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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MISTERIOSO SR. QUIN / Agatha Christie
O MISTERIOSO SR. QUIN / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MISTERIOSO SR. QUIN

 

Ouviu o arquejo muito leve que ela deu, e sentiu que tocara no ponto. Uma coisa cruel, porém necessária. Era a vontade dela contra a sua.

— Já que adivinhou tanto, não importa que lhe diga a verdade. Não deveria tê-lo deixado entrar esta tarde. Devia ter percebido que espécie de homem é.

 

                                   

 

A Chegada do Sr. Quin

ERA A VÉSPERA DE ANO NOVO. OS membros mais idosos do grupo de convidados que se hospedavam em Royston estavam reunidos no salão.

O Sr. Satterthwaite sentia-se satisfeito porque os jovens tinham ido dormir. Não gostava de grupos de jovens. Acha¬va-os desinteressantes e grosseiros. Faltava-lhes sutileza e, com o passar do tempo, ele apreciava cada vez mais as sutilezas.

O Sr. Satterthwaite tinha 62 anos — um homem ligeira¬mente encurvado, mirrado, com um rosto observador que se assemelhava curiosamente ao de um duende, e um intenso e excessivo interesse pela vida dos outros. Toda a sua vida, por assim dizer, ele se sentara na primeira fila de cadeiras e obser¬vara diante de si o desdobramento dos vários dramas da na¬tureza humana. Seu papel fora sempre o do espectador. Só agora, com o fardo da velhice, tornava-se cada vez mais crí¬tico diante do espetáculo que lhe era apresentado. Exigia algo um tanto fora do comum.

Sem dúvida, tinha faro para essas coisas. Sabia, instinti¬vamente, quando estava perto dos elementos do drama. Como um cavalo de combate, ia atrás do cheiro. Desde sua chegada a Royston, aquela tarde, seu estranho sexto sentido emergira, compelindo-o a se preparar. Algo interessante estava aconte¬cendo, ou ia acontecer.

O número de participantes da reunião não era grande. Havia Tom Evesham, o amável e bem humorado anfitrião, e sua mulher, séria e interessada em política, em solteira Lady Laura Keene. Havia Sir Richard Conway, militar, viajante e esportista; havia seis ou sete jovens cujos nomes o Sr. Satter¬thwaite não guardara, e havia os Portais.

Eram os Portais que interessavam ao Sr. Satterthwaite.

Nunca vira Alec Portal antes, mas sabia tudo a respeito dele, conhecera seu pai e seu avô. Alec Portal tinha pratica¬mente o mesmo tipo. Era um homem de quase 40 anos, louro e de olhos azuis como todos os Portais, apreciador de esportes, hábil no jogo, carente de imaginação. Não havia nada fora do comum em Alec Portal. A boa e sadia cepa inglesa de costume.

Mas sua mulher era diferente. Uma australiana, segundo sabia o Sr. Satterthwaite. Portal estivera na Austrália, há dois anos, encontrara-a lá, casara-se com ela e trouxera-a consigo. Ela nunca estivera na Inglaterra antes de seu casamento. De qualquer modo, não se parecia com nenhuma outra austra¬liana das que o Sr. Satterthwaite conhecera.

Observava-a agora, disfarçadamente. Mulher interessante — e muito. Tão parada e, ainda assim — viva. Viva! Era exatamente isso. Não realmente bonita — não, não se diria que ela era bonita, mas havia nela uma espécie de magia funesta que não escaparia a ninguém, que nenhum homem deixaria de perceber. Falou aqui o lado masculino do Sr. Sat¬terthwaite, mas o lado feminino (pois o Sr. Satterthwaite tinha uma boa parcela de feminilidade) estava igualmente interessa¬do em outra questão: por que a Sra. Portal pintava o cabelo?

Nenhum outro homem teria, provavelmente, notado que ela pintava o cabelo, mas o Sr. Satterthwaite percebeu. Co¬nhecia todas essas coisas. E o fato deixou-o perplexo. Muitas mulheres de cabelos escuros pintam-nos de louro; mas nunca, antes, vira uma loura que pintasse o cabelo de negro.

Tudo, nela, intrigava-o. Com uma estranha intuição, teve certeza de que ela era ou muito feliz ou muito infeliz — mas não sabia qual das duas coisas, e ficou aborrecido por não saber. Além disso, havia o curioso efeito que ela causava no marido.

Ele a adora, disse de si para consigo o Sr. Satterthwaite, mas algumas vezes tem — sim, medo dela! Isto é muito inte¬ressante. Excepcionalmente interessante.

Portal bebia demais. Quanto a isto, não havia dúvida. E tinha um jeito curioso de observar a mulher, quando ela não estava olhando.

Nervos, pensou o Sr. Satterthwaite. O sujeito está nervosís¬simo. Ela também sabe disso, mas não vai mover uma palha.

Sentiu uma enorme curiosidade a respeito do par. Estava acontecendo algo que ele não podia compreender.

Foi afastado de suas meditações sobre o assunto pelo bater solene de um grande relógio.

— Doze horas — disse Evesham. — Dia de Ano Novo. Feliz Ano Novo... para todos. Na verdade, este relógio está cinco minutos adiantado. Não sei por que as crianças não espe¬raram acordadas a chegada do Ano Novo.

— Não acredito de modo algum que tenham realmente ido dormir — disse placidamente sua mulher. — Estão, pro¬vavelmente, colocando escovas de cabelo, ou algo parecido, em nossas camas. Este tipo de coisa os diverte muito. Não sei por quê. Nunca teríamos permissão para fazer uma coisa dessas, em meus tempos de criança.

— Autre temps, autre moeurs — disse Conway, sorrindo.

Era um homem alto, com aparência militar. Ele e Evesham eram quase do mesmo tipo — homens honestos, corretos, bon¬dosos, sem maiores ambições intelectuais.

— Nos meus tempos de criança, todos nos dávamos as mãos, formando um círculo, e cantávamos o Auld Lang Syne — prosseguiu Lady Laura. — “Deverá a velha amizade ser esquecida” — sempre penso em como a letra é comovente.

Evesham mexeu-se, sem jeito.

— Pare com isso, Laura — murmurou. — Aqui não!

Caminhou através do amplo salão onde estavam sentados e acendeu mais uma lâmpada.

— Que tolice a minha — disse Lady Laura, sotto voce. -— Faz com que ele recorde o pobre Sr. Capel, naturalmente. Querida, o fogo está quente demais para você?

Eleanor Portal fizera um movimento brusco.

— Obrigada. Vou empurrar minha cadeira um pouco mais para trás.

Que linda voz tinha ela — uma dessas vozes baixas, murmurantes, cheias de ecos, que ficam na memória, pensou o Sr. Satterthwaite. O rosto dela estava agora na sombra. Que pena.

De seu lugar, na sombra, ela voltou a falar.

— O Sr. Capel?

— Sim. O primeiro dono desta casa. Ele se matou com um tiro, sabe. Oh! Está bem, Tom, meu querido, não vou falar disso, se você não quer. Foi um grande choque para Tom claro, porque ele estava aqui, quando aconteceu. O senhor também, não foi, Sir Richard?

— Sim, Lady Laura.

Um relógio antigo, a um canto, grunhiu, chiou, resfolegou asmaticamente e, depois, bateu as doze.

— Feliz Ano Novo — resmungou Evesham, maquinal¬mente.

Lady Laura enrolou seu tricô, com alguma deliberação.

— Bem, já vimos a chegada do Ano Novo — comentou, e acrescentou, olhando para a Sra. Portal: — Que acha, mi¬nha querida?

Eleanor Portal ergueu-se de um salto.

— Para a cama, sem dúvida alguma — disse, jocosamente.

Ela está muito pálida, pensou o Sr. Satterthwaite, enquan¬to também ele se erguia e começava a mexer nos castiçais. Normalmente, não é tão pálida assim.

Acendeu o castiçal e entregou-lhe com uma curvatura engraçada, à moda antiga. Ela tomou-o de suas mãos, com uma palavra de agradecimento, e subiu rapidamente as escadas.

De repente, um impulso muito estranho tomou conta do Sr. Satterthwaite. Desejou ir atrás dela — para dar-lhe forças. Tinha a estranha sensação de que ela estava, de algum modo, em perigo. O impulso morreu e ele sentiu-se envergonhado. Ele também estava ficando nervoso.

Ela não olhara para o marido, enquanto subia a escada, mas agora voltou a cabeça e fitou-o por sobre o ombro, longa e perscrutadoramente, com esquisita intensidade. Isto afetou estranhamente o Sr. Satterthwaite.

Surpreendeu-se dando um boa noite de maneira bastante perturbada à sua anfitrioa.

— Por certo espero que este vá ser um Feliz Ano Novo — estava dizendo Lady Laura. — Mas a situação política pa¬rece carregada de graves incertezas.

— Estou certo disso — disse o Sr. Satterthwaite com seriedade. — Estou certo disso.

— Só espero — continuou Lady Laura sem a menor mu¬dança de tom — que seja um homem bem moreno o primeiro a cruzar a soleira da porta. Conhece, por certo, essa supersti¬ção, Sr. Satterthwaite? Não? O senhor me deixa espantada. Para dar sorte à casa, é preciso que seja um homem escuro o primeiro a passar pela porta no dia de Ano Novo. Meu Deus, espero não encontrar nada de muito desagradável em minha cama. Nunca confio nas crianças. Têm tanta imagina¬ção.

Balançando a cabeça como quem espera o pior, Lady Laura subiu majestosamente a escadaria.

Depois da saída das mulheres, as cadeiras foram puxadas em semicírculo para perto dos troncos que ardiam na grande lareira aberta.

— Digam quando chega — falou Evesham, com hospi¬talidade, segurando a garrafa de uísque.

Quando todos haviam dito que chegava, a conversa vol¬tou ao assunto vetado antes.

— Você conheceu Derek Capel, não é, Satterthwaite? — perguntou Conway.

— Sim... ligeiramente.

— E você, Portal?

— Não, jamais o vi.

Disse isso de maneira tão enfática e defensiva que o Sr. Satterthwaite examinou-o com espanto.

— Detesto quando Lady Laura fala nisso — disse Eve¬sham devagar. — Depois da tragédia, sabem, este lugar foi vendido a um grande industrial. Ele foi embora depois de um ano... não ficou satisfeito, ou algo parecido. Falou-se uma porção de besteiras a respeito de assombração e isto fez a casa ficar com má fama. Depois, quando Laura fez com que eu me candidatasse a West Kidleby, naturalmente era preciso viver nesta região e não foi tão fácil encontrar uma morada adequada.  Royston estava à venda por baixo preço e... bem, afinal, acabei por comprá-la. Isso de fantasmas é tolice mas, de qualquer modo, não é agradável lembrar que se vive numa casa onde um de seus próprios amigos suicidou-se com um tiro. Meu pobre Derek... nunca saberemos por que ele fez aquilo.

— Não será o primeiro nem o último a se matar sem poder dar uma explicação — disse Alec Portal lentamente.

Levantou-se e serviu-se de outra dose, derramando o uís¬que com liberalidade.

Ele está com um problema sério — disse de si para consigo o Sr. Satterthwaite. — Muito sério mesmo. Gostaria de saber de que se trata.

— Meu Deus! — exclamou Conway. — Ouçam o vento. A noite está tempestuosa.

— Uma noite ideal para os fantasmas passearem — disse Portal, dando uma gargalhada incontida. — Todos os demô¬nios do inferno estão às soltas esta noite.

— Segundo Lady Laura, até o mais negro deles nos daria sorte — observou Conway, rindo. — Ouçam!

Soprou outra terrível rajada de vento e, quando se dis¬tanciava, ouviram-se três fortes batidas na grande porta antiga. Todos estremeceram.

— Quem, pelo amor de Deus, poderá ser, a esta hora da noite? — gritou Evesham.

Entreolharam-se.

— Vou abrir — disse Evesham. — Os criados já foram dormir.

Caminhou até a porta, atrapalhou-se um pouco com as pesadas trancas e, finalmente, abriu-a de um só ímpeto. Uma gelada rajada de vento varreu o salão.

Emoldurada pelo vão da porta, estava uma figura de ho¬mem, alto e magro. Ao Sr. Satterthwaite, que observava a cena, pareceu, por algum curioso efeito causado pelo vitral existente sobre a porta, estar ele vestido com uma roupa de todas as cores do arco-íris. Depois, quando avançou, viu-se que se tratava de um homem, esbelto e moreno.

— Devo, realmente, pedir desculpas por esta intrusão — disse o estranho, em voz agradável e uniforme. — Mas meu carro quebrou. Nada de excepcional, o motorista está consertando-o, só que vai demorar cerca de uma hora e está tão terrivelmente frio aí fora...

Interrompeu-se e Evesham tomou rapidamente a palavra.

— Imagino que sim. Entre e beba alguma coisa. Não po¬deremos prestar-lhe alguma ajuda com relação ao carro?

— Não, obrigado. Meu empregado sabe o que fazer. A propósito, meu nome é Quin — Harley Quin.

— Sente-se, Sr. Quin — disse Evesham. — Sir Richard Conway, o Sr. Satterthwaite, o Sr. Portal. Meu nome é Evesham.

O Sr. Quin correspondeu às apresentações e se deixou cair na cadeira que Evesham havia, hospitaleiramente, puxado para a frente. Ao sentar-se, um efeito da claridade do fogo lançou uma faixa de sombra sobre seu rosto, dando quase a impressão de uma máscara.

Evesham atirou mais umas duas toras no fogo.

— Uma bebida?

— Obrigado.

Evesham levou-a e perguntou, enquanto ele bebia.

— Conhece bem esta parte do mundo, Sr. Quin?

— Estive por aqui há alguns anos.

— É mesmo?

— Sim. Esta casa pertencia, então, a um homem cha¬mado Capel.

— Ah! Sim — disse Evesham. — Pobre Derek Capel. O senhor o conhecia?

— Sim, eu o conhecia.

As maneiras de Evesham sofreram ligeira modificação, quase imperceptível para alguém que não tivesse estudado o caráter inglês. Antes, continham uma sutil reserva; agora, esta fora afastada. O Sr. Quin conhecera Derek Capel. Ele era o amigo de um amigo e, como tal, uma testemunha passível de ser invocada e plenamente digna de crédito.

— Caso espantoso, aquele — disse ele confidencialmente. — Estávamos justamente falando dele. Eu lhe digo, foi contra a vontade que comprei esta propriedade. Se houvesse qualquer outra coisa adequada...  Mas não havia. Sabe, eu estava na casa, na noite em que ele se matou — Conway também — e, palavra de honra, sempre esperei ver o seu fantasma.

— Um negócio difícil de se explicar — disse o Sr. Quin, lenta e deliberadamente, e fez uma pausa, com o, ar de um ator que acaba de soltar uma deixa importante.

— Realmente inexplicável — interveio Conway. — A coisa toda é um mistério insolúvel... sempre será.

— Tenho minhas dúvidas — disse o Sr. Quin com reserva. — Sim, Sir Richard, o que estava dizendo?

— Espantoso... eis o que foi. Um homem na flor da mocidade, alegre, despreocupado, sem o menor problema deste mundo. Cinco ou seis velhos camaradas hospedados com ele. No jantar, estava no auge da vitalidade, cheio de planos para o futuro. E, da mesa de jantar, ele sobe direto ao seu quarto, tira da gaveta um revólver, mata-se. Por quê? Ninguém nunca soube. Ninguém jamais saberá.

— Não é uma afirmação demasiado radical, Sir Richard? — perguntou o Sr. Quin, sorrindo.

Conway olhou para ele.

— Que quer dizer? Não compreendo.

— Um problema não é necessariamente insolúvel só por¬que até então não foi encontrada sua solução.

— Ora! Veja, meu caro, se nada veio à tona na época, não é provável que venha agora...  dez anos depois.

O Sr. Quin balançou de leve a cabeça.

— Discordo do senhor. A prova da História vai de en¬contro à sua opinião. O historiador contemporâneo nunca es¬creve a História com tanta veracidade como aquele de uma geração posterior. É uma questão de se chegar à perspectiva verdadeira, de ver as coisas na sua devida proporção. Diria que, como tudo o mais, é uma questão de relatividade.

Alec Portal inclinou-se para a frente, com o rosto dolo¬rosamente contraído.

— Tem razão, Sr. Quin — exclamou — tem razão. O tempo não elimina uma questão; apenas torna a apresentá-la sob um diferente disfarce.

Evesham estava sorrindo tolerantemente.

— Então, quer dizer, Sr. Quin, que se fôssemos realizar, vamos dizer, um tribunal de inquérito, esta noite, sobre as circunstâncias da morte de Derek Capel, teríamos tantas probabilidades de descobrir a verdade como naquela época?

— Mais probabilidades, Sr. Evesham. As reações pessoais já foram em grande medida afastadas, e nos lembraremos dos fatos como tais, sem procurar forçar interpretações próprias.

Evesham franziu a testa, com ar de dúvida.

— É preciso naturalmente ter um ponto de partida — disse o Sr. Quin, com sua voz tranqüila e uniforme. — Um ponto de partida é, de costume, uma teoria. Algum dos presen¬tes deve ter uma teoria, tenho certeza. Que diz, Sir Richard?

Conway enrugou a testa, pensativamente.

— Bem, naturalmente — disse em tom de desculpa — pensamos... naturalmente, todos nós pensamos... deve ha¬ver uma mulher por trás de tudo isso. Geralmente, a causa é esta, ou se trata de dinheiro, não é? E, certamente, não era caso de dinheiro. Não havia nenhum problema desse gênero. Então... o que mais poderia ter sido?

O Sr. Satterthwaite estremeceu. Inclinara-se para a frente, a fim de dar a contribuição de uma rápida observação pessoal e ao fazer isto, avistou uma figura de mulher abaixada atrás da balaustrada do corredor acima. Ela estava encolhida de en¬contro ao corrimão, invisível de qualquer outro ponto a não ser de onde ele se sentava, e estava, evidentemente, ouvindo com tensa atenção o que se passava embaixo. Tão imóvel se encontrava, que ele dificilmente acreditou em seus próprios olhos.

Mas reconheceu o vestido com muita facilidade — era de brocado. Tratava-se de Eleanor Portal.

E, de repente, os acontecimentos da noite pareceram enca¬dear-se — a chegada do Sr. Quin não era uma mera casuali¬dade, mas o aparecimento de um ator ao ser dada sua deixa. Um drama estava sendo desempenhado no grande salão de Royston, aquela noite. — um drama que não perdia a menor parcela de realismo com a morte de um dos atores. Oh, sim, Derek Capel tinha sua parte na peça, o Sr. Satterthwaite tinha certeza.

E, outra vez repentinamente, uma nova intuição lhe che¬gou. Era uma ação do Sr. Quin. Ele é quem encenava a peça — estava dando aos atores as suas deixas. Estava no coração do mistério, puxando os cordões, fazendo os bonecos mexe¬rem-se. Sabia de tudo, mesmo da presença da mulher agachada de encontro à balaustrada de madeira, em cima. Sim, ele sabia.

Bem recostado em sua cadeira, seguro em seu papel de espectador, o Sr. Satterthwaite observava o drama desenrolando-se diante dele. Tranqüila e naturalmente, o Sr. Quin puxava os cordões, colocava os bonecos em movimento.

— Uma mulher... sim — murmurou, pensativamente. — Não houve referência a nenhuma mulher, durante o jantar?

— Ora, claro que sim — exclamou Evesham.  — Ele anunciou seu noivado. Isto foi justamente o que fez tudo pa¬recer tão absolutamente insano. Ele estava bastante animado com o noivado. Disse que não deveria ser anunciado ainda... mas disse que já estava com o pé no altar.

— Naturalmente, todos adivinhamos quem era a moça — disse Conway. — Marjorie Dilke. Ótima garota.

Parecia ser a vez do Sr. Quin falar, mas ele não o fez e alguma coisa em seu silêncio era estranhamente provocativa. Era como se contestasse a última afirmação. Isto teve o efeito de colocar Conway na defensiva.

— Quem mais poderia ter sido? Hein, Evesham?

— Não sei — disse Tom, devagar. — Que foi exatamen¬te o que ele disse naquela hora? Algo a respeito de estar com o pé no altar... e que não podia dizer-nos o nome da moça até ter sua permissão, pois não era uma coisa para ser anunciada ainda. Ele disse, eu me lembro, que era um sujeito de tremenda sorte. E queria que seus dois velhos amigos soubessem que, àquela altura, no ano seguinte, seria um casado feliz. Claro que supusemos tratar-se de Marjorie. Eram grandes amigos e ele andara saindo muito com ela.

— Só tem uma coisa... — Conway começou e parou.

— Que ia dizendo, Dick?

— Bem, seria estranho, caso se tratasse de Marjorie, que o anúncio de noivado não fosse feito imediatamente.  Quero dizer, por que o segredo? Mais parece que se tratava de uma mulher casada...   alguém cujo marido tivesse morrido há pouco tempo, ou que estivesse divorciando-se.

— É verdade — disse Evesham. — Nesse caso, natural¬mente o noivado não poderia ser anunciado imediatamente. E, sabe, relembrando o fato, não acredito que ele se encontrasse muito com Marjorie. Tudo aconteceu no ano anterior. Lem¬bro-me de ter achado que as coisas pareciam ter esfriado entre eles.

— Curioso — disse o Sr. Quin.

— Sim... era quase como se alguém se houvesse colocado entre eles.

— Outra mulher — disse Conway, pensativamente.

— Por Júpiter — disse Evesham. — Sabe, havia algo quase indecentemente hilariante no velho Derek, aquela noite. Ele parecia quase bêbado de felicidade. E, ainda assim... não posso explicar o que quero dizer... parecia também estranha¬mente desafiador.

— Como um homem desafiando os Fados — disse Alec Portal, devagar.

Era de Derek Capel que ele estava falando, ou de si próprio? O Sr. Satterthwaite, ao olhá-lo, inclinou-se para a se¬gunda hipótese. Sim, era o que Alec Portal representava — um homem desafiando os Fados.  Sua imaginação, excitada pela bebida, reagiu subitamente àquela parte da história que lhe lembrava suas próprias preocupações secretas.

O Sr. Satterthwaite olhou para cima. Ela ainda estava lá. Espiando, escutando, imóvel, gelada — como uma morta.

— Absolutamente correto — disse Conway. — Capel es¬tava excitado... de modo curioso. Eu o descreveria como um homem que fizera altas apostas e ganhara, contra todas as probabilidades.

— Não estaria tomando coragem para o que decidira fa¬zer? — sugeriu Portal. E, como se perturbado por uma asso¬ciação de idéias, levantou-se e se serviu de outra dose.

— Nada disso — disse Evesham, categoricamente. — Sou capaz de jurar que nada disso passou-lhe à cabeça. Conway está certo. Um jogador que ganhou uma parada difícil e mal pode acreditar na própria sorte. Esta era a sua atitude.

Conway fez um gesto de desânimo.

— E, ainda assim — ele disse — dez minutos depois...

Permaneceram sentados, em silêncio. Evesham deu um violento tapa na mesa.

— Algo deve ter acontecido naqueles dez minutos — ex¬clamou. — Deve sim! Mas o quê? Vamos relembrar com cui¬dado. Estávamos todos falando. No meio da conversa, Capel levantou-se de repente e saiu da sala...

— Por quê? — perguntou o Sr. Quin.

A interrupção pareceu desconcertar Evesham.

— Como assim?

— Só perguntei por quê — disse o Sr. Quin.

Evesham franziu a testa, num esforço de memória.

— Não parecia importante, naquela ocasião. Oh! natu¬ralmente... o correio. Não lembram a campainha estridente e como ficamos excitados? Durante três dias estivemos isolados pela neve, lembram? A maior tempestade de neve em muitos anos. Todas as estradas estavam intransitáveis. Nada de jornais, nem de cartas. Capel foi ver se algo conseguira passar, final¬mente, e recebeu uma grande pilha de coisas, jornais e cartas. Abriu o jornal para ver se havia alguma novidade e depois su¬biu com suas cartas.  Três minutos mais tarde, ouvimos um tiro. Inexplicável, absolutamente inexplicável.

— Não é inexplicável — disse Portal. — Naturalmente, o sujeito recebeu alguma notícia inesperada, numa carta. Eu diria que é óbvio.

— Oh! Não pense que deixamos passar uma coisa assim tão óbvia. Foi uma das primeiras perguntas da polícia. Mas Capel não chegou a abrir nenhuma de suas cartas. Toda a pilha permaneceu intocada na penteadeira.

Portal parecia desanimado.

— Tem certeza de que não abriu pelo menos uma delas? Poderia tê-la destruído depois de ler.

— Não, tenho certeza absoluta. Claro, esta teria sido a solução natural. Não, todas as cartas do maço estavam sem abrir. Nada queimado, nem rasgado. Não havia fogo no quarto.

Portal balançou a cabeça.

— Extraordinário.

— Foi algo absolutamente horrível — disse Evesham, em voz baixa. — Conway e eu subimos quando ouvimos o tiro e o encontramos. Levei um choque que nem queiram saber.

— Não havia nada a fazer senão telefonar para a polícia, suponho — disse o Sr. Quin.

— Não, por sorte, o oficial de polícia local estava na co¬zinha, na ocasião. Um dos cães — lembra-se do pobre velho Rover, Conway? — perdera-se no dia anterior. Um carroceiro que passava encontrou-o meio enterrado num monte de neve e levou-o até a delegacia. Reconheceram-no como sendo de Capel e um dos cães de que ele mais gostava, e o policial trouxe-o. Chegou exatamente um minuto antes do tiro ser disparado. Isto poupou-nos alguns aborrecimentos.

— Meu Deus, que tempestade de neve — disse Conway, em tom rememorativo. — Naquela época do ano, não foi? No começo de janeiro.

— Fevereiro, eu acho. Deixe-me ver, fomos para o ex¬terior pouco depois.

— Tenho certeza de que foi em janeiro. Meu caçador, Ned — lembra-se de Ned? — aleijou-se no fim de janeiro. Foi logo depois desse caso.

— Deve ter sido exatamente no fim de janeiro, então. Engraçado como é difícil recordar datas, depois de um lapso de anos.

— Uma das coisas mais difíceis do mundo — disse o Sr. Quin, amavelmente. — A menos que se possa encontrar um ponto de referência em algum grande acontecimento público: o assassinato de uma cabeça coroada ou um grande julgamento por crime de morte.

— Ora, naturalmente — exclamou Conway — foi pouco antes do caso Appleton.

— Pouco depois, não foi?

— Não, não, lembra? Capel conhecia os Appletons. Hos¬pedara-se com o velho na primavera anterior, exatamente uma semana antes dele morrer. Falava dele, certa noite... como o velho era pão-duro e como deveria ser terrível para uma mulher jovem e bonita feito a Sra. Appleton estar amarrada a ele. Não havia nenhuma suspeita, então, de que ela o houvesse liquidado.

— Por Júpiter, você tem razão. Lembro-me de ter lido o tópico do jornal dizendo que fora emitida ordem para a exu¬mação. Deve ter sido naquele mesmo dia. Lembro-me de que só metade de minha mente tomou conhecimento daquilo, por¬que a outra só pensava no pobre Derek morto lá em cima.

— Um fenômeno comum, mas muito curioso, este — observou o Sr. Quin. — Em momentos de grande tensão, a mente concentra-se numa questão sem nenhuma importância, que é lembrada muito tempo depois, com toda a fidelidade, como se a tensão mental do momento a tivesse feito gravar-se indelevelmente. Pode ser um detalhe completamente sem im¬portância, como o desenho de um papel de parede, mas jamais será esquecido.

— É realmente extraordinário ouvi-lo dizer isto, Sr. Quin — disse Conway. — Justamente quando o senhor falou, senti-me de repente de volta ao quarto de Derek Capel, com Derek caído, morto, no chão. Vejo tão nitidamente quanto possível a grande árvore do lado de fora da janela e a sombra que projetava sobre a neve. Sim, a lua, a neve, a sombra da árvore posso ver tudo isso, neste momento. Por Deus, acho que poderia desenhar a cena e, no entanto, nem senti que a estava olhando, na ocasião.

— O quarto era aquele grande, que fica sobre o vestíbulo, não? — perguntou o Sr. Quin.

— Sim, e a árvore era a grande faia que fica exatamente no ângulo da passagem dos automóveis.

O Sr. Quin balançou a cabeça, como se estivesse satisfeito. O Sr. Satterthwaite sentia-se estranhamente emocionado. Es¬tava convencido de que cada palavra, cada inflexão da voz do Sr. Quin tinha uma intenção. Ele queria chegar até alguma coisa; o Sr. Satterthwaite não sabia exatamente o quê, mas tinha certeza quanto ao seu papel predominante.

Houve uma pausa momentânea e então Evesham voltou ao assunto anterior.

— Aquele caso Appleton, eu o recordo muito bem, agora. Que sensação causou. Ela foi absolvida, não? Bonita mulher, muito linda, extraordinariamente linda.

Quase contra a vontade, os olhos do Sr. Satterthwaite buscaram a figura ajoelhada, lá em cima. Foi fantasia sua, ou ele a viu encolher-se um pouco, como se tivesse sido golpeada? Teria visto uma mão deslizar para cima, para o alto do corri¬mão — e então parar?

Houve um ruído de vidro espatifando-se. Alec Portal, ao se servir de uísque, deixara a garrafa escorregar.

— Mil desculpas. Não sei o que deu em mim.

Evesham cortou as suas desculpas.

— Não tem importância. Não tem importância, meu caro amigo. Curioso — o quebrar do vidro me fez lembrar. Foi o que ela fez, não foi? A Sra. Appleton? Quebrou a garrafa de vinho do Porto?

— Sim. O velho Appleton tomava seu copo de Porto, apenas um, todas as noites. No dia seguinte à sua morte, um dos criados viu-a pegar a garrafa e quebrá-la deliberadamente. Isto deu lugar a comentários, claro. Todos sabiam que ela fora inteiramente infeliz com ele. Os rumores foram crescendo e afi¬nal, meses depois, um de seus parentes solicitou ordem de exu¬mação. Claro, o velho fora envenenado. Arsênico, não foi?

— Não, estriquinina, creio. Não faz lá muita diferença. Bem, naturalmente, não havia muita escolha. Todas as suspei¬tas recaíam sobre uma pessoa. A Sra. Appleton foi julgada. Ino¬centaram-na mais pela falta de provas do que devido a uma esmagadora evidência de sua inocência. Em outras palavras, ela teve sorte. Sim, acho que não há muitas dúvidas de que fez a coisa bastante bem. Que lhe aconteceu, depois?

— Foi para o Canadá, eu acho. Ou para a Austrália? Tinha um tio, ou algo parecido, por lá, que lhe ofereceu um lar. A melhor coisa que ela poderia fazer, nas circunstâncias.

O Sr. Satterthwaite estava fascinado pela mão direita de Alec Portal, segurando o copo. Como o apertava com força.

Vai parti-lo dentro de um minuto ou dois, se não tiver cuidado, pensou o Sr. Satterthwaite. Meu Deus, como tudo isso é interessante.

Evesham levantou-se e se serviu de uma dose.

— Bem, não estamos muito mais perto de saber por que o pobre Derek Capel suicidou-se — comentou. — O tribunal de inquérito não teve grande sucesso, não é mesmo, Sr. Quin?

O Sr. Quin riu. Foi uma estranha risada, de mofa — e, ainda assim, triste. Fez todos se sobressaltarem.

— Peço desculpas — disse. — Ainda está vivendo no passado, Sr. Evesham. Ainda se encontra preso pela sua noção preconcebida. Mas eu, o homem de fora, o estranho de pas¬sagem, só vejo os fatos!

— Fatos?

— Sim, fatos.

— Que quer dizer? — perguntou Evesham.

— Vejo uma clara seqüência de fatos, sublinhados pelos próprios presentes, mas dos quais não perceberam a significa¬ção. Vamos recuar dez anos e examinar o que vemos, sem os entraves das idéias ou dos sentimentos.

O Sr. Quin erguera-se. Parecia muito alto. O fogo ardia indeciso por trás dele. Falou em voz baixa e firme.

— Os senhores estão no jantar. Derek Capel anuncia seu noivado. Acreditam, então, que era com Marjorie Dilke. Não têm certeza. Ele tinha o ar inquieto e excitado de um homem que desafiou os Fados e teve sucesso; que, nas próprias palavras dos senhores, dera um grande golpe, superando todas as improbabilidades. Então, toca a campainha. Ele sai para receber a correspondência, já antiga. Não abre suas cartas, mas os se¬nhores mesmos mencionaram que ele abriu o jornal para dar uma espiada nas notícias. Foi há dez anos... de modo que não podemos saber quais eram as notícias daquele dia... um terre¬moto distante, uma iminente crise política? A única coisa que sabemos quanto ao conteúdo daquele jornal é que incluía um pequeno tópico... um tópico declarando que o Ministério do Interior dera permissão para se exumar o corpo do Sr. Apple¬ton, três dias antes.

— O quê?

O Sr. Quin prosseguiu:

— Derek Capel sobe para seu quarto e de lá vê algo pela janela. Sir Richard Conway nos disse que a cortina não es¬tava fechada, e mais, que a janela dava para a passagem dos automóveis. Que viu ele? O que poderia ter visto que o forçou a acabar com a própria vida?

— Que quer dizer? Que viu ele?

— Acho — disse o Sr. Quin — que ele viu um policial. Um policial que tinha vindo falar de um cachorro. Mas Derek Capel não sabia disso. Apenas viu um policial.

Houve um longo silêncio — como se demorasse algum tempo para que fossem tiradas todas as conclusões.

— Meu Deus — sussurrou Evesham, afinal. — O senhor não pode querer dizer isto! Appleton? Mas ele não estava lá, na ocasião em que Appleton morreu. O velho estava sozinho com sua mulher...

— Mas poderia ter estado uma semana antes. A estriquinina não é muito solúvel, a não ser sob a forma de cloridrato. A maior parte dessa substância, colocada no vinho do Porto, seria ingerida no último copo, talvez uma semana de¬pois da partida dele.

Portal deu um pulo para a frente. Sua voz estava rouca e seus olhos injetados de sangue.

— Por que ela quebrou a garrafa? — gritou. — Por que ela quebrou a garrafa? Explique-me isto.

Pela primeira vez, naquela noite, o Sr. Quin dirigiu-se ao Sr. Satterthwaite.

— O senhor tem larga experiência da vida, Sr. Satterth¬waite. Talvez possa explicar-nos isto.

A voz do Sr. Satterthwaite tremeu levemente. Eis a sua deixa. Ele deveria dizer uma das passagens mais importantes da peça. Era agora um ator — não um espectador.

— Segundo minha maneira de pensar — murmurou modestamente — ela se preocupava com Derek Capel. Era, acre¬dito, uma boa mulher... e o repelira. Quando seu marido... morreu, suspeitou da verdade. E, assim, para salvar o homem a quem amava, tentou destruir as provas contra ele. Mais tarde, eu acho, ele a persuadiu de que suas suspeitas eram infundadas e ela consentiu em se casar com ele. Mas, mesmo então, hesi¬tou. As mulheres, imagino, têm muita intuição.

O Sr. Satterthwaite tinha dito a sua parte.

De repente, um profundo e trêmulo suspiro foi ouvido por todos.

— Meu Deus! — exclamou Evesham, estremecendo. — Que foi isso?

O Sr. Satterthwaite poderia ter-lhe dito que era Eleanor Portal no corredor lá em cima, mas tinha demasiado senso artístico para estragar um bom efeito.

O Sr. Quin estava sorrindo.

— Meu carro deve estar pronto agora. Obrigado por sua hospitalidade, Sr. Evesham. Fiz, espero, alguma coisa pelo meu amigo.

Eles o olharam na maior surpresa.

— Este aspecto da questão não lhes ocorreu? Ele amava essa mulher, como sabem. Amava-a o bastante para matar por causa dela. Quando a punição o ameaçou — segundo ele, por equívoco — suicidou-se. Mas, inadvertidamente, colocou-a em dificuldade.

— Ela foi absolvida — resmungou Evesham.

— Só porque a acusação contra ela não pôde ser pro¬vada. Eu imagino — talvez seja apenas imaginação — que ela ainda esteja em dificuldade.

Portal afundara na cadeira, com o rosto enterrado nas mãos.

Quin voltou-se para Satterthwaite.

— Adeus, Sr. Satterthwaite. O senhor interessa-se pelo drama, não é?

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, espantado.

— Devo recomendar-lhe a arlequinada. Está morrendo, atualmente... mas merece atenção, garanto-lhe. Seu simbolis¬mo é um tanto difícil de ser entendido... mas os imortais são sempre os imortais, como sabe. Desejo a todos uma boa-noite.

Viram-no caminhar para fora, em meio à escuridão. Como antes, o vidro colorido teve o efeito variegado de um traje de bufão.

O Sr. Satterthwaite foi para cima. Foi fechar a janela, porque estava frio. A figura do Sr. Quin descia o caminho pavi¬mentado, e, de uma porta lateral, saiu correndo uma figura de mulher. Conversaram por um momento, depois ela retrocedeu até a casa. Passou exatamente debaixo da janela e o Sr. Satterth¬waite ficou novamente impressionado com a vitalidade de seu rosto; Movia-se agora como uma mulher mergulhada num so¬nho feliz.

— Eleanor!

Alec Portal unira-se a ela.

— Eleanor, perdoe-me... perdoe-me. Você me disse a ver¬dade, mas, Deus me perdoe... não acreditei inteiramente...

O Sr. Satterthwaite interessava-se intensamente pela vida dos outros, mas também era um cavalheiro. Tinha a obrigação de fechar a janela. Assim fez.

Mas fechou-a muito devagar.

Ouviu a voz dela, bela e indescritível.

— Eu sei. Eu sei. Você estava num inferno. Também es¬tive assim, certa vez. Amando... mas dividida, sem saber se acreditava ou suspeitava; afastando as dúvidas, para vê-las res¬surgir novamente, à espreita. Eu sei, Alec, eu sei. Mas há um inferno pior que este, o que vivi ao seu lado. Percebi suas dúvidas — seu medo de mim — envenenando todo o nosso amor. Aquele homem, aquele visitante ocasional, salvou-me. Eu não podia suportar mais, você compreende. Esta noite... esta noite eu ia suicidar-me... Alec... Alec!

 

A Sombra na Vidraça

— OUÇAM ISTO — disse Lady Cynthia Drage.

Leu alto um trecho de jornal que tinha nas mãos.

— “O Sr. e a Sra. Unkerton estão com um grupo de hós¬pedes em Greenways House, esta semana. Entre os convidados, Lady Cynthia Drage, o Sr. e a Sra. Richard Scott, Major Porter, Sra. Staverton, Capitão Allenson e o Sr. Satterthwaite.”

— É bom — comentou Lady Cynthia, jogando o jornal para um lado — saber em que estamos metidos. Misturaram tudo!

Seu companheiro, aquele mesmo Sr. Satterthwaite cujo nome figurava no fim da lista de convidados, olhou-a interro¬gativamente. Segundo alguém já dissera, quando o Sr. Satterth¬waite aparecia nas casas dos novos ricos, ou a comida era ex¬cepcionalmente boa, ou um drama da existência humana de¬veria ali desenrolar-se. O Sr. Satterthwaite interessava-se ex¬traordinariamente pelas comédias e tragédias protagonizadas por seus companheiros do gênero humano.

Lady Cynthia, uma mulher de meia-idade, com um rosto duro e maquilado liberalmente, deu-lhe pancadinhas elegantes com a última novidade em matéria de sombrinha, que colocava negligentemente sobre os joelhos.

— Não se faça de desentendido. Sabe perfeitamente de que estou falando. Vou além: acho que está aqui de propósito para ver o circo pegar fogo.

O Sr. Satterthwaite protestou vigorosamente. Não sabia do que ela estava falando.

— Refiro-me a Richard Scott. Vai dizer que nunca ouviu falar dele?

— Não, é claro que ouvi. É o grande esportista, não?

— Justamente. “Grandes, enormes ursos e tigres etc.”, como diz a canção. Ele próprio é caça graúda, agora — os Unkertons tinham de estar loucos para agarrá-lo, e à recém-casada. Uma garotinha encantadora, mas tão ingênua, apenas 20 anos, sabe, enquanto ele deve estar, pelo menos, com 45.

— A Sra. Scott me parece muito encantadora — disse o Sr. Satterthwaite, serenamente.

— Sim, pobrezinha.

— Por que pobrezinha?

Lady Cynthia lançou-lhe um olhar de reprovação e pros¬seguiu, abordando à sua maneira o assunto em pauta.

— Porter não é mau sujeito, embora seja um brutamontes: outro desses sujeitos que caçam na África, todo queimado de sol e caladão. Fica em segundo plano diante de Richard Scott, mas sempre foram amigos para a vida inteira, e assim por diante. Por falar nisso, acho que estavam juntos naquela via¬gem...

— Que viagem?

— A viagem. A viagem da Sra. Staverton. Agora, vai di¬zer que nunca ouviu falar na Sra. Staverton.

— Ouvi falar na Sra. Staverton — disse o Sr. Satterth¬waite, a contragosto.

E ele e Lady Cynthia entreolharam-se.

— Isto é bem dos Unkertons — gemeu a segunda. — Não têm salvação... do ponto de vista social, quero dizer... Que idéia convidar os dois juntos! Naturalmente, ouviram falar que a Sra. Staverton era esportista e viajante, e o mais que se segue. Também souberam do livro dela. As pessoas como os Unkertons nem sonham que existem abismos! Andei orientando-os, eu própria, no ano passado, e o que sofri ninguém ima¬gina. É preciso estar constantemente vigiando-os. “Não faça isto! Não pode fazer aquilo!” Graças a Deus já parei com isso. Não que tivéssemos brigado — oh! não, eu nunca brigo — mas outra pessoa pode encarregar-se da tarefa. Como eu sempre disse, posso tolerar vulgaridade, mas não suporto mesquinharia.

Depois desta declaração algo enigmática, Lady Cynthia permaneceu em silêncio por um momento, meditando sobre a mesquinharia dos Unkertons, tal como ela própria tivera opor¬tunidade de apreciar.

— Se eu ainda estivesse orientando-os — prosseguiu em seguida — teria dito a eles, muito firme e simplesmente: Não podem convidar a Sra. Staverton junto com os Richard Scotts. Ela e ele foram, antigamente...

Interrompeu-se significativamente.

— Mas foram mesmo?

— Ora, meu caro! Todo mundo sabe. Aquela viagem ao interior! Surpreende-me que aquela mulher tenha tido cara para aceitar o convite.

— Talvez não soubesse que os outros viriam — sugeriu o Sr. Satterthwaite.

— E talvez soubesse. É bem mais provável.

— Acha que...

— Ela é o que eu considero uma mulher perigosa. O tipo de mulher que se agarra a qualquer coisa. Não queria estar na pele de Richard Scott este fim de semana.

— Acha que a mulher dele não sabe de nada?

— Tenho certeza de que não. Mas suponho que alguma amiga prestativa vai esclarecê-la, mais dia menos dia. Eis Jimmy Allenson. Ótimo rapaz. Ele salvou minha vida no Egito, no inverno passado. Eu estava tão entediada, sabe. Alô, Jimmy, venha cá imediatamente.

O Capitão Allenson obedeceu, deixando-se cair sobre o gramado, ao lado dela. Era um jovem simpático, de 30 anos, com dentes brancos e sorriso contagiante.

— Estou feliz de que alguém me queira — observou. — Os Scotts estão como dois pombinhos e dispensam um terceiro, Porter devora o campo e eu estive em perigo mortal de ser entretido pela anfitriã..

Riu. Lady Cynthia riu também. O Sr. Satterthwaite, que era, para algumas coisas, um tanto antiquado — tão antiquado que raramente ridicularizava os anfitriões antes de sair da casa deles — permaneceu sério.

— Pobre Jimmy — disse Lady Cynthia.

— A única saída era fugir depressa. Por pouco não tive de ouvir a história do fantasma da família.

— Um fantasma Unkerton! — exclamou Lady Cynthia. — Que coisa mais divertida.

— Não um fantasma Unkerton — disse o Sr. Satterth¬waite. — Um fantasma Greenways. Eles o compraram com a casa.

— Claro — disse Lady Cynthia. — Agora me lembro. Mas não arrasta correntes, não ê? Parece que só aparece numa janela.

Jimmy Allenson olhou para eles, rapidamente.

— Uma janela?

Mas, naquele momento, o Sr. Satterthwaite não respondeu. Estava olhando, por sobre a cabeça de Jimmy, três figuras que se aproximavam, vindas da direção da casa — uma moça esbel¬ta, entre dois homens. Havia uma parecença superficial entre os dois homens, ambos altos e morenos, com rostos bronzeados e olhos penetrantes. Observados de mais perto, no entanto, a semelhança desaparecia.

Richard Scott, caçador e explorador, era um homem de personalidade extraordinariamente marcante. Tinha uma ma¬neira de ser que irradiava magnetismo. John Porter, seu amigo e companheiro de caçadas, era mais convencional, com um rosto impassível, quase de pedra, e olhos cinzentos muito pen¬sativos. Era um homem quieto, sempre satisfeito em ficar em segundo plano diante de seu amigo.

E entre os dois caminhava Moira Scott, até três meses antes Moira O’Connell, uma figura esguia, com grandes e atentos olhos castanhos e cabelos de um louro dourado, que lhe cir¬cundavam o rosto pequeno, como a auréola de um santo.

Aquela garota não deve ser magoada — disse o Sr. Satterthwaite com seus botões. — Seria abominável que uma menina como aquela fosse magoada.

Lady Cynthia cumprimentou os recém-chegados com um aceno da sombrinha de última moda.

— Sentem-se e não interrompam — disse. — O Sr. Sat¬terthwaite está contando uma história de fantasmas.

— Adoro histórias de fantasmas — disse Moira Scott. Sentou-se no gramado.

— O fantasma de Greenways House? — perguntou Ri¬chard Scott.

— Sim, já ouviu falar?

Scott balançou a cabeça, em assentimento.

— Costumava hospedar-me aqui antigamente — explicou. — Antes dos Elliots terem de vender seus bens.

— O Cavaleiro Vigilante — disse a mulher dele, baixinho. — Gosto disso. Parece interessante. Por favor, continue.

Mas o Sr. Satterthwaite parecia pouco inclinado a tal coisa. Garantiu-lhe que não era realmente interessante, de modo nenhum.

— Agora já conseguiu, Satterthwaite — disse Richard Scott, sarcasticamente. — Esta sua leve relutância só serve para chamar a atenção.

Em resposta ao clamor geral, o Sr. Satterthwaite foi forado a falar.

— É realmente bem desinteressante — disse, em tom de desculpa. — Acredito que a história original refere-se a um cavaleiro ancestral da família Elliot.  Sua mulher tinha um amante, um Roundhead.ƒx O marido foi morto pelo amante num quarto do segundo andar e o par culposo fugiu; mas, enquanto fugiam, olharam para a casa, lá atrás, e viram o rosto do marido morto na janela, vigiando-os. Esta é a lenda, mas a história de fantasmas relaciona-se apenas com uma vidraça da janela do quarto em questão, na qual existe uma mancha irregular, quase imperceptível, se examinada de perto, mas que, a distância, dá mesmo a impressão de um rosto de homem olhando para fora.

— De que janela se trata? — perguntou a Sra. Scott, olhando em direção à casa.

 

— Não pode vê-la daqui — disse o Sr. Satterthwaite. — É do outro lado, mas foi fechada com tábuas, por dentro, há alguns anos... há 40 anos, para ser preciso.

— Por que fizeram isso? Não disse que o fantasma não se locomove?

— É verdade — tranqüilizou-a o Sr. Satterthwaite. — Suponho, bem, suponho que acabou por se criar uma supersti¬ção em torno dele, eis tudo.

E então, bastante jeitosamente, conseguiu mudar de con¬versa. Jimmy Allenson estava perfeitamente disposto a fazer uma pregação contra os adivinhos egípcios que usam a areia.

— Impostores, em sua maioria. Muito prontos a dizer as pessoas coisas vagas sobre o passado, mas não se comprome¬tem quanto ao futuro.

— A mim, pareceria mais lógico exatamente o contrário — observou John Porter.

— É ilegal prever o futuro neste país, não é? — pergun¬tou Richard Scott. — Moira tentou persuadir uma cigana a dizer sua sorte, mas a mulher devolveu-lhe a moeda, falando que nada adiantaria, nem ações, nem palavras, para saber al¬guma coisa.

— Talvez tivesse visto algo tão assustador que preferiu não me dizer — comentou Moira.

— Não se atormente, Sra. Scott — disse Allenson, em tom brincalhão. — Eu, por exemplo, recuso-me a acreditar que um destino infeliz a ameace.

Não sei — pensou o Sr. Satterthwaite. — Não sei.

Ele ergueu os olhos, de repente. Duas mulheres estavam vindo da casa, uma delas baixa e robusta, com os cabelos ne¬gros, deselegantemente vestida em verde jade, a outra uma fi¬gura alta e esbelta, de branco. A primeira era a anfitriã, Sra. Unkerton; a segunda, uma mulher de quem ele freqüentemente ouvira falar, mas nunca encontrara.

— Esta é a Sra. Staverton — anunciou a Sra. Unkerton, em tom de grande satisfação. — Todos são amigos, eu acho.

— Essa gente tem um fantástico dom para dizer justa¬mente a pior coisa possível — murmurou Lady Cynthia, mas o Sr. Satterthwaite não estava escutando.  Observava a Sra. Staverton.

Muito à vontade, muito natural. Seu despreocupado:

— Alô, Richard, há quanto tempo não nos vemos. Sinto muito não ter podido ir ao casamento. Esta é sua mulher? Você deve estar cansada de encontrar todas as velhas amigas de seu marido, castigadas pelo tempo.

A resposta de Moira foi adequada, um tanto tímida. A mulher mais velha teve um olhar de rápida avaliação, que se voltou depressa para outro velho amigo.

— Alô, John! — o mesmo tom à vontade, mas com uma sutil diferença, um calor que estivera ausente antes.

E então, aquele sorriso repentino. Um sorriso que a trans¬figurou.  Lady Cynthia estava certa. Uma mulher perigosa! Muito loura — olhos azuis-escuros — sem o colorido tradi¬cional da mulher fatal — um rosto quase selvagem, em repou¬so. Uma mulher de voz lenta e arrastada, e um súbito sorriso deslumbrante.

Iris Staverton sentou-se. Tornou-se, natural e inevitavel¬mente, o centro do grupo. Assim seria sempre, qualquer um podia sentir isso.

O Sr. Satterthwaite foi arrancado de seus pensamentos pelo Major Porter, que sugeria uma caminhada. O Sr. Satterthwaite não era, em geral, muito dado a caminhadas, mas aceitou. Os dois homens afastaram-se juntos pelo gramado.

— Muito interessante aquela sua história de ainda há pouco — disse o Major.

— Vou mostrar-lhe a janela — disse o Sr. Satterthwaite.

Dirigiu-se para o lado oeste da casa. Ali havia um pequeno jardim simétrico — o Jardim Secreto, como sempre o chama¬ram, e existiam razões para o nome, pois era rodeado por altas sebes de azevim, e mesmo sua entrada era em ziguezague, por entre as mesmas altas sebes espinhentas.

Lá dentro era muito bonito, com um encanto antigo de canteiros simétricos, caminhos pavimentados e um banco baixo de pedra, com belos entalhes. Quando alcançaram o centro do jardim, o Sr. Satterthwaite virou-se e apontou para a casa. No sentido do comprimento, Greenways House estendia-se do nor¬te para o sul. Nessa estreita parede oeste, havia apenas uma ja¬nela, uma janela no segundo andar, quase coberta pela hera, com vidraças encardidas e que, como se podia entrever, estava fechada com tábuas pelo lado de dentro.

— Aí está — disse o Sr. Satterthwaite.

Esticando um pouco o pescoço, Porter olhou para cima.

— Existe, pelo que posso ver, uma espécie de descolora¬ção numa das vidraças, nada mais.

— Estamos demasiado perto — disse o Sr. Satterthwaite. — Existe uma clareira mais para cima, no bosque, de onde se pode ter, realmente, uma boa visão.

Saiu do Jardim Secreto e, virando abruptamente à esquer¬da, foi dar no bosque. Dominado por um certo entusiasmo de exibidor, mal notou que o homem a seu lado estava alheado e desatento.

— Tiveram, claro, de mandar fazer outra janela, quando fecharam aquela — explicou. — A nova dá para o sul, a cava¬leiro do gramado onde estávamos sentados agora mesmo. Ima¬gino que os Scotts estão no quarto em questão. Por isso, eu não quis continuar falando do assunto. A Sra. Scott poderia ficar nervosa, se percebesse que estava dormindo no quarto, digamos, mal-assombrado.

— Sim, entendo — disse Porter.

O Sr. Satterthwaite olhou para ele, de repente, e percebeu que o outro não ouvira uma só palavra do que estava dizendo.

— Muito interessante — disse Porter. Golpeava com a bengala algumas altas dedaleiras e, franzindo a testa, disse: — Ela não devia ter vindo, ela nunca deveria vir.

O Sr. Satterthwaite percebeu instintivamente que não fala¬va da Sra. Scott.

— Acha que não? — perguntou.

Porter sacudiu a cabeça, como quem espera o pior.

— Eu estava naquela viagem — disse, abruptamente. — Fomos os três, Scott, eu e Iris. Ela é uma bela mulher... e atira diabolicamente bem. — Fez uma pausa. — Por que será que a convidaram? — finalizou de repente.

O Sr. Satterthwaite encolheu os ombros.

— Ignorância — disse.

— Vai haver problema — disse o outro. — Devemos preparar-nos... e fazer o que pudermos.

— Mas claro que a Sra. Staverton...

— Estou falando de Scott. — Fez uma pausa. — Veja bem, há a Sra. Scott a considerar.

O Sr. Satterthwaite estivera pensando nela o tempo todo, mas não achou necessário dizer isso, já que o outro, obviamen¬te, a esquecera, até aquele instante.

— Como foi que Scott conheceu sua mulher? — per¬guntou.

— No inverno passado, no Cairo. Negócio rápido. Fica¬ram noivos em. três semanas, casaram-se em seis.

— Ela me parece muito encantadora.

— Ela é, não há dúvida. E ele a adora, mas isto não vai fazer nenhuma diferença. — E, novamente, o Major Porter repe¬tiu, usando o pronome que, para ele, referia-se apenas a uma pessoa: — O diabo carregue tudo isto, ela não devia ter vindo.

Justamente naquele momento, foram sair num alto outeiro gramado, a certa distância da casa. E outra vez com um pouco do orgulho de quem mostra, o Sr. Satterthwaite estendeu o braço.

— Olhe — disse.

O crepúsculo baixava rapidamente. A janela ainda podia ser claramente avistada e, aparentemente comprimido de en¬contro a uma das vidraças, estava o rosto de um homem, com um chapéu emplumado de cavaleiro.

— Muito curioso — disse Porter. — Realmente muito curioso. O que acontecerá, quando aquela vidraça quebrar um dia?

O Sr. Satterthwaite sorriu.

— Esta é uma das partes mais interessantes da história. Aquela vidraça já foi substituída, pelo que sei com certeza, no mínimo 11 vezes, talvez mais. A última vez foi há 12 anos, quando o então proprietário da casa decidiu destruir o mito. Mas sempre acontece a mesma coisa. A mancha reaparece — não imediatamente; a descoloração espalha-se gradualmente. Leva um mês ou dois, em geral.

Pela primeira vez, Porter mostrou sinais de verdadeiro interesse. Teve um estremecimento súbito.

— Essas coisas são estranhíssimas. Não têm explicação. Qual a verdadeira razão para a janela ter sido fechada com tábuas, por dentro?

— Bem, surgiu uma idéia, a respeito do quarto, de que ele dava azar. Os Eveshams estavam ali pouco antes do di¬vórcio. Depois, Stanley e sua mulher estavam hospedados aqui e ocupavam aquele quarto, quando ele fugiu com uma corista.

Porter ergueu as sobrancelhas.

— Entendo. Perigo não de vida, mas para a moral.

E agora — pensou o Sr. Satterthwaite — os Scotts estão ali. Fico imaginando...

Voltaram em silêncio para a casa. Caminhando quase sem ruído sobre a grama macia, ambos absortos em seus pró¬prios pensamentos, tornaram-se inadvertidamente espiões. Es¬tavam contornando o canto da sebe de azevim, quando ouviram a voz de Iris Staverton, erguendo-se raivosa e nítida, das pro¬fundezas do Jardim Secreto:

— Você deve estar lamentando...  lamentando... isto!

A voz de Scott respondeu, baixa e indecisa, de modo que as palavras não podiam ser ouvidas; e então a voz da mulher ergueu-se novamente, pronunciando palavras que eles lembra¬riam depois.

— O ciúme leva uma pessoa ao demônio. Ele é o demô¬nio! Pode conduzir alguém ao pior dos crimes. Tenha cuidado, Richard; pelo amor de Deus, cuidado.

E então, ato contínuo, ela saiu do Jardim Secreto, em frente deles, e contornou a casa sem os ver, em passos rápidos, como uma mulher perseguida pelas Fúrias.

O Sr. Satterthwaite pensou novamente nas palavras de Lady Cynthia. Mulher perigosa. Pela primeira vez, teve o pres¬sentimento de que uma tragédia se aproximava, rápida e inexo¬ravelmente, sem permitir controle.

No entanto, aquela noite sentiu vergonha de seus temores. Tudo parecia normal e agradável. A Sra. Staverton, com seu à vontade desembaraçado, não mostrava nenhum sinal de tensão. Moira Scott era a mesma pessoa, encantadora e sem qualquer afetação. As duas mulheres pareciam dar-se muito bem. O pró¬prio Richard Scott aparentava encontrar-se no auge da viva¬cidade.

A pessoa com aspecto mais preocupado era a robusta Sra. Unkerton. Ela confiava plenamente no Sr. Satterthwaite.

— Pode achar bobagem, se quiser, mas há alguma coisa que me está dando arrepios. Vou confessar-lhe francamente, mandei buscar o vidraceiro, sem Ned saber.

— O vidraceiro?

— Para colocar um novo vidro na janela. Certo, Ned está orgulhoso daquilo... segundo ele, dá à casa uma atmosfe¬ra. Mas não me agrada. Digo-lhe francamente. Teremos uma vidraça bonita, simples, moderna, sem nenhuma história irri¬tante relacionada com ela.

— Esquece-se — disse o Sr. Satterthwaite — ou talvez não saiba: a mancha volta.

— Talvez seja assim — disse a Sra. Unkerton. — Tudo o que posso dizer é que, se for, é contra a natureza! .

O Sr. Satterthwaite levantou as sobrancelhas, mas não respondeu.

— E se for? — continuou a Sra. Unkerton, desafiadora¬mente. — Não estamos tão arruinados, Ned e eu, para não podermos trocar uma vidraça por mês... ou por semana, se ne¬cessário.

O Sr. Satterthwaite não topou o desafio. Vira coisas de¬mais balançarem e caírem diante do poder do dinheiro para acreditar que o fantasma de um cavaleiro pudesse resistir à luta. Contudo, estava interessado pela visível intranqüilidade da Sra. Unkerton. Até ela não estava imune à tensão da atmosfera; só que a atribuía a uma velha história de fantasmas, não ao choque de personalidades dos seus convidados.

O Sr. Satterthwaite estava fadado a ouvir ainda outro trecho de conversa esclarecedor. Ele subia a ampla escadaria, para ir dormir. John Porter e a Sra. Staverton estavam sentados juntos, num recanto do grande salão. Ela falava com uma leve irritação em sua bela voz.

— Eu não tinha a menor idéia de que os Scotts estariam aqui. Certamente, se soubesse, não viria; mas posso garantir-lhe, meu caro John: agora que estou aqui, não vou sair correndo.

O Sr. Satterthwaite continuou a subir a escada, e não pôde ouvir mais. Pensou: Fico imaginando. Até onde isso é verdade? Ela sabia? Fico imaginando. O que resultará?

Sacudiu a cabeça.

À clara luz matinal, achou que talvez tivesse sido um tanto melodramático em suas cogitações da noite anterior. Um momento de tensão — sim, certamente inevitável nas circuns¬tâncias — porém nada mais. As pessoas se adaptariam. Sua fantasia segundo a qual alguma grande catástrofe estava imi¬nente não passava de nervosismo, puro nervosismo, ou, talvez, era o fígado. Sim, era isso, o fígado. Estava com ida marcada para Carlsbad, na quinzena seguinte.

Tomou a iniciativa de propor uma pequena caminhada, naquele entardecer, justamente quando escurecia. Sugeriu ao Major Porter que deviam subir o outeiro e ver se a Sra. Unker¬ton cumprira a palavra e mandara colocar nova vidraça. Para si mesmo, disse: Preciso é de exercício. Exercício.

Os dois homens caminharam lentamente pelo bosque. Por¬ter, como de costume, estava taciturno.

— Não posso deixar de pensar — disse o Sr. Satterth¬waite, loquazmente — que fomos um tanto tolos em nossas cogitações de ontem. Quando esperávamos... ahn... problemas, sabe. Afinal de contas, as pessoas precisam comportar-se bem, abafar seus sentimentos, esse tipo de coisa.

— Talvez — disse Porter. Depois de um minuto ou dois, acrescentou: — Quando as pessoas são civilizadas.

— Que quer dizer?

— As pessoas que viveram fora da civilização por muito tempo algumas vezes retornam. Revertem. Como quiser cha¬mar.

Foram dar no outeiro gramado. O Sr. Satterthwaite respi¬rava meio fortemente. Jamais gostara de subir ladeiras.

Olhou na direção da janela. O rosto ainda estava lá, pa¬recendo mais vivo que nunca.

— Pelo que vejo, nossa anfitriã arrependeu-se.

Porter lançou-lhe apenas um olhar apressado.

— Unkerton proibiu, espero — disse, indiferentemente. — É o tipo de homem que deseja orgulhar-se de mais um fan¬tasma na família e não vai correr o risco de vê-lo desaparecer, quando pagou à vista por ele.

Ficou silencioso por alguns instantes, olhando não para a casa, mas para a densa vegetação de que estavam cercados.

— Já lhe ocorreu— disse — que a civilização é perigosa como o diabo?

— Perigosa? — um comentário tão revolucionário cho¬cou o Sr. Satterthwaite profundamente.

— Sim. Não há válvulas de escape, entende?

Virou-se abruptamente, e desceram pelo caminho por onde haviam ido.

— Não estou, realmente, conseguindo entendê-lo — disse o Sr. Satterthwaite, correndo, em passos miúdos e ágeis, para acompanhar as pernadas do outro. — As pessoas sensatas...

Porter riu. Uma risada curta, desconcertante. Depois, olhou para o correto cavalheiro baixinho, ao seu lado.

— Acha que é tudo blá-blá-blá de minha parte, Sr. Sat¬terthwaite? Mas existem pessoas, o senhor sabe, capazes de dizer quando vai haver tempestade. Sentem-na com antecipa¬ção no ar. E outras pessoas podem prever problemas. E vêm problemas por aí agora, Sr. Satterthwaite, problemas terríveis. Podem acontecer a qualquer momento. Podem...

Ficou paralisado, agarrando o braço do Sr. Satterthwaite. Neste tenso minuto de silêncio, a coisa aconteceu: ouviu-se o som de dois tiros e, em seguida, um grito — um grito de mulher.                                                                                 

— Meu Deus! — gritou Porter. — Aí está.

