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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IRRESISTIVEL MISTER GHOST / Rebecca Flanders
IRRESISTIVEL MISTER GHOST / Rebecca Flanders

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

IRRESISTIVEL MISTER GHOST

 

Para Maggie Castle, uma das mais promissoras cientistas do meio acadêmico de Baltimore, o mundo só pode ser explicado através da lógica e do raciocínio matemático. Tudo que fuja à comprovação da física não passa de superstição.

Mas um dia suas teorias caem por terra e sua vida sofre uma inacreditável reviravolta. Ao comprar uma velha casa a cujo fascínio nem mesmo sua fria mente racional pôde resistir, Maggie vê-se envolta numa atmosfera de mistério, testemunhando fenômenos inexplicáveis para a ciência. Um cavalheiro elegante, surgido do além, passa a segui-la com obstinação, encantando-a com sua argúcia e deliciosa irreverência. E é esse homem, que atravessa paredes e afirma ter morrido noventa anos antes, que quer conquistar o coração de Maggie por toda a eternidade...

 

Maggie Castle estava atrasada. Não que isso fosse algo muito surpreendente, mas daquela vez a falha fora imperdoável. Sim­plesmente se esquecera de anotar o endereço da casa e precisou dar duas voltas pelas redondezas antes de ver o Cadillac cinzento de Larry estacionado na frente de uma caixa de correio revestida de tijolos. Entrou na vaga atrás do Cadillac com tanta pressa e nervosismo que os freios guincharam e o pára-choque da frente bateu de leve na traseira do carro de Larry. Contraiu o rosto abor­recida, não porque estivesse preocupada com os possíveis danos sofridos pelos veículos, mas porque na rua silenciosa o guincho estridente dos freios soou como o uivo de uma sirene. E a última coisa que desejava era entrar de pé esquerdo num bairro em que poderia em breve residir, perturbando futuros vizinhos.

Desceu do carro e bateu a porta, prendendo a ponta da echarpe que levava ao redor do pescoço. Levou mais alguns segundos para destrancar a porta, soltar a echarpe e pegar a bolsa, que dei­xara no banco. Começando a subir pela entrada de carros da ca­sa, olhou em volta.

Era outono e as árvores que ladeavam a rua exibiam uma pro­fusão de cores ensolaradas, que iam do laranja e vermelho ao amarelo-dourado. Todas as casas eram de tijolos, em estilo georgiano ou colonial, erguidas em lotes espaçosos e afastadas da rua. Os gramados mostravam-se impecáveis e havia uma aura de ele­gância e permanência em toda a vizinhança que de imediato to­cou o coração de Maggie. Ela podia até ver cavalheiros de um outro tempo, envergando roupões e chinelos, sentados diante de lareiras crepitantes, em escritórios com paredes forradas de es­tantes, e criadas de aventais brancos, perfeitamente engomados, servindo conhaque em bandejas de prata, enquanto música de câ­mara enchia o ambiente.

A casa que ia ver ficava num beco sem saída, no fim da rua Walnut. Construída num terreno um pouco mais alto que os ou­tros, exibia um ar de distinção e superioridade. O gramado, em triste contraste com os outros, estava coberto de folhas mortas e ervas daninhas e Maggie notou mais de um tijolo solto na ala­meda. Mas o encanto da fachada majestosa contrabalançava es­ses pequenos sinais de negligência. "Quem diria", ela pensou, olhando para as janelas cintilantes do segundo andar, "que eu iria morar num lugar destes?"

A porta da frente, dupla, mostrava painéis de mogno e duas janelinhas que Maggie julgou serem de vidro Tiffany. A aldrava era uma cabeça de leão, esculpida em bronze, necessitando ur­gentemente de polimento. Os vidros também estavam sujos, mas Maggie nem pensou em perder tempo com detalhes insignifican­tes. Como Larry já lhe dissera tantas vezes, ela ficava boba quan­do se encantava com alguma coisa.

Tentou abrir a porta e, encontrando-a trancada, começou a pro­curar na bolsa pela chave que Larry lhe dera, no caso de ele atrasar-se para o encontro. Não que ele jamais se atrasasse para qualquer compromisso, mas ela pedira a chave, prevendo algum contratempo.

Estava quase a ponto de virar o conteúdo da bolsa no piso do alpendre, quando a porta se abriu.

— Não perdi a chave — declarou, olhando para Larry, já na defensiva.

— É claro que não perdeu — ele concordou em tom suave. — Pelo simples motivo de que não lhe dei chave alguma. Quase dei, mas desisti, quando me lembrei de que você poderia perdê-la.

Ela contraiu as sobrancelhas, contrariada, mas ignorou o co­mentário.

— Desculpe se me atrasei — pediu, dando-lhe um beijo no ros­to ao entrar na casa. — Ah, bati em seu carro, mas não houve dano.

— Não há problema. Fiz um seguro extra, no momento em que a conheci. E você não está atrasada — ele observou com ar maroto. — Pedi-lhe para me encontrar aqui meia hora antes do horário que marquei para mim mesmo.

Maggie lançou-lhe um olhar entre exasperado e divertido. Larry a conhecia bem demais. Esqueceu tudo quando viu o largo vestíbulo de mármore e a escada espiralada à sua frente.

— Uau! Que espetáculo, hein? — murmurou admirada.

— Acho que não é bem isso o que procura, mas não custa dar uma olhada. A firma de limpeza não fez um trabalho muito bom e a casa está vazia há seis meses. Ainda precisa de um trato, an­tes que eu a exiba ao público em geral.

Os saltos dos sapatos de Maggie soaram agradavelmente no pi­so, quando ela atravessou o vestíbulo e entrou no que lhe pare­ceu uma sala de visitas. O chão fora revestido de madeira e um feio aquecedor a gás violava a beleza de uma pequena lareira de mármore. O verde das paredes era o mesmo da espuma do mar, mostrando retângulos mais escuros onde quadros haviam sido pendurados. Mas as molduras do teto eram lindamente entalha­das e o rodapé de mogno elevava-se a uma altura de doze centí­metros, contornando as paredes.

— Desde a década de cinqüenta não se usa mais esse verde pa­ra pintura de paredes — Larry comentou com uma careta. — Acho que a casa toda vai precisar de nova pintura. E desconfio que os proprietários não vão gostar disso.

— Quem são os donos? — Maggie perguntou distraída.

O ponto que mais chamava a atenção na sala era o par de por­tas francesas envidraçadas que davam para um jardim e inunda­vam a sala com luz suave. Ela atravessou o aposento para abri-las.

— Moram no Michigan. Os únicos herdeiros do velho Lambrough. A casa ficou em tão mau estado porque a doença dele foi longa e os herdeiros demoraram muito para colocá-la à venda.

— Rosas! — Maggie exclamou, saindo para o pequeno jardim. — Olhe! Uma fonte! Acha que funciona?

Larry foi para junto dela.

— Duvido. E vai ser necessário contratar um paisagista para dar um jeito nisso.

Com entusiasmo crescente, Maggie tornou a entrar e passou por uma porta de correr, descobrindo um aposento que era exa­tamente o que esperara encontrar: um escritório onde as paredes eram revestidas por painéis de carvalho e estantes altas. Uma la­reira, muito ampla, abria-se em uma das paredes.

— Vamos precisar carpetar tudo — Larry observou.

— Não seja ridículo! Por que esconder um piso tão lindo?

— Nua deste jeito, a sala parece um celeiro — Larry declarou. — E hoje em dia, ninguém mais quer cuidar de assoalhos. Nunca venderei a casa, do modo como está.

Maggie girou lentamente, mergulhando na atmosfera de soli­dez e antigüidade, imaginando longas noites silenciosas em que leria na frente do fogo. Um tapete oriental ali, um abajur aqui, uma poltrona larga, recoberta de couro cor de vinho.

— Alguém já amou esta casa — murmurou.

Larry olhou-a com estranheza.

— Olhe para os detalhes — ela explicou. — Molduras, os en­talhes na lareira... Notou o trabalho de escultura na armação do lustre do vestíbulo? Esta casa foi feita para ser admirada, não apenas habitada.

— Espere até ver a cozinha — Larry replicou secamente.

Mesmo Maggie leve de admitir que a cozinha não realizou o sonho de nenhum cozinheiro. Grande demais, com piso recoberto por linóleo amarelo e desbotado, apresentava armários monotonamente brancos. Era mal iluminada e havia apenas três tomadas elétricas. Mas nada disso perturbava Maggie, que não podia ser considerada uma cozinheira e que sempre conseguira, às vezes com habilidade, e de outras desajeitadamente, evitar con­vidados para refeições em sua casa.

A sala de jantar, formal, voltava-se para outra parte do pátio traseiro e não significava nada para Maggie, exceto que ela gos­tava da idéia de possuir uma sala de jantar cerimoniosa.

— Isto aqui poderia ser transformado num salão de ginástica — Larry sugeriu, recebendo um olhar fulminante.

No andar de cima havia três quartos, um deles sombreado por um gigantesco carvalho, cujos galhos arranhavam a janela. O pa­pel de parede era abominável, em tom desbotado de rosa, e as venezianas estavam coladas com tinta seca. Mas o quarto pos­suía uma lareira com rosas e querubins esculpidos na pedra do aparador. Maggie decidiu que aquele seria seu quarto.

O vitral do patamar filtrava a luz do dia, calcando desenhos amarelados no chão. Maggie parou no topo da escada por alguns instantes, admirando o efeito.

— Eu poderia tirar esse vitral e colocar uma clarabóia. — Larry considerou. — Não ficaria tão caro e daria mais claridade a este túmulo.

— Nunca! — Maggie declarou com ênfase. — Quanto?

Larry fitou-a confuso.

— Quanto, o quê?

— Quanto custa a casa? Acabou de achar um comprador.

Ele sacudiu a cabeça num gesto impaciente.

— Ora, vamos, Maggie, não vai querer comprar este lugar.

Maggie começou a descer os degraus, lançando-lhe um olhar zombeteiro por cima do ombro.

— Que belo corretor você é!

— Estou sendo honesto. Não há armários embutidos, a cozi­nha é uma droga e só existe um banheiro.

— E daí? Sou uma só. De quantos banheiros preciso?

— Esta casa tem no mínimo cinqüenta anos. Só Deus sabe em que condições se encontram os encanamentos e as instalações elé­tricas. Não oferece sistema de aquecimento central e só dará dor de cabeça ao incauto que a comprar. Vamos fazer mais uma visi­ta àquele condomínio na baía.

— Não quero morar à beira-mar. Gaivotas demais para o meu gosto. E vou ficar muito longe do meu local de trabalho.

— Está bem, mas o que me diz da casa em Chateau Blanc? Closets, uma suíte, clube de recreação a dois quarteirões.

Maggie fez um muxoxo.

— Quem quer morar num subdistrito chamado Chateau Blanc? Que nome mais pretensioso! Além disso, não gosto de suítes.

— Não gosta? É o que mais leva as pessoas a comprarem uma casa ou apartamento, Maggie.

— Gosto desta casa. Tem personalidade.

— Também tem morrinha[1] e gás radônio.

— Olhe, se existe algo que detesto é um vendedor insistente.

— Estou com a melhor das intenções, meu bem. Acredite. Es­ta casa não é para você.

Retornaram à sala forrada de estantes, que Maggie já via co­mo sua biblioteca. Ela virou-se para Larry.

— Pensa que não sei decidir o que é melhor para mim?

— Bem... Você não é a pessoa mais sensata que já conheci.

— Só porque às vezes sou meio distraída?

— A herança que recebeu vai acabar lhe fazendo mal e você sabe disso. Às vezes, quando as pessoas ganham dinheiro de re­pente, ficam ofuscadas, pensando no que podem comprar e aca­bam cometendo besteiras.

Maggie encarou-o com impaciência.

— Você me vê dirigindo um Mercedes zero quilômetro? Go­tejando diamantes e mergulhando em casacos de mink? Sem es­sa, Larry. Posso ser uma cabeça-de-vento de vez em quando, mas não sou louca. Principalmente em assuntos de dinheiro.

— Está bem. Peço desculpas.

Maggie em certas ocasiões ficava irritada com a facilidade com que Larry desistia da luta. E lá vinha ele, de mãos estendidas e o mais encantador dos sorrisos.

— Acho você a mais desmiolada das mulheres, sob certos as­pectos, mas é compreensível. Você é cientista, não corretora de imóveis. Quer ouvir meu conselho, por favor?

Com alguma relutância, ela permitiu que Larry lhe apertasse as mãos, suspeitando que ele agia com paternalismo. Geralmen­te, sua atitude de deixe-que-eu-tome-conta-de-você-garotinha a divertia, mas naquele momento achou-a insultante.

Os homens gostavam de dar-se ares protetores em relação a Maggie. Com um metro e sessenta de altura e cinqüenta e um qui­los, ela realmente não era uma figura imponente. E o rosto em formato de coração, emoldurado por cabelos curtos e encaracolados, apenas aumentava seu ar indefeso. Mesmo com os enor­mes óculos de armação de chifre, que usava para ler e dar aulas, não conseguia parecer mais velha e freqüentemente era tomada por uma das estudantes da faculdade na qual lecionava. Mas es­tava com vinte e oito anos e aborrecia-se com a dificuldade que tinha em fazer que a levassem a sério e a deixassem em paz para governar a própria vida. Mesmo que quem a quisesse proteger fosse alguém tão bem intencionado e agradável quanto Larry.

— Foi você que me disse que imóveis eram um bom investi­mento — lembrou-se em tom frio.

— E são, se a gente sabe o que está fazendo. Por isso lhe digo que esta casa não é para você. Vai cair aos pedaços antes que possa recuperar um centavo do que investiu na restauração.

Por conveniência, Maggie fingiu refletir sobre o que ele dizia. Afastou-se e parou ao lado da lareira, correndo as mãos pela ma­deira lisa do aparador, imaginando quantas outras mãos haviam feito o mesmo, quantas outras vozes aquela sala ouvira, a quan­tos dramas assistira. Sabia que não podia falar a um homem co­mo Larry sobre os sentimentos que a atmosfera de continuidade e solidez lhe despertava, mas, em consideração aos laços que os uniam, foi compelida a pelo menos tentar.

— Passei os primeiros dezesseis anos de minha vida em vilas militares — contou, acariciando a moldura ao longo da pratelei­ra. — Depois do divórcio, minha mãe e eu vivíamos mudando de apartamento e nenhum deles era melhor que as casas das vi­las. Então fui para a universidade e morei em alojamentos. Ago­ra, voltei aos apartamentos.

Ela virou-se para encará-lo, continuando com simplicidade:

— Nunca vivi num lugar onde tivesse a liberdade de pôr um prego na parede. Casas e apartamentos iguais, todos anônimos. Nunca nenhum me pertenceu realmente. Não quero uma casa que seja igual a todas as outras do bairro, com uma cozinha equipa­da, espaço para ginástica e paredes finas que não guardam a pri­vacidade de ninguém. Desejo uma casa que tenha aparência de pertencer a alguém e que esse alguém seja eu.

Larry sorriu e foi até ela, envolvendo-a num abraço. E embo­ra Maggie não desejasse ser abraçada naquele momento, sentiu-se grata pelo gesto de amizade.

— Está certo — ele disse com um suspiro. — Não vou fingir que entendo, mas respeito seus desejos. — Afastou-se ligeiramente para fitá-la e ela aproveitou a oportunidade para desvencilhar-se do abraço, deixando que apenas as mãos dele continuassem em sua cintura. — Sabe de uma coisa, Maggie? Não sei o que pensar sobre sua vontade de comprar uma casa, em primeiro lugar.

Maggie sabia exatamente do que ele estava falando. O relacio­namento entre ambos evoluíra nos últimos meses até chegar a um estágio em que Larry começara a fazer sugestões veladas sobre os dois viverem juntos. Ela suspeitava que isso a levara a querer comprar uma casa, apesar de nenhum dos dois admitir a verda­de. E não estava disposta a entrar numa discussão que, pelo me­nos no que lhe dizia respeito, seria completamente estéril.

Com delicadeza, soltou-se das mãos dele.

— Comprar uma. casa é a mais definitiva declaração de inde­pendência de uma mulher sozinha — informou. — E indepen­dência, se é que ainda não notou, é algo que prezo acima de tudo.

Larry deu um suspiro exasperado.

— Notei.

— Além disso... — ela interrompeu-se por alguns segundos, enquanto examinava uma reentrância na parede, onde poria a es­crivaninha antiga, de tampo de enrolar, que já decidira comprar. — Tia Hilly aprovaria o modo como estou gastando o dinheiro. Sempre me contava que a avó dela participou da campanha que deu às mulheres o direito de votar e que devíamos ficar contentes pelo que somos hoje. As duas teriam orgulho de mim, eu acho.

— Se tivéssemos uma daquelas mesas Ouija, poderíamos en­trar em contato com sua tia, no além. Aposto que ela lhe diria para dar mais uma olhada naquela propriedade de Chateau Blanc. Pelo que você me contou, ela era uma dama bastante esclarecida.

Maggie atirou-lhe um olhar astuto.

— Qual o preço da casa?

Larry hesitou, antes de tirar um caderninho do bolso do casa­co. Estudou algumas anotações e informou:

— Bem, no estado em que está e considerando-se que precisa­rá de grandes reparos... penso que poderei vendê-la por noventa e oito mil e quinhentos dólares.

— Noventa mil e quinhentos — Maggie pechinchou sem hesitar.

Por alguns instantes pareceu que os instintos de corretor leva­riam a melhor, mas Larry balançou a cabeça, sorrindo.

— Nunca faça negócios com amigos — recitou. — Principal­mente com uma amiga bonita como você. Levarei a proposta aos proprietários.

— Faça com que a aceitem.

— Farei o possível — ele afirmou relutante. — Mas ainda acho que está cometendo um erro.

Maggie mal podia esconder o entusiasmo, enquanto procura­va o talão de cheques na bolsa.

— Vou dar um sinal para firmar o compromisso, certo?

— Não se precipite, Maggie. Pense melhor sobre o assunto.

Ela preencheu um cheque e estendeu-o para ele.

— Já pensei.

Por um instante ela achou que Larry não pegaria o cheque, mas ele aceitou-o e guardou-o no bolso.

— Foi a venda mais fácil que já fiz.

— E foi a minha compra mais difícil — ela replicou, com os olhos cintilantes. Então, como se não mais pudesse conter-se, riu alto e atirou os braços à volta do pescoço de Larry. — Obrigada por encontrar este lugar para mim! Eu sei que vou ser feliz aqui.

Inclinou a cabeça para olhá-lo, ainda enlaçando-o pelo pesco­ço e experimentando uma onda de carinho por ele. O relaciona­mento com Larry estava durando mais que os que tivera com outros homens, constatou de repente.

— Você é um amor, Larry. Às vezes penso que não lhe dou o devido valor.

Ele beijou-a nos lábios, numa carícia brincalhona.

— Tem toda a razão de pensar assim.

Maggie baixou os olhos, sentindo uma pontada de culpa. Fa­lar a sério com Larry era difícil. Quase sempre mantinham a con­versa num tom brincalhão, implicando um com o outro. Mas ocorria-lhe agora que ele merecia uma explicação.

— Larry... — Tornou a olhar para ele, lembrando-se de que não gostava quando outras pessoas não a encaravam ao falar e não querendo incorrer no mesmo erro. — Sei que estamos sain­do juntos há bastante tempo...

— Dezoito meses — ele completou, prestativo.

— Também sei que você espera, bem... um compromisso mais sério.

— Quando se chega aos trinta, a liberdade já não é tão diver­tida e começa-se a pensar em uma vida acomodada.

Ela concordou com um gesto de cabeça, vencendo o impulso de virar o rosto para fugir ao brilho de ternura que via nos olhos dele.

— Quero que saiba, Larry, que não é nada com você. Sempre tive dificuldade em planejar coisas a longo prazo. — Tentou sor­rir, brincando com a lapela do casado dele. — Preciso de algum tempo, só isso.

Ele sorriu com gentileza.

— Felizmente sou um homem paciente. Meu bem, sei como foi difícil para você viver tentando mostrar seu valor ao mundo, saltando de um lugar para outro, sem nunca ter um lar de verda­de. Compromissos a assustam, entendo. E... — Fez um gesto com o braço, abrangendo a sala — se comprar este elefante branco a torna mais segura, tem meu apoio.

Maggie sentiu-se aliviada, como se um grande peso fosse tira­do de seus ombros. Sorriu, então, mais por gratidão que de feli­cidade, afagando o rosto de Larry.

— Amo você — disse com doçura. Mas, subitamente, foi com­pelida a usar de toda honestidade. — Não tenho certeza se é do modo que deseja, porém.

— Pelo menos é um começo — ele aceitou, beijando-a ternamente. A seguir, apertou-lhe as mãos. — Vamos ao meu escritó­rio para começar a fazer a documentação da monstruosidade.

— Oh, Larry, não quero ir embora. Não tenho mais aulas ho­je, e gostaria de ficar aqui mais um pouco, para tirar algumas medidas.

Ele olhou para o relógio.

— Tenho encontro com um cliente dentro de meia hora.

— Vá, então — ela aconselhou, subitamente descobrindo que o que mais desejava era ficar sozinha em sua casa. — Prometo que trancarei tudo, quando sair.

Depois de alguma hesitação, ele entregou-lhe um molho de chaves.

— Não se esqueça de trancar todas as portas — avisou. — Não só a da frente.

— Fique tranqüilo.

— Está bem. Olhe, quando receber uma resposta dos proprie­tários, entrarei em contato com você, mas pode não ser hoje.

— Concordarão, tenho certeza.

— Acho melhor concordarem. Você está com uma expressão!

Maggie acompanhou-o até a porta e acenou quando ele saiu com o carro, descendo a rua.

A casa encontrava-se mergulhada em um silêncio assustador quando ela voltou para dentro e, por uma fração de segundo, por um instante fugaz, Maggie duvidou de sua sensatez. Cedera a um impulso incontrolável ao decidir comprá-la. Apenas qua­renta e cinco minutos atrás ela não passava de uma professora de vinte e oito anos de idade, um pouco avoada, ligeiramente desorganizada, que raramente conseguia obedecer a horários. E de repente, tornava-se proprietária de uma casa. Mas depois de um momento de reflexão, concluiu que adorava a idéia.

Maggie não se descreveria como "impetuosa". Levava a vida abrigada na segurança confortável dos números e do método cien­tífico. Acreditava sem reservas no processo da lógica, segundo a qual, se cada passo fosse dado com cautela e precisão, na or­dem correta, qualquer equação chegaria a uma conclusão previsível e satisfatória. O que parecera a Larry um impulso, fora na realidade uma decisão tomada após pensamentos metódicos, os mesmos que regravam o resto da vida dela. Imóveis eram um bom investimento. Ela gostara da casa. Podia mantê-la. Os juros so­bre a hipoteca, dedutíveis do imposto de renda, tornavam-se lu­crativos e, erguendo um segundo financiamento para a reforma do imóvel, ela dobraria a economia, enquanto o valor da casa aumentaria. Tudo muito lógico e racional. Sobretudo, ela sentia que agira corretamente.

Percorreu a casa novamente, deliciando-se com a sensação de orgulho que a inundava. Finalmente possuía algo que era só dela e, mais importante, sentia que pertencia àquele lugar. O lado prá­tico também apresentava vantagens nada desprezíveis. Nada mais de desligar e tornar a ligar uma porção de aparelhos elétricos a cada dois anos, às vezes menos. Não haveria mais correspondên­cia extraviada e ela até poderia mandar imprimir o remetente em seus envelopes, pois teria um endereço permanente. E de cada vez que comprasse um móvel não mais precisaria preocupar-se com o fato de que ele talvez não coubesse no próximo aparta­mento. De ali por diante tudo ficaria no lugar mais apropriado, sem mudanças.

Não entendia como Larry pudera chamar a residência de "ele­fante branco". Então, ele não percebia o cuidado que fora dedi­cado à construção, não via os detalhes ricamente trabalhados à mão? Não havia um único pedaço de madeira compensada em todo aquele espaço. As tábuas de madeira maciça eram encaixa­das manualmente e mesmo após cinqüenta anos não havia uma rachadura em parte alguma. Não se construíam mais casas como aquela, isso era certo.

Num ponto Larry estava certo: não havia armários embutidos. Mas Maggie não tinha tanta roupa assim e no dormitório que se­ria dela, mandaria instalar um armário de acordo com a decora­ção que tinha em mente. O quarto ficaria encantador decorado com tecido rústico, de estampa simples, em tons de rosa e vinho. Sim, e uma mão de tinta cor de melão operaria maravilhas na sala de visitas e combinaria à perfeição com seus sofás e poltro­nas brancos, sem estilo definido.

A mente começou a fervilhar de planos para a reforma e deco­ração da casa e ela ria baixinho, excitada e contente. Nunca tivera nenhum passatempo, e fazer a propriedade adquirir vida seria muito divertido. Parou no meio da biblioteca, sorrindo para si mesma.

— Vou lhe mostrar o que é que você sabe, Larry Hanes — mur­murou. — Ou seja: nada. Possuir esta casa vai ser a melhor coi­sa que já me aconteceu.

— Detesto ter de discordar — disse uma voz masculina atrás dela. — Mas receio que terá de reconsiderar sua decisão.

Maggie virou-se espantada. Um homem saía das sombras.

 

— Sabia que seu namorado estava com a razão? — o homem continuou, desinibido, mostrando-se à claridade da luz que entrava pela janela. — Esta casa lhe dará apenas dores de cabeça. É muito mais antiga do que você pensa e parte do encanamento é original. Quanto à fiação elétrica, bem, é um milagre que ain­da não haja acontecido um incêndio. Foi instalada há trinta anos, causando muita confusão.

Ele fez uma careta de desgosto.

— Abriram buracos em toda parte e paredes inteiras foram der­rubadas. O que as pessoas não fazem para ter conforto! Depois, há o problema do aquecimento. Até eu sou obrigado a admitir que fica gelado quando o vento sopra da baía e não me diga que está pensado em mandar instalar uma fornalha moderna. — O desconhecido meneou a cabeça, pensativo. — Somando tudo, acho que você deveria reconsiderar. Juro que não sabe em que está se metendo.

Por algum tempo, Maggie ficou tão abismada que só pôde encará-lo. Era um dos homens mais atraentes que já vira e ficam tão enlevada olhando para ele que as palavras não fizeram o me­nor sentido. Era alto e esbelto, um efeito valorizado pela camisa preta de gola erguida ao redor do pescoço e calça justa, da mesma cor. O cabelo castanho, penteado para trás, partia-se natu­ralmente ao meio, no alto da cabeça, caindo sobre a gola, mais comprido que o normal. Os olhos eram profundos, castanho-escuros, bondosos e magníficos. A pele clara estendia-se lisa so­bre as maçãs salientes do rosto, o nariz mostrava desenho clássi­co, os lábios eram bem delineados. A primeira impressão de Maggie foi de que se tratava de um artista, mas rapidamente mu­dou de opinião. O homem parecia mais o modelo de um pintor, alguém que um artista teria prazer em retratar. Feições clássicas, beleza inesquecível e o tipo de graça sutil que poucos homens, ou mulheres, exibiriam tão bem. O que estaria fazendo na casa? Por fim ela recobrou fôlego suficiente para indagar:

— Quem é você? Como entrou aqui?

— Oh, perdoe-me. — Ele curvou-se ligeiramente. — Meu no­me é Christopher Durand. Você é...

— M-Maggie. Maggie Castle.

— Encantado. — Ele virou-se para passar as mãos pelo aparador da lareira, justamente como Maggie fizera alguns minutos antes. — Naturalmente seu namorado estava errado sobre mui­tas outras coisas. Esta casa tem a mesma estrutura firme da épo­ca em que foi construída e certamente não irá "cair aos pedaços" — afirmou, com uma nota de indignação na voz. — Foi feita pa­ra durar e permanecerá por outros cem anos, ou mais, a não ser que haja um terremoto, uma inundação, ou... — Ergueu o olhar para o teto — incêndio provocado pelas instalações elétricas.

Maggie despertou abruptamente do encanto que os modos sim­ples e a fala musical teceram em volta dela.

— Desculpe — disse em tom firme. — Mas como entrou aqui? O que está fazendo nesta casa?

Ele fitou-a como se a audácia das perguntas o surpreendesse.

— Minha cara jovem, posso muito bem perguntar-lhe o mes­mo. Afinal, esta casa é minha.

— Sua... — Ela interrompeu-se atônita, fixando-o com o olhar.

— Mas... já dei um sinal. Ninguém ainda veio ver a casa e nin­guém poderia tê-la comprado a não ser através de Larry. A me­nos que... — Ocorreu-lhe um pensamento, ao qual se agarrou esperançosa. — É um dos herdeiros do sr. Lambrough?

— Hum? — Ele contraiu a testa. — Ah, penso que se refere ao homem que morava aqui. — Andou até a porta. — Um ex­cêntrico que viveu todos esses anos trancado aqui dentro, sozi­nho. Eu até sentia pena dele. Veja isto. — Fez deslizar as portas duplas, com ar satisfeito. — Ainda macias como seda.

— Se for um dos herdeiros — Maggie seguiu-o ansiosa, mal percebendo o que ele dizia —, quero que saiba que eu amo esta casa. Seja qual for o preço que esteja pedindo, dentro do razoá­vel, é claro — acrescentou rapidamente —, tenho certeza de que ela vale. Se receia que eu não poderei mantê-la, não precisa se preocupar. Serei capaz de arcar com as despesas de manutenção e restauração.

Ela nem podia acreditar que insistia tanto numa compra. Nor­malmente era muito mais reservada. Quase podia ouvir o que ele pensava, calculando o dinheiro que tiraria de uma tola, mas não podia evitar. Queria a casa. Não percebera quanto a desejava, até aquele momento.

— Olhe, entendo que não lhe seja fácil vender uma casa que pertence à sua família há tanto tempo, mas prometo que cuida­rei bem dela. Compreendo que aqui estejam guardadas muitas recordações e não sei mais o que dizer, exceto que a casa será um tesouro para mim.

Ele parou de examinar a porta, olhando-a de modo estranho e pensativo.

— Acredito — murmurou.

Ela deixou escapar um suspiro de alívio.

— Então, está tudo certo? Vai me vender a casa?

— Não vejo como poderia impedir você de comprá-la — ele comentou, encolhendo os ombros com displicência e passando para a sala adjacente.

Maggie acompanhou-o, confusa.

— Mas eu pensei...

— Oh, Deus, que cor horrível! — Ele parou no centro da sala de visitas, com as mãos nos bolsos, o rosto expressivo assumin­do um ar de desgosto. — Quando fizeram isto? Não é tão desa­gradável quanto o papel de parede lá de cima, porém. Suponho que ainda seja o mesmo, com aquelas rosas feias. Faz algum tem­po que não subo ao segundo andar.

Maggie assentiu, muda, apenas meneando a cabeça levemente.

— Nem sequer posso imaginar como alguém conseguiria dor­mir num quarto tão feio — ele prosseguiu. — Pessoalmente, não entendo a mania que as pessoas têm de recobrir as paredes. A beleza da madeira deve ficar exposta, não concorda? E fui eu mes­mo que selecionei o que havia de melhor: madeira de árvores fru­tíferas, cipreste e, para esta sala, pinho, para refletir a luz.

Maggie piscou, aturdida.

— Como assim?

Ele andou até a lareira e examinou o aparador.

— Ah, bem, pelo menos não tingiram o aparador, acometi­dos pela fúria de pintura. Estava na moda, suponho. Este már­more foi importado da Itália, sabe? Assim como os ladrilhos do vestíbulo.

Maggie sacudiu a cabeça, estupidamente.

— Não — conseguiu murmurar. — Não sei de nada disso. — Limpou a garganta, começando a se preocupar. — Desculpe, mas que preço está pedindo?

Ele dirigiu-lhe outro daquele olhares estranhos, como se achasse que ela não era muito inteligente.

— Minha cara, não faço a mínima idéia. Esta casa não é mi­nha, portanto não posso vendê-la.

— Mas disse que era sua! Disse que era herdeiro do sr. Lambrough!

— Não disse nada parecido.

O espanto de Maggie foi sobrepujado por crescente indignação.

— Mas você... você me deixou acreditar... Quem é você, afi­nal? — perguntou furiosa.

Ele caminhou para as portas francesas e abriu-as. Ficou para­do na soleira, com as mãos nas costas e olhando com interesse para o jardim abandonado.

— Ora, ora. Deixaram tudo em estado deplorável. Você vai ler um trabalho dos diabos para colocar tudo em ordem outra vez, se é que isso ainda é possível.

Enraivecida, Maggie deu um passo na direção dele, mas em se­guida, pensando melhor, recuou. Se o homem não era o proprie­tário, era um intruso. E embora não parecesse nada perigoso, ela encontrava-se sozinha numa casa vazia com alguém que não ti­nha o direito de estar ali. Seria imprudência arriscar-se.

— Está invadindo propriedade alheia — declarou. — Peço-lhe que saia desta casa imediatamente.

Ele virou-se para ela, surpreendendo-a com o brilho malicioso dos olhos escuros e o leve sorriso. Era evidente que se divertia.

— Para onde devo ir? Tem alguma sugestão? — perguntou educadamente.

Maggie perturbou-se, tanto com a pergunta inesperada como com a expressão divertida e apaziguadora dos olhos dele. Exa­minou o corpo esguio, a inclinação provocadora da cabeça, a pose graciosa e até sensual que ele assumira. Perigoso? Sem a menor dúvida. Talvez, perigoso de uma forma muito diferente do que ela pensara a princípio.

Engoliu em seco e forçou-se a ficar firme.

— Não me interessa para onde vai — respondeu. — Esta é uma propriedade particular e você não tem nada o que fazer aqui. E, se tem algum juízo, saia, antes que se veja realmente encrencado.

Era uma ameaça vazia e ele devia ter percebido. Não havia te­lefone, portanto ela não poderia chamar a polícia. Estava sozi­nha com ele e, se precisasse de socorro, quando o obtivesse provavelmente já seria tarde demais. A coisa mais sensata a fa­zer era sair correndo dali, mas Maggie esquecia a prudência quan­do se tratava de defender seus direitos. Era filha de militar e recusava-se a bater em retirada sem antes lutar.

O homem entrou e atravessou a sala, deixando as portas aber­tas. Dirigiu-se à biblioteca e Maggie foi atrás dele, sentindo-se desamparada.

— A madeira usada nesta sala é cipreste — ele comentou. — O tempo escureceu-a lindamente, não acha?

Mais uma vez Maggie ficou perplexa com a brusca mudança de assunto.

— Eu... p-pensei que fosse carvalho — pegou-se gaguejando. Ele sacudiu a cabeça com energia e o cabelo brilhante ondulou suavemente no ar.

— Carvalho? Claro que não! Um construtor vulgar usaria car­valho, mas cipreste é muito mais durável, especialmente neste cli­ma. Não racha, como pode ver, nem se dilata com o calor e a umidade. Note como as prateleiras das estantes não empenaram. Duvido que alguém pense em usar cipreste, atualmente, mas essa madeira não era tão rara quando a casa foi construída.

Algo no íntimo de Maggie oscilava entre a cautela e a curiosi­dade. Certo, ele era um intruso, mas não parecia nada inclinado à violência e mostrava saber bastante a respeito da casa. Ou teria ele adivinhado que o meio mais seguro de ganhar sua confiança era falar a respeito de sua recente e maior fraqueza?

Observando-o, temendo algum movimento inesperado, ela arriscou-se a fazer um comentário.

— Larry disse que a casa tem mais de cinqüenta anos.

— Muito mais. O último prego foi cravado em 1895.

— Que bobagem! — Maggie retrucou imediatamente. — O bairro não é tão antigo assim.

— Naturalmente que não é. — Ele fez um gesto na direção da janela. — Todas as outras casas apareceram muito mais tarde. Fico envaidecido ao notar que imitaram meu estilo, mas lamento terem estragado a paisagem, que era espetacular. Campi­nas verdes e depois a floresta, estendendo-se até onde a vista podia alcançar. A mesma atenção foi dada à construção da casa e ao planejamento da visão que se teria dos arredores e eu soube, no momento em que vi o lugar, que não poderia haver melhor. Esta casa era uma residência campestre a pequena distância da cidade. Um arrepio de desconforto correu pela espinha de Maggie, em­bora ela não soubesse explicar com precisão o motivo da estra­nha reação. Estivera tão distraída, tentando adivinhar quem ele era e o que pretendia fazer, que não prestara a devida atenção ao que ele dizia. Contudo, algo naquelas últimas frases a deixa­ram de sobreaviso. Seria um assaltante? Pouco provável. Com o sotaque gracioso e o modo educado e elegante de falar, ele fi­caria mais à vontade num museu europeu que numa casa aban­donada na baía de Chesapeake, Maryland. Não podia ter mais de trinta anos de idade, no entanto discorria sobre a casa como se houvesse dedicado a vida toda ao estudo da construção e dos arredores. Residência campestre? Desde quando um subúrbio de Baltimore podia ser chamado de campo?

— Como sabe tudo isso? — perguntou desconfiada. O sorriso dele foi gentil e quase condescendente.

— Já lhe disse: a casa é minha.

— Morava aqui, então?

— Eu a construí — ele explicou com paciência e sem nenhum ar de brincadeira.

— Você disse que a casa foi construída em 1895.

— Exatamente.

Maggie sentiu um aperto no peito. Pior do que assaltante. O sujeito era maluco. E ela estava encurralada. Tentou, o mais que pôde, permanecer calma. E até foi capaz de dar um sorriso vago, um pouco complacente.

— E quantos anos você tem?

As sobrancelhas escuras e bem delineadas juntaram-se quan­do ele franziu a testa, refletindo.

— Não tenho muita certeza. Em que ano estamos?

Maggie soltou a respiração num longo suspiro. "Fantástico", pensou. "Absolutamente fantástico". O mais aconselhável era disparar porta afora, mas e se a fuga despertasse nele a centelha da violência? Ele devia correr muito mais depressa que ela, com aquelas pernas compridas, e ter a agilidade de um gato, a julgar pela elasticidade de seus movimentos. Seria alcançada em ques­tão de segundos. Ela não fazia a mínima idéia de como lidar com um psicopata e só lhe ocorreu que deveria permanecer calma e induzi-lo a continuar falando. Assim pensando, percorreu a sala com o olhar, procurando algo que pudesse servir de arma. Como não obtivesse resposta à sua pergunta, ele deu de ombros.

— O ano não interessa. Sou no mínimo de vinte e cinco a trin­ta anos mais velho que esta casa.

— Está espantosamente bem conservado — ela observou, sain­do do mutismo momentâneo.

— Obrigado. — Os olhos escuros brilharam e ele enterrou as mãos nos bolsos da calça. — Naturalmente, não tenho nenhum mérito nisso. É uma das vantagens da minha condição.

— Que condição?

Dentro da lareira, meio escondido nas sombras, Maggie viu um atiçador de ferro. Com o coração aos saltos e o mais disfarçada-mente que pôde, começou a mover-se na direção da lareira.

— Ora. — Ele limpou a garganta, num embaraço que tanto podia ser fingido como verdadeiro, antes de confessar: — Em­bora eu ache isso esquisito, está claro que você não percebeu o que se passa. O fato é que eu já sou... hã... falecido.

Maggie estacou e encarou-o. A situação era pior do que imagi­nara. Era óbvio que ele possuía muito mais imaginação que qual­quer psicopata comum.

— Lamento muito saber — murmurou, porque simplesmente não encontrou outra coisa para dizer.

— Lamenta? Devia analisar a situação do meu ponto de vista.

Então ele a olhou, como se a visse pela primeira vez. Estudou-a da cabeça aos pés, notando todos os detalhes: o cabelo curto e anelado, os brincos de ouro, a jaqueta curta, a saia comprida, as botas e a longa echarpe ao redor do pescoço. Maggie achou muito desagradável ser objeto de tanto interesse e ficou aliviada quando ele se deu por satisfeito.

— Interessante — ele declarou, voltando a fitá-la no rosto, sem sombra de malícia no sorriso espontâneo. — Sim, uma jovem mui­to interessante. Acho que gosto de você.

— Fico contente — ela respondeu com voz fraca.

O sorriso dele alargou-se e pelos olhos castanhos passou uma expressão de divertimento.

— Naturalmente, você percebe que uma pessoa comum teria compreendido a situação muito mais depressa, mas não a estou criticando. Nunca me impressionei com nada que fosse comum.

Maggie deu mais um passo hesitante na direção da lareira. Ele não a fez parar nem demonstrou ter percebido que ela se movia.

— Você não parece assustada — ele continuou. — Uma pes­soa comum ficaria.

— Por que teria medo de você? Vai me fazer algum mal?

— Certamente que não. — Ele se mostrou ofendido com a idéia. — É que simplesmente a maioria das pessoas não reagiria a um encontro com um desencarnado de modo tão correto.

— Bem, você já disse que não sou como as pessoas comuns — Maggie replicou em tom suave. — Não posso ficar com medo de algo em que não acredito, posso?

— Em que você não acredita? — ele indagou perplexo.

— Em fantasmas — ela explicou calmamente. Já estava bas­tante perto da lareira para sentir-se confiante. Bastaria um mo­vimento rápido para que agarrasse o atiçador.

Ele fez um trejeito de desagrado.

— Que termo mais vulgar.

— Faz diferença o nome que se dê a fantasmas? Não acredito neles.

Ele pareceu achar engraçado.

— Bem, nas circunstâncias atuais, eu diria que não importa se você acredita, ou não. — Tocou no peito, olhou para os pró­prios pés e estendeu os braços, sacudindo-os. — O fato é que es­tou aqui, que existo.

— O que também não significa que seja um fantasma.

— Mas eu disse que sou.

Maggie olhou de relance para o atiçador, esperando que ele não notasse. Mesmo que percebesse suas intenções, ele estava no ou­tro lado da sala e não poderia pegar a arma antes dela.

— Então, prove — ela desafiou, olhando-o com firmeza.

— Como?

— Faça algo que apenas fantasmas possam fazer. Desapare­ça, atravesse uma parede, arraste correntes, algo assim.

— Mágicas de salão são para crianças — ele zombou.

Maggie inclinou-se para a lareira e, quando endireitou o cor­po, segurava o atiçador com as duas mãos. Ergueu-o à altura do ombro, posicionando-o como se fosse um taco de beisebol.

— Muito bem — disse ofegante. — Não quero machucar você. Ele não demonstrou medo ou apreensão.

— Não poderia, mesmo que quisesse.

Ela começou a recuar para a porta. O coração saltava, impul­sionado pela adrenalina.

— Vou sair — avisou, falando com alguma dificuldade. — Fi­que longe de mim e tudo acabará bem. Não tente me impedir.

— Por que vai embora? Gostaria de conversar mais um pouco.

Os três metros que a separavam da porta de repente assumi­ram proporções aterradoras. Entregando-se a uma onda de pâ­nico, ela virou-se e correu.

Era impossível, mas ele subitamente estava no vão da porta. Dois segundos atrás encontrava-se na outra extremidade da sala e ali estava ele, a menos de um metro dela, barrando-lhe a passa­gem. E ela não o vira fazer um movimento.

Medo cego e primitivo explodiu, todos os instintos de autoproteção e sobrevivência emergiram e com um grito agudo, Maggie atirou o atiçador contra ele, com toda a força. Àquela distância, não havia como errar e o golpe o deixaria inconsciente, se não o matasse. Maggie pensou tudo isso numa fração de segundo, to­mada de horror e remorso, antes de ver o atiçador passar através do corpo dele, bater no batente da porta e cair no chão.

A cena repetiu-se em sua mente, como um filme rodado em câmera lenta, por uma, duas, três vezes. O pesado objeto de fer­ro voando pelo ar, atingindo o homem na altura do ombro, atravessando-o como se ele não passasse de uma imagem lança­da no ar por um projetor de filmes. Tornou a ver a expressão de censura no rosto atraente e o modo como o homem se abai­xou para pegar o atiçador, galantemente devolvendo-o a ela.

E então Maggie começou a correr. Conseguiu passar por ele, abrir a porta da frente, destrancar o carro, sentar-se atrás do vo­lante e dar partida no motor. Quando voltou a si do choque, encontrava-se parada no estacionamento de um supermercado, cerca de dez quarteirões de distância, agarrada ao volante e tre­mendo convulsivamente.

Não saberia dizer quanto tempo ficou lá, observando a corrente de tráfego na rua à sua frente, tremendo e procurando res­pirar fundo para recuperar a calma. Por fim a cabeça clareou e ela só podia pensar que por sorte estava viva. Não tanto pelo que acontecera na casa, mas porque obviamente não estava em con­dições de dirigir um carro.

Depois de algum tempo, desligou o motor e passou as mãos pelos cabelos, deixando-as úmidas de transpiração. Encostou a cabeça no banco e inspirou fundo, soltando o ar lentamente atra­vés dos lábios entreabertos.

— Calma — murmurou para si mesma. — Tudo acabou. Vo­cê está bem.

Mas não estava nada bem. Como poderia estar, depois de ter visto acontecer o impossível? O que lhe ocorreu na casa desafia­va a lógica e a razão e ela só podia chegar a uma conclusão: encontrava-se à beira de um colapso nervoso. Estava ficando lou­ca. Mas não ia ter colapso nenhum! Recusava-se a ficar maluca! Era uma cientista e tais coisas não deviam lhe acontecer. "Deus, não permita que eu perca o juízo."

Apertou as mãos ao redor do volante e fechou os olhos com força, lutando contra a histeria. O zumbido do tráfego era tran­qüilizador, O sol de outono, atravessando o pára-brisa, batia quente em seu rosto. Lentamente abriu os olhos e concentrou-se ferozmente na visão e nos sons da vida prosaica que a rodeava. Viu gente entrando no supermercado, depois saindo. Um carro, levando uma família de quatro pessoas, parou na bomba de ga­solina e Maggie imaginou vagamente que tipo de viagem estariam empreendendo. Depois de algum tempo sentiu-se mais calma. Quase capaz de raciocinar. E até pôde recordar o que acontecera na casa com alguma frieza.

Ela não estava ficando louca. A explicação de tudo era na rea­lidade muito simples. Ela não vira o atiçador atravessar o corpo do homem. Nada disso. Estava assustada, apavorada mesmo. Co­mo poderia acreditar nos próprios olhos? E depois de toda aque­la conversa maluca a respeito de fantasmas não era de espantar que sua mente lhe houvesse pregado uma peça. Ficara histérica. Embora nunca sofresse ataques histéricos nem experimentasse qualquer sintoma de fraqueza nervosa, a explicação era boa.

Havia um telefone público a alguns metros à frente e ela sabia que devia sair do carro e chamar a polícia. Mas o louco que a deixara tão apavorada não estaria mais na casa e a polícia nada poderia fazer. Tudo seria diferente se ela houvesse sofrido amea­ça de estupro ou assalto, mas na propriedade nem existia qual­quer coisa para ser roubada. Claro, o homem invadira a casa e era seu dever de cidadã comunicar à polícia que havia um louco solto pela vizinhança e ouvir mil perguntas. Iria para casa, to­maria um copo de vinho e, quando estivesse em condições, fala­ria com a polícia.

