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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ATLAN, O SOLITÁRIO DO TEMPO / K. H. Scheer
ATLAN, O SOLITÁRIO DO TEMPO / K. H. Scheer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ATLAN, O SOLITÁRIO DO TEMPO

 

INÍCIO DO IMPÉRIO SOLAR: ANO 2040

Aqui começa uma nova série de aventuras de Perry Rhodan. São passados 60 anos após a guerra atômica que não houve e 56 anos após a falsa destruição da Terra.

Agora, o primeiro obstáculo que Rhodan tem pela frente é superar Atlan, o arcônida que, além de possuir o dom do sexto sentido, carrega o ativador celular...

 

                                           

 

O sussurro tornou-se uma autêntica gargalhada. Alguém dizia que uma besteira tão grande jamais havia sido ouvida. Entrando na conversa uma voz frágil de mulher, a gargalhada terminou de repente.

— Com licença? — perguntou um homem assustado. — Você está afirmando que isto é apenas uma sombra da verdade?

Havia irritação na voz feminina. Depois a gargalhada estrondosa continuou. Somente podia ser Hiob. Ninguém ria tão alto e por qualquer ninharia, como ele.

— Conversa fiada — disse outra voz, mais objetiva.

— Alucinação ou seja lá o que for. Devem ter sido obrigados a uma aterrissagem forçada. Vocês sabem como estas coisas acontecem por lá.

Ouviu-se novamente o gargalhar de Hiob. Se ao menos conseguisse dominar um pouco sua risada estrondosa e sem motivo! Nunca o pude suportar, muito menos agora. Era um tipo arredondado, de faces avermelhadas e olhos frios. Se, no meu setor, acontecia alguma coisa errada, Hiob Malvers estava certamente por trás dos bastidores.

— Silêncio — disse eu furioso. — Diabo de gente, calem a boca! Primeiro, é completamente indiferente para nós se a aterrissagem foi voluntária ou não.

— Está certo — resmungou Billy Plichter. — Bom, então comecemos tudo de novo. Como aconteceu, então, Olavo? Como é que pode ter dado tudo errado? Que que há, então, Olavo? Por que o negócio não está certo, Olavo... Olavo...!

O barulho aumentou. Tinha a impressão de que campainhas minúsculas começaram a tocar ao mesmo tempo dentro de minha cabeça. Escutava a minha resposta, apesar de não estar falando.

Olavo era eu. Sem dúvida nenhuma era meu nome que estavam gritando, constantemente, cada vez mais alto. Sentia que a dor de cabeça aumentava. Billy Plichter não tinha dó, não parava de insistir. E eu precisava de descanso e merecia o descanso.

Alguém começou a falar e demorei um pouco a compreender suas palavras. Vinham de minha própria boca. Queria rir, mas a dor não deixava.

Ao meu lado houve um ruído. O movimento que fizeram com minha coxa foi rápido. Um calor agradável invadiu meu corpo e fiquei admirado de que o médico me tivesse dado a injeção na presença de outras pessoas.

Fiquei com vergonha. Ali na sala estava Willy Fergusen. Como me poderiam dar uma injeção na presença deles? Certamente, viram minha coxa!

Diante dos meus olhos, pairava uma neblina afogueada e as dores no meu cérebro se transformaram em pontadas dolorosas. Não estava quase agüentando. Quando a minha visão ficou mais clara, percebi que Willy Fergusen não poderia ter estado na sala. Hiob estava rindo novamente, mas também ele não estava na sala. Na minha frente cintilava uma grande tela, bem clara.

Estava olhando admirado para o belo quadro colorido. Meus colaboradores conversavam sobre coisas que me eram muito familiares, estava no meio deles, e, paradoxalmente, encontrava-me aqui!

A tela ficou mais nítida de repente. Apareceu nela um relógio muito moderno para medição dos anos e alguém anunciou muito solenemente:

— O tempo acabou, meu amo. Quando foi que alguém me chamou pela última vez de “meu amo”? Com muito esforço consegui virar a cabeça.

— Como, por favor? — perguntei com muita dificuldade.

— O tempo acabou, meu amo.

Era a mesma voz que penetrava no meu ouvido, desta vez, porém, com menos solenidade, mas com mais vibração metálica.

O rosto plástico de Rico se contraiu em rugas. Estava sorrindo. Levantei a cabeça em sua direção, até encontrar seus olhos parados.

— Alô, é Rico.

— Sim, é Rico, meu amo. O tempo acabou, estava obrigado a acordá-lo. Exatamente sessenta e nove anos, meu amo.

Não estava gostando desta expressão cerimoniosa. Não se devia permitir que robôs tão aperfeiçoados assim, repetissem a toda hora uma expressão tão servil. Mas o que havia com os tais sessenta e nove anos?

O pensamento sobre isso me deixou aturdido. Tudo se encontrava como sempre foi. A consciência ia chegando, porém com muita dor. Tentei me levantar. Rico interveio imediatamente. Senti a rigidez do aço sob o revestimento leve de plástico de sua mão. Consegui sufocar meus gemidos, mas minhas articulações pareciam enferrujadas. Acabei dando com os olhos novamente no relógio de medição dos anos, na tela.

— Somente sessenta e nove anos? Tinha regulado pra setenta. Que houve então?

Rico era tão cabeçudo, como costumam ser todas as máquinas.

— Somente sessenta e nove anos, meu amo — disse imóvel. — Recebi o telecomando exatamente há trinta e seis horas, três minutos e dezoito segundos.

Quer dizer então que desta vez levaram 36 horas para me acordar do biossono, uma espécie de hibernação letárgica.

“Muito tempo, muito tempo”, dizia meu cérebro.

Perguntei, então, a mim mesmo, por que um pequeno erro de regulagem causou uma diferença de tempo de um ano? Certamente foi minha culpa. O negócio foi tão rápido naquela época, quando começaram, lá em cima, com a loucura da bomba atômica.

Surgiu uma unidade especial de som, que me deixou muito espantado. O grande relógio desapareceu da tela. O videotape havia realmente desempenhado sua função, pois pessoas do meu tipo tinham necessidade de impressões óticas e acústicas do tempo imediatamente anterior ao começo do processo do grande sono biomédico. Agora estava me lembrando de que eu mesmo havia colocado no aparelho de som e imagem a fita muito bem preparada do videotape.

O insistente gargalhar de Hiob me ajudou muito. Talvez sem ele, não teria recuperado minha alegria.

Apareceu na minha frente a cabeça plástica e redonda de Rico. Rico pertencia aos poucos robôs fabricados especialmente para o controle e a manutenção das máquinas da cúpula. Sua capacidade de falar era um jogo positronicologístico com um setor ultra-rápido de aproveitamento e conversão de dados matemáticos em sons inteligíveis. Era um meio para provocar os sentidos que paulatinamente iam recuperando a vivacidade natural. Mas agora sentia necessidade de falar, de me comunicar, mesmo que fosse com uma máquina positrônica. Além do mais, o vocabulário de Rico era mais ou menos reduzido.

À direita da cama, estava a ducha de ativação tele controlada pelo computador central. O local parecia uma sala de operação moderna, com a única diferença de que ali não existiam médicos. Os estimulantes bioquímicos que atuavam sobre minhas células, ou eram injetados ou transmitidos na forma das mais diversas radiações. Na minha cabeça, ainda estava a touca cintilante do gerador de vibrações que me havia transmitido aos sentidos as primeiras impressões.

Fiquei uma hora parado, pensando nos motivos que me levaram a este sono profundo.

Exatamente há 69 anos atrás, princípios de julho de 1971, os responsáveis pelos três blocos das grandes potências perderam a cabeça. Quando começaram a ser lançados da Ásia os primeiros mísseis atômicos, ainda consegui fugir para minha cúpula submarina. Escapei da estúpida e inútil destruição. O que aconteceu, porém, com todos os homens dos continentes da Terra? Só o fato de querer recordar o terrível destino de bilhões de homens, fria e objetivamente, era uma coisa insuportável. Neste momento, eu apenas sabia que era o único homem na Terra.

— Homem! — disse eu rindo.

Rico se aproximou. Quando a aparelhagem mecânica da visão percebia alguma coisa, sua reação era instantânea. Continuei sentado, sentindo as mãos macias de plástico dos muitos braços da máquina de massagem. A fisioterapia era indispensável para que eu começasse a obter o controle sobre o corpo. Ainda levaria umas horas para poder me levantar. Uma corrente de ar comprimido jorrava dos poros da espuma de borracha. O colchão no qual, pela posição de meu corpo durante 69 anos, haviam surgido pequenas deformações, voltou a ficar normal.

Nu, ainda completamente enfraquecido e abalado por sentimentos confusos, fui levado por Rico para fora do quarto. Na antecâmara, um ambiente alegre e aconchegante, estava funcionando o órgão de cores. Desenhos suaves e tranqüilizantes inundavam as paredes, enquanto que sons maviosos de velhas composições penetravam em meus ouvidos.

Os poucos metros foram terrivelmente cansativos. Gemendo, deixei-me cair nas almofadas macias da poltrona vibratória, que continuava, de uma maneira muito mais suave, a massagem pesada feita pelas mãos do robô.

Rico ministrou-me os primeiros alimentos líquidos. Meu estômago ainda não aceitava substâncias sólidas. De qualquer maneira, ainda eram necessários três ou quatro dias para me sentir mais ou menos bem.

Rico puxou mais para perto o grande espelho colorido e ajeitou a cama. Eu não havia emagrecido, sinal de que meu corpo reagira muito bem à hibernação. Fiz um sinal com a mão e vi como ele empurrou o espelho para uma cavidade na parede. Aí, o robô ficou ao meu lado. O rosto de Rico seria muito mais humano se não fosse aquela palidez que parecia cera.

— Amigo, não sei o que poderia dar em troca, se, em lugar de você, estivesse aqui um ser humano de verdade. Como vão as coisas lá em cima?

— Muita água, meu amo — respondeu meu criado particular diplomaticamente.

Fiquei observando-o mais a fundo. Sua resposta teria sido um truque psicológico para dar vazão a sentimentos de ira reprimidos ou ele não sabia mesmo outra coisa?

— Naturalmente muita água. Estamos no fundo do Oceano Atlântico, ao sul da ilha açoreana São Miguel. Aqui começam as célebres fossas oceânicas de uma profundidade enorme. Portanto, acima de nós, há somente água. No entanto, eu quero saber como está o continente europeu. Como é que terminou a guerra atômica na França e na Espanha.

— Não sei, meu amo.

O sangue me subiu então à cabeça. O sorriso plástico, submisso, de Rico me pareceu de repente como uma máscara de escárnio.

— Como assim!? — exclamei em tom interrogativo. Minhas cordas vocais começaram a funcionar corretamente. — Por que razão não se realizou a observação da superfície que eu determinei?

— Por culpa sua, meu amo. Todas as três estações de televisão foram destruídas pelos aviões. Fomos informados ainda de que o lançamento dos satélites seria inútil e sem sentido, pois a atmosfera do planeta estava coalhada de máquinas de guerra. Recebemos realmente suas ordens.

Decepção, medo e cólera contra minha própria imprevidência se abateram contra mim. Naturalmente os robôs não poderiam ter agido de outra forma, depois que eu, apressado e estúpido, havia dado as instruções para observação dos continentes mais importantes. Após o plano a minha intenção era despertar, ficar a par de tudo o que acontecera durante a guerra.

Agora estava completamente aéreo, separado de tudo. Não era apenas o ente mais solitário da Terra, mas também o mais ignorante. Acima da abóbada de aço da minha cúpula pressurizada nas profundezas do Atlântico, pesava uma tremenda muralha de água. É claro que esta muralha me havia preservado das radiações mortíferas dos inúmeros reatores nucleares, mas isto não me adiantou nada.

Uma ânsia premente de ao menos uma palavra saída de boca humana me avassalou de tal maneira que comecei a me sentir mal.

Levantei-me gemendo e vi, sem querer, as horríveis cicatrizes da operação, espalhadas por todos os cantos do ventre. Não podia fazer mais nada contra isso, principalmente pelo fato de que perguntas curiosas me teriam sido mais do que desagradáveis. Além disso, onde estaria o médico para corrigir os encaroçamentos e rugas da horrível intervenção cirúrgica? Certamente não existiria mais em toda a Terra nenhum cirurgião à altura. A catástrofe atômica se abatera sobre a humanidade há 69 anos. Os médicos recém-formados na época, já deviam ter morrido há tempo, mesmo na hipótese de haverem sobrevivido, por circunstâncias milagrosas, à hecatombe geral, que foi a destruição do mundo.

— Minhas roupas — disse eu ao robô.

— Quais, meu amo?

— As últimas que estava usando antes de hibernação.

— O senhor ainda está muito fraco, meu amo. Agora é que começa a segunda fase da convalescença.

Tinha que ficar resignado. Não se pode fazer nada contra as conclusões lógicas de uma máquina tão preciosa e perfeita.

Com a ajuda de Rico, meus dedos atingiram as teclas do painel de controle e eu passei para uma confortável cadeira giratória. Ponto por ponto, fui percorrendo todas as fases da convalescença programada. Surgiam na grande tela as diversas seções de minha cúpula de aço à prova de bombas, pousada no fundo do mar. Aqui embaixo não se notou nada da guerra atômica. O fornecimento de energia foi sempre motivo de muita preocupação. Os reatores II e III estavam desligados e o I funcionava com apenas 20 por cento de sua força total.

Liguei a câmara de observação submarina. Os sensores infravermelhos, montados fora da cúpula mostravam uma imagem clara e penetrante de minha habitação no fundo do mar. Diante da escotilha de saída do lado sul, havia se amontoado uma grande quantidade de lodo. A abertura de cima, porém, estava normal. Fiz com que o reator I funcionasse com a velocidade total, para armazenar a energia suficiente para a projeção.

Pela primeira vez em 69 anos, as grandes máquinas estavam funcionando. Muito abaixo de meus pés, o ruído era tremendo. O ronco surdo me penetrava nos nervos. Lá fora, enorme quantidade de lodo estava se desprendendo da carcaça.

Um jato concentrado de uma pressão de quarenta mil toneladas por metro cúbico resolveu a questão. Em poucos minutos, a escotilha sul estava livre de qualquer sujeira.

Em seguida, procurei entrar em contato com meu satélite de televisionamento, através do rádio. O corpo esférico de apenas dois metros de diâmetro, antes do início da guerra atômica, estava em órbita de duas horas em torno da Terra. As instalações eram tão perfeitas que permitiam ampliações muito nítidas. Qualquer objeto do tamanho do corpo humano podia ser visto com clareza. Mas não consegui ligação nenhuma. O minicomputador embutido no satélite não se manifestou.

— O TEK-1 foi lançado naquela época, meu amo — explicou Rico objetivamente. — Isto foi dois dias depois do início de sua hibernação. Um caça da defesa espacial soviética tomou nosso satélite como se fosse de origem americana.

Ouvia tudo sem dizer uma palavra. Fazia censuras a mim mesmo. Realmente cometi muitos erros quando, com medo louco de morrer, me escondi afobadamente nas profundezas do Atlântico.

Estava também separado da superfície. Informei-me no computador central sobre o estado de coisa em volta de mim. Se os continentes estavam contaminados pela radioatividade, então era muito natural que também as correntes marítimas contivessem partículas nocivas.

— Nenhum perigo nas imediações contíguas com a cúpula — constatou o cérebro positrônico de minha residência submarina. Os hipersensores, no entanto, acusam grande fonte de radiação na fossa do arquipélago de Açores. O valor oscila, conforme a profundidade, entre seis e meio e trinta e cinco miliroentgen. Fim.

Suspirei abatido. Trinta e cinco miliroentgen era extremamente perigoso, pois encontrava-me a uma profundidade de 285 metros abaixo da superfície do mar.

Procurei fazer um quadro comparativo da intensidade de radiação entre o mar e a terra firme. Se lá embaixo já havia trinta e cinco miliroentgen, então mais para cima a coisa devia ser assustadora.

Que tipo de isótopos radioativos devem ter sido empregados? Conforme meus cálculos, a duração média do tempo de validade da maioria dos isótopos era tão curta, que não se podia mais contar com o poder de radiação após 69 anos.

Depois de ter examinado todas as instalações de minha cúpula, cheguei à conclusão de que devia subir à tona o mais depressa possível. Quem sabe ainda poderia ajudar muitos sobreviventes com alimentos e remédios? Encontrava-me com bastantes provisões. Poderia alimentar, vestir e instruir pelo menos mil pessoas. Em certo sentido, eu poderia dar à Humanidade uma nova possibilidade de ressurgimento. Tratava-se apenas de saber até que ponto a radiação nociva havia atingido os sobreviventes. Talvez teria havido mesmo grandes alterações, físicas ou psíquicas.

Com a cabeça cheia de preocupações, saí do setor de controle da minha cúpula de aço. Uma coisa estava certa, tinha que voltar à tona o mais depressa possível, para ver o que tinha acontecido aos homens.

“Socorrer”! — Ecoava no meu cérebro. Estava pensando agora nos meus amigos e conhecidos. Mesmo Hiob Malvers estava entre eles, apesar de me ter deixado muitas vezes irritado. Apesar de tudo, eu tinha saudade de sua gargalhada estridente!

 

A composição das coisas necessárias para meu abrigo submarino foi questão de simples cálculo matemático ou de bom senso. Num local completamente ermo não há necessidade nem de armas especiais de ataque nem de meios sofisticados de defesa.

No entanto, fiz tudo para ter uma proteção eficiente contra a radioatividade e carreguei ao máximo o reator do meu uniforme de mergulho. O ativador oval estava pendurado na altura do peito nu. Além disso, estava com o traje pesado e incômodo de proteção contra radiações, com o qual esperava poder vencer a pesada camada de água. Minha única arma de defesa era o inofensivo raio psicológico, cujo efeito hipno-sugestivo era mais do que suficiente para demover qualquer adversário de suas intenções. Mais do que isto, não era necessário.

Na mochila do uniforme de elevada pressurização, carregava alimentos concentrados e medicamentos especiais para neutralização da radiação. Em caso de necessidade, teria que trazer para minha cúpula submarina os sobreviventes em estado grave, vítimas desta guerra maluca. Certamente, não poderia tratá-los convenientemente na superfície. Afinal de contas, não faria mal a ninguém deixar entrar em meu abrigo aqueles pobres coitados, mutilados ou abobalhados descendentes da geração da guerra. Certamente não me poderiam causar nenhum dano.

Fazia cinco dias que havia sido despertado pelo robô. Estava bem melhor e já podia tentar a subida para a tona. E examinei o funcionamento de todo o material. O dispositivo antigravitacional funcionava normalmente. Com a maior facilidade, levantei-me do chão da cúpula.

Rico, com seus olhos mecânicos, frios, acompanhava o que eu estava fazendo. Na grande tela, ainda se liam as notícias e as imagens, que há 69 anos eram coisas atuais.

Antes de deixar a cúpula, dirigi-me pela última vez para a grande tela. Li com pesar as notícias de um jornal americano, segundo o qual havia chegado à Lua o primeiro aparelho tripulado. O comandante da operação foi um tal de Perry Rhodan, major e piloto de provas da Força Espacial Americana.

Antes deste homem ter partido para a Lua, eu o examinei atentamente. Minha impressão foi a melhor possível. Apenas, naquela ocasião — isto foi a 15 de julho de 1971 — não podia imaginar que exatamente este major da Força Espacial Americana, haveria de provocar, ao menos indiretamente, a guerra atômica. Sei apenas que havia encontrado na Lua uma substância extremamente preciosa para os grandes grupos políticos da Terra. Rhodan se recusara a entregar o achado. Foi com sua nave lunar para o deserto de Gobi e aí começou tudo.

As últimas notícias falavam de envoltórios energéticos que Rhodan havia inventado para sua nave lunar. Pelo desenrolar precipitado dos acontecimentos, não tive mais oportunidade de constatar a veracidade das notícias, em parte sensacionais, dos jornais e da televisão.

Depois de uma rápida fuga do meu laboratório para construção de naves espaciais com propulsão atômica, ainda antes de entrar para a cúpula submarina, já haviam partido da Ásia os primeiros mísseis bélicos. Os nervos dos homens não agüentaram e instintivamente veio o golpe de morte: apertar o botão das armas nucleares. Todas as nações pensavam que Rhodan teria uma importância decisiva no desenvolvimento dos conhecimentos científicos. Todos se sentiam prejudicados e todos desconfiavam de Rhodan. Assim se chegou a uma guerra, que nada foi capaz de evitar.

Para escapar destas explosões, desci para as profundezas do mar. E agora estava diante da tela, tentando arranjar uma explicação lógica para minha hesitação. Adiava minha saída para fora do mar, embora meu instinto me dissesse que eu tinha de dar uma olhada lá fora. Atrás de mim, soou a cigarra. Poderia ir.

O último olhar foi para uma foto feita por teleobjetiva. Talvez tirada de uma nave espacial. Em meio à areia escaldante do deserto de Gobi, repousava um corpo brilhante, recoberto por um clarão fosforescente.

Olhava muito para aquela fotografia, tinha algo de misterioso. Pelo menos, para os meus conceitos, era inexplicável como um foguete primitivo daquele tipo, de combustível líquido, tinha de permanecer protegido por um envoltório energético.

Interrompi os pensamentos, pois não tinha mais sentido quebrar a cabeça por coisas tão afastadas no tempo. A Humanidade tinha cavado sua própria sepultura. O próprio major Perry Rhodan, que, sem o desejar, tinha botado lenha na fogueira, já devia estar morto há muito tempo. Naquela época, tinha mais ou menos 30 anos.

A tela apagou. Dei ainda algumas instruções para outras programações e me dirigi para a escotilha corrediça.