Correu pela estrada abaixo, com o Sr. Satterthwaite ofe¬gante atrás dele. Num minuto, chegaram ao gramado, perto da sebe do Jardim Secreto. Ao mesmo tempo, Richard Scott, e o Sr. Unkerton apareceram; contornando o ângulo oposto da casa.

Pararam, entreolhando-se, postados à esquerda e à direita da entrada do Jardim Secreto.

— Veio... veio daí de dentro — disse Unkerton, com a mão apontando molemente.

— Precisamos ver — disse Porter.  Adiantou-se para o local cercado. Ao dobrar a última curva da sebe de azevim, ficou paralisado. O Sr. Satterthwaite espiou por sobre seu om¬bro. Richard Scott deu um grande grito.

Havia três pessoas no Jardim Secreto. Duas delas jaziam sobre o gramado, perto do banco de pedra, um homem e uma mulher. A terceira era a Sra. Staverton. Ela estava de pé, muito perto deles, junto à sebe de azevim, com o olhar esgazeado de horror e segurando algo na mão direita.

— Iris — gritou Porter. — Iris. Pelo amor de Deus! Que é isso em sua mão?

— É um revólver — ela respondeu, atônita. E então, de¬pois do que pareceu um lapso de tempo interminável, mas na verdade fora apenas questão de rápidos segundos: — Eu o apa¬nhei.

O Sr. Satterthwaite fora adiante, até o local onde Unkerton e Scott estavam ajoelhados no gramado.

— Um médico — murmurava o segundo. — Precisamos de um médico.

Mas era tarde demais para qualquer médico. Jimmy Allen¬son, que se queixara da inabilidade dos adivinhos quanto ao futuro, e Moira Scott, a quem a cigana devolvera uma moeda, jaziam ali, com a rigidez da morte.

Foi Richard Scott quem concluiu um rápido exame. Os nervos de aço do homem evidenciaram-se nessa crise. Depois do primeiro grito de agonia, estava outra vez senhor de si.

Deitou sua mulher, outra vez, suavemente.

— Alvejada pelas costas — disse secamente. — A bala varou-lhe o corpo.

Depois, examinou Jimmy Allenson. O ferimento era no peito e a bala estava alojada no corpo.

John Porter aproximou-se.

— Nada deve ser tocado — disse severamente. — A po¬lícia deve ver tudo exatamente como está agora.

— A polícia — disse Richard Scott. Em seus olhos, bri¬lhou uma súbita chama, enquanto contemplava a mulher junto da sebe de azevim. Deu um passo em sua direção mas, ao mes¬mo tempo, John Porter também se movimentou, de maneira a impedir sua passagem.  Por um momento, parecia travar-se um duelo com os olhos, entre os dois amigos.

Porter, muito serenamente, abanou a cabeça.

— Não, Richard — disse ele. — Não é o que as aparên¬cias indicam.

Richard Scott falou com dificuldade, umedecendo os lá¬bios secos.

— Então por que... ela tem aquilo na mão?

E, novamente, Iris Staverton disse, no mesmo tom sem vida:

— Eu o apanhei.

— A polícia — disse Unkerton, erguendo-se. — Pre¬cisamos mandar chamar a polícia... imediatamente. Quer tele¬fonar, Scott? Alguém deve permanecer aqui. Sim, é certo que alguém deve permanecer aqui.

À sua maneira tranqüila e cavalheiresca, o Sr. Satterth¬waite ofereceu-se. O anfitrião aceitou a oferta com evidente alívio.

— As senhoras — explicou. — Preciso dar a notícia às senhoras, Lady Cynthia e minha querida mulher.

O Sr. Satterthwaite ficou no Jardim Secreto, olhando para o cadáver daquela que fora Moira Scott. Pobre criança — disse para si mesmo. Pobre criança.

Citou de si para consigo um ditado relativo ao mal que os homens fazem vivendo como querem e bem entendem. Pois não era Richard Scott, de certo modo, responsável pela morte de sua inocente mulher? Enforcariam Iris Staverton, supunha, embora não gostasse de pensar nisso, mas pelo menos uma parte da culpa não cabia ao sujeito? O mal que os homens fa¬zem...

E a moça, a moça inocente, pagara.

Olhou-a com profunda piedade. Seu rosto pequeno, tão branco e expectante, ainda com um meio sorriso nos lábios. O cabelo crespo e dourado, a orelha delicada. Havia uma man¬cha de sangue no lobo. Com a sensação de estar sendo um pou¬co detetive, o Sr. Satterthwaite concluiu que era o local onde se encontrava um brinco, arrancado em sua queda. Esticou o pes¬coço para a frente. Sim, estava certo, havia um pequeno pin¬gente de pérola na outra orelha.

Pobre criança, pobre criança.

 

— E agora, Sir — disse o Inspetor Winkfield.

Estavam na biblioteca. O Inspetor, homem com ar arguto e eficaz, por volta de seus 40 anos, estava concluindo as inves¬tigações. Interrogara a maioria dos convidados e tinha, àquela altura, praticamente tirado suas conclusões sobre o caso. Ouvia o que o Major Porter e o Sr. Satterthwaite tinham para dizer. O Sr. Unkerton sentava-se pesadamente numa cadeira, fitando, com olhos esbugalhados, a parede em frente.

— Pelo que entendi, cavalheiros — disse o Inspetor — os senhores saíram para um passeio. Estavam voltando para casa por uma estrada que contorna, pelo lado esquerdo, o cha¬mado Jardim Secreto. Correto?

— Inteiramente correto, Inspetor.

— Ouviram dois tiros e um grito de mulher?

— Sim.

— Correram, então, o mais rápido que puderam, saíram do bosque e seguiram até a entrada do Jardim Secreto. Se alguém tivesse saído daquele jardim, só poderia tê-lo feito pela entrada. Não se pode atravessar as sebes de azevim. E se al¬guém tivesse corrido para fora do jardim e virado à direita, encontraria o Sr. Unkerton e o Sr. Scott. Por outro lado, se virasse à esquerda, teria sido visto pelos senhores. Correto?

— É isso — disse o Major Porter. Seu rosto estava muito pálido.

— Parece que o caso está resolvido — disse o Inspetor. — O Sr. e a Sra. Unkerton e Lady Cynthia Drage estavam sen¬tados no gramado, o Sr. Scott encontrava-se na sala de bilhar, que dá para o gramado. Às seis horas e dez minutos, a Sra. Staverton saiu da casa, disse algumas palavras aos que estavam sentados lá, e contornou a casa, na direção do Jardim Secreto. Dois minutos depois, os tiros foram ouvidos. O Sr. Scott saiu apressadamente da casa e, juntamente com o Sr. Unkerton, correu para o Jardim Secreto. Ao mesmo tempo, o senhor, jun¬tamente com o Sr... hmmm... Satterthwaite, chegaram, vindos da direção contrária. A Sra. Staverton estava no Jardim Se¬creto, com um revólver na mão, do qual haviam sido dispara¬dos dois tiros. Segundo penso, alvejou a moça primeiro, por trás, pois ela estava sentada no banco. Então, o Capitão Allen¬son deve ter-se levantado depressa, investindo na direção dela. Ela alvejou-o no peito, quando ele se aproximava. Parece que houve uma... hmmm... ligação anterior, entre ela e o Sr. Ri¬chard Scott...

— Isto é uma tremenda mentira — disse Porter.

Sua voz era áspera e desafiadora. O Inspetor nada disse, apenas abanou a cabeça.

— Qual é a versão dela? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

— Ela diz que foi para o Jardim Secreto a fim de ficar sossegada por um momento. Dobrou a curva, viu a pistola a seus pés e a apanhou. Ninguém passou e ela e não viu ninguém no jardim, a não ser as duas vítimas. — O Inspetor fez uma pausa eloqüente. — Isto é o que ela diz... e, embora eu a ad¬vertisse, insistiu em fazer tal declaração.

— Se ela disse isto — falou o Major Porter, e seu rosto estava ainda mortalmente pálido — dizia a verdade. Conheço Iris Staverton.

— Bem, Sir — disse o Inspetor — haverá tempo de sobra para repassar tudo, depois. Enquanto isso, tenho meu dever a cumprir.

Com um movimento abrupto, Porter virou-se para o Sr. Satterthwaite.

— O senhor não pode ajudar? Não pode fazer alguma coisa?

O Sr. Satterthwaite não pôde deixar de se sentir imensa¬mente lisonjeado. Fora alvo de um apelo, ele, o mais insignifi¬cante dos homens, e um apelo de alguém como John Porter.

Já ia dar uma trêmula resposta de pesar, quando o mor¬domo, Thompson, entrou, com um cartão sobre uma salva, que levou ao seu amo com um pigarro de desculpas. O Sr. Unkerton ainda estava desajeitadamente sentado na cadeira, sem tomar parte nos procedimentos.

— Eu disse ao cavalheiro que o senhor provavelmente não poderia vê-lo, Sir — disse Thompson. — Mas ele insistiu, di¬zendo que tinha um encontro marcado e que era urgentíssimo.

Unkerton pegou o cartão.

— O Sr. Harley Quin — leu. — Lembro-me de que ele vinha ver-me a propósito de um quadro. Marquei um encon¬tro, mas as coisas estão.

Mas o Sr. Satterthwaite sobressaltara-se.

— Disse Sr. Harley Quin? — exclamou. — Que coisa extraordinária, realmente extraordinária. Major Porter, per¬guntou-me se podia ajudá-lo. Acho que sim. Este Sr. Quin é um amigo... ou, deveria dizer, um conhecido meu. É um ho¬mem verdadeiramente notável.

— Um desses detetives amadores, suponho — observou o Inspetor depreciativamente.

— Não — disse o Sr. Satterthwaite. — Ele não é, em absoluto, este tipo de homem. Mas tem o poder... um poder quase sobrenatural... de mostrar à pessoa o que ela viu com seus próprios olhos, de esclarecer o que ouviu com os próprios ouvidos. Vamos, de qualquer maneira, apresentar-lhe um es¬boço do caso e ouvir o que tem para dizer.

O Sr. Unkerton fitou o Inspetor, que simplesmente fungou e olhou para o teto. Então, o primeiro fez um rápido sinal de aquiescência a Thompson, que saiu da sala e voltou introdu¬zindo um estranho alto e magro.

— Sr. Unkerton? — o estranho apertou-lhe a mão. — Sinto muito forçar minha presença em tal ocasião. Devemos deixar nossa pequena conversa sobre o quadro para outra oportunidade. Ah, meu amigo, Sr. Satterthwaite! Ainda, como sempre, um apreciador do drama?

Um leve sorriso brincou, por um minuto, nos lábios do estranho, quando ele disse essas últimas palavras.

— Sr. Quin — disse o Sr. Satterthwaite em tom comovido, — temos um drama aqui; estamos no meio dele. Gostaria, como também meu amigo Major Porter, de saber sua opinião a res¬peito.

O Sr. Quin sentou-se. A lâmpada vermelha do abajur jogou uma larga faixa de luz colorida sobre o axadrezado de seu sobretudo e deixou-lhe o rosto na sombra, quase como se ele usasse uma máscara.

Sucintamente, o Sr. Satterthwaite expôs os principais pontos da tragédia. Depois, fez uma pausa, sem fôlego, à espera das palavras do oráculo.

Mas o Sr. Quin apenas sacudiu a cabeça.

— Uma história triste — disse. — Uma tragédia real¬mente triste e chocante. A falta de motivos faz com que se torne intrigante.

Unkerton olhou para ele.

— O senhor não compreende — disse ele. — Ouviu-se a Sra. Staverton ameaçar Richard Scott. Ela tinha intenso ciúme da mulher dele. Ciúme...

— Concordo — disse o Sr. Quin. — Ciúme ou posses¬são diabólica. É a mesma coisa. Mas o senhor não me com¬preendeu. Referia-me não ao assassinato da Sra. Scott, mas ao do Capitão Allenson.

— Tem razão — exclamou Porter, dando um pulo. — Existe uma falha aqui. Se Iris tivesse algum dia considerado a possibilidade de atirar na Sra. Scott, poderia encontrá-la sozinha em algum lugar. Não, estão na linha errada de dedução. E acho que vejo outra solução. Só aquelas três pessoas entraram no Jardim Secreto. Isto não se pode contestar, e não pretendo fazê-lo. Mas reconstituo a tragédia de maneira diferente. Va¬mos supor que Jimmy Allenson tenha atirado primeiro na Sra. Scott, e depois em si próprio. É possível, não é? Atirou o re¬vólver longe, ao cair... A Sra. Staverton encontrou-o caído ao chão e o apanhou, exatamente como falou. Que tal?

O Inspetor abanou a cabeça.

— Não convence, Major Porter. Se o Capitão Allenson tivesse disparado aquele tiro perto do próprio corpo, sua roupa ficaria chamuscada.

— Poderia ter segurado o revólver com o braço esten¬dido.

— Por que faria isto? Não tem sentido. Além disso, não há motivo.

— Ele poderia ter perdido a cabeça, de repente — mur¬murou Porter, mas sem grande convicção. Ficou silencioso note, mas, de repente, reanimou-se e disse desafiadoramente: — E então, Sr. Quin?                                      

Este sacudiu a cabeça.

— Não sou mágico. Nem mesmo um criminalista. Mas vou dizer-lhe uma coisa: Acredito no valor das impressões. Em ocasiões de crise, há sempre um momento que se destaca entre todos os outros, uma cena que permanece quando tudo o mais se desvaneceu. O Sr. Satterthwaite, acredito, terá sido o observador menos preconceituoso de todos os presentes. Quer fazer recuar sua mente, Sr. Satterthwaite, e nos contar qual o momento que lhe causou maior impressão? Foi quando ouviu os tiros? Foi quando viu pela primeira vez os cadáveres? Afaste de sua mente quaisquer padrões de julgamento preconcebidos, e nos responda.

O Sr. Satterthwaite fixou os olhos no rosto do Sr. Quin, quase como um colegial repetindo uma lição que não tivesse certeza de saber bem.

— Não — disse ele, devagar. — Não foi nenhum desses. O momento que sempre lembrarei foi quando fiquei de pé, sozinho, ao lado dos dois corpos... mais tarde... olhando para a Sra. Scott. Ela estava deitada de lado. Seu cabelo estava encrespado. Havia uma mancha de sangue em sua pequena ore¬lha.

E de repente, enquanto falava, sentiu que dissera uma coisa terrificante e significativa.

— Sangue em sua orelha? Sim, eu me lembro — disse Unkerton, lentamente.

— Seu brinco deve ter sido arrancado, quando ela caiu — explicou o Sr. Satterthwaite.

Mas a hipótese pareceu um tanto improvável, quando ele a expôs.

— Ela estava deitada sobre o lado esquerdo — disse Porter. — Suponho que foi essa orelha?

— Não — disse o Sr. Satterthwaite, depressa. — Foi, a orelha direita.

O Inspetor pigarreou.

— Encontrei isto no gramado — dignou-se a dizer. Se¬gurava um aro de ouro.

— Meu Deus, homem — exclamou Porter. — Esta coisa não pode ter sido arrancada e quebrada por uma simples queda. Parece mais provável que tenha sido esmigalhada por uma bala.

— Foi isso — exclamou o Sr. Satterthwaite. — Foi uma bala. Deve ter sido.

— Houve apenas dois tiros — disse o Inspetor. — Um só disparo não poderia roçar sua orelha e atingi-la nas costas, ao mesmo tempo. E, se um tiro arrancou o brinco e o segundo matou-a, não pode ter morto o Capitão Allenson também... a não ser que ele estivesse em pé, diante dela, muito próximo, encarando-a. É possível. Oh! Nem assim, a menos que...

— A menos que ela estivesse em seus braços, era o que o senhor ia dizer — falou o Sr. Quin, com um estranho sorrisozinho. — Bem, por que não?

Todos se entreolharam. A idéia era-lhes tão fundamental¬mente estranha: Allenson e a Sra. Scott. O Sr. Unkerton ma¬nifestou o mesmo sentimento:

— Mas eles mal se conheciam — disse.

— Não sei — falou o Sr. Satterthwaite, pensativo. — Poderiam conhecer-se melhor do que pensávamos, Lady Cynthia falou que ele não a deixara entediar-se no Egito, no inverno passado, e o senhor — virou-se para Porter — disse-me que Richard Scott conheceu sua mulher no Cairo, no inverno pas¬sado. Poderiam, na verdade, ter-se conhecido muito bem, por lá.

— Não pareciam estar juntos com freqüência — disse Unkerton.

— Não, até se evitavam. Era quase pouco natural, agora que parei para pensar no assunto...

Todos olharam para o Sr. Quin, como se estivessem meio sobressaltados com as conclusões que haviam tirado tão inesperadamente.

O Sr. Quin levantou-se.

— Vejam — disse — como a recordação do Sr. Satterth¬waite nos ajudou. — Virou-se para Unkerton. — Agora é sua vez.

— Hein? Não compreendo.

— Estava muito pensativo, quando entrei nesta sala. Gos¬taria de saber exatamente que pensamento o obcecava. Não se preocupe se nada tiver a ver com a tragédia. Nem se lhe parecer... supersticioso... — O Sr. Unkerton sobressaltou-se li¬geiramente. — Diga-nos.

— Não me incomodo de dizer-lhes — falou Unkerton. — Embora nada tenha a ver com a questão e eu vá ser, provavel¬mente, alvo de risadas. Estava desejando que minha mulher tivesse esquecido, e não substituído, aquela vidraça na janela mal-assombrada. Minha impressão é que ela, ao trocá-la, tal¬vez tenha atraído uma maldição.

Não conseguiu entender por que os dois homens em sua frente o olhavam de tal maneira.

— Mas ela ainda não substituiu a vidraça — disse o Sr. Satterthwaite, afinal.

— Sim, ela o fez. A primeira coisa que aconteceu esta manhã foi a chegada do homem.

— Meu Deus! — disse Porter. — Começo a compreen¬der. Aquele quarto é revestido de madeira, suponho, não de papel?

— Sim, mas o que isto tem...

Porter lançara-se para fora da sala. Os demais o seguiram. Foi diretamente para cima, para o quarto de dormir dos Scott. Era um aposento encantador, com painéis creme e duas janelas abrindo-se em direção sul. Porter tateou os painéis da parede oeste.

— Existe uma mola em algum lugar, deve existir. Ah! — Ouviu-se um clic, e uma parte do revestimento cedeu. Re¬velou as encardidas vidraças da janela mal-assombrada. Uma das vidraças estava limpa e era nova. Porter curvou-se rapida¬mente e pegou alguma coisa.  Segurou-a na palma da mão. Era um pedaço de pluma de avestruz. Então, ele olhou para o Sr. Quin. O Sr. Quin balançou a cabeça.

Ele encaminhou-se para o armário do quarto. Havia ali vários chapéus — os chapéus da morta. Pegou um com aba lar¬ga e plumas encaracoladas, um sofisticado chapéu Ascot.

O Sr. Quin começou a falar em voz baixa, reflexiva.

— Vamos imaginar — disse o Sr. Quin — um homem que seja, por natureza, intensamente ciumento, um homem que tivesse sido hóspede daqui, anos atrás, e soubesse o segredo dos painéis. Para se divertir, ele abre o painel móvel, certo dia, e olha para o Jardim Secreto. Lá, certos de não estarem sendo observados, ele vê sua mulher e outro homem. Fica louco de raiva. Que fará? Tem uma idéia. Vai até o armário e coloca o chapéu com abas largas e plumas. Está escurecendo e ele lem¬bra a história da mancha no vidro. Qualquer pessoa que olhar para a janela verá, segundo deverá supor, o Cavaleiro Vigilante. Assim a coberto, ele os observa e, no momento em que estão um nos braços do outro, atira. É um bom atirador... excelente. Quando os dois estão caindo, dispara mais uma vez... e este tiro arranca o brinco. Joga a pistola pela janela, no Jardim Secreto, desce apressadamente e sai pelo salão de bilhar.

Porter deu um passo na direção dele.

— Mas ele deixou que ela fosse acusada? — exclamou. — Ficou de lado e deixou-a ser acusada? Por quê? Por quê?

— Acho que sabe por quê — disse o Sr. Quin. — Posso adivinhar. É apenas, desculpe, uma adivinhação de minha parte. Posso adivinhar que Richard Scott esteve, certa vez, loucamente apaixonado por Iris Staverton — tão loucamente que apenas encontrá-la, mesmo anos depois, fez o ciúme reviver. Devo dizer que Iris, um dia, imaginou amá-lo, que participou de um safari com ele e outro homem — e voltou apaixonada pelo me¬lhor dos dois.

— O melhor dos dois — murmurou Porter, aturdido. — Refere-se...

— Sim — disse o Sr. Quin, com um leve sorriso. — Refiro-me ao senhor. — Fez uma rápida pausa e depois falou. — Se eu estivesse em seu lugar, iria vê-la, agora.

— Iris — disse Porter. Virou-se e saiu da sala.

 

Na Estalagem Bells e Motley*

O SR. SATTERTHWAITE estava aborrecido. Fora um dia com¬pletamente frustrante. Haviam partido tarde; viraram no lugar errado e se perderam na região deserta da planície de Salisbury. Agora, eram quase oito horas, estavam ainda a uns 65 quilô¬metros de Marswick Manor, para onde se destinavam, e ainda acontecera um pneu furado, para tornar as coisas mais penosas. O Sr. Satterthwaite, parecendo um passarinho cuja pluma¬gem tivesse sido arrepiada, caminhava de um lado para outro em frente à oficina da cidadezinha, enquanto seu motorista con¬versava em tom pessimista com o especialista local.

— Meia hora, pelo menos — disse essa sumidade, dando seu veredicto.

— E com sorte — completou Masters, o motorista. — Na realidade, mais ou menos três quartos de hora.

— Que lugar é este, afinal de contas? — perguntou o Sr. Satterthwaite, mal-humorado. Sendo um cavalheiro que le¬vava em consideração os sentimentos do próximo, usou a ex¬pressão “lugar”, em vez de “fim de mundo”, que lhe acudira primeiro.

Kirtlington Mallet.

O Sr. Satterthwaite não ficou muito mais esclarecido, mas, ainda assim, o nome lhe pareceu levemente familiar. Kirtlington Mallet parecia consistir numa rua solitária, tendo a um lado a garagem e o correio, e do outro, para equilibrar, três lojas inde¬finidas. Mais abaixo, na estrada, o Sr. Satterthwaite percebeu algo que rangia e se balançava ao vento, e seu estado de espí¬rito melhorou um pouco.

— Há uma estalagem, pelo que vejo — comentou.

— Bells e Motley — disse o garagista. — Fica logo ali adiante.

 

* O nome da estalagem contém alusão aos guizos (bells) e ao traje colorido (motley) de um bufão (N. do T.).

 

— Se me permite fazer uma sugestão, Sir — disse Masters, — por que não vai até lá? Poderão oferecer-lhe uma refeição, sem dúvida... não, naturalmente, como aquelas a que está habituado... — Fez uma pausa, como quem pede desculpas, pois o Sr. Satterthwaite estava habituado aos melhores pratos dos chefs europeus e tinha a seu próprio serviço um cordon bleu a quem pagava salário fabuloso.

— Não poderemos retornar à estrada antes de três quar¬tos de hora, Sir. Tenho certeza. E já são quase oito e meia. Poderá telefonar para Sir George Foster, da estalagem, e infor¬má-lo da causa de nossa demora.

— Você parece pensar que dá jeito em tudo, Masters — retrucou o Sr. Satterthwaite.

Masters, que pensava exatamente isso, manteve um silêncio respeitoso.

O Sr. Satterthwaite, apesar de seu profundo desejo de de¬saprovar qualquer sugestão que pudesse, possivelmente, ser-lhe feita — estava nesse estado de espírito — não obstante olhou a estrada, em direção à tabuleta chiadeira da estalagem, com uma leve aprovação interior. Era um homem com apetite de passarinho, um gourmet. Mas, mesmo pessoas assim podem sentir fome.

— Bells e Motley — disse, pensativamente. — É um nome estranho para uma hospedaria. Não sei se já ouvi falar nele, antes.

— Há pessoas estranhas que vão para lá, é o que todos dizem — observou o homem local.

— Pessoas estranhas? — perguntou o Sr. Satterthwaite. — Que quer dizer com isso?

O outro parecia nem saber direito o que ele próprio queria dizer.

— Pessoas que aparecem e desaparecem. Desse tipo — disse, vagamente.

O Sr. Satterthwaite pensou que os hóspedes de uma estala¬gem são, quase por necessidade, do tipo que “aparece e desapa¬rece”. A definição pareceu-lhe carecer de precisão. Mas, não obstante, sua curiosidade ficou estimulada. De uma maneira ou de outra, tinha de preencher três quartos de hora. A Bells e Motley seria um lugar tão bom quanto outro qualquer.

Com seus costumeiros passinhos miúdos, caminhou pela estrada. A distância, ouviu-se o estrépito de um trovão. O me¬cânico olhou para cima e disse a Masters:

— Vem aí uma tempestade. É como se eu estivesse sen¬tindo a coisa no ar.

— Caramba! — exclamou Masters. — E ainda faltam 65 quilômetros de estrada.

— Ah — fez o outro. — Não preciso ter pressa neste ser¬viço. Você só vai ter ordem de retomar a estrada quando a tem¬pestade passar. Aquele seu patrãozinho não tem cara de quem gosta de andar por aí com tempestades e relâmpagos.

— Espero que seja bem tratado naquele lugar — mur¬murou o motorista. — Agora, vou eu mesmo até lá, para fazer uma boquinha.

— Billy Jones é bom — disse o garagista. — Tem uma boa mesa.

O Sr. William Jones, homem de 50 anos, o grandalhão e troncudo estalajadeiro da Bells e Motley, estava, naquele mi¬nuto, sorrindo insinuantemente, lá do alto, para o pequeno Sr. Satterthwaite.

— Posso preparar-lhe um belo filé, Sir... e batatas fritas, e o melhor queijo que qualquer cavalheiro possa desejar. Por aqui, Sir, na sala do café. Não estamos com a casa cheia no momento, pois o último dos cavalheiros que vieram pescar aca¬bou de partir. Daqui a pouco tempo estaremos lotados nova¬mente, para a caça. Só há um cavalheiro aqui, no momento, de nome Quin...

O Sr. Satterthwaite ficou paralisado.

— Quin? — disse ele, excitadíssimo. — Disse Quin?

— Este é o nome dele, Sir. Amigo seu, talvez?

— Sim, na verdade. Oh! sim, certamente. — Todo alvoro¬çado, o Sr. Satterthwaite mal pensou que poderia existir mais de um homem com este nome. Não tinha a menor dúvida. Es¬tranhamente, a informação se enquadrava com o que dissera o homem da garagem. “Pessoas que aparecem e desaparecem.” Uma descrição muito fiel do Sr. Quin. E o nome da estalagem também lhe parecia muito próprio e adequado.

— Meu Deus — disse o Sr. Satterthwaite. — Que coisa tão esquisita. Nos encontrarmos assim! O Sr. Harley Quin, não é?

— Exatamente, Sir. Este é o salão do café, Sir. Ah! Aí está o cavalheiro.

Alto, moreno, sorridente, a figura familiar do Sr. Quin levantou-se da mesa à qual estava sentado, e a voz inesquecível falou.

— Ah! Sr. Satterthwaite, aqui nos encontramos outra vez. Um encontro inesperado!

O Sr. Satterthwaite apertou-lhe a mão, calorosamente.

— Encantado. Encantado mesmo. Um incidente me deu sorte. Meu automóvel pifou, sabe. Está hospedado aqui? Vai ficar muito tempo?

— Apenas uma noite.

— Então, tive sorte mesmo.

Q Sr. Satterthwaite sentou-se diante do amigo, com um leve suspiro de satisfação, e observou o rosto moreno e sorri¬dente em sua frente, com uma expectativa agradável.

O outro homem balançou a cabeça, gentilmente.

— Garanto-lhe — disse ele — que não tenho um aquário cheio de peixinhos dourados ou um coelho para tirar da manga.

— Que pena — exclamou o Sr. Satterthwaite, um tanto decepcionado. — Sim, devo confessar... realmente tenho esta atitude para com o senhor. Um mágico. Ha, ha. Eis como o encaro. Um mágico.

— E, no entanto — disse o Sr. Quin — é o senhor quem faz os truques de prestidigitação, não eu.

— Ah! — disse o Sr. Satterthwaite, ansiosamente. — Mas não posso realizá-los sem o senhor. Falta-me, vamos dizer, ins¬piração?

O Sr. Quin, sorridente, balançou a cabeça.

— Esta é uma palavra forte demais. Eu diria a deixa, é tudo.

O estalajadeiro entrou naquele minuto, com pão e uma porção de manteiga. Quando colocou as coisas sobre a mesa, houve um intenso clarão de relâmpago e o estrépito de um trovão, muito perto.

— Noite tempestuosa, cavalheiros.

— Numa noite assim... — começou o Sr. Satterthwaite, e parou.

— Engraçado — disse o estalajadeiro, sem saber de que se tratava — eu ia dizendo justamente essas palavras.   Foi numa noite assim que o Capitão Harwell trouxe sua esposa para cá, justamente na véspera de desaparecer para sempre.

— Ah! — exclamou o Sr. Satterthwaite, de súbito. — Claro!

Ali estava a chave. Sabia, agora, por que o nome Kir¬tlington Mallet lhe era familiar. Três meses antes, lera todos os detalhes do espantoso desaparecimento do Capitão Richard Harwell. Como outros leitores de jornais em toda a Grã-Breta¬nha, dera tratos à bola diante dos detalhes do desaparecimento e, também como todos os outros britânicos, desenvolvera suas próprias teorias.

— Claro — repetiu. — Foi em Kirtlington Mallet que aconteceu.

— Foi nesta casa que ele se hospedou para caçar, no inverno passado — disse o estalajadeiro. — Eu o conhecia bem. Um jovem cavalheiro simpático, dando a impressão de não ter nenhuma preocupação. Mataram-no... é o que acredito. Muitas vezes vi os dois voltarem a cavalo... ele e a Srta. Le Couteau, com todo o vilarejo dizendo que dali ia sair casa¬mento, como realmente aconteceu. Uma moça muito bonita e bastante querida, apesar de canadense e estrangeira. Ah! Um mistério insolúvel. Nunca saberemos a verdade. Foi um terrível desgosto para ela. Com toda certeza. Como devem saber, ela vendeu a propriedade e foi para o exterior; não podia supor¬tar isso aqui, com todos olhando-a e a apontando, embora não tivesse nenhuma culpa, pobrezinha. Um mistério insolúvel, eis o que é.

— Um mistério insolúvel — disse o Sr. Quin, baixinho.

Sua voz soou provocativa aos ouvidos do Sr. Satterthwaite.

— Supõe que podemos resolver um mistério que desafiou a Scotland Yard? — perguntou bruscamente.

O outro fez um gesto característico.

— Por que não? O tempo passou. Três meses. Isto faz diferença.

— Esta é uma idéia sua muito curiosa — disse o Sr. Satterthwaite, devagar. — A de que as coisas são mais bem vistas depois de algum tempo.

— Quanto mais tempo passa, mais as coisas são vistas em suas devidas proporções. É possível vê-la em sua verdadeira relação uma com a outra.

Houve um silêncio que durou alguns minutos.

— Não estou certo — disse o Sr. Satterthwaite, em voz he¬sitante — de me lembrar dos fatos claramente, agora.

— Acho que lembra — disse o Sr. Quin, tranqüilamente.

Era todo o encorajamento de que o Sr. Satterthwaite pre¬cisava. Seu papel na vida, em geral, era apenas o de ouvinte e espectador. Só na companhia do Sr. Quin esta posição se in¬vertia. Aqui, o Sr. Quin era o ouvinte apreciativo, enquanto o Sr. Satterthwaite ocupava o centro do palco.

— Foi exatamente há um ano — disse ele — que Ashley Grange passou para as mãos da Srta. Eleanor Le Couteau. É uma bela casa antiga, mas havia sido maltratada e deixaram que permanecesse desocupada durante muitos anos. Não po¬deria ter encontrado melhor castelã. A Srta. Le Couteau é cana¬dense, seus ancestrais foram emigrés da Revolução Francesa e lhe entregaram uma coleção, de valor quase incalculável, de re¬líquias e antigüidades francesas. Ela também era compradora e colecionadora, com um gosto muito fino e seletivo, de modo que, quando decidiu vender Ashley Grange e tudo o que con¬tinha, depois da tragédia, o Sr. Cyrus G. Bradburn, milionário norte-americano, não hesitou em pagar o preço fantástico de 60 mil libras pela Grange, tal como se encontrava.

O Sr. Satterthwaite fez uma pausa.

— Menciono estas coisas — disse, em tom de desculpa — não porque sejam importantes para a história... estritamente falando, não são... mas para criar uma atmosfera, a atmos¬fera que envolvia a jovem Sra. Harwell.

O Sr. Quin balançou a cabeça.

— A atmosfera é sempre valiosa — disse gravemente.

— Então temos um retrato da moça — continuou o outro. — Apenas 23 anos, morena, bonita, prendada, sem nenhum traço rude ou imperfeito. E rica... não devemos esquecer. Era órfã. Uma certa Sra. St. Clair, de inatacável estirpe e posição social, viveu com ela como dama de companhia. Mas Eleanor Le Couteau tinha completo controle de sua própria fortuna. E os caça-dotes não são nunca difíceis de encontrar. Pelo menos uma dúzia de jovens sem dinheiro estava sempre em torno dela, em todas as ocasiões, durante as caçadas, na sala de dan¬ças, onde quer que ela fosse. O jovem Lorde Leccan, o melhor partido do país, segundo se diz, pediu-a em casamento, mas ela continuou com o coração intocado. Isto é, até o apareci¬mento do Capitão Richard Harwell.

— O Capitão Harwell hospedara-se na estalagem local, durante a temporada de caça. Era um cavaleiro audacioso, com seus sabujos, um valentão risonho e simpático. Lembra-se do velho ditado, Sr. Quin? “Namoro feliz é o que dura me¬nos.” O provérbio cumpriu-se, pelo menos em parte. Ao cabo de dois meses, Richard Harwell e Eleanor Le Couteau estavam noivos.

— O casamento deu-se três meses depois. O feliz casal partiu para o exterior, em lua-de-mel de duas semanas, e depois voltou para se instalar em Ashley Grange. O estalajadeiro acaba de nos dizer que foi numa noite de tempestade como esta que voltaram ao lar. Um agouro, será? Quem pode dizer? Seja lá como for, na manhã seguinte, muito cedo... cerca de sete e meia... o Capitão Harwell foi visto caminhando pelo jar¬dim, por um dos jardineiros, John Mathias. Estava sem chapéu e assobiava. Aí temos uma imagem, a imagem de alguém despreocupado, descuidadamente feliz. E, no entanto, depois da¬quele minuto, pelo que sabemos, ninguém voltou a pôr os olhos no Capitão Richard Harwell.

O Sr. Satterthwaite fez uma pausa, agradavelmente cons¬ciente de um momento dramático. O olhar admirativo do Sr. Quin foi o tributo de que necessitava, e continuou.

— O desaparecimento foi fora do comum... inexplicável. Só no dia seguinte a esposa distraída chamou a polícia. Como sabe, não conseguiram solucionar o mistério.

— Houve, suponho, teorias? — perguntou o Sr. Quin.

— Oh, teorias, houve. Teoria número um, que o Capitão Harwell foi assassinado, liquidado, Mas, neste caso, onde esta¬ria o corpo? Seria difícil dar-lhe sumiço. E, além disso, que motivo havia? Pelo que se sabe, o Capitão Harwell não tinha um só inimigo.

Fez uma pausa abrupta, como se não tivesse certeza. O Sr. Quin inclinou-se para diante.

— Está pensando — disse baixinho — no jovem Stephen Grant.

— Estou, sim — admitiu o Sr. Satterthwaite. — Stephen Grant, se me lembro bem, fora encarregado de tomar conta dos cavalos do Capitão Harwell, que o despediu por uma falta sem importância. Na manhã seguinte à volta do casal, muito cedo, Stephen Grant foi visto nas imediações de Ashley Grange, e não pôde explicar, de modo convincente, sua presença ali. A polícia o prendeu em relação com o desaparecimento do Ca¬pitão Harwell, mas nada pôde ser provado contra ele e, final¬mente, soltaram-no. É verdade que se poderia supor um rancor de sua parte para com o Capitão Harwell, devido à sua demissão sumária, mas o motivo era, inegavelmente, um dos mais fúteis. Acho que a polícia apenas julgou que devia tomar algu¬ma providência. Veja bem: como eu disse há pouco, o Capitão Harwell não tinha um inimigo neste mundo.

— Pelo que sabemos — disse o Sr. Quin, reflexivamente.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça apreciativamente.

— Estamos chegando lá. O que, afinal de contas, se sabia a respeito do Capitão Harwell? Quando a polícia examinou seus antecedentes, deparou com uma singular falta de material. Quem era Richard Harwell? De onde veio? Apareceu literal¬mente do nada, segundo parecia. Era um ótimo cavaleiro e, aparentemente, rico. Ninguém em Kirtlington Mallet preo¬cupou-se em fazer maiores investigações. A Srta. Le Couteau não tinha pais ou guardiães para inquirir quanto às perspecti¬vas ou posição de seu noivo. Era dona de seu nariz. A teoria da polícia quanto a este ponto foi suficientemente clara. Uma moça rica e um impostor despudorado. A velha história!

— Mas não era exatamente assim. Na verdade, a Srta. Le Couteau não tinha pais nem guardiães, mas uma excelente firma de advogados, em Londres, agia em seu nome. O depoi¬mento de seu representante tornou o mistério mais profundo. Eleanor Le Couteau desejara destinar determinada soma, de imediato, para seu marido em perspectiva, mas ele recusou. Também era rico, declarou. Ficou definitivamente provado que Harwell nunca tocou num só tostão de sua mulher. A fortuna dela estava absolutamente intacta.

— Não se tratava, portanto, de um trapaceiro comum; mas não seria seu objetivo um refinamento da arte? Propunha-se, por acaso, a fazer chantagem, em data futura, se Eleanor Harwell decidisse casar-se com outro homem? Admito que algo desse tipo me pareceu a solução mais provável. Sempre me pareceu... até hoje à noite.

O Sr. Quin inclinou-se para a frente, instigando-o.

— Esta noite?

— Esta noite. Não estou satisfeito com a hipótese. Como ele conseguiu desaparecer tão repentina e completamente, àquela hora da manhã, quando todos os trabalhadores começavam a se pôr em marcha para suas ocupações? E, além disso, sem chapéu?

— Não há dúvida quanto a este último ponto, já que o jardineiro o viu, não é?

— Sim, o jardineiro. John Mathias. Haveria algo suspeito nele?

— A polícia não iria esquecê-lo — disse o Sr. Quin.

— Interrogaram-no intensamente. Nunca vacilou em sua declaração. Sua mulher confirmou-lhe as palavras. Saiu de seu chalé às sete, para cuidar das estufas; voltou às 20 para as oito. Os criados da casa ouviram a porta da frente bater, cerca de sete e um quarto. Isto fixa a hora em que o Capitão Harwell saiu de casa. Ah, sim, sei o que está pensando.

— Será que sabe mesmo? — perguntou o Sr. Quin.

— Creio que sim. Tempo suficiente para Mathias ter liqui¬dado seu patrão. Mas por que, homem, por quê? E, neste caso, onde escondeu o corpo?

O estalajadeiro entrou, trazendo uma bandeja.

— Desculpem a demora, cavalheiros.

O cheiro dos pratos entrou agradavelmente pelas narinas do Sr. Satterthwaite. Ele se sentiu benevolente.

— Parece excelente — disse. — Realmente excelente. Es¬távamos discutindo o desaparecimento do Capitão Harwell. O que aconteceu com o jardineiro, Mathias?

— Arranjou emprego em Essex, pelo que consta. Não quis ficar nas vizinhanças. Alguns o olhavam com desconfiança, o senhor compreende. Quanto a mim, jamais acreditei que ti¬vesse algo a ver com o caso.

O Sr. Satterthwaite serviu-se. O Sr. Quin acompanhou-o condignamente. O estalajadeiro parecia disposto a ficar por ali conversando. O Sr. Satterthwaite não tinha nenhuma objeção a isto; pelo contrário.

— E esse Mathias — disse. — Que tipo de homem era ele?

— Um sujeito de meia-idade, que deve ter sido muito forte, um dia, mas já curvado e aleijado pelo reumatismo. Tinha essa doença terrível, que o prendia ao leito muitas vezes, incapacitando-o para qualquer trabalho. Acho que a Srta. Le Cou-teau o conservava por simples bondade. Já não tinha mais prés¬timo como jardineiro, embora sua mulher desse sempre um jeito de se tornar útil na casa. Sendo cozinheira, estava sempre pron¬ta a dar ajuda.

— Que tipo de mulher ela era? — perguntou o Sr. Sat¬terthwaite, depressa.

A resposta do estalajadeiro desapontou-o.

— Bastante apagada. De meia-idade e sorumbática. Sur¬da, também. Mas eu não os conhecia muito. Estava aqui apenas há um mês, entende, quando a coisa aconteceu. Ouvi dizer, no entanto, que fora jardineiro excepcionalmente bom, quando mais moço. A Srta. Eleanor teve ótimas referências dele.

— Ela se interessava por jardinagem?

— Não, Sir, não se poderia dizer que sim, como algumas das senhoras por aí, que pagam um bom dinheiro aos jardinei¬ros e passam todo seu tempo ajoelhadas, cavando aqui e acolá. Acho isso uma grande tolice. A Srta. Le Couteau não ficava muito tempo por aqui, a não ser no inverno, para as caçadas. O resto do tempo estava em Londres e mais longe, nesses bal¬neários estrangeiros onde dizem que as senhoras francesas não chegam nem a mergulhar um dedo do pé na água, com medo de estragar as roupas.

O Sr. Satterthwaite sorriu.

— Não existia...  ahn... nenhuma mulher, seja de que tipo fosse, envolvida com o Capitão Harwell? — perguntou. Embora sua primeira teoria já tivesse sido afastada, insistia na idéia.

O Sr. William Jones abanou a cabeça.

— Nada disso. Nunca ouvi o menor mexerico a respeito. Não, é um mistério insolúvel, eis o que é.

— E sua teoria? O que pensa o senhor próprio? — per¬sistiu o Sr. Satterthwaite.

— O que eu penso?

— Sim.

— Não sei o que pensar. Creio que o mataram, mas não sei dizer quem. Vou trazer o queijo para os cavalheiros.

Saiu da sala, com passos pesados, carregando as traves¬sas vazias. A tempestade, que amainara, de repente irrompeu com redobrado vigor. Um clarão de relâmpago em forma de forquilha e uma série de estrépitos de trovão fizeram saltar o pequeno Sr. Satterthwaite. Antes dos últimos ecos da trovoada se extinguirem, uma moça entrou na sala, segurando o anun¬ciado queijo.

Era alta, morena e bonita, de uma maneira sombria, toda pessoal. Sua semelhança com o estalajadeiro da Bells e Motley era evidente o bastante para proclamá-la sua filha.

— Boa-noite, Mary — disse o Sr. Quin. — Noite tem¬pestuosa.

Ela balançou a cabeça, em assentimento.

— Detesto essas noites tempestuosas — murmurou.

— Tem medo da trovoada, talvez? — perguntou o Sr. Satterthwaite gentilmente.

— Medo da trovoada? Eu, não! Tenho medo de muito pouca coisa. Não, mas a tempestade faz com que disparem a falar. Falam, falam, sempre da mesma coisa, como um bando de papagaios. Papai começa: “Isto me faz lembrar aquela noite em que o pobre Capitão Harwell...” E por aí vai. — Ela vi¬rou-se para o Sr. Quin. — Ouviu como ele não pára. De que adianta? O que passou, passou.

— Uma coisa só passa quando é liquidada — disse o Sr. Quin.

— Isto não foi liquidado? Vamos supor que ele tenha desaparecido porque quis. Esses finos cavalheiros agem assim, às vezes.

— Acha que desapareceu por que quis?

— Por que não? Faria mais sentido do que supor que uma criatura de bom coração como Stephen Grant o tenha morto. Por que o mataria, quero saber. Stephen bebeu, certo dia, um pouco além da conta, e lhe falou de maneira imperti¬nente. Foi demitido por causa disso. E daí? Conseguiu outro emprego tão bom quanto o outro. É razão para se matar um homem a sangue frio?

— Claro — disse o Sr. Satterthwaite — que a polícia ficou plenamente convencida de sua inocência.

— A polícia!  Que importa a polícia? Quando Stephen entra num bar, todos os homens olham para ele de maneira estranha. Não acreditam, realmente, que tenha assassinado o Capitão Harwell mas, como não têm certeza, então olham para ele de soslaio e se afastam. Que vida para um homem, ver as pessoas evitando-o, como se existisse nele alguma coisa dife¬rente de todos os demais. Por que meu pai não quer ouvir falar de nos casarmos, Stephen e eu? “Procure coisa melhor, minha filha. Nada tenho contra Stephen... mas, bem, a gente nunca sabe, não é?”

— É cruel, cruel, eis o que é — exclamou. — Stephen, aquele, não mataria uma mosca! E durante toda a sua vida haverá quem pense que foi ele. Isto está fazendo com que se torne estranho e amargurado. Não estou apenas imaginando, estou certa. E quanto mais ele ficar assim, mais as pessoas vão pensar que teve alguma coisa a ver com o caso.

Outra vez ela interrompeu-se. Seus olhos estavam fixos no rosto do Sr. Quin, como se algo nele estivesse arrancando dela esta explosão.

— Não há nada que se possa fazer? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

Estava, realmente, penalizado. A coisa era, segundo ve¬rificava, inevitável. A própria indefinição e a implausibilidade da acusação contra Stephen Grant tornavam mais difícil para ele desmenti-la.

A moça virou-se rapidamente em sua direção.

— Nada, a não ser a verdade, poderá ajudá-lo — ex¬clamou. — Se o Capitão Harwell fosse encontrado, se voltasse. Se fosse descoberta a verdade...

Ela se interrompeu, com algo que parecia um soluço, e saiu apressadamente da sala.

— Uma moça bonita — disse o Sr. Satterthwaite. — É um caso bastante triste. Desejaria... desejaria muito que algo pudesse ser feito para solucioná-lo.

Seu bom coração estava perturbado.

— Estamos fazendo o que podemos — disse o Sr. Quin. — Ainda falta quase meia hora, antes de seu carro ficar em condições.

O Sr. Satterthwaite olhou-o.

— Acredita que podemos descobrir a verdade apenas... falando assim sobre o assunto?

— O senhor já viu muita coisa nesta vida — disse o Sr. Quin gravemente. — Mais do que a maioria das pessoas.

— A vida passou diante de mim — disse o Sr. Satterth¬waite com amargura.

— Mas, deste modo, aguçou sua visão. Os outros são cegos, o senhor pode ver.

— É verdade — disse o Sr. Satterthwaite. — Sou um grande observador.

Gabou-se complacentemente. O momento de amargura passara.

— Vejo as coisas da seguinte maneira — disse, depois de alguns minutos. — Para compreender a causa de alguma coisa, devemos estudar seus efeitos.

— Muito bem — disse o Sr. Quin aprovadoramente.

— O efeito, neste caso, foi que a Srta. Le Couteau... Sra. Harwell, quero dizer... é uma esposa e, ao mesmo tempo, não o é. Não é livre... não pode casar-se novamente. E, sob todos os ângulos em que examinamos o caso, Richard Harwell aparece como uma figura sinistra, um homem vindo do nada, com um passado misterioso.

— Concordo — disse o Sr. Quin. — Vê-se que há para ver, o que não se pode apagar, o Capitão Harwell sob as luzes da publicidade, uma figura suspeita.

O Sr. Satterthwaite olhou-o, em dúvida. As palavras pare¬ciam, de algum modo, sugerir-lhe um quadro levemente dife¬rente.

— Estudamos o efeito — disse ele. — Ou pode cha¬má-lo de o resultado. Podemos, agora, passar..

O Sr. Quin interrompeu-o.

— O senhor não tocou no resultado do ponto de vista estritamente material.

— Tem razão — disse o Sr. Satterthwaite, depois de al¬guns momentos de cogitação. — Devemos fazer as coisas com¬pletas. Vamos dizer, então, que o resultado da tragédia é que o Sr. Cyrus Bradburn pôde comprar Ashley Grange e seu conteúdo por... 60 mil libras, não foi?... e alguém em Essex pôde dar a John Mathias um posto de jardineiro! A partir daí, não suspeitaremos de que “alguém em Essex”, ou o Sr. Cyrus Bradburn, tenham tramado o desaparecimento do Capitão Har¬well.

— O senhor é sarcástico — disse o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite lançou-lhe um olhar penetrante.

— Mas claro que concorda...

— Oh, concordo — disse o Sr. Quin. — A idéia seria absurda. Qual a próxima suposição?

— Vamos imaginar que estamos de volta ao dia fatal. O desaparecimento aconteceu, digamos, esta manhã mesmo.

— Não, não — disse o Sr. Quin, sorrindo. — Desde que, pelo menos em nossa imaginação, podemos controlar o tempo, vamos fazer as coisas ao contrário. Digamos que o desapare¬cimento do Capitão Harwell aconteceu há cem anos. E que, no século 21, estamos rememorando-o.

— O senhor é um homem estranho — disse o Sr. Sat¬terthwaite, devagar. — Acredita no passado, não no presente. Por quê?

— O senhor empregou, há pouco, a palavra atmosfera. Não há atmosfera no presente.

— Talvez seja verdade — disse o Sr. Satterthwaite pensativamente. — O presente tende a ser... limitado.

— Uma boa definição — disse o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite fez uma pequena curvatura engraçada.

— O senhor é demasiado generoso — disse.

— Vamos partir... não deste ano atual, o que seria muito difícil, mas, digamos, do ano passado — continuou o outro. — Resuma tudo para mim, o senhor, que tem o dom da frase clara.      

O Sr. Satterthwaite pensou um minuto. Zelava por reputa¬ção.

— Há cem anos, tivemos a era da pólvora e das ataduras — disse ele. — Poderemos dizer que foi a era das palavras cruzadas e dos assaltos?

— Muito bem — aprovou o Sr. Quin. — Fala em termos nacionais, não internacionais, suponho?

— Quanto às palavras cruzadas, confesso que não sei — disse o Sr. Satterthwaite. — Mas os assaltos florescem no Continente. Lembra-se daquela série de famosos roubos nos castelos franceses? Acredita-se que um homem sozinho não poderia tê-los executado. Os feitos mais miraculosos foram rea¬lizados para conseguir entrar nos castelos. Há uma teoria de que estaria envolvida uma troupe de acrobatas... os Clondinis. Certa vez, vi o desempenho deles... realmente magistral. Mãe, filho e filha. Desapareciam do palco de maneira realmente mis¬teriosa. Mas estamos distanciando-nos do assunto.

— Nem tanto — disse o Sr. Quin. — Apenas para o outro lado do Canal.

— Onde as damas francesas não molham os dedos do pé, segundo nosso valioso estalajadeiro — disse o Sr. Satterthwaite, rindo.

Houve uma pausa. Parecia um tanto significativa.

— Por que ele desapareceu? — exclamou o Sr. Satterth¬waite. — Por quê? Por quê? É incrível, uma espécie de truque de prestidigitador.

— Sim — disse o Sr. Quin. — Um truque de prestidigi¬tador. Isto descreve exatamente o fato. Atmosfera novamente, veja bem. E onde se apóia, fundamentalmente, um truque de prestidigitação?

— A rapidez da mão engana o olho — citou o Sr. Sat¬terthwaite, com fluência.

— Isto explica tudo, não? Para enganar o olho. Algu¬mas vezes, com a rapidez da mão, outras... por meios dife¬rentes. Há muitos artifícios, um tiro de pistola, o acenar de um lenço vermelho, algo que pareça importante, mas, na reali¬dade, não seja. O olho desvia-se da verdadeira questão e é atraído pela ação espetacular que nada significa... absoluta¬mente nada.

O Sr. Satterthwaite inclinou-se para a frente, com os olhos brilhando.

— Existe alguma coisa aí. É uma idéia.

Prosseguiu, baixinho.

— O tiro de pistola. Qual foi o tiro de pistola no truque de prestidigitação que estamos discutindo? Qual é o momento espetacular, que prende a atenção?

Respirou fundo, de repente.

— O desaparecimento — suspirou o Sr. Satterthwaite. — Tire isto e não resta nada.

— Nada? Vamos supor que as coisas tivessem tomado o mesmo rumo, sem aquele lance dramático.

— Quer dizer... supondo-se que a Srta. Le Couteau estivesse ainda para vender Ashley Grange ao Sr. Bradburn e partir, sem nenhum motivo?

— Exatamente.

— Bem, por que não? Daria lugar a comentários, su¬ponho, haveria muito interesse quanto ao valor das peças na casa... ah, espere!

Ficou silencioso por um minuto e depois explodiu.

— O senhor está certo, houve publicidade demais, toda voltada para o Capitão Harwell. E, devido a isso, ela ficou na sombra. A Srta. Le Couteau! Todos perguntavam: “Quem é o Capitão Harwell? De onde veio?” Mas, devido ao fato de ser ela a parte ofendida, ninguém a submeteu a investigações. Era real¬mente franco-canadense? Foram todos aqueles maravilhosos objetos da herança realmente entregues a ela? Estava com razão quando disse, há pouco, que não nos afastáramos de nosso as¬sunto... apenas nos deslocáramos para o outro lado do Canal. A suposta herança consistia nas peças roubadas dos castelos franceses, em sua maioria objets d’art, difíceis de serem negocia¬dos. Ela compra a casa... baratíssimo, provavelmente... ins¬tala-se e paga uma boa soma para uma impecável inglesa ser¬vir-lhe de acompanhante. Então, ele aparece. A trama foi tra¬çada com antecipação. O casamento, o desaparecimento e o escarcéu. Nada mais natural que o desejo de uma mulher des¬gostosa de vender tudo que lhe lembrasse a passada felicidade. O norte-americano é um conoisseur, as peças são autênticas e belas, algumas de valor incalculável. Faz uma oferta, ela a aceita. Sai do lugar, uma figura triste e trágica. O grande golpe foi dado. O olho do público foi enganado pela rapidez espeta¬cular do truque.

O Sr. Satterthwaite fez uma pausa, ruborizado com o triunfo.

— Mas, sem o senhor, eu jamais teria visto tudo isso — disse, com repentina humildade. — O senhor tem um efeito curiosíssimo sobre mim. Muitas vezes dizemos coisas cujo sig¬nificado nem percebemos direito. O senhor tem a aptidão de mostrá-lo. Mas ainda não entendi tudo. Deve ter sido dificílimo para Harwell desaparecer daquele jeito. Afinal, toda a polícia da Inglaterra estava procurando-o.

— Estava provavelmente procurando — disse o Sr. Quin — em toda a Inglaterra.

— Seria mais simples ficar escondido na Grange — co¬mentou o Sr. Satterthwaite. — Se isto fosse possível.

— Ele estava, eu acho, muito perto da Grange — disse o Sr. Quin.

Seu olhar significativo não escapou ao Sr. Satterthwaite.

— No chalé de Mathias? — exclamou. — Mas a polícia deve tê-lo revistado.

— Várias vezes, imagino — disse o Sr. Quin.

— Mathias — disse o Sr. Satterthwaite, franzindo a testa.

— E a Sra. Mathias — disse o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite olhou fixamente para ele.

— Se a gang for realmente a dos Clondinis — disse ele, como quem divaga — há três deles metidos nisso. Os dois jo¬vens eram Harwell e Eleanor Le Couteau. A mãe, seria a Sra. Mathias? Mas, nesse caso...

— Mathias sofria de reumatismo, não era? — perguntou o Sr. Quin, inocentemente.

— Oh! — exclamou o Sr. Satterthwaite. — Já sei. Mas seria viável? Acho que sim. Ouça. Mathias estava lá há um mês. Durante este período, Harwell e Eleanor estiveram afas¬tados durante uma quinzena, em lua-de-mel. Durante a quin¬zena anterior ao casamento, supunha-se que estivessem na ci¬dade. Um homem esperto poderia ter feito o duplo papel de Harwell e Mathias. Quando Harwell estava em Kirtlington Mallet, Mathias permanecia convenientemente na cama, com reumatismo, cabendo à Sra. Mathias sustentar o engodo. A parte dela era muito necessária. Sem ela, alguém poderia ter suspeitado da verdade. Como diz, Harwell estava escondido no chalé de Ma¬thias. Ele era Mathias. Quando, finalmente, os planos amadu¬receram e Ashley Grange foi vendida, ele e sua mulher espa¬lharam que iam empregar-se em Essex. Sai de cena John Ma¬thias, com sua mulher... para sempre.

Bateram na porta do salão de café e Masters entrou.   

— O carro está aí na porta, Sir — disse ele.

O Sr. Satterthwaite levantou-se. O mesmo fez o Sr. Quin, que se aproximou da janela e abriu as cortinas. Um raio de luar entrou no quarto.

— A tempestade acabou — disse ele.

O Sr. Satterthwaite estava calçando as luvas.

— O delegado vai jantar comigo na próxima semana — disse ele, com ar importante. — Vou expor-lhe minha teoria.

— Será facilmente comprovada ou desmentida — disse o Sr. Quin. — Basta comparar os objetos de Ashley Grange com uma lista fornecida pela polícia francesa...

— Exatamente — disse o Sr. Satterthwaite. — Será má sorte para o Sr. Bradburn, mas... bem...

— Ele pode, segundo creio, suportar a perda — disse o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite estendeu a mão.

— Adeus — disse. — Não sou capaz de lhe expressar o quanto apreciei este encontro inesperado. Parte amanhã, foi o que me disse?

— Talvez hoje à noite. Minha tarefa aqui está cumprida. Apareço e desapareço, como sabe.

O Sr. Satterthwaite lembrou-se de ter ouvido essas mesmas palavras, no começo da noite. Bastante curioso.

Ele saiu da estalagem e foi até o carro, onde Masters o esperava. Da porta aberta do bar, saía a voz do estalajadeiro, sonora e complacente.

— Um mistério insolúvel — ele estava dizendo. — Um mistério insolúvel, eis o que é.

Mas não usou exatamente a palavra “insolúvel”. A ex¬pressão que empregou era bem diferente. O Sr. William Jones era um homem que fazia discriminações, adequando os adjeti¬vos à companhia do momento. E os companheiros do bar gos¬tavam de adjetivos bem saborosos.

O Sr. Satterthwaite inclinou-se voluptuosamente na limu¬sine confortável. Tinha o peito inflado de triunfo. Viu a moça, Mary, sair para os degraus e postar-se sob a desconjuntada ta¬buleta da estalagem.

Ela não sabe de nada — disse o Sr. Satterthwaite de si para consigo. — Ela não sabe absolutamente o que eu vou fazer!

A tabuleta da Bells e Motley oscilava suavemente ao vento.

 

O Sinal no Céu

O JUIZ terminava de expor ao júri o sumário do caso:

— E agora, senhores, já quase concluí o que tinha a lhes dizer. Aí estão as provas para considerarem e decidirem se este caso implica a incriminação direta deste homem, de modo a po¬derem dizer que é culpado pelo assassinato de Vivien Barnaby. Têm o depoimento dos criados, quanto à hora em que a arma foi disparada. Unanimemente, eles estão de acordo quanto a isso. Têm a prova da carta escrita ao acusado por Vivien Barnaby, na manhã daquele mesmo dia, uma sexta-feira, 23 de setembro, uma carta que a defesa não tentou negar. Têm a prova de que o prisioneiro, inicialmente, negou ter estado em Deering Hill e, depois da polícia apresentar evidências nesse sentido, acabou admitindo-o. Tirarão suas próprias conclusões dessa negativa. Este não é um caso de provas diretas. Terão de tirar suas próprias conclusões quanto ao motivo, aos meios, à opor¬tunidade. A alegação da defesa é de que uma pessoa desconhe¬cida entrou no salão de música, depois que o acusado saiu, e disparou em Vivien Barnaby com a arma que, por um estranho esquecimento, o acusado deixara atrás de si. Ouviram a versão do acusado quanto às razões de ter demorado meia hora para chegar em casa. Se não acreditam na história do acusado e estão convencidos, além de qualquer dúvida razoável, de que ele, na sexta-feira, 23 de setembro, realmente descarregou sua es¬pingarda à queima-roupa na cabeça de Vivien Barnaby, com a intenção de matá-la, então, senhores, seu veredicto deve ser culpado. Por outro lado, se têm qualquer dúvida razoável, é seu dever absolver o prisioneiro. Vou pedir-lhes, agora, que se retirem para sua sala, a fim de considerar os fatos, e me façam saber, quando chegarem a uma conclusão.

O júri permaneceu ausente pouco menos de meia hora. Foi pronunciado o veredicto que, para todos, já parecia uma conclusão antecipada — o de “culpado”.

O Sr. Satterthwaite saiu do tribunal, depois de ouvir o ve¬redicto, com ar pensativo.

Um simples processo criminal, em si, não o atraía. Tinha um temperamento demasiado propenso ao tédio para encontrar interesse nos detalhes sórdidos do crime comum. Mas o caso Wylde fora diferente. O jovem Martin Wylde era o que se de¬nomina um gentleman — e a vítima, a jovem mulher de Sir George Barnaby, era uma conhecida do velho cavalheiro.

Estava pensando em tudo isso, enquanto seguia pela Rua Holborn e mergulhava, em seguida, na rede de ruelas que condu¬zem ao Soho. Numa destas ruelas havia um pequeno restau¬rante, que só poucas pessoas conheciam e, entre elas, o Sr. Satterthwaite. Não era barato — e sim, ao contrário, excessi¬vamente caro, desde que visava exclusivamente o paladar do gourmet enfastiado. Era tranqüilo — não permitiam que ne-nhum acorde de jazz perturbasse a atmosfera silenciosa — e até escuro; os garçons saíam da penumbra caminhando sem ruído, carregando travessas de prata e com o ar de quem toma parte num rito sagrado. O nome do restaurante era Arlecchino.

Ainda pensativo, o Sr. Satterthwaite entrou no Arlecchino e dirigiu-se para sua mesa favorita, num recesso do canto mais distante. Devido à penumbra antes mencionada, só quando muito perto da mesa viu que já estava ocupada por um ho¬mem alto e moreno, sentado com o rosto na sombra e cuja roupa sóbria era transformada, devido ao jogo de cor de um vitral da janela, numa espécie de exagerado e multicolorido traje de bufão.

O Sr. Satterthwaite ia voltar mas, exatamente naquele momento, o estranho moveu-se levemente e o outro o reco¬nheceu.

— Valha-me Deus! — disse o Sr. Satterthwaite, que era dado a expressões antiquadas. — Ora, é o Sr. Quin.

Três vezes, antes, encontrara o Sr. Quin, e sempre o en¬contro resultara em algo um tanto fora do comum. Estranha criatura, este Sr. Quin, com um dom de mostrar aos outros, sob uma luz totalmente diferente, coisas que já sabiam.

Imediatamente, o Sr. Satterthwaite sentiu-se excitado — agradavelmente excitado. Seu papel era o de espectador, ele sabia, mas, algumas vezes, quando na companhia do Sr. Quin, tinha a ilusão de ser um ator — e o principal.

— Isto é muito agradável — disse ele, com o pequeno rosto magro todo irradiante. — Muito agradável mesmo. Não vai incomodar-se com minha companhia, espero?

— Ficarei encantado — disse o Sr. Quin. — Como vê, ainda não comecei minha refeição.