Seria exagero afirmar que foi capaz de esquecer o incidente, mas depois de parar na mercearia de seu bairro, comprar o que precisava e ao enfrentar o tráfego de fim de tarde no caminho para o apartamento, já conseguia ver o fato de outra perspectiva.

Fora educada de acordo com o que o pai chamava de "modo militar de pensar": conciso, concreto e disciplinado. Havia re­gras para tudo e normas até para o caos. Se as regras fossem obe­decidas, a recompensa seria a ordem e com a ordem nascia o controle de todas as situações. Não importava se o problema era de Física, estratégica militar, ou simplesmente escolher um rou­pa para sair. O método se aplicava a tudo. E embora Maggie às vezes tivesse dificuldade em criar ordem no caos de sua vida pes­soal, tinha fé inabalável nos poderes do raciocínio claro. Só era necessário definir prioridades e determinar a resposta apropria­da para cada situação.

As leis da Física sobre a matéria não permitiam que um atiça­dor de ferro atravessasse um corpo sólido sem dano visível. Nunca houvera evidência que provasse a existência de fantasmas. Por­tanto, só havia uma explicação: o que ela pensara ter visto não passara de uma alucinação momentânea, uma ilusão de ótica, ou, simplesmente, truque de prestidigitação por parte do desconhe­cido. Acontecera, mas não do modo como sua mente captara. Muito simples, na verdade, e nada que devesse preocupá-la.

Tinha quase certeza disso.

Depois de todo o raciocínio, Maggie permitiu-se o privilégio de algumas reações puramente emocionais. A primeira foi de sau­dável e justificada indignação. Como o estranho ousava invadir sua casa, alegando ser o proprietário? Como tinha a audácia de atraí-la com toda aquela conversa sobre estantes de cipreste, már­more importado, e então calmamente anunciar que estava mor­to? Ele devia tê-la julgado uma imbecil, e de fato ela fora uma idiota em não sair e chamar a polícia no instante em que o vira.

O ressentimento sobrepujou a indignação, quando ela pensou que ele arruinara sua primeira tarde sozinha na única casa que já possuíra. Aquele deveria ser um momento especial, mas ele lhe roubara o prazer. Ela acreditava tanto em maus presságios quanto em fantasmas, mas não podia impedir-se de pensar que reviveria todo o desagradável episódio cada vez que entrasse na casa dali por diante. A intrusão do estranho em sua privacidade ficaria co­mo uma nódoa de tinta numa tela perfeita e isso não era justo.

Não que ele a fizesse mudar de idéia a respeito da casa. Se essa fosse sua intenção, por algum motivo obscuro, ficaria dolorosa­mente desapontado. Depois que Maggie Castle decidia alguma coisa, permanecia firme, e ela nunca desejara tanto algo na vida como desejava comprar aquela casa. Nenhum sabido, por mais bonito que fosse, por mais sedutor e inteligente que parecesse, a faria desistir. Nem a conversa maluca sobre ser um fantasma a assustaria. Poria grades em todas as portas e janelas se fosse necessário, mas a casa seria dela.

À medida que a experiência dramática perdia o efeito chocan­te, parte da raiva também esfriou e Maggie foi obrigada a admi­tir que ficara curiosa. Quem era ele e o que o levara a escolher aquela casa, entre todas as outras da rua? Ele a vira entrar e fora atrás, por acaso, ou, pior, ficara perambulando pelos cantos durante horas, talvez dias, esperando que alguém aparecesse?

Ficou imaginando se algo do que ele dissera sobre a casa teria algum fundamento. 1895? Duvidoso. Ela não acreditava que ca­sas construídas em datas tão remotas ainda permanecessem de pé, pelo menos naquela área, mas, pensando friamente, o que ela sabia, afinal? E não seria maravilhoso se fosse verdade? Ela seria proprietária de um prédio histórico.

Pediria a Larry para fazer uma pesquisa. Larry. Outro proble­ma. Contar a ele, ou não, o que acontecera? Quase imediatamen­te, decidiu que não diria nada. Uma mulher perturbada apenas despertaria nele o instinto protetor de macho e Maggie detestava que alguém desejasse protegê-la. Ele fora contra a aquisição da casa desde o começo e seria estupidez fornecer mais uma obje­ção à longa lista que já desfiara. Resumindo, evitaria muitos abor­recimentos, simplesmente ficando calada.

Estacionou o carro na vaga demarcada, na frente do edifício branco em estilo colonial onde morava, uma réplica perfeita de muitos outros construídos no bairro, mas não se sentiu tão de­primida, como sempre acontecera, ao olhar para a beleza árida do prédio sem personalidade. Talvez porque soubesse que logo se mudaria dali. Ou, também, porque depois dos eventos extraor­dinários daquela tarde, estivesse começando a apreciar as vanta­gens das coisas comuns. O edifício nu e branco era tranqüilizador, conhecido, e portanto sem surpresas. Ali não havia fantasmas reais, imaginários ou simplesmente falsos. Sobretudo, o conjun­to de seis prédios iguais era patrulhado por guardas de segurança.

Tirou as compras do porta-malas e levou-as pelo curto lance de escadas até seu apartamento, equilibrando precariamente a bol­sa e o saco da mercearia, enquanto lutava para introduzir a cha­ve na fechadura. Imaginou se Larry tentara telefonar para dar alguma notícia a respeito da proposta, procurando lembrar se dei­xara a secretária eletrônica ligada. Reprimiu um gemido ao lembrar-se de que ainda teria de ligar para a polícia.

Abriu a porta, finalmente, fechou-a com um chute e apalpou a parede à procura do interruptor. Quando a luz se acendeu, viu um homem alto erguer-se do sofá.

— Olá, outra vez — saudou-a Christopher Durand.

 

Deixando o saco de compras cair no chão, Maggie sufocou um grito.

— Você! Como foi que... O que está... — murmurou estu­pefata.

Ele mostrou-lhe uma penca de chaves presas a uma pequena corrente e ela reconheceu-as como sendo as que Larry lhe dera para fechar a casa.

— Esqueceu de trancar as portas — o homem informou.

— Como entrou aqui? — ela perguntou, sentindo a garganta seca.

Aquilo era demais. Uma onda de ira que a cegou fez com que desaparecesse o medo que sentira ao vê-lo ali e ela correu para o telefone na parede da cozinha, tropeçando em laranjas que ro­lavam pelo chão e chutando um maço de aipo.

— Desta vez foi longe demais, senhor! Vou chamar a polícia!

— Seria muito interessante. — Ele deixou as chaves sobre uma mesa de canto e com passos decididos seguiu-a, desviando-se das frutas e legumes espalhados. — O que dirá à polícia? — Pegou uma laranja do chão e colocou-a no balcão.

— Fique longe de mim! — Maggie gritou, estendendo a mão por cima do balcão e tirando o telefone do gancho. Discou três algarismos, freneticamente.

— Só quero explicar que, quando os policiais chegarem, tal­vez não me vejam. O que lhes dirá, então?

Maggie ouviu o sinal de ocupado e praguejou em voz alta. Ba­teu com a mão no gancho para desligar o aparelho e tentou no­vamente.

— Pode esquecer essa cretinice sobre fantasmas — ela reco­mendou em tom furioso, com a respiração ofegante. — Suas his­tórias não vão funcionar desta vez. Não sei como entrou aqui, mas o conjunto é patrulhado por guardas e garanto-lhe que não sairá. Portanto, nem pense em fugir. Vamos acabar com isto de uma vez por todas!

Ele parecia verdadeiramente intrigado, quando ajeitou-se nu­ma das banquetas ao lado do balcão.

— Por que eu haveria de querer sair? Mal cheguei!

— Alô! — Maggie gritou no telefone e em seguida afastou-o do ouvido, olhando-o com incredulidade. — Esperar! Mandaram-me esperar!

Christopher balançava para frente e para trás na banqueta, com expressão deliciada.

— Que aposentos confortáveis você tem aqui! — comentou satisfeito, olhando para a parte da sala visível de onde estavam, admirando o longo sofá branco e as poltronas ladeadas por aba­jures de pés altos e cúpulas de desenho moderno. — Funcionais e agradáveis. De que material é o carpete? Aquilo é um aparelho de televisão?

— Maldito telefone! Alguém me atenda!— Maggie resmun­gou, observando o visitante indesejável descer da banqueta e ir examinar a televisão. — Eu poderia estar sendo assassinada aqui e...

Mas seu desespero tornava-se deslocado, pois o homem de preto não mostrava nenhuma intenção de molestá-la. Nem de ir embo­ra. Parecia fascinado pelo aparelho de televisão em cores, inspecionando-o de um ângulo, depois de outro, virando botões a esmo.

— Não está funcionando — anunciou, recuando com expres­são compenetrada.

— Tire as mãos daí!

A campainha da porta soou e Maggie assustou-se tanto que qua­se deixou cair o telefone. Christopher olhou indagadoramente na direção do som e Maggie desligou o telefone, correndo para a porta. A polícia, com aquela demora toda para atendê-la, seria muito menos útil que a pessoa que tocara a campainha e que po­deria socorrê-la ou pelo menos servir de testemunha.

— Fique onde esta! — Maggie dirigiu-se a Christopher, antes de escancarar a porta.

— Oi, srta. Castle. Estou no horário, para variar.

Era Robert, um dos estudantes a quem Maggie dava aulas parti­culares. Ela se esquecera de que era dia de aula e por um rápido instante fitou o aluno com ar confuso. Mas pouco lhe importava quem fosse e o que fora fazer ali. Agarrou-o pelo braço, tomada de alívio.

— Robert! Entre. — Puxou-o para dentro, lançando um olhar por cima do ombro. O homem de preto continuava perto do te­levisor, observando-a com interesse e nenhuma preocupação. — Estou com um pequeno problema, mas não é nada que não pos­sa resolver, se você me ajudar.

— Claro, srta. Castle. — Robert abaixou-se e começou a re­colher as frutas espalhadas pelo chão.

—- Não, o problema não é esse. Eu...

— Talvez devesse nos apresentar — Christopher sugeriu, le­vemente inquieto.

Para atestar o estado de agitação da mente de Maggie, a su­gestão pareceu perfeitamente razoável. Esquecera o nome do per­seguidor e seria uma forma de fazê-lo identificar-se diante de uma testemunha.

— Robert — disse rapidamente. — Esqueça as frutas. Quero apresentar-lhe o sr... — Fez uma pausa sugestiva.

— Durand — Christopher completou educadamente, dando um passo à frente. — Christopher Durand.

— Christopher Durand — Maggie repetiu com ar triunfante. Robert endireitou-se e olhou em volta, antes de fitá-la com res­peitosa perplexidade.

— Ah, é?

Uma terrível sensação de frio apossou-se do estômago de Mag­gie. Possibilidades adivinhadas e impossibilidades agitavam-se em seu cérebro e a voz tênue da razão elevou-se no fundo da cons­ciência: "Tenha cuidado".

Ainda não! Não ia entregar-se à loucura tão facilmente.

Pegou Robert pelos ombros e o fez girar, de modo a fazê-lo encarar Christopher, a menos de três metros de distância.

— Robert — pediu, tentando não demonstrar desespero. — Olhe bem à frente. Na direção do televisor. O que está vendo?

Robert concentrou-se por um instante. Olhava diretamente para Christopher. Não podia deixar de vê-lo. Voltou-se para Maggie.

— Um suporte de revistas.

O coração de Maggie deu um salto e depois parou por alguns segundos. Christopher encontrava-se de pé na frente do suporte, de modo que Robert não poderia ver o objeto.

— Exatamente como eu suspeitava — Christopher observou em tom pesaroso, caminhando na direção deles. — O rapaz não me ouve e não me vê.

Parou na frente de Robert, agitando a mão de um lado para outro diante de seus olhos. Robert nem piscou. Simplesmente con­tinuou olhando para Maggie com expressão cautelosa e atônita. Christopher bateu palmas a cinco centímetros do ouvido do ra­paz. O som fez Maggie franzir o rosto, mas Robert obviamente nada ouviu.

— Srta. Castle! Está sentindo alguma coisa? — o rapaz per­guntou.

Maggie não podia responder. A garganta estava apertada e se­ca e ela sentia-se incapaz de respirar. Olhou fixamente para Chris­topher, que era tão real e sólido quanto Robert. Mas Robert não o via!

Christopher deu de ombros num gesto impotente.

— Deve ser muito embaraçoso para você — comentou com simpatia.

— Srta. Castle? — Robert chamou alarmado. — Está doen­te? Vai desmaiar? Quer que eu chame alguém?

Maggie recuperou-se de imediato. A boca passou a funcionar como se tivesse vontade própria, formulando palavras que ela es­perava serem as corretas para a circunstância, pois nem pensava no que dizia.

— Não, Robert. Estou bem. Mas receio não estar preparada para a aula de hoje. Obrigada por ter vindo, de toda a forma. Marcaremos outro horário.

Ela segurava o rapaz pelo braço e empurrou-o gentilmente pa­ra a porta.

— Mas e o cara que queria me apresentar? — ele protestou.

— Ah, sim, o sr. Durand. É uma pessoa muito competente em seu ramo de trabalho. Penso que ele poderia ajudá-lo em seus estudos e quero que você o conheça, quando houver mais tempo.

— Acho que vai ser difícil — Christopher murmurou.

— Obrigada, Robert, e desculpe. — Maggie empurrou-o por­ta afora. — Eu telefono.

O silêncio pesou na sala quando o rapaz se foi. Maggie encostou-se na porta e fechou os olhos, esperando que quando tornasse a abri-los a sala estivesse vazia, tudo voltasse ao normal e ela descobrisse que estivera sonhando.

Mas não sonhava. Sentia a madeira fria sob a palma das mãos, ouvia o ronronar da geladeira e percebia o leve odor do peixe que assara para o jantar, na noite anterior. Ouviu uma porta de car­ro bater lá fora e o som de riso no corredor. Tudo era muito real.

Estava zonza e desorientada e só quando o peito doeu, teve noção de que prendia a respiração. Inspirou com dificuldade, mas não abriu os olhos. Tinha de pensar. Precisava pensar!

Havia um homem em sua sala que outras pessoas não podiam ver. Só ela. Um homem que desafiara as leis da Física quando ela jogara um atiçador de lareira nele, que se lembrava de estar vivo em 1895, que entrara em seu apartamento sem chave. Um homem que declarava estar morto..

As possibilidades avolumavam-se em sua mente. Um truque de mágica? Ela conhecia alguém com tal habilidade? Por que uma pessoa faria uma brincadeira daquelas? E nenhum truque de má­gica explicaria o que ela vira com os próprios olhos, quando o atiçador passara através do corpo nada sólido de Christopher Durand.

Uma imagem holográfica? Pesquisas recentes no campo da pro­dução de imagens por raios laser haviam feito progredir a passos gigantescos essa técnica, mas no seu caso a explicação era pouco provável. A projeção de um holograma exigia equipamento com­plexo, para não falar de gastos astronômicos. Além disso, o fato não explicaria a falta de reação de Robert quando Christopher passara a mão seguidamente diante de seus olhos. E como pode­ria uma imagem holográfica pegar uma laranja do chão e colocá-la sobre a bancada da cozinha!

Um fantasma poderia?

Estaria ela sob a influência de algum tipo de droga? De um transe hipnótico? Estaria num leito de hospital, com tubos pre­sos aos braços e monitores ligados ao peito, sofrendo alucinações?

Estaria ficando louca?

O toque do telefone fez Maggie estremecer. Mais dois toques e ela olhou para o telefone através da porta que levava à cozi­nha, incapaz de se mover. Então, Christopher aproximou-se do telefone com curiosidade e Maggie jogou-se para a frente, cor­rendo para o aparelho e arrancando-o do gancho.

— Alô — atendeu sem fôlego.

Demorou a reconhecer a voz de sua amiga Elena, Christopher colocara-se do outro lado do balcão e examinava o aparelho com evidente interesse. Maggie recuou e pisou numa laranja.

— O desenho melhorou bastante, desde o primeiro modelo — Christopher observou. — Gostei. Mais compacto e atraente. Po­dem ser de outras cores, além do amarelo?

Maggie esforçou-se por focalizar a atenção no que a amiga lhe dizia.

— Eu... hã...não. Estava apenas recolhendo umas laranjas que deixei cair no chão — explicou.

— Então, deixe-as onde caíram e vá se encontrar comigo no Ming Lei's. Faz semanas que jantamos juntas pela última vez e estou aderindo à comida chinesa.

Christopher, perdendo o interesse pelo telefone, começou a abrir as portas dos armários. Maggie virou-se para seguir-lhe os movimentos, procurando entender o que Elena acabara de dizer.

— Jantar? Hoje? Acho que não...

Christopher bateu uma das portas e ela fez uma careta. Ele dirigiu-lhe um olhar contrito.

— Dobradiças firmes — observou.

— Entendi direito? — perguntou Elena. — Minha amiga Mag­gie Castle está recusando um convite para um jantar chinês? O que há? Está doente?

Christopher abandonou os armários e tocou no liquidificador. Maggie tapou o bocal do telefone com a mão.

— Não mexa aí! — sibilou.

— Maggie?

Christopher pareceu ofendido, mas afastou-se do liquidificador.

— Está tudo bem — Maggie afirmou, falando com Elena. — Não estou doente.

— Bem, então, o que acha de eu ir ao seu apartamento, le­vando o jantar?

— Não! — Maggie praticamente gritou. Christopher voltou para junto dela e encarapitou-se no balcão, observando-a. Ela respirou fundo e voltou a falar, esperando que a voz soasse com mais naturalidade. — Não posso, Elena. A casa está uma bagun­ça, tenho provas a corrigir e... e... Robert, ah, isso mesmo, virá para uma aula. Como vê, não posso sair.

— Maggie, tem certeza de que está tudo bem? Você parece mui­to estranha — Elena observou com evidente preocupação.

— Claro que está tudo bem.

— Já disse uma vez e vou repetir: você quase não sai de casa. Por que não relaxa, de vez em quando, e faz alguma coisa além de trabalhar? É assim que os cientistas ficam malucos, sabia? Pas­sam tempo demais trabalhando e pensando. Qualquer dia destes você vai estar dando encontrões nas paredes e ouvindo vozes.

Christopher inclinou a cabeça para um lado, fitando-a, e Mag­gie reprimiu o impulso histérico de dar uma gargalhada. Se Ele­na soubesse...

E porque não podia adivinhar por quanto tempo ainda mante­ria a conversação sem começar a dizer bobagens, Maggie disse com alguma ansiedade:

— Elena, preciso desligar. Estão batendo na porta.

— Tem certeza de que não quer que eu vá aí, mesmo que seja mais tarde?

— Outro dia, sim? — Maggie respondeu, já preparando-se pa­ra desligar.

— Está bem. Mas passe na loja qualquer dia destes. Estou es­perando coisas novas.

— Eu vou, prometo — Maggie afirmou rapidamente. — Tchau.

Desligou e respirou fundo, precisando de um momento para conciliar a experiência sobrenatural com o fato corriqueiro de ter recebido um telefonema. Mas tudo parecia mais claro, mais fácil de aceitar, quando olhou para Christopher, que continuava sen­tado no balcão, com as mãos cruzadas, presas entre os joelhos, expressão alerta e olhar compreensivo. Maggie sentiu que o peri­go de um ataque histérico desaparecia.

— Nunca houve nenhum caso de doença mental em minha fa­mília — ela declarou calmamente. — Nunca sofri nenhum trau­ma craniano e não faço uso de drogas. Não estou sob tensão. Não estou louca.

— Fico satisfeito em saber — Christopher disse com sincerida­de. — Porque eu também não estou.

Maggie lançou-lhe um olhar agudo.

— Robert não o viu! — ela exclamou em tom de acusação. — Você estava bem na frente dele e ele não o viu!

Christopher meneou a cabeça, assentindo.

— O velho que morava na casa também não me via.

— Mas eu vejo — Maggie murmurou, olhando tão fixamente que a visão chegou a nublar-se. Piscou e ele não desapareceu.

O homem continuava lá. O rosto bonito, perfeitamente cinzelado, os lábios sensuais, o cabelo castanho caindo de leve na tes­ta, brilhando à luz, tudo era real. Os dedos eram longos e finos, as coxas firmes. Os ombros tinham a graça e a força dos de um bailarino e a cintura era estreita. Nem mesmo em sonhos ela já vira um homem tão belo.

Obedecendo a um impulso repentino, deu um passo à frente, estendendo a mão como se fosse tocá-lo. Ele a observava intriga­do, mas não fez um movimento para recuar. E Maggie tocou-o, mas viu a mão passar através do corpo etéreo, que não ofereceu nenhuma resistência ao toque. Assaltada por súbita vertigem, ela estremeceu. Puxou a mão e engoliu em seco. Não estava prepa­rada para aquilo. Ainda não.

Sacudiu a cabeça numa tentativa de clareá-la, enquanto per­guntas e mais perguntas atropelavam-se em sua mente. Sentiu o mesmo que sempre sentia quando se dedicava a estudar um teorema: não completamente convencida até chegar à última linha, mas entusiasmada com o processo da descoberta, mergulhada nas possibilidades oferecidas pelo desafio.

— Por que eu? — perguntou. — Por que posso vê-lo, quando ninguém mais pode?

— A mesma pergunta já me ocorreu — ele confessou. — Não estou me queixando, entenda bem. Torna-se muito monótono conversar sozinho. E devo dizer... — abriu um sorriso encanta­dor, mas que Maggie achou inquietante, quando se lembrou de que partia de um espírito desencarnado — que tenho gosto apu­rado quando se trata de escolher meus companheiros terrenos.

Maggie enxugou a palma das mãos na saia, tentando não dei­xar que a expressão inegavelmente humana do olhar de Christo­pher a distraísse.

— Está querendo me dizer que durante todos esses anos em que foi... fantasma ninguém o viu?

— Exatamente.

Ela desejava demorar-se naquela informação, examiná-la e dissecá-la, até encontrar uma resposta que esclarecesse por que ela, entre os quatro bilhões de habitantes da terra, fora escolhida para entrar em contato com Christopher Durand. Mas havia per­guntas demais revoluteando e saltando em sua cabeça, também exigindo atenção.

— Se é um fantasma, o que está fazendo no meu apartamen­to? Não devia estar naquela casa velha? Fantasmas assombram casas, não apartamentos.

Ele escorregou da bancada para o chão, já não tão interessado na conversa.

— Que noção estranha — comentou apenas.

— Por que está aqui? —ela insistiu.

— Queria conversar mais um pouco com você, só isso — ele explicou, andando até a pia, abrindo e fechando a torneira vá­rias vezes, antes de começar a estudar o forno embutido na pare­de. — Uma idéia inteligente — aprovou. — Compacto e eficiente. É forrado de tijolos?

— Sei lá — Maggie replicou impaciente. — Como chegou até aqui?

— Não sei com certeza. — Ele notou o forno de microondas e olhou para ela com ar interrogativo. — Outro televisor?

— Como é que você conhece aparelhos de televisão?

— O velho tinha uma. Foi muito interessante durante alguns anos, depois os programas tornaram-se todos iguais.

— Como chegou ao apartamento? — ela voltou a indagar. Ele sorriu para ela.

— Não sei. Talvez você tenha me chamado com o pensamento.

Deixou Maggie refletindo sobre aquela possibilidade, enquan­to continuava a explorar a cozinha. Encontrando a máquina de lavar pratos, mexeu num botão e deu um salto para trás quando a porta se abriu.

— Por todos os santos! Para que serve isso? — exclamou baixinho.

— É uma lavadora de louça automática — ela explicou, dis­traída.

— Está brincando! — Ele puxou a grade de baixo e depois a de cima, examinando-as atentamente. — Uma máquina de lavar pratos? Daqui a pouco você vai me dizer que a comida se faz sozinha!

Maggie pensou nos pratos congelados e nos bolos preparados no microondas, mas não sabia como explicar tais maravilhas a ele. Pôs de lado todas as perguntas que morria de vontade de fa­zer, totalmente fascinada ao vê-lo descobrir o século XX. "Tem de ser real", ela pensou. "É estranho demais para ser imaginá­rio." Christopher empurrou as grades de volta e fechou a porta.

— Para que servem os criados, então?

— Não tenho criados.

Ele olhou em volta com evidente descrença.

— Com tanto luxo, você não pode pagar criados?

— Não preciso deles — ela explicou. — Quase ninguém preci­sa de empregados, hoje em dia.

Os olhos dele iluminaram-se.

— Ah, eu predisse exatamente isso, quando a máquina de cos­tura vulgarizou-se. A fadiga foi eliminada da vida da mulher. Que maravilha! E o que você faz de seu tempo livre, sem tarefas do­mésticas para mantê-la ocupada?

Maggie sentiu coceira na garganta, prenuncio de riso histéri­co, mas recusava-se a se deixar dominar pelo nervosismo. O que lhe acontecia nada tinha de engraçado. Era algo sério demais, uma situação desafiadora que exigia frieza mental. Mas o encanto da ingenuidade de Christopher era irresistível e ela viu-se participando da conversa.

— Tenho um emprego — informou. Ele meneou a cabeça, compreensivo.

— Entendo. Que tipo de trabalho você faz?

— Ensino matemática na faculdade e estou me preparando pa­ra o doutoramento em Física.

Ele mostrou-se espantado.

— Não acredito! As universidades concedem títulos de dou­tor às mulheres, agora? Em Física? Mas isso é extraordinário!

O entusiasmo dele era delicioso, quase contagiante, quando abrangeu a sala num gesto do braço.

— Mora aqui sozinha? Pode entrar e sair quando bem quiser?

— Naturalmente — Maggie respondeu, reprimindo um sorriso.

— Incrível! Que maravilha ser mulher nos tempos de hoje! E homem também. Sempre imaginei que algo assim aconteceria no correr dos anos, mas nunca pensei que chegasse a este ponto.

De repente Maggie foi atingida novamente pela sensação de vertigem e desorientação, como se houvesse se deslocado no tempo e no espaço, vendo que tudo o que sempre achara normal se esfacelava. Estava dialogando com um homem do século XIX, ou­vindo o timbre profundo de sua voz e o sotaque educado de um verdadeiro cavalheiro? Via realmente os movimentos rápidos e graciosos, a vivacidade das feições expressivas, o brilho de entu­siasmo dos olhos escuros? Como tal fenômeno podia estar acon­tecendo com ela?

Tocou na testa com a ponta dos dedos, procurando concentrar-se.

— Tudo está acontecendo muito depressa — queixou-se. Ele parou de inspecionar a geladeira para olhá-la.

— O que está acontecendo?

— Fantasmas não existem.

— Uma correção: nunca houve evidência científica da existên­cia deles.

Maggie achou aborrecido que ele fosse capaz de raciocinar com mais clareza que ela.

— Foi isso o que eu quis dizer.

— A existência de "fantasmas", como você diz, não foi pro­vada até agora, mas será — ele afirmou.

— Acho que o assunto está sendo estudado.

Ele deu de ombros.

— Estou aqui. Ocupo espaço...

— Parece ocupar, o que é diferente.

— Tenho massa, atuo sobre o meio ambiente e...

— Aparentemente.

Ele sorriu de um modo que era tanto indulgente quanto ca­rinhoso.

— Então, eu pareço existir.

Maggie quase bateu com o pé no chão, nervosa e frustrada.

— Não sei o que dizer. — Virou-se, aturdida, passando as mãos pelos cachos curtos dos cabelos, mas voltou a encará-lo girando bruscamente. — O que você faria, se estivesse em meu lugar?

Ele observou-a pensativo.

— Acho que pegaria as frutas e legumes espalhados pelo chão e os guardaria.

Maggie riu. Não pôde evitar. Naquele momento, rir era a rea­ção mais lógica, a única capaz de proteger sua sanidade mental.

Simples e espontâneo, o riso fluiu, sem uma nota de histeria, libertando-a, embora apenas momentaneamente, do esforço mo­numental para manter-se lúcida. Seu riso acendeu uma luz de ale­gria nos olhos de Christopher e ele sorriu. Partilharam o momento descuidado como duas pessoas comuns, numa cozinha comum banhada pela claridade pálida do entardecer.

Depois, ainda sorrindo, Maggie curvou-se e começou a juntar as compras. Christopher ajoelhou-se a seu lado para ajudá-la.

— Como consegue fazer isso? — ela perguntou, vendo-o pe­gar o saco de papel, onde ainda ficara um pacote de macarrão. — Você não tem corpo físico. Como pode manipular objetos físicos?

Os olhos dele procuraram os dela, brilhantes e interessados.

— Essa é uma boa pergunta.

Ele estendeu uma das mãos, aproximando-a tanto de Maggie que ela poderia, num movimento, roçá-la com o ombro. Mas não ousava. Ele pegou uma lata de molho de tomate que rolara para baixo do balcão, movendo-se lentamente e com cuidado exagerado. Colocou a lata no saco.

— Impressionante — murmurou. — Apenas a energia pode atuar sobre a matéria com resultados perceptíveis. Assim, devo ser... isto é, meu corpo atual, deve ser feito de algum tipo de energia.

Maggie sentou-se nos calcanhares, curiosa.

— Talvez numa faixa vibratória ligeiramente diferente da que conhecemos no plano físico — continuou, seguindo o raciocínio dele.

— Precisamente — Christopher concordou e sorriu. — Pen­samos do mesmo modo, você e eu. Isso é reconfortante.

Espantada, Maggie percebeu que era verdade. Também era re­confortante encontrar alguém cuja lógica mostrava-se tão direta quanto a dela, mesmo que essa pessoa não fosse muito real.

— Energia pode ser medida — ele prosseguiu. — Desse mo­do, devo, de fato, existir.

Maggie sufocou uma risadinha deliciada e ao mesmo tempo in­crédula.

— Tem dúvidas?

— Devo admitir que seus argumentos são fortes e estava co­meçando a me perguntar se eu não era somente uma invenção da minha própria imaginação. Ela refletiu por alguns instantes.

— Faixas vibratórias diferentes, outros planos e coisas assim não passam de ficção científica, como deve saber.

— Toda ciência é ficção, até que os fatos sejam comprovados. Ela observou-o, enquanto ele juntava o resto das laranjas.

— Você demonstra ter conhecimento do assunto. Estou me re­ferindo à ciência, não ficção. Foi cientista?

— De certa maneira. Fui inventor. Infelizmente, muitas das minhas concepções eram avançadas demais para meu tempo, em­bora fosse uma época progressista, e meus esforços não foram reconhecidos. Para ser franco, eu era um gênio — confessou ele, sem um traço de acanhamento.

— Entendo — ela respondeu, procurando ocultar a expressão de ceptismo atrás do saco de compras, enquanto se erguia para colocá-los no balcão.

— Fui mais aclamado por meus desenhos arquitetônicos e du­rante algum tempo recebi convites para trabalhar na Europa, es­pecialmente na Alemanha. Os alemães sabem apreciar a beleza que vem da simplicidade e da solidez da estrutura. Uma vez pro­jetei uma casa para ser construída ao redor de uma árvore, um carvalho gigantesco, ainda me lembro, de idade muito avança­da. Os galhos mais baixos serviam de suporte para a construção.

— Uma casa numa árvore? — Maggie perguntou, desta vez não se incomodando em esconder a incredulidade.

— Admito que foi uma idéia excêntrica, mas excêntrico tam­bém era o cavalheiro que me contratou. Um barão, acho. A maio­ria dos meus projetos, porém, era convencional.

— Foi mesmo você que construiu minha casa?

— Minha casa — ele corrigiu. — Foi meu melhor trabalho, não por ser espetacular, ou de algum modo fora do comum, mas por atender tão perfeitamente às necessidades do proprietário, ou seja, eu. Uma casa confortável.

— Sim, confortável — Maggie concordou. — Foi exatamente o que pensei assim que a vi.

— Foi uma das primeiras da região a ter o encanamento em­butido — ele acrescentou. — E lâmpadas elétricas ao pé e no to­po da escadaria. Eu gerava minha própria eletricidade, através de uma roda de água, nos fundos da casa. Acho que não existe mais e talvez o riacho também tenha desaparecido. Mas era uma vantagem muito grande não ter de subir e descer a escada levan­do lampião.

— Imagino — Maggie murmurou, novamente presa da estra­nha sensação de irrealidade. Começou a guardar as compras, ocu­pando as mãos para dar à mente uma chance de clarear. — Em que ano você nasceu?

— Não sei, ao certo — ele respondeu, atravessando a porta em arco que ligava a cozinha à sala e dirigindo-se para o apare­lho de som. — O que é isto?

Maggie olhou por cima do ombro.

— Uma aparelhagem de som estéreo.

— O que ela faz?

— Como pode não ter certeza de quando nasceu?

— Faz tanto tempo. — Ele ergueu o tampo de acrílico e estu­dou o prato do toca-discos. — Parece um gramofone. E as cai­xas laterais, o que são? Unidades de força?

— Alto-falantes. — Impaciente, ela virou-se e espalmou as mãos no balcão. — Escute, respondi a todas as suas perguntas. O mínimo que pode. fazer é responder algumas minhas.

Ele encarou-a com ar humilde.

— Você está certa. Esqueço que tudo isto deve ser ainda mais difícil para você do que para mim. Por favor, pergunte o que qui­ser. Tentarei responder.

A primeira coisa que ela queria perguntar era por que ele tam­bém achava a situação difícil. Era ele quem a perseguia, afinal. Ela não passava de uma vítima inocente. Mas tinha de abordar um assunto de cada vez.

— Você nasceu antes da Guerra Civil, ou depois?

— Depois — ele respondeu sem hesitar. — Não nasci aqui, mas em Boston, penso. Freqüentei a universidade de Oxford, disso me lembro bem, e fiz muitas viagens ao estrangeiro, até que des­cobri a baía de Chesapeake. Apaixonei-me pelo lugar e decidi que ali construiria minha casa.

— Você alguma vez se... casou? — Ela não sabia ao certo por que hesitara em dizer a última palavra, mas por algum motivo inexplicável, sentia-se mal ao imaginá-lo casado.

— Não. Na verdade, acredito que me consideravam libertino. — Ele sorriu diante da reminiscência, e Maggie não teve a mínima dificuldade em acreditar que fora mesmo um devasso. — Mas tenho certeza de que nada disso a interessa. Voltando à sua per­gunta, não, nunca fui casado.

Maggie considerou a antiquada atitude de recato algo diverti­do e encantador, gracioso e interessante, o que a deixou mais con­fusa. Pigarreou, limpando a garganta.

— Quando foi que você, hã... faleceu?

— Não faço idéia. — Ele voltou a examinar o aparelho de som.

— Isso não é justo! — ela exclamou irritada. — Você prome­teu me dar respostas.

Ele fitou-a, paciente.

— O que foi que você comeu no café da manhã no dia de seu décimo segundo aniversário?

— Quê? — ela perguntou, franzindo a testa. — Como vou sa­ber? É impossível lembrar!

— Exatamente. E isso foi há quanto tempo? Dez, quinze anos atrás? Tenho mais de um século de recordações e você não pode esperar que me lembre de alguns detalhes.

— Morrer não é um detalhe!

Ele sacudiu os ombros, curvando-se para olhar os fios na par­te de trás do aparelho.

— Talvez não seja para você.

Maggie hesitou, um pouco espantada com essa nova visão da vida e da morte. Se alguma vez tivesse imaginado que se encon­traria com um fantasma, algo em que jamais pensara, certamente esperaria outro tipo de situação. Mas não ia desistir, embora decidisse abandonar o assunto da morte dele por algum tempo.

— Ficou... assombrando aquela casa, observando os morado­res, desde que morreu?

— Não gosto dessa palavra, "assombrando", mas entendo o que quer dizer. Quanto a observar as pessoas, às vezes eu me entediava e as ignorava. Uma família que viveu lá, muito antiga­mente, tinha crianças e elas me entretinham. Outro casal possuía uma biblioteca maravilhosa e os livros me distraíam.

Maggie arregalou os olhos, atônita.

— Você lia?

— Naturalmente — ele respondeu surpreso. — Para que ser­vem os livros? Para ser lidos.

— Mas como? — ela insistiu fracamente.

Ele foi até o suporte de revistas e escolheu uma, folheando-a preguiçosamente.

— Depois a casa foi habitada pelo velho. Não sei por que me refiro a ele dessa maneira, pois não era velho quando se mudou para lá. Mas sempre agiu como se fosse muito idoso e me ficou a impressão de velhice. Como já contei, ele tinha um aparelho de televisão e durante algum tempo diverti-me bastante. O ho­mem era um eremita. Nunca recebia visitas, não fazia nada, a não ser bater pernas no jardim, estudar mapas e planejar uma viagem que nunca fez. Depois de algum tempo fui assaltado por tédio mortal e eu cochilei, até o dia em que você entrou.

Maggie piscou, perplexa.

— Cochilou?

— Sim. Não há outro modo de descrever. Fiquei cansado e desinteressado de tudo. As décadas foram passando, sem que eu tomasse muita consciência do que se passava.

— Qual é a última coisa de que se lembra? — ela indagou, ven­cida pela curiosidade.

— Antes de você? — Ele fez uma pausa, refletindo. — Um programa de televisão, em que apareciam um menino e um cão. Um collie, se não me engano.

— Lassie?

— Sim, isso mesmo.

— Na década de cinqüenta - ela informou, pensativa. Antes de ela nascer. Achou a idéia perturbadora e preferiu não aprofundar-se. — Perdeu a chegada da televisão em cores, então.

Os olhos dele brilharam, interessados.

— Transmitem cores, agora? Sempre imaginei se um dia isso seria possível. — Virou-se ansioso para o televisor. — Posso ver?

— Já, já, mas você prometeu responder ao que eu perguntasse. Ele olhou para ela como se fosse argumentar, mas acabou con­cordando, embora com retulância.

— Prometi.

Mas não parecia muito disposto a cumprir a promessa, pois assim que desviou o olhar do aparelho de televisão, voltou a aten­ção para a revista. Maggie não pôde deixar de pensar o que ou­tras pessoas veriam. Uma revista flutuando no ar, com as páginas virando lentamente? Ou não veriam nada? Ela própria estaria ven­do alguma coisa?

— Todos os... espíritos que partiram fazem essas coisas? Quero dizer, ficam em volta de nos, observando nossos atos? — Ela perguntou, pensando na tia Hilly. Estaria a doce velhinha, de olhos maliciosos, vendo-a manter um dialogo com um fantasma? Sem poder conter-se, Maggie deu uma olhada por cima do ombro.

— Não sei dizer — Christopher respondeu. — Sou responsável apenas por mim mesmo. — Ergueu a revista aberta numa pa-gina onde um modelo masculino exibia uma jaqueta de couro, camisa de seda branca e calca de algodão, larga e cheia de bolsos. — E esta a moda para os jovens de hoje?

— Alguns jovens usam roupas desse tipo — ela informou com impaciência. — O que eu quero saber e...

— E o traje que você esta usando, é da moda? Distraída, Maggie olhou para as roupas mal combinadas, de algodão e lã em tons de laranja e verde.

— Bem... acho que sim, mas não me importo com a moda. Quero conforto.

— Entendo. Sendo professora, não se pode esperar que ande de acordo com as ultimas tendências. — Ele virou a pagina e tornou a olhar para Maggie. — Parece haver alguma discrepância, aqui.

Apontou para a foto de uma jovem envergando um minivestido preto e agarrado, que deixava a mostra uma parte do seios e do traseiro. A moca sorria de modo tentador.

— Isto não pode ser decente.

— Talvez não — Maggie admitiu, imaginando o que ele deveria sentir ao ver uma mulher de pernas de fora depois de quase um século. — Mas está na moda.

— As mulheres andam pelas ruas vestidas assim?

— As vezes — ela respondeu, reprimindo um sorriso.

As perguntas que ela desejava fazer haviam perdido parte da importância nos últimos minutos e não era difícil entender por quê. Era quase impossível discutir aspectos da filosofia esotérica com um homem que se prendia a assuntos banais como moda, mas de qualquer forma, que diferença fazia? As respostas que ela obtinha eram ridículas e vagas e o esforço que despendia tentando dar-lhes sentido começava a deixá-la com dor de cabeça. Ele era um fantasma, afinal, e a bem da verdade nem isso ainda ficara provado de modo a satisfazê-la completamente. Nada do que ele dissesse ou fizesse alteraria o esquema geral das coisas. Ela estava se cansando a toa.

Foi ate o sofá e pegou o controle remoto, apontando-o para o televisor.

— Este dispositivo envia um sinal ao receptor, ligando-o ou desligando-o — explicou, dando uma demonstração, enquanto os olhos de Christopher simplesmente fulguravam de interesse —, mudando os canais — ele arregalou os olhos — ou regulando o volume, sem que se precise sair do lugar.

— Incrível! — ele murmurou. — Olhe! Imagens coloridas!

Maggie colocou o controle remoto na mesinha ao lado do sofá e Christopher desviou o olhar do televisor com visível esforço.

— Desculpe — pediu. — Estou ocupando seu tempo. O que costuma fazer nesta hora do dia?

Maggie achou a observação um pouco surpreendente. Ele se preocupava em não ser importuno.

— Bem, hoje preciso avaliar algumas provas e depois farei o jantar.

— Por favor, não quero atrapalhar — ele declarou, dispensando-a com um gesto de mão e pegando o controle remo­to antes de afundar-se no sofá, com os olhos fixos na tela do aparelho de televisão, — Vá fazer suas coisas que eu ficarei aqui, quietinho.

Maggie teve a sensação de que estava sendo enxotada, mas não pode deixar de sorrir ao vê-lo operar o controle remoto, com o entusiasmo de uma criança, murmurando exclamações de admiração sobre a quantidade de canais e a clareza das imagens. De­pois de algum tempo, escolheu o noticiário da noite e Maggie foi para a cozinha.

— Esta tem de ser a noite mais estranha de minha vida inteira — resmungou. — Um fantasma assiste a televisão na minha sala e eu estou agindo como se nada de anormal estivesse acontecendo. Pior ainda, estou falando sozinha.

— Crimes e violência demais — Christopher comentou. — Eu sinceramente esperava que o mundo houvesse atingido um estágio mais evoluído.

— Não creio que a situação esteja pior do que nos tempos antigos — ela observou. — O que acontece e que agora ficamos sabendo de tudo o que se passa no mundo.

— Acho que tem razão.

Ele calou-se e ficou assistindo aos comerciais com a mesma atenção que dedicara às notícias. Depois de algum tempo, Mag­gie desistiu de tentar compreender o que um homem, que não ou­via notícias desde a década de cinqüenta, estaria pensando e sentindo. No mínimo, a experiência inusitada oferecia-lhe uma nova maneira de encarar as coisas e muito em que pensar.

— Tantas informações! — ele murmurou quando o noticiário terminou. — Como consegue manter-se atualizada? É muito can­sativo.

Maggie estava picando legumes para o jantar. Não que esti­vesse com fome, mas porque precisava conservar as mãos ocu­padas com tarefas rotineiras. Se começasse a pensar demais no que estava acontecendo, acabaria maluca.

— Eu nem tento ficar atualizada — explicou. — Só presto aten­ção no que me interessa. Contudo, imagino como deve ser per­turbador para um... uma pessoa que ficou por fora de tudo durante tanto tempo. Seria muito mais fácil eu esclarecer certas coisas se soubesse exatamente quanto tempo você ficou sem con­tato com o mundo. Está me entendendo? Se pudesse me dizer em que ano nasceu, por exemplo...

Ela olhou para o sofá, esperando que, tendo satisfeito a curio­sidade sobre a situação do mundo, ele estivesse mais inclinado a falar a respeito da própria situação. Não completou a frase.

Christopher se fora.

 

Maggie dormiu muito pouco naquela noite e acordou no dia seguinte esperando poder convencer-se de que os acontecimen­tos da tarde anterior faziam parte de um pesadelo. Mas não teve sorte. Conhecia-se bem demais e sabia que não podia nutrir dú­vidas a respeito do que vira e ouvira. Fora essa mesma capacida­de de confiar em si mesma que a levara a superar os obstáculos da vida, sem cicatrizes aparentes, e não falharia num momento daqueles, embora ela chegasse a desejar que pudesse duvidar da própria clareza de raciocínio. Seria muito mais fácil explicar o encontro sobrenatural se fosse dona de um temperamento instá­vel e impressionável, de uma imaginação descontrolada ou de poderes paranormais. Nenhuma das alternativas adequava-se ao seu caso.

Antes de ir para a cama, na noite anterior, tentara desempe­nhar tarefas triviais, mas descobrira que se tornara incapaz de concentrar-se em algo por mais de alguns minutos. Ficara obser­vando os cantos escuros, sobressaltando-se com qualquer ruído, não querendo assistir à televisão com medo de que as imagens e sons da tecnologia moderna trouxessem Christopher de volta. Por fim, exasperada consigo mesma, fora deitar-se mais cedo que de costume. Dormiu pouco tempo de cada vez, acordando sem­pre que sonhava com um par de olhos castanhos e vivos, com um sorriso feiticeiro, sem ter certeza de que de fato estivera so­nhando.

Mas a luz do sol varreu para longe a inquietação da noite e Maggie acordou com a claridade filtrada pelas cortinas finas e que se refletia nas paredes brancas. E tudo estava diferente. Mes­mo não sendo capaz de convencer-se de que nada de anormal acontecera, tudo acabara. O dia estava fresco e claro, a vida en­trara nos eixos.

Ela sempre acordava cedo, de cabeça leve e cheia de energia, começando o trabalho do dia com rapidez e eficiência, uma ca­racterística que a fizera perder muitas colegas de quarto e que aborrecera muito sua mãe. Naquela manhã, às sete e meia, já ar­rumara a cama, gastara vinte minutos exercitando-se na bicicleta fixa, tomara banho e preparara o café. Enquanto esperava que dois pãezinhos se aquecessem no forno elétrico, postou-se na fren­te do armário do quarto, agitando os cabelos úmidos com os de­dos e tentando decidir o que usar. Foi então que o telefone tocou. Surpreendeu-se ao ouvir a voz de Larry.

— O que pensa que está fazendo, telefonando a esta hora da manhã? — ela saudou-o.

— Esse é o agradecimento que recebo por ter madrugado pa­ra telefonar aos Peterson, de Michigan? Tinha de ser bem cedo, porque saem para o trabalho às sete.

Por um instante ela não entendeu do que ele falava, mas quando percebeu, experimentou uma sensação de espanto. Parecia que ela e Larry haviam visitado a casa da rua Walnut, cujos proprie­tários moravam no Michigan, anos atrás e não simplesmente ho­ras. Tudo mudara desde então, ao mesmo tempo que nada se alterara.

— Ah, os donos da casa — ela murmurou vagamente.

— Sim. Não pude falar com eles ontem à noite, do contrário já lhe teria telefonado. Apresentei sua proposta e depois de algu­ma discussão consegui convencê-los a aceitá-la.

Maggie sorriu. Conhecia muito bem as manhas de vendedor de Larry e adivinhava que os Peterson tinham aceitado a pro­posta sem hesitação e ficado muito satisfeitos. Mas não podia criticá-lo por seus exageros ardilosos, que afinal eram a alma de seus negócios.

