de pedir para que se retirem. Preciso dar um telefonema desagradável.

Marie trocou roupas e pagou uns poucos dólares por outras. O resultado foi aceitável: com os cabelos puxados para trás, sob um chapéu de sol mole, de aba larga, era uma mulher de aparência comum, com uma saia pregueada e uma blusa cinza larga, escondendo por completo a silhueta. As sandálias sem saltos diminuíam a sua altura, e a imitação de bolsa Gucci caracterizava-a como uma crédula turista em Hong Kong, justamente o que ela não era. Ligou para o consulado canadense e foi informada de como poderia chegar lá de ônibus. Ficava na Casa Asiática, décimo quarto andar, Hong Kong. Ela pegou o ônibus na Universidade Chinesa, atravessou Kowloon e o túnel para a ilha, sempre observando atentamente as ruas. Saltou no ponto indicado. Subiu no elevador, convencida de que nenhum dos homens lá dentro lhe lançara um segundo olhar; não era essa a reação habitual. Aprendera em Paris — ensinada

por um camaleão — como usar as coisas simples para mudar. As aulas estavam lhe voltando agora.

— Sei que parece ridículo — disse ela à recepcionista, em voz descontraída e jovial, um pouco aturdida —, mas tenho um primo em segundo grau, por parte de mãe, servindo aqui, e prometi vir visitá-lo.

— Isso não me parece ridículo.

— Mas vai parecer quando eu lhe disser que esqueci o nome dele. — As duas mulheres riram. — É verdade que nunca nos encontramos e provavelmente ele prefere continuar assim, mas tenho de dar uma satisfação à família.

— Sabe em que seção ele trabalha?

— Acho que tem alguma relação com economia.

— Deve ser a Divisão de Comércio. — A recepcionista abriu uma gaveta e tirou um folheto branco estreito, com a bandeira canadense impressa na capa. — Aqui está a nossa lista. Por que não senta e dá uma olhada?

— Muito obrigada. —Marie foi para uma poltrona de couro e sentou, acrescentando: — Tenho uma terrível sensação de incompetência. Afinal, eu deveria saber o nome dele. Tenho certeza de que você conhece os nomes dos primos em segundo grau por parte de mãe.

— Meu bem, não tenho a menor idéia.

O telefone da recepcionista tocou; ela atendeu. Virando as páginas, Marie leu rapidamente, esquadrinhando as colunas à procura de um nome que lhe evocasse um rosto. Encontrou três, mas as imagens eram nebulosas, as feições não muito claras. Mas na página doze um rosto e uma voz afloraram em sua mente, ao ler o nome Catherine Staples.

Catherine “Geladeira”, Catherine “Neve”, “varapau” Sta ples. Os apelidos eram injustos e não ofereciam um retrato ou avaliação acurada da mulher. Marie conhecera Catherine Staples quando trabalhara na Secretaria do Tesouro, em Ottawa, instruindo ela e outras pessoas da seção, o pessoal do corpo diplomático que estava sendo enviado para postos no exterior. Staples aparecera duas vezes, uma para um curso de atualização sobre o Mercado Comum Europeu... e a segunda, claro, para Hong Kong! Já havia transcorrido treze ou quatorze meses; embora a amizade não pudesse ser chamada de profunda — quatro ou cinco almoços, um jantar que Catherine preparara e outro com que Marie retribuíra — ela aprendera muito sobre a mulher que fazia o seu trabalho melhor do que a maioria dos homens.

Para começar, seu rápido progresso no Departamento de Assuntos Exteriores lhe custara um casamento. Declarara que renunciara ao casamento pelo resto de sua vida, já que as exigências de viagens e as horas de trabalho mais insólitas eram inaceitáveis para qualquer homem que tivesse algum valor. Com cinqüenta e poucos anos, Staples era uma mulher esguia, dinâmica, de estatura mediana, que se vestia com elegância, mas também com simplicidade. Era uma profissional séria, com uma ironia que transmitia sua aversão à incompetência, que sempre percebia e não tolerava. Podia ser generosa e até mesmo gentil com os homens e mulheres desqualificados para as funções em que serviam, já que não eram culpados por isso, mas mostrava-se implacável com os responsáveis pelas indicações, independente de suas posições. Se havia uma frase que resumia Catherine Staples era “dura porém justa”; além disso, ela era também bastante divertida, às vezes, num estilo em que zombava de si mesma. Marie esperava que ela continuasse justa em Hong Kong.

— Não há nenhum nome aqui que me lembre alguma coisa — disse Marie, levantando-se e indo devolver a lista à recepcionista. — Estou me sentindo uma idiota.

— Tem alguma idéia de sua aparência?

— Nunca pensei em perguntar.

— Lamento muito.

— Pois eu lamento ainda mais. Terei de dar um telefonema muito embaraçoso para Vancouver... Ah, encontrei um nome. Não tem nada a ver com meu primo, mas acho que é amiga de uma amiga. Uma mulher chamada Staples.

— Catherine a Grande? Ela está de fato aqui, embora muitas pessoas não se importassem se fosse promovida a embaixadora e enviada para a Europa Oriental. Deixa as pessoas nervosas. É uma mulher difícil.

— Quer dizer que ela se encontra aqui agora?

— A menos de dez metros de distância. Quer me dar o nome de sua amiga e ver se ela tem tempo para um alô?

Marie sentiu-se tentada, mas o ônus da burocracia proibia o atalho. Se a situação era como Marie julgava, um alarme fora enviado a todos os consulados amigos, e Staples podia sentir-se compelida a cooperar. Provavelmente não o faria, mas tinha de manter a integridade de seu cargo. Embaixadas e consulados constantemente solicitavam favores mútuos. Ela precisava de tempo com Catherine e não podia ser num cenário oficial.

— É muita gentileza sua — disse Marie à recepcionista. — Minha amiga ficaria feliz... Ei, espere um pouco! Você disse Catherine?

— Isso mesmo. Catherine Staples. E pode estar certa de que só existe uma.

— Tenho certeza que sim, mas acontece que o nome da amiga de minha amiga é Christine. Oh, céus, hoje não é o meu dia! Tem sido muito gentil e por isso vou parar de chateá-la e deixá-la em paz.

— Foi um prazer conversar com você, meu bem. Devia ver as pessoas que entram aqui, pensando que compraram um Cartier por um preço sensacional, até que pára de funcionar e um relojoeiro informa que por dentro só tem dois elásticos e um ioiô. — Os olhos da recepcionista baixaram para a bolsa Gucci com os gês invertidos.

— Essa não... — disse ela devagar.

— O que foi?

— Nada. Boa sorte com seu telefonema.

Marie esperou no saguão da Casa Asiática pelo tempo que achou seguro, depois saiu e ficou andando de um lado para outro, pela frente do prédio, por quase uma hora, na rua apinhada. Passava um pouco de meio-dia e ela já se perguntava se Catherine perdia tempo em almoçar... e um almoço seria uma excelente idéia. Havia ainda outra possibilidade, talvez uma impossibilidade, mas pela qual podia orar, se ainda se lembrasse. David podia aparecer, só que não seria como David, e sim como Jason Bourne, o que podia ser qualquer um. O marido como Bourne seria muito mais esperto; ela testemunhara a sua inventividade em Paris e era de outro mundo, um mundo letal, em que um passo em falso poderia custar a vida de uma pessoa. Cada movimento era premeditado, em três ou quatro dimensões. E se eu...? E se ele...? O intelecto desempenhava um papel muito maior no mundo violento do que os intelectuais não-violentos jamais admitiriam... seus cérebros estourariam num mundo que desdenhavam como bárbaro, porque não podiam pensar bastante depressa ou com profundidade suficiente. Cogito ergo coisa nenhuma. Por que ela estava pensando essas coisas? Pertencia ao segundo mundo, e David também! E no instante seguinte a resposta se tornou evidente. Haviam sido lançados de volta no outro mundo, precisavam sobreviver e encontrar um ao outro.

E lá estava ela! Catherine Staples saiu andando — marchando — da Casa Asiática e virou à direita. Estava a menos de doze metros de distância. Marie começou a correr, empurrando as pessoas, na tentativa de alcançá-la. Tente jamais correr, pois isso serve para destacá-la. Não me importo! Preciso falar com ela de qualquer maneira!

Staples atravessou a calçada. Havia um carro do consulado à espera no meio-fio, a insígnia da folha de bordo pintada na porta. Ela estava embarcando.

— Não! Espere! — gritou Marie, esbarrando em várias pessoas e segurando a porta no instante em que Catherine ia fechá-la.

— O que deseja? — gritou Staples, enquanto o motorista se virava no banco da frente, uma arma surgindo do nada.

— Por favor! Sou eu! Ottawa! As sessões de instruções!

— Marie? É mesmo você?

— Sou eu mesma. Estou com um problema e preciso de sua ajuda.

— Entre. — Catherine Staples afastou-se no banco, acrescentando para o motorista: — Pode guardar essa coisa tola. Ela é minha amiga.

Cancelando o almoço marcado, sob o pretexto de uma convocação da delegação britânica — uma ocorrência comum durante as conferências com os representantes da República Popular para discutir o tratado de 1997 —, Catherine Staples ordenou ao motorista que as deixasse no início da Food Street, na Causeway Bay. A Food Street oferecia o espetáculo irresistível de cerca de trinta restaurantes no espaço de dois quarteirões. O tráfego era proibido na rua, e mesmo que não fosse, não haveria a menor possibilidade de qualquer veículo motorizado passar pela massa humana em busca de cerca de quatro mil mesas. Catherine levou Marie à entrada de serviço de um restaurante. Tocou a campanhia, e quinze segundos depois a porta foi aberta, acompanhada pelos odores de uma centena de pratos orientais.

— Srta. Staples que prazer vê-la! — disse o chinês com um avental branco de cozinheiro... um dos muitos cozinheiros. — Por favor, entre. Como sempre, há uma mesa à sua espera.

Enquanto atravessavam o caos da enorme cozinha, Catherine virou o rosto para Marie e comentou:

— Graças a Deus que há umas poucas vantagens nesta profissão, tão mal paga. O proprietário tem parentes em Quebec... um excelente restaurante na St. John Street... e providencio para que seu visto seja concedido, como eles dizem, “bem-bem depressa”.

Catherine acenou com a cabeça para uma das poucas mesas vazias na área dos fundos, perto da porta da cozinha. Elas sentaram, literalmente ocultas pelo fluxo incessante de garçons passando apressadamente de um lado para outro das portas de vaivém, assim como pelo alvoroço permanente nas dezenas de mesas do restaurante apinhado.

— Obrigada por pensar num lugar assim — disse Marie.

Staples respondeu com sua voz gutural e inflexível:

— Ora, minha cara, qualquer pessoa com a sua aparência que se veste como está vestida agora e se maquila como está agora não quer atrair atenção.

— Como costumam dizer, acertou na mosca. A pessoa com quem ia almoçar vai aceitar a história da delegação britânica?

— Sem pensar duas vezes. A pátria está recorrendo a suas forças mais persuasivas. Pequim compra de nós vastas quantidades de trigo muito necessário... mas você sabe disso tão bem quanto eu, provavelmente muito mais, até em termos de dólares e cents.

— Não estou muito informada atualmente.

— Posso entender. — Staples acenou com a cabeça, olhando firme mas gentilmente para Marie, com expressão inquisitiva. — Eu estava aqui na ocasião, mas ouvimos os rumores e lemos os jornais europeus. Dizer que ficamos em choque não ésufi ciente para descrever o que as pessoas que conheciam você sentiram. Nas semanas que se seguiram, todos tentamos encontrar respostas, mas nos disseram para esquecer o assunto... para o seu bem. “Não tentem descobrir nada”, eles insistiram. “É do interesse dela que ninguém se meta.” Claro que acabamos sendo informados que você foi absolvida de todas as acusações... Mas que frase insultuosa, depois de tudo por que você passou! E depois você desapareceu, ninguém mais teve notícias suas.

— Eles disseram a verdade, Catherine. Era do meu interesse... do nosso interesse... que ninguém soubesse de nós. Passamos meses escondidos, e quando retomamos uma vida civilizada, foi num lugar remoto e sob um nome que poucas pessoas conheciam. Os guardas, no entanto, continuaram presentes.

— Nós?

— Casei com o homem sobre o qual você leu nos jornais. Claro que ele não era o homem descrito pelos jornais. Estava empenhado numa missão secreta para o governo americano. Renunciou a muita coisa de sua vida por esse compromisso terrivelmente estranho.

— E agora você está em Hong Kong e me diz que tem um problema.

— Isso mesmo, estou em Hong Kong e tenho um grave problema.

— Posso presumir que os acontecimentos do ano passado estão relacionados com suas dificuldades atuais?

— Acho que sim.

— O que pode me contar?

— Tudo o que sei, porque quero a sua ajuda. E não tenho o direito de pedi-la se você não souber de tudo o que sei.

— Gosto de uma linguagem sucinta. Não apenas pela clareza, mas também porque define a pessoa que a está usando. Você está dizendo também que se eu não souber de tudo provavelmente não poderei fazer nada.

— Eu não havia pensado assim, mas provavelmente você tem razão.

— Ótimo. Eu a estava testando. Na nouvelle diplomatie a simplicidade franca tornou-se tanto uma cobertura quanto um instrumento. É usada muitas vezes para encobrir a duplicidade, assim como para desarmar um adversário. Estou me referindo às recentes proclamações de seu novo país... novo como uma esposa, é claro.

— Sou economista, Catherine, e não diplomata.

— Combine os talentos que sei que você possui e poderá escalar as culminâncias de Washington, como teria feito em Ottawa. Mas também não teria a obscuridade que tanto deseja em sua vida civilizada recuperada.

— Nós precisamos disso. É tudo o que importa.

— Sondando de novo. Você não é uma mulher desprovida de ambição. Ama esse seu marido.

— E muito. Quero encontrá-lo. Quero-o de volta.

Catherine levantou a cabeça abruptamente, piscando os olhos.

— Ele está aqui?

— Em algum lugar. É parte da história.

— Não pode se controlar... e é isso mesmo o que estou querendo dizer, Marie... até nos encontrarmos em algum lugar mais discreto?

— Aprendi a ter paciência com um homem cuja vida dependia disso, vinte e quatro horas por dia, durante três anos.

— Puxa vida! Você está com fome?

— Faminta. Isso é também parte da história. Já que você está aqui e me escutando, podemos pedir alguma coisa?

— Evite o dim sum; é cozido demais e frito demais. O pato, porém, é o melhor de Hong Kong... Pode esperar, Marie? Prefere ir embora agora?

— Claro que posso esperar, Catherine. Toda a minha vida está em jogo. Meia hora não vai fazer qualquer diferença. E se eu não comer, não serei coerente.

— Sei disso. É parte da história.

Elas sentaram uma na frente da outra, no apartamento de Staples, separadas por uma mesinha, partilhando um bule de chá.

— Em trinta anos de serviço diplomático, acho que acabei de ouvir o que representa o mais clamoroso abuso do cargo... em nosso lado, é claro — comentou Catherine. — A menos que tenha ocorrido um sério mal-entendido.

— Está dizendo que não acredita em mim.

— Ao contrário, minha cara, você não poderia inventar essa história. Tem toda razão. Toda a coisa está impregnada de lógica ilógica.

— Eu não falei isso.

— Não precisava falar, pois é evidente. Seu marido é preparado, as possibilidades implantadas, e depois ele é disparado como um foguete nuclear. Por quê?

— Já lhe disse. Há um homem matando pessoas que se diz chamar Jason Bourne... o papel que David representou durante três anos.

— Um assassino é um assassino, não importa o nome que assuma, quer seja Gêngis Khan ou Jack o Estripador ou, se você quiser, Carlos o Chacal... até mesmo o assassino Jason Bourne. Armadilhas para homens assim são planejadas com o consentimento dos que vão executá-la.

— Não estou entendendo, Catherine.

— Pois então preste atenção, minha cara. É uma mente antiga que está falando. Lembra quando fui procurá-la para o curso de atualização sobre o Mercado Comum, com ênfase no comércio do bloco oriental?

— Claro que lembro. Fizemos um jantar uma para a outra. O seu foi muito melhor que o meu.

— Tem razão, foi mesmo. Mas na verdade estive lá para aprender como convencer meus contatos no bloco oriental de que eu poderia usar as taxas de flutuação de câmbio a fim de que as compras efetuadas conosco se tornassem mais lucrativas para eles. Foi o que fiz. E o pessoal de Moscou ficou furioso.

— E o que isso tem a ver comigo, Catherine?

Staples fitou Marie nos olhos, o comportamento gentil outra vez revestido de firmeza.

— Deixe-me explicar. Se você pensasse a respeito, haveria de presumir que eu estava em Ottawa para adquirir uma noção precisa da economia européia, a fim de poder realizar meu trabalho ainda melhor. Num certo sentido, isso era verdade. Só que não era o verdadeiro motivo. Eu estava lá para aprender a usar as flutuações das diversas moedas e oferecer contratos com maiores benefícios para os nossos clientes em potencial. Quando o marco alemão subia, vendíamos por franco, guilda ou qualquer outra moeda. Havia uma cláusula específica nos contratos.

— Não era um esquema dos mais proveitosos.

— Não estávamos em busca de lucros, mas sim querendo abrir mercados que se encontravam fechados para nós. Os lucros viriam mais tarde. Você foi muito objetiva ao falar da especulação com os taxas de câmbio. Apregoou os seus males, e tive de aprender a ser como um demônio... por uma boa causa, é claro.

— Muito bem, você usou a inteligência que tenho, qualquer que seja, para um propósito que eu desconhecia...

— É evidente que o objetivo tinha de ser mantido em segredo absoluto.

— Mas o que isso tem a ver com qualquer coisa que lhe contei?

— Posso farejar um pedaço de carne estragada, e lhe garanto que este nariz é experiente. Assim como eu tinha um motivo oculto ao procurá-la em Ottawa, quem quer que esteja fazendo isso com vocês tem uma razão mais profunda do que a captura do impostor de seu marido.

— Por que diz isso?

— Seu marido disse primeiro. É basicamente um problema de polícia, até mesmo de polícia internacional, um trabalho para a rede de informações altamente respeitada da Interpol. Eles estão muito mais qualificados para isso do que o Departamento de Estado ou o Foreign Office, a CIA ou o MI-Seis. Os serviços de informações exteriores não se preocupam com os criminosos não-políticos... os assassinos comuns... não podem se dar a esse luxo. Quase todos os imbecis revelariam as coberturas que conseguiram assumir se interferissem com o trabalho da polícia.

— Não foi o que McAllister falou. Ele garantiu que os melhores agentes dos serviços secretos americanos e ingleses estavam trabalhando no caso. Alegou que se esse assassino que se apresenta como meu marido... o que meu marido era aos olhos dos outros... assassinasse uma alta personalidade política em cada lado ou desencadeasse uma guerra no submundo, a situação de Hong Kong correria risco imediato. Pequim entraria em ação e assumiria o controle, usando como pretexto o tratado de 1997. “O oriental não tolera um filho desobediente”... foram estas as suas palavras.

— Inaceitável e inacreditável! — protestou Catherine Staples — Ou seu subsecretário é um mentiroso ou tem o QI de um asno. Apresentou todos os motivos para os nossos serviços secretos permanecerem fora do caso, não se envolverem em hipótese alguma. Até mesmo a insinuação de uma ação secreta seria desastrosa. Isso pode incendiar os homens mais frenéticos do Comitê Central. Mas, independente disso, não acredito em uma só palavra do que ele disse. Londres nunca permitiria, jamais concordaria sequer com a menção do nome do Setor Especial.

— Está enganada, Catherine. Não estava prestando atenção. O homem que voou para Washington a fim de buscar o arquivo de Casa de Pedra era britânico, do MI-Seis E foi assassinado por causa desse arquivo.

— Já ouvi isso e continuo a não acreditar. Acima de qualquer outra coisa, o Foreign Office insistiria para que toda essa confusão permanecesse aos cuidados da polícia, e somente da polícia. Vivemos em momentos difíceis e não há margem para trapaças, especialmente do tipo que leva uma organização oficial de serviço secreto a se envolver com um assassino. Estou absolutamente convencida de que você foi trazida para cá e forçaram seu marido a segui-la por outro motivo.

— Pelo amor de Deus, qual? — gritou Marie, inclinando-se para a frente bruscamente.

— Não sei. Talvez haja alguém mais.

— Quem?

— Isso foge à minha compreensão.

Silêncio. Duas mentes extremamente inteligentes refletiam sobre as palavras que cada uma pronunciara.

— Catherine — disse Marie finalmente —, aceito a lógica de tudo o que você diz, mas também falou que toda a situação estava impregnada de lógica ilógica. Vamos supor que eu esteja certa, que os homens que me detiveram aqui não eram assassinos nem criminosos, mas burocratas cumprindo ordens que não compreendiam, que a palavra governo se achava estampada em seus rostos e em suas explicações evasivas, até mesmo em sua preocupação por meu conforto e bem-estar. Sei que você acha que o McAllister que descrevi é um mentiroso ou um tolo... e se ele fosse um mentiroso e não um tolo? Presumindo essas coisas... e creio que são verdadeiras... estamos falando de dois governos agindo de acordo durante estes momentos difíceis. O que acontece nesse caso?

— Então há um desastre em desenvolvimento —murmurou Catherine Staples

— E tudo gira em torno de meu marido?

— Se você está certa, é isso mesmo.

— Não acha que é bem possível?

— Não quero nem pensar a respeito.


 

Cerca de sessenta e cinco quilômetros a sudoeste de Hong Kong, além das ilhas exteriores do Mar da China Meridional, fica a península de Macau, uma colônia portuguesa apenas nominalmente. As origens históricas estão em Portugal, mas seu apelo moderno e exuberante para o jet set internacional, com o Grande Prêmio anual, os cassinos e iates, está baseado nos luxos e estilos de vida exigidos pelos ricos da Europa. Apesar disso, não se deve cometer qualquer equívoco. É um lugar chinês. Os controles estão em Pequim.

Nunca! Não deve ser Macau! A ordem será rápida, a execução ainda mais rápida! Sua esposa morrerá!

Mas o assassino estava em Macau, e um camaleão tinha de entrar em outra selva.

Esquadrinhando os rostos e espiando os recantos escuros do pequeno e atulhado terminal, Bourne deslocou-se com a multidão para o píer do aerobarco de Macau, viagem que levaria cerca de uma hora. Os passageiros estavam divididos em três categorias distintas: residentes da colônia portuguesa de volta, principalmente chineses, em silêncio; jogadores profissionais, uma mistura racional, conversando discretamente, quando falavam, olhando ao redor a todo instante, a fim de avaliar a concorrência; e foliões da madrugada, turistas efusivos, exclusivamente brancos, muitos embriagados, com chapéus dos formatos mais estranhos e espalhafatosas camisas tropicais.

Ele deixara Shenzen e tomara o trem das três horas de Lo Wu para Kowloon. A viagem fora extenuante, seu raciocínio estava embotado, as emoções esgotadas. O impostor-assassino estivera tão perto! Se tivesse conseguido isolar o homem de Macau por menos de um minuto, poderia dominá-lo! Havia meios. Ambos tinham os vistos em ordem; um homem contraído em dor, a garganta lesada a ponto de não poder falar, poderia passar por um homem doente, talvez com alguma moléstia contagiosa, um visitante indesejável, a quem eles teriam o maior prazer em deixar partir. Mas não acontecera, não dessa vez. Ah, se ao menos ele pudesse ter visto o rosto do impostor!

E havia ainda a descoberta desconcertante de que aquele novo assassino, o mito que não era nenhum mito, mas sim um assassino brutal, tinha um contato na República Popular. Era profundamente perturbador, pois as autoridades chinesas que reconheciam um homem assim só o faziam para usá-lo. Era uma complicação que David não desejava. Não tinha nada a ver com Marie e com ele, e os dois eram a única coisa com que se importava. Tudo com que se importava! Jason Bourne: Traga o homem de Macau!

Ele voltara ao Peninsula, passando pelo New World Centre para comprar uma jaqueta de náilon escuro e um par de tênis azul-marinho. A ansiedade de David Webb era opressiva. Jason Bourne planejava sem ter conscientemente um plano. Pediu uma refeição leve e sentou-se na cama enquanto comia, assistindo ao noticiário da televisão sem prestar atenção. Depois, David recostou-se no travesseiro, especulando de onde vinham as palavras: O descanso é uma arma. Não se esqueça disso. Bourne despertou quinze minutos depois.

Jason comprara uma passagem para as oito e meia numa bilheteria do Serviço de Transporte Coletivo no Tsim Sha Tsui, durante a hora do rush. Para estar certo de que não era seguido — e precisava ter certeza absoluta — pegara três táxis diferentes para chegar a meio quilômetro do píer da barca de Macau uma hora antes da partida. Seguiu a pé o resto do percurso. Iniciara então um ritual para o qual fora treinado. A memória desse treinamento estava meio turva, mas não a sua prática. Fundira-se na multidão na frente do terminal, esquivando-se, andando em ziguezague, passando de um lado para outro, depois se mantendo subitamente imóvel à margem, concentrando-se nos padrões de movimento atrás de si, procurando por alguém que vira um momento antes, um rosto ou um par de olhos ansiosos voltados em sua direção. Não havia ninguém. Mas a vida de Marie dependia da certeza, e por isso ele repetiu o ritual duas vezes, acabando dentro do terminal mal iluminado, com bancos de frente para o cais e para a água. Continuou a procurar por um rosto frenético, uma cabeça que se virasse sem parar, uma pessoa girando, empenhada em encontrar alguém. Mais uma vez, não havia ninguém. Estava livre para seguir para Macau. E se encontrava agora a caminho.

Sentou-se num banco lá atrás, junto à janela, observando as luzes de Hong Kong e Kowloon se desvanecerem para um clarão no céu asiático. Novas luzes apareceram e desapareceram, enquanto o aerobarco ganhava velocidade e passava pelas ilhas exteriores, que pertenciam à China. Imaginou homens de uniforme a espiarem por lunetas e binóculos, sem saberem direito o que procuravam, mas tendo recebido a ordem de observar tudo. As montanhas dos Novos Territórios se erguiam ameaçadoras, o luar se refletindo em seus picos e acentuando-lhes a beleza, mas também dizendo: É aqui que você pára. Além deste ponto, somos diferentes. Não era bem assim. Pessoas apregoavam suas mercadorias nas praças de Shenzen. Os artesãos prosperavam, os fazendeiros abatiam seus animais e viviam tão bem quanto as classes instruídas em Pequim e Xangai... e geralmente em habitações melhores. A China estava mudando, não tão depressa para o Ocidente, e certamente ainda era um gigante paranóico, mas a verdade, refletiu David Webb, é que os estômagos distendidos das crianças, tão comum na China de anos atrás, estavam desaparecendo. Muitos dos políticos inescrutáveis nos escalões superiores eram gordos, mas poucos nos campos estavam passando fome. Houvera progresso, concluiu David, quer o resto do mundo aprovasse ou não os métodos.

O aerobarco desacelerou, o casco baixando para a água. Passou por um espaço num recife artificial, iluminado por refletores. Estavam em Macau, e Bourne sabia o que tinha de fazer. Levantou-se, pediu licença para passar pelo homem sentado ao seu lado e subiu pelo corredor, onde um grupo de americanos, uns poucos de pé, o restante sentado, cantava uma interpretação obviamente ensaiada de Mr. Sandman.

Rum bum bum bum...

Mr. Sandman, cante-me uma canção

Rum bum bum bum

Oh, Mr. Sandman...

Estavam altos, mas não bêbados, não barulhentos. Outro grupo de turistas, falando alemão, encorajava os americanos, aplaudindo ao final da canção.

— Gut!

— Sehrgut!

— Wunderbar!

— Danke, meine Herren.

O americano de pé mais próximo de Jason fez uma reverência para os alemães. Seguiu-se uma conversa breve e cordial, os alemães falando em inglês, o americano respondendo em alemão.

— Foi uma lembrança de casa — comentou Bourne para o americano.

— Ei, um Landsmann! A canção também inclui você, meu velho. Não acha que algumas dessas músicas antigas são sensacionais? Ei, você está com o grupo?

— Qual é o grupo?

— O da Honeywell-Porter — respondeu o homem, indicando uma agência de propaganda de Nova York, que Jason sabia ter filiais no mundo inteiro.

— Não, não estou.

— Foi o que pensei. Somos apenas uns trinta, contando com os australianos, e acho que já conheci todo mundo. De onde você é? Meu nome é Ted Mather e sou do escritório da H.P. em Los Angeles.

— Meu nome é um Cruett e sou professor. De Boston.

— Beanburg!* Pois então vou apresentá-lo a um Landsmann. Ou será Sradtsmann? Jim, este é Bernie Beantown.

Mather tornou a se inclinar, desta vez para um homem arriado junto à janela, a boca aberta, olhos fechados. Estava obviamente embriagado e usava um quepe de beisebol da equipe do Red Sox.

— Não perca tempo em falar, pois ele não pode ouvir. Bernard o Cérebro é do nosso escritório em Boston. Devia tê-lo visto há três horas. Terno impecável, gravata listrada, discorrendo sobre uma dúzia de gráficos que só ele podia compreender. Mas uma coisa posso garantir... ele nos manteve acordado. Acho que foi por isso que todos tomamos alguns tragos... e ele, muitos. Afinal, é a nossa última noite.

— Vão voltar amanhã?

— No último vôo da noite. Precisamos de algum tempo para nos recuperar.

— Por que Macau?           

— Uma comichão em massa pelas mesas de jogo. É o seu caso também?

— Pensei em fazer uma tentativa. Puxa, que saudade aquele quepe me dá! O Red Sox pode ganhar o título, e até esta viagem eu não havia perdido um jogo!

— E Bernie não vai sentir falta de seu chapéu! — O publicitário soltou uma risada, inclinou-se e arrancou o quepe da cabeça de Bernie, o Cérebro. — Tome aqui, Jim, fique com ele. Você merece.

O aerobarco atracou. Bourne desembarcou e passou pela imigração junto com a turma da Honeywell-Porter, como se fosse um deles. Ao descerem pela íngreme escada de cimento para o terminal forrado de cartazes, Jason — com a pala do quepe do Red Sox virada para baixo e os passos um pouco trôpegos — avistou um homem junto à parede da esquerda estudando os recém-chegados. O homem tinha na mão uma fotografia, e Bourne compreendeu que o rosto que ali estava era o seu. Riu de um comentário de Ted Mather, enquanto segurava o braço do cambaleante Bemie Beantown.

As oportunidades vão se apresentar. Trate de reconhecê-las e agir de acordo.

As ruas de Macau são quase tão extravagantemente iluminadas quanto as de Hong Kong, mas falta a sensação de humanidade demais em espaço de menos. E o que é diferente — diferente e anacrônico — são os muitos prédios em que estão fixados modernos anúncios luminosos, com caracteres chineses pulsando. A arquitetura desses prédios é hispânica muito antiga — portuguesa, mais precisamente — de caráter mediterrâneo. Parece que uma cultura inicial se rendeu à incursão impetuosa de outra, mas recusou-se a ceder seu primeiro imprimatur, proclamando a força de sua pedra sobre a impermanência ostentosa dos tubos de vidro coloridos. A história é deliberadamente negada; as igrejas vazias e as ruínas de uma catedral incendiada convivem numa estranha harmonia com os cassinos lotados, em que os crupiês falam cantonês e os descendentes dos conquistadores raramente são vistos. É tudo fascinante e até sinistro. É Macau.

Jason afastou-se do grupo da Honeywell-Porter e pegou um táxi, cujo motorista devia ter aprendido a guiar assistindo ao Grande Prêmio de Macau. Foi levado ao cassino Kam Pek, em meio aos protestos do motorista.

— O Lisboa para você, não o Kam Pek! O Kam Pek é para os chineses! Dai sui! Fan-tan!

— O Kam Pek, cheng nei — disse Bourne, arrematando com o por favor cantonês, mas não acrescentando mais nada.

O cassino era escuro. O ar era úmido e malcheiroso, a fumaça que subia em espiral em torno das lâmpadas por cima das mesas era densa, adocicada, pungente. Havia um bar afastado das mesas de jogo. Jason foi até lá e sentou-se num banco, arriando o corpo para reduzir sua altura. Falou em chinês, o quepe de beisebol projetando uma sombra sobre o seu rosto, o que era provavelmente desnecessário, já que mal se podia ler os rótulos das garrafas no outro lado do balcão. Pediu um drinque, e ao ser servido, deu uma generosa gorjeta ao bartender, em dinheiro de Hong Kong.

— Mgoi — disse o homem de avental, agradecendo.

— Hou — murmurou Jason, acenando com a mão.

Estabeleça um contato cordial assim que puder. Especialmente num lugar desconhecido, em que pode haver hostilidade. Esse contato pode lhe oferecer a oportunidade ou o tempo de que precisa. Seria Medusa ou Casa de Pedra? Mas não importava que ele não pudesse lembrar qual das duas.

Jason virou-se lentamente no banco e olhou para as mesas; encontrou o cartaz pendurado com o caracter chinês para “cinco”- Tornou a se virar para o balcão, tirou do bolso o caderninho de anotações e uma caneta esferográfica. Rasgou uma página e escreveu o número do telefone de um hotel de Macau, que memorizara da revista Voyager, distribuída aos passageiros do aerobarco. Escreveu um nome que só lembraria se fosse necessário e arrematou com as seguintes palavras: Não sou amigo de Carlos.

Baixou a mão ao lado do balcão, derramou o drinque e pediu outro. Quando foi servido, mostrou-se ainda mais generoso do que antes na gorjeta.

— Mgoi saai — disse o bartender, fazendo uma mesura.

— Msa — murmurou Bourne, tornando a acenar com a mão e parando o movimento subitamente, em sinal para que o bartender permanecesse ali. —Poderia me prestar um pequeno favor? Não levaria mais que dez segundos.

— O que é, senhor?

— Entregue este bilhete ao crupiê da Mesa Cinco. É um velho amigo meu e quero que saiba que estou aqui. — Jason dobrou o bilhete e levantou-o. — Pagarei pelo favor.

— É um privilégio celestial meu, senhor.

Bourne ficou observando. O crupiê pegou o bilhete, abriu-o rapidamente, enquanto o bartender se afastava, e meteu-o por baixo da mesa. A espera começou.

Foi interminável, tanto tempo que o bartender foi substituído para o resto da noite. O crupiê foi transferido para outra mesa, e duas horas depois foi também substituído. E duas horas mais tarde um terceiro crupiê assumiu a Mesa Cinco. O assoalho ao seu redor agora encharcado de uísque, Jason logicamente pediu café e contentou-se com um chá; já eram duas e dez da madrugada. Mais uma hora e iria para o hotel cujo telefone escrevera, arrumaria um quarto de qualquer maneira. Estava começando a apagar.

E de repente tudo mudou. Estava acontecendo! Uma chinesa com a saia aberta do lado típica das prostitutas encaminhou-se para a Mesa Cinco. Contornou os apostadores até o canto direito e falou rapidamente com o crupiê, que meteu a mão por baixo da mesa e discretamente lhe entregou o bilhete dobrado. Ela acenou com a cabeça e afastou-se, seguindo para a porta do cassino.

Ele não aparece pessoalmente, como era de se imaginar. Usa prostitutas da rua.

Bourne deixou o bar e foi atrás da mulher. Lá fora, na rua escura, onde havia algumas pessoas, mas parecia deserta para os padrões de Hong Kong, permaneceu uns quinze metros atrás da prostituta, parando de vez em quando para olhar pelas vitrines iluminadas, depois se apressando para não perdê-la.

Não aceite o primeiro intermediário. É o que eles esperam. O primeiro pode ser um indigente que está ganhando uns poucos dólares e não sabe de nada. Não aceite nem mesmo o segundo e o terceiro. Vai reconhecer o contato. Ele será diferente.

Um velho encurvado aproximou-se da prostituta. Seus corpos roçaram e ela soltou um grito estridente, enquanto lhe entregava o bilhete. Jason simulou embriaguez e virou-se, seguindo o velho encurvado.

Aconteceu quatro quarteirões depois, e o homem era de fato diferente. Um chinês pequeno, bem vestido, o corpo socado, ombros largos e cintura estreita, irradiando força. A rapidez de seus gestos, ao pagar o velho maltrapilho e começar a atravessar a rua em passos rápidos, era um aviso a qualquer adversário. Para Bourne, era um convite irresistível; aquele era um contato com autoridade, um vínculo com o Francês.

Jason apressou-se para o outro lado da rua; estava uns cinqüenta metros atrás do homem e perdendo terreno. Não havia sentido em ser sutil por mais tempo, e por isso desatou a correr. Segundos depois estava diretamente atrás do contato, o solado dos tênis amortecendo o barulho de seus passos. Mais à frente havia uma viela entre o que pareciam ser dois prédios do governo, com as janelas às escuras. Tinha de agir depressa, mas de tal maneira que não causasse um tumulto, não oferecendo às pessoas por perto qualquer motivo para gritar ou chamar a polícia. Naquele caso, as chances maiores estavam do seu lado; a maioria das pessoas era constituída por bêbados ou drogados, os outros eram trabalhadores cansados, ansiosos por voltarem para casa depois do expediente. O contato aproximou-se da entrada da viela. Agora! Bourne correu à frente do homem, pelo lado direito, dizendo em chinês:

— O Francês! Tenho notícias do Francês! Depressa!

Ele entrou pela viela e o contato, aturdido, os olhos arregalados, não teve opção se não acompanhá-lo, como um zumbi. Agora!

Arremetendo das sombras, Jason agarrou a orelha esquerda do homem, puxando-a, torcendo-a, empurrando o contato para a frente e levantando o joelho para a base de sua espinha, a outra mão em seu pescoço. Desferiu um chute por trás do joelho do homem, que caiu, girando o corpo e fitando-o.

— Você! Ë você! O contato estremeceu na semi-escuridão; de repente, tornou-se mais calmo, determinado. — Não, você não é ele.

Sem qualquer movimento de advertência, o chinês impulsionou a perna direita, o corpo deixando o chão numa trajetória acelerada invertida. Acertou os músculos da coxa esquerda de Jason, acompanhando com outro golpe, do pé esquerdo, atingindo o seu abdome, enquanto se levantava de um pulo, as mãos estendidas e rígidas, o corpo musculoso se movendo agilmente, até graciosamente, num semicírculo, em expectativa.

O que se seguiu foi uma batalha de animais, dois executores treinados, cada movimento efetuado em intensa premeditação, cada golpe letal recebido com pleno impacto. Um lutava por sua vida, o outro, pela sobrevivência e libertação... e pela mulher sem a qual não podia viver, sem a qual não viveria. Finalmente, a altura, o peso e um motivo além da própria vida fizeram a diferença, proporcionando a vitória a um e a derrota a outro.

Engalfinhados contra a parede, ambos suados e contundidos, o sangue escorrendo de bocas e olhos, Bourne prendeu o pescoço do contato numa chave de braço por trás, comprimindo o joelho esquerdo em suas costas, a perna direita em torno dos tornozelos do homem.

— Você sabe o que acontece agora! —sussurrou ele, espaçando as palavras, em chinês, a fim de aumentar a ênfase. — Um pouco de pressão e lá se vai a sua espinha. Não é uma maneira agradável de morrer. E você não precisa morrer. Pode viver, e com mais dinheiro do que o Francês jamais lhe pagaria. Aceite a minha palavra: o Francês e seu matador não vão continuar a existir por muito tempo. Tome a sua decisão. Agora!

Jason aumentou a pressão; as veias na garganta do homem estavam distendidas, a ponto de estourarem.

— Está bem, está bem! — balbuciou o contato. — Quero viver, não morrer!

Eles se sentaram na viela escura, de costas apoiadas na parede, fumando cigarros. O homem falava inglês fluentemente, tendo aprendido com as freiras numa escola católica portuguesa.

— Você é muito bom — comentou Bourne, limpando o sangue dos lábios.

— Sou o campeão de Macau. É por isso que o Francês me paga. Mas você me superou. Estou desonrado, não importa o que venha a acontecer.

— Não está, não. Acontece apenas que conheço mais alguns golpes sujos do que você. Não são ensinados onde você aprendeu e não deveriam ser em parte alguma. Além do mais, ninguém jamais saberá.

— Mas eu sou jovem e você é velho!

— Nem tanto assim. E me mantenho em boa forma, graças a um médico maluco que me diz o que devo fazer. Quantos anos acha que eu tenho?

— Tem mais de trinta!

— Certo.

— Um velho!

— Obrigado.

— É também muito forte, muito pesado... mas é mais do que isso. Sou um homem são, mas você não é.

— É possível. — Jason esmagou o cigarro no chão. Tirou dinheiro do bolso e acrescentou: — Vamos conversar objetivamente. Eu estava falando sério. Pagarei muito bem. ... Onde está o Francês?

— Nem tudo está em equilíbrio.

— Como assim?

— O equilíbrio é importante.

— Sei disso, mas não entendo onde está querendo chegar.

— Há uma falta de harmonia, e o Francês está furioso. Quanto vai me pagar?

— Quanto pode me dizer?

— Onde o Francês e seu assassino estarão amanhã à noite.

— Dez mil dólares americanos.

— Aiya!

— Mas só se você me levar até lá.

— Fica no outro lado da fronteira! -

— Tenho um visto para Shenzen. É válido por mais três dias.

— Pode ajudar, mas não é legal para a fronteira de Guangdong.

— Pois então procure uma saída. Dez mil dólares. Americanos

— Darei um jeito. — O contato fez uma pausa, os olhos fixos no dinheiro que o americano segurava. — Posso receber o que creio que vocês chamam de adiantamento?

— Quinhentos dólares americanos e mais nada.

— As negociações na fronteira custarão muito mais.

— Ligue para mim. Levarei o dinheiro.

— Ligar para onde?

— Arrume um quarto de hotel para mim aqui em Macau. Guardarei o dinheiro em seu cofre.

— O Lisboa.

— O Lisboa, não. Não posso ir para lá. Qualquer outro.

— Não há problema. Ajude-me a levantar... Não! Será melhor para a minha dignidade se eu não precisar de ajuda.

— Como quiser — disse Jason Bourne.

Catherine Staples estava sentada à sua escrivaninha, o fone mudo ainda em sua mão; contemplou-o distraidamente por um momento e depois desligou. Sentia-se aturdida com a conversa que acabara de concluir. Como não havia qualquer força do serviço secreto canadense operando em Hong Kong, os diplomatas cultivavam suas próprias fontes na polícia da colônia, para as ocasiões em que houvesse necessidade de informações acuradas. Essas ocasiões ocorriam invariavelmente no interesse dos cidadãos canadenses que residiam ou visitavam a colônia. Os problemas variavam dos que eram presos aos que eram assaltados, dos canadenses que eram trapaceados aos que trapaceavam. Havia também problemas mais profundos, questões de segurança e espionagem, a primeira envolvendo as visitas de altas autoridades do governo, a segunda, os meios de proteção contra a vigilância eletrônica e o fornecimento de informações importantes através de atos de chantagem contra o pessoal do consulado. Era do conhecimento discreto mas geral que agentes do bloco soviético e de regimes fanaticamente religiosos do Oriente Médio usavam tóxicos e prostitutas de todos os sexos, de acordo com a preferência de cada um, no empenho incessante de obter informações confidenciais de um governo hostil. Hong Kong era um gigantesco mercado de tóxicos e carne. E fora nessa área que Staples realizara alguns dos seus melhores trabalhos no território. Salvara as carreiras de dois adidos de seu próprio consulado, além de um americano e três britânicos. Fotografias das pessoas em atos comprometedores haviam sido destruídas, juntamente com os negativos correspondentes, os extorsionários banidos da colônia com ameaças não apenas de denúncia, mas também de dano físico. Em um caso, de um funcionário consular iraniano, ele berrara furioso de seus aposentos na Gammon House, acusando-a de se intrometer em assuntos muito acima de sua posição. Ela escutara em silêncio por tanto tempo quanto pudera suportar a voz fanhosa, depois encerrara a conversa com uma declaração brusca:

— Será que você não sabia? Khomeini gosta de garotinhos.

Tudo isso se tornara possível através de seu relacionamento com um viúvo inglês ao final da meia-idade que optara por se aposentar da Scotland Yard para se tornar o chefe de Assuntos Coloniais da Coroa em Hong Kong. Aos sessenta e sete anos, Ian Ballantyne aceitara o fato de que sua permanência na Scotland Yard chegara ao fim, mas o mesmo não acontecia necessariamente com o uso de seus talentos profissionais. Foi despachado voluntariamente para o Extremo Oriente, onde assumira a divisão de informações da polícia da colônia. À sua maneira tranqüila, moldara uma organização agressivamente eficiente, que sabia mais sobre o mundo secreto de Hong Kong do que qualquer outra das agências que operavam no território, inclusive o MI-Seis, Setor Especial. Catherine e Ian haviam se conhecido num desses insípidos jantares burocráticos impostos pelo protocolo consular. Depois de uma conversa prolongada, entremeada de comentários espirituosos e avaliação de sua companheira à mesa, Ballantyne se inclinava e dissera simplesmente:

— Acha que ainda somos capazes de fazer, minha velha?

— Vamos tentar — respondera Catherine.

E fizeram. Gostaram, e Ian tornou-se um ponto de referência na vida de Catherine, sem vínculos nem compromissos. Gostavam um do outro, e isso era suficiente.

E Ian Ballantyne acabara de desmentir tudo o que o Subsecretário de Estado Edward McAllister dissera a Marie Webb e seu marido no Maine. Não havia nenhum taipan em Hong Kong chamado Yao Ming, e suas fontes impecáveis — leia-se bem pagas — em Macau garantiam que não houvera qualquer duplo homicídio no Hotel Lisboa envolvendo a esposa de um taipan e um traficante de tóxicos. Não havia mortes assim desde a partida das forças japonesas de ocupação em 1945. Sempre surgiam ferimentos a faca e a bala em torno das mesas dos cassinos, além de várias mortes em quartos, atribuídas a super-doses de narcóticos, mas nenhum incidente como o descrito pelo informante de Staples.

— É um emaranhado de mentiras, Cathy — dissera Ian. — Com que propósito, não posso imaginar.

— Minha fonte é legítima, querido. O que você pode farejar?

— Odores repugnantes, minha cara. Alguém está correndo um grande risco por um objetivo considerável. Ele está se cobrindo, é claro... Pode-se comprar qualquer coisa por aqui, inclusive silêncio... mas tudo não passa de ficção. Quer me contar mais alguma coisa?

— E se eu lhe dissesse que a história é orientada por Washington, e não pelo Reino Unido?

— Eu teria de contestá-la. Para chegar a esse ponto, Londres tem de estar envolvida.

— Mas não faz sentido!

— Do seu ponto de vista, Cathy. Não conhece o deles. E posso lhe garantir uma coisa... esse maníaco, Bourne, tem todos nós na palma da mão. Uma de suas vítimas é um homem sobre o qual ninguém vai falar. Nem mesmo eu posso lhe dizer o nome dele, minha velha.

— Dirá se eu lhe fornecer mais informações?

— Provavelmente não, mas deve tentar.

Staples continuou sentada à mesa, filtrando as palavras.

Uma de suas vítimas é um homem sobre o qual ninguém vai falar.

O que Ballantyne estava querendo dizer com isso? O que estava acontecendo? E por que uma economista canadense se encontrava no centro da súbita tempestade?

Independente de qualquer coisa, porém, ela estava segura.

O Embaixador Havilland, pasta de executivo na mão, entrou no escritório em Victoria Peak. McAllister levantou-se de um pulo, disposto a desocupar a cadeira para o seu superior.

— Fique onde está, Edward. Quais são as novidades?

— Não há nenhuma, infelizmente.

— Não é isso o que estou querendo ouvir!

— Sinto muito.

— Onde está aquele filho da puta retardado que deixou acontecer?

McAllister empalideceu, enquanto o Maior Lin Wenzu, que não fora visto por Havilland, se levantava do sofá encostado na parede dos fundos.

— Sou o filho da puta retardado, o chinês que deixou acontecer, Sr. Embaixador.

— Não vou pedir desculpas — disse Havilland, virando-se, a voz áspera. — São os pescoços de vocês que estamos tentando salvar, não os nossos. Vamos sobreviver. Vocês não.

— Não tenho o privilégio de compreendê-lo.

— A culpa não é dele — protestou o subsecretário de Estado.

— Então é sua? — gritou o embaixador. — Era o responsável pela custódia da mulher?

— Sou o responsável por tudo aqui.

— E uma atitude bastante cristã de sua parte, Sr. McAllister, mas no momento não estamos lendo as escrituras na escola dominical.

— A responsabilidade foi minha — interveio Lin. —Aceitei a missão e falhei. Nos termos mais simples, a mulher foi mais esperta do que nós.

— Você é Lin, do Setor Especial?

— Isso mesmo, Sr. Embaixador.

— Ouvi boas referências a seu respeito.

— Tenho certeza de que minha atuação neste caso anula

— Fui informado de que ela também se mostrou mais esperta do que um médico competente.

— É verdade —confirmou McAllister. — Um dos melhores clínicos do território.

— Um inglês — acrescentou Lin.

— Isso não era necessário, Major. Assim como também não era preciso usar a palavra “china” para se referir a si mesmo. Não sou um racista. O mundo não sabe, mas não tem tempo para essas besteiras. — Havilland foi até a mesa, pôs a pasta em cima, abriu-a e tirou um grosso envelope pardo, com as margens pretas. — Pediram o arquivo de Casa de Pedra. Aqui está. É desnecessário dizer que não pode sair desta sala. Quando não estiver lendo, deve ficar trancado no cofre.

— Quero começar o mais depressa possível.

— Acha que vai encontrar alguma coisa?

— Não sei onde mais procurar. A propósito, instalei-me numa sala no fim do corredor, O cofre fica aqui.

— Pode entrar e sair quando quiser — disse o embaixador. — O quanto contou ao major?

— Apenas o que fui instruído a contar. — McAllister olhou para Lin Wenzu, antes de acrescentar: — Ele se queixou com freqüência de que deveria ter mais informações. Talvez tenha razão.

— Não estou em condições de insistir na minha queixa, Edward. Londres foi firme, Sr. Embaixador. E é claro que aceitei as condições.

— Não quero que “aceite” nada, Major. Quero que se sinta mais assustado do que nunca em sua vida. Vamos deixar o Sr. McAllister entregue à sua leitura e daremos um passeio. Ao entrar, vi um jardim grande e atraente. Quer me acompanhar?

— Seria um privilégio, senhor.

— Não sei se é mesmo um privilégio, mas posso garantir que é necessário. Deve compreender tudo, pois precisa encontrar a mulher de qualquer maneira.

Marie estava de pé junto à janela do apartamento de Catherine

Staples, contemplando a atividade lá embaixo. As ruas estavam apinhadas, como sempre, e ela experimentava um impulso quase irresistível de sair do apartamento e caminhar anônima entre as multidões, dar uma volta pela Casa Asiática, na esperança de encontrar David. Pelo menos estaria em movimento, olhando, escutando, esperando... não pensando em silêncio, quase enlouquecendo. Mas não podia sair; dera sua palavra a Catherine. Prometera ficar no apartamento, não permitir a entrada de ninguém e atender ao telefone apenas se uma segunda chamada imediata fosse precedida por dois toques da campainha. Seria Staples na linha.

A querida Catherine, a competente Catherine... a assustada Catherine. Ela tentara esconder seu medo, mas estava patente em suas perguntas, formuladas muito depressa, com bastante intensidade, em suas reações às respostas, sempre aturdida, com freqüência acompanhadas por uma falta de fôlego, enquanto os olhos se desviavam, os pensamentos obviamente em disparada. Marie não compreendera, mas sabia que Staples tinha um profundo conhecimento do mundo clandestino do Extremo Oriente; e quando uma pessoa informada tentava esconder seu medo pelo que ouvia, então havia muito mais na história do que sabia a pessoa que a contava.

O telefone tocou. Duas vezes. Silêncio. Depois uma terceira. Marie correu para o telefone na mesinha ao lado do sofá e atendeu ainda no início do terceiro toque da campainha.

— Alô?

— Marie, quando o mentiroso do McAllister falou com você e seu marido, mencionou um cabaré no Tsim Sha Tsui, se bem me lembro. Estou certa?

— Está, sim. Ele disse que uma Uzi... trata-se de uma arma...

— Sei o que é, minha cara. A mesma arma que foi supostamente usada para matar a esposa do taipan e seu amante em Macau, não é mesmo?

— É, sim.

— Mas ele disse alguma coisa... qualquer coisa... sobre os homens que foram mortos no cabaré em Kowloon?

Marie pensou por um momento.

— Acho que não. O ponto que ele queria ressaltar era a arma.

— Tem certeza?

— Tenho, sim. Eu me lembraria.

— Também acho, Marie.

— Já reconstituí aquela conversa mil vezes. Descobriu alguma coisa?

— Descobri. Não ocorreu qualquer assassinato como o que McAllister descreveu no Hotel Lisboa, em Macau.

— O caso foi abafado. O banqueiro pagou.

— Mas nem de longe o que a minha fonte impecável pagou... em mais do que dinheiro. Com o carimbo muito cobiçado de seu gabinete, que pode levar a lucros maiores e por muito tempo. Em troca de informações, é claro.

— O que está querendo dizer, Catherine?

— Que esta é a operação mais inepta de que já ouvi falar ou um plano brilhantemente concebido para envolver seu marido por meios que ele nunca teria considerado e com os quais certamente jamais concordaria. Desconfio que é a segunda hipótese.

— Por que diz isso?

— Um homem chegou esta tarde ao Aeroporto Kai-tak, um estadista que sempre foi muito mais que um diplomata. Todos sabemos disso, mas o mundo ignora. Sua chegada foi registrada por todo mundo. Ele hesitou quando os meios de comunicação tentaram entrevistá-lo, alegando que estava exclusivamente em ferias em sua amada Hong Kong.

— E daí?

— Ele nunca tirou férias em toda a sua vida.

McAllister saiu apressado para o jardim murado, com suas treliças e móveis de ferro batido brancos, as fileiras de roseiras e laguinhos cheios de pedras. Guardara o arquivo de Casa de Pedra no cofre, mas as palavras estavam indelevelmente gravadas em sua mente. Onde eles estavam? Onde ele estava?

Ali! Sentados em dois bancos de concreto, de frente um para o outro, por baixo de uma cerejeira, Lin inclinado para a frente, hipnotizado. McAllister não pôde mais se conter; saiu correndo. Não tinha mais fôlego quando alcançou a árvore, olhando para o major do Setor Especial do MI-Seis.

— Lin, quando a esposa de Webb falou com o marido pelo telefone... a ligação que você cortou... o que ela disse exatamente?

— Começou a falar sobre uma rua de Paris arborizada, creio que ela disse que eram suas árvores prediletas — respondeu Lin, espantado. — Era evidente que ela estava tentando dizer a ele onde se encontrava, só que errou completamente.

— Ao contrário, ela estava totalmente certa! Quando conversamos, você também contou que ela disse a Webb que “as coisas foram terríveis” naquela rua em Paris ou algo parecido...

— Foi de fato o que ela disse — confirmou o major.

— Mas que eles estariam melhor lá.

— Ela também disse isso.

— Em Paris um homem foi morto na embaixada, um homem que tentou ajudar os dois!

— O que está tentando dizer, McAllister? — interveio Havilland.

— A referência às árvores na rua não tem qualquer significado, Sr. Embaixador, o que já não acontece com a alusão à sua árvore predileta. O bordo, a folha de bordo! O símbolo do Canadá! Não há embaixada canadense em Hong Kong, mas existe um consulado. Ë o ponto de encontro dos dois. É o padrão. É Paris de novo!

— Não alertou todas as embaixadas amigas... e os consulados?

— Mas que diabo! — explodiu o subsecretário de Estado. — O que eu ia dizer? Já esqueceu que estou sob um juramento de silêncio, senhor?

— Tem toda razão. A censura é merecida.

— Não pode amarrar por completo as nossas mãos, Sr. Embaixador — disse Lin. — E uma pessoa que respeito profundamente, mas alguns de nós também merecem um pouco de respeito, se vamos cumprir nossas funções. O mesmo respeito que acaba de me conceder ao me relatar a história assustadora. Sheng Chou Yang... é incrível!

— A discrição deve ser absoluta.

— E será — declarou o major.

— O consulado canadense —murmurou Havilland. — Providencie-me a lista de todo o seu pessoal.


 

O telefonema veio às cinco horas da tarde, e Bourne estava preparado. Não houve troca de nomes.

— Está tudo acertado — disse o interlocutor. — Devemos estar na fronteira pouco antes das nove da noite, quando há a troca da guarda. Seu visto de Shenzen será examinado e os carimbos de borracha serão acionados, mas nenhum vai tocar no papel. Depois de entrar, estará entregue à sua própria sorte. Mas não atravessou a fronteira por Macau.

— E como poderá ser a volta? Se o que você me disse é verdade e tudo correr bem, haverá alguém comigo.

— Não serei eu. Vou levá-lo pela fronteira e até o local. Depois disso, irei embora.

— Isso não responde à minha pergunta.

— Não é tão difícil quanto entrar, a menos que seja revistado e encontrem contrabando.

— Não haverá nenhum.

— Então sugiro embriaguez. Não é tão raro assim. Há um aeroporto nos arredores de Shenzen usado por viajantes especiais...

— Sei disso.

— Talvez possa alegar que estava no avião errado, o que também não é tão raro assim. Os horários são terríveis na China.

— Quanto por esta noite?

— Quatro mil, Hong Kong e um relógio novo.

— Combinado.

Cerca de quinze quilômetros ao norte da aldeia de Gongbei as colinas começam a subir e logo se transformam numa serra, com pequenas montanhas cobertas por florestas densas. Jason e seu ex-adversário na viela de Macau foram avançando pela estrada de terra. O chinês parou de repente e olhou para as colinas.

— Mais cinco ou seis quilômetros e chegaremos a um campo. Vamos atravessá-lo e subir por um segundo nível de bosques. Precisamos tomar muito cuidado.

— Tem certeza de que eles estarão lá?

— Transmiti a mensagem. Se houver uma fogueira de acampamento, então eles estão lá.

— O que dizia a mensagem?

— Exigia uma conferência.

— Por que no outro lado da fronteira?

— Só podia ser no outro lado da fronteira. Isso também era parte da mensagem.

— Mas você não sabe o motivo.

— Sou apenas o mensageiro. As coisas não estão em equilíbrio.

— Disse isso ontem à noite. Não pode explicar o que significa?

— Não posso explicar para mim mesmo.

— Poderia ser porque a conferência tinha de ocorrer aqui, na China?

— Sem dúvida isso é parte da história.

— E tem mais?

— Wen ti — disse o guia. — Perguntas que derivam de sentimentos.

— Acho que compreendo.

E Jason compreendia mesmo. Tinha as mesmas dúvidas, os mesmos sentimentos, depois que vira o assassino que se dizia chamar Bourne viajando num veículo oficial da República Popular.

— Foi generoso demais com o guarda. O relógio era muito caro.

— Posso precisar dele.

— Talvez ele não esteja no mesmo posto.

— Posso encontrá-lo.

— Ele vai vender o relógio.

— Não tem problema. Darei outro.

Abaixados, eles correram pelo mato alto do campo, um trecho de cada vez, Bourne seguindo o guia, os olhos esquadrinhando incessantemente os flancos e a frente, encontrando sombras na escuridão... e que ainda não era uma escuridão total. Nuvens rápidas e baixas encobriam a lua, mas de vez em quando jatos de luz projetavam-se por breves momentos, iluminando a paisagem. Alcançaram uma área de árvores altas e começaram a subir. O chinês parou e virou-se, levantando as mãos.

— O que foi? — sussurrou Jason.

— Devemos ir agora muito devagar, sem fazer barulho.

— Patrulhas?

O guia deu de ombros.

— Não sei. Não há harmonia.

Foram subindo pela floresta densa, parando a cada guincho de um pássaro perturbado e o subseqüente adejar de asas, deixando o momento passar. O murmúrio da mata era constante e envolvente, os grilos empenhados em sua permanente sinfonia, o pio de uma coruja solitária respondido por outra, pequenas criaturas disparando por entre as moitas. Bourne e o guia chegaram ao fim das árvores altas; havia um segundo campo inclinado de mato alto à frente e podiam divisar à distância os contornos escuros e irregulares de outra floresta subindo.

Havia também outra coisa. Um clarão no topo da colina seguinte, no cume das matas. Era uma fogueira de acampamento, a fogueira de acampamento! Bourne teve de fazer um esforço para se controlar, para não se levantar e sair correndo pelo campo, subir o mais depressa possível até a fogueira. A paciência era tudo agora, e se encontrava num ambiente escuro, algo que conhecia muito bem; memórias vagas lhe diziam para confiar em si mesmo... diziam que ele era o melhor que existia. Atravessaria o campo e subiria em silêncio até o topo da floresta; encontraria um lugar na mata que lhe proporcionasse uma visão nítida da fogueira, do ponto de encontro. Esperaria e observaria; e saberia quando entrar em ação. Já fizera isso muitas vezes antes... os detalhes específicos lhe escapavam, mas não o padrão. Um homem se afastaria e, como um felino espreitando em silêncio na floresta, ele seguiria esse homem, até chegar o momento propício. Mais uma vez, saberia que momento seria, e o homem seria seu.

Marie, não vou falhar desta vez. Posso me movimentar agora com uma espécie de pureza terrível... sei que isso parece um absurdo, mas é verdade... Posso odiar com pureza... creio que foi essa a minha origem. Três corpos sangrando, flutuando à margem de um rio, me ensinaram a odiar. Uma marca de mão feita com sangue numa porta no Maine me ensinou a reforçar esse ódio e nunca mais permitir que torne a acontecer. Não discordo muitas vezes de você, meu amor, mas estava enganada em Genebra, enganada em Paris. Eu sou um matador.

— O que está havendo com você? — sussurrou o guia, aproximando a cabeça de Jason. — Não está acompanhando meu sinal!

— Desculpe. Eu estava pensando.

— Também estou, peng you! Por nossas vidas!

— Não precisa se preocupar. Pode ir embora agora. Estou vendo a fogueira lá em cima. — Bourne tirou o dinheiro do bolso. — Prefiro ir sozinho. Há menos possibilidade de se avistar um homem do que dois.

— E se houver outros homens... patrulhas? Você me venceu em Macau, mas não sou totalmente desprovido de valor nesse aspecto.

— Se há muitos homens, só estou interessado em um.

— Mas por quê?

— Quero uma arma. Não pude me arriscar a atravessar a fronteira com uma.

— Aiya!

Jason entregou o dinheiro ao guia.

— Está tudo aí. Nove mil e quinhentos. Quer voltar para o bosque e contar? Tenho uma lanterna pequena.

— Não se pode duvidar do homem que o venceu. A dignidade não admitiria tamanha descortesia.

— Suas palavras são maravilhosas, mas não servem para

comprar um diamante em Amsterdam. Vá embora agora, suma daqui. O território é meu.

— E aqui está a minha arma. — O guia tirou-a do cinto e entregou-a a Bourne, enquanto pegava o dinheiro. — Use-a, se precisar. O pente está cheio. Nove balas. Não há registro, não há como descobrir sua origem. O Francês me ensinou.

— Passou pela fronteira com esta arma?

— Você comprou o relógio, eu não. Poderia largar num saco de lixo, mas depois vi a cara do guarda. Não vou mais precisar dela.

— Obrigado. Só quero dizer mais uma coisa: se mentiu para mim, haverei de encontrá-lo. Pode contar com isso.

— As mentIras não seriam minhas e receberia o seu dinheiro de volta.

— Você é demais.

— Porque você me derrotou. Devo ser honrado em todas as coisas.

Bourne foi avançando devagar, bem devagar, pela extensão de mato alto, cheio de urtigas, repelindo os espinhos do pescoço e testa, satisfeito pelo casaco de náilon que o protegia. Sabia instintivamente uma coisa que o guia ignorava, o motivo pelo qual não queria que o chinês o acompanhasse. Um campo com mato alto era o lugar mais lógico para se postar patrulhas; o mato se mexia quando intrusos escondidos rastejavam através dele. Por isso, era necessário observar o mato balançando do solo e seguir na direção das brisas predominantes, aproveitar as súbitas lufadas de vento que desciam das montanhas.

Ele podia divisar o começo do novo trecho de floresta, as árvores se elevando à beira do mato alto. Começou a se erguer para uma posição agachada e no instante seguinte tornou a baixar o corpo, permaneceu imóvel. Lá na frente, à sua direita, um homem estava parado na margem do campo, um rifle nas mãos, observando o mato ao luar intermitente, procurando por um padrão nas hastes que se curvavam às brisas. Uma rajada de vento desceu turbilhonando das montanhas. Bourne aproveitou para avançar, chegando a três metros do guarda. Palmo a palmo, rastejou até a beira do campo; estava agora paralelo ao homem, cuja concentração se focalizava à frente, não nos flancos. Jason se adiantou até poder olhar entre as hastes. O guarda olhou para a esquerda. Agora!

Bourne levantou-se de um pulo e, correndo, lançou-se para cima do homem. Em pânico, o guarda virou instintivamente a coronha do rifle, a fim de se defender do ataque súbito. Jason agarrou o cano, torcendo-o por cima da cabeça do homem e acertando no crânio exposto, ao mesmo tempo em que batia com o joelho em seu tórax. O guarda arriou. Bourne arrastou rapidamente o corpo para o mato alto, fora de vista. No mínimo de tempo possível, Jason tirou o blusão do guarda e rasgou a camisa nas costas, em tiras. Momentos depois o homem estava amarrado, de tal maneira que qualquer movimento apertava ainda mais as correias improvisadas. A boca estava amordaçada, uma manga rasgada dando a volta pela cabeça para manter a mordaça no lugar.

Normalmente,como em ocasiões anteriores — Bourne sabia por instinto que esse fora o curso habitual de eventos similares — ele não perderia tempo em sair correndo do campo, subindo o trecho de floresta, na direção da fogueira. Em vez disso, porém, estudou o vulto inconsciente do oriental estendido no chão; algo o perturbava... algo que não estava em harmonia. Para começar, esperava que o guarda estivesse no uniforme do exército chinês, pois recordava nitidamente a visão do veículo oficial em Shenzen e sabia quem estava lá dentro. Mas não era apenas a ausência de um uniforme; estranhava também as roupas do homem. Eram ordinárias e sujas, malcheirosas das manchas de comida gordurosa. Inclinou-se e virou o rosto do homem, abrindo sua boca; havia poucos dentes, enegrecidos pela deterioração. Que tipo de guarda era aquele? Que tipo de patrulha? Era um rufião, sem dúvida experiente, um criminoso embrutecido, contratado nas ruas miseráveis do Oriente, onde a vida era barata e de um modo geral não tinha a menor importância. Contudo, os homens na “conferência” lidavam com dezenas de milhares de dólares. O preço que pagavam por uma vida era muito alto. Alguma coisa não estava em harmonia.

Bourne pegou o rifle e saiu rastejando do mato. Não vendo nada, não ouvindo nada além dos murmúrios da floresta à sua frente, levantou-se e correu para as árvores. Subiu depressa, sem fazer barulho, parando como antes a cada guincho de um pássaro, a cada adejar de asas, a cada interrupção abrupta da sinfonia dos grilos. Não rastejava agora, mas avançava com as pernas meio dobradas, segurando o rifle pelo cano, um porrete, se houvesse necessidade. Não podia haver tiros, a menos que sua vida dependesse disso, não podia alertar a presa. A armadilha estava se fechando, era agora apenas uma questão de paciência... paciência e a espreita final, quando as garras da armadilha se fechariam de maneira implacável. Chegou ao topo da floresta, deslizando em silêncio por trás de um bloco de pedra, à beira do local do acampamento. Sem fazer barulho, largou o rifle no chão, tirou do cinto a pistola que o guia lhe dera e espiou além da rocha.

E divisou o que esperava encontrar lá embaixo. Um soldado estava parado ali, de uniforme, um revólver num coldre na cintura, seis ou sete metros à esquerda da fogueira. Era como se quisesse ser visto, mas não identificado. Fora de harmonia. O homem olhou para o relógio; a espera começara.

Durou quase uma hora. O soldado fumara cinco cigarros; Jason permanecera imóvel, mal respirando. E de repente aconteceu, lentamente, sutilmente, sem trombetas a anunciar, uma entrada desprovida de dramaticidade. Um segundo vulto apareceu; emergiu calmamente das sombras, abrindo os últimos galhos ao surgir. E, sem qualquer aviso, relâmpagos caíram do céu noturno, queimando a cabeça de David Webb, atordoando a mente de Jason Bourne.

Pois quando o homem entrou no clarão da fogueira, Bourne arquejou, apertando com toda força o cano da arma para não gritar... ou não matar. Estava olhando para um fantasma de si mesmo, uma aparição obsedante do passado que voltava para espreitá-lo. Não importava agora quem era o caçador. O rosto era o seu e ao mesmo tempo não era... talvez o rosto que poderia ter sido antes de os cirurgiões mudarem-no para ser o rosto de Jason Bourne. Como o corpo esguio e firme, o rosto era mais jovem — mais jovem do que o mito que estava imitando —, e naquela juventude estava a força... a força de um Delta de Medusa. Era simplesmente inacreditável. Até mesmo o jeito de andar era igual, cauteloso, como um felino, os braços compridos balançando dos lados, tão obviamente eficientes nas artes de matar. Era Delta, o Delta de que ele fora informado, o Delta que se tornara Caim e finalmente Jason Bourne. Estava olhando para si mesmo e ao mesmo tempo para outra pessoa, mas acima de tudo para um matador. Um assassino.

Um estalido a distância intrometeu-se nos sons da floresta nas montanhas. O assassino parou, depois afastou-se da fogueira e mergulhou para a direita, enquanto o soldado se jogava ao chão. Uma rajada ensurdecedora e ressonante irrompeu do meio das árvores; o matador rolou pela relva do acampamento, as balas levantando a terra por perto, e alcançou a escuridão das árvores. O soldado chinês estava apoiado num joelho, disparando freneticamente na direção do assassino.

E depois houve uma escalada na batalha estrondosa, não de um nível para o seguinte, mas em três estágios separados. As explosões foram imensas. Uma primeira granada destruiu o acampamento, seguindo-se uma segunda, desenraizando árvores, os galhos secos, soprados pelo vento, pegando fogo, e finalmente uma terceira, lançada para o alto, detonando com enorme força na área da mata de que a metralhadora disparara. E de repente havia chamas por toda parte. Bourne protegeu os olhos, dando a volta pelo bloco de rocha, a arma na mão. Uma armadilha fora preparada para o matador e ele caíra nela! O soldado chinês estava morto, a arma explodida, assim como a maior parte de seu corpo. Um vulto saiu em disparada subitamente da esquerda para o inferno que fora o acampamento, depois virou-se e correu por entre as chamas. Deu duas voltas, avistou Jason e disparou em sua direção. O assassino voltara, na esperança de matar aqueles que queriam matá-lo. Girando, Bourne pulou primeiro para a direita, depois para a esquerda, finalmente jogou-se no chão, os olhos fixados no homem a correr. Levantou- se e pulou para a frente. Não podia deixar o homem escapar! Correu pelo fogo furioso; o vulto à sua frente se esgueirava entre as árvores. Era o matador! O impostor que alegava ser o mito letal que enfurecera a Ásia, usando esse mito para seus propósitos pessoais, destruindo o original e a esposa que ele amava. Bourne correu como nunca correra antes, desviando-se das árvores e saltando sobre as moitas, com uma agilidade que negava os anos transcorridos entre Medusa e o presente. Estava de volta a Medusa! Era Medusa! E a cada dez metros encurtava a distância que os separavam em cinco. Conhecia as florestas, e cada floresta era uma selva, cada selva era sua amiga. Sobrevivera na selva; sem pensar — apenas sentindo —, conhecia suas curvaturas, trepadeiras, os buracos inesperados e as ravinas abruptas. Estava ganhando... ganhando! E no instante seguinte lá estava ele, o assassino apenas poucos passos à sua frente!

Com o que parecia ser a última reserva de energia em seu corpo, Jason investiu... Bourne contra Bourne! As mãos eram as garras de um puma ao agarrarem os ombros do vulto a correr à sua frente, os dedos se cravando na carne dura e osso, enquanto puxava o matador para trás, os calcanhares se fincando na terra, o joelho direito atingindo a espinha do homem. Sua fúria era tão intensa que conscientemente teve de lembrar a si mesmo para não matar. Continue vivo! Você é a minha liberdade, a nossa liberdade!

O assassino gritou, enquanto o verdadeiro Jason Bourne prendia seu pescoço numa chave de braço e virava a cabeça para a direita, forçando-o para baixo. Os dois caíram, o antebraço de Bourne comprimindo a garganta do impostor, a mão esquerda cerrada a golpear repetidamente o baixo-ventre do assassino, tirando o ar do corpo enfraquecido.

O rosto? O rosto? Onde estava o rosto que pertencia ao passado? A uma aparição que queria levá-lo de volta a um inferno que a memória apagara? Onde estava o rosto? Não era aquele!

— Delta! —.gritou o homem.

— Como foi que me chamou? — balbuciou Bourne.

— Delta! — repetiu o homem, a voz estridente, se contorcendo. — Caim é por Carlos, Delta é por Caim!

— Mas quem...

— D’Anjou! Eu sou d’Anjou! Medusa! Tam Quan! Não temos nomes, apenas símbolos! Pelo amor de Deus! Paris! O Louvre! Você salvou minha vida em Paris... como salvou tantas vidas em Medusa! Eu sou d’Anjou! Disse a você o que precisava saber em Paris! Você é Jason Bourne! O louco que foge de nós não passa de uma criação! Minha criação!

David Webb contemplou o rosto contorcido, o bigode grisalho perfeitamente aparado, os cabelos prateados que se derramavam sobre a cabeça envelhecida. O pesadelo voltara... estava na selva sufocante de Tam Quan, sem saída, com a morte ao redor. E de repente se encontrava em Paris, aproximando-se da escadaria do Louvre, ao sol ofuscante da tarde. Tiros. Carros derrapando, pessoas gritando. Tinha de salvar o rosto por baixo dele! Tinha de salvar o rosto de Medusa, que podia fornecer as peças que faltavam do insano quebra-cabeças!

— D’Anjou? — murmurou Jason. — Você é d’Anjou?

— Se me devolver a garganta — balbuciou o Francês —, eu lhe contarei uma história. E estou certo de que também tem uma história para contar.

Philippe d’Anjou contemplou as ruínas do acampamento, agora fumegantes. Fez o sinal-da-cruz, enquanto revistava os bolsos do “soldado” morto, retirando tudo de valioso que encontrou.

— Vamos soltar o homem lá embaixo quando partirmos — disse ele. — Não há outro acesso para este lugar. Foi por isso que o coloquei lá.

— E mandou que ele procurasse o quê?

— Como você, sou de Medusa. Os campos relvados... apesar do que possam pensar poetas e consumidores... são caminhos e armadilhas. Os guerrilheiros sabem disso. Nós sabíamos.

— Não poderia prever a minha chegada.

— Claro que não. Mas podia e previ cada movimento que minha criação faria. Ele deveria chegar sozinho. As instruções eram expressas... mas quem poderia confiar nele, muito menos eu?

— Não estou entendendo.

— É parte da história. Vai saber de tudo.

Desceram pela floresta, d’Anjou, mais velho, apoiando-se nas árvores para facilitar a descida. Chegaram ao campo, ouvindo os gritos abafados do guarda manietado ao entrarem pelo mato alto. Bourne cortou as tiras de pano com a faca e o Francês pagou ao homem.

— Zou ba! — gritou d’Anjou. O homem fugiu pela escuridão. — Ele não passa de um lixo. Todos não passam de lixo, mas não hesitam em matar por um preço e desaparecem.

— Tentou matá-lo esta noite, não é mesmo? Era uma armadilha.

— Isso mesmo. Achei que ele ficou ferido nas explosões. Foi por isso que parti em seu encalço.

— Pensei que ele tinha dado a volta para pegá-lo pela retaguarda.

— Faríamos isso em Medusa...

— Foi por isso que pensei que você era ele. — Jason sentia uma fúria repentina. — O que você fez?

— É parte da história.

— Quero ouvir tudo! Agora!

— Há um trecho plano a poucas centenas de metros daqui, naquela direção, à esquerda — disse o Francês, apontando. — Era um pasto, mas ultimamente o lugar tem sido usado por helicópteros que voam ao encontro de um assassino. Podemos sentar na extremidade para descansar... e conversar. Apenas uma precaução para o caso de o fogo atrair alguém da aldeia.

— Fica a oito quilômetros de distância.

— Não se esqueça de que estamos na China.

As nuvens haviam se dispersado, sopradas pelos ventos noturnos; a lua descia para o horizonte, mas ainda se encontrava bastante alta para iluminar as montanhas distantes. Os dois homens de Medusa sentaram-se no chão. Bourne acendeu um cigarro, enquanto d’Anjou dizia:

— Lembra de Paris, daquele café apinhado em que conversamos, depois da loucura no Louvre?

— Claro. Carlos quase nos matou naquela tarde.

— E você quase capturou o Chacal.

— Fiquei no quase. O que tem aquele café em Paris?

— Eu lhe disse na ocasião que voltaria à Ásia. Para Cingapura ou Hong Kong, talvez as Seychelles. A França nunca foi um bom lugar para mim. Depois de Dienbienphu... tudo o que eu tinha foi destruído, explodido por nossos próprios soldados... falar em reparações não tinha o menor sentido. Uma conversa vazia, de homens vazios. Foi por isso que ingressei em Medusa. O único meio possível de me recuperar era uma vitória americana.

— Lembro de tudo — disse Jason. — O que isso tem a ver com esta noite?

— Como é óbvio, voltei à Ásia. Como o Chacal me vira, tive de dar uma volta comprida, o que me proporcionou tempo para pensar. Precisava fazer uma avaliação objetiva das circunstâncias e possibilidades. Ao fugir por minha vida, meus recursos não eram amplos, mas também não eram patéticos. Corri o risco de voltar à loja na St. Honoré naquela tarde e para ser franco roubei até o último sou que lá encontrei. Conhecia a combinação do cofre e felizmente estava bem abastecido. Podia tranqüilamente comprar uma passagem para o outro lado do mundo, fora do alcance de Carlos, viver por muitas semanas sem pânico. Mas o que faria com o resto da minha vida? Os recursos acabariam se esgotando e meus talentos... tão aparentes no mundo civilizado... não me permitiriam viver o outono de minha vida no conforto de que me haviam privado. Mas eu não fora uma cobra na cabeça de Medusa à toa. Deus sabe que descobri e desenvolvi talentos que nunca sonhara possuir... e cheguei à conclusão, para ser franco, de que a moral não era um problema. Fora enganado e poderia enganar outros. E estranhos sem nome e sem rosto haviam tentado me matar várias vezes, o que.me permitia assumir a responsabilidade pela morte de outros estranhos sem nome e sem rosto. Pode perceber a simetria, não é mesmo? Ao serem removidas, as equações tomam-se abstratas.

— Tenho ouvido muitas besteiras —comentou Bourne.

— Então não está prestando atenção, Delta.

— Não sou Delta.

— Está bem. Bourne.

— Não sou... Ora, continue. Talvez eu seja mesmo.

— Comment?

— Rien. Continue.

— Ocorreu-me que independente do que lhe aconteceu em Paris... quer tenha vencido ou perdido, quer tenha sido morto ou poupado... Jason Bourne estava liquidado. E eu tinha certeza absoluta de que Washington jamais diria qualquer palavra de reconhecimento ou esclarecimento. Você simplesmente desapareceria. “Além de salvação”... creio que é essa a expressão.

— Sei disso. Então eu estava liquidado.

— Naturellement. Mas não haveria explicações, não podia haver. Mon Dieu, o assassino inventado por eles enlouquecera... e se matara! Não podia haver mesmo qualquer explicação. Os estrategistas recuam para os recessos mais escuros quando seus planos... “perdem o fio”, creio que é essa a expressão.

— Também a conheço.

— Bien. Pode então compreender a solução que encontrei para mim, para os últimos dias de um homem mais velho.

— Estou começando a perceber.

— Bien encore. Havia um vazio aqui na Ásia. Jason Bourne não existia mais, mas sua lenda permanecia viva. E há sempre homens dispostos a pagar pelos serviços de alguém tão extraordinário. Assim, eu sabia o que tinha de fazer. Era apenas uma questão de encontrar o pretendente certo...

— Pretendente?

— Está bem, o impostor, se prefere assim. E treiná-lo nas técnicas de Medusa, as técnicas do mais louvado membro daquela fraternidade criminosa extra-oficial. Fui para Cingapura e rebusquei as cavernas dos párias, muitas vezes temendo por minha vida, até que encontrei o homem. E posso acrescentar que não demorei muito. Ele estava desesperado, fugia para salvar a vida há quase três anos, mantendo-se sempre apenas poucos passos à frente daqueles que o caçavam. É um inglês, um ex-comando, que tomou um porre uma noite e matou sete pessoas nas ruas de Londres, num acesso de fúria. Por causa de sua excepcional folha de serviços, foi enviado para um hospital psiquiátrico no Kent, de onde fugiu e de alguma forma... só Deus sabe como... chegou a Cingapura. Dispunha de todos os instrumentos para o ofício, só era preciso refiná-los e orientá-los.

— Ele parece comigo. Como eu costumava parecer.

— Muito mais agora do que parecia antes. As feições básicas já existiam, assim como a compleição alta e o corpo musculoso; eram trunfos. Foi apenas uma questão de alterar um nariz um pouco proeminente e arredondar um queixo mais pontudo do que eu me lembrava que você tinha... como Delta, é claro. Você estava diferente em Paris, mas não tão radicalmente que eu não pudesse reconhecê-lo.

— Um comando:.. —murmurou Jason. —Combina perfeitamente. Quem é ele?

— Um homem sem nome, mas não sem uma história macabra — respondeu d’Anjou, olhando para as montanhas distantes.

— Sem nome?

— Ele jamais me deu nenhum que não negasse no momento seguinte.., nenhum sequer remotamente autêntico. Ele guarda esse nome como se fosse a única extensão de sua vida, a revelação levando inevitavelmente à sua morte. Claro que ele está certo. As circunstâncias atuais confirmam isso. Se eu tivesse um nome, poderia encaminhá-lo através de um contato cego às autoridades britânicas em Hong Kong. Os computadores seriam acionados e especialistas viriam de Londres, promovendo uma caçada humana como eu jamais poderia realizar. Nunca o pegariam vivo... ele não deixaria, e os britânicos não se importariam... e assim meus objetivos estariam atendidos.

— Por que os britânicos querem liquidá-lo?

— Basta dizer que Washington teve seus Mi Lais e sua Medusa, enquanto Londres tem uma unidade militar muito mais recente sob o comando de um psicótico homicida que deixou centenas de pessoas massacradas em sua esteira... sem muitas distinções entre inocentes e culpados. Ele está a par de muitos segredos, que se forem revelados podem levara violentas explosões de vingança por todo o Oriente Médio e África. O pragmatismo está em primeiro lugar, e você sabe disso. Ou deveria saber.

— Ele era o comandante? —indagou Bourne, aturdido.

— Não era um mero soldado, DeIta. Foi capitão aos vinte e dois anos e major aos vinte e quatro, quando era quase impossível se conseguir uma promoção, por causa da política de economia de Whitehall. Não tenho a menor dúvida de que de seria general a esta altura, se a sua sorte persistisse.

— Foi o que ele contou a você?

— Em momentos periódicos de embriaguez, quando as verdades mais terríveis podem aflorar... mas nunca disse o seu nome. Os acessos de embriaguez geralmente ocorrem uma ou duas vezes por mês, por vários dias a fio, quando ele tenta apagar no álcool o passado de aversão a si próprio. Mas sempre se mostrou bastante coerente antes das explosões, pedindo-me para amarrá-lo, confiná-lo, protegê-lo de si mesmo... E reconstituía acontecimentos horríveis do passado, a voz rouca, gutural, cavernosa. Descrevia cenas de tortura e mutilação, interrogatórios de prisioneiros com facas perfurando seus olhos, cortando os pulsos, os cativos sendo obrigados a olhar enquanto suas vidas se esvaíam das veias. Até onde pude juntar os fragmentos, calculo que ele comandou muitos dos mais perigosos e brutais ataques contra os levantes fanáticos do final dos anos setenta e início dos anos oitenta, do Iêmen aos banhos de sangue na África Oriental. Em um momento de exultação alcoólica, contou que o próprio Idi Amin parava de respirar à menção de seu nome, tão grande era a sua reputação de igualar... e até mesmo superar... a estratégia de brutalidade de Amin.

D’Anjou fez uma pausa, balançando a cabeça devagar e alteando as sobrancelhas, na aceitação gaulesa do inexplicável.

— Ele era subumano... é subumano... mas apesar disso um oficial e cavalheiro, por assim dizer, de inteligência excepcional. Um completo paradoxo, uma contradição total do homem civilizado... Ria do fato de seus homens desprezarem-no e chamarem-no de animal, mas nenhum deles jamais se atreveu a apresentar um protesto oficial.

— Por que não? — perguntou Jason, perturbado e angustiado pelo que estava ouvindo. — Por que nunca o denunciaram?

— Porque ele sempre os salvava... ou pelo menos à maioria... quando a batalha parecia perdida.

— Entendo... — murmurou Bourne, deixando o comentário flutuar nas brisas da montanha. — Não, não entendo! — A voz estava agora furiosa, como se ele se sentisse súbita e inesperadamente mortificado. — A estrutura de comando é sempre eficiente. Por que seus superiores o suportavam? Eles não podiam deixar de saber.

— Pelo que pude depreender de suas palavras, ele realizava as missões quando outros não podiam... ou não queriam fazer. Aprendeu o segredo que nós em Medusa aprendemos há muito tempo. Jogue de acordo com as condições mais implacáveis do inimigo. Mude as regras de acordo com a cultura. Afinal, a vida humana para os outros não é a mesma coisa que representa no conceito judaico-cristão. E como poderia ser? Para muitos, a morte é uma libertação de condições humanas insuportáveis.

— Respirar é respirar! — insistiu Jason, a voz áspera. — Existir é existir e pensar é pensar! — acrescentou David Webb. — Ele é um Neanderthal.

— Tanto quanto Delta foi, em determinadas ocasiões. E você nos tirou de muitas...

— Não diga isso! — protestou o homem de Medusa, interrompendo bruscamente o Francês. — Não era a mesma coisa!

— Mas certamente uma variação — insistiu d’Anjou. — Em última análise, os motivos realmente não importam, não é mesmo? Só os resultados. Ou não está interessado em aceitar a verdade? Houve um tempo em que viveu assim. Jason Bourne vive agora com mentiras?

— No momento, eu apenas vivo... de um dia para outro, de uma noite para outra... até que esteja tudo acabado. De um jeito ou de outro.

— Deve ser mais específico.

— Quando eu quiser ou precisar — respondeu Bourne, a voz gelada. — Quer dizer que ele é bom, hem? Seu comando... o major sem nome. Bom no que faz.

— Tão bom quanto Delta... talvez melhor. É que ele não tem consciência... absolutamente nenhuma. Já você, no entanto, por mais violento que fosse, apresentava relances de compaixão. Alguma coisa em seu íntimo assim o exigia. “Poupem este homem”, você dizia. “Ele é um marido, um pai, um irmão. Vamos incapacitá-lo,.mas deixá-lo vivo, permitir que volte a funcionar mais tarde.” Minha criação, o seu impostor, jamais faria isso. Ele quer sempre a solução final... a morte diante de seus olhos.

— O que aconteceu com ele? Por que matou todas aquelas pessoas cm Londres? Estar de porre não é motivo suficiente, não depois do que ele passou.

— É como se fosse um modo de viver a que não se pode renunciar.

— Você mantém a arma guardada, a menos que esteja ameaçado. Afora isso, pode convidar as ameaças.

— Ele não usou armas naquela noite em Londres... apenas as mãos.

— Como?

— Saiu pelas ruas à procura de inimigos imaginários... foi o que calculei de seus delírios. “Estava nos olhos deles!”, gritava o homem. “Está sempre nos olhos! Sabem quem eu sou, o que eu sou!” Era ao mesmo tempo assustador e tedioso, Delta. Nunca ouvi um nome, nenhuma referência específica, a não ser a Idi Amin, que qualquer soldado da fortuna bêbado pode usar para se promover. Envolver os britânicos em Hong Kong implicaria envolver a mim mesmo, e não posso fazer isso. Tudo é tão frustrante que resolvi voltar aos métodos de Medusa. Faça você mesmo. Ensinou-nos isso, Delta. A todo instante nos dizia... ordenava... para usarmos a imaginação. Foi o que fiz esta noite. E fracassei, como se poderia esperar de um velho.

— Responda à minha pergunta — insistiu Bourne. — Por que ele matou aquelas pessoas em Londres?

— Por um motivo tão banal quanto inútil... e bastante comum. Ele foi rejeitado, e seu ego não podia tolerar a rejeição. Duvido sinceramente que houvesse qualquer outra emoção envolvida. Como acontece com todas as suas indulgências, a atividade sexual não passa de uma descarga animal. Não há qualquer afeição, pois ele não tem capacidade para isso. Mon Dieu, ele estava tão certo!

— Mais uma vez. O que aconteceu?

— Ele voltou ferido de alguma missão particularmente brutal em Uganda, esperando retomar o relacionamento com uma mulher em Londres... alguém, posso imaginar, de nobre estirpe, como dizem os ingleses, sem dúvida uma volta ao passado. Mas ela se recusou a recebê-lo e contratou guardas armados para proteger sua casa em Chelsea. Dois desses guardas estavam entre as sete pessoas que ele matou naquela noite. A mulher alegou que ele tinha um temperamento incontrolável e que seus acessos de bebedeira o tornavam brutal... o que de fato acontecia. Para mim, no entanto, ele era o homem perfeito. Em Cingapura, segui-o quando saiu de um bar de bandidos e observei quando acuou dois assassinos num beco... contrebandiers que haviam ganhado muito dinheiro com uma venda de tóxicos naquela sórdida caverna no cais... encostando-os na parede e cortando suas gargantas com um único golpe de sua faca, para depois tirar o dinheiro de seus bolsos. Compreendi naquele instante que ele tinha tudo o que eu queria. Encontrara o meu Jason Bourne. Aproximei-me devagar, em silêncio, a mão estendida, com mais dinheiro do que ele tirara de suas vítimas. E conversamos. Foi o começo.

— Então Pigmalião criou sua Galatéia e o primeiro contrato que aceitou foi a Afrodite que lhe deu vida. Bernard Shaw adoraria essa história... mas eu tenho vontade de matar você.

— De que adiantaria? Você veio encontrá-lo esta noite e eu vim destruí-lo.

— O que é parte de sua história — murmurou David Webb, desviando os olhos do Francês e contemplando as montanhas em fogo, pensando no Maine e na vida com Marie, tão violentamente abalada. E, de repente, ele gritou, com a maior fúria: — Seu filho da puta! Eu poderia matá-lo! Tem alguma idéia do que fez?

— Essa é a sua história, Delta. Deixe-me primeiro acabar a minha.

— Conte tudo e direitinho... Eco. Não era esse o seu no me... Eco?

As lembranças estavam voltando.

— Era, sim. Você disse certa vez a Saigon que não podia viajar sem o seu “velho Eco”. Eu tinha de acompanhar o seu grupo, porque podia discernir problemas com as tribos e chefes de aldeias que outros não eram capazes de perceber... o que não tinha muito a ver com meu símbolo alfabético. Claro que não havia nada de místico. Eu passara dez anos nas colônias. Sabia quando os Quan-si estavam mentindo.

— Termine a sua história.

— Traição — disse d’Anjou, as palmas estendidas. — Assim como você foi criado, também criei meu Jason Bourne. E assim como você enlouqueceu, o mesmo aconteceu com a minha criação. Ele se virou contra mim, tornou-se a realidade que era a minha invenção. Esqueça Galatéia, Delta. Ele virou Frankenstein, sem nenhum dos tormentos do monstro. Rompeu comigo e começou a pensar por conta própria, a trabalhar para si mesmo. Depois que seu desespero passou... com a minha ajuda inestimável e o bisturi de um cirurgião... ele recuperou o senso de autoridade, assim como a arrogância, a feiúra. Considera-me uma insignificância. Foi assim que me chamou, uma “insignificância”! Uma não-pessoa insignificante que o usou! A mim, que o criei!

— Está querendo dizer que agora ele firma os seus próprios contratos?

— Contratos deturpados, grotescos e extraordinariamente perigosos.

— Mas eu o descobri através de você, por intermédio de

seu acerto no cassino de Kam Pek. Mesa Cinco. O telefone de um hotel em Macau e um nome.

— Um método de contato que ele acha conveniente manter. E por que não? A segurança é quase absoluta... e o que eu posso fazer? Procurar as autoridades e dizer “Tem um sujeito pelo qual sou responsável que insiste em usar o sistema que criei para que ele possa ser contratado para matar alguém”? Ele até usa o meu conduto.

— O Zhongguo ren com as mãos rápidas e os pés ainda mais rápidos?

D’Anjou fitou Jason nos olhos.

— Então foi assim que você conseguiu, como descobriu estes lugar. Delta não perdeu a classe, n’est-ce pas? O homem está vivo?

— Está, sim... e dez mil dólares mais rico.

— O cochon tem uma fome insaciável por dinheiro. Mas não posso criticá-lo. Eu costumava usá-lo. Pagava quinhentos para ele recolher e entregar uma mensagem.

— Foi isso que trouxe sua criação até aqui esta noite, a fim de que pudesse matá-lo? O que lhe deu tanta certeza de que ele viria?

— Um instinto de homem da Medusa e o conhecimento superficial de uma extraordinária ligação que ele fez, um contrato muito lucrativo e tão perigoso que poderia lançar Hong Kong em guerra, paralisar toda a colônia.

— Já ouvi essa teoria antes —comentou Jason, recordando as palavras de McAllister numa noite no Maine. — E continuo a não acreditar. Quando os matadores se matam uns aos outros, são eles que saem perdendo. Além de se exterminarem, fazendo com que os informantes saiam das toca pensando que podem ser os próximos.

— Se as vítimas são limitadas a um padrão tão conveniente, é claro que você está certo. Mas não quando incluem uma poderosa personalidade política de uma vasta e agressiva nação.

Bourne ficou um pouco surpreso e disse suavemente:

— China?

O Francês acenou com a cabeça.

— Cinco homens foram mortos no Tsim Sha Tsui...

— Sei disso.

— Quatro dos cadáveres não tinham a menor importância. O que já não acontecia com o quinto. Era o Vice-primeiro-Ministro da República Popular.

— Santo Deus!

Jason franziu o rosto, a imagem de um carro aflorando em sua mente. Um carro com as janelas escuras e um assassino lá dentro. Um veículo oficial do governo chinês.

— Minhas fontes dizem que houve um atrito entre o governo da colônia e Pequim, mas o pragmatismo e as aparências acabaram prevalecendo... desta vez. Afinal, para começo de conversa, o que o vice-primeiro-ministro estava fazendo em Kowloon? Um líder tão augusto do Comitê Central podia ser também um corrupto? Mas, como eu disse, foi apenas por esta vez. A verdade, Delta, é que minha criação precisa ser destruída, antes de aceitar outro contrato que poderia mergulhar a todos nós num abismo.

— Lamento, Eco, mas ele não pode ser morto. Precisa ser capturado e levado para alguém.

— E isso é parte de sua história?

— É sim.

— Conte-me tudo.

— Apenas o que você precisa saber. Minha esposa foi seqüestrada e trazida para Hong Kong. Para resgatá-la... e vou resgatá-la ou vocês todos vão morrer... tenho de entregar sua criação. E agora estou um passo mais próximo, porque você vai me ajudar... e ajudar para valer. Se não o fizer...

— As ameaças são desnecessárias, Delta — interrompeu o homem de Medusa. — Sei muito bem.o que pode fazer. Já o vi em ação. Quer o homem por motivos seus e eu o quero pelos meus. Estamos juntos na batalha.


 

Catherine Staples insistiu para que o seu convidado no jantar tomasse outro martíni de vodca, embora recusasse para si mesma, alegando que seu copo estava cheio pela metade.

— E também está vazio pela metade — disse o adido americano de trinta e dois anos, sorrindo débil e nervosamente, afastando os cabelos escuros da testa. — E estupidez da minha parte, Catherine. Lamento, mas não posso esquecer que você viu as fotografias... não importa que salvou minha carreira e provavelmente minha vida... ainda penso naquelas malditas fotografias.

— Ninguém mais as viu, com exceção do Inspetor Ballantyne.

— Mas você viu.

— Tenho idade bastante para ser sua mãe

— O que agrava a situação. Olho para você e me sinto terrivelmente envergonhado, sórdido demais.

— Meu ex-marido comentou certa ocasião que não havia nada que pudesse ou devesse ser considerado sórdido nas atividades sexuais. Desconfio que havia um motivo para que ele fizesse tal declaração, mas acontece que acho que tinha razão. Esqueça o que houve, John. Eu já esqueci.

— Farei o melhor possível. — Um garçom aproximou-se e o martíni foi pedido, com um sinal. — Desde o seu telefonema esta tarde que me sinto desesperado. Pensei que mais coisas haviam aflorado. Aquele foi um período de vinte e quatro horas em que viajei pelo espaço exterior.

— Você foi intensa e insidiosamente drogado. Nesse nível, não era responsável. E peço desculpas. Eu deveria ter dito que não tinha nada a ver com o nosso problema anterior.

— Se tivesse dito, eu poderia ter feito jus ao meu salário durante as últimas cinco horas.

— Foi negligente e cruel de minha parte. Desculpe.

— Desculpa aceita. Você é uma garota maravilhosa, Catherine.

— Agradeço por suas regressões infantis.

— Não aposte muito dinheiro nisso.

— Então não tome um quinto martíni.

— É apenas o segundo.

— Um pouco de lisonja nunca fez mal a ninguém.

Os dois riram baixinho, O garçom voltou com o drinque de John Nelson. Ele agradeceu e tornou a se virar para Staples.

— Tenho a impressão de que a perspectiva de lisonja não foi o que me valeu uma refeição grátis no Plume. Este lugar está fora do meu alcance.

— E do meu também, mas não do alcance de Ottawa. Você será relacionado como uma pessoa extremamente importante. O que é a pura verdade.

— Isso é ótimo. Uma coisa que ninguém jamais me disse. Ocupo um cargo muito bom aqui porque aprendi chinês. Calculei que em comparação com toda a turma das universidades de maior prestígio ingressando no serviço, um rapaz do Upper Iowa College precisaria de alguma vantagem.

— E você a tem, Johnny. O consulado gosta de você. Todos o têm em alta conta, como não podia deixar de ser.

— Se isso acontece, é graças a você e a Ballantyne... e apenas a vocês dois. — Nelson fez uma pausa, tomou um gole do martíni, olhando para Staples por cima do copo. Largou-o na mesa e acrescentou: — Qual é o problema, Catherine? Por que sou tão importante?

— Porque preciso de sua ajuda.

— Qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que eu possa fazer.

— Não tão depressa, Johnny. Estamos em águas profundas e até eu posso estar me afogando.

— Se alguém merece que eu jogue um salva-vidas, é você. Pondo de lado alguns problemas menores, nossos países são vizinhos e basicamente gostam um do outro... estamos do mesmo lado. O que é? Como posso ajudá-la?

— Marie St. Jacques... Webb — disse Catherine, observando atentamente o rosto do adido.

Nelson piscou, os olhos vagueando a esmo, em pensamento.

— Nada. O nome não significa absolutamente nada para mim.

— Muito bem. Vamos tentar outro. Raymond Havilland.

— Ah, agora a coisa muda. — O adido arregalou os olhos, inclinou a cabeça. — Todos estamos especulando a seu respeito. Ele não apareceu no consulado, nem mesmo procurou o nosso chefe, que está ansioso por ver sua fotografia nos jornais ao lado de Havilland. Afinal, Havilland é a própria classe... como uma entidade metafísica na profissão. Está por aí desde aquela história dos pães e peixes, e provavelmente foi o autor da façanha.

— Sabe então que ao longo dos anos o seu aristocrático embaixador tem se envolvido dom algo mais do que meras negociações diplomáticas.

— Ninguém jamais comenta, mas somente os ingênuos aceitam que ele se mantém numa posição impecável.

— Você é mesmo bom, Johnny.

— Apenas observador. Faço jus a uma parte do meu salário. Qual é a ligação entre um nome que conheço e outro que não conheço?

— É o que gostaria de saber. Tem alguma idéia do motivo da presença de Havilland aqui? Ouviu algum rumor?

— Não tenho a menor idéia do motivo pelo qual ele está aqui, mas sei que não vai encontrá-lo num hotel.

— Presumo que ele tem amigos ricos...

— Estou certo que tem; mas também não está com esses amigos.

— É mesmo?

— O consulado alugou discretamente uma casa em Victoria Peak, e um segundo contingente de fuzileiros voou do Havaí para guardá-lo. Nenhum de nós, nos escalões intermediários, sabia disso, até poucos dias atrás, quando aconteceu uma dessas coisas insignificantes. Dois fuzileiros jantaram no Wanchai e um deles pagou a conta com um cheque provisório, de um banco de Hong Kong. Você sabe como são os soldados e os cheques. O gerente não queria aceitar e pressionou o cabo. O garoto disse que nem ele nem seu companheiro haviam tido tempo para pegar dinheiro no banco e insistiu que o cheque era perfeitamente válido. Porque o gerente não telefonava para o consulado e falava com o adido militar?

— Um cabo esperto — comentou Staples.

— Um consulado não tão esperto — disse Nelson. — Os militares já haviam encerrado o expediente e a turma da segurança, em sua paranóia ilimitada com o sigilo, não relacionara o contingente em Victoria Peak. O gerente disse depois que o cabo mostrou um documento de identidade e parecia um bom rapaz, por isso resolveu correr o risco.

— O que foi sensato de sua parte. Provavelmente não o faria se o cabo tivesse se comportado de outra maneira. Mais uma vez, cabe o comentário: um fuzileiro esperto.

— Acontece que ele se comportou de outra maneira. Na manhã seguinte, no consulado. Protestou em voz tão alta que até eu ouvi... e olhe que minha sala fica no final do corredor. Queria saber o que os paisanos pensavam que eles estavam fazendo lá em cima, naquela montanha, como era possível que ainda não estivessem relacionados, apesar de já se encontrarem em Hong Kong há uma semana. Estava furioso, e um fuzileiro furioso não é brincadeira.

— E de repente todo o consulado sabia que havia uma casa guardada na colônia.

— Você é que disse, Catherine, não eu. Mas posso informar exatamente o que o memorando para todo o pessoal nos instruía a dizer... o mesmo chegou a nossas mesas uma hora depois que o cabo foi embora, depois de passar vinte minutos com os embaraçados palhaços da segurança.

— E o que foi instruído a dizer não é o que se acredita.

— Sem comentários — disse Nelson. — A casa em Victoria foi alugada para a conveniência e segurança de altas autoridades em trânsito do governo e representantes das corporações americanas que estão a negócios no território.

— Tudo besteira. Especialmente a segunda parte. Desde quando o contribuinte americano paga esses tipos de contas para a General Motors e ITT?

— Washington está ativamente encorajando a expansão do comércio, de acordo com a nossa política aberta para a República Popular. É coerente. Queremos tornar as coisas mais fáceis, mais acessíveis... e este lugar está cada vez mais apinhado. Tente arrumar uma reserva decente com dois dias de antecedência.

— Você parece que ensaiou isso.

— Sem comentários. Eu lhe contei apenas o que fui instruído a dizer caso você levantasse o assunto... o que estou certo que aconteceu.

— E é verdade. Tenho amigos em Victoria Peak que acham que a vizinhança está se deteriorando com tantos cabos por lá. — Staples tomou um gole de seu drinque. E depois perguntou, enquanto repunha o copo na mesa: — Havilland está lá em cima?

— É quase certo.

— Quase?

— Nossa agente de informações... sua sala fica ao lado da minha... queria tirar algum proveito de relações públicas da presença do embaixador. Perguntou ao chefe em que hotel estava o embaixador e foi informada de que ele não se encontrava em nenhum. Então na residência de quem? A mesma resposta. “Teremos de esperar até que ele nos procure, se é que isso vai acontecer”, declarou o nosso chefe. Ela chorou em meu ombro, mas a ordem foi inflexível. Nada de tentar descobri-lo.

— Ele está lá em cima no Peak — concluiu Staples. — Providenciou uma casa segura e montou uma operação.

— O que está relacionado com essa Marie St. Alguma Coisa Webb?

— St. Jacques. Exatamente.

— Quer me falar a respeito?

— Não agora... para o seu bem, tanto quanto para o meu. Se estou certa e alguém pensar que você me forneceu informações, pode ser transferido para Reikjavic sem uma suéter.

— Mas você disse que não sabia qual era a ligação, que gostaria de saber.

— No sentido de que não posso compreender os motivos, se é que existem. Sei apenas de um lado a história, e ele está repleto de lacunas. Posso estar enganada. — Catherine tomou outro gole de sua bebida. — Só você pode tomar a decisão, Johnny. Se for negativa, eu compreenderei. Preciso saber se a presença de Havilland aqui tem alguma relação com um homem chamado David Webb e sua esposa, Marie St. Jacques. Antes do casamento, ela era economista em Ottawa.

— Ela é canadense?

— E, sim. Vou explicar por que preciso saber, sem revelar muita coisa que possa metê-lo numa encrenca. Se a relação existir, terei que seguir um curso; se não houver, posso dar uma volta de 180 graus e ir no sentido contrário. No segundo caso, posso divulgar tudo. Talvez usar os jornais, rádio, televisão, qualquer coisa que espalhe a notícia e atraia o marido.

— O que significa que ele está à solta por aí — interveio o adido. — E você sabe onde a mulher está, o que outros ignoram.

— Como eu disse antes, você pega as coisas no ar.

— Mas se for o primeiro caso... se houver uma ligação com Havilland, uma possibilidade em que você acredita...

— Sem comentários. Se eu respondesse, estaria lhe dizendo mais do que você deve saber.

— Entendo. O caso é mesmo delicado. Deixe-me pensar um pouco. — Nelson pegou o copo, mas não bebeu o martíni. Tornou a largar o copo na mesa. — Que tal um telefonema anônimo que atendi?

— Como assim?

— Uma transtornada canadense, querendo informações sobre o marido americano desaparecido.

— Por que ela haveria de ligar para você? É uma mulher que conhece os círculos governamentais. Por que não o próprio cônsul?

— Ele não estava. Eu estava.

— Não gosto de desiludir os seus sonhos de glória, Johnny, mas você não é o segundo na cadeia de comando.

— Tem razão. E qualquer pessoa poderia conferir com a telefonista e verificar que não recebi nenhum telefonema.

Staples franziu o rosto, depois inclinou-se para a frente.

— Há uma maneira, se você estiver disposto a mentir mais um pouco. Baseia-se na realidade. Aconteceu mesmo e ninguém pode contestar.

— O que é?

— Uma mulher deteve-o na Garden Road, quando estava saindo do consulado. Ela não disse muita coisa, mas foi o suficiente para alarmá-lo. Não quis entrar porque estava assustada. Era a mulher transtornada à procura do marido americano desaparecido. Poderia até descrevê-la.

— Comece pela descrição — sugeriu Nelson.

Sentado em frente à mesa de McAllister, Lin Wenzu consultava suas anotações enquanto falava. O subsecretário de Estado escutava atentamente.

— A descrição não corresponde plenamente, mas as diferenças são pequenas e podem ser obtidas com facilidade. Cabelos penteados para trás e cobertos por um chapéu, ausência de maquilagem, sapatos sem saltos para reduzir a altura, mas não muito... é mesmo ela.

— E alegou que não podia reconhecer o nome de qualquer pessoa na lista que pudesse ser o seu suposto primo?

— Um primo em segundo grau, por parte de mãe. Um pouco forçado, mas bastante específico para ser crível. Segundo a recepcionista, ela estava bastante contrafeita, até nervosa. Levava uma bolsa que era uma imitação de Gucci tão óbvia que a recepcionista tomou-a por uma matuta atrasada. Uma mulher simpática, mas ingênua.

— Ela reconheceu o nome de alguém — declarou McAllister.

— Se isso aconteceu, por que não pediu para falar com ele? Não perderia tempo, nas circunstâncias.

— Provavelmente presumiu que transmitiríamos um alerta, que não podia correr o risco de ser reconhecida, não ali dentro.

— Não creio que ela se preocuparia com isso, Edward. Com o que ela sabe, tudo por que passou, pode ser extremamente convincente.

— O que ela pensa que sabe, Lin. Não pode ter certeza de coisa alguma. Será muito cautelosa, com medo de fazer um movimento errado. É seu marido que está por aí, e aceite a minha palavra... eu os vi juntos... ela faz tudo para protegê-lo. Roubou mais de cinco milhões de dólares só porque achou... corretamente, diga-se de passagem... que ele fora enganado por sua própria gente. Em sua opinião, ele merecia o dinheiro... eles mereciam... e Washington que se danasse.

— Ela fez isso?

— Havilland autorizou-me a informá-lo de tudo. Ela fez isso e escapou impune. Quem podia protestar? Ela tinha a Washington clandestina na palma da mão. Assustada e embaraçada... apenas uma encenação.

— Quanto mais sei, mais a admiro.

— Pode admirá-la quanto quiser, mas trate de encontrá-la.

— Por falar no embaixador, onde ele está?

— Participando de um almoço discreto com o Alto Comissário canadense.

— Vai contar tudo a ele?

— Não. Vai pedir sua cooperação cega, com um telefone na mesa para poder entrar em contato com Londres. E Londres vai instruir o comissário a fazer qualquer coisa que Havilland pedir. Está tudo acertado.

— Ele não perde tempo, hem?

— Não há ninguém como ele. Deve voltar a qualquer momento agora... já está até atrasado. — O telefone tocou e McAllister atendeu. — Alô?... Não, ele não está. Quem?... Claro, claro. Falarei com ele. — O subsecretário cobriu o bocal com a mão e informou ao major: —É o nosso cônsul... o americano.

— Aconteceu alguma coisa — disse Lin, bastante nervoso, levantando-se.

— Pois não, Sr. Lewis, aqui é McAllister. Quero que saiba o quanto estamos gratos por tudo, senhor. O consulado tem se mostrado muito cooperativo.

A porta se abriu de repente e Havilland entrou na sala.

— É o cônsul-geral americano, Sr. Embaixador — explicou Lin. — Creio que estava querendo lhe falar.

— Não tenho tempo para um de seus malditos jantares!

— Um momento por favor, Sr. Lewis. O embaixador acaba de chegar. Tenho certeza de que deseja falar com ele.

McAllister estendeu o fone para Havilland, que se aproximou rapidamente da mesa.

— O que é, Jonathan?

O corpo alto e esguio numa postura rígida, os olhos fixados num ponto invisível no jardim além da janela, o embaixador ficou escutando em silêncio por um longo tempo, antes de finalmente acrescentar:

— Obrigado, Jonathan. Fez o que era certo. Não diga absolutamente nada a ninguém e pode deixar que daqui para a frente cuidarei de tudo.

Havilland desligou, olhou alternadamente para McAllister e Lin.

— Nossa pista, se é que é uma pista, acaba de surgir, da direção errada. Não do consulado canadense, mas do americano.

— Não tem sentido — McAllister. — Não é Paris, não é a rua com sua árvore predileta, o bordo, a folha de bordo. Esse é o consulado canadense, não o americano.

— E por essa análise devemos ignorar a pista?

— Claro que não. O que aconteceu?

— Um adido chamado Nelson foi detido na Garden Road por uma canadense tentando encontrar o marido americano. Esse Nelson ofereceu-se a ajudá-la, a acompanhá-la até a polícia, mas ela se manteve irredutível. Não iria à polícia e também não iria com ele ao seu escritório.

— Ela deu alguma explicação? — perguntou Lin. — Pede ajuda e depois a recusa.

— Disse apenas que era pessoal. Nelson descreveu-a como uma mulher tensa e cansada. Identificou-se como Marie Webb e disse que o marido talvez tivesse ido ao consulado à sua procura. Nelson poderia perguntar se ele aparecera? Ela ligaria mais tarde.

— Não foi o que ela disse antes — protestou McAllister.

— Estava evidentemente se referindo ao que aconteceu com os dois em Paris, o que significava entrar em contato com um representante de seu governo, de seu país, o Canadá.

— Por que você insiste? — indagou Havilland. — Não é uma crítica, quero apenas saber o motivo.

— Não sei direito. Alguma coisa não está certa. Entre outras coisas, o major aqui já confirmou que ela passou pelo consulado canadense.

— É mesmo?

O embaixador virou-se para o homem do Setor Especial.

— A recepcionista confirmou. A descrição era bem próxima, levando-se em consideração que era uma pessoa treinada por um camaleão. A história era de que prometera à família procurar por um primo distante, cujo sobrenome esquecera. A recepcionista emprestou uma relação do pessoal diplomático e ela a examinou.

— Encontrou alguém que conhecia — interveio o subsecretário de Estado. — Fez contato.

— Pois aí está a sua resposta — declarou Havilland, firmemente. — Ela descobriu que o marido não fora a uma rua com bordos e por isso assumiu o curso seguinte mais óbvio. O consulado americano.

— E se identifica, quando é claro que sabe que há pessoas procurando-a por toda Hong Kong?

— Dar um nome falso não atenderia a seu propósito — respondeu o embaixador.

— Os dois falam francês. Ela poderia usar uma palavra francesa... toile, por exemplo, que significa web (teia).

— Sei o que significa, mas acho que você está exagerando.

— O marido compreenderia. Ela teria feito alguma coisa menos óbvia.

— Sr. Embaixador — interveio Lin Wenzu, desviando os olhos de McAllister lentamente —, ouvindo suas palavras para o cônsul americano, de que ele não deveria dizer absolutamente nada a ninguém e agora compreendo plenamente a sua preocupação com o sigilo, presumo que o Sr. Lewis não foi informado da situação.

— Correto, Major.

— Então como ele sabia que devia procurá-lo? É freqüente as pessoas se perderem aqui em Hong Kong. Um marido desaparecido ou uma esposa sumida não é um acontecimento raro.

Por um momento, a expressão de Haviiland revelou suas dúvidas.

— Jonathan Lewis e eu nos conhecemos há muito tempo

— disse ele, a voz sem a autoridade habitual. — Ele pode ser um bon vivant, mas não é um tolo... não estaria aqui, se fosse. E as circunstâncias em que a mulher deteve o seu adido... ora, Lewis me conhece e tirou as conclusões certas.

O diplomata virou-se para McAllister. Ao continuar a falar, sua autoridade voltou gradativamente.

— Ligue para Lewis, Edward. Diga a ele para determinar a esse Nelson que fique esperando por uma ligação sua. Eu preferia um contato menos direto, mas não há tempo. Quero que você o interrogue, sobre tudo e qualquer coisa que puder pensar. Ficarei escutando na extensão.

— Quer dizer que concorda — comentou o subsecretário. — Alguma coisa está errada.

— É verdade. — Havilland olhou para Lin. — O major percebeu, e eu não. Eu formularia de maneira um tanto diferente, mas é essencialmente o que o perturba. O problema não é por que Lewis me procurou, mas sim por que um adido foi a ele. Afinal, uma mulher nervosa diz que o marido está desaparecido, mas não quer ir à polícia, não quer entrar no consulado. Normalmente, uma pessoa assim seria ignorada como uma maluca. À primeira vista, não é um problema que se leve à atenção de um superpreocupado cônsul-geral. Ligue para Lewis.

— Está certo. Mas antes, eu gostaria de saber: correu tudo bem com o comissário canadense? Ele vai cooperar?

— A resposta à primeira pergunta é não, as coisas não foram muito bem. Quanto à segunda, ele não tem alternativa.

— Não estou entendendo.

Havilland deixou escapar um suspiro de irritação e cansaço.

— Por intermédio de Ottawa, ele vai nos fornecer uma lista de todas as pessoas de sua equipe que já tiveram qualquer contato com Marie St. Jacques... relutantemente. Essa é a cooperação que recebeu ordens para prestar. Mas se mostrou bastante irritado. Para começar, ele próprio participou de um seminário de dois dias com ela, há quatro anos. Calculou que provavelmente o mesmo já aconteceu com um quarto do consulado. Não que ela se lembre de todos, mas as pessoas certamente se lembram dela. Ela era “extraordinária”, foi a palavra que ele usou. E também é uma canadense que foi maltratada por um bando de imbecis americanos... e ele não teve o menor escrúpulo de usar a palavra... em alguma operação sinistra de retardados mentais... é verdade, ele falou mesmo “retardados mentais”... uma operação idiota, armada por esses mesmos imbecis... juro que ele repetiu a palavra... que nunca foi explicada de maneira satisfatória.

O embaixador fez uma breve pausa, sorrindo por um instante, tossindo uma risada curta.

— Foi uma conversa das mais revigorantes. Ninguém me falava assim desde que a minha querida esposa morreu. Preciso de mais coisas assim.

— Mas não disse a ele que era para o próprio bem da mulher? Que precisamos encontrá-la antes que lhe aconteça alguma coisa terrível?

— Tenho a nítida impressão de que o nosso amigo canadense tem sérias dúvidas sobre as minhas faculdades mentais. Ligue para Lewis. Só Deus sabe quando receberemos a lista. A folha de bordo provavelmente vai enviá-la de trem de Ottawa para Vancouver e depois no cargueiro mais lento para Hong Kong, onde se perderá na sala de correspondência. Enquanto isso, temos um adido que se comporta de forma muita estranha. Ele pula as cercas quando não há necessidade disso.

— Conheço John Nelson, senhor — disse Lin. — É muito inteligente e fala chinês fluentemente. E é bastante popular junto ao pessoal de consulado.

— E é ainda mais alguma coisa, Major.

Nelson desligou o telefone. Gotas de suor lhe haviam aflorado à testa; removeu-as com o dorso da mão, convencido de que se saíra do melhor modo possível, considerando-se tudo. Estava especialmente satisfeito por ter virado a investida das perguntas de McAllister contra o interrogador, embora diplomaticamente.

Por que se sentiu na obrigação de procurar o cônsul-geral?

Seu telefonema parece responder a essa pergunta, Sr. McAllister. Senti que ocorrera algo fora do normal. E achei que o cônsul deveria ser informado.

Mas a mulher recusou-se a ir à polícia; recusou-se até a entrar no consulado.

Como eu disse, senhor, era algo diferente. Ela estava nervosa e tensa, mas não era pirada.

Não era o quê?

Estava perfeitamente lúcida, pode-se mesmo dizer que controlada, apesar da ansiedade.

Entendo.

Não sei se entende mesmo, senhor. Não tenho a menor idéia do que o cônsul lhe disse, mas sugeri a ele que, tendo em vista a casa em Victoria Peak, os fuzileiros na guarda e a chegada do Embaixador Havilland, talvez fosse melhor entrar em contato com alguém aí em cima.

Foi você quem sugeriu?

Isso mesmo.

Por quê?

Não creio que servisse a qualquer propósito o fato de eu especular a respeito desses assuntos, Sr. McAllister. Não me dizem respeito.

Tem razão, está certo. Afinal... é isso mesmo. Mas precisamos encontrar aquela mulher, Sr. Nelson. Fui instruído a lhe dizer que seria de seu grande proveito se pudesse nos ajudar.

Quero ajudar de qualquer maneira, senhor. Se ela entrar em contato comigo outra vez, tentarei marcar um encontro em algum lugar e o avisarei. Eu sabia que estava certo ao fazer o que fiz, ao dizer o que disse.

Aguardaremos a sua ligação.

Catherine acertara em cheio, pensou John Nelson; havia uma tremenda ligação. E tão grande que ele não se atreveu a usar seu telefone no consulado para falar com ela. E quando isso acontecesse, haveria de pressioná-la com algumas perguntas. Confiava em Catherine, mas não estava à venda, apesar das fotografias e suas conseqüências. Levantou-se e encaminhou-se para a porta da sala. Uma consulta com o dentista lembrada de repente seria uma explicação suficiente. Percorrendo o corredor a caminho da recepção, pensou em Catherine Staples. Era uma das pessoas mais fortes que já conhecera, mas a expressão em seus olhos na noite anterior não transmitia força, mas sim uma espécie de medo desesperado. Era uma Catherine que ele nunca vira antes.

— Ele desviou as perguntas para seus próprios fins — comentou Havilland, passando pela porta, com o enorme Lin Wen zu em sua esteira. — Concorda, Major?

— Claro que concordo. O que significa que ele previu as perguntas. Estava preparado.

— O que significa que alguém o preparou!

— Nunca deveríamos tê-lo procurado — murmurou McAllister, sentando por trás da mesa, os dedos nervosos mais uma vez massageando a têmpora direita. — Quase tudo o que ele disse visava a arrancar uma resposta minha.