Um maître cheio de deferência saiu flutuando da sombra. O Sr. Satterthwaite, como convém a um homem com paladar requintado, concentrou toda a sua atenção na tarefa de escolher o prato. Em poucos minutos, o maître retirou-se, com um leve sorriso de aprovação, e um jovem satélite começou seu mister. O Sr. Satterthwaite virou-se para o Sr. Quin.

— Acabo de chegar do Old Bailey* — principiou. — História triste, me pareceu.

— Ele foi considerado culpado? — perguntou o Sr. Quin.

— Sim, o júri permaneceu deliberando apenas meia hora.

O Sr. Quin curvou a cabeça.

— Resultado inevitável, com aquelas provas — disse.

— E no entanto — começou o Sr. Satterthwaite, e parou.

O Sr. Quin concluiu a frase em seu lugar.

— E no entanto, suas simpatias foram para o acusado? É o que ia dizer?

— Suponho que sim. Martin Wylde é um jovem simpá¬tico... dificilmente pode-se crer que tivesse feito aquilo. De qualquer maneira, ultimamente, grande número de jovens de boa aparência acabam provando ser assassinos de um tipo par¬ticularmente frio e repulsivo.

— Número excessivo — disse o Sr. Quin tranqüilamente.

 

* Tribunal criminal de Londres (N. do T.).

— Como assim? — perguntou o Sr. Satterthwaite, espan¬tado.

— Número excessivo para Martin Wylde.  Houve uma tendência a se encarar o caso, desde o início, como apenas mais um de uma série do mesmo tipo de crime: um homem procurando livrar-se de uma mulher, a fim de se casar com outra.

— Bem — disse o Sr. Satterthwaite, em tom de dúvida. — De acordo com os depoimentos...

— Infelizmente — disse o Sr. Quin — não acompanhei todos os depoimentos.

A autoconfiança do Sr. Satterthwaite voltou, de um ím¬peto. Sentiu súbita sensação de poder. Estava tentado a ser de¬liberadamente dramático.

— Vou procurar expor-lhe o caso. Conheci os Barnabys, entende. Estou a par das circunstâncias peculiares. Comigo, irá até atrás do pano, verá as coisas por dentro.

O Sr. Quin inclinou-se para a frente, com seu rápido sor¬riso encorajador.

— Se alguém pode expor-me isto, é o Sr. Satterthwaite — murmurou.

O Sr. Satterthwaite agarrou a mesa com as duas mãos. Estava exaltado, fora de si. Naquele momento, era pura e simplesmente um artista — um artista cujo meio de expressão eram as palavras.

Rapidamente, com meia dúzia de amplas pinceladas, esbo¬çou o quadro da vida em Deering Hill. Sir George Barnaby, idoso, orgulhoso de sua riqueza. Um homem sempre a criar casos com as pequenas coisas da vida. Um homem que dava corda em seus relógios toda sexta-feira à tarde, pagava as des¬pesas da casa toda terça de manhã e sempre verificava o trinco da porta da frente, toda noite. Um homem cuidadoso.

De Sir George, ele partiu para Lady Barnaby. Aqui, seu tom foi mais ameno, nem por isso menos firme. Só a vira uma vez, mas sua impressão quanto a ela era definida e duradoura. Uma criança vivaz, desafiadora, deploravelmente jovem. Uma criança presa numa armadilha, é como a descreveria.

— Ela o odiava, entende? Casou-se com ele antes de saber o que estava fazendo, e depois...

Ela estava desesperada — foi como ele descreveu a situa¬ção. Sem saber para que lado se voltar. Não tinha dinheiro; dependia inteiramente do marido idoso. Mas, de qualquer modo, era uma criatura sem escapatória. Ainda não tinha certeza de seus poderes, com uma beleza que era mais promessa que rea¬lidade. O Sr. Satterthwaite afirmou isto de modo incisivo. Ao lado do desafio, havia seu aspecto ávido — um agarrar-se e se prender à vida.

— Não cheguei a conhecer Martin Wylde — prosseguiu o Sr. Satterthwaite. — Mas ouvi falar dele. Vivia a menos de dois quilômetros de distância. Agricultura era seu ramo. E ela interessou-se pela agricultura — ou fingiu interessar-se. Acho que viu nele sua única possibilidade de escapar, e agarrou-se, avidamente, como uma criança teria feito.  Bem, só poderia haver um fim para tudo aquilo. Sabemos qual foi este fim, devido às cartas lidas no tribunal. Ele guardou as cartas dela; ela não fez o mesmo com as dele, mas, pelo texto das primeiras, dá para ver que ele estava esfriando. Ele admite isto. Havia a outra moça. Ela também vive na vila de Deering Vale. Seu pai é o médico local. Viu-a no tribunal, talvez? Não, lem¬bro-me agora, disse que não esteve lá. Terei de descrevê-la para o senhor. Uma moça bonita, muito bonita. Suave. Tal¬vez... sim, talvez um pouquinho estúpida. Mas muito tran¬qüila. E leal. Acima de tudo, leal.

Ele olhou para o Sr. Quin, como quem espera encoraja¬mento, e o Sr. Quin deu-lhe um sorriso lento de aprovação. O Sr. Satterthwaite prosseguiu.

— O senhor ouviu a última carta que foi lida... deve tê-la visto nos jornais, quero dizer. A que foi escrita na manhã de sexta-feira, 13 de setembro. Era cheia de repreensões deses¬peradas e vagas ameaças, e terminava por suplicar a Martin Wylde que fosse a Deering Hill naquela mesma tarde, às seis horas.

Deixarei aberta para você uma porta lateral, de modo que ninguém precisa saber que você esteve aqui. Estarei no salão de música.

Foi enviada por um portador.

O Sr. Satterthwaite fez uma pausa de poucos minutos.

— Logo que foi preso, lembra-se, Martin Wylde negou terminantemente que tivesse estado na casa, àquela tarde. Sua declaração foi de que levara sua arma e dera uns tiros pelo bosque. Mas, quando a polícia apresentou provas, a declara¬ção caiu por terra. Haviam descoberto suas impressões digitais, lembra-se, tanto na madeira da porta lateral como num dos dois copos de coquetel que estavam sobre a mesa, no salão de música. Ele admitiu que fora ver Lady Barnaby, que os dois tive¬ram uma conversa tempestuosa, mas disse que, no fim, conse¬guira acalmá-la. Jurou ter largado sua espingarda do lado de fora, encostada na parede perto da porta, e afirmou ter deixa¬do Lady Barnaby viva e bem, isto um minuto ou dois depois das seis e 15. Foi direto para casa, declarou, mas foram apresentadas provas mostrando que não chegou à sua fazenda senão um quarto para as sete, e... como já falei... a fazenda fica a menos de dois quilômetros de distância. Não levaria meia hora para chegar lá. Ele esqueceu-se inteiramente da arma, segundo declarou. Não é uma declaração muito provável... e no en¬tanto...

— E no entanto? — perguntou o Sr. Quin.

— Bem — disse o Sr. Satterthwaite, devagar — é uma declaração possível, não? O advogado ridicularizou a versão, naturalmente, mas acho que estava errado. Conheci muitos jovens, e essas cenas emocionais perturbam-nos demais... especialmente do tipo moreno e nervoso como Wylde. Já as mulheres podem passar por uma cena dessas e se sentirem positivamente melhor, em seguida, com as faculdades mentais em perfeita ordem. A coisa atua como uma válvula de escape para elas, relaxa seus nervos. Mas posso visualizar Martin Wylde partindo, com a cabeça em torvelinho, sentindo-se doen¬te e infeliz, e sem ter a menor lembrança da arma que deixara encostada à parede.

Ficou silencioso durante alguns minutos, antes de prosse¬guir.

— Não que isto tenha importância. Pois a parte seguinte é clara por demais, infelizmente. Eram exatamente seis e 20 quando se ouviu a descarga da espingarda. Todos os criados ouviram, o cozinheiro, a copeira, o mordomo, a arrumadeira e a criada da própria Lady Barnaby. Correram para o salão de música. Ela estava caída sobre o braço da cadeira. A arma fora descarregada perto da parte posterior de sua cabeça, de modo que os tiros não pudessem falhar. Pelo menos dois deles penetraram o cérebro.                                                                 

Fez nova pausa e o Sr. Quin perguntou, casualmente:

— Os criados prestaram depoimento, suponho?

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, afirmativamente.

— Sim. O mordomo chegou alguns segundos antes dos demais, mas os depoimentos são, praticamente, uma repetição uns dos outros.

— Então, todos depuseram — disse o Sr. Quin, pensa¬tivo. — Não houve exceção?

— Agora eu me lembro — disse o Sr. Satterthwaite. — A arrumadeira só foi ouvida na fase do inquérito. Foi para o Canadá logo depois, eu acho.

— Entendo — disse o Sr. Quin.

Houve um silêncio e, de alguma maneira, a atmosfera do pequeno restaurante parecia estar carregada de uma sensação incômoda. O Sr. Satterthwaite sentiu-se como se estivesse na defensiva.

— Por que ela não deveria ir? — perguntou abrupta¬mente.                       

— Por que deveria? — replicou o Sr. Quin, com um le¬víssimo dar de ombros.

De certo modo, a pergunta aborreceu o Sr. Satterthwaite. Queria escapar a ela, voltar ao território familiar.

— Não poderia haver muitas dúvidas sobre quem disparou a arma. Na verdade, os criados parecem ter perdido um pouco a cabeça. Não havia ninguém em casa para dar ordens. Pas¬saram-se alguns minutos antes de qualquer um deles pensar em telefonar para a polícia, mas, quando tentaram fazê-lo, des¬cobriram que o telefone estava quebrado.

— Oh! — disse o Sr. Quin. — O telefone estava que¬brado.

— Estava — disse o Sr. Satterthwaite e foi tomado, de repente, pela sensação de ter dito algo tremendamente im¬portante. — Poderia, claro, ter sido feito de propósito — disse devagar. — Mas não parece fazer sentido. A morte foi prati¬camente instantânea.

O Sr. Quin nada disse e o Sr. Satterthwaite sentiu que sua explicação era insatisfatória.

— Não havia absolutamente nenhum suspeito, a não ser o jovem Wylde — prosseguiu ele. — Até mesmo segundo o seu próprio relato, ele só saiu de casa três minutos antes da descarga. E quem mais poderia ter disparado? Sir George esta¬va jogando bridge numa casa próxima. Saiu de lá às seis e meia e se encontrou, logo em frente ao portão, com um criado, que lhe deu a notícia. A última rodada terminou exatamente às seis e meia — não há dúvida quanto a isso. Em seguida, havia o secretário de Sir George, Henry Thompson. Estava em Londres, naquele dia, e, na verdade, encontrava-se numa reunião de negó¬cios no momento dos disparos. Finalmente, há Sylvia Dale, que, afinal de contas, tinha um ótimo motivo, por mais impossível que pareça ter ela algo a ver com tal crime. Estava na estação de Deering Vale, no bota-fora de uma amiga que partiu no trem das seis e 28. Isto a exclui. E há os criados. Que motivo, no mundo, poderia ter qualquer um deles? Além disso, todos che¬garam ao local praticamente ao mesmo tempo. Não, deve ter sido Martin Wylde.

Mas ele disse isso num tom de voz insatisfeito.

Continuaram almoçando. O Sr. Quin não estava lá muito loquaz, e o Sr. Satterthwaite dissera tudo o que tinha a dizer. Mas o silêncio não era estéril. Estava repleto da crescente insatisfação do Sr. Satterthwaite, aumentada e impulsionada, de alguma estranha maneira, pela simples aquiescência do outro homem.

De repente, o Sr. Satterthwaite depôs a faca e o garfo, com um tinido.

— Vamos supor que aquele rapaz seja realmente inocente — disse. — Ele vai ser enforcado.

Parecia muito aturdido e preocupado com o assunto. E, ainda assim, o Sr. Quin nada disse.

— Não é como se... — começou o Sr. Satterthwaite, e interrompeu-se. — Por que a mulher não deveria ir para o Canadá? — continuou, sem muita lógica.

O Sr. Quin balançou a cabeça.

— Nem mesmo sei para que parte do Canadá ela foi — prosseguiu o Sr. Satterthwaite, irritado.

— Não poderia descobrir? — sugeriu o outro.

— Suponho que sim. O mordomo. Ele deve saber. Ou, talvez, Thompson, o secretário.

Fez nova pausa. Quando recomeçou a falar, sua voz soava quase suplicante.

— Não que isto tenha alguma coisa a ver comigo, ou tem?

— O fato de que um jovem vai ser enforcado dentro de pouco mais de três semanas?

— Bem, sim... se põe as coisas nesses termos, suponho que sim. Entendo o que quer dizer. Vida e morte. E aquela pobre moça, também. Não é que eu tenha um coração de pe¬dra... mas, afinal de contas, de que adiantará? Tudo não é mesmo fantástico? Mesmo que eu descubra para que parte do Canadá a mulher foi... ora, isto significaria que eu próprio, provavelmente, teria de ir até lá.

O Sr. Satterthwaite parecia seriamente preocupado.

— E eu estava pensando em ir para a Riviera, na semana que vem — disse pateticamente.

Seu olhar na direção do Sr. Quin dizia, tão claramente quanto palavras:

— Deixe-me sair disso, sim?

— Nunca foi ao Canadá?

— Nunca.

— É um país muito interessante.

O Sr. Satterthwaite olhou para ele, indeciso.

— Acha que eu devo ir?

O Sr. Quin recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro. Entre anéis de fumaça, falou com decisão.

— O senhor é, segundo creio, um homem rico, Sr. Sat¬terthwaite. Não um milionário, mas alguém que pode permitir-se um hobby sem medir despesas. O senhor observa o drama de outras pessoas. Nunca pensou em entrar e desempenhar um papel? Jamais se viu, nem por um minuto, como árbitro do destino de outrem... no centro do palco, com a vida e a morte nas mãos?

O Sr. Satterthwaite inclinou-se para a frente. A antiga ansiedade cresceu dentro dele.

— Quer dizer... se eu me meter nessa caçada ao pato selvagem, no Canadá...

O Sr. Quin sorriu.

— Foi sugestão sua ir ao Canadá, não minha — disse em tom brincalhão.

— Não pode confundir-me assim — disse o Sr. Satterth¬waite, sério. — Sempre que o encontro... — interrompeu-se.

— Bem?

— Existe algo, com relação à sua pessoa, que não com¬preendo. Talvez nunca vá compreender. A última vez em que o encontrei...

— Na véspera do solstício de verão.

O Sr. Satterthwaite ficou aturdido, como se essas palavras contivessem uma indicação que ele não entendia inteiramente.

— Era véspera do solstício de verão? — perguntou, con¬fuso.

— Sim. Mas não vamos pensar muito nisso. Não tem im¬portância, não é mesmo?

— Se pensa assim — disse o Sr. Satterthwaite, cortesmen¬te. Sentiu que o mistério lhe escapava entre os dedos. — Quan¬do voltar do Canadá — fez uma pequena pausa desajeitada — eu... eu gostaria muito de vê-lo novamente.

— Infelizmente, não tenho endereço certo, no momento — disse o Sr. Quin, com pesar. — Mas venho com freqüên¬cia a este lugar. Se também o freqüenta, certamente nos encon¬traremos sem demora.

Separaram-se cordialmente.

O Sr. Satterthwaite estava muito excitado. Dirigiu-se apressadamente à agência Cook e informou-se sobre partidas de navios. Depois, telefonou para Deering Hill. A voz de um mor¬domo, baixa e respeitosa, atendeu.

— Meu nome é Satterthwaite. Represento... ahn... uma firma de advogados. Queria fazer algumas perguntas sobre uma moça que foi, recentemente, arrumadeira nesta casa.

— Seria Louisa, Sir? Louisa Bullard?

— É este seu nome — disse o Sr. Satterthwaite, muito satisfeito de ter sido informado.

— Sinto muito, mas ela saiu do país, Sir. Foi para o Canadá, há seis meses.

— Pode dar-me seu atual endereço?

O mordomo lamentava não poder. Era um local nas mon¬tanhas, para onde ela fora, com um nome escocês... ah!... Banff... era isso. Algumas das outras moças da casa espera¬ram notícias, mas ela jamais escrevera, nem dera qualquer ende¬reço.

O Sr. Satterthwaite agradeceu e desligou. Não desanimara. Tinha um forte espírito de aventura. Iria a Banff. Se esta Louisa Bullard estivesse lá, iria descobri-la, de uma forma ou de outra.

Com surpresa, gostou muito da viagem. Havia muitos anos não fazia uma viagem longa por mar. A Riviera, Le Touquet e Deauville, e a Escócia eram seu giro habitual. O sentimento de que estava partindo numa missão impossível adicionava um tempero secreto à sua viagem. Que louco varrido o considera¬riam seus companheiros de viagem, se chegassem a saber o ob¬jetivo dessa busca! Mas eles não conheciam o Sr. Quin.

Em Banff, alcançou seu objetivo facilmente. Louisa Bullard era empregada no grande hotel. Doze horas depois de sua che¬gada, estava diante dela.

Era uma mulher de cerca de 35 anos, aspecto anêmico, mas corpo forte. Tinha cabelo castanho-claro, propenso a se encaracolar, e um par de honestos olhos castanhos. Era, ele pensou, ligeiramente estúpida, mas muito digna de confiança.

Ela aceitou prontamente sua declaração de que lhe ha¬viam pedido para colher dela mais alguns dados sobre a tragé¬dia de Deering Hill.

— Li nos jornais que o Sr. Martin Wylde foi condenado, Sir. Que coisa triste.

Ela parecia, no entanto, não ter dúvida quanto à culpa¬bilidade dele.

— Um jovem cavalheiro que agiu mal. Mas, embora eu não goste de falar mal dos mortos, foi a senhora quem o encora¬jou. Não o deixava em paz, ah, não. Bem, ambos foram puni¬dos. Há um ditado que estava pendurado na parede de meu quarto, quando eu era criança: “Não se zomba de Deus”, sem dúvida muito verdadeiro. Sabia que alguma coisa ia acontecer naquela tarde... e aconteceu mesmo.

— Como foi? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

— Eu estava no meu quarto, Sir, trocando de roupa, quando olhei pela janela. Havia um trem em marcha e sua fu¬maça branca erguia-se no ar, formando, acredito, o sinal de uma mão gigantesca. Uma grande mão branca contra o ver¬melho do céu. Os dedos estavam encurvados, como se procuras¬sem alguma coisa. Sinceramente, levei um susto.  Disse para mim mesma: “É o sinal de que alguma coisa vai acontecer” — e, com certeza naquele mesmo minuto, ouvi a descarga da arma. “Aconteceu”, eu disse para mim mesma, e corri para baixo, e juntei-me a Carrie e aos outros, que estavam no saguão, e fomos para o salão de música, e lá estava ela, morta a tiros... e o sangue, e todo o resto. Horrível! Eu falei, eu disse a Sir George como vira o sinal antes, mas ele não pareceu ligar muito para isso. Dia sem sorte, aquele: senti em meu coração, desde de manhã cedo. Sexta-feira, 13, que é que se podia esperar?

Continuou a divagar. O Sr. Satterthwaite era paciente. Re¬petidas vezes fê-la voltar ao crime, interrogando-a intensamente. No fim, foi forçado a confessar sua derrota. Louisa Bullard dissera tudo o que sabia, e sua história era perfeitamente sim¬ples e direta.

No entanto, descobriu um fato importante. O posto que ela agora ocupava lhe fora sugerido pelo Sr. Thompson, secre¬tário de Sir George. O salário prometido era tão alto que ela ficou tentada e aceitou o emprego, embora isto exigisse que ela deixasse a Inglaterra muito apressadamente. Um certo Sr. Denman fizera todos os acertos nesse sentido e também a advertira para não escrever às suas antigas companheiras na Inglaterra, pois isto poderia “colocá-la em má situação com as autoridades de imigração”, declaração que ela aceitou cegamente.

O montante do salário, casualmente mencionado por ela, era realmente tão alto que o Sr. Satterthwaite ficou espantado. Depois de alguma hesitação, decidiu aproximar-se desse Sr. Denman.

Teve pouca dificuldade em induzir o Sr. Denman a lhe contar tudo o que sabia. Ele encontrara casualmente Thompson em Londres e este lhe fizera um favor. O secretário escrevera-lhe em setembro, dizendo que, por razões pessoais, Sir George estava ansioso para tirar essa moça da Inglaterra. Poderia ar¬ranjar um emprego para ela? Uma certa soma fora enviada para elevar o salário a uma alta cifra.

— O problema de costume, eu imagino — disse o Sr. Denman, recostando-se, despreocupadamente, na cadeira. — Parece uma moça boazinha e quieta também.

O Sr. Satterthwaite não concordava que fosse o problema de costume. Louisa Bullard, tinha certeza, não era um caso encerrado de Sir George Barnaby. Por alguma razão, fora vital retirá-la da Inglaterra. Mas por quê? E quem estava por trás de tudo aquilo? O próprio Sir George, agindo através de Thompson? Ou este último, por iniciativa própria e envolvendo o nome de seu patrão?

Ainda meditando sobre essas questões, o Sr. Satterthwaite fez a viagem de volta. Estava abatido e desanimado. Sua via¬gem não tivera nenhum resultado.

Aborrecido com o sentimento de fracasso, dirigiu-se para o Arlecchino, no dia seguinte à chegada. Não esperava ser bem sucedido da primeira vez mas, para sua satisfação, a figura fa¬miliar estava sentada na mesa escondida. O rosto moreno do Sr. Harley Quin deu-lhe um sorriso de boas-vindas.

— Bem — disse o Sr. Satterthwaite, servindo-se de um pouco de manteiga — enviou-me a uma agradável caçada ao pato selvagem.

O Sr. Quin ergueu as sobrancelhas.

— Eu o enviei? Foi uma idéia inteiramente sua.

— Seja de quem foi, não teve sucesso. Louisa Bullard nada tem para dizer.

Em seguida, o Sr. Satterthwaite contou os detalhes da conversa com o Sr. Denman. O Sr. Quin ouvia em silêncio.

— Em certo sentido, a viagem foi justificada — prosse¬guiu o Sr. Satterthwaite. — Ela foi deliberadamente afastada. Mas, por que, não posso entender.

— Não? — perguntou o Sr. Quin, e sua voz era, como sempre, provocativa.

O Sr. Satterthwaite ruborizou-se.

— Provavelmente, acha que eu poderia tê-la interrogado com mais habilidade. Posso assegurar-lhe que a fiz contar repe¬tidas vezes a história. Não foi minha culpa não termos conse¬guido o que procurávamos.

— Tem certeza — perguntou o Sr. Quin — de que não conseguiu o que procurava?

O Sr. Satterthwaite olhou-o espantado e deparou com aquele olhar triste e zombeteiro que conhecia tão bem. O ho¬menzinho balançou a cabeça, ligeiramente desnorteado.

Houve um silêncio e então o Sr. Quin disse, mudando completamente de maneiras:

— O senhor deu-me um retrato maravilhoso, no outro dia, das pessoas metidas nesse caso. Em poucas palavras, fez aparecerem como que desenhadas. Queria que fizesse algo pa¬recido com relação ao local... não tratou disso.

— O lugar? Deering Hill? Bem, é uma casa muito comum, hoje em dia. Tijolo vermelho, janelas salientes. Horrível por fora, mas muito confortável. Uma casa não muito grande. Cerca de dois acres de terreno.  São todas muito parecidas, essas casas de campo. Construídas para abrigar homens ricos. O interior da casa lembra um hotel... os quartos são como suítes de hotel. Banheiros com água quente e fria, em todos os quartos, e muitas luminárias douradas. Tudo maravilhosamente confortável, mas sem nenhum ar campestre.  Dá para sentir que Deering Vale fica apenas a menos de 30 quilômetros de Londres.

O Sr. Quin ouvia atentamente.

— Pelo que sei, o sistema ferroviário é ruim — observou.

— Oh, quanto a isso, eu não sei — disse o Sr. Satterth¬waite, entusiasmando-se com o assunto. — Estive lá durante pouco tempo, no verão passado. Achei-o bastante conveniente para a cidade. Claro que os trens só partem de hora em hora. Quarenta e oito minutos depois do horário de Waterloo — até as 10 e 48.

— E quanto demora para se chegar a Deering Vale?

— Exatamente cerca de três quartos de hora. Vinte e oito minutos depois da hora de partida para Deering Vale.

— Claro — disse o Sr. Quin, com um gesto de irritação. — Devia ter-me lembrado. A Srta. Dale foi ao bota-fora de alguém às seis e 28, naquela tarde, não foi?

O Sr. Satterthwaite não respondeu, por alguns minutos. Sua mente voltara apressadamente a um problema não resol¬vido. Depois, disse:

— Gostaria que me explicasse o que quis dizer ainda há pouco, quando me perguntou se eu tinha certeza de que não conseguira o que queria.

Parecia complicado, posto nesses termos, mas o Sr. Quin não se fez de desentendido.

— Estava só imaginando se o senhor não fora um tanti¬nho exigente demais. Afinal, descobriu que Louisa Bullard foi deliberadamente retirada do país. Assim, deve ter havido uma razão para isso. E a razão deve estar em algo que ela lhe disse.

— Bem — disse o Sr. Satterthwaite, em tom de discussão, — que foi que ela disse? Se depusesse em julgamento, que poderia ter dito?

— Poderia ter dito o que viu — falou o Sr. Quin.

— Que foi que viu?

— Um sinal no céu.

O Sr. Satterthwaite olhou-o fixamente.

— Está pensando naquela tolice? Aquela idéia supersti¬ciosa de que era a mão de Deus?

— Talvez — disse o Sr. Quin. — Pelo que sabemos, pode ter sido a mão de Deus.

O outro estava visivelmente confuso com a seriedade de suas maneiras.

— Tolice — disse ele. — Ela própria disse que era a fumaça do trem.

— Fico imaginando se era um trem para Londres, ou de volta — murmurou o Sr. Quin.

— Dificilmente seria um trem de ida. Eles saem dez mi¬nutos antes de cada hora. Deve ter sido de chegada... o das seis e 28... não, não daria certo. Ela disse que a arma foi disparada imediatamente em seguida e sabemos que a descarga aconteceu às seis e 20. O trem não poderia estar dez minutos adiantado.

— Bastante improvável, naquela linha — concordou o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite ficou olhando para um ponto distante.

— Talvez um trem de carga — murmurou. — Mas, com certeza, se assim fosse...

— Não haveria necessidade de afastá-la da Inglaterra. Eu concordo — disse o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite olhava-o, fascinado.

— O das seis e 28 — disse ele, lentamente. — Mas, se fosse esse, se a arma fosse disparada então, por que todos disseram que foi mais cedo?

— É óbvio — disse o Sr. Quin. — Os relógios deviam estar errados.

— Todos eles? — disse o Sr. Satterthwaite, em dúvida.

— Não estava pensando que fosse uma coincidência — disse o outro. — Pensava que era uma sexta-feira.

— Sexta-feira? — disse o Sr. Satterthwaite.

— O senhor me disse que Sir George sempre dava corda nos relógios sexta-feira à tarde — disse o Sr. Quin, como quem se desculpa.

— Ele os atrasou dez minutos — disse o Sr. Satterthwaite quase num cochicho, tão admirado estava com as descobertas que fazia. — Então saiu para o bridge. Acho que deve ter aberto o bilhete de sua mulher para Martin Wylde, aquela manhã... sim, decididamente ele o abriu. Saiu de seu torneio de bridge às seis e meia, encontrou a arma de Martin junto da porta lateral, entrou e atirou nela por trás. Então, saiu no¬vamente, jogou a arma nos arbustos onde depois foi encontrada, e estava aparentemente acabando de sair do portão do vizinho, quando alguém veio correndo buscá-lo. Mas o telefone. . . o que aconteceu com o telefone? Ah, sim, entendo. Desligou-o, a fim de que a polícia não pudesse ser chamada pelo telefone. .. poderiam anotar a hora em que receberam o telefonema. E a história de Wylde funciona, agora. A verdadeira hora em que ele saiu foi às seis e 25. Caminhando devagar, chegaria em casa cerca de 15 para as sete. Sim, entendo tudo. Louisa era o único perigo, com sua conversa interminável a respeito de suas fantasias supersticiosas. Alguém poderia perceber o que o trem significava e então... adeus excelente álibi.

— Maravilhoso — disse o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite virou-se para ele, excitado com o su¬cesso.

— A única dúvida é... como proceder agora?

— Eu sugeriria Sylvia Dale — disse o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite parecia em dúvida.

— Eu lhe falei — disse ele. — Ela me pareceu um pou¬co... ahn... estúpida.

— Ela tem pai e irmãos que tomarão as necessárias me¬didas.

— Isto é verdade — disse o Sr. Satterthwaite, aliviado.

Muito pouco tempo depois, estava sentado com a moça, contando-lhe a história. Ela ouviu atentamente. Não lhe fez perguntas mas, quando terminou, ela levantou-se.

— Preciso de um táxi... imediatamente.

— Minha querida filha, que vai fazer?

— Vou ver Sir George Barnaby.

— Impossível. É a maneira inteiramente errada de agir. Permita-me...

Ele tagarelou um bocado com ela. Mas não causou nenhuma impressão. Sylvia Dale estava firme em seus pró¬prios planos. Permitiu-lhe ir com ela no táxi, mas fez ouvi¬dos moucos a todas as suas advertências. Deixou-o no táxi, enquanto ia ao escritório de Sir George, na cidade.

Meia hora mais tarde, saiu. Parecia exausta, com sua be¬leza loura murchando como uma flor sem água. O Sr. Satterth¬waite recebeu-a preocupado.

— Ganhei — murmurou ela, reclinando-se no assento, com os olhos meio fechados.

— O quê? — ele estava espantado. — Que fez você? Que disse?

Ela soergueu-se um pouquinho.

— Disse que Louisa Bullard fora à polícia, com sua his¬tória. Disse-lhe que a polícia fizera interrogatórios e ele fora visto entrando em sua propriedade e saindo novamente, alguns minutos depois das seis e meia. Disse-lhe que o jogo terminara. Ele... desmantelou-se. Disse-lhe que ainda havia tempo para fugir, que a polícia ainda ia demorar uma hora para prendê-lo. Disse-lhe que, se assinasse uma confissão de que matara Vivien, eu nada faria mas, do contrário, gritaria e diria a todo o edifí¬cio a verdade. Ele ficou tão aterrorizado que não sabia o que estava fazendo. Assinou o papel sem perceber o que fazia.

Ela atirou o papel em suas mãos.

— Pegue-o... pegue-o. O senhor sabe o que fazer com ele para que soltem Martin.

— Ele realmente assinou — exclamou o Sr. Satterthwaite, pasmo.

— Ele é um pouco estúpido, sabe — disse Sylvia Dale. — Eu também — acrescentou, depois de pensar um pouco. — Eis por que sei como se comportam as pessoas estúpidas. Fi¬camos agitados, sabe, e então fazemos tudo errado e depois lamentamos.

— Você precisa de algo para se recompor — disse ele. — Venha, estamos perto de um lugar que é meu favorito... o Arlecchino. Já foi ali?

Ela negou, sacudindo a cabeça.

O Sr. Satterthwaite fez o táxi parar e levou a moça para o pequeno restaurante. Encaminhou-se para a mesa do canto, com o coração batendo esperançosamente. Mas a mesa estava vazia.

Sylvia Dale viu o desapontamento em seu rosto.

— Que é? — perguntou.

— Nada — disse o Sr. Satterthwaite. — Ou melhor, eu tinha alguma esperança de encontrar aqui um amigo meu. Não tem importância. Algum dia, segundo espero, voltarei a vê-lo.

 

A Paixão do Crupiê

O SR. SATTERTHWAITE estava aquecendo-se ao sol, no terraço, em Monte Cario. Todo ano, habitualmente, no segundo domin¬go de janeiro, o Sr. Satterthwaite trocava a Inglaterra pela Ri¬viera. Era muito mais pontual de que qualquer andorinha. No mês de abril, voltava para a Inglaterra. Maio e junho, passava em Londres, e nunca se teve conhecimento de que deixasse de ir a Ascot. Saía da cidade depois da partida do Eton com o Harrow, e fazia visitas no campo, antes de voltar a viajar para Deauville ou Le Touquet. As reuniões para caçadas ocupavam a maior parte dos meses de setembro e outubro e ele, em geral, passava uns dois meses na cidade, para encerrar o ano. Conhe¬cia a todos, e se poderia dizer, com segurança, que todos o conheciam.

Naquela manhã, ele estava carrancudo. O azul do mar era admirável, os jardins, como sempre, estavam uma delícia, mas as pessoas o desapontavam; achava que formavam uma multi¬dão mal vestida e pretensiosa. Alguns, naturalmente, eram jo¬gadores, almas condenadas, que não podiam ir embora. A es¬ses, o Sr. Satterthwaite tolerava. Eram um pano de fundo ne¬cessário. Mas sentia falta do toque da elite — seus iguais.

— É o câmbio — disse o Sr. Satterthwaite sombriamente. — Todo tipo de gente vem aqui, agora, quando antes jamais estaria ao seu alcance. E depois, claro, estou ficando velho. Todos os jovens... os que estão aparecendo .., vão para aque¬las localidades suíças.

Mas havia outros de quem ele sentia falta, os bem ves¬tidos barões e condes da diplomacia estrangeira, os grão-duques e a princesa. O único príncipe que vira até então estava como cabineiro no elevador de um dos hotéis menos conhecidos. Também sentia falta das belas damas de luxo. Ainda havia algumas, mas bem menos que antigamente.

O Sr. Satterthwaite era um sério estudioso do drama cha¬mado Vida, mas gostava que seu material fosse altamente colo¬rido. Sentia um desânimo envolvendo-o. Os valores estavam mudando — e ele era velho demais para mudar.

Foi nesse momento que viu a Condessa Czarnova aproxi¬mando-se.

O Sr. Satterthwaite vira a Condessa em Monte Cario em várias temporadas. A primeira vez, estava na companhia de um grão-duque. Na segunda, de um barão austríaco. E nos anos seguintes, sucessivamente, seus amigos foram homens pálidos, usando jóias um tanto espalhafatosas. Há uns dois anos, era muito vista com homens bem jovens, quase garotos.

Ela estava, agora, ao lado de um desses jovens. Por acaso, o Sr. Satterthwaite o conhecia, e teve pena dele. Franklin Rudge era um jovem norte-americano, produto típico de um dos Esta¬dos do Meio-Oeste, ansioso por sensações, mas digno de amor, uma curiosa mistura nativa de astúcia e idealismo. Estava em Monte Cario com um grupo de outros jovens norte-americanos de ambos os sexos, todos muito parecidos. Era a primeira vez que se achavam no Velho Mundo, e eram francos em suas críti¬cas e elogios.

De um modo geral, não gostavam dos ingleses que havia no hotel, e os ingleses retribuíam na mesma moeda. O Sr. Satterth¬waite, que se orgulhava de ser cosmopolita, até gostava deles. Sua objetividade e vigor atraíam-no, embora seus eventuais so¬lecismos o fizessem estremecer.

Ocorreu-lhe que a Condessa Czarnova era uma amiga nada recomendável para o jovem Franklin Rudge. Tirou polida¬mente o chapéu, quando chegaram perto dele, e a Condessa cur¬vou-se e lhe sorriu de modo encantador.

Era uma mulher muito alta, com magnífica aparência. Seu cabelo era negro, bem como os olhos, e tinha os cílios e sobrancelhas mais magnificamente negros que os de qualquer outra criatura.

O Sr. Satterthwaite, que conhecia os segredos femininos em proporção muito maior que a recomendável para qualquer homem, prestou homenagem imediatamente à arte com que estava maquilada. Sua pele parecia impecável, de um branco cremoso e uniforme. Até a leve sombra marrom sob os olhos tinha um efeito extraordinariamente eficaz. A boca não era carmesim, nem escarlate, mas de uma discreta tonalidade vinho. Estava com um vestido preto e branco muito audacioso e car¬regava uma sombrinha no tom vermelho-rosado que mais fa¬vorece a pele.

Franklin Rudge parecia feliz e importante.

Aí está um rapaz louco — disse o Sr. Satterthwaite com seus botões. — Mas suponho que não é de minha conta e, de qualquer maneira, ele não me daria ouvidos. Bem, bem, eu tam¬bém já tive experiência própria, no meu tempo.

Mas ainda se sentia um tanto preocupado, porque havia no grupo uma garota norte-americana muito atraente, e ele estava certo de que ela não apreciaria, de maneira alguma, a amizade de Franklin Rudge com a Condessa.

Preparava-se para encaminhar os passos na direção opos¬ta, quando viu a garota em questão subindo uma das veredas, em sua direção. Usava um vestido bem cortado, sapatos dis¬cretos, e segurava um guia. Há algumas norte-americanas que passam por Paris e saem vestidas como a Rainha de Sabá, mas Elizabeth Martin não era do tipo. Estava “fazendo a Europa” de modo sério e consciencioso. Tinha em grande conta a cultura e a arte e estava ansiosa para obter o máximo possível, dentro de seu limitado estoque de dinheiro.

É para se duvidar que o Sr. Satterthwaite a considerasse culta ou artística. Ela lhe parecia, simplesmente, muito jovem.

— Bom dia, Sr. Satterthwaite — disse Elizabeth. — Viu Franklin... o Sr. Rudge... em algum lugar?

— Vi-o exatamente há poucos minutos.

— Com sua amiga, a Condessa, suponho — disse a moça rudemente.

— Ahn, com a Condessa, sim — admitiu o Sr. Satterth¬waite.

— Aquela Condessa dele não me passa pela garganta — disse a moça com uma voz um tanto alta, aguda. — Fran¬klin está louco por ela. Por que, não posso imaginar.

— Ela tem maneiras muito encantadoras, me parece — disse o Sr. Satterthwaite, cautelosamente.

— O senhor a conhece?

— Ligeiramente.

— Estou preocupadíssima com Franklin — disse a Srta. Martin. — Em geral, aquele rapaz tem muito bom senso. Nunca se imaginaria que fosse cair por uma mulher desse tipo. E não quer ouvir uma palavra; fica furioso se alguém tenta fazer al¬guma advertência. Diga-me, pelo menos ela é uma verdadeira Condessa?

— Não gostaria de dizer — disse o Sr. Satterthwaite. — Pode ser.

— Este é o verdadeiro humor inglês — disse Elizabeth, dando sinais de desagrado. — Só posso dizer que em Sargon Springs... esta é a nossa cidade, Sr. Satterthwaite... aquela Condessa pareceria um bicho muito esquisito.

O Sr. Satterthwaite achou possível. Não quis comentar que não estavam em Sargon Springs, mas no Principado de Mônaco, onde a Condessa, na verdade, combinava bem mais com o ambiente de que a Srta. Martin.

Não respondeu, e Elizabeth seguiu para o Cassino. O Sr. Satterthwaite sentou-se ao sol, e Franklin Rudge juntou-se-lhe. Rudge estava cheio de entusiasmo.

— Estou me divertindo — anunciou, com entusiasmo ingênuo. — Sim senhor! Isto é o que eu chamo viver a vida... um tipo de vida, na verdade, bem diferente da nossa nos Estados Unidos.

O homem mais velho virou para ele um rosto pensativo.

— A vida é vivida de maneira bem parecida em todos os lugares — disse, com certo cansaço. — Usa roupas diferen¬tes, é tudo.

Franklin Rudge fitou-o.

— Não estou entendendo.

— Não — disse o Sr. Satterthwaite. — É porque você ainda tem muito o que viajar. Mas peço desculpas. Nenhum homem mais velho deve permitir-se o hábito de fazer prega¬ções.

— Ora, não faz mal. — Rudge riu, mostrando os belos dentes de todos os seus conterrâneos. — Não digo, veja bem, que não esteja desapontado com o Cassino. Achei que o jogo ia ser diferente... algo muito mais febril. Parece-me apenas monó¬tono e sórdido.

— O jogo é a vida e a morte para o jogador, mas não tem nenhum brilho espetacular — disse o Sr. Satterthwaite. — É mais excitante ler a respeito do que vê-lo.

O rapaz balançou a cabeça, concordando.

— O senhor é um figurão, do ponto de vista social, não é? — perguntou, com uma franqueza acanhada que não deixava que suas palavras fossem levadas a mal. — Quero dizer, o senhor conhece todas as duquesas e barões e condessas, etc.

— Muitos deles — disse o Sr. Satterthwaite. — E também os judeus, os portugueses, os gregos e os argentinos.

— Hein? — falou o Sr. Rudge.

— Estava apenas querendo explicar — disse o Sr. Sat¬terthwaite — que me movimento na sociedade inglesa.

Franklin Rudge meditou por alguns minutos.

— Conhece a Condessa Czarnova, não é? — perguntou, finalmente.

— Ligeiramente — disse o Sr. Satterthwaite, dando a mesma resposta que a Elizabeth.

— É uma mulher bem interessante de se conhecer. A gente costuma pensar que a aristocracia da Europa está acabada e estéril. Isto pode ser verdade com relação aos homens, mas as mulheres são diferentes. Não é um prazer encontrar uma criatura maravilhosa como a Condessa? Espirituosa, encanta¬dora, inteligente, gerações de civilização por trás dela, uma aristocracia até a raiz dos cabelos.

— É mesmo? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

— Bem, e não é? O senhor conhece a família dela?

— Não — disse o Sr. Satterthwaite. — Infelizmente sei muito pouca coisa a seu respeito.

— Ela era uma Radzynski — explicou Franklin Rudge. — Uma das mais antigas famílias da Hungria. Teve uma vida realmente extraordinária. Viu aquele grande fio de pérolas que ela usa?

O Sr. Satterthwaite assentiu com a cabeça.

— Foi-lhe dado pelo Rei da Bósnia. Ela contrabandeou para fora do reino alguns papéis secretos, a pedido dele.

— Ouvi mesmo dizer — disse o Sr. Satterthwaite — que as pérolas lhe haviam sido dadas pelo Rei da Bósnia.

O fato era, na verdade, motivo de mexericos, pois todos diziam que a dama fora uma chère amie de Sua Majestade, em tempos de antanho.

— Agora, vou contar-lhe algo mais.

O Sr. Satterthwaite ouvia e, quanto mais ouvia, mais admi¬rava a fértil imaginação da Condessa Czarnova. Ela nada tinha de uma “vulgar mulher desse tipo” (como dissera Elizabeth Martin). O rapaz era sagaz demais para isso, honesto e idealista. Não, a Condessa movia-se, austeramente, através de um labi¬rinto de intrigas diplomáticas. Tinha inimigos, detratores — na¬turalmente! Deixara-se entrever de maneira a fazer o rapaz nor¬te-americano sentir-se por dentro da vida do velho régime, com a Condessa como figura central, reservada, aristocrática, a ami¬ga de conselheiros e príncipes, uma figura inspiradora de devo¬ção romântica.

— E ela enfrentou suas dificuldades — concluiu o jovem, calorosamente. — É uma coisa extraordinária, mas nunca en¬controu uma mulher que pudesse ser para ela verdadeira amiga. As mulheres estiveram contra ela durante toda a sua vida.

— Provavelmente — disse o Sr. Satterthwaite.

— Não acha uma coisa absurda? — perguntou Rudge, enfaticamente.

— N-não — disse o Sr. Satterthwaite, pensativamente. — Não sei se acho. As mulheres têm suas próprias normas, sabe. Não é bom nos metermos em seus negócios. Devem dar seu show sozinhas.

— Não concordo com o senhor — disse Rudge, com se¬riedade. — Uma das piores coisas no mundo atual é a mal¬dade de uma mulher para com a outra. Conhece Elizabeth Mar¬tin? Em teoria, ela está absolutamente de acordo comigo. É apenas uma garota, mas suas idéias são boas. Mas, no mo¬mento em que chega o teste prático... ela é tão ruim como qualquer outra. Meteu o pau na Condessa, sem saber coisíssima nenhuma a seu respeito, e não quer ouvir, quando tento expli¬car-lhe as coisas. Está tudo errado, Sr. Satterthwaite. Acredito na democracia. E em que consiste, senão na irmandade entre homens, e entre as mulheres também?

Fez uma pausa, muito sério. O Sr. Satterthwaite tentou imaginar uma só situação na qual um sentimento de irmandade pudesse surgir entre a Condessa e Elizabeth Martin, e não con¬seguiu.

— A Condessa, por outro lado — prosseguiu Rudge — admira Elizabeth imensamente e acha-a encantadora, em todos os sentidos. O que ela demonstra, então?

— Demonstra — disse o Sr. Satterthwaite, secamente — que já viveu muito mais tempo que Elizabeth Martin.

Franklin Rudge mudou de assunto de repente.

— Sabe qual é a idade dela? Ela me disse. Foi muito es¬portivo de sua parte. Eu lhe teria dado 29 anos, mas ela me disse, por iniciativa própria, que está com 35. Não parece, não é?

O Sr. Satterthwaite, cuja estimativa particular da idade da dama situava-se entre 45 e 49 anos, apenas levantou as so¬brancelhas.

— Deveria adverti-lo a não acreditar em tudo aquilo que ouve em Monte Cario — murmurou.

Tinha bastante experiência para saber que era inútil dis¬cutir com o rapaz. Franklin Rudge estava num auge de cava¬lheirismo que não admitia qualquer declaração desacompanhada de prova cabal.

— Aqui está a Condessa — disse o rapaz, levantando-se.

Ela se aproximou com a graça lânguida que lhe ia tão bem. Agora, estavam os três sentados juntos. Ela tratou o Sr. Satterth¬waite de maneira muito encantadora, porém distante. Acatou bastante suas opiniões, tratando-o como uma autoridade sobre a Riviera.

Ajeitou inteligentemente as coisas, de maneira que, pou¬cos minutos depois, Franklin Rudge era graciosa, mas inequivo¬camente afastado, deixando-a em tête-a-tête com o Sr. Sat¬terthwaite.

Baixou a sombrinha e começou a fazer desenhos na areia.

— Está interessado naquele gentil rapaz norte-americano, Sr. Satterthwaite, não é verdade?

A voz dela era baixa, com um toque de carícia.

— É um ótimo rapaz — disse o Sr. Satterthwaite, em tom superficial.

— Acho-o simpático, sim — disse a Condessa, em tom meditativo. — Contei-lhe muita coisa sobre a minha vida.

— Deveras? — disse o Sr. Satterthwaite.

— Detalhes que contaria a pouca gente — ela prosseguiu, com ar sonhador. — Eu tive uma vida extraordinária, Sr. Sat¬terthwaite. Poucos acreditariam nas coisas assombrosas que me ‘aconteceram.

O Sr. Satterthwaite era suficientemente sagaz para penetrar no que ela queria dizer. Afinal de contas, as histórias que ela contara a Franklin Rudge podiam ser verdadeiras. Era extre¬mamente inverossímil e, em último grau, improvável, mas era possível. Ninguém poderia, definitivamente, dizer: “Não é ver¬dade”.

Não respondeu e a Condessa continuou a olhar, com ar sonhador, para a baía. E, de repente, o Sr. Satterthwaite teve uma estranha impressão nova. Viu-a não mais como uma viga¬rista, mas como uma desesperada criatura acossada, lutando com unhas e dentes. Deu-lhe uma olhadela, de soslaio. A som¬brinha estava abaixada; ele podia ver os minúsculos pés de ga¬linha nos cantos de seus olhos. Numa das têmporas, pulsava uma veia.

Cada vez mais, teve certeza. Ela era uma criatura deses¬perada e cheia de angústia. Seria impiedosa com ele, ou com qualquer pessoa que se interpusesse entre ela e Franklin Rudge. Mas ele ainda sentia que não captara toda a situação. Claro que ela tinha dinheiro bastante. Estava sempre muito bem vesti¬da e suas jóias eram maravilhosas. Não poderia haver nenhuma verdadeira urgência nesse sentido. Era amor? Mulheres da idade dela, como ele sabia, apaixonavam-se por rapazes. Podia ser isto. Havia, ele teve certeza, algo fora do comum na situação toda.

O tête-a-tête que ela provocara representava, ele sentia, um tapa com a luva. Ela o identificara como o seu pior ini¬migo. Teve certeza de que esperava incitá-lo a falar dela com menoscabo a Franklin Rudge. O Sr. Satterthwaite sorriu por dentro. Era macaco velho demais para fazer isso. Sabia quando era preciso calar a boca.

Ele observou-a, aquela noite, no Cercle Privé, quando ela tentava a sorte na roleta.

Vezes repetidas ela apostava, apenas para ver suas apostas perdidas. Suportava bem as perdas, com o sang-froid de antigo habitué. Apostou en plein uma ou duas vezes, colocando o máximo no vermelho, ganhou um pouco na meia dúzia e depois perdeu novamente; afinal, jogou no manque seis vezes e perdeu em todas. Então, com um leve e gracioso encolher de ombros, foi-se embora.

Ela estava com uma aparência excepcionalmente surpreen¬dente, num vestido de tecido dourado, com um toque de verde, por baixo. As famosas pérolas da Bósnia estavam enroladas em torno ao pescoço, e havia longos pingentes de pérolas nas orelhas.

O Sr. Satterthwaite ouviu dois homens, perto, a elogiá-la.

— A Czarnova — disse um deles. — Veste-se bem, não é? E as jóias da coroa da Bósnia lhe ficam muito bem.

O outro, um homem baixo, procurou-a avidamente com os olhos.

— Então, aquelas são as pérolas da Bósnia? — perguntou. — En verité. Isto é estranho.

Riu baixinho, à socapa.

O Sr. Satterthwaite não conseguiu ouvir mais, porque, na¬quele momento, virou a cabeça e ficou muito feliz de ver um velho amigo.

— Meu querido Sr. Quin. — Apertou-lhe calorosamente a mão. — Este é o último lugar em que esperaria encontrá-lo.

O Sr. Quin sorriu, com seu rosto moreno e atraente iluminando-se.

— Não deveria ficar surpreendido — disse ele.  — É carnaval. Com freqüência venho aqui no carnaval.

— Realmente? Bem, é um grande prazer. Faz questão de ficar aqui nas salas? Acho que são um tanto quentes.

— Será mais agradável do lado de fora — concordou o outro. — Caminharemos pelo jardim.

O ar do lado de fora estava frio, mas não gélido. Ambos respiraram fundo.

— Assim é melhor — disse o Sr. Satterthwaite.

— Muito melhor — concordou o Sr. Quin. — E pode¬mos falar livremente. Estou certo de que há muita coisa que deseja me contar.

— Há, realmente.

Falando com ansiedade, o Sr. Satterthwaite expôs suas perplexidades. Como de costume, orgulhoso de seu poder de criar uma atmosfera. A Condessa, o jovem Franklin, a infle¬xível Elizabeth. Esboçou-os todos, com traços ágeis.

— O senhor mudou, desde a primeira vez em que o en¬contrei — disse o Sr. Quin, sorrindo, quando ele acabou a narração.

— De que maneira?

— Contentava-se em observar os dramas que a vida ofe¬recia. Agora, quer participar, agir.

— É verdade — confessou o Sr. Satterthwaite. — Mas, neste caso, não sei o que fazer. É tudo tão confuso. Talvez — ele hesitou — talvez possa ajudar-me.

— Com prazer — disse o Sr. Quin. — Vamos ver o que podemos fazer.

O Sr. Satterthwaite teve uma estranha sensação de alívio e confiança.

No dia seguinte, apresentou Franklin Rudge e Elizabeth Martin ao seu amigo, o Sr. Harley Quin. Ficou satisfeito de ver que se deram bem. A Condessa não foi mencionada mas, na hora do almoço, ele ouviu notícias que despertaram sua atenção.

— Mirabelle vai chegar em Monte esta noite — contou, muito excitado, ao Sr. Quin.

— A grande estrela dos palcos parisienses?

— Sim. Tenho certeza de que o senhor sabe, como todo mundo, que ela é a última paixão do Rei da Bósnia. Ele co¬briu-a de jóias, parece. Dizem que é a mais exigente e extrava¬gante mulher de Paris.

— Será interessante ver o encontro dela com a Condes¬sa Czarnova, esta noite.

— Era exatamente o que eu estava pensando.

Mirabelle era uma criatura alta e magra, com uma bela cabeça, os cabelos pintados de louro. A tez tinha uma tonali¬dade malva-pálido, com lábios cor de laranja. Era assombrosa¬mente chique. Usava algo que parecia uma ave do paraíso glorificada, e uma enfiada de jóias pendia sobre suas costas nuas. Um pesado bracelete com imensos diamantes engastados enlaçava-lhe o tornozelo esquerdo.

Causou sensação, quando apareceu no Cassino.

— Sua amiga, a Condessa, terá dificuldade de superar isto — murmurou o Sr. Quin ao ouvido do Sr. Satterthwaite.

Este último balançou a cabeça, em assentimento. Estava curioso para ver como se comportava a Condessa.

Ela chegou tarde, e um murmúrio surdo acompanhou-a, enquanto caminhava, à vontade, até uma das mesas centrais de roleta.

Vestia-se de branco — uma simples tira reta de crepe de seda, como teria usado uma debutante, e o pescoço e os braços, de uma alvura irradiante, não traziam nenhum adorno. Estava sem nenhuma jóia.

— Um lance inteligente — disse o Sr. Satterthwaite, com imediata aprovação. — Ela despreza a competição e vira a mesa da sua adversária.

Aproximou-se e ficou junto da mesa. De vez em quando, divertia-se fazendo uma aposta. Algumas vezes ganhou, perdeu com mais freqüência.

Houve uma série incrível, na última dúzia. Deu o 31 e o 34 vezes repetidas. As fichas iam todas para o fundo do pano.

Com um sorriso, o Sr. Satterthwaite fez sua última aposta da noite, colocando o máximo no número cinco.

A Condessa, por sua vez, inclinou-se para a frente e pôs o máximo no seis.

— Faites vos jeux — convidava o crupiê, com voz rouca. — Rien ne va plus rien.

A bola girou, zunindo alegremente. O Sr. Satterthwaite pen¬sou, com seus botões: — Isto significa algo diferente para cada um de nós. Agonias de esperança e desespero, tédio, diverti¬mento frívolo, vida e morte.

Clique!

O crupiê inclinou-se para ver.

— Numero Cinque, rouge, impair et manque!

O Sr. Satterthwaite ganhara!

O crupiê, depois de retirar as demais fichas, empurrou para a frente os ganhos do Sr. Satterthwaite. Ele estendeu a mão para apanhá-los. A Condessa fez a mesma coisa. O crupiê olhou de um para o outro.

— A Madame — disse, bruscamente.

A Condessa apanhou o dinheiro. O Sr. Satterthwaite re¬cuou. Continuava um gentleman. A Condessa encarou-o, e ele devolveu o olhar. Uma ou duas pessoas em torno fizeram ver ao crupiê que ele cometera um engano, mas o homem abanou a cabeça, com impaciência. Decidira. Era tudo. Deu seu grito rouco.

— Faites vos jeux, Messieurs et Mesdames.

O Sr. Satterthwaite voltou para a companhia do Sr. Quin. Por trás de suas maneiras impecáveis, estava extremamente indignado. O Sr. Quin ouviu com simpatia.

— Muito desagradável — disse ele — mas essas coisas acontecem. Mais tarde, deveremos encontrar nosso amigo Fran¬klin Rudge. Estou oferecendo uma ceia.

Os três encontraram-se à meia-noite e o Sr. Quin explicou seu plano.

— Será uma reunião surpresa ,— explicou. — Escolhido o local de nosso encontro, cada um sai e tem o compromisso de honra de convidar a primeira pessoa que encontrar, seja qual for sua classe social.

Franklin Rudge gostou da idéia.

— Mas, o que acontece se a pessoa não aceitar?

— Você deverá empregar todos os poderes de persuasão.

— Muito bem. E onde é o local do encontro?

— Um café um tanto boêmio, onde se podem levar con¬vidados estranhos. Chama-se Le Caveau.

Explicou a localização, e os três partiram. O Sr. Satterth¬waite teve a sorte de deparar com Elizabeth Martin e chamou-a, alegremente. Chegaram ao Le Caveau e desceram até uma espé¬cie de adega, onde encontraram uma mesa pronta para a ceia e iluminada por castiçais.

— Somos os primeiros — disse o Sr. Satterthwaite. — Ah, aí vem Franklin...

Parou de repente. Com Franklin, vinha a Condessa. Foi um momento difícil. Elizabeth mostrou-se menos amável do que deveria. A Condessa, como mulher do mundo, manteve as apa¬rências.

O último a chegar foi o Sr. Quin. Com ele, veio um ho¬menzinho moreno, bem arrumado, cujo rosto pareceu familiar ao Sr. Satterthwaite. Depois de um minuto, reconheceu-o. Era o crupiê que, naquela mesma noite, cometera um erro tão lamen¬tável.

— Vou apresentá-lo ao meu companheiro, Sr. Pierre Vaucher — disse o Sr. Quin.

O homenzinho parecia confuso. O Sr. Quin fez as neces¬sárias apresentações, de modo natural e despreocupado. A ceia foi servida — uma ceia excelente. Veio o vinho — maravilhoso. Parte do gelo desapareceu da atmosfera. A Condessa es¬tava muito silenciosa, bem como Elizabeth. Rudge tornou-se loquaz. Contou várias histórias — não engraçadas, mas sé¬rias. E tranqüila, porém assiduamente, o Sr. Quin servia o vinho a todos.

— Vou contar-lhes... e é uma história verdadeira... sobre um homem que fazia o bem — disse Franklin Rudge, em tom imponente. Mostrava que apreciava condignamente o cham¬panha.

Contou sua história — talvez um tanto comprida demais. Era, como tantas histórias verdadeiras, muito inferior à ficção.

Quando ele pronunciou a última palavra, Pierre Vaucher, que estava à sua frente, pareceu despertar. Também fizera jus¬tiça ao champanha. Inclinou-se para diante, por cima da mesa.

— Eu também vou contar uma história — disse, em voz pastosa. — Mas a minha é a história de um homem que não fazia o bem. É a história de um homem que não subiu, mas desceu. E, como a sua, é uma história verdadeira.

— Conte-a, por favor, monsieur — disse o Sr. Satterth¬waite, cortesmente.

Pierre Vaucher recostou-se na cadeira e olhou para o teto.

— É em Paris que a história começa. Havia lá um homem, um joalheiro ativo. Era jovem, sem problemas e industrioso em sua profissão. Diziam que tinha futuro. Já estava com um bom casamento arranjado, a noiva não era feia, o dote extremamente satisfatório. E então, sabem o que aconteceu? Certa manhã, ele viu uma moça. Uma coisinha à-toa, messieurs. Bonita? Sim, talvez, se não estivesse meio morta de fome. Mas, de qualquer maneira, para aquele rapaz, ela tinha uma magia a que ele não podia resistir. Ela estivera lutando para arranjar emprego, era virtuosa... ou, pelo menos, foi o que lhe disse. Não sei se era verdade.

A voz da Condessa ergueu-se, de repente, da penumbra:

— Por que não seria verdade? Há muitas assim.

— Bem, como dizia, o jovem acreditou nela. E casou-se com ela... um ato de loucura! A família não quis mais falar com ele. Ultrajara a todos. E ele casou-se com... vou chamá-la Jeanne. Era uma boa ação. Ele lhe disse isto. Sacrificara muita coisa por causa dela.

— Um começo de vida encantador para a pobre moça — observou a Condessa com sarcasmo.

— Ele a amava, sim, mas desde o começo ela o enlou¬quecia. Tinha amuos... acessos de cólera... um dia, mostra¬va-se fria, no outro, apaixonada.  Afinal, ele compreendeu a verdade. Ela jamais o amara. Casara-se para subsistir. Esta ver¬dade magoou-o, magoou-o terrivelmente, mas ele tentou, ao máximo, não deixar transparecer seus sentimentos. E achava que merecia gratidão e obediência aos seus desejos. Eles briga¬vam. Ela o repreendia. Mon Dieu, sobre que ela não o repreen¬dia?

— Podem imaginar o que vem depois, não? A coisa estava prevista. Ela o deixou. Durante dois anos, ele ficou sozinho, trabalhando em sua pequena loja, sem nenhuma notícia dela. Tinha um amigo... o absinto. O negócio já não prosperava tanto.

— E então, um dia, ele entrou na loja e encontrou-a lá, sentada. Estava muito bem vestida. Tinha anéis nos dedos. Ele ficou a observá-la. Seu coração batia... como batia! Não sabia o que fazer. Gostaria de tê-la espancado, abraçado com força, atirado ao chão, pisado nela, ou de se ter lançado aos seus pés. Não fez nenhuma dessas coisas. Pegou seus alicates e continuou o trabalho.  “Madame deseja?”, perguntou, formalmente.

— Isto a perturbou. Ela não esperava por isto. “Pierre”, disse ela, “eu voltei”. Ele colocou os alicates de lado e olhou-a. “Você quer ser perdoada”, disse. “Quer que a receba de volta? Está sinceramente arrependida?” “Você me quer de volta?”, ela murmurou. Oh, muito suavemente. Ele sabia que ela estava querendo colocá-lo numa armadilha. Estava louco para apertá-la nos braços, mas era inteligente demais para isso.  Fingiu indiferença.

— “Sou um cristão”, disse ele. “Tente fazer o que a Igreja ordena”. “Ah”, pensou, “vou humilhá-la até ficar de joelhos”.

— Mas Jeanne atirou a cabeça para trás e riu. Uma risada má. “Zombo de você, pequeno Pierre”, disse. “Olhe para essas ricas roupas, esses anéis e braceletes. Vim para me mostrar a você. Pensei que lhe faria abraçar-me e, quando você fizesse isso, então eu cuspiria em seu rosto e lhe diria que o odeio!”

— Logo depois, saiu da loja. Podem acreditar, messieurs, que uma mulher fosse tão má assim... voltar apenas para me atormentar?

— Não — disse a Condessa. — Eu não acreditaria e qual¬quer homem que não fosse um idiota também não acreditaria. Mas todos os homens são completamente idiotas.

Pierre Vaucher não tomou conhecimento do aparte. Pros¬seguiu:

— E assim aquele jovem de quem lhes falei foi afundando cada vez mais. Bebia mais absinto. A lojinha foi vendida à sua revelia. Ele se tornou ralé, caiu na sarjeta.  Então, veio a guerra. Ah, foi boa, a guerra. Tirou aquele homem da sarjeta e lhe ensinou a não ser mais um animal selvagem. Discipli¬nou-o... e tornou-o sóbrio. Ele suportou o frio e a dor e o medo da morte... mas não morreu e, quando a guerra acabou, era outra vez um homem.

— Foi então, messieurs, que ele veio para o Sul.  Seus pulmões haviam sido afetados; disseram-lhe que precisava pro¬curar emprego no Sul. Não vou cansá-los contando todas as coisas que ele fez. Basta dizer que terminou como crupiê e, lá no Cassino, certa noite, viu novamente a mulher que lhe arruinara a vida. Ela não o reconheceu, mas ele sim. Ela pare¬cia rica e não sentia falta de nada... mas, messieurs, os olhos de um crupiê são penetrantes. Chegou uma noite em que ela fez sua última aposta. Não me perguntem como eu sei... mas eu sei, a gente sente essas coisas. Os outros podem não acre¬ditar. Ela ainda tinha roupas caras... por que não empenhá-las, alguém poderia perguntar? Mas, quando se faz isso, liquida-se imediatamente o crédito. Suas jóias? Ah, não! Não fui eu um joalheiro, na juventude? Há muito, as jóias verdadeiras já se haviam ido. As pérolas de um rei vendidas, uma por uma, e substituídas por falsas. E, enquanto isso, era preciso comer e pagar a conta do hotel. Sim, e já estava muito vista pelos ricos. Bah, diziam eles... ela está com mais de 50 anos! Quero gastar meu dinheiro com uma jovem.