— Há uma condição — ele continuou. — Tem de ser uma ven­da "como está".

— O que é isso?

— Não lhe dão nenhuma garantia, explícita ou implícita. Não é nada espantoso, meu bem, em se tratando de uma casa tão ve­lha. Os donos não se responsabilizam por qualquer desastre, por exemplo, se o teto desabar um mês depois da venda. Para sua tranqüilidade, porém, mandarei um perito visitar a casa, antes do fechamento do negócio.

— Está bem. Faça como quiser, Larry. Quanto à casa...

— Arrependeu-se? — ele perguntou, captando o tom pertur­bado da voz dela.

— Não. Eu só estava pensando. O que sabe a respeito da casa?

— O que sei?

— Bem... — Ela enrolou o fio do telefone no dedo, escolhen­do as palavras com cuidado. — Quantos anos tem? Quem a cons­truiu? — Fez nova pausa, dominando-se para não perguntar se alguém já morrera lá. Larry exigiria uma explicação para uma pergunta tão estranha e ela não teria nenhuma para dar. — Eu queria conhecer a história da casa que vai ser meu primeiro lar de verdade.

— Não sei nada. A casa veio parar em minhas mãos através dos advogados, como já lhe disse. Suponho que encontrará tais informações no Cartório de Registros. Posso averiguar para você.

— Agradeceria muito, Larry. — Maggie tornou a sorrir. — Sua secretária precisa mesmo de algo para fazer.

— Vou contar isso a ela. Escute, a melhor maneira de lidar com este negócio é ir em frente e redigir um contrato cuja assina­tura dependa da avaliação do perito. Assim, se encontrarmos al­gum defeito na estrutura, você terá uma saída, mas enquanto isso os donos não poderão aceitar outra proposta. Tem certeza de que quer continuar?

— Dei-lhe um sinal, não foi? — ela lembrou-o. — Você apre­sentou minha proposta aos proprietários e eles a aceitaram. O negócio já está praticamente fechado, não está?

— Há sempre uma saída, minha querida. Você está arrepen­dida? — ele perguntou, preocupado.

— Não — ela disse rapidamente, e estava sendo sincera. Com fantasma, ou sem fantasma, a casa era dela. Estranhamente, o encontro com Christopher a fizera sentir-se dona da proprieda­de, como se a extraordinária visita selasse a transação definitiva­mente e com mais validade que um simples sinal em dinheiro. Tanta gente vivera na casa e nunca ninguém o vira, portanto o caso dela era especial.. — Não me arrependi. Só que esta é a deci­são mais importante que tomei na vida e estou um pouco assus­tada. Entusiasmada, mas assustada. Oh, Larry, não deixe nada dar errado, sim?

Ela quase podia vê-lo relaxar. Não duvidava de que ele que­braria todas as regras para ajudá-la a sair da enrascada, se estivesse arrependida, mas sabia que ficaria desapontado com a per­da do negócio. Afinal, tinha de zelar por sua reputação.

— Não deixarei. Esta tarde o contrato estará pronto. Vamos jantar juntos, hoje?

Ela hesitou. Tinha provas a corrigir, aulas a preparar e plane­java trabalhar na tese de doutoramento. No dia anterior perdera a tarde toda e parte da noite e não estava com disposição para ser espirituosa durante o jantar com Larry. Por outro lado, ele fora extremamente gentil em vender-lhe uma casa que pessoal­mente desaprovava, ganhando menos do que talvez ganhasse se a vendesse a outra pessoa e ainda dando-se ao trabalho de cuidar do contrato e da inspeção. Devia-lhe algo em troca.

E, considerando tudo, concluiu que talvez não fosse uma boa idéia ficar sozinha no apartamento naquela noite.

— Vamos, sim — concordou, e surpreendeu-se dizendo: — Da­rei um jantar para nós dois aqui em casa.

— Oba! Mal posso esperar. Às sete?

— Perfeito. Até lá, então. Não esqueça de trazer o contrato — acrescentou rapidamente, antes de desligar.

A primeira aula era às dez e meia, mas Maggie pretendia usar o computador, antes. Até naquele momento, não decidira, pelo menos conscientemente, estudar o mistério apresentado por Christopher Durand, assim como não pretendera pedir a Larry para fazer uma pesquisa a respeito da história da casa. Mas sabia que não poderia esquecer o assunto, mesmo que tudo não passasse de uma fantasia produzida por recordações adormecidas de ve­lhos filmes e contos ouvidos na infância. A mente científica de Maggie não lhe daria paz até que todas as possibilidades fossem analisadas e ela obtivesse uma resposta exata.

Voltou a procurar uma roupa para vestir, incerta sobre o que a fazia demorar tanto a se decidir. A verdade era que não dava muita importância a roupas e, como sempre lhe diziam e ela mes­ma comprovava, tinha péssimo gosto. Talvez sua preocupação com a aparência naquela manhã tivesse algo a ver com o comen­tário de Christopher sobre professoras não andarem na moda. O raciocínio irritou-a. Teria perdido o controle da situação de tal forma que começara a se preocupar com a opinião de um fantasma?

Com um movimento impaciente, arrancou uma saia quadriculada, marrom e preta, e um suéter volumoso, azul-marinho, de seus cabides. Tirou o roupão e estava vestindo a saia quando sen­tiu cheiro de queimado. Esquecera completamente que colocara dois pães no forno.

Segurando a saia com uma das mãos e o suéter com a outra, correu para a cozinha. Um rolo de fumaça saía do forno e no momento em que ia abri-lo, o telefone voltou a tocar. Abriu a porta tossindo quando aspirou fumaça, e arrancou o telefone do gancho.

— Alô?

— Srta. Castle? Aqui é a secretária do dr. Brooks. Ele me pe­diu para telefonar e perguntar-lhe por que não veio.

Maggie cometeu o erro de pegar o prato do forno sem prote­ger a mão com o pegador de panelas, queimou, os dedos e soprou-os com força.

— Não fui aonde?

— À reunião no escritório dele.

— Que reunião? — Esticou o fio do telefone até alcançar a gaveta de talheres, pescou um garfo e espetou os pedaços carbo­nizados de pão.

— A que foi marcada para os professores da área de exatas, hoje, às sete e quarenta e cinco.

Maggie lançou os pães dentro da pia.

— Não recebi nenhuma comunicação.

— Tenho certeza de que recebeu, srta. Castle. Passamos uma circular, cerca de dez dias atrás.

De repente, Maggie lembrou. Anotara o dia e a hora da reu­nião no calendário, mas de nada adiantara. Simplesmente esque­cera de olhar para o calendário que levava na carteira.

— Aquela reunião! — exclamou aflita, fechando o zíper da saia. Vestiu o suéter, prendendo o fio do telefone entre o pesco­ço e o decote do agasalho. Tornou a tirá-lo, enquanto falava: — Estarei aí em quinze minutos.

Finalmente livre do fio, ela pendurou o telefone no gancho e correu para o quarto em busca dos sapatos e da bolsa. Já ia sain­do do apartamento quando se lembrou de que deixara o forno ligado. Correu para a cozinha e desligou-o. Depois de mais uma viagem da porta de saída até a cozinha para desligar a cafeteira elétrica, pôs-se a caminho.

O dia começara de forma frenética, mas nada fora do comum, em se tratando de Maggie. E, durante os noventa minutos seguin­tes, ela não pensou em Christopher Durand uma única vez.

A faculdade Leeland era uma instituição moderna e bem con­ceituada que servia à comunidade já por um período de doze anos. Oitenta e cinco por cento do corpo discente continuavam os es­tudos em universidades, em cursos de pós-graduação, e incluía-se entre as cinco melhores faculdades do país. Fundada pelas uni­versidades estadual e municipal, usando recursos particulares, Lee­land oferecia equipamento de primeira qualidade e os melhores professores. Maggie escolhera a faculdade tanto por sua boa re­putação como pela flexibilidade do regulamento, que permitia car­gas horárias adequadas para professores que estivessem cursando pós-graduação. Mas, sendo honesta consigo mesma, tinha de ad­mitir que a maior atração de Leeland era, no seu caso, o sistema de computação.

O computador de Leeland ligava-se à rede da universidade, que por sua vez unia-se às instituições de pesquisa estaduais e locais, à Biblioteca do Congresso e outros órgãos através da nação. Transmissões por fac-símile eram recebidas quase que instanta­neamente e cópias de dados podiam ser pedidas pelo correio. Em­bora nada disso fosse incomum em grandes faculdades e universidades, nem sempre tais facilidades eram encontradas num escola do porte da Leeland. Assim, usando essa vantagem, a ins­tituição atraía professores em fase de pós-graduação, para os quais o sofisticado equipamento era de valor inestimável no período de preparação para os exames de mestrado e doutorado. Mas para Maggie, assim como para muitos outros professores-estudantes, que mantinham luta constante contra a falta de dinheiro e de tem­po, o atrativo principal era a possibilidade de poder usar o com­putador sempre que precisasse. E ela nunca hesitava em aproveitar a oportunidade que a escola tão generosamente oferecia.

Escapou da reunião com um repreensão suave do dr. Brooks e às dez horas exultou por encontrar uma vaga no computador. Entrou num cubículo, digitou seu número de identidade e ime­diatamente entrou com o pedido para uma pesquisa junto à rede.

Com tão poucos dados, teve de adotar a política do "não cus­ta nada tentar" e assim digitou simplesmente: "Biografia, Durand, Christopher".

O computador deu a resposta: "Não há registro".

Ela refletiu durante alguns segundos. Christopher dissera qual­quer coisa a respeito de a casa ter sido terminada em 1895. Na falta de informação melhor, digitou. "Ano, 1895".

A tela do monitor piscou, o sistema ronronou e veio a explica­ção: "Não há registro".

— Já entendi — Maggie disse por entre os dentes. — Decidiu dificultar as coisas, não é?

Apagou as entradas anteriores e começou de novo. "Arquite­tura (Chesapeake, Maryland, ou Alemanha): Biografia: Durand, Christopher". Parou indecisa. Ele dissera ter nascido depois da Guerra Civil, então digitou: "Ano 1865". Considerando as ex­centricidades de um fantasma e a possível duração de vida da pes­soa em questão, acrescentou: "Até 1955, inclusive".

O computador zumbiu e a tela piscou: "Procurando".

Maggie reclinou-se na cadeira e sorveu um gole de café do co­po de plástico, refletindo sobre a ironia de estar usando um com­putador para confirmar ou negar a existência de um fantasma. Era a tecnologia do século XX confrontando-se com noções su­persticiosas do modo mais básico e dramático. Ela não esperava realmente encontrar alguma coisa e nem sabia por que estava ten­tando, mas não era, nem nunca fora, uma pessoa que deixasse um projeto pela metade.

Não tinha nenhuma dúvida de que passara por uma experiên­cia espantosa, mas ainda restava saber se fora de natureza sobre­natural. Quanto a Christopher Durand ser uma pessoa real, que vivera e morrera em algum tempo do passado, isso apresentava um enigma ainda maior. Sabia que havia muita gente que fazia da pesquisa de acontecimentos paranormais um modo de vida, contudo não tinha idéia dos métodos que usavam. Com a mente disciplinada pelo raciocínio lógico exigido pela Matemática e pe­la Física, ela precisava de algo mais consistente que a palavra de um espectro para provar a existência de tais fenômenos e a ajuda do computador era tão valiosa quanto outra qualquer.

O sinal sonoro do computador sobressaltou-a de tal maneira que ela derrubou café na mão. Olhou para a tela: "Três infor­mações encontradas. Entre com a escolha".

— Deus do céu! — ela murmurou, limpando a mão na saia, antes de apertar uma das teclas. A primeira informação desenrolou-se na tela:

"Durand, Christopher Alan (1869-1899). Arquiteto de menor importância, mais conhecido por sua engenhosidade em introduzir inovações modernas em projetos tradicionais. Erudito, perten­cia ao grupo de intelectuais progressistas do século XIX, do qual faziam parte Sigmund Freud e H. G. Wells. Júlio Verne mencio­nou Durand em suas últimas cartas".

Maggie engoliu saliva com dificuldade. "Calma", recomendou a si mesma. A informação apenas provava que um homem cha­mado Christopher Durand realmente existira, que fora um arqui­teto não muito importante e que se relacionara com algumas pessoas de renome. Não provava que o homem com quem passa­ra várias horas do dia anterior era o espírito desencarnado de Christopher Durand.

Analisando o fato friamente, levando em consideração todos os milhões de pessoas nascidas e mortas desde o início dos tem­pos, quais eram as probabilidades de se encontrar o espírito de uma pessoa cuja biografia aparecia nas enciclopédias? Quase nu­las. E era isso justamente que os adeptos do sobrenatural esque­ciam ao exibir suas façanhas ardilosas. Maggie ficava nauseada quando ouvia dizer que Beethoven, Cleópatra ou Elvis Presley traziam mensagens do além. Por que eles? Por que gente famo­sa? Nunca aparecia um Joe, o alfaiate, ou Mary, a dona-de-casa. Decidiu, com alguma petulância, que a informação dada pelo computador depunha mais contra que a favor da autenticidade de Christopher Durand.

Contudo, o coração batia forte, quando ela apertou o coman­do para examinar a informação seguinte:

"Durand, Christopher

Casas Originais da Europa, por Theodore Artweiler, 1932, Edi­tora Appletone.

A residência do barão von Holstedler, projetada em 1888 por Christopher Durand, tem como apoio central um carvalho. Me­dindo nove metros de diâmetro na base e..."

Maggie parou de ler. Quase não conseguia fixar os olhos na tela, enquanto tornava a ouvir a voz de Christopher contando com displicência que uma vez projetara uma casa para ser cons­truída ao redor de um carvalho, admitindo que a idéia fora excêntrica, como o homem que o contratara.

Respirou fundo e tomou mais um gole de café.

— Esquisito — murmurou.

Ela própria sentia-se esquisita. Estivera conversando com um homem que tinha o hábito desagradável de aparecer e desapare­cer de repente e ele lhe contara que projetara uma casa para ser erguida ao redor de uma árvore, contratado por um barão. En­contrara documentos de que tal casa existira, mas isso não pro­vava a existência de fantasmas. Então, por que estava achando cada vez mais difícil permanecer cética? De quanto mais precisaria para convencer-se totalmente?

Releu a informação, quase não dando atenção à descrições de escadas flutuantes e sistemas de esgoto, mas descobrindo que a famosa casa da árvore, na época da publicação do artigo, em 1932, não estava aberta ao público.

Passou então, para a terceira informação:

"Durand, Christopher

Compêndio Completo de Arquitetos do Século XIX

Compilado por S.S. Lauder. 1961. Editora University.

Durand, Christopher (1869-1899) — Nascido em Boston, em próspera família de proprietários de ferrovias, Durand estudou na Universidade de Oxford. Depois de passar vários anos viajan­do pela Europa, retornou aos Estados Unidos e estudou durante algum tempo sob a orientação de Louis H. Sullivan, famoso por desenvolver a técnica do arranha-céu. Sullivan, porém, não o con­siderou promissor e, depois de um ano, Durand voltou para a Europa, onde em breve adquiriu novos interesses. Considerado excêntrico por seus iguais, mergulhou no estudo da tecnologia de seu tempo e trabalhou em sua próprias invenções, nenhuma das quais foi patenteada.

Os primeiros projetos de Durand no campo da arquitetura fo­ram desencorajados e vários deles considerados feios, impraticá­veis por desafiarem a lei da gravidade e sem segurança. Foi talvez a onda de críticas que o fez tornar-se menos criativo e voltar-se para projetos mais convencionais, simples e sólidos, que final­mente lhe granjearam a fama.

Em 1890, Durand teve sucesso na tentativa de captar a energia solar e projetou a primeira casa a usar tal energia, em Charleston, Carolina do Sul. Embora fosse à prova de terremotos, a construção foi destruída por um incêndio, causado por tremores sub­seqüentes ao abalo sísmico de 1886.

Em 1895, Durand retirou-se para a Baía de Chesapeake, Re­gião do Estado de Maryland, onde residiu até sua morte, à idade de trinta anos".

Maggie estudou a tela de alto a baixo e de repente prendeu a respiração. No canto direito inferior, havia uma simples obser­vação: "Foto". A capacidade gráfica da tela não permitia ao com­putador receber fotografias, mas o sistema fornecia a informação de que seria possível obter uma foto através de fac-símile ou pe­dido de uma cópia. Apressadamente, Maggie entrou com uma ordem de fac-símile e correu para a máquina, na outra sala, fi­cando à espera.

Não notou a presença de outras pessoas no recinto, professo­res, funcionários e escriturários ocupados com as atividades nor­mais exigidas por qualquer instituição educacional. A máquina martelava, grampeadores produziam ruídos secos e vozes cruza­vam o ar, mas Maggie mal percebia o barulho. Quando alguns colegas a cumprimentaram ela sorriu, surpresa e nervosa, desco­brindo que não estava sozinha. Permaneceu na frente da máqui­na de fac-símile, torcendo as mãos com ansiedade.

Já ia correr de volta para o terminal, achando que não entrara com o pedido de maneira correta, quando a máquina começou a ronronar. Arrancou a folha de papel apresentada, sem deixá-la esfriar, e por instinto disparou para o abrigo do cubículo antes de examinar a foto.

E lá estava a reprodução de uma fotografia de Durand, Christopher, 1869-1899, em tamanho seis por nove. Moreno, olhos ex­pressivos. Cabelo liso, escuro, penteado para trás, com uma mecha caída na testa exatamente como Maggie vira na noite an­terior, em seu apartamento. As feições atraentes de um rosto per­feitamente belo; nariz afilado, lábios cheios e sensuais. Na foto ele usava uma camisa de colarinho alto, casaco escuro e uma gra­vata larga, antiquada. Contudo, não era possível duvidar de que se tratava do mesmo rosto que ela vira surgir das sombras, na casa da rua Walnut, que se iluminara de entusiasmo quando ele explorara sua cozinha e exibira uma expressão fascinada diante do aparelho de televisão. Era o rosto de um homem que morrera há quase um século.

Maggie deixou-se cair lentamente na cadeira, segurando o pa­pel com as duas mãos. "Aí está", pensou. "Aí está o que você queria. A prova."

O coração batia em cadência rápida e desigual, mas intimamen­te ela sentia-se quase calma. Vira a evidência de uma fenômeno paranormal com os próprios olhos. Pesquisara a história da vida de Christopher Durand usando o recurso infalível da informáti­ca. Segurava nas mãos um documento que não podia ser refuta­do e já não havia lugar para a mínima dúvida. Ela realmente estivera em contato com um fantasma.

Qualquer pessoa, mesmo com a evidência na frente dos olhos, teria dificuldades em aceitar um fato que durante toda a vida jul­gava impossível. Mas a habilidade de Maggie em adaptar-se a cir­cunstâncias novas com tranqüilidade e bom humor era uma de suas maiores qualidades, como cientista e mulher. E a maior qua­lidade que um cientista poderia apresentar era a de saber lidar com o impossível. Mesmo no mundo ordenado e confiável da Ma­temática havia mistérios, possibilidades, especulações. E era das possibilidades que Maggie extraía os mais excitantes desafios, que lhe davam a maior satisfação. Existia uma resposta para tudo. Sherlock Holmes uma vez dissera: "Quando se elimina o impos­sível, o que resta, mesmo sendo improvável, deve ser verdadei­ro". Maggie sabia perfeitamente quando parar de buscar o impossível e aceitar o improvável.

Por um breve instante o papel tremeu em suas mãos e ela ins­pirou ar, lentamente. Como poderia aquilo ter acontecido a ela? Entre tanta gente, por que fora ela a escolhida? Precisava contar o fato a alguém. Escreveria um artigo. Fizera uma descoberta ex­traordinária! Contaria ao mundo todo, mas quem acreditaria?

Quem acreditaria? O pensamento dissipou o desejo urgente de gritar para que todos a ouvissem que descobrira algo incrível, mo­numental e estupendo. Contudo, o acontecimento afetara ape­nas a ela. E estava acabado.

Respirou fundo várias vezes para acalmar-se e viu que as mãos já não estavam trêmulas. Esforçou-se para analisar a situação de modo racional. Espantosa? Sim. Notável? Sem dúvida. Própria para ser apresentada publicamente? Não.

Um dia, quando estivesse com idade avançada, vivesse na ocio­sidade e tivesse bastante tempo para recordar e pensar, analisaria o fato e procuraria definir que significado tivera em sua vida. Por enquanto, só podia dizer que durante algumas horas partici­para de um acontecimento singular, de que poucas pessoas, tal­vez nenhuma, tinham participado e que provavelmente não voltaria a se repetir, pelo menos tendo ela como protagonista.

Desejou não ter desperdiçado tanto tempo com desconfiança e ceticismo, porque havia inúmeras perguntas que gostaria de fa­zer a Christopher, tantas reações a observar. E lamentou não ter tido a frieza necessária para prestar mais atenção ao que aconte­cia para guardar todos os instantes fantásticos na memória. Mas arrependimento de nada valia e ela não costumava lamentar er­ros passados e que não podiam ser corrigidos.

Olhou para a foto e balançou a cabeça vagarosamente.

— Incrível! Absolutamente incrível! — disse em voz alta.

— Notável — ecoou uma voz atrás dela. — Uma semelhança notável.

Ela girou na cadeira e quase escorregou para o chão quando deparou com Christopher Durand.

 

Christopher estava vestindo uma camisa solta, de seda bran­ca, calça larga, cinzenta, e jaqueta de couro com a mangas arre­gaçadas. Dava a impressão de ter saído de uma revista de moda masculina italiana. Estava sexy e perversamente lindo, como um daqueles ídolos do rock que levavam adolescentes a jogarem as calcinhas no palco e faziam as mulheres de meia-idade se subme­terem a cirurgias plásticas de corpo inteiro. Era a própria encarnação das fantasias femininas e encontrava-se a menos de dois metros de distância de Maggie. Todo o espaço ao redor achava-se carregado com a intensidade de sua presença.

Ela conseguiu respirar, mas não foi capaz de dizer uma pala­vra. Apenas olhava para a foto e novamente para ele, quase que para certificar-se de que se tratava da mesma pessoa, e que não havia nenhum engano.

E não havia.

— Você! — murmurou por fim. — Onde.. Como... Pensei que tivesse ido embora!

— E fui. Por algum tempo. Agora voltei. Diga-me... — As sobrancelhas escuras contraíram-se, enquanto ele fixava o papel que ela segurava e se aproximava, colocando uma das mãos no espaldar da cadeira. Instintivamente, Maggie recuou. — Essa fo­tografia... Como ficou tão pequena? É uma folha de jornal que você tem nas mãos? Os jornais mudaram tanto assim?

— É uma cópia — ela respondeu automaticamente. — Uma transmissão por fac-símile, para ser mais exata, mas por favor, não me pergunte como funciona.

Ele dirigiu-lhe um sorriso desarmante.

— Está bem, não perguntarei. — Sentou-se na mesa, ao lado do terminal. — Posso ver que esteve sondando o passado. O meu passado, não é mesmo?

Ela não conseguia parar de olhar para os pés calçados de botas, cruzados e balançando-se a alguns centímetros do chão, das mãos apoiadas no tampo da mesa, da cintura estreita, delineada pelo cós junto da calça. Tão real, tão, vivo. O último botão, perto do pescoço, estava desabotoado e permitia uma visão dos mús­culos na altura das clavículas e da sombra de pêlos castanhos.

— Hã... sim — ela balbuciou.

— E?

Ela fitou-o, sem entender.

— O que descobriu?

Ela ainda o observava, chegando à conclusão de que, embora fosse perfeita a imitação de um homem de verdade, era possível ver que não passava de uma imagem falsa. Não que faltasse al­guma coisa, ou que houvesse algo anormal. Ao contrário, por­que ele era perfeito demais, tão lindo e tão intensamente vivo. Christopher ocupava todo o espaço com sua presença e o energizava, um efeito muito mais forte ali, naquele momento, do que fora no dia anterior. Era como se cada molécula e partícula den­tro de seu raio de ação reagisse a ele de algum modo sutil, mu­dando levemente, movimentando-se mais rápido, brilhando de modo mais vibrante. Mesmo os átomos do corpo de Maggie re­gistravam a mudança, como se uma corrente elétrica muito fraca os fizesse tilintar, de um jeito desconcertante. Christopher estava cheio de energia, vibração, expectativa, vida. Se ele pudesse ser definido por uma cor, Maggie naquele dia chamaria de azul-elétrico. Ela afastou o pensamento maluco, forçando-se a pen­sar numa resposta.

— O que descobri? Que tudo o que você me disse é verdadei­ro. Você é um fantasma.

Ele pareceu encolher-se.

— Gostaria que não usasse essa palavra. Não é muito lisonjeira. — Olhou-a, então, com curiosidade. — Não ficou pertur­bada com a descoberta? Ontem, você estava cética e hoje, convenceu-se da verdade. Devo confessar que eu não reagiria bem, se nossas posições estivessem invertidas. Não está tendo nenhu­ma dificuldade em aceitar o fato?

— Não. Há uma afinidade de coisas neste mundo que não sei explicar, mas as aceito. Muitas coisas que não preciso ver para crer.

— Mas você é uma cientista! — ele observou.

— Exatamente. Acredito em quarks. Por que não posso acre­ditar em fantasmas?

Ele concordou, com a aprovação brilhando no olhar.

— Admiro seu modo de pensar. Racional, mas simples. Sinal de inteligência notável. O que são quarksl — perguntou, incli­nando a cabeça para um lado.

Maggie sorriu, satisfeita em poder ensinar alguma coisa a um gênio.

— Fantasias da imaginação dos físicos. Teoricamente, são os constituintes básicos da matéria, menores ainda que os prótons e os nêutrons. Mas a única prova de sua existência não passa de suposição matemática.

— Raciocínio dedutivo — ele acrescentou, dando a impressão de que compreendia a explicação dela.

— Mais ou menos. Nunca ninguém viu um quark, mas sua exis­tência explicaria uma porção de coisas.

Ele sorriu.

— O mesmo caso em que me encaixo. Você pensa com clareza. Maggie não tinha certeza de poder continuar a seguir aquela

linha de raciocínio. Não achava que estava pensando com clare­za, absolutamente.

— Está diferente, hoje. Suas roupas... Ele pareceu satisfeito por ela ter notado.

— A última moda. Sempre gostei de cuidar da minha apa­rência.

— Mas... — Não! Ela não queria aprofundar-se no assunto e descobrir como um fantasma trocava de roupas, ou por que era vaidoso. Talvez ele explicasse, se ela perguntasse, mas já che­gara ao limite do que poderia suportar, simplesmente descobrin­do que ele de fato existia. Olhou para o relógio. — Droga! Minha aula começa em dois minutos.

Com gestos rápidos, juntou os papéis onde fizera anotações, a foto e o copo de café vazio, limpando o computador para deixá-lo pronto para o próximo usuário. Christopher a observava aten­tamente.

— Que máquina é essa?

— Um computador — ela esclareceu, arrependendo-se no mes­mo instante. Como explicaria um computador a um fantasma, em poucas frases concisas?

— O que ela faz?

— Muitas coisas, mas é principalmente um sistema de arma­zenamento de informações.

Qualquer esperança que ela tivesse de satisfazê-lo com a expli­cação foi destruída com a pergunta seguinte, bastante previsível.

— Como funciona?

— Números binários, código eletrônico... Ah, não tenho tempo para explicar, agora. — Maggie colocou as alças da bolsa no om­bro e passou a mão na tábua sob a mesa, procurando a pasta.

Tinha certeza de que a levara para o cubículo. Ou a deixara na sala de reuniões? Saíra de casa carregando a pasta? Não ha­via meio de lembrar-se.

— Sei que não tem tempo — Christopher concordou, inclinando-se para olhar atrás do monitor. — Posso examinar a máquina?

— Não! Um movimento errado e vai tudo pelos ares. — Quem poderia dizer o que aconteceria se um ectoplasma entrasse em con­tato com os bancos de informação? Além de inepto, ele oferecia o perigo extra de ser um fantasma.

— Vai pelos ares? — ele repetiu, confuso. — Como um balão?

— Não. É uma gíria. O computador sofrerá dano. — Ela er­gueu uma pilha de papéis de sobre a mesa, mas a pasta não esta­va lá. Nem caíra na fresta entre a mesa e a parede.

— Eu certamente não desejo causar dano ao sistema — ele co­mentou com gravidade. — Existe algum manual técnico que eu possa estudar?

— Procure na biblioteca — ela aconselhou, endireitando-se e alisando o cabelo para trás, enquanto olhava em volta, desani­mada. As anotações para as aulas e os livros estavam todos na­quela pasta.

— É isto aqui que está procurando? — Christopher abaixou-se e pegou a pasta de cima do cesto de lixo.

Ela agarrou-a, aliviada.

— Sim, obrigada.

Saiu correndo do cubículo e já estava na porta da sala do de­partamento de computação quando se lembrou de que Christo­pher não podia ficar sozinho. Voltou apressada e encontrou o cubículo vazio. Não tinha tempo para sentir-se frustrada, porém. Estava cinco minutos atrasada para a aula.

Maggie fora abençoada, ou talvez amaldiçoada, dependendo do ponto de vista, com o dom de pensar de forma estritamente linear, com um toque de visão afunilada, que não chegava a ser estreita. Era impossível para ela preocupar-se com mais de um assunto de cada vez ou concentrar-se com eficiência em qualquer outra coisa além da que estava fazendo no momento. Esquecia compromissos, perdia chaves, bolsas e pastas. Mas na sala de aula, trabalhando no computador, ou no laboratório, era brilhante. Focalizava um tópico por vez, dedicando-lhe total atenção, dei­xando o resto de lado.

Assim, foi o hábito, mais que força de vontade, que lhe per­mitiu afastar o pensamento de Christopher. Quando chegou na classe eram dez e quarenta e dois. Estava doze minutos atrasada, mas só pensava na aula que preparara para aquele dia. Tudo o que se relacionava a Christopher Durand, desde a sensação de deslumbramento, até a curiosidade e as centenas de perguntas que lhe giravam na mente, foi colocado em segundo plano, forman­do uma lista de assuntos a serem tratados mais tarde.

Embora lecionar fosse apenas um meio para atingir uma fina­lidade, um jeito de ganhar dinheiro necessário para viver até que recebesse a soma fabulosa representada pelo prêmio de pesqui­sa, que ela não duvidava que receberia um dia, Maggie gostava de dar aulas. Assim, enquanto acalentava o sonho de vir a rece­ber o prêmio Nobel por seu trabalho sobre inteligência artificial ou, talvez, por apresentar a prova final e irrefutável da existên­cia dos quarks, colocava toda sua energia na tarefa de ensinar. Os alunos da Leeland tinham ambições bastante extensas no que se referia aos estudos e dedicavam-se seriamente ao curso. Mui­tos deles pagavam as mensalidades com o fruto do próprio tra­balho, conseguindo empregos de meio período e conheciam o valor de cada minuto passado na sala de aula. Por essa razão, Maggie procurava nunca se atrasar e naquela manhã, ao entrar na sala, pediu desculpas com sinceridade, iniciando a aula ime­diatamente.

A matéria era Introdução à Álgebra, e obrigatória. Maggie não tentava iludir-se, achando que os vinte e tantos estudantes, sem exceção, partilhavam de sua paixão pela matéria. Desse modo, procurava tornar a aula o mais interessante possível, pelo bem dos alunos e dela mesma. Naquela manhã, quando já explicara a lição programada, percebeu que a atenção dos jovens começa­va a se dispersar. Tirou os óculos, debruçou-se sobre a mesa e anunciou:

— Muito bem, agora vamos nos divertir um pouquinho. Quan­tos de vocês perceberam que a adivinhação que lhes dei na últi­ma aula era realmente uma progressão geométrica?

Um dos estudantes ergueu a mão.

— Descobrir isso foi fácil. O difícil foi resolver.

Os outros riram, concordando, e Maggie virou-se para o quadro-negro.

— Vou mostrar como é fácil.

Enquanto ela montava o problema no quadro, uma das meni­nas comentou:

— Vejam, ela nem está olhando no livro. Como é que conse­gue lembrar todos aqueles números?

— Certas pessoas nunca esquecem um rosto, ou um nome — Maggie explicou. — Eu nunca esqueço um número.

Ela gostou do riso que acompanhou suas palavras e da atmos­fera descontraída, uma das características de suas aulas. Sabia que ninguém conseguia produzir num ambiente de repressão.

— O que eu gostaria de saber é quem inventa tudo isso — um rapaz disse.

— O mesmo cara que inventa as palavras cruzadas para o Ti­mes — outro respondeu, nos fundos da sala.

— Não. Estou falando da matéria toda. Quem será louco o bastante para ficar sentado, pensando em Matemática?

— A srta. Castle — alguém implicou, fazendo Maggie sorrir, sem parar de escrever no quadro.

— Pense um pouco mais longe — ela aconselhou.

— Os babilônios — uma garota da primeira fila arriscou.

— Os habitantes da Atlântida — um jovem gracejou, provo­cando uma gargalhada.

— Na verdade, não há nada de absurdo nisso — Maggie co­mentou, acabando de escrever o problema e iniciando e solução. — Podem ir o mais longe que quiserem. Matemática faz parte da natureza. O movimento das estrelas, o nascer do Sol e da Lua, a mudança das estações, tudo era muito importante para os anti­gos. O que hoje chamamos de Matemática, provavelmente não passava de senso comum para o homem pré-histórico, pois era uma questão de sobrevivência.

— Se está querendo dizer que um homem da caverna entende­ria disso melhor que eu...

— Estou dizendo que existe uma relação matemática em tudo o que vemos — Maggie replicou. — Ou ouvimos. A música, por exemplo, nada mais é que uma seqüência de progressões mate­máticas e...

— E possivelmente a forma mais antiga de comunicação en­tre os homens — observou uma voz familiar.

O giz escorregou na mão de Maggie e arranhou o quadro com um guincho desagradável. Ela olhou na direção de onde viera a voz e viu Christopher Durand encostado na janela, de braços cru­zados, muito à vontade, banhado pela luz do sol. Ela piscou, abriu a boca para emitir uma exclamação de espanto, mas controlou-se a tempo. Lançou um olhar pela sala para ver se alguém notara algo diferente e encontrou apenas olhos curiosos fixados nela. Os alunos esperavam que ela terminasse a sentença interrompida.

— P-possivelmente a forma mais antiga de comunicação en­tre os homens — repetiu as palavras de Christopher, embora não fosse absolutamente o que pretendera dizer. Voltou-se para o qua­dro e continuou a escrever e falar, procurando manter a voz em tom normal. — Mesmo no crescimento das pétalas de uma flor, que é exatamente o que este problema demonstra, existe a Mate­mática. — Grafou o último algarismo e virou-se para a classe, conseguindo sorrir. — Viram como foi fácil? Não é espantoso?

Enquanto os alunos murmuravam palavras de admiração e tam­bém de queixa, Maggie olhou para Christopher. Ele enviou-lhe um sorriso gentil e inocente, como se tivesse todo o direito de es­tar ali.

— Seus alunos parecem mais velhos que você — ele comen­tou, saindo de perto da janela. — Quantos anos você tem, afinal?

— Vinte e oito — ela respondeu automaticamente e Charles, o estudante mais próximo dela, olhou-a curioso.

— Vinte e oito, o quê? — o rapaz quis saber.

Maggie teve vontade de morder a língua. Não ficaria reduzida à condição humilhante de todas as heroínas de filmes de terror que já vira, que ficam sozinhas, fixando um ponto de espaço va­zio, enquanto amigos e parentes discutiam sobre sua internação num hospital para doentes mentais. Mas o que Christopher estaria fazendo na sala de aula? A presença dele na casa que ela esta­va comprando seria compreensível. No apartamento, aceitável. Na sala do computador, tolerável. Mas na sala de aulas? Não.

— Vinte e oito variações possíveis para esta adivinhação — ela improvisou com um sorriso alegre.

Christopher estalou a língua em desaprovação.

— Há apenas uma resposta e você sabe disso — ralhou.

Maggie virou-se ligeiramente para o quadro e, aproveitando o murmúrio de vozes na sala, resmungou:

— Eles não podem vê-lo, não é?

Ele olhou para os estudantes, imperturbável.

— Aparentemente, não.

— O que está fazendo aqui? — cochichou furiosa. — Não tem o direito de... — Interrompeu-se, notando que seu tom de voz subia perigosamente. — Muito bem, turma — disse, encarando a classe. — O que acham que acontecerá, se reduzirmos esta res­posta exponencialmente?

— Voltaremos ao ponto de partida — respondeu Charles, o aluno mais aplicado.

Christopher deu uma risadinha.

— Esse está prestando atenção, pelo menos — observou. Maggie lançou-lhe um olhar fulminante.

— Vamos tentar, então.

Ela se pôs a trabalhar no problema, mas não era fácil, com Christopher tão perto, observando todos os seus movimentos. Sentia o coração acelerado e as faces quentes, aborrecida com as reações físicas que não conseguia controlar. Percebia que es­tava acanhada e algo mais. A presença dele a inquietava, mas tam­bém excitava e estimulava.

— Sete — murmurou Christopher.

O giz quebrou-se entre os dedos de Maggie e ela continuou a equação com um toquinho, lançando um olhar espantado para Christopher.

— Você errou — ele avisou. — Escreveu nove, em vez de sete.

Ela apagou o nove com a palma da mão e escreveu sete.

— Isso — ele aprovou. — Agora, reduza a soma por um fator de nove.

— Eu sei — ela cochichou.

Maggie terminou o exercício depressa e olhou para os estudantes com um sorriso brilhante, totalmente fingido.

— Viram? — perguntou, esfregando as mãos para tirar o pó de giz. — Nem tudo é o que parece ser. Mesmo na Matemática sempre há lugar para surpresas.

— Apoiado! — Christopher aplaudiu.

— Como fez isso? — Charles perguntou assombrado, enquan­to os outros estudantes murmuravam, confusos e admirados. — Não é possível!

Era exatamente o tipo de curiosidade que Maggie gostava de despertar e em outra ocasião ela se estenderia mais sobre o as­sunto, mas naquele dia não estava disposta.

— Um ponto a mais para quem conseguir repetir o exercício sozinho — limitou-se a dizer, começando a apagar o quadro. — Classe dispensada.

Enquanto os jovens se agitavam, preparando-se para sair, Mag­gie desabafou a irritação apagando o quadro com força desne­cessária. Estava com raiva de si mesma e de Christopher. Nunca permitira que coisa alguma a distraísse durante uma aula. Nun­ca. Mas como seria possível controlar-se, com um ser invisível espiando por cima de seu ombro, dando conselhos indesejados, interferindo em seu raciocínio?

Você é ótima professora — Christopher elogiou. — Bem que eu gostaria de ter alguém como você, me ensinando, nos tempos de universidade. Uma mulher professora! Quem poderia imaginar! Aposto como os alunos se distraem, às vezes, olhando para você.

Maggie guardou os livros na pasta, fechou-a com uma batida seca e dirigiu-se para a porta. Com expressão fechada, abriu ca­minho por entre os estudantes que saíam para o almoço e congestionavam o corredor. Christopher seguiu-a.

— Está aborrecida? — perguntou.

Maggie reprimiu uma resposta azeda, consciente das dezenas de olhos e ouvidos que não perderiam a cena provocada por uma professora falando sozinha. Pior ainda, gritando sozinha no cor­redor. Continuou andando para a saída, mexendo na bolsa enor­me em busca da boina que sempre usava para proteger os cabelos de vento. Enterrando a boina na cabeça, empurrou a porta e saiu para a luz brilhante do dia.

Apesar do talhe delicado, Maggie imitava o andar pesado de um jogador de rugby quando estava agitada. Abaixou a cabeça para proteger o rosto do vento insistente de outono e andou com passadas largas e ombros curvados, desviando-se de alunos que entravam, passando por cima de obstáculos e cortando caminho, sem olhar para os lados.

— Foi alguma coisa que eu disse? — Christopher perguntou atencioso.

Maggie diminuiu o passo apenas quando chegaram a uma passagem coberta e relativamente deserta, que levava ao prédio de Artes Plásticas. Esperou até que um casal de jovens passasse por ela, antes de encarar Christopher.

— Fantasmas assombram casas — atacou, falando pausada-mente. — Castelos, cemitérios, pântanos misteriosos. Não assom­bram edifícios modernos, um campus universitário e muito menos salas de aula. Entendeu o que eu disse?

— Que idéias estranhas você tem! — ele comentou, escrutinando o lugar, captando movimentos e cores, exprimindo admi­ração por tudo o que via.

Furiosa, Maggie parou na frente dele, exigindo sua atenção.

— Não pode fazer isso comigo! Recuso-me a deixar minha vi­da ser arruinada por um fantasma! Você já conseguiu o que que­ria, seja lá o quê... Até me convenceu a acreditar na sua existência.

— Não fiz nada disso. Você mesma se convenceu, usando mé­todos científicos.

— Mas agora, chega! — Maggie exclamou com dureza. — Vá embora e me deixe em paz!

— E para onde eu iria? — ele perguntou em tom educado, qua­se como fizera no dia anterior.

— Não sei nem quero saber. Volte para o seu lugar e fique lon­ge de mim!

Os olhos de Christopher expressaram divertimento, como se ele achasse tudo muito engraçado.

— Mas minha querida menina, não percebe? Meu lugar é aqui, junto de você.

Maggie sacudiu a cabeça numa negativa enérgica.

— Não percebo nada. Junto de mim? Você é um fantasma! Ele franziu a testa, contrariado.

— Já lhe pedi para não usar essa palavra. É tão vulgar!

Maggie ouviu passos se aproximando e saiu da frente de Christopher, recomeçando a andar.

— Não me interessa de que modo gosta de ser chamado — retrucou baixinho. — O importante é que...

— Poltergeist! — ele decidiu, com um brilho travesso no olhar. — Significa "espírito brincalhão". Não acha apropriado?

Para provar o acerto da escolha, arrebatou-lhe a boina da ca­beça, jogando-a para cima.

Maggie deu um gritinho quando a boina ficou fora de seu al­cance, rolando no gramado, levada pelo vento. Correu para apanhá-la, antes que Christopher o fizesse. Embora fosse possí­vel explicar uma boina caindo da cabeça, o mesmo não aconte­cia se alguém a visse voltar e pousar sobre seus cabelos. Um estudante que atravessava o gramado pegou a boina do chão e entregou-a a Maggie.

— Que vento, hein? — O rapaz comentou com um sorriso sugestivo, levando-a a crer que vira nela uma conquista em potencial. — Não quer que eu vá junto com você? Assim, se um pé de vento tentar carregá-la, eu a segurarei — propôs, confirmando as suspeitas de Maggie.

Ela colocou a boina na cabeça, com ar sério.

Obrigada, mas não será necessário.  

— Não será nenhum incômodo — ele insistiu, ainda sorrindo.

— Não estou interessada — ela declarou com firmeza. Ficou parada no lugar, ajeitando a boina, olhando para o jo­vem com ar frio, até que, desencorajado, ele se afastou.

Atrás dela, Christopher desatou numa gargalhada.

— Ele estava cortejando você! — exclamou deleitado. — O jovem gostou de você de verdade.

— Não acho graça — Maggie afirmou, voltando-se para encará-lo.

Os olhos escuros riam e todo ele parecia vibrar de conten­tamento.

— Aí é que está. Para você, tudo isso é normal e corriqueiro. Não faz idéia de como este seu mundo novo é maravilhoso.

Tomado de repentina energia, ele passou velozmente por ela e entrou num pátio arborizado onde grupos de estudantes lan­chavam, conversando e liam. Maggie não pôde evitar um grito abafado quando ele esparramou-se num banco, ao lado de um rapaz e uma moça que estudavam o mesmo livro. Os dois nem ergueram o olhar.

— Maggie! Olhe! — ele gritou com voz rica e vibrante, tendo no rosto uma expressão animada, plena de entusiasmo e alegria. Abriu os braços, como querendo abraçar tudo o que via. — Veja as cores, Maggie, sinta o calor do sol, olhe para o brilho da luz nas árvores. Perceba a vida!

Por um instante, ela foi conquistada pelo encanto de seu con­tentamento e olhou o que ele lhe mostrava. O gramado era verde-esmeralda, em contraste adorável com as folhas de outono, ama­relas, vermelhas e castanhas. Folhas que pareciam brinquedos abandonados num tapete luxuoso. O céu parecia um toldo azul-cobalto e o sol derramava-se nas paredes e pilares pintados de branco, dando-lhes o brilho do mármore. Sentados na grama, re-costados na sombra, esticados nos bancos, com os rostos volta­dos para o sol, jovens sadios, usando roupas de cores vivas, riam, conversavam, mexiam nos cabelos brilhantes e bem tratados. O ar fresco era embriagador e por um breve momento Maggie viu o mundo que a rodeava como se fosse a primeira vez. A beleza da cena emocionava-a.

— Maggie — Christopher chamou, subindo no banco.

Ela foi até ele e ao aproximar-se sentiu que a atmosfera muda­va. Não podia acreditar que ninguém mais em volta a percebes­se, mas nenhum dos jovens parecia afetado. Apenas ela notava a diferença e seu coração agitava-se loucamente no peito..

— Maggie — ele repetiu, e sua voz pareceu quebrar-se no es­forço de conter a excitação. — Olhe para você. Seu cabelo tem estrias douradas e seus olhos são violetas, não simplesmente azuis. Nunca vi os olhos de uma cor assim. São como flores do campo. As sardas de seu nariz, essa absurda boina vermelha e o jeito co­mo o vento sopra os cachos de seu cabelo... ah, gostaria que pu­desse entender o prazer que estou sentindo só de olhar para você, mas não consigo traduzi-lo em palavras.

Ele a fitava com ar maravilhado, quase reverente, e Maggie le­vou uma das mãos ao rosto, embaraçada. Nenhum homem ja­mais a olhara daquela maneira. Nenhum lhe dissera palavras tão lindas. Tudo era novo para Christopher, rico e cheio de promes­sas. Ser o alvo de sua intensa admiração era uma sensação nunca experimentada antes.

Ele desviou o olhar, procurando novas descobertas.

— Estes jovens, quase crianças ainda. — Mostrou as moças e rapazes que os rodeavam. — São tão belos, saudáveis e cheios de energia. Tão perfeitos. Os homens de hoje são mais altos e fortes do que os antigos e a mulheres... — Maggie viu-o obser­var as longas pernas de uma garota de minissaia. — Nunca ima­ginei que existissem mulheres tão lindas. E tantas reunidas num único lugar!

O olhar encantado vagueou de uma jovem para outra e Mag­gie, ainda sob a influência das palavras dirigidas a ela, achou aque­la admiração desinibida um pouco irritante, até mesmo insultuosa. Virou-se bruscamente e distanciou-se dele. Como esperava, Chris­topher a seguiu, embora o fizesse com alguma relutância. Os olhos escuros devoraram tudo o que encontravam pelo caminho, detendo-se preguiçosamente em cada mulher que passava por eles.

Ela parou no abrigo de uma porta pouco usada e encarou-o.

— Por que se interessa por mulheres, afinal? — perguntou, um tanto áspera, embora não tivesse a intenção de censurá-lo.