Rico não deu mais uma palavra. Estava sozinho na parte inferior da cúpula. Quem sabe também estaria sozinho lá em cima, fora d’água? Liguei o campo magnético de meu traje de proteção, esperando até que o dispositivo de sincronização desse o sinal verde de compensação de pressão e depois ligasse, automaticamente, os registros da água.

Das fendas do chão da câmara, a água se projetou espumante, sob alta pressão. Em questão de segundos, a comporta estava cheia. Cessou o ruído esfuziante do ar expulso pela forte entrada da água. Cessou também a correnteza e o redemoinho que me lançaram de encontro à parede da câmara, apesar do meu esforço em ficar onde estava. Aliás, aquela câmara fora planejada somente para saída de emergência. Meu envoltório de proteção funcionava muito bem. Podia me mover com facilidade e segurança dentro da cápsula cilíndrica, cuja reserva de ar seria suficiente para o trajeto até em cima.

Regulei meu dispositivo de gravitação no máximo, pois em virtude do impulso natural, fui lançado de encontro ao teto da comporta. Só depois de alguns minutos de uma regulagem mais calma, fiquei em bom equilíbrio. Sem nenhum ruído, a porta externa se abriu. Diante de mim estava o insondável fundo do mar, com seus misteriosos seres vivos.

Saí com cautela. Já que meu envoltório de proteção não era flexível, e sim rígido, seria impossível tentar nadar. Caminhava num trecho de chão macio, onde tinha que vencer apenas a resistência da água.

A luz infravermelha do meu capacete estava acesa. Por meio de óculos especiais, tinha uma boa visão que alcançava uns cem metros, como se lá embaixo também houvesse a luz do sol. Ainda renunciando ao transporte automático, atingi o planalto de uma grande rocha. Atrás de mim ainda se via a meia esfera de minha cúpula de aço, já mergulhando na escuridão.

Era um silêncio de rebentar os nervos. Com certeza, nunca houve homem em situação de tão completa solidão, como eu. Sessenta e nove anos sozinho.

A menos de 200 metros da câmara d’água, começava a grande fossa oceânica. Cheguei até sua beira e inclinei a cabeça para frente, fazendo com que a lanterna do capacete a iluminasse. Curioso, um peixe fosforescente chegou bem perto. Já sabia há muito tempo que a luz infravermelha era estimulante para muitos animais. Foi interessante ver quando seres vivos das formas mais esquisitas começaram a dançar, como que inebriados pela luz infravermelha. Tudo no maior silêncio. Silêncio este que agora passava de angustiante para alegre e colorido. Quem sabe era minha peculiaridade reagir desta forma, bem diferente da maioria dos homens?

— Alô, caro amigo! — disse-lhe eu.

Ouvi minhas próprias palavras e botei na cabeça que o peixe me tinha compreendido. Começou a se balançar até que chegou a dar impressão de estar dançando. Por fim, tive que afastá-lo com um movimento rápido da mão, pois estava se aproximando demais do meu envoltório energético e eu não podia matá-lo. Num planeta destruído, nada era mais sagrado e precioso do que os últimos sinais de vida. Este pensamento me arrancou do grande abatimento.

Consultei os instrumentos. Estava tudo em ordem. Não havia nenhum indício de radioatividade. Talvez fossem apenas os sensores da cúpula que a podiam descobrir.

Liguei o circuito de turbulência, aumentei em 0,025 por cento o campo de gravitação e assim comecei a subir. Passei com facilidade por sobre a garganta da tremenda fossa. Sabia que meu corpo dava a impressão de um cilindro brilhante de alta intensidade. Os peixes se reuniam cada vez mais em torno de mim. Flutuei umas milhas para o norte, até encontrar o rochedo que subia íngreme. Era a base da ilha dos Açores. Daí em diante comecei a subir a cinco metros por segundo.

Outros peixes vieram. De vez em quando, meu refletor dava com pontas de rocha saliente. As primeiras plantas das regiões mais fundas foram aparecendo. Eram espécies desconhecidas da ciência. Os homens penetrando no espaço, sem conhecer bem os mistérios do próprio planeta.

Era tudo tão lindo, que estava sorrindo feliz, até que me veio à cabeça de novo a lembrança da catástrofe atômica, desaparecendo então o sorriso de meus lábios. Neste momento, a instalação de alarme do meu pequeno rastreador começou a soar. Sentia os impulsos que vinham de encontro ao envoltório de proteção. Este os acusava com exatidão devido a sua estabilidade estrutural. Nos primeiros instantes, estava escutando um pouco assustado o zumbido que vinha da instalação de alarme, cada vez mais forte. Cheguei até a pensar em monstros do fundo do mar que têm a faculdade de descobrir suas vítimas por meio de ondas ultra-sonoras. Era um recurso que a natureza dava a estes gigantes das trevas submarinas para encontrarem alimento.

Fiquei de espreita, preparado para o que desse e viesse. Aos poucos, cheguei à conclusão de que este zumbido jamais poderia vir de um peixe. Depois de algum tempo, não precisava mais da instalação de alarme. Os impulsos emitidos por um instrumento de orientação submarina de alta freqüência é que estava causando o tal ruído agudo.

Por algum tempo, fiquei como que petrificado. Estava acontecendo algo de incrível. Uma coisa que já não devia existir mais. O setor de recordações do meu subconsciente se manifestava. Gente como eu, jamais esquece estas coisas. Numa evidência berrante, lembrei-me de uma coisa que até então não me viera à cabeça.

“Submarinos atômicos, sobreviventes! Cuidado!” — foi o que pensei.

De maneira completamente irracional, comecei a nadar com movimento descoordenado de pés e mãos. Meu frágil circuito de turbulência submarina me proporcionava uma velocidade de, no máximo, dez milhas por hora. Era suficiente para um avanço normal e agradável, nunca, porém para escapar de submarinos de propulsão nuclear.

Gotas de suor escorriam pela minha face, sinal de que meus sentidos estavam exaltados. Os impulsos recebidos estavam cada vez mais intensos. Antes de conseguir chegar à fenda mais próxima da rocha, fui atingido por refletores ofuscantes. Ouvia-se o ronco cavernoso de um forte motor. A partir daí, cheguei à conclusão de que meus meios de defesa eram ridículos.

Interrompi os movimentos de natação e fiquei olhando para o foco de luz intensa Talvez julgavam que eu fosse um animal aquático. Aliás, não podiam pensar de outro jeito, pois, fora de mim, não havia ninguém na Terra que possuísse um traje com proteção contra radioatividade.

Meu cérebro trabalhava com muita lógica. Lutar seria mera loucura, ainda mais que eu não tinha nada para atacar este peixe de aço. Também estaria fora de meus interesses ferir de qualquer maneira os sobreviventes da guerra nuclear. O que me interessava, realmente, era chegar são e salvo no interior do submarino.

Reduzi a velocidade, sabendo muito bem que, na melhor das hipóteses, meu corpo seria tomado como uma sombra. A carcaça do meu cilindro tinha um brilho muito forte para permitir uma visão suficiente do interior.

Meu sistema nervoso até que estava em ordem. Não sentia medo. O ronco do motor se tornava cada vez mais forte. Daí a uns segundos, começaria a dançar na frente da luz como os peixes atraídos pela claridade. Esperava, porém, que ninguém atirasse um arpão de pesca submarina contra o meu envoltório de proteção. Ainda sabia muito bem como era a pesca submarina antes da guerra. Fortes descargas elétricas seriam funestas para a estabilidade do envoltório de proteção.

Estavam me perseguindo, não havia dúvida. Uma vez ou outra, podia perceber os contornos de um pequeno submarino de águas profundas. Isto se dava quando conseguia fugir do refletor. Quando notei que estava próximo de uma caverna estreita e funda, já era tarde. Não se pode provocar um pescador, nem torná-lo desconfiado. Pode-se enganá-lo, mas não grosseiramente, como eu estava fazendo de modo inconsciente. Talvez pensassem que eu iria desaparecer imediatamente naquela caverna escura.

Ouviu-se um silvo curto e agudo.

“Tiro de ar comprimido”, gritou-me meu sexto sentido. Fiquei parado, imóvel, à espera do choque. Não teria nenhum sentido procurar escapar de um tiro teledirigido.

Um fantasma flamejante veio certeiro ao meu encontro. Atingiu-me em cheio, exatamente depois de dois segundos e meio. Vi a ponta de contato do arpão de alta voltagem penetrar no meu envoltório e explodir. Um clarão de grande intensidade envolveu-me todo. No microrreator de minha mochila, começou o zumbido de alarme e a lâmpada vermelha de emergência do meu pulso direito começou a brilhar. Sobrecarga no circuito. Choques elétricos bem doloridos açoitavam-me o corpo. Curvei-me todo de dor, tentando desesperadamente ficar livre da câimbra nervosa.

Com o resto de força que me sobrou, apertei o botão para ligar o circuito de rádio dentro d’água, e com voz interrompida tentei falar no microfone preso no pescoço:

— Parem com essa loucura. Eu me rendo sem resistência.

Certamente o receptor deles estava em outra freqüência. Quem poderia saber há quanto tempo estes homens estariam neste submarino, com o qual talvez teriam escapado da guerra nuclear?

Um segundo torpedo de alta voltagem atingiu-me novamente. Novas descargas e choques me arquearam novamente o corpo dolorido. O envoltório de proteção não existia mais. Não resistiu ao segundo impacto, maior que o primeiro.

Uma escuridão total me envolveu e para os meus ouvidos havia um bramido como se fossem águas a rolarem de uma cascata.

“Cascatas, nas profundezas do mar? Ridículo.”

Foi um impulso do subconsciente que penetrou no meu cérebro já entorpecido. Claro que no meio do mar não podia haver queda d’água.

 

Parecia o ciciar do vento no cordame de um barco à vela. Antes de minha fuga para as profundezas do oceano, gostava muito de enfrentar as forças da natureza. Mas desta vez, não estava a bordo de um barco à vela, para ficar apreciando o movimento das nuvens Era diferente, muito diferente.

Eram quatro ou cinco. O que julgava ser o ciciar do vento, não era outra coisa senão palavras pronunciadas depressa e em voz alta.

Julgavam que estivesse ainda desacordado e eu fazia questão de que continuassem com esta impressão. Assim, percebi pela conversa deles que me julgaram realmente um peixe desconhecido, das profundezas do oceano, com uma fosforescência nunca vista. Atiraram contra mim arpões de pesca e no momento do rompimento do envoltório de proteção puxaram-me por raios de tração para a escotilha de pesca do submarino. Foi minha sorte, ou minha desgraça.

Num piscar de olhos, percebi que estava numa grande sala, sobre uma mesa. Talvez fosse um laboratório, onde os seres das profundezas do mar eram estudados.

Falavam inglês. Mas o assunto de sua conversa me deixava confuso. O setor especial de lógica do meu cérebro me dizia com toda insistência que os sobreviventes de uma guerra nuclear deviam se preocupar com outras coisas. Não deveriam mergulhar com um submarino especial nas profundezas do Atlântico, perto dos Açores, para ali curtirem as aventuras de uma pesca numa das maiores fossas do mar.

Se tivessem falado que esta pesca era para o sustento de suas vidas ou para a alimentação do povo, eu teria compreendido. Mas só por divertimento...

Estava deitado, completamente imóvel, quando dedos macios começaram a apalpar meu rosto e a nuca. Uma voz masculina, de timbre grosso, disse irritada:

— Que droga! Não há sinal nenhum de brânquias. Não é apenas um animal de respiração pulmonar, mas simplesmente um homem.

— Cubra-o — disse um outro. — Dora está chegando aí.

Puxaram um cobertor de lã para cobrir minha nudez. Sentia cócegas na pele banhada de suor e tive que fazer um esforço muito grande para não retirar a coberta de cima do estômago. Desde a última operação, esta parte do corpo me era muito sensível.

— Ele já está acordado? — disse uma mulher, demasiadamente alta.

Um hálito quente atingiu meu rosto. O perfume de um cabelo bem tratado penetrou em minhas narinas. Daí em diante comecei a pensar que o negócio da guerra nuclear não poderia ter sido tão sério assim, como eu havia imaginado o tempo todo. Se já estavam fabricando perfumes tão caros assim...

— Um jovem de classe, hein! — disse alguém em tom de zombaria. — Pelo menos uns oitenta e oito anos, figura de atleta, nenhuma grama de gordura a mais, cabeleira loura, como um deus nórdico.

Outros dois homens davam gargalhadas. No meu íntimo, estava começando a me envergonhar. Certamente era gente que não ligava muita importância à boa educação e às boas maneiras. Estavam me tratando como um animal precioso, sobre o qual podiam dizer a bobagem que quisessem.

Já estava com vontade de me levantar, quando aconteceu o que eu esperava instintivamente. Um homem, que chamaram de doutor, penetrou na sala.

Cumprimentou mui educadamente, mais ou menos como um jovem recém-formado em medicina cumprimenta pessoas ricas e muito influentes.

— Ah! O senhor trouxe as radiografias? — perguntou o homem de voz grossa.

— Claro, meu senhor. Aliás, muito esquisitas, devo dizer.

— É um homem-peixe ou não? — perguntou a mulher impaciente.

— De maneira alguma, minha senhora, mas também não é homem. Gostaria de mostrar-lhes as radiografias.

— Passe para cá, logo — exclamou alguém deseducadamente.

— Que diabo! Que é isto? Não tem costelas?

Senti que todos se afastaram de mim, receosos.

— Deixe o revólver na cintura, por favor — disse a mulher. — Não pode ser tão perigoso assim. É maravilhoso. O senhor pode acordá-lo, doutor?

— Dificilmente, em poucas horas, minha senhora. Recebeu choques fortes demais.

A mão de alguém tirou a coberta de meu peito. Devia ser o médico.

— Olhe aqui a cicatriz, minha senhora.

— Horrível — disse ela. — Eu sempre me interessei muito pela medicina. Quem foi o “remendão” que fez isso?

— Não tenho idéia, minha senhora Trata-se aparentemente de operação do estômago.

— Como aparentemente? — insistiu o homem de voz grossa. — O senhor é médico ou não? Deve, portanto saber se houve ou não operação no estômago.

O médico estava em apuros. E era para ficar, pois o pessoal era mesmo sem educação.

— Senhor, com esta estrutura especial do esqueleto, não se pode fazer uma afirmação categórica. A caixa toráxica toda se compõe de chapas de osso contínuas e extremamente estáveis. Este... ah... este homem deve ser levado imediatamente para uma grande clínica. Minhas possibilidades são limitadas.

— Quem? As possibilidades ou o senhor? — zombeteou o de voz grossa.

— Meu amigo, vou lhe dizer uma coisa. Se isto não é nem um monstro, nem um ser humano, então o negócio é muito sério. Seu aparecimento torna-se mais do que esquisito.

— Foi com envoltório energético, eu já disse.

— É também minha opinião, John. Já lidei muito com campos energéticos. Parece mesmo que o sujeito não nasceu na Terra. Extremamente se assemelha muito conosco. Por dentro é muito diferente. Isto é um caso para o Departamento de Defesa Aérea. Sabe Deus o que nós acabamos de encontrar. Passe um rádio para o Ministério da Segurança, em Terrânia. Em caso de necessidade, a Administração também deve ser avisada. Eu quero ficar fora deste caso.

— Mas, papai — disse a mulher aborrecida. — Talvez seja um animal raro das profundezas do mar. Imagine o que vai...

— Bobagem — interrompeu o homem. — Que animal das profundezas o quê! Você vai fazer o que eu achar melhor. O sujeito será levado para o Departamento de Defesa Aérea. Capitão, interrompo aqui a excursão. Suba à tona e providencie o rádio para Terrânia. Devem nos mandar um aparelho bem rápido. Com isso acaba para mim todo o prazer do esporte submarino.

Continuaram discutindo, sem suspeitarem de que eu estava ouvindo cada palavra. A comichão foi se tornando insuportável na região das cicatrizes do estômago. Tinha vontade de coçar com todos os dedos.

Além disso, a situação estava ficando perigosa para mim. O homem de voz grossa parecia não somente o chefe de todo o submarino, mas principalmente um homem enérgico.

Devagar comecei a coordenar os pensamentos. Examinei os dados que havia anotado nesta longa conversa. Minha capacidade de raciocinar se recusava a aceitar o incrível. Meu cérebro parecia estar em greve. Sentia grande dificuldade para tirar a conclusão mais simples deste mundo.

Tudo dava a entender que lá em cima não tinha havido nenhuma guerra nuclear. Falou-se de uma Defesa Aérea, portanto deviam existir também naves espaciais.

Se era possível se dirigir a um Ministério da Segurança e solicitar um aparelho veloz, então tudo isso não significava outra coisa senão o fato de eu estar caindo num erro muito grande. Mas que tipo de erro? Tinha plena certeza de que, no momento de minha fuga, haviam sido lançados da Ásia os primeiros mísseis nucleares.

Será que este major da Força Aérea Americana teve alguma participação em tudo isso? De qualquer maneira, devia ter descoberto, em sua aterrissagem na Lua, coisas importantes, que eu desconhecia totalmente.

“Perdeu 69 anos dormindo inutilmente, seu burro”, é o que me dizia meu sexto sentido.

Comecei então a pensar que talvez tivesse sido destruída apenas uma parte da Terra. O fato de o pessoal a bordo não ter falado nada a respeito, devia ser pelos longos anos já decorridos. Mas ainda assim, saía de minha cabeça um mau pressentimento: as cicatrizes de uma guerra nuclear não desaparecem totalmente em 69 anos.

Continuei a ouvir a conversa. Tudo que falavam era a meu respeito. Pude saber então tudo que aconteceu.

— Vamos botar um ponto final em tudo isto — disse o chefe um pouco zangado. — Tenho bom faro para estas coisas. O Império Solar não pode permitir a presença de estranhos no planeta principal e este — senti um dedo bater no meu peito — e este sujeito não é daqui. Vá para a superfície, capitão. E você, John, está armado?

— Tenho um revólver antigo — disse alguém hesitando.

— É suficiente. Fique de guarda no laboratório de pesca e vigie os movimentos do rapaz. Ou você está com medo?

O homem de nome John confirmou afobadamente que não tinha medo nenhum. A mulher deu uma gargalhada estridente. Parecia histérica.

Muitos homens deixavam a sala. Ouvi um ruído metálico e em seguida um homem que praguejava em voz baixa. Depois foi o estalo de um cilindro de revólver. Aparentemente, tinha puxado para fora o tambor para saber se a arma estava carregada.

— Por quanto tempo ainda ficará inconsciente? — perguntou John, gritando para os homens que se retiravam e o deixavam com o desconhecido.

Não obteve resposta. Fiquei sozinho com um homem de sistema nervoso, talvez, muito fraco.

Continuei calmo, respirando profundamente. Conhecia gente desse tipo de John. Com certeza ao primeiro movimento que eu fizesse, receberia uma bala no peito.

Desviei-me do assunto. Estava ainda soando no meu ouvido o sintagma “Império Solar”. Que significaria isto? Quando desapareci na minha cúpula, há 69 anos, havia na Terra três grandes potências. Não se podia pensar ainda num governo único para toda a Terra. E muito menos ainda, numa confederação política abrangendo o sistema, a que se pudesse dar o nome de “Império Solar”.

Sentia-me calmo e compenetrado. Gente do meu tipo recupera num instante a capacidade de raciocinar objetivamente. Estava bem claro que havia cometido um grande erro, provocado em última análise pelos meus conhecimentos deficientes da natureza humana. Quando, há 69 anos atrás, alguém apertou os botões dos mísseis nucleares, eu estava crente de que as demais pessoas normais também ficariam doidas e cometeriam o mesmo erro.

Mas me enganei. E porque tudo aconteceu assim, era fácil de se deduzir. Minhas ponderações se concentravam no nome de Perry Rhodan. Este piloto espacial era a chave para o grande enigma.

Esperei até que meu vigia ficasse mais calmo. Depois de alguns minutos, se encaminhou para a antepara. Ouvi-o manejando os pesados ferrolhos. A porta se abriu lentamente.

Levantei um pouco a cabeça. O primeiro olhar consciente abrangeu a sala. Era de fato um laboratório. John estava na porta entreaberta, olhando para fora. Usava camisa de mangas curtas e calças bem apertadas, em cuja cintura estava o revólver.

— Tragam-me ao menos alguma coisa para comer — gritava o rapaz.

Alguém respondeu, mas tão baixo que não consegui entender. Minha primeira experiência deu resultado. Tinha absorvido bem o choque das radiações. À minha esquerda estava meu traje de proteção radioativa. Parece que examinaram tudo, mas não se deram por contentes. Na parte superior da perna direita do traje observei a saliência alongada da minha pistola hipno-psíquica. Não se deram ao trabalho de retirar as armas.

John continuava gritando. Acho que não tinha fome alguma. Queria é que alguém ficasse perto dele.

Sem nenhum ruído e rapidamente, saí da mesa. Com dois passos largos, estava atrás do rapaz magro. Pulei em suas costas, travando seus braços com minhas pernas. Podia ainda respirar, mas meus dedos que comprimiam fortemente à direita e à esquerda da laringe, impediam a passagem do sangue da artéria para o cérebro. Sem o menor movimento de reação, caiu e ficou inerte no chão. Depois de uns três minutos, voltaria a si. Eu não tinha, pois, tempo para perder.

Duas coisas aconteceram naquele instante. Primeiro, os possantes motores do submarino começaram a roncar e, a seguir, ouviram-se passos que se aproximavam.

