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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Pseudo / Clark Darlton
O Pseudo / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Pseudo

 

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento cósmico da Humanidade, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que o homem podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.

Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1.984.

Uma nova geração de homens surgiu. E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou. Formava agora o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestavam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.

No sistema solar não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma, os terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.

Este reino planetário, que alcançou elevado grau de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, capaz de enfrentar qualquer atacante.

Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles membros do célebre exército de mutantes — continuam a ser instruídos para, em quaisquer circunstâncias, manter em segredo sua origem terrana. Em Tolimon, um dos mundos dos aras, alguma coisa parece não ter dado certo durante o desempenho de uma missão muito importante. Acompanhado de Gucky, Perry Rhodan aparece em cena para tirar seus agentes dos apuros. Perry Rhodan é O Pseudo.

 

                                   

 

Ainda havia gente que não conhecia Gucky, o rato-castor. Para muitos deles, isso não representava nenhuma tragédia; apenas ficavam privados do prazer de apreciar um pequeno milagre. Mas outros, que nunca haviam ouvido falar a seu respeito e, de repente, se encontravam com ele, poderiam experimentar uma surpresa nada agradável.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com os colonos revoltados do planalto ao sul de Vênus City. Sabiam por experiência própria que o governo mundial de seu planeta de origem não costumava enviar expedições punitivas para sufocar rebeliões no nascedouro. Por isso, resolveram romper os laços que os ligavam à Terra, dos quais resultavam tributos insignificantes, para adquirir a independência.

Como Perry Rhodan se encontrasse em algum lugar nas profundezas do Universo, e não houvesse meio de entrar em contato com ele, o governo mundial terrano agiu por conta própria e incumbiu Gucky de verificar o que estava acontecendo em Vênus.

Com o maior prazer, Gucky passou a desincumbir-se da missão.

Os colonos revoltados riram gostosamente quando um belo dia surgiu diante deles aquela criatura que se parecia com o ratinho Jerry. Riram ainda mais quando a figura engraçada afirmou que vinha por ordem do Império Solar, para restabelecer a ordem.

Só pararam de rir quando aquele animal esquisito, que falava um inglês impecável, lançou mão de suas forças ocultas. Nenhum pensamento dos cabeças lhe ficou oculto, pois Gucky era telepata. Encontrava-se nos mais variados lugares ao mesmo tempo, pois também possuía o dom da teleportação. E, para coroar a obra, todo o arsenal de armas dos colonos foi erguido, ficou reunido bem acima do planalto e caiu num lago profundo. É que Gucky também era telecineta.

Depois disso, os colonos voltaram a agir razoavelmente. Desculparam-se com muitas palavras bonitas e juraram obediência para o futuro, prometendo pagar pontualmente os tributos a que se haviam obrigado.

Na noite daquele dia agitado, Gucky foi homenageado por sua generosidade. O chefe da revolta sufocada convidara-o e lhe oferecera verduras frescas e vinhos da estação. A festa foi muito alegre e o rato-castor, muito animado, começou a esquecer as boas maneiras. Com sua voz aguda, cantou algumas canções grosseiras que ouvira de Bell. Os homens acompanharam-no com as vozes roucas.

Os animais que residiam nas matas vizinhas à colônia espantaram-se com o barulho descomunal e ficaram em silêncio. Nunca tinham ouvido um rato-castor cantar. Um porco-espinho assustou-se e enfiou-se mais profundamente em sua caverna, resolvendo que ao raiar do dia procuraria um novo lar. Até mesmo um verme-parafuso quase surdo enfiou-se apressadamente no chão, para livrar-se da orgia de ruídos pouco agradáveis.

Em poucas palavras, Gucky sentia-se feliz como um porco em meio às abóboras.

É bem verdade que vez por outra teve a impressão de que seu subconsciente estava sendo atingido por débeis impulsos mentais que não provinham dos colonos, cujos cérebros estavam envoltos nas névoas alcoólicas. Mas não deu atenção ao fenômeno. Afinal, fizera um trabalho bem feito e merecia uma noite alegre. O que tinha ele a ver com a guarnição terrana de Port Vênus, a capital do planeta? Aquela gente poderia perfeitamente esperar até o dia seguinte.

Gucky continuou a cantar e a receber as homenagens.

Bem mais tarde, quando estava descansando em uma macia cama na casa do prefeito, procurando espantar os anéis coloridos e as paredes que balançavam, os impulsos voltaram.

— Gucky! Aqui é o comando do exército de mutantes. Responda! O que aconteceu?

A mensagem era tão clara que não poderia passar despercebida. Pelo tipo das vibrações só poderia ser Betty Toufry, cuja capacidade telepática muitas vezes provocara a admiração de Gucky. Era Betty quem dirigia o comando do exército de mutantes destacado para Vênus. A ela fora confiada a incumbência de sufocar a revolta dos colonos.

Gucky suspirou e fez um esforço para vencer a embriaguez.

— Minha doçura! — pensou, despertando aos poucos. — Meu estado é excelente. Apenas estou um tanto carregado.

— Carregado?

O rato-castor sorriu. Como é que aquela criatura ingênua poderia saber o que carregara? Não conhecia o vocabulário de Bell tão bem quanto ele.

— Estou carregado de vinho — explicou laconicamente. — Um vinho delicioso. A revolução acabou-se. Amanhã estarei aí e lhe darei um beijo.

Betty não parecia sentir-se muito feliz com a promessa.

— Você vai voltar, mas é já! Tenho outra tarefa para você.

O rato-castor continuou deitado, sacudindo o sono que ameaçava envolvê-lo. Quem sabe se realmente não havia bebido demais?

— O que é? — perguntou.

Começou a sentir-se mal.

— Trata-se de uma missão especial, meu chapa! — foi a resposta telepática que veio imediatamente. — Você terá que partir amanhã de manhã.

Gucky soltou um gemido e ergueu-se na cama. Encostou-se à parede. A luz vinda da rua provocou um reflexo branco na pele da barriga.

— Partir amanhã? Será que esta vida de cigano nunca terá fim?

Betty começou a impacientar-se.

— Ou você vem imediatamente, Gucky, ou eu aviso Rhodan que você recusou obediência a uma ordem. Ele exigiu expressamente a sua presença e...

Gucky despertou imediatamente. O cansaço e o mal-estar desapareceram como que por encanto. Com um salto, pôs-se de pé ao lado da cama.

— Então foi Rhodan? Ele quer minha presença? Que chefe adorável! Não se esqueceu de mim — a emoção quase chegou a dominá-lo, mas acabou por controlar-se. — Dentro de cinco minutos estarei aí. É no espaçoporto?

— Está certo. Ande depressa!

— Já estou a caminho — respondeu Gucky e começou a vestir-se. Numa letra delicada escreveu um bilhete de agradecimentos aos colonos e recomendou-lhes que nunca mais pensassem em revoltas.

Depois, concentrou-se em seu destino e saltou.

De início, o ar começou a tremeluzir em torno dele. Subitamente desapareceu. No mesmo instante, voltou a materializar-se no lugar combinado, em Port Vênus.

Betty Toufry nem chegou a assustar-se.

Estava sentada na cama. Trazia um robe sobre a roupa de dormir, que devia ser muito fina. Em Vênus o dia e a noite eram medidos pelos padrões terranos, pois face à rotação do segundo planeta, só a verdadeira noite durava cento e vinte horas.

A parede do quarto era formada de telas e controles. Era aqui que se reuniam todos os fios das teias urdidas em Vênus. E a partir dali, era controlada a ação dos mutantes. Enquanto John Marshall, chefe do exército de mutantes, estava ausente, as funções eram exercidas por Betty.

— Será que isso não poderia esperar até amanhã? — perguntou Gucky, mas logo se lembrou de quem o tinha chamado. — Foi Rhodan em pessoa que exigiu minha presença? Por que não me chamou logo?

A moça, que continuava jovem graças à ducha celular do planeta Peregrino, aplicada aos membros mais importantes do exército de mutantes, sacudiu a cabeça diante de tamanha falta de lógica.

— Faz poucas horas que recebi a mensagem de Rhodan pelo hipercomunicador. Confiou-nos uma tarefa muito estranha, que tinha de ser cumprida antes de qualquer outra coisa. Só depois disso, tive tempo para pensar em você, que é parte do equipamento solicitado.

— Você acha que eu sou uma peça de equipamento? — disse Gucky em tom indignado, acomodando-se na poltrona. — Foi o chefe que disse isso?

— É claro que não usou essa expressão. Mas fez questão de que mandássemos você.

— É porque sabe apreciar minhas qualidades — disse o rato-castor em tom de regozijo.

— Talvez — disse a moça, que pelo aspecto podia ter tanto dezoito como trinta anos. Na verdade Betty Toufry tinha mais de sessenta anos. — De qualquer maneira, você voará para Hellgate amanhã, logo depois do período de sono.

Gucky empertigou-se e levantou as grandes orelhas. Por entre os lábios, surgiu o dente roedor, que podia ser considerado o barômetro de seu humor. Quando aparecia, podia-se falar tranqüilamente com Gucky.

— Hellgate! — sacudiu a cabeça de espanto. — Logo esse planeta do calor. Será que o chefe não poderia ter inventado nada melhor?

— Hellgate é uma base muito importante que dispõe de uma estação de rádio. É o único planeta de um sol pequeno e insignificante, que consta dos catálogos dos arcônidas sob a designação ZW-2536-K-957. Hellgate dista exatamente 12.348 anos-luz da Terra. O planeta pertence ao Império de Árcon. Ninguém se interessa por ele, especialmente os arcônidas.

— Obrigado pela explicação — chiou Gucky em tom de desprezo. — Eu poderia ter encontrado essas informações num livro. O que vou fazer em Hellgate?

— Faça essa pergunta a Rhodan; ele deve saber. Não tenho a menor idéia do que aconteceu por lá — Betty ajeitou o robe e cobriu os joelhos, embora não houvesse o menor perigo de que Gucky ligasse o joelho humano feminino a qualquer tipo de erotismo. — Também não faço a menor idéia do que Rhodan pretende fazer com o iate espacial de luxo.

— Com o quê? — perguntou Gucky perplexo.

— É um veículo feito sob encomenda — disse Betty, participando do espanto de Gucky. — Um iate especial para milionários. Os arcônidas costumavam utilizá-lo. Você vai levar a pequena nave para Hellgate, onde está Rhodan.

— E depois disso vou voltar a pé? — perguntou Gucky.

— Dificilmente. Se fosse assim, não teria dito expressamente que quer você como piloto. Tomara que você saiba dirigir aquilo.

O rato-castor empertigou-se, o que quase chegou a provocar o riso de Betty.

— Isso não é nada. Afinal, fui treinado com todos os tipos de nave, inclusive com esse ridículo iate de luxo. Quando devo partir?

— O equipamento ainda está sendo colocado a bordo. Infelizmente a longa noite de Vênus começou há pouco, mas você não se importa de decolar no escuro. Será dentro de dez horas. Se quiser, pode dormir mais um pouco. O pessoal de Port Vênus está a par de tudo e fará o possível para apressar os preparativos. Rhodan o aguarda para daqui a vinte horas.

Gucky exibiu o dente roedor e lançou os olhos em torno.

— Será que posso dormir aqui? — perguntou com a cara mais inocente do Universo e lançou um olhar ansioso para a cama de Betty.

Mas esta não tinha a menor vontade de acariciar o rato-castor para pô-lo a dormir. Tirou o robe, enfiou-se sob a coberta de penas e sacudiu a cabeça.

— Na sala ao lado há um sofá. Boa noite.

Desapontado, Gucky ficou mais alguns minutos na poltrona. Depois teleportou-se para a peça contígua.

Ainda se encontrava sob os efeitos do vinho. Por isso, logo esqueceu seus problemas e adormeceu.

 

O veículo espacial de luxo pertencia a uma classe toda especial.

Envolvido pela luz ofuscante dos holofotes, estava pousado no pavimento de concreto, junto ao cruzador leve que o trouxera da Terra.

Sobre o corpo prateado da nave lia-se em caracteres negros a designação arcônida Koos-Nor.

Assemelhava-se a um gigantesco ovo, com trinta e cinco metros de comprimento e quase vinte de diâmetro na parte central.

Uma escotilha oval conduzia para a comporta de ar e dali para o interior do iate. Seu raio de ação era praticamente ilimitado, desde que não se desse importância às revisões regulamentares.

Gucky e Betty Toufry encontravam-se diante da maravilha reluzente.

— Isso deve custar um bom dinheiro — constatou Gucky. — Nunca imaginei que um dia viria a comandar uma maravilha dessas.

A moça olhou para o relógio.

— Você conhece as coordenadas, Gucky. O engenheiro-chefe voltou a explicar todos os detalhes. O que está esperando?

— É verdade, Betty. Vou zarpar.

Betty riu.

— Você está exagerando para menos, coisa que não costuma fazer. Dê lembranças minhas a Rhodan e aos outros. E boa sorte.

— Você acha que precisaremos?

— Sem dúvida. Rhodan falou numa missão muito arriscada.

Gucky sorriu. Parecia satisfeito.

— Ainda bem que esta espera enjoada chegou ao fim. Todos os mutantes estão participando de comandos especiais. Eu sou o único que se encontra aqui em Vênus para acalmar colonos inofensivos cujo único defeito consiste em não querer pagar impostos.

— Bem, ainda não existe nenhum imposto para os ratos-castores — disse Betty com um sorriso e recuou um passo. — Faça um trabalho bem feito, Gucky.

Gucky sorriu e, com um ligeiro salto, subiu os poucos metros que o separavam da escotilha de entrada. A escada que se revelara desnecessária encolheu-se automaticamente. Gucky acenou e desapareceu no interior da comporta. A pesada escotilha, iluminada pelas lâmpadas, fechou-se.

Poucos minutos depois, um tremor sacudiu o vulto em forma de ovo. Levantou-se e subiu lentamente ao céu escuro, seguido pela luz dos holofotes.

Betty caminhou até a beira do campo de pouso. Quando parou e lançou mais um olhar para o céu enegrecido, não viu mais nada da nave. Parecia que a mesma se desmaterializara.

 

E foi isso mesmo. Gucky estava decidido a aproveitar todas as possibilidades da nave de luxo arcônida.

Os veículos espaciais do tipo da Koos-Nor eram dotados de um campo amortizador especial, que reduzia a um mínimo os efeitos das hiperentradas e saídas sobre a estrutura espacial contígua. Por isso, essas naves tinham o direito de ingressar no hiperespaço dentro do setor espacial ocupado por um sistema solar, ou reingressar no espaço normal nesse mesmo setor. O custo de um equipamento desse tipo era o único fator que impedia sua instalação em todas as naves. O gerador de campo amortizador não era rentável — a não ser para iates de luxo, com os quais os inspetores irradiavam o poder e esplendor de Árcon...

O rato-castor ligou o gerador de campo de amortização assim que a Koos-Nor rompeu a camada de nuvens branca-amarelenta de Vênus.

Naquele instante, o Universo deixou de existir para Gucky. Ou melhor, o rato-castor e todo o iate de luxo deixaram de existir para o Universo normal. Transformaram-se e passaram a existir sob a forma de um impulso energético de categoria superior.

Essa situação perdurou até o momento da rematerialização.

Quando a dor tão conhecida, provocada por esse processo, se desvaneceu, Gucky contemplou os quadros estelares, subitamente modificados.

Escorregou para fora do assento do piloto e resolveu dar uma olhada mais detida pela nave. Sentia-se martirizado pelo desejo de saber o que Rhodan pretendia fazer com esse veículo de luxo. Por que não solicitara um cruzador, em vez desse lindo brinquedinho? Com este iate, poderia não se sair bem numa aventura perigosa.

No porão de carga, viam-se as caixas fechadas vindas da Terra. Acontece que uma fechadura não representava nenhum problema para Gucky, o telecineta, e assim não era de admirar que o rato-castor inspecionasse o equipamento especial de Rhodan sem que isso lhe doesse na consciência.

Dez minutos depois, voltou à sala de comando da Koos-Nor e deixou-se cair no assento.

Os olhos arregalados fitaram a profusão de estrelas desconhecidas.

— Gostaria de saber o que Rhodan vai fazer num baile de máscaras — sussurrou.

 

Hellgate realmente parecia ser o portão do inferno, conforme dizia o nome. Ninguém seria capaz de imaginar um planeta mais solitário e desolado que aquele. Ali, Rhodan travara a primeira luta terrível contra Atlan, o solitário do tempo.

Hellgate...

Era um deserto de areia e rocha, inundado pelo sol e privado de qualquer vida ou esperança. Nenhuma criatura sensata conceberia a idéia de fixar-se ali, pois não havia nada com que pudesse alimentar-se. O sol solitário ficava longe de todas as rotas espaciais e tinha menos importância que uma partícula de pó suspensa na atmosfera de qualquer planeta habitado da Via Láctea.

Hellgate...

Justamente esse mundo infernal fora escolhido por Rhodan para servir de base e posição avançada contra o Império dos Arcônidas. Ninguém suspeitaria de que estivesse ali, se é que alguém soubesse da sua existência. E isso era pouco provável. Há quase seis décadas considerava-se a Terra como um planeta destruído, e todo mundo acreditava que Rhodan e sua gigantesca nave, a Titan, tivessem desaparecido.

Em Hellgate, Rhodan construiu a cúpula de aço, em cujo interior existiam condições de vida terranas. A partir dali poderia, a qualquer momento, estabelecer contato pelo hipercomunicador com os postos espalhados pelos quatro cantos do Universo. No hangar subterrâneo havia uma nave rápida, preparada para tirá-lo dali caso houvesse necessidade.

Já fazia muito tempo que se encontrava em Hellgate, mas ainda não havia atingido seu objetivo.

Exatamente a oitenta e um anos-luz ficava um sol de luminosidade débil do tipo G, que estava registrado nos catálogos dos arcônidas com o nome de estrela de Revnur. Lembrava o sol terrano e facilmente poderia ser confundido com o mesmo. Seis planetas gravitavam em torno da estrela de Revnur, mas só o segundo deles era habitado. Os aras, descendentes dos saltadores e dos arcônidas, o descobriram e colonizaram em tempos idos. Os saltadores viviam principalmente do comércio, motivo por que também eram conhecidos como os mercadores galácticos. Já os aras exerciam outras especialidades: eram os médicos galácticos, e seu meio de vida consistia na venda de soros por eles produzidos e na vigilância médica de outras raças e dos mundos por elas habitados.

Para esse fim mantinham no segundo planeta de Revnur o único zôo galáctico. Haviam descoberto um elixir da vida, e era mais que compreensível que o mesmo despertasse o interesse de Rhodan. Havia dois mutantes, John Marshall e Laury Marten, que trabalhavam como agentes em Tolimon, nome pelo qual era conhecido o planeta do zoológico. Há menos de uma semana Marshall avisara pelo rádio a existência de uma situação de grave emergência e solicitara auxílio. A partir dali tudo indicava que estava desaparecido. Todavia, Rhodan sabia que Laury conseguira retirar uma ampola do elixir da vida de um dos laboratórios dos aras.

Teria que dirigir-se pessoalmente a Tolimon, para livrar seus agentes de um perigo grave. Foi este o motivo da partida inesperada de Gucky.

A cúpula de aço estava sendo castigada pelo calor tremeluzente de Hellgate. Mas em seu interior havia um clima igual ao das zonas temperadas da Terra.

Rhodan estava no banho.

Nos dias anteriores, voltara a ouvir todas as mensagens de hipercomunicação armazenadas automaticamente por sua estação receptora. Com isso adquiriu uma visão de conjunto dos acontecimentos que se desenrolaram no interior e no exterior do Império Arcônida. O cérebro robotizado, que governava o Império, conseguira restabelecer a paz e a ordem. E a paz reinante no Império era respeitada tanto pelos aras quanto pelos saltadores. Ninguém mais falava da Terra destruída. E também um certo Perry Rhodan, que em certa época representara um perigo imenso para o Império, estava totalmente esquecido.

Rhodan sorriu e esticou o corpo. Os campos gravitacionais embutidos na banheira faziam com que levitasse sobre a superfície da água verde-azulada. O líquido brincava em torno do corpo, deixando livre apenas a cabeça. Rhodan boiava sem executar o menor movimento, gozando em cheio as delícias do banho gravitacional.

A perspectiva do vôo para Tolimon não o deixava nada satisfeito.

Já não tinha motivo para temer sua redescoberta pelo Império Arcônida, mas estava interessado em adiá-la até o momento em que conhecesse o segredo do prolongamento da vida. Por isso teria de usar um disfarce durante a visita a Tolimon.

Na sala de controle soou uma campainha e logo se ouviu um zumbido penetrante.

Rhodan fez alguns movimentos de natação e saiu da banheira. O jato de ar quente enxugou seu corpo dentro de poucos segundos. Vestiu um robe e desceu até a sala de controle. Pelos instrumentos constatou que uma pequena nave circulava em torno de Hellgate e procurava entrar em contato com sua estação.

Seria Gucky?

Dali a um minuto, a tela iluminou-se, mostrando o rosto sorridente de Gucky em tamanho natural, a começar pelas orelhas superdimensionadas, a testa enrugada, os olhos fiéis e o dente roedor reluzente. Enfim, a gola verde do uniforme espacial.

— Olá, chefe! Posso pousar?

Rhodan sacudiu a cabeça, num gesto de recriminação.

— Você está com sorte, pois por uma questão de precaução desliguei o dispositivo de defesa automático. Se não fosse assim, não encontraríamos mais nada de você.

— Você não me esperava?

Rhodan suspirou.

— Sua leviandade chega a ser lendária, Gucky. Pois bem, pode pousar. A barreira visual foi desativada; você não terá a menor dificuldade em encontrar a cúpula. Ligue os campos gravitacionais, para que a nave possa ser introduzida. Vou abrir a comporta.

Voltou a cumprimentar o rato-castor e desligou a instalação. Vestiu-se rapidamente, colocou o traje pressurizado e foi até a comporta do hangar, onde estava guardada sua nave. Dali a dois minutos pisava a areia escaldante do planeta infernal. O aparelho de refrigeração de seu traje espacial reduziu a temperatura a um nível suportável.

Gucky estava pousando.

— Fique na sala de comando! — pensou Rhodan com a maior intensidade. Sabia que o rato-castor, que era telepata, não teria a menor dificuldade em captar e decifrar seus impulsos mentais. — Ligue os campos. Levarei a nave para dentro da comporta.

Gucky compreendeu imediatamente. A Koos-Nor perdeu seu peso, tornando-se mais leve que uma folha de papel. O raio de tração de matéria permitiu a Rhodan que levasse a nave de trinta e cinco metros de comprimento para o interior da comporta, fechasse a escotilha, fizesse entrar o ar e a colocasse no hangar. Enquanto saía do levíssimo traje espacial, a pequena escotilha oval da nave abriu-se e Gucky, com um único salto, colocou-se nos braços de Perry.

— Estou tão feliz em revê-lo, chefe — chilreou num tom que quase chegava a ser carinhoso e enlaçou o pescoço de Rhodan com os braços fininhos. — Trago lembranças de todos, especialmente de Betty.