— Está com mais de cento e vinte anos de idade!

— Nunca ficarei tão velho que não goste de ver o que é belo — ele declarou. — Apesar de que é tarde demais para qualquer outra coisa. Faz muito tempo que venci meus impulsos carnais, asseguro-lhe. Meu interesse é puramente estético.

Maggie colocou a mão na boca, prendendo a respiração numa tentativa de manter-se calma.

— Escute — disse depois de um momento. — Quero que se esforce para compreender uma coisa. Tem sido difícil para mim, ficar vendo você e foi mais difícil ainda aceitar o que tudo isso representa. Mas, tudo bem. Posso lidar com a situação. O que não consigo agüentar são essas aparições súbitas, as perguntas malucas, a intromissão. Você está me levando à loucura, dá para entender?

Sacudiu a mão num gesto frenético e procurou controlar a voz, que se tornava aguda, à medida que se desesperava.

— Já tenho problemas demais tentando manter meu talão de cheques em ordem, procurando não faltar a compromissos e fa­zendo o possível para não deixar os óculos, as chaves, ou a pas­ta, em qualquer lugar. Não há lugar para um fantasma em minha vida. Você precisa ir embora.

Não havia mais alegria nos olhos dele, cuja expressão espelhava a dos olhos de Maggie.

— Eu quero explicar — ele começou em tom melodioso e en­volvente, contudo hesitante, como se estivesse procurando pala­vras adequadas. — Durante muitos e muitos anos vivi numa zona sombria, meio inconsciente, sabendo, mas não compreendendo, vendo, mas não me interessando. Agora eu vejo cores, vida, ener­gia e movimento em toda parte. Como posso deixar tudo isto?

Maggie sentiu a garganta contrair-se. Ele já deixara tudo, mais de noventa anos atrás. Porém, ouvindo-lhe a voz, vendo a ansie­dade no rosto perfeito, recordando a aura de êxtase que emana­ra dele, poucos momentos antes, não poderia dizer-lhe tal coisa. Ela o compreendia, de algum modo inexplicável, e a compreen­são mesclou-se com um sentimento pungente em sua alma.

Desviou os olhos, desamparada, massageando a nuca, onde a tensão começava a causar dor.

— Por que eu? Não pode ir para outro lugar, procurar outra pessoa?

Ele a fitou aturdido.

— Não. Acho que não posso. Por algum motivo que não che­go a compreender, parece que só posso ficar onde você está. Es­quisito, não? — perguntou pensativo.

"Esquisito". A palavra apenas atenuava a verdade. Era ina­creditável que, somente vinte e quatro horas antes, Maggie Castle não passasse de uma mulher comum, com problemas normais, batalhando pela vida o melhor que podia. O que fizera para me­recer o que lhe acontecia? Por que emaranhara-se nas teias de tal fenômeno?

Olhou pára ele rapidamente, agarrando-se a uma esperança súbita.

— Mas ontem à noite você foi embora. Para onde foi? Não pode voltar lá?

— Não fui a parte alguma — ele declarou. — Estava apenas descansando.

— Hã?

— Tanto quanto você, preciso me recuperar dormindo. E em­bora tenha muito mais energia agora do que antes, às vezes ain­da... desapareço — Christopher completou sorrindo.

— Oh, Deus — Maggie gemeu, sentindo que a dor na nuca aumentava. — Não entendo e não quero entender. Só desejo que tudo volte ao normal.

— Talvez eu possa tentar ser menos intrometido — ele suge­riu, prestativo.

— Não entre na sala de aula, por favor.

— E menos exigente — ele continuou, ignorando-a. — Juro que não quero lhe causar problemas, mas tenho tanto controle desta situação quanto você. Isto é, nenhum.

Ela encarou-o horrorizada.

— Quer dizer que vai me assombrar eternamente?

— Não gosto do modo como coloca as coisas. Assombrar... Que palavra feia.

— Vai andar atrás de mim para sempre?

— Eu não sei! — Pela primeira vez, ele pareceu exasperado. — Tudo o que sei é que estou aqui, você está aqui e que, se for­mos sensatos, tentaremos lidar com a situação da melhor forma que pudermos.

A cabeça de Maggie latejava, a mente girava e ela não encon­trou o que responder. Depois de alguns momentos de silêncio e perplexidade, girou nos calcanhares e pôs-se a andar depressa, como se assim pudesse deixar os problemas para trás.

Só que, naturalmente, não era tão fácil.

 

Pelo resto da tarde Christopher fez um esforço notável para ser menos "intrometido" e "exigente". Maggie forçou-se a ignorá-lo e o ardil funcionou quase perfeitamente. Mas, sempre que ela erguia o olhar do que estava fazendo, via-o por perto, parado num canto, sentado na borda de sua mesa, observando-a com interesse e ouvindo as explicações atentamente. No mínimo, era desconfortável. Às vezes ele chegava a abrir a boca para fa­zer uma pergunta ou um comentário, mas calava-se ao lembrar o que prometera. Em certo momento, distraído, ele estendeu o braço para pegar um livro e Maggie agarrou o volume abrupta­mente, para espanto dos alunos que imaginaram o que teria dei­xado a professora tão assustada. Christopher olhou-a com ar pesaroso e murmurou um pedido de desculpas, indo postar-se atrás de uma aluna, lendo por cima do ombro da moça.

Maggie mal podia esperar pelo fim do dia. Tinha a esperança de que assim que se refugiasse na segurança de seu apartamento tudo ficaria bem. E por algumas horas achou que sua esperança tinha fundamento.

Quando saiu do campus, um pouco antes das seis, viu que es­tava sozinha. Entrou no carro, afivelou o cinto de segurança e ligou o motor. Maravilhosamente sozinha. Saiu do estacionamen­to e tomou a rua Powell, começando a relaxar. Na esquina da Powell com a Indian Springs, esperando a mudança de sinal, Mag­gie viu Christopher aparecer no banco do passageiro. Gemeu al­to, acelerando quando o sinal ficou verde.

— Que planejamento espetacular para o controle de trânsito! Quem inventou o sistema? — ele quis saber.

Ela não respondeu. Durante a viagem de quinze minutos até o apartamento, Christopher calculou que aproximadamente trinta e cinco por cento dos motoristas ignoravam a luz amarela dos semáforos. Eu sua opinião, essa era uma falha inaceitável num sistema que poderia ser perfeito. Fez inúmeras perguntas sobre o motor a combustão e Maggie acabou descobrindo que ele sa­bia mais que ela sobre o assunto e que fazer experiências com mo­tores a gasolina fora uma de suas manias. Mostrou-se irritado com o fato de que ninguém ainda pensara em criar veículos to­talmente eletrônicos e discorreu longamente sobre as vantagens da energia solar.

Maggie dividia-se entre o espanto de vê-lo entender tão rapi­damente a tecnologia moderna e até ultramoderna e a irritação provocada pela presença dele, invasora e constante.

Em certo momento, não foi capaz de dominar o nervosismo. Christopher pegou a alavanca de câmbio, obviamente tentando descobrir para que servia, enquanto ela dirigia a uma velocidade de setenta e cinco quilômetros. Gritou com ele, então, descon­trolada, fazendo-o encolher-se no banco e lançar-lhe um olhar injuriado.

— O ser humano não foi feito para locomover-se a uma velo­cidade tão exagerada — ele acusou, desforrando-se.

— Principalmente junto de um fantasma maluco que fica me­xendo onde não deve — ela resmungou.

Christopher, porém, já descobrira o rádio do carro e nem ou­viu o insulto.

Ela entrou no estacionamento do prédio com os nervos à flor da pele. Saiu do carro e bateu a porta com força, mal perceben­do um avião que cruzava o céu. No instante, Christopher apare­ceu ao lado dela, fazendo-a estremecer.

— O que é aquilo? — perguntou, apontando para o céu escu­recido pelo crepúsculo.

— Um avião. — Ela não se lembrava de quando o avião fora inventado, mas certamente ainda não existia em 1899. Sentiu-se mesquinha ao dar explicações. — Uma máquina voadora, que você nunca viu. Transporta pessoas e carga.

Ele olhava para cima, estarrecido, mas sua expressão mudou depressa, tornando-se pensativa e levemente duvidosa.

— Uma máquina voadora — murmurou. — Ainda não fabri­caram automóveis movidos a eletricidade, mas já voam em obje­tos mais pesados que o ar.

— Nós já fomos à Lua e voltamos — ela informou, perversa­mente satisfeita.

Para sua frustração, porém, ele não pareceu particularmente admirado.

— Conheci um cavalheiro que escrevia livros de ficção sobre tais possibilidades —: comentou. — Mas esses aviões!

— Já existem há várias décadas — ela informou em voz bai­xa, enquanto entrava no edifício. Não havia ninguém à vista, mas era melhor não arriscar. — Foram usados nas duas guerras mun­diais e agora existe um deles que faz a viagem de Londres a Nova York em duas horas. — Ela olhou para ele, enquanto colocava a chave na fechadura. — Nos anos cinqüenta já tínhamos aviões. Como é que não os conhece? Não foi um período em que... bem... ficou "acordado"?

— Nunca vi nenhum. O que mais eu fazia era assistir à te­levisão.

Maggie abriu a porta, mas Christopher, desatento, atravessou a parede. Ela sentiu-se enjoada ao vê-lo fazer isso e parou no vão da porta, respirando fundo. Quanto tempo ainda poderia supor­tar a situação toda, sem ficar doida?

Quando ela finalmente entrou, Christopher apareceu em sua frente, pregando-lhe um susto. Ele não percebeu nada. Manti­nha um dedo indicador nos lábios, em atitude pensativa, e os olhos brilhavam com a tão familiar expressão de entusiasmo e curio­sidade.

— Você poderia viajar num desses aviões, Maggie?

— Naturalmente.

— Amanhã?

Ela jogou a bolsa no sofá e tirou a boina.

— Não..

— Por quê?

— Porque é caro e não tenho nenhuma viagem programada — ela respondeu com impaciência.

— Mas já viajou, alguma vez?

— Claro.

— Que coisa! — ele murmurou com ar sonhador. — O ho­mem viaja pelo céu a uma velocidade incrível, rasgando nuvens, perfurando o firmamento. Como eu adoraria ter uma experiên­cia dessas!

Observando-o, Maggie percebeu que a irritação que a perse­guia o dia todo desaparecia e que no lugar surgia uma certa indulgência carinhosa. Não era possível continuar com raiva de uma pessoa que mostrava encantamento sem reserva por tudo o que via. E a curiosidade dele, como a de uma criança precoce, era irresistível.

Atravessou a sala e apanhou uma revista, folheando-a até en­contrar o anúncio de uma grande empresa aérea. As fotos exi­biam em cores vividas o elegante exterior de uma aeronave, assim como o luxuoso interior.

— Olhe, um avião, por dentro e por fora.

Ele pegou a revista e daquela vez Maggie não pensou o que a cena representaria para um observador que não visse Christopher. Também não recuou quando ele se aproximou. Exceto por uma elevação da temperatura, que bem poderia ser fruto de sua ima­ginação, estar perto dele não era nada diferente de estar ao lado de um homem comum. Com resignação, admitiu que se habitua­va à situação. Deixou-o estudando as fotos e entrou na cozinha.

Serviu-se de um copo de vinho e voltou para a sala. Encontrou a revista aberta no sofá, mas não viu Christopher. Suspirou, su­bitamente descobrindo que não estava nada aliviada, afinal. Fi­cara desapontada. Acostumara-se com a presença dele. No período de apenas .oito horas, habituara-se a vê-lo junto dela, a controlar-se para não falar com ele em público, a tolerar, não, apreciar suas constantes perguntas. De repente, em vez de ficar contente por recuperar a privacidade, pegava-se sentindo falta de­le. Foi uma descoberta alarmante, que ela não queria analisar a fundo.

Mesmo que quisesse, não teria tempo. Quando se virou para ligar o aparelho de som, Christopher disse atrás dela:

— Espero que não se zangue, mas estive dando uma olhada no resto do apartamento. — Encontrava-se parado na porta do quarto dela, olhando-a com alguma apreensão. — Não tive opor­tunidade, ontem, e há tanto para ver, para aprender... Parece mes­mo um gramofone — exclamou de repente, avançando para o meio da sala, quando Maggie apertou um botão do rádio, sintonizando-o numa estação especializada em rock lento. — Ou­tra máquina de som, como a que você tem no carro.

Maggie fechou o rosto, esquecendo os sentimentos ternos de momentos antes.

— Não gosto que mexam nas minhas coisas. Não se entra no quarto e no banheiro de outra pessoa, sem pedir permissão.

— Não seja boba — ele ralhou. — Não sou uma pessoa viva. Que mal posso fazer? Além disso, não reclamei, quando você escarafunchou minha casa.

Maggie desistiu de discutir, achando que seria perda de tem­po. Afinal, os argumentos dele tinham alguma lógica.

— Isso não é nenhum gramofone. É um rádio — explicou. — O aparelho também tem um toca-discos e um toca-fitas.

— Estes botões são para controlar as funções? — Ele experi­mentou os controles do volume e de seleção de emissoras. — Toca-fitas? O que são fitas? — Olhou para ela com um sorriso doce e sincero. — Desculpe. Estou sendo exigente outra vez. E intro­metido.

Maggie hesitou, mas acabou sorrindo também.

— Acho que não pode evitar, não é? E, para ser franca, quan­do não o vi, momentos atrás, senti sua falta. Mas só por um instante.

— Como sentiria falta de um cachorrinho que vivesse se me­tendo por entre seus pés, suponho — ele observou com tanta sim­plicidade que Maggie tornou a sorrir.

— Algo assim. A comparação foi boa.

— É vinho? — indagou ele, apontando para o copo e indo para perto dela. — Posso?

Espantada, Maggie estendeu-lhe o copo e ele o pegou, erguendo-o contra a luz. O líquido brilhou como um rubi. Em seguida, aproximou o copo do rosto e aspirou o aroma, fechan­do os olhos.

— Vinho caseiro. De qualidade não muito boa e ainda pouco envelhecido, mas depois de tanto tempo, é néctar dos deuses pa­ra mim.

— É capaz de sentir cheiros? — ela perguntou atônita, pen­sando, no mesmo instante, que Christopher não tinha cheiro ne­nhum, outra prova de que ele não era o que aparentava ser.

— Cheiros são os estimulantes mais poderosos conhecidos pelo ser humano. Cada aroma provoca diversas lembranças e cada lem­brança leva a inúmeras associações. — Sorriu satisfeito. — Sou, e sempre fui, um sensualista desavergonhado. Perfume, gosto, cor, música... a vida é feita disso tudo.

Com algumas simples palavras ele lhe dera mais em que pensar do que um curso inteiro de Física Nuclear. Ela mal começara a refletir sobre o conceito filosófico, quando ele a interrompeu:

— Você fuma?

Ela piscou aturdida com a brusca mudança de assunto.

— Não.

— Que pena! Eu gostava de um cigarro, de vez em quando, e às vezes sinto vontade de fumar.

Maggie refletiu perplexa se era possível um vício permanecer além da sepultura.

— Uma vez, na Turquia, fumei a mais deliciosa das misturas — ele recordou, com expressão suave. — Usavam cachimbos de água. Uma delícia embriagante, que lembrava o efeito do ópio, embora eu nunca chegasse a apreciar esse paliativo.

Os olhos de Maggie brilharam de malícia, enquanto tirava o corpo das mãos dele.

— Essa "mistura" atualmente é considerada ilegal — infor­mou. — Assim como o ópio, que não é mais chamado de "pa­liativo".

— Isso não me espanta.

Ele andou pela sala admirando a mobília, as poucas fotos, até parar na frente de uma vitrine que exibia uma coleção de minia­turas de estanho. Examinou as peças durante tanto tempo, que Maggie sentiu-se incomodada. Ele abriu a porta de vidro e pe­gou uma estatueta representando o feiticeiro Merlin segurando uma bola de cristal. Virou-se para ela, com um sorriso astuto.

— Então, a cientista fria também é mística. Eu já suspeitava.

Maggie morria de ciúme de sua coleção de pequenos dragões, feiticeiros e castelos encantados, em parte porque gastava quan­tias vergonhosas na compra das peças. Apaziguava a consciência dizendo que as miniaturas eram valioso investimento, embora du­vidasse de que algum dia tivesse coragem de vendê-las.

— Não deixe cair — avisou secamente. — É uma peça cara.

Ele recolocou o Merlin no lugar e pegou um dragãozinho sain­do do ovo. As patas dianteiras do bichinho agarravam-se na borda da casca partida, procurando apoio. A cauda em forma de seta curvava-se num ângulo engraçado e os olhinhos de fragmentos de rubi brilhavam travessos. Christopher pousou a miniatura na palma da mão, correndo a ponta de um dedo pelas costas escamosas do dragãozinho.

— Gosto deste aqui — declarou sorrindo. — Tem jeito de de­sordeiro.

Maggie andou até lá, satisfeita. Sempre se envaidecia quando alguém demonstrava apreciar suas miniaturas, principalmente os dragões.

— Também gosto dele. Na verdade, é meu favorito e chamo-o de Elliot.

— Por algum motivo especial?

— Pensando bem, ele tem cara de Elliot.

Ela riu e os olhos de Christopher encontraram os dela, sorri­dentes. A ternura do momento invadiu o íntimo de Maggie com o mesmo efeito morno do vinho e por vários segundos ela esque­ceu completamente que Christopher não era real. Mas, que dife­rença isso fazia? Ninguém de carne e osso jamais gostara tanto de Elliot, ninguém lhe dissera que seus olhos eram da cor de flo­res do campo. Maggie reconheceu com um impacto que gostava da companhia dele.

O enlevo foi arruinado pelo toque da campainha, que trouxe Maggie de volta à realidade, bruscamente. Ela olhou para a por­ta e Christopher, erguendo as sobrancelhas com curiosidade, co­locou o dragãozinho no lugar.

— Oi, meu bem — Larry cumprimentou-a, quando ela abriu a porta. — Trouxe contratos, em vez de flores. Sei que cheguei cedo, mas assim poderemos estudar os papéis antes do jantar.

— Ah, o namorado onipotente! — Christopher murmurou sar­cástico, merecendo um olhar atravessado de Maggie, que pegava o casaco de Larry e o colocava nas costas de uma poltrona.

— Jantar? — ela repetiu abobalhada. Larry fitou-a com ar tolerante.

— Esqueceu! — afirmou sorrindo. — Você prometeu prepa­rar um jantar para nós dois.

— Não esqueci, não — ela mentiu rapidamente.— Só estou um pouco atrasada.

Larry sorriu, não se deixando enganar.

— Não faz mal — disse, afagando-lhe o rosto. — Seu jeito atrapalhado é uma das coisas que mais amo em você. Faz com que eu me sinta indispensável.

— Atrapalhado! — Christopher resmungou. — Jeito atrapa­lhado, uma cientista? Por que deixa que ele fale com você dessa maneira? — continuou, como se estivesse pessoalmente ofendido. Maggie dirigiu-se rapidamente para a cozinha.

— Sente-se, Larry. Quer vinho?

— Quero, obrigado. — Ele afundou-se no sofá e abriu a pas­ta. — Tem alguma coisa na geladeira, ou quer que eu saia e vá comprar uns bifes?

— Obrigue-o a levá-la a um restaurante — Christopher suge­riu, enfadado.

— Pare com isso — Maggie sibilou por entre os dentes. — Gos­ta de omelete? — perguntou a Larry.

— Gosto.

Christopher ficou a alguns passos de Larry, com os braços cru­zados e expressão fechada, observando o outro homem detida­mente. Maggie encheu um copo de vinho para Larry e completou o seu, procurando não se preocupar com a possibilidade de Chris­topher causar um desastre. Afinal, lidara com ele o dia todo, na frente de dezenas de alunos e seria capaz de passar mais umas horas no controle da situação.

— Você o acha atraente? — Christopher perguntou.

Ela tomou um gole de vinho e voltou para a sala. Obrigou-se a sorrir com tranqüilidade, quando entregou o copo a Larry e sentou-se ao lado dele. Mas, para seu profundo aborrecimento, viu-se observando-o pelo canto dos olhos e notando detalhes com os quais nunca se importara antes. Sempre achara Larry bonito, embora boa aparência não fosse a maior das qualidades, em sua opinião. Tinha um rosto agradável, sorriso aberto, gestos firmes e tranqüilos. Estava sempre bem arrumado e não era muito alto. Começava a perder o cabelo no alto da cabeça e como não fizes­se muito exercício físico, estava meio gordinho, mas nada daqui­lo era realmente importante para Maggie. E nunca teria notado nada, não fosse a pergunta ridícula de Christopher. E se Chris­topher, com sua beleza rara, não estivesse tão perto de Larry, um homem de aparência comum, forçando uma comparação.

Larry deslanchou numa explicação do contrato e Maggie fez o possível para prestar atenção. Contudo, viu-se obrigada a vi­giar Christopher, que perdera o interesse pela conversa e andava pela sala, fazendo-a estremecer à idéia de que poderia mexer em alguma coisa e atrair a atenção de Larry. Mas conservava as mãos unidas nas costas, enquanto andava de um lado para outro, lançando olhares freqüentes e inamistosos na direção do outro homem.

— Esta reunião vai ser muito longa? — perguntou depois de algum tempo.

Maggie controlou-se para não gritar que sim, que a reunião ia demorar e que se ele não estivesse satisfeito podia desaparecer.

— Está entendendo? — Larry apontou para um parágrafo do contrato. — Se o banco aceitar uma hipoteca de trinta anos, com taxas variáveis, você fará um bom negócio investindo seu capital...

— Bom Deus! — Christopher exclamou desgostoso. — O ho­mem é árido como um deserto. É isso que você chama de namoro?

— Concordo — Maggie respondeu a Larry, mas a si mesma disse que devia estar passando por uma prova qualquer e que de­via ter paciência e não perder a serenidade. Talvez tudo não pas­sasse de um plano para prepará-la para um grande destino.

De repente o rádio explodiu numa gritaria. Fora sintonizado numa estação transmissora de rock pesado, a todo volume. Larry virou a cabeça num repelão, Maggie deu um salto, pondo-se de pé, e Christopher declarou, muito à vontade:

— Que música incrível!

— Que diabo... — Larry começou.

— Está tudo bem — Maggie gritou, pisando nos pés de Larry ao correr para o aparelho. — O rádio está com defeito. — Aper­tou um botão, precisando de toda sua força de vontade para não avançar para cima de Christopher e dar-lhe um ponta-pé. — Uma coisa de loucos. Deve ser um fio solto, ou algo assim — expli­cou, sorrindo nervosamente.

— Quer que eu dê uma olhada? — Larry ofereceu-se, come­çando a se levantar.

— Não. — Ela apressou-se em voltar para o sofá. — Quase nunca ligo o rádio. Vou levá-lo a uma oficina, quando tiver tempo.

Christopher deu de ombros e postou-se à janela, com ar entediado.

— Chega de negócios por enquanto — Larry decidiu, toman­do as mãos de Maggie entre as suas e puxando-a para si. — Deixe-me cumprimentá-la de maneira decente.

Os lábios dele mal haviam tocado os dela, quando Christopher fitou-os, erguendo uma sobrancelha, num trejeito de censura e interesse. Maggie escorregou não muito graciosamente para fora dos braços de Larry e pegou o copo.

— O que foi? — Larry perguntou, apreensivo.

— Nada — ela afirmou, tomando um pouco de vinho. Não, aquilo não ia dar certo. De jeito nenhum. Como poderia levar uma vida normal, sem falar numa vida sexual normal, com um fantasma espiando seus atos durante todas as horas do dia? — Estou um pouco nervosa, só isso.

— Entendo. — Compreensivo, Larry passou-lhe um braço pe­los ombros e ela não resistiu. — Preocupada com a casa, não é?

— Bem...

— E com mais alguma coisa — Larry arriscou em tom sério, massageando-lhe a nuca, o que apenas serviu para deixá-la mais tensa. — Meu bem, pensei muito no assunto e quero que tam­bém pense. Comprar uma casa é um compromisso pesado e você mesma disse que não gosta de compromissos. Será que não deci­diu comprar a casa porque eu estava tentando forçá-la a comprometer-se seriamente comigo?

Christopher aproximou-se e ficou ouvindo. Maggie tentou rir, mas só emitiu um som lamentoso.

— Ora vamos, Larry. Não me acha capaz de tomar decisões sozinha?

Ele parou de acariciá-la, compreendendo que não tivera muito tato ao falar.

— Sei que é capaz de qualquer coisa, mas quero ter certeza de que não agiu por impulso e que realmente deseja ficar com a casa. Quero acreditar que não foi um modo educado de me di­zer que caísse fora de sua vida.

Ela tornou a rir de maneira nada convincente.

— Se eu quisesse que você caísse fora, encontraria um meio mais barato de lhe dizer.

— Muito facilmente — Christopher cochilou, deixando Mag­gie mais nervosa.

Larry sorriu e beijou-lhe o cabelo.   .

— Quero cuidar de você. Sabe disso, não sabe?

— Você não precisa de ninguém que a proteja — Christopher intrometeu-se agastado. — Não deixe que ele a seduza com bo­bagens. O que o sujeito está querendo é que alguém tome conta dele.

Maggie estava com os nervos tão tensos que gritaria apavora­da se um alfinete caísse no chão. Ergueu-se do sofá.

— Tive uma idéia — anunciou com um sorriso que pretendia ser brilhante. — Vamos assinar o contrato e depois sair para co­memorar.

— Vai assinar sem ler? — Christopher alertou, enquanto ela ia à procura de uma caneta.

Larry deu uma risadinha.

— Eu devia ter adivinhado que você arranjaria um jeito de es­capar da cozinha. Tenho uma caneta aqui.

Maggie virou-se e viu Christopher debruçado sobre o contrato na mesa de centro. Aproximou-se e Larry estendeu-lhe a caneta.

— Não pode assinar isso! — Christopher protestou.

E tudo aconteceu ao mesmo tempo. Maggie tentou pegar a ca­neta, Larry esticou o braço para pegar o contrato e Christopher entornou o copo de vinho que estava na mesa, encharcando os papéis. Maggie agarrou o contrato molhado, perdendo a com­postura.

— Por que fez isso? — berrou furiosa.

— Foi um acidente — Larry explicou perplexo.

— Já viu o preço que ele está pedindo? — Christopher per­guntou. — Não pode assinar isso. É loucura.

Maggie sacudiu os papéis no ar, tentando secá-los.

— Eu sei o que estou fazendo — dirigiu-se a Christopher.

— É só papel, por enquanto — Larry confortou-a. — Minha secretária pode datilografar tudo novamente.

— Não sabe, não — Christopher teimou. — Se concordar com esse absurdo...

— Se não quer que eu compre a casa, basta dizer! Não precisa recorrer a truques infantis — ela gritou.

O rosto de Larry empalideceu e então Maggie caiu em si. Esti­vem gritando com Christopher, um homem que apenas ela via. Christopher, que se postara atrás de Larry, fazendo-o receber o impacto de sua ira. Magoado e ofendido, Larry pensara que ela estava furiosa com ele.

Não podia acreditar que fizera algo tão estúpido. Era imper­doável perder o controle daquela maneira. Deu um passo a fren­te, mortificada.

— Larry, desculpe. Estou descontrolada.

Ele apressou-se em pegar a pasta.

— Isso é óbvio. Vou deixar o contrato com você. Seque-o e, se quiser, assine. Se não quiser, me avise.

— Larry...

Ele saiu do sofá e dirigiu-se para a porta.

— Não esqueça o paletó — Christopher avisou.

Maggie pegou o casaco das costas da poltrona e correu para a porta. Larry fitou-a por um momento, antes de tirar-lhe o pa­letó das mãos.

— Eu ligo, qualquer dia destes — prometeu, indo embora. Maggie encostou-se na porta fechada, evitando olhar para

Christopher e começando a contar até dez. Conseguiu chegar ao sete.

— Como se atreveu? — explodiu então, com voz trêmula. — Quem você pensa que é?

— Aquele crápula ia roubar-lhe milhares de dólares! Queria que eu ficasse olhando e não fizesse nada? — Christopher re­trucou.

— Ele não é um crápula e não ia me roubar coisa alguma. Sei exatamente o preço da casa!

— Mas isso é um absurdo! Não gastei nem dez mil para construí-la e já foi uma extravagância. Agora imagine...

— Isso foi cem anos atrás! — ela gritou para desabafar a rai­va que ameaçava sufocá-la. — As coisas mudaram. O dinheiro mudou. Tudo mudou, será que não entende? Você não tem o direito de interferir em coisas que não compreende.

Christopher não cedeu ao impulso de responder com grosse­ria, embora as linhas do rosto não se suavizassem e os olhos fulgurassem.

— O mundo não pode ter mudado tanto assim — disse apenas.

— Você não sabe de nada!

O descontrole emocional de Maggie atingira um ponto exaus­tivo e com essas últimas palavras, quase sussurradas, parte de sua raiva se evaporou. Ela foi à cozinha e começou a separar as pági­nas do contrato, espalhando-as sobre o balcão.

— O preço é justo — observou em voz baixa. —Mais que jus­to. Quero a casa de qualquer jeito e pago o preço de boa vonta­de. E o dinheiro é meu. Você não tem nada com isso. Se não quer que eu compre...

Ela voltou-se e viu Christopher parado na porta de ligação. Encarou-o e uma sensação de vazio espalhou-se por seu estôma­go. Sentiu-se traída, impotente. Se ele não quisesse que ela com­prasse a casa, o que poderia fazer contra sua vontade? Ele era parte da casa e não a deixaria morar lá, se não desejasse.

— É isso, não é? — perguntou ligeiramente ofegante. — Vo­cê não quer que eu possua a casa. Mas por quê? Eu...

— Não é nada disso. Gostaria que ficasse com ela. Quero que a compre. Quem você acha que eu desejaria ver morando lá? Um estranho qualquer?

Maggie ia soltar a respiração num suspiro aliviado, quando ele prosseguiu:

— No entanto, devo dizer que, se tivesse alguma escolha, o que obviamente não tenho, eu faria qualquer coisa para impedir que aquele vendedor pegajoso pusesse os pés na minha casa.

Maggie sentiu a raiva brotar novamente.

— O que tem contra Larry?

— Ele é uma basbaque[2]. Não tem a mínima noção de arquite­tura e não tem bom gosto. Quer recobrir o piso com tapetes e trocar o vitral por uma vidraça vulgar. Não sabe a diferença en­tre carvalho e cipreste e acha que a idade de uma casa é uma des­vantagem. E fico intrigado, pensando o que foi que você viu nele. Achei que tivesse bom gosto.

Maggie observava-o com espanto crescente.

— Se não fosse um absurdo, diria que você está com ciúme.

— Talvez, no que se refere a minha casa — ele concedeu.

— E o que é que Larry tem a ver com sua casa? Ele é apenas o corretor. Eu é que sou a compradora.

— Bem, naturalmente, quando vocês se casarem...

— Casar? — Ela encarou-o. — O que o faz pensar que vou me casar com Larry?

— Não vai? — ele perguntou com expressão alerta.

— É claro que não!

Irritada, ela afastou-se e pegou uma esponja na pia. Umedeceu-a e voltou para a sala, começando a passá-la na mesa de centro, suja de vinho. O carpete fora manchado por algumas gotas e ela fez o possível para limpá-lo, reclamando o tempo todo da sujei­ra que Christopher provocara.

— Se não pretende casar-se com o corretor, por que o recebe aqui? — ele perguntou depois de alguns instantes de silêncio. — E não diga que seu relacionamento limita-se a negócios, porque eu vi você beijando o palerma.

— Pelo amor de Deus! — Maggie olhou para as manchas no carpete, que apenas conseguira piorar, e marchou para a cozi­nha para lavar a esponja. — Só porque uma mulher e um ho­mem se beijam, não quer dizer que têm de se casar. Pelo menos neste século.

Os olhos de Christopher cintilaram numa súbita mudança, in­dicando que ele recuperara o bom humor.

— Nem no meu, felizmente. Do contrário, eu teria sido preso por poligamia. Mas não me respondeu. Por que o recebe? Por que sai com ele?

Maggie espremeu a esponja e colocou-a no balcão, virando-se para fitá-lo. Começava a descobrir que não era possível ficar com raiva de Christopher durante muito tempo, apesar de todas as provocações. As duas últimas perguntas, por exemplo, fizeram-na pensar e ela não conseguia conservar-se furiosa e refletir ao mesmo tempo.

— Porque gosto dele — respondeu. — É um cara legal e nesta época, homens como ele não são fáceis de encontrar.

— Pelo menos parece educado — ele concordou a contragosto.

— Tem mais que educação. Gosto da companhia dele e isso basta.

— Você merece algo muito melhor que um vendedor. — Chris­topher asseverou. — E na sua idade você não deve perder tempo com flertes inconseqüentes.

Maggie não sabia se ficava lisonjeada com a declaração de que Larry, por algum motivo, não era bastante bom para ela, ou se sentia ofendida com a referência a "sua idade".

— É? E o que eu deveria estar fazendo, então?

— Procurando alguém com quem se casar.

Ela quase reagiu com raiva, mas lembrou-se de que Christo­pher pensava de acordo com as normas do século anterior.

— Por quê? — indagou.

— Por que essa é a ordem natural das coisas, ora.

— Você não se casou.

— Sou homem, é diferente.

— Agora não é mais — ela esclareceu com um sorriso afetado, de superioridade, enquanto Christopher ficava pensativo.

— Não sei se isso é bom — ele comentou. — Uma mulher não deve viver sozinha. Mas, pensando bem, um homem também não.

Maggie pressentiu que ele se achava à beira de uma confissão e descobriu que desejava saber mais a respeito do homem que um dia fora Christopher Durand. Mas ele frustrou-lhe a curio­sidade.

— Peço desculpas por interferir em sua vida pessoal — disse, mudando de assunto. — Não posso prometer que isso não mais acontecerá, mas espero que me perdoe.

Maggie deu um sorriso incrédulo. Como podia alguém ser tão honesto?

— Não pode acontecer. Preciso viver minha vida e nela não há lugar para você. Não é justo o que está me acontecendo e vo­cê precisa ir embora.

Ele sacudiu a cabeça lentamente e olhou-a com um sorriso pa­ciente.

— Uma mulher tão inteligente e que às vezes parece obtusa, desculpe. Ainda não entendeu que não depende de mim, ir embora?

Ele já afirmara a mesma coisa, naquele dia, e a declaração ainda não fazia sentido.

— Por que não? Você tem poderes sobrenaturais. Pode que­brar todas as leis da Física e da Metafísica também, por conse­qüência. Pode fazer o que quiser.

— Não tenho nenhum poder sobrenatural — ele contrapôs com tolerância, como se estivesse explicando algo a uma criança não muito inteligente. — Meus "poderes", como você diz, são tão naturais para mim como os seus são para você. E se eu pudesse fazer o que quero, agora estaria voando num avião, ou assistin­do a uma peça de teatro em Londres, ou dividindo um átomo sob a lente de um daqueles microscópios fabulosos de que você falou na aula.

Algo do que ele dizia começava a penetrar a compreensão de Maggie, mas ainda não fazia sentido.

— Muito bem, mas já que não é responsável pelo que nos acon­tece, quem é, então?

— Só nós dois estamos envolvidos. Ele olhou-a de modo sugestivo.

Por um instante, Maggie não compreendeu o que ele queria dizer.

— S-sou eu, então? — gaguejou por fim. — Está insinuando que eu... Mas como pode ser? Sou uma pessoa comum, não te­nho dons psíquicos e se dependesse de mim, isto nunca teria acon­tecido! Nem mesmo quero você atrás de mim!

O sorriso dele era sutil e insinuante.

— Não mesmo?

Antes que ela pudesse responder àquela incrível insinuação, ele colocou as mãos nas costas e deu alguns passos para longe dela, um sinal que Maggie aprendera a reconhecer como indicação de agitação íntima.

— Tenho pensado no nosso caso — declarou. — E cheguei a uma conclusão que me parece muito clara. É como na televisão. Sinais são emitidos constantemente, certo? Mas são inúteis, invi­síveis, intangíveis, silenciosos, até que alguém ligue um receptor. E você é o meu receptor. Entendeu?

Maggie estava abismada. Era um conceito simples. Fazia sen­tido. Ninguém podia vê-lo, a não ser ela. Ele era invisível, intan­gível, silencioso para todo mundo, menos para ela. Mas, mesmo que a teoria a atraísse, ela a rejeitou.

— Não. Se um receptor pode ser ligado, também pode ser des­ligado. Assim, eu deveria poder fazê-lo ir embora, se quisesse, mas não posso.

— Talvez não queira — ele sugeriu.

— Mas eu já disse...

— Maggie, é a única explicação plausível — ele insistiu, com firmeza, parecendo animado, levando Maggie a acreditar que ob­ter respostas era tão importante para ele como para ela e final­mente convencendo-a a levá-lo a sério. — Existe algo em você que a torna diferente de todas as outras pessoas. Que permite nos­sa comunicação e que torna impossível você não me ver. Pode ser que você não reconheça a verdade conscientemente, mas vo­cê me quer aqui, tanto quanto eu desejo ficar.

Maggie hesitava, mas era forçada a admitir a verdade do que ele dizia. Conscientemente, ela não o queria ali. Só tivera pro­blemas desde que ele aparecera e tudo podia piorar. Mas no in­consciente...

— Seria por curiosidade? — ela ofereceu a sugestão em voz baixa.

— Uma boa explicação. Uma cientista defrontando-se com o desconhecido. Sua curiosidade não poderia deixar de ser desper­ta. E uma faceta de sua personalidade está adorando tudo isto.

— Uma faceta bem pequena — ela murmurou, embora não pudesse ignorar o ritmo desenfreado do coração ou negar que ele acertara em cheio. Estava curiosa, encantada e cativada. Se nun­ca encontrasse Christopher, estaria perdendo uma experiência glo­riosa. Queria-o em sua vida, mas o que seria dela dali por diante? — Está bem. Admito que fiquei excitada com o fato de nos en­contrarmos. Contente, até. Você é interessante e eu não posso deixar de me sentir... bem... fascinada por você.

Ele sorriu e curvou-se numa mesura graciosa.

— Fico aliviado em saber que, mesmo depois de tantos anos, não perdi a capacidade de fascinar as mulheres.

— Mas isso não quer dizer que eu deva gostar da situação. Sou uma pessoa reservada. Gosto de fazer as coisas do meu jeito, de morar sozinha e de ter algum tempo para dedicar a mim mesma. Você não pode continuar interferindo em tudo o que faço, apa­recendo sem mais nem menos...

— Tentarei ser discreto.

— Bem... ótimo. — Maggie olhou-o duvidosa. — Faremos o possível para nos entendermos.

— Naturalmente.

— Estamos combinados. Agora, vou tomar banho e preparar o jantar.

— Está bem.

Christopher não se moveu, e ela passou por ele. Na porta do quarto, voltou-se e, como suspeitava, ele a observava.

— Vou tomar banho — repetiu, enfatizando a última palavra.

— Sim, já ouvi — ele respondeu, sorrindo polidamente.

— E então? — Ela fez um gesto impaciente. — Não acha que é um bom momento para começar a ser discreto?

— Não entendi.

Maggie sentiu-se corar, de exasperação ou embaraço, não sa­bia ao certo.

— Não espera que eu fique sossegada com você aí, me vigian­do. Vamos, desapareça.

Ele riu.

— Não pode estar falando sério! Que diferença isso faz? Não tenho corpo físico, esqueceu?

— Talvez não, mas ainda é homem, jovem e atraente.

— Acha, mesmo? — ele perguntou, com evidente prazer.

Maggie franziu a testa, sentindo o rosto arder.

— O que lhe interessa isso? — respondeu com incoerência. — O que eu quero é ficar à vontade em minha própria casa.

— Você está sendo muito boba.

Maggie sabia que ele estava certo e ficou ainda mais atrapa­lhada. Se ia viver com um fantasma, teria de elevar-se acima das convenções sociais e ver as coisas sob o ponto de vista dele, mes­mo porque não tinha escolha. Depois de alguma hesitação, en­trou no quarto e fechou a porta.

Quando foi para o banheiro, trancou-se. Foi esse simples ges­to, e a inutilidade dele, que finalmente a fez ver as coisas com clareza. Riu da própria tolice. Ele não era um homem de verda­de, afinal. Ficar com vergonha de despir-se perto dele era o mes­mo que envergonhar-se diante da própria sombra. E não estava perto dele. Christopher com certeza encontrava-se na sala, assis­tindo à televisão, ou tentando desmontar o aparelho de som.

Ainda assim, ela não deixou de olhar furtivamente para a por­ta, enquanto enchia a banheira com água fumegante e colocava a touca de banho. Quando acabou de remover a maquiagem, sentia-se mais tranqüila.

Estava só de calcinha e camiseta, experimentando a tempera­tura da água com os dedos do pé, quando ouviu uma risada deli­ciada atrás dela.

— Você usa roupas de baixo masculinas? — Christopher per­guntou.

Ela puxou uma toalha do cabide e enrolou-a nos quadris, es­condendo a calça de perninhas. Olhou em volta, mas não viu Christopher. Seu riso sonoro e solto parecia vir do outro lado da porta.

— Não prometi que não ia olhar — ele justificou-se.

— Disse que superou os instintos carnais! — ela acusou.

— Era mentira.

Maggie gemeu de pura raiva e atirou a toalha contra a porta. Sentiu-se melhor.

 

Maggie parou diante do letreiro dourado que dizia "Visões Ter­renas" e, aprumando o corpo numa atitude de coragem empur­rou a porta. Em contraste com o dia frio e cinzento, o lugar era um oásis de luz e calor. Enquanto a sineta da porta bimbalhava compassadamente até silenciar, ela ficou parada, piscando um pouco no ambiente brilhante.

O piso era forrado de carpete azul-turquesa e nas paredes viam-se quadros representando guias espirituais, arcos-íris e cenas de outros mundos que Maggie não sabia decifrar. Focos de luz cla­ra realçavam vitrines onde eram expostos os mais diversos obje­tos: pedras semipreciosas, blocos de quartzo rosa, cachos de ametista, pingentes de cristal, chuveiros de rubi e bastões de fluorita. Nas prateleiras enfileiravam-se velas de todas as cores, li­vros sobre curas, fenômenos paranormais e defesa contra os males. O aroma de algum incenso exótico permeava o ar e Mag­gie achou que Christopher adoraria a loja.

Na semana anterior o relacionamento deles entrara num pe­ríodo de trégua e o tempo fizera o que nenhuma reclamação ou súplica de Maggie poderia fazer. À medida que a exaltação pro­vocada pela descoberta fantástica se acalmava, a presença de Christopher em sua vida tornara-se mais uma figura de cenário, à qual já não prestava muita atenção, do que um susto constan­te. Ele parará de se intrometer em tudo, apesar de sua tendência para a travessura não o deixar resistir ao impulso de surpreendê-la, quando ela mais desejava um pouco de tranqüilidade. Freqüen­temente, ele estava por perto, mas Maggie não o via e ela não tinha certeza se agia assim por falta de consideração ou para eco­nomizar a energia que o animava.

Ele assistia às aulas e ficava quieto até entediar-se. Então, su­mia. Ela sentia-se ofendida quando ele desaparecia, mas depois se lembrava de que seus conhecimentos de Física e Matemática, mesmo no século XIX, superavam o nível de aprendizado de es­tudantes dos primeiros anos da faculdade.

Porém, seu interesse pelo computador, pelo videocassete, telefone e televisão, era ilimitado e Maggie não cessava de admira-se com a rapidez com que ele absorvia os elementos da modera tecnologia e com o desejo que demonstrava de aprofundar-se no assunto. Fazia-a pensar num homem faminto chegando a um banquete. Sua atração por tudo o que era novo mostrava-se insaciável e ela reconhecia que nunca tivera momentos tão excitantes na vida como aqueles em que o via descobrir mistérios que para as pessoas da atualidade não passavam de lugares-comuns.

Também desistira de tentar enganar-se pensando que não gos­tava de certos aspectos do fenômeno, embora ainda não estives­se tão alienada que se sentisse inteiramente à vontade diante do fato. Certas vezes, principalmente no silêncio da noite, quando perdia o sono, torturava-se com preocupações antigas. Estaria louca? Sofreria alucinações? Confundiria sonhos com realidade?

Porém, quando a luz do dia dissipava os pensamentos paranóicos, as dúvidas acabavam e não tinha a mínima dificuldade em aceitar o que para ela se tornava tão real quanto o chão em que pisava. No entanto, algo estava muito errado. Ela sentia-se desorientada, isolada, prisioneira de um segredo.

Antes, sempre fora capaz de procurar lenitivo para seus males no trabalho, na simples precisão das equações matemáticas e na imutabilidade das leis. Trabalhar, porém, já não lhe oferecia o mesmo consolo, pois Christopher não a largava, perguntando, corrigindo, apresentando teorias. Mesmo Larry, que, dentro de suas limitações, já lhe oferecera certo equilíbrio entre as exigên­cias dos estudos e as pressões do mundo exterior, não lhe dava conforto. Ele a perdoara prontamente pela inexplicável demons­tração de mau gênio, quando ela lhe levara o contrato assinado, levemente manchado de vinho. Mas a afinidade que sempre ca­racterizara seu relacionamento pareceu desaparecer quando Christopher se grudou neles, com a expressão de um pai ranzinza. E então inventara desculpas para não ver Larry a semana toda, temendo, entretanto, que sua paciência se esgotasse e ele não quisesse mais saber dela.

Mas isso ainda não era o pior. Maggie nunca sentira falta de companhia, até encontrar-se isolada do resto da sociedade por uma ocorrência extraordinária que não procurara, nem sequer desejara. Uma ocorrência que, por sua natureza fantástica, tinha de ser compartilhada com alguém. Ela precisava contar a outra pessoa o que lhe acontecia, ouvir opiniões, ser aconselhada. E tinha de escolher o confidente com muito cuidado. Era o que es­tava tentando fazer, parada no meio da loja de artigos e livros místicos "Visões Terrenas", esperando que a proprietária apa­recesse.

— Oi! Minha cliente favorita, dona de uma talão de cheques generoso! Espere que já vou lhe mostrar umas coisas lindas! — Elena Barret saudou-a, entrando por uma porta aos fundos da loja.

Dirigiu-se para Maggie de braços estendidos, provocando o tilintar de dezenas de pulseiras e pingentes que trazia nos braços e no pescoço. Os olhos expressivos brilhavam de sincera alegria quando as duas se abraçaram. Maggie riu, já começando a se sen­tir melhor.

— Você é louca? Como fica lá atrás, deixando a loja sozinha? — acusou. — Se eu fosse um ladrão...

— Não se preocupe. Cada movimento seu foi gravado em videoteipe. Por onde tem andado? Deixe-me olhar para você.

Elena recuou, ainda segurando as mãos de Maggie, e percorreu-a de alto a baixo com olhar crítico, não perdendo nenhum deta­lhe do traje mal combinado. Maggie fez uma careta de enfado.

— Não comece, Elena. Não vai conseguir me vender uma da­quelas pedras caríssimas, capazes de me transformar numa mu­lher bonita, através de concentração de energia. Já tenho energia de sobra, parece.