Ao conseguir reconhecer o homem, a pistola hipno-psíquica já estava em minha mão. Foi atingido pelos raios finíssimos do radiador hipno-psíquico antes mesmo de notar o que se passava. Eu mesmo senti na cabeça a leve vibração da arma silenciosa que paralisava por uns instantes a atuação da vontade. Já estava então realizado o contato de transmissão para a vítima selecionada. Nem precisava falar, bastava que eu pensasse intensamente, e a pessoa obedecia.

O homem parou no meio da sala. Seus olhos pareciam de vidro.

— Vá para o laboratório de pesca e fique lá esperando até que eu o chame! — foi o meu comando hipnótico.

Sem dizer uma palavra, pôs-se em movimento, passou pela minha frente e desapareceu no aposento contíguo. Esperei até que o outro, que estava inconsciente, voltasse a si. Recebeu a mesma ordem.

Meu radiador tinha um alcance de dois mil metros. Se regulasse o feixe de raios para uma extensão maior, seria possível cobrir uma ampla área num só disparo. Não estava pensando mesmo em ir de aposento em aposento, procurando um por um da tripulação, o que seria, aliás, muito perigoso. Regulei a arma para toda a extensão do submarino. Depois de alguns minutos foram chegando. Todos os tripulantes estavam sob meu comando. Na frente estava um homem corpulento, que eu julguei ser o da voz grossa. Atrás dele mais quatro pessoas, entre as quais uma jovem de cabelos tingidos de um verde-berrante.

Reuniram-se no laboratório, onde os prendi, dando-lhes a ordem de não saírem dali, por motivo algum.

Seminu, como estava, percorri o submarino. Atrás de um camarote de grande luxo, havia um salão com telas panorâmicas ligadas. O submarino já estava há muito em movimento, porém mantendo a profundidade de dois mil metros. Atrás do salão, estava o posto de comando. Ao lado, o alojamento da tripulação e o porão dos reatores e dos transformadores.

Ninguém olhou para mim, quando passava pelas diversas divisões do barco. Chegando ao posto de comando, fiquei de pé atrás do capitão. Era um senhor idoso, de cabelos brancos e pele muito branca.

Os timoneiros seguiam minhas ordens sem hesitação. O primeiro-oficial se dirigiu à calculadora para determinar a rota por mim indicada.

— Siga pelo litoral de Portugal. Em frente ao Cabo Roca, pouse o submarino no fundo do mar. Qual é sua velocidade de cruzeiro?

— Oitenta milhas marítimas, no máximo — respondeu o comandante, sem nenhuma flexão na voz.

— Bem, mantenha a velocidade de setenta milhas e com o piloto automático.

As ligações foram feitas. Dos aparelhos da cabine de rádio, ouvia-se o ruído típico. O radar eletrônico acusou a presença de um outro submarino e a operação de desvio se deu automaticamente.

Um mapa luminoso anunciava que nos estávamos aproximando de uma linha de navegação submarina de intenso tráfego. Surgiam cada vez mais linhas vermelhas com indicação de profundidade. Isto comprovava novamente que eu estava mesmo enganado. Não havia nenhum indício de guerra nuclear.

Resolvi fazer uma pergunta meio fora do assunto.

— Houve uma guerra nuclear em 1.971, em que a Terra foi devastada?

— Não — respondeu o comandante com voz fria.

— Qual é sua idade?

— Sessenta e cinco anos.

— Sua data de nascimento?

— 23 de abril de 1.975.

— Quer dizer que estamos no ano 2.040?

— Perfeitamente.

— Como foi que não se chegou a uma guerra nuclear? Isto é ensinado nas escolas?

— Sim. A Terceira Potência, sob a presidência de Perry Rhodan, impediu a eclosão da guerra, por intermédio da supertécnica dos arcônidas.

Senti que minhas pernas iam começar a tremer. Provavelmente meu rosto estava pálido como cera.

— Técnica arcônida? — repeti com voz vacilante. — Quer dizer então que Perry Rhodan se aliou com os arcônidas? Em caso positivo, quando, como e onde foi isto, responda.

Ele estava sob a influência do meu radiador psicológico. Suas respostas tinham de ser absolutamente verdadeiras.

— Perry Rhodan descobriu, depois da sua primeira aterrissagem na Lua, uma nave espacial de exploração de fabricação arcônida, que ali descera em pouso de emergência. Perry os ajudou e mais tarde foi auxiliado por eles. Impediu a guerra nuclear. Surgiu depois a Terceira Potência.

A informação foi inútil para mim, pois o homem só podia responder o que era perguntado expressamente. Deixei de lado um longo período.

— Como está a Terra atualmente? Que é Perry Rhodan hoje? Que forma de governo vocês têm?

— A Terra é grande, ampla e bela. Os desertos foram aproveitados e nós controlamos o tempo. Não existem mais doenças. Perry Rhodan é hoje o administrador-geral do Império Solar. O IS foi fundado em 1.990, depois de ter surgido o governo mundial.

Procurei uma cadeira para sentar. As revelações eram fortes demais. Tinha passado bobamente 69 anos na cúpula, enquanto a Terra fazia progressos incríveis.

Ainda fiquei fazendo perguntas por quase uma hora. Fiquei sabendo o suficiente.

Aquele piloto espacial, rude e ousado, tinha tido a coragem de enfrentar, outrora, as grandes potências. Depois, em empreendimentos espaciais que pareciam verdadeira loucura, foi arranjando poderosos cruzadores e belonaves, com os quais foi penetrando cuidadosamente na imensa Galáxia. Deve ter estado até em Árcon.

Com esta idéia, interrompeu-se a seqüência de meu pensamento. Desde quando podiam estes pequenos selvagens chegar até Árcon? Com uma única frota, eu teria tocado para o hiperespaço as poucas naves de Rhodan.

— Como é que Rhodan foi recebido em Árcon? Sabe-se algo a respeito?

— Sim, sabemos. O grande Império sob a soberania de Árcon se esfacelou. Atualmente Árcon é governado por um robô, por um cérebro positrônico. Os arcônidas são preguiçosos, degenerados, imprestáveis para a vida.

Meu subconsciente tomou conta de mim. Dei um salto e agarrei com as duas mãos a garganta do homem. Gritava como um doido. Como é que este sujeito se atrevia a falar assim dos arcônidas?

Não se defendeu, ao ser sacudido por mim. Só segundos depois é que me contive.

— Não diga isto outra vez, nunca mais, ouviu?

— Sim! — disse o homem apático. — Nunca mais.

Não fiz mais perguntas. Fui até a proa, onde estava o laboratório de pesca. Os homens me apresentaram os documentos, que examinei cuidadosamente.

Vinham dos Estados Unidos, um estado de federação, passando oficialmente por terranos. Não havia mais dúvida nenhuma de que este tal Rhodan havia realizado o sonho dos grandes idealistas do passado.

Mandei que os homens se apresentassem em fila e os fui examinando. Um deles, que se chamava Phil Holding, tinha mais ou menos a minha compleição. Mesmo no rosto, parecia comigo, embora houvesse diferenças marcantes. Na minha primeira saída lá fora, para a aparentemente supercivilizada Humanidade, eu teria que ser Phil Holding. Era diretor-comercial de uma fábrica de conservas de legumes.

Levei-o para sua cabina e pedi que me explicasse o uso de cada terno. Eram calças muito apertadas com paletós compridos em cores berrantes, classificadas por Phil como a última palavra da moda. Vesti-me e me olhei no espelho. Não havia tanta diferença assim da moda de outrora.

Daí para frente, meu plano já estava bem delineado. Primeiramente tinha que procurar uma boa livraria e estudar a história da Terra nos últimos 69 anos. Utilizando-me da memória fotográfica, seria um trabalho para 24 horas.

Nesse ínterim, o submarino, com sua tripulação, desapareceria. Informei-me com o primeiro-oficial sobre o estoque de provisões. Era mais do que suficiente. Tinham alimentos para quatro semanas. Água potável e ar eram produzidos por máquinas robotizadas.

Portanto, podia dar-lhes ordem de permanecerem quatro semanas nas profundezas do oceano. Só poderiam vir à tona após este período. Afinal de contas, não podia matá-los de fome.

Atingimos o litoral português após cautelosas manobras. Reuni no grande salão toda a tripulação e os passageiros. Utilizando-me ainda do radiador hipno-psíquico, dei as últimas instruções. Ficariam parados no local e na profundidade determinados, até que acabassem os alimentos. Depois disso deveriam emergir e esquecer o incidente.

Sem fazer nenhuma objeção, retiraram-se para seus abrigos. Examinei mais uma vez as instalações robotizadas do barco. Achei que estavam em ordem.

Vesti o terno que Phil me recomendou como o mais elegante. Seus documentos passaram para minha nova carteira. O dinheiro abundante me era desconhecido. Eram cédulas laváveis de um plástico de alta qualidade. Microfios embutidos imantados com impulsos magnéticos tornavam a falsificação quase impossível. Havia acabado o tempo que o mundo tinha uma quantidade enorme de moedas diferentes. Em toda a Terra, como também em todo o sistema solar, ou Império Solar, como era o nome, funcionava uma única moeda — o solar. Um solar tinha cem sóis. E o seu poder aquisitivo devia ser bem elevado, pois, como me dizia Phil, com apenas cinco sóis se podia comprar um maço de vinte cigarros, da melhor marca. Portanto, o vício do cigarro ainda perdurava. Retirei dois mil solares para mim e dei-lhe um recibo. O dinheiro seria pago depois ou depositado no nome de Phil Holding.

Agora teria de mergulhar.

Antes de vestir o traje de proteção submarina em cima de meu terno, mandei que o grumete cortasse meu cabelo. Minha cabeleira comprida, que durante 69 anos não viu tesoura, ia desaparecendo. Estava agora com os cabelos aparados e com uma leve ondulação. Aplicou-me também um creme para erradicar a barba. Parecia já mais civilizado. Surpreendi-me sorrindo diante do espelho. A jornada até a tona parecia muito interessante. As rações e os medicamentos não estavam mais na mochila.

Assim equipado, deixei o submarino através da escotilha de pesca. Depois de emergir, ainda fiquei boiando, esperando que ficasse um pouco mais escuro. Estava bem próximo do litoral.

Por trás do Cabo da Roca, se via o clarão da iluminação noturna de Lisboa. Uma sensação maravilhosa de segurança, de libertação de imagens angustiantes e de viver uma nova aventura, tomou conta de mim.

Não houve guerra nenhuma. Melhor ainda. Pisei em terra, perto de um pequeno bosque, quase à beira da estrada. Escondi meu traje de mergulho numa cavidade na desembocadura de um riacho. Minha única arma era ainda o radiador hipno-psíquico. No entanto, já tinha tomado a resolução de, logo após a escapada para Lisboa, voltar para minha cúpula submarina, para os últimos preparativos.

Fui a pé até o caminho e consegui que um carro parasse para mim. Um carro de construção esquisita. O fornecimento de energia era provavelmente regulado por uma espécie de banco de carga.

O motorista português acreditou na história que lhe contei e me levou. Em questão de quinze minutos, fazíamos as belas curvas das auto-estradas da capital. Ali eu tive as primeiras impressões das grandes realizações que se efetuaram nestes 69 anos.

Agradeci muito e saltei em frente a um hotel, num grande arranha-céu. A recepção era totalmente robotizada. Um autômato, de sorriso permanente no rosto de plástico, perguntava apenas pelo nome do hóspede. Quarto 123, foi a resposta eletrônica. Depois que o autômato reagiu normalmente ao toque da palma da minha mão, fiquei sabendo que, sem a minha vontade, se registraram novas vibrações.

“Bobo!” foi a reação do meu sexto sentido, contra mim mesmo.

Fiquei parado, refletindo no luxuoso salão. De cabeça fria, fiquei pensando que no espaço de duas horas já havia cometido duas burrices. Talvez, meu instinto que jamais se enganava, ainda não estava bem apto para funcionar. Quem sabe ainda sentia os efeitos da longa hibernação. Podia haver várias razões.

Assim, por exemplo, havia esquecido de destruir, antes de sair do submarino, as comprometedoras radiografias. Ainda estavam no laboratório. O grande perigo, porém, teria sua fase aguda somente depois de quatro semanas. Além disso, podia voltar ao submarino a hora que quisesse, para apanhar o esquecido.

Deixei a solução deste assunto para mais tarde.

Certamente, mais urgente do que a questão das radiografias era o caso do registro de minhas vibrações corporais. A fechadura do meu quarto estava programada de acordo com estas vibrações. Não fosse assim, não teria reagido ao simples toque da mão.

Sentei-me numa poltrona que parecia muito confortável e que realmente ultrapassou toda expectativa. Ao receber o corpo, ele se adaptava automaticamente às formas do mesmo. Os habitantes do planeta Terra tinham alcançado um bom grau de tecnologia. Meio desconfiado, comecei a examinar o banheiro. Havia até um dispositivo automático de massagem. O robô especializado da cúpula submarina não lhe era nada superior.

Cada vez crescia mais a ânsia de chegar a uma livraria pública, pois não seria prudente ficar fazendo perguntas a todo mundo. Podia causar suspeitas. Se eu soubesse que existia uma “Enciclopédia Terrana”, onde estava toda a história do planeta a partir de 1.971, já teria saído do hotel de Lisboa. Então saberia também que num volume extra estava exposto um assunto muito misterioso, chamado comumente de Exército de Mutantes.

Acabei deitando para descansar.

Os esforços e preocupações do dia se faziam sentir.

 

Confiei demais no meu sexto sentido. A história da Humanidade a partir de 1.971 era muito confusa e maior do que eu pensava. Começava com a construção da Terceira Potência na desolada solidão do deserto centro-asiático de Gobi. Soube de coisas que primeiro me deixaram envergonhado e depois pálido de indignação.

Perry Rhodan parecia ser não somente um lutador de extrema determinação e de decisões rápidas, mas principalmente um homem ponderado, mentalmente ágil, que sabia sempre com exatidão onde estava a maior vantagem para ele. A tudo isso acrescia o fato de que se identificava pessoalmente com a Humanidade.

Uma coisa me deixou preocupado: Rhodan, com algumas espaçonaves conquistadas em luta, penetrou nas profundezas das Galáxias, embora soubesse que a Terra não estava em condições de se defender. E o mais admirável é que, apesar disso, acabou desnorteando os mercadores galácticos e o Império Arcônida.

A “Enciclopédia Terrana” classifica o ano 1.984 como a segunda e mais importante etapa na escalada ascendente da Terra. Rhodan deu um golpe de inteligência ao fazer que todos os habitantes das Galáxias acreditassem que a Terra tinha sido destruída por uma frota invasora. Todos os seres inteligentes da Via Láctea acreditavam mesmo que Rhodan tinha sumido em combate.

A partir deste ano, pôde então se dedicar à construção e ao fortalecimento da Terra, sem se preocupar com ataques de outros mundos. Lá fora, no espaço, todos julgavam que a Terra não existia mais. Assim, este planeta se tornou a maior potência do Universo.

Tomei residência fixa no hotel e providenciei roupas mais adequadas. Meus estudos diários na Biblioteca Pública começaram a dar na vista. Apesar de todo o serviço automático da Biblioteca, havia sempre aqui e ali pessoas de cuja atenção eu não conseguia escapar.

Assim, falei um dia, em conversa, que precisava de uma obra de consulta para meus exames. O assunto era muito amplo para ser assimilado em poucos dias. É claro que me interessei acima de tudo pela reconstrução militar e político-econômica. O Império Solar se compunha dos nove planetas do Sol.

Marte, Vênus e algumas luas de Júpiter, estavam ocupados por colonizadores. Principalmente Vênus, que já formava uma boa colônia dentro do Império.

A navegação espacial tinha atingido o clímax. Havia uma enorme frota comercial, além das belonaves, cujas reproduções na Enciclopédia me deixavam de boca aberta.

Ao deixar a Biblioteca, no quarto dia, sabia que não tinha nada mais a procurar na Terra. Embora aceitasse as conclusões do capítulo final da Enciclopédia, sem restrições, as informações sobre o Império Estelar dos Arcônidas me pareciam falsas. Era inaceitável que o poder do grande Império estivesse nas mãos de um robô.

Ao penetrar no heliporto da Biblioteca, para pegar um táxi aéreo, senti o primeiro aviso. Aquela sensação de alguma coisa que rebusca a parte posterior do cérebro, já me era conhecida. Instintivamente bloqueei meu conteúdo mental. Havia alguém tentando por via telepática penetrar em meu pensamento.

Meu sexto sentido estava de prontidão. Fiquei parado junto do parapeito do terraço da Biblioteca, olhando para o belo panorama das sinuosas auto-estradas. Ali terminavam as pistas de alta velocidade que rasgavam todo o país.

Os impulsos penetrantes vinham de trás, do lado direito. Senti a confusão no fluxo tateante do desconhecido telepata. Por uns minutos, ele desistiu de penetrar minha mente. Daí a pouco tentou de novo, com maior intensidade. Devia ser um telepata fraco. Não conseguiu penetrar-me.

Dirigi-me para um táxi que estava pousando naquele momento. O telepata era ainda jovem, de cabelos escuros. Passei tão perto dele, que, sem querer, deu um passo para trás. Entrei na espaçosa cabina do táxi aéreo, com muita calma, introduzi um solar na fenda do cobrador automático.

— Hotel Escorial! — disse eu alto e bem pronunciado.

O piloto-robô confirmou com um movimento de cabeça e a porta se fechou. O aparelho de vôo para curta distância recebia sua energia elétrica por microondas. Concentrei-me no forte zumbido do motor e agi como se o telepata não me interessasse. Ele fez mais uma tentativa, antes de desistir. Finalmente, meu pequeno aparelho ganhou altura.

“Teve muita sorte”, constatou meu sexto sentido. “Se lhe tivessem mandado um telepata mais forte, você estaria perdido.”

Sabia que não podia mais voltar para o hotel, então inclinei-me para frente, para perto do microfone:

— Quero descer do outro lado do Tejo, em Almada.

— Em que lugar de Almada?

— O velho cais dos pescadores.

O aparelho deu uma guinada para o sul. Abaixo de mim cintilavam os anúncios no alto dos arranha-céus. Num destes luminosos havia uma sigla muito repetida por toda parte: CGC, três letras importantes: “Companhia Geral do Cosmo.” Devia ser uma organização imensa. Conforme a Enciclopédia, a CGC tinha sido criada por Rhodan.

O nome Rhodan me impressionava cada vez mais. Quando estávamos quase na desembocadura do Tejo e já víamos ao longe as luzes de Almada, meu sexto sentido me alertou de novo de que não devia perder um segundo. Já estavam atrás de mim, do contrário o telepata não me teria seguido com tanta insistência.

Naturalmente, tudo poderia ser um simples serviço de rotina da polícia, o que meu bom senso acabou excluindo. Por mais despreparado que fosse, o telepata não era um zé-ninguém. Se um homem desta categoria foi destacado para sondar meus pensamentos, era porque desconfiavam de algo.

Na hipótese de não se tratar de um serviço de rotina da policia, surgiria uma pergunta: Como e por que chegaram a suspeitar de mim?

O registro das vibrações no hotel? Impossível! Isso poderia acontecer caso tivessem dados a meu respeito. Na Terra, não havia mais fronteiras entre os diversos estados. Sou igual a todo mundo, não poderia ter chamado a atenção de ninguém. Onde estava o mistério? Fiquei matutando até que uma idéia me fez tremer dos pés à cabeça.

“O submarino!”, dizia meu sexto sentido.

Acabei concordando com a idéia. Era a única explicação plausível. Ao deixar a tripulação no fundo do oceano, não sabia ainda da existência do corpo de mutantes. Naturalmente o submarino estava sendo considerado como perdido. Até que, com os meios modernos de localização, chegaram a encontrá-lo. Além disso, o trânsito marítimo era muito intenso, de forma que a localização do submarino poderia até ter sido casual. Mas tudo isso não tinha importância alguma. Foi encontrado e acabou.

Não devia estar preocupado assim, pois a tripulação se mantinha em estado de forte bloqueio hipnótico. Pela primeira vez, o conceito de exército de mutantes foi tomando forma definida no meu pensamento.

Pessoas dotadas de poderes parapsicológicos haveriam de conseguir romper o bloqueio hipnótico provocado por mim. E aí, o pessoal do submarino soltou o que sabia. O quadro estava completo, as peças estavam se casando bem. Agora é que estava percebendo a gravidade das radiografias esquecidas a bordo do submarino. Se caíram em mãos competentes, então já estavam a par da minha existência.

Recostei-me na poltrona macia de espuma de borracha.

Ainda bem que não sabiam nada da minha antiga moradia, a cúpula da fossa oceânica dos Açores. Do contrário não teriam designado para me seguir um telepata jovem, de poderes insuficientes. Mas, com toda certeza, possuíam grandes pistas.

O piloto automático precisou de mais uma moeda para me levar até ao cais dos pescadores em Almada. Coloquei um solar e imediatamente veio o troco de dois sóis.

Liguei o envoltório magnético e ouvi, com esforço, alguns impulsos telepáticos. Não se compreendia nada.

A noite que estava chegando tinha um céu suave e cheio de estrelas. No pequeno cais, havia o cheiro indefinido de algas, cordames e peixes. Era tudo como antes, embora não se usasse mais o alcatrão.

Passei por pessoas alegres e fui à procura de um barco. Meu traje de mergulho de profundidade estava do outro lado da desembocadura do Tejo. Encontrei um barco, cujo proprietário o estava acabando de encostar. Não podia me demorar com explicações, o tempo não dava para isto. Ninguém percebeu o jato de raios da minha psico-pistola. Atingiu os três homens, obrigando-os a fazer o que eu mandasse.

Cinco minutos depois, estava bem longe do cais. O barco tinha um bom motor elétrico, abastecido pelo banco de carga. Quase não fazia ruído.