— Está bem, pequeno — disse Rhodan comovido e acariciou o amigo. Havia uma estranha amizade entre o homem mais poderoso do sistema solar e o “animal” peludo, que, além de possuir a inteligência de um homem superdotado, era o mais versátil dos mutantes. — Também estou feliz por tê-lo comigo.

— Você bem que poderia ter-me chamado mais cedo.

— Acontece que só agora surgiu a necessidade, e nem sempre podemos dar atenção aos nossos sentimentos. Trouxe tudo que eu pedi?

— Não faço a menor idéia. Quem cuidou disso foi Betty.

— Nesse caso deve estar tudo certo. Mais tarde daremos uma olhada. Vamos até a sala de comando. Ali, lhe explicarei os meus planos. Mas desde logo posso adiantar uma coisa: será um trabalho muito perigoso.

— Que bom! — disse Gucky com um sorriso e saltou para o chão. — Já me chateei bastante na Terra e em Vênus.

— Você ficará admirado — disse Rhodan com um sorriso e envolveu seus pensamentos com uma barreira, para que Gucky não pudesse ler os mesmos. Embora ele mesmo possuísse uma capacidade telepática muito reduzida, já percebera a curiosidade do amigo. Chegaram à sala de controle semicircular da cúpula e sentaram.

— Preste atenção, meu caro — principiou Rhodan. — Você já sabe que John e Laury foram enviados para Tolimon a fim de tirar dos aras o segredo do elixir da vida. Conseguiram uma garrafa do líquido, mas estão em dificuldades. Não sei o que aconteceu, mas sei que precisam do meu auxílio. Aliás, você levou muito tempo para chegar aqui.

O rato-castor fez a cara mais inocente do mundo.

— Betty disse que você só precisava de mim após decorridas dez horas. Por isso voei mais devagar que a luz e realizei apenas três transições. Não quis chegar antes da hora.

— Quer dizer que Betty levou muito ao pé da letra a minha indicação de que não precisava de mais de seis dias. Não disse que preferiria que fossem quatro ou cinco. Bem, o que passou, passou. De qualquer maneira, você está aqui. Podemos começar.

— Começar com quê?

— Com os nossos preparativos. Vamos mascarar-nos. Você não. É claro, pois isso não adiantaria nada. Por aqui ninguém o conhece. Dificilmente alguém o ligará à minha pessoa. Quanto a mim, farei o papel de arcônida, mais precisamente, o de inspetor.

— Inspetor? — perguntou Gucky, arregalando os olhos de espanto.

— Isso mesmo: de inspetor. Pelas mensagens do cérebro robotizado de Árcon captadas por nossa estação soube que o mesmo envia a espaços regulares inspetores aos diversos mundos do Império, para verificar se está tudo em ordem. Todo o poderio de Árcon está atrás desses funcionários. Quer dizer que, se eu aparecer em Tolimon na qualidade de inspetor, todas as portas se abrirão diante de mim, e as pessoas me tributarão o devido respeito. Nos últimos seis decênios, o prestígio dos arcônidas voltou a crescer. Ao que parece, a raça degenerada voltou a recuperar-se. Seja como for: você trouxe o equipamento de que preciso para mascarar-me.

— E eu?

Rhodan exibiu um sorriso matreiro.

— Tolimon é um mundo todo especial, meu caro. Costuma ser designado como o zôo da Galáxia. Ali colecionam-se principalmente seres semi-inteligentes, que já ultrapassaram a fase animalesca, mas não podem ser considerados como inteligências plenamente desenvolvidas. Donde se conclui que em Tolimon você despertará mais interesse que eu.

— Eles se interessarão por mim? — chiou Gucky, que teve um terrível pressentimento. — Quer dizer que... Essa não! Você não poderá exigir que eu me preste a um papel destes.

— Por que não? Para todos os efeitos, eu serei o poderoso inspetor de Árcon, enquanto você será um ser peludo inofensivo e de pouca inteligência, que me serve de criado. Verá como os aras se interessarão por sua pessoa. Você representa a peça que falta em seu zoológico. Por isso mesmo darão menos atenção à minha pessoa.

— Está bem. Mas será que eu terei que assumir o papel de idiota? Para falar com franqueza, não estou gostando da idéia.

— Pouco importa que você goste ou não, Gucky. A coisa é muito séria, pois não sabemos o que aconteceu com Marshall e Laury. Talvez se encontrem em grande perigo. Se aparecermos por lá, a atenção dos aras será desviada deles. E você desviará sua atenção da minha pessoa. Se tem qualquer dúvida em fazer o papel de idiota, é bom que se lembre de uma coisa: só a criatura verdadeiramente inteligente não se importa de parecer mais tola do que realmente é. Já o tolo sempre quer aparentar uma inteligência maior que a real. Isso decorre da própria natureza das coisas.

Gucky inclinou a cabeça.

— Isso é um trecho de filosofia terrana que já conheço. Mesmo assim, a perspectiva de fazer o papel de animal doméstico não é nada agradável.

— Meu animal doméstico e meu criado pessoal — completou Rhodan. — Afinal, sou um arcônida extravagante, riquíssimo. Não seja um desmancha-prazeres, Gucky. Se você não quiser entrar no jogo, terei de arrepender-me de querer justamente você.

— Por que não leva Bell? Este não precisa fingir para fazer o papel do idiota — Gucky sorriu com a lembrança, mas seu rosto logo voltou a ficar sério. — Está bem, vamos ao trabalho. Quando decolaremos com destino a esse estranho planeta zoológico?

— Exatamente dentro de dez horas. É o tempo necessário aos nossos preparativos. Ainda lhe fornecerei instruções mais detalhadas.

— O que aconteceu com Marshall e Laury?

— Pelas últimas notícias que recebemos deles, conseguiram uma amostra do soro e se encontram numa situação extremamente perigosa. É só o que sabemos. É possível que a falha seja do emissor, mas o súbito silêncio pode ter outros motivos. Não demoraremos a saber.

Gucky endireitou o corpo. Em seus olhos castanhos ainda havia um restinho de recriminação, porém já revelavam certa alegria pelo que estava por vir.

Quem sabe se a aventura afinal não seria muito divertida...

 

O sinal de despertar ressoou pela cúpula de aço.

As dez horas haviam se esgotado. Rhodan e Gucky tiveram um sono breve, mas reparador. Estava tudo preparado. A missão “mascarada” poderia ter início.

— Os inspetores de Árcon sempre costumam voar em iates de luxo? — indagou Gucky, alisando o pêlo castanho. — Aliás, sem o uniforme e o radiador de impulsos tenho a sensação de estar nu.

— Um animal estúpido tem que andar nu — ponderou Rhodan e deu uma piscadela. — E você é muito estúpido. Nunca se esqueça disso!

— Isso é uma injustiça que clama aos céus, chefe. Você tem de prometer que ninguém saberá das circunstâncias em que estamos executando esta missão; especialmente Bell. Sabe lá o que eu terei de ouvir se ele souber?

— Isso fica entre nós — tranqüilizou-o Rhodan. — Até mesmo Marshall dificilmente perceberá qualquer coisa, pois assim que o tivermos encontrado, nosso papel praticamente terá chegado ao fim. Tudo pronto para a decolagem?

Gucky confirmou com um gesto distraído. Não se fartava de contemplar Rhodan, que envergava um uniforme dourado cheio de insígnias. A estatura esbelta de Rhodan fazia com que o mesmo se assemelhasse com os arcônidas das velhas famílias dominantes. O branco dos seus olhos brilhava num tom avermelhado, graças a uma tintura de ótima qualidade, e o cabelo branco não permitia a menor dúvida de que se tratava de um arcônida de boa cepa.

— Tudo pronto! — chiou o rato-castor, acomodando-se no assento do co-piloto, ao lado de seu amigo e senhor. — Por mim, podemos começar.

— É o que vamos fazer — disse Rhodan e pôs as mãos nos controles.

A Koos-Nor, que já se encontrava fora da cúpula, ergueu-se levemente e subiu devagar. Rhodan estudara detidamente a planta de construção do iate, o que lhe permitia conhecer os menores detalhes da pequena nave. A direção da mesma era relativamente simples.

Preferiu não realizar um vôo prolongado com velocidade inferior à da luz. Ligou o compensador estrutural e com um salto colocou a nave bem no meio da Via Láctea. Um segundo impulso colocou-a perto de Árcon. Uma vez chegado lá, girou-a, desligou o compensador que o protegia da localização e saltou de volta em direção a Tolimon.

Qualquer pessoa que acompanhasse o vôo pelos rastreadores estruturais teria a impressão de que a nau se aproximava da estrela de Revnur, vinda de Árcon. Era exatamente o que Rhodan pretendia. Queria que os aras estabelecidos em Tolimon soubessem que alguém pretendia visitá-los, mas não teriam tempo de realizar qualquer investigação. A estrela de Revnur ficava a boa distância de Árcon, podendo ser comparada a uma posição avançada do Império. Era mesmo de supor que os habitantes de Tolimon não fizessem muita questão de manter contato com os arcônidas, especialmente com um dos temidos e pouco apreciados inspetores do Império.

A última transição levou a Koos-Nor diretamente para o centro do sistema dos seis planetas da estrela de Revnur. O abalo da estrutura espaço-temporal, provocado pela rematerialização, não poderia deixar de ser percebido. Por isso não era de admirar que, dentro de poucos minutos, se fizessem ouvir os primeiros chamados nos receptores de bordo.

Rhodan fez com que a nave deslizasse em direção a Tolimon com velocidade ligeiramente inferior à da luz. Dedicou sua atenção aos aparelhos de comunicação, enquanto Gucky, encolhido na poltrona, fervilhava por dentro, porque tinha de treinar o papel do animal estúpido que, de forma alguma, correspondia à sua natureza.

— Forneça sua identificação! — soou a voz potente que sobrepujou todas as outras. — Qual é o prefixo da nave?

— As coisas estão começando a ficar sérias — resmungou Rhodan e ligou o transmissor.

— Aqui fala Tristol, inspetor de Árcon — anunciou Rhodan, esforçando-se para dar à voz um tom nasal e arrogante. — Venho por ordem do regente de Árcon, a fim de realizar a inspeção de rotina. Forneça as coordenadas do pouso!

De uma hora para outra, todas as mensagens cessaram. A identificação de Rhodan devia ter sido captada e entendida por todas as naves. Até parecia que a surpresa estava deixando os tolimonenses sem fala. Provavelmente o tele-retrato da nave a essa hora já estava sendo enviado para todas as estações, e a central de identificações estaria empenhada em localizá-la e identificá-la em seus catálogos. Talvez o nome do inspetor, Tristol, também estivesse sendo procurado. Se fosse assim, o azar seria deles, pois o nome fora escolhido ao acaso. Mas devia haver muitos inspetores.

— Aqui fala a central espacial de Tolimon. Licença de pouso concedida. Pouse no campo de Trulan. Enviaremos um raio direcional sem tele-controle. Já tomamos todos os preparativos para recebê-lo. Fim da mensagem.

— Vou pousar — respondeu Rhodan e desligou o transmissor. Olhou Gucky de lado, com um ligeiro sorriso nos lábios. — Então, o que me diz? Que tal me acha no papel de arcônida?

O rato-castor fez uma cara como se alguém lhe tivesse roubado a última cenoura.

— Você está se saindo muito bem como arcônida. De qualquer maneira, está muito melhor que eu no meu papel de estúpido. Não viverei para ver chegar o fim...

— Quanto mais estúpido você for, maior será sua expectativa de sobreviver — explicou Rhodan, deixando que a Koos-Nor descesse em direção ao segundo planeta. Dali a poucos minutos teriam a decisão.

Alguns dos cientistas e líderes políticos eminentes fizeram questão de receber o inspetor no porto espacial. Haviam descido de seus veículos e, ao se aproximarem do iate, formavam uma procissão colorida. Como aras e descendentes dos saltadores, eram absolutamente humanóides; tinham o aspecto de homens assustadoramente magros. Seus trajes diferiam bastante. Os cientistas usavam capas longas e brancas, do mesmo tipo das que eram usadas pelos médicos nos planetas-hospitais. Já os políticos preferiam os uniformes e os trajes à paisana bastante coloridos. Ao que parecia, não havia ninguém que estivesse armado.

Uma vez diante da Koos-Nor, ficaram parados numa atitude de expectativa.

Rhodan observara a chegada da delegação e aproveitara a oportunidade de pedir a Gucky que observasse os pensamentos dos tolimonenses. Não percebeu nada além de expectativa curiosa misturada com um pouquinho de medo, que não tinha sua origem na consciência menos tranqüila, mas na reação perfeitamente normal de um ser inteligente que se vê diante de uma pessoa de categoria bastante superior.

— Não faça tolices — voltou a prevenir Rhodan e deu uma palmadinha no traseiro muito largo do rato-castor. — Você me seguirá assim que receber meu comando mental. Não se esqueça de que pertence à classe das chamadas semi-inteligências.

— Você quer que eu faça o papel do tolo, mas não quer que faça tolices — resmungou Gucky e escorregou do sofá para baixo. — Nem mesmo uma inteligência total conseguiria compreender o seu raciocínio. Até logo mais!

Rhodan levantou o dedo num gesto de advertência. De uma hora para outra o sorriso alegre desapareceu de seu rosto. Enquanto fez a escotilha externa abrir-se, transformou-se numa máscara de arrogância. Treinara muito bem o seu papel.

A escada foi escamoteada automaticamente e obrigou os tolimonenses, que se haviam aproximado demais, a dar alguns saltos para trás. Rhodan fez um gesto quase imperceptível em direção aos rostos voltados para cima. Desceu os poucos degraus e viu-se no solo do planeta Tolimon, que também costumava ser designado como o zôo galático.

Sem dizer uma palavra, esperava que alguém dissesse alguma coisa.

Um oficial com o peito cheio de condecorações adiantou-se, fez menção de executar uma mesura e disse num arcônida impecável.

— Bem-vindo em Tolimon, inspetor Tristol. Faremos tudo para que sua permanência em nosso mundo seja muito agradável, para que seu dever grave e pesado não se transforme num fardo excessivo. Permite que pergunte quanto tempo pretende ficar?

Rhodan lançou-lhe um olhar de desprezo.

— Isso depende das circunstâncias. Segundo consta, surgiram algumas falhas na administração do zoológico. Como inspetor tenho a obrigação de verificar o que aconteceu e relatar tudo ao regente.

— Deve ter havido um engano — disse o oficial em tom assustado e empalideceu. — Nos últimos dois decênios não recebemos qualquer queixa. Não compreendo...

Realmente não estava compreendendo, segundo constatou Rhodan por via telepática. Admirou-se de estar captando os pensamentos de seu interlocutor com tamanha nitidez. Será que Gucky estava ajudando?

— Farei uma verificação — disse, interrompendo o oficial. Com um olhar de esguelha para as outras pessoas que se encontravam por ali, disse: — Quem é essa gente? Por favor, não quero muita sensação.

— Para nós, qualquer desejo do senhor é uma ordem — apressou-se em asseverar um ara muito alto e magro. — Acreditávamos que estaríamos correspondendo aos seus desejos ao enviar uma delegação do governo para recebê-lo. Assim estaríamos em condições de saber quais são os seus desejos, e logo poderíamos satisfazê-los.

Rhodan estreitou os olhos e respondeu em tom frio:

— Quando chegar a hora, os senhores conhecerão os meus desejos. Há outra coisa que quero deixar bem clara: a alguns anos-luz daqui um couraçado do regente aguarda minhas instruções.

— O senhor não terá necessidade do mesmo — disse um dos oficiais para agradá-lo. — Somos amigos fiéis do Império e nada temos a recear. Permite que o levemos à sua residência?

— Onde fica essa residência? — perguntou Rhodan em tom arrogante.

— Na periferia da cidade de Trulan. É um palácio, senhor...

— Não desejo nenhum palácio — disse Rhodan para espanto da delegação. — Coloque um carro à minha disposição, para que eu mesmo possa procurar um alojamento. Não preciso de criado, pois trouxe o meu.

Virou-se para a escotilha e gritou:

— Gucky, venha cá!

Todos os olhares dirigiram-se para a escotilha, como se esperassem que o regente em pessoa surgisse por lá. Mas quem apareceu foi apenas o rato-castor, que disse com a voz aguda:

— Quer que leve a mala, senhor?

— Naturalmente, seu animal estúpido! — respondeu Rhodan com uma ironia insolente. — Ande depressa, para que possa ligar a barreira automática.

Gucky desapareceu; compreendera a senha. Com alguns movimentos da mão ativou a barreira que impediria qualquer criatura de penetrar na nave. Além disso, o aparelho de tele direção permaneceu em recepção. A qualquer hora Rhodan poderia trazer a Koos-Nor para junto de si, fosse qual fosse o lugar em que se encontrasse.

Finalmente Gucky pegou a mala pesada, aliviou a carga por meio de sua capacidade telecinética, saiu para a escada-passadiço e deixou-se escorregar para baixo. Atrás dele, a escotilha fechou-se automaticamente.

— Inspetor Tristol, o senhor tem um criado bastante estranho — atreveu-se a observar um dos cientistas. — Nunca vimos um animal desse tipo. Ainda não o temos em nossa coleção.

Gucky inclinou a cabeça e fez uma cara inocente e estúpida. Era de espantar que isso lhe ficasse tão fácil. Rhodan resolveu no seu íntimo que oportunamente o avisaria sobre isso. Mas no momento não havia tempo para isso.

— Vem de um planeta muito distante e completamente isolado, que descobri por acaso em uma das minhas viagens. Peguei um exemplar e descobri que é muito dócil. Acredito que meu criado Gucky merece mais confiança que qualquer outro criado, ou mesmo um robô.

— Tem alguma faculdade especial? — perguntou um dos aras em tom curioso.

— Não, mas é muito discreto e fiel — disse Rhodan. — Agora gostaria de receber meu carro. Amanhã poderemos conversar.

Olhou em torno e a algumas centenas de metros de distância descobriu um veículo. Tinha um formato estranho. Mantinha-se equilibrado segundo o velho princípio do giroscópio e corria sobre uma única roda situada no centro.

— Que tal aquele carro ali? — perguntou.

Um dos oficiais acenou fortemente com a cabeça e correu em direção ao veículo estacionado. Daí a poucos segundos, o giro parou diante de Rhodan. O oficial desceu.

— O veículo está à sua disposição, inspetor Tristol. Mas não acha que seria preferível que um funcionário o acompanhasse para providenciar um hotel condigno? Nesta cidade existem muitos estabelecimentos deste tipo e sentir-nos-emos felizes...

— Obrigado! — interrompeu Rhodan com a voz fria e passou a mão pelos cabelos brancos, num gesto de arrogância. — Prefiro permanecer incógnito e alojar-me no lugar que melhor me aprouver. Amanhã entrarei em contato com os senhores.

Cumprimentou o grupo com um ligeiro aceno de cabeça e dirigiu-se a Gucky:

— Coloque a mala no carro. Ande logo!

Gucky ficou furioso.

“Se as coisas continuarem assim, eu quero que você vá para o inferno”, pensou. Mas obedeceu.

Pegou a mala e colocou-a na cabine situada atrás do assento do motorista. Depois segurou a porta do veículo, para que Rhodan pudesse entrar. Quando viu Rhodan sentado junto aos controles bastante simples, entrou desajeitadamente.

Enquanto se afastavam, Rhodan procurou examinar os pensamentos dos membros da delegação. Desta vez Gucky funcionava oficialmente como estação retransmissora, que reforçava os impulsos mentais. Teve uma alegre surpresa que apenas um dos oficiais se interessava por ele.

Os demais espantavam-se sobre o animal tão dócil, que o pretenso inspetor transformara em criado.

— Gucky — disse com um sorriso de mofa para o rato-castor, que se acomodara, muito contrariado, junto à mala, na parte traseira do veículo. — Você tem uma carreira bastante promissora. A esta hora sua fama já é maior que a minha. Se não estou enganado, os tolimonenses estarão dispostos a pagar um ótimo preço por você. É bem possível que consiga fazer um bom negócio.

Gucky não respondeu.

Olhou tranqüilamente pela janela e, num processo heróico de auto-sugestão, pensou com toda força:

“Você tem que permanecer calmo, muito calmo, meu Gucky. Não se exalte. Rhodan não sabe o que está dizendo. Perdoe-lhe. Fique calmo, muito calmo.”

Depois de ligeira pausa mental, tornou a pensar:

“Se eu estourar, deuses do Universo, perdoem se eu sujar este carro...”

— Chega! — disse Rhodan, que evidentemente não poderia ter deixado de perceber os pensamentos de Gucky. — Até agora tudo deu certo. O resto será simples, se conseguirmos encontrar Marshall.

— Isso mesmo — dignou-se Gucky a dizer. — Se encontrarmos...

 

Graças à sua situação periférica, o planeta Tolimon era o ponto de partida de numerosas expedições intergalácticas, e por isso constituía um lugar de transbordo de primeira ordem. As fabulosas instalações do gigantesco zoológico atraíam visitantes de outros sistemas solares, e membros de todas as raças se haviam fixado definitivamente em Trulan, para passar o resto da vida num dolce far niente.

Por isso mesmo a capital Trulan transformara-se num verdadeiro cadinho, inclusive em matéria de arquitetura das construções.

Rhodan teve dificuldade em orientar-se nessa confusão de surpresas arquitetônicas. Orientava-se principalmente pelos pensamentos dos transeuntes, que praticamente não davam a menor atenção ao seu veículo. Provavelmente os aras, que o haviam cumprimentado no porto espacial, ainda não haviam anunciado oficialmente a sua chegada.

Rhodan bem que gostava que fosse assim.

Chegaram mesmo a pará-lo e pedir seus documentos. Quando o policial lançou um olhar para as credenciais muito bem imitadas e só então viu o uniforme espalhafatoso do inspetor arcônida, por pouco não abre um buraco no chão e some. Desculpou-se com um palavreado profuso e ofereceu sua assistência. Rhodan afastou-o com um gesto e voltou a colocar seu veículo em movimento. Pouco lhe importava que naquele momento quase atropela o oficial.

Num lugar afastado da rua principal, encontraram um hotel tranqüilo, meio escondido e próximo a um parque. Rhodan alugou dois quartos. Fez um depósito vultoso e deu ordem para que sua permanência no hotel ficasse em segredo. Supunha que no mesmo instante o governo descobrisse seu paradeiro, mas isso pouco lhe importava. Importava-se apenas que os aras supusessem que não fazia questão de recepções oficiais, preferindo realizar suas investigações com a maior discrição.

Uma vez no quarto, Gucky deixou cair a mala.

— Quer que lhe diga uma coisa, chefe? Para mim esse negócio já está fedendo!

Suspirando de satisfação, Rhodan deixou-se cair numa poltrona macia que ficava junto à janela, permitindo uma boa visão sobre a cidade.

— Fedendo por quê? Acho que o papel lhe fica muito bem. E eu como inspetor não me estou saindo nada mal...