Um longo suspiro estremecido veio da janela na qual se recostava a Condessa.

— Sim. Foi um grande momento, aquele. Durante duas noites, observei-a. Perdeu, perdeu e tornou a perder. E agora, o fim. Ela coloca tudo num número. Ao lado dela, um lorde inglês também aposta o máximo... no número seguinte. A bola rola; o momento chegou; ela perdeu.

— Os olhos dela encontram-se com os meus. Que faço eu? Ponho em risco meu emprego no Cassino. Roubo o lorde inglês. “A Madame”, digo, e entrego o dinheiro.

— Ah! — Houve um estrondo, quando a Condessa se ergueu de repente e inclinou-se por sobre a mesa, derrubando seu copo. — Por quê? — gritou ela. — Isto é o que eu quero saber, por que você fez isso?

Houve uma longa pausa, uma pausa que parecia intermi¬nável, e os dois se encaravam interminavelmente de ambos os lados da mesa. Era como um duelo.

Um pequeno sorriso mesquinho insinuou-se no rosto de Pierre Vaucher. Ele ergueu as mãos.

— Madame — disse — existe uma coisa chamada piedade.

— Ah! — Ela afundou novamente. — Entendo.

Estava calma, sorridente, dona de si novamente.

— História interessante, Monsieur Vaucher. Permita-me acender seu cigarro.

Habilmente, enrolou um pedaço de papel, acendeu-o na vela e estendeu-o na direção dele. Ele inclinou-se para a frente até a chama alcançar a extremidade do cigarro que trazia entre os lábios.

Então, ela levantou-se inesperadamente.

— E agora, devo deixá-los. Por favor, não preciso que ninguém me acompanhe.

Antes de alguém perceber, ela já partira. O Sr. Satterth¬waite ia correr atrás dela, quando foi detido por uma praga do aturdido francês.

— Com mil demônios!

Ele estava olhando o pedaço de papel que a Condessa deixara cair sobre a mesa. Desenrolou-o.

— Mon Dieu! — murmurou. — Uma nota de 50 mil. En¬tendem? O que ela ganhou esta noite. Tudo o que tem no mun¬do. E ela acendeu meu cigarro com a nota. Porque é excessiva¬mente orgulhosa para aceitar... piedade. Ah! Orgulhosa, ela sempre foi orgulhosa como o diabo. Ela é única... maravilhosa.

Pulou da cadeira e saiu disparado. O Sr. Satterthwaite e o Sr. Quin também se haviam erguido. O garçom aproximou-se de Franklin Rudge.

— La note, monsieur — observou, em tom neutro.

O Sr. Quin socorreu-o prontamente.

— Sinto-me um tanto solitário, Elizabeth — comentou Franklin Rudge. — Esses estrangeiros... são incríveis! Não consigo entendê-los.   Que significou tudo isso, de qualquer jeito?

Olhou para ela.

— Puxa, como é bom mirar alguém tão cem por cento americana quanto você. — Falou com o tom choroso de uma criancinha. — Esses estrangeiros são tão estranhos.

Agradeceram ao Sr. Quin e saíram juntos, noite a fora. O Sr. Quin pegou o troco e sorriu para o Sr. Satterthwaite, que se pavoneava, todo satisfeito.

— Bem — disse este último. — Tudo saiu esplendidamen¬te bem. Nosso parzinho amoroso está bem, agora.

— Qual deles? — perguntou o Sr. Quin.

— Oh — disse o Sr. Satterthwaite, caindo em si. — Bem, suponho que tem razão, levando-se em conta o temperamento latino e tudo isso...

Parecia em dúvida.

O Sr. Quin sorriu, e um vitral por trás dele envolveu-o, só por um minuto, numa roupagem variegada de luz colorida.

 

O Fim do Mundo

O SR. SATTERTHWAITE viera à Córsega por causa da Duquesa. Estava, certamente, fora de seu trajeto habitual. Na Riviera, ele tinha certeza de encontrar seu conforto, e ter conforto signifi¬cava muito para o Sr. Satterthwaite. Mas, embora gostasse de conforto, também gostava da Duquesa. Ã sua maneira, uma maneira inofensiva, cavalheiresca e antiquada, o Sr. Satterth¬waite era um esnobe. E a Duquesa de Leith era uma duquesa muito autêntica. Filha de um duque, casara-se com outro.

Quanto ao resto, era uma velha senhora até mal vestida, muito dada aos enfeites de contas negras nos seus vestidos. Tinha uma enorme quantidade de diamantes em engastes fora de moda, e usava-os da mesma maneira que sua mãe o fizera: pregados por toda parte, indiscriminadamente. Alguém dissera, certa vez, que a Duquesa ficava em pé no meio do quarto en¬quanto sua empregada ia pregando broches a esmo. Dava muito dinheiro para finalidades filantrópicas e tratava bem seus arren¬datários e dependentes, mas era extremamente mesquinha com relação a pequenas somas. Pedia carona aos amigos e fazia as compras em lojas de pechinchas.

A Córsega era um capricho da Duquesa. Cannes a entediava e ela tivera uma áspera discussão com o proprietário do hotel, devido ao preço do quarto.

— E o senhor deve ir comigo, Sr. Satterthwaite — dis¬sera ela, com firmeza. — Não precisamos temer um escândalo, a esta altura da vida.

O Sr. Satterthwaite ficara sutilmente lisonjeado. Ninguém, jamais, mencionara antes um escândalo, em relação à sua pes¬soa. Escândalo... e uma Duquesa... delicioso.

— Pitoresco, sabe — disse a Duquesa. — Bandidos... todo esse tipo de coisa. E extremamente barato, pelo que ouvi dizer. Manuelli foi positivamente sem-vergonha, esta manhã. Esses proprietários de hotel precisam ser colocados em seus devidos lugares. Não podem esperar conseguir os melhores clientes, se continuam assim. Eu lhe disse isto claramente.

— Acredito — disse o Sr. Satterthwaite — que é possível ir de avião até lá, bem confortavelmente, a partir de Antibes.

— Provavelmente cobram bem caro — disse a Duquesa. — Quer verificar, por favor?

— Certamente, Duquesa.

O Sr. Satterthwaite estava ainda num alvoroço de prazer, apesar de seu papel ser claramente o de um estafeta glorificado.

Quando soube o preço da passagem par avion, a Duquesa desistiu imediatamente.

— Pensam que pagarei uma soma absurda como esta para viajar numa daquelas coisas irritantes e perigosas?

Assim, foram de navio, e o Sr. Satterthwaite agüentou dez horas de agudo desconforto. Para começar, como o navio partia às sete, ficou certo de que haveria jantar a bordo. Mas não havia jantar. O navio era pequeno e o mar agitado. O Sr. Satterthwaite foi despejado em Ajaccio de madrugada, mais morto que vivo.

A Duquesa, ao contrário, estava perfeitamente bem dis¬posta. Jamais incomodava-a o desconforto, se sentisse que es¬tava economizando. Mostrava-se cada vez mais entusiasmada com a vista do cais, as palmeiras e o sol nascendo. Toda a po¬pulação parecia ter vindo ver a chegada do navio e a colo¬cação da prancha de desembarque foi apreciada com gritos e instruções.

— Esta minha empregada passou mal a noite toda — dis¬se a Duquesa. — É uma completa idiota.

O Sr. Satterthwaite deu um sorriso meio amarelo.

— Ela comeu alguma coisa? — perguntou com inveja.

— Acontece que eu trouxe alguns biscoitos e uma barra de chocolate — disse a Duquesa. — Quando descobri que não havia, jantar, dei tudo a ela. As pessoas das classes inferiores sempre fazem um espalhafato, quando ficam sem as refeições.

Com um grito de triunfo, completou-se o lançamento da prancha de desembarque. Um coro de bandidos de comédia musical entrou apressadamente a bordo e arrancou à força, dos passageiros, as bagagens de mão.

— Vamos, Satterthwaite — disse a Duquesa. — Quero um banho quente e um café.

O Sr. Satterthwaite também. Mas não foi inteiramente bem sucedido. Foram recebidos no hotel por um gerente cheio de mesuras e mostraram-lhes seus quartos. O da Duquesa tinha banheiro. Já o Sr. Satterthwaite foi encaminhado para um ba¬nheiro que parecia estar situado no quarto de outra pessoa. Es¬perar que a água estivesse quente àquela hora da manhã talvez fosse disparate. Mais tarde, ele bebeu bastante café, servido num bule sem tampa. As persianas e as janelas de seu quarto haviam sido escancaradas e o ar fresco da manhã entrava per¬fumado. Um dia de azul e verde deslumbrantes.

O garçom fez um floreio com a mão, a fim de chamar a atenção para a vista.

— Ajaccio — disse ele, solenemente. — Le plus beau port du monde.

E saiu, abruptamente.

Ao contemplar o azul profundo da baía, com as mon¬tanhas nevadas atrás, o Sr. Satterthwaite quase se inclinou a concordar. Terminou seu café e, deitando-se na cama, pegou no sono depressa.

No déjeuner, a Duquesa estava em excelente disposição de espírito.

— O senhor precisava exatamente disso, Sr. Satterthwaite — disse. — Deixe para lá essas suas maneiras piegas de velha solteirona. — Perscrutou toda a sala com seu lornhão. — Ora, vejam só, lá está Naomi Carlton-Smith.

Apontou uma moça sozinha, numa mesa perto da janela, uma moça com ombros roliços, que se sentava de modo negli¬gente. O vestido parecia feito de uma espécie de aniagem. Tinha o cabelo preto, curto e despenteado.

— Uma artista? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

Acertava sempre, ao classificar as pessoas.

— Exatamente — disse a Duquesa. — Ou se considera como tal. Eu sabia que ela estava vagabundeando em alguma parte estranha do mundo. Pobre como um rato de igreja, orgu¬lhosa como Lúcifer e com um parafuso frouxo, como todos os Carlton-Smiths.  A mãe era minha prima em primeiro grau.

— Então ela é do lado Knowlton?

A Duquesa assentiu com a cabeça.

— E é, além disso, a pior inimiga dela mesma — falou por iniciativa própria. — Uma moça inteligente, também. Me¬teu-se com um jovem altamente indesejável, do bando de Chel¬sea. Escrevia peças, ou poemas, ou alguma outra coisa mórbida. Ninguém quis saber deles, claro. Então, ele roubou as jóias de alguém, e foi apanhado. Esqueci quanto tempo pegou. Cinco anos, acho. Mas o senhor não se lembra? Foi no inverno pas¬sado.

— No inverno passado eu estava no Egito — explicou o Sr. Satterthwaite. — Tive uma gripe terrível no fim de janeiro e os médicos insistiram na ida para o Egito logo em seguida. Senti muita saudade.

A voz dele soou com um tom de verdadeira lástima.

— Aquela moça me parece estar arrasada — disse a Du¬quesa, erguendo mais uma vez seu lornhão. — Não posso deixar que isso aconteça.

À saída, parou junto à mesa da Srta. Carlton-Smith e deu uns tapinhas no ombro da moça.

— Bem, Naomi, você não parece lembrar-se de mim.

Naomi levantou-se, a contragosto.

— Sim, eu me lembro, Duquesa. Vi quando entrou. Achei muito provável que não me reconhecesse.

Arrastava as palavras, com um jeito totalmente indiferente.

— Quando terminar de almoçar, venha conversar comigo no terraço — ordenou a Duquesa.

— Está bem.

Naomi bocejou.

— Maneiras chocantes — disse a Duquesa ao Sr. Satterth¬waite, continuando a caminhar. — As mesmas de todos os Carlton-Smiths.

Tomaram café do lado de fora, ao sol. Haviam decorrido cerca de seis minutos, quando Naomi Carlton-Smith saiu indo¬lentemente do hotel e juntou-se a eles. Deixou-se cair, negligen¬temente, numa cadeira, com as pernas desgraciosamente esti¬radas para a frente.

Um rosto estranho, com queixo saliente e olhos cinzen¬tos, cavados. Um rosto inteligente e infeliz — um rosto quase bonito.

— Bem, Naomi — disse a Duquesa, energicamente. — E o que é que você está fazendo por si própria?

— Oh, não sei. Apenas enchendo tempo.

— Tem pintado?

— Um pouquinho.

— Mostre-me o que fez.

Naomi sorriu. Não estava intimidada pela autocrata. Di¬vertia-se. Foi ao hotel e saiu novamente, com uma pasta.

— Não vai gostar, Duquesa — disse, em tom de adver¬tência. — Mas diga que gosta. Assim, não me magoará.

O Sr. Satterthwaite aproximou um pouco mais a cadeira. Estava interessado. No minuto seguinte, estava ainda mais interessado. A Duquesa mostrou-se francamente pouco indul¬gente.

— Para mim, não tem pé e nem cabeça — comentou. — Meu Deus, menina, jamais houve um céu desta cor... nem um mar.

— É minha maneira de vê-los — disse Naomi placida¬mente.

— Ugh! — disse a Duquesa, examinando outro. — Este me dá arrepios.

— A intenção é esta — disse Naomi. — Está me fazen¬do um elogio, sem saber.

Era um estranho estudo vorticista de um cacto — mal reconhecível como tal. Verde acinzentado, com borrões de cores violentas, sobre os quais as frutas brilhavam como jóias. Um redemoinho perverso, supurando sensualmente. O Sr. Satterth¬waite estremeceu e desviou os olhos.

Descobriu Naomi olhando-o e sacudindo a cabeça com ar compreensivo.

— Eu sei — disse ela. — Mas é mesmo bestial.

A Duquesa pigarreou.

— Parece bastante fácil ser um artista hoje em dia — observou, fulminantemente. — Não há nenhuma tentativa de copiar as coisas. Apenas se atira alguma tinta... não sei com o que, claro que não é com o pincel...

— Espátula — interveio Naomi, sorrindo amplamente.

— Uma porção, de uma vez só — continuou a Duquesa, — aos bolos. E aí está! Todo mundo diz “Que inteligente”. Bem, não tenho paciência com este tipo de coisa. Quero ver...

— Um quadro bonitinho, com um cachorro e um cavalo, de Edward Landseer.

— E por que não? — perguntou a Duquesa. — Alguma coisa errada em Landseer?

— Nada — disse Naomi. — Ele está muito certo.  E vocês todos estão muito certos. As camadas superiores são sem¬pre bonitinhas, brilhantes, suaves. Respeito a senhora, Duque¬sa, tem força; encontrou a vida certinha e já apareceu em cima. Mas as pessoas por baixo vêem o lado inferior das coisas. E isto é interessante, de certo modo.

A Duquesa olhou-a fixamente.

— Não tenho a menor idéia do que está dizendo — declarou.

O Sr. Satterthwaite ainda estava examinando os esboços. Percebeu, o que a Duquesa não tivera capacidade de fazer, a perfeição subjacente da técnica. Estava surpreso e deliciado. Olhou para a moça.

— Pegue qualquer um que quiser por cinco guinéus — disse a moça, com indiferença.

O Sr. Satterthwaite hesitou por alguns minutos e depois es¬colheu um estudo de cacto e aloés. Em primeiro plano, havia uma mancha viva de mimosas amarelas, o escarlate das flores do aloés dançava para dentro e para fora do quadro e, inexo¬rável e matematicamente subjacente ao conjunto, estava o de¬senho oblongo do cacto e o tema em forma de espada do aloés.

Ele fez uma pequena curvatura para a moça.

— Estou muito feliz de adquirir este, e acho que fiz um ótimo negócio. Algum dia, Srta. Carlton-Smith, poderei ven¬der este esboço com lucro muito bom... se quiser!

A moça inclinou-se, a fim de ver qual ele pegara. Viu um brilho diferente no olhar dela. Pela primeira vez, ela tomou realmente consciência de sua existência e havia respeito no rá¬pido olhar que lhe dirigiu.

— Escolheu o melhor — disse. — Eu... estou contente.

— Bem, suponho que sabe o que está fazendo — disse a Duquesa. — Certamente tem razão. Ouvi dizer que é um grande conhecedor. Mas não vá me dizer que toda essa coisa nova é arte, porque não é. No entanto, não precisamos discutir o assun¬to já que só vou ficar aqui uns poucos dias e quero ver algo da ilha. Você tem automóvel, suponho, Naomi?

A moça fez que sim com a cabeça.

— Ótimo — disse a Duquesa. — Vamos fazer um passeio por aí, amanhã.

— Só tem dois lugares.

— Tolice, deve ter um lugarzinho atrás que servirá para o Sr. Satterthwaite.

O Sr. Satterthwaite deu um suspiro trêmulo e fundo. Ob¬servara as estradas da Córsega, aquela manhã. Naomi ficou observando-o, pensativamente.

— Acho que meu carro não vai servir-lhes — disse. — Está caindo aos pedaços. Comprei-o de segunda mão, baratíssi¬mo. Fazendo força, consigo que me leve pelos montes acima. Mas não posso conduzir passageiros. Há uma garagem bastante boa, na cidade. Podem alugar um automóvel.

— Alugar um automóvel — disse a Duquesa, escandali¬zada. — Que idéia. Quem é aquele homem simpático, um tanto amarelo, que subiu num quatro portas, pouco antes do almoço?

— Acho que se refere ao Sr. Tomlinson. É um juiz indiano aposentado.

— Isto explica a amarelidão — disse a Duquesa. — Temi que pudesse ser icterícia. Parece um tipo de homem bas¬tante decente. Vou falar com ele.

Aquela noite, ao descer para jantar, o Sr. Satterthwaite encontrou a Duquesa, resplandecente em contas negras e dia¬mantes, falando seriamente com o proprietário do automóvel de quatro lugares. Ela acenou imperativamente.

— Venha cá, Sr. Satterthwaite. O Sr. Tomlinson está me contando coisas interessantes e, imagine só, vai levar-nos numa excursão amanhã, em seu carro.

O Sr. Satterthwaite olhou-a com admiração.

— Precisamos entrar para jantar — disse a Duquesa. — Venha sentar-se à nossa mesa, Sr. Tomlinson, e assim pode¬rá continuar me contando.

 

 

— Tipo de homem bastante decente — pronunciou-se a Duquesa, mais tarde.

— Com um tipo de carro bastante decente — retorquiu o Sr. Satterthwaite.

— Malcriado — disse a Duquesa, e deu-lhe uma forte pan¬cada nos nós dos dedos, com o desbotado leque preto que carre¬gava sempre. O Sr. Satterthwaite estremeceu de dor.

— Naomi vai também — disse a Duquesa. — No carro dela. Aquela moça precisa sair um pouco de si própria.  É muito egoísta. Não exatamente egocêntrica, mas totalmente indi¬ferente a tudo e a todos. Não concorda?

— Não creio que isso seja possível — disse o Sr. Sat¬terthwaite, devagar. — Quero dizer, o interesse de todo mundo tem de ir para alguma coisa. Há, claro, as pessoas que giram em torno de si próprias, mas, concordo com sua opinião, ela não é desse tipo. É totalmente desinteressada de si mesma. E, apesar disso, tem um caráter forte... deve haver algo. Pensei, de início, que fosse sua arte — mas não é. Nunca vi ninguém tão desligado da vida. Isto é perigoso.

— Perigoso? Que quer dizer?

— Bem... pode ser uma obsessão de algum tipo, e as obsessões são sempre perigosas.

— Satterthwaite — disse a Duquesa — não seja tolo. E ouça. Amanhã...

O Sr. Satterthwaite ouvia. Este era, quase sempre, seu papel na vida.

Saíram cedo, na manhã seguinte, levando o almoço. Naomi, que estava há seis meses na ilha, deveria ser a pioneira. O Sr. Satterthwaite aproximou-se, quando a moça esperava, sentada, pela partida.

— Tem certeza de que... não posso ir com você? — perguntou, ansiosamente.

Ela balançou a cabeça, negativamente.

— O senhor estará muito mais confortável na traseira do outro carro. Assentos bem acolchoados, e tudo isso. Esta ve¬lharia é uma verdadeira armadilha chacoalhante. O senhor iria dar saltos a cada baque.

— E além disso, há, é claro, as ladeiras.

Noami riu.

— Oh, eu só disse isso para salvá-lo do lugarzinho atrás. A Duquesa poderia muito bem pagar pelo aluguel de um auto¬móvel. É a mulher mais sovina da Inglaterra. De qualquer jeito, a velha é camarada, e não posso deixar de gostar dela.

— Então eu poderia ir com você, afinal de contas — disse o Sr. Satterthwaite, ansiosamente.

Ela o olhou com curiosidade.

— Por que está tão ansioso para ir comigo?

— É preciso perguntar? — O Sr. Satterthwaite fez uma curvatura espalhafatosa, à moda antiga.

Ela sorriu, mas abanou a cabeça.

— Esta não é a razão — disse pensativamente. — Pode parecer estranho. Mas o senhor não pode ir comigo... hoje, não.

— Outro dia, talvez — sugeriu o Sr. Satterthwaite cortes¬mente.

— Oh! Outro dia! — ela riu de repente, uma risada muito esquisita, pensou o Sr. Satterthwaite. — Outro dia! Bem, vere¬mos.

Partiram. Passaram pela cidade e depois seguiram a longa curva da baía. Dobraram em direção ao interior, cruzaram um rio e depois voltaram para a costa, com suas centenas de pe¬quenas enseadas arenosas. E depois começaram a subir. Para lá e para cá, em curvas arrepiantes, mais alto, cada vez mais alto, pela tortuosa estrada. A baía azul estava bem embaixo, e, do outro lado, Ajaccio brilhava ao sol, branca qual uma ci¬dade encantada.

Para lá e para cá, um precipício de um lado, outro do ou¬tro. O Sr. Satterthwaite sentia-se ligeiramente tonto e também enjoado. A estrada não era muito larga. E ainda subiam.

Estava frio, agora. O vento soprava até eles, vindo direta¬mente dos picos nevados. O Sr. Satterthwaite levantou a gola do casaco e abotoou-a sob o queixo.

Estava muito frio. Do outro lado da baía, Ajaccio estava ainda toda ensolarada, mas cá em cima nuvens espessas e cin¬zentas passavam, cobrindo o sol. O Sr. Satterthwaite parou de admirar a vista. Ansiava por um hotel bem aquecido e uma poltrona confortável.

Na frente deles, o carrinho de Naomi, com seus dois as¬sentos, seguia firmemente em frente. Para cima, ainda mais alto. Estava agora no topo do mundo. Do outro lado, havia montes mais baixos que desciam suavemente até os vales. Viam, bem em frente, os picos nevados. E o vento soprava cortando, afiado como uma faca.

De repente, o carro de Naomi parou e ela olhou para trás.

— Chegamos — disse. — Ao fim do mundo. E não acho que o dia esteja lá muito favorável.

Todos saíram. Haviam chegado a uma pequena vila, meia dúzia de chalés de pedra. Um nome imponente estava escrito em letras de um pé de altura: Coti Chiaveeri.

Naomi encolheu os ombros.

— É o nome oficial, mas prefiro chamá-la O Fim do Mundo.

Deu alguns passos, e o Sr. Satterthwaite juntou-se-lhe. Estavam além das casas, agora. A estrada interrompeu-se. Como dissera Naomi, este era o fim — o por trás do detrás, o começo do nada. Às costas deles, a fita branca da estrada; adiante, nada. Apenas, bem lá embaixo, o mar.

O Sr. Satterthwaite respirou fundo.

— É um lugar extraordinário. Sentimos que qualquer coisa pode acontecer aqui, que se pode encontrar... qualquer pes¬soa.

Parou porque, logo em frente, um homem estava sentado numa pedra, com o rosto virado para o mar. Não o haviam visto até aquele momento, e seu aparecimento foi instantâneo como num ato de prestidigitação. Era como se tivesse brotado da paisagem.

— Eu imagino... — começou o Sr. Satterthwaite.

Mas, naquele minuto, o estranho virou-se e o Sr. Satterth¬waite viu-lhe o rosto.

— Ora vejam, o Sr. Quin! Que coisa extraordinária. Srta. Carlton-Smith, quero apresentá-la ao meu amigo, Sr. Quin. É o homem mais assombroso do mundo. O senhor há de concor¬dar. Sempre aparece no momento crítico...

Parou, com a impressão de que dissera algo inabilmente significativo, e, no entanto, por nada deste mundo conseguia atinar com o que fosse.

Noami apertou a mão do Sr. Quin à sua maneira brusca de costume.

— Estamos aqui para um piquenique — disse. — E me parece que vamos ficar gelados até os ossos.

O Sr. Satterthwaite tremeu de frio.

— Talvez — disse em tom de dúvida — possamos encon¬trar um lugar abrigado.

— Este aqui não é — falou Naomi. — Mas a vista vale a pena, não?

— Sim, é verdade. — O Sr. Satterthwaite virou-se para o Sr. Quin. — A Srta. Carlton-Smith chama este lugar de O Fim do Mundo. Bom nome, não?

O Sr. Quin balançou a cabeça afirmativamente, várias ve¬zes.

— Sim, um nome muito sugestivo. Suponho que a pes¬soa só vem uma vez na vida a um lugar assim... um lugar de onde não se pode seguir adiante.

— Que quer dizer? — perguntou Naomi, bruscamente.

Ele virou-se para ela.

— Bem, geralmente se pode escolher, não é? Para a es¬querda ou para a direita. Para a frente ou para trás. Aqui há a estrada atrás da pessoa e, à sua frente, nada.

Naomi olhou-o fixamente. De repente, ela estremeceu e começou a recuar, em direção aos outros. Os dois homens desce¬ram ao seu lado. O Sr. Quin continuou a falar, mas seu tom era, agora, amável e superficial.

— Aquele carrinho é seu, Srta. Carlton-Smith?

— Sim.

— E a senhorita mesma o dirige? É preciso, eu acho, muita coragem para dirigir por aqui. As curvas são terríveis. Um momento de distração, a falha de um freio e — o carro ultrapassaria a margem da estrada, iria cair bem lá embaixo. Isto seria feito com muita facilidade.

Haviam-se juntado aos demais. O Sr. Satterthwaite apre¬sentou seu amigo. Sentiu um puxão na manga. Era Naomi. Ela o arrastou para longe dos outros.

— Quem é ele? — perguntou, com raiva.

O Sr. Satterthwaite olhou-a espantado.

— Bem, pouco sei. Quero dizer, eu o conheço há alguns anos... encontramo-nos, de vez em quando, mas saber real¬mente...

Interrompeu-se. Eram futilidades o que ele estava dizendo, e a moça ao seu lado não ouvia. Estava de pé, com a cabeça curvada e os punhos cerrados.

— Ele sabe coisas — disse ela. — Ele sabe coisas. Como é que ele sabe?

O Sr. Satterthwaite não pôde responder. Só conseguiu olhá-la estupidamente, sem compreender a tempestade que a sacudia.

— Estou com medo — ela murmurou.

— Com medo do Sr. Quin?

— Tenho medo de seus olhos. Ele vê coisas.

Algo frio e molhado caiu sobre o queixo do Sr. Satterth¬waite. Ele olhou para cima.

— Ora, está nevando — exclamou, muito surpreso.

— Belo dia escolhemos para um piquenique — disse Naomi.

Com esforço, recuperara o autodomínio.

Que se deveria fazer? Irrompeu uma Babel de sugestões. A neve caía rápida e espessa. O Sr. Quin fez uma sugestão que todos aceitaram. Havia uma pequena cassecroute de pedra, no fim da fileira de casas. Houve uma disparada naquela direção.

— Têm suas provisões — disse o Sr. Quin. — E prova¬velmente poderão preparar-lhes um pouco de café.

Era um lugar pequeno, meio escuro, pois a única jane¬linha pouco o iluminava, mas de um canto provinha uma agra¬dável claridade reconfortante. Uma velha corsa estava, justa¬mente, atirando um punhado de galhos ao fogo. As chamas aumentaram e, com a sua luz, os recém-chegados verificaram que havia outras pessoas ali.

Três pessoas estavam sentadas na extremidade de uma mesa nua de madeira. Havia algo irreal na cena, aos olhos do Sr. Satterthwaite, e ainda mais irreal nas pessoas.

A mulher sentada na ponta da mesa parecia uma duquesa — ou seja, correspondia à concepção popular de uma duquesa. Era a grande dame ideal do teatro. Sua cabeça aristocrática es¬tava bem levantada, seu cabelo bem penteado era branco como a neve. Vestia-se de cinza e macios drapeados caíam em torno dela, formando dobras artísticas. Uma das suas longas mãos brancas sustentava o queixo, a outra segurava um pãozinho coberto de paté de fois gras. À sua direita, estava um homem com o rosto muito branco, cabelo muito negro e óculos com aros de chifre. Estava maravilhosamente bem vestido. No momento, tinha a cabeça jogada para trás e o braço esquerdo estendido, como se pronto para declamar algo.

À esquerda da dama de cabelos brancos, um homenzinho com ar jocoso, careca. Depois da primeira olhada, ninguém lhe prestou mais atenção.

Houve um momento de dúvida e então a Duquesa (a du¬quesa autêntica) tomou a frente.

— Esta tempestade não é terrível? — disse em tom amis¬toso, avançando e sorrindo, um sorriso intencional e eficiente, que ela descobrira ser muito útil quando estava prestando servi¬ços em comissões de caridade e outras. — Suponho que foram surpreendidos pela tempestade, como aconteceu conosco. Mas a Córsega é um lugar maravilhoso. Cheguei hoje mesmo, de manhã.

A dama de cabelos brancos falou.

— Estamos aqui há uma semana.

O Sr. Satterthwaite estremeceu. Alguém poderia ouvir aque¬la voz, mesmo que apenas uma vez, e conseguir esquecê-la? A voz ecoou pela sala de pedra, carregada de emoção... com uma estranha melancolia. Ele teve a impressão de que ela dis¬sera algo maravilhoso, memorável, cheio de significado. Falara do fundo do coração.

Falou de parte, apressadamente, para o Sr. Tomlinson.

— O homem de óculos é o Sr. Vyse... o produtor, sabe.

O juiz indiano aposentado olhava para o Sr. Vyse com boa dose de antipatia.

— Que é que ele produz? — perguntou. — Filhos?

— Oh, pelo amor de Deus não — disse o Sr. Satterth¬waite, chocado com a simples menção de algo tão rude em rela¬ção ao Sr. Vyse. — Peças.

— Acho — disse Naomi — que vou sair novamente. Está quente demais aqui dentro.

Sua voz, forte e áspera, fez o Sr. Satterthwaite saltar. Ela se encaminhou para a porta, quase cegamente, empurrando o Sr. Tomlinson para um lado. Mas, ao chegar ao vão da porta, deparou com o Sr. Quin, e ele barrou-lhe a passagem.

— Volte e sente-se — disse.

Sua voz era imperiosa. Para surpresa do Sr. Satterthwaite, a moça hesitou um minuto e depois obedeceu. Sentou-se do outro lado da mesa, tão longe dos outros quanto possível.

O Sr. Satterthwaite adiantou-se com alvoroço, e se dirigiu ao produtor.

— Talvez não se lembre de mim — começou. — Meu nome é Satterthwaite.

— Claro! — Uma longa mão ossuda apareceu de re¬pente e envolveu a do outro num aperto doloroso. — Meu caro, imagine só encontrá-lo aqui. Conhece a Srta. Nunn, naturalmente?

O Sr. Satterthwaite deu um pulo. Não era de admirar que aquela voz fosse familiar. Milhares de pessoas, em toda a Inglaterra, haviam-se emocionado com aquela entonação mara¬vilhosa, carregada de emoção. Rosina Nunn! A maior atriz dramática da Inglaterra. O Sr. Satterthwaite também se ren¬dera ao seu fascínio. Ninguém como ela para interpretar um papel ressaltando as mais sutis nuanças. Sempre a julgara uma atriz intelectual, alguém que compreendia e encarnava a essên¬cia de seu papel.

Era desculpável que não a tivesse reconhecido. Rosina era volúvel em seus gostos. Durante 25 anos de sua vida, fora loura. Depois de uma tournée pelos Estados Unidos, voltara com os cabelos negros como as penas do corvo e embrenhara-se na tragédia. Esta aparência de “Marquesa Francesa” era seu último capricho.

— Oh! A propósito, o Sr. Judd, marido da Srta. Nunn — disse Vyse, negligentemente, apresentando o homem careca.

Rosina Nunn tivera vários maridos, segundo sabia o Sr. Satterthwaite. O Sr. Judd era, evidentemente, o mais recente.

O Sr. Judd estava ocupado desembrulhando pacotes tira¬dos de um cesto, ao seu lado. Dirigiu-se à mulher.

— Um pouco mais de paté, queridíssima. Aquele último não estava untado como você gosta.

Rosina Nunn entregou-lhe seu pãozinho e murmurou com simplicidade:

— Henry pensa nas comidas mais deliciosas. Sempre deixo a seu cargo o setor do abastecimento.

— É preciso alimentar as feras — disse o Sr. Judd, e riu. Deu tapinhas no ombro de sua mulher.

— Trata-a como se ela fosse um cachorro — murmurou a voz melancólica do Sr. Vyse ao ouvido do Sr. Satterthwaite. — Corta a comida para ela. Criaturas estranhas, as mulheres.

O Sr. Satterthwaite e o Sr. Quin desembrulhavam o almo¬ço. Ovos cozidos, presunto frio e queijo Gruyère foram distri¬buídos por toda a mesa. A Duquesa e a Srta. Nunn pareciam mergulhadas em confidências, aos murmúrios. Alguns fragmen¬tos fizeram-se ouvir, na voz de contralto da atriz.

— O pão deve ser torrado só muito ligeiramente, enten¬de? Depois, acrescenta-se uma camada muito fina de marme¬lada. Finalmente, já enrolado, é posto no forno por um minuto — não mais. Simplesmente delicioso.

— Aquela mulher vive para comer — murmurou o Sr. Vyse. — Simplesmente vive para isso. Não consegue pensar em outra coisa. Lembro-me que em Cavaleiro para o Mar, sabe — “e será uma temporada boa e tranqüila, que estarei atravessando” — eu não conseguia o efeito que desejava. Afi¬nal, disse-lhe para pensar em bombons de hortelã-pimenta... ela é louca por bombons de hortelã-pimenta. Consegui o efeito imediatamente... uma espécie de olhar distante que penetrava diretamente na alma.

O Sr. Tomlinson, em frente, pigarreou, preparando-se para entrar na conversa.

— O senhor produz peças, segundo ouvi dizer. Gosto de uma boa peça. Jim, o Escrevente, por exemplo; que peça!

— Meu Deus! — disse o Sr. Vyse, e estremeceu todo.

— Um pequeno dente de alho — dizia a Srta. Nunn à Duquesa. — Fale com seu cozinheiro. É maravilhoso.

Deu um suspiro feliz e virou-se para o marido.

— Henry — disse em tom de queixa. — Não cheguei nem a ver o caviar.

— Você está quase sentada em cima — respondeu o Sr. Judd, alegremente. — Colocou-o atrás, na cadeira.

A Srta. Nunn recobrou-o apressadamente e deu um sorri¬so feliz para toda a mesa.

— Henry é tão maravilhoso. Sou terrivelmente distraída. Jamais sei onde ponho alguma coisa.

— Como no dia em que você guardou suas pérolas na bolsinha da esponja — disse Henry jocosamente. — E depois esqueceu-a no hotel. Palavra, telefonei e telegrafei um bocado, aquele dia.

— Estavam no seguro — disse a Srta. Nunn em tom so¬nhador. — Ao contrário de minha opala. — Uma contração de desgosto, estranha e tocante, passou-lhe pelo rosto.

Muitas vezes, quando na companhia do Sr. Quin, o Sr. Satterthwaite tinha a sensação de participar de uma peça. Esta ilusão envolvia-o muito fortemente agora. Era um sonho. Todos tinham seu papel. As palavras “minha opala” eram sua pró¬pria deixa. Inclinou-se para adiante.

— Sua opala, Srta. Nunn?

— A manteiga está aí. Henry? Obrigada. Sim, minha opala. Foi roubada, sabe. E nunca a recuperei.

— Conte-nos, por favor — disse o Sr. Satterthwaite.

— Bem, nasci eu outubro, de modo que me dá sorte usar opalas e, por causa disso, eu queria uma verdadeira beleza. Esperei por ela muito tempo. Diziam que era uma das mais perfeitas que se conhecia. Não muito grande, do tamanho de uma moeda de dois xelins... mas, oh, a cor e o brilho.

Suspirou. O Sr. Satterthwaite observou que a Duquesa re¬mexia-se, parecendo pouco à vontade, mas agora nada poderia deter a Srta. Nunn. Ela continuou, e as belas inflexões de sua voz faziam a história soar qual lamentosa saga de antanho.

— Foi roubada por um jovem chamado Alec Gerard. Ele escrevia peças.

— Peças muito boas — interveio o Sr. Vyse, em tom profissional. — Certa vez eu mantive uma de suas peças em cartaz durante seis meses.

— O senhor a produziu? — perguntou o Sr. Tomlinson.

— Oh, não — disse o Sr. Vyse, chocado com a idéia. — Mas sabe que, certa vez, realmente pensei nisso?

— Havia um papel maravilhoso na peça para mim — disse a Srta. Nunn. — O nome era Os Filhos de Rachel, embora não houvesse nela ninguém chamado Rachel. Ele veio falar co¬migo sobre o assunto... no teatro. Eu gostava dele. Era sim¬pático... e muito tímido, pobre rapaz. Lembro-me — um belo olhar distante iluminou-lhe o rosto — que ele levou-me alguns bombons de hortelã-pimenta.  A opala estava sobre a penteadeira. Ele estivera na Austrália, sabia alguma coisa sobre opalas. Levou-a até a luz, para examiná-la. Suponho que deve tê-la colocado no bolso, então. Dei por falta dela assim que saiu. Foi a maior confusão. Lembra-se?

Virou-se para o Sr. Vyse.

— Oh! Eu me lembro — disse o Sr. Vyse com um gru¬nhido.

— Encontraram o estojo vazio no quarto dele — conti¬nuou a atriz. — E ele não tinha dinheiro nenhum mas, no outro dia mesmo, pôde depositar uma grande soma em sua conta no banco. Pretendeu explicar isto dizendo que um amigo apostara algum dinheiro num cavalo, em seu nome, mas não apresentou o amigo. Disse que devia ter posto no bolso por engano. Acho que foi algo bem pouco convincente para se dizer, não? Ele devia ter pensado em melhor desculpa. Tive de prestar depoimento. Saíram fotos minhas em todos os jornais. Meu agente disse que foi uma publicidade muito boa... mas eu preferia muito mais ter a opala de volta.

Sacudiu a cabeça, tristemente.

— Quer um pouco de compota de abacaxi? — perguntou o Sr. Judd..

A Srta. Nunn alegrou-se.

— Onde está?

— Acabei de lhe dar agora mesmo.

A Srta. Nunn olhou para frente e para trás, examinou sua pochette de seda cinzenta e depois, lentamente, ergueu uma grande bolsa de seda vermelha que estava no chão, ao seu lado. Começou a tirar o conteúdo e colocá-lo, devagar, sobre a mesa, o que muito interessou ao Sr. Satterthwaite.

Havia uma borla para pó-de-arroz, um batom, um peque¬no porta-jóias, um bolo de lã, outra caixa para pó-de-arroz, dois lenços, uma caixa de bombons de chocolate, uma pequena caixa de madeira marrom-escuro, cinco cartas, uma noz, um pequeno quadrado de crepe da China cor de malva, um pedaço de fita e o resto de um croissant. Finalmente, saiu a compota de abacaxi.

— Eureka — murmurou o Sr. Satterthwaite, baixinho.

— Que disse?

— Nada — falou o Sr. Satterthwaite, apressadamente. — Que bela faca de cortar papéis.

— Sim, não é mesmo? Alguém me deu de presente. Não consigo lembrar quem.

— Isto é uma caixa indiana — observou o Sr. Tomlin¬son, — Coisinhas engenhosas, não são?

— Alguém me deu de presente, também — disse a Srta. Nunn. — Eu a possuo há muito tempo. Ficava, às vezes, em minha penteadeira de teatro. Mas não acho que seja muito bo¬nita, o senhor acha?

A caixa era de simples madeira marrom-escuro. Abria de lado. No alto, havia duas simples portinholas de madeira, que se podia girar várias vezes.

— Talvez não seja bonita — disse o Sr. Tomlinson, com uma risadinha. — Mas aposto que nunca viu coisa igual.

O Sr. Satterthwaite inclinou-se para a frente. Sentia uma excitação.

— Por que disse que eram engenhosas? — perguntou.

— Bem, e não são?

O juiz apelava para a Srta. Nunn. Ela o olhou, inexpres¬sivamente.

— Suponho que não devo mostrar-lhes o truque, hein?

A Srta. Nunn continuava com o olhar inexpressivo.

— Que truque? — perguntou o Sr. Judd.

— Deus do céu, não sabe?

Olhou em torno, para os rostos inquiridores.

— Imagine só. Posso pegar a caixa um minuto? Obrigado.

Abriu-a.

— Agora, alguém pode dar-me algo para colocar dentro dela... não muito grande. Aqui está um pequeno pedaço de queijo Gruyère. Vai servir admiravelmente. Coloco-o dentro, fecho a caixa.

Remexeu as mãos, por alguns minutos.

— Agora, vejam.

Abriu novamente a caixa. Estava vazia.

— Bem, eu nunca... disse o Sr. Judd. — Como faz isto?

— É muito simples. Viro a caixa de cabeça para baixo e movimento a portinhola esquerda, a meio giro, depois fecho a portinhola direita.  Agora, para fazer voltar o pedaço de queijo, é preciso inverter. A portinhola direita meio aberta e a esquerda fechada, ainda mantendo a caixa de cabeça para baixo. E agora — hei, presto!

A caixa abriu-se. Todos na mesa respiraram fundo. O queijo estava lá... mas também outra coisa. Uma coisa re¬donda que lampejava todas as cores do arco-íris.

— Minha opala!

Henry Judd pigarreou.

— Ahn, eu realmente acho, Rosy, minha garota, que deve tê-la colocado aí você mesma.

Alguém levantou-se da mesa e foi às tontas para fora. Era Naomi Carlton-Smith. O Sr. Quin seguiu-a.

— Mas quando? Quer dizer...

O Sr. Satterthwaite observou-a enquanto tomava consciên¬cia da verdade. Levou mais de dois minutos para entender tudo.

— Quer dizer que no ano passado, no teatro...

— Você sabe — disse Henry em tom de desculpas — que realmente vive brincando com as coisas, Rosy. Veja o que fez com o caviar hoje.

A Srta. Nunn prosseguia, penosamente, em seus processos mentais.

— Eu a coloquei aí dentro sem pensar, e depois, suponho, virei a caixa e fiz o truque acidentalmente. Mas então, mas então... — Finalmente acordou. — Mas então Alec Gerard não a roubou, afinal de contas! Oh! — um grito fundo, pun¬gente, tocante — que coisa terrível!

— Bem — disse o Sr. Vyse — isto pode ser consertado agora mesmo.

— Sim, mas ele está na prisão há um ano. — E então ela assombrou os presentes. Virou-se bruscamente para a Du¬quesa. — Quem é aquela moça...  aquela moça que acaba de sair?

— É a Srta. Carlton-Smith — disse a Duquesa. — Estava noiva do Sr. Gerard. Ela sofreu muitíssimo.

O Sr. Satterthwaite afastou-se devagarinho. A neve havia parado de cair. Naomi estava sentada sobre o muro de pedra, Tinha nas mãos um caderno de desenho e alguns lápis de cor estavam espalhados em torno. O Sr. Quin encontrava-se de pé, ao seu lado.

Ela estendeu o caderno de desenhos para o Sr. Quin. Era algo muito tosco — mas tinha genialidade. Um torvelinho ca¬leidoscópico de flocos de neve, com uma figura ao centro.

— Muito bem — disse o Sr. Satterthwaite.

O Sr. Quin olhou para o céu, lá em cima.

— A tempestade terminou — disse. — As estradas esta¬rão escorregadias, mas não creio que vá haver um acidente... agora.

— Não haverá acidente — disse Naomi. Sua voz estava carregada com um certo significado que o Sr. Satterthwaite não entendeu. Ela virou-se e sorriu para ele — um deslumbrante sorriso repentino. — O Sr. Satterthwaite pode voltar comigo, se quiser.

Então, ele soube até onde o desespero a impulsionara.

— Bem — disse o Sr. Quin. — Devo dizer-lhes adeus. Afastou-se.

— Onde ele vai? — disse o Sr. Satterthwaite procurando-o com o olhar.

— Volta para o lugar de onde veio, suponho — disse Naomi, com uma voz estranha.

— Mas, não há nada ali — disse o Sr. Satterthwaite. Pois o Sr. Quin dirigia-se para aquele ponto, na borda do penhas¬co, onde o viram inicialmente. — Você própria disse que era O Fim do Mundo.

Ele entregou-lhe o caderno de desenho.

— É muito bom — disse. — Há muita semelhança. Mas por que... ahn... por que o fez fantasiado?

Seus olhos se encontraram, por um rápido segundo.

— Eu o vejo assim — disse Naomi Carlton-Smith.

 

A Voz no Escuro

— ESTOU PREOCUPADA COM MARGERY — disse Lady Stranleigh. — Minha filha, sabe — acrescentou. Suspirou pensativamente.

— A pessoa se sente terrivelmente velha quando tem uma filha adulta.

O Sr. Satterthwaite, que era o receptor dessas confidên¬cias, portou-se com uma galanteria à altura da ocasião.

— Ninguém acreditaria que fosse possível — declarou com uma pequena curvatura.

— Seu adulador — disse Lady Stranleigh, mas falou distraidamente e era visível que sua mente divagava.

O Sr. Satterthwaite olhou para a figura esguia, vestida de branco, com alguma admiração. O sol de Cannes era pene¬trante, mas Lady Stranleigh passou pelo teste muito bem. A distância, o efeito de juventude era realmente extraordinário. Dava para se imaginar se ela própria era adulta ou não. O Sr. Satterthwaite, que de tudo sabia, também estava certo de que era possível Lady Stranleigh ter filhos adultos. Ela repre¬sentava o extremo triunfo da arte sobre a natureza. Seu talhe era maravilhoso, a pele era maravilhosa. Enriquecera muitos salões de beleza e, realmente, o resultado era espantoso. Lady Stranleigh acendeu um cigarro, cruzou as bonitas pernas, me¬tidas nas mais finas meias transparentes, e murmurou:

— Sim, estou realmente preocupada com Margery.

— Meu Deus — disse o Sr. Satterthwaite — qual é o problema?

Lady Stranleigh virou para ele os belos olhos azuis.

— O senhor nunca a viu, já? Ela é filha de Charles — acrescentou prestimosamente.

Se os registros do Who’s Who dissessem exatamente a verdade, o referente a Lady Stranleigh poderia terminar assim: hobbies: casar-se. Ela andara pela vida afora espalhando ma¬ridos onde quer que passava. Perdera três por divórcio e um por morte.

— Se fosse filha de Rudolf, eu compreenderia — comen¬tou Lady Stranleigh. — Lembra-se de Rudolf? Ele sempre foi temperamental.  Seis meses depois que nos casamos, tive de solicitar que aquelas coisas embaraçosas — como é que se cha¬mam? O que não se deve fazer no casamento, você sabe de que estou falando — fossem atendidas. Graças a Deus, hoje em dia é muito mais simples. Lembro-me que tive de escrever-lhe a carta mais idiota do mundo; meu advogado praticamente di¬tou-a para mim. Pedindo-lhe para voltar, pois eu faria tudo o que pudesse, etc. etc., mas não se podia nunca confiar em Rudolf, ele era tão temperamental! Voltou depressa para casa, imediatamente, o que era a coisa menos indicada a fazer e não, absolutamente, o que o advogado pretendia.

Ela suspirou.

— E quanto a Margery? — sugeriu o Sr. Satterthwaite, fazendo-a voltar, com tato, ao assunto em pauta.

— Claro. Eu ia lhe contando, não foi? Margery anda a ver coisas, ou então a ouvir. Fantasmas, sabe, todo esse tipo de coisas. Nunca teria pensado que Margery pudesse ser tão cheia de imaginação. Ela é uma ótima moça, sempre foi, mas um tantinho... estúpida.

— Impossível — murmurou o Sr. Satterthwaite, com a confusa idéia de estar sendo lisonjeiro.

— Na verdade, muito estúpida — disse Lady Stranleigh. — Não gosta de dançar, nem de coquetéis, ou qualquer das coisas pelas quais uma jovem deve interessar-se. Prefere ficar em casa para ir às caçadas, do que vir aqui comigo.

— Meu Deus, meu Deus — disse o Sr. Satterthwaite. — Não quer vir com você, foi o que disse?

— Bem, eu não cheguei a forçar. As filhas têm um efeito depressivo na gente, eu acho.

O Sr. Satterthwaite tentou imaginar Lady Stranleigh em companhia de uma filha toda séria, e não conseguiu.

— Não posso deixar de imaginar que Margery está fi¬cando louca — continuou a mãe de Margery, com voz alegre. — Ouvir vozes é um péssimo sintoma, segundo me disseram. E não se pode considerar a possibilidade de Abbot’s Mede ser mal-assombrada. O antigo prédio foi destruído por um incên¬dio em 1836 e construíram uma espécie de chateau do começo da era vitoriana, que simplesmente não pode ser mal-assom¬brado. É feio e comum demais para isso.

O Sr. Satterthwaite tossiu. Estava imaginando por que ela lhe contava tudo aquilo.

— Pensei, talvez — disse Lady Stranleigh, dando-lhe um esplêndido sorriso — que o senhor pudesse ajudar-me.

— Eu?

— Sim. O senhor vai voltar para a Inglaterra amanhã, não vai?

— Sim. É verdade — admitiu o Sr. Satterthwaite, caute¬losamente.

— E o senhor conhece todas essas pessoas que fazem pesquisas psíquicas. Claro que sim, o senhor conhece todo mundo.

O Sr. Satterthwaite sorriu levemente. Era uma de suas fraquezas conhecer todo mundo.

— Então, o que pode ser mais simples? — prosseguiu Lady Stranleigh. — Eu nunca me dei com esse tipo de pessoas. Sabe como é...  homens sérios, com barbas e, geralmente, óculos. Entediam-me terrivelmente e, com eles, fico em com¬pleta desvantagem.

O Sr. Satterthwaite estava meio desanimado. Lady Stran¬leigh continuava a lhe sorrir esplendidamente.

— Então, está tudo combinado, não? — disse ela, ani¬madamente. — O senhor irá a Abbot’s Mede, verá Margery e fará todos os acertos. Ficarei muitíssimo agradecida. Claro que, se Margery estiver realmente enlouquecendo, voltarei para casa. Ah! Aqui está Bimbo.

Seu sorriso passou de resplandecente a deslumbrante.

Um jovem em traje de tênis de flanela branca aproxima¬va-se deles. Tinha cerca de 25 anos e ótima aparência.

O rapaz disse, simplesmente:

— Estive procurando você em toda parte, Babs.

— Que tal o tênis?

— Maravilha.

Lady Stranleigh levantou-se. Virou para trás e murmurou, para o Sr. Satterthwaite, com entonação muito doce:

— É simplesmente maravilhoso o senhor me ajudar. Ja¬mais esquecerei.

O Sr. Satterthwaite ficou olhando o casal que se afastava.

— Imagino — cogitou — se Bimbo vai ser o número cinco.

 

 

O condutor do Train de Luxe estava mostrando ao Sr. Satterthwaite onde acontecera um acidente na linha, alguns anos antes. Quando terminou sua animada narrativa, o outro ergueu os olhos e viu um rosto bem conhecido Sorrindo-lhe por cima do ombro do condutor.

— Meu caro Sr. Quin — disse o Sr. Satterthwaite. Seu pe¬queno rosto murcho abriu-se em sorrisos. — Que coincidência, estarmos voltando para a Inglaterra no mesmo trem. Vai para lá, suponho.

— Sim — disse o Sr. Quin. — Tenho negócios realmente importantes a resolver. Vai pegar o primeiro serviço de jantar?

— Sempre faço isto. Claro que é um horário absurdo, seis e meia, mas assim se corre menos risco com a comida.

O Sr. Quin balançou a cabeça compreensivamente.

— Eu também — disse. — Talvez possamos dar um jeito de nos sentarmos juntos.

Às seis e meia, lá estavam o Sr. Quin e o Sr. Satterthwaite, instalados um em frente ao outro, numa pequena mesa do va¬gão-restaurante. O Sr. Satterthwaite dedicou a devida atenção à lista de vinhos e depois virou-se para o companheiro.

— Não o via... ah, sim, desde a Córsega. O senhor par¬tiu muito repentinamente, aquele dia.

Q Sr. Quin encolheu os ombros.

— Não mais que de costume. Apareço e desapareço, como sabe. Venho e vou.

As palavras pareceram despertar algum eco de recorda¬ção na mente do Sr. Satterthwaite. Um pequeno calafrio pas¬sou-lhe pela coluna — não uma sensação desagradável, pelo contrário. Estava consciente de uma expectativa agradável.

O Sr. Quin segurava uma garrafa de vinho tinto, exami¬nando o rótulo. A garrafa estava entre ele e a luz e, por rápidos minutos, uma claridade vermelha envolveu-o.

O Sr. Satterthwaite sentiu novamente aquele repentino fremir de agitação.

— Também tenho uma espécie de missão na Inglaterra — comentou, sorrindo amplamente à lembrança. — Conhece Lady Stranleigh, talvez?                                                            

O Sr. Quin balançou a cabeça.

— É um título antigo — disse o Sr. Satterthwaite — um título muito antigo. Um dos poucos que estendem a descendên¬cia à linha feminina. Ela é uma baronesa por direito pró¬prio. É, realmente, uma história romântica.

O Sr. Quin instalou-se mais confortavelmente na cadeira. Um garçom, voando pelo vagão balouçante, depositou os pratos de sopa diante deles, como por milagre. O Sr. Quin bebeu cau¬telosamente.

— O senhor está prestes a me traçar um daqueles seus maravilhosos retratos, não é?

O Sr. Satterthwaite sorriu-lhe, satisfeito.

— Ela é uma mulher realmente maravilhosa — disse. — Sessenta, sabe... sim, eu diria que pelo menos 60.  Conhe¬ci-as meninas, ela e sua irmã, Beatrice, este era o nome da mais velha. Beatrice e Barbara. Lembro-me delas como as meninas Barron. Ambas bonitas e, naquele tempo, muito sem dinheiro. Isso foi há muitíssimos anos... meu Deus, eu próprio era um jovem, então. — O Sr. Satterthwaite suspirou. — Houve vá¬rias vidas entre ela e o título. O velho Lorde Stranleigh era um primo em primeiro grau, e foi imediatamente removido. Três mortes inesperadas — dois irmãos e um sobrinho do ve¬lho. E depois o Uralia. Lembra-se do naufrágio do Uralia? Afundou ao largo da costa da Nova Zelândia.  As meninas Barron estavam a bordo. Beatrice afogou-se.  Esta, Barbara, ficou entre os poucos sobreviventes. Seis meses mais tarde, o velho Stranleigh morreu e ela ficou com o título, entrando na posse de considerável fortuna. Desde então, vive apenas para uma coisa — ela própria! Tem sido sempre a mesma, bela, inescrupulosa, completamente insensível, interessada apenas em si própria. Teve quatro maridos e não tenho dúvidas de que poderia conseguir um quinto, num minuto.

Prosseguiu descrevendo a missão que lhe havia confiado Lady Stranleigh.

— Pensei em ir até Abbot’s Mede para ver a jovem Lady — explicou. — Penso que algo precisa ser feito com relação ao assunto. É impossível pensar em Lady Stranleigh como uma mãe comum. — Parou, olhando para o Sr. Quin, do outro lado da mesa.

— Gostaria que viesse comigo — disse, ansiosamente, — Não seria possível?

— Infelizmente não — disse o Sr. Quin — mas, vamos ver, Abbot’s Mede é em Wiltshire, não?

O Sr. Satterthwaite fez que sim com a cabeça.

— Foi o que pensei. Acontece que vou ficar perto de Abbot’s Mede, num lugar que ambos conhecemos. — Ele sor¬riu. — Lembra-se daquela pequena estalagem, a Bells e Motley?

— Claro — exclamou o Sr. Satterthwaite. — Vai hos¬pedar-se lá?

O Sr. Quin assentiu com a cabeça.

— Por uma semana, ou dez dias, possivelmente mais. Se for procurar-me, algum dia, ficarei satisfeitíssimo em vê-lo.

E, de alguma maneira, o Sr. Satterthwaite sentiu-se estranhamente confortado com esta garantia.

 

 

— Minha cara Srta.... ahn... Margery — disse o Sr. Satterthwaite. — Garanto-lhe que nem me passará pela ca¬beça rir de você.

Margery Gale franziu um pouco a testa. Estavam senta¬dos no amplo e confortável saguão de Abbot’s Mede. Margery Gale era uma moça alta, de compleição robusta. Não tinha a menor parecença com a mãe, puxara inteiramente o lado pa¬terno da família, uma linhagem de gentis-homens proprietá¬rios rurais, bons cavaleiros. Tinha um aspecto juvenil e saudável e era o próprio retrato da sanidade. Apesar disso, o Sr. Sat¬terthwaite estava pensando que os membros da família Barron eram todos inclinados à instabilidade mental. Margery poderia ter herdado o aspecto físico do pai e, ao mesmo tempo, algum parafuso frouxo do lado materno da família.

— Gostaria — disse Margery — de poder livrar-me dessa mulher, a Casson. Não acredito em espiritismo e não gosto dela. Ela é uma dessas mulheres tolas que levam até o fim suas manias. Está sempre me aborrecendo para eu trazer uma médium.

O Sr. Satterthwaite tossiu, remexeu-se um pouco na ca¬deira e depois disse, como quem fala num tribunal.

— Deixe ver se sei todos os fatos. O primeiro... ahn... o fenômeno ocorreu há dois meses, ao que parece.

— Mais ou menos isso — concordou a moça. — Algu¬mas vezes, era um sussurro e outras uma voz bem clara, mas sempre dizia praticamente a mesma coisa.

— Que era?

— “Devolva-me o que não é seu. Devolva-me o que me roubou.” Todas as vezes, eu acendia a luz, mas o quarto estava completamente vazio, não havia ninguém.  Afinal, fiquei tão nervosa que fiz Clayton, a criada de minha mãe, dormir no sofá de meu quarto.

— E a voz se fez ouvir, do mesmo jeito?

— Sim, mas... e isto é o que me assusta... Clayton não a escutou.

O Sr. Satterthwaite refletiu por alguns minutos.

— E a voz foi alta ou baixa, aquela noite?

— Era quase um sussurro — admitiu Margery. — Se Clayton estivesse profundamente adormecida, creio que real¬mente não a ouviria. Ela queria que eu fosse ao médico.

A moça riu, com amargura.

— Mas, desde a noite passada, até Clayton acredita — prosseguiu.

— Que aconteceu na noite passada?

— Vou contar-lhe. Não disse a ninguém ainda. Eu fui caçar ontem, e demos uma longa corrida. Estava morta de cansada e dormi um sono pesado. Sonhei... um sonho horrí¬vel... que caía sobre umas grades de ferro e uma das pontas entrava lentamente em meu pescoço. Acordei e descobri que era verdade... uma ponta aguda pressionava o lado do meu pescoço e, ao mesmo tempo, uma voz murmurava devagarinho: “Você roubou o que é meu. Isto merece a morte.”

— Eu gritei — continuou Margery — e agarrei o vazio, pois nada havia ali. Clayton me ouviu gritar, do quarto contí¬guo onde dormia. Veio correndo e sentiu, nitidamente, alguma coisa passando por ela na escuridão.  Diz que, fosse o que fosse, não era humano.

O Sr. Satterthwaite olhou-a fixamente. A moça estava, obviamente, muito abalada e perturbada. Notou, do lado es¬querdo de seu pescoço, um pequeno quadrado de esparadrapo. Ela seguiu a direção de seu olhar e sacudiu a cabeça.

— Sim — disse — não era imaginação.

O Sr. Satterthwaite fez a pergunta quase em tom de des¬culpas, pois soava tão melodramática:

— Não sabe se alguém... ahn... tem rancor de você?

— Claro que não — respondeu Margery. — Que idéia.

O Sr. Satterthwaite partiu para outra linha de ataque.

— Que hóspedes teve nos dois últimos meses?

— Não se refere, suponho, às pessoas que vêm Só passar o fim de semana? Marcia Keene esteve comigo o tempo todo. É minha melhor amiga e gosta tanto de cavalos quanto eu. Também meu primo Roley Vavasour tem aparecido muito aqui.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça. Sugeriu que seria bom falar com Clayton, a criada.

— Está com vocês há muito tempo, suponho? — per¬guntou.

— Há muitíssimos anos — disse Margery. — Ela foi babá de mamãe e de tia Beatrice, quando as duas eram me¬ninas. Por isso, mamãe a conservou, suponho, embora tenha tomado uma criada francesa para si mesma. Clayton costura e faz trabalhinhos extras, à toa.

Conduziu-o escada acima e Clayton aproximou-se. Era uma velha alta e magra, com o cabelo cinzento perfeitamente repartido e uma aparência de total respeitabilidade.

— Não, Sir — disse, em resposta às perguntas do Sr. Satterthwaite. — Jamais ouvi dizer que a casa fosse mal-assom¬brada. Para dizer a verdade, Sir, eu achava que era tudo ima¬ginação da Srta. Margery, até a noite passada. Mas realmente senti alguma coisa roçando em mim, na escuridão. Posso di¬zer-lhe o seguinte, Sir: não era uma coisa humana. Além disso, há aquele ferimento no pescoço da Srta. Margery. Ela não o fez sozinha, Coitadinha.

Mas suas palavras soaram sugestivas ao Sr. Satterthwaite. Era possível que Margery tivesse infligido aquele ferimento em si mesma? Já ouvira falar de estranhos casos de moças aparente¬mente tão sadias e equilibradas quanto Margery fazerem as coisas mais assombrosas.

— Vai sarar logo — disse Clayton. — Não é como esta minha cicatriz.

Apontou para uma marca na sua própria testa.

— Foi há 40 anos, Sir.

— Foi no naufrágio do Uralia — interveio Margery. — Clayton foi ferida na cabeça por um mastro, não é verdade, Clayton?

— Sim, Miss.

— Qual a sua opinião, Clayton? — perguntou o Sr. Sat¬terthwaite. — Qual seria, para você, o significado desse ataque à Srta. Margery?

— Eu realmente não gostaria de dizer, Sir.

O Sr. Satterthwaite interpretou isto, corretamente, como a reserva de uma criada bem treinada.

— Que acha realmente, Clayton? — disse, em tom per¬suasivo.

— Acho, Sir, que algo muito perverso deve ter sido feito nesta casa e que, até ser eliminado, não haverá paz.

A mulher falou gravemente e seus olhos, de um azul des¬botado, encontraram os dele, firmemente.

O Sr. Satterthwaite desceu as escadas meio desapontado. Clayton, evidentemente, tinha o ponto de vista ortodoxo, de que a “assombração” era resultado de uma má ação no passado. Os fenômenos só haviam acontecido nos dois últimos meses. E só ocorreram desde a chegada de Marcia Keane e Roley Va¬vasour. Precisava descobrir algo a respeito dos dois. Era possí¬vel que tudo não passasse de uma brincadeira de mau gosto. Mas sacudiu a cabeça, insatisfeito também com a solução. O caso era mais sinistro. O correio acabara de chegar e Margery estava abrindo e lendo as cartas. De repente, soltou uma ex¬clamação.