— Não podíamos deixar de procurá-lo —insistiu Havilland, — quanto menos não fosse para descobrir isso.

— Ele permaneceu sob controle. Eu o perdi.

— Não poderia se comportar de maneira diferente, Edward — disse Lin. Reagir de outra forma implicaria questionar seus motivos. Em suma, você o teria ameaçado.

— E no momento não queremos que ele se sinta ameaçado — concordou Havilland. — Está obtendo informações para alguém e precisamos descobrir quem é.

— E isso significa que a mulher de Webb entrou em contato com alguém que conhecia e contou tudo a essa pessoa.

McAllister inclinou-se para a frente, os cotovelos na mesa, as mãos tensamente cruzadas.

— No final das contas, você estava certo — disse o embaixador, fitando o subsecretário de Estado. — Uma rua com seus bordos prediletos. Paris. A repetição inevitável. Está bem claro. Nelson trabalha para alguém no consulado canadense... e quem quer que seja, está em contato com a mulher de Webb.

McAllister levantou os olhos.

— Então Nelson é um idiota ou um idiota ainda maior. Por sua própria admissão, ele sabe... ou ao menos presume... que está lidando com informações altamente delicadas, envolvendo um assessor direto de presidentes. Pode ser mandado para a prisão por conspirar contra o governo.

— Posso garantir que ele não é um idiota — declarou Lin.

— Nesse caso, alguém o está forçando a fazer isso contra a sua vontade... chantagem, provavelmente... ou ele está sendo pago para descobrir se existe alguma ligação entre Marie St. Jacques e esta casa em Victoria Peak. Não pode ser qualquer outra coisa.

Franzindo o rosto, Havilland sentou na cadeira diante da mesa.

— Dê-me um dia — acrescentou o major do MI-Seis. — Talvez eu consiga descobrir. Se puder, pegaremos quem quer que seja no consulado.

— Não — respondeu o diplomata, com grande experiência em operações secretas. — Tem até oito horas desta noite. Nem isso temos condições de assumir, mas se pudermos evitar uma confrontação e as possíveis conseqüências, devemos tentar. A moderação é essencial. Tente, Lin. Pelo amor de Deus, tente.

— E o que vai acontecer depois das oito horas, Sr. Embaixador?

— Vamos pegar o nosso esperto e evasivo adido e quebrá-lo, Major. Eu preferia usá-lo sem que ele soubesse, sem despertar alarmes, mas a mulher está em primeiro lugar. Oito horas, Major Lin.

— Farei tudo o que for possível.

— E se estivermos enganados — continuou Havilland, como se Lin Wenzu não tivesse falado —, se esse Nelson foi acionado como um cego e não sabe de nada, quero que todos os regulamentos sejam esquecidos. Não me importa como vai fazer, quanto custará em subornos ou o lixo que terá de usar para efetuar o serviço. Quero câmaras, telefones grampeados, vigilância eletrônica... qualquer coisa que puder acionar... em todas as pessoas daquele consulado. Alguém por lá sabe onde está a mulher. Alguém por lá a está escondendo.

— Catherine, sou eu, John — disse Nelson, pelo telefone público na Albert Road.

— Foi ótimo você telefonar — respondeu Staples prontamente. — Foi uma tarde cansativa. Precisamos tomar outro drinque um dia desses. Será.um prazer tomar a vê-lo depois de tantos meses e você poderá me falar sobre Canberra. Mas agora me diga uma coisa: Eu estava certa no que lhe contei?

— Precisamos nos encontrar, Catherine.

— Não vai dar nenhuma pista?

— Precisamos nos encontrar. Está livre agora?

— Tenho uma reunião dentro de quarenta e cinco minutos.

— Então mais tarde, por volta das cinco horas. Tem um lugar chamado Monkey Tree, em Wanchai, na Gloucester...

— Eu conheço. Estarei lá.

John Nelson desligou. Não havia mais nada que pudesse fazer agora, a não ser voltar ao consulado. Não podia se ausentar por três horas, não depois de sua conversa com o Subsecretário de Estado Edward McAllister; as aparências proibiam uma ausência assim. Ele já ouvira falar de McAllister; o subsecretário passara sete anos em Hong Kong, partindo apenas meses antes da chegada de Nelson. Por que voltara? Por que havia uma casa segura em Victoria Peak, com o Embaixador Havilland subitamente instalado lá? Acima de tudo, por que Catherine Staples estava tão assustada? Ele devia a própria vida a Catherine, mas precisava obter algumas respostas. Tinha de tomar uma decisão.

Lin Wenzu praticamente esgotara todas as suas fontes. Só uma lhe dera o que pensar. O Inspetor Ian Ballantyne, como geralmente acontecia, respondera às perguntas com outras perguntas, em vez de oferecer respostas concisas e objetivas. Era irritante, porque nunca se sabia se o louvado transferido da Scotland sabia ou não alguma coisa sobre um determinado assunto, nesse caso um adido americano chamado John Nelson.

— Já me encontrei com o homem várias vezes — dissera Ballantyne. — Parece inteligente. E fala a sua língua. Sabia disso?

— Minha “língua”, Inspetor?

— Poucos de nós falavam, mesmo durante a Guerra do Ópio. Não acha que foi um interessante período da história, Major?

— Guerra do Ópio? Eu estava falando sobre o adido John Nelson.

— Há alguma ligação?

— Com o que, Inspetor?

— A Guerra do Ópio.

— Se há, ele tem cento e cinqüenta anos de idade, embora o seu dossiê diga que está com trinta e dois anos.

— É mesmo? Tão jovem assim?

Mas Ballantyne usara pausas demais para deixar Lin satisfeito. Independente de qualquer coisa, o veterano policial nada revelaria se soubesse de algo. Todos os demais — da polícia de Hong Kong e Kowloon aos “especialistas” que trabalhavam para o consulado americano, obtendo informações por pagamento — atribuíram a Nelson a ficha mais limpa e respeitável do território. Se Nelson tinha um lado vulnerável, estava em sua ampla e indiscriminada busca de sexo; mas como era heterossexual e solteiro, tal comportamento devia ser aplaudido, e não condenado. Um “especialista” disse a Lin que ouvira Nelson ser advertido a fazer um exame médico periódico. Não era nenhum crime; o adido era um garanhão.

O telefone tocou e Lin atendeu.

— Alô?

— Nosso alvo foi até o Peak Tram e pegou um táxi para Wanchai. Está num café chamado Monkey Tree. Estou com ele. Posso vê-lo.

— Fica fora de mão e está sempre apinhado — comentou o major. — Alguém se juntou a ele?

— Não. Mas ele pediu uma mesa para duas pessoas.

— Estarei aí o mais depressa possível. Se você tiver de partir, faremos contato pelo rádio. Está no Veículo Sete, não é?

— Veículo Sete, senhor... Espere! Uma mulher se encaminha para a mesa. Ele está se levantando.

— Pode reconhecê-la?

— Não. Está muito escuro.

— Pague ao garçom. Atrase o serviço. Nada muito óbvio, apenas por alguns minutos. Usarei nossa ambulância, com a sirene ligada, até um quarteirão daí.

— Catherine, eu lhe devo muito e quero ajudá-la por todos os meios que puder, mas preciso saber sobre o que me contou.

— Há uma ligação, não é mesmo? Havilland e Marie St. Jacques.

— Não vou confirmar... não posso confirmar... porque não falei com Havilland. Mas falei com outro homem, um homem sobre o qual já ouvi muitos comentários e que serviu aqui, uma inteligência de primeira ordem... e ele parecia tão desesperado quanto você ontem à noite.

— Eu parecia assim ontem à noite? — disse Staples alisando os cabelos com alguns fios brancos. — Não sabia disso.

— Pare com isso, Catherine. Talvez não em suas palavras, mas na maneira como falava. A estridência estava logo abaixo da superfície. Parecia eu quando me entregou as fotografias. Sei identificar a atitude.

— Talvez estejamos envolvidos em alguma coisa de que nem deveríamos chegar perto, Johnny, algo tão lá em cima, nas nuvens, que nós... eu... não temos conhecimentos para tomar uma decisão apropriada.

— Mas eu tenho de tomar uma decisão, Catherine. —Nelson levantou os olhos para o garçom. — Onde estão os nossos drinques?

— Não estou muito ansiosa.

— Mas eu estou. Devo tudo a você, gosto de você e sei que não usaria as fotografias contra mim, o que ainda piora tudo...

— Eu lhe dei todas as fotografias que existiam e queimamos os negativos juntos.

— Portanto, minha dívida é real... será que não percebe isso? A criança tinha... doze anos?

— Você não sabia disso. Estava drogado.

— Meu passaporte para o esquecimento. Não há nenhuma Secretaria de Estado em meu futuro, apenas a secretaria da pornografia infantil. Uma viagem terrível!

— Já acabou e você está sendo melodramático. Quero apenas que me diga se há uma ligação entre Havilland e Marie St. Jacques... e acho que você pode me dar essa informação. Por que é tão difícil? Saberei então o que fazer.

— Se eu der a informação, terei de contar a Havilland o que lhe disse.

— Então me dê uma hora.

— Por quê?

— Porque tenho várias fotografias em meu cofre no consulado — mentiu Catherine Staples.

Nelson empertigou-se na cadeira, aturdido.

— Oh, Deus, não posso acreditar!

— Procure compreender, Johnny. Todos estamos jogando duros agora, no interesse de nossos patrões... nossos respectivos países, se prefere assim. Marie St. Jacques era minha amiga... é minha amiga... e sua vida tornou-se nada aos olhos de homens arrogantes que dirigem uma operação secreta, homens que não dão a menor importância a ela e a seu marido. Usaram os dois e depois tentaram matá-los. Vou lhe dizer um coisa, Johnny. Detesto a sua CIA e as chamadas Operações Consulares de seu Departamento de Estado. Não é apenas porque eles são uns filhos da puta, mas também porque são filhos da puta estúpidos. E se eu sentir que está sendo montada uma operação, outra vez usando os dois, pessoas que passaram por muito sofrimento, tenciono descobrir por que e agir de acordo. Mas chega de jogar com as vidas deles. Sou bastante experiente, o que não acontece com eles, e estou bastante zangada... mais do que isso, furiosa... para exigir respostas.

— Oh, Deus...

O garçom chegou com os drinques. Staples levantou os olhos para indicar seu agradecimento e sua atenção foi atraída para um homem junto a uma cabine telefônica no apinhado corredor externo, observando-os. Ela desviou os olhos.

— O que vai ser, Johnny? Vai confirmar ou negar?

— Confirmo — sussurrou Nelson, estendendo a mão para o seu copo.

— A casa em Victoria Peak?

— Isso mesmo.

— Quem era o homem com quem você falou... o homem que já serviu aqui?

— McAllister... o Subsecretário de Estado McAllister.

— Essa não!

Havia um movimento excessivo no corredor externo. Catherine protegeu os olhos e virou a cabeça ligeiramente, o que ampliou sua visão periférica. Um homem imenso entrou e encaminhou-se para o telefone na parede. Só havia um homem assim em toda Hong Kong. Era Lin Wenzu, do Setor Especial do MI-Seis! Os americanos haviam recrutado o melhor, mas ele podia ser o pior para Marie e seu marido.

— Você não fez nada de errado, Johnny — disse Staples levantando-se. — Vamos conversar mais um pouco, mas agora preciso ir ao banheiro.

— Catherine...

— O que é?

— Jogo duro?

— Muito duro, meu querido.

Staples passou por um Lin a se encolher e se virar. Entrou

no banheiro, esperou alguns segundos e depois saiu junto com duas outras mulheres, das quais se separou mais adiante, continuando a seguir pelo corredor, até a cozinha do Monkey Tree. Sem dizer nada para os espantados garçons e cozinheiros, encontrou a porta de serviço e saiu. Correu pelo beco até Gloucester Road, virou à esquerda, acelerando o passo, até encontrar uma cabine telefônica. Inseriu uma moeda, discou.

— Alô?

— Marie, saia do apartamento. Meu carro está numa garagem a um quarteirão daí, à direita de quem sai do prédio. Chama-se Ming’s e tem um cartaz luminoso vermelho. Vá o mais depressa que puder. Eu me encontrarei com você lá. Depressa!

Catherine Staples desligou e fez sinal para um táxi.

— O nome da mulher é Staples... Catherine Staples — disse Lin Wenzu ao telefone, a voz áspera, no corredor do Monkey Tree, falando alto para ser ouvido acima do burburinho. — Verifique no computador. E depressa! Quero seu endereço e certifique-se de que é atualizado!

Os músculos das mandíbulas do major se mexiam furiosamente, enquanto ele esperava. A resposta foi transmitida e ele deu outra ordem:

— Se um dos nossos veículos estiver na área, entre em contato pelo rádio e mande que siga para lá. Se não estiver, despache um imediatamente.

Lin fez uma pausa, escutando de novo, depois arrematou;

— Eles devem ficar atentos à mulher americana. Se ela for localizada fechem o cerco e capturem-na. Estamos a caminho.

— Veículo Cinco, responda! — repetiu o operador de rádio, falando por um microfone, a mão num controle no canto inferior direito do painel à sua frente.

A sala era branca e sem janelas, o zumbido do ar-condicionado baixo mas constante, o zumbido do sistema de filtragem ainda mais suave. Em três paredes havia bancadas de sofisticados equipamentos de rádio e computação, por cima de impecáveis balcões brancos, feitos com a fórmica mais lisa. Havia uma qualidade anti-séptica na sala. Podia ser um laboratório eletrônico num centro médico bem equipado, mas não era. Ali funcionava outro tipo de centro. Era o centro de comunicações do MI-Seis, Setor Especial, Hong Kong.

— Veículo Cinco respondendo! — gritou uma voz esbaforida pelo alto-falante. — Recebi seu sinal, mas estava a uma rua de distância, cobrindo o Thai. Estávamos certos. Drogas.

— Entre no scrambler! — ordenou o operador, acionando a alavanca que ligava o aparelho que impedia que a conversa fosse entendida por quem estivesse na escuta. Houve uma espécie de apito, que cessou tão abruptamente quanto começara. —Pode largar o Thai. Você é o mais próximo. Vá para Arbuthnot Road. A entrada do Jardim Botânico é o caminho mais rápido.

Forneceu o endereço de Catherine Staples e encerrou com uma ordem:

— Procure a mulher americana. E trate de capturá-la.

— Aiya — murmurou o ofegante agente do Setor Especial.

Marie tentou não entrar em pânico, impondo a si mesmo um controle que não sentia. A situação era absurda. Também era extremamente grave. Vestia um chambre mal-ajustado de Catherine, depois de tomar um banho demorado e bem quente; pior ainda, lavara suas roupas na pia da cozinha. Estavam penduradas sobre as cadeiras de plástico da pequena varanda do apartamento, ainda úmidas. Parecera lógico e natural lavar de seu corpo o calor e a sujeira de Hong Kong, assim como das roupas estranhas. E as sandálias ordinárias haviam provocado bolhas em seus pés; ela rompera uma grande com uma agulha e andava com dificuldade. Mas não se atrevia a andar, tinha de correr.

O que acontecera? Catherine não era o tipo de pessoa que desse ordens peremptórias. Assim como ela também não era, especialmente com David. Pessoas como Catherine evitavam o tratamento imperativo, porque só servia para toldar o pensamento de uma vítima... e sua amiga Marie St. Jacques era uma vítima agora, não no mesmo grau que o pobre David, mas uma vítima mesmo assim. Trate de se mexer! Quantas vezes David dissera isso, em Zurique e Paris? Com tanta freqüência que ela ainda ficava tensa ao pensar.

Vestiu-se, as roupas úmidas grudando no corpo, vasculhou o armário de Staples à procura de um par de chinelas. Não eram confortáveis, mas pareciam mais macias do que as sandálias. Podia correr, tinha de correr.

Os cabelos! Oh, Deus, os cabelos! Correu para o banheiro, onde Catherine tinha um pote de porcelana com grampos e prendedores. Em poucos segundos, prendeu os cabelos no alto da cabeça, circulou rapidamente pela pequena sala do apartamento, encontrou o chapéu ridículo e ajeitou-o.

A espera pelo elevador foi interminável. Segundo os números iluminados por cima da porta, os dois elevadores se movimentavam entre os andares um, três e sete, jamais se aproximando do nono. Os moradores que saíam para a noite haviam programado os monstros verticais, retardando sua descida.

Evite os elevadores sempre que puder. São armadilhas. Jason Bourne. Zurique.

Marie olhou para um lado e outro do corredor. Divisou a porta da escada de incêndio e correu para lá.

Esbaforida, saiu do pequeno saguão lá embaixo, procurando se controlar da melhor forma possível, a fim de evitar olhares curiosos dos cinco ou seis moradores que ali estavam, alguns chegando, outros saindo. Ela não contou, mal podia ver. Tinha de sair dali!

Meu carro está numa garagem a um quarteirão daí, à direita de quem sai do prédio. Chama-se Ming’s. Seria mesmo à direita? Ou à esquerda? Na calçada, hesitou. Direita ou esquerda? Tentou se lembrar com nitidez. O que Catherine dissera? Direita! Tinha de seguir para a direita. Foi a primeira coisa que surgiu em sua mente. Tinha de confiar nisso.

Seus primeiros reflexos são os melhores, os mais acurados, porque as impressões estão armazenadas em sua cabeça, como informações num banco de dados. Sua cabeça é isso. Jason Bourne. Paris.

Começou a correr. A chinela caiu do pé esquerdo; parou, abaixando-se para pegá-la. E de repente um carro saiu em disparada do portão do Jardim Botânico, no outro lado da rua larga. Como um míssil furioso, impulsionado pelo calor, virou para a esquerda, avançando para cima dela. O carro derrapou num semicírculo, os pneus rangendo. Um homem saltou e correu em sua direção.

 

Não havia mais nada a fazer. Ela estava encurralada, acuada. Marie gritou, e gritou, enquanto o agente chinês se aproximava, sua histeria aumentando, enquanto o homem a segurava pelo braço, polida mas firmemente. Ela o reconheceu... era um deles, um dos burocratas! Seus gritos chegaram a um crescendo. Pessoas paravam e se viravam na rua. Mulheres soltavam exclamações aturdidas, enquanto homens surpresos avançavam hesitantes ou olhavam freneticamente ao redor à procura de guardas, vários gritando pela polícia.

— Por favor, madame! — disse o oriental, fazendo um esforço para manter a voz sob controle. — Nenhum mal vai lhe acontecer. Deixe-me escoltá-la até o meu carro. É para a sua própria proteção.

— Socorro! — gritou Marie, a. voz estridente, enquanto os aturdidos transeuntes vespertinos se reuniam numa multidão. — Este homem é um ladrão! Roubou minha bolsa, meu dinheiro! Está tentando levar minhas jóias!

— Pare com isso, rapaz! — gritou um inglês idoso, avançando a claudicar e brandindo a bengala. — Mandei um rapaz chamar a polícia, mas até os guardas chegarem juro por Deus vou lhe dar uma surra!

— Por favor, senhor — murmurou o agente do Setor Espe-

cial — Isto é um assunto para as autoridades, de que faço parte. Permita que lhe mostre minha identificação.

— Tome cuidado com o que faz cara! — berrou uma voz com sotaque australiano, enquanto um homem se adiantava apressado, empurrando gentilmente para o lado o idoso britânico e baixando sua bengala. — É muito valente, meu velho, mas não precisa se incomodar. Essa gente exige um homem mais moço.

O robusto australiano postou-se á frente do agente chinês e acrescentou:

— Tire as mãos dessa mulher, seu safado! E eu faria isso bem depressa, se fosse você!

— Por favor, senhor, está havendo um mal-entendido. A mulher corre perigo e está sendo procurada pelas autoridades para interrogatório.

— Você não está de uniforme!

— Permita que eu lhe mostre minhas credenciais.

— Foi isso que ele disse há uma hora, quando me atacou na Garden Road! — gritou Marie, histericamente. — As pessoas tentaram me ajudar! Ele mentiu para todo mundo! Depois roubou minha bolsa! E está me seguindo!

Marie sabia que nenhuma das coisas que estava gritando fazia sentido. Sua única esperança era criar alguma confusão, uma das coisas que Jason lhe ensinara a usar.

— Pois saiba que ninguém vai me enganar, cara! — berrou o australiano, dando um passo para a frente. — Tire logo as mãos dessa mulher!

— Por favor, senhor. Não posso fazer isso. Outras autoridades estão a caminho daqui.

— É mesmo? Os bandidos como você andam juntos? Pois você será uma triste visão para eles quando chegarem aqui!

O australiano agarrou o oriental pelo ombro, virando-o para a esquerda. Mas enquanto o homem do Setor Especial girava, seu pé direito — a biqueira do sapato de couro estendida com uma ponta de faca — se projetou, atingindo o abdome do australiano, O bom samaritano dobrou-se, caindo de joelhos na calçada.

— Por favor, senhor, eu lhe peço mais uma vez para não interferir

— É mesmo? Seu filho da puta de olhos puxados!

O furioso australiano arremeteu, lançando seu corpo contra o oriental, os punhos martelando o homem do Setor Especial. A multidão rugiu em aprovação, a voz coletiva povoando a rua... e o braço de Marie estava livre! E, depois, outros sons se acrescentaram à confusão. Sirenes, seguindo-se três veículos em disparada, entre os quais uma ambulância. Todos três derraparam em voltas súbitas, os pneus rangendo, e pararam aos solavancos.

Marie esgueirou-se por entre a multidão e alcançou o lado interno da calçada. Começou a correr na direção da placa vermelha, a meio quarteirão de distância. As chinelas haviam caído; as bolhas inchadas e furadas ardiam, irradiando pontadas de dor pelas pernas. Mas não podia se permitir pensar na dor. Tinha de correr e correr, escapar de qualquer maneira. E foi nesse instante que soou a voz trovejante, sobrepondo-se aos ruídos da rua. Ela calculou que era um homem enorme que estava gritando... o chinês a quem os outros chamavam de Major.

— Sra. Webb! Sra. Webb! Eu lhe suplico! Pare! Não queremos lhe fazer mal algum! Vamos contar tudo! Pelo amor de Deus, pare!

Contar tudo!, pensou Marie. Contar mentiras e mais mentiras! Subitamente, pessoas corriam em sua direção. O que estavam fazendo? Por quê? E depois passaram além, quase todos homens, mas nem todos. Marie compreendeu. Havia um pânico na rua... talvez um acidente, mutilação, morte. Vamos dar uma olhada! Vamos assistir tudo! À distância, é claro.

Oportunidades vão se apresentar. Trate de reconhecê-las e aja de acordo.

Marie virou de repente, meio abaixada, avançando pela multidão ainda a correr, e voltou para perto do lugar em que quase fora capturada. A todo instante virava a cabeça para a esquerda, observando, torcendo. E viu-o através dos corpos em disparada. O enorme major passou correndo na outra direção, acompanhado por um homem também bem-vestido, também um burocrata.

A multidão era cautelosa, como os sedentos de sangue sempre são, adiantando-se mas não o bastante para se envolver. E o que viam não era lisonjeiro para os espectadores chineses ou para os que tinham as artes marciais do Oriente em estima mística. O ágil e robusto australiano, a linguagem espetacularmente obscena, socava três atacantes diferentes, em seu ringue de boxe pessoal. E de repente, para espanto de todos, o australiano pegou um dos seus adversários caídos e deixou escapar um rugido tão alto quanto o do corpulento major.

— Pelo amor de Deus! Querem parar com isso, seus malucos? Vocês não são bandidos, até eu posso ver! Todos nós fomos enganados!

Marie atravessou correndo a rua larga para a entrada do Jardim Botânico. Parou sob uma árvore junto ao portão, com uma visão direta do Ming’s Parking Palace. O major passara pela garagem, parando em diversas vielas que cruzavam a Arbuthnot Road, enviando o subordinado por algumas, olhando constantemente ao redor, à procura das tropas de apoio. Só que os homens não estavam disponíveis. Marie pôde constatar isso, enquanto a multidão se dispersava. Os três respiravam com dificuldade e se encostavam na ambulância, levados até lá pelo australiano.

Um táxi parou na frente da garagem. Ninguém saltou a princípio, depois o motorista surgiu. Entrou na garagem e falou com alguém que estava numa cabine envidraçada. Fez uma mesura em agradecimento, voltou ao táxi, falou com a pessoa que estava lá dentro. Cautelosamente, a pessoa abriu a porta e saiu para a calçada. Era Catherine! Ela também entrou na garagem, muito mais depressa que o motorista, falou com a pessoa na cabine e sacudiu a cabeça, indicando que ouvira o que não queria.

E subitamente Lin apareceu. Estava voltando, visivelmente irritado pela ausência dos homens que deveriam estar acompanhando-o. Ia passar pela entrada da garagem e avistaria Catherine!

— Carlos! — gritou Marie, presumindo o pior, sabendo que isso lhe revelaria tudo. — Delta!

O major virou-se, os olhos arregalados em choque. Marie correu pelo Jardim Botânico. Era a chave! Caim é por Delta e Carlos será morto por Caim... ou quaisquer que fossem os códigos espalhados por Paris! Estavam usando David de novo! Não era mais uma probabilidade, mas a realidade! Eles... o governo dos Estados Unidos... estavam mandando seu marido desempenhar o papel que quase o matara, pela ação de seus próprios companheiros! Que tipo de gente era aquela? Ou melhor, que tipo de fins justificava os meios que homens supostamente sãos usavam para consumá-los?

Agora, mais do que nunca, precisava encontrar David, antes que ele assumisse riscos que outros deveriam estar correndo. Ele dera muito e agora lhe pediam mais, exigiam mais, de maneira mais cruel possível. Mas para encontrá-lo ela tinha de alcançar Catherine, que se encontrava a menos de cem metros de distância. Tinha de afastar o inimigo e tornar a atravessar a rua, sem ser vista. Jason, o que posso fazer?

Escondeu-se por trás de algumas moitas, enquanto o major passava correndo pelo portão do Jardim Botânico. O enorme oriental parou e olhou ao redor, com um olhar penetrante, depois virou-se e chamou seu subordinado, que aparentemente emergira de uma viela na Arbuthnot Road. O segundo homem teve dificuldade para atravessar a rua; o tráfego estava mais intenso e mais lento, por causa da ambulância e dos dois outros veículos estacionados, bloqueando o fluxo normal, nas proximidades da entrada do Jardim Botânico. O major ficou subitamente furioso ao perceber o motivo para o tráfego crescente.

— Mande aqueles idiotas tirarem os carros! — gritou ele. E mande que depois venham para cá... Não! Mande um para o portão na Albany Road! E o resto venha para cá! Depressa!

Os transeuntes do início da noite eram cada vez mais numerosos. Os homens afrouxavam as gravatas que haviam usado durante o dia inteiro em seus escritórios, enquanto as mulheres levavam os sapatos de saltos altos em sacolas, substituindo-os por sandálias. Esposas empurrando carrinhos de bebê se encontravam com os maridos; amantes se abraçavam e andavam de braços dados por entre os canteiros de flores. O riso de crianças correndo ressoava pelo jardim. O major manteve sua posição junto ao portão de entrada. Marie engoliu em seco, o pânico aumentando. A ambulância e os dois automóveis estavam sendo tirados dali; o tráfego começou a fluir normalmente.

Uma batida! Perto da ambulância, um motorista impaciente batera no carro à sua frente. O major não pôde se conter; a proximidade do acidente, tão perto de seu veículo oficial, forçou-o a se adiantar, obviamente para verificar se os seus homens estavam ou não envolvidos. As oportunidades vão se apresentar... trate de aproveitá-las. Agora!

Marie correu pela extremidade das moitas e atravessou o gramado para juntar-se a quatro pessoas no caminho de cascalho que levava à saída do Jardim Botânico. Olhou para a direita, com medo do que poderia ver, mas sabendo que precisava saber. Seus piores receios foram confirmados; o enorme major sentira — ou vira — o vulto de uma mulher correndo às suas costas. Parou por um momento, indeciso, inseguro, depois se encaminhou em passos apressados para o portão.

Uma buzina soou, quatro vezes, rapidamente. Era Catherine, acenando para ela pela janela aberta de um pequeno carro japonês, enquanto Marie corria pela rua.

— Entre! — gritou Staples.

— Ele me viu!

— Depressa!

Marie embarcou no banco da frente, enquanto Catherine acelerava o pequeno carro, subindo parcialmente na calçada para entrar no fluxo de tráfego. Ela entrou numa rua transversal e seguiu para um cruzamento, onde havia uma placa com uma seta vermelha apontando para a direita, Centro. Distrito Comercial. Staples virou à direita.

— Catherine! — gritou Marie. — Ele me viu!

— Pior do que isso — murmurou Stap Ele viu o carro.

— Um Mitsubishi verde de duas portas! — gritou Lin Wenzu pelo rádio em sua mão. — A placa é AOR-cinco-três-cinco- zero... o zero pode ser um seis, mas não creio. .De qualquer forma, não importa. As três letras serão suficientes. Quero que seja transmitida para todos os pontos, situação de emergência, usando a rede da polícia. A motorista e a passageira devem ser capturadas e não haverá conversas com qualquer das duas. É um assunto do governo e não haverá explicações. Providencie tudo! Agora!

Staples entrou numa garagem pública na Ice House Street. Dava para se avistar a placa vermelha do Mandarin, que acabara de ser iluminada, a menos de um quarteirão de distância.

— Vamos alugar um carro — disse Catherine, enquanto pegava o ticket estendido pelo homem na cabine. — Conheço várias pessoas no hotel.

— Nós estacionamos? Você estaciona?

O sorridente manobreiro obviamente esperava pela primeira opção.

— Você estaciona — respondeu Staples, tirando vários dólares de Hong Kong da bolsa. Virou-se para Marie e acrescentou: — Vamos embora. E fique à minha direita, nas sombras, perto dos prédios. Como estão seus pés?

— Prefiro não responder.

— Pois então não responda. Não há mesmo tempo para tomar alguma providência agora. Agüente firme, minha velha.

— Catherine, pare de se comportar como C. Aubrey Smith de saia.

— Quem é ele?

— Esqueça. Gosto de filmes antigos. Vamos embora.

Marie claudicando, as duas mulheres desceram pela rua até uma entrada lateral do Mandarin. Subiram os degraus e entraram no hotel.

— Há um banheiro à direita, depois das lojas — informou Catherine.

— Estou vendo a placa.

— Espere lá. Irei encontrá-la assim que acabar de tomar as providências necessárias.

— Tem alguma farmácia por aqui?

— Não quero que você fique circulando. Deve haver descrições suas por toda parte.

— Sei disso. Mas você não pode circular? Só um pouco.

— Está menstruada?

— Não. Meus pés. Preciso de vaselina, loção para a pele, sandálias... não, sandálias não. Talvez sapatos de lona. E água oxigenada.

— Farei o que puder, mas o tempo é precioso.

— Tem sido assim há um ano. Uma coisa terrível. Será que vai parar algum dia, Catherine?

— Estou fazendo o melhor que posso. Você é minha amiga e uma compatriota ainda por cima, minha querida. E sou uma mulher muito zangada... por falar nisso, quantas mulheres você encontrou nos sagrados salões da CIA ou em seus equivalentes das Operações Consulares do Departamento de Estado?

Marie piscou os olhos, fazendo um esforço para se lembrar.

— Não foram muitas.

— Miseráveis!

— Havia uma mulher em Paris...

— Sempre há, minha cara. Vá logo para o banheiro.

— Um automóvel é um estorvo em Hong Kong — comentou Lin, olhando para o relógio na parede de sua sala, no quartel- general do MI-Seis, Setor Especial. Marcava seis e trinta e quatro. — Portanto, devemos presumir que ela tenciona levar a mulher de Webb por alguma distância e escondê-la, sem correr maiores riscos. Nosso prazo fatal de oito horas foi revogado e a caçada agora é para valer. Precisamos interceptá-la. Há mais alguma coisa que não consideramos?

— Meter o australiano na cadeia — sugeriu firmemente o subordinado baixo e bem-vestido. — Sofremos baixas na Cidade Murada, mas a agressão dele foi um transtorno público. Sabemos onde está o homem. Podemos pegá-lo.

— Sob que acusação?

— Obstrução à ação da justiça.

— Com que finalidade?

O subordinado deu de ombros, irritado.

— Satisfação, mais nada.

— Acaba de responder à sua pergunta. Seu orgulho é irrelevante. Vamos nos ater à mulher... às mulheres.

— Tem toda razão, é claro.

— Todas as garagens e agências de aluguel de carro aqui na ilha e em Kowloon, estão cobertas pela polícia, não é mesmo?

— É, sim, senhor. Mas devo lembrar que a mulher Staples pode muito bem entrar em contato com um de seus amigos... seus amigos canadenses... e conseguir um automóvel que não seremos capazes de identificar.

— Operamos com base no que podemos controlar, esquecendo o que não podemos. Além do mais, pelo que eu sabia antes e o que descobri depois sobre Catherine Staples, diria que ela está agindo sozinha, certamente sem a sanção oficial.

Não envolveria qualquer outra pessoa, pelo menos por enquanto.

— Como pode ter certeza?

Lin fitou seu subordinado nos olhos; tinha de escolher as palavras com todo cuidado.

— Apenas um palpite.

— Seus palpites têm uma reputação de acurácia.

— Um julgamento exagerado. O bom senso é meu aliado. — O telefone tocou, O major estendeu a mão e atendeu. — Alô?

— Polícia Central Quatro — disse uma voz de homem.

— Agradecemos a cooperação, Central Quatro.

— Um Ming’s Parking Palace respondeu ao nosso pedido de informações. O Mitsubishi AOR tem uma vaga ali, numa base mensal. O nome da dona é Staples. Catherine Staples, uma canadense. O carro foi retirado há cerca de trinta e cinco minutos.

— Foi muito prestimoso, Central Quatro — disse Lin. — Obrigado.

Ele desligou e olhou para o seu ansioso subordinado, acrescentando:

— Temos agora três ou quatro informações. A primeira é de que o nosso pedido de informações enviado através da polícia foi mesmo transmitido. A segunda é de que pelo menos uma garagem anotou as informações. A terceira é de que a Sra. Staples aluga sua vaga por mês.

— Já é um começo, senhor.

— Há três grandes e pelo menos uma dúzia de pequenas agências de aluguel de carros, sem contar os hotéis, que estamos cobrindo em separado. São estatísticas controláveis, o que já não acontece com as garagens.

— Por que não, senhor? Talvez haja no máximo uma centena. Quem se dá o trabalho de construir uma garagem em Hong Kong, quando pode instalar uma dúzia de lojas... negócios que vão dar muito dinheiro? Deve haver vinte a trinta telefonistas na central da polícia. Podem entrar em contato com todas as garagens.

— O problema não está nos números, meu velho, mas sim na mentalidade dos empregados, pois os trabalhos não são nada invejáveis. Os que sabem ler e escrever são preguiçosos ou hostis demais para se darem o trabalho de responder, os que não sabem fogem de qualquer associação com a polícia.

— Uma garagem respondeu.

— Um autêntico cantonês. Era o proprietário.

— O dono deve ser informado! — gritou o manobreiro, num chinês estridente, para o atendente na cabine da garagem na Ice House Street.

— Por quê?

— Já expliquei! Escrevi para você...

— Só porque foi à escola e escreve um pouco melhor do que eu não faz com que seja o chefão por aqui.

— Você não escreve porra nenhuma! Está se cagando de medo! Me chamou quando o homem no telefone disse que era uma emergência da polícia. Vocês, analfabetos, sempre fogem da polícia. Aquele era o carro, o Mitsubishi verde que estacionei no segundo andar. Se não quer chamar a polícia, deve pelo menos falar com o dono.

— Há coisas que não ensinam na escola, garoto de órgão pequeno.

— Ensinam que a gente não deve ficar contra a polícia. É perigoso.

— Chamarei a polícia... ou melhor, você pode se tornar o herói.

— Está certo.

— Mas só depois que as duas mulheres voltarem e eu tiver uma conversinha com a motorista.

— Para quê?

— Ela pensou que estava me dando... dando a nós... dois dólares, mas foram onze. Uma das notas era de dez dólares. Ela estava muito nervosa, bastante transtornada. E assustada. Não prestou atenção ao seu dinheiro.

— Você disse que foram dois dólares!

— E agora estou sendo honesto. Seria honesto com você se não me preocupasse com os nossos melhores interesses?

— Como assim?

— Direi a essa rica e assustada americana.., ela falava americano... que você e eu não chamamos a polícia em seu interesse.

Ela vai nos recompensar na hora... e com a maior generosidade... pois compreenderá que pode não recuperar seu carro sem isso. Fique me observando do interior da garagem, ao lado do outro telefone. Depois que ela pagar, mandarei outro manobreiro buscar o carro. Ele terá a maior dificuldade para encontrar, pois darei a localização errada. Enquanto isso, você chama a polícia. Estaremos cumprindo o nosso dever celestial e teremos uma noite de dinheiro, como raras outras noites neste emprego miserável.

O manobreiro estreitou os olhos, balançou a cabeça.

— Você tem razão. Não ensinam essas coisas na escola. E acho que não tenho opção.

— Claro que tem — respondeu o atendente, tirando uma faca comprida do cinto. — Pode dizer não e eu cortarei sua língua faladeira.

Catherine aproximou-se do balcão da portaria no saguão do Mandarin, contrariada por não conhecer qualquer dos dois funcionários no outro lado. Precisava de um favor rápido, e em Hong Kong isso significava lidar com uma pessoa que se conhecia. E nesse instante, para seu alívio, avistou o chefe da portaria do turno da noite. Ele estava no meio do saguão, tentando apaziguar uma hóspede irritada. Catherine foi para a direita e aguardou, esperando atrair a atenção de Lee Teng. Cultivara Teng, encaminhando-lhe numerosos canadenses, quando os problemas pareciam insuperáveis. E ele sempre fora generosamente gratificado.

— Posso ajudar em alguma coisa, senhora? — indagou o jovem recepcionista chinês, postando-se na frente de Staples.

— Ficarei esperando pelo Sr. Teng, se não se incomoda.

— O Sr. Teng está muito ocupado, senhora. Um mau momento para o Sr. Teng. É hóspede do Mandarin, senhora?

— Sou residente do território e uma velha amiga do Sr. Teng. Sempre que possível, encaminho pessoas para cá, a fim de que a recepção fique com o crédito.

— Ahn... — O jovem recepcionista reagiu à situação de não-turista de Catherine. Inclinou-se para a frente e disse, em tom confidencial: — Lee Teng está com um problema terrível esta noite. A mulher vai ao grande baile na Casa do Governo, mas suas roupas seguiram para Bangcoc. Ela deve pensar que o Sr. Teng tem asas por baixo do casaco e motores de jato nas axilas, não é?

— Um conceito interessante. A mulher acabou de chegar?

— Isso mesmo, madame. Trouxe muitas malas. Não deu pela falta da que procura agora. Culpou primeiro o marido e agora a Lee Teng.

— Onde está o marido?

— No bar. Ele se ofereceu para pegar o próximo avião para Bangcoc, mas sua gentileza só serviu para deixar a esposa ainda mais furiosa. Ele não saiu mais do bar e vai ao baile de um jeito que não o deixará satisfeito consigo mesmo pela manhã. As coisas estão ruins... Talvez eu possa ajudá-la, enquanto o Sr. Teng se esforça para acalmar todo mundo.

— Quero alugar um carro o mais depressa possível.

— Aiya. São sete horas da noite e as agências quase não fazem negócios a esta hora. A maioria está fechada.

— Tenho certeza de que há exceções.

— Um carro do hotel com motorista não servida?

— Só se não houver mais nada disponível. Como já falei, não sou hóspede do hotel, e a verdade é que não nado em dinheiro.

— E quem nada? — indagou o chinês, enigmático.  Como diz o bom Livro Cristão... em alguma parte, eu acho.

— Parece correto— concordou Staples. —Por favor, pegue o telefone e faça o melhor que puder.

O jovem enfiou a mão por baixo do balcão e tirou uma lista de agências de aluguel de carros, encadernada em plástico. Foi a um telefone alguns passos à direita, pegou-o e começou a discar. Catherine olhou para Lee Teng; ele levara irada mulher para a parede, junto a uma palmeira em miniatura, numa tentativa evidente de impedi-la de alarmar os outros hóspedes, sentados pelo saguão ornamentado, cumprimentando amigos e pedindo coquetéis. Ele falava depressa, baixinho, concentrando toda a atenção da mulher. Quaisquer que fossem as legítimas reclamações dela, refletiu Catherine, a mulher era uma idiota. Usava uma estola de chinchila no pior clima do mundo para uma pele tão delicada. Não que ela, Catherine Staples, jamais pudesse ter esse problema. Só teria se continuasse casada com Owen Staples. O filho da puta possuía agora pelo menos quatro bancos em Toronto. No fundo, até que ele não era tão mal assim... e para aumentar o seu sentimento de culpa, Owen nunca casara de novo. Não é justo, Owen! Ela o encontrara há três anos, depois de sua temporada de serviço na Europa, quando participava de uma conferência organizada pelos ingleses em Toronto. Tomaram drinques no Mayfair Club, no King Edward Hotel.

— Essa não, Owen. Com sua aparência, seu dinheiro... e você tem a aparência antes do dinheiro... por que não? Há mil garotas bonitas num raio de cinco quarteirões que se agarrariam a você com a maior satisfação.

— Uma vez foi suficiente, Cathy. Você me ensinou isso.

— Não sei, mas você me faz sentir... ora, não sei... um pouco culpada. Eu o deixei, Owen, mas não porque não gostava de você.

— Gostava?

— Sabe muito bem o que estou querendo dizer.

— Acho que sei mesmo. — Owen soltara uma risada. — Você me deixou por todos os motivos certos e aceitei que fosse embora sem protestos por motivos semelhantes. Se você esperasse mais cinco minutos, acho que eu a teria expulsado. Já pagara o aluguel daquele mês.

— Seu filho da puta!

— Absolutamente. Nenhum dos dois era. Você tinha suas ambições e eu as minhas. Simplesmente não eram compatíveis.

— Mas isso não explica por que você nunca mais tornou a casar.

— Acabei de dizer. Você me ensinou, minha cara.

— Ensinei o quê? Que todas as ambições são incompatíveis?

— Quando existiam em nossos extremos, é verdade. Aprendi que não estava interessado em qualquer base permanente por qualquer pessoa que não tivesse o que suponho que você chamaria de “ímpeto” exaltado ou uma ambição impetuosa, mas não poderia viver com uma pessoa assim dia após dia. E as mulheres sem ambição deixavam um vazio em nosso relacionamento. Também não podia haver permanência.

— Mas o que me diz de uma família? Filhos?

— Tenho dois filhos, Cathy. Dos quais eu... gosto muito. Amo a ambos, e suas mães ambiciosas foram extremamente generosas. Até mesmo seus maridos posteriores se mostraram bastante compreensivos. Enquanto eles estavam crescendo, eu via meus filhos com constância. Assim, de certa forma, tive três famílias. O que é bastante civilizado, embora às vezes desconcertante.

— Você? O paradigma da comunidade, a própria essência dos banqueiros? O homem que diziam que tomava banho de chuveiro num camisolão de Dickens? Um diácono da igreja?

— Renunciei a tudo isso depois que você partiu. De qualquer forma, era apenas uma encenação política de minha parte. Algo que você pratica todos os dias.

— Você nunca me disse, Owen.

— Nunca me perguntou, Cathy. Você tinha as suas ambições e eu tinha as minhas. Mas posso lhe contar um arrependimento meu, se quiser ouvir.

— Claro que quero.

— Lamento genuinamente o fato de nunca termos tido um filho juntos. A julgar pelos dois filhos que tenho, ele ou ela teria sido absolutamente maravilhoso.

— Vai me fazer chorar, seu filho da puta.

— Por favor, não chore. Vamos ser francos: nenhum dos dois tem arrependimentos.

O devaneio de Catherine foi subitamente interrompido. O jovem recepcionista afastou-se do telefone, pondo as mãos em cima do balcão, numa atitude triunfante.

— Teve sorte, senhora. O despachante da agência Apex, na Bonham Strand East, ainda estava lá. Tem carros disponíveis, mas ninguém para trazer um até aqui.

— Pegarei um táxi. Escreva o endereço. — Staples olhou ao redor, procurando pela drugstore do hotel. Havia muitas pessoas no saguão, muita confusão. — Onde posso comprar... loção para a pele ou vaselina, talvez um par de sandálias?

— Há uma banca de jornal no fundo do corredor, à direita, senhora. Eles têm muitas coisas assim. Por gentileza, pode me dar o dinheiro, já que deverá apresentar um recibo ao despachante? Custa mil dólares de Hong Kong e o que tiver de ser devolvido ou acrescentado...

— Não ando com tanto dinheiro. Terei de usar um cartão de crédito.

— Não tem importância.

Catherine abriu a bolsa e tirou de um compartimento interno um cartão de crédito.

— Voltarei num instante.

Ela deixou o cartão em cima do balcão e afastou-se pelo saguão, à direita. Sem qualquer motivo específico, olhou para Lee Teng e a mulher transtornada. Achou graça ao constatar que a mulher exageradamente vestida, com a pele ridícula, acenava com a cabeça em agradecimento, enquanto Teng apontava para as lojas luxuosas, por cima do saguão. Lee Teng era um autêntico diplomata. Não podia haver a menor dúvida de que ele explicara à hóspede agitada que tinha uma opção para satisfazer às suas necessidades e seus nervos, ao mesmo tempo em que desfechava um golpe firme no plexo solar financeiro do marido desgarrado. Ali era Hong Kong, e ela podia comprar o melhor e o mais cintilante e por um preço tudo estaria pronto a tempo para o baile. Staples continuou em frente.

— Catherine! — O nome foi pronunciado de maneira tão incisiva que Staples ficou paralisada. — Por favor, Sra. Catherine!

Rígida, Staples virou-se. Era Lee Teng, que deixara sua hóspede agora apaziguada.

— O que foi? — indagou ela, assustada, enquanto Teng, um homem de meia-idade, se aproximava, o rosto vincado pela preocupação, o suor evidente no crânio calvo.

— Eu a vi há poucos momentos. Mas estava com um problema

— Sei de tudo a respeito.

— E você também, Catherine

— Como?

Teng olhou para o balcão — e, o que era bastante estranho, não para o jovem que a ajudara, mas para o outro recepcionista, que se encontrava na extremidade oposta. O homem estava sozinho, sem hóspedes à sua frente, e olhava para o seu colega.

— Mas que diabo! — exclamou Teng, baixinho.

— O que aconteceu? — perguntou Staples.

— Venha comigo.

O Número Um do turno da noite levou Catherine para um lado, longe da vista do balcão. Meteu a mão no bolso e tirou meia página de papel perfurado, com uma impressão de computador, informando:

— Quatro cópias desta mensagem foram enviadas lá de cima. Consegui recolher três, mas a quarta está por baixo do balcão.

Emergência. Controle do governo. Uma canadense chamada Catherine Staples pode tentar alugar um automóvel, para uso pessoal. Ela tem cinqüenta e sete anos, cabelos parcialmente grisalhos, estatura mediana, corpo esguio. Adiem a providência e entrem em contato com a Polícia Central Quatro.

Lin Wenzu tirara uma conclusão baseada numa observação, pensou Catherine, assim como no conhecimento de que qualquer pessoa que guiava um carro voluntariamente em Hong Kong era louca ou tinha um motivo especifico para fazê-lo. E estava cobrindo as bases de forma rápida e completa.

— O jovem acaba de me arrumar um carro na Bonham Strand East. É evidente que ele não leu este aviso.

— Ele encontrou uma agência aberta a esta hora?

— Está preparando a conta agora. Acha que ele verá isto?

— Não é com ele que me preocupo. Está em treinamento e posso dizer qualquer coisa que ele aceitará, O que já não acontece com o outro, que está querendo o meu cargo a qualquer custo. Espere aqui. E fique fora de vista.

Teng encaminhou-se para o balcão, enquanto o recepcionista olhava ansiosamente ao redor, segurando as notas do cartão de crédito. Lee Teng pegou-as e guardou no bolso, explicando:

— Isso não será necessário. Nossa cliente mudou de idéia. Encontrou um amigo no saguão que vai levá-la.

— É mesmo? Então tenho de avisar a nosso colega para não se incomodar. Como a quantia está acima do limite, ele está cuidando do caso. Ainda me sinto um pouco inseguro e ele se ofereceu...

Teng acenou-lhe para que se calasse, enquanto se aproximava do outro recepcionista, que falava ao telefone, na extremidade do balcão.

— Pode me entregar o cartão e esquecer a ligação. Há mu-

lheres aflitas demais para mim esta noite. Esta encontrou outro meio de transporte.

— Pois não, Sr. Teng — disse o segundo recepcionista, subserviente.

Ele estendeu o cartão de crédito, pediu desculpas à telefonista na linha e desligou.

— Uma péssima noite.

Teng deu de ombros, virou-se e voltou para o saguão apinhado. Aproximou-se de Catherine, tirando a carteira do bolso.

— Se estão com pouco dinheiro, emprestarei o que precisar. Mas não use isto.

— Não estou com pouco em casa ou no banco, mas não costumo andar com tanto dinheiro. É ma das regras tácitas.

— E uma das melhores —concordou Teng, acenando com a cabeça.

Staples pegou as notas estendidas e fitou o chinês nos olhos.

— Quer uma explicação?

— Não é necessário, Catherine. Não importa o que a Central Quatro diga, sei que você é uma boa pessoa. E se não for e sumir, se eu nunca mais ver meu dinheiro, ainda estarei com vários milhares de dólares de Hong Kong de vantagem.

— Não vou sumir, Teng.

— E também não vai a pé. Um dos motoristas me deve um grande favor e está na garagem agora. Vai levá-la em seu carro à Bonham Strand. Vou levá-la até lá embaixo.

— Estou com outra pessoa. Preciso tirá-la de Hong Kong. Ela está no banheiro.

— Ficarei esperando no corredor. E por favor, se apresse.

— Às vezes penso que o tempo passa mais depressa quando estamos cheios de problemas — disse o segundo recepcionista, um pouco mais velho, ao colega mais jovem em treinamento, enquanto pegava o impresso de computador por baixo do balcão e o guardava no bolso, discretamente.

— Se está certo, o Sr. Teng viveu apenas quinze minutos desde que entrou em serviço, há duas horas. Não acha que ele é muito bom?

— A falta de cabelos na cabeça sempre ajuda. As pessoas

pensam que ele tem sabedoria, mesmo quando não dispõe de palavras sábias para oferecer.

— De qualquer forma, ele tem jeito com as pessoas. Eu gostaria muito de ser como ele um dia.

— Perca alguns cabelos. Enquanto isso, já que não há ninguém nos incomodando, tenho de ir ao banheiro. Antes que eu me esqueça, para o caso de eu precisar saber de uma agência de aluguel de carro que continue aberta a esta hora, foi a Apex na Bonham Strand East, não é?

— Isso mesmo.

— Você foi muito eficiente.

— Apenas segui a lista. Estava quase no fim.

— Alguns teriam desistido antes. Você deve ser elogiado.

— Está sendo muito generoso para com um estagiário indigno.

— Quero somente o melhor para você — disse o recepcionista mais velho. — Jamais se esqueça disso.

O homem mais velho deixou o balcão. Cauteloso, passou pelas palmeiras em vasos até avistar Lee Teng. O chefe do turno da noite na recepção estava parado no corredor, à direita; era suficiente. Esperava pela mulher. O recepcionista virou-se e subiu a escada para as lojas com menos dignidade do que era apropriado. Tinha pressa e entrou na primeira butique, no alto da escada.

— Negócios do hotel — disse ele à vendedora, indo ao telefone na parede, por trás de um balcão com faiscantes pedras preciosas, e discou um número.

— Central de Polícia Quatro.

— O aviso sobre a mulher canadense, Sra. Staples.

— Tem alguma informação?

— Creio que sim, senhor, mas é um pouco embaraçoso para mim transmiti-la.

— Por quê? É uma emergência, um problema do governo!

— Compreenda, por favor. Sou apenas um funcionário subalterno e é possível que o responsável pelo turno da noite não se lembre do aviso. É um homem muito ocupado.

— O que está tentando dizer?

— O problema, senhor, é que a mulher que ouvi pedindo para falar com o chefe da portaria tinha uma semelhança extraordinária com a descrição no aviso do governo. Mas seria muito embaraçoso para mim se souberem que fui eu quem telefonei.

— Será devidamente protegido. Pode permanecer anônimo. Qual é a informação?

— Bom, senhor, eu ouvi...

Com uma cautelosa ambivalência, o homem fez o melhor para si mesmo e, conseqüentemente, o pior para seu superior, Lee Teng. Suas declarações finais, no entanto, foram concisas, não deixando margem para qualquer equívoco.

— É a Agência de Aluguel de Carros Apex, na Bonham Strand East. Sugiro que se apresse, pois ela está seguindo para lá neste momento.

O tráfego no início da noite não era tão intenso quanto na hora do rush, mas ainda assim era formidável. Era por isso que Catherine e Marie se fitavam apreensivas no banco traseiro da limusine do Mandarin; o motorista, em vez de acelerar para o súbito espaço vazio à sua frente, levou o enorme automóvel para uma vaga na Bonham Strand East. Não havia qualquer sinal de agência de aluguel de carro nas proximidades imediatas, em qualquer lado da rua.

— Porque está parando? —indagou Staples, bruscamente.

— Instruções do Sr. Teng, senhora — respondeu o motorista, virando-se no banco. — Vou trancar o carro com o alarme ligado. Ninguém vai incomodá-las, enquanto as luzes piscarem por baixo das quatro maçanetas.

— Isso é muito tranqüilizador, mas eu gostaria de saber por que não está nos levando até o carro.

— Trarei o carro até aqui, senhora.

— Como assim?

— Instruções do Sr. Teng. Ele foi taxativo e ficou de ligar para a garagem da Apex. Fica na próxima rua, senhora. Voltarei num instante.

O motorista tirou o quepe e o paletó, ajeitou o banco ao seu lado, ligou o alarme e saiu.

— O que acha disso tudo? — indagou Marie, pondo a perna direita sobre o joelho e mantendo na sola do pé as toalhas de papel que pegara no banheiro. — Confia nesse Teng?

— Confio, sim — respondeu Catherine, com uma expressão

aturdida. — Mas não consigo entender. É evidente que ele está sendo supercauteloso... há riscos extras para ele... e não sei por quê. Como eu disse no Mandarin, aquele aviso computadorizado a meu respeito falava em “Controle do Governo”. São palavras que todos levam a sério em Hong Kong. O que ele está fazendo? E por quê?

— Obviamente, não posso responder — disse Marie. — Mas posso fazer um comentário.

— Qual?

— Reparei na maneira como ele olhava para você. Não sei se você percebeu.

— O quê?

— Eu diria que ele gostava muito de você.

— Gosta... de mim?

— É uma maneira de expressar. Há outros meios mais fortes, é claro.

Staples virou a cabeça e olhou pela janela, murmurando:

— Oh, Deus...

— Qual é o problema?

— Lá no Mandarin, por razões muito irracionais para se analisar... começou com uma mulher idiota numa estola de chinchila... pensei em Owen.

— Owen?

— Meu ex-marido.

— Owen Staples? O banqueiro Owen Staples?

— Esse é o meu sobrenome e esse é o marido... era o meu marido. Naquele tempo a gente mantinha o nome de casada.

— Nunca me disse que seu marido era Owen Staples.

— Você nunca me perguntou, querida.

— Não está fazendo sentido, Catherine.

— Tem razão — concordou Staples, balançando ã cabeça. — Mas eu estava pensando na ocasião em que Owen e eu nos encontramos, há dois aos, em Toronto. Tomamos uns drinques no Mayfair Club e descobri coisas a seu respeito em que nunca teria acreditado antes. Fiquei sinceramente feliz por ele, apesar de o filho da puta quase me fazer chorar.

— Pelo amor de Deus, Catherine, o que tem isso a ver com o que está acontecendo agora?

— Tem a ver com Teng. Também tomamos drinques uma

noite, não no Mandarin, é claro, mas num café no cais, em Kowloon. Ele disse que não seria bom para mim ser vista em sua companhia na ilha.

— Por que não?

— Foi o que perguntei. Ele estava me protegendo na ocasião, da mesma forma que está fazendo agora. E eu posso tê-lo interpretado erradamente. Presumi que Teng procurava apenas uma fonte de renda adicional, mas acho que me enganei redondamente.

— Como assim?

— Ele disse uma coisa estranha naquela noite. Comentou que desejava que as coisas fossem diferentes, que as diferenças entre as pessoas não fossem tão óbvias e que essas diferenças não perturbassem tanto as outras pessoas. Claro que aceitei suas banalidades como uma tentativa um tanto amadorística de... encenação política, como meu ex-marido dizia. Talvez fosse outra coisa.

Marie riu suavemente, enquanto seus olhos se encontravam.

— Ah, minha querida Catherine, o homem está apaixonado por você!

— Cristo no Calvário, não preciso disso!

Lin Wenzu estava sentado no banco da frente do Veículo Dois do MI-Seis, o olhar paciente fixado na entrada da agência Apex, na Bonham Strand. Tudo estava em ordem; as duas mulheres estariam em seu poder dentro de poucos minutos. Um dos seus homens entrara e falara com o despachante. O agente apresentara sua identificação, e o assustado empregado lhe mostrara os registros da noite. Havia uma reserva para a Sra. Catherine Staples, mas fora cancelada, e o carro em questão fora transferido para outro nome, de um motorista do hotel. E como a Sra. Catherine Stap não ia mais alugar o carro, o despachante concluíra que não havia motivo para avisar à polícia. O que havia para dizer? E certamente ninguém mais poderia pegar o carro, já que estava reservado pelo Mandarin.

Tudo estava em ordem, pensou Lin. Victoria Peak sentiria um enorme alívio no momento em que ele chegasse à casa segura com a notícia. O major sabia exatamente quais as palavras que diria: “As mulheres foram capturadas... a mulher foi capturada.”

No outro lado da rua, um homem em mangas de camisa passou pela porta da agência. Lin achou que ele parecia hesitante e que havia alguma coisa... Um táxi parou subitamente, e o major inclinou-se para a frente, estendendo a mão para a maçaneta da porta... esquecendo o homem hesitante.

— Fiquem todos alerta — disse Lin pelo microfone ligado ao rádio do painel. — Devemos agir o mais depressa e discretamente possível. Não posso admitir aqui o que aconteceu na Arbuthnot Road. E nada de armas, é claro. Estejam prontos!

Mas não havia nada para se preparar; o táxi afastou-se, sem que ninguém desembarcasse.

— Veículo Três! — disse o major, bruscamente. — Verifique a placa do táxi e ligue para a companhia. Faça o contato pelo rádio. Descubra exatamente o que o carro estava fazendo aqui. Melhor ainda, siga o táxi enquanto faz o que mandei. As mulheres podem estar lá dentro.

— Creio que só havia um homem no banco traseiro, senhor — disse o motorista.

— Elas podiam ter se abaixado. Malditos olhos! Você disse um homem?

— Isso mesmo, senhor.

— Estou farejando uma isca malcheirosa.

— Por que, Major?

— Se eu soubesse, o fedor não seria tão forte.

A espera continuou, e o imenso Lin Wenzu começou a suar. O sol poente projetava uma ofuscante claridade laranja pelo pára-brisa e bolsões de sombras escuras pela Bonham Strand.

— Está demorando muito — sussurrou o major para si mesmo.

Houve uma explosão de estática pelo rádio.

— Fizemos contato com a companhia de táxis, senhor.

— Fale logo!

— O táxi em questão estava tentando encontrar uma casa de importação na Bonham Strand East, mas o motorista disse ao passageiro que devia ser na Bonham Strand West. Ao que parece, o passageiro ficou furioso. Saltou e jogou o dinheiro pela janela há poucos momentos.

— Volte para cá imediatamente!

Lin observou as portas da garagem se abrirem, no outro lado da rua, na agência Apex. Um carro saiu, virou à esquerda, guiado pelo homem em mangas de camisa.

O suor escorria agora pelo rosto do major. Alguma coisa não estava em ordem; outra ordem se sobrepunha. O que o incomodava? O que estava errado?

— Ele! — gritou Lin abruptamente para o seu aturdido motorista.

— Como, senhor?

— Uma camisa branca amarrotada, mas a calça vincada como aço! Um uniforme! Um motorista! Dê a volta! Siga-o!

O motorista comprimiu a mão na buzina, rompendo a linha de tráfego e fazendo uma volta em U, enquanto o major dava instruções para os apoios, ordenando que um permanecesse na agência Apex e os outros seguissem o novo alvo.

— Aiya! — gritou o motorista, pisando no freio, os pneus rangendo até parar, enquanto uma enorme limusine marrom saía de uma rua transversal, bloqueando a passagem.

O contato fora mínimo, o carro do governo mal encostando na porta traseira esquerda do outro veículo.

— Feng zi! — berrou o motorista da limusine, chamando o motorista de Lin de cão raivoso e saindo em seguida para verificar as avarias.

— Lai! Lai! — gritou o motorista do major, saltando também, pronto para o combate.

— Pare com isso! — ordenou Lin. Trate apenas de tirá-lo da frente!

— Ele não quer sair, senhor!

— Pois mande-o sair! Mostre a sua identificação!

Todo o tráfego parou; buzinas soavam, as pessoas nos carros e na rua gritavam furiosas. O major fechou os olhos e sacudiu a cabeça em frustração. Não havia nada que pudesse fazer, a não ser saltar também.

Outro homem também saltou da limusine. Um chinês de meia-idade, calvo.

— Acho que temos um problema — disse Lee Teng.

— Eu conheço você! — gritou Lin. — O Mandarin!

— Muitos que têm o bom gosto de freqüentar nosso excelente hotel me conhecem, senhor. Já foi nosso hóspede?

— O que está fazendo aqui?

— Estou cumprindo uma missão confidencial para um cavalheiro hospedado no Mandarin e não tenho a intenção de dizer mais nada.

— Houve um aviso do governo! Sobre uma canadense chamada Staples. Um dos seus homens nos telefonou!

— Não sei do que está falando. Há uma hora que estou tentando resolver um problema para uma hóspede que vai comparecer ao baile na Casa do Governo esta noite. Terei o maior prazer em fornecer o nome dela... se sua posição o justificar.

— Minha posição justifica tudo! Por que nos deteve?

— Creio que foi seu motorista quem avançou o sinal em alta velocidade.

— Não foi assim! — protestou o motorista de Lin.

— Então a questão terá de ser resolvida pelos tribunais — declarou Lee Teng. — Podemos ir embora?

— Ainda não! — O major aproximou-se do chefe da portaria do Mandarin. — Vou repetir. Um aviso do governo foi recebido por seu hotel. Dizia expressamente que uma mulher chamada Staples podia tentar alugar um carro e que se deveria avisar imediatamente à Central de Polícia Quatro.

— Pois eu repito, senhor, que não estou em meu posto há mais de uma hora e não vi o aviso que está descrevendo. Contudo, para cooperar com as suas credenciais não apresentadas, posso informar que todos os acertos de aluguel de carros são efetuados por intermédio de meu primeiro assistente, um homem que, para ser franco, não tem se mostrado satisfatório sob muitos aspectos.

— Mas você está aqui!

— Quantos hóspedes do Mandarin têm negócios a tratar na Bonham Strand East ao final do dia, senhor? Aceite a coincidência.

— Seus olhos riem de mim, Zhongguo ren.

— Sem riso, senhor. Vou seguir adiante. Os danos são insignificantes.

— Não importa que você e seu pessoal tenham de passar a noite inteira lá — disse o Embaixador Havilland. — É a única pista que temos. Pelo que você contou, ela vai devolver o carro

e depois pegar o dela. Há uma conferência de estratégia canadense-americana às quatro horas da tarde de amanhã. Ela tem de voltar! Permaneça a postos, com todos os seus homens! E traga a mulher até aqui!

— Ela vai alegar que foi molestada. Estaremos violando as leis da diplomacia internacional.

— Pois então viole! Traga-a para cá de qualquer maneira, amarrada como uma múmia, se for necessário! Não tenho tempo a perder... nem um minuto!

Contida firmemente por dois agentes, uma furiosa Catherine Staples foi levada à sala na casa em Victoria Peak. Lin Wenzu abrira a porta; fechou-a agora, enquanto Staples se defrontava com o Embaixador Raymond Havilland e o Subsecretário de Estado Edward McAllister. Eram onze e trinta e cinco da manhã, o sol entrava pela grande janela que dava para o jardim.

— Você foi longe demais, Havilland — disse Catherine, a voz gutural gelada e incisiva.

— Ainda não fui longe o suficiente em relação a você, Sra. Staples. Comprometeu ativamente um membro da legação americana. Empenhou-se em extorsão, num grave desserviço ao meu governo.

— Não pode provar isso, porque não há qualquer prova, nenhuma fotografia...

— Não preciso provar coisa alguma. Precisamente às sete horas da noite passada o jovem veio até aqui e nos contou tudo. Uma historinha sórdida, não é mesmo?

— Seu idiota! Ele não têm culpa nenhuma, o que já não acontece com você! E já que usou a palavra “sórdida”, não há nada que ele possa ter feito que se compare com a sordidez de suas ações! — Sem perder o ímpeto, Catherine olhou para o subsecretário de Estado e acrescentou: — Presumo que este é o mentiroso chamado McAllister.

— É muito atrevida — disse o subsecretário.

— E você é um lacaio inescrupuloso que faz o trabalho sujo de outro homem. Soube de tudo e é tudo repulsivo. Mas todos os fios foram entrelaçados... — Staples tornou a virar a cabeça para Havilland, bruscamente. — ... por um perito. Quem lhes deu o direito de bancar Deus? A qualquer de vocês?

Têm alguma idéia do que fez com aqueles dois? Sabe o que pediram deles?

— Claro que sabemos — respondeu o embaixador calmamente. — Sei de tudo.

— Ela também sabe, embora eu não tivesse coragem de lhe dar a confirmação final. Você é demais, McAllister! Quando soube que era você quem estava aqui em cima, não tive certeza se ela poderia controlar a situação. Não no momento. Mas tenciono contar tudo a ela. Você e suas mentiras! A esposa de um taipan assassinada em Macau... ah, a simetria da situação, que desculpa para seqüestrar a mulher de outro homem! Mentiras, só mentiras! Tenho as minhas fontes e sei que nada aconteceu. E agora tratem de entender uma coisa. Vou levá-la para o consulado, sob a proteção total do meu governo. E se eu fosse você, Havilland, tomaria muito cuidado com as suas supostas ilegalidades. Você e seus homens miseráveis mentiram e manipularam uma cidadã canadense para levá-la a uma operação em que sua vida está ameaçada... o que quer que seja desta vez. Sua arrogância é simplesmente inacreditável! Mas posso lhe garantir que isso vai ter um ponto final. Quer o meu governo goste ou não, eu vou denunciar tudo, todos vocês! Não são melhores do que os bárbaros da KGB. A máquina americana de operações secretas vai sofrer um sangrento revés! Estou cansada de vocês! O mundo está cansado de vocês!

— Quero que preste muita atenção, mulher! — gritou o embaixador, perdendo os últimos resquícios de controle na ira súbita. — Pode fazer todas as ameaças que quiser, mas terá de me ouvir! E se depois de ouvir o que tenho a dizer ainda quiser declarar guerra, pode ir em frente! Como diz a canção, meus dias estão chegando ao fim, mas não os dias de milhões de outros! Eu gostaria de fazer o que puder para prolongar essas outras vidas. Mas você pode discordar, declarar a sua guerra! E, por Deus, você vai agüentar as conseqüências!

 

Inclinando-se para a frente na cadeira, Bourne puxou a guarda do gatilho de seu recesso e examinou o interior do cano da arma, à luz da luminária. Era um exercício repetitivo e inútil; o cano estava imaculado. Durante as últimas quatro horas ele limpara três vezes a arma de d’Anjou, desmontando-a três vezes e lubrificando cada mecanismo, até todas as peças de metal escuro reluzirem, O processo ocupava seu tempo. Estudara o arsenal de armas e explosivos de d’Anjou, mas como a maior parte do equipamento se encontrava em caixas lacradas, presumivelmente com um mecanismo contra roubo, preferia se concentrar na pistola. Um homem não podia andar muito no apartamento do Francês, na Rua das Lorchas, que dava para o Porto Interior de Macau; e haviam combinado que ele não sairia à luz do dia. Lá dentro era tão seguro quanto qualquer lugar em Macau. D’Anjou, que mudava de residência à vontade e capricho, alugara o apartamento no porto menos de duas semanas antes, usando um nome falso e um advogado que jamais encontrara pessoalmente, e que por sua vez empregara um intermediário para assinar o contrato, enviando-o depois para o cliente desconhecido através do vestiário do apinhado Cassino Flutuante. Era assim que agia Philippe d’Anjou, o antigo Eco de Medusa.

Jason tornou a montar a arma, ajeitou os cartuchos no

pente e meteu-o na coronha. Levantou-se e foi até a janela, empunhando a arma. No outro lado da extensão de água ficava a República Popular, tão acessível a qualquer um que conhecesse os procedimentos derivados da simples ganância humana. Em termos de fronteiras, não havia nada de novo sob o sol desde os tempos dos faraós. Eram criadas para serem cruzadas... de um jeito ou de outro.

Olhou para o relógio. Eram quase cinco horas, o sol da tarde descaía pelo céu. D’Anjou ligara de Hong Kong ao meio-dia. O Francês fora ao Peninsula com a chave do quarto de Bourne, pusera suas coisas na mala sem dar baixa no hotel, e pegaria o aerobarco de uma hora para voltar a Macau. Onde estava ele? A viagem demorava apenas uma hora, e do píer de Macau na Rua das Lorchas não se levava mais de dez minutos de táxi. Mas a previsibilidade nunca fora o forte de Eco.

Fragmentos de memórias de Medusa voltavam a Jason, desencadeados pela presença de d’Anjou. Embora angustiantes e assustadoras, determinadas impressões proporcionavam algum conforto, também graças ao Francês. Não apenas d’Anjou era um mentiroso rematado quando mais importava e um oportunista de primeira classe, como também era extraordinariamente engenhoso. Acima de tudo, o Francês era um pragmático. Provara isso em Paris, e essas lembranças eram nítidas. Se estava atrasado, havia um bom motivo. Se não aparecesse seria porque estava morto. E essa última hipótese era inaceitável para Bourne. D’Anjou estava em condições de fazer uma coisa que Jason queria fazer pessoalmente acima de tudo, mas não se atrevia, para não pôr em risco a vida de Marie. Já era um risco grande o fato de a trilha do impostor-assassino tê-lo levado a Macau, mas confiava em seus instintos, desde que permanecesse à distância do Hotel Lisboa. Permaneceria escondido daqueles que o procuravam... procuravam por alguém que se parecesse vagamente com ele, na altura, compleição ou cor. Alguém fazendo perguntas no Hotel Lisboa.

Um telefonema do Lisboa para o taipan em Hong Kong e Marie morreria. O taipan não se limitara a ameaçar — as ameaças eram muitas vezes um estratagema sem sentido —, usara um expediente muito mais letal. Depois de gritar e bater com a mão enorme no braço da frágil cadeira, ele empenhara calmamente a sua palavra: Marie morreria. Era uma promessa feita por um homem que cumpria suas promessas, cumpria sua palavra.

Apesar de tudo, porém, David Webb sentia algo que não conseguia definir. Havia no taipan alguma coisa um pouco exagerada, um tanto operística, que nada tinha a ver com seu tamanho. Era como se ele tivesse usado o volume imenso em seu benefício, de uma maneira que os homens grandes raramente fazem, preferindo deixar que o tamanho puro e simples cause toda a impressão necessária. Quem era o taipan? A resposta estava no Hotel Lisboa; como ele não se atrevia a ir lá pessoalmente, os talentos de d’Anjou poderiam ajudá-lo. Contara muito pouco ao Francês; diria mais agora. Descreveria um assassinato duplo brutal, com uma Uzi, diria que uma das vítimas era a esposa de um poderoso taipan. D’Anjou. faria as perguntas que ele não podia fazer; se houvesse respostas, ele daria outro passo cm direção a Marie.

Aja de acordo com o roteiro. — Alexander Conklin.

O roteiro de quem? — David Webb.

Está perdendo tempo! — Jason Bourne. Descubra o impostor! Capture-o!

Passos suaves no corredor lá fora. Jason deixou a janela e se encaminhou em silêncib para a parede, as costas comprimidas, a arma levantada, de tal forma que a porta aberta o esconderia. Uma chave foi inserida na fechadura, com evidente cautela. E a porta foi aberta devagar.

Bourne empurrou a porta em cima do intruso, dando a volta e agarrando o vulto atordoado. Puxou-o para dentro e fechou a porta com o pé, a arma apontada para a cabeça do homem caído, que largara uma valise e um pacote grande. Era d’Anjou.

— Essa é uma maneira de ver os seus miolos estourados, Eco.

— Sacré-bleu! É também a última vez que serei atencioso com você? Não está se vendo, Delta. Parece até a época de Tam Quan, sem dormir por vários dias. Pensei que estivesse descansando.

Outra lembrança, aflorando de repente.

— Você não me disse em Tam Quan que eu tinha de dor-

mir? Nós nos escondemos no mato e você formou um círculo ao meu redor, quase me deu uma ordem para descansar um pouco.

— Por um motivo puramente egoísta. Não poderíamos sair de lá sem você.

— Você me disse alguma coisa na ocasião, O que foi? Eu aceitei.

— Expliquei que o descanso era uma arma, tanto quanto qualquer instrumento contundente ou mecanismo de disparo que o homem já inventou.              

— Usei uma variação depois. Tornou-se um axioma para mim.

— Fico contente que você tivesse a inteligência de escutar os mais velhos. Posso me levantar, por favor? E quer fazer o favor de baixar essa porra dessa arma?

— Desculpe.

— Não temos tempo — disse d’Anjou, levantando-se e deixando a valise no chão.

Rasgou o papel pardo do embrulho grande. Lá dentro havia roupas cáquis, dois cintos com coldres e dois quepes com palas. D’Anjou jogou tudo numa cadeira.

— Aí estão os uniformes. E tenho no bolso as identificações necessárias. Meu posto é superior ao seu, Delta, mas também a idade tem seus privilégios.

— São uniformes da polícia de Hong Kong.

— De Kowloon, para ser mais preciso. Podemos ter nossa chance, Delta. Por isso é que demorei tanto a voltar. A segurança no Aeroporto de Kai-tak é intensa, justamente o que o impostor quer, a fim de mostrar que é melhor do que você jamais foi. Não há nenhuma garantia, é claro, mas eu apostaria a minha vida... é o desafio clássico para um maníaco obcecado. “Podem montar as suas forças e eu vou rompê-las!” Com um golpe assim, ele restabelece o mito de sua invencibilidade absoluta. Tenho certeza de que é ele mesmo.

— Comece do início — ordenou Bourne.

— Enquanto nos vestimos — disse o Francês, tirando a camisa e desabotoando a calça. — Depressa, Delta. Tenho uma lancha no outro lado da rua. Quatrocentos cavalos de potência. Podemos estar em Kowloon dentro de quarenta e cinco minutos.

Tome aqui. Isto é seu. Mon Dieu, o dinheiro que gastei me dá vontade de vomitar!

— As patrulhas da República Popular vão nos liquidar — comentou Jason, tirando as roupas e pegando o uniforme.

— Está bancando o idiota. Certos barcos podem passar com um código transmitido pelo rádio. Afinal, há honra entre nós. Como acha que transportamos nossas mercadorias? Como acha que sobrevivemos? Nós nos encontramos em enseadas nas ilhas chinesas do Sa Wei, onde os pagamentos são efetuados. Depressa!

— O que me diz do aeroporto? Por que tem tanta certeza de que é ele?

— O governador da Coroa. Assassinato.

— O quê? — murmurou Bourne, aturdido.

— Fui a pé do Peninsula ao Star Ferry, com a sua valise. A distância é pequena, e a barca é muito mais rápida do que um táxi através do túnel. Ao passar pela delegacia de polícia de Kowloon, na Salisbury Road, observei sete carros da polícia partirem em velocidade de emergência, um atrás do outro, todos virando para a esquerda. Não é normal. Dois ou três carros para uma confusão local é compreensível, mas sete? Parecia um caso sério. Liguei para o meu contato na delegacia e ele se mostrou cooperativo... e também não era mais um segredo interno. Disse que se eu ficasse por lá veria mais dez carros e vinte camburões, todos seguindo para o Kai-tak, nas próximas duas horas. Os carros que vi eram das equipes avançadas de busca. Eles receberam a informação, através de fontes no submundo, de que haveria um atentado contra o próprio governador da Coroa.

— Seja mais específico! — ordenou Bourne, a voz áspera, ajeitando a calça e pegando a camisa cáqui comprida, que servia como um blusão sob o cinto com o coldre.

— O governador chega de avião de Pequim esta noite, acompanhando pela comitiva do Foreign Office e por mais uma delegação de negociadores chineses. O pessoal da imprensa estará presente, equipes de televisão, todo mundo. Os dois governos querem uma cobertura ampla. Haverá uma reunião conjunta amanhã de todos os negociadores e líderes do setor financeiro.

— O tratado de 1997?

— Mais uma onda de verbosidade interminável sobre os acordos. Mas, para o bem de todos nós, reze para que eles falem amigavelmente.

— O roteiro — murmurou Jason, interrompendo qualquer movimento.

— Que roteiro?

— O que você mesmo levantou, o roteiro que queima as ligações entre Pequim e a Casa do Governo. Matar um governador da Coroa pelo assassinato de um vice-primeiro-ministro? E depois um secretário do Exterior por um importante membro do Comitê Central... um primeiro-ministro por um presidente do conselho? Até que ponto poderia ir? Quantas mortes escolhidas a dedo antes de se chegar ao ponto de ruptura? Quanto tempo antes de o pai se recusar a tolerar o filho desobediente e marchar para Hong Kong? Oh, Deus, pode acontecer... e alguém quer que aconteça!

D’Anjou ficou imóvel, segurando o cinto largo com o coldre, a sinistra fieira de balas encapadas em latão.

— O que sugeri não foi mais do que especulação, baseada na violência a esmo causada por um assassino obcecado, que aceita seus contratos sem qualquer discriminação. Há bastante ganância e corrupção política nos dois lados para justificar essa especulação. Mas o que você está sugerindo, Delta, é muito diferente. Está dizendo que é um plano, um plano organizado para desintegrar Hong Kong a tal ponto que o Continente vai querer assumir o controle.

— O roteiro — repetiu Jason Bourne. — Quanto mais complicado se torna, mais simples parece.

Os telhados do Aeroporto de Kai-tak enxameavam de policiais, assim como os portões e os túneis, os balcões do serviço de imigração e as áreas de bagagem. Lá fora, na imensa pista preta, potentes refletores eram acompanhados por lanternas em movimento, focalizando cada veículo, cada palmo visível do terreno. Equipes de televisão desenrolavam cabos sob olhos vigilantes, enquanto entrevistadores ao lado de equipamentos de som praticavam a pronúncia em uma dúzia de línguas. Repórteres e fotógrafos eram mantidos além dos portões, enquanto o pessoal do aeroporto avisava por megafones que as áreas isoladas por cordas na pista estariam em breve à disposição dos jornalistas com as credenciais emitidas pela administração do Kai-tak. Era uma verdadeira loucura. E foi então que aconteceu o totalmente inesperado, quando uma súbita tempestade se abateu sobre a colônia, procedente da escuridão do horizonte ocidental. Era mais um dilúvio de outono.

— O impostor tem muita sorte... não é mesmo? — comentou d’Anjou.

Ele e Bourne, ambos de uniforme, junto com uma falange de guardas, marchavam por uma passagem coberta de alumínio corrugado, a caminho de um dos enormes hangares de reparos. O martelar da chuva era ensurdecedor.

— A sorte nada tem a ver com isso — respondeu Jason. — Ele estudou as previsões da meteorologia até Sichuan. Todo aeroporto as tem. Ele previu tudo ontem, até mesmo há dois dias. As condições do tempo também são uma arma, Eco.

— Mesmo assim, ele não podia determinar a chegada do governador num avião chinês. Com freqüência eles se atrasam por horas... quase sempre.

— Mas não dias, não quase sempre. Quando a polícia de Kowloon recebeu o aviso do atentado?

— Não esqueci de perguntar isso — disse o Francês. — Por volta das onze e meia desta manhã.

— E a chegada prevista do avião de Pequim era no início da noite?

— Isso mesmo. Eu já tinha dito. O pessoal de imprensa e televisão foi instruído para estar aqui às nove horas.

— Ele estudou as previsões do tempo. As oportunidades surgem. É preciso aproveitá-las.

— E é isso o que você deve fazer, Delta. Pense como ele, seja ele! É a nossa chance!

— O que acha que estou fazendo?... Quero me afastar quando chegarmos ao hangar. Acha que conseguirei com a sua identidade falsa?

— Sou um comandante do Setor Britânico da Polícia Regional de Mongkok.

— O que significa isso?

— Não sei direito, mas foi o melhor que pude arranjar.

— Não parece um britânico.

— E quem saberia disso aqui em Kai-tak, meu velho?

— Os britânicos.

— Tratarei de evitá-los. Meu chinês é melhor do que o seu. Os Zhongguo ren vão respeitá-lo. Você terá toda liberdade para circular.

— Não pode ser de outra forma — murmurou Jason Bourne. — Se é o seu comando, quero encontrá-lo antes de qualquer outro. Aqui. Agora.

Postes com cordas foram tirados do hangar alto pelo pessoal de manutenção, vestindo capas de um amarelo lustroso. Um veículo se aproximou com uma carga de capas amarelas para os contingentes da polícia; foram jogadas pelas portas traseiras do furgão, e os homens as pegaram. Depois de vesti-las, os policiais se reuniram em vários grupos, a fim de receber instruções de seus superiores. A ordem rapidamente se impunha da confusão agravada pelos recém-chegados, homens aturdidos e os problemas causados pelo súbito aguaceiro. Era o tipo de ordem de que Bourne desconfiava. Muito suave, muito convencional para o trabalho pela frente. As fileiras de soldados em cores brilhantes marchavam para a frente nos lugares errados e com as táticas erradas quando se procurava guerrilheiros... até mesmo um único homem treinado em guerra de guerrilha. Cada policial em sua capa amarela era ao mesmo tempo um alerta e um alvo... e era também mais uma coisa. Um peão. Cada homem podia ser substituído por outro vestido da mesma maneira, por um matador que sabia como assumir a aparência do inimigo.

Contudo, a estratégia de infiltração com o objetivo.de matar alguém era suicida, e Jason sabia que o impostor não tinha essa intenção. A menos... a menos que a arma a ser usada tivesse um nível de som tão baixo que o barulho da chuva o abafaria por completo... mas mesmo assim a reação do alvo não podia ser instantânea. No mesmo instante se formaria um cordão de isolamento em torno do local, assim que o governador tombasse, todas as saídas seriam fechadas, as pessoas receberiam ordens de permanecerem onde estavam. Uma reação retardada? Um pequeno dardo disparado por ar comprimido, cujo impacto não era maior do que uma espetadela, um pequeno incômodo a ser descartado como uma mosca desagradável, a gota letal de veneno entrando na corrente sangüínea para causar a morte, de forma lenta mas inexorável, já que o tempo não era um fator importante. Era uma possibilidade, mas também havia obstáculos demais a superar, a necessidade de uma precisão muito superior aos limites de uma arma de ar comprimido. O governador sem dúvida estaria usando um colete protetor, e visar ao rosto era inadmissível. Os nervos faciais exageravam a dor, e qualquer objeto estranho fazendo contato tão perto dos olhos produziria uma reação imediata e drástica. Restavam as mãos e a garganta: as mãos eram pequenas e presumivelmente estariam em movimento rápido; e a garganta era simplesmente uma área muito limitada. Um rifle de alta potência num telhado? Um rifle de precisão incontestável, com um visor telescópico infravermelho? Outra possibilidade... uma capa amarela, também comum por ali, encobrindo um assassino. Mas também seria uma operação suicida, pois essa arma produziria uma explosão isolada, e acoplar um silenciador reduziria a precisão do rifle, a ponto de não se poder mais confiar nele. Todas as chances eram contra um matador num telhado. A matança seria óbvia demais.

E a matança era tudo. Bourne compreendia isso, especialmente nas circunstâncias. D’Anjou estava certo. Todos os fatores eram propícios a um assassinato espetacular. Carlos o Chacal não podia pedir por mais... nem Jason Bourne, refletiu David Webb. Executar o crime, apesar das extraordinárias medidas de segurança, faria com que o novo “Bourne” se tornasse o rei de sua repulsiva profissão. Mas como ele agiria? Que opção podia usar? E depois que a decisão fosse consumada, que caminho de fuga seria mais eficaz, mais possível?

Um dos caminhões de televisão, com seus equipamentos complicados, era um meio óbvio demais para uma fuga. As equipes de manutenção do avião que se aproximava eram conferidas várias vezes; um estranho seria reconhecido num instante. Todos os jornalistas passariam pelos portões eletrônicos, que acusariam um excesso de dez miligramas de metal. E os telhados estavam excluídos. Então como?

— Já pode circular — anunciou d’Anjou, aparecendo a

seu lado e estendendo um pedaço de papel. — Esta autorização é assinada pelo chefe de polícia do Kai-tak.

— O que disse a ele?

— Que você é um judeu treinado em atividades antiterroristas pelo Mossad e está trabalhando conosco num programa de intercâmbio. A notícia vai se espalhar.

— Mas eu não falo hebraico!

— E quem por aqui fala? Dê de ombros e continue a usar o seu francês passável... que é falado por aqui, mas muito mal. Ninguém vai perceber.

— Sabia que você é incrível?

— Sei que Delta, quando era nosso líder em Medusa, comunicou ao Comando de Saigon que não sairia em ação de campo sem o “velho Eco”.

— Eu devia ter perdido o juízo.

— Reconheço que na ocasião você não estava muito no comando de suas faculdades mentais.

— Muito obrigado, Eco. Deseje-me sorte.

— Você não precisa de sorte — respondeu o Francês. — É Delta. Será sempre Delta.

Tirando a capa amarela e o quepe com pala, Bourne saiu e mostrou seu passe aos guardas postados à entrada do hangar. À distância, a imprensa estava sendo conduzida pelos portões eletrônicos, na direção das áreas delimitadas por cordas. Microfones haviam sido instalados à beira da pista, e os carros da polícia receberam o acréscimo de patrulhas em motocicletas, formando um semicírculo cerrado em torno da área da entrevista coletiva. Os preparativos estavam praticamente completos, todas as forças de segurança em seus lugares, os equipamentos dos meios de comunicação prontos para funcionar. O avião de Pequim obviamente iniciara a descida através do aguaceiro. Aterrissaria dentro de minutos... minutos que Jason desejava que pudessem ser ampliados. Havia tantas coisas a verificar, e restava muito pouco tempo. Onde procurar? E o quê? Tudo era ao mesmo tempo possível e impossível. Que opção o matador usaria? De que posição vantajosa atacaria para a execução perfeita? E qual a maneira mais lógica de escapar do local do crime?

Bourne analisara cada opção em que pôde pensar e excluíra todas. Pense de novo! E de novo! Só restavam poucos minutos. Dê a volta e comece do início... do início. A premissa: o assassinato do governador. Condições: aparentemente absolutas, com atiradores altamente treinados da polícia de segurança nos telhados, bloqueio de todas as entradas, saídas, escadas comuns, escadas rolantes, tudo em contato pelo rádio. As chances eram esmagadoramente contrárias. Suicídio... Contudo, eram essas mesmas condições extremamente negativas que o impostor-assassino julgava irresistíveis. D’Anjou estava certo mais uma vez: com uma execução espetacular, nessas condições, a supremacia de um assassino seria estabelecida... ou restabelecida. O que dissera o Francês? Com uma execução assim, ele restabelece o mito de sua invencibilidade.

Quem? Onde? Como? Pense! Procure!

A chuva encharcava o uniforme da polícia de Kowloon. Jason afastava incessantemente a água do rosto, enquanto circulava, observando todos e tudo. Nada! E logo se podia ouvir à distância o troar abafado dos motores de jato. O avião de Pequim iniciava a aproximação final, na extremidade da pista. Estava aterrissando.

Jason estudou a multidão parada além das cordas de isolamento. Um obsequioso governo de Hong Kong, em deferência a Pequim e no desejo de uma “cobertura ampla”, fornecera ponchos, quadrados de lona e capas baratas a todos os que quiseram. O pessoal do Kai-tak reagira aos pedidos da imprensa por uma entrevista coletiva num local coberto ao declarar apenas — e sensatamente sem acrescentar maiores explicações — que não seria propício à segurança. A entrevista seria curta, não levaria mais que cinco ou seis minutos. Afinal, os melhores representantes da comunidade jornalística podiam tolerar um pouco de chuva por um evento tão importante.

Os fotógrafos? Metal! Câmaras passaram pelos portões, mas nem todas as “câmaras” tiravam fotografias. Um artefato relativamente simples podia ser inserido e preso num equipamento, um potente mecanismo de disparo que lançaria uma bala — ou um dardo — com a ajuda de um visor telescópico. Seria esse o meio? O assassino escolhera essa opção, esperando largar a “câmara” no chão e tirar outra do bolso, enquanto se deslocava rapidamente para a beira da multidão, suas credenciais tão autênticas quanto as de d’Anjou e do “antiterrorista” do Mossad? Era bem possível.

O enorme jato pousou na pista e Bourne encaminhou-se apressado para a área isolada por cordas, aproximando-se de cada fotógrafo que podia ver, procurando... procurando por um homem que se parecia com ele. Devia haver duas dúzias de homens com câmaras; foi ficando frenético, enquanto o avião procedente de Pequim taxiava na direção da multidão, os refletores agora concentrados no espaço em torno dos microfones e das equipes de televisão. Jason passava de um fotógrafo para outro, verificando rapidamente que o homem não podia ser o assassino, depois olhando outra vez, a fim de constatar se as posturas eram erectas, se os rostos não estariam alterados. Mais uma vez nada! Ninguém! Mas tinha de encontrá-lo! Tinha de pegá-lo. Antes que qualquer outro o encontrasse! O assassinato não importava, era irrelevante para ele! Só Marie tinha significado!

Volte ao início! Alvo — o governador da Coroa. Condições — altamente negativas para uma execução, o alvo sob segurança máxima, indubitavelmente protegido por pessoal blindado, todo o corpo de segurança ordenado, disciplinado, os oficiais num comando firme... O começo? Alguma coisa estava faltando. Repasse tudo de novo. O governador da Coroa — o alvo, uma única execução. Método da execução: o suicídio excluía todas as possibilidades que não um artefato de reação retardada — um dardo disparado por ar comprimido, um chumbinho — só que a necessidade de precisão tornava uma arma assim ilógica, e o estampido alto de uma arma convencional acionaria no mesmo instante toda a força de segurança. Demora? Ação retardada, não reação! O começo, a primeira pressuposição, estava errado! O alvo não era apenas o governador da Coroa. Não era uma única execução, mas várias mortes, mortes indiscriminadas! Muito mais espetacular! Muito mais eficaz para um maníaco que queria lançar Hong Kong no caos! E o caos começaria instantaneamente com as forças de segurança. Desordem, fuga!

A mente de Bourne estava em disparada, enquanto ele circulava pela multidão, sob a chuva, os olhos se desviando por toda parte. Tentou recordar cada arma que já conhecera.

Uma arma que pudesse ser disparada ou acionada silenciosa- mente, discretamente, de uma área reservada, com muitas pessoas, o efeito retardado por tempo suficiente para que o assassino pudesse mudar de posição e se preparar para a fuga incólume. Só lhe ocorreu um artefato assim, uma granada, mas prontamente descartou a possibilidade. E depois lhe aflorou o pensa mento de dinamite ou explosivo plástico com um dispositivo de tempo. Era muito mais viável em termos de cálculo de tempo, mais fácil de esconder. Os explosivos plásticos podiam ser armados em prazos de minutos ou frações de minutos, em vez de apenas uns poucos segundos como as granadas; podiam ser escondidos em pequenas caixas, pacotes, até mesmo em pastas estreitas... ou em caixas maiores, supostamente contendo equipamento fotográfico, não necessariamente carregadas por um fotógrafo. Jason começou outra vez, voltando pela multidão de repórteres e fotógrafos, os olhos esquadrinhando a pista preta por baixo das saias e calças, procurando por uma caixa isolada, que estivesse parada no asfalto duro. A lógica levou-o a se concentrar nas fileiras de homens e mulheres mais próximos da corda de isolamento. Em sua mente, o “pacote” não teria mais que trinta centímetros se fosse grosso, cinqüenta centímetros se fosse uma pasta. Uma carga menor não liquidaria os negociadores dos dois governos. As luzes na pista eram fortes, mas criavam sombras incontáveis, bolsões mais escuros dentro da escuridão. Jason desejou ter se lembrado de trazer uma lanterna... sempre andava com uma, nem que fosse pequena, do tipo caneta, pois também era uma arma! Por que esquecera? E foi nesse instante que, para seu espanto, divisou fachos de lanternas cruzando a pista preta, entre as mesmas calças e saias pelas quais estivera observando. A polícia de segurança desenvolvera a mesma teoria... e por que não? Aeroporto La Guardia, Nova York, 1972; Aeroporto Lod, Tel Aviv, 1974; Rue de Bac, Paris, 1975; Harrods, Londres, 1982. E meia dúzia de embaixadas, de Teerã a Beirute. Por que não? Estavam atualizados, o que já não acontecia com ele. Seu pensamento era lento... e ele não podia permitir isso!

Quem? Onde?

O enorme 747 da República Popular surgiu, como um grande pássaro prateado, os jatos rugindo através do dilúvio, a potên-

cia diminuindo, enquanto manobrava para posição em terreno estranho. As portas se abriram, e o desfile começou. Os dois líderes, das delegações britânicas e chinesa, saíram juntos. Acenaram e desceram ao mesmo tempo a escada de metal, um nas roupas de Whitehall, o outro no uniforme insípido e sem indicação de patente do Exército do Povo. Foram seguidos por duas fileiras de assessores e assistentes, ocidentais e orientais se esforçando ao máximo para parecerem cordiais uns com os outros, diante das câmaras. Os líderes aproximaram-se dos microfones e as vozes soaram pelos alto-falantes e através da chuva. Os minutos seguintes foram confusos para Jason. Uma parte de sua mente estava na cerimônia que ocorria sob a luz dos refletores, a parte maior se concentrava na busca final... pois seria mesmo final. Se o impostor estava ali, ele tinha de encontrá-lo... antes da matança, antes do caos! Mas onde? Bourne deslocou-se além das cordas, na extremidade direita, a fim de ter uma visão melhor dos acontecimentos. Um guarda objetou; Jason mostrou o passe e permaneceu imóvel, observando as equipes de televisão, a aparência de cada um, os olhos, os equipamentos. Se o assassino estava ali, qual deles seria?

— Temos a satisfação de anunciar conjuntamente que houve progressos em relação aos Acordos. Nós, do Reino Unido...

— Nós, da República Popular da China, a única verdadeira China na face da Terra, expressamos a nossa vontade de encontrar uma comunhão íntima com aqueles que desejam...

Os discursos eram interrompidos por um líder dando apoio ao outro, mas deixando o mundo saber que ainda havia muito por negociar. Havia tensão sob a cortesia, panacéias verbais e sorrisos artificiais. E Jason nada encontrava em que pudesse se concentrar, absolutamente nada. Limpou a chuva do rosto e acenou com a cabeça para o guarda, deslocando-se novamente pela multidão, por trás das cordas. Foi se esgueirando para o lado esquerdo da área reservada à imprensa.

Subitamente, os olhos de Bourne foram atraídos para uma série de faróis na chuva, descrevendo uma curva na extremidade da pista e acelerando depressa em direção ao avião parado. E no instante seguinte, como se fosse uma deixa, houve uma explosão de aplausos. A breve cerimônia estava encerrada, o que era confirmado pela chegada das limusines oficiais, cada uma com uma escolta de motociclistas, avançando entre as delegações e a multidão de repórteres e fotógrafos. A polícia cercou os caminhões de televisão, ordenando a todos que entrassem nos veículos, à exceção de dois cinegrafistas previamente selecionados.

Era o momento. Se alguma coisa ia acontecer, seria agora. Se um instrumento de morte estava prestes a ser acionado, sua carga explodiria dentro de um minuto ou menos, seria acionada agora.

Vários passos à sua esquerda ele avistou o oficia! de um contingente da polícia, um homem alto, cujos olhos se moviam tão depressa quanto os seus. Jason foi até o homem e falou em chinês, enquanto exibia o passe, protegendo-o da chuva com a mão.

— Sou o homem do Mossad! — gritou ele, tentando ser ouvido acima dos aplausos.

— Já sei de você! — berrou o oficial em resposta. — Fui informado. Estamos gratos por sua presença aqui.

— Tem uma lanterna?

— Claro. Está querendo?

— E muito.

— Tome aqui.

— Venha comigo! — ordenou Bourne, levantando a corda e gesticulando para que o oficial o seguisse. — Não tenho tempo para ficar mostrando o passe!

— Está certo.

O chinês foi atrás, estendendo a mão e interceptando um guarda que estava prestes deter Jason... atirando nele, se fosse necessário.

— Deixe-o passar! Ele é um dos nossos! É treinado nessas coisas!

— O judeu do Mossad?

— O próprio!

— Fomos avisados. Obrigado, senhor... Mas é claro que ele não pode me compreender.

— Por mais estranho que possa parecer, ele compreende. Fala Guangdong hua.

— Na Food Street há o que eles chamam de um restaurante Rasher que serve os nossos pratos...

Bourne estava agora entre a fileira de limusines e as cordas do setor da imprensa. Enquanto andava, projetava o facho da lanterna para a pista preta e dava ordens em chinês e inglês, gritando e ao mesmo tempo não gritando, as ordens de um homem sensato, talvez procurando por um objeto perdido. Um a um, os homens e mulheres da imprensa foram recuando, dando explicações aos que estavam por trás. Aproximou-se da limusine da frente; as bandeiras da Grã-Bretanha e da República Popular estavam ali, respectivamente à direita e à esquerda, indicando que a Inglaterra era a anfitriã e a China a hóspede. Os líderes das delegações viajavam juntos. Jason concentrava-se no chão; os importantes passageiros estavam prestes a embarcar no veículo alongado, em companhia de seus principais assessores, em meio aos aplausos ininterruptos.

E foi então que aconteceu, mas Bourne não sabia direito o que era. Seu ombro esquerdo tocou em outro ombro e o contato foi elétrico. O homem em que ele roçara primeiro inclinou-se para a frente e depois recuou abruptamente, com tanto vigor que Jason se desequilibrou. Virou-se e olhou para o homem da escolta de motociclistas, depois levantou a lanterna para ver através do plástico oval escuro do capacete.

Um raio caiu, descargas intensas se abatendo sobre o seu crânio, os olhos fascinados, enquanto tentava se ajustar ao inacreditável. Estava olhando para si mesmo... como fora anos antes! As feições por trás da bolha opaca eram as suas! Era o comando! O impostor! O assassino!

Os olhos que o fitavam também demonstravam pânico, mas foram mais rápidos que os de Webb. A mão rígida saltou para a frente, atingindo a garganta de Jason, interrompendo qualquer fala e pensamento. Bourne caiu para trás, incapaz de falar, levando a mão ao pescoço, enquanto o assassino saltava da motocicleta. Correu além de Jason e passou por baixo da corda.

Peguem esse homem! Agarrem-no!... Marie! As palavras estavam ausentes, havia apenas pensamentos histéricos, gritados silenciosamente na mente de Bourne. Teve uma ânsia de vômito, explodindo a cutelada em sua garganta, saltou por cima da corda, avançando pela multidão, seguindo a trilha de corpos caídos que haviam sido derrubados pelo assassino, em sua corrida para a fuga.

— Parem esse... homem! — Somente a última palavra saiu da garganta de Jason, um sussurro rouco. — Deixem-me passar!

Duas palavras audíveis, mas ninguém estava prestando atenção. Em algum lugar, perto do terminal, uma banda estava tocando no aguaceiro.

A trilha estava fechada! Só havia pessoas, pessoas e mais pessoas! Encontre-o! Capture-o! Marie! Ele se foi! Desapareceu!

— Deixem-me passar! — gritou Jason outra vez, as palavras agora claras, mas sem que ninguém prestasse atenção.

Empurrou e puxou, chegando à beira da multidão e deparando com outra multidão, à sua frente, por trás das portas de vidro do terminal.

Nada! Ninguém! O assassino sumira!

O assassino? O assassinato!

Era a limusine, a limusine da frente, com as bandeiras dos dois países! Era esse o alvo! Em algum lugar no interior ou por baixo daquele carro estava o mecanismo que explodiria em breve, matando os líderes das duas delegações. Resultado — o roteiro... caos. E a tomada de Hong Kong!

Bourne virou-se, procurando freneticamente por alguém com autoridade. Vinte metros além da corda, em posição de sentido enquanto a banda tocava o hino britânico, estava um oficial da polícia de Kowloon. E havia um rádio preso em seu cinto. Uma chance! As limusines iniciavam seu desfile imponente para um portão invisível do aeroporto.

Jason deu um puxão na corda, levantando-a e derrubando uma estaca, e correu na direção do oficial chinês baixo e empertigado, gritando:

— Xun su!

— Shemma? — respondeu o aturdido oficial, instintiva- mente levando a mão ao revólver no coldre.

— Pare todos! Os carros! As limusines! A que vai na frente!

— Mas do que está falando? Quem é você?

Na sua frustração, Bourne quase derrubou o homem.

— Mossad!

— Você é o homem de Israel? Ouvi...

— Escute! Pegue esse rádio e mande eles pararem! Mande todos saírem daquele carro! Vai explodir! Agora!

Através da chuva, o oficial fitou Jason nos olhos, depois acenou com a cabeça uma vez e tirou o rádio do cinto.

— Emergência! Desocupem o canal e liguem-me com Estrela Vermelha Um! Imediatamente!

— Todos os carros! — interrompeu-o Bourne. — Mande que se afastem!

— Mudança! — gritou o oficial. — Alerta a todos os veículos! Façam o contato!

E com a voz tensa mas controlada, o chinês falou incisivamente, enfatizando cada palavra:

— Aqui é Colônica Cinco e temos uma emergência. Está comigo o homem do Mossad e transmito suas instruções. Devem ser cumpridas imediatamente. Estrela Vermelha Um deve parar agora e ordenar que todos saiam do veículo e corram para a cobertura. Todos os outros carros devem virar para a esquerda e seguir para o centro do campo, afastando-se de Estrela Vermelha Um. Executem a ordem imediatamente!

Aturdida, a multidão observou à distância os motores acelerarem ao mesmo tempo. Cinco limusines deixaram suas posições, disparando para a escuridão exterior do aeroporto. O primeiro carro parou com um ranger dos freios, as portas se abriram, e homens saíram, correndo em todas as direções.

E oito segundos depois aconteceu. A limusine chamada Estrela Vermelha Um explodiu, a quinze metros do portão aberto. Metal flamejante e vidro estilhaçado subiram pela chuva, enquanto a banda parava de tocar no meio de um acorde.

Pequim, vinte e três horas e vinte e cinco minutos.

Além dos subúrbios ao norte de Pequim existe um vasto conjunto de construções de que raramente se fala e nunca está aberto à visitação pública. O principal motivo é a segurança, mas há também um elemento de embaraço naquela sociedade igualitária. Pois no interior daquele enclave amplo e cheio de árvores nas colinas estão as residências das personalidades mais poderosas da China. O conjunto está envolto por sigilo, como convém a um complexo cercado por um muro alto de pedras cinzentas, as entradas guarnecidas por calejados veteranos do Exército, os bosques no interior permanentemente patrulhados por cães de guarda. E se alguém especular sobre os relacionamentos sociais e políticos cultivados ali, cabe ressaltar que nenhuma residência pode ser vista de outra, pois cada estrutura está cercada por seu próprio muro e todos os guardas pessoais são escolhidos com extremo cuidado, depois de anos de obediência e confiança. O nome, quando se fala, é Montanha da Torre de Jade, que não se refere a nenhuma montanha geológica, mas sim a uma imensa colina, que se eleva acima de todas as outras. Em um momento ou outro, com o fluxo e refluxo das fortunas políticas, ali residiram homens como Mao Tsé-tung, Liu Shaoshi, Lin Piao e Chou-En-lai. Entre os residentes atuais estava um homem que moldava o destino econômico da República Popular. A imprensa internacional referia-se a ele simplesmente como Sheng, e o nome era prontamente reconhecível. Seu nome completo era Sheng Chou Yang.

Um sedã marrom avançou em alta velocidade pela estrada junto ao imponente muro cinzento. Aproximou-se do Portão Número Seis. Como se estivesse distraído, o motorista pisou subitamente no freio e o carro derrapou para a entrada, parando a poucos centímetros da cancela laranja, que refletia os fachos dos faróis. Um guarda adiantou-se.

— Quem veio ver e qual é o seu nome? Precisarei de sua identificação oficial.

— Ministro Sheng — respondeu o motorista. — E meu nome não é importante, meus documentos não são necessários. Por favor, comunique à residência do ministro que seu emissário de Kowloon está aqui.

O soldado deu de ombros. Tais respostas eram comuns na Montanha da Torre de Jade, e pressionar ainda mais poderia resultar numa transferência presumível de seu posto celestial, onde as sobras de comida estavam além da imaginação mais delirante, e até mesmo cerveja estrangeira era oferecida aos soldados obedientes e cooperativos. Ainda assim, o guarda usou o telefone. O visitante tinha de ser admitido da maneira apropriada. Agir de outra forma poderia levar o responsável a se ajoelhar no campo e levar um tiro na nuca. O guarda voltou à guarita e ligou para a casa de Sheng Chou Yang.

— Deixe-o passar. Imediatamente.

Sem voltar ao sedã, o guarda apertou um botão e a cancela laranja foi levantada. O carro disparou, em alta velocidade sobre

o cascalho. O emissário estava com muita pressa; pensou o guarda.

— O Ministro Sheng está no jardim — informou o oficial do Exército na porta, olhando além do visitante, esquadrinhando a escuridão. — Vá ao seu encontro.

O emissário passou apressado pela sala da frente, repleta de móveis laqueados em vermelho, chegando a uma arcada, além da qual havia um jardim murado, completo, inclusive com quatro laguinhos com lírios, interligados e sutilmente iluminados por luzes amarelas, por baixo da água. Dois caminhos de cascalho se cruzavam para formar um X entre os laguinhos. Cadeiras pretas de vime e mesinhas estavam instaladas na extremidade de cada caminho, num cenário oval. Sentado sozinho na extremidade do caminho de leste, junto ao muro de tijolos, estava um homem esguio, de estatura mediana, os cabelos curtos prematuramente grisalhos, as feições encovadas. Se havia alguma coisa nele que podia surpreender quem o visse pela primeira vez eram os olhos... pois eram os olhos escuros de um homem morto, as pálpebras jamais piscando, nem por um instante se quer. Eram também os olhos de um fanático, cuja dedicação cega a uma causa constituía a essência de sua força; havia um calor nas pupilas, iluminando as órbitas. Eram os olhos de Sheng Chou Yang, e no momento estavam em fogo.

— Conte tudo! — rugiu ele, as mãos apertando os braços pretos da cadeira de vime. — Quem foi?

— É tudo mentira, Ministro. Verificamos com nosso pessoal em Tel Aviv. Não existe ninguém como o homem que foi descri to. Não há nenhum agente do Mossad em Kowloon! Uma mentira!

— Que ação você tomou?

— Está tudo muito confuso...

— Que ação?

— Estamos investigando um inglês em Mongkok que ninguém parece conhecer.

— Tolos e idiotas! Idiotas e tolos! Com quem você falou?

— Com nosso homem chave na polícia de Kowloon. Ele está perplexo, e lamento dizer que o achei também apavorado. Fez várias referências a Macau, e não gostei do tom de sua voz.

— Ele deve morrer.

— Transmitirei suas instruções.

— Receio que não poderá fazê-lo. — Sheng gesticulou com a mão esquerda, a direita escondida nas sombras, estendendo-se por baixo da mesa. — Venha prestar sua obediência ao Kuomintang.

O emissário aproximou-se do ministro. Inclinou-se para a mão esquerda do grande homem. Sheng levantou a mão direita. Empunhava uma arma.

Seguiu-se uma explosão, que estourou a cabeça do emissário. Fragmentos de crânio e tecido caíram sobre os lírios. O oficial do Exército apareceu na arcada, enquanto o cadáver batia no cascalho branco.

— Dê um sumiço no corpo —ordenou Sheng. —Ele ouviu demais, soube demais... presumiu demais.

— Está certo, Ministro.

— E entre em contato com o homem em Macau. Tenho instruções para ele e devem ser cumpridas imediatamente, com o fogo de Kowloon ainda iluminando o céu. Quero-o aqui.

Enquanto o oficial se aproximava do mensageiro morto, Sheng levantou-se subitamente e se encaminhou devagar para a beira do laguinho mais próximo, o rosto iluminado pelas luzes por baixo da água. Falou mais uma vez, a voz monótona, mas com grande determinação:

— Em breve toda Hong Kong e os territórios. E, depois, toda a China.

— O senhor lidera, Ministro — disse o oficial, observando Sheng, os olhos brilhando de devoção. — Nós seguimos. A marcha que prometeu já começou. Voltamos à nossa Mãe e a terra será nossa outra vez.

— Será mesmo — concordou Sheng Chou Yang. — Não podemos ser repudiados. Eu não posso ser repudiado.

 

Por volta de meio-dia daquele dia terrível, quando o Kai-tak ainda era apenas um aeroporto e não um cenário de assassinato, o Embaixador Havilland descrevera para uma atordoada Catherine Staples as linhas gerais da conspiração de Sheng, com suas raízes no Kuomintang. Objetivo: um consórcio de taipans com um líder central, de quem Sheng era filho, assumindo o controle da colônia e transformando Hong Kong no império financeiro dos conspiradores. Resultado inevitável: a conspiração fracassaria, e o gigante irado que era a República Popular entraria em ação, marchando sobre Hong Kong, destruindo os Acordos e lançando o Extremo Oriente no caos. Em total incredulidade, Catherine exigira comprovação. Por volta de duas e quinze da tarde ela já lera duas vezes o dossiê enorme e ultra-secreto do Departamento de Estado sobre Sheng Chou Yang. Mas ela continuara a protestar, irredutível, alegando que não se podia confirmar a acurácia da autoria. As três e meia ela fora levada à sala de rádio e, por uma transmissão segura através de satélite, ouvira a apresentação dos “fatos” por um homem chamado Reilly, do Conselho de Segurança Nacional, em Washington.

— Não passa de uma voz, Sr. Reilly — dissera Staples. — Como posso saber que não se encontra na base do Peak, em Wanchai?

E nesse momento houvera um estalido acentuado na liga-

ção; no instante seguinte, uma voz que Catherine e o mundo conheciam muito bem estava lhe falando:

— Aqui é o Presidente dos Estados Unidos, Sra. Staples. Se duvida disso, sugiro que procure o seu consulado. Peça para entrarem em contato com a Casa Branca pelo telefone diplomático e solicitarem uma confirmação de nossa transmissão. Vou desligar agora. Vai receber a confirmação. No momento, não tenho nada melhor a fazer... nada mais vital.

Sacudindo a cabeça e fechando os olhos por um instante, Catherine respondera:

— Acredito em sua palavra, Sr. Presidente.

— Esqueça de mim e acredite no que ouviu. É a verdade.

— Mas é tão inacreditável... inconcebível.!

— Não sou um perito nesses assuntos, Sra. Staples, nunca tive essa pretensão, mas posso ressaltar que o Cavalo de Tróia também parecia inacreditável. Talvez seja apenas uma lenda, e a mulher de Menelau não passe da invenção de um contador de histórias à beira de uma fogueira de acampamento, mas o conceito é válido... tornou-se um símbolo de um inimigo destruindo de dentro seu adversário.

— Menelau?

— Não acredite nos meios de comunicação. Já li alguns livros. Mas acredite em nosso pessoal, Sra. Staples. Precisamos de sua ajuda. Ligarei para o seu primeiro-ministro, se isso for indispensável. Mas, para ser sincero, preferia não fazê-lo. Ele pode achar que é necessário conferenciar com outros.

— Não é preciso, Sr. Presidente. A discrição é tudo. Estou começando a compreender o Embaixador Havilland.

— Está melhor do que eu. Nem sempre consigo compreendê-lo.

— Talvez seja melhor assim, senhor.

Às três e cinqüenta e oito houve um telefonema de emergência — a mais alta prioridade — para a casa segura em Victoria Peak, mas não era para o Embaixador Havilland nem para o Subsecretário de Estado McAllister. Era para o Major Lin Wen zu e desencadeou uma vigília assustada, que se prolongou por quatro horas. As informações escassas eram tão terríveis que toda concentração foi fixada na crise. Catherine Staples ligou para o seu consulado, comunicando ao Alto Comissário que não estava passando bem e por isso não compareceria à conferência de estratégia com os americanos naquela tarde. Sua presença na casa segura foi bem acolhida. O Embaixador Havilland queria que a diplomata canadense constatasse pessoalmente e compreendesse como o Extremo Oriente se encontrava próximo da convulsão. Como um erro inevitável da parte de Sheng ou de seu assassino poderia provocar uma explosão tão drástica que as tropas da República Popular entrariam em Hong Kong em poucas horas, não apenas acabando com o comércio internacional da colônia, mas também acarretando um profundo sofrimento humano, com distúrbios sangrentos por toda parte, esquadrões da morte da esquerda e da direita explorando ressenti mentos que datavam de quarenta anos, facções raciais e provinciais se lançando umas contra as outras e contra os militares. O sangue correria pelas ruas e no porto, nações do mundo inteiro seriam afetadas, a guerra global se tornaria uma possibilidade concreta. Ele disse essas coisas a Catherine enquanto operava freneticamente pelo telefone, dando ordens, coordenando seus homens com a polícia da colônia e a segurança do aeroporto.

Tudo começara com o major do MI-Seis cobrindo o fone com a mão e dizendo em voz suave, na sala vitoriana da mansão em Victoria Peak:

— Kai-tak esta noite. As delegações chinesa e britânica. Assassinato. O alvo é o governador da Coroa. Eles acham que é Jason Bourne.

— Não posso entender! — protestou McAllister, levantando-se abruptamente do sofá. — É prematuro. Sheng ainda não está pronto. Teríamos uma indicação se ele estivesse... uma declaração oficial de seu ministério, aludindo a alguma proposta de uma comissão. Está errado!

— Um erro de cálculo? — indagou o embaixador, friamente.

— É possível. Ou algo mais. Uma estratégia que não consideramos.

Depois de transmitir suas últimas instruções, Lin recebeu uma ordem final de Havilland, antes de seguir para o aeroporto:

— Fique fora de vista, Major. E falo sério.

— Isso é impossível. Com o devido respeito, senhor, devo ficar com os meus homens no local. Estes são olhos experientes.

— Com o mesmo respeito, devo dizer que se trata de uma condição para permitir sua passagem pelo portão externo.

— Mas por que, Sr. Embaixador?

— Com a sua perspicácia, fico surpreso que sequer faça essa pergunta.

— Mas tenho de fazer! Não estou entendendo mais nada!

— Então talvez a culpa seja minha, Major. Pensei ter deixado bem claro por que fomos a tantos extremos para trazer o nosso Jason Bourne até aqui. Aceite o fato de que ele é extraordinário, conforme prova a sua folha de serviços. Ele tem ouvidos não apenas para o solo, mas também sintonizados para os quatro ventos. Devemos presumir, se o prognóstico médico é preciso e pedaços de sua memória continuarem a voltar, que ele tem contatos nesta parte do mundo nos recessos mais escondidos, que ignoramos totalmente. Vamos supor... apenas supor, Major... que um desses contatos o informe que foi transmitido um alerta de emergência para o Aeroporto de Kai-tak esta noite, que uma grande força de segurança se concentrou ali para proteger o governador. O que acha que ele faria?

— Estaria lá — respondeu Lin Wenzu, a voz baixa, relutante. — Em algum lugar.

— E se, suponhamos de novo, o nosso Bourne visse você? Perdoe-me, mas não é um homem que se possa ignorar facilmente. A disciplina da mente lógica dele... lógica, disciplina e imaginação sempre foram os seus meios de sobrevivência... o forçará a descobrir quem você é exatamente. Preciso dizer mais?

— Acho que não — murmurou o major.

— A ligação está feita — continuou Havilland, ignorando as palavras de Lin. — Não há taipan com uma jovem esposa assassinada em Macau. Em vez disso, há um oficial altamente considerado do serviço secreto britânico apresentando-se como um fictício taipan, fornecendo-lhe mais uma mentira, ecoando uma mentira anterior. Ele compreenderá que mais uma vez foi manipulado por forças do governo, manipulado da maneira mais brutal possível... pelo seqüestro de sua esposa. A mente, Major, é um instrumento delicado, a dele mais delicada que a da maioria. Há um limite para a pressão que pode suportar. Não quero nem pensar no que ele poderia fazer... no que nós poderíamos ser obrigados a fazer.

— Sempre foi o ponto mais fraco do roteiro e ao mesmo tempo a sua essência — comentou Lin.

— Uma trama engenhosa — interveio McAllister, obviamente citando alguém. — Poucos atos de vingança são tão prontamente compreendidos quanto olho por olho. São suas palavras, Lin.

— Se é esse o caso, não deveriam ter me escolhido para bancar o taipan! — insistiu o major. — Há uma crise em Hong Kong e vocês me deixam manietado!

— É a mesma crise com que todos nos defrontamos — ressaltou Havilland, gentilmente. — Só que desta vez temos um alerta. E, além do mais, que outra pessoa poderíamos escolher? Que outro chinês, a não ser o chefe comprovado do Setor Especial, poderia receber autorização de Londres para tomar conhecimento do que lhe foi informado inicialmente, para não falar do que sabe agora? Instale o seu posto de comando dentro da torre do aeroporto. O vidro é escuro.

Em silêncio, furioso, o enorme major virou-se e deixou a sala.

— É sensato deixá-lo partir? — indagou McAllister, enquanto, junto com o embaixador e Catherine Staples, observava a saída de Lin.

— Claro — respondeu o diplomata especializado em operações secretas.

— Passei algumas semanas convivendo com o pessoal do MI-Seis aqui — continuou o subsecretário, falando depressa. — Ele é conhecido como já tendo desobedecido no passado.

— Só quando as ordens foram dadas por oficiais britânicos arrogantes, com menos experiência do que ele. E Lin nunca foi censurado, pois sempre estava certo. Assim como sabe agora que eu estou certo.

— Como pode ter certeza?

— Por que acha que ele disse que nós o manietamos? Ele não gosta da situação, mas aceita. — Havilland encaminhou-se para trás da mesa e virou-se para Catherine. — Sente-se, por favor, Sra. Staples. Edward, eu gostaria de lhe pedir um favor. Não tem nada a ver com sigilo. Você sabe tanto quanto eu e provavelmente até mais. Não terei a menor dúvida em chamá-lo, se precisar de mais informações. Mas eu gostaria de conversar a sós com a Sra. Staples.

— Está certo. — O subsecretário pôs-se a recolher os papéis sobre a mesa, enquanto Catherine sentava numa cadeira, na frente do embaixador. — Tenho muito em que pensar. Se esse atentado no Kai-tak não é um alarme falso... se é uma ordem direta de Sheng... então ele concebeu uma estratégia que ainda não consideramos, o que é muito perigoso. Por todos os caminhos que já explorei, ele tem de propor a sua câmara de compensação, a sua comissão econômica, em condições estáveis, não instáveis. Pode destruir tudo com isso... só que não é um homem estúpido, mas brilhante, O que ele está querendo fazer?

— Talvez seja bom considerar o inverso do nosso enfoque, Edward — sugeriu o embaixador, franzindo o rosto, enquanto sentava. — Em vez de implantar a sua comissão financeira de taipans sortidos durante um período de estabilidade, ele o faz em meio à instabilidade... mas com simpatia... tendo como objetivo restaurar rapidamente a ordem. Nada de gigante irado, mas sim um pai protetor, preocupado com a prole emocionalmente transtornada, querendo acalmá-la.

— Qual a vantagem?

— Acontece mais depressa. Quem se daria ao trabalho de examinar mais atentamente um grupo de respeitados financistas da, colônia, assumindo durante uma crise? Afinal, eles representam a estabilidade. É algo em que pensar.

McAllister levantou os papéis com as duas mãos, olhando para Havilland.