— Acho que temos uma missão séria a cumprir. Onde está Marshall? O que aconteceu com ele e Laury?

Rhodan acenou calmamente com a cabeça.

— Então? Você acredita que já teríamos chegado mais longe se tivéssemos pousado aqui sem máscara e sem que estivéssemos devidamente preparados? Ninguém deve saber antes da hora que a Terra, há tanto tempo esquecida, ainda existe. Se usássemos a força para salvar nossa gente, toda a Galáxia ficaria sabendo. Por isso só podemos recorrer à astúcia.

— Astúcia para cá, astúcia para lá — queixou-se Gucky e sentou sobre a mala, pois tinha preguiça de subir na outra poltrona. — Já estou enjoado de bancar o idiota. Afinal, sou muito mais inteligente do que qualquer desses talismãs poderia supor...

— Eles se chamam de tolimonenses — retificou Rhodan.

— Está bem, está bem! — disse Gucky. — De qualquer maneira, já constatei num desses capas-brancas do espaçoporto a intenção de raptar-me e enfiar-me no zoológico. Quer que me conforme com uma coisa dessas?

— Excelente! — disse Rhodan. Parecia muito satisfeito. — Era exatamente o que eu queria. Estão começando a interessar-se por você e a esquecer minha pessoa. Alguém poderia ter a idéia de entrar em contato com Árcon para colher informações sobre o inspetor Tristol. Mas isso dificilmente acontecerá se julgarem que você é mais importante que eu.

— Eu vou para o zoológico? — perguntou Gucky em tom indignado, mas finalmente soltou um suspiro. — Está bem; concordo. Mas quando vamos iniciar a busca?

— Seria preferível perguntar por onde vamos começar. Não disponho de qualquer ponto de referência. Estavam nas montanhas, mas é perfeitamente possível que a esta hora já se encontrem na cidade de novo. Se o transmissor de Marshall estiver quebrado, teremos de tentar a via telepática. Emitiremos chamados a intervalos regulares e concentraremos a mente para captar uma eventual resposta. Dessa forma não poderemos deixar de localizar Marshall e Laury.

Alguém bateu na porta. Rhodan lançou um olhar rápido para Gucky. O rato-castor sacudiu os ombros num gesto de resignação, saltou de cima da mala e correu em direção à porta. Ao abri-la, fez uma mesura.

Do lado de fora, estavam dois aras.

Um deles usava os trajes nobres das classes abastadas, enquanto outro envergava um uniforme. Assustaram-se quando viram o rato-castor, mas quando viram a atitude submissa de Gucky logo se controlaram.

— O que houve? — disse Rhodan com uma forte dose de desprezo, — Quem se atreve a perturbar meu descanso tão merecido?

Já sabia, mas evidentemente os aras nunca deveriam saber que ele lia seus pensamentos.

— Soubemos que um inspetor de Árcon está em nosso planeta para verificar se está tudo em ordem — principiou o ara uniformizado e adiantou-se um passo. — Pensamos que fosse uma boa oportunidade de denunciar algumas das injustiças que costumam ser praticadas em Tolimon. Meu superior, o cabo Koplad, trabalha para seu próprio bolso, negligenciando seus deveres para com Árcon. Minha promoção, que já está muito atrasada, vem sendo adiada constantemente, porque todos sabem que sou amigo de Árcon. Além disso...

— Não fiz todo o caminho de Árcon para cá para resolver ninharias desse tipo — interrompeu-o Rhodan, que olhava pela janela com uma expressão de tédio no rosto. — E o senhor?

O oficial recuou perplexo e deu lugar ao outro. O paisano bem vestido perdera parte de sua autoconfiança. Já não parecia tão convencido da justiça de sua causa. Muito embaraçado, ora se apoiava num pé, ora noutro.

— Senhor — principiou em tom pouco seguro.

— Então? — perguntou Rhodan com a voz impaciente. — O assunto é importante? Seus problemas pessoais não me interessam, e não estou disposto a imiscuir-me nos assuntos internos de Tolimon. Fale somente se quiser denunciar falhas políticas de muita gravidade.

O paisano sacudiu a cabeça; parecia assustado.

— Desculpe se o incomodamos, senhor. O assunto não é tão importante assim. Desejamos-lhe uma longa vida, senhor.

Quando a porta voltou a fechar-se, Gucky sacudiu a cabeça.

— Veja só! Tenho de fazer mesuras diante de idiotas desse tipo, apenas porque sou seu criado. Não sobreviverei a isso. Quem dera que já estivesse morto!

Rhodan demorou em responder. Inclinou ligeiramente a cabeça e concentrou-se com os olhos fechados. Voltou a abri-los e fitou o rato-castor com uma expressão séria.

— É possível que seu desejo se cumpra — disse com a voz baixa. — Num lugar não muito distante, provavelmente no hall do hotel, há algumas pessoas que pretendem capturá-lo. Querem narcotizá-lo e levá-lo ao zoológico. Estão cumprindo ordens de uma autoridade bastante elevada. Se você oferecer resistência, ou se chegarem à conclusão de que é uma criatura perigosa, esses homens têm plena liberdade para matá-lo. Conforme vê, seu desejo de uma morte rápida está a caminho da realização.

Nos minutos anteriores, Gucky concentrara-se exclusivamente no seu papel de retransmissor, motivo por que não percebera o atentado que se planejara contra sua vida e liberdade.

Recuperou o tempo perdido e pôs-se a esbravejar:

— Pretendem capturar-me como se fosse um animal selvagem! E querem fazer uma coisa dessas logo comigo, o criado pessoal do venerando inspetor de Árcon! Não é uma atitude incompreensível. Será que posso... será que posso dar uma lição nesses caras, chefe? Eles merecem, não acha?

— Não há dúvida de que merecem. Mas como é que você poderia conhecer seus planos se não fosse um telepata? Receio que terá de esperar até que eles traiam suas intenções. Vamos ver se conseguimos localizar Marshall. Os domadores de animais terão que ficar para depois.

— Domadores de animais? — resmungou Gucky em tom zangado, saltou para a cama de lençóis brancos, deitou e cruzou os braços embaixo da nuca. — Se Bell souber disso, nunca mais terei um minuto de descanso. Este é o planeta da vergonha.

— Não se preocupe com os bobalhões que caíram na nossa conversa. É preferível que me ajude a procurar Marshall, Laury e Berceo. E, se estiverem pensando, devemos ser capazes de captar os impulsos de seus cérebros.

— Será que esse esquisitão chamado conde Rodrigo de Berceo também pensa?

Por um instante, uma sombra tomou o lugar do sorriso de Rhodan, mas finalmente este acenou lentamente com a cabeça.

— Acredito que sim, embora receie que não pensa em outra coisa senão em nossa boa Laury. Foi justamente isso que nos meteu na situação que estamos enfrentando.

— Está certo, está certo — filosofou Gucky. Tinha um aspecto temível. — O amor é culpado de tudo. Nunca me apaixonarei.

— Não sei em quem você poderia apaixonar-se — observou Rhodan.

O rato-castor não fez mais nenhum comentário. Passou a concentrar-se na tarefa de localizar as vibrações mentais de Marshall.

 

Rhodan fechou os olhos, descontraiu-se e reclinou-se na poltrona. Concentrou-se sobre os impulsos que estava captando, mas logo se deu conta de que só mesmo uma coincidência pouco provável poderia levá-los ao objetivo. Sentiu-se como um radioamador que procura localizar o transmissor de seu parceiro entre milhares de outros, e isso sem qualquer código.

Era impossível calcular o número de impulsos mentais que se contavam pelos milhares ou dezenas de milhares e, muito mais, identificá-los.

Em compensação Gucky conseguiu descobrir outras coisas, não menos interessantes. Os impulsos eram muito intensos e ocupavam-se principalmente com sua pessoa. Pela força, concluía-se que o autor dos respectivos pensamentos já devia encontrar-se no hotel.

— Estão chegando — disse Gucky. Rhodan arregalou os olhos de espanto, mas limitou-se a fitar o amigo de lado.

Seus pensamentos tateavam muito ao longe, sem que tivessem encontrado o menor vestígio de Marshall ou Laury.

— Quem está chegando?

— Ora, esses sujeitos que querem enfiar um inocente rato-castor em seu zoológico. Farei com que voem pela janela, mesmo que se disfarcem em funcionários do governo.

Rhodan já estava captando os mesmos impulsos.

— Você não vai fazer nada disso, meu caro. Será que você assume algum risco se deixar que o surpreendam? Não! Pelo contrário; acho que isso nos poderá ser muito útil. Talvez dessa forma você descubra alguma coisa a respeito de Marshall. Afinal, sempre podemos permanecer em contacto, e se surgir qualquer perigo você poderá recorrer à teleportação. Como vê, nada lhe pode acontecer.

— Nada, absolutamente nada — confessou Gucky em tom contrariado. — Mas não é disso que se trata.

— Então, qual é o problema?

— É a vergonha que vou passar. Eu, que sou o mais inteligente dos ratos-castores, tenho que ser mais tolo do que a polícia permite. Ao menos, a polícia terrana. É possível que por aqui as condições sejam diferentes, mas um tolo sempre é um tolo.

— Quem consegue alguma coisa fingindo-se de tolo é mais inteligente que as pessoas enganadas.

O rato-castor engoliu um bolo imaginário.

— Você tem um torrão de açúcar para qualquer remédio, por mais amargo que seja — disse. — Mas quero que me prometa que Bell nunca ficará sabendo disso.

— Já prometi — confirmou Rhodan.

— Está bem. Os aras não voarão, mas vão capturar o idiota do rato-castor que estão seguindo. Daqui a pouco, deverão chegar. Aliás, estão com um medo tremendo de você.

— Não é de admirar. Estão pensando no couraçado que posso chamar a qualquer momento. O regente robotizado deve ter tomado medidas muito enérgicas nos últimos 56 anos. Só assim posso explicar o medo que essa gente tem de Árcon.

— Já chegaram! — cochichou Gucky, e acrescentou por via telepática: — E agora, senhoras e senhores, terão a oportunidade de ver Gucky, a estrela de fama mundial, no papel do idiota. O show vai começar.

Realmente começou.

Alguém bateu à porta. Rhodan voltou a exibir sua cara pretensiosa de arcônida, fez um gesto preguiçoso para Gucky e disse de maneira suficientemente alta para ser ouvido do lado de fora.

— Gucky, dê uma olhada para ver quem se atreve desta vez a perturbar meu sossego. Ao que tudo indica, Tolimon é um planeta muito tumultuado, ou então estão ansiosos para que eu inicie imediatamente as minhas investigações.

Gucky arrastou-se até a porta, fez uma cara desavergonhadamente ingênua e abriu. A mesura que executou foi muito esquisita. Três homens entraram no recinto. Não deram a menor atenção ao rato-castor, embora seus pensamentos girassem exclusivamente em torno do mesmo. Adiantaram-se alguns passos e pararam diante de Rhodan. Inclinaram-se num gesto de veneração.

— Pedimos muitas desculpas — disse o homem do meio, puxando o paletó colorido numa atitude de embaraço. — Talvez estejamos sendo importunos, mas...

— Não os chamei; logo, só podem ser importunos — confirmou Rhodan numa tranqüila arrogância, que provavelmente teria causado pavor em qualquer dos seus amigos. Gucky continuava a fazer mesuras, para que ninguém pudesse ver seu rosto risonho.

— Trata-se... trata-se dum convite do governo — prosseguiu o ara, que parecia mais assustado que embaraçado. — Hoje será realizada uma recepção de gala para o alto inspetor de Árcon. Queremos pedir sua presença.

Rhodan examinou os pensamentos da pessoa que lhe dirigira a palavra e descobriu a intenção de seqüestrar Gucky enquanto estivesse ausente do hotel. Um comando especial de captura já estava a caminho. Reclinou-se ligeiramente e fez como se tivesse que refletir.

— O chefe do governo também comparecerá à recepção? — indagou.

— Naturalmente, meu senhor. Foi ele que deu a idéia, e sentir-se-á muito honrado se o senhor quiser participar da recepção.

— Quando será?

— Bem... naturalmente virão buscá-lo, meu senhor. Logo após o pôr do sol.

— Muito bem. Comparecerei. E meu criado?

O ara parecia assustado.

— Seu criado? O que quer dizer com isso?

— Também está convidado?

— É claro que não. Só personalidades de categoria elevada comparecerão à recepção. Ninguém levará seu criado.

— Ah, sim. Nesse caso meu criado ficará no hotel.

Os três enviados conseguiram dominar-se muito bem. Não fizeram nenhum gesto que pudesse revelar o contentamento provocado pela decisão que Rhodan acabara de anunciar. Em compensação, os pensamentos recônditos deles eram dos mais triunfantes.

Gucky, que se mantinha junto à porta, parecia ter esquecido seu triste papel. O rato-castor percebeu que tinha de esforçar-se para manter o dente roedor sob controle e reprimir a alegria que a brincadeira começava a causar-lhe. Afinal, não era todos os dias que capturavam “pessoas” para fins de internamento num zoológico. Ao que tudo indicava, já se esquecera do aborrecimento que essa perspectiva lhe causara dez minutos antes.

— O carro chegará pontualmente — disse o ara que se encontrava no centro do grupo. A seguir, os enviados retiraram-se em meio a inúmeras mesuras, lançando um olhar guloso sobre o rato-castor.

Gucky fechou a porta e riu baixinho.

— Hi-hi, que idiotas. Já estão me vendo na sua rede.

— E você entrará na rede deles — enfatizou Rhodan. — Não se esqueça do que combinamos. Irei à festa, mas ficarei apenas uma hora. Usarei uma desculpa qualquer para despedir-me e voltarei imediatamente ao hotel. Faço votos de que até lá os seus seqüestradores tenham concluído sua tarefa com pleno êxito. Permaneceremos em contato. Naturalmente darei pela sua falta e darei o alarma. Vejamos o que acontece depois disso.

— O que pode acontecer? Aquela gente não saberá de nada e procurará inventar uma desculpa.

— Em compensação acho que você ficará sabendo de alguma coisa. Talvez você entre em contato com as mesmas pessoas que perseguiram Marshall e talvez tenham chegado a capturá-lo.

— Veremos — disse Gucky. — Apenas quero avisar uma coisa. Se tentarem trancar-me numa jaula, darei o fora.

— Talvez você possa dar o fora antes disso, Gucky. Tudo depende das circunstâncias.

— Hum — fez o rato-castor e subiu para o sofá baixinho que se encontrava num canto. — Veremos. De qualquer maneira hoje você terá o mais tolo dos ratos-castores de todo o Universo.

— Faço votos de que seja assim — disse Rhodan com um sorriso e voltou a esforçar-se para localizar Marshall e Laury Marten.

 

Depois de Rhodan ter saído, Gucky viu-se só e começou a preparar-se para a aventura que o esperava. A rigor, não via no acontecimento uma aventura, mas antes uma brincadeira, no que não deixava de ter sua razão. A expedição de captura não lhe traria maiores perigos, desde que se mostrasse bastante submisso e estúpido.

Os primeiros impulsos surgiram menos de dez minutos depois. O seqüestro sem dúvida fora bem preparado e estava sendo realizado com o consentimento dos escalões mais elevados do governo, o que não era de admirar. Para os aras estabelecidos em Tolimon não havia problema mais importante que a obtenção de seres vivos adequados às suas experiências. O zoológico desempenhava uma função puramente de acessório, pois destinava-se como atração e ponto de encontro de turistas que trouxessem dinheiro.

Cinco homens exibiram suas credenciais ao dono do hotel. Gucky seguiu a palestra com o maior interesse e voltou a certificar-se de que a porta não estava trancada. Subiu ao sofá e estendeu-se confortavelmente sobre o mesmo, agindo exatamente da forma como um criado costuma agir quando o senhor não está em casa. Ao menos muitos criados costumavam agir dessa forma.

Fechou os olhos e fez de conta que estava dormindo.

Os cinco homens pararam diante da porta e prepararam-se para arrombar a fechadura caso a vítima não se dispusesse a abrir. Mas um deles fez uma tentativa e constatou que a porta não estava trancada.

— Que animal ingênuo! — cochichou e foi entrando. — Para mim não serviria como criado; é muito leviano e estúpido.

“Você verá uma coisa!”, pensou Gucky e continuou a fazer de conta que dormia profundamente. “Não tenha a menor dúvida! Basta esperar.”

A alegria que a perspectiva lhe causava fez com que se empenhasse ainda mais na execução do seu papel. Esperou calmamente que os cinco homens entrassem e fez de conta que estava acordando. Piscou os olhos castanhos, abriu-os de vez e contemplou os intrusos com uma expressão de espanto. Viu que um deles carregava um radiador de impulsos, que era um artefato mortífero. Contavam com alguma resistência. Bem, estavam enganados.

— Boa noite — disse Gucky com a voz aguda. — Infelizmente meu senhor, o alto inspetor, saiu. Posso ser-lhes útil em alguma coisa?

Um dos captores de animais foi à porta e saiu para o corredor. Um instante depois, voltou com uma caixa gradeada. Um sorriso gentil brilhava em seu rosto astucioso.

— Não queremos falar com seu amo — disse em tom suave. Provavelmente estava interessado em captar a confiança de Gucky. — Apenas queremos pedir que venha conosco.

— Para onde? — perguntou Gucky com a cara mais inocente do Universo. — Não posso sair do hotel sem licença de meu dono.

— Seu dono já foi avisado — disse outro dos aras com ligeira recriminação na voz. — É claro que concorda em que você seja apresentado ao Conselho Científico de Tolimon, que nunca teve oportunidade de examinar um animal inteligente como você.

— Querem levar-me numa jaula? — disse Gucky, apontando com cara de nojo para a caixa gradeada. — Acham que sou alguma fera?

— Bem... é... é por causa do povo — gaguejou outro e adiantou-se rapidamente, para segurar o “objeto de experiências” tão cobiçado, pela nuca. — Não queremos que seja molestado.

Gucky esforçou-se para não explodir. Em condições normais, aquele sujeito desavergonhado teria sido atirado para o teto por meio da energia telecinética. Mas nada lhe aconteceu. Um tanto assustado e totalmente desorientado, o rato-castor ficou agachado sobre o sofá e não ofereceu a menor resistência quando foi levantado.

— É um lindo exemplar — disse um dos homens e abriu a caixa. — Enfie-o logo nesta jaula, antes que mude de idéia. O inspetor acreditará que saiu e se perdeu pela cidade.

Um impulso bastante violento colocou Gucky no interior da jaula, cuja porta logo se fechou. Os captores já se sentiam seguros, e deixaram cair as máscaras.

— Vamos embora logo! — disse um deles em tom apressado. — Quando esse arcônida voltar, não deverá encontrar qualquer pista.

— Vocês não disseram que o inspetor está a par? — chiou Gucky, fingindo-se de assustado. — Não acham que estão me dispensando um tratamento bastante estranho?

— Cale a boca! — gritou um dos aras, o que representou outra provação dura para Gucky. Seria fácil libertar-se, mas não devia fazê-lo. Devia bancar o fraco, a criatura incrivelmente estúpida. Como é que Rhodan foi exigir uma coisa dessas?

Os homens cobriram a jaula com um pano preto e saíram do quarto. Uma vez no corredor, foram andando mais depressa, passaram pelo hall de recepção sem que ninguém os detivesse e saíram à rua. Gucky sentiu que a jaula foi colocada num carro com um movimento nada suave. Poucos segundos depois, o veículo foi colocado em movimento. Os homens não diziam mais nada, mas seus pensamentos eram bastante reveladores para Gucky.

Foi levado ao Ministério Zoológico. Sabia que o zôo era uma instituição estatal submetida a um ministério especial, no qual trabalhavam principalmente médicos e cientistas. Talvez também houvesse alguns psicólogos. Ali seria examinado e interrogado, antes de ser levado para a área cercada.

Área cercada! Gucky sorriu, a fim de aplacar a cólera. Para ele não havia o menor perigo, mas ficar bancando o idiota... E logo Gucky, que sempre encontrara o maior prazer em demonstrar sua superioridade às inteligências humanóides. E agora via-se obrigado...

Era de estourar!

A viagem foi bastante demorada. Pelos pensamentos de seus acompanhantes concluiu que o museu ficava na área periférica da cidade, onde esperavam realizar as experiências necessárias sem que ninguém os perturbasse. Ainda constatou que as intenções de quem concebera o seqüestro no fundo não eram más. Desconfiavam de que o inspetor jamais cederia espontaneamente seu criado tão engraçadinho, mas estavam loucos para trancafiar esse exemplar raro e semi-inteligente no zoológico. Um rato-castor que sabia falar seria uma verdadeira sensação. Talvez conseguissem mesmo saber onde ficava o planeta de origem desse animal tão estranho. Uma coluna dessas criaturas seria...

Os aras se perdiam nas suas fantasias. Gucky bem que estava satisfeito por estar oculto sob o pano negro. Só assim ninguém via seu sorriso galhofeiro.

Ainda mostraria algo a eles. Logo que pudesse.

 

Para Rhodan não foi muito fácil acompanhar o seqüestro de Gucky enquanto conversava com os políticos mais influentes de Tolimon. Não demorou muito. Logo se despediu. Desculpou-se com o cansaço da viagem, dizendo que precisava repousar. Uma vez que, naquela altura, o comando de captura já se apoderara do rato-castor, não lhe opuseram maiores dificuldades. O carro levou-o de volta ao hotel.

Conforme o programa, sentiu falta de seu criado e perguntou ao pessoal do hotel se não o haviam visto. Mas todos, inclusive o gerente, afirmavam de pés juntos que não haviam notado nada de suspeito.

Rhodan aguardou mais trinta minutos; depois avisou a polícia. Esclareceu que seu criado não costumava sair de hotel sem permissão. Exigiu energicamente uma operação de busca para localizar a criatura desaparecida.

A polícia prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance. Era claro que estava mentindo; agia de comum acordo com os seqüestradores.

A seguir Rhodan deitou na cama, depois de ter trancado a porta e colocado o radiador de impulsos portátil embaixo do travesseiro.

Voltou a dedicar-se à tarefa, bastante difícil face à potência reduzida de suas faculdades telepáticas, de localizar os impulsos mentais de Marshall, sem esquecer o contato com Gucky.

Naquele instante Gucky encontrava-se diante dos seus examinadores.

 

A sala reluzia de limpeza.

As luzes ofuscantes embutidas no teto branco iluminavam até o último canto, não permitindo que surgisse qualquer sombra. Atrás da mesa em ferradura, estavam sentados treze homens de capas brancas, que era o traje profissional dos aras. Todos os olhares estavam dirigidos para o pequeno prisioneiro, que os contemplava com o rosto muito ingênuo. Nos fundos da sala dois homens equipados com radiadores paralisantes mantinham-se à espreita. Vigiavam a única saída da sala.

O homem que se encontrava no centro usava barba. Daí concluía-se que era um mercador galático. Inclinou-se para a frente e lançou um olhar penetrante sobre Gucky.