— Mamãe é absurda demais — disse. — Leia isto. — Entregou a carta ao Sr. Satterthwaite.

Era uma epístola típica de Lady Stranleigh.

MARGERY, QUERIDA [ela escrevia]:

Fico tão contente de você estar aí com esse excelente Sr. Satterthwaite. Ele é terrivelmente inteligente e conhece todas as assombrações importantes. Você deve fazer com que todas apareçam, e investigar tudo completamente. Estou certa de que está se divertindo muitíssimo, e só queria poder estar aí, mas realmente andei bem doente nos últimos dias. Os hotéis são tão descuidados com a comida que nos dão! O medico diz que é uma espécie de envenenamento. Eu estive, realmente, muito doente.

Muito gentil de sua parte mandar-me chocolates, querida, mas que tolice, não? Quero dizer, há tantos doces maravilhosos por aqui.

Até logo, querida, e divirta-se muito, acalmando os fantasmas da família. Bimbo diz que meu tênis está ficando maravilhoso.

Sua, BARBARA.

— Mamãe sempre pede que eu a chame de Barbara — disse Margery. — Acho a maior tolice.

O Sr. Satterthwaite sorriu de leve. Percebeu que o sólido conservadorismo da filha devia, em certas ocasiões, ser muito penoso para Lady Stranleigh. O conteúdo da carta teve sobre ele uma repercussão diferente da que podia despertar em Mar¬gery.

— Você mandou uma caixa de chocolates para sua mãe?

Margery fez que não com a cabeça.

— Deve ter sido outra pessoa.

O Sr. Satterthwaite fez um ar grave. Duas coisas lhe pare¬ceram significativas, e ficou impressionado. Lady Stranleigh recebera de presente uma caixa de chocolates e estava com graves sintomas de envenenamento. Aparentemente, ela não relacionara as duas coisas. Haveria relação? Inclinava-se a pen¬sar que sim.

Uma moça alta e morena saiu indolentemente da sala do café e aproximou-se. Foi apresentada ao Sr. Satterthwaite como Marcia Keane. Sorriu por sobre o homenzinho, à vontade e bem humorada.

— Veio caçar o fantasma de estimação de Margery? — perguntou com voz arrastada. — Nós todos a apoquentamos por causa do tal fantasma. Alô, aqui está Roley.

Um automóvel acabava de se aproximar da porta da frente. Dele saltou um rapaz alto, com cabelo louro e um jeito ansioso de garoto.

— Alô, Margery — gritou. — Alô, Marcia! Trouxe reforços.

Virou-se para as duas mulheres que acabavam de entrar no vestíbulo. O Sr. Satterthwaite reconheceu a primeira como a Sra. Casson, de que Margery falara há pouco.

— Deve perdoar-me, querida Margery — disse ela em voz lenta, sorrindo amplamente. — O Sr. Vavasour nos disse que estaria tudo bem. Foi realmente idéia dele que eu trouxesse comigo a Sra. Lloyd.

Indicou a companheira com uma leve inclinação de mão.

— Esta é a Sra. Lloyd — disse em tom triunfal. — Sim¬plesmente a mais maravilhosa médium que já houve.

A Sra. Lloyd não teve nenhum protesto de modéstia; curvou-se e permaneceu com as mãos cruzadas. Era uma jovem muito corada, de aparência vulgar. Usava roupas fora de moda, bastante enfeitadas, um colar de pedras azuis e vários anéis.

Margery Gale, como o Sr. Satterthwaite pôde constatar, não ficou lá muito satisfeita com a intrusão. Lançou um olhar irritado para Roley Vavasour, que parecia completamente in¬consciente do desprazer que causava.

— O almoço está pronto, eu acho — disse Margery.

— Ótimo — disse a Sra. Casson — faremos uma sessão logo depois. Tem frutas para a Sra. Lloyd? Ela nunca come nada pesado antes de uma sessão.

Todos foram para a sala de refeições. A médium comeu duas bananas e uma maçã e respondeu com cautela e laconi¬camente a todas as observações polidas que Margery lhe dirigiu. Pouco antes de se levantarem da mesa, atirou de repente a ca¬beça para trás e farejou o ar.

— Há alguma coisa muito errada nesta casa; eu sinto.

— Ela não é maravilhosa? — perguntou a Sra. Casson em voz baixa, deliciada.

— Oh, sem dúvida — falou o Sr. Satterthwaite, seca¬mente.

A sessão realizou-se na biblioteca. A anfitriã estava, como o Sr. Satterthwaite pôde verificar, muito pouco à vontade; só o óbvio prazer de seus convidados reconciliou-a com o suplício.

As arrumações foram feitas com extremo cuidado pela Sra. Casson, que era evidentemente, uma entendida nessas questões. As cadeiras foram dispostas em círculo, as cortinas fechadas e, agora, a médium anunciava-se pronta para começar.

— Seis pessoas — disse, olhando em torno. — Isto é mau. Precisamos ter um número ímpar. Sete é o ideal. Obtenho meus melhores resultados com um círculo de sete.

— Um dos criados — sugeriu Roley. Levantou-se. — Vou descobrir onde está o mordomo.

— Vamos chamar Clayton — disse Margery.

O Sr. Satterthwaite viu um ar de aborrecimento no rosto bem parecido de Roley Vavasour.

— Por que Clayton? — perguntou.

— Você não gosta de Clayton — falou Margery, devagar.

Roley deu de ombros.

— Clayton não gosta de mim — disse ele, amuado. — Na verdade, ela me detesta profundamente. — Esperou alguns minutos, mas Margery não desistiu. — Está bem — disse ele — faça-a descer.

Estava formado o círculo. Houve um período de silêncio, interrompido pelas costumeiras tossidelas e desassossego. Na¬quele momento, ouviram-se várias pancadinhas e, depois, a voz de um pele-vermelha chamado Cherokee, controlada pela mé¬dium.

— O índio bravo dá boa noite, senhoras e senhores. Alguém aqui está muito ansioso para falar. Alguém aqui está muito ansioso para transmitir uma mensagem à jovem. Eu desa¬pareço, agora. O espírito diz o que veio dizer.

Uma pausa e depois nova voz, a de uma mulher, falou suavemente:

— Margery está aqui?

Roley Vavasour encarregou-se de responder.

— Sim — disse ele — está. Quem fala?

— Sou Beatrice.

— Beatrice? Quem é Beatrice?

Para aborrecimento de todos, a voz do pele-vermelha Che¬rokee se fez ouvir novamente:

— Tenho uma mensagem para todos. A vida aqui é mui¬to brilhante e bela. Todos trabalhamos muito. Ajudem os que não morreram ainda.

Novamente um silêncio e então a voz de mulher se fez ouvir outra vez:

— Aqui fala Beatrice.

— Que Beatrice?

— Beatrice Barron.

O Sr. Satterthwaite inclinou-se para a frente. Estava muito agitado.

— Beatrice Barron que se afogou no Uralia?

— Sim, é isto. Lembro-me do Uralia. Tenho uma men¬sagem para esta casa: Devolvam o que não é de vocês.

— Não compreendo — disse Margery, com desamparo.

— Eu... oh, é você mesmo, Tia Beatrice?

— Sim, sou sua tia.

— Claro que é — disse a Sra. Casson, em tom de repro¬vação. — Como pode ser tão desconfiada? Os espíritos não gostam.

E, de repente, o Sr. Satterthwaite pensou num teste muito simples. Sua voz tremeu um pouco, quando ele falou.

— Lembra-se do Sr. Bottacetti? — perguntou.

Imediatamente, houve um som de risada.

— Pobre velho Boatupsetty.* Claro.

 

 

O Sr. Satterthwaite estava abalado. O teste tivera sucesso. Era um incidente de mais de 40 anos atrás, acontecido quando ele e as meninas Barron estavam no mesmo balneário. Um jo¬vem conhecido, italiano, saíra num bote, que virou. Beatrice Barron, brincando, apelidou-o de Boatupsetty. Parecia impos¬sível que alguém na sala pudesse saber do incidente, a não ser ele mesmo.

A médium agitou-se e gemeu.

— Está saindo do transe — disse a Sra. Casson. — É tudo que vamos arrancar-lhe por hoje, infelizmente.

A luz do dia brilhou uma vez mais na sala repleta. Duas pessoas, pelo menos, mostravam-se muito assustadas.

O Sr. Satterthwaite viu pelo rosto pálido de Margery que ela estava profundamente perturbada. Quando conseguiram livrar-se da Sra. Casson e da médium, ele procurou ter uma conversa particular com sua anfitriã.

— Quero fazer-lhe algumas perguntas, Srta. Margery. Se você e sua mãe morressem, quem ficaria com o título e as propriedades?

 

* Literalmente: barco virado (N. do T.).

— Roley Vavasour, suponho. A mãe dele era prima da minha em primeiro grau.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça.

— Ele parece ter vindo muito aqui, este inverno — disse gentilmente. — Perdoe-me a pergunta... mas ele gosta de você?

— Pediu-me em casamento há três semanas — disse Mar¬gery, tranqüilamente. — Eu respondi não.

— Por favor, perdoe-me, mas está comprometida com outra pessoa?

Viu que ela se ruborizava.

— Estou — disse enfaticamente. — Vou casar com Noel Barton. Mamãe ri e diz que é absurdo. Ela parece achar ridí¬culo estar noiva de um cura. Mas por quê? Há curas e curas. Precisava ver Noel num cavalo.

— Oh, tem toda razão — disse o Sr. Satterthwaite. — Sem dúvida.

Um criado de libré entrou com um telegrama sobre uma bandeja. Margery abriu-o.

— Mamãe chega amanhã — disse. — Ora bolas! Que¬ria muitíssimo que ficasse bem longe.

O Sr. Satterthwaite não fez nenhum comentário sobre esse sentimento filial. Talvez o achasse justificado.

— Neste caso — murmurou — acho que estarei voltando para Londres.

 

 

O Sr. Satterthwaite não estava muito satisfeito consigo mesmo. Sentia que deixara inconcluso esse problema específico. A verdade era que, com a volta de Lady Stranleigh, sua res¬ponsabilidade terminava; no entanto, estava certo de que não chegara ao coração do mistério de Abbot’s Mede.

Mas o acontecimento seguinte, quando sobreveio, era tão sério que o encontrou totalmente despreparado. Soube pelas páginas do matutino que costumava ler: Baronesa morre no banho, publicou o Daily Megaphone. Os outros jornais foram mais contidos e delicados em sua linguagem, mas o fato era o mesmo. Lady Stranleigh fora encontrada morta na banheira e a causa da morte era afogamento. Havia, segundo se supu¬nha, perdido a consciência e, neste estado, sua cabeça escorregara para debaixo dágua.

Mas o Sr. Satterthwaite não ficou satisfeito com a explica¬ção. Chamou o criado de quarto, fez sua toalete com um pouco menos de cuidado que de costume e, dez minutos depois, seu grande Rolls Royce o conduzia para fora de Londres, tão rá¬pido quanto possível.

Mas, o que era bastante estranho, não se dirigia para Abbot’s Mede, mas para uma pequena estalagem à distância de cerca de 25 quilômetros, que tinha o nome um tanto fora do comum de Bells e Motley. Foi com grande alívio que ouviu a informação: O Sr. Quin ainda estava hospedado ali. No mi¬nuto seguinte, encontrava-se diante do amigo.

O Sr. Satterthwaite agarrou-o pela mão e começou a falar imediatamente, de maneira agitada.

— Estou terrivelmente perturbado, O senhor precisa aju¬dar-me. Já tenho um sentimento terrível de que pode ser tarde demais, que aquela boa moça talvez seja a próxima vítima; porque ela é uma boa moça, extraordinariamente boa.

— Se me contar — disse o Sr. Quin, sorrindo — de que se trata...

O Sr. Satterthwaite olhou-o de modo repreensivo.

— O senhor sabe perfeitamente. Estou certo de que sabe. Mas vou contar-lhe.

Despejou a história de sua permanência em Abbot’s Mede e, como sempre acontecia quando estava diante do Sr. Quin, descobriu que gostava de sua própria maneira de contar. Era eloqüente e sutil e meticuloso até o detalhe.

— Ai está — concluiu — deve haver uma explicação.

Olhou esperançosamente para o Sr. Quin, como um ca¬chorro olha para o dono.

— Mas é o senhor quem deve resolver o problema, não eu — disse o Sr. Quin. — Não conheço as pessoas. O senhor as conhece.

— Conheço as meninas Barron há 40 anos — disse o Sr. Satterthwaite com orgulho.

O Sr. Quin balançou a cabeça e fez um ar de simpatia, de modo que o outro continuou, em tom de quem relembra:

— Oh, aquela temporada em Brighton, Bottacetti... Boatupsetty, uma brincadeira tola, mas como rimos. Meu Deus, eu era jovem, naquele tempo. Fiz uma porção de tolices. Lem¬bro-me da empregada que estava com elas. Alice, era seu nome, uma coisinha... muito ingênua. Beijei-a no corredor do hotel, eu me lembro, e uma das meninas quase me pegou. Meu Deus, foi há tanto tempo.

Sacudiu a cabeça novamente, e suspirou. Depois, olhou para o Sr. Quin.

— Então, não pode ajudar-me?  — perguntou ansiosa¬mente. — Em outras ocasiões...

— Em outras ocasiões, o senhor teve sucesso devido, inteiramente, aos seus próprios esforços — disse o Sr. Quin com gravidade. — Acho que será a mesma coisa desta vez. Se fosse o senhor, iria para Abbot’s Mede agora mesmo.

— É isto, é isto — disse o Sr. Satterthwaite. — Na ver¬dade, foi o que pensei fazer. Não posso convencê-lo a ir co¬migo?

O Sr. Quin abanou a cabeça.

— Não — disse ele — meu trabalho aqui está feito. Parto quase imediatamente.

Em Abbot’s Mede, o Sr. Satterthwaite foi conduzido de pronto à presença de Margery Gale. Ela estava sentada, com os olhos secos, a uma escrivaninha, no salão matinal, sobre a qual estavam espalhados vários documentos. Alguma coisa na maneira como ela o cumprimentou comoveu-o. Parecia muito feliz em vê-lo.

— Roley e Marcia acabaram de partir. Sr. Satterthwaite, os médicos estão enganados. Estou convencida, absolutamente convencida, de que mamãe foi empurrada para debaixo dágua à força. Foi assassinada, e quem a matou quer matar-me tam¬bém. Tenho certeza disso. Por isso — indicou o documento em sua frente. — Estava fazendo meu testamento — explicou. — Uma boa parte do dinheiro e algumas das propriedades não correspondem ao título e há, também, o dinheiro de meu pai. Vou deixar tudo o que puder para Noel. Sei que fará bom em¬prego do dinheiro e não confio em Roley; ele sempre esteve à caça de tudo o que pode conseguir. Assinará como testemunha?

— Minha querida jovem — disse d Sr. Satterthwaite — é preciso assinar um testamento na presença de duas testemunhas e elas devem, além disso, assinar ao mesmo tempo.

Margery repeliu o pronunciamento legal.

— Não vejo que mínima importância isto possa ter — declarou. — Clayton viu-me assinar e depois assinou seu nome. Eu ia chamar o mordomo, mas o senhor assinará em lugar dele.

O Sr. Satterthwaite não fez novos protestos; retirou a tam¬pa da caneta e então, quando estava colocando sua assinatura, fez uma pausa repentina. O nome escrito logo acima do seu provocou-lhe um fluxo de lembranças. Alice Clayton.

Fez força para lembrar alguma coisa. Alice Clayton; havia algo significativo nisso. Algo a ver com a participação do Sr. Quin. Algo que ele dissera ao Sr. Quin bem recentemente.

Ah, lembrava-se agora. Alice Clayton, este era o nome dela. Aquela coisinha. As pessoas mudam... Sim, mas nem tanto. E a Alice Clayton que conhecera tinha olhos castanhos. A sala pareceu girar à sua volta. Estendeu as mãos à procura de uma cadeira e depois, como de uma grande distância, ouviu a voz de Margery falando-lhe ansiosamente.

— Está doente? Oh, o que é isso? Tenho certeza de que está doente.

Ele voltara a si, novamente. Pegou a mão dela.

— Minha querida, entendo tudo, agora. Você deve pre¬parar-se para um grande choque. A mulher que está lá em cima, e a quem você chama Clayton, não é absolutamente Clayton. A verdadeira Alice Clayton afogou-se no Uralia.

Margery estava olhando para ele.

— Quem... quem é ela, então?

— Não estou enganado; não posso estar enganado.  A mulher a quem você chama Clayton é a irmã de sua mãe, Beatrice Barron. Lembra-se de me ter contado que foi atingida na cabeça por um mastro? Imagino que o golpe destruiu-lhe a memória e, como era o caso, sua mãe viu a oportunidade...

— De roubar o título, quer dizer? — perguntou Margery, com amargura. — Sim, ela faria isso. Parece terrível falar desta maneira, agora que está morta, mas ela era assim.

— Beatrice era a irmã mais velha — disse o Sr. Satterth¬waite. — Com a morte de seu tio, herdaria tudo, e sua mãe nada conseguiria. Sua mãe declarou que a moça ferida era sua criada, não sua irmã. A moça recuperou-se da pancada e acre¬ditou, claro, no que lhe disseram, que era Alice Clayton, a criada de sua mãe. Imagino que, mais tarde, a memória come¬çou a voltar, mas o golpe na cabeça, recebido há tantos anos, finalmente perturbou-lhe o cérebro.

Margery olhava-o horrorizada.

— Ela matou mamãe e quer me matar — murmurou.

— Parece que sim — disse o Sr. Satterthwaite. — Em seu cérebro só havia uma idéia confusa: que sua herança fora roubada e estava sendo impedida de usufruí-la por você e por sua mãe.

— Mas Clayton é tão velha!

O Sr. Satterthwaite ficou silencioso por um minuto, en¬quanto uma visão surgiu-lhe diante dos olhos: a velha fanada de cabelos cinzentos e a radiante criatura de cabelos dourados, sentada ao sol de Cannes. Irmãs! Poderia ser verdade? Lem¬brou-se das irmãs Barron, e de como se pareciam. Só porque as duas vidas haviam seguido caminhos tão diferentes...

Abanou a cabeça, com força, impressionado com as bele¬zas e as dores da vida.

Virou-se para Margery e disse gentilmente:

— É melhor subirmos para vê-la.

Encontraram Clayton sentada na salinha de trabalho onde costurava. Não virou a cabeça quando entraram, por uma razão que o Sr. Satterthwaite logo descobriu.

— Colapso cardíaco — murmurou ao tocar o ombro frio e rígido. — Talvez tenha sido melhor assim.

 

O Rosto de Helena

O SR. SATTERTHWAITE estava na Ópera, sentado sozinho em seu grande camarote da primeira fila. Do lado de fora da porta, havia um cartão impresso com seu nome. Apreciador e conhe¬cedor de todas as artes, o Sr. Satterthwaite gostava especial¬mente da boa música e era subscritor regular do Covent Garden, todos os anos reservando um camarote para as terças e sexta-feiras, durante toda a temporada.

Mas não era freqüente que se sentasse sozinho. Era um pequeno gentleman gregário e gostava de encher seu camarote com a elite do grande mundo, ao qual pertencia, e também com a aristocracia do mundo artístico, em que se sentia igual¬mente à vontade. Estava sozinho aquela noite porque a Con¬dessa o desapontara. A Condessa, além de ser uma bela e fes¬tejada mulher, era também boa mãe. Seus filhos haviam sido atacados por aquela comum mas importuna doença que é a caxumba, e a Condessa permanecia em casa, em chorosa confabulação com enfermeiras de roupas maravilhosamente engomadas. Seu marido, que lhe dera as crianças acima menciona¬das e um título mas que, fora disso, era um completo zero no quociente, aproveitara a oportunidade para escapar. Nada o entediava mais que a música.

Assim, o Sr. Satterthwaite sentou-se sozinho. A Cavalleria Rusticana e Pagliacci estavam sendo apresentados aquela noite e, como a primeira jamais o atraíra, chegou depois que a cor¬tina já baixara sobre a mortal agonia de Santuzza, e em tem¬po para examinar a casa, com o olho experimentado, antes de todos saírem para visitar os outros ou lutar por café ou limonada. O Sr. Satterthwaite ajustou o binóculo, observou a sala, assinalou sua presa e partiu, tendo em vista um plano de campanha bem traçado que ele, no entanto, não pôs em prá¬tica, pois justo diante de seu camarote colidiu, violentamente, com um homem alto e moreno, que reconheceu com um agra¬dável frêmito de agitação.

— Sr. Quin — exclamou o Sr. Satterthwaite.

Pegou o amigo calorosamente pela mão, agarrando-o como se temesse, a qualquer minuto, vê-lo desvanecer-se no ar.

— Deve sentar-se em meu camarote — disse o Sr. Sat¬terthwaite com determinação. — Não está com um grupo?

— Não, estou sozinho numa poltrona — respondeu o Sr. Quin com um sorriso.

— Então, está combinado — disse o Sr. Satterthwaite, dando um suspiro de alívio.

Suas maneiras pareceriam quase cômicas a um observador.

— O senhor é muito bondoso — disse o Sr. Quin.

— De maneira alguma. É um prazer. Não sabia que gos¬tava de música.

— Há razões pelas quais sou atraído para o Pagliacci.

— Ah! Claro — disse o Sr. Satterthwaite, balançando a cabeça com sabedoria, embora, se lhe pedissem, fosse achar muito difícil explicar exatamente por que usara essa expressão. — Claro, tinha de ser.

Voltaram para o camarote aos primeiros toques da sineta e, inclinando-se para a frente, observaram as pessoas que vol¬tavam às poltronas.

— Aquela é uma cabeça — observou o Sr. Satterthwaite, de repente.

Indicou com o binóculo um lugar logo abaixo de onde se encontravam, no círculo das poltronas. Sentava-se ali uma moça cujo rosto não podiam ver — apenas o ouro puro de seu cabelo, bem assentado como um gorro, descendo até o alvo pescoço.

— Uma cabeça grega — disse o Sr. Satterthwaite, com reverência. — Grego puro. — Suspirou, feliz. — É uma coisa notável, observe bem, como há poucas pessoas com cabelos que combinem.

— O senhor é tão observador — disse o Sr. Quin.

— Eu vejo as coisas — admitiu o Sr. Satterthwaite. — Realmente, vejo as coisas. Por exemplo, distingui aquela ca¬beça imediatamente. Temos de dar uma olhada no rosto, mais cedo ou mais tarde. Mas não vai combinar, tenho certeza. É uma chance em mil.

Quase ao mesmo tempo em que falava, as luzes piscaram e se apagaram, ouviu-se o brusco ruído do bastão do regente e a ópera começou. Um novo tenor, que se dizia ser um se¬gundo Caruso, ia cantar aquela noite. Os jornais haviam dito que era iugoslavo, tcheco, albânio, húngaro e búlgaro, com uma bela imparcialidade. Ele dera um concerto extraordinário no Albert Hall, um programa de canções folclóricas de suas co¬linas natais, com uma orquestra especialmente sintonizada. Eram em estranhos meio-tons, e os pretensos músicos consideraram-nas “maravilhosas demais”. Os verdadeiros músicos reservaram seu julgamento, pois perceberam que o ouvido precisava ser es¬pecialmente treinado e sintonizado antes de se poder emitir qualquer crítica. Era um grande alívio para algumas pessoas descobrir, aquela noite, que Yoaschbim podia cantar no co¬mum italiano, com todos os tradicionais soluços e tremores.

A cortina desceu sobre o primeiro ato e os aplausos irrom¬peram, fragorosos. O Sr. Satterthwaite virou-se para o Sr. Quin. Percebeu que este último esperava seu julgamento e en¬vaideceu-se um pouco. Afinal, ele sabia. Como crítico, era quase infalível.

Balançou a cabeça, muito devagar.

— É uma revelação — disse.

— Acha?

— Uma voz tão boa quanto a de Caruso. As pessoas não vão reconhecer de início, porque a sua técnica ainda não é perfeita. Há margens dissonantes, uma falta de segurança no ataque. Mas a voz está aí... magnífica.

— Fui ao concerto dele no Albert Hall — disse o Sr. Quin.

— Foi? Eu não pude ir.

— Fez um sucesso maravilhoso com uma canção de pastores.

— Li a respeito — disse o Sr. Satterthwaite. — O refrão termina, sempre, com uma nota alta... uma espécie de grito. Uma nota a meio do caminho entre lá e si bemol. Muito curioso.

Yoaschbim respondeu a três chamados, curvando-se e sorrindo. As luzes acenderam e as pessoas começaram a fazer fila para sair. O Sr. Satterthwaite inclinou-se para observar a moça com a cabeça dourada. Ela ergueu-se, ajeitou a estola e se virou.

O Sr. Satterthwaite prendeu a respiração. Existiam, ele sabia, tais rostos no mundo... rostos que fizeram história...

A moça encaminhou-se para o corredor, ao lado de seu companheiro, um rapaz. E o Sr. Satterthwaite observou como todos os homens nas vizinhanças a olhavam — e continuavam a olhar disfarçadamente.

Beleza! — disse, de si para consigo, o Sr. Satterthwaite. — Existe isto. Nem encanto, nem atração, nem magnetismo, ou, ainda, qualquer outra dessas coisas de que falamos tão lisonjeiramente... mas simples beleza. A forma de um rosto, a linha de uma sobrancelha, a curva de um maxilar. Citou bai¬xinho, num sussurro: “O rosto que lançou mil navios”. E, pela primeira vez, percebeu o significado dessas palavras. Deu uma olhada no Sr. Quin, que o observava com uma compreen¬são parecendo tão perfeita a ponto de o Sr. Satterthwaite sen¬tir a falta de necessidade das palavras.

— Sempre imaginei — disse ele, simplesmente — como seriam, na verdade, essas mulheres.

— Refere-se a?

— Às Helenas, às Cleópatras, às Marias Stuarts.

O Sr. Quin balançou a cabeça, pensativo.

— Se sairmos — sugeriu — poderemos ver.

Saíram juntos, e a procura foi bem sucedida. O casal que buscavam estava sentado num local de descanso, a meio da escada. Pela primeira vez, o Sr. Satterthwaite observou o com¬panheiro da moça, um rapaz moreno, não bonito, mas com certa flama de inquietação. Um rosto cheio de ângulos estra¬nhos; pômulos salientes, mandíbula forte, um tanto curvada, olhos fundos e curiosamente luminosos, sob as sobrancelhas escuras e bastas.

— Um rosto interessante — disse o Sr. Satterthwaite, com seus botões. — Um rosto verdadeiro. Significa alguma coisa.

O jovem estava inclinado para a frente, falando com se¬riedade. A moça ouvia. Nenhum dos dois pertencia ao mundo do Sr. Satterthwaite. Ele supôs que fossem da classe “artística”. A moça usava um vestido meio sem corte, de seda verde, barato. Os sapatos eram de cetim branco sujo. O rapaz usava seu traje de noite com um ar pouco à vontade.

Os dois homens passaram e tornaram a passar, várias vezes. Na quarta vez, viram que o casal estava em companhia de uma terceira pessoa — um jovem louro, com um jeito de em¬pregado de escritório. Com sua chegada, instalou-se uma certa tensão. O recém-chegado estava brincando com a gravata e não parecia nada à vontade; o belo rosto da moça estava gra¬vemente voltado para o alto, na direção do dele, que se mos¬trava ameaçadoramente franzido.

— A velha história — disse o Sr. Quin, baixinho, ao pas¬sarem.

— Sim — disse o Sr. Satterthwaite, com um suspiro. — É inevitável, suponho. O rosnar de dois cães sobre um osso. Sempre foi assim, sempre será. E, no entanto, poderíamos espe¬rar algo diferente. A beleza... — interrompeu-se. A beleza, para o Sr. Satterthwaite, significava algo muito maravilhoso. Achava difícil falar a respeito. Olhou para o Sr. Quin, que sa¬cudiu a cabeça, compreensivo.

Voltaram aos seus lugares, para o segundo ato.

No final da apresentação, o Sr. Satterthwaite virou-se ansiosamente para seu amigo.

— A noite está úmida. Meu automóvel está aí. Permita-me levá-lo... ahn... a algum lugar.

As últimas palavras foram um ato de delicadeza do Sr. Satterthwaite. “Levá-lo em sua casa” teria, segundo sentiu, um sabor de indiscrição. O Sr. Quin sempre fora singularmente re¬ticente. Era extraordinário como, o Sr. Satterthwaite sabia pouca coisa a seu respeito.

— Mas talvez — continuou o homenzinho — esteja com seu próprio carro à espera?

— Não — disse o Sr. Quin. — Nenhum carro me espera.

— Então...

Mas o Sr. Quin balançou a cabeça.

— O senhor é muito gentil — disse — mas prefiro se¬guir meu próprio caminho. Além disso — observou com um sorriso um tanto curioso — se alguma coisa tiver de acontecer, caberá ao senhor agir. Boa-noite e obrigado. Mais uma vez, vi¬mos o drama juntos.

Partiu tão rapidamente que o Sr. Satterthwaite não teve tempo de protestar, mas ficou com uma leve preocupação na cabeça. A que drama se referia o Sr. Quin? Pagliacci ou outro?

Masters, o motorista do Sr. Satterthwaite, tinha o hábito de esperar numa rua lateral. Seu patrão não gostava da longa demora, enquanto os automóveis esperavam a vez de parar em frente à ópera. Agora, caminhava rapidamente. Dobrou a esqui¬na e seguiu pela rua na direção do ponto onde sabia que Mas¬ters estava esperando. Exatamente à sua frente havia uma moça e um homem. Logo que os reconheceu, chegou outro homem.

Tudo aconteceu num minuto. Uma voz de homem, alta e raivosa. A voz de outro homem, num protesto ofendido. E depois a briga. Socos, respiração ofegante, mais socos, a figura de um policial aparecendo, majestosamente, de repente... no minuto seguinte, o Sr. Satterthwaite estava ao lado da moça, encolhida de encontro à parede.

— Permita-me — disse. — Não deve ficar aqui.

Pegou-a pelo braço e conduziu-a rapidamente pela rua. Uma vez, ela olhou para trás.

— Eu não devia?... — começou, em tom de dúvida.

O Sr. Satterthwaite fez que não com a cabeça.

— Seria muito desagradável envolver-se nisso. Provavel¬mente seria chamada à delegacia com eles. Estou certo de que nenhum de seus... amigos desejaria isto.

Parou.

— Este é meu automóvel. Se me permitir, terei muito prazer em levá-la para casa.

A moça olhou-o perquiridoramente. A calma do Sr. Sat¬terthwaite impressionou-a favoravelmente.  Curvou a cabeça.

— Obrigada — disse, e entrou no carro, cuja porta Masters mantinha aberta.

Em resposta à pergunta do Sr. Satterthwaite, ela deu um endereço em Chelsea e ele entrou atrás.

A moça estava perturbada e sem vontade de falar e o Sr. Satterthwaite era demasiado cheio de tato para interferir em seus pensamentos. Depois, no entanto, ela virou-se para ele e falou, por iniciativa própria.

— Queria — disse com impaciência — que as pessoas não fossem tão tolas.

— É uma amolação — concordou o Sr. Satterthwaite.

Seu tom trivial a pôs à vontade e ela continuou, como se sentisse que precisava fazer confidências a alguém.

— Não foi como... quero dizer, aconteceu da seguinte maneira: o Sr. Eastney e eu somos amigos há muito tempo... desde que eu cheguei a Londres. Fez um grande esforço com relação à minha voz e conseguiu-me algumas apresentações muito boas. Tem sido muitíssimo bondoso. É inteiramente lou¬co por música. Foi muita generosidade de sua parte levar-me esta noite. Estou certa de que não tem condições para isso. E então o Sr. Burns aproximou-se e falou conosco... muito gentilmente, estou certa, e Phil, o Sr. Eastney, ficou zangado. Não sei por quê. Todo mundo é livre neste país. E o Sr. Burns é sempre agradável, de bom gênio. Depois, quando estávamos caminhando para o metrô, ele apareceu e se juntou a nós. Não tinha dito duas palavras quando Philip voou sobre ele, como um louco. E... oh! Não gosto disso.

— Não? — perguntou o Sr. Satterthwaite, bem baixinho.

Ela corou, mas só um pouquinho. Nada tinha de mulher conscientemente fatal. Devia haver — está na própria natureza — uma certa excitação agradável, por estarem brigando por sua causa — mas o Sr. Satterthwaite decidiu que uma perple¬xidade preocupada ultrapassava qualquer outro sentimento e teve a indicação disso quando, em outro momento, ela obser¬vou:

— Espero que ele não o tenha machucado.

E quem é o? — pensou o Sr. Satterthwaite, sorrindo para si mesmo, na escuridão.

Formou seu próprio julgamento e disse:

— Espera que o senhor...  ahn... Eastney não tenha machucado o Sr. Burns?

Ela concordou.

— Sim, foi o que eu disse. Que coisa terrível. Gostaria de saber o que aconteceu.

O automóvel parou.

— Tem telefone? — perguntou.

— Sim.

— Se quiser, descobrirei exatamente o que aconteceu e depois telefonarei para você.

O rosto da moça iluminou-se.

— Oh, isto seria muita gentileza de sua parte. Tem certeza de que não é incômodo demais?

— De maneira alguma.

Ela agradeceu-lhe repetidas vezes e deu-lhe seu número de telefone, acrescentando, com um toque de timidez:

— Meu nome é Gilian West.

Enquanto seguia de automóvel pela noite adentro, cum¬prindo sua missão, o Sr. Satterthwaite deu um pequeno sorriso curioso. Pensou: — Então, é apenas isso: “A forma de um ros¬to, a curva de um maxilar!” Mas cumpriu o prometido.

 

 

No domingo seguinte, à tarde, o Sr. Satterthwaite foi para Kew Gardens, a fim de admirar os rododendros. Há muito tempo (incrivelmente muito tempo, segundo parecia ao Sr. Sat¬terthwaite) ele fora a Kew Gardens com uma certa jovem, para ver os jacintos. O Sr. Satterthwaite tinha antecipadamente na cabeça tudo o que ia dizer, as palavras certas que usaria para pedir a jovem em casamento. Estava justamente a repeti-las mentalmente, respondendo um tanto distraidamente às expres¬sões arrebatadas da moça com relação aos jacintos, quando levou o choque. A moça parou de fazer exclamações sobre os jacintos e, de repente, confiou ao Sr. Satterthwaite (como a um verdadeiro amigo) seu amor por outro. O Sr. Satterthwaite esqueceu o pequeno discurso que preparara e, apressadamente, revistou a gaveta dos fundos de sua mente, em busca de pala¬vras de simpatia e amizade.

Assim fora o romance do Sr. Satterthwaite — um tanto morno e vitoriano, mas deixara-o o com uma sensação român¬tica em relação a Kew Gardens. Ia lá freqüentemente ver os jacintos ou, se permanecesse no exterior por mais tempo que o de costume, os rododendros. Suspirava sozinho, sentindo-se meio sentimental, e realmente divertia-se muito, de uma ma¬neira antiquada e romântica.

Aquela tarde, em particular, ele ia passando, ao voltar, pelas casas de chá, quando reconheceu um casal sentado numa das pequenas mesas sobre o gramado. Eram Gilian West e o rapaz louro e, na mesma hora, eles o reconheceram. Viu a moça ruborizar-se e falar ansiosamente com seu companheiro. No minuto seguinte, ele estava apertando as mãos de ambos, à sua maneira correta, um tanto empertigada, e aceitava o tímido convite que lhe era feito para tomar chá com eles.

— Não imagina, Sir — disse o Sr. Burns — como lhe estou agradecido por ter cuidado de Gilian, naquela noite. Ela me contou tudo.

— Sim, é verdade — disse a moça. — Foi tão gentil de sua parte.

O Sr. Satterthwaite ficou satisfeito e interessado pelo casal. A ingenuidade e sinceridade dos dois tocaram-no. Também, havia a atração de dar uma olhada num mundo com o qual ele não estava bem familiarizado. Essas pessoas eram de uma classe que desconhecia.

Com seu jeitinho seco, o Sr. Satterthwaite podia ser muito simpático. Logo estava sabendo de tudo a respeito de seus novos amigos. Observou que o Sr. Burns tornara-se Charlie e não foi apanhado de surpresa pela declaração de que estavam noivos.

— Na realidade — disse o Sr. Burns, com refrescante candura — aconteceu exatamente hoje à tarde, não foi, Gil?

Burns era funcionário de uma empresa de navegação. Re¬cebia salário razoável, tinha algum dinheiro seu, e os dois pre¬tendiam casar-se muito breve.

O Sr. Satterthwaite ouvia, batia a cabeça, dava parabéns.

Um rapaz comum — pensou — um rapaz muito comum. Direito, correto, com muita coisa a dizer em seu próprio favor, uma boa opinião de si mesmo, sem ser presunçoso, boa aparên¬cia, embora não demasiado bonito. Nada de extraordinário nele e jamais fará nada de excepcional. E a moça o ama...

Disse alto:

— E o Sr. Eastney...

Interrompeu-se, de propósito, mas dissera o bastante para produzir o efeito que já esperava. O rosto de Charlie Burns ensombreceu-se e Gilian parecia perturbada. Mais de que per¬turbada, pensou. Parecia com medo.

— Não gosto disso — disse, em voz baixa. Suas palavras dirigiam-se ao Sr. Satterthwaite, como se soubesse, instintiva¬mente, que ele compreenderia um sentimento incompreensível para seu amado. — Ele fez muita coisa por mim. Encorajou-me a estudar canto e... ajudou-me a fazer isto. Mas eu sabia, todo o tempo, que minha voz não era realmente boa. Não de primeira classe. Claro, assumi compromissos...

Parou.

— Você teve, também, alguns problemas — disse Burns. — Uma moça precisa de alguém para tomar conta dela. Gilian teve vários aborrecimentos, Sr. Satterthwaite.  Decididamente, teve uma porção de aborrecimentos. É bonita, como pode ver, e... bem, isto, muitas vezes, cria problemas para uma moça.

O Sr. Satterthwaite foi esclarecido, entre amigos, quanto aos vários acontecimentos vagamente classificados por Burns como “aborrecimentos”. O rapaz que se matara com um tiro, o estranho comportamento de um gerente de banco (era ca¬sado!), o estranho que partiu para a violência (devia ser louco), a conduta maluca do artista mais velho. Uma trilha de violência e tragédia que Gilian West deixara em sua esteira, narrada na voz prosaica de Charles Burns.

— Minha opinião — concluiu — é que esse tal de Eastney é meio doido. Gilian iria ter problemas com ele, se eu não aparecesse para tomar conta dela.

A risada dele soou um tanto fátua aos ouvidos do Sr. Satterthwaite e nenhum sorriso correspondente veio ao rosto da moça. Estava olhando com seriedade para o Sr. Satterth¬waite.

— Phil não é louco — disse ela, devagar. — Interessa-se por mim, eu sei, e eu por ele, como amigo... mas, nada mais. Nem sei como vai receber a notícia sobre Charles. Ele... tenho tanto medo que fique.

Parou, sem fala, diante dos perigos que sentia vagamente.

— Se eu puder ajudá-la, de algum modo — disse o Sr. Satterthwaite, com simpatia — peço-lhe que me diga.

Imaginou que Charlie Burns parecia vagamente ressen¬tido, mas Gilian disse imediatamente:

— Obrigada.

O Sr. Satterthwaite deixou seus novos amigos depois de ter prometido tomar chá com Gilian na quinta-feira seguinte.

Então, chegou a quinta-feira, e o Sr. Satterthwaite sentiu um leve frêmito de expectativa agradável. Pensou — Sou um velho... mas não velho demais para me emocionar com um rosto. Um rosto...

Gilian estava sozinha. Charlie Burns deveria chegar mais tarde. Parecia muito feliz, pensou o Sr. Satterthwaite, como se uma carga tivesse sido retirada de sua mente. Na verdade, ela admitiu francamente que assim fora.

— Estava com um medo horrível de contar a Phil a res¬peito de Charlie. Foi tolice minha.. Devia conhecer Phil melhor. Ele ficou perturbado, claro, mas ninguém poderia ser mais encantador. Foi realmente encantador. Veja o que me mandou hoje de manhã... um presente de casamento. Não é esplêndido?

Era realmente esplêndido para um jovem nas condições de Philip Eastney. Um rádio último modelo.

— Ambos gostamos tanto de música, sabe — explicou a moça. — Phil disse-me que, quando eu estivesse ouvindo um concerto neste aparelho, devia sempre pensar um pouquinho nele. E estou certa de que o farei. Porque fomos tão amigos.

— Deve ficar orgulhosa de seu amigo — disse o Sr. Sat¬terthwaite, gentilmente. — Ele parece ter suportado o golpe com muito espírito esportivo.

Gilian balançou a cabeça, em assentimento. Viu rápidas lágrimas nos olhos dela.

— Ele me pediu para fazer uma coisa. Hoje é o aniver¬sário do dia em que nos encontramos pela primeira vez. Pe¬diu-me para ficar em casa, tranqüilamente, esta noite, ouvindo um programa de rádio... não sair com Charlie para parte alguma. Eu disse que faria isto, claro, e que estava muito co¬movida, e pensaria nele com muita gratidão e afeto.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, mas ficou con¬fuso. Raramente falhava ao julgar um caráter e teria julgado Philip Eastney completamente incapaz de um pedido tão sen¬timental. O rapaz devia ser de um tipo mais banal do que supunha. Gilian, evidentemente, achou a idéia inteiramente de acordo com a natureza do seu admirador rejeitado. O Sr. Sat¬terthwaite ficou um pouco — só um pouco — desapontado. Ele também era sentimental e sabia disso, mas esperava coisas melhores do resto da humanidade. Além disso, o sentimento pertencia à sua idade. Não fazia parte do mundo moderno.

Pediu a Gilian para cantar e ela acedeu. Disse-lhe que sua voz era encantadora, mas sabia muito bem que era nitida¬mente de segunda classe. Qualquer sucesso que pudesse ter na profissão adotada seria conseguido com o rosto, não com a voz.

Não estava particularmente ansioso para ver o jovem Burns novamente e levantou-se para ir embora. Neste momento, sua atenção foi atraída para um ornamento sobre a lareira, que se destacava entre os outros objetos, meras bugigangas vistosas, como uma jóia num monte de poeira.

Era uma proveta curva, de fino vidro verde, com uma haste longa e graciosa, sobre cuja extremidade estava pousada, parecendo uma gigantesca bolha de sabão, uma bola de vidro iridescente. Gilian notou seu interesse.

— É um presente de casamento extra que Phil me deu. É bem bonito, eu acho. Ele trabalha numa espécie de fábrica de vidro.

— É um belo objeto — disse o Sr. Satterthwaite, com respeito. — Os sopradores de vidro de Murano teriam orgu¬lho dele.

Foi embora com seu interesse por Phil Eastney estranha¬mente estimulado. Um rapaz extraordinariamente interessante. E, no entanto, a moça com o rosto maravilhoso preferira Char¬les Burns. Que universo estranho e inescrutável!

Ocorreu ao Sr. Satterthwaite que, devido à maravilhosa beleza de Gilian West, sua noitada com o Sr. Quin, de algum modo, falhara. Em geral, todo encontro com aquele misterioso indivíduo resultava em algum acontecimento estranho e impre¬visto. Com a esperança, talvez, de deparar com o homem dos mistérios, o Sr. Satterthwaite volveu os passos na direção do Restaurante Arlecchino, onde, certa vez, tempos atrás, encon¬trara o Sr. Quin, que lhe dissera freqüentá-lo.

O Sr. Satterthwaite foi de sala em sala do Arlecchino, pro¬curando-o esperançosamente, mas não havia sinal do rosto moreno e sorridente do Sr. Quin. Lá estava, no entanto, outra pessoa. Sentado sozinho, numa pequena mesa, encontrava-se Philip Eastney.

O lugar estava apinhado e o Sr. Satterthwaite sentou-se na cadeira em frente ao jovem. Sentiu uma repentina e estra¬nha exultação, como se tivesse sido apanhado por uma série imprecisa de acontecimentos, da qual fazia parte. Ele era parte da coisa — fosse o que fosse. Sabia, agora, o que o Sr. Quin queria dizer, aquela noite na Ópera. Um drama desenrolava-se e nele havia um papel, um papel importante, para o Sr. Satterthwaite. Não podia deixar de pegar sua deixa e dizer sua parte.

Sentou-se em frente a Philip Eastney com a sensação de cumprir o inevitável. Era bastante fácil puxar conversa. Eastney parecia ansioso para falar. O Sr. Satterthwaite era, como sem¬pre, um ouvinte encorajador e simpático. Falaram da guerra, de explosivos, de gases venenosos. Eastney tinha muito a dizer a respeito destes últimos pois, durante a guerra, ocupara-se na sua fabricação. O Sr. Satterthwaite achou-o realmente inte¬ressante.

Havia um gás, disse Eastney, que jamais fora testado. Uma simples cheirada era fatal. Animou-se, enquanto falava.

Tendo quebrado o gelo, o Sr. Satterthwaite gentilmente mudou a conversa para música. O rosto magro de Eastney iluminou-se. Falou com a paixão e o abandono do verdadeiro amante da música. Discutiram Yoaschbim e o jovem era um entusiasta. Tanto ele como o Sr. Satterthwaite concordaram que nada na terra poderia ultrapassar uma voz de tenor real¬mente bela. Eastney, quando menino, ouvira Caruso e jamais esquecera.

— Sabe que ele podia espatifar, cantando, um copo de vinho? — perguntou.

— Sempre pensei que isso fosse lenda — disse o Sr. Satterthwaite, sorrindo.

— Não, é a pura verdade, acredite. É perfeitamente pos¬sível. É uma questão de ressonância.

Prosseguiu dando detalhes técnicos. Seu rosto estava co¬rado e os olhos brilhavam. O assunto parecia fasciná-lo e o Sr. Satterthwaite observou que ele parecia entender plenamente do tema de que falava. O homem mais velho percebeu que estava conversando com alguém de excepcional inteligência, com uma inteligência que poderia ser descrita como de um gênio. Bri¬lhante, errática, sem ter decidido ainda quanto ao verdadeiro canal por onde teria vazão, mas, sem dúvida, de gênio.

E pensou em Charlie Burns e espantou-se com Gilian West.

Foi com um sobressalto que percebeu como estava ficando tarde e pediu a conta. Eastney o olhou, com um ligeiro ar de desculpas.

— Estou com vergonha de mim mesmo, falando tanto — disse. — Mas foi um feliz acaso seu aparecimento aqui esta noite. Eu... eu precisava de alguém com quem falar esta noite.

Terminou sua declaração com uma estranha risadinha. Seus olhos ainda estavam brilhando com uma agitação con¬tida. Sim, havia algo trágico nele.

— Foi um prazer — disse o Sr. Satterthwaite. — Nossa conversa foi muito interessante e instrutiva para mim.

Fez sua engraçada e cortês curvaturazinha e saiu do restau¬rante. A noite estava quente e, enquanto caminhava devagar pela rua, teve uma fantasia muito curiosa. Foi tomado pela sensação de que não estava sozinho — de que alguém caminha¬va ao seu lado. Em vão disse a si mesmo que a idéia era uma ilusão — a coisa persistiu. Alguém estava caminhando ao seu lado pela rua escura e silenciosa, alguém que ele não podia ver. Ficou imaginando o que teria trazido a figura do Sr. Quin tão claramente à sua mente. Sentiu exatamente como se o Sr. Quin estivesse caminhando ao seu lado e, no entanto, bastava usar os olhos para ver que não era verdade, que estava sozinho.

Mas a lembrança do Sr. Quin persistiu e, com ela, veio algo mais, uma necessidade, uma espécie de premência, uma opressiva previsão de calamidade. Havia algo que ele tinha de fazer — e rapidamente. Havia algo muito errado, e estava em seu poder consertar as coisas.

Tão forte era a sensação que o Sr. Satterthwaite desistiu de lutar contra ela. Em vez disso, fechou os olhos e tentou trazer para mais perto a imagem mental do Sr. Quin. Se, pelo menos, pudesse perguntar ao Sr. Quin... mas, mesmo enquanto o pensamento atravessava sua mente, sabia que estava errado. Nunca adiantava perguntar nada ao Sr. Quin. “Os fios estão todos em suas mãos” — este era o tipo de coisa que o Sr. Quin diria.

Os fios. Fios de quê? Analisou seus próprios sentimentos e impressões, cuidadosamente. Aquele pressentimento de perigo, agora. Quem estava ameaçado?

Imediatamente, um quadro desenhou-se diante de seus olhos, o quadro de Gilian West sentada sozinha, ouvindo o rádio.

O Sr. Satterthwaite atirou uma moeda para um vendedor de jornais que passava, e agarrou um jornal. Foi ver, imediata¬mente, a programação da Rádio Londres. Yoaschbim tinha uma apresentação aquela noite, observou com interesse. Cantava: Salve Dimora, do Fausto e, depois, uma seleção de suas canções folclóricas: A Canção do Pastor, O Peixe, O Pequeno Corvo, etc.

O Sr. Satterthwaite amassou o jornal. Saber o que Gilian estava ouvindo tornava o quadro mais claro. Sentada lá so¬zinha...

Pedido estranho, aquele de Philip Eastney. Não combinava com o sujeito, de maneira alguma. Não havia nenhum sentimen¬talismo em Eastney. Era um homem de sentimentos violentos, um homem perigoso, talvez...

Novamente, os pensamentos voltaram à baila, com um estremecimento. Um homem perigoso... isto significava algo. ‘‘Os fios estão todos em suas mãos.” Aquele encontro com Philip Eastney, naquela mesma noite... muito estranho. Um acaso feliz, dissera Eastney. Seria acaso? Ou fazia parte de um traça¬do entrelaçado, do qual o Sr. Satterthwaite tivera consciência, uma ou duas vezes, naquela mesma noite?

Fez a mente recuar. Devia haver algo na conversa de Eastney, alguma chave. Devia, sim, se não por que este estranho sentimento de urgência? Sobre o que ele falara? Canto, tarefas de guerra, Caruso.

Caruso... os pensamentos do Sr. Satterthwaite desviaram-se por este caminho. A voz de Yoaschbim era quase igual à de Caruso. Gilian estaria sentada, ouvindo-o, agora, enquanto res¬soava constante e poderosa, ecoando por todo o quarto, fa¬zendo os copos tinirem...

Prendeu a respiração. Os copos tinirem! Caruso, cantando e um copo quebrando. Yoaschbin cantando em seu estúdio de Londres e, num quarto, a quilômetros de distância, o espati¬far-se... não de um copo, mas de uma fina proveta de vidro verde. A queda de uma bolha de sabão feita de cristal, uma bolha que talvez não esteja vazia...

Foi nesse momento que o Sr. Satterthwaite, no julgamen¬to dos transeuntes, enlouqueceu. Abriu novamente o jornal, rasgando-o, olhou rapidamente os anúncios do rádio e, depois, saiu correndo como quem procura salvar a própria vida, pela rua tranqüila afora. No final da rua, achou um vagaroso táxi e, pulando dentro dele, gritou um endereço para o motorista e a informação de que se tratava de uma questão de vida ou de morte chegar até lá rapidamente. O motorista, acreditando-o mentalmente afetado, mas rico, fez o que pedia.

O Sr. Satterthwaite recostou-se no assento, com a cabeça cheia de pensamentos fragmentários, frases ditas por Eastney aquela noite. Ressonância... períodos naturais... se o período de força coincidir com o período natural... algo a respeito de uma ponte pênsil, soldados marchando sobre ela e o balançar da ponte correspondendo ao período da ponte. Eastney estudara o assunto. Eastney sabia. E Eastney era um gênio.

À l0h 45m, Yoaschbim ia entrar no ar. Era exatamente esta hora, agora. Sim, mas o Fausto viria primeiro. Era na Canção do Pastor, com o grande grito após o refrão, que acon¬teceria... aconteceria o quê?

Sua mente entrou, outra vez, num torvelinho. Tons, sons harmônicos, meios tons. Ele não sabia muito sobre essas coi¬sas, mas Eastney sabia. Praza a Deus que chegasse a tempo!

O táxi parou. O Sr. Satterthwaite atirou-se para fora e su¬biu correndo a escada de pedra, até o segundo andar, como um jovem atleta. A porta do apartamento estava entreaberta. Abriu-a com um empurrão e a grande voz do tenor deu-lhe as boas-vindas. As palavras da canção do pastor eram-lhe familiares num outro cenário, menos informal.

“Pastor, vê a crina ondulante de teu cavalo...”

Então, chegara a tempo. Abriu com um tranco a porta da sala de estar. Gilian estava lá, sentada numa cadeira alta, perto da lareira.

“A filha de Barya Mischa vai casar-se hoje:

Preciso apressar-me para ir ao casamento.”

Ela deve ter pensado que ele estava louco. Agarrou-a, gri¬tando algo incompreensível, e saiu, meio puxando-a, meio arrastando-a, até chegarem à beira da escada.

“Preciso apressar-me para ir ao casamento...

Ya-ha!”

Uma nota alta e linda, a plenos pulmões, poderosa, emi¬tida em cheio, uma nota de que qualquer cantor poderia orgu¬lhar-se. E, com ela, um outro som, um leve tinido de vidro quebrado.

Um gato vadio passou correndo por eles e entrou pela porta do apartamento. Gilian fez um movimento, mas o Sr. Satterthwaite prendeu-a, falando incoerentemente.

— Não, não... é fatal; não tem cheiro, nada que possa preveni-la. Uma simples inalação, e tudo acaba. Ninguém sabe o quanto pode ser mortal. É diferente de qualquer coisa já testada antes.

Estava repetindo as coisas que Philip Eastney lhe dissera à mesa do jantar.

Gilian olhou fixamente para ele, sem entender.

 

 

Philip Eastney puxou o relógio e olhou-o. Eram exatamen¬te 11 e meia. Nos últimos três quartos de hora, caminhara para baixo e para cima, junto ao cais. Olhou para o Tâmisa e, de¬pois, virou-se — e deparou com o rosto de seu companheiro de jantar.

— É estranho — disse ele, e riu. — Parecemos destina¬dos a nos encontrar esta noite.

— Se quiser chamar a isto destino — disse o Sr. Satterth¬waite.

Philip Eastney olhou-o com mais atenção, e sua expres¬são mudou.

— Sim? — disse quietamente.

O Sr. Satterthwaite foi direto à questão.

— Acabo de chegar do apartamento da Srta. West.

— Sim?

A mesma voz, a mesma quietude mortal.

— Tiramos um gato morto de lá.

Houve um silêncio e depois Eastney falou:

— Quem é o senhor?

O Sr. Satterthwaite falou, durante algum tempo. Narrou toda a seqüência dos acontecimentos.

— Como vê, cheguei a tempo — concluiu. Fez uma pausa e acrescentou, muito gentilmente: — Você tem alguma coisa a dizer?

Esperava algo, uma explosão, uma justificativa colérica. Mas não houve nada disso.

— Não — disse Philip Eastney, quietamente, e deu meia volta. Afastou-se, caminhando.

O Sr. Satterthwaite seguiu-o com o olhar até sua figura ser engolida pela escuridão. Apesar de tudo, sentia uma estranha solidariedade para com Eastney, o sentimento de um artista por outro, de um sentimental por um verdadeiro apaixonado, de um homem comum por um gênio.

Finalmente acordou, com um estremecimento, e começou a caminhar na mesma direção que Eastney. Começava a baixar um nevoeiro. Encontrou um policial que o olhou com suspeita.

— Ouviu um ruído de coisa caindo na água, agora mes¬mo? — perguntou o policial.

— Não — disse o Sr. Satterthwaite.

O policial estava observando o rio.

— Outro desses suicidas, eu acho — grunhiu desconsola¬damente. — Sempre fazem isso.

— Suponho — disse o Sr. Satterthwaite — que eles têm suas razões.

— Dinheiro, na maioria das vezes — disse o policial. — Algumas vezes é uma mulher — prosseguiu, enquanto se prepa¬rava para ir embora. — Nem sempre a culpa é delas, mas algu¬mas mulheres provocam uma porção de problemas.

— Algumas mulheres — disse o Sr. Satterthwaite, baixi¬nho.

Quando o policial foi embora, ele sentou-se num banco, com o nevoeiro a envolvê-lo completamente, e pensou em He¬lena de Tróia. Imaginou se ela não teria sido uma gentil mulher comum, abençoada — ou amaldiçoada — com um rosto mara¬vilhoso.

 

O Arlequim Morto

O SR. SATTERTHWAITE caminhava vagarosamente por Bond Street, aproveitando o sol. Estava, como de costume, cuida¬dosa e elegantemente vestido, e se dirigia para a Harches¬ter Galleries, onde havia uma exposição de pinturas de um certo Frank Bristow, novo e até então desconhecido artista, que mos¬trava indícios de estar, de repente, em voga. O Sr. Satterthwaite era um patrono das artes.

Quando o Sr. Satterthwaite entrou na Harchester Galleries, foi cumprimentado, imediatamente, com um sorriso satisfeito de reconhecimento.

— Bom dia, Sr. Satterthwaite, bem achei que o veríamos dentro em pouco. Conhece o trabalho de Bristow? Ótimo... excelente, realmente. Único no gênero.

O Sr. Satterthwaite comprou um catálogo e atravessou a arcada, para entrar na sala comprida onde estava exposto o trabalho do artista. Havia aquarelas executadas com técnica e acabamento tão extraordinários que pareciam gravuras colori¬das. O Sr. Satterthwaite caminhava lentamente ao longo das paredes, examinando tudo e, em conjunto, aprovando. Achou que aquele jovem merecia aparecer. Aqui havia originalidade, visão e uma técnica a mais severa e minuciosa. Isto era quase de se esperar — mas também existia algo muito próximo ao gê¬nio. O Sr. Satterthwaite fez uma pausa diante de uma pequena obra-prima que representava a ponte de Westminster, com sua aglomeração de ônibus, bondes e pedestres apressados. Uma coisa pequena e maravilhosamente perfeita. Chamava-se, ele observou, O Formigueiro. Passou adiante e, de repente, respirou fundo, ofegante, com a atenção fixa e concentrada.

O quadro chamava-se O Arlequim Morto. O primeiro plano representava um piso todo em quadrados de mármore preto e branco. No meio do piso, jazia o arlequim, deitado de costas, com os braços estirados, abertos, com seu traje ne¬gro e vermelho. Atrás dele, uma janela e, do lado de fora, olhando para dentro, para a figura no chão, estava, segundo parecia, o mesmo homem, retratado em silhueta contra a claridade vermelha do poente.

O quadro agitou o Sr. Satterthwaite por dois motivos. O primeiro foi que reconheceu, ou pensou reconhecer, o rosto do homem no quadro. Tinha uma parecença nítida com um certo Sr. Quin, um conhecido que o Sr. Satterthwaite encon¬trava em circunstâncias algo misteriosas.

— Claro que não posso estar enganado— murmurou. — E, se é assim, o que significa?

Pois o Sr. Satterthwaite sabia, por experiência própria, que cada aparecimento do Sr. Quin tinha um significado especial.

Havia, como já foi mencionado, uma segunda razão para o interesse do Sr. Satterthwaite. É que ele reconheceu o ce¬nário do quadro.

— O salão do terraço em Charnley — disse o Sr. Sat¬terthwaite. — Curioso... e muito interessante.

Olhou o quadro com mais atenção, imaginando o que, exatamente, estava na mente do artista. Um arlequim morto, no chão, outro arlequim olhando pela janela — ou era o mesmo arlequim? Movimentou-se lentamente ao longo das pa¬redes, olhando, sem ver, os outros quadros, com a mente con¬centrada sempre no mesmo assunto. Estava excitado. A vida, que lhe parecia um tanto insípida aquela manhã, não estava mais monótona. Tinha quase certeza de que se encontrava no limiar de acontecimentos agitados e interessantes. Foi até a mesa à qual sentava-se o Sr. Cobb, dignitário da Harchester Galleries, conhecido seu de muitos anos.

— Estou com o capricho de comprar o número 39 — disse — se já não estiver vendido.

O Sr. Cobb consultou um livro de contabilidade.

— O melhor de todos — murmurou. — Uma pequena jóia, não é? Não, não está vendido. — Deu o preço. — É um bom investimento, Sr. Satterthwaite. Terá de pagar três vezes isso, nesta mesma época, no próximo ano.

— Isto é sempre dito nestas ocasiões — disse o Sr. Sat¬terthwaite, sorrindo.

— Bem, e não tenho tido razão? — perguntou o Sr. Cobb. — Não acredito, se o senhor tivesse de vender sua co¬leção, Sr. Satterthwaite, que um único quadro valesse menos do que o que deu por ele.

— Vou comprar este quadro — disse o Sr. Satterthwaite. — Agora mesmo lhe darei um cheque.

— Não vai arrepender-se. Acreditamos em Bristow.

— Ele é jovem?                                                          

— Vinte e sete ou vinte e oito anos, creio.

— Gostaria de conhecê-lo — disse o Sr. Satterthwaite. — Não poderia jantar comigo, uma noite dessas?

— Posso dar a ele seu endereço. Estou certo de que vai agarrar a oportunidade. Seu nome é bastante conhecido nos meios artísticos.

— O senhor lisonjeia-me — disse o Sr. Satterthwaite, e ia continuar, quando o Sr. Cobb o interrompeu.

— Ele está aqui, agora. Vou apresentá-lo ao senhor imediatamente.

Saiu de trás de sua mesa. O Sr. Satterthwaite acompanhou-o até o local onde um rapaz alto e desajeitado estava recostado na parede, observando o mundo à distância, por trás da bar¬ricada de uma carranca feroz.

O Sr. Cobb fez as necessárias apresentações e o Sr. Sat¬terthwaite fez um pequeno discurso formal e gracioso.

— Acabo de ter o prazer de comprar um de seus quadros, O Arlequim Morto.

— Oh! Bem, não vai perder com isso — disse o Sr. Bristow, descortesmente. — É um trabalho bom como diabo, e não é só elogio em boca própria.

— Tem toda razão — disse o Sr. Satterthwaite. — Seu trabalho me interessa muito, Sr. Bristow. É extraordinariamente amadurecido para um rapaz tão jovem. Imagino se me daria o prazer de jantar comigo uma noite dessas. Está comprome¬tido para hoje?

— Na verdade, não estou — disse o Sr. Bristow, ainda sem qualquer exagerada aparência de cortesia.

— Então, vamos dizer, às oito horas? — disse o Sr. Satterthwaite. — Aqui está meu cartão, com o endereço.

— Oh, muito bem — disse o Sr. Bristow. — Obrigado — acrescentou, com um adendo algo óbvio.

Um rapaz que não faz bom juízo de si mesmo e teme que o mundo venha a partilhar a opinião — Este foi o resumo que fez o Sr. Satterthwaite, enquanto caminhava para fora, para o sol brilhante de Bond Street. E o julgamento do Sr. Satterthwaite sobre os demais seres humanos raramente se afas¬tava muito da verdade.

Frank Bristow chegou cerca de oito e cinco e encontrou o anfitrião e outro convidado a esperá-lo. O outro convidado foi apresentado como Coronel Monckton. Foram jantar quase imediatamente. Havia um quarto lugar posto na mesa oval de mogno e o Sr. Satterthwaite deu uma rápida explicação.

— Eu estava mais ou menos à espera que meu amigo, Sr. Quin, aparecesse — disse. — Fico imaginando se já encon¬trou o Sr. Harley Quin?

— Nunca encontro ninguém — resmungou Bristow.