— É uma jogada grande demais para ele. Sheng corre o risco de perder o controle dos expansionistas do Comitê Central, os velhos revolucionários militares, que estão procurando qualquer desculpa para invadir a colónia. Uma crise baseada na violência seria um presente dos céus para eles. Esse é o roteiro que oferecemos a Webb, e é bastante realista.

— A menos que a posição de Sheng seja agora suficientemente forte para suprimi-los. Como você mesmo disse, Sheng Chou Yang ganhou muito dinheiro para a China... e se já existiu um povo essencialmente capitalista, é o chinês. Eles têm mais que um saudável respeito pelo dinheiro. É uma obsessão.

— Eles também têm respeito pelos velhos da Longa Marcha, e é igualmente obsessivo. Sem esses primeiros maoístas, a maior parte da liderança mais jovem da China ainda seria de camponeses analfabetos, matando-se de tanto trabalhar nos campos. Os chineses reverenciam esses velhos soldados. Sheng não se arriscaria a uma confrontação.

— Nesse caso, há uma teoria alternativa, que pode ser uma combinação do que nós dois estamos dizendo. Não contamos a Webb que vários dos líderes mais ativos da velha guarda de Pequim não são ouvidos há meses. E em diversos casos, quando a notícia foi oficialmente divulgada, este ou aquele morrera de causas naturais ou num trágico acidente; houve um caso em que um foi removido em desgraça. Se a nossa pressuposição está certa, de que pelo menos alguns desses homens silenciados são vítimas do assassino contratado por Sheng...

— Então ele consolidou sua posição pela eliminação — acrescentou McAllister. — Há ocidentais por toda Pequim, os hotéis estão lotados. Um a mais não chama atenção... especialmente um assassino que pode ser qualquer pessoa... um adido, um executivo ... um camaleão.

— E quem melhor do que o ardiloso Sheng para promover encontros secretos entre o seu Jason Bourne e as vítimas selecionadas? Muitos pretextos serviriam, mas basicamente há a espionagem militar de alta tecnologia. Os alvos não perderiam essa oportunidade.

— Se tudo isso está próximo da verdade, então Sheng se encontra muito mais adiantado do que pensávamos.

— Leve os seus papéis. Peça qualquer coisa que precisar do nosso pessoal de informações e do MI-Seis. Estude tudo e descubra um padrão, Edward. Se perdermos um governador esta noite, podemos estar a caminho de perder Hong Kong dentro de poucos dias. Por todos os motivos errados.

— Ele será protegido — murmurou McAllister, encaminhando-se para a porta, com uma expressão transtornada.

— Estou contando com isso — disse o embaixador, enquanto o subsecretário se retirava.

Virando-se para Catherine Staples, Havilland indagou:

— Está realmente começando a me compreender?

— As palavras e informações, sim, mas não algumas questões específicas — respondeu Catherine, olhando com uma expressão estranha para a porta que o subsecretário de Estado acabara de fechar. — Ele não é um homem esquisito?

— McAllister?

— Isso mesmo.

— Ele a perturba?

— Ao contrário. Dá uma certa credibilidade a tudo o que me foi dito. Pelo senhor, pelo homem chamado Reilly... e até mesmo pelo seu presidente. — Staples tornou a se virar para o embaixador. — Estou sendo sincera.

— Quero que seja. E quero também que saiba que compreendo a sua sintonia. McAllister é uma das mais brilhantes mentes analíticas do Departamento de Estado, um burocrata extraordinário, mas que nunca se elevará ao nível de seu valor.

— Por que não?

— Acho que você sabe. Mas se não sabe, pode sentir. Ele é um homem escrupulosamente moralista, e sua moral se interpõe no caminho do progresso profissional. Se eu fosse amaldiçoado com o seu senso de indignação moral, nunca teria me tornado o homem que sou... e devo acrescentar, em minha defesa, nunca teria realizado tudo o que consegui. Mas acho que você sabe disso também. Foi praticamente o que falou quando chegou.

— Agora está sendo sincero também. Agradeço.

— Fico contente. Quero que todas as dúvidas entre nós sejam dissipadas, porque preciso de sua ajuda.

— Marie?

— E mais alguma coisa. Quais são as questões específicas que a incomodam? O que posso esclarecer?

— Essa comissão de banqueiros e taipans que Sheng vai propor para supervisionar as políticas financeiras da colônia...

— Deixe-me antecipar — interrompeu-a o diplomata. — Aparentemente, eles serão muito diferentes em caráter e posição, todos eminentemente aceitáveis. Como eu disse a McAllister quando nos encontramos pela primeira vez, se achássemos que o plano absurdo tem alguma chance, trataríamos de olhar para o outro lado e desejar boa sorte. Mas acontece que não tem a menor possibilidade de sucesso. Todos os homens poderosos têm inimigos. Haverá céticos aqui em Hong Kong e em Pequim... facções invejosas que foram excluídas ... e vão escavar mais fundo do que Sheng imagina. Creio que você sabe o que encontrarão.

— Que todas as estradas, por cima e por baixo, levam a Roma, neste caso, é esse taipan, o pai de Sheng, cujo nome seus documentos altamente seletivos jamais mencionam. Ele é a aranha cuja teia se estende a todos os membros da comissão. Controla todos. Mas, pelo amor de Deus, quem é ele?

— Quem dera que soubéssemos.

— Quer dizer que não sabem? — indagou Catherine Staples, atônita.

— Se soubéssemos, a vida seria muito mais simples e eu lhe contaria. E não estou fazendo um jogo com você. A verdade é que nunca descobrimos quem é ele. Quantos taipans existem em Hong Kong? Quantos fanáticos querendo atacar  Pequim, de qualquer forma que puderem, pela causa do Kuomintang? Para eles, a China lhes foi roubada. Sua pátria, as sepulturas de seus ancestrais, seus bens... tudo. Muitos eram homens decentes, Sra. Staples, mas muitos outros não eram. Os líderes políticos, os senhores da guerra, os latifundiários, os imensamente ricos... eles formavam uma sociedade privilegiada que engordava com o suor e a privação de milhões de pessoas. E se isso parece uma repetição da propaganda comunista de hoje, pode estar certa de que foi um caso clássico de provocação de ontem que deu origem a toda essa imundície. Estamos lidando com um punhado de expatriados obcecados, que querem recuperar o que lhes pertencia. Eles esquecem a corrupção que acarretou a sua própria queda.

— Já pensou em confrontar o próprio Sheng? Em particular?

— Claro que sim, mas sua reação é perfeitamente previsível. Ele simularia indignação e nos diria bruscamente que se insistíssemos nessas fantasias desprezíveis, numa tentativa de desacreditá-lo, anularia os Acordos da China, alegando duplicidade, e imediatamente transferiria Hong Kong para a órbita econômica de Pequim. Diria que muitos dos marxistas da velha guarda no Comitê Central aplaudiriam essa iniciativa e estaria certo. E provavelmente arremataria assim: “Senhores, escolham a sua opção. E passem bem.”

— E se tomar pública a conspiração de Sheng a mesma coisa aconteceria... e ele sabe disso — comentou Staples, franzindo o rosto. — Pequim cancelaria os Acordos, culpando Formosa e o Ocidente por se intrometerem. A corrupção capitalista interna é enorme, e por isso o território cai sob o domínio marxista... na verdade, eles não teriam alternativa. E o que se segue é o colapso econômico.

— É como pensamos — concordou Havilland.

— E a solução?

— Só há uma: Sheng.

Staples acenou com a cabeça, murmurando:

— Jogo duro.

— O ato mais radical, se é isso o que está querendo dizer.

— É obviamente o que estou querendo dizer. E o marido de Marie, esse tal de Webb, é indispensável à solução?

— Jason Bourne é absolutamente indispensável.

— Porque esse impostor, esse assassino que se intitula Bourne, pode ser acuado pelo homem extraordinário que ele imita... como diz McAllister, embora não no contexto. Ele toma o lugar do impostor e leva Sheng para um lugar em que pode consumar a solução, a solução radical... Em outras palavras, ele o mata.

— Isso mesmo. Em algum lugar da China, é claro.

— Na China... “é claro”?

— Isso mesmo. Dando a impressão de que foi um fratricídio interno, sem ligações externas. Pequim não pode culpar ninguém, a não ser inimigos desconhecidos de Sheng, dentro de sua própria hierarquia. De qualquer forma, a esta altura, se acontecer, provavelmente será irrelevante. O mundo não tomará conhecimento oficial da morte de Sheng por semanas, e quando vier o comunicado o “falecimento súbito” será certamente atribuído a um infarto fulminante ou hemorragia cerebral, nunca a assassinato. O gigante não exibe suas aberrações, prefere escondê-las.

— O que é justamente o que vocês querem.

— Não podia ser de outra forma. O mundo continua como antes, os taipan.s ficarão isolados de sua fonte, a comissão financeira de Sheng vai desmoronar como um castelo de cartas, e homens sensatos respeitarão os Acordos, para benefício de todos... Mas ainda estamos muito longe disso, Sra. Staples. Para começar, há o dia de hoje, esta noite. Kai-tak. Pode ser o princípio do fim, pois não temos contramedidas imediatas para adotar. Se pareço calmo, é uma ilusão derivada de anos de treinamento para disfarçar a tensão. Meus dois consolos neste momento são o de que as forças de segurança da colônia estão entre as melhores do mundo e, segundo... apesar da tragédia da morte.... é que Pequim foi alertada para a situação. Hong Kong não está escondendo nada, não se importa com isso. Assim, de certa forma, torna-se um risco e um empreendimento comuns proteger o governador.

— Até que ponto isso ajuda, se o pior acontecer?

— Pelo valor psicológico. Pode evitar a aparência, até mesmo o fato da instabilidade, pois a emergência foi classificada antecipadamente como um ato isolado de violência premeditada, não sintomática de inquietação na colônia. Acima de tudo, o evento seria partilhado. As duas delegações contam com suas próprias escoltas militares, que seriam acionadas.

— Quer dizer que uma crise pode ser contida com base em um protocolo tão sutil?

— Pelo que estou informado, você não precisa de quaisquer lições em conter crises ou precipitá-las. Além do mais, tudo pode escapar ao controle com um desenvolvimento que joga as sutilezas na lata de lixo. Apesar de tudo o que eu disse, a verdade é que estou apavorado. Há muita margem para erro e equívoco... são nossos inimigos, Sra. Staples. Tudo o que podemos fazer agora é esperar... e esperar é a parte mais difícil, mais angustiante.

— Tenho outras perguntas.

— Pode fazer todas as que quiser. Faça-me pensar, faça-me suar, se puder. Pode ajudar a nós dois a desviar os pensamentos da espera.

— Acaba de se referir à minha duvidosa capacidade na área de conter crises. Mas acrescentou... creio que em tom mais confiante... que eu poderia também precipitá-las.

— Lamento, mas não pude resistir. E um péssimo hábito.

— Presumo que estava se referindo ao adido, John Nelson.

— Quem? ... Ah, sim, o jovem do consulado. O que lhe falta em julgamento sobra em coragem.

— Está enganado.

— Sobre o julgamento? — indagou Havilland, franzindo as sobrancelhas espessas, numa expressão de ligeira surpresa. — É mesmo?

— Não estou desculpando as fraquezas de Nelson, mas ele é uma das melhores pessoas que já conheci. Seu julgamento profissional é superior ao da maioria do seu pessoal mais experiente. Pergunte a qualquer um no consulado que já participou de alguma conferência com ele. É também um dos poucos que falam cantonês muito bem.

— E também comprometeu o que sabia ser uma operação altamente secreta — disse o embaixador, bruscamente.

— Se ele não o fizesse, vocês não teriam me descoberto. E não estariam a um passo de Marie St. Jacques, que é onde se encontram agora. A um passo.

— A um passo? — Havilland inclinou-se para a frente, os olhos furiosos, inquisitivos. — Tenho certeza de que você não vai continuar a escondê-la.

— Provavelmente não. Mas ainda não decidi.

— Por Deus, mulher, como pode dizer isso depois de tudo que soube? Ela tem de vir para cá! Sem ela, perdemos tudo! Se Webb descobrisse que ela não está conosco, que desapareceu, ele enlouqueceria! Você tem de entregá-la a nós!

— E justamente esse o problema. Posso entregá-la a qualquer momento. Não precisa ser quando o senhor disser.

— Não! — berrou o embaixador. — Quando e se nosso Jason Bourne completar sua missão, haverá uma série de telefonemas, para pô-lo em contato direto com a esposa!

— Não vou lhe dar o número de um telefone — disse Staples, calmamente. — Seria a mesma coisa que fornecer o endereço.

— Não sabe o que está fazendo! O que preciso dizer para convencê-la?

— É muito simples. Censure John Nelson verbalmente. Sugira uma punição leve, se quiser, mas deixe tudo fora de sua ficha e o mantenha aqui, em Hong Kong, onde suas possibilidades de reconhecimento são as melhores.

— Mas ele é um viciado em tóxicos! — explodiu Havilland.

— Isso é um absurdo, mas típico da reação primitiva de um “moralista” americano que ouviu umas poucas palavras- chave.

— Por favor, Sra. Staples.

— Ele foi drogado, não é um viciado em tóxicos. Seu limite é três martínis de vodca. E gosta de mulher. Claro que alguns dos seus adidos do sexo masculino preferem os homens, e seu limite vai a seis martínis... mas quem está contando? Para ser franca, pessoalmente não me importo com o que adultos façam entre as quatro paredes de um quarto... e não creio que qualquer coisa afete o que fazem fora do quarto ... mas Washington possui essa estranha preocupação com...

— Está bem, está bem, Sra. Staples. Nelson será censurado... por mim... e o cônsul-geral não será informado e nada constará de sua ficha. Está satisfeita?

— Estamos chegando lá. Ligue para ele esta tarde e diga tudo isso. Diga também para ter mais cuidado com seus atos extracurriculares, para seu próprio benefício.

— Será um prazer. Mais alguma coisa?

— Há, sim... e infelizmente não sei como pôr em palavras sem insultá-lo.

— Tenho a impressão de que nunca se incomodou com essa possibilidade.

— Incomoda agora, porque sei muito mais do que há três horas.

— Pois então pode me insultar, mulher.

Catherine ficou em silêncio por um momento; quando falou, a voz era um clamor por compreensão. Era baixa, mas ao mesmo tempo vibrante, e povoou a sala.

— Por quê? Por que fez isso? Não havia nenhum outro meio?

— Presumo que está se referindo à Sra. Webb.

— Claro que estou me referindo à Sra. Webb, e também a seu marido! Já perguntei antes: tem alguma idéia do que fez com os dois? É bárbaro, e incluo o pior sentido da palavra. Puseram os dois numa espécie de câmara de tortura medieval, literalmente separaram seus corpos e mentes, levando-os a viver com o conhecimento de que talvez nunca mais tomem a se

ver, cada um acreditando que uma decisão errada pode causar a morte do outro. Um advogado americano fez certa ocasião uma pergunta numa audiência no Senado e receio que devo repeti-la agora... Não possui nenhum senso de decência, Sr. Embaixador?

Havilland fitou Staples nos olhos com uma expressão de cansaço.

— Tenho um senso de dever. Tinha de desenvolver rapidamente uma situação que provocasse uma reação imediata, um empenho total em agir logo. Foi baseada num incidente no passado de Webb, uma coisa terrível que transformou um jovem erudito e civilizado... a expressão usada para descrevê-lo era “supremo guerrilheiro”. Eu precisava desse homem, desse caçador, por todos os motivos que a senhora ouviu. Ele está aqui, está caçando, e presumo que sua mulher esteja ilesa; obviamente, nunca tivemos a intenção de que fosse de qualquer outra forma.

— O incidente no passado de Webb... Foi a sua primeira esposa? No Camboja?

— Já sabia?

— Marie me contou. A mulher e os dois filhos foram mortos por um caça a jato solitário, que sobrevoava um rio e metralhou o lugar em que eles nadavam.

— Ele se tornou outro homem — disse Havilland, balançando a cabeça. — A mente estourou e virou a sua guerra, apesar de ter pouca ou nenhuma consideração por Saigon. Estava descarregando sua indignação da única maneira que conhecia, lutando contra um inimigo que lhe tirara a vida. Geralmente se encarregava apenas das missões mais complexas e perigosas, em que os objetivos eram importantes, os alvos na estrutura de comando. Um médico comentou que Webb, em sua perversão mental, estava matando os assassinos que enviavam assassinos brutais. Acho que faz sentido.

— E seqüestrando sua segunda esposa no Maine, vocês levantaram o espectro da primeira perda. O incidente que o transformou no “supremo guerrilheiro” e depois em Jason Bour ne, o caçador de Carlos o Chacal.

— Isso mesmo, Sra. Staples, caçador — interveio o embaixador, suavemente. — Eu queria esse caçador no local imediatamente. Não podia desperdiçar momento algum... nenhum minuto sequer... e não conhecia outro meio de obter resultados imediatos.

— Mas ele é um profundo conhecedor das coisas orientais! — protestou Catherine. — Compreende a dinâmica do Oriente muito melhor que qualquer um de nós, os supostos especialistas. Não poderia ter apelado para o seu senso de história, ressaltando as conseqüências do que poderia acontecer?

— Ele pode ser um profundo conhecedor, mas é primeiro um homem que acredita... com alguma justificativa... que foi traído por seu governo. Pediu socorro e foi preparada uma armadilha para matá-lo. Nenhum apelo meu poderia romper essa barreira.

— Poderia ter tentado!

— E me arriscar a uma protelação quando cada hora era importante? De certa forma, lamento que você nunca tenha estado em minha posição. Talvez então pudesse me compreender.

— Uma pergunta — disse Catherine, levantando a mão, num gesto de desafio. — O que o faz pensar que David Webb irá à China atrás de Sheng, se encontrar e capturar o impostor? Pelo que estou compreendendo, o acordo é para ele entregar o homem que se intitula Jason Bourne e Marie lhe será devolvida.

— A esta altura, se acontecer, não terá grande importância. Será o momento em que lhe contaremos por que agimos assim. E faremos um apelo ao seu conhecimento do Extremo Oriente, mostrando as conseqüências das maquinações de Sheng e do taipan. Se ele não quiser, temos vários agentes experientes que podem tomar o seu lugar. Não são homens que você gostaria de levar em casa e apresentar à sua mãe, mas estão disponíveis e podem realizar a missão.

— Como?

— Códigos, Sra. Staples. Os métodos do Jason Bourne original sempre incluíram códigos entre ele e os clientes. Esse foi o mito estruturado, e o impostor estudou cada detalhe do original. Depois que esse novo Bourne estiver em nossas mãos, arrancaremos as informações de que precisamos de um jeito ou de outro... com a confirmação por agentes químicos, é claro. Saberemos como alcançar Sheng, e isso é tudo o que precisamos. Um

encontro no campo, nas proximidades da Montanha da Torre de Jade. Uma morte, e o mundo continua em seu curso normal. Não sou capaz de imaginar qualquer outra solução. A senhora é?

— Não — respondeu Catherine, baixinho, sacudindo a cabeça. — É jogo duro.

— Entregue-nos a Sra. Webb.

— Claro... mas não esta noite. Ela não pode ir a lugar nenhum e você já tem bastante com que se preocupar, diante da ameaça no Kai-tak. Levei-a para um apartamento em Tuen Mun, nos Novos Territórios. Pertence a um amigo meu. Levei-a também a um médico, que enfaixou seus pés... ela os feriu bastante ao fugir de seu Lin Wenzu... e lhe deu um sedativo. Está em péssimas condições. Há dias que não dormia, e as pílulas não adiantaram muita coisa na noite passada. Estava muito tensa, ainda muito assustada. Fiquei em sua companhia e ela falou até o amanhecer. Deixe-a descansar. Irei buscá-la pela manhã.

— Como vai fazer? O que dirá?

— Não sei. Telefonarei para ela mais tarde e tentarei mantê-la calma. Direi a ela que estou fazendo progressos... talvez mais do que esperava. Quero apenas lhe oferecer alguma esperança, aliviar a tensão. Pedirei que permaneça perto do telefone, descanse o máximo que puder e irei até lá pela manhã, provavelmente com boas notícias.

— Eu gostaria de mandar um grupo de apoio com a senhora — disse Havilland. — Incluindo McAllister. Ele a conhece e, sinceramente, creio que sua persuasão moral será transmitida. Vai ajudar na sua argumentação.

— É possível — concordou Catherine, acenando com a cabeça. — Como você disse, eu senti tudo. Está certo. Mas todos ficarão à distância enquanto converso com ela, o que pode demorar umas duas horas. Marie tem uma desconfiança intensa de Washington e precisarei me empenhar a fundo para convencê-la. É o seu marido que está por aí, e ela o ama muito. Não posso e não vou dizer a ela que aprovo o que vocês fizeram, mas posso dizer que tendo em vista as circunstâncias extraordinárias... sem excluir o possível colapso econômico de Hong Kong... posso compreender o que fizeram. O que ela tem de compreender... pelo menos... é que está mais perto do marido se ficar com vocês, e não à distância. E claro que ela pode tentar matar o senhor, mas isso é problema seu. É uma mulher extremamente feminina, bonita, mais do que atraente, mas não se esqueça de que foi criada num rancho em Calgary. Eu não o aconselharia a ficar a sós com ela numa sala. Tenho certeza de que ela já derrubou bezerros muito mais fortes do que você.

— Convocarei um pelotão de fuzileiros para me defender.

— Não faça isso. Ela os faria voltarem-se contra o senhor. É uma das pessoas mais persuasivas que já conheci.

— Não podia deixar de ser — murmurou o embaixador, recostando-se na cadeira. — Forçou um homem sem identidade, com terríveis sentimentos de culpa, a olhar para dentro de si mesmo e sair dos túneis da própria confusão. Não deve ter sido fácil... E agora me fale sobre ela... não os fatos objetivos de um dossiê, mas sobre a pessoa.

E foi o que Catherine fez, relatando o que sabia por observação e instinto, O tempo passou, os minutos e as meias horas entremeados de repetidos telefonemas, informando Havilland sobre as condições no Aeroporto de Kai-tak. O sol desceu além do muro do jardim lá fora. Foi servido um jantar leve.

— Pode pedir ao Sr. McAllister para se juntar a nós? — disse Havilland a um garçom.

— Perguntei ao Sr. McAllister se queria comer alguma coisa e ele foi bastante firme. Mandou que eu me retirasse e o deixasse em paz.

— Está bem. Obrigado.

Os telefonemas continuaram; o assunto de Marie St. Jacques foi esgotado, e a conversa se concentrou agora, exclusivamente, nos acontecimentos no Kai-tak. Staples observava o diplomata com algum espanto; quanto mais intensa se tornava a crise, mais lenta e mais controlada era a sua falta.

— Fale-me a seu respeito, Sra. Staples. Somente o que quiser, em termos profissionais, é claro.

Catherine estudou Raymond Havilland por um momento e depois começou, suavemente:

— Nasci de uma espiga de milho em Ontario...

— Claro, claro — murmurou o embaixador, olhando para o telefone.

Catherine compreendia agora. Aquele famoso estadista mantinha uma conversa inócua, enquanto sua mente se fixava num assunto inteiramente diferente. Kai-tak. Os olhos se desviavam a todo instante para o telefone; o pulso virava constantemente, a fim de poder olhar para o relógio. Mesmo assim, ele nunca perdia as pausas no diálogo, quando se esperava que expressasse algum comentário.

— Meu ex-marido vende sapatos...

Havilland olhava para o relógio nesse instante e levantou a cabeça abruptamente. Não se poderia pensar que fosse capaz de um sorriso embaraçado, mas foi o que exibiu, murmurando:

— Você me pegou.

— Há muito tempo.

— Há um motivo. Conheço Owen Staples muito bem.

— Dava para imaginar. Calculo que freqüentam os mesmos círculos.

— Encontrei-o no ano passado, na corrida de Queens Plate, em Toronto. Creio que um dos seus cavalos teve uma excelente atuação. Ele parecia magnífico em sua casaca, mas também integrava a comitiva da Rainha-Mãe.

— Quando casamos, êle não tinha mais do que um terno.

— Quer saber de uma coisa, Sra. Staples? Quando li o seu dossiê e me deparei com a informação sobre Owen, experimentei a tentação fugaz de ligar para ele. Não para dizer alguma coisa, obviamente, mas para perguntar a seu respeito. Mas logo pensei: nesta era de cordialidade pós-conjugal, é possível que eles ainda se falem como amigos. Seria um risco, eu poderia entornar o caldo.

— Ainda nos falamos, e você entornou o caldo quando voou para Hong Kong.

— Para você, talvez. Mas somente depois que a mulher de Webb a procurou. O que pensou exatamente ao receber a notícia de que eu estava aqui?

— Que o Reino Unido o chamara para consultas sobre os Acordos.

— Está sendo muito lisonjeira...

O telefone tocou e Havilland estendeu a mão rapidamente para atender. Era Lin Wenzu, informando os progressos no  Kai-tak... ou, mais objetivamente, como parecia evidente, a ausência de progressos.

— Por que simplesmente eles não cancelam todas as cerimônias? — indagou o embaixador, irritado. — Podem meter todo mundo nos carros e sair de lá o mais depressa possível!

Qualquer que fosse a resposta do major, só serviu para deixar Havilland ainda mais exasperado.

— Isso é um absurdo! Não se trata de uma demonstração de controle, mas sim de uma tentativa de assassinato! Nem a imagem nem a honra de ninguém estão envolvidas, nas circunstâncias! E pode estar certo de que o mundo não aguarda ansioso essa entrevista coletiva! A maior parte está dormindo neste momento!

O diplomata tornou a ficar em silêncio, escutando. Os comentários de Lin não apenas o surpreenderam, como também o enfureceram.

— Os chineses disseram isso? Mas é demais! Pequim não tem o direito de fazer tal exigência! É... — Havilland olhou para Staples. — É bárbaro ! Alguém deveria dizer a eles que não são as suas caras asiáticas que estamos tentando salvar, mas sim a cara do governador britânico, que está ligada a uma cabeça, que pode ser explodida!

Silêncio outra vez; os olhos do embaixador piscaram, numa resignação irada.

— Está bem, está bem. A estrela vermelha celestial deve continuar a brilhar num blecaute celestial. Não há nada que possa fazer, Major. Sendo assim, faça o máximo que puder. Continue a ligar. Como diz um dos meus netos, estou “comendo bananas”, o que quer que isso signifique.

Havilland desligou e virou-se para Catherine, explicando:

— Ordens de Pequim. As delegações não devem fugir diante do terrorismo ocidental. Protejam todos os envolvidos, mas prossigam na programação.

— Londres provavelmente aprovaria. Essa história de prosseguir na programação me parece familiar.

— Ordens de Pequim... — repetiu o embaixador, baixinho, sem ouvir Staples. — Ordens de Sheng!

— Tem certeza?

— É o seu jogo! Ele está dando as cartas! Oh, Deus, Sheng está pronto!

A tensão foi aumentando geometricamente a cada quinze minutos, até que o ar se encontrava carregado de eletricidade. A chuva começou a cair, batendo na grande janela com um tamborilar incessante. Um aparelho de televisão foi trazido para a sala e ligado, o embaixador americano e a diplomata canadense ficaram assistindo, em medo e silêncio. O enorme jato taxiou sob o aguaceiro, aproximando-se do ponto de encontro com a multidão de repórteres e câmaras de televisão. As guardas de honra inglesa e chinesa saíram primeiro, fazendo formação nos lados da porta aberta. A atitude foi surpreendente, pois em vez do desfile imponente, como se podia esperar de tais escoltas militares, os homens se deslocaram rapidamente para posições de flanco nos degraus de metal, os cotovelos inclinados para cima, empunhando armas, prontos para entrar em ação. Os líderes saíram em seguida, acenando para os espectadores; começaram a descer a escada, seguidos por duas filas de subordinados, sorrindo constrangidos. A estranha entrevista coletiva começou e foi nesse instante que o Subsecretário de Estado Edward McAllister irrompeu na sala, abrindo bruscamente a porta e jogando-a contra a parede.

— Descobri! — gritou ele, com uma folha de papel na mão. — Tenho certeza que descobri!

— Acalme-se, Edward. E fale de uma maneira que a gente possa compreender.

— A delegação chinesa! — berrou McAllister, quase sem fôlego, correndo para o embaixador e estendendo-lhe o papel. — É chefiada por um homem chamado Lao Sing! O segundo homem é um general chamado Yunshen! Eles são poderosos e há anos vêm fazendo oposição a Sheng Chou Yang, protestando abertamente contra sua política no Comitê Central! A inclusão dos dois nas equipes de negociação foi uma demonstração da aparente disposição de Sheng para ter um equilíbrio... o que o fez parecer justo aos olhos da velha guarda!

— Pelo amor de Deus, o que está tentando dizer?

— Não é o governador britânico! Não é apenas ele! São todos! Com uma única ação, ele elimina os seus dois oponentes mais fortes em Pequim e abre o caminho para avançar ainda mais. E depois, como você disse, ele implanta sua comissão financeira... seus taipans... durante um período de instabilidade, agora partilhado pelos dois governos!

Havilland arrancou o fone do gancho.

— Ligue-me com Lin no Kai-tak — ordenou à telefonista. — E depressa!... Major Lin, por favor. Imediatamente!... Que história é essa que ele não está aí? Onde ele está?... Quem?... Já sei quem você é! Pois agora escute e preste muita atenção! O alvo não é somente o governador britânico. É pior do que isso. Inclui dois membros da delegação chinesa. Separe todo mundo... Já sabia disso?... Um homem do Mossad? Mas o quê?... Não existe nenhum acordo assim, não poderia haver!... Claro, claro. Vou desligar agora.

Respirando depressa, o rosto vincado e pálido, o embaixador olhou para a parede e disse, a voz quase inaudível:

— Eles descobriram, só Deus sabe como, estão tomando as providências imediatas... Mas quem? Pelo amor de Deus, quem foi o homem?

— Nosso Jason Bourne — disse McAllister, calmamente. — Ele está lá.

Na tela da televisão, uma limusine distante parou abruptamente, enquanto as outras se afastavam pela escuridão. Vultos correram em pânico para longe do carro parado e segundos depois a tela foi preenchida por uma explosão ofuscante.

— Ele está lá — repetiu McAllister, num sussurro. — Ele está lá!

 

A lancha balançava violentamente na escuridão e na chuva torrencial. A tripulação de dois homens tirava a água que entrava continuamente pelas amuradas, enquanto o grisalho comandante chinês-português espiava através das janelas grandes da cabine, avançando lentamente na direção dos contornos escuros da ilha. Bourne e d’Anjou flanqueavam o proprietário do barco; o Francês falou, levantando a voz acima do barulho da tempestade:

— Quanto falta ainda para a praia?

— Duzentos metros, mais ou menos dez ou vinte.

— Chegou o momento para a luz. Onde está?

— No armário por baixo de você. A direita. Mais setenta e cinco metros e eu paro. Se seguir mais adiante os rochedos podem ser perigosos, com este tempo.

— Temos de chegar à praia! — protestou o Francês. — Eu disse que era imperativo!

— Mas esqueceu de me dizer que haveria esta chuva, estas ondas. Nove metros e pode usar o barco pequeno. O motor é forte, chegarão lá.

— Merde! —exclamou d’Anjou, abrindo o armário e tirando uma lanterna. — Isso pode nos deixar a mais de cem metros!

— De qualquer forma, não seria menos de cinqüenta. Eu lhe disse isso.

— E a água é profunda entre os dois pontos!

— Quer que eu dê a volta e siga para Macau?

— E sermos explodidos pelas patrulhas? Só se efetua o pagamento no momento apropriado ou não se chega ao destino! E você sabe disso!

— Cem metros, não mais do que isso.

D’Anjou balançou a cabeça, irritado, e levantou a lanterna para o peito. Apertou um botão e soltou-o no instante seguinte; por um breve momento, um clarão insólito, azul-escuro, iluminou a janela do piloto. Segundos depois, através.do vidro manchado, avistou-se um brilho correspondente na praia da ilha.

— Se não viéssemos para o encontro, mon capitaine, esta chata miserável seria destruída.

— Está gostando muito dela esta tarde! — protestou o comandante, manejando vigorosamente a roda do leme.

— Isso foi ontem à tarde. Já é uma e meia do dia seguinte, e desde então passei a conhecer os seus métodos de ladrão.

D’Anjou guardou a lanterna no armário e olhou para Bourne, que também o observou. Repetiam o que haviam feito muitas vezes nos tempos de Medusa: conferir os trajes e equipamentos de um parceiro. Os dois haviam posto as roupas em sacos de lona — calças, suéteres e gorros de borracha fina, tudo preto. Além da automática de Jason e da pequena pistola calibre 22 do Francês, os únicos equipamentos eram facas em bainhas — tudo escondido.

— Chegue o mais perto que puder — disse d’Anjou ao comandante. — E não se esqueça de que não receberá o pagamento se não estiver aqui quando voltarmos.

— E se eu pegasse o dinheiro e matasse vocês? — gritou o comandante, virando a roda do leme. — Poderia então cair fora!

— Estou impressionado — comentou Bourne.

— Não tenho medo — disse o Francês, lançando um olhar furioso para o chinês-português. — Já lidei com esse homem muitas vezes, ao longo de muitos meses. Como você, ele é o piloto de um barco veloz e tão ladrão como você. Forro os seus bolsos marxistas, de tal forma que suas amantes vivem como as concubinas do Comitê Central. Além do mais, ele desconfia que mantenho registros de todas as nossas transações. Estamos nas mãos de Deus, talvez melhor.

— Pois então pegue a lanterna —murmurou o comandante, relutante. — Podem precisar e não vão me servir de nada perdi dos no mar ou destroçados nos rochedos.

— Sua preocupação me comove — disse d’Anjou, tornando a pegar a lanterna e acenando com a cabeça para Jason. — Vamos dar uma olhada no barco e no motor.

— O motor está por baixo de uma lona grossa. Não liguem antes de entrarem na água.

— Como sabe que vai pegar? — perguntou Bourne.

— Porque quero meu dinheiro, Silencioso.

A viagem até a praia deixou os dois encharcados, ambos se equilibrando com dificuldade no pequeno barco, Jason segurando nos lados e d’Anjou no timão e na popa, a fim de não caírem no mar. Roçaram por um banco de areia. Metal rangeu contra os rochedos, enquanto o Francês dava uma guinada no leme para boreste, acelerando ao máximo.

O estranho clarão azul-escuro tornou a piscar uma vez, na praia. Haviam se afastado na escuridão; d’Anjou virou o bote na direção do sinal e minutos depois a proa bateu na areia.

O Francês empurrou a alavanca para baixo, levantando o motor de popa, enquanto Bourne pulava pela amurada, pegava a corda e puxava a pequena embarcação pela praia.

Soltou uma pequena exclamação surpreendido pela presença repentina de um homem ao seu lado, pegando também a corda.

— Quatro mãos são melhores do que duas — gritou o estranho, um oriental, um inglês perfeitamente fluente... um inglês com sotaque americano.

— Você é o contato? — berrou Jason, aturdido, especulando se a chuva e as ondas não estariam afetando a sua audição.

— É uma expressão tola! —respondeu o homem, gritando para ser ouvido. — Sou apenas um amigo!

Cinco minutos depois, quando acabaram de puxar o barco pela areia, os três homens passaram pela folhagem densa à beira da praia, subitamente substituída por árvores raquíticas. O “amigo” construíra um abrigo primitivo com uma lona de navio; uma pequena fogueira ardia de frente para o bosque denso, invisível dos lados e por trás, escondida pela lona. O calor era bem-vindo; os ventos e a chuva haviam deixado Bourne e d’Anjou enregelados. Sentaram-se de pernas cruzadas em torno da fogueira, e o Francês disse ao chinês de uniforme:

— Isso não era necessário, Gama...

— Gama? — interveio Jason.

— Estou pondo em prática algumas tradições do nosso passado, DeIta. Na verdade, poderia usar Tango ou Foxtrote... nem tudo era grego. O grego estava reservado aos líderes.

— Esta é uma conversa de merda. Quero saber por que ele está aqui. Por que não paga a ele e saímos logo daqui?

— Ei, cara! —disse o chinês, estendendo a palavra, enfatizando deliberadamente o sotaque americano. — Esse bicho está muito tenso! Qual é o pó?

— Meu pó, cara, é que quero voltar para aquele barco. Não tenho tempo para o chá.

— Que tal um scoth? — indagou o oficial da República Popular, estendendo a mão para trás e depois para a frente, mostrando uma garrafa de uísque perfeitamente aceitável. — Teremos de partilhar o gargalo, mas não creio que sejamos homens infectados. Tomamos banho, escovamos os dentes, deitamos com as nossas prostitutas saudáveis... pelo menos meu governo celestial cuida para que sejam saudáveis.

— Mas quem é você? — insistiu Jason Bourne.

— “Gama” servirá, conforme Eco me convenceu. Quanto ao que eu sou, deixo isso à sua imaginação. Pode experimentar a USC... a Universidade do Sul da Califórnia... com estudos de pós-graduação em Berkeley... todos aqueles protestos nos anos sessenta, como tenho certeza de que deve se lembrar.

— Era parte daquela turma?

— Claro que não. Era um conservador irredutível, membro da Sociedade John Birch, queria que todos fossem fuzilados! Eram uns maníacos gritadores que não tinham a menor consideração pelos compromissos morais da nação.

— Continuo a achar que é uma conversa de merda.

— Meu amigo Gama é o intermediário perfeito — interveio d’Anjou. — É um instruído agente duplo, triplo e até possivelmente quádruplo, trabalhando para todos os lados, em benefício de seus próprios interesses. É o homem totalmente amoral, e o respeito por isso.

— Você voltou à China? À República Popular?

— Era onde estava o dinheiro — admitiu o oficial. — Qualquer sociedade repressiva oferece enormes oportunidades para os que estão dispostos a assumir pequenos riscos, por conta dos reprimidos. Pode perguntar aos comissários em Moscou e no bloco oriental. Claro que é preciso ter contatos no Ocidente e possuir determinados talentos que possam servir também aos líderes. Felizmente, sou um marujo excepcional, cortesia de amigos na Baía de San Francisco que tinham iates e lanchas. Voltarei um dia. Gosto muito de San Francisco.

— Não tente investigar suas contas nos bancos suíços — comentou d’Anjou. — Em vez disso, vamos nos concentrar no motivo pelo qual Gama nos preparou um abrigo tão agradável em plena tempestade.

O Francês pegou a garrafa e tomou um gole.

— Vai lhe custar, Eco — disse o chinês.

— Com você, o que não custa? O que é?

D’Anjou estendeu a garrafa para Jason, enquanto o chinês indagava:

— Posso falar na frente de seu companheiro?

— Qualquer coisa.

— Vai querer a informação. Posso garantir. O preço é de mil dólares americanos.

— Mais alguma coisa?

— Deve ser suficiente — respondeu o oficial chinês, pegando a garrafa de scotch da mão de Bourne. — Você são dois, e minha lancha de patrulha está a um quilômetro daqui, numa enseada ao sul. Minha tripulação pensa que estou tendo uma reunião secreta com nossos agentes na colônia.

— Eu vou “querer a informação” e você “garante”. Por essas palavras, devo apresentar mil dólares sem discussão, quando é perfeitamente possível que você tenha uma dúzia de Zhongguo ren nas moitas ao redor.

— Algumas coisas devem ser aceitas de boa fé.

— Não quando se trata do meu dinheiro — protestou o Francês. — Não vai receber um sou enquanto eu não tiver idéia do que está vendendo.

— Você é gaulês até o fim — comentou Gama, sacudindo a cabeça. — Muito bem. A informação está relacionada com seu discípulo, aquele que não segue mais o mestre, mas em vez disso recolhe as suas trinta moedas de prata e muito mais.

— O assassino?

— Pague a ele! — ordenou Bourne, rígido, olhando fixa- mente para o oficial chinês.

D’Anjou olhou para Jason e depois para o homem chamado Gama, levantou o suéter e desafivelou a calça encharcada. Estendeu a mão abaixo da cintura e puxou um cinturão de dinheiro de lona impermeável; abriu o bolso central e tirou as notas com as pontas dos dedos, uma a uma, estendendo-as para o oficial chinês.

— Três mil por esta noite e mais mil pela nova informação. O resto é falsificado. Sempre carrego mil extras para emergências, mas apenas mil...

— A informação ! — interveio Jason Bourne.

— Ele pagou — respondeu Gama. — Direi tudo a ele.

— Diga a quem quiser, mas fale logo!

— Nosso amigo mútuo em Guangzhou — começou o oficial, olhando para d’Anjou. —O operador de rádio no Quartel-General Um.

— Já fizemos negócios — murmurou d’Anjou, cauteloso.

— Sabendo que me encontraria com você aqui, a esta hora, fui reabastecer em Zhuhai Shi, pouco depois das dez e meia. Havia um recado para que eu entrasse em contato com ele... temos uma comunicação segura. Ele me disse que havia um chamado retransmitido por Pequim, com um código de priori dade não-identificado da Torre de Jade. Era para Soo Jiang...

D’Anjou inclinando-se para a frente abruptamente, pondo as mãos no chão.

— O porco!

— Quem é ele? — indagou Bourne.

— Supostamente o chefe do serviço secreto para as operações em Macau — respondeu o Francês. — Mas venderia a própria mãe a um bordel se o preço fosse bom. No momento, ele é o canal para o meu ex-discípulo. Meu Judas.

— Que foi subitamente chamado a Pequim — informou o homem chamado Gama.

— Tem certeza? — perguntou Jason.

— Nosso amigo mútuo tem — respondeu o chinês, ainda

olhando para d’Anjou. — Um assessor de Soo esteve no Quartel- General Um e verificou todos os vôos de amanhã do Kai-tak para Pequim. Com a autorização de seu departamento, ele fez uma reserva... Uma única reserva... em cada vôo. Em vários casos, isso implicou a transferência dos passageiros originais para a lista de espera. Quando um oficial do Quartel-General Um pediu a confirmação pessoal de Soo, o assessor informou que ele partira para Macau em negócios urgentes. Quem tem negócios em Macau à meia-noite? Está tudo fechado.

— Exceto os cassinos — sugeriu Bourne. — Mesa Cinco. O Kam Pek. Circunstâncias totalmente controladas.

— Tendo em vista as reservas em vários vôos — acrescentou d’Anjou — pode-se chegar à conclusão de que Sôo não sabe quando fará contato com o assassino.

— Mas ele tem certeza de que vai encontrá-lo. Qualquer que seja a mensagem que ele está levando, é nada menos que uma ordem que não pode deixar de ser cumprida. — Jason olhou para o oficial chinês. — Leve-nos para Pequim. O aeroporto, o primeiro avião. Garanto que ficará rico.

— Você está louco, Delta! — protestou d’Anjou. — Pequim é impossível!

— Por quê? Ninguém está nos procurando e há franceses, ingleses, italianos, americanos... só Deus sabe quem mais... por toda cidade. E nós dois dispomos de passaportes que nos permitirão a passagem.

— Seja razoável! — suplicou Eco. — Estaremos no covil deles. Sabendo o que sabemos, seremos liquidados sumariamente se formos encontrados em circunstâncias duvidosas, mesmo as mais vagas possíveis! Ele vai aparecer de novo por aqui, provavelmente em poucos dias!

— Não tenho dias para esperar — declarou Bourne, fria- mente. — Perdi sua criação duas vezes. Não vou perdê-lo uma terceira.

— Acha que pode capturá-lo na China?

— Em que outro lugar ele menos esperaria por uma armadilha?

— Isso é um absurdo! Você está louco!

— Tome as providências necessárias — ordenou Jason ao oficial chinês. — O primeiro vôo do Kai-tak. Quando eu tiver a passagem, pagarei cinqüenta mil dólares americanos a quem a entregar. Mande alguém em quem possa confiar.

— Cinqüenta mil...?

O homem chamado Gama ficou olhando aturdido para Bourne.

O céu sobre Pequim estava nublado, a poeira viajando nos ventos das planícies do norte da China, criando bolsões de amarelos mortiços e marrons opacos, ao sol. O aeroporto, como todos os outros internacionais, era imenso, as pistas uma teia de avenidas pretas se cruzando, várias com mais de três quilômetros de extensão. Se havia uma diferença entre o aeroporto de Pequim e seus equivalentes ocidentais estava no vasto terminal, com seu domo e um hotel adjacente, diversas estradas levando ao complexo. Embora contemporâneo no projeto, havia um senso básico de funcionalismo e uma ausência de acabamentos agradáveis à vista. Era um aeroporto a ser usado e admirado por sua eficiência, não por sua beleza.

Bourne e d’Anjou passaram pela alfândega com um mínimo de esforço, com a ajuda do chinês fluente que falavam. Os guardas se mostraram simpáticos, mal examinando a bagagem mínima, mais curiosos com a capacidade lingüística dos dois do que com seus pertences. O chefe aceitou sem duvidar a história de dois estudiosos do Oriente em férias, as viagens agradáveis se convertendo posteriormente em conferências. Cada um trocou mil dólares em renminbi — literalmente, o Dinheiro do Povo — e receberam quase dois mil yuan. E Bourne tirou os óculos que comprara em Washington de seu amigo Cactus.

— Uma coisa me surpreende — comentou o Francês, ao pararem diante de um painel eletrônico indicando as partidas e chegadas durante as próximas três horas. — Por que ele voaria num avião comercial? Quem quer que está lhe pagando tem aviões do governo ou militares à sua disposição.

— Como os nossos, esses aviões têm de ser requisitados e seus vôos explicados — respondeu Jason. — E quem quer que seja, precisa se manter a distância do seu assassino. Ele tem de entrar como turista ou homem de negócios, só depois se iniciando o processo complexo de fazer contato, Pelo menos é com isso que estou contando.

— Mas que loucura! Se conseguir capturá-lo, Delta... e acrescento que é um “se” significativo, pois ele é extraordinariamente competente... tem alguma idéia de como vai tirá-lo do país?

— Tendo dinheiro, dinheiro americano, notas grandes, mais do que você pode imaginar, no forro do meu paletó.

— Foi por isso que paramos no Península, não é? É por isso que me disse para não cancelar sua reserva ontem. O dinheiro estava lá.

— Isso mesmo. No cofre do hotel. Vou tirar o seu assassino daqui.

— Nas asas de Pégaso?

— Não. Provavelmente num vôo da Pan Am, nós dois ajudando um amigo muito doente. Para dizer a verdade, creio que foi você quem me deu a idéia.

— Então sou um caso de doença mental!

— Fique junto da janela — determinou Bourne. — Temos mais doze minutos antes que chegue o próximo avião procedente do Kai-tak... o que pode significar dois minutos ou doze horas. Vou comprar um presente para nós dois.

— Uma loucura... — murmurou o Francês, cansado demais para fazer outra coisa que não sacudir a cabeça.

Jason voltou, levando d’Anjou para um canto, à vista das portas da imigração, que eram mantidas fechadas, a não ser quando os passageiros passavam pela alfândega. Bourne meteu a mão no bolso interno do paletó e tirou uma caixa comprida e fina, embrulhada com o vistoso papel que se encontra nas lojas de souvenirs do mundo inteiro. Tirou a tampa; lá dentro, numa imitação de feltro, havia uma espátula estreita, de latão, com caracteres chineses no cabo. A ponta era obviamente afiada e cortante.

— Fique com isso — disse Jason. — Ponha no cinto.

— Como é o equilíbrio? — indagou o Eco de Medusa, enquanto ajeitava a lâmina por baixo da calça.

— Nada mal. Fica na metade da base para a ponta, e o latão dá peso. Deve dar um bom arremesso.

— Eu me lembro de tudo — comentou d’Anjou. — Uma das primeiras regras era jamais arremessar uma faca. Mas um dia, ao crepúsculo, você observou um gurca derrubar um sentinela a três metros de distância sem disparar um tiro nem se arriscar ao combate corpo a corpo. A baioneta da carabina girou pelo ar como um míssil, cravando-se no peito do sentinela. Na manhã seguinte você ordenou que o gurca nos ensinasse... e alguns aprenderam melhor do que outros.

— Como você se saiu?

— Relativamente bem. Era mais velho do que todos vocês e me sentia atraído por quaisquer defesas que pudesse aprender e não exigissem grande esforço físico. E não parava de praticar. Você me observava, muitas vezes comentou a respeito.

Jason fitou o Francês nos olhos.

— é engraçado, mas não me lembro de nada disso.

— Eu pensei... Desculpe, Delta.

— Esqueça. Estou aprendendo a confiar em coisas que não compreendo.

A vigília continuou, lembrando Bourne de sua espera em Lo Wu, enquanto um trem após outro cruzava a fronteira, ninguém se revelando, até que um homem baixo, idoso e manco se tornou outra pessoa à distância. O avião das onze e meia estava com duas horas de atraso. A alfândega exigiria mais cinqüenta minutos.

— Aquele — exclamou d’Anjou de repente, apontando para um vulto que passava pelas portas da imigração.

— Com uma bengala? — indagou Jason. — Claudicando?

— As roupas maltrapilhas não escondem os ombros! — explicou Eco. — Os cabelos grisalhos são muito novos, ele não os escovou o suficiente, os óculos escuros são largos demais. Como nós, ele está cansado. Você estava certo. O chamado de Pequim tinha de ser atendido de qualquer maneira. E ele está sendo negligente.

— Porque “o descanso é uma arma” e ele ignorou isso?

— Exatamente. O Kai-tak ontem à noite cobrou o seu tributo, porém, mais importante ainda, ele tinha de obedecer. Merde! Seus honorários devem estar em centenas de milhares!

— Ele está indo para o hotel — disse Bourne. — Fique aqui. Vou segui-lo... à distância. Se ele avistasse você, trataria de fugir e poderíamos perdê-lo.

— Ele pode reconhecer você.

— Não é provável. Lembre-se que inventei o jogo. E além do mais estarei atrás. Fique aqui. Voltarei para buscá-lo.

Carregando a sacola de vôo, o andar deixando à mostra o cansaço da viagem, Jason entrou na fila dos passageiros desembarcados a caminho do hotel, os olhos fixos no homem de cabelos grisalhos à sua frente. Por duas vezes, o ex-comando britânico parou e virou-se; por duas vezes, com um rápido movimento nos ombros, Bourne também virou-se e abaixou-se, como se afugentasse um inseto da perna ou ajustasse a alça da sacola, o corpo e o rosto fora de vista. A multidão no balcão de registro aumentou, e Jason era o oitavo por trás do assassino, na segunda fila, procurando se manter o mais discreto possível, a todo instante se inclinando e empurrando a sacola para a frente. O comando alcançou a recepcionista; mostrou seus documentos, assinou o registro e afastou-se claudicando, com a bengala, a caminho dos elevadores marrons, à direita. Seis minutos depois Bourne estava na frente da mesma recepcionista. Falou em mandarim.

— Mi neng bang-zhu wo ma? — perguntou ele, pedindo ajuda. — Foi uma viagem súbita e não tenho onde ficar. Apenas por esta noite.

— Fala muito bem a nossa língua — disse a recepcionista, os olhos quase amendoados se arregalando de satisfação. — É uma honra para nós.

— Espero aproveitar minha estada aqui para falar ainda melhor. Estou numa viagem de estudos.

— É a melhor viagem. Há muitos tesouros em Pequim. Também se encontram em outros lugares, é claro, mas é a cidade celestial. Não tem reserva?

— Infelizmente, não. Tudo foi arranjado na última hora, se entende o que estou querendo dizer.

— Como falo as duas línguas, posso garantir que disse corretamente na nossa. Tudo tem muita pressa-pressa. Verei o que posso fazer. Mas não será nada formidável, é claro.

— Também não posso. arcar com nada muito formidável — comentou Jason, timidamente. — Mas tenho um companheiro... podemos partilhar a mesma cama, se necessário.

— Tenho certeza de que não haverá outro jeito, num prazo tão curto. — A recepcionista folheou rapidamente o fichário. — Aqui está. Um quarto de solteiro no segundo andar, de fundos. Acho que está dentro de suas condições econômicas...

— Vamos ficar com esse quarto. Outra coisa. Há poucos minutos vi um homem nesta fila que tenho certeza que conheço. Ele está envelhecido, mas acho que foi um antigo professor meu, quando estudei na Inglaterra. Cabelos grisalhos, com uma bengala... Estou convencido de que é ele. Gostaria de procurá-lo.

— Ah, sim, estou lembrada. — A recepcionista pegou os cartões de registro que acabara de preencher. — O nome de Wadsworth... Joseph Wadsworth. Está no quarto 325. Mas deve estar enganado. Ele indicou sua ocupação como consultor em exploração de petróleo na plataforma marinha da Grã-Bretanha.

— Tem razão, é o homem errado — murmurou Jason, sacudindo a cabeça, com uma expressão embaraçada.

Pegou a chave do quarto e afastou-se.

— Podemos pegá-lo! Agora!

Bourne agarrou o braço de d’Anjou, levando-o do canto deserto do terminal.

— Agora? Tão facilmente? Tão depressa? É incrível!

— Ao contrário — disse Jason, levando d’Anjou para as portas de vidro que eram a entrada do hotel. — É perfeitamente crível. A mente do homem se concentra em uma dúzia de coisas diferentes neste momento. Tem de se manter fora de vista. Não pode fazer uma ligação através da mesa telefônica e por isso vai ficar no quarto, aguardando instruções.

Passaram por uma porta de vidro, olharam ao redor e se encaminharam para a esquerda do balcão comprido. Bourne continuou, falando depressa:

— O Kai-tak não funcionou ontem à noite e por isso ele tem de considerar outra possibilidade. A sua própria eliminação, com base no fato de que a pessoa que descobriu os explosivos debaixo do carro viu-o e identificou-o... o que é a verdade. Ele tem de insistir que seu cliente esteja sozinho no ponto de encontro. É a sua maior proteção.

Descobriram uma escada e começaram a subir. O Delta da Medusa acrescentou:

— Ele vai trocar de roupa. Não pode aparecer como estava

antes e não pode aparecer como está agora. Tem de ser outra pessoa. — Chegaram ao terceiro andar. Com a mão na maçaneta, Jason virou-se para d’Anjou. — Aceite a minha palavra, Eco, seu garoto está envolvido. Tem problemas na cabeça que desafiariam um enxadrista russo.

— Quem está falando é o acadêmico ou o homem que outrora chamavam de Jason Bourne?

— Bourne — respondeu David Webb, os olhos frios, a voz gelada. — Se já foi alguma vez, é neste momento.

A sacola de vôo pendurada no ombro, Jason abriu lenta- mente a porta da escada e passou. Dois homens em ternos listrados escuros avançavam pelo corredor em sua direção, reclamando da aparente falta de serviço de quarto, falando em inglês. Abriram a porta de seu quarto e entraram. D’Anjou também passou pela porta e os dois seguiram pelo corredor. Os números dos quartos estavam em chinês e inglês.

341, 339, 337... estavam no corredor da direita, o quarto ficava na parede esquerda. Três casais de indianos saíram de um elevador, as mulheres de saris, os homens em calças justas; passaram por Jason e d’Anjou conversando, procurando por seus quartos, os maridos obviamente contrariados por terem de carregar suas malas.

335, 333, 331...

— Mas é demais! — gritou uma voz feminina.

Uma mulher obesa, com os cabelos enrolados, saiu marcialmente por uma porta à direita, usando um roupão. A camisola por baixo se arrastava no chão, por duas vezes enroscando-se em seus pés. Ela levantou-a bruscamente, revelando um par de pernas digno de um rinoceronte.

— O banheiro não funciona, e pode-se esquecer o telefone!

— Eu já falei, Isabel! — gritou um homem de pijama vermelho, olhando pela porta aberta. — É o cansaço da viagem. Durma um pouco e lembre-se que não está no Short Hills. Não seja implicante. Procure se acalmar.

— Como não posso usar o banheiro, não tenho opção. Vou descobrir algum miserável amarelo e lhe dar uma esculhambação. Onde fica a escada? Eu não entraria num desses malditos elevadores! Se eles andam, provavelmente é para os lados e através das paredes, para cima de um 747!

A mulher furiosa passou por eles, a caminho da porta da escada. Dois dos três casais indianos tinham dificuldades com suas chaves, conseguindo finalmente abrir as portas com chutes sonoros e bem colocados. O homem de pijama vermelho bateu a porta, depois de gritar para a esposa, na maior irritação:

— é como aquela reunião de turma no clube! Você é muito embaraçosa, Isabel!

329, 327... 325. O quarto. O corredor estava deserto.

Eles podiam ouvir os acordes de música oriental por trás da porta. O rádio estava ligado, o volume alto, tomando-se ainda mais alto com o primeiro toque da campainha de um telefone. Jason puxou d’Anjou para trás e falou baixinho, junto à parede:

— Não me lembro de nenhum gurca ou sentinela...

— Uma parte de você lembrou, Delta.

— E possível, mas isso é irrelevante. Este é o começo do fim. Vamos deixar nossas bolsas aqui. Eu entro primeiro e você me segue imediatamente. Mantenha a faca de prontidão. Mas quero que compreenda uma coisa e não pode haver qualquer erro... não a arremesse, a menos que seja absolutamente indispensável. E se o fizer, mire as pernas. Nada acima da cintura.

— Você tem mais fé do que eu na mira de um homem mais velho.

— Estou contando que não vamos precisar disso. Estas portas são feitas de madeira compensada oca e seu assassino está com uma porção de problemas na mente. Pensa em sua estratégia, não em nós. Como poderíamos saber que ele está aqui... e mesmo que soubéssemos, como poderíamos passar pela fronteira em prazo tão curto? E eu o quero! Vou capturá-lo! Está pronto?

— Como sempre estarei — respondeu o Francês, largando a valise no chão e tirando a espátula do cinto.

Ajeitou a lâmina na mão, os dedos abertos, procurando o ponto de equilíbrio. Bourne tirou a bolsa do ombro e deixou-a no chão. Em silêncio, assumiu posição diante do Quarto 325. Olhou para d’Anjou. Eco acenou com a cabeça, e Jason avançou para a porta, o pé esquerdo se transformando num aríete, acertando no espaço logo abaixo da fechadura. A porta foi impelida para dentro, como se tivesse explodido; a madeira se estilhaçou, as dobradiças foram arrancadas dos parafusos. Bourne se lançou para dentro do quarto, rolando pelo chão, os olhos se virando em todas as direções.

— Arrêtez! — berrou d’Anjou.

Um vulto emergiu de uma porta interna... o homem de cabelos grisalhos, o assassino! Jason levantou-se de um pulo, lançando-se contra sua presa, agarrando os cabelos do homem, puxando-o para a esquerda, depois para a direita, jogando-o contra o alizar da porta. E, subitamente, o Francês gritou, enquanto a lâmina de latão da espátula voava pelo ar, indo se cravar na parede, o cabo tremendo. Estava longe do alvo; era uma advertência.

— Não, Delta!

Bourne suspendeu todo movimento, a presa imobilizada, impotente, sob o seu peso.

— Olhe! — gritou d’Anjou.

Jason recuou lentamente, os braços rígidos, imobilizando o vulto à sua frente, Estava olhando para o rosto esquelético e encarquilhado de um homem muito velho, com cabelos grisalhos bem ralos.

 

Marie estava deitada na cama estreita, olhando para o teto. Os raios do sol a pino entravam pelas janelas sem persianas, enchendo o quarto pequeno com uma claridade ofuscante e muito calor, O suor escorria por seu rosto, e a blusa rasgada aderia à pele úmida. Os pés doíam da loucura da metade da manhã, que começara como um passeio por uma estrada litorânea inacabada e a descida para uma praia rochosa... uma coisa estúpida para fazer, a única que podia fazer na ocasião; precisava de qualquer maneira espairecer, esquecer seus pensamentos.

Os sons da rua subiam até o quarto, uma estranha cacofonia de vozes estridentes, gritos súbitos e campainhas de bicicletas, as buzinas estrondosas de caminhões e ônibus. Era como se um trecho apinhado, movimentado e barulhento de Hong Kong tivesse sido arrancado da ilha e fixado em algum lugar distante, onde um rio largo, campos intermináveis e montanhas distantes substituíam Victoria Harbor e as incontáveis fileiras de prédios altos, feitos de vidro e pedra. De certa forma, a transplantação ocorrera mesmo, refletiu Marie. A cidade em miniatura de Tuen Mun era um daqueles fenômenos determinados pelo espaço que haviam aflorado ao norte de Kowloon, nos Novos Territórios. Num ano era uma planície árida à beira do rio, no ano seguinte era uma metrópole em rápido desenvolvimento, com ruas pavimentadas e fábricas, distritos comerciais e amplos prédios de apartamentos, atraindo os do sul com a promessa de habitações e empregos aos milhares; os que atendiam ao chamado levavam consigo a inconfundível histeria do comércio de Hong Kong. Sem isso, seriam dominados por ansiedades inócuas, plácidas demais para suportar; eram os descendentes de Guangzhou — a província de Cantão — e não da experiente e entediada Xangai.

Marie despertara com a primeira claridade, o pouco que conseguira dormir, assolada por pesadelos... e sabia que tinha de enfrentar outra suspensão do tempo, até que Catherine entrasse em contato. Staples telefonara tarde, na noite anterior, arrancando-a de um sono induzido pela exaustão total, apenas para lhe dizer enigmaticamente que haviam ocorrido várias coisas insólitas, que poderiam levar a notícias favoráveis. Ela ia se encontrar com um homem que se interessara pelo caso, um homem extraordinário, que poderia ajudar. Marie deveria permanecer no apartamento, junto ao telefone, para o caso de haver novos acontecimentos. Como Catherine a instruíra para não usar nomes nem falar de questões específicas pelo telefone, Marie não questionara a brevidade da ligação.

— Telefonarei para você de manhã, bem cedo, minha cara — concluíra Staples, desligando em seguida.

Ela ainda não ligara às oito e meia, nem às nove horas; às nove e trinta e seis, Marie não pudera agüentar por mais tempo. Raciocinara que os nomes eram desnecessários, pois uma conhecia a voz da outra; e Catherine precisava compreender que a mulher de David Webb tinha direito a alguma coisa de manhã, bem cedo. Discara para o apartamento de Staples em Hong Kong; ninguém atendera, e ela discara de novo, a fim de se certificar de que não errara o número. Nada. Frustrada e sem se importar com mais nada, telefonara para o consulado.

— Quero falar com Catherine Staples, por favor. Sou uma amiga da Secretaria de Tesouro, em Ottawa. Gostaria de lhe fazer uma surpresa.

— A ligação está ótima, meu bem.

— Não estou em Ottawa, mas aqui —dissera Marie, imaginando muito bem o rosto da loquaz recepcionista.

— Lamento, meu bem, mas a Sra. Staples não está e não deixou instruções. Para dizer a verdade, o alto comissário também está à sua procura. Por que não me dá seu telefone...

Marie desligara, sentindo o pânico invadi-la. Eram quase dez horas, e Catherine sempre levantava cedo. “De manhã bem cedo” poderia ser qualquer momento entre sete e meia e nove e meia, mais provavelmente no meio desse período, mas não às dez horas, e não naquelas circunstâncias. E doze minutos depois o telefone tocara. Era o começo de um pânico muito menos sutil.

— Marie?

— Você está bem, Catherine?

— Claro que estou.

— Falou “de manhã bem cedo”! Por que não ligou antes? Eu já estava ficando maluca! Pode falar?

— Posso, sim. Estou num telefone público...

— O que aconteceu? O que está acontecendo? Quem é o homem com quem você se encontrou?

Houvera uma breve pausa na ligação de Hong Kong. Por um instante, parecera haver um constrangimento, e Marie não soubera explicar por quê.

— Quero que fique calma, minha cara — dissera Staples. — Não liguei porque você precisa de todo o descanso que puder obter. Posso ter as respostas que você quer, que você necessita. As coisas não são tão terríveis quanto você imagina, e deve permanecer calma.

— Mas já estou calma! Ou pelo menos bastante controlada! Que diabo está querendo me dizer?

— Posso garantir que seu marido está vivo.

— E eu posso garantir que ele é muito bom no que faz... no que fazia. Não está me dizendo nada!

— Vou pegar o carro dentro de poucos minutos e irei ao seu encontro. O tráfego está horrível, como sempre, piorado pelas medidas de segurança em torno da delegação sino-britânica, engarrafando as ruas e o túnel. Mas não devo levar mais de uma hora e meia, talvez duas.

— Catherine, eu quero respostas!

— Vou levá-las para você, pelo menos algumas. Descanse, Marie, tente relaxar. Tudo vai dar certo. Estarei aí dentro em breve.

— O tal homem virá com você? — indagara a mulher de David Webb, suplicante.

— Não. Estarei sozinha, não haverá ninguém comigo. Você só o verá mais tarde.

— Está bem.

Fora o tom de voz de Catherine?, especulara Marie, depois de desligar. Ou o fato de Catherine não ter lhe dito literalmente nada, depois de admitir que podia falar livremente por um telefone público? A Catherine que ela conhecia tentaria dissipar os medos de uma amiga apavorada se tivesse fatos concretos para oferecer como conforto, mesmo que fosse uma única informação vital, se a trama fosse muito complexa. Alguma coisa. A mulher de David Webb merecia alguma coisa! Em vez disso, houvera uma conversa de diplomata, a alusão, mas não a substância da realidade. Algo estava errado, só que fugia à sua compreensão. Catherine a protegera, assumira enormes riscos por sua causa, tanto em termos profissionais, ao não solicitar orientação de seu consulado, como pessoais, ao se confrontar com o perigo físico intenso. Marie sabia que devia sentir gratidão, uma profunda gratidão, mas em vez disso experimentava um crescente sentimento de dúvida. Diga de novo, Catherine, ela gritara em seu íntimo, diga que tudo vai acabar bem! Não posso mais pensar! Não posso pensar aqui! Tenho de sair... tenho de respirar um pouco de ar fresco!

Ela cambaleara meio trôpega para pegar as roupas que haviam comprado na noite anterior, ao chegarem a Tuen Mun, depois que Catherine a levara a um médico que cuidara de seus pés, enfaixando-os com gaze, dando-lhe chinelas hospitalares e prescrevendo sandálias de solas grossas se tivesse que fazer caminhadas longas durante os dias seguintes. Na verdade, Catherine escolhera as roupas, enquanto Marie esperava no carro. Levando-se em consideração a tensão em que Staples se encontrava, a escolha das roupas fora ao mesmo tempo funcional e atraente. Uma saia de algodão verde-claro, complementada por uma blusa branca de algodão e uma pequena bolsa de conchas brancas. Também uma calça verde-escura — shorts seriam impróprios —e uma outra blusa informal. Todas as peças eram imitações bem-feitas de designers conhecidos, as etiquetas escritas corretamente.

— É tudo muito bonito, Catherine. Obrigada.

— Combinam com seus cabelos — comentara Staples —

Não que alguém em Tuen Mun vá notar... quero que fique no apartamento... mas teremos de sair daqui em algum momento. Além disso, para o caso de eu ficar retida no escritório e você precisar de alguma coisa, deixei um pouco de dinheiro na bolsa.

— Pensei que não deveria deixar o apartamento, que iríamos juntas comprar algumas coisas no mercado.

— Assim como você, não tenho a menor idéia do que está acontecendo em Hong Kong. Lin pode estar tão furioso que talvez desenterre uma antiga lei colonial e me ponha sob prisão domiciliar... Há uma sapataria na Blossom Soon Street. Você terá de entrar e experimentar as sandálias pessoalmente. Eu a acompanharei, é claro.

Vários momentos de silêncio se passaram antes que Marie perguntasse:

— Catherine, Como conhece este lugar? Não vi nenhum outro ocidental nas ruas. De quem é o apartamento?

— De um amigo — respondera Staples. — Ninguém o usa durante a maior parte do tempo e por isso é um bom refúgio.

Catherine não acrescentara mais nada, sinal de que o assunto não devia ser explorado. Mesmo quando passaram a maior parte da noite conversando, não houvera estímulo que arrancasse mais informações de Staples. Era um tópico que ela se recusava terminantemente a discutir.

Marie pusera a calça comprida e a blusa, tivera a maior dificuldade para ajeitar as chinelas grandes. Cautelosamente, descera a escada e saíra para a rua movimentada, sentindo no mesmo instante os olhares que atraía, especulando se não deveria dar a volta e tornar a entrar. Mas não podia; estava desfrutando de uns poucos minutos de liberdade daquele confinamento sufocante do pequeno apartamento, e eram como um tônico. Fora andando devagar, sentindo alguma dor, fascinada pelas cores e o movimento frenéticos as conversas rápidas e incessantes ao seu redor. Como em Hong Kong, cartazes berrantes erguiam-se por toda parte, acima dos prédios; por toda parte, pessoas barganhavam, junto a estandes nas ruas e diante das portas das lojas. Era como se uma fatia da colônia fora desenraizada é fincada numa vasta fronteira.

Encontrara uma estrada inacabada ao final de uma rua secundária, os trabalhos aparentemente abandonados, mas apenas em caráter temporário, já que as máquinas niveladoras — sem uso e enferrujando — se encontravam à margem. Havia duas placas em chinês, em cada lado da estrada, no topo de uma encosta. Dando cada passo com extremo cuidado, ela descera para a praia deserta e sentara-se numa pedra; os minutos de liberdade estavam lhe proporcionando preciosos momentos de paz. Contemplara os barcos que saíam das docas de Tuen Mun e os que partiam da República Popular. Pelo que podia ver, os primeiros eram barcos de pesca, as redes penduradas na proa e amuradas, enquanto os da República Popular eram principalmente pequenas embarcações cargueiras, transportando engradados. Havia também as lanchas de patrulhas cinzentas, com a bandeira chinesa hasteada. Canhões pretos ameaçadores estavam instalados em todos os lados das várias embarcações, com homens de uniforme parados imóveis ao lado, espiando através de binóculos. De vez em quando, uma lancha de patrulha parava ao lado de um barco de pesca, provocando gestos frenéticos dos pescadores. Reações firmes eram as respostas, enquanto as poderosas lanchas se afastavam. Era tudo um jogo, pensara Marie. O Norte afirmava calmamente o seu controle total, enquanto ao Sul só restava protestar pela intromissão nas áreas de pesca. O Norte tinha a força implacável do aço e uma disciplinada cadeia de comando, enquanto o Sul contava apenas com redes e perseverança. Ninguém saía vitorioso, a não ser os irmãos em oposição, Tédio e Ansiedade.

— Jing-cha! — gritara uma voz de homem por trás dela, à distância.

— Shei! — berrara uma segunda voz. — Ni zai zher gan shemma?

Marie se virara. Dois homens lá em cima, na estrada, desataram a correr pelo acesso inacabado em sua direção, seus gritos atraindo-a, dominando-a. Ela se levantara, meio desajeitada, apoiando-se nas pedras, enquanto os dois se aproximavam. Ambos vestiam uma espécie de traje paramilitar. Observando-os, verificara que eram jovens, no final da adolescência, com vinte anos no máximo.

— Bu xing! — gritara o rapaz mais alto, olhando para o

alto da encosta e gesticulando para que o seu companheiro agarrasse Marie.

O que quer que fosse, tinha de ser feito depressa. O segundo rapaz imobilizara seus braços, por trás.

— Parem com isso! — gritara Marie, debatendo-se. — Quem são vocês?

— A mulher fala inglês — comentara o primeiro jovem. Uma pausa e ele acrescentou, orgulhoso, insinuante: — Eu falo inglês. Trabalho para um joalheiro em Kowloon.

— Pois então diga a seu amigo para tirar as mãos de mim!

— A mulher não me diz o que fazer. Eu digo à mulher. — Ele chegara mais perto, os olhos fixados nos contornos dos seios de Marie, por baixo da blusa. — Esta estrada é proibida, uma parte proibida da praia. A mulher não viu os cartazes?

— Não sei ler chinês. Sinto muito. Vou embora agora. Apenas diga a ele para me largar.

Subitamente, Marie sentira o corpo do rapaz por trás a se comprimir contra o seu.

— Pare com isso! — gritara ela, ouvindo uma risada suave em seu ouvido, sentindo um bafo quente na nuca.

— A mulher veio encontrar um barco com criminosos da República Popular? Fez sinal para os homens na água? — O chinês mais alto levantara as mãos para a blusa de Marie, os dedos nos botões de cima. — Ela não está escondendo um rádio, algum aparelho de sinalização? É nosso dever descobrir essas coisas. É o que a polícia espera de nós.

— Tire as mãos de mim!

Marie se contorcera violentamente, chutando à frente. O rapaz por trás a levantara, enquanto o outro lhe segurara as pernas, prendendo-as entre as suas. Ela não podia se mexer; o corpo estava esticado em diagonal, na praia rochosa, firmemente imobilizado. O primeiro chinês lhe arrancara a blusa e depois o sutiã, pondo as mãos em seus seios. Ela gritara e se debatera, continuara a gritar até que fora esbofeteada, e dois dedos lhe apertarem a garganta, cortando todo som, a não ser as tosses guturais. O pesadelo de Zurique lhe voltara... estupro e morte no Guisan Quai.

Eles a levaram para um trecho de mato alto, o rapaz por

trás pondo a mão em sua boca, depois substituindo-a rapidamente pelo braço direito, cortando o ar e quaisquer gritos que ela pudesse soltar, enquanto a empurrava para a frente. Fora jogada ao chão, um dos atacantes agora lhe cobrindo o rosto com sua barriga nua, enquanto o outro começava a puxar a calça comprida, enfiando as mãos entre suas pernas. Era Zurique outra vez; em vez de se debater na fria escuridão suíça, havia o calor úmido do Oriente; em vez do Limmat, outro rio, muito mais largo, muito mais deserto; em vez de um animal, dois. Ela sentira o corpo do chinês alto por cima do seu, arremetendo em seu pânico, furioso por não conseguir penetrá-la, os movimentos de Marie repelindo a investida. Por um instante, o rapaz sobre o seu rosto estendera a mão pela calça, até a virilha... depois de um breve momento, o mundo enlouquecera para Marie! Ela cravara os dentes na carne por cima, arrancando sangue, sentindo a carne repulsiva em sua boca.

Seguiram-se gritos; seus braços foram soltos. Ela chutara enquanto o jovem oriental rolava para o lado, as mãos comprimindo a virilha. Marie levantara o joelho para o órgão exposto por cima de sua cintura, depois metera as unhas no rosto suado e de olhos desvairados do rapaz mais alto. Agora, ela estava gritando também, berrando, suplicando, como nunca gritara antes em toda a sua vida. Segurando os testículos por baixo da cueca, o enfurecido rapaz se jogara em cima dela. Mas o estupro não estava mais em consideração, ele queria apenas mantê-la quieta. A escuridão sufocante começara a envolver Marie... e depois ela ouvira outras vozes, à distância, excitadas, se aproximando. Compreendera que precisava emitir um derradeiro grito de socorro. Num ímpeto desesperado, cravara as unhas no rosto contorcido por cima, por um instante livrando a boca da pressão

— Aqui! Na praia! Aqui embaixo!

No instante seguinte corpos enxameavam ao seu redor; podia ouvir socos, chutes, gritos furiosos, mas nenhuma parte da loucura se dirigia contra ela. E depois a escuridão viera, os últimos pensamentos apenas parcialmente sobre si mesma: David! Pelo amor de Deus, David, onde está você? Continue vivo, meu querido! Não deixe que eles destruam sua mente outra vez! Acima de tudo, não permita isso! Eles querem a minha, mas não vou lhes dar! Por que estão fazendo isso conosco? Oh, Deus, por quê?

Ela despertara numa cama estreita, num quarto pequeno, sem janelas, uma jovem chinesa limpando sua testa com um pano úmido e perfumado.

— Onde...? — balbuciara Marie. — Onde estou?

A moça sorrira suavemente e dera de ombros, acenando com a cabeça para o outro lado da cama, onde estava um chinês que Marie calculou ter trinta e poucos anos, vestindo roupas tropicais, um blusão branco em vez de uma camisa.

— Permita que eu me apresente — dissera o homem, num inglês de forte sotaque, mas preciso. — Meu nome é Jitai e trabalho na sucursal de Tuen Mun do Banco Hang Chow. Está no quarto dos fundos de uma loja de tecidos que pertence a um amigo e cliente, o Sr. Chang. Trouxeram você para cá e me chamaram. Foi atacada por dois bandidos da Di-di Jing Cha, que se pode traduzir como Polícia Auxiliar dos Jovens. É um desses programas sociais bem-intencionados que trazem muitos benefícios, mas de vez em quando também têm as suas maçãs podres, como dizem vocês, americanos.

— Por que acha que sou americana?

— Suas palavras. Enquanto estava inconsciente, falou sobre um homem chamado David. Um amigo querido, sem dúvida. Deseja encontrá-lo.

— O que mais eu disse?

— Praticamente nada. Não foi muito coerente.

— Não conheço ninguém chamado David — declarara Marie, firmemente. — De jeito nenhum. Deve ter sido um desses delírios em que a gente volta aos tempos de criança.

— É irrelevante. A única coisa que importa é o seu bem- estar. Estamos com muito vergonha e pesarosos pelo que aconteceu.

— Onde estão aqueles dois miseráveis?

— Foram presos e serão punidos.

— Espero que passem dez anos na cadeia.

O chinês franzira o rosto.

— Isso implicaria envolver a polícia... uma queixa formal, audiência perante um magistrado, muitos detalhes técnicos.

Marie olhara aturdida para o banqueiro, que depois de um momento acrescentara:

— Se quiser, eu a acompanharei à polícia e servirei como seu intérprete. Mas achamos que deveríamos primeiro ouvir seus desejos a respeito. Passou por momentos terríveis... e está sozinha aqui, em Tuen Mun, por razões que é a única a conhecer.

— Não vou apresentar acusações, Sr. Jitai — murmurara Marie. — Estou bem, e a vingança não é uma alta prioridade para mim.

— É para nós, madame.

— Como assim?

— Seus agressores levarão nossa vergonha para seus leitos nupciais, onde seus desempenhos serão inferiores ao que se poderia esperar.

— Entendo. Eles são jovens...

— Esta manhã, pelo que descobrimos, não foi a primeira agressão que cometeram. Eles são repulsivos, e é preciso lhes dar uma lição.

— Esta manhã? Oh, Deus, que horas são? Há quanto tempo estou aqui?

O banqueiro olhara para o relógio.

— Quase uma hora.

— Tenho de voltar ao apartamento... imediatamente. É muito importante.

— As mulheres desejam remendar suas roupas. São excelentes costureiras e não vai demorar muito. Mas acharam que você não deveria acordar sem as roupas.

— Não tenho tempo. Preciso voltar agora. Oh, Deus! Não sei onde fica e não tenho o endereço!

— Sabemos qual é o prédio, madame. Uma mulher branca, alta e atraente, sozinha em Tuen Mun não passa desapercebida. Vamos levá-la para lá imediatamente.

O banqueiro se virara e falara num chinês rápido, na direção de uma porta entreaberta por trás dele, enquanto Marie sentava. Percebera as muitas pessoas que a espiavam. Levantara-se, sentindo muita dor nos pés, cambaleando um pouco, mas logo encontrando o ponto de equilíbrio, juntando as dobras da blusa rasgada.

A porta fora puxada e duas mulheres mais velhas entraram,

cada uma carregando uma peça de seda colorida. A primeira parecia um quimono e foi gentilmente descida pela cabeça de Marie, cobrindo a blusa rasgada e boa parte da calça verde toda suja. A segunda era uma faixa comprida e larga, que envolveu sua cintura e foi amarrada, também com delicadeza. Apesar de muito tensa, Marie constatara que as peças eram bastante refinadas.

— Vamos, senhora — dissera o banqueiro, pondo a mão em seu cotovelo. — Eu a acompanharei.

Eles deixaram a loja, Marie acenando com a cabeça e tentando sorrir, enquanto os homens e mulheres lhe faziam uma reverência, com evidente tristeza nos olhos escuros.

Ela voltara ao pequeno apartamento, tirara o lindo quimono e a faixa e deitara na cama, procurando encontrar sentido onde não havia qualquer razão. Agora, comprimiu o rosto contra o travesseiro, tentando afastar da mente as imagens horríveis daquela manhã. Mas não havia como expurgar o horror. Em vez disso, só conseguiu aumentar o suor que porejava de seu corpo; quanto mais firmemente fechava os olhos, mais violentas as imagens se tornavam, misturando-se com as lembranças terríveis de Zurique, no Guisan Quai, quando um homem chamado Jason Bourne salvara sua vida.

Sufocou um grito e levantou-se da cama de um pulo, ficando imóvel, tremendo. Depois, foi para a pequena cozinha e abriu a torneira, estendendo a mão para um copo. O jato de água era fraco e fino, e ela ficou olhando distraidamente enquanto o copo enchia, a mente longe dali.

Há momentos em que as pessoas devem pôr suas cabeças na água fria... Deus sabe que faço isso com mais freqüência do que deveria, sendo um psiquiatra relativamente respeitado... As coisas nos engolfam... precisamos dar uma ordem a nossos atos. Morris Panov, amigo de Jason Bourne.

Fechou a torneira, bebeu a água morna e voltou ao cômodo sufocante, que servia ao mesmo tempo para deitar, sentar, e andar de um lado para outro. Parou na porta e olhou ao redor, sabendo o que achava tão grotesco em seu santuário. Era uma cela, tão certamente como se fosse em prisão remota. Pior ainda, era uma autêntica forma de confinamento solitário. Estava outra vez isolada com seus pensamentos, com seus terrores. Foi até a janela, como uma prisioneira poderia fazer, e olhou para o mundo lá fora. E viu uma extensão da cela; também não seria livre na rua fervilhante lá embaixo. Era um mundo que não conhecia e que não a acolhia bem. Mesmo eliminando a loucura obscena da manhã na praia, era uma intrusa, que não compreendia nem podia ser compreendida. Estava sozinha, e a solidão a enlouquecia.

Atordoada, Marie continuou a olhar para a rua. A rua? Lá estava ela! Catherine! Parada junto com um homem, ao lado de um carro cinza, as cabeças viradas, observando três outros homens, dez metros atrás, junto a um segundo carro. Todos os cinco eram gritantemente óbvios, por serem diferentes de todas as outras pessoas na rua. Eram ocidentais num mar de chineses, estranhos num lugar estranho. Estavam obviamente excitados, preocupados com alguma coisa, acenando com as cabeças a todo instante, olhando em todas as direções, especialmente para o outro lado da rua. Para o prédio de apartamentos. Três dos homens tinham os cabelos rentes... cortes militares... fuzileiros. Fuzileiros americanos!

O companheiro de Catherine, um civil, a julgar pelos cabelos, falava depressa, o dedo indicador espetando o ar... Marie o conhecia! Era o homem do Departamento de Estado, o homem que fora procurá-los no Maine! O subsecretário de olhos mortos, que não parava de esfregar as têmporas e mal protestara quando David dissera que não confiava nele. Era McAllister! Era esse o homem que Catherine dissera que ela deveria encontrar!

Subitamente, pedaços abstratos e terríveis do quebra-cabeça se ajustaram nos lugares, enquanto Marie observava a cena lá embaixo. Dois fuzileiros junto ao segundo carro atravessaram a rua e se separaram. O terceiro falou por um instante com McAllister e depois se afastou apressadamente para a direita, tirando do bolso um pequeno rádio. Catherine disse alguma coisa ao subsecretário de Estado e olhou para o prédio. Marie saiu da janela.

Estarei sozinha, não haverá ninguém comigo.

Muito bem.

Era uma armadilha. Catherine Staples fora alcançada. Não era uma amiga, mas uma inimiga. Marie sabia que tinha de escapar. Pelo amor de Deus, fuja daqui! Pegou a bolsa branca com o dinheiro e, por uma fração de segundo, olhou para as peças de seda que ganhara na loja. Pegou-as também e deixou o apartamento.

Havia dois corredores, um se estendendo por toda a largura do prédio, na frente, com uma escada à direita descendo para a rua, o outro cortando o primeiro e formando um T invertido, conduzindo a uma porta nos fundos. Era uma segunda escada, usada para se levar o lixo aos latões no beco nos fundos. Catherine comentara a respeito ao chegarem, explicando que havia uma lei que proibia o lixo na rua, que era a principal artéria de Tuen Mun. Marie correu para a porta dos fundos e abriu-a. Soltou uma exclamação de espanto ao deparar com um velho encurvado, segurando uma vassoura de palha. Ele estreitou os olhos por um instante, sacudindo a cabeça, a expressão de intensa curiosidade. Marie saiu para o patamar escuro, enquanto o chinês entrava; ela manteve a porta entreaberta, esperando pela aparição de Catherine emergindo da escada da frente. Se Catherine, encontrando o apartamento vazio, voltasse rapidamente à escada e descesse para a rua, ao encontro de McAllister e do de fuzileiros, Marie poderia voltar ao apartamento e pegar as roupas que haviam comprado. Em seu pânico, pensara nelas apenas de passagem, limitando-se a pegar as sedas, sem se atrever a perder momentos preciosos em vasculhar o armário, onde Catherine as pendurara, junto com diversas outras roupas. Não podia andar e muito menos correr pelas ruas numa blusa rasgada e calça comprida enlameada. Havia alguma coisa errada. Era o velho! Ele estava parado ali, olhando pela fresta da porta.

— Vá embora!— sussurrou Marie.

Passos. O barulho de saltos altos subindo depressa pela escada de metal na frente do prédio. Se era Staples, passaria pelo cruzamento dos corredores, a caminho do apartamento.

— Deng yi deng! — gritou o velho chinês, ainda parado imóvel com a vassoura, fitando-a fixamente.

Marie fechou ainda mais a porta, mal conseguindo ver através de um centímetro de espaço.

Catherine apareceu, olhando por um instante para o velho, curiosa, aparentemente tendo ouvido sua voz estridente e irritada. Sem hesitar, ela continuou pelo corredor, concentrada apenas em chegar ao apartamento. Marie esperou; as batidas em seu peito pareciam ressoar pelo escuro poço da escada. E depois as palavras soaram, gritadas em histeria:

— Não! Marie! Onde você está?

O barulho dos passos foi mais alto agora, de gente correndo pelo cimento. Catherine apareceu no cruzamento dos corredores, avançando para o velho chinês e a porta... avançando em sua direção!

— Marie, não é o que você pensa! Pelo amor de Deus, pare!

Marie Webb virou-se e desceu correndo os degraus escuros. Subitamente, um facho amarelo de raios do sol subiu pela escada, para desaparecer no instante seguinte. A porta do andar térreo, três andares abaixo, fora aberta; um vulto de terno escuro entrara apressado, um fuzileiro ocupando seu posto. O homem subiu correndo; Marie agachou-se no patamar do segundo andar. O fuzileiro chegou ao último degrau, preparou-se para dar a volta, a mão no corrimão. Marie arremeteu para a frente, a mão com as peças de seda atingindo o rosto do atônito fuzileiro, desequilibrando-o; bateu com o ombro no peito do homem, empur rando-o para trás, e ele rolou a escada. Marie passou pelo corpo nos degraus, enquanto ouvia os gritos lá de cima:

— Marie! Marie! Sei que é você!’ Pelo amor de Deus, escute-me!

Ela saiu para o beco, e outro pesadelo iniciou seu curso pavoroso, à luz do sol ofuscante de Tuen Mun. Correndo pela viela por trás dos prédios, os pés agora sangrando nas chinelas, Marie enfiou pela cabeça o traje que parecia um quimono e parou junto a uma fileira de latas de lixo, tirando a calça comprida verde e jogando-a na mais próxima. Passou a faixa pela cabeça, cobrindo os cabelos, e correu para a passagem seguinte, que levava à rua principal. Segundos depois emergiu na massa de humanidade que era uma fatia de Hong Kong na nova fronteira da colônia. Atravessou a rua.

— Ali! — gritou uma voz de homem. — A alta!

A perseguição recomeçou, mas abruptamente, sem qualquer indicação, era diferente. Um homem correu pela calçada em seu encalço, subitamente detido por uma carrocinha bloqueando o caminho; ele tentou empurrá-la para o lado, apenas

para pôr as mãos em panelas escondidas com gordura fervendo. Soltou um grito, virando a carrocinha, enfrentando agora os gritos estridentes do proprietário, obviamente exigindo pagamento, enquanto acuava o fuzileiro junto com outros, forçando-o para o meio-fio.

— Lá está a puta!

Marie ouviu as palavras; tinha pela frente uma falange de mulheres fazendo compras. Virou à direita e correu por outra viela, só para descobrir que era um beco sem saída, que terminava no muro de um templo chinês. E aconteceu de novo! Cinco jovens — adolescentes em trajes paramilitares — apareceram subitamente de uma porta e gesticularam para que ela passasse.

— Criminoso ianque! Ladrão ianque!

Os gritos soavam na cadência de uma língua estrangeira ensaiada. Os jovens se deram os braços e interceptaram sem violência o homem de cabelos aparados, empurrando-o contra uma parede.

— Saiam da minha frente, seus miseráveis! — gritou o fuzileiro. — Saiam da minha frente ou vou acabar com todos vocês, seus pirralhos!

— Levante os braços... ou largue a arma — gritou uma voz por trás.

— Eu nunca disse que estava armado! — protestou o guarda de Victoria Peak.

— Mas se sacar uma arma — insistiu a voz —, eles vão entrar em ação, e cinco Di-di Jing Cha... treinados por nossos amigos americanos... certamente serão capazes de dominar um homem.

— Mas que diabo, senhor! Estou apenas tentando cumprir o meu dever! E não é da conta de vocês!

— Lamento, senhor, mas é, sim. Por razões que você não conhece.

— Merda!

O fuzileiro encostou-se na parede, esbaforido, olhando para os jovens rostos risonhos à sua frente.

— Lai! — disse uma mulher a Marie, apontando para uma porta larga, de formato estranho, sem qualquer maçaneta visível, no que parecia ser um exterior espesso e impenetrável. Xiaoxin. Ca-dado.

— Cuidado? Eu entendi.

Um vulto de avental abriu a porta, e Marie entrou correndo, sentindo no mesmo instante as lufadas de ar frio. Estava num pequeno frigorífico, com carcaças de carne penduradas em ganchos, à luz de lâmpadas envoltas por grades, uma cena fantasmagórica, O homem de avental esperou um minuto inteiro, o ouvido encostado na porta. Marie passou a larga faixa de seda pelo pescoço e cruzou os braços para se proteger do frio intenso, agravado pelo contraste com o calor sufocante lá fora. Finalmente, o homem gesticulou para que ela o seguisse. Marie obedeceu, esgueirando-se por entre as carcaças até a entrada do frigorífico. O chinês acionou uma alavanca de metal e abriu a pesada porta, acenando com a cabeça para Marie, que estava tremendo. Ela passou e descobriu-se num açougue comprido e estreito, as persianas de bambu nas janelas da frente filtrando o sol de meio-dia. Um homem de cabelos brancos estava parado por trás do balcão, junto à janela da direita, espiando pelas persianas para a rua lá fora. Fez sinal para que Marie se aproximasse dele. Novamente ela obedeceu, notando uma coroa floral de formato estranho por trás do vidro da porta da frente, que parecia trancada.

O homem mais velho gesticulou para que Marie olhasse pela janela. Ela entreabriu as persianas e soltou uma exclamação abafada de espanto, aturdida com a cena lá fora. A busca se encontrava em seu auge frenético. O fuzileiro com as mãos escaldadas não parava de sacudi-las no ar, enquanto seguia de uma loja para outra. Avistou Catherine Staples e McAllister empenhados numa discussão acalorada com uma multidão de chineses, que obviamente protestavam contra os estrangeiros que se atreviam a perturbar a vida pacífica embora febril de Tuen Mun. McAllister, em seu pânico, aparentemente gritara alguma coisa ofensiva e estava sendo enfrentado por um homem que tinha o dobro de sua idade, vestindo um traje oriental e contido pelos mais jovens e mais controlados. O subsecretário de Estado recuou, os braços levantados, alegando inocência, enquanto Staples gritava em vão, nos seus esforços para desvencilhar os dois da multidão irada.

Subitamente, o fuzileiro com as mãos feridas saiu voando por uma porta no outro lado da rua, o vidro estilhaçado se espalhando em todas as direções, enquanto ele rolava pela calçada, gritando de dor quando as mãos escaldadas tocaram no cimento. Em sua perseguição surgiu um jovem chinês, de túnica branca, faixa e calça até os joelhos de instrutor de artes marciais. O fuzileiro levantou-se de um pulo, e quando o adversário oriental chegou perto, atingiu-o com um gancho na altura dos rins, seguido por uma direita bem encaixada no rosto, jogando o instrutor de artes marciais de volta à loja, enquanto gritava em agonia pela dor que os golpes causaram em suas mãos escaldadas.

Um último fuzileiro de Victoria Peak desceu correndo pela rua, claudicando, os ombros vergados, como se machucado de uma queda... uma queda por um lance de escada, pensou Marie, observando espantada. Ele foi em socorro de seu aflito companheiro e se mostrou bastante eficaz. As tentativas amadorísticas de combate pelos discípulos uniformizados do inconsciente instrutor de artes marciais foram recebidas por uma saraivada de chutes, cuteladas e rodopios de um perito em judô.

Outra vez abruptamente, sem qualquer aviso, os acordes cacofônicõs de música oriental espalharam-se pela rua, os pratos e instrumentos de madeira primitivos alcançando crescendos a cada passada da banda maltrapilha que avançava pela rua, os seguidores carregando cartazes enfeitados com flores. A luta cessou, braços retidos por toda parte. O silêncio espalhou-se pela principal artéria comercial de Tuen Mun. Os americanos estavam confusos; Catherine Staples reprimiu sua frustração, e Edward McAllister levantou as mãos em exasperação.

Marie ficou observando, literalmente hipnotizada pela mudança lá fora. Tudo parou, como se um basta tivesse sido ordenado pelo anúncio de alguma presença sepulcral que não podia ser contestada. Mudou o ângulo de visão por trás da persiana de bambu e observou o grupo maltrapilho que se aproximava. Era liderado pelo banqueiro Jitai! E se encaminhava para o açougue!

Marie observou Catherine Staples e McAllister passarem correndo pela estranha concentração diante do açougue. E um momento depois, no outro lado da rua, os dois fuzileiros retomaram a caçada. E todos desapareceram à luz do sol ofuscante.

Houve uma batida na porta da frente do açougue. O velho

de cabelos brancos removeu a coroa e abriu-a. O banqueiro, Jitai, entrou e fez uma reverência para Marie, indagando:

— Gostou do desfile, senhora?

— Eu não sabia direito o que era.

— Uma marcha fúnebre pelos mortos. Neste caso, sem dúvida, pelos animais abatidos no frigorífico do Sr. Woo.

— Mas... foi tudo planejado?

— Pode-se dizer que nos encontrávamos em estado de prontidão — explicou Jitai. — Freqüentemente nossos primos do Norte conseguem atravessar a fronteira... não os ladrões, mas membros da famíiia que desejam se juntar aos seus... e os soldados querem detê-los e mandá-los de volta. Devemos estar preparados para proteger os nossos.

— Mas eu?... Como sabia?

— Observamos... e esperamos. Estava se escondendo, fugindo de alguém, até aí sabíamos. Foi o que disse quando falou que não queria procurar o magistrado para “apresentar acusações”, como a senhora mesma falou. E foi orientada para a viela lá fora.

— A barreira de mulheres com sacolas de compras...

— Isso mesmo. Atravessaram a rua ao mesmo tempo que a senhora. Devemos ajudá-la.

Marie olhou para os rostos ansiosos da multidão na rua e depois tornou a fitar o banqueiro.

— Como sabe que não sou uma criminosa?

— Isso não importa. O atentado de que foi vítima, de dois de nossa gente, é tudo o que importa. Além disso, senhora, não parece nem fala como fugitiva da justiça.

— E não sou. Mas preciso de ajuda. Tenho de voltar a Hong Kong, a um hotel onde não possam me encontrar, onde haja um telefone que eu possa usar. Não sei quem, mas preciso entrar em contato com pessoas que possam me ajudar... ajudar a nós. — Marie fez uma pausa, os olhos fixados nos de Jitai. — O homem chamado David é meu marido.

— Posso compreender. Mas, primeiro, tem de ir a um médico.

— O quê?

— Seus pés estão sangrando.

Marie baixou os olhos. O sangue vazara pelas ataduras,

penetrando na lona das chinelas. As manchas vermelhas eram enormes.

— Acho que tem razão.

— E depois providenciaremos roupas, transporte... eu mesmo arrumarei um hotel, sob qualquer nome que desejar. E há a questão do dinheiro. Dispõe de recursos?

— Não sei — respondeu Marie, pondo as sedas no balcão e abrindo a pequena bolsa branca. —Isto é, ainda não verifiquei. Uma amiga... alguém que eu pensava ser amiga... deixou-me dinheiro.

Ela tirou as notas que Staples pusera na bolsa.

— Não somos ricos aqui em Tuen Mun, mas talvez possamos ajudar. Falou-se em uma coleta.

— Não sou uma mulher pobre, Sr. Jitai. Se for necessário e, para falar francamente, se eu estiver viva, tudo será reembolsado, com juros muito superiores aos do mercado.

— Como achar melhor. Sou um banqueiro. Mas o que uma dama tão adorável sabe de juros de mercado?

Jitai fez a pergunta sorrindo, e Marie respondeu prontamente:

— O senhor é banqueiro e eu sou economista. O que os banqueiros sabem sobre os impactos das flutuações de câmbio causados por juros inflacionados, especialmente nas prime rates?

Marie também sorriu, pela primeira vez em muito tempo.

Teve mais de uma hora para pensar, na tranqüilidade dos campos, sentada no táxi que a levava de volta a Kowloon. Levaria mais quarenta e cinco minutos depois que alcançassem os subúrbios não tão tranqüilos, particularmente um congestionado distrito chamado Mongkok. Os contritos habitantes de Tuen Mun haviam sido não apenas generosos e protetores, mas também inventivos. O banqueiro Jitai aparentemente confirmara que a vítima dos arruaceiros era de fato uma mulher branca se escondendo e fugindo para salvar a vida, estava prestes a se encontrar com pessoas que poderiam ajudá-la e talvez fosse possível alterar sua aparência. Roupas ocidentais foram trazidas de várias lojas, roupas que pareceram muito estranhas a Marie; davam a impressão de serem insípidas e utilitárias, impecáveis mas lúgubres. Não eram ordinárias, mas o tipo de roupas que seriam escolhidas por uma mulher que não tinha o menor senso de elegância ou se sentia acima dessas coisas. Depois de uma hora na sala dos fundos de um salão de beleza, no entanto, ela compreendera por que tais roupas haviam sido escolhidas. As mulheres se movimentavam ao seu redor, lavando e secando seus cabelos; quando o processo terminou, ela se contemplou no espelho, mal se atrevendo a respirar. O rosto — contraído, pálido e cansado — não estava mais emoldurado pelos deslumbrantes cabelos castanho-avermelhados, mas sim por um castanho opaco, com leves traços brancos. Envelhecera mais de dez anos; era uma extensão do que tentara depois de escapar do hospital; só que muito mais arrojada, muito mais completa. Era a imagem chinesa da turista de classe média superior, séria, sisuda —provavelmente uma viúva —, que dava instruções taxativamente, contava seu dinheiro e nunca ia a parte alguma sem o guia turístico na mão, consultando-o constantemente, em cada lugar visitado, no itinerário bem organizado. Os habitantes de Tuen Mun conheciam muito bem as turistas assim, e o retrato ficou acurado. Jason Bourne aprovaria.

Contudo, havia outros pensamentos que a absorviam na viagem para Kowloon, pensamentos desesperados, que ela tentava controlar e manter em perspectiva, repelindo o pânico que poderia tão facilmente engolfá-la, levando-a a agir errado, a tomar uma iniciativa errada que poderia prejudicar David... matar David. Oh, Deus, onde você está? Como posso encontrá-lo? Como?

Vasculhou a memória à procura de alguém que pudesse ajudá-la, rejeitando cada rosto e cada nome que aflorava, porque de um jeito ou de outro fora parte daquela horrível estratégia tão sinistramente chamada de além da salvação — a morte de um indivíduo como a única solução aceitável. Exceto, é claro, Morris Panov. Mas Mo era um pária aos olhos do governo, chamara os carrascos oficiais por seus legítimos nomes: incompetentes e assassinos. Ele não conseguiria chegar a parte alguma e possivelmente acarretaria uma segunda ordem para além da salvação.

Além da salvação... Um rosto surgiu, um rosto com lágrimas escorrendo pelas faces, abafados gritos de misericórdia, em sua voz trêmula, um amigo outrora íntimo de um jovem diplomata, sua esposa e filhos, num remoto posto avançado chamado Phnom Penh. Conklin! Seu nome era Alexander Conklin! Durante a longa convalescença de David, ele tentara insistentemente visitar seu marido. Mas David recusara, garantindo que mataria o homem da CIA no instante em que ele passasse pela porta. O aleijado Conklin levantara, errada e estupidamente, acusações contra David, sem dar ouvidos às súplicas de um homem com amnésia; em vez disso, presumira traição... e tentara matar David pessoalmente, nos arredores de Paris. E, finalmente, efetuara uma última tentativa, na Rua 71, em Nova York, numa casa segura conhecida como Casa de Pedra 71, e quase conseguiu. Quando a verdade sobre David se tornara conhecida, Conklin ficara consumido pelo sentimento de culpa, abalado pelo que fizera. Marie sentira pena dele, pois sua angústia era genuína, o sentimento de culpa, devastador. Ela conversara com Alex, tomando um café na varanda, mas David nunca o recebera. Era o único em quem Marie podia pensar que fazia algum sentido.

O hotel se chamava Empress, na Chatham Road, em Kowloon. Era um hotel pequeno, no apinhado Tsim Sha Tsui, freqüentado por uma mistura de culturas, nem ricos nem pobres, de um modo geral vendedores do Oriente e Ocidente, que tinham negócios a tratar, sem a generosidade das verbas de representação dos executivos maiores. O banqueiro Jitai cumprira a promessa; um quarto de solteiro fora reservado para uma Sra. Austin, Penelope Austin. O “Penelope” fora idéia de Jitai, que lera muitos romances ingleses; Penelope parecia “perfeitamente apropriado”. Que assim seja, como Jason Bourne teria dito, pensara Marie.

Ela sentou-se na beira da cama e estendeu a mão para o telefone, sem saber o que dizer, mas convencida de que precisava falar de qualquer maneira.

— Preciso do telefone de uma pessoa em Washington, D. C., nos Estados Unidos.— disse ela à telefonista. — É uma emergência.

— Há uma taxa para informações do exterior.

— Pode cobrar. É urgente. Ficarei na linha.

Algum tempo depois, uma voz sonolenta balbuciou:

— Alô?

— Alex, aqui é Marie Webb.

— Mas onde você está? Onde estão vocês dois? Ele encontrou você!

— Não sei do que está falando. Não o encontrei e ele não me encontrou. Sabe o que está acontecendo?

— Quem você pensa que quase me quebrou o pescoço quando voou para Washington na semana passada? David! Mantenho um alerta em todos os telefones porque ele pode entrar em contato comigo. O mesmo acontece com Mo Panov. Onde você está?

— Hong Kong... acho que Kowloon. Empress Hotel, sob o nome de Austin. David procurou você?

— E a Mo. Ele e eu recorremos a todos os truques para descobrir o que está acontecendo e deparamos com uma muralha de pedra. Não, retiro o que disse... a verdade é que ninguém mais sabe o que está acontecendo. Eu saberia se alguém soubesse. Santo Deus, Marie, não tomo um drinque desde a última quinta-feira!

— Eu não sabia que está sentindo falta.

— E sinto muita. O que está acontecendo?

Marie relatou tudo, inclusive a marca inconfundível da burocracia do governo em seus captores, a fuga e a ajuda prestada por Catherine Staples, que se transformara numa armadilha, preparada por um homem chamado McAllister, a quem ela vira na rua com Staples.

— McAllister? Você o viu?

— Ele está aqui, Alex. Quer me recapturar. Comigo, ele controla David e vai matá-lo! Já tentaram antes!

Houve uma pausa na linha, uma pausa repleta de angústia. Depois, Conklin disse, suavemente:

— Nós tentamos antes... mas isso foi antes, não agora.

— O que eu posso fazer?

— Fique onde está. Pegarei o primeiro avião para Hong Kong. Não saia do quarto. Não dê mais nenhum telefonema. Estão procurando por você. Só podem estar.

— David está por aí, Alex! O que quer que o obrigaram a fazer por minha causa, estou apavorada.

— Delta foi o melhor homem que prepararam em Medusa. Ninguém melhor jamais esteve em ação. Eu sei disso. Eu vi.

— É um dos aspectos, e me condicionei a viver com isso. Mas está esquecendo o outro aspecto, Alex. A mente! O que vai acontecer com sua mente?

Conklin fez outra pausa; quando tornou a falar, o tom era pensativo:

— Levarei um amigo... um amigo de todos nós. Mo não vai recusar. Tome cuidado, Marie. Chegou o momento para uma confrontação... e, por Deus, é o que eles vão ter!


 

— Quem é você? —gritou Bourne, num frenesi, agarrando o velho pela garganta e comprimindo-o contra a parede.

— Delta, pare com isso! — ordenou d’Anjou. — Sua voz! As pessoas vão ouvir! E vão pensar que você o está matando! Podem chamar a recepção!

— Posso matá-lo, e os telefones não funcionam!

Jason largou o impostor do impostor, soltou sua garganta, mas agarrou a frente de sua camisa, rasgando-a ao empurrá-lo para uma cadeira.

— A porta! — acrescentou d’Anjou, a voz firme, irritada. — Ponha no lugar da melhor forma que puder, pelo amor de Deus. Quero sair vivo de Pequim e cada segundo com você diminui minhas perspectivas. A porta!

Meio enlouquecido, Bourne virou-se bruscamente, pegou a porta arrombada e empurrou-a para a moldura, ajustando nos lados e empurrando para o lugar com um chute. O velho massageava a garganta e de repente tentou se levantar de um pulo.

— Non, mon ami! — disse o Francês, bloqueando-o. — Fique onde está. Não se preocupe comigo, apenas com ele. Pode estar certo de que ele é realmente capaz de matá-lo. Em sua raiva, ele não tem o menor respeito pelos anos áureos. Mas como estou quase chegando lá, eu tenho.

— Raiva? Isto é uma afronta! — balbuciou o velho, tossindo as palavras. — Lutei em El Alamein e juro que lutarei de novo agora!

O velho tentou de novo sair da cadeira, e d’Anjou tornou a empurrá-lo de volta, enquanto Jason se aproximava.

— Ah, o britânico estoicamente heróico — comentou o Francês. — Pelo menos teve a cortesia de não dizer Agincourt.

— Pare com essas besteiras! — berrou Bourne, empurrando d’Anjou para o lado e inclinando-se sobre a cadeira, pondo as mãos nos braços e comprimindo o velho contra o assento. — Diga-me onde ele está e depressa, ou pode desejar nunca ter saído de El Alamein!

— Onde está quem, seu maluco?

— Você não é o homem lá de baixo! Não é Joseph Wadsworth subindo para o quarto 325!        

— Este é o quarto 325 e eu sou Joseph Wadsworth! Brigadeiro, reformado, Corpo Real de Engenharia!

— Quando se registrou?

— Na verdade, fui poupado desses detalhes — respondeu Wadsworth, altivamente. — Como hóspede oficial do governo, gozo de certas cortesias. Fui acompanhado pela alfândega e trazido diretamente para o quarto. E devo dizer que o serviço de quarto é péssimo... afinal, não estamos no Connaught... e o telefone não funciona.

— Perguntei quando!

— Ontem à noite. Mas como o avião atrasou seis horas, acho que deveria dizer esta madrugada.

— Quais eram as suas instruções?

— Creio que isso não é de sua conta.

Bourne tirou a espátula de latão do cinto e encostou a ponta afiada na garganta do velho.

— É, sim, se quer sair vivo desta cadeira.

— Oh, Deus, você é mesmo um louco!

— Está absolutamente certo, e não tenho muito tempo para sanidade. Na verdade, não tenho tempo nenhum. As instruções!

— São bastante inofensivas. Deveriam vir me buscar por volta de meio-dia e já passa das três. Pode-se presumir que o governo da República Popular não dá muita atenção ao relógio, da mesma forma que sua empresa aérea.

D’Anjou tocou no braço de Bourne, murmurando:

— O avião das onze e meia. Ele é a isca e não sabe de nada.

— Então o seu Judas está em outro quarto — respondeu Jason. — Tem de estar!

— Não diga mais nada. Ele será interrogado. — Com súbita e inesperada autoridade, D’Anjou empurrou Bourne para o lado e falou no tom impaciente de um oficial superior: — Pedimos desculpa pela inconveniência, Brigadeiro. Este é o terceiro quarto que arrombamos... e descobrimos o nome de cada ocupante para um interrogatório de choque.

— Como assim? Não estou entendendo.

— Alguém entre quatro hóspedes neste andar contrabandeou narcóticos no valor de mais de cinco milhões de dólares. Como não foram os três primeiros, já sabemos quem é o nosso homem. Sugiro que faça a mesma coisa que os outros. Diga que o seu quarto foi arrombado por um bêbado furioso, revoltado com as acomodações... é o que eles estão dizendo. Há muita coisa acontecendo por aqui e é melhor não ficar sob suspeita, nem mesmo por associação indevida. O governo daqui muitas vezes reage com exagero.

— Eu não gostaria que isso acontecesse — balbuciou Wadsworth. — A pensão já é bastante pequena e mal dá para sobre viver. Isso me prejudicaria muito.

— A porta, Major — ordenou d’Anjou, dirigindo-se a Bourne. — Cuidado. Tente mantê-la de pé.

Virando-se de novo para o inglês, ele acrescentou:

— Levante-se e segure a porta, Brigadeiro. Basta deixá-la encostada e nos dar vinte minutos para pegar nosso homem. Depois, pode fazer o que bem quiser. Não se esqueça, um bêbado num acesso de raiva. Para o seu próprio bem.

— Está bem, está bem. Um bêbado. Num acesso de raiva.

— Vamos embora, Major.

Lá fora, no corredor, eles pegaram as bolsas e se encaminharam rapidamente para a escada.

— Depressa! — disse Bourne. — Ainda há tempo. Ele tem de mudar... eu teria de fazê-lo! Vamos vigiar as entradas, os pontos de táxi, escolher os dois lugares mais lógicos... ou os mais ilógicos. Ficaremos neles, comunicando-nos por sinais.

— Primeiro, ainda há duas portas — interrompeu-o d’Anjou, ofegante. — Neste corredor. Aja depressa. Arrombe-as, gritando palavras insultuosa a voz engrolada.

— Está falando sério?

— Claro que estou, Delta. Como já constatamos, a explicação é perfeitamente plausível, e o embaraço vai limitar qualquer investigação formal. A gerência certamente persuadirá nosso brigadeiro a ficar de boca fechada. Eles poderiam perder seus bons empregos. Vamos, depressa! Escolha a porta e faça o trabalho!

Jason parou na porta seguinte, à direita. Preparou-se, depois arremeteu em sua direção, batendo com o ombro no frágil painel superior. A porta foi arrombada.

— Madad demaa! — gritou uma mulher em hindi, o sári baixado nos pés.

— Kyaa baat ha — berrou um homem nu, saindo do banheiro e cobrindo apressadamente os órgãos genitais.

Os dois ficaram olhando aturdidos para o intruso desvairado, que cambaleou com os olhos desfocados, derrubando as coisas na cômoda e gritando com voz áspera:

— Hotel nojento! Os banheiros não funcionam, os telefones não funcionam! Nada funciona... Ei, este não é o meu quarto! Dexxculpem!

Bourne saiu, batendo a porta.

— Foi ótimo. Eles tinham problemas com a fechadura. Mais uma, depressa. Esta! — D’Anjou apontou para uma porta à esquerda. — Ouvi risos lá dentro. Duas vozes.

Jason tornou a arrombar uma porta, rugindo sua queixas de bêbado. Em vez, de deparar com dois hóspedes aturdidos, no entanto, ele encontrou um jovem casal, nus da cintura para cima, cada um com seu cigarro feito à mão, tragando fundo, os olhos vidrados.

— Seja bem-vindo, vizinho — disse o jovem americano, a dicção precisa, embora a voz estivesse acelerada. — Não deixe que os problemas o perturbem assim. Os telefones não funcionam, mas o nosso está ligando. Pode usá-lo, partilhá-lo. Só não deve é se manter tão tenso.

— O que vocês estão fazendo em meu quarto? — berrou Jason, parecendo ainda mais embriagado, engrolando a voz de tal maneira que as palavras eram quase ininteligíveis.

— Se este é o seu quarto, machão — interveio a moça, mexendo-se na cadeira — estava se divertindo com coisas muito íntimas, ao contrário de nós.

Ela soltou uma risadinha.

— Oh, Deus, vocês estão drogados!

— E não use o nome do Senhor em vão — protestou o rapaz. Você está no maior porre.

— Não acreditamos no álcool — acrescentou a moça. — Produz hostilidade. Aflora à superfície, como os demônios de Lúcifer.

— Trate de se desintoxicar, vizinho — continuou o rapaz, em tom jovial. — E depois passe a consumir o saudável fumo. Vai levá-lo a campos em que tomará a encontrar sua alma...

Bourne saiu apressado do quarto, bateu a porta e pegou o braço de d’Anjou.

— Vamos embora! — Perto da escada, acrescentou: — Se a história que você contou ao brigadeiro circular, aqueles dois vão passar os próximos vinte anos cuidando de ovelhas na Mongólia Exterior.

A tendência chinesa para a vigilância atenta e a segurança intensa exigia que o hotel do aeroporto tivesse uma única entrada grande para os hóspedes, na frente, e uma segunda para os empregados, no lado. Esta era vigiada por guardas uniformizados, que verificavam os documentos de todos, revistavam bolsas, sacolas e bolsos estufados dos empregados que deixavam o trabalho. A ausência de familiaridade entre os guardas e os empregados sugeria que os primeiros eram trocados com freqüência, aumentando a distância entre subornados e subornadores em potencial.

— Ele não vai correr qualquer risco com os guardas — comentou Jason, depois de passarem pela saída dos empregados, as bagagens revistadas apressadamente, sob a alegação de que estavam atrasados para pegar um avião. — Parece que estão atentos para pegar qualquer um que roube uma asa de galinha ou um sabonete.

— E parece também que detestam intensamente os que

trabalham aqui — acrescentou d’Anjou. — Mas por que tem tanta certeza de que o homem ainda se encontra no hotel? Ele conhece Pequim. Poderia pegar um táxi para outro hotel, outro quarto.

— Sem ver a maneira como ele fez no avião, eu lhe disse isso. Ele não admitiria. Eu não admitiria. Ele quer liberdade para circular sem ser reconhecido ou seguido. Precisa disso, para sua proteção.

— Se é esse o caso, poderiam estar vigiando seu quarto neste momento. Com os mesmos resultados. Saberiam como ele é.

— Se fosse eu... e isso é tudo o que tenho para me basear... ele não estaria lá. Tomou providências para se instalar em outro quarto.

— Está se contradizendo — protestou o Francês, enquanto se aproximavam da entrada apinhada do hotel. — Disse que ele receberia instruções pelo telefone. Quem quer que ligue para o quarto que combinaram, certamente não vai falar com o chamariz, não vai falar com Wadsworth.

— Se os telefones estiverem funcionando... uma situação que é favorável a nossos Judas, diga-se de passagem... é muito simples transferir as ligações de um quarto para outro. Basta inserir um plugue, se é uma mesa telefônica primitiva, ou alterar a programação, se é computadorizada. Não é tão difícil. Basta alegar uma reunião de negócios, velhos amigos que se encontram no avião... pense o que achar melhor... ou simplesmente não dar explicação alguma, o que provavelmente é o melhor.

— Não é possível — declarou d’Anjou. — O cliente aqui em Pequim alertaria as telefonistas. Ele seria localizado através da mesa.

— É uma coisa que ele jamais faria.

Bourne empurrou o Francês pela porta giratória, saindo para a calçada, atravancada por turistas confusos, tentando arrumar transporte. Passando por uma fila de ônibus pequenos e enferrujados e táxis antigos encostados ao meio-fio, Jason continuou:

— É um risco que ele não pode correr. O cliente de seu comando precisa manter o máximo de distância entre os dois. Não pode haver a menor possibilidade de se descobrir uma ligação. Isso significa que tudo está limitado a um círculo mínimo, uma elite, sem contatos com telefonistas, sem chamar atenção para ninguém, muito menos para seu comando. Também não vão se arriscar a vaguear pelo hotel. Ficarão à distância de seu comando, deixarão que ele tome a iniciativa. Há muitos agentes secretos por aqui. Alguém desse círculo de elite poderia ser reconhecido.

— Os telefones, Delta. Por tudo o que ouvimos, não estão funcionando. O que ele pode fazer nesse caso?

Jason franziu o rosto enquanto andava, como se tentasse recordar o irrecordável.

— O tempo está do seu lado, outro ponto favorável. Deve ter instruções secundárias, caso não seja procurado dentro de um prazo determinado depois da chegada... por quaisquer motivos... e podem ser muitas, levando-se em consideração as precauções que eles precisam adotar.

— Nesse caso, ainda estariam vigiando-o, não é? Estariam esperando em algum lugar lá fora para pegá-lo, não é mesmo?

— Exatamente. E ele sabe disso. Tem de passar por eles e chegar a seu destino sem ser visto. É a única maneira de manter o controle. A sua primeira providência.

D’Anjou segurou o cotovelo de Boume.

— Então acho que acabei de localizar um dos vigias.

— Como?

Jason virou a cabeça, olhando para o Francês e passando a andar mais devagar.

— Continue andando — ordenou d’Anjou. — Siga na direção daquele caminhão, o que está quase no meio da rua, com o homem na escada.

— Já vi — murmurou Bourne. — É o serviço de conserto telefônico.

Permanecendo anônimos na multidão, eles se aproximaram do caminhão.

— Levante os olhos. Pareça interessado. Depois olhe para a esquerda. O furgão bem à frente do primeiro ônibus. Está vendo?

Jason via e compreendeu no mesmo instante que o Francês estava certo. O furgão era novo e pintado de branco, com vidros escuros nas janelas. Se não fosse pela cor, poderia ser o furgão que pegara o assassino em Shenzen, na fronteira de Lo Wu. Bourne começou a ler os caracteres chineses na porta.

— Niao Jing Shan... Por Deus, é o mesmo! O nome não importa... pertence a um santuário de pássaros, o Jing Shan! Em Shenzen era o Chutang, aqui tem outro nome. Como percebeu?

— O homem na janela aberta, a última deste lado. Não pode vê-lo muito claramente daqui, mas ele está observando a entrada do hotel. E de certa forma é uma contradição... para um empregado de uma reserva de pássaros.

— Por quê?

— É um oficial do Exército e de alta patente, a julgar pelo corte da túnica e a óbvia qualidade superior do tecido. O glorioso Exército do Povo está agora recrutando garças para as suas tropas de choque? Ou se trata de um homem ansioso esperando por alguém, que recebeu a ordem de localizar e seguir, usando uma cobertura relativamente aceitável, prejudicada por um ângulo de visão que exige uma janela aberta?

— Não posso ir a parte algum sem Eco — disse Jason Bourne, o antigo Delta, o flagelo da Medusa. — Santuários de pássaros... puxa, é bonito! Uma tremenda cortina de fumaça. Remota, pacífica. Um disfarce sensacional.

— Essencialmente chinês, Deita. A máscara justa encobre o rosto injusto. As parábolas confucianas já avisavam.

— Não é disso que estou falando. Lá em Shenzen, em Lo Wu, quando perdi o seu pupilo pela primeira vez, ele foi apanhado por um furgão... as janelas com vidros escuros... que também pertencia a um santuário de pássaros do governo.

— Como, você disse, um excelente disfarce.

— É mais do que isso, Eco. é alguma espécie de marca ou identificação.

— Os pássaros são reverenciados na China há séculos — comentou d’Anjou, olhando para Jason com expressão perplexa. — Sempre foram apresentados em suas grandes obras de arte, nas peças de seda. São considerados iguanas para os olhos e o paladar.

— Nesse caso, poderiam ser um meio para algo muito mais simples, muito mais prático.

— Como assim?

— Os santuários de pássaros são enormes reservas. Ficam abertos ao público, mas sujeitos aos controles do governo, como acontece em toda parte.

— Onde está querendo chegar, Delta?

— Num país em que quaisquer dez pessoas que se opõem à linha oficial têm medo de serem vistas juntas, qual o melhor lugar para encontros do que uma reserva natural, que geralmente se estende por quilômetros e quilômetros? Não há escritórios, casas ou apartamentos sendo vigiados, não há telefones grampeados ou vigilância eletrônica. Apenas inocentes observadores de pássaros, numa nação de amantes dos pássaros, cada um com um passe oficial que lhe permite a entrada mesmo quando o santuário está oficialmente fechado... de dia ou de noite.