— Você é o criado do inspetor de Árcon? — perguntou.

— Sou, sim — piou Gucky, assustado, embora sua alma estivesse fervendo. — Meu senhor lhes dirá o que acha do procedimento de quem seqüestra seu criado.

— Nós perguntamos e você responde! — interromperam-no. — Onde aprendeu o arcônida? Será que em seu planeta nativo falavam a língua do Império?

— Foi meu senhor que me ensinou.

— Quer dizer que sua língua não é esta?

— É claro que não. Costumamos comunicar-nos por meio de uma série de assobios melódicos. Um tom extremamente agudo, por exemplo, indica uma grande excitação, enquanto um zumbido...

— E seu planeta nativo? — interrompeu o barbudo, que não parecia estar muito interessado na linguagem de assobios dos ratos-castores. — Você pode descrever a situação do mesmo?

Gucky acenou com a cabeça; parecia muito seguro de si.

— Naturalmente. Um pouco à direita do saco de carvão.

— Heim? — o barbudo inclinou-se para a frente, com os olhos arregalados. Seu rosto era de interrogação. — O saco de carvão? O que vem a ser isso?

Gucky leu os pensamentos de seu interlocutor e percebeu que os aras costumam designar as nuvens escuras como poeira de absorção. Mas não tinha a menor intenção de ajudá-los. Que quebrassem a cabeça para descobrir o sentido da expressão terrana, que para eles era totalmente desconhecida.

— Um saco de carvão — disse em tom solene — é um saco de carvão. Será que me exprimi com suficiente clareza?

O barbudo sacudiu a cabeça.

— Precisamos de dados mais exatos. Vamos apagar a luz e mostraremos um mapa estelar visto de Tolimon. Você nos mostrará onde fica seu planeta nativo.

A escuridão tomou conta da sala e a imagem reduzida, mas exata, do céu estrelado, surgiu no teto. Muito satisfeito, Gucky percebeu que as áreas escuras estavam fielmente reproduzidas. Soltou um grito de triunfo e apontou para o alto.

— Ali, o saco de carvão. É à direita do mesmo.

Quinze pares de olhos fitaram a projeção à procura do saco de carvão, sem que soubessem o que era um saco de carvão. Mas suas reflexões logo foram interrompidas por um assobio estridente de Gucky, que soltou uma exclamação:

— Não, é o outro! Ali à esquerda, no canto! — depois de uma ligeira pausa: — É possível que seja o do meio. Não sabia que existem tantos sacos de carvão.

— Provavelmente os sacos de que você fala são as nuvens de absorção — conjeturou cautelosamente o barbudo. — É claro que sua raça não dispõe de qualquer treinamento científico, mas de qualquer forma vocês possuem certo quociente intelectual.

— O que é isso? — perguntou Gucky, levantando uma das orelhas. — Nunca me disseram que nós temos uma coisa dessas.

Dois ou três dos aras riram às escondidas. Houve uma ligeira pausa, que Gucky aproveitou para pensar intensamente:

— Ei, Rhodan. Está ouvindo? Isto não é divertido a valer?

A resposta surpreendeu Gucky.

— Deixe de palhaçadas e procure descobrir alguma coisa a respeito de Marshall e Laury. Use de habilidade, formulando certas perguntas...

— Como é que um idiota como eu pode usar de habilidade...?

Rhodan não enviou nenhuma resposta, pois o barbudo interrompeu a palestra mental.

— Como é que você foi parar em mãos dos arcônidas? Foram buscá-lo no seu mundo?

Gucky deixou cair a orelha.

— Quem dera que eu soubesse... Faz tanto tempo!

— Quanto tempo?

As luzes voltaram a acender-se, mas a projeção do céu noturno não desapareceu do teto. Subitamente, a voz do barbudo demonstrou muito interesse. Gucky percebeu que essa seria a chance de levar os pensamentos dos inquisidores ao tema que o interessava.

— Quanto tempo? — murmurou, fitando os olhos dirigidos para ele com uma expressão de ingenuidade. — Devem ser algumas centenas de anos.

— Você já é tão velho?

— Velho por quê? — perguntou Gucky com um enorme espanto na voz. — Sou um jovem, sou um rapaz, se me permitem essa palavra. As moças de todos os mundos que o inspetor e eu costumamos visitar...

O barbudo não estava interessado nas moças. Tinha outros problemas.

— Será que no seu mundo todos atingem essa idade?

— Naturalmente. Vocês não chegam aos mil anos?

O barbudo respirava com dificuldade. Arregalou os olhos para o rato-castor. Os outros aras também pareciam muito assustados. Seus pensamentos estavam cheios de perguntas tão diversificadas que Gucky não pôde absorvê-los todos ao mesmo tempo. Fazia votos de que Rhodan estivesse escutando e ajudasse.

— Mil anos...? — o barbudo esforçou-se para aparentar calma. — Descobriram algum elixir que prolonga a vida?

Foi a vez de Gucky mostrar-se espantado.

— Um elixir? Para quê? Mil anos bastam, especialmente para mim, que sou um simples criado. Depois de minha morte meu senhor, o inspetor, terá de procurar outro criado, e depois...

— O quê? — berraram dois ou três aras ao mesmo tempo, enquanto empalideceram visivelmente. — Seu amo também vive tanto tempo? Não é arcônida?

Gucky sentiu que quase chegara a cometer um erro. Esforçou-se para adquirir um aspecto ainda mais estúpido.

— O que poderia ser se não isso? — perguntou em tom ingênuo.

O barbudo não respondeu. Pensou: “Será que anteriormente alguém veio a Tolimon e roubou o soro, tal qual fez esse saltador que conseguiu escapar? Ou a moça que estava com ele? Ou será que outras inteligências realizaram pesquisas e chegaram ao mesmo resultado?”

Gucky suspirou aliviado. Era a primeira indicação relativa a Marshall. Acontece que, ao que tudo indicava, os próprios aras não sabiam onde o mesmo se encontrava naquele instante. Quer dizer que toda a encenação fora inútil. Ou será que não?

— Você, que acompanha o inspetor para todos os lados, tem visto muita coisa nesta Galáxia — voltou a falar o barbudo. — Vocês costumam visitar todos os mundos do Império e, conforme diz, vêm fazendo isso há vários séculos. Já encontraram algum mundo habitado por humanóides cujo grau de evolução fica no nível C?

Gucky aguçou o ouvido. O mundo ao qual se referia era a Terra! A Terra, com a classificação que lhe caberia há duzentos ou trezentos anos. Categoria C. Foi no século XVII que uma das naves por acaso encontrou a Terra e raptou alguns homens, que foram trancados no zoológico, onde ainda viviam. Apenas o conde Rodrigo de Berceo conseguira fugir com o auxílio de Marshall.

— Humanóides do nível de evolução C? — repetiu Gucky e parecia refletir atentamente. Depois de algum tempo, sacudiu a cabeça. — Não; tenho certeza que nunca encontramos um mundo destes. Por quê? Será que este mundo existe?

Mais uma vez não obteve resposta, mas os pensamentos dos aras revelaram o que precisava saber.

Sim, um mundo destes já existiu, há algumas centenas de anos. Haviam-no encontrado e por uma série de circunstâncias infelizes as coordenadas foram perdidas. Todavia, haviam trazido quatro exemplares daquela raça primitiva, que receberam o soro revitalizador e foram trancados no zoológico. Um deles fugira. Malditos saltadores! Que interesse poderiam ter naquele prisioneiro? Seria por causa do elixir da vida? Só pensavam em negócios...

Não houve a menor indicação sobre o lugar em que Marshall se encontrava no momento. Os aras haviam perdido as pistas dos fugitivos. Parecia que tinham desaparecido da superfície de Tolimon.

Gucky aproveitou a pausa e “chamou” Rhodan:

— Está ouvindo, chefe? Estamos bem perto, não é? Não podemos chegar mais perto. Já posso dar o fora?

— Nada disso, meu caro! O que pensarão esses caras se você se dissolver no ar sem mais aquela? Aguarde outra oportunidade.

— Está bem; vou aguardar. Mas não aguardarei muito tempo. Prefiro procurar Marshall e Laury numa série de saltos de teleportação que cubra todo o planeta. Antes isso que ser considerado o maior idiota do Universo. Fim. A coisa vai continuar...

Se Gucky pensava que poderia descobrir outra coisa, estava enganado.

— Acho que podemos dispensar o teste de inteligência — disse o barbudo, dirigindo-se aos colegas. — Sugiro que seja incluído na classe C. Só falta o exame médico, que fica marcado para amanhã. Ei, guarda! Leve o prisioneiro à jaula.

Dirigindo-se a Gucky, acrescentou:

— Aqui você será tratado muito bem.

Com estas palavras levantou-se, dando o sinal para a debandada geral. Não deu mais um olhar sequer para o rato-castor e parecia tê-lo esquecido por completo. Gucky viu os dois guardas aproximarem-se e sentiu quando o seguraram pelos braços e o levaram. Não deu a menor atenção a isso. Ainda notava o barbudo, que o tratara com tamanho desprezo, vendo nele apenas um animal mais evoluído.

Pensou fazendo uma reflexão: “Quem sabe se amanhã a situação será tão favorável, se é que ainda estarei aqui. Uma pequena lição não lhe faria mal. O importante é que a suspeita não caia em mim.”

O que poderia fazer? Não dispunha de muito tempo.

Gucky não era nenhum hipno; não podia impor sua vontade a ninguém. Mas dominava muito bem a telecinese, e com ela poderia fazer alguma coisa.

Ao lado do barbudo caminhava outro ara, que conversava animadamente com os colegas. Subitamente enfiou a mão no bolso. Uma expressão de espanto surgiu em seu rosto, tirou uma tesoura e cortou a longa barba grisalha do chefe da comissão de investigações. O movimento foi tão rápido que ninguém pôde impedi-lo, especialmente o homem que o executara. Também o chefe geral ficou tão perplexo ao ver a dignidade de seus anos cair ao chão que pisou nela antes de compreender o que havia acontecido.

Estacou repentinamente e viu o colega desavergonhado guardar a tesoura, após o quê, começou a tremer por todo o corpo.

— Gragnor! — berrou com uma voz terrificante o homem que já não era barbudo. — O que é que o senhor está pensando? Será que ficou louco? Irei...

— Misericórdia, Kluhg! — choramingou o barbeiro improvisado, totalmente abatido, e caiu de joelhos. — Não sei como pôde acontecer uma coisa destas. O espírito mau deve ter segurado minha mão e...

— Quando muito o espírito mau perturbou sua inteligência. Está dispensado. Providenciarei para que seja devidamente punido — a mão tateou sobre os restos da barba. — A divisão de laboratório ficará satisfeita em receber um novo objeto de experiências...

Virou-se de repente e saiu andando, deixando para trás Gragnor, totalmente demolido, e os outros aras, que não cabiam em si de espanto.

Gucky deixou que o levassem; não ofereceu a menor resistência. Ficou com os lábios cerrados. O rosto parecia o de um pobre pecador que está sendo levado ao cadafalso sem reconhecer a menor parcela de culpa.

A cela era um cubículo com um banco de madeira, uma mesa frágil e uma abertura gradeada, que devia ser o fim de um conduto de ventilação. Quando os dois guardas trancaram a porta do lado de fora, a luz apagou-se.

Gucky suspirou e procurou localizar Rhodan; logo descobriu os impulsos mentais do chefe. Poucos segundos depois, materializou-se no quarto de hotel.

— Faça o que quiser, mas não voltarei àquele buraco — disse a Rhodan, que estava mudando de roupa. — Quero que esses idiotas quebrem a cabeça para descobrir como fiz para fugir.

Rhodan não se perturbou. Vestiu o pijama.

— Nem quero que você volte. Descobrimos tudo que eles sabem. Uma coisa é certa: nossos agentes não estão em suas mãos. Marshall e Laury devem encontrar-se em algum lugar neste planeta ou então... estão mortos. O fato de que não conseguimos captar nenhum pensamento deles deixa-me bastante preocupado.

— Amanhã iniciarei a busca — prometeu Gucky e bocejou ao ver o sofá do qual os seqüestradores o haviam retirado. — Seria ridículo se não conseguíssemos descobrir nenhuma pista.

 

Depois da noite tranqüila e do desjejum reforçado, Rhodan se fez anunciar às autoridades e disse que pretendia realizar uma inspeção na administração do zoológico.

Quando o carro chegou para levar Rhodan ao centro da cidade, Gucky deu início à busca.

Saiu do hotel e ficou passeando pela rua, vestido apenas na sua pele natural. Trulan era um ponto de encontro de todas as raças da Galáxia, e por isso não era de admirar que ninguém lhe desse muita atenção. Naquela confusão de criaturas estranhas, o rato-castor não despertava maior atenção que a provocada por um bassê peludo numa exposição de cães. Havia os berenícios, que eram quadrúpedes com corpo de inseto provido de uma blindagem formada por placas quadráticas, que demonstravam certa predileção pelas cores vivas; os respiradores de cloro de Gradosima, que se moviam em trajes espaciais fechados e tratavam os transeuntes com uma arrogância assustadora. Gucky também se encontrou com os gatos-panteras do sistema de Sagitário; fugiu apressadamente, pois não sabia como os mesmos reagiriam diante de sua figura.

Os aras e os saltadores não lhe davam a menor atenção. Para eles, a visão de inteligências estranhas não tinha nada de extraordinário, e poucos deles haviam posto os olhos no criado pessoal do inspetor.

Gucky mantinha a mente em recepção, a fim de sondar os pensamentos de todos os seres que encontrava pelo caminho. Encontrou muita coisa que numa situação diferente o teria divertido bastante, mas hoje não tinha tempo para isso. Uma única vez intrometeu-se nos assuntos internos de Tolimon. Foi quando descobriu intenções assassinas num ara muito robusto. O sujeito pretendia matar a esposa. Gucky obrigou o homem, por via telecinética, a dar uma vigorosa bofetada no oficial de patrulha mais próximo, o que levou este a prender o ara.

Por enquanto o preso não poderia transformar suas intenções em realidade, e quando fosse solto a raiva que sentia pela esposa provavelmente já teria se desvanecido.

Satisfeito com a boa ação que acabara de praticar, Gucky prosseguiu em sua caminhada.

Chegou às áreas mais pobres e começou a sentir os pezinhos. Não tinha a menor predileção por passeios extensos. Gostaria de teleportar-se para o telhado de uma das casas, a fim de recuperar-se da canseira. Mas não havia a menor dúvida de que um rato-castor voador provocaria certo escândalo. Por isso continuou a arrastar os pés, até encontrar lugar num restaurante.

Se Marshall dispusesse de um esconderijo na cidade, este deveria ficar na área dos cortiços, onde seria mais fácil mergulhar na multidão. E Marshall não poderia dispensar um esconderijo, pois não sabia colocar-se em segurança por meio de um salto, conforme costumava fazer Gucky.

Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas Gucky teve sorte. Encontrou lugar junto à parede. Pediu um prato de legumes e um suco de frutas. Só comia carne quando alguém o obrigasse a isso.

Alguns dos freqüentadores lançaram olhares curiosos em sua direção. Já haviam visto muitas criaturas estranhas, mas nunca se tinham deparado com um rato-castor. Gucky respondeu com um sorriso gentil; leu apenas uma curiosidade inocente nos pensamentos dos outros. Passou a dedicar-se às verduras e frutas de Tolimon, que lhe causavam um agrado extraordinário. Era outra coisa bem diferente que as eternas cenouras, que já o deixavam enjoado face às constantes apostas em que costumava ganhá-las.

O sol brilhava e espalhava seus raios tépidos. Nenhuma nuvem cobria o céu azul, que lembrava o do planeta Terra. Por um instante Gucky esqueceu suas preocupações, até que um incidente despertou sua atenção.

Na mesa ao lado alguns aras juntaram-se e puseram-se a cochichar, apontando nervosamente para a rua, onde dois transeuntes muito estranhos deviam ter despertado sua atenção.

Gucky procurou enxergar melhor.

Eram duas criaturas de ao menos seis metros de altura, que se pareciam com gigantescos vermes. O que mais chamava a atenção eram as numerosas pernas, muito curtas, sobre as quais se locomoviam à maneira das centopéias terranas. O terço anterior do corpo estava levantado. Possuíam cabeça de inseto e, logo abaixo da mesma, dois vigorosos braços preênseis.

Eram froghs!

Os aras os usavam como guardas do zoológico. Se um dos ocupantes tentasse a fuga, os froghs entravam em ação. Usando todas as pernas, chegavam a atingir a velocidade de duzentos quilômetros por hora. Marshall transmitira informações a respeito desses guardas depois que ele, Laury e o conde libertado haviam escapado à sua perseguição.

O que estariam fazendo os froghs na cidade, e logo neste bairro mal-afamado?

Gucky levantou-se um pouco para contemplar as estranhas inteligências mais de perto. Sabia que eram capazes de falar. Logo, em sua mente havia pensamentos lógicos.

Gucky “ligou” a telepatia.

Estavam à procura de três humanos. Era um saltador, que lhes causara muitas dificuldades, uma bela mulher que roubara um recipiente de vidro com o elixir da vida e um prisioneiro fugido, que havia sido retirado do zoológico pelas pessoas já referidas.

Eram Marshall, Laury e o conde!

Gucky acabara de descobrir a pista!

 

Tratar de qualquer assunto com as autoridades sempre é uma coisa muito enfadonha; Rhodan descobriu isso durante a primeira hora. O Ministério Zoológico, situado na periferia da cidade, era uma verdadeira mina de atas e formulários. Os registros abrangiam cada uma das regiões em que se dividia o parque natural situado na estepe e cercado por montanhas. Havia dados sobre a origem, modo de vida, hábitos e características médicas de cada ocupante do zoológico. Também as experiências realizadas com todos eles haviam sido registradas com a maior precisão.

Rhodan realizou um exame por amostragem e, quanto ao mais, exibiu uma arrogância tão irritante que a raiva dos tolimonenses por Árcon crescia a cada minuto. Estava convencido que um eventual sucessor seu não teria vida nada fácil no planeta. No entanto, os funcionários mantiveram uma cortesia inalterada, embora por dentro desejassem que o espia nojento fosse para as profundezas do inferno.

Pelo meio-dia, fez uma pausa e pediu que o carro o levasse à cantina dos funcionários do ministério. Reservaram-lhe uma mesa, na qual poderia tomar sua refeição sem que ninguém o perturbasse. E, em virtude do caráter interestelar de Trulan, serviram-lhe uma coisa realmente comestível.

Estava na hora de entrar em contato com Gucky. Procurou e logo sentiu os sinais que lhe chegavam. Não era muito fácil concentrar-se em meio aos numerosos freqüentadores da cantina, que o contemplavam com uma expressão de respeito.

— Sim, Gucky, tenho o contato. O que houve?

— Encontrei a pista. Dois froghs estão à procura de Marshall. Acreditam que se encontre na cidade. Conhecem o lugar em que costumava permanecer.

— Onde está você?

— Na área dos cortiços. Será que Marshall já morou aqui?

— Procure descobrir. Talvez consiga alguma indicação.

— Combinado, mestre. Como vai você?

— Obrigado. Sinto-me satisfeito por não ser um funcionário público.

No cérebro de Rhodan, surgiu a imagem do dente roedor de Gucky, o que significava que o mesmo se divertia a valer. Depois disso o contato telepático cessou.

 

Os dois froghs deslocavam-se velozmente pelas ruas sinuosas. Gucky teve que esforçar-se ao máximo para segui-los no seu andar arrastado. Praguejou violentamente porque não lhe era permitido teleportar-se. Se o fizesse, não poderia deixar de chamar a atenção. Em todos os lugares os transeuntes, atemorizados pela visão dos guardas do zoológico, comprimiam-se contra as paredes dos prédios e suspiravam aliviados depois que os froghs passavam. Ao que tudo indicava ninguém tinha a consciência tranqüila, mas Gucky não conseguiu descobrir por que todo mundo temia as centopéias. Talvez o simples aspecto dos froghs incomodasse as pessoas.

Subitamente os froghs pararam.

Gucky não entendia sua língua, mas podia ler seus pensamentos, que não dependiam da linguagem. Por isso conseguiu acompanhar a conversa que se desenrolava do outro lado da rua.

— Se nossas informações são corretas, deve ser por aqui.

— Vamos dar uma olhada e perguntar aos moradores dos prédios. Talvez um deles tenha visto os três.

— Está bem. Começarei por esta coisa. Você pode pegar o outro lado.

Separaram-se.

Gucky parou. Seus pêlos arrepiaram-se quando um dos froghs atravessou a rua estreita, lançou-lhe um ligeiro olhar desconfiado e desapareceu num dos prédios, para iniciar a busca.

Deviam ter encontrado uma pista de Marshall, embora Gucky tivesse certeza de que o Chefe dos mutantes não se encontrava nas proximidades, pois do contrário teria captado seus impulsos mentais. Provavelmente a pista que os froghs estavam seguindo era falsa.

Mas, por que não realizar as investigações por sua própria conta?

Não hesitou. Desmaterializou-se, pois esperava que os poucos transeuntes estivessem ocupados em observar os froghs e por isso não lhe dariam a menor atenção. Concentrou-se num trajeto reduzido e viu-se num quarto escassamente mobiliado, bem às costas de uma mulher pobremente vestida, que mexia numa panela.

Deu outro salto, subindo mais um andar.

Nada.

Depois de ter dado vinte saltos, acabou num depósito desabitado. Aproveitou a oportunidade para descansar um pouco. Evidentemente aquela busca ao acaso não passava de absurdo rematado. Mas Marshall e a moça ainda há pouco deviam ter morado numa casa situada naquela rua, a não ser que os froghs fossem uns idiotas.

Gucky suspirou e deu outro salto.

Uma hora depois, materializou-se numa mansarda situada no décimo quinto andar. Estava vazia e, ao que tudo indicava, ninguém morava ali, pois o armário estava aberto e nele não havia qualquer peça de roupa. A cama desarrumada não tinha lençóis. Do outro lado ainda havia dois sofás. Parecia que tinham sido colocados no quarto depois dos outros móveis. Gucky sentiu um cheiro familiar.

Gucky lançou os olhos em torno e já ia retirar-se, quando subitamente estacou.

Sobre uma penteadeira rústica havia um copo quebrado. Ao lado deste, havia um vidrinho.

Os olhos de Gucky estreitaram-se quando caminhou em direção à penteadeira, segurou o vidrinho entre as patas e o cheirou. Faltava-lhe a tampa, mas ainda se via um pouquinho de líquido amarelo no fundo.

Gucky farejou, silvou satisfeito, hesitou um instante, e derramou os pingos que ainda havia no vidro sobre o peito peludo. Voltou a colocar o vidro sobre a penteadeira, refletiu mais um pouco e foi à janela. Sorriu e atirou-o para fora.

O vidro não caiu verticalmente para a rua. Foi atingido pelos fluxos de energia telecinética que o arrastaram em direção ao céu azul. Subiu tão alto que Gucky não o via mais. Só depois disso recuou da janela.