Atravessamos o Tejo, que nesta parte era bem largo e nos encaminhamos para o local em que a auto-estrada chegava bem perto do litoral. Saltei, apliquei mais um bloqueio hipnótico nos pescadores e me dirigi para a estrada. Novamente, entrou em ação meu radiador. Um carro parou perto de mim. A dona do carro, uma senhora já de idade, me levou uns quinze quilômetros para o oeste. Encontrei com facilidade o trecho de floresta. Fiquei olhando pensativo para a pequena viatura da senhora que já ia longe. Parecia tudo tão simples. Mas a preocupação crescia sempre.

Meu traje de proteção estava intacto. Vesti-o, regulei o gerador de gravidade e penetrei no mar, conservando-me sempre na superfície, para evitar que me localizassem. Fiquei atento na escuta. Uma vez fui apanhado pelo farol giratório de um navio. Deixei-me cair a pique, imediatamente, ficando uns dez minutos debaixo d’água, para depois emergir com cautela.

Ao chegar até o submarino, dei uma volta bem grande em torno dele. Suspeitava que estivessem à minha espera. Se fossem homens inteligentes, haveriam de ter certeza de que as radiografias que eu esquecera me dariam muita dor de cabeça.

Estava sorrindo, abri um pouco o traje de proteção, deixando que a água fresca me banhasse o rosto. Depois, com uma velocidade de 250 quilômetros por hora, o vibrador de ondas me levou para o oeste.

Os rapazes vão esperar à toa no fundo do mar. O que eu sentia é que as radiografias estavam nas mãos deles. Mas, não se podia fazer nada.

Enquanto me dirigia para o oeste, ia estudando o que devia fazer. Tornava-se urgente alterar as freqüências de minhas vibrações, pois, certamente, já haviam tomado meus dados no hotel de Lisboa. Quando aparecesse de novo, ninguém me reconheceria. Além disso, ainda tinha que fortalecer meu corpo enfraquecido. Isto exigia, pelo menos, um treino de quatro semanas em minha cúpula. A instalação adequada para isto, o próprio Rico podia montar. Se tudo corresse bem, no princípio de maio de 2.040, eu apareceria em Terrânia como um cientista muito bem formado, equipado com os melhores diplomas. Tinha intenção de trabalhar como engenheiro energético, porque este ramo era realmente minha especialidade.

Ria bastante dentro da água que eu cortava em grande velocidade. A vida estava magnífica e a questão de Rhodan começou a me interessar. Quem sabe, a esta altura, ele já sabia com quem estava lidando?

Se ele fosse realmente inteligente, não me haveria de considerar simplesmente um inimigo da Humanidade. E de fato, eu não era, nem nunca fui isto. Gostava muito destes pequenos selvagens, orgulhosos e de grande determinação, que agora estavam atingindo as estrelas.

Depois de algum tempo, surgiram os Açores e com isso eu já estava em segurança. Agora era mister prestar atenção para que não me confundissem de novo com um peixe estranho. Provavelmente, aquele trecho em que o submarino me encontrara devia ser até zona interdita à pesca.

Com muita cautela, mergulhei para o abismo. Deixei-me cair bem rapidamente, a uma média de 20 graus, até às profundezas do fundo do mar. Ali embaixo, eu estava em casa. Sentia-me tão bem como qualquer peixe.

De fato, a região em volta da Ilha de São Miguel estava coalhada de submarinos. Portanto minha teoria estava certa. Escorreguei pelas fendas do solo, até que fui localizado pelo cérebro robotizado da cúpula. Deixei-me sugar pela abertura da escotilha.

Rico estava no seu posto. Protegi imediatamente minha “moradia” contra localização submarina e, com o sugador a jato puxei um montão de lama e lodo de encontro à cúpula.

A partir daí, estava enclausurado por quatro semanas. Os homens maliciosos de Terrânia, a capital do Império Solar, que me procurassem.

 

Era o dia 24 de abril do ano 2.040. Estava sentado numa confortável poltrona da sala de espera do aeroporto de San Francisco esperando o clíper para Terrânia. Há sete semanas, havia começado o jogo que me levaria para o lugar desejado. Levei apenas três semanas para completar minha instalação e para devolver ao meu corpo sua antiga musculatura.

Estava mais do que claro que eu não podia aparecer em Terrânia como um cidadão qualquer. Eu precisava chegar a uma posição tal, que me desse livre trânsito nos círculos competentes, para comprar naves espaciais do menor tamanho possível, completamente automatizadas e quanto possível mais velozes que a luz. Portanto, tinha que me apresentar como cientista ou técnico com diplomas absolutamente em ordem.

Nem com tudo isso, seria aconselhável uma ida para Terrânia e lá, com um sorriso amarelo no rosto, ficar suplicando um posto de chefia.

Por este motivo, seguindo o protocolo geral de serviço, entrei, há duas semanas, com um requerimento, acompanhado de todos os documentos atinentes. Ontem chegou a resposta pela qual eu tanto esperava. Devia me apresentar em Terrânia ao Departamento do Pessoal, levando todos os diplomas no original.

Estava agora olhando para a minha pasta de documentos onde guardava tudo que eu havia conquistado nas semanas anteriores.

Um cidadão de Terrânia deve, a qualquer momento poder provar onde ele nasceu e de quem é filho. Sendo assim, escolhi a pequena Greenville, no Estado de Maine, como minha cidade natal e com o radiador hipnótico consegui que os documentos legítimos de nascimento fossem registrados e tombados com datas anteriores, no arquivo municipal.

Os funcionários da pequena repartição não compreenderam bem o que fizeram. De qualquer maneira, podiam jurar que eu nascera em Greenville, na extremidade sul do Lago Mosehead.

O próximo passo fora com a Universidade de Portland, onde convenci o velho diretor e dois outros professores de que eu tinha sido o melhor aluno. Os raios hipnóticos me arranjaram todos os diplomas. Em matemática, por exemplo, tinha sido magna cum laude.

A terceira fase não foi tão simples assim, pois desta vez, tinha que tratar com cientistas e com um complicado plano didático de uma grande academia espacial. A Academia para Vôo Espacial da Califórnia — CASF — já existia antes, mas agora estava reorganizada de acordo com os padrões dos arcônidas. Rhodan também tinha passado por esta academia, se bem que já há muitos anos.

Escolhi esta academia, porque, sem dúvida alguma, era a mais afamada do mundo. Quem viesse de lá, podia contar com simpatia geral. Somente a Academia de Terrânia era considerada superior, nela eram treinados somente os que já haviam concluído os estudos normais. Outra coisa também, eu não iria usar os raios hipnóticos em Terrânia. Haveriam de me descobrir em pouco tempo.

Levei uns quinze dias para conseguir os documentos com datas de anos atrás. Tive que influenciar hipnoticamente mais de dez cientistas para conseguir nos documentos originais a data desejada.

Munido destes documentos, podia comprovar que havia cursado 15 semestres, especialização — Técnica da Alta-Energia e Matérias em Geral: — Matemática Super-dimensional. Fui, supostamente, promovido e recebi o grau de doutor em 2.034.

Foi difícil manter contato com todos os professores e estudantes. Mas tive que fazê-lo para me familiarizar com os apelidos — qualidades extraordinárias dos colegas e mestres e — com a vida acadêmica em geral. Assim, bem preparado, tinha aberto o caminho para um campo de ação de seis anos. Estava freqüentando um professor particular podre de rico que, de acordo com o que se dizia, pertencia ao grupo daqueles cientistas que em sua mocidade tinham tomado parte com Perry Rhodan nas últimas incursões contra Árcon. Este senhor, já de idade avançada, tinha cinco assistentes, os quais influenciei com facilidade. Do professor Steinemann, especialista em Teoria de campo de cinco dimensões, recebi atestados maravilhosos referentes a uma atividade de seis anos contínuos.

De todos estes documentos, mandei fotocópias autenticadas para Terrânia. Em “O Sistema Solar”, conhecida publicação especializada, foi aberta a inscrição para o concurso de Diretor de Banca Examinadora. Eu me inscrevi e ontem, como já disse antes, chegou-me a resposta.

Até o presente momento, tudo corria às mil maravilhas. Já tinha despachado a mala pelo serviço automático direto do aeroporto. Na minha pasta de mão, estavam somente os papéis importantes, meus documentos pessoais e dinheiro. A venda de uns maravilhosos rubis do meu tesouro da cúpula deram-me o montante de 15.820 solares. O dinheiro estava depositado num banco particular de São Francisco. Calculei bem e consegui que, com meus merecimentos confirmados pelo professor Steinemann, esta quantia, relativamente elevada, pudesse ser poupada. Tinha inventado algumas coisas que me deram algum dinheiro.

Estava convencido de não haver cometido nenhum erro substancial, já que as freqüências de minhas vibrações celulares tinham sido alteradas. Portanto, não podia mais ser identificado através dos dados do hotel de Lisboa. Não mandei mudar a cor nem dos cabelos, nem dos olhos. Conhecia muito bem os homens e seus pensamentos. Provavelmente iriam supor que eu me apresentasse com máscara. E exatamente por este motivo é que permaneci como era. Meus cabelos louros eram normais para o tipo nórdico. Tinha apenas que ter cuidado com os olhos, cujo brilho avermelhado me podia trair. Consegui modificá-los, quando, por ocasião de uma leve conjuntivite, consultei o médico. Naturalmente, tive que influenciá-lo com os raios hipnóticos.

Estava me sentindo um pouco cansado e abatido. Meu subconsciente aflorava constantemente à tona do meu espírito com leves censuras. Talvez, pudesse encontrar em qualquer outro aeroporto da Terra um aparelho mais veloz do que a luz. Mas alguma coisa me dizia que isto seria possível somente na capital do Império Solar. Em outro lugar não havia aqueles aparelhos ultra-rápidos, usados pela patrulha espacial de Rhodan.

Havia me informado com detalhes sobre os diversos tipos. Um moderno Space-Jet era a construção mais adequada para mim. Um ronco ensurdecedor me arrancou dos devaneios. O chamado Gobi-cliper estava aterrissando. Fiquei observando as manobras de aterrissagem do aparelho vindo da Europa. Era um projétil comprido e estreito com reduzida superfície de sustentação, em forma de um delta, com dois possantes reatores que serviam também para a decolagem vertical. Exatamente no ponto preto, no meio do círculo vermelho, o aparelho tocou o solo tão suavemente que não se notou o menor solavanco nos amortecedores.

Uma voz robotizada começou a lançar no ar umas instruções de rotina:

— Clíper do Extremo Oriente Zacho, Vôo 23-1712 para Terrânia, partida às 20:03 h. Favor tomarem seus lugares, o aparelho permanece no aeroporto somente 10 minutos.

Estava na hora. Peguei minha pasta, ajeitei os óculos escuros e caminhei para os controles automáticos. Um pequeno helicóptero levou a mim e os outros passageiros para o distante aparelho. O bojo devia ter uns cem metros de comprimento. Pesados robôs de carga transportavam a bagagem para os porões do aparelho.

Achei meu lugar numa poltrona reclinável, mais ou menos no centro do delta de sustentação. A decolagem foi suave. Sabia que aqueles aparelhos trabalhavam com neutralizadores de pressão. Depois da suave subida vertical, a pressão de aceleração atingia pelo menos dez graus. Apesar disso, não se notava nada de desagradável. Na frente do nariz pontiagudo do aparelho, via-se o espaço. O vôo para Terrânia levava meia hora, agora as manobras de aterrissagem duravam outro tanto.

A metrópole que surgia a meus olhos quase me tirou a respiração. Como o antigo deserto se transformou! Terrânia devia ter 14 milhões de habitantes. Quem vivia e trabalhava ali tinha sempre alguma relação com a navegação espacial. Da pequena base de 1.971, cristalizou-se a soberba capital da Terra e do Império Solar. Grande, bela e poderosa.

Aquele quadro me impressionou.

Entrementes o clíper já havia pousado. Um jovem oficial se dirigiu a mim. Estava armado e no lado esquerdo do ombro tinha um emblema: um cometa atravessado por uma seta.

— O senhor é o Dr. Skörld Gonardson? — perguntou em voz um tanto alta.

Fiz um gesto de confirmação.

— Bem-vindo, doutor. Estou incumbido de levá-lo a seu alojamento. Meu carro está atrás da galeria. Posso pedir-lhe a passagem?

Entreguei-lhe a estreita tira plástica. Tudo parecia bem mais organizado. Um tremendo zumbido me obrigou instintivamente a virar para trás. Bem afastado, um monstro redondo galgava os céus de Gobi. Quando as ondas sonoras chegaram, a espaçonave já tinha desaparecido. Acompanhei com os olhos embevecidos o gigantesco aparelho.

— É apenas um cruzador pesado do tipo Terra — disse o tenente sorrindo. — É somente uma escolta para o comboio regular de transporte para o sistema Vega. Nós não temos coragem de deixar voar pelo espaço afora estes cargueiros desarmados.

Piscou um olho e sorriu feliz. Tive que voltar meu pensamento para a “Enciclopédia Terrana”. Conforme ela, Rhodan estava morto desde o ano 1.984 e a Terra tinha sido destruída. Que bela destruição foi esta! A Galáxia inteira se deixou iludir por um único homem.

— Vamos — disse eu. — Que calor horrível faz aqui!

— Espere então o mês de junho — sorriu o jovem com naturalidade. — Então, pessoas gordas fritam-se na própria gordura.

Olhou para mim com tanta insistência que tive de rir, sem querer. Como se eu tivesse alguma grama de gordura a mais.

— Não há perigo, o senhor tem boa aparência — continuou ele sorrindo. — Quer um cigarro?

— Obrigado, não fumo. Considero o cigarro um mau hábito.

Fechou um pouco a fisionomia e guardou o maço de cigarros.

— Muita gente diz isto, doutor. Já que fui incumbido de cuidar do seu bem-estar, vou controlar meu vício.

Fiquei gostando do rapaz, tinha uma naturalidade muito cordial.

— Cuidar do meu bem-estar?

Com a ponta do dedo indicador, levantou um pouco a pala do boné e olhando para mim calmamente, disse:

— Conforme o capricho dos meus superiores, terei que bancar de vez em quando o guarda de vigilância no setor da banca examinadora. Já que o senhor será o chefe da T-18 será interessante não aborrecê-lo muito.

Franzi a testa e instintivamente peguei minha pasta. Era uma revelação sensacional.

Sorriu, contente, e continuou a me examinar.

— Parece que o senhor não sabe ainda de sua grande sorte, não é? Quando chamamos candidatos para a capital, quer dizer que já estão aceitos. Do contrário não viriam diretamente para Terrânia.

— Ah! — disse eu. — E por que é interessante não me aborrecer?

Olhou assustado em volta, antes de aproximar sua boca de meu ouvido:

— Afirma-se que o conteúdo do tanque de óleo lubrificante na ala 18 se compõe dos ossos dos tenentes que se tornaram desagradáveis. Um colega meu ficou três horas em movimento espiral, indo à Lua e voltando, só porque se recusou a engraxar as botas do chefe de física.

Confirmava com acenos da cabeça, muito compenetrado, até que a admiração estampada no meu rosto o obrigou a uma sonora gargalhada. Eu também comecei a rir.

Os terranos tinham muito senso de humor. Talvez fosse isso um componente essencial do seu sucesso. Aquele tenente, por exemplo, parecia a própria alegria de viver. Certamente, se transformaria em excelente lutador, na hora necessária. Gente do seu tipo, na hora decisiva, são verdadeiros heróis.

Lembro-me de um homem que conheci há muito tempo. Deu-me seu último pedaço de pão, porém, quando soube quem eu era, queria me matar. Perguntei pelo nome do jovem tenente. Chamava-se Tombe Gmuna, tinha 21 anos e estava acabando de sair da academia. Como ele mesmo disse, tinha 52 cursos por hipnose em Galatonáutica, estudos de Alta-Energia e de Armas. Mais um motivo para aumentar minha inquietação, que já era grande.

Gente como eu nota logo quando alguém joga verde para colher maduro, isto é, quer nos sondar. Mas o rosto de Gmuna, preto como o ébano, irradiava uma alegria e uma naturalidade juvenil, onde não cabia nenhuma segunda intenção. Ria muito e alto, era sincero, bem-humorado e prestativo. Apesar disso, de vez em quando fazia certas observações que me traziam uma tensão de nervos, lembrando-me as semanas anteriores. Já tinha sido testado antes mesmo de subir no helicóptero.

Daí em diante, estava certo de que ele não era um simples oficial da frota espacial. Se o pessoal de Rhodan era todo tão perigoso assim, então eu teria, no máximo, oito dias de tempo. Se, dentro deste período, não tivesse desaparecido, era sinal de que as coisas estavam bem. Meu instinto me dizia que devia, no máximo, chegar até seis dias só. Com toda certeza, não permitiriam a ninguém de entrar no espaçoporto, antes de conhecê-lo a fundo.

Minhas respostas pareciam satisfazer a Gmuna. O pequeno vestígio de um princípio de nervosismo havia desaparecido. Daí para frente, sentia-me mais natural. Tive a impressão de que sua tarefa já estava cumprida.

Saímos com o pequeno helicóptero do aeroporto e minutos depois surgia no horizonte a bolha incandescente de uma cúpula energética. Já a conhecia da “Enciclopédia Terrana”. Foi o ponto onde, há 69 anos, pousou o módulo lunar, comandado por Rhodan.

O espaçoporto, que estava debaixo de nós, era uma coisa gigantesca. Apesar da altura bem grande em que nos encontrávamos, não conseguia ver seus limites. Via galerias de dimensões fantásticas. Pelo menos, para mim, eram assustadoras.

— Centro de acabamento das belonaves — explicou-me meu companheiro. — Imponente, não é?

Concordei com plena convicção.

— Muito imponente!

Sobrevoamos o espaçoporto e tivemos que nos desviar de uma gigantesca esfera que aterrissava. Passamos depois sobre arranha-céus em que estavam instalados setores de administração.

De Terrânia mesmo, não se podia ver muita coisa. Aqui imperava a frota espacial solar. No comando desta, estava um homem, cujo nome, atualmente só se podia pronunciar com muita cautela. Estava convencido de que Perry Rhodan era um psicólogo muitíssimo inteligente. Ocultava-se no manto do silêncio, vivia em constante retiro e muito raramente aparecia diante das câmaras da Terravisão. Era a força operante que agia nos bastidores. É claro que não tinha a vaidade de querer aparecer.

O fato era que havia uma fantástica propaganda oral e uma justa glorificação de seus feitos. Eu tinha, porém, a certeza de que, cercado por seus colaboradores, Rhodan continuava sempre ativo. Era um homem, cuja fibra não permitia abandonar a obra imensa que criara.

Alguns segundos antes que um aviso de rádio desse a ordem para que todos os aparelhos descessem imediatamente, aterrissamos no amplo terraço de um edifício de cem andares.

Ao descer do helicóptero, com as pernas enrijecidas, Gmuna me puxou para o abrigo do nosso pequeno aparelho que ficou preso por grandes eletroímãs fixados na laje de cimento armado.

— Não olhe para dentro — gritou-me o oficial bem alto.

Primeiro não compreendi o que ele queria dizer. Depois fomos atingidos pelas ondas de som.

Mais para o sul, quase na linha do horizonte, surgia uma espaçonave, incandescente, despejando raios de fogo. Cresceu para um imenso balão, passando sobre nós numa velocidade incrível. Um grande clarão iluminou o antigo deserto, hoje transformado num imenso canteiro industrial, raramente interrompido por pequenas manchas verdes.

Perplexo, acompanhava o rastro de fogo. Não eram fagulhas provenientes dos reatores de propulsão, mas tão-somente partículas superaquecidas da atmosfera na decolagem do monstro espacial.

Estava realmente atônito.

— É uma nave do tipo Stardust? — perguntei quase gaguejando.

— Maior, muito maior — explicou-me Gmuna. — Do tipo Império, com 1.500 metros de diâmetro. É a grande novidade. Deve ser um vôo experimental, creio eu. Venha, por favor.

Meio aturdido, segui o rapaz. Nem reparei nos controles robotizados do elevador de alta velocidade em que descíamos. Ainda estava pensando nas dimensões daquela espaçonave, que há pouco se projetara no espaço. Mil e quinhentos metros de diâmetro! Isto eu nunca tinha visto nem ouvido falar. Tive que me dominar para não fazer a pergunta se aquele gigante tinha sido construído na Terra.

É claro que sim. Não havia outra possibilidade. Estava muito confuso, principalmente incrédulo e disposto a acreditar que tudo não passava de uma bem montada miragem. Mas, minha lógica repetia com firmeza que Rhodan, desde 1.984, tinha tido 56 anos para se dedicar com exclusividade ao progresso da Terra, com toda calma e sem ser perturbado por nenhum inimigo. Desta forma, surgira aquele poderio tremendo, graças à visão inteligente de Rhodan.

Não, não podia mais odiar estes pequenos terranos. Pequenos, mas tão fortes. De outro lado, me sentia impaciente e desanimado. Eles, os terranos, não tinham o direito de saírem vendendo pelo cosmo afora o que descobriram por acaso. Se Rhodan, quando da sua primeira ida à Lua, não tivesse achado os escombros de uma espaçonave arcônida, a situação seria bem outra. Por muito favor, a Terra teria apenas chegado ao nível de uma pequena navegação espacial dentro do sistema solar.

Não podia estar satisfeito com o destino que me fizera dormir durante os anos mais importantes do progresso da Humanidade.