— De Shenzen a Pequim? Está insinuando uma situação maior do que havíamos julgado

— Não importa, pois não nos diz respeito — murmurou Jason, olhando ao redor. — Só ele nos interessa... Temos de nos separar mas permanecer à vista um do outro. Eu vou para...

— Não precisa! — interrompeu-o o Francês. — Lá está ele!

— Onde?

— Volte atrás. Mais perto do caminhão. Em sua sombra.

— Qual deles?

— O padre afagando a menina — respondeu d’Anjou, de costas para o caminhão, olhando para a multidão na entrada do hotel, o tom amargo. — Um sacerdote... Foi um dos disfarces que o ensinei a usar. Ele mandou fazer em Hong Kong um traje sacerdotal preto, inclusive com uma bênção anglicana costurada na frente, com o nome de um alfaiate de Saville Row. Foi o traje que reconheci. Afinal, fui eu que o paguei.

— Você veio de uma diocese rica.

Bourne ficou estudando o homem. Queria acima de qualquer outra coisa sair correndo e alcançá-lo, subjugá-lo e arrastá-lo para um quarto de hotel, iniciando o caminho de volta para Marie. A cobertura do assassino era boa — mais do que boa — e Jason tentou analisar esse julgamento. Costeletas grisalhas, projetando-se por baixo do chapéu escuro do executor; óculos finos de aros de aço, equilibrados bem baixo no nariz, sobre o rosto lívido. Os olhos eram largos, as sobrancelhas ar-

queadas, ele demonstrava alegria e espanto pelo que via naquela terra estranha. Tudo era obra de Deus, todos eram filhos de Deus, o que estava indicado em sua atração por uma garotinha chinesa, afagando-lhe a cabeça afetuosamente, sorrindo e acenando com a cabeça graciosamente para a mãe. Era mesmo bom, refletiu Jason, com um respeito relutante. O filho da puta irradiava amor. Era evidente em cada gesto, em cada movimento hesitante, em cada olhar dos olhos gentis. Era um clérigo compadecido, um pastor de seu rebanho. E, como tal, no meio de uma multidão, podia ser observado, mas seria instantaneamente descartado por olhos à procura de um assassino.

Bourne lembrou-se de repente. Carlos! O Chacal vestira um traje sacerdotal, as feições morenas latinas por cima do colarinho branco engomado, saindo da igreja em Neuilly-sur-Seine, em Paris. Jason o vira! Haviam se fitado, os olhos se encontraram, cada um sabendo quem era o outro, sem que se dissesse qualquer palavra. Pegue Carlos. Acue Carlos. Caim é por Charlie e Carlos é por Caim! Os códigos explodiam em sua cabeça, enquanto ele corria no encalço do Chacal pelas ruas de Paris... apenas para perdê-lo no tráfego, enquanto um velho mendigo, agachado na calçada, sorria insultuosamente.

Mas ali não era Paris, pensou Bourne. Não havia um exército de velhos agonizantes protegendo aquele assassino. Ele pegaria aquele chacal em Pequim.

— Fique pronto para entrar em ação! — disse d’Anjou, interrompendo os devaneios de Jason. — Ele está se aproximando do ônibus.

— Está lotado

— É justamente essa a vantagem. Ele será o último a embarcar. Quem pode ignorar a súplica de um sacerdote apressado? Uma das minhas lições, é claro.

Novamente o Francês estava certo. A porta do ônibus pequeno e atulhado começou a fechar, interrompida pelo braço inserido do sacerdote, que também espremeu o ombro e obviamente suplicou ao motorista que tornasse a abrir a porta, já que estava preso ali. A porta foi aberta; o assassino embarcou, e a porta foi fechada outra vez.

— É o expresso para a Praça Tian An Men — disse d’Anjou. — Tenho a placa

— Vamos pegar um táxi.

— Não será fácil, Delta.

— Desenvolvi uma técnica.

Bourne afastou-se da sombra do caminhão de conserto telefônico, enquanto o ônibus passava, seguido pelo Francês. Esgueiraram-se pela multidão na frente do hotel do aeroporto e foram andando pela fila de táxi, até o fim. Um último táxi fez a volta e já ia se juntar à fila quando Jason correu para a rua, levantando as mãos, discretamente, O táxi parou e o motorista meteu a cabeça para fora.

— Shemma?

— Wei! — gritou Bourne, correndo para o motorista e estendendo yuans no valor de cinqüenta dólares americanos. Acrescentou que precisava desesperadamente de ajuda e pagaria bem. — Bi yao bangzhu.

— Hao! — exclamou o motorista, pegando o dinheiro. E acrescentou, justificando sua atitude por conta de um turista que subitamente passava mal: — Bingle ba!

Jason e d’Anjou embarcaram. O motorista protestou por haver outro passageiro. Bourne largou mais vinte yuans no banco e o homem se acalmou. Fez a manobra para deixar a fila de táxis e pegou o caminho para sair do complexo do aeroporto.

— Lá na frente tem um ônibus — disse d’Anjou, inclinando-se para a frente e falando ao motorista numa tentativa desajeitada de se expressar em mandarim. — Pode me compreender?

— Sua língua é guanzhou, mas eu entendo.

— Está a caminho da Praça Tian An Men.

— Que portão? — perguntou o motorista. — Que ponte?

— Não sei. Só conheço o número na frente do ônibus. É sete-quatro-dois-um.

— Termina com o número um — disse o motorista. — Portão Tian, segunda ponte, entrada da Cidade Imperial.

— Há algum estacionamento para os ônibus?

— Haverá uma fila de muitos ônibus. Todos lotados. Muita gente. Tian An Men fica apinhada neste ângulo do sol.

— Na estrada, temos que ultrapassar o ônibus de que estou falando, o que nos seria muito favorável, pois gostaríamos de estar em Tian An Men antes de sua chegada. Pode dar um jeito?

— Sem a menor dificuldade — respondeu o motorista, sorrindo. — Os ônibus são velhos e estão sempre enguiçando. Podemos estar lá vários dias antes de eles chegarem ao portão celestial norte.

— Espero que não esteja falando sério — interveio Bourne.

— Claro que não, generoso turista. Todos os motoristas são excelentes mecânicos... quando têm a sorte de localizar seus motores.

O motorista riu desdenhosamente e pisou o acelerador. Três minutos depois eles passaram pelo ônibus que transportava o assassino. E quarenta e seis minutos depois chegaram à ponte de mármore branco esculpido sobre a água corrente de um fosso artificial na frente do enorme Portão da Paz Celestial, onde os líderes da China se exibiam na plataforma ampla por cima, aprovando os desfiles de instrumentos de guerra e morte. Além do portão com denominação tão imprópria fica uma das.mais extraordinárias realizações humana de todos os tempos. A Praça Tian An Men. O vórtice eletrizante de Pequim.

O que primeiro impressiona o visitante é a imponência de sua vastidão, depois a imensidão arquitetônica do Grande Palácio do Povo, à direita, onde as áreas de recepção podem acomodar até três mil pessoas. O salão de banquetes tem capacidade para mais de cinco mil pessoas sentadas, na enorme “sala de conferências” cabem dez mil pessoas e sobra espaço. No lado oposto do Portão, estendendo-se para as nuvens, há uma torre de pedra de quatro lados, um obelisco montado sobre um terraço de dois andares, com balaustrada de mármore, tudo rebrilhando ao sol, enquanto nas sombras lá embaixo, na gigantesca base da estrutura, estão esculpidas as lutas e triunfos da revolução de Mao. É o Monumento aos Heróis do Povo, Mao ocupando o primeiro lugar no panteão. Há outros prédios, outras estruturas — memoriais, museus, portões e bibliotecas — até onde a vista pode alcançar. Mas, acima de tudo, o olho se impressiona com a vastidão compulsiva do espaço aberto. Espaço e pessoas... e para os ouvidos há algo mais, totalmente inesperado. Uma dúzia dos maiores estádios do mundo, todos ofuscando o Coliseu de Roma, podem ser colocados dentro da Praça Tian An Men, sem completar o espaço; centenas de milhares de pessoas podem vaguear pelas áreas abertas e ainda deixar espaço para outras centenas de milhares. Mas há a ausência de um elemento que não faltaria na arena sangrenta de Roma, muito menos tolerada nos grandes estádios contemporâneos do mundo. O som; mal existe, apenas uns poucos decibéis acima do silêncio, entremeado pelas notas suaves de campainhas de bicicletas. O silêncio é a princípio pacífico e depois assustador. É como se um enorme e transparente domo geodésico fosse baixado sobre uma centena de acres, enquanto uma ordem silenciosa, mas compreendida, de um outro reino informa repetidamente aos que estão lá embaixo que se encontram numa catedral. E antinatural, irreal, mas não há hostilidade contra a voz inaudível, apenas aceitação... e isso é ainda mais assustador. Especialmente quando se observa as crianças quietas.

Jason observou essas coisas rapidamente, imparcialmente. Pagou ao motorista a quantia marcada no taxímetro e transferiu sua concentração para o objetivo e os problemas que ele e d’Anjou tinham pela frente. Por algum motivo, talvez por ter recebido um telefonema ou porque optara pelas instruções secundárias, o comando estava a caminho da Praça Tien An Men. A pavana começaria com a sua chegada, os passos lentos da dança cautelosa aproximando mais e mais o assassino do representante de seu cliente, com a pressuposição de que o cliente permaneceria fora de vista. Mas não haveria qualquer contato até o impostor estar convencido de que o ponto de encontro se achava limpo. Portanto, o “sacerdote” efetuaria a sua própria vigilância, circulando o ponto de encontro, à procura de possíveis sentinelas armados. Pegaria um guarda, talvez dois, pressionando-os com a ponta de uma faca ou comprimindo um revólver em suas costelas, a fim de arrancar a informação de que precisava; uma falsa expressão nos olhos lhe revelaria que a conferência era um prelúdio para a execução. Finalmente, se tudo parecesse em ordem, ele obrigaria um guarda, sob a ameaça de um revólver, a se aproximar do representante do cliente e lhe apresentar seu ultimato: o cliente em pessoa deveria aparecer e avançar para a rede do assassino. Qualquer outra coisa era inaceitável; a figura central, o cliente, tinha de ser o ponto de equilíbrio fatal. Um segundo ponto de encontro seria acertado. O cliente chegaria primeiro e, ao menor sinal de uma armadilha, seria liquidado.

Era assim que Jason Bourne agiria. E o comando também faria a mesma coisa, se tivesse a metade de um cérebro na cabeça.

O ônibus de número 7421 rolou letargicamente para o final da fila de veículos que desembarcava passageiros. O assassino vestido de sacerdote saltou, ajudando uma mulher idosa a descer para a calçada, afagando-lhe a mão e acenando com a cabeça, numa gentil despedida. Então virou-se, encaminhou-se apressado para a traseira do ônibus e desapareceu no outro lado.

— Fique dez metros atrás e observe-me — disse Jason. — Faça tudo o que eu fizer. Quando eu parar, você pára; quando eu virar, você vira. Fique no meio da multidão. Vá de um grupo para outro, mas cuide para que sempre haja pessoas ao seu redor.

— Tome cuidado, Delta. Ele não é um amador.

— Eu também não sou.

Bourne correu para a traseira do ônibus, parou e o contornou lentamente, sentindo o calor e os vapores do motor. O padre se encontrava a cerca de cinqüenta metros de distância, e o traje preto era como um farol escuro ao sol nevoento. Com ou sem multidão, era fácil segui-lo. A cobertura do comando era aceitável, sua encenação ainda mais; o problema é que em quase todas as coberturas havia sempre um risco gritante, mas irreconhecível. Era na limitação desses riscos que os melhores se distinguiam dos que eram apenas ótimos. Profissionalmente, Jason aprovava a posição clerical, mas não a cor clerical. Um sacerdote católico não podia dispensar o preto, ao contrário de um vigário anglicano; um cinza firme sob o colarinho branco era perfeitamente aceitável. O cinza se desvanecia ao sol, o que já não acontecia com o preto.

Subitamente, o assassino afastou-se da multidão e foi para trás de um soldado chinês que tirava fotografias, a câmara à altura dos olhos, virando a cabeça incessantemente. Bourne compreendeu. Não se tratava de um recruta insignificante, de licença em Pequim; ele era muito maduro, o uniforme muito bem cortado... como d’Anjou comentara a respeito do oficial do Exército no furgão. A câmara era um artifício evidente para esquadrinhar as multidões; o ponto de encontro inicial não estava muito distante. O comando, agora desempenhando o seu papel a todo vapor, pôs a mão direita paternalmente no ombro esquerdo do soldado. A mão esquerda estava invisível, mas o casaco preto preenchia o espaço entre os dois... uma arma fora comprimida contra as costelas do militar. O chinês ficou imóvel, a expressão estóica, mesmo em seu pânico. Moveu-se com o assassino, o comando agora segurando seu braço e dando ordens. Abruptamente, o soldado inclinou-se, as mãos no lado esquerdo, logo se recuperou e sacudiu a cabeça; a arma golpeara com força suas costelas. Ele obedeceria às ordens ou morreria na Praça Tian An Men. Não havia meio-termo.

Bourne virou-se e abaixou-se para amarrar um cordão de sapato perfeitamente firme, pedindo desculpas aos que vinham por trás. O assassino verificara seu flanco traseiro; a ação evasiva era indispensável. Jason levantou-se. Onde estava ele? Onde estava o impostor? Ali! Jason ficou aturdido; o comando largara o soldado. Por quê? O chinês corria agora pela multidão, gritando, os gestos frenéticos, e de repente desabou ao chão; um instante depois, pessoas excitadas e falando sem parar se concentravam em torno do corpo inconsciente.

Um desvio! Trate de vigiá-lo! Jason avançou rapidamente, sentindo que era o momento oportuno: Não fora um revólver, mas uma agulha... não comprimindo, mas perfurando o tórax do soldado. O assassino se livrara de um protetor; procuraria por outro e talvez por um terceiro. O roteiro que Bourne previra estava sendo posto em prática. E como a concentração do assassino em busca da próxima vítima era total, aquele era o momento apropriado! Agora! Jason sabia que podia dominar qualquer pessoa no mundo com um golpe paralisante nos rins, especialmente um homem cuja menor preocupação era um ataque contra a sua pessoa... pois a presa era que estava atacando, com um empenho absoluto. Bourne encurtou a distância que o separava do impostor. Quinze metros, doze, dez, nove... ele passou de um grupo para outro... o “sacerdote” de traje preto estava ao seu alcance. Poderia capturá-lo. Marie!

Um soldado. Outro soldado! Mas agora, em vez de agressão, houve comunicação. O militar acenou com a cabeça e gesticulou para a esquerda. Jason olhou, atordoado. Um chinês baixo, à paisana, segurando uma pasta oficial, estava parado na base de uma larga escadaria de pedra, que levava à entrada de um enorme prédio, com colunas de granito por toda parte, sustentando dois telhados gêmeos de pagodes. Ficava logo atrás do Monumento aos Heróis, os caracteres esculpidos nas portas enormes proclamando que era o Memorial do Presidente Mao. Duas filas subiam pelos degraus, e guardas separavam os grupos individuais. O civil estava entre as duas filas, e a pasta era um símbolo de autoridade; deixavam-no em paz. Subitamente, sem qualquer indicação de que tomaria tal iniciativa, o assassino alto agarrou o braço do soldado, impelindo-o à sua frente. O militar empertigou as costas, empinou os ombros; um revólver fora comprimido contra sua espinha, o gesto acompanhado por uma ordem expressa.

Enquanto a confusão aumentava, as pessoas e os guardas correndo na direção do primeiro soldado, inconsciente, o assassino e seu cativo se encaminharam para o civil na escadaria do Memorial de Mao. O homem estava com medo de tomar uma iniciativa, e novamente Bourne compreendeu. Aqueles homens eram conhecidos do assassino; estavam no núcleo do círculo de elite que levava ao cliente do assassino... e esse cliente estava perto. Não eram meros asseclas; depois que apareciam, as figuras menores passavam a ter importância ainda menor, pois eram homens que raramente se expunham. O desvio de atenção, reduzido agora a um distúrbio quase insignificante, pois a polícia controlara rapidamente a multidão e removera o corpo, proporcionara ao impostor os segundos de que precisava para controlar a corrente que levava ao cliente. O soldado sob seu domínio morreria se desobedecesse, e com um único disparo, qualquer atirador relativamente competente poderia matar o homem junto aos degraus. O encontro seria efetuado em duas etapas; enquanto controlasse a segunda, o assassino estaria perfeitamente disposto a seguir em frente. O cliente se encontrava obviamente em algum lugar no interior do vasto mausoléu e não sabia o que acontecia lá fora, da mesma forma que um mero assecla não se atreveria a acompanhar os superiores para a área da conferência.

Não havia mais tempo para analisar, e Jason sabia disso. Tinha de agir. E depressa. Precisava entrar no monumento a Mao Tsé-tung e observar, esperar que a reunião fosse concluída de uma forma ou de outra... e a possibilidade repulsiva de ser forçado a proteger o assassino aflorou-lhe à mente. Contudo, estava no reino das probabilidades, e seu único trunfo era o fato de o impostor ter seguido um roteiro que ele próprio poderia criar. E se a conferência fosse pacífica, seria apenas uma questão de seguir o assassino, inevitavelmente exultante pelo sucesso de sua tática e pelo que o cliente lhe entregasse... e capturar um supremo egocêntrico, que de nada desconfiava, na Praça Tian An Men.

Bourne virou-se, procurando por d’Anjou. O Francês estava à beira de um grupo controlado de turistas; acenou com a cabeça, como se lesse os pensamentos de Delta. Apontou para o chão e depois fez um círculo com o dedo indicador. Era um sinal silencioso dos tempos da Medusa. Significava que ele permaneceria onde estava, mas se tivesse que se deslocar, continuaria à vista daquele local específico. Era o suficiente. Jason passou por trás do assassino e seu prisioneiro e atravessou diagonalmente a multidão, cruzando o espaço aberto para a fila no lado direito da escadaria e subindo até o guarda. Falou em tom suplicante, num mandarim polido:

— Alto Oficial, estou muito embaraçado. Fiquei tão absorvido nos caracteres no Monumento do Povo que perdi o meu grupo, que passou por aqui há poucos minutos.

— Fala muito bem a nossa língua — comentou o atônito guarda, aparentemente acostumado aos sons estranhos de línguas que não conhecia e não estava interessado em conhecer. — E é muito cortês.

— Sou apenas um professor mal pago do Ocidente que sente um amor profundo por sua grande nação, Alto Oficial.

O guarda soltou uma risada.

— Não sou tão alto assim, mas nossa nação é mesmo grande. Minha filha usa blue jeans na rua.

— Como?

— Não é nada. Onde está a identificação de seu grupo?

— Onde está o quê?

— A etiqueta com o nome que deve ficar por fora das roupas.

— Estava sempre caindo — respondeu Bourne, sacudindo a cabeça, com expressão desamparada. — Não ficava pregada de jeito nenhum. Devo ter perdido.

— Quando alcançar seu grupo, procure o guia e peça outra.

Siga em frente. Entre atrás da fila no alto dos degraus. Alguma coisa está acontecendo. O próximo grupo talvez tenha de esperar. E poderia perder a sua excursão.

— Há algum problema?

— Não sei. O homem com a valise oficial nos dá ordens. Acho que ele conta os yuans que se pode ganhar aqui, pensando que este lugar sagrado deve ser como o trem subterrâneo de Pequim.

— É muito gentil.

— Depressa, senhor.

Bourne subiu os degraus apressadamente, abaixando-se por trás da multidão, mais uma vez amarrando um cordão de sapato já bem firme, inclinando a cabeça para observar o progresso do assassino, O impostor falou baixinho ao civil, com o soldado ainda sob o seu domínio... mas alguma coisa era estranha. O chinês baixo de roupa escura acenou com a cabeça, mas seus olhos não se fixavam no impostor; em vez disso, focalizavam algum ponto além do comando. Onde? O ângulo de visão de Jason não era dos melhores. Mas não importava, o roteiro estava sendo seguido, o cliente alcançado nas condições do assassino.

Jason passou pelas portas para a semi-escuridão, impressionado com todos à sua frente pelo súbito aparecimento da enorme escultura de mármore branco de um Mao sentado, tão alto e tão imponente que quase se soltava um grito de espanto em sua presença. Os efeitos teatrais eram evidentes. Os jatos de luz se incidiam sobre o mármore delicado e aparentemente translúcido criavam um efeito etéreo, isolando o gigantesco vulto sentado na tapeçaria de veludo por trás e da escuridão ao redor. A estátua enorme, com olhos penetrantes, parecia viva e cons ciente.

Jason desviou os olhos, procurando por corredores e portas. Não havia nenhum. Era um mausoléu, um palácio dedicado ao santo de uma nação. Mas havia colunas, blocos largos e altos de mármore, proporcionando pontos de isolamento. O ponto de encontro poderia ser nas sombras por trás de qualquer coluna. Ele esperaria. Estaria em outras sombras, atento.

Seu grupo entrou no segundo grande salão, que era ainda mais espetacular do que o primeiro. Bem na frente havia um caixão de cristal contendo o corpo do Presidente Mao Tsé-tung envolto pela bandeira vermelha, o cadáver pálido em sereno repouso.. os olhos fechados, no entanto, davam a impressão de que a qualquer momento poderiam se abrir, contemplando as pessoas com uma expressão furiosa de desaprovação. Havia flores cercando o sarcófago levantado e duas fileiras de pinheiros de um verde-escuro, em enormes vasos de cerâmica, nas paredes opostas. Outra vez os jatos de luz executavam uma dramática sinfonia de cor, bolsos de escuridão penetrados por raios cruzados, derramando-se sobre os brilhantes amarelos, vermelhos e azuis das flores.

Um tumulto em algum lugar, no primeiro salão, perturbou por um instante o silêncio intimidado da multidão, mas acabou tão depressa quanto começou. Como o último turista na fila, Bourne afastou-se sem ser notado pelos outros. Esgueirou-se por trás de uma coluna, oculto nas sombras, e espiou pelo outro lado do reluzente mármore branco.

E o que viu deixou-o paralisado, enquanto uma dúzia de pensamentos se chocavam em sua cabeça... acima de tudo a palavra armadilha! Não havia nenhum grupo seguindo o seu. Fora o último a ser admitido — e ele a última pessoa a entrar no mausoléu — antes de as portas maciças serem fechadas. Fora esse o barulho que ouvira... o som das portas fechadas e os lamentos desapontados dos que esperavam lá fora.

Alguma coisa está acontecendo... O próximo grupo talvez tenha de esperar... Um guarda gentil na escada lá fora.

Oh, Deus, desde o início fora uma armadilha! Todos os movimentos foram calculados! Desde o início! A informação paga numa ilha sob chuva forte, as passagens de avião quase impossíveis, a primeira visão do assassino no aeroporto... um matador profissional capaz de um disfarce muito melhor, os cabelos óbvios demais, um brigadeiro reformado do Corpo Real de Engenharia... tão ilogicamente lógico! Tudo certo, o cheiro do embuste tão acurado, tão irresistível! Um militar na janela do furgão, não olhando para ele, mas para os dois! O traje preto de sacerdote... um farol escuro ao sol, pago pelo criador do impostor... tão facilmente avistado, tão facilmente seguido. Oh, Deus, desde o início! E, finalmente, o roteiro cumprido na imensa praça, um roteiro que poderia ter sido escrito pelo próprio Bourne... novamente irresistível para o perseguidor. Uma armadilha invertida: Agarre o caçador enquanto ele espreita sua presa!

Frenético, Jason olhou ao redor. Lá na frente, a distância, havia um poço de raios do sol. As portas de saída ficavam na outra extremidade do mausoléu; eles seriam vigiados, cada turista estudado atentamente ao se retirar.

Passos. Por trás de seu ombro direito. Bourne virou-se para a esquerda, tirando a espátula de latão do cinto. Um vulto de traje cinza de Mao, corte militar, passava cautelosamente pela coluna larga, na semi-escuridão à beira da iluminação dos pinheiros. Estava a menos de dois metros de distância. Empunhava um revólver, o cilindro grosso no cano uma garantia de que a detonação seria reduzida a não mais do que um estalo. Jason efetuou seus cálculos letais de uma maneira que David Webb jamais compreenderia. A lâmina tinha de ser inserida de forma a causar morte instantânea. Nenhum ruído podia escapar da boca do inimigo, enquanto o corpo era puxado para a escuridão.

Ele avançou, os dedos rígidos da mão esquerda comprimindo-se como um torno sobre o rosto do homem, enquanto cravava a espátula em seu pescoço, a lâmina penetrando pelos tendões e a frágil cartilagem para cortar a traquéia. Em um só movimento, Bourne baixou a mão esquerda para pegar o revólver ainda empunhado pelo inimigo e virou o corpo, abaixando-se sob os galhos dos pinheiros ao longo da parede da direita. Escondeu o cadáver nas sombras escuras entre dos enormes vasos que continham as raízes de duas árvores. Rastejou por cima do corpo, empunhando a arma à frente de seu rosto, e esgueirou-se pela parede, na direção do primeiro salão, até um ponto em que podia ver sem ser visto.

Um segundo homem uniformizado passou pelo jato de luz que iluminava a escuridão da entrada para o segundo salão. Parou diante do caixão de cristal de Mao, sob os refletores teatrais, e olhou ao redor. Levou um pequeno rádio para junto do rosto e falou; depois escutou. Cinco segundos mais e sua expressão se tornou de intensa preocupação. Começou a andar depressa para a direita, seguindo o mesmo caminho do primeiro homem. Jason voltou na direção do cadáver, as mãos e joelhos deslizando silenciosamente sobre o mármore. Foi para a beira dos galhos baixos.

O soldado aproximou-se, andando mais depressa, estudando as últimas pessoas na fila da frente. Agora! Bourne levantou-se de um pulo, agarrando-o com uma chave de braço no pescoço, sufocando qualquer som, enquanto o puxava para baixo, sob os galhos, o revólver comprimido contra a carne da barriga do soldado. Puxou o gatilho; o estampido abafado foi como um pequeno estalido, não mais do que isso. O homem deixou escapar um último e violento estertor, e depois ficou inerte.

Ele tinha de sair dali! Se fosse acuado e morto no terrível silêncio do mausoléu, o assassino vaguearia impune e a morte de Marie seria inevitável. Seus inimigos estavam fechando a armadilha invertida. Tinha de inverter a inversão e encontrar algum meio de sobreviver. A fuga mais perfeita é efetuada em etapas, aproveitando qualquer confusão que exista ou possa ser criada.

As Etapas Um e Dois estavam cumpridas. Uma certa confusão já existia, se outros homens estavam sussurrando por rádios. O que se tornava necessário criar era um ponto focal de tumulto, tão violento e inesperado que os homens que o caçavam nas sombras se tomariam os alvos de uma busca súbita e histérica.

Só havia um meio, e Jason não experimentou obscuros sentimentos heróicos na base de posso-morrer-tentando. Tinha de conseguir de qualquer maneira! Tinha de fazer com que desse certo! A sobrevivência era tudo, por razões além de sua pessoa. O profissional estava em seu auge, calmo e determinado.

Bourne levantou-se e avançou por entre os galhos, atravessando o espaço aberto para a coluna à sua frente. Depois correu para trás da coluna seguinte e da outra, a primeira coluna do segundo salão, a dez metros do caixão de cristal dramaticamente iluminado. Esgueirou o corpo em torno do mármore e esperou, os olhos fixos nas portas de entrada.

E aconteceu. Eles aconteceram. O oficial que era o “prisioneiro” do assassino surgiu em companhia do civil baixo, que carregava a pasta oficial. O militar segurava um rádio ao lado do corpo; levantou-o para falar e escutar, depois sacudiu a cabeça, guardou o rádio no bolso direito e tirou o revólver do coldre. O civil acenou com a cabeça uma vez, enfiou a mão por baixo do paletó e tirou um revólver de cano curto. Avançaram na direção do caixão de cristal que continha o cadáver de Mao Tsé-tung, depois olharam um para o outro e começaram a se separar, o primeiro seguindo para a direita, o outro para a esquerda.

Agora! Jason levantou sua arma, mirou rapidamente e disparou. Uma vez! Virou a arma para a direita. Duas vezes! Os estalidos foram como pequenas fagulhas na escuridão, enquanto os dois homens caíam para o sarcófago. Protegendo-se com a beira do seu casaco, Bourne pegou o cilindro quente no cano de seu revólver e girou-o, até desprendê-lo. Restavam cinco balas. Apertou o gatilho, em rápida sucessão. As explosões povoaram o mausoléu, ressoando pelas paredes de mármore, espatifando o cristal do caixão, as balas se cravando no corpo que se contraía espasmodicamente de Mao Tsé-tung, uma penetrando numa testa exangue, outra arrancando um olho.

Sirenes começaram a tocar estridentemente, campainhas pareciam ter enlouquecido, ensurdecendo os ouvidos, enquanto soldados, aparecendo de todos os lados ao mesmo tempo, corriam em pânico para a cena do horrível sacrilégio. Os turistas nas duas filas, sentindo-se acuados à luz assustadora da casa da morte, irromperam em histeria. Em massa, a multidão correu para as portas e a luz do sol, derrubando os que se encontravam no caminho e pisoteando-os. Jason Bourne juntou-se à multidão, espremendo-se para ficar no meio dos outros. Chegando à claridade ofuscante da Praça Tian An Men, ele desceu correndo os degraus.

D’Anjou! Jason correu para a direita, contornando o lado direito da construção de pedra, avançou pelo lado da estrutura em colunas, até chegar à frente. Guardas se esforçavam ao máximo para acalmar as multidões agitadas, ao mesmo tempo em que tentavam descobrir o que acontecera. Um tumulto em grande escala se formava.

Bourne estudou o lugar em que vira d’Anjou pela última vez, depois deslocou os olhos para uma área cercada por grade, onde o Francês poderia logicamente estar. Nada. Ninguém que se parecesse com ele sequer remotamente.

E, de repente, ele ouviu o rangido de pneus a distância,

numa rua à esquerda. Virou-se e olhou. Um furgão com as janelas escuras contornara a calçada isolada por cordas e avançava em alta velocidade para o portão sul da Praça Tian Na Men.

Haviam capturado d’Anjou. Eco se fora.

 

— Qu’est-ce qu’il y a?

— Der coups de feu! Les gardes sont paniqués!

Bourne ouviu os tiros e, correndo, juntou-se ao grupo de turistas franceses, levados por um guia cuja concentração se fixava no caos acontecendo na escadaria do mausoléu. Abotoou o paletó, cobrindo a arma no cinto, e guardou o silenciador perfurado no bolso. Olhando ao redor, voltou rapidamente pela multidão, indo se postar ao lado de um homem mais alto, bem vestido, com uma expressão desdenhosa. Jason sentiu-se grato por haver vários outros homens de altura quase igual à frente dos dois; com alguma sorte e no meio da confusão, poderia passar despercebido. Lá em cima, no alto dos degraus do mausoléu, as portas haviam sido parcialmente abertas. Homens de uniforme corriam de um lado para outro, ao longo da escada. Era evidente que a liderança mergulhara no caos e Jason sabia por quê. Fugira, simplesmente desaparecera, não querendo ter qualquer envolvimento nos terríveis acontecimentos. Mas Jason só estava interessado agora no assassino. Iria ele aparecer? Ou teria encontrado Eco, capturado pessoalmente o seu criador e partido em sua companhia no furgão, convencido de que o Jason Bourne original se encontrava acuado, um segundo cadáver improvável no mausoléu profanado?

— Qu’est-ce que c’est? — perguntou Jason, dirigindo-se ao francês alto e bem vestido ao seu lado.

— Outro atraso lamentável, sem dúvida — respondeu o homem, num sotaque parisiense um tanto efeminado. — Este lugar é um hospício, e minha tolerância está se esgotando. Vou voltar para o hotel.

— E pode fazer isso? — Bourne elevou seu francês de classe média para um decente université. Significava muito para um parisiense. — Afinal, temos permissão para deixar a excursão? Estão sempre nos dizendo que devemos permanecer juntos.

— Sou um executivo, não um turista. Esta “excursão”, como você a chama, não constava da minha agenda. Tive a tarde de folga... as pessoas por aqui demoram interminavelmente para tomar decisões... e pensei em aproveitar para visitar alguns lugares. Mas não havia nenhum motorista que falasse francês disponível. O recepcionista incluiu-me neste grupo. A guia é uma estudante de literatura francesa e fala como se tivesse nascido no século XVII. E não tenho a menor idéia do que é esta excursão.

— É a excursão de cinco horas —explicou Jason, acuradamente, lendo os caracteres chineses impressos na etiqueta de identificação pregada na lapela do homem. — Depois da Praça Tian An Men, vamos visitar os túmulos da Dinastia Ming e em seguida contemplaremos o pôr-do-sol da Grande Muralha.

— Mas já vi a Grande Muralha! Foi o primeiro lugar a que me levaram todos aqueles doze burocratas da Comissão de Comércio, falando sem parar, por intermédio do intérprete, que era uma prova de sua permanência. Merda! Se a mão-de-obra não fosse tão incrivelmente barata e os lucros tão extraordinários...

— Também sou um executivo, mas estou por alguns dias como turista. Minha linha é a importação de vime. Qual é a sua, se me permite perguntar?

— Tecidos... o que mais poderia ser? A menos que se considere petróleo, eletrônica, carvão ou perfume... até mesmo vime. — o executivo permitiu-se um sorriso de superioridade e desdém. — Esta gente está sentada sobre a riqueza do mundo e não tem a mais vaga idéia do que fazer com ela.

Bourne estudou atentamente o francês alto. Pensou no Eco

da Medusa e num aforismo gaulês que proclamava que quanto mais as coisas mudavam, mais continuavam as mesmas. As oportunidades vão surgir. Trate de reconhecê-las e aproveitá-las.

— Como eu disse —continuou Jason, enquanto observava o caos na escadaria —, também sou um executivo e estou desfrutando de um pequeno descanso... cortesia do programa de incentivos fiscais do nosso governo para aqueles que aram os campos externos... mas viajei muito pela China e aprendi alguma coisa da língua.

— O vime está indo bem no mercado mundial — comentou o parisiense, sardônico.

— Nossos produtos de qualidade se encontram por toda Côte d’Azur, mas também vendem no norte e no sul. A família Grimaldi é nossa cliente há anos.

Jason não desviava os olhos da escadaria.

— Aceito a correção, meu amigo executivo... nos campos externos.

Pela primeira vez, o francês olhou realmente para Jason.

— E posso lhe dizer outra coisa — acrescentou Bourne. — Não haverá mais visitantes hoje ao túmulo de Mao. E todos os turistas nos grupos próximos serão isolados, talvez detidos.

— Mas por quê?

— Ao que parece, aconteceu alguma coisa terrível lá dentro, e os guardas estão gritando sobre gângsteres estrangeiros... Você disse que foi encaixado no grupo, mas não o integrava realmente?

— Em suma, foi isso mesmo.

— Não acha que é motivo para um mínimo de especulação? Será a detenção, quase que certamente.

— Mas isso é um absurdo!

— Não se esqueça que estamos na China...

— Não é possível! Milhões e milhões de francos estão em jogo! Só estou aqui, nesta horrível excursão, porque...

— Sugiro que vá embora, meu amigo. Diga que saiu para dar uma volta. Dê-me a sua etiqueta de identificação e me livrarei dela para você...

— É isto aqui?

— Seu país de origem e o número do passaporte estão

inscritos aí. Ë assim que controlam seus movimentos quando participa de uma excursão guiada.

— Ficarei lhe devendo eternamente! — exclamou o executivo, arrancando a etiqueta de plástico da lapela. — Se algum dia for a Paris...

— Passo a maior parte do tempo com o príncipe e sua família em...

— Mas é claro! Mais uma vez, meus agradecimentos!

O francês, tão diferente e ao mesmo tempo tão parecido com Eco, afastou-se às pressas, a figura bem vestida se destacando contra o sol nebuloso e amarelado, e encaminhou-se para o Portão Celestial... tão óbvio quanto a falsa presa que levara um caçador a uma armadilha.

Bourne pregou a etiqueta de plástico na lapela e tornou-se um participante da excursão oficial; era o seu passaporte para sair da Praça Tien An Men. Depois que o grupo foi apressadamente desviado do mausoléu para o Grande Palácio, o ônibus passou pelo portão norte e Jason avistou o apoplético executivo francês suplicando à polícia de Pequim que o deixasse passar. Os fragmentos de informações sobre o sacrilégio se ajustavam. A notícia estava se espalhando. Um branco ocidental profanara de maneira terrível o caixão e o corpo sagrado do Presidente Mao. Um terrorista branco de uma excursão, sem a devida identificação nas roupas. Um guarda na escadaria do mausoléu denunciara um homem assim.    

— Eu me lembro — disse a guia da excursão, num francês obsoleto. Ela estava parada junto à estátua de um leão irado, na extraordinária Avenida dos Animais, margeada por enormes réplicas de pedra de felinos, cavalos, elefantes e ferozes bestas míticas, guardando o acesso final aos túmulos da Dinastia Ming. — Mas minha memória falha quando o seu uso de nossa língua se relaciona com minhas reflexões imediatas. E sinto sem dúvida refletida que acabou de conceder essa indulgência.

Uma estudante de literatura francesa e fala como se estivesse no século XVII... Um executivo indignado, agora certamente muito mais indignado.

— Não falei antes porque você estava com os outros e eu não queria sobressair — respondeu Bourne, em mandarim. — Mas vamos falar a sua língua agora.

— Fala muito bem.

— Agradeço. Lembra então que fui encaixado na excursão no último momento?

— O gerente do Hotel Pequim falou com meu superior, mas é claro que me lembro. — A mulher sorriu e deu de ombros. — A verdade é que é um grupo muito grande e só me recordo de entregar o emblema da excursão a um homem alto, que se encontra neste momento diante do meu rosto. Terá de pagar um yuan adicional em sua conta de hotel. Lamento muito, mas o senhor faz parte do programa turístico.

— Tem razão. Sou um executivo que veio aqui para negociar com seu governo.

— Espero que se saia bem — disse ela, com um sorriso malicioso. — Alguns conseguem, outros não.

— O problema é que talvez eu não seja capaz de conseguir coisa alguma — comentou Jason, retribuindo o sorriso. — Falo chinês muito melhor do que leio. Há poucos minutos várias palavras se encaixaram e compreendi que deverei estar no Hotel Pequim para uma reunião dentro de meia hora. Como é possível?

— É questão apenas de encontrar transporte. Escreverei o que precisa e poderá apresentar aos guardas no Dahongmen...

— O Grande Portão Vermelho? — interrompeu Jason. — O que tem as arcadas?

— Isso mesmo. Há ônibus que o levarão de volta a Pequim. Pode se atrasar, mas também isso é costumeiro, pelo que sei, pois os homens do governo também se atrasam.

Ela tirou um bloco do bolso da túnica Mao e depois uma caneta esferográfica muito fina.

— Não serei detido?

— Se for, peça a quem o detiver para chamar o pessoal do governo — disse a guia, escrevendo as instruções em chinês e arrancando a página do bloco.

— Este não é o seu grupo de excursão! — berrou o motorista do ônibus, num mandarim da classe baixa, sacudindo a cabeça e espetando o dedo na lapela de Bourne.

O homem obviamente esperava que suas palavras não cau-

sassem qualquer efeito no turista, por isso compensou-as com gestos exagerados e uma voz estridente. Era também evidente que ele esperava que um dos seus superiores sob as arcadas do Grande Portão Vermelho percebesse como se encontrava alerta. E foi o que aconteceu.

— Qual é o problema? — indagou um soldado bem falante, aproximando-se depressa da porta do ônibus, abrindo caminho através dos turistas por trás de Bourne.

As oportunidades vão surgir...

— Não há problema nenhum — disse Jason bruscamente, com alguma arrogância, em chinês, tirando do bolso o bilhete da guia e pondo na mão do jovem soldado. — A menos que você queira ser o responsável por minha ausência numa reunião urgente com uma delegação da Comissão de Comércio, cujo chefe de equipamentos militares é um tal de General Liang.

— Você fala chinês!

Surpreso, o soldado desviou os olhos do bilhete.

— Eu diria que isso é óbvio. E o General Liang também.

— Não compreendo a sua raiva.

— Talvez compreenda a raiva do General Liang.

— Não conheço nenhum General Liang, senhor, mas também há muitos generais. Não está gostando da excursão?

— Não estou gostando dos idiotas que me disseram que era uma excursão de três horas, quando na verdade é de cinco horas! Se eu perder a reunião por causa da incompetência de alguns, haverá muitos comissários com raiva, inclusive um poderoso general do Exército do Povo, que está ansioso em firmar determinados contratos de compras com a França.

Jason fez uma pausa, levantando a mão, depois apressou-se em acrescentar, a voz mais suave:

— Se, no entanto, eu chegar lá a tempo, certamente elogiarei... pelo nome... quem quer que possa me ajudar.

— Eu o ajudarei, senhor! — exclamou o jovem militar, os olhos brilhando de dedicação. — Esta baleia doente de ônibus pode demorar mais de uma hora e mesmo assim apenas se o miserável motorista conseguir se manter na estrada. Tenho à minha disposição um veículo muito mais rápido e um excelente motorista, que o acompanhará. Eu gostaria de escoltá-lo pessoalmente, mas não seria conveniente deixar o meu posto.

— Também mencionarei o seu empenho pelo dever ao general.

— É meu instinto natural, senhor. Meu nome é...

— Isso mesmo, dê-me seu nome! Escreva neste pedaço de papel!

Bourne sentou no movimentado saguão do Hotel Pequim, ala leste, um jornal parcialmente dobrado cobrindo seu rosto, o lado esquerdo um pouco deslocado, a fim de poder observar as portas que constituíam a entrada. Estava esperando por Jean Louis Ardisson, de Paris. Jason não tivera qualquer dificuldade para descobrir o nome. Vinte minutos antes aproximara-se do balcão de excursões com guias e dissera à recepcionista, em seu melhor mandarim:

— Lamento incomodá-la, mas sou o primeiro intérprete da delegação comercial francesa que está negociando com o governo. Infelizmente, perdi uma de minhas confusas ovelhas.

— Deve ser um ótimo intérprete, pois fala um excelente chinês. O que aconteceu com a sua... ovelha desgarrada?

A mulher se permitira uma risadinha pela frase.

— Não sei direito. Estávamos tomando um café, prestes a repassar sua programação, quando ele olhou para o relógio e disse que falaria comigo mais tarde. Ia sair numa das excursões de cinco horas e aparentemente estava atrasado. Era uma inconveniência para mim, mas sei o que acontece quando os visitantes chegam a Pequim pela primeira vez. Ficam impressionados.

— Acho que tem razão — concordara a recepcionista. — Mas em que podemos ajudá-lo?

— Preciso saber como se escreve corretamente o seu nome, se ele tem um nome no meio ou o nome de batismo... os detalhes específicos que devem constar dos papéis do governo que tenho de preencher para ele.

— Mas como podemos ajudar?

— Ele deixou isto no café. — Jason estendera a etiqueta de identificação do executivo francês. —Não sei se ele conseguiu pegar a excursão.

A mulher rira, enquanto pegava embaixo do balcão a relação das excursões do dia.

— Ele foi informado do local da partida, e a guia tinha uma lista dos integrantes. Essas coisas estão sempre caindo, e certamente ela lhe deu um passe temporário. —A recepcionista pegara o crachá e começara a folhear as páginas, enquanto acrescentava: — Os idiotas que fazem essas etiquetas não valem os poucos yuans que recebem. Temos todos esses regulamentos meticulosos, as regras rigorosas, mas acabamos parecendo tolos por causa de coisas mínimas.

Ela parara de falar de repente, o dedo num registro. Levantara os olhos para Bourne e dissera, suavemente:

— Ah, os espíritos do azar... Não sei se sua ovelha está perdida, mas posso garantir que os seus balidos são muito altos. Ele se julga muito importante e se mostrou bastante antipático. Quando soube que não havia nenhum motorista que falasse francês, achou que era um insulto à honra de sua nação e também à sua pessoal... que era muito mais importante para ele. Aqui está, leia o nome. Não sei pronunciá-lo.

— Muito obrigado — dissera Jason, lendo o nome.

Ele fora para um telefone interno que tinha a indicação de “Inglês” e pedira uma ligação para o quarto do Sr. Ardisson.

— Pode ligar direto, senhor — respondera o telefonista, com um tom de triunfo pela alta tecnologia. — É o quarto um-sete-quatro-três. Acomodações muito boas. Uma ótima vista da Cidade Proibida.

— Obrigado.

Bourne discara. Ninguém atendera. Monsieur Ardisson ainda não voltara e, nas circunstâncias, poderia demorar um longo tempo. De qualquer forma, uma ovelha que se destacava por seus balidos não ficaria em silêncio se a sua dignidade fosse afrontada ou seus negócios corressem algum risco. Jason decidira esperar. Os contornos de um plano começavam a se definir. Era uma estratégia desesperada, baseada em possibilidades, mas tudo o que lhe restava. Ele comprara um jornal francês de semanas antes e sentara, sentindo-se de repente esgotado e desamparado.

O rosto de Marie aflorava a todo instante na imaginação de David Webb, o som de sua voz povoava o ar ao redor, ressoando em seus ouvidos, suspendendo o pensamento e criando uma terrível angústia no centro da testa. A tela de sua mente acabou se apagando, o último lampejo de luz rejeitado pelas ordens bruscas emitidas por uma autoridade fria como gelo: Pare com isso! Não há tempo! Concentre-se no que devemos pensar e em mais nada!

Os olhos de Jason se desgarravam intermitentemente, mas logo voltavam à entrada. A clientela do saguão da ala leste era internacional, uma mistura de línguas, de roupas das avenidas Quinta e Madison, Savile Row, St. Honoré e Via Condotti, além de trajes mais sóbrios das duas Alemanhas e dos países escandinavos. Os hóspedes entravam e saíam das lojas intensamente iluminadas, divertidos e atraídos pela farmácia que vendia apenas medicamentos chineses, acorriam para a loja de artesanato ao lado de um enorme mapa-múndi em relevo na parede. De vez em quando alguém com uma comitiva passava pelas portas, intérpretes subservientes faziam mesuras e traduziam entre autoridades uniformizadas do governo, tentando parecer descontraídas, executivos do outro lado do mundo, cansados, exibiam olhos injetados da viagem e da necessidade de sono, que talvez fosse precedido por algumas doses de uísque. Aquela podia ser a China Vermelha, mas as negociações eram mais antigas do que o capitalismo, e os capitalistas, conscientes de sua fadiga, não tratariam de negócios enquanto não estivessem em condições de pensar direito. Bravo Adam Smith e David Hume!

Lá estava ele! Jean-Louis Ardisson estava sendo escoltado pelas portas por nada menos que quatro burocratas chineses, todos se esforçando ao máximo em apaziguá-lo. Um correu à frente para a loja de bebidas no saguão, enquanto os outros o detinham diante do elevador, falando sem parar, através do intérprete. O comprador voltou com uma sacola de plástico, o fundo esticado e vergando sob o peso de várias garrafas. Houve sorrisos e mesuras, enquanto as portas do elevador se abriam. Jean-Louis Ardisson aceitou a oferenda e entrou, acenando com a cabeça uma vez, enquanto as portas se fechavam.

Bourne permaneceu sentado, observando as luzes, enquanto o elevador subia. Quinze, dezesseis, dezessete. Chegara ao último andar, onde ficava o quarto de Ardisson. Jason levantou e encaminhou-se para os telefones. Olhou para o relógio; podia apenas calcular o tempo, mas um homem nervoso não seguiria devagar para o seu quarto, depois de saltar do elevador. O quarto representava alguma paz, até mesmo o alívio da solidão, depois de várias horas de tensão e pânico. Ser detido para interrogatório pela polícia num país estranho era assustador para qualquer um, mas tornava-se apavorante quando uma língua incompreensível e rostos radicalmente diferentes se acrescentavam ao conhecimento de que o prisioneiro se encontrava num país em que as pessoas quase sempre desapareciam sem explicações. Depois de tal provação, um homem entraria em seu quarto e, sem qualquer ordem específica, desabaria tremendo de medo e exaustão; acenderia um cigarro depois do outro, esquecendo onde deixara o último; tomaria vários tragos de uma bebida forte, engolindo depressa para acelerar o efeito; e pegaria o telefone para partilhar a sua terrível experiência, esperando insconscientemente minimizar os efeitos posteriores de seu terror com essa partilha. Bourne podia permitir que Ardisson desabasse e tomasse tanto vinho ou uísque quanto fosse capaz, mas não podia deixar que usasse o telefone. Não devia haver partilha, nenhuma atenuação do terror. Em vez disso, era preciso aumentar o seu terror, a um ponto em que ele ficaria paralisado, temendo por sua vida se saísse do quarto. Haviam transcorrido quarenta e sete segundos; era o momento de fazer a ligação.

— Alô?

A voz era tensa, esbaforida.

— Vou falar depressa — disse Jason suavemente, em francês. — Fique onde está e não use o telefone. Dentro de exatamente oito minutos baterei em sua porta, duas vezes rapidamente, depois mais uma. Deixe-me entrar, mas não receba nenhuma outra pessoa antes de mim. Especialmente uma criada ou servente.

— Quem é você?

— Um compatriota que precisa falar com você. Para a sua própria segurança. Oito minutos.

Bourne desligou e voltou à poltrona, contando os minutos e calculando o tempo que um elevador levava, com o número usual de passageiros, para ir de um andar para o outro. Num andar específico, trinta segundos eram suficientes para se alcançar qualquer quarto. Seis minutos passaram, e Bourne encaminhou-se para um elevador, onde os números iluminados indicavam que seria o próximo a chegar ao saguão. Oito minutos era o tempo ideal para se preparar um alvo. Seis era melhor, mas passava muito depressa. Oito, no entanto, embora ainda se situando num prazo urgente, proporcionava os momentos adicionais de ansiedade que desgastavam a resistência de um alvo. O plano ainda não estava definido na mente de Bourne. O objetivo, porém, estava cristalizado, absoluto. Era tudo o que lhe restava, e cada instinto em seu corpo de homem de Medusa lhe dizia para persegui-lo. Delta Um conhecia a mente oriental. Sob um aspecto, não variava há séculos. O sigilo valia dez mil tigres, se não mesmo um reino.

Postou-se diante da porta com o número 1743, olhando para o relógio. Oito minutos exatamente. Bateu duas vezes, esperou um instante, bateu de novo. A porta foi aberta, e um chocado Ardisson fitou-o aturdido.

— C’est vous! — exclamou o executivo, levando a mão aos lábios.

— Soyez tranquilie — disse Jason, entrando e fechando a porta. E foi em francês que ele continuou: — Precisamos conversar. Devo saber o que aconteceu.

— Você! Estava ao meu lado naquele lugar horrível! Conversamos! E levou a minha identificação! Foi a causa de tudo!

— Não fez menção a mim?

— Não me atrevi. Teria parecido que fiz alguma coisa ilegal... dando o meu crachá a outra pessoa. Quem é você? Por que está aqui? Já me causou problemas suficientes por um dia! Acho que deve ir embora, monsieur!

— Não antes de me contar o que aconteceu exatamente. — Bourne atravessou o quarto e sentou-se numa cadeira ao lado de uma mesa vermelha laqueada. — É urgente que eu saiba.

— Mas não é urgente que eu lhe conte. Não tem o direito de entrar aqui, pôr-se à vontade e me dar ordens.

— Acho que tenho. A nossa era uma excursão particular, e você se intrometeu.

— Fui incluído naquela maldita excursão!

— Por ordem de quem?

— Do recepcionista, ou como quer que chamem aquele idiota lá embaixo!

— Não ele. Acima dele. Quem foi?

— Como vou saber? Não tenho a menor idéia do que você está falando!

— Você foi embora.

— Foi você quem me disse para ir embora!

— Estava testando você.

— Testando? Mas isso é inacreditável!

— Acredite — disse Jason. — Se está dizendo a verdade, nenhum mal vai lhe acontecer.

— Mal?

— Não matamos inocentes, apenas o inimigo.

— Matam... o inimigo?

Bourne enfiou a mão por baixo do paletó, tirou a arma do cinto e colocou-a em cima da mesa.

— Agora, convença-me de que não é o inimigo. O que aconteceu depois que nos deixou?

Atordoado, Ardisson cambaleou e foi se encostar na parede, os olhos arregalados e assustados, fixos na arma. E balbuciou:

— Juro por todos os santos que está falando com o homem errado.

— Convença-me.

— De quê?

— De sua inocência. O que aconteceu?

— Eu... lá na praça, pensei nas coisas que você disse, que alguma coisa terrível acontecera dentro do túmulo de Mao, que os guardas chineses estavam gritando sobre gangsteres estrangeiros, como as pessoas seriam isoladas e detidas... especialmente alguém como eu, que não era realmente um integrante da excursão... E por isso comecei a correr... oh, Deus, eu não podia ficar numa situação assim! Milhões de francos estão envolvidos, a metade do custo de Cingapura, lucros numa escala sem precedentes na indústria da alta moda! Não sou um mero negociador, represento um consórcio!

— Então começou a correr e eles o detiveram — interrompeu Jason, ansioso em passar por cima dos elementos não-essenciais.

— Isso mesmo! Eles falavam tão depressa que eu não conseguia compreender uma só palavra do que diziam. Uma hora se passou antes que encontrassem alguém que falasse francês.

— Por que não lhes contou simplesmente a verdade, que estava com o nosso grupo de excursão?

— Porque eu estava fugindo daquela maldita excursão e dera a você o meu crachá! Como isso pareceria a estes bárbaros, que vêem um criminoso fascista em cada rosto branco?

— Os chineses não são bárbaros, monsieur — disse Bourne gentilmente. Uma pausa e, subitamente, ele gritou: — Só a filosofia política de seu governo é que é bárbara! Sem a graça de Deus Todo-Poderoso, apenas com a bênção de Satã!

— Como?

— Talvez mais tarde eu explique — disse Jason, a voz abruptamente calma outra vez. — Então apareceu alguém que falava francês. O que aconteceu em seguida?

— Eu disse a ele que saíra para dar um passeio... a sua sugestão, monsieur. E que de repente me lembrei que estava esperando uma ligação de Paris e precisava voltar ao hotel, o que explicava a minha pressa.

— Bastante plausível.

— Não para a tal autoridade, monsieur. Ele começou a me insultar, fazendo os comentários mais ofensivos e insinuando as coisas mais terríveis. O que teria acontecido naquele túmulo?

— Posso garantir que foi um bom trabalho, monsieur — respondeu Bourne, os olhos arregalados.

— Como assim?

— Talvez mais tarde eu explique. Quer dizer que o homem foi ofensivo?

— Terrivelmente! Mas foi longe demais quando atacou a alta moda de Paris, dizendo que era uma indústria burguesa decadente! Afinal, estamos pagando por seus tecidos... e é claro que eles não precisam saber das margens de lucro.

— O que você fez?

— Sempre levo uma lista dos nomes das pessoas com quem estou negociando... alguns são muito importantes, pelo que calculo, como não poderia deixar de ser, levando-se em consideração o dinheiro envolvido. Exigi que o tal guarda entrasse em contato com eles e, me recusei... isso mesmo, me recusei... a responder a qualquer outra pergunta até que pelo menos alguns chegassem. Mais duas horas e eles chegaram. O que mudou tudo. Trouxeram-me para cá numa versão chinesa de limusine... muito apertada para um homem do meu tamanho e quatro acompanhantes. E, pior ainda, disseram-me que nossa reunião decisiva foi mais uma vez adiada. Não ocorrerá amanhã de manhã, mas sim ao final da tarde. Que tipo de hora é essa para se tratar de negócios?

Ardisson afastou-se da parede, respirando fundo, os olhos agora suplicantes.

— Isso é tudo o que tenho para contar, monsieur. Está falando com o homem errado. Não estou envolvido em qualquer coisa por aqui que não os negócios do meu consórcio.

— Deve estar! — exclamou Jason, acusador, alteando a voz novamente. — Fazer negócios com o Ímpio é aviltar a obra do Senhor!

— Como?

— Estou convencido — disse o camaleão. — Você é simplesmente um erro.

— Um o quê?

— Vou contar o que aconteceu no túmulo de Mao Tsé-tung. Nós fizemos. Atiramos no caixão de cristal e também no corpo do infame infiel!

— Vocês o quê?

— E continuaremos a destruir os inimigos de Cristo, sempre que os encontrarmos! Levaremos sua mensagem de amor de volta ao mundo, mesmo que tenhamos de matar todos os animais doentes que pensam de outra forma! O mundo inteiro será cristão, ou não haverá mundo algum!

— Mas deve haver espaço para negociação. Pense no dinheiro... nas contribuições.

— Não de Satã! — Bourne levantou-se, pegou a arma, meteu-a no cintos depois abotoou o paletó e puxou-o, como se fosse uma túnica militar. Aproximou-se do transtornado executivo. — Não é o inimigo, monsieur, mas está próximo. Sua carteira, por favor, e seus documentos comerciais, inclusive os nomes de todos aqueles com quem está negociando.

— Dinheiro...?

— Não aceitamos contribuições. Não precisamos.

— Então por quê?

— Para sua proteção, assim como para a nossa. Nossas células devem investigar os indivíduos, a fim de verificar se você está ou não sendo usado como chamariz. Há indícios de que estamos sendo infiltrados. Tudo lhe será devolvido amanhã.

— Devo protestar...

— Não faça isso — interrompeu-o o camaleão, tornando a meter a mão por baixo do paletó e mantendo-a ali. — Perguntou quem eu era, não é mesmo? Basta dizer que organizamos as nossas próprias brigadas, já que nossos inimigos empregam os serviços de grupos como a OLP, os Exércitos Vermelhos, os fanáticos do aiatolá e o Baader-Meinhof. Não pedimos nem oferecemos quartel. É uma luta até a morte.

— Meu Deus!

— Lutamos em Seu nome. Não saia deste quarto. Mande trazer suas refeições para cá. Não telefone para os seus colegas nem para os seus contatos aqui em Pequim. Em outras palavras, fique fora de vista e reze pelo melhor. Para ser franco, devo acrescentar que se fui seguido e descobrirem que vim ao seu quarto, você vai simplesmente desaparecer.

— Mas é incrível!

Os olhos subitamente desfocados, todo o corpo de Ardisson começou a tremer.

— Sua carteira e seus documentos, por favor.

Mostrando todos os documentos de Ardisson, inclusive a relação dos negociadores do governo com quem o francês estava lidando, Jason alugou um carro sob o nome do consórcio de moda. Deixou claro para um aliviado despachante no Serviço Internacional de Viagens da China, na Rua Chaoyangmen, que sabia ler e falar mandarim; como o carro alugado seria guiado por um dos negociadores, não havia necessidade de motorista. O despachante garantiu que o carro estaria no hotel às sete horas da noite. Se tudo se ajustasse devidamente, ele teria vinte e quatro horas para circular tão livremente quanto um ocidental poderia fazê-lo em Pequim. As primeiras dez horas lhe diriam se uma estratégica concebida em desespero poderia levá-lo para fora da escuridão ou mergulhar Marie e David Webb num abismo. Mas Delta Um conhecia a mente oriental. Por uma vintena de séculos, não variara sob um aspecto. O sigilo valia dez mil tigres, se não mesmo um reino.

Bourne voltou a pé para o hotel, passando pelo apinhado

distrito comercial de Wang Eu Jing, logo depois da esquina da ala leste do hotel. No número 255 ficava a Loja de Departamentos Principal, onde efetuou as compras necessárias de roupas e ferramentas.. No número 261 encontrou uma loja chamada Tuzhang Menshibu, que se podia traduzir como Loja de Gravação de Sinete, onde escolheu o papel timbrado de aparência mais oficial que encontrou. (Para seu espanto e satisfação, a lista de Ardisson incluía não apenas um mas dois generais... e por que não? Os franceses fabricavam o Exocet, um produto que dificilmente poderia ser incluído na esfera da alta moda, mas era uma prioridade da alta tecnologia militar.) Finalmente, na Loja de Artes, número 265 na Wang Fu Jing, comprou uma caneta e um mapa de Pequim e seus arredores, além de um segundo mapa em que estavam indicadas as estradas que partiam de Pequim para as cidades do sul.

Levando as compras para o hotel, Bourne foi para uma mesa no saguão e iniciou seus preparativos. Primeiro, escreveu um bilhete em chinês, isentando o motorista do carro alugado de toda e qualquer responsabilidade por entregar o automóvel ao estrangeiro. Estava assinado por um general e equivalia a uma ordem. Segundo, abriu o mapa e fez um círculo numa pequena área verde nos arredores de Pequim, a noroeste.

O Santuário de Pássaros Jing Shan.

O sigilo valia dez mil tigres, se não mesmo um reino.

 

Marie saltou da cadeira ao ouvir a campainha estridente do telefone. Correu através do quarto, claudicando e estremecendo, e foi atender.

— Alô?

— Sra. Austin, eu presumo.

— Mo?... Mo Panov! Graças a Deus! — Marie fechou os olhos, em gratidão e alívio. Quase trinta horas haviam transcorrido desde que falara com Alexander Conklin, a espera e a tensão — acima de tudo a impotência — haviam-na levado à beira do pânico. — Alex disse que ia pedir a você para acompanhá-lo. Achava que você concordaria.

— Achava? Houve alguma dúvida? Como está se sentindo, Marie? E não espero uma resposta de Poliana.

— Estou enlouquecendo, Mo. Bem que tento resistir, mas estou ficando maluca.

— Como não completou a jornada, eu diria que tem sido extraordinária... e o fato de estar lutando em cada passo do caminho a torna ainda mais extraordinária. Mas também você não precisa de qualquer psicologia de algibeira da minha parte. Eu queria apenas um pretexto para ouvir sua voz de novo.

— Para descobrir se eu era uma ruína balbuciante — disse Marie gentilmente.

— Passamos por muita coisa juntos para esse subterfúgio de terceira classe... e eu jamais escaparia impune com você. O que, diga-se de passagem, não aconteceu.

— Onde está Alex?

— Falando ao telefone público aqui perto. Pediu-me que ligasse para você. Acho que ele quer falar com você enquanto a pessoa no outro aparelho, quem quer que seja, ainda está na linha... Espere um instante. Ele está acenando com a cabeça. A próxima voz que vai ouvir et cetera et cetera.

— Marie?

— Alex? Obrigada... obrigada por ter vindo...

— Como diria seu marido, “Não há tempo para isso”. O que estava usando quando eles a viram pela última vez?

— Usando?

— Quando escapou deles.

— Escapei duas vezes. A segunda foi em Tuen Mun.

— Não nessa ocasião — interrompeu Conklin. — O contingente era pequeno e havia muita confusão... se bem me lembro o que você me contou. Aqui. Aqui em Hong Kong. Seria a descrição com que eles começariam, a descrição que ficaria em suas mentes. O que estava vestindo na ocasião?

— Deixe-me pensar... No hospital...

— Depois disso — interrompeu-a Alex de novo. — Falou em trocar de roupas, comprar algumas coisas. O consulado canadense, o apartamento de Staples. Pode lembrar?

— Como você pode lembrar?

— Não há mistério nenhum. Tomo notas. É um dos subprodutos do álcool. Depressa, Marie. Em termos gerais, o que estava usando?

— Uma saia pregueada... isso mesmo, uma saia pregueada cinza. E uma blusa meio azulada, de gola alta...

— Provavelmente mudaria isso.

— Como?

— Não importa. O que mais?

— Um chapéu, com a aba bem larga para cobrir o meu rosto.

— Ótimo!

— E uma falsa bolsa Gucci que comprei na rua. Sandálias, para parecer mais baixa.

— Quero a altura. Vamos continuar com os saltos. Está ótimo, é tudo de que preciso.

Para que, Alex? O que está fazendo?

— Brincando de seu-mestre-mandou. Sei perfeitamente que os computadores de passaportes do Departamento de Estado me pegaram. Com o meu andar suave e atlético, até mesmo os seus cães de caça poderiam me reconhecer na alfândega. Eles não sabem de nada, mas alguém está dando as ordens, e quero saber quem mais aparece.

— Acho que não entendi direito.

— Explicarei depois. Fique onde está. Vamos para aí o mais depressa que pudermos nos livrar dos vigias. Mas é indispensável que tudo esteja limpo.., até esterilizado... e por isso pode demorar uma hora ou mais.

— E Mo?

— Ele tem de ficar comigo. Se nos separarmos agora, na melhor das hipóteses eles vão segui-lo; na pior, vão detê-lo.

— Por que não você também?

— Não vão tocar em mim; vão se limitar a uma vigilância cerrada.

— Está muito confiante.

— Estou furioso. Eles não podem saber o que deixei para trás, com quem e com que instruções, se houver alguma interrupção em telefonemas previamente combinados. Para eles, sou neste momento uma bomba atômica ambulante... claudicante... que pode explodir toda a operação, qualquer que seja.

— Sei que disse que não há tempo, Alex, mas preciso lhe dizer uma coisa. Não tenho certeza por que, mas preciso dizer. Creio que uma das coisas em relação a você que mais magoou e enfureceu David foi o fato de que ele o considerava o melhor no que fazia. Às vezes, quando tomava alguns drinques ou sua mente vagueava... abrindo-lhe uma ou duas portas... ele sacudia a cabeça tristemente ou batia com os punhos furiosamente e se perguntava: “Por quê? Por quê?” E dizia também: “Ele era melhor do que isso... era o melhor.”

— Eu não era páreo para Delta. Ninguém era. Nunca foi.

— Pois você me parece muito bom.

— Porque não estou saindo do frio, mas indo. Com um motivo melhor do que jamais tive antes, em toda a minha vida.

— Tome cuidado, Alex.

— Diga a eles para tomarem cuidado.

Conklin desligou, e Marie sentiu as lágrimas escorrendo pelas faces

Morris Panov e Alex deixaram a loja de souvenirs na estação ferroviária de Kowloon e se encaminharam para a escada rolante que descia para o andar inferior, plataformas 5 e 6. Mo, o amigo, estava perfeitamente disposto a seguir as instruções de seu ex-paciente. Mas Panov, o psiquiatra, não pôde resistir a manifestar sua opinião profissional.

— Não é de admirar que vocês sejam tão confusos — comentou ele, carregando um urso panda de pelúcia debaixo do braço e uma revista de cores brilhantes na mão. — Deixe-me ver se entendi direito. Quando descermos, eu sigo para a direita, que é a plataforma 6, depois viro para a esquerda, na direção do fim do trem, que presumimos chegará dentro de poucos minutos. Correto até aqui?

— Correto — respondeu Conklin, gotas de suor aflorando na testa, enquanto claudicava ao lado do médico.

— Fico esperando junto da última coluna, segurando este bicho fétido debaixo do braço, ao mesmo tempo em que folheio esta revista extremamente pornográfica, até que uma mulher se aproxima.

— Correto de novo — disse Alex, enquanto desciam pela escada rolante. — O panda é um presente perfeitamente normal, muito apreciado pelos ocidentais. Pense como um presente para o seu filho. A revista pornográfica simplesmente completa o reconhecimento. Pandas e fotografias obscenas de mulheres nuas em geral não combinam.

— Ao contrário, a combinação pode ser positivamente freudiana.

— Marque um ponto pela piada. E trate de fazer o que estou dizendo.

— Ainda não me falou o que devo dizer à mulher.

— Experimente “Prazer em conhecê-la” ou “Como está a criança?” Não tem importância. Entregue o panda a ela e volte para esta escada rolante o mais depressa que puder, sem correr.

Chegaram lá embaixo, e Conklin tocou no cotovelo de Panov, virando-o para a direita.

— Vai se sair muito bem, Treinador. Basta fazer o que mandei e depois voltar para cá. Tudo vai dar certo.

— É mais fácil dizer isso do lugar em que geralmente me sento.

Panov encaminhou-se para a extremidade da plataforma, enquanto o trem de Lo Wu entrava ruidosamente na plataforma. Parou junto à última coluna. Passageiros às centenas passaram pelas portas, enquanto o médico desajeitadamente mantinha o panda preto e branco debaixo do braço e levantava a revista diante do rosto. E quando aconteceu, ele quase teve um colapso.

— Você deve ser Harold! — exclamou a voz alta de falsete, um vulto alto, intensamente maquilado, sob um chapéu de aba larga e uma saia cinza pregueada, batendo em seu ombro. — Eu o reconheceria em qualquer lugar, querido!

— Prazer em conhecê-la. Como está a criança?

Morris mal conseguia falar.

— Como está Alex? — disse a voz de homem, baixinho. — Devo a ele e pago minhas dívidas, mas isso é um absurdo. Ele ainda conserva a sanidade?

— Não tenho certeza se isso acontece com qualquer um de vocês — balbuciou o atônito psiquiatra.

— Depressa! — sussurrou a estranha figura. — Eles estão se aproximando. Entregue-me o panda, e quando eu começar a correr, misture-se à multidão e saia daqui. Dê-me logo!

Panov obedeceu, percebendo que vários homens rompiam pelos grupos irregulares de passageiros e convergiam para os dois. Subitamente, o homem de ruge no rosto e roupas de mulher correu para trás da grossa coluna e emergiu no outro lado. Tirou os sapatos de saltos altos, tornou a contornar a coluna e, como um jogador de futebol americano, disparou para a multidão mais perto do trem, passando por um chinês que tentou agarrá-lo e esquivando-se através de corpos agredidos e rostos aturdidos. Por trás, outros homens se lançaram na perseguição frustrados pelos passageiros cada vez mais hostis, que começaram a usar malas e mochilas para evitar as desconcertantes investidas. De alguma forma, no quase tumulto, o panda foi parar nas mãos de uma mulher ocidental alta, que também segurava um horário dos trens desdobrado. A mulher foi agarrada por dois chineses bem vestidos; ela gritou; eles fitaram-na, gritaram um para o outro e seguiram em frente.

Morris Panov seguiu novamente as instruções: misturou-se apressado com a multidão que se retirava no outro lado da plataforma, avançou rapidamente para a escada rolante, onde uma fila se formara. Havia uma fila, mas Alex Conklin não estava à vista! Reprimindo o pânico, Mo diminuiu a velocidade, mas continuou a andar, olhando ao redor, esquadrinhando a multidão, assim como as pessoas que subiam pela escada rolante. O que acontecera? Onde estava o homem da CIA?

— Mo!

Panov virou-se para a esquerda, o grito breve ao mesmo tempo um alívio e uma advertência. Conklin contornara parcialmente uma coluna, dez metros além da escada rolante. Com gestos rápidos, indicou que tinha de continuar onde estava e Mo devia ir ao seu encontro, mas devagar, cautelosamente. Panov assumiu o ar de um homem irritado com a fila, um homem que esperaria a multidão diminuir antes de tentar alcançar a escada rolante. Desejou ser um fumante ou pelo menos não ter jogado a revista pornográfica nos trilhos; qualquer uma das coisas seria algo para fazer. Em vez disso, cruzou as mãos nas costas e caminhou casualmente pela área deserta da plataforma, olhando ao redor duas vezes e franzindo o rosto para a fila. Alcançou a coluna, esgueirou-se para trás e reprimiu uma exclamação de espanto.

Aos pés de Conklin estava estendido um atordoado homem de meia-idade, vestindo uma capa, com o pé deformado de Conklin no meio de suas costas.

— Gostaria que conhecesse Matthew Richards, doutor. Matt é um veterano do Extremo Oriente, desde os primeiros tempos de Saigon, quando nos conhecemos. É claro que ele era mais jovem naquela ocasião, muito mais ágil. Mas também isso acontecia com todos nós.

— Pelo amor de Deus, Alex, deixe-me levantar! — suplicou o homem chamado Richards, sacudindo a cabeça da melhor forma que podia na posição em que se encontrava. — Minha cabeça dói um bocado! Com que você me atingiu? Um pé-de-cabra?

— Não, Matt. Com o sapato do meu pé inexistente. Pesado, bem? Mas precisa ser assim, para agüentar tanta coisa. Quanto a deixá-lo levantar, você sabe que não posso fazer isso enquanto não responder às minhas perguntas.

— Mas já respondi! Não passo de um controlador, não sou o chefe do posto! Pegamos você por uma diretriz de Washington que mandava pô-lo sob vigilância. E depois o Departamento de Estado enviou outra ordem, de que não cheguei a tomar conhecimento!

— Já lhe disse que acho isso difícil de acreditar. Vocês têm uma unidade coesa aqui. Todo mundo sabe de tudo. Seja sensato, Matt. Afinal, nos conhecemos há muito tempo. O que dizia a nova diretriz do Departamento de Estado?

— Não sei! Era apenas para o conhecimento do chefe do posto!

— É o comandante da unidade, doutor — explicou Conklin, olhando para Panov. — E o nosso recurso mais antigo. Estamos sempre usando-o quando nos metemos em complicações com outras agências do governo. “O que sei eu? Pergunte ao CP.” Assim, livramos a nossa cara, porque ninguém está disposto a pressionar um chefe de posto. O CP tem uma linha direta com Langley e, dependendo do Ioiô Oval, Langley tem uma linha direta com a Casa Branca. É tudo muito politizado, cabe ressaltar, não tem muito a ver com a coleta de informações.

— Muito esclarecedor — comentou Panov, olhando para o homem no chão, sem saber o que dizer, agradecido pelo fato de a plataforma estar agora praticamente vazia e a coluna se encontrar nas sombras.

— Não é recurso nenhum! — berrou Richards, debatendo-se sob o peso opressivo da pesada botina de Conklin. — Estou dizendo a verdade! Vou cair fora em fevereiro próximo! Por que eu haveria de querer logo agora alguma encrenca com você ou qualquer outro no quartel-general?

— Ah, Matt, pobre Matt, você nunca foi o melhor ou o mais inteligente. Acaba de responder à sua própria pergunta. Pode sentir o gosto daquela aposentadoria, exatamente como eu, e não quer nenhum problema. Estou relacionado como um homem que deve ficar sob vigilância intensa e não quer estragar uma diretriz em que está envolvido. Muito bem, companheiro, vou fazer um relatório de avaliação que ocasionará sua transferência para o serviço de demolições na América Central até seu tempo se esgotar... se você durar tanto assim.

— Corta essa!

— Imagine só, ser subjugado por um mero aleijado atrás de uma coluna numa estação ferroviária apinhada. Provavelmente vão mandar você minar alguns portos sozinho.

— Não sei de nada!

— Quem são os chineses?

— Eu não...

— Não são da polícia. Então quem são?

— Do governo.

— Que setor? Tinham de dizer pelo menos isso a você... o CP não podia deixar de lhe contar. Ele não ia deixar você trabalhar como cego.

— Mas, é justamente o que está acontecendo! Ele só disse que os homens haviam sido autorizados a trabalhar no caso por ordens superiores. E jurou que não sabia de mais nada. O que deveríamos fazer? Pedir para ver suas carteiras de motorista?

— Portanto, ninguém é responsável, porque ninguém sabe de nada. Não seria sensacional se fossem chinas comunas à procura de um desertor?

— O CP é responsável. Tudo depende dele.

— Ah, a suprema moral... “Apenas cumprimos ordens, Herr General.” — Conklin exagerou no sotaque alemão. — “E é claro que Herr General também não sabe de nada, porque está cumprindo as suas ordens.”

Alex fez uma pausa, estreitando os olhos.

— Havia um homem, um sujeito grandalhão que parecia um Paul Bunyan chinês... — Conklin parou de falar. A cabeça de Richards se mexera abruptamente, o corpo se contraíra. — Quem é ele, Matt?

— Não sei... juro.

— Quem?            

— Eu o vi, e pronto. E difícil deixar de reparar num homem assim.

— Isso não é tudo. Porque é difícil deixar de reparar nele e, considerando os lugares em que o viu, você fez perguntas. O que descobriu?

— Sabe muito bem como são essas coisas, Alex! Apenas rumores, não há nada de concreto!

— Adoro rumores. Fale logo, Matt, ou esta coisa feia e pesada na minha perna pode ter de amassar o seu rosto. Não posso controlá-la. Tem vontade própria e não gosta de você. Pode ser muito hostil, até mesmo comigo.

Com algum esforço; Conklin levantou subitamente o pé aleijado e bateu com ele entre as omoplatas de Richards.

— Ei, você vai me quebrar as costas!

— Não, Matt. Acho que está querendo quebrar seu rosto. Quem é ele, Matt?

Fazendo outra careta, Alex tornou a levantar o pé postiço e baixou-o sobre a base do crânio do agente da CIA.

— Está bem! Como eu disse, não é o evangelho, pois ouvi o rumor de que ele está nos altos escalões da CI da Coroa.

— CI da Coroa é a Contra-Inteligência britânica aqui em Hong Kong — explicou Conklin a Morris Panov. — É um ramo de MI-Seis, o que significa que recebe suas ordens de Londres.

— Muito esclarecedor — repetiu o psiquiatra, não só aturdido, mas também assustado.

— Muito mesmo — concordou Alex. — Pode me emprestar sua gravata, doutor?

Começando a tirar a própria gravata, acrescentou:

— Vou substituí-la com o dinheiro do fundo de emergência, pois temos agora um novo desenvolvimento. Estou oficialmente em ação. Langley aparentemente está financiando... através do salário e tempo de Matthew... alguma coisa envolvendo uma operação de um serviço aliado. Como servidor civil, tenho a obrigação de colaborar. Preciso de sua gravata também, Matt.

Dois minutos depois, Richards estava com as mãos e os pés amarrados, a boca tapada, por trás da coluna, graças a três gravatas.

— Tudo limpo — disse Alex, observando o que restara da multidão além da coluna. — Todos se foram atrás de nossa isca, que provavelmente já se encontra a esta altura na metade do caminho para a Malásia.

— Quem era ela... ele? Tenho certeza que não era mulher.

— Sem a intenção de machismo, eu diria que uma mulher provavelmente não conseguiria escapar daqui. Ele conseguiu, levando os outros junto... em seu encalço. Pulou sobre a grade da escada rolante e fugiu. Vamos embora. Estamos limpos.

— Mas quem é ele? — insistiu Panov, enquanto contornavam a coluna, na direção da escada rolante e dos poucos passageiros que formavam uma fila curta.

— Nós o usávamos por aqui de vez em quando, principalmente como um par de olhos para instalações remotas ao longo da fronteira, sobre as quais ele conhece alguma coisa, já que tem de passar por elas com sua mercadoria.

— Narcóticos?

— Ele não se envolve com essas coisas. Tem muita classe. Contrabandeia ouro e jóias roubadas, e opera entre Hong Kong, Macau e Cingapura. Acho que tem alguma relação com o que lhe aconteceu há vários anos. Tiraram todas as suas medalhas por conduta indecorosa. Ele posou para algumas fotografias obscenas quando estava na universidade e precisava do dinheiro. Mais tarde, graças aos bons ofícios de um editor insinuante, com a ética de um gato vadio, as fotografias foram divulgadas e ele foi crucificado, arruinado.

— Aquela revista que eu levava! — exclamou Mo, quando os dois entraram na escada rolante.

— Acho que era algo assim.

— Que medalhas?

— Jogos Olímpicos de 1976. Atletismo. Sua especialidade era a corrida com barreiras.

Atônito, Panov ficou olhando para Alexander Conklin, enquanto subiam na escada rolante, aproximando-se da saída da estação. Um pelotão de garis, carregando vassouras largas nos ombros, apareceu na escada rolante oposta, descendo para a plataforma. Alex sacudiu a cabeça na direção deles, estalou os dedos da mão direita e, com o polegar estendido, espetou o ar na direção da saída da estação por cima. A mensagem era evidente. Dentro de alguns momentos, um agente da CIA manietado seria encontrado por trás de uma coluna.

— Deve ser o homem que eles chamam de major — comentou Marie, sentada numa cadeira em frente a Conklin, com Morris Panov ajoelhado ao seu lado, examinando seu pé esquerdo. — Ui! — gritou ela, puxando a perna cruzada. — Desculpe, Mo.

— Não precisa se desculpar — respondeu o médico. — É uma contusão grave, que atingiu o segundo e terceiro metatarsos. Deve ter levado uma queda e tanto.

— Várias. Sabe cuidar de pés?

— Neste momento eu me sinto mais seguro com a ortopedia do que com a psiquiatria. Vocês vivem num mundo que empurraria minha profissão de volta à Idade Média... não que a maioria de nós já tenha saído de lá. Acontece apenas que as palavras são mais difíceis. — Panov levantou os olhos para Marie, contemplando os cabelos grisalhos. — Recebeu um excelente trata mento médico, ex-ruiva. Exceto pelos cabelos. Estão horríveis.

— Estão ótimos — protestou Conklin

— O que você sabe dessas coisas? Não se esqueça de que também foi meu paciente. — Mo tornou a se concentrar no pé. — Está tudo sarando muito bem... os talhos e as bolhas... mais um pouco e estará completamente restabelecida. Mais tarde pegarei algumas coisas e mudarei os curativos.

Panov levantou-se e foi buscar a cadeira de espaldar reto da pequena escrivaninha.

— Quer dizer que vai ficar aqui? — perguntou Marie.

— No final do corredor — respondeu Alex. — Não foi possível conseguir nenhum dos dois quartos ao lado do seu.

— Como arrumou esse quarto?

— Com dinheiro. Estamos em Hong Kong, e as reservas são perdidas a todo momento por alguém que não se encontra de serviço... Mas voltemos ao major.

— Seu nome é Lin Wenzu. Catherine Staples me disse que ele é do Serviço Secreto inglês. Fala inglês com sotaque britânico.

— Ela tinha certeza?

— Absoluta. Disse que ele era considerado o melhor oficial do Serviço Secreto em Hong Kong e que isso incluía todos da KGB à CIA.

— Não é difícil de compreender. Seu nome é Lin, e não Ivanovitch ou Joe Smith. Um nativo talentoso é enviado para a Inglaterra, instruído e treinado, depois volta para assumir uma posição de responsabilidade no governo. A política colonial normal, especialmente nas áreas policial e de segurança do território.

— O ideal de um ponto de vista psicológico — acrescentou Panov, sentando. — Há menos ressentimentos assim e se lança outra ponte para a comunidade estrangeira governada.

— Sei disso — murmurou Alex, balançando a cabeça. — Mas alguma coisa está faltando. As peças não se ajustam. Uma coisa é Londres dar o sinal verde para uma operação secreta nossa... justamente o que está acontecendo, por tudo o que já descobrimos, talvez com a diferença de esta ser mais insólita do que a maioria... mas outra muito diferente é o MI-Seis emprestar seu pessoal local, numa colônia que o Reino Unido ainda controla.

— Por quê? — indagou Panov.

— Por vários motivos. Primeiro, eles não confiam em nós... não que desconfiem de nossas intenções, mas apenas de nossa inteligência. Sob alguns aspectos, estão certos, em outros, redondamente enganados. Mas é o julgamento deles. Segundo, por que arriscar seu pessoal à exposição em decorrência de decisões tomadas por um burocrata americano, sem qualquer experiência de administração de operações secretas no campo? Esse é o ponto principal, o motivo pelo qual Londres rejeitaria sumariamente.

— Presumo que está se referindo a McAllister — disse Marie.

— Até uma galinha criar dentes. — Conklin sacudiu a cabeça, expirando enquanto o fazia. — Andei pesquisando e posso dizer que ele é o fator mais forte ou o mais fraco desse roteiro. Desconfio da segunda hipótese. Ele é cérebro puro e frio, como McNamara antes de sua conversão à dúvida.

— Pare com os rodeios e explique objetivamente — protestou Mo Panov. — Nada de fantasia. Deixe isso comigo.

— O que estou querendo dizer, doutor, é que Edward Newington McAllister não passa de um coelho. Levanta as orelhas ao primeiro sinal de conflito ou lapso e trata de fugir. É um analista e dos melhores, mas não tem condições para ser um controlador de uma operação, muito menos um chefe de posto. E não pense sequer que ele pode ser o estrategista por trás de uma grande operação secreta. Pode estar certo de que ririam dele nos bastidores.

— Ele foi muito convincente quando falou comigo e com David — interveio Marie.

— Deram tudo por escrito. “Prepare o alvo”, foi a sua instrução. Atendo-se à narrativa tumultuada, que se tornaria mais clara para o alvo por estágios, à medida que efetuasse os seus primeiros movimentos. O que ele não podia deixar de fazer, porque você desapareceu.

— Quem escreveu o roteiro? — indagou Panov.

— Eu bem que gostaria de saber. Nenhuma das pessoas com quem entrei em contato em Washington sabe... e isso inclui muita gente que deveria saber. Não estavam mentindo. Depois de tantos anos, posso perceber um instante de hesitação numa voz. A coisa é tão profunda e com tantas contradições que faz Casa de Pedra 71 parecer um esforço de amador... o que não foi, diga-se de passagem.

— Catherine me disse outra coisa — interveio Marie. — Não sei se vai ajudar ou não, mas isso me ficou na cabeça. Ela disse que um homem chegou a Hong Kong, um “estadista”, como o chamou, alguém que era “muito mais que um diplomata” ou algo parecido. Achava que poderia haver uma ligação com tudo o que tinha acontecido.

— Qual era o nome dele?

— Ela nunca me disse. Mais tarde, quando avistei McAllister na rua em sua companhia, presumi que fosse ele. Mas talvez não seja. O analista que você acabou de descrever e o homem nervoso que conversou comigo e com David dificilmente poderiam ser um grande diplomata, muito menos um estadista. Só pode ser outra pessoa.

— Quando ela disse isso a você? — perguntou Conklin.

— Há três dias, quando estava me escondendo em seu apartamento em Hong Kong.

— Antes de levar você para Tuen Mun? — indagou Alex, inclinando-se para a frente.

— Isso mesmo.

— E ela não tornou a mencioná-lo?

— Não. Quando perguntei, ela disse que não havia sentido

em qualquer das duas acalentar esperanças. Alegou que precisava escavar mais um pouco, para repetir suas palavras.

— E você se contentou com isso?

— Claro. Na ocasião, eu estava convencida de que compreendia tudo. Não havia motivo para duvidar de Catherine. Ela estava assumindo um risco pessoal e profissional ao me ajudar... aceitando minha palavra por sua própria iniciativa, sem pedir a orientação consular, algo que outros poderiam fazer simplesmente como uma proteção. Falou em “insólito”, Alex. Pois vamos ser francos: o que eu contei a ela era tão insólito que se tornava chocante... uma teia de mentiras fabricadas pelo Departamento de Estado americano, o sumiço de guardas da CIA, suspeitas que levavam aos escalões mais altos de seu governo. Uma pessoa inferior poderia recuar para se proteger.

— Pondo de lado a gratidão — comentou Alex gentilmente — ela estava retendo informações que você tinha o direito de conhecer. Afinal, depois de tudo por que você e David passaram...

— Está enganado, Alex — interrompeu-o Marie, também gentilmente. — Eu disse que achava que a compreendia, mas não acabei. A coisa mais cruel que se pode fazer com uma pessoa que está vivendo cada hora em pânico é lhe oferecer uma esperança que prova ser infundada. Quando ocorre o estouro, é insuportável. Acredita em mim. Passei mais de um ano com um homem que procurava desesperadamente por respostas. Descobriu várias, mas aquelas que seguiu apenas para descobrir que estavam erradas quase o destruíram. Esperanças frustradas são terríveis para a pessoa que só tem esperança.

— Ela tem razão — disse Panov, acenando com a cabeça e olhando para Conklin. — E tenho a impressão de que você sabe disso, não é?

— Aconteceu — respondeu Alex, dando de ombros e olhando para o relógio. — Seja como for, chegou a hora para Catherine Staples.

— Ela deve estar sendo vigiada, guardada! — Foi Marie quem se inclinou para a frente agora, a expressão preocupada, os olhos inquisitivos. — Vão presumir que os dois vieram até aqui por minha causa, entraram em contato comigo e eu falei sobre ela. Calcularão que vão procurá-la. Estarão à espera. E se podem fazer tudo o que fizeram até agora, podem perfeitamente matar você, Alex!

— Não, não podem —disse Conklin, levantando-se e claudicando para o telefone na mesinha-de-cabeceira. Uma pausa e ele acrescentou, simplesmente: — Eles não são bons o suficiente para isso.

— Você é um caso terrível! — sussurrou Matthew Richards, sentado ao volante do cano pequeno, estacionado em frente ao prédio de Catherine Staples, no outro lado da rua.

— Não está sendo agradecido como deveria, Matt — disse Alex, sentado nas sombras, ao lado do homem da CIA. — Não apenas deixei de enviar aquele relatório de avaliação, como também permiti que você voltasse a me vigiar. Deve agradecer, e não me insultar.

— Merda!

— O que disse no escritório?

— E o que eu podia dizer? Fui assaltado!

— Por quantos?

— Pelo menos cinco delinqüentes juvenis. Zhongguo ren.

— E se reagisse, criando o maior tumulto, eu poderia localizá-lo.

— Foi essa a história em linhas gerais — confirmou Richards.

— E quando eu telefonei para você, é claro que disse que era um dos contatos das ruas que sempre cultivou, informando ter visto um homem branco que mancava.

— Bingo.

— Pode até ganhar uma promoção.

— Só quero escapar dessa. E cair fora do serviço.

— Vai conseguir.

— Não deste jeito.

— Quer dizer que foi o velho Havilland em pessoa quem armou o circo.

— Não foi por meu intermédio que obteve essa informação. Saiu nos jornais.

— A casa segura em Victoria Peak não foi mencionada pelos jornais, Matt.

— Não me venha com essa, Alex. Houve uma troca. Você

me trata bem e eu reajo da mesma forma. Nenhum relatório desfavorável a meu respeito, dizendo que fui posto fora de com bate por um sapato sem pé, e você recebe um endereço. De qualquer maneira, eu negaria tudo. Obteve a informação em Garden Road. Todo o consulado já sabe, graças a um fuzileiro furioso.

— Havilland... — murmurou Alex. — A coisa se ajusta. Ele é unha e carne com os britânicos, até fala como eles... Oh, Deus, eu deveria ter reconhecido a voz!

— A voz? — repetiu Ríchards, perplexo.

— A voz ao telefone. Outra página do roteiro. Era Havilland! Ele não deixaria que qualquer outro se encarregasse! “Nós a perdemos.” E eu caí na armadilha como um otário!

— Como assim?

— Esqueça.

— Com o maior prazer.

Um automóvel diminuiu a velocidade e parou do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos de Catherine Staples. Uma mulher saiu pela porta traseira junto ao meio-fio. Ao vê-la, à luz dos lampiões, Conklin teve certeza de quem era. Catherine Staples. Ela acenou com a cabeça para o motorista, virou-se e atravessou a calçada para as portas de vidro grosso da entrada do prédio.

Subitamente, um motor rugindo ao ser acelerado ao máximo rompeu o silêncio da rua ao lado do parque. Um sedã comprido e preto saiu de uma vaga por trás deles e foi parar com um ranger de pneus junto ao carro que trouxera Staples. Explosões sucessivas partiram do segundo carro. Cacos de vidro espalharam-se pela rua e calçada, enquanto as janelas do automóvel estacionado eram espatifadas, juntamente com a cabeça do motorista. As portas de vidro do prédio se fragmentaram, ruindo em fragmentos ensangüentados, enquanto o corpo de Catherine Staples era pregado na moldura das portas, sob a saraivada de balas.

Pneus rangendo outra vez, o sedã preto disparou pela rua escura, deixando em sua esteira uma carnificina, sangue e carne dilacerada por toda a parte.

— Santo Deus! — gritou o homem da CIA.

— Saia daqui — ordenou Conklin.

— Para onde? Pelo amor de Deus, para onde?

— Victoria Peak.

— Você ficou louco?

— Não... mas alguém ficou. Um filho da puta sangue azul perdeu a cabeça. Não sabe mais o que faz. E eu serei a primeira pessoa que vai lhe dizer isso. Vamos embora!

 

Bourne parou o sedã preto Xangai no trecho escuro, arborizado e deserto da estrada. Segundo o mapa, passara pelo Portão Oriental do Palácio de Verão... na verdade, apenas uma série de antigas residências reais, espalhadas por acres de campos ajardinados, dominados por um lago conhecido como Kunming. Ele seguira o litoral norte, até que a luzes coloridas do vasto parque dos imperadores ficassem para trás, dando lugar à escuridão da estrada pelo campo. Apagou os faróis agora, saltou e carregou suas compras, agora numa mochila impermeável, até o paredão de árvores à beira da estrada. Cravou o calcanhar no solo. A terra era macia, facilitando o seu trabalho, pois sempre havia a possibilidade de que o carro alugado fosse revistado. Abriu a mochila, tirou um par de luvas de operário e uma faca de caça de lâmina comprida. Ajoelhou-se e abriu um buraco fundo, o suficiente para esconder a mochila; deixou-a aberta, pegou a faca e deu um talho no tronco da árvore mais próxima, expondo a madeira branca por baixo da casca. Guardou a faca e as luvas na mochila, fechou-a, empurrou-a pelo buraco, cobriu com terra. Voltou ao carro, verificou o velocímetro, ligou o motor. Se o mapa era preciso nas distâncias, como era ao detalhar as áreas em Pequim e nos arredores em que era proibido trafegar, a entrada para o Santuário Jing Shan não estava a

mais de um quilômetro de distância, logo depois de uma curva comprida à frente.

O mapa era acurado. Dois refletores convergiam sobre o portão de metal, alto e verde, por baixo de enormes painéis, mostrando pássaros de cores brilhantes. O portão estava fechado. Numa pequena estrutura de vidro, à direita, sentava um guarda solitário. A vista dos faróis do carro de Jason se aproximando, ele se levantou de um pulo e saiu apressado. Era difícil determinar se o casaco e a calça do homem constituíam ou não um uniforme; não havia indício de arma.

Jason levou o sedã até poucos metros do portão, saltou e encaminhou-se para o chinês no outro lado, surpreso ao descobrir que o homem beirava os sessenta anos.

— Bei tong, bei tong — disse Jason, antes que o guarda pudesse falar, pedindo deculpas por incomodá-lo. Tirando do bolso interno a lista dos negociadores designados para o executivo francês, ele continuou rapidamente: — Tive um dia terrível. Deveria ter chegado aqui há três horas e meia, mas o carro não apareceu e não pude entrar em contato com o Ministro... — Ele escolheu o nome do ministro da indústria têxtil na lista. — ... Wang Xu. Tenho certeza de que ele está tão aborrecido quanto eu!

— Fala a nossa língua — murmurou o guarda, aturdido. — E tem um carro sem motorista.

— O ministro autorizou. Já estive em Pequim muitas e muitas vezes. Vamos jantar juntos.

— Estamos fechados, e não há restaurante aqui.

— Ele não deixou um bilhete para mim?

— Ninguém deixa coisa alguma aqui, a não ser coisas perdidas. Tenho um ótimo binóculo japonês que poderia vender muito barato.

Aconteceu. Além do portão, a cerca de trinta metros pela estrada de terra, Bourne divisou um homem nas sombras de uma árvore alta, um homem usando uma túnica comprida — quatro botões — um oficial. Tinha na cintura um cinto largo de coldre. Uma arma.

— Lamento, mas não tenho qualquer serventia para um binóculo.

— Talvez um presente?

— Tenho poucos amigos e meus filhos são ladrões.

— É um homem triste. Não existe nada além dos filhos e amigos... e os espíritos, é claro.

— Quero apenas encontrar o ministro. Estamos discutindo renminbi aos milhões!

— O binóculo custa apenas uns poucos yuans.

— Está bem. Quanto?

— Cinqüenta.

— Pode ir buscar — disse o camaleão, impaciente, enfiando a mão no bolso, o olhar se desviando casualmente além da cerca verde, enquanto o guarda voltava à guarita.

O oficial chinês recuara mais ainda pelas sombras, mas continuava a vigiar o portão. O ressoar no peito de Jason parecia mais uma vez com timbales, como acontecera tantas vezes nos tempos da Medusa. Revelara um truque, expusera uma estratégia. Delta conhecia a mente oriental. Sigilo. Claro que o vulto solitário não confirmava, mas também não negava.

— Veja como é maravilhoso! — gritou o guarda, correndo de volta ao portão e estendendo o binóculo. — Cem yuans!

— Você disse cinqüenta!

— Não tinha notado as lentes. Vale muito mais. Dê-me o dinheiro e jogarei por cima do portão.

— Está bem — disse Bourne, prestes a passar o dinheiro pela grade da cerca. — Mas com uma condição, ladrão. Se por acaso você for interrogado a meu respeito, não quero ficar numa situação embaraçosa.

— Interrogado? Isso é bobagem. Não há mais ninguém por aqui.

Delta estava certo.

— Mas caso seja, exijo que diga a verdade. Sou um executivo francês procurando com urgência esse ministro da indústria têxtil, porque meu carro foi imperdoavelmente atrasado. Não quero ficar numa posição embaraçosa!

— Como quiser. O dinheiro, por favor.

Jason empurrou as notas pela cerca; o guarda pegou-as e jogou o binóculo por cima do portão. Bourne recolheu-o e fitou o chinês com expressão suplicante.

— Tem alguma idéia do lugar para onde o ministro possa ter ido?

— Tenho, sim... e já ia lhe contar, sem dinheiro adicional. Homens tão importantes como você e ele sem dúvida iriam para o restaurante chamado Ting Li Guan. É muito apreciado pelos estrangeiros ricos e pelos homens poderosos do nosso governo celestial.

— Onde fica?

— No Palácio deVerão. Passou por lá nesta estrada. Volte uns quinze ou vinte quilômetros e verá o grande portão Dong An Men. Entre, e os guias vão indicar o resto do caminho. Mas terá de mostrar os papéis, senhor. Viaja de uma maneira muito estranha.

— Obrigado! — gritou Jason, correndo para o carro. — Vive la France!

— Muito bonito — disse o guarda, dando de ombros, enquanto voltava para seu posto, contando o dinheiro.

O oficial aproximou-se em silêncio da guarita e bateu no vidro. Atônito, o vigia noturno pulou da cadeira e abriu a porta.

— Oh, senhor, deu-me um susto! Vejo que ficou trancado aqui dentro. Talvez tenha pegado no sono em um dos nossos lindos locais de repouso. É lamentável. Vou abrir o portão agora mesmo.

— Quem era aquele homem? — perguntou o oficial, calmamente.

— Um estrangeiro, senhor. Um negociante francês que teve um grande infortúnio. Pelo que entendi, ele devia encontrar aqui o ministro da indústria têxtil há horas e depois os dois iriam jantar, mas seu automóvel atrasou. Ele está muito aborrecido. Não quer ficar numa situação embaraçosa.

— Que ministro da indústria têxtil?

— Se não me engano, ele disse que era o Ministro Wang Xu.

— Espere lá fora, por favor.

— Pois não, senhor. Abro o portão?

— Dentro de alguns minutos.

O oficial entrou na guarita, pegou o telefone no pequeno balcão e discou. Segundos depois disse pelo aparelho:

— Pode me dar o número de um ministro da indústria

têxtil chamado Wang Xu?... Obrigado — Ele abaixou o gancho, soltou-o, tornou a discar. — Ministro Wang Xu, por favor.

— Sou eu mesmo — disse uma voz um tanto irritada no outro lado da linha. — Quem está falando?

— Um funcionário do Conselho do Comércio, senhor. Estamos fazendo uma verificação de rotina sobre um executivo francês que o indicou como referência...

— Ah, Grande Jesus Cristão, não aquele idiota do Ardisson! O que ele fez agora?

— Conhece o homem, senhor?

— Gostaria de não conhecer... especialmente esse homem! Ele pensa que, ao defecar, o odor de lilás se espalha pela latrina.

— Deveria jantar com ele esta noite, senhor?

— Jantar? Posso ter dito qualquer coisa para mantê-lo quieto esta tarde! Mas é claro que ele só ouve o que quer, e seu chinês é horrível. Por outro lado, é perfeitamente possível que ele tenha usado meu nome para obter uma reserva, quando não tinha nenhuma. Já disse que esse homem é muito especial! Dê a ele tudo o que quiser. É um lunático, mas bastante inofensivo. Nós o mandaríamos de volta a Paris no próximo avião se os idiotas que ele representa não estivessem pagando tanto por um material de terceira classe. Ele está autorizado a desfrutar as melhores prostitutas ilegais de Pequim. Só peço que não me incomode mais, pois estou com visitas em casa.

O ministro desligou abruptamente. Tranqüilizado, o oficial repôs o fone do gancho e saiu, ao encontro do vigia noturno.

— Era tudo verdade — disse ele.

— O estrangeiro estava bastante agitado, senhor. E muito confuso.

— Fui informado de que as duas coisas são normais nele. — O oficial fez uma pausa e depois acrescentou: — Pode abrir o portão agora.

— Pois não, senhor. — O vigia meteu a mão no bolso e tirou um molho de chaves. Parou, olhando para o oficial. — Não estou vendo nenhum automóvel, senhor. Estamos a muitos quilômetros de qualquer transporte. O Palácio de Verão seria o primeiro...

— Telefonei pedindo um carro. Deve chegar dentro de dez ou quinze minutos.

— Nesse caso eu não estarei mais aqui, senhor. Posso ver a luz da lanterna do meu substituto se aproximando pela estrada. Deixo o serviço dentro de cinco minutos.

— Talvez eu fique esperando. Há nuvens vindo do norte. Se trouxerem chuva, posso me abrigar na guarita até meu carro chegar.

— Não estou vendo nuvens, senhor.

— Seus olhos já não são mais o que eram.

— É verdade.

A campainha insistente da bicicleta rompia o silêncio lá fora. O novo guarda se aproximava do portão e o vigia começou a destrancá-lo, comentando:

— Esses jovens se anunciam como se fosse espíritos descendo dos céus.

— Eu gostaria de lhe dizer uma coisa — declarou o oficial, bruscamente, fazendo o guarda ficar imóvel. — Como o estrangeiro eu também não quero ficar numa situação embaraçosa por aproveitar uma hora de sono muito necessário num lindo lugar de repouso. Gosta do seu trabalho?

— Muito, senhor.

— E da oportunidade de vender coisas como um binóculo japonês, deixado sob a sua guarda?

— Como, senhor?

— Minha audição é aguçada e sua estridente voz é alta.

— Senhor?

— Não diga nada a meu respeito e não direi nada a respeito de suas atividades antiéticas, que certamente o levariam a um campo com uma pistola encostada na cabeça. Seu comportamento é repreensível.

— Eu nunca o vi, senhor! Juro pelos espíritos em minha alma!

— Nós do partido rejeitamos tais pensamentos.

— Então por qualquer coisa que quiser!

— Abra o portão e saia daqui.

— Primeiro a minha bicicleta, senhor!

O vigia foi buscar a bicicleta na extremidade da cerca e depois abriu o portão. Empurrou-o, acenando a cabeça de alívio, enquanto literalmente jogava o molho de chaves para seu substi-

tuto. Montando no selim da bicicleta, saiu em disparada pela estrada de terra.

O segundo guarda passou pelo portão, empurrando a bicicleta, e disse para o oficial:

— Pode imaginar uma coisa dessas? O filho de um senhor da guerra do Kuomintang substituindo um camponês débil mental que teria servido em nossas cozinhas!

Bourne localizou o entalhe branco no tronco da árvore e guiou o sedã para fora da estrada, entre dois pinheiros. Apagou as luzes e saiu. Rapidamente, quebrou vários galhos para camuflar o carro na escuridão. Instintivamente, trabalhou depressa — teria agido assim de qualquer maneira — mas, para seu alarme, poucos segundos depois de acabar de esconder o sedã, apareceram faróis à distância, na estrada para Pequim. Abaixou-se, ajoelhando-se nas moitas, e observou o automóvel passar, fascinado pela vista de uma bicicleta amarrada no teto, depois preocupado, quando momentos depois o motor foi desligado abruptamente. O carro parara depois da curva mais à frente. Cauteloso, admitindo a possibilidade de que seu carro tivesse sido visto por um agente experiente, que estacionaria fora de vista e voltaria a pé, Jason correu ao longo da estrada, pelas moitas emaranhadas, além das árvores. Correu aos arrancos, de um pinheiro para outro, até o meio da curva, onde tornou a se ajoelhar, nas sombras verdes, esquadrinhando cada palmo à beira da estrada, atento a qualquer som que não pertencesse ao murmúrio da estrada rural deserta.

Nada. E depois, finalmente, alguma coisa; quando ele viu o que era, não fazia o menor sentido. Ou será que fazia? O homem na bicicleta com uma luz no pára-lama dianteiro pedalava pela estrada como se a vida dependesse de uma velocidade que não poderia alcançar. Quando ele chegou mais perto, Bourne constatou que era o vigia... de bicicleta... e uma bicicleta estava presa no teto do carro que parara depois da curva. Teria sido para o vigia? Claro que não; o carro continuaria até o portão... Uma segunda bicicleta? Um segundo vigia... chegando de bicicleta? Mas é claro! Se o que ele pensava era verdade, o guarda no portão seria trocado, um conspirador assumindo o seu lugar.

Jason esperou até que a luz na bicicleta fosse apenas um ponto mínimo à distância na escuridão, depois correu pela estrada de volta a seu carro e à árvore com o entalhe no tronco. Desenterrou a mochila e começou a tirar os instrumentos de seu ofício. Removeu o casaco e a camisa branca, vestiu uma suéter preta de gola olímpica; prendeu a bainha da faca de caça no cinto da calça escura, enfiou a automática com uma única bala no outro lado. Pegou os dois carretéis ligados por um fio fino de três metros, julgando que o instrumento letal era muito melhor do que o outro que improvisara em Hong Kong. Por que não? Estava muito mais perto de seu objetivo, se tinha algum valor qualquer coisa que aprendera na distante Medusa. Enrolou o fio nos dois carretéis, igualmente, com todo cuidado meteu tudo no bolso direito traseiro da calça, depois pegou uma pequena lanterna e prendeu-a na. beira inferior do bolso direito da frente. Pôs uma fileira comprida e dupla de bombinhas chinesas, dobrada e presa por um elástico, no bolso esquerdo da frente, junto com três caixas de fósforos e uma pequena vela de cera. O item mais incômodo era um alicate de cortar arame de tamanho médio. Meteu-o com a ponta para baixo no bolso esquerdo traseiro, depois soltou a mola para que os dois cabos curtos se comprimissem contra o pano, prendendo o instrumento no lugar. Finalmente, pegou uma pilha de roupas, tão enrolada e comprimida que as dimensões não eram maiores que a de um rolo de pastel. Ajeitou-a sobre a espinha, puxou o elástico pela cintura, prendeu os clipes na frente. Talvez nunca precisasse usar aquelas roupas, mas também não podia deixar nada ao acaso... estava perto demais!

Vou pegá-lo, Marie! Juro que vou pegá-lo e teremos nossa vida outra vez. Sou, eu David, quem promete. Eu a amo muito! E preciso tanto de você!

Pare com isso! Não há pessoas, apenas objetivos. Não há emoções, apenas objetivos, e eliminações de homens que se inter ponham no caminho. Não tenho qualquer serventia para você, Webb. É um mole, e eu o desprezo. Dê toda atenção a Delta... toda atenção a Jason Bourne!

O matador que era um matador por necessidade enterrou a mochila com a camisa branca e o paletó de tweed, depois levantou-se entre os pinheiros. Os pulmões se encheram ao pensamento do que tinha pela frente, uma parte dele assustada e insegura, a outra furiosa, fria como gelo.

Jason começou a seguir para o norte, na direção da curva, passando de uma árvore para outra, como fizera antes. Chegou ao carro que passara por ele com a bicicleta presa no teto; estacionado à beira da estrada, tinha um cartaz grande preso com fita adesiva sob a janela da frente. Jason chegou mais perto e leu os caracteres chineses, sorrindo para si mesmo enquanto o fazia:

Este é um veículo oficial do governo enguiçado. Mexer em qualquer parte do mecanismo é um crime grave. O roubo deste veículo acarretará em execução sumária para o culpado.

No canto inferior esquerdo havia uma coluna em caracteres bem pequenos:

Gráfica do Povo Número 72. Xangai.

Bourne especulou quantas centenas de milhares de cartazes assim teriam sido feitos pela Gráfica 72. Talvez substituíssem o seguro, dois em cada veículo.

Recuou para as sombras e continuou pela curva, até alcançar o espaço aberto, à frente do portão iluminado. Os olhos acompanharam a cerca verde. À esquerda, desaparecia na escuridão a floresta. À direita, estendia-se por cerca de sessenta metros além da guarita, ao longo de um estacionamento com vagas numeradas para ônibus de excursão e táxis, depois virava abruptamente para o sul. Como ele já imaginava, um santuário de pássaros na China seria fechado, um impedimento para os caçadores ilegais. Como d’Anjou dissera: “Os pássaros são reverenciados na China há séculos. São considerados iguarias para os olhos e o paladar.” Eco. Eco se fora. Especulou se d’Anjou sofrera... Não há tempo.

Vozes! Bourne virou a cabeça para trás, na direção do portão. O oficial do exército chinês e um vigia novo e muito mais jovem... não, decididamente não era um guarda... saíram de trás da guarita. O guarda empurrava uma bicicleta; enquanto o oficial mantinha um pequeno rádio junto ao ouvido.

— Eles começarão a chegar pouco depois das nove horas — disse o oficial, baixando o rádio e embutindo a antena. — Sete veículos, a intervalos de três minutos.

— E o caminhão?

— Será o último.

O guarda olhou para o relógio.

— Talvez fosse melhor você ir buscar o carro. Se houver uma verificação pelo telefone, conheço a rotina.

— Boa idéia — disse o oficial, prendendo o rádio no cinto e pegando o guidom da bicicleta. — Não tenho paciência com essas mulheres burocratas que ladram como cadelas chows.

— Mas deve ter — advertiu o guarda, rindo. — E deve se aproximar das solitárias, das feias, oferecendo o melhor desempenho possível entre suas pernas. Já imaginou se fosse contemplado com um relatório negativo? Poderia perder este emprego celestial.

— Está se referindo àquele camponês débil mental que você substituiu...

— Claro que não —respondeu o guarda, largando a bicicleta. — Sempre procuram os mais jovens, os bonitos, como eu. Através de nossas fotografias, é claro. Ele é diferente. Paga yuans de suas vendas de objetos perdidos. Às vezes tenho dúvidas se ele consegue algum lucro.

— Tenho dificuldades para compreender vocês, civis.

— Correção, se me permite Coronel. Na verdadeira China, sou um capitão no Kuomintang.

Jason ficou aturdido com o comentário do homem mais jovem. Na verdadeira China, sou um capitão no Kuomintang. A verdadeira China? Formosa? Santo Deus, já teria começado? A guerra entre as duas Chinas? Era sobre isso que aqueles homens estavam falando? Mas que loucura! Um massacre em larga escala! O Extremo Oriente seria explodido da face da Terra! Em sua caçada por um assassino, ele teria se deparado com o inconcebível?

Era demais para absorver, assustador, cataclísmico. Tinha de agir depressa, reprimir todo e qualquer pensamento, concentrar-se apenas no movimento. Olhou para o mostrador luminoso do relógio. Eram oito e quarenta e cinco e lhe restava muito pouco tempo para fazer o que precisava. Esperou até que o oficial passasse de bicicleta, depois avançou cautelosamente, sem fazer barulho, através da folhagem, até divisar a cerca. Aproximou-se, tirando a lanterna do bolso, acendeu-a duas vezes para calcular as dimensões da cerca. Eram extraordinárias. A altura não era inferior a três metros e meio, a parte de cima era inclinada para fora, como a barricada interior de uma cerca de prisão, com arame farpado estendido entre as barras paralelas. Jason estendeu a mão para o bolso traseiro, apertou os cabos do alicate e removeu-o. Tateou com a mão esquerda pela escuridão, encontrou os arames cruzados mais próximos do solo, encostou a cabeça do alicate no mais baixo.

Se David Webb não estivesse desesperado e Jason Bourne não estivesse furioso, o trabalho nunca seria realizado. Não era uma cerca comum. O arame era mais grosso e mais forte que o de qualquer outra cerca que contivesse os mais violentos criminosos do mundo. Cada um exigiu toda a força de Jason, manipulando o alicate para a frente e para trás, até parti-lo. Mas preciosos minutos foram consumidos no esforço.

Bourne tornou a olhar para o mostrador luminoso do relógio. Nove e seis. Usando o ombro, os pés fincados na terra, empurrou o retângulo vertical de pouco mais de meio metro para dentro, através da cerca. Rastejou para o outro lado, o suor encharcando seu corpo por toda parte. Ficou estendido no chão, respirando fundo. Não há tempo. Nove e oito.

Levantou-se, os joelhos trôpegos, sacudiu a cabeça para desanuviá-la, seguiu para a direita, apoiando-se na cerca, até chegar à virada da área de estacionamento, O portão iluminado estava sessenta metros à esquerda.

E, de repente, o primeiro veículo chegou. Era uma limusine russa, uma Zia, do final dos anos sessenta. Deu a volta no estacionamento e foi parar na primeira vaga à direita, ao lado do portão. Seis homens desembarcaram e se encaminharam em ritmo marcial para o que parecia ser a principal trilha do santuário dos pássaros. Desapareceram na escuridão, os fachos das lanternas iluminando o caminho. Jason observou atentamente; seguiria por aquela trilha.

Três minutos depois, pontualmente no intervalo previsto, um segundo carro passou pelo portão e foi estacionar ao lado da Zia. Três homens saíram do banco traseiro, enquanto o motorista e o passageiro ao seu lado ficavam falando. Segundos depois, os dois também saltaram. Bourne teve de fazer um grande esforço para se controlar quando seus olhos se fixaram no passageiro, um homem alto e esguio, que andava como um felino, deslocando-se para a traseira do automóvel, juntando-se ao motorista. Era o assassino! O caos no Aeroporto de Kai-tak exigira a armadilha elaborada em Pequim. Quem quer que estivesse atrás do assassino, tinha de ser apanhado depressa e silenciado. Vazara informações, chegando ao criador do assassino... pois quem mais conhecia as táticas do executor melhor do que o homem que as ensinara? Quem mais queria vingança tanto quanto o Francês? Quem mais era capaz de desenterrar o outro Jason Bourne? D’Anjou era a chave, e o cliente do impostor sabia disso.

E os instintos de Jason Bourne — nascidos de Medusa, lembrada de maneira gradativa e dolorosa — eram acurados. Quando a armadilha fracassara tão desastrosamente dentro do túmulo de Mao, uma profanação que abalaria a república, o círculo de elite de conspiradores tivera de se reagrupar rapidamente, secretamente, além do conhecimento de seus iguais. Defrontavam-se com uma crise sem precedentes; não havia tempo a perder na determinação dos próximos movimentos.

O mais importante, no entanto, era o sigilo. Onde quer que se encontrassem, o sigilo era a arma mais crucial. Na verdadeira China, sou um capitão do Kuomintang. Seria possível?

Sigilo. Por um reino perdido? Onde poderia ser melhor do que nos acres de idílicos santuários de pássaros do governo, parques oficiais controlados por poderosas toupeiras do Kuomintang? Uma estratégia nascida do desespero levara Bourne ao centro de uma incrível revelação. Não há tempo? Não é da sua conta! Somente ele interessa!

Dezoito minutos depois os seis veículos se encontravam no estacionamento, os passageiros dispersos, juntando-se a seus colegas em algum lugar da floresta escura do santuário. Finalmente, vinte e um minutos depois da chegada da limusine russa, um caminhão coberto de lona passou pelo portão, dando uma volta larga e indo parar na última vaga, a apenas dez metros de Jason. Chocado, observou homens e mulheres, amarrados e amordaçados, sendo empurrados para fora do caminhão; sem exceção, todos caíram, rolando pelo chão, gemendo em protesto e dor. E depois, logo além da abertura na lona, um homem começou a lutar, contorcendo o corpo baixo e esguio, chutando os dois guardas, que acabaram segurando-o e jogando-o no chão de cascalho do estacionamento. Era um homem branco... Bourne ficou paralisado. Era d’Anjou! Ao clarão dos refletores distantes, ele pôde constatar que o rosto de Eco estava todo machucado, os olhos inchados. O Francês levantou-se, a perna esquerda tremendo, quase arriando; mesmo assim, resistiu às provocações dos captores, assumindo uma atitude de desafio.

Mexa-se! Faça alguma coisa! O quê? Medusa... tínhamos sinais. Quais eram? Oh, Deus, quais eram? Pedras, gravetos... cascalho! Jogue alguma coisa para fazer um barulho, um pequeno som para desviar a atenção, o mais longe possível de uma área. E depois siga esse som rapidamente. O mais depressa possível!

Jason caiu de joelhos nas sombras junto à cerca. Abaixou a mão e pegou um punhado de cascalho, jogando para o ar, por cima das cabeças dos prisioneiros, que se esforçavam para ficar de pé. O breve estrépito sobre os telhados de vários carros perdeu-se entre os gritos abafados dos prisioneiros manietados. Bourne repetiu a ação, agora com mais algumas pedrinhas. O guarda ao lado de d’Anjou olhou na direção da chuva de cascalho, depois descartou o som quando sua atenção foi subitamente atraída para uma mulher que se levantara e começara a correr para o portão. Ele foi atrás, agarrou-a pelos cabelos e empurrou-a de volta para o grupo. Jason tornou a estender a mão para pegar mais pedras.

interrompeu o movimento no meio. D’Anjou caíra no chão, o peso apoiado no joelho direito, as mãos amarradas no cascalho. Observou o guarda distraído, depois lentamente virou a cabeça na direção de Bourne. Medusa nunca estava longe de Eco... ele se lembrara. Jason estendeu para a frente a palma da mão, uma vez, duas vezes. O tênue reflexo de luz em sua carne foi suficiente; o olhar do Francês foi atraído. Bourne deslocou a cabeça para a frente, nas sombras. Eco o via! Os olhos fizeram contato. D’Anjou acenou com a cabeça, depois virou-se e levantou-se, meio desajeitado, dolorosamente, enquanto o guarda voltava.

Jason contou os prisioneiros. Havia duas mulheres e cinco

homens, incluindo Eco. Foram tangidos pelos guardas, que tiraram dos cintos compridos porretes para cutucá-los, avançando pela trilha que saía do estacionamento. D’Anjou caiu. A perna esquerda cedeu, o corpo virando enquanto arriava. Bourne observava atentamente; havia algo de estranho na queda. E, depois, compreendeu. Os dedos das mãos do Francês, amarradas juntas na frente, estavam bem abertos. Encobrindo o movimento com o corpo, Eco recolheu dois punhados de cascalho. Enquanto o guarda se aproximava e o levantava, d’Anjou lançou um rápido olhar na direção de Bourne. Era um sinal. Ele largaria as pedrinhas no chão, enquanto durassem, a fim de que seu companheiro da Medusa tivesse uma trilha para seguir.

Os prisioneiros foram conduzidos para a direita, deixando a área coberta de cascalho, enquanto o jovem guarda, o “capitão do Kuomintang”, fechava o portão. Jason correu das sombras da cerca para as sombras do caminhão, tirando a faca de caça da bainha e se agachando junto ao capô, olhando para a guarita. O guarda estava ao lado da porta, falando pelo rádio portátil que o ligava com o local da reunião. O rádio teria de ser silenciado. E o homem também.

Amarre-o. Use suas roupas para amordaçá-lo.

Mate-o! Não pode haver riscos adicionais. Faça o que estou mandando!

Bourne baixou para o chão, cravando a faca de caça no pneu esquerdo dianteiro do caminhão; enquanto esvaziava, ele deslocou-se para o pneu traseiro e fez a mesma coisa. Dando a volta pela traseira do caminhão, correu pelo espaço que o separava do automóvel ao lado. Virando de um lado para outro, enquanto avançava, ele cortou os pneus restantes do caminhão e os pneus do lado esquerdo do carro. Repetiu a tática por todos os veículos, cortando todos os pneus, a não ser os da Zia russa, a apenas dez metros e pouco da guarita. Chegara o momento de cuidar do guarda.

Amarre-o...

Mate-o! Cada passo tem de ser encoberto e cada passo o leva de volta à sua mulher!

Sem fazer qualquer barulho, Jason abriu a porta do automóvel russo, estendeu a mão pelo interior e soltou o freio de mão. Fechando a porta tão silenciosamente quanto a abrira, calculou a distância do capõ para a cerca; era de aproximadamente dois metros e meio. Segurando a janela, Bourne comprimiu toda a sua força para a frente, fazendo uma careta, enquanto o carro enorme começava a rolar. Dando um último empurrão ao veículo, ele correu para a frente do carro ao lado, enquanto a limusine arremetia contra a cerca. Abaixou-se, fora de vista, estendendo a mão para o bolso direito traseiro.

Ouvindo o estrondo, o atônito guarda deu a volta, correndo para a guarita, e avançou pelo estacionamento, os olhos se deslocando em todas as direções, depois se fixando na Zia agora parada. Sacudiu a cabeça, como se aceitasse o defeito inexplicável da máquina, e encaminhou-se para a porta.