Sabia que o vidrinho não resistiria à queda. Ninguém conseguiria identificar os fragmentos, ainda mais que o vidro não continha nenhuma indicação de procedência.

— Essas mulheres levianas! — chilreou em tom contrariado. Refestelou-se com o perfume do pêlo de seu peito e revirou os olhos de prazer. — Não há a menor dúvida: é o perfume predileto de Laury. Foi muita gentileza sua deixar essa lembrança para mim. Quer dizer que moraram aqui.

Começou a revistar o quarto.

Só se sobressaltou quando os impulsos mentais se tornaram mais nítidos. Alguém subia pela escada. E agora rastejava pelo corredor e parava diante da porta.

Seria Marshall?

Não, não era Marshall. Era um frogh. Gucky ainda reconheceu a identidade do ser, que se encontrava lá fora, em tempo de dar um salto e colocar-se em segurança. A porta aberta do armário escondia-o dos olhares do monstro, que foi entrando bem devagar enquanto lançava os olhos traiçoeiros em torno.

Gucky olhou cautelosamente por trás da porta e estremeceu. Não era possível. Como é que a natureza tão bondosa podia criar um monstro daqueles? Em comparação com ele, os horríveis porcos rastejantes de Vênus eram criaturas verdadeiramente adoráveis. O Universo estava cheio de seres dos mais estranhos. Todavia, o frogh, além do mais, para usarmos uma expressão suave, possuía uma expressão pouco amistosa. E isso o tornava muito antipático.

Acontece que Gucky não gostava nem um pouco das criaturas antipáticas de sua época. E, para dar uma demonstração evidente dessa aversão, muitas vezes esquecia a cautela que devia guardar.

Esperou que o frogh fechasse a porta. Depois, saiu de trás do armário e perguntou em tom gentil:

— Está procurando alguma coisa?

O frogh virou-se abruptamente. Por pouco o movimento não o faz perder o equilíbrio. Arregalou os olhos e abriu as garras, fitando a aparição inesperada como se fosse um fantasma. Ao que tudo indicava, não sabia o que fazer com o rato-castor, embora no zoológico já tivesse tido oportunidade de sobra para conhecer semi-inteligências dos tipos mais variados.

— O que... quem...? — balbuciou numa língua que Gucky só compreendeu em virtude de sua capacidade telepática.

— Quero saber o que está fazendo aqui. — repetiu Gucky, utilizando-se da língua arcônida, que todos compreendiam. — Isto aqui é minha residência.

Ao que parecia, o frogh estava recuperando o autocontrole.

— Venho por ordem do governo — anunciou. — Recentemente um saltador ocupou este quarto?

— Quem foi que lhe meteu isso na cabeça? E quem é o senhor?

O verme-inseto fez uma cara tão espantada que Gucky soltou uma gostosa gargalhada. Isso parecia provocar ainda mais a fúria daquela criatura sem senso de humor. Soltou um chiado e avançou para o rato-castor, estendendo os braços preênseis como se quisesse estrangulá-lo.

— Eu sou um frogh, seu bicho nojento. Se não estou muito enganado, seu lugar é no zoológico. Não permitirei que fique em liberdade. Vou levá-lo.

— Mantenha distância! — advertiu Gucky e recuou um passo, para não entrar em contato com aquela massa horrível. — Quanto ao zoológico, você vai sofrer uma decepção. É verdade que não temos muita intimidade, mas podemos continuar a tratar-nos por você. Mais uma coisa. Faça o favor de responder às minhas perguntas, sua chaminé ambulante.

Ao que parecia, o frogh estava acostumado a ser tratado com mais respeito e temor. Dificilmente compreenderia que alguém pudesse adotar um comportamento desses em sua presença. Respirava com dificuldade.

— Você vai se arrepender, seu bicho nojento! — ao que parecia era este seu insulto predileto. — Ainda hoje será apresentado à administração do zoológico. Sabe o que acontecerá depois disso?

— Isso não me interessa nem um pouco — respondeu Gucky sem abalar-se. — Se você não responder imediatamente às minhas perguntas, eu o atiro contra a parede e depois o farei voar pela janela.

O frogh começou a tremer por todo o corpo, e havia muita massa para tremer. O verme enchia quase todo o quarto. Com um grande interesse, Gucky percebeu que o corpo em forma de cobra começou a adquirir uma tonalidade rosada. Aquela devia ser a cor da pele de um jovem tenente no momento em que o recruta lhe recomenda que ele mesmo engraxe suas botas.

— Seu miserável! — chiou o furioso guardador do zoológico. — Você se atreve...

— Você está atrás de um saltador — prosseguiu Gucky sem demonstrar o menor respeito. — Por que justamente aqui? Responda, senão você vai ver o que é bom.

O rato-castor estava percebendo a impaciência do verme gigante. Além disso, sentiu que a essa altura não poderia recuar. O frogh teria que ser eliminado de qualquer maneira. Antes devia fazê-lo contar o que sabia.

— O saltador? — perguntou o frogh. — O que sabe a respeito do saltador que estou procurando?

— Quem faz perguntas sou eu! Entendido? Quem lhe deu esta pista?

O frogh não estava disposto a revelar seu segredo, mas felizmente pensou no caso. Para Gucky, isso foi suficiente.

— Ah, então é isso! — disse em tom tranqüilo. — Foi outro saltador que lhes contou. Vocês o torturaram? Morreu? Vocês são assassinos! Acontece que ele lhes contou uma mentira, pois neste quarto não há ninguém a não ser eu.

O frogh lançou um olhar de pavor sobre o rato-castor, que estava extraindo os pensamentos de sua mente. Seus impulsos mentais tornaram-se cada vez mais confusos, até convergirem na intenção de apoderar-se do inimigo medonho que tinha diante de si.

O frogh deu um passo rápido para a frente e estendeu o braço em direção a Gucky. Não soube exatamente o que lhe aconteceu, mas sentiu-se atingido por uma força invisível que o atirou contra a penteadeira. Caiu ao chão, mas logo voltou a levantar-se.

Mais uma vez precipitou-se sobre Gucky, mas ao que tudo indicava o rato-castor já estava cansado da discussão. Engajou toda a energia telecinética de que dispunha, levantou o frogh deixando-o suspenso no centro do quarto.

A centopéia apavorada começou a emitir silvos agudos, enquanto seu corpo adquiriu uma cor violeta. As inúmeras pernas balançavam desesperadamente no ar, à procura de apoio.

Mas o susto ainda aumentou quando se viu planar em direção à janela, que se abriu como que pela mão de um fantasma. Lá embaixo ficavam as pedras duras do calçamento.

Gucky não perdeu mais tempo. Sabia tudo que o frogh sabia, e o guardador implacável do zoológico fazia por merecer a morte. Marshall estava com os agentes dos saltadores, que haviam instalado uma central secreta em Tolimon. Ali encontrava-se relativamente seguro.

O frogh passou pela janela, por mais que se esforçasse para segurar-se no peitoril.

E foi assim que os habitantes do bairro pobre de Trulan tiveram oportunidade de presenciar um espetáculo inacreditável. Viram um frogh voador. Aquela criatura detestada saiu planando elegantemente da janela da mansarda, descreveu uma ou duas piruetas perfeitas, subiu verticalmente até chegar aos trezentos metros de altura. Por fim, caiu na vertical.

A queda provocou a sensação que era de esperar, embora o mistério da centopéia voadora nunca tivesse sido solucionado.

Enquanto ocorria o acidente, Gucky saltava para o quarto do hotel, onde esperou por Rhodan, que já fora informado telepaticamente sobre os acontecimentos.

O círculo em torno de Marshall e seus companheiros fechava-se cada vez mais.

Era só uma questão de tempo, e seriam encontrados.

Gucky esticou-se sobre a cama e fechou os olhos.

Subitamente foi atingido por um impulso mental, claro e intenso, que lhe martelava a consciência, despertando-o num instante.

Era um impulso que estava chegando com uma força extraordinária:

— Pelas nebulosas da Galáxia! Se Rhodan não aparecer logo, essa gente ainda acaba tirando minha última camisa...!

Gucky assobiou uma melodia desafinada e entrou em contato com Marshall.

 

A sala estava mergulhada na penumbra. A única luz provinha de uma lâmpada muito fraca e de alguns raios de sol que penetravam obliquamente pela pequena janela gradeada.

Cinco pessoas estavam reunidas em torno da tosca mesa de madeira. Ao que tudo indicava, formavam dois grupos distintos, pois os dois homens robustos e barbudos estavam sentados lado a lado e contemplavam os três restantes com uma expressão pouco amistosa.

John Marshall leu os pensamentos dos saltadores barbudos e sabia que dali em diante a sociedade não seria mais tão fácil e barata. A alma dos mercadores galácticos despertara nos aliados, e para ela até mesmo a amizade não passava de um negócio.

Ao lado de John, via-se Laury Marten, uma moça de vinte e três anos que era filha dos mutantes Arme Sloane e Ralf Marten. Herdara dos pais o dom da telepatia, mas, além disso, era uma desintegradora. Graças às suas energias mentais podia modificar a estrutura molecular da matéria sólida, o que lhe permitia atravessar muralhas e paredes. A descendência japonesa do pai deixara vestígios em seu rosto. E foram justamente os olhos em forma de amêndoa que tanto cativaram o conde Rodrigo de Berceo.

Rodrigo era filho de uma princesa asteca e de um membro da nobreza espanhola. Fazia quase trezentos anos que vivia no zoológico de Tolimon. No século XVII fora seqüestrado com mais três homens terrenos por uma nave espacial. O misterioso elixir da vida conferira-lhe a imortalidade. Sua figura imponente não poderia deixar de impressionar Laury. Até um cego não deixaria de ver que os dois estavam apaixonados. E foi graças a isso que Rodrigo conseguiu fugir do zoológico.

Não havia dúvida de que sua vestimenta era um tanto estranha. A costureira do zoológico a fizera como uma réplica exata das roupagens do século XVII. As botas de cano revirado que iam até os quadris escondiam as calças justas, enquanto um cinto largo cingia o colete curto e sem mangas. A gola larga da camisa cobria a parte superior da jaqueta com suas rendas. Carregava constantemente a bainha com a espada bem afiada. O chapéu de aba larga com o penacho balouçante descansava no colo. Sobre o colete brilhava uma corrente de ouro com o amuleto do deus do sol dos astecas.

Ninguém convencia Rodrigo de desistir de suas vestimentas estranhas e da arma branca. Isso já havia dado origem a complicações, pois o conde era um homem corajoso e esquentado, que sabia prezar a honra e a altivez.

Estava acariciando a mão de Laury.

— Tenha calma, meu amor, mostraremos uma coisa a eles. Conseguimos livrar-nos dos froghs e também saberemos enfrentar essas almas de mercadores.

Marshall lançou-lhe um olhar de advertência. Sentia-se arrasado. A espera por qualquer notícia de Rhodan era interminável, e a idéia dos perigos que constantemente o espreitavam desgastava suas energias. A partir do momento em que haviam abandonado seu alojamento no bairro pobre da cidade nunca mais se sentira seguro. O pior era que, conforme revelava a palestra que estavam mantendo, já não podiam confiar nos saltadores.

Fez um gesto para o mais idoso dos saltadores.

— Está bem, Berzan, podemos conversar sobre a oferta que você acaba de formular. Vocês estão metidos na mesma enrascada que nós, e por isso temos uma base para negociar. Se nos entregarem às autoridades, vocês trairão a si mesmos. Isso não resolveria nada, nem para vocês, nem para nós. Os aras são inimigos nossos e de vocês. Vocês querem dinheiro para continuar a ajudar-nos. Acontece que não temos dinheiro. Mas dentro de poucos dias, poderemos dar-lhes mais do que vocês conseguiriam gastar, mesmo que vivessem mais cem anos.

Berzan, um velho de barba grisalha, piscou os olhos astuciosos.

— Onde é que vocês vão arranjar esse dinheiro? — indagou. — Quem me garante que não estão mentindo? Tulin e Egmon já nos preveniram. Dizem que vocês sabem ler pensamentos.

— Quer afirmar que eu sou um telepata? Isso é ridículo! Se fosse, já saberia há tempo da traição que estão planejando. Nesse caso teria vindo até aqui para pedir auxílio? Não, Berzan, a informação de seus amigos é um absurdo.

— Foi o que eu lhes disse, meu caro. Mas, seja como for, pedimos um pagamento mais condigno, pois correremos um grande perigo se lhes dermos proteção. Metade do planeta está atrás de vocês. A polícia segue todas as pistas. É bem possível que uma delas os traga até aqui, e se isso acontecer o trabalho de algumas décadas terá sido em vão.

— Se aparecerem, vocês poderão contar com nosso auxílio — disse Marshall, mas sabia perfeitamente que as preocupações do saltador eram totalmente justificadas. — Dentro de mais alguns dias ficarão livres de nós.

O mais jovem dos dois saltadores inclinou-se para a frente e fitou Marshall.

— Para onde pretendem ir? E quem lhes arranjará o dinheiro de uma hora para outra?

Marshall leu os pensamentos de Rodrigo: a impaciência crescia a cada segundo que passava. Não demoraria muito, e o conde impetuoso saltaria sobre os dois chantagistas de espada em punho. E isso não poderia acabar bem para ele, pois os saltadores estavam armados com radiadores de impulsos.

— Faran, vocês terão de satisfazer-se com o fato de que ficaremos aqui até a chegada de nosso elemento de ligação, que trará o dinheiro. Tenham mais um pouco de paciência — virando-se para o conde, disse: — Você também, Rodrigo.

Os dois homens já eram bons amigos, e costumavam deixar de lado todo e qualquer formalismo. E o conde conhecia os dons telepáticos de Marshall e Laury. Por isso tirou a mão da espada, acenou lentamente com a cabeça e, usando o espanhol, por cautela disse:

— Bem que gostaria de espetá-los, mas se você preferir, não ponho a mão neles.

— O que é que ele está dizendo? — perguntou Berzan em tom desconfiado.

— Ele acredita que nosso elemento de ligação deve aparecer ainda hoje.

— Tomara — resmungou Berzan e levantou os olhos para a janela. — Vamos sair, mas não pense em tolices. A casa está muito bem vigiada. Qualquer tentativa de fuga seria inútil, pois alarmaríamos imediatamente a polícia de Trulan. Dispomos de outros esconderijos além deste, e por isso não encontrariam nossa pista. Mas não deixariam de pegar vocês.

Levantou-se juntamente com Faran e saiu da sala. A porta fechou-se com um baque. Uma chave pesada girou na fechadura.

Estavam sós.

— Pelos deuses do sol de minha mãe! — disse Rodrigo, tremendo por todo o corpo. — Por que não damos uma lição a esses gananciosos ladrões estelares?

— Porque temos de ser mais inteligentes que eles — preveniu Marshall, dando alguns passos pela sala. — Quem dera que soubesse em que área de Trulan nos encontramos. Trouxeram-nos para cá no meio da noite.

— Pelo que sei, estamos num subúrbio — interveio Laury, que até então se mantivera calada. Segurou a mão fina do conde e lançou-lhe um olhar de ternura. — Para nós não importa o lugar em que estejamos. Até aqui podemos ser felizes, não é mesmo?

Marshall parou abruptamente.

— Laury! — disse em tom áspero. — Não tenho nada contra sua felicidade, mas antes de mais nada temos de entregar o soro a Rhodan. A paixão de vocês roubou-nos todas as chances de conseguir a fórmula do elixir.

— Em compensação temos uma amostra do soro maravilhoso — respondeu a moça, enrubescendo e batendo levemente no cinto do uniforme. — É verdade que é apenas um pequeno frasco, mas não deixa de ser uma amostra. É bem possível que nossos cientistas consigam analisá-la.

— Se conseguirmos chegar a eles com a amostra — objetou Marshall. De repente mudou de assunto. — Por que não recebemos nenhuma notícia de Rhodan? Não compreendo.

— Até agora quase não tivemos oportunidade de emitir impulsos mentais mais intensos, John. Quase nunca ficamos a sós e constantemente tivemos de fugir. Nossos impulsos mergulham no oceano de outros, emitidos pelos habitantes de Trulan. Além disso, a capacidade telepática de Rhodan é pouco intensa. Se pensarmos com maior concentração, talvez consigamos estabelecer contato. Rhodan já deve estar em Tolimon. Afinal, oito dias se passaram desde nosso último pedido de socorro — concluiu Laury.

— Isso mesmo. A seguir, o transmissor entrou em pane — disse Marshall em tom amargo. — Vamos aproveitar o tempo para chamar Rhodan. Talvez tenhamos sorte. Quando os saltadores voltarem, será tarde. Nem de noite nos deixam em paz.

— É verdade! — suspirou Rodrigo em tom amargurado e estreitou Laury ao seu corpo.

Seus lábios encontraram-se num beijo fugaz. Marshall praguejou e voltou-se discretamente, dizendo:

— Rodrigo, quem sabe se você não quer ter a gentileza de deixar Laury em paz por um instante? Ela deve concentrar-se, a não ser que queiramos passar o resto dos nossos dias neste buraco. Mesmo que Rhodan fique dia e noite na “escuta”, para receber nossos impulsos, ele nunca conseguirá captá-los se estes não o atingirem em feixes compactos. Terá de identificar nossos impulsos em meio a milhares, e isso nunca será possível se não nos concentrarmos nele. Nem mesmo Gucky conseguiria, se estivesse aqui. Infelizmente não está.

Laury desprendeu-se suavemente dos braços do homem amado.

— Ele tem razão, Rod. Nosso amor pode ficar para depois. O que importa no momento é nossa segurança e a entrega do soro. Se não o conseguirmos, tudo que fizemos terá sido em vão.

Marshall virou-se.

— A senhora é uma mocinha muito sensata. Isso me dá novas esperanças.

Rodrigo levantou-se e franziu a testa.

— Se você não fosse meu amigo, John, eu deveria ficar zangado com você. Mas reconheço que devemos dar atenção antes de mais nada à nossa tarefa. O que vou fazer enquanto vocês estiverem telepatizando?

Marshall suspirou aliviado e sorriu.

— Nada, Rod. Sente naquela cama e fique refletindo. Se preferir pode dormir. Laury e eu pensaremos na nossa situação, com o máximo de concentração e em todas as direções. Quem dera que soubéssemos em que área de Trulan nos encontramos! Isso facilitaria nosso trabalho.

O conde sentou cerimoniosamente. A espada impedia-lhe os movimentos, mas não sabia separar-se da arma.

— Vou dormir, pois estou cansado. Acordem-me assim que haja alguma novidade.

Estendeu-se sobre a cama. Logo se ouviram seus roncos regulares.

Marshall e Laury concentraram-se na tarefa.

 

Rhodan dispensou o carro e foi imediatamente ao hotel.

Ainda encontrou Gucky.

— Já estava na hora de você chegar — disse este. — Marshall está aguardando auxílio de nossa parte. Já conheço a direção; é claro que não tenho meios de avaliar a distância. Terei de saltar.

— Isso seria muito perigoso — respondeu Rhodan. — Também consegui estabelecer contato e prometi que apareceríamos dentro em breve. Tive muito trabalho para recusar o convite do presidente para uma visita ao zoológico. Pretendia ir até lá hoje de noite, para que dispuséssemos de todo o dia de amanhã para a inspeção. Quase chego a ter a impressão de que querem fazer amizade com o pretenso inspetor. Ao que tudo indica, não estão com a consciência muito tranqüila.

— Como poderíamos encontrar Marshall se eu não saltar? — perguntou Gucky sem responder às palavras de Rhodan. — Terei que teleportar-me. No momento em que os impulsos chegarem, só precisaremos examinar a última parte do trajeto.

— E eu? Vou ficar no hotel?

— É claro que sim.

O rosto de Rhodan assumiu uma expressão séria no momento em que disse:

— Meu caro, receio que você não esteja avaliando corretamente a situação. É verdade que cheguei aqui com um disfarce excelente, e até agora ninguém desconfia de nada. Mas tive oportunidade de ouvir a conversa de dois oficiais. O governo de Tolimon dirigiu uma consulta oficial para Árcon, a fim de descobrir se o inspetor Tristol realmente existe. Acho que não preciso explicar o que isso significa.

Também Gucky tornou-se muito sério.

— A resposta já chegou?

— É claro que não. O registrador de Árcon não funciona com tanta rapidez, mas tenho certeza de que o regente robotizado já deve ter percebido alguma coisa. Não podemos demorar muito em dar o fora. Por isso prefiro acompanhá-lo.

— Vamos tentar os saltos de teleportação em conjunto?

— É claro que não. Tomarei um táxi, de preferência um dos veículos aéreos mais rápidos, e seguirei suas etapas de deslocamento. Permaneceremos em contato; quanto a Marshall, basta que ele continue a pensar normalmente. Agora não o perderemos mais. Talvez acreditem que vou realizar uma inspeção durante a qual prefiro permanecer incógnito. Ninguém se atreverá a impedir-me.

Gucky suspirou e escorregou para fora da cama.

— Marshall, está ouvindo? — pensou. — Avançaremos na sua direção. Continue a pensar. Para mim é indiferente que pense em salsichas bem quentinhas ou em cenouras. Se preferirem podem contar piadas. O que importa é que continuem acordados. Entendido?

— Entendido! — foi a resposta que veio duplicada. Laury também estava pensando. — Apressem-se. Estão trazendo dinheiro para dar aos saltadores?

O pêlo da nuca de Gucky arrepiou-se.

— Dinheiro para esses gatunos?

Rhodan resolveu intervir.

— Distraia os saltadores até que nós nos encontremos com vocês. Saberei lidar com essa gente.

Gucky deu de ombros e colocou seu uniforme na mala de Rhodan.

— Você e sua política de pacificação. Ela ainda lhe trará muitos problemas.

— Não trará mais problemas que sua predileção pelas demonstrações de capacidade que você gosta de realizar no lugar errado. Sugiro que você nem apareça enquanto estivermos negociando com os agentes dos saltadores. Afinal, um certo rato-castor já penetrou na consciência dos saltadores de forma pouco agradável. Não estou interessado em reavivar a lembrança dessa aparição.

— Isso não passa de uma vingança mesquinha — indignou-se Gucky. — Depois de fazer o papel de idiota por tanto tempo ainda tenho que manter-me de lado quando nossos amigos vão ser libertados. O que é que miss Laury vai pensar de mim? E mesmo esse conde esquisito que foi libertado do zoológico? Nada disso; irei com você.

Rhodan ergueu as sobrancelhas, num gesto de espanto.

— Você é um sujeito muito decidido, pequeninho. Você quer colocar todo o grupo em perigo?

— Isso não! Mas se minha aparição não despertou nenhuma lembrança entre os aras, isso provavelmente também não deverá acontecer com os saltadores, que por certo nunca ouviram falar do planeta Terra ou de Gucky. Acho que sua precaução é exagerada.

Rhodan era homem de não recuar em suas decisões, mas sabia ceder vez ou outra diante de um argumento mais forte. Para que deixar Gucky ainda mais aborrecido? Provavelmente o rato-castor estava com a razão: ninguém se lembraria de sua figura. Já fazia muito tempo.