O Coronel Monckton fitou o artista com o vago interesse que poderia ter sentido por uma nova espécie de medusa. O Sr. Satterthwaite esforçou-se para manter uma conversa amistosa.

— Interessei-me especialmente por aquele seu quadro porque pensei reconhecer o cenário como o do salão do terraço em Charnley. Estava certo? — Quando o artista balançou a cabeça, concordando, ele prosseguiu: — É muito interessante. Eu próprio muitas vezes me hospedei em Charnley, antigamente. Talvez conheça alguém da família.

— Não, não conheço — disse Bristow. — Aquele tipo de família não teria vontade de me conhecer. Fui até lá de ônibus.

— Meu Deus — disse o Coronel Monckton, sem conse¬guir conter-se. — De ônibus! Meu Deus!

Frank Bristow fechou a cara para ele.

— Por que não? — perguntou, ferozmente.

O pobre Coronel Monckton estava desanimado. Olhou repreensivamente para o Sr. Satterthwaite, como se dissesse: Estas formas primitivas de vida podem ser interessantes para você, como naturalista, mas por que me arrastar junto?

— Oh, são coisas terríveis, esses ônibus — disse. — Dão cada sacudidela na pessoa, quando caem em buracos!

— Quando a gente não pode comprar um Rolls Royce, tem de ir assim — disse Bristow, ferozmente.

O Coronel Monckton olhou-o fixamente. O Sr. Satterth¬waite pensou: A menos que eu consiga colocar este rapaz à vontade, vamos ter uma noite bem desagradável.

— Charnley sempre me fascinou — disse. — Estive lá apenas uma vez, depois da tragédia. Uma casa sombria... fan¬tasmagórica.

— É verdade — disse Bristow.

— Existem, na verdade, dois autênticos fantasmas — disse Monckton. — Dizem que Charles caminha, para cima e para baixo, no terraço, com a cabeça debaixo do braço... esqueci por quê. Depois, há a Dama Chorosa com o Jarro de Prata, que é sempre vista depois que algum dos Charnleys morre.

— Baboseira — disse zombeteiramente Bristow.

— Certamente, foram uma família com um destino trá¬gico — disse apressadamente o Sr. Satterthwaite. — Quatro donos do título tiveram morte violenta e o Lorde Charnley recentemente falecido suicidou-se.

— Negócio horripilante — disse Monckton. — Eu estava lá quando aconteceu.

— Deixe-me ver, deve ter sido há 14 anos — disse o Sr. Satterthwaite. — A casa foi fechada, desde então.

— Não é de se estranhar — disse Monckton. — Deve ter sido um choque terrível para uma moça tão jovem. Esta¬vam casados há um mês, acabavam de voltar da lua-de-mel. Um grande baile à fantasia para comemorar a volta. Exa¬tamente quando os convidados começavam a chegar, Charnley trancou-se no salão de carvalho e se matou com um tiro. Este tipo de coisa não se faz. Que disse?

Virou a cabeça de repente para a esquerda e depois olhou para o Sr. Satterthwaite, com uma risada de desculpa.

— Estou começando a ter delirium tremens, Satterthwaite. Pensei, por um momento, que havia alguém sentado naquela ca¬deira vazia, e que ele me dizia alguma coisa.

— Sim — prosseguiu, depois de alguns minutos. — Foi um choque terrível para Alix Charnley. Ela era uma das moças mais bonitas que se possam imaginar, e cheia do que se costuma chamar alegria de viver, e agora dizem que ela própria ficou como um fantasma. Embora eu não a veja há anos. Acre¬dito que vive no exterior a maior parte do tempo.

— E o garoto?

— O garoto está em Eton. O que fará quando crescer, não sei. Não creio, no entanto, que vá reabrir a velha proprie¬dade.

— Daria um bom parque de diversões público — disse Bristow.

O Coronel Monckton olhou-o com fria repugnância.

— Não, não, não pensa realmente assim — disse o Sr. Satterthwaite. — Não teria pintado aquele quadro, se pensasse. Tradição e atmosfera são coisas intangíveis. Levam séculos para se formar, e se forem destruídas não se poderá recons¬truí-las em 24 horas.

Levantou-se.

— Vamos para o salão dos fumantes. Tenho lá algumas fotografias de Charnley que gostaria de lhes mostrar.

Um dos hobbies do Sr. Satterthwaite era a fotografia. Tam¬bém se orgulhava de ter escrito um livro, Casas de Meus Ami¬gos. Os amigos em questão eram todos muito elogiados e o livro mostrava o Sr. Satterthwaite sob um prisma de maior esnobismo do que seria justo atribuir-lhe.

— Esta é uma foto que tirei do salão do terraço, no ano passado — disse.  Entregou-a a Bristow.  — Veja que foi tirada quase do mesmo ângulo que mostra seu quadro. Este é um tapete maravilhoso... pena que a foto não mostre seu colorido.

— Lembro-me dele — disse Bristow. — Um maravi¬lhoso fragmento de cor. Brilhava como uma chama. De qual¬quer maneira, parecia um tanto fora de lugar ali. O tamanho errado para aquele grande salão, com seus quadrados pretos e brancos. Não há nenhum tapete em qualquer outro recanto do salão. Estraga todo o efeito... era como uma gigantesca mancha de sangue.

— Será que isto foi o que lhe deu a idéia para seu quadro? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

— Talvez sim — disse Bristow, pensativo. — Diante dele, a pessoa, naturalmente, imagina uma tragédia no pequeno salão apainelado, ao lado.

— O salão de carvalho — disse Monckton. — Sim, este é, com toda certeza, o cômodo mal-assombrado. Há um esconderijo na parede*... um painel móvel, ao lado da lareira. A tradição conta que Charles escondeu-se ali, certa vez. Hou¬ve duas mortes em duelo, naquele salão. E foi lá, como eu disse, que Reggie Charnley suicidou-se.

Tomou a fotografia das mãos de Bristow.

— Ora veja, é o tapete Bockhara — disse. — Vale algumas mil libras, creio. Quando lá andei, estava no salão de carvalho... o lugar certo para ele.  Parece deslocado, sobre esta grande extensão de lajes de mármore.

O Sr. Satterthwaite estava olhando para a cadeira vazia que puxara para seu lado. Depois disse, pensativamente.

— Fico imaginando quando foi levado de um lugar para o outro.

— Deve ter sido recentemente. Lembro-me de ter tido uma conversa sobre ele no próprio dia da tragédia. Charnley dizia que o tapete realmente devia ser mantido numa caixa de vidro.

 

* No original, priest’s hole.

O Sr. Satterthwaite abanou a cabeça.

— A casa foi fechada imediatamente depois da tragédia, e tudo foi deixado exatamente como estava.

Bristow fez uma pergunta. Deixara de lado as maneiras agressivas.

— Por que Lorde Charnley suicidou-se? — perguntou.

O Coronel Monckton moveu-se, sem jeito, na cadeira.

— Ninguém nunca soube — disse, vagamente.

— Suponho — falou o Sr. Satterthwaite, vagarosamente — que tenha sido suicídio.

O Coronel olhou para ele, em completo pasmo.

— Suicídio — disse — ...ora, claro que foi suicídio. Meu caro amigo, eu próprio estava na casa.

O Sr. Satterthwaite olhou para a cadeira vazia a seu lado e, sorrindo para si próprio como se só ele estivesse ouvindo uma piada, disse tranqüilamente:

— Algumas vezes a pessoa vê as coisas mais claramente, anos depois, do que seria possível na época em que acon¬teceram.

— Tolice — gaguejou Monckton, — rematada tolice! Como se poderia ver melhor as coisas quando estão vagas na memória, em vez de claras e nítidas?

Mas o Sr. Satterthwaite recebeu reforços inesperados.

— Sei o que quer dizer — falou o artista. — Diria que possivelmente tem razão. É uma questão de proporção, não é? E mais de que proporção, provavelmente. Relatividade e todo este tipo de coisa.

— Se querem saber — disse o Coronel — toda essa história de Einstein é uma grandessíssima bobagem. Como o caso dos espíritas, que falam no fantasma da avó da gente! — Olhou em torno, colericamente. — Claro que foi suicídio — continuou. — E eu não vi as coisas acontecerem pratica¬mente diante de meus olhos?

— Conte-nos como foi — disse o Sr. Satterthwaite — para também podermos ver com nossos olhos.

Com um grunhido algo apaziguado, o Coronel instalou-se mais confortavelmente em sua cadeira.

— Toda a coisa foi extraordinariamente imprevista — começou. — Charnley comportara-se dentro de seu normal. Ha¬via um grande grupo hospedado em sua casa, para aquele baile. Ninguém poderia ter adivinhado que ele iria atirar em si pró¬prio justamente quando os convidados começavam a chegar.

— Ele teria dado provas de mais bom gosto se tivesse esperado até irem embora — disse o Sr. Satterthwaite.

— Claro que teria. Que diabo de mau gosto... fazer uma coisa daquelas.

— Pouco característica — disse o Sr. Satterthwaite.

— Sim — admitiu Monckton — não parecia coisa de Charnley.

— E, no entanto, foi suicídio?

— Claro que foi suicídio. Três ou quatro de nós estáva¬mos lá, no topo da escada. Eu, a filha de Ostrander, Algie Darcy, e mais um ou dois. Charnley passou pelo vestíbulo, embaixo, e entrou no salão de carvalho. A garota Ostrander disse que seu rosto tinha uma expressão horrível e os olhos estavam esgazeados... mas claro que foi tolice... ela não po¬deria nem mesmo ver o rosto dele, de onde estávamos. No entanto, ele caminhava todo curvado, como se tivesse nas costas o peso do mundo. Uma das moças chamou-o... era a go¬vernanta de alguém, eu acho, que Lady Charnley incluíra no grupo por bondade. Ela o procurava para dar um recado. Fa¬lou: “Lorde Charnley, Lady Charnley quer saber...” Ele não prestou nenhuma atenção e entrou no salão de carvalho. Bateu a porta e ouvimos a chave girando na fechadura. Um minuto depois, ouvimos o tiro.

— Descemos correndo para o vestíbulo. Havia outra porta no salão de carvalho, dando para o salão do terraço. Tentamos abri-la, mas também estava trancada. Afinal, tivemos de arrom¬bar a porta. Charnley estava caído no chão... morto, com uma pistola perto da mão direita. O que poderia ser, se não suicídio? Acidente? Não me diga uma coisa dessas. Há apenas outra pos¬sibilidade: assassinato. E não pode haver assassinato sem assas¬sino. Você admite isto, suponho?

— O assassino poderia ter escapado — sugeriu o Sr. Satterthwaite.

— É impossível. Se você tem um pedaço de papel e um lápis, vou desenhar uma planta do local. Há duas portas no salão de carvalho, uma dando para o vestíbulo e a outra para o salão do terraço. Ambas as portas estavam trancadas por dentro e as chaves estavam nas fechaduras.

— A janela?

— Fechada, com as venezianas cerradas.

Houve uma pausa.

— Pois é isso — disse o Coronel Monckton, triunfal¬mente.

— Sem dúvida parece ser assim — disse o Sr. Satterth¬waite, tristemente.

— Vejam só — disse o Coronel — embora eu estivesse rindo, há pouco, dos espíritas, tenho de admitir que havia uma atmosfera estrambótica como diabo naquele lugar... naquele salão, particularmente. Há vários buracos de bala nos painéis da parede, resultado de duelos ocorridos ali, e uma estranha mancha no chão, que sempre reaparece, embora tenham subs¬tituído a madeira várias vezes. Suponho que haverá outra man¬cha de sangue no chão, agora... o sangue do pobre Charnley.

— Havia muito sangue? — perguntou o Sr. Satterth¬waite.

— Muito pouco...  curiosamente pouco, como disse o médico.

— Onde a bala o atingiu, na cabeça?

— Não, no coração.

— Não é a maneira mais fácil de fazer a coisa — disse Bristow. — É terrivelmente difícil saber onde fica o coração de uma pessoa. Eu nunca faria isso dessa maneira.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça. Estava vagamente insatisfeito. Esperara chegar a alguma coisa — mal sabia o quê.

O Coronel Monckton prosseguiu.

— É um lugar mal-assombrado, Charnley. Claro que eu não vi nada.

— Não viu a Dama Chorosa com o Jarro de Prata?

— Não, não senhor — disse o Coronel, enfaticamente — mas tenho certeza de que todos os criados da casa jurariam ter visto.

— A superstição era a praga da Idade Média — disse Bristow. — Ainda há sinais dela aqui e acolá, mas graças a Deus estamos livrando-nos disso.

— Superstição — matutou o Sr. Satterthwaite, com os olhos virados para a cadeira vazia. — Algumas vezes, não acham... que pode ser útil?

Bristow olhou-o fixamente.

— Útil é uma palavra estranha.

— Bem, espero que esteja convencido agora, Satterth¬waite — disse o Coronel.

— Oh, completamente — disse Satterthwaite. — Exami¬nando o caso, parece estranho... tão sem sentido para um homem recém-casado, jovem, rico, feliz, celebrando sua volta ao lar... Curioso, mas concordo que não há como fugir dos fatos. — Repetiu, baixinho “os fatos” e franziu a testa.

— O mais interessante nenhum de nós jamais saberá — disse Monckton. — A história por trás de tudo isso. Claro que houve rumores... todo tipo de rumores. Você sabe o tipo de coisas que as pessoas comentam.

— Mas ninguém soube de nada — disse o Sr. Satterth¬waite pensativamente.

— Não é uma história policial clássica — comentou Bris¬tow. — Ninguém ganhou nada com a morte do homem.

— Ninguém, a não ser uma criança não nascida — disse o Sr. Satterthwaite.

Monckton deu uma risadinha aguda.

— Foi mesmo um golpe para o pobre Hugo Charnley — observou ele. — Logo que se soube que uma criança ia nascer, ele se deu ao trabalho de ficar sentado duro, espe¬rando para ver se seria menino ou menina. Uma espera um tanto ansiosa também para seus credores. Afinal, foi um menino, e um desapontamento para todos eles.

— A viúva estava muito desconsolada?  — perguntou Bristow.

— Pobrezinha — disse Monckton. — Jamais a esquece¬rei. Ela não gritou, nem desmaiou, ou coisa parecida. Estava... gelada. Como contei, ela fechou a casa pouco depois e, pelo que sei, não foi reaberta desde então.

— Portanto, continuamos no escuro quanto ao motivo — disse Bristow, com uma rápida risada. — Outro homem, ou outra mulher, poderia ser um ou o outro, hein?

— É possível — disse o Sr. Satterthwaite.

— E aposto que foi outra mulher — continuou Bristow — já que a bela viúva não se casou novamente. Odeio as mu¬lheres — acrescentou desapaixonadamente.

O Sr. Satterthwaite sorriu um pouco e Frank Bristow viu o sorriso e atacou.

— Pode sorrir — disse — mas é verdade. Elas pertur¬bam tudo. Interferem. Põem-se entre a pessoa e seu trabalho. Elas... só uma vez encontrei uma mulher que era... bem, interessante.

— Imaginei que devia haver uma — disse o Sr. Sat¬terthwaite.

— Não da maneira que quer dizer. Eu... eu apenas encontrei-a casualmente. Na verdade, foi num trem. Afinal de contas — acrescentou, num desafio — por que não se pode encontrar pessoas num trem?

— Certamente, certamente — acrescentou o Sr. Satterth¬waite, de modo conciliador — um trem é um lugar tão bom quanto qualquer outro.

— Vinha do Norte.  Tínhamos um vagão só para nós. Não sei por que, mas começamos a conversar. Ignoro o nome dela, e não creio que vá encontrá-la novamente. Nem sei se quero. Poderia ser... uma pena. — Fez uma pausa, lutando para se expressar. — Ela não era inteiramente real, sabem. Espectral. Como um dos personagens que saem das colinas, nos contos de fadas gaélicos.

O Sr. Satterthwaite sacudiu a cabeça, gentilmente. Sua imaginação figurava a cena bem facilmente. Bristow tão positivo e realista e uma figura prateada e fantasmagórica, espectral, como dissera Bristow.

— Suponho que, se algo terrível tivesse acontecido, tão terrível a ponto de ser quase insuportável, alguém poderia ficar assim. Alguém poderia fugir da realidade para um meio-mundo próprio e então, claro, depois de algum tempo não se poderia mais voltar.

— O que acontecera com ela? — perguntou o Sr. Sat¬terthwaite com curiosidade.

— Não sei — disse Bristow. — Ela não me disse coisa alguma. Estou apenas adivinhando. É preciso adivinhar para se alcançar alguma coisa.

— Sim — disse o Sr. Satterthwaite. — É preciso adivi¬nhar.

Ergueu os olhos, quando a porta se abriu. Ergueu os olhos rapidamente, expectante, mas as palavras do mordomo desapontaram-no.

— Uma senhora, Sir, pede para vê-lo, por motivo de extrema urgência. Srta. Aspasia Glen.

O Sr. Satterthwaite levantou-se, algo aturdido. Ele conhe¬cia o nome de Aspasia Glen. Quem, em Londres, não o co¬nhecia? Anunciada inicialmente como a Mulher com o Lenço, ela fizera uma série de apresentações individuais que conquis¬taram Londres. Com a ajuda de um lenço, criava, rapidamente, vários personagens. A cada vez, o lenço era a coifa de uma frei¬ra, o xale de uma moleira, o pano de cabeça de uma camponesa, e uma centena de outras coisas. A cada personificação, Aspa¬sia Glen era totalmente diferente. Como artista, o Sr. Sat¬terthwaite rendia-lhe todos os tributos. Mas, acontece que nun¬ca lhe fora apresentado. Uma visita dela, àquela hora desusada, intrigou-o muitíssimo. Com algumas palavras de desculpas para os outros, deixou a sala e atravessou o vestíbulo, para chegar até a sala de visitas.    

A Srta. Glen estava sentada bem no centro de um grande canapé estofado de brocado dourado. Com sua pose, dominava a sala. O Sr. Satterthwaite percebeu imediatamente que ela que¬ria dominar a situação. Bem curiosamente, seu primeiro sen¬timento foi de repulsa. Fora um sincero admirador da arte de Aspasia Glen. Sua personalidade, transmitida a ele do palco, parecera-lhe atraente e simpática. Os efeitos haviam sido mais expectantes e sugestivos do que imperativos. Mas agora, diante da própria mulher, teve uma impressão totalmente diferente. Havia algo duro, ousado, poderoso, nela. Era alta e morena, possivelmente com 35 anos de idade. E era, sem dúvida, muito bonita, claramente certa de o ser.

— Deve perdoar-me esta visita pouco convencional, Sr. Satterthwaite — disse ela. Sua voz era cheia, rica e sedutora. — Não vou dizer que queria conhecê-lo há muito tempo, mas estou feliz com o pretexto. Quanto à vinda aqui, esta noite — ela riu — bem, quando eu quero uma coisa, sim¬plesmente não posso esperar.  Quando eu quero uma coisa, simplesmente preciso tê-la.

— Qualquer pretexto que tenha trazido aqui uma visitante tão bonita deve ser bem recebido por mim — disse o Sr. Satterthwaite, com uma galanteria à antiga.

— Como o senhor é gentil comigo — disse Aspasia Glen.

— Minha querida senhora — disse o Sr. Satterthwaite, — posso agradecer-lhe, aqui mesmo, pelo prazer que tantas vezes me deu... em minha cadeira na platéia.

Ela sorriu-lhe, deliciada.

— Vou diretamente à questão. Estava hoje na Harchester Galleries. Vi um quadro sem o qual eu, simplesmente, não poderia viver. Queria comprá-lo e não pude, porque o senhor já o comprara. Então... — fez uma pausa. — Eu o quero tanto — continuou. — Caro Sr. Satterthwaite, eu simplesmente preciso tê-lo. Trouxe meu talão de cheques. — Encarou-o esperançosamente. — Todos me dizem que o senhor é tão ter¬rivelmente bondoso. As pessoas são bondosas para mim, sabe. Isto é muito ruim para mim... mas é assim.

Então, esses eram os métodos de Aspasia Glen. O Sr. Satterthwaite estava fazendo, intimamente, frias críticas a esta ultrafeminilidade e esta pose de criança mimada. Devia atraí-lo, segundo ele supunha, mas não foi assim. Aspasia Glen cometera um erro. Julgara-o um diletante mais velho, facilmente lison¬jeado por uma mulher bonita. Mas o Sr. Satterthwaite, por trás de suas maneiras galantes, tinha uma mente arguta e crí¬tica. Via as pessoas muito bem como elas eram e não como queriam parecer-lhe. Viu diante dele não uma mulher encan¬tadora, querendo satisfazer um capricho, mas uma egoísta impiedosa, determinada a conseguir o que queria, por alguma razão obscura para ele. E ele sabia, com toda certeza, que Aspasia Glen não ia conseguir o que queria. Ele não ia dar-lhe o quadro do Arlequim Morto. Procurou rapidamente em sua mente a melhor maneira de frustrá-la, sem ser abertamente rude.

— Tenho certeza — disse — que todos lhe dão o que quer, sempre que podem, e ficam simplesmente deliciados por isso.

— Então, vai realmente ceder-me o quadro?

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, com vagar e penalizadamente.

— Infelizmente, é impossível. Veja só... — fez uma pausa. — Eu comprei aquele quadro para uma senhora. É um presente.

— Oh! Mas com certeza...

O telefone sobre a mesa tocou agudamente. Murmurando uma palavra de desculpas, o Sr. Satterthwaite pegou o receptor. Uma voz lhe falou, uma pequena e fria voz, que soava de muito longe.

— Posso falar com o Sr. Satterthwaite, por favor?

— Quem fala é o Sr. Satterthwaite.

— Sou Lady Charnley, Alix Charnley. É provável que não se lembre de mim, Sr. Satterthwaite; faz muitos anos que nos encontramos.

— Minha cara Alix! Claro que me lembro de você.

— Há algo que queria pedir-lhe.  Estive na Harchester Galleries, numa exposição de pintura, hoje. Havia um quadro chamado O Arlequim Morto. Talvez tivesse reconhecido... era o salão do terraço em Charnley. Eu... quero este quadro. Foi vendido ao senhor. — Fez uma pausa. — Sr. Satterthwaite, por razões pessoais, quero este quadro. Poderia revendê-lo a mim?

O Sr. Satterthwaite pensou: Ora vejam, isto é um milagre. Enquanto falava ao telefone, estava satisfeito de que Aspasia Glen só pudesse ouvir um lado da conversa.

— Se aceitar meu presente, querida senhora, ficarei muito feliz. — Ouviu uma exclamação aguda, por trás dele, e prosse¬guiu apressadamente. — Comprei-o para você. Deveras. Mas ouça, minha cara Alix, quero pedir-lhe que me faça um grande favor.

— Claro, Sr. Satterthwaite, estou tão agradecida.

Ele continuou:

— Quero que venha à minha casa imediatamente.

Houve uma ligeira pausa e, depois ela respondeu, com calma:

— Irei imediatamente.

O Sr. Satterthwaite depôs o receptor e virou-se para a Srta. Glen. Ela disse depressa, irritada:

— Estava falando do quadro?

— Sim — disse o Sr. Satterthwaite — a senhora a quem vou presenteá-lo estará aqui dentro de poucos minutos.

De repente, o rosto de Aspasia Glen abriu-se mais uma vez em sorrisos.

— Pode dar-me a chance de persuadi-la a me ceder o quadro?

— Vou dar-lhe a chance de persuadi-la.

Por dentro, ele estava estranhamente excitado. Encon¬trava-se no meio de um drama que se desenrolava por si, para um fim predeterminado. Ele, o observador, estava fazendo o papel de astro. Virou-se para a Srta. Glen.

— Virá até a outra sala comigo? Quero que conheça alguns amigos meus.

Manteve a porta aberta para ela passar, e, atravessando o vestíbulo, abriu a porta do salão dos fumantes.

— Srta. Glen — disse ele — deixe-me apresentá-la a um amigo meu, Coronel Monckton. Sr. Bristow, o pintor do quadro que tanto admira. — Então, sobressaltou-se quando uma terceira figura levantou-se da cadeira que deixara vazia junto à sua.

— Pensei que me esperava esta noite — disse o Sr. Quin. — Durante sua ausência, apresentei-me aos seus amigos. Estou feliz de ter podido aparecer.

— Meu querido amigo — disse o Sr. Satterthwaite — eu tenho feito o que posso, mas... — parou, diante da mirada ligeiramente irônica dos olhos escuros do Sr. Quin. — Deixe-me apresentá-lo. Sr. Harley Quin, Srta. Aspasia Glen.

Foi imaginação sua — ou ela fez um ligeiro movimento de recuo? Uma expressão estranha passou pelo rosto da mulher. De repente, Bristow irrompeu, impetuosamente:

— Já entendi.

— Entendeu o quê?

— Entendi o que estava me deixando perplexo. Existe uma semelhança, uma nítida semelhança. — Olhava com curiosidade para o Sr. Quin. — Não vê? — Virou-se para o Sr. Satterthwaite. — Não vê uma nítida semelhança com o Arle¬quim do meu quadro... o homem olhando pela janela?

Não era imaginação, daquela vez. Ele ouviu claramente a Srta. Glen prender de repente a respiração e viu até que ela recuava um passo.

— Disse-lhe que estava esperando alguém — falou o Sr. Satterthwaite. Falou com um ar de triunfo. — Devo dizer-lhes que meu amigo Sr. Quin é uma pessoa extraordinária. Pode desvendar mistérios. Pode fazer com que vejam coisas.

— É médium, senhor? — perguntou o Coronel Monckton, olhando para o Sr. Quin com ar de dúvida.

Este último sorriu e, lentamente, abanou a cabeça.

— O Sr. Satterthwaite exagera — disse tranqüilamente. — Uma ou duas vezes, quando estivemos juntos, ele fez algu¬mas deduções extraordinárias. Não sei por que as credita a mim. Por modéstia, suponho.

— Não, não — disse o Sr. Satterthwaite, todo agitado. — Não é assim. O senhor me faz ver coisas... coisas que eu deveria estar vendo todo o tempo... que realmente vi, mas sem saber que as vira.

— Parece-me complicado como o diabo — disse o Co¬ronel Monckton.

— Não, na verdade — disse o Sr. Quin. — O problema é que não nos contentamos em apenas ver as coisas... damos interpretações erradas às coisas que vemos.

Aspasia Glen virou-se para Frank Bristow.

— Quero saber — disse nervosamente — o que lhe pôs na cabeça a idéia de pintar aquele quadro.

Bristow encolheu os ombros.

— Não sei bem — confessou. — Algo naquele lugar, em Charnley quero dizer, estimulou minha imaginação. O grande salão vazio, o terraço lá fora, a idéia de fantasmas e essas coisas, suponho. Acabara de ouvir contar a história do falecido Lorde Charnley, que se suicidara. Vamos supor que alguém esteja morto, mas seu espírito continue a viver? Deve ser estranho, sabe. Seria possível ficar do lado de fora, no terraço, olhando pela janela o próprio corpo morto. Então, a pessoa veria tudo.

— Que quer dizer? — perguntou Aspasia Glen. — Veria tudo?

— Bem, veria o que aconteceu. Veria...

A porta se abriu e o mordomo anunciou Lady Charnley.

O Sr. Satterthwaite foi recebê-la. Há quase 13 anos não a via. Lembrava-se dela como era antigamente, uma moça ávida, ardente. E agora ele via... uma Dama Gelada. Muito clara, muito pálida, com um ar de quem vai à deriva, em vez de caminhar, um floco de neve impulsionado ao acaso pelo vento gelado. Havia algo irreal nela. Tão fria, tão distante.

— Foi muita bondade sua, vir aqui — disse o Sr. Sat¬terthwaite.

Conduziu-a. Ela fez um meio gesto de reconhecimento para a Srta. Glen e depois parou, quando a outra não teve ne¬nhuma resposta.

— Sinto muitíssimo — murmurou — mas tenho a cer¬teza de tê-la encontrado em alguma parte, não?

— Talvez nos palcos — disse o Sr. Satterthwaite. — Esta é a Srta. Aspasia Glen, Lady Charnley.

— Estou muito feliz em conhecê-la, Lady Charnley — disse Aspasia Glen.

Sua voz teve, de repente, um leve sotaque transatlântico. O Sr. Satterthwaite lembrou-se de uma de suas várias personifi¬cações no teatro.

— O Coronel Monckton você conhece — continuou o Sr. Satterthwaite — e este é o Sr. Bristow.

— O Sr. Bristow e eu também já nos encontramos — disse ela, e sorriu um pouco. — Num trem.

— E o Sr. Harley Quin.

Ele a observou intensamente, mas, desta vez, não houve sinal de reconhecimento. Puxou uma cadeira para ela e depois, sentando-se também, pigarreou e falou um tanto nervosamente:

— Eu... esta é uma reunião um tanto fora do comum. Centraliza-se em torno deste quadro. Eu... eu acho que, se quiséssemos, poderíamos esclarecer as coisas.

— Não vai fazer uma sessão espírita, não é, Satterthwaite? — perguntou o Coronel Monckton. — Está muito estranho esta noite.

— Não — disse o Sr. Satterthwaite. — Não exatamente uma sessão espírita. Mas meu amigo, o Sr. Quin, acredita, e eu concordo, que podemos, examinando o passado, ver as coisas como realmente eram, e não como pareciam ser.

— O passado? — disse Lady Charnley.

— Estou falando do suicídio de seu marido, Alix. Sei que isto a faz sofrer...

— Não — disse Alix Charnley — não me faz sofrer. Nada me faz sofrer, agora.

O Sr. Satterthwaite pensou nas palavras de Frank Bristow: “Ela não era inteiramente real, sabe. Espectral. Como uma das personagens que saem das colinas, nos contos de fadas gaélicos.”

“Espectral”, assim ele a classificara. Isto a descrevia muito bem. Uma sombra, o reflexo de outra coisa. Onde, então, estava a Alix real? E sua mente respondeu, depressa — No passado. Separada de nós por 14 anos.

— Minha querida — disse ele. — Você me assusta. É como a Dama Chorosa com o Jarro de Prata.

Plaft! A xícara de café, na mesa, junto ao cotovelo de Aspasia Glen, caiu e se espatifou no chão. O Sr. Satterthwaite interrompeu as desculpas. Pensou: — Estamos chegando mais perto, estamos chegando mais perto a cada minuto. Mais perto de quê?

— Vamos fazer nossas mentes voltarem àquela noite, há 14 anos — disse ele. — Lorde Charnley matou-se. Por que razão? Ninguém sabe.

Lady Charnley mexeu-se ligeiramente na cadeira.

— Lady Charnley sabe — disse Frank Bristow, abrupta¬mente.

— Tolice — disse o Coronel Monckton, e depois parou, franzindo o cenho para ela, com curiosidade.

Ela estava olhando para o artista. Era como se ele lhe arrancasse as palavras. Falou, balançando a cabeça lentamente, e sua voz era como um floco de neve, fria e suave.

— Sim, tem absoluta razão. Eu sei. É por isso que, en¬quanto eu viver, não poderei jamais voltar a Charnley. É por isso que, quando meu filho Dick pede que eu abra a casa e viva lá novamente, digo-lhe que é impossível.

— Poderá dizer-nos a razão, Lady Charnley? — pergun¬tou o Sr. Quin.

Ela olhou para ele. Então, como se estivesse hipnotizada, falou tão tranqüila e naturalmente como uma criança.

— Vou contar-lhe, se assim o deseja. Nada parece ter muita importância agora. Descobri uma carta entre os papéis dele, e a destruí.

— Que carta? — perguntou o Sr. Quin.

— A carta de uma moça... daquela pobrezinha. Ela era a governanta dos filhos dos Merriams. Ele havia... sim, ele fizera amor com ela, enquanto era meu noivo, pouco antes de nos casarmos. E ela... ela ia ter um bebê. Ela escreveu dizendo-lhe isso, e que ia me contar tudo. Então, veja, ele se matou.

Olhou em torno, para todos eles, cansada e distraidamente, como uma criança repetindo uma lição demasiado conhecida.

O Coronel Monckton assoou o nariz.

— Meu Deus — disse. — Então foi isso. Bem, explica as coisas como uma vingança.

— Explica mesmo? — disse o Sr. Satterthwaite. — Não explica nada. Não explica por que o Sr. Bristow pintou aquele quadro.

— Que quer dizer?

O Sr. Satterthwaite olhou para o Sr. Quin como que em busca de encorajamento e, aparentemente, conseguiu-o, pois continuou:

— Sim, eu sei que todos podem achar uma loucura, mas aquele quadro é o centro de tudo. Todos estamos aqui, esta noite, por causa daquele quadro. Aquele quadro tinha de ser pintado... isto é o que eu quero dizer.

— Refere-se à influência sobrenatural do salão de car¬valho — começou o Coronel Monckton.

— Não — disse o Sr. Satterthwaite. — Não do salão de carvalho. O salão do terraço. É isto!  O espírito do homem morto de pé, do lado de fora da janela, olhando para dentro e vendo seu próprio cadáver no chão.

— O que ele não poderia ter feito — disse o Coronel — porque o corpo estava no salão de carvalho.

— Vamos supor que não estava — disse o Sr. Satterth¬waite. — Vamos supor que estava exatamente onde o Sr. Bristow o viu, na sua imaginação, quero dizer, sobre as lajes brancas e pretas, em frente à janela.

— Está dizendo tolices — falou o Coronel Monckton. — Se estivesse lá, não o teríamos encontrado no salão de carvalho.

— Não, a não ser que alguém o carregasse para lá — disse o Sr. Satterthwaite.

— E, nesse caso, como poderíamos ter visto Charnley entrando pela porta do salão de carvalho? — perguntou o Coronel Monckton.

— Bem, você não viu o rosto dele, viu? — perguntou o Sr. Satterthwaite. — Quero dizer, viu um homem entrando no salão de carvalho, fantasiado, eu suponho.

— Roupa de brocado e uma peruca — disse Monckton.

— Exatamente isto. Pensaram que era Lorde Charnley porque a moça chamou-o de Lorde Charnley.

— E porque, depois que ele entrou, poucos minutos mais tarde, lá estava apenas Lorde Charnley, morto. Não pode fugir a isso, Satterthwaite.

— Não — disse o Sr. Satterthwaite, desencorajado. — Não, a menos que houvesse um esconderijo de algum tipo.

— Não estava dizendo algo a respeito de existir um nicho na parede daquele salão? — interveio Frank Bristow.

— Oh! — exclamou o Sr. Satterthwaite. — Supondo-se... — Acenou com uma mão, pedindo silêncio, e a outra ele colocou sobre a testa. — Suponhamos que alguém tenha morto Lorde Charnley com um tiro. Matou-o no salão do terraço. De¬pois, ele — e outra pessoa — arrastaram o corpo para o salão de carvalho. Deixaram-no caído lá, com uma pistola perto da mão direita. Agora, vamos passar à etapa seguinte. Era preciso que parecesse absolutamente certo que Lorde Charnley suici¬dara-se. Acho que a coisa poderia ser feita muito facilmente. O homem com traje de brocado e peruca passa pelo vestí¬bulo e entra pela porta do salão de carvalho e alguém, para garantir a veracidade da cena, chama-o de Lorde Charnley, do alto da escada. Ele entra, tranca ambas as portas e dá um tiro nos painéis de madeira. Já havia buracos de bala naquele apo¬sento, lembrem-se; mais um não seria notado. Em seguida, esconde-se tranqüilamente no compartimento secreto. As portas são arrombadas e as pessoas entram correndo. Parece certo que Lorde Charnley suicidou-se. Nenhuma outra hipótese é, sequer, aventada.

— Bem, acho que isto é lenga-lenga — disse o Coronel Monckton. — Esquece-se de que Charnley tinha um motivo suficiente para o suicídio.

— Uma carta encontrada depois — disse o Sr. Satterth¬waite. — Uma carta mentirosa e cruel, escrita por uma atrizinha muito inteligente e inescrupulosa que pretendia, um dia, ser ela própria Lady Charnley.

— Que quer dizer?

— Quero dizer, uma moça que era cúmplice de Hugo Charnley — disse o Sr. Satterthwaite. — Você sabe, Monckton, todos sabem, aquele homem era um patife. Ele tinha como coisa certa que o título seria seu. — Virou-se abruptamente para Lady Charnley. — Como era o nome da moça que escre¬veu aquela carta?

— Monica Ford — disse Lady Charnley.

— Foi Monica Ford, Monckton, quem chamou Lorde Charnley do alto da escada?

— Sim, agora que está falando nisso, parece-me que foi.

— Oh, é impossível — disse Lady Charnley. — Eu... eu fui falar-lhe a respeito. Ela disse-me que era tudo verdade. Só a vi aquela vez, depois, mas com certeza ela não poderia estar representando todo o tempo.

O Sr. Satterthwaite olhou para Aspasia Glen, do outro lado da sala.

— Acho que podia — disse tranqüilamente.  — Acho que ela tinha os predicados de uma atriz completa.

— Há uma coisa de que não falou — disse Frank Bris¬tow. — Haveria sangue no piso do salão do terraço. Tinha de haver. Eles não poderiam limpá-lo apressadamente.

— Não — admitiu o Sr. Satterthwaite. — Mas há uma coi¬sa que poderiam ter feito... uma coisa que só levaria poucos segundos.  Poderiam atirar sobre as manchas de sangue o tapete Bockhara. Ninguém havia visto o tapete Bockhara no salão do terraço, antes daquela noite.

— Acredito que tem razão — disse Monckton — mas, de qualquer maneira, às manchas teriam de ser limpas, mais cedo ou mais tarde.

— Sim — disse o Sr. Satterthwaite — no meio da noite. Uma mulher com um jarro e uma bacia poderia descer as escadas e limpar as manchas de sangue bem facilmente.

— Mas, vamos supor que alguém a visse.

— Não teria importância — disse o Sr. Satterthwaite. — Estou falando, agora, das coisas como são. Eu disse uma mu¬lher com um jarro e uma bacia. Mas se eu tivesse dito a Dama Chorosa com um Jarro de Prata, isto é o que pareceria ser. — Levantou-se e se aproximou de Aspasia Glen. — Foi o que fez, não foi? — disse ele. — Agora, chamam-na A Mulher do Lenço, mas foi naquela noite que você desempenhou seu pri¬meiro papel, o de Dama Chorosa com o Jarro de Prata. Eis por que você derrubou a xícara de café da mesa, agora há pouco. Você ficou com medo, quando viu aquele quadro. Pensou que alguém sabia.

Lady Charnley estendeu uma mão branca e acusadora.

— Monica Ford — sussurrou. — Eu a reconheço, agora.

Aspasia Glen deu um pulo, com um grito. Afastou para um lado, com um repelão, o pequeno Sr. Satterthwaite e ficou em pé, toda trêmula, diante do Sr. Quin.

— Então, eu tinha razão. Alguém sabia mesmo! Oh, eu não me deixei enganar por essa tolice, esse fingimento de esta¬rem descobrindo as coisas. — Apontou para o Sr. Quin. — Você estava lá. Você estava do lado de fora da janela, olhando para dentro. Você viu o que fizemos, Hugo e eu. Eu sabia que havia alguém olhando para dentro; senti o tempo todo. E, no entanto, quando ergui os olhos, não havia ninguém lá. Eu sabia que alguém nos espiava. Pensei, um momento, que vira um rosto na janela olhando. Isto me atemorizou, todos esses anos. E então eu vi aquele quadro, com você à janela, e reconheci seu rosto. Você sabia, durante todos esses anos. Por que quebra o silêncio agora? Só isto eu quero saber.

— Talvez para que o morto possa descansar em paz — disse o Sr. Quin.

De repente, Aspasia Glen fez uma investida em direção à porta e de lá lançou algumas palavras de desafio.

— Façam o que quiserem. Há testemunhas bastantes para o que andei dizendo, por Deus. Mas não me incomodo, não me incomodo. Eu amava Hugo e o ajudei nesse negócio horrível e ele me mandou às favas, depois. Morreu no ano passado. Podem colocar a polícia no meu rastro, se quiserem, mas, como disse aquele Sujeitinho mirrado, sou uma atriz muito boa. Eles vão ter dificuldade em me encontrar. — Bateu a porta ruidosamente atrás de si e, um momento depois, ouviram também a porta da frente bater.

— Reggie — exclamou Lady Charnley. — Reggie. — As lágrimas escorriam pelo seu rosto. — Oh, meu querido, meu querido, posso voltar para Charnley, agora.  Posso viver lá com Dickie. Posso dizer a ele que seu pai era o melhor, o mais esplêndido homem do mundo.

— Precisamos fazer sérias consultas para saber o que fazer com relação à questão — disse o Coronel Monckton. — Alix, minha cara, se você me permitir levá-la em casa, fi¬carei muito feliz de trocar algumas palavras a respeito do as¬sunto.

Lady Charnley ergueu-se. Aproximou-se do Sr. Satterth¬waite e, colocando ambas as mãos sobre seus ombros, beijou-o muito suavemente.

— É maravilhoso estar viva novamente, depois de ter permanecido morta por tão longo tempo — disse ela. — Era como estar morta, sabe. Obrigada, querido Sr. Satterthwaite. — Saiu da sala com o Coronel Monckton. O Sr. Satterthwaite seguiu-os com o olhar. Um resmungo de Frank Bristow, a quem ele esquecera, fez com que se virasse bruscamente.

— É uma linda criatura — disse Bristow, amuado. — Mas não é mais tão interessante quanto antes — acrescentou tristemente.

— Aqui fala o artista — disse o Sr. Satterthwaite.

— Bem, ela não é a mesma — disse Bristow. — Su¬ponho que só encontraria uma frieza estudada, se decidisse intrometer-me em Charnley. Não gosto de ir aonde não sou desejado.

— Meu caro rapaz — disse o Sr. Satterthwaite — se pensar um pouco menos na impressão que está causando nas outras pessoas, será, eu acho, mais sábio e mais feliz. Também fará bem se eliminar de sua mente algumas noções muito antiquadas, uma das quais é a de que a linhagem tem alguma significação, em nossas modernas condições. Você é um desses rapazes robustos a quem as mulheres sempre acham simpáticos, e tem possivelmente, se não com certeza, gênio. Apenas diga isto para si mesmo duas vezes antes de dormir, todas as noites, e dentro de três meses vá visitar Lady Charnley, em Charnley. É o conselho que lhe dou, com considerável expe¬riência da vida.

Um sorriso muito encantador espalhou-se, de repente, pelo rosto do artista.

— O senhor tem sido tremendamente bom para mim — disse ele. Pegou a mão do Sr. Satterthwaite e torceu-a, num aperto poderoso. — Estou gratíssimo. Preciso ir, agora. Muito obrigado por uma das noites mais extraordinárias que já tive.

Olhou em torno, como se fosse dizer até logo a alguém mais, e então sobressaltou-se.

— Veja, seu amigo partiu. Não o vi sair. É um sujeito bem estranho, não?

— Ele aparece e desaparece muito depressa — disse o Sr. Satterthwaite. — É uma de suas características. A gente nem sempre vê quando ele vai, ou vem.

— Como o Arlequim — disse Frank Bristow — ele é invisível.

E riu, com vontade, de sua própria piada.

 

O Pássaro de Asa Quebrada

O SR. SATTERTHWAITE olhou pela janela. Chovia fortemente. Ele tremeu de frio. Muito poucas casas de campo, refletiu, eram realmente bem aquecidas. Alegrava-o pensar que dentro de poucas horas estaria seguindo, velozmente, para Londres. Quando se ultrapassa os 60 anos de idade, Londres é, de longe, o melhor lugar.

Sentia-se um pouquinho velho e patético. Os hóspedes da casa eram na maioria tão jovens! Quatro acabavam de en¬trar na biblioteca, para uma mesa espírita. Mas ele não se divertia nem um pouco com a monótona contagem das letras e o costumeiro amontoado de letras sem significado que sem¬pre resultava.

Sim, Londres era o melhor lugar para ele. Estava satis¬feito de ter recusado o convite de Madge Keeley quando ela lhe telefonara para chamá-lo a Laidell, há meia hora. Uma jovem adorável, certamente, mas Londres era melhor.

O Sr. Satterthwaite tornou a tremer de frio e lembrou-se de que o fogo na biblioteca era geralmente bom. Abriu a porta e aventurou-se, cautelosamente, para dentro da sala es¬cura.

— Se não estou atrapalhando...

— Era N, ou M? Teremos de contar novamente. Não, claro que não, Sr. Satterthwaite. Sabe, as coisas mais incríveis estão acontecendo. O espírito diz que o nome dela é Ada Spiers e que John aqui vai casar com alguém chamado Gladys Bun quase imediatamente.

O Sr. Satterthwaite sentou-se numa grande poltrona em frente à lareira. As pálpebras descaíam-lhe sobre os olhos e ele cochilava. De vez em quando, voltava à consciência, ouvin¬do trechos de conversa.

— Não pode ser P A B Z L — a não ser que se trate de um russo. John, você está empurrando. Eu vi. Acho que é um novo espírito chegando.

Outro intervalo de cochilo. Então, um nome causou-lhe um sobressalto que o despertou.

— QUIN. É isso? — Sim, deu uma pancadinha sig¬nificando sim.  — Quin. Tem uma mensagem para alguém aqui? Sim. Para mim? Para John? Para Sarah? Para Evelyn? Não... mas não há mais ninguém. Oh!  É para o Sr. Sat¬terthwaite, talvez? Diz “Sim”, Sr. Satterthwaite. É uma mensa¬gem para o senhor.

— O que diz?

O Sr. Satterthwaite estava bem acordado agora, sentado erecto na cadeira, os olhos brilhando.

A mesa oscilou e uma das moças contou.

— L A I... não pode ser, não faz sentido. Nenhuma pa¬lavra começa por L A I.

— Continue — disse o Sr. Satterthwaite, e o tom de co¬mando em sua voz foi tão acentuado que obedeceram sem fazer perguntas.

— L A I D L...  e outro L. Oh!  parece que terminou.

— Continue.

— Diga-nos mais, por favor.

Uma pausa.

— Parece que não há nada mais. A mesa está comple¬tamente parada. Que tolice.

— Não — disse o Sr. Satterthwaite pensativamente. — Não acho que seja tolice.

— Levantou-se e saiu da sala. Foi direto para o telefone. Agora, estava falando.

— Posso falar com a Srta. Keeley? É você, Madge, querida? Mudei de idéia e quero, se me for permitido, aceitar seu gentil convite. Não é tão urgente quanto eu pensava, voltar para a cidade. Sim... sim... chegarei a tempo para o jantar.

Depôs o receptor, com um estranho rubor nas faces mur¬chas. O Sr. Quin... o misterioso Sr. Harley Quin. O Sr. Sat¬terthwaite contou nos dedos as vezes em que entrara em con¬tato com esse homem dos mistérios. Onde entrava o Sr. Quin... coisas aconteciam! O que ocorrera, ou iria ocorrer, em Laidell?

Fosse o que fosse, haveria trabalho para ele, Sr. Satterth¬waite. De um modo ou de outro, teria uma parte ativa a de¬sempenhar. Estava certo disso.

Laidell era uma casa grande. Seu proprietário, David Keeley, era um desses homens quietos, com personalidade inde¬terminada, que parecem ser uma parte da mobília. O fato desses homens não aparecerem nada tem a ver com capacidade mental: David Keeley era um matemático dos mais brilhantes e escrevera um livro totalmente incompreensível para 99% da humanidade. Mas, como tantos outros homens de intelecto brilhante, não irradiava nenhum vigor ou magnetismo corpo¬ral. Corria a piada de que David Keeley era um verdadeiro “homem invisível”. Os criados esqueciam de servir-lhe os legumes e os convidados de dizer como vai, ou até logo.

Sua filha, Madge, era muito diferente. Uma jovem boa e direita, explodindo energia e vida. Completa, saudável e ex¬tremamente bonita.

Foi ela quem recebeu o Sr. Satterthwaite, quando este chegou.

— Que gentileza de sua parte, ter vindo... afinal de con¬tas.

— Foi maravilhoso de sua parte ter deixado que eu mudasse de idéia. Madge, minha querida, você está com ótima aparência.

— Oh, eu estou sempre bem.

— Sim, eu sei. Porém, é mais de que isso. Você parece... bem, florescente, é a palavra que me acode. Alguma coisa aconteceu, minha querida? Algo... bem, especial?

Ela riu. Corou um pouco.

— É terrível, Sr. Satterthwaite. O senhor sempre adivinha as coisas.

Ele pegou-lhe a mão.

— Então é isso, não é? O Príncipe Encantado apareceu?

Era uma expressão antiquada, mas Madge não fez obje¬ções. Até gostava das maneiras antiquadas do Sr. Satterthwaite.

— Suponho que sim. Mas não era para ninguém saber. É um segredo. Mas eu realmente não me importo que o senhor saiba, Sr. Satterthwaite. O senhor é sempre tão bondoso e sim¬pático.

O Sr. Satterthwaite adorava apadrinhar romances. Era sentimental e vitoriano.

— Não devo perguntar quem é o felizardo? Bem, então só posso dizer que espero seja merecedor da honra conferida por você.

Nada feito, meu velho Sr. Satterthwaite — pensou Madge.

— Oh, nós nos daremos tremendamente bem juntos, acho — disse ela. — Veja, gostamos de fazer as mesmas coisas e isto é tão importante, não é? Realmente, temos muitíssima coisa em comum... e sabemos tudo a respeito um do outro. Na verdade, é coisa de muito tempo. Isto dá à pessoa uma ótima sensação de segurança, não é?

— Sem dúvida — disse o Sr. Satterthwaite. — Mas minha experiência me diz que nunca se pode realmente saber tudo a respeito de qualquer outra pessoa. Isto faz parte do interesse e do encanto da vida.

— Oh, eu assumo os riscos — disse Madge, rindo, e ambos subiram para trocar de roupa para o jantar.

O Sr. Satterthwaite atrasou-se. Não trouxera criado de quarto e ver suas coisas retiradas da mala por um estranho sempre o deixara atrapalhado. Quando desceu, encontrou todos reunidos e, à maneira moderna, Madge apenas disse:

— Oh, aqui está o Sr. Satterthwaite. Estou morta de fome. Vamos.

Foi mostrando o caminho, ao lado de uma mulher de forte personalidade. Tinha uma voz muito nítida, meio inci¬siva, e seu rosto era bem delineado, quase bonito.

— Como vai, Sr. Satterthwaite? — disse o Sr. Keeley.

O Sr. Satterthwaite deu um pulo.

— Como vai? Desculpe, mas não o vi.

— Ninguém me vê — disse o Sr. Keeley tristemente.

Chegaram. A mesa era baixa e oval, de mogno. O Sr. Satterthwaite foi colocado entre sua jovem anfitriã e uma moça baixa e morena — uma moça muito enérgica, com voz alta e uma risada ressoante e decidida que expressava mais a de¬terminação de estar alegre a qualquer preço de que uma ver¬dadeira jovialidade. Seu nome parecia ser Doris e era o tipo de jovem que o Sr. Satterthwaite mais detestava. Ela não ti¬nha, segundo ele considerava, nenhuma justificativa artística para existir.

Em frente a Madge, estava um homem de cerca de 30 anos, cuja semelhança com a mulher de cabelos grisalhos pro¬clamava-os mãe e filho.

Perto dele...

O Sr. Satterthwaite prendeu a respiração.

Não sabia o que era exatamente. Não era beleza. Era algo mais — algo muito mais intangível e indefinível de que a beleza.

Ela ouvia a conversa formal e um tanto cansativa do Sr. Keeley com a cabeça meio inclinada para um lado. Estava lá, segundo parecia ao Sr. Satterthwaite — e, no entanto, não. estava! Era, de algum modo, muito menos concreta de que qualquer outra pessoa sentada em torno da mesa oval. Algo na inclinação de seu corpo era belo — era mais do que belo. Ela ergueu os olhos. Seus olhos encontraram, naquele momento, os do Sr. Satterthwaite, do outro lado da mesa... e a palavra que ele procurava lhe acudiu.

Sortilégio — era isso. Ela tinha a qualidade do sortilégio. Poderia ser uma daquelas criaturas apenas meio humanas — uma das Pessoas Escondidas dos Morros Ocos. Fazia todos os outros parecerem meio reais demais.

Mas, ao mesmo tempo, de maneira estranha, provocou-lhe piedade. Era como se a semi-humanidade fosse uma des¬vantagem para ela. Procurou uma frase, e encontrou-a. Um pássaro de uma asa quebrada, pensou o Sr. Satterthwaite.

Satisfeito, voltou sua atenção para o assunto escoteiras e esperou que a moça, Doris, não tivesse observado sua dis¬tração. Quando ela se virou para o homem do outro lado, um homem que o Sr. Satterthwaite pouco notara, ele também se voltou para Madge.

Quem é aquela senhora sentada junto de seu pai? — perguntou em voz baixa.

— A Sra. Graham? Oh, não, refere-se a Mabelle. Não a conhece? Mabelle Annesley. Era uma Clydesley... um dos mal afortunados Clydesleys.

Ele estremeceu. Os mal afortunados Clydesleys. Ele lem¬brava-se. Um irmão suicidara-se com um tiro, uma irmã afo¬gara-se, outra morrera num terremoto. Uma família estra¬nha, predestinada. A moça devia ser o membro mais jovem.

Seus pensamentos foram interrompidos, de repente. A mão de Madge tocou a sua, sob a mesa. Todos os demais estavam conversando. Ela inclinou a cabeça levemente para a esquerda.

— É aquele — murmurou, sem maiores explicações.

O Sr. Satterthwaite sacudiu a cabeça, rápida e compreensivamente. Então, esse jovem Graham era o homem escolhido por Madge. Bem, ela não poderia ter feito melhor escolha, se¬gundo as aparências — e o Sr. Satterthwaite era um sagaz observador. Um jovem agradável, amável, um tanto prosaico. Faziam um belo par. Nenhum dos dois seria capaz de perder a cabeça: boa, saudável e sociável gente jovem.

Em Laidell, os hábitos eram à antiga. As senhoras saíram primeiro da sala de jantar. O Sr. Satterthwaite aproximou-se de Graham e começou a falar-lhe. Sua avaliação do jovem foi confirmada, mas algo lhe chamou a atenção por não combinar inteiramente com o tipo. Roger Graham estava distraído, sua mente parecia distante e a mão tremia-lhe quando ele colocava o copo novamente sobre a mesa.

Ele tem alguma coisa na cabeça — pensou o Sr. Satterth¬waite, perspicazmente. Provavelmente, nem de longe tão im¬portante quanto ele pensa que é. De qualquer maneira, fico imaginando o que será.

O Sr. Satterthwaite tinha o hábito de engolir algumas pílulas digestivas depois das refeições. Tendo esquecido de trazê-las consigo ao descer, subiu ao quarto e pegou-as.

A caminho da sala de jantar, passou pelo longo corredor do térreo. No meio, havia um aposento conhecido como sala do terraço. Quando o Sr. Satterthwaite olhou através do seu pórtico aberto, ao passar, parou de repente.

O luar invadia a sala. As janelas com treliças davam-lhe um estranho aspecto simétrico. Uma figura estava sentada no parapeito baixo, ligeiramente inclinada para um lado e tan¬gendo suavemente as cordas de uma guitarra havaiana; não em ritmo de jazz, mas num ritmo muito mais antigo, a cadên¬cia do cavalgar de cavalos encantados, em encantadas colinas.

O Sr. Satterthwaite ficou fascinado. Ela usava um ves¬tido solto, de gaze azul escura, rufado e pregueado de modo a imitar as penas de um pássaro. Curvou-se sobre o instru¬mento, cantando baixinho.

Ele entrou na sala... lentamente, passo a passo. Estava perto quando ela ergueu os olhos e o viu. Não ficou assus¬tada, ele observou, nem pareceu surpreendida.

— Espero não me estar intrometendo — começou ele.

— Por favor, sente-se.

Ele sentou-se perto, numa cadeira de carvalho enverni¬zada. Ela cantarolava baixinho, com os lábios cerrados.

— Esta noite está cheia de magia — disse ela. — Não acha?

Sim, havia muita magia.

— Quiseram que eu fosse pegar minha guitarra — ex¬plicou. — E quando passei por aqui achei que seria maravi¬lhoso ficar sozinha... no escuro, com a lua.

— Então, eu... — o Sr. Satterthwaite soergueu-se, mas ela o deteve.

— Não vá embora. O senhor... o senhor combina com tudo isso, de alguma maneira. É estranho, mas é verdade.

Ele sentou-se novamente.

— Tive um entardecer um tanto estranho — disse ela. — Fui ao bosque esta tarde, e encontrei um homem. Um ho¬mem muito estranho, alto e moreno, parecendo alma perdida. O sol estava declinando e sua luz, filtrada através das árvores, fazia com que ele parecesse uma espécie de arlequim.

— Ah! — o Sr. Satterthwaite inclinou-se para a frente. Seu interesse aumentou.

— Eu queria falar-lhe. Ele parecia-se muito com alguém que conheço. Mas perdi-o de vista entre as árvores.

— Acho que o conheço — disse o Sr. Satterthwaite.

— É mesmo? Ele é... interessante, não é?

— Sim, ele é interessante.

Houve uma pausa. O Sr. Satterthwaite estava perplexo. Havia algo, sentia, que precisava fazer — e não sabia o que era. Mas, com certeza, relacionava-se com aquela moça. Disse, meio desajeitadamente:

— Algumas vezes, quando alguém se sente infeliz... quer fugir...

— Sim. É verdade. — Ela parou, de repente. — Oh! Entendo o que quer dizer. Mas está enganado. É justamente o contrário. Queria ficar sozinha porque me sinto feliz.

— Feliz?

— Tremendamente feliz.

Ela falava muito tranqüilamente, mas o Sr. Satterthwaite levou um choque. O que a estranha moça queria dizer com ser feliz era diferente do que Madge Keeley expressara com as mesmas palavras. Felicidade, para Mabelle Annesley, sig¬nificava uma espécie de êxtase vivido e intenso — algo que ultrapassava o humano. Ele assustou-se um pouco.

— Eu... não sabia — disse ele desajeitadamente.

— Claro que o senhor não podia saber. E não é... uma coisa presente. Não sou feliz ainda, mas vou ser. — Inclinou-se para a frente. — Sabe como é ficar no meio de um bosque, um grande bosque com sombras negras e árvores muito cerra¬das, um bosque do qual talvez não se consiga sair nunca mais...  e então, de repente, exatamente em sua frente, a pessoa vê a região de seus sonhos. Clara e linda... é preciso apenas sair de entre as árvores e da escuridão, para alcan¬çá-la.

— Tantas coisas parecem belas — disse o Sr. Satterth¬waite — apenas enquanto não as alcançamos.  Algumas das coisas mais feias do mundo parecem as mais belas.

Ouviu-se o ruído de uma passada. O Sr. Satterthwaite virou a cabeça. Um homem louro, com um rosto estúpido, meio insípido, estava ali. Era o homem que o Sr. Satterthwaite pouco notara, à mesa de jantar.

— Estão esperando você, Mabelle — disse.

Ela levantou-se; a expressão sumira de seu rosto; sua voz era neutra e calma.

— Já vou, Gerard — disse. — Estava conversando com o Sr. Satterthwaite.

Ela saiu da sala, seguida pelo Sr. Satterthwaite. Ele virou a cabeça para trás, enquanto caminhava, e viu a expressão no rosto do marido dela, um olhar faminto e desesperado. Sor¬tilégio — pensou o Sr. Satterthwaite. — Ele sente isto perfei¬tamente. Pobre sujeito... pobre sujeito.

A sala de visitas estava bem iluminada. Madge e Doris Coles repreenderam-na aos gritos.

— Mabelle, sua malvada, você demorou um século!

Ela sentou-se num banquinho, afinou a guitarra e can¬tou. Todos a acompanharam. Será possível — pensou o Sr. Satterthwaite — que tantas canções idiotas tenham sido escritas a respeito de Meu Querido?

Mas teve de admitir que as melodias sincopadas e lamentosas eram tocantes. Embora, claro, não se comparassem com a antiga valsa.

A atmosfera ficou muito enfumaçada. O ritmo sincopado prosseguia.

Nenhuma conversa — pensou o Sr. Satterthwaite. — Nenhuma música boa. Nenhuma paz. — Queria que o mundo não se houvesse tornado definitivamente tão barulhento.

De repente, Mabelle Annesley parou, sorrindo para ele, do outro lado da sala, e começou a cantar uma canção de Grieg.

“Meu cisne — meu cisne encantado...”

Era uma das favoritas do Sr. Satterthwaite. Gostou da nota de surpresa ingênua, no final.

“Era apenas um cisne, então? Apenas um cisne?”

Depois disso, o grupo se desfez. Madge ofereceu bebidas, enquanto seu pai pegava a guitarra abandonada e começava a tocá-la distraidamente. O grupo trocou boas-noites, aproxi¬mando-se, cada vez mais, da porta. Falavam todos ao mesmo tempo. Gerard Annesley esgueirou-se, sem dar na vista, dei¬xando os demais.

Do lado de fora da sala de jantar, o Sr. Satterthwaite deu à Sra. Graham um boa-noite cerimonioso. Havia duas escadas, uma perto e a outra no final de um longo corredor. Foi por esta última que o Sr. Satterthwaite chegou ao seu quarto. A Sra. Graham e seu filho subiram pela escada próxima, onde já haviam sido precedidos pelo quieto Gerard Annesley.

— É melhor você pegar sua guitarra, Mabelle — disse Madge. — Vai esquecê-la amanhã de manhã, se não fizer isso. Afinal, partirá tão cedo!

— Vamos, Sr. Satterthwaite — disse Doris Coles, agar¬rando-o fortemente pelo braço. — Cedo para a cama, etc.

Madge pegou-o pelo outro braço e os três correram pelo corredor, fazendo Doris estourar em gargalhadas. Fize¬ram uma pausa no final, para esperar David Keeley, que os seguia em marcha bem mais lenta, apagando as luzes elé¬tricas à sua passagem. Os quatro subiram a escada juntos.

O Sr. Satterthwaite preparava-se justamente para descer para a sala de refeições, a fim de tomar o café da manhã, quando deram uma pequena pancada na porta e Madge Keeley entrou. Seu rosto estava mortalmente pálido e ela tremia da cabeça aos pés.

— Oh! Sr. Satterthwaite.

— Minha querida filha, o que aconteceu? — Pegou na mão dela.

— Mabelle ... Mabelle Annesley ...

— Sim?

O que acontecera? O quê? Algo terrível — ele sabia. Madge mal conseguia falar.

— Ela... ela enforcou-se, na noite passada. Do lado de dentro da porta. Oh! É horrível demais. — Interrompeu-se, soluçando.

Enforcou-se. Impossível! Incompreensível!

Disse a Madge algumas palavras de consolo, convencio¬nais, e desceu correndo as escadas. Encontrou David Keeley, que parecia perplexo e impotente.

— Telefonei para a polícia, Satterthwaite. Aparentemen¬te, era o que tinha de ser feito. Foi o que o médico disse. Ele está justamente acabando de examinar o... o... meu Deus, é um negócio terrível. Ela devia estar desesperadamente infe¬liz... para fazer a coisa daquela maneira. Estranho, aquela canção na noite passada. A Canção do Cisne, hein? Ela pa¬recia até um cisne... um cisne negro.

— Sim.

— Canção do Cisne — repetia Keeley. — Mostra o que ela tinha em mente, hein?

— Parece que sim. Sim, certamente, parece que sim.

Hesitou e depois perguntou se poderia ver... se, quer dizer...

O anfitrião compreendeu o pedido gaguejado.

— Se quiser. Esqueci que você tem pendor para as tra¬gédias humanas.