Bourne emergiu da escuridão, os carretéis nas mãos, o fio descrevendo um arco por cima da cabeça do guarda. Acabou em menos de três segundos, não houve qualquer som, além de uma nauseante expulsão de ar. O garrote foi letal; o capitão do Kuomintang estava morto.

Tirando o rádio do cinto do homem, Jason revistou as roupas. Havia sempre a possibilidade de se encontrar alguma coisa de valor. E havia mesmo! A primeira era uma arma... uma automática, o que não era de surpreender. O mesmo calibre da arma que ele tirara de outro conspirador, no túmulo de Mao. Armas especiais para pessoas especiais, outro elemento de reconhecimento, os armamentos coerentes. Em vez de uma bala, ele dispunha agora de uma carga completa de nove, além de um silenciador, que evitava perturbar o reverenciado morto num mausoléu reverenciado. A segunda era uma carteira, que continha dinheiro e um documento oficial, proclamando que o portador era um membro as Forças de Segurança do Povo. O conspirador tinha colegas nos mais altos escalões. Bourne empurrou o cadáver para baixo da limusine, cortou os pneus da esquerda e contornou o veículo, cravando a faca de caça nos pneus da direita. O capitão do Kuomintang dispunha de um lugar seguro e oculto para o repouso final.

Jason correu para a guarita, ponderando se deveria ou não apagar os refletores. Decidiu que não. Se sobrevivesse, precisaria da iluminação como ponto de referência. Se... se? Tinha de sobreviver! Marie! Ele entrou na guarita, abaixou-se sob a janela, tirou as balas da automática do guarda, inseriu-as em sua arma. Olhou ao redor, procurando por tabelas ou instruções; havia uma lista pegada na parede, ao lado da argola com chaves, pendurada num prego. Pegou as chaves.

Um telefone tocou! A campainha ensurdecedora ressoou pelas paredes de vidro da guarita. Se houver uma verificação pelo telefone, conheço a rotina. Um capitão do Kuomintang. Bourne levantou-se, pegou o fone no balcão e tornou a se abaixar, estendendo os dedos sobre o bocal.

— Jing Shan — disse ele, a voz rouca. — O que é?

— Olá, minha borboleta esvoaçante — disse uma voz de mulher, no que Jason constatou ser um mandarim inculto. — Como estão os seus pássaros esta noite?

— Eles estão bem, mas eu não.

— Parece diferente. É Wo quem está falando não é?

— Com um terrível resfriado, vomitando e correndo para o banheiro a cada dois minutos. Nada fica no lugar, está tudo saindo por baixo ou por cima.

— Estará bom pela manhã? Não quero ficar contaminada.

Deve se aproximar das solitárias, das feias.

— Eu não gostaria de perder o nosso encontro...

— Estará muito fraco. Ligarei para você amanhã de noite.

— Meu coração definha como a flor agonizante.

— Bosta de vaca!

A mulher desligou. Enquanto falava ao telefone, Jason observara uma grossa corrente enroscada no canto da guarita. Compreendeu a sua função. Na China, onde tantas coisas mecânicas falhavam, a corrente era um recurso secundário, caso a fechadura no meio do portão enguiçasse. Por cima da corrente havia um cadeado de aço comum. Uma das chaves na argola deveria ser a do cadeado, pensou ele. Experimentou várias, até abrir o cadeado. Pegou a corrente e começou a sair, mas parou de repente, virou-se e arrancou o telefone da parede. Mais um equipamento com defeito.

No portão, ele desenrolou a corrente e passou-a em torno do ponto intermediário dos dois postes centrais, até que havia uma massa protuberante de aço enroscado. Juntou quatro elos da corrente, deixando os espaços livres, passou a lingüeta do cadeado e fechou-o. Tudo estava bem esticado. Ao contrário da crença geral, disparar uma bala contra uma massa de metal

duro não pode separá-la; em vez disso, aumenta a possibilidade de que uma bala ricocheteada possa matar o autor dos disparos, assim como pôr em risco de vida todos os que se encontrarem na área. Jason virou-se e seguiu pela trilha central, mais uma vez permanecendo nas sombras à margem.

A trilha era escura. A claridade do portão iluminado era bloqueada pela folhagem densa do santuário dos pássaros, mas a luz ainda era visível no céu. Cobrindo a lanterna com a palma da mão esquerda, o braço estendido para baixo, ele podia ver, a intervalos de mais ou menos dois metros, uma pedrinha no solo. Depois de localizar duas ou três, soube o que tinha de procurar: pequenas descolorações na terra escura, com uma distância relativamente igual a separá-las. D’Anjou esfregara cada pedrinha, provavelmente entre o polegar e o indicador, com toda a força que podia, a fim de remover a fuligem do estacionamento e impregnar com os óleos de sua carne, para que cada uma pudesse sobressair. Apesar de bastante machucado, Eco não perdera a presença de espírito.

Subitamente, havia duas pedras, e não apenas uma, separadas por poucos centímetros. Jason levantou os olhos, esquadrinhando à claridade mínima da lanterna escondida. As duas pedras não eram casuais, mas outro sinal. A trilha principal continuava diretamente, em frente, mas a seguida pelos prisioneiros se desviava abruptamente para a direita. Duas pedras significavam uma volta.

E depois houve uma mudança nas distâncias relativas entre os seixos. Estavam cada vez mais apartadas; quando Bourne já começava a pensar que não haveria mais nenhuma, deparava com outra. Subitamente havias duas pedras na terra, assinalando outra trilha transversal. D’Anjou sabia que estava ficando sem pedras e iniciara uma segunda estratégia, uma tática que logo se tornou evidente para Jason. Enquanto os prisioneiros permanecessem na mesma trilha, não haveria pedras; mas quando entrassem em outras, dois seixos indicariam a direção.

Jason contornou a beira de charcos, atravessou campos, ouvindo por toda parte o repentino adejar de asas e os guinchos de pássaros perturbados, alçando vôo ao luar. E, finalmente, havia apenas uma trilha estreita, conduzindo a uma espécie de ravina...

Parou, apagando no mesmo instante a lanterna coberta. Lá embaixo, cerca de trinta metros pela trilha, podia avistar o brilho de um cigarro. Deslocava-se devagar, para cima e para baixo, um homem despreocupado fumando; apesar disso, o homem estava postado ali por um motivo. Jason estudou a escuridão além... porque era uma escuridão diferente, com pontos de luz piscando de vez em quando através da folhagem densa da ravina. Talvez fosse tochas, pois não havia nada de constante nas luzes quase indiscerníveis. Claro, eram realmente tochas. Ele chegara ao lugar. Lá embaixo, na ravina distante, além do guarda com seu cigarro, ficava o ponto de encontro.

Bourne avançou pelas moitas emaranhadas no lado direito da trilha. Sentiu oposição e olhou para baixo, descobrindo que os juncos estavam como redes, os talos entrelaçados por anos de ventos irregulares. Desemaranhá-los ou quebrá-los faria um ruído incoerente com os sons normais do santuário. Estalidos e rangidos não eram o súbito adejar de asas e os guinchos de habitantes incomodados. Eram produzidos pelo homem, e significavam uma intromissão diferente. Jason pegou a faca, desejando que a lâmina fosse mais comprida, e iniciou uma jornada que não levaria mais de trinta segundos se permanecesse na trilha. Demorou agora quase vinte minutos para abrir caminho até uma posição em que podia ver o guarda.

Santo Deus!

Jason prendeu a respiração, reprimindo o grito em sua garganta. Escorregara; a criatura escorregadia e sibilante sob  seu pé esquerdo tinha pelo menos um metro e meio de comprimento. Enroscou-se em torno de sua perna; em pânico, ele segurou uma parte do corpo e puxou-a de sua carne, cortando-a em pleno ar com a faca. A cobra estrebuchou violentamente por vários segundos, e depois os espasmos cessaram; estava morta, desenroscada, ao lado de seu pé. Jason fechou os olhos e estremeceu, deixando o momento passar. Tornou a se agachar ainda mais perto do guarda, que estava agora acendendo, ou tentando acender outro cigarro, com um fósforo depois de outro a falhar. O guarda parecia furioso com a caixa de fósforos subsidiada pelo governo.

— Ma de shizi, .shizi! — murmurou ele, o cigarro na boca.

Bourne avançou mais um pouco, cortando os últimos talos,

até ficar a dois metros do homem. Guardou a faca de caça na bainha e tornou a estender a mão para o bolso direito traseiro, a fim de pegar o garrote. Não podia haver uma lâmina se deslocando um pouco e permitindo um grito; o silêncio tinha de ser absoluto, rompido apenas por uma expulsão de ar que ninguém ouviria.

Ele é um ser humano! Um filho, um irmão, um pai!

Ele é o inimigo. Ele é o nosso alvo. Isso é tudo o que precisamos saber. Marie é sua, não deles.

Jason Bourne ergueu-se abruptamente, no instante em que o guarda dava a primeira tragada. A fumaça explodiu de sua boca escancarada, O garrote foi posto no lugar, a traquéia cortada, o homem caiu nas moitas, o corpo inerte, a vida encerrada.

Tirando o fio ensangüentado, Jason sacudiu-o na folhagem, depois tornou a enrolá-lo nos carretéis e guardou no bolso. Puxou o cadáver pelos arbustos, para longe da trilha, e começou a revistar os bolsos. Encontrou primeiro o que parecia ser um maço grosso de papel higiênico dobrado, o que nada tinha de incomum na China, em que havia uma permanente escassez desse artigo. Jason pegou a caneta, acendeu com a mão por cima e olhou para sua descoberta, atônito. O papel estava dobrado e era macio, mas não era papel higiênico. Era renminbi, milhares de yuans, mais do que a renda de vários anos da maioria dos chineses, O guarda no portão, o “capitão do Kuomintang”, tinha dinheiro — mais do que Jason julgara normal — mas nem de longe uma quantia daquelas. Uma carteira foi a descoberta seguinte. Havia fotografias de crianças, que Bourne tornou a guardar apressadamente, uma licença de motorista, uma certidão de moradia e um documento oficial proclamando que o portador era um... membro das Forças de Segurança do Povo! Jason pegou o documento que tirara da carteira do primeiro guarda e colocou os dois no chão, lado a lado. Eram idênticos. Dobrou-os e meteu no bolso. Um último item era tão desconcertante quanto interessante. Era um passe, permitindo o acesso do portador às Lojas da Amizade, os estabelecimentos que serviam aos viajantes estrangeiros, proibidos aos chineses, a não ser os que ocupavam os mais altos escalões do governo. Quem quer que fossem os homens lá embaixo, refletiu Bourne, constituíam um grupo estranho e restrito. Guardas subordinados andavam com quantias vultosas, desfrutavam de privilégios oficiais anos-luz além de suas posições e tinham documentos que os identificavam como membros da polícia secreta do governo. Se eram mesmo conspiradores — e tudo o que vira e ouvira de Shenzen na Praça Tian An Men e naquela reserva de vida selvagem parecia confirmar—, então, a conspiração estava infiltrada na alta hierarquia de Pequim. Não há tempo! Não é da sua conta!

A arma na cintura do homem, como Jason já esperava, era igual à que ele tinha no cinto e à que jogara entre os arbustos no portão de Jing Shan. Era uma arma de qualidade superior, e as armas eram símbolos. Uma arma sofisticada era uma marca de posição, tanto quanto um relógio dispendioso; podia haver muitas imitações, mas os que tinham um olho experiente para a mercadoria saberiam reconhecer o produto genuíno. Bastava mostrá-la para confirmar ou negar uma posição, em um exército que comprava suas armas em todas as fontes disponíveis do mundo. Era um ponto sutil de reconhecimento — só um tipo superior era distribuído a um círculo de elite. Não há tempo! Não é da sua conta! Mexa-se!

Jason tirou as balas, guardou-as no bolso, jogou a automática na floresta. Saiu da trilha e começou a descer, devagar, sem fazer barulho, em direção às luzes bruxuleantes lá embaixo, além do paredão de árvores altas.

Era mais do que uma ravina, era um enorme poço escavado na terra pré-histórica, uma ruptura que datava da era glacial e que nunca se fechara. Pássaros sobrevoavam o local, em medo e curiosidade; corujas piavam numa dissonância irada. Bourne postou-se à beira do precipício, olhando através das árvores para a reunião lá embaixo. Um círculo pulsante de tochas iluminava o ponto de encontro. David Webb ficou chocado, com vontade de vomitar, mas uma ordem fria determinou que se controlasse: Pare com isso. Observe. Saiba o que está enfrentando.

Suspenso do galho de uma árvore por uma corda presa nos pulsos amarrados, os braços estendidos por cima da cabeça, os pés a poucos centímetros do solo, um prisioneiro se contorcia em pânico, gritos abafados saindo de sua garganta, os olhos desvairados e suplicantes por cima da boca amordaçada.

Um homem esguio, de meia-idade vestindo túnica e calça Mao, estava parado na frente do corpo que se contorcia violenta mente. A mão direita estava estendida, segurando o cabo cravejado de pedras preciosas de uma espada, a lâmina comprida e fina, a ponta encostada na terra. David Webb reconheceu a arma... pois era uma arma e ao mesmo tempo não era. Tratava-se de uma espada cerimonial de um senhor da guerra do século X uma classe impiedosa de militaristas que destruíram aldeias e pequenas cidades, devastavam campos intermináveis, quando sequer se suspeitava de alguma oposição à vontade dos imperadores Yuan, mongóis que deixavam em sua esteira apenas fogo e morte, e os gritos das crianças. A espada era também usada para cerimônias muito menos simbólicas e muito mais brutais do que os rituais desenvolvidos nas cortes da dinastia. David sentiu uma onda de náusea e apreensão envolvê-lo, enquanto observava a cena lá embaixo.

— Escutem-me! — gritou o homem esguio na frente do prisioneiro, virando-se para a audiência.

A voz era estridente, mas incisiva, imperativa. Bourne não o conhecia, mas era um rosto que seria difícil esquecer. Os cabelos grisalhos curtos, as feições pálidas e encovadas — acima de tudo, o olhar. Jason não podia ver os olhos nitidamente, mas dava para perceber que as chamas das tochas bruxuleavam nelas. Aqueles olhos também estavam em fogo.

— As noites da grande lâmina começaram! — gritou o homem. — E vão continuar, noite após noite, até que todos aqueles que nos traíram sejam mandados para o inferno! Cada um desses insetos venenosos cometeu crimes contra a nossa sagrada causa, crimes de que temos conhecimento, todos podendo levar ao grande crime que exige a grande lâmina.

Ele fez uma pausa, virando-se bruscamente para o prisioneiro suspenso

— Você! Diga a verdade e somente a verdade! Conhece o ocidental?

O prisioneiro sacudiu a cabeça, gemidos guturais acompanhando o movimento frenético

— Mentiroso! — berrou uma voz, do meio da multidão.

— Ele estava na Tian An Men esta tarde!

O prisioneiro tornou a sacudir a cabeça, em pânico.

— Ele falou contra a verdadeira China! — gritou outro. — Ouvi-o no Parque Hua Gong, entre os jo

— E no café na Xidan Bei!

O prisioneiro se contorceu, os olhos arregalados, aturdidos, fixados em choque na multidão. Bourne começou a compreender. O homem estava ouvindo mentiras e não sabia por quê. Mas Jason sabia. O tribunal da inquisição estava em sessão; um criador de problemas ou um homem em dúvida era eliminado, em nome de um crime maior. E sob a possibilidade secundária de que pudesse tê-lo cometido. As noites da grande lamina começaram... noite após noite. Era um reinado de terror num reino pequeno e sanguinário, numa terra vasta, em que os senhores da guerra brutais haviam prevalecido por séculos.

— Ele fez essas coisas? — gritou o orador de rosto encovado. — Ele disse essas coisas?

Um coro frenético de respostas afirmativas preencheu a depressão.

— Na Tian An Men!...

— Ele falou com o ocidental!...

— Ele nos traiu!...

— Ele causou o tumulto no túmulo do odiado Mao!...

— Ele queria nos ver mortos, nossa causa perdida!...

— Ele fala contra os nossos líderes e quer que eles morram!...

— Opor-se aos nossos líderes é vilipendiá-los — declarou o orador, a voz calma, mas se alteando. — Ao fazer isso, uma pessoa abandona o zelo que se deve conceder à preciosa dádiva chamada vida. Quando essas coisas ocorrem, a dádiva deve ser tomada.

O homem suspenso contorceu-se ainda mais furiosamente, os gritos se tornando mais e mais altos, em meio aos gemidos dos outros prisioneiros, obrigados a se ajoelharem diante do orador, em plena vista da execução iminente. Apenas um se recusava, tentando incessantemente se levantar, em desobediência e desrespeito, sendo sempre espancado pelo guarda mais próximo. Era Philippe d’Anjou. Eco estava enviando outra mensagem para Deita, mas Jason Bourne não conseguia entendê-la.

— . . .este hipócrita doentio e ingrato, este mestre dos jovens, que foi recebido como um irmão em nossas dedicadas fileiras porque acreditávamos nas palavras que dizia... tão bravamente, pensávamos... em oposição aos algozes de nossa pátria, não passa de um traidor. Suas palavras são ocas. É um companheiro consumado dos ventos traiçoeiros, que o levariam a nos sos inimigos, os algozes da Mãe China! Que em sua morte ele possa encontrar a purificação!

O orador com a voz agora estridente tirou a espada do chão e levantou-a acima da cabeça.

E que assim sua semente não se espalhe, recitou o erudito David Webb, recordando as palavras do encantamento antigo e querendo fechar os olhos, mas incapaz de fazê-lo, impedido por sua outra personalidade. Destruamos o poço de que a semente emerge, suplicando aos espíritos para destruírem tudo o que penetrou aqui na terra.

A espada desceu, cortando a virilha e os órgãos genitais do corpo a se debater e a gritar.

E para que os seus pensamentos não se espalhem, contaminando os inocentes e os fracos, oramos aos espíritos para destruí-los, onde quer que estejam, assim como aqui destruímos a fonte de onde emergem.

A espada foi agora manejada na horizontal, cortando o pescoço do prisioneiro. O corpo a estrebuchar caiu no chão, sob uma chuva de sangue da cabeça decepada, que o homem esguio, de olhos de fogo, continuou a golpear com a lâmina, até que não havia a menor possibilidade de se reconhecer um rosto humano.

Os outros prisioneiros aterrorizados povoaram a depressão com gemidos de horror, enquanto rastejavam, implorando misericórdia. Exceto um. D’Anjou levantou-se e fitou em silêncio o homem messiânico com a espada. O guarda aproximou-se. Ouvindo-o, o francês virou-se e cuspiu em sua cara. O guarda, hipnotizado, talvez repugnado pelo que testemunhara, recuou. O que Eco estava fazendo? Qual era a sua mensagem?

Bourne olhou para o carrasco de rosto encovado e cabelos grisalhos rentes. Ele estava limpando a lâmina comprida da espada com um lenço branco de seda, enquanto seus ajudantes removiam o corpo e o que restara da cabeça do prisioneiro. Apontou para uma mulher atraente, que estava sendo arrastada para a corda por dois guardas. Sua postura era ereta, de desafio. Delta estudou o rosto do carrasco. Por baixo dos olhos de maníaco, a boca fina do homem se contraía. Ele estava sorrindo.

Era um homem morto. Em algum momento. Em algum lugar. Talvez naquela noite. Um carniceiro, um fanático cego e sedento de sangue, que podia mergulhar o Extremo Oriente numa guerra inconcebível — China contra China, seguindo-se o resto do mundo.

Esta noite!


 

— Esta mulher é uma mensageira, uma daquelas a quem concedemos nossa confiança — continuou o orador, alteando a voz gradativamente, como um ministro fundamentalista, pregando o evangelho do amor enquanto seus olhos estão fixados na obra do demônio. — A confiança não foi ganhada, mas dada de boa fé, pois ela é a esposa de um dos nossos, um bravo soldado, um primogênito de uma ilustre família da verdadeira China. Um homem que enquanto falo aqui arrisca sua vida para se infiltrar entre nossos inimigos no sul. Ele também concedeu sua confiança a esta mulher... e ela traiu essa confiança, traiu seu bravo marido, traiu a todos nós! Não passa de uma prostituta que vai para a cama com o inimigo! E enquanto sua luxúria é saciada, quantos segredos ela revelou, quão mais profunda é sua traição? Ela é o contato do ocidental aqui em Pequim? É ela quem transmite informações a nosso respeito, quem revela a nossos inimigos o que procurar, o que esperar? Nossos homens mais experientes e dedicados prepararam uma armadilha para os nossos inimigos que haveria de exterminá-los, livrando-nos dos criminosos ocidentais, que só percebem as riquezas se rastejarem diante dos algozes da China. Foi relatado que ela estava no aeroporto esta manhã. Na aeroporto! Onde a armadilha estava sendo montada! Ela entregou seu corpo devasso a um homem dedicado, talvez drogando-o. Seu amante contou-lhe o que fazer, o que dizer a nossos inimigos? O que esta rameira fez?

A cena estava armada, pensou Bourne. Um capo flagrante de ausência de provas e baseado em rumores, a tal ponto que até um tribunal de Moscou mandaria um promotor-marionete de volta aos bancos escolares. O reinado de terror na tribo do senhor da guerra continuou. Eliminem os desajustados entre os desajustados. Descubram o traidor. Matem qualquer homem ou mulher que possa ser a pessoa que está nos traindo.

Um coro suave mas irado de “Prostituta!” e “Traidora!” elevou-se da audiência, enquanto á mulher manietada se debatia entre os dois guardas. O orador levantou as mãos, pedindo silêncio. Foi atendido no mesmo instante.

— Seu amante era um desprezível jornalista da Agência Noticiosa Xinhua, esse órgão mentiroso e desacreditado do regime desprezível. Eu disse “era”, pois há mais de uma hora que a repulsiva criatura está morta, com um tiro na cabeça, a garganta cortada, pois ele também era um traidor, por tudo o que sabemos! Falei pessoalmente com o marido desta prostituta, pois lhe concedo esta honra. Ele me instruiu a fazer o que exigem nossos espíritos ancestrais. Não quer ter mais nada com esta mulher...

— Aiyaaa! — Com uma fúria e força extraordinárias, a mulher conseguiu arrebentar o pano que lhe tapava a boca. — Mentiroso! Assassino dos assassinos! Você matou um homem decente e eu não traí ninguém! Eu é que fui traída! Não estava no aeroporto, e você sabe disso! Nunca vi esse ocidental, e você sabe disso também! Não sei de nada sobre essa armadilha para criminosos ocidentais, e você pode ver a verdade em meu rosto! Como eu poderia saber?

— Ao se prostituir para um dedicado servidor da causa, corrompendo-o, drogando-o! Oferecendo seus seios e o malfadado túnel da corrupção, recuando, retirando, até que as ervas o levaram à loucura!

— Você está completamente louco! Diz essas coisas, essas mentiras, porque mandou meu marido para o sul e depois foi me procurar, por muitos dias, primeiro com promessas e depois com ameaças. Eu deveria me submeter a você. Disse que era meu dever! Você deita comigo e eu descubro coisas...

— Mulher, você é desprezível! Fui à sua procura para suplicar que honrasse seu marido, que honrasse a causa! Que abandonasse seu amante e procurasse o perdão!

— Mentira! Homens vão à sua procura, taipans do sul, enviados por meu marido, homens que não podem ser vistos em sua companhia. Eles vão secretamente às lojas por baixo de meu apartamento, o apartamento de uma suposta viúva honrada... outra mentira que você impôs a mim e a minha filha!

— Prostituta! — berrou o homem de olhos desvairados com a espada.

— Mentiroso até as profundezas dos lagos do norte! — gritou a mulher em resposta. — Como você, meu marido tem muitas mulheres e não se importa comigo! Ele me espanca e diz que é um direito seu, pois é um grande filho da verdadeira China! Levo mensagens de uma cidade para outra, que se fossem encontradas em meu poder levariam à tortura e à morte! Em troca, recebo apenas o desdém! Nunca recebi o dinheiro das passagens ou o dinheiro que perco em meu trabalho, pois me dizem que é meu dever! Mas como minha filha vai comer? A criança que seu grande filho da China mal reconhece, pois queria apenas filhos homens!

— Os espíritos não concederiam filhos a você, pois eles seriam mulheres, desgraçando uma grande casa da China! Você é a traidora! Foi ao aeroporto e entrou em contato com nossos inimigos, permitindo que um grande criminoso escapasse! Você nos escravizaria por mil anos...

— Você nos transformaria em gado por dez mil!

— Não sabe o que é liberdade, mulher.

— Liberdade? De sua boca? Pois então me diga... diga a todos nós... vai devolver as liberdades que nossos antepassados tinham na verdadeira China... mas que liberdades, mentiroso? A liberdade que exige a obediência cega, que tira o arroz de minha filha, uma criança abandonada pelo pai, que acredita apenas em senhores... senhores da guerra, senhores da terra, senhores do mundo! Aiya!

A mulher virou-se para a multidão, adiantando-se, afastando-se do orador.

— Vocês! — gritou ela. — Todos vocês! Eu não traí vocês, não traí a nossa causa, mas aprendi muitas coisas. Nem tudo era como diz este mentiroso! Há muito sofrimento e restrições, como todos sabemos, mas já havia sofrimento antes, havia proibições antes!... Meu amante não era um homem mau, não era um adepto cego do regime, mas um homem culto, um homem gentil, um homem que acreditava na China eterna! Ele queria as coisas que nós queremos! Pedia apenas tempo para corrigir os males que haviam infectado os velhos nos comitês que nos dirigem. Haverá mudanças, ele me dizia. Algumas já estão começando a ocorrer. Agora! ... Não permitam que o mentiroso faça isso comigo! Não permitam que ele faça isso com vocês!

— Prostituta! Traidora!

A lâmina zuniu pelo ar, decapitando a mulher. O corpo sem cabeça tombou para a esquerda, a cabeça caiu para a direita, ambos esguichando gêiseres de sangue. O orador messiânico brandiu a espada para baixo, retalhando o cadáver. Mas o silêncio que se abatera sobre a multidão era opressivo, assustador. Ele parou; perdera o controle. Recuperou-o prontamente.

— Que os sagrados espíritos ancestrais concedam paz e purificação a esta mulher! — gritou ele, os olhos vagueando, parando, fixando-se em cada membro de sua. congregação. — Pois não é em ódio que encerro sua vida, mas em compaixão por sua fraqueza. Ela encontrará paz e perdão. Os espíritos compreenderão... mas nós devemos compreendê-la pela pátria! Não podemos nos desviar de nossa causa... devemos ser fortes! Devemos...

Bourne já não agüentava mais o maníaco. Era o ódio encarnado. E um homem morto. Em algum momento. Em algum lugar. Talvez esta noite... se possível, esta noite!

Delta desembainhou a faca e deslocou-se para a direita, rastejando pelo denso bosque de Medusa, o pulso estranhamente controlado, uma base furiosa de certeza se avolumando em seu íntimo — David Webb desaparecera. Havia tantas coisas que não podia lembrar daqueles dias distantes e enevoados, mas também havia muita coisa que lhe voltava. Os detalhes específicos eram indistintos, mas não os seus instintos. Impulsos o conduziam, e estava integrado na escuridão da floresta. A selva não era uma adversária; em vez disso, era sua aliada, pois já o protegera antes, o salvara antes, naquelas memórias distantes e desordenadas. As árvores, trepadeiras e arbustos eram seus amigos; movia-se através deles, em torno deles, como um felino, passos firmes, silencioso.

Virou para a esquerda, por cima da depressão antiga, iniciou a descida, focalizando a árvore em que o assassino se encostava, tranqüilo. O orador alterara outra vez sua estratégia para lidar com a audiência. Estava cortando suas perdas, em vez de cortar uma outra mulher, um ato que todos os filhos julgavam à beira da loucura, independente de qualquer causa terrena. Era preciso apagar as súplicas de uma mulher morta e mutilada. Um mestre de seu ofício — sua arte —, o orador sabia quando reverter ao evangelho de amor, omitindo Lúcifer momentaneamente. Ajudantes haviam removido rapidamente as evidências de morte violenta, e a outra mulher foi chamada, com um gesto da espada cerimonial. Ela não tinha mais que dezoito anos, se tanto, uma garota bonita, chorando e vomitando, enquanto era arrastada para a frente.

— Suas lágrimas e seus males não são necessários, criança — disse o orador, em sua voz mais paternal. — Sempre foi nossa intenção poupá-la, pois lhe foi pedido que cumprisse deveres além de sua competência e idade, teve acesso a segredos além de sua compreensão. A juventude freqüentemente fala quando devia se manter em silêncio... Você foi vista na companhia de dois irmãos de Hong Kong... mas não nossos irmãos. Homens que trabalham para a ignominiosa Coroa Inglesa, esse governo débil e decadente que vendeu a pátria a nossos algozes. Eles lhe deram jóias bonitas, batom e perfume francês de Kowloon. E agora, criança, me diga: o que deu a eles?

A garota, vomitando histericamente através da mordaça, sacudiu a cabeça, frenética, as lágrimas escorrendo pelo rosto.

— Sua mão estava por baixo de uma mesa, entre as pernas de um homem, num café no Guangquem! — gritou um acusador.

— Era um dos porcos que trabalham para os britânicos! — acrescentou outro.

— A juventude está sujeita à excitação — disse o orador, olhando com expressão irada para os que haviam falado, como se ordenasse silêncio. — Há perdão em nossos corações para essa exuberância jovem.., desde que a traição não seja parte dessa excitação, dessa exuberância...

— Ela estava no Portão Qian Men!...

— Ela não estava na Tian An Men! — gritou o homem com a espada. — Eu mesmo verifiquei isso! Sua informação é errada. A única dúvida que resta é bastante simples. Criança! Você falou de nós? Suas palavras poderiam ter sido transmitidas a nossos inimigos aqui ou no sul?

A garota contorceu-se, o corpo todo balançando freneticamente para a frente e para trás, negando a acusação implícita.

— Aceito a sua inocência, como um pai faria, mas não a sua insensatez, criança. É livre demais em seus relacionamentos, em seu amor por coisas bonitas. Quando essas atitudes não nos servem, podem se tornar perigosas.

A moça foi entregue à custódia de um membro do coro, um homem de meia-idade presunçoso e obeso, para “instrução e meditação”. Pela expressão do homem, era evidente que seu mandato seria muito mais amplo do que o prescrito pelo orador. E quando acabasse com ela, uma sereia que arrancara segredos da alta hierarquia de Pequim, que gostava de garotas — acreditando que tais ligações, como Mao determinara, estendiam suas expectativas de vida — iria desaparecer.

Dois dos três chineses restantes foram literalmente submetidos a julgamento. A acusação inicial foi tráfico de drogas, tendo como rede Xangai-Pequim. O verdadeiro crime, no entanto, não era o de distribuir narcóticos, mas o de constantemente desviar os lucros, depositando enormes quantias em contas pessoais, em diversos bancos de Hong Kong. Várias pessoas na audiência se adiantaram para confirmar as acusações, declarando que, como distribuidores subordinados, haviam entregado aos dois “chefes” grandes quantias em dinheiro, jamais registradas nos livros secretos da organização. Essa foi a acusação inicial, mas não a maior, que foi formulada pela voz estridente e monótona do orador:

— Viajam para o sul, até Kowloon. Uma, duas e até três vezes por mês. O aeroporto de Kai-tak... Você! — O fanático com a espada apontou para o prisioneiro à esquerda. — Voou de volta esta tarde. Estava em Kowloon ontem à noite. Ontem à noite! O Kai-tak! Fomos traídos ontem à noite no Kai-tak!

O orador afastou-se sinistramente do círculo de luz das tochas, avançando para os dois homens paralisados, ajoelhados à sua frente.

— Sua devoção ao dinheiro é maior do que a devoção à nossa causa — entoou ele, como um patriarca pesaroso, mas irado. — Irmãos no sangue e irmãos no roubo. Há muitas semanas que já sabemos, porque havia muita ansiedade da ganância de vocês. O dinheiro tinha de se multiplicar como ratos em esgotos pútridos, e por isso iniciaram atividades criminosas em Hong Kong. Uma grande capacidade de iniciativa, muita diligência... e uma estupidez inadmissível! Pensam que certas quadrilhas são desconhecidas para nós ou nós para elas? Pensam que não há áreas em que nossos interesses podem convergir? Pensam que eles têm menos aversão do que nós aos traidores?

Os dois irmãos manietados rastejavam na terra. Conseguiram ficar de joelhos, em súplica, sacudindo suas cabeças em negativa. Os gritos abafados eram súplicas para que fossem ouvidos, para que lhes fosse permitido falar. O orador aproximou-se do prisioneiro à esquerda e puxou a mordaça para baixo, a corda fazendo sangrar a pele do homem.

— Não traímos ninguém, grande senhor! —gritou ele, estridentemente. — Eu não traí ninguém! É verdade que eu estava no Kai-tak, mas apenas na multidão! Para assistir, senhor! Para me regozijar!

— Com quem você falou?

— Não falei com ninguém, grande senhor! Ah, sim, falei com o recepcionista. Para confirmar meu vôo na manhã seguinte, senhor. Isso foi tudo. Juro pelos espíritos de nossos ancestrais. Meus e de meu irmão, senhor.

— O dinheiro... o que me diz do dinheiro que roubou?

— Não houve roubo, grande senhor. Juro! Acreditávamos em nossos corações orgulhosos... corações que se tornaram orgulhosos por nossa causa... que poderíamos usar o dinheiro em prol da verdadeira China! Cada yuan de lucro seria devolvido à causa!

A multidão trovejou em resposta. Assovios desdenhosos foram lançados contra os prisioneiros; acordes de músicas de traição e roubo espalharam-se pela depressão no terreno. O orador levantou os braços, pedindo silêncio. As vozes se calaram.

— Que a palavra seja divulgada — disse ele, devagar, mas com uma força crescente. — Aqueles em nosso grupo sempre maior que possam acalentar pensamentos de traição fiquem advertidos. Não há misericórdia em nós, pois nenhuma nos foi concedida. Nossa causa é justa e pura, os meros pensamentos de traição já constituem uma abominação. Que se espalhe a notícia. Vocês não sabem quem somos ou onde estamos... se um burocrata num ministério ou um membro da polícia de segurança. Não estamos em parte alguma e estamos em toda parte. Aqueles que hesitam e duvidam estão mortos... O julgamento destes cães raivosos está encerrado. Agora depende de vocês, minhas crianças.

O veredicto foi rápido e unânime: culpados da primeira acusação, provavelmente da segunda também. A sentença: um irmão morreria, o outro viveria, sendo escoltado para o sul, até Hong Kong, onde o dinheiro seria recuperado. A escolha seria feita no ritual antigo do yi zang li, literalmente “funeral de um”. Cada homem recebeu uma faca idêntica, com lâminas serrilhadas e afiadas como navalha. A área de combate era um círculo, com um diâmetro de dez passos. Os dois homens se confrontaram, e o selvagem ritual começou. Um dos irmãos fez uma investida desesperada, e o outro desviou-se do ataque, sua lâmina cortando o rosto do atacante.

O duelo dentro do círculo fatal, assim como as reações primitivas da audiência, encobriram qualquer ruído feito por Bourne, em sua decisão de agir rapidamente. Ele desceu correndo pela vegetação baixa, quebrando galhos e cortando os ramos entrelaçados, até chegar a seis metros por trás da árvore em que o assassino se encostava. Ele voltaria e chegaria mais perto, mas primeiro havia d’Anjou. Eco precisava saber que ele estava ali.

O Francês e o último prisioneiro chinês estavam apartados, à direita do círculo, flanqueados pelos guardas. Jason avançou, enquanto a multidão bradava insultos e estímulos aos gladiadores. Os dois estavam agora cobertos de sangue; um dos combatentes desfechara um golpe quase fatal com sua faca, mas a vida que ele queria encerrar não se rendeu. Bourne não estava a mais que dois ou três metros de D’Anjou; tateou pelo terreno e pegou um galho caído. Em outro rugido da multidão desvairada, ele partiu-o duas vezes. Tirou as folhas dos três pedaços. Mirou e arremessou o primeiro pedaço, numa trajetória baixa. Caiu a pouca distância das pernas do Francês. Jogou o segundo pedaço; bateu nos joelhos de Eco! D’Anjou balançou a cabeça duas vezes, reconhecendo a presença de Delta. Depois, o Francês fez uma coisa estranha. Começou a mexer a cabeça devagar, para a frente e para trás. Eco estava tentando lhe dizer alguma coisa. Subitamente, a perna esquerda de D’Anjou cedeu e ele caiu no chão. Foi levantado bruscamente pelo guarda à direita; mas a concentração do homem estava na batalha sangrenta que se desenrolava no círculo de um funeral.

Eco tornou a sacudir a cabeça, lentamente, deliberadamente, depois olhou para a esquerda, na direção do assassino, que se afastara da árvore para observar o combate mortal. O Francês virou a cabeça mais uma vez, fixando-se agora no maníaco com a espada.

D’Anjou tornou a cair, desta vez conseguindo se levantar antes que o guarda pudesse tocá-lo. Enquanto se erguia, moveu os ombros finos para trás e para a frente. Respirando fundo, Bourne fechou os olhos, no único momento de pesar que podia se permitir. A mensagem era clara. Eco estava saindo do circuito, dizendo a Delta para pegar o assassino... e, no processo, aproveitar para matar o carniceiro evangélico. D’Anjou sabia que estava muito contundido e fraco para qualquer tentativa de fuga. Seria apenas um estorvo, e o impostor estava em primeiro lugar ...Marie estava em primeiro lugar. A vida de Eco chegara ao fim. Mas ele teria sua gratificação na morte do carniceiro maníaco, o fanático que certamente o mataria.

Um grito ensurdecedor encheu a depressão; a multidão ficou abruptamente silenciosa. Bourne virou a cabeça para a esquerda, espiando além dos espectadores. A cena era a mais repulsiva dentre todas as que testemunhara nos últimos e violentos minutos. O orador messiânico cravara sua espada cerimonial no pescoço de um combatente; puxou-a, enquanto o cadáver ensangüentado se sacudia nos estertores da morte e caía no chão. O ministro da morte levantou a cabeça e gritou:

— Médico!

— Pois não, senhor? — disse uma voz, do meio da multidão.

— Cuide do sobrevivente. Trate-o da melhor forma possível para a sua iminente viagem ao sul. Se eu deixasse o combate continuar, os dois acabariam mortos e perderíamos nosso dinheiro. Essas famílias unidas levam anos de hostilidade para o yi zang li. Peguem o irmão e joguem-no nos pântanos junto com os outros. Todos serão carniça para os pássaros mais agressivos.

— Está bem, senhor.

Um homem com uma maleta preta de médico adiantou-se para o círculo da morte, enquanto o cadáver era removido e uma maca surgia da escuridão, do outro lado da multidão. Tudo fora planejado, todos os fatores levados em consideração. O médico aplicou uma injeção no braço do irmão que gemia, coberto de sangue; ele foi posto na maca e levado do círculo da morte fraternal. Limpando a espada com outro lenço de seda limpo, o orador acenou com a cabeça na direção dos dois prisioneiros restantes.

Aturdido, Bourne observou o chinês ao lado de d’Anjou desfazer as cordas que lhe amarravam os pulsos, depois levar uma das mãos à nuca e remover o pedaço de pano e a corda que supostamente impediam sua boca de emitir qualquer som, a não ser gemidos guturais. O homem encaminhou-se para o orador e falou, a voz alteada, dirigindo-se a seu líder e à multidão de partidários:

— Ele nada diz, nada revela, mas seu chinês é fluente e teve todas as oportunidades de me falar, antes de embarcarmos no caminhão e sermos amordaçados. Mesmo depois, comuniquei-me com ele, soltando a minha mordaça e propondo afrouxar a sua. Ele recusou. É obstinado e corruptamente corajoso, mas tenho certeza de que sabe o que não nos dirá.

— Tong ku, tong ku!

Gritos frenéticos da multidão exigiam a tortura. Acrescentaram-se instruções, limitando a área da dor infligida aos testículos do ocidental.

— Ele é velho e frágil, vai resvalar para a inconsciência, como aconteceu antes — insistiu o falso prisioneiro. — Portanto, sugiro o seguinte, com permissão do nosso líder.

— Se há alguma possibilidade de sucesso, tem permissão para fazer o que deseja — declarou o orador.

— Oferecemos a liberdade em troca da informação, mas ele não confia em nós. Vem lidando com marxistas há muito tempo. Proponho levar nosso relutante aliado ao aeroporto de Pequim e usar a minha posição para garantir-lhe uma passagem no próximo avião para Kai-tak. Eu o acompanharei pela imigração. Tudo o que ele precisa fazer, antes de embarcar com sua passagem, é me fornecer a informação. Como pode haver uma demonstração maior de confiança? Estaremos no meio de nossos inimigos; se a sua consciência estiver muito ofendida, só precisará levantar a voz. Ele viu e ouviu mais do que qualquer outra pessoa que já deixou o nosso círculo com vida. Com o tempo, podemos nos tornar aliados de verdade. Mas, primeiro, deve haver confiança.

O orador estudou o rosto do agente provocador, depois fitou d’Anjou, que estava empertigado, espiando com os olhos inchados, escutando sem qualquer expressão definida. O homem com a espada ensangüentada virou-se para o assassino encostado na árvore e disse, falando subitamente em inglês:

— Oferecemos poupar a vida deste manipulador insignificante se ele nos disser onde pode ser encontrado seu camarada. Você concorda?

— O Francês vai mentir! — declarou o assassino, com um sotaque britânico incisivo, adiantando-se.

— Com que objetivo? — perguntou o orador. — Ele tem sua vida, sua liberdade. Tem pouca ou nenhuma consideração pelos outros, como confirma o seu dossiê.

— Não sei direito — respondeu o inglês. — Trabalharam juntos numa unidade chamada Medusa. Ele estava sempre falando a respeito. Havia regras... códigos, pode chamá-los assim. Ele vai mentir.

— A infame Medusa era formada por refugos humanos, homens que matariam seus irmãos no campo, se isso pudesse salvar suas vidas.

O assassino deu de ombros.

— Você pediu minha opinião. É essa.

— Vamos perguntar à pessoa a quem estamos dispostos a oferecer misericórdia.

O orador voltou a falar em mandarim, dando ordens, enquanto o assassino voltava para junto da árvore e acendia um cigarro. D’Anjou foi arrastado para a frente.

— Desamarrem suas mãos. Ele não vai a parte alguma. E tirem a corda de sua boca. Vamos ouvi-lo. Mostrar a ele que podemos conceder... confiança, assim como aspectos menos atraentes de nossa natureza.

D’Anjou sacudiu as mãos aos lados do corpo, depois levantou a direita e massageou a boca, comentando em inglês:

— Sua confiança é tão compadecida e convincente quanto seu tratamento dos prisioneiros.

— Eu tinha esquecido. — O orador franziu as sobrancelhas. — Você nos compreende, não é?

— Um pouco mais do que você imagina.

— Ótimo. Prefiro falar inglês. De certa forma, fica entre nós, não é?

— Não há nada entre nós. Nunca tento negociar com loucos, pois são totalmente imprevisíveis. — D’Anjou lançou um olhar para o assassino junto à árvore. — Tenho cometido erros, é claro. Mas creio que, de alguma forma, um deles será corrigido.

— Você pode viver.

— Por quanto tempo?

— Por mais tempo que esta noite. O restante depende de você, de sua saúde e suas faculdades.

— Não vai, não. Tudo acabou quando cheguei perto daquele avião em Kai-tak. Não vão errar, como aconteceu ontem à noite. Não haverá forças de segurança, não haverá limusines à prova de balas, apenas um homem entrando ou saindo do terminal, outro armado com uma pistola de silenciador ou uma faca. Como disse o meu colega “prisioneiro” tão inconvincente, eu estive aqui esta noite. Vi e ouvi, e o que vi e ouvi me deixa marcado para a morte... De passagem, se ele especular por que não confiei, diga-lhe que foi muito óbvio, muito ansioso. E aquela mordaça se afrouxando de repente... Foi demais. Ele nunca poderia se tornar um pupilo meu. Como você, tem palavras insinuantes, mas é essencialmente estúpido.

— Como eu?

— Isso mesmo. E no seu caso, não há desculpa. É um homem instruído, já viajou pelo mundo... dá para perceber pela maneira como fala. Onde estudou? Oxford? Cambridge?

— Escola de Economia de Londres — respondeu Sheng Chou Yang, incapaz de se conter.

— Muito bom... a escola tradicional. Apesar disso, no entanto, você é oco. Um palhaço. Não é um erudito, nem mesmo um estudioso, apenas um fanático, sem o menor senso da realidade. Não passa de um idiota.

— Como se atreve a falar assim comigo?

— Fengzi! — gritou Eco, virando-se para a multidão. — Shenjing bing! — acrescentou ele, rindo, explicando que estava falando com um maluco enrolado.

— Pare com isso!

— Wei shemme? — continuou o enfraquecido Francês, indagando Por quê? e incluindo a multidão na conversa, ao falar em chinês. — Está levando essa gente à destruição por causa de suas teorias lunáticas de transformar chumbo em ouro! E mijo em vinho! Mas como disse aquela infeliz mulher... ouro de quem, vinho de quem? Seu ou deles?

D’Anjou sacudiu a mão na direção da multidão.

— Estou avisando! — gritou Sheng, em inglês.

— Estão vendo? — gritou Eco, a voz rouca e fraca, em mandarim. — Ele não quer falar comigo na língua de vocês! Esconde-se de vocês! O homenzinho de pernas finas com a espada grande... é para compensar o que lhe falta em outras partes? Ele retalha mulheres com sua lâmina porque não tem outro equipamento e não pode fazer mais nada? E olhem só para essa cabeça que parece um balão, com o topo achatado...

— Já chega!

— ... e os olhos de uma criança horrível, de voz esganiçada, desobediente! Como eu disse, ele não passa de um maluco enrolado. Por que dar a ele o tempo de vocês? Ele só vai lhes dar mijo em troca, nenhum vinho!

— Eu pararia se fosse você — disse Sheng, adiantando-se, com a espada. — Eles vão matá-lo antes que eu possa fazê-lo.

— Duvide que isso aconteça — respondeu d’Anjou, em inglês. —A ira está prejudicando a sua audição, Monsieur Falador. Não ouviu algumas risadinhas? Eu ouvi.

— Gou le! — berrou Shen Chou Yang, ordenando a Eco que ficasse em silêncio. E continuou, no chinês estridente de um homem acostumado a ser obedecido: — Vai nos dar a informação de que precisamos. O jogo acabou e não vamos tolerá-lo por mais tempo! Onde está o matador que você trouxe de Macau?

— Ali — respondeu d’Anjou, sacudindo a cabeça calmamente na direção do assassino.

— Não ele! O que surgiu antes! Aquele louco que você chamou de volta da sepultura para vingá-lo! Onde é o ponto de encontro? Onde vocês se reúnem? Onde fica a base de vocês aqui em Pequim?

— Não há nenhum ponto de encontro — respondeu Eco, voltando ao inglês. — Não há base de operações, não há planos de reunião.

— Havia planos! Vocês sempre se preocupam com as emergências! É assim que sobrevivem!

— Sobrevivíamos. Ponha o verbo no passado.

Sheng levantou a espada.

— Vai nos contar ou morre... e de maneira bastante desagradável, monsieur.

— Vou lhe contar uma coisa. Se ele pudesse ouvir minha voz, eu lhe explicaria que você é o homem que ele deve matar. Pois você é o homem que vai subjugar toda a Ásia, com milhões se afogando em oceanos do sangue de seus irmãos. Compreendo que ele precisa cuidar dos seus próprios problemas, mas eu lhe diria com meu último alento que você deve ser parte desse problema. Diria a ele para entrar em ação. E depressa!

Hipnotizado pelo desempenho de d’Anjou, Bourne estremeceu como se tivesse sido golpeado. Eco estava lhe transmitindo uma mensagem final. Mexa-se! Agora! Jason enfiou a mão no bolso esquerdo da frente, retirando o conteúdo, enquanto rastejava rapidamente pelas moitas, além da área de encenação dos selvagens rituais. Encontrou uma pedra grande, erguendo-se vários palmos pelo ar. O ar estava parado por trás, o tamanho era mais do que suficiente para esconder seu trabalho. Enquanto começava, podia ouvir a voz de Eco; estava fraca e trêmula, mas ainda assim desafiadora. Eco estava encontrando dentro de si mesmo recursos não apenas para enfrentar seus instantes finais, mas também para ganhar os poucos momentos preciosos de que Delta precisava.

— ... Não tenha pressa, mon général Gêngis Khan ou quem quer que você seja. Sou um velho, e seus asseclas fizeram um bom trabalho. Como disse, não vou a parte alguma. Por outro lado, não tenho certeza se me importo com o lugar para onde tenciona me mandar... Não fomos bastante espertos para perceber a armadilha que preparou para nós. Se fôssemos, nunca teríamos caído nela. Assim, por que acha que fomos bastante espertos para combinar um ponto de encontro?

— Porque vocês caíram na armadilha — disse Sheng Chou Yang, calmamente. — Seguiram... ele seguiu... o homem de Macau para o mausoléu. O louco esperava sair. Suas emergências incluíram tanto o caos quanto um ponto de encontro.

— À primeira vista, sua lógica pode parecer incontestável...

— Onde?

— Meu incentivo?

— Sua vida!

— Ah, sim, já mencionou isso...

— Seu tempo está se esgotando.

— Eu saberei qual é o meu tempo, monsieur!

Uma última mensagem. Delta compreendeu. Bourne riscou um fósforo, protegendo a chama, acendeu a vela de cera fina, o pavio cravado logo abaixo do topo. Rastejou rapidamente pelas moitas, desenrolando a fieira com as bombinhas chinesas. Chegou ao fim e começou a voltar para a árvore.

— ... Que garantia tenho eu para a minha vida? — insistiu Eco, divertindo-se estranhamente, um mestre do xadrez tramando a sua própria morte inevitável.

— A verdade — respondeu Sheng. — Isso é tudo de que precisa.

— Mas meu ex-pupilo garante a você que eu vou mentir... como você também mentiu sistematicamente esta noite. — D’Anjou fez uma pausa e depois repetiu sua declaração em mandarim. E perguntou aos espectadores se haviam compreendido: — Liao jie?

— Pare com isso!

— Você se repete incessantemente. Precisa aprender a se controlar. É um hábito desagradável.

— E minha paciência acabou! Onde está o louco?

— Em sua linha de trabalho, mon général, paciência é não apenas uma virtude, mas também uma necessidade.

— Espere! — gritou o assassino, afastando-se da árvore e surpreendendo a todos. — Ele está ganhando tempo! Está jogando com você! Eu o conheço e tenho certeza!

— Por que motivo? — indagou Sheng, a espada suspensa.

— Não sei — respondeu o comando britânico. — Apenas não gosto da situação, e isso é motivo suficiente para mim.

Três metros por trás da árvore, Delta olhou para o mostrador luminoso do relógio, concentrando-se no ponteiro dos segundos. Calculara o tempo em que a vela ardia no carro e a hora era agora. Fechando os olhos, suplicando a alguma coisa que não podia compreender, Jason pegou um punhado de terra e jogou bem alto, para a direita da árvore, ainda mais para a direita de D’Anjou. Quando ouviu o sussurro, Eco alteou a voz ao máximo que podia:

— Fazer um trato com você? Prefiro fazer com o arcanjo das trevas! Talvez ainda tenha de encontrá-lo, mas é possível também que não, pois um Deus misericordioso saberá que você cometeu pecados além de qualquer coisa que eu já fiz. Deixo este mundo querendo apenas levar você comigo. Mesmo pondo de lado a sua brutalidade indesculpável, mon générai, não passa de um chato presunçoso e vazio, uma piada cruel para o seu povo! Venha morrer comigo, General Bosta!

Com essas palavras finais, d’Anjou arremeteu contra Sheng Chou. Yang, metendo as unhas em seu rosto, cuspindo nos olhos arregalados e atônitos. Sheng saltou para trás, golpeando com a espada cerimonial, a lâmina cortando a cabeça do Francês. Com uma rapidez misericordiosa, tudo acabou para Eco.

E foi nesse instante que começou. Uma rajada de fogos de artifício povoou a depressão, a intensidade aumentando, enquanto a multidão aturdida reagia em choque. Homens se jogavam ao chão, outros corriam para trás de árvores e pelas moitas, berrando em pânico, apavorados.

O assassino foi se abrigar por trás de uma árvore, agachado, a arma na mão. Bourne, com o silenciador fixado em sua pistola, aproximou-se do matador. Mirou e atirou, arrancando a arma da mão do assassino, a carne entre o polegar e o indicador do comando explodindo em sangue! O virou-se, os olhos arregalados, a boca escancarada em choque. Jason disparou de novo, a bala agora raspando a face do assassino.

— Vire-se! — ordenou Bourne, comprimindo o cano da arma no olho esquerdo do comando. — Agarre a árvore! Agarre! Os dois braços! Aperte com força!

Jason comprimiu a arma na nuca do matador e deu uma olhada em torno do tronco. Várias tochas fincadas na terra haviam sido derrubadas, as chamas se apagando.

Outra série de explosões veio do fundo da mata. Homens em pânico começaram a disparar suas armas na direção dos sons. A perna do assassino se mexeu! E depois a mão direita! Bourne disparou dois tiros diretamente na árvore; as balas afundaram na madeira, estilhaçando a casca a um ou dois centímetros do crânio do comando. Ele se comprimiu contra o tronco, o corpo imóvel, rígido.

— Mantenha a cabeça para a esquerda! — ordenou Bourne, asperamente. — Mexa-se mais uma vez e estouro seus miolos!

Onde estava ele? Onde estava o maníaco homicida com a espada? Delta devia isso a Eco. Onde... ali! O homem com olhos fanáticos estava se levantando do chão, espiando para toda parte ao mesmo tempo, gritando ordens para os que estavam mais perto, exigindo que lhes entregassem uma arma. Jason deu um passo para o lado da árvore e levantou a pistola. A cabeça do fanático parou de se mexer. Os olhos se encontraram. Bourne disparou no momento em que Sheng puxava um guarda para a sua frente. O soldado foi jogado para trás, o pescoço se partindo sob o impacto das balas. Sheng segurou o corpo, usando-o como um escudo, enquanto Jason disparava mais duas vezes, sacudindo o cadáver. Não podia fazer o que queria! Quem quer que fosse o maníaco, estava protegido pelo corpo de um soldado morto! Delta não podia cumprir o que Eco lhe pedira! O General Bosta sobreviveria! Sinto muito, Eco! Não há tempo! Mexa-se! Eco acabou... Marie!

O assassino virara a cabeça, tentando ver alguma coisa. Bourne puxou o gatilho. A casca explodiu no rosto do comando, que levou as mãos aos olhos, depois sacudiu a cabeça, piscando para recuperar a visão.

— Levante-se! — ordenou Jason, agarrando o assassino pela garganta e virando-o na direção da trilha que abrira pela vegetação rasteira ao descer. — Você vai comigo!

Uma terceira série de bombinhas, ainda mais no fundo do bosque, começou a explodir, em rajadas rápidas. Sheng Chou Yang gritava histericamente, ordenando que seus homens seguissem em duas direções — para as proximidades da árvore e para as explosões. E um momento depois as explosões cessaram, enquanto Bourne empurrava seu prisioneiro pela mata. Ordenou que o assassino se deitasse de bruços e se agachou, pondo um pé em sua nuca. Tateou pelo terreno, pegou três pedras e jogou- as pelo ar, uma depois da outra, além dos homens que vasculhavam a área ao redor da árvore, O desvio produziu o efeito desejado.

— Nali!

— Shu ner!

— Bu! Caodi ner!

Eles começaram a se adiantar, as armas prontas para entrar em ação. Vários correram para a frente, avançando pela vegetação alta. Outros seguiram-nos, enquanto a quarta e última série de fogos de artifício começava a explodir. Apesar da distância, os estampidos eram tão ou mais altos do que as explosões anteriores. Era o estágio final, o clímax da demonstração, mais longo e mais retumbante.

Delta sabia que o tempo agora era medido em minutos; se alguma floresta já fora sua amiga, aquela tinha de ser ainda mais. Dentro de alguns momentos, talvez segundos, os homens encontrariam os restos queimados das bombinhas espalhados pelo chão, e a tática diversionária estaria revelada. Haveria então uma corrida maciça e histérica para o portão.

— Ande! — ordenou Bourne, agarrando os cabelos do assassino, levantando-o e empurrando-o para frente. — E não se esqueça, seu filho da puta, que não há um só truque que você tenha aprendido que eu não aperfeiçoei, o que compensa uma certa diferença em nossas idades. Olhe para o lado errado e terá dois buracos de balas no lugar dos olhos. Vamos logo!

Enquanto subiam correndo pela trilha improvisada, Bourne meteu a mão no bolso e tirou um punhado de balas. Enquanto o assassino corria à sua frente, ofegante, esfregando os olhos e removendo o sangue do rosto, Jason tirou o pente da automática, substituiu todas as balas e tornou a pô-lo no lugar. Ao ouvir o som, o comando virou a cabeça bruscamente, mas percebeu que estava atrasado; a arma já fora recarregada. Bourne disparou, a bala roçando a orelha do assassino.

— Eu avisei! — disse ele, á respiração ruidosa, mas firme. — Onde você quer a próxima bala? No meio da testa?

Jason estendeu a automática à frente.

— Deus do céu, aquele carniceiro estava certo! — gritou o comando britânico, segurando a orelha. — Você é louco!

— E você vai morrer se não se mexer. Mais depressa!

Alcançaram o cadáver do guarda que fora postado na trilha estreita que descia para a ravina.

— Vá para a direita! — ordenou Jason.

— Para onde, pelo amor de Deus? Não posso ver!

— Há uma trilha. Vai sentir o espaço. Ande!

Depois que entraram nos caminhos de terra do santuário, Bourne comprimiu a automática contra a espinha do assassino, forçando-o a correr cada vez mais depressa. Por um momento, David Webb voltou, e um Delta agradecido reconheceu a sua presença. Webb era um corredor, um corredor irredutível, por motivos que voltavam no tempo e nas lembranças torturadas, passando por Jason Bourne para chegar à infame Medusa. Os pés correndo, o suor e o vento contra o rosto faziam com que viver cada dia se tornasse mais fácil para David. Naquele momento, Jason Bourne estava respirando com alguma dificuldade, mas não estava tão ofegante quanto o assassino, mais jovem e mais forte.

Delta avistou o clarão no céu... o portão ficava ao final de um prado e além de três caminhos escuros e sinuosos. Não chegava a um quilômetro! Disparou um tiro entre as pernas em movimento do assassino.

— Quero que corra mais depressa! — ordenou, impondo controle à voz, procurando dar a impressão de que o movimento vigoroso quase não o afetava.

— Não posso! Não tenho mais fôlego!

—Pois arranje!

Subitamente, a distância, por trás deles, ouviram os gritos histéricos de homens, ordenados por seu líder maníaco a voltarem ao portão, descobrirem e matarem um intruso, tão perigoso que suas próprias vidas e destinos estavam em jogo. Os remanescentes das bombinhas haviam sido encontrados; um rádio fora ativado, mas não houvera qualquer resposta da guarita. Encontrem-no! Detenham-no! Matem-no!

— Se está com idéias, Major, é melhor esquecê-las! — gritou Bourne.

— Major? — repetiu o comando, mal conseguindo falar, enquanto continuava a correr.

— Você é um livro aberto para mim, e o que li me deixa

enojado! Assistiu d’Anjou morrer como um porco abatido! E sorriu, seu filho da puta!

— Ele queria morrer! Queria me matar!

— Eu vou matar você, se parar de correr. Mas antes vou cortá-lo dos colchões à cabeça, tão devagar que vai desejar ter morrido junto com o homem que criou.

— Onde está a minha alternativa? Vai me matar de qualquer maneira!             

— Talvez não. Pense nisso. Talvez eu poupe sua vida. É uma esperança.

O assassino correu mais depressa. Percorreram a última trilha escura, avançaram pelo espaço aberto do portão iluminado.

— O estacionamento! — gritou Jason. — A extremidade da direita!

Jason parou de repente.

— Espere!

O atordoado assassino estacou abruptamente. Jason pegou a lanterna e apontou a automática. Enquanto se aproximava das costas do assassino, disparou cinco tiros, errando apenas um. Os refletores explodiram; o portão mergulhou na escuridão. Bourne comprimiu a arma contra a base do crânio do comando. Acendeu a lanterna, iluminando o lado do rosto do assassino.

— A situação está sob controle, Major. A operação continua. Ande, seu filho da puta!

Correndo pelo estacionamento escuro, o assassino tropeçou, estatelando-se sobre o cascalho. Jason disparou duas vezes, à luz da lanterna; as balas ricochetearam perto da cabeça do comando. O homem se levantou e continuou a correr, passando pelos carros e caminhão, até a extremidade do estacionamento.

— A cerca! — disse Bourne num sussurro alto. — Siga para lá.

À beira do cascalho, deu outra ordem:

— Fique de quatro... e só olhe para a frente! Se virar a cabeça para trás, eu serei a última coisa que vai ver! E agora comece a rastejar!

O assassino chegou à abertura na cerca.

— Comece a passar — disse Jason, enquanto tornava a enfiar a mão no bolso e tirava as balas, depois removia silenciosamente o pente da automática. E quando o ex-comando psicótico estava no meio da abertura, ele sussurrou: — Pare!

Jason substituiu as balas usadas e empurrou o pente para o lugar, acrescentando:

— Apenas para o caso de você estar contando. E agora acabe de passar para o outro lado da cerca e rasteje por mais dois metros. Depressa!

Enquanto o assassino passava sob o arame entortado, Bourne agachou-se; passou pela abertura poucos centímetros atrás dele. Não esperando por isso, o comando virou-se bruscamente assim que acabou de passar, ficando de joelhos. Deparou com o facho da lanterna, o brilho iluminando a automática apontada para sua cabeça.

— Eu teria feito a mesma coisa — disse Jason, levantando-se. — Pensaria da mesma forma. Agora volte à cerca, abaixe-se e ajeite o pedaço de cerca no lugar. Depressa!

O assassino obedeceu, fazendo força para baixar a tela grossa. Quando faltava pouco, Bourne disse:

— Já chega. Levante-se e passe na minha frente, com as mãos nas costas. Siga em frente, abrindo caminho entre os galhos com os ombros. Estou iluminando suas mãos. Se as descruzar, vou matá-lo. Entendido?

— Acha que eu empurraria um galho de árvore para a sua cara?

— Eu faria isso.

— Entendido.

Chegaram à estrada na frente do portão às escuras. Os gritos distantes soavam mais nítidos agora, o grupo da vanguarda mais próximo.

— Desça pela estrada — disse Jason. — Corra!

Três minutos depois ele tornou a acender a lanterna.

— Pare! Aquela pilha verde ali... está vendo?

— Onde? — balbuciou o ofegante assassino.

— Estou iluminando.

— São galhos, parte dos pinheiros.

— Pois tire-os. Depressa!

O comando começou a remover os galhos, revelando em poucos momentos o sedã preto Xangai. Era a hora para a mochila. Bourne disse:

— Acompanhe a luz, para a esquerda do capô.

— Para onde?

— A árvore com o entalhe branco no tronco. Está vendo?

— Estou.

— Há terra solta cerca de dois palmos à frente. E por baixo tem uma mochila. Escave e tire-a para mim.

— Você é uma porra de um técnico, hem?

— E você também não é?

Sem responder, o soturno assassino começou a escavar e tirou a mochila. Com as alças na mão direita, adiantou-se, como se fosse entregá-la a seu captor. E subitamente balançou a mochila, arremessando-a diagonalmente para cima, na direção da automática e da lanterna de Jason, ao mesmo tempo em que arremetia, os dedos das mãos estendidos como as garras de um felino furioso.

Bourne estava preparado. Era o momento preciso que ele teria escolhido para obter alguma vantagem, por mais transitória, pois daria os segundos necessários para sair correndo pela escuridão. Recuou, acertando com a automática na cabeça do assassino, quando o corpo impulsionado passou por sua frente.

Comprimiu o joelho contra as costas do comando estatelado no chão e pegou seu braço direito, prendendo a pequena lanterna entre os dentes.

— Eu avisei! — Jason puxou para cima o braço direito do assassino. — Mas também preciso de você. Por isso, em vez de sua vida, vamos fazer apenas uma pequena cirurgia de bala.

Bourne encostou o cano da automática lateralmente na carne do músculo do braço do assassino e puxou o gatilho.

— Santo Deus! — gritou o assassino, enquanto o estalido ressoava e o sangue esguichava.

— Não há osso quebrado —disse DeIta. — Apenas tecido muscular. E agora pode esquecer a idéia de usar o braço. Tem sorte que eu seja um homem misericordioso. Há gaze, esparadrapo e desinfetante na mochila. Pode fazer um curativo, Major. E depois vai guiar. Será meu motorista na República Popular. Ficarei no banco de trás, com a arma apontada para a sua cabeça. Tenho um mapa. Se eu fosse você, não faria qualquer volta errada.

Doze dos homens de Sheng Chou Yang correram para o portão, levando apenas quatro lanternas.

— Wei shemme? Cuo wu!

— Mafan! Feng Kuang!

— You mao bing!

— Wei fan!

Uma dúzia de vozes esganiçadas se alteavam contra os refletores apagados, culpando a tudo e a todos, de ineficiência à traição. A guarita foi revistada; os controles elétricos e o telefone não funcionavam, o guarda desaparecera. Vários homens examinaram a corrente enrolada em torno da tranca do portão e deram ordens aos outros. Como nenhum podia sair, concluíram que os atacantes ainda se encontravam no interior do santuário.

— Biao! — gritou o infiltrador que fora o prisioneiro falso de d’Anjou. — Quan bu zai zheli!

Ordenou aos outros que dividissem as lanternas e revistassem o estacionamento, a floresta ao redor e os charcos além. Os caçadores se espalharam, as armas estendidas, correndo pelo estacionamento em diferentes direções. Mais sete homens chegaram, apenas um trazendo uma lanterna. O falso prisioneiro requisitou-a e começou a explicar a situação, a fim de formar outro grupo de busca. Houve protestos de que uma só lanterna para eles era insuficiente na escuridão. Em frustração, o organizador da caçada bradou uma série de impropérios, atribuindo uma estupidez extrema a todos, sendo ele a única exceção.

As chamas dançantes das tochas se tornaram mais brilhantes, enquanto os últimos conspiradores chegavam da ravina, tendo à frente o vulto de Sheng Chou Yang, a espada cerimonial balançando ao lado do corpo, na bainha presa à cintura. Mostraram-lhe a corrente enrolada e o infiltrador informou-o das circunstâncias.

— Não está pensando corretamente —disse Sheng, exasperado. — Sua opinião está completamente errada. A corrente não foi colocada aqui por um dos nossos homens, a fim de manter o criminoso dos criminosos no lado de dentro. Em vez disso, foi posta pelo violador dos violadores, a fim de nos retardar, de nos manter aqui dentro!

— Mas há muitos obstáculos...

— Estudados e considerados! — berrou Sheng Chou Yang. — Devo repetir? Essas pessoas são sobreviventes. Permaneceram vivos naquele batalhão criminoso chamado Medusa por que levavam tudo em consideração. E escalaram a cerca para o outro lado!

— É impossível — protestou o homem mais jovem. — O cano de cima e o arame farpado são eletrificados, senhor. E a carga é ativada por qualquer peso acima de quinze quilos. Assim, os pássaros e outros animais não são eletrocutados.

— Pois então eles descobriram a fonte da corrente e a desligaram!

— Os interruptores ficam do lado de dentro, a pelo menos setenta e cinco metros do portão e escondidos no chão. Nem eu mesmo sei direito onde estão.

— Mande alguém subir — ordenou Sheng.

O subordinado olhou ao redor. A seis ou sete metros dois homens falavam, um para o outro, baixinho, depressa. Era duvidoso que qualquer dos dois tivesse prestado atenção à conversa acalorada entre Sheng e seu subordinado.

— Você! — exclamou o jovem líder, apontando para o homem à esquerda.

— Pois não, senhor?

— Escale a cerca!

— Está certo, senhor.

O homem correu para a cerca e deu um salto, as mãos segurando os arames entrelaçados, os pés se apoiando na tela da melhor forma possível. Chegou ao cano lá em cima e começou a passar pela barreira inclinada de arame farpado.

— Aiyaaa!

Um matraquear de estática foi acompanhado pelas descargas azuis-brancas ofuscantes da eletricidade acionada. O corpo rígido, os cabelos e sobrancelhas chamuscados até as raízes, o homem caiu para trás, batendo na terra com o impacto de uma pesada pedra. Fachos de lanternas convergiram. O homem estava morto.

— O caminhão! —gritou Sheng. — Isso é idiotice! Peguem o caminhão e vamos arrombar o portão! Façam o que estou mandando! Depressa!

Dois homens correram para o estacionamento, e segundos depois o troar do motor do caminhão rompeu a quietude a noite. O pesado caminhão deu um solavanco para trás, todo o chassi tremendo violentamente, e depois parou por completo. Os pneus vazios giravam no lugar, a fumaça se elevando da borracha queimada. Sheng Chou Yang olhava, em crescente apreensão e fúria.

— Os outros! — berrou ele. — Liguem os outros veículos! Todos!

Um a um, os veículos foram ligados; um a um, todos deram um solavanco e depois as rodas afundaram no cascalho, rodando no mesmo lugar. Em frenesi, Sheng correu para o portão, sacou uma arma e disparou duas vezes contra a corrente enrolada. Um homem à sua direita gritou, levando a mão à testa sangrando, enquanto caía ao chão. Sheng levantou o rosto para o céu escuro e soltou um rugido primitivo de protesto. Desembainhou a espada cerimonial e pôs-se a golpear repetidamente a tranca acorrentada do portão. Era um exercício de inutilidade.

A lâmina quebrou.


 

— Lá está a casa, aquela de muro de pedra alto — informou o agente da CIA Matthew Richards, enquanto guiava o carro, subindo a ladeira em Victoria Peak. — Segundo nossas informações, há fuzileiros por toda parte... e não vai me fazer nenhum bem ser visto em sua companhia.

— Aposto que você quer me dever mais alguns dólares — disse Alex Conkiin, inclinando-se para a frente e espiando pelo pára-brisa. — é negociável.

— Apenas não quero ser envolvido, pelo amor de Deus! E não tenho dólares!

— Pobre Matt, triste Matt. Toma as coisas muito ao pé da letra.

— Não sei do que você está falando.

— Também não sei direito, mas passe pela casa como se estivesse indo para outro lugar. Eu lhe direi quando parar e me deixar saltar.

— É mesmo?

— Sob condições. São os dólares.

— Não são difíceis de aceitar e talvez eu nem cobre. Pelo que estou pensando agora, vou querer que você fique na geladeira, fora de vista. Em outras palavras, quero um homem lá dentro. Ligarei para você várias vezes por dia, perguntando se nossos compromissos para almoço ou jantar ainda estão de pé, se vamos nos encontrar no prado...

— Lá não! — protestou Richards.

— Está bem. No Museu de Cera.., ou qualquer outro lugar que me passar pela cabeça, menos o jóquei. Se você disser “Não, estou muito ocupado”, eu saberei que não estão me fechando o cerco. Se disser “Sim”, tratarei de escapar.

— Nem mesmo sei onde você está baseado. Mandou que eu o pegasse na esquina da Granvil e Carnarvon.

— Meu palpite é de que sua unidade será chamada para manter as coisas em ordem e assumir a responsabilidade. Os britânicos vão exigir. Não vão querer sofrer a queda sozinhos se a operação explodir. São momentos difíceis para os britânicos por aqui, e por isso eles vão encobrir seus rabos coloniais.

O carro passou pelo portão. Conklin estudou a enorme entrada vitoriana.

— Juro que não tenho a menor idéia sobre o que você está falando, Alex.

— Assim é ainda melhor. Não concorda? Meu guru está lá dentro?

— Está, sim. Dispenso a ajuda dos fuzileiros.

— Muito bem. Pode parar aqui. Vou saltar e voltar a pé. Se alguém perguntar, subi ao Peak de bonde, peguei um táxi para a casa errada e tive de voltar a pé para o endereço certo, descendo a ladeira por sessenta ou setenta metros. Satisfeito, Matt?

— Extasiado — respondeu o agente da CIA, de cara amarrada, enquanto parava o carro.

— Durma bem, Matt. Muito tempo passou desde Saigon, e todos precisamos de mais descanso à medida que envelhecemos.

— Ouvi dizer que você tinha casado com a garrafa. Não é verdade, não é mesmo?

— Ouviu o que queríamos que ouvisse — respondeu Conklin, calmamente.

Desta vez, no entanto, ele pôde cruzar os dedos das duas mãos, antes de sair do carro, meio desajeitado.

Uma breve batida e a porta foi aberta bruscamente. Surpreso, Havilland levantou os olhos para deparar com Edward McAllister, muito pálido, avançando depressa pela sala.

— Conklin está no portão — anunciou o subsecretário. — Exige falar com você e diz que está disposto a passar a noite inteira lá, se for necessário. Também diz que se fizer muito frio vai acender uma fogueira na rua para se aquecer.

— Aleijado ou não, ele não perdeu a arrogância —comentou o embaixador.

— Isso é totalmente inesperado — continuou McAllister, massageando a têmpora direita. — Não estamos preparados para uma confrontação.

— Parece que não temos alternativa. É um logradouro público, e o problema é da competência do corpo de bombeiros da colônia, caso os vizinhos fiquem alarmados.

— Mas certamente ele não faria...

— Certamente ele faria — interrompeu Havilland. — Deixe-o entrar. Não é apenas inesperado, mas extraordinário. Ele ainda não teve tempo para reunir os seus fatos ou organizar um ataque que lhe proporcionasse alguma vantagem. Está expondo abertamente o seu envolvimento. Tendo em vista os seus antecedentes em operações secretas, ele não faria isso de graça. É perigoso demais. Ele próprio já deu uma ordem de além-da-salvação.

— Podemos presumir que ele está em contato com a mulher — protestou o subsecretário, encaminhando-se para o telefone na mesa do embaixador. — Isso lhe dá todos os fatos de que precisa.

— Não, não dá. A mulher não tem todos os fatos.

— Mas como ele sabe que você está aqui? — indagou McAllister, com a mão no telefone.

Havilland sorriu sombriamente.

— Ele só precisaria saber que estou em Hong Kong. Além do mais, nós nos falamos e tenho certeza de que ele somou os fatos.

— E esta casa?

— Ele nunca nos contará. Conklin é um veterano do Extremo Oriente, Sr. Subsecretário, tem contatos que ignoramos.

E não saberemos o que o traz aqui, a não ser que o deixemos entrar, não é mesmo?

— Tem razão. — McAllister levantou o fone do gancho e discou três dígitos. — Comandante da Guarda?... Deixe o Sr. Conklin passar pelo portão, reviste-o à procura de alguma arma e depois o acompanhe pessoalmente até o gabinete da Ala Leste... Ele o quê?... Pois deixe-o entrar imediatamente e apague essa coisa!

— O que aconteceu? — indagou Havilland, enquanto o subsecretário desligava.

— Ele acendeu uma fogueira no outro lado da rua.

Alexander Conklin entrou mancando na ornamentada sala vitoriana, enquanto o oficial dos fuzileiros fechava a porta. Havilland levantou-se e contornou a mesa, a mão estendida.

— Sr. Conklin?

— Pode recolher a mão, Sr. Embaixador. Não quero pegar uma infecção.

— Entendo. A ira impede a cortesia?

— Não. Apenas não quero pegar em coisa alguma. Como dizem por aqui, você é um ídolo podre. Portador de alguma coisa. Acho que uma doença.

— E o que poderia ser?

— Morte.

— Não está sendo um pouco melodramático? Pode se sair melhor, Sr. Conklin.

— Falo sério. Há menos de vinte minutos vi uma pessoa ser morta, massacrada em plena rua, quarenta ou cinqüenta balas se cravando em seu corpo. Ela foi estraçalhada contra portas de vidro do prédio em que mora, seu motorista fuzilado dentro do carro. A cena é terrível, cacos de vidro e sangue espalhados pela calçada..

Os olhos de Havilland estavam arregalados em choque, mas foi a voz histérica de McAllister que interrompeu o homem da CIA

— Ela? Foi a mulher?

— Uma mulher — disse Conklin, virando-se para o subsecretário, cuja presença ainda não reconhecera. —Você é McAllister?

— Isso mesmo.

— Também não quero apertar sua mão. Ela estava envolvida com vocês dois.

— A mulher de Webb está morta?— berrou o subsecretário, o corpo todo paralisado.

— Não, mas obrigado pela confirmação.

— Santo Deus! — gritou o veterano embaixador das atividades clandestinas do Departamento de Estado. — Era Staples! Catherine Staples!

— Dê ao homem um charuto explosivo. E obrigado de novo pela segunda confirmação. Está planejando jantar em breve com o Alto Comissário do consulado canadense? Eu adoraria estar presente... só para observar o renomado Embaixador Havilland em ação. Puxa vida, acho que a gente de baixo nível podia aprender uma porção de coisa

— Cale a boca, seu idiota! — gritou Havilland, voltando para trás da mesa, arriando na cadeira e recostando-se, os olhos fechados.

— Eis uma coisa que eu não vou fazer — disse Conklin, adiantando-se, o pé entrevado martelando o chão. — Você é responsável, senhor! — Ele inclinou-se para a frente, segurando a borda da mesa. — Assim como é responsável pelo que aconteceu com David e Marie Webb! Que porra você pensa que é? E se minha linguagem o ofende, senhor, pense na origem da palavra. Vem de um termo da Idade Média que significava plantar uma semente na terra, o que de certa forma é a sua especialidade! Só que no seu caso são sementes de podridão... escava a terra limpa e a transforma em sujeira. Suas sementes são mentiras e embustes. Crescem dentro das pessoa transformando-as em fantoches irados e assustados, dançando nos cordões de seus miseráveis roteiros! Repito, seu filho da puta aristocrata: que porra você pensa que é?

Havilland entreabriu os olhos e inclinou-se para a frente. A expressão era a de um velho desejando morrer, ainda que fosse apenas para remover a angústia. Mas aqueles mesmos olhos estavam vivos como uma fúria fria, que viam coisas que outros não podiam perceber

— Serviria ao seu argumento se eu lhe contasse que Catherine Staples me disse essencialmente a mesma coisa?

— Serve e o completa!

— Contudo, ela foi morta porque se juntou a nós. Não gostava disso, mas em seu julgamento não havia alternativa.

— Mais um fantoche?

— Não. Um ser humano com uma inteligência extraordinária e uma riqueza de experiência que entendeu o que temos pela frente. Lamento a sua perda... e a maneira como morreu... mais do que você pode imaginar.

— É a perda dela, senhor, ou o fato de que sua sacrossanta operação foi penetrada?

— Como se atreve a falar assim? — Havilland, a voz baixa e fria, levantou-se, fitando nos olhos o homem da CIA. — É um pouco tarde para querer dar lições de moral, Sr. Conklin. Seus lapsos foram por demais evidentes nas áreas de embuste e ética. Se fizesse o que queria, não haveria David Webb, não haveria Jason Bourne. Foi você quem o enquadrou na categoria de além-de-salvação, e mais ninguém. Planejou sua execução e quase conseguiu consumá-la.

— E eu paguei por esses lapsos... e paguei caro!

— E desconfio de que ainda está pagando, ou não estaria em Hong Kong neste momento — disse o embaixador, balançando a cabeça lentamente, a frieza deixando sua voz. — Baixe os seus canhões, Sr. Conklin, e farei a mesma coisa. Catherine Staples realmente compreendeu, e se há algum sentido em sua morte, vamos tentar encontrá-lo.

— Não tenho a menor idéia por onde se pode começar a procurar.

— Vai saber de tudo... como aconteceu com Staples.

— Talvez seja melhor eu não ouvir.

— Não tenho opção e devo insistir que escute.

— Acho que você não estava prestando atenção. Houve uma infiltração na sua operação. A mulher Staples foi morta porque presumiram que dispunha de informações que impunham a sua eliminação. Em suma, a toupeira que se enterrou aqui viu-a numa reunião ou reuniões com vocês dois. A conexão canadense foi estabelecida, a ordem dada... e vocês deixaram que ela circulasse sem proteção!

— Teme por sua vida? — indagou o embaixador.

— Constantemente — respondeu o homem da CIA. —

E neste momento estou também preocupado com a vida de outra pessoa.

— A de Webb?

Conklin fez uma pausa, estudando o rosto do velho diplomata. E depois disse, suavemente:

— Se é verdade o que estou pensando. Não há nada que eu possa fazer por Delta que ele não possá fazer melhor pessoalmente. Mas se ele não conseguir, sei o que me pediria para fazer. Proteger Marie. E posso fazer isso melhor lutando contra você, e não o escutando.

— E como tenciona lutar contra mim?

— Da única maneira que eu conheço. Numa luta muito suja. Espalharei por todos os cantos escuros de Washington que desta vez você foi longe demais, perdeu o controle, talvez até tenha ficado esclerosado por causa da idade. Tenho a história de Marie, a de Mo Panov...

— Morris Panov? — interrompeu Havilland, cauteloso. — O psiquiatra de Webb?

— Vai ganhar outro charuto. E, por último, a minha própria contribuição. De passagem, só para avivar sua memória, sou o único que conversou com David, antes de sua vinda para cá. Tudo junto, inclusive o massacre de uma diplomata canadense, daria uma leitura das mais interessantes... como depoimentos assinados, distribuídos num círculo seleto.

— Fazendo isso, você arriscaria tudo.

— O problema é seu, não meu.

— Sendo assim, mais uma vez, eu não teria alternativa — disse o embaixador, o gelo de novo nos olhos e na voz. — Da mesma forma que você deu uma ordem de além-da-salvação, eu seria obrigado a fazê-lo também. Você não sairia vivo daqui.

— Santo Deus! — murmurou McAllister, no outro lado da sala.

— Seria a coisa mais estúpida que poderia fazer — disse Conklin, os olhos fixados nos de Havilland. — Não sabe o que deixei para trás ou com quem. Ou o que será revelado se eu não fizer contato num determinado prazo, com determinadas pessoas e assim por diante. Não me subestime.

— Pensamos que poderia recorrer a esse tipo de tática —

comentou o embaixador, afastando-se do homem da CIA, como se o descartasse, e voltando à sua cadeira. — Também deixou outra coisa para trás, Sr. Conklin. Em termos gentis, talvez acurados, era conhecido como portador de uma doença crônica chamada alcoolismo. Na expectativa de sua iminente aposentadoria e em reconhecimento por seus relevantes serviços num passado distante, não foram adotadas medidas disciplinares, mas também não recebeu qualquer responsabilidade. Era apenas tolerado, uma relíquia inútil prestes a ir para o pasto, um bêbado cujas explosões paranóicas eram a conversa e a preocupação de seus colegas. O que quer que possa aflorar, de qualquer fonte, seria classificado e comprovado como as divagações incoerentes de um alcoólatra aleijado e psicopata.

O embaixador recostou-se na cadeira, os cotovelos apoiados nos braços, os dedos compridos da mão direita tocando no queixo.

— É um homem que deve ser lastimado, Sr. Conklin, não censurado. O desenrolar dos acontecimentos pode ser dramatizado por seu suicídio...

— Havilland! — gritou McAllister, aturdido.

— Fique tranqüilo, Sr. Subsecretário — disse o embaixador. — O Sr. Conklin e eu sabemos de onde viemos. Ambos já estivemos lá antes.

— Há uma diferença — objetou Conklin, jamais desviando a atenção dos olhos de Havilland. — Nunca senti qualquer prazer no jogo.

— E acha que eu sinto? — O telefone tocou. Havilland estendeu a mão rapidamente, atendendo. — Alô?

O embaixador.escutou por um momento, o rosto franzido, olhando para a janela escura, depois acrescentou:

— Se eu não pareço chocado, Major, é porque recebi a notícia há poucos minutos... Não, não foi a polícia, mas um homem que quero que conheça esta noite. Dentro de duas horas está bom para você?... Claro. Ele é um dos nossos agora. — Havilland olhou para Conklin. — Há quem diga que ele é melhor do que a maioria de nós, e eu diria que sua folha de serviços pode confirmar isso... É ele mesmo... Está certo, direi a ele... O quê? O que foi que disse? — O embaixador tornou a olhar

para a janela escura, o rosto novamente franzido. — Eles se cobriram bem depressa, hem? Duas horas, Major.

Havilland desligou, pondo os cotovelos na mesa e cruzando as mãos. Respirou fundo, um velho esgotado, ordenando os pensamentos, prestes a falar.

— O nome dele é Lin Wenzu — disse Conklin, surpreendendo Havilland e McAllister. —É o CI da Coroa, o que significa orientado pelo MI-Seis, provavelmente do Setor Especial. É chinês e educado na Inglaterra, considerado o melhor oficial de informações do território. O único ponto desfavorável é o tamanho. Torna-o facilmente localizado.

— Onde?...

McAllister deu um passo na direção do homem da CIA.

— Um passarinho me contou — disse Conklin.

— Presumo que tenha sido um cardeal ruivo — disse o embaixador.

— Esse não existe mais.

— Ahn... Havilland descruzou as mãos, baixando os braços para a mesa. — Ele também sabe quem é você.

— Não podia deixar de saber. Participou da expedição na estação de Kowloon.

— Ele me pediu para lhe dar os parabéns e avisar que o seu corredor olímpico deixou todo mundo para trás. Conseguiu escapar.

— Ele é esperto.

— Sabe onde encontrar o homem, mas não vai desperdiçar seu tempo.

— Mais esperto ainda. Desperdício é desperdício. Ele disse também mais alguma coisa. Como ouvi sua lisonjeira avaliação do meu passado, importa-se de me dizer o que foi?

— Quer dizer que vai me escutar?

— Ou ser levado daqui num caixão? Ou caixões? Onde está a opção?

— Tem toda razão. Eu seria obrigado a ir até o fim, e você sabe disso.

— Sei apenas que o conheço, Herr General.

— Está sendo ofensivo.

— E você também. O que lhe disse o major?

— Um terrorista tong de Macau telefonou para a Agência

Noticiosa da China Meridional, assumindo a responsabilidade pelas mortes. Só que disse que a da mulher foi acidental, o alvo era o motorista. Como membro nativo da odiada segurança secreta britânica, ele matara com um tiro um dos seus líderes, no cais de Wanchai, há duas semanas. A informação era correta. Ele era a proteção que destacamos para Catherine Staples.

— É uma mentira! — gritou Conklin. — Ela era o alvo!

— Lin diz que é um desperdício de tempo investigar uma fonte falsa.

— Então ele sabe?

— Que fomos penetrados?

— O que mais poderia ser? — indagou o exasperado homem da CIA.

— Ele é um Zhongguo ren orgulhoso e possui uma mente brilhante. Não gosta do fracasso sob qualquer forma, especialmente agora. Desconfio de que ele iniciou sua caçada... Sente-se, Sr. Conklin. Temos muitas coisas para conversar.

— Não dá para acreditar!— interveio McAllister, num sussurro profundamente emocional. — Vocês falam de mortes, de alvos, de além-de-salvação... de um suicídio forjado... a vítima aqui, falando de sua própria morte... como se estivesse discutindo as cotações da Bolsa ou o cardápio de um restaurante! Que tipo de homens são vocês?

— Já lhe disse, Sr. Subsecretário — respondeu Havilland gentilmente. — Homens que fazem o que outros não fazem, não podem, ou não devem. Não há mística, não há universidades diabólicas em que fomos treinados, não há compulsão intensa para destruir. Vagueamos para essas áreas porque havia vazios a preencher e os candidatos eram poucos. Imagino que é tudo um tanto acidental. E com a repetição, descobre-se que se faz ou não se tem coragem para fazer... mas alguém sempre tem. Concorda, Sr. Conklin?

— Isso é um desperdício de tempo.

— Não é, não. Explique ao Sr. McAllister. Pode estar certo de que ele é valioso e precisamos de sua colaboração. Ele precisa nos compreender.

Conklin olhou para o subsecretário de Estado com uma expressão sem qualquer caridade.

— Ele não precisa de qualquer explicação minha. É um

analista. Percebe tudo tão claramente quanto nós, se não ainda mais. Sabe muito bem o que está acontecendo nos túneis, apenas não quer admiti-lo, e a maneira mais fácil de se desculpar é fingir que está chocado. É preciso tomar cuidado com o intelecto hipócrita em qualquer estágio deste negócio. O que ele dá em inteligência, tira em falsas recriminações. É o vigário num bordel recolhendo material para um sermão que escreverá quando voltar para casa e se divertir consigo mesmo.

— Você estava certo antes — disse McAllister, virando-se para a porta. — Isso é um desperdício de tempo.

— Edward... —Havilland, visivelmente irritado com o homem aleijado da CIA, chamou gentilmente o subsecretário. — Nem sempre podemos escolher as pessoas com quem tratamos, o que obviamente está acontecendo neste momento.

— Eu compreendo — disse McAllister, friamente.

— Estude todo mundo na equipe de Lin — acrescentou o embaixador. — Não pode haver mais que dez ou doze pessoas que sabem qualquer coisa a nosso respeito. Ajude-o. Ele é seu amigo.

— E é mesmo — murmurou o subsecretário, deixando a sala.

— Aquilo era necessário? — indagou Havilland, bruscamente, quando ficou a sós com Conklin.

— Era, sim. Se puder me convencer de que tudo o que fez era o único curso que podia seguir... o que duvido... ou se eu não puder encontrar uma opção que tire Marie e David dessa confusão com suas vidas, se não com sua sanidade, então terei de trabalhar com você. A alternativa de além-da-salvação é inaceitável por vários motivos, basicamente pessoais, mas também porque devo isso aos Webb. Concorda até aqui?

— Trabalhamos juntos, de um jeito ou de outro. Xeque- mate.

— Tendo em vista a realidade, quero que o filho da puta do McAllister saiba de onde eu estou vindo. Ele está tão envolvido quanto qualquer um de nós, e é melhor que o seu brilhante intelecto mergulhe na sarjeta e aflore com todas as plausibilidades e possibilidades. Quero saber a quem devemos matar... mesmo aqueles que têm importância secundária... para reduzir nossas perdas e salvar os Webb. Quero que ele saiba que a única maneira de salvar sua alma é sepultá-la sob a realização. Se nós fracassamos, ele também fracassa, e não poderá mais ensinar na escola dominical.

— Está sendo muito duro com ele. McAllister é um analista, e não um executor.

— De onde pensa que os executores recebem os seus dados? De quem você pensa que nós recebemos nossos dados? De quem? Dos paladinos do bem?

— Xeque-mate outra vez. Você é tão bom quanto dizem. Ele entrou com os primeiros furos e percepções. É por isso que está aqui.

— Pode me falar, senhor — disse Conklin, sentando, as costas empertigadas, o pé aleijado se virando num ângulo estranho. — Quero ouvir sua história.

— Primeiro, a mulher. A esposa de Webb. Ela está bem? Está segura?

— A resposta à primeira pergunta é tão óbvia que não sei como pode formulá-la. Não, ela não está bem. O marido desapareceu, e ela não sabe se ele está vivo ou morto. Quanto à segunda, a resposta é sim, ela está segura. Comigo, não com você. Posso levá-la de um lado para outro, e sei como fazer isso. Você tem de ficar aqui.

— Estamos desesperados — suplicou o embaixador. — Precisamos dela de qualquer maneira.

— E também foram infiltrados, o que você parece não estar compreendendo. Não vou expô-la a isso.

— Mas esta casa é uma fortaleza!

— Só precisa de um cozinheiro traiçoeiro na cozinha. Ou um lunático numa escada.

— Você tem.de me escutar, Conklin! Houve uma verificação de passaportes... tudo se ajusta. É ele, temos certeza. Webb está em Pequim. Agora. Não teria ido se não estivesse atrás do alvo... o único alvo. Se de alguma forma, só Deus sabe como, seu Delta voltar com a mercadoria e a esposa não estiver no lugar, ele vai matar a única conexão que temos. Sem isso, estamos perdidos. Todos estamos perdidos.

— Então foi esse o roteiro desde o início. Reductio ad absurdum. Jason Bourne caça Jason Bourne.

— Isso mesmo. Extremamente simples, mas sem as compli-

cações progressivas ele nunca teria concordado. Ainda estaria naquela velha casa no Maine, debruçado sobre os seus livros. Não teríamos o nosso caçador.

— Você é mesmo um filho da puta — murmurou Conklin, devagar, com alguma admiração na voz. — E estava convencido de que ele ainda seria capaz? Ainda poderia manipular esse tipo da Ásia como fazia há anos, como Delta?

— Ele faz checkups físicos a cada três meses, é parte do programa de proteção do governo. Está em condições excepcionais... uma decorrência de sua obsessão de correr, pelo que sei.

— Comece do início. — O homem da CIA acomodou-se da melhor forma possível na cadeira. — Quero ouvir passo a passo, porque acho que os rumores são verdadeiros. Estou na presença de um mestre dos filhos da puta.

— Não é tanto assim, Sr. Conklin. Todos estamos tateando. E vou querer seus comentários, é claro.

— E vai tê-los. Pode começar.

— Está certo. Começarei com um nome que tenho certeza de que vai reconhecer. Sheng Chou Yang. Algum comentário?

— É um negociador duro, e desconfio de que por baixo do exterior benevolente existe o aço. Ainda assim, é um dos homens mais sensatos de Pequim. Deveria haver mil como ele.

— Se houvesse, as possibilidades de um holocausto no Ex tremo Oriente seriam mil vezes maiores.

Lin Wenzu bateu com o punho na mesa, sacudindo as nove fotografias à sua frente e fazendo com que os resumos anexos de seus dossiês deslizassem da superfície. Qual? Qual deles? Cada um fora confirmado por intermédio de Londres, os antecedentes checados três vezes; não havia margem para erro. Não eram simplesmente Zhongguo ren bem instruídos, selecionados por eliminação burocrática, mas produtos de uma busca intensiva pelas mentes mais brilhantes no governo — e em vários casos fora do governo — que podiam ser recrutadas para aquele que era o mais sensível dos serviços. Fora a alegação de Lin de que a escrita estava na parede — talvez na Grande Muralha — e que uma força superior especial de informações, formada pela própria colônia, poderia ser a primeira linha de defesa antes de 1997 e, no caso de uma tomada do poder, a primeira linha de resistência coesa depois. Os britânicos tinham de renunciar à liderança na área das operações secretas de informações, por razões que eram tão evidentes quanto desagradáveis para Londres: o ocidental jamais poderia compreender plenamente as sutilezas peculiares da mente oriental, e aquele não era um período para se transmitir informações enganosas ou mal avaliadas. Londres tinha de saber — o Ocidente tinha de saber — qual era exatamente a situação... para o bem de Hong Kong, para o bem de todo o Extremo Oriente.

Não que Lin acreditasse que sua crescente força de colhe- dores de informações desempenhasse um papel fundamental nas decisões políticas; sabia que não era assim. Mas estava absolutamente convencido de que, se a colônia precisava ter um Setor Especial, ela devia ser guarnecida e dirigida pelos que podiam realizar melhor o serviço, o que não incluía os veteranos, por mais brilhantes que fossem, dos serviços secretos britânicos orientados pelos europeus. Para começar, todos pareciam iguais e não eram compatíveis com o ambiente ou a língua. E depois de anos de trabalho e valor comprovado, Lin Wenzu fora chamado a Londres e submetido durante três dias a um interrogatório cerrado por sisudos especialistas em serviço secreto no Extremo Oriente. Na manhã do quarto dia, porém, os sorrisos apareceram, juntamente com a recomendação de que o major recebesse o comando do setor em Hong Kong, com amplos poderes de autoridade. E por alguns anos depois ele correspondera à confiança da comissão; sabia disso. Também sabia que agora, na mais vital operação individual de sua vida profissional e particular, fracassara. Havia trinta e oito agentes do Setor Especial sob o seu comando, e ele selecionara nove — nove meticulosamente escolhidos — para participarem daquela missão extraordinária e insana. Insana até que ele ouvira a explicação extraordinária do embaixador. Os nove eram os mais excepcionais de sua força de trinta e oito agentes, cada um capaz de assumir o comando se seu líder fosse removido; fora o que ele escrevera em seus relatórios de avaliação. E fracassara. Um dos nove escolhidos era um traidor.

Era inútil reexaminar os dossiês. Quaisquer incoerências que pudesse encontrar levariam muito tempo para serem desenterradas, pois haviam escapado aos seus próprios olhos experientes e aos de Londres. Não havia tempo para análises intrincadas, a exploração lenta e meticulosa de nove vidas individuais. Só tinha uma opção. Um ataque frontal a cada homem, e a palavra “frontal” era essencial a seu plano. Se pudera desempenhar o papel de um taipan, poderia desempenhar o papel de um traidor. Sabia que seu plano não era desprovido de riscos... e riscos que nem Londres nem o americano Havilland tolerariam, mas que tinham de ser corridos. Se fracassasse, Sheng Chou Yang seria alertado para a guerra secreta contra ele, e seus contramovimentos poderiam ser desastrosos; mas Lin Wen zu não tencionava fracassar. Se o fracasso estava escrito nos ventos do norte, nada mais importaria, muito menos a sua vida.

O major estendeu a mão para o telefone. Apertou o botão no painel para o operador de rádio no centro computadorizado de comunicações do MI-Seis, Setor Especial.

— Pois não, senhor? — disse a voz da sala branca e segura.

— Quem em Libélula ainda está de serviço? — perguntou Lin, indicando a unidade de elite de nove a que se reportava, mas a que nunca dava explicações.

— Dois, senhor. Nos veículos três e sete. Mas posso fazer contato com os demais em poucos minutos. Cinco já se comunicaram... estão em casa... e os outros dois deixaram indicações. Um está no Cinema Pagoda até onze e meia, quando voltará para o seu apartamento. Mas podemos fazer contato pelo bip. O outro está no Iate Clube em Aberdeen, com a esposa e a família dela. A mulher é inglesa.

Lin riu suavemente.

— Sem dúvida vai incluir a conta da família britânica em nosso orçamento de Londres lamentavelmente insuficiente.

— Isso é possível, Major? Se é, poderia me considerar para Libélula, o que quer que seja?

— Não seja impertinente.

— Desculpe, senhor...

— Estou brincando, meu jovem. Na próxima semana vou levá-lo pessoalmente a um bom jantar. Vem realizando um excelente trabalho, e conto com você.

— Obrigado, senhor!

— Eu é que devo agradecer.

— Devo fazer contato com Libélula e pôr todos em estado de alerta?

— Faça o contato com todos, mas será justamente o inverso de alerta. Todos estão extenuados, sem um único dia de folga em várias semanas. Diga-lhes que quero que qualquer mudança de locação seja informada, mas que estamos seguros pelas próximas vinte e quatro horas, a menos que seja informado o contrário. Os homens nos veículos três e sete podem ir para casa, mas não devem ir beber nos Territórios. Avise que eu disse que todos devem ter uma boa noite de sono, ou como melhor desejarem passar o tempo.

— Está certo, senhor. Tenho certeza de que eles ficarão agradecidos.

— Eu ficarei circulando no veículo quatro. Você pode receber notícias minhas. Permaneça acordado.

— Claro, Major.

— E não se esqueça do nosso jantar, meu jovem.

O entusiasmado operador de rádio declarou:

— Se me permite dizer, senhor... e tenho certeza de que falo por todos... não gostaríamos de trabalhar para qualquer outra pessoa.

— Talvez dois jantares.

Estacionado na frente do prédio de apartamentos na Estrada Yun Ping, Lin tirou o microfone do apoio por baixo do painel.

— Rádio, aqui é Libélula Zero.

— Pois não, senhor?

— Ligue-me para uma linha telefônica direta com um scrambler. Saberei que estamos no scrambler quando ouvir o eco da chamada, não é?

— Claro, senhor.

O tênue eco pulsou na linha. O major apertou os números. A campainha do telefone começou a tocar, e uma voz de mulher atendeu:

— Alô?

— O Sr. Zhou. Kuai! — disse Lin, falando rapidamente, mandando que a mulher se apressasse.

— Está bem — respondeu ela, em cantonês.

— Zhou falando — disse o homem.

— Xun su! Xiao Xi! — Lin falou num sussurro gutural; era o som de um homem desesperado, suplicando para ser ouvido. — Sheng! Faça um contato imediato! Safira desapareceu!

— Como? Quem está falando?

O major baixou a barra e apertou um botão à direita do microfone. O operador de rádio respondeu no mesmo instante:

— Sim, Libélula?

— Deixe aberta minha linha particular e também o scrambler, e transfira todas as chamadas para cá. Imediatamente. Esse será o procedimento até instruções em contrário. Entendido?

— Entendido, senhor — murmurou o submisso operador.

O telefone tocou no instante seguinte e Lin atendeu, falando distraidamente e simulando um bocejo:

— Alô?

— Major, aqui é Zhou. Acabo de receber um telefonema muito estranho. Um homem ligou... parecia gravemente ferido... e me disse para entrar em contato com alguém chamado Sheng. Eu deveria dizer que Safira desapareceu.

— Safira? — repetiu o Major, subitamente alerta. — Não diga nada a ninguém, Zhou! Malditos computadores... não sei como aconteceu, mas essa ligação era para mim. Trata-se de algo além de Libélula. Repito: não diga nada a ninguém!

— Entendido, senhor.

Lin ligou o carro e percorreu vários quarteirões, a oeste da Rua Tanlung. Repetiu a manobra e outra vez recebeu um chamado em sua linha particular.

— Major?

— O que é?

— Acabo de receber um telefonema de alguém que parecia estar morrendo. Queria que eu...

A explicação foi a mesma: um erro perigoso fora cometido, além da esfera de Libélula. Nada deveria ser repetido. A ordem foi entendida.

Lin fez mais três ligações, cada uma na frente do apartamento ou pensão do interlocutor. Todas foram negativas; cada homem procurou-o momentos depois do contato, com a notícia desconcertante Nenhum saiu correndo para um telefone público seguro. o major só tinha certeza de uma coisa: quem quer que fosse o infiltrador, não usaria o telefone de sua casa para fazer contato. As contas telefônicas registravam todos os números ligados, e todas as contas eram submetidas a uma auditoria. Era um procedimento rotineiro bem recebido pelos agentes. Os custos em excesso eram cobertos pelo Setor Especial, como se fossem relacionados com as atividades profissionais.

Os dois homens nos veículos três e sete, retirados do plantão, haviam feito contato com o quartel-general à altura do quinto telefonema. Um deles estava na casa de uma namorada e deixou bem claro que não tinha a menor intenção de sair de lá nas próximas vinte e quatro horas. Pediu ao operador que atendesse todas as “chamadas de emergência de clientes”, comunicando a todos que tentassem localizá-lo que seus superiores o haviam despachado para a Antártida. Negativo. Não era o jeito de um agente duplo, inclusive o humor. Ele não se isolou nem revelou o paradeiro ou o identidade de um contato. O segundo homem, se possível, parecia ainda mais negativo. Informou ao centro de comunicações que estava disponível para todos e quaisquer problemas, maiores ou menores, relacionados ou não com Libélula, até mesmo para atender a telefonemas. A esposa dera à luz recentemente a trigêmeos, e ele confidenciou com uma voz que beirava o pânico — segundo o operador — que tinha mais descanso no trabalho do que em casa. Negativo.

Sete verificados e sete negativos. Restavam o homem no Cinema Pagoda por mais quarenta minutos e o outro no Iate Clube em Aberdeen.

O telefone tocou... enfaticamente, ao que parecia, ou seria sua própria ansiedade?

— Alô?

— Acabo de receber uma mensagem, senhor — disse o operador. — Águia para Libélula Zero. Urgente. Responda.

— Obrigado.

Lin olhou para o relógio no centro do painel. Estava trinta e cinco minutos atrasado para o encontro com Havilland e o legendário agente aleijado do passado, Alexander Conklin. Tornando a levantar o microfone aos lábios, o major disse:

— Meu jovem...

— Pois não, senhor?

— Não tenho tempo para o ansioso embora um tanto irrele-

vante “Águia”, mas não desejo ofendê-lo. Ele ligará de novo quando eu não responder e quero que explique que não conseguiu entrar em contato comigo. Quando fizer isso, quero que me informe imediatamente.

— Será um prazer, Major.

— Como assim?

— O “Águia” que ligou foi muito antipático. Gritou sobre encontros que deveriam ocorrer depois de confirmados e disse...

Lin escutou a diatribe em segunda-mão e fez uma anotação mental de que, se sobrevivesse àquela noite, conversaria com Edward McAllister sobre etiqueta ao telefone, especialmente durante as emergências. O açúcar acarretava expressões gentis, o sal, apenas caretas.

— Está bem, está bem, meu jovem. Eu compreendo. Como nossos ancestrais poderiam dizer, “Que o bico da águia possa se enfiar por seu canal de eliminação”. Apenas faça o que estou mandando. Até lá, dentro de quinze minutos, chame o nosso homem no Cinema Pagoda. Quando ele chamar, dê-lhe meu número de quarto nível não-relacionado e ligue nesta freqüência, com o scrambler continuando.

— Está certo, senhor.

Lin seguiu para leste pela Hennessy Road, passando pelo Southern Park e entrando na Fleming, onde virou para o sul, pegando a Johnston, depois novamente para leste, pela Burrows Street, até o Cinema Pagoda. Entrou no estacionamento e foi ocupar a vaga reservada ao gerente-assistente. Pôs um cartão da polícia no pára-brisa, saltou e se encaminhou apressadamente para a entrada. Havia apenas algumas pessoas à espera da sessão de meia-noite de Desejo ardente no Oriente, uma estranha escolha para o agente lá dentro. Mesmo assim, para não chamar a atenção e como ainda faltavam seis minutos, Lin postou-se atrás dos três homens que estavam na fila da bilheteria. Noventa segundos depois, pagou e recebeu seu ingresso. Entregou o ingresso ao porteiro e entrou no cinema, acostumando os olhos à escuridão e ao filme pornográfico na tela distante. Era mesmo uma estranha escolha de diversão para o homem que ele estava testando, mas Lin prometera a si mesmo que não se permitiria pré-julgamentos, não compararia um suspeito com outro.

Mas reconhecia que tal atitude era muito difícil naquele

caso. Não que gostasse particularmente do homem que se encontrava em algum lugar do cinema às escuras, assistindo junto com uma audiência febrilmente atenta à ginástica sexual de “atores” inexpressivos. Na verdade, ele não gostava do homem; simplesmente reconhecia o fato de que era um dos melhores sob o seu comando. O agente era arrogante e antipático, mas era também um bravo, cuja deserção de Pequim demorara dezoito meses, cada hora na capital comunista sendo uma ameaça à sua vida. Fora um oficial de alta patente das Forças de Segurança, com acesso às mais valiosas informações secretas. E num gesto comovente de sacrifício, deixara para trás uma esposa amada e uma filha pequena ao escapar para o sul, protegendo-as com um cadáver carbonizado e crivado de balas, que cuidara para que fosse identificado como ele próprio... um herói da China fuzilado e depois queimado por um bando errante de criminosos, na recente onda de crimes que varrera o país. Mãe e filha estavam seguras, recebendo uma pensão do governo. Como todos os desertores de alto nível, ele fora submetido à mais rigorosa investigação, destinada a revelar infiltradores em potencial. Nesse ponto, sua arrogância o ajudara. Não fizera qualquer tentativa de se insinuar; era o que era e fizera o que fizera pelo bem da China. As autoridades podiam aceitá-lo com tudo o que tinha a oferecer, ou ele podia procurar em outra parte. Tudo conferia, exceto o bem-estar da esposa e filha. Não estavam sendo tratadas da maneira como o desertor esperava. Portanto, o dinheiro fora encaminhado ao seu local de trabalho, sem explicações. Nada se podia lhe dizer; se houvesse a menor suspeita de que seu marido continuava vivo, ela poderia ser torturada por informações que não possuía. O perfil profundo de um homem assim não era o de um agente duplo, independente do seu gosto em matéria de filmes.

Assim, só sobrava o homem em Aberdeen, que de certa forma era um enigma para Lin. O agente era mais velho do que os outros, um homem pequeno, que sempre se vestia de maneira impecável, um lógico e ex-contador que professava tanta lealdade que numa ocasião Lin quase o transformara em confi dente, mas se contivera a tempo, quando estava prestes a revelar coisas que nunca deveria revelar. Talvez porque o homem estivesse mais próximo de sua idade, ele sentia uma forte afinidade... Por outro lado, que cobertura extraordinária para um toupeira de Pequim! Casado com uma inglesa e sócio do rico Iate Clube, através do casamento. Tudo estava no lugar para ele; era a essência da respeitabilidade. Lin achava inacreditável que seu colega mais íntimo, o homem que impusera tanta ordem à sua vida pessoal, mas ainda queria prender um brigão australiano por fazer com que Libélula passasse por uma grande vergonha pudesse ter sido abordado por Sheng Chou Yang e corrompido... Não, era impossível! Talvez, pensou o major, ele devesse voltar e investigar mais a fundo um cômodo agente de folga que queria que todos os clientes fossem informados de que se encontrava na Antártida ou o pai esgotado de trigêmeos, que estava disposto a atender a todos os telefonemas para escapar das tarefas domésticas.

Essas especulações não eram coerentes! Lin Wenzu sacudiu a cabeça como se afugentasse da mente tais pensamentos. Agora. Aqui. Concentre-se! A súbita decisão de se mover veio da vista de uma escada. Foi até lá e subiu os degraus para o balcão; a cabine de projeção ficava diretamente à sua frente. Bateu uma vez e entrou, o peso de seu corpo quebrando a fechadura frágil e ordinária da porta.

— Ting zhi! — gritou o operador.

Ele tinha uma mulher no colo e enfiava-lhe a mão por baixo da saia. A mulher levantou-se de um pulo do seu poleiro e virou-se para a parede.

— A Polícia da Coroa — disse o major, mostrando sua identificação. — E por favor, acreditem que não tenciono fazer mal algum a qualquer dos dois.

— E não poderia! — protestou o operador. — Aqui não é exatamente uma casa de culto.

— Um fato discutível, mas certamente não é uma igreja.

— Pagamos todos os impostos...

— Não precisa argumentar comigo, senhor — interrompeu-o Lin. — A Coroa simplesmente precisa de um favor, e prestá-lo não iria contra os seus interesses.

— Qual é? — perguntou o homem, levantando-se e observando furioso a mulher passar pela porta.

— Pare o filme, digamos por uns trinta segundos e acenda

as luzes. Anuncie à audiência que houve um problema técnico mas que será reparado rapidamente.

O operador estremeceu.

— Já está quase acabando! Vai haver gritos e protestos!

— O importante é que as luzes estejam acesas. Faça logo o que estou mandando!

O projetor parou com um zumbido; as luzes se acenderam e o anúncio foi feito pelo sistema de alto-falantes. O operador estava certo. Vaias e gritos ressoaram por todo o cinema, acompanhados por braços acenando e inúmeros dedos do meio em riste. Os olhos de Lin esquadrinharam a audiência... de um lado para outro, fila por fila.

Lá estava o seu homem... Dois homens, pois o agente estava inclinado para a frente, falando com alguém que Lin Wenzu nunca vira antes. O major consultou o relógio e depois virou-se para o operador.

— Há algum telefone público lá embaixo?

— Há, sim... mas só funciona de vez em quando.

— Está funcionando agora?

— Não sei.

— Onde fica?

— Embaixo da escada.

— Obrigado. Recomece a projeção dentro de sessenta segundos.

— Você disse trinta!

— Mudei de idéia. E você desfruta dos privilégios de um bom emprego por causa de uma licença, não é mesmo?

— São animais lá embaixo!

— Ponha uma cadeira na porta — disse Lin, enquanto saía. — A fechadura está quebrada.

No saguão, por baixo da escada, o major passou pelo telefone exposto. Praticamente sem parar, arrancou o fio enrolado e encaminhou-se para o seu carro. Parou de repente, ao divisar uma cabine telefônica no outro lado da rua. Correu até lá e leu o número, memorizando-o instantaneamente, e depois voltou ao carro. Sentou ao volante e olhou para o relógio. Deu marcha à ré, saiu para a rua e foi estacionar em fila dupla a algumas dezenas de metros da marquise do cinema. Apagou os faróis e ficou observando a entrada.

Um minuto e quinze segundos depois o desertor de Pequim saiu, olhando primeiro para a direita, depois para a esquerda, obviamente agitado. Depois, olhou reto para a frente, descobrindo o que queria ver, o que Lin esperava que ele visse, já que o telefone no cinema não estava funcionando. Era a cabine telefônica no outro lado da rua. Lin discou enquanto seu subordinado corria para a cabine, entrando na casca de plástico,virada para a rua. O telefone tocou antes que o homem pudesse inserir suas moedas.

— Xun su! Xiao Xi! — Lin tossiu, enquanto sussurrava. — Eu sabia que você encontraria o telefone! Sheng! Entre em contato imediatamente! Safira desapareceu!

Repôs o microfone no descanso, mas manteve a mão esquerda por cima do instrumento, esperando para tornar a pegá-lo com a iminente ligação do agente para sua linha particular.

Que não veio. Lin virou-se no banco e olhou para trás, para a cabine telefônica no outro lado da rua. O agente discara outro número, mas o desertor não estava falando com ele. Não havia necessidade de ir a Aberdeen.

O major saltou do carro silenciosamente, atravessou a rua nas sombras dos prédios, e encaminhou-se para a cabine do telefone. Permaneceu na meia escuridão, avançando devagar, procurando atrair o mínimo possível de atenção para a sua corpulência, censurando, como muitas vezes fazia, os genes que lhe haviam proporcionado aquele corpo enorme. Chegou bem perto do telefone. O desertor estava agora a dois ou três metros de distância, de costas para Lin, falando muito excitado, a exasperação evidente em cada palavra.

— Quem é Safira? Por que este telefone? Por que ele entraria em contato comigo?... Não, eu já disse, ele usou o nome do líder!... Isso mesmo, seu nome! Nada de código, nada de símbolo! Foi uma loucura!

Lin Wenzu já ouvira tudo o que precisava ouvir. Sacou a automática e emergiu rapidamente da escuridão.

— O filme foi interrompido e acenderam as luzes! Meu contato e eu estávamos...

— Desligue o telefone! — ordenou o major.

O desertor virou-se.

— Você!

Lin correu para o homem, o corpo enorme esmagando-o contra a parede de plástico, enquanto pegava o fone e batia com ele no aparelho de metal.

— Já chega! — berrou Lin.

Subitamente, sentiu a lâmina cortar seu abdome com um calor gelado. O desertor abaixou-se, a faca na mão esquerda. Lin puxou o gatilho. O som da explosão encheu a rua tranqüila, enquanto o traidor caía na calçada, a garganta aberta pela bala, o sangue escorrendo pelas roupas, espalhando-se pelo concreto.

— Ni made! — gritou uma voz, à esquerda do major, amaldiçoando-o.

Era o segundo homem, o contato que estava dentro do cinema falando com o desertor. Levantou uma arma e atirou, enquanto o major arremetia contra ele. O enorme tronco sangrando de Lin caiu em cima do homem como um muro. A carne foi estourada na parte superior do peito de Lin, mas o homem perdeu completamente o equilíbrio. O major disparou sua automática; o homem caiu, com a mão no olho direito. Estava morto.

No outro lado da rua, o filme pornográfico acabara e a multidão começava a sair para a rua, mal-humorada, irritada, insatisfeita. E com o que restava de sua enorme força, Lin, gravemente ferido, recolheu os corpos dos dois conspiradores mortos e meio arrastou-os, meio carregou-os para o seu carro. Diversas pessoas da audiência do Pagoda observavam-no com olhares vidrados ou desinteressados. O que viam era uma realidade que não podiam enfrentar ou compreender. Estava além dos limites estreitos de suas fantasias.

Alex Conklin levantou-se e claudicou meio desajeitado, ruidosamente, até a janela escura.

— Afinal, o que você quer que eu diga? — indagou ele, virando-se e olhando para o embaixador.

— Que tendo em vista as circunstâncias, eu assumi o único caminho que me restava, o único que poderia recrutar Jason Bourne. — Havilland levantou a mão. — Antes de responder, devo dizer, por uma questão de justiça, que Catherine Staples não concordou comigo. Ela achava que eu deveria ter apelado diretamente para David Webb. Afinal, ele era um estudioso do Extremo Oriente, um especialista que compreenderia o que estava em jogo, a tragédia que poderia se desencadear.

— Ela estava redondamente enganada — comentou Alex. — David lhe diria para enfiar tudo no rabo.

— Obrigado por essa informação — murmurou Havilland, balançando a cabeça.

— Mas espere um instante — interrompeu Conklin. — Ele diria isso não por achar que você estava errado, mas porque pensava que não seria capaz de fazê-lo. O que você fez... ao seqüestrar Marie... foi obrigá-lo a voltar é ser alguém que ele queria esquecer.

— É mesmo?

— Você é realmente um grande filho da puta, seu filho da puta.

Sirenes soaram abruptamente, ressoando por toda a enorme mansão e o terreno ao redor, enquanto refletores começavam a passar pelas janelas. Houve disparos, acompanhados pelo som de metal esmagado, enquanto pneus rangiam lá fora, O embaixador e o homem da CIA jogaram-se no chão; poucos segundos depois, estava tudo acabado, Os dois homens se levantaram, enquanto a porta era aberta bruscamente. O peito e a barriga encharcados de sangue, Lin Wenzu entrou cambaleando, carregando dois cadáveres debaixo dos braços.

— Aqui está seu traidor, senhor — disse o major, largando os cadáveres. — E um colega. Com estes dois, creio que isolamos Libélula de Sheng...

Os olhos de Wenzu reviraram para cima, as órbitas ficaram brancas. Ele arquejou e caiu.

— Chamem uma ambulância! — gritou Havilland para as pessoas que se amontoavam na porta.

— Tragam gaze, esparadrapo, toalhas, anti-séptico... pelo amor de Deus, qualquer coisa que puderem encontrar! — berrou Conklin, aproximando.se do chinês no chão. — Precisamos estancar a hemorragia!

 

Bourne estava sentado nas sombras em movimento do banco traseiro, o intermitente brilho do luar criando breves explosões de luz e escuridão no interior do automóvel. A intervalos súbitos, irregulares e inesperados, ele se inclinava para a frente e comprimia o cano da pistola na nuca do prisioneiro.

— Tente sair da estrada, bater, e vai levar uma bala na cabeça. Está me entendendo?

E sempre havia a mesma resposta ou uma variação, formulada num sotaque britânico preciso:

— Não sou idiota. Você está por trás de mim, tem uma arma, e eu não posso vê-lo.

Jason arrancara o espelho retrovisor, o parafuso arrebentando facilmente ao puxão.

— Pois então sou seus olhos aqui atrás. E não se esqueça de que sou também o fim de sua vida.

— Entendido — murmurava o ex-oficial dos Comandos Reais, sem qualquer expressão.

O mapa do governo aberto no colo, a pequena lanterna na mão esquerda, a automática na direita, Bourne estudou a estrada que seguia para o sul. A cada meia hora que passava e os pontos de referência eram localizados, Jason compreendia que o tempo era seu inimigo. Embora o braço direito do assassino estivesse efetivamente imobilizado, Bourne sabia que não era páreo para o homem mais jovem e mais forte, puro vigor. A violência concentrada dos últimos três dias cobrara o seu tributo, fisicamente, mentalmente e — quer ele quisesse ou não reconhecê-lo — emocionalmente. Embora Jason Bourne não tivesse de admiti-lo, David Webb o proclamava com cada fibra de seu ser emocional. O estudioso fora mantido à distância, reprimido lá no fundo, a voz sufocada.

Deixe-me em paz! Você não vale nada para mim!

De vez em quando Jason sentia o peso morto de suas pálpebras fechando sobre os olhos. Abria-os bruscamente e maltratava alguma parte do corpo, beliscando com força a carne macia e sensível da parte interior da coxa ou cravando as unhas nos lábios, a fim de criar a dor instantânea e dissipar a exaustão. Reconhecia o seu estado — somente um idiota suicida não o faria —, mas não havia tempo ou lugar para remediá-lo com um axioma que roubara de Eco da Medusa. O descanso é uma arma, nunca se esqueça disso. Esqueça, Eco... bravo Eco... não há tempo para descansar, não há lugar para encontrá-lo.