Concordou com um aceno de cabeça.

— Está bem, Gucky. Você ganhou. Trabalharemos em conjunto.

O rato-castor não demonstrou sua satisfação; era muito inteligente para isso. Limitou-se a esboçar um sorriso alegre e ajudou seu chefe a fazer a mala, exibindo logo o rosto do servo fiel.

— Oh, meu chefe e senhor — chiou em tom teatral, inclinando-se até quase tocar o chão com a cabeça. — Quer que carregue as malas para fora, ou prefere que as teleporte até nossa boa nave Koos-Nor?

— Pode teleportar, verme miserável — respondeu Rhodan no mesmo tom teatral e esperou que Gucky desaparecesse juntamente com a mala. Aproveitou o tempo para examinar os instrumentos de controle remoto, que trazia no bolso. Ainda não desconfiava da importância que os mesmos viriam a desempenhar ainda antes do pôr do sol.

Gucky voltou e informou:

— Tudo em ordem a bordo. A nave permanece no espaçoporto, sem que ninguém a tocasse ou a molestasse. Apenas notei alguns cruzadores ligeiros, que se postaram discretamente nas proximidades.

— É estranho — murmurou Perry Rhodan. — Realmente, é muito estranho. Não é possível que já tenham recebido notícias de Árcon. Se tiverem, ainda deverão estar na suposição de que existe um inspetor chamado Tristol. Não demonstrarão abertamente sua desconfiança.

— E se demonstrarem? — resmungou Gucky cheio de impaciência. — O que estamos esperando? Quero conhecer o tal do conde Rodi... ri... rigo.

— Rodrigo — corrigiu Rhodan. — É um membro da velha nobreza espanhola do século dezessete. Na sua época, era um homem bastante conhecido. Mas é bom que tenha cuidado. O sujeito é muito esquentado e talvez chegue mesmo a ser um pouco supersticioso. Não brinque com ele. Em sua era, um nobre vingava qualquer ofensa com um duelo mortal. E tenho lá minhas dúvidas quanto suas habilidades no manejo da espada.

— Por que está falando em ofensa? — perguntou Gucky perplexo. — Nem pensei em ofendê-lo, apenas pretendo mexer um pouco com ele...

— Pois terá uma surpresa — profetizou Rhodan e caminhou em direção à porta. — Vamos embora; não temos tempo a perder. Dentro de três ou quatro horas estará escuro, e até lá precisamos encontrá-lo.

— Pode ficar tranqüilo! — disse Gucky com um sorriso e caminhou atrás do seu senhor.

Uma vez no corredor, voltou a transformar-se no criado submisso. Com uma cara ingênua e estúpida, esforçou-se para acompanhar Rhodan, o que só conseguiu em parte. Gucky só recuperou a desvantagem porque Rhodan pediu um táxi aéreo, o que o fez esperar na rua.

— Você bem que poderia andar um pouco mais devagar — fungou o rato-castor, quando se viu diante do hotel, ao lado de Rhodan. Um veículo de cabine desceu silenciosamente sobre o gramado muito bem tratado. — Da próxima vez, vou me teleportar e farei com que você corra atrás de mim.

— Não se atreva a fazer uma coisa dessas — preveniu-o Rhodan e entrou na cabine. Gucky seguiu-o. O piloto assustou-se quando viu o uniforme do inspetor e por pouco não afunda embaixo do painel de controle de seu veículo aéreo.

— E agora faça o favor de calar a boca e comportar-se como um criado submisso, pois do contrário esta será a última vez em que trabalhamos juntos.

A ameaça telepática deixou Gucky tão assustado que o rato-castor se recolheu silenciosamente no assento traseiro e bloqueou seus pensamentos. Rhodan desconfiava de que os mesmos não seriam muito lisonjeiros para sua pessoa, mas no momento isso não importava nem um pouco. Era necessário dar uma ducha fria na petulância de Gucky.

— Voe devagar e exatamente na direção norte — ordenou ao piloto junto ao qual se sentara. — Só modifique a rota quando eu mandar. Não voe muito alto. Quero examinar a cidade com toda a calma.

— Farei o que ordenar, venerando inspetor.

Rhodan não respondeu. Olhou para a frente, enquanto a nave subia a cinqüenta metros de altura. Nessa altitude, não havia nenhuma torre ou arranha-céu, motivo por que não existia o risco de colisão.

Os impulsos mentais de Laury já haviam silenciado. Só Marshall continuava a “transmitir”. Pensava em tudo quanto fosse possível para manter-se acordado, embora fosse dia claro. Rhodan concluiu que os fugitivos deveriam estar por demais cansados.

— Não é necessário saltar — disse a Gucky, usando a língua inglesa para que o piloto não o entendesse. — Continuaremos a voar nesta direção até que os impulsos venham de baixo. Nesse instante, estaremos sobre o lugar em que Marshall se encontra.

E foi o que fizeram.

 

O conde Rodrigo acordou quando Marshall o sacudiu. Laury estava sentada esfregando os olhos.

— Estão exatamente em cima de nós. São Gucky e Rhodan — Marshall apontou para o teto. — Encontramo-nos numa casa solitária situada na periferia da cidade. Está cercada por um grande parque. Deve ser um dos quartéis-generais dos saltadores.

— Gucky também veio? — Laury acordou imediatamente. — Que sorte! Gucky é o maior herói que já vi.

A estima de que o rato-castor gozava junto às criaturas do sexo feminino era bem conhecida, mas Rodrigo ainda não sabia quem era Gucky. Levantou-se devagar, lançando um olhar de espanto para Laury.

— Que herói é este? — perguntou, esticando as palavras. Sua mão aproximou-se instintivamente da espada. — Se alguém tem o direito de protegê-la, sou eu. Será que tenho um rival no seu coração?

Marshall exibiu um ligeiro sorriso e lançou um olhar de advertência para Laury.

— Tenha cuidado com Gucky — disse apressadamente. — Laury tem razão: realmente é um herói. Não conheço nenhuma mulher que não goste dele. Não sei por que Laury devia ser uma exceção. Você terá de conformar-se com este fato, Rod.

— Jamais — disse Rodrigo, levantando-se e caminhando furiosamente de um lado para outro. — Jamais tolerarei a existência de um rival. Terá que bater-se comigo em duelo.

— Você levará a pior — preveniu Marshall com a cara mais séria do mundo. Sabia que Gucky estava acompanhando a palestra e esperava que o encontro do rato-castor com Rod lhe proporcionasse uma pequena distração. — Gucky é um dos melhores mutantes que temos.

— Mais um desses sujeitos dotados de capacidades supersensoriais? — perguntou o conde em tom de decepção. — Ao que parece, muita coisa mudou na Terra. O mundo está sendo governado por feiticeiros.

— Aguardemos — disse Marshall e voltou a concentrar-se.

Também Laury parecia ter esquecido o conde. Entrara em contato com Rhodan.

— Pousaremos com o planador bem perto da casa — anunciou Rhodan. — Não precisamos do piloto. O que devo fazer com ele?

— Traga-o com você — respondeu Marshall. — Fugiremos com o táxi aéreo e trancaremos o ara nesta casa. É muito simples.

— E os saltadores que estão vigiando vocês? Bem, aparecerei na minha qualidade oficial de inspetor. Isso os intimidará.

— Talvez já tenham ido embora.

— Talvez.

Mais quinze minutos passaram-se. Mantiveram a ligação telepática, mas não estabeleceram mais nenhum contato direto. O conde Rodrigo mantinha um silêncio obstinado e, vez por outra, lançava um olhar sombrio para Marshall.

Assustaram-se quando de repente a porta abriu-se violentamente e Berzan penetrou no recinto em que estavam presos.

— É o inspetor de Árcon! — fungou. — Pousou no parque e está caminhando em direção a casa. Vocês têm uma idéia do que deseja de nós?

Marshall manteve a calma; acenou lentamente com a cabeça.

— Talvez, Berzan, talvez. Nesta hora não seria conveniente se chegássemos a um acordo?

— Pois foi o que fizemos o tempo todo — retrucou o saltador, que fez uma cara um tanto assustada. — É claro que não dissemos ao arcônida que vocês estavam aqui. Como é que ele ficou sabendo da presença de vocês?

— Isso mesmo — disse Marshall com a maior tranqüilidade. — Como poderia saber?

Rodrigo parecia convencido de que, naquele instante, somente uma demonstração de bravura poderia convencer a querida Laury de que ele era o único cavaleiro digno de seu coração. Num movimento fulminante tirou a espada da bainha, adiantou-se alguns passos e colocou a ponta afiada sobre o peito de Berzan, que ficou perplexo.

— Patife miserável! — exclamou em tom dramático e decidido. — Você muda de opinião tão depressa, como o vento que infla as velas muda de direção. Pois é bom que saiba que podemos fazer a mesma coisa. Daqui por diante, dispensamos a proteção de seu clã; logo, não receberão qualquer paga. E, quanto ao inspetor, traga-o à nossa presença. Rápido, senão lhe farei cócegas com minha espada.

— Espere aí! — interveio Marshall. — É preferível que Berzan nos leve para cima. Iremos juntos para cumprimentar o ilustre visitante.

O saltador preferira não sacar a arma. Não tinha a intenção de fechar aquela fonte de dinheiro, que parecia tão promissora. Naquele momento a visita do arcônida representava um perigo para todos. Depois que esse perigo tivesse passado, veriam adiante...

Sem preocupar-se com Rodrigo, virou-se, abriu a porta e caminhou à frente dos outros. Marshall e os outros seguiram-no. Sabiam qual era a surpresa que aguardava os saltadores, e também sabiam que a situação desagradável em que se encontravam logo chegaria ao fim.

Infelizmente se esqueciam da circunstância desfavorável, que já estragara muitos cálculos bem elaborados.

Era a circunstância que geralmente costuma ser designada como o acaso.

 

Glogol, inspetor-chefe do Império de Árcon, encontrava-se numa viagem de rotina. Naquele instante, aproximava-se do sistema solar da estrela de Revnur, a fim de visitar o segundo planeta, denominado Tolimon.

Estava acompanhado de dois cruzadores pesados, que dariam a necessária ênfase às exigências que viesse a formular. Glogol, acompanhado apenas de alguns criados e da tripulação habitual, viajava num iate de luxo que tinha uma espantosa semelhança com certa nave designada pelo nome Koos-Nor.

Glogol era um arcônida das classes dominantes. Suas enormes faculdades mentais e sua capacidade de decisão levaram o regente robotizado a confiar nele. Era alto, tinha cabelos brancos e olhos avermelhados: tinha exatamente o aspecto de Rhodan no seu disfarce atual. O vistoso uniforme também era uma duplicata do de Perry.

Fez um sinal ao telegrafista.

— Entre em contato com Tolimon. Anuncie nossa visita. Quero uma recepção de chefe de Estado, um alojamento condigno e um corpo de criados. Os representantes do governo devem comparecer ao espaçoporto.

— Perfeitamente, inspetor — respondeu o telegrafista solícito e desapareceu na sala de rádio. Menos de dois minutos depois, voltou com uma expressão de enorme espanto.

— Inspetor...! — gaguejou assustado. — As autoridades espaciais de Tolimon querem falar com o senhor antes de conceder a permissão de pousar.

Glogol levou quase dez segundos sem conseguir proferir uma única palavra; depois disso quase explodiu.

— O quê? Querem recusar obediência às ordens de um inspetor? Será que os aras querem revoltar-se de novo? Que insolência!

— Dizem que se trata da medida VB-17 — interrompeu o telegrafista sem compreender nada.

O comportamento de Glogol mudou de um instante para o outro.

— Por que não disse isso logo, seu idiota? É claro que com isso as coisas mudam de figura — levantou-se. — Vamos logo; mostre onde fica o microfone.

Glogol não estava muito versado em assuntos técnicos, mas afinal isso não fazia parte de sua profissão. De qualquer maneira, viu na tela o rosto de um ara que lhe lançava um olhar desconfiado. O espanto era sincero.

— Será que o senhor realmente é um arcônida? — gaguejou o homem na tela, como se tivesse esperado outra coisa. — Por que será que nos mandam dois inspetores ao mesmo tempo?

Glogol parecia ter levado um choque. Desconfiou imediatamente.

— Dois inspetores? O que quer dizer com isso?

— Desde ontem o inspetor Tristol encontra-se em Tolimon, senhor. Recebeu instruções de inspecionar a administração do zoológico.

— Ah, é? — disse Glogol e inclinou a cabeça. — Tristol? — parecia refletir. Subitamente um sorriso brincou em torno de seus lábios. — Espero que esse Tristol esteja presente no espaçoporto quando minhas naves pousarem.

— No momento, está realizando um vôo de inspeção. Não temos meios de entrar em contato com ele.

Glogol sentiu escapar-lhe a perspectiva de um prazer e reconheceu o perigo em potencial representado por um falso inspetor. Não havia tempo para brincadeiras. Precisava agir.

— O inspetor Tristol é um impostor — disse em tom frio. — Prenda-o. Pousarei imediatamente. As formalidades ficarão para depois. Enquanto isso enviarei uma consulta ao regente robotizado.

— Isso já foi providenciado. Esperamos a resposta ainda hoje. De qualquer maneira, seria conveniente formular outra consulta, para termos certeza absoluta.

Glogol sentiu a desconfiança. Empalideceu. Soltou uma praga, levantou-se e voltou ao seu gabinete. Pensou:

“Malditos médicos! Não acreditam que eu seja o verdadeiro inspetor. Bem, hão de pagar por isso!”

Mas, por outro lado, não pôde deixar de reconhecer que a desconfiança ainda era preferível à credulidade e à leviandade.

Nunca ouvira falar em Tristol, embora o Império só tivesse dez inspetores. E ele os conhecia todos.

Deu o alarma. Os dois cruzadores que comboiavam sua nave entraram em regime de prontidão de combate e penetraram na atmosfera de Tolimon juntamente com o iate de Glogol.

Quase no mesmo instante, chegou a Trulan a resposta expedida por Árcon.

Não existia nenhum inspetor chamado Tristol.

 

Rhodan e Gucky saíram do táxi aéreo e olharam em torno.

O parque era formado principalmente por um extenso gramado no qual se viam alguns arbustos. Só na periferia as árvores isolavam a área do mundo exterior. A mansão ficava numa rua tranqüila da zona periférica norte de Trulan.

O piloto inclinou o corpo, para fora da cabine.

— Quer que espere pelo senhor, inspetor?

— Você virá conosco — anunciou Rhodan. — Quero ter certeza de que não terei de voltar a pé.

— Mas, senhor... — principiou o piloto em tom de recriminação, mas logo se viu interrompido por Gucky.

— Desça logo! Quando meu senhor dá uma ordem, deve-se obedecer sem discutir. Já ouviu falar no centro de experiências do zoológico? Está com vontade de terminar seus dias por lá?

O piloto tremeu por todo o corpo e com um salto arriscado caiu no capim.

Rhodan caminhava à frente dos outros. Nada se movia na casa, que parecia deserta. Os impulsos mentais de Marshall puderam ser captados com toda nitidez.

— Estamos saindo, chefe. Os saltadores estão desconfiados e resolveram ir conosco.

— Saberão respeitar um inspetor — respondeu Rhodan.

Quando se encontravam a vinte metros da casa, a porta abriu-se e um homem barbudo veio ao seu encontro. Pelo aspecto exterior, poderia ter cerca de sessenta anos, mas isso não significava nada. Fez um sinal para trás, como se quisesse evitar que alguém o seguisse. Sozinho e armado somente com o costumeiro radiador manual preso no coldre, veio ao encontro do grupo de Rhodan. Por alguns segundos, pousou um olhar pensativo e espantado sobre Gucky, mas logo voltou a dedicar sua atenção a Rhodan.

— Inspetor de Árcon — resmungou. — Vejo que nossos amigos não mentiram.

— Meu nome é Tristol — disse Rhodan, usando um pouco menos de arrogância que em outras oportunidades. — O senhor prestou auxílio aos meus homens e está exigindo uma paga adequada. O senhor receberá a recompensa assim que estejamos fora de perigo. Acredita em mim?

O barbudo acenou a cabeça de forma quase imperceptível.

— Meu nome é Berzan, inspetor. Uma pergunta: o senhor realmente é um inspetor?

Rhodan leu a desconfiança no rosto do saltador. Não compreendia a ligação que poderia existir entre os prisioneiros e aquele arcônida.

— O senhor tem alguma dúvida? — perguntou Rhodan, fingindo-se de espantado. — Os espiões de Árcon estão em toda parte. Meus homens agiram por ordem do regente robotizado. Há alguma coisa de extraordinário nisso?

Como por acaso, Berzan colocou a mão sobre a arma, embora não tivesse a intenção de sacá-la. Gucky logo percebeu o movimento, mas não fez nada. Porém estava alertado.

— De fato tudo isso é muito estranho, senhor. Há menos de duas horas, a polícia de segurança de Trulan deu o alarma. Árcon respondeu à consulta formulada por Tolimon. Não existe nenhum inspetor chamado Tristol. Logo, trata-se de um impostor que está sendo procurado. E não demorará muito até que a polícia encontre a pista que conduz a esta casa.

Rhodan reagiu imediatamente à nova situação. Viu o espanto no rosto do piloto de táxi, mas não se preocupou. Sorriu.

— É verdade, Berzan. Não sou nenhum inspetor dos arcônidas. Acontece que o senhor não gosta deles, Berzan. Sei disso. Logo, não tem nenhum motivo para entregar-me. Os arcônidas e os aras não são nossos inimigos comuns?

Berzan não se interessou por esse tipo de conversa.

— Faço o contrabando de medicamentos; meu negócio é este. O chefe do clã é Rohun, comandante dos saltadores. Não gosto dos arcônidas, mas reconheço seu Império. O senhor é um inimigo do Império, e não posso continuar a colaborar com o senhor ou com seus amigos. Para usar de franqueza, isso é muito perigoso para mim. Pague sua dívida, pegue seu pessoal e dê o fora.

Rhodan ficou surpreso com a sinceridade daquele saltador barbudo, que não lhe era antipático. Sabia que seria inútil tentar convencê-lo a adotar outra atitude.

— Muito bem. O senhor receberá o pagamento a que faz jus. Onde está meu pessoal?

Berzan virou-se e fez um sinal em direção à casa.

— Faran, traga os estranhos; estão livres.

Rhodan pegou uma sacola com moedas e entregou-a ao velho. Este examinou-a ligeiramente e soltou um assobio. Estava mais que satisfeito com a recompensa.

Faran saiu da casa, seguido por Marshall, Laury e pelo conde.

Berzan puxou Faran para o lado e falou com ele em voz baixa. Rhodan não teve tempo para ocupar-se com ele. Sabia que naquele instante não tinha receio de qualquer traição, se é que em algum momento esta pudesse ocorrer. Marshall aproximou-se de Rhodan e, muito satisfeito, apertou-lhe a mão.

— Já estava chegando ao fim, chefe. Não sei por quanto tempo estaríamos seguros por aqui. Os saltadores já não tinham vontade de queimar os dedos. Desculpe, Laury deseja cumprimentá-lo. Além disso, quero apresentar-lhe o conde Rodrigo de Berceo...

Laury enrubesceu, pois sabia perfeitamente que Rhodan estava informado de sua paixão pelo conde. Com um gesto hesitante estendeu-lhe a mão, que Rhodan pegou com um ligeiro sorriso, retribuindo a pressão dos dedos.

Só depois, dedicou sua atenção ao conde.

Rodrigo tirara o chapéu de aba larga e o sacudia com uma mesura impecável, que teria honrado qualquer nobre do século XVII. Depois adiantou-se e, fazendo outra mesura, declinou seu nome e o de seus nobres. Asseverou:

— Sinto-me muito satisfeito em conhecer o grande amigo de minha companheira, e fico honrado em saber que o senhor, Rho...

— Nada de nomes! — advertiu Rhodan em tom áspero. — Sou o chefe; apenas isso.

Rodrigo ficou corado, mas soube dominar-se muito bem.

— Perdão, chefe. Quase me esqueço das cautelas que devemos tomar.

Lançou os olhos em torno, como se estivesse procurando alguma coisa, fitou ligeiramente o rato-castor e dirigiu-se a Marshall.

— Onde está esse legendário herói e sedutor de mulheres de que você me falou? Não o vejo.

— Gucky?

— Sim, acho que o nome é este. Gostaria de dizer-lhe o que penso dele.

— Ora, Rod, basta abrir os olhos. Gucky está na sua frente.

Laury abaixara-se para acariciar o pequeno rato-castor.

— Como vai, meu amiguinho? — perguntou com o mais gentil dos sorrisos. — Você seria capaz de imaginar que Rod tem ciúmes de você?

Gucky não respondeu.

Continuava perplexo, fitando o conde, que por sua vez arregalava os olhos, contemplando o rato-castor com uma expressão de incredulidade.

— Ui! — piou o rato-castor, respirando com dificuldade. — Onde é o baile de carnaval que esse titio esquisito pretende ir?

O “titio esquisito” compreendeu imediatamente. Recuou dois passos.

— Este é o tal do Gucky? — perguntou, dirigindo-se a Marshall.

— Quem poderia ser senão ele?

Rodrigo estreitou os olhos e voltou a dedicar sua atenção ao rato-castor, que começava a recuperar-se do espanto.

— Você é Gucky? — voltou a perguntar Rodrigo, apontando para Gucky.

O rato-castor descansou o corpo sobre o largo traseiro.

— Alguma objeção? — perguntou em tom gentil. — Se eu fosse como você, não andaria fazendo perguntas idiotas. Isso reforça a impressão que a gente tem ao ver você pela primeira vez.

Num movimento instantâneo, Rodrigo sacou a espada e recuou dois passos.

— Defenda-se ou eu o mato ignominiosamente!

Laury soltou um grito estridente e colocou-se entre os contendores. Rhodan lançou um olhar para os saltadores. Estes examinaram o conteúdo da bolsa com o dinheiro e pareciam não estar interessados no que se passava no parque. Faziam de conta que tinham esquecido tudo que se passava pelo mundo.

Gucky começou a gritar de alegria. Saltitava alegremente sobre as perninhas curtas. O dente roedor solitário brilhava aos raios do sol.

— Entre nós só as velhas usam agulhas de crochê desse tamanho! — disse Gucky com um assobio desafinado. — Eu lhe imporei respeito com a pata esquerda.

Rodrigo esqueceu a boa educação.

Com um grito furioso, saltou sobre o rato-castor, que se limitou a endireitar ligeiramente o corpo e fitá-lo. No momento em que o conde pretendia golpeá-lo, sentiu uma pancada no pulso. A dor foi tão violenta que deixou cair a espada. Para seu espanto, a arma adquiriu a independência, descreveu uma curva e foi fincar-se numa árvore, onde ficou tremendo depois de ter penetrado mais de vinte centímetros.

Rodrigo ficou perplexo. Fitou ora Gucky, ora a espada que continuava a balançar.

Gucky fez um gesto de triunfo e saltitou em direção a Laury, segurando sua mão.

— Diga a verdade — disse com um chiado carinhoso. — Você não pode estar apaixonada por esse palhaço, não é?

Mas Laury soltou-se da mão dele.

— Você é um sujeito horrível, Gucky! — disse entre soluços e foi para junto do homem amado, colocando a mão sobre o ombro do mesmo. — Não se exalte, Rod. Gucky não tem a intenção de ofendê-lo. Apenas gosta dessas brincadeiras estúpidas. Perdoe-lhe, se puder.

O conde Rodrigo provou que sabia ser generoso. Acariciou o braço de Laury e dirigiu-se ao rato-castor.

— Esse feitiço foi uma brincadeira deliciosa, Gucky. Quero que oportunamente você me ensine o truque. Vamos fazer as pazes.

Gucky segurou a mão do conde entre as patas.

— De acordo. Quanto ao truque...

Ninguém dera a menor atenção ao piloto do táxi aéreo, que por ocasião dos cumprimentos de Berzan soubera da falsa identidade do inspetor. O ara recuara e, aproveitando-se da confusão geral, entrou na cabine de seu veículo. Antes que alguém pudesse impedi-lo, subiu na vertical.

Rhodan foi o primeiro a perceber. Gucky, o segundo.

— Trarei o sujeito para cá — sugeriu e começou a concentrar-se sobre o ligeiro salto. Rhodan, porém, sacudiu a cabeça.

— Deixe para lá, Gucky. Deixe que ele alarme os habitantes de Trulan. Vamos dar o fora. Quando aparecerem por aqui, verão que estão procurando no lugar errado.

Calou-se. Um terceiro saltador saiu da casa. Era um homem de cabelos ruivos que usava uma barba enorme e tinha o corpo de campeão de luta livre. Lançou um olhar perscrutador sobre Rhodan e aproximou-se do grupo.

— Então o senhor é o falso inspetor? — disse, olhando para o uniforme de Rhodan como quem contempla um animal raro.

Rhodan leu os pensamentos de seu interlocutor e ficou assustado.

Não era nenhuma novidade. Mas soube controlar-se.

— Alguma objeção, amigo?

— Pelo contrário — disse o ruivo com uma gostosa gargalhada. — Não tenho nada a ver com a armadilha em que o senhor se meteu — esperou até que os outros prestassem atenção às suas palavras. Aquilo que tinha a dizer interessava a todos. — Sugiro que procure outro esconderijo, e muito depressa. Há poucos minutos pousou no espaçoporto de Trulan um iate de luxo acompanhado de dois cruzadores pesados do Império. O inspetor Glogol terá muito prazer em encontrar seu colega em Tolimon.

Rhodan sorriu amavelmente para o ruivo.

— Obrigado pelo conselho, amigo. Acho que chegou a hora da despedida. Tem mais algum desejo?

— Não — disse Tulin em tom áspero. — O único desejo que tenho é que o senhor dê o fora quanto antes. A polícia não demorará em saber que um táxi o trouxe até aqui. E não quero que encontrem ninguém quando aparecerem por aqui. Entendido?

— O senhor não é muito gentil, mas em compensação apresenta uma sinceridade reconfortadora — elogiou-o Rhodan e fez um sinal ao seu grupo. — Venham, meus amigos. Conde, não se esqueça de tirar a espada da árvore. Temos um longo passeio diante de nós. Portanto, devemos apressar-nos — cumprimentou os saltadores com um gesto. — Mais uma vez, muito obrigado pelo auxílio que nos têm prestado. Não podemos exigir mais que isso. Passem bem.

Um tanto desorientados, Laury e Rodrigo seguiram Rhodan, que caminhava à sua frente. Gucky fechava o grupo com seu andar arrastado. Pelos impulsos mentais que desabavam sobre ele percebeu nitidamente que Trulan parecia um ninho de marimbondos espantados.

A caçada já fora iniciada.

 

Quando os tolimonenses souberam que haviam caído nas malhas de um impostor atrevido, a vergonha pela humilhação misturou-se à raiva dos enganados. Os serviços de segurança e de controle de estrangeiros lançaram mãos de todas as forças disponíveis para capturar o inspetor, embora não soubessem com que finalidade poderia ter agido esse personagem desaparecido.

Glogol contribuiu com suas medidas. Expediu uma mensagem de alarma destinada ao regente de Árcon. A resposta consistiu no envio de uma frota de guerra. O espaço em torno de Tolimon foi fechado estrategicamente.

Fortes unidades militares dirigiram-se ao espaçoporto e, por não conseguirem penetrar no iate de luxo do falso inspetor, cercaram-no. Preferiram não destruir a valiosa nave. Nem havia necessidade disso, pois não havia nenhum tripulante a bordo.

Evidentemente estavam cometendo um engano, mas isso não fazia a menor diferença.

A cidade foi revistada pelos quatro cantos. A polícia iniciou as buscas na área central e foi avançando lentamente em direção aos distritos periféricos. Quando chegou à mansão dos saltadores, não encontrou nada de suspeito. Até mesmo o piloto do táxi, trazido às pressas, ficou perplexo ao ver-se diante de um funcionário aposentado da administração do zoológico, que se sentia indignado porque o haviam importunado e disse que iria queixar-se ao governo.

Foram adiante sem terem conseguido nada.

 

Os fugitivos atravessaram os primeiros campos cultivados dos subúrbios e atingiram a proteção de uma pequena floresta, onde fizeram uma pausa.

O conde Rodrigo fungava de raiva.

— Por que temos de nos esconder que nem índios amedrontados? Não dispomos de armas suficientes para colocá-los em fuga?

— Dispomos — confirmou Rhodan em tom tranqüilo. — Mas o que adiantaria isso? Não podemos lutar contra um planeta, e nem estamos interessados nisso. Já provocamos muitas suspeitas. Temos de dar o fora sem deixar vestígio. Um dia voltaremos para buscar a fórmula do elixir da vida, se for necessário. Temos uma amostra do soro; talvez esta seja suficiente.

— E como vamos dar o fora daqui? — perguntou Marshall, que conhecia perfeitamente as condições reinantes em Tolimon. Lembrava-se dos terríveis froghs e da velocidade com que estes se deslocavam. — Nossa única possibilidade de fuga está estacionada no espaçoporto.

— É isso mesmo! — confirmou Rhodan. — Gucky vai até lá para dar uma olhada e verificar se podemos buscar a nave. Se a tele-direção ainda estiver funcionando, não haverá problema. Mas preciso saber se o iate não está preso ao solo. Nesse caso, a decolagem poderia provocar avarias graves no casco. Gucky terá de soltar as amarras antes que eu possa trazer a nave.

O rato-castor apontou as orelhas. Outra missão?

— Irei imediatamente, chefe.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Tenha cuidado, meu velho. A cidade está cheia de policiais. E também estão atrás de você. Em hipótese alguma poderá aparecer. Dificilmente conseguirá vencer a distância num único salto, pois não conhecemos a distância exata.

— Basta concentrar-me na nave. Descreva a sala de comando, Perry. Não tenho a menor dúvida de que assim...

Rhodan fechou os olhos. Não teve a menor dificuldade em rememorar o interior da nave. É claro que Gucky também não tinha a menor dificuldade. Porém achava que era preferível andar seguro.

— O painel de instrumentos forma um pequeno semicírculo e, por cima dele, há cinco telas equipadas com os necessários controles em forma de botões giratórios. As duas poltronas encontram-se na frente desse painel, enquanto à direita ficam as instalações de rádio...

— Já foi embora — disse Marshall, enquanto o conde Rodrigo soltou um grito de espanto e murmurou alguma coisa que soava como bruxaria. Nunca vira um teleportador. Laury manteve-se em silêncio. Estava sentada no chão macio, junto ao conde. Encontravam-se cercados por moitas espessas e árvores frondosas. Só se enxergava o céu. O sol já se aproximava da linha do horizonte. Até parecia que teriam de passar a noite ao ar livre.

Rhodan abriu os olhos e observou:

— Tomara que não erre o salto, aterrissando em meio a um destacamento policial. Não poderão fazer-lhe nada, mas seria preferível que não o vissem.

Voltou a fechar os olhos.

— Gucky, onde está você? — pensou intensamente.

Marshall também captou a resposta telepática do rato-castor.

— O segundo salto levou-me ao interior da nave. O espaçoporto até parece um formigueiro; está cheio de soldados e policiais. Neste instante, o verdadeiro inspetor está aparecendo aqui para examinar a Koos-Nor. O que devo fazer?

— A nave está ancorada ou presa de outra forma?

— Nada disso. Eles nem desconfiam de que temos a tele-direção.

— Excelente — transmitiu Rhodan muito satisfeito. — Volte imediatamente.

Gucky não se apressou.

Encontrava-se na pequena sala de comando e, pelo periscópio, acompanhava os acontecimentos que se desenrolavam no campo de pouso. Sentia-se absolutamente seguro no interior da nave, mas talvez fosse conveniente que pudesse levar algumas informações a Rhodan.

Penetrou cautelosamente nos pensamentos do inspetor, que passeava no seu uniforme colorido em torno da Koos-Nor, especulando sobre a maneira pela qual o impostor se poderia ter apoderado desse artefato especial. Os iates de luxo desse tipo estavam reservados exclusivamente aos inspetores do Império e às pessoas mais ricas da classe dominante. Um deles devia ter usado um nome falso. Quem poderia ter sido?

É claro que Glogol não encontrou resposta às suas indagações, pois, por nenhum instante, lhe ocorreu a possibilidade de que o impostor pudesse ser uma criatura que não pertencesse à raça dos arcônidas. Com um gesto arrogante, dirigiu-se ao Ministro da Segurança de Tolimon, que se encontrava a seu lado.

— Já prenderam o impostor?

O homem ao qual foram dirigidas essas palavras encolheu-se de susto.

— Ainda não, senhor inspetor, mas nossos homens estão vasculhando toda a cidade de Trulan. Ninguém conseguirá escapar. O criminoso deve ter seus cúmplices em nosso mundo, e nós os encontraremos.

— Não estou interessado nos cúmplices! — berrou Glogol para o homem, que parecia petrificado. — Quero desmascarar o patife que se atreveu a enganar o regente robotizado.

— Naturalmente, inspetor — o ministro inclinou o corpo. — Já dei as respectivas instruções. Ele morrerá e...

— Eu o quero vivo — berrou Glogol fora de si. — Pelas fontes do planeta do inferno de Hradchir! O que poderei fazer com um impostor morto? Ele não nos poderia dar nenhuma informação.

O ministro saiu solícito, animado principalmente pelo desejo de afastar-se do inspetor. Glogol seguiu-o com os olhos e pensou várias coisas que Gucky absorveu com o maior prazer.

“Esse sujeito arrogante é o tipo do arcônida”, pensou. “Se bem que é totalmente diferente de Crest e Thora.”

Gucky pigarreou e viu que Glogol chamou alguns tolimonenses e falou com eles. Apontou várias vezes para a Koos-Nor.

De repente, o rato-castor começou a tremer de raiva, pois sua consciência percebeu as ordens dadas pelo inspetor.

Queria que técnicos especializados abrissem o casco do iate a maçarico. Glogol esperava que, no interior da mesma, pudesse encontrar algumas indicações sobre a identidade de seu possuidor.

Teria sido simples para Gucky saltar de volta para Rhodan, que acionaria imediatamente a tele-direção. Mas geralmente Gucky não aceitava as soluções simples. Preferia complicar as situações, dando um curso todo especial aos acontecimentos.

Não gostava do tal do Glogol. Precisava de uma lição, mas era necessário não despertar suspeitas. O melhor seria expor o inspetor ao ridículo, pois nesse caso ninguém se preocuparia seriamente com as causas do incidente.

Gucky sorriu no momento em que se concentrou e dirigiu suas energias telecinéticas para o arcônida.

Glogol ainda estava falando aos técnicos quando subitamente sentiu uma pressão estranha na altura do estômago. Teve a impressão de que alguém puxava suas calças de almirante, listradas em cores vivas. Perplexo, lançou os olhos corpo abaixo, mas não descobriu ninguém que tivesse tido o atrevimento de despertar sua atenção por essa forma.

Mas a força que lhe puxava as calças tornava-se cada vez mais intensa. Com um estalo, o cinto bordado de ouro rompeu-se, caindo ao chão juntamente com o coldre da pistola. A arma engatilhada disparou com um chiado e a força do recuo arremessou-a muito além da beira do campo de pouso.

Enquanto isso, a calça de Glogol escorregou e adquiriu sua independência de uma forma bastante estranha. Descrevendo uma curva graciosa, desapareceu na direção do complexo de edifícios.

Glogol usava ceroulas compridas. E um arcônida arrogante de ceroulas é uma figura ainda mais ridícula que um terrano que use a mesma vestimenta. A dignidade do inspetor se desvanecera. Arregalando os olhos e tremendo que nem vara verde, Glogol acompanhou com os olhos a calça que se afastava pelos ares, calça esta da qual saíra de forma tão surpreendente, sem que tivesse colaborado no fenômeno. Os tolimonenses que o cercavam compreendiam tanto — ou tão pouco — quanto ele, mas confiavam no que viam. E aquilo que tinham diante dos olhos em nada lembrava um inspetor arcônida. Apenas viam uma figura ridícula com ceroulas cor-de-rosa e meias furadas. Apenas a túnica cheia de condecorações lembrava o esplendor da figura de inspetor.

Alguns dos policiais soltaram estrondosas gargalhadas.

De início Glogol não ouviu, mas logo seu rosto se tornou vermelho de raiva. Virou-se furioso e gritou para o grupamento. O resultado foi bem o contrário do que esperava.

Os soldados e oficiais, bem como o Ministro da Segurança, que regressara ao local, e outros representantes do governo, deixaram cair o medo e as reservas. Um inspetor de ceroulas não os atemorizava nem lhes inspirava respeito. Era um homem como eles, e um homem muito esquisito. Tirava as calças sem mais aquela em pleno campo espacial!

Glogol cambaleou quando se sentiu atingido pelas gargalhadas. Procurou apoio e segurou-se num dos criados que constantemente ficavam a seu lado.

— Vocês pagarão por isso! — gritou com a voz rouca. — Estão ofendendo o Império. O regente robotizado não deixará que essa vergonha passe em brancas nuvens. Tomarei todas as providências para que isso não aconteça.

De uma hora para outra, transformou-se num homem frio e tranqüilo. A voz recuperou o tom habitual, embora o tom de arrogância da mesma não convencesse mais ninguém. Dirigindo-se aos técnicos que se contorciam de tanto rir, disse:

— Vamos logo! Ponham-se a trabalhar. Dentro de dez minutos, quero entrar na nave.

Depois, ordenou ao criado que tirasse as calças.

 

Gucky ainda estava sorrindo quando, dez minutos depois da ordem de Rhodan, voltou a materializar-se no esconderijo situado na floresta. Mal seu vulto adquiriu os contornos definitivos, caiu no chão de folhas macias, completamente exausto e quase estourando de tanto rir. Rhodan, que acompanhara os acontecimentos por via telepática, um tanto contrafeito, só não interveio nestes porque repentinamente se dera conta de que poderiam ter conseqüências de grande alcance. Uma vez abalado o prestígio do inspetor, a fuga de Tolimon se tornaria muito mais fácil.

Marshall e Laury também estavam informados sobre os acontecimentos. Apenas o conde Rodrigo levou um susto quase mortal quando Gucky surgiu repentinamente em meio ao grupo. O que menos compreendia eram os sorrisos dos dois homens, de Gucky e da moça.

— O que aconteceu? — indagou.

Rhodan explicou. O rosto do nobre também se cobriu com um sorriso alegre. Ao que tudo indicava, sabia imaginar perfeitamente como devia ser um conde de cuecas e, face à sua reação, parecia que nem mesmo um homem terreno do século XVII infundiria muito respeito se usasse esse tipo de vestimenta.

— Bem feito, meu pajem — disse, inclinando-se para Gucky e acariciando-o.

— Os homens de Trulan ficarão tão alegres que se esquecerão de procurar-nos.

— Mas não se esquecerão de nossa nave — disse Rhodan com espírito mais realista e pegou o aparelho de tele-direção.

— Está na hora de pensarmos em nossa segurança. Se dermos oportunidade para Glogol, ele impedirá nossa fuga, apesar da vergonha pela qual passou. Aliás, neste instante está usando as calças de um dos seus criados, segundo deduzo através dos pensamentos de alguns dos circunstantes. Coitado!

— Quem? O criado? — procurou certificar-se o conde Rodrigo.

— Tolice! Só pode ser Glogol. As calças que está usando não são listradas — Marshall sorriu enquanto proferia estas palavras.

Rhodan girou algumas rodinhas e ponteiros, apontou a antena fininha na direção do espaçoporto e puxou uma pequena chave, que se movia facilmente para todos os lados.

A pequena tela de orientação não se acendeu, pois não se prestava ao controle numa distância tão reduzida.

— Será que a nave não será perseguida se decolar de repente? — perguntou Marshall em tom preocupado. — Nunca conseguiremos embarcar com a mesma rapidez com que cairão em cima de nós.

Rhodan dirigiu-se para Laury.

— Entregue-me a ampola com o soro, Laury. Teremos que apressar-nos, e eu não quero que a senhora a perca.

Pegou o frasquinho, contemplou-o atentamente por um instante e enfiou-o no bolso. Só depois disso respondeu à pergunta de Marshall.

— É verdade, John. Assim que nossa nave pousar, temos que embarcar e decolar quanto antes. A polícia a seguirá até aqui. Talvez seria conveniente se realizássemos uma manobra de despistamento. Aguardemos para ver o que vai acontecer.

A Koos-Nor surgiu na periferia da cidade e passou a pouca velocidade pouco acima das últimas mansões. Dirigia-se diretamente para a floresta.

Rhodan viu perfeitamente os três ou quatro pontos reluzentes que se aproximavam dos lados e procuraram atacar a nave.

— Era o que eu imaginava — disse. — Gucky, salte para dentro da Koos-Nor e informe o que puder ver. Dirigirei a nave de acordo com as indicações que você me fornecer. Entendido?

— Perfeitamente! — disse o rato-castor e desmaterializou-se.

Perplexo, o conde Rodrigo fitou o lugar vazio deixado por Gucky e achegou-se a Laury. Para ele, a telepatia e a teleportação continuavam a ser uma bruxaria inconcebível, por mais que tentassem explicar-lhe os segredos desses dons.

— Estou na sala de comando. Ativei os campos defensivos. Os aras estão atacando — Gucky fez uma ligeira pausa. Depois prosseguiu no seu relato: — Também liguei o receptor. O inspetor mandou que seus cruzadores entrassem em ação. Querem destruir a Koos-Nor. O que devo fazer?

Rhodan moveu a chave do aparelho de tele-direção. Marshall e Laury viram a nave descrever uma curva fechada e afastar-se em direção ao sol que já se encontrava no ocaso.

— Avise assim que avistar o mar, Gucky. Continue na nave, aconteça o que acontecer. Para você, não haverá o menor perigo.

Sem que o quisesse, Rhodan falara alto, o que o conde, como não-telepata que era, apreciou muito. A resposta de Gucky, porém, veio em silêncio, tornando-se compreensível apenas para Rhodan, Marshall e Laury:

— Perigo? O que vem a ser isso?

Rhodan sorriu, mas logo voltou a assumir um ar sério. Seguiu com os olhos as naves dos aras, que também corriam em direção ao sol. Uma surpresa estava reservada para estas.

Dali a menos de dois minutos, Gucky anunciou:

— O mar está embaixo de mim.

— Muito bem — respondeu Rhodan. — Você descreverá uma curva elegante e cairá para desaparecer sob a água. Amarre-se, para que nada lhe aconteça. Será exatamente dentro de dez segundos.

Gucky não deu resposta direta, mas Rhodan acompanhou seus pensamentos e ficou sabendo que o rato-castor havia compreendido e seguia suas instruções. Mais uma vez, a chave do aparelho de tele-direção foi acionada. A Koos-Nor, que se encontrava a mais de duzentos quilômetros de Perry, reagia a qualquer impulso, por mais ligeiro que fosse. Subiu quase na vertical, ficou parada por um instante e caiu que nem uma pedra.

Qualquer observador teria a impressão de que o mecanismo de propulsão e de direção havia falhado. E vários pares de olhos seguiram os acontecimentos com um máximo de atenção. Trinta segundos depois, Glogol ficou sabendo que o iate caíra ao mar juntamente com o piloto. Com isso, a fuga do falso inspetor fora cortada. Encontrava-se em algum lugar dentro da cidade.

Trulan foi fechada estrategicamente. Ninguém podia sair da cidade.

Outra busca foi iniciada, mais rigorosa que a anterior.

Os agentes e os contrabandistas que trabalhavam para os mercadores galácticos passariam daqui para frente por maus momentos.

 

Quando a Koos-Nor começou a cair, o corpo de Gucky perdeu o peso.

O rato-castor estava bem seguro no assento do piloto. O método de mergulhar uma nave espacial nas águas do mar não era novo. Para os ocupantes não representava nenhum perigo, desde que o casco não vazasse.

A nave bateu na superfície da água. Os campos de absorção reduziram a pressão do impacto a zero no interior da nave.

— A nave está afundando! — transmitiu Gucky para Rhodan. Examinou as telas iluminadas, nas quais o verde foi assumindo tonalidades cada vez mais escuras. Depois de algum tempo, a tela tornou-se negra. — Já devo estar bem fundo.

— Vou deter a nave — respondeu Rhodan — para que a pressão não se torne muito intensa. As naves que estavam atrás de você desapareceram. Se quiser pode voltar para junto de nós.

— Não poderia ficar mais um pouco? Aí na floresta estamos completamente isolados do mundo exterior, mas aqui disponho do receptor. Posso ouvir as instruções de Glogol. Dessa forma saberemos que medidas pretendem tomar contra nós.

Rhodan hesitou um pouco, mas logo pensou:

— Está bem. Mas dentro de exatamente trinta minutos você deverá estar aqui.

Gucky deixou o campo livre e bloqueou seu cérebro. Desatou os cintos e saltitou alegremente pelo corredor, dirigindo-se à despensa.

Até mesmo o estômago de um rato-castor vez por outra precisa de um reforço.

O rádio estava funcionando a todo volume. Os avisos dos grupos de busca chegavam ininterruptamente. Conseguiram localizar um esconderijo de contrabandistas, mas os criminosos lograram fugir sem serem reconhecidos. Alguém confirmou que Árcon havia enviado certo número de couraçados que bloqueavam Tolimon. Essa medida parecia superada, já que a nave do falso inspetor caíra ao mar. Todavia, sabia-se que o impostor não se encontrava no interior do iate. Ainda devia encontrar-se em Trulan juntamente com seu estranho criado.

Gucky cresceu uns cinco centímetros quando ouviu que também estava sendo citado nos comunicados oficiais.

Subitamente teve uma idéia.