Mostrou-lhe o caminho pela ampla escadaria. O Sr. Sat¬terthwaite seguiu-o. No alto da escada estava o quarto ocupa¬do por Roger Graham, e, do outro lado do corredor, o de sua mãe. A última porta estava apenas encostada e um pouquinho de fumaça saía pela fenda.

O Sr. Satterthwaite sentiu-se repentinamente surpreen¬dido. Não julgara ser a Sra. Graham uma mulher que fumasse tão cedo. Na verdade, pensava que ela não fumava de ma¬neira alguma.

Continuaram pelo corredor, até a penúltima porta. David Keeley entrou no quarto e o Sr. Satterthwaite seguiu-o.

O quarto não era muito grande e mostrava indícios de ter sido ocupado por um homem. Uma porta na parede con¬duzia para um segundo quarto. Um pedaço de corda cortada ainda pendia de um gancho, no alto da porta. Sobre a cama...

O Sr. Satterthwaite ficou um minuto olhando para o monte de gaze em desordem. Observou que era rufada e pregueada como a plumagem de um pássaro. Para o rosto, depois de uma mirada, não voltou a olhar.

Seus olhos foram da porta de onde pendia a corda para a de comunicação, pela qual haviam entrado.

— Estava aberta?

— Sim. Pelo menos, é o que diz a criada.

— Annesley dormiu aqui dentro? Não ouviu nada?

— Ele diz que... nada.

— É quase incrível — murmurou o Sr. Satterthwaite. Olhou para trás, em direção à forma sobre a cama.

— Onde está ele?

— Annesley? Lá embaixo, com o médico.

Desceram as escadas e descobriram que chegara um ins¬petor de polícia. O Sr. Satterthwaite ficou agradavelmente surpreendido ao reconhecer nele um antigo conhecido, Inspe¬tor Winkfield. O Inspetor subiu as escadas com o médico e, alguns minutos mais tarde, veio um pedido para todos os membros do grupo de convidados reunirem-se na sala de visitas.

As venezianas haviam sido puxadas e toda a sala tinha um aspecto fúnebre. Doris Coles parecia assustada e subjugada. De vez em quando, esfregava um lenço nos olhos. Madge esta¬va resoluta e alerta, tendo já dominado inteiramente seus sen¬timentos. A Sra. Graham estava composta, como sempre, o rosto grave e impassível. A tragédia parecia ter afetado seu filho mais intensamente de que a qualquer outra pessoa. Ele Parecia, positivamente, uma ruína, aquela manhã. David Keeley, como de costume, deixara-se ficar lá por trás.

O marido desolado estava sentado sozinho, um tanto afastado dos demais. Tinha uma estranha aparência estupidificada, como se mal pudesse perceber o que acontecera.

O Sr. Satterthwaite, por fora contido, estava interior¬mente perturbado com a importância de uma tarefa a ser cum¬prida de imediato.

O Inspetor Winkfield, seguido pelo Dr. Morris, entrou e fechou a porta atrás de si. Pigarreou e falou.

— Foi uma ocorrência muito triste... muito triste, na verdade. É necessário, nas circunstâncias, que eu faça a todos algumas perguntas. Não farão objeção, estou certo. Vou co¬meçar pelo Sr. Annesley. Vai perdoar-me interrogá-lo, Sir, mas sua senhora, alguma vez, ameaçou suicidar-se?

O Sr. Satterthwaite abriu a boca, impulsivamente, e depois fechou-a novamente. Havia muito tempo. Melhor não falar cedo demais.

— Eu... eu não creio.

Sua voz era tão hesitante, tão peculiar, que todos o olha¬ram, disfarçadamente.

— Não tem certeza, Sir?

— Sim. Estou... completamente seguro. Ela nunca amea¬çou fazer isso.

— Ah! Sabia se ela, de alguma maneira, sentia-se infeliz?

— Não, eu... eu não sabia.

— Ela nada lhe disse? Que se sentia deprimida, por exem¬plo?

— Eu... não, nada.

Quaisquer que fossem os pensamentos do Inspetor, ele não os revelou. Em vez disso, passou à pergunta seguinte.

— Poderá descrever-me resumidamente os acontecimentos da noite passada?

— Todos... fomos para a cama. Eu dormi imediatamen¬te e nada ouvi. O grito da criada acordou-me esta manhã. Corri para o quarto contíguo e encontrei minha mulher. Encon¬trei-a...

Sua voz morreu. O Inspetor balançou a cabeça.

— Sim, sim, é o bastante. Não precisamos falar disso. Quando viu sua mulher pela última vez, na noite passada?

— Eu... no andar de baixo.

— No andar de baixo?

— Sim, todos saímos da sala de visitas juntos. Fui dire¬tamente para cima e deixei os outros conversando no vestí¬bulo.

— E não viu sua mulher novamente? Ela não lhe disse boa-noite, quando subiu para se deitar?

— Eu estava dormindo, quando ela subiu.

— Mas ela o seguiu apenas alguns minutos depois. Isto é verdade, não é, Sir? — Olhou para David Keeley, que concordou com a cabeça.

— Meia hora mais tarde, ela ainda não subira.

Annesley falou teimosamente. Os olhos do Inspetor diri¬giram-se gentilmente para a Sra. Graham.

— Ela não ficou em seu quarto, conversando, Madame?

O Sr. Satterthwaite apenas imaginou, ou houve uma ligeira pausa, antes da Sra. Graham dizer, com sua habitual e tran¬qüila maneira decidida:

— Não, fui direto para meu quarto e fechei a porta. Não ouvi nada.

— E o senhor diz — o Inspetor desviara a atenção nova¬mente para Annesley — que dormiu e não ouviu nada?

— Eu... acredito que sim. Mas minha mulher deve ter entrado em seu quarto pela outra porta, a do corredor.

— Mesmo assim, Sir, haveria alguns sons... um ruído de sufocação, o bater de calcanhares na porta.

— Não.

Foi o Sr. Satterthwaite quem falou, impetuosamente, inca¬paz de se conter. Todos os olhos viraram-se para ele, surpreen¬didos. Ele próprio ficou nervoso, gaguejou, ruborizou-se.

— Eu... peço desculpas, Inspetor. Mas preciso falar. O senhor está no caminho errado... no caminho completamente errado. A Sra. Annesley não se matou. Tenho certeza disso. Ela foi assassinada.

Houve um silêncio mortal e depois o Inspetor Winkfield disse, tranqüilamente:

— O que o leva a pensar isto, Sir?

— Eu... é uma impressão. Uma impressão muito forte.

— Mas acho, Sir, que deve haver mais do que isso. Deve haver uma razão particular.

Bem, claro que havia uma razão particular. A misteriosa mensagem do Sr. Quin. Mas ele não podia dizer isso a um inspetor de polícia. O Sr. Satterthwaite procurou desesperada¬mente e encontrou algo.

— Na noite passada, quando ficamos juntos conversan¬do, ela me disse que estava muito feliz. Muito feliz... apenas isto. Não seria declaração de uma mulher pensando em suici¬dar-se.

Estava triunfante. Acrescentou:

— Ela voltou para a sala de visitas para apanhar sua guitarra, a fim de não a esquecer de manhã. Isto também não parece coisa de quem pensava em suicidar-se.

— Não — admitiu o Inspetor. — Não parece. — Vi¬rou-se para David Keeley. — Ela levou a guitarra para cima?

O matemático tentou lembrar-se.

— Acho... sim, levou. Foi para cima carregando-a na mão. Lembro-me de ter visto isto exatamente quando ela vira¬va no canto da escada, antes de eu apagar a luz de lá.

— Oh!  — exclamou Madge. — Mas está aqui, agora. — Apontou dramaticamente a guitarra em cima de uma mesa.

— É curioso — disse o Inspetor. Deu alguns passos rá¬pidos e tocou a campainha.

Uma rápida ordem fez o mordomo sair à procura da criada cuja tarefa era arrumar os quartos de manhã. Ela veio e deu uma resposta muito positiva. A guitarra já estava ali de manhã, quando espanava a poeira.

O Inspetor Winkfield dispensou-a; depois disse, laconica¬mente:

— Gostaria de falar com o Sr. Satterthwaite, em parti¬cular, por favor.  Todos os demais podem ir.  Mas ninguém pode sair da casa.

O Sr. Satterthwaite começou a falar sem parar, logo que a porta fechou-se atrás dos outros.

— Eu... estou certo, Inspetor, de que orienta o caso de maneira excelente. Apenas achei que... tendo, como eu disse, uma impressão muito forte...

O Inspetor impediu novas declarações, levantando a mão.

— Está completamente certo, Sr. Satterthwaite. A dama foi assassinada.

— Já sabia? — O Sr. Satterthwaite estava mortificado.

— Algumas coisas intrigaram o Dr. Morris.  — Olhou para o médico, que ficara, e este confirmou sua declaração, com um aceno de cabeça. — Fizemos um exame completo. A corda que estava em torno do pescoço não era aquela com que a estrangularam... Uma coisa bem mais fina a matou, algo mais parecido com um arame. O fio chegou a cortar a carne. A marca da corda estava superposta a essa. Ela foi estrangulada e, depois, pendurada na porta, a fim de dar a impressão de ter sido suicídio.

— Mas quem...?

— Sim — disse o Inspetor. — Quem?... Esta é a ques¬tão. Que tal o marido que dormiu no quarto contíguo, não disse boa-noite à mulher e nada ouviu? Eu diria que não é preciso procurarmos muito. É necessário descobrir em que ter¬mos se encontravam. Aí o senhor nos pode ser útil, Sr. Sat¬terthwaite. Tem trânsito livre aqui e pode familiarizar-se com as coisas de uma maneira que não nos é facultada.  Descubra como eram as relações dos dois.

— Não gosto muito... — começou o Sr. Satterthwaite, formalizando-se.

— Não será o primeiro assassinato misterioso que nos ajuda a decifrar. Lembro-me do caso da Sra. Strangeways. O senhor tem faro para esse tipo de coisa. Um faro incrível.

Sim, era verdade — ele tinha faro. Disse, quietamente:

— Farei o que puder, Inspetor.

Gerard Annesley matara sua mulher? Será? O Sr. Sat¬terthwaite lembrou-se daquele olhar infeliz da noite passada. Ele a amava... e estava sofrendo. O sofrimento impele um homem a atos estranhos.

Mas havia algo mais — algum outro fator. Mabelle fa¬lara de si mesma como se estivesse saindo de uma floresta. Encarava o futuro com felicidade. Não uma felicidade tran¬qüila, racional, mas uma felicidade irracional, um êxtase in-contido...

A se acreditar nas palavras de Gerard Annesley, Mabelle não fora para seu quarto, até pelo menos meia hora depois dele. E, no entanto, David Keeley vira-a subir as escadas. Havia dois outros quartos ocupados, naquela ala. Eram o da Sra. Graham e o do seu filho.

Seu filho. Mas ele e Madge...    

Claro que Madge teria adivinhado. Mas não era do tipo que adivinha. De qualquer jeito, não havia fumaça sem fogo.

Fumaça!

Ele lembrou-se: um pouquinho de fumaça saindo pela porta da Sra. Graham.

Agiu num impulso. Subiu direto as escadas e entrou no quarto dela. Estava vazio. Fechou a porta atrás de si e tran¬cou-a.

Foi até a lareira. Um montículo de fragmentos queima¬dos. Muito cautelosamente, revolveu-os com o dedo. Estava com sorte. No centro, alguns fragmentos não carbonizados... fragmentos de cartas.

Fragmentos muito desconexos, mas que lhe disseram algo valioso:

A vida pode ser maravilhosa, Roger, querido. Eu nunca soube. Toda a minha vida foi irreal até eu encontrar você, Roger. Gerard sabe, acho. Sinto muito, mas o que posso fazer? Nada é real para mim, a não ser você, Roger. Em breve, estaremos juntos.

O que vai dizer-lhe em Laidell, Roger? Você escreve de maneira estranha. Mas eu não estou com medo...

Muito cuidadosamente, o Sr. Satterthwaite colocou os fragmentos num envelope apanhado na escrivaninha. Foi até a porta, destrancou-a e abriu-a... para encontrar-se, cara a cara, com a Sra. Graham.

Foi um momento embaraçoso e o Sr. Satterthwaite per¬deu momentaneamente a calma. Fez, talvez, a melhor coisa: atacou a situação com simplicidade.

— Estive dando uma busca em seu quarto, Sra. Graham. Encontrei algo... um pacote de cartas não inteiramente quei¬madas.

Uma onda de alarme passou pelo rosto dela. Desapare¬ceu rapidamente, mas não sem tempo de ser identificado.

— Cartas da Sra. Annesley para seu filho.

Ela hesitou um minuto e depois disse, tranqüilamente:

— É verdade. Achei que seria melhor queimá-las.

— Por que razão?

— Meu filho está noivo e vai casar-se. Essas cartas, se fossem divulgadas com o suicídio da pobre moça, poderiam causar muito sofrimento e problemas.

— Seu filho poderia queimar as próprias cartas.

Ela não teve resposta para isso. O Sr. Satterthwaite apro¬veitou-se da vantagem.

— Achou as cartas no quarto dele, levou-as para o seu e queimou-as. Por quê? Estava com medo, Sra. Graham?

— Não costumo ter medo, Sr. Satterthwaite.

— Não... mas este era um caso desesperado.

— Desesperado?

— Seu filho poderia estar em perigo de ser preso... por assassinato.

— Assassinato!

Viu o rosto dela empalidecer. Continuou, tranqüilamente:

— A senhora ouviu quando a Sra. Annesley entrou no quarto de seu filho, na noite passada. Ele já lhe falara sobre seu noivado? Não, vejo que não. Disse-lhe, então. Discutiram e ele...

— É mentira!

Estavam tão absorvidos em seu duelo de palavras que não ouviram passos aproximando-se. Roger Graham chegara por trás, sem ser percebido por qualquer dos dois.

— Está tudo bem, mãe. Não se preocupe. Venha para meu quarto, Sr. Satterthwaite.

O Sr. Satterthwaite seguiu-o até dentro do quarto. A Sra. Graham virara-se e não tentara segui-los. Roger Graham fe¬chou a porta.

— Escute, Sr. Satterthwaite. O senhor acha que matei Mabelle. Acha que a estrangulei, aqui, e carreguei-a para pen¬durá-la naquela porta... mais tarde, quando todos dormiam?

O Sr. Satterthwaite olhou-o. Então disse, surpreendente¬mente:

— Não, não acho.

— Graças a Deus. Eu não poderia ter assassinado Ma¬belle.  Eu... eu a amava.  Ou não amava? Não sei. É um emaranhado que não posso explicar. Gosto de Madge... sem¬pre gostei. E ela é tão boa. Nos damos um com o outro. Mas Mabelle era diferente. Era... não posso explicar. Uma espécie de sortilégio. Eu tinha, creio, medo dela.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, concordando.

— Eu... eu queria livrar-me de tudo aquilo. Ia dizer a Mabelle... na noite passada.

— Mas não disse?

— Não, não disse — falou Graham, lentamente. — Juro, Sr. Satterthwaite, que não tornei a vê-la depois que lhe dei boa-noite, lá embaixo.

— Acredito em suas palavras — disse o Sr. Satterthwaite.

Levantou-se. Não fora Roger Graham quem matara Mabelle Annesley. Poderia fugir dela, mas não matá-la. Tinha medo dela, medo daquela sua característica selvagem, intangí¬vel, mágica. Conhecera o sortilégio — e lhe virara as costas. Encaminhara-se em direção àquilo que era seguro, sensato e que ele sabia poder “funcionar”. Abandonara o sonho intangí¬vel que poderia conduzi-lo não sabia aonde.

Era um jovem sensato e, como tal, desinteressante para o Sr. Satterthwaite, que era um artista e um connoisseur da vida.

Deixou Roger Graham em seu quarto e desceu. A sala de visitas estava vazia. A guitarra de Mabelle estava num ban¬quinho perto da janela. Pegou-a e tocou-a distraidamente. Nada sabia do instrumento, mas seu ouvido lhe disse que estava abominavelmente desafinada. Virou uma chave, experimental¬mente.

Doris Coles entrou na sala.  Olhou-o repreensivamente.

— A guitarra de Mabelle — disse.

Sua visível condenação fez o Sr. Satterthwaite insistir.

— Afine-a para mim — disse ele, e acrescentou: — Se puder.

— Claro que posso — disse Doris, ofendida com a su¬gestão de incompetência, em qualquer sentido.

Tirou-a de suas mãos, tocou numa corda, virou uma chave, rapidamente.  A corda partiu-se.

— Bem, eu nunca... Oh! Entendo. Mas que coisa estra¬nha. É a corda errada... grande demais. É uma corda A. Que estupidez colocá-la aqui. Claro que se parte, quando se tenta afiná-la. Como as pessoas são estúpidas.

— Sim — disse o Sr. Satterthwaite. — São... mesmo quando tentam ser inteligentes.

Sua entonação foi tão estranha que ela o olhou fixamente. Ele tomou-lhe a guitarra das mãos e retirou a corda partida. Saiu da sala levando-a na mão. Na biblioteca, encontrou David Keeley.

— Veja — disse.

Estendeu a corda. Keeley pegou-a.

— O que é isto?                                                

— Uma corda quebrada de guitarra. — Fez uma pausa e depois continuou: — O que você fez com a outra?

— A outra?

— A corda com a qual a estrangulou. Foi muito esperto, não? A coisa toda foi feita muito depressa... justamente na¬quele momento em que estávamos todos rindo e conversando no vestíbulo. Mabelle voltou para esta sala, em busca da guitar¬ra. Você retirara a corda pouco antes, enquanto tocava. Apa¬nhou-a pelo pescoço com a corda, estrangulando-a. Depois, saiu, fechou a porta, juntou-se a nós. Mais tarde, no meio da noite, desceu e... livrou-se do corpo, pendurando-o na porta do quarto dela. E colocou outra corda na guitarra. Mas era a corda errada, e aí você foi estúpido.

Houve uma pausa.

— Mas por que isso? — perguntou o Sr. Satterthwaite. — Em nome de Deus, por quê?

O Sr. Keeley riu, uma risadinha casquinada que fez o Sr. Satterthwaite ficar meio nauseado.

— Foi tão simples — disse. — Eis a razão! E depois... ninguém nunca reparou no que eu estava fazendo. Pensei... pensei que ainda ia rir deles.

E novamente deu aquela casquinada furtiva e olhou para o Sr. Satterthwaite com olhos de louco.

O Sr. Satterthwaite ficou satisfeito com a entrada do Ins¬petor Winkfield na sala, naquele justo momento.

 

 

Vinte e quatro horas depois, a caminho de Londres, o Sr. Satterthwaite acordou de um cochilo e encontrou um homem alto e moreno sentado diante dele no vagão do trem. Não ficou muito surpreendido.

— Meu caro Sr. Quin!

— Sim, estou aqui.

O Sr. Satterthwaite disse, devagar:

— Mal posso encará-lo. Estou envergonhado. Falhei.

— Tem certeza?                                    

— Não a salvei.

— Mas descobriu a verdade?

— Sim, isto é um fato. Algum daqueles jovens poderia ter sido acusado. Poderia até ser condenado. Assim, de qualquer maneira, salvei a vida de um homem. Mas ela... ela... aquela estranha e encantadora criatura... — Sua voz morreu.

O Sr. Quin olhou-o.

— Será que a morte é o maior dos males que podem acontecer a uma pessoa?

— Bem... talvez não.

O Sr. Satterthwaite lembrou-se: Madge e Roger Granham, o rosto de Mabelle ao luar, sua serena felicidade extraterres¬tre...

— Não — admitiu. — Não, talvez a morte não seja o maior dos males.

Lembrou-se da gaze azul arrufada do vestido dela, que lhe pareceu a plumagem de um pássaro, um pássaro de asa quebrada.

Quando ergueu os olhos, descobriu que estava sozinho. O Sr. Quin fora-se. Mas deixara algo atrás de si.

Sobre o assento estava um pássaro toscamente esculpido, numa pedra azul-escuro. Talvez não tivesse grande mérito artístico. Mas tinha algo mais.

A vaga virtude do sortilégio.

Foi o que disse o Sr. Satterthwaite — e o Sr. Satterth¬waite era um connoisseur.

 

O Homem que Veio do Mar

O SR. SATTERTHWAITE sentia-se velho. Isto talvez não devesse causar surpresa, porque, no julgamento de muitas pessoas, ele era velho. Jovens descuidados diziam aos seus companhei¬ros: “O velho Satterthwaite? Ora, deve ter cem anos ou, pelo menos, cerca de 80.” E mesmo as moças mais gentis obser¬vavam indulgentemente: “Ora, Satterthwaite. Sim, é bastante velho. Deve ter 60.” O que era quase pior, pois ele tinha 69.

Em seu próprio ponto de vista, entretanto, ele não era ve¬lho. Sessenta e nove era uma idade interessante. Uma idade de infinitas possibilidades, uma idade em que, afinal, a ex¬periência de uma vida inteira começava a contar. Mas, sen¬tir-se velho — isso era diferente: um estado de espírito can¬sado, desencorajado, quando a pessoa se inclina a fazer a si própria perguntas deprimentes. Quem era ele, afinal de contas? Um pequeno, murcho ancião, sem nenhum filho, sem ninguém que lhe pertencesse, apenas com uma valiosa coleção de arte que parecia, no momento, estranhamente insatisfatória. Nin¬guém para se preocupar se ele estava vivo ou morto...

A essa altura de suas meditações, o Sr. Satterthwaite for¬çou-se a parar ali mesmo. O que estava pensando era mór¬bido e inútil. Sabia muito bem, melhor que ninguém, que tudo indicava que uma mulher o teria detestado ou, ao contrário, ele a teria detestado, os filhos seriam uma fonte constante de preo¬cupação e ansiedade e as exigências de seu tempo e sua afei¬ção o teriam perturbado consideravelmente.

Estar em segurança e com conforto, disse o Sr. Satterth¬waite, firmemente — isso é que era bom.

Este último pensamento recordou-lhe uma carta que rece¬bera aquela manhã. Tirou-a do bolso e releu-a, saboreando o conteúdo. Para começar, era de uma duquesa, e o Sr. Satterthwaite gostava de receber notícias de duquesas. É verdade que a carta começava pedindo uma larga subscrição para caridade e, se não fosse por isso, provavelmente nunca teria sido escrita, mas seus termos eram tão agradáveis que o Sr. Satterthwaite podia atenuar o primeiro fato.

Então, você desertou a Riviera. Como é essa sua ilha? Barata? Canotti aumentou os preços vergonhosamente, este ano, e não irei nova¬mente à Riviera. Posso tentar sua ilha, no próximo ano, se você der notícias favoráveis sobre ela, embora deteste passar cinco dias num navio. Ainda assim, qualquer coisa que você recomende será, com certeza, bonita e confortável — e satisfatória. Você é uma dessas pessoas que não fazem outra coisa senão mimar a si próprios e pensar em seu conforto. Só existe algo que o salvará, Satterthwaite: é seu incomum interesse pela vida das outras pessoas...

Enquanto o Sr. Satterthwaite fechava a carta, uma visão da duquesa surgiu nítida. Sua mesquinharia, sua inesperada e alarmante bondade, sua língua cáustica, seu espírito indomável.

Espírito! Todos precisavam de espírito. Puxou outra carta, com um selo da Alemanha, escrita por uma jovem cantora pela qual ele se interessava pessoalmente. Era uma carta agradecida, afetuosa.

Como posso agradecer-lhe, querido Sr. Satterthwaite? Parece ma¬ravilhoso demais, pensar que dentro de poucos dias estarei cantando Isolda...

Pena que ela tivesse de fazer seu debut como Isolda. Ga¬rota encantadora, esforçada, Olga, com uma bela voz, não tinha nenhum temperamento. Cantarolou para si mesmo. — “Não, ordenem-lhe! Peço, compreenda. Eu assim determino. Eu, Isolda.” Não, a garota não tinha nada daquilo dentro dela: o espírito, a vontade indomável, tudo expresso naquele final “Ich, Isolde.”

Bem, de qualquer maneira, ele fizera algo por alguém. Esta ilha o deprimia. Por que, oh, por que desertara a Ri¬viera, que conhecia tão bem e onde era tão conhecido? Nin¬guém aqui se interessava por ele. Ninguém parecia saber que aqui estava o Sr. Satterthwaite — o amigo de duquesas e condessas e cantores e escritores. Ninguém na ilha tinha importância so¬cial ou artística. A maioria das pessoas estava ali há sete, 14 ou 21 anos seguidos e valorizavam a si próprios, ou eram valorizados, de acordo com isso.

Com um profundo suspiro, o Sr. Satterthwaite foi descen¬do do hotel para o pequeno porto solitário, lá embaixo. Seu itinerário incluía uma avenida de buganvílias — massa vivida de vermelho espalhafatoso, que o fez sentir-se mais velho e grisalho do que nunca.

— Estou ficando velho — murmurou. — Estou ficando velho e cansado.

Sentiu-se satisfeito quando acabou de passar pelas bugan¬vílias e começou a caminhar pela rua branca, que tinha o mar azul como ponto final. Um cachorro vira-latas estava sentado no meio da estrada, bocejando e se espreguiçando ao sol. Ten¬do prolongado o espreguiçamento até os limites máximos do êxtase, sentou-se e se deliciou, coçando-se bastante. Depois le¬vantou-se, sacudiu-se e olhou em torno, em busca de outras coisas boas que a vida pudesse oferecer.

Havia um montão de lixo do lado da estrada e ele dirigiu-se para lá, farejando, em agradável expectativa. Era verdade, seu focinho não o enganara! Um cheiro de podridão tão rica ultrapassara até mesmo suas expectativas. Farejou com cres¬cente apreciação e, depois, abandonando-se de repente, dei¬tou-se de costas e rolou, freneticamente, no delicioso montão. Era evidente que o mundo, aquela manhã, estava um paraíso para os cães.

Cansando-se, afinal, voltou a ficar de pé e caminhou mais uma vez para o meio da estrada. E então, sem a menor advertência, um automóvel desengonçado adernou loucamente, ao dobrar a esquina, apanhou-o em cheio e passou descuidada¬mente.

O cachorro levantou-se, ficou em pé um minuto, fitando o Sr. Satterthwaite com um olhar de vaga e taciturna repreen¬são, e depois desabou. O Sr. Satterthwaite aproximou-se e se inclinou para examiná-lo. O cachorro estava morto. Continuou seu caminho, pensando na tristeza e crueldade da vida. Que estranho olhar taciturno de repreensão o cachorro lhe dirigira. — Oh, mundo cruel — ele parecia dizer. — Oh, belo mundo em que confiei. Por que me fez isto?

O Sr. Satterthwaite prosseguiu na caminhada. Passou pelas palmeiras e pelas solitárias casas brancas; pela praia de lava negra, na qual a arrebentação trovejava e onde, certa vez, há muito tempo, um nadador inglês muito conhecido fora arras¬tado para o mar alto e se afogara; para além das piscinas nas rochas, nas quais as crianças e velhas senhoras saltitavam e chamavam aquilo de banho; e passou ao longo da estrada íngreme que serpenteava para cima, até o topo do penhasco. Pois lá, na ponta do penhasco, havia uma casa, adequada-mente chamada La Paz. Uma casa branca com desbotados pos¬tigos verdes bem fechados, um emaranhado e belo jardim e um caminho entre ciprestes que levava a um planalto na extre¬midade do penhasco, de onde se avistava, lá embaixo — bem lá embaixo — o mar azul profundo.

Era para esse lugar que o Sr. Satterthwaite se dirigia. Desenvolvera em si grande amor pelo jardim de La Paz. Nunca entrara na vila. Parecia estar sempre vazia. Manuel, o jardineiro espanhol, dava bom dia com um floreio e, galante¬mente, presenteava as damas com um buquê e os cavalheiros com uma única flor para a botoeira, o rosto moreno abrindo-se em sorrisos.

Algumas vezes, o Sr. Satterthwaite inventava histórias, que ficavam só em sua cabeça, sobre o proprietário da vila. Sua favorita é a que havia uma dançarina espanhola, outrora famosa por sua beleza, ali oculta para que o mundo jamais descobrisse que não era mais bonita.

Imaginou-a saindo da casa, ao entardecer, e caminhando pelo jardim. Algumas vezes, sentiu-se tentado a perguntar a Manuel qual a verdade, mas resistiu à tentação. Preferia suas fantasias.

Depois de trocar algumas palavras com Manuel e, cortes¬mente, aceitar um botão de rosa alaranjado, o Sr. Satterthwaite passou pelo caminho dos ciprestes, seguindo para o mar. Era uma verdadeira maravilha sentar-se ali, à beira do nada, diante daquela descida perpendicular. Pensou em Tristão e Isolda, no começo do terceiro ato, com Tristão e Kurwenal — aquela espera solitária, e de Isolda chegando, apressadamente, vinda do mar, e Tristão morrendo em seus braços. (Não, a pequena Olga jamais daria uma Isolda. Isolda de Cornwall, aquela que odiava e amava regiamente...) Tremeu de frio. Sentia-se velho, friorento, sozinho. Que fizera da vida? Nada... nada. Menos que aquele cachorro na rua.

Um ruído inesperado retirou-o de suas meditações. Os pas¬sos no caminho dos ciprestes eram inaudíveis; o primeiro sinal da presença de alguém foi a palavra “diabo” em inglês.

Olhou em torno e descobriu um jovem olhando-o com óbvia surpresa e desapontamento. O Sr. Satterthwaite identifi¬cou-o imediatamente como alguém que chegara no dia anterior e mais ou menos o intrigara. O Sr. Satterthwaite chamava-o de jovem — porque, em comparação com a maioria dos macróbios do hotel, ele era um jovem, mas certamente nunca mais passaria pelos 40 e era provável que estivesse bem per¬to de seu meio século. Sim, apesar disso, o termo jovem lhe caía bem. O Sr. Satterthwaite costumava acertar com relação a tais coisas. O homem dava uma impressão de imaturidade. Como existe um quê de filhote em muitos cachorros já cresci¬dos, assim acontecia ao estranho.

O Sr. Satterthwaite pensou — Este sujeito nunca cresceu, realmente. Não de maneira adequada, é isso.

E, no entanto, ele nada tinha de Peter Pan. Era roliço, quase gordo, um ar de quem sempre tivera tudo, no sentido material, e não negara a si próprio nenhum prazer ou satisfação. Tinha olhos castanhos, um tanto redondos, cabelos louros fi¬cando grisalhos, um pequeno bigode e um rosto meio rubicundo.

O que deixara o Sr. Satterthwaite perplexo era o motivo de sua vinda à ilha. Podia imaginá-lo atirando, caçando, jogando pólo ou golfe ou tênis, fazendo a corte a belas mulheres. Mas na ilha nada havia para caçar ou alvejar, nenhum jogo exceto croquet e a coisa mais parecida com uma mulher bonita era a idosa Srta. Baba Kindersley.

Havia, claro, artistas, atraídos pela beleza do cenário, mas o Sr. Satterthwaite tinha certeza de que o jovem não era um artista. Tratava-se, claramente, de um filisteu.

Enquanto essas coisas passavam-lhe pela cabeça, o outro falou, percebendo, com algum atraso, que sua única exclama¬ção até agora poderia ser criticada.

— Peço desculpas — disse com algum embaraço. — Na verdade... bem, fiquei espantado. Não esperava ver ninguém aqui.

Sorriu de maneira cativante. Tinha um sorriso encantador, amistoso, atraente.

— É um lugar um tanto solitário — concordou o Sr. Satterthwaite. E moveu-se, polidamente, um pouco mais para adiante, no banco. O outro aceitou o convite mudo e sentou-se.

— Não sei se é solitário — disse ele. — Parece sempre haver alguém aqui.

Havia um matiz de ressentimento latente em sua voz. O Sr. Satterthwaite ficou imaginando por quê. Via o outro como uma pessoa dada. Por que essa insistência na solidão? Um rendez-vous, talvez? Não — não era aquilo. Olhou no¬vamente, num exame cuidadosamente velado, para o compa¬nheiro. Onde vira aquela particular expressão antes, muito recentemente? Aquele olhar de taciturno ressentimento espan¬tado?

— Então, já veio aqui em cima antes? — disse o Sr. Satterthwaite, mais para falar alguma coisa de que por qualquer outra razão.

— Estive aqui na noite passada, depois do jantar.

— É verdade? Pensei que os portões estivessem sempre trancados.

Houve a pausa de um momento e depois, quase soturna¬mente, o jovem disse:

— Pulei o muro.

O Sr. Satterthwaite olhou-o com verdadeira atenção, agora. Tinha o hábito de bancar o detetive e estava sabendo que seu companheiro chegara apenas na tarde anterior. Tivera pouco tempo para descobrir as belezas da vila à luz do dia e, até agora, não falara com ninguém. Mesmo assim, já noite, ele fora diretamente para La Paz. Por quê? Quase involuntaria¬mente, o Sr. Satterthwaite virou a cabeça, a fim de olhar para a vila de postigos verdes, mas estava tão serenamente sem vida como sempre, bem fechada. Não, a solução do mistério não estava ali.

— Então encontrou, na verdade, outra pessoa?

O outro balançou a cabeça, concordando.

— Sim. Deve ter sido alguém de outro hotel.  Estava fantasiado.

— Fantasiado?

— Sim. Uma espécie de traje de arlequim.

— O quê?

A pergunta quase explodiu nos lábios do Sr. Satterthwaite. Seu companheiro virou-se para olhá-lo, surpreendido.

— Muitas vezes os hotéis fazem apresentações de fanta¬sias, suponho?

— Oh, bastante — disse o Sr. Satterthwaite. — Bastante, bastante, bastante.

Fez uma pausa, sem fôlego, e depois acrescentou:

— Deve desculpar minha agitação. Por acaso sabe alguma coisa de catálise?

O jovem olhou-o fixamente.

— Nunca ouvi falar. De que se trata?

O Sr. Satterthwaite citou, gravemente: “Uma reação quí¬mica dependendo, para seu sucesso, da presença de uma certa substância que, em si mesma, permanece sem modificação.”

— Oh! — disse o jovem, em tom de dúvida.

— Tenho um certo amigo... seu nome é Sr. Quin, que pode bem ser descrito nos termos da catálise. Sua presença é um sinal de que coisas vão acontecer; devido à sua presença, estranhas revelações vêm à luz, são feitas descobertas. E, no entanto, ele próprio não participa dos procedimentos. Tenho o pressentimento de que foi meu amigo que o senhor encon¬trou aqui na noite passada.

— Então, é do tipo bastante apressado. Deu-me um grande susto. Num minuto, estava ali, e no próximo, não esta¬va mais. Foi quase como se saísse do mar.

O Sr. Satterthwaite deu uma olhada no pequeno planalto e na descida abrupta em frente.

— É tolice, claro — disse o outro. — Mas foi a impres¬são que tive. Claro, realmente não há lugar nem para uma mosca apoiar os pés. — Olhou por sobre a margem. — Uma descida direta. Se alguém ultrapassar isto... bem, seria o fim de tudo.

— Lugar ideal para um assassinato, na verdade — disse o Sr. Satterthwaite animadamente.

O outro olhou-o, quase como se não estivesse ouvindo naquele momento. Depois, disse vagamente:

— Oh! Sim, claro.

Sentou-se, dando pancadinhas no chão com a bengala e franzindo a testa. De repente, o Sr. Satterthwaite percebeu a semelhança que lhe escapara. Aquela interrogação taciturna, espantada. Assim olhava o cachorro que foi atropelado olhos, como os desse jovem, faziam a mesma patética per¬gunta, com a mesma repreensão. Oh! Mundo em que confiei que fez a mim?

Viu outros pontos de semelhança entre os dois: o mesmo amor ao prazer, vida fácil, o mesmo jubiloso abandono aos prazeres da vida, a mesma ausência de questionamento intelec¬tual. O bastante para os dois viverem o momento. O mundo era um bom lugar, um lugar de delícias carnais — sol, mar, céu, um discreto monte de lixo. E depois... o quê? Um auto¬móvel pegara o cachorro. O que pegaria o homem?

O alvo dessas cogitações interveio, a esta altura, falando, no entanto, mais para si próprio do que para o Sr. Satterth¬waite.

— A gente fica imaginando — disse — qual é a finali¬dade de tudo.

Palavras familiares — palavras que, geralmente, leva¬vam um sorriso aos lábios do Sr. Satterthwaite, com sua reve¬lação inconsciente do egoísmo inato da humanidade, que insis¬te em encarar qualquer manifestação da vida como diretamente destinada ao seu prazer ou seu tormento. Não respondeu e o estranho disse, com uma leve risada, meio à guisa de des¬culpa:

— Ouvi dizer que todo homem deve construir uma casa, plantar uma árvore e ter um filho. — Fez uma pausa e de¬pois acrescentou: — Acho que plantei um carvalho, certa vez.. .

O Sr. Satterthwaite ficou um tanto agitado. Sua curiosidade fora despertada: aquele sempre presente interesse na vida de outras pessoas, de que a duquesa o acusara, fora estimulado. Não era difícil acontecer. O Sr. Satterthwaite tinha um lado muito feminino em sua natureza; era tão bom ouvinte quanto qualquer mulher e sabia o momento exato em que inserir uma palavra de exortação. Agora, ouvia toda a história.

Anthony Cosdon, como se chamava o estranho, e sua vida, eram quase o que o Sr. Satterthwaite imaginara. Ele não tinha jeito para contar uma história, mas seu ouvinte preencheu os vazios facilmente. Uma vida bastante comum: renda média, um curto período militar, muito esporte sempre que havia opor¬tunidade, muitos amigos, muitas coisas agradáveis para fazer, mulheres em quantidade suficiente. O tipo de vida que prati¬camente impede qualquer descrição, pois se limita às sensa¬ções. Falando francamente, uma vida animal. Mas há coisas piores do que isso — pensou o Sr. Satterthwaite lá das pro¬fundezas de sua experiência. Oh! Coisas muito piores do que isso. Este mundo parecera a Anthony Cosdon um lugar muito bom. Ele resmungara porque todo mundo sempre resmunga, mas não fora a sério. E então — isto.

Finalmente, chegou ao ponto, um tanto vaga e incoerente¬mente. Não sentira muita coisa... nada demais. Foi ao seu médico e este persuadiu-o a ir a outro, em Harley Street. En¬tão... a incrível verdade. Tentaram empregar subterfúgios... falaram em muito cuidado, vida tranqüila, mas não puderam esconder que tudo não passava de engodo para ele suportar as coisas com resignação. Tudo se resumia em seis meses. Foi exatamente o que lhe deram de vida. Seis meses.

Virou aqueles olhos espantados para o Sr. Satterthwaite. Era, claro, um grande choque. A gente não sabia... de certo modo não se sabia o que fazer.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça gravemente, com ar compreensivo.

Era um tanto difícil de absorver de repente, continuou Anthony Cosdon. Como situar a coisa no tempo. Uma ver¬dadeira droga ter de esperar pela morte. Não se sentia real¬mente doente. Ainda não. Embora isto pudesse acontecer mais tarde, assim dissera o especialista. Na verdade, era inevitá¬vel. Parecia tamanha tolice morrer, quando não se desejava isto de maneira alguma. A melhor coisa a fazer, ele pensara, se-ria levar tudo adiante, como sempre. Mas, de algum modo, isto não dera certo.

Aqui, o Sr. Satterthwaite interrompeu-o. Não havia, insi¬nuou delicadamente, nenhuma mulher?

Mas, aparentemente, não havia. Existiam mulheres, claro, mas não desse tipo. Sua turma era muito animada. Não gos¬tavam, queria dizer, de cadáveres. Não desejava fazer de si próprio uma espécie de funeral ambulante. Seria embaraçoso para todos. Assim, decidira viajar.

— Veio para estas ilhas? Mas por quê? — O Sr. Satterth¬waite estava procurando algo, algo intangível, mas delicado, que lhe escapava mas, ainda assim, tinha certeza de que estava lá. — Já esteve aqui antes?

— Sim — admitiu quase a contragosto. — Há anos, quan¬do eu era jovem.

E, de repente, quase inconscientemente, segundo parecia, deu uma rápida olhada para trás, por sobre o ombro, em di¬reção à vila.

— Lembro-me deste lugar — disse, sacudindo a cabeça, virado para o mar. — Um passo para a eternidade!

— E foi por isso que veio aqui, na noite passada — concluiu o Sr. Satterthwaite calmamente.

Anthony Cosdon lançou-lhe um olhar assombrado.

— Oh!  Quero dizer... realmente... — protestou.

— Na noite passada, encontrou alguém aqui. Esta tarde, encontrou-me. Sua vida foi salva... duas vezes.

— Pode colocar nesses termos, se preferir. Mas, com os diabos, é minha vida. Tenho o direito de fazer dela o que qui¬ser.

— Isto é um lugar-comum — disse o Sr. Satterthwaite em tom de cansaço.

— Claro que entendo seu ponto de vista — disse Anthony Cosdon com generosidade. — Claro que o senhor tem de dizer o que pode. Eu próprio tentaria dissuadir a pessoa, mes¬mo que soubesse, lá dentro de mim, que ela estava certa. E o senhor sabe que estou certo. Um fim limpo e rápido é melhor que um demorado... provocando problemas e despesas e incômodos para todos. De qualquer jeito, não é como se eu tivesse neste mundo uma pessoa realmente minha.

— E se tivesse?

Cosdon respirou fundo.

— Não sei. Mesmo assim, acho que esta seria a melhor maneira. Mas, de qualquer modo... eu não tenho...

Parou, abruptamente. O Sr. Satterthwaite olhou-o com curiosidade. Incuravelmente romântico, sugeriu novamente que havia, em algum lugar, alguma mulher. Mas Cosdon negou. Não tinha, disse ele, de que se queixar. Levara, de modo geral, uma vida muito boa. Era pena que fosse terminar tão breve, apenas isso. Mas, de qualquer maneira, tivera tudo, segundo supunha, que valia a pena ter. Gostaria só de saber que um filho seu viveria depois dele. Ainda assim, reiterava o fato: ti¬vera uma boa vida.

Foi a esta altura que o Sr. Satterthwaite perdeu a paciên¬cia. Ninguém, comentou, estando ainda na etapa larvar, podia afirmar que sabia alguma coisa da vida. Desde que as palavras “etapa larvar” visivelmente nada significavam para Cosdon, ele tentou esclarecer o que queria dizer.

— Você não começou a viver ainda. Ainda está no co¬meço da vida.

Cosdon riu.

— Ora, meu cabelo está grisalho. Tenho 40 anos...

O Sr. Satterthwaite interrompeu-o.

— Isto nada tem a ver com o caso. A vida é composta de experiência física e mental. Eu, por exemplo, tenho 69 anos, e estou realmente com 69. Conheci, seja em primeira ou em segunda mão, quase todas as experiências que a vida tem para oferecer. Você é como um homem que fala de um ano inteiro, mas não viu senão a neve e o gelo! As flores da prima¬vera, os dias langorosos do verão, as folhas caídas do outono... nada sabe sobre isso, nem mesmo que existem tais coisas. E vai virar as costas até mesmo à oportunidade de conhecê-las.

— Parece esquecer — disse Anthony Cosdon secamente, — que eu, de qualquer maneira, tenho apenas seis meses.

— O tempo, como tudo o mais, é relativo — disse o Sr. Satterthwaite. — Esses seis meses poderão ser os mais longos e variados de toda a sua vida.

Cosdon não parecia convencido.

— Em meu lugar — disse — o senhor faria a mesma coisa.

O Sr. Satterthwaite sacudiu a cabeça.

— Não — disse simplesmente. — Em primeiro lugar, duvido que tivesse coragem. É preciso coragem e não sou um indivíduo corajoso. E, em segundo lugar...

— Bem?

— Sempre quero saber o que vai acontecer amanhã.

Cosdon deu, de repente, uma gargalhada.

— Bem, Sir, foi bondoso em me deixar conversar com o senhor. Nem sei por que... Bem, aí está. Falei demais. Esqueça.

— E amanhã, quando um acidente for noticiado, deverei deixar tudo para lá? Não fazer nenhuma sugestão de que foi suicídio?

— Como quiser. Fico satisfeito se perceber uma coisa... que não pode impedir-me.

— Meu caro jovem — disse o Sr. Satterthwaite placida¬mente — é bem difícil eu me agarrar a você, como os pro¬verbiais carrapatos. Mais cedo ou mais tarde, você me escapa¬ria e realizaria seu intento, Mas, por esta tarde, de qualquer maneira, o senhor está frustrado. Não gostaria de morrer dei¬xando-me sob a possível acusação de tê-lo empurrado.

— É verdade — disse Cosdon. — Se insiste em permane¬cer aqui...

— Insisto — disse o Sr. Satterthwaite.

Cosdon riu, bem-humorado.

— Então, o plano todo tem de ser adiado, por enquanto. Nesse caso, voltarei para o hotel. Talvez o veja mais tarde.

O Sr. Satterthwaite ficou olhando o mar.

— E agora — disse para si próprio, baixinho, — o que acontecerá em seguida? Não pode parar aqui. Fico imaginan¬do...

Levantou-se. Por um minuto, ficou em pé na beira do planalto, olhando para a água agitada, lá embaixo. Mas não encontrou nenhuma inspiração naquilo e, virando-se devagar, voltou caminhando pela estrada dos ciprestes até o jardim. Olhou para a casa fechada e pacífica e ficou imaginando, como fazia antes com freqüência, o que acontecera entre aque¬las plácidas paredes. Num súbito impulso, subiu alguns degraus arrebentados e pôs a mão sobre um dos desbotados postigos verdes.

Para surpresa sua, o postigo cedeu ao seu toque. Hesitou um momento e, depois, escancarou-o, com um empurrão. No minuto seguinte recuava, com uma pequena exclamação de assombro. Uma mulher estava à janela, encarando-o. Vestia-se de preto e tinha uma mantilha de renda negra na cabeça.

O Sr. Satterthwaite recorreu, disparatadamente, ao italiano misturado com alemão — a coisa mais parecida que encon¬trou, na pressa do momento, com o espanhol. Estava desolado e envergonhado, explicou precariamente. A Signora tinha de perdoá-lo. Ato contínuo, retirou-se apressadamente, sem a mu¬lher ter dito uma só palavra.

Ele estava no meio do jardim, quando ela falou. Uma palavra brusca, como um tiro.

— Volte!

Era uma ordem áspera, como a que teria sido dirigida a um cachorro, mas era tão absoluta a autoridade expressa que o Sr. Satterthwaite deu uma meia volta apressada e correu a passos miúdos, retornando à janela, quase automaticamente, antes de lhe ocorrer qualquer gesto de ressentimento. Obede¬cia como um cachorro. A mulher ainda estava imóvel, à ja¬nela. Olhou-o de alto a baixo, examinando-o com perfeita calma.

— O senhor é inglês — disse. — Bem me pareceu.

O Sr. Satterthwaite começou uma segunda série de descul¬pas.

— Se soubesse que a senhora era inglesa — disse — po¬deria ter-me expressado melhor há pouco. Dei as maiores ex¬plicações pela minha grosseria, quando quis verificar se o pos¬tigo estava trancado ou não. Infelizmente, não tenho outra justificativa senão a curiosidade.  Tinha muita vontade de ver como era o interior desta encantadora casa.

Ela riu de repente, uma risada funda e sonora.

— Se realmente quer vê-la, é melhor entrar.

Afastou-se e o Sr. Satterthwaite, sentindo-se agradavel¬mente animado, entrou na sala. Estava escura, pois os postigos das outras janelas estavam fechados, mas ele podia verificar que era mobiliada escassa e bastante pobremente, e a poeira acumulava-se por toda parte.

— Não aqui — disse ela. — Eu não uso esta sala.

Mostrou-lhe o caminho e ele a seguiu para fora da sala, através de um corredor, até uma sala do outro lado. Aqui, as janelas davam para o mar e o sol iluminava tudo. Os móveis, como os do outro cômodo, eram de má qualidade, mas havia alguns tapetes gastos que haviam sido bons antigamente, um grande biombo de couro espanhol e jarros com flores frescas.

— Tomará chá comigo — disse a anfitriã do Sr. Satterth¬waite. E acrescentou, para tranqüilizá-lo: — É um chá muito bom e será feito com água fervendo.

Foi até o lado de fora da porta e falou algo em espa¬nhol, depois voltou e se sentou num sofá, em frente ao seu convidado. Pela primeira vez, o Sr. Satterthwaite pôde estudar-lhe a aparência.

O primeiro efeito que ela teve sobre ele foi o de fazê-lo sentir-se mais encanecido, enrugado e idoso de que nunca, em contraste com sua personalidade forte. Era uma mulher alta, muito queimada de sol, escura mesmo, e bonita, embora não fosse mais jovem. Quando estava na sala, o sol parecia brilhar duplamente e agora uma curiosa sensação de calor e vida co¬meçava a dominar o Sr. Satterthwaite. Era como se estendesse mãos magras e enrugadas em direção a um fogo acolhedor. Pensou: — Ela tem tanta vitalidade que deixa sobras para as outras pessoas.

Lembrou-se do tom de comando na voz, quando o detivera, e desejou que sua protegée, Olga, pudesse imbuir-se de um pouco daquela força. Pensou: — Que Isolda ela daria! E, pro¬vavelmente, não tem o mínimo de voz para cantar. A vida não é bem arrumada. Ele estava, ao mesmo tempo, com um pouco de medo dela. Não gostava de mulheres dominadoras.

Ela, visivelmente, estivera a analisá-lo, sentada com o queixo nas mãos, sem qualquer simulação. Finalmente, balan¬çou a cabeça, como se tivesse tomado uma decisão.

— Estou satisfeita de que tenha vindo — disse finalmente. — Precisava muito de alguém para conversar esta tarde. E o senhor está acostumado a isso, não está?

— Não entendo direito.

— Quero dizer, que as pessoas lhe contem coisas. O senhor sabia o que eu queria dizer! Por que fingir?

— Bem... talvez...

Ela continuou, impetuosamente, sem prestar atenção ao que ele começava a dizer.

— A gente pode dizer qualquer coisa ao senhor. Isto, porque o senhor é metade mulher. Sabe o que sentimos, o que pensamos... as estranhas coisas que fazemos.

Sua voz morreu. O chá foi trazido por uma gorda e sorri¬dente moça espanhola. Era bom chá — da China — e o Sr. Satterthwaite saboreou-o apreciativamente.

— Vive aqui?

— Sim.                                        

— Mas não todo o tempo. A casa fica habitualmente fe¬chada, não é?

— Fico muito aqui, muito mais do que as pessoas pen¬sam. Só uso estes cômodos.

— Há muito tempo é proprietária da casa?

— Há 22 anos... e vivi aqui um ano, antes de ser a dona.

O Sr. Satterthwaite disse, de maneira um tanto fútil ou, pelo menos, assim achou:

— É muito tempo.

— Aquele ano? Ou os 22 anos?

O interesse dele aumentou, e disse gravemente:

— Depende.

Ela concordou.

— Sim, depende. São dois períodos separados. Nada têm a ver um com o outro. Qual é o longo? Qual o curto? Mesmo agora, não sei dizer.

Ficou silenciosa por um minuto, meditando. Depois disse, com um pequeno sorriso:

— Faz tanto tempo que não falo com ninguém... tanto tempo! Não peço desculpas. O senhor veio ao meu postigo. Queria espiar pela minha janela. E é isto que está fazendo sempre, não? Empurrando o postigo e olhando através da ja¬nela a verdade da vida das pessoas. Se elas o deixarem. E mui¬tas vezes, mesmo que não deixem. Seria difícil esconder algu¬ma coisa do senhor. O senhor adivinharia.

O Sr. Satterthwaite teve um estranho impulso de ser perfeitamente sincero.

— Estou com 69 anos — disse. — Tudo o que sei da vida é em segunda mão. Algumas vezes isto é muito doloroso para mim. E, no entanto, por causa disso sei muita coisa.

Ela balançou a cabeça pensativamente.

— Eu sei. A vida é muito estranha. Não posso imaginar como seria, ser sempre um espectador.

Seu tom era de quem divaga. O Sr. Satterthwaite sorriu.

— Não, não poderia imaginar. Seu lugar é no centro do palco.  Será sempre a prima-dona.

— Que coisa curiosa está dizendo.

— Mas tenho certeza. Coisas lhe aconteceram... sempre acontecerão. Algumas vezes, acho, houve coisas trágicas. Será verdade?

Os olhos dela estreitaram-se. Olhou-o.

— Se ficar aqui muito tempo, alguém lhe contará sobre o nadador inglês que se afogou ao pé desse rochedo. Falarão como era jovem e forte, como era simpático, e lhe dirão que a sua jovem mulher viu-o afogar-se, do alto do rochedo.

— Sim, já ouvi a história.

— Aquele homem era meu marido. Esta era sua vila. Ele me trouxe para cá quando eu tinha 18 anos e um ano de¬pois morreu... atirado pelas ondas contra as rochas negras, cortado e ferido e mutilado, golpeado até morrer.

O Sr. Satterthwaite manifestou o choque com uma excla¬mação. Ela inclinou-se para a frente, com os olhos ardentes fixos no rosto dele.

— O senhor falou de uma tragédia. Pode imaginar tra¬gédia maior que esta? Para uma jovem esposa, com apenas um ano de casamento, ficar ali, impotente, enquanto o homem que ela amava lutava pela vida... e a perdia de maneira horrível.

— Terrível — disse o Sr. Satterthwaite. Falava com verdadeira emoção. — Terrível. Concordo. Nada na vida po¬deria ser tão medonho.     

De repente, ela riu. Inclinou para trás a cabeça.

— Está errado — disse. — Há algo mais terrível. É uma jovem esposa ficar ali esperando e desejando que seu marido se afogasse.

— Mas, meu Deus — gritou o Sr. Satterthwaite — não quer dizer...

— Sim, quero. Isto foi o que realmente aconteceu. Ajoe¬lhei-me ali... ajoelhei-me no rochedo e rezei. Os criados es¬panhóis pensavam que eu estava rezando para ele se salvar. Não estava. Rezava para conseguir desejar que ele fosse pou¬pado. Dizia a mesma coisa, vezes repetidas: “Meu Deus, aju¬de-me a não querer que ele morra. Meu Deus, ajude-me a não querer que ele morra.” Mas não adiantou. O tempo todo eu esperava isso... esperava... e minha esperança realizou-se.

Ela ficou silenciosa por alguns momentos e depois disse, muito gentilmente, com uma voz inteiramente diversa:

— É uma coisa terrível, não? É o tipo de coisa que não se pode esquecer. Fiquei tão feliz quando soube que ele estava morto e não podia voltar para me torturar mais.

— Minha filha — disse o Sr. Satterthwaite, chocado.

— Eu sei. Eu era jovem demais para suportar uma coisa dessas. Estas coisas deviam acontecer quando se é mais ve¬lho... quando se está mais preparado para... para a bestiali¬dade. Ninguém sabia, imagino, o que ele realmente era. Eu pensei que era maravilhoso, quando o encontrei pela primeira vez, e fiquei muito feliz e orgulhosa quando me pediu em casamento. Mas as coisas deram errado quase imediatamente. Ele vivia furioso comigo... nada do que eu fazia lhe agrada¬va... e, no entanto, tentei com todas as forças. E então, ele começou a gostar de me magoar. E, acima de tudo, de me aterrorizar. Isto era o que mais lhe agradava.  Pensava em todo tipo de coisa... coisas terríveis. Não vou contar-lhe. Suponho, realmente, que ele devia ser um pouco louco. Eu estava sozinha aqui, em suas mãos, e a crueldade começou a ser o seu passatempo. — Os olhos dela alargaram-se e se ensombreceram. — O pior foi meu bebê. Eu ia ter um filho. Por causa de algumas das coisas que ele me fez, o bebê nas¬ceu morto.   Meu bebezinho. Quase morri também. Queria ter morrido.

O Sr. Satterthwaite emitiu um som inarticulado.

— E então eu fiquei livre, da maneira que lhe contei. Algumas das moças que estavam hospedadas no hotel o desafiaram. Foi assim que aconteceu. Todos os espanhóis disseram-lhe que era loucura enfrentar o mar logo ali. Mas ele era muito vaidoso, queria mostrar-se. E eu... eu o vi afo¬gar-se e fiquei contente. Deus não devia deixar essas coisas acontecerem.

O Sr. Satterthwaite estendeu sua pequena mão seca e pegou as dela. Apertou-as fortemente, como uma criança teria feito. A maturidade abandonara o rosto da mulher. Ele a via, sem dificuldade, como aos 19 anos.

— Primeiro, pareceu bom demais para ser verdade. A casa era minha e eu podia viver nela. E ninguém poderia mais me magoar! Eu era órfã, sabe, e não tinha nenhum pa¬rente próximo, ninguém para se preocupar com o que ia ser de mim. Isto simplificou as coisas. Continuei vivendo aqui nesta vila... e era maravilhoso. Sim, maravilhoso. Sim, ma-ravilhoso. Nunca fora tão feliz, e nunca mais serei. Simples¬mente acordar e saber que tudo estava bem: nenhuma dor, nem terror, nem ficar pensando o que ele ia fazer comigo em seguida. Sim, era maravilhoso.

Ela fez uma longa pausa e o Sr. Satterthwaite disse, afi¬nal:

— E então?

— Suponho que os seres humanos nunca estão satisfei¬tos. Primeiro, só estar livre era bastante. Mas, depois de algum tempo, comecei a me sentir solitária, suponho. Comecei a pensar em meu bebê que morrera. Se eu, pelo menos, tivesse meu bebê! Queria-o como um bebê e também como um brin¬quedo. Desejava muitíssimo algo ou alguém para brincar. Pa¬rece tolice e infantilidade, mas era assim.

— Compreendo — disse o Sr. Satterthwaite gravemente.

— É difícil explicar a fase seguinte. Simplesmente... bem, aconteceu, sabe. Havia um jovem inglês hospedado no hotel. Ele entrou no jardim por engano. Eu estava usando um vestido espanhol e ele me tomou por uma moça espanhola. Pensei que seria engraçado fingir que era e desempenhei o papel. Seu espanhol era muito ruim, mas ele se fazia entender um pouquinho. Disse-lhe que a vila pertencia a uma senhora inglesa que estava de viagem. Disse-lhe que ela me ensinara um pouco de inglês, e fingia falar um inglês errado. Foi tão divertido... tão divertido... ainda hoje posso lembrar como foi divertido. Ele começou a me fazer a corte. Concordamos em fingir que a vila era nossa casa, que acabáramos de nos casar e íamos viver aqui. Sugeri que empurrássemos um dos postigos... esse que o senhor empurrou, esta tarde. Estava aberto e, dentro, a sala encontrava-se empoeirada e abando¬nada. Entramos furtivamente. Foi excitante e maravilhoso. Fingimos que era nossa casa.

Ela parou de repente, com um olhar de súplica para o Sr. Satterthwaite.

— Tudo parecia lindo, como um conto de fadas. E o mais lindo, para mim, era não ser verdade. Não era real. Ele era, suponho, um rapaz muito comum. Em busca de aventura, mas bastante gentil. Continuamos fingindo.

Parou, olhou para o Sr. Satterthwaite e disse, novamente:

— Compreende? Continuamos fingindo...

Prosseguiu, depois de um minuto:

— Ele voltou novamente, na manhã seguinte, a esta vila. Eu o vi de meu quarto de dormir, através do postigo. Claro que nem imaginava que eu estava lá dentro. Ainda pensava que eu era uma pequena camponesa espanhola. Ficou lá, olhando em torno. Pedira-me para eu me encontrar com ele. Eu dissera que sim, mas não pretendia aparecer.

— Ele se limitou a ficar por ali, com um ar preocupado. Pensei que estava preocupado comigo. Era gentil da parte dele estar preocupado comigo. Ele era gentil...

Ela fez outra pausa.

— Partiu no dia seguinte. Nunca mais tornei a vê-lo. Meu bebê nasceu nove meses depois. Fiquei maravilhosa¬mente feliz o tempo todo. Poder ter um bebê de maneira tão pacífica, sem ninguém para nos magoar, ou nos fazer infe¬liz. Queria ter lembrado de perguntar ao meu rapaz inglês seu nome de batismo. Eu teria dado o mesmo nome ao bebê. Pa¬recia rude não fazer isto. Parecia até injusto. Ele me dera a coisa que eu mais queria no mundo e nunca ia nem mesmo saber disso! Mas, claro, eu disse a mim mesma, ele não enca¬raria a coisa deste modo. Saber do fato provavelmente só o preocuparia e aborreceria. Eu fora apenas uma distração pas¬sageira, aí está.

— E o bebê? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

— Era esplêndido. Eu o chamei John. Esplêndido. Que¬ria que pudesse vê-lo agora. Tem 20 anos. Vai ser engenheiro especializado no setor de minas. Tem sido o melhor e mais querido filho do mundo. Eu lhe disse que o pai morrera antes dele nascer.

O Sr. Satterthwaite olhou-a fixamente. Uma história curio¬sa. E, de alguma maneira, uma história ainda não completa¬mente contada. Haveria, teve certeza, alguma coisa mais.

— Vinte anos é muito tempo — disse pensativamente. — Nunca pensou em se casar de novo?

Ela balançou a cabeça. Um rubor ardente espalhou-se lentamente por suas faces bronzeadas. 

— A criança bastou-lhe... sempre?

Ela olhou para ele. Seus olhos tinham mais suavidade do que neles vira até então.

— Coisas tão estranhas acontecem!  — murmurou. — Coisas tão estranhas mesmo. Não acreditaria nelas. Não, estou enganada, talvez acreditasse. Eu não, amava o pai de John. Não na ocasião. Acho que nem sabia o que era o amor. Su¬punha, como coisa natural, que a criança fosse ser igual a mim. Mas não era. Poderia não ser meu filho, absolutamente. Era igual ao pai, parecia-se apenas com o pai. Aprendi a co¬nhecer aquele homem... através de seu filho. Através do filho, aprendi a amá-lo. Eu o amo, agora. Sempre o amarei. O senhor pode dizer-me que é imaginação, que fabriquei um ideal, mas não é assim. Amo o homem, o homem real e humano. Eu o re¬conheceria, se o visse amanhã... mesmo com os vinte e tantos anos que nos separam. Amá-lo fez de mim uma mulher. Eu o amo como uma mulher ama um homem.  Durante vinte anos, vivi amando-o. Morrerei amando-o.

Parou abruptamente. Depois desafiou seu interlocutor.

— Acha que estou louca, por dizer coisas tão estranhas?

— Oh, minha cara — disse o Sr. Satterthwaite. Pegou novamente a mão dela.

— Compreende?

— Acho que sim. Mas existe algo mais, não é? Algo que não me contou?

Ela franziu a testa.

— Sim, há algo. Foi sagaz de sua parte adivinhar. Eu senti imediatamente que não se pode esconder nada do se¬nhor. Mas não quero contar-lhe... e a razão é que é melhor para o senhor não saber.

Ele olhou-a. Os olhos dela encontraram os dele, valente e desafiadoramente.

Ele disse a si próprio: Este é o teste. Todas as chaves estão em meu poder. Devo ser capaz de saber. Se raciocinar bem, saberei.       

Houve uma pausa e depois ele disse lentamente.

— Algo saiu errado.

Ele viu suas pálpebras tremerem levissimamente e soube que estava no caminho certo.

— Algo deu errado... de repente, depois de todos esses anos.

Sentia-se tateando, tateando nos escuros recessos da men¬te da mulher, onde ela tentava esconder o seu segredo.

— O rapaz... tem algo a ver com ele. A senhora não se incomodaria com nenhuma outra coisa.