Enquanto aceitava a própria avaliação de si mesmo, também tinha de aceitar a sua avaliação do prisioneiro. O assassino estava totalmente alerta; isso era evidente em sua perícia ao volante, pois Jason exigia velocidade nas estradas estranhas e desconhecidas. Era evidente na cabeça em constante movimento, nos olhos sempre que Bourne os via... e ele os via com freqüência, sempre que orientava o assassino a reduzir a velocidade e ficar atento a um desvio na estrada, à esquerda ou à direita. O impostor se virava no banco — a visão de suas feições familiares sempre um choque e tanto para Jason — e indagava se a estrada à frente era a que seus “olhos” queriam. As perguntas eram supérfluas; o ex-comando estava incessantemente fazendo a sua avaliação do estado físico e mental de seu captor. Era um executor bem treinado, uma máquina letal que sabia que a sobrevivência dependia de obter alguma vantagem sobre o inimigo. Estava esperando, observando, antecipando o momento em que as pálpebras do adversário poderiam fechar por um breve instante ou a arma cair subitamente no chão, talvez a cabeça do inimigo se recostar por um segundo no conforto do banco traseiro. Eram esses os sinais que ele aguardava, os lapsos que poderia aproveitar violentamente, depois das circunstâncias. A defesa de Bourne, portanto, dependia de sua mente, em fazer o inesperado, a fim de que o equilíbrio psicológico permanecesse em seu favor. Por quanto tempo poderia durar... poderia agüentar?

O tempo era seu inimigo, o assassino à sua frente se tornava um problema secundário. Em seu passado — aquele passado apenas vagamente lembrado — manipulara matadores assim, porque eram seres humanos sujeitos aos artifícios de sua imaginação. Oh, Deus, tudo se resumia a isso! Tão simples, tão lógico... e ele estava tão cansado... Sua mente. Não restava mais nada. Tinha de continuar a pensar, tinha de espicaçar a imaginação e fazê-la funcionar. Equilíbrio, equilíbrio!Tinha de manter os pratos da balança inclinados para o seu lado! Pense! Aja! Faça o inesperado!

Retirou o silenciador da arma, apontou-a para a janela fechada do lado direito e puxou o gatilho. A explosão foi ensurdecedora, ressoando pelo carro fechado, enquanto o vidro se estilhaçava e o ar noturno entrava zunindo.

— Por que fez isso? — gritou o impostor-assassino, apertando o volante e controlando uma derrapagem involuntária.

— Para ensinar a você sobre equilíbrio — respondeu Jason. — Deve compreender que estou em posição desfavorável neste momento. O próximo tiro pode estourar seus miolos.

— Você é uma porra de um lunático!

— Fico satisfeito de que compreenda.

O mapa. Uma das coisas mais civilizadas num mapa rodoviária da República Popular da China — e coerente com a qualidade de seus veículos — era a indicação estrelada de oficinas que permaneciam abertas vinte e quatro horas por dia, ao longo das principais rotas. Bastava pensar na confusão que poderia resultar do enguiço de transportes militares e oficiais para se compreender a necessidade; era um presente dos céus para Bourne.

— Há um posto de gasolina cerca de seis quilômetros adiante — disse ele ao assassino... a .Jason Bourne, refletiu. — Pare e encha o tanque. Não diga nada... seria tolice se tentasse, porque obviamente não sabe falar a língua. Deve memorizar as poucas palavras patéticas de que precisa.

— Você fala?

— É por isso que sou o original e você a falsificação.

— Vá à merda, Sr. Original!

Jason disparou a pistola novamente, estilhaçando o resto da janela.

— A falsificação! — berrou ele, alteando a voz acima do vento. — Não se esqueça disso!

O tempo era o inimigo.

Fez um inventário mental do que tinha, e não era muita coisa. Dinheiro era a munição primária; tinha mais do que o que uma centena de chineses poderia ganhar em uma centena de vidas, mas o dinheiro por si mesmo não era a resposta. Somente o tempo era a resposta. Se havia uma possibilidade de sair da vasta terra da China era pelo ar, não por terra. Ele não resistiria por tanto tempo. Tornou a estudar o mapa. Levariam treze a quinze horas para chegar a Xangai... se o carro agüentasse e se ele agüentasse, se eles conseguissem passar pelas barreiras provinciais, que sabia estarem alertadas para um ocidental ou dois ocidentais tentando passar. Ele seria capturado... eles seriam capturados. E mesmo que conseguissem chegar a Xangai, com seu aeroporto relativamente relaxado, quantas complicações poderiam surgir?

Havia uma opção... sempre havia opções. Era uma loucura e uma afronta, mas também a única alternativa que restava.

O tempo era o inimigo. Faça isso. Não há outra opção.

Fez um círculo em torno de um pequeno símbolo na cidade de Jinan. Um aeroporto.

Amanhecer. Umidade por toda parte. O solo, a relva alta e a cerca de metal brilhavam com o orvalho da manhã. A pista única além era uma faixa preta lustrosa, que cortava o campo de vegetação aparada, um pouco verde com a umidade da manhã, um pouco marrom opaco do efeito do sol escaldante do dia anterior, O sedã Xangai estava afastado da estrada do aeroporto, tão distante quanto o assassino pudera levá-lo, novamente escondido pela folhagem. O impostor estava mais uma vez imobilizado, agora pelos polegares. Pressionando a arma contra a sua têmpora direita, Jason ordenara que o assassino ajustasse os carretéis em nós corrediços duplos nos polegares, depois cortara os fios e enrolara firmemente o restante nos pulsos do homem. Como o comando logo descobrira, à menor pressão, como torcer ou separar as mãos, o fio se cravava mais fundo em sua carne.

— Se eu fosse você, tomaria cuidado — disse Bourne. — Pode imaginar como seria não ter os polegares? Ou se seus pulsos fossem cortados?

— Seu técnico filho da puta!

— Acredite no que estou dizendo.

No outro lado da pista havia uma luz acesa num prédio de um só andar, com uma fileira de janelas no lado. Era uma espécie de alojamento, com desenho simples e funcional. E depois outras luzes se acenderam, lâmpadas expostas, o brilho ofuscante. Era mesmo um alojamento. Jason pegou o rolo de roupas que removera das costas; desfez as tiras, desenrolou os trajes sobre a relva e separou-os. Havia uma túnica Mao grande, uma enorme calça toda amarrotada e um quepe de pano com pala, que normalmente acompanhava aquele traje. Pôs o quepe e a túnica, abotoando-a sobre o suéter escuro, depois levantou-se e vestiu a calça por cima da sua. Um cinto de pano trançado prendeu-a no lugar. Alisou a túnica por cima da calça e virou-se para o assassino, que estava observando-o, com espanto e curiosidade.

— Vá até a cerca — disse Jason, abaixando-se e enfiando a mão na mochila, de onde tirou uma corda de náilon de um metro e meio. — Fique de joelhos e se encoste nela. Comprima o rosto contra os elos. Os olhos na frente. Depressa!

O assassino obedeceu, as mãos atadas de maneira dolorosa, na frente, entre o corpo e a cerca, a cabeça comprimida contra a malha de metal. Bourne adiantou-se e rapidamente passou a corda de náilon pela cerca, no lado direito do pescoço do assassino, estendeu os dedos pelas aberturas e puxou a corda pela frente do seu rosto. Puxou para trás com força e deu um nó na base do crânio do comando. Trabalhara tão depressa e de forma tão inesperada que o ex-oficial britânico mal pôde falar antes de compreender o que estava acontecendo.

— Mas o que você... oh, Deus!

— Como aquele maníaco comentou a respeito de d’Anjou antes de decapitar sua cabeça, você não vai a parte alguma, Major.

— Vai me deixar aqui? — perguntou o assassino, atordoado.

— Não seja tolo. Viramos companheiros. Onde eu for, você também vai. Para ser mais exato, você vai na frente.

— Onde?

— Através da cerca.

Jason tirou o alicate da mochila. Começou a cortar em torno do tronco do assassino, aliviado ao constatar que os elos não eram tão grossos quanto os que encontrara no santuário dos pássaros. O contorno completo, Bourne deu um passo para trás e levantou o pé direito, colocando-o entre as omoplatas do impostor. Empurrou a perna para a frente. Assassino e cerca caíram na relva no outro lado.

— Ai! —gritou o comando, de dor. —Você é muito engraçado, hem?

— Não estou achando a menor graça — respondeu Jason. — Cada movimento que eu faço é muito sério, não tem nada de engraçado. Levante-se e fale baixo.

— Estou amarrado à cerca!

— Está livre. Levante-se e vire-se.

Meio sem jeito, o assassino ficou de pé, cambaleando. Bourne contemplou sua obra; a visão da grade de metal presa à parte superior do corpo do assassino, como se mantida ali por um nariz saliente, era de fato engraçada. Mas o motivo para isso não tinha nada de engraçado. Somente com o comando seguro na frente de seus olhos é que eliminava qualquer risco. Jason não podia controlar o que não podia ver, e o que não era capaz de ver podia custar sua vida... E muito mais importante, a vida da mulher de David Webb... até mesmo a de David Webb. Fique longe de mim! Não interfira! Estamos muito perto!

Bourne inclinou-se e desfez o nó, continuando a segurar a ponta da corda. A cerca caiu. Antes que o assassino pudesse se ajustar, Jason passou a corda em torno de sua cabeça, levantando até encaixar na boca. Puxou com força, com bastante força, escancarando as mandíbulas do assassino, até ficar um enorme buraco escuro, cercado por uma fronteira de dentes brancos, a carne contraída. Sons ininteligíveis saíram da garganta do comando.

— Não posso assumir o crédito por isso, Major — disse Bourne, dando um nó na corda de náilon e deixando o restante cair frouxo. — Observei d’Anjou e os outros. Não podiam falar, apenas engasgar com o próprio vômito. Você também os viu e sorriu. Qual é a sensação, Major?... Ora, esqueci que você não pode responder.

Empurrou o assassino para a frente e depois agarrou-o pelo ombro, virando-o para a esquerda.

— Vamos contornar a extremidade da pista. Ande logo!

Enquanto davam a volta pela relva da pista, permanecendo na escuridão das margens, Jason estudou o aeroporto relativamente primitivo. Além do alojamento, havia um pequeno prédio circular, com uma profusão de vidro, mas sem luzes acesas, a não ser um brilho solitário numa pequena estrutura de metal, no centro do telhado. O prédio era o terminal de Jinan, pensou ele, o quadrado mal iluminando lá em cima a torre de controle. À esquerda do alojamento, pelo menos sessenta metros a oeste, havia um hangar de manutenção, escuro, aberto, teto alto, com enormes escadas sobre rodas, perto das portas largas, refletindo a primeira claridade.do amanhecer. Estava aparentemente deserto, com o pessoal ainda no alojamento. No perímetro sul do campo, nos dois lados da pista e quase indiscerníveis, havia cinco aviões, todos à hélice, nenhum imponente. O aeroporto de Jinan era um campo de pouso secundário, talvez mesmo terciário, indubitavelmente apregoado como algo superior, como acontecia com tantos aeroportos na China, a fim de atrair os investimentos estrangeiros, mas muito longe da categoria internacional. Mas também os corredores aéreos eram canais no céu, não estavam sujeitos aos caprichos cosméticos ou tecnológicos de aeroportos. Bastava entrar num desses canais e permanecer no curso. O céu não admitia fronteiras, o que só acontecia com os homens e máquinas presos à terra. Combinados, eram outro problema.

— Vamos para o hangar — sussurrou Jason, cutucando as costas do comando. — Não se esqueça: se fizer qualquer barulho, eu não terei de matá-lo... eles cuidarão disso. E eu terei uma oportunidade de escapar, oferecida por você. Não duvide disso. Abaixe-se!

A trinta metros de distância um guarda saiu da estrutura enorme, um rifle pendurado no ombro, os braços estendidos, o peito estufando num bocejo. Bourne sabia que era o momento de agir; talvez não aparecesse outro melhor. O assassino estava estendido de bruços, as mãos atadas por baixo, a boca escancarada comprimida contra a terra. Pegando a ponta solta da corda de náilon, Jason agarrou os cabelos do assassino, levantou sua cabeça e passou-a duas vezes em torno do seu pescoço.

— Se você se mexer, vai sufocar — sussurou Bourne, levantando-se.

Correu silenciosamente para a parede do hangar, avançou depressa até a beira e deu uma olhada. O guarda mal se mexia. Jason percebeu por que... o homem estava urinando. Perfeitamente natural e perfeitamente perfeito. Bourne afastou-se do prédio, fincou o pé direito na relva e depois arremeteu, golpeando com a arma na mão direita, enquanto o pé esquerdo atingia a base da espinha do guarda. O homem desabou, inconsciente. Jason arrastou-o de volta ao canto do hangar e depois atravessou a relva até o lugar em que deixara o assassino, imóvel, com medo de se mexer.

— Está aprendendo, Major — disse Bourne, tornando a suspender a cabeça do comando pelos cabelos e tirando a corda de náilon de seu pescoço:

O fato de que a corda de náilon não teria sufocado o impostor, assim como uma corda de varal em torno do pescoço de uma pessoa não a mataria, revelava a Delta uma coisa importante. Seu prisioneiro não podia pensar geometricamente; as tensões não eram um ponto forte em sua imaginação, apenas a ameaça falada de morte. Era um dado que não podia ser esquecido.

— Levante-se — ordenou Jason.

O assassino obedeceu, a boca escancarada, sorvendo ar, os olhos transbordando de ódio.

— Pense em Eco — acrescentou Bourne, seus olhos retribuindo a aversão do assassino. — Desculpe... estou falando de d’Anjou. O homem que lhe devolveu a vida... uma vida, de qualquer forma, e aparentemente você está aproveitando. Seu Pigmalião, meu velho!... E agora quero que me escute, preste toda atenção. Gostaria que eu tirasse a corda?

— Arrr! — grunhiu o assassino, acenando com a cabeça, os olhos passando do ódio à súplica.

— E soltasse os polegares?

— Arrr! Arrr!

— Você não é um guerrilheiro, mas um gorila — disse Jason, tirando a automática do cinto. — Mas como costumávamos dizer nos velhos tempos... antes do seu tempo, meu velho... há “condições”. Ou nós dois escapamos daqui vivos ou desaparecemos, nossos restos mortais se consumindo numa fogueira chinesa, sem passado, sem presente... certamente sem qualquer consideração retrospectiva sobre nossas contribuições abaixo de zero à sociedade... Vejo que o estou chateando. Desculpe. É melhor esquecer tudo.

— Arrr!

— Está bem, já que você insiste. Claro que não vou lhe dar uma arma, e vai morrer se eu o vir tentando se apoderar de alguma. Mas se você se comportar, podemos... apenas podemos... escapar. O que estou tentando lhe dizer, Sr. Bourne, é que o seu cliente por aqui, quem quer que seja, não pode permitir que você continue a viver, assim como não pode me admitir. Entende? Percebe? Capisce?

— Arrrr!

— Só mais uma coisa — acrescentou Jason, dando um puxão na corda, que caiu sobre o ombro do comando. — Isto é náilon, poliuretano ou o que chamem por aqui. Quando queima, incha como marshmallow, e não há a menor possibilidade de desamarrar. Ficará preso nos seus tornozelos, os nós duros como cimento. Terá uma distância entre os pés de aproximadamente um metro e meio... apenas porque sou um técnico. Estou sendo bem claro?

O assassino acenou com a cabeça. Nesse momento, Bourne pulou para a direita e chutou a parte posterior dos joelhos do impostor, derrubando-o, os polegares atados sangrando. Jason ajoelhou-se, a arma na mão esquerda comprimida contra a boca do comando, os dedos da mão direita desfazendo o nó atrás de sua cabeça.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou o assassino, quando a corda caiu.

— Fico contente de que você tenha uma fé religiosa —

murmurou Bourne, largando a arma e rapidamente passando a corda pelos tornozelos do comando, dando um nó em cada extremidade, depois acendendo o isqueiro e encostando na cor da. — Pode precisar.

Pegou a arma, encostou-a na testa do assassino e depois desenrolou o fio que lhe prendia os pulsos, acrescentando:

— Tire o resto. E tome cuidado com os polegares, que estão feridos.

— Meu braço direito também não serve para nada! — resmungou o inglês, enquanto fazia um esforço para remover os nós corrediços. As mãos livres, ele as sacudiu, depois chupou o sangue dos ferimentos. — Está com sua caixa mágica, Sr. Bourne?

— Está sempre comigo. Do que precisa?

— Esparadrapo. Os dedos sangram. É o que se chama de gravidade.

— Estou vendo que é um homem instruído. — Bourne estendeu a mão para trás e puxou a mochila, largando-a na frente do comando, a arma apontada para a sua cabeça. — Procure aí. É um rolo que está em cima.

— Certo. — O assassino pegou o esparadrapo e enrolou-o rapidamente nos polegares. E acrescentou, ao terminar: — Isso não é coisa que se faça com ninguém.

— Pense em d’Anjou.

— Ele queria morrer, pelo amor de Deus!. O que acha que eu deveria fazer?

— Nada. Porque você é nada.

— Pois isso me deixa no mesmo nível que você, não é mesmo, companheiro? Afinal, ele me transformou em você!

— Não possui o talento — respondeu Jason Bourne. — É carente. Não pode pensar geometricamente.

— O que isso significa?

— Pense a respeito. — Delta ficou de pé e ordenou: — Levante-se

— Gostaria que me dissesse uma coisa — murmurou o assassino, levantando-se e olhando fixamente para a arma apontada para sua cabeça. — Por que eu? Por que você saiu do negócio?

— Porque nunca estive nele.

Subitamente, refletores, um depois do outro, começaram a se acender por todo o campo, criando uma iluminação intensa. Marcadores amarelos apareceram por toda a extensão da pista. Homens saíram correndo do alojamento, alguns se encaminhando para o hangar, outros seguindo na direção inversa, para trás da estrutura, onde soaram abruptamente os motores de veículos invisíveis. As luzes do terminal foram acesas; havia atividade por toda parte.

— Tire o casaco e o chapéu dele —ordenou Bourne, apontando a arma para o guarda inconsciente. — E ponha-os.

— Não vão caber!

— Pode mandar ajustar em.Savile Row. Ande logo!

O impostor obedeceu, o braço direito tão inútil que Jason teve de segurar a manga para ele. Com Bourne a cutucar o comando com a pistola, os dois homens correram para a parede do hangar e depois avançaram cautelosamente para a extremidade do prédio.

— Concordamos? — indagou Bourne, num sussurro, olhando para o rosto que fora o seu anos antes. — Saímos daqui ou morremos?

— Entendido. Aquele filho da puta berrador, com sua espada sangrenta, é um lunático. Quero sair.

— Essa reação não estava na sua cara.

— Se estivesse, o maníaco poderia se virar contra mim.

— Quem é ele?

— Nunca teve um nome, apenas uma série de conexões para alcançá-lo. A primeira foi um homem na guarnição de Guangdon chamado Soo Jiang...

— Já ouvi falar. Ele é conhecido como O Porco.

— Provavelmente é isso, não sei.

— E que mais?

— Um número de telefone é deixado na Mesa Cinco, no cassino em...

— O Kam Pek, em Macau — interrompeu Jason. — E depois?

— Ligo para o número e falo francês. Esse Soo Jiang é um dos poucos chineses que falam a língua. Ele marca a hora do encontro; é sempre no mesmo local. Atravesso a fronteira para um campo nas colinas, onde um helicóptero pousa. Alguém me dá o nome do alvo. E metade do dinheiro pela execução... Olhe ali! Está chegando. Dando a volta para o pouso.

— Minha arma está em sua cabeça.

— Sei disso.

— Seu treinamento incluiu pilotar uma dessas coisas?

— Não. Apenas saltar delas.

— Isso não vai nos servir.

Com luzes vermelhas piscando nas asas, o jato desceu do céu para a pista. Pousou suavemente, taxiou até a extremidade do asfalto, virou para a direita e começou a voltar para o terminal.

— Kai guan qi you! — gritou um homem na frente do hangar, apontando para os três caminhões de combustível ao lado, explicando qual deles seria usado.

— Estão abastecendo — murmurou Jason. — O avião vai decolar de novo. Vamos capturá-lo.

O assassino virou-se, o rosto — aquele rosto — suplicante.

— Pelo amor de Deus, dê-me uma faca! Qualquer coisa!

— Nada.

— Posso ajudar!

— O espetáculo é meu, Major, não seu. Com uma faca, você me abriria a barriga. Não tem a menor possibilidade, companheiro.

— Da long xia! — gritou a mesma voz na frente do hangar, descrevendo as autoridades do governo como camarões. — Fang song — acrescentou ele, dizendo a todos para relaxarem que o avião taxiaria para longe do terminal e o primeiro dos três caminhões de combustível seguiria ao seu encontro.

As autoridades desembarcaram; o jato deu a volta no lugar e começou a se afastar pela pista, enquanto a torre determinava ao piloto onde deveria reabastecer, O caminhão partiu; quando parou, homens saltaram lá de cima e começaram a puxar as mangueiras de seus recessos.

— Vai levar cerca de dez minutos — disse o assassino. — É uma versão chinesa de um DC-3 melhorado.

O avião parou, os motores desligados, enquanto escadas eram empurradas para as asas e homens as galgavam. Os tanques de combustível foram abertos, os bocais inseridos, o pessoal de manutenção falando o tempo todo. Subitamente, a porta do centro da fuselagem foi novamente aberta, os degraus de metal caindo para o chão. Dois homens de uniforme saíram.

— O piloto e seu oficial de vôo — disse Bourne. — Não estão apenas esticando as pernas. Vão verificar cada coisa que aqueles homens estão fazendo. Vamos calcular tudo com muito cuidado, Major. Quando eu disser “Vamos”, você vai.

— Direto até a porta — concordou o assassino. —Quando o segundo cara chegar ao primeiro degrau.

— Mais ou menos isso.

— Algum desvio de atenção?

— De que forma?

— Providenciou um sensacional ontem à noite. Promoveu o seu próprio Quatro de Julho Ianque.

— O caminho errado aqui. De qualquer forma, gastei tudo... Ei, espere um instante! O caminhão de combustível!

— Se explodi-lo, lá se vai o avião. Além disso, não daria para calcular com a volta dos homens a bordo.

— Não aquele caminhão — disse Jason, sacudindo a cabeça e olhando além do comando. — Mas aquele ali.

Bourne gesticulou para o mais próximo dos dois caminhões vermelhos diretamente à frente deles, cerca de trinta metros de distância. E acrescentou:

— Se explodir, a primeira ordem será para tirar o avião de lá.

— E estaríamos muito mais perto do que agora. Vamos tentar.

— Nós, não — corrigiu Jason. — Você vai fazer. Exatamente do jeito que eu lhe mandar, com minha arma a poucos centímetros de sua cabeça. Ande!

O assassino na frente, eles correram para o caminhão, cobertos pela pouca claridade e a movimentação intensa em torno do avião. O piloto e seu oficial de vôo estavam com lanternas acesas, iluminando os motores e gritando ordens impacientes para a equipe de manutenção. Bourne mandou que o comando se agachasse à sua frente, ajoelhou-se sobre a mochila aberta e tirou um rolo de gaze. Pegou a faca de caça do cinto, puxou uma mangueira enrolada de seu apoio e estendeu a mão para a base que penetrava no tanque.

— Verifique como eles estão, Major. Quanto tempo mais? E mexa-se devagar. Estou observando-o.

— Eu disse que queria sair, não que quero me estrepar!

— Sei que você quer cair for e tenho o pressentimento de que preferia fazê-lo sozinho.

— O pensamento nunca me ocorreu.

— Então você não é meu homem.

— Muito obrigado.

— Estou falando sério, O pensamento teria me ocorrido... Quanto tempo mais?

— Calculo que dois a três minutos.

— E seu julgamento é bom?

— Vinte e tantas missões em Oman, Iêmen e pontos ao sul. O avião é similar em estrutura e mecanismo. Conheço tudo, companheiro. É coisa antiga. Dois a três minutos, não mais do que isso.

— Ótimo. Volte para cá.

Jason espetou a mangueira com a faca, fazendo uma incisão pequena, o suficiente para permitir que escorresse um fluxo firme de gasolina, mas deixando a bomba funcionar. Levantou-se, cobrindo o assassino com a pistola, enquanto lhe entregava o rolo de gaze.

— Desenrole cerca de dois metros e encharque com o combustível que está vazando.

O comando ajoelhou-se e cumpriu as instruções. Depois, Jason ordenou:

— Agora, meta a ponta no corte que fiz na mangueira. Mais fundo... mais fundo! Use o polegar!

— Meu braço não está como antes!

— A mão esquerda está! Aperte com mais força!

Bourne lançou um olhar rápido para o avião reabastecendo... reabastecido. O julgamento do comando fora preciso. Os homens estavam descendo das asas e enrolando as mangueiras, levando-as de volta ao caminhão. O piloto e o oficial de vôo iniciaram a verificação final. Voltariam à porta em menos de um minuto! Jason enfiou a mão no bolso, tirou a caixa de fósforos e jogou-a na frente do assassino, a arma apontada para a sua cabeça.

— Acenda. Agora!

— Vai pegar como um bastão de nitroglicerina! E vamos ser explodidos para o céu, especialmente eu!

— Não se fizer tudo direito. Ponha a gaze na relva, está úmida...

— Retardando o fogo?...

— Faça o que estou mandando! Depressa!

— Está feito!

A chama se elevou na extremidade da tira, baixou no instante seguinte e iniciou o seu avanço gradativo.

— Técnico filho da puta... — murmurou o comando, enquanto se levantava.

— Fique na minha frente — ordenou Bourne, prendendo a mochila no cinto. — Comece a andar para a frente, em linha reta. Abaixe a cabeça e encolha os ombros, como fez em Lo Wu.

— Meu Deus! Vocé estava?..

— Ande!

O caminhão de combustível começou a se afastar do avião, deu uma volta para a frente, contornando as escadas virando para a esquerda, além do lugar onde estava estacionado o primeiro caminhão vermelho... e deu a volta outra vez, agora para a direita, por trás dos dois caminhões parados, a fim de ocupar sua posição ao lado do que estava com a gaze pegando fogo. Jason virou a cabeça bruscamente,olhando para a tira em chamas. Tinha de chegar logo ao fim! Uma centelha entrando na torneira a vazar e o tanque explodiria, arremessando fragmentos de metal em brasa para as cascas vulneráveis dos outros caminhões. A qualquer segundo agora!

O piloto gesticulou para o oficial de vôo. Os dois se encaminharam juntos para a porta.

— Mais depressa! — gritou Bourne. — Esteja, preparado para correr!

— Quando?

— Vai saber. Mantenha os ombros encurvados! E curve a espinha!

Viraram à direita, na direção do avião, passando pela multidão da manutenção que vinha em sentido contrário, voltando para o hangar.

— Gongju ne? — gritou Jason, advertindo um colega por ter esquecido um valioso jogo de ferramentas junto ao avião.

— Gong ju? — gritou um homem na extremidade da multidão, segurando o braço de Bourne e levantando uma caixa de ferramentas. Os olhos dos dois se encontraram e o mecânico ficou aturdido, o rosto se contorcendo em choque. E ele gritou: — Tian a!

E aconteceu. O caminhão-tanque explodiu, enviando colunas de fogo pulsantes para o céu, enquanto fragmentos de metal retorcido perfuravam o espaço por cima e para os lados do veículo em chamas. Os homens desataram a gritar e correram em todas as direções, a maioria para a proteção do hangar.

— Corra! — gritou Jason.

Nem era preciso dar a ordem ao assassino. Os dois correram para o avião e a porta, onde o piloto, que acabara de entrar, olhava a cena espantado, enquanto o oficial de vôo permanecia na escada, imóvel.

— Kuai! — berrou Bourne, mantendo seu rosto nas sombras e forçando a cabeça do comando para baixo, nos degraus de metal. — Jiu feiji!... — acrescentou ele, mandando que o piloto saísse da zona de fogo para a segurança do avião, que ele era da manutenção e trancaria a porta.

Um segundo caminhão explodiu, as muralhas opostas de explosivos formando uma erupção vulcânica de fogo e metal.

— Está certo! — berrou o piloto, em chinês, agarrando seu oficial de vôo pela camisa e puxando-o para dentro, os dois seguindo para a cabine de comando.

Era o momento, pensou Jason.

— Entre! — ordenou ele ao comando, enquanto o terceiro caminhão-tanque explodia no campo, aumentando a primeira claridade do amanhecer.

— Claro! — gritou o comando, levantando a cabeça e empertigando o corpo para subir os degraus.

E depois, subitamente, no instante em que soava outra explosão ensurdecedora e os motores do avião rugiam, o assassino virou-se na escada, lançando o pé direito para a virilha de Bourne, a mão disparando para desviar a arma.

Jason estava preparado. Acertou com o cano da arma no tornozelo do comando e depois levantou-a, atingindo-lhe a têmpora; o sangue correu, enquanto o assassino caía para trás, sob a fuselagem. Bourne subiu os degraus num pulo, chutando o corpo inconsciente do impostor pelo chão de metal. Puxou a porta e baixou as trancas, prendendo-a no lugar. O avião começou a taxiar, virando no mesmo instante para a esquerda, afastando-se do centro flamejante de perigo. Jason tirou a mochila do cinto, pegou uma segunda corda de náilon e amarrou os pulsos do assassino a duas braçadeiras bem separadas na fuselagem. Não havia jeito de o assassino poder se libertar — ou nenhum que Bourne pudesse pensar —, mas apenas para ter certeza, pois sempre podia estar enganado, cortou a corda que prendia os tornozelos e amarrou cada pé a braçadeiras opostas no corredor.

Bourne levantou-se e começou a se encaminhar para a cabine de comando, O avião estava agora na pista, correndo pelo pavimento, mas, de repente, os motores pararam. O avião estava parando na frente do terminal, onde o grupo de autoridades do governo se reunia, observando o incêndio cada vez maior, que ocorria a menos de um quilômetro de distância, ao norte.

— Kai ba! — disse Bourne, encostando o cano da automática na nuca do piloto. O co-piloto virou-se abruptamente, e Jason acrescentou, em mandarim preciso, deslocando a arma: — Observem os seus mostradores e preparem tudo para a decolagem. E quero que me entreguem os mapas.

— Não vão nos dar autorização para decolar! — gritou o piloto. — Temos de pegar cinco comissários em viagem!

— Para onde?

— Baoding.

— Fica ao norte — disse Boume.

— Noroeste — corrigiu o co-piloto.

— Está certo. Sigam para o sul.

— Não vão nos dar permissão! — insistiu o piloto.

— Seu primeiro dever é salvar o avião. Não sabe o que está acontecendo por lá. Pode ser sabotagem, uma revolta, um levante. Faça o que estou mandando ou os dois vão morrer. Juro que não me importo.

O piloto virou a cabeça bruscamente e olhou para Jason.

— Você é um ocidental! Fala chinês, mas é um ocidental! O que está fazendo?

— Requisitando este avião. Ainda dispõe de bastante pista. Decole logo. Para o sul. E me entregue os mapas.

As memórias voltavam. Sons distantes, cenas distantes, um troar distante.

— Dama Serpente, Dama Serpente! Responda! Quais são as suas coordenadas de setor?

Estavam seguindo para Tam Quan e Delta não queria romper o silêncio. Ele sabia onde estavam e isso era tudo o que importava. O Comando Saigon que se danasse, pois ele não daria aos postos de escuta do Vietnam do Norte qualquer indicação do lugar para onde seguiam.

— Se não quer ou não pode responder, Dama Serpente, permaneça abaixo de seiscentos metros! É um amigo quem está falando, seus idiotas! Vocês não têm muitos aí por baixo! O radar deles vai pegar vocês acima de seiscentos.

Sei disso, Saigon, meu piloto também sabe; e mesmo que ele não soubesse, nem assim eu romperia o silêncio.

— Dama Serpente, nós perdemos você completamente! Algum retardado nessa missão é capaz de ler um mapa aéreo?

Eu sei ler e muito bem, Saigon. Acha que eu subiria com meu grupo confiando em qualquer um de vocês? É meu irmão quem está lá embaixo! Eu não sou importante para você, mas ele é!

— Está louco, Ocidental! — berrou o piloto. — Em nome dos espíritos, este é um avião pesado e estamos quase em cima das árvores!

— Levante um pouco o nariz — disse Bourne, enquanto estudava um mapa. — Depois mergulhe e tome a levantar.

— Mas isso também é uma loucura! — gritou o co-piloto. — Uma corrente descendente a esta altura e caímos na floresta! Estamos perdidos!

— Os relatórios do tempo em seu rádio dizem que não há qualquer previsão de turbulência...

— Isso é lá em cima! — protestou o piloto. — Você não compreende os riscos! Não aqui embaixo!

— Qual foi o último relatório transmitido por Jinan? — indagou Jason, sabendo muito bem qual era.

— Eles estão tentando pilotar este vôo para Baoding. Não conseguiram localizar o avião durante as últimas três horas. Estão agora procurando nas montanhas de Hengshui... Grandes espíritos, por que estou lhe dizendo tudo isso? Ouviu tudo e fala melhor do que meus pais, que eram instruídos!

— Dois pontos para a Força Aérea da República... Muito bem, faça uma volta de cento e sessenta graus dentro de dois minutos e meio e suba para uma altitude de trezentos metros. Estaremos sobre a água.

— Estaremos no espaço aéreo dos japoneses! Eles vão nos derrubar!

— Hasteie uma bandeira branca... ou, melhor ainda, usarei o rádio. Pensarei em alguma coisa. Eles podem até nos escoltar para Kowloon.

— Kowloon! — berrou o aflito oficial de vôo. — Seremos fuzilados!

— É bem possível — concordou Bourne. — Mas não por mim. Em última análise, tenho de chegar lá sem vocês. Para dizer a verdade, não podem sequer fazer parte da minha história. Não posso permitir isso.

— O que você fala não faz o menor sentido! — protestou o exasperado piloto.

— Só quero que você faça a volta de cento e sessenta graus quando eu mandar.

Jason estudou a velocidade relativa e calculou a distância estimada que desejava. Lá embaixo, através da janela, podia divisar a costa da China ficando para trás. Olhou para o relógio; havia transcorrido noventa segundos.

— Faça a volta, Comandante.

— Eu teria feito de qualquer maneira! — gritou o piloto. — Não sou do vento divino do Kamikaze. Não vôo para a minha própria morte.

— Nem mesmo pelo seu celestial governo?

— Muito menos.

— Os tempos mudam — murmurou Bourne, concentrando-se mais uma vez no mapa aéreo. — As coisas mudam.

— Dama Serpente! Dama Serpente! Cancele! Se pode me ouvir, saia daí e volte para a base! É uma situação sem possibilidade de vitória! Está me entendendo? Cancele a missão!

— O que você quer fazer, Delta?

— Continue a voar, mister. Mais três minutos e poderá sair daqui.

— Eu poderei. Mas o que vai acontecer com você e seu pessoal.

— Nós vamos saltar.

— Isso é suicídio, Delta.

— Não me diga... Muito bem, todos verifiquem seus pára-quedas e preparem-se para saltar. Alguém ajude Eco a pôr a mão na corda.

— Déraisonnable!

A velocidade se mantinha firme em quase seiscentos quilômetros horários. A rota que Jason escolhera, voando em baixa altitude pelo Estreito de Formosa — passando por Longhai e Shantou na costa chinesa e Hsinchu e Fengshan em Formosa —, tinha cerca de dois mil e quatrocentos quilômetros. Portanto, a estimativa de duração de vôo em quatro horas, mais ou menos alguns minutos, era razoável. As ilhas exteriores, ao norte de Hong Kong, estariam visíveis em menos de meia hora.

Por duas vezes, durante o vôo, haviam sido interpelados pelo rádio, uma pela guarnição nacionalista em Quemói, outra por um avião de patrulha ao largo de Raoping. Nas duas vezes, Bourne assumira as comunicações, explicando no primeiro caso que estavam numa missão de busca a um navio avariado que transportava mercadorias de Formosa para o Continente, enquanto na segunda fazia a declaração um tanto ameaçadora de que, como parte das Forças de Segurança do Povo, estavam vasculhando a costa à procura de embarcações de contrabando que indubitavelmente se esquivavam ás patrulhas de Raoping. Para a segunda comunicação, ele não apenas se mostrou desagradavelmente arrogante como também usou o nome e o número de identificação oficial —altamente secreta — de um conspirador morto, o cadáver deixado por baixo de uma limusine russa, no Santuário de Pássaros Jing Shan. Quer o interrogador acreditasse ou não, era irrelevante, como ele esperava. Também não se incomodava em perturbar o status quo ante. A vida já era bastante complicada. Deixe as coisas como estão, deixe que continuem. Onde estava a ameaça?

— Onde está o seu equipamento? — perguntou Jason ao piloto.

— Estou voando nele! — respondeu o homem, estudando seus instrumentos, visivelmente abalado a cada erupção de estática do rádio, sempre uma comunicação da aviação comercial. —Você pode ou não saber, mas não tenho plano de vôo. Podemos estar num curso de colisão com uma dúzia de aviões diferentes!

— Estamos muito baixo e a visibilidade é ótima — disse Bourne. — Confiarei em seus olhos para não esbarrarmos em ninguém.

— Você é louco! — gritou o co-piloto.

— Ao contrário. Estou prestes a recuperar a sanidade. Onde está o equipamento de emergência? Pela maneira como vocês constroem as coisas, não posso imaginar que não tenham nenhum.

— Do que está falando? — indagou o piloto.

— Balsas, instrumentos de sinalização... pára-quedas.

— Grandes espíritos!

— Onde?

— No compartimento no fundo do avião, a porta à direita da cozinha.

— É tudo para as autoridades que viajam com a gente — acrescentou o co-piloto, amargurado. — Se surgirem problemas, eles é que são protegidos.

— É perfeitamente razoável — comentou Bourne. — De que outra forma vocês poderiam cuidar para que não surja qualquer problema?

— É um absurdo!

— Vou dar um pulo lá atrás, senhores, mas manterei a pistola apontada para cá. Mantenha o curso, Comandante. Sou muito experiente e muito sensível. Posso sentir a menor variação no ar... e se isso acontecer, os dois vão morrer. Entendido?

— Maluco!

— Tem toda razão.

Jason levantou-se e voltou pelo avião, passando por cima

de seu prisioneiro, estendido no chão e amarrado. O assassino desistira de se debater para se libertar; camadas de sangue seco cobriam-lhe o ferimento na têmpora esquerda.

— Como estão as coisas, Major?

— Cometi um erro. O que mais você quer?

— Seu corpo quente em Kowloon... isso é tudo o que quero.

— Para que algum filho da puta possa me pôr na frente de um pelotão de fuzilamento?

— Isso depende de você. Como estou começando a ajeitar as coisas, algum filho da puta pode até lhe dar uma medalha, se agir como deve.

— Você tem a mania de enigmas, Bourne. O que isso significa?

— Com um pouco de sorte, você vai descobrir.

— Muito obrigado!

— Não precisa me agradecer. Foi você mesmo quem me deu a idéia, companheiro. Perguntei se em seu treinamento tinha aprendido a voar uma dessas coisas. Lembra o que me respondeu?

— O que foi?

— Disse que sabia apenas como saltar delas.

— Merda!

O comando, com o pára-quedas preso nas costas, estava amarrado de pé entre dois bancos, pernas e mãos atadas juntas, a mão direita segurando o cordão do pára-quedas.

— Parece crucificado, Major. A única diferença é que seus braços não estão estendidos.

— Pelo amor de Deus, quer dizer alguma coisa que faça sentido?

— Desculpe. Meu outro eu insiste em se manifestar. Não faça nenhuma estupidez, seu filho da puta, porque vai saltar por esta porta. Ouviu bem? Entendido?

— Entendido.

Jason voltou à cabine de comando, sentou-se, pegou o mapa e disse ao oficial de vôo:

— Qual é o cálculo?

— Estaremos em Hong Kong dentro de seis minutos, se não esbarrarmos em ninguém.

— Tenho absoluta confiança em vocês, mas não podemos aterrissar em Kai-tak, mesmo que haja alguma idéia de deserção. Sigam para o norte, pelos Novos Territórios.

— Aiya! — gritou o piloto. — Vamos passar pelo radar! E os loucos gurcas vão disparar em qualquer coisa que pareça sequer remotamente com o Continente!

— Não se o avião não for captado na tela de radar, Comandante. Permaneça abaixo de seiscentos metros até a fronteira, depois suba sobre as montanhas de Lo Wu. Pode fazer contato pelo rádio com Shenzen.

— E o que vou dizer, em nome dos espíritos?

— Diga que foi seqüestrado. Não precisa falar mais nada. Não posso permitir que você entre na minha história. É por isso que não podemos pousar na colônia. Atrairia atenção para um homem muito tímido... e seu companheiro.

Os pára-quedas abriram-se por cima deles, a corda de vinte metros que os ligava pelas cinturas esticada ao vento, enquanto o avião se afastava em alta velocidade para o norte, na direção de Shenzen.

Caíram nas águas de uma incubadeira de peixes, ao sul de Lok Ma Chau. Bourne puxou a corda, trazendo o assassino para o seu lado, enquanto os proprietários da incubadeira gritavam furiosos das margens. Jason levantou dinheiro... mais dinheiro do que marido e mulher poderiam ganhar em um ano.

— Somos desertores! — gritou ele. — Desertores ricos! Quem se importa?

Ninguém se importava, muito menos os proprietários da incubadeira.

— Mgoi! Mgoissaai! — eles ficaram repetindo, agradecendo às estranhas criaturas rosadas que caíram do céu, enquanto Bourne tirava o assassino da água.

Os trajes chineses descartados e os pulsos do comando amarrados nas costas, Bourne e seu prisioneiro alcançaram a estrada que seguia para o sul, na direção de Kowloon. As roupas encharcadas secavam rapidamente ao calor do sol, mas a aparência de ambos não atrairia os poucos veículos que passavam pela estrada e menos ainda os que poderiam se mostrar dispostos a recolher caronas. Era um problema que precisava ser resolvido. E o mais depressa possível, da forma cena. Jason estava exausto; mal conseguia andar, e sua concentração estava se desvanecendo. Um passo em falso e poderia perder... mas ele não podia perder! Não agora!

Camponeses, principalmente mulheres já velhas, passavam pelas beiras do asfalto, os chapéus pretos, enormes, de aba larga, protegendo os rostos murchos do sol, cangas estendidas pelos ombros encurvados, sustentando cestos de produtos. Uns poucos olharam curiosos para os desgrenhados ocidentais por um instante; mas o mundo deles não convidava a surpresas. Já era suficiente sobreviver; suas memórias eram fortes.

Recordações. Estude tudo. Vai encontrar alguma coisa que poderá aproveitar.

— Deite-se — ordenou Bourne ao assassino. — À beira da estrada.

— Por quê?

— Por que se não o fizer não verá mais três segundos de luz do dia.

— Pensei que queria meu corpo quente em Kowloon!

— Levarei seu corpo frio, se for necessário. Deite logo! De costas! E pode gritar tão alto quanto quiser que ninguém vai compreendê-lo. Pode até me ajudar.

— Mas como?

— Você está em trauma.

— O quê?

— Deite! Agora!

O comando arriou para o chão, virou de costas, ficou olhando para o sol forte, o peito arfando na respiração sôfrega.

— Ouvi o que o piloto disse — murmurou ele. — Você é mesmo louco!

— Cada um com a sua interpretação, Major. — Subitamente, Jason virou-se na estrada e começou a gritar para as camponesas. — Jiu ming! Qing bangmang!

Ele suplicava às sobreviventes ancestrais que o ajudassem com seu companheiro, que estava com as costas quebradas ou as costelas partidas. Enfiou a mão na mochila e tirou dinheiro, explicando que cada minuto era importante, que havia necessidade de ajuda médica o mais depressa possível. Se elas pudessem fazer alguma coisa, ele pagaria bem pela ajuda.

As camponesas correram em sua direção ao mesmo tempo, os olhos não apenas no paciente, mas também no dinheiro, os chapéus voando ao vento, as cargas esquecidas.

— Na gunzi lai! — gritou Bourne, pedindo pedaços de madeira que mantivessem rígidas as costas do pobre coitado.

As mulheres correram para o campo e voltaram com pedaços compridos de bambu, que proporcionariam algum alívio ao pobre homem, quando fossem ajustados no lugar. E depois de assim fazerem, com manifestações ruidosas de compaixão e apesar dos protestos em inglês do paciente, elas aceitaram o dinheiro de Bourne e foram embora.

Exceto uma. Ela avistara um caminhão que se aproximava, vindo do norte.

— Duo shao qian? — disse ela, inclinando-se para o ouvido de Jason, querendo saber quanto ele pagaria.

— Ni shuo ne — respondeu Jason, dizendo a ela que fixasse o preço.

Ela o fez e Delta concordou. Com os braços estendidos, a mulher foi postar-se no meio da estrada, e o caminhão parou. Houve uma segunda negociação com o motorista e o assassino foi posto no compartimento de carga, deitado de costas, preso aos bambus. Jason subiu também.

— Como está se sentindo, Major?

— Esta porcaria está cheia de patos nojentos! — berrou o comando, correndo os olhos pelas gaiolas de madeira por todos os lados, o cheiro intenso, insuportável.

Um pato em particular, em sua sabedoria infinita, escolheu o momento para lançar um jato de excremento no rosto do assassino.

— Próxima parada, Kowloon — disse Jason, fechando os olhos.


 

O telefone tocou. Marie virou-se rapidamente na cadeira... e foi detida pela mão levantada de Mo Panov. O médico atravessou o quarto de hotel e atendeu o telefone na mesinha-de-cabeceira:

— Alô?

Franziu o rosto enquanto escutava; depois, como se compreendesse que sua expressão poderia alarmar a paciente, olhou para Marie e sacudiu a cabeça, um movimento da mão descartando agora qualquer urgência que pudesse haver na ligação.

— Vamos continuar quietos até recebermos outra notícia sua. Mas tenho de lhe fazer uma pergunta, Alex, e peço que me perdoe pela franqueza. Alguém por acaso lhe ofereceu drinques? — Panov estremeceu, enquanto afastava o fone do ouvido por um instante. —Minha única resposta é a de que sou bastante gentil e experiente para especular sobre os seus antecedentes. Conversaremos mais tarde.

Ele desligou, e Marie perguntou no instante, soerguendo-se na cadeira:

— O que aconteceu?

— Muito mais do que ele poderia relatar em detalhes, mas o que disse foi suficiente. — O psiquiatra fez uma pausa, fitando Marie nos olhos. — Catherine Stales está morta. Foi liquidada a tiros na frente do prédio em que morava, há algumas horas...

— Oh, meu Deus! — balbuciou Marie.

— Aquele enorme oficial do serviço secreto — continuou Panov —, o que vimos na estação de Kowloon, a quem você chamou de major e Staples identificou como um homem chamado Lin Wenzu...

— O que há com ele?

— Está gravemente ferido e se encontra em estado crítico no hospital. Conklin telefonou do próprio hospital.

Marie estudou atentamente o rosto de Panov.

— Há uma ligação entre a morte de Catherine e Lin Wenzu, não há?

— Sim. Quando Staples foi morta, ficou evidente que a operação fora penetrada...

— Que operação? Por quem?

— Alex disse que contará tudo isso mais tarde. De qualquer forma, as coisas estão chegando ao ponto de ebulição, e esse Lin pode ter sacrificado sua vida para acabar com a infiltração... “neutralizá-la”, como disse Conklin.

— Oh, Deus! — exclamou Marie, os olhos arregalados, a voz à beira da histeria. — Operações! Penetrações... neutralizar, Lin, até mesmo Catherine... uma amiga que se virou contra mim... não estou interessada nessas coisas! O que está acontecendo com David?

— Disseram que ele foi à China.

— Eles o mataram! — berrou Marie, pulando da cadeira.

Panov adiantou-se rapidamente e segurou-a pelos ombros. Apertou com força, obrigando sua cabeça a se sacudir espasmodicamente e parar o movimento, insistindo em silêncio que ela o fitasse.

— Deixe-me contar o que Alex disse... Preste atenção!

Lentamente, ofegante, como se tentasse encontrar um mo mento de lucidez em sua confusão e exaustão, Marie ficou imóvel, olhando fixamente para o amigo.

— O que foi? — balbuciou ela.

— Ele disse que de certa forma estava contente por David se encontrar lá em cima... ou lá por fora... porque em sua opinião ele tinha assim uma chance maior de sobreviver.

— Acredita nisso? — gritou a mulher de David Webb, os olhos marejados de lágrimas.

— É possível — respondeu Panov, falando suavemente, balançando a cabeça. — Conklin ressaltou que aqui em Hong Kong, David poderia ser baleado ou esfaqueado numa rua apinhada... as multidões, disse ele, eram ao mesmo tempo inimigas e amigas. E não me pergunte onde essas pessoas arrumam suas metáforas, porque eu não sei.

— O que está tentando me dizer?

— O que Alex me contou. Ele disse que obrigaram David a voltar, a ser alguém que ele queria esquecer. E depois disse que nunca houve ninguém como “Delta”. Para ele, “Delta” foi o melhor que já existiu... David Webb era “Delta”, Marie. Não importa o que ele queira apagar de sua mente, o fato é que foi “Delta”. Jason Bourne foi uma projeção posterior, uma extensão do sofrimento que ele tinha de infligir a si mesmo. Mas a sua eficiência foi desenvolvida como “Delta”... Sob alguns aspectos, conheço seu marido tão bem quanto você.

— Sob esses aspectos, tenho certeza de que até muito melhor — respondeu Marie, encostando a cabeça no peito confortador de Morris Panov. — Havia tantas coisas sobre as quais ele não queria falar... Sentia-se muito assustado ou muito envergonhado... Oh, Mo! Ele voltará algum dia para mim?

— Alex acha que “Delta” voltará.

Marie afastou-se do psiquiatra e fitou-o nos olhos; através das lágrimas, seu olhar era firme.

— Mas o que me diz de David? —indagou ela, num sussurro angustiado. — Ele voltará?

— Não posso responder a essa pergunta. Gostada de responder, mas não posso.

— Entendo...

Marie desvencilhou-se das mãos de Panov e foi até uma janela, olhando para a multidão lá embaixo, nas ruas congestionadas, brilhantemente iluminadas.

— Perguntou a Alex se ele estivera bebendo. Por que, Mo?

— Eu me arrependi das palavras no mesmo instante em que as pronunciei.

— Porque o ofendeu? — perguntou Marie, virando-se para o psiquiatra.

 

— Não. Porque sabia que você ouviria e pediria uma explicação... e eu não poderia recusar.

— E então?

— Foi a última coisa que ele me disse... duas coisas, para ser mais preciso. Ele disse que você estava enganada em relação a Staples.

— Enganada? Eu estava lá! Vi tudo! Ouvi suas mentiras!

— Ela estava tentando protegê-la, sem que você fugisse em pânico.

— Mais mentiras! Qual foi a outra coisa?

Panov falou de maneira incisiva, os olhos fixados nos de Marie:

— Alex disse que por mais absurdas que as coisas pudessem parecer, no final das contas não eram tão absurdas assim,

— Oh, Deus, eles o viraram!

— Não completamente. Alex não disse a eles onde você está... onde nós estamos. Falou que deveríamos estar preparados para sair daqui poucos minutos depois de sua próxima ligação. Ele não pode correr o risco de voltar para cá. Tem medo de ser seguido.

— O que significa que estamos fugindo outra vez... sem nenhum lugar para ir, obrigados a procurar outro esconderijo. E de repente há um ponto de ferrugem aumentando rapidamente em nossa armadura coletiva. Nosso São Jorge aleijado que abate os dragões quer agora deitar com eles.

— Isso não é justo, Marie. Não foi o que ele disse, não foi o que eu disse,

— Não me venha com essa, doutor! É meu marido quem está lá fora... ou lá em cima! Eles estão usando-o, matando-o, sem nos explicar por quê! Ora, ele pode... apenas pode... sobreviver porque é excepcionalmente bom no que faz... fazia... que era tudo o que ele desprezava... mas o que vai sobrar do homem e sua mente? Você é o especialista, doutor! O que vai ficar depois que todas as memórias voltarem? E é bom que volte tudo, caso contrário ele não vai sobreviver!

— Já lhe disse que não posso responder a isso.

— Ah, Mo, você é maravilhoso! Tudo o que tem são posições cuidadosamente definidas, mas nenhuma resposta, nem mesmo projeções com alguma base. Está se perdendo! Deveria ter sido um economista! Perdeu sua vocação!

— Perdi uma porção de coisas... inclusive quase perdi o avião para Hong Kong.

Marie ficou imóvel, como se tivesse sido atingida por um raio. E depois correu para Panov, em meio a uma nova onda de lágrimas, abraçando-o.      

— Desculpe, Mo! Perdoe-me! Perdoe-me!

— Eu é que devo pedir desculpas — disse o psiquiatra. — Foi um recurso ordinário.

Ele inclinou a cabeça para trás, afagando gentilmente os cabelos grisalhos de Marie, e depois acrescentou:

— Não suporto essa peruca.

— Não é uma peruca, doutor.

— Meus diplomas, em termos de Sears Roebuck, nunca incluíram a cosmetologia.

— Apenas cuidar de pés.

— Pode estar certa de que são muito mais fáceis do que as cabeças.

O telefone tocou nesse instante. Marie soltou uma exclamação abafada e Panov parou de respirar. Ele virou a cabeça lentamente para a odiada campainha.

— Tente isso de novo ou qualquer outra coisa parecida e vai morrer! — gritou Bourne, segurando o dorso da mão, onde a carne escurecia da força do golpe.

O assassino, os pulsos amarrados na frente, por cima das mangas do casaco, arremetera contra a porta do hotel ordinário, espremendo a mão esquerda de Jason no alizar.

— O que você espera que eu faça? — berrou o ex-comando britânico. — Que ande tranqüilamente para o paredão, sorrindo para o pelotão de fuzilamento, a desejar um doce boa noite?

— Pelo jeito como fala, parece que é também um leitor Secreto — comentou Bourne, observando o assassino comprimir o tórax, no ponto em que seu pé direito o atingira, num golpe violento. — Talvez esteja na hora de eu lhe perguntar por que está neste negócio, de que nunca participei realmente. Por que, Major?

— Está mesmo interessado, Sr. Original? — resmungou o assassino, arriando numa poltrona velha, encostada na parede. — Então é a minha vez de perguntar por quê.

— Talvez porque eu nunca tenha compreendido a mim mesmo — respondeu David Webb. — Sou bastante racional em relação a isso.

— Sei de tudo a seu respeito. Foi parte do treinamento do Francês. O grande Delta era maluco. Sua mulher e seus filhos foram mortos na água, num lugar chamado Phnom Penh, metralhados por um jato desgarrado. Esse tão civilizado estudioso do Oriente simplesmente enlouqueceu. É um fato que ninguém podia controlá-lo e também ninguém se importava muito com isso, porque ele e suas equipes causavam mais destruição do que todos os grupos especiais juntos. Saigon dizia que você era suicida; de seu ponto de vista, quanto mais, melhor. Queriam que você e a escória que comandava se estrepassem. Jamais quiseram que você voltasse. Era um embaraço grande demais.

Dama Serpente, Dama Serpente... aqui é um amigo falando, seus idiotas. Vocês não têm muitos aqui por baixo...  Cancele a missão! É uma situação sem qualquer possibilidade de vitória!

— Conheço ou acho que conheço essa parte — disse Webb. — Perguntei por você.

Os olhos do assassino se arregalaram, enquanto ele olhava fixamente para os pulsos amarrados. Quando falou, a voz era pouco mais que um sussurro, uma voz que parecia um eco de si mesma, completamente irreal:

— Porque sou um psicótico, seu filho da puta! Sei disso desde que era garoto. Os pensamentos sinistros e terríveis, as facas enfiadas nos animais só para observar seus olhos e bocas. Estuprando a filha de um vizinho, a filha de um vigário, porque sabia que ela não podia dizer coisa alguma, e depois alcançando-a na rua, acompanhando-a até a escola. Eu tinha onze anos. E mais tarde, em Oxford, durante o trote aos calouros, segurando um rapaz debaixo d’água, logo além da superfície, até ele se afogar... para observar seus olhos, sua boca. Voltei às aulas e superei em loucura o que qualquer idiota com coragem para sair numa tempestade podia fazer. Eu era esse tipo de cara, como convinha ao filho de meu pai.

— Nunca procurou ajuda?

— Ajuda? Com um nome como Allcott-Price?

— Alcott...? — Aturdido, Bourne ficou olhando fixamente para o prisioneiro. — O General Allcott-Price? O gênio de Montgomery na Segunda Guerra Mundial? “Massacre Allcott”, o homem que comandou o ataque de flanco em Tobruk e mais tarde disparou pela Itália e Alemanha? O Patton da Inglaterra?

— Eu não era vivo nessa ocasião. Pui um produto de sua terceira esposa... talvez a quarta, pelo que sei. Ele sempre foi sensacional nesse departamento... com as mulheres.

— D’Anjou disse que você nunca lhe revelou seu verdadeiro nome.

— Nem podia. O general, tomando seu conhaque em seu clube tão superior em St. James’s, deu a ordem. “Matem-no! Matem a semente podre e não deixem o nome vazar. Ele não é parte de mim. A mãe era uma prostituta.” Mas eu sou mesmo parte dele, e o general sabe disso. O filho da puta sádico sabe muito bem de onde vêm minhas tendências, e ambos temos uma porção de medalhas por fazer o que mais gostamos.

— Quer dizer que ele sabia de sua doença?

— Sabia... sabe. Impediu minha entrada em Sandhurst... a nossa West Point, caso você não saiba... porque não me queria perto de seu precioso exército. Calculou que descobririam como eu era e isso prejudicaria a sua preciosa imagem. Quase teve um ataque apoplético quando entrei no exército. Não vai ter uma noite de sono tranqüilo enquanto não for discretamente informado de que fui liquidado... morto, todos os vestígios encobertos.

— Por que está me dizendo quem você é?

— Muito simples — respondeu o ex-comando, os olhos cravados nos de Jason. — Pela maneira como vejo a situação, só um de nós vai escapar, o que quer que aconteça. Farei o melhor possível para que seja eu, como lá lhe disse. Mas pode não ser... afinal, você não é um incompetente... e se não for, você terá um nome com que poderá chocar a porra do mundo e provavelmente ganhar uma fortuna ainda por cima, com os direitos literários e para um filme, esse tipo de coisas.

— Então o general vai passar o resto de sua vida dormindo tranqüilamente.

— Dormindo? Ele vai provavelmente estourar os miolos!

Você não estava prestando atenção. Eu disse que ele teria de ser informado discretamente, que todos os vestígios estavam encobertos, nenhum nome poderia aflorar. Mas, assim, nada será encoberto. Ficará tudo exposto, toda a sórdida confusão, sem qualquer desculpa da minha parte. Sei o que sou e me aceito. Algumas pessoas simplesmente são diferentes. Digamos que somos anti-sociais, para pôr o problema de uma maneira; o violento pela violência é uma coisa, o sórdido é outra. A única diferença na minha diferença é o fato de que sou bastante inteligente para reconhecê-lo.

— E para se aceitar.

— Com a maior satisfação! Sentindo-me positivamente inebriado! E vamos analisar a situação por outro ângulo. Se eu perder e a história for divulgada, quantos anti-sociais praticantes poderão se sentir animados pelos fatos? Quantos outros homens diferentes existem por aí e ficariam felizes em tomar o meu lugar, como tomei o seu? Este mundo nojento está fervilhando de Jason Bournes. Dê a eles uma orientação, uma idéia, e todos vão se apresentar, entrar em ação. Não percebe que foi esse o gênio essencial do Francês?

— Só vejo lixo, e mais nada.

— Sua visão não é tão ruim assim. É isso que o general vai ver... um reflexo de si mesmo... e terá de viver com a revelação, sufocar com a denúncia.

— Se ele não o ajudou, você deveria ter ajudado a si mesmo, procurado um caminho. É bastante inteligente para saber disso.

— E perder toda a diversão? De jeito nenhum, companheiro! Você segue o seu caminho e encontra a mais dispensável unidade do exército, esperando que ocorra o acidente que acabará com tudo, antes que o sacrifiquem pelo que é. Encontrei a unidade, mas o acidente nunca aconteceu. Infelizmente, a competição desperta o que há de melhor em nós, não é mesmo? Sobrevivemos porque outras pessoas não querem que a gente sobreviva... E depois, como não podia deixar de ser, há a bebida. É o que nos dá a confiança, até mesmo a coragem para fazer as coisas que não temos certeza se somos capazes.

— Mas não quando se está trabalhando.

— Claro que não. Mas fica a lembrança. A coragem do uísque, garantindo que você é capaz.

— Isso é falso.

— Não de todo, companheiro. Você extrai forças do que é capaz.

— Há duas pessoas — disse Jason. — Uma você conhece, a outra não... ou não quer conhecer.

— Isso é falso! — repetiu o comando. — Não se engane. Ele não estaria lá, se eu não quisesse minhas emoções. E também não se iluda, Sr. Original. É melhor meter logo uma bala na minha cabeça, pois eu vou pegá-lo de jeito, se puder. Vou matá-lo, se puder.

— Está me pedindo para destruir aquilo com que não pode viver

— Pare com essa merda, Bourne! Não sei de você, mas eu tenho as minhas emoções! E as quero! Não posso viver sem elas!

— Acaba de me pedir outra vez.

— Vá tomar no cu, seu viado!

— E mais uma vez.

— Pare com isso!

O assassino arremeteu da cadeira. Jason deu dois passos para a frente, o pé direito tornando a golpear, acertando as costelas do comando, mandando-o de volta para a cadeira. Alcott-Price soltou um grito de dor.

— Não vou matá-lo, Major — disse Bourne, calmamente. — Mas vou fazer com que deseje estar morto.

— Quero que me conceda um último desejo. — O assassino tossiu, comprimindo o peito com as mãos atadas. — Até eu fiz isso para os alvos... Não posso suportar a bala inesperada, mas também não posso suportar a guarnição de Hong Kong. Eles me enforcariam de madrugada, quando não houvesse ninguém por perto, apenas para tornar oficial, de acordo com os regulamentos. Meteriam uma corda grossa em meu pescoço e me obrigariam a subir numa plataforma. E não posso suportar isso!

Delta sabia quando mudar de marcha.

— Já lhe disse antes: talvez não seja isso o que está reser-

vado a você. Não estou trabalhando com os britânicos de Hong Kong.

— Não está o quê?

— Você presumiu isso, mas eu nunca disse.

— Está mentindo!

— Então você é menos talentoso do que eu pensava... e que não era muita coisa, para começar.

— Sei disso. Não posso pensar geometricamente!

— E não pode mesmo.

— Então você é o que os americanos chamam de caçador de prêmios... mas está trabalhando particularmente.

— De certa forma, é isso mesmo. E tenho a impressão de que o homem que me mandou atrás de você pode querer contratá-lo, não matá-lo.

— Essa não...

— E meu preço foi alto. Muito alto.

— O que significa que está no negócio.

— Apenas por esta vez. Não podia recusar a oferta. Deite na cama.

— Como?

— Você me ouviu.

— Preciso ir ao banheiro.

— À vontade. —Jason foi até a porta do banheiro e abriu-a. — Não é um dos meus esportes prediletos, mas ficarei observando.

O assassino urinou, sob a mira da pistola de Bourne. Ao terminar, voltou ao quarto pequeno e miserável, no hotel ordinário, ao sul do Mongkok.

— A cama — disse Bourne outra vez, gesticulando com a arma. — Deite de bruços e abra as pernas.

— A bicha no balcão lá embaixo adoraria ouvir esta conversa.

— Pode telefonar para ele mais tarde, quando tiver todo o tempo para si mesmo. Vamos logo! Depressa!

— Você está sempre com pressa...

— Mais do que você jamais poderá compreender.

Jason pegou a mochila no chão e colocou-a em cima da cama, tirando as cordas de náilon, enquanto o transtornado assassino se acomodava sobre a colcha imunda. Noventa segundos depois os tornozelos do comando estavam presos às molas de metal traseiras da cama, o pescoço envolto pelo fio branco e fino, esticado e amarrado nas molas dianteiras. Finalmente, Bourne tirou a fronha do travesseiro e prendeu-a na cabeça do major, cobrindo-lhe os olhos e ouvidos, deixando a boca livre para respirar. Os pulsos amarrados por baixo do corpo, o prisioneiro estava outra vez imobilizado. Mas agora sua cabeça começou a se sacudir em súbitos arrancos, a boca se esticando a cada espasmo. A ansiedade dominava o ex-Major Allcott Price. Jason reconheceu os sinais com indiferença.

O sórdido hotel que ele conseguira arrumar não tinha comodidades tais como um telefone no quarto. A única comunicação com o mundo exterior era uma batida na porta, que podia significar a polícia ou o porteiro cauteloso informando ao hóspede que precisava pagar mais um dia de aluguel caso quisesse ocupar o quarto por outra hora. Bourne saiu do quarto, atravessou em silêncio o corredor imundo, a caminho do telefone público que fora informado estar instalado no final do corredor.

Gravara o número na memória, esperando — rezando, se era possível — pelo momento em que o discaria. Inseriu uma moeda e discou agora, a respiração quase parando, o sangue fazendo a cabeça latejar.

— Dama Serpente! — disse ele ao telefone, pronunciando as duas palavras incisivamente. — Dama Serpente! Dama...

— Qing, qing — disse uma voz impessoal, em chinês. — Está ocorrendo uma interrupção temporária do serviço em diversos aparelhos desta estação. Os serviços serão reiniciados em breve. Isto é uma gravação... Qing, qing...

Jason repôs o fone no gancho; mil pensamentos fragmentados, como espelhos quebrados, colidiram em sua mente. Voltou rapidamente pelo corredor escuro, passando por uma prostituta que contava dinheiro numa porta. Ela sorriu-lhe, levantando as mãos para a blusa; ele sacudiu a cabeça e correu para o quarto. Esperou quinze minutos, parado em silêncio ao lado da janela, ouvindo os sons guturais que emergiam da garganta do prisioneiro. Retornou à porta e outra vez saiu silenciosamente. Foi ao telefone, inseriu de novo uma moeda e discou.

— Qing...

Ele bateu com o fone no gancho, as mãos tremendo, os

músculos das mandíbulas se contraindo violentamente, enquanto pensava na “mercadoria” prostrada que comprara, a fim de trocar por sua esposa. Pegou o telefone pela terceira vez e, usando sua última moeda, discou zero.

— Telefonista, é uma emergência! — disse em chinês. — Urgência total! Preciso falar com o seguinte número.

Ele deu o telefone, a voz se alteando num pânico que mal conseguia controlar, e depois acrescentou:

— Uma gravação explicou que havia problemas com os troncos, mas é uma emergência...

— Um momento, por favor. Tentarei ajudá-lo. Seguiu-se o silêncio, cada segundo preenchido por um crescente eco em seu peito, reverberando como um tambor acelerado. As têmporas latejavam, a boca estava ressequida, a garganta ardia, como se uma nova febre se espalhasse pelo seu corpo.

— A linha está temporariamente fora de uso, senhor — disse uma segunda voz feminina.

— A linha? Essa linha?

— Isso mesmo, senhor.

— Não são “diversos aparelhos” na estação?

— Perguntou à telefonista por um número específico, senhor. Não sei informar sobre outros números. Se tem mais algum, posso verificar.

— A gravação dizia expressamente que diversos telefones estão fora de uso, mas você fala em uma linha! Está querendo dizer que não pode confirmar uma... dísfunção múltipla?

— Uma o quê?

— Se uma porção de telefones não estão funcionando! Vocês têm computadores. Eles localizam os problemas. E eu disse à outra telefonista que é uma emergência!

— Se é um problema médico, terei o maior prazer em providenciar uma ambulância. Se quiser me fornecer o endereço...

— Quero saber se há uma porção de telefones sem funcionar ou se é apenas um! Preciso saber disso de qualquer maneira!

— Vai demorar um pouco para obter essa informação, senhor. Já passa de nove horas da noite e os postos de reparos estão apenas com as equipes de emergência...

— Mas podem informar se está havendo problema com  alguma estação, merda!

— Por favor, senhor, não sou paga para ouvir desaforos.

— Desculpe!... Endereço? Ah, sim, o endereço! Qual é o endereço do número que lhe dei?

— Não consta da lista, senhor.

— Mas você tem!

— Não tenho, não, senhor. As leis de segurança são muito rigorosas em Hong Kong. Minha tela indica apenas que não consta da lista.

— Repito: é realmente uma questão de vida e morte!

— Pois então deixe-me entrar em contato com um hospital... Ah, por favor, espere um momento, senhor. Estava certo.  Minha tela mostra agora que os três últimos dígitos do número que me deu estão cruzando eletronicamente sobre outros. Isso significa que o posto de conserto está tentando corrigir o problema.

— Qual a localização geográfica?

— O prefixo é “cinco”; portanto, fica na ilha de Hong Kong.

— Um ponto mais preciso! Em que lugar da ilha?

— Os dígitos nos números dos telefones não têm qualquer relação com ruas ou locações específicas. Receio não poder ajudá-lo em mais nada, senhor. A menos que me dar seu endereço, a fim de que eu possa manda uma ambulância.

— Meu endereço...? — murmurou Jason, aturdido, exausto, à beira do pânico. — Não, acho que não darei meu endereço.

Edward Newington McAllister inclinou-se sobre a mesa, enquanto a mulher repunha o fone no gancho. Ela estava visivelmente abalada, o rosto oriental pálido pela tensão da ligação. O subsecretário de Estado desligou um telefone separado, no outro lado da mesa, um lápis em sua mão direita, um endereço num bloco anotado à sua frente.

— Você foi absolutamente maravilhosa — disse ele, afagando o braço da mulher. — Conseguimos descobri-lo. Manteve-o falando por um longo tempo... muito mais do que ele permitiria nos velhos tempos... o suficiente para se confirmar a origem da ligação. Pelo menos o prédio, e não precisamos mais do que isso. É um hotel.

— Ele fala chinês muito bem. O dialeto é mais para o nortista, mas se ajusta a Guangdong hua. E não confiou em mim.

— Não tem importância. Vamos dispor nosso pessoal em torno do hotel. Em cada entrada e saída. Fica numa rua chamada Shek Lung.

— Além do Mongkok, em Yau Ma Ti — informou a intérprete. —Provavelmente só tem uma entrada, usada pelos hóspedes e por onde sai o lixo todas as manhãs.

— Tenho de entrar em contato com Havilland no hospital. Ele não deveria ter ido para lá.

— Ele parecia bastante ansioso.

— As últimas declarações — murmurou McAllister, discando. — Informações vitais de um homem agonizante. É permitido.

— Não consigo entender nenhum de vocês. — A mulher levantou-se de trás da mesa, enquanto o subsecretário dava a volta e ocupava o lugar. — Posso seguir as instruções, mas não sou capaz de entendê-los.

— Oh, Deus, eu tinha esquecido! Você precisa sair agora. O que vou falar é altamente secreto... Estamos muito satisfeitos e posso lhe assegurar que tem nossa gratidão... tenho certeza também de que vai receber uma gratificação por seus serviços... mas agora devo pedir que se retire.

— Com o maior prazer, senhor. E pode esquecer a gratidão, mas lembre-se por favor da gratificação. Aprendi que isso é muito importante em minhas aulas de economia na Universidade do Arizona.

A mulher saiu, enquanto McAllister completava a ligação e dizia ao telefone:

— Emergência policial! O embaixador, por favor! É urgente! Não, não há necessidade de nomes! E providencie um telefone em que ele possa falar em particular!

O subsecretário massageou a têmpora esquerda, comprimindo os dedos cada vez mais fundo no crânio, até que Havilland entrou na linha.

— O que foi, Edward?

— Ele telefonou! Deu certo! Sabemos onde ele está! Um hotel em Yau Ma Ti!

— Mande cercá-lo, mas não faça qualquer outro movimento. Conklin precisa compreender a situação. Se ele farejar o que julga ser uma isca podre, vai cair fora. E se não tivermos a mulher, não teremos nosso assassino. Pelo amor de Deus, Edward, não estrague tudo agora! A situação é extremamente delicada. Além-de-salvação pode ser a próxima ordem.

— Não estou acostumado a essas palavras, Sr. Embaixador.

Houve uma pausa prolongada; quando Havilland voltou a falar, sua voz era fria:

— Está sim, Edward. Você protesta demais. Conklin estava certo quanto a isso. Você poderia ter dito não no início, em Sangre de Cristo, no Colorado. Poderia ter ido embora, mas não o fez. Não podia fazer. De certa forma, você é como eu... sem as minhas vantagens acidentais, é claro. Pensamos e tramamos, encontramos sustento em nossas manipulações. Inflamos de orgulho a cada movimento progressivo no jogo de xadrez humano... em que cada movimento pode ter conseqüências terríveis para alguém... porque acreditamos em alguma coisa. Tudo se torna como um narcótico, e o canto da sereia é realmente um apelo para os nossos egos. Temos os nossos poderes subalternos, por causa de nossas inteligências superiores. Reconheça tudo isso, Edward... eu já reconheci. E se isso o faz sentir-se melhor, repetirei o que já disse antes: alguém tem de fazer.

— Não estou interessado em preleções fora do contexto — protestou McAllister.

— E não receberá mais nenhuma de mim. Apenas faça o que estou mandando. Cubra todas as saídas do hotel, mas informe a cada homem que não deve fazer movimentos evidentes. Se Bourne sair para algum lugar, deve ser seguido discretamente, mas não deve ser abordado, sob quaisquer circunstâncias. Precisamos ter a mulher antes de fazer o contato.

 

Morris Panov atendeu o telefone.

— Alô?

— Aconteceu alguma coisa. — Conklin falava depressa, baixinho. — Havilland deixou a sala de espera para atender a uma ligação de emergência. Está havendo algo por aí?

— Nada. Absolutamente nada. Estamos apenas conversando.

— Estou preocupado. Os homens de Havilland podem ter descoberto vocês.

— Mas como?

— Investigando todos os hotéis da colônia à procura de um branco manco.

— Você pagou ao recepcionista para não dizer nada a ninguém. Disse que era uma conferência de negócios confidencial... o que é perfeitamente natural.

— Eles também podem pagar e alegar que se trata de um problema confidencial do governo, o que acarreta recompensas generosas ou uma pressão igualmente generosa. Adivinhe quem tem precedência?

— Acho que você está exagerando a situação — protestou o psiquiatra.

— Não estou interessado na sua opinião, doutor. Quero apenas que saiam daí. Agora. Esqueça a bagagem de Marie... se é que ela tem alguma. Saiam o mais depressa possível.

— Para onde devemos ir?

— Algum lugar com muita gente, mas onde eu possa encontrá-los.

— Um restaurante?

— Já se passaram muitos anos e eles trocam de nomes por aqui a cada vinte minutos. Os hotéis estão excluídos. É muito fácil cobri-los.

— Se você está certo, Alex, acho que está demorando tempo demais...

— Estou pensando!... Já sei. Peguem um táxi para a base da Nathan Road, em Salisbury... entendeu direito? Nathan e Salisbury. Vai encontrar o Peninsula Hotel. Não entrem lá. A rua seguindo para o norte é conhecida como Milha Dourada. Fiquem andando de um lado para outro na calçada da direita, no lado leste, mas permaneçam nos quatro primeiros quarteirões. Vou encontrá-los lá, o mais depressa que puder.

— Está certo — disse Panov. — Nathan e Salisbury, os

 quatro primeiros quarteirões, para o norte, lado direito... Alex, você tem convicção absoluta de que está certo?

— Por dois motivos — respondeu Conklin. — Para começar, Havilland não me pediu para acompanhá-lo quando foi descobrir o que era a “emergência”... o que foge ao nosso acordo. E se a emergência não é você e Marie, significa que Webb fez contato. Se foi isso, não estou disposto a trocar meu único instrumento de barganha, que é Marie. Não sem garantias absolutas. E não com o Embaixador Raymond Havilland. E agora tratem de sair daí!

Alguma coisa estava errada! O que era? Bourne voltara ao fétido quarto do hotel e estava parado ao pé da cama, observando o prisioneiro, cujas contrações eram mais pronunciadas agora, o corpo tenso a reagir espasmodicamente a cada movimento nervoso. O que era? Por que a conversa com a telefonista de Hong Kong o deixara tão perturbado? Ela fora cortês e prestativa, até mesmo suportara seus impropérios. Então o que era?... Subitamente, as palavras de um passado há muito esquecido afloraram na mente de Jason. Palavras pronunciadas há muitos anos para uma telefonista desconhecida, sem um rosto, apenas com uma voz irritada.

Eu perguntei o número do consulado iraniano.

Está na lista telefônica. Nossas mesas estão muito ocupadas e não temos tempo para esse tipo de informações. Clique. Ligação cortada.

Era isso! As telefonistas de Hong Kong — com toda razão — figuravam entre as mais peremptórias do mundo. Não perdiam tempo, não importava quão persistente fosse o interlocutor. A carga de trabalho naquela megalópole financeira congestionada e frenética não permitiria. Contudo, a segunda telefonista fora a própria essência da tolerância... Não sei informar sobre outros números. Se tem mais algum, posso verificar... Se quiser me fornecer o endereço... A menos que queira me dar seu endereço... O endereço! E sem realmente considerar a pergunta, ele respondera instintivamente: Não, acho que não darei meu endereço. Lá do fundo, um alarme soara.

Uma varredura! Haviam ganhado tempo, mantendo-o na linha por tempo suficiente para fazerem uma varredura eletrônica e localizar a origem da ligação! Os telefones públicos eram os mais difíceis de descobrir. Primeiro se determinava a área, depois a rua ou a casa em que estava o aparelho, finalmente o telefone específico; mas era apenas uma questão de minutos ou frações de minutos entre o primeiro passo e o último. Ele ficara no telefone por tempo suficiente? E se ficara, até que grau de progresso? A área? O hotel? O próprio aparelho? Jason tentou reconstituir a conversa com a telefonista — a segunda telefonista — quando a varredura poderia ter começado. Freneticamente, mas com toda a precisão de que era capaz, tentou reconstituir o ritmo das palavras, as vozes; chegou à conclusão de que quando ele acelerava, a telefonista atrasava. Vai demorar um pouco... Não tenho, não, senhor. As leis de segurança são muito rigorosas em Hong Kong... uma preleção! Ah, por favor, espere um momento, senhor. Estava certo... Minha tela mostra... uma explicação apaziguadora, ganhando tempo. Tempo! Como ele pudera permitir? Por quanto tempo?

Noventa segundos... dois minutos no máximo. O cálculo do tempo era um instinto para ele, ritmos lembrados. Digamos dois minutos. O suficiente para determinar uma área, possivelmente para constatar uma locação, mas, tendo em vista os milhares de quilômetros de troncos, provavelmente não o bastante para se chegar a um aparelho específico. Por alguma razão indefinida, imagens de Paris afloraram, depois os contornos indistintos de cabines telefônicas, ele e Marie correndo de uma para outra, através das ruas de Paris, fazendo ligações às cegas, impossíveis de se localizar, na esperança de decifrar o enigma que era Jason Bourne. Quatro minutos. Leva esse tempo, mas temos de sair da área. Eles já a determinaram a esta altura.

Os homens do taipan — se é que havia, para começo de conversa, um taipan enorme e obeso — poderiam ter descoberto o hotel, mas era improvável que houvessem determinado o aparelho ou o andar. E havia outro ponto a considerar, um prazo que poderia operar em seu favor, se também agisse depressa. Se a varredura fora efetuada e o hotel identificado, os caçadores levariam algum tempo para chegar ao sul de Mongkok, presumindo que estivessem mesmo em Hong Kong, como indicava o prefixo do telefone. A chave no momento era velocidade. Rapidez.

— A venda fica, Major, mas você vai sair daqui — disse ele ao assassino, desfazendo a mordaça e os nós nas molas do colchão, enrolando as três cordas de náilon e metendo-as no blusão do comando.

— O que foi que disse?

Bourne alteou a voz:

— Levante-se. Vamos dar um passeio.

Jason pegou a mochila, abriu a porta e inspecionou o corredor. Um bêbado entrou cambaleando num quarto à esquerda e bateu a porta. O lado direito do corredor estava vazio, por todo o caminho até o telefone público e a porta de incêndio além.

— Ande! — ordenou Bourne, empurrando o prisioneiro.

A saída de incêndio teria sido rejeitada pelos inspetores do corpo de bombeiros à primeira vista. O metal estava corroído pela ferrugem e as grades se entortavam sob pressão. Se alguém estivesse escapando a um incêndio, uma escada cheia de fumaça poderia ser preferível. Apesar disso, se permitisse a descida pela escuridão sem cair, nada mais importava. Jason segurou a lapela do comando, levando-o pelos degraus de metal que rangiam até alcançarem o primeiro patamar. Por baixo, havia uma escada quebrada, estendida no trilho até o meio do caminho para o beco. A distância para a calçada era de mais ou menos dois metros, facilmente transposta na descida e — o que era ainda mais importante — também na subida.

— Durma bem — murmurou Jason, fazendo mira na semi-escuridão e batendo com os nós dos dedos na base do crânio do comando.

O assassino arriou na escada. Bourne pegou as cordas e amarrou-o nos degraus e na grade, depois empurrou a fronha mais para baixo, cobrindo a boca do impostor e prendendo o pano mais firme. Os sons noturnos de Yau Ma Ti e do Longkok próximo encobririam quaisquer gritos que Allcott-Price pudesse emitir... se acordasse antes de Jason despertá-lo, o que era de se duvidar.

Bourne desceu o resto da escada, caindo na viela estreita, apenas segundos antes de três jovens aparecerem, virando a esquina correndo, procedentes da rua movimentada. Sem fôlego, eles se amontoaram nas sombras de um vão de porta, enquanto Jason permanecia de joelhos, esperando não ser visto. Além da entrada da viela, outro grupo de jovens passou correndo, em perseguição, soltando gritos furiosos. Os três jovens saíram do portal escuro e correram em direção oposta, para longe de seus perseguidores. Bourne ergueu-se e seguiu rapidamente até a entrada da viela. Virou-se e olhou para a escada de incêndio. Não dava para ver o assassino.

Colidiu simultaneamente com dois corpos correndo. Batendo na parede do impacto, ele só podia presumir que os jovens eram parte do bando que perseguia os três que haviam se escondido no beco. Um deles, no entanto, empunhava uma faca, numa atitude ameaçadora. Jason não precisava daquela confrontação, não podia permiti-la. Antes de o rapaz compreender o que estava acontecendo, Jason adiantou-se e segurou seu pulso, torcendo-o no sentido horário até que a faca caiu. O rapaz soltou um grito de dor e Jason disse, em cantonês:

— Suma daqui! Sua turma não é páreo para os mais velhos e melhores. Se encontrarmos mais alguns de vocês por aqui, suas mães vão ter cadáveres para lamentar. Sumam!

— Aiya!

— Procuramos por ladrões! Pelos homens do norte! Eles roubam! Eles...

— Sumam!

Os rapazes fugiram, desaparecendo na multidão de Yau Ma Ti. Bourne sacudiu a mão, a mesma mão que o assassino tentara esmagar na porta do hotel. Em sua ansiedade, esquecera a dor; era a melhor maneira de suportá-la.

Levantou os olhos à procura do som... sons. Dois sedãs escuros desceram correndo pela Shek Lung Street, indo parar na frente do hotel. Eram visivelmente oficiais. Jason ficou observando, angustiado, enquanto homens saltavam dos carros, dois do primeiro, três do segundo.

Oh, Marie! Vamos perder! Eu matei a nós dois... oh, Deus, eu matei a nós dois!

Ele esperava que os cinco homens entrassem no hotel, interrogassem o porteiro, tomassem posições e entrassem em ação. Seriam informados que os ocupantes do Quarto 301 não tinham sido vistos a deixar o hotel; portanto, presumivelmente, ainda se encontravam lá em cima. O quarto seria arrombado em menos de um minuto, a saída de incêndio descoberta poucos segundos depois! Será que ele conseguiria? Poderia voltar, soltar o assassino, fazê-lo descer para o beco e escapar? Tinha de conseguir! Deu uma última olhada, antes de começar a correr de volta à escada.

E parou abruptamente. Alguma coisa estava errada... alguma coisa inesperada, totalmente inesperada. O primeiro homem do carro da frente tirara o paletó — que lhe conferia a aparência oficial — e afrouxara a gravata. Passou a mão pelos cabelos, despenteando-os e depois se encaminhou — em passas trôpegos? — para a entrada do hotel ordinário. Os quatro companheiros estavam se afastando dos carros, olhando para as janelas, dois para a direita, dois para a esquerda, aproximando-se do beco... aproximando-se dele! O que estava acontecendo? Aqueles homens não estavam agindo oficialmente. Comportavam-se como criminosos, como mafiosos preparando-se para uma execução a que não podiam estar associados... uma armadilha feita por outros. Santo Deus, Alex Conklin estava enganado no Aeroporto Dulles, em Washington?

Jogue de acordo com o roteiro. Está lá no fundo. Acompanhe. Você pode conseguir, Delta!

Só que não havia tempo. Não havia mais tempo para continuar a pensar. Não havia instantes preciosos a perder com especulações sobre existência ou inexistência de um enorme e obeso taipan, operístico demais para ser real. Os dois homens se aproximando haviam localizado a viela. Começaram a correr... na direção da viela, na direção da “mercadoria”, na direção da destruição e morte de tudo o que Jason amava naquele mundo podre, que deixaria como maior prazer, se não fosse por Marie.

Os segundos escorriam em milissegundos de violência premeditada, ao mesmo tempo aceita e repudiada. David Webb foi silenciado, enquanto Jason Bourne assumia novamente o comando absoluto. Afaste-se de mim! Isso é tudo que nos resta!

O primeiro homem caiu, o tórax arrebentado, voz sufocada pela força de um golpe na garganta. O segundo homem recebeu tratamento preferencial. Era essencial que ele estivesse consciente, até mesmo alerta, para o que se seguiria. Jason arrastou os dois homens para as sombras mais profundas do beco, rasgando suas roupas com a faca e prendendo seus pés, braços e bocas com as tiras de pano.

Imobilizando os braços do segundo homem sob os seus joelhos, a lâmina da faca rompendo a carne em torno do olho esquerdo, Jason apresentou seu ultimato:

— Minha esposa! Onde ela está? Diga agora! Ou vai perder este olho, depois o outro! Pode estar certo de que vou retalhá-lo todo, Zhongguo ren!

Ele arrancou a mordaça da boca do homem.

— Não somos seu inimigo, Zhangfu! — gritou o oriental em inglês, usando a palavra cantonesa para marido. — Estamos tentando encontrá-la! Procuramos por toda parte!

Jason olhava fixamente para o homem, a faca tremendo em sua mão, as têmporas latejando, a galáxia pessoal prestes a explodir, os céus prestes a despejarem uma chuva de fogo e sofrimento além de sua imaginação.

— Marie! gritou ele, em agonia. — O que vocês fizeram com ela? Recebi uma garantia! Traga a mercadoria e sua esposa será devolvida! Estava ansioso em ouvir a voz dela pelo telefone, mas o telefone não funciona! Em vez disso, vocês descobrem a origem da chamada e de repente estão aqui, mas minha mulher não está! Onde está ela?

— Se soubéssemos, ela estaria aqui conosco.

— Mentiroso! — gritou Bourne, prolongando a palavra.

— Não estou mentindo, senhor. Nem devo ser morto por não lhe mentir. Ela fugiu do hospital...

— Hospital?

— Ela estava doente. O doutor insistiu. Eu estava lá, fora do quarto, velando por ela. Sua mulher estava fraca, mas mesmo assim conseguiu escapar...

— Oh, Deus! Doente? Fraca? Sozinha em Hong Kong? Vocês a mataram!

— Não, senhor. Nossas ordens eram para proporcionar a ela todos os confortos...

— As ordens de vocês — disse Jason Bourne, a voz incisiva e fria. — Mas não as ordens de seu taipan. Ele seguiu outras ordens, ordens dadas antes, em Zurique, Paris e na Rua 71, em Nova York. Eu estava lá... nós estávamos lá. E agora vocês a mataram. Usaram-me, como já tinham feito antes... e quando pensaram que estava acabado, levaram-na de mim. O que é “a morte de mais uma filha”? O silêncio é tudo.

Jason agarrou bruscamente o rosto do homem com a mão esquerda, a faca suspensa na mão direita.

— Quem éo homem gordo? Diga-me ou será furado! Quem é o taipan?

— Ele não é um taipan! É um oficial que estudou na Inglaterra e foi treinado pelos britânicos, muito respeitado no território. Trabalha com os seus compatriotas, os americanos. Está com o serviço secreto.

— Tenho certeza de que está mesmo... Desde o início foi a mesma coisa. Só que desta vez não foi o Chacal, mas sim eu. Fui empurrado pelo tabuleiro do xadrez até que não tinha outra alternativa senão caçar a mim mesmo... a uma extensão minha, um homem chamado Bourne. Assim que ele o trouxer, podem matá-lo. E matem a mulher também. Eles sabem demais.

— Não! — gritou o oriental, suando profusamente, os olhos arregalados, fixos na lâmina que lhe comprimia a carne. — Disseram-nos muito pouco, mas não ouvi nada semelhante!

— O que então vieram fazer aqui? — Perguntou Jason, rispidamente.

— Juro que viemos apenas vigiar! Mais nada!

— Até os pistoleiros chegarem? — insistiu Bourne, a voz gelada. — Para que seus ternos de três peças possam permanecer limpos, não respingue sangue em suas camisas, seja impossível chegar às pessoas anônimas para as quais vocês trabalham.

— Está enganado!Nós não somos assim! Nossos superiores não são assim!

— Eu disse que já passei por tudo isso. E pode estar certo que vocês são mesmo assim... E agora vai me dizer mais alguma coisa. O que quer que esteja acontecendo, é algo baixo, sujo e absolutamente seguro. Ninguém dirige uma operação como essa sem uma base camuflada. Onde fica?

— Não estou entendendo...

— O quartel-general ou Base Campo Um... ou uma casa segura, ou um Centro de Comando codificado... como quer que vocês queiram chamar. Onde fica?

— Por favor, eu não posso...

— Pode, sim. E vai. Se não o fizer, ficará cego, os olhos arrancados da cabeça. Agora!

— Tenho mulher e filhos!

— Eu também tinha. As duas coisas. Estou começando a perder a paciência. — Jason inclinou-se, reduzindo apenas ligeiramente a pressão da lâmina. — Além disso, se você tem tanta certeza de que está certo... que seus superiores não são o que eu digo que são, qual é o problema? Poderemos chegar a um acordo.

— Isso mesmo! — berrou o homem apavorado. — Um acordo! Eles são homens de bem! Não vão lhe fazer mal algum!

— Eles não terão a menor chance — murmurou Bourne.

— O que disse, senhor?

— Nada. Onde fica? Onde é esse quartel-general tão discreto? Diga logo!

— Victoria Peak! — respondeu o aterrado subordinado do serviço de informações. — A décima segunda casa no lado direito, com um muro alto...

Bourne escutou a descrição de uma casa segura, uma propriedade tranqüila, mas constantemente patrulhada, em meio a outras vastas propriedades, num bairro rico. Ouvira o que tinha de ouvir; não precisava de mais nada. Bateu com o pesado cabo de osso da faca no crânio do homem, repôs a mordaça e levantou-se. Olhou para a escada de incêndio, para os contornos quase indiscerníveis do corpo do assassino.

Queriam Jason Bourne e estavam dispostos a matar por ele. Pois teriam dois Jason Bournes e morreriam por suas mentiras.

 

O Embaixador Havilland confrontou Conklin no corredor do hospital, junto da sala de emergência da polícia. A decisão do diplomata de falar com o homem da CIA no corredor movimentado, de paredes brancas, baseava-se justamente no fato de ser movimentado, com enfermeiras e atendentes, médicos e estudantes circulando constantemente, consultando, atendendo a telefones que pareciam tocar continuamente. Nas circunstâncias, seria improvável que Conklin se permitisse uma discussão acalorada, em voz alta. A conversa poderia ser carregada, mas seria discreta; o embaixador poderia apresentar seus argumentos de forma muito melhor em tais condições.

— Bourne fez contato — anunciou Havilland.

— Vamos sair — disse Conklin.

— Não podemos. Lin pode morrer a qualquer momento ou poderemos falar com ele a qualquer momento. Não podemos perder essa oportunidade, e o médico sabe que estamos aqui.

— Pois então vamos voltar lá para dentro.

— Há mais cinco pessoas na, sala de emergência. Você não vai querer que escutem a nossa conversa, assim como eu também não quero .

— Você sabe se proteger, hem?

— Tenho de pensar em todos nós. Não em um, dois ou três, mas em todos.

— O que você quer de mim?

— A mulher, é claro. Sabe disso.

— Sei disso... é claro, O que está disposto a oferecer?

— Jason Bourne.

— Quero David Webb. Quero o marido de Marie. Quero saber que ele está vivo e passando bem em Hong Kong. Quero vê-lo com meus próprios olhos.

— Isso é impossível.

— Então é melhor me explicar por quê.

— Antes de se apresentar, ele espera falar com a esposa, trinta segundos depois de fazer o contato. Esse é o acordo.

— Mas acaba de dizer que ele fez contato!

— Ele fez, nós não. Não poderíamos fazer sem ter Marie Webb ao lado do telefone.

— Não estou entendendo mais nada! — protestou Conklin, furioso.

— Ele impôs suas próprias condições, não muito diferentes das suas, o que é certamente compreensível. Afinal, vocês dois eram...

— Quais foram as condições? — interrompeu o homem da CIA.

— Se ele fizesse a ligação, significava que tinha o impostor em seu poder... foi o acordo bilateral.

— Bilateral?

— Os dois lados concordaram.

— Sei muito bem o que isso significa! Vocês me mandam para o espaço e ponto final!

— Fale baixo... A condição dele foi a de que se não apresentássemos a mulher em trinta segundos, quem estivesse ao telefone ouviria o estampido de um tiro, significando que o assassino estava morto, que Bourne o executara.

— O velho Delta. — Os lábios de Conklin se contraíram num meio sorriso. — Ele nunca perdeu um truque. E desconfio de que ele tinha uma seqüência, não é mesmo?

— Exatamente — respondeu Havilland, sombrio. — Um ponto de troca seria mutuamente combinado...

— Não bilateralmente?

— Cale-se!... Ele terá de ver a mulher andando sozinha, por si mesma. Quando estiver satisfeito, vai se apresentar com o prisioneiro... sob a mira de uma arma, presumimos... e a troca será efetuada. Do contato inicial à troca, tudo deve transcorrer numa questão de minutos, certamente não mais do que meia hora.

— Tempo duplo, sem ninguém orquestrando qualquer movimento estranho. — Conklin balançou a cabeça. — Mas se não responderam, como sabem que ele fez contato?

— Lin grampeou o telefone, com uma ligação direta para Victoria Peak. Bourne foi informado que a linha estava temporariamente fora de uso. Quando ele tentou uma verificação... o que não podia deixar de fazer, nas circunstâncias... a ligação foi transferida para Victoria Peak. Nós o mantivemos na linha por tempo suficiente para descobrir a localização do telefone público que ele estava usando. Sabemos onde ele está. Nossos homens já se encontram a caminho, com ordens para permanecerem fora de vista. Se ele farejar qualquer coisa, vai matar nosso homem.

— Localizaram o telefone? — Alex estudou o rosto do diplomata, com uma expressão implacável. — Ele permitiu que vocês o fizessem falar por tempo suficiente para isso?

— Ele se encontra num estado de extrema ansiedade. Contávamos com isso.

— Talvez Webb, mas não Delta — disse Conklin. — Não quando pensar a respeito.

— Ele vai continuar a ligar — insistiu Havilland. — Não tem escolha.

— Talvez sim, talvez não. Quanto tempo passou desde o seu último telefonema?

— Doze minutos — respondeu o embaixador, consultando o relógio.

— E o primeiro?

— Cerca de meia hora.

— E cada vez que ele telefona você é avisado?

— Isso mesmo. A informação é transmitida para McAllister.

— Telefone para ele e pergunte se Bourne tentou de novo.

— Por quê?

— Porque, como você disse, ele se encontra em estado de ansiedade extrema e vai continuar a ligar. Não pode se conter.

— O que está tentando dizer?

— Que você pode ter cometido um erro.

— Onde? Como?

— Não sei... mas conheço Delta.

— O que ele poderia fazer sem entrar em contato conosco?

— Matar — respondeu Alex, simplesmente.

Havilland virou-se, olhou pelo corredor movimentado e começou a se encaminhar para o balcão da recepção do andar. Falou rapidamente com uma enfermeira; ela acenou com a cabeça e pegou um telefone. Ele falou por um momento e desligou. De rosto franzido, voltou para junto de Conklin, comentando:

— É estranho... McAllister pensa da mesma forma que você. Edward esperava que Bourne ligasse a cada cinco minutos, se esperasse tanto tempo.

— E daí?

— Ele foi levado a crer que a linha poderia ser consertada a qualquer momento. — O embaixador sacudiu a cabeça, como se descartasse o improvável. — Estamos todos muito tensos. Pode haver diversas explicações, começando por moedas para o telefone público e terminando com um desarranjo intestinal.

A porta da sala de emergência foi aberta e o médico britânico apareceu.

— Sr. Embaixador...

— Lin?

— Um homem extraordinário. O que ele sofreu mataria um cavalo, mas também são do mesmo tamanho, e um cavalo não pode manifestar a vontade de viver.

— Podemos vê-lo?

— Não haveria sentido. Ele ainda está inconsciente... agitando-se de vez em quando, mas sem dizer nada coerente. Cada minuto que ele descansa sem uma reversão é animador.

— Compreende como é urgente que falemos com ele, não é?

— Claro que compreendo, Sr. Havilland. Talvez mais do que pode imaginar. Sabe que fui o responsável pela fuga da mulher...

— É verdade — disse o diplomata. — Fui também informado de que se ela conseguiu enganá-lo, também poderia enganar o melhor internista da Clínica Mayo.

— Isso é duvidoso, mas me agrada pensar que sou competente. Em vez disso, porém, sinto-me m idiota. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo e ao meu bom amigo Major Lin. O julgamento foi médico e meu, o erro foi meu, não dele. Se o Major Lin conseguir resistir durante a próxima hora, creio que tem uma chance de sobreviver. Se isso acontecer, eu o avisarei e poderá interrogá-lo pelo tempo que quiser, desde que as perguntas sejam breves e simples. Se eu achar que está ocorrendo uma reversão grave e ele começar a agonizar, também o avisarei.

— Combinado, doutor. Obrigado.

— Eu não poderia fazer menos do que isso. É o que Lin gostaria. E agora vou voltar para junto dele.

A espera começou. Havilland e Alex Conklin chegaram a seu acordo bilateral. Quando Bourne tentasse outra vez o número de Dama Serpente, seria informado de que a linha voltaria a funcionar dentro de vinte minutos. Durante esse tempo, Conklin seria levado de carro à casa segura em Victoria Peak, pronto para atender ao telefonema. Acertaria a troca, dizendo a David que Marie estava sã e salva, em companhia de Morris Panov. Os dois homens voltaram à sala de emergência da polícia e sentaram-se em cadeiras opostas, cada minuto de silêncio aumentando a tensão.

Os minutos, no entanto, prolongaram-se em quartos de hora, que se transformaram numa hora inteira. Por três vezes o embaixador ligou par Victoria Peak, a fim de indagar se havia alguma notícia de Jason Bourne. Não havia nenhuma. Por duas vezes o médico inglês veio informar sobre o estado de Lin. Permanecia inalterado, um fato que aumentava a esperança, em vez de diminuí-la. O telefone da sala de emergência tocou uma vez, e Havilland e Conklin viraram a cabeça bruscamente em sua direção, os olhos fixos na enfermeira, que atendeu com absoluta calma. O telefonema não era para o embaixador. A tensão aumentava entre os dois homens, que de vez em quando olhavam um para o outro, com a mesma mensagem nos olhos. Alguma coisa estava errada. Alguma coisa perdera o fio. Um médico chinês apareceu e aproximou-se de duas pessoas no fundo da sala, uma moça e um padre; falou baixinho. A mulher soltou um grito, depois desatou a chorar e caiu nos braços do padre. Uma nova viúva da polícia surgira. Foi levada para dar o último adeus ao marido.

Silêncio.

O telefone tocou outra vez, e novamente o diplomata e o homem da CIA olharam para o balcão.

— É para o senhor, Embaixador — disse a enfermeira. — O cavalheiro diz que é urgente.

Havilland levantou-se e avançou apressado, acenando com a cabeça em agradecimento, enquanto pegava o fone.

O que quer que fosse, acontecera. Conklin ficou observando, jamais imaginando que poderia ver o que estava testemunhando agora. O rosto do consumado diplomata tornou-se subitamente pálido; os lábios finos, geralmente contraídos, estavam agora entreabertos, as sobrancelhas escuras arqueadas, os olhos arregalados e vazios. Ele virou-se e falou com Alex, a voz quase inaudível; era o sussurro do medo.

— Bourne desapareceu. O impostor desapareceu. Dois dos homens foram encontrados manietados e gravemente feridos.

Ele voltou a se concentrar no telefone, os olhos se estreitando enquanto escutava.

— Oh, meu Deus! — gritou ele, virando-se outra vez para Conklin.

Mas o homem da CIA não estava mais ali.

David Webb sumira, apenas Jason Bourne permanecia. Contu do, era ao mesmo tempo mais e menos do que o caçador de Carlos o Chacal. Era Delta, o predador, o animal querendo apenas vingança por uma parte inestimável de sua vida que lhe fora outra vez tirada. E como um predador vingativo, efetuou os movimentos — a logística instintiva — como se estivesse em estado de transe, cada decisão precisa, cada movimento letal. Os olhos buscavam a morte, o cérebro humano se tornara animal.

Vagueou pelas ruas miseráveis de Yau Ma Ti, o prisioneiro a reboque, os pulsos ainda amarrados, descobrindo o que queria encontrar, pagando milhares de dólares por coisas que valiam apenas uma fração das quantias dispendidas. Espalhou-se pelo Mongkok a notícia sobre o estranho e seu silencioso companheiro ainda mais estranho, que estava manietado e temia por sua vida. Outras portas se abriram para ele, portas reservadas aos contrabandistas — de tóxicos, prostitutas exportadas, jóias, ouro e materiais de destruição, embuste e morte — e advertências exageradas acompanharam a notícia sobre aquele homem obcecado, carregando milhares de dólares.

Ele é um maníaco, é branco e mata depressa. Dizem que duas gargantas já foram cortadas, de homens que foram desonestos com ele. Sabe-se que um Zhongguo ren foi mortalmente baleado porque trapaceou numa entrega. Ele é louco. Dêem tudo o que quiser. Ele paga em dinheiro. Quem se importa? Não é problema nosso. Deixem-no passar. Deixem-no ir. Apenas tomem seu dinheiro.

Por volta de meia-noite, Delta já tinha os instrumentos de seu ofício letal. E o sucesso era a preocupação principal na mente do homem da Medusa. Ele tinha de conseguir. A destruição era tudo.

Onde estava Eco? Ele precisava de Eco. O velho Eco era o seu talismã da sorte!

Eco estava morto, abatido por um lunático com uma espada cerimonial, num tranqüilo santuário de pássaros. Memórias.

Eco.

Marie.

Vou matar todos eles pelo que fizeram com vocês!

Parou um táxi desconjuntado no Mongkok. Mostrando dinheiro, pediu ao motorista que saísse.

— O que é, senhor? — perguntou o motorista, num inglês mal falado.

— Quanto vale o seu carro? — perguntou Delta.

— Não compreendo.

— Quanto? Dinheiro? Pelo seu carro!

— Você feng kuang!

— Bu! — gritou DeIta, dizendo ao motorista que não era desequilibrado. E continuou, em chinês: — Quanto quer pelo seu carro? Amanhã de manhã pode dizer que foi roubado. A polícia vai encontrá-lo.

— É minha única fonte de renda e tenho uma família grande! Está louco!

— Que tal quatro mil dólares americanos?

— Aiya. Leve o carro.

— Kuai! — disse Jason, informando ao homem que estava com pressa. — Ajude-me com este doente. Ele tem a doença da tremedeira e precisa ficar amarrado para não se machucar.

O dono do táxi, os olhos fixos nas notas altas na mão de Jason, ajudou a ajeitar o assassino no banco de trás. Manteve-o deitado, enquanto Jason passava as cordas de náilon em torno dos tornozelos, joelhos e cotovelos do comando, outra vez amordaçando-o e vendando-o, com as tiras de pano rasgadas da fronha do hotel ordinário. Incapaz de compreender o que estava sendo dito — gritado — em chinês, o prisioneiro só podia resistir passivamente. Não era apenas pela punição infligida a seus pulsos a cada movimento de protesto, mas também algo que reparava, ao observar seu captor. Havia uma mudança no Jason Bourne original; ele passara para outro mundo, um mundo muito mais sinistro. A morte pairava nos prolongados períodos de silêncio do homem da Medusa. Estava em seus olhos.

Enquanto guiava o táxi pelo congestionado túnel de Kowloon para a ilha de Hong Kong, Delta preparou-se para o ataque, imaginando os obstáculos com que se depararia, definindo as contramedidas que empregaria. Tudo era exagerado e excessivo, preparando-o assim para o pior.

Ele fizera a mesma coisa na selva de Tam Quan. Não havia nada que não levasse em consideração, e os tirara de lá... a todos, menos um. A própria escória, um homem que não tinha alma, apenas a ganância por ouro, um traidor que venderia as vidas de seus companheiros por uma ninharia. Fora onde tudo começara. Na selva de Tam Quan. Deita executara o traidor, estourara sua têmpora com uma bala, no momento em que o miserável estava no rádio, transmitindo a posição deles para os vietcongues. Era um homem da Medusa chamado Jason Bourne, deixado para apodrecer na seiva de Tam Quan. Ele fora o início da loucura. Mas Delta tirara de lá todos os outros, inclusive um irmão de que não podia se lembrar. Levara-os através de trezentos quilômetros de território inimigo, porque estudara as probabilidades e imaginara as improbabilidades... as últimas muito mais importantes para a fuga, pois haviam ocorrido, e sua mente estava preparada para o inesperado. Era a mesma coisa agora. Não havia nenhum obstáculo que uma casa segura em Victoria Peak pudesse erguer que ele não fosse capaz de superar. A morte seria respondida com a morte.

Viu o muro alto da propriedade e seguiu adiante... devagar, como um convidado ou um turista poderia fazer, sem conhecer direito o caminho. Localizou os vidros dos refletores ocultos, registrou o arame farpado por cima do muro. Constatou a presença de dois guardas no outro lado do enorme portão. Estavam nas sombras, mas o pano das túnicas de campanha dos fuzileiros refletia a pouca claridade que havia... um erro, o tecido deveria ser obscurecido ou substituído por um traje menos militar. O muro alto estendia-se pela direita até onde a vista podia alcançar. A casa segura era óbvia a olhos treinados. Para os inocentes, parecia a residência de um diplomata importante, talvez um embaixador, que exigia proteção, por causa dos tempos perigosos. O terrorismo estava à solta por toda parte; reféns eram valiosos, a repressão estava na ordem do dia. Coquetéis eram servidos ao pôr-do-sol, em meio aos risos descontraídos da elite que controlava os governos, mas lá fora as armas estavam de prontidão, engatilhadas na escuridão, prestes a disparar. Delta compreendia. Era por isso que estava carregando a mochila estufada.

Levou o carro amassado para o lado da estrada. Não havia necessidade de escondê-lo; não voltaria para buscá-lo. Não se preocupava em voltar. Marie se fora e estava tudo acabado. Quaisquer que fossem as vidas que ele levara, estavam todas acabadas. David Webb. Delta. Jason Bourne.Eram o passado. Ele queria apenas paz. O sofrimento ultrapassara os limites de sua resistência. Paz. Mas, primeiro, precisava matar. Seus inimigos, os inimigos de Marie, todos os inimigos dos homens e mulheres por toda parte que eram tangidos pelos manipuladores anônimos, que precisavam aprender uma lição. Uma pequena lição, é claro, pois explicações impecáveis seriam apresentadas pelos peritos, tornadas plausíveis por palavras complicadas e meias-verdades distorcidas. Mentiras. Remova as dúvidas, elimine as perguntas, mostre-se tão indignado quanto as próprias pessoas, marche ao som dos tambores do consenso. O objetivo é tudo, os jogadores insignificantes não têm a menor importância, a não ser como dígitos necessários nas equações fatais. Usem-nos, tirem tudo o que eles podem dar, matem-nos se for preciso, mas cuidem para que o trabalho seja realizado, porque nós assim decidimos. Vemos coisas que os outros não podem perceber. Não nos questionem. Vocês não têm acesso a nossas informações.

Jason saltou do carro, abriu a porta traseira e cortou com a faca as cordas que prendiam os tornozelos e joelhos do assas sino. Depois removeu a venda, mas deixou a mordaça no lugar. Pegou o prisioneiro pelo ombro e...

O golpe foi paralisante! O assassino virou-se, o joelho direito acertando o rim esquerdo de Bourne. As mãos atadas subiram para atingir a garganta de Deita no instante em que ele se dobrava. Uma segunda joelhada acertou o tórax de Jason; ele caiu no chão, enquanto o comando saía correndo pela estrada. Não! Isso não pode acontecer! Preciso de sua arma, de seu poder de fogo! É parte da estratégia!

Delta levantou-se, o peito e o flanco estourando de dor, e partiu no encalço do vulto que corria pela estrada. Mais alguns segundos e o assassino seria envolto pela escuridão! O homem da Medusa correu mais depressa, a dor esquecida, concentrando-se apenas no assassino, na parte de sua mente que ainda funcionava. Mais depressa! Mais depressa! Subitamente, surgiram faróis do fundo da ladeira, fixando o assassino em seus fachos. O comando correu para o lado da estrada, a fim de evitar os faróis. Bourne permaneceu no lado direito até o último instante, sabendo que estava ganhando segundos preciosos, enquanto o carro passava, em alta velocidade. Os braços inúteis, o assassino tropeçou e caiu na terra macia do acostamento; rastejou depressa, meio desajeitado, de volta ao asfalto, levantou-se e recomeçou a correr. Mas já era tarde demais. Delta arremeteu, acertando com o ombro na base da espinha do prisioneiro; os dois homens caíram. Os rugidos guturais do comando eram os sons de um animal em fúria. Jason virou o assassino e comprimiu brutalmente o joelho contra sua barriga.

— Preste toda atenção, miserável! — disse ele, ofegante, o suor escorrendo pelo rosto. — Não me faz a menor diferença se você morre ou não. Dentro de alguns minutos você não vai mais me interessar. Mas até lá é parte do plano... meu plano! E se vai ou não morrer depois, isso dependerá de você mesmo, não de mim. Vou lhe dar uma chance, o que é mais do que você jamais fez por qualquer alvo. E agora trate de se levantar. Faça tudo o que eu mandar ou sua chance será estourada junto com sua cabeça... que é exatamente o que prometi a eles.

Pararam quando chegaram de volta ao carro. Delta pegou a mochila, tirou uma arma que recolhera em Pequim e mostrou-a ao comando.

— Lembra que me suplicou por uma arma no aeroporto em Jinan?

O assassino balançou a cabeça, os olhos arregalados, a boca esticada pela tensão da mordaça.

— É sua — acrescentou Jason Bourne, a voz monótona, sem qualquer emoção. — Depois de passarmos por aquele muro ali... você na minha frente... eu a entregarei.

O assassino franziu o rosto e Delta explicou:

— Eu tinha esquecido. Você não podia ver. Há uma casa segura a cerca de quinhentos metros daqui, estrada acima. Vamos entrar. Eu ficarei lá, liquidando todos que eu puder. Você? Tem nove balas e lhe darei um bônus adicional. Uma “bolha”.

O homem da Medusa tirou um pacote de plastique do Mongkok da mochila e mostrou a seu prisioneiro.

— Pelo que posso imaginar, você nunca conseguiria passar por cima do muro. Eles o retalhariam a tiros. Portanto, seu único caminho é através do portão. Está em algum ponto à direita, em diagonal. Para chegar lá, terá de abrir caminho a fogo. O mecanismo de tempo do explosivo plástico pode ser armado até um mínimo de dez segundos. Use da maneira que achar melhor, não me importo. Capisce?

O assassino levantou as mãos atadas, depois gesticulou para a mordaça. Os sons de sua garganta indicavam que Jason deveria libertar seus braços e remover a mordaça.

— No muro — disse DeIta. — Cortarei as cordas quando estiver pronto. Mas depois disso, se você tentar tirar a mordaça antes de eu autorizar, lá se vai a sua chance.

O impostor fitou-o nos olhos e acenou com a cabeça uma vez. Jason Bourne e o ex-comando britânico começaram a subir pela estrada, na direção da casa segura em Victoria Peak.

Conklin desceu claudicando os degraus do hospital o mais depressa quanto podia, segurando na grade central, procurando freneticamente por um táxi no caminho lá embaixo. Não havia nenhum; em vez disso, uma enfermeira uniformizada estava parada sozinha, lendo o South China Times, à luz dos lampiões. De vez em quando ela olhava para a entrada do estacionamento.

— Com licença, moça — disse Alex, esbaforido. — Você fala inglês?

— Um pouco — respondeu a mulher, obviamente notando a sua manqueira e a voz ansiosa. — Está com algum problema?

— E dos grandes. Preciso encontrar um táxi. Tenho de entrar em contato com uma pessoa imediatamente e não posso fazê-lo pelo telefone.

— Podem chamar um táxi na recepção. Sempre chamam para mim todas as noites, quando deixo o serviço.

— Está esperando...?

— Lá vem o meu táxi — disse a mulher, quando faróis se aproximando surgiram na entrada do estacionamento.

— Meu problema é urgente! — gritou Conklin. — Um homem está morrendo e outro pode morrer se eu não alcançá-lo! Por favor, posso...

— Bie zhaoji! — exclamou a enfermeira, pedindo-lhe que se acalmasse. — Você está com pressa, eu não tenho nenhuma. Pegue o meu táxi. Pedirei outro.

— Obrigado — disse Alex, enquanto o táxi encostava no meio-fio. — Muito obrigado!

Abriu a porta e embarcou. A mulher acenou com a cabeça jovial e deu de ombros, depois virou-se e começou a subir os degraus. As portas de vidro lá em cima abriram-se bruscamente e Conklin viu, através da janela traseira do táxi, a enfermeira quase colidindo com dois homens de Lin. Um deles deteve-a e falou algo, o outro desceu até o meio-fio e ficou espiando as luzes do táxi desaparecendo na escuridão.

— Depressa! — disse Alex ao motorista, enquanto passavam pelo portão. — Kuai diar, se é que isso está certo!

— Está sim — respondeu o motorista, a voz cansada, e falando um inglês fluente.

A base da Nathan Road era o início exuberante do mundo efervescente da Milha Dourada. As luzes coloridas intensas, faiscantes, dançantes, tremeluzentes, eram os paredões daquele congestionado vale urbano de humanidade, em que pessoas procuravam e vendedores clamavam por atenção. Era o mercado dos mercados, uma dúzia de línguas e dialetos disputando os ouvidos e olhos de multidões em permanente movimento. Foi ali, naquele corredor polonês de caos comercial, que Alex Conklin saltou do táxi. Andando com dificuldade, a manqueira acentuada, as veias da perna esquerda sem-pé inchando, ele subiu apressado pelo lado leste da rua, os olhos esquadrinhando, como os de um lince furioso à procura das crias no território das hienas.

Chegou ao final do quarto quarteirão, o último quarteirão. Onde estavam eles? Onde estavam o esguio e compacto Panov e a alta e atraente Marie, com seus cabelos castanho-avermelhados? Suas instruções haviam sido claras, absolutas. Os primeiros quatro quarteirões para o norte, no lado direito, o lado leste. Mo Panov repetira... Oh, Deus! Ele procurara por duas pessoas, mas a aparência de uma podia pertencer a centenas de homens naqueles quatro quarteirões apinhados. Mas seus olhos estavam atento à mulher alta, de cabelos castanho-avermelhados... o que ela não era mais! Os cabelos de Marie haviam sido pintados, estavam agora grisalhos! Alex começou a descer na direção da Salisbury Road, os olhos agora sintonizados para o que deveria procurar, e não para o que suas memórias angustiadas lhe diziam que encontraria.

E lá estavam eles! À beira de uma multidão que cercava um vendedor, em cuja carrocinha se empilhavam sedas de todos os tipos e etiquetas... as sedas relativamente genuínas, as etiquetas tão falsificadas quanto as assinaturas deturpadas.

— Venham comigo — disse Conklin, pondo as mãos nos cotovelos de ambos.

— Alex! — exclamou Marie.

— Você está bem? — perguntou Panov.

— Não — respondeu o homem da CIA. — Nenhum de nós está bem.

— É David, não é?

Marie pegou o braço de Conklin, apertando-o.

— Agora não. Vamos depressa. Temos de sair daqui.

— Eles estão aqui?

Mas deu um arquejo assustado, a cabeça grisalha virando para a direita e a esquerda, com medo nos olhos.

— Quem?

— Não sei! — gritou ela, por cima do burburinho da multidão.

— Não, eles não estão aqui — respondeu Conklin. — Vamos logo. Tenho um táxi esperando no Pen.

— O que é isso? — indagou Panov.

— Já lhe disse. O Peninsula Hotel.

— Eu tinha esquecido.

Os três começaram a descer pela Nathan Road, Alex — como era evidente para Marie e Morris Panov — com a maior dificuldade.

— Não podemos ir mais devagar? — perguntou o psiquiatra.

— Não, não podemos!

— Você está sentindo dor — comentou Marie.

— Parem com isso! Vocês dois! Não preciso dessas merdas!

— Pois então nos conte o que aconteceu! — gritou Marie, enquanto passavam por um trecho cheio de carrocinhas pelas quais tinham de se esquivar, compradores, vendedores e turistas voyeurs que formavam o exótico congestionamento da Milha Dourada.

— Lá está o táxi — disse Conklin, ao se aproximarem da Salisbury Road. — Mais depressa! O motorista já sabe para onde vamos.

Dentro do táxi, Panov entre Marie e Alex, ela estendeu a mão outra vez, segurando o braço de Conklin.

— É David, não é?

— É, sim. Ele voltou. Está aqui, em Hong Kong.

— Graças a Deus!

— Reze por isso. Rezemos todos.

— O que está querendo dizer com isso? — perguntou o psiquiatra, bruscamente.

— Alguma coisa saiu errada. O roteiro perdeu o fio.

— Pelo amor de Deus, fale claro! — explodiu Panov.

— Ele está querendo dizer que David fez alguma coisa que não deveria ou não fez alguma coisa que se esperava que ele fizesse — explicou Marie, olhando fixamente para o homem da CIA.

— É mais ou menos isso. — Os olhos de Conklin desviaram-se para as luzes de Victoria Harbor e a ilha de Hong Kong

além. — Eu era capaz de calcular os movimentos de Delta, geralmente antes mesmo que ele os fizesse. Mais tarde, quando ele era Bourne, eu podia acompanhá-lo, quando outros não conseguiam porque compreendia suas opções e sabia quais seriam adotadas. Isto é até que coisas lhe aconteceram e ninguém podia mais prever nada, porque ele perdera o contato com o Delta em seu íntimo. Mas Delta está de volta agora e, como aconteceu tantas vezes, há tanto tempo, seus inimigos o subestimaram. Espero estar enganado... por Deus, como torço para estar enganado!

A arma encostada na nuca do assassino, Delta avançou silenciosamente através das moitas, na frente da casa segura. O comando parou de repente; estavam a três metros da entrada escura. Delta comprimiu a pistola contra sua carne e sussurrou:

— Não há luzes de alerta na parede ou no chão. Seriam acionadas pelos bichos a cada trinta segundos. Continue em frente. Eu lhe direi quando parar.

A ordem foi dada quando estavam a pouco mais de um metro do portão. Delta agarrou seu prisioneiro pela gola e virou-o, o cano da arma ainda encostado no pescoço. O homem da Medusa meteu a mão no bolso e tirou um bloco de plastique; estendeu o braço o mais que podia, na direção do portão. Comprimiu o lado adesivo do bloco no muro; fixara antes o pequeno timer digital no centro mole do explosivo para sete minutos, o número escolhido tanto para dar sorte como para proporcionar o prazo de que ele e o comando precisavam para ocuparem sua posição, a algumas dezenas de metros de distância.

— Ande! — sussurrou ele.

Contornaram o canto do muro e prosseguiram pelo lado, até um ponto intermediário, de onde era visível o final da pedra, ao luar.

— Espere aqui — disse Deita.

Abriu a mochila, que estava atravessada em seu peito, como uma bandoleira, a bolsa no lado direito. Tirou uma caixa preta, com doze centímetros de largura, sete de altura e cinco de profundidade. Ao seu lado estava enrolado um tubo fino de plástico preto, com doze metros de comprimento. Era um alto-falante de pilha. Delta ajeitou-o em cima do muro e acionou um comando atrás; uma luz vermelha acendeu. Desenrolou então o tubo fino, enquanto empurrava o comando para a frente, murmurando:

— Mais sete ou oito metros.