A amiga balançou a cabeça com tristeza.

— Quando vai me deixar sair para comprar roupas com vo­cê? Algumas peças, apenas, bem combinadas e você verá os mi­lagres que poderá fazer com sua aparência.

— Gosto de mim do jeito que sou, obrigada — Maggie afir­mou, divertida, sem poder negar, porém, que sentia uma peque­na inveja do bom gosto inato da amiga.

Antes de abrir a loja, Elena fora consultora de beleza e os efei­tos eram visíveis. O cabelo acobreado, lustroso, mostrava corte impecável, o que o deixava sempre bem penteado. A maquiagem suave apenas realçava a beleza natural da pele e dos traços. Formara seu guarda-roupa com peças clássicas em tons outonais que favoreciam o colorido do cabelo e da pele e afinavam a silhueta. Os clientes da loja, esperando encontrar uma figura exótica à frente do negócio, freqüentemente se surpreendiam com a elegância da mulher que os atendia.

A amizade delas começara dois anos antes, quando Maggie pro­curou a loja por engano, pensando que lá consertavam jóias. Es­quecera o fecho quebrado da pulseira e apaixonara-se por um pequeno dragão de estanho, passando então a freqüentar a loja regularmente. Conhecera Larry numa festa dada por Elena, pois os dois eram amigos. Em seu mundo competitivo e corrido, Mag­gie via Elena como sua melhor amiga, uma confidente e compa­nheira de divertimentos, a quem pedia conselhos, com quem discutia filosofia e amenidades. Era a única pessoa que poderia compreender a experiência por que estava passando.

Mas era tão bom estar na loja, deixando do lado de fora todas as preocupações e gozando o ambiente de tranqüilidade, que Mag­gie não tinha pressa nenhuma de entrar no assunto.

— Então, o que tem de novo para me mostrar? — perguntou animada.

Elena piscou para ela com ar conspirador e foi para trás do balcão, de onde retirou uma pequena caixa.

— Nem coloquei na vitrine, de medo que alguém quisesse com­prar. Você nunca me perdoaria. É claro que os puristas torcem o nariz para este tipo de estatueta que leva cristal e chumbo, mas quem se importa com isso?

Enquanto falava, Elena abria as várias camadas de papel de seda que envolviam a miniatura. Por fim, ergueu a estatueta na palma da mão e Maggie viu dois dragõezinhos empenhados num combate. Os dois empunhavam espadas minúsculas e um deles erguia vitoriosamente um globo de cristal. Extasiada, Maggie prendeu a respiração, quando os viu.

— Ah, que coisa mais linda! — exclamou, pegando a minia­tura e sorrindo, enquanto examinava as expressões ferozes dos combatentes, passando o dedo pelos contornos cuidadosamente esculpidos.

"Christopher vai adorar", pensou, tão enlevada com a beleza da peça que nem percebeu que seu companheiro invisível insinuava-se com freqüência cada vez maior em seus pensamentos.

— Embrulhe, que eu vou levar. Não quero nem saber o pre­ço, porque vou usar meu cartão de crédito — disse a Elena, entregando-lhe a estatueta e abrindo a bolsa.

Elena riu e pegou o cartão que Maggie lhe estendeu.

— Se eu tivesse mais alguns clientes como você, ficaria rica.

— Você já é rica, Elena — Maggie corrigiu. — Tem coragem de pedir setenta e cinco dólares por uma pedra que qualquer um pode desenterrar do fundo do quintal.

— Cale a boca. Você está falando do meu ganha-pão.

Depois que Maggie guardou a caixinha com a peça na bolsa, Elena foi até a porta da frente e pendurou o aviso de "Fechado".

— Hora do almoço — anunciou. — Tenho salada de atum e pão, lá atrás. Enquanto comemos, conte-me as novidades. Já aca­bou com o dinheiro da herança, ou posso encomendar mais al­guns dragões?

O quarto dos fundos não era mais que um depósito, tão feio e sem graça quanto a parte da frente era linda e aconchegante. Havia um sofá quadriculado, afundado no meio, duas cadeiras dobráveis de lona, uma porção de engradados e uma cafeteira. Apesar da desordem, Maggie sempre se sentia bem ali.

— Gastei a maior parte do dinheiro comprando uma casa. Is­to é, fazendo o pagamento de entrada — contou, enchendo uma xícara de café.

— Verdade? Que maravilha!

Maggie sorriu, tirando os sapatos e puxando os pés para cima do sofá.

— O negócio estará fechado dentro de trinta dias.

Elena, que cortava o pão com uma faca de plástico, parou o que estava fazendo e olhou-a com ar maroto.

— Sua danada! Esconder uma coisa dessas de mim! Larry tam­bém não disse nada. Nem me levaram para ver a casa. E toma uma decisão tão importante dessas sem consultar a melhor ami­ga que tem? Algo que vai alterar sua vida, menina?

Maggie sorriu, levando a xícara aos lábios.

— Alterar a vida é um pouco exagerado, mas não totalmente falso — comentou. — foi uma decisão impulsiva.

— Impulsiva? Você, tomando decisões impulsivas? Deve ser aquela casa! — Elena colocou metade da salada num pratinho de papelão e empurrou-o em cima do engradado que servira de mesa, na direção de Maggie. — Conte-me tudo. Maggie concluiu que não havia motivo para adiar a revelação.

— A casa é assombrada — declarou sem preâmbulos. Elena arregalou os olhos e teve dificuldade em engolir o peda­ço de pão que colocara na boca.

— Não brinque! Mas isso é fantástico! Como descobriu? Zo­nas frias na casa? Ruídos? Alguém foi assassinado lá? Havia al­gum cemitério antigo no lugar? Quem lhe disse que é assombrada?

Maggie sorriu com ironia. "Zonas frias, cemitério antigo..." se fosse tudo tão simples assim estaria ótimo.

— Ninguém me disse nada. — Colocou um pouco de salada no meio do pão e mordeu o sanduíche. — Eu vi o fantasma.

O interesse nos olhos de Elena transformou-se na mais pura perplexidade.

— Você viu? Logo você?

— Eu.

— Meu Deus! Não está brincando, está? Viu mesmo?

— Vi.

— Meu Deus! — Elena repetiu, fitando Maggie com assom­bro. — Nunca conheci alguém que tivesse visto um fantasma. Pelo menos, alguém em quem eu pudesse confiar. Isso é incrível, Mag­gie! O que foi que viu? Um tipo de bolha flutuando no ar, um vulto? Ele movimentou objetos? Falou com você? Fale, droga!

O entusiasmo de Elena era encorajador, mas mesmo assim Mag­gie sentia-se acanhada e quase disse qualquer coisa que satisfi­zesse a amiga, antes de mudar de assunto. Mas já abrira a boca para contar seu segredo e nunca se perdoaria se perdesse a chan­ce de dividi-lo com alguém tão confiável quanto Elena, tão lúci­da e compreensiva. Ela até já tivera um namorado em Los Angeles que recebia espíritos. Devia entender do assunto.

— Não vi um vulto nem bolha. Mas uma pessoa inteira — re­velou cautelosamente.

— Homem ou mulher?

— Homem.

Elena inclinou-se sobre a mesa, ansiosa.

— Como ele era?

— Você conhece as fotos de lorde Byron, que aparecem nos livros de literatura?

— Com aqueles olhos escuros e expressivos, camisa de colarinho alto e pontudo e gravata de laço?

— Bem, mais ou menos. Só que este usa jeans de etiqueta fa­mosa e assiste à televisão.

Por um momento a expressão de Elena não mudou. Então, de repente, apertou os lábios aborrecida, e tornou a pegar o sanduí­che esquecido.

— Vá para o inferno, Maggie Castle. Eu devia saber que você estava zombando de mim. Mas não foi nada engraçado. — Mor­deu o sanduíche. — Eu quase acreditei, estúpida como sou. Fale-me da casa.

Maggie lutava com o desapontamento que lhe punha lágrimas nos olhos.

— Não estou brincando. — Quando Elena deu de ombros, sem fitá-la, ela repetiu: — Não estou brincando, Elena. Olhe para mim!

A amiga olhou e pareceu vacilar, mas foi só por um instante.

— Sem essa, Maggie. — Pegou a xícara de café, que pusera no chão. — Seu fantasma gosta de televisão?

— Ele morreu há muito tempo — Maggie revelou e, por mais que procurasse evitar, sua voz soava quase desesperada. Não per­cebera até então como era importante para ela que Elena acredi­tasse em sua história. — Gosta de televisão e de rock, porque são coisas novas para ele. É tão difícil assim de entender? Os aviões o fascinam, assim como liquidificadores e carros.

Elena quase engasgou com o café, embora Maggie suspeitasse que fosse mais por vontade de rir que por espanto.

— Ele dirige carros?

— É claro que não! — Maggie explodiu. — Gosta de me ver dirigir, de falar sobre motores e...

— Estou quase acreditando que você está dizendo a verdade — Elena confessou, olhando atentamente para a amiga.

— E estou!

Relutantemente, Elena fixou-a com um olhar severo.

— Juro que se for uma brincadeira...

— Não é. Já me viu fazendo esse tipo de brincadeira, alguma vez?

— Não. Nem esse tipo nem outro. Sempre achei você compe­netrada demais e nunca me cansei de dizer que precisava sair mais, se divertir.— Suspirou, rendendo-se. — Está bem. Continue.

Maggie inspirou fundo, organizando os pensamentos.

— A casa que acabei de comprar foi construída por um ho­mem chamado Christopher Durand, que morreu em 1899. Só que ele não morreu, porque ficou vagueando pela casa durante todo esse tempo.

— E assistindo a filmes de televisão — Elena completou se­camente.

— Não. — Maggie esforçava-se por reprimir o tom nervoso da voz. — Não há televisão na casa. E ele saiu de lá. Foi para o meu apartamento e me acompanha em todos os lugares — fa­lou baixinho, tendo consciência de como as palavras deveriam soar aos ouvidos da amiga.

Elena olhou para a metade de sanduíche que ainda tinha nas mãos e colocou-o sobre o engradado. Limpou os dedos com um guardanapo de papel e alisou as pregas da saia de gabardine. Ha­via ternura em seus olhos quando voltou a fitar Maggie.

— Querida, quero que saiba que o que vou dizer é para o seu bem. Gosto muito de você e por isso...

Desanimada, Maggie deixou a cabeça pender contra o encosto do sofá..

— Não estou ficando louca, Elena.

— Escute o que vou dizer. Tem andado sob pressão ultima­mente e...

— Elena...

— A tia de que mais gostava morreu e você herdou uma boa soma de dinheiro. Comprou uma casa, quando sabe que não con­segue viver no mesmo lugar por mais de dois anos.

— O que é que isso tem a ver com...

— Está trabalhando demais, dando aulas e preparando a te­se. A tudo isso, junte o peste do Larry, atormentando-a, queren­do que você assuma um compromisso com ele, tenha filhos, sei lá, quando você lutou tanto para construir uma carreira.

— Acabou? — Maggie impacientou-se, endireitando-se no sofá e passando os dedos pelo cabelo alvoroçado. — Não estou à bei­ra de um colapso nervoso, mas se ficar aqui sentada ouvindo vo­cê mais um pouco, acabarei tendo um. Eu tenho certeza do que vi.

Elena fitou-a contrita e gentil.

— Só disse que você pode não estar agüentando tanta pressão.

— Olhe, Elena, desculpe.

Puxou os sapatos com os pés e calçou-os, percebendo que fora uma tola ao pensar que Elena acreditaria numa história tão lou­ca quanto a que acabara de contar. Também não acreditaria, se as posições fossem trocadas. Se não saísse logo dali, acabaria por perder o respeito e a amizade de Elena e, do jeito que as coisas estavam indo, precisaria de todos os amigos que pudesse con­seguir.

— Maggie...

— Foi um erro, Elena. Esqueça. Só pensei que você pelo me­nos me ouviria.

— Espere. — A amiga segurou-a pelo braço, parecendo triste e confusa. — Desculpe. Eu devia saber que você não inventaria uma coisa dessas, mas é algo tão louco... — Interrompeu-se brus­camente. — Perdão. Foi só um modo de dizer. Escute, eu acre­dito em você. Acredito mesmo. Vamos começar tudo novamente, está bem?

Maggie ficou indecisa. Queria desesperadamente, precisava abrir a alma com alguém, como se falando aliviasse o pesado fardo que carregava. Mas reconheceu que ninguém a entenderia, a não ser uma pessoa que tivesse passado pela mesma experiência. Mas quem? Lentamente, voltou a acomodar-se no sofá.

— Não sei como tornar a história menos chocante — con­fessou.

— Não se preocupe com isso. Vamos por partes. Disse que vo­cês dois conversam?

— Tão claramente como estamos conversando agora.

— Sobre o quê?

— Tudo. O tempo, as notícias, discutimos Física, escolhemos junto o que devo preparar para o jantar. Ele dá palpites em tudo.

— Você o torna... — Elena engoliu em seco — tão real!

— Ele é real. Aparece em três dimensões, não tem nada a ver com as formas espectrais que a gente vê nos filmes de terror. Se você o visse na rua, não perceberia nada de diferente. E uma pes­soa comum, exceto que pode atravessar paredes e desaparecer, que ninguém vê, a não ser eu.

Maggie podia ler nos olhos de Elena a luta que ela travava con­sigo mesma, querendo acreditar e sendo arrastada pela dúvida. Por alguns momentos, nenhuma das duas falou.

— Não sei o quanto você sabe a respeito do mundo dos espíritos — Elena disse finalmente — e não sou muito esclarecida no assunto, mas o que me diz não faz sentido.

— Concordo.

— Quero dizer que talvez existam espíritos protetores, espíri­tos brincalhões e casas assombradas. Quem vive na Casa Branca afirma que o espírito de Abraham Lincoln ainda é visto vagueando pelos aposentos. Há histórias de pessoas que recebem a visita de parentes mortos, que aparecem para anunciar algum desastre pró­ximo, mas isso... Nunca ouvi nada parecido.

— Nem eu — Maggie concordou de novo, sentindo que uma tênue esperança nascia em seu coração. Elena ao menos estava falando com seriedade a respeito do assunto. — E não acredito em espíritos protetores ou brincalhões.

— E se... — Elena perdeu-se em reflexões, talvez examinando alguma idéia que lhe surgira. — Acho que você precisa de ajuda profissional.

Bufando de exasperação, Maggie pegou a bolsa.

— Não, Maggie, espere — Elena pediu. — Não estou falando de psiquiatras.

— Ah.

— Embora eu não esteja completamente convencida de tudo o que contou, acredito que você acredita nessa história. E como não é dada a fantasias, deve haver um fundo de verdade em tudo isso.

— Obrigada — Maggie replicou secamente. — Já é alguma coisa.

— Estou tentando ajudar, Maggie — Elena observou, na de­fensiva.

— Sei que está. O que sugere?

— Talvez você esteja envolvida com um espírito preso à Ter­ra. Se assim for, não pode lidar com ele sozinha. Precisa de que algum perito no assunto a ajude.

Maggie encheu-se de curiosidade.

— O que você quer dizer com "preso à Terra"?

— Bem, como disse, não sou entendida, mas pela ordem na­tural das coisas as almas que partem deste mundo devem prosse­guir no caminho que os leve para um plano mais alto. Contudo, algumas, às vezes, ficam presas aqui. Não podem ir em frente nem voltar para o mundo dos vivos. Uma coisa trágica.

— Por que acontece isso?

— Por vários motivos. Um trauma na vida anterior, como mor­te violenta ou uma grande injustiça. Às vezes mesmo uma desilu­são amorosa. Na maioria das vezes, esses espíritos deixaram algo incompleto na Terra e são compelidos a terminar o que começa­ram, antes de seguir viagem. São espíritos sofredores, destina­dos a errar pelo planeta até que alguém os liberte.

— Quem? Um exorcista?

Elena torceu os lábios, num trejeito de desgosto.

— Parece coisa de filme, não é?

— Se parece! — Maggie não se via chegando a tais extremos e só de pensar arrepiava-se.

Elena, porém, dera-lhe muito em que pensar. E mesmo não acreditando inteiramente no que se passava, a amiga a fizera ter um fio de esperança, pois Maggie começava a entender, muito tenuamente, a situação que até ali lhe parecera indecifrável. Pre­cisava refletir. Sozinha.

— Elena... — iniciou hesitante, passando as alças da bolsa pelo ombro e pondo-se de pé. — Por favor, não comente isso com ninguém. Já achei difícil contar a você e não quero que me julguem maluca.

Elena sorriu com ternura.

— Sabe muito bem que pode confiar em mim.

— Sei, sim — Maggie afirmou, retribuindo o sorriso.

— Se precisar de mim, estarei aqui — a amiga declarou, levantando-se também.

Maggie beijou-a no rosto.

— Você é ótima. Tchau e obrigada por tudo — despediu-se, rumando para a porta.

 

Durante todo o caminho de volta para casa Maggie pensou no que Elena lhe dissera. Mas não precisava de nenhum perito em fenômenos psíquicos para saber que o que lhe acontecia não era normal. Pelo pouco que entendia do assunto, espíritos desencar­nados pertenciam a um plano superior e seres humanos encarna­dos viviam na Terra. Normalmente esses dois mundos não tinham contato. Porém, segundo Elena, havia os espíritos que ficavam presos ao mundo dos vivos, por causa de certos traumas, espe­rando que algo ou alguém os libertasse. Estranhíssimo.

O próprio Christopher já admitira que não dependia dele ir em­bora e não restava dúvida alguma de que ele estava encarcerado nas armadilhas do mundo físico: visões, sons, sensações, da mes­ma forma que qualquer outro ser humano. Mas traumatizado? Sofredor? Era ali que a teoria de Elena falhava. Maggie jamais conhecera alguém mais satisfeito com tudo e se Christopher so­frerá algum trauma terrível na antiga existência, nada deixava a perceber.

Contudo, devia existir uma explicação. Algo dera errado no grandioso plano da vida e da morte e, pelo bem de Christopher e por sua própria paz de espírito, tinha de endireitar a situação. Toda equação tinha solução. Bastava encontrá-la, naquele caso, e Christopher ficaria livre. Uma tarefa difícil, mas muito impor­tante e nobre.

O problema maior era que Maggie desconfiava que ele não de­sejava livrar-se de coisa alguma. E ela, fazendo um honesto exa­me de consciência, tinha de admitir que hão desejava tanto assim ver-se livre dele. Ainda não começara a aprofundar-se no misté­rio da existência de Christopher. Não discutira tantos enigmas do universo para os quais, como espírito livre da matéria gros­seira, ele poderia ter a resposta. Valia a pena suportar algumas inconveniências geradas pelo estranho relacionamento para auferir um fantástico conhecimento científico.

Por outro lado, seria correto mantê-lo junto dela para satisfa­zer a própria curiosidade? Não teria o dever moral de tentar cor­rigir uma situação errada que condenara Christopher a ficar amarrado à Terra para sempre? Naturalmente, era tudo pura es­peculação e Maggie não estava acostumada a lidar com assuntos tão graves. Não era filósofa, nunca sequer se interessara demais por questões místicas e era óbvio que não estava capacitada a li­dar com o problema que tinha nas mãos. Tomara pudesse esque­cer tudo.

Mas ainda analisava o problema quando chegou à porta do apartamento e começou o ritual costumeiro de procurar a chave na bolsa atulhada. Não a encontrou. Bateu nos bolsos do casaco. Nada. Franzindo a testa, descontente, pôs a mão no bolso da saia e retirou duas moedas de um centavo e uma nota de su­permercado. Tornou a abrir a bolsa.

— Deixou a chave do apartamento no carro — Christopher informou, aparecendo diante dela e balançando o chaveiro na frente de seus olhos.

— Oh, obrigada — ela agradeceu, sem admirar-se com a pre­sença dele e pegando o chaveiro depressa, antes que alguém pas­sasse e o visse pendurado no ar. — Afinal, há alguma vantagem em se ter amizade com um fantasma.

Christopher não replicou e quando ela abriu a porta ele já se encontrava do lado de dentro, encostado no bar.

— Gostaria que não ficasse varando paredes desse modo — ela reclamou. — Fico nervosa. Não pode usar a porta, como to­do o mundo?

— Ora... Por quê?

— Está bem, está bem — ela concordou, entre irritada e di­vertida.

Christopher tinha aquele poder. Por mais nervosa e mal-humorada que ela estivesse, ele sempre conseguia fazê-la relaxar, através de alguma tirada engraçada. E era impossível ficar zan­gada com ele, quando usava seu encanto para apaziguá-la.

Olhou-o com atenção e viu que usava agasalho de ginástica aveludado, marrom-café, e tênis sem meias, aderindo à moda infor­mal dos moradores do prédio para as horas de folga, o que ele com certeza andara observando. O traje favorecia-o de forma irresistível, combinando com a cor dos olhos inteligentes e realçando o corpo enxuto, de músculos rijos. Maggie achava o corpo dele lindo, ou melhor, a imagem que apresentava. Podia ver a leve penugem nos braços expostos pelas mangas puxadas para cima e os tendões dos calcanhares, sob os punhos da calça do agasalho. Teria sido tão forte, vibrante e belo em sua vida na Terra? Ou adotara aquela forma por vaidade, ou, talvez, para agradá-la? Eram perguntas desse tipo que quase punham Maggie louca. Contrariada consigo mesma, jogou a bolsa e o casaco no sofá, agitando o cabelo com as mãos para tirar a umidade deixada pe­la garoa.

— Não vai me mostrar os dragõezinhos? — Christopher per­guntou.

Ela voltou-se para ele com um olhar de acusação.

— Você estava lá!

Ele simplesmente sorriu.

— Posso vê-los?

Maggie tirou a miniatura da bolsa e desembrulhou-a, sentindo-se um pouco perturbada. Se Christopher estivera na loja o tem­po todo, ouvira sua conversa com Elena e sabia-se lá o que pen­sara. Pior do que vê-lo em volta dela o tempo todo, era não saber se estava por perto, ou não.

Mostrou-lhe os dragõezinhos e o prazer que se refletiu no ros­to perfeito afastou a sombra dos pensamentos de Maggie como sol dissolvendo as trevas. Ele pegou a estatueta admirando o fi­no trabalho manual e o capricho dos detalhes.

— Este deveria chamar-se Pendrake — sugeriu, apontando pa­ra o dragão abaixado. — E este, não, esta, Ulyssia. — Mostrou a figura vitoriosa com o globo de cristal.

— Uma fêmea? — Maggie surpreendeu-se.

— Por que não? A mulher sempre vence, mais cedo ou mais tarde. — Ele girou a estatueta nas mãos, de modo que a luz inci­disse sobre o cristal da pequena esfera, provocando um minús­culo arco-íris na brancura do teto. — O que supõe que o globo significa?

— A verdade — Maggie sugeriu prontamente. — Poder, bele­za, justiça...

— Ou amor — ele acrescentou, sorrindo para si mesmo. — O mais ilusório de todos os prêmios.

O momento criado entre eles era suave como uma pintura a aquarela. A luz do abajur quebrava a tristeza sugerida pelo ne­voeiro que se grudava nas vidraças e a qualidade mundana da vida esvaiu-se, deixando a serena confiança de que a existência interior de cada um jamais perdia a riqueza. Momentos singelos, prazeres simples. Por que não podia ser sempre assim?

— Você respira — ela disse baixinho, observando o movimento sutil do peito másculo. — Como pode ser?

— Acho que é o que você espera ver e por isso acontece — Christopher explicou, abrindo a vitrine. Escolheu um lugar para a nova miniatura, colocando-a entre um bruxo de vestes flutuan­tes e um castelo cercado por um fosso. — A mente é um instru­mento notável, capaz de criar padrões conhecidos a partir de milhares de informações fragmentadas que recebe no dia-a-dia.

Maggie sabia disso, mas o modo displicente com que ele enca­rava o próprio estado era bastante perturbador, aumentando a aura mágica que a rodeava sempre que se encontrava na presen­ça dele. Contudo, sentia-se um pouco deprimida, detestando-se por isso. Não gostava de pensar em Christopher como alguém que não existia para o mundo real.

Foi para a cozinha e abriu a geladeira. Não estava com fome, mas Christopher insistia em que ela fizesse pelo menos uma boa refeição por dia. E era mais fácil cozinhar que suportar suas admoestações.

— Espero que não vá usar o microondas novamente — ele ad­vertiu da sala. — Não estou convencido de que o alimento con­serve suas propriedades num cozimento tão estranho.

— Conserva mais, se quer saber. Acho que você implica com o forno porque a comida não exala tanto cheiro.

A princípio ele se mostrara fascinado com o microondas, mas logo perdera o interesse ao notar que a comida não produzia o mesmo aroma de quando era preparada pelo método conven­cional.

— É isso mesmo — ele concordou. — Qualquer epicurista lhe dirá que metade do paladar de um prato depende, como o vinho, do aroma. Todos os sentidos devem ficar envolvidos numa expe­riência agradável, não apenas um.

Maggie escolheu uma batata grande, própria para ser assada, e encostou-se na pia.

— Se eu comesse esta batata crua, ingeriria os mesmos nutrientes, talvez mais — ela arrasou.

— Uma atitude nada civilizada. A habilidade de apreciar os prazeres da carne é o que distingue o homem do animal.

— Muitos sábios diriam que é nossa capacidade de pensar — ela retrucou, escovando a batata sob água corrente.

— O intelecto é excessivamente valorizado. Escute o que lhe diz uma pessoa que passou mais de um século pensando.

Ele acabara de lhe dar a abertura esperada. Maggie furou a batata com um garfo, prestando atenção no que fazia.

— Então é isso que acontece quando uma pessoa... morre? — perguntou, sem erguer os olhos. — Fica pensando?

Contudo, podia sentir que ele a observava e pensou que ele não ia responder. Quase desejou que não o fizesse. Mas a curiosida­de de Christopher era tão grande quanto a sua e ele naturalmen­te entenderia os motivos da pergunta e a responderia, reconhecendo que gostaria que ela fizesse o mesmo, se estivesse em seu lugar.

— Só posso responder por mim mesmo, lógico — ele avisou depois de alguns instantes. — É muito monótono — prosseguiu, pensativo, como se viajasse de volta no tempo, buscando recordações. — Desbotado. É como ficar preso no fundo de um rio sujo. A gente pode ver, mas não consegue tocar. Quer, mas não tem. Imagina, mas não realiza. Nada resta e então o remédio é refugiar-se nos pensamentos.

Um arrepio percorreu a espinha de Maggie. Olhou para Chris­topher e sua expressão era tranqüila, mas desejou não ter per­guntado nada. Entendeu então, mais que nunca, o prazer ilimitado que ele mostrava por todos os fatos rotineiros. Ninguém, encar­nado ou desencarnado, poderia gostar de uma vida igual a que ele descrevera.

Colocou a batata no forno e ajustou o tempo. Virou-se então para Christopher.

— Foi por isso que. voltou. Porque estava entediado.

Ele sorriu.

— Você acha que eu parti para algum lugar e depois voltei, mas não foi isso o que aconteceu. Tem razão, porém, eu fiquei entediado. O tédio foi uma praga que me perseguiu na minha exis­tência anterior, também. O tédio e... — Um lampejo de perplexidade passou pelos olhos escuros, como se ele acabasse de fazer uma descoberta — a espera.

— O que esperava?

— Não sei. Esperava por você, talvez.

— Isso não tem lógica.

— Nem tudo na vida tem.

Maggie ainda não estava pronta para aceitar o conceito. Tudo no mundo tinha uma resposta, um sentido. E, embora receasse o que poderia descobrir, tinha de procurar uma explicação.

— Você ouviu minha conversa com Elena?

— Ouvi. Nunca cheguei a pensar que carregar este segredo so­zinha poderia ser terrível para você. Não quis lhe causar aborre­cimento, desculpe.

Maggie comoveu-se. Era em momentos como aquele, quando ele punha de lado a natural propensão para a brincadeira, dei­xando transparecer emoção, que ela achava impossível vê-lo co­mo alguém que não era real. Tornava-se então um ser humano, vivo e perfeitamente normal, com suas fraquezas, aspirações e necessidades. Era em momentos como aquele que ela desejava desesperadamente que ele não fosse uma imagem.

Entretanto, não podia esquecer que era apenas isso: uma ima­gem bela e perfeita em todos os detalhes, mas intocável e que po­deria desaparecer, um dia, para sempre.

Pigarreou, querendo evitar que a voz traísse suas emoções.

— Sabe que seu lugar não é aqui, não sabe? E que deve existir uma razão para estar ainda na Terra.

Ele espalmou as mãos, num gesto elegante de descaso.

— Não sei de nada. Estou aqui porque quero estar. Não há complicação nenhuma nisso.

— Não acredito que seja só sua vontade que o prenda aqui. Deve haver mais alguma coisa. Algo que deixou incompleto, al­gum mal que praticou e...

Ele riu e o divertimento que Maggie viu em seus olhos a fez perceber como a teoria de Elena fora simplista.

— Tive uma vida feliz e plena de realizações — ele afirmou. — Viajei pelo mundo, convivi com os homens mais esclarecidos do meu tempo, os mais cultos. Desenhei e construí monumentos. Conheci o gosto do melhor vinho e o contato da seda na pe­le. Adorava as mulheres bonitas e companhia feminina nunca me faltou. O que um homem poderia pedir mais da vida? Se devo guardar algum remorso, é o de não ter apreciado mais o que tive.

A resposta, embora Maggie não duvidasse de que representava a mais pura verdade para ele, deixou-a frustrada.

— Deve haver mais alguma coisa. — Fez uma pausa e pergun­tou abruptamente: — Como foi que você morreu?

— Ah, foi trágico — ele suspirou, pensativo. — Eu estava no Egito, na escavação da tumba de um faraó. Depois de três sema­nas de trabalho chegamos à câmara interna e descobrimos uma placa que ameaçava com morte por garras e dentes, a quem vio­lasse o local sagrado de descanso. Bem, naturalmente, não de­mos importância, mas os trabalhadores nativos começaram a espalhar o pânico.

Ele interrompeu a narrativa por alguns instantes, como se coor­denasse as lembranças.

— A partir daí, uma série de acidentes nos perseguiu — conti­nuou. — Os nativos aos poucos nos abandonaram e fomos obri­gados a retornar ao Cairo, em busca de mais operários. Na segunda noite de acampamento, fomos atacados subitamente por um tigre enorme, que reconheci como sendo bengalês. Uma fera mandada pelo próprio demônio, de tão feroz. Um por um, meus companheiros tombaram. Lutei com a fera o máximo que pude, mas quando minha munição acabou, também caí, vítima da mal­dição. Por garras e dentes...

Arrebatada pela narração de um excelente contador de histó­rias, Maggie a princípio quase acreditou. Olhou-o, então, acusadoramente.

— Não há tigres no Egito.

— Não? — Ele fingiu surpresa, mas os olhos cintilavam cheios de vivacidade. — Devo ter confundido os fatos.

O apito do forno soou e Maggie abriu a porta.

— Brincadeiras não vão resolver coisa alguma — reclamou.

— Vai queimar os...

Irritada com ele, Maggie pegou a batata quente com a mão nua.

— ...dedos — Christopher finalizou a advertência inútil, en­quanto ela jogava a batata no balcão e soprava os dedos, ainda mais exasperada.

— Você podia tentar, ao menos! — choramingou.

— Minha querida, realmente não sei o que você quer que eu diga. Ponha a mão na água fria, ou vai ficar com bolhas nos dedos.

Maggie agitou-se ao ouvi-lo chamá-la de "minha querida", pa­lavras carinhosas que certamente dissera inconscientemente e enfureceu-se consigo mesma por reagir com tanta emoção. Por que o fato a fazia sentir-se tão carente, tão solitária? Com os olhos cheios de lágrimas, foi até a pia e abriu a torneira com força des­necessária, colocando a mão sob o jato de água fria.

— Eu não quero nada — murmurou. — É você que quer algo de mim, mas o quê? Esta é a questão.

A voz foi se elevando e no fim da última frase saiu meio esganiçada. Mortificada, percebeu que uma lágrima rolava-lhe pela face.

— O que eu quero? — Christopher perguntou, postando-se ao lado dela, falando em tom de raiva e demonstrando uma emo­ção mais profunda, que ela não entendia. — Devo dizer-lhe o que quero, Maggie Castle, das intermináveis equações e soluções per­feitas?

Maggie assustou-se com a inesperada exibição de zanga e fitou-o por entre lágrimas. Os olhos dele faiscavam e o rosto bonito ir­radiava tensão.

— Eu quero.... — ele começou, colocando a mão sob a água da torneira, que continuou a fluir imperturbável, não encontrando nenhum obstáculo, fazendo Maggie encolher-se — sentir a água. Sei que é fresca e suave, mas para mim parece ar. — Fechou a torneira com violência. — Quero pegar os objetos e sentir-lhes a solidez.

— Deus...

— Você não compreende? — ele quase gritou e as vibrações de sua emoção quase descontrolada agitaram-se ao redor dela co­mo uma descarga elétrica. — Os cheiros para mim não passam de lembranças, os sons são ecos e as visões compõem-se na ver­dade de imagens que eu crio como desejo. Seu mundo é tão ir­real para mim quanto o meu é para você e eu quero senti-lo! Até você aparecer eu não queria nada e agora quero tudo. E nada do que você tente fazer, ou eu, modificará isso.

— Oh, Christopher — ela disse num murmúrio, chocada e in­feliz, sabendo que precisava confortá-lo com um abraço, um to­que, e tendo consciência de que nada podia fazer. — Desculpe.

Por todas as perguntas, todas as teorias. É que estou hábil nada a lidar com assuntos muito mais concretos, a solucionar proble­mas que só dependem do raciocínio. Eu...

Parou de falar e olhou para ele, desamparada, vendo a pró­pria perturbação refletida nos olhos escuros.

— Às vezes eu também desejo que você fosse real — confes­sou num cochicho.

O rosto compenetrado de Christopher expressou ternura e com­preensão. O sorriso era doce, mas triste, e tocou-a como uma carícia.

— Eu sei — afirmou simplesmente.

E outro momento de silencioso entendimento e profunda emo­ção os aproximou. Estavam envolvidos um no outro e separados do mundo por sua secreta comunicação. Havia conforto no sim­ples olhar que trocavam, sabendo que nenhum dos dois estava sozinho. Mas daquela vez o momento mágico foi intenso demais, pleno demais de desejos incertos e necessidades vagas, para ser mantido por muito tempo. Maggie desviou os olhos e respirou longamente.

— Acho que... — percorreu a cozinha com o olhar e tentou sorrir — a excessiva facilidade dos tempos modernos é um entra­ve, às vezes. Tudo é fácil demais e eu esperava que o que aconte­ce com você e comigo não fosse difícil de solucionar.

— O dilema em que nos debatemos não é nada fácil. — Ele sorriu com melancolia. — Mas talvez não seja tão complicado quanto parece. Você mesma já achou a resposta.

Maggie fitou-a sem entender.

— A era moderna —- ele explicou. — Sempre achei que nasci na época errada e me lembro de como esperava o século XX com ansiedade. Não vivi para saudá-lo, para conhecê-lo, e talvez seja esse desejo frustrado que me prenda aqui. Eu queria saber como seria o avanço da tecnologia, a inevitável mudança de valores.

— Sim — Maggie respondeu esperançosa. — Pode ser isso mesmo.

— Uma explicação muito boa, na falta de outra — ele comen­tou, já sorrindo com naturalidade.

— Ótima. Pelo menos, tem lógica.

Ela teve vontade de rir, de puro alívio. Talvez aquela não fosse a resposta completa, mas podia ser parte dela. De qualquer modo, era uma palha a que agarrar-se, na torrente caudalosa de idéias confusas. E uma voz íntima, intuição, talvez, dizia-lhe que havia uma resposta irrefutável, à espera de ser encontrada, mas Maggie não ia mais tentar descobri-la. Certos mistérios eram pa­ra permanecer ocultos.

E quando ela percebeu que, contrariando sua natureza curiosa de cientista, estava disposta a não perseguir uma explicação que desvendaria um dos grandes segredos do universo, riu alto.

Christopher olhou-a com carinho.

— Já que está feliz, está tudo bem. Gosto de ouvi-la rir, Maggie.

— Elena disse que eu preciso me soltar. Talvez precise, real­mente. E ela não ficaria estarrecida, se soubesse que você me faz rir de alegria?

— Eu faço? — Ele sorriu satisfeito. — Só essa já seria uma razão válida para alguém voltar do túmulo. O que vai fazer com essa batata?

Ela tornou a rir, espantada em ver como tudo era fácil com Christopher. Passavam da mais intensa emoção às bobagens de cada dia, do desespero ao riso, em minutos, e sem nenhum es­forço. Jamais alguém a fizera sentir-se tão natural e desinibida, tão franca e viva. E como uma pessoa nas condições dele podia ser tão maravilhosa, irritante, envolvente, terna, engraçada e tão real?

— Vou comê-la com brócolos e queijo derretido — respondeu, tirando um pacote de brócolos do freezer. — Um prato muito simples para um homem com seu paladar apurado, mas é nu­tritivo.

— Nutritivo — ele repetiu com ar implicante. — Sua geração tem mania de nutrição.

— Entre outras manias. — Ela começou a abrir o pacote e de repente parou, olhando para ele. — Christopher, sobre o que você disse há pouco... Não pode mesmo sentir nada? Cheiro, gosto? Porque, pelo modo como você fala de cores, perfumes e música, eu pensei que...

Uma sombra passou pelo rosto dele.

— Gosto de ficar perto de tudo isso, mas não os experimento, como você. A música não entra pelas minhas veias, esquentando-me o sangue e as cores, não obstante vividas e lindas, são inúteis, porque não posso tocá-las. Depois de tantos anos longe de tudo, causa-me prazer observar tudo, mesmo que seja como se fosse através de uma vidraça. Mas acho que faz parte da natureza hu­mana desejar mais o que não se pode ter.

Maggie deixou o pacote de lado. Nem mesmo sabia o que ia dizer, até que começou a falar, com um entusiasmo desconhe­cido.

— O que aconteceria, se eu o tocasse?

O olhar dele encheu-se de surpresa e curiosidade.

— Ora, eu não sei!

Ela deu um passo à frente e ele ergueu uma das mãos, com a palma para cima, lentamente. O coração de Maggie disparou. Me­do e excitação a invadiram e ela não podia acreditar no que es­tava fazendo, que desejava tocá-lo, com todas as forças de sua alma.

Os olhos de Christopher espelhavam ternura e expectativa, en­quanto ele mantinha a mão fina e longa erguida num convite. A pele parecia morna e macia, mas como seria tocá-la? E se esti­vesse fria e rígida? Maggie seria capaz de esconder o horror se sua mão passasse pela dele, com um pássaro cortando uma nu­vem? Se Christopher se dissolvesse no ar, ela voltaria a acredi­tar na existência dele? Mas tinha de experimentar. Precisava saber.

Com a respiração ofegante e sentindo o sangue martelar nos ouvidos, ela ergueu a mão, que tremia. Vagarosamente, aproxi­mou-a da de Christopher e as palmas se tocaram.

Houve uma explosão de luz branca-azulada, sensação de ca­lor, vertigem. Ela esqueceu de respirar e já não sentia o coração bater. Não tinha consciência do corpo, exceto pela pulsação ge­rada por sensações magnéticas que a prendiam num caleidoscó­pio de cores, sons e perfumes. Christopher a permeava, escorrendo por ela como luz e calor líquido. Elétrons carregados e prótons magnetizadores, átomos em movimento no lugar de carne e san­gue, até que ela não apenas o tocava, mas era parte dele. Encontrava-se nos pensamentos dele e ele nos dela. E Maggie co­nheceu, experimentou, soube, tudo o que ele já conhecera, fize­ra e fora. Júbilo indizível, tristeza dilacerante, solidão, desejos, dúvidas, exaltação explosiva e tranqüilidade abençoada, tudo era dela e dele. Não havia fronteiras demarcantes. Eram rio e cor­rente, fluindo unidos.

Então, de repente, tudo acabou.

Christopher recuou, olhando para a própria mão. Maggie estava paralisada e todos os nervos de seu corpo fremiam. As pernas amolecidas pareciam de borracha e os braços pendiam ao longo do corpo como apêndices sem utilidade. Aos poucos percebeu que o som sibilado que ouvia era o de sua respiração e que a cabeça estava zonza. Apesar de desorientada, sentia-se maravilhada e inundada por prazer intenso, que parecia irradiar de seu corpo e espraiar-se por todo o ambiente em ondas quen­tes.

Christopher examinava a mão que ela tocara, virando a palma para; baixo e novamente para cima, assombrado.

— Meu Deus! — murmurou, olhando para Maggie espanta­do, como se procurasse palavras para descrever um milagre.

Mas nenhuma explicação era necessária. Maggie compartilha­ra a experiência chocante e maravilhosa e nunca mais a esquece­ria. A vida nunca mais seria a mesma. Nada seria igual, depois daquela noite.

Christopher, porém, começou a falar, indeciso a princípio, em tom suave, depois num jato de palavras que se atropelavam.

— Por um instante... senti calor. Senti o sangue correndo por minhas veias, o ar entrou em meus pulmões, meus músculos se moveram. E... senti você, Maggie.

— Fui transportada para um outro plano — ela murmurou. — Mais lindo, mais rico, mais profundo. Estava aqui, mas não estava. Senti você fazendo parte de mim, Christopher. Entrei em seus pensamentos e...

— Maggie... — ele disse com simplicidade, mas o timbre da voz traduzia a emoção sem limites. Os olhos brilhavam, o corpo estava radiante e ele a fitava com adoração. —A dádiva que vo­cê me ofereceu...

— E você a mim, Christopher...

Não puderam dizer mais nada. Olhavam-se extasiados, toma­dos de alegria, dominados por sensações que não tinham pala­vras para descrever. Então, lentamente, a expressão do rosto dele mudou e pelos olhos profundos passou uma sombra de conster­nação. Vacilante, ele deu um passo para trás.

— Preciso ir embora — anunciou.

— Christopher...

Sua imagem tornou-se rarefeita, dissolvendo-se como nuvem no sopro do vento. E ele desapareceu, diante dos olhos dela.

 

Christopher ficou desaparecido por três dias. e durante esse tem­po, Maggie tentou lembrar-se de todas as boas razões que tinha para querê-lo fora de sua vida. Também procurou dedicar-se às tarefas rotineiras de uma existência normal, chegando à conclu­são que era inútil. A sala de aulas parecia vazia sem Christopher a observá-la com aqueles olhos argutos, sem suas sugestões e seu sorriso provocador. E o apartamento já não representava o acon­chego esperado, no fim do dia. Perdeu os óculos duas vezes e Christopher não estava lá para encontrá-los. Fez pipocas para o jantar duas noites seguidas e Christopher não se encontrava pre­sente para recriminá-la.

Ela não podia esquecer que entrara na alma dele. Não era pos­sível fingir que uma experiência tão fabulosa não acontecera. Co­mo seria capaz de passar por aquilo e continuar a viver de acordo com os padrões habituais? Por um breve momento fora parte dele e ele dela, vivendo em suas células, nos seus sentidos, girando no labirinto de sua mente, como sopro vaporoso, gentil e mara­vilhoso. Ela não era mais a Maggie Castle de sempre, a mulher simples que se guiava pela lógica e achava a rotina segura e con­fortável. Fizera parte de outro ser humano e nada mais seria sim­ples e lógico novamente. Tinha saudade de Christopher e desejava que ele voltasse.

Às vezes tinha a impressão de que ele se encontrava por perto, mas não era nada muito definido, apenas um arrepio na nuca, uma leve mudança na atmosfera. E de cada vez ela parava, olha­va em volta e murmurava o nome dele. Mas não havia resposta.

As horas estendiam-se longas e vazias e ela não sabia o que fa­zer para preenchê-las. Passara o fim de uma tarde e várias horas da noite trabalhando na tese e, de acordo com um critério pura­mente acadêmico, fizera progressos. Mas, relendo o que escreve­ra, peguntou-se qual a razão de tudo aquilo. Quando alcançasse o título de "doutora", o que teria ganho? Desejava mesmo pas­sar o resto de sua vida enclausurada entre fatos e números, num mundo árido e monótono de intelectuais e cientistas? Depois do que descobrira com Christopher, tornaria a ficar satisfeita com sua vida de pesquisas e raciocínio constante? Sempre centraliza­ra seus interesses no trabalho e o sucesso no campo que escolhe­ra fora sua única meta. Pela primeira vez se questionava, imaginando se seus objetivos eram tão importantes quanto julgara.

Essa nova visão de si mesma abalou Maggie profundamente e ela nem podia discutir o assunto com outra pessoa. Christo­pher a compreenderia, mas não estava mais lá. Ela não entendia por que sumira daquela forma, sem razão, sem aviso prévio. En­trara em sua vida como um furacão, virará tudo de cabeça para baixo, abalara suas crenças, ameaçara sua sanidade mental e de­pois desaparecia. Não, não era justo.

Mas a vida continuava. Tinha de preparar lições, dar aulas, acompanhar os estudos de alunos particulares, mas dedicava-se ao trabalho com pouca atenção e sem a metade do carinho de antes. Christopher não lhe saía do pensamento.

Larry telefonou, convidando-a para jantar no sábado e ela não foi capaz de inventar uma desculpa plausível, sendo obrigada a aceitar. No sábado à tarde estava farta de letargia em que caíra, cansada de sentir pena de si mesma. Decidiu então tomar medi­das drásticas contra o marasmo. Pegaria a fita métrica, a tabela de cores de tinta e amostras de papel de parede e iria à casa que comprara, onde ficaria a tarde toda planejando a decoração. Ten­tou convencer-se de que faria isso para que a atividade diferente a ajudasse a tirar Christopher da mente, mas no fundo sabia que desejava ir lá porque a casa fora dele e seria uma forma de aproximação.

Embora a casa ainda não fosse oficialmente dela, Maggie es­tava com as chaves e, com os proprietários morando em outra cidade, não havia nada que a impedisse de ir lá quantas vezes qui­sesse. Desde que conhecera Christopher, porém, não tivera tem­po nem vontade de sair à rua, a não ser para o estritamente necessário e ela pouco pensara na casa, onde se iniciara o episó­dio mais fantástico de toda sua vida. Portanto, já era tempo de dedicar-se a algo concreto e útil.

O outono dava lugar rapidamente ao inverno naquela região de Chesapeake e as noites eram geladas e úmidas, os dias cinzen­tos e cheios de vento. Maggie deixou o carro na rua e correu pela alameda de entrada, aspirando profundamente o ar permeado de maresia. O vento que lhe açoitava o rosto e entrava pela gola do casaco era úmido e salgado. Folhas mortas revoluteavam no ca­minho e ela enterrou a boina na cabeça, tremendo de frio. Con­tudo, a casa surgia a sua frente, acolhedora e quente. Ela visualizava o fogo na lareira, lambendo as achas, lançando refle­xos dourados nas paredes apaineladas. Imaginava o cheiro de ca­nela e cravo vindo da cozinha, onde a chaleira chiava. A casa era seu lar.