Ouviu o arquejo muito leve que ela deu e sentiu que tocara no ponto. Uma coisa cruel, porém necessária. Era a vontade dela contra a sua. Ela possuía uma vontade domina¬dora, implacável, mas ele também tinha sua vontade, escon¬dida sob maneiras brandas. E sentia a segurança de um ho¬mem cumprindo a tarefa que Deus lhe destinou. Sentiu uma passageira piedade mesclada de desprezo pelos homens cuja ocupação era seguir a pista de coisas grosseiras, como o crime. Mas esta função de detetive da mente, este reco¬lhimento de dados chaves, esta investigação da verdade, esta incontida alegria de se aproximar do objetivo... A própria paixão com que ela se empenhava em escamotear-lhe a ver¬dade o ajudava. Sentiu-a enrijecer-se, desafiadoramente, en-quanto ele chegava cada vez mais perto.

— A senhora diz que é melhor eu não saber. Melhor para mim? Mas a senhora não é mulher de ter muita consideração. Não se incomodaria em criar um pequeno e temporário inconve¬niente para um estranho É mais de que isso, então? Se me contar, vai tornar-me cúmplice antes do fato. Isto soa como crime. Fantástico! Eu não poderia associar crime com a senhora. Ou, apenas um tipo de crime. Um crime contra a senhora mesma.

Ela não pôde impedir que suas pálpebras descaíssem velando-lhe os olhos. Ele se inclinou para a frente e pegou-lhe o pulso.

— É isto, então! Está pensando em se matar.

Ela deu um grito muito baixo.

— Como soube? Como soube?

— Mas por quê? Não está cansada da vida. Nunca vi uma mulher menos cansada da vida... mais radiantemente viva.

Ela levantou-se, foi até a janela, puxando para trás uma mecha do cabelo.

— Já que adivinhou tanto, não importa que lhe diga a verdade. Não deveria tê-lo deixado entrar esta tarde. Devia ter percebido que o senhor vê demais. É esse tipo de homem. Estava certo quanto à causa. É o rapaz. Ele de nada sabe. Mas, da última vez em que esteve aqui em casa, falou de ma¬neira trágica sobre um amigo seu e descobri algo. Se ele sou¬ber que é filho ilegítimo, vai ficar desesperado. Ele é orgu¬lhoso, terrivelmente orgulhoso! Existe uma moça... Oh, não vou entrar em detalhes. Os pais da moça, naturalmente, que¬rem saber. Quando ele descobrir a verdade, vai romper com ela, exilar-se, arruinar sua vida. Oh, sei as coisas que o senhor vai dizer. Ele é jovem, louco e está errado tomando as coisas assim! Talvez seja tudo verdade. Mas que importância tem o que as pessoas deveriam ser? Elas são o que são. Ele vai ficar desesperado. Mas, se antes de ele chegar houver um acidente, será absorvido em meio à dor pela minha morte. Ele exami¬nará meus papéis, nada encontrará, e vai ficar aborrecido por eu ter-lhe dito tão pouco. Mas não suspeitará da verdade. É o melhor caminho. A felicidade tem seu preço, e eu recebi tanta... oh, tanta felicidade. E, na realidade, o preço será baixo. Um pouco de coragem... para dar o salto... talvez um momento ou dois de angústia.

— Mas, minha querida filha...

— Não discuta comigo. — Ela encolerizou-se. — Não vou ouvir argumentos convencionais. A vida é minha. Até agora, foi necessária... para John. Mas ele, não precisa mais dela. Quer um par... uma companheira... e se voltará para ela ainda com mais vontade porque eu não estarei mais aqui. Minha vida é inútil, mas minha morte será útil. E eu tenho o direito de fazer o que quiser de minha própria vida.

— Tem certeza?

A severidade da voz dele surpreendeu-a. Ela gaguejou ligeiramente.

— Se não faz bem a ninguém... e quem melhor pode julgar sou eu.

Ele interrompeu-a novamente.

— Não necessariamente.

— Que quer dizer?

— Ouça. Vou expor-lhe um caso. Um homem vai para um certo lugar... a fim de suicidar-se, digamos assim. Mas, por acaso, encontra lá outro homem, de modo que não pode cumprir seu intento e vai embora... para viver. O segundo homem salvou a vida do primeiro, não por lhe ser necessário e importante em sua vida, mas simplesmente pelo mero fato físico de ter estado num certo lugar, em determinado momento. Mate-se agora e talvez daqui a cinco, seis, sete anos, alguém morra ou caia em desgraça apenas pela falta de sua presença em determinado lugar. Pode ser um cavalo fugido descendo uma rua, que se desvie para um lado, ao vê-la e, assim, não pisoteie uma criança que está brincando na sar¬jeta. Aquela criança pode viver e crescer, e ser um grande músico, ou descobrir a cura para o câncer. Ou tudo pode ser menos melodramático. Simplesmente pode crescer para desfru¬tar a felicidade comum de todos os dias.

Ela o olhou fixamente.

— É um homem estranho. Essas coisas que diz... eu nun¬ca tinha pensado nisso.

— A senhora diz que a vida é sua — continuou o Sr. Satterthwaite. — Mas como ousa ignorar a possibilidade de estar participando de um gigantesco drama, sob as ordens do di¬vino Produtor? Sua deixa pode não ser dada antes do final da peça. Pode ser inteiramente sem importância, um mero pros¬seguimento, mas dela pode depender a continuação da peça, ou sua interrupção, se não der, também, a deixa para outro ator. Todo o edifício pode desabar. A senhora pode não ter importância para ninguém no mundo, mas, como pessoa, num determinado lugar, pode ter uma importância inimaginável.

Ela sentou-se, ainda com o olhar fixo.

— Que quer que eu faça? — disse simplesmente.

Foi o momento de triunfo do Sr. Satterthwaite. Ele dava ordens.

— Quero que, pelo menos, prometa-me uma coisa: não fará, por 24 horas, nada precipitado.

Ela ficou silenciosa durante alguns momentos e depois disse:

— Prometo.

— Há uma outra coisa... um favor.

— Sim?

— Deixe aberto o postigo da sala pela qual entrei e fi¬que vigilante esta noite.

Ela olhou-o com curiosidade, mas balançou a cabeça, concordando.

— E agora — disse o Sr. Satterthwaite, ligeiramente consciente de um anticlímax — devo realmente ir embora. Deus a abençoe, minha cara.

Fez uma saída um tanto embaraçosa. A robusta moça espanhola encontrou-o no corredor e abriu para ele uma porta lateral, observando-o com curiosidade.

Estava acabando de escurecer quando ele chegou ao ho¬tel. Lá se encontrava uma figura solitária, sentada no terraço. O Sr. Satterthwaite foi direto em sua direção. Estava agitado e seu coração batia bem depressa. Sentiu que tremendos pro¬blemas estavam em suas mãos. Um passo em falso...

Mas tentou esconder sua agitação, e falar natural e ca¬sualmente a Anthony Cosdon.

— Noite quente — observou. — Até perdi a noção de tempo, sentado lá no rochedo.

— Esteve lá esse tempo todo?

O Sr. Satterthwaite fez que sim com a cabeça. A porta giratória do hotel deixou passar alguém, e um raio de luz incidiu de repente sobre o rosto do outro, iluminando seu olhar de taciturno sofrimento, de resistência surda e perplexa.

O Sr. Satterthwaite pensou: É pior para ele do que seria para mim. Imaginação, conjetura, especulação... podem ajudar bastante. A pessoa pode, de qualquer forma, investigar todas as possibilidades da dor. O sofrimento de quem não compreen¬de, que é cego, como o de um animal — é terrível.

Cosdon falou de repente em voz rouca.

— Vou dar um passeio depois do jantar. O senhor... entende? Na terceira vez sempre dá certo. Pelo amor de Deus, não interfira. Sei que sua interferência será bem intenciona¬da... mas livre-me dela, é inútil.

O Sr. Satterthwaite empertigou-se.

— Eu nunca interfiro — disse, mentindo, assim, a res¬peito de todo o propósito e objetivo de sua existência.

— Sei o que pensa — continuou Cosdon, mas foi inter¬rompido.

— Desculpe, mas aqui peço licença para discordar — disse o Sr. Satterthwaite. — Ninguém sabe o que outra pessoa está pensando.  Pode imaginar que sabe, mas quase sempre está errado.

— Bem, talvez seja assim. — Cosdon estava em dúvida ligeiramente desanimado.

— A vida é sua — disse o Sr. Satterthwaite. — Nin¬guém pode alterar ou influenciar o uso que pretenda fazer dela. Vamos falar de um assunto menos penoso. Aquela antiga vila, por exemplo. Tem um curioso encanto, assim retirada, abri¬gada do mundo, guardando só Deus sabe que mistério. Fiquei tentado a cometer uma ação meio escusa. Empurrei um dos postigos.

— Empurrou? — Cosdon virou a cabeça, rapidamente. — Mas estava trancado, claro?

— Não — disse o Sr. Satterthwaite. — Estava aberto. — Acrescentou, gentilmente: — O terceiro postigo, a partir do final.

— Ora veja — exclamou Cosdon — foi esse...

Parou de repente, mas o Sr. Satterthwaite viu a luz que bri¬lhou em seus olhos. Levantou-se satisfeito.

Um leve matiz de ansiedade permanecia nele. Usando sua metáfora favorita, a do drama, esperava ter dito sua parte corretamente. Pois era uma parte muito importante.

Mas, revendo mentalmente o assunto, seu julgamento ar¬tístico estava satisfeito. A caminho do rochedo, Cosdon em¬purraria aquele postigo. Não estava na natureza humana resis¬tir. Uma lembrança de 20 anos atrás trouxera-o a este lugar; a mesma lembrança o levaria para o postigo. E depois?

— Saberei amanhã — disse o Sr. Satterthwaite. E co¬meçou a trocar de roupa, metodicamente, para a refeição da noite.

 

 

Eram cerca de 10 horas quando o Sr. Satterthwaite pôs os pés, mais uma vez, no jardim de La Paz. Manuel sorriu para ele.

— Bom dia — e entregou-lhe um solitário botão de rosa, que o Sr. Satterthwaite colocou cuidadosamente na botoeira. Depois, foi para a casa. Ficou lá durante alguns minutos, olhando as pacíficas paredes brancas, a trepadeira de flores alaranjadas, os postigos verdes desbotados. Tão silenciosa, tão pacífica. Será que tudo não passara de um sonho?

Mas, naquele momento, uma das janelas se abriu e a senhora que ocupava os pensamentos do Sr. Satterthwaite saiu. Veio diretamente para ele, com um andar animado e balou¬çante, como alguém arrebatado por uma grande onda de exul¬tação. Seus olhos brilhavam, estava muito ruborizada. Parecia a representação da alegria num friso. Não tinha nenhuma he¬sitação, nenhuma dúvida ou tremor. Foi direta ao Sr. Sat-terthwaite, colocou as mãos sobre seus ombros e beijou-o — não apenas uma vez, mas muitas. Enormes e escuras rosas vermelhas, muito veludosas... foi no que ele pensou, a pro¬pósito da cena, depois. Sol, verão, pássaros cantando. Era a atmosfera pela qual se via envolvido. Calor, alegria, um tre¬mendo vigor.

— Estou tão feliz — disse ela. — Meu caro! Como sou¬be? Como pôde saber? O senhor é como o mágico bom dos contos de fadas.

Fez uma pausa, como se estivesse sem fôlego de tanta felicidade.

— Hoje vamos ao Cônsul... para nos casarmos. Quando John chegar, seu pai estará aqui. Vamos contar-lhe que houve alguns mal-entendidos no passado. Oh, ele não vai fazer per¬guntas. Estou tão feliz... tão feliz... tão feliz.

A felicidade realmente estava nela, como uma maré. Rodeava o Sr. Satterthwaite numa enchente calorosa e irra¬diante.

— Foi tão maravilhoso para Anthony descobrir que tem um filho. Nunca sonhei que ele se importasse com isso. — Olhou confiantemente bem dentro dos olhos do Sr. Satterth¬waite. — Não é estranho como as coisas dão certo e termi¬nam bem?

Ele teve dela a visão mais clara, até então. Uma criança, ainda uma criança, adorando fazer de conta; seus contos de fa¬das terminando maravilhosamente, com duas pessoas “vivendo felizes para sempre”.

Disse gentilmente:

— Se der felicidade a este homem, nesses seus últimos meses, terá feito uma coisa muito bonita.

Os olhos dela arregalaram-se, surpresos.

— Oh! — disse. — Não pensa que vou deixá-lo morrer, não é? Depois de todos esses anos... quando ele veio para mim? Conheci muitas pessoas às quais os médicos desenga¬naram e que continuam vivas. Morrer? Claro que ele não vai morrer!

Ele olhou-a — sua força, sua beleza, sua vitalidade. Sua coragem e força de vontade indomáveis. Também vira os mé¬dicos enganarem-se. O fator pessoal nunca se descobriu exata¬mente quanto conta.

Ela disse, novamente, com escárnio e divertimento na voz:

— Não acha que vou deixá-lo morrer, acha?

— Não — disse o Sr. Satterthwaite, afinal, muito bran¬damente. — De alguma maneira, minha cara, acho que não vai deixar.

Então, finalmente, ele seguiu pelo caminho dos ciprestes até o banco de onde se descortinava o mar e lá encontrou a pessoa que esperava ver. O Sr. Quin levantou-se e cumpri¬mentou-o. O mesmo de sempre: moreno, melancólico, sorri¬dente e triste.

— O senhor me esperava? — perguntou.

E o Sr. Satterthwaite respondeu:

— Sim, eu o esperava.

Sentaram-se juntos no banco.

— Imagino que esteve brincando de Providência mais uma vez, a julgar por sua expressão — disse o Sr. Quin, de¬pois.

O Sr. Satterthwaite olhou para ele, repreensivamente.

— Como se não soubesse de tudo.

— O senhor sempre me acusa de onisciência — disse o Sr. Quin sorrindo.

— Se de nada sabia, por que estava aqui anteontem à noite, esperando? — rebateu o Sr. Satterthwaite.

— Ora, aquilo...

— Sim, aquilo...

— Eu tinha um encargo a cumprir.

— Para quem?

— Algumas vezes o senhor me chamou, imaginosamente, de advogado dos mortos.

— Os mortos — disse o Sr. Satterthwaite, um tanto confuso. — Não compreendo.

O Sr. Quin apontou um longo dedo magro para as azuis profundezas lá embaixo,

— Um homem afogou-se ali há 22 anos.

— Eu sei, mas não vejo...

— Vamos supor que, afinal, aquele homem amasse sua jovem mulher. O amor pode transformar os homens em de¬mônios, como também em anjos. Ela tinha por ele uma adora¬ção infantil, mas ele conseguiu tocar o que nela havia de mu¬lher... e aquilo deixou-o louco.  Ele a torturava porque a amava. Essas coisas acontecem. O senhor sabe tão bem quan¬to eu.

— Sim — admitiu o Sr. Satterthwaite. — Vi coisas assim... mas raramente, muito raramente.

— E também viu, o que é mais comum, uma coisa cha¬mada remorso: o desejo de fazer reparações, a qualquer custo, fazer reparações.

— Sim, mas a morte veio cedo demais.

— A morte! — Havia desprezo na voz do Sr. Quin. — Acredita em vida depois da morte, não? E quem é o senhor para dizer que as mesmas aspirações, os mesmos desejos, não prevalecem na outra vida? Se o desejo for bastante forte, pode ser encontrado um mensageiro.

Sua voz tornou-se vagarosa.

O Sr. Satterthwaite levantou-se, tremendo um pouco.

— Tenho de voltar para o hotel — disse. — Se o senhor vai por aquele caminho...

Mas o Sr. Quin balançou a cabeça.

— Não — disse. — Devo voltar pelo mesmo caminho por onde vim.

Quando o Sr. Satterthwaite olhou para trás, viu o amigo caminhando em direção à borda do rochedo.

 

Alameda do Arlequim

O SR. SATTERTHWAITE nunca descobriu ao certo o que o levava a se hospedar com os Denmans. Não eram de sua espécie — ou seja, não pertenciam nem ao grande mundo nem aos cír¬culos artísticos, estes mais interessantes. Eram filisteus, e filis¬teus sem remissão. O Sr. Satterthwaite encontrara-os pela pri¬meira vez em Biarritz, aceitara um convite para hospedar-se com eles, fora, entediara-se e, no entanto, bastante estranha¬mente, voltara várias vezes.

Por quê? Estava fazendo a pergunta a si mesmo, naquele 21 de junho, quando se afastava velozmente de Londres em seu Rolls Royce.

John Denman era um homem de 40 anos, uma figura sólida, bem estabelecido, respeitado no mundo dos negócios. Seus amigos não eram os do Sr. Satterthwaite, suas idéias muito menos. Era um homem inteligente no tocante aos seus pró¬prios negócios, mas despojado de imaginação, fora daí.

Por que estou jazendo isto? — O Sr. Satterthwaite per¬guntou-se mais uma vez. E a única resposta que obteve pare¬cia-lhe tão vaga e ilógica que ele quase a afastou. Porque a única justificativa que achou foi a de que um dos cômodos da casa despertava sua curiosidade. Era a sala de estar da Sra. Denman.

Não chegava a ser uma expressão de personalidade dela porque, pelo que o Sr. Satterthwaite pudera avaliar, ela não tinha personalidade. Nunca encontrara uma mulher tão com¬pletamente sem expressão. Ela era, segundo sabia, russa de nascimento. John Denman estava na Rússia quando eclodiu a guerra; lutou com os soldados russos, escapou por um triz, quando começou a revolução, e trouxe sua namorada russa, uma refugiada sem vintém. Apesar da forte desaprovação dos pais, casara-se com ela.

A sala da Sra. Denman nada tinha de excepcional. Era bem mobiliada, com solidez, com uma boa mobília Hepple¬white, criando uma atmosfera um pouquinho mais masculina de que feminina. Mas havia uma peça incongruente: um biom¬bo chinês de laca, todo amarelo cremoso e rosa pálido. Qual¬quer museu ficaria satisfeito em possuí-lo. Era uma peça de colecionador, rara e bela.

Ficava deslocado contra aquele sólido pano de fundo inglês. Deveria ser o ponto alto da sala, com tudo arrumado para se harmonizar sutilmente com ele. E, no entanto, o Sr. Satterthwaite não poderia acusar os Denmans de falta de gosto. Todo o resto da casa estava perfeitamente bem decorado.

Balançou a cabeça. A coisa, por mais trivial que fosse, dei¬xava-o perturbado. Por causa disso — acreditou então verda¬deiramente — voltara repetidas vezes à casa. Era, talvez, uma fantasia da mulher, mas aquela explicação não o satisfez, quan¬do pensou na Sra. Denman: uma mulher tranqüila, de feições duras, falando inglês tão corretamente que ninguém adivinha¬ria nela a estrangeira.

O automóvel chegou ao seu destino e ele desceu, com a mente ainda concentrada no problema do biombo chinês. O nome da casa dos Denmans era Ashmead e ocupava uns cinco acres de Melton Heath, cerca de 45 quilômetros de Londres, aproximadamente 300 metros acima do nível do mar e habi¬tado, em sua maior parte, por gente de altos rendimentos.

O mordomo recebeu gentilmente o Sr. Satterthwaite. O Sr. e a Sra. Denman haviam saído, para um ensaio, e esperavam que o Sr. Satterthwaite ficasse à vontade, até voltarem.

O Sr. Satterthwaite fez que sim com a cabeça e começou a atender a prescrição dando uma caminhada pelo jardim.- De¬pois de um apressado exame dos canteiros de flores, seguiu por um caminho umbroso. Afinal, chegou a uma porta no muro. Estava destrancada e ele atravessou-a e saiu numa estreita alameda.

O Sr. Satterthwaite olhou para a esquerda e para a direita. Uma alameda encantadora, umbrosa e verde, com altas sebes; uma alameda campestre que dava voltas e dobrava, no bom estilo antigo. Lembrou-se do endereço impresso: Ashmead, Alameda do Arlequim. Lembrou-se também da denominação local, que a Sra. Denman lhe dissera certa vez.

— Alameda do Arlequim — murmurou para si próprio, baixinho. — Fico imaginando...

Dobrou uma esquina.

Na ocasião não, mas depois ficou pensando por que seria que, desta feita, não sentiu nenhuma surpresa ao encontrar aquele seu esquivo amigo, o Sr. Harley Quin. Os dois homens apertaram-se as mãos.

— Então o senhor está aqui — disse o Sr. Satterthwaite.

— Sim — disse o Sr. Quin. — Estou hospedado na mes¬ma casa que o senhor.

— Hospedado?

— Sim. Isto o surpreende?

— Não — disse o Sr. Satterthwaite, devagar. — Só que... bem, o senhor nunca fica em parte alguma muito tempo, não é?

— Só o tempo necessário — disse o Sr. Quin grave¬mente.

— Entendo — disse o Sr. Satterthwaite

Caminharam em silêncio por alguns minutos.

— Esta alameda... — começou o Sr. Satterthwaite, e parou.

— Pertence-me — disse o Sr. Quin.

— Foi o que pensei — disse o Sr. Satterthwaite. — De alguma maneira, achei que devia pertencer-lhe. Ela tem outro nome, também, o nome local. É chamada Alameda do Amor. Sabia?

O Sr. Quin balançou a cabeça.

— Claro — disse gentilmente. — Existe uma Alameda do Amor em toda vila.

— Suponho que sim — disse o Sr. Satterthwaite, e sus¬pirou levemente.

Sentiu-se, de repente, meio velho e por fora das coisas, um homem meio fóssil, seco e engelhado. A cada lado esta¬vam as sebes, muito verdes e vivas.

— Onde será que termina esta alameda? — perguntou, de súbito.

— Termina aqui — disse o Sr. Quin.

Viraram uma última curva. A alameda findava num pe¬daço de terreno baldio, e quase aos seus pés abria-se uma grande cova. Dentro, havia latas brilhando ao sol e outras já demasiado vermelhas de ferrugem para poderem brilhar, botas velhas, pedaços de jornais, centenas de bugigangas que já não serviam para ninguém.

— Um monte de lixo — exclamou o Sr. Satterthwaite, e respirou fundo, indignado.

— Algumas vezes, há coisas maravilhosas num monte de lixo — disse o Sr. Quin.

— Eu sei, eu sei — exclamou o Sr. Satterthwaite, e citou, com um ligeiro acanhamento: “Traga-me as duas mais belas coisas da cidade, disse Deus.” Sabe como continua, hein?

O Sr. Quin fez que sim com a cabeça.

O Sr. Satterthwaite olhou para as ruínas de um pequeno chalé empoleirado na beira de uma muralha de pedra.

— Vista nada bonita para uma casa — observou ele.

— Imagino que isto não era um monte de lixo, naquele tempo — disse o Sr. Quin. — Acho que os Denmans vive¬ram ali, logo que se casaram. Mudaram-se para a casa grande quando os velhos morreram. Começaram a abrir uma pedreira ali e o chalé foi derrubado. Mas as escavações não prossegui¬ram, como vê.

Viraram-se e começaram a caminhar de volta.

— Suponho — disse o Sr. Satterthwaite, sorrindo — que muitos casais vagueiam por esta alameda, nessas noites quentes de verão.

— Provavelmente.

— Apaixonados — disse o Sr. Satterthwaite. Repetiu a palavra, pensativo, e sem o embaraço normal do inglês. O Sr. Quin tinha este efeito sobre ele. — Apaixonados. O senhor fez muita coisa pelos apaixonados, Sr. Quin.

O outro baixou a cabeça, sem responder.

— Salvou-os da dor... ou, pior que da dor, da morte. Foi um advogado até para os próprios mortos.

— Está falando de si mesmo, do que o senhor fez, não de mim.

— É a mesma coisa — disse o Sr. Satterthwaite. — O senhor sabe que é — insistiu, quando o outro não respondeu. — Agiu... através de mim. Por uma razão qualquer, não age diretamente, o senhor mesmo.

— Algumas vezes sim — disse o Sr. Quin.

Sua voz tinha uma nova entonação. Sem conseguir con¬ter-se, o Sr. Satterthwaite estremeceu ligeiramente. A tarde, pensou, devia estar ficando fria. E, no entanto, o sol parecia mais brilhante que nunca.

Naquele momento, uma moça dobrou a curva em frente e surgiu diante de seus olhos. Era uma moça muito bonita, loura e de olhos azuis, usando uma túnica rosa de algodão. O Sr. Satterthwaite identificou-a como Molly Stanwell, que co¬nhecera ali mesmo, antes.

Acenou-lhe, dando as boas-vindas.

— John e Anna acabaram de chegar — gritou. — Sa¬biam que o senhor vinha, mas, simplesmente tinham de ir ao ensaio.

— Ensaio de quê? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

— Da mascarada, sei lá. Ignoro como se chama o espetá¬culo. Tem canto e dança, todo tipo de coisas. O Sr. Manly (lembra-se dele, daqui?) tem uma voz de tenor muito boa, e vai ser o Pierrot, e eu sou a Pierrette. Dois profissionais vêm para a dança: Arlequim e Colombina, sabe. E também há um grande coro de moças. Lady Roscheimer é ótima para treinar no canto as moças da vila. Está realmente preparando-as. A música é mesmo maravilhosa, mas muito moderna. Quase não tem melodia nenhuma. Claude Wickam. Talvez o senhor o conheça.

O Sr. Satterthwaite fez que sim com a cabeça, pois como já foi dito, seu ofício era conhecer todo mundo. Estava informado sobre aquele aspirante a gênio que era Claude Wickam, e sobre Lady Roscheimer, gorda e com um pendor pelos jovens da “raça” artística. E tudo sabia a respeito de Sir Leopold Roscheimer, que queria ver a mulher feliz e, o que é muito raro entre maridos, não se incomodava que ela fosse feliz à sua maneira.

Encontraram Claude Wickam tomando chá com os Denmans, enchendo a boca indiscriminadamente com tudo o que encontrava à mão, falando rápido e abanando as longas mãos brancas que pareciam ter juntas duplas. Seus olhos míopes espiavam através de grossos óculos com aros de chifre.

John Denman, empertigado, ligeiramente rubicundo e com uma mínima tendência à gordura, ouvia com ar de atenção entediada. Com o aparecimento do Sr. Satterthwaite, o músico transferiu para ele suas observações. Anna Denman sentava-se por trás das coisas do chá, quieta e sem expressão, como de costume.

O Sr. Satterthwaite lançou-lhe um olhar disfarçado. Alta, ossuda, muito magra, com a pele extremamente esticada sobre os pômulos, cabelos pretos partidos ao meio, uma pele cas¬tigada pelo tempo. Uma mulher do ar livre, que não se preo¬cupava com o uso de cosméticos. Uma boneca de pau, dura, sem vida — e, no entanto...

Ele pensou: Devia existir um significado por trás desse rosto, e, no entanto, não existe. É isto que está totalmente errado. Sim, totalmente errado. Disse a Claude Wickam:

— Desculpe, não ouvi o que falou.

Claude Wickam, que gostava do som de sua própria voz, começou tudo de novo. A Rússia, ele disse, era o único país do mundo que merecia interesse. Eles faziam experiências. Com vidas, pode ser, mas, ainda assim, experimentavam.

— Magnífico!

Enfiou um sanduíche na boca, com uma das mãos, e com a outra acrescentou um pedaço da bombinha de choco¬late que estava brandindo no ar. — Vejamos — disse ele (com a boca cheia) — o Ballet Russo. — Lembrando-se da anfitriã, virou-se para ela. O que ela pensava do Ballet Russo?

A pergunta, obviamente, era só um prelúdio para a ques¬tão importante: o que Claude Wickam pensava do Ballet Russo. Mas a resposta dela foi tão inesperada que o afastou comple¬tamente de seu caminho.

— Nunca o vi.

— O quê? — Olhou-a, boquiaberto. — Mas certamen¬te...

A voz dela prosseguiu, igual e sem emoção.

— Antes de meu casamento, fui bailarina. Então, agora...

— Ninguém quer passar as férias carregando pedras — disse o marido.

— Dança — ela encolheu os ombros. — Conheço todos os seus truques. Não me interessa.

— Oh!

Claude demorou um momento para recobrar o aprumo.

— Falando de vidas — disse o Sr. Satterthwaite — e de experiências com elas, a nação russa fez uma experiência cus¬tosa.

Claude Wickam virou-se de pronto para” ele.

— Sei o que vai dizer — exclamou. — Kharsanova! A imortal, a única Kharsanova! Viu-a dançar?

— Três vezes — disse o Sr. Satterthwaite. — Duas em Paris, uma em Londres. Jamais esquecerei.

Falava em voz quase reverente.

— Eu também a vi — disse Claude Wickam. — Tinha dez anos. Um tio levou-me. Meu Deus! Nunca vou esquecer.

Atirou um pedaço de pãozinho, ferozmente, num canteiro.

— Há uma estatueta dela no Museu de Berlim — disse o Sr. Satterthwaite. — É maravilhosa. Aquela impressão de fra¬gilidade, como se fosse possível quebrá-la com um piparote. Vi-a como Colombina, no Cisne, como a Ninfa agonizante. — Fez uma pausa, sacudindo a cabeça. — Era genial. Muitos anos irão passar-se antes que nasça outra igual. Era jovem, também. Destruída por ignorância, irresponsavelmente, nos pri¬meiros dias da Revolução.

— Idiotas! Loucos! Brutamontes! — disse Claude Wickam. Sufocava, com a boca cheia de chá.

— Estudei com a Kharsanova — disse a Sra. Denman. — Lembro-me dela muito bem.

— Era maravilhosa? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

— Sim — disse a Sra. Denman, tranqüilamente. — Era maravilhosa.

Claude Wickam partiu, e John Denman deu um profundo suspiro de alívio, provocando uma risada em sua mulher.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça.

— Sei o que está pensando. Mas, apesar de tudo, a mú¬sica que aquele rapaz escreve é música.

— Suponho que sim — disse Denman.

— Oh! Sem dúvida. Por quanto tempo será... bem, isto é diferente.

John Denman olhou para ele com curiosidade.

— Que quer dizer?

— Quero dizer que o sucesso veio cedo. E que isto é perigoso. Sempre perigoso. — Olhou para o Sr. Quin. — Con¬corda comigo?

— O senhor tem sempre razão — disse o Sr. Quin.

— Vamos para cima, para meus aposentos — disse a Sra. Denman. — É agradável, lá.

Mostrou o caminho e eles a seguiram. O Sr. Satterthwaite respirou fundo, quando viu o biombo chinês. Viu que a Sra. Denman o observava.

— O senhor é o homem que tem sempre razão — disse ela, sacudindo a cabeça para ele, ligeiramente. — Que acha do meu biombo?

Ele sentiu que, de certo modo, as palavras eram um de¬safio, e respondeu quase vacilando, tropeçando um pouco nas palavras.

— Ora, é... é uma beleza. Mais de que isto, é único.

— Tem razão. — Denman acercara-se pelas costas. — Nós o compramos logo que nos casamos. Ficamos com ele por um décimo de seu valor, mas mesmo então... bem, deixou-nos sem dinheiro por cerca de um ano. Lembra-se, Anna?

— Sim — disse a Sra. Denman. — Eu me lembro.

— Na verdade, não tínhamos absolutamente condições para comprá-lo... não naquele tempo. Agora, claro, é diferente. Outro dia, havia alguns objetos de laca muito bons à venda na Christie. Exatamente o que precisávamos para tornar este cô¬modo perfeito. Tudo chinês. Tirar as outras coisas. Acredita, Satterthwaite, que minha mulher não quis saber disso?

—- Gosto desta sala como ela é — disse a Sra. Denman.

Seu rosto tinha ar estranho. Novamente, o Sr. Satterth¬waite sentiu-se desafiado e derrotado. Olhou em torno e, pela primeira vez, observou a falta de qualquer toque pessoal. Não havia fotografias, flores ou bugigangas. Não parecia, de ma¬neira alguma, um quarto de mulher. A não ser pelo elemento incongruente do biombo chinês, poderia ser uma sala de amos¬tras, dessas apresentadas nas grandes lojas de móveis.

Descobriu-a sorrindo para ele.

— Ouça — disse ela. Inclinou-se para a frente e, por um momento, pareceu menos inglesa, mais definitivamente estrangeira. — Estou falando ao senhor porque compreenderá. Compramos aquele biombo com mais do que dinheiro... com amor. Por amor a ele, porque era belo e único ficamos sem outras coisas, coisas de que precisávamos, cuja falta sentía¬mos. Essas outras peças chinesas de que fala meu marido, essas nós compraríamos apenas com dinheiro, não pagaría¬mos com nada verdadeiramente nosso.

O marido riu.

— Oh, faça como quiser — disse, mas com um traço de irritação na voz. — Mas não fica nada bem, com este ambiente inglês. As outras peças da mobília são boas, em seu gênero, genuínas e sólidas, sem qualquer falsificação, porém medíocres. O bom e sólido Hepplewhite do fim do período.

Ela balançou a cabeça.

— Bom, sólido, genuinamente inglês — murmurou, bai¬xinho.

O Sr. Satterthwaite olhou-a. Captou um significado por trás dessas palavras. O aposento inglês... a flamejante beleza do biombo chinês. Não, escapara-lhe novamente.

— Encontrei a Srta. Stanwell na alameda — disse ele, em tom trivial. — Ela contou-me que vai ser a Pierrete no espe¬táculo desta noite.

— Sim — disse Denman. — Ela é também muito boa.

— Tem pés desajeitados — disse Anna.

— Bobagem — disse o marido. — Todas as mulheres são parecidas, Satterthwaite. Não podem suportar ouvir elogios a outra mulher. Molly é uma moça muito bonita e então, claro, todas as mulheres têm de falar mal dela.

— Estava falando de dança — disse Anna Denman. Pa¬recia ligeiramente surpreendida. — Ela é muito bonita, sim, mas seus pés movem-se desajeitadamente. Você não pode dizer mais nada, porque eu entendo de dança.

O Sr. Satterthwaite interveio, com tato.

— Dois dançarinos profissionais virão, não é?

— Sim, para o ballet propriamente dito. O Príncipe Oranoff vai trazê-los em seu carro.

— Sergius Oranoff?

A pergunta foi feita por Anna Denman. O marido virou-se e olhou para ela.

— Você o conhece?

— Conheci-o na Rússia.

O Sr. Satterthwaite achou que John Denman parecia per¬turbado.

— Ele a reconhecerá?

— Sim, ele me reconhecerá.

Ela riu. Uma risada baixa, quase triunfante. Nada havia de boneca de pau em seu rosto, agora. Balançou a cabeça, tranqüilizadoramente, para o marido.

— Serge. Então, ele vai trazer os dois bailarinos. Ele sem¬pre se interessou por dança.

— Eu me lembro.

 John Denman falou bruscamente e depois virou-se e saiu do aposento. O Sr. Quin seguiu-o. Anna Denman dirigiu-se para o telefone e pediu um número. Fez o Sr. Satterthwaite parar, com um gesto, quando ele se preparava para seguir os dois outros homens.

— Posso falar com Lady Roscheimer? Oh, é você. Quem fala é Anna Denman. O Príncipe Oranoff já chegou? O quê? O quê? Oh! Meu Deus! Que coisa terrível.

Ficou ouvindo por mais alguns momentos, depois bateu o receptor. Virou-se para o Sr. Satterthwaite.

— Houve um acidente. Tinha de ser com Sergius Ivanovitch ao volante. Oh, ele não mudou nada, em todos esses anos. A moça não ficou muito ferida, mas está machucada e abalada demais para dançar esta noite. O braço do homem está quebrado. O próprio Serge Ivanovitch não teve nada. O demônio cuida de si mesmo, dizem.

— E a apresentação desta noite?

— Justamente, meu amigo. É preciso tomar alguma pro¬vidência a respeito.

Ela ficou pensando. Depois, olhou-o.

— Sou uma má anfitriã, Sr. Satterthwaite. Não o entretenho.

— Garanto-lhe que não é preciso. Há uma coisa, entre¬tanto, Sra. Denman, que gostaria muito de saber.

— Sim?

— Como encontrou o Sr. Quin?

— Ele vem freqüentemente aqui — disse ela, devagar. — Acho que possui terras nesta região.

— É verdade, é verdade. Contou-me isto, esta tarde — disse o Sr. Satterthwaite.

— Ele é — ela fez uma pausa. Seus olhos encontraram-se com os do Sr. Satterthwaite. — Acho que o senhor sabe quem ele é melhor do que eu — concluiu.

— Eu?

— Não é mesmo?

Ele estava perturbado. Sua pequena alma pura achava-a perturbadora. Sentiu que ela queria forçá-lo a ir além do que estava preparado, queria fazê-lo pôr em palavras o que ele não estava pronto para admitir diante de si mesmo.

— O senhor sabe! — disse ela. — Acho que o senhor sabe a maior parte das coisas, Sr. Satterthwaite.

Era um elogio mas, desta vez, não conseguiu exaltá-lo. Abanou a cabeça, com humildade desusada.

— Que é que alguém pode, realmente, saber? — pergun¬tou. — Tão pouco. Tão absolutamente pouco.

Ela balançou a cabeça, concordando. Depois, falou-lhe novamente, com voz estranha, meditativa, sem o olhar.

— Vamos supor que eu lhe dissesse uma coisa. Não ia rir? Não, não acredito que risse. Vamos supor, então, que para levar avante — fez uma pausa — o negócio de alguém, a profissão de alguém, essa pessoa precisasse usar uma fantasia... precisasse fingir para si próprio algo que não existiu... ima¬ginasse uma certa pessoa. Um fingimento, entende, um faz-de-conta, nada mais. Mas, um dia...

— Sim? — disse o Sr. Satterthwaite. Estava intensamente interessado.

— A fantasia torna-se realidade! A coisa que a pessoa imaginava... a coisa impossível, que não podia ser... era real! É loucura? Diga-me, Sr. Satterthwaite. É loucura, ou o senhor acredita também?

— Eu... — estranho como ele não conseguia dizer as palavras. Como elas pareciam estar presas no fundo de sua garganta.

— Loucura — disse Anna Denman. — Loucura.

Saiu apressadamente da sala e deixou o Sr. Satterthwaite com sua confissão de crença inexpressa.

Quando desceu para jantar, ele encontrou a Sra. Denman entretendo um convidado, um homem alto e moreno que se aproximava dá meia-idade.

— Príncipe Oranoff... Sr. Satterthwaite.

Os dois homens fizeram uma curvatura. O Sr. Satterth¬waite sentia que uma conversa fora interrompida com sua entrada, e não seria reiniciada. Mas não havia nenhuma tensão. Os russos conversavam fácil e naturalmente sobre os assuntos que mais tocavam o coração do Sr. Satterthwaite. Ele era um homem de fino gosto artístico e logo descobriram que tinham muitos amigos em comum. John Denman juntou-se e a conver¬sa tornou-se restrita. Oranoff manifestou tristeza pelo acidente.

— Não foi minha culpa. Gosto de guiar depressa, sim, mas sou um motorista. Foi o Destino, o acaso. — Encolheu os ombros. — Ele rege as vidas de nós todos.

— Aí fala o russo que há em você, Sergius Ivanovicht — disse a Sra. Denman.

— E encontra eco em você, Anna Mikalov — ele re¬torquiu, depressa.

O Sr. Satterthwaite olhou os três, um por um. John Den¬man, louro, reservado, inglês, e os outros dois, morenos, ma¬gros, estranhamente parecidos. Lembrou-se de algo. O que era? Ah, já sabia. O primeiro ato da Walküre. Sigmund e Sieglinde, tão parecidos, e o estrangeiro Hundig. Começou a fazer conjec¬turas. Qual era o significado da presença do Sr. Quin? Numa coisa ele acreditava firmemente: onde o Sr. Quin aparecia, havia drama. Seria isto... a antiga e gasta tragédia do triân¬gulo amoroso?

Estava vagamente desapontado. Esperava coisas melhores.

— O que ficou combinado, Anna? — perguntou Denman.

— A coisa terá de ser adiada, suponho. Ouvi-a telefonar para os Roscheimer.

Ela sacudiu a cabeça.

— Não... não é preciso adiá-la.

— Mas não se pode fazer a apresentação sem o ballet.

— Certamente, não se pode apresentar uma arlequinada sem Arlequim e Colombina — concordou Anna Denman, se¬camente. — Eu serei a Colombina. John.

— Você?

Ele estava atônito, perturbado, pensou o Sr. Satterthwaite.

Ela balançou a cabeça, serenamente.

— Não precisa ter medo, John. Não o envergonharei. Você se esquece... foi minha profissão, outrora.

O Sr. Satterthwaite pensou: Que coisa extraordinária é uma voz. As coisas que diz e as que deixa sem dizer e insi¬nua! Queria saber...

— Bem — disse John Denman, relutantemente. — Isto resolve metade do problema. E a outra metade? Onde encon¬trará o Arlequim?

— Já o encontrei. Ei-lo!

Ela fez um gesto em direção à porta aberta por onde o Sr. Quin acabava de entrar. Ele correspondeu ao sorriso.

— Meu Deus, Quin — disse John Denman. — Entende algo dessas coisas? Eu nunca teria imaginado.

— O Sr. Quin tem a garantia de um grande entendido — disse sua mulher. — O Sr. Satterthwaite responde por ele.

Ela sorriu para o Sr. Satterthwaite e o homenzinho acabou murmurando:

— Oh, sim, eu respondo pelo Sr. Quin.

Denman voltou a atenção para outro lado.

— Sabe, vai haver um tal de baile à fantasia, depois. Um grande aborrecimento. Vamos ter de fantasiá-lo Satterth¬waite.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, com muita decisão.

— A idade me servirá de desculpa. — Teve uma idéia brilhante. — Uma toalha de mesa no braço. E estarei pronto, um velho garçom que teve melhores dias.

Riu.

— Profissão interessante — disse o Sr. Quin. — A pes¬soa vê tanta coisa.

— Vou ter de usar alguma tola roupa de Pierrot — disse Denman, sombriamente. — De qualquer maneira, está fresco, já é alguma coisa. E o senhor? — Olhou para Oranoff.

— Tenho um traje de Arlequim — disse o russo. Seus olhos examinaram, por um minuto, o rosto da anfitriã.

O Sr. Satterthwaite imaginou se estava equivocado ao pensar que houve um momento de constrangimento.

— Poderia haver três — disse Denman, com uma risada. — Tenho uma velha fantasia de Arlequim que minha mulher mandou fazer para mim logo que nos casamos, para uma apre¬sentação qualquer. — Fez uma pausa, olhando para o amplo peitilho de sua camisa. — Acho que não daria mais em mim.

— Não — disse sua mulher — não daria mais em você. — E, novamente, a voz dela dizia algo mais que as simples palavras.

Ela deu uma olhada no relógio.

— Se Molly não aparecer logo, não esperaremos por ela.

Mas, naquele momento, a moça foi anunciada. Usava já seu traje de Pierrette, verde e branco, e estava encantadora com ele, pensou o Sr. Satterthwaite.

Estava cheia de excitação e entusiasmo, com a apresenta¬ção.

— Mas estou ficando terrivelmente nervosa — anunciou, enquanto todos bebiam café, depois do jantar. — Sei que minha voz vai vacilar e esquecerei as palavras.

— Sua voz é muito encantadora — disse Anna. — Eu não me preocuparia com ela, se fosse você.

— Oh, mas eu me preocupo. Quanto ao resto, não. A dança, quero dizer. Com certeza vai dar certo. Quero dizer, os pés não erram tanto assim, não é?

Apelava para Anna, mas a mulher mais velha não res¬pondeu. Em vez disso, pediu:

— Cante algo para o Sr. Satterthwaite, agora. Verá que ele vai tranqüilizá-la.

Molly foi até o piano. Sua voz soou fresca e melodiosa, numa velha balada irlandesa:

Sheila, morena Sheila, o que está vendo?

O que está vendo, o que está vendo no fogo?

“Vejo um rapaz que me ama — e vejo um rapaz que me

abandona e um terceiro rapaz, um Rapaz das Sombras — e

ele é o rapaz que me causa sofrimento.”

A canção continuava. No final, o Sr. Satterthwaite balan¬çou a cabeça, em vigorosa aprovação.

— A Sra. Denman tem razão. Sua voz é encantadora. Não, talvez, inteiramente treinada, mas deliciosamente natural, e tendo nela uma qualidade que não depende de estudo — a da juventude.

— É isto mesmo — concordou John Denman.  — Vá em frente, Molly, e não se deixe dominar pelo medo do palco. É melhor irmos para a casa dos Roscheimer, agora.

O grupo separou-se, para vestirem os casacos. Estava uma bela noite e decidiram ir a pé, pois a casa ficava apenas a al¬guns metros de distância.

O Sr. Satterthwaite estava ao lado de seu amigo.

— É uma coisa estranha — disse ele — mas aquela mú¬sica me fez pensar no senhor. Um terceiro rapaz — um Rapaz das Sombras. Há mistério aí, e sempre que há mistério... bem, penso no senhor.

— Sou assim tão misterioso? — sorriu o Sr. Quin.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, vigorosamente.

— Sim, deveras. Sabe que até esta noite eu não tinha idéia de que o senhor fosse um bailarino profissional?

— Realmente? — disse o Sr. Quin.

— Ouça — disse o Sr. Satterthwaite. Cantarolou o motivo amoroso da Walküre. — Foi o que soou em minha cabeça du¬rante todo o jantar, enquanto olhava aqueles dois.

— Que dois?

— O Príncipe Oranoff e a Sra. Denman. Não vê como ela está diferente, esta noite? É como se... como se um postigo tivesse sido repentinamente aberto e se pudesse ver a claridade lá dentro.

— Sim — disse o Sr. Quin. — Talvez.

— O mesmo velho drama — disse o Sr. Satterthwaite. — Tenho razão, não? Aqueles dois pertencem um ao outro. São do mesmo mundo, pensam as mesmas coisas, sonham os mes¬mos sonhos. Pode-se ver como tudo aconteceu. Há dez anos, Denman deve ter sido muito bem parecido, jovem, ousado, uma figura de romance. E ele salvou a vida dela. Tudo bem natural. Mas agora... quem é ele, afinal? Um bom sujeito. Próspero, bem sucedido, mas... bem, medíocre. Da boa e honesta raça inglesa. Muito parecido com aquela mobília Hep¬plewhite, lá em cima. Tão inglês, e tão comum, como aquela bela moça inglesa, com sua voz fresca e não treinada.  Oh, pode sorrir, Sr. Quin, mas não pode negar o que eu estou di¬zendo.

— Não nego nada. Isto mostra que está sempre certo. No entanto...

— No entanto, o quê?

O Sr. Quin inclinou-se para a frente. Seus olhos escuros, melancólicos, procuraram os do Sr. Satterthwaite.

— Aprendeu tão pouco da vida? — sussurrou.

Deixou o Sr. Satterthwaite vagamente inquieto, tão entre¬gue à meditação que os outros, descobriu, acabaram partindo sem ele, devido à sua demora na escolha de um lenço para o pescoço. Saiu pelo jardim e através da mesma porta por onde passara à tarde. A alameda estava banhada pelo luar e, ainda no vão da porta, viu um casal abraçado.

Por um momento, pensou...

Então, ele viu. John Denman e Molly Stanwell. A voz de Denman chegou aos seus ouvidos, rouca e angustiada.

— Não posso viver sem você. Que vamos fazer?

O Sr. Satterthwaite virou-se para voltar pelo mesmo cami¬nho por onde viera, mas uma mão o deteve. Alguém mais es¬tava no vão da porta, ao seu lado. Alguém que também vira.

Bastou o Sr. Satterthwaite dar uma olhada no rosto dela para perceber como suas conclusões eram equivocadas.

Sua mão angustiada prendeu-o ali, até os outros dois pas¬sarem pela alameda e desaparecerem de vista. Começou a falar com ela, a lhe dizer pequenas coisas que procuravam ser confortadoras mas ridiculamente inadequadas para a agonia que adi¬vinhara. Ela só falou uma vez.

— Por favor — disse — não me deixe.

Achou aquilo estranhamente tocante. Era, então, útil a alguém. E continuou a dizer aquelas coisas que nada signi¬ficavam, afinal, mas que eram, de algum modo, preferíveis ao silêncio. Seguiram por aquele caminho até a casa dos Roscheimer. De vez em quando, a mão dela apertava seu ombro e ele compreendia que ela estava contente com sua companhia. Só se afastou quando, finalmente, chegaram ao seu destino. Ela esta¬va muito erecta, com a cabeça bem erguida.

— Agora — disse ela — vou dançar. Não tema por mim, meu amigo. Eu vou dançar.

Deixou-o abruptamente. Ele foi apanhado por Lady Roscheimer, coberta de diamantes e muito cheia de lamentações. Dela, foi passado para Claude Wickam.

— Arruinado! Completamente arruinado. O tipo de coisa que sempre acontece comigo. Toda essa gente do campo acha que sabe dançar. Nem sequer me consultaram...

Sua voz continuou — continuou interminavelmente. En¬contrara um ouvinte simpático, um homem que sabia. Entre¬gou-se a uma orgia de autocompaixão. Só terminou quando começaram os acordes da música.

O Sr. Satterthwaite acordou de seu sonho. Estava nova¬mente alerta, crítico. Wickam era um grande imbecil, mas sabia escrever música — como um tecido diáfano, intangível qual teia de aranha — e, ainda assim, sem nada de simples¬mente bonitinho.

O cenário era bom. Lady Roscheimer jamais poupava des¬pesas quando ajudava seus protegidos. Uma vereda da Arcá¬dia, com efeitos de luz que lhe davam a adequada atmosfera de irrealidade.

Duas figuras dançavam como haviam dançado através de tempos imemoriais. Um esguio Arlequim fazendo chamejarem lentejoulas ao luar, com varinha mágica e rosto mascarado, uma branca Colombina e suas piruetas, como num sonho imortal...

O Sr. Satterthwaite ergueu-se. Havia visto, antes, esta mes¬ma cena. Sim, com certeza...

Agora, estava bem longe da sala de visitas de Lady Ros¬cheimer. Encontrava-se no museu de Berlin, olhando para uma estatueta da imortal Colombina.

Arlequim e Colombina continuavam a dançar. O mundo inteiro se abria para sua dança.

O luar — e uma figura humana. Pierrot vagueando pelo bosque, a cantar para a lua. Pierrot, que vira Colombina e não mais tivera descanso. A dupla imortal se desfaz, Colombina olha para trás. Ouviu a canção que vinha de um coração humano.

Pierrot vagueando pela floresta... escuridão. Sua voz mor¬re à distância...

A dança verde da vila, pelas moças da vila: Pierrots e Pierrettes. Molly como Pierrette. Não era uma dançarina. Anna Denman tinha razão quanto a isso — mas possuía uma voz fresca e melodiosa, ao cantar sua canção “Pierrette dançando sobre o verde”.

Uma boa melodia. O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, aprovadoramente. Wickam não se negava a escrever uma me¬lodia, quando necessário. A maioria das moças da vila fize¬ram-no estremecer, mas ele percebeu que Lady Roscheimer era movida por uma determinação filantrópica.

Elas instigam Pierrot a entrar na dança. Ele recusa-se. Com seu rosto branco, continua a vaguear. O eterno apaixo¬nado procurando seu ideal. Cai a noite. Arlequim e Colombina, invisíveis, dançam através da multidão inconsciente. O local está deserto, só Pierrot, cansado, adormece num declive gramado. Arlequim e Colombina dançam em torno dele. Ele acorda e vê Colombina. Ele a corteja em vão, suplica, implora...

Ela hesita. Arlequim faz-lhe sinais para que se afaste. Mas ela não o vê mais. Escuta Pierrot, sua canção de amor que jorra mais uma vez. Ela cai em seus braços, e a cortina desce.

O segundo ato é no chalé de Pierrot. Colombina senta-se à lareira. Está pálida, cansada. Escuta... o quê? Pierrot canta para ela, implorando que volte a pensar nele. A noite vai cain¬do. Ouve-se um trovão. Colombina põe de lado sua roca. Está ansiosa, excitada. Não escuta mais Pierrot. É a sua própria música que está no ar, a música de Arlequim e Colombina. Ela está desperta. Lembra.

O espocar do trovão! Arlequim está sentado no vão da porta. Pierrot não pode vê-lo, mas Colombina salta, com uma risada alegre. Crianças vêm correndo, mas ela as afasta. Com outro espocar do trovão, as paredes caem e Colombina dança dentro da noite imensa, ao lado de Arlequim.

Através da escuridão, ouve-se a melodia que Pierrette cantara. A luz acende-se lentamente. O chalé, de novo. Pierrot e Pierrette, velhos e grisalhos, sentam-se diante do fogo, em duas poltronas. A música é feliz, mas contida. Pierrette co¬chila em sua cadeira. Através da janela, entra um raio de luar e, com ele, o tema da música do Pierrot, há muito esquecida. Ele se agita na cadeira.

Tênue música — música encantada. Arlequim e Colom¬bina lá fora. A porta abre-se de repente, e Colombina dança do lado de dentro. Inclina-se sobre o adormecido Pierrot, beija-o nos lábios.

Crack! O ribombo de um trovão. Ela está novamente do lado de fora. No centro do palco, a janela iluminada e, através dela, vêem-se as duas figuras de Arlequim e Colombina, que se afastam dançando vagarosamente, cada vez mais distantes...

Cai um tronco. Pierrette levanta-se de um salto, zangada, vai correndo à janela, puxa a persiana. Assim termina o espe¬táculo, numa súbita dissonância.

O Sr. Satterthwaite ficou sentado, muito quieto, entre os aplausos e gritos. Finalmente, levantou-se e abriu caminho para fora. Encontrou Molly Stanwell, ruborizada e ansiosa, rece¬bendo cumprimentos. Viu John Denman, empurrando e acotovelando a multidão, para poder passar, os olhos brilhando com uma nova flama. Molly dirigiu-se para ele, mas, quase incons¬cientemente, ele a afastou. Não a procurava.

— Minha mulher? Onde está?

— Acho que saiu para o jardim.

Mas foi o Sr. Satterthwaite quem a descobriu, sentada num banco de pedra sob um cipreste. Quando se aproximou, fez uma coisa estranha. Ajoelhou-se e levou aos lábios a mão dela.

— Ah! — disse ela. — Acha que dancei bem?

— Dançou... como sempre, Madame Kharsanova.

Ela suspirou.

— Então, o senhor adivinhou.

— Só existe uma Kharsanova. Ninguém pode ver sua dança e esquecer. Mas por quê... por quê?

— Que mais era possível?

— Que quer dizer?

Ela falava muito simplesmente. Era muito simples, agora.

— Oh, mas o senhor compreende. É um homem do mun¬do. Uma grande bailarina... ela pode ter amantes, sim. Mas um marido é diferente. E ele... ele não queria a outra alternativa. Queria que eu lhe pertencesse como... como Kharsanova ja¬mais poderia ter pertencido.

— Entendo — disse o Sr. Satterthwaite. — Entendo. En¬tão, desistiu de tudo?

Ela balançou a cabeça.

— Deve tê-lo amado muito — disse o Sr. Satterthwaite com brandura.

— Para fazer tal sacrifício? — ela riu.

— Não exatamente. Para fazê-lo tão alegremente.

— Ah, sim. Talvez tenha razão.

— E agora? — perguntou o Sr. Satterthwaite.

O rosto dela ficou sério.

— Agora? — Fez uma pausa e depois ergueu a voz e falou rumo à escuridão.

— É você, Sergius Ivanovitch?

O Príncipe Oranoff apareceu ao luar. Tomou-lhe a mão e sorriu para o Sr. Satterthwaite, sem nenhum acanhamento.

— Há dez anos, chorei a morte de Anna Kharsanova — disse, simplesmente. — Ela era como uma parte de mim mesmo. Hoje, eu a encontrei novamente. Não nos separaremos mais.

— No fim da alameda, dentro de dez minutos — disse Anna. — Não vou desapontá-lo.

Oranoff concordou com a cabeça, e saiu novamente. A bailarina virou-se para o Sr. Satterthwaite. Um sorriso brincou-lhe nos lábios.

— Bem, não está satisfeito, meu amigo?

— Sabe — disse o Sr. Satterthwaite, de modo brusco — que seu marido a está procurando?

Viu o tremor de seu rosto, mas a voz dela continuou bas¬tante firme.

— Sim — disse ela, gravemente. — Pode realmente ser.

— Vi os olhos dele. Eles... — parou, de repente.

Ela ainda estava calma.

— Sim, talvez. Durante uma hora. A magia de uma hora, nascida de lembranças, da música, do luar. É tudo.

— Então, não há nada que eu possa dizer? — Sentiu-se velho, desanimado.

— Durante dez anos vivi com o homem que amo — disse Anna Kharsanova. — Agora vou para o homem que, durante dez anos, amou-me.

O Sr. Satterthwaite nada disse. Não tinha mais argumen¬tos. Além disso, realmente parecia a solução mais simples. Só que...

Só que, de algum modo, não era a solução que ele mais desejava. Sentiu a mão dela sobre seu ombro.

— Eu sei, meu amigo, eu sei. Mas não há uma terceira saída. Sempre se espera a mesma coisa — o apaixonado, o perfeito e eterno apaixonado. É a música do Arlequim que se escuta. Nenhum amor satisfaz para sempre, pois todos os apai¬xonados são mortais. E o Arlequim é apenas um mito, uma presença invisível. A não ser que...

— Sim — disse o Sr. Satterthwaite. — Sim?

— A não ser que seu nome seja Morte!

O Sr. Satterthwaite estremeceu. Ela afastou-se, foi engolida pela escuridão.

Jamais soube muito bem por quanto tempo ficou sentado ali, mas, de repente, sobressaltou-se com a sensação de que perdera tempo precioso. Saiu apressadamente numa determinada direção, quase à sua própria revelia.

Quando entrou na alameda, teve uma estranha sensação de irrealidade. Magia, magia e luar. E duas figuras vindo em sua direção.

Oranoff em seu traje de Arlequim. Foi o que pensou, primeiro. Depois, quando passaram, entendeu seu equívoco. Aquela figura flexível e balouçante pertencia apenas a uma pessoa: o Sr. Quin.

Desciam a alameda. Com pés tão leves como se estivessem caminhando no espaço. O Sr. Quin voltou a cabeça, olhou para trás, e o Sr. Satterthwaite levou um susto, porque não era o rosto do Sr. Quin como o vira sempre antes. Era o rosto de um estranho. Não, não realmente de um estranho. Ah, percebia agora, era o rosto de John Denman, como deveria ser antes de se tornar tão próspero. Ansioso, aventuresco. O rosto, ao mesmo tempo, de um garoto e de um amante.

Ouviu o riso dela, claro e feliz... Acompanhou-os com o olhar e viu, à distância, as luzes de um pequeno chalé. Olha¬va-os como um homem que sonha.

Foi rudemente acordado por uma mão que caiu sobre seu ombro, obrigando-o a virar-se e encarar Sergius Oranoff. O homem parecia pálido e abstraído.

— Onde está ela? Onde está ela? Prometeu e não veio.

— Madame acaba de seguir pela alameda, sozinha.

Era a criada da Sra. Denman que falava, da escuridão da porta, por trás deles. Esperava com o agasalho da patroa.

— Estava aqui e vi-a passar — acrescentou.

O Sr. Satterthwaite disse-lhe uma só palavra áspera.

— Sozinha? Sozinha, você disse?

Os olhos da criada arregalaram-se de espanto.

— Sim, senhor. O senhor não a viu?

O Sr. Satterthwaite agarrou Oranoff.

— Depressa — murmurou. — Estou... estou com medo.

Percorreram apressadamente a alameda, com o russo di¬zendo frases rápidas e descosidas.

— Ela é uma criatura maravilhosa. Ah, como dançou esta noite. E aquele seu amigo. Quem é ele? Ah, mas ele é maravilhoso... único. Nos velhos tempos, quando dançava a Colombina de Rimsky Korsakoff, ela jamais encontrou o per¬feito Arlequim. Mordroff, Kassnine... nenhum deles era real¬mente perfeito. Ela alimentava uma pequena fantasia. Disse-me, certa vez. Sempre dançava com um Arlequim de sonho, um homem que não estava realmente ali. O próprio Arlequim, disse-me, ia dançar com ela. Esta fantasia era o que tornava sua Colombina tão maravilhosa.

O Sr. Satterthwaite balançou a cabeça, concordando. Ha¬via apenas um pensamento em sua mente.

— Depressa — disse. — Precisamos chegar a tempo. Oh, precisamos chegar a tempo.

Dobraram a última curva. Chegaram à funda cova, onde jazia algo que não estava ali antes, o corpo de uma mulher em maravilhosa pose, os braços bem abertos e a cabeça atirada para trás. Rosto e corpo mortos, triunfantes e belos ao luar.

Oranoff murmurava frases inacabadas. As lágrimas escor¬riam-lhe pelo rosto.

— Eu a amava. Sempre a amei. — Usou quase as mes¬mas palavras que haviam ocorrido antes, naquele mesmo dia, ao Sr. Satterthwaite. — Éramos do mesmo mundo, ela e eu. Tínhamos os mesmos pensamentos, os mesmos sonhos. Eu a teria amado para sempre...

— Como sabe?

O russo olhou-o devido ao tom de mal-humorada imper¬tinência.

— Como sabe? — continuou o Sr. Satterthwaite. — É o que pensam todos os apaixonados e o que todos dizem. Há apenas um apaixonado.

Virou-se e quase colidiu com o Sr. Quin. Com agitação, o Sr. Satterthwaite agarrou-o pelo braço e puxou-o de parte.

— Foi o senhor — disse. — Foi o senhor que estava com ela, há pouco?

O Sr. Quin esperou um minuto e depois disse, gentilmente:

— Pode considerar assim, se quiser.

— E a criada não o viu?

— A criada não me viu.

— Mas eu sim. Por quê?

— Talvez como resultado do preço que o senhor pagou, o senhor vê coisas que os outros não vêem.

O Sr. Satterthwaite olhou-o sem entender, por alguns mi¬nutos. Depois, começou de repente a tremer todo, como uma folha de faia.

— Que lugar é este? — sussurrou. — Que lugar é este?

— Eu lhe disse antes. É minha alameda.

— Uma Alameda do Amor — murmurou o Sr. Satterth¬waite. — E as pessoas passam por ela.

— A maioria das pessoas, mais cedo ou mais tarde.

— E no final, que encontram?

O Sr. Quin sorriu. Sua voz era muito gentil. Apontou o chalé em ruínas, lá no alto. — A casa de seus sonhos... ou um monte de lixo, quem poderá dizer?

O Sr. Satterthwaite olhou-o, de repente. Uma feroz rebe¬lião dominou-o.

— Eu nunca passei por sua alameda.

— E lamenta?

O Sr. Satterthwaite encolheu-se. O Sr. Quin parecia agi¬gantar-se, até enormes dimensões. O Sr. Satterthwaite teve a visão de algo ao mesmo tempo ameaçador e terrificante. Ale¬gria, Dor, Desespero.

Sua pequena alma que gostava do conforto recuou, hor¬rorizada.

— Lamenta? — o Sr. Quin repetiu a pergunta. Havia nele algo terrível.

— Não — gaguejou o Sr. Satterthwaite. — Não.

De repente, reanimou-se.

— Mas eu vejo coisas — gritou. — Posso ter sido apenas um espectador da Vida, mas vejo coisas que as outras pessoas não vêem. Foi o senhor mesmo quem disse, Sr. Quin.

Mas o Sr. Quin desvanecera-se.

 

                                                                                            Agatha Christie  

 

                      

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