Alcançaram um ponto aceitável para o homem da Medusa. Os galhos pendentes de um salgueiro estendiam-se por cima do muro e descaíam no outro lado. Um esconderijo.

— Aqui! — sussurrou ele, asperamente.

Parou o comando, segurando-o pelo braço. Tirou o alicate da mochila e empurrou o assassino contra o muro; os dois se fitaram.

— Vou soltar você agora, mas não libertá-lo. Está me entendendo?

O comando acenou com a cabeça. Delta cortou as cordas entre os pulsos e tornozelos do prisioneiro, enquanto continuava a apontar a arma para sua cabeça. Depois, deu um passo para trás e dobrou para a frente a perna direita, entregando o alicate ao assassino.

— Suba na minha perna e corte o arame farpado. Pode alcançar se der um pequeno pulo e enfiar a mão por baixo para se segurar. Não tente coisa alguma. Ainda não tem uma arma, mas a minha continua na mão. E como tenho certeza que já percebeu, eu não me importo com mais nada.

O prisioneiro obedeceu. O pulo da perna de Delta foi mínimo; o braço esquerdo do assassino enfiou-se habilmente entre os rolos de arame farpado, a mão segurando o lado oposto do topo do muro. Cortou o arame sem fazer barulho, comprimindo de lado o alicate contra o metal a fim de reduzir o estalo. O espaço aberto lá em cima tinha um metro e meio de largura.

— Suba aí — ordenou Delta.

O assassino obedeceu. No momento em que sua perna esquerda passava por cima do muro, Delta pulou para segurar a sua calça, passando a sua própria perna esquerda pelo topo. Montou no muro ao mesmo tempo que o comando.

— Bom trabalho, Major Allcott-Price — murmurou ele, um pequeno microfone redondo na mão, a arma outra vez apontada para a cabeça do assassino. — Não vamos ter de esperar muito tempo agora. Se eu fosse você, estudaria o terreno.

Sob as súplicas prementes de Conklin ao motorista, o táxi subiu em alta velocidade a estrada de Victoria Peak. Passaram por um carro velho à beira da estrada; parecia deslocado no ambiente elegante. Alex engoliu em seco ao vê-lo, especulando assustado se estaria mesmo enguiçado.

— Lá está a casa! — exclamou o homem da CIA. — Pelo amor de Deus, mais depressa! Vá até...

Mas não concluiu a frase... não podia concluir. Lá em cima, uma explosão terrível sacudiu a estrada e a noite. Fogo e pedra voaram em todas as direções, enquanto uma grande parte do muro ruía e depois os enormes portões de ferro caíram para a frente, em câmara lenta, além das chamas.

— Eu estava certo — murmurou Alexander Conklin para si mesmo. — Delta voltou. Ele quer morrer. E vai morrer.

 

— Ainda não! — berrou Jason Bourne, no momento em que o muro explodiu, além do imponente jardim, cheio de canteiros de lilases e rosas. Uma pausa e acrescentou, a voz mais baixa, o pequeno microfone redondo na mão livre: — Eu direi quando chegar o instante certo.

O assassino soltou um grunhido, os instintos levados a seus limites primitivos, o desejo de matar se igualando ao desejo de sobreviver, um dependente do outro. Estava à beira da loucura; somente o cano da arma de Delta o impedia de se lançar a um ataque insano. Ainda era humano, e era melhor tentar viver do que aceitar a morte à revelia. Mas quando... quando? O tique nervoso ressurgiu no rosto de Allcott-Price, o lábio inferior se contraindo espasmodicamente, enquanto gritos e o barulho de homens correndo em pânico se espalhavam pelo jardim. As mãos do comando tremiam, enquanto ele olhava fixamente para Delta, à luz fraca e pulsante das chamas distantes.

— Nem pense nisso — disse o homem da Medusa. — Está morto se fizer qualquer movimento. Você me estudou, sabe que não há misericórdia. A decisão é sua. E agora passe a perna por cima do muro e esteja pronto para pular quando eu mandar. Não antes.

Inesperadamente, Bourne levou o microfone aos lábios e acionou uma alavanca. Quando falou, as palavras amplificadas ressoaram estranhamente pelo terreno, um som obsedante, reverberante, de acordo com o troar da explosão, que se tornava ainda mais sinistro por sua calma simplicidade, pela frieza.

— Fuzileiros, tratem de se abrigar e fiquem fora disso. Não é a luta de vocês. Não morram pelos homens que os trouxeram para cá. Para eles, vocês não passam de lixo. São dispensáveis... como eu era dispensável. Não há legitimidade aqui, não há território a ser defendido, não está em jogo a honra de seu país. Estão aqui com o propósito exclusivo de proteger assassinos. A única diferença entre vocês e eu é o fato de que eles também me usaram, mas agora querem me matar porque sei o que eles fizeram. Não morram por esses homens, eles não valem isso. Dou minha palavra de que não vou atirar em vocês, a menos que atirem em mim primeiro, caso em que não terei alternativa. Mas há outro homem aqui que não vai fazer nenhum acordo...

Uma rajada irrompeu, destruindo a fonte de som, estourando o alto-falante colocado ao acaso em cima do muro. Delta estava pronto; linha de acontecer. Um dos manipuladores anônimos dera uma ordem e ela estava sendo cumprida. Enfiou a mão na mochila, tirou um lançador de bombas de gás lacrimogêneo de quarenta centímetros, já armado. O projétil podia quebrar vidro grosso a cinqüenta metros de distância; mirou e puxou o gatilho. A trinta metros uma janela grande foi espatifada, e um nevoeiro de gás turbilhonou pela sala. Delta pôde divisar vultos correndo, além do vidro fragmentado. Luzes foram apagadas, suplantadas por uma quantidade espantosa de refletores, instalados nos beirais da mansão e nos troncos de árvores ao redor. Subitamente, o terreno ficou banhado por uma claridade branca ofuscante. Os galhos pendentes do salgueiro seriam um ímã para olhos procurando e armas levantadas. DeIta compreendeu que nenhum apelo seu poderia cancelar as ordens. Formulara o apelo como uma advertência honesta e como um lenitivo para a consciência que ainda restava a um robô vingativo, que mal pensava, mal sentia. Nas sombras da mente que lhe restava, não queria tirar as vidas de jovens chamados a servir os egos paranóicos dos manipuladores... vira muito disso em Saigon, anos antes. Queria apenas as vidas dos que estavam no interior da casa segura e tencionava exterminá-las. Jason Bourne não seria detido. Haviam lhe tirado tudo, e ele ia agora acertar as suas contas pessoais. Para o homem da Medusa, a decisão estava tomada... era um fantoche nas cordas de sua própria raiva; tirando essa raiva, sua vida estava acabada.

— Pule! — sussurrou Delta, passando a perna direita por cima do muro e empurrando o assassino para o chão.

Ele seguiu atrás, enquanto o comando ainda se encontrava em pleno ar. Segurou-o pelo ombro, enquanto o surpreso assassino, os braços estendidos sobre os joelhos, endireitava-se na relva. Bourne arrastou-o para fora de vista, até um caramanchão de treliça, com uma profusão de buganvílias, alcançando quase dois metros de altura.

— Aqui está a sua arma, Major — disse o Jason Bourne original. — A minha está apontada para você, e não se esqueça disso.

O assassino pegou a arma e ao mesmo tempo arrancou a mordaça, tossindo e cuspindo saliva, enquanto uma fuzilaria implacável derrubava folhas e galhos, ao longo do muro.

— Seu pequeno sermão não adiantou nada, hem?

— Nem eu esperava que adiantasse. A verdade pura e simples é que eles querem você, não a mim. Sou realmente dispensável agora. Era o plano deles desde o início. Trago você e morro. Minha mulher está morta. Sabíamos demais. Ela morreu porque descobriu quem eles eram... tinha de saber, porque era a isca... eu vou morrer porque eles sabiam que eu tiraria algumas conclusões em Pequim. Envolveu-se com um banho de sangue, Major. Uma bomba atômica que pode explodir todo o Extremo Oriente e vai fazê-lo, se algumas cabeças mais sãs em Formosa não isolarem e liquidarem os seus clientes lunáticos. Só que eu não me importo mais. Podem continuar com seus jogos miseráveis e explodirem. A única coisa que me interessa é entrar naquela casa.

Um pelotão de fuzileiros investiu para o muro, correndo ao longo da pedra, os rifles levantados, prontos para dispararem, Delta tirou um segundo plastique da mochila, armou o timer digital para dez segundos e arremessou o explosivo o mais longe que pôde, a direção do muro dos fundos, a uma grande distância dos guardas.

— Vamos embora! — ordenou ao comando, batendo com

a arma em sua espinha:— Você segue na frente! Por esta trilha! Na direção da casa!

— Dê-me um explosivo!

— Não.

— Você me deu a sua palavra!

— Então eu menti ou mudei de idéia.

— Por quê? Não disse que não se importava com mais nada?            

— Ainda me importo. Não sabia que havia tantos garotos por aqui. E são crianças demais. Você podia acabar com dez deles usando um desses explosivos, mutilar muitos outros.

— É um pouco tarde para ter caridade cristã!

— A caridade não é exclusividade dos cristãos. Nunca foi. Sei quem eu quero e quem eu não quero... e não quero garotos metidos em pijamas de veteranos mutilados. Quero os homens lá dentro que...

A explosão ocorreu a quarenta metros de distância, no fundo do jardim. Arvores e terra, arbustos e canteiros inteiros de flores, tudo subiu em chamas pelo ar... um espetáculo de verde e marrom, salpicados de cores, em meio à fumaça cinzenta turbilhonante, iluminado pelos refletores.

— Ande! — sussurrou Delta. — Até o final da trilha. Fica a cerca de vinte metros da casa e há uma porta dupla...

Bourne fechou os olhos, sentindo uma fúria inútil, enquanto uma série de rajadas aparentemente intermináveis ressoava no fundo do jardim. Eram crianças. Disparavam às cegas, por medo, matando demônios imaginários, mas sem visar a qualquer alvo. E não escutariam.

Outro grupo de fuzileiros, estes obviamente comandados por um oficial experiente, assumiu posições eqüidistantes na frente da mansão, contornando-a, as pernas dobradas, pés fincados na terra, as armas viradas para frente. Os manipuladores haviam convocado sua guarda pretoriana. Que assim fosse. Delta tornou a enfiar a mão na mochila, tateou por seu arsenal e tirou uma das bombas incendiária manuais que comprara no Mongkok. Era parecida com uma granada no topo... redonda, mas coberta por uma capa de plástico grosso. A base, no entanto, era uma alça, com doze centímetros de comprimento, a fim de que o lançador pudesse arremessá-la mais longe e com maior precisão. O segredo estava no arremesso, acurácia e cálculo do tempo. Pois depois que o plástico fosse removido, a casca da bomba propriamente dita iria aderir a qualquer superfície, por um adesivo instantâneo, ativado pelo ar; com a explosão de um composto químico, seria disparada em todas as direções, prolongando as chamas, grudando em todas as superfícies porosas, penetrando e ardendo. Havia um intervalo de quinze segundos entre a remoção da cobertura de plástico e a explosão. Os lados da mansão, a casa segura, eram feitos com a madeira vitoriana clássica, por cima de uma imponente base de pedra. Delta empurrou o assassino para um agrupamento de roseiras, removeu o plástico e lançou a bomba incendiária no alto da parede de madeira, à esquerda das portas francesas, a cerca de dez metros de distância. A bomba grudou na madeira, e só restava agora esperar pela passagem dos segundos, enquanto o fogo de rifle — hesitante agora, diminuindo — cessava por completo.

A parede da casa desabou. Um enorme buraco deixou à mostra um quarto vitoriano formal, completo, com uma cama de dossel e requintados móveis ingleses. As chamas se espalharam no mesmo instante, raios de fogo se projetando de um núcleo central, avançando pela madeira, penetrando na casa.

Uma ordem foi dada, e novamente houve uma erupção de fogo de rifle, balas chovendo sobre os canteiros de flores, longe do muro dos fundos e do contingente de fuzileiros que correra para lá, por ocasião da explosão anterior. Ordens e contra-ordens foram gritadas, em ira e frustração, enquanto dois oficiais apareciam, empunhando pistolas. Um deles contornou o circulo de guardas defensivos, verificando suas posições e armas, espiando à frente de cada um. O outro encaminhou-se para o muro lateral e começou a seguir o percurso do primeiro pelotão, os olhos se deslocando constantemente para os flancos, pelos canteiros de flores. Parou sob o salgueiro e inspecionou o muro, depois a relva. Levantou a cabeça e olhou para o cara manchão com buganvílias. Empunhando uma arma, agora com as duas mãos, avançou para o caramanchão.

Delta observara o oficial através dos arbustos, a sua própria pistola ainda comprimida nas costas do comando. Pegou outro plastique, acionou o mecanismo de tempo e jogou o explosivo por cima das moitas, na direção do muro lateral.

— Siga para lá! — ordenou Bourne, virando o assassino pelo ombro e empurrando-o pela fileira de arbustos à esquerda.

Ele foi atrás, batendo com o cano da pistola na cabeça do assassino, detendo-o enquanto pegava a mochila.

— Só mais alguns minutos, Major, e depois ficará por sua própria conta.

A quarta explosão derrubou dois metros do muro lateral; como se esperassem a invasão de tropas inimigas, os fuzileiros abriram fogo para a abertura. À distância, nas ruas de Victoria Peak, sirenes gemiam, em contraponto com os sons do massacre no jardim da casa segura. Delta pegou o último explosivo plástico, acionou o mecanismo de tempo para noventa segundos e arremessou-o para o canto do muro dos fundos, uma área deserta. Era o começo de sua manobra diversionária final, o resto seria matemática fria. Pegou o lançador de bombas de gás lacrimogêneo, colocou uma e ordenou ao comando:

— Vire-se.

O assassino obedeceu, o cano da pistola de Bourne diante de seus olhos.

— Pegue isto. Pode segurar com uma das mãos. Quando eu mandar, dispare na pedra à direita das portas francesas. O gás vai se espalhar, cegando a maioria daqueles garotos. Eles não vão conseguir atirar. Por isso, não desperdice balas. Não tem muitas.

O assassino não respondeu, a princípio. Em vez disso, levantou sua arma e apontou para a cara de Jason.

— Agora estamos em posições iguais, Sr. Original. Eu lhe disse que poderia aceitar uma bala na cabeça, há anos que venho esperando por isso. Mas tenho a impressão de que você não pode suportar a idéia de não entrar naquela casa.

Houve um súbito troar de vozes e mais outra fuzilaria, enquanto um pelotão de fuzileiros corria para a abertura no muro lateral. Delta observava, espetando pelo instante em que a concentração do assassino seria interrompida por uma fração de segundo. O instante não veio.Em vez disso, o comando continuou a falar, suavemente, a voz tensa mas controlada, os olhos fixos em Jason Bourne:

— Os idiotas devem estar esperando uma invasão em grande escala. Quando em dúvida, ataque, desde que seus flancos estejam cobertos... não é isso mesmo, Sr. Original? Esvazie sua bolsa de mágicas, Delta. Era “Delta”, não era?

— Não resta mais nada.

Bourne engatilhou sua automática. O comando fez a mesma coisa.

— É o que vamos ver...

O comando estendeu a mão esquerda lentamente, tateando pela mochila, presa no quadril direito de Delta. O assassino apertou o pano grosso em vários pontos. E retirou a mão, também lentamente.

— Com todos os nãos no Grande Livro, nenhum menciona a mentira, não é? Exceto o falso testemunho, que não é a mesma coisa. Acho que você está se viciando no esporte, companheiro. Há uma submetralhadora aí dentro, com dois ou três pentes... cada um com pelo menos cinqüenta balas, a julgar pelas curvas.

— Quarenta, para ser exato.

— É muito poder de fogo. Essa coisa pode me tirar daqui. Entregue-me! Ou um de nós vai acabar aqui. Agora.

A quinta explosão de plastique sacudiu o solo; o surpreso assassino piscou; foi o suficiente. Bourne levantou a mão bruscamente, desviando a arma do assassino e batendo com sua automática na têmpora esquerda do adversário, com a força de um martelo.

— Filho da puta! — berrou o assassino, a voz rouca, enquanto caía para a esquerda, o joelho de Bourne em seu pulso.

A arma se soltou da mão do comando e Bourne murmurou:

— Continua suplicando por uma morte rápida, Major.

O pandemônio alcançava o auge nos terrenos da segura mansão vitoriana. O pelotão de fuzileiros que investira para o muro lateral desmoronado recebeu a ordem de desfechar uma carga para os fundos do jardim.

— Não gosta realmente de si mesmo, não é, Major? Mas teve uma boa idéia. Esvaziarei minha bolsa de mágicas. Está quase chegando o momento.

Bourne removeu as tiras e virou a mochila aberta, O conteúdo caiu sobre a relva, iluminado pelas chamas do incêndio em expansão no segundo andar da casa segura. Restavam uma bomba incendiária e um plastique, além de uma submetralhadora, como o assassino adivinhara, que precisava apenas da armação e de um pente de balas inserido para atirar. Delta montou a arma mortífera, inseriu um dos pentes e meteu os outros três no cinto. Depois, soltou a mola do lançador, ajeitou no lugar uma bomba de gás lacrimogêneo, rearmou o mecanismo. Estava pronto para ser disparado... a fim de salvar as vidas de crianças, crianças que haviam sido convocadas para morrer pelos egos envelhecidos dos manipuladores. Havia ainda a bomba incendiária. Ele sabia para onde lançá-la. Pegou-a, removeu a cobertura de plástico e arremessou-a com toda a sua força em direção ao ápice em formato de A, por cima das portas francesas. Ela grudou na madeira. Era o momento. Delta puxou o gatilho do lançador, disparando a bomba de gás lacrimogêneo para a pedra à direita das portas francesas. Explodiu, batendo na parede e caindo no chão; o gás espalhou-se no mesmo instante, uma nuvem turbilhonante, homens sufocando em sua periferia. As armas não foram largadas, mas mãos livres esfregaram olhos inchados e lacrimejantes e cobriram narinas congestionadas.

A segunda bomba incendiária explodiu, derrubando a elegante fachada vitoriana que encimava as portas francesas, estilhaçando os painéis de vidro, fragmentos inteiros da parte superior da parede caindo no vestíbulo além. As chamas subiram para os beirais e o interior da casa, pegando em cortinas e estofamentos. Os fuzileiros correram da tremenda explosão e das chamas para as nuvens de gás lacrimogêneo. Vários largaram agora os rifles, correndo em todas as direções, esbarrando uns nos outros, na tentativa de escapar dos vapores, engasgando, tossindo, procurando alívio.

Delta ficou agachado, a submetralhadora na mão, e levantou o comando para o seu lado. Estava na hora; o caos era completo. O gás turbilhonante na frente das portas francesas destroçadas estava sendo sugado pelo calor das chamas; ia se dissipar o bastante para que ele pudesse avançar. Uma vez lá dentro, a busca seria rápida, encerrada em poucos momentos. Os dirigentes de uma operação se que exigia uma casa segura em território estrangeiro permaneceriam nos limites protetores da própria casa por dois motivos. O primeiro era que o tamanho e a disposição da força atacante não podiam ser estimados com precisão e o risco de morte ou captura lá fora era muito grande. O segundo era mais pragmático: documentos tinham de ser destruídos, queimados, e não picados, como haviam aprendido em Teerã. Diretivas, dossiês, relatórios de progresso operacional, materiais de apoio, tudo tinha que desaparecer. As sirenes em Victoria Peak estavam se tornando mais altas, mais próximas; a subida frenética pelas ruas íngremes estava quase terminando.

— É a contagem regressiva — disse Bourne, acionando o mecanismo de tempo no último explosivo plastique. — Não vou lhe dar isto, mas usarei com o maior proveito... tanto seu quanto meu. Trinta segundos, Major Allcott-Price.

Jason arremessou o explosivo o mais longe que podia, na direção do lado direito do muro da frente.

— Minha arma! Pelo amor de Deus, dê-me a arma!

— Está no chão. Debaixo de meu pé.

O assassino estendeu a mão.

— Largue-a!

— Quando eu quiser... e vou querer. Mas se tentar pegá-la antes, a próxima coisa que vai ver é uma cela na guarnição de Hong Kong e... de acordo com as suas previsões... um patíbulo, uma corda grossa e um carrasco, em seu futuro imediato.

O assassino fitou-o em pânico.

— Seu mentiroso filho da puta! Você mentiu!

— Faço isso com freqüência. Também não acontece com você?

— Disse...

— Sei o que eu disse. E também sei por que você está aqui, por que tem três balas em vez de nove.

— O quê?

— Você vai ser o meu desvio, Major. Quando eu libertá-lo com a arma, vai se encaminhar para o portão ou um trecho derrubado do muro... o que preferir. Vão tentar detê-lo. Você responderá ao fogo, naturalmente... e enquanto se concentram em você, aproveitarei para entrar.

— Seu filho da puta!

— Meus sentimentos estão magoados... mas também não tenho mais sentimentos. Portanto, não tem importância. Preciso apenas entrar na casa...

A última explosão derrubou uma árvore, cujas raízes derrubaram um trecho enfraquecido do muro, pedras se deslocando, o próprio muro ruindo, as pedras fendidas formando um V no centro de impacto secundário. Fuzileiros do contingente do portão correram para lá.

— Agora! — berrou Delta, ficando de pé.

— Dê-me a arma! Largue-a!

Jason Bourne ficou subitamente paralisado. Não podia se mexer... a não ser para levantar o joelho, levado por um instinto qualquer, e atingir a garganta do assassino, jogando-o para o lado. Um homem aparecera além das portas arrebentadas do vestíbulo em chamas. Um lenço cobria seu rosto, mas não podia cobrir a manqueira. A manqueira! Com o pé entravado, o vulto delineado chutou a estrutura esquerda das portas francesas e desceu desajeitado os três degraus para o pequeno pátio de lajes de pedra, em frente ao imponente jardim. Arrastou-se para a frente e gritou o mais alto que podia, ordenando aos guardas que podiam ouvi-lo para suspenderem o fogo. O vulto não precisava baixar o lenço para que DeIta reconhecesse o rosto. Era o rosto de seu inimigo. Era Paris, um cemitério nos arredores de Paris. Alexander Conklin viera matá-lo. Além-da-salvação era a ordem que partira lá de cima.

— David! Sou eu, Alex! Não continue com o que está fazendo! Pare tudo! Sou eu, David! Estou aqui para ajudá-lo!

— Está aqui para me matar! Apareceu para me matar em Paris, tentou de novo em Nova York! Casa de Pedra Setenta- e-Um! Você tem uma memória curta, seu filho da puta!

— E você não tem memória nenhuma! Tornou-se Delta, que era o que eles queriam! Conheço toda a história, David! Voei para cá porque descobrimos tudo! Marie, Mo Panov e eu! Estamos todos aqui! Marie está sã e salva!

— Mentiras! Manobras! Vocês a mataram! Queria matá-la em Paris, mas eu a mantive longe de você!

— Ela não está morta, David! Está viva! Posso trazê-la para você! Agora!

— Mais mentiras!

Delta agachou-se e puxou o gatilho, metralhando o pátio, as balas ricocheteando nas pedras para o vestíbulo em chamas; mas, por motivos que ele desconhecia, não abateram o homem.

— Você quer me atrair, a fim de poder dar a ordem para acabar comigo! Além-da-salvação cumprida! De jeito nenhum, carrasco! Eu vou entrar! Quero os homens silenciosos e secretos por trás de você! Eles estão aí! Sei que estão aí!

Bourne levantou o assassino caído, entregando-lhe a arma.

— Vocês queriam um Jason Bourne... pois ele é todo seu! Vou largá-lo entre as roseiras! Matem-no, enquanto eu mato vocês!

Meio louco, meio sobrevivente, o comando arremeteu por entre as roseiras, afastando-se de Bourne. Correu primeiro pela trilha e depois voltou, percebendo que os fuzileiros se encontravam nas áreas ao norte e ao sul do muro. Se aparecesse na extremidade leste do jardim, ficaria entre os dois contigentes. Seria um homem morto se se mexesse.

— Não tenho mais tempo, Conklin! — berrou Bourne.

Por que ele não conseguia matar o homem que o traíra? Puxe o gatilho! Mate o último de Casa de Pedra Setenta-e- Um! Mate! Mate! O que o impedia?

O assassino lançou-se por cima dos canteiros de flores, agarrando o cano quente da submetralhadora de Bourne, empurrando-o para baixo, levantando e disparando sua própria arma. A bala raspou a testa de Jason, que em fúria puxou o gatilho da submetralhadora. As balas penetraram no chão, e as vibrações na arena pequena e mortal se tornaram ensurdecedoras. Ele agarrou a pistola do inglês, torcendo-a no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. O braço direito entrevado do assassino não era páreo para o homem da Medusa. A arma explodiu no momento em que Bourne a arrancava. O impostor caiu para trás, sobre a relva, os olhos vidrados, conscientes de que perdera.

— David! Pelo amor de Deus, escute-me! Você tem...

— Não há nenhum David aqui! — gritou Jason, o joelho comprimido contra o peito do assassino. — Meu verdadeiro nome é Bourne, nascido de Delta, gerado por Medusa! A dama serpente! Está lembrado?

— Temos de conversar!

— Temos de morrer! Você tem de morrer! Os homens lá dentro são um contrato que fiz comigo mesmo, com Marie! Eles têm de morrer! — Bourne agarrou a lapela do casaco do assassino, levantando-o. — Eu repito! Aqui está o seu Jason Bourne! Ele é todo seu!

— Não atirem! Suspendam o fogo! — berrou Conklin, enquanto segmentos aturdidos dos três contingentes de fuzileiros começavam a fechar o cerco e as sirenes ensurdecedoras da polícia de Hong Kong parava diante do portão demolido.

O homem da Medusa bateu com o ombro nas costas do comando, empurrando-o para o clarão das chamas e dos refletores.

— Aí está ele! O prêmio que vocês queriam!

Houve uma rajada de fogo de rifle, enquanto o assassino cambaleava e depois se jogava ao chão, rolando para escapar às balas.

— Parem! — berrou Conklin. — Não atirem nele! Pelo amor de Deus, suspendam o fogo! Não o matem!

— Não atirem nele? — gritou Jason Bourne. — Nele não? Apenas em mim! Não é isso mesmo, seu filho da puta? E agora você vai morrer! Por Marie, por Eco, por todos nós!

Ele apertou o gatilho da submetralhadora, mas ainda dessa vez as balas não atingiram o alvo! Bourne virou-se e, balançando para a frente e para trás, apontou a arma letal para os fuzileiros que se aproximavam. Tornou a disparar, várias rajadas prolongadas, agachando-se, esquivando-se, deslocando-se de um lado para outro, por trás das roseiras. Mas estava apontando o cano por cima de suas cabeças. Por quê? Os garotos não podiam detê-lo. Mas também os garotos em seus uniformes engomados não morreriam pelos manipuladores. Tinha de entrar na casa segura. Agora! Não restava muito tempo. Tinha de ser agora!

— David! — Uma voz de mulher. Oh, Deus, uma voz de mulher. — David! David! David!

Um vulto numa saia esvoaçante saiu correndo da casa segura. Ela pegou o braço de Alexander Conklin e puxou-o para o lado. Ficou sozinha no pátio.

— Sou eu, David! Estou aqui! Estou sã e salva! Está tudo bem, meu querido!

Outro truque, outra mentira. Era uma velha de cabelos grisalhos!

— Saia da frente, mulher, ou vou matá-la! Não passa de Outra mentira, outro truque!

— David, sou eu! Não pode me ouvir...

— Posso vê-la! Um truque!

— Não, David!

— Meu nome não é David! Eu já disse a seu amigo miserável que não há nenhum David aqui!

— Não! — berrou Marie.

Sacudindo a cabeça, desesperada, ela correu para a frente de vários fuzileiros, que haviam rastejado da relva, emergindo das nuvens turbilhonantes e desvanecentes de gás. Estavam agora de joelhos, com uma visão nítida de Bourne, apontando seus rifles, hesitantes. Marie postou-se entre os guardas que se recuperavam e o alvo.

— Já não fizeram o bastante com ele? Pelo amor de Deus, alguém detenha esses guardas!

— E deixamos que um terrorista filho da puta nos liquide? — gritou uma voz juvenil das fileiras mais próximas do muro da frente.

— Ele não é o que vocês pensam! O que quer que ele seja, foram as pessoas lá dentro que o fizeram assim! Ouviram o que ele disse! Não vai atirar em vocês se não atirarem nele!

— Ele já atirou! — berrou um oficial.

— Vocês ainda estão de pé! — respondeu Alex Conklin, da beira do pátio. — E ele é um atirador melhor e com mais armas do que qualquer outro homem aqui! Não se esqueçam disso!

— Não preciso de você! — proclamou Jason Bourne, mais uma vez disparando uma rajada de metralhadora para a parede em chamas da casa segura.

Subitamente, o assassino estava de pé, agachando-se, depois avançando para o fuzileiro mais próximo, um garoto sem capacete, ainda tossindo do gás. O assassino arrancou o rifle do guarda, chutando-o na cabeça, depois disparou contra o fuzileiro seguinte, que cambaleou para trás, as mãos comprimindo a barriga. O comando virou-se; divisou um oficial com uma submetralhadora não muito diferente da arma de Bourne; alvejou-o no pescoço e tirou a arma do corpo que caía. Fez uma pausa, apenas por uma fração de segundo, avaliando suas chances, e depois ajeitou a submetralhadora sob o braço esquerdo. Delta observava, sabendo instintivamente o que o comando faria, sabendo também que seu objetivo de desvio de atenção estava prestes a ocorrer.

Foi o que o assassino fez. Disparou uma rajada após outra, nas fileiras cerradas de jovens e inexperientes fuzileiros, perto do muro da frente, sempre correndo, esgueirando-se pelo curto trecho gramado até os canteiros de flores que subia pela altura dos ombros, à esquerda de Bourne. Era o único caminho de fuga, o menos iluminado.., o muro demolido nos fundos, no lado direito.

— Detenham-no! — gritou Conklin, claudicando frenético pelo pátio. — Mas não atirem! Não o matem! Pelo amor de Deus, não o matem!

— Vá à merda! — gritou alguém do pelotão de fuzileiros junto ao muro dos fundos, no lado esquerdo.

O assassino, ziguezagueando, virando-se, agachando-se, a disparar com o rifle, avançou rapidamente para o muro demolido imobilizando os guardas com seus tiros incessantes. A câmara do rifle ficou sem balas; ele largou a arma e suspendeu a submetralhadora, iniciando a corrida final para o muro demolido, disparando rajadas para os fuzileiros no chão. Estava chegando! A escuridão além garantia a sua fuga!

— Seu filho da puta! — Era um grito de adolescente, a voz imatura, em tormento, mas mesmo assim letal. — Você matou meu amigo! Estourou sua cara! Vai pagar por isso, seu filho da puta!

Um jovem fuzileiro preto levantou-se de um pulo do lado do companheiro branco morto e correu para o muro, enquanto o assassino se virava, subindo na pedra. Outra rajada atingiu o fuzileiro no ombro; ele caiu, rolou duas vezes para a esquerda e disparou quatro tiros.

Foram seguidos por um grito agonizante e histérico de desafio. Era o grito da morte; o assassino, os olhos arregalados em ódio, tombou sobre as pedras fragmentadas. O Major Allcott-Price, ex-oficial dos Comandos Reais, estava morto.

Bourne avançou, a arma levantada. Marie correu para a beira do pátio, a distância entre os dois não mais que uns poucos passos.

— Não faça isso, David!

— Eu não sou David, mulher! Pergunte a seu amigo escro-

to. Nós nos conhecemos há muito tempo. E agora saia da minha frente!

Por que não conseguia matá-la? Uma rajada e estaria livre para fazer o que precisava! Por quê?

— Está bem! — gritou Marie, mantendo sua posição. — Não há nenhum David, está bem? Você é Jason Bourne! Você é Delta! Você é qualquer coisa que quiser ser, mas também é meu! Você é meu marido!

A revelação teve o impacto de um raio súbito sobre os guardas que a ouviram. Os oficiais, os cotovelos dobrados, levantaram as mãos — a ordem universal para suspender o fogo — enquanto eles e os soldados olhavam a cena aturdidos.

— Não conheço você!

— A voz é a minha. E você a conhece, Jason.

— Um truque! Uma atriz imitando! Uma mentira! Já foi feito antes!

— E se eu pareço diferente, é por sua causa, Jason Bourne!

— Saia da minha frente ou vai morrer!

— Você me ensinou em Paris! Na Rue de Rivoli, o Hotel Meurice, a banca de jornais na esquina. Não pode se lembrar? Os jornais com a história de Zurique, minha fotografia em todas as primeiras páginas! E o pequeno hotel em Montparnasse, quando estávamos saindo, o porteiro lendo o jornal, minha fotografia na frente de sua cara! Você estava tão assustado que me disse para sair correndo... O táxi! Lembra do táxi? A caminho de Issy-les-Moulineaux... Nunca esquecerei aquele nome incrível. “Mude os cabelos”, você disse. “Levante ou puxe-os para trás”. Disse que não se importava com que eu fizesse, desde que mudasse o penteado. Perguntou-me se eu tinha um lápis de sobrancelha... e me disse para engrossar as sobrancelhas, torná-las mais compridas. Suas palavras, Jason! Estávamos fugindo para salvar nossas vidas e você queria que eu parecesse diferente, que eliminasse qualquer semelhança com a fotografia espalhada por toda a Europa! Eu tinha de me tornar um camaleão, porque Jason Bourne era um camaleão. Ele tinha de ensinar sua amada, sua esposa! E foi justamente isso o que eu fiz, Jason!

— Não! — gritou Deita.

A palavra se transformou num grito, as névoas da confusão envolvendo-o, enviando sua mente para as regiões exteriores do pânico. As imagens estavam ali! Rue de Rivoli, Montparnasse, o táxi. Preste atenção. Sou um camaleão chamado Caim e posso ensinar muitas coisas a você. Não estou interessado em ensinar, mas devo fazê-lo. Posso mudar minha cor para me integrar com a floresta, posso me transformar com o vento, ao farejá-lo. Posso encontrar o caminho através das selvas naturais e artificiais. Alfa, Bravo, Charlie, Delta... Delta é por Charlie e Charlie é por Caim. Eu sou Caim. Eu sou a morte. E devo dizer a você quem eu sou e perdê-la.

— Você lembra! — gritou a esposa de David Webb.

— Um truque! Os agentes químicos... eu disse as palavras. Eles revelaram as palavras a você! Querem me deter de qualquer maneira!

— Eles não me contaram nada! Não quero nada deles! Quero apenas meu marido! Eu sou Marie!

— Você é uma mentira! Eles mataram Marie!

Delta puxou o gatilho e a saraivada de balas explodiu na terra, aos pés de Marie. Os rifles foram rapidamente levantados para posições de disparo.

— Não façam isso! — gritou Marie, virando a cabeça para os fuzileiros, uma expressão furiosa, a voz de comando. — muito bem, Jason. Se você não me reconhece, então não quero viver. Não posso ser mais clara do que isso, meu querido. É por isso que compreendo o que você está fazendo. Está jogando a sua vida fora por que uma parte de você que assumiu o controle pensa que eu morri e não quer viver sem mim. É algo que compreendo perfeitamente, porque também não quero viver sem você.

Marie deu alguns passos pelo gramado e depois ficou completamente imóvel.

Delta levantou a submetralhadora, o visor no cano focalizando os cabelos grisalhos. O dedo indicador se fechou em torno do gatilho. E de repente, involuntariamente, a mão direita começou a tremer, e depois a mão esquerda. A arma mortífera começou a balançar, a princípio lentamente, depois mais depressa, em círculos, enquanto a cabeça de Bourne sacudia-se aos arrancos; o tremor foi se espalhando; o pescoço começou a perder o controle.

Houve um tumulto na multidão concentrada nas ruínas fumegantes do portão e da casa de guarda, a várias dezenas de metros. Um homem se debatia, seguro por dois fuzileiros.

— Deixem-me passar, seus imbecis! Sou um médico! O médico dele!

Com um ímpeto de força, Morris Panov desvencilhou-se e correu pelo gramado, ao clarão dos refletores. Parou a seis ou sete metros de Bourne.

Delta começou a gemer; o som e o ritmo eram primitivos. Jason Bourne largou a arma... e David Webb caiu de joelhos, chorando. Marie avançou em sua direção.

— Não! — ordenou Panov, a voz suave, enfática, detendo a esposa de Webb. — Ele tem de ir a você. Ele deve ir a você.

— Ele precisa de mim!

— Não assim, Ele tem de reconhecê-la. David tem de reconhecer você e dizer ao seu outro eu para libertá-lo. Você não pode fazer isso por ele. É uma coisa que ele tem de fazer sozinho.

Silêncio. Refletores. Fogo.

E como uma criança assustada, abatida, David Webb levantou a cabeça, as lágrimas escorrendo pelas faces. Lentamente, angustiado, ficou de pé e correu para os braços da esposa.

 

Estavam na casa segura, no centro de comunicações de paredes brancas... uma cela anti-séptica, pertencente a algum laboratório futurista. Computadores de faces brancas erguiam-se por cima dos balcões brancos à esquerda, dezenas de bocas finas, escuras e retangulares se abriam esporadicamente, os dentes, os mostradores digitais, formando números verdes luminosos, que mudavam a todo instante, com invioláveis alterações de freqüência e meios menos sofisticados e menos seguros de enviar e receber informações. À direita havia uma mesa de reuniões grande e branca, sobre o chão de ladrilhos brancos; o único desvio da conformidade de cor e assepsia eram vários cinzeiros pretos. Os jogadores se encontravam em suas posições, ao redor da mesa. Os técnicos haviam sido dispensados, todos os sistemas suspensos, apenas o sinistro Alerta Vermelho, um painel de oito por vinte centímetros no computador central, permanecia ativo; um operador estava de plantão no outro lado da porta fechada, para o caso de as luzes vermelhas de alarme se acenderem. Além daquela sala isolada e sacrossanta, os bombeiros de Hong Kong apagavam os rescaldos do incêndio, enquanto a polícia de Hong Kong procurava acalmar os moradores em pânico das propriedades próximas em Victoria Peak — muitos convencidos de que o Armagedon chegara, sob a forma de um ataque do Continente — dizendo a todos que os terríveis acontecimentos eram obra de um criminoso enlouquecido, morto por unidades de emergência do governo. Os céticos moradores não ficaram satisfeitos. Os tempos não lhes eram favoráveis; seu mundo não era mais como deveria, e queriam provas. Assim, o cadáver do assassino desfilou numa maca, passando pelos espectadores curiosos, o corpo, todo perfurado e encharcado de sangue, parcialmente descoberto para que todos pudessem ver. Os pomposos moradores retornaram a suas casas pomposas, já tendo considerado a esta altura todas as possibilidades de reivindicação de pagamento de seguros.

Os jogadores sentavam-se em cadeiras brancas de plástico, robôs vivos, respirando à espera de um sinal para começar, nenhum possuindo realmente a coragem ou energia para iniciar os trabalhos. A exaustão, misturada com o medo de morte violenta, marcava seus rostos... marcava todos os rostos, à exceção de um. Ele tinha rugas profundas e olheiras de extrema fadiga, mas não havia medo em seus olhos, apenas a aceitação passiva e aturdida de coisas ainda além de sua compreensão. Minutos antes, a morte não lhe metia medo; era preferível a viver. Agora, em sua confusão, com a esposa segurando sua mão, ele podia sentir a distensão da ira distante... distante no sentido de afastada para os recessos de sua mente, pressionando para a frente inexoravelmente, como a trovoada distante sobre um lado, numa tempestade de verão se aproximando.

— Quem fez isso conosco? — perguntou David Webb, num quase sussurro.

— Fui eu — respondeu Havilland, na extremidade da mesa branca retangular. O embaixador inclinou-se para a frente lentamente, sustentando o olhar letal de Webb. — Se eu estivesse num tribunal, suplicando misericórdia por um ato ignominioso, alegaria que havia circunstâncias atenuantes.

— Quais foram? — indagou David, a voz sem qualquer inflexão.

— Primeiro, há uma crise — disse o embaixador. — Segundo, havia você.

— Explique — interveio Alex Conklin, na outra extremidade da mesa, de frente para Havilland.

Webb e Marie estavam à sua esquerda, de frente para a

parede branca; Morris Panov e Edward McAllister sentavam-se no lado oposto.

— E não omita nada — acrescentou o turbulento homem da CIA.

— Não tinha a menor intenção disso — respondeu o embaixador, os olhos sempre fixos em David. — A crise é real, a catástrofe iminente. Uma cabala foi formada em Pequim por um grupo de fanáticos, liderados por um homem tão bem situado na hierarquia de seu governo, tão reverenciado como um príncipe dos filósofos que não pode ser denunciado. Ninguém acreditaria. Quem quer que tentasse denunciá-lo haveria de se tornar um pária. Pior ainda, qualquer tentativa de denúncia acarretaria o risco de um retrocesso tão grande que Pequim bradaria insultada e indignada, revertendo à suspeita e à intransigência. Mas se a conspiração não for abortada, vai destruir os Acordos de Hong Kong e acabar com a colônia. O resultado será a ocupação imediata pela República Popular. Não preciso lhe dizer o que isso significaria... caos econômico, violência, banho de sangue e a guerra inevitável no Extremo Oriente. Por quanto tempo tais hostilidades poderiam ser contidas antes que outras nações se vissem forçadas a tomar partido? O risco é inadmissível.

Silêncio. Olhos se encontrando com olhos.

— Fanáticos do Kuomintang — disse David, a voz incisiva e fria. — China contra China. Tem sido o grito de guerra de maníacos há quarenta anos.

— Mas apenas um grito, Sr. Webb. Palavras, conversas, mas nenhum movimento, nenhum ataque, nenhuma estratégia final — Havilland pôs as mãos sobre a mesa, respirando fundo. — Mas é o que existe agora. A estratégia está definida, uma estratégia tão indireta e tortuosa, desenvolvida por tanto tempo, que eles estão convencidos de que não pode falhar. Mas é claro que vai fracassar... e quando isso acontecer, o mundo vai se defrontar com uma crise de proporções intoleráveis. Pode muito bem levar à crise final, à crise a que não poderemos sobreviver. E, com toda certeza, o Extremo Oriente não vai sobreviver.

— Não está me dizendo nada que eu não tenha testemunhado pessoalmente Eles estão infiltrados nos altos escalões e provavelmente se espalhando, mais ainda são fanáticos, um bando de lunáticos. E se o maníaco que encontrei e estava comandando o espetáculo é como os outros, todos serão enforcados na Tian An Men. Com transmissão pela televisão e aprovação de todos os grupos que se opõem à pena capital. Ele era... é... um sádico messiânico, um carniceiro. Os carniceiros não são estadistas. Não podem ser levados a sério.

— Herr Hitler foi, em 1933 — comentou Havilland. — E o Aiatolá Khomeini há poucos anos. Mas é óbvio que você não sabe quem é o verdadeiro líder desses fanáticos. Ele nunca se mostraria, sob quaisquer circunstâncias, em algum lugar onde você pudesse vê-lo, sequer remotamente. Contudo, posso lhe assegurar que é um estadista e levado muito a sério. E seu objetivo não é Pequim. É Hong Kong.

— Vi o que vi e ouvi o que ouvi, e tudo estará comigo por um longo tempo... Vocês não precisam de mim, nunca precisaram. Podem isolá-los, espalhar a notícia pelo Comitê Central, pedir a Formosa para repudiá-los... e eles atenderão. Os tempos mudaram. Não querem mais a guerra com Pequim.

O embaixador estudou o homem da Medusa, obviamente avaliando as informações de David, compreendendo que ele observara o suficiente em Pequim para tirar suas próprias conclusões, mas não o bastante para perceber a essência da conspiração de Hong Kong.

— É tarde demais — disse Havilland. — As forças já foram acionadas. Traição nos mais altos níveis do governo da China, traição dos desprezados nacionalistas, presumindo-se que estão em conluio com interesses financeiros ocidentais. Nem mesmo os partidários mais devotados de Teng Siao-ping poderiam aceitar esse golpe no orgulho de Pequim, essa perda de prestígio internacional... o papel de corno enganado. Também não aceitaríamos, se descobríssemos que a General Motors, a IBM e a Bolsa de Valores de Nova York estavam sendo dirigidas por traidores americanos, treinados pelos soviéticos, desviando bilhões para projetos que não são do interesse da nação.

— A analogia é acurada — interveio McAllister, os dedos na têmpora direita. — Cumulativamente, Hong Kong será isso mesmo para a República Popular... isso e cem mil vezes mais. Mas há outro elemento e é tão alarmante quanto qualquer outra coisa que já descobrimos. Eu gostaria de abordá-lo agora... em minha posição como um analista, como alguém que supostamente calcula as reações dos adversários e dos adversários em potencial...

— Seja sucinto — interrompeu-o Webb. — Fala demais e não pára de esfregar a cabeça. Além disso, não gosto de seus olhos. Parecem de peixe morto. Falou demais no Maine. Não passa de um mentiroso.

— Está certo. Entendo o que está dizendo e por quê. Mas sou um homem decente, Sr. Webb. Acredito na decência.

— Pois eu não acredito. Deixei de acreditar. Continue. É tudo muito esclarecedor e não compreendo nada, porque ninguém disse nada que faça sentido. Qual é a sua contribuição, mentiroso?

— O fator do crime organizado.

McAllister engoliu em seco ao insulto repetido de David, mas ainda assim apresentou a declaração como se esperasse que todos compreendessem. Quando se defrontou com expressões impassíveis, tratou de acrescentar:

— As tríades!

— Grupos estruturados como a Máfia, em estilo oriental — disse Marie, os olhos fixos no subsecretário de Estado. — Fraternidades criminosas.

McAllister acenou com a cabeça.

— Narcóticos, imigração ilegal, jogo, prostituição, agiotagem... todas as atividades usuais.

— E algumas que não são tão usuais — acrescentou Marie. — Eles estão profundamente arraigados em sua própria forma de economia Possuem bancos... indiretamente, é claro... na Califórnia, Oregon, Washington e até em meu país, na Colúmbia Britânica. Levam seu dinheiro, aos milhões, todos o dias, através de transferências internacionais.

— O que só contribui para agravar a crise — disse McAllister, enfaticamente

— Por quê? — indagou David. — Onde está querendo chegar?

— Crime, Sr. Web. Os líderes da República Popular estão obcecados pelo crime, Os informes indicam que mais de cem mil execuções ocorreram durante os últimos três anos, com pouca distinção entre pequenos delitos e crimes mais graves. É coerente com o regime... as origens do regime. Todas as revoluções acreditam que são concebidas em pureza; a pureza da causa é tudo. Pequim efetuará os ajustes ideológicos para se beneficiar com o mercado do Ocidente, mas não haverá concessões sequer para a insinuação de crime organizado.

— Faz com que eles pareçam um bando de paranóicos — comentou Panov.

— E são mesmo. Não podem se permitir ser qualquer outra coisa.

— Ideologicamente? — indagou o psiquiatra, cético.

— Simplesmente números, doutor. A pureza da revolução é a cobertura, mas são os números que os assustam. Um país enorme, imensamente povoado, com vastos recursos... se o crime organizado se infiltrasse, com um bilhão de pessoas dentro de suas fronteiras, poderia se transformar numa nação de tríades. Aldeias, cidades pequenas e grandes, tudo poderia ser dividido em territórios de “famílias”, lucrando com o fluxo de capital e a tecnologia ocidentais. Haveria uma explosão de exportações ilegais, inundando os mercados de contrabando do mundo inteiro. Narcóticos de plantações incontáveis, que seria impossível patrulhar, armas de fábricas subsidiárias que seriam montadas através do suborno, tecidos de centenas de teares clandestinos, usando equipamentos roubados e mão-de-obra camponesa, abalando as indústrias do Ocidente. Crime.

— É o “grande salto para a frente”, que ninguém por aqui foi capaz de realizar nos últimos quarenta anos — comentou Conklin.

— Quem se atreveria a tentar? — indagou McAllister. — Se uma pessoa pode ser executada por roubar cinqüenta yuans, quem vai se arriscar por cem mil? E preciso proteção, organização, pessoas nos altos escalões. É isso o que Pequim teme, por isso é paranóica. Os líderes estão apavorados com a corrupção nos altos postos. A infra-estrutura política pode ser erodida. Os líderes perderiam o controle, risco que não podem permitir. Claro que seus medos são paranóicos, mas para eles são terrivelmente reais. Qualquer insinuação de que facções criminosas poderosas estão em conluio com conspiradores internos, infiltrando-se na economia, seria suficiente para que repudiassem os Acordos e mandassem suas tropas para Hong Kong.

— Suas conclusões são óbvias — disse Marie. — Mas onde está a lógica? Como poderia acontecer?

— Está acontecendo, Sra. Webb — respondeu o Embaixador Havilland. —É por isso que precisamos de Jason Bourne.

— É melhor que alguém comece do início — interveio David.

Foi o que Havilland fez.

— Começou há mais de trinta anos, quando um jovem brilhante foi enviado de Formosa para a terra onde seu pai nascera, recebendo um novo nome, uma nova família. Era um plano a longo prazo. Suas raízes estavam no fanatismo e na vingança...

Webb ficou escutando o relato da incrível história de Sheng Chou Yang, cada peça no lugar, cada fato convincentemente verdadeiro, pois não havia mais motivos para mentiras. Exatamente vinte e sete minutos depois, ao terminar, Havilland pegou uma pasta de arquivo com as margens pretas. Abriu-a, revelando um feixe de setenta e tantas páginas, tornou a fechá-la, inclinou-se e colocou-a na frente de David.

— Isto é tudo que sabemos, tudo o que descobrimos... os detalhes de tudo o que lhe contei. Não pode.sair desta casa, exceto como cinzas, mas você está autorizado a ler. Se tiver alguma dúvida ou pergunta, juro que acionarei todas as fontes no governo dos Estados Unidos... do Gabinete Oval ao Conselho de Segurança Nacional... para satisfazê-lo. Não poderia fazer menos. — O embaixador fez uma pausa, os olhos fixos nos de Webb. — Talvez não tenhamos o direito de pedir isso, mas precisamos de sua ajuda. Precisamos de todas as informações que puder nos oferecer.

— A fim de que vocês possam mandar alguém liquidar esse Sheng Chou Yang.

— Essencialmente, é isso mesmo.. Mas a situação é muito mais complexa. Nossa intervenção deve invisível. Não pode ser vista ou sequer remotamente suspeitada. Sheng se protegeu de maneira brilhante. Pequim o considera um visionário, um grande patriota que trabalha como empenho pela Mãe China... pode-se mesmo dizer que é um santo. Sua segurança é absoluta. As pessoas que o cercam, assessores, guardas, formam suas tropas de choque protetoras, e devem fidelidade exclusivamente a ele.

— Era por isso que queriam o impostor —comentou Marie. — Ele era o vínculo com Sheng.

— Sabíamos que ele aceitara contratos de Sheng, que precisava... precisa... eliminar sua oposição, tanto os adversários ideológicos quanto os que tenciona excluir de suas operações.

— Nesse segundo grupo estão os chefes das tríades rivais em que Sheng não confia, em que os fanáticos do Kuomintang não confiam — acrescentou McAllister. — Sheng sabe que se eles perceberem que estão sendo relegados a um segundo plano, poderia irromper uma guerra de quadrilhas desestabilizadora. Sheng não pode tolerar isso, assim como os ingleses também não, com Pequim no outro lado da rua. Nos últimos dois meses, sete chefes de tríades foram mortos e suas organizações destruídas.

— O novo Jason Bourne era a solução perfeita para Sheng — continuou o embaixador. — O assassino por contrato sem vínculos políticos ou nacionais, pois acima de tudo não seria possível estabelecer ligações entre as mortes e a China.

— Mas ele foi a Pequim — objetou Webb. — Foi lá que o encontrei. Embora tenha começado como uma armadilha para mim, que foi...

— Uma armadilha para você? — interrompeu Havilland. — Eles sabiam de vocé?

— Deparei com meu sucessor no aeroporto há duas noites. Cada um sabia quem era o outro... era impossível não saber. Ele não ia manter em segredo e arcar com a culpa por um contrato malogrado.

— Então foi você! — exclamou McAllister. — Eu sabia!

— Sheng e sua gente também sabiam. Eu era o novo pistoleiro no cenário e tinha de ser detido, morto em base de prioridade. Não podiam se arriscar ao que descobri. A armadilha foi concebida naquela noite, acionada naquela noite.

— Essa não! — explodiu Conklin. — Em Washington, li sobre o incidente em Kai-tak. Os jornais disseram que se presumia ser obra de lunáticos de extrema direita. Para manter os comunistas longe do capitalismo. E no entanto, foi você?

— Os dois governos tinham de oferecer alguma coisa à

imprensa internacional — explicou o subsecretário. — Assim como vamos ter que dizer alguma coisa sobre o que aconteceu aqui esta noite...

— O que eu ia dizer é que esse Sheng recrutou o comando, usou-o para montar uma armadilha para mim e com isso integrou-o em seu círculo interior — declarou David, ignorando McAllister. — Não é assim que um cliente oculto se mantém a distância de um assassino contratado.

— É como se ele esperasse que o assassino não saísse vivo desse círculo — respondeu Havilland, olhando para o subsecretário de Estado. — É a teoria de Edward, e que eu endosso: depois que fosse executado o contrato final ou quando se achasse que o homem sabia demais e assim se tornava um risco, o impostor seria morto ao receber um pagamento... acreditando, é claro, que estava recebendo outra missão. Tudo insondável, tudo limpo. Os acontecimentos no Kai-tak certamente selaram a sua sentença de morte.

— Ele não foi bastante esperto para perceber isso — comentou Jason Bourne. — Não era capaz de pensar geometricamente.

— Como? — indagou o embaixador.

— Não tem importância — respondeu Webb, tornando a fitar o embaixador. — Então tudo o que me contou era parte verdade, parte mentira. Hong Kong poderia explodir, mas não pelos motivos que me apresentou.

— A verdade era nossa credibilidade. Você tinha de aceitar isso, aceitar nossas preocupações profundas e assustadoras. As mentiras eram para recrutá-lo. — Havilland recostou-se na cadeira. — E não posso ser mais sincero do que isso.

— Filhos da puta! — disse David, a voz baixa, fria como gelo.

— Aceito isso — murmurou Havilland. — Mas, como mencionei antes, havia circunstâncias atenuantes, especificamente duas. A crise e você.

— Como assim? — perguntou Marie.

— Quero perguntar uma coisa, Sr. Webb... Sra. Webb. Se nós os procurássemos e apresentássemos toda a situação de forma objetiva e clara, teriam nos ajudado? Voltaria a ser Jason Bourne de bom grado, Sr. Webb?

Silêncio. Todos os olhos fixavam-se em David, enquanto

os dele se desviavam vazios pela superfície da mesa, iam parar na pasta de arquivo.

— Não — respondeu ele suavemente. — Não confio em vocês.

— Sabíamos disso —concordou Havilland, tornando a acenar com a cabeça. — Mas do nosso ponto de vista precisávamos recrutá-lo de qualquer maneira. Era capaz de fazer o que ninguém mais conseguiria... e como fez, presumo que esse julgamento era correto. O custo foi terrível, ninguém o subestima, mas estávamos convencidos... eu estava... de que não havia alternativa. O tempo e as conseqüências estavam contra nós... estão contra nós.

— Tanto quanto antes — disse Webb. — O comando está morto.

— O comando? — repetiu Havilland, inclinando-se para a frente.

— Seu assassino. O impostor. O que fez com todos nós foi a troco de nada.

— Não necessariamente — objetou Havilland. — Dependerá do que pode nos contar. As notícias sobre uma morte aqui sairão nos jornais de amanhã, não podemos impedir. Mas Sheng não precisa saber a morte de quem. Não foram tiradas fotografias, a imprensa não estava presente na ocasião, a polícia manteve os repórteres que chegaram depois à distância de várias centenas de metros. Podemos controlar as informações pelo simples expediente de fornecê-las.

— E o que fariam com o corpo? — perguntou Panov. — Há rotinas médicas...

— O MI-Seis cuida disso — respondeu o embaixador. — Isto ainda é território britânico, e as comunicações entre Londres, Washington e a Casa do Governo são rápidas. O rosto do impostor estava desfigurado demais para que quem quer que o tenha visto possa dar uma descrição acurada. O corpo está sob custódia, além dos olhares curiosos. Foi idéia de Edward, e ele agiu depressa.

— Ainda há David e Marie — insistiu o psiquiatra. — Muitas pessoas os viram e ouviram.

— Apenas os pelotões de fuzileiros estiveram suficientemente perto para ver e ouvir — disse McAllister. — Todo o contingente voará de volta ao Havaí dentro de uma hora, inclusive dois mortos e sete feridos. Deixaram o local e estão isolados no aeroporto. Houve muita confusão e pânico. A polícia e os bombeiros estavam ocupados em outros lugares. Não havia ninguém no jardim. Podemos dizer o que quisermos.

— O que parece estar se tomando um hábito entre vocês — comentou Webb.

— Ouviu o embaixador — murmurou o subsecretário, evitando o olhar de David. — Não tínhamos alternativa.

— Seja justo consigo mesmo, Edward. — Havilland outra vez olhava para David, enquanto falava com o subsecretário. — Eu achava que não havia alternativa. Você protestou vigorosamente.

— Eu estava enganado — respondeu McAllister firmemente, fazendo com que os olhos do embaixador se virassem bruscamente para o seu rosto. — Mas isso é irrelevante. Precisamos decidir agora o que vamos dizer. O consulado está sendo assediado pela imprensa...

— O consulado? — interveio Conklin. — Mas que casa segura vocês arrumaram!

— Não havia tempo para alugar um lugar indiretamente — explicou o embaixador. — Tudo foi mantido na maior discrição possível e preparamos uma história plausível. Até agora, pelo que sabemos, não houve perguntas, mas o relatório da polícia teve de indicar o proprietário e o locatário. Como Garden Road vai cuidar do problema, Edward?

— A situação não foi esclarecida. Esperam por nós, mas não podem protelar por muito mais tempo. É melhor prepararmos alguma explicação do que deixarmos as circunstâncias apenas sob especulações.

— Infinitamente melhor — concordou Havilland, — Desconfio que isso significa que você tem alguma idéia.

— É improvisada, mas pode servir, se ouvi corretamente o Sr. Web

— Sobre o quê?

— Usou a palavra “comando” e presumo que não foi apenas um artifício de retórica, O assassino era um comando?

— Um ex-comando Um oficial e problema mental. Um homicida, para ser mais preciso.

— Descobriu sua identidade?

David fitou firmemente o analista, recordando as palavras de Allcott-Price, com um senso extremado de triunfo doentio... Se eu perder e a história for divulgada, quantos anti-sociais praticantes poderão se sentir animados pelos fatos? Quantos outros homens “diferentes” existem por aí e ficariam felizes em tomar o meu lugar, como eu tomei o seu? Este mundo nojento está fervilhando de Jason Bournes. Dê a eles uma orientação, uma idéia, e todos vão se apresentar, entrar em ação...

— Jamais descobri quem ele era — respondeu Webb.

— Mas, apesar disso, sabia que ele era um comando.

— Sim.

— Não um Ranger, um Boina Verde ou um homem das Forças Especiais...

— Não.

— Sendo assim, presumo que está querendo dizer que ele era britânico.

— Exatamente.

— Nesse caso, vamos apresentar uma história que nega implicitamente esses detalhes específicos. Não é um inglês, não tem antecedentes militares... tudo na direção oposta.

— Americano e branco — murmurou Conklin, com evidente respeito, olhando para o subsecretário de Estado. — Basta lhe dar um nome e uma história de um arquivo morto. De preferência alguém da pior escória, um psicopata numa crise tão violenta que queria pegar alguém aqui em cima.

— Mais ou menos isso, mas talvez não inteiramente. — McAllister mudou de posição na cadeira, contrafeito, como se não gostasse de discordar do experiente homem da CIA. Ou por algum outro motivo. — Americano e branco, sim. Também um homem com uma compulsão tão obsessiva que foi levado a uma carnificina, sua fúria dirigida contra um alvo... como vocês dizem... aqui.

— Quem? — perguntou David.

— Eu — respondeu McAllister, os olhos fixados nos de Webb.

— O que significa eu — disse David. — Sou esse homem, esse obcecado.

— Seu nome não seria usado —continuou o subsecretário,

calmamente, com frieza. — Podemos inventar um expatriado americano que há vários anos foi caçado pelas autoridades em todo o Extremo Oriente por crimes que variavam de assassinatos múltiplos a contrabando de narcóticos. Diremos que cooperei com a polícia em Hong Kong, Macau, Cingapura, Japão, Malásia, Sumatra e Filipinas. Graças a meus esforços, suas operações foram efetivamente obstruídas e ele perdeu milhões. Descobriu que eu voltara e estava aqui, em Victoria Peak. E veio à minha procura, o homem que o arruinara.

McAllister fez uma pausa, virando-se para David.

— Como passei alguns anos em Hong Kong, não posso imaginar que Pequim me ignore. Tenho certeza de que existe um dossiê extenso sobre um analista que adquiriu diversos inimigos durante sua permanência aqui. E fiz mesmo inimigos, Sr. Webb. Era meu trabalho. Estávamos tentando aumentar nossa influência nesta parte do mundo. Sempre que havia americanos envolvidos em atividades criminosas, eu fazia o melhor possível para ajudar as autoridades a capturá-los ou pelo menos forçá-los a deixar a Ásia. Era a melhor maneira de demonstrar nossas boas intenções, caçando os nossos próprios cidadãos. E foi também o motivo pelo qual o Departamento de Estado me chamou para Washington. Usando o meu nome, oferecemos alguma autenticidade a Sheng Chou Yang. É que nos conhecemos. Ele vai especular sobre uma dúzia de possibilidades... só espero que nenhuma sequer remotamente relacionada com um comando britânico. Apenas a especulação certa.

Conklin interveio, suavemente:

— A especulação certa sendo a de que ninguém por aqui ouviu falar do primeiro Jason Bourne há mais de dois anos.

— Exatamente.

— Então eu sou o cadáver que está sob custódia, além dos olhares curiosos — murmurou Webb.

— Pode ser — confirmou McAllister, — Afinal, não temos a menor idéia do que Sheng sabe até que ponto foi sua infiltração. A única coisa que queremos estabelecer é que o homem morto não era o seu assassino.

— Deixando o caminho aberto para outro impostor se apresentar e liquidar Sheng — acrescentou Conklin, respeitosamente. — É um analista e tanto. Um filho da puta, mas um tremendo analista.

— Está se expondo muito, Edward — disse Havilland, olhando para o subsecretário. — Nunca lhe pedi isso. Você tem mesmo inimigos.

— Quero que seja assim, Sr. Embaixador. Sou empregado para oferecer os melhores julgamentos de que sou capaz, e na minha opinião esse é o curso mais produtivo. Tem de haver uma cortina de fumaça convincente. Meu nome pode proporcioná-la... para Sheng. O resto pode ser vazado numa linguagem ambígua, que será compreendida por todos os que queremos atingir.

— Que assim seja — disse Webb, fechando os olhos subitamente, ouvindo as palavras que Jason Bourne pronunciara com tanta freqüência.

— David...

Marie pôs a mão em seu rosto.

— Desculpe.

Webb pegou a pasta de arquivo à sua frente e abriu-a. Na primeira página havia uma fotografia, com um nome impresso por baixo. Estava identificada como o rosto de Sheng Chou Yang, mas era muito mais do que isso. Era o rosto! Era o rosto do carniceiro! O homem que retalhava homens e mulheres com sua espada cerimonial cravejada de pedras preciosas, que forçava homens a lutarem com facas afiadas como navalhas, até que um matava o outro, que acabava com a vida de um bravo e torturado Eco com um golpe na cabeça. Bourne parou de respirar, enfurecido pela crueldade inconcebível, enquanto imagens sangrentas afloravam-lhe à mente. Olhando para a fotografia, a visão de Eco sacrificando a própria vida para salvar Delta levou-o de volta à clareira na floresta. Delta sabia que fora a morte de Eco que tornara possível a captura do assassino. Eco morrera em desafio, aceitando a execução insuportavelmente dolorosa para que um companheiro da Medusa não apenas pudesse escapar, mas também para que obedecesse ao gesto final de que o louco com a espada devia ser morto.

— Este é o filho de seu taipan desconhecido? — murmurou Jason Bourne.

— É, sim — respondeu Havilland.

— O reverenciado príncipe dos filósofos? O santo chinês que ninguém pode denunciar?

— Exatamente.

— Pois você estava enganado. Ele se mostrou. Oh, Deus, e como se mostrou!

Aturdido, o embaixador inclinou-se para a frente.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— As circunstâncias devem ter sido extraordinárias — comentou McAllister, também atônito. — E certamente confirma que o impostor nunca teria escapado vivo de lá. Ainda assim, as circunstâncias deviam ser excepcionais para ele.

— Levando-se em consideração que ninguém fora da China jamais teve conhecimento, foram, sim, O túmulo de Mao transformou-se numa galeria de tiro ao alvo. Era parte de uma armadilha e eles perderam. Eco perdeu.

— Quem? — perguntou Marie, ainda segurando a mão de David.

— Um amigo.

— O túmulo de Mao? — repetiu Havilland. — Isso é extraordinário

— Não é, não — disse Bourne. — Uma idéia brilhante. O último lugar na China em que um alvo esperaria um ataque. Ele entra pensando que é o caçador, atrás de sua presa, esperando pegá-la lá fora, no outro lado. A claridade é mínima, ele está com a guarda relaxada. E de repente descobre que ele é a presa, caçado, isolado, pronto para ser liquidado. Muito inteligente

— E muito perigoso para os caçadores — comentou o embaixador. — Para os homens de Sheng. Um passo em falso e eles poderiam ser capturados. Um absurdo!

— Não havia possibilidade de qualquer passo em falso. Eles teriam matado os seus, se eu não o fizesse antes. Compreendo isso agora. Quando tudo perdeu o fio, eles simplesmente desapareceram. Levando Eco.

— Vamos voltar a Sheng, por favor, Sr. Webb. — Era evidente que Havilland estava obcecado, com uma expressão suplicante. — Conte-nos o que viu, tudo o que sabe.

— Ele é um monstro — respondeu Jason, suavemente, os

olhos vidrados, olhando fixamente para a fotografia. — Vem do inferno, um Savonarola que tortura e mata... homens, mulheres, crianças... com um sorriso. Faz sermões como um profeta falando a crianças, mas por baixo é um maníaco que domina a sua quadrilha de desajustados pelo terror. As tropas de choque que mencionou não são formadas por soldados, mas carniceiros sádicos que aprenderam seu ofício com um mestre. Ele é Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen, tudo junto. Deus nos guarde se ele controlar alguma coisa por aqui.

— O que pode acontecer, Sr. Webb — disse Havilland, os olhos assustados em Jason Bourne. — E vai acontecer. Acaba de descrever um Sheng Chou Yang que o mundo nunca viu... e neste momento ele é o homem mais poderoso da China. Assim como Adolf Hitler marchou vitorioso para o Reichstag, Sheng vai marchar para o Comitê Central, transformando-o num fantoche. O que nos disse é mais catastrófico do que qualquer coisa que imaginávamos... China contra China... e o que vai se seguir será o Armagedon. Oh, meu Deus!

— Ele é um animal — sussurrou Jason, a voz rouca. — Tem de matar como um predador, mas sua única fome é por matar... não pelo alimento, mas pelo puro e simples prazer de matar.

— Está falando em generalidades. — A interrupção de McAllister foi fria, mas veemente. — Precisamos saber mais... eu preciso saber mais!

— Ele convocou uma reunião. — Bourne falava como se estivesse num sonho, a cabeça flutuando, os olhos outra vez fixados na fotografia. — Era o começo... das noites da grande lâmina, como ele disse. E declarou que havia um traidor. A reunião foi algo que somente um louco poderia criar, tochas por toda parte, no meio de uma floresta, a cerca de uma hora de Pequim, um santuário de pássaros... podem acreditar numa coisa assim? Um santuário de pássaros! E ele fez realmente o que eu disse. Matou um homem suspenso por cordas, retalhando com a espada seu corpo a gritar e estrebuchar. Depois, quando uma mulher tentava alegar sua inocência, ele cortou-lhe a cabeça... a cabeça! Na frente de todo mundo! E depois dois irmãos...

— Um traidor? — murmurou McAllister, sempre o analista. — Ele descobriu? Alguém confessou? Há alguma espécie de contra-rebelião?

— Pare com isso! — gritou Marie.

— Não, Sra. Webb! Ele está voltando. Está revivendo. Olhe para ele. Não percebe? Ele está lá!

— Acho que nosso irritante colega tem razão, Marie — interveio Panov, a voz suave, observando Webb. — Ele está entrando e saindo, tentando encontrar a sua realidade. Não tem problema. Deixe-o ir. Pode nos poupar muito tempo.

— Merda!

— Como sempre um comentário acurado, minha cara, e como sempre discutível. E agora fique calada.

— ... Não havia nenhum traidor, ninguém que tivesse falado, apenas a mulher com dúvidas. Ele a matou e houve silêncio, um silêncio terrível. Ele estava advertindo a todos, dizendo a todos que eles, a verdadeira China, estavam por toda parte e ao mesmo tempo eram invisíveis. Nos ministérios, na polícia de segurança, em toda parte... E depois ele matou Eco... mas Eco sabia que tinha de morrer. Queria morrer depressa, porque de qualquer forma não poderia viver por muito mais tempo. Depois que o torturaram, ele se encontrava num estado lamentável. Ainda assim, se podia me proporcionar algum tempo...

— Quem é Eco, David? — perguntou Morris Panov. — Diga-nos, por favor.

— Alfa, Bravo, Charlie, Delta, Eco... Foxtrote...

— Medusa — murmurou o psiquiatra. — Medusa, não é mesmo? Eco estava em Medusa.

— Ele estava em Paris, O Louvre. Tentou salvar minha vida, mas eu é que salvei a sua. Não tinha problema, estava certo. Ele salvara a minha antes, há muitos anos. “O descanso é uma arma”, ele disse. Pôs os outros ao meu redor e me obrigou a dormir. E depois saímos da selva.

— “O descanso é uma arma”... — repetiu Marie, num sussurro, os olhos fechados, apertando a mão do marido, as lágrimas escorrendo pelas faces. — Oh, Deus!

— ... Eco me viu na floresta. Usamos os sinais que costumávamos usar há anos. Ele não tinha esquecido. Nenhum de nós jamais esquecera.

— Estamos no campo, no santuário dos pássaros, David?

— indagou Panov, segurando o ombro de McAllister para impedi-lo de se intrometer.

— Isso mesmo — respondeu Jason Bourne, os olhos agora flutuando, desfocados. — Ambos sabemos. Ele vai morrer. Muito simples, muito claro. Morrer. Morte. Nada mais. Apenas ganhar tempo, minutos preciosos. Talvez então eu consiga.

— Consiga o que... Delta?

Panov pronunciou o nome com uma ênfase suave.

— Acabar com o filho da puta. Liquidar o carniceiro. Ele não merece viver, não tem o direito de viver! Mata com muita facilidade... com um sorriso. Eco viu. Eu vi. Agora está acontecendo... tudo está acontecendo ao mesmo tempo. As explosões na floresta, todo mundo correndo, gritando. Posso fazer agora! E um extermínio simples... Ele me vê! Está olhando para mim! Sabe que sou seu inimigo! Eu sou seu inimigo, carniceiro! Sou a última cara que você vai ver!... O que está errado? Alguma coisa está errada! Ele está se protegendo! Está puxando alguém para a sua frente! Tenho de escapar! Não posso fazer!

— Não pode ou não vai fazer? — indagou Panov, inclinando-se para a frente. — Você é Jason Bourne ou David Webb? Quem é você?

— Delta! — gritou a vítima, surpreendendo a todos em torno da mesa por sua explosão. — Eu sou Delta! Eu sou Bourne! Caim é por Delta e Carlos é por Caim!

A vítima, quem quer que fosse, arriou na cadeira, a cabeça caída para o peito. E ficou em silêncio. Ninguém disse nada.

Vários minutos transcorreram — ninguém sabia quantos, ninguém contou — até que o homem que era incapaz de definir uma identidade para si mesmo levantou a cabeça. Os olhos estavam agora meio livres, meio prisioneiros da agonia que experimentava.

— Desculpem — murmurou David Webb. — Não sei o aconteceu. Desculpem.

— Não precisa se desculpar, David —disse Panov — Você voltou. É compreensível. Está tudo bem.

— Isso mesmo, eu voltei. Uma coisa de maluco, não é?

— Absolutamente — protestou o psiquiatra. — É perfeitamente natural.

— Tenho de voltar... o que também é compreensível, não é mesmo, Mo?

— David! — gritou Marie, inclinando-se para ele.

— Tenho de voltar — repetiu Jason Bourne, gentilmente, segurando seus pulsos. — Ninguém mais pode fazê-lo, é simples assim. Conheço os códigos. Conheço o caminho... Eco deu sua vida pela minha, acreditando que eu o faria, que mataria o carniceiro. Fracassei na ocasião. Não falharei agora.

— E nós? — Marie agarrou-o, sua voz reverberando pelas paredes brancas. — Nós não temos importância?

— Prometo que voltarei — murmurou David, afastando seus braços e fitando-a nos olhos. — Mas tenho de ir até lá. Será que não pode compreender?

— Por estas pessoas? Estes mentirosos?

— Não, não por eles. Por alguém que queria viver... acima de tudo. Você não o conheceu; ele era um sobrevivente. Mas soube quando sua vida não valia o preço da minha morte. Eu tinha de viver e fazer o que era necessário. Eu tinha de viver e voltar para você, ele sabia disso também. Enfrentou a equação e tomou sua decisão. Em algum momento, ao longo do caminho, todos nós temos de tomar essa decisão. — Bourne virou-se para McAllister e indagou: — Há alguém por aqui que possa tirar a fotografia de um cadáver?

— Cadáver de quem? — perguntou o subsecretário de Estado

— Meu — respondeu Jason Bourne.

 

A fotografia macabra foi batida na mesa de reunião branca por um técnico da casa segura, sob a relutante supervisão de Morris Panov. Um lençol branco ensangüentado cobria o corpo de Webb; estava dobrado na garganta, deixando à mostra um rosto manchado de sangue, os olhos arregalados, as feições nítidas.

— Revele o filme o mais depressa que puder e traga-me os contatos — ordenou Conklin.

— Vinte minutos — respondeu o técnico, encaminhando-se para a porta, no momento em que McAllister entrava na sala.

— O que está acontecendo? — perguntou David, sentando na mesa.

Marie, estremecendo, limpou o rosto do marido com uma toalha quente úmida.

— O pessoal de imprensa do consulado entrou em contato com os meios de comunicação — respondeu o subsecretário. — Disseram que haveria uma declaração oficial dentro de uma hora, assim que todos os fatos estiverem definidos. Estão preparando tudo agora. Dei o roteiro, com a autorização para usar meu nome. Vão conferenciar com a embaixada e depois ler o texto para nós, antes de o distribuírem à imprensa.

— Alguma notícia de Lin? —perguntou o homem da CIA.

— Um recado do médico. Ele ainda se encontra em estado crítico, mas está resistindo.

— O que vamos fazer com o pessoal da imprensa lá fora? — indagou Havilland. — Teremos de deixá-los entrar, mais cedo ou mais tarde. Quanto mais esperamos, mais eles pensarão que estamos encobrindo os fatos. Também não podemos permitir que isso aconteça.

— Ainda temos alguma margem nessa área — informou McAllister. — Mandei avisar que a polícia... com grande risco pessoal... estava efetuando uma varredura no terreno à procura de explosivos não-detonados. Os repórteres podem se mostrar muito pacientes nessas circunstâncias. De passagem, no roteiro que dei ao nosso pessoal de imprensa, pedi que ressaltassem o fato de que o homem que atacou a casa era obviamente um perito em demolições.

Jason Bourne, um dos mais eficientes peritos em demolições da Medusa, olhou para McAllister. O subsecretário desviou os olhos.

— Tenho de sair daqui — disse Jason. — Tenho de ir para Macau o mais depressa possível.

— David, pelo amor de Deus!

Marie postou-se na frente do marido, fitando-o nos olhos, a voz baixa, mas veemente.

— Eu gostaria que não fosse assim — disse Webb, saindo da mesa. — Eu gostaria que não fosse, mas não há outro jeito. Preciso estar no lugar. Preciso iniciar a seqüência para fazer contato com Sheng antes de a história sair nos jornais da manhã, antes de aparecer a fotografia, confirmando a mensagem que vou enviar através de canais que ele está convencido de que ninguém mais conhece. Ele tem de acreditar que sou seu assassino, o homem que ele vai matar, e não o Jason Bourne da Medusa, que tentou matá-lo na floresta. Ele tem de receber uma notícia minha.., de quem ele pensa que eu sou... antes de receber qualquer outra informação. Porque a informação que vou lhe mandar é a última coisa que ele quer ouvir. Tudo o mais vai parecer insignificante.

— A isca — disse Alex Conklin. — Despache a informação crítica primeiro e a cobertura se ajusta no lugar, porque ele está aturdido, preocupado, aceita a versão oficial impressa, em particular a fotografia nos jornais.

— O que vai dizer a ele? — perguntou o embaixador, a voz deixando transparecer o fato de que detestava perder o controle da mais secreta de suas operações.

— O que você me disse. Parte verdade, parte mentira.

— Explique, Sr. Webb — pediu Havilland, firmemente. — Nós lhe devemos muito, mas...

— Vocês me devem o que não podem pagar! — interrompeu-o Jason Bourne, bruscamente. — A menos que estoure seus miolos bem aqui, na minha frente!

— Compreendo a sua ira, mas ainda assim devo insistir. Não fará coisa alguma que ponha em risco as vidas de cinco milhões de pessoas ou os interesses vitais do governo dos Estados Unidos.

— Fico contente que tenha apresentado a seqüência certa... pelo menos por uma vez. Muito bem, Sr. Embaixador, eu lhe direi. É o que teria falado antes, se tivesse a decência... a decência... de me procurar e apresentar seus argumentos com honestidade. Estou surpreso de que isso nunca tenha lhe ocorrido.., não, não surpreso, chocado... mas acho que não deveria ficar. Acredita em suas manipulações refinadas, nos ornamentos de seu poder discreto... provavelmente pensa que merece tudo, por causa de sua grande inteligência ou algo parecido. Vocês todos são iguais. Saboreiam a complexidade... e suas explicações para ela... e por isso não conseguem perceber quando o caminho simples é muito mais eficaz.

— Estou esperando para ser devidamente informado — disse Havilland, friamente.

— Que assim seja — respondeu Bourne. — Escutei com toda atenção a sua laboriosa explicação. Esmerou-se em explicar por que ninguém podia abordar Sheng oficialmente e dizer o que sabe. Estava certo. Ele riria em sua cara, cuspiria em seu olho ou o mandaria à merda... o que preferir. Pode estar certo de que Sheng faria isso. Tem força suficiente para tanto. Se insistisse nas acusações “insultuosas”, ele tiraria Pequim dos Acordos de Hong Kong. Você perde. Tente passar por cima de sua cabeça e boa sorte. Perde também. Não tem provas, a não ser as palavras de mortos, homens que tiveram suas gargantas cortadas, membros do Kuomintang que diriam qualquer coisa para desacreditar as autoridades do partido na República Popular. Ele sorri e, sem dizê-lo expressamente, dá a entender que é melhor aceitá-lo. Você calcula que não pode concordar, porque os riscos são grandes demais... se a bomba explodir em cima de Sheng, o Extremo Oriente pega fogo. Estava certo nisso também... mais pelos motivos que “Edward” nos apresentou. Pequim pode ignorar uma comissão corrupta, como uma dessas concessões temporárias à ganância, mas não permitiria que uma Máfia chinesa se infiltrasse em sua indústria, força de trabalho ou governo. Como “Edward” disse, eles podem perder seus cargos...

— Ainda estou esperando, Sr. Webb.

— Muito bem. Você me recrutou, mas esqueceu a lição de Casa de Pedra Setenta-e-Um. Mande um assassino para pegar um assassino.

— Eis uma coisa que não esquecemos — interveio o embaixador, agora aturdido. — Baseamos tudo nisso.

— Pelos motivos errados — disse Bourne, asperamente. — Havia uma maneira melhor de alcançar Sheng e atraí-lo para a morte. Eu não era necessário. Minha esposa não era necessária. Mas você não podia perceber isso. Seu cérebro superior tinha de complicar tudo.

— O que eu não pude perceber, Sr. Webb?

— Que podia mandar um conspirador para pegar um conspirador. Extra-oficialmente... E tarde demais para isso agora, mas era o que eu teria lhe dito.

— Não tenho certeza se me diria alguma coisa.

— Parte verdade, parte mentira... a sua estratégia. Um mensageiro é enviado a Sheng, de preferência um velho meio senil, que foi pago por um intermediário cego e recebeu as instruções pelo telefone. Sem qualquer possibilidade de se descobrir a fonte. Leva uma mensagem verbal, somente para os ouvidos, somente para Sheng, nada no papel. A mensagem contém o suficiente de verdade para paralisar Sheng. Digamos que o remetente é alguém de Hong Kong que poderia perder milhões se o plano de Sheng fracassar, um homem bastante esperto e assustado para não usar seu nome. A mensagem pode aludir a vazamentos, traidores nas salas de reuniões ou tríades excluídas se reunindo porque foram cortadas do esquema... todas as coisas que têm certeza que aconteceriam. A verdade. Sheng tem de aceitar, não pode deixar de fazê-lo. Os contatos são feitos e um encontro marcado. O conspirador de Hong Kong está tão ansioso em se proteger quanto Sheng, igualmente desconfiado, exigindo um ponto de encontro neutro. Acerta-se tudo. É a armadilha.

Bourne fez uma pausa, olhando para McAllister, antes de acrescentar:

— Até mesmo um perito em demolições de terceira classe poderia mostrar como se faz.

— Muito rápido e muito profissional — comentou o embaixador. — E com uma falha gritante. Onde encontramos um conspirador assim em Hong Kong?

Jason Bourne contemplou o estadista mais velho, sua expressão beirando o desprezo.

— Vocês o inventam —respondeu ele. — Esta é a mentira.

Havilland e Alex Conklin estavam a sós na sala de paredes brancas, nas extremidades da mesa de reuniões, fitando-se. McAllister e Morris Panov haviam ido ao gabinete do subsecretário, a fim de escutarem em telefones separados o perfil inventado de um assassino americano, criado pelo consulado para oferecer à imprensa. Panov concordara em fornecer a terminologia psiquiátrica apropriada, com os tons corretos de Washington. David Webb pedira para ficar a sós com a esposa até chegar o momento da partida. Estavam lá em cima, e o fato de se encontrarem num quarto não ocorrera a ninguém. Era apenas uma porta para um cômodo vazio, no lado sul da velha mansão vitoriana, longe dos homens encharcados e das ruínas no lado norte. McAllister calculara que a partida de Webb ocorreria dentro de quinze minutos, aproximadamente. Um carro levaria Jason Bourne e o subsecretário de Estado ao Aeroporto de Kai-tak. Para maior rapidez e porque os aerobarcos paravam de funcionar à nove horas da noite, um helicóptero médico os levaria a Macau, onde todas as rotinas burocráticas de entrada seriam suspensas para possibilitar a entrega de suprimentos de emergência ao Hospital Kiang Wu, na Rua Coelho do Amaral.

— Não teria dado certo, e você sabe disso — comentou Havilland, olhando para Conklin.

— O que não daria certo? —indagou o homem de Langley, seus pensamentos interrompidos pela declaração do embaixador. — O que David lhe disse?

— Sheng jamais concordaria em se encontrar com alguém que não conhecia, com alguém que não se identificou.

— Dependeria da maneira como a situação fosse apresentada. Esse tipo de coisa está sempre acontecendo. Se a informação crítica é espetacular e o fatos autênticos, o alvo não tem muita opção. Não pode interrogar o mensageiro... que não sabe de nada... e por isso tem de sair à procura da fonte. Como Webb ressaltou, ele não pode deixar de fazê-lo.

— Webb? — repetiu o embaixador, a voz incisiva, arqueando as sobrancelhas.

— Bourne, Delta. Quem pode saber? A estratégia é boa.

— Há muitas possibilidades de erros de cálculos, muitas chances para um passo em falso, quando se inventa um personagem mítico.

— Diga isso a Jason Bourne.

— Circunstâncias diferentes. Casa de Pedra tinha um agente provocador disposto a sair à procura do Chacal. Um homem obcecado, que escolhia riscos extremos porque estava treinado para isso e vivera com a violência por tempo demais para mudar. E não queria mudar. Não havia qualquer outro lugar para ele.

— A questão é acadêmica, mas não creio que você esteja em condições de argumentar com ele — disse Conklin. — Despachou-o com todas as chances contrárias e ele volta com o assassino a reboque... e encontra você. Se ele dissesse que poderia ser feito de outra maneira, provavelmente estaria certo e você não poderia contestar.

— Mas posso dizer que deu certo o que fizemos — respondeu Havilland, repousando os antebraços na mesa e fitando nos olhos o homem da CIA. — Perdemos o assassino, mas ganhamos um provocateur disposto, até mesmo obcecado. Desde o início ele era a escolha ideal, mas nunca pensamos, por um minuto sequer, que pudesse ser recrutado para realizar voluntariamente o trabalho final. Agora, não permitirá que qualquer outro o faça. Vai voltar, reivindicando o seu direito de cumprir a missão. Portanto, no final das contas, nós estávamos certos... eu estava certo. A partir do momento em que se põe as forças em movimento, num curso de colisão, sempre vigilante, pronto para abortar, para matar, se necessário, mas sabendo que à medida que as complicações aumentam e eles se encontram mais próximos de cortar a garganta um do outro, mais iminente é a solução. Em última análise... com seus  ódios, suspeitas e paixões, eles criam sua própria violência e o trabalho é realizado. Você pode perder sua própria gente, mas tem de avaliar essa perda em relação ao que vale romper o inimigo, desmascará-lo.

— Também se arrisca a desmascarar sua própria mão... a mão que insistia em manter escondida.

— Como assim?

— Porque ainda não é o fim. Vamos supor que Webb não consiga fazer. Vamos supor que ele seja apanhado... e pode apostar seu rabo elegante que a ordem será para capturá-lo vivo. Quando um homem como Sheng descobre uma armadilha para matá-lo, vai querer saber quem está por trás. Se arrancar uma unha ou dez não resolve o problema... e provavelmente não vai... eles vão enchê-lo de agentes químicos e descobrir de onde ele vem. E Webb ouviu tudo o que você disse...

— Até mesmo a advertência de que o governo dos Estados Unidos não pode ser envolvido — interrompeu o embaixador.

— Isso mesmo. Ele não poderá se controlar. Os agentes químicos vão lhe arrancar todas as informações. Sua mão será revelada. E Washington estará envolvida.

— Por quem?

— Por Webb, pelo amor de Deus! Por Jason Bourne, se preferir assim!

— Por um homem com uma história de doença mental, com uma ficha de agressão indiscriminada e auto-ilusão? Um esquizofrênico paranóico, cujos telefonemas registrados mostram um homem se desintegrando na demência, formulando acusações absurdas, ameaças desvairadas aos que tentavam ajudá-lo? — Havilland fez uma pausa e depois acrescentou, a voz mais suave: — Ora, Sr. Conklin, um homem assim não fala pelo governo dos Estados Unidos. Como poderia? Nós o temos procurado por toda parte. É uma bomba-relógio irracional e fantasiosa, que descobre conspirações sempre que é envolvido por sua mente doentia e torturada. Nós o queremos de volta na terapia. Também desconfiamos que ele, por causa de suas atividades passadas, deixou o país com um passaporte ilegal...

— Terapia...? — interrompeu Alex, atordoado com as palavras do velho. — Atividades passadas?

— Isso mesmo, Sr. Conklin. Se for necessário, especialmente por uma linha quente... e Sheng é uma linha quente... estamos dispostos a admitir que ele trabalhou outrora para o governo e foi gravemente afetado por esse trabalho. Mas não há a menor possibilidade de que pudesse ter uma posição oficial. Repetindo, como ele poderia? Esse homem trágico e violento pode ter sido responsável pela morte de uma esposa, que ele alega ter desaparecido.

— Marie? Vocês usariam Marie?

— Teríamos de usar. Ela está nos registros, nos depoimentos oficiais de homens que conheceram Webb como um paciente mental, que tentaram ajudá-lo.

— Essa não! — murmurou Alex, hipnotizado pelo frio e preciso estadista das operações secretas. — Disse tudo a ele porque tinha os seus pontos de apoio. Mesmo que ele fosse capturado, poderia se defender com os registros oficiais, avaliação psiquiátrica... poderia se dissociar por completo! Mas que filho da puta!

— Eu disse a verdade porque ele saberia se tentasse mentir de novo. McAllister, é claro, foi mais longe, enfatizando o fator do crime organizado, que é verdadeiro, mas também uma questão delicada, que eu preferia não abordar. Ninguém está interessado nisso. Mas também, diga-se de passagem, não contei tudo a Edward. Ele ainda não colocou uma distância suficiente entre sua ética e as exigências do trabalho. Quando isso acontecer, ele pode se juntar a mim nas alturas... mas não creio que seja capaz.

— Contou tudo a David para o caso de ele ser capturado — continuou Conklin, sem escutar as palavras de Havilland. — Se a execução não ocorrer, você quer que ele seja capturado. Está contando com as anfetaminas e a escopolamina. As drogas! Sheng receberá então a mensagem de que estamos a par de sua conspiração, extra-oficialmente... não de nós, mas de um caso mental não-sancionado! Oh, Deus! É uma variação do que Webb lhe disse!

— Extra-oficialmente — concordou o embaixador. — Muita coisa se realiza assim. Sem confrontações, tudo suavemente. E muito barato. Um custo mínimo.

— Que é a vida de um homem! — gritou Alex. — Ele será morto! Tem de ser morto, do ponto de vista de todos!

— O preço, Sr. Conklin, se for preciso pagá-lo.

Alex esperou, como se aguardasse que Havilland concluísse a declaração. Mas nada mais viria, a não ser os olhos fortes e tristes fixos nos seus.

— Isso é tudo o que tem a dizer? É o preço... se for preciso pagá-lo?

— As apostas são mais altas do que imaginávamos... muito mais altas. Sabe disso tão bem quanto eu; portanto, não faça essa cara de espanto. — O embaixador recostou-se na cadeira, um tanto rígido. — Você já tomou decisões assim antes, já fez esses cálculos.

— Não assim. Nunca assim. Manda um dos seus e conhece os riscos, mas não manda um agente e fecha todos os seus caminhos para escapar. Ele estava melhor quando acreditava que trazia o assassino para ter a esposa de volta.

— O objetivo é diferente. Infinitamente mais vital.

— Sei disso. Nesse caso, não o mande! Tem os códigos e pode mandar outro! Alguém que não esteja meio morto de exaustão!

— Exausto ou não, ele é o melhor homem para a missão e insiste em realizá-la.

— Porque não sabe o que você fez! Como o acuou, convertendo-o no mensageiro que tem de ser morto!

— Eu não tinha opção. Como você disse, ele me descobriu. E eu tinha de contar a verdade.

— Pois então, repito, mande outro! Uma equipe de execução, recrutada lá fora por um intermediário cego, sem qualquer ligação conosco, apenas o pagamento por um trabalho profissional, tendo Sheng como alvo. Webb sabe como fazer contato com Sheng e lhe disse isso. Eu o convencerei a fornecer os códigos, a seqüência ou o que quer que seja. Depois, você contrata uma equipe profissional.

— Quer nos pôr no mesmo nível dos Kadhafis deste mundo?

— É um comentário tão pueril que não posso encontrar palavras para...

— Esqueça — interrompeu Havilland. — Se algum dia fosse descoberto... e é bem possível que isso aconteça... teríamos de atacar a China, antes que largassem alguma coisa em cima da gente. É inadmissível.

— O que você está fazendo aqui é que é inadmissível!

— Há prioridades mais importantes do que a sobrevivência de um único indivíduo, Sr. Conklin... e sabe disso tão bem quanto eu. Tem sido o trabalho de sua vida... se me perdoa dizer isso... mas o caso atual se situa num nível mais alto do que qualquer coisa que já fez antes. Digamos que é um nível geopolítico.

— Filho da putal

— Seu sentimento de culpa está aparecendo agora, Alex... se me permite chamá-lo de Alex... ao invocar minha ancestral imediata. Eu nunca dei a ordem de além-da-salvação para Jason Bourne. Minha esperança mais fervorosa é a de que ele consiga, que a execução ocorra. Se isso acontecer, ele está livre. O Extremo Oriente se livra de um monstro e o mundo será poupado de um Sarajevo oriental. Esse é o meu trabalho, Alex.

— Pelo menos diga a ele! Avise-o!

— Não posso. Assim como você também não poderia, se estivesse na minha posição. Não se diz a um tueur à gages...

— Vai começar de novo?

— Um homem enviado para matar deve ter a confiança de suas convicções. Não pode refletir, por um segundo sequer, sobre os seus motivos ou razões. Não deve ter absolutamente qualquer dúvida. A obsessão deve ficar intacta. É a única possibilidade de alcançar o sucesso.

— E se ele não conseguir? E se ele for morto?

— Então começamos de novo, o mais depressa possível, arrumando alguém para substituí-lo. McAllister estará com ele em Macau e descobrirá os códigos para fazer contato com Sheng. Bourne concordou com isso. Se o pior acontecer, podemos até experimentar a sua teoria de conspirador-para-conspirador. Ele diz que é tarde demais para isso, mas pode estar enganado.

Como vê, Alex, não sou um homem que se recusa a aprender.

— Você não se recusa a nada — murmurou Conklin, furioso, levantando-se. — Mas esqueceu uma coisa... esqueceu o que disse a David. Há uma falha gritante.

— E qual é?

— Não vou deixar que você escape impune. — Alex claudicou até a porta. — Pode pedir muita coisa a um homem, mas chega num ponto em que não dá mais. Está perdido, seu filho da puta. Webb será informado da verdade. De toda a verdade.

Conklin abriu a porta. Deparou com as costas de um fuzileiro alto, que ao ouvir o barulho da porta efetuou uma meia- volta impecável, empunhando o rifle.

— Saia da minha frente, soldado — disse Alex.

— Lamento, senhor, mas não posso — respondeu o fuzilei ro, olhando fixamente para a frente.

Conklin tornou a se virar para o embaixador, que continuava sentado atrás da mesa. Havilland deu de ombros e murmurou:

— São as ordens.

— Pensei que esses homens tinham saído daqui. Pensei que estivessem isolados no aeroporto.

— E é o que acontece com os que você viu. Temos agora um pelotão do contingente do consulado. Downing Street forçou alguns regulamentos e agora esta casa é oficialmente território dos Estados Unidos. Temos direito a uma presença militar.

— Quero falar com Webb!

— Não pode. Ele está de partida.

— Quem você pensa que é?

— Meu nome é Raymond Oliver Havilland. Sou embaixador-itinerante do governo dos Estados Unidos da América. Minhas decisões devem ser cumpridas sem discussão em períodos de crise. E este é um período de crise, Vá se foder, Alex.

Conklin fechou a porta e voltou claudicando para sua cadeira.

— O que vai acontecer em seguida, Sr. Embaixador? Nós três recebemos balas na cabeça ou somos submetidos a lobotomias?

— Temos certeza de que todos poderemos chegar a um acordo.

Os dois se abraçaram, Marie sabendo que ele estava ali apenas parcialmente que era ele próprio apenas parcialmente. Era Paris novamente, quando ela conhecia um homem desesperado chamado Jason Bourne, que estava tentando permanecer vivo, mas não tinha certeza se conseguiria ou mesmo se deveria, suas dúvidas sob alguns aspectos tão letais para ele quanto os que queriam matá-lo. Mas não era Paris. Não havia dúvidas agora, não havia táticas febrilmente improvisadas para escapar aos perseguidores, não havia corrida para acuar os caçadores. O que a lembrava de Paris era a distância que sentia entre os dois. David tentava alcançá-la — o generoso David, o compadecido David — mas Jason Bourne não permitia. Jason era agora caçador, não o caçado, o que fortalecia sua vontade. O que se resumia numa palavra que ele usava com regularidade: Ande!

— Por que, David? Por quê?

— Já lhe disse. Porque eu posso. E porque preciso. Porque deve ser feito.

— Isso não é resposta, querido.

— Está bem. — Gentilmente, Webb desvencilhou-se da esposa e segurou-a pelos ombros, fitando-a nos olhos. — Por nós, então.

— Por nós?

— Isso mesmo. Eu veria aquelas imagens pelo resto de minha vida. Não deixariam de voltar e me destruiriam, porque saberia o que deixei para trás e não poderia me controlar. Entraria em parafuso e levaria você comigo, porque não tem o bom senso de cair fora, apesar de toda a sua inteligência.

— Prefiro entrar em parafuso com você do que em você. O que significa que prefiro você vivo.

— Isso não é um argumento.

— Acho que é considerável.

— Vou provocar os atos, e não fazê-los.

— E o que significa isso?

— Significa que quero que Sheng seja eliminado. Ele não merece viver, mas não serei eu quem vai...

— O papel de Deus não se ajusta a você! — interrompeu

Marie, bruscamente. — Deixe que outros tomem essa decisão. Largue tudo. Permaneça são e salvo.

— Você não está me escutando. Estive lá e o vi... e ouvi. Ele não merece mesmo viver. Em uma de suas diatribes, ele disse que a vida era uma dádiva preciosa. É algo discutível, dependendo da vida... só que a vida nada significa para ele. Sheng quer matar... talvez tenha de matar, não sei, pergunte a Panov... está em seu olhos. Ele é Hitler, Mengele e Gêngis Khan... é o estripador... qualquer coisa... mas tem de ser liquidado. E eu preciso providenciar para que isso aconteça.

— Mas por quê? —suplicou Marie. —Ainda não me respondeu!

— Respondi sim, mas você não me ouviu. De um jeito ou de outro, eu o veria todos os dias, ouviria sua voz. Estaria contemplando Sheng a brincar com aquelas pessoas apavoradas, antes de matá-las... antes de retalhá-las. Tente compreender. Eu tentei e não sou um perito, mas aprendi algumas coisas a respeito de mim mesmo. Só um idiota não o faria. São as imagens, Marie, as cenas terríveis que insistem em voltar, abrindo portas... lembranças que não quero conhecer, mas não posso ignorar. O meio mais objetivo e simples de poder agüentar é não assumir mais nada. Não posso aumentar a coleção de surpresas horríveis. Quero melhorar... não ficar inteiramente curado, posso aceitar isso, conviver com isso... mas não posso também ter uma recaída. E não terei uma recaída. Para o bem de nós dois.

— E acha que vai se livrar dessas imagens ao arquitetar a morte de um homem?

— Tenho certeza de que ajudará. Tudo é relativo, e eu não estaria aqui se Eco não sacrificasse sua vida por mim. Nem sempre é de bom-tom dizer isso, mas tenho uma consciência, como a maioria das pessoas. Ou talvez seja um sentimento de culpa por ter sobrevivido. Mas tenho de fazê-lo, porque eu posso.

— Já se convenceu?

— Já, sim. Sou o que tem melhores condições.

— E diz que vai provocar os atos, e não fazê-los?

— Eu não poderia colocar a situação de outra maneira. Estou voltando porque quero ter uma vida longa com você.

— Qual é a minha garantia? E quem vai executar os atos?

— O prostituto que nos meteu nisso.

— Havilland?

— Não. Ele é o cafetão. McAllister é o prostituto, sempre foi. O homem que acredita na decência, que a exibe até que os poderosos lhe pedem para esquecê-la. Provavelmente ele vai chamar o cafetão. Não tem problema. Entre os dois, podem resolver o problema.

— Mas como?

— Há homens... e mulheres... que matam se o preço é bastante alto. Podem não ter os egos do mítico Jason Bourne ou do muito real Carlos, o Chacal, mas se encontram por toda parte deste sórdido mundo das sombras. Edward, o prostituto, disse-nos que fez inimigos por todo o Extremo Oriente, de Hong Kong às Filipinas, de Cingapura a Tóquio, sempre em nome de Washington, que queria influência aqui. Se você faz inimigos, sabe quem são eles, conhece os sinais que deve transmitir para alcançá-los. Prepararei a execução, mas outra pessoa terá de consumá-la, e não me importa quantos milhões isso vai lhes custar. Ficarei assistindo a distância, para ter certeza de que o carniceiro será liquidado, de que Eco será vingado, de que o Extremo Oriente se livrará de um monstro que pode mergulhá-lo numa guerra terrível... mas isso é tudo o que farei. Assistir. McAllister não sabe disso, mas vai comigo.

— Quem está falando agora? — indagou Marie. — David ou Jason?

O marido fez uma pausa, os pensamentos silenciosos bem profundos, antes de afinal dizer:

— Bourne... tem de ser Bourne até eu voltar.

— Tem certeza?

— Estou conformado. Não tenho alternativa.

Houve uma batida suave e rápida na porta do quarto.

— Sr. Webb, sou eu, McAllister. Está na hora de partir.

 

O helicóptero do Serviço Médico de Emergência atravessou ruidosamente Victoria Harbor e passou pelas ilhas exteriores, na direção de Macau. As lanchas de patrulha da República Popular haviam sido informadas pela base naval em Gongbei; não haveria disparos contra um helicóptero voando em baixa altitude, numa missão de misericórdia. Como a sorte de McAllister persistia, uma autoridade visitante de Pequim fora internada no Hospital Kiang Wu, com uma úlcera duodenal perfurada. Precisava de sangue RH negativo, de que sempre havia escassez. Deixem-nos vir, deixem-nos passar. Se em vez de uma autoridade fosse um camponês das colinas de Zhuhai, ele rece beria o sangue de um bode e teria de torcer pelo melhor.

Bourne e o subsecretário de Estado usavam os macacões brancos e os quepes do Corpo Médico Real, sem uma patente de importância indicada em suas mangas; eram apenas subordinados contrariados que tinham recebido a ordem de levar sangue para um Zhongguo ren, de um regime que se encontrava no processo de desmantelar ainda mais o Império. Tudo estava sendo feito de maneira apropriada, com toda eficiência, no novo espírito de cooperação entre a colônia e seus iminentes novos donos. Deixem-nos vir, deixem-nos passar. Tudo está a uma enorme distância e não tem a menor importância para nós. Não vamos nos beneficiar. Nunca nos beneficiamos. Não deles, não dos que estão por cima.

O estacionamento nos fundos do hospital fora esvaziado. Quatro refletores iluminavam o limiar, O piloto posicionou o aparelho na vertical e depois começou a descer para a área de pouso de concreto. A visão dos refletores e o rugido do helicóptero atraíram a atenção da multidão que se encontrava além dos portões do hospital, na Rua Coelho do Amaral. Isso era ótimo, refletiu Bourne, olhando pela porta aberta do apare lho. Esperava que mais espectadores fossem atraídos para a partida do helicóptero, dentro de cinco minutos, pois as pás continuariam a girar em baixa velocidade, os refletores ficariam acesos e o cordão de isolamento da polícia permaneceria no lugar, tudo sinais de uma atividade excepcional. A multidão era a melhor coisa que ele e McAllister podiam esperar; na confusão, não seria difícil se misturarem com os espectadores curiosos, enquanto dois outros homens em macacões brancos dos paramédicos reais tomavam seus lugares, correndo para o aparelho, os corpos inclinados, a fim de realizar a viagem de volta a Hong Kong.

Apesar de relutante, Jason não podia deixar de admirar a capacidade de McAllister de mexer em suas peças de xadrez. O analista tinha as convicções de sua conivência. Sabia que botões apertar para deslocar seus peões. Na atual crise, o peão era um médico no Hospital Kiang Wu, que vários anos antes desviara recursos médicos do FMI para sua clínica particular, na Almirante Sérgio. Como Washington era uma das patrocinadoras do Fundo Monetário Internacional e como McAllister surpreendera o médico com a mão na massa, ele tinha condições de denunciá-lo e ameaçara fazê-lo. Mas o médico conseguira prevalecer. Perguntara a McAllister como esperava substituí-lo, já que havia escassez de médicos competentes em Macau. Não seria melhor para o americano esquecer sua falta, se a clínica atendia aos indigentes? E tinha registros de seus serviços relevantes? O espírito caridoso em McAllister prevaleceu, mas não sem recordar a falta do médico... e sua dívida. Que estava sendo paga naquela noite.

— Vamos embora! — gritou Bourne, levantando-se e pegando uma das duas embalagens de sangue. — Ande!

McAllister agarrou uma barra na parede, no lado oposto, enquanto o helicóptero batia no cimento. Estava pálido, o rosto congelado numa máscara de si mesmo.

— Essas coisas são uma abominação — murmurou ele. — Por favor, espere até sentarmos.

— Já sentamos. E a programação é sua, analista. Ande!

Orientados pela polícia, eles correram através do pátio para uma porta dupla, que duas enfermeiras seguravam. Lá dentro, um médico oriental de jaleco branco, o inevitável estetoscópio pendurado de um bolso, segurou McAllister pelo braço.

— E um prazer tornar a vê-lo, senhor — disse ele, num inglês fluente, mas com forte sotaque. — Embora seja em circunstâncias curiosas...

— As suas eram, há três anos — interrompeu o analista, bruscamente, ofegante. — Para onde vamos?

— Sigam-me até o laboratório de sangue. Fica na extremidade do corredor. A enfermeira-chefe vai verificar os lacres e assinar os recibos. Depois, vão me seguir para outra sala, onde estão esperando os dois homens que vão tomar seus lugares. Entreguem-lhes os recibos, troquem de roupas, e os dois partirão.

— Quem são eles? — perguntou Bourne. — Onde foi que os arrumou?

— Internos portugueses — respondeu o médico. — Jovens médicos sem dinheiro enviados de Pedroso para completar suas residências aqui.

— Explicações? — persistiu Jason, enquanto avançavam pelo corredor.

— Nenhuma, para dizer a verdade. Apenas o que se poderia chamar de uma “troca”. Tudo perfeitamente legítimo. Dois médicos britânicos que desejam passar uma noite aqui e dois internos sobrecarregados que merecem uma noite em Hong Kong. Eles voltarão num aerobarco pela manhã. Nada saberão, de nada desconfiarão. Apenas ficarão satisfeitos porque um médico mais velho reconheceu suas necessidades.

— Encontrou o homem certo, analista.

— Ele é um ladrão.

— E você é um prostituto.

— Como?

— Nada. Vamos embora.

Depois que as embalagens de sangue foram entregues, os lacres verificados e os recibos assinados, Bourne e McAllister seguiram o médico para uma sala adjacente trancada, que continha suprimentos médicos e tinha outra porta, que dava diretamente para o corredor, também trancada. Os dois internos portugueses esperavam na frente dos armários de vidro; um era mais alto do que o outro, e ambos sorriam. Não houve apresentações, apenas acenos de cabeça e uma declaração curta do médico, dirigida ao subsecretário de Estado:

— Com base nas descrições... não que eu precisasse da sua... não acha que os tamanhos são mais ou menos certos?

— Ele servem — respondeu McAllister, enquanto começava a tirar o macacão branco, ao mesmo tempo que Jason — São um pouco grandes, mas não haverá problema se correrem depressa, mantendo as cabeças abaixadas. Diga-lhes para deixarem os macacões e os recibos com o piloto. Ele cuidará de todo o resto, assim que chegar a Hong Kong.

Bourne e o analista vestiram calças escuras e amarrotadas e blusões folgados. Entregaram aos internos os macacões e os quepes. McAllister ordenou:

— Mande-os se apressarem. A partida está marcada para menos de dois minutos.

O médico falou num português trôpego, depois virou-se para o subsecretário de Estado e acrescentou:

— O piloto não pode ir a parte alguma sem eles, senhor.

— Está tudo calculado e oficialmente previsto — disse o analista, o tom áspero, o medo agora se insinuando em sua voz. — Não há margem para alguém se tornar mais curioso do que o necessário. Tudo está previsto. Depressa!

Os internos vestiram-se; os quepes eram baixos e encobriam parcialmente os rostos, os recibos do sangue estavam nos bolsos. O médico deu as instruções aos dois americanos, enquanto lhes entregava passes cor de laranja do hospital.

— Vamos sair juntos. A porta fecha automaticamente. Acompanharei os nossos jovens médicos, agradecendo em voz alta e profusamente, além do cordão de isolamento da polícia, onde eles correrão para o helicóptero. Vocês seguem para a direita, depois viram à esquerda no saguão da frente. Espero... estou torcendo... para que nossa associação, por mais agradável que tenha sido, esteja agora encerrada.

— Para que serve isto? — indagou McAllister, levantando o passe do hospital.

— Provavelmente... assim espero... para nada. Mas caso sejam detidos, os passes explicam sua presença no hospital e não serão interrogados.

— Por quê? O que eles significam?

Não havia nenhum fato, nenhum fragmento de dado que o analista pudesse deixar inexplicado.

— É muito simples — respondeu o médico, olhando calmamente para McAllister. — Descrevem vocês como expatriados indigentes, totalmente desprovidos de recursos, a quem trato generosamente em minha clínica particular, sem cobrar nada. De gonorréia, para ser mais preciso. Como não podia deixar de ser, há as características de identificação usuais... altura, peso aproximado, cor dos cabelos e dos olhos, nacionalidade. A sua descrição é mais completa, já que eu não conhecia seu amigo. E também como não podia deixar de ser, há duplicatas em meus arquivos e ninguém poderia julgá-lo outra pessoa, senhor.

— Por quê?

— Depois que sair para a rua, creio que minha dívida antiga estará cancelada. Não concorda?

— Mas gonorréia?

— Por favor, senhor, devemos nos apressar, como disse. Está tudo previsto e calculado.

O médico abriu a porta, deixou os quatro homens passarem e seguiu para a esquerda, com os dois internos, na direção da entrada lateral e do helicóptero do serviço médico.

— Vamos embora — sussurrou Bourne, tocando no braço de McAllister e encaminhando-se para a direita.

— Ouviu aquele homem?

— Você disse que ele era um ladrão.

— Era mesmo. E é!

— Há ocasiões em que uma pessoa não deve aceitar muito literalmente aquele velho clichê de ladrão que rouba ladrão.

— O que está querendo dizer com isso?

— Muito simples — respondeu Jason Bourne, fitando o analista a seu lado. — Ele tem você nas mãos por várias acusações. Fraude, prática de corrupção e gonorréia.

— Oh, meu Deus!

Ficaram parados na retaguarda da multidão, junto à cerca alta, observando o helicóptero levantar vôo e depois de se afastar pelo céu noturno. Um a um, os refletores foram desligados e o estacionamento voltou a ficar iluminado apenas pelos lampiões fracos. Vários guardas entraram num ônibus, enquanto os outros voltavam calmamente a seus postos anteriores, alguns acendendo cigarros, como a anunciarem que a excitação estava encerrada. A multidão começou a se dispersar, em meio a perguntas lançadas para qualquer um e para todos. Quem era? Alguém muito importante, não é? O que acham que aconteceu? Será que seremos informados? Quem se importa? Tivemos nosso espetáculo e agora vamos tomar um trago, está bem? Deu uma olhada naquela mulher? Não acha que é uma prostituta de classe? Ela é minha prima, seu filho da puta!

A excitação terminara.

— Vamos embora — disse Jason. — Temos de andar.

— Quer saber de uma coisa, Sr. Webb? Tem duas ordens que usa com uma freqüência irritante. “Vamos embora” e “ande”.

— Funcionam.

Os dois homens começaram a atravessar a Coelho do Amaral.

— Sei tão bem quanto você que precisamos agir depressa, mas ainda não explicou para onde estamos indo.

— Sei que não expliquei — respondeu Bourne.

— Pois acho que está na hora de fazê-lo.

Continuaram andando, o ritmo determinado por Bourne. O subsecretário acrescentou:

— Chamou-me de prostituto.

— E você é.

— Porque concordei em fazer o que julgava certo, o que tinha de ser feito?

— Porque eles o usaram. Os homens no poder o usaram

e vão se descartar de você sem pensar duas vezes. Imaginava limusines e conferências de alto nível em seu futuro, e não pôde resistir. Estava disposto a sacrificar minha vida sem procurar uma alternativa... e é pago para fazer justamente isso. Estava disposto a arriscar a vida de minha esposa porque a atração era grande demais. Jantares com o Comitê dos Quarenta, talvez até se tornar um deles, reuniões discretas e confidenciais no Gabinete Oval, em companhia do famoso Embaixador Havilland. Para mim, isso é se prostituir. Acontece apenas, repito, que eles vão se descartar de você sem pensar duas vezes.

Silêncio. Por quase um comprido quarteirão de Macau.

— Acha que eu não sei disso, Sr. Bourne?

— Não sabe o quê?

— Que eles vão se descartar de mim.

Jason tornou a olhar para o meticuloso burocrata que caminhava ao seu lado.

— Sabe disso?

— Claro que sei. Não estou na liga e eles não querem me deixar entrar. Tenho as credenciais e a inteligência, mas não possuo o extraordinário senso de desempenho que eles têm. Não sou simpático. Ficaria paralisado diante de uma câmara de televisão.., embora veja idiotas que se apresentam sistematicamente cometendo os erros mais absurdos. Como pode ver, reconheço minhas limitações. E como não sou capaz de fazer o que eles podem, sou obrigado a fazer o que é melhor para eles e para o país. Tenho de pensar por eles.

— Estava pensando por Havilland? Foi ao Maine e seqüestrou minha esposa! Não havia outras opções nesse seu cérebro inchado?

— Nenhuma que eu pudesse impor. Nenhuma que cobrisse tudo tão meticulosamente quanto a estratégia de Havilland. O assassino era o elo impenetrável com Sheng. Se você pudesse caçá-lo e trazê-lo, seria o atalho de que precisaríamos para atrair Sheng.

— Tinha muito mais confiança em mim do que eu próprio.

— Tínhamos confiança em Jason Bourne. Em Caim... no homem da Medusa chamado Delta. Você tinha o motivo mais forte possível: recuperar sua esposa, a mulher que ama muito. E não haveria nenhuma ligação com o nosso governo...

— Farejamos um roteiro secreto desde o início! —explodiu Bourne. — Eu farejei, e Conklin também!

— Farejar não é sentir o gosto — protestou o analista, enquanto desciam apressados por uma viela escura, o calçamento de blocos de pedra. —Você nada sabia de concreto que pudesse ser divulgado, não havia nenhum intermediário que apontasse para Washington. Estava obcecado em encontrar um assassino que se apresentava como você, a fim de que um enfurecido taipan devolvesse sua esposa... um homem cuja própria esposa fora supostamente assassinada pelo assassino que dizia ser Jason Bourne. A princípio, achei que era uma loucura, mas depois percebi a lógica tortuosa de toda a situação. Havilland estava certo. Se havia um homem vivo que podia trazer o assassino e assim neutralizar Sheng, era justamente você. Mas você não poderia ter qualquer ligação com Washington. Portanto, tinha de ser manobrado dentro da estrutura de uma mentira extraordinária. Qualquer coisa menos e você poderia reagir de maneira mais normal. Poderia procurar a polícia ou autoridades do governo, pessoas que conhecera no passado... no que podia lembrar do passado, o que também era uma vantagem nossa.

— E procurei mesmo pessoas que conheci antes.

— Mas não descobriu nada, exceto que, quanto mais ameaçava romper o silêncio, mais parecia provável que o governo tornasse a interná-lo para uma terapia. Afinal, você saíra da Medusa, tinha uma história de amnésia, até mesmo de esquizofrenia.

— Conklin procurou outros...

— E inicialmente nós lhe informamos apenas o suficiente para descobrir o que ele sabia, o que calculara. Acho que ele foi um dos melhores que já tivemos.

— Foi mesmo. E ainda é.

— Ele pôs você na categoria de além-da-salvação.

— História. Nas circunstâncias, eu poderia fazer a mesma coisa. Ele descobriu muito mais do que eu em Washington.

— Conklin foi levado a acreditar exatamente no que queríamos que acreditasse. Foi de fato uma das manobras mais brilhantes de Havilland e realizada de improviso. Lembre-se de que Alexander Conklin é um homem queimado, amargurado. Não Sente qualquer amor pelo mundo em que passou sua vida adulta nem pelas pessoas com quem partilhou essa vida. Foi informado de que uma possível operação secreta poderia ter perdido o fio, que o roteiro poderia ter sido assumido por elementos hostis.

McAllister fez uma pausa, enquanto saíam da viela e viravam a esquina, no meio da multidão da madrugada em Macau; luzes coloridas piscavam por toda parte.

— Era o retorno à primeira mentira, entende? — continuou o analista. — Conklin foi convencido de que alguém mais interferira, que sua situação era desesperadora e o mesmo acontecia com sua esposa, a menos que seguisse o novo roteiro, controlado pelos elementos hostis.

— Foi o que ele me disse — murmurou Jason, franzindo o rosto ao lembrar o salão no Aeroporto Dulles, as lágrimas que afloraram a seus olhos. — E me sugeriu que jogasse de acordo com o roteiro.

— Ele não tinha alternativa. — McAllister agarrou subitamente o braço de Bourne, acenando com a cabeça na direção de uma loja às escuras, mais à frente, à direita. — Precisamos conversar.

— Estamos conversando — disse o homem da Medusa, ríspido. — Sei para onde estamos indo e não há tempo a perder.

— Tem de esperar um pouco! — O desespero na voz do analista forçou Bourne a parar e fitá-lo, depois segui-lo para a entrada recuada da loja às escuras. — Antes de fazer qualquer coisa, você precisa compreender.

— O que eu tenho de compreender? As mentiras?

— Não. A verdade.

— Você não sabe qual é a verdade.

— Sei sim, talvez melhor do que você. Como disse, é meu trabalho. A estratégia de Havilland teria dado certo, se não fosse por sua esposa. Ela conseguiu escapar, fazendo com que a estratégia desmoronasse.

— Sei disso.

— Então também sabe que Sheng, quer a tenha ou não identificado, está a par de sua existência e compreende sua importância.

— Nunca pensei nisso, nem de um jeito nem de outro.

— Pois pense agora. A unidade de Lin Wenzu foi penetrada quando toda Hong Kong estava procurando por ela. Catherine Staples foi morta porque estava ligada à sua esposa e foi deduzido corretamente que por intermédio da mulher misteriosa ela soubera demais ou estava se aproximando de algumas verdades perigosas. As ordens de Sheng são obviamente para eliminar qualquer oposição, até mesmo uma oposição em potencial. Como viu em Pequim, ele um fanático e vê substância onde existem apenas sombras inimigos em cada canto escuro.

— Onde está querendo chegar? — indagou Bourne, impaciente.

— Ele também é brilhante, e seu pessoal está espalhado por toda a colônia.

— E daí?

— Quando a notícia sair nos jornais da manhã e na televisão, ele vai fazer certas suposições e mandar vigiar a casa em Victoria Peak e o MI-Seis em cada minuto de cada hora, mesmo que tenha de invadir a casa ao lado e mais uma vez se infiltrar no serviço britânico.

— Deus meu, o que está querendo dizer?

— Ele encontrará Havilland e depois sua esposa.

— E daí?

— E se você falhar? E se você for morto? Sheng não vai descansar enquanto não souber de tudo. A chave é indubitavelmente a mulher que está com Havilland, a mulher alta que todos procuravam. Só pode ser ela, porque é o enigma no centro do mistério e está ligada ao embaixador. Se alguma coisa acontecer a você, Havilland será forçado a soltá-la, e Sheng a pegará... no Kai-tak, em Honolulu, Los Angeles ou Nova York. Pode estar certo de que ele não vai desistir enquanto não a capturar. Sheng precisa saber o que está armado contra ele, e sua esposa é a chave. Não há ninguém mais.

— De novo, onde está querendo chegar?

— Tudo pode acontecer novamente, com resultados ainda mais terríveis.

— O roteiro? — indagou Jason, imagens sangrentas da ravina no santuário de pássaros a invadirem-no.

— Isso mesmo — disse o analista, a voz firme. — Só que desta vez sua esposa será seqüestrada de verdade, não apenas como parte da estratégia para recrutá-lo. Sheng cuidaria disso.

— Não se estiver morto.

— Provavelmente não. Contudo, existe o risco concreto de fracasso... de que ele permaneça vivo.

— Está tentando me dizer alguma coisa, mas não o está fazendo!

— Está certo, direi agora. Como o assassino, você é o vínculo com Sheng, mas sou eu quem pode atraí-lo.

— Você?

— Foi o motivo pelo qual eu disse à embaixada para usar o meu nome no comunicado à imprensa. Sheng me conhece e escutei com toda atenção quando descreveu para Havilland a sua teoria do conspirador-para-um-conspirador. Ele não a aceitou e, para ser franco, também concordo. Sheng não aceitaria um encontro com uma pessoa desconhecida, mas pode concordar se for alguém que conhece.