Abriu a porta e entrou depressa. Não havia fogo na lareira e as sombras eram profundas no vestíbulo. Maggie, porém, não sentiu falta de luz e calor. A casa guardava recordações e pro­messas e isso lhe bastava. Contudo, lamentou não ter pedido a Larry que mandasse ligar a força elétrica e o gás. Não sabia se as lareiras funcionavam e, mesmo que estivessem em ordem, on­de encontraria lenha? Pensaria no conforto depois. O importan­te era estar ali.

Deixou a sacola de lona no vestíbulo e mais uma vez percorreu os aposentos vazios. De certa maneira esperava que o encanto tivesse desaparecido, que ela começasse a ver os defeitos, pois ha­via a hipótese de que o impulso de comprá-la fosse gerado por algum tipo de feitiço mágico lançado por Christopher Durand. Mas não foi assim. Vagueando pela casa naquela tarde gelada de outubro, tornou a apaixonar-se por sua sólida simplicidade.

Sozinha, teve oportunidade de notar uma infinidade de deta­lhes não percebidos durante a primeira visita. A disposição artís­tica das janelas, por exemplo. Não eram do mesmo tamanho ou estilo, mas desenhadas para deixar entrar o máximo de luz, apre­sentando exótica harmonia. Também a impressionou o modo co­mo um aposento ligava-se ao outro, dando a impressão de amplidão usando um mínimo de espaço. Pequenas alcovas abriam-se nas paredes, aqui e ali, algumas tão habilidosamente escondidas que ela exclamava deleitada ao encontrá-las. Christopher fizera uso farto e inteligente da ilusão de ótica em toda parte e mesmo a mente de Maggie, treinada para a matemática, teve dificuldade em reconhecer o recurso. Cantos arredondados suavemente evitavam ângulos rígidos e algumas das paredes real­mente curvavam-se, mas de maneira tão sutil que os olhos mal percebiam e que contudo produziam o efeito de alargamento e aconchego.

O que o subconsciente percebera na primeira visita, aparecia detalhadamente encantando-lhe os olhos. A casa era realmente especial, fora projetada com amor para criar uma aura de tran­qüilidade convidativa. Não era de admirar que a tivesse amado desde o primeiro instante. Se tivesse contratado um arquiteto para construir a casa de seus sonhos, o resultado não seria tão satisfa­tório e encantador.

Depois da inspeção, voltou para a sala de visitas e olhou pela janela arredondada, que se projetava para fora, sorrindo à me­dida que os planos de decoração tomavam forma em sua mente. Mandaria restaurar o banheiro enorme, devolvendo-lhe a apa­rência original, usando uma banheira de patas de leão, talvez ver­melha, e até mesmo um vaso sanitário de madeira com caixa de descarga antiga, acionada por uma cordinha. A pia seria de pe­destal e até sobraria espaço para uma área de vestir, com pentea­deira de cortinas embabadadas e um grande armário para guardar toalhas e lençóis. Na verdade nunca fora muito amante de anti­güidades, mas depois de comprar a casa passara a planejar via­gens ao campo, em busca de objetos raros. E quando chegasse a primavera...

— Era perto dessa janela que eu sempre erguia a árvore de Na­tal — uma voz masculina, profunda e doce, disse atrás dela.

O coração de Maggie vacilou. Ela girou e viu Christopher. Sentiu-se ofegante, tanto pela alegria de vê-lo, como de choque ao notar sua aparência. Estava vestido à maneira de seu século: terno escuro, colarinho branco engomado e gravata larga, luvas brancas e cartola. Recostava-se no umbral da porta da bibliote­ca, com expressão nostálgica.

— Eu adorava o Natal — ele continuou. — Meu criado e eu saíamos pelo bosque em busca de folhagens e decorávamos a ca­sa toda com guirlandas de azevinho, arcos de galhos de pinheiro e visco, naturalmente. A grande árvore ficava bem onde você es­tá e as criadas e decoravam com biscoitos de gengibre, de forma­tos engraçados, cordões de papel brilhante e pequenos pássaros de tecido engomado.

Parou de falar e olhou para o centro do jardim, onde um tipo de pinheiro erguia-se para o céu.

— Está vendo aquele abeto? — perguntou, apontando para a árvore. — Era ali que eu prendia bolas de alpiste e cordões de pipoca, no inverno, para os passarinhos. E que festa faziam! Às vezes eu passava horas admirando sua algazarra. Dava jantares no fim do ano e esta casa explodia em música e risos.

Saiu de onde estava e caminhou para o centro da sala, mos­trando as portas.

— Notou como as portas deslizam e um aposento une-se ao outro? O espaço conseguido era suficiente para um baile e mui­tas vezes recebi mais de cem pessoas aqui. A orquestra ficava na alcova que projetei para servir de palco, na entrada da sala de jantar e o som se espalhava límpido, por toda a casa. Ainda ou­ço os ecos das valsas de Strauss, guardados nestas paredes.

Ele parou na frente dela, sorrindo e tirando a cartola antes de curvar-se numa mesura profunda.

— Madame, quer me conceder esta valsa?

O rosto de Maggie brilhava de felicidade e ela não desviava os olhos da imagem magnífica.

— Senhor, eu adoraria — murmurou sem fôlego.

Deu um passo na direção dele, mas suas mãos não se tocaram. Christopher deu de ombros, sorrindo de leve.

— Que bobagem a minha. Não podemos dançar sem música. Atirou a cartola para um canto escuro, mas Maggie não a ou­viu bater no chão. "Ilusão", disse a si mesma. "É tudo ilusão".

— Venha comigo, Maggie. Quero mostrar-lhe um segredo. Dirigiu-se para a porta e ela não teve outra alternativa a não ser ir atrás dele.

— Christopher, o que aconteceu? Onde você esteve?

— Pensei que quisesse que eu fosse embora — ele replicou, olhando por cima do ombro.

— N-Não. Eu... senti falta de você — ela gaguejou, tropeçan­do nos próprios pés.

Christopher virou-se para ela, fitando-a com carinho e com­preensão.

— Estou sempre com você — declarou gentilmente. — Mes­mo quando não me vê, estou ligado a você. Não sabe disso?

Um manto de paz caiu sobre Maggie, total e perfeita.

— Sim — disse baixinho. — Eu sei.

Os olhos dele iluminaram-se de ternura e ele continuou a an­dar para o vestíbulo, parando ao pé da escadaria espiralada c fe­chada por colunas de madeira ricamente entalhadas.

— Agora, veja — ele anunciou com ar cúmplice, quando ela o alcançou.

Ergueu uma das mãos e apertou um canto do painel que fe­chava o vão sob a escada. Maggie bateu palmas, excitada, quan­do o painel deslizou para dentro da parede, com um ruído áspero, revelando um quarto escondido.

— Eu devia saber que você inventaria algo parecido! Sempre cheio de truques! — ela exclamou deliciada. — Espere, trouxe uma lanterna.

— Não há necessidade. Venha ver.

Ela atravessou a soleira e algumas teias de aranha grudaram-se em seu cabelo. Afastou-as impaciente, entrando cautelosamente no quarto secreto.

— Não acredito! — murmurou, olhando em volta.

O lugar era apenas um pouco menor que seu quarto, no apar­tamento, completamente circular, com o teto inclinado, que ob­viamente acompanhava a subida da escada, não chegando a ter mais de dois metros e meio em ponto algum. O que mais a es­pantou foi ver que o aposento era completamente banhado por suave luz natural que caía de cima, passando através de partícu­las de pó e teias de aranha. Inclinou a cabeça para trás, procu­rando a fonte de luz, sem nada conseguir.

— De onde vem a claridade? — perguntou intrigada.

— Usei a técnica de reflexão do telescópio, aproveitando a luz que entra pela clarabóia, no andar de cima.

— Muito inteligente!

— Não é? — ele concordou, sem nenhuma modéstia. — Aliás, não há um único cômodo nesta casa que não tenha alguma for­ma de iluminação natural. Claro, é muito mais evidente num dia ensolarado. E mais bonito.

— Ah, não sei. Já acho tudo tão lindo! A claridade aqui é sua­ve... misteriosa. E como este lugar é quentinho!

— Vedação dupla.

— Não fica muito quente, no verão?

Ele foi até a parede da esquerda e indicou uma pequena roldana de madeira.

— Isto aqui ativa um conjunto extra de respiradouros que deixa entrar uma deliciosa brisa fresca. Claro, se houver muito vento lá fora, aqui fica ventilado demais.

— Meu Deus! — Maggie espantou-se. — Você era um mágico.

— Não. Apenas sabia o que estava fazendo.

— Olhe para a mobília, que graça!

Apontou para um conjunto de sofás, forrados de brocado vi­nho, uma enorme poltrona de leitura, abrangendo o coxim para o descanso dos pés e a escrivaninha de tampo de enrolar. Duas mesinhas exibiam abajures de vidro fosco e o piso era coberto por espesso tapete de desenho intricado. Tudo se achava coberto por uma fina camada de poeira.

— Ninguém entrou aqui, desde que... parti. Tentei adivinhar quem seria a primeira pessoa a descobrir o quarto secreto, mas ninguém descobriu.

Uma revista jazia aberta no coxim, como se o leitor, interrom­pido no meio de um artigo, a deixasse ali, esperando voltar a qual­quer momento. Maggie atravessou o aposento e pegou-a. As páginas mostravam-se amareladas e retorcidas nas pontas e a ca­pa a identificava como sendo a edição de dezembro de 1899 da The Saturday Evening Post. De pé, no recanto secreto, tendo nas mãos algo que Christopher manuseara mais de noventa anos atrás, Maggie sentiu a garganta contrair-se de violenta emoção. Uma vez, um homem ainda jovem folheara aquelas páginas, sorrira das sátiras, olhara os anúncios de tônicos fortificantes e carrua­gens, botinas de cano alto, abotoadas do lado, e remédios para ó fígado, enquanto os sinos dos trenós tocavam na estrada lá fo­ra. Ele pusera a revista no coxim e saíra. Para quê? Para ir a um jantar? Para atender alguém à porta? Era evidente que pretende­ra retomar a leitura, mas nunca mais o fizera. Um estremecimento percorreu o corpo de Maggie, enquanto seu coração transborda­va de dor. Estaria segurando o último objeto que Christopher to­cara em vida?

— Você ficou triste — ele interrompeu seus pensamentos. — Não era minha intenção perturbá-la, quando a trouxe aqui. Pensei que ficaria contente.

Maggie fitou-o longamente. Seria difícil perguntar, mas ela pre­cisava saber.

— Christopher... como foi que você morreu? — indagou num sopro quase inaudível.

— Já não lhe contei? — Ele torceu os lábios num trejeito provocante. — Tenho certeza de que já.

— Não. Inventou uma história louca sobre tigres e pirâmides.

— Está bem. Fui buscar um amigo na estação ferroviária e vi uma menininha brincando nos trilhos. O trem estava chegando. Naturalmente, fui em socorro da garota e consegui jogá-la na pla­taforma, pondo-a a salvo. Mas não tive tanta sorte no momento de salvar a mim mesmo. Foi tudo muito rápido. A cidade me acla­mou como herói, o prefeito me concedeu a medalha póstuma de honra ao mérito e quase me erigiram um monumento. Tudo muito espetacular.

Maggie hesitou, tentando achar o ponto falso naquela histó­ria. Faltava algo. Então, lembrou-se.

— Não há estradas de ferro por aqui — observou.

— Detalhes — ele encerrou o assunto com expressão travessa.

Maggie debatia-se entre a tristeza e a irritação. Era impossível chorar por ele, prender-se à melancolia em sua presença. Era co­mo se ele jamais houvesse partido desta vida, como se nunca ti­vesse perdido os sonhos e planos da juventude, roubados pela morte. Estava vivo e brincalhão e Maggie não pôde continuar so­frendo. O corpo morrera, mas ele, Christopher Durand, perma­necera na essência da alma imortal. Sorriu e pousou a revista no coxim, aproximando-se da escrivaninha. Colocou as mãos no tampo.

— Posso abrir?

— Por favor, abra. É tudo seu, agora — ele respondeu com um sorriso convidativo.

Sentindo-se como uma heroína de livros infantis, prestes a abrir a arca do tesouro, Maggie empurrou o tampo para trás. Puxou a cadeira giratória e sentou-se para examinar o conteúdo do mó­vel. Encontrou uma caneta-tinteiro de marfim e um frasco de por­celana, onde a tinta de escrever secara. Uma pilha bem arrumada de recibos è letras bancárias. Lendo os papéis, descobriu que um par de botas de couro alemão custava oito dólares em 1899. Vá­rios convites para jantares, bailes e soirées durante os feriados de fim de ano, sendo alguns de Nova York. Imaginou se tais lem­branças trariam sofrimento a Christopher, mas um rápido olhar para o rosto atento a fez perceber que ele se mostrava tranqüilo e levemente curioso, observando suas descobertas.

Numa gaveta, encontrou um maço de papéis, diagramas e ano­tações diversas. Estudou-os atentamente.

— O que são?

Pousando uma das mãos na escrivaninha e outra no espaldar da cadeira que ela ocupava, Christopher inclinou-se para ver.

— Ah, um projeto fascinante. Começou com um estudo que desenvolvi a respeito dos morcegos e sua capacidade de orientar-se pela audição, mais que pela visão. Ocorreu-me que um navio perdido no nevoeiro poderia usar com mais precisão os apitos apropriados para neblina, se o som pudesse ser captado eletroni­camente. Estava trabalhando num projeto pelo qual as ondas so­noras poderiam ser direcionadas de modo a acionar uma bobina e literalmente tirar uma foto da linha costeira mais próxima. Se­ria um passo decisivo no progresso da navegação, tenho certeza.

Maggie olhou-o com espanto indizível.

— Radar. Você inventou o radar vinte anos antes de a huma­nidade conhecer o rádio.

— Inventei, é? — ele admirou-se.

— Isso mesmo — ela confirmou, voltando a estudar os dia­gramas. — Estamos usando radares desde a Segunda Guerra Mun­dial, em navios, aviões e até automóveis.

Ele refletiu por alguns instante e então deu de ombros.

— Está vendo? O mundo passou muito bem sem mim, o que vem a provar que ninguém é indispensável.

Ela riu surpreendida e afundou-se na cadeira, olhando-o com admiração.

— Você é um homem extraordinário.

Ocorreu-lhe que talvez sua genialidade indiscutível, sua inca­pacidade de aceitar limitações de qualquer tipo, pudessem ser al­guns dos motivos de sua presença no mundo dos vivos, quando já deveria ter se afastado para outros planos de existência. Ape­nas alguém com tanta clareza mental poderia atravessar as mu­danças geradas pela morte física e pelo passar de longas décadas, sem perder o poder de raciocinar. Afinal, isso explicaria um dos aspectos do espiritualismo com que Maggie sempre implicara tan­to: o fato de as mensagens do grande além virem através dos es­píritos de Beethoven, Einstein, Freud e outros do mesmo quilate.

— Christopher, se você nascesse no século XX, se estivesse realmente vivo, hoje, o que escolheria como profissão?

— Engenheiro — ele respondeu sem vacilar. — Trabalharia no programa espacial.

Ela envolveu-o com um olhar carinhoso e riu de puro prazer. Ele não mais se trajava como um cavalheiro antigo, mas envergava jeans apertado e camisão de seda preta, aberto no pescoço. O efeito era terrivelmente sexy e por um momento foi fácil imaginá-lo saindo de sua condição de habitante de outra dimen­são e assumindo o papel que lhe caberia na sociedade terrena.

— Perfeito — ela concordou. — Eu produziria o combustível para uma espaçonave revolucionária e você projetaria o motor.

— Formaríamos uma equipe e tanto — ele se entusiasmou. — Quem diria que eu ia encontrar o companheiro de trabalho ideal numa mulher! — O olhar sorridente tingiu-se de tristeza. — Um século atrasado, apenas.

A melancolia dele perpassou-a, apagando-lhe a alegria. Em­bora ela não ousasse dar um nome à ânsia que a dominava, à sensação de perda e à tristeza profunda, sabia que experimenta­va tudo isso de modo muito real e profundo. Olharam-se por lon­gos momentos e uma pergunta subiu aos lábios de Maggie.

— Christopher, o que aconteceu naquela noite, na minha co­zinha? Por que você foi embora?

Ele olhou rapidamente para a mão que colocara na escrivani­nha. Não forte e esguia, sombreada de pêlos escuros no pulso, tão real que ela quase podia sentir-lhe o calor, tão próxima que a tocaria, se movesse os próprios dedos apenas alguns míseros centímetros. Quando ia fazê-lo, Christopher endireitou-se rapi­damente, afastando-se.

— Maggie, meu amor — disse em tom de brincadeira —, há certos fatores imponderáveis que talvez seja melhor não analisar.

Ela ficou tensa, procurando os olhos dele com ansiedade.

— Diga-me, por favor.

Era possível ver que ele se debatia na dúvida, mas mentiras ou meias verdades já não tinham lugar entre eles.

— Não foi porque eu quis — Christopher explicou afinal. — Você deveria saber disso. Durante algum tempo eu não tinha ener­gia para me tornar visível.

— Por que eu o toquei? — ela indagou com o coração aos saltos. Os olhos castanhos estavam ternos e sóbrios.

— Porque o que experimentamos juntos foi intenso demais — ele corrigiu. — Não foi algo natural e sempre se paga caro por desobedecer às regras.

Maggie concordou com um aceno de cabeça. Compreendia, mesmo a contragosto. Christopher não era um ser físico, mas ela lhe dera um corpo ao tocá-lo, permitindo que ele experimentasse sensações físicas. E ela dissolvera-se nele, tendo uma visão mui­to rápida de sua condição espiritual. Ele não podia ser o que ela era e ela não podia ser como ele, por mais que desejasse.

Um desapontamento cruel apertou-lhe o coração. Era melhor nunca ter vivido aquele momento deslumbrante do que saber que nunca mais poderia acontecer. Mas, reunindo coragem, Maggie livrou-se da tristeza e ergueu o queixo, desafiadoramente. Chris­topher estava junto dela. Nada havia a lamentar.

—Bem, agora sabemos — comentou, olhando-o com firme­za. — Não tentarei mais tocá-lo. — Começou a puxar o tampo da escrivaninha para baixo. — Obrigada por ter me mostrado este quarto, Christopher. Vai ser meu recanto favorito.

— Era o meu. Quando planejei a casa, pensei que um homem às vezes precisa de um lugar para isolar-se, para fugir dos outros membros da família, não importa o quanto os ame. Pezinhos ir­requietos pela casa e gritos, ou brigas entre irmãos, podem irri­tar o mais paciente dos pais.

Maggie ergueu os olhos para ele, surpresa.

— Mas pensei que você não fosse casado.

— E não era, mas esperava me casar, um dia. Quando cons­truí a casa, era como se a estivesse erguendo para uma mulher muito especial, imaginando o que ela poderia gostar, planejando seu conforto, guiando-me pelo seu gosto. E, no entanto, ela nunca apareceu em minha vida. Uma tolice, não?

Ela o olhava confusa e Christopher sorriu.

— Agora é sua casa — prosseguiu. — E quando tiver uma fa­mília, sempre terá um refúgio para escapar de suas exigências.

Algo fez Maggie demorar-se na reflexão do que ele dissera, so­bre a família que nunca tivera, do amor que nunca encontrara. Um pouco de ternura e tristeza juntou-se ao alívio que ela sentia por Christopher ter realmente vivido sozinho naquela casa. Era dela e não seria agradável pensar que já tivera outra dona. O que era, no mínimo, um pensamento ridículo, pois muitas mulheres haviam morado lá. Sacudindo a cabeça com impaciência, empur­rou a cadeira para trás e levantou-se.

— Não pretendo me casar — afirmou. — Mas gostarei de me esconder aqui, de qualquer modo.

— Você já disse isso antes. Bobagens de mulher. É claro que vai se casar e ter um bando de filhos para encher esta casa. É a lei da natureza.

— Não da minha natureza. — Ela olhou em volta mais uma vez, antes de tirar as luvas do bolso do casaco e calçá-las. — Irá comigo até lá fora? Quero que me diga o que devo fazer com o jardim.

— Isso é porque você ainda não encontrou o homem certo. — Christopher seguiu-a para fora do quarto e apertou o painel, pondo em funcionamento o mecanismo que fechava a porta de correr. — Até posso entender que, na sua idade, deseje ser livre, mas é uma mulher saudável e atraente e...

Ela interrompeu-o com uma gargalhada.

— Muito obrigada, meu gentil senhor, mas permita-me dizer que suas idéias são muito antiquadas, o que não deixa de ser na­tural, sob as atuais circunstâncias. Mas entenda que hoje as mu­lheres não são obrigadas a casar. É uma questão de escolha e eu escolhi ficar solteira. Simples, não?

— Não acho. Explique melhor.

Ela atirou-lhe um olhar exasperado, enquanto destrancava a porta da frente.

— Gosto de viver sozinha, apenas isso.

— Ninguém gosta da solidão — ele contrariou. — Olhe, não vá esquecer isto — avisou, curvando-se para apanhar a sacola de lona do chão.

— Obrigada.

— E tranque a porta.

— Certo. — Ela começou a procurar na bolsa.

— Não estão no bolso do casaco?

Ela procurou nos bolsos e retirou as chaves antigas, batendo a porta e trancando-a.

— Bem a propósito: duas cabeças pensam melhor que uma — ele observou com um sorriso de superioridade.

— A minha me basta — ela retrucou imediatamente.

Do outro lado da rua, um homem saía de casa para pegar o jornal jogado no alpendre. Viu Maggie e ficou olhando para ela, que lhe acenou gentilmente, imaginando se a vira falando sozi­nha. Depois de alguns segundos desconfortáveis o homem retri­buiu o gesto e entrou.

Maggie ergueu a gola do casaco e começou a descer os degraus da varanda. O céu tinha a cor do chumbo e o vento sacudia as folhas que ainda se prendiam aos galhos, produzindo um ruído desagradável. Parecia que ia nevar. Christopher, usando a cami­sa de seda e o jeans, não dava mostras de sentir frio, o que era de esperar, mas Maggie sentiu-se ainda mais inquieta. Foi para o lado da casa, ver o resto do jardim e onde ninguém poderia vê-la. Ou ouvi-la.

— Não sei por que fica me aborrecendo com essa história de casamento — desabafou. — Você mesmo disse que não quer es­tranhos em sua casa.

— Não estou aborrecendo. Apenas fiz uma pergunta.

Maggie estremeceu de frio e contraiu a testa, pensativa.

— Você não entende. Tudo é diferente e as coisas ficaram mui­to complicadas.

— As coisas sempre foram complicadas entre um homem e Uma mulher — ele ponderou.

Chegaram ao quintal e ela parou, olhando o espaço cercado com interesse.

— Terei de mandar podar as roseiras — comentou, andando pelo caminho de lajes, desviando-se dos ramos espinhentos. — Contratarei um jardineiro, porque não entendo muito de plantas.

Apertou a echarpe ao redor do pescoço, recolocando as mãos nos bolsos, olhando para o jardim que o inverno próximo deixa­ra nu, mas sem realmente ver coisa alguma, perdida em pensa­mentos.

— Não sei se foi a separação de meus pais — continuou a fa­lar com Christopher — ou se é algo hereditário, mas nunca dese­jei um relacionamento permanente com um homem. Não saberia sacrificar algo de mim por outra pessoa e um compromisso tam­bém exige certa dose de sacrifício, não acha?

Christopher ergueu o braço, apontando para a esquerda.

— Ali havia uma cerejeira e alguns canteiros de flores: tulipas na primavera, se ainda me lembro, e florzinhas muito coloridas no verão.

— Gosto de estar no controle da minha vida — Maggie afir­mou convicta. — E extraio toda satisfação que preciso do meu trabalho. Aprendi há muito tempo que só posso contar com duas coisas: eu mesma e meu trabalho. É só isso que quero. Coisas confiáveis. Nada de sentimentos que desmoronam sob a menor pressão, ilusões que desaparecem quando examinadas de perto, relações que desapontam e ferem. Foi por isso que me voltei pa­ra a ciência.

— Para fugir do mundo real?

— Não seja ridículo. A ciência é real e sólida. Permanente. Tudo o mais é supérfluo e pura perturbação. E já sou perturba­da demais sem ter um homem na minha vida.

— Amor, riso, dor, desapontamento — Christopher recitou, compenetrado. — Tudo é perturbação e complicação, mas que lugar triste seria o mundo, se não houvesse nada disso.

Antes que Maggie pudesse replicar, ele apontou para a extre­midade do quintal, onde uma fileira de pinheiros marcava o li­mite do terreno.

— Lá atrás existia um salgueiro e, perto dele, um quiosque.

Maggie desejava retomar o fio da conversa, mas algo a fazia hesitar. Depois de alguns instantes, sorriu secamente.

— Um quiosque — repetiu com certa ironia. — Eu devia ter imaginado. Você é um romântico.

Ele fitou-a com um brilho diferente no olhar.

— Você também é, Maggie, embora não reconheça. Esconde-se atrás de livros e fórmulas, mas é o mistério do processo cientí­fico que a seduz. Sua melhor amiga adora pedras e suas aulas são pontilhadas de citações à Atlântida e outras civilizações per­didas. Você coleciona dragões, unicórnios e bruxos, conversa com um espírito e tem a audácia de me dizer que só dá valor ao que é prático, lógico e concreto?

Ela ficou carrancuda ao ouvir o sermão e dentro dela ergueu-se a suspeita de que ele atingira um ponto sensível.

— Só converso com você porque falou primeiro comigo — defendeu-se infantilmente, fazendo-o sorrir.

— Maggie, amor. Nunca negue aquela parte de sua alma que aprecia o fantástico e ânsia pelo inexplorado. Dragões e feiticeiros, castelos no ar e amores irrealizáveis são os ingredientes da magia. E acreditar em mágica é a única separação que existe en­tre os vivos e os mortos. Creia em mim. Eu sei do que estou falando.

Maggie encarou-o, incerta. Depois, começou a andar para a frente da casa, apressada. Mas as palavras de Christopher a se­guiam, provocando-a, obrigando-a a pensar. E ela não queria pensar em tudo o que ouvira. Não podia pensar.

 

— Tenho de parar numa loja para comprar meias — Maggie disse a Christopher, já no carro. Quase dissera "meia-calça", mas seria difícil de explicar a um homem do outro século. — Vou jan­tar fora, hoje.

— Espero que não seja com alguém que eu conheço. Ela olhou-o atravessado.

— Ele mesmo. Larry.

Christopher suspirou, com ar de mártir.

— Ah, suponho que até mesmo alguém como ele precise se alimentar.

— Você é incoerente, sabia? Primeiro me enche a paciência querendo que eu me case, depois critica os homens com quem saio.

— Homens, não. Homem. E só o critico porque, como se diz hoje em dia, ele não serve para você.

— Por que diz isso?

— Ele é tedioso. No lugar do coração, tem um pacote de es­crituras e hipotecas e sua alma é tão interessante quanto um con­trato de compra e venda. Um peixe tem mais imaginação que ele. Não possui um décimo de sua inteligência e no entanto quer protegê-la. Se o valor de uma mulher é avaliado pela companhia masculina que exibe, sinto muito, mas você se subestima e faço sérias objeções a isso.

Maggie abespinhou-se[3], mas não saberia dizer se reagia em de­fesa a si mesma ou de Larry.

— Essa foi a declaração mais mesquinha que já ouvi. Você nem mesmo o conhece. Larry tem ótimas qualidades e além disso os opostos se atraem, como sabe.

— Ele não possui personalidade o bastante para ser seu opos­to — Christopher retrucou. — E se ele é o melhor exemplar de homem do século XX, digo-lhe que está certa em não querer se casar. Para que propagar a espécie?

— Oh, pelo amor de Deus!

— E há mais — Christopher continuou, imperturbável. — Vo­cê não o ama. Esse relacionamento é pura perda de tempo.

Maggie desejou poder revidar com energia, mas a verdade era que já começava a se arrepender de ter aceitado o convite de Larry. Com Christopher de volta, adoraria passar a noite com ele. Se não estivesse tão irritada com as críticas, provavelmente telefo­naria a Larry desmarcando o encontro, mas o orgulho, e talvez um pouco de desejo de contrariar Christopher, a forçavam a ir em frente.

Ela entrou no estacionamento de um centro de compras no ca­minho para casa e o rápido interesse de Christopher pelas cenas ao redor acabou com sua irritação. Pouco depois, andando com ele pelas dependências luxuosas, abandonou-se a uma alegria in­fantil. Borrifou amostras de perfume no ar para agradá-lo, aba­fou o riso provocado por seus comentários engraçados a respeito das pessoas com quem cruzavam e sobretudo adorou vê-lo enlevar-se diante de aparelhos eletrônicos em uma das lojas. Não era à toa que Christopher considerava Larry tedioso. Qualquer homem seria, comparado a ele.

Quando Maggie já ia saindo de uma loja, depois de comprar a meia-calça, Christopher parou de repente e apontou para um manequim vestido com um traje violeta, de muito bom gosto. A saia era curta e lisa e o casaco, atingindo a altura dos quadris, tinha como detalhe um cinto largo.

— Aquela cor é o tom exato dos seus olhos — ele observou.

— É um conjunto bonito — ela concordou num murmúrio, para ser ouvida por ninguém mais.

Mas uma vendedora, que se aproximara sem que ela percebes­se, ouviu-a.

— É lindo, não é? — a moça confirmou com um sorriso bri­lhante. — Quer experimentá-lo?

— Acho que não — Maggie respondeu embaraçada.

— Experimente — Christopher pediu.

— Temos o seu número — a vendedora afirmou.

— Não, obrigada. Não é do meu estilo.

— O que é que você entende de estilos? — Christopher zom­bou. — É uma cientista.

A vendedora procurou no cabideiro e tirou um conjunto no tamanho certo para Maggie.

— Este vai servir, tenho certeza.

— Não uso uma saia tão curta desde os três anos de idade — Maggie comentou em dúvida.

— Isso é que eu não entendo — Christopher resmungou. — Você tem um belo corpo e lindas pernas — afirmou com uma piscada maliciosa. — Não discuta, pois eu sei do que estou fa­lando. Então, por que insiste em esconder-se embaixo de todas essas camadas de roupas sem nenhuma graça?

Maggie quase respondeu à provocação, mas conteve-se a tem­po e sorriu para a moça.

— Acho que não fará mal experimentar — cedeu.

— O provador é ali, por favor.

Christopher preparou-se para ir atrás, mas parou com um sor­riso humilde, quando Maggie olhou por cima do ombro com ex­pressão de advertência.

— Está bem, espero aqui fora — prometeu,

Maggie despiu-se rapidamente, sentindo-se uma imbecil por se ter deixado convencer. Não queria nenhum conjunto novo e nem podia imaginar-se usando algo tão vistoso. E curto. O preço mar­cado na etiqueta era um pouco mais que assustador e tudo aqui­lo era um desperdício de tempo. Por que se deixara envolver pelo entusiasmo de Christopher?

Mas, quando afivelou o cinto, puxou a saia para baixo e olhou-se no espelho de corpo inteiro, ficou quase sem poder respirar com o que viu.

— Puxa! — exclamou baixinho.

— Linda! — Christopher disse atrás dela.

A imagem dele não se refletia no espelho, mas quando se vi­rou, ela o viu sentado num banquinho, de pernas cruzadas e um brilho de admiração nos olhos.

— Você...

— Minha querida, está lindíssima!

Ela tornou a olhar-se no espelho, que refletia apenas o ban­quinho vazio. Depois de todo aquele tempo, achava que se habi­tuara a todas as situações criadas por Christopher, mas não pôde deixar de arrepiar-se. Decidiu, naquele exato momento, que não haveria espelhos em sua nova casa.

Tinha de concordar com ele a respeito do conjunto, porém.

Parecia uma outra pessoa, mais jovem, mais vibrante e feliz. Os olhos faiscavam e até o cabelo adquirira mais brilho, pois a cor da roupa acentuara as mechas quase douradas que se entremea­vam ao castanho. O cinto largo afinara-lhe a cintura e as pernas esguias pareciam mais longas sob a saia curta. E ela, que sempre tivera coisas mais importantes em que pensar do que roupas, que nunca se preocupara demais com a própria aparência, subitamente viu-se de uma forma totalmente nova.

— Elena aprovaria — decidiu com um sorriso.

— Gostou? — a vendedora perguntou, do lado de fora.

— Peça-lhe para trazer o amarelo — Christopher sugeriu.

— É perfeito — Maggie respondeu à moça. — Adorei.

— O amarelo — Christopher insistiu.

Maggie olhou-o desamparada. Não podia discutir com ele, pois a vendedora ouviria e com toda a razão a julgaria maluca. Pediu o conjunto amarelo.

Nos próximos trinta minutos Maggie experimentou diversos tra­jes, um mais bonito que o outro. A balconista, pressentindo que faria uma boa venda, levou uma infinidade de acessórios e sapa­tos para o provador, mostrando a Maggie como, a partir de al­gumas peças bem escolhidas teria um guarda-roupa completamente novo. Maggie sentia-se a própria Cinderela e re­conhecia que nunca se divertira tanto.

— Mas não posso comprar tudo isto — cochichou para Chris­topher quando a moça se afastou para ir buscar um broche. — Por uma razão muito simples: não tenho dinheiro.

— Use aquele pedaço de plástico que você chama de "cartão de crédito" — ele replicou despreocupado.

— Mesmo usando o "pedaço de plástico", terei de pagar, um dia.

Christopher ergueu uma blusa de seda azul-água, admirando o modo como a luz dos spots atravessava o fino material.

— Na minha escrivaninha, você encontrará uma caneca de estanho que serve de peso de papéis. Se a tivesse observado com atenção veria que se trata de uma legítima Paul Revere. Era mui­to valiosa, em 1890, e acho que aumentou de valor, no correr de um século. Venda-a e terá o suficiente para pagar tudo isto.

— Está brincando? Que outras surpresas me aguardam?

— Espero que ainda haja muitas — ele declarou com um sorriso enigmático.

Maggie dividia-se entre o prazer maravilhoso causado pela lã macia, sedas e linhos espalhados ao seu redor e a hesitação gera­da por sua natureza prática e sem vaidade. Por fim, começou a pendurar as peças em seus cabides.

— O que está fazendo? — Christopher reclamou.

— Não preciso de todas essas roupas — ela explicou. — Foi delicioso brincar de faz-de-conta, mas...

— É algum crime gostar de se vestir bem?

— Claro que não, mas...

— Lá vem seu lado prático novamente. A moderação é louvá­vel, mas você corre o risco de tornar-se tão maçante quanto seu querido Larry. Relaxe, seja um pouco frívola. Goste de si mes­ma. Você vale tudo o que gastar nessas roupas adoráveis e muito mais.

A tentação era grande e o argumento de Christopher bastante convincente, mas Maggie ainda resistia, obstinada.

— Não sei por que está tão interessado — ela resmungou, aca­riciando o tecido macio de uma saia bege com movimentos in­conscientemente sensuais. — Sou eu que vou usar tudo isto, se comprar, é claro.

— Porque tenho um fraco por coisas bonitas e embora você sempre tenha sido linda para mim, o prazer que sente ao ver-se bem-arrumada a torna deslumbrante. E isso me faz muito, mui­to feliz.

Maggie escondeu um sorriso, mas já tomara a decisão. Não estava acostumada a ser chamada de "linda" e ela própria achava-se apenas passável. Mas Christopher a fizera acreditar que era bela, assim como a fizera crer em outras coisas impossíveis, co­mo fantasmas e mágica, espíritos ligados à terra e sobrevivência da alma humana. Ela era bela e ele era real. Tanta coisa mudara em seu íntimo desde que Christopher aparecera em sua vida que era perfeitamente normal que seu exterior também se modificas­se. Olhou para ele, satisfeita.

— Linda, hein? — provocou com um sorriso acanhado.

— Tão linda que, se não tivesse decidido que ficaria solteira, eu me casaria com você.

Maggie riu, deliciada, e então reprimiu o riso rapidamente, pen­sando na vendedora.

— Formaríamos um lindo par. E o que faria, se nos casásse­mos? — perguntou, cedendo a um raro impulso de flertar.

Os olhos dele fulguraram.

— Ora, querida, eu lhe daria o mundo. Brindaríamos com champanhe em Paris e eu gritaria meu amor por você do alto das pirâmides de Gizé. Descobriria uma nova estrela e lhe daria seu nome.

Ela tapou a boca para não rir e o ar travesso dos olhos dele transformou-se em ternura.

— Eu seria o marido mais engraçado, o mais divertido de to­dos quantos já viveram, porque não valeria a pena existir se eu não pudesse ouvi-la rir.

Um pouco embaraçada, Maggie levou os dedos aos lábios, on­de ainda pairava um sorriso. Ele acompanhou o gesto com o olhar e ela corou.

— Eu lhe daria dragões mágicos e castelos de fantasia, e a ado­raria com todo meu coração e toda minha alma, pela eternidade — ele acrescentou sem sorrir.

Maggie sentia o coração latejar e o peito doía, pressionado por uma ansiedade a que não ousava definir. Num gesto, Christopher ergueu a mão, como para tocar-lhe a face e ela estendeu a sua na direção dele.

— Eu lhe suplico, Maggie, querida, não aceite menos que isso de homem algum — ele murmurou com voz rouca, deixando a mão pender.

A vendedora bateu na porta e Maggie virou-se, olhando para o espelho. Christopher não estava lá, mas o rosto dela continua­va afogueado, o coração batia forte e a dor que lhe comprimia o peito não diminuíra.

Maggie conseguiu convencer-se de que desejava sair com Larry naquela noite. Parecia mais seguro do que ficar em casa a sós com Christopher, embora ela não soubesse o que pretendia dizer com "segurança", no caso deles, o que a fazia sentir-se uma idiota.

Caprichou na aparência, escolhendo entre as peças que com­prara e decidindo-se por um vestido creme, de blusa justa, man­gas compridas e saia ampla, não porque desejasse impressionar Larry, mas porque descobrira o prazer de vestir-se com elegância. Prendeu os cachos curtos da nuca com uma fivela e afofou o cabelo no alto da cabeça para obter um efeito mais sofisticado e aplicou leve maquiagem, apenas para acentuar a cor dos lábios e dos olhos. Para complementar o traje, ataviou-se com pulsei­ras e colar dourados e por fim examinou-se no espelho, alisando o vestido que lhe escorria pelas curvas e admirando-se aber­tamente.

— Estou um assombro — decidiu vaidosa.

— Espetacular — Christopher corrigiu.

Ela virou-se para ele. Os olhos castanhos não escondiam a fran­ca admiração e Maggie sentiu que um arrepio subia-lhe das pon­tas dos dedos dos pés até a nuca e que o rubor cobria-lhe o rosto.

— Você é muito generoso.

— E você não deveria usar nada que não fosse da melhor qua­lidade, para as roupas estarem à altura de sua beleza.

— Não comece com isso novamente — ela pediu, olhando pa­ra o relógio e correndo em busca da bolsa. Parou perto do armá­rio e olhou para Christopher, apreensiva. — Escute, não vai me causar problemas esta noite, vai? Porque se for...

Ele ergueu a mão, pedindo trégua.

— Serei o mais educado dos cavalheiros.

Ela acabou encontrando a bolsa caída atrás da cadeira de lona que mantinha sob a janela.

— Prefiro que seja o mais invisível dos cavalheiros — paro­diou com um olhar repreensivo.

— E deixá-la à mercê daquele cabeça-de-vento? Vai morrer de tédio, antes que o jantar chegue à metade.

— Christopher...

— Oh, está bem. Eu a deixarei por sua conta, mas não recla­me depois.

A campainha da porta soou e Maggie correu a atender, olhan­do mais uma vez para Christopher.

— Não se esqueça...

— Não esquecerei — ele prometeu.

Larry olhou-a surpreso, quando ela abriu a porta.

— Você está bonita!

— O homem tem o dom da palavra — Christopher ironizou.

Maggie ignorou-o e roçou o rosto de Larry com um beijo rápido.

— Estou espetacular — corrigiu-o com altivez. — Estive com­prando roupas, hoje.

— Dá para perceber. — Larry entrou na sala. — Elena final­mente a pegou de jeito, não foi?

— Não, exatamente. Espere só um pouquinho que vou pegar o casaco.

— Não vai me oferecer um drinque?

— Não pensa que me vesti toda para ficar sentada aqui den­tro, pensa? Quero sair e me exibir.

Ela voltou com o casaco e Larry beijou-lhe o cabelo ao ajudá-la a vestir o agasalho.

— Será um prazer sair com uma mulher tão bonita.

— Não se preocupe comigo — Christopher avisou, largando-se no sofá pegado o controle remoto. — Encontrarei um bom filme para ver. Divirta-se.

Maggie mal teve tempo de olhá-lo, quando Larry virou-se abruptamente para a televisão, ligada de repente.

— Mas o que é isso? — perguntou assustado.

— Foi o gato — ela explicou rapidamente, pegando-o pelo bra­ço. — Deve ter pisado no controle remoto.

— Que gato? Você nunca teve gatos!

— Um gatinho que encontrei na rua. É uma peste — Maggie inventou, saindo com Larry, que parecia aparvalhado, e trancan­do a porta.

Ele acabou engolindo a história do gatinho perdido e quando chegaram ao restaurante Maggie já estava mais calma. Sabia, na­turalmente, que Christopher não ficara comportadamente em casa e que devia estar ao lado dela, observando Larry com os olhos críticos e resmungando os mais variados comentários. Mas, des­de que não pudesse vê-lo, não havia motivo para preocupação.

O restaurante era pequeno e iluminado por velas, oferecendo ambiente íntimo e tranqüilo. Era o lugar favorito dos dois e Mag­gie ficou surpresa ao sentir como era bom voltar à normalidade depois de um período tão tumultuado de sua vida. Recostou-se na cadeira estofada com o copo de vinho na mão, deixando que a tensão a abandonasse.

Larry sorriu-lhe do outro lado da mesa.

— Como é bom ver você. Não apenas porque está "espetacu­lar", mas porque faz séculos que não saímos juntos.

— Essa é uma das coisas que funcionam bem entre nós — ela observou. — Podemos ficar semanas separados e mesmo sem pen­sar um no outro diariamente, mas quando estamos juntos nos sentimos à vontade.

Larry estendeu a mão por cima da mesa e segurou a dela.

— Penso em você todos os dias, Maggie, mas procuro não aborrecê-la, sabendo como anda ocupada. Sinto falta de você.

Ela comoveu-se. Larry era uma boa pessoa. Compreensivo, confiável, leal. Mas não podia responder da mesma forma, pois seria mentira. Gostava dele e apreciava suas virtudes, mas não sentia falta dele como sentia de Christopher.

— Então — ela tomou um gole de vinho —, como vai indo o fechamento da compra da casa? Sem problemas?

— Ah, antes que me esqueça. — Larry apalpou o bolso do so­bretudo que deixara sobre uma cadeira vazia e pouco depois mostrava-lhe um envelope de papel pardo. — Aqui está as infor­mações que você pediu a respeito da história da casa. Sabe como Cecile é, quando se trata de pesquisar. Ela conseguiu cópias de escrituras, registros e de recortes de jornais cobrindo o período de cem anos. Encontrou até alguma coisa sobre o construtor da casa. Não tive tempo de ler nada disso, mas Cecile acha que você gostará.

— Que bom! — Maggie pegou o envelope e guardou-o na bol­sa. Duvidava que a secretária de Larry pudesse ter descoberto al­go que ela já não conhecesse, mas seria interessante ler o material, quanto tivesse tempo. — Diga a Cecile que agradeço muito.

— Como você disse, ela sentiu-se útil. Na semana que vem irei a Los Angeles, mas Jeff continuará com a transação, se você não se importar. Ele é bom corretor, pode confiar. Já fiz o trabalho de base e o resto agora não passa de rotina. Os papéis virão pelo correio e tudo o que precisará fazer será ir ao escritório e assi­nar. Cecile mandará reconhecer a firma. O perito deu parecer fa­vorável e está tudo certo.

— Ótimo, porque estou com pressa de me mudar para lá. O que vai fazer em Los Angeles?

Enquanto saboreavam a salada, Larry contou-lhe sobre um se­minário conjugado a uma expedição de compra de propriedades, que levaria de duas a três semanas para terminar. Maggie sorria e fazia pequenos comentários nos momentos certos, mas na verdade não prestava muita atenção. Sua mente se perdia em divagações e ela pegou-se imaginando Christopher sentado no lugar de Larry, fitando-a com os ternos olhos castanhos, falando-lhe com o sotaque diferente, melodioso, pontilhando a conversa de comentários espirituosos, às vezes ácidos, e observações inteli­gentes. Ele sorriria daquele modo lento e sensual e a mão, quan­do se fechasse sobre a dela, seria forte e morria, envolvendo-a numa atmosfera de vibrações deliciosas.

A cena imaginada fez o coração acelerar-se e Maggie sentiu-se envergonhada por estar tecendo fantasias a respeito de Christo­pher, enquanto jantava com Larry. Embaraçada, também, pois portava-se como uma adolescente tola e cheia de ilusões. E, pai­rando sobre todos os seus pensamentos, havia uma nuvem de tris­teza que ela não conseguia dissipar.

"Se Christopher pudesse estar aqui comigo, apreciando o jan­tar", pensou, enquanto serviam o prato principal, "ele falaria com o garçom com altiva gentileza e me faria rir com suas histórias, sorriria para mim daquele modo que faz o mundo desapa­recer, seguraria o casaco para que eu o vestisse e me tocaria. Me tocaria..."

Uma repentina certeza de que tudo o que lhe acontecia era in­justo demais apertou-lhe o coração e ela precisou pousar o gar­fo, pois a mão tremia. O macarrão com frutos do mar, que pouco antes parecera tão apetitoso, perdera o sabor. Era Christopher que devia estar ali com ela. Desejava Christopher a seu lado. Christopher, tão belo, civilizado, tão encantador e divertido, cheio de amor pela vida. Christopher, que a compreendia tão bem, que a desafiava e consolava, que a fazia sentir-se mais viva e mais importante no esquema do universo. Christopher, que tinha o po­der de tornar inesquecíveis todos os momentos que passavam juntos.

— O que foi? — Larry perguntou.

Ela ergueu o olhar para ele, sobressaltada.

— Nada. Estava pensando. É tão gostoso, aqui. Gostei de sair com você.

Não estava mentindo. Saía com ele há dois anos e sempre gos­tara de sua companhia. Devia estar pensando em Larry e não num espírito extraviado que nunca poderia lhe oferecer nada além de uma visão do que poderia haver entre eles se o mais intransponível dos abismos não os separasse.

Larry afagou-lhe o joelho por baixo da mesa pequena. Um gesto íntimo e sugestivo e que no entanto para Maggie não represen­tou mais que um tapinha amigável nas costas.

— Fiquei contente quando aceitou meu convite. Achei que não ia querer sair comigo, hoje.

— Sei que ando um pouco arredia, ultimamente e...

— Não. Está tudo bem. Sabe que sou paciente. Maggie, gos­taria imensamente que você fosse comigo para a Califórnia, mas sei que não pode, agora, e de qualquer forma pretendo refletir enquanto estiver longe. Peço-lhe que faça o mesmo.