Havia ainda outra coisa que me fazia morrer de curiosidade. Qual era, propriamente, a idade de Perry Rhodan? Quando aparecia uma vez ou outra na televisão, sua postura atlética o colocava na quadra dos trinta anos. Mas isto tinha que ser uma máscara, sim uma máscara. Minhas pesquisas com o professor Steinemann provaram que Perry Rhodan nasceu a 8 de junho de 1.936. Portanto deveria estar agora completando 104 anos. Mesmo que tivesse usado toda técnica biológica de Árcon, já tinha de estar muito velho e acabado. Eu lhe daria, no máximo, mais dez anos de vida, com todos os recursos modernos.

Um simples cálculo de aritmética provava que Rhodan tinha toda razão de viver assim retirado e quase escondido. Um homem de 104 anos não pode mais ter força nem disposição para nada, nem mental, nem física.

Estava rindo sozinho. A “Enciclopédia Terrana” não dava explicação nenhuma para esta questão. Deixava a massa popular na crença de que Rhodan era um prodígio da natureza. De vez em quando, surgiam até vozes falando de uma relativa imortalidade, o que não deixava de ser uma grande asneira.

Despertei dos meus sonhos. Tombe Gmuna estava falando comigo:

— O doutor possui os originais de seus diplomas?

— Como? Sim, é claro. Já estamos no Departamento do Pessoal?

— Não. Primeiro vem o da Defesa Solar.

Sorriu ingenuamente para mim, mas seus olhos pretos investigavam alguma coisa. Sentia aquela leve inquietação que mesmo pessoas íntegras sentem perante os representantes da lei.

— Mais isso ainda — observei. — Pois bem, vamos! Você já refletiu que um homem da minha estatura também pode ter fome? A viagem foi cansativa.

Gmuna começou a rir de novo. Sua suspeita parecia ter sumido. Caminhei através de portas deslizantes. Se me colocassem agora diante de um aparelho de raios X, estaria tudo acabado. Era a incógnita em minha equação. Minha pistola de raios hipnóticos estava naturalmente na mala que despachei separadamente. Não podia me arriscar a trazê-la quando dos meus primeiros contatos.

Estava, pois, desprotegido. Tinha que esperar o exame médico. Este deveria ser feito logo após minha chegada. Se me dessem ao menos o prazo de um dia, estaria salvo. Meu equipamento especial estava num armário automático da cidade. A mala comum ainda encontrava-se em São Francisco. Estava tudo muito bem pensado, apenas a sorte é que não podia se esquecer de mim. Achava-me preparado para enfrentar os mutantes. Tinham de ser, naturalmente, telepatas. Embora soubesse que Rhodan se utilizasse dos mutantes para missões especiais no espaço, havia ainda a possibilidade de que quisessem me testar. Para isso, estava preparado, pois eu só permitia sair o pensamento que eu quisesse manifestar.

Assim, eu era o Dr. Skörld Gonardson e nunca estivera em contato mais íntimo com um submarino de pesca.

Atrás da escrivaninha se levantou um homem de ombros largos, com uniforme do Império Solar. Era um militar graduado.

— Kosnow — disse, se apresentando. — Sente-se, por favor, doutor. Cigarro?

Um estojo de metal de Zalos se abriu e Kosnow me contemplava com um sorriso amável. Recusei, agradecendo, sabendo já que este oficial tinha estado pelo menos uma vez no planeta do Império Arcônida chamado Zalit, pois somente lá é que havia daquele metal zalos.

Olhei com curiosidade para o lindo material de fluorescência esverdeada. Daria muito na vista se eu não estranhasse a bela peça de arte.

— Obrigado, não fumo. Diga-me por favor, que material é este? Posso vê-lo?

O tenente-general pigarreou e com um simples aceno de cabeça pediu que o tenente Gmuna deixasse o aposento.

— Naturalmente. Não conheci ainda nenhum cientista que não perguntasse pela procedência do material. Mas, por favor, acomode-se.

Meu sexto sentido se apresentou “Muito bem, isto foi um teste. Estão estudando você. Foi muito bem arquitetado. Você tem que se dominar mais ainda.”

Estava diante de um homem que pertencia ao estreito círculo dos colaboradores íntimos de Rhodan. Kosnow era Ministro da Defesa.

 

Esperei até que Evelyn Tunics acabasse de enfiar no automático a fita de programação. Ainda tinha cinco minutos.

Fazia exatamente uma hora que minha manobra de falsificação com o estudante de medicina Flynn tinha sido descoberta. Naturalmente, o médico-chefe do Serviço de Defesa não sabia que esteve sob bloqueio hipnótico durante toda a consulta. Sem ninguém notar, consegui escapar da radioscopia. Um médico assistente, sob coação, foi obrigado a ficar diante do raio X e assim foi possível dar a chapa toráxica deste estudante de medicina, como se fosse a minha. Ainda não podia compreender, como hoje, seis dias depois da consulta, tinham descoberto a mistificação. Recebi apenas um aviso de Afonso Bonkun de que tinha havido de repente uma verificação.

Bonkun era um auxiliar de laboratório, influenciado por mim. Informou-me através de uma micro-emissora. Disse ainda que a comissão examinadora estava sob a direção de uma telepata. Nesta altura, a ligação foi cortada.

Estava sentado no porão de controle da Banca Examinadora T-18. Evelyn Tunics fazia o papel de matemática de programação. Há quatro horas, havíamos recebido a incumbência de examinar com exatidão uma espaçonave do tipo Space-Jet, completamente automatizada.

A lista de controle para a disposição positrônica tinha sido cortada. Minha função era fazer com que as instalações de alta energia funcionassem perfeitamente.

Há duas horas atrás, foram tomadas medidas especiais de precaução. Primeiro, supus que me estavam seguindo a todo passo. Quando estava para empreender a já bem preparada fuga, apareceu aquele homem, cujo nome já me provocava sonhos terríveis. Meu estado de confusão na frente dele era tremendo. Somente os olhos dele me desmontavam todo. Parecia que seu olhar era uma radioscopia. Se havia alguém capaz de conhecer as pessoas do meu tipo, era ele.

Este temor contribuiu um pouco para a perda do meu autodomínio. Porém, havia ainda outra coisa que me preocupava.

Perry Rhodan, o administrador do Império Solar, era, ou um fiel sósia do verdadeiro Rhodan, ou era o próprio Rhodan em carne e osso.

O homem que acabava de entrar para a banca examinadora jamais podia ter 104 anos. Era um terrano de compleição atlética, cheio de energia, movimentos elásticos, pele esticada e olhos claros. Era tão alto como eu, apenas de ombros mais largos.

— Por que você me olha tão fixamente assim? — perguntou ele.

— Estou me lembrando da data do seu aniversário, senhor — respondi gaguejando.

Raramente vi um homem rir de modo tão franco assim. Virou a cabeça para trás e a sua gargalhada tinha um timbre de tanta espontaneidade que não pude deixar de acompanhá-lo.

Depois disso, precisei de duas horas para me recuperar da dolorosa surpresa. Gente do meu tipo pode se prejudicar com emoções tais, quanto à saúde.

Quando me senti em condições, ele ainda estava na banca examinadora. Ele se interessava, pessoalmente, pelas máquinas vitais das naves.

Logo depois, a jovem matemática me comunicou que o chefe pretendia decolar pessoalmente com o Space-Jet. Isto queria dizer que tínhamos de rever os pontos prescritos do bloco de controle, pelo menos duas vezes.

Foi realmente uma coincidência muito infeliz, que exatamente neste momento a Defesa Espacial estava descobrindo minha falsificação com a radiografia. Alguém havia desconfiado. Quem sabe, os dois estudantes de medicina me haviam traído.

No momento, Perry Rhodan estava deixando a grande banca examinadora. Meus olhos o seguiram febrilmente. Será que este homem podia ter 104 anos? “Impossível”, pensei. Talvez o verdadeiro Rhodan já estava morto há tempo e — por motivos políticos — tinham que prolongar a sua imagem.

Nas telas do porão, resplandeceu o aparelho, novo em folha. Uma construção soberba, de conformação elíptica, com propulsão acima da velocidade da luz, e com transição automática. Há seis dias, minha única preocupação era encontrar uma nave assim. Agora, tinham colocado a espaçonave dos meus sonhos diretamente diante do meu nariz, dando-me até a possibilidade de examiná-la.

Se tudo desse certo, na próxima noite eu desapareceria com o Space-Jet. Mas agora era o próprio Rhodan quem ia dirigir. Os preparativos davam a entender que ele haveria de ir além do sistema solar. Dependia apenas da experiência com os motores de propulsão.

Tinha ainda dois minutos.

— Pronto — disse Evelyn.

Comprimi automaticamente os botões do telecomando.

O conjunto dos motores se pôs a funcionar no bojo do aparelho. Quando elevei a força do empuxo para 40 mil toneladas, Evelyn reforçou o campo energético.

Estava chegando a hora. Nas duas pequenas telas para observação do lado de fora, podia-se perceber alguns homens. Vinham como que casualmente para a antecâmara da banca examinadora. Atrás deles, aparecia uma mulher de porte esbelto, de cabelos louros. Nunca a vi antes, mas a postura tensa de sua cabeça, como quem quer ouvir algo ao longe, me dava a certeza de que se tratava de uma pessoa de faculdades transcendentais.

Evelyn estava ocupada com a segunda fita de programação. Levantei-me depressa e me dirigi para as pesadas portas blindadas do porão. Antes de abri-la, liguei o gerador de deflexão. Estava pendurado no meu pescoço, ao lado do ativador celular. No entanto, sua função era outra.

O desvio da luminosidade me tornava invisível para olhos normais. Uma localização por via energética era totalmente impossível, porquanto eu usava uma voltagem muito baixa. Meu campo de desvio da luminosidade era coberto pelos numerosos motores em volta.

Esgueirei-me pelo vão da porta, corri para a parede abaulada do corredor central e alcancei com uns bons pulos a entrada da galeria da tubulação de ar condicionado. A simples fechadura não resistiu, empurrei a grade para cima, entrei e fechei novamente, ficando depois parado.

Por cima de mim, era a confusão de tubos do sistema de refrigeração do ar. Mais ao longe estrugiam os motores de um daqueles aparelhos, pelo qual eu daria a vida.

Momentos depois, chegaram eles, uniformizados, com armas energéticas na mão. No meio deles havia uma mulher loura. O tenente-general Kosnow estava também presente.

Ao ver, mais ao longe, o estudante de medicina, meio perturbado, cheguei à conclusão de que foi por meio dele que eu fui desmascarado.

— Você consegue identificá-lo? — perguntou Kosnow, em voz baixa.

A jovem senhora sacudiu a cabeça. Estava em trajes civis, mas eu tinha certeza de que pertencia ao corpo de mutantes de Rhodan. Estava muito atento ao meu envoltório magnético, pois se eu me traísse com um único impulso, estaria tudo perdido. Apesar do campo de desvio, não conseguiria me livrar dela.

Foram para frente, com muita cautela, como percebi. Dois robôs arcônidas tomaram posição diante da entrada da galeria de ventilação.

Momentos depois, atingi a parte superior da galeria, subindo os degraus existentes ali. A galeria terminava exatamente ao lado de um amplo portão de entrada para o porão de controle subterrâneo. Mais para frente se erguia do chão a poderosa laje de cimento armado da sala de exames. A uns dez metros dali, eles haviam deixado seus helicópteros. Era realmente como eu supunha: com as grandes distâncias, não era interessante usar carros.

Com muito cuidado, tirei de trás do ventilador de sucção, onde a havia guardado há quatro dias, minha pistola de raios energéticos. Se meus cálculos não falhassem, dentro de três minutos o inferno escancararia suas portas. Até então já deviam ter percebido que eu não estava mais no porão de controle.

A trava de mola da portinhola voltou ao seu lugar sem nenhum estalo. Inclusive, eu havia até lubrificado a dobradiça. Fui saindo sem o menor ruído. Lá fora, o primeiro aparelho estava desocupado. Junto dos outros helicópteros havia guardas; eram quatro. Tudo corria dentro do planejado. As dificuldades começariam agora.

Entrei pela porta meio aberta e sentei diretamente no posto do piloto. Meu sexto sentido se manifestou:

“Você deve voltar. A cova do leão ainda é o melhor esconderijo. Você vai ver!”

Os raios sugestores começaram a trabalhar. Os quatro guardas se viraram, olharam com alguma hesitação para mim, e colocaram suas terríveis armas no chão, no momento em que as sirenes de alarme começaram tocar no porão.

Era a hora. Liguei o motor e puxei o helicóptero vertical. Esperei um segundo, como mandava a lógica do meu plano, pois eles tinham de ver que quem fugia era eu. Estava calmo e equilibrado quando me inclinei no sentido da porta aberta. A uma altura de vinte metros, abri fogo contra os dois robôs que vinham correndo pelo portão de entrada.

Na sala da banca examinadora ecoou o ronco do motor do helicóptero. Depois, o breve silêncio foi cortado pelo reflexo dos raios energéticos e, por fim, pela explosão de dois aparelhos igualmente atingidos.

Com a mão esquerda, liguei o campo de desvio da luz. Aconteceu que alguns homens da tropa de investigação surgiram.

Reconheceram-me imediatamente, porém não reagiram pois a região toda estava sob meu fogo e os aparelhos estacionados eram um montão de chamas. Para mim era suficiente o fato de eles me terem visto. Com um último olhar, percebi que não havia ferido ninguém. Não era mesmo minha intenção, pois tinha certeza de que ninguém me considerava um inimigo, que tivesse de ser exterminado a qualquer preço. Por que, então, tinha eu que matá-los?

Sobrevoei três quilômetros de zona de segurança, entre a seção das bancas examinadoras T-18 e os gigantescos estaleiros onde eram fabricadas as espaçonaves mais leves, tipo Gazela.

Antes que alguém lá embaixo soubesse do que havia acontecido do outro lado da zona de segurança, eu já estava aterrissando.

Meu macacão azul-claro indicava que eu era engenheiro da diretoria. Conduzi o aparelho por entre as torres antigravitacionais do estaleiro, saltei e deixei o helicóptero ali mesmo, gritando para os homens:

— Deixem tudo como está e fechem as portas. Houve um atentado no T-18. Onde encontro o engenheiro de serviço?

A reação foi rápida. Estes rapazes valorosos e inteligentes se deixaram iludir por uns instantes, e isto me era suficiente.

— Está no centro de ligações, senhor — gritou um homem.

Correu e alarmou a todos os outros.

Acenei com a mão direita e desapareci atrás da primeira torre de gravitação, onde um possante reator catalítico estava à espera de transporte. Assim que me senti protegido dos olhares alheios, liguei de novo meu campo de desvio da luz, que me dava a certeza de estar completamente invisível.

Daí em diante, meu plano era cronometrado. Tinha que conseguir fazer em trinta minutos o caminho percorrido pelo helicóptero. A partida de Rhodan estava marcada para as 13:30 h. Parecia-me improvável que ele fosse adiar a partida. Como Evelyn me havia dito, devia se tratar de um caso especial.

Agora, não era realmente difícil vencer três quilômetros em meia hora. Mesmo assim, tinha que contar com dificuldades e imprevistos. Iniciei uma corrida quase de resistência, saltando barreiras e passando por entre pessoas nervosas que acabavam de ser informadas por um oficial da segurança, todo banhado de suor, de que o procurado se fazia desaparecer com o desvio da luz. Ninguém o podia ver.

O oficial era Tombe Gmuna. Passei tão perto dele. Quase nos encostamos. Claro que não me viu. Ninguém teria de voltar a pé para o lugar de onde havia fugido há poucos minutos. Mas era a chance que se me oferecia. Tinha de aproveitá-la enquanto ainda existia. Gente do meu tipo não hesita, nestas horas.

Diante da cerca divisória do trecho interditado, fiquei parado, meditando. Numa atividade sem precedentes, todos estavam à minha procura. Diante de mim, aquela extensão enorme de cimento armado, sem o menor vestígio de vegetação. Ali estava a saliência abobadada das instalações subterrâneas da banca examinadora. Cada vez mais, os aparelhos aterrissavam no local. Comandos e comandos de robôs, pareciam ao longe pequenos pontos escuros.

Não ia poder manter por muito tempo minha preciosa arma, pois haveria certamente um rastreamento energético. Muito preocupado, coloquei-a próxima à cerca e continuei minha corrida. Não tinha mais tempo para procurar os esconderijos onde havia guardado uma grande parte de meu equipamento especializado. As coisas que ainda estavam comigo eram o gerador do desvio da luz e a hipno-pistola, que contra os mutantes era totalmente inoperante. Mesmo homens de mente firme conseguiam se defender de sua influência.

Do ponto de vista prático, só dispunha mesmo do meu instinto de conservação que, no momento, me aconselhava a arranjar um mapa. Pois, bem perto de mim, havia um aparelho preparado, de construção correspondente aos meus planos, já que não me foi possível me apossar de um Space-Jet.

O caminho para alcançar o meu intento era muito longo. Para conseguir vencê-lo havia necessidade de instrumentos funcionando perfeitamente, gêneros alimentícios e água fresca. Precisaria também de uma bem montada positrônica a fim de calcular os saltos para a navegação nas Galáxias e também de algumas horas com o intento de colocar as coordenadas nas fitas de programação.

Estava chegando ao fim do meu caminho, dos meus objetivos, tinha apenas que contar com um fator, aliás, muito importante. Este fator se chamava Perry Rhodan. Um trágico destino me levou de encontro ao homem mais perigoso da Terra, exatamente no momento em que não me interessava de maneira alguma este encontro.

Durante minha desabalada corrida, surpreendi-me sorrindo sozinho. O sujeito me agradara, realmente, este bárbaro de olhos claros, de gestos sempre comedidos. Pertencia ao tipo de homens que a gente ou ama, ou odeia. Certamente, seria um amigo fantástico, quando queria.

Como inimigo, eu o respeitava mais ainda, contando, naturalmente que Rhodan ainda era o mesmo de 69 anos atrás, quando iniciou seu plano arrojado. Pois, alguma coisa dentro de mim me dizia que Rhodan ainda era o mesmo.

Com isto, foi se esclarecendo para mim o grande enigma, isto é, como este homem tinha conseguido chegar aos 104 anos fisicamente jovem e com o espírito ágil e sadio. Se não soubesse, por estudos, o dia de seu nascimento, teria que lhe dar, no máximo, 37 anos.

Atingi o porão exatamente depois de 15 minutos. Daí para frente, tinha de me esgueirar por entre os robôs que vinham de todos os lados. Foi mais fácil do que eu pensava, pois ninguém esperava minha volta. Seria realmente uma idéia maluca. Um pouco mais longe, parecia que todos os técnicos e engenheiros dos estaleiros de Terrânia estavam reunidos em assembléia. O céu, acima das gigantescas instalações, estava coberto por espaçonaves.

Com a maior calma, continuei andando ao longo da muralha de cimento armado, até descobrir a pequena pista para decolagem de espaçonaves leves. Estava num rebaixamento artificial do solo, equipado com grandes elevadores. Era daqui que partiam os vôos de experiência.

Diante do aparelho estava Rhodan, cercado de cientistas e oficiais. A senhora loura não estava mais com eles. Talvez tivesse sido requisitada para a grande caçada à minha pessoa. No presente momento, o lugar mais seguro era realmente ao lado deste grande homem, que estava ali, tão simplesmente, ao lado de seus mais íntimos colaboradores. O tenente-general Kosnow também estava presente.

Cheguei ainda mais perto, até que consegui passar entre os trens de aterrissagem do Space-Jet. Devido sua conformação elíptica, suas medidas externas eram 35 metros por 20.

Fiquei parado, bem debaixo da escotilha de serviço, tentando ouvir possíveis ruídos, pois era provável que havia gente dentro do aparelho. Rhodan estava a menos de cinco metros de mim. Seu rosto, normalmente um tanto anguloso e duro, estava mais relaxado. Tive a impressão de que ele não se preocupava nem um pouco com minha fuga. Em compensação, quem estava muito nervoso era Kosnow, o Ministro de Segurança. Ouvi-o falar alto e depressa. Rhodan não dava uma palavra. Vez por outra, contraía os lábios e voltava com uma expressão de amável ironia nos olhos, examinando o excitado Ministro de Segurança.

— Determine o bloqueio do espaçoporto, Peter — disse Rhodan com voz calma. — Ele veio para cá com o intuito de arranjar uma espaçonave. Chame-o abertamente pelo rádio e peça que ele se comunique com você.

Acho que nunca vi um homem tão desconcertante em minha vida. Kosnow ficou pálido.

— Por favor... será que...

— Exatamente isto. Por que vocês pretendem matá-lo? Ofereçam-lhe toda hospitalidade, em meu nome, e peçam-lhe que espere até meu regresso. Apenas impeçam que ele arranje uma espaçonave. Não precisam fazer mais do que isto.

— Mas, senhor, eu sou de opinião de que...

Rhodan olhou tranqüilo para o relógio. Já estava com o traje espacial.

— Não me torne a vida mais difícil, Peter. Ele está sozinho e desesperado. Sua atuação até hoje é muito interessante. É admirável a precisão com que tem trabalhado, para conseguir todos estes diplomas. Tudo isto tem de ter um sentido. Peça para ele se apresentar. Depois, veremos o resto. Em três dias, estarei de volta. Chame seu pessoal para fora do aparelho.

Afastei-me depressa da escotilha, quando doze rapazes uniformizados pularam para fora do aparelho. Um jovem capitão fazia a comunicação em voz alta e eu comecei a sorrir quando ele dizia que o procurado não estava dentro do aparelho.

Rhodan acenou confirmando, despedindo-se pessoalmente de cada um. Aproveitei estes rápidos segundos para subir pela escada de bordo feita de material plástico. O único esforço que fazia era para não provocar o menor ruído. A escotilha estava aberta e atrás dela havia um pequeno corredor em semicírculo que conduzia para a central de comando. Apesar de suas dimensões, o aparelho era chato, em forma de um disco, com quatro reatores para decolagem vertical e para aterrissagem. O mecanismo de propulsão estava bem no centro. Passei através da forte parede blindada para a central e dei uma olhada em volta. As telas panorâmicas já estavam em funcionamento. Era como se a gente estivesse diante de uma parede transparente. Rhodan desapareceu sob o bojo chato do aparelho. Estava na hora de eu agir.