Por que não iria deixar os tolimonenses e o tal do Glogol absolutamente seguros de que ele e Rhodan ainda se encontravam na cidade? Dessa forma as operações de busca se concentrariam ainda mais em Trulan, limitando-se a uma área restrita. Dessa forma Rhodan poderia aguardar calmamente em seu esconderijo até que chegasse a escuridão.

Não julgou necessário informar Rhodan sobre a decisão que acabara de tomar. Efetuou um salto cego em direção a Trulan. O fato de que havia quase quinhentos metros de água acima dele não o incomodava nem um pouco.

Gucky rematerializou-se no seu antigo alojamento situado na área dos cortiços, pois era o lugar que melhor podia evocar em sua lembrança. Nada havia mudado. Ao que parecia, o frogh que fora morto era a única criatura que conhecia o esconderijo.

O rato-castor foi até a janela e olhou para a rua. O lugar parecia abandonado. Havia apenas viaturas policiais correndo de um lado para outro, cuspindo verdadeiras legiões de policiais uniformizados, que penetravam rapidamente nas casas. Era de supor que nem mesmo um rato lhes poderia escapar.

Gucky concentrou-se sobre a Praça do Grande Mo, que ficava a cerca de um quilômetro de distância, e saltou.

A teleportação era uma capacidade estranha e excelente. Bastava pensar no ponto de destino, concentrar-se sobre o mesmo e desmaterializar-se, para vencer a distância sem a menor perda de tempo. Uma vez no destino, a gente voltava a rematerializar-se.

Foi o que Gucky fez.

Naturalmente o salto envolvia um grande risco. Era bem verdade que não havia o perigo de materializar-se no interior de outra porção de matéria. Mas se a gente voltasse ao espaço normal no meio de um grupo de inimigos, e se estes reagissem com suficiente rapidez...

Felizmente para Gucky, não o fizeram.

O rato-castor surgiu quase no centro da praça e viu-se rodeado por uma multidão de paisanos, olhando todos na mesma direção. O exército patrulhava a área, com as armas engatilhadas nas mãos. Tangendo os transeuntes para o interior das casas, as viaturas policiais corriam, com as sereias ligadas, pela larga via principal.

Gucky espreitou em torno. Encontrou olhares espantados, nos quais a compreensão começou a despontar aos poucos. Seu retrato devia ter sido espalhado por todos os cantos juntamente com o do arcônida.

Quando os primeiros dedos apontaram-no, Gucky começou a correr.

Logo o inferno ficou às soltas.

As pessoas corriam atrás dele, balbuciavam palavras desconexas e caíam por cima de obstáculos surgidos não se sabe de onde. Para Gucky não foi nada fácil livrar-se dos perseguidores com suas pernas curtas, ainda mais que a polícia já notara algo de estranho e quis saber a causa do tumulto.

— É o criado do falso inspetor! — gritou alguém com a voz rouca e na corrida derrubou um policial. Por isso outro policial o segurou, impedindo-o de agarrar o fugitivo. Quando o engano foi esclarecido, Gucky já se encontrava na extremidade da praça.

O grito do paisano propagou-se pela multidão. As forças armadas começaram a agir imediatamente. O bairro foi bloqueado e uma busca geral foi iniciada.

Gucky preferiu não desaparecer pura e simplesmente diante das vistas dos tolimonenses. Deviam ter a impressão de que se escondera no interior da casa. Alguns saltos curtos não chamavam a atenção de ninguém, e valia a pena executá-los, mesmo que só o fizessem avançar alguns metros de cada vez.

Encontrou um espaço livre e atravessou a rua correndo, passando entre os veículos em movimento e os policiais exaltados. Antes que alguém compreendesse o que estava acontecendo, chegou até a frente dos prédios.

Agora tinha tempo.

Foi caminhando tranqüilamente, balançando o corpo, como se nada tivesse que ver com aquela caçada. Menos de dez segundos depois, voltaram a descobri-lo. Armas foram levantadas, gritos soaram, comandos foram berrados. Um oficial aproximou-se correndo.

Gucky descreveu uma curva elegante para a esquerda e desapareceu numa ampla porta. Quando viu que não havia mais ninguém por perto, teleportou-se para o telhado do edifício. Dali observou o resultado de sua ação por meio da telepatia. Avançou cautelosamente até a beira do telhado e olhou para baixo.

A área que se estendia diante da entrada do prédio parecia um campo de treinamento militar.

A notícia de sua aparição devia ter corrido com a velocidade do vento, pois naquele instante um carro aberto, vindo da praça, aproximou-se velozmente. Os freios chiaram e o inspetor desceu.

Glogol trouxera uma calça de reserva, pois mais uma vez os circunstantes contemplaram a figura colorida do almirante da frota espacial dos arcônidas. Brandindo o radiador, abriu caminho e viu-se diante do oficial que comandava as buscas.

Gucky “ouviu” cada palavra trocada lá embaixo.

— Estava se referindo ao criado do falso inspetor? Onde está ele?

— Fugiu para dentro deste prédio. Meus soldados estão à sua procura.

— O prédio tem alguma saída pelos fundos?

— Todas as saídas estão sendo vigiadas.

Glogol pigarreou.

— Avise assim que consiga pôr as mãos no sujeito. Quero interrogá-lo pessoalmente.

— Nós o prenderemos. Não pode estar longe. As pessoas que o viram dizem que se desloca com muita dificuldade. Trata-se de um animal de reduzido grau de inteligência, que devia estar no zoológico e não...

O oficial não conseguiu prosseguir.

Seu boné parecia ter sido agarrado por alguma mão mágica: desceu e cobriu-lhe o rosto. Subitamente viu-se no escuro. Glogol, que não compreendia mais nada, contemplou a feitiçaria, que naquele instante não poderia deixar de provocar seu espanto. Mas logo lembrou-se do que acontecera com sua calça. Olhou cautelosamente para todos os lados, guardou a pistola e usou ambas as mãos para segurar essa peça de sua vestimenta.

Parecia que tudo era possível naquele planeta maluco.

— Deixe de tolices e procure aquele gatuno! — disse com uma calma surpreendente e voltou ao carro, deixando-se cair no assento com uma atitude de alivio. Nada mais lhe poderia acontecer. — E não se esqueça: eu o quero vivo.

O carro afastou-se.

O oficial pôs o boné em ordem, contemplou-o por alguns segundos, sacudiu a cabeça e voltou a colocá-lo. Correu para dentro do prédio suspeito, a fim de animar seus homens a trabalharem com maior disposição.

Uma coisa era certa: as pessoas que estavam procurando deviam estar por aqui.

E seriam encontradas!

 

Rhodan olhou para o relógio e franziu a testa.

— Gucky já devia ter chegado. Os trinta minutos já passaram. Daqui a duas horas, começará a ficar escuro.

— Deve estar ouvindo rádio — conjeturou Marshall. — Por isso, não é de admirar que bloqueie os pensamentos e se esqueça do tempo.

Tudo estava em silêncio em torno deles. Nos campos e nos prados, não havia uma única pessoa. As patrulhas policiais que andavam por entre as mansões de repente desapareceram em direção ao centro da cidade. Procediam sistematicamente, mas não se interessavam pela floresta.

— Ao que parece, realmente acreditam que estamos em Trulan — disse Rhodan aliviado.

Marshall fechou os olhos e ficou “em recepção”. Não foi fácil cristalizar alguns impulsos definitivos em meio aos pensamentos que o atingiam e entendê-los. Mas conseguiu.

— Novas diretivas! — cochichou como que para si mesmo. — Uma das pessoas procuradas foi vista na Praça do Grande Mo — de repente, abriu os olhos e fitou Rhodan com uma impressão de espanto. — Foi o criado do falso inspetor!

Rhodan suspirou.

— É Gucky! Só pode ser ele. Seu aspecto é singular; não pode ser confundido com ninguém.

— A não ser com outro rato-castor — obtemperou Marshall.

— O único rato-castor que existe fora de Vagabundo, o planeta do sol moribundo, é Gucky. Só pode ter sido ele. Saiu da Koos-Nor e andou fazendo das suas — Rhodan ficou muito sério. — Esperem até que ele volte, que eu lhe digo o que acho do seu procedimento. É uma...

— Pois não — piou Gucky com a consciência não muito tranqüila e recuou quando Rhodan se virou abruptamente em sua direção. — Apenas quis...

— O que foi que você quis, Guck? — quando Rhodan omitia o y, isso era mau sinal. — Vamos logo, fale! Por que não seguiu minhas instruções?

— Você mesmo disse em certa ocasião que, se eu conseguir alguma coisa boa com um procedimento arbitrário, sempre me perdoará.

— Ah, é? E daí? Isso modifica alguma coisa no fato de você aparecer bem no centro de Trulan e tocar a polícia para cima de nós?

— Pelo contrário, chefe, eu a toquei para um lugar em que não estamos. Para a Praça do Grande Mo...

— Está bem, está bem! — disse Rhodan para encerrar o debate, pois já compreendera tudo. — Mas quero que no futuro você me informe sobre os trabalhos autônomos que pretende realizar. Qual foi o resultado dos seus esforços?

— Fui visto no centro da cidade, onde estão revistando casa por casa. Ninguém pensa nesta floresta.

Rhodan olhou para a cidade. Não se via mais ninguém na zona periférica. Os comandos deviam estar a caminho das zonas centrais.

Voltou a dirigir-se a Gucky.

— Está bem, meu caro. Vamos fechar um olho.

— Por que não fecha os dois? — sugeriu Gucky.

Rhodan sorriu e voltou a sentar.

— Vamos esperar até que escureça.

 

Depois do pôr do sol, o tráfego aeroespacial diminuía consideravelmente. Só vez por outra, uma unidade menor sobrevoava as zonas periféricas de Trulan e iluminava a área com seus holofotes.

Mesmo nas altitudes maiores, viam-se de quando em quando as luzes dos veículos atmosféricos. A frota do Império devia estar estacionada numa região mais afastada do espaço, a fim de capturar qualquer fugitivo que conseguisse romper o primeiro anel.

Rhodan contava com essa possibilidade quando, pela meia-noite, pegou o aparelho de tele-direção e ligou-o.

O conde Rodrigo estava dormindo. Laury, que estava deitada a seu lado, também dormia.

“Aquelas duas criaturas parecem feitas uma para a outra”, pensou Rhodan, “mas várias eras os separam.”

O que diria Rodrigo da Terra do século vinte e um? Conseguiria adaptar-se a ela?

Marshall se mexeu. Estava recostado no tronco de uma árvore. Gucky, que estava deitado no seu colo, cochilava e murmurava coisas incompreensíveis. Num momento assobiou baixinho e voltou a encolher-se.

Rhodan sorriu. Seus olhos já se haviam acostumado à escuridão. Percebia todos os detalhes. Os controles do aparelho de tele-direção emitiam um brilho suave. Lá estava ele com seu grupo, num planeta estranho e em meio a uma verdadeira malta de habitantes hostis, praticamente sem armas e contando apenas com a nave de luxo submersa.

Mas possuía aliados cujo valor excedia qualquer arma. Podia contar com Gucky, o mutante de três dons, e Marshall, o telepata, seu grande amigo. Quanto a Laury... bem, no momento não poderia contar muito com ela, mas afinal ela lhe conseguira o soro. E ainda havia o conde Rodrigo de Berceo, um homem muito hábil no manejo da espada.

Sem fazer o menor ruído, o iate de luxo desceu sobre a folhagem e pousou suavemente na pequena clareira.

Rhodan aguçou o ouvido para todos os lados e procurou estabelecer contato com qualquer cérebro que se achasse nas proximidades. Mas, por mais que se esforçasse, não encontrou nada. Ninguém percebera o fenômeno.

Deixou que seus companheiros dormissem e dirigiu-se à pequena nave que, naquela clareira, tinha o aspecto de uma gigantesca baleia. O envoltório prateado reluzia sob a luz das estrelas distantes. Estava molhado com a água do mar.

Rhodan abriu a escotilha externa. Só após isso, foi acordar os amigos.

Menos de cinco minutos depois, o planeta mergulhou no espaço e penetrou no dia eterno do infinito. Tolimon transformou-se numa foice prateada. Trulan era perfeitamente visível sob a forma de um diadema cintilante cravado na face noturna do planeta. Ainda continuavam a procurar o falso inspetor e seu estranho criado.

Rhodan fixou os controles e virou-se.

— Rodrigo, a esta hora o senhor não pode fazer nada. Laury lhe mostrará seu camarote. Procure dormir. Não sabemos o que nos aguarda, e, por isso mesmo, é preferível que o senhor esteja descansado. Laury também pode ir para a cama.

Esperou que os dois se afastassem, acompanhados por um sorriso de Gucky. Marshall lançou um olhar indagador para Rhodan.

— E nós?

— Quero que fiquem aqui até que realizemos a primeira transição. Para isso precisamos desenvolver a velocidade da luz, que só será atingida dentro de dez minutos. Esses dez minutos representam a fase mais crítica do empreendimento. Marshall, ocupe os controles do desintegrador pesado e destrua qualquer atacante que se aproxime demais. Desde logo lhe dou permissão para abrir fogo.

Marshall confirmou com um gesto e dirigiu-se à cabine apertada do comando de fogo. Gucky seguiu-o com um olhar pensativo.

— E eu? — lamentou-se. — O que é que eu vou fazer?

— Deite e aguarde. Observe as telas. Manipule os controles de radar. Vendo qualquer nave se aproximar, avise-me. Como vê, há muita coisa a fazer. Se não estou enganado, daqui a pouco vai acontecer muita coisa.

Rhodan não estava enganado.

Na tela de radar, surgiu uma mancha verde e oval, que se aproximava obliqua-mente à linha de sua trajetória. Os algarismos desfilavam sobre os quadros luminosos retangulares, fornecendo indicações sobre a distância, a velocidade e as dimensões do objeto.

Rhodan parecia pensativo; fez “hum” e disse:

— E um cruzador pesado. Será preferível darmos o fora quanto antes. No momento nossa velocidade é pouco inferior a 0,8 luz. Vai demorar mais um pouco. Que pena!

— Marshall pode dar cabo dele — resmungou Gucky.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Muitas missões já falharam porque os homens que as executavam superestimaram suas forças e habilidades. Não estou disposto a assumir este risco. Não estamos em condições de enfrentar um cruzador pesado. Teremos sorte se nosso campo repulsor agüentar, isto é, se o cruzador não o estourar na primeira tentativa.

— Não quero ser estourado. Afinal, não sou nenhuma bolha de sabão — disse Gucky.

— Não é mesmo — confirmou Rhodan com o rosto mais sério do mundo. Examinou os controles. — A velocidade é de 0,89 luz. Daqui a pouco estará na hora — pegou o microfone do intercomunicador. — Marshall, espere até que o inimigo abra fogo. Quando isso acontecer, responda imediatamente.

— Combinado, chefe — respondeu Marshall tranqüilamente.

A nave também se tornou perceptível nas telas visuais. Era um dos veículos esféricos de duzentos metros de diâmetro que Rhodan incluíra nas unidades da classe Terra.

Rhodan não tinha o menor interesse em destruir uma nave do Império Arcônida, que já fora seu aliado e provavelmente voltaria a sê-lo.

0,94 da velocidade da luz. Faltavam poucos segundos.

Gucky já ligara o receptor. Girou os controles. Subitamente uma voz potente abafou todos os ruídos. Estava sendo transmitida em todas as faixas e era evidente que vinha da outra nave, que descrevia uma curva para adaptar sua rota à do iate.

O cruzador pesado e a Koos-Nor atravessavam o espaço lado a lado. De ambos os lados, as peças de artilharia estavam em posição de disparo, mas o gigante espacial ainda hesitava em partir para o ataque.

A voz tornou-se mais nítida.

— ...em nome do Império intimamos o senhor a fazer cessar imediatamente a aceleração. Renda-se, pois do contrário abriremos fogo. O regente do Império quer falar com o senhor. Responda!

Rhodan fez um sinal para Gucky. O rato-castor confirmou com um gesto e ligou o transmissor para a faixa adequada.

Então o cérebro robotizado de Árcon estava interessado em conhecer o arcônida que se atrevera a desempenhar o papel de inspetor. Rhodan sorriu, pois compreendia as razões que animavam a lógica do robô positrônico que controlava um império estelar. Para dar conta da tarefa quase impossível, a máquina precisava de recursos humanos, especialmente da iniciativa humana. Um arcônida que conseguisse enganar todo um mundo para passar por inspetor também seria capaz de executar tarefas positivas.

Por isso, o cérebro robotizado dera ordem para que o malfeitor não fosse morto. Rhodan poderia ficar tranqüilo. Em hipótese alguma o cruzador pesado abriria fogo.

Assim, sentiu-se bem mais calmo quando falou ao microfone:

— Mensagem entendida. Quem é o senhor?

Fazia questão de ganhar tempo. No momento em que penetrasse no hiperespaço, estaria irremediavelmente fora do alcance de seus perseguidores. O compensador já havia sido ligado. Ninguém notaria o menor abalo do complexo espaço-temporal, portanto não seria possível localizá-los. O iate de luxo desapareceria nas profundezas do espaço intergaláctico sem deixar o menor vestígio.

— Aqui fala RO-867, representante do regente. Renda-se!

Então era um robô! O cruzador pesado estava sendo dirigido por um robô de combate dos arcônidas. Isso tornava a situação muito mais fácil, pois um robô em hipótese alguma poderia afastar-se das diretivas fornecidas pelo regente. No homem, sempre havia o elemento da capacidade de decisão, que poderia proporcionar surpresas. Com um robô, as coisas eram diferentes. Depois de ter reconhecido os motivos que animavam o regente robotizado, Rhodan percebeu que sua vida não corria o menor perigo. O robô recebera instruções para capturá-lo vivo, e ele se ateria rigidamente a essas instruções, mesmo que dessa forma a presa lhe escapasse.

— Preciso ter certeza de que o senhor não está blefando, RO-867. Forneça sua sigla de identificação.

O estratagema não era muito convincente, pois o velocímetro já indicava 0,98 luz. Faltavam apenas dez segundos.

— Dou-lhe mais cinco segundos — disse o alto-falante.

No mesmo instante, vários relampejos surgiram na zona equatorial da outra nave.

Os feixes de raios ofuscantes cruzaram a trajetória da Koos-Nor, mas não produziram o menor efeito. Rhodan já não tinha tanta certeza: não sabia se aquilo eram disparos de advertência, ou se era um fogo mal dirigido.

Colocou a mão sobre a chave do dispositivo de hipersalto.

Faltavam dois segundos. Executariam um salto às cegas para outra dimensão. Voltariam a materializar-se em algum lugar, num raio de cem a duzentos anos-luz.

— É tarde, RO-867! — disse com a voz tranqüila e puxou a chave.

O gigantesco veículo esférico desapareceu. No mesmo segundo, o lugar em que se encontrava foi ocupado por estranhas constelações, que antes não se encontravam lá.

Rhodan examinou uma escala.

— Cento e vinte e três anos-luz — murmurou. — Conseguimos.

Gucky escorregou do sofá para o chão. Estava radiante.

— Pois vamos para a Terra, chefe. Tenho que resolver um assunto com Bell. Foi por causa dele que em Vênus alguns colonos miseráveis...

— Por enquanto nem pense na Terra — disse Rhodan, sacudindo a cabeça. — Temos que esperar mais um pouco. Você sabe o que aconteceu nos últimos seis decênios? Quem sabe se não estão em condições de determinar a localização dos saltos, mesmo que o compensador esteja ligado? Pois então! Se isso acontecesse, eles nos seguiriam e encontrariam a Terra. Vamos passar algumas semanas no espaço. Andaremos por aí e procuraremos um planeta isolado. De lá ficaremos captando os sons do Universo e esperaremos até que a situação fique mais tranqüila. O procedimento que adotamos em Tolimon deve despertar algumas lembranças nos bancos de dados do regente robotizado. Mais dia menos dia, o cérebro se lembrará de Rhodan.

— Um mundo isolado? — Gucky contorceu a boca e fez desaparecer o dente roedor. — Onde será isso?

— Em qualquer lugar — disse Rhodan e partiu para a segunda transição.

 

Depois de quatro transições executadas a esmo, a Koos-Nor materializou-se diante de um estranho sistema solar.

Uma gigantesca estrela vermelha estava acompanhada de um anão azulado que possuía um planeta próprio. A estrela principal tinha dois.

Um sistema solar geminado, cujos sóis só distavam poucos minutos-luz um do outro.

O receptor de rádio permaneceu mudo. Era quase certo que nessa parte do Universo não havia seres inteligentes. Por isso, era de supor que os três planetas não fossem habitados. Por enquanto não se poderia saber se o ser humano poderia sobreviver em algum deles.

Gucky lançou um olhar desconfiado para os dois sóis.

Rhodan leu seus pensamentos. Um sorriso amargo esboçou-se em seu rosto.

— É isso mesmo, Gucky! Se qualquer desses planetas tiver um ambiente apropriado, passaremos por aqui nossas férias. Ninguém nos procurará nesta área. Assim que o ambiente estiver mais tranqüilo na Via Láctea, rastejaremos de volta à Terra.

O rosto de Gucky era um modelo de decepção.

— Férias? Lá embaixo não deve haver cinema, nenhum Bell para chatear, nenhuma moça...

— Não diga tolices! — Rhodan parecia contrariado. Ligou o aparelho de análises espectrais para examinar os três planetas. — Acorde o pessoal.

Gucky arrastou-se em direção à porta, olhou para o relógio e virou-se.

— Por que vamos acordá-los? Nem tiveram tempo para dormir. Ao menos, Laury e o titio espadachim não tiveram.

Rhodan levantou a cabeça e lançou um olhar prolongado para o rato-castor.

— Bloqueie sua mente quando quiser pensar uma coisa dessas, Gucky — disse em tom sério. — Laury é uma moça decente e o conde também...

— Sim — disse Gucky e teve a cautela de ir até a porta, abri-la e sair ao corredor antes de prosseguir. — É uma moça decente, mas também é uma moça apaixonada.

Depois de dizer estas palavras, desapareceu.

Rhodan olhou para a porta fechada e aguardou pacientemente os resultados das análises espectrais automáticas dos três planetas.

Quando Marshall entrou na sala de comando, ainda sonolento, a decisão já havia sido tomada.

A Koos-Nor deslocava-se à velocidade da luz em direção ao planeta solitário do sol azul.

— Gucky falou em férias — disse Marshall. — Será que o senhor estava falando sério?

— É mais ou menos isso, John. Serão férias pagas. Ainda não sabemos quem vai pagar a conta. Faço votos de que não seja eu.

A porta voltou a abrir-se. Gucky entrou, segurando cautelosamente a espada do conde. Saltou para o sofá e colocou a arma assassina ao seu lado.

— Atirou-a contra mim — murmurou com a voz preocupada. — Este conde é um homem muito esquentado. Afinal, eu não poderia saber...

— Você não é telepata? — disse Rhodan com uma recriminação bem perceptível na voz.

Marshall disse em tom sarcástico:

— Seu invejoso de uma figa!

— Hum — chilreou Gucky e passou a dedicar um interesse surpreendente ao planeta que se aproximava.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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