— Por que você?

— Parte verdade, parte mentira — respondeu o analista, repetindo as palavras de Bourne.

— Obrigado por me escutar com toda atenção. E agora explique.

— A verdade primeiro, Sr. Webb... ou Bourne ou como quer que queira ser chamado. Sheng está a par das minhas contribuições ao meu governo e também da minha óbvia ausência de progresso. Sou brilhante mas invisível, um burocrata ignorado que tem sido preterido porque. careço das qualidades que poderiam me promover, levar-me a um grau de proeminência e a empregos lucrativos na iniciativa privada. De certa forma, sou como Alexander Conklin sem o problema da bebida, mas não sem alguma amargura. Eu era tão bom quanto Sheng e ele sabia disso... mas Sheng conseguiu o sucesso, e eu não.

— Uma confissão comovente — disse Jason, outra vez impaciente. — Mas por que ele se encontraria com você? Como poderia atraí-lo... para a solução final, Sr. Analista? E espero que saiba o que isso significa.

— Porque quero uma fatia do bolo de Hong Kong que pertence a ele. Quase fui morto ontem à noite. Foi a indignidade final. Agora, depois de tantos anos, quero alguma coisa para mim, para minha família. Essa é a mentira.

— Você está no outro lado do campo. Não consigo encontrá-lo.

— Porque não está lendo nas entrelinhas. É para isso que sou pago, lembra-se?... Estou no final da minha carreira profissional. Fui enviado para cá com a missão de descobrir e analisar um rumor procedente de Formosa. Esse rumor, sobre uma conspiração econômica em Pequim, parecia-me ter procedência. Se fosse verdadeiro, só podia ter uma fonte em Pequim, meu velho colega das conferências comerciais sino-americanas, o poder por trás das novas políticas comerciais da China. Nada assim poderia ser feito sem ele, nem mesmo cogitado. Portanto, presumi que na melhor das hipóteses havia motivos suficientes para entrar em contato com ele, não pensando em denunciá-lo, mas sim para cancelar oficialmente o rumor... por um preço. Eu poderia ir até mais longe, alegando que não vejo nada contra os interesses de meu país e muito menos contra os meus. O ponto principal é que ele se encontraria comigo.

— E depois?

— Depois, você me dirá o que fazer exatamente. Disse que qualquer perito em demolições poderia fazê-lo... então por que eu não seria capaz? Só que não com explosivos, pois eu não seria capaz de manipulá-los. Em vez disso, uma arma de fogo

— Seria morto.

— Aceito o risco.

— Por quê?

— Porque tem de ser feito. Havilland está certo nesse ponto. E no momento em que Sheng descobrir que você não é o impostor, que é o executor original, o homem que tentou matá-lo no santuário dos pássaros, seus guardas o retalhariam.

— Nunca tive a intenção de permitir que ele me visse — disse Bourne, suavemente. — Você iria cuidar disso, mas não assim.

Nas sombras da entrada da loja, McAllister olhava fixa- mente para o homem da Medusa.

— Vai me levar com você, não é mesmo? — indagou o analista, depois de uma pausa prolongada. — Obrigar-me, se fosse necessário.

— É verdade.

— Foi o que pensei. Se não fosse por isso, não concordaria tão prontamente que eu o acompanhasse a Macau. Poderia ter me contado como fazer contato com Sheng no aeroporto e exigido que lhe déssemos algum tempo, antes de entrarmos em ação. E não violaríamos o prazo, pois estamos apavorados. Independente de qualquer coisa, pode compreender agora que não precisa me obrigar. Eu trouxe até o meu passaporte diplomático. — McAllister fez uma pausa mínima e depois acrescentou: — E também um segundo passaporte, que retirei do arquivo dos técnicos... pertence ao sujeito alto que tirou sua fotografia na mesa.

— Você fez o quê?

— Todo o pessoal técnico do Departamento de Estado que lida com questões confidenciais deve entregar os passa- portes. É uma medida de segurança e para sua própria proteção...

— Tenho três passaportes — interrompeu Bourne. — Como acha que circulo de um lado para outro?

— Sabíamos que você tinha pelo menos dois, com base nos arquivos de Bourne. Usou um dos nomes anteriores ao voar para Pequim, o passaporte que dizia que tinha olhos castanhos. Como conseguiu isso?

— Usei lente de contato... sem grau. Tudo arrumado por um amigo que usa um nome estranho e é melhor do que qualquer pessoa de vocês.

— Ah, sim. Um fotógrafo preto e especialista em documentos de identidade que diz se chamar Cactus. Trabalhava secretamente para Casa de Pedra, mas é evidente que você se lembrou disso e também que ele sempre o visitava na Virginia. Segundo os registros, era preciso deixá-lo ir, porque opera com elementos criminosos.

— Se fizer alguma coisa com ele, pode estar certo de que vou acabar com você.

— Não há a menor intenção de fazer isso. Neste momento, vamos simplesmente transferir uma das três fotografias para o passaporte do técnico, a que estiver mais de acordo com a descrição

— É perda de tempo

— Não é, não. Os passaportes diplomáticos oferecem vantagens consideráveis, especialmente por aqui. Eliminam o processo demorado do visto temporário. Tenho certeza de que dispõe de fontes para comprar um visto, mas assim é muito mais fácil. A China quer nosso dinheiro, Sr. Bourne... e também nossa tecnologia. Passaremos rapidamente, e Sheng poderá verificar com a imigração que eu sou mesmo quem digo que sou. Também teremos prioridade no transporte, se quisermos, o que pode ser muito importante, dependendo das conversas telefônicas com Sheng e seus assessores.

— Como assim?

— Você falará com os subordinados de Sheng, na seqüência combinada, qualquer que seja. Dirá o que tem de dizer. Mas depois que tudo estiver acertado, eu falarei com Sheng Chou Yang.       

— Você não sabe de nada! — gritou Jason. — É um amador nessas coisas!

— No que você faz, sou mesmo. Mas não no que eu faço.

— Por que não disse nada a Havilland sobre esse seu plano espetacular?

— Porque ele não permitiria. Teria me posto sob prisão domiciliar, porque acha que sou inadequado. Sempre pensa assim. Não sou um artista. Não tenho as respostas eloqüentes que ressoam com sinceridade, mas também são lamentavelmente desinformadas. Mas este caso é diferente, o que os artistas podem perceber claramente, porque é tudo parte de sua encenação global e machista. Pondo de lado o aspecto econômico, trata-se de uma conspiração para minar a liderança de um regime desconfiado e autoritário. E quem está no centro dessa conspiração que tem de fracassar de qualquer maneira? Quem são esses infiltradores em quem Pequim confia como se fossem os seus? Os mais empedernidos inimigos da China... seus próprios irmãos do Kuomintang, em Formosa. Novamente, para usar o vernáculo, quando a merda bater no ventilador... o que certamente vai acontecer... os artistas em todos os lados vão subir aos pódios e soltar seus brados de traição e “revolta interna”, porque não haverá mais nada que possam fazer. O embaraço é total, completo, em escala mundial... e o embaraço maciço leva à violência maciça.

Foi a vez de Bourne olhar fixamente para o analista. Enquanto o fazia, as palavras de Marie lhe ocorreram, de um contexto diferente, mas não irrelevante no caso em pauta.

— Isso não é uma resposta — disse ele, — É um ponto de vista, mas não uma resposta. Por que você? Espero que não seja para provar sua decência. Isso seria uma tolice. E muito perigoso.

— Por mais estranho que possa parecer — disse McAllister, franzindo o rosto e olhando para o chão por um instante — no que se refere a você e sua esposa, creio que é isso em parte... uma parte menor.

O subsecretário de Estado levantou os olhos e acrescentou calmamente:

— Mas o motivo básico, Sr. Bourne, é que estou um pouco cansado de ser Edward Newington McAllister, talvez um analista brilhante, mas certamente irrelevante. Sou a inteligência na sala dos fundos a quem se busca quando as coisas ficam muito complicadas, mas que é despachada de volta para o anonimato depois de oferecer seu julgamento. Pode dizer que eu gostaria da oportunidade de um momento ao sol... de sair da sala dos fundos.

Jason estudou o subsecretário nas sombras.

— Há pouco disse que havia o risco de meu fracasso, e sou um homem experiente. O que não é o seu caso. Já considerou as conseqüências se você fracassar?

— Creio que não vou fracassar.

— Pensa que não vai fracassar — repetiu Bourne, em tom incisivo. — Posso perguntar por quê?

— Pensei em tudo.

— Isso é ótimo.

— Falo sério — protestou McAllister. — A estratégia é essencialmente simples: dar um jeito de ficar a sós com Sheng. Eu posso fazer isso, mas você não pode fazer por mim. E muito menos pode levá-lo a ficar a sós com você. Tudo o que preciso é de uns poucos segundos... e uma arma.

— Se eu concordar, não sei o que me assustaria mais, o seu sucesso ou o fracasso. Posso lembrá-lo que é um subsecretário de Estado do governo dos Estados Unidos? E se for capturado? Será o fim para todo mundo.

— Tenho considerado a possibilidade desde o dia em que voltei a Hong Kong.

— Você o quê?

— Há semanas que venho pensando que essa pode ser a

solução. . que eu posso ser a solução. O governo está coberto. Escrevi tudo, num relatório que deixei em Victoria Peak, uma cópia para Havilland e outra a ser entregue ao consulado chinês em Hong Kong, dentro de setenta e duas horas. É possível que a está altura o embaixador já tenha encontrado sua cópia. Portanto, não há como voltar atrás.

— Mas o que você fez?

— Descrevi o equivalente a uma hostilidade mortal entre Sheng e eu. Tendo em vista os meus antecedentes e o tempo que passei aqui, assim como a conhecida tendência de Sheng pelo sigilo, é perfeitamente plausível. Não tenho a menor dúvida de que seus inimigos no Comitê Central vão aproveitar a oportunidade. Se eu for morto ou capturado, tanta atenção vai se focalizar em Sheng, haverá tantas perguntas, apesar de suas negativas, que ele não se atreverá a tomar qualquer iniciativa... se sobreviver.

— Essa não! — exclamou Bourne, atordoado.

— Não é necessário que você saiba dos detalhes, mas pode reconhecer a essência de sua teoria de conspirador-para-um-conspirador. Em suma, acuso Sheng de quebrar sua palavra, de me afastar de suas manipulações em Hong Kong, depois que passei anos ajudando-o secretamente a desenvolver a estrutura. Ele está me cortando porque não precisa mais de mim e sabe que não posso dizer coisa alguma, pois ficaria arruinado. Escrevi até que estava com medo de ser liquidado.

— Esqueça! — berrou Jason — Esqueça toda essa história! É um absurdo!

— Está presumindo que eu vou fracassar. Ou ser capturado. Pois eu presumo que nenhuma das duas coisas acontecerá... com a sua ajuda, é claro.

Bourne respirou fundo e baixou a voz:

— Admiro a sua coragem, até mesmo o seu latente senso de decência, mas há um meio melhor e você pode proporcioná-lo. Terá o seu momento ao sol, Sr. Analista, mas não assim.

— Com que meio então? — indagou o subsecretário de Estado, agora aturdido.

— Já o vi operar, e Conklin estava certo. Você pode ser um filho da puta, mas é muito bom. Entra em contato com o Foreign Office em Londres e sabe quem pode mudar as regras. Passou seis anos aqui investigando os negócios sujos, procurando os assassinos, ladrões e cafetões do Extremo Oriente, em nome da política de boa vizinhança. Sabe que botão apertar e onde estão escondidos os segredos. Até se lembrou de um médico desonesto aqui de Macau que lhe devia um favor e obrigou-o a pagar.

— Tudo isso é como se fosse uma segunda natureza. Não se pode esquecer facilmente essa gente.

— Descubra-me outros. Providencie-me assassinos de aluguel. Você e Havilland podem conseguir isso. Fale com ele pelo telefone e transmita minhas exigências. Deve transferir um milhão... cinco milhões, se for necessário... para Macau pela manhã e no meio da tarde quero uma unidade de assassinos profissionais aqui, todos prontos para ir à China. Tomarei as providências indispensáveis. Conheço um ponto de encontro que já foi usado antes, nas colinas de Guangdong. Há campos que podem ser facilmente alcançados de helicóptero. Era o lugar em que Sheng ou seus ajudantes costumavam se reunir com o comando. Ao receber minha mensagem, ele fará a viagem... pode ter certeza. Basta você fazer seu papel. Vasculhe essa sua cabeça e descubra três ou quatro assassinos experientes. Diga-lhes que o risco é mínimo e o preço é alto. Esse é o seu momento ao sol, Sr. Analista. Deve ser irresistível. Terá uma vantagem sobre Havilland pelo resto de sua vida. Ele o promoverá a seu assessor-chefe, talvez até a secretário de Estado, se quiser. Não pode negar.

— Impossível — murmurou McAllister, os olhos fixos nos de Jason.

— Talvez secretário de Estado seja demais...

— O que está sugerindo é impossível.

— Está querendo me dizer que não existem homens assim? Se está, devo dizer que mente novamente.

— Tenho certeza de que existem. Posso até conhecer vários e estou certo de que há outros na lista que Lin lhe deu quando representava o papel do taipan de terno branco na Cidade Murada. Mas eu não me envolveria com eles. Mesmo que Havilland ordenasse, eu recusaria.

— Então não quer Sheng! Tudo o que disse não passava de mais uma mentira!

— Está enganado. Quero Sheng e muito, mas não assim.

— Por que não?

— Porque não vou pôr meu governo, meu país, nessa situação comprometedora. E tenho a impressão de que Havilland concordaria comigo. Contratar assassinos é uma coisa que se pode descobrir, transferir dinheiro também. Alguém se zanga, começa a se gabar, toma um porre, fala demais, e um assassinato é atribuído a Washington. Eu não poderia ter qualquer participação nisso. Lembro as tentativas de matar Castro usando a Máfia. Uma loucura... Não, Sr. Bourne, não é possível. Terá de se contentar comigo. Está preso a mim.

— Não estou preso a ninguém! Posso fazer contato com Sheng e você não!

— As questões complicadas podem ser geralmente reduzidas a equações simples, se determinados fatos são lembrados.

— O que isso significa?

— Que devo insistir que façamos tudo à minha maneira.

— Por quê?

— Porque Havilland está com sua esposa.

— Ela está com Conklin. Com Mo Panov! Ele não se atreveria...

— Não o conhece — interrompeu McAllister. — Pode insultá-lo, mas não o conhece. Ele é como Sheng Chou Yang. Não se deterá diante de nada. Se estou certo... e estou absolutamente convencido... a Sra. Webb, o Sr. Conklin e o Dr. Panov são hóspedes da casa em Victoria Peak até o final da missão.

— Hóspedes?

— A prisão domiciliar que mencionei há poucos minutos.

— Filho da puta! — murmurou Jason, os músculos do rosto se contraindo.

— Agora, como fazemos contato com Pequim?

De olhos fechados, Bourne respondeu:

— Por intermédio de um homem na guarnição de Guangdong chamado Soo Jiang. Falo com ele em francês e ele deixa uma mensagem para nós aqui em Macau. Numa mesa de um Cassino

— Ande! — disse McAllister.


 

O telefone tocou, provocando um sobressalto na mulher nua, que no mesmo instante se sentou na cama. O homem estendido ao seu lado estava completamente desperto; sempre se mostrava cauteloso com qualquer intromissão, ainda mais durante a madrugada. A expressão em seu rosto oriental, redon do e suave, no entanto, indicava que tais intromissões não eram raras, apenas irritantes. Estendeu a mão para o telefone na mesinha-de-cabeceira e atendeu.

— Wei?

— Macao lai dianhua — respondeu o operador do centro de comunicações do quartel-general da guarnição de Guangdong.

— Ligue o scrambler e desligue todos os mecanismos de gravação.

— Já fiz isso, Coronel Soo.

— É o que vou verificar.

Soo Jiang sentou-se na cama e pegou um pequeno objeto retangular, com um círculo em relevo numa extremidade.

— Não é necessário, senhor.

— Espero que não, para o seu próprio bem.

Soo ajeitou o círculo no bocal e apertou um botão. Se a linha estivesse grampeada, o apito estridente que subitamente irrompeu por um segundo continuaria a pulsar, até que o mecanismo de escuta fosse removido ou estourasse o tímpano do ouvinte. Houve apenas silêncio, ampliado pelo luar que atravessava a janela.

— Pode falar, Macau — disse o coronel.

— Bon soir, mon ami — disse a voz de Macau, o francês no mesmo instante aceito como sendo falado pelo impostor. Comment ça va?

— Vous? — Aturdido, Soo Jiang tirou as pernas curtas e grossas de baixo do lençol e pôs os pés no chão. — Attendez! — O coronel virou-se para a mulher e ordenou, em cantonês:

— Saia daqui. Pegue suas roupas e vá-se vestir na sala. Deixe a porta aberta, a fim de que eu possa vê-la partir.

— Está me devendo dinheiro! — sussurrou a mulher, a voz estridente. — Por duas vezes, e o dobro pelo que fiz para você lá embaixo!

— Seu pagamento é o fato de eu poder impedir que seu marido seja despedido. E agora saia daqui. Tem trinta segundos ou ficará com um marido sem dinheiro.

— É por isso que chamam você de Porco — disse a mulher, pegando as roupas e correndo para a sala, onde se virou e lançou um olhar furioso para Soo. — Porco!

— Saia!

Segundos depois, Soo voltou a falar ao telefone, e continuando em francês:

— O que aconteceu? As notícias de Pequim são incríveis! Não menos que as notícias do aeroporto em Shenzen! Ele capturou você!

— Ele está morto — disse a voz de Macau.

— Morto?

— Fuzilado por sua própria gente, pelo menos cinqüenta balas no corpo.

— E você?

— Aceitaram minha história. Eu era um refém inocente, apanhado na rua e usado como escudo e isca. Trataram-me bem e até me omitiram nas informações à imprensa, por insistência minha. E claro que estão tentando atenuar o incidente, mas não terão muito sucesso. Havia repórteres por toda parte. Vai ler a notícia nos jornais de amanhã.

— Mas o que aconteceu exatamente?

— Uma propriedade em Victoria Peak. Faz parte do consulado e é mantida em segredo. E por isso que tenho de entrar em contato com seu líder-um. Descobri coisas que ele precisa saber.

— Pode contar para mim.

O “assassino” riu desdenhosamente.

— Vendo informações assim, não dou a ninguém... muito menos a porcos.

— Saberemos cuidar bem de você — insistiu Soo.

— Bem demais para a minha saúde.

— O que está querendo dizer com “líder-um”? — indagou o coronel, ignorando o comentário.

— O chefão, seu superior, o dono do terreiro... como quer que você o chame. Não era o homem na floresta que falou durante todo o tempo? O que usou a espada com tanta eficiência, o maluco de olhos desvairados e cabelos curtos, o que tentei alertar para a tática de ganhar tempo do Francês...

— Como ousa...? Você fez isso?

— Pergunte a ele. Falei que alguma coisa estava errada, que o Francês procurava ganhar tempo. E fui eu quem acabou pagando por ele não me dar atenção. Deveria ter retalhado aquele filho da puta do Francês quando eu mandei. E agora trate de avisar que quero falar com ele!

— Nem mesmo eu falo com ele — disse o coronel. — Só faço contato com os subordinados, através de seus codinomes. Não conheço os verdadeiros...

— Está falando dos homens que voam para as colinas de Guangdong para se encontrarem comigo e darem as missões? — interrompeu Bourne.

— Isso mesmo.

— Não vou falar com nenhum deles! — explodiu Jason, posando como seu próprio impostor. — Só quero falar com o homem! E é melhor que ele queira falar comigo!

— Vai falar com os outros primeiro... e mesmo com eles, têm de haver motivos muito fortes. Eles é que convocam, os outros não. Já devia saber disso a esta altura.

— Muito bem, você pode ser o mensageiro. Passei quase três horas com os americanos, montando a melhor cobertura que já tive na vida. Eles me interrogaram e respondi francamente... e não preciso lhe dizer que tenho aliados em todo o território, homens e mulheres que podem jurar que sou um associado nos negócios ou estava em sua companhia numa hora determinada, não importa quem pergunte...

— Não precisa me contar tudo isso — interrompeu Soo. — Por favor, basta me dar a mensagem que devo transmitir. Falou com os americanos. E que mais?

— Escutei também. Os coloniais têm o hábito estúpido de falar livremente na presença de estranhos.

— Estou ouvindo agora uma voz britânica. A voz da superioridade. Já ouvimos isso antes.

— Tem toda razão. Os ingleses não fazem isso, e Deus sabe que vocês orientais também não fazem.

— Continue, por favor, senhor.

— O homem que me fez prisioneiro, o que foi morto pelos americanos, também era americano.

— E daí?

— Deixo uma assinatura nas minhas execuções. Um nome com uma história comprida. Jason Bourne.

— Sabemos disso. E daí?

— Ele era o original! Era um americano e estava sendo caçado há quase dois anos.

— E que mais?

— Pensam que Pequim descobriu-o e contratou-o. Alguém em Pequim que precisava efetuar a mais importante execução de sua vida, que tinha de matar um homem naquela casa. Bourne está à venda para qualquer um, um empregado de oportunidades iguais, como os americanos poderiam dizer.

— Sua linguagem é evasiva. Por favor, seja mais objetivo.

— Havia vários outros na sala com os americanos. Chineses de Formosa, que disseram expressamente que se opõem à maioria dos líderes das sociedades secretas do Kuomintang. Estavam furiosos. E acho que também assustados.

Bourne parou de falar. Silêncio. Depois de uma pausa prolongada, o coronel estimulou-o, apreensivo:

— E que mais?

— Disseram muitas outras coisas. E a todo instante mencionavam alguém chamado Sheng.

— Aiya!

— Essa é a mensagem que você vai transmitir e espero uma resposta no cassino dentro de três horas. Mandarei alguém buscá-la, e aviso para não tentar qualquer besteira. Tenho gente ali que pode iniciar um tumulto tão facilmente quanto fazer o sete nos dados. Qualquer interferência e seus homens morrerão

— Não esquecemos o Tsim Sha Tsui, há poucas semanas — comentou Soo Jiang. — Cinco de nossos inimigos foram mortos numa sala nos fundos, enquanto havia uma explosão de violência no cabaré. Não haverá interferência; não somos tolos quando você está envolvido. Muitas vezes especulamos se o Jason Bourne original era tão eficiente quanto seu sucessor.

— Não era.

Levante a possibilidade de um tumulto no cassino, caso os homens de Sheng tentem lhe preparar uma armadilha. Diga que os homens serão mortos. Não precisa falar mais nada. Eles compreenderão... O analista conhecia mesmo o seu ofício. Genuinamente interessado, Jason acrescentou:

— Uma pergunta... Quando você e os outros concluíram que eu não era o original?

— À primeira vista — respondeu o coronel. — Os anos deixam suas marcas, não é? O corpo pode permanecer ágil, até melhorar com os devidos cuidados, mas o rosto reflete o tempo; é inevitável. Seu rosto não poderia ser o de um homem da Medusa. Foi há mais de quinze anos, e você é um homem no auge, não tem mais que trinta e poucos anos. A Medusa não recrutava crianças. Você era a reencarnação do Francês.

— A palavra de código é “crise”, e você tem três horas — arrematou Bourne, desligando em seguida.

— Isso é uma loucura!

Jason saiu da cabine envidraçada no posto telefônico que permanecia aberto durante a noite inteira, lançando um olhar furioso para McAllister.

— Você se saiu muito bem — disse o analista, fazendo uma anotação num bloco pequeno. — Pode deixar que eu pago a conta.

O subsecretário encaminhou-se para a plataforma em que

as telefonistas recebiam o pagamento das ligações internacionais. Acompanhando-o, Bourne acrescentou, a voz baixa, mas  ríspida

— Não está entendendo. É impossível dar certo. É muito heterodoxo, muito óbvio para alguém engolir.

— Se estivesse pedindo uma reunião, eu concordaria. Mas não está. Só quer uma conversa pelo telefone.

— Estou pedindo a ele que reconheça o núcleo de toda a trama! Que é ele próprio!

— Para citar você outra vez — disse o analista, pegando  a conta no balcão e estendendo o dinheiro —, ele não pode deixar de responder. Não tem alternativa.

— Com condições prévias que vão deixar você exposto.

— Vou querer suas instruções nesse ponto, é claro.

McAllister pegou o troco, acenou com a cabeça em agradecimento para a cansada telefonista e encaminhou-se para a porta, com Jason ao seu lado.

— Talvez eu não tenha nenhuma para dar.

— Nas circunstâncias, é possível —disse o analista, enquanto saíam para a calçada apinhada.

— Como assim?

— Não é a estratégia que o está incomodando, Sr. Bourne, porque é basicamente sua. O que o deixa furioso é o fato de que sou eu quem vai executá-la, e não você. Como Havilland, acha que não sou capaz.

— Não creio que seja este o momento ou a ocasião para você provar que é o grande pistoleiro. Se fracassar, sua vida é a última coisa que me preocupa. De certa forma, o Extremo Oriente vem primeiro, o mundo vem primeiro.

— Não há a menor possibilidade de eu fracassar: Já lhe disse: mesmo que eu fracasse no atentado, saio vitorioso no resultado final. Sheng perde, não importa se continua a viver ou não. Dentro de setenta e duas horas o consulado em Hong Kong cuidará de tudo.

— Auto-sacrifício premeditado não é algo que eu aprove — comentou Jason, enquanto subiam a rua. — O heroísmo auto-ilusório sempre se interpõe no caminho e estraga tudo. Alem do mais, a sua suposta estratégia cheira a uma armadilha... e eles vão perceber.

— Eles perceberiam se você negociasse com Sheng e não eu. Diz que é heterodoxo, muito óbvio, os movimentos de um amador. Isso é ótimo. Quando Sheng me ouvir ao telefone, tudo se encaixará nos lugares para ele. Sou o amador amargurado, o homem que nunca esteve no campo, o burocrata de primeira classe que tem sido preterido pelo sistema a que serviu tão bem. Sei o que estou fazendo, Sr. Bourne. Só quero que me arranje uma arma.

Não era um pedido difícil de atender. No Porto Interior de Macau, na Rua das Lorchas, ficava o apartamento de d’Anjou, com um pequeno arsenal, as ferramentas do ofício do Francês. Era apenas uma questão de entrar e selecionar as armas que fossem mais facilmente desmontadas, a fim de atravessar a fronteira relativamente relaxada em Guangdong, com os passaportes diplomáticos. No entanto, levou mais de duas horas, o processo de seleção meticuloso, com Jason pondo uma arma após outra na mão do analista, observando como ele a empunhava e a expressão em seu rosto. A arma finalmente escolhida foi a de menor calibre no arsenal de d’Anjou, uma Charter Arms 22, com silenciador.

— Mire a cabeça, acerte pelo menos três balas no crânio. Qualquer outra coisa pode ser inócua.

McAllister engoliu em seco, olhando fixamente para a pistola, enquanto Bourne estudava outras armas, procurando determinar a que tinha maior poder de fogo numa embalagem menor. Acabou escolhendo para si mesmo uma pistola-metralhadora só com a armação de metal, que usava um pente grande, com trinta balas.

Com as armas escondidas por baixo dos paletós, eles entraram no cassino de Kam Pek, não muito cheio, às três e trinta e cinco da madrugada, encaminhando-se para a extremidade do comprido bar de mogno. Bourne foi para o lugar que ocupara na ocasião anterior. O subsecretário sentou a quatro bancos de distância. O bartender reconheceu o generoso freguês que lhe dera quase uma semana de salário, menos de uma semana antes. Cumprimentou-o como a um freguês com uma longa história de generosidade.

— Nei hou a!

— Mchoh La. Mgoi — respondeu Bourne, dizendo que estava bem, a saúde ótima.

— O uísque inglês, não é? — indagou o bartender, certo de sua memória, esperando que isso produzisse uma boa recompensa.

— Eu disse a amigos no cassino do Lisboa que deveriam conhecer você. Acho que é o melhor homem por trás de um bar em Macau.

— O Lisboa? É onde está o dinheiro de verdade! Muito obrigado, senhor!

O bartender apressou-se a servir a Jason uma dose que deixaria de porre as legiões de César. Jason acenou com a cabeça, sem fazer qualquer comentário, e o homem aproximou-se relutante de McAllister, a quatro bancos de distância. Jason notou que o analista pediu vinho, pagou a quantia exata e registrou-a em seu caderninho. O bartender deu de ombros, cumpriu o serviço desagradável e foi para o centro do bar escassamente ocupado, sempre atento a seu cliente predileto.

Primeiro passo.

Ele estava ali! O chinês bem vestido, num terno escuro sob medida, o veterano em artes marciais que não conhecia muitos golpes sujos, o homem com quem ele lutara num beco e que o levara às colinas de Guangdong. O Coronel Soo Jiang não estava querendo correr nenhum risco, nas circunstâncias. Só queria os condutos de maior confiança operando naquela noite. Nada de velhos mendigos, nada de prostitutas.

O homem passou devagar por várias mesas, como se estudasse o jogo, avaliando os crupiês e os jogadores, tentando determinar onde deveria experimentar sua sorte. Chegou à Mesa Cinco, depois de observar o jogo de cartas por quase três minutos, sentou-se casualmente e tirou do bolso um rolo de notas. Entre as notas, pensou Jason, havia uma mensagem com a indicação de Crise.    

Vinte minutos depois o chinês impecavelmente vestido sacudiu a cabeça, tornou a guardar o dinheiro no bolso e levantou-se. Ele era o atalho para Sheng! Conhecia tudo em Macau e na fronteira em Guangdong. Bourne compreendeu que precisava pegar o homem o mais depressa possível. Olhou primeiro para o bartender, que se encontrava na outra extremidade do bar, preparando drinques para um garçom que servia às mesas, depois para McAllister.

— Analista! — sussurrou ele, em tom incisivo. — Fique aqui!

— O que vai fazer?

— Dar um alô a mamãe!

Jason levantou-se e encaminhou-se para a porta, atrás do conduto. Passando pelo bartender, ele disse em cantonês:

— Voltarei num instante.

— Não há problema, senhor.

Saindo para a rua, Bourne seguiu o chinês bem vestido por vários quarteirões, até que ele entrou numa rua transversal estreita e mal iluminada, aproximando-se de um carro vazio estacionado. Não ia se encontrar com ninguém; entregara a mensagem e estava deixando a área. Jason correu e tocou no ombro do homem no instante em que ele abria a porta. O conduto virou-se bruscamente, meio agachado, o pé esquerdo experiente desferindo um golpe violento. Bourne pulou para trás, levantando as mãos, num gesto de paz.

— Não vamos começar tudo de novo — disse ele em inglês, lembrando que o homem falava inglês, aprendido com as freiras portuguesas. — Ainda estou dolorido da surra que você me deu há uma semana.

— Aiya! Você! — O chinês levantou as mãos, num gesto similar de não-combate. — Presta-me uma honra que não mereço. Foi melhor do que eu naquela noite e por isso tenho praticado seis horas por dia, a fim de melhorar... Venceu-me antes, mas não conseguiria agora.

— Levando em consideração a sua idade e depois a minha, posso garantir que você não foi superado. Meu corpo todo doeu muito mais do que o seu, e não estou disposto a conferir seu novo programa de treinamento. Pagarei muito dinheiro, mas não lutarei com você. A palavra para isso é covardia.

— Não no seu caso, senhor — disse o oriental, baixando as mãos e sorrindo. — O senhor é muito bom.

— E você me deixou apavorado — respondeu Jason. — Além disso, prestou-me um grande favor

— Pagou-me bem. Muito bem.

— Pagarei melhor agora.

— A mensagem era para você?

— Era.

— Então tomou o lugar do Francês?

— Ele está morto. Liquidado pelas pessoas que mandaram a mensagem.

O chinês pareceu ficar aturdido, talvez mesmo um pouco triste.

— Por quê? Ele o serviu muito bem e era um velho... mais velho do que você.

— Muito obrigado.

— Ele traiu aqueles quem servia?

— Não. Foi traído.

— Pelos comunistas?

— Pelo Kuomintang —declarou Jason, sacudindo a cabeça.

— Dong wu! Eles não são melhores do que os comunistas. O que quer de mim?

— Se tudo correr bem, mais ou menos a mesma coisa que fez antes. Só que desta vez quero que continue por lá. Preciso contratar um par de olhos.

— Vai subir as colinas em Guangdong?

— Isso mesmo.

— Precisa de ajuda para atravessar a fronteira?

— Não se puder encontrar alguém que possa passar uma fotografia de um passaporte para outro.

— É coisa que se faz todos os dias. Até as crianças podem cuidar disso.

— Ótimo. Então só nos resta tratar da contratação do par de olhos. Há algum risco, mas não é grande. Há também vinte mil dólares... americanos. Na última vez eu lhe paguei dez, mas agora subo para vinte.

— Aiya, uma fortuna. — O chinês fez uma pausa, estudando o rosto de Bourne. — O risco deve ser muito grande.

— Se houver problemas, espero que você trate de escapar. Deixaremos o dinheiro aqui em Macau, acessível apenas para você. Quer o trabalho ou devo procurar outro?

— Estes são os olhos de um gavião. Não precisa procurar mais.

— Vamos voltar ao cassino. Espere lá fora, no fim da rua, enquanto eu pego a mensagem.

O bartender mostrou-se bastante satisfeito pela oportunidade de prestar um serviço a Jason. Mas ficou confuso pela estranha palavra que deveria ser usada, “crise”, até que Bourne explicou que era o nome de um cavalo de corrida. Ele levou um drinque “especial” para um surpreso jogador na Mesa Cinco e voltou com o envelope lacrado sob a bandeja. Jason esquadrinhara as mesas próximas, procurando por cabeças a se virarem e olhos atentos, em meio às nuvens de fumaça subindo em espiral; não percebeu ninguém interessado. A visão de um bartender de casaco marrom entre garçons de casaco marrom era muito comum para atrair atenção. De acordo com as instruções, a bandeja foi colocada entre Bourne e McAllister. Jason tirou um cigarro do maço e empurrou uma caixa de fósforos por baixo do bar na direção do analista, que não fumava. Antes que o perplexo analista pudesse compreender, Bourne levantou-se e adiantou-se.

— Tem fósforo, mister?

McAllister olhou para a caixa, pegou-a rapidamente, tirou um fósforo e riscou-o, levantando a chama para o cigarro. Quando voltou a seu banco, Jason tinha o envelope na mão. Abriu-o, retirou o papel que havia lá dentro e leu a mensagem, datilografada em inglês: Telefone para Macau — 32-61-443.

Ele olhou ao redor, à procura de um telefone público, só depois se lembrando que nunca usara um em Macau; e mesmo que houvesse instruções, não estava familiarizado com as moedas da colônia portuguesa. Eram sempre as coisas pequenas que arruinavam as grandes. Fez sinal para o bartender, que o alcançou-o antes que a mão levantada tornasse a pousar no balcão.

— Pois não, senhor? Outro uísque?

— Não por uma semana — disse Bourne, pondo dinheiro de Hong Kong na sua frente. — Tenho de dar um telefonema para alguém aqui em Macau. Pode me dizer onde há um telefone e me arrumar as moedas necessárias, por favor?

— Eu não poderia permitir que um cavalheiro tão distinto usasse um telefone comum, senhor. Aqui entre nós, creio que muitos dos fregueses aqui podem estar doentes. — O bartender sorriu. — Com sua licença, senhor. Tenho um telefone aqui no bar... para pessoas muito especiais.

Antes que Jason pudesse protestar ou agradecer, um telefone foi posto à sua frente. Ele discou, enquanto McAllister o observava fixamente.

— Wei? — disse uma voz de mulher.

— Fui instruído a ligar para esse número — respondeu Bourne, em inglês, pois o impostor não falava chinês.

— Vamos nos encontrar.

— Não, não vamos no encontrar.

— Nós insistimos.

— Então desistam. Vocês me conhecem melhor, ou pelo menos deveriam. Quero falar com o homem, e somente com o homem.

— Está sendo presunçoso.

— Fala como uma idiota. E o pregador esquelético com a espada grande também será um idiota se não falar comigo.

— Como ousa...

— Já ouvi isso antes esta noite — interrompeu Bourne bruscamente. — A resposta é sim, eu ouso qualquer coisa. Ele tem muito mais a perder do que eu. É apenas um cliente, e minha lista está crescendo. Não preciso dele, mas acho que neste momento ele precisa de mim.

— Dê-me uma razão que possa ser confirmada.

— Não dou explicações a cabos. Já fui um major... ou será que não sabia disso?

— Não há necessidade de insultos.

— Não há necessidade desta conversa. Tornarei a ligar dentro de trinta minutos. Ofereça-me então algo melhor... ofereça-me o homem. E saberei se é ele mesmo, porque farei algumas perguntas que só o homem pode responder. Ciao, madame.

Bourne desligou.

— O que está fazendo? —sussurrou um agitado McAllister, a quatro bancos de distância.

— Providenciando o seu dia ao sol, e espero que você tenha alguma loção protetora. Vamos sair daqui. Dê-me cinco minutos e depois me siga. Vire à direita quando sair e continue andando. Nós o pegaremos no caminho.

— Nós?

— Há uma pessoa que quero que você conheça. Um velho amigo... um jovem amigo... acho que vai aprová-lo. Ele se veste como você.

— Outra pessoa? Você ficou doido?

— Não se descontrole, analista. Não deveríamos nos conhecer. Não, não fiquei louco. Apenas contratei um homem de apoio, para o caso de pensarem melhor do que eu. Não se esqueça que você queria minhas instruções nesse ponto.

As apresentações foram breves e não foram usados nomes, mas era evidente que McAllister ficou impressionado com o chinês baixo, bem vestido, de ombros largos.

— É executivo de alguma firma por aqui? — perguntou o analista, enquanto seguiram para a rua transversal em que estava estacionado o carro do conduto.

— De certa forma, sou sim, senhor. Só que de minha própria firma. Tenho um serviço de mensageiro para pessoas muito importantes.

— Mas como ele descobriu você?

— Lamento, senhor, mas tenho certeza de que pode compreender. Tais informações são confidenciais.

— Santo Deus! — murmurou McAllister, olhando para o homem da Medusa.

Sentado no banco da frente, com o aturdido subsecretário atrás, Jason disse ao chinês:

— Quero que me arrume um telefone dentro de vinte minutos.

— Quer dizer que eles estão usando um retransmissor? — indagou o conduto. — Fizeram isso muitas vezes com o Francês.

— E como ele os tratava? —perguntou Bourne.

— Com muita demora. Dizia: “Que eles esperem.” Posso sugerir uma hora?

— Está certo. Há algum restaurante aberto por aqui?

— Na Rua dos Mercadores.

— Precisamos de comida, e o Francês estava certo... sempre estava certo. Que eles esperem.

— Ele foi um homem decente comigo — comentou o conduto

— No final das contas, ele era uma espécie de santo eloqüente embora pervertido.

— Não compreendo, senhor.

— Não é necessário que compreenda. Mas eu estou vivo e ele não está porque tomou uma decisão.

— Que decisão, senhor?

— Que ele deveria morrer, a fim de que eu pudesse viver.

— Como as Escrituras cristãs. As freiras nos ensinaram.

— Não é bem assim — respondeu Jason, achando graça da idéia. — Se houvesse alguma outra saída, nós a teríamos tentado. Mas não havia. Ele simplesmente aceitou o fato de que sua morte era a única maneira de eu escapar.

— Eu gostava dele — murmurou o chinês.

— Leve-nos ao restaurante.

Edward McAllister precisava fazer o maior esforço para se controlar, O que ele não sabia e o que Bourne não discutiria à mesa estavam sufocando-o de frustração. Por duas vezes tentara levantar o problema dos retransmissores e da situação atual e por duas vezes Jason o cortara, advertindo-o com um olhar, enquanto o conduto, em gratidão, desviava os olhos. Havia certos fatos que o chinês sabia e outros que não queria saber, para sua própria segurança.

— Descanso e alimento — murmurou Bourne, terminando de comer o tian-suan rou. — O Francês dizia que eram armas. E estava certo, é claro.

— Sugiro que ele precisava da primeira coisa mais do que o senhor— comentou o conduto.

— É possível. De qualquer forma, ele era um estudioso da história militar. Alegava que mais batalhas foram perdidas por fadiga do que pela inferioridade no poder de fogo.

— Tudo isso é muito interessante — interrompeu McAllister, bruscamente — mas já estamos aqui há algum tempo e tenho certeza de que há coisas que deveríamos estar fazendo.

— E vamos fazer, Edward. Se está tenso, pense no que eles estão passando. O Francês também costumava dizer que nervos a flor da pele do inimigo eram os nossos melhores aliados.

— Estou começando a ficar cansado do seu Francês — murmurou McAllister, irritado.

Jason olhou para o analista e disse suavemente:

— Nunca mais fale isso. Você não estava lá. — Consultou o relógio. — Já passou uma hora. Vamos procurar um telefone. — Virou-se para o conduto e acrescentou: — Precisarei de sua ajuda. Ponha as moedas certas. Eu discarei.

— Disse que ligaria de novo em trinta minutos! — protestou a mulher, no outro lado da linha.

— Precisava resolver alguns problemas. Tenho outros clientes e não fiquei muito satisfeito com a sua atitude. Se isso vai ser uma perda de tempo, tenho outras coisas a fazer e você poderá explicar tudo ao homem quando o tufão chegar.

— Como poderia acontecer?

— Essa não, mulher! Dê-me uma mala com mais dinheiro do que jamais pensou que poderia existir e lhe contarei. Mas, por outro lado, talvez não dissesse nada. Gosto que homens em altos postos me devam favores. Tem dez segundos e depois eu desligo.

— Por favor! Vai se encontrar com um homem que o levará a uma casa na Colina Guia, onde existe um sofisticado equipa mento de comunicação...

— E onde meia dúzia de capangas vão me rachar o crânio e jogar numa sala onde um médico vai me encher de drogas e tudo isso por nada! — A ira de Bourne era simulada apenas em parte; eram os homens de Sheng que estavam se comportando como amadores. — Vou lhe falar sobre outro equipamento sofisticado. Chama-se telefone, e não creio que haveria comunicações entre Macau e a guarnição de Guangdong se não tivessem scramblers. Claro que os compraram em Tóquio, porque se os fabricassem provavelmente não funcionariam. Usem um. Só vou ligar mais uma vez, mulher. Tenha um número para mim. O número do homem.

Jason desligou,

— É interessante — comentou McAllister, a alguns passos do telefone, lançando um olhar rápido para o conduto, que retomara à mesa. — Você usou a vara, quando eu teria usado a cenoura.

— Usado o quê?

— Teria enfatizado a extraordinária informação que pode ria revelar. Em vez disso, você ameaçou, como se estivesse menosprezando quem quer que fosse.

— Poupe-me a preleção — respondeu Bourne, acendendo um cigarro, satisfeito ao constatar que a mão não tremia. — Para sua informação, fiz as duas coisas. A ameaça enfatiza a revelação e o menosprezo reforça as duas.

— Suas instruções já começam —comentou o subsecretário de Estado, com uma insinuação de sorriso. — Obrigado.

O homem da Medusa fitou nos olhos o homem de Washington.

— Se a coisa der certo, você será capaz, analista? Poderá sacar a arma e puxar o gatilho? Porque se não puder, ambos vamos morrer.

— Sou perfeitamente capaz — declarou McAllister, muito calmo. — Pelo Extremo Oriente. Pelo mundo.

— E por seu dia ao sol. — Jason encaminhou-se para a mesa. — Vamos sair daqui. Não quero usar de novo este telefone.

A serenidade da Montanha da Torre de Jade era quebrada pela frenética atividade na residência de Sheng Chou Yang. A agitação não era causada pela quantidade de pessoas, pois havia apenas cinco, mas sim pela intensidade dos participantes. O ministro escutava, enquanto seus assessores entravam e saíam, trazendo notícias dos últimos acontecimentos e oferecendo tímidos conselhos, que eram retirados ao primeiro sinal de desagrado.

— Nosso pessoal confirmou a história, senhor! —anunciou um homem de meia-idade, uniformizado, que viera correndo da casa. — Falaram com os jornalistas. Foi tudo como o assassino descreveu, e uma fotografia do morto foi distribuída aos jornais.

— Tratem de providenciá-la — ordenou Sheng. — E que seja despachada imediatamente. Toda essa história é inacreditável.

— Já estamos providenciando — respondeu o militar. — O consulado enviou um adido ao South China News. Deverá chegar em poucos minutos.

— inacreditável — repetiu Sheng baixinho, os olhos se des-

viando para os lírios no laguinho mais perto. — A simetria é perfeita demais, a oportunidade perfeita demais, o que significa que algo é imperfeito. Alguém impôs a ordem.

— O assassino? — indagou outro assessor.

— Com que objetivo? Ele não tem a menor idéia de que se transformaria num cadáver antes da noite terminar no santuário. Pensava que era privilegiado, mas estávamos usando-o apenas para atrair seu antecessor, descoberto por nosso homem no Setor Especial.

— Então quem? — perguntou outro assessor.

— É esse o dilema. Quem? Tudo é ao mesmo tempo tentador e inepto. É tudo evidente demais, repleto de ego antiprofissional. O assassino, se está dizendo a verdade, deve acreditar que nada tem a temer de mim, mas ainda assim ameaça, presumivelmente descartando um cliente lucrativo. Profissionais não se comportam assim, e é isso que me incomoda.

— Está sugerindo uma terceira parte, Ministro?

— Se é esse o caso — disse Sheng, os olhos agora fixados num único lírio —, trata-se de alguém sem experiência ou com a inteligência de um boi. É um dilema.

— Está aqui, senhor! — gritou um jovem, correndo pelo jardim, segurando uma fotografia transmitida pelo teletipo.

— Dê-me logo! — Sheng pegou a fotografia e virou-a para o clarão de um refletor. — É ele mesmo! Jamais esquecerei este rosto enquanto viver! Abram o caminho! Digam à mulher em Macau para dar o número a nosso assassino e efetuem uma varredura eletrônica de todos os grampos possíveis. O fracasso é a morte.

— Imediatamente, Ministro!

O operador voltou correndo para a casa.

— Minha esposa e meus filhos... — murmurou Sheng Chou Yang, pensativo. — Devem estar incomodados com todo este tumulto. Um de vocês pode fazer o favor de entrar e explicar que problemas de estado me afastam de sua amada presença?

— A honra é minha, senhor — disse um assessor.

— Eles sofrem muito com as exigências de meu trabalho. São todos anjos. Mas um dia serão recompensados.

Bourne tocou no ombro do conduto e depois apontou para a marquise iluminada de um hotel, no lado direito da rua.

— Vamos nos registrar ali e procurar uma cabine telefônica no outro lado da cidade. Certo?

— É sensato — respondeu o chinês. — Eles estão por toda a companhia telefônica.

— E precisamos dormir um pouco. O Francês sempre me dizia que o descanso também era uma arma. Ora, por que estou me repetindo a todo instante?

— Porque está obcecado — comentou McAllister do banco traseiro.

— Fale-me a respeito... Não, não fale.

Jason discou o número em Macau que acionava um retransmissor na China, ligado a um telefone seguro na Montanha da Torre de Jade. Enquanto o fazia, olhou para o analista e perguntou rapidamente:

— Sheng fala francês?

— Claro. Ele negocia com o Quai d’Orsay e fala a língua de todos com que negocia. É uma de suas forças. Mas por que não usar o mandarim? Você o conhece.

— O comando não conhecia, e se eu falasse inglês ele poderia especular sobre o que aconteceu com o sotaque britânico. O francês vai encobrir todas as diferenças, como aconteceu com Soo Jiang, e também me permitirá determinar se é Sheng ou não.

Bourne estendeu um lenço pelo bocal, enquanto ouvia uma segunda campainha ecoando, a dois mil e quinhentos quilômetros de distância. Os scramblers estavam em ação.

— Wei?

— Comme le colonel, je préfire le français.

— Shemma? — gritou a voz, aturdida.

— Fawen —disse Jason, a palavra mandarim para francês.

— Fawen? Wo buhui! — respondeu o homem, excitado, declarando que não falava francês.

A ligação era inesperada. Outra voz se intrometeu; estava

em segundo plano, muito baixa para ser ouvida. E um momento depois estava na linha.

— Porquoi vous parlez français?

Era Sheng! Não importava a língua, Bourne jamais esqueceria a fala monótona do orador. Era o fanático sacerdote de um Deus brutal, seduzindo uma audiência, antes de atacá-la com fogo e enxofre.

— Digamos que me sinto mais à vontade.

— Está certo. Qual é essa história incrível que você alega? Essa loucura .durante a qual um nome foi mencionado?

— Fui também informado de que fala francês.

Houve uma pausa em que se podia ouvir apenas a respiração firme de Sheng.

— Você sabe quem eu sou?

— Conheço um nome que nada significa para mim. Mas significa para outra pessoa. Alguém que você conheceu há muitos anos. Ele quer falar com você.

— O quê? — berrou Sheng. — Traição!

— Não há nada disso, e se eu fosse você escutaria o que ele tem a dizer. Ele percebeu tudo na história que contei aos americanos. Os outros não perceberam nada, mas ele compreendeu tudo.

Bourne olhou para McAllister a seu lado; o analista acenou com a cabeça, como a dizer que Jason estava usando de forma convincente as palavras que lhe sugerira.

— Só com uma olhada em mim ele somou dois mais dois — acrescentou Bourne. — Mas também o garoto original do Francês estava numa pior, a cabeça parecia uma couve-flor sangrenta.

— O que você fez?

— Provavelmente o maior favor que já lhe prestei, e espero ser bem pago por isso. Vou passar o telefone para o seu amigo. Ele falará em inglês.

Bourne estendeu o fone para o analista, que disse no mesmo instante:

— Aqui é Edward McAllister, Sheng.

— Edward...?

O aturdido Sheng Chou Yang não pôde completar o nome.

— Esta conversa é particular, não tem sanção oficial. Meu

paradeiro é desconhecido, não está registrado. Falo exclusiva- mente em meu benefício... e no seu.

— Você... me deixa surpreso, meu velho amigo — disse o ministro devagar, apreensivo, recuperando o controle.

— Vai ler toda a história nos jornais da manhã e tenho certeza de que já está saindo nos noticiários no Havaí, O consulado queria que eu desaparecesse por alguns dias... quanto menos perguntas, melhor... e eu sabia com quem queria me encontrar.

— O aconteceu, e como você...

— A semelhança na aparência era óbvia demais para ser pura coincidência — interrompeu o subsecretário de Estado. — Imagino que d’Anjou queria tirar o máximo de proveito da legenda, e isso incluía as características físicas para os que se haviam encontrado com Jason Bourne no passado. Um estímulo desnecessário, em minha opinião, mas foi eficaz. No pânico em Victoria Peak... e pelo rosto quase irreconhecível... ninguém mais percebeu a semelhança extraordinária. Mas também nenhum dos outros conheceu Bótirne. Eu conheci.

— Você?

— Expulsei-o da Ásia. Eu era o homem que ele foi matar, e com o seu senso pervertido de ironia e vingança, decidiu, no processo, deixar o cadáver de seu assassino em Victoria Peak. Felizmente para mim, seu ego não lhe permitiu avaliar de maneira correta a competência do seu homem. Quando começou o tiroteio, nosso agora associado comum conseguiu dominá-lo e empurrá-lo para a frente do fogo cerrado.

— Edward, as informações estão chegando tão depressa que não tenho tempo de assimilar. Quem trouxe Jason Bourne de volta?

— Obviamente foi o Francês. Seu pupilo e lucrativa fonte de renda o abandonara. Queria vingança e sabia onde encontrar o único homem que poderia lhe proporcionar isso. Seu colega da Medusa, o original Jason Bourne.

— Medusa! — murmurou Sheng, com intensa aversão.

— Apesar da reputação deles, havia em certas unidades uma profunda lealdade. Você salva a vida de um homem, ele nunca mais esquece.

— O que o levou à conclusão absurda de que tenho alguma coisa a ver com o homem que chama de assassino...

— Por favor, Sheng — interrompeu o analista. — E muito tarde para negativas. Estamos conversando. Mas responderei à sua pergunta. Percebi a situação no padrão de várias mortes. Começou com um vice-primeiro-ministro da China no Tsim Sha Tsui, junto com quatro outros homens. Todos eram seus inimigos. E no Kai-tak, na outra noite, dois de seus críticos mais veementes na delegação chinesa... alvos de uma bomba. Houve também rumores; sempre há, no submundo. Falavam de mensagens entre Macau e Guangdong, de homens poderosos em Pequim... de um homem de imenso poder. E, finalmente, havia os arquivos... Tudo somava. Apontando para você.

— Arquivos? Mas do que está falando, Edward? — indagou Sheng, simulando veemência. — Por que esta é uma comunicação não-registrada e não-oficial entre nós?

— Acho que você sabe.

— Você é um homem inteligente. E sabe que eu não perguntaria se soubesse. Estamos acima dessas coisas.

— Não diria também que um brilhante burocrata sempre mantido em segundo plano?

— Para ser franco, eu esperava coisas melhores para você. Forneceu a maior parte das palavras e dos movimentos a seus supostos negociadores, durante as conferências comerciais. E todos sabem que realizou um trabalho exemplar em Hong Kong. Quando você foi embora, Washington tinha grande influência no território em sua órbita.

— Decidi me aposentar, Sheng. Dei vinte anos de minha vida ao meu governo, mas não darei minha morte. Não serei emboscado e fuzilado ou liquidado por um caminhão carregado com dinamite. Não vou virar alvo para terroristas, aqui, no Irã ou em Beirute. Está na hora de eu conseguir alguma coisa para mim mesmo, para a minha família. Os tempos mudam. as pessoas mudam, viver se torna cada vez mais caro. Minha pensão e minhas perspectivas são muito inferiores ao que eu merecia.

— Concordo plenamente. Edward, mas o que isso tem a ver comigo? Somos homens que fazem concessões... adversários, é certo, como num tribunal, mas também não inimigos na arena da violência. E que absurdo é esse, em nome dos céus, de meu nome ser mencionado pelos chacais do Kuomintang?

— Não me venha com essa. — O analista lançou um olhar rápido para Bourne. — O que quer que nosso associado comum tenha dito, as palavras foram fornecidas por mim; não eram dele. Seu nome nunca foi mencionado em Victoria Peak e não havia ninguém de Formosa presente quando interrogamos o seu homem. Eu lhe dei essas palavras porque há alguma validade nelas para você. Quanto ao seu nome, é para uns poucos apenas, somente para os olhos. Está nos arquivos que mencionei, uma pasta trancada em minha sala em Hong Kong. Com o registro de “Segurança Ultramáxima”. Há apenas uma cópia e se encontra num cofre em Washington, a ser liberada ou destruída apenas por mim. Contudo, se o inesperado acontecer... como um acidente de avião, meu desaparecimento, minha morte... a cópia será entregue ao Conselho de Segurança Nacional. As informações que ali estão, nas mãos erradas, podem ser catastróficas para todo o Extremo Oriente.

— Estou intrigado, Edward, por suas informações francas, embora incompletas.

— Encontre-se comigo, Sheng. E leve dinheiro, muito dinheiro... dinheiro americano. Nosso associado mútuo me diz que há colinas em Guangdong para onde seu pessoal voou, a fim de encontrá-lo. Vamos nos encontrar amanhã, entre dez e meia-noite.

— Devo protestar, meu amigo adversário. Ainda não me ofereceu um incentivo suficiente.

— Posso destruir as duas cópias. Fui enviado a Hong Kong para investigar uma história procedente de Formosa, uma história tão prejudicial a todos os nossos interesses que uma insinuação de seu conteúdo poderia desencadear uma sucessão de acontecimentos apavorantes. Creio que há considerável substância na história e, se estou certo, pode levar diretamente a meu antigo colega nas conferências sino-americanas. Não poderia estar ocorrendo sem ele... É a minha última missão, Sheng, e umas poucas palavras minhas podem remover o arquivo da face da terra. Basta eu declarar que as informações são totalmente falsas e perigosamente inflamatórias compiladas por seus inimigos em Formosa. Os poucos que têm conhecimento querem acreditar nisso, aceitar minha palavra. Minha cópia seria destruída, e o mesmo aconteceria com a que.está em Washington.

— Ainda não explicou por que devo me encontrar com você.

— O filho de um taipan do Kuomintang saberia. O líder de uma conspiração em Pequim saberia. Um homem que pode cair em desgraça e ser decapitado amanhã de manhã certamente saberia.

A pausa foi prolongada, a respiração no outro lado da linha tornou-se irregular. Finalmente, Sheng disse:

— As colinas em Guangdong. Ele sabe onde.

— Só um helicóptero — disse McAllister. — Você e o piloto, mais ninguém.

 

Escuridão. O vulto vestido no uniforme de um fuzileiro dos Estados Unidos pulou do alto do muro, nos fundos do terreno da casa em Victoria Peak. Esgueirou-se para a esquerda, passando por uma barreira de rolos de arame farpado, que preenchia o espaço em que um trecho do muro fora demolido. Foi avançando. Sempre nas sombras, correu pelo gramado, até o canto da casa. Esticou o pescoço e deu uma olhada nas janelas derrubadas do que fora antes um estúdio vitoriano. Na frente do vidro estilhaçado e das armações arrebentadas se postava um fuzileiro, um rifle M-16 apoiado relaxadamente na relva, a extremidade do cano na mão, uma automática 45 presa no cinto. O acréscimo de um rifle à arma menor era um sinal de alerta máximo... o intruso compreendeu isso e sorriu ao constatar que o guarda não julgava necessário empunhar o M-16 com as duas mãos. Fuzileiros e armas em prontidão não eram uma combinação das mais favoráveis. A coronha de um rifle acertaria a cabeça de um homem antes que ele percebesse o que estava acontecendo, O intruso esperou pelo momento oportuno; ocorreu quando o guarda estufou o peito num bocejo prolongado, os olhos se fechando por um instante, enquanto aspirava fundo. O intruso correu, o fio de um garrote se elevou por cima da cabeça do guarda. Tudo acabou em poucos segundos. Não houve praticamente qualquer barulho.

O assassino deixou o corpo onde caiu, pois ali estava mais escuro do que em outras áreas do terreno. Muitos dos refletores nos fundos haviam sido destruídos pelas explosões. Ele se levantou e esgueirou-se até o canto seguinte, onde tirou um cigarro do bolso, acendendo-o com um isqueiro de gás, a chama protegida pela mão em concha. Depois saiu para o clarão dos refletores e encaminhou-se calmamente para as enormes portas francesas queimadas, onde estava um segundo fuzileiro, nos degraus de alvenaria. O intruso deu uma tragada, segurando o cigarro com a mão esquerda, o que lhe encobria parcialmente o rosto.

— Saiu para fumar? — perguntou o guarda.

— Isso mesmo. Não conseguia dormir.

O intruso falou com uru sotaque americano que era um produto do sudoeste.

— Aqueles catres miseráveis não foram feitos para se dormir. Basta sentar num deles e se descobre... Ei, espere aí! Quem é você?

O fuzileiro não teve chance de apontar o rifle. O intruso avançou, enfiando a faca na garganta do guarda com uma precisão implacável, cortando todo som, toda vida. O assassino arrastou rapidamente o cadáver pelo canto do prédio e deixou-o nas sombras. Limpou a lâmina da faca no uniforme do morto, tornou a guardá-la por baixo da túnica, sob o cinto, no quadril direito. E voltou às portas francesas. Entrou na casa.

Percorreu o corredor comprido e mal iluminado, ao final do qual se encontrava um terceiro fuzileiro, na frente de uma porta larga, toda entalhada. O guarda virou o rifle para baixo e consultou o relógio.

— Chegou cedo — disse ele. — Ainda tenho mais uma hora e vinte minutos.

— Não estou com esta unidade, companheiro.

— E do grupo de Oahu?

— Isso mesmo.

— Pensei que tinham despachado vocês de volta ao Havaí. É o que dizem.

— Alguns receberam a ordem de ficar. Estamos agora lá no consulado. Aquele cara... como é mesmo o seu nome?... acho que é McAllister... passou a noite inteira tomando nossos depoimentos.

— Quer saber de uma coisa? Acho que essa história toda está muito esquisita.

— E põe esquisito nisso. Por falar nisso, onde fica a sala daquele bicha? Ele me mandou até aqui para buscar o seu fumo de cachimbo especial.

— Dá para imaginar. Misture um pouco de maconha no fumo.

— Onde é a sala?

— Primeiro, eu vi o médico e ele entrarem naquela primeira porta à direita. E depois, antes de ir embora, ele entrou aqui.

O guarda inclinou a cabeça para indicar a porta em suas

— De quem é esta casa?

— Não sei o nome, mas dizem que o cara é um figurão. Chamam ele de embaixador.

Os olhos do assassino se estreitaram.

— Embaixador?

— Isso mesmo. A sala está toda arrebentada. Metade foi destruída por aquele maníaco filho da puta. Mas o cofre está intacto. É por isso que estou aqui e tem outro cara lá fora, no meio das tulipas. Deve haver uns dois milhões lá dentro para as atividades extracurriculares.

— Ou mais alguma coisa — disse o intruso, suavemente. — A primeira porta à direita, hem?

O assassino virou-se, enfiando a mão por baixo da túnica.

— Ei, espere um pouco! — exclamou o fuzileiro. — Por que o portão não avisou de sua vinda? — Ele pegou o rádio preso no cinto. — Desculpe, companheiro, más tenho de verificar. Não posso deixar de...

O assassino arremessou a faca. Enquanto ela se cravava no peito do guarda, ele se jogou em cima do fuzileiro, os polegares comprimindo-lhe a garganta. Trinta segundos depois, abriu a porta da sala de Havilland e arrastou o cadáver para o interior.

Atravessaram a fronteira em plena escuridão, ternos e gravatas substituindo as roupas amarrotadas e indefinidas que haviam usado antes. Completando a indumentária, levavam duas pastas de executivo, em que estavam colados adesivos com a palavra diplomatique, indicando que o conteúdo eram documentos oficiais que não podiam passar pela inspeção dos agentes de imigração. Na verdade, as pastas continham as armas, assim como vários itens adicionais que Bourne recolhera no apartamento de d’Anjou, depois que McAllister apresentara o adesivo sacrossanto, que era respeitado até mesmo na República Popular... respeitado enquanto a China desejasse que a mesma cortesia fosse oferecida a seu pessoal no serviço diplomático. O conduto de Macau, cujo nome era Wong — ou pelo menos foi esse o nome que ele apresentou —, ficou impressionado com os passaportes diplomáticos, mas, como medida de segurança, assim como pelos vinte mil dólares americanos, que disse lhe imporem uma obrigação moral, resolveu preparar a travessia da fronteira à sua maneira.

— Não foi tão difícil quanto talvez eu o tenha levado a acreditar antes, senhor — explicou Wong. — Dois dos guardas são primos por parte de minha abençoada mãe... que ela descanse em paz com o sagrado Jesus... e sempre nos ajudamos uns aos outros. Faço mais por eles do que eles por mim, mas também me encontro em situação melhor. Suas barrigas estão mais cheias do que a maioria dos habitantes da cidade de Zhuhai Shi e ambos possuem aparelhos de televisão.

— Se são primos, por que naquela vez protestou contra o relógio que dei a um deles? — indagou Bourne. — Disse que era caro demais.

— Porque ele venderia, senhor. Além disso, não quero que ele fique mimado. Passaria a exigir muito de mim.

As fronteiras mais fechadas do mundo eram patrulhadas com base em tais considerações, pensou Bourne. Eles foram orientados por Wong a passar pelo último portão da direita, exatamente às oito e cinqüenta e cinco; o chinês passaria separado, alguns minutos depois. Os passaportes com as tarjas vermelhas foram examinados, enviados a um oficial que estava na casa da guarda e depois os dois diplomatas honrados passaram, entre muitos sorrisos de um dos primos. No outro lado, foram bem recebidos na China pela chefe do Controle da Província de Guangdon, em Zhuhai Shi, que lhes devolveu os passaportes. Era uma mulher baixa, de ombros largos, musculosa. Jason pensou que não gostaria de enfrentá-la num combate corpo a corpo. O inglês da mulher era prejudicado por um forte sotaque, mas ainda assim compreensível.

— Vocês têm negócios do governo a tratar em Zhuhai Shi? — perguntou ela, o sorriso em contradição com os olhos preocupados, vagamente hostis. —Talvez na guarnição de Guangdong? Não querem que eu arrume transporte de automóvel?

— Bu xiexie — disse o subsecretário de Estado. Depois, por cortesia, continuou a falar em inglês, em respeito à diligência da mulher em aprendê-lo. — É uma reunião sem grande importância, que vai durar apenas algumas horas. Voltaremos a Macau assim que acabar. Vão entrar em contato conosco aqui, e por isso vamos tomar um café e esperar.

— Na minha sala, por favor?

— Obrigado, mas acho que não. As pessoas vão nos procurar no... kafie dian, no café.

— Fica à esquerda-direita, senhor. Na rua. Mais uma vez, bem-vindos à República Popular.

— Sua cortesia não será esquecida — disse McAllister, fazendo uma mesura.

— Tem meus agradecimentos — respondeu a corpulenta mulher, acenando com a cabeça e afastando-se.

— Para usar suas palavras, analista — disse Bourne —, saiu-se muito bem. Mas eu diria que ela não está do nosso lado.

— Claro que não — concordou o subsecretário. — Ela recebeu instruções para falar com alguém na guarnição aqui ou em Pequim e confirmar que cruzamos a fronteira. Esse alguém entrará em contato com Sheng e ele saberá que eu passei... e você também. E ninguém mais.

— Ele vem pelo ar —comentou Jason, enquanto se encaminhavam lentamente para o café mal iluminado, na extremidade de um sujo caminho de concreto que saía da rua. — Já está a caminho daqui. De passagem, informo que seremos seguidos. Sabe disso, não é mesmo?

— Não, não sei — respondeu McAllister, lançando um olhar rápido para Bourne. — Sheng será cauteloso. Dei informações suficientes para alarmá-lo. Se ele pensasse que havia apenas um dossiê... o que por acaso acontece... poderia correr o risco, tentando comprá-lo e depois me matar. Mas ele pensa ou tem de presumir que existe uma cópia em Washington. É a que ele precisa destruir. Não fará coisa alguma para me perturbar ou me levar a entrar em pânico e fugir. Lembre-se de que sou um amador e me assusto facilmente. Eu o conheço. Ele já somou tudo a esta altura e provavelmente está me trazendo mais dinheiro do que jamais sonhei. Claro que ele espera recuperá-lo imediatamente, assim que se apossar do dossiê e me matar. Portanto, como vê, tenho um motivo muito forte para não fracassar... ou para não alcançar o sucesso pelo fracasso

O homem da Medusa tornou a fitar nos olhos o homem de Washington.

— Pensou mesmo em tudo, hem?

— Meticulosamente — respondeu McAllister, olhando para a frente. — Durante semanas. Todos os detalhes. Para ser franco, não pensei que você teria alguma participação, pois achava que já estaria morto. Mas tinha certeza de que eu poderia fazer contato com Sheng. De alguma forma... extra-oficialmente, é claro. Qualquer outra forma, inclusive uma conferência confidencial, implicaria protocolo; mesmo que eu conseguisse vê-lo a sós, sem a presença de seus assessores, eu não poderia tocá-lo. Pareceria um assassinato sancionado pelo governo. Pensei em procurá-lo diretamente, em nome dos velhos tempos, usando palavras que provocariam uma resposta... mais ou menos o que fiz ontem à noite. Como você disse a Havilland, os meios mais simples são geralmente os melhores. Sempre tendemos a complicar as coisas.

— Falando em sua defesa, muitas vezes isso é indispensável. Não se pode ser apanhado com uma arma fumegante.

— É uma expressão muito batida — comentou o analista, com um sorriso desdenhoso. — O que significa? Que você foi encaminhado ou desencaminhado a um erro de conseqüências inconseqüentes? A política não gira em torno do embaraço de um único homem, ou pelo menos não deveria. Sempre fico consternado com os clamores das pessoas por integridade, quando não têm a menor idéia, nenhum conceito, da maneira como devemos operar

— Talvez as pessoas queiram de vez em quando uma resposta direta.

— Não podem ter — disse McAllister, ao se aproximarem da entrada do café — porque não compreenderiam.

Bourne parou na frente da porta, sem abri-la.

— Você está cego — disse ele, fitando o subsecretário nos olhos. —Também não recebi uma resposta direta, muito menos uma explicação. Passou tempo demais em Washington. Deveria experimentar algumas semanas em Cleveland ou Bangor, Maine. poderia ampliar as suas perspectivas.

— Não me faça um sermão, Sr. Bourne. Menos de quarenta e seis por cento de nossa população se importam o suficiente para votar... o que determina os rumos que tomamos. Tudo fica a nosso critério... os artistas e os burocratas profissionais. Somos tudo o que vocês têm... Podemos entrar, por favor? Seu amigo Sr. Wong disse que deveríamos passar apenas alguns minutos sendo vistos a tomar café e depois sairmos para a rua. Disse que nos encontraria dentro de vinte e cinco minutos exatamente e já se passaram doze.

— Doze? Não dez ou quinze, mas doze?

— Isso mesmo.

— O que vamos fazer se ele se atrasar dois minutos? Fuzilá-lo?

— Muito engraçado — murmurou o analista, abrindo a porta.

Deixaram o café para a calçada escura da praça mal cuidada em frente ao posto de fronteira de Guangdong. Como era uma hora de pouco movimento nos portões, não havia mais que uma dúzia de pessoas atravessando a praça e desaparecendo na escuridão. Dos três lampiões nas proximidades, apenas um estava aceso, projetando uma claridade fraca. A visibilidade era mínima, O prazo de vinte e cinco minutos se esgotara e passou para hora, depois se aproximou dos trinta e oito minutos, Bourne disse:

— Alguma coisa está errada. Ele já deveria ter feito contato, a esta altura.

— Dois minutos e o fuzilamos? — disse McAllister, no mesmo instante, detestando sua tentativa de humor. — Pensei que manter a calma era tudo.

— Por dois minutos, não quase quinze — respondeu Jason. E baixinho, como se falasse para si mesmo, acrescentou: — Não é normal. Por outro lado, poderia ser normalmente anormal. Quer que a gente faça contato com ele.

— Não estou entendendo...

— Nem precisa. Basta andar ao meu lado, como se estivéssemos passeando, passando o tempo até alguém nos procurar. Se ela nos vir, a mulher que deve ser campeã de luta-livre, não ficará surpresa. As autoridades chinesas sempre se atrasam para as reuniões; acham que isso lhes proporciona uma vantagem.

— Que eles esperem?

— Exatamente. Só que não é com gente assim que vamos nos encontrar agora. Vamos para a esquerda, onde está mais escuro, longe do lampião. Procure parecer descontraído, fale sobre o tempo, qualquer coisa. Balance a cabeça, dê de ombros... e continue andando, os movimentos suaves.

Haviam percorrido cerca de quinze metros quando aconteceu.

Kam Pek!

O nome do cassino em Macau foi sussurrado das sombras além de uma banca de jornal vazia.

— Wong?

— Fiquem onde estão e finjam que conversam, mas escutem as minhas palavras.

— O que aconteceu?

— Vocês estão sendo seguidos.

— Dois pontos para um brilhante burocrata — disse Jason. — Algum comentário, Sr. subsecretário?

— É inesperado, mas não ilógico — respondeu McAllister. — Talvez uma salvaguarda. Passaportes falsos abundam por aqui, como por acaso sabemos.

— Observaram a nossa partida.

— Talvez estejam querendo se certificar de que não vamos nos encontrar com o tipo de pessoas que você sugeriu ontem à noite — sussurrou o analista, a voz muito baixa para se ouvida pelo conduto chinês.

— É bem possível. — Bourne alteou ligeiramente a voz, a fim de que o conduto pudesse ouvi-los, os olhos fixos no portão da fronteira. Não havia ninguém ali. — Quem está nos seguindo?

— O Porco.

— Soo Jiang?

— Isso mesmo, senhor. E o motivo pelo qual devo permanecer fora de vista.

— Mais alguém?

— Ninguém que eu pudesse ver, mas não sei quem pode estar na estrada para as colinas.

— Vou liquidá-lo — disse o homem da Medusa chamado Delta.

— Não! — objetou McAllister. — As ordens que ele recebeu de Sheng podem incluir a confirmação de que permanecemos sozinhos, que não nos encontramos com mais ninguém. Concordou que era possível.

— Ele só poderia fazer isso se entrasse em contato com outros. Não poderá fazê-lo... se for isolado agora. E seu velho amigo não permitiria uma transmissão de rádio enquanto está num avião ou helicóptero. Poderia ser interceptada.

— Vamos supor que haja sinais específicos... um foguete ou uma lanterna potente, informando ao piloto que o campo está livre?

Jason olhou para o analista.

— Você pensa mesmo em tudo.

— Há uma maneira — disse Wong, das sombras. — E é um privilégio que eu gostaria de reservar para mim mesmo, sem custo adicional.

— Que privilégio?

— Eu matarei o Porco. Será feito de tal forma que a missão não ficará comprometida.  

— O quê?

Atônito, Bourne fez menção de virar a cabeça.

— Por favor, senhor! Olhe só para a frente!

— Desculpe. Mas por quê?

— Ele fornica indiscriminadamente, ameaçando as mulheres que conquista com a perda do emprego para elas e seus maridos, até mesmo para irmãos e primos. Durante os últimos quatro anos ele levou a vergonha a muitas famílias, inclusive a mmha, por parte de minha abençoada mãe.

— Por que ele ainda não foi morto?

— Sempre anda com guardas armados, mesmo em Macau. Apesar disso, porém, já houve vários atentados de homens enfurecidos. E resultaram em represálias.

— Represálias?

— Foram escolhidas pessoas, também de forma indiscriminada, acusadas de roubar suprimentos e equipamentos da guarnição. A punição para esse crime é a morte nos campos.

— Não vou mais fazer perguntas — murmurou Bourne. — Você tem motivos suficientes. Mas como, esta noite?

— Os guardas não estão com ele agora. Talvez estejam à sua espera na estrada para as colinas, mas não se encontram em sua companhia neste momento. Comecem a se encaminhar para lá; se ele seguir, eu irei atrás. Se ele não seguir, saberei que a viagem não será interrompida e os alcançarei mais adiante.

— Vai nos alcançar? — disse Bourne, franzindo o rosto.

— Depois de matar o Porco e deixar seu corpo no lugar apropriado e, para ele, desonroso. O banheiro das mulheres.

— E se ele nos seguir? — indagou Jason.

— Minha oportunidade vai chegar, mesmo enquanto sirvo como seus olhos. Verei os guardas, mas eles não me verão. Não importa o que o Porco faça, há de chegar o momento em que vai se separar, mesmo que seja apenas alguns passos, na escuridão. Será o suficiente, e todos vão presumir que ele impôs vergonha a um de seus próprios homens.

— Vamos embora.

— Conhece o caminho, senhor?

— Como se estivesse com um mapa nas mãos.

— Eu o encontrarei na base da primeira colina, além do mato alto. Está lembrado?

— Seria difícil esquecer. Quase comprei uma sepultura na China ali.

— Depois de sete quilômetros, siga pela floresta, na direção dos campos.

— é o que tenciono fazer. Você me ensinou. Tenha uma boa caçada, Wong.

— Terei mesmo, senhor. Tenho motivos suficientes.

Os dois americanos atravessaram a praça mal cuidada, deixando a claridade precária para a total escuridão. Um vulto obeso, à paisana, observava-os das sombras da calçada de concreto. Olhou para o relógio e balançou a cabeça, sorrindo para si mesmo de satisfação. O Coronel Soo Jiang virou-se e voltou pelo túnel para o complexo de imigração, com portões de ferro, cabine de madeira e rolos de arame farpado a distância, tudo iluminado por uma claridade cinzenta. A chefe do Controle da Província de Guangdong em Zhuhai Shi avançou em sua direção, determinada, marcial, entusiástica.

— Eles devem ser muito importantes, Coronel —comentou ela, os olhos não mais hostis, mas com uma expressão que beirava a adoração cega... e o medo.

— São sim, são sim...

— Não poderiam deixar de ser para merecer a atenção de um oficial tão ilustre. Dei o telefonema para o homem em Guangzhou, como pediu. Ele me agradeceu, mas não anotou meu nome...

— Pode deixar que cuidarei disso — interrompeu Soo, cansado.

— E manterei os melhores homens nos portões para recebê-los quando voltarem a Macau.

Soo fitou a mulher nos olhos.

— Não será necessário. Eles serão levados a Pequim para conferências confidenciais, do mais alto nível. Minhas ordens são para eliminar todos os registros da passagem dos dois pela fronteira de Guangdong.

— É tão confidencial assim?

— É sim, Camarada Madame. São negócios de estado secretos e devem continuar assim. Nem mesmo os associados mais íntimos devem tomar conhecimento. Vamos para o seu gabinete, por favor

— Imediatamente —A mulher de ombros largos virou-se, com uma precisão militar. — Tenho chá ou café, até mesmo o uísque britânico de Hong Kong.

— Ah, sim, o uísque britânico... Posso acompanhá-la, camarada? Meu trabalho acabou.

Os dois vultos wagnerianos, um tanto grotescos, marcharam para a porta de vidro do gabinete.

 

— Cigarros! — sussurrou Bourne, segurando o ombro de McAllister.

— Onde?

— Lá na frente, perto da estrada, à esquerda. No bosque.

— Não vi nada.

— Não estava procurando. Estão sendo cobertos pelas mãos, mas dá para perceber. Os troncos das árvores recebem um reflexo de claridade num momento e no seguinte ficam escuros. Sem qualquer ritmo, completamente irregular. Homens fumando. Penso às vezes que o Extremo Oriente gosta mais de cigarro do que de sexo.

— O que vamos fazer?

— Exatamente o que já estamos fazendo, só que mais alto.

— Como assim?

— Continue andando e diga qualquer coisa que lhe passar pela cabeça. Eles não vão mesmo compreender. Tenho certeza de que conhece “Hiawatha” ou “Horatio na Ponte”... talvez até se lembre de Aura Lee dos tempos do colégio. Não cante, só diga as palavras. Vai manter sua cabeça distante de outras coisas.

— Mas por quê?

— Porque está acontecendo justamente o que você previu. Sheng se certifica de que não fazemos contato com alguém que possa representar uma ameaça para ele. Vamos lhe oferecer essa garantia, está bem?

— E se um deles falar inglês?

— É altamente improvável; mas, se preferir, improvise uma conversa.

— Não sou muito bom nessas coisas. Detesto festas e jantares porque nunca sei o que dizer.

— Foi por isso que sugeri os versos recitados. Direi alguma coisa sempre que fizer uma pausa. Vamos começar. Fale de maneira descontraída, mas depressa. Este não é um lugar para estudiosos chineses que falam inglês rapidamente... Os cigarros se apagaram. Eles já nos avistaram. Vamos logo!

— Oh, Deus... está bem... “Sentado na varanda de O’Reilly, contando histórias de sangue e tragédia...”

— Muito apropriado! — disse Jason, lançando um olhar irritado a seu pupilo.

— “De repente me ocorreu, por que não comer a filha de O’Reilly..”

— Devo dizer, Edward, que você não pára de me surpreender.

— É uma velha canção da minha fraternidade na universidade — sussurrou o analista.

— Como? Não consigo ouvi-lo, Edward. Fale mais alto.

— “Ô, o, ô, i, i, i, como é gostosa a filha de Reilly...”

— Sensacional! — interrompeu Bourne, enquanto passavam pelo trecho do bosque em que apenas poucos segundos antes homens escondidos estavam fumando. — Creio que seu amigo vai compreender esse ponto de vista. Mais algum pensamento?

— Esqueci a letra.

— Perguntei por seus pensamentos. Tenho certeza de que vai se lembrar

— Alguma coisa sobre “o velho Reilly”... Ah, sim, estou lembrando agora. Primeiro, havia “trepe e trepe”, trepe mais um pouco, trepe até não poder mais”, só depois é que vinha o velho Reilly... “Duas pistolas no cinto, à procura do sacana que comeu a sua filha.” Lembrei de tudo

— Você pertence a um museu, se Ripley criou algum... Mas pense da seguinte forma: pode pesquisar todo o projeto quando voltar a Macau

— Que projeto?... Havia outra que sempre era muito engraçada. “Cem garrafas de cerveja na parede, cem garrafas de cerveja; uma caiu...” Ora, era comprida demais. Uma redução repetitiva... “noventa e nove garrafas de cerveja na parede...”

— Pode esquecer. Eles já estão fora do alcance de nossas vozes.

— Já estão? Graças a Deus!

— Saiu-se muito bem. Se algum daqueles palhaços sabia alguma palavra de inglês, então está ainda mais confuso do que eu. Gostei, analista. Vamos andar mais depressa.

McAllister fitou Jason.

— Fez de propósito, não é? Estimulou-me a lembrar algu-

ma coisa... qualquer coisa... sabendo que eu me concentraria e não entraria em pânico.

Bourne não respondeu; limitou-se a fazer uma declaração:

— Mais trinta metros e você pode continuar sozinho.

— O quê? Vai me deixar?

— Por uns dez minutos, talvez quinze. Continue a andar e levante o braço, a fim de que eu possa pôr a pasta em cima e abri-la.

— Onde você vai? — perguntou o subsecretário, enquanto a pasta era ajeitada meio sem jeito em seu braço esquerdo. Jason abriu-a, tirou uma faca de lâmina comprida e tornou a fechá-la. — Não pode me deixar sozinho!

— Não há problema. Ninguém vai querer deter você... a nós. Se quisessem, já o teria feito.

— Está querendo dizer que poderia ter sido uma emboscada?

— Eu contava com a conclusão de sua mente analítica de que não era. Pegue a pasta.

— Mas o que você vai...

— Preciso saber o que está acontecendo lá atrás. Continue andando.

O homem da Medusa afastou-se para a esquerda e entrou no bosque, numa curva da estrada. Avançando rapidamente, sem fazer barulho, evitando instintivamente as moitas emaranhadas ao primeiro sinal de resistência, seguiu para a direita, descrevendo um amplo semicírculo. Minutos depois avistou o clarão de cigarros; deslocando-se como um felino, foi se aproximando, até ficar a três metros dos homens. O luar intermitente, filtrado pelas árvores frondosas, proporcionava claridade suficiente para que pudesse fazer uma contagem. Havia seis homens, cada um armado com uma submetralhadora pendurada no ombro... E havia algo mais, algo extremamente incongruente. Cada um dos homens usava o uniforme de quatro botões de oficiais superiores do exército da República Popular. E pelos pedaços de conversa que pôde captar, Bourne constatou que eles falavam mandarim e não cantonês, que era o dialeto normal para soldados, até mesmo oficiais, na guarnição de Guangdong. Não eram homens de Guangdong. Sheng trouxera sua guarda de elite.

Subitamente, um dos oficiais acendeu o isqueiro e olhou

para o relógio. Bourne estudou o rosto por cima da chama. Conhecia o homem e seu julgamento foi confirmado. Era o mesmo que tentara enganar Eco, apresentando-se como prisioneiro no caminho, naquela noite terrível, o oficial que Sheng tratara com alguma deferência. Um assassino pensante, de fala mansa.

— Xian zai —disse o homem, anunciando que o momento chegara.

Pegou um rádio portátil e gritou, chamando o interlocutor pelo codinome de Mármore:

— Da li shi, da li shi! Eles estão sozinhos, não há mais ninguém. Vamos continuar de acordo com as instruções. Prepare-se para o sinal.

Os seis oficiais levantaram-se ao mesmo tempo, ajustando as armas e apagando os cigarros, esmagando-os sob as botas. E começaram a se encaminhar depressa para a estrada.

Bourne deu uma volta, engatinhando, ficou de pé e correu pelo bosque. Tinha de alcançar McAllister antes que o contingente de Sheng chegasse perto e descobrisse pelo luar esporádico que o analista se encontrava sozinho. Se os guardas ficassem alarmados, poderiam enviar um “sinal” diferente: Conferência malograda. Alcançou a curva na estrada e correu mais depressa, pulando sobre galhos caídos que outros homens não perceberiam, esgueirando-se entre cipós e folhagens entrelaçadas que outros não preveriam. Menos de dois minutos depois emergiu silenciosamente do bosque para o lado de McAllister.

— Santo Deus! — balbuciou o subsecretário.

— Fale baixo!

— Você é.um louco!

— Fale-me a respeito.

— Levaria horas. — Com as mãos trêmulas, McAllister devolveu a pasta a Jason. — Pelo menos esta coisa não explodiu.

— Eu deveria ter avisado para não deixar cair nem sacudir demais.

— Oh, não!... Não está na hora de sairmos da estrada? Wong disse...

— Esqueça. Vamos permanecer em plena vista até chegarmos ao campo na segunda colina, quando você ficará mais à vista do que eu. Vamos depressa. Alguma espécie de sinal será transmitida, o que significa que você estava certo mais uma vez. O piloto vai receber o aviso de que pode pousar... nada de comunicação pelo rádio, apenas uma luz.

— Devemos nos encontrar com Wong em algum lugar. Creio que ele falou na base da primeira colina.

— Vamos lhe dar alguns minutos, mas acho que podemos esquecê-lo também. Wong verá o que eu vi; se eu estivesse no seu lugar, voltaria para Macau e os vinte mil dólares americanos, depois diria que perdi o caminho.

— O que você viu?

— Seis homens armados com bastante poder de fogo para desfolhar por completo uma dessas colinas.

— Oh, Deus! Nunca vamos conseguir escapar!

— Não perca a esperança por enquanto. É uma das coisas em que eu venho pensando. — Bourne virou a cabeça para McAllister, acelerando os passos. — Por outro lado, o risco sempre existiu... fazendo as coisas à sua maneira.

— Sei disso. Não vou entrar em pânico. — O bosque ficara para trás; a estrada de terra atravessava agora campos de vegetação alta. — Para que acha que esses homens estão aqui?

— São pontos de apoio para o caso de uma armadilha, coisa que qualquer um neste ofício estaria esperando. Eu lhe disse isso, mas você não quis acreditar em mim. Mas se uma coisa que comentei é certa... e acho que é... eles ficarão fora de vista, a fim de evitar que você entre em pânico e fuja. Se isso acontecer, será a nossa saída.

— Como?

— Siga para a direita e atravesse o campo — disse Jason, sem responder à pergunta. — Darei cinco minutos a Wong, a menos que avistemos um sinal em algum lugar ou escutemos o barulho de um avião ou helicóptero. Mas não mais do que isso. E darei todo esse tempo porque quero realmente aquele par de olhos por que paguei.

— Ele não poderia dar a volta por aqueles homens sem ser visto?

— Poderia perfeitamente, se não estiver voltando para Macau.

Chegaram ao final do campo de mato alto e à base da

primeira colina, onde roseiras se erguiam do terreno ehi aclive. Bourne olhou para o relógio e depois para McAllister.

— Vamos subir até lá e sumir — disse ele, apontando para as árvores mais acima, — Ficarei para trás, mas você continua a subir. Só que não deve sair para o campo seguinte, não deve se expor. Fique à margem. Se avistar alguma luz ou ouvir um helicóptero. assovie. Sabe assoviar, não sabe?

— Para dizer a verdade, não muito bem. Quando as crianças eram pequenas e tínhamos um cachorro, um retriever dourado...

— Pare com isso, pelo amor de Deus! Jogue pedrinhas pelas árvores que ouvirei. E agora continue em frente!

— Já entendi. Ande!

Delta — pois ele era DeIta agora — iniciou a vigília. O luar era a todo instante interceptado pelas nuvens baixas, que corriam pelo céu; ele esquadrinhava o campo de mato alto, procurando por uma mudança no padrão monótono, por hastes se inclinando para a base da colina, em sua direção. Três minutos se passaram, e ele quase concluíra que era perda de tempo quando um homem subitamente emergiu da relva à sua direita e mergulhou pela folhagem. Bourne largou a pasta no chão e tirou do cinto a faca de lâmina comprida.

— Kam Pek! — sussurrou o homem

— Wong?

— Isso mesmo, senhor — respondeu o chinês, contornando os troncos das árvores para se aproximar de Jason. — Sou cumprimentado com uma faca?

— Há algumas outras pessoas lá atrás e, para dizer a verdade, eu não esperava que você aparecesse. Eu lhe disse que poderia ir embora se os riscos parecessem grandes demais. Não pensei que pudesse ocorrer tão cedo, mas teria aceitado. Aqueles homens estão empunhando armas muito possantes.

— Eu poderia me aproveitar da situação, mas, além do dinheiro, proporcionou-me um ato de enorme gratificação. E também para muitas outras pessoas. Mais pessoas do que pode imaginar ficarão agradecidas.

— Soo, o Porco?

— Isso mesmo, senhor

— Espere um pouco — disse Bourne, alarmado. — Como

pode ter tanta certeza de que vão pensar que foi um daqueles homens?

— Que homens?

— A patrulha com submetralhadoras lá atrás. Não são de Guangdong, não são da guarnição. Vieram de Pequim.

— O ato ocorreu em Zhuhai Shi. No portão.

— Porra! Você estragou tudo! Eles estavam esperando por Soo!

— Se estavam, senhor, ele nunca teria chegado.

— Como?

— O Porco estava se embriagando com a mulher que comanda o portão. Foi mijar e me encontrou à sua espera. Está agora no banheiro ao lado, num bidê de mulher sujo, com a garganta cortada e os órgãos genitais removidos.

— Quer dizer que ele não nos seguia?

— E não deu qualquer indicação de que tencionava fazê-lo.

— Entendo... não, não entendo. Ele foi cortado desta noite. É uma operação exclusiva de Pequim. Contudo, ele foi o contato primário aqui...

— Não sei de nada sobre essas coisas, senhor — murmurou Wong, na defensiva.

— Desculpe. Não poderia mesmo saber.

— Aqui estão os olhos que contratou, senhor. Onde deseja que eu olhe e o que quer que eu faça?

— Teve algum problema para passar por aquela patrulha na estrada?

— Nenhum. Eu os vi, eles não me viram. Estão agora sentados no bosque, à beira do campo. Se isso lhe serve de alguma ajuda, o homem com o rádio instruiu a pessoa com quem falou a partir imediatamente, assim que desse o “sinal”. Não sei o que isso significa, mas presumo que se relaciona com um helicóptero.

— Presume?

— O Francês e eu seguimos o major inglês até aqui uma noite. Era por isso que eu sabia para onde levá-lo na ocasião anterior. Um helicóptero pousou e homens saltaram para se encontrarem com o inglês.

— Foi o que ele me disse.

— Ele disse, senhor?

— Não importa. Fique aqui. Se a patrulha começar a atravessar o campo, quero ser informado. Estarei lá em cima, no campo antes da segunda colina, no lado direito. O mesmo campo onde você e Eco viram o helicóptero.

— Eco?

— O Francês. — Delta fez uma pausa, pensando depressa. — Não pode riscar um fósforo, não pode atrair atenção para sua presença...

E de repente houve sons abafados de objetos batendo em outros objetos. Pedras! Arvores! McAllister estava mandando um aviso!

— Pegue pedras ou pedaços de pau e comece a jogar no bosque, no lado direito. Eu ouvirei.

— Encherei os bolsos agora mesmo.

— Não tenho o direito de lhe perguntar isso — disse Delta, pegando a pasta — mas você tem uma arma?

— Uma Magnum calibre três-cinco-sete, com bastante munição, cortesia de meu primo por parte de mãe, que ela descanse com o sagrado Jesus.

— Espero não tornar a vê-lo; se isso acontecer, adeus, Wong. Uma parte de mim não aprova você, mas é um homem e tanto. E acredite que você realmente me venceu na última vez.

— O senhor levou a melhor. Mas eu gostaria de tentar de novo.

— Esqueça! — exclamou o homem da Medusa, antes de começar a subir a encosta.

Como um pássaro gigantesco, monstruoso, a parte inferior do corpo pulsando com uma luz ofuscante, o helicóptero desceu para o campo. Como combinado, McAllister estava parado em plena vista; e como era de se esperar, o farol do helicóptero fixou-se nele. E também como estava combinado, Jason Bourne se encontrava a quarenta e tantos metros de distância, nas sombras do bosque... visível, mas não claramente. Os rotores pararam, com um rangido prolongado, O silêncio era opressivo. A porta foi aberta, uma escada baixada, e Sheng Chou Yang, esguio, cabelos grisalhos, desceu os degraus, carregando uma pasta.

— É um prazer tornar a vê-lo depois de tantos anos, Edward — disse o primogênito de um taipan. — Gostaria de inspecionar o helicóptero? Como você pediu, não há mais ninguém, além de mim e um piloto de confiança.

— Não, Sheng, você pode fazer isso por mim! — gritou McAllister, a algumas dezenas de metros de distância, tirando uma lata de dentro do casaco e jogando na direção do aparelho. — Diga ao piloto para sair por alguns minutos e acionar o spray para o interior da cabine. Se houver alguém lá dentro, vai sair correndo.

— Não parece você, Edward. Homens como nós sabem quando confiar um no outro. Não somos tolos.

— Faça o que estou mandando, Sheng!

— Está bem.

Obedecendo à ordem, o piloto saltou do aparelho. Sheng Chou Yang pegou a lata e acionou o spray no interior do helicóptero. Vários minutos transcorreram; ninguém saiu.

— Está satisfeito... ou devo explodir o aparelho, o que não serviria a nenhum dos dois? Sempre estivemos além desses jogos, meu amigo.

— Mas você se tornou o que é, enquanto eu permanecia o que era.

— Podemos corrigir isso, Edward. Posso exigir sua presença em todas as nossas conferências. Posso elevá-lo a uma posição de proeminência. Será um grande astro no firmamento do serviço diplomático.

— Quer dizer que é verdade? Tudo o que consta do dossiê. Vocês estão de volta. O Kuomintang retorna à China...

— Vamos conversar em particular, Edward. — Sheng lançou um olhar para o suposto assassino nas sombras e depois gesticulou para a direita. — É um assunto exclusivamente entre nós.

Bourne moveu-se rapidamente; correu para o aparelho, enquanto os dois negociadores estavam de costas para ele. Quando o piloto subiu no helicóptero e chegou a seu assento, o homem da Medusa estava logo atrás.

— An jing! — sussurrou Jason, ordenando que o homem se mantivesse em silêncio, sua pistola-metralhadora reforçando a ordem.

Antes que o aturdido piloto pudesse reagir, Bourne passou uma tira de pano grosso por sua cabeça, prendendo-a na boca aberta e puxando com força. Depois, tirando do bolso uma corda de náilon fina e comprida, amarrou o piloto no assento, imobilizando-lhe os braços. Não haveria uma decolagem repentina

Tornando a pôr a arma no cinto, por baixo do casaco, Bourne saiu rastejando do helicóptero. O enorme aparelho bloqueava sua visão de McAllister e Sheng Chou Yang, o que significava que o inverso também acontecia. Voltou apressado à sua posição anterior, virando a cabeça a todo instante, preparado para mudar de direção se os dois homens aparecessem em qualquer lado do helicóptero, que era o seu escudo visual. Parou; estava bastante perto; estava na hora de parecer descontraído. Pegou um cigarro e riscou um fósforo, acendendo-o. Depois, caminhou a esmo, para a esquerda, até um ponto em que podia divisar com alguma dificuldade os dois vultos no outro lado do helicóptero. Imaginou o que estariam dizendo os dois inimigos. E se perguntou o que McAllister estava esperando.

Faça logo, analista! Faça agora! É a sua maior oportunidade. Vai perder um tempo precioso em cada momento de espera, e isso pode acarretar complicações. Mas que diabo, faça logo de uma vez!

Bourne ficou completamente imóvel. Ouviu o som de uma pedra atingindo uma árvore perto do lugar em que saíra do campo. E depois outra mais próxima e uma terceira, em rápida sucessão. Era o aviso de Wong! A patrulha de Sheng estava atravessando o campo lá embaixo!

O homem da Medusa olhou para Sheng e McAllister, seu ódio aumentando, prestes a explodir. Nunca deveria ter permitido que acontecesse assim. A morte pelas mãos de um amador, um burocrata amargurado que queria seu momento ao sol.

— Kam Pek!

Era Wong! Ele atravessara o bosque no segundo nível e estava atrás de Jason, escondido nas árvores.

— O que é? Ouvi as pedras.

— Não vai gostar do que ouvirá agora, senhor.

— O que é?

— A patrulha está subindo a colina.

— É uma ação protetora — disse Jason, os olhos fixos nos dois vultos no campo. — Talvez não haja problemas. Eles não podem ver muita coisa.

— Tenho a impressão de que isso não é tão importante, senhor. Eles estão se preparando. Eu ouvi... engatilharam suas armas para a posição de disparo.

Bourne engoliu em seco, invadido por uma sensação de inutilidade. Por motivos que não podia imaginar, era uma armadilha invertida.

— É melhor você sair daqui, Wong.

— Posso fazer uma pergunta? Essas são as pessoas que mataram o Francês?

— São.

— E para as quais Soo Jiang, o Porco, trabalhou de maneira tão indecorosa durante os últimos quatro anos?

— Isso mesmo.

— Então acho que vou ficar, senhor.

Sem dizer nada, o homem da Medusa voltou para sua pasta. Pegou-a e jogou para o bosque.

— Abra-a, Wong. Se escaparmos desta, você pode passar os seus dias no cassino sem recolher mensagens.

— Eu não jogo.

— Mas vai jogar agora, Wong.

— Pensou mesmo que nós, os grandes senhores da guerra do mais antigo e refinado império que o mundo já conheceu, haveríamos de deixá-lo sob o domínio de camponeses imundos e sua prole mal nascida, condicionados pelas desacreditadas teorias do igualitarismo? — Sheng estava parado na frente de McAllister, segurando a pasta sobre o peito, com as duas mãos. — Eles deveriam ser nossos escravos, não nossos soberanos.

— Foi esse o tipo de pensamento que fez com que vocês perdessem o país... vocês os líderes, não o povo. O povo não foi consultado. Se fosse, poderia haver acordos, concessões... e vocês ainda o teriam.

— Não se faz concessões aos animais marxistas... ou a mentirosos. Assim como não farei qualquer concessão a você, Edward.

— Como?

Com a mão esquerda, Sheng abriu a pasta e tirou o dossiê roubado de Victoria Peak.

— Reconhece isto? — perguntou ele, calmamente.

— Não acredito!

— Mas deve acreditar, meu velho adversário. Um pouco de engenhosidade pode produzir qualquer coisa.

— E impossível!

— Está aqui. Em minha mão. E a página inicial declara expressamente que só existe uma cópia, que deve ser enviada sob escolta militar, em Segurança Ultramáxima, para onde quer que vá. O que é absolutamente correto, em minha opinião, pois a sua avaliação foi acurada quando conversamos pelo telefone. O conteúdo incendiaria o Extremo Oriente... tornaria a guerra inevitável. Os direitistas de Pequim marchariam sobre Hong Kong... e os direitistas de lá seriam chamados de esquerdistas em seu lado do mundo. Um absurdo, não é mesmo?

— Eu tinha uma cópia e mandei para Washington — declarou o subsecretário, a voz rápida, suave, firme.

— Não acredito. Todas as transmissões diplomáticas, por telefone computadorizado ou pela mala, devem ser autorizadas pela mais alta autoridade presente. O notório Embaixador Havilland não permitiria, e o consulado não faria coisa alguma sem a sua autorização.

— Mandei uma cópia para o consulado chinês! — gritou McAllister. — Você está liquidado, Sheng!

— É mesmo? Quem você pensa que recebe todas as comunicações de todas as fontes externas em nosso consulado em Hong Kong? Não precisa se dar o trabalho de responder, eu farei isso por você. Um dos nossos homens. — Sheng fez uma pausa, os olhos messiânicos subitamente em fogo. — Estamos por toda parte, Edward! Não seremos rechaçados! Vamos recuperar nossa nação, nosso império!

— Você está louco. Não pode dar certo. Vai desencadear uma guerra.             

— Então será uma guerra justa! Os governos do mundo inteiro terão de optar! O poder do indivíduo ou o poder do estado! Liberdade ou tirania!

— Bem poucos de vocês ofereciam liberdade, e muitos eram tiranos.

— Vamos prevalecer... de um jeito ou de outro.

— Santo Deus, é justamente o que está querendo! Levar o mundo à beira do abismo, forçá-lo a optar entre aniquilação e sobrevivência! É assim que pensa que vai conseguir o que quer, que a escolha da sobrevivência vai prevalecer! Essa comissão econômica, toda a estratégia para Hong Kong, não passa de um começo! Quer espalhar seu veneno por todo o Extremo Oriente! E um fanático, está completamente cego! Será que não pode perceber as trágicas conseqüências...

— Nossa nação nos foi roubada e vamos recuperá-la! Não podemos ser detidos! Vamos marchar!

— Você pode ser detido — disse McAllister calmamente, a mão direita aproximando-se da dobra do casaco. — Eu vou detê-lo.

Subitamente, Sheng largou a pasta, revelando uma pistola. Ele atirou, enquanto McAllister instintivamente recuava, dominado pelo terror, segurando o ombro.

— Jogue-se no chão! —berrou Bourne, correndo na frente do helicóptero, iluminado pelos faróis, disparando uma rajada com a pistola-metralhadora. — Role! Role! Se puder se mexer, role para longe!

— Você! — gritou Sheng, disparando dois tiros na direção do subsecretário caído e depois levantando a arma e puxando o gatilho repetidamente, mirando o homem da Medusa que corria em ziguezague na sua direção.

— Por Eco! — berrou Bourne, a plenos pulmões. — Pelas pessoas que você retalhou! Pelo professor numa corda que você matou! Pela mulher que não conseguiu conter... por aqueles dois irmãos, mas principalmente por Eco, seu filho da puta!

Uma rajada curta saiu da pistola-metralhadora... e depois mais nada! Por mais que Bourne apertasse o gatilho, nada acontecia. A arma estava emperrada! Emperrada! Sheng percebeu; apontou com todo cuidado, enquanto Jason arremessava sua arma para cima dele. Sheng atirou; instintivamente, Delta virou para a direita, girando no ar, enquanto tirava a faca do cinto. Ao cair no chão, invertendo a direção, atirou a faca contra Sheng. A faca encontrou o alvo, abrindo o peito do fanático. O assassino de centenas de pessoas e assassino em potencial de milhões estava morto.

A audição de Delta estivera suspensa; não estava mais. A patrulha saíra correndo do bosque, rajadas de metralhadoras povoando a noite e o campo... Outras rajadas soaram além do helicóptero; Wong abrira a pasta e encontrara o que precisava. Dois soldados da patrulha tombaram, os outros quatro se jogaram ao chão; um deles rastejou de volta ao bosque... estava gritando. O rádio! Ele estava entrando em contato com outros homens, outras patrulhas! Quão longe estariam? Quão perto?

Prioridades! Bourne correu por trás do helicóptero e foi até Wong, que estava agachado junto a uma árvore, na beira do bosque.

— Tem outra dessas lá dentro! — sussurrou ele. — Passe para mim!

— Poupe a munição — disse Wong. — Não tem muita.

— Sei disso. Fique aqui e procure imobilizá-los da melhor forma que puder, mas mantenha o fogo baixo.

— Para onde vai, senhor?

— Dar a volta pelas árvores.

— É o que o Francês teria ordenado que eu fizesse.

— Ele estava certo. Sempre estava certo.

Jason embrenhou-se pelo bosque, com a faca ensangüentada no cinto; os pulmões estavam estourando, as pernas doíam, os olhos esquadrinhavam a escuridão do bosque. Avançou pela folhagem densa tão depressa quanto podia, fazendo o mínimo de barulho possível.

Dois estalidos! Gravetos grossos no chão, quebrados por terem sido pisados! Divisou um vulto avançando em sua direção e contornou o tronco de uma árvore. Sabia quem era... o oficial com o rádio, o assassino ponderado e de fala macia do santuário de Pequim, um soldado experiente. Ataque pelos flancos. Mas ele carecia de treinamento de guerrilheiro e isso lhe custaria a vida. Não se podia pisar em objetos grossos na floresta.

O oficial passou, meio agachado. Jason saltou, o braço esquerdo envolvendo o pescoço do homem, a arma em sua mão batendo na cabeça do oficial, a faca outra vez entrando em ação. Bourne ajoelhou-se ao lado do cadáver, pôs a arma no cinto e pegou a potente metralhadora do oficial. Encontrou dois pentes de balas adicionais; as chances eram melhores agora. Era até possível que escapassem vivos. Estaria McAllister vivo? Ou o momento ao sol de um burocrata frustrado terminara na perpétua escuridão? Prioridades!

Contornou a margem curva do campo até o ponto por onde entrara. Os disparos esporádicos de Wong estavam mantendo os três homens restantes da patrulha de elite de Sheng no lugar em que se encontravam, com medo de se mexerem. E, de repente, algo fez Jason virar-se... um zumbido à distância, um brilho repentino em seu campo de visão. Eram as duas coisas! O som era de um motor acelerado, o brilho de um refletor esquadrinhando o céu escuro. Por cima das árvores em declive, ele podia divisar um veículo — um caminhão — com um refletor no teto, operado por alguém experiente. O caminhão avançava pela estrada a toda velocidade, oculto agora pelo mato alto; somente o refletor era visível, avançando cada vez mais depressa para a base da colina, apenas duzentos metros lá embaixo. Prioridades. Ande!

— Suspendam o fogo! — gritou Bourne, pulando no mesmo instante para outra posição.

Os três oficiais se viraram no chão, acionando suas metralhadoras, as balas cortando o ar, no lugar onde a voz soara.

O homem da Medusa avançou. Tudo acabou em poucos segundos, a potente metralhadora levantando terra e os cadáveres dos homens que o teriam matado.

— Wong! — gritou Bourne, correndo pelo campo. — Venha! Comigo!

Segundos depois, alcançou os corpos de McAllister e Sheng... um ainda vivo, o outro um cadáver. Jason inclinou-se sobre o analista, que estava mexendo os braços, a mão direita estendida, tentando desesperadamente alcançar alguma coisa.

— O dossiê! — sussurrou o subsecretário de Estado. — Pegue o dossiê!

— Mas o quê..

Bourne olhou para o corpo de Sheng e à fraca claridade do luar avistou a última coisa do encontrar ali. Era o dossiê sobre Sheng, um dos documentos mais secretos e explosivos do mundo.

— Santo Deus! — murmurou Jason, pegando-o. Depois, enquanto Wong se juntava aos dois, ele alteou a voz para acrescentar: — Preste atenção, analista! temos de movê-lo e pode doer, mas não há alternativa!

Levantou os olhos para Wong e continuou:

— Há outra patrulha vindo para cá e está bem perto. Um apoio de emergência, e pelos meus cálculos vão nos alcançar em menos de dois minutos. Cerre os dentes, Sr. Subsecretário! Vamos suspendê-lo!

Juntos, Jason e Wong carregaram McAllister na direção do helicóptero. Subitamente, Jason gritou:

— Essa não! Espere um pouco... não, continue. Você o carrega sozinho. Tenho de voltar.

— Por quê? — balbuciou o subsecretário, em agonia.

— O que vai fazer, senhor? — gritou Wong.

— Vou fornecer um alimento ao pensamento revisionista — respondeu Bourne enigmaticamente, enquanto corria de volta para o corpo de Sheng Chou Yang.

Quando o alcançou, inclinou-se e enfiou um objeto achatado sob a túnica do morto. Levantou-se e voltou correndo para o helicóptero, enquanto Wong, com todo cuidado, gentilmente, ajeitava McAllister sobre os dois bancos de trás. Bourne subiu na frente, pegou a faca e cortou a corda de náilon que prendia o piloto, depois tirou a mordaça. O piloto teve um acesso de tosse, engasgado; antes mesmo que acabasse, Jason deu suas ordens.

— Kai feiji ba! — gritou ele.

— Pode falar inglês — balbuciou o piloto. — Sou fluente. Era uma das exigências.

— Levante vôo, seu filho da puta! Agora!

O piloto manipulou os controles, ligando os rotores, enquanto um enxame de soldados, claramente visíveis aos faróis do helicóptero, irrompiam no campo. A nova patrulha divisou no mesmo instante os cadáveres da guarda de elite de Sheng. E todos começaram a disparar contra o helicóptero, que subia lentamente

— Saia logo daqui! — berrou Jason.

— O helicóptero de Sheng é blindado — disse o piloto, calmamente. — Até o vidro agüentará um fogo intenso. Para onde vamos?

— Hong Kong! — gritou Jason, surpreso ao ver o piloto se virar para ele com um sorriso.

— Os generosos americanos ou os benevolentes britânicos vão me conceder asilo, não é, senhor? É um sonho dos espíritos!

— Essa não! — exclamou o homem da Medusa, enquanto o helicóptero alcançava a primeira camada de nuvens baixas e em rápido movimento.

— Foi uma idéia das mais eficientes, senhor — disse Wong, dos sombras, na traseira do aparelho. — Como lhe ocorreu?

— Deu certo uma vez antes — respondeu Jason, acendendo um cigarro. — A história... até mesmo a história recente... geralmente se repete.

— Sr. Webb... — sussurrou McAllister.

— O que é, analista? Como está se sentindo?

— Isso não importa. Por que voltou... voltou até Sheng?

— Para lhe dar um presente de despedida. Um talão de cheques. De uma conta confidencial nas Ilhas Caimãs.

— Como?

— Não vai servir para ninguém. Os nomes e os números da conta foram cortados. Mas não acha que será interessante observar como Pequim vai reagir à sua existência?

 

Edward Newington McAllister, apoiado em muletas, entrou claudicando no outrora imponente gabinete da mansão em Victoria Peak, as janelas enormes agora cobertas por um plástico grosso, a destruição evidente. O Embaixador Raymond Havilland ficou observando, enquanto o subsecretário de Estado jogava o dossiê de Sheng em cima da mesa.

— Creio que você perdeu isso — disse o analista, ajeitando as muletas e sentando na cadeira com alguma dificuldade.

— Os médicos me disseram que seus ferimentos não são graves — comentou o embaixador. — Fico satisfeito.

— Fica mesmo? E quem é você para dizer isso?

— é apenas uma maneira de falar... parece arrogante, se quiser... mas é sincero. O que você fez foi extraordinário, além de qualquer coisa que eu poderia imaginar.

— Tenho certeza disso. — O subsecretário mudou de posição, apoiando o ombro ferido no encosto. — Mas, para ser franco, não fui eu. Foi ele.

— Foi você quem tornou possível, Edward.

— Eu estava fora do meu elemento... fora do meu território. Essa gente faz coisas que o resto de nós apenas sonha, fantasia ou assiste numa tela, contestando cada momento, por que parece afrontosamente implausível.

— Não teríamos tais sonhos, não fantasiaríamos nem fica-

ríamos fascinados pela invenção se os elementos fundamentais não estivessem encerrados na experiência humana. Eles fazem o que sabem fazer melhor, assim como nós fazemos o que sabemos fazer melhor. Cada um em seu território, Sr. Subsecretário.

McAllister fitou nos olhos o embaixador, com uma expressão neutra.

— Como aconteceu? Como eles se apossaram do dossiê?

— Outra espécie de território. Um profissional. Três jovens foram mortos, de maneira horrível. Um cofre inviolável foi aberto.

— Indesculpável!

— Concordo —disse Havilland, inclinando-se para a frente e alteando subitamente a voz. — Assim como suas ações também foram indesculpáveis! Quem você pensa que é para fazer o que fez? Que direito tinha de assumir o caso com suas próprias mãos... mãos inexperientes? Violou todos os juramentos que já prestou no serviço de seu governo! A dispensa é inadequada! Trinta anos na prisão seriam mais apropriados para os seus crimes! Tem alguma idéia do que poderia ter acontecido? Uma guerra que poderia mergulhar o Extremo Oriente... e o mundo... num inferno!              

— Fiz o que fiz porque podia. É uma lição que aprendi com Jason Bourne, o nosso Jason Bourne. Independente de qualquer outra coisa, Sr. Embaixador, tem o meu pedido de demissão. A entrar em vigor imediatamente... a menos que prefira apresentar acusações oficialmente.

— E deixá-lo à solta? — Havilland arriou na cadeira. — Não diga bobagem. Conversei com o Presidente e ele concorda. Você vai presidir o Conselho de Segurança Nacional.

— Presidir...? Eu não seria capaz!

— Com sua limusine e todos os aparatos do gênero.

— Não saberei o que dizer!

— Sabe como pensar, e eu estarei ao seu lado.

— Oh, Deus!

— Relaxe. Basta avaliar as situações. E instrua a todos nós que falamos o que devemos dizer. Sabe que é onde se encontra o verdadeiro poder. Não nos que falam, mas sim nos que pensam.

— É tudo tão súbito, tão...

— Tão merecido, Sr. Subsecretário — interrompeu o embaixador. — A mente é uma coisa maravilhosa. Nunca devemos subestimá-la. Outra coisa: o médico me disse que Lin Wenzu vai se recuperar. Perdeu o uso do braço esquerdo, mas vai viver. Tenho certeza de que você poderá fazer uma recomendação em seu favor ao MI-Seis em Londres. Eles vão aceitá-la.

— E onde estão o Sr. e a Sra. Webb?

— No Havaí, a esta altura. Com o Dr. Panov e o Sr. Conklin, é claro. Infelizmente, eles não pensam muito bem de mim.

— Não lhes deu motivo para pensarem bem, Sr. Embaixador.

— Talvez não, mas também minha função não era essa.

— Creio que compreendo. Agora.

— Espero que Deus tenha compaixão de homens como você e eu, Edward. Eu não gostaria de encontrá-Lo se Ele não tiver.

— Há sempre o perdão.

— É mesmo? Então eu não gostaria de conhecê-Lo. Ele mostraria uma fraude.

— Por quê?

— Porque Ele desencadeou no mundo uma corrida de lobos irracionais e sedentos de sangue, que não estão interessados na sobrevivência da tribo, apenas em sua própria. Não se pode dizer que é um Deus perfeito, não é mesmo?

— Ele é perfeito. Nós é que somos imperfeitos.

— Então é apenas um jogo para Ele. Põe suas criações no lugar e para sua diversão fica assistindo elas se destruírem. Fica observando nós nos destruirmos.

— Os explosivos são nossos, Sr. Embaixador. Temos o livre-arbítrio.

— Mas não é tudo a vontade d’Ele, segundo as Escrituras? Que a Sua vontade seja feita.

— E uma área indefinida.

— Excelente! Um dia você pode até se tornar o Secretário de Estado.

— Acho que não, Sr. Embaixador.

— Tem razão. Mas, enquanto isso, fazemos o nosso trabalho... mantemos os pedaços no lugar, impedimos o mundo de se destruir. Graças aos espíritos, como dizem aqui do Oriente, existem pessoas como você e eu, como Jason Bourne e David Webb. Sempre adiamos a hora do Armagedon para o dia seguinte. O que vai acontecer quando não estivermos mais aqui?

Os compridos cabelos castanho-avermelhados caíam sobre o rosto, o corpo se comprimia contra o dele, os lábios estavam próximos de seus lábios. David abriu os olhos e sorriu. Era como se não tivesse existido nenhum pesadelo que interrompera tão violentamente suas vidas, como se nenhum ultraje lhes tivesse sido infligido, levando-os à beira de um abismo em que espreitavam o horror e a morte. Estavam juntos, e o esplêndido conforto dessa realidade o enchia com uma profunda gratidão. Estavam juntos e isso era suficiente... mais do que ele jamais julgara possível.

Começou a reconstituir os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas, e seu sorriso se alargou, uma breve risada escapou da garganta. As coisas nunca eram como deveriam, nunca como se esperava. Ele e Mo Panov haviam bebido bastante no vôo de Hong Kong para o Havaí, enquanto Alex Conklin ficava com chá gelado, clube soda ou qualquer outra coisa que os bêbados reformados querem que os outros saibam que só bebem agora... sem sermões, apenas um discreto martírio. Marie segurara a cabeça do Dr. Panov, enquanto o famoso psiquiatra vomitava no banheiro sufocantemente pequeno do avião militar britânico, depois cobrira-o com um cobertor, quando ele mergulhara num sono de morto. Depois, gentilmente, mas com firmeza, Marie repelira os avanços amorosos do marido; mas compensara essas rejeições quando ela e um sóbrio companheiro chegaram ao hotel em Kahala. Uma noite esplêndida e delirante de amor, do tipo com que os adolescentes sonham, afastando os terrores do pesadelo.

Alex? Ah, sim, ele se lembrava. Conklin pegara o primeiro vôo comercial de Oahu para Los Angeles e Washington.

— Há cabeças a quebrar — como ele dissera. — E tenciono quebrar todas.

Alexander Conklin tinha uma nova missão em sua vida fragmentada. Era o que se podia chamar de responsabilidade.

Mo? Morris Panov? O flagelo dos psicólogos enganadores e dos charlatães de sua profissão? Estava no quarto ao lado, sem dúvida se recuperando da maior ressaca de sua vida.

— Você riu —sussurrou Marie, os olhos fechados, o rosto aninhado em seu pescoço. — O que é tão engraçado?

— Você, eu, nós... tudo.

— Seu senso de humor positivamente me escapa. Por outro lado, acho que estou ouvindo um homem chamado David.

— E isso é tudo o que ouvirá daqui por diante.

Houve uma batida na porta, não na porta que dava para o corredor, mas na de ligação com o quarto ao lado. Panov. David saltou da cama, foi ao banheiro e pegou uma toalha, enrolando-a na cintura.

— Só um segundo! —gritou, encaminhando-se para a porta.

Morris Panov, o rosto pálido mas controlado, estava parado ali, com uma valise na mão.

— Posso entrar no Templo de Eros?

— Está aí, amigo.

— Acho que sim... Boa tarde, minha querida — disse o psiquiatra, dirigindo-se a Marie na cama, enquanto ia para uma cadeira ao lado das portas de vidro da varanda, que dava para a praia havaiana. — Não se preocupe, não precisa providenciar comida e se quiser sair da cama não se incomode, pois sou um médico... acho.

— Como está se sentindo Mo — indagou Marie, sentando na cama e puxando o lençol.

— Muito melhor do que há três horas, mas tenho a impressão de que você não sabe dessas coisas. É terrivelmente sã.

— Você estava tenso, tinha de desligar.

— Se cobrar cem dólares por hora, minha adorável dama, hipotecarei minha casa e contratarei cinco anos de terapia.

— Eu gostaria que isso ficasse bem definido — comentou David, sorrindo e sentando em frente a Panov. — Por que a valise?

— Estou de partida. Tenho pacientes em Washington e gosto de pensar que eles podem precisar de mim.

O silêncio era comovente, com David e Marie olhando fixamente para Morris Panov.

— O que podemos dizer? — indagou David. — Como podemos dizer?

— Não digam nada. Podem deixar que eu falo tudo. Marie foi ferida, ficou angustiada além da capacidade normal de resistência. Mas também sua resistência é acima do normal, e ela pode controlar a situação. Talvez seja um absurdo, mas esperamos demais de determinadas pessoas. E injusto, mas é assim.

— Eu tinha de sobreviver, Mo — disse Marie, olhando para o marido. — Tinha de recuperá-lo. Era assim.

— E você, David, passou por uma experiência traumatizante, uma experiência que só você poderia suportar e não precisa de bobagens da minha parte para enfrentar a situação. Você é você agora, não qualquer outro. Jason Bourne desapareceu. Ele não pode voltar. Desenvolva a sua vida como David Webb... concentre-se em Marie e David... isso é tudo o que existe e tudo o que deve existir. E se a qualquer momento as ansiedades voltarem... provavelmente não voltarão, mas eu agradeceria se inventasse umas poucas... trate de me procurar e pegarei o primeiro avião para o Maine. Amo vocês dois, e o ensopado de carne de Marie é espetacular.

Pôr-do-sol, o brilhante disco laranja assentando sobre o horizonte a oeste, desaparecendo lentamente no Pacífico. Eles andavam pela praia, de mãos dadas, se apertando, os corpos roçando... tão natural, tão certo.

— O que se faz quando há uma parte de você que detesta? — perguntou David.

— Aceite-a — respondeu Marie. — Todos temos um lado tenebroso, David. Gostaríamos de poder negá-lo, mas é impossível. Está presente. Talvez não pudéssemos existir sem isso. O seu é um mito chamado Jason Bourne, mas isso é tudo.

— Eu o detesto.

— Ele trouxe você de volta para mim, e isso é tudo o que importa.



 

*Barreira móvel usada em corridas de cavalo, com baias separadas, todas as portas se abrindo simultaneamente na partida. (N. do T.)

*Beanburg, Beantown — cidade do feijão, nome por que é conhecida a cidade de Boston. (N. do T.)

 

                                                                                            Robert Ludlum

 

 

                      

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