— Refletir sobre o quê? — ela perguntou, disfarçando o ligei­ro tremor da voz.

— Sobre nós dois — ele explicou com expressão séria. — O que significamos um para o outro e o que desejamos do futuro.

Ela respirou fundo e ele apertou-lhe o joelho de leve.

— Pense nisso, Maggie. Nós dois nos damos bem, pensamos da mesma forma, temos os mesmos valores. As diferenças que existem servem de fatores de equilíbrio. Percebe como é rara uma relação igual a nossa?

Maggie hesitou, antes de esboçar um sorriso.

— De fato, nós quase nunca brigamos — concordou.

— E quando acontece, eu deixo você ganhar — ele acrescen­tou com um sorriso provocador.

— Qualidade admirável num homem.

— Dinastias inteiras foram fundadas sobre qualidades bem me­nos admiráveis.

Ela riu, pensando no motivo por que era fácil gostar de Larry. Ele era confortável como um sapato muito usado, que já não aper­tava mais o pé.

— Bem, não pretendo iniciar nenhuma dinastia — ela decla­rou, tornando a pegar o garfo. — Mas estou me divertindo. O que vamos pedir de sobremesa?

— Só comerá doce se me prometer que pensará no que lhe disse.

— Prometo — ela afirmou, depois de ligeira hesitação. — Pen­sar não faz mal a ninguém.

— Espero que, no nosso caso, faça muito bem. Restabeleceu-se a velha camaradagem entre eles e a refeição prosseguiu de modo agradável e havia momentos em que Maggie nem pensava em Christopher, exceto para agradecer-lhe mental­mente por ter mantido a promessa de não interferir no encontro. No fim do jantar, quando tomavam licor, depois do café, era ape­nas natural que Larry tomasse-lhe a mão entre as suas e a fitasse com ternura, ao propor:

— Vá comigo para casa, Maggie. Vamos passar a noite jun­tos, sim? Vamos ficar muito tempo separados. Tempo demais.

Maggie sentiu-se relutante. Fora uma noite agradável e tran­qüila e era compreensível que ele desejasse estendê-la. Compreen­sível. Confortável. Tudo a respeito de Larry sempre poderia ser definido por esses simples adjetivos. E ela precisava de algum con­forto, de uma pausa sossegada para relaxar e esquecer o inexpli­cável fenômeno experimentado com Christopher e os enigmas do coração. Seria fácil dizer sim.

Mas Christopher intrometeu-se. Ele sempre estaria junto dela, vendo tudo, descobrindo seus mais secretos pensamentos. Chris­topher, que se incrustara em sua mente, roubando-lhe toda a pri­vacidade. Não poderia deitar-se entre os braços de um homem, pensando em outro. Não seria possível fingir que seria justo pa­ra Larry, para ela, ou mesmo para Christopher. Como a vida se complicara! Voltaria a ser simples, um dia?

— Desculpe, Larry, mas esta noite não posso — disse, tentan­do sorrir.

Não deu maiores explicações e Larry, embora visivelmente de­sapontado, talvez até magoado, não insistiu.

Maggie também ficara desapontada. Amargamente. E por uma razão muito mais profunda do que o simples fato de que passa­ria a noite sozinha.

 

Maggie fechou a porta atrás de si e olhou em volta.

— Christopher? — chamou baixinho.

Tocou no interruptor e a sala iluminou-se. Christopher encontrava-se encostado no sofá, com as mãos nas costas.

— Por que não o convidou para tomar café? — ele perguntou. Maggie tirou o casaco e pendurou-o no cabide atrás da porta.

— Porque não quis.

— Mas vocês se divertiram — ele afirmou, observando-a com expressão estranha.

— Sim. Muito — ela respondeu, tirando os sapatos e deixando-os no chão.

Christopher aprumou o corpo, sem desviar os olhos do rosto dela.

— Suponho que tenha de lhe pedir desculpas — disse em tom suave. — Você gosta mesmo do sujeito, não?

Maggie encarou-o, um pouco surpresa com a pergunta. Ficou tentada a responder com rispidez, mas não teve coragem. Os dois haviam passado quase o dia inteiro discutindo, falando do subli­me e do terreno, fazendo rodeios para não tocar no problema real. Não apenas um dia, mas muito mais. Para cada momento de verdade partilhado houvera um instante de riso descuidado, uma pergunta deixada sem resposta, um enigma ignorado. E se­ria assim para sempre. Ou não? Algo mudara entre eles. Como num baile, a música acabara e não podia mais haver dança. Suas defesas estava esgotadas e apenas a verdade nua e crua per­manecia.

Ela suspirou e correu os dedos pelos cabelos, como se pudes­se, com um gesto, dissipar a nebulosidade alojada em sua mente com a mesma facilidade com que tirava os grampos e a fivela.

— Quer saber a verdade? — perguntou em tom cansado. — Passei a maior parte do tempo pensando em você.

— Como?

Ele parecia genuinamente surpreso e Maggie sorriu quase imperceptivelmente. Às vezes ela esquecia que a habilidade de ler pensamentos não se encontrava entre os poderes de um espírito desencarnado.

— Pensei em como tudo é injusto para nós e fiz comparações entre você e Larry praticamente o tempo todo. Larry não saiu ganhando. — Jogou-se no sofá, espreguiçou-se e colocou os pés na mesinha, reclinando-se no encosto. — Você é perfeito demais. Nenhum homem tem a mínima chance de sair vencedor numa comparação. Você é tão malditamente perfeito que às vezes pen­so que estou sonhando.

Ele sorriu com ternura.

— Para mim, amor, tudo é um sonho, menos você.

A conhecida dor no peito voltou e ela fechou os olhos, tentan­do esquecê-la.

— Oh, Christopher, por que escolheu a mim para seguir? Mi­nha vida era tão simples, antes de você. Eu sabia o que queria. Tomava minhas decisões e lutava para alcançar meus objetivos. E agora... agora não sei mais nada.

Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que ela abriu os olhos e virou a cabeça para fitá-lo. O ar displicente, ou de arrogância, que ela esperara encontrar, não se estampava no rosto cinzelado. Ela viu a mesma resignação triste que deixava seu coração pesado.

— Não era para lhe causar sofrimento — ele declarou baixi­nho. — Isso eu sei. — Suspirou e um sorriso cansado passou de leve por seus lábios. — Ah, Maggie, eu me lembro de como despertei quando você entrou na minha casa, naquele dia. Era co­mo se teias de aranha milenares se desgrudassem do meu cérebro e os ecos da vida me alcançassem. Senti alegria. Uma alegria que não posso explicar, quando percebi o que estava acontecendo.

Por um instante os olhos profundos iluminaram-se com a lem­brança e o coração de Maggie pulsou com mais força, numa rea­ção de empatia. Ele abriu as mãos e tornou a fechá-las, no esforço de procurar as palavras certas.

— Como foram lindos aqueles primeiros dias de descoberta e redescoberta — continuou. — Foi como se os sonhos ávidos de mil almas solitárias se realizassem. Vendo tudo o que vi, pensei que o homem de certa forma conseguiu criar o paraíso. Mas agora... acho que criei meu próprio inferno.

Maggie quis dizer alguma coisa, mas não encontrou palavras. Puxou as pernas para cima do sofá e virou-se, apoiando a cabe­ça no encosto, para ver Christopher melhor. E assim ficou, inde­fesa, silenciosa, olhando para ele.

— Você conhece a história de Tântalo no Hades. Querer e não poder ter é um grande tormento. Mas ter a essência da vida ao alcance da mão e saber que nunca a alcançarei, é terrível. E para mim, a essência da vida é você, Maggie.

A ânsia que germinava no íntimo de Maggie de repente flores­ceu, doce, envolvente, palpitante e bela, pedindo para subir à luz e ser reconhecida. Todos os pensamentos que ela guardara tão cuidadosamente apenas para si mesma, subitamente exigiam ser colocados em palavras.

— Oh, Christopher... eu queria...

Rapidamente ele foi para junto dela, com um dedo sobre os lábios, como a pedir silêncio.

— Eu sei o que você quer — afirmou em tom gentil, olhando-a com tanta ternura que o coração de Maggie se apertou. — E você sabe que eu quero a mesma coisa. Mas nós dois sabemos que é loucura. — Exibiu um sorriso nada convincente. — Afi­nal, demos um sentido todo novo à expressão "mundos diferen­tes", não concorda?

"Não", Maggie pensou, agarrando-se às costas do sofá. "Não é justo."

— Quero tocá-lo, Christopher. Quero abraçá-lo, ficar junto de você. Quero que você seja real! — desabafou com voz trêmu­la e intensa.

— Maggie. — Ele ergueu a mão e fez um gesto como se fosse acariciar o rosto dela, mas não o tocou. — Gostaria de poder lhe dar algo precioso, para compensá-la de toda a dor que lhe causei.

— Christopher...

Vagarosamente ele virou-se, escondendo o rosto do olhar de­sesperado de Maggie.

— Mas, naturalmente, não posso lhe dar nada. Assim, acho melhor esquecermos que conversamos tudo isto.

A expectativa, a esperança louca, o desejo irracional e cheio de desespero esvaíram-se da alma de Maggie, deixando-a vazia.

— Sim, é melhor — concordou em tom apagado. Christopher tinha razão. Era loucura. Pura insanidade fútil e sem qualquer esperança. Ela saiu do sofá, sentindo-se fraca.

— Estou muito cansada. Vou dormir.

Ele não respondeu e ela foi para o quarto, embora não espe­rasse conseguir pegar no sono. Mas adormeceu, vencida pelo can­saço e pela depressão. O mecanismo de defesa do corpo assumiu a situação e livrou-a dos conceitos complicados e indesejáveis que lhe giravam na mente e com os quais não tinha meios de lidar. Contudo foi um sono agitado, povoado de imagens estranhas e sonhos vagos. Por isso, ficou quase aliviada quando alguma coi­sa acordou-a.

A noite atormentada deixara-a como se estivesse drogada e ela não conseguiu abrir os olhos. Aos poucos, tomou consciência de que fora despertada por um movimento, como um peso na ca­ma, fazendo o colchão afundar. Pensou vagamente que poderia ser um ladrão e sentiu-se alarmada, mas estava incapaz de rea­gir, envolvida pela semi-inconsciência. Lembrou-se então de Chris­topher, pensando que ele a protegeria. Com um gemido entre satisfeito e lamentoso, começou a afundar novamente no nevoeiro do sono.

Foi quando sentiu um toque na face, leve, sutil, delicioso. Ten­tou abrir os olhos, mas não pôde. O contato em sua pele, suave como o roçar da asa de uma borboleta, percorreu-lhe o rosto, chegando até o queixo.

— Christopher, é você? — murmurou.

— Sim, amor, sou eu.

Ela queria acordar e não queria. Presa na terra estranha entre o sonho e a realidade, deixou que todas as perguntas morressem. Era Christopher e ela estava feliz.

Um sopro morno pousou-lhe nos lábios, no mais gentil dos bei­jos, deslizando depois para o pescoço, provocando prazer lento e raro. Ela desejava ergue os braços e envolver Christopher, beijá-lo, mas o corpo parecia transformado em chumbo.

— Estou sonhando, não estou?

Ela não sabia se pronunciara as palavras ou apenas pensara em formular a pergunta, mas a voz de Christopher, responden­do, era como doce melodia, rica e envolvente.

— Não acorde, amor. Deixe-me dar-lhe esta noite de presente. A nós dois.

Um sonho, mas muito mais, pois era Christopher e ela sentia-lhe o toque, saboreava seu beijo. O cabelo sedoso acariciava-lhe o rosto e ela percebia a maciez da pele morena de encontro à sua. Os dedos longos teciam fantasias em seu corpo, aquecendo-o e despertando-o para o desejo, flutuando em seus seios, tocando-lhe a cintura, afastando a camisola para encontrar suas coxas nuas. E ela foi engolfada pela sensualidade mais natural e pura, experimentando sensações jamais imaginadas, mergulhando nas ondas do prazer.

O desejo crescia, diferente e profundo, tentando atingir o pico brilhante que cintilava como jóia no nevoeiro que a cobria. Po­rém, era emoção delicada, sem as arestas agudas do desejo sô­frego, sem o desespero febril da paixão. Era prazer sem dor, sem ansiedade. Às vezes ela acreditava que passava os braços pelas costas musculosas de Christopher e entrelaçava os dedos nas mechas macias de seus cabelos, sentindo o calor e a textura lisa da pele. Em certos momentos, flutuava no prazer que ele lhe dava, sentindo que as pernas e os braços não lhe pertenciam.

Ela acariciou a curva do pescoço forte com os lábios, sentiu-lhe o cheiro, que nunca poderia definir. Houve um longo mo­mento delicado, quando todas as sensações se concentraram nos dedos que se procuravam e se entrelaçaram, descobrindo, afa­gando. Ela sentiu-se inundar pelo calor do corpo junto ao seu, pelo amor de Christopher, que a invadia em ondas luminosas, que a circundava e preenchia. Uniram-se, então, numa mistura gloriosa de prazer físico e algo muito mais sublime, mais verda­deiro, torrentes douradas de êxtase, arrebatamento gentil, delí­cia infinita. Eram um só. Sempre fora assim e sempre seria. Simples, belo, uma verdade indiscutível.

Nada aconteceu para marcar o fim do sonho. Uma sensação que ia além do prazer permaneceu dentro dela, como brilho ítrio, forte e fulgurante, que não se apagou nem mesmo quando a tênue consciência oscilou à beira do sono mais profundo. Ain­da sentiu a maciez do travesseiro sob a cabeça e o contato morno dos dedos de Christopher enlaçados nos seus. Lutou por acor­dar. Queria saber, desejava que os sentidos confirmassem o que a mente experimentava em sonhos. Algo em seu íntimo, porém, talvez mais sábio, a impediu de despertar.

— Ainda sinto você em mim — disse, ou pensou. — Parte de mim... parte de mim...

— Sempre — ele disse num sopro, beijando-lhe os cabelos. — Sempre.

Quando Maggie acordou, na manhã seguinte, as lembranças da noite eram nítidas e Christopher estava com ela. Soube que ele permanecia a seu lado antes de abrir os olhos e quando virou-se na cama, apertando os olhos contra a claridade filtrada pelas cortinas, ela o viu.

Ele encontrava-se apoiado na penteadeira, usando jeans e blusão de malha, observando-a com um sorriso preguiçoso.

— Você é adorável, quando está dormindo. Todas as tensões e cuidados que carrego como um fardo durante o dia desapare­cem à noite e você parece tão inocente quanto um anjo. Fico ima­ginando se o mesmo acontece com todas as pessoas.

Maggie sentou-se, levando a mão automaticamente ao decote da camisola. A princípio sentiu-se embaraçada, depois uma tola. Mas quanto tornou a fitar Christopher e viu a expressão terna dos olhos castanhos, soube que não havia motivo para nenhuma das duas reações.

Nada mudara, conquanto tudo parecesse diferente. No fundo de um escaninho secreto de seu coração o brilho continuava. A transformação começara menos de uma semana atrás, quando pressionara a palma da mão contra a dele e o contato operara mudanças espantosas nos dois. E naquela noite, num sonho que era mais que sonho, ela entregara parte de si mesma e aceitara algo da alma de Christopher em troca. Não, não era a mesma Maggie Castle. Tocara a própria alma de outro ser. Sofrerá uma metamorfose irreversível.

— Sonhei com você — disse hesitante.

Ele sustentou-lhe o olhar.

— Também sonhei com você.

Ela suspirou, sentindo-se trêmula e incerta, contudo mara­vilhada.

— Foi... apenas um sonho? Ele sorriu, complacente.

— É claro. O que mais poderia ser?

— Você me deu um sonho de presente.

Ele ficou calado, o que ela tomou como confirmação de suas palavras.

— Mas, Christopher, como pode ser?

— Lamenta ter sonhado comigo? — ele perguntou, depois de ligeira hesitação.

— Não! — Maggie sorriu com alguma timidez. — Estou feliz por ter encontrado você, Christopher.

— Eu também estou feliz, Maggie.

Sentada na cama, banhada de felicidade e de sol, ela desco­briu que era a primeira vez que admitiam o fato. E já havia de­morado demais.

Maggie tornou-se oficialmente proprietária da casa da rua Walnut no dia doze de novembro. Dali por diante, passou cada mo­mento livre na propriedade, com Christopher, raspando, limpando, pintando e colocando papel de parede. Examinavam catálogos juntos, discutiam cores, argumentavam, irritavam-se e riam muito. Contavam segredos e histórias antigas e passavam longos momentos de tranqüilidade, em silêncio, gozando a com­panhia um do outro. E aquelas foram as semanas mais felizes, mais compensadoras da, vida de Maggie.

Larry telefonou várias vezes da Costa Oeste e Maggie falava com ele distraída, respondendo ao que ele perguntava, mas sem na verdade entabular conversa. Fora disso, nem pensava nele. Elena deixava recados na secretária eletrônica, que Maggie não se dava ao incômodo de responder. Outros amigos e conhecidos te­lefonavam, convidando-a para almoços e jantares, mas ela não se interessava. Parou de trabalhar na tese e o frio mundo prático das teorias perdeu o encanto. Dispensou os alunos particulares, alegando não ter tempo, o que não deixava de ser verdade, pois cada minuto roubado ao convívio com Christopher parecia-lhe um imperdoável desperdício. Quando, nos raros momentos de reflexão, olhava para trás no tempo, concluía que era inacreditá­vel ter um dia se considerado feliz sem Christopher, ou achado o trabalho compensador e a vida satisfatória. Tudo, antes dele, mergulhava na sombra.

— Não estou muito convencido de que ainda gosto de eletrici­dade como gostei um dia — Christopher disse, estudando as arandelas colocadas nos dois lados da lareira, na sala de visitas recém-pintada. — A luz do gás é muito mais romântica.

—Esqueça isso — ela respondeu, examinando uma pequena esfoladura provocada pelo eletricista na pintura da parede, quan­do fixara as arandelas. — Concordo em ter aquecimento a gás, mas iluminação está fora de cogitação.

Deu um passo atrás e observou com olhar crítico o espaço ocu­pado pela lareira. As paredes pintadas em tom quente, lembran­do a cor do melão, faziam a sala brilhar, realçando as molduras brancas ao longo do teto e as portas de madeira. As arandelas deram o toque final. Ela apenas não estava satisfeita com o feio aquecedor a gás, imaginando o que poderia fazer para disfarçá-lo.

— Tem certeza de que não podemos abrir uma chaminé na la­reira? Não quero que seja apenas de enfeite, mas de verdade. As­sim, poderia dar um fim nesse aquecedor horroroso.

— Querida, você ficaria congelada. Eu mantinha aquecedo­res a carvão em todos os cômodos. Para esconder o aquecedor, basta colocar uma grade na frente se ele a incomoda.

— Incomoda, e muito. Haveria possibilidade de mandar ins­talar aquecimento central?

— Nenhuma. Não se pode prever o dano que isso causaria à estrutura e o custo, posso adivinhar, seria proibitivo. Seria ne­cessário...

— Oi. Há alguém em casa?

— Elena! — Maggie virou-se surpresa e contente, no momen­to em que a amiga aparecia na porta da sala de visitas.

— Bati, mas você não ouviu. Oh, não posso acreditar no que vejo! Você está linda e esta sala, então! Não sei o que admirar primeiro.

Rindo, Maggie atravessou a sala e abraçou a mulher.

— Como me achou? O que está fazendo aqui?

— Bem, se Maomé não vai à montanha... — Elena desvencilhou-se da elegante capa preta que usava e olhou para Maggie com ar de franca admiração. — O que fez, pode me di­zer? Você está maravilhosa!

Maggie olhou para a calça justa que usava e o amplo suéter de tricô em tons harmoniosos de rosa e fez pose de manequim, para que a amiga apreciasse os detalhes da roupa.

— Gosta da minha nova aparência?

— Parece que você saiu da capa da Seventeen.

— Pensei que fosse dizer da Cosmo — Maggie respondeu, fin­gindo aborrecimento.

Elena riu.

— Ainda falta um pouco, querida. Mas não estou falando só das roupas. Você está literalmente radiante. — Olhou para Mag­gie com ar de suspeita. — Não está grávida, está?

— Você e suas idéias malucas! Ninguém pode aparecer com novidades que você já faz funcionar essa sua mente suja.

— Por que suja? Bem que você poderia estar esperando um bebê, com tantas "novidades". Não atende o telefone, ninguém mais a vê em lugar algum. — Elena avançou para o meio da sala, olhando ao redor com ar satisfeito. — Então, é isso que a tem mantido tão ocupada, e não um homem? Incrível, esta sala. Ab­solutamente incrível!

— Uma mulher de gosto apurado — Christopher comentou, recuando até encostar-se na lareira, enquanto Elena andava pelo aposento.

— Está tudo muito lindo, Maggie. Não me diga que fez o tra­balho sozinha.

— Não totalmente. Precisei de ajuda profissional para dar no­vo polimento no piso e fazer alguns reparos.

— Leve-a para ver o resto — Christopher sugeriu.

— Ainda falta muita coisa — Maggie explicou. — Principal­mente na parte de cima. Mas se quiser ver...

— Se quero? Estou morrendo de curiosidade!

Elena foi perfeita para julgar a decoração. Maggie quase já se esquecera da capacidade contagiante da amiga de entusiasmar-se e sentiu-se culpada por não ter respondido aos telefonemas. Arriscara-se a perder uma amizade sincera. Elena admirou a dis­posição dos cômodos e o fino trabalho manual do acabamento, ficando quase tão excitada quanto Maggie em sua primeira visita à casa. Adorou o banheiro, que Maggie começara a redecorar e mencionou diversos antiquários.

Novamente no andar de baixo, no vestíbulo, Elena fitou-a com ternura.

— Vou lhe dar um cacho de ametistas, na inauguração da ca­sa. Ficará lindíssimo sobre uma mesinha baixa, sob aquela jane­la, e protegerá seu lar contra assaltantes e furacões.

Christopher riu.

— Gosto de sua amiga. Ela tem classe.

Elena passou o braço pelo de Maggie e voltaram para a sala de visitas.

— Posso entender porque se apaixonou por este lugar. Vai fi­car um espetáculo, quando acabar a decoração. E não me parece nada assombrada.

Maggie olhou-a agastada, mas Elena nem notou.

— Quem diria que você se tornaria uma perfeita dona de ca­sa, hein? — a amiga continuou. — Pintou, empapelou, conser­tou e decorou com muito gosto. Pensei que só se interessasse por aquela infinidade de números chatos. Estou tão contente por vo­cê, Maggie! Eu já estava ficando preocupada com sua mania de trabalho. A casa é um passatempo perfeito.

— Tem razão — Maggie concordou, aliviada por perceber que a amiga aprovava o rumo totalmente novo que sua vida tomava.

— Nunca me diverti tanto como depois que comprei a casa. Mas é mais que divertimento. É satisfação verdadeira, entende o que quero dizer?

— Claro. A vida não se limita a números.

Maggie tornou a concordar, acenando de leve com a cabeça.

— Não tenho trabalhado na minha tese, sabia?

Elena fitou-a, incrédula.

— Não, não sabia. O que a fez tomar essa decisão? Não fala em outra coisa, desde que a conheci.

— Como você mesma disse, a vida não se limita a números. Por um instante Elena mostrou-se duvidosa, mas sorriu em seguida.

— Bem, se está feliz com a decisão, tudo bem. E nunca a vi tão contente, querida. — Abriu os braços expansivamente, giran­do no meio da sala. — A cor é maravilhosa! A sala vai merecer fotos em revistas de decoração. E pensar que não teve orienta­ção de um decorador!

— Bem, Chris... — Maggie mordeu o lábio, indecisa, mas con­siderou que a amiga sabia de tudo, ou quase tudo, e que não ha­via motivo para reserva. — Christopher deu algumas sugestões — finalizou, de modo desafiador.

Elena virou-se lentamente para ela, fitando-a com seriedade.

— Christopher — repetiu. — O... hã... o fantasma?

— Ele.

Elena pigarreou e tentou mostrar-se indiferente.

— Ah, ele ainda anda por aqui?

— Constantemente. — Maggie reprimiu um sorriso.

— Ora, imagine só. — Elena forçou um sorriso. — Ele tem sido mais constante que muitos de meus namorados. Você não pode se queixar de falta de fidelidade, suponho.

— Não, não posso.

A amiga olhou em torno, desconfiada.

— Ele está aqui, agora?

Maggie notou que a amiga estava um pouco amedrontada, mas não ia mentir.

— Está. Saiu de perto da lareira e foi até a porta, neste instante.

Elena virou-se bruscamente para a porta e Christopher curvou-se com cavalheirismo.

— Enchanté — murmurou galantemente.

— A-Acha que v-vou vê-lo? — Elena gaguejou.

— Não. Ninguém o vê, a não ser eu.

— Eu disse que era uma mulher de classe — Christopher ob­servou. — Outra sairia correndo. Por favor, Maggie, diga-lhe que sinto não poder me apresentar de maneira mais correta.

Maggie olhou incerta de um para o outro e respirou fundo.

— Christopher disse que lamenta não poder se apresentar de maneira mais correta.

— Oh... — Elena olhou para a porta e novamente para Mag­gie, mexeu no brinco pendente e alisou a saia. — Digo o mesmo — murmurou por fim.

Em seguida, limpou a garganta e andou até o aquecedor a gás, colocado no interior da graciosa lareira, estendendo as mãos para a chama fraca, pretendendo aquecê-las. O ambiente ficou ten­so e Maggie olhou para Christopher, pedindo socorro.

— Este vai ser um teste de amizade — ele comentou. — Acha que ajudaria, se eu fizesse algo para provar minha presença?

— Não — ela respondeu rapidamente, fazendo Elena olhá-la sobressaltada.

— Estava falando com Christopher — Maggie explicou. — Você fala com ele e ele responde?

— Naturalmente.

— O tempo todo?

— Sim, o tempo todo. Já lhe contei tudo — Maggie lembrou-a com uma ponta de irritação.

— Sim, contou. — Elena tornou a olhar para a lareira e mo­veu os ombros, inquieta. — Tem tido notícias de Larry?

— Ele telefonou, duas noites atrás — Maggie respondeu, com a sensação esquisita de que algo de que não iria gostar passava pela mente da amiga. — Vai chegar na semana que vem.

— Estou começando a ficar entediado — Christopher avisou. — Como sempre acontece quando o nome desse cavalheiro é men­cionado. Vou deixar vocês a sós.

Maggie virou-se para ele, mas não o viu mais.

— Sabe do que está precisando? — Elena disse com um sorri­so forçado. — De um sofá, um bule de chá e uma conversa tran­qüila comigo.

— Christopher foi embora — Maggie anunciou, procurando deixá-la à vontade. — Também fico um pouco nervosa, sabendo que ele me observa e ouve tudo o que digo. Mas pode se acalmar, agora. Estamos sozinhas.

— Para onde foi? :— Elena perguntou, olhando para todos os lados, ainda nervosa.

— Não sei. Talvez ainda esteja por aqui, mas "desligado", ou "descansando", como ele diz. Desaparece e pronto.

Elena olhou-a longamente, provavelmente tentando extrair al­gum sentido da informação. Maggie sorriu-lhe e apontou para uma banqueta que estivera usando como escada.

— Pode não ser muito confortável, mas sente-se ali e vamos conversar.

Depois de alguma indecisão, Elena aceitou a sugestão e sentou-se, arrumando a saia ao redor das pernas. Maggie abriu um pe­daço de lona no chão e acomodou-se, abraçando os joelhos.

— Deve ser duro, viver com um fantasma — Elena comentou baixinho.

— No começo era — Maggie admitiu. — Sempre fui reserva­da e detestava interferência no meu trabalho e na minha vida. Mas agora... não sei. Christopher tornou-se uma parte de mim e nem me lembro de como era quando ele não existia em minha vida.

Maggie não percebera como lhe faria bem colocar pensamen­tos e sentimentos em palavras e nem como estava precisando de um desabafo. Quando falara com Elena, da primeira vez, fora por estar confusa e aflita. Naquele momento, era como contar boas notícias, como um triunfo pessoal, ou um milagre, algo ma­ravilhoso demais para ser guardado dentro do peito.

— Oh, Elena, você não acreditaria se eu lhe dissesse as mu­danças que ele operou em minha vida — continuou com um sor­riso sonhador. — Eu vejo tudo diferente, enxergo coisas que nunca percebi antes. E ele é muito divertido. Cada dia com Chris­topher representa uma aventura. Nunca sei o que esperar. E mais... — Interrompeu-se, pensativa.

— Mais o quê?

— Posso confiar plenamente em Christopher e nunca imagi­nei que se pudesse ser tão apegado a alguém, tão íntimo. Não há segredos entre nós. É como... — Maggie parou, porque não sabia se explicar e porque ficara embaraçada, abrindo a alma de tal maneira, mesmo para Elena.

— Como? — a amiga incentivou-a.

— Não sei dizer. Só experimentando para saber.

— Você me descreve um homem perfeito — Elena observou, escolhendo as palavras com cuidado.

— Ele é perfeito — Maggie afirmou sorrindo.

Elena refletiu e então pareceu tomar uma decisão. Suas mãos crispavam-se, entrecruzadas no colo e a tensão evidente deixou Maggie constrangida.

— Maggie, tenho uma confissão a fazer. — Elena ergueu os olhos, mostrando uma expressão de corajosa determinação. — Não vim aqui apenas para ver a casa. Vim porque estava preocu­pada com você. E porque falei com Larry, ontem à noite e ele me pediu para cuidar de você.

— Larry! Mas o que...

— Ele também está preocupado. Acha que você está se esgo­tando por causa da casa e tomara fosse isso mesmo.

— Isso é ridículo! Vocês dois...

— Calma. Nós temos todo o direito de nos sentirmos preocu­pados e você sabe disso.. Você nunca recusou um convite para almoçar, ou jantar, e nunca mais aceitou nenhum. Ninguém a vê, você não atende o telefone. E agora me diz que desistiu da tese de doutoramento.

— Não disse que desisti.

Elena respirou fundo, como se reunisse força e paciência, mas não desviou o olhar.

— Eu sabia que estava acontecendo alguma coisa. Não sabia bem o que era, mas agora sei. Você apaixonou-se por um fantasma.

O silêncio no aposento foi tão profundo quanto o que vinha depois de uma explosão. Maggie sentiu-se abalada da cabeça aos pés, como se realmente houvesse presenciado uma detonação monstruosa. E por longos instantes só pôde olhar fixamente pa­ra a amiga.

— Essa é a maior loucura que já ouvi em toda minha vida! — retorquiu finalmente, com a respiração entrecortada. — Apai­xonada... — O rubor cobriu-lhe o rosto, causado pela raiva, ou pelo espanto, ou talvez, embaraço por ver um segredo ciosamen­te guardado vir à luz. — Isso é... é absurdo!

— É? — Elena replicou de imediato. Depois de conseguir di­zer o que pensava, adquirira nova confiança. — Já se ouviu fa­lando desse... homem? Seu Christopher é uma mistura miraculosa de lorde Byron, Albert Einstein e uma pitada de dr. Schweitzer para temperar. Você descreveu um homem de fantasia, o sonho perfeito de uma mulher e o vê com olhos de amante!

Maggie levantou-se abruptamente, com os olhos faiscantes.

— Não vou ficar aqui ouvindo asneiras e...

— Está bem! — Elena ergueu as mãos espalmadas, num gesto de resignação. — Se não é amor é obsessão e nenhum dos dois casos é desejável, nem normal. E você sabe disso.

Maggie colocou as mãos na cintura.

— Pensei que fosse minha amiga, pensei que acreditasse em mim. Contei-lhe tudo porque confiava em você e agora...

— Meu Deus, Maggie! Eu acredito em você! Esse é que é o problema, não entende?

Elena desceu da banqueta e aproximou-se de Maggie, tensa e aflita. Maggie, porém, virou-lhe as costas.

— Você não acredita em mim — disse com frieza. — Acha que inventei tudo por uma necessidade psicótica de... de não sei o quê! Julguei que me conhecesse bem, Elena, e sempre achei que eu também a conhecesse.

A mulher ouviu-a em silêncio e quando voltou a falar sua voz estava cansada e triste.

— Maggie, acredito em você. Quero acreditar, assim como desejo crer que certas pedras têm poderes curativos, que há vida inteligente em outros planetas, que a humanidade vai melhorar e outros milagres do tipo. E desejo acreditar que a morte não é o fim de tudo, porque ninguém quer morrer para sempre. Mag­gie, por favor, estou fazendo o melhor que posso. Quer me ou­vir, pelo amor de Deus?

Maggie não queria ouvi-la. Não queria ficar ali parada, vendo os muros de sua fortaleza secreta caírem aos pedaços sob a força da razão. "Christopher! Onde está você? Faça-a parar com isto, por favor, suplicou em pensamento.

Mas ele não apareceu e ela voltou-se para encarar Elena.

— Fale. Estou ouvindo.

A amiga cruzou os braços e inspirou longamente.

— Maggie, você sempre foi uma escapista. Quando as coisas ficam difíceis, principalmente no campo das relações humanas, você se esconde no trabalho. Agora está se escondendo atrás de outra coisa. Não importa se Christopher é real, ou não, se eu acre­dito na existência dele, ou não. O fato é que você o está usando para fugir do mundo real e de coisas que eram importantes até pouco tempo. Quer, pelo menos, admitir esta possibilidade?

— Está falando igualzinho a um psiquiatra, Elena. Quer pa­rar de me tratar como seu eu fosse biruta?

— Está certo, você tem razão. Odeio gente que brinca de ana­lista. Mas responda: quanto tempo acha que isso vai durar?

Maggie sentiu-se desorientada pela primeira vez, desde que a conversa começara.

— Como assim?

— Você e Christopher. Já me contou como ele é maravilhoso, como a ajudou e o quanto gosta dele. Não duvido de nada disso, Maggie, juro. Mas, vai ser assim pelo resto de sua vida? Vai fi­car afastada de seus amigos, do trabalho, de Larry, que pode não ser perfeito, mas pelo menos está vivo? Vai se isolar do mundo na companhia de um fantasma, pelo resto de seus dias?

Maggie não tinha resposta e nem conseguia pensar em uma.

— E se quiser se casar, um dia? — Elena persistiu. — E se ti­ver filhos? Vai viver com sua família e com esse companheiro in­visível? Maggie, pense no absurdo da situação.

Maggie levou as mãos às faces escaldantes, sem poder definir se o nó que sentia na garganta era vontade de chorar ou rir histericamente.

: Elena, pare com isso.

— O que vai acontecer quando você envelhecer e ele conti­nuar jovem e belo? — a amiga prosseguiu, empolgada com os próprios argumentos. — Vai olhar para trás e lamentar o que perdeu, o que jogou fora? Sei que estou falando como louca, mas tento apenas fazê-la enxergar a verdade. Você está deixando que o fenômeno tome conta de sua vida e isso não pode con­tinuar.

— Não posso predizer o futuro — Maggie contrapôs, contro­lando a voz. — E não sei responder as suas perguntas estúpidas.

— Não é assim...

— Está bem — Elena continuou calmamente. — Vou fazer uma pergunta que nada tem de estúpida. O que vai acontecer a Christopher?

Maggie fitou-a aturdida, sem entender aonde a amiga queria chegar.

— Sabe que isto não está certo, Maggie. Você convive com um espírito que ficou preso à Terra, que não devia estar aqui, e não quer que ele se liberte.

— Já falamos sobre isso, antes. Nem tudo é tão simples como está escrito nos livros, e quem pode dizer o que está certo ou er­rado? Talvez ele não queira se libertar.

Embora procurasse mostrar-se convicta, Maggie percebia que suas palavras eram ocas. Lembrou-se do rosto atormentado de Christopher quando ele falara do suplício de querer e não poder ter, de estar preso entre dois mundos. Não estava certo. Quan­to tempo ainda ela fingiria que estava? O que podia fazer, po­rém?

Elena balançou a cabeça lentamente e com ar de deses­pero.

— Se ao menos você soubesse por que ele voltou e o que o pren­de ao plano dos vivos... — Olhou para Maggie, de repente. — Como foi que ele morreu?

— Não sei. Nem tenho certeza de que ele saiba.

— Então é isso! — Elena exclamou em voz baixa. — Se você descobrisse como foi que ele partiu desta vida, teria o instrumen­to certo para libertá-lo. Precisa fazer isso, por ele e por você mesma.

Maggie não respondeu. Mais tarde, muito tempo depois de Ele­na ter ido embora, ainda esperava por Christopher, sentada no chão, com o rosto escondido nos joelhos.

 

Foi só no dia seguinte que Maggie lembrou-se das informações colhidas pela secretária de Larry a respeito da história da casa. Talvez, num processo inconsciente de autoproteção, tivesse es­quecido o fato, suspeitando que a mulher descobrira algo novo e não querendo saber do que se tratava, com medo de sofrer.

Cecile, realmente, dera conta do recado. Na pasta grampeada havia cópias de registros imobiliários, procurações, títulos, es­crituras e até da planta do terreno onde a casa fora construída. E, na última página da pasta, aparecia a cópia de um artigo de jornal: "Arquiteto local morre em acidente de rua".

Maggie leu e tornou a ler, vezes sem conta. A cada leitura a notícia tornava-se mais real, até que finalmente pareceu-lhe o fa­to mais importante de que já tivera conhecimento. Christopher morrera em 1899, na véspera de Ano-Novo, atropelado por um carro a motor, quando atravessava uma rua de Baltimore. Nem gestos de coragem, nem atos heróicos. Apenas um vulgar acidente de rua. O artigo mencionava a casa da rua Walnut e afirmava que a falta de Christopher seria amargamente sentida.

A informação não mudou nada, naturalmente, pelo menos sob o aspecto material. Ela não poderia ficar surpresa com a notícia da morte dele, mas vê-la em letras de imprensa, numa página de jornal, abalou-a como se a tragédia acabasse de acontecer. Um estúpido acidente de rua.

Estava sozinha no apartamento, tomando uma xícara de café na cozinha. Era aquela hora da manhã em que ela podia contar com alguns momentos de solidão e às vezes brincava com Chris­topher, chamando-o de dorminhoco. No entanto, naquele ins­tante, queria não estar sozinha.

Passou a mão pela cópia do artigo, tentando sorrir, mas sen­tindo um bolo "de lágrimas na garganta.

— Véspera de Ano-Novo — murmurou. — Provavelmente estava indo para uma festa. — As lágrimas subiram-lhe aos olhos, fazendo-os arder. — Mais algumas horas, Christopher, e você te­ria vivido para ver os anos novecentos, que tanto ama.

O telefone tilintou ao lado dela. Enxugou as lágrimas e deixou o aparelho tocar mais duas vezes antes de atender, ganhando tem­po para controlar a voz.

Era Larry.

— Seja bem-vindo — ela saudou-o, conseguindo mostrar-se alegre. — Chegou cedo, hein?

— Embarquei às seis, no primeiro vôo. É bom voltar para ca­sa e é melhor ainda ouvir sua voz.

— Como foi a viagem? Proveitosa?

— Monótona. Contarei tudo o que aconteceu em Los Ange­les, mais tarde. Como vai, Maggie?

Ela achava que devia estar aborrecida com ele por ter mandando que Elena a vigiasse, mas não podia. Por um motivo simples: Larry tinha razão. Elena tinha razão. Ela precisava sair da situa­ção fantástica em que se metera.

Christopher nada dissera sobre sua conversa com Elena, mas ela suspeitava que ele ouvira tudo. Maggie não pensara em outra coisa, desde então, e uma coisa ficara clara: não podia permitir que Christopher tomasse conta de sua vida, por mais tentadora que a idéia fosse. Era necessário começar a pensar com sensatez sobre o caso, estabelecer prioridades, lembrar-se de que vivia num mundo real, com gente de verdade. Os amigos gostavam dela e eram importante em sua vida, quase tanto quanto Christopher. Ela certamente seria capaz de conciliar os dois aspectos da questão.

— Estou bem, Larry, e muito contente por você ter voltado.

— Pensou em nós, como lhe pedi?

— Claro, mas não estou bem certa sobre o que você queria que eu pensasse.

— Falaremos sobre isso depois. Maggie, meus pais nos convidaram para jantar. Quer ir? Hoje.

— Jantar? — ela repetiu surpresa, pois não conhecia a famí­lia de Larry e não podia imaginar por que a convidariam. — Com sua família?

— Quero que eles a conheçam. Já é tempo, não acha?

— Bem, eu...

— É importante para mim, Maggie. E espero que, depois da nossa conversa, também seja para você.

Talvez fosse por causa do sentimento de culpa despertado pela consciência de que Larry era tão gentil e ela tão fria, talvez por­que decidira que reformularia sua vida, mas de repente Maggie cedeu a um impulso inesperado.

— Quer saber de uma coisa, Larry? Traga seus pais para jan­tar aqui.

Larry ficou tão surpreso que demorou a responder, quase fa­zendo Maggie sorrir.

— Tem certeza de que é isso que quer, meu bem? Você não gosta de receber visitas e um jantar assim, tão em cima da ho­ra... Não quero dar trabalho.

— O que há? Não confia nos meus dons na cozinha? Qual­quer um pode colocar um pedaço de carne com batatas no forno.

— Não. Sei que daria tudo certo, mas seria muita preocupa­ção para você.

— Larry, eu quero receber seus pais — ela afirmou, descobrin­do com espanto que estava sendo sincera. — Quero mesmo.

— Você é um amor, querida — ele disse depois de uma pausa. — Faz idéia de quanto eu te amo?

— Se me lembro bem, você já disse — ela respondeu, meio séria, meio em tom de brincadeira. — Escute, Larry, você preci­sa descansar e eu tenho de ir para a faculdade. O jantar fica mar­cado para às sete. Cedo demais para vocês?

— Não. Está perfeito.

— Ótimo. Até à noite, então.

— Bem, bem — Christopher resmungou, aparecendo ao lado dela, observando-a desligar o telefone. — Então ele a fisgou de verdade, não é?

Maggie guardou a pasta rapidamente no envelope de papel par­do e ele não prestou atenção ao que ela fazia.

— Não sei de que está falando — defendeu-se. — Apenas con­videi Larry e os pais para jantar.

— O que deu em você, para fazer um tal bobagem?

De repente Maggie pareceu espantada, olhando ao redor. Uma boa pergunta. O que dera nela? Na geladeira havia meio litro de leite e dois ovos. Os armários estavam vazios. Teria de ir ao su­permercado e fazer uma boa compra. O apartamento se encontrava na maior desordem, pois já começara a embalar as coisas para a mudança. Toda a roupa de casa já fora encaixotada e ela seria obrigada a comprar toalha de mesa e guardanapos de pa­pel, copos, quando já tinha tantos... Fora louca. Pretendera pas­sar a parte da tarde na casa, acabando de pintar o vestíbulo do andar de cima e teria de desistir da idéia.

— Não sei — confessou, afastando um cacho de cabelos da testa. — Não sei o que me fez convidar Larry. E por que ele me convidaria para jantar na casa dos pais?

— Eu lhe digo — Christopher falou com petulância. — Ele quer que você veja que família maravilhosa terá, se aceitá-lo co­mo marido. E você os convidou para mostrar que vai ser uma esposa perfeita.

Maggie encarou-a atônita.

— Isso é ridículo!

— Ele armou a cilada e você caiu como uma boba. O rei do tédio vai pedi-la em casamento.

Maggie abriu a boca para responder, mas acabou se calando. Talvez Christopher estivesse com a razão. Todas as atitudes de Larry, nos últimos tempos, levavam a crer que ele tomara uma decisão sobre os dois e que ela nada fizera para desencorajá-lo. Carrancuda, pegou a xícara e levou-a para a pia.

— E daí? Isso não me obriga a aceitar.

— Não sei como suporta a simples idéia de ser pedida em ca­samento por um tipo daqueles.

Maggie irritou-se e, apoiando as mãos na pia, reuniu toda sua coragem para virar-se e encará-lo.

— Posso muito bem considerar a idéia de aceitar — informou. — Por que não? Larry é bom para mim. Sempre foi. Nós nos damos bem e temos os mesmos interesses. Há compreensão entre nós. E é dele que eu preciso para voltar a pôr os pés no chão.

E assim aconteceu outro momento de verdade entre eles. O as­sunto evitado desde a conversa com Elena fora abordado afinal. Ela esperava que Christopher a atacasse com sarcasmo, que fi­casse com raiva e até magoado, mas ele simplesmente sorriu, em­bora fosse um sorriso breve e seco, que contudo mostrava mais gentileza que amargura.

— Então foi isso que consegui, por ironia — disse em tom cal­mo. — Atirei você nos braços de outro homem.

A luz da manhã banhava a massa sedosa dos cabeços escuros e acariciava as feições perfeitas. O brilho nos olhos expressivos era terno e compreensivo e o som da voz profunda confortador como um abraço. Maggie ficou olhando para ele, com o coração apertado, desejando apenas fugir da dor, da injustiça, da verda­de. Porém, corajosamente, suportou a provocação.

— Por que nunca falou com ele a meu respeito? — Christopher perguntou, sem lhe dar tempo para falar.

Maggie engoliu em seco.

— Eu... Você sabe por quê. Não posso contar. Ela não en­tenderia.

— Sua amiga Elena entende. Talvez não muito bem, mas pelo menos tenta. E não a despreza pelo que está acontecendo. Por que não conta a Larry?

— Porque o assunto não o interessaria. É coisa minha e...

— Mas pensei que ele a compreendesse perfeitamente. Pensei que tivessem os mesmos interesses. O que ele pensa dos dragões, Maggie? Dos castelos de fadas e bolas de cristal?

— Isso não vem ao caso.

— Por que não fala de mim com ele, Maggie?

— Porque não posso! — ela gritou, sentindo o rosto arder e os olhos queimarem. — Não posso, entendeu? É tudo tão confu­so! Vocês dois pertencem a mundos completamente diferentes e quero deixar as coisas como estão!

— Prefere o mundo dele ao meu? Vai se condenar a uma vida inteira de hipotecas e taxas porcentuais, de assuntos sem alma e sem romantismo? É isso que quer, Maggie?

Ela apertou as mãos até sentir as unhas ferindo-lhe a carne, mas permaneceu firme.

— Talvez seja isso mesmo que eu queira. Desafios quase nu­los, pequenos problemas, coisas que posso controlar e compreen­der. Preciso ter uma vida normal, Christopher!

— Mas você não é uma pessoa normal. Você é uma mulher mágica, extraordinária, cheia de sonhos e com poder para realizá-los.

— Não sou nada disso! Sou uma cientista!

Ele fitou-a por um momento tão longo que ela desejou cobrir o rosto com as mãos e encolher até desaparecer, apenas para fu­gir da percepção aguda que via em seu olhar. Mas não pôde.

— Ouvi o que sua amiga Elena lhe disse — ele informou. — Em muitos pontos ela estava certa e em outros, completamente errada. Mas você não respondeu à pergunta mais importante que ela lhe fez. Está apaixonada por mim, Maggie?

Maggie pôs a mão na boca para silenciar a resposta pronta de­mais, verdadeira demais que lhe chegou aos lábios. E então, pre­cisou virar-se, para fugir ao olhar perscrutador de Christopher.

— Não — murmurou e, embora a palavra pouco mais fosse que um suspiro, ecoou na cozinha ensolarada. — Não — repetiu em tom mais alto, mas vazio e desesperado. — Não posso amar você, Christopher. Você é um espírito que ficou agarrado à Ter­ra, que não tem o direito de estar aqui.

— A única agarrada à terra é você. E sempre ficará assim, en­quanto não aprender a valorizar os sonhos. Detesto ver o que es­tá acontecendo, Maggie, meu amor, mas o fato permanece e é escolha sua.

Pelo resto do dia a atmosfera do apartamento continuou tensa e o nervosismo de Maggie não se devia pura e simplesmente à ta­refa inesperada de precisar preparar um jantar em tão curto es­paço de tempo nem à expectativa de ser apresentada aos pais de Larry. Mesmo quando Christopher, tendo abafado o ressentimen­to contra Larry, ofereceu-se para ajudá-la a escolher o cardápio, ela não conseguiu acalmar-se e agir com naturalidade. Não era capaz de esquecer o que Christopher dissera nem fingir que não estivera a ponto de dizer que o amava, assim como sentia-se im­potente diante da infinidade de perguntas que brotavam em sua mente. Sabia que estava sendo empurrada, contínua e inevitavel­mente, para um ponto em que deveria fazer uma escolha. Embo­ra procurasse esquecer que o momento da decisão se aproximava, ele permanecia em seu futuro, como um iceberg traiçoeiro escon­dido pelo nevoeiro. O tempestuoso estado de espírito em que se encontrava a levaria a uma colisão, mais cedo, ou mais tarde.

Considerando o lado prático, tudo deu certo, naquele dia. O assado sugerido por Christopher saiu perfeito, a salada ficou com aparência apetitosa, as pontas de aspargos estavam macias e a torta que comprara para a sobremesa já fora transferida da cai­xa da confeitaria para um bonito prato e encontrava-se na gela­deira para que a cobertura continuasse firme. Maggie ficou satisfeita com os resultados obtidos e achou que não era tão difícil, afinal, oferecer um jantar.

Faltavam precisamente dois minutos para as sete, quando Christopher apareceu, lindo de tirar o fôlego, num paletó de linho bran­co, meio rigor, com um cravo vermelho na lapela. Não poderia existir homem mais bonito que ele, mais afável, mais capaz de adequar-se a qualquer situação com elegância e charme.

Ela ficou tão extasiada com a aparência dele que nem teve tem­po de repreendê-lo por aparecer. Esperava que ficasse invisível naquela noite e fora tola. Christopher era totalmente imprevisí­vel. A campainha da porta soou e ela correu a atender, ajeitando a cintura da saia de tafetá verde-esmeralda que usava com uma blusa de seda do mesmo tom.

. O pai de Larry era um homem alto e robusto, de aparência dis­tinta, que ela sabia ser um advogado. A mãe era pequena, miúda e de cabelos pretos. Chegava a ser parecida com Maggie, no ta­manho e no talhe delicado.

— Que gracinha — Christopher murmurou, enquanto Mag­gie pegava o casaco de pele da mulher. — Vocês duas vão poder usar as mesmas roupas.

Maggie ficara um pouco surpresa com a semelhança e isso lhe enfraquecera as defesas, fazendo-a esquecer que não devia res­ponder.

— Muitos homens gostam de mulheres que se parecem com suas mães — cochichou, pendurando o casaco no cabide atrás da porta.

— Disse alguma coisa, meu bem? — Larry perguntou. Maggie sorriu-lhe nervosamente.

— Você não me disse que eles eram ricos — disse baixinho, observando como a mãe dele examinava o sofá antes de sentar-se. — Este casaco é de mink legítimo.

— Ela o mereceu, depois de aturar papai todos esses anos — Larry explicou, rindo.

— Ele parece com o pai — Christopher comentou..— Só que o pai tem mais cabelos.

— Bem, gostariam de tomar vinho? — Maggie perguntou em timbre ligeiramente esganiçado.

Ela percebia que Larry estava tão nervoso quanto ela, o que não facilitava nada as coisas. Embora já começasse a se arrepen­der do impulso que a levara a convidar os pais dele, achava-se mais determinada que nunca a oferecer uma noite perfeita, tal­vez por notar o desafio nos olhos atentos de Christopher.

— Larry me disse que você é professora — a mãe dirigiu-se a Maggie, quando já se encontravam instalados na sala, toman­do vinho.

— Professora — Christopher escarneceu. — Ela dá a impres­são de que você se dedica à tarefa de ensinar só enquanto espera que alguém apareça para salvá-la de tão triste destino.

— Na verdade, estou me preparando para o doutoramento em Física — Maggie respondeu, fazendo o possível para ignorá-lo. — Dou aulas na faculdade para pagar meus estudos e me manter.

— Como é ambiciosa! — a sra. Hanes comentou, erguendo uma das sobrancelhas arqueadas e muito finas. — Admiro as mu­lheres de hoje. Tudo o que pude fazer foi tentar ser boa mãe pa­ra meu três garotos e ser uma anfitriã educada para os clientes de Charles. — Sorriu para o marido. — Um emprego muito inte­ressante, eu lhe asseguro. Suponho que continuará a trabalhar, mesmo depois que tiver filhos, não? Acho isso espantoso.

— Está vendo o que a espera? — Christopher cochichou.

— As mulheres têm muitas opções, sra. Hanes — Maggie res­pondeu cuidadosamente e Larry apertou-lhe a mão com força exa­gerada.

— Maggie é uma mulher inteligentíssima, mamãe — ele afir­mou com energia. — Muito talentosa. Tenho grande orgulho dela.

— Por que se orgulha? — Christopher resmungou. — Não con­tribuiu em nada para que você fosse como é.

— Acredito, querido. — A sra. Hanes sorriu melosamente para o filho. — Mas as mulheres de carreira criam certos problemas para a família. Sei que é uma idéia antiquada, mas...

— O pai não abre a boca? — Christopher reclamou. — Gos­taria de descobrir de quem o filho herdou personalidade tão bri­lhante.

O sr. Hanes tomou um único gole de vinho e pousou o copo, fazendo Maggie arrepender-se de não ter comprado uma marca melhor.

— Talvez ele queira assistir à televisão — Christopher suge­riu, estendendo a mão para pegar o controle remoto, na mesinha lateral perto de Maggie.

Ela inclinou-se e pegou o dispositivo, mas Christopher já o acionara e a televisão começou a berrar, exibindo um jogo de fute­bol. Trêmula, ela apertou o botão que a desligava e viu que os convidados a olhavam atônitos.

— Onde está o gato, Maggie? — Larry perguntou.

— Gato? Que gato? — ela balbuciou confusa.

No silêncio que se fez, Larry virou-se para a mãe, com uma risadinha nervosa.

— Maggie tem um gato muito esperto.

— Com licença. — Maggie levantou-se bruscamente. — Pre­ciso verificar o assado.

Na cozinha, ela abriu a porta do forno com violência e abafou a própria voz fazendo o maior ruído possível com o garfo e a assadeira.

— Você é irritante — sibilou para Christopher. — O que pen­sa que está fazendo...

— Divertindo seus convidados — ele explicou cinicamente. — Sou bom anfitrião.

— Não preciso de seus comentários espirituosos e muito me­nos de sua ajuda. — Ela abriu a porta da geladeira e tirou a tra­vessa de salada. — Está tentando me confundir, de propósito.

Ele desviou-se graciosamente do caminho, quando ela girou nos calcanhares e colocou a travessa sobre o balcão.

— Não estou, não. E meus comentários não são "espirituo­sos". Só estou estabelecendo os fatos.

— Na sua opinião!

— Essa gente é insuportável, mas não me surpreendo, consi­derando que...

— Você é que está sendo insuportável! — Ela regou a salada com mais um pouco de molho. — E não se meta! A reunião é minha.

— Ora, francamente — ele resmungou impaciente, retirando uma travessa de porcelana da prateleira acima do balcão. — Vai colocar o assado aqui, não é? — Maggie agarrou a travessa rapi­damente e ele continuou: — Não acredito que queira viver o res­to de sua vida com esse bando e muito menos tornar-se um membro da família.

— Sou eu quem decido o que fazer da minha vida!

— Maggie? — A voz de Larry atrás dela assustou-a e ela virou-se, quase derrubando a travessa.

O rosto dele mostrava apreensão e nos olhos sempre calmos havia um traço de desagrado.

— Oi, Larry. — Ela forçou-se a sorrir.

— O que está acontecendo aqui? — ele perguntou em tom bai­xo. — Por que está resmungando? Dá para ouvir lá da sala.

Ela engoliu com dificuldade, segurando a travessa na frente do corpo, como um escudo.

— Desculpe, Larry. Acho que estou um pouquinho nervosa.

Ele sorriu com simpatia e passou um braço pelos ombros dela.

— Não precisa ficar assim, meu bem. Eles são um pouco emproados, mas são gente e provavelmente estão tão nervosos quanto nós.

Ela olhou por cima do ombro dele, na direção da sala.

— Acho que seu pai não gostou de mim.

— Bobagem. Por que não gostaria?

— Não sei, mas ele não disse uma palavra.

— É o jeito dele. Não é de muita conversa.

— Se não servir este assado logo, ficará arruinado — Christo­pher avisou, espetando a carne com um garfo.

Ela afastou-se rapidamente de Larry, colocando-se na frente do forno aberto, esperando que ele não tivesse visto um garfo saltitando sozinho sobre o assado.

— Se não servir a carne imediatamente, ficará arruinada — repetiu quase literalmente as palavras de Christopher, tomada de desespero.

— Está tudo bem, acalme-se. Precisa de ajuda?

— Não, obrigada. Vá conversar com seus pais, enquanto levo os pratos para a mesa.

De repente, ela desejou com todas as suas forças que o jantar terminasse o mais rapidamente possível, pois sentia a ameaça de desastre no ar. Assim que Larry virou as costas, arrancou o gar­fo da mão de Christopher e colocou o assado na travessa. Levou tudo para a mesa com pressa frenética e numa das caminhadas da cozinha para a sala, ouviu o comentário de sr. Hanes:

— Ela me parece um pouco estranha, filho. E com toda a droga que anda rolando pelos meios estudantis, hoje em dia, eu...

Maggie corou com violência, mas ficou calada.

— Ele acha que você é estranha? Por que não se olha no espelho?

Ela anunciou o jantar no tom mais gracioso que conseguiu, mas podia ver que Christopher fumegava de raiva. E embora estives­se cornos nervos à flor da pele e muito irritada com ele, não po­dia deixar de sentir-se grata pelo apoio. Notara que Larry não saltara em sua defesa diante das palavras malévolas do pai.

— Parece tudo muito bom, querida — a mãe observou, en­quanto se sentavam. — Quem diria que uma moça tão ocupada como você ainda arranja tempo para cozinhar?

— Faço o que posso — ele respondeu secamente.

Christopher estava certo. Eram insuportáveis. Mas Larry não podia ser responsabilizado pela atitude dos pais e Maggie não de­sejava magoá-lo, apesar de que mal podia esperar pelo fim da reunião.

— Física, hein? — o pai de Larry disse de repente, fixando Maggie com um olhar penetrante. — O que o mundo da ciência oferece aos jovens de hoje?

Maggie ia responder, mas a sra. Hanes interrompeu-a:

— Cientista, por todos os santos! Parece não ter idade sufi­ciente para cursar o colegial e já é cientista. Foi criança prodígio, minha querida?

— Não vão cortar o assado? — Christopher preocupou-se. Maggie pegou a faca e o garfo de dentes longos, colocados ao lado da travessa, antes que ele o fizesse, e passou-os para Larry com tanta brusquidão que o fez recuar, assustado.

— Quer cortar a carne? — pediu.

Christopher lançou-lhe um olhar estranho e distanciou-se da mesa, encostando-se na parede e cruzando os braços, deixando evidente que não pretendia interferir.

Larry pegou a faca e o garfo e o pai riu com escárnio.

— Ainda bem que ela não decidiu ser cirurgia, não acham? Sempre disse que não há nada mais perigoso que uma mulher com uma faca nas mãos.

Larry sorriu debilmente, mas o olhar que dirigiu a Maggie era cheio de impaciência. Estava à beira de perder o controle, o que Maggie nunca julgara possível.

Evitando os olhos dele, ela pegou a cestinha de pão e passou-a para a sra. Hanes. "Afinal, é apenas um jantar", pensou. "Por que Larry está tão melindrado?"

A mulher recusou o pão com um gesto esnobe.

— Não, minha querida. Não quero engordar. Na sua idade, não precisa se preocupar com o peso, mas... Quantos anos tem, se não se importa que eu pergunte?

Larry deu uma risada espalhafatosa e piscou para a mãe.

— Garanto que ela já não precisa da autorização dos pais pa­ra coisa alguma — disse. — Não ando com crianças há muitos anos.

Ninguém riu e Maggie sentiu-se embaraçada. Larry sempre fora tão rústico e antipático, ou era a presença dos pais que o punha naquele estado? Estaria revelando uma faceta de sua personali­dade que ela jamais tivera oportunidade de conhecer?

O jantar se arrastou, a conversa estava monótona e o pai de Larry bebeu demais. A mãe apenas beliscou a comida e, quando Larry perguntou o que achara, confessou que a carne estava um pouco seca. Maggie quase não falava, pensando que jamais pas­sara uma noite tão estressante e infeliz.

Christopher continuava em seu canto, lindo, elegante e cínico. Às vezes Maggie olhava para ele, com um pedido mudo de so­corro, mas ele permanecia impassível, embora ela quase pudesse ouvir seus pensamentos. "É isso o que quer, Maggie? Essa é a vida que deseja? Quer se tornar apagada, sem graça e tediosa? Quer ver Larry ficar igualzinho ao pai dele, enquanto você se transforma na cópia dessa mulher? Maggie, o que vai fazer?" Mas talvez não ouvisse os pensamentos de Christopher, e sim os próprios.

Sentada à mesa de jantar, forçando-se a ser gentil com pessoas de quem não gostava, sentia-se uma impostora. Esperava que Christopher fizesse alguma coisa, dissesse algo, para dissipar a monotonia intolerável. Os minutos passavam e ele continuava ca­lado, irritando-a e levando-a ao desespero. Trechos da conversa da manhã passavam por sua mente e embora quisesse bloqueá-los, não conseguia. E era tudo por culpa de Christopher. Se ele não houvesse enchido sua cabeça com dúvidas a respeito de Larry, se não a forçasse a vê-lo .sob um prisma diferente, ela estaria num estado de ânimo diferente. E sobretudo, como seria bom se Chris­topher não houvesse surgido em seu caminho, mostrando-lhe co­mo a vida podia ser excitante e maravilhosa!

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Maggie foi à co­zinha buscar a sobremesa, contente porque a noite terminava, enfim. Quando voltou a ocupar seu lugar à mesa, Larry levantou-se e ergueu o copo de vinho.

— Quero fazer um brinde — declarou, voltando-se para Maggie. — À graciosa hospitalidade de nossa anfitriã, uma mulher encantadora e cozinheira excelente. Espero... — Fez uma pausa, olhando para ela com ar terno, que ela não decifrou, sendo apa­nhada de surpresa pelo que veio a seguir: — que ela aceite ser minha esposa.

A mãe de Larry pigarreou, como que engasgada e o pai co­mentou secamente:

— Mas isso foi uma surpresa!

Maggie continuou sentada, aparvalhada, pensando que os acon­tecimentos da noite iam de mal a pior. Larry fitou-a, ainda sor­rindo calorosamente.

— Bem, Maggie, o que diz?

Parecia não haver nenhuma dúvida nos olhos dele e subitamente ela percebeu que o palco fora preparado para a encenação, co­mo se Larry pensasse que a tornaria entusiasmada com uma de­claração pública de seu desejo de um compromisso sério. Propusera casamento na frente dos pais, não deixando margem para argumentações. Só faltava sua resposta.

Ela olhou desesperada para Christopher, mas ele apenas ergueu as sobrancelhas, sem dizer nada. Ela desviou os olhos da figura imponente e torceu as mãos no colo, invadida pelo mais descon­fortável nervosismo. Não era aquilo que desejava, afinal? Situa­ções reais, solidez, um homem comum, que apenas queria lhe dar amor pelo resto da vida?

— Maggie? — Larry chamou-a meigamente.

— Não — ela respondeu.

A palavra, dita em tom muito baixo, teve o efeito de um grito. O silêncio rodeou a mesa e a tensão na sala tornou-se quase pal­pável. Maggie olhou para Larry e repetiu mais alto e com mais clareza:

— Não, Larry. Desculpe, mas não posso me casar com você.

A expressão de perplexidade que passou pelo rosto dele era qua­se cômica. Larry olhou acanhado para o pai e novamente para Maggie, enquanto uma onda de sangue lhe subia às faces. Ga­guejou algumas palavras indistintas, antes de conseguir se expri­mir com alguma firmeza.

— Você foi apanhada de surpresa, querida. Apenas precisa de algum tempo para pensar.

— Não! — Ela amassou o guardanapo e atirou-o na mesa. Sentia-se tão humilhada quanto ele e a desagradável sensação, combinada com a tensão que se acumulara durante o jantar, levou-a a perder a calma. — Sinto muito se ficou desapontado e embaraçado, Larry, mas você não devia ter feito isso. Eu não quero me casar com você nem preciso de mais tempo para pen­sar. Já tomei minha decisão e está acabado.

— Mas Maggie, eu entendi que...

— Você nunca entendeu coisa.alguma! — ela gritou, pondo-se de pé. — Nunca me ouviu, realmente. Acha que desejo passar uma vida inteira assim? — Com um gesto largo, abrangeu a me­sa e os pais dele. — Pensa mesmo que quero me transformar nu­ma pessoa que só pensa em casacos de mink e pequenos jantares íntimos para os clientes do marido, preocupando-se em que o as­sado não fique seco demais? Isso não é para mim, Larry e, se me conhecesse, teria compreendido.

— Que horror! — a mãe exclamou.

— Não há razão para estar gritando, Maggie — Larry repreendeu-a com altivez.

— Grito quanto quiser, porque estou na minha casa, esque­ceu? — ela continuou, sem poder acreditar na forma como esta­va agindo, perdendo o controle e fazendo uma cena infantil e sem poder se refrear. — Não devia ter feito o que fez, Larry. Não devia trazer seus pais aqui para me propor casamento diante de­les. Não devia ter presumido que eu o aceitaria. Talvez esteja es­pantado com uma faceta minha que não conhecia, mas eu também vejo um lado seu que não me agrada.

Ele pousou o copo de vinho na mesa e fez menção de pegá-la pelos braços, mas Maggie empurrou-o.

— Não pode controlar meus pensamentos, Larry. Não pode controlar minha vida! Quando vai entender que não adianta ten­tar me fazer mudar de idéia?

— Vamos conversar...

— Não. Acho melhor vocês irem embora. Gostaria de ficar sozinha.

— Bem, fomos sumariamente despedidos — disse o pai com secura, levantando-se da mesa.

Larry hesitou e olhou para os pais com ar humilde.

— Acho que Maggie não está se sentindo bem.

— Também acho, e eu própria estou ficando com dor de ca­beça — disse a mãe, em tom de desprezo.

Maggie virou-se, odiando-se pelo que fizera, desejando pedir desculpas, mas incapaz de pronunciar uma palavra ou de sim­plesmente encará-los. Ouviu os movimentos que faziam juntan­do os agasalhos e a frase murmurada da sra. Hanes sobre terem tido uma noite agradável, o que quase lhe causou um ataque de riso histérico.

E, então, Larry postou-se diante dela, atônito e ferido.

— Telefono amanhã — prometeu, apaziguador.

— Não — Maggie respondeu cansada. — Para quê?

Ele ainda ficou parado na frente dela por alguns instantes, in­deciso. Mas os pais o esperavam impacientes e com um suspiro afastou-se, juntando-se a eles.

No instante seguinte, a porta fechou-se atrás dos três.

 

Maggie abraçou-se com força, numa tentativa de acabar com o violento tumulto de emoções que a fazia tremer.

— Está contente agora? — perguntou a Christopher com voz sumida.

— Estou — ele respondeu tranqüilamente. — Você fez o que devia fazer, como eu previa. E agora que se livrou dele, nós dois podemos continuar nossa vida.

Ela encarou-a, incrédula e furiosa.

— Nossa vida? Que vida? Não existe tal coisa para nós, Chris­topher. O que existe é uma interferência, uma manipulação de sua parte, o que vai acabar por arruinar o que sobrou de mim.

— Não fui eu que mandei seu pretendente embora, mas você mesma.

— Não teria mandado, se você não interferisse, não enchesse minha cabeça de críticas e opiniões, fazendo-me crer que era isso que eu queria. — Uma voz íntima cochichou-lhe que ele a fizera ver a verdade, mas Maggie recusou-se a ouvi-la. — O que é que você sabe dos meus desejos? Talvez, tanto quanto Larry.

— Tudo o que fiz foi para o seu bem — ele afirmou gen­tilmente.

Mas Maggie não queria raciocinar. Estava confusa e furiosa com a própria incerteza. E dirigiu toda a raiva para Christopher.

— Que bem? — gritou. — Agiu como uma criança mimada e ciumenta que quer fazer as coisas a sua maneira. Não vou mais tolerar isso, ouviu? Não vou!

Ele deu um passo na direção dela.

— Maggie, seja razoável! — disse com brandura.

Mas isso era pedir demais. As tensões acumuladas, o desespe­ro e a frustração dos últimos meses formaram uma crosta ao redor do coração e da mente de Maggie, impedindo-a de pen­sar.

— Não! — ordenou secamente, fazendo-o parar no meio do caminho. — Não. Guarde suas lindas palavras para você mes­mo, porque não vou mais ouvi-las. Não vou me enredar no seu encanto. Já chega, entendeu? Esta é minha vida e vou vivê-la do jeito que quiser.

Talvez a expressão que passou pelos olhos dele fosse de má­goa, mas ela não se importou.

— Maggie, não pode estar falando sério. Sabe que eu nunca faria nada para prejudicá-la.

— Mas está prejudicando. E me prejudica a cada minuto que passa em volta de mim. Apenas está me usando para ficar ligado a um mundo que não é mais o seu e arruinando minha vida por egoísmo. É tão egocêntrico que não vê nada disso.

— Não é verdade, Maggie! — ele defendeu-se, e se ela não es­tivesse tão fora de si, veria o sofrimento nos olhos castanhos e se calaria.

— Você está morto, Christopher! E é tão teimoso e tão egoís­ta que não admite. Não há lugar para fantasmas em minha vida. Para nós não há futuro nem esperança.

— Não faça isso, Maggie...

— Tenho de fazer! Você precisa enxergar a verdade — ela gri­tou, percebendo que a frágil estabilidade emocional se partia, expondo-a à dor e ao desespero. Escondeu o rosto nas mãos, mas não podia ocultar-se da verdade. Tornou a olhar para ele, total­mente desamparada. — Christopher, não pode dar certo. Será que não entende? Não temos nenhuma esperança e isso está me destruindo. Não posso viver assim. Tento me convencer de que posso, mas é mentira. Não me peça para suportar esta situação por mais tempo. Oh, Deus, isso não é justo!

Enquanto falava, ela desejava parar, mas as palavras eram co­mo torrentes derrubando as comportas do autocontrole e rola­vam, espalhando dor lancinante, um tormento que se refletia nos olhos dele e se cravava na alma de Maggie.

— Você está morto! — repetiu num gemido. — Precisa ir em­bora daqui. Morreu sob as rodas de um automóvel, em Baltimore, no último dia do ano de 1899. Nada poderá mudar isso, Christopher. Nunca! Sua vida acabou e você não pode tê-la de volta, pelo menos aqui e agora.

O rosto dele espelhava o mais profundo choque e incredulidade. Os olhos escuros fulguravam de revolta.

— Não foi assim que aconteceu — negou com veemência. — Eu me lembro perfeitamente...

— Lembra nada! — ela respondeu, embora estivesse horrori­zada com o que dissera de forma tão brutal. Mas não podia vol­tar atrás, por mais que quisesse. — Como não se lembra, finge que o acidente não aconteceu e que continua vivo. Mas aconte­ceu, Christopher. Tudo acabou.

— Nãããão! — O som ecoou pela sala, agoniado e furioso e Maggie abafou o próprio grito, colocando as mãos na bo­ca. — Não! — ele repetiu, com o rosto refletindo todo o sofri­mento de ver o filme das lembranças desenrolando-se inexora­velmente.

Era terrível presenciar tanta agonia e Maggie desejou não es­tar ali ou ter o poder de destruir o monstro da recordação que ela impiedosamente soltara.

— Estava nevando — Christopher murmurou, com o rosto transfigurado pela dor. — Eu estava indo para a estação. Ia vol­tar para casa e pensava... Oh, Deus, que coisa mais injusta! Mi­nha vida não podia terminar naquele momento porque eu estava esperando você, Maggie. Mas nunca nos conhecemos, nunca nos amamos. Ah, Maggie, por que você não estava lá, quando eu po­deria lhe dar meu amor?

Com um soluço, ela jogou-se para a frente, estendendo as mãos para ele. Ouviu-o gritar antes de ser apanhada num abraço quente e desesperado. Agarrou-se a ele e seu corpo tornou-se um objeto distante, que ela mal percebia, pois sua alma fora inundada por Christopher, invadida por ondas de cor e luz, no deslumbramen­to da verdade.

Desde o começo dos tempos Christopher fora parte dela. Para cada homem existia uma mulher e cada mulher tinha o homem certo para amar. Christopher era seu destino, embora por algum acidente ficassem separados nos séculos. Ele vivera e morrera amando-a, sem todavia, conhecê-la na existência em que se cha­mara Christopher Durand. Por noventa anos esperara encontrá-la e ela conservara parte de si mesma reservada para ele, intoca­da e solitária. Sem saber, era por Christopher que esperava e seu coração mantivera-se fiel através dos desencontros no tempo. Por que se encontravam quando era tarde demais?

A brilhante espiral de luz e cor que a elevava acima do mundo, sob o toque das mãos de Christopher, começou a escurecer e des­botar, minada pelo desespero. Maggie não mais sentia a proxi­midade de Christopher, tentava abrir os olhos, mas não conseguia, procurava gritar, mas não tinha voz. Dele emanavam vibrações de resignação e sofrimento, que a envolviam em sensações insu­portáveis.

— Encontrei você, amor — ele murmurou. — Talvez essa fosse minha missão.

Ela percebeu que ele se distanciava e se dissolvia. Queria lutar contra a separação, mas estava cega, muda, conservando apenas a capacidade torturante de pensar. E em pensamento pediu-lhe perdão, implorando-lhe para que não a abandonasse.

— Devolvo-lhe a vida a que tem direito, Maggie. Debatendo-se freneticamente, ela abriu os olhos e ainda o viu, mas não era mais o mesmo. Não passava de um vulto tênue e bruxuleante como a chama de uma vela prestes a se apagar.

— Adeus, querida...

— Christopher! — ela gritou recuperando a voz, tropeçando ao correr na direção dele. — Christopher, não...

Tentou alcançá-lo, mas suas mãos encontraram somente o vazio.

Três dias mais tarde, sentada perto da janela de um restauran­te, Maggie observava a primeira neve da estação revolutear gra­ciosamente no ar gelado.

— É bonito, não? — Larry perguntou e ela forçou um sor­riso.

— A neve sempre dá a impressão de que tudo é limpo e novo. Ele telefonara várias vezes desde o dia do jantar e ela hesitava em encará-lo, em encarar a si mesma. Sua vida se transformara num amontoado de farrapos e apenas muito lentamente se refa­zia. Era necessário ajustar-se ao mundo outra vez. Christopher se fora. O estranho acontecimento terminara. Ela se encontrava vazia.

Larry pegou a mão dela por cima da mesa.

— Quero que me desculpe, meu bem.

A surpresa que experimentou foi a primeira emoção real que ela sentia em três dias.

— Eu, desculpá-lo? Se fui eu que agi como uma louca! Envergonhei você na frente de seus pais e fiz papel de idiota. Larry...

Ele interrompeu-a, apertando-lhe a mão.

— Eu errei em pegá-la de surpresa daquela maneira, Maggie. Fui insensível e você tinha todo o direito de ficar desnorteada. Além disso, sei que está com algum problema, mas não vou abandoná-la, querida. Seja o que for, resolveremos juntos o que fazer.

— Mesmo depois da cena que aprontei...

— Ainda desejo que seja minha esposa, Maggie. Faz tempo que decidi que a quero como companheira de minha vida. Para o melhor e para o pior, nos bons momentos e nos maus. Não é isso que os noivos prometem, na cerimônia?

Ela fitou-o longamente, pensando.

— Acho que nunca percebi que homem maravilhoso você é — disse por fim, com um sorriso triste.

— Isso significa que me aceita?

Seria tão simples dizer que sim. Larry era bondoso e pas­sara num teste extremo de lealdade. Representava solidez, res­ponsabilidade e segurança. O que mais uma mulher poderia pe­dir?

Mas tudo mudara para Maggie. Antes de Christopher, nada sentira, nada lhe faltara. Vivia sozinha e satisfeita com a rotina. Mas Christopher lhe mostrara a alegria de compartilhar emoções, de envolver-se com outra pessoa, de preocupar-se intensamente com alguém. Ele se fora, mas o coração de Maggie ainda ansiava por sua presença. Contudo, de que se queixava? Não recuperara sua vida normal, perfeitamente regrada por normas comuns, sem grandes surpresas ou sustos? Voltara para o mundo de pequenos desafios, triunfos modestos e sonhos comedidos. E Larry oferecia-lhe tudo de que precisava, exceto por um detalhe.

— Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Larry.

— Pergunte o que quiser, meu bem.„

— Você acredita em dragões?

Ele piscou aturdido e Maggie pôde sentir que ficava tenso.

— O quê?

Ela, porém, não precisava de nenhuma resposta. Com gentile­za, tomou a mão dele entre as suas.

— Você seria um marido maravilhoso, Larry. Algo em mim deseja que você pudesse ser meu companheiro, mas não o amo. E estar casada com um homem que não se ama seria pior que viver... — ela sorriu ligeiramente das palavras que lhe ocorreram — com um fantasma.

Ergueu-se da cadeira e deu a volta na mesa para beijá-lo cari­nhosamente no rosto.

— Ouça o que vou dizer, Larry: existe uma mulher para cada homem, a mulher certa, para ser amada por toda a eternidade. Vá procurar essa mulher que está a sua espera, Larry. Sua mis­são é encontrá-la, nem que nessa busca leve uma vida inteira. — Endireitou o corpo e olhou pela janela, sorrindo para a neve que caía como flocos de algodão. — Ou mais que uma vida.

No dia dez de dezembro Maggie mudou-se para a casa que fora de Christopher. Pensara que seria difícil, que a tristeza a atormentaria, que as lembranças a sufocariam e que, talvez, ela não conseguisse morar lá por muito tempo. Mas foi tudo di­ferente.

Os corredores ressoavam com a voz de Christopher, as pare­des vibravam com sua presença, cada tábua, cada prego, falava do amor que ele colocara na construção. Criara a casa para ela e lá vivera, a sua espera. Sempre estaria ali, nem que fosse ape­nas em sua lembrança. Não havia outro lugar no mundo para Maggie Castle.

Ainda teria muito trabalho para deixar a casa como sonhara. O banheiro de cima estava em reforma, mostrando canos expos­tos e ladrilhos quebrados. Todos os quartos continuariam fecha­dos, menos o dela, até que tivesse tempo de pensar neles. A cozinha ainda não fora totalmente pintada e uma lona cobria o chão até que fosse feito o revestimento definitivo. Mas ela colo­cara uma grande poltrona de leitura na frente da lareira da bi­blioteca e uma linda árvore de Natal diante da janela da sala de visitas. Limpara e polira todos os móveis do quarto secreto até fazê-los brilhar e não vendera a caneca Paul Revere. Nunca o fa­ria, Tudo o que fora de Christopher ficaria como ele deixara, mas logo os pertences dela se misturariam aos dele. Quando ela fosse ao recanto secreto, sentir-se-ia ligada a ele. O quarto seria dos dois, exatamente como ele planejara.

Maggie continuava oca intimamente e uma parte daquele va­zio jamais seria preenchido. Mas, com a passagem dos dias, tornava-se mais fácil suportar a saudade. Por causa de Christo­pher, tornara-se uma pessoa diferente, mais forte, com outra vi­são da vida e seus valores.

Um dia, encontrava-se no vestíbulo, pendurando um espelho. O sol de inverno entrava pelas janelas sem cortinas e fazia cintilar o presente que Elena lhe dera, um cacho de ametistas que ela colocara numa mesinha de mármore, no lado oposto ao espelho. Talvez as pedras não tivessem os poderes mágicos que a amiga apregoara, mas realmente embelezavam o ambiente. Com o es­pelho e a vitrine de vidro que guardava a coleção de miniaturas de Maggie, o vestíbulo sempre pareceria inundado de luz.

Ela deu alguns passos para trás querendo avaliar o efeito, ig­norando uma pontada de emoção quando se lembrou de que ju­rara nunca colocar espelhos naquela casa. Tal juramento, como tantas outras coisas, não importava mais, mas a recordação ma­chucava fundo.

Dirigiu-se para a vitrine, onde os dois dragões em combate ocupavam um espaço na prateleira superior. Pendrake e Ulyssia. Pegou a estatueta e encostou-a no rosto, dominada por uma onda tão violenta de saudade que o coração apertou-se, dolo­rido.

— Oh, Christopher, eu te amo — murmurou, com lágrimas nos olhos. — Sempre te amei.

— Esperei uma eternidade para ouvir essas palavras — disse alguém atrás dela.

O coração parou. Tudo parou, enquanto ela erguia os olhos lentamente. Havia uma pessoa refletida no espelho. Girou sobre si mesma.

— Christopher!

A luz do sol brilhava nos cabelos escuros e nos olhos sorriden­tes. O rosto atraente parecia mais vivo que nunca e ela quis tocá-lo para certificar-se de. que não era uma ilusão. Deu um passo para a frente, tomada de júbilo, mas parou de repente, confusa e indecisa.

Ele sorriu gentilmente.

— Sempre disse que você tinha o poder de transformar os so­nhos em realidade. E o amor é o maior de todos os poderes.

Ela tremia incontrolavelmente e mal podia respirar. A estatue­ta escorregou-lhe das mãos e caiu no chão com um baque surdo.

— Mas como... P-pensei... — balbuciou, virando-se para o espelho. — Estou vendo você no espelho, Christopher! Estou ven­do você!

— É tão estranho assim? — ele perguntou.

— É! — ela gritou, enquanto uma idéia maravilhosa, incrível, abria caminho em sua mente.

Mas era fantástico demais. Não podia ser verdade e ela devia estar sonhando. Seu rosto resplandecia de felicidade e esperan­ça, quando ela voltou-se para ele e teve a certeza inebriante. Con­tra todo o raciocínio, contra tudo o que seria explicável pela Ciência ou pela Metafísica, ela soube que um milagre acontece­ra. Estendeu a mão para a que ele lhe oferecia e seus dedos se entrelaçaram, quentes, sólidos, com a força de um toque pura­mente humano.

— Você é real — ela sussurrou. — Seu corpo é real. — Fe­chou a outra mão ao redor de um braço musculoso e apertou-se contra a carne quente e palpitante do peito que a acolheu. Olhou para o rosto adorado, quase em êxtase. — Christopher, você vol­tou para mim. Está aqui. Está vivo!

— Sim, estou — ele concordou com espanto, alegria e aturdimento refletidos nos olhos castanhos e cheios de amor. — Vol­tei, Maggie.

Acariciou o rosto dela com timidez a princípio e depois com mais segurança, maravilhado e feliz.

— Maggie, seu rosto é mais macio do que eu julgava. Seus ca­belos... — Lágrimas brilharam em seus olhos, enquanto ele des­lizava os dedos pelos cachos sedosos até atingir o pescoço delicado, onde o sangue pulsava, freneticamente, revelando toda a emo­ção que ela experimentava. — Maggie, eu posso sentir seu calor, sua pulsação... Posso tocá-la, Maggie!

Ela queria rir e chorar ao mesmo tempo. Acariciou-o sofregamente, nos braços, no peito e no pescoço.

— Não pode ser —- cochichou. — É impossível! Como se ex­plica um milagre?

— Sempre questionando, não é meu amor? Meu Deus, Mag­gie, por que precisaremos de respostas agora? Aconteceu. Estou aqui com você e sempre estarei.

Ela decidiu que não se torturaria com perguntas que ninguém poderia responder. Quando o amor era bastante forte e profun­do, tudo era possível. Júbilo, espanto e reverência indescritíveis inundaram-lhe a alma e ela extravasou as emoções em riso.

— Oh, Christopher, não quero explicações. Nada tem impor­tância. — Apertou-lhe as mãos, deixando-se invadir pelo calor humano, sensual, do homem a quem amava. — O sonho não aca­bou! Você voltou para mim! Como estava escrito em nossos des­tinos, teremos uma vida juntos.

Nos olhos dele havia a mesma luz maravilhada que iluminava os dela, embora ainda restasse uma sombra de incerteza.

— Estou me sentindo esquisito e tudo se confunde em minha cabeça. Momentos atrás eu julgava saber a resposta para este mis­tério, mas agora já não tenho certeza de como aconteceu. Eu não me lembro...

Ela fitou o rosto dele, ansiosa.

— Não se lembra de como nos conhecemos? Não se lembra de que esperou por mim durante tantos anos? Não se recorda da vida que teve antes, no século passado?

— Eu me lembro de você. Sempre esteve presente em minha existência, Maggie. Mesmo além do ponto onde terminam minhas lembranças, você sempre esteve comigo. Lembro-me também dos momentos que passamos juntos em seu apartamento, do que fi­zemos e sentimos... e desta casa.

Ele olhou em volta, parecendo perplexo.

— Sei que vivi aqui antes, mas os detalhes perderam a niti­dez e enquanto estou falando as lembranças vão se desvanecen­do. — Olhou para ela e sorriu. — Mas suponho que tem de ser assim. Não seria inconveniente lembrar-se de uma vida, vivendo outra?

— Christopher...

No instante seguinte estavam nos braços um do outro e seus lábios famintos se encontravam num beijo apaixonado. Os cor­pos pressionados geraram o calor do desejo eletrizante, vertigi­noso e exigente, mas ainda assim suave e terno. Depois do beijo, permaneceram abraçados, frementes e felizes. Maggie deleitava-se com o som do coração de Christopher batendo descompassadamente e com o sopro irregular de sua respiração.

— Seja bem-vindo ao lar — murmurou docemente.

Ele sorriu e, deslizando um braço por baixo de suas pernas, ergueu-a do chão. — Sim, meu amor, voltei para casa. Beijou os cabelos anelados e começou a subir a escada.

 

O sol da manhã beijou o rosto de Maggie e ela despertou, sor­rindo às lembranças da noite: Christopher, calor, escuridão e pai­xão avassaladora. Toques suaves, abraços desesperados, corpos se procurando e se fundindo. E não fora sonho. Christopher es­tava ali, vivo e real. Estava?

Por um longo momento ela permaneceu imóvel, receando abrir os olhos e descobrir que tudo não passara de fruto da sua imagi­nação. Então, ouviu-o respirar suavemente. Estendeu a mão e tocou-o, sentindo a maciez da pele e a rigidez dos músculos do braço. Christopher.

Abriu as pálpebras e encontrou-lhe o olhar gentil. O cabelo es­tava despenteado e a cabeça bem-feita formava uma depressão no travesseiro. Suspirando, satisfeita por constatar que ele era sólido e verdadeiro, acariciou-lhe a covinha do queixo. Ele sor­riu e ela escorregou para os seus braços. O perfume do corpos másculo, almiscarado e embriagador deu-lhe a certeza de que se achava abraçada a um homem e não a uma ilusão.

Ele beijou-lhe os cabelos.

— Estou sentindo cheiro de café — anunciou com voz sonolenta.

Maggie riu.

— É a cafeteira elétrica. Lembra-se de que ontem à noite fo­mos à cozinha e...

— Sim, eu me lembro da cozinha — ele afirmou em tom su­gestivo, fazendo-a corar.

Cada momento guardava a lembrança de paixão insaciável, de corpos se unindo, ansiosos e deslumbrados, incapazes de ficar se­parados ao menos durante o tempo necessário para preparar uma refeição. A cafeteira fora ligada, mas o jantar ficara esquecido. E à medida que as recordações do que se passara ria cozinha, bei­jos audaciosos e abraços apaixonados que os levaram de volta ao quarto, desfilaram pela mente de Maggie, ela teve uma visão deliciosa do que os dias e anos futuros lhes dariam.

Christopher, sintonizado com sua corrente de pensamentos, co­mo sempre estivera, correu uma das mãos pela curva graciosa dos quadris provocantes numa carícia que não falhou em desenca­dear nova onda de desejo. Maggie, porém, obedeceu a algum ins­tinto que a aconselhava a não mostrar-se tão ávida, a não mergulhar no delírio da paixão esquecendo-se de todo o resto. Com relutância, afastou-se dele, beijando-lhe o rosto.

— Vou buscar café.

Ele segurou-a pela cintura e em seu olhar havia uma súplica quase irresistível.

— Precisa ir? Agora?

Sem se deixar convencer, Maggie pegou o roupão que deixara na coluna da cama e vestiu-o, saindo da cama.

— Vamos ter de ficar separados, de vez em quando — expli­cou, embora não houvesse nada no mundo que a atraísse mais que o refúgio dos braços dele. — Se ficarmos sempre juntos, como vou saber que não vai desaparecer durante minha ausência? Como vou descobrir se você é, ou não, uma fantasia da minha mente?

Ele afofou o travesseiro e recostou-se nele, cruzando os bra­ços acima da cabeça e sorrindo.

— Não sou nenhuma fantasia. Estarei aqui quando você voltar.

De qualquer maneira, ela desceu o mais rápido que pôde e quan­do retornou ao quarto, com uma bandeja, estava quase sem fô­lego. Trouxera duas xícaras de café, um açucareiro e um pote de creme. Olhou para a cama e Christopher continuava lá, sentado de pernas cruzadas e já vestido na calça que usava quando volta­ra, no dia anterior. O peito estava nu e ela acariciou-o com o olhar, admirando a bela formação dos músculos e o desenho ca­prichoso dos pêlos escuros e sedosos. Havia tanta coisa que ela não sabia sobre ele, que nunca imaginara, e cada detalhe era um milagre diferente.

— Não sei se gosta de creme, ou de açúcar, então trouxe os dois.

Ele pegou uma das xícaras, com ar pensativo.

— Engraçado. Também não sei.

— Christopher... — Ela pousou a bandeja na mesinha de cabeceira e pegou a outra xícara, antes de sentar-se ao lado dele, na cama. — Não se lembra de nada da outra vida? Ele negou com um gesto de cabeça.

— Minhas lembranças começam no dia em que encontrei vo­cê, aqui nesta casa.

— Não se lembra de que foi... — Não conseguiu terminar.

— Um desencarnado? — ele ajudou-a, sorrindo. — De certa maneira, sim. Isto é, sei que fui, mas não me lembro de como era. Não é estranho?

— Sim.

Ela apalpou-lhe a perna, deixando os dedos roçarem no tecido áspero da calça.

— Parece lã. De onde veio esta calça? Materializou-se no ar? Christopher, como essas coisas acontecem?

— Quem sabe por um processo de transmutação da matéria? — ele sugeriu.

— Impossível. Não existe nenhuma prova de que isso possa acontecer. Nem mesmo teorias, pelo menos aceitáveis.

— A primeira lei da Ciência diz que o desconhecido não exis­te. Há verdades que ainda não descobrimos, só isso.

— Não se pode ignorar as leis da Física.

— Nem negar o fato de que essas leis foram inegavelmente que­bradas, no meu caso.

Maggie ia replicar, mas calou-se. Viu a expressão intensa que havia no olhar dele, adivinhando que a mente ágil preparava no­vos argumentos. Pensou nos anos que teriam pela frente, cheios de discussões e exercícios mentais. Riu, então, completamente de­liciada.

— Sempre discute pelo prazer de discutir? — perguntou desafiando-o.

— Sempre que posso — ele afirmou com um sorriso travesso.

— Venha cá. — Puxou-a de encontro ao peito, onde ela se ani­nhou, e experimentou o café, fazendo uma careta. — Acho que gosto de café com creme e açúcar.

— Ah, eu estava tão bem acomodada!

— Está mais perto da mesa que eu.

— As mulheres do século XX não são escravas dos homens.

— Custa muito me fazer um favor?

Fingindo relutância, ela inclinou-se para a bandeja e o movimento fez o colchão balançar. Christopher soltou uma exclama­ção de dor quando o café quente caiu-lhe sobre a mão.

— Queimou? — ela perguntou preocupada, olhando para a mancha rosada nas costas da mão dele. — Espere, tenho um anestésico.

— Não. A dor é uma sensação maravilhosa, real — ele decla­rou, sorrindo.

— Oh, Christopher — ela murmurou, mais uma vez extasia­da, diante da idéia do que ele era realmente humano. — É tudo verdade, não é? Você está vivo, aqui comigo. — Parou de falar, acompanhando os pensamentos incríveis que lhe ocorriam. — Per­cebe os problemas que esta situação vai criar? É um fenômeno que nunca aconteceu antes... Você irá precisar de nova identida­de, de emprego, documentos, carteira de motorista... Mas nada disso importa, não é mesmo? — Ela riu e colocou a xícara na bandeja, antes de ajoelhar-se na cama e abraçá-lo pelo pescoço. — O que importa é que você está aqui, mesmo que eu nunca com­preenda o que fiz para merecer tanta felicidade.

Ele pôs a xícara no chão e fitou-a com serenidade e infinita ternura.

— Talvez não seja para compreendermos, Maggie. Devemos aceitar um milagre sem questioná-lo. Às vezes não existem res­postas, a não ser a do amor.

Ela encostou o rosto no dele e fechou os olhos. Lágrimas de gratidão e felicidade deslizaram mansamente por suas faces, en­quanto ela pensava que um milhão de anos não seria tempo sufi­ciente para amar Christopher Durand.

— Sabe do que mais eu vou precisar, na minha volta ao mun­do? — ele perguntou, baixinho.

Ela sorriu por entre lágrimas.

— Do quê?

— Uma licença de casamento.

— É?

— Eu sempre disse que você precisava se casar e ficaria hon­rado se me aceitasse como seu marido.

— Não aceitaria nenhum outro — ela segredou. Lentamente suas bocas se uniram e Maggie entregou-se a uma alegria que não conhecia limites. Christopher estava ali, existia e era dela. Para todo o sempre.

 

[1] Fedor exalado por pessoa ou por animal; catinga, inhaca, bodum.

[2] 1.Que fica pasmado diante de tudo. 2.V. tolo

[3] Irritar (-se), enfurecer (-se), assanhar (-se):

 

                                                                                Rebecca Flanders  

 

                      

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