Atrás da central, saía o corredor que levava para os aposentos da tripulação. Lá, naturalmente, seria descoberto logo. Escolhi, pois, para meu esconderijo, um armário de parede. Achei nele quatro trajes espaciais, iguais ao que Rhodan estava usando. As mochilas continham microrreatores para produção de energia para refrigeração e para o dispositivo de purificação do ar. Fora disso, os uniformes possuíam um projetor do campo de proteção, para a formação do envoltório magnético.

Pulei para dentro do armário de parede, estudei bem o ambiente e fechei a porta. Momentos depois, Rhodan entrou na nave.

Meu coração batia calmo e normal. Depois de apalpar todo o armário, encontrei uma pistola energética, o que me deixou bem mais tranqüilo. A poucos metros de mim, o homem mais misterioso do sistema solar se preparava para decolar. Talvez fosse uma viagem de inspeção a uma base comercial ou militar fundada por ele no Império. Rhodan era o tipo do homem que se preocupava com tudo.

Cinco minutos depois, começou a funcionar o conjunto de instalações para fornecimento necessário dos campos energéticos. Instantes após, senti um leve puxar do campo de neutralização da gravidade e... já estávamos longe.

O som cavernoso dos reatores me encheu de grande contentamento. Minha memória fotográfica estava repleta de imagens dos tempos antigos. Imagens belas e promissoras. Rhodan pessoalmente me estava proporcionando, sem o querer, a oportunidade por que esperei tanto tempo.

“Mas você perdeu 69 anos dormindo”, dizia-me meu sexto sentido.

Fiquei irritado com a idéia. Sempre as mesmas admoestações. Mas desta vez tinha dado certo.

 

As dores eram terríveis e insuportáveis. Começaram na cabeça e pouco depois foram para a coluna vertebral. Agora era o corpo todo que me doía. Depois da transição através do hiperespaço, sentia-me aniquilado dentro do armário. A minha sorte foi que Rhodan não percebeu nada do que se passava, devido ao tremendo ronco dos motores.

Realmente, estava sofrendo bastante. A dor era tanta que parecia tomar todo meu corpo. Sentia uma vontade louca de gritar, mas era imperioso que não o fizesse. Com as últimas forças do meu ser, consegui me dominar um pouco, reconhecendo que realmente havia subestimado a pessoa de Rhodan. Devia ter a saúde de um homem primitivo, e o treinamento de um atleta de grandes performances.

Logo após a primeira rematerialização, comecei a gemer de dores. E uns cinco minutos depois, Rhodan já estava na segunda transição. Agora, depois do terceiro salto, minhas forças chegaram ao fim.

Não estava acostumado a viajar pelo espaço desta maneira. Logo após a decolagem no espaçoporto de Gobi, consegui, apesar da escuridão reinante no armário, achar e vestir um traje espacial.

Sentia-me preparado para qualquer eventualidade. Era meu plano aguardar até que Rhodan tivesse conseguido a primeira transição e depois, obrigá-lo, sob a mira da arma, a fazer o que eu queria. Poderia ter feito isto, já desde o início, mas, não sei por quê, preferi esperar um pouco. Talvez fosse porque, conforme meus cálculos errados, estivéssemos ainda muito próximos da Terra Com isso, perdi uma ótima oportunidade. Naturalmente, não poderia imaginar que haveria de me sentir tão mal após a primeira transição, que não tinha mais força para levantar a mão. Agora, estava eu ali, me contorcendo de dores e cheio de remorsos, num esconderijo indigno. Seria um golpe errado, em tais circunstâncias, querer ameaçar um homem que estava acostumado com todos estes efeitos. Mesmo com a possibilidade de tudo virar contra mim, ainda teria de esperar. Bastaria que ele simplesmente e por acaso abrisse agora o armário, para que eu caísse em suas mãos.

Assim, fiquei ali, bem quieto, crente de que minha rápida ativação celular me deixaria em boas condições dentro de uma hora. Naturalmente tudo estaria na dependência de que este bárbaro de olhos claros me desse realmente os 60 minutos.

Além das dores físicas, fui acometido também de uma terrível psicose de fobia. Rhodan havia saltado três vezes através do espaço. A julgar pela dor sofrida na rematerialização, teria ele, em cada salto, percorrido uma distância muito grande. Para onde é que me estava levando? Estaria eu ainda em condições de achar meu caminho entre as estrelas? O que aconteceria se ele me levasse para uma região que me fosse completamente desconhecida?

Tinha que usar de todas as forças para dominar a revolta dos meus instintos. Se ao menos, gente do meu tipo, pudesse não sentir esta terrível dor da rematerialização!

Quando as máquinas voltaram novamente a funcionar a toda força, e portanto com maior ruído, aproveitei o ensejo para gemer de dor, um pouco mais alto. Não adiantou muito, mas ao menos pude ouvir minha própria voz.

Procurei através de um equilíbrio emocional ter ódio de Rhodan. Mas por mais que me esforçasse, não me foi possível achar motivos para odiá-lo. Alguma coisa em meu íntimo me impedia de ver maldade ou injustiça neste homem. Portanto, jamais poderia odiá-lo. O máximo que podia fazer, nesta situação, era lamentar as dores de cabeça que eu estava suportando. Ele não tinha culpa.

“Rhodan não tem nada que ver com isto, seu bobo”, dizia meu sexto sentido.

Comecei a esperar e a desejar que os minutos passassem mais depressa. Cada minuto era para mim a ameaça de uma nova transição, que me faria sofrer ainda mais. Depois de passar uma meia hora sem novidade, concluí que Rhodan estava chegando ao seu objetivo. Eu calculava que ele estivesse descendo em qualquer sistema solar por aí, com velocidade não superior à da luz. Se não fosse assim, com os fantásticos equipamentos que possui, já teria dado outros saltos.

Após uma hora, minha dor de cabeça começou a diminuir e um pouco depois a regeneração do meu sistema nervoso estava concluída. A pulsação do meu ativador era forte. Sentia novo vigor e um bem-estar geral. O microdispositivo, como sempre, ligara automaticamente. Trabalhava com plena carga. Caí numa gostosa sonolência, acordando de repente, após uns quinze minutos. O ronco dos reatores estava agora mais forte, podendo ser somente a inversão dos motores para uma forte frenagem. Rhodan estava realmente se preparando para aterrissagem.

O pensamento nos perigos, que a nova situação me traria, me fez estremecer todo. Podia me encontrar em qualquer lugar, apenas não num mundo onde teria todo apoio. Aí, eu não teria chance nenhuma. Levantei-me afobado, apanhando a arma. Minhas idéias começaram a se atropelar. Que devia mesmo fazer?

O zumbido era infernal: ronco cavernoso misturado com silvos agudos. Era os quatro reatores que abrandavam a queda. Nervosamente procurei pela fechadura da portinhola. Tudo, menos descer, tudo menos aterrissar, é o que martelava em minha cabeça. Destravei a porta e a abri. A menos de três metros de mim, estava a poltrona do piloto, virada um pouco para o lado.

Rhodan olhou-me imóvel. O cano cintilante de sua pistola energética apontava para mim, pois já estava informado sobre minha presença a bordo, antes mesmo de eu me ter anunciado com tanto ruído. Eu estava realmente perplexo, como foi que percebeu minha presença?

“Sua mente, seu bobo, você esqueceu”, disse novamente meu sexto sentido.

Aí é que fiquei sabendo que meu adversário possuía também poderes telepáticos. Ele me localizou mentalmente na hora em que relaxei minha defesa mental.

— Deponha a arma, arcônida, e volte para o armário.

Aquelas palavras, ditas com tanta calma, me chocaram. Rhodan agia friamente, como uma máquina. Não parecia nem surpreendido, nem assustado. Além disso, percebeu imediatamente qual era o tipo de clandestino que tinha a bordo. Para ele não havia dúvida nenhuma de que eu era o fugitivo do deserto de Gobi. Nunca havia encontrado um habitante da Terra tão perigoso assim. Rhodan era um lutador com excelentes reflexos.

Já que eu não dava mostras de querer obedecer à sua ordem, ele apertou um botão. O choque da gravidade de, pelo menos, 5 gravos, me atirou no chão. Caí com tanta força, que quase perdi os sentidos.

Ouvi sua risada sonora, aumentando mais ainda meu rancor. Aquele pequeno bárbaro se atreveu, com um truque ridículo, a fazer cair por terra um almirante da frota arcônida e cientista do Grande Império! Uma fúria tremenda se apoderou de mim, deixou-me obcecado e surdo, fazendo-me esquecer toda dor e dando-me forças incríveis.

Nas telas panorâmicas, brilhava a superfície de um planeta deserto. Estávamos ainda a 200 metros dele, quando me preparei para saltar. Rhodan, naquele instante, estava ocupado com os controles. Quando olhou para trás, eu já o havia atingido. Vi seu olhar assustado, provavelmente me julgava incapacitado para lutar. Se ele, em contato com meu povo, já tinha sua experiência formada, comigo ele se enganava. Se, conforme a “Enciclopédia Terrana”, todos os arcônidas eram fracos e desajeitados, eu, pelo menos, possuía outros dotes.

Puxei-o da poltrona, pelas costas, atirei-o ao chão com um pesado soco no ombro, peguei sua perna no ar e a comprimi contra a barriga.

A reação de Rhodan foi muito rápida, pois girando o corpo, escapou de um segundo golpe, ficando, porém, ainda deitado no chão. Atirei-me contra ele, para lhe aplicar o golpe de Dagor, isto é, comprimir perto da laringe a artéria que irriga o cérebro, até que a pessoa perca os sentidos. Se ele não tivesse experiência neste golpe, em poucos segundos teria que ficar inconsciente. Suas mãos atingiram minha nuca, mas eu sabia deste golpe.

“Assim não vai não, seu bárbaro”, pensei.

Quando triunfante comecei dar minha gargalhada da vitória, aconteceu o que era inevitável, devido ao meu gesto impensado.

A espaçonave chocou-se com um barulho horroroso de encontro ao solo do planeta. Olhei rapidamente para as telas que mostravam apenas altas labaredas e nuvens de poeira.

Uma força irresistível arrancou-me da posição de ajoelhado, desmanchou-me o golpe que estava aplicando e jogou-me de costas. Rhodan sumiu de repente. Devia ter sido atirado para qualquer canto. Percebi logo que o aparelho havia batido relativamente com pouca força e num ângulo bem favorável. Teria sido, mais ou menos, uma aterrissagem forçada.

Estava meio aturdido e minha ira violenta já estava desaparecendo, tão depressa como chegou. Meio desesperado, tentei libertar minhas pernas que estavam presas em alguma coisa. Ao tentar me levantar, senti um forte estampido, seguido por um chiado agudo de ar que escapava. O automático do meu traje espacial estava bom. O capacete abriu na frente, antes que a descompressão do ar me arrancasse todo ar dos pulmões. Fiquei sabendo então que estávamos num mundo sem camada atmosférica.

Densa nuvem de fumaça irrompia das fendas abertas no assoalho e o grupo principal de propulsão estava em chamas. As terríveis descargas elétricas pareciam sair dos acumuladores do sistema de reversão, eram restos de energia que, por alguma brecha, estavam escapando.

A instalação de refrigeração, que estava perfeita, começou com seu alarme estridente, indicando que já era tempo de abandonar a nave em chamas. Em plena lucidez de espírito, eu me perguntei como era possível pegar fogo, num lugar onde não havia ar. Não havia uma grama de oxigênio. Impressionou-me o fato de que o alarme continuava forte. Os tanques com o oxigênio líquido deviam estar arrebentados. Já que eles estavam na parte inferior do aparelho, o fogo encontrava o alimento necessário. Independente disso, eram suficientes as pesadas descargas elétricas, que produziam chamas intensas, capazes de derreter parcialmente a pequena espaçonave.

Surgiu uma figura na minha frente, irreconhecível, naturalmente, pela fumaça azul-escuro, mas só podia ser Rhodan. Senti suas mãos, quando, com esforço incrível, me libertou da incômoda posição em que estava. Meus pés estavam livres.

Rhodan desapareceu, parece que subindo para a escotilha de emergência. O dispositivo de aquecimento do meu traje espacial começou também a dar alarme. Não podia absorver calor superior a 150 graus Celsius. Apesar disso, ainda estava procurando minha arma. Sem o radiador energético, não queria sair da nave, onde alguém certamente me esperava, e desta vez, sem estar preocupado com os controles na nave. O alarme era cada vez mais forte e lá no lugar onde meus pés estavam presos, irrompeu um fogo muito impetuoso. Sem o traje espacial estaria carbonizado ou asfixiado. Tateando, consegui alcançar o início da escada de emergência, e arrastei-me para cima. A escotilha, da largura de um homem, não tinha comporta. Sua finalidade era só para casos de emergência. Subi mais um pouco e deixei-me escorregar no próprio aparelho, que estava meio inclinado. O metal estava praticamente incandescente. Caí bem na frente da proa do aparelho, que de fato estava inutilizado.

Por uns instantes, continuei deitado na areia, onde caíra, até que abrindo os olhos, dei com Rhodan. Ele não me fez nada. Fiquei olhando para o céu, de um azul-escuro, com um sol amarelado, que me parecia muito grande. Parecia o olho traiçoeiro de um gigante sanguinário.

Ergui a arma e dei uma olhada em volta.

Rhodan já ia muito longe. Havia me libertado da má posição em que eu ficara preso na queda, mas depois me deixou entregue à minha própria sorte. Foi realmente muito nobre por parte dele. Quando percebi seu plano, comecei a dar risada.

Longe de nós, talvez uns dois quilômetros, sobressaía do deserto uma grande cúpula de aço. Só podia ser uma base dos terranos. Liguei o rádio do meu capacete e disse bem calmo no microfone:

— Alô, bárbaro, eu o tenho na minha pontaria. Você acredita que eu vou deixá-lo entrar na cúpula?

Disparei a arma. O tiro ofuscante pôde ser bem ouvido, sinal de que ainda havia por aqui um restinho de uma antiga camada de ar. A dez metros de Rhodan se abriu a cratera da explosão e havia em torno uma nuvem de pó de pedra.

Ouvi-o praguejar, através do meu receptor de capacete. Portanto estava com seu aparelho ligado.

— Muito obrigado, bárbaro, agora estamos quites. Você me libertou da poltrona e eu, de propósito, atirei para não pegar em você.

Comecei novamente a rir, pois ainda podia rir.

 

Ao perceber que não dava para salvar mais nada da espaçonave, Rhodan resolveu incendiá-la, tirando-me assim um excelente abrigo. Através desta sua última atitude, o duelo entre nós dois estava muito desfavorável para mim. Tive que fazer muito esforço para sair a tempo das proximidades dos destroços que começavam a explodir. Seguindo o bom senso, estabeleci meu esconderijo de tal modo que os escombros da nave ficavam entre mim e Rhodan. Só assim poderia escapar de seus tiros.

Somente agora é que estava compreendendo bem o que eu tinha arranjado com isso. Meus olhos se abriram e eu percebi que este frio calculista contava com uma reação de minha parte. Tinha realmente de mudar de posição. Porém, a maneira como mudei é que são elas.

Rhodan achava-se de posse de uma posição muito melhor. Primeiro, estava mais próximo da grande cúpula de aço e depois encontrando-se atrás da cúpula, eu não o tinha ao meu alcance.

Em linha reta entre ele e mim, avultava o monte fumegante dos escombros do que foi uma maravilhosa espaçonave. Já que eu estava bem perto dos restos da nave, estes mesmos escombros encobriam não somente a cúpula, mas também o próprio Rhodan. Não levei mais de um minuto, até chegar a uma solução definitiva. Se é que eu conhecia bem meu adversário logo após seus tiros devastadores teria ele corrido para chegar imediatamente ao edifício provido de pressurização. Ainda não eram passados dez segundos, depois de minha afobada mudança de lugar, quando fui tomado por uma idéia luminosa. Não tive mais dúvidas. Talvez, estivesse superestimando Rhodan. Se fosse assim, logo depois de eu ter saltado, seus raios energéticos me teriam fuzilado.

Peguei a arma e fui me arrastando olhando para um ponto de melhor proteção à frente. Em meio à subida, havia uns blocos de pedra de onde teria uma boa visão. Pulei para cima da pedra e fiquei farejando. Depois começou a corrida, uma corrida louca que a gente consegue fazer só em momentos de grande perigo e de desespero. Com seis pulos, tinha resolvido a questão da visibilidade. Enquanto corria, vi, bem para trás um outro homem.

Era Perry Rhodan que fez uma coisa da qual só me conscientizei momentos depois. Quando eu ainda estava deitado na areia, ofegante, desviando os olhos do metal incandescente, Perry já estava agindo. Engoli uma praga e cedi ao meu instinto que me aconselhava, antes de tudo, arranjar uma proteção. Isto queria dizer que tinha de correr uns duzentos metros. Durante este tempo, Rhodan também avançou 200 metros. Mas ele não podia correr essa distância melhor do que eu.

É verdade que resistia às transições muito melhor do que eu, o que não significava nada em relação à força física. Choques do hipersalto atuam profundamente no sistema nervoso. Conheci homens fortíssimos, que num pequeno salto espacial se sentiam sempre quebrados.

Estas ponderações passavam com toda clareza por minha mente, enquanto eu corria. Com o rabo do olho procurava por novas possibilidades de um abrigo. Porém, minha grande atenção mesmo era para Rhodan, que em tempo de corredor bem treinado disparava pelo deserto quase que plano.

Era um esforço tremendo correr tão depressa com o pesado traje espacial. Ainda estávamos mais ou menos em forma. Mas que aconteceria se cada um descobrisse o plano do adversário, tão depressa que um não conseguisse pegar o outro?

Neste momento houve mais uma comunicação do meu sexto sentido:

“Bobo, deite no chão, respire três vezes e atire. Ele está sem proteção.”

Claro que isto era também uma alternativa. Rhodan ainda não havia virado para trás, nem uma vez. Apesar de tudo, não me deitei no chão para melhor atirar. Conhecia minhas limitações e sabia também que, com mãos trêmulas e com o coração em elevada pulsação, não conseguiria boa pontaria. Puxar o gatilho era muito simples, mas acertar eram outros quinhentos. Se eu errasse o primeiro tiro, ele certamente procuraria um abrigo. Haveria de achar, certamente, uma pequena elevação do solo, em qualquer lugar, e então eu ficaria mais exposto do que ele. Quem teria no caso mais chances? Cheguei à conclusão de que era ele, por isso continuei a correr.

Se ele, por descuido, me desse tempo de atingir os blocos de pedra, minha situação melhoraria muito.

Aumentei meu tempo e fiquei admirado como os miseráveis 200 metros tornavam-se tão longos. Meus pulmões estavam estourando quando alcancei a pequena elevação e me atirei ao chão entre dois poderosos rochedos.

Não compreendia como meu corpo bem treinado, podia sentir-se cansado numa corrida mínima. Diante dos meus olhos sonhadores dançavam os círculos olímpicos... Levei alguns segundos até poder ver de novo com clareza. Instantes depois minha vontade firmou-se. Não iria mais dar tiro só para espantar, Rhodan era mesmo meu inimigo. Se ele conseguisse chegar à cúpula antes de mim, eu estaria perdido.

Com toda certeza, a base devia estar muito bem munida. Logicamente disporia também de aparelhagem de rádio, para pedir socorro. Simplesmente o fato de, chegando antes de mim, ter tempo de ligar o envoltório de proteção, decidiria meu destino. Na pior das hipóteses, ele me poderia deixar morrer de sede no árido deserto. Tinha na mochila somente dois litros de água.

Caso eu chegasse antes dele na cúpula, o quadro estaria invertido. Os limites estavam bem delineados: era um caso de vida ou morte. Já estava com arma engatilhada e o visor não precisava de regulagem. Um raio térmico ultra-rápido tinha sempre uma trajetória reta, jamais podendo ser prejudicada pela força da gravidade ou por fortes ventos ou ainda por simples resistência do ar. Quando ele me estivesse sob a mira, não haveria mais dúvida. Num planeta de rara atmosfera, a exatidão do tiro seria absoluta.

Escolhi bem o ângulo e atirei. Um verdadeiro trovão soou no meu ouvido, a arma deu um forte coice e o cano se levantou um pouco. Mas o tiro já tinha saído. Bem rente ao homem que corria, surgiu uma cratera de lava incandescente e Rhodan foi atirado para o lado, caindo de rosto no chão. Se eu tivesse contado mais com sua fantástica capacidade de reação, teria evitado o próximo erro. Levei dois segundos, para, com meus olhos ofuscados pelo clarão, poder ver bem a mira.

Exatamente neste meio tempo, Rhodan deu um salto para o alto, de tal modo que não pude mais interromper o tiro. No lugar onde ele estava antes, bateu a nova carga, abrindo de novo um buraco na areia. Atirei mais uma vez, mas o diabo do homem já havia desaparecido, tinha realmente achado um abrigo. E apesar de minha localização mais elevada, eu não o avistava.

De respiração tensa, fiquei aguardando. A distância seria mais ou menos uns 400 metros, o que não representava nada para uma arma energética de amplo alcance.

A parte de transmissão do meu aparelho de rádio estava desligada há tempo. O receptor, porém, estava ligado. Aumentei o volume e fiquei na escuta, com toda atenção. Fora dos ruídos normais de estática, não se ouvia nada. Aí, comecei a cismar que Rhodan também havia desligado o transmissor. Certamente estaria procurando controlar a respiração.

Comecei a rir para mim mesmo, até que foi surgindo um pensamento que me inquietou. Por que Rhodan não foi atingido com o primeiro tiro? Foi um disparo bem certeiro. Minha memória fotográfica me lembrou que estes modernos trajes espaciais possuem um gerador de campo. Naturalmente, no calor da refrega, tinha me esquecido de ligar o envoltório de proteção.

Tive de fazer um grande esforço para não ficar furioso comigo mesmo. Quem sabe se o envoltório não agüentaria mesmo um tiro em cheio, mas normalmente devia ser à prova de ferimentos mortais. Tentei então recuperar o que havia perdido.

A lâmpada de controle, acesa na região torácica do uniforme, indicava que tudo estava em ordem. O leve cintilar era quase imperceptível. Fiquei perplexo quando li o indicador do registro: como poderia eu, nos poucos momentos desde a aterrissagem, ter consumido 24 quilowatts-hora? Olhei mais uma vez, à procura de um possível engano, quando ouvi de repente um estalo no alto-falante do capacete. Fiquei a princípio assustado, procurando encontrar a transmissão. Mas, só pelo ouvido, não era possível. Não se podia supor que Rhodan trabalhasse com raios dirigidos em feixe. Talvez ele estivesse irradiando em todas as direções. Por via de dúvidas, examinei a instalação da antena no capacete. Não, não estava regulada para raios dirigidos em feixe.

Continuou aumentando o número de estalos. De súbito, se podia ouvir a respiração de alguém. Soava regular e equilibrada. Na chapa espelhada do meu capacete percebi que meus lábios se contraíam para um sorriso. Se este rapaz estava pensando que ia me desconcertar com truques psicológicos, estaria enganado pela segunda vez, e redondamente. De qualquer maneira, o pensamento não era nada mau, querer deixar o inimigo na dúvida quanto ao paradeiro certo.

— Alô, arcônida, você está me ouvindo? — soou alto demais e eu abaixei o volume imediatamente. Então comecei a respirar com muita calma e liguei o transmissor.

— Estou ouvindo, bárbaro. Que quer? Está implorando piedade? Você está sob a minha pontaria, vou apertar o gatilho daqui a dois minutos.

A gargalhada de Rhodan me fez morder os lábios de raiva. Ele sabia que eu não podia vê-lo, que mal conhecia sua direção.

— Seu bobo — respondeu ele com voz suave. — Em minhas incursões em Árcon liquidei centenas de pessoas iguais a você de uma vez só.

Fiquei trêmulo de ira. Sabia onde me queria atingir. Para me dominar, tinha que fingir, tornar-se indiferente. Como se não ligasse, esforçando-me até para rir. Mas era difícil, não estava em minha natureza. De qualquer maneira, estava ficando mais fácil quando eu pensava que ele dizia aquelas palavras ofensivas para me desmoralizar ou para me obrigar a um gesto impensado. Custou, mas fui me tornando indiferente às ofensas.

Rhodan continuava rindo. Interrompi-o, dizendo:

— Economize seu ar, bárbaro. Se eu o deixar sair vivo daqui, será para levá-lo para uma corte marcial do Império.

A afirmativa era um tanto ousada. Tinha o fim, apenas, de obrigá-lo a um pouco mais de ponderação. Parece que mordeu a isca.

— É interessante mesmo. Você é um agente cômico do Império.

É claro que não era nenhum agente, mas isto não era da conta dele.

— O que você pensa, hein? Um pouco tarde, é verdade, mas descobrimos que sua prolongada morte em 1.984 foi um simples truque. Agora temos você e seu ridículo Reino Planetário, que num criminoso atrevimento chama de Império, em nosso poder. Vamos ajustar as contas logo, seu bárbaro.

Havia cometido um erro, só não sabia qual era. Rhodan gargalhava gostosamente e desta vez havia sinceridade total em sua voz.

— Arcônida, ninguém no Império de Árcon poderia saber que no tempo de minha suposta morte, a Terra estava no ano 1.984.

— É! — disse eu em tom de zombaria.

— Você também não vem diretamente dos três planetas, seu sonhador. A “Enciclopédia Terrânia” lhe contou muita coisa sobre a evolução da Humanidade, mas isto não basta para você querer me enganar.

Estava realmente me deixando confuso. Naturalmente, teria sabido por intermédio do general Kosnow, de que maneira eu havia aparecido entre os homens, pela primeira vez.

— Nós não dependemos de sua enciclopédia. Basta afirmar que eu o encontrei.

— Você serviria a um robô e receberia ordens dele? — perguntou, enraivecido.

Eu estava indignado profundamente. Era muito comum fazerem tais considerações. E ele repetiu:

— Você seria escravo de um robô?

Eu batia com os dentes, de tanta ira.

Que palavra terrível: escravo de um robô... Ouvi uns ruídos, depois que a gargalhada de Rhodan terminou.

— Está certo, arcônida. Está tudo muito claro. Quando uma pessoa fica tão excitada e nervosa como você, é um sinal que não é um arcônida. Já há muitos anos que o Império está sob a regência absoluta de um cérebro positrônico, sob cujo chicote até o sereníssimo imperador tem que dançar.

— Mentira deslavada — gritei fora de mim.

— Não me importo, entende? Não se pode ajudar a quem não quer ver a realidade. Está certo. Sei que você é um pobre solitário. Quer me dizer seu nome?

Concentrei-me bem depressa. Ele estava a par de toda a minha mentira. Jamais conseguiria que ele ficasse nervoso.

— Meu nome é Atlan, comandante da frota do Grande Império, cientista e técnico de primeira classe, nos ramos de Colonização do Cosmo e de Técnica de Superenergia. Vou transformar seu sistema solar em nossa colônia, seu bárbaro.

Houve um silêncio e eu me senti contente de que ele agora sabia com quem estava tratando.

— Não deixa de ser um orgulho ridículo, ilustríssimo — foi a resposta irônica. — Minha atual esposa também falava assim, há muito tempo atrás. O nome Thora, da estirpe dos Zoltral, representa alguma coisa para você?

— Sim, é claro. Conheço o nome apenas pelo estudo da história.

— Ela casou comigo, um terrano. Temos um filho. Você não acha que esta arcônida de sangue nobre teve motivos suficientes para casar com um terrano?

Novamente comecei a morder os lábios. Era um problema que nunca me passou pela cabeça. Não respondi nada.

— Está certo, é bom pensar um pouco. Atlan, não é assim seu nome? Bem, Atlan, agora preste atenção.

Eu me surpreendi já com uma risada sardônica. Agora chegaria naturalmente o momento das ponderações para eu depor a arma.

— Sabendo que o Grande Império Arcônida está chegando ao fim, Thora aceitou meu pedido de casamento. Hoje não existem fronteiras raciais e seu orgulho não tem mais razão de ser. Ofereço-lhe, pois, uma rendição honrosa.

— Rendição? — respondi revoltado.

— Naturalmente. Ou você acha que vou deixá-lo voltar sem mais nem menos para Árcon, para você espalhar para meio mundo o que está acontecendo aqui em nosso pequeno planeta, tido como completamente destruído? De maneira alguma. Tente compreender isto e saia de seu esconderijo de mãos ao alto.

Parecia muita petulância e eu não aceitei.

— Quero ser seu amigo e não seu prisioneiro, seu bárbaro.

Rhodan sorria serenamente.

— Muito esquisito, Atlan! Como se pode chamar de bárbaro alguém que se deseja para amigo?

Olhei aborrecido para a direção do seu esconderijo. Realmente, ele tinha razão.

— Agradeça aos céus que eu não o chamo de monstro — respondi-lhe em tom mais amistoso.

Houve silêncio, nesse duelo sui-generis. Finalmente, falou com grande calma:

— Atlan, se você não quer se entregar, eu me sinto obrigado a destruí-lo. E isto torna-se para mim grandemente doloroso, mas você não me dá outra opção.

— Experimente fazê-lo.

— Vou fazê-lo. Nossa água não dá para muitas horas. Daqui a 72 horas os microrreatores não mais funcionarão. Este planeta fica muito distanciado da Terra. Nós o chamamos de Hellgate, porque é realmente a porta do inferno. Você já deu uma olhada para o termômetro externo?

Realmente, não havia me preocupado com isso até então. Foi aí que reparei como a aparelhagem técnica do meu traje espacial tinha consumido tanta energia. Tive então calma para observar o chiado da instalação de ar condicionado. Há tempo que a luzinha vermelha, indicadora de carga deficiente, estava acesa. A temperatura externa, ao sol, era de 148,3 graus Celsius. Só agora pude compreender por que aquela correria de apenas 200 metros me cansou tanto. Meu traje espacial já estava há muito tempo além dos limites de sua capacidade.

Logo depois comecei a sentir pontadas nos pulmões. O ar que respirava estava demasiadamente quente. Conforme o termômetro, a temperatura interna era de 41,7 graus Celsius. Pessoas do meu tipo, em geral, não transpiram. No entanto, eu já estava banhado em suor. Estando bem próximo do sol, o calor neste planeta era assombroso, fazendo jus ao nome de Hellgate, ou seja, “Porta do Inferno”.

— Então, arcônida? — continuava a pergunta de Rhodan. Sem o querer, estava colocando à minha disposição uma arma psicológica.

— Ótimo — disse eu com muita pose e entonação. — Uma temperatura muito boa para a saúde, não é, bárbaro? Sempre senti frio em seu mundo gelado. Você deve saber que o sol de Árcon, muitas vezes maior que o da Terra, é também muito mais quente que o seu solzinho de doze meses. Cresci com aquele sol inclemente na cabeça. Ainda estarei cem por cento quando você estiver se afogando no próprio suor. Talvez você vá-se transformar em carne-seca.

Ele me chamou de doido varrido e eu só pude rir.

— Minha proposta, seu bárbaro: entregue-se logo, eu não lhe farei mal algum. Se você realmente for inteligente...

— Sem comentário — interrompeu ele. — Pois bem, Atlan, considere, então, que daqui em diante estamos em estado de guerra.

— Aceito, selvagem. Olhe muito para sua água. Estes miseráveis dois litros, você os consumirá em pouco tempo. A temperatura externa para você também é de 148,3 graus, não é? Formidável, formidável, como isso faz bem ao meu metabolismo. Isto é que é um calor de verdade. Quer que lhe ceda um litro de líquido? Atlan está com tudo, bárbaro. Topo qualquer parada.

Rhodan não disse uma palavra. Tinha certeza de tê-lo atingido com meus argumentos convincentes. Nós os arcônidas agüentamos de fato o calor com muito mais facilidade do que os habitantes da Terra. Minha grande sorte foi que Rhodan não sabia há quanto tempo eu já estava na Terra e que meu organismo estava mais adaptado às condições climáticas deste planeta.

Minha garganta estava completamente ressecada, pois estivera quase uma hora exposto ao sol. Olhei pesaroso para a direção dos rochedos. Do outro lado deles, haveria sombra. Porém ficaria ao alcance de Rhodan. Diante de meus olhos, aros de fogo começaram a dançar.

— Estamos, pois, em estado de beligerância, — foram as últimas palavras de Rhodan antes de desligar o microfone.

Eu também desliguei o meu. Um silêncio fúnebre se estendeu sobre o deserto de areia e de pedras do planeta apelidado “Porta do Inferno”, como um mar sem fim.

Levando a mão em pala e piscando muito, tentei olhar para o alto, desejando que a noite viesse o quanto antes. O calor teria então que diminuir. Finalmente, afastei-me um pouco das pedras escaldantes e desliguei meu campo energético, para economizar energia. O diminuto transformador térmico já estava há muito em sobrecarga e o envoltório de proteção não adiantava nada contra a irradiação solar.

Do outro lado, nada se movia. Rhodan não se atrevia a sair de seu abrigo. E assim começou a longa vigília: um espreitando o outro. Era o início de uma lenta agonia.

 

De um momento para o outro, os sentidos desapareceram, como se alguém me tivesse injetado nos pulmões um gás entorpecente. Quando acordei com dores alucinantes nas vias respiratórias, haviam se passado apenas dois minutos. O desmaio foi, pois, muito curto, mas não deixou de ser um alarme importante.

Já eram decorridas quase doze horas desde que Rhodan se comunicara pela última vez. Neste tempo todo, Rhodan não deu sinal de si, pois certamente queria provocar um suspense quanto ao seu estado físico. Também eu não me manifestei. Já havia consumido um litro de água. Era necessário um autodomínio fantástico para retirar da boca o canudinho de sucção, quando o nível da água chegava ao ponto determinado pela prudência. Ultrapassá-lo seria uma loucura. Já há três horas que meu subconsciente trabalhava apenas em função do fantasma da água. Era um desfile de quadros de um só assunto: líquido, líquido de todos os tipos, principalmente sob a forma de água comum.

Durante seis horas, transpirei sem parar. Estava chegando a fase do ressecamento. Era como se meu organismo não tivesse mais uma gota de líquido.

Se conseguisse, com o máximo de autodomínio, conter o desejo irresistível de água, procuraria depois refletir um pouco sobre a situação. Estava deitado sob o sol, sem nenhuma proteção. A temperatura externa continuava a mesma, cerca de 148,5 graus Celsius. A areia do deserto estava ainda mais quente.

Assim, para minorar a situação, comecei a mudar de posição em intervalos de no máximo de três minutos, para dar vazão ao calor proveniente do chão causticante. Deitava-me de barriga para baixo, depois de lado e finalmente de costas. Este movimento constante, porém, exigia muita energia. Com cada mudança de posição, notei que as forças iam diminuindo e minha resistência ia chegando a zero.

Estas doze horas se transformaram numa eternidade. Estava chegando ao ponto que muitos homens e arcônidas tinham conseguido superar antes de mim. É o momento crítico em que a lógica e o pensamento claro desaparecem. Dá-se um curto-circuito na central de comando do cérebro. Estes segundos de pânico transformaram, em todos os tempos da história, simples cidadãos em heróis e tornaram covardes, guerreiros destemidos que enfrentaram a morte com denodo.

Sabia que não ia agüentar por muito tempo esta situação. Minha aparelhagem de refrigeração — cuja finalidade não era apenas eliminar a umidade natural do corpo, mas também e principalmente absorver os terríveis raios do sol inclemente — já estava começando a pifar.

A instalação para fornecimento de oxigênio e purificação do ar não funcionava mais. A capacidade máxima de resistência do traje espacial era de 150 graus Celsius. Dei ainda, por minha conta, uma margem de segurança de 5 graus, mas com isto a instalação devia mesmo ter chegado ao fim.

Meu microrreator tinha uma potência de 50 quilowatts por hora, isto calculado como boa margem de segurança, pois nunca se precisaria de tanta energia. Mas até este aparelho estava em sobrecarga. Só o campo de reflexão da instalação de ar condicionado necessitava de 45 Kw para poder funcionar normalmente.

A filtragem do ar carecia de 2 mil Watts e o sistema de refrigeração comia 3 mil Watts por hora. Tudo isto dava um montante de consumo de energia tal que as reduzidas baterias e transformadores mal podiam cobrir.

No envoltório de proteção para defesa contra corpos materiais e contra irradiações energéticas ou ionizantes nem era bom pensar. Mesmo em condições normais, ele já consumia 50 quilowatts.

Se pudesse encontrar um material condutor, teria chegado à idéia maluca de adaptar o microconversor de impulsos de minha pistola térmica. Mas não encontrei nos bolsos do traje nem um pedacinho de fio metálico. Minha garganta não estava aceitando a abundante alimentação concentrada, empacotada na mochila do traje espacial. Também não tinha fome.

Mas, meu maior sofrimento era provocado quando respirava o ar escaldante. A temperatura interna havia subido para 50,8 graus. Mais ou menos da mesma temperatura era a horrível mistura de oxigênio com hélio. Tinha ar para 72 horas, mas com toda a certeza minha vida não iria tão longe assim.

Chegou a hora de outra fase de desmaio. Num esforço ingente, tentei concentrar a atenção em alguma coisa e fiquei olhando para o ponto onde Perry Rhodan devia também estar deitado na areia ardente. Ainda podia ver a mancha vitrificada do meu último disparo energético, no chão de areia. Pelos meus cálculos, aliás sempre bem feitos, Rhodan não podia estar a mais de 30 metros daquele local. Não podia ter caminhado mais do que isto, em todo este tempo.

Tinha que vigiar uma extensão de uns sessenta metros de raio em torno de mim, para não ser apanhado de surpresa pelo adversário. Com a luneta de mira de minha pistola energética, varria constantemente o terreno em volta, sem nada encontrar. Talvez não houvesse mesmo nenhuma reentrância no solo arenoso onde Rhodan pudesse se abrigar ou ir se arrastando.

Por muito tempo, fiquei refletindo sobre a conveniência ou não de varrer com disparos energéticos aquela pequena área. Mas cheguei à conclusão de que era muito improvável atingir meu adversário, talvez abrigado numa saliência rochosa. Os prós e os contras deste plano apresentavam um quadro negativo. Caso não encontrasse, em pouco tempo, o paradeiro de Rhodan, ele me teria facilmente sob a mira de sua arma. Já no meu primeiro tiro, ele certamente localizou bem minha direção.

Desisti, pois, da idéia maluca e fiquei esperando que o bárbaro perdesse a paciência. Pelo rastro na areia do meu último disparo, Rhodan poderia perceber muito bem que eu estava numa pequena elevação.

Podia também determinar a direção, pois o disparo deixara uma cratera bem alongada. Uma angulação perfeita, porém, não seria possível, pois estava a mais de 30 metros de mim. Se existisse só uma elevação, seria uma maravilha para Rhodan. Mas eram três e eu poderia estar em qualquer uma delas.

Por este mesmo motivo, Rhodan não iria atirar, pois sabia que com isso eu iria descobrir seu paradeiro. Nesta luta de trincheira, de um ficar espreitando o outro, tudo dependia de quem cometesse o primeiro erro. Para encontrar um abrigo conveniente, teria que passar por campo aberto. Mais para trás, cerca de um quilômetro, estendia-se um trecho mais montanhoso, calcinado pelo sol. Lá em cima haveria não somente esplêndidos pontos de defesa, mas sobretudo trechos de sombra.

Estava mordendo meus super-ressecados lábios, quando meus olhos indecisos perceberam uma caverna funda e escura. Estava fresco lá dentro; um tanto mais fresco. No máximo cem graus de calor... Inebriei-me com uma temperatura que normalmente me seria insuportável. Os apenas cem graus de calor me pareciam um suave lenitivo. A instalação de ar condicionado poderia descansar um pouco. O reator também funcionaria melhor.

Nuvens incandescentes começaram, de repente, a dançar na minha frente. Do meio delas, saltou subitamente a figura de Rhodan. Passou correndo na minha frente, dando uma enorme gargalhada e me atirando areia com chutes de suas botas.

Consegui me controlar no último instante. O cano de minha arma já estava saindo do vão das pedras, quando despertei da alucinação.

O fantasma de Perry Rhodan se desfez diante de mim, restando apenas o deserto, uma superfície desesperadora de areia clara e ofuscante, com milhões e milhões de cristais reverberando a luz e o calor. Queria gritar um pesado palavrão, mas minha garganta não conseguiu emitir som. De novo a vontade louca de tomar água. Ainda me restava um litro. Encolhi o corpo e dei um soco no capacete pressurizado. Só o pensamento de que Rhodan estava passando pelo mesmo sofrimento é que me dava um pouco de alento. Tinha, porém, o pressentimento de que alguma coisa haveria de acontecer.

Senti, de súbito, um impulso do meu sexto sentido. Um calafrio me percorreu a espinha dorsal.

“Ele tem dons telepáticos! Não descuide de seu bloqueio mental!”

Senti-me mais resistente a alucinações. No reflexo do vidro da viseira do capacete, reparei na palidez do meu semblante. É claro que não devia relaxar minha defesa mental, mesmo que isto fosse muito difícil devido ao meu estado físico depauperado. Se Rhodan me captasse o pensamento, também descobriria meu paradeiro. E então, não teria mais força para resistir.

Comecei a praguejar em voz alta, mas saía apenas um chiado rouco. Porém de qualquer maneira, era minha voz e isto me estava encorajando. Fiquei de repente bem lúcido e minha visão mais nítida.

Aquilo tinha sido planejado. Planejado psicologicamente à base da necessidade louca de água que martiriza a pobre criatura. Todo meu pensamento agora tinha que ser sem muita profundidade. Eu não podia formar em mim idéias lúcidas.

Poderia apelar somente para os instintos mais primitivos, e nada mais. Sentimentos e desejos do subconsciente jamais chegam, em geral, a ser expressos por palavras formais. Resumindo, somente devia admitir conceitos referentes à avidez de água para o corpo ressecado.

De um momento para o outro, tentei a lucidez de pensamento. Uma esperança nova me arrancou da letargia e deu forma ao meu plano. Já estava pronto. Rhodan devia fazer com que eu percebesse o local do seu esconderijo. O modo de conseguir isto, não me interessava. Para que que eu me formara em Cosmopsicologia? Conhecia muito bem os homens.

Com muita ponderação, dominando toda avidez, sorvi um pouco de água. Em cada gole, gargarejava bastante, até que o líquido fosse bem absorvido pelos tecidos ressecados. Não queria propriamente beber, mas avivar um pouco minhas cordas vocais. Depois de cada gole, dizia alguma coisa em voz alta e bem articulado. Quanto mais água penetrava na garganta, tanto melhor ficava minha voz. Estava correndo o risco de desperdiçar meu resto de água.

Depois de ter bebido quase meio litro, minha voz estava perfeita. Comecei a cantar com voz média uma modinha popular, até ter a certeza de poder cantar também os sons agudos. Após o exercício da voz, veio mais um gole. Este era mesmo para beber.

A seguir, comecei a ajeitar o texto imaginário. Parecia uma coisa boba, mas tinha sua finalidade. Tratava-se dos conceitos “água” e “beber”. Somente isso. As duas palavras deviam aparecer o mais freqüente possível no “texto”.

Fiz ainda um teste geral da minha voz e da canção. Finalmente liguei o transmissor do capacete. Podia me arriscar a isto, pois seu consumo era apenas de 5 Watts.

— Alô, bárbaro, como vai? — disse eu com a maior naturalidade e voz descansada no pequeno microfone.

Isso devia deixar Rhodan meio maluco e desorientado. Naturalmente sua garganta não iria ter som algum e não seria homem para falar com voz deficiente. Mas haveria de me ouvir e era isto que me interessava.

Dei uma gargalhada de pulmão cheio.

— Alô, bárbaro! Estou com lágrimas nos olhos de tanto rir. Puxa, meu rosto está todo molhado e o culpado é você. Por que me provoca o riso desta maneira?

Parei de falar e fiquei na escuta. Primeiramente foi a palavrinha “molhado”. Tinha que agir com técnica para que afrouxasse um pouco a vigilância e cochilasse. Talvez estava sentindo muito mais sede do que eu, pois um homem não pode agüentar tanto sem água como um arcônida. Se meus cálculos não me falham, devia ter ainda, no máximo, algumas gotas, apesar de todo seu autodomínio. Tudo de uma vez, não poderia ter bebido. Um homem do tipo de Rhodan não faria isso.

— Alô, bárbaro! Por que não responde? — exclamei mais alto ainda. — Será que devo lhe dar um pouco do meu “tanque”? Até agora tomei poucos goles. Então, Rhodan, como vão as coisas? Nenhuma resposta, hein? Já vi muitos terranos morrerem de sede. Qual é a sua situação? Quer se render agora? Cumprirei minha palavra, não o matarei. Alô, responda por favor...

Comecei a rir de novo em voz alta, sabendo que ele não ia mesmo responder. Mesmo que quisesse, a voz não lhe obedeceria. Comecei então a pôr em prática o meu plano. Devia ser horrível para ele. Certamente ainda estaria pensando nas minhas lágrimas “úmidas”.

— Alô, bárbaro! Vou cantar uma linda canção em sua homenagem. Você conhece a melodia. É para distraí-lo um pouco, nesta solidão sem fim. Preste bem atenção no texto, é de minha lavra, do amigo Atlan, aquele que você não quis ouvir.

E comecei a cantar:

 

A água é divina,

é uma coisa fina.

Como é bom beber

a água a correr.

Água da mina

que vai pra piscina,

vem refrescar

minha triste sina.

 

Poesia com fins psicológicos, ridícula e boba, onde, porém, a rima tem um efeito de bomba sentimental. Continuei a cantar, sempre a mesma coisa. “A água é divina, é uma coisa fina, como é bom beber.”

Tinha certeza de que ele estava ouvindo e não teria força para desligar o receptor, preso que estava aos desejos subconscientes. Talvez até sentisse alucinações.

Continuei cantando, sempre as mesmas palavras, até ficar com a garganta completamente seca de novo. Já estava aceitando o fracasso irremediável de todo o meu plano, quando aconteceu o inesperado.

Ouvi um ruído horroroso no alto-falante do meu capacete. Alguém queria gritar, mas a garganta não funcionava. A apenas 400 metros, houve um clarão amarelado. A trajetória incandescente dos raios energéticos veio bater no flanco de uma pequena elevação, a uns trinta metros de mim, produzindo uma cratera de areia candente.

Era isso mesmo. O coitado tinha perdido o controle do sistema nervoso e atirado. Fixei bem o ponto de onde veio o tiro. Depois do seu segundo disparo, comecei também a atirar. A arma saltou de minha mão e escorregou para o lado.

Do outro front vinha fogo cerrado e destruidor. Mas cessou de repente. Eu dei mais de vinte tiros na direção de onde vieram seus disparos, parando somente quando o dispositivo automático deu sinal de alarme. A arma atingira a temperatura limite. Agora tinha de esfriar.

Do outro lado só se via uma enorme cratera de pedras e areia incandescentes. Rhodan não estava mais vivo.

Abobalhado e apático, fiquei olhando para lá. Sabia que havia matado um homem que poderia ter sido meu maior amigo. Com muita dificuldade, fui caminhando, sem direção certa. A grande cúpula, com seus tesouros tentadores estava a uma distância de um quilômetro e meio. A elevação que lhe servia de pedestal ficava próxima. Meu caminhar por aquela areia escaldante não tinha mais sentido nenhum. Pareciam mortos todos os meus sentimentos e anseios. Ele me salvou da aeronave em chamas. Se não tivesse feito isto, não teria tido tanto aborrecimento. Minha consciência estava pesada. Tomei as últimas gotas de água. Haveria de vencer aquela pequena distância.

Para os mil metros até os pés do morro, cuja altura oscilava em torno de uns cinqüenta metros, gastei quase uma hora. Ao chegar à sombra do pequeno morro, deixei-me cair para descansar. Deitei de braço e pernas abertas. Joguei a arma para o lado, como se não precisasse mais dela.

Ao virar a cabeça, depois de algum tempo de repouso, vi um fantasma caminhando pelo deserto. Comecei a rir desta alucinação, até que a aparição se ajoelhou na minha frente e começou a gingar a metade superior do corpo. Levantou um dos braços ao ar e qualquer coisa metálica reluzia em sua mão.

Eu estava paralisado, de olhos fixos naquele objeto cintilante, quando dele começaram a sair jatos de fogo, a uns dez metros da minha cabeça. Pedaços de rocha incandescentes sibilavam próximas do meu corpo. E o fantasma continuava atirando, mesmo depois de se levantar. Pôs-se em movimento, atirando sempre, até desaparecer atrás de uma rocha.

Minha alucinação tinha sido naturalmente Rhodan, que logo depois que eu comecei a caminhar para o morro, também mudou de abrigo. Certamente ele estava me vendo durante todo o tempo que eu descansava e não atirou em mim. Por que motivo? Bondade pessoal dele? Ou por que meu choque “psicológico” o arrasou emocionalmente?

Não, certamente não. Simplesmente ele não tinha mais força para atirar. Quando se está extenuado, até um palito de fósforo pesa mais do que um saco de farinha. Somente agora, depois que eu virei o rosto para ele, é que começou a atirar contra mim, sem atingir nem mesmo a direção onde me encontrava.

Não estava mais me preocupando em saber como este infeliz ainda estava vivo. No fundo, eu o estava admirando, admirando cada vez mais.

Instantes após, lá ia eu desaparecendo entre as rochas, levando comigo ainda a arma. O calor estava tenaz e não tinha mais uma gota de água. E, no entanto a cúpula da esperança achava-se a 400 metros, com uma estrada de suave aclive e muito cômoda.

 

Tivemos mais oito horas de vigilância e espreita mútua. Quase todos os truques imagináveis foram empregados para deixar o adversário fora de combate. Os menores detalhes eram vitais, pois qualquer erro teria conseqüências fatais. A luta era para valer. Mutuamente nos xingamos e nos ameaçamos. Mutuamente exigimos a rendição do adversário, mas ninguém cedia, e não podia ceder mesmo.

Éramos como água e fogo. Quando ele atirava, suas mãos estavam trêmulas e os olhos confusos. E, quando eu o tinha sob minha mira, ao mudar de posição, fazia uma série de disparos, mas sem atingi-lo. Parecia até que a retícula da mira telescópica da arma estava trabalhando contra mim. Quando eu tinha Rhodan no centro da pontaria, a imagem se transformava em rodas de fogo, e o tiro se perdia.

Dentro do traje espacial, o termômetro acusava 59,3 graus Celsius. A esperança de poder me refrescar um pouco numa caverna menos quente do morro, foi frustrada por Rhodan. Rhodan não tinha dó. Certamente, ele está, mais uma vez, identificado com sua querida Humanidade, a quem ele trairia no momento em que permitisse minha entrada na cúpula.

Parece que este pensamento lhe dava forças descomunais, transformando-o, por assim dizer, num mártir da Humanidade. Quando julgava ter descoberto um caminho para a base, imediatamente era coberto por uma saraivada de tiros. Este bárbaro não sabia o que era repouso. Talvez estivesse mesmo meio inconsciente. Talvez não tivesse uma gota d’água, depois desta caminhada toda pelo deserto escaldante.

Já havia renunciado há muito tempo à explicação de um fenômeno que no começo me preocupava muito: como é que Rhodan podia ainda estar vivo e resistindo daquela maneira... Esgotado, exausto física e mentalmente, muito além da força humana. Se demorássemos apenas mais uma hora, nenhum dos dois conseguiria chegar até a cúpula. Estávamos tão alquebrados pelo ressecamento interno, pelo cansaço, sob o fogo inclemente do sol, que não chegaríamos mais, com as próprias forças, aos pés da base.

Tive um desmaio de alguns minutos. Quando recuperei os sentidos, minha vista não estava funcionando. Apalpei à procura de minha arma e não a achei mais. Além disso, já não tinha forças para carregá-la. Minha cabeça também estava falhando. Com muito esforço, ainda consegui ouvir um impulso muito débil do meu sexto sentido, que me sussurrava:

“Desistir. Ele também está obrigado a isto. Vá se arrastando até a cúpula.”

Levei muitos minutos até conseguir me levantar. Com o tubinho na boca sugava desesperadamente. Mas não havia mais nada no recipiente d’água. Braços e pernas pareciam galhos mortos de uma árvore caída. Não sei de onde me veio a força que moveu meus pés e joelhos, para me arrastar rumo à base.

Depois de muito tempo, havia progredido um metro. Faltavam ainda sete. Queria dar expansão ao meu desespero, mas a garganta não conseguiu produzir nenhum som, a não ser um chiado oco.

O equipamento de refrigeração também já estava pifando. O ar que me entrava no pulmão parecia ser feito agulhas em brasa. Os reforços metálicos das articulações do queixo e dos braços estavam fervendo. Não recebendo mais a refrigeração necessária, queimavam minha pele. Não podia nem gritar. Sentia apenas a dor horrível e uma ânsia desesperada de poder, ainda, no último instante, atingir a alavanca do automático do mecanismo de abertura.

Percebi, ao meu lado, um vulto que também se arrastava na direção da rocha escaldante. A cabeça esticada para frente. Perry Rhodan se havia igualmente desfeito da arma. Assim, nos arrastamos lado a lado para a entrada da escotilha de ar, pintada de vermelho-berrante.

Para cada metro, precisávamos de dez minutos. Através do transmissor do capacete ouvíamos o chiar das respirações ofegantes. E aí ficamos sabendo que cada um tinha tentado sempre enganar o outro.

Não conseguia mais reconhecer as coisas. A única coisa que ainda prendia minha atenção era a porta vermelha, que parecia exercer uma atração mágica. A presença de Rhodan era para mim uma coisa nebulosa, mais imaginada do que propriamente vista Depois de uma hora de um sacrifício desesperado, estava Rhodan diante da escotilha. A mim, faltavam ainda 30 centímetros. Tinha perdido a parada. Fiquei parado, inerte, esperando a morte. Tudo, tudo perdido... sacrifício inútil! Passaram-se muitos minutos, até que comecei a ouvir um grunhido de voz humana no alto-falante, sons ocos e inarticulados.

Rhodan estava deitado diante da porta, sem ter força para comprimir para baixo a alavanca da fechadura, pintada de amarelo-claro. E ele estava me chamando, chamando a mim, seu inimigo figadal. Se ele realmente soubesse que eu nunca fui seu inimigo... Foi questão apenas de legítima defesa, pois eu também amo meu povo.

Sua voz me chamando mobilizou minhas últimas forças. Necessitava ainda de 10 minutos para vencer os últimos 30 centímetros. Quando cheguei perto dele, tentei levantar a mão com muito esforço. A gravitação tão reduzida do pequeno planeta Hellgate parecia de repente ter se centuplicado. Não sei com que esforço ingente minha mão alcançou a alavanca, chegando a se encostar com os dedos de Rhodan e juntos tentamos puxá-la.

Os duelantes haviam se encontrado novamente, buscando num esforço conjunto abaixar a alavanca salvadora. Conseguimos, depois de alguns segundos que pareciam uma eternidade. A campainha começou a tocar enquanto a porta se abria, liberando a entrada da escotilha da base. Levamos ainda uns dez minutos nos arrastando no corredor estreito. Quando eu e Rhodan conseguimos acionar o mecanismo para o fechamento da porta, estava quase desmaiando. Tinha a impressão de estar dentro de uma centrífuga. Sentia uma dor imensa na garganta, incapaz agora de fazer os movimentos de deglutição.

Ouvia, porém, o sibilar do vento fresco na direção da escotilha. Ao cessar o ruído e quando a segunda porta se abriu automaticamente, tive ainda força para tocar com a mão o interruptor que estava à altura de seus ombros. Meu capacete se abriu para trás e um ar maravilhoso acariciou meu rosto ressecado. Na primeira respiração completa, perdi os sentidos. Era como se eu tivesse engolido pedaços de gelo.

 

Acordei de repente. Ao meu lado havia o barulho típico da chuva. Quando abri os olhos, vi os pés metálicos de um robô e tentei virar o corpo para o outro lado. Os olhos me ficaram mais claros, desaparecendo as últimas sombras. O robô tinha nas mãos um vaso com água e o despejava na cabeça de um homem. O rosto de Rhodan estava cheio de queimaduras horríveis. Mas ele sorria. Nunca vi em minha vida um homem, fosse terrano ou arcônida, que soubesse rir tão espontânea e serenamente.

Porém nada disso tinha importância agora. Todo o meu consciente e subconsciente falava apenas em água, esta água que o robô jogava sobre o rosto de Rhodan. Não estava compreendendo bem o que se passava, mas meus ouvidos funcionavam bem, do contrário não teria ouvido suas palavras serenas, acompanhadas sempre de um leve sorriso:

— Você foi um osso duro de roer, meu irmão — disse Rhodan pensativo. — Abra bem a boca, que o robô vai lhe dar água. Minha performance foi por dez segundos melhor que a sua, arcônida.

Ao pingarem nos meus lábios as primeiras gotas, julgava que estava bebendo não água, mas um néctar muito mais precioso. Rhodan se manteve calado. Deixou que eu me recuperasse totalmente. Bebia e bebia sem parar. Meu corpo parecia uma esponja ressecada. De vez em quando o robô interrompia o fluxo de água, a fim de o organismo poder assimilar melhor. Já estava me sentindo outro, mais disposto e com a garganta em condições de falar normalmente.

Rhodan sorria. Parecia que estava muito ausente daquela cúpula, como se seus pensamentos estivessem bem longe.

— Incrível e incompreensível — disse ele como que pensando em voz alta. — Um sujeito assim quase que ia matando um imortal.

Cuspi para fora o líquido que mantinha na boca fechada. De repente comecei a compreender como este homem se conservava sempre jovem e elástico. Imortal! Então tinham fundamento os boatos sobre uma misteriosa ducha celular que lhe garantia a eterna juventude.

Minha boca se escancarou para uma estrondosa gargalhada. Era tragicômico. Rhodan não podia saber o motivo desta gargalhada esquisita e eu também não lhe iria dizer. Imortal!

— Haverei de descobrir tudo — disse ele, com os olhos vivos e pesquisadores.

Eu, naturalmente, tomei minhas providências para que minha mente não fosse invadida por sua telepatia.

Comecei também a sorrir para ele, dando-lhe tempo para quebrar a cabeça. Percebi também a pistola de raios energéticos apontada para mim. É claro que não ia cometer nenhuma loucura mais. Ele havia ganho a parada. Recuperara os sentidos um pouco antes de mim. Estava tudo tão esquisito e confuso. Essa aventura toda me parecia um pesadelo.

— Quanto tempo estivemos lá fora? — perguntei com a garganta ainda arranhando um pouco.

Sentia realmente dores.

— Graças à sua cabeçudice, cerca de vinte e quatro horas — afirmou ele. — Agora você está de novo sob meu poder.

— Você teve foi muita sorte, isso sim — respondi contra minha própria convicção.

Realmente não foi nada de sorte, foi sua fantástica determinação.

Ele me penetrava todo com seu olhar sereno, onde transluzia sempre um sabor de ironia.

— Seu truque psicológico não foi nada mau, Atlan. A estrofe meio idiota sobre a água, quase me deixou maluco. Como é que você arranjou esta idéia?

Sacudi os ombros. Já estava me sentindo muito bem. Com algum cuidado procurei ficar sentado, apoiando as costas na parede metálica. Ele também estava sentado do mesmo jeito. Estava conseguindo ver uma boa parte do interior da cúpula. Devia ser uma base muito bem organizada.

— Como você chegou mesmo à idéia dos versos psicológicos?

— Veio por si mesma. Não tinha outro meio de provocá-lo para dar uns tiros.

Olhava para ele estupefato e a minha curiosidade estava em marcha progressiva. O cano da arma continuava apontado para cima.

— Calma! — disse ele.

Fiz apenas um gesto de assentimento:

— Não sou louco. Além disso, seu robô está de prontidão. Apenas uma pergunta, bárbaro: Como foi que você escapou do meu tiro?

Ria agora com toda naturalidade, com toda cordialidade. Não era sem razão que, depois do sentimento de admiração, passei a sentir grande simpatia por ele. Não queria, porém, que ele o percebesse.

— Seu primeiro tiro passou a um metro de mim. Naturalmente você ficou ofuscado por seu próprio tiro. Perdi o esconderijo e tive que procurar outro, logo depois. Era uma pequena caverna, protegida por fortes rochas.

Como parecia tão simples tudo isto. E certamente não o foi. Deve ter pulado de um canto para o outro, como um felino acuado.

— E depois, você deve me ter seguido, não é?

Confirmou com a cabeça.

— Você não olhou para trás. Eu lhe poderia ter dado um tiro pelas costas.

— Não faria isto! — disse eu rindo. — Teve sorte de ainda poder sair correndo.

Ele apenas sacudiu os ombros. E estava tudo dito.

— Agora, gostaria de saber como foi que veio parar na Terra e o que andou procurando por lá? — indagou ele de repente, com uma calma absoluta.

— Adivinhe você mesmo — disse com ar provocador.

— Não estou com disposição para brincadeiras de adivinhações. Meu rádio já foi enviado. Estamos aqui num planeta desabitado que está mais ou menos a doze mil anos-luz da Terra.

— Se soubesse disso... — disse resignado — teria deixado você aterrissar calmamente, para começar a agir depois.

— Azar seu, arcônida. Um pequeno cruzador de minha frota estará aqui dentro de três horas. Até lá terei de saber o que fazer com você. Não permitimos estranhos no Império.

— No assim chamado Império — corrigi eu. — Vocês não são tão importantes assim. O que eu quero é voltar para casa, nada mais.

— Sei disso. Acho que eu também sei pensar um pouco — disse ele em tom de ironia. — Parece-me que há muito tempo que está afastado de Árcon, pois ainda não acredita na regência do cérebro robotizado. Quando foi, pois, que chegou à Terra?

— Já há algum tempo — foi a minha evasiva.

Naturalmente não lhe podia mencionar minha base submarina nos Açores, na mais profunda fossa do Atlântico. De qualquer maneira, ele estava muito desconfiado. Não me recusaria a ter que depor perante pessoas com faculdades parapsicológicas.

Ficamos conversando e discutindo até que lá fora se ouviu o estrondo surdo de uma espaçonave que aterrissava. Era o pequeno cruzador, cujo comandante logo depois apareceu na cúpula acompanhado de cinco soldados bem armados. Levantei-me do chão ainda com cuidado. O robô havia tratado minhas queimaduras e me aplicara uma injeção para diminuir as dores.

Rhodan já estava cem por cento. Era um homem de uma fibra extraordinária.

O comandante do cruzador não fez muita cerimônia, tirou do bolso um par de algemas e prendeu-me as mãos.

— Tem alguma coisa contra? — perguntou meio sem jeito.

Eu apenas esbocei um sorriso forçado. Rhodan estava bem no fundo, quando disse:

— Há alguma coisa errada em você: seguirá arrastando um segredo inútil pela vida afora. Voltarei em poucos dias, só então conversaremos mais seriamente. No momento, disponho de pouco tempo. Reflita um pouco, e veja se não é bom para você dizer toda a verdade.

Os soldados trouxeram um traje espacial, do mesmo tipo do que eu tinha usado antes. Franzi as sobrancelhas, dizendo:

— Mais isso ainda? Vocês não têm um tanque pressurizado ou coisa equivalente?

— O cavalheiro ainda deseja mais alguma coisa? — resmungou-me o comandante um tanto irritado.

Rhodan não pôde deixar de sorrir. Devia conhecer muito bem seu pessoal. Neste momento, resolvi lançar-lhe uma indireta, para que me respeitasse mais. Levantei os dois braços e apontando com os olhos para as algemas, disse:

— Sabe de uma coisa, bárbaro? — falava pausadamente — as coisas não mudaram tanto assim nos tempos modernos. Parece que estamos ainda na Idade Média durante as guerras religiosas. Nos tempos de Wallenstein e Gustavo Adolfo, as algemas eram um pouquinho mais largas.

Rhodan deve ter se enfurecido com isso. Empalideceu de repente e me fitou longamente. Ele, o imortal... e no entanto tão facilmente vulnerável, quase perdera o controle.

— Sem parar, marche! — gritou o comandante.

Fui sorrindo para a escotilha. Por que motivo aquele homem gritou tão alto nos meus ouvidos?

 

                                                                                            K. H. Scheer

 

 

                      

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