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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MARÉ DE SANGUE / Melvin Burgess
MARÉ DE SANGUE / Melvin Burgess

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MARÉ DE SANGUE

 

O terraço no trigésimo andar fora destruído muito tempo atrás, mas o edifício Galaxy ainda era o mais alto de Londres. Os enge­nheiros o haviam consertado e agora era seguro lá em cima - mais ou menos. Um homem de cabelos grisalhos, crespos e cur­tos estava parado na plataforma de observação, apontando para os pontos turísticos. Seu rosto era um emaranhado de rugas e linhas marcantes cortadas por uma cicatriz em forma de "Y" em cima de um dos olhos. Ele usava um casaco largo, com as mangas enroladas. Enquanto inclinava-se para mostrar o Big Ben, a St. PauPs, a Tower Bridge, as Docas e o que havia mais além, seu casaco desabotoou. Debaixo dele, havia um coldre de ombro, onde era possível distinguir o formato perfeito e letal de uma arma.

Este homem era Val Volson. Dono da metade de Londres.

Ao seu lado, uma garota alta e magra de catorze anos acom­panhava o seu dedo. Ela usava uma saia curta, meia-calça e um casaquinho verde aberto que revelava um coldre de ombro que também guardava uma arma, menor que a outra. Uma arma con­feccionada especialmente para ela - o tamanho certo para uma menina. Mas era igualmente letal.

Avistava-se a cidade inteira lá de cima - os prédios londrinos e as colinas e montes que se estendiam até os subúrbios e a Muralha. Para além da Muralha, pontilhada na distância, jazia a terra dos meio-homens - quilômetros e mais quilômetros de entulhos, muros em ruínas e árvores que se amareleciam naquele dia ameno de outono, abrindo caminho pelo asfalto. Ainda mais além, o mundo começava.

E seguindo através do noroeste, Ragnor. Suas torres e prédios diminuíam a Velha Londres. Os meio-homens que eram captu­rados diziam que Ragnor parecia flutuar, como se fosse feita de tiras brilhantes de luz e vidro e de tiras escuras de sombras. A noite, essas edificações brilhavam como uma pequena galáxia reluzente no grande mundo do Lado de Fora. A simples presen­ça dessas edificações era uma lembrança de que Londres estava aprisionada fora do mundo.

E quando fizermos o mesmo com o resto da cidade - Vai pressionou o polegar na palma da outra mão para demonstrar onde exatamente queria o resto de Londres -, então, minha me­nina, nós tomaremos a terra dos meio-homens. E depois dos meio-homens, os campos, as fazendas, os vilarejos e as cidades. Em seguida, tomaremos a própria Ragnor e vamos negociar com as forças de segurança...

Mas os meio-homens! - gritou a garota, com uma agonia entre o deleite e o terror.

Essa é a parte fácil. A essa altura eles já estarão mortos e enterrados. E então... Inglaterra... Europa. Voltaremos a fazer parte da nação. A nação seremos nós. E isso aí. Não vai demorar. Estamos chegando lá, Signy!

A garota contemplava com avidez a paisagem lá fora. Ela ha­via escutado esse tipo de história por toda a vida. Histórias entoa­das em seu berço como canções de ninar, antes mesmo que ela pudesse entender as palavras. Agora tudo se tornava realidade.

Mas todos nós teremos que fazer sacrifícios. Está me en­tendendo?

Eu não quero ir embora. - Signy enterrou furiosamente o polegar na plataforma.

Mas você vai.

A garota olhou por um instante o rosto sorridente do pai e depois desviou o olhar.

Assim você poderá nos ajudar da mesma forma que ajudei nesses meus cinqüenta anos de luta.

Eu quero ficar na escolta.

Você pode ficar na escolta de Conor. - Ele bateu no peito. - Vou insistir nisso!

Odeio Conor.

Família é assim, negócios são assim - disse Val, Rei Val, como era chamado naqueles dias, mantendo-se ereto e dando de ombros. Amor... ódio. E daí?

Vai estava decepcionado com a filha. Não porque esperava que ela quisesse Conor, mas porque esperava que ela quisesse fa­zer o que ele lhe mandava fazer.

Existem maneiras bem mais eficazes para eu lutar por nós. Sou melhor que todos eles. Você sabe disso - retrucou a garota, empinando o queixo.

Ben, Had e Siggy não reclamam quando dou uma tarefa a eles.

Não é justo! Isso não é uma tarefa, é uma vida inteira! Você não lhes pediria que fossem embora e se prostituíssem por você.

Eles vão casar com qualquer pessoa que eu indicar. - Vai deixou escapar um silvo perigoso entre os dentes.

Isso é diferente.

Só porque você é uma garota? - Vai ironizou.

Não é justo! Eu só quero ser tratada como os outros. E é isso o que não está acontecendo.

Você será uma espécie de espiã - disse Vai, lançando um olhar penetrante sobre a filha furiosa. Ela é que estava sendo injusta.

Não dá para ser espião em todos os segundos de uma vida, isso é estupidez.

Ela pronunciou a última palavra lentamente, como se a sabo­reasse. Val ergueu a mão para bater no rosto da filha, mas, antes que pudesse fazer isso, ela já estava fora do seu alcance.

Eu sou uma guerreira! Me pegue, se for capaz!

Val se deteve e observou-a enquanto ela corria de um lado para outro. Ele estava ficando cansado de tudo isso.

Mas você é uma garota - ele disse, irritado. - Não posso mudar o curso das coisas.

Pensei que você fosse justamente aquele que mudaria o curso das coisas!

Você vai me obedecer, querendo ou não - Vai afirmou, decidido, virando-se de costas.

Vou fazer do seu jeito, sou obediente. Mas odeio isso. Pelo menos me prometa uma coisa. - Signy colocou o pequeno revól­ver de volta ao coldre debaixo do braço.

Diga. Você sabe que farei qualquer coisa.

Você promete que vai me deixar matar Conor quando sur­gir uma oportunidade?

Existe um pacto. Não haverá essa oportunidade. Mas se houver... prometo.

Até agora Conor nunca foi fiel a pactos - Signy ressaltou, assentindo.

Ambos se viraram para descer a escadaria. Val envolveu-a protetoramente com seu braço.

Sei que é difícil.

Você teria matado qualquer um que ousasse me tocar, e agora me oferece a Conor para ele fazer o que quiser comigo - disse Signy, sorrindo com doçura.

Não pense que gosto disso...

Coitado de você!

... Mas todo pai um dia precisa abrir mão de sua filha.

Aposto que Conor tem alguns desejos bizarros.

Val lançou-lhe um olhar gélido.

O que me pergunto é: o que irá satisfazê-lo? Como é que ele vai querer usar a filha de Val?

Val se viu tomado repentinamente pela fúria. Empurrou a filha com violência e ela caiu da escada.

Você não se importa comigo! - ela gritou com raiva. - Você nunca permite que os outros se afastem de você... nunca! - Ela passou por ele e desceu correndo os degraus tortuosos. Como era possível ao mesmo tempo odiar, amar e admirar o pai com tanta intensidade?

Mas eu amo você! - Ela ouviu a voz dele descendo os de­graus às suas costas. Isso a fez chorar ainda mais, já que ela sabia que tudo que ele dizia era verdade.

Lá estavam dois jovens franzinos vestidos de preto. O preto era uma espécie de uniforme. Um deles era um garoto, o outro, uma menina. Uma dupla que de certa maneira formava uma frente es­túpida para caçar uma presa como aquela, mas esses dois jovens haviam sido treinados.

É a última vez - afirmou o garoto.

A última noite da minha vida - disse a menina.

Não seja idiota. Sempre resta alguma vida. Você só precisa conquistá-la.

Cale a boca.

Desculpe...

A última noite desta vida, então.

Eu não quero mais fazer isso. Se nessa noite você se machu­car, ele vai me matar.

Mas você vai fazer, não vai, Sigs? - A garota o segurou com firmeza pela mão.

Não consigo acreditar que ele esteja obrigando você a fazer isso. Ele nunca mandou nenhum de nós embora. - Siggy também apertou a mão dela. E, ao dizer isso, referia-se aos garotos. - Todos nós deveríamos nos juntar para falar com ele. Ele não po­de tratá-la dessa maneira!

Signy largou a mão dele e o fitou. Ele só estava tornando as coisas mais difíceis.

Mas ele está certo, você sabe - ela disse.

Had não pensa assim.

Had não sabe de tudo.

Pactos com sujeitos como Conor...

É o meu destino, Siggy. A única coisa é que esse não é um bom destino, só isso. - Signy balançou a cabeça.

Mas será que você não quer um bom destino, Signy? - Siggy franziu a testa.

O que seria isso?

Siggy encarou-a. Se fosse ele...

Eu fugiria.

Você é fraco - ela afirmou.

E você é burra.

Fazer um sacrifício por uma causa grandiosa não é burrice.

Você sabe o que acho de toda essa coisa. - Siggy fechou a cara. Ele era o único na família que empinava o nariz com orgulho.

Pensativamente, Signy cuspiu perto dos pés de Siggy, pisou em cima e houve uma longa pausa.

E então, o que vamos pegar esta noite? - ele perguntou.

Um porco grande e gordo. Cheio de gordura!

Ééé!

Siggy e Signy atravessaram sorrateiramente o chão de mármore polido. Claro, todas as escadas estavam fortemente vigiadas, mas eles conheciam um caminho que nem mesmo o rei Vai pensaria em vigiar, descendo por um elevador antigo. E, depois, passando pelos escombros das torres destruídas e desgastadas pela ação do vento como conchas no mar. As poucas janelas remanescentes no topo brilhavam sob a luz do luar. Atravessando os pináculos ar­ruinados da igreja e os andares despedaçados dos prédios que um dia abrigaram bancos e escritórios de empresas internacionais e seguindo por estradas pontilhadas de velhas árvores e arbustos floridos. Um grupo de homens que trabalhavam à luz de uma fogueira jogava pedaços quebrados de asfalto num tonei para que derretessem. Era um trabalho para ampliar o estacionamen­to para os convidados do casamento.

Nada era novo, tudo era velho - desde o dia em que o gover­no se extinguira, cem anos atrás, deixando tudo apodrecer sob o controle das gangues.

Os dois jovens correram ao longo dos prédios altos da Cida­de, na direção do West End. Estava escuro como breu. Não havia iluminação nas ruas. Os pobres dormiam agrupados nas portarias e era perigoso ficar nas ruas, a menos que se fosse rico o bastante para andar armado.

Durante o dia, a Oxford Street e Piccadilly ficavam apinhadas de transeuntes e as janelas das lojas brilhavam com a eletrici­dade, ainda que fosse produzida por geradores particulares. As lojas estavam sempre repletas de novos produtos. Muitos deles falsificados - geralmente fabricados na cidade, mas as lojas mais ricas estocavam produtos contrabandeados pelos meio-homens do Lado de Fora. Roupas da moda, acessórios elétricos, CDs, televisores, frutas do outro lado do mundo, vinho francês. Era possível conseguir qualquer coisa quando se podia pagar por ela, desde que não fossem duzentas mil toneladas de asfalto ou de concreto para a manutenção das estradas.

Ao redor de Westminster e da Cidade, localizavam-se guetos e fazendas. Avistavam-se vacas amarradas em gramados que ruminavam letargicamente nos pilriteiros, porcos que fuçavam lixo nas ruas, bueiros abertos, lixeiras e extensões de campos cujas casas tinham sido derrubadas para dar lugar às plantações. As varandas das casas tiveram as paredes removidas para que se construíssem grandes estábulos que abrigavam vacas e porcos. De vez em quando, Siggy e Signy se afastavam até este ponto e metiam o nariz no cheiro úmido das pessoas sujas e dos muros viscosos, nos ladrões e nos mendigos, no lixo e na doença. Mas este era o dia de Signy. Ela queria uma vida dinâmica, pessoas dinâmicas. Ela queria um porco grande e gordo, queria brincar de Robin Hood.

O nome do porco gordo era Alexander. Ele realmente estava entupido de gordura. Anéis nos dedos, correntes no pescoço. Caíam-lhe bem. Era estupidez usar esse tipo de coisa, era pedir para ser roubado. Mas deve-se ressaltar que ele estava em uma festa em uma casa fortemente protegida. Todos os outros convidados eram homens de negócios, contrabandistas e gângsteres - a ocasião era perfeita para se vestir bem e exibir riqueza. Era exata­mente o que Alexander fizera. A gordura estava por todo o corpo - grudada nos dedos, pingando da carteira. Ele aguardava um jogo de cartas durante a madrugada e podia arcar com uma derrota feia.

Alexander foi pego no banheiro - na verdade, usando o banheiro. Ele era um homem grande e poderia ter reagido, mas os dois jovens eram rápidos como as doninhas. De repente, duas pequenas facas afiadas pressionavam o pescoço gordo de Ale­xander.

- Como vocês entraram? - ele balbuciou.

Os dois jovens riram. O maior encostava a faca no pescoço de Alexander e comprimia a cabeça dele no chão, impedindo-o de se levantar. Alexander era gordo e ficar de pé não era mais tão fácil quanto nos velhos tempos. A menor circulava de um lado para outro, como um animal executando um truque, até que ela amarrou a corda ao redor da privada para que Alexander ficasse completamente imobilizado. Em cerca de vinte segundos, tudo estava terminado.

Muito fácil - suspirou a menor. Ela farejou o ar e lançou um olhar penetrante em sua vítima.

Desculpe - rogou Alexander.

Eles livraram o porco de toda a gordura - os anéis dos dedos, a saliência da carteira estufada no bolso, as abotoaduras doura­das, as correntes, tudo. E depois enfiaram um pouco de papel higiênico na boca de Alexander e grudaram-na com fita adesiva para que ele não guinchasse, jogaram o rolo no seu colo e fugi­ram pelo mesmo caminho que entraram - através da tubulação de ar. Os olhos de Alexander arregalaram-se de medo e fúria, en­quanto os jovens removiam a grade da tubulação e se arrastavam para fora. Onde estavam os guardas? Aquele prédio estava cheio de guardas!

Lá fora, os jovens retiraram as máscaras. Signy sacudia os longos cabelos de um lado para outro.

Foi bom? - perguntou Siggy, sorridente.

Naah, fácil demais - ela reclamou outra vez.

Eles se foram com o "troféu" conquistado para entregá-lo às crianças pobres. Eles não precisavam daquilo. Para que os Volson precisariam de mais dinheiro? Era uma brincadeira, como Robin Hood. Por outro lado, não era assim tão honesto, não como fora com Robin Hood. Quem roubava era a família mais rica de Londres, não importa para quem fosse o dinheiro. Pois os reis e os marginais podem escapar com tudo o que desejam. Mesmo que fossem pegos, ninguém sequer ousaria levantar um dedo contra eles. Simplesmente mostrando a cara, os dois poderiam muito bem ter passado pelos guardas.

Ainda assim... tão logo começava, o roubo já era perigoso. E divertido.

 

A nossa conversa era sobre como se agüenta fazer sexo com alguém que se detesta. Eu fazia um esforço enorme para não chorar.

Ben estava se divertindo muito. Ele saltitava e dava risinhos.

Por que simplesmente você não aproveita? - ele me disse com malícia. - Por que não? Eu aproveitaria.

Isso é diferente - retrucou Had.

Não é não. Ela sempre insiste nesse papo de ser tão boa quan­to nós. Ora, nós gostamos de fazer isso, não gostamos, Had? - Ben retrucou.

Eu também gosto - comentou Siggy.

Você ainda não fez - disse Ben.

Fiz sim - insistiu Siggy, olhando-me com um ar culpado porque eu era a única pessoa que sabia com certeza que ele ainda não tinha feito.

Você não fez não - insistiu Ben.

Eu fiz sim!

De qualquer forma - disse Had -, é claro que isso é diferen­te. É o homem que faz; e é nela que se faz isso.

Não diga besteira - falei. Aqueles garotos! Era inútil!

O homem coloca aquilo lá dentro e ela segura aquilo dentro dela - Had explicou, caso a ficha ainda não tivesse caído pra nós.

Ora, quando você põe comida na sua boca, não é você que está fazendo isso? - salientou Siggy.

Eu poderia ter gritado.

Se ele colocar aquilo perto de mim, vou morder e arrancar fora! - ameacei.

Ótima maneira de quebrar o pacto - disse Ben.

Esqueça o pacto. Quem é que acredita nele? Ela simples­mente devia se recusar, e nós devíamos apoiá-la... - Siggy, aben­çoado seja, comentou.

E eles então pararam a conversa de como lidar com o fato de fazer sexo com alguém que nunca se viu antes e começaram a falar de política. De acordo com Siggy, isso era bom, mas esque­ça. Eles tagarelaram sem parar sobre como o pacto podia ou não funcionar, mas no fim era o que Vai queria e ponto final. E isso aí... só que, bem, seria terrivelmente solitário, lá na cama, na noite do meu casamento, só isso.

Você só tem que torcer pra ele não ser tão ruim quanto pa­rece - disse Siggy.

Eu queria ter alguma esperança. Era melhor que eu só tivesse a esperança de que ele não me machucasse muito, só isso.

 

Uma chuva gelada caía estrondosamente por entre os prédios e pelas ruas, enquanto uma pequena multidão irregular aguardava em silêncio. Algumas pessoas se abrigavam debaixo de mantas e guarda-chuvas remendados, mas a maioria se limitava a perma­necer por lá, ensopada. Vai estava decepcionado. Ele queria uma multidão intensa, animada, tremulando bandeiras. Mas se recu­sava a forçá-los.

Os guarda-costas esperavam. Vai de um lado, Conor do ou­tro. Vestiam roupas pretas e a chuva escorria por seus cabelos, pelos óculos escuros. Talvez eles fossem homens, ou máquinas, ou animais, ou as três coisas juntas. E se via por baixo de suas roupas os contornos de poderosas armas que bem podiam ser extensões de seus corpos.

A guerra persistia entre essas duas famílias por várias gera­ções. Agora deveria haver um pacto, mas, na verdade, ninguém acreditava nisso. Parecia mais um truque. No entanto, quem es­tava fingindo?

Durante um longo tempo ouviu-se apenas um leve murmúrio da multidão e o ruído constante da chuva que batia nos tijolos e nas calçadas, mas no fim um extenso comboio de carros e veí­culos blindados dobrou em Bishopsgate, arrastando-se através do asfalto quebrado. A medida que aumentava o som dos mo­tores, se produzia um estranho efeito. O rumor ficava mais alto. Os rostos dos VIPs se voltavam para cima, à procura da chuva pesada que devia estar produzindo aquele rumor, mas a chuva caía como de costume. O ruído ficava cada vez mais alto, cobria até mesmo o som dos motores, como se a chuva insistisse em seu direito de ser ouvida.

Não era só a água, também eram as pessoas com uma velha brincadeira de colégio. Algumas fileiras de faces lívidas erguiam-se da desordem de trapos e pedaços de plástico para assistir à che­gada de um velho inimigo. Com medo dos capangas de Vai que se misturavam entre eles, ninguém ousava vaiar ou xingar, mas não havia quem fosse capaz de dizer de onde vinha aquele ruído. Ainda que as expressões e os lábios permanecessem inertes como pinturas, centenas de gargantas murmuravam seu ódio. A guerra das gangues já vinha mutilando Londres por gerações. Conor e sua família lutavam de forma selvagem e cruel. Não havia uma só alma nessa multidão que não perdera algum ente querido nas mãos do homem que agora os visitava.

O barulho se fortalecia, crescia. Vai empalidecia de raiva e frustração, mas não havia nada que ele pudesse fazer. Aquele era seu sonho! Ele estava reunindo o batalhão que conquistaria o paraíso. Aqueles que se libertariam do refúgio e enfiariam o mun­do nos bolsos dos pobres. O povo da cidade compartilhara muitos dos sonhos de Val, mas não este sonho em particular - ainda não.

Minúsculo sob a sombra do edifício Galaxy, o comboio de Conor se deteve na praça do lado de fora e os soldados, excita­dos com suas artilharias, emergiram dos carros blindados como pequenos homens de brinquedo naquela ampla rua.

No instante em que o guarda-costas pessoal de Conor saiu do carro, a multidão voltou a murmurar. Ele... aquela coisa... arreganhou os dentes e seu pêlo encrespou-se com o rumor, fa­zendo-o parecer quase duas vezes maior. Ele abriu a boca - ge­rando gritos ou latidos, vai saber. E depois se virou e abriu a porta para Conor.

Era um meio-homem. Os londrinos também tinham suas ra­zões para odiá-los, mas o monstro de verdade era Conor. Assim que saiu de dentro do carro blindado, os murmúrios aumentaram até soar como se fosse algo prestes a explodir. Conor pôs o casa­co sobre os ombros e olhou ao redor, como se estivesse sozinho naquela rua chuvosa.

Emergindo dos guarda-chuvas, como de costume, Val vestia-se todo de cinza, como se fosse o funcionário de alguém. Mas ele usava um reluzente cachecol de seda carmesim, como sempre fazia nas aparições públicas. Um símbolo de fogo e sangue.

A multidão começou a ovacionar seu líder. O amor daquelas pessoas por Val era ainda maior que o ódio por Conor. Mas as ovações cederam tão logo Conor e Vai se abraçaram. Alguns segundos depois, Val pegou a filha pela mão, entregou-a para Conor e fez-se um silêncio profundo. Signy tinha catorze anos de idade e estava muito assustada, embora já soubesse como matar um homem. Conor inclinou-se e beijou-a. Em meio à guarda de honra que seguia por entre o comboio e o edifício Galaxy, a chuva descia pelo rosto de Siggy, que se mantinha completa­mente imóvel, de modo que ninguém notava que ele estava mo­lhado de lágrimas.

 

Era uma merda. Eu nunca tinha me ligado em política, mas até mesmo eu percebia que era uma merda. Vai estava ficando ve­lho. Fazer aquilo com Signy! Mas o fato é que ele os convenceu, exatamente como sempre faz.

As providências com a segurança! Conor precisava de um batalhão apontando para nossas gargantas, e nós também preci­sávamos de um batalhão apontando para a dele. Que espécie de pacto é esse? Nós devíamos ter continuado com a guerra, mes­mo que levasse mais uma geração. Mas, veja só, Val tinha pressa. O que ele queria fazer era trabalho para um século, mas ele que­ria tudo pronto na mesma hora, enquanto ainda estivesse vivo para testemunhar. E, então, ele armou tudo.

Valentões armados vagavam pelas ruas durante semanas. As pessoas tomavam tiros por conta das brigas entre as forças de Conor e as nossas. E tudo isso por quê? Por um punhado de sonhos. Os sonhos de Val. Ele é um grande homem, o meu pai, mas so­nhos são somente sonhos, mesmo que sejam sonhados em prol de todos. Não me entenda mal. Não estou dizendo simplesmen­te que só é preciso cuidar do Número Um. O fato é que antes de tudo é preciso cuidar daqueles que se pode cuidar. Como Signy, por exemplo. E como vejo as coisas. Se você não pode cuidar do seu pessoal, você não é confiável para cuidar do mundo. Mas Vai era assim mesmo - os sonhos dele eram maiores que ele próprio.

Metade da cidade teve que ser enfeitada para o casamento. Algumas de nossas velhas estradas foram quebradas e tiveram o piso derretido para que se repavimentasse o estacionamento de Conor. Restauramos e decoramos andares inteiros do edifício Galaxy para os convidados de Conor. Isso custou milhões. Se Vai queria fazer as coisas tão grandiosas para os outros, por que en­tão ele simplesmente não cancelava o casamento e dava a Lon­dres o bastante para que ela pudesse se alimentar por algumas semanas? Seria mais barato. Had cuidava do lado financeiro das coisas. Ele me falou. Ele é bom nisso - Val acha que Had é capaz de fazer milagres, mas creio que é bem mais difícil fazer com que Conor e os Volson sejam fiéis ao pacto. Had é quem deverá tomar o lugar de Val algum dia, mas lhe digo uma coisa, se tem alguém adequado para suceder Val, esse alguém é minha irmã. Ela tem cérebro e visão. Ela é o verdadeiro sucessor de Vai. Mas ele prefere vendê-la para que ela sirva a Conor e provavelmente também à metade do pessoal que trabalhava em sua cozinha, assim que tudo sucumbir.

Minha função era coordenar o Galaxy. Eu tinha que supervi­sionar os serviços do prédio e os decoradores, além de limpar o lugar e pintar tudo. Todas as coisas chatas. A única diversãozinha era retirar as crianças de rua do sistema de ventilação.

Veja só, o sistema de ventilação é uma ótima moradia para as crianças de rua. Elas percorriam quilômetros de distância para entrar ali. Turmas inteiras vivem ali, como ratos. Ora, este lugar é trinta mil vezes melhor que as ruas. Eles não se importavam em escalar vinte andares ou mais para entrar. Sejamos sinceros, o Galaxy deve ser o prédio mais rico da cidade. Só os farelos do chão já eram melhores que o jantar da maioria das pessoas.

Val não gostava muito disso. Ele achava que era um risco para a segurança, mas ele só pensa na segurança. Mostre a Vai um sanduíche de queijo e ele vai ficar ponderando sobre as im­plicações que isso terá na segurança. Ainda assim, o problema é que cada vez mais essas crianças se juntavam e se arrastavam para dentro do prédio, até que o lugar se infestava e começava a feder. E depois nós tínhamos que botar todo mundo pra fora. Na verdade, não estava assim tão fedido quando Conor estava para chegar, mas ninguém ia querer que as convidadas dele fos­sem importunadas no banheiro por algum menino-rato de sete anos pulando para fora e beliscando suas bundas, não é? Essas tubulações atravessavam aquele lugar inteiro e você podia ouvir a garotada nas vísceras do prédio, sussurrando, rindo, conver­sando, rangendo e brigando a quilômetros de distância. Nunca se sabia onde eles estavam. Eles não podiam nos ouvir, é claro, mas se ver obrigado a ouvir seus gritos de palavrões, até mesmo quan­do se estava no próprio quarto, abalava qualquer privacidade.

O que se faz é arranjar homens para cobrir as grades de ven­tilação com redes e depois deixar que os cachorros entrem. Ca­chorros dos canos. E como Ben os chamava. Nós mantínhamos essa matilha de pequenos terriês magricelas só pra isso. Era tão divertido! Era possível ouvir tudo - os cachorros que dispara­vam, rosnavam e latiam como tiros de pequenos canhões. E as crianças que gritavam, berravam e tentavam calcular onde os cachorros estavam, e que de repente, quando eram encontradas por eles, urravam como demônios: "Ali! Ali!" E depois começa­vam a berrar e a correr e todo aquele lugar chacoalhava e repicava.

Eles pipocavam um após outro, saindo das paredes, despen­cando nos braços dos guardas. E então eu lhes dava uma mar­mita e um cobertor e os mandava de volta à rua. Eles ficavam agradecidos pelo cobertor. Val era legal dessa maneira. Ele acha­va que era uma boa jogada política manter uma proximidade com o povo, esse tipo de coisa.

Claro que aos poucos eles se arrastavam de volta, um a um, e acontecia tudo de novo. Era simples. Eu só me irritava com o fa­to de que tudo aquilo era em favor de Conor e sua turba.

Escute. Talvez você esteja pensando que sou um garoto mi­mado. Talvez você ache que eu sou muito coruja em relação à minha irmã. Mas não é bem assim. Tudo o que quero é uma vida. A política fede. De qualquer forma, sou o caçula e nada desse troço tem a ver comigo. Quanto a Signy, ela é minha irmã gê­mea. Eu só não gosto de ver minha irmã sendo usada como um pedaço de carne, como alguma coisa que se possa negociar. Eu só quero que ela não vá embora.

 

Venho tendo pesadelos com isso há meses. De repente, lá está ele! Ele é tímido e desajeitado - essa é a minha primeira impres­são. Eu queria desprezá-lo por isso, mas não conseguia.

Eu o achei fraco, a maneira com que ele ficava ali sorrindo, sem olhar nos meus olhos, mas assim que virou de costas e come­çou a lidar com seus homens, ele ficou diferente. Eram eles que não conseguiam olhar nos olhos dele. Era... o que é mesmo que algu­mas pessoas têm? Meu pai também tem isso. Auto-confiança. O direito absoluto de ter as coisas ao seu modo. Mas Conor era dife­rente de Val. Ele era o homem, o numero uno, mas ao mesmo tempo dava a impressão de que esperava que tudo desaparecesse a qualquer momento. Como se a fada má fosse transformá-lo de rei em menino, caso ele dissesse a coisa errada.

Ele mandou o pessoal dele embora e depois se voltou nova­mente para mim e ficou parado, com os olhos franzidos, irritado consigo mesmo, como um terremoto prestes a eclodir. Era quase possível ver a lava derretida por dentro dele, e sua expressão flu­tuava na superfície. E pensei: o que está havendo? E depois pen­sei: este homem é perigoso.

Senti um pequeno calafrio que atravessava o meu corpo e descia pelo meu pescoço até você-sabe-onde, e depois se esva­ziando novamente, através dos meus calcanhares.

Não sei como falar com você - ele disse.

Então fique de boca fechada.

Ele pareceu um pouco confuso. Mordi as bochechas. Eu que­ria rir da cara dele.

Você é dono de um quarto de Londres e não sabe como fa­lar comigo? - debochei.

Um quarto não, metade - ele corrigiu.

Metade? Não mesmo. Um terço talvez. No máximo.

Isso era tão infantil! Sorrimos um para o outro.

Um terço então. Depende de como você mede, alguns diriam. - Ele franziu os olhos e observou-me atentamente. - Não me odeie por causa do meu pai, é só o que peço - ele disse de repen­te, olhando nos meus olhos pela primeira vez. Eu também olhei nos olhos dele. E ele piscou primeiro.

Estávamos conversando no pomar. As luzes fluorescentes espalhavam-se pelo teto e sobre as laranjeiras e bananeiras. Tudo muito romântico, essa era a idéia. Houve um silêncio descon­fortável, nada foi dito. Um silêncio que Conor quebrou ao esten­der as mãos:

Isso é maravilhoso. Não temos nada parecido com isso no norte - ele comentou.

Não preciso ser bajulada.

Eu ainda estava com medo dele e o odiava por isso. Há anos que eu não sentia medo de quem quer que fosse. Não, não é verdade. O fato é que no passado eu sabia que ficar assustada só me tornava mais perigosa. Mas naquele momento era diferente - eu estava assustada com o que ele podia fazer comigo depois do consentimento do meu pai, dos meus irmãos e de toda a tropa. Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei. Eu sou capaz de matar um homem. Eu sei como. Fiz isso muitas vezes. Na luta você pode fazer o que quiser, mas, nesse jogo, é ele que pode me apunhalar e tudo que posso fazer é deitar e aceitar.

Sorri com doçura para ele.

Aqui, pegue uma banana. - Tirei uma da bananeira e ofere­ci-lhe. Ele franziu os olhos ao pegá-la. Acho que eles não têm muitas bananas lá no norte. Ele ficou por ali, tentando descascar a fruta, mas ela estava verde. Eu ri dele. Seu tolo, pensei.

Conor jogou a fruta fora. Foi um verdadeiro rompante de vio­lência. Fúria. Eu recuei, mas mantive o rosto erguido. Se você me bater, pensei, eu furo você. Eu mantinha a mão na faca.

Temos que decidir... você tem que decidir... que tipo de ca­samento teremos - ele disse.

O quê?

Por jogo político. Ou de verdade.

Por jogo político - respondi na mesma hora e, de repente, meu coração começou a fazer "tum, tum, tum". Onde é que ele estava querendo chegar? Vamos encarar a realidade: a partir do instante em que ele me tirasse de casa, podia me usar até para lim­par o nariz. Ele realmente estava sendo decente comigo? Ou o que ele queria mesmo era que essa confusão desse certo? De qualquer maneira, ele não parecia se interessar por decência.

Agora ele se mostrava magoado, e isso fez com que eu me sentisse muito estranha.

Eu lhe peço seis meses. Eu... - Ele vagava por todos os can­tos, mas no fim olhou nos meus olhos. - Eu quero fazer um teste.

Você quer me testar - repliquei com frieza.

Não - ele disse rapidamente, com convicção. - Quer di­zer... sim, eu quero você. - Ele enrubesceu. Ele de fato enrubesceu! Em seguida acenou com desprezo, como se suas próprias pala­vras não valessem nada. - Não sei nada sobre você; como posso saber se isso vai dar certo? Mas se der, ficarei muito feliz. - Ele enrubesceu outra vez, mais intensamente que nunca. Seu impres­tável, eu pensei. No entanto, meu coração já não queria dizer aquilo. De certa forma, havia doçura. Ele era o inimigo já fazia décadas, o assassino, o homem para quem meu pai me dera em sacrifício, da mesma maneira que se atira um naco de carne a um leão quando se quer passar sem que ele veja. Aqui, pegue isso.

Mas... de certa forma, ao mesmo tempo ele era gentil. Eu não podia acreditar que o achava gentil.

Eu só peço que você me dê seis meses. Fique em casa comi­go por seis meses. Se depois disso quiser voltar, é com você.

Acho que meu pai não ficaria muito feliz com isso.

Você será minha esposa. Eu posso dizer a ele onde você vai morar.

Você pode dizer o que for para Val - retruquei tão desdenhosamente quanto pude.

Ele não respondeu. Só ficou à espera.

Vou pensar - eu disse finalmente.

Conor assentiu com um aceno. E desviou os olhos para um canto da estufa.

- Você é muito bonita. Você é muito desejável. Além de mi­nha esposa, eu quero que você seja minha aliada. Quero que me ajude a governar. Acho que... quem sabe? Talvez eu possa te amar. - Ele se inclinou e tocou no meu braço com delicadeza; foi o único momento em que ele me tocou. - Te vejo no casamento - ele disse.

Conor se virou e foi embora antes que eu pudesse dizer qual­quer coisa.

 

O casamento aconteceu na abadia de Westminster, onde reis e rainhas da Inglaterra costumavam se casar - como se aqueles gangsterezinhos que brigavam por uma única cidade fossem reis. Vai gostava de crispar os lábios e dizer que tudo fora feito para agradar a vaidade de Conor. Se tudo dependesse dele, a abadia teria que esperar até que ele tivesse a nação em suas mãos. O teto seria recolocado e os antigos reis e rainhas que haviam sido enter­rados e removidos quando o governo se extinguiu voltariam para baixo das pedras. Talvez, então, o lugar estivesse apropria­do para que Val o usasse.

Conor, no entanto, não era ganancioso quanto ao futuro. Ele queria tudo agora. Casas em boas condições tiveram que ser derrubadas para que com sua madeira se construíssem bancadas para os convidados. Não havia uma única folha de plástico gran­de o bastante para cobrir o teto, mas eles estenderam toldos e baldaquinos e colocaram um tapete vermelho pilhado de um hotel em Park Lane. Os santos remanescentes foram pintados em cores vibrantes para que fossem vistos com mais nitidez e insta­lou-se um sistema de som para haver música de órgão durante a congregação.

A abadia era um templo cristão. Os Volson haviam desistido disso fazia anos; no entanto, como todos os chefões de gangues, Vai era um homem supersticioso. E bem verdade que ele usava um crucifixo de prata por baixo de sua roupa cinza de seda, so­mente para o caso de Jesus estar olhando, mas, ao lado do cruci­fixo, estava o cano grosso de uma pequena arma, forjada em tamanho curto e talhada com a imagem de um homem de um olho só. Era para honrar os estranhos deuses que ao que parecia tinham acordado na terra dos meio-homens e sido avistados nos últimos anos no lado de dentro da Muralha, nos guetos e nos subúrbios da própria Londres. É pela mesma razão - desconhe­cida para Conor, que certamente teria se oposto - havia um homem morto pendurado pelos calcanhares de cabeça para bai­xo atrás de um toldo, fora de vista. Costumavam dizer que as novas divindades atendiam a sacrifícios dessa natureza. Tudo besteira, claro; histórias tolas perpetuadas pelas aparições dos meio-homens e testemunhadas pela investigação dos homens de Ragnor e de outras cidades. Mas Val achava sensato tomar to­das as precauções.

Mil pessoas se sentaram e assistiram Val atravessar o longo corredor com Signy nos braços e entregá-la a Conor. Lá de cima, os santos encarquilhados observavam de seus postos e o homem morto balançava ligeiramente, com seus cabelos apontados para o chão no momento em que a noiva ergueu o rosto e disse "Aceito".

Siggy estava com seus irmãos e odiou tudo isso.

Siggy, você está com cara de fuinha - Ben resmungou en­quanto se inclinava.

Siggy olhou para ele e tentou sorrir.

Era pra ser um dia feliz - Ben comentou e prendeu o riso. Até onde ele sabia, Vai era Deus. Ele nunca havia cometido um erro.

Conor não vai ser carinhoso com ela, nem essa noite, nem em qualquer outra - Hadrian, seu outro irmão, grunhiu.

Ela disse que ele é carinhoso - comentou Siggy.

Carinhoso ou durão, terá valido a pena se o pacto for man­tido - disse Ben, confiante. Hadrian concordou, carrancudo. Mas Siggy não se importava com o pacto ou com o mundo, ou com qualquer tipo de aspiração. Ao ver Conor se inclinar e sussurrar alguma coisa no ouvido da noiva, ele soltou um suspiro que soou como um vaso se quebrando.

 

Na noite após o casamento, os guardas encontraram alguém que subia as escadas rumo a nossos aposentos particulares. Foi certamente o lapso mais sério da segurança que me lembro. Eles prenderam um homem, ou talvez fosse uma criatura, tenho lá minhas dúvidas. Ele subia os degraus sem qualquer tipo de precaução, como se estivesse perambulando em meio a uma festa aberta ao público. Inacreditável. Como se ele quisesse ser pego, depois de ter chegado tão perto da gente. Talvez quisesse mesmo.

Como chefe de segurança do Galaxy, isso era responsabilida­de minha. Eu mesmo supervisionei o interrogatório. Ele sofreu, pelos deuses, como sofreu, e a coisa mal havia começado, mas em nenhum momento ele disse uma única palavra. Nenhuma. Conseqüentemente, depois que o pegamos, eu não tinha mais nada a relatar quando Vai trouxe Ben e Siggy para darem uma olhada. Quando meu pai chegou, eu me senti um tolo parado junto aos guardas. Você precisa entender que a tortura é um ca­marada com uma personalidade muito enérgica. Ela reduz o mais bravo dos homens a um mero escarro. Mas esse homem era como se ele simplesmente absorvesse tudo. Para ele, o sofrimento era como carne e bebida.

Nunca vi ninguém como ele. Tinha apenas um olho, e era como pedra. De verdade, era idêntico a uma pedra. A parte branca era cinzenta, quase azul, pétrea, e dava a sensação de que, se ati­rassem uma pedrinha naquele olho, daria para ouvir um estalo. O homem ficou lá com dois guardas que o seguravam como se contessem um touro, e ele nos encarava de cima, como se nós é que fôssemos morrer.

Ele era estranho, mas o mais esquisito era a simples presença dele naquele lugar. A segurança era rígida. Como ele tinha con­seguido? Val estava tão furioso que pensei que ele fosse me bater, o que eu merecia. Mas acho que meu pai entendeu a situação quando viu o prisioneiro, porque nunca vi ninguém olhar Val com a superioridade que aquilo olhou. Aquele olho solitário na­quela cara grande e ossuda, como a cara de um animal. Ele usava um chapéu largo, preto, seguro por um fio amarrado debaixo do queixo, que de alguma forma continuava em sua cabeça mesmo depois de muita surra. Ele tinha uns dois metros e quinze de altura e olhava para Vai de cima, como se Vai fosse uma criança.

Meus nervos já estavam no limite e Ben só piorava as coisas. Não sei por que Val insiste em trazê-lo a esse tipo de coisa. Leal­dade. Vai é assim, lealdade antes do bom senso.

Ele é um espião! Ele é um espião! - Ben insistia, enquanto sorria e zanzava excitado de um lado para outro. - Nós limpa­mos tudo, não é, pai, não limpamos? Ele deve ser um espião! - Ben não calava a boca e eu rosnei para fazê-lo calar. Val estava bem mais furioso que eu e por isso alguém acabaria pagando o preço a qualquer momento. Mas o pobre Ben estava fora de si. - Se o torturarmos, ele vai acabar falando! - Ben guinchava, como se eu não tivesse passado a última hora fazendo justamente isso. Ele rodopiava para todos os lados, batendo palmas e sorrindo.

Meu pai encarava o rosto do prisioneiro.

Ele vai falar de um jeito ou de outro - ele comentou em voz baixa.

Seria melhor para ele falar agora! - Ben gralhou.

O prisioneiro era tão alto que nós tínhamos de levantar o pescoço para vê-lo. Ele estava amarrado com cordas de nylon nos ombros, nas pernas e no pescoço, e de ambos os lados os guardas o olhavam como se ele fosse erguê-los do chão caso se contorcesse. Ele fez com que eu me sentisse um merdinha.

Balancei a cabeça, tentando clarear os pensamentos.

Os espiões são sorrateiros. Por que Conor mandaria um espião que pode ser avistado a quilômetros de distância? Tem mais coisa aí.

Um assassino! Essa não! Um assassino! - Ben arfou e empalideceu, mas um segundo depois já estava dando risinhos.

Acalme-se - Vai ordenou. Ben o olhou e, ao perceber o olhar dele, ficou quieto. Vai estava sério.

Desculpe, pai.

O prisioneiro começou a fazer um barulho horripilante que vinha do sangue armazenado nos pulmões. Em cada arfada que dava ele emitia o estalido de um pé pisando no cascalho. Suas roupas estavam encharcadas de sangue. Seu rosto era estranho, como eu já disse. De alguma forma, suas feições não pareciam adequadas. Talvez ele tivesse um pouco de sangue de meio-homem.

Siggy desviou o olhar. Ele sempre odiou esse tipo de coisa.

Mate-o, acabe logo com isso. Se ele não falou até agora é porque não vai falar - ele disse. Foi a primeira vez que Siggy disse alguma coisa, e por alguma razão isso atraiu a atenção do prisioneiro, que o olhou como se o tivesse visto casualmente, atrás ilo resto de nós, e lhe sorriu. Foi um sorriso cordial, mas tam­bém foi um choque terrível, como se de repente um cachorro ou uma estátua estivesse sorrindo.

Todos nós demos um passo atrás sem pensar. E depois nos viramos na direção de Siggy.

Eu nunca o vi antes - Siggy protestou.

Ben estava furioso porque o homem o assustara. Ele puxou uma pistola do cinto e o açoitou com ela. Ele precisou dar um pulo para alcançar aquela cara enorme. Ouviu-se uma arfada e um gemido, mas nenhuma palavra.

Vai observava Siggy.

Venha aqui pra frente - ele ordenou. Siggy deu de ombros novamente, mas se aproximou sob a sombra daquele homenzarrão que olhou para baixo, na sua direção, e mais uma vez sorriu. Vai estava tendo problemas com Siggy já havia alguns dias. O pai era o tipo de homem que fazia qualquer um pensar qualquer coisa, m.is não Siggy. Siggy tinha seus próprios pensamentos. Nem mesmo Vai podia mudar as convicções dele.

Siggy amarrou a cara. Ele tinha estampado na testa o que pensava de toda essa história de pacto: pura besteira.

E então? - inquiriu Val. - Qual é a sua opinião?

Siggy deu de ombros outra vez.

Eu gostaria de saber como é que esse homem entrou aqui com toda essa segurança - ele disse por fim. Eu bufei de repúdio. Não era isso o que todos nós gostaríamos de saber? Ele é huma­no? Não me refiro aos meio-homens. Ele é uma máquina? - Siggy completou, olhando para um dos guardas.

Em resposta, os guardas arrastaram o homenzarrão pelas cordas. Suas roupas estavam quase em trapos nas costas; ele es­tava tudo, menos nu. Era uma massa de ferimentos ensangüenta­dos da cabeça aos pés.

Não encontrei nenhum metal - informou o guarda, carran- cudo.

E ele não falou nada? - Vai perguntou incrédulo, o que me deixou satisfeito comigo mesmo. Ele sabia o quão meticulo­so eu era.

Nada. Absolutamente nada. Nem uma única palavra - res­pondi.

Eu me virei para olhar o homenzarrão e não pude evitar... Eu estava impressionado. Nem uma única palavra! Deus é testemu­nha de como os meus homens sabem fazer o trabalho deles. Nem uma única palavra!

Talvez ele seja mudo. Um grandalhão mudo - Ben sugeriu. - E aí, grandalhão, você é mudo?

O homem ergueu o rosto enegrecido pelos machucados e disse:

Não.

Todos nós pulamos; Vai inclusive. Ben guinchou. Que voz soturna! Maldito seja! Falar daquele jeito só pra me mostrar que podia tagarelar se tivesse vontade. Sem que percebêssemos, to­dos nós demos mais um passo atrás; até mesmo os guardas, que largaram as cordas momentaneamente.

Movimento rápido. - Siggy riu.

A impressão é que o homenzarrão crescia ainda mais. Os guardas agarraram as cordas em ambos os lados e tentaram contê- lo, mas ele simplesmente os jogou para o alto. Ele parecia se agigantar diante de nossos olhos. E eu tive o terrível pressentimento de que já o havia encontrado em algum lugar. Achei por um instante que ele poderia acabar com tudo aquilo com um simples safanão se quisesse, e, por um instante, todos os nossos planos e ambições tornaram-se poeira nos meus lábios.

Deus - eu disse, enquanto ele me olhava com um leve sor­riso. Os meus membros começaram a tremer. Molhei os lábios. - Ele deve ser um espião - comentei. Eu precisava fazer um esfor­ço enorme para falar. - Nenhum ladrão se manteria tão calado. Esse aqui não tem nem mesmo mentiras para contar. Deus - falei de novo, sem ter a intenção. Ele realmente me assustava. E então eu senti que já estava ficando com raiva. O que significava tudo aquilo? Quem aquela criatura pensava que era? - Já aturei de­mais. Mate-o. Faça isso rápido - eu disse.

Val, no entanto, ordenou ao guarda:

Pendure-o no elevador pelos pés. Ele estará morto pela manhã. Se for um ladrão, quem irá se importar? Se for um espião, enquanto Conor e seus homens estiverem comendo e bebendo, eles se perguntarão o que ele terá nos falado.

Isso mesmo! Pelas caras que fizerem, saberemos se o co­nhecem ou não! - Ben gralhou, batendo palmas. - E, pai, deixe os guardas fazerem a mesma coisa com qualquer outro que for pego! Isso vai mostrar para eles.

Certamente - Val concordou. - Mas é melhor que acabe por aqui - acrescentou em seguida, olhando-me de lado.

 

Minha noite de núpcias. Conor estava sendo gentil de novo, mas eu não tinha certeza se isso combinava com ele.

Sei que você não tem esperado ansiosamente por esse mo­mento - ele comentou.

Quem disse? - falei bruscamente, só para discordar dele, mas claro que ele pensou que isso era um encorajamento e se aproximou para me tocar. - Não, não! - Ergui o dedo. Na verda­de, praticamente gritei. Sem chance de ele me tocar!

Ele se mostrou tão confuso que cheguei a sentir pena. Ele ti­nha sido informado de tudo a meu respeito, mas creio que ainda me considerava uma menininha indefesa. Eu vou te mostrar, pen­sei, e, de repente, virei o jogo e dei um apertão na bunda dele.

Você é gostosinho, não é? - berrei e ele pareceu chocado, o que me fez rir. Isso vai ser mais fácil do que eu imaginava, pensei comigo mesma.

Os nossos aposentos eram compostos por dois quartos e uma sala de estar. Eu perguntei se alguém havia implicado com ele por causa dos dois quartos separados em sua noite de núpcias e ele se mostrou surpreso.

Ninguém jamais implica comigo - ele afirmou.

Então, em breve isso vai mudar.

Tomamos alguns drinques na sala de estar. Ele estava sendo muito respeitoso. Gostei disso, embora ninguém garantisse que ele continuaria se comportando assim quando voltássemos para o norte.

Ele pôs uma música para tocar. Ele era tão sem jeito! Era uma daquelas batidas de discoteca.

Bang-a-shub, BANG-a-shub, bang-a-shub - eu gemi. - Você lealmente gosta desse tipo de coisa?

Não, pensei que você gostasse - ele disse. Desviei os olhos. Obviamente, ele tinha uma equipe de conselheiros que lhe diziam como conquistar uma garotinha, mas ninguém se deu ao traba­lho de me perguntar a respeito do meu gosto musical. Desliguei o som e ficamos em silêncio. Um silêncio desconfortável. Eu estava preparada para fazê-lo sofrer.

Ele caminhava de um lado para outro, com o olhar fixo em mim por quase todo o tempo, mordendo o lábio e ruborizando. Pouco depois, ele se aproximou e sentou no sofá, ao meu lado.

Você já pensou a respeito do que lhe falei? Você já se deci­diu? - ele perguntou.

O meu coração disparou. Eu havia conversado com Sigs sobre isso e concluímos que ele estava planejando "um estupro bonzinho", zombei porque era disso que se tratava. Seria mais fácil para ele se a vítima consentisse, e seria muito melhor se eu gostasse do pau que ele queria enfiar onde não era desejado.

Mas não foi bem assim. Foi muito estranho porque durante toda a minha vida ouvi que ele era uma espécie de demônio. Que espécie mansa de demônio é essa, pensei. Acontece que eu não achava que ele estava sendo... gentil; ainda não. O que eu pensava era em... covardia. Mas isso também não se encaixava muito bem. Ninguém consegue se tornar um chefão de gangue sendo covarde.

Franzi o nariz. Ele franziu o cenho e, bem lentamente para que não houvesse erro, ergueu a mão e me tocou, bem de leve, locou meu pescoço. Eu vestia uma blusa aberta no pescoço e ele loi descendo até aquele buraquinho embaixo do pescoço; isso me deu calafrios. Pus minha mão na dele para fazê-lo parar, só para fazê-lo parar, mas de alguma forma isso acabou sendo um gesto de intimidade e ele o tomou por um consentimento. Lenta­mente, Conor pôs a mão na minha nuca, me puxou contra ele, inclinou-se sobre o meu rosto e me beijou.

Eu já tinha beijado antes, mas aquilo era diferente. Ele era muito mais velho que eu, mas ainda não tinha trinta anos. Não era velho como o meu pai. Ele não é assim tão velho, pensei. O beijo entrou em mim e tive medo de que não fosse boa de beijo, mas o beijo deve ter entrado nele também porque ele me puxou e pressionou meu corpo contra o dele.

Vou para a cama, agora - eu disse. Afastei-me e saí quase correndo para o meu quarto. Deitei na cama ainda com minhas roupas. Escutei quando ele colocou um outro CD no aparelho de som, escutei quando ele chacoalhou gelo no copo. Se ele che­gar perto de mim, pensei, eu o esfaqueio. E depois ouvi uma batida suave na porta que fez meu coração disparar. Eu poderia ter gritado! Mas tudo era... tão agradável. Então pensei: olha, me­nina, se for o seu desejo, você pode esfaqueá-lo, ele não é pro­blema para você. Por que então ficar com medo? O que está havendo comigo?

Fingi que não ouvi a batida suave na porta. Depois de um tempo, ele desistiu e fiquei deitada na cama. Era impossível pe­gar no sono. E, sabe como é, eu não queria que ele fosse embora! Continuei deitada, pensando: o que Had ou Ben faria? O que meu pai faria? O que Siggy faria? Acima de tudo, o que Siggy fa­ria se ele fosse eu?

Eu podia até ouvir a voz dele dizendo "Vá até a porta ao lado e dê a Conor um...". Mas é claro que Siggy não diria isso. Ele diria isso de qualquer outra pessoa, imaginei, exceto de Conor. Ele era tão ciumento. E de repente, pensei, é o que Sigs diria, é o que eu diria pra ele. Vamos encarar os fatos, a única vantagem que consigo imaginar em se casar tendo os malditos catorze anos de idade é que se pode fazer sexo sem que os pais se importem. Sigs, talvez eu siga o seu conselho, pensei, mesmo que você não me desse realmente esse conselho...

Quer dizer, é preciso começar de alguma forma. E o que eu ainda não disse é que... se eu ficasse naquele quarto com aquele homem, isso teria me excitado na mesma hora.

Conor ainda não tinha ido pra cama. Levantei-me, andei pé ante pé até a porta e abri uma fresta. Depois, soltei um risinho e corri de volta para a cama. Ele que viesse até mim!

Ele parou no quarto ao lado. Eu o ouvi quando parou. E logo a porta foi se abrindo, com os pés dele metade para dentro do quarto e metade para fora...

Signy? Signy?

Eu não disse nada. Cobri a cabeça com as cobertas e deixei escapar um guinchado estúpido. Foi tão constrangedor. Isso me deixou furiosa com ele. Enfiei-me na cama. Ele entrou no quar­to, pé ante pé. Eu fingia que estava dormindo, pensando: isso é estupidez! E sentei então na cama, dizendo:

O que você quer?

Ele se limitou a me olhar. Enrolada nas cobertas com aquele homem alto me olhando, eu me senti muito excitada e sozinha.

Você sabe, eu já fiz sexo antes - falei.

Você quer dizer... - Ele ergueu as sobrancelhas. Depois, parou e deu de ombros. - Você é muito nova. Mas acho que isso deve ser assunto seu - ele completou.

É isso mesmo - retruquei, sentindo-me no controle. - Senta aqui - falei enquanto batia na cama, e ele me obedeceu. Era exci­tante vê-lo me obedecer. Eu estava com vontade de rir, mas tam­bém sentia medo!

Ele sentou na cama, pôs os braços ao meu redor e me beijou outra vez. Foi tão maravilhoso. Tão maravilhoso! E aí seus dedos começaram a abrir os botões da minha blusa.

Já fiz muito sexo antes - sussurrei no seu ouvido.

Você continua insistindo com isso - ele comentou, parali­sado por um instante.

Muito sexo. Milhões de vezes - falei, afastando-me dele.

O quê? Você quer dizer... o tempo todo? - ele perguntou, inclinando-se para trás.

Com catorze anos já se pode ter uma vida sexual - acres­centei baixinho. - Ainda que seja com você mesmo...

Eu disse isso porque era uma intimidade, nunca tinha falado sobre isso com ninguém, nem mesmo com Siggy. Não sei por que disse isso, mas pensando sobre o assunto em outra ocasião, acho que minha intenção era dizer a ele alguma coisa tão íntima quanto essa. Era um presente que eu dava a ele porque eu o tinha feito se sentir mal com todos aqueles garotos que eu nunca tive. Bem, na verdade eu já havia tocado em um ou dois, assim como eles haviam me tocado, mas não da forma que eu estava declarando.

Conor riu. Ele se mostrou feliz com isso. Com muita delica­deza, com muita delicadeza mesmo, ele apalpou minhas orelhas e meu rosto e beijou meu pescoço e deslizou a ponta dos dedos pelo meu pescoço e pelos meus seios, e depois desceu as carícias pelo meu corpo e esfregou a mão lá embaixo, e eu pensei que fosse explodir. E comecei a abrir meus botões para ele.

Ele não queria fazer a coisa toda - colocar aquilo dentro de mim. Ele só queria me tocar, mas logo depois eu fiz com ele. Doeu, mas foi legal. Quer dizer, depois ficou legal. Eu sabia que ficaria legal. O lance é que tudo acaba se ajeitando. De repente, tudo ficou tão fácil! Sentamos e conversamos e conversamos e fize­mos coisas e conversamos a noite inteira. Ele era... ele era tão parecido comigo! Eu me senti tão próxima dele, muito mais pró­xima do que me sentia de Siggy porque, claro, nunca fiz coisas como essas com Sigs.

Eu lhe falei tudo a respeito de mim e de Sigs e das coisas que havíamos feito, e ele me falou do pai dele, que me pareceu um verdadeiro cretino. Eu lhe falei tudo sobre o meu pai e ele con­fidenciou que tinha inveja de Vai, que lhe parecia um homem muito bom.

De conversa em conversa acabamos fazendo coisas novamente. E, no fim, eu o fiz colocar aquilo dentro de mim. Você devia ver a cara dele... era como se a cabeça dele estivesse prestes a cair! Isso é que deve ser se apaixonar, pensei. Deve ser o que estou fazendo.

Conor, será que estamos apaixonados? - perguntei.

Acho que sim, mas nunca me aconteceu antes... - ele res­pondeu.

Bem, então vamos ter que esperar para ver - eu disse.

Isso foi engraçado e não paramos mais de rir... era tão engra­çado! Lá estávamos; casados, fazendo sexo e tendo que esperar para ver se nós estávamos apaixonados.

Deve ser isso que o sexo faz com a gente - afirmei.

Mas não aconteceu antes. Não comigo. Você acha que se sentiria assim com qualquer outra pessoa? - ele quis saber, mostrando-se tão magoado que eu tive que dar um tapa bem forte na perna dele por sua estupidez.

 

Havia fogos de artifício e música, havia dança pelas ruas. A festa durou o dia inteiro e tudo se repetiu na outra manhã. As quer­messes, os shows, as folias e os festivais. As mesas foram dispostas por toda Londres e pelo menos durante esses dias havia comida para todos. Ao cair da noite deu-se o grand finale - um grandioso banquete no qual o convidado de honra era Conor e o pacto seria assinado. O fim de uma guerra e o começo de novas guerras, à medida que os chefões de Londres tentavam se deslocar até a terra dos meio-homens, e para mais além.

O grande saguão do edifício Galaxy era o local propício para um banquete como esse. Aquele amplo espaço interno repleto de teias de aranhas e aberto para os ventos nos recantos mais altos onde os pombos, as gralhas e as andorinhas faziam ninhos continuava sendo uma das maravilhas do mundo. O ar-condicionado quebrara cem anos atrás e as brumas se formavam no teto, meio quilômetro acima. Ao longe, painéis de plástico descasca­dos, revestimentos de poliestireno derramando pequenos flocos de neve, argamassa esfarelada, superfícies ásperas com aranhas, moscas mortas, poeira e sujeira velha... Mas, de alguma forma, toda essa esqualidez só fazia aumentar a glória do lugar.

No centro de tudo isso, havia o elevador, como um fio de seda de aranha tecido na neblina a perder de vista.

O elevador mergulhava nas profundezas dos porões subterrâneos, onde a riqueza absurda de Val era estocada até o cume quebrado do prédio. Era bem extenso, todo feito de vidro e de aparência quebradiça, de modo que os visitantes de primeira viagem levantavam automaticamente as mãos sobre a cabeça para se proteger, certos de que tudo aquilo estava prestes a se estilha­çar e que um milhão de cacos afiados mergulharia em cima de­les. Mas os antigos construtores o haviam fabricado com o material mais forte que já existira. Ninguém jamais conseguiu sequer arranhá-lo.

O elevador já não era acionado por várias gerações, mas seu poço tinha um novo uso. Val usava suas inacreditáveis hastes reluzentes como uma espécie de templo. Era lá que ele fazia os sacrifícios humanos. Eles balançavam como frutas entre fios e cabos até que apodreciam e despencavam em pedaços e seus os­sos se empilhavam no chão. Naquele dia, apareceram novos ca­dáveres pendurados, apontados na direção dos comensais, com os calcanhares pregados numa viga, as mãos amarradas por trás das costas e as pernas cruzadas. O vidro fora polido até brilhar.

Certa vez, Ben achou que poderia fazer o elevador funcionar de novo, se tivesse alguns dias livres e uma caixa de ferramentas. Ele instalou um gerador em cima do elevador e isso produziu grandes clarões amarelos e flashes azulados ao longo de todo o vidro prateado, além de crepitações nos cabos e nos cadáveres em brasa. Alguns corpos começaram a crispar e a queimar. Soa­ram barulhos estranhos; algumas pessoas ouviram vozes cantan­do. Val ordenou que Ben desligasse tudo.

- Os mortos não precisam ir para nenhum lugar e não têm nada a dizer - ele disse. - Pelo menos nada que eu queira ouvir.

Mais tarde Ben ficou se perguntando se por ter feito os mor­tos dançarem e cantarem ele não teria ofendido os deuses que lentamente voltavam à vida. Mas Val não teria pensado dessa maneira. Ele teria dito "Se você mata, também deve estar prepa­rado para morrer, mas é muito melhor morrer bem".

Nunca houve tanta gente debaixo daquele teto... e que gen­te! Gângsteres, contrabandistas, chefes de segurança, comer­ciantes e todas as pessoas ricas e poderosas. Lá fora, nas ruas, quem se deparasse com a pobreza não acreditaria que pudesse existir tamanha riqueza. Mas os ricos estão sempre conosco. Os Volson e os Conor são os mais privilegiados, os mais espertos, os mais dissimulados e inescrupulosos homens e mulheres de duas nações. Gente que deu tudo de si para chacinar uns aos outros durante gerações agora se sentava para comer da mesma comida.

Numa plataforma em relevo, bem à frente do elevador, senta­ram-se as duas famílias, os Volson e os Conor. Simbolicamente, Signy sentou entre Val e Conor. Siggy, que até então sentara ao lado da irmã em todas as refeições que haviam compartilhado, estava sentado dez lugares adiante. As circunstâncias abriram essa brecha entre eles, mas também houve mudanças nos seus cora­ções. Cada um dos gêmeos evitava olhar nos olhos do outro. Sentado, à espera do início da cerimônia, Siggy se ocupava em observar os corpos imolados que balançavam naquela vitrine.

 

As mulheres vestiam malhas grossas, e os homens, calças. Quan­do se pendura gente pobre de cabeça para baixo, depois de al­gum tempo dá para perceber que os trapos que pareciam adequados de cabeça pra cima acabam escorregando quando fi­cam de cabeça para baixo.

Eram todos criminosos, criminosos pobres. E isso aí, sabe como é, os ricos são mais úteis vivos. Entre eles havia uma mulher que vendera crianças como escravas para os gângsteres rivais - talvez para Conor ou para os meio-homens. Os meio-homens gos­tam de escravos humanos. O rosto dela tinha ficado roxo. E tam­bém havia um velho que falsificara dinheiro, um assassino e um estuprador. Uma combinação perfeita.

E, por último, o homenzarrão, o espião. Ele morreu ali, sozi­nho, em algum momento durante a noite. Agora ele estava dependurado de cabeça para baixo junto aos outros, com o chapéu de aba larga ainda na cabeça, amarrado debaixo do queixo, o manto surrado e remendado dependurado como asas nos seus ombros, os braços amarrados para trás e o rosto enegrecido.

Vai devia pendurá-los sem nenhuma roupa - Ben sussur­rou, cutucando minhas costelas.

Fazíamos isso de vez em quando, como uma forma de insul­to. Mas nunca com os pobres, somente com os traidores, e era preciso ser rico para ser traidor. Por que desperdiçar um insulto tão interessante com os pobres?

Para quê? - eu disse.

Ora, é um banquete de casamento, não é? - ele respondeu.

Fez-se silêncio enquanto a frase era digerida e nós dois co­meçamos a rir. Cretino! Curvamos a cabeça para baixo, como se rezássemos, enquanto rosnávamos e vociferávamos. Esperei até nos recompormos.

Além do mais, todo duro... - rosnei de volta e rimos outra vez. Era tão doentio! As pessoas nos olhavam. Had nos cutucava para ficarmos quietos. Alguns membros da turma de Conor nos olhavam com cara feia, de modo que o melhor a fazer era mor­der nossas bochechas e tratar de ficarmos calados. Então, olhei ao redor e Signy também me observava, carrancuda, como se fosse um deles. E o pior é que ela já era um deles. Uma noite com Conor e ela já era toda dele. Zás! Ela havia passado para o outro lado... Mas eu sei que isso não é assim tão justo.

 

Eu havia encontrado Signy mais cedo. Eu estava... Vou lhe dizer uma coisa, eu mal consegui dormir naquela noite, imaginando-a naquele lugar, colada com ele. Marquei um encontro com ela no seu antigo quarto para a manhã seguinte. Ela me deixou espe­rando durante horas. Eu estava quase morto de medo quando ela chegou. Ela podia ter sido... Bem, qualquer coisa podia ter acontecido!

Ela irrompeu então pela porta e me olhou.

E então? E então? O que houve? - eu disse. E ela... ela dis­parou a rir, e piscou pra mim.

Nada demais. - Ela sorriu com displicência. - Ele foi... gentil - ela completou com uma expressão séria.

Eu não podia acreditar. Passei a noite inteira enojado com aquilo e ela estava toda sorridente com as bochechas rosadas. Ela parecia satisfeita consigo mesma.

Você deixou que ele fizesse aquilo? - perguntei.

Acho que ele me ama, Sigs.

Amor! Então agora já era amor! Ela não fazia idéia de como isso era ridículo, essa história de ficar apaixonada depois de ter passado uma noite com esse...

Não seja burra - falei.

E então ela começou a contar como Conor era bem diferente daquilo que as pessoas diziam, e de como o pai dele havia sido o verdadeiro vilão da história e do quanto ele era realmente doce e gentil. Doce e gentil! Como ela pôde esquecer tão rápido? Esse cara era o mesmo que estrangulava pessoas só porque elas tossi­am na hora errada! Gentil? Conor?

Era tão óbvio o que estava acontecendo. Apaixonado? Ele estava usando Signy, notei isso na mesma hora. Ele estava tra­çando os limites dela. E ela simplesmente engoliu isso tudo. E Val também. Fui direto até ele para lhe contar o que estava ha­vendo, mas, ao ouvir que Signy havia dito que Conor estava apai­xonado por ela, ele ficou satisfeito. Satisfeito! Meu pai não confiaria em negociar nem com um santo se esse santo descesse do céu, mas acabou acreditando que Conor se apaixonara por sua filha só porque lhe convinha.

Mas... já estava feito e, droga, era o dia dela. O que eu podia fazer? Eu não tinha como mudar nem um segundo disso tudo. Sentei no meu canto e me pus a olhá-la atentamente, passando pelos rostos e pelas facas, e o fato é que eu daria os dedos somente para lhe dizer "me desculpe, você ainda é minha irmã". Mesmo que eu não sentisse isso como uma verdade. Signy sorriu e ace­nou, mas ela também não parecia tão feliz assim comigo.

 

Na mesma mesa, um pouco adiante, Had observava Ben com ansiedade. Seu irmão havia parado com as brincadeiras e já co­meçava a ficar angustiado. Encarava furiosamente os homens de Conor, que se remexiam para olhar o espião, o homem imenso dependurado no tubo de vidro.

Eles o conhecem! Eles o conhecem, está vendo? Ele era um espião... - Ben resmungou, remexendo-se na cadeira.

Had balançou a cabeça e inclinou-se para a frente.

Psiu, Ben. Isso não quer dizer nada. Quem é que não reviraria os olhos pra ver isso? Fique calmo. Não vai acontecer nada. É só uma refeição.

Ben, no entanto, não estava sozinho nos seus temores. O ban­quete era um evento tenso. Cada convidado foi revistado. Cada ninho e recanto nas paredes altas do saguão foram investigados, revirados, limpos e vasculhados diversas vezes. Era possível proibir as armas, mas era impossível encontrar e remover o veneno e a desconfiança de cem anos de guerra. No fim das contas, a me­lhor medida de segurança era fazer com que todos se misturas­sem. Fosse lá quem abrisse fogo, estaria tão sujeito a matar os irmãos quanto os inimigos.

Siggy apontou para a imensa quantidade de facas dispostas diante de cada convidado. Havia de tudo, desde facas para cor­tar frutas até facas de carne.

Não sei por que eles se preocupam em se livrar das armas. Nós não precisamos de armas. Só com essas facas já se faria um massacre.

Quem? Nós? Ou eles? Você acha? - Ben ficou paralisado e empalideceu. Estava um caco. Had deu uma cotovelada em Siggy!

Cale essa maldita boca.

Desculpe - Siggy murmurou, suspirando e se inclinando para trás, enquanto observava os convidados que comiam com desconfiança aquela comida cara, como se fosse veneno. Nin­guém podia afirmar que não era.

Ao redor da mesa principal, alguns brutamontes em trajes pretos, os guarda-costas, anjos da guarda posicionados sobre os mem­bros das famílias. Atrás de Conor, o guarda-costas meio-homem que abrira a porta do carro quando ele chegou. Este guarda-costas não estava vestido de preto. Não precisava disso, pois uma pelugem negra e curta cobria o seu corpo. Não era arriscado esconder uma arma por baixo daquelas roupas bem alinhadas, mas o meio-homem não precisava de armas. Ele só estava ali para meter medo. Olha só! O rei Conor está sendo escoltado por um meio-homem!

Ambos os lados se odiavam mutuamente, mas o ódio huma­no pelos meio-homens ia bem mais longe. Parcialmente procriados e parcialmente fabricados, eles haviam sido projetados para manter os londrinos aprisionados em sua cidade. A perspectiva de exterminar os meio-homens e de escapar da cidade é que mo­tivara Vai em sua tentativa de unir forças com Conor.

O negócio é o seguinte, Conor não capturou essa coisa, ele a cultivou. Ele tem um útero de vidro de Ragnor - Had sussur­rou aos irmãos, inclinando-se à mesa.

E o que serviu de matéria-prima? Ossos de aço, dentes de lobo? Quanto de ódio e de medo havia nisso? Era possível fazer qualquer coisa com a tecnologia adequada. Mas muitas das pes­soas que estavam ali naquele dia achavam que não era possível um humano conseguir a lealdade de um meio-homem, especialmente um humano como Conor, famoso por cruzar a Muralha e caçar aquelas coisas por esporte.

Siggy encarou a criatura. Ela ostentava uma enorme cabeça que devia pesar uns cem quilos e se ajustava ao grande e grosso pescoço como uma pequena bola de borracha. Havia muito de cachorro na linhagem daquela criatura, a julgar pela cintura fina, o tronco grande e os ombros estreitos.

O meio-homem olhou diretamente para Siggy, exibindo uma língua rosada, larga e comprida, e começou a arfar.

À medida que os pratos eram trocados e as taças se enchiam, a animação aumentava. No fim das contas, o banquete durou uma eternidade.

Vai deixara tudo sob a incumbência de Al Karr, um contra­bandista - comerciante, como o chamavam na época - que per­corria a terra dos meio-homens até o amplo mundo que se estendia mais além. Vai era dos velhos tempos. Na sua infância, eles ainda estavam lutando com os meio-homens e não havia negociações. Ele tinha vindo do nada e trinta anos atrás ainda não sabia como era uma garrafa de vinho. A idéia de ter dinhei­ro para gastar... ele não era capaz de entender isso. Gastar di­nheiro com armas, prédios, escolas... ótimo, claro. Mas ele ainda estremecia só de pensar em pagar por vinho contrabandeado.

Al fizera um bom trabalho. Tudo com que se podia sonhar estava à disposição, comida e bebida à vontade. Os chefs de cozinha criaram obras de arte gastronômicas para muitos dias; lagartos acompanhados de galinhas recheadas, camarões e lagostas-dragão, esculturas de arroz, pavões, costeletas em pequenas cons­truções, carne fatiada e saladas que formavam verdadeiros quadros retratando cenas da vida de Val e de Conor e de suas respectivas vitórias passadas e presentes. A todo momento che­gava à mesa um novo prato sob uma chuva de aplausos. Mas Val estava escandalizado, embora ele soubesse que seria desse jeito. A cabeça dele girava no topo do pescoço, enquanto ele falhava na tentativa de calcular o custo de tudo aquilo.

De alguma forma, Vai conseguira pegar até um camelo que fora assado com corcovas e tudo. Amarraram o bicho com as pernas para baixo e a cabeça para cima, como se ele estivesse vi­vo. E o decoraram com uma espécie de geléia besuntada com cerca de vinte cores diferentes. O camelo tinha uma aparência drogada. Uma imagem gloriosa, ridícula e hilária. Antes de cortá-lo, os garçons o conduziram através do saguão em cima de um carrinho. À medida que o camelo atravessava o sagão, ouviam-se os estrondos das risadas.

Por fim, a sineta tocou.

Os homens de Val tentavam manter o rosto erguido, pelo menos aqueles que não temiam pelo seu pescoço. Conor e sua gangue estavam cientes do que aconteceria, com aquele guarda-costas que parecia estar sempre irritado, era demasiadamente perigoso deixar que alguma coisa que cheirasse a desastre acontecesse. Tudo fora explicado - como, o quê, onde, por quê. Mas, na verdade, os homens de Conor não faziam idéia. Ninguém fazia de nada. Mesmo que já se tivesse ouvido rumores a seu respeito, mesmo assim, aquela situação provocava calafrios. Não era só o barulho. A imagem por si própria já era aterradora.

Uma grande viga de aço fora recuperada de um dos arranha-céus da cidade. Pesava bem mais de cem toneladas e pendia lá no alto como uma baleia no oceano do grande saguão, suspensa no ar, cem metros acima das cabeças dos convidados, em meio a uma nuvem de fumaça de tabaco e poeira, em meio a uma série de cabos. Em cada extremidade da viga, dois grandes e grossos ca­bos de sustentação. Eles passavam por suas extremidades e ter­minavam em dois enormes mecanismos de guincho, fixados nas paredes do saguão.

Era uma viga tão grande quanto qualquer sino de catedral e servia como badalo.

A viga pendia vagarosamente ao longo do grande espaço en­tre as paredes. Durante todo o tempo em que os convidados estiveram comendo, ela se movimentava no ar, metro a metro, como se parte do prédio se movesse acima deles. Por fim, ela se aninhava perto das paredes. O resto era simples. O mecanismo dos guinchos era liberado e a grande viga oscilava no ar, como um desmoronamento no espaço.

Ouvia-se o ar saindo do caminho à medida que a viga fazia o seu percurso. Ela era tão grande que parecia lenta, tal como um avião quando cruza o céu. Mas seguia com a rapidez de um trem. O ar silvava aterrorizado e aquele peso morto balançava no céu como uma lua cadente. Mesmo que se visse tudo isso umas cem vezes, toda vez que a viga se movia, logo se tinha a certeza de que o teto desabaria. De que se morreria. De que se acabaria es­magado como uma ervilha cozida.

Não apenas isso; olha só! A viga estava apontando direta­mente para o elevador...

Os homens de Conor se agacharam, ergueram as mãos sobre a cabeça e se afastaram sem ter para onde ir. A qualquer instante a viga atingiria o elevador e despencaria uma chuva de vidro quebrado em cima deles.

A viga chocou-se contra o vidro com estalidos que pareciam açoites nas costas do mundo. O tubo de vidro se contorceu. Houve uma eclosão de cores para todos os lados, como um súbito vaza­mento de óleo, jatos de cores em uma centena de palhetas. E o elevador zumbiu.

A viga de cem toneladas era o badalo, e o elevador, a campana. E todo o prédio era o campanário.

Soava como se a terra estivesse uivando. Todos tapavam os ouvidos com os dedos, já que tinham sido aconselhados a fazer isso. Até o guarda-costas tapou os ouvidos, enquanto revirava os olhos para ver se alguém tentaria alguma coisa nesse momento em que os outros se ocupavam com as mãos. O elevador ressoava e soltava uivos, cada milímetro de ar era preenchido pelo transbordamento de ruídos. O guarda-costas meio-homem enroscava-se como um tatu e gemia como se avistasse a morte vindo ao seu encontro, mas ninguém ouviu nada. A mesa, o vinho tremia nas taças e as facas chacoalhavam. Lá do alto, escorriam camadas de poeira. Ao atingir a luz, assumiam a aparência de anjos celestiais que desciam em labaredas de glória, mesmo sendo apenas sujeira.

O mais estranho, no entanto, foi o comportamento dos mor­tos quando o sino badalou. Eles começaram a se mover. Seus braços se ergueram, suas cabeças balançaram como se dissessem "não, não". Eles se sacudiram e se contorceram nas cordas e nas cruzes. Houve um chuvisco de ossos enquanto alguns cadáveres mais antigos se desmanchavam. Depois, o som diminuiu, mas esse estranho fenômeno continuou e cada rosto do saguão se virou para observar. O vinho jazia nas taças em pequenas ondas aneladas. A poeira se assentava entre os convidados do casamen­to e alguns protegiam a comida com guardanapos, mas os mor­tos ainda se mexiam. Mesmo depois de alguns minutos, quando a zoeira já havia se reduzido a um zumbido, eles ainda seguiam com essa dança macabra entre os cabos, remexendo-se e esqua­drinhando de um lado a outro, vítimas de ruídos subsônicos e de forças que atravessavam o elevador.

O movimento dos mortos tornava-se cada vez mais lento e mais fraco, até que, por fim, eles jaziam dependurados, quietos e inertes, enquanto os convidados deixavam a cena de lado para voltar às refeições e às conversas com as pessoas ao lado sobre o que acabara de acontecer. Alguma coisa nunca vista estava acontecendo.

Um dos mortos se recusava a voltar à inércia.

Era o homem com um olho só. O corpo continuava sacudindo a cabeça de um lado a outro, com o olho opaco e horríveis nódoas de sangue. Os braços pareciam ter se soltado das amarras nas costas e agora ele os erguia no ar. Ele virou a cabeça. Incrí­vel! E de repente se debruçou para agarrar o cabo onde seus pés estavam pregados.

As pessoas pularam e gritaram. Isso era impossível! Em um segundo todos os olhos voltaram-se para o homem morto. Era como um pesadelo que não acabava. Quando ele arrancou o prego com um simples safanão, ficou claro que estava voltando à vida.

Os gritos cessaram um por um e uma profunda inércia recaiu sobre o saguão. O homem morto se debruçava para agarrar os cabos nos seus pés. Então, pendurado pelas mãos, muito lenta­mente ele soltou os pés até ficar de cabeça para cima. Ele conti­nuou dependurado por algum tempo, como um grande pássaro negro, olhando para baixo, na direção dos comensais.

Do lado de fora, no saguão, iniciava um murmurinho, as vozes ficavam mais altas. Val se levantou e balançou o braço.

Quietos! Parece que temos um visitante... - E o saguão se calou outra vez.

Então, ele deve ser mesmo uma máquina! - Had murmu­rou, inclinando-se para seus irmãos. Mas o sangue já começava a descer pelas costas do homem. Seu rosto, até então enegrecido como sangue coagulado, tornava-se avermelhado.

O homem morto balançava com suavidade, pendurado pelas mãos. Olhava para baixo, para os cabos abaixo dele, como se maquinasse uma forma de se soltar. O saguão estava tão silencioso quanto o fundo do mar. O rosto do homem era encoberto pelo chapéu largo, mas ainda assim era possível avistar as faíscas de seu único olho, como se fosse o olho de uma máquina.

Conor empalidecera. Ele fingia estar furioso, mas, na verda­de, era medo.

Essa criatura é sua - ele disse para Val com voz baixa. - Então foi tudo um truque até mesmo para você? - falou para Signy em seguida.

Não foi! Não é... Eu não sou... - disse Signy.

Isso não tem nada a ver comigo, cara. Será que você não vê? São os deuses, os velhos deuses estão voltando para se mistu­rar conosco. O que você está vendo não é nada mais que o pró­prio Odin - Val interrompeu.

O homem morto começou a descer pela passagem do eleva­dor. Ele não escalava, usava as mãos, como se fosse um grande morcego negro com o longo manto pendendo ao seu redor. Era um momento perigoso. Os guarda-costas de ambos os lados se encolheram. Se alguém abrisse fogo, os mais poderosos das duas nações seriam exterminados.

Não sei se acredito nesses deuses. - Conor umedeceu os lá­bios.

E quem mais seria? Quem mais faria isso além dos mestres da vida e da morte? Pergunte ao seu meio-homem. Veja! - retru­cou Val, com uma risada.

Em seu posto, ajoelhado atrás da cadeira de Conor, o meio-homem fez uma saudação com a cabeça para o convidado ines­perado. Uma gritaria aflorou pelo saguão, as pessoas discutiam a respeito das palavras de Val.

É verdade, olhem! Ele só tem um olho, como nas histórias.

Ben já se convencera.

Siggy estava prestes a responder "besteira", mas, assim que abriu a boca o homem saltou e despencou dez metros ou mais, desabando e colidindo entre os cabos e os corpos abaixo dele. Ele se estatelou em cima do entulho de ossos e peças de maqui­naria com um baque estrondoso. Dava para ouvir sua respiração arfante. Ele devia estar morto outra vez, mas, em vez disso, le­vantou-se lentamente. Ao seu lado havia uma fenda no elevador, onde antes estava a porta. Ele atravessou a fenda, caminhou na direção das pessoas no saguão e, à medida que emergia, as vozes silenciavam.

Agora, todos estavam petrificados. Alguns homens queriam se levantar e agarrar o intruso, mas estavam com os músculos pa­ralisados. Aqueles que estavam com medo do homem morto e queriam sair correndo do saguão se viam presos em suas cadei­ras. Só se ouvia o suave som dos pés do homem morto no chão. Ele se deteve por um instante e olhou ao redor, como se reco­nhecesse cada um daqueles rostos. Depois, puxou uma faca do cinto e brandiu-a no ar, sobre a própria cabeça. Era um objeto velho, tosco e feio, com uma lâmina atarracada e encrespada. Os que estavam mais próximos chegaram a notar que não era se­quer de metal. Era de pedra, pedra lascada, algo que um homem das cavernas teria usado cinqüenta mil anos antes.

O homem morto pôs-se de frente para o elevador e fincou a lâmina com uma punhalada repentina. Ouviu-se o som de um garfo afiado e a faca se fixou no vidro polido como se estivesse no ar. O homem morto se virou outra vez e sorriu, soturno e or­gulhoso, para a platéia cativa que encarava petrificada o segun­do milagre do dia. Não havia nada capaz de penetrar naquela coisa. Nem mesmo a viga de cem toneladas que oscilava no ar podia arranhar aquilo. Mas o fato é que havia sido perfurado por uma faca de pedra lascada.

Somente o meio-homem se mostrava capaz de se movimentar. Ele saiu do seu posto, atrás da cadeira de Conor, avançou alguns passos, abaixou o rosto até o chão e pela primeira vez ouviu-se a sua voz, metade canina, metade humana:

- Mestre - disse o meio-homem.

O homem morto arqueou, tocou por um instante o ombro do homem-cachorro e em seguida abriu caminho entre os guarda-costas até ficar atrás da cadeira de Signy. Ela se mexeu na cadeira e o encarou. Ofegante, Val também virou-se para olhar este convidado que com sua reles presença não lhe deixara uma só migalha de poder. Conor era o único que não estava num ângulo no qual pudesse olhá-lo, mas se virou para encarar os guarda-costas, como se eles fossem culpados pela aproximação do homem morto.

O homem morto inclinou-se para a frente. Conor encolheu-se, como se esperasse por uma bofetada no pé do ouvido. Mas não houve bofetada alguma. Pelo contrário, o homem ergueu a taça de Val e a manteve em riste. Ele brindou a todos os presentes e bebeu um gole silencioso. Depois pôs a taça na mesa com um baque e limpou a boca com as costas de uma das mãos. Virou-se e apontou para a faca fincada no elevador.

- Quem tirá-la dali pode ficar com ela. Seja quem for. Pode ficar com ela - ele declarou e abriu os braços. - Povo de Londres - entoou com uma voz grave.

Antes de abaixar os braços, ele se deteve por um segundo. E logo olhou na direção de Signy, que estava sentada com o rosto pálido voltado para o dele. Ele se curvou e pôs a mão no ombro dela, que com um movimento repentino e involuntário virou-se e abraçou-o. Signy nunca soube o que a levou a fazer isso. Ela ficou parada e o segurou com firmeza pela cintura, enquanto ele descansava os braços em seus ombros. Até que ele a afastou com delicadeza e começou a caminhar vagarosamente em torno da mesa principal, passando por Conor e por Val, e chegando onde os três irmãos Volson estavam sentados. Ele sorriu novamente com aquele sorriso que já estava se tornando familiar e pousou a mão no ombro de Siggy.

Siggy se virou para contemplar seu rosto. Sentiu no fundo do coração que sabia quem era ele, mas também sabia que nunca o tinha visto em toda a sua vida. Debaixo do sombreado daquele chapéu de aba larga, a face era escura e ensangüentada. Siggy só conseguia ver o olho solitário.

O homem morto não disse nada. Limitou-se a acenar com familiaridade e seguiu com passos vagarosos em torno da mesa. Saiu da plataforma onde as famílias estavam sentadas, passou pela multidão e abriu caminho pelo saguão. As cabeças se volta­ram para acompanhar o seu percurso. Ele levou cerca de dez mi­nutos para chegar até a porta principal, dez minutos que conge­laram toda a vida ao redor. Depois, abriu a porta e saiu...

A medida que a grande porta balançava e batia às suas costas, o feitiço se quebrava. Um repentino pandemônio de vozes tomou conta do recinto. Conor e Val se levantaram ao mesmo tempo.

Tragam aquele homem...! - Conor gritou.

Volte aqui! - Val berrou.

Após a passagem do homem morto, os guardas da porta de­ram um pulo, como se despertados de um sono. Conor voltou-se para Val com um olhar malicioso.

Isso é algum dos seus truques - Conor resmungou, com os lábios brancos de medo.

 

Aquilo era uma máquina. Nenhuma criatura viva retorna dos mortos. Uma máquina, sem dúvida. Só uma máquina pode ser reativada. Mas pode ser que os deuses também não sejam vivos...

De qualquer forma, que diferença há entre homens e máqui­nas quando se pode construir algo de carne e osso e acrescentar um cérebro mecânico a isso? Tudo bem, era uma coisa fabricada e eu sabia muito bem por que essa coisa estava lá. Conor era ini­migo de Vai. Cada um dos homens dele estava de olho em cada um dos nossos homens, cada um dos nossos homens estava de olho em cada um dos homens dele, e todos achavam que era algum truque planejado pelo outro lado. Estivemos lutando uns com os outros durante cem anos. Como é que alguém podia acre­ditar que isso terminaria?

Aquela coisa estava lá para pôr um fim em qualquer tipo de pacto. Será que lá fora estavam com medo de nós?

Vai ainda tentava convencer Conor:

- Odin vagou por nove dias e nove noites. Ele morreu e res­suscitou. Entende? Entende? - Vai segurava Conor pelos braços.

Notava-se que Vai tentava se convencer. O irônico é que ele era tão desconfiado que nem mesmo acreditava no que dizia para si, a menos que tivesse uma testemunha. Por outro lado, ele era tão supersticioso quanto uma velha senhora. Já fazia muito tem­po que ele vinha querendo acreditar nesses deuses antigos. Ele queria tê-los ao seu lado. O que era bem conveniente, quando se quer as coisas feitas do jeito certo.

As pessoas gritavam. Os guarda-costas se mostravam nervo­sos e rondavam o recinto. Sentia-se a confiança escorrendo pelo ralo. Até que Val se virou para encarar o saguão e começou a berrar. O tumulto era tanto que a princípio não se podia ouvi-lo, mas todos se calaram quando notaram que a boca de Val se me­xia. Já fazia cinco minutos que o saguão silenciara e de todos os cantos se ouvia o que Vai estava dizendo.

Odin! - ele gritava seguidamente. - Odin! Odin! Odin! - Ele apertava as mãos como se pudesse forçar o próprio ar a acei­tar sua versão da história. É isso aí, e talvez ele pudesse ter feito isso mesmo. Aos poucos todo mundo se aquietava. Val batia o pé. Se fosse qualquer outro, diriam: acesso de raiva. Mas os aces­sos de raiva dos reis são verdadeiros. Já o vi fazer isso antes. Era só olhar o rosto do pessoal. Primeiro ficavam constrangidos pela reação de Val. E depois eles acreditavam em tudo o que Val qui­sesse que acreditassem.

No instante em que ele parou de gritar, o saguão se pôs à espera de alguma atitude dele. Ora, não havia como não se im­pressionar com meu pai. A respiração dele estava ofegante; ele estava sem fôlego de tanto gritar e espernear. Até que, de repen­te, estendeu os braços.

Um presente de Odin! Que me dizem disso? - ele disse.

E nos viramos todos para ver a faca.

Era realmente um milagre, não era difícil acreditar que se tratava de um trabalho dos deuses. A faca estava fincada até o cabo.

Só para se ter uma idéia, eu falei em vidro quando me referi ao elevador, mas claro que não era vidro. Alguns diziam que era um diamante único e perfeito com um quilômetro de extensão que se originou do carvão. Outros achavam que diamantes eram muito macios para ser aquilo. Aquela pequena faca estava fincada como se em madeira oca. Então, do que era feita? O que fazia naquele lugar? Para que servia?

O pensamento que surgiu à minha mente - sou realista, como se pode notar - é que a faca era a chave para a nossa destruição. Uma armação. Assim que ela fosse removida, o vidro desabaria e seria o fim de tudo, de mim, de meus irmãos, de Signy, de Conor, de Val e de todo o nosso povo. Exatamente o que Ragnor gostaria de ver...

Vai, no entanto, já se decidira. Eu sabia exatamente o que ele diria. Por isso, sentei no meu lugar e suspirei. Afinal, o que mais podia ser feito?

Um presente do próprio Odin! - Vai gritava. - Uma faca como nenhuma outra na Terra! - Sua voz ecoava pelo saguão. Todos se mantinham calados. Eu observava Conor. Ele não fazia idéia do que estava acontecendo, assim como todos nós, mas de uma coisa ele sabia com certeza. Ele desejava aquela faca. Eu sem­pre reconheço a cobiça quando a vejo, e Conor a tinha de sobra. Bem, ninguém podia culpá-lo por desejar a faca. Fosse qual fosse sua origem, dos deuses ou de Ragnor, o fato é que aquela faca era uma coisa que valia a pena possuir.

O meu querido cunhado mordiscava ansiosamente a ponta de um dos dedos. Atrás dele, o guarda-costas meio-homem ainda es­tava ajoelhado e tremia. Conor o observava com o canto dos olhos.

O deus era esse? - Conor exigiu uma resposta.

Sim, o deus Odin, meu senhor - o homem-cachorro latiu e tremeu.

Conor se levantou. Olhou ao redor e ruborizou, fazendo-lhe a única justiça que posso.

Eu exijo ir primeiro - ele disse.

Eu reparei que Ben olhava suplicante para Vai. Ele era o filho mais velho e queria ser o primeiro a ir.

Primeiro, os convidados - Vai retrucou. Frustrado, Ben bateu o pé, mas obedeceu. Todos olharam para Conor.

Ah, como foi ótimo de se ver. Cerca de vinte expressões dife­rentes brotavam do rosto de Conor. Ele já devia estar sabendo que faria papel de bobo. Todas aquelas pessoas o olhavam e ele odiava fracassar em público. Mas sabia que se não fizesse alguma coisa, alguém faria. Então, ele esfregou o rosto, fez um aceno de aprovação para Vai, levantou-se da mesa e se dirigiu ao elevador.

Foi uma piada. Pobre Conor! Todos os olhos estavam sobre ele, mas aposto que ele preferia estar completamente sozinho. O rosto dele ficou tão vermelho quanto um tomate, isso era uma das verdades que Signy havia dito sobre Conor, ele se constran­gia com facilidade. Signy estava completamente inquieta, com o rosto branco como papel. Ela olhava Conor e eu notava que ela o incentivava a ir em frente, cada uma de suas fibras o incentiva­va. Isso me deixou furioso. Ele a tinha enganado direitinho. Ela estava apaixonada, mas claro que estava apaixonada por uma máscara.

Ele ficou em frente à faca, de costas para nós, de modo que ninguém podia observá-lo, e depois a segurou pelo cabo e pu­xou-a delicadamente.

Nada se mexeu. Conor puxou com mais força. Depois, es­piou por sobre o ombro e esboçou um risinho. Ele se sentia um pouco tolo porque não queria fazer papel de bobo se puxasse com mais força e fracassasse. Em seguida tentou de novo, com mais força. Por fim, deu tudo de si. Apoiou o pé no vidro e pu­xou com toda a força.

Noventa por cento dele se esforçavam e os outros dez por cento tentavam adivinhar se ele não estava sendo atrapalhado. Mas querendo ou não querendo, ele não conseguiu mover a faca nem um milímetro.

Isso é impossível! - ele lamentou no fim. Largou a faca e olhou-a como se ela tivesse mijado nos seus sapatos. Depois de­sistiu, mas tentou fingir que não estava sem fôlego. Signy apoiou a mão sobre o braço de Conor, desapontada por ele, mas com um gesto sutil ele a afastou. Conor suava.

Depois disso, cada um dos presentes fez uma tentativa. Eu estava tremendo. Achava que o elevador inteiro ia cair sobre nos­sas cabeças.

Não fique com essa cara idiota de medo! - Had resmungou.

Será que você é tão estúpido a ponto de não ficar com me­do? - resmunguei. Mas logo notei que Val também me observa­va, e o meu rosto assumiu o ar prepotente de nada-me-assusta que ele gosta de ver nos seus filhos.

Todos fizeram suas tentativas. Primeiro, a família de Conor, seus tios, primos e todos os outros. E depois a elite do seu estafe, os generais, os comerciantes e por aí afora. Todos eles fracassa­ram. E, então, chegou a nossa vez.

O próprio Val fez uma tentativa, e digo isso por ele, meu pai não se incomodava em fazer papel de bobo. Acontece que, claro, ele tinha o dom de fazer as coisas parecerem grandiosas. Vai marchou até o elevador, envolveu a faca com as mãos e atacou-a como se ela fosse algum mecanismo. As veias do seu pescoço saltaram como se fossem abas. A impressão que dava é que ele era algo saído de um filme de ficção científica. Eu estava morrendo de medo de que a faca escapulisse. Ele voou para trás, mas eu nem precisava ter me preocupado, nada se moveu. Ele se virou, arremessou as mãos para o alto e voltou para o seu lugar.

- Isto é coisa para homens mais jovens - ele disse.

E depois Ben, e depois Had. E nada. E depois, naturalmente, eles tiveram que me dar uma chance...

Merda, eu pensei.

Não me entenda mal. Eu não estava preocupado em parecer uma mulherzinha, eu posso fazer isso sozinho, sem nenhum es­petáculo como esse. Só que...

O homem morto tinha sorrido para mim antes de o matar­mos. E depois, quando rodeou a mesa, ele me tocou. Mas mes­mo que essas coisas não tivessem acontecido, eu saberia. Cada vez que as pessoas iam e vinham em suas tentativas, a razão para que eu mordesse os lábios e estremecesse não era apenas o medo do teto desabar.

A faca era minha. Eu sabia que a faca era minha. Ele a pro­metera para mim. Não, ele não disse nada. Ele a deu para mim, com um sorriso e um toque. Eu me dei conta de que tudo se re­sumia a isso no momento em que ele a cravou no elevador. O toque no meu ombro confirmou isso. E também a forma do meio- homem me olhar e balançar sua pequena cauda mesmo depois da saída de Odin.

Se qualquer outra pessoa tivesse tirado a faca, bem, eu teria sorrido e lidado com isso da melhor maneira possível, mas no meu íntimo eu saberia que havia sido enganado. Eu sabia, a faca era minha.

E eu não queria isso.

Ora, claro que eu queria a parte da faca dessa história. Eu a desejava ardentemente. E até sentia como ela poderia se adaptar à minha mão. Eu conhecia cada lasca daquela lâmina de pedra bruta antes mesmo de ter dado uma boa olhada nela. Aquela coisa era uma parte de mim, da mesma forma que meus ossos são meus, da mesma forma que minhas mãos e meus lábios. Mas havia um "porém" no fato de possuir uma faca como aquela - um presente dos deuses. Não que eu acreditasse nos deuses, você me entende, mas, mesmo assim... Um presente como esse faz parte de uma história que não é a sua. Eu não queria que alguém transformasse a minha vida em um épico, mesmo que esse al­guém fosse um deus.

Toda vez que alguém tentava tirar a faca, eu pensava: é isso aí, deixe que Had fique com ela. Ele é quem deseja ser o líder dos povos! Ou Ben, ele daria tudo para ter alguma coisa como aque­la! Mas, ao mesmo tempo, eu tinha certeza de que ninguém ali ficaria com a faca. Ela seria minha, quisesse eu ou não.

Eu não podia escapar disso. Sem chance. Isso não seria per­mitido, e, mesmo que fosse, eu queria a faca comigo, queria tan­to que estava disposto a aceitar cada parcela daquele negócio de destino se fosse preciso. Enquanto caminhava até a faca, eu pen­sava: serei tão gentil quanto puder, só vou fingir que estou pu­xando. Mas o fato é que eu sabia exatamente o que ia acontecer. Era como se eu pudesse ver aquela coisa desagradável a cintilar para mim.

Levei a mão até a faca e toquei nela, ah, com tanta delicade­za. A minha impressão é que eu não era eu mesmo. Senti meu cotovelo me puxando para trás como um coice de arma. A faca e minha mão saltaram juntas e eu a brandi sobre minha cabeça, soltando um grito altíssimo. Foi uma surpresa; ao olhar para cima a fim de ver se o teto estava desabando, todo o saguão tomava isso como um gesto de triunfo e os convidados se levantavam com um salto, os dois mil convidados, e me ovacionavam.

 

E houve então um estrondo de vozes, todos se aglomeravam em volta do garoto querendo tocá-lo. Queriam fazer parte disso. Siggy olhou a coisa em suas mãos e sentiu...

Um sentimento que não era para ser conhecido. Quem mais receberia um presente como aquele? Apenas como comentário, para início de conversa, era como se, de uma hora para outra, ele houvesse se tornado um todo. Antes, ele era um pedaço, um fragmento. Agora, pela primeira vez, Siggy era ele mesmo.

E brotou o medo. Embora Siggy tenha se decidido tempos atrás não acreditar em coisas como deuses, embora tenha dito a si mesmo que o homem morto viera do Lado de Fora e era uma produção de Ragnor ou talvez de alguma outra cidade, o cora­ção dele dizia que ele havia estado na presença de um deus. Ele se dizia que até mesmo esse sentimento de estupefação fora fa­bricado pelos técnicos de Ragnor, que eram capazes de produzir sentimentos com a mesma facilidade que produziam abridores de latas. Acontece que, mesmo dizendo para si o que devia ser dito, ele estava convicto de que o que vira não era mortal e que o que tinha nas mãos não era deste mundo.

Ele se pôs por algum tempo a contemplar o presente que ganhara. A lâmina de pedra bruta fora habilmente talhada numa extremidade afiada, mas quem adivinharia que era a coisa mais dura da face da Terra? E quem teria talhado aquilo com tanta facilidade? Depois de algum tempo, Siggy se deu conta de que a multidão havia se dispersado e que somente Conor permanecia ao seu lado. Ele estava bem próximo e falava alguma coisa com voz, mansa:

O quê? O que você disse?

Conor sorriu com tolerância, como um pai sorriria.

A faca, a faca - ele disse. - Vou te pedir um favor, um grande favor. - Ele sorria enquanto esperava. Era óbvio. Ele es­perava que Siggy fizesse a oferta. Ele só estava falando com um garoto. Siggy entendeu na mesma hora o que ele queria.

Conor suspirou. Os modos do garoto não eram dos melhores.

A faca - ele disse novamente. - Como um parente seu... É o banquete do meu casamento. Sou o convidado de honra. A faca deve ser minha.

Você não conseguiu tirá-la - Siggy retrucou.

Ora, você não vai me dizer que acredita nessas coisas, garoto. Isso não quer dizer nada, a faca já estava frouxa quando chegou a sua vez, só isso. Você fez muito bem em tirá-la. Mas ela deve ser minha. Vou lhe pedir esse favor, me dê a faca. Como seu cunhado. Como parceiro do pacto travado por seu pai.

Siggy olhou para o ponto da mesa onde Signy estava sentada, observando-o com ansiedade. Ela notou que o irmão a olhava e acenou. Isso, isso, dê a faca para ele. Faça isso por mim, Sigs, pelos velhos tempos. Dê a faca para ele...

Siggy sentiu o peso da faca com a mão e, de repente, golpeou com força a mesa de madeira onde eles estavam. A faca entrou com um baque até o cabo.

Então pegue. Se você conseguir, ela é sua.

Criou-se uma imobilidade ao redor deles. Conor olhou a faca, mas não moveu um músculo.

Vá em frente. É só madeira.

Conor estendeu a mão e agarrou a faca, mas só de olhar já se notava que talvez em suas mãos estivesse a raiz de uma monta­nha. Ele a empunhou. A mesa se deslocou. Ele franziu os olhos, mas queria a faca. Apoiou a perna na mesa e fez força. Soltou um grunhido selvagem que extravasava o seu esforço; os músculos do seu pescoço apareceram por um instante. Em seguida, ele afas­tou a mão, olhou ligeiramente as marcas furiosas e profundas feitas pela faca, sorriu e deu de ombros para Siggy, como se tudo isso fosse apenas uma brincadeira.

Siggy estendeu o braço para a faca, que pulou para sua mão, como se fosse viva.

- Mesmo que cobrisse todo o chão de ouro, você não pode­ria comprar a minha faca. Você jamais a terá - ele sussurrou triunfante no ouvido de Conor.

Conor deu uma olhada para trás, por cima do ombro. Ele queria saber se havia alguém por perto que pudesse ouvir a ma­neira com que Siggy lhe falava. Ninguém precisava ouvir. Uma olhadela nos dois rostos já dizia tudo: o rosto de Siggy aberto com um sorriso eufórico, o rosto de Conor empalidecido de perfídia e fúria. Em seguida, soltou uma risada para Siggy o mais natural possível. Uma risada que soou perfeitamente natural. Ele deu as costas e foi se juntar aos outros convidados. Siggy pôs a faca de volta no cinto.

 

No dia seguinte, no pequeno quarto de um dos apartamentos de Val, aconteceu uma discussão ríspida entre os gêmeos:

Você é mesmo uma tonta.

Por que você não dá a faca para ele?

- Não!

Você sabe que deveria.

Por quê? Por que devo?

Ele é um convidado. - Signy deu uma pausa com um pensa­mento repentino em voz alta: - Isso não é algum truque de Val, é?

O que há de errado com você?

Por que você não entrega a faca para ele?

Porque ela é minha, Signy. Você viu! Fui eu quem a retirou.

Você nunca acreditou nessas coisas...

E ainda não acredito. Mas fui eu quem a retirou. Você não viu? Ela perfura qualquer coisa. Olha só.

Siggy puxou a faca do cinto e fincou-a na parede ao lado. Ouviu-se um pequeno estalido rouco quando a faca entrou na pedra e se fincou.

Impossível.

Em um indício sutil de indignação, Signy caminhou até a faca e se deteve. Não era só a faca que ela queria para Conor. A verdade é que ela teve medo de que ela própria conseguisse removê-la. Entre todos os presentes, ela fora a única que não ga­nhara uma chance de retirá-la do elevador. Os garotos foram todos na frente. Talvez a faca pudesse pertencer a ela e não a Siggy. Odin havia tocado Siggy, mas também a tinha abraçado. Todos pareciam ter se esquecido disso.

Vá em frente, tente - zombou Siggy, confiante de que nin­guém além dele tinha essa capacidade. Signy balançou a cabeça e Siggy tirou a faca da parede. - A faca é minha. Ela sabe que é minha. Que utilidade ela teria para Conor? Ele não cortaria nem mesmo um limão com ela. - Ele lançou um olhar curioso para a irmã. Era como se ela estivesse se transformando em outra pes­soa diante dos olhos dele. - A faca está sintonizada comigo. Conor sempre teria que me chamar para tirá-la de sua bainha!

Atônita, Signy olhou furiosa para a faca. A faca era mesmo um acontecimento. Mas...

É humilhante pra ele ser o convidado de honra e ver você ganhando o grande prêmio - ela insistiu.

Isso é loucura! Essa faca não vale mais nada para ninguém além de mim! - Siggy bateu o pé.

Ora, mas... Por favor, Siggy. Seria um presente de casamen­to. Por favor...

De repente, Siggy sentiu-se a cem quilômetros daquela dis­cussão. Ele já tinha notado o quanto Signy era capaz de ser irra­cional quando metia uma idéia na cabeça, mas ela nunca havia se voltado contra ele dessa maneira.

Você mudou com muita rapidez - ele comentou.

O rosto de Signy empalideceu e tornou-se rígido. Conor é que tinha pedido para que ela fizesse isso por ele, esse favor es­pecial. Ela sabia que pedir isso era pedir demais. Mas ela estava indo embora! No passado, Signy e Sigs não concordavam sem­pre com tudo? Eles não faziam sempre qualquer coisa um pelo outro? Certamente ele poderia fazer esse favor; por ela, por seu casamento, sua partida.

Você deve me odiar - disse Signy. A irritação aflorava entre eles. Nenhum dos dois queria isso, mas nenhum deles se dispu­nha a fazer um sacrifício para interromper o que estava aconte­cendo. Era muito tarde para qualquer coisa. Em poucas horas ela iria embora, mas Siggy não podia desistir da faca e a irmã não podia lhe conceder o direito de tê-la.

Ele está usando você - Siggy disse a ela. - Ele está tratando você como um cachorro que busca, carrega e rouba coisas para ele, e você nem percebe.

Signy teve um espasmo de puro ódio. Ela teria batido ou esbofeteado o irmão, se não fosse pelo passado que tinham em comum.

- Nunca mais vou confiar em você - ela declarou. E depois deu as costas e saiu do quarto. Foi assim que os gêmeos se sepa­raram. Embora os dois soubessem que o outro devia estar ferido no fundo do coração, ambos se recusaram a retirar as palavras ríspidas que foram ditas.

Dispondo-se a entrar no coração do território de Vai, Conor e seus homens demonstraram um verdadeiro ato de confiança, sem dúvida. Ao longo dos dias seguintes surgiram milhares de opor­tunidades para uma traição da parte de Val, e isso ainda não tinha acabado. A estrada de volta estava cheia de novas oportunidades se ele quisesse aproveitá-las. Mas agora era diferente. Conor estava com Signy.

E ainda havia uma outra diferença. Algo ocorrera durante as festividades. De algum modo, o clima nas ruas se transformara. Quando Val e seus filhos acordaram, às quatro da manhã, com a notícia de que a multidão se aglomerava lá fora, eles não faziam idéia se ela estava furiosa ou satisfeita. Quando Conor e sua nova esposa acordaram, as vozes rugiam. Uma multidão se acotovela­va para ver o casal do lado de fora do edifício Galaxy.

Os sonhos de Val! De uma maneira ou de outra, eles sempre se realizavam. No dia em que Conor chegou, ele era odiado, e agora se transformara em um herói. Que outro líder faria um pacto funcionar dessa maneira?

Foi o casamento que fez isso. Era uma história em que todos queriam acreditar; a história da garota de ouro que casou com o rei e trouxe paz ao mundo. Vai contara a história, Signy e Conor atuaram nela e Odin viera para abençoá-los. E agora todos acre­ditavam nisso. Era uma multidão de centenas de milhares de pes­soas. Algo sem precedentes, inimaginável. Um oceano de gente, com todas as pessoas olhando esperançosamente para o futuro, com cada uma delas à espera de um olhar e um sorriso da prince­sa, na expectativa de ser notada pelos seus olhos. No instante que Signy apareceu no prédio eclodiu uma estrondosa onda de aplausos no meio das famílias e de seus comparsas. Os Volson, os Conor, os VIPs, todos ali, com piscadelas incertas e sorrisos per­plexos.

Signy estava chocada. Ela observara da janela, mas, vista do chão, a multidão era muito maior! Tantos sorrisos! Ela ergueu a mão e acenou. As ovações aumentaram. Ela sorriu e assoprou um beijo. E então ela e Conor abaixaram a cabeça e correram até o carro.

Somente um homem não estava surpreso. Para Val era natu­ral que seus planos tivessem dado certo. E também para os que gravitavam em torno dele. Era como se o mundo só estivesse à espera das ordens de Val. Mas, ao lado do pai, Siggy observava a cena com uma dor de tristeza aguda. Até então, ele e Signy estiveram juntos como dois ossos da mesma mão. E agora ela preci­sava forçar um sorriso para dizer "tchau" a ele. Siggy observava os carros dando partida, com a mão em cima de sua preciosa fa­ca. Será que aquilo valia tanto?

Ao ouvir as ovações, até mesmo Siggy acreditou. A multidão urrava de prazer e atirava flores na procissão de carros enquanto ele pensava: quem sabe, talvez, no final das contas, Val esteja mesmo certo. Talvez o pacto funcione. Tudo vai melhorar.

 

Foi como se graças ao fato de eu ter me apaixonado por Conor todos tivessem se apaixonado por mim. O mundo inteiro! As pessoas se inclinavam para tocar no carro, elas ovacionavam e aplaudiam como se eu tivesse feito alguma coisa espetacular. Dá para imaginar isso? Não importa o que você faça. Você simplesmente é.

Eu estava preocupadíssima que alguém se machucasse. Nin­guém esperava por isso, ninguém estava preparado para algo as­sim. Nunca vi tanta felicidade. Tive que dizer ao motorista para seguir em frente com cuidado. Eles não saíam do caminho, não importava o quanto se buzinasse, gritasse ou ameaçasse, havia muita gente. Fomos obrigados a seguir com muitas paradas en­quanto o pessoal da segurança abria caminho. Eles estavam irri­tados, realmente irritados. Tive mais medo deles que da multidão. Se alguém abrisse fogo seria um massacre e toda aquela felicida­de se transformaria em ódio.

Conor e seus homens se apavoraram! Não se pode culpá-los, estavam rodeados pelo nosso povo que se amontoava em torno deles. Veja só, o pai de Conor governara por meio do medo. Eles estavam acostumados com o medo, compreendiam muito bem esse sentimento. Mas, felicidade? Esperança? Para eles era uma coisa sobrenatural, um fantasma, um monstro!

- É melhor você se acostumar. E assim que vai ser de hoje em diante - falei para Conor.

Eu e Conor estávamos em todos os lugares. As pessoas segu­ravam cartazes com fotos minhas e de Conor estampadas. Elas usavam máscaras que reproduziam nossos rostos. Um homem pôs um pau enorme para fora das calças. Conor ficou furioso, mas eu só disse "Hummm, é bem parecido" e ele riu. Algumas barraquinhas vendiam canecas pintadas, pratos e toalhas de mesa para os pobres e pequenas colheres de chá prateadas que exibiam os meus retratos e moedas cunhadas em prata e ouro para os ricos. O sentimento de todos era o mesmo, de ricos e de pobres. Ioda vez que as pessoas me viam olhando pela janela, elas simplesmente gritavam:

Boa sorte, princesa! Que você traga a paz! Que você traga a paz!

O que eu fiz pra merecer isso? - perguntei a Conor.

Você se casou comigo - ele respondeu.

Colocaram à venda pequenos folhetos de um papel cinza vagabundo reciclado umas dez mil vezes. Sentados no fundo da limusine, nós os lemos de cabo a rabo, contavam tudo sobre nós. Era como se fôssemos personagens de filmes antigos. Metade do que estava escrito era verdade e a outra metade... bem, era o que as pessoas queriam achar! Como o nosso casamento fora aben­çoado pelos antigos deuses. Como Sigs fora presenteado com uma faca mágica que depois foi dada para Conor (bem que eu gostaria). Como ele ganhara a faca para me proteger caso Conor se voltasse contra mim (é, até parece...). Como eu e Conor nos conhecêramos quando eu tinha oito anos de idade e como fizéra­mos uma promessa de esperar um pelo outro. Como nos conhe­cêramos em sonho. Como o casamento fora proibido pelos nossos pais, mas claro que no fim eles mudaram de idéia.

Mas a melhor de todas era a que me retratava como uma pessoa tipo Robin Hood. E isso era verdade. Quer dizer, quando vi todas aquelas pessoas e o quanto nós significávamos para elas, decidi tornar isso verdade. Seria como as brincadeiras que eu e Sigs costumávamos inventar. Bem, na verdade não era nem um pou­co uma brincadeira. Nós roubávamos dos ricos para dar aos po­bres. E agora que eu estava casada com Conor, o povo seria libertado, seria alimentado. Eu me incumbiria disso...

Sou uma lenda! - falei com júbilo para Conor.

E eu sou apenas um acessório - ele reclamou, amarrando a cara. Ele estava com ciúme! Ora, o que se pode esperar? Quer dizer, ele era o príncipe. Mas eu... eu era a princesa. Ele tinha

que fazer alguma coisa, mas nós, as princesas, é que trazíamos todas as coisas boas, só isso. Eu era o sacrifício e gostava disso. Eu estava unindo as casas dos chefões das gangues, e se eu podia ser feliz dessa maneira, todos os outros também podiam. Então, pensei: meu pai! Como ele sabia essas coisas? Ele havia me sacri­ficado e eu me sentia ótima. Eu estava apaixonada. Eu ia melho­rar o mundo.

Olhei pela janela e o meu coração se inundou de todos eles - todos eles lá fora, todos os mil, os dez mil e os cem mil. Eles de­pendem de nós, pensei. Eles precisam de nós. Não podemos decepcioná-los agora.

 

À medida que dirigiam de volta por Camden, com solavancos e chacoalhadas ao longo das estradas esburacadas, a sensação de alívio no comboio aumentava. A última possibilidade de cilada já havia passado. Vai fora tão bom quanto prometera. E, ainda mais, mesmo depois de terem cruzado a fronteira na direção de suas próprias terras, os votos de felicidade continuavam tão intensos quanto nas terras de Val. A multidão se avolumava em ambos os lados da estrada para dar boas-vindas aos recém-casados, com o mesmo brilho de esperança nos olhos. Enquanto isso, os homens e as mulheres do comboio - chefes do exército desconfiados, executivos durões, contrabandistas, gângsteres que achavam que se dirigiam ao encontro da morte quando entraram nas terras de Val - começavam a se entreolhar com a suspeita de que os outros podiam estar com os mesmos sentimentos estranhos que se agi­tavam dentro deles. Passara um longo tempo desde que a cidade se enchera de esperança.

Finalmente, eles começavam a acreditar que o grande sonho de conquista e unificação daquele imenso mundo era possível.

O lar já havia sido um reino de torres que ameaçavam cair, um reino de concreto lascado, de vidro quebrado e de poeira de tijolo pelo chão. E de torres inundadas, mansões arruinadas e antigas edificações de pedra sem telhado. As lajes de pedra do piso das igrejas milenares tornaram-se escorregadias por causa do limo.

Isso foi antes.

E agora era assim: plano, verde e baixo. Extensões abertas de subúrbios danificados. Inúmeros acres com casas de tijolos sepa­radas ou mais ou menos separadas, propriedades e mais proprie­dades como essas afloravam ao longo de ambos os lados das es­tradas esburacadas que antes eram Finchley.

As paredes poderiam ficar de pé por séculos, mas a maior parte das construções já não tinha tetos. Agora, um grande nú­mero dessas velhas casas eram fábricas, lojas e escritórios. Jardins circundados por velhos alojamentos tinham sido desobstruídos, com suas cercas derrubadas para dar lugar aos campos. Para além das casas, nos limites da cidade, encontravam-se grandes campos que cultivavam sete oitavos dos alimentos frescos da cidade cercada, acres de feijões, batatas, repolhos e alhos-poró.

Nesses dias, ninguém viajava. Gasolina era um luxo para os ricos. Ônibus e trens jaziam enferrujados pelas ruas, cada uma de suas partes úteis canibalizada havia décadas. As rodoviárias tinham virado estábulos. Os túneis por onde um dia os trens da Linha Norte trafegavam agora abrigavam ratos, camundongos e outros grupos indesejáveis: ladrões, por exemplo, ou mendigos que se pro­tegiam da chuva. E prisioneiros. Os prisioneiros de Londres tam­bém mantinham os seus próprios prisioneiros. Vidas inteiras aprisionadas nessas passagens imundas e viscosas.

Os quartéis-generais de Conor em Finchley ocupavam ruas intei­ras, uma velha extensão de casas luxuosas. De um lado, as cons­truções eram flanqueadas por uma velha ferrovia, do outro, por uma represa. Mais além, localizava-se a antiga estrada Circular Norte, circundada por arames farpados e minas, guardada por torres de vigilância de madeira e guardas armados. Uma grande muralha de tijolos contornava tudo isso. Olhando de fora, os quartéis-generais eram como presídios, mas a muralha servia para manter os prisioneiros do lado de fora e não do de dentro.

Ao redor, muretas de tijolos desmoronadas, portas descascadas e apodrecidas, pisos de pedra rachados, postes de telefone e de eletricidade curvados, alguns ameaçando tombar e outros tom­bados. Conor governava uma população menor que a de Val, mas era um governante mais duro. Um centavo em cada dois que o povo ganhava era de Conor. Ele chamava isso de dinheiro de proteção, mas ultimamente os chefões das gangues o chamavam de impostos - a população tinha muito pouco para gastar.

No interior do Estado, no entanto, as casas eram todas per­feitas e a pintura reluzia, as estradas e calçadas foram construídas com esmero. Conor se orgulhava de ter reconstruído sua pró­pria área tal como fora nos velhos tempos, na época em que a sociedade ainda existia. O Estado controlava a sua própria e pequena estação de energia. Todas as casas tinham eletricidade, água corrente e gás. Tanto para Conor e sua família como para seus parentes e amigos, como também para os homens e mulheres poderosos da organização e suas famílias e servos, a vida corria como costumava correr cem anos atrás. Havia celeiros, escolas, calefação. Havia televisão, rádio, jogos de computador. A mura­lha de tijolos e inúmeras medidas de segurança baniam a igno­rância, a miséria, a violência, o frio, a umidade, a doença e a fome para bem longe dali.

Grandes portões eletrificados se abriram para o comboio passar. À medida que ele entrava no complexo, o rugido da mul­tidão que até então se mantinha rente aos portões cessava aos poucos.

Um dia - disse Signy, virando-se para Conor -, toda Lon­dres será como seus quartéis-generais.

Um dia - Conor mentiu, sorrindo.

Vamos fazer acontecer. Temos que fazer isso. Porque a gen­te se ama e eles nos amam - Signy argumentou.

 

O complexo abrigava o típico círculo de cartas marcadas com o qual os poderosos controlam o mundo. Era a chance de Signy conhecer os homens e as mulheres que ajudavam Conor a gover­nar seu pequeno reino. Com o pai de Signy essas pessoas eram companheiros; com Conor, até os mais antigos eram servos. Mesmo assim, isso não incomodava Signy. Era uma das coisas que ela teria que ajudar a mudar.

Depois da recepção, Conor quis mostrar algo a ela.

Mas quero parar um pouco - Signy se lamentou. Tinha sido um longo dia. Ela só queria tomar um banho e descansar.

Não, primeiro venha ver... - Ele a puxou pela mão com euforia. Ela puxou de volta. Ele se irritou e puxou com mais força. Signy deu uma risada, relaxou e deixou que ele a conduzisse ao longo do asfalto limpo, das pedras do calçamento cuidadosamente organizadas e depois por trás das casas na direção de uma área de gramados e arvoredos irregulares. Os integrantes do Estado faziam corridas e caminhadas com seus cachorros por lá enquanto as crianças brincavam em segurança, livres do desespero da fome que assolava a parte de fora da muralha. As folhas das árvores eram abundantes e o verde reluzia à luz do sol. Anêmonas nas clareiras e prímulas nas beiradas das árvores. Signy estava encantada. Na parte de Londres de Val, quase não havia árvores. Ela queria se deter ali por algum tempo, ouvir os pássaros, enterrar os dedos na terra e correr sob a copa das árvores, mas Conor arrastou-a e pu­xou-a até que eles irromperam num campo.

Surpresa! - Conor apontou para a frente, curvando-se sem fôlego.

E que surpresa! - ela falou depois de observar por um se­gundo.

Era uma espécie bizarra de torre. Um gigantesco corpo cir­cular sustentado por quatro pernas compridas, trinta e poucos metros acima deles. Era constituída de vigas de metal e grades pintadas. As pernas enferrujadas de metal ziguezagueavam até o alto. E uma escadaria seguia até o estômago da torre.

Era uma velha torre de água. O sistema de água em Londres há muito caíra em desuso; a maioria dos habitantes pegava água de rios e córregos. Mas se uma pessoa e seus vizinhos pudessem pagar por uma torre como essa, era possível ter água à mão. A torre era gigantesca. Um dia ela havia suprido água para o Esta­do, mas envelheceu e foi substituída.

-Vai em frente... - disse Conor, empurrando Signy. Ele apon­tou para a escada. Signy caminhou até ela e começou a subir. Conor foi logo atrás.

Da perspectiva do chão, a torre era quase baixa e atarracada, mas tão logo se começava a subir, parecia sem fim. Lá em cima, abaixo do topo, havia uma portinhola. Signy empurrou-a e en­trou... em um quarto. O espaço que nos velhos tempos fora usa­do para armazenar água tinha sido reconstruído. Lá dentro, era uma casa. E era dela. Conor havia construído um ninho de águia para sua noiva.

Signy estava atônita. Que presente mais estranho!

Aqui nós estamos tão perto do chão, e de onde você vem tudo é tão alto. Isso não é muito, mas achei que você fosse gostar de uma casa nas alturas. - Conor deu de ombros.

Era mais que uma casa, era uma aventura, com diversos tipos de níveis: um pequeno salão de esportes, grande o bastante para se jogar basquete; uma cozinha, salas de estar, pequenos estúdios, grandes espaços abertos com sofás e cadeiras, salas de jantar, todos ligados por escadas e escadarias.

É minha?

Toda sua. - Conor franziu a testa, do jeito que fazia quando tentava ser gentil. - Pelo menos daqui de cima você tem uma vista.

Era verdade. Lá de cima era possível avistar os limites do mundo deles, todo o trajeto que seguia até a Muralha.

Quero que você seja feliz aqui. - Conor tocou-a desajeita­damente.

Signy sorriu, duvidando. A torre a fazia lembrar de tudo que deixara para trás. No entanto, ela disse:

Serei... se você estiver aqui. - Ela o segurou pelo pescoço e puxou o rosto dele para junto do seu, pedindo para ser beijada. - ... Isso é bom. - Ela suspirou e balançou a cabeça. - Acho que estou com vontade de fazer amor com você.

Eles se deitaram no chão.

É um milagre - disse Signy.

O quê?

Que a gente se ame. Você não vê? Não há motivo algum para isso. Deve ter sido obra dos céus.

Conor a olhou para ver se ela estava falando sério.

Quer dizer que você acredita em toda essa coisa de deus? - Ele deu uma risada.

De que outra forma poderia ser? Eu devia odiar você, não é?

Nunca... - Ele mordiscou o pescoço de Signy, abriu a blusa dela e beijou-a com força, como se quisesse machucar os lábios dela ou devorá-la viva.

E assim começou a vida de Signy no norte.

 

Aqui é tão diferente. Tudo é tão diferente.

O comportamento das pessoas. Todos estão sempre tramando alguma coisa. Sempre tem algo acontecendo. Sou filha de um chefão de gangue. Sei tudo sobre agendas secretas, política e lutas contra a concorrência, mas isso é diferente. Mesmo quando são apenas dois sujeitos frente a frente, conversando sobre... sei lá, o tempo ou o preço das batatas, eles estão sempre atentos a signi­ficados ocultos. Eles ficam assustados, entende, com medo de dizer a coisa errada, fazer a coisa errada, de não saber o que é o certo. Com medo de chamar atenção. Até mesmo Conor, até ele, um chefão de gangue, nem mesmo ele ousa falar abertamente. Ele está tentando mudar as coisas, mas tem um monte de gente que não quer que ele consiga. Você nunca sabe ao certo quem está do seu lado e quem está contra você. Se Conor levar seus planos a público, pode apostar que vai ter gente tentando sabotar as coisas, da mesma forma que vai ter gente tentando colaborar.

Claro, os inimigos de Conor estão apavorados comigo. Ah, não dá nem para acreditar, mas eu sou realmente o pior pesadelo deles. Uma verdadeira bruxa. Primeiro, sou uma princesa, de­pois, uma espécie de monstro; a Bela e a Fera, é isso que eu sou! A última coisa que eles queriam era um pacto com Val. Desde o início, Conor deixou claro para mim que havia muita gente que poderia me matar se tivesse chance. Já nem posso ir onde quero. A liberdade acabou. E nessa questão não há escolha. Não posso me arriscar a sair do complexo sem um pequeno exército para me proteger! Dá para imaginar a esposa de Conor uma prisio­neira virtual aqui dentro!

Fiquei furiosa quando ele me disse isso pela primeira vez. Escute, falei, cresci andando pelas ruas com meu irmão. Agora este homem quer me ver engaiolada como um animal neste zooló­gico! Achei que ele estava me traindo, tentando me afastar do povo. Foi a primeira discussão que tivemos, mas... no fim enten­di. Ele estava certo. Se alguém me matasse haveria muita gente lá em casa achando que foi traição de Conor. Siggy, meu querido irmão, seria um deles.

Mas, veja só, é claro que eu saio. E isso aí, uma vez por sema­na, para ver as atrações de Finchley. Ótimo. Na semana passada, fui ao mercado. Eles me mostraram as tendas, as joalherias, os redutos dos contrabandistas. Mas e quanto ao povo? É o povo que faz os lugares. O que sempre me toca é a pobreza. Aqui é muito pior que lá em casa. Muita gente sem nada para vestir bri­gando por trapos, muita gente faminta lutando por migalhas. Em outra ocasião, fomos até as lojas de Golders Green, onde os ricos fazem as compras, e Conor comprou roupas e jóias para mim. Nunca me importei com esse tipo de coisa, mas gosto de me vestir para ele. De qualquer forma, o povo espera que sua princesa se vista bem.

Loucura! Sou como uma turista e sou a rainha do pedaço. Mas talvez seja sempre assim com os reis e as rainhas.

Não posso, no entanto, esquecer o povo. Cada vez que eles têm uma chance de me olhar, é exatamente igual à época em que viajávamos por aqui. Não importa quantos guardas e soldados estejam ao meu redor, eles ovacionam, acenam e gritam. Ficam muito satisfeitos por me ver. Eu dizia a Conor, preciso me misturar com eles mais vezes, mas Conor não permitia. E claro que isso me irritava de novo. Tivemos uma segunda discussão. Mas... adivinhe só... ele estava certo outra vez. Eu ainda tinha muito que aprender. Eu simplesmente não sabia onde me encaixar nes­sa história. Obviamente que encoberto no meio de todas aquelas pessoas e de todo aquele entusiasmo seria muito fácil para qual­quer assassino se esconder.

O pior é como a multidão é sempre mantida a distância. O mercado teve que fechar quando o visitei. Eu era a única cliente naquela tarde! As estradas tiveram que ser interditadas e gângste- res em montarias se alinhavam nas passagens para afastar a mul­tidão. Eu acenava e gritava promessas, mas não me era mais permitido nem mesmo andar e cumprimentar as pessoas.

Eu gostaria de me divertir um pouco mais e de ser um pouco menos preciosa, pensei.

Não é muito divertido ser princesa. A verdade é que a maior parte disso tudo é bem desagradável. Conor está ocupado quase o tempo todo. Ele não se arrisca a ter a mim do seu lado nas reuniões ou no que for, e, às vezes, se ausenta noites a fio. E quando está fora, ele não gosta que eu saia da torre e que fique sozinha longe do complexo. Tudo que tenho que fazer é ficar aqui, brincando ou fazendo o dever de casa. As vezes, desconfio de que ele esteja com muito medo, que esteja me tratando como uma bonequinha de porcelana. De que vale a vida se você não se arrisca um pouco?

Nessas ocasiões, eu tenho que lembrar por que estou aqui. Ora, estou apaixonada, e se fosse possível eu ficaria com Conor o dia inteiro. Mas existem coisas mais importantes que a minha vidinha. Estou aqui para realizar um sonho, o sonho do meu pai. O sonho do meu povo. Antes, eu achava que o maior risco que se pode assumir é aquele que envolve a própria vida, e eu estava disposta a correr esse risco. Acontece que existem coisas mais importantes que a própria vida. Amor, por exemplo, meu amor por Conor e o amor dele por mim. E sonhos. Não se pode arris­car com os sonhos de Val.

O fato é que eu valho mais do que gostaria.

Este é o preço por estar apaixonada e por ser uma princesa. Vamos encarar os fatos, isso aqui fica muito deprimente quando ele se ausenta por muito tempo. E fico trabalhando nos projetos para os hospitais e as escolas que vamos construir. Mas sinto falta de algumas coisas. Sinto falta das pessoas. Sinto falta de Vai e dos meus irmãos, e até do ingrato do Siggy que não quis dar sua faca ao meu marido. Isso me irritou tanto, foi tão injusto! Era o dia de Conor e Siggy acabou roubando a cena. Nas minhas primei­ras semanas aqui nem mesmo me dei ao trabalho de responder as cartas dele.

Bem, talvez eu estivesse errada. Quem ganhou a faca de Odin foi Siggy. Pobre Sigs! Mas o verei quando ele vier me visitar, e então acertarei tudo. Quando ele perceber o que estamos ten­tando fazer, entenderá.

E eu sinto falta de Ben e de Had, sinto falta da cidade e de poder fazer o que quiser. E, então, me ponho a pensar em como é injusto que meus irmãos possam fazer o que bem quiserem enquanto sou obrigada a me esconder aqui, e acabo realmente irritada - irritada comigo, com Val e até com Conor. E aí... aí ouço rangidos na velha escada enferrujada vindo na direção da torre, e a portinhola se abre... e o meu coração dispara. Corro lá para baixo e vou com ele até o quartinho perto do topo, e o faço se deitar na minha grande cama. E depois temos um ótimo mo­mento. Eu chamo isso de linguagem mítica. Fazer amor e con­versar a noite inteira.

Toda vez que estamos sozinhos na minha grande cama, nós conversamos a respeito de tudo. Fazemos nossos planos. Fico muito irritada com ele por causa de sua cautela excessiva e pelo medo que ele tem dos seus inimigos. Eu sei que ele precisa ser cuidadoso, mas às vezes acho que devemos ser audaciosos e ele se retrai querendo esperar mais um pouco. Quando me sinto assim, eu penso nas histórias que ele conta sobre seu pai, Abel. Ao ouvir essas histórias, dá pra entender por que Conor é do jeito que é e o quanto as coisas já evoluíram sob o seu controle.

O pai dele era um monstro. Se as pessoas pudessem ouvir essas histórias! Fileiras de homens, mulheres e crianças crucifica­dos nas ruas, e famílias inteiras queimadas em suas casas pelos rumores de que elas teriam conspirado contra a família. É o lega­do contra o qual lutamos, esse é o quinhão de ódio e medo que temos que dissipar.

E a crueldade de Abel não se dirigia apenas aos inimigos.

Eis um exemplo. Certa vez, quando Conor era criança, seu pai descobriu que ele tinha medo de altura. Então ordenou que colocassem pregos que subiam por um lado e desciam pelo outro das paredes de um alto edifício de tijolos do Estado, e obrigou aquele garotinho a escalar os três andares até o telhado e depois descer pelo outro lado do edifício. Metade do Estado estava as­sistindo, certa da queda do garoto. E lá estava Conor. Em cima do telhado, atrás da chaminé, onde ninguém podia vê-lo, petrifi­cado de medo. Mesmo assim, ele escalou o prédio, mas só por­que tinha mais medo do pai do que da altura.

Abel comentou que ele era um bom garoto.

- E assim que se lida com o medo. - Foi o que Abel disse. Com mais medo.

Era o próprio filho dele! Imagine como ele tratava as pessoas comuns! Conor me mostrou o edifício onde tudo aconteceu. Os pregos ainda estão lá, fixados na parede, completamente enfer­rujados, uma longa fileira de pregos que marcham como sol­dadinhos loucos na direção do teto e depois descem pelo outro lado. Imaginei aquele garotinho se agarrando na parede, com o estômago pesado de medo, e pensei: é contra isso que lutamos. Não apenas contra o passado, mas também contra o passado dentro de Conor. Não é de admirar que ele seja tão lento! Não é de admirar que às vezes ele seja mais cruel e impiedoso do que o necessário para conseguir o que deseja.

Existem outras histórias semelhantes. Uma vez, Abel espan­cou Tom, irmão de Conor, até o menino ficar inconsciente, só porque ele o havia interrompido à mesa. Em outra ocasião, ele chicoteou a mãe dos meninos porque eles estavam dando apoio a ela e não a ele. Outra vez, Abel segurou a cabeça de Conor dentro d'água até que subissem bolhas.

Toda vez que o meu Conor conta essas histórias, ele treme, como se o pai dele estivesse com a gente na cama. Eu o abraço com força e choramos juntos por aquele garotinho que sofreu essas coisas horríveis.

- Devemos garantir que nenhuma outra criança passe por esse tipo de coisa - eu disse.

Não é de admirar que tanta gente julgue Conor como um fraco por ele tentar estabelecer justiça e honestidade. Não é de admirar que ele tenha tanta cautela! Mas, mesmo assim, isso me deixa furiosa! Tudo se faz tão lentamente. Eu só quero que as coisas sejam feitas imediatamente, de uma vez por todas.

Mas estamos fazendo progressos. Estamos construindo esco­las e hospitais. Um mês depois da minha chegada, visitamos o local onde seria construído o nosso primeiro hospital. Natural­mente, nossos inimigos tentaram nos impedir, fazendo parecer que era muito perigoso e que se tratava de uma ameaça à segu­rança. Eles sempre se valem dessa desculpa, como são estúpidos! Como é que um hospital pode ameaçar a segurança? Eles só que­rem me manter afastada do povo porque estão com medo dos bons sentimentos. E também querem manter Conor afastado dis­so. Bem, de qualquer maneira, o fato é que nós fomos. É claro que fizeram de tudo para nos afastar das multidões; ergueram cercas em todo canto, mantiveram as pessoas a quilômetros de distância do local. Mas se havia uma coisa que eles não podiam impedir era a expressão dos bons sentimentos. Todos ovacio­navam, sacudiam bandeiras e dava para sentir as ondas de espe­rança no ar.

Na verdade, o mais engraçado era a cara de Conor. Ele esta­va acostumado a ser insultado e vaiado, acostumado com o olhar inexpressivo de pessoas que não tinham escolha. O máximo que ele conseguia era intimidá-las para que gritassem por ele.

Acontece que nesse dia a multidão ovacionava e gritava, aos milhares, e não era só o meu nome. Eles também gritavam "Co­nor! Co-nor! Co-nor!". E Conor se restringiu a ficar no mesmo lugar, com um largo sorriso no rosto, como se fosse um garotinho que acabou de acordar e descobriu que é Natal.

- Como é a sensação de ser popular? - perguntei. Ele franziu um pouco a testa e se mostrou constrangido, mas não conseguia ocultar o prazer que estava sentindo.

Depois desviei o olhar de seu rosto gentil na direção dos chefes da segurança. Nunca vi expressões tão frias e carrancudas. Só de olhar dava para dizer de que lado eles estavam. Odia­vam cada segundo de tudo. Bem, nós vamos cuidar deles; isso vai acontecer mais cedo do que todo mundo imagina, até mesmo Conor. Meu pai e seus homens virão nos visitar em setembro. E disso que a segurança está com medo. Quando se depararem com meu pai junto de Conor, eles nem vão se dar conta do que terá lhes atingido.

 

Ao centro, Val. Como representante do norte, Conor - os últi­mos chefões de gangue remanescentes, com Londres dividida entre os dois. Eles chamavam os seus pequenos territórios de reinos, mas isso era apenas um sinal da ambição que tinham. Fora de Londres, o mundo. Lá fora, campos abertos e vilarejos pacatos, cidades e metrópoles com entretenimento, riqueza e po­der. Algumas ainda tinham iluminação nas ruas, avenidas arbo­rizadas, fábricas estranhas, escolas, hospitais e bares abertos para todos. E ainda havia Ragnor, a nova cidade, com torres magis­trais, servos robôs e vida elétrica reluzindo. Ou pelo menos era o que diziam. As notícias não corriam com facilidade. Alguns ale­gavam que o mundo lá de fora não era muito melhor que o de dentro, mas como é que eles poderiam saber?

E no meio disso tudo, a barreira que separa o Lado de Fora do Lado de Dentro, o novo do velho, a sociedade da pré-história. Era um campo minado, mas com minas vivas. Era a terra dos meio-homens.

A terra dos meio-homens era um anel que circundava Lon­dres por oitenta quilômetros adentro. Uma região insuportável onde animal, homem e máquina caminhavam no mesmo corpo. Os deuses ressuscitavam naquele lugar, era o que diziam. Os meio-homens os tinham visto, não é? Os deuses haviam entrado no quartel-general de Vai - ou será que aquela criatura não passava de um turista ou algum espião do Lado de Fora? Ninguém sabia. Talvez ninguém jamais soubesse. Era um lugar de mitos e histórias longas e verdadeiras.

Os meio-homens não eram gerados em um útero nem fabri­cados, eram cultivados.

Pegue um homem. Adicione uma aranha. Misture com uma pitada de lobo e um pouco de tigre. Ferva vagarosamente em fo­go baixo durante um ano. Tempere com tripas de aço e músculos de fibra, e acrescente um coração de titânio. Cubra com um pêlo espesso e oleoso e em seguida deixe-o, para que se teçam teias com fios grossos como dedos e grudentos como supercola. Visualize-o dentro de tubulações de ventilação ou nas esquinas escuras e nos becos cantando para si mesmo uma canção de ni­nar bebês em berços - e que bebê! E que berço! - que ouvira tempos atrás, à espera de você, de mim, de Signy, de Siggy ou de qualquer coisa saborosa e suculenta que caia em sua armadilha.

"Agora eu te peguei", essa coisa diz, enquanto enrola a pre­sa em seda e beija o seu rosto, abaixando-se para dar a primeira mordida...

Pegue um abutre. Adicione um homem, uma cobra e uma doninha. Dê-lhe ossos ocos de metal e coloque uma máquina na sua cara que o faça morder, queira ele ou não. Deixe-o no ninho, em prateleiras de depósitos vazios e em lugares altos. Mas é me­lhor não ficar à espreita desse pássaro. Ele o avistaria primeiro. Você pode ouvi-lo cantarolar uma canção assim: "Vinagre, pi­menta, mostarda e sal; minha mãe faz um creme bem legal." Se você ouvir, não vai ouvir muito mais que isso.

Tempos atrás se descobriu o segredo de misturar genes com cromossomos, plástico e aço. Os primeiros meio-homens eram fervidos nos antigos tonéis de criaturas e usados como policiais, guardas, servos ou operários. Por que não? Se não havia proble­ma para uma máquina trabalhar em ambientes contaminados, certamente não haveria problema em usar um pouco de carne e nervos no seu design. Era uma ética estranha, mas podia ser feito e era feito. Então, por que não uma barata, que sobrevive com tanta conveniência em altos níveis de radioatividade? Era mais fácil e mais barato fabricar robôs domésticos inteiramente de carne e osso. A maioria dos problemas de engenharia já estava então resolvida.

Acontece que sendo de carne e osso, essas criaturas eram capazes de procriar. Alguns experimentos acarretavam inúmeros riscos. Um servo desse tipo possuía autonomia mental. Assim que a sociedade começou a ruir, eles foram largados ao esqueci­mento em suas próprias terras, num anel ao redor de Londres, para manter as gangues dentro da cidade. Londres e os meio-homens estavam em pé de guerra. Aqueles que olhavam de fora achavam que era um trabalho bem-feito.

Isso mostra como as autoridades estavam aterrorizadas com as guerras das gangues em Londres e em outras metrópoles. Em um momento em que a polícia não se arriscava mais a entrar em Lon­dres, Manchester, Birmingham, Glasgow e outras cidades, em um momento em que os gângsteres passavam a controlar o comércio, todas as transações e até mesmo as escolas e os hospitais, em um momento em que eles ostentavam as mesmas armas do exército, que melhor maneira de lidar com essa gente senão simplesmente se retirar? A lei do crime crescera com tanta força que já não se tratava mais apenas de contravenções, e sim de um governo rival. Diante disso, as autoridades se limitaram a levantar acampamento e se retirar. Lá fora, construíram-se cidades novas e melhores, povoadas por pessoas tranqüilas e respeitadoras da lei. Londres e seus habitantes foram deixados por conta própria.

Naturalmente, os gângsteres tentaram ampliar seus limites. A primeira coisa com que se depararam foram populações ater­rorizadas das cidades do lado de fora que fugiam dos meio-homens libertos. Eles se viam obrigados a lutar com os fugitivos e também com as próprias criaturas. E assim teve início a longa guerra contra os meio-homens. Não resta dúvida de que Ragnor ficaria satisfeita se os gângsteres e os meio-homens matassem uns aos outros até que não sobrasse ninguém. Em vez disso, eles se separaram. Agora, Val e Conor sonhavam em retomar essa guerra, e assim, sob uma Londres unificada, varrer os meio-homens do mapa e escapar da prisão. Muito antes, no entanto, Abel havia zombado do destino ao abrir um portão na terra dos meio-homens para que ele pudesse sair e caçá-los.

Signy estava intrigada. Roubar banqueiros gordos e contra­bandistas podia ser divertido. De certa forma, era até perigoso. Acontece que os meio-homens eram letais. Mais que humanos e menos que humanos, mais que animais e menos que animais, eles tinham sido produzidos, dizia-se, sem medo da morte, sem amor pela vida. Comentava-se que todos eles só se importavam, só pensavam e só sonhavam com a destruição da humanidade. Kram histórias que podiam ser verdadeiras ou não. Mas o fato é que caçar meio-homens também significava ser caçado.

Lá, na fronteira dos acontecimentos, as caçadas ocorriam uma ou duas vezes por ano. Dentre todas as coisas no mundo, o que Signy mais queria era participar de uma caçada aos meio-homens.

 

- Por favor, me deixe ir... - implorou Signy.

É muito perigoso - Conor retrucou, sorrindo com indul­gência. - O que seu pai diria?

Ele me deixaria ir - disse Signy com ansiedade. - Pergunte a ele...

Isso quando você ainda era uma menina - insistiu Conor. - Agora você é um pouco mais importante.

Signy agitou-se. Ultimamente tudo era muito perigoso para ela! Nos últimos meses, fizeram-lhe muitas promessas. Ela foi mantida "segura" em sua torre ao longo de muitos dias e noites tediosos. Algumas vezes... bem, ela o amava e ele a amava, e quando estavam juntos nada mais importava. Mas ele fazia a vida de Signy congelar no instante em que se separavam. Então, no início do verão, certa tarde ela se exercitava na rede de acrobatas em sua torre quando ouviu Conor chamando-a da portinhola:

Signy! Surpresa! Desça aqui!

Na floresta abaixo da torre, a caçada esperava por ela.

A Muralha: um anel de tijolos e pedras ao redor de Londres que envolvia os subúrbios e os campos. Ao fim de cada cinqüenta metros surgia um ninho de metralhadoras, tão acima do nível do chão que nem mesmo os meio-homens conseguiam pular. Sobre o ninho havia cacos de vidro, ferro e aço. No topo, rolos de ara­me farpado enroscados. E em cada lado, um campo minado com cinqüenta metros de extensão.

O sangue se derramara em cada tijolo. Os homens trabalha­ram dia e noite sob a vigilância de guardas armados, sob ataques incessantes. Mas a Muralha acabou sendo concluída e ela signifi­cou o fim da guerra contra os meio-homens. Os gângsteres alar­dearam entre si que haviam ganhado. Eles tinham expulsado os meio-homens de Londres, mais ou menos. Algumas tribos estra­nhas e uns poucos indivíduos remanescentes no lado de dentro ainda precisavam ser caçados um a um, mas a guerra efetivamen­te terminara.

Que tipo de vitória, no entanto, era essa? O custo tornou-se muito alto. Os gângsteres tiveram que abrir mão de todo contato com o mundo exterior. Essa Muralha - a Muralha deles - é que havia transformado os londrinos em prisioneiros, e não Ragnor. O único meio de comunicação existente se dava através dos pró­prios meio-homens, que negociavam mercadorias de um lado para outro. Os gângsteres construíram sua própria prisão. Nin­guém entrava e ninguém saía, a menos que se fosse o rei Conor e se tivesse o controle do portão.

 

Signy sentou-se no Land-Rover, ao lado de Conor, muito bem vestida com seu caro casacão de fora da cidade, contrabandeado pelos meio-homens, com o nariz pressionado contra a janela. A mão de Conor se escondia confortavelmente dentro do casaco. Signy apertou-a contra sua própria barriga e fitou com avidez o lado de fora.

O comboio de Land-Rovers abriu caminho pela estrada es­treita do campo minado até o Portão de Abel, uma porta de metal alta e estreita roubada de uma base militar em Finchley. Era um ponto vulnerável na Muralha, reforçado por Conor com arma­mento extra. Oito metralhadoras em quatro torres de vigilância apontavam para baixo e os lança-mísseis estavam montados nos tijolos. Entrar na mira desta artilharia significava morte certa.

Agora a Muralha estava mais próxima, cada vez maior, cada vez mais alta. Era gigantesca. Os portões despontavam abertos na bruma. Eles atravessaram na direção da terra dos meio-ho­mens.

Lá, na terra de ninguém à sombra da Muralha, não havia nada ao longo de um quilômetro; nada de árvores, prédios, mu­ros, arbustos, vida. O terreno era composto de terra queimada, pontilhada de crateras, resultado dos últimos meses de guerra com os ataques ininterruptos do inimigo que tentava impedir a construção da Muralha. O comboio movia-se com violência por aquele terreno deserto na direção de um outro mundo.

Subúrbios abandonados, cobertos de ervas e invadidos pelas árvores. Buddléias floridas e sabugueiros que cresciam nos tijo­los esfarelados e nos parapeitos das janelas. Arbustos que ignora­vam o meio-fio da estrada, elevando-se pelo asfalto. A natureza fazia o melhor de si para retomar a terra.

As casas dessa área tinham sido tão brutalmente bombardea­das e atingidas pelos morteiros que restavam poucas de pé. Até mesmo o solo fértil dos antigos jardins estava coberto pelos de­tritos. Extensões de muretas com estranhos formatos, telhados retorcidos e desmoronados, pedaços de concreto e piche, e emaranhados de aço empilhados como esculturas loucas e cobertos por hera, trepadeiras e pequenos arbustos que germinavam. Uma espécie de paraíso de ervas brotava entre as pedras. Era um dia de verão com ventos e as rosas silvestres que se erguiam pelo asfalto e descaíam sobre o cascalho estavam apenas desabrochando. As rosas amavam aquele pobre solo pedregoso; dúzias de rosas, centenas de silhuetas rosadas entrelaçadas nas pedras. As amoreiras silvestres ignoravam o calçamento e exibiam flores brancas. Os arbustos floridos que tempos atrás embelezavam os jardins desprendiam folhas e flores de todas as cores.

As estradas estavam tomadas pelas carcaças enferrujadas dos carros com assentos apodrecidos ou roubados para servir de cama. Embora se falasse que as coisas iam melhorar, a maioria das pes­soas acreditava que a negligência e a decadência resultavam da selvageria dos meio-homens e da ausência de civilização, e não da decisão consciente de não se instalar nas proximidades de uma zona de guerra.

A medida que o comboio avançava aos solavancos, os quatro guardas armados em pé na traseira dos veículos sondavam todas as direções com as armas em riste, numa observação incessante. Os meio-homens próximos da Muralha eram poucos, mas os que se encontravam por lá eram monstros, monstros de verdade.

Os que eram mais humanos viviam mais distantes, mas talvez alguns deles tivessem pressentido a caçada e preparado uma em­boscada. Aquilo já estava se tornando perigoso. Em qualquer uma daquelas cavernas de cascalho, em qualquer um daqueles carros; havia muitos lugares onde eles podiam se esconder...

Depois de algum tempo, o comboio se aproximou de uma torre feita com escoras de metal; era uma velha torre de eletrici­dade. Uma plataforma fora erguida na parte alta das ramifica­ções de metal. Conor saltou do Land-Rover e abriu a porta para Signy sair.

 

Saí do carro, parei ao lado dele e, ao olhar para o alto da torre, disse para mim mesma: "Se é mesmo isso o que penso que é, es­tou prestes a vomitar."

Lá em cima você estará bastante segura - ele disse.

Segura? - repliquei.

Lá de cima você vai poder ver quase tudo.

Eu o quê? - perguntei.

Nós vamos caçá-los de carro - ele se explicou evasivo. Ele sabia exatamente o que estava tramando.

Certo, de carro - falei. - Então, por que vou ficar lá em cima?

Conor olhava furtivamente para os outros veículos. A im­pressão que dava é que, de alguma forma, eu o estava fazendo de bobo. Então, ele voltou os olhos para o alto.

Não seja boba...

Boba. Quer saber? Fiquei presa naquela torre e durante a semana me levaram algumas vezes para dar uma olhada nos seres humanos. Fui engaiolada como um coelho domesticado e, de repente, lá estava eu, na maior aventura de minha vida, enquanto me diziam para ficar assistindo.

Você entendeu errado, Conor. - Voltei direto para o carro. Ele permaneceu no mesmo lugar, observando-me por um segun­do, e depois abriu a porta.

Não temos tempo pra isso - ele resmungou.

Pare já com isso, Conor.

Nem pensar. - Ele tentava ser paciente. - E se acontecer alguma coisa?

E daí?

E se te matarem?

E se te matarem?

É diferente. Seu pai jamais acreditaria nisso. Eles iam pen­sar que nós armamos tudo. Tem muita coisa em jogo.

E é claro que estaria tudo bem se acontecesse alguma coisa com você. Isso agradaria muito a velha guarda, não é?

Ele se arqueou ligeiramente. Tentei ser razoável:

Ouça, estou acostumada a sair sozinha. Estou acostumada a ir onde quero, quando quero e como quero. Há meses que estou aturando a minha gaiola porque você me disse que era preciso. Tudo bem. Mas, aqui fora, somos todos iguais, não é? - Eu já estava falando pelos cotovelos. E, pela expressão no rosto dele, eu podia ver que estava perdendo meu tempo. Era mais ou me­nos como: "Ai, meu Deus, ela está sendo tão inoportuna." Era mais ou menos como: "Que merda, agora ela vai dar um ataque e dificultar o meu lado..." - E quanto a mim? - resmunguei.

Você está sendo egoísta.

- Eu?

Não era a primeira vez que tínhamos uma briga de verdade. Como já disse, tivemos algumas antes. Bem, tivemos algumas brigas e lamentações. O que se podia esperar? Mas nunca houve­ra uma briga como essa, na frente de todo mundo. Aturei isso porque, convenhamos, era a terra dele, ele devia saber o que era melhor. Eu não sabia nada de política, nunca tive que me preo­cupar com essas coisas. E se ele então me dizia que era perigoso, devia ser mesmo. Se me dizia que eu precisava ser paciente, eu tinha mesmo que ser paciente. Eu confiava nele! Mas, naquele momento, pensei pela primeira vez que aquilo tudo não passava de uma grande besteira.

Olha, temos que nos apressar. Você, por favor, poderia se levantar? Vou deixar uma arma com você. Poderá atirar em qual­quer coisa que se mover.

Vou dirigir o carro. - Eu já estava farta.

Que porra você está querendo...? - O rosto de Conor ficou rígido como uma pedrinha branca. Mas não ouvi o resto. Ele bateu a porta na minha cara com toda a força que pôde. Quer dizer, com força mesmo. BAM! Isso me fez dar um pulo do as­sento. Os meus ouvidos doíam com a pressão do ar.

Eu já estava a ponto de saltar e apunhalar o desgraçado, mas lá fora ele gritava como uma menininha:

Leve essa vadia de volta ao complexo - ele berrou para o motorista. - Tire essa garota da minha frente. Tire essa garota...

Ainda gritando, Conor pulou para outro carro. E pensei: que diabo é isso? Eu nunca havia visto nada como isso. Lá fora, os outros carros se afastavam. O meu motorista passou rente a mim e pude ver que o rosto dele estava branco como cera.

O senhor quer mesmo que eu a leve de volta? Desacom­panhada? Senhor...

Ao redor, no entanto, os motores aceleravam. Os pneus can­tavam, os carros se distanciavam. E todos eles arrancavam movi­dos pela fúria de Conor.

Merda. - O motorista bateu a porta e ligou o carro.

O que há com você? - eu quis saber. Parecia que ele havia sido atirado aos leões.

Não dá pra viajar sozinho por aqui... - O motorista passou a marcha e nós arrancamos. - Cristo! - O cara estava realmente assustado. E me dei conta de duas coisas. A primeira é que tudo aquilo era muito perigoso. Estava claro que aquele homem achava que realmente corríamos perigo. A segunda é que se isso era verdade, Conor havia nos abandonado... me abandonado... à morte.

Seguíamos aos trancos e barrancos através do terreno irregular. Minha cabeça girava.

Essa região é tão ruim assim? - perguntei ao motorista, que seguia em frente agarrado ao volante.

A possibilidade de sermos devorados é de três para um. Olhe à esquerda.

Olhei para o lado.

Não estou vendo nada...

No céu.

Um bando de... sei lá o quê... sobrevoava acima de nós.

Os pássaros estão chegando - o motorista falou.

Peguei meu binóculo e tentei dar uma olhada, mas os sola­vancos naquela estrada esburacada eram tão intensos que não consegui. Eles voavam com muita rapidez, isso eu pude ver, bem mais rápidos que nós. Era possível avistar os pequenos metais que reluziam nas sombras escuras de suas penas.

Eles vão transformar esse carro em sucata - disse o moto­rista. - Será que você pode dirigir? - ele me perguntou.

Sou melhor atirando. - Meu coração batia forte e, de repen­te, ele estava na minha boca e comecei a gritar "yaaa-hoooo!". O motorista me olhou como se eu fosse maluca, mas eu estava feliz. Não seria um punhado de passarinhos que me apagaria. E isso aí, era a minha primeira diversão de verdade desde que eu havia saído da cidade. Olhe só para mim, finalmente eu estava fazen­do as coisas do meu jeito!

Saquei minha automática do coldre de ombro e me debrucei na janela.

É melhor a gente parar - falei ao motorista. - Se temos que lutar, é melhor parar para que eu consiga uma boa mira.

E então percebi com o canto dos olhos que uma outra coisa se movia ao nosso redor. Movimentava-se com muita velocidade e me assustei porque a coisa não estava no ar e sim no chão. Entretanto, quando olhei melhor... merda. Era o comboio. Conor retornava para estragar a diversão.

Fiquei furiosa, mas o motorista se alegrou. Ele parou o carro enquanto o comboio se aproximava derrapando através do cas­calho. Olhei para o céu e o bando daquelas coisas já tinha desa­parecido.

Conor saltou do carro e veio ao nosso encontro. Ele estava branco como uma folha de papel. Estava muito bravo e prendia o fôlego. Eu nunca vira alguém assim antes. Ele literalmente en­golia a respiração.

Você está estragando a minha diversão - falei.

Está certo - ele disse, ofegante. Apoiou as mãos no carro. A impressão que dava é que ele tinha corrido muito por todo o trajeto. Sentei e me limitei a esperar.

Tudo bem, resolvido - ele completou.

Dane-se você. - Eu o olhei com cautela.

Ele se inflou.

Dane-se você - repeti lenta e claramente, de modo que ele pudesse saborear a frase.

Conor permaneceu parado, respirando. Era como se falar fosse muito difícil.

Quem você pensa que é? - perguntei.

Ele inflou de raiva novamente.

Sou aquele que acaba de salvar sua vida.

Não, imbecil, você é aquele que quase me fez morrer.

Ele me olhou com nítida descrença. Ninguém jamais se diri­gira a ele dessa maneira.

I-M-B-E-C-I-L. É assim que se soletra imbecil - esclareci, caso ele não tivesse entendido.

Conor girou duas vezes em torno do carro.

Eu estava preocupado com você - ele tentou se explicar por um instante.

Você estava preocupado apenas com você mesmo. Se você quer um bichinho de estimação, compre um. - Eu me enfiei no assento. Não é porque eu estava apaixonada que precisava me transformar num fantoche, não é? - Vá para a sua caçada, por­que vou me preparar pra ir embora.

Ok, ok. Entre então no carro, se é o que você quer. Mas você tem que entender que já não é mais uma garota. - Ele fez uma pausa. Depois se curvou e apoiou-se no capô do carro, como se o mero esforço de falar o exaurisse. - Imagine se acontecer alguma coisa com você, você não percebe? Você é preciosa. É preciosa pra mim - ele acrescentou, como se a minha condição de preciosa pudesse mudar alguma coisa que ele quisesse muito. - Você vai entrar no carro, mas tem que ser no carro blindado. Tudo bem? Assim você estará segura se alguma coisa der errado. Não quero estragar o pacto só por causa de uma caçada aos meio- homens. Depois que tudo se assentar, você poderá fazer o que quiser. Mas, por enquanto, você é muito importante.

Eu não disse uma única palavra.

No carro blindado, por favor, princesa! - Conor inclinou-se para perto de mim.

Soltei um gemido. Bem, ele tinha lá suas razões... não tinha?

Tudo bem, então.

Urra!

Ele se aproximou e me abraçou pela janela do carro, mas eu o mandei plantar batata. Ele não sairia dessa tão facilmente.

O carro blindado era um troço com uma enorme arma aco­plada à frente e era preciso subir até uma abertura no teto. A tampa fechou-se na minha cara e partimos.

 

Eu ainda estava furiosa, mas lembrei da expressão no rosto de Conor quando o chamei de imbecil e comecei a rir comigo mes­ma. Ele ficou tão irritado!

Pelo menos no fim ele recobrou a razão, pensei. Pelo menos dessa vez consegui as coisas do meu jeito, enfim.

Foi o que pensei.

O tal carro blindado. Eram três pessoas lá dentro e só havia espaço para uma. Espremido nos controles, o motorista arqueava-se sobre uma janelinha toda arranhada. A única janela. O ati­rador estava de pé, com a cabeça para fora do teto porque não havia muito espaço lá dentro. Eu me apertava entre eles. Quando me virava para um lado, eu acertava a nuca do motorista, quando olhava para a outra direção, dava com o nariz nas calças do atirador.

Eles estavam furiosos. Ainda que fossem muito educados, com senhora para cá, senhora para lá, eles tinham um trabalho a fazer e, para ser sincera, eu era uma pedra no caminho.

Eu tinha que olhar por cima da cabeça do motorista para ver alguma coisa. Era ridículo. Não havia espaço nem para sacar minha arma, e eu não poderia atirar mesmo se conseguisse sacá-la. E, para piorar a situação, aquela banheira velha só fazia cerca de um quilômetro por hora. Conor realmente tinha aprontado uma pra mim. Os Land-Rovers corriam o mais rápido que po­diam. Eu só os via por um lado da orelha do motorista, enquanto eles iam diminuindo até desaparecer no horizonte. O nosso car­ro peidava pelo caminho como um velho gordo.

- Afinal, essa coisa tem alguma utilidade? - resmunguei para o motorista.

Para falar a verdade, não nas caçadas, senhora - ele respon­deu. - Não é carro para sair em caçadas.

Então, o que ele está fazendo aqui? Transportando convi­dados indesejados?

Ele olhou de relance para o atirador, mas tudo que se enxer­gava era sua calça e ela não disse nada.

Bem, se a turma se encrencar, eles nos chamam pelo trans­missor de ondas curtas e nós bombardeamos os inimigos - expli­cou o motorista.

Então era isso. Eu estava presa no banco de trás. Eu podia me mover, mas as minhas chances de chegar perto da ação eram as mesmas que eu teria naquela torre. Era óbvio que os meio-homens não se aproximariam de um veículo com um canhão de 100mm à frente.

A culpa é sua - falei.

O atirador não disse nada.

Ficamos resmungando por cerca de quinze minutos, mas obviamente era inútil.

Já estou farta disso, vou me sentar na minha torre. Pelo menos poderei ver o que acontece lá fora - eu disse por fim.

Eles pediram permissão para Conor pelo rádio. Isso era ou­tra coisa que me incomodava. Por que todo mundo tinha que falar com Conor pra tudo, até pra coçar o nariz? De qualquer forma, claro, a permissão foi concedida. Quando chegamos à torre, um guarda esperava por mim. Todos saíram do carro blin­dado e eu subi.

Era um longo caminho até lá em cima, o que já era alguma coisa, pelo menos eu teria uma vista. Lá embaixo, o motorista e o atirador faziam uma pausa para o recreio, dando risadas e brin­cando um com o outro, novamente felizes. Assim que eu voltar para casa haverá algumas mudanças por aqui, pensei. De repen­te, todas as explicações de Conor começavam a soar duvidosas, como se fossem desculpas.

 

Lá no alto, acima das árvores e da construção de pedras arruina­da, o vento soprava bem mais forte que lá embaixo. Esvoaçava o cabelo de Signy e ela se via sendo empurrada enquanto subia. No topo, um guarda estendeu-lhe a mão e puxou-a com grosseria nos últimos degraus. Era assustadoramente alto. A visão chegava até o infinito.

O guarda sorriu maliciosamente e esfregou as mãos.

Bem-vinda à fantasia, princesa - ele disse.

O vento uivou. Ela já sabia que ao fim do dia estaria farta e enjoada daquele sopro nos ouvidos. Lá embaixo, os homens do carro blindado desmontavam a escada. Ninguém poderia subir, tampouco descer. Signy tirou o casaco e observou a paisagem desolada.

Isso aqui é um barato, não é? - disse o guarda. E realmente era. Árvores grandiosas e prados extensos e delgados de flores silvestres que um dia haviam sido ótimas estradas. Os arbustos despontavam das chaminés e os musgos se acumulavam em den­sas e vividas esteiras verdejantes sobre os telhados destruídos.

Lá em cima era uma espécie de paraíso. A natureza ainda ocupava-se em retomar a terra. Mas era letal. Signy rapidamente deixou de admirar a vista. Agarrou o binóculo e se pôs a sondar as redondezas, ansiosa para ter o primeiro vislumbre de um meio-homem.

Eles vivem nessas casas?

Ora, eles vivem em qualquer lugar, debaixo de arbustos, em casas, para eles é tudo a mesma coisa.

Por que eles não consertam as coisas?

São depravados demais pra se preocupar em arrumar alguma coisa. Ouvi dizer que, de vez em quando, alguns deles reformam as casas com tijolos. Tudo o que eles fazem é misturar argamassa e pôr tijolo em cima de tijolo, só isso. - O guarda deu de ombros.

Pensei que eles fossem espertos - comentou Signy.

Quando se trata de matar, eles são bastante espertos. Foram feitos pra isso. Mas são muito depravados para ter algum outro tipo de pensamento. - O guarda assentiu com a cabeça. - Pense neles como insetos. Formigas gigantes. Mastigando, masti­gando sem parar.

Máquinas feitas de carne e osso - comentou Signy com prazer.

E do ponto de vista deles, tente pensar em você mesma como uma pilha de salsichas recém-fritas. Pensando assim você não se meterá a besta com eles.

Signy soltou uma risada. Pelo menos o guarda não estava amedrontado a ponto de não conseguir falar com naturalidade.

E quanto a você? Como é que eu devo pensar em você? Não como uma pilha de salsichas, estou certa?

Para ser honesto, gosto de me imaginar como uma boa costeletazinha de carneiro. - O guarda soltou uma piada. Ele linha cerca de dois metros de altura, um cara com uma pinta bem durona. Estava protegido pela artilharia. Na torre, havia uma metralhadora, um lança-mísseis e algo que devia ter sido uma bazuca. Nem mesmo os pássaros pensariam em atacar aquela pe­quena área.

Uma costeleta de carneiro armada até os dentes - disse Signy.

Você estará segura comigo. Até onde os meio-homens se interessam por mim, eu sou o Dia do Juízo Final.

Tudo bem, então você será a Costeleta do Juízo Final. - Eles riram. Signy levou o binóculo aos olhos de novo. Ela ob­servou as árvores, as pequenas cavernas escuras entre os arbustos e as construções parcialmente derrubadas nas redondezas, Homens-aranhas, mulheres-pássaros, filhos de serpentes. Onde estavam todos?

Será que veremos alguma coisa da caçada? - ela perguntou.

Duvido. - O guarda riu alegremente. Lá em cima, ao lado da princesa, era tão seguro quanto em qualquer lugar, era um posto tranqüilo. Conor havia ordenado ao guarda para mantê-la entretida. - Não creio que Conor deixe as coisas chegarem nesse pé. Mas, com os meio-homens, nunca se sabe.

 

Os dois esperaram por um longo tempo. Não fazia frio, mas o vento que berrava o tempo todo nos ouvidos, ininterruptamente, era desconfortável. Vez por outra Signy ouvia o som dos moto­res e se debruçava para observar com o binóculo. Algumas vezes ela teve um vislumbre dos Land-Rovers, apenas um relance de metal cinzento que percorria as ruas esburacadas. Numa dessas vezes, Signy chegou a pensar que avistara um pêlo grosso, mas fosse lá o que fosse, a coisa acabou escapando e se escondeu. A melhor visão que ela teve foi quando surgiu uma outra pequena nuvem daqueles pássaros estranhos de um ponto distante do céu. Os pássaros pareciam ter feições femininas, mas, àquela distân­cia, era difícil ter certeza, mesmo com o binóculo.

Signy e Costeleta do Juízo Final se divertiram muito, mas obviamente o guarda estava certo. Conor havia decidido que Signy podia participar de uma caçada aos meio-homens desde que não topasse com qualquer um deles. A pistola automática que ela mantinha debaixo do casaco não passava de uma cortesia. A me­tralhadora pesada montada na torre e os outros armamentos man­teriam os meio-homens distantes. No fim das contas, ela não corria perigo. Era amargamente decepcionante.

À medida que o dia avançava, as nuvens se acumulavam e o vento esfriava. Ficou mais desagradável quando a chuva come­çou a pingar e depois a cair mais forte. Não havia abrigo e era muito perigoso descer a escada, mesmo se pudessem descer. O Juízo Final tinha um pouco de comida com ele, uma cestinha de piquenique, que deu para Signy, e também a sua própria marmi­ta. Ela dividiu suas iguarias com ele - chá quente, vinho e pre­sunto defumado. E ainda comeu um pouco do pão dormido dele, um pão com gosto forte de trigo.

Você vai ter dor de barriga e eu, diarréia - comentou o Juízo Final.

Seja como for, os meio-homens não devem ser totalmente maus. Talvez tenham sido eles que contrabandearam esse chá; tudo tem que passar pela terra dos meio-homens. Então, pelo menos é possível negociar com eles.

É sim, se você der o que eles querem, eles conseguem qual­quer coisa para você.

E o que seria isso que eles querem?

Carne humana - o guarda respondeu com enorme satis­fação.

Carne? Não seja tolo. Meu pai não negociaria com carne. - Signy estava indignada. - E Conor também não.

Não sei o que seu pai faz. Quanto a Conor, bem, ele está tentando mudar tudo, não é mesmo? - Juízo Final deu de ombros.

Você pode falar para mim, fica só entre nós - Signy prometeu.

O guarda, no entanto, limitou-se a sorrir com malícia e pe­sar, recusando-se a falar.

E os meio-homens devem negociar com o Lado de Fora pa­ra conseguir essas coisas. Será que o Lado de Fora também for­nece carne humana a eles?

É bem possível. Mas acho que há outras coisas. Os tanques, por exemplo. Os tanques que eles usam como úteros artificiais, já que só assim eles podem reproduzir novas versões deles mesmos.

Eles fazem isso realmente? Fabricam criaturas novas em folha? Então eles devem ser muito espertos!

É fácil! A tecnologia faz tudo isso para você. Tudo que precisa ser feito é cuspir lá dentro, ou obter alguns pêlos da cria­tura que se deseja adicionar; esse tipo de coisa. A tecnologia ex­trai o DNA. Até mesmo um meio-homem é capaz de cuspir.

Eles terminaram a refeição. A nuvem cinzenta de chuva dissipou-se, mas parecia que havia mais pela frente. Tudo estava fresco, limpo e úmido... E eles, aprisionados a sessenta metros do chão, em meio ao vento gélido.

Eles se divertiram com jogos - "Vinte Questões" e "Eu-Espião". E contaram piadas. Mas, aos poucos, o vento frio gelou os ossos dos dois. Mesmo com as roupas de fora da cidade, Signy sentia que seus ossos se petrificavam lentamente.

Lá pelo meio da tarde, pela primeira vez depois de horas, eles ouviram o ruído dos veículos. O guarda levantou-se com muitos estalidos.

Finalmente! - ele exclamou. Aquele posto tranqüilo torna­ra-se uma espécie de tormento. Ele se debruçou no parapeito e sondou os arbustos. Signy já estava com o binóculo nas mãos. - Vamos torcer para que eles tenham resolvido parar por causa da chuva. Pelo menos você vai ver alguns meio-homens, mesmo que estejam mortos.

Mortos não tem graça - disse Signy com tristeza. A diver­são e a adrenalina tinham se afastado de sua vida desde que ela se tornara importante. Ela se levantou para ter uma visão melhor.

Um jipe irrompia através dos arbustos e de repente era óbvio que alguma coisa estava errada. O carro vinha em alta velocida­de, com sacolejos e guinadas enlouquecidas de um lado a outro. Mais atrás, surgiam outros carros, três veículos no encalço do primeiro.

O que está havendo? - O guarda puxou o binóculo e o le­vou aos olhos assim que Signy gritou:

É um meio-homem! Um meio-homem está ao volante!

Eles não sabem dirigir - o guarda afirmou com desdém, mas tão logo disse isso, avistou braços peludos e as garras pressio­nadas contra o volante. As mãos da criatura não se adequavam ao volante, e talvez por isso ela dirigisse tão mal.

O guarda largou o binóculo e sacou a arma. Ele estava com medo de metralhar o veículo e acertar algum humano lá dentro. Os meio-homens eram conhecidos por sua paixão em fazer re­féns. Mas ele conseguiu disparar uma rajada de tiros nos pneus. O carro deu uma guinada, da forma que estava sendo dirigido era provável que não resistisse por muito mais tempo, e girou para o lado, entrando nos escombros de uma casa.

Fez-se silêncio por um segundo e logo vários meio-homens começaram a sair do carro. Meio-homens grandes, meio-homens pequenos. Era possível ouvir seus ganidos, latidos e gritos. O carro devia estar abarrotado de criaturas. Finalmente, Signy teve sua primeira boa visão.

Esses meio-homens eram seres atarracados e peludos, todos mais ou menos da mesma espécie. O peso de suas cabeças era tanto que elas afundavam no peito. Com uma simples olhadela já se podia dizer que seus pescoços e mandíbulas eram realmente poderosos; eles eram animais que mastigavam o osso de um fêmur como se fosse uma barra de açúcar. Tinham costas retas, ombros largos e caudas pequenas e poderosas. Saíram desordenadamente do carro, urrando, ganindo e gralhando. Sem a interferência do vento, Signy pôde ouvir algumas palavras:

Lá, não, não desse lado... você...

Eles falam? - ela perguntou ao guarda.

Só para dizer mentiras - ele rosnou, mantendo o rifle sobre os ombros. Em seguida disparou uma violenta saraivada de balas no aglomerado de feras, antes que elas tivessem a chance de se dispersar.

Seis meio-homens tombaram com os disparos. Signy pegou o binóculo e focalizou um meio-homem de grande estatura, que se deteve e olhou para ela e o guarda. A face da criatura era um re­trato do ódio, da malícia e do medo.

Mas...

O quê?

Parece humano!

Não é meio-homem o bastante - explicou o guarda, desfe­rindo outra saraivada de balas. Lá embaixo, o meio-homem co­meçou a dançar, desviando-se das balas ou sendo atingido por elas, Signy não sabia. A essa altura, os perseguidores se aproxi­mavam em seus carros e o fogo cerrado também despontava de outras direções. Quase todos os meio-homens haviam morrido, mas o cachorrão que Signy avistara ainda estava de pé, tentando reorganizar o grupo e procurando pelos menores. Outra saraiva­da de tiros explodiu; a criatura escondeu a cabeça, abriu cami­nho entre os poucos meio-homens que conseguira reunir, ficou de quatro e saiu correndo. De quatro, essas criaturas perdiam qualquer semelhança que tinham com os humanos. A velocidade que alcançavam era assustadora, como se estivessem ligados a aparelhos. E talvez estivessem mesmo.

E depois eles se foram, embrenhando-se por entre o círculo de carros que se formara ao redor. Os carros cantavam pneus, rodopiavam na lama e disparavam aos roncos no encalço deles.

Estava acabado. Tanta violência e só durou um breve mo­mento. O vento dispersou o som dos carros que corriam através do solo esburacado. A caçada, ou o massacre, ou fosse lá o que fosse, terminaria fora de vista.

Desgraçados nojentos - rosnou o guarda. - Animais nojen­tos... - Assim como ocorria com a maioria dos humanos, um mero pensamento a respeito dos meio-homens já o enchia de ódio. Signy observou a expressão dele e só viu... ódio, malícia e medo. Virou-se para acompanhar a cena com o binóculo, mas tudo já estava acabado.

Você acha que vão conseguir pegar todos eles? - ela per­guntou enquanto sondava os arbustos. Achou que veria algum movimento, mesmo com a distância em que os carros estavam. Mas as feras se moviam com uma velocidade assustadora. Já po­diam estar em qualquer lugar. O guarda fez um ruído atrás dela. - O quê? - perguntou Signy. - O que você disse? - E, enquanto falava, ouviu um outro ruído, uma respiração, uma arfada às suas costas, ao mesmo tempo que sentia uma leve pressão no peito. Ela se virou. O meio-homem que estava lá embaixo alguns minutos atrás se sentara a um metro dela e olhava nos seus olhos.

Guarda! - ela gritou e, valendo-se de um velho truque, apon­tou para trás da criatura enquanto sacava sua arma. Mas a arma havia desaparecido.

Perdeu alguma coisa? Ho, ho. Ho, ho - cantarolou a cria­tura. A pistola pendia das garras do monstro. O meio-homem balançou a cabeça e apontou lá para baixo. - Ele foi dar um mer­gulho - disse o meio-homem. Suas garras e mandíbulas estavam vermelhas de sangue.

 

A criatura não levaria mais de um segundo para me fazer em pedaços. Comecei então a recuar, na expectativa de morrer an­tes mesmo de fazer isso. Mas eu ainda estava lá, agarrada ao pa- rapeito. O meio-homem salivava e sorria com malícia.

Mas...

Escalei - a criatura rosnou. E eu pensei: pelos deuses! Está­vamos trinta metros acima do chão.

A criatura estava vestida com uma jaqueta ensebada e senta­da com os braços pousados sobre os joelhos. Mais da metade dela era de hiena, mas talvez ela tivesse uma pitada de leopardo. O seu rosto se mexeu em contrações durante todo o tempo em que a fitei.

Mate-me logo! O que você está esperando?, foi o que pensei. Mas a criatura se mantinha sentada no mesmo lugar e me obser­vava, com minha arma balançando preguiçosamente no seu dedo. Olhei para baixo. Eu até podia ter despencado de medo. E vi o corpo do guarda lá embaixo, tão pequeno quanto um brinquedo quebrado.

Ele foi dar um mergulho - repetiu a criatura. Tentei tomar a arma de volta, mas ela acabou voando por sobre os ombros da criatura. Fiquei olhando a arma caindo pelo ar. Chocou-se con­tra as escoras de metal e se estatelou na grama.

Você já era - eu disse à criatura. Eu estava pronta para lu­tar, mas aquela coisa era feita para matar. - Eles vão lhe pegar.

Mas não antes de eu te pegar, não é? - o meio-homem chiou. Sons de gritos surgiam às costas dele, que olhou para trás, por cima do seu ombro.

Você já era - repeti. Nunca senti tanto medo. Eu queria que ele também sentisse. - Você sabe disso.

É claro, é claro - admitiu o meio-homem. - A minha mor­te. Ou então podemos fazer um acordo... - Ele me olhou com curiosidade e salivou.

Eu me vi tomada por um súbito resquício de esperança, mas logo lembrei que eles nunca fazem acordos! Todo mundo dizia isso. Ele só estava brincando comigo.

Você nem mesmo é humano - joguei na cara dele. O meio-homem suspirou e sacudiu a cabeça.

Será que eu devo matá-la agora? - Isso soava como se ele estivesse me perguntando. Sua cabeça pesada afundava tanto nos ombros que ele era obrigado a me observar por baixo das sobran­celhas peludas.

Então, por que não me mata? - zombei. Eu sentia tanto medo!

Isso não vai me salvar - replicou o meio-homem, pren­dendo uma risadinha engraçada. - Por que devo matá-la a tro­co de nada? Por que terei que descer ao seu nível, hein? E então? E então?

Eu me limitei a fitá-lo. Não havia uma única palavra sensata em mim.

Sou um negociante. - O meio-homem abriu os braços. - Meu nome é Karl. - Ele sorriu maliciosamente para mim. - O que você esperava? Que eu me chamasse Totó? Eu faço transa­ções entre o rei Conor e as cidades. Tenho bons contatos. Jóias, vinho, material elétrico. As vezes, até armas. Eu ganho, ganhava, sei lá, um bom dinheiro. Mas o rei Conor quer que eu baixe os meus preços. Ele sempre quer que eu baixe os preços. E eu baixo até não poder mais. E depois me recuso. E, então, o rei Conor organiza as caçadas aos meio-homens. - A criatura deu de om­bros. - E sempre a mesma coisa. Ele vasculha as minhas lojas e rouba tudo. Ele mata minhas esposas, meus filhos e meu povo para mostrar que é mesmo melhor obedecer. E ele está certo, é melhor obedecer. Mas talvez o melhor seja não fazer acordos com humanos. Você me entende? - O meio-homem sorriu com desdém. - Você negocia com a parte humana de um meio-homem até se cansar e depois se põe a caçar o animal. É fácil de­mais. Esse é o seu nível, garotinha.

A minha indignação era tanta que eu nem conseguia falar, rio era um meio-homem! Como é que podia comparar os assas­sinatos nojentos dele com Conor? Conor tinha seus defeitos, era o que eu estava descobrindo na ocasião, mas ele não era um meio-homem. Às vezes, quando se é um governante, é preciso tomar decisões drásticas. Eu sabia disso tudo. Aquela coisa não era nem mesmo humana!

Era algum truque, era isso. Ele só está querendo que eu o ajude a escapar para depois me matar, pensei.

Você... - Eu estava sem palavras.

O meio-homem espirrou. Seus olhos lacrimejavam. Desviei o olhar, com repulsa. Ele não é nem mesmo bem-feito, pensei, olha só essa bagunça. Ele salivava, expelia secreções e nem tinha a decência de esconder a cara.

Horroroso - falei pra ele. Eu estava furiosa com suas men­tiras deslavadas. - Horroroso! - repeti.

O que é que você queria? - a coisa rosnou e balançou a cabeça com fúria. - Eu vou morrer. Minha família acabou de ser assassinada. - Saiu mais água dos seus olhos e do seu nariz, e, de repente, pensei: ele está chorando.

Mas...

Devia ser outro truque. Aquelas coisas não tinham sentimen­tos. Os técnicos de Ragnor seriam espertos a ponto de fazer cria­turas capazes de chorar por vontade própria só para ganhar mais alguns segundos antes de morrer?

Sua família? Aqueles pequenos lá embaixo...? - perguntei.

É claro. Você achou que eram anões? Isso aqui não é a terra das fadas. - Ele começou a soluçar. Levou as mãos ao rosto e chorou. Isso chora, pensei. Na verdade, nem sei o que pensei. E estendi a mão. Não planejei fazer isso, apenas aconteceu, estendi a mão e o toquei.

Ele esfregou os olhos e me olhou. Cocei o pêlo duro de sua nuca e o afaguei com força, como se deve fazer com um cachor­ro grande como ele.

As nossas costas, surgia o alvoroço das tropas.

Ele se afastou.

Você sabe chorar. Mas ainda é o inimigo - resmunguei.

- Ainda sou o inimigo. Sempre o inimigo - a criatura concor­dou. Depois se aproximou e começou a me tocar, a dar tapinhas nas minhas pernas e no meu rosto. Pensei que ele fosse me bater e tentei afastá-lo, mas ele chegou mais perto, agarrou-me com a outra mão e ficou me segurando, e eu tive que ficar no mesmo lugar. Ele era extremamente forte. Se os cavalos tivessem mãos, agarrariam com aquela mesma força. Mas ele só estava me revis­tando para ver se eu estava armada.

Você jogou a pistola fora - reclamei.

O garotão está vindo - ele murmurou, enquanto o com­boio de Land-Rovers vinha em nossa direção. - Neste caso, acho que devo ver quantos eu consigo levar comigo, hein? - Ele er­gueu as sobrancelhas para mim e farejou o ar.

Você podia me fazer de refém - sugeri. Bem, eu não estava oferecendo minha ajuda, não eu! Essa era a minha única alterna­tiva. E daí que ele fosse capaz de chorar pelos seus filhos? Ele continuava sendo o inimigo, como ele mesmo falou. Mas se aquela criatura me fizesse de refém, teria que me manter viva.

Ora, a nova rainha! Que prêmio, hein? Mas não tenho tanta certeza de que, tendo você comigo, eles deixariam de atirar.

O que você quer dizer com isso?

Aceite o meu conselho, rainhazinha. Conor não é o tipo de homem que divide o seu poder através de pactos. Ele deseja tudo; ontem, amanhã, hoje, tudo dele, agora. Se você morrer durante uma caçada aos meio-homens, ele não vai prantear.

Você está mentindo - resmunguei. Eu estava de novo furio­sa com ele. Agora ele tentava estragar as coisas entre mim e Conor!

Ele vai convidar o seu clã para o funeral. Ora, isso é muito óbvio. Ele adoraria receber a visita dos Volson. Mas ele não tem nada para qualquer um de vocês senão a morte.

Nós temos um pacto - retruquei.

O meio-homem me olhou e umedeceu os lábios grotescos.

Eu também tinha - ele falou e sussurrou uma risada es­tranha.

Você acha que meu pai está no seu nível, sua meia-coisa? - Eu ri na cara dele.

O meio-homem se aproximou com tanta rapidez que mal pude vê-lo e pegou meu chapéu felpudo e pôs em sua própria cabeça. Ele ficou ridículo, aquela cabeça pesada de hiena com um chapéu tombado nos olhos.

Estou bem disfarçado? - ele sugeriu e soltou outras da­quelas risadas. O sorriso dele era torto e, de repente, sem pen­sar, os meus olhos encheram-se de lágrimas porque... porque... porque, no fim das contas, ele era mais humano que animal. Por­que ele podia rir e chorar. Ele já tinha as melhores armas. Ele podia rir e chorar.

Você deve saber usar a metralhadora - falei apontando para aquele troço de aparência feroz montado no parapeito.

Sem dedos, sem polegar. Se você tivesse uma granada, eu poderia puxar o pino com meus dentes. Mas não posso segurar muito mais que um martelo. - Ele afrouxou as mãos com triste­za. Os dedos rijos, curtos e grossos eram mais parecidos com dedos de pés.

Enquanto o meio-homem falava, o rumor das tropas, dos ca­chorros e dos carros eclodia estrondoso à medida que irrompia através dos arbustos abaixo de nós.

Agora eu morro. Será que eu tenho um coração? - O meio-homem se voltou para mim.

O quê?, pensei. Mas, mesmo assim, disse:

Tem. Sim, eu sei que tem.

Agora que você já me conhece, cuide desse pequenino para mim - ele disse e soltou uma risada.

Depois, abriu o casaco e retirou... um filhote. Ele o tinha es­condido num bolso da parte de dentro.

Ergui as mãos e ele me deu a pequena criatura.

Não deixe que Conor ou qualquer dos seus homens o veja. Eles o matariam.

Como é que eu vou saber que você não está infiltrando um inimigo no complexo?

Ele deu de ombros.

Você terá que julgar por si mesma. Quando ela estiver maior, você poderá soltá-la, devolvê-la à nossa terra. Ou até continuar com ela, se ela quiser ficar. Mas ouça, princesa... - Ele inclinou-se para mais perto de mim. Só lhe restava um segundo, os veículos estavam mais próximos. - Ela não foi feita como eu, nem nasceu como você. Ela não vem do Lado de Fora nem do Lado de Den­tro. Você verá. - Ele inclinou-se ainda mais. - Ela tem mais que um formato - sussurrou em tom de conspiração.

O quê? O que você quer dizer com isso?

Neste instante uma bala ricocheteou no metal ao nosso lado. O meio-homem deu uma risada.

Eles são tão bons de mira assim? Ou não se importam muito com a filha de Val? Vou lhe fazer um último favor, sim, já lhe fiz um favor antes. O nome do filhote é Cherry. Cuide dela. Faça com que fique escondida...

Ele se levantou em seguida, virou-se e pulou do parapeito, como se estivesse pulando uma cerca. Eu gritei, corri e olhei pa­ra baixo. Os homens acompanhavam o corpo com a mira dos rifles, mas não era preciso. No meio da queda ele se chocou al­gumas vezes contra as escoras de metal, antes de atingir o chão e jazer inerte. Pelo menos seis metralhadoras diferentes dispara­ram tiros em seu corpo morto.

Os homens saltaram dos carros e correram em torno do meio-homem despedaçado. Algumas cabeças se viraram para cima, na minha direção. Um dos generais levou as mãos fechadas em for­ma de concha à boca e gritou através do vento:

Chegamos bem a tempo - ele berrou.

Coloquei a filhote debaixo da minha capa.

Sim, bem a tempo - concordei.

 

Mais tarde, de volta ao complexo, a matança foi exibida. Os corpos estavam estendidos em cima de mesas tripés, como se os cadáveres dos meio-homens se prestassem a algum tipo de piquenique. Já era tarde, o crepúsculo caía e novamente desaguava uma chuva fina de verão. Os entocados-em-casa saíam debaixo d'água para ver os monstros. Os adultos tremiam debaixo dos guarda-chuvas, enquanto levantavam os lábios dos cadáveres para inspecionar a feiúra dos dentes. As crianças brincavam em meio à eles, ao mesmo tempo aterrorizadas, deleitadas e enojadas com tanta morte.

Quanto a Signy, ela ocultava no bolso um pequeno filhote que talvez crescesse e se tornasse uma dessas criaturas, atraves­sando as mesas e pensando: "Agora, eles não são nada além de carcaças." Nunca foram tão feios.

Lá estavam as criaturas-pássaros que a tinham perseguido em bando quando notaram o seu carro isolado. Nenhum crânio relevante a ser mencionado e faces finas de menina, com bicos brilhantes e cabelos loiros. Lá estavam os homens-gatos - ou seriam gatos-homens? - com seus corpos fortes como carros. Lá estava uma coisa que um dia deve ter sido um macaco, uma coisa que no todo era humana demais para que ela pudesse olhar, tal como uma criança.

Em sua maioria, no entanto, os cadáveres dos meio-homens eram de homens-hienas, iguais àquele com quem Signy conver­sara na torre. Ela olhava dentro dos olhos inertes dos cadáveres e pensava: "Será que esse aqui era um pai? Será tio, mãe, filha, filho? Ou um tipo meio-máquina produzido apenas para nos enganar? Ela conhecia a reputação de dissimulados que eles pos­suíam. Aquilo tudo devia ser um truque, sem dúvida.

Debaixo da sua roupa, adormecido junto à sua barriga, ocul­tado pelos fios grossos do casaco, talvez estivesse um assassino ainda por crescer. Signy ainda não tinha se decidido sobre o que fazer com o presente do meio-homem. Ela o examinara. Era bem grande, quase do tamanho de um gato jovem. Era sagaz e alerta, mas inteiramente comum. Era uma coisinha doce e o meio-homem de fato a comovera. Talvez fosse melhor levá-la para um mergu­lho ao fundo de um lago.

De repente, passou pela cabeça de Signy que aquele filhote podia ser um bichinho de estimação do meio-homem. De certa forma, a idéia de que eles tivessem bichinhos era tão chocante para ela quanto vê-los rir e chorar. Mais tarde, ela tentou falar para Conor que os meio-homens tinham sentimentos, mas ele riu pela cogitação dessa hipótese, beijou-a e chamou-a de docinho. Não era uma boa maneira de lidar com Signy, que de nenhuma maneira pensava em si mesma como um docinho. Por conta dis­so, ela resolveu se manter por um tempo de boca calada a respei­to do filhote. E disse a Conor que o meio-homem subira na torre na mesma hora em que seus homens chegaram, e que ele estava tentando fazer uma barganha com ela quando uma bala o atin­giu. Conor não ficou nem um pouco desconfiado, mas mostrou-se surpreso porque o meio-homem não fizera Signy em pedaços assim que a encontrou.

Ela não se sentiu à vontade com a mentira que disse, mas pro­meteu a si mesma que mais cedo ou mais tarde contaria a verdade para Conor. A única razão para que ela não tivesse contado de uma vez era o temor de que ele pudesse pegar o filhote e matá-lo. E essa conclusão a fez pensar ainda mais, a fez pensar que ela não tinha mesmo voz sobre as coisas. Conor acabaria fazendo tudo do jeito dele. Conor sempre fez tudo do jeito dele, sempre, sem se importar com o que Signy pudesse pensar. Sendo assim, as coisas não eram exatamente como aparentavam ser.

 

Mais tarde, fiquei sozinha na torre brincando com o filhote e me peguei chorando. Isso porque aquele filhote era como eu. Eu me sentia solitária. Eu estava solitária já fazia um bom tempo, mas não tinha me dado conta porque estava apaixonada.

Era uma filhotinha tão meiga, fiquei louca por ela na mesma hora, mas ela também me deixava triste, porque o que eu queria era um amigo e um filhote não é bem um amigo. Fiz cócegas na barriga dela e ela tentou morder meus dedos, perseguiu a pró­pria cauda e acabou retribuindo o meu amor. Examinei-a da ca­beça aos pés, mas não encontrei nada, a não ser as peculiaridades dos gatinhos. Nenhum dedo ou dente humano, e nada nos olhos dela que antes eu já não houvesse visto em outros filhotes de ga­to. Eu sabia que não podia soltá-la, a menos que precisasse.

A noite, acordei pensando em uma coisa. Levantei ainda meio sonolenta e fui até a gaveta onde estavam as cartas que vinham da minha casa. Eu havia sonhado com Siggy. Engraçado... come­cei a sentir saudades dele enquanto dormia.

Sentei e comecei a ler. Eram muitas cartas de Sigs e eu não tinha respondido nenhuma delas. Então, pensei: ciumento! Po­bre Sigs! Eu mal me ajeitara para lê-las quando ouvi uma algazar­ra lá embaixo. Era uma visita de Conor. Era a primeira vez que eu sentia meu coração pesado ao ouvir os ruídos daquela portinhola.

Levantei-me para esconder o filhote, mas nem foi preciso. Ela estava dormindo numa almofada perto da minha cama en­quanto eu lia, mas já tinha se escondido. E fiquei me perguntan­do como é que ela havia entendido que era para fazer isso.

Conor entrou. Dessa vez, não corri para recebê-lo. Ele sabia que alguma coisa estava errada. Parou na minha frente da mes­ma maneira que fazia quando me cortejava contraído e sem gra­ça, um homem tímido que não sabia o que fazer com ele mesmo. "Cara, dessa vez você vai ter que ser mais gentil pra chegar perto de mim", pensei.

Ele ergueu as mãos e deixou-as tombar.

Eu estava preocupado com você.

Obrigada, mas sou capaz de cuidar de mim. É por isso que você me mantém aqui em cima? Assim fica mais fácil para você não se preocupar comigo? - retruquei.

Ele franziu a testa, mas fez um esforço e seguiu em frente:

Quer dizer, eu estava com medo. Por mim mesmo.

O quê?

Os meio-homens - ele explicou e corou como uma criança. - Eles me matam de medo.

Do que você está falando? - perguntei sem entender. Por que o medo afetaria a maneira com que ele me tratava?

Isso me assusta... tanto. Não sei por quê. É igual ao meu medo de altura - ele continuou.

Então pare com isso.

Seria... seria fraqueza. - Conor tentou olhar nos meus olhos, mas isso era difícil para ele. - Eu sou obrigado a fazer isso. Caso contrário, ninguém me respeitaria. Sou mesmo obrigado a fazer. Mas eu não suportaria que você estivesse lá comigo porque...

Conor parou de falar ao mesmo tempo que seus olhos se enchiam de lágrimas e meu coração derretia. Tentei confortá-lo pedindo para que não chorasse, mas eu não queria fazer isso porque ele tinha que me dar liberdade, muito mais liberdade. Acontece que o meu coração derreteu e corri na direção de Conor para um abraço apertado, para envolver com meus braços aque­la feia e imensa careta que tomou conta de seu rosto. Ele enter­rou a face no meu ombro e soluçou áspera e contidamente.

Eles me assustam. Eles me assustam - ele repetia. E eu ain­da não havia entendido inteiramente por que o medo que ele sentia tinha a ver com o meu aprisionamento no topo de uma velha torre enquanto os outros se divertiam. Mas eu sabia que isso significava que ele me amava. E, pela primeira vez, me dei conta de que ele precisava lutar arduamente para ser o que desejava ser... Que homem burro! Como se ele já não fosse o bastante o que queria ser. Como se ele já não fosse o bastante para mim!

Está tudo bem. - Eu beijei as lágrimas preciosas do seu rosto. - Está tudo bem.

Você agora me despreza? - ele perguntou em tom de súplica.

Psiu, psiu. Está tudo bem.

 

As promessas são sagradas e devem ser honradas por ambos os parceiros. Com os inimigos, a coisa é diferente, óbvio. É de esperar que eles mintam. Naqueles dias, Conor era considerado um amigo.

Desde o início nós concordamos em fazer uma visita a Conor. Era justo, como Vai insistia em deixar claro. Conor vinha até nós e nós íamos até ele. A diferença é que, como eu insistia em de­monstrar, nós éramos tão bons quanto nossa palavra.

Era preciso, no entanto, dar um mérito a Conor. Ele se pôs inteiramente em nossas mãos ao vir até aqui. Já que poderíamos farejar o que ele planejava. Mas aí é que está. Jamais faríamos isso. Nós tínhamos dado a nossa palavra. Vai dizia que Conor tinha começado a se comportar como nós quando demonstrou confiança, e admito que talvez ele tenha razão. Talvez ao se de­monstrar confiança também se possa oferecê-la.

Talvez.

Hadrian chegou à conclusão de que Conor selara a paz por­que não tinha outra escolha. Conor vinha perdendo a guerra já fazia tempo. Até que faz sentido selar a paz enquanto ainda se tem alguma coisa em que se apoiar. A questão era: isso é uma paz de verdade ou apenas uma forma de ganhar tempo? E isso aí, havia muita discussão sobre se era seguro ou não ir até lá, mas nenhuma discussão sobre se devíamos ou não ir. As promessas já tinham sido feitas. O novo sistema precisava ser acatado. Se não fôssemos, todos saberiam que não existia confiança, e sem confi­ança, não há paz. Por isso, nós fomos. E naturalmente tratamos de nos armar até os dentes, com os melhores homens, as melho­res armas e os melhores carros. Mas, como disse Had, se é preci­so tratar uma visita como se fosse uma reunião de guerra, não se tem pacto algum.

Quanto a mim, o meu plano era fazer o possível para estar fora do caminho quando chegasse o dia da visita, bem fora do caminho. Seria como passar uns tempos na Antártida ou coisa parecida. Mas no fim eu já não estava tão certo. Signy era o grande motivo disso. Ela estaria realmente apaixonada? Quer dizer, às vezes Signy é tão idealista e tola quanto uma tira de bacon, mas nem mesmo ela podia estar tão errada. Quando mi­nha irmã se foi, ela estava tão irritada comigo que nem mesmo respondia às minhas cartas, mas se acalmou um pouco durante o verão. E até começou a entender o meu ponto de vista a res­peito da faca.

Ela se mostrava um pouco mais realista sobre a coisa toda, mas não tão realista assim. Para início de conversa, era como se ela estivesse completamente inebriada com Conor, mas a partir daí passou a notar alguma coisa dentro dele. E eu pensei: é isso aí... alguma coisa. Ela me escreveu muitas folhas a respeito dele e devo dizer que aos meus olhos ele parecia seriamente perturba­do. Mas talvez o coração dele estivesse no lugar certo. Signy certamente pensava assim. Talvez o pai dele tenha sido o verda­deiro vilão da história; talvez Conor quisesse mesmo mudar as coisas. Signy seguia falando sobre a velha guarda, de como ela e Conor estavam lutando contra essa turma e de como seria mara­vilhoso se nos reuníssemos novamente. Ora, isso era difícil. Eu não confiava em Conor, mas... eu queria muito vê-la!

E havia outra coisa - isso é meio esquisito -, a tal faca. Nessa época, eu não acreditava em deuses e ainda não estou certo se acredito agora. E mais provável que o homem morto e a faca dele tenham saído de Ragnor ou de outra cidade Lá de Fora. Mas como foi que passei a me sentir do jeito que me sinto agora? Essa é a parte complicada. Eu realmente não acredito que por mais esperto que seja, um homem possa fazer com que eu me sinta como me sinto agora simplesmente me dando uma faca. E me sinto bem. Na verdade, eu me sinto ótimo. Não me pergunte por que ou como; tudo que sei é que ainda estarei por perto por um bom tempo... um longo tempo que está por vir. E isso me faz crer que eu posso visitar Conor e voltar inteiro.

Loucura? Tudo bem, loucura. E você sabe o que penso dos deuses - nunca confie naqueles que vivem para sempre, eles não têm muito a perder. Ainda assim, Siggy está numa maré de sorte e não vai ser Conor que vai me deter agora.

 

Passamos semanas nos preparando para a visita. Eu e Conor planejamos tudo, cada detalhe. Nenhum gasto desnecessário, quase nenhum problema. Eu lhe falei a respeito das providências e do dinheiro gasto com a visita dele e agora ele queria que a nossa fosse tão boa quanto. Interrompemos até os planejamen­tos com as escolas, os hospitais e com todo o resto. Ora, sei que é fácil dizer que gastávamos dinheiro com a gente enquanto as pessoas passavam fome e os doentes eram negligenciados, mas a questão não é essa.

O que estávamos construindo era confiança. Estávamos cons­truindo um novo mundo. Isso é difícil. Eu sei como seria para Vai e meus irmãos. Eles ficariam desconfiados. Ficariam com medo. A expectativa deles era que tudo desse certo, mas sem muita certeza se daria mesmo certo. Eles desfilariam pelas ruas e a multidão os ovacionaria e gritaria. Tudo seria maravilhoso e, mesmo assim, eles continuariam desconfiados de uma possível emboscada. Eles poderiam se sentar à mesa para uma refeição espetacular, mas não teriam certeza se a comida estaria ou não envenenada. Aconteceria com eles o mesmo que aconteceu com Conor e seu estafe. Não teriam como saber se eles estavam a salvo e se todo aquele grande jogo terminaria bem até que esti­vessem a caminho de casa e de volta ao seu território.

Eu sei que eles têm muitas dúvidas, mas vão ver. É preciso um ato de fé para se construir confiança onde antes havia apenas assassinato e guerra. O povo fez isso. Conor fez isso. Eu sei que o meu pai e os meus irmãos também farão.

Agora eu já conheço Conor mais a fundo. Sei que ele não é nenhum super-homem. Sei que pode enfraquecer, sei que sente medo. Sei que tem dificuldades para confiar. Mas o fato é que ele confiou! Isso é que é o surpreendente, e é o que lhe digo quando ele começa a ter dúvidas - ele confiou! Ele foi até as terras do meu pai. E se ele pode confiar, todo o seu povo também pode. Até mesmo a velha guarda, até mesmo o pessoal da segurança. Quan­do perceberem que Vai está na terra deles, talvez até mesmo eles optem pelo novo caminho.

Meu pai e meu marido. O novo caminho.

Conor está apavorado... apavorado mesmo! É difícil de ima­ginar, mas de vez em quando isso me vem à mente; esse homem tem tanto medo! Cada fibra do corpo dele diz que ele está fazen­do a coisa errada. Tudo aquilo que ele aprendeu e conheceu; tudo diz que ele está fazendo a coisa errada. Mas, mesmo assim, ele segue em frente, pelo amor que sente por mim. E o que eu acho de vez em quando. Mas não é bem desse jeito. Às vezes, dou muita importância a mim mesma. Eu sei que ele já tentava fazer essa paz funcionar antes mesmo de me conhecer.

É isso que faz dele um grande homem. A visão que Conor possui é maior que ele próprio, tal como acontece com meu pai. Mas o que Conor está fazendo é ainda mais complicado, pois ele não tem como concretizar isso sendo ele mesmo; precisa se rein­ventar nos moldes de um homem melhor do que realmente é.

É claro que metade do Estado está odiando cada segundo disso tudo. Conor me falou de todas as discussões nas reuniões, de como toda hora eles tentam melar tudo. Eles sabem que se Vai vier aqui e depois partir em segurança, nada mais será o mesmo. Mas é tarde demais. Eles vão ver. Tudo está pronto e nada pode ser feito para impedir isso.

 

Conor a procurou naquela última noite. Pode-se afirmar que ele era tão solitário quanto qualquer outro. A sua tensão era tanta que ele chorava de ansiedade. Por outro lado, Signy estava com­pletamente eufórica. Ela não conseguia entender por que ele esta­va com tanto medo, mas já o tinha visto dessa maneira em grandes ocasiões. Ela fazia de tudo para melhorar as coisas. Por isso lhe deu um abraço apertado. Mais tarde, tentou fazer amor com ele, mas ele não conseguiu.

Frágil como um ratinho, nessa noite - ela brincou. Conor jazia trêmulo em seus braços. Um torno de gelo apertava o cora­ção dele.

Será que tudo vai correr bem? Será que vai dar certo? - ele quis saber dela, sorrindo de um jeito que a deixou assustada. Mas Signy estava outra vez comovida por ter visto a fraqueza da­quele homem carrancudo, a vulnerabilidade dele. Ela o beijou, o abraçou forte e garantiu que tudo daria certo.

Signy não fazia a menor idéia do grau da farsa. Ela acredita­va na visão do pai dela e também acreditava no coração de Conor. Como é que um deles podia estar tão errado e o outro ser tão traiçoeiro? Ela achava que com a força do seu amor poderia trans­formar a guerra em amizade. Ela estava bem longe de entender que era apenas uma minhoca num anzol para servir de isca a um peixe gordo e velho.

 

Já fazia um bom tempo que Signy tinha adormecido e Conor ainda estava acordado, olhando para o teto, abraçando-a com ternura, mas incapaz de derramar uma única lágrima. Ele havia traçado uma meta e não era capaz de se desviar dela, nem mes­mo por amor. Ao longo de sua vida, ele reprimiu seus próprios sentimentos dentro dele, como pequenos peixes congelados na dureza gélida do seu coração. Ele aprendera a se portar assim muito tempo atrás, quando em sua infância não arriscava de­monstrar fraqueza diante do pai, e agora, de um modo ao mes­mo tempo conveniente e assustador, isso o servia na sua farsa com Signy. Ele congelara os sentimentos de uma forma tão dura e profunda que já não fazia idéia de onde eles estavam.

Conor estava partindo o próprio coração, embora não sou­besse disso. Onde então ele poderia encontrar a força e a opulência para recompô-lo novamente?

 

A multidão! Era como se o mundo todo estivesse ali para nos ver - meninas indigentes, lojistas, trombadinhas, figurões, comer­ciantes, autoridades políticas, contrabandistas, ladrões. Todo mun­do. Grandes e pequenos, todos acenavam e ovacionavam, porque tivessem eles tudo ou nada, todos tinham o rei Val; e ele estava ali. Esse negócio de rei era só uma forma de chamar, mas todos acreditavam que um dia isso seria para valer.

Era incrível. Cheguei até a desejar não fazer parte do com­boio, só para estar no meio da multidão e saudar o rei Val e seus filhos que mostrariam ao rei Conor quem era quem.

Seguimos em primeira marcha durante todo o percurso. Era um feriado público. Barraquinhas, vendedores de rua, malabaristas, comediantes, teatro. Tantas coisas eram vendidas na rua que tí­nhamos que fazer paradas para esperar a guarda limpar o cami­nho para nossa passagem. Seria mais rápido de bicicleta. Seria mais rápido a pé. Assim chegaríamos mais rápido. Acontece que seríamos rasgados em pedaços antes de chegar lá, só isso.

Entramos no Swiss Cottage, a terra de Conor, e a multidão aumentava. O povo se dependurava nas janelas, inclinava-se para fora das portas. Ainda assim não corríamos nenhum risco. A ve­lha carreta era mais ou menos como um tanque, estávamos tão seguros nela quanto em qualquer outro lugar. Fechamos as portinholas, vestimos as roupas à prova de fogo e os coletes à prova de bala e sentamos para assistir à festa no monitor conectado ao lado de fora.

Era um dia de verão. Estava quente e fedorento dentro da carreta. Nós quatro - Had, Ben, Val e eu - estávamos engaiolados e suados, respirando o ar um do outro. Só havia aquela janelinha estreita para o motorista. Mal podíamos enxergar, mas o pouco do que enxergávamos nos deixava com inveja de quem estava lá fora. Aquela multidão animada gritava, assoviava e clamava por nós. Eles tinham passado por muitas gerações de tirania e nós estávamos chegando. Nós representávamos a paz. Eles queriam nos ver, e nós estávamos lá, escondidos como coelhos que fogem da raposa.

Val então soltou uma exclamação. O plano era manter as nossas cabeças baixas. Afinal, bastava um único assassino. Mas era uma sacanagem assistir àquilo tudo pela TV. Que diabos! Eles estavam gritando para nós! Abrimos então a tampa do teto, e que barulho entrou na carreta! Assim que a multidão nos avis­tou, tornou-se ensurdecedor. Estávamos ali, ao vivo e em cores, e o povo de Conor olhava diretamente em nossa direção.

Eu nunca tinha visto algo assim, exceto na despedida de Signy. O mundo todo enlouquecera. Eles ovacionavam, acenavam e pulavam - milhões deles, todos aglomerados nas ruas como se encaixotados por uma máquina. As pessoas jogavam flores e pa­pel picado que havia sido colorido e amassado em bolinhas. Um homenzinho malvestido vendia batatas fritas e sorria para nós da calçada. Ele se aproximou, ofereceu uma batata e eu aceitei. Ofe­reci a Val, porque, afinal, ele era o cara. Meu pai deu uma grande mordida e todos ovacionaram mais alto que nunca. O rei Val comia a batata deles! Quanta honra!

Era possível ver em seus rostos. Agora tudo ficaria bem. Ti­nha que ficar! Era uma celebração. Era glorioso! Até mesmo Hadrian sorria de orelha a orelha.

— Conor não pode se voltar contra essa multidão. É seu pró­prio povo!

E eu pensei: é isso aí! Val! Meu pai jogava pelos prêmios altos, pelo mais alto. Não pelo controle dessa ou daquela parte de Londres. Ele queria tudo e queria para todos. O único proble­ma é que queria fazer tudo sozinho. Era um trabalho de séculos. Se ele vivesse para sempre, se Odin não fosse o Deus da Morte, ele poderia ter feito.

 

De repente, um baque em algum lugar, e quase que imediata­mente, um outro. O ar estremeceu todo, como sempre ocorre com explosões de granadas por perto, e em seguida começou a rugir. Hadrian abaixou a tampa do carro blindado com uma pan­cada. Val deu um salto e agarrou a tela do monitor.

O que houve com a multidão? - ele perguntou em tom de surpresa. E isso aí, o que houve com a multidão? Lá estava ela, na pequena imagem em preto-e-branco do monitor. A multidão estava sendo bombardeada.

Do ponto de vista militar era uma emboscada perfeita. As ruas estreitas, os nossos veículos enfileirados numa linha fina, com a multidão pressionada contra eles, era uma armadilha viva. Era perfeito. Mas existe traição mais perfeita do que usar o seu pró­prio povo como cobertura?

Ficamos ali por um instante, olhando a pequena tela. A mul­tidão, a multidão de Conor, oscilava e corria de um lado para outro, agitando-se como água. Toda vez que uma granada explo­dia, as pessoas eram feitas em pedaços. Benny perdeu um pouco da cena enquanto tentava abrir a portinhola.

Eu quero ver - ele se explicou quando Had o puxou para baixo, e eu sabia o que ele queria dizer com isso. Assistir a todo aquele horror pelo monitor quando tudo acontecia lá fora. Nes­sa hora se quer descobrir o que está de fato acontecendo.

Uma granada explodiu perto de nós. O carro estremeceu. Eles nos colocavam na mira.

Dirija! - rugiu Val. Os segundos seguintes foram terríveis, o motorista forçava o carro para a frente e para trás e buzinava com violência. Ele não conseguia se decidir se passaria por cima das pessoas. Had e Val gritavam em coro para ele. Houve outro solavanco violento quando ele acelerou e freou ao mesmo tem­po. O motorista gritou "Vai!" para si mesmo e o caminhão ar­rancou, atropelando a multidão, esmagando as pessoas como se elas fossem repolhos embaixo da gente.

Foi um massacre. Nossos soldados a pé e a multidão ao lon­go das estradas foram os primeiros a tombar. Era possível vê-los literalmente em ebulição no meio do tiroteio. Depois, os veícu­los pegaram fogo - BUUM! BUUM! BUUM! A multidão fugia da estrada, pisoteando os feridos e os mais fracos. Ao redor, os mortos empilhavam-se como barricadas de sacos de areia. Algu­mas pessoas avançaram cerca de dez passos antes de serem esmagadas com força contra os prédios. Elas estavam sendo mas­sacradas duas vezes, uma por Conor e outra pelos nossos veícu­los que giravam e aceleravam em cima delas. Elas ficavam acuadas contra as paredes para se livrar de nós e, com isso, abriu-se uma cortina de espaço em torno dos nossos veículos. As ruas mancha­ram-se de uma polpa vermelha.

Val e Had começaram a berrar ordens pelo rádio. Benny re­zava para Jesus e Odin. Eu olhava pela janelinha estreita. Os nos­sos veículos tentavam se reagrupar, mas as ruas eram muito estreitas. A nossa única alternativa era correr. As tropas a pé já haviam tombado. Os que ainda estavam vivos enterravam-se na multidão, mas as armas ainda os tinham na mira. Isso deve ter custado uns cinqüenta civis para cada um dos nossos. Ao redor, os veículos enfileirados estalavam um a um sob o fogo. E, então, fomos atingidos. Não foi um disparo certeiro, mas o veículo foi arremessado para o lado. Nós sacudimos lá dentro como maldi­tas ervilhas. Quando o veículo assentou, o motorista se arrastou até o rádio ao mesmo tempo que limpava o sangue do rosto.

Já era! - Ele sacudiu o aparelho.

A gente também - Had completou.

Nós todos olhamos para o lado, na direção do pai. Vai olhava o monitor que também não funcionava. E esmurrou o aparelho.

Está tudo acabado - ele falou com espanto. Val não conse­guia entender. Acho que ele devia pensar que era imortal ou qual­quer coisa assim. Eu notei que Hadrian dava ligeiramente de ombros, sem querer dizer que não se importava. Mas agora era tarde demais.

De repente, outra granada explodiu perto de nós e fomos atirados no ar. Depois, caímos com um grande estrondo e capo­tamos. Não sei do que era feito aquele carro blindado. Era um carro muito velho, construído tempos atrás, mas quase indes­trutível. Ele ricocheteou um pouco e parou de cabeça pra baixo.

Mas ali dentro... bem, ali dentro ninguém era feito do mesmo material do carro. Eu estava todo esfolado, perdi a pele de um lado do rosto porque me raspei contra o painel de controle, mi­nhas costas e meu peito estavam enegrecidos pelos ferimentos, mas só me dei conta disso muito tempo depois. O meu estado não era dos piores. Had gemia em cima de um entulho. Benny gritava. Val estava coberto de sangue da cabeça aos pés, parecia um demônio. O motorista tentou se arrastar até o banco dele, mas acho que a perna dele estava quebrada, ou torcida, ou algo do gênero. Ele gritou e caiu de novo no chão.

Agora é com Aaron - disse Val. Aaron era o nosso general.

Depois aconteceu uma espécie de milagre. Uma outra grana­da atingiu o carro e nos atirou novamente para longe, o que nos fez ricochetear como pedaços de carne em um moedor. Mas, dessa vez, o carro caiu de pé. Eu me arrastei no interior daquele oceano motorizado e, inacreditavelmente, o motor rugiu mais uma vez. Três golpes e ainda funcionava!

Odin nos ama! - Val gritou. O motor estremeceu e arranca­mos. Aquele carro! Devia pesar umas cinco toneladas, mas desli­zava pelas ruas como um gatinho. Had estava inconsciente, esse último golpe o deixou ferido de verdade. Ele e o motorista fo­ram amparados por Val e Benny, e todos gritavam pra mim "VAI! VAI! VAI!". Os transeuntes corriam à nossa frente e saltavam para fora do caminho. Trinquei os dentes e avancei entre a multi­dão, passando por cima dela. A fumaça e o fogo estavam em tudo quanto é canto. Outros veículos fugiam. Eu nem mesmo conse­guia ver o inimigo.

Avançamos através de barracas destruídas e coretos desertos, passando por cima de pilhas de corpos humanos. Seguimos em alta velocidade pela rua, dobramos uma esquina e mais outra. Já estávamos sumindo em meio às casas. Estávamos conseguindo, estava dando certo, estávamos escapando! Nós podíamos ter conseguido! Mas então...

Então, eu o avistei: o homem de chapéu de aba larga. O ho­mem morto, Odin. Ele estava de pé sobre um amontoado de cadáveres e nos olhava. Pensei: que merda! O que você está fa­zendo aqui? Veio ver a execução do plano de fuga dos prisionei­ros? Mas o que me assustava era ver que a saraivada de balas não o atingia, passava através dele, roçava a roupa dele, balançava o cabelo dele. Fosse ele Deus, robô ou ciborgue, pensei, é um mero espectador dos nossos problemas.

Pare o carro - Val ordenou.

Fingi que não tinha ouvido.

Pare o carro! - Val agora gritava. Ele se debruçava nos meus ombros e olhava pela janela. Eu o ignorei, mas ele agarrou o vo­lante. Era de esperar, mas o que eu podia fazer? Era o meu pai. Ergui as mãos e tirei o pé do acelerador. Vai me empurrou e ele mesmo nos conduziu até as proximidades de Odin.

Oh, Deus, oh, Deus - Ben choramingava. Odin vinha ao nosso encontro, caminhando através da carnificina.

Chegou a minha hora - Val afirmou.

Sua hora? Pensei: Toda essa matança é só pra Odin pegar você? Existe um ditado que diz que se deve ir ao encontro de Odin. Para morrer. Meu pai acreditava que todos esses aconteci­mentos não passavam de um plano de Odin para a morte dele.

Ficamos o observando enquanto ele se aproximava, mas, no momento em que subiu no carro, a imagem dele desapareceu do monitor. Nós o ouvimos sobre o capô. E então... BANG, BANG, BANG. Ele estava batendo na tampa de entrada. Val ficou para­do, olhando para cima.

É algum truque de Conor - insisti, mas nem mesmo eu acreditei nisso. Eu sentia a faca como uma coisa viva na minha cintura, o que me levava a crer que nada daquilo tinha relação com Conor. E, mais um detalhe, tudo silenciara. As granadas ainda eram ouvidas, mas soavam distantes, como castanhas es­talando no fogo, embora estivéssemos a umas poucas ruas de distância.

Val ergueu o braço para abrir a tampa.

Não! - Ben gritou.

Até Had, destruído no chão, se recompôs para ver o que estava havendo.

Não vá, não vá! - ele gemeu.

Lá fora, uma saraivada de balas atingia o metal do carro blin­dado.

Nós ainda podemos escapar se... - comecei a falar, mas fui interrompido por uma outra sucessão de BANG, BANG, BANG!

Jamais escaparemos dele - Val afirmou.

Puxei o braço de Val. Ben agarrava desesperadamente as rou­pas dele.

Me larguem - disse Val. E o largamos na mesma hora. Isso dá uma idéia do quanto éramos obedientes a ele.

Do teto ecoou uma nova sucessão furiosa de batidas, como se aquele deus estivesse tendo um ataque histérico lá fora. Val fitava a tampa de entrada.

Não posso fugir da hora de minha morte, mas posso enfrentá-la do meu jeito - ele disse. Nunca vi seu rosto tão estranho.

Val se esticou e abriu a portinhola. Mais uma vez, a barulheira chegava veloz aos nossos ouvidos. As pessoas gritavam, as ar­mas rugiam. Era ensurdecedor, todos nós recuamos. Nenhum sinal de Odin. Val se virou para nos olhar uma última vez e ten­tou gritar no meio daquela algazarra. Perdi o início da frase:

... prisioneiros discutem na área de exercícios.

Ele ergueu o braço, pronto para subir.

Um de vocês vai escapar. Só um. - Foram suas últimas pala­vras. Ele me olhou e logo desviou os olhos para a faca na minha cintura. Eu sabia o que ele queria dizer com isso. Eu tinha sido escolhido por Odin. É isso aí, pensei. Tudo bem, ele também te escolheu.

Depois, ele se esticou para cima e saiu. Não pude ver o encontro entre Odin e meu pai. Estávamos amontoados em torno da janela estreita e não havia qualquer sinal dos dois homens mortos. Uma granada caiu perto de nós e a explosão fechou a portinhola. Eu achei que tinha avistado uma pessoa alta caminhando através da fumaça e dobrando a esquina, mas, em seguida, a fumaça e as paredes destroçadas ocultaram o que quer que isso fosse. Outra granada explodiu próxima de nós.

Havíamos perdido o nosso líder e não tínhamos chance de escapar. Os carros dos nossos perseguidores estavam próximos. A nossa única alternativa era a rendição.

O rádio estava quebrado e tivemos que abrir a tampa para balançar uma camisa do lado de fora, mas ainda fomos atingidos por mais uma granada antes que eles tivessem entendido que íamos nos entregar. Depois, as armas interromperam os disparos e uma voz num megafone ordenou que saíssemos. Ben e eu saí­mos sozinhos, com as mãos levantadas. Had não conseguia an­dar. As pessoas que restavam lá fora jaziam inertes no chão e eram muitas. Eu pude ver Val. Ele jazia com o rosto voltado para o chão. E logo avistamos os soldados se aproximando através da fumaça. Eu achei que seríamos executados imediatamente, mas eles ainda tinham algumas coisas a fazer.

Como disse certa vez o meu irmão Hadrian, se você não é inteligente nem honesto, só lhe resta ser duro. Conor era bem durão.

Aqui termina a história dos tempos de Val. Enquanto descía­mos do carro, eu pensava: E quanto a Signy?

 

Pela manhã Conor já havia partido. Signy levantou-se e exercitou-se na sua academia particular. Ela tomou uma ducha, vestiu-se e pensou em ir ao complexo, mas a portinhola estava trancada.

O coração de Signy disparou, como se pressentisse o que ela não sabia. Ora, talvez a porta estivesse emperrada. Ela bateu e gritou. E depois praguejou e esmurrou a porta algumas vezes, an­tes de decidir chamar alguém pelo telefone interno que pudesse resolver isso. Mas, obviamente, o telefone estava mudo.

Signy compreendeu tudo. Era como se uma vozinha dentro dela estivesse dizendo: eu lhe avisei. Afinal, ela vinha sendo uma cúmplice de sua própria farsa, mas ainda não estava pronta para admitir isso. Cherry, a sua gatinha, enroscava-se nos seus torno­zelos e dava patadas na borda do seu roupão. Signy envolveu-a com as mãos, deu-lhe um abraço apertado e se pôs a balançá-la de um lado para outro.

- Você sabia, não sabia, querida? - ela falou distraidamente. Cherry sempre se escondia quando Conor estava por perto.

Signy deixou a gatinha no chão e correu para dar uma olha­da lá fora. No extenso gramado que crescia às margens da clarei­ra, ela distinguiu a silhueta de um soldado em guarda parcialmente obscurecida pelas árvores e os arbustos. Ela bateu na janela, mas o homem permaneceu no mesmo lugar. Ela estava prestes a olhar outra vez, mas logo avistou outro... e outro... e mais outro, orga­nizados num grande círculo ao redor de sua casa.

Silenciosamente, como se com medo de que pudessem vê-la, Signy se afastou da janela e se dirigiu à torre. Lá no topo, havia uma outra portinhola que dava para o telhado. Ela abriu e subiu.

E ficou na ponta dos pés o mais alto que pôde, olhando na dire­ção do sul por sobre a cidade.

Era possível avistar tudo dali: o desmoronamento de incon­táveis prédios pela falta de manutenção e a destruição das altas torres nas terras de seu pai que abrigavam as instituições finan­ceiras de todas as partes do mundo antes da guerra das gangues e da guerra dos meio-homens. Mas mesmo podendo enxergar tão longe, as árvores e os prédios impediam-na de vislumbrar o que estava acontecendo nas ruas.

Signy se permitiu pensar no impossível. Traição? Mas, neste caso, a farsa seria enorme! Ela e Conor fizeram tantos planos! Fizeram amor. Será que ele podia fingir até mesmo o amor? Ou simplesmente tirara proveito do amor que dispunha? E quanto às pessoas? Será que as multidões e as ovações faziam parte de um estratagema? Será que todo o norte de Londres havia partici­pado disso?

Não, não, isso não era possível. Se tivessem planejado uma emboscada, certamente haveria um vaivém de carros e de armas sendo transportados. Isto seria uma batalha para acabar com to­das as batalhas! E ela não tinha visto nada, não tinha ouvido nada. Simplesmente não era possível.

Tranqüilizada com este pensamento, ela começou a escalar a alta cerca de arame que circundava o telhado para atrair a aten­ção dos soldados. Ela não tinha como chegar ao topo, já que a cerca de arame farpado enrolado se curvava para dentro. Ela pe­dira muitas vezes a Conor para retirar aquilo e ele havia consen­tido, mas, de alguma forma, nada foi feito. Ela subiu dois metros e, agarrada ao arame, chamou pelos guardas que estavam par­cialmente escondidos na floresta. Eles se viraram na mesma hora e olharam para cima. Um deles ergueu a arma e apontou para Signy. Ela ficou imóvel, dependurada lá, à espera, até que o ho­mem atirou, um tiro de aviso sobre a cabeça de Signy, mas não muito distante de seu couro cabeludo. Ela pulou no telhado e saiu andando.

Houve uma rebelião, ela se deu conta. Claro... era isso. Eram as famílias rivais das quais Conor tanto lhe falara - os O'Hara, os Sanderson, a velha guarda. Isso era trabalho dessas famílias.

Signy era prisioneira delas e não de Conor! E, de repente, ela se viu tomada de medo e preocupação pelo seu Conor, que naquele momento devia estar lutando por sua vida. Ou talvez até estives­se morto!

Signy ouviu um barulho às suas costas, vindo da portinhola. Ela arfou de medo e prendeu a respiração, mas era apenas Cherry. A gatinha correu em sua direção e ela se abaixou para pegá-la. Signy sentou-se no telhado e ficou à espera, acariciando a cabeça de Cherry. Não havia mais nada que pudesse fazer. De um modo cruel era reconfortante pensar que ela não era a única traída, já que Conor também era. Sua única esperança era que a rebelião pudesse ser contida. Talvez seu pai pudesse ajudar Conor a aca­bar com essa rebelião!

Sim. Uma rebelião. Era a resposta. Do contrário, a farsa seria insuportável.

 

A batalha começou ao meio-dia.

A mais ou menos um quilômetro e meio de distância. Havia fogo, explosões, nuvens de fumaça negra e o fedor de gasolina, de metal quente e... de carne queimada. Mas não consegui ver de quem.

Eu não parava de pensar: Que estupidez! Por que os rebeldes haviam esperado pela chegada do meu pai e seu exército? Agora o meu povo se juntaria a Conor e eles teriam dois adversários em vez de um. Quanta estupidez! Continuei de olhos e ouvidos abertos, como se fosse possível afirmar apenas pelo som quem estava atirando as granadas e quem estava sendo atingido por elas.

Não levou muito tempo, é o que posso dizer. Menos de uma hora. Escalei a cerca e chamei pelos guardas. O que estava acon­tecendo? Quem é que estava ganhando? Quem é que estava lu­tando? Mas eles se limitaram a atirar por cima de minha cabeça, dessa vez mais perto. Desci. Eu não estava pronta para morrer. Ainda não.

Esperei por um século. Ninguém chegava. Por quê? A bata­lha terminara há horas. E certamente não tinham sido os rebel­des que ganharam, não lutando ao mesmo tempo contra Conor e meu pai. Vai não chegaria aqui desarmado! Esperei por muito, muito tempo, mas ninguém chegou.

Ao entardecer houve mudança de guardas e chamei pelos novos, mas eles não responderam. O dia se foi, e escureceu. E... eu me dei conta do que acontecera. Era quase como se eu mesma fosse a responsável por aquilo. Eu tinha consciência daquilo, mas não me permitia confiar a coisa para mim mesma. Eu não podia fazer isso porque também tinha tomado parte em toda aquela farsa.

Mas não fiz nada naquele momento. Eu queria provas.

Já era bem tarde e a noite estava muito escura. Escutei as ovações e o ruído de grandes motores. E depois vi luzes, silhuetas, holofo­tes e tochas acesas que iluminavam as árvores. Uma procissão marchava na direção do complexo. Eu dava pulos para observar e tentava usar o meu binóculo, mas tudo estava muito distante. Levou muito tempo até que eles chegassem aos portões do com­plexo, onde eu pude ter uma visão um pouco melhor deles en­quanto entravam.

As coisas grandes foram as primeiras a chegar. Vagões, tan­ques, veículos blindados. Depois chegaram as carroças puxadas por cavalos - eram muito mais numerosas. Era mais fácil conse­guir cavalos que gasolina. Ao redor, homens aos gritos se mo­viam desordenadamente e carregavam tochas, de modo que o fogo e a luz os acompanhavam a cada passo.

E logo chegaram os espólios de guerra. A maquinaria captu­rada: nossos carros, nossos tanques e vagões abarrotados de pre­sentes para Conor. Prisioneiros de faces sombrias marchavam com as mãos sobre a cabeça. Escravos. Eu não conseguia identi­ficar os rostos. Estava muito escuro e mesmo com o binóculo e a luminosidade das tochas não se podia dizer quem eram eles, embora eu tenha reconhecido os uniformes. Mas ainda assim não acreditei. Com algo dessa natureza é necessário dissipar qualquer duvida para se assumir o que de fato está acontecendo.

No meio disso tudo surgiu uma carroça com uma pequena torre armada com um andaime no topo. Um grupo de homens a carregava pelo caminho. Eles eram chicoteados toda vez que tro­peçavam ou caíam e isso me deu uma resposta. Algum dia meu pai teve escravos ou os chicoteou? Em cima da torre, iluminada pelos holofotes, aparecia uma figura atada pelas pernas e braços num quadrado do andaime. Sua cabeça batia e balançava, à me­dida que a carroça seguia aos solavancos pela estrada. O povo atirava pedras e paus nesse homem. Atiravam a esmo com suas armas, ainda que ele já estivesse morto. Ele não passava de um pano de chão ensangüentado aos farrapos, amarrado em cima da torre. Eu precisava observar atentamente para distinguir alguma coisa. É claro que sempre miravam na cabeça dele, e mesmo que eu quisesse me enganar por mais tempo, conhecia muito bem o meu pai, até mesmo depois de tudo que fizeram com ele. Eu o reconheci pela silhueta. Eu o reconheci pela forma com que co­mecei a chorar assim que o focalizei.

Larguei o binóculo. Se não me engano, Cherry miava aos meus pés. Eu não me importava com quem tinha feito aquilo, só espe­rava que não fosse Conor, mas, de qualquer maneira, isso não tinha importância. Fui até a portinhola. Tive que quebrar uma janela para poder escapar de lá. No entanto, lá embaixo, os gângsteres estavam à minha espera.

 

Ela correu diretamente ao telhado tão logo ouviu a porta abrin­do com violência abaixo dela, mas não havia tranca na portinho­la. Tudo fora planejado tempos atrás. Signy foi puxada da cerca onde estava agarrada. Confusa, começou a chamar por Cherry, mas seu bichano não estava em qualquer lugar que pudesse ser visto. As mãos de Signy foram algemadas por trás das costas e ela foi conduzida bruscamente através da portinhola. Gritou de dor quando eles forçaram os braços dela para trás, mas, depois disso, ela não pronunciou nem uma única palavra, como se a voz dela valesse muito mais do que mereciam aquelas pessoas.

O guarda empurrou-a pela portinhola como um saco de os­sos e atirou-a do topo da escada, fazendo-a girar e cair de lado com um baque assustador. Arfando e sem fôlego, Signy foi le­vantada com um puxão e arrastada até o outro quarto. Durante o trajeto, permaneceu calada. Depois, foi jogada no chão. O guar­da gritou "Senhora!" para chamar a atenção.

Signy virou o rosto sobre o tapete a fim de ver para quem ela havia sido conduzida. Era uma mulher alta e ruiva que se vestia com um terninho cinzento de executiva. Ela falava tranqüila­mente ao telefone, que a essa altura fora religado. Enquanto fa­lava, olhava para a sua vítima com olhos penetrantes. Signy já a conhecia. Conor a apresentara. Era Anne Sanderson, um dos cabeças das Forças Internas de Segurança, oficial do alto escalão da polícia secreta.

Ainda observando Signy, a mulher colocou o fone no gancho.

- Onde está Conor? - Signy suplicou. Mas não ousou per­guntar o que tinham feito com ele.

Comemorando - a mulher respondeu. Sorriu ligeiramente e pegou outra vez o telefone. Signy se irritou.

A mulher começou a discar.

As duas pernas - ela disse para o guarda sem olhá-lo. Eles levantaram Signy e levaram-na para um cômodo adjacente. Ela foi deixada no chão, dessa vez com mais cuidado. Três guardas a seguraram, um deles pressionava os ombros dela contra o tape­te, os outros dois agarravam com força os tornozelos.

E os meus irmãos? Me diz, quero saber o que aconteceu com meus irmãos - ela perguntou, virando o rosto.

Seus irmãos estão mortos - um dos guardas respondeu cal­mamente.

Uma outra pessoa se aproximou às suas costas. Ela olhou de relance um alicate com plástico vermelho no cabo. Uma de suas pernas foi arqueada contra a parte de trás do joelho e ela sentiu uma dor que queimava. E ao mesmo tempo uma terrível sensa­ção de afrouxamento em cima da coxa. Signy soluçou. Soltaram sua perna e ela tombou como um pedaço de carne no chão. Nin­guém se deu ao trabalho de ampará-la. Ela tentou chutar, mas os músculos de sua perna apenas se contraíram. Em seguida, fize­ram o mesmo com a outra perna.

Ela resfolegava, em estado de choque. Os homens já não se preocupavam em contê-la no chão. Ela sentou-se, na tentativa de se ajoelhar para examinar os ferimentos, mas as pernas não se sustentavam e ela tornava a cair. Ela tentou esticar as pernas, mas não conseguiu. Então, puxou-as de baixo para cima e girou-as para enxergar.

Eram os tendões atrás dos joelhos. Signy estava aleijada. Ela seria uma prisioneira em seu próprio corpo. Nunca mais poderia andar normalmente ou correr, só poderia mancar com dor, como uma velha.

Um dos guardas, o que falara gentilmente com ela, a puxou pelo braço. Ela se agarrou chorando no pescoço dele, como um bebê. O sangue derramava da perna de Signy e escorria pelo bra­ço do guarda.

Agora você vai pra cama. - Ele a carregou.

 

Siggy, Hadrian e Ben não estavam mortos, ainda não. Nada tão rápido fora planejado para eles.

Amarrados pelos pés e as mãos na traseira de uma carroça puxada por cavalos, eles fizeram a sua jornada até o complexo. Os soldados caminhavam ao lado, espancando-os, atirando pe­dras e acertando-os com pedaços de pau. Temendo que fossem mortos antes de chegar ao complexo, um dos gângsteres transfe­riu-os para uma van fechada onde não seriam molestados.

Uma vez dentro do complexo, eles foram trancafiados numa edificação fria e viscosa, obviamente uma oficina mecânica. Ha­via uma rampa sobre um poço, com um carro erguido. Outros carros estavam estacionados ali perto, alguns parcialmente des­troçados, outros limpos e brilhantes. O chão era de concreto e estava úmido e manchado de óleo. Por todos os lados havia áreas de trabalho, bancadas e ferramentas. No chão onde eles foram deixados havia uma viga de ferro, algumas garrafas de gasolina e uma pilha de correntes.

Os três irmãos foram acorrentados. Siggy e Ben lidaram com esse tratamento duro da melhor maneira possível, mas Hadrian sofrerá muito com as batidas do carro blindado e não conseguia evitar os gritos. Assim que foram presos, um dos homens colo­cou um capacete grosso de soldador, juntou os equipamentos e começou a soldar as correntes na viga de ferro.

Ele começou com Had. A medida que as correntes esquenta­vam, exalava um cheiro de metal quente, chamuscando roupas e cabelos. Os elos das correntes se avermelharam, o ar se impreg­nou com um repentino fedor de carne queimada e Had passou a gritar como um louco. Quando ele já estava bem preso à viga, o homem caminhou e voltou sua atenção para Siggy.

Somente quando o trabalho terminou, com os irmãos já amor­daçados, é que uma porta se abriu e Conor emergiu das sombras.

Ele não olhou nem se dirigiu aos três irmãos. Ficou diante deles, mirando suas pernas. Depois, gesticulou para um dos guar­das e apontou para Siggy.

A faca - disse Conor. - Me dê a faca.

O guarda se agachou até a cintura de Siggy, retirou a faca com uma lâmina azul leitosa de pedra lascada e entregou a Conor, que sorriu pela primeira vez.

Você devia ter me dado essa faca quando lhe pedi. - Conor passou os dedos pela lâmina, como se tudo aquilo fosse apenas para pegar a faca. Talvez fosse. Ele acariciou a superfície da lâmi­na com cuidado e sorriu outra vez. - Deixe-os do Lado de Fora para o Porco - ele ordenou e virou-se para sair.

De volta ao ar fresco, Conor parou e recostou num muro. Havia sido um longo dia e ele dormira muito pouco nas últimas semanas. De alguma forma, a visão dos três irmãos o deixara exaurido. Ele pensou em Signy, prisioneira em sua torre, e estremeceu. Ele podia escutar às suas costas os gritos dos irmãos enquanto dez dos seus homens levantavam a viga até a traseira de um dos caminhões. Conor estremeceu de novo, mas sorriu logo em seguida.

Ele havia conseguido. Conseguido aquilo que até mesmo o grande Val Volson não conseguira, unificar a cidade. Ele era aquele que seria lembrado como o Rei de Londres. E ainda não termi­nara. Mal havia começado. O próximo passo seriam os meio-homens. E, depois, as cidades e metrópoles ao redor de Londres - a própria Ragnor.

E agora Conor possuía a faca.

Ele olhou aquela lâmina grosseira. Era dele. Segurou-a com firmeza pelo cabo, pressionou a ponta contra o tijolo do muro onde estava recostado e empurrou. A lâmina afundou na pedra com um leve ruído, como se pressionada contra areia seca e morna.

Conor sorriu de prazer. Ele não se arriscou a fazer isso na frente de Siggy com medo de que a faca se recusasse a funcionar em suas mãos, mas, agora, ele se arrependia de ter duvidado de si mesmo. Afinal, Odin quis que ele a possuísse.

Conor segurou novamente a faca para arrancá-la, mas ela se recusou a se mover.

Ele rosnou de frustração e fez força, mas a faca estava solidamente fixada. Antes de botar toda sua força naquilo, olhou ao redor para se certificar de que estava sozinho. Seria péssimo ser flagrado enquanto se esforçava como um garoto fracote em cima do maior dos prêmios. Ele tentou mais uma vez; apoiou o pé no muro, fez mais esforço e puxou. Mas a faca continuava imóvel. Agora ele seria obrigado a chamar seus homens para arrancá-la e a notícia se espalharia pelo complexo em um só dia. Conor esta­va lívido.

Enquanto encarava, cheio de ódio, aquela coisa cravada no muro, subitamente algo se movimentou à sua frente e ele saltou no ar com um grito de terror.

Era uma criança, uma menina de uns dez anos de idade. Pa­recia ter surgido do nada. Ela não tinha medo. Ficou parada e fitou Conor como se soubesse de todos os segredos dele.

- Você é um tolo - disse a criança. - Não percebe que a ama?

Conor ficou sem reação. A criança franziu os olhos para ele e se retirou, virando em uma passagem logo à frente. Conor ainda tremia - era como se ela tivesse brotado da terra - antes de ser tomado por uma tremenda fúria. Ele saiu correndo ao longo do muro até a porta e a seguiu.

Era um pequeno quarto, um depósito para estocar cadeiras de plástico baratas. A outra porta estava fechada e certamente ele teria escutado se ela abrisse. A menina devia estar escondida entre as cadeiras.

Conor extravasou a raiva nas cadeiras, erguendo-as e atirando-as para o lado, mas não havia ninguém por ali, somente um gatinho que correu e passou por baixo de suas pernas. Ele se abaixou para investigar o chão, mas não havia nada para ser vis­to. Ela devia ter escapado para outro lugar. Ele abriu a porta que dava para o prédio e olhou na direção do corredor. Nada.

Ainda por ali, confuso e frustrado, de repente lhe ocorreu que isso era impossível, que a menina não havia se comportado como uma criança, que ela aparecera como em sonho e desapa­recera como em sonho também. A explicação mais provável para o ocorrido é que ele tivera uma alucinação, um devaneio. Ele é que devia ter feito com que a menina dissesse o que disse. Então, sentou-se em uma cadeira. E de novo começou a tremer. Sentia uma avalanche de choro dentro dele. Sentado, esperou pelas lá­grimas; no entanto, como de costume, elas não apareceram. Abel, o pai de Conor, fizera um bom trabalho quando o filho era criança. Nenhuma lágrima era capaz de quebrar a máscara de ferro que o velho construíra em torno do coração de Conor.

 

Era início de setembro, o verde amarelecia. Um dia lindo. Filei­ras infindáveis de ervas brotadas da queimada, todas delicadas. O ar se inundava de sementes macias. Quadras de arvoredos cres­ciam nos velhos jardins, enquanto outras árvores invadiam cal­çadas, estradas e paredes. Uma casa inteira. Bem, na verdade era apenas um amontoado de entulhos e algumas paredes, mas tudo estava coberto por uma trepadeira vermelha reluzente. As pare­des desmoronavam, o cascalho se empilhava. Era uma meia-cidade para os meio-homens. Até que seria um lugar bonito, se não sou­béssemos o que esperava por nós.

Pensei em todos os homens e mulheres que terminaram des­sa maneira, torturados e destroçados, deixados para morrer da pior forma possível. Por que se meter em tantos problemas so­mente para nos fazer sofrer? Assim era Conor. O que ele queria não era apenas nos derrotar. Ele queria nos humilhar.

O Land-Rover dava trombadas e solavancos pelos buracos e tijolos da estrada. Had gritava e esperneava, ele parecia encarar as provações de um jeito pior que o meu e o de Ben. Ele tinha quebrado o tornozelo e algumas costelas no carro blindado, e depois, quando os homens de Conor nos encontraram, eles acabaram descarregando toda a raiva em cima dele. Eles o chutaram durante uns bons cinco minutos. Era possível ouvir suas costelas quebrando. Achei que seríamos os próximos, mas por alguma razão eles não se importaram conosco.

O Land-Rover estacionou num platô e os soldados saltaram.

Hora da bóia!

Essa noite vocês vão ver algumas paisagens inesquecíveis. Mas não vão viver para contar a ninguém.

Foram necessários dez deles para descer a viga. Nós gemía­mos dependurados em nossas correntes, e depois eles largaram tudo pesadamente no chão. Um deles se abaixou e puxou a mi­nha mão com violência para me fazer gritar.

Não é porque você vai morrer que dói menos, não é, garoto?

Eles nos atormentaram por um tempo, chutando nossas mãos onde as algemas estavam soldadas, para nos fazer gritar, mas o chefe deles pôs um fim nisso. Acredito que ele e mais alguns te­riam sido compassivos e que teríamos conseguido que alguém colocasse um pano úmido entre os nossos pulsos e o metal, mas ninguém ousava nos ajudar com medo de que algum deles denunciasse. Depois que o chefe ordenou que todos voltassem para os carros, ele nos olhou e simplesmente deu de ombros, e logo en­trou no seu carro e todos foram embora.

É preciso ser corajoso, tanto pelos outros quanto por você. Mas não dá. Você pode até morder a língua, pode até fingir, mas por dentro... existe uma outra coisa. Você não tem como evitar o medo.

Avistava-se um edifício com um dos lados desmoronado como um baralho gigante, com camadas caídas uma por cima da outra. Acho que este edifício devia ter sido um estacionamento de car­ros com vários pisos. Estávamos numa espécie de prado com so­lo seco e ralo, cheio de musgo e de pequenas plantas desalinhadas. Talvez um dia aquele lugar tivesse sido uma área asfaltada. Aqui e ali floresciam pequenas bétulas e buddléias. Uma placa de me­tal enferrujada parcialmente destruída e com pichações jazia nas imediações. A nossa frente, víamos uma linha do mesmo solo ralo e limoso, onde um dia houve uma estrada.

Parece ser um bom lugar para piqueniques - eu disse, mas ninguém riu.

À medida que o dia ficava mais quente, Had ofegava como um cachorro. Ele estava muito acabado. Ele sempre foi o que tinha a cabeça mais fresca, mas agora estava realmente sofrendo. Pedia água a todo instante. Ben acabou fazendo uma coisa inteli­gente, começou a cantar para ele as canções que a nossa babá costumava cantar quando éramos pequenos. Isto o acalmou. De vez em quando, ele parecia ficar mais alerta.

Você pegou sua faca? - ele me perguntou. - Você pode cortar as algemas e nos libertar.

Conor levou a faca, Had.

Conor levou tudo - ele comentou.

Mas não conversamos muito. Não houve nada daquele papo de "como você está se sentindo?". Para quê? Tentei animar a todos com mais algumas piadas sobre piqueniques e sobre qual de nós teria um gosto melhor, dizendo que talvez Ben fosse dei­xado de lado por causa do seu sabor. Ben e eu cantamos algumas canções. Had se juntou a nós por um tempo, mas depois se dis­persou novamente, arfando e delirando. Odiei isso, porque de nós três ele era o melhor. Tentamos nos abstrair de tudo, mas ele insistia e continuava. Não havia mais nada para ouvir, a não ser o chiado de pássaro que ele emitia quando pegava fôlego. Nós queríamos tanto ajudá-lo.

Eu me peguei pensando na Signy. O que Conor tinha feito com ela? E eu me perguntava - eu sabia que era quase impossível, mas com minha irmã nunca se sabe -, eu me perguntava se ela daria um jeito de nos ajudar.

 

Depois de cerca de uma hora, os pássaros chegaram.

Had foi o primeiro a avistá-los. Ele ficou desmaiado durante algum tempo. Houve um silêncio de misericórdia, mas, quando olhei novamente ao redor, os olhos dele estavam arregalados e ele fitava o céu. Olhei para cima e lá estavam eles.

Eles estavam bem lá no alto, pequenas silhuetas de asas prate­adas voavam em círculos sobre nossas cabeças. Era possível ouvir os seus brados à medida que eles desciam, mas só conseguimos ouvir o que diziam quando ficaram grandes como gaivotas.

Estamos chegando, estamos chegando, estamos chegan­do, ahh, estamos chegando - eles berravam. Tinham vozes es­tridentes de crianças. Mas talvez só estivessem nos atormentando porque nunca chegavam, pelo menos até aquele momento. Quando estavam mais ou menos a quinze metros acima de nós, eles interromperam a descida e começaram a voar em círculos.

Talvez desconfiados de que os guardas estivessem nos usando como iscas.

Eles circularam por mais meia hora.

Estamos chegando, logo, logo, logo, logo... - eles berra­vam com vozes agudas e engraçadas. E depois começaram a dar vôos rasantes e os berros mudaram.

Com fome, com fome, com fome!

Muito em breve poderíamos avistar suas faces sob a luz páli­da; eram cunhas cruéis e brancas com olhos escuros e bicos gros­sos armados com dentes amarelos. Tinham mais ou menos o tamanho de uma criança, com corpo esguio e rijo, cobertos por penas negras e lustrosas como as dos corvos, e asas grandes como portas. Iniciaram uma disputa entre eles antes mesmo de tocar no solo.

Meu, meu, meu... larga ele, larga ele, larga ele...

Eles estavam voando tão baixo que podíamos sentir o vento de suas asas. E, então, o primeiro par aterrissou, avançando al­guns passos e mantendo as asas erguidas por sobre as costas. Eles se assentaram, recolheram as asas e caminharam em nossa dire­ção. Tinham pés revestidos de ferro.

Em seguida, alguma coisa começou a urrar.

Por um segundo apavorante pensei que fosse Had, mas ne­nhuma garganta humana urraria daquele jeito. Era algo que não se parecia com nada - guinchava, gritava e rosnava, tudo ao mesmo tempo. Nós três tentamos levantar de um pulo e sacudir nossas correntes. Os pássaros uivavam e subiam de volta ao ar, batendo as asas desesperadamente. As asas produziam um vendaval. Eles estavam furiosos. Eu podia ver seus bicos se abrindo e fechando. Houve um curto intervalo enquanto sei lá o que tomava fôlego e conseguíamos ouvir os pássaros:

Com fome, com fome, com fome... Nossos, nossos, nossos, nossos, nossos... - eles gritavam. E suas vozes ficaram novamen­te encobertas quando o urro recomeçou.

Alguma coisa emitia estrondos na vegetação ao redor do es­tacionamento desmoronado. Eu pude ver uma enorme massa se movendo entre as amoreiras. E aquela coisa abriu caminho ainda aos berros e investiu contra nós.

Definitivamente, acho que era um porco. Era gigantesco... e tão feio! A pele era fedida e toda marcada por pústulas. Tinha uma cabeça enorme e um focinho comprido, cheio de presas retorcidas e amarelas. Tinham feito algumas alterações na cria­tura. Na parte traseira, as patas exibiam garras. Na dianteira, havia mãos, mãos grossas e vigorosas que trituravam a terra abaixo delas. O corpo era eriçado e rosado; parcialmente porco e parcialmente homem. Os ombros eram rechonchudos e musculosos. A cara era inteiramente de porco, exceto por uma es­pécie de barba bem rente aos seus olhos suínos, e a boca era repleta de presas.

A coisa se deteve a alguns metros de nós e gritou a todo volume em nossa direção, gritos, guinchos e grunhidos, como fazem os porcos, e a criatura também rosnava de maneira pavo­rosa. Não sei por que, acho que estava tentando nos assustar e funcionou direitinho. Ficamos sentados e gritamos de volta. A coisa se aproximou, ainda emitindo aqueles ruídos terríveis, e ela chegou tão perto de nós que sua saliva caía em nossos rostos.

Acho que ela notou as correntes soldadas. De repente, parou de berrar, grunhiu de modo curioso e se aproximou ainda mais para dar uma olhada. A cabeça dessa coisa tinha quase um metro de comprimento e ela precisava inclinar o corpo todo para o lado para ter uma boa visão. E, então, ela começou a rir. Ora, claro, ela achou a situação toda muito engraçada. Ela grunhia e rolava às gargalhadas. E ria tanto que caiu sobre os cotovelos e enterrou o focinho na terra, sacudindo a cabeça de um lado para outro e batendo no chão com as patas.

Assim que se recompôs, a criatura se levantou novamente e foi até Hadrian. Ela se inclinou com o cotovelo na viga de ferro e com suas mãos grossas de porco apalpou as pernas, o corpo e o rosto de meu irmão. Em seguida se concentrou no pescoço e começou a apertá-lo. Hadrian sequer teve tempo de balbuciar. Por fim, a coisa deu uma grande mordida em seu rosto.

 

Signy deitara-se em uma cama estreita, no pequeno quarto sem janelas escondido no ponto alto da torre de água, com suas per­nas arruinadas e envolvidas com bandagens encardidas. Ao seu redor, uma exposição de barras e metais. A ilusão se dissipara; o revestimento de madeira, os tapetes, as cortinas caras, as mobílias de bronze, tudo fora destruído e retirado. Os televisores, os tele­fones, o computador, a música, tudo acabado. Agora, tudo que não fosse barras e correntes era bom demais para ela.

Em meio à perda total, Signy tinha um consolo. De alguma forma, sem que ninguém a visse, Cherry havia se esgueirado para dentro e se escondido debaixo da cama. Quando tudo se acal­mou, a gatinha, que nos últimos meses havia crescido esguia e macia, pulou em cima da cama, suplicou por carinho durante uns cinco minutos e, por fim, enroscou-se caprichosamente e caiu no sono. Vez por outra, Signy a acordava, abraçando-a e chorando, e Cherry deixava que ela a segurasse com força e molhasse seu pêlo com lágrimas.

A certa altura, um guarda entrou com uma tigela de comida e Signy ficou tensa e encolheu-se, mas eles já tinham feito tudo o que queriam com ela. O homem colocou a tigela no chão.

- É melhor você comer - ele disse. Signy virou o rosto para o outro lado. Ela só queria morrer. O que é que sua vida poderia oferecer de bom agora? Ela era o quê? Alguma espécie de troféu para Conor exibir?

O guarda deu de ombros e saiu do quarto. Logo depois, a pequena Cherry emergiu de debaixo da cama, onde estava es­condida. Farejou com cuidado a tigela e pensativamente lambeu a manteiga do pão.

Mais tarde, quando tudo silenciara, Signy saiu da cama e se arrastou com muita dor até a porta para ver se podia abri-la. Obviamente, estava trancada e uma voz grossa ordenou que ela se afastasse. Ela se arrastou de volta à cama. A morte teria que esperar mais um pouco. Sua garganta estava tão seca quanto areia, mas ela não queria beber nada. Cherry tentou sentar em suas pernas, mas isso era doloroso e ela teve que retirá-la e colocá-la em cima de sua barriga. Pousou a mão nas costas da gata e virou o rosto na direção da parede.

Finalmente, exausta por não ter dormido e pela longa noite de provação, Signy caiu em uma espécie de transe, algo que ja­mais poderia ser chamado de "dormir". Ficou deitada durante muitas horas, imóvel, com os olhos semicerrados. Bem mais tar­de, um guarda chegou com mais comida numa tigela e de novo ordenou que ela comesse.

É melhor você comer - ele ameaçou. - Conor quer você viva. - O guarda ficou à espera, mas ela não moveu um músculo. - Se você não comer, eles vão obrigá-la a fazer isso - ele advertiu, pôs a segunda tigela no chão, ao lado da primeira, e saiu do quar­to. Signy abriu os olhos, olhou para a comida e a bebida, observou a porta fechada e outra vez voltou o rosto para a parede.

Algumas horas depois já estava completamente escuro e Cherry, que dormia ao lado de Signy, levantou-se, espreguiçou-se e foi fuçar a comida que a garota deixara esfriar. Ela bebericou um pouco d'água de uma xícara e lambeu a gordura das batatas. Cherry estava com fome, mas nada mais dali se adequava ao gosto de um gato.

Signy abriu os olhos e se viu diante de uma garotinha ajoelhada ao lado de sua cama, enfiando batatas na boca e choramingando.

A garota olhou para Signy e limpou as lágrimas dos olhos.

Pobre Signy, pobre Signy - a garota choramingava. Ela ti­nha cerca de dez ou onze anos de idade. Ocupava-se em mastigar a comida enquanto as lágrimas desciam. Era uma garota de apa­rência curiosa, sua pele era macia e coberta por uma penugem.

Não se incomode comigo, meu bem - murmurou Signy, que ainda estava em transe e imaginou estar sonhando.

A garota depositou cuidadosamente a batata no prato e solu­çou nos braços de Signy.

Eu vou lhe ajudar - disse a garota. - Você também me aju­dou. Só temos uma à outra, não é, Signy... rainha? Você e eu, nós duas perdemos tudo para o rei Conor. Vou lhe ajudar. Eu sei como. - Ela sorriu com prazer e se inclinou para a frente. - Você quer que eu lhe ajude? - ela sussurrou.

Signy sorriu para aquela estranha e pequena visão.

Como é que você vai fazer isso?

Posso salvar os seus irmãos do Porco, é claro.

Signy franziu a testa. O sonho já estava ficando desagradável.

Eles estão mortos - ela replicou e desviou o rosto.

Não, não estão não. Você nunca deve acreditar no que Conor diz. Até mesmo ele sabe disso. Acho que ele não sabe como acreditar nas coisas. Eu fui lá embaixo e fiquei escutando. Ouvi os homens conversando. Falei umas verdades para Conor, de como ele não conhece o próprio coração. Eles deixaram os seus irmãos acorrentados. Eu vi. Acorrentados e soldados num pedaço de ferro, abandonados na terra dos meio-homens para o Porco. Pobres meninos! Mas talvez eu possa salvá-los, rainha Signy. Farei isso por você.

De repente Signy se sentiu totalmente desperta. Só em pen­sar nos irmãos já quebrava o seu transe. Ela virou o rosto para examinar esse sonho estranho e vívido. Queria enxergar os bu­racos, as falhas, os indícios de faz-de-conta que existem nos so­nhos. No entanto, quanto mais se concentrava, mais desperta ela se sentia e mais real a visão se tornava. A garota sorriu ao ver sua expressão e se aproximou para tocar em sua bochecha.

Pobre Signy! - ela exclamou. - Agora serei os seus pés.

Signy sentou-se. Ela estava ficando assustada. Por que isso não ia embora?

Quem é você? - ela sussurrou.

A garota franziu os olhos.

Não me conhece? - a menina sussurrou de volta. Um jorro de pêlo branco e marrom-alaranjado farfalhou ligeiramente, como uma brisa que passava por sua pele. Isso se espalhou pelo seu semblante e sua roupa. E depois desapareceu.

Signy crispou-se na cama, em verdadeiro terror. Ela se lem­brou das palavras que jamais esqueceria: "Ela tem mais de um formato..."

Cherry?

A garota sorriu e mais uma vez os seus pêlos se ondularam ligeiramente.

Ser garota não é bom - ela disse. - Mas ajuda quando você precisa de mãos e de voz! - Ela riu e bateu as mãos.

Signy se aproximou e tocou no rosto dela. Era real. Ela sentiu as lágrimas. Sentiu o pêlo a eriçar como uma brisa e depois desa­parecer.

Aquilo não era sonho.

Você...

A garota se inclinou, sibilando uma espécie de êxtase:

Sou sua! Sou sua!

Signy se debruçou levemente na cama.

Você pode mesmo salvá-los?

Posso tentar! - a garota ronronou. - Não existe ninguém como eu.

Então, diante dos olhos de Signy, ela encolheu. O pêlo to­mou conta dela, seu formato foi mudando até se transformar por completo. Signy pensou: metamorfose! E, de repente, a gati­nha estava parada à porta, miando.

Cherry? Cherry? - Na mesma hora Signy começou a duvi­dar de tudo que havia visto. Ela se pôs no fundo da cama e se encolheu com uma dor terrível nas pernas. A gata olhou-a de re­lance e piscou. Em seguida, se virou para a porta e voltou a miar. Alguém praquejou do outro lado. A chave revirou, abriu-se uma fresta e a gatinha correu para fora. A porta bateu no mesmo instante. Signy ouviu o guarda gritando "Ei!". Mas Cherry era veloz. Alguém avançou alguns passos no seu encalço.

Como é que isso entrou aqui?

Deixa para lá. É só um maldito gato.

Signy deitou na cama. Fitou o teto por um longo tempo, sem acreditar. Ela devia estar tendo alucinações. Mas seus dedos ain­da estavam úmidos com as lágrimas que Cherry derramou quan­do Signy tocou no rosto dela. Depois de um tempo, Signy notou a tigela de comida fria ao lado da cama. Ela não estava com estômago para comida, mas aproximou-se com cuidado, pegou a xí­cara com água e bebeu. Afinal, talvez fosse melhor continuar viva, pelo menos por ora.

 

Ao terminar com Hadrian, aquela coisa arrotou como um ho­mem, rodopiou três vezes como um cachorro e deitou perto da viga para dormir no meio dos ossos ensangüentados do nosso irmão. Ela soltou um longo suspiro de satisfação. Ergueu a cabe­ça para nos olhar e sorriu.

Boa-noite - ela grunhiu. E alguns instantes depois, pegou no sono.

Boa-noite - respondi. - Bons sonhos. - Não, eu não estava sendo corajoso. E também não pense que eu não me importava com o que tinha acontecido com Had. Mas enquanto você está vivo, continua sendo você mesmo, apesar de todas as dificuldades.

Foi uma noite muito longa, o tipo de noite que Conor plane­jara para nós. Não conseguíamos dormir; ora, quem consegui­ria? Era um somatório de medo, exaustão, fome, sofrimento, Deus sabe lá mais o quê. Os problemas não eram apenas os acon­tecimentos realmente assustadores, como a morte do nosso ir­mão ou o destino que nos aguardava. Também havia as coisas idiotas, como sentir vontade de ir ao banheiro. Nunca nos con­tam essas coisas nas histórias. Lembra aquela princesa que amar­raram para o dragão devorar? Quantas vezes você acha que ela cagou nas calças? Em minha opinião, o príncipe daquela história devia ser um pouco pervertido.

Quanto tempo aquilo tudo ia levar? Eu comecei a lembrar aquelas histórias nas quais muitas vezes os animais de grande porte só comem uma vez a cada dois ou três dias e pensei: isso pode se prolongar para sempre. Aquilo realmente me deixava de cabeça quente. Foi quando tive a primeira boa idéia desde que entráramos naquela confusão. Enfrentar tudo. Cutuquei Ben e comecei a gritar aos berros para o Porco:

EI, VENHA AQUI, SEU GORDÃO DESGRAÇADO... LE­VANTE ESSA BUNDA... VENHA... VENHA...

O que você está fazendo? - Ben resmungou.

Estou acordando ele. Vamos enfrentar isso.

Ben pensou um pouco a respeito. Ele não precisou pensar muito.

EI! BALOFÃO! LEVANTA ESSA BUNDA E PEGUE ISSO AQUI! VENHA, VENHA TERMINAR O QUE VOCÊ COMEÇOU!

Gritávamos a plenos pulmões. O Porco grunhiu e se mexeu levemente enquanto dormia.

Tente de novo...

EI! BAFO DE ESGOTO! LEVANTA ESSA BUNDONA GOR­DA! - berrei. Ben começou a rir. Nós dois sentamos em nossas correntes, rindo.

É HORA DO LANCHE! - Ben gritou.

VENHA AQUI! ENTÃO VOCÊ QUER MISTURAR TODOS NÓS, NÃO É? TÁ LEGAL, VOCÊ PEDIU POR ISSO!

Pausa.

Ele não parece estar reagindo - Ben sussurrou.

Tente de novo.

SUA MÃE ERA UMA PORCA!

NÃO, SUA MÃE ERA UMA PESSOA!

EI! EI! CARA DE HAMBÚRGUER!

DEDOS DE SALSICHA!

CARA DE BUNDA!

Quase explodimos de tanto rir. Estávamos histéricos! Mas dá para acreditar que ele não acordou? Ele apenas grunhiu, vi­rou para o lado e continuou sonhando.

Mesmo que outra coisa venha nos pegar, ele não vai acor­dar nunca - Ben disse.

Até hoje não sei por que, mas esse pensamento era assusta­dor. Quer dizer, não se conseguiria nada pior que o Porco, ele era simplesmente tenebroso, mas pensar que outra meia-coisa pudesse chegar e nos devorar em nossas correntes enquanto ele dormia era pior que tudo. Talvez fosse apenas mais um fator para nos preocuparmos. Isso significava que não estávamos a salvo. Isso significava que, no fim das contas, não sabíamos o que aconteceria em seguida.

Quando o medo está em você, você o enxerga em todo lugar ao seu redor. Sob a luz do luar, nós víamos coisas imaginárias movendo-se nas sombras. Cada estalido e cada farfalhar na vege­tação nos faziam quase chorar de medo. Como se fizesse algum sentido ter medo das sombras quando se está dormindo ao lado do Porco! Eu seria capaz de implorar a ele para que acordasse e nos devorasse.

Acontece que não precisávamos ter nos preocupado. Quan­do finalmente as amoreiras mais próximas se remexeram de verda­de com um leve farfalhar, a face riscada e voraz de uma coisa-mulher despontou e o Porco acordou no mesmo instante. Quando ela se aproximou para fuçar o jantar do Porco, de repente o sono pesa­do dele se tornou leve. Quase começamos a gritar quando, aos urros, ele disparou correndo como um búfalo. Olhei de relance o focinho dessa outra coisa se abaixando antes que ela se virasse e fugisse. Foi engraçado, parecia um filhote depois de alguém gri­tar com ele. Pude ver o preto-e-branco de suas costas peludas, uma fileira de dentes alvos e compridos e uma calça de veludo que desaparecia sob a luz do luar.

O Porco retornou e se mostrava extremamente desconcerta­do. Ele deu tapinhas em mim e em Ben para se certificar de que estávamos inteiros. Logo cruzou os braços debaixo do queixo gordo e voltou a dormir. Tentamos impedi-lo, gritando por cinco minutos ou mais, mas isso só irritou nossas gargantas. Acho que ele até gostou dos nossos berros. Significava que o jantar ainda estava fresco.

E, depois, não havia nada a pensar senão em Hadrian.

Mais tarde, naquela mesma noite, choveu. A chuva que caía si­lenciosa na escuridão. Lambemos a água que escorria pelos nos­sos rostos e depois disso ficou muito frio. Nós tremíamos em nossas correntes. Cantamos algumas canções, as velhas canções londrinas da época que Londres fazia parte do mundo e que nos foram ensinadas por Vai quando éramos pequenos. Algumas de­las tinham antigos nomes de outras cidades lá de fora - Glasgow, Tipperary, Norwich. Vai havia prometido que um dia nos mos­traria essas cidades, mas isso estava tão distante quanto nós está­vamos naquele momento.

Acabáramos de nos secar da chuva quando caiu o orvalho, e logo depois o Porco acordou.

Começava a clarear. O Porco ficou de quatro, apoiou-se com as mãos e se esticou. Ele caminhou ao redor para nos observar e grunhiu, como se dissesse alguma coisa. Pestanejou. Aproximou-se e nos cheirou. Eu já esperava por uma mordida, mas acho que ele ainda estava de barriga cheia. Ele então virou de costas, se retirou enquanto o sol subia e escondeu-se nas sombras do estacionamento destruído, onde fez sua toca. Antes de se recolher, soltou um grito para que todos soubessem que ele ainda estava por ali.

Mais tarde, comecei a cochilar. Eu não achei que seria possí­vel dormir, mas quanto mais se fica acordado, mais intenso é o sono. O Porco me acordou duas vezes com gritos e rugidos para intrusos. Na terceira vez ouvi um gorgolejo e, em seguida, o ruído molhado de suas mandíbulas. Dei uma olhada para o lado, mas rapidamente desviei os olhos. Lá se ia o meu irmão Ben.

Era a minha terceira noite na terra dos meio-homens.

Meus braços e minhas pernas já estavam dormentes de tanto ficar na mesma posição. Eu não podia nem sequer senti-los. O frio não era nada. O pior é que eu estava com sede, com tanta sede! Minha língua tinha inchado, parecia um sapo quente e seco sentado na minha boca. Quando o orvalho caiu, suguei meu colarinho para beber um pouco da umidade. Mesmo assim, fiquei feliz quando o sol raiou. Não é estranho? Os ossos dos meus irmãos jaziam em pilhas ensangüentadas sobre as pedras retorcidas do calçamento. O mesmo destino esperava por mim. Tudo estava perdido. A desolação e a solidão dentro de mim me faziam acre­ditar que eu jamais me recuperaria, mesmo que sobrevivesse. Mesmo assim, eu me alegrei quando o sol raiou em cima do muro, caindo em minha pele e me aquecendo. Inclinei a cabeça para trás, na direção da luz da manhã, e senti o calor no meu corpo. Apesar de tudo, achei tudo isso lindo.

Depois, começou a dor do calor: queimaduras nos tornoze­los e nos pulsos, língua inchada, pernas dormentes. Quando o sol esquentou, o Porco acordou, bufando, peidando e grunhindo. Ele fez um meneio com as sobrancelhas e emitiu um ruído. Talvez dizendo "Até mais!". E se retirou para se esconder debai­xo do cascalho do estacionamento destruído.

 

Ainda lembro de Val falando de como o pai dele, acometido por fortes dores nos últimos dias de vida, caminhava no Hyde Park para inspecionar as plantações e se deleitar com o aroma da terra, do vento e da chuva. Eu sabia que de nada adiantava prantear pelos meus irmãos, ou por Signy e por Val. A despeito de minha vontade, eles estavam perdidos. Eu não queria que os ossos deles me torturassem. Por isso, ainda que soe doentio, eu preferi pensar no mundo como realmente era, como sempre seria. Um mundo sem mim. O sol cálido, o vento que alvoroçava as grandes exten­sões verdejantes de ervas e os pássaros que sobrevoavam as flores e a relva. Acho que aquelas coisinhas bonitinhas eram pintassilgos.

Mas era difícil, minha mente vagueava. Passei a ver silhuetas: carros de batalha nas nuvens, homens que avançavam pela relva, rostos e formas que se ocultavam e se esquivavam em meio às muralhas quebradas e que deslizavam nas partes destruídas dos telhados.

Tente não virar o rosto.

...Lá em cima os pontinhos minúsculos dos pássaros. O quê?

Siggy?

Eu estava sonhando.

... Um amigo.

Quem está aí? - resmunguei. Minha voz estava tão seca quanto um tijolo quente.

Foi sua irmã quem me mandou. - O meu coração pulou, mas ele não iria escapar de meu peito, ainda não.

Estou com sede! - supliquei.

Quieto! - A voz silvou. Houve uma pausa. - Agüente fir­me. E fique quieto. Se aquele porquinho grande voltar, eu vou embora, tudo bem? - Ouvi não-sei-quem me repreendendo.

Tudo bem.

Algo rumorejou. Eu estava com tanta sede, mas me esforcei para não virar o rosto para ver o que era. Era um milagre que alguém ou alguma coisa tivesse se aproximado tanto sem que o Porco escutasse. Veio à minha mente um pensamento ao qual eu já tinha desistido de recorrer. Será que eu podia escapar? Será que era mesmo possível?

De repente, o rosto de uma criança veio de encontro ao meu. Era uma menina.

Mmm... mmm... - ela balbuciou. Sua boca estava cheia. Ela abaixou a cabeça na minha direção e de sua boca caiu um filete de água em cima de mim. Eu senti o filete escorrendo no meu rosto e suguei. Água! E, então, tive um outro pensamento. Meus pensamentos eram como seixos límpidos que caíam em água parada. E era o seguinte: aquela que dá a Vida.

Abri a boca, deixei a água escoar para dentro e engoli.

A garotinha - ela não devia ter mais de dez ou onze anos de idade - aproximou-se umas duas ou três vezes de mim com a boca cheia de água. Lá pela terceira vez comecei a me dar conta de algumas coisas estranhas nela. A penugem da pele era mais grossa do que o normal, por exemplo. Ligeiramente mais com­prida e mais grossa, e podia até ser chamada de pêlo. E depois notei algo que quase me fez dar um pulo. O rosto da menina estava bem na frente do meu e me observava de perto sem ne­nhum constrangimento, como se eu fosse um dentista próximo do seu rosto.

Seus olhos eram rasgados, como os olhos de um gato.

Hein! - exclamei surpreso. Ela saltou e deixou a água es­correr sobre mim. Quase ao mesmo tempo ouvi um horrível rugido agudo. O Porco tinha me escutado. Ele veio correndo pelas amoreiras como um rinoceronte. O olhar da menina desviou para o lado antes de sair em disparada. Eu estava certo de que o Porco a mataria.

Ela desaparecia nas amoreiras ao mesmo tempo que deslizava, mas, no meu delírio, era como se ela estivesse realmente enco­lhendo.

O Porco chegou agitado e gritou na minha cara. Pensei que estava tudo acabado, que dessa vez ele me mastigaria. Mas acho que ele não gostava de matar sua comida antes de estar pronto para devorá-la. Ele rugiu e berrou para mim. Ele tinha o pior há­lito que já senti. Era como se ele me culpasse por tudo aquilo. Ele sondou então os arredores e tombou irritado no chão, vol­tando a dormir no estacionamento.

Fiquei deitado, à espera. O fim do dia estava próximo, hora do jantar para o Porco. Eu achava que àquela altura a garota já estava morta, mas, de qualquer forma, o mais provável é que ela não passasse de um sonho. E mais provável ainda é que alguma outra coisa se aproximasse para me devorar. Vamos encarar os fatos, que diabo levaria uma garota de onze anos até aquele lugar? E mesmo que ela chegasse lá, ela não tinha como sobreviver.

Eu acabara de me convencer de que ela era uma alucinação quando me dei conta de que o meu queixo ainda estava molhado de água.

Olhei ao redor, mas só vi um pequeno gato rajado sentado na alvenaria acima de mim, lambendo as patas. Isso me fez sor­rir. É impressionante como os gatos conseguem chegar a todos os cantos, até mesmo naquele lugar! E, de algum modo, o fato de ser um gatinho doméstico rajado me fez rir. Fiquei me perguntando se ele estava esperando pelas sobras.

Meia hora depois, a menina voltou.

Fique quieto. Não quero ser perseguida de novo, isso me assusta - ela sussurrou perto do meu ouvido.

Desculpe.

Ela sentou e me observou imóvel, por cerca de meio minuto. Aos poucos, seus olhos foram se fechando. Pensei: que diabo é isso?

O que você vai fazer? - perguntei.

Oh... - Isso soou como se ela tivesse esquecido. Eu estava completamente tomado pela estranheza de tudo aquilo: a garotinha no meio de um lugar maligno, sua pele peluda, seus olhos bizarros. Signy a teria mesmo mandado?

Como é que está minha irmã? - indaguei em tom de súplica.

Ela vai viver, se você viver - a menina respondeu. Eu podia até ter soltado um gemido alto. Quer dizer, eu estava numa tre­menda encrenca e ela me dizia que eu seria culpado se Signy morresse.

A menina pegou um potinho enfurnado em algum lugar de suas roupas. Abriu a tampa, mergulhou os dedos e besuntou um pouco do conteúdo no meu rosto. Cheirei; lambi. Era mel.

Agora - a menina falou - ouça o que você vai fazer.

Ela pôs os braços em torno do meu pescoço e sussurrou no meu ouvido. Isso fez com que eu me contorcesse, ela estava mui­to perto.

Você deve estar brincando! - exclamei, olhando-a quando ela terminou de falar.

Ela deu de ombros.

Veja bem, ele não pode correr muito rápido. É sua única chance. - Ela sorriu, enfiou o dedo no pote de mel e lambeu-o pensativamente.

Me dá um pouco - pedi.

Ficamos sentados ao sol; que dupla estranha, a garotinha e eu. Ela continuou enfiando o dedo no pote e me dando para lamber até que acabou o mel e o pote ficou vazio. Em seguida ela se enroscou, deitou no meu colo e dormiu.

Era muito estranho, mas também era reconfortante tê-la junto a mim. Concluí que ela devia ser alguma espécie de meio-homem. Após um tempo me senti desconfortável e mudei de posi­ção. Ela se esticou, bocejou e se inclinou para me dar um beijo de despedida na bochecha, como qualquer criança. E ela então se preparou para partir.

Entrei em pânico logo ao seu primeiro passo.

Não! Não! - comecei a falar e, no mesmo instante, a terra tremeu. O ar encheu-se de guinchos, rugidos e gritos. A menina soltou um estranho ruído de exclamação. Ela deu um pulo de trinta centímetros no ar e já caiu no chão correndo. Desapareceu na mesma hora. Devia ser mesmo alguma espécie de meio-homem para se mover com tanta rapidez. Nem cheguei a vê-la indo embora. O Porco passou correndo por mim no encalço dela. Ele não tinha chance. Ele chegou numa mureta de tijolos parcialmente de pé e tentou colocá-la abaixo. Parecia descon­tar sua raiva naquele gatinho que eu tinha visto mais cedo e que agora se agarrava na hera em cima da mureta. Depois de um tempo, o gato saltou no chão e disparou correndo. Em um se­gundo, o Porco saiu em sua perseguição, mas ele não era páreo para o gatinho. O Porco era grande e forte, exatamente como a menina havia dito, mas certamente não era feito para correr. Ele passou um longo tempo batendo com os pés, gritando e es­pumando pela boca, atirando-se nos arbustos e mastigando peda­ços de alvenaria, mas o gatinho já estava longe... e acho que a menina também.

Então, ele voltou para dar uma olhada em mim.

O Porco grunhiu alguma coisa que não sei o que era. Talvez esti­vesse me convidando para o jantar. Ele se apoiou sobre a mão gorda e aproximou a outra da minha cara. A mão dele era imun­da e fedia a carne de porco. Ele agarrou o meu pescoço e, tal co­mo a menina havia predito, sentiu o cheiro doce do mel no meu rosto. Ele cheirou e lambeu um pouco do mel que ficara em suas mãos. Grunhiu de prazer. E, depois, se inclinou para lamber o mel do meu rosto.

Eu não tinha acreditado em uma só palavra da menina, mas o fato é que fiz como ela disse. Inclinei-me e, com os dentes, agarrei a ponta gorducha e úmida do focinho do Porco. E mordi. Foi a mordida mais violenta e profunda que já dei.

Logo minha mandíbula latejava e a boca do Porco exalava um jato fétido de ar quente contra o meu rosto enquanto ele ber­rava de dor. Ele puxou o focinho para trás. Segurei firme e con­tinuei mordendo. Ele teve que parar de puxar porque era muito doloroso. E se pôs a gritar e a bater na minha cara e no meu corpo com as mãos, na tentativa de me fazer soltá-lo. A essa altura eu não passava de uma massa disforme, mas pensei comi­go mesmo: quanto mais eu me machucar, mais machucado você vai ficar, colega. Travei minha mandíbula e um sangue quente e salgado desceu pelo meu queixo. Apertei os dentes com força, muita força. Ele teria acabado com tudo se tivesse o bom senso de me estrangular, mas estava em pânico. Tentou puxar nova­mente, mas era muita dor. Por fim, ele me agarrou e me puxou contra o corpo dele, e eu fiquei dependurado no seu nariz como um personagem de desenho animado.

As correntes acertavam o meu peito e os meus braços. Eu sentia as minhas mãos sendo esprimidas e os meus ossos, parti­dos e esmagados, à medida que eram puxados contra as alge­mas de metal. Ele deu um puxão e eu continuei mordendo, agüentei firme. Eu gritava e ele gritava. A agonia era como uma luz ofuscante.

De repente, um estalo. Uma das correntes rodopiou e chicoteou a cara do Porco. Eu o mordi, e segurei firme. O Porco me puxou de novo. Uma outra corrente... e depois a última corrente zuniu e fez o Porco cair para trás com a força liberada por seu puxão. Nós dois rolamos sem parar, com a cabeça sobre os calca­nhares, e, durante o tombo, ergui minha mão quebrada e soltei um murro forte como o diabo no olho dele. O Porco guinchou. E logo me largou e começou a zanzar em círculos de um la­do para outro, uivando e berrando. E eu... eu me levantei e saí correndo.

Bem, eu disse que saí correndo, mas, para ser mais exato, saí capengando. Eu tinha ficado acorrentado durante três dias. E nessa situação ninguém pula do chão e simplesmente sai corren­do. Minhas pernas se contraíam em espasmos, logo desmorona­vam debaixo de mim e eu não conseguia recompô-las. O meu corpo estava coberto de vergões profundos e ensangüentados nas partes onde as correntes tinham sido apertadas. Perdi meta­de da pele na batalha e havia ossos quebrados em minhas mãos. Eu seguia tombando e me levantando. Ricocheteava pelo cami­nho como se fosse alguma coisa presa por tiras elásticas.

Alguns instantes antes, o Porco se dera conta do que estava acontecendo. Ouvindo-o gritar e saltar, logo percebi que eu não ia conseguir. Tudo bem que a menina tenha dito que ele era lento, mas e quanto a mim? Eu me sentia como um frango no espeto.

Cambaleei para a frente, O Porco rugiu no meu encalço...

Ouvi então um guincho. Olhei por cima dos ombros e tive um vislumbre do gatinho rajado em cima da cabeça do Porco, enfiando as garras nos olhos dele. O Porco que corria de quatro a toda velocidade ergueu as mãos para proteger os olhos e en­fiou o focinho ensangüentado na terra. Que animal burro! Isso deve ter doído! Ele logo se levantou, berrando palavrões e olhan­do para todos os lados, sem saber se ia atrás de mim ou do gato que miava para ele do parapeito destroçado de uma janela. Era a minha chance. Encontrei um muro e escalei. Quando ele pulou para me pegar, eu já estava lá no alto, fora de alcance.

Eu tinha conseguido... Eu tinha conseguido! Eu mal podia acreditar que tinha conseguido! Bem, eu e aquele gatinho é que tínhamos conseguido. O Porco estava furioso. Nunca ouvi nada como aquilo. Ele dava cabeçadas no muro para tentar desmoroná-lo; a coisa toda tremia, mas era muito sólida para ele. Então, ele tentou se impulsionar para cima com suas mãos enormes, mas era gordo demais para subir em qualquer coisa mais íngreme que uma mesa de bilhar. Ele ainda tentou fazer o muro em pedaços, mas também não conseguiu. Ele já estava ficando desesperado e rugia frustrado, chorava e esmurrava o chão. Dá pra acreditar que ele até se ajoelhou e implorou para que eu descesse?

- Jantar, por favor... jantar, por favor... O porquinho vai cui­dar de você! - ele implorava. E, antes de desistir, bateu o pé, deu murros, berrou, uivou e implorou durante um bom tempo. Por fim, sentou-se como um cachorro e se pôs a olhar para cima, à minha espera.

Minha provação não havia terminado. Eu tive que esperar lá em cima por mais um dia até ele desistir. Por sorte, o muro esta­va coberto de trepadeiras, e assim pude me arrastar para fora de vista, pois, caso contrário, os pássaros me avistariam. A minha expectativa, do jeito que as coisas estavam, era de que alguma coisa acabaria mesmo escalando o muro e me pegando, mas não aconteceu nada. Fiquei enroscado a noite toda numa cama de folhas e brotos de trepadeira, e pela manhã o Porco não estava mais ali.

 

Bem, esta é a história das minhas primeiras noites na terra dos meio-homens. Eu consegui escapar, mas estava quase morto. Minhas mãos estavam em frangalhos e minha mandíbula se que­brou em uns dez pedaços. Meu rosto inchou até o dobro do tamanho normal e parecia geléia quando era tocado. Depois que desci do muro, zanzei pelas imediações até encontrar uma poça, onde bebi a água mais saborosa que já provei. É provável que fosse a urina do Porco, mas para mim tinha gosto de néctar. De certa forma eu achava que o Porco estava escondido e me pega­ria assim que eu colocasse o pé no chão, mas ele não devia ser muito bom em coisas que requerem esperteza, como, por exem­plo, esperar.

Quer dizer que escapei do Porco, pensei comigo mesmo. E daí? Eu estava preso na terra dos meio-homens sem comida e sem armas.

Depois de algum tempo encontrei água parada e limpa, e fiquei olhando o meu reflexo. Eu nunca tinha visto tanto estrago. Bem, pensei, se eu encontrar um meio-homem, talvez ele pense que eu também sou um deles.

Eu não tinha planos. Que tipo de plano eu podia ter? Encer­rei por aquele dia... e que dia. Azul e brilhante como uma jóia, e com mais perigos do que qualquer um podia imaginar.

 

Signy sabia que cedo ou tarde Conor iria vê-la. Faria isso, se não fosse por outra coisa, para regozijar-se com o sofrimento dela, para mostrar quão estúpida ela fora, estúpida no corpo, no coração e na alma. Ele iria ao encontro dela para matá-la ou estuprá-la. Cer­tamente iria zombar dela. Talvez ele até levasse uma outra mu­lher, aquela que Signy acreditava que ele tinha. A verdadeira mulher, o verdadeiro amor dele.

Quando ele chegou, no entanto, acabou sendo bem pior do que ela imaginava. Ele a procurou para pedir perdão. Conor queria que ela o amasse outra vez.

A princípio, ela achou que se tratava de mais um ato de guerra, conquistá-la como um troféu. Os braços de Conor em torno de Signy e os dedos dele no rosto dela indicavam uma violência que estava por vir. Mas ele estava sendo autêntico. Estava pálido como um fantasma, chocado com o que fizera.

Ele a olhou com lágrimas nos olhos, suplicando:

Eu quero te consolar! Eu te amo. Eu te amo! - Havia certe­za na voz dele. Ele não duvidou disso nem por um segundo.

Signy puxou as pernas aleijadas contra o próprio corpo, cho­rando.

Como você pôde fingir tanto? Que espécie de homem é você?

Conor umedeceu os lábios e se levantou.

Um conquistador - ele respondeu. E era verdade.

Ele caminhou até a janela e olhou para fora. Ele sabia que estava sendo observado por ela. Ele era o centro do universo de Signy.

Não tive escolha. Você acha que eu quis isso?

Você destruiu tudo.

Conor abriu os braços.

Londres está unificada. O meu plano é seguir adiante e começar uma nova guerra com os meio-homens. E depois... os campos e vilarejos mais distantes. As cidades. A própria Ragnor! Uma nação unificada, exatamente como seu pai sonhou.

Signy mordeu a própria mão até sair sangue. Ela não queria gastar mais lágrimas com Conor, mas não conseguia impedi-las de sair. Ela estava enlouquecendo, mas ao mesmo tempo a criaturinha anã que vivia no fundo de sua mente observava cada movimento, na tentativa de achar um meio de se beneficiar com tudo aquilo.

Conor se virou e olhou-a deitada, extremamente indefesa. Ela não podia estar dessa maneira! Era uma mulher radiante, livre, feliz e acessível. Suas pernas eram tão lindas!

Conor começou a perambular pelo pequeno quarto. Ele es­tava furioso. Foi um erro fazer aquilo com as pernas de Signy, ela estava arruinada. Embora Conor tenha dado as ordens pessoal­mente, ele achava que havia sido traído pelas pessoas que rece­beram suas ordens.

Eu não preciso fingir - ele disse. - Eu te amo.

Signy mostrou o rosto para ele, a confusão de sangue, lágri­mas e saliva em sua boca. Ela pensava: O que farei agora?

Os deuses quiseram assim. Nós fomos feitos para ficar jun­tos. Olha... - Conor tentava explicar.

Cheio de orgulho, ele tirou da cintura a faca que Odin deixa­ra no elevador. A lâmina de sílex ainda tinha em alguns pontos os traços da pedra onde fora fincada. Era preciso retirar frag­mento por fragmento.

Odin me escolheu - ele afirmou com orgulho. - E ele esco­lheu você para estar ao meu lado.

Signy sacudiu a cabeça.

A faca do meu irmão - ela replicou, e Conor encheu-se de raiva.

A minha faca! Foi feita para mim. Eu era o convidado de honra - ele falou sibilante, e a odiou por um instante, mas vê-la deitada com as bandagens ensangüentadas nos joelhos o deixava sem fôlego. Ele a amava... ele a amava tanto!

Conor girou o dedo pelo quarto estreito da torre.

Isso está errado. Eu nunca quis que você fosse tratada dessa maneira. Vou consertar tudo. Cada detalhe.

E minhas pernas? - ela perguntou.

Fizeram isso sem que eu soubesse! - Conor insistiu. Era mentira, mas ele próprio acreditava nisso. Uma hora depois a mu­lher que dera as ordens estaria pendurada pelos calcanhares, com o rosto enegrecido.

E meu pai? E meus irmãos?

Era uma guerra!

... Era um pacto.

Conor engoliu em seco. Ela não tinha o direito de falar com ele desse jeito!

Uma guerra - ele insistiu com mais calma. - Você está pre­cisando de alguma coisa, qualquer coisa? - ele perguntou dispos­to a mostrar generosidade, depois de ter tirado tudo dela.

Minha gata, Cherry. Diga para eles não machucarem minha gata. - Signy o olhou.

Onde ela está?

Ela fugiu. Talvez volte.

Vou dar as ordens. A gata vai voltar para você sã e salva. - Ele sorriu, assentiu com a cabeça e se aproximou para tentar tocar nos cabelos de Signy, mas ela rosnou de medo.

Conor não insistiu.

Tenho tempo - ele disse. - Te vejo amanhã.

Não quero ver você nunca mais. - Ela virou o rosto para a parede.

Conor estremeceu com o ódio na voz de Signy. Nenhum outro homem nutriria a esperança de que aquela garota pudesse amá-lo, mas a ganância de Conor não tinha limites. Ele havia trans­formado amor em ódio. Por que então não transformá-lo outra vez em amor com a mesma rapidez de antes?

Agora você só tem a mim, Signy - ele falou. E depois foi embora.

Enquanto descia as escadas, ele pensava que Signy logo en­tenderia sua posição. Política é política. Os dois lados jamais poderiam se entender. Tinha que acontecer. Mas isso não queria dizer que ele não a amava. Ele a desejava desesperadamente. O que mais poderia ser o amor senão isso?

 

Estava chovendo. Signy ouviu a chuva batendo nas paredes finas de metal de sua prisão aérea o dia inteiro. A luz se dissipava em cima de uma cidade lavada. Agora, ao fim do dia, o sol brilhava no céu limpo. Ela sentou na cadeira de rodas e se pôs a observar os telhados molhados radiantemente iluminados pelos raios oblí­quos do sol. Daquele ponto avistava-se metade da cidade.

Havia passado quatro dias desde que Cherry fora embora.

Um guarda se aproximou às suas costas, trazendo uma pe­quena tigela. Torrada quente, sopa de tomate, morangos, açúcar e creme, tudo do que ela gostava. Ele dispôs a refeição em cima da mesa e começou a abanar o aroma da comida na direção de Signy.

Hummmm, que delícia! Presente de Conor. Cheira bem, não é?

Signy continuou sem dizer nada. O guarda a fitava, inexpres­sivo.

Quando eles enfiarem aquele tubo pela sua garganta, você vai se arrepender de ter agido assim.

Signy sequer virou o rosto.

Você me estuprou - ela disse.

Eu não! - o guarda retrucou constrangido.

Conor vai acreditar que sim.

O guarda estremeceu. Ele sabia que Signy tinha razão.

Mas fiz o melhor que pude. Eu sigo ordens, mas não tenho sido grosso. - Ele esperou um pouco e depois apontou para a comida. - Por favor, você precisa comer.

Quatro dias, Signy pensou. A terra dos meio-homens era um lugar perigoso para um gato... ou uma menininha. Certamente aquilo tudo fora um sonho ruim que sua própria mente produ­ziu para persuadi-la a continuar viva. Signy achou que estava enlouquecendo, mas queria ter certeza disso antes de perder a esperança.

Por favor, coma. Eu imploro - insistia o guarda. - Se você adoecer, vou ter que falar com os médicos e eles vão enfiar aque­le tubo na sua garganta, e...

Se você falar com os médicos, vou dizer que você me es­tuprou.

O guarda estava realmente acuado entre dois demônios.

Coma, por favor - ele implorou de novo.

Signy se virou e olhou para a comida. Ela precisava viver mais para saber se seus irmãos estavam a salvo.

Não estou com fome - ela disse.

Mulherzinha imbecil - o guarda resmungou consigo mes­mo, mas não deixou que ela o ouvisse. Ele se virou e dirigiu-se à porta. Ao abri-la, ouviu um leve "Shhhiii!" e uma gatinha passou correndo por baixo de suas pernas.

Opa... - O guarda observou-a, enquanto ela passava cor­rendo. E Signy virou de lado quando o pequeno animal pulou no seu colo.

Cherry! Cherry!

Antes de sair, o guarda a olhou por um instante. Talvez agora aquela criança miserável comesse alguma coisa. Se isso não acon­tecesse logo, ele seria punido de uma forma ou de outra.

Ele bateu a porta e trancou-a. Signy acariciou a cabeça da gata e coçou suas orelhas.

O que houve? Diga, ah, diga! - ela implorava. Mas a gati­nha se limitava a fazer carinhos com a cabeça e ronronar. Signy levou a mão até as costas de Cherry, fazendo-a virar de barriga para cima, e fez cócegas na sua cauda.

Cherry, por favor, diga. Por favor, querida!

A gata ronronou alto.

Devia ser mesmo apenas um gato, um gato comum. A voz de Signy se reduziu a um leve sussurro.

Será que imaginei tudo...?

Não diga isso!

E de repente a criança estava à frente dela.

Veja... veja! - Cherry gritou. Ela mantinha o rosto na frente de Signy. - Não diga que não sou real!

Diga logo o que aconteceu - Signy implorava.

Então faz carinho em mim.

Signy começou a acariciar a cabeça de Cherry, que se enco­lheu e ronronou. A menina estava exausta. Ela já estava quase dormindo.

Salvei um deles. Rrrrrrr...

Qual deles... oh, Cherry, qual deles escapou?

... O mais novo, Siggy.

Siggy! Oh, Cherry! E onde ele está? O que aconteceu com ele?

O Porco o pegou... hummmmmm...

O Porco! Mas você disse...

Um outro. Diferente. Um Porco bom. Eu...

Oh, Cherry! Cherry... Cherry?

Enquanto Signy a observava, a menina começava a bruxulear, com pêlo no rosto, fora do rosto, no corpo e fora do corpo. Ao mesmo tempo que dormia, Cherry voltava ao seu formato original.

Cherry! Por favor...!

Um gato rajado dormia um sono profundo no colo de Signy. Ela virou-se e olhou pela janela. Dois mortos! Mas um estava vivo. E era Siggy. Já era alguma coisa. Cherry fizera um bom trabalho, mas o que estaria acontecendo com Siggy agora? Ele estava nas mãos dos meio-homens. Nada garantia que ela volta­ria a vê-lo.

Signy ficou sentada durante um longo tempo, com a mão pousa­da na cabeça de Cherry. Ela observou o sol se pôr atrás dos telha­dos e se perguntou: Para quê? Seu pai tinha morrido, todos os sonhos e ambições de sua família estavam extintos. Ela era uma aleijada, presa por aquelas paredes. Lembrou o dia seguinte ao seu casamento, na torre do Galaxy, quando o homem morto res­suscitou. Ele a tinha abraçado como se a elegesse para propósi­tos especiais. Ele tinha dado ao seu irmão uma faca que era uma das maravilhas do mundo.

Odin havia escolhido Siggy e ela somente para isso? Ou tudo fazia parte de algum plano ainda por terminar?

Nem a gata nem a menina se mexeram por mais ou menos meia hora. O futuro já estava congelado dentro dela por muitos dias, mas pelo menos ela ainda se permitia nutrir esperança. A esperança de que teria a oportunidade de se vingar.

Signy virou o rosto e viu a tigela de comida deixada à sua frente. Morangos. Ela pegou um deles, cheirou e mordiscou. Ao ser esmagado pelos seus dentes, o morango maduro explodiu doce e lentamente em toda a sua boca. O sabor formigava em cada fissura de sua boca, nos lados, debaixo da língua e até entre os dentes. Signy se maravilhou. Olhou para o morango. Era de um vermelho perfeito e muito intenso, as pequenas e suaves se­mentes afundavam na polpa macia. A sua mordida deixava uma pálida e úmida marca na fruta. Já fazia quatro dias que ela não comia nada e era grande a sua surpresa em como uma comida podia ser tão deliciosa.

Demoradamente, saboreando cada mordida, Signy terminou de comer o resto do morango. Em seguida começou a comer ou­tro. Comeu todos, exceto o mais perfeito, que foi deixado na pequena vasilha azul porque ela queria olhá-lo.

Do lado de fora da janela, Londres estendia-se à sua frente. Um milhão de vidas sob os telhados molhados e brilhantes, cada uma delas fazendo parte de um império. No limite do Estado, Signy viu um plátano que amarelava nas pontas, algumas árvores de um verde reluzente e o marrom-avermelhado dos tijolos e das pedras. As cores pareciam se derramar no mundo ao seu redor.

No fim das contas, ela viveria. Ela viveria e esperaria. En­quanto estivesse viva, ela teria uma chance de se vingar.

 

À medida que o sol se punha na terra dos meio-homens, a vege­tação balançava e trepidava, com rangidos e fungadas emanando das passagens subterrâneas e das tocas. Durante o dia os grandes monstros da terra de ninguém perambulavam e rugiam ao longo do caminho; o Porco, os Pássaros, o Texugo e Amanda, a mulher-serpente. De noite, porém, feras menores, mais fracas e mais velhas farejavam o ar e saíam à procura de comida.

No meio de uma grande desordem de entulhos, abriu-se uma porta numa das poucas paredes que restavam de pé. Uma enor­me e potente mandíbula ossuda e quase descarnada investigava o terreno. Em seguida, um nariz gordo e arrebitado debaixo de dois grandes olhos cor de âmbar, com um rasgo em vez de um círculo no meio deles, totalmente deslocado naquele rosto de porco. Era o crepúsculo e Melanie saía para encontrar o que o dia deixara para trás.

Os meio-homens mais bem-sucedidos viviam em locais lon­gínquos, distantes da Muralha, onde era possível levar uma es­pécie de vida sem a interferência de Conor. Naqueles locais eles construíam vilarejos e cidades, além de negociar com ou­tras localidades longínquas. Ultimamente, à medida que o po­der de Ragnor se reduzia, os meio-homens podiam se locomover livremente pelo país; para o norte, até Birmingham, e nos luga­res do sul, logo acima da costa e mais além. Tudo isso estava para mudar. Nos últimos anos, Conor vinha fazendo as forças policiais avançarem até as profundezas da terra dos meio-ho­mens. Agora, com Vai fora do caminho e com toda a Londres no seu dispor, ele planejava retomar a guerra contra os meio-homens com força total.

Isso, no entanto, ainda estava por vir. Por enquanto, os meio- homens viviam da mesma maneira que em décadas atrás. O mes­mo ocorria com a população de Londres; quanto mais perto da Muralha, mais pobre era; e no coração da terra de ninguém se alojava a verdadeira escória da sociedade dos meio-homens. Eram aqueles com quem os próprios meio-homens não queriam con­viver, os banidos para as fronteiras longínquas de tudo - mons­tros, loucos, aqueles cuja mistura genética era tão grotesca que os fazia se partir em dois, inclusive quando respiravam. Mas Melanie não era um desses. Ela tinha outras razões para viver mais perto da humanidade. O que a mantinha naquele lugar era a lealdade.

Porco, mulher, um pouco de gato, essa era Melanie. Era a mais pobre entre os pobres, tão suja quanto um cachorro, tão furti­va quanto um corvo, tão curiosa quanto um rato, tão reservada quanto um besouro, tão bondosa quanto uma mãe e tão esper­ta quanto é possível imaginar. Certa vez ela se tornou esposa do próprio Porco, e depois passou a ser espancada por ele. No fim, ele ficou totalmente louco, o que era comum entre os meio-homens não muito bem formados. Melanie o acompanhou dos guetos onde viviam até a parte mais sombria da terra de ninguém. E, mesmo depois de se separar dele, ela achava que tinha o dever de vigiá-lo, de verificar se ele não se machucara.

Na maioria das vezes, ela levava surras por conta disso. Ao longo dos anos, o Porco ficou tão forte que não havia nada que ela pudesse fazer para detê-lo. Mas ela permanecia próxima dele, ajudando-o quando ele adoecia e tentando evitar que ele causas­se muito estrago. Ela não era forte nem perigosa, mas geralmen­te os monstros da terra de ninguém a deixavam em paz, talvez porque temessem o Porco, talvez porque ela fosse conhecida por ser um tipo de bruxa. Ela era capaz de curar e ajudar, e talvez - os monstros meio-homens eram conhecidos por sua superstição - soubesse amaldiçoar tão bem quanto sabia curar e ajudar.

Naturalmente, por muitos quilômetros de distância todos fi­caram sabendo que os irmãos Volson tinham sido deixados para o Porco. Entre os líderes dos meio-homens existiam aqueles que desejavam selar a paz com os humanos já fazia tempo, especial­mente com os Volson. Conor não era o inimigo comum entre ambos? O ódio e o preconceito ancestrais dos humanos pelos meio-homens eram arraigados demais para Val superá-los, de modo que ele preferiu selar a paz com Conor. Ainda assim, esses meio-homens poderiam ter tentado salvar os filhos de Val, mas por que razão? Do outro lado da Muralha, Conor destruía cautelosa e sistematicamente tudo o que pertencera a Val - prédios, povo, administração, tudo. Milhares de execuções já estavam em andamento. Conor era radical. Os meio-homens sabiam muito bem disso. Agora havia muito pouco a se ganhar com o resgate dos Volson. E, por conta disso, os irmãos foram deixados à mer­cê da própria sorte. Eles não tinham mais nada a oferecer.

Os monstros da terra de ninguém sabiam muito pouco da política que se escondia por trás disso tudo, mas sabiam muito bem que a comida tinha sido aprisionada para eles. E descobriram isso bem cedo, quando um dos irmãos escapou. O Porco fez tan­to estardalhaço com isso que era quase impossível evitar o fato. Segundo os boatos, Siggy Volson fora ajudado por alguém que era ao mesmo tempo humano e meio-homem, um metamorfosista. Apesar de toda a tecnologia dos técnicos de Ragnor, eles não eram capazes de mudar uma forma depois de feita. Obvia­mente, os deuses estavam envolvidos nisso.

Talvez isso tenha desmotivado um bom número de meio-homens, mas não os da terra de ninguém. Eles estavam famintos. Os jantares eram escassos naquela região. Naquela noite, Siggy era a melhor opção do cardápio.

Melanie farejava o ar noturno para sentir quem estava distan­te e quem estava por perto. Ela praguejou e resmungou consigo mesma e mais uma vez desapareceu nos entulhos. Depois, empur­rando um velho carrinho de supermercado que usava para coletar seus achados, ela saiu e seguiu furtivamente noite adentro.

Toda noite Melanie saía em rondas de recolhimento de lixo. Seus olhos eram felinos e ela preferia trabalhar à noite. Geral­mente ela seguia até os guetos dos meio-homens que se agrupa­vam em torno dos subúrbios em ruínas entre a terra de ninguém e o restante do território. Ela podia ser encontrada a qualquer hora, fuçando entre os restos e os amontoados de lixo em bus­ca de migalhas para comer, vender ou transformar em alguma coisa.

Ocasionalmente, quando achava alguma coisa de valor para vender, Melanie cruzava a Muralha e fazia contato com amigos e conhecidos do outro lado, mas raramente essas coisas valiam o trabalho que tinha no Lado de Dentro. As áreas ricas eram proi­bidas para todos que tivessem algum traço de meio-homem e, nos guetos humanos de Londres, as pessoas eram ainda mais pobres do que nos guetos dos meio-homens.

Empurrar o carrinho pela terra de ninguém era um trabalho pe­sado, já que o solo estava muito arrasado, mas se ela encontrasse o humano valeria a pena. Caso estivesse muito ferido, ele daria um bom jantar. Se pudesse ser curado, abria-se a possibilidade de vendê-lo de volta para o que restara do exército Volson. Na pior das hipóteses, havia um bom mercado de escravos humanos en­tre os meio-homens de melhor situação. E um escravo Volson seria um bom tópico nas conversas dos comerciantes gordos que queriam se exibir.

Apesar da visão noturna e do faro apurado que Melanie ti­nha, a possibilidade de ser a primeira a encontrar o garoto era muito remota. Siggy podia ter se arrastado para qualquer lugar, e qualquer uma da meia dúzia de feras famintas podia tê-lo en­contrado. Mas a sorte dela - e a sorte de Siggy - estavam fortes naquela noite. Em uma hora, Melanie acabou farejando um odor de sangue.

Ela foi guiada pelo faro até onde estava Siggy, deitado em campo aberto, desmaiado em cima de um entulho próximo de onde ele fora preso.

A primeira vista, ele não pareceu valer grande coisa, estava muito destruído. Era improvável que ele sobrevivesse. Melanie o cutucou com seu pé de porco e o empurrou com a pata. A boca de Siggy abriu uma brecha, uma confusão de tocos de dentes quebrados, inchada e ensangüentada. Um fio fino de vapor foi exalado.

A velha mulher rosnou com um sussurro. De fato, aquilo não valia quase nada. Mas... Ora, enfim. Ela estendeu um velho tapete viscoso do carrinho no chão e cuidadosamente levantou Siggy com os braços. Antes de colocá-lo no tapete e enrolá-lo, ela o remexeu suavemente para ver se os membros dele estavam muito quebrados. Dobrou as bordas do tapete para impedir que alguma parte do corpo do garoto ficasse à mostra, recolheu o pacote inteiro e pôs no carrinho. Depois, foi para casa.

Exatamente como ela esperava, o velho Porco ouviu quando ela passava com o carrinho e saiu correndo aos gritos da vegeta­ção até onde ela estava. Melanie olhou o tapete com ansiedade. O barulho era alto o bastante para acordar os mortos, imagine então o que faria com os gravemente feridos. Seguramente, o pobre garoto começaria a gritar se soubesse quem estava por perto. Mas o tapete continuou imóvel.

O Porco se aproximou dela aos gritos e se deteve repentina­mente quando viu quem era. Começou a bater com as patas no chão enquanto coçava a barba, e a todo instante olhava o tapete com curiosidade. Melanie notou que o nariz dele estava sem um pedaço, fora mordido. Ela tremeu quando viu isso.

Porco! Porco! Melanie! - disse ela, caso ele tivesse esquecido. Então, ela ficou de quatro. Eles se puseram a andar em círculos, com o nariz cheirando polidamente o traseiro do outro.

Qui cê pegô? Qui cê pegô? - o Porco resmungou.

Pedaço de tapete velho.

Cheira bom. Bom.

Larga.

Mim perdeu jantá. Foi embora.

Não come tapete. Né?

ÓINC!

- É.

ÓINC! - O Porco avançava na direção do tapete, e Melanie teve que se interpor entre ele e o carrinho.

Pobre nariz - ela disse, tentando mudar de assunto. - Pobre nariz!

Pobre nariz! - o Porco concordou choroso. - Homem fez isso. Mau! - Ele continuava sondando o tapete e começou a en­carar Melanie. - Hummm - rosnou com avidez.

Meu! - guinchou Melanie. - Sempre qué robá. Sempre qué incomodá. Tapete meu!

Humm. Cheira bom, bom - explicou o Porco. - Qui cê pegô aí?

Melanie nem se prestou ao trabalho de responder. Ela se pôs novamente de pé e segurou o carrinho. O Porco também se le­vantou e, todo cambaleante, encarou-a. Ele não era muito bom nesse negócio de se levantar e só fazia isso para impressionar. Melanie se afastou, empurrando o carrinho aos solavancos ao longo do asfalto quebrado. O Porco observava a sua retirada, sussur­rando guinchos furiosos. Mas não tentou impedi-la.

Melanie levou uma hora para conduzi-lo até a casa e, no fim da viagem, estava exausta. Era como se tivessem passado cem anos desde a última vez que ela teve uma refeição decente. Ela pôs um funil na boca do humano, entornou um pouco de água, cobriu-o com farrapos secos e foi deitar. Pela manhã, ao se levantar, ela se surpreendeu ao encontrá-lo ainda vivo.

Durante os primeiros dias, ela o alimentou com chás amar­gos à base de ervas curativas misturadas com um pouco do precio­so mel. Lavou os ferimentos dele, preparou cataplasmas para acabar com o inchaço e tratou da febre. A princípio, o pobre garoto delirava, com imprecações sobre gente que ela nunca ou­vira falar. O estado dele era muito instável, mas, depois de uma semana, a febre baixou e ele passou a acordar por breves perío­dos. Obviamente, as feridas ainda podiam infeccionar a qualquer momento e isso acabaria com tudo. Mas o vento soprava a fa­vor de Siggy.

Havia, no entanto, grandes problemas a serem resolvidos antes que ele pudesse ser vendido. O rosto e as mãos dele esta­vam destroçados. Melanie precisava reconstruir as duas partes, sobretudo as mãos. A política não lhe era desconhecida, os seus contatos com pessoas de fora a mantinham informada a respeito dos acontecimentos e, a essa altura, já ouvira que a derrota das tropas de Val fora estrondosa e que suas terras tinham sido completamente subjugadas. Agora, ninguém do outro lado da Muralha estaria disposto a pagar pelo retorno de Siggy. Era im­provável que ainda restasse qualquer um deles. Siggy só teria valor como escravo para os meio-homens ricos, e a única coisa que um escravo precisa é de boas mãos. Elas tinham que ser con­sertadas, caso contrário Siggy não valeria nada além do seu peso em carne. E, depois de quatro dias de fome na viga, de ter visto os irmãos sendo devorados e de uma semana com febre, isso não era muita coisa.

 

A escuridão era tão profunda que eu podia senti-la. Era como uma substância que cobria a minha pele. Tudo era tão úmido e morno quanto sangue e fedia a mijo e porco. Ao abrir a boca, a impressão que tive é que ela fosse cair. A minha cara estava bas­tante inchada. Parecia completar a escuridão. Mas acima de tudo havia a dor. Cada osso, cada músculo, cada partícula de carne e cada corpúsculo de sangue era dor. Tentei mexer a boca, mas doía muito. Ouvi alguém gritando... deve ter sido eu mesmo. Então, desmaiei.

Uma outra pessoa estava ali comigo. Eu podia sentir o seu calor na minha pele em meio à escuridão. O negrume havia se trans­formado em vermelho opaco. Tentei enxergar no escuro, mas nada ganhava forma. Tentei abrir um pouco mais os olhos, mas eles estavam completamente inchados. E me dei conta de que enxer­gava luz através dos meus olhos fechados.

Alguma coisa muito grande se movia ao meu lado no meio da escuridão.

Fiz um grande esforço, abri uma pequena fresta nos olhos e vi que o Porco retornara. Gritei e tentei me arrastar para longe daquele lugar, mas ele me agarrou pela cabeça. Segurou com for­ça a minha cara destroçada e começou a apertá-la e achatá-la. E, naquele dia, acabei morrendo pela enésima vez.

 

Bem, eu fiz a oinc cara deli i endireitei tudo, i fiz as mãos, qui dedos qui eli tinha, i pensei: Nada mal, porque dava pra ver mesmo com tudim inchado. Groinc. Oh, minha pobre coisinha, eu podia comer eli ali mesmo. Qui bagunça! Menos os dedins dus pés deli, tudo arrumado im fila, que nem bebês. Fez eu pensá nos meus porquinhos, qui o Porcão afugentou anos atrás.

Sabe, esse oinc humano, eli num vai valer um tustão furado cum essa cara. Mas até gente feia tem que cumê, né?

 

Pequena Tammy contou uma piada

Quando pontes ele tava a construir,

Ele riu tanto que caiu e ficou rasgada

A roupa de trabalho que acabara de cerzir.

 

Vô ti dizê uma oinc coisa. Já tô sentindo pena deli. Meu coração grandão, pra qui servi, é uma maldição na vida minha. Groinc!

Eu num pude evitá, coloquei eli no colo meu i imbalei eli qui nem um bebê. E divinha só, típico humano, eli começa a gritá! Ahhhhhhhh, aahhhhhhh, eli grita. Pensa qui sou o velho Porquinho, eu acho, mas eli tava tão indefeso deitado lá, eu não pude evitá di amá eli.

Onde estou? - eli fala.

Oh, homenzinho - eu falo i suspiro. Por que eu sinto pena di tudo vivo qui eu pego? Num faz sentido.

Quem... é... você? - eli fala, ou coisa assim.

Arr, você fica quieto, groinc. Dorme um poco, querido. Melanie vai ajeitar tudo, cê vai ver.

Melanie - eli fala. - Porco. Melanie Porco.

Arr, num é uma gracinha? Num precisa di minha ajuda? Bem, agora eli vai tê qui melhorar, acho qui num tenho coragem pra comer eli, agora eli tá tentando falar. Então eu acendi vela preli, preli podê olhar se eli quiser, e cantei preli música humana de ninar preli si sentir im casa...

Homenzinho, cê teve um dia cheio...

 

E cê cridita qui quando eu tirei as bandagens deli, tinha funcio­nado? Quando eu vi como tavam, eu pensei, eu vô tê qui fazê tudo di novo, mas não. Queixo e mãos, cumendo e invelhecendo. Ele num tem muito dente, mas come bastante. Só num fica gor­do. Groinc. Jesus! Qui feio! Ficou com a cara qui nem bunda di cachorro.

 

Peter disse: Meu bem, dispenso,

Essa cara é que nem um traseiro imenso.

 

I as mão deli, oinc-oinc! Eli tinha uma mão qui nem cumbuca di osso. Só qui sabi como agarrá o jantá. I agora eli tá ali, vivinho. E penso: i agora?

Bem, num sei o qui oinc-fazer. Eli num vai durar muito por aqui! Só tenho dois quartos, vê, i eli fica no sofá velho, no porão, deitado lá, comendo i comendo. Onde vô conseguir comida suficienti preli? Então o qui posso fazê é mi alimentá e tê um po­ço di sobra pru pobri Porquinho louco. I, então, claro, você num pode impedir seu cheiro di sair pela porta di noite, oinc-oinc, quando o vapor fedido levanta. Vô te dizer isso... os humano, elis fede. Cheiro humano, pior di todos. Faz eu enjoar, faz eu tampar nariz quando eu limpo eli. Deixá um humano no ar puro, eu oinc-devia, mas claro qui Porquinho pega o chero. Groinc. Cobrinha pega o chero. O Texugo George tava cherando em volta da minha casa otro dia.

Tem chero saindo daí, Mels! - eli fala todo sorrindo e olhan­do pra porta, qui nem si a minha casa fosse a despensa deli.

Tira focinho da minha oinc-sala, ou vô contá di você, vô contar pro Porquinho, eu vô! - eu falo.

Num precisa, Mels, num precisa... - eli fala todo se afas­tando, qui nem se eli num quisesse encrenca. - Um pouco pro Porquinho, né? - eli fala.

Cê tira oinc-nariz seu da minha oinc-sala! - eu falo. Mas eli vai ir lá otra vez, quando eu está fora. I Porquinho vai tumbém. Olha só, olha só o qui eli fez na porta minha otro dia, quase co­meu a armação. Quando voltei tava tudo mastigado. - Qui cê tá fazendo, Porquinho? - eu falo.

Onde tá meu jantá? - eli fala. Oinc, oinc.

Eu só falo:

 

A Alice esfomeada tinha bebê, a Alice esfomeada amava eli,

A Alice esfomeada fez torta e dentro coloco eli!

 

Essi verso é sobre a velha Alice qui morava aqui perto e qui nunca conseguia conservá crianças dela por causa da fome den­tro dela. Groinc! Ela deve tê comido uma sala cheia de criança, porque ouviram isso lá longe e os homem-cachorro vieram e mastigaram ela. Ó, pobre Alice, ela nunca faria isso se ela tinha cumida suficiente!

Então aqui tá eli - muito feio pra sê vendido, mãos qui nem alicati. E a comida que eli qué! Dô um poco de pão velho.

Que merda é essa? Num posso comê essa merda! - eli fala. Malditos reis i rainhas, pensa que mundo é feito di torta di queijo!

Agora, vê só si eu tinha alguma noção, eu oinc comia eli e abria porta minha i dava uma festa. Groinc. Mas num posso fa­zer isso. Cê acaba conhecendo elis, vê só. Cê acaba gostando delis. E assim qui é... oinc-oinc-oinc, eu nunca ia podê comê qualquer coisa qui eu quisé. Eu tinha um tio, eli dizia pra num comê nada qui tem sentimento, mas num sou tão radical. Num si pode ser muito radical nessas regiões! Num tem oinc-como. Mas Siggy, meu homizinho, meu humano... a coisa é qui eli pensa muito pro próprio bem deli, e muito pro meu, e eu num podia mesmo mastigar eli, não agora. Agora eu cantei preli dormir e fiz eli ficar bom de novo.

Esse humano, meu Siggy, tenho que dizê, eu sou uma boba, porque eli é um homizinho di merda. Eli é igual a um monti delis, eli pensa que eli é o número um. Groinc. Oinc.

Onde está o meu jantá? - eli fala.

Aqui; i onde tá o meu? - eu falo. E eli olha pra mim como se eu num sei o que é fome, como se eli é o único cara faminto no mundo todo.

Eééé, cê se empanturrou de novo, Mels, né? - eli fala.

Num seja um macaco imbecil, cara! - eu falo. Ó, mas eli sabe das coisas. Eli vê tudo qui acontece lá do buraquinho deli, é o qui posso pensá depois di ouvi eli falando!

Aqui é a terra di ninguém! O que eli qué, eli qué que eu corte perna minha pra fazer salsicha preli? Eu faz o que posso!

Assim, Melanie, eu não vou melhorar, assim não vou consegui levantá e roubá coisas procê, Mels - eli fala.

Cê tá vendo? Cheio di promessas, eli é. Acho que cê pode me chamar de babaca por acreditá nas promessas, mas eu pensa sem­pre; bem, se vou oinc-sair do caminho preli, eli vai oink-sair do caminho preu, quando eli puder. Groinc. E assim qui gira mun­do... quando funciona, é assim. Groinc. Eli fala que quando eli melhorar eli vai ir na cidade furtá, roubá e fazer a gente ficar que nem pequenos lordes. Eu fala:

 

Sra. Iria i Sra. Podia

Encontraram Sra. Poderia i Sra. Devia.

Por um Caminho Folhudo elas todas seguiram

E nunca mais elas se viram.

 

É isso aí, ainda, por qui não? Eli era um chefão de gangue, eli sabe como, eu acho. Tenho uma arminha largada im algum lu­gar, tenho ela muitos anos, outro dia eu mostrei ela preli.

Eu posso ver que ela num dispara, Mels, mas num importa. Posso matar elis di medo! - eli sorri i fala.

Si cê visse a sua cara, colega, cê saberia. Essa minha sorte! Muito feio pra ser vendido, muito faminto pra trabalhá — eu pensa.

Bem, eu só precisa fazer eli melhorar preli poder sair e rou­bar um pouco. Acho que essi é grande chance minha. Si o Por­quinho num pegá eli primeiro. Groinc. Si George ou Amanda num pegá eli primeiro. Groinc.

Melanie tinha muitos lugares secretos - escoamentos vazios e tubulações subterrâneas, casas desabadas e escritórios destruídos que eram usados para esconder coisas encontradas em suas rondas, até que ela pudesse pegá-las mais tarde. O lugar que ela escolheu para Siggy era uma velha escola, a três ou quatro quilô­metros da Muralha. Um prédio de dois andares, agora todo destruído, com vigas de concreto, painéis azuis e muitas janelas. Aqui e ali havia pedaços de ferro e de concreto, ainda inteiros, mas ao longo dos anos todos os painéis tinham sido removidos e usados como abrigos ou escorregadores para crianças meio-ho­mens, entre outras coisas. O piso de ladrilho continuava intacto, todo lamacento por conta da chuva que desaguava pelo teto destruído. Tudo estava coberto de entulho e se via uma pilha de vidro estilhaçado.

A única parte da escola que continuava quase toda intacta também era o melhor esconderijo; a sala da velha caldeira. Esta­va bloqueada, longe da vista, escondida no subterrâneo. E o melhor é que a porta era feita de aço e continuava inteira. Melanie tinha um cadeado para manter Siggy do lado de dentro, e todas as outras pessoas, do lado de fora, mas quem é que procuraria um chefão de gangue ferido numa velha escola? A escola tam­bém estava isolada. Ainda havia casas de pé, todas inabitadas, ao redor de pátios cobertos pela vegetação. Num bloco de pavimentos desabados vivia uma tribo de gatos que talvez tivessem uma pitada de humano, era o mais próximo daquilo que se po­dia chamar de vizinhos.

Um mês após ter achado Siggy, a velha mulher o transferiu de lugar. Era uma noite escura com brisas e, se tudo corresse bem, o forte odor do homem seria soprado para longe de lá. Ela o persuadiu e ao mesmo tempo o intimidou a subir as esca­das, e saiu pelo porão fedorento e entrou no velho carrinho de supermercado. Coberto por uma pilha de trapos, Siggy deitou com a cabeça abaixada e se esforçou para não gemer enquanto era sacudido e conduzido aos solavancos pelo solo duro. Suas mãos ainda estavam envoltas em grandes rolos de bandagem, e ele não fazia idéia do quão horrível estava a sua aparência, mas, a essa altura, o maior risco para a sua vida não eram os ferimentos. Era a fome.

Conor já tinha desviado a atenção para a terra dos meio-homens. O comércio estava falido, o transporte, sem esperanças. Era outono e naqueles últimos meses já deveria ter montes de trigo e de frutas prontos para a colheita. Mas os silos de comida haviam sido destruídos e os campos, incendiados. Os massacres eram comuns. A intenção de Conor era cometer genocídio com os meio-homens, antes de se voltar para o resto do mundo. Eram tempos difíceis e ficaria ainda pior. Deixar Siggy sozinho era a única alternativa de Melanie para se alimentar. Com a guerra em andamento, não havia chance de vendê-lo e Melanie se apegara demais a ele para devorá-lo, mas nem por um segundo ela consi­derou a idéia de abandonar o seu paciente.

Siggy, no entanto, ainda impregnado dos velhos mitos e his­tórias sobre os meio-homens, estava convencido de que ela o engordava para devorá-lo. Metade do tempo em que estava acor­dado ele gastava com o planejamento da fuga, e a outra metade com promessas a Melanie de grandes recompensas assim que melhorasse. Ele não fazia idéia da realidade vivida por Melanie. Ele nunca teve outra escolha que não fosse viver em palácios e, por isso, acreditava que Melanie vivia na imundície porque pre­feria assim. Siggy achava que ela falava de comida o tempo todo porque era gananciosa. Nunca lhe ocorreu que ela se encontrava na mesma situação que ele. Melanie pensava em comida porque estava faminta. Era simples assim.

Foi dessa forma que a jornada seguiu, com Melanie arfando sem fôlego enquanto empurrava o carrinho, fazendo Siggy ge­mer de dor. Ele a instigava com promessas de tortas, cremes, queijos, leite, pratos de peixes, pães, bolos, montanhas de comi­da e camas bem macias, riquezas que ela mal podia imaginar.

Por fim, eles chegaram ao novo local secreto. Melanie derrubou Siggy do carrinho e se pôs a observá-lo, enquanto ele rastejava com a barriga escada abaixo até a sala da caldeira. Ela sabia que todas as histórias de prosperidade que ele contava não passavam de fantasias, mas, mesmo assim, aquelas promessas a fascinavam. Ora, nunca se sabe. Ela o havia resgatado, não é mesmo? Quase morreu de fome para alimentá-lo. Ela merecia uma recompensa. Até então ela só conhecera a rotina da pobreza. E desconhecia a sensação de possuir muito, mas adoraria ter a chance de tentar.

A velha mulher-porco seguiu o seu paciente pelos degraus de concreto e sentou no chão ao lado dele, arfando como um cachor­ro. Melanie estava velha, cansada e doente. Debaixo dos seus grossos trapos ela era tão magra quanto um palito. A jornada do gueto onde vivia até o novo local secreto empurrando o pesado lardo do chefão de gangue mimado a deixara exaurida.

Por algum tempo, o único som lá de baixo foi a respiração arrastada de ambos. Siggy também havia ficado exausto, mas, afo­ra isso, estava furioso, um claro indício de que ele recuperava as forças. Se não tivesse sido amarrado na cama, no porão de Melanie, ele já estaria bem mais forte. A despeito do que Siggy imaginava, dos dois, quem mais comia era ele. Melanie continuava como um fardo, jogada no chão, arfando sem fôlego, enquanto Siggy já se recuperava e procurava comida no bolso largo dela. E acabou en­contrando um pedaço de pão velho, duro como madeira.

Não posso viver assim! - Siggy exclamou, enquanto roía as cascas. - E aquela sopa? Você costumava me dar uma sopa gros­sa. Que fim levou?

A velha mulher olhou fixamente para Siggy. Ela não sabia mais o que fazer com ele. Quem compraria um escravo humano com o reinicio da guerra? E olhe só para ele, pobrezinho! Ele ainda precisava de muita atenção!

Logo qui ocê melhorá, ocê vai embora i pra cuidar sozinho da sua vida... - ela falou.

Dessa maneira? Você acha que vou melhorar assim? Você vai ter que fazer melhor que isso, querida.

Siggy sentou-se com o pão e começou a roê-lo, tentando amaciá-lo com saliva. Em poucos minutos Melanie se levantou e subiu as escadas na direção do carrinho para buscar um pedaço de corda. Ela queria amarrá-lo novamente, mas Siggy a repeliu. Ele não seria tratado como um cachorro por uma porca velha!

Lá fora, uma palidez acinzentada se revelava através da porta da sala da caldeira: o alvorecer. Melanie suspirou e caminhou até o topo da escada. Siggy bufava de raiva e medo. Ele a obser­vava se arrastando lentamente pela escada.

Vê se me traz uma comida decente da próxima vez, se é que você quer ser retribuída direito. Ouviu? — gritou para ela.

Melanie concordou com um aceno arrastado e desapareceu na escuridão. Ele podia ouvi-la a distância, remexendo na porta enquanto trancava o cadeado. Siggy se arrastou até a pilha de trapos e almofadas que ela havia deixado como cama e caiu dire­to no sono.

Ele acordou algumas horas mais tarde e continuou deitado, ten­tando lembrar onde estava. Sentia dores em cada fibra do corpo. Ergueu os braços. Estavam livres. Sentou-se e logo tentou se le­vantar. Arriscou alguns passos. A sala da caldeira era escura e fria, mas pelo menos ele estava livre para circular.

Fachos e salpicos de luz pontilhavam a escuridão. Lá estava a porta, demarcada por linhas de luz pálida ao redor de sua arma­ção. Lá fora, o sol devia estar brilhando. Siggy conseguia enxergar um pequeno raio de sol que entrava pela fechadura e transfor­mava a poeira em partículas douradas. Com muita dor, ele se arrastou alguns degraus para cima e tentou sair, mas a porta esta­va firmemente trancada.

Ele avistou outros fachos de luz em cima de uma das laterais e se arrastou de quatro como um grande besouro pálido, raste­jando nessa direção. Era uma luminosidade que passava através de uma pequena porta de metal pesado. Depois de tatear, ele encontrou uma maçaneta e agarrou-a rapidamente. Inclinou-se sobre ela, mas seu peso não causou qualquer efeito.

Ainda tateando naquele chão de entulhos, Siggy acabou en­contrando um tijolo. Era difícil segurá-lo com as mãos cheias de bandagens, mas ele o ergueu e golpeou a maçaneta, que fez ape­nas um ligeiro movimento. Depois de dez batidas, a manivela cedeu. Siggy puxou a porta com força, que se abriu e deixou a luz transbordar.

A princípio, como havia muita claridade, ele teve que desviar o rosto. Era a primeira vez em um mês que ele via a luz do dia. Assim que seus olhos se acostumaram, ele pôs a cabeça para den­tro, sondou o ambiente e desviou o olhar para cima. Sentiu um odor de fuligem úmida.

Siggy estava com a cabeça dentro de um velho incinerador. Em certa época, muito tempo atrás, a escola queimava lixo na­quele lugar para ajudar a esquentar a água. Alguns tijolos esta­vam caídos atrás da fornalha, revelando a abertura de uma alta chaminé construída com tijolos. A luz descia pela chaminé. Siggy deitou de costas no chão e olhou para cima, na direção de um círculo de céu aberto.

Era uma saída. A chaminé estava quebrada na parte de cima. E era larga o bastante para um homem passar por ali, mas não tão larga a ponto de impedi-lo de se apoiar com as costas e os braços nas laterais. Se Siggy tivesse com suas forças, seguramente ele seria capaz de escalá-la.

Se ele tivesse com suas forças...

Siggy permaneceu deitado por um longo tempo, olhando o céu azul lá de cima e respirando o ar fresco misturado a um aro­ma de fuligem. Agora, ele estava livre para se exercitar e recupe­rar as forças. A velha Melanie podia estar fazendo qualquer coisa, quem saberia? Mas, com sorte, a velha porca começaria a trazer a comida que lhe recomporia as forças.

Existia então uma chance de fuga. Ao contrário de Signy, Siggy jamais pensou na possibilidade de suicídio. Ele sabia que Signy estava viva. E precisava descobrir o que havia acontecido com ela.

Siggy se arrastou de volta até a sala da caldeira. Melanie lhe deixara pão e algumas garrafas de água, e ele pôde comer e beber antes de continuar explorando a sua prisão. Ele então circundou as paredes e começou a se arrastar com curiosidade pelo chão, batendo e esfregando no chão o lixo que encontrava. Depois de várias pausas para descanso, achou o que procurava.

Uma grande quantidade de lixo fora jogada ou caíra pelas escadas ao longo dos anos. Siggy não conseguia enxergar com aquela luminosidade e não conseguia sentir nada com as mãos nas bandagens, de modo que precisava esfregar o lixo no chão para tentar ouvir o que era. Toda vez que ouvia um chacoalhar de vidro, ele o recolhia e o levava até a luz da chaminé para dar uma boa olhada. Ele teve que fazer isso umas nove ou dez vezes antes de encontrar o que desejava: um pedaço de espelho.

Estava empoeirado, rachado e manchado, mas era o bastan­te. Siggy deitou com a barriga sobre as velhas cinzas, esfregou e bateu no pedaço de espelho, até que, por fim, o espelho brilhou tanto quanto na época em que era novo. Em seguida, com suas grandes e gordas mãos de algodão, ele o segurou desajeitada­mente para ter um vislumbre do próprio rosto.

Siggy continuou deitado por mais de um minuto, girando e olhando o espelho, e, depois, o largou e se arrastou de volta. Andou de quatro até a pilha de trapos que Melanie lhe deixara como cama e chorou até pegar no sono.

 

Quando acordei pela segunda vez no interior da velha escola, encarei a situação. Eu tinha perdido o meu rosto, e daí? Eu tam­bém tinha perdido todas as outras coisas, isso era o menor dos problemas. Então, pensei: isso é o fim da minha vida sexual, e depois me arrastei duas vezes para cima e para baixo pela escada.

Eram somente dez degraus, mas tornaram-se uma agonia. Em seguida, acabei deitado, arfando. Comparado com o que eu vinha fazendo ultimamente, subir e descer escadas era como uma maldita maratona. E, com isso, a fome voltou mais forte que nunca.

Fiquei pensando: Signy, Signy. Eu precisava descobrir o que havia acontecido com Signy.

Era isso que me mantinha firme. Eu podia ter seguido por outra via quando refleti sobre o que acontecera - meu pai, meus irmãos. Para falar a verdade, se Conor estivesse lá embaixo comi­go, eu seria capaz de qualquer coisa... qualquer coisa. Mas de que adiantaria? Isso traria Val de volta? Isso me traria Ben com suas batidas de pés e mãos, ou Hadrian com suas maquinações de um novo plano para a conquista de Londres? Você pode me chamar de fraco se quiser, mas a vingança nunca ajudou ninguém.

E também pensei em outras coisas naquelas escuras e longas horas. Pensei na faca que Odin me dera, a faca que agora estava pendurada na cintura de Conor. Por que Odin me dera um pre­sente como esse, apenas para deixar que tudo isso acontecesse? Isto me fez pensar que talvez o jogo ainda não tivesse terminado.

Enquanto isso... comida. Antes, eu já estava bastante famin­to, e, encarando os fatos, ficar prostrado no chão não abre o apetite de ninguém. Mas eu já circulava pelo meu cativeiro e me sentia voraz. Nos momentos em que não me exercitava, eu dei­tava nos trapos e sonhava com comida. Os banquetes que meu pai costumava dar! Aquele camelo assado! As montanhas de bata­tas, as banheiras de cremes! Era enervante ter enfraquecido a ponto de depender da velha Melanie. Se ao menos ainda me res­tassem algumas forças, eu teria escapado e estaria me virando.

Eu tinha mesmo que me limitar a ficar ansiosamente à espera da próxima visita de Melanie. Eu lhe falava constantemente so­bre o quanto de dinheiro já tinha acumulado, e é claro que aquela velha porca gananciosa ouvia com avidez, ela ouvia tudo com avidez. E isso aí, eu sabia que ela me queria de bandeja, servido com batatas fritas como acompanhamento. É claro que a ganân­cia e a estupidez dela a impediam de se juntar com os outros monstros lá de fora. Ela precisava ter a mim com exclusividade. A minha vantagem era essa. Ela já não sabia se me comia ou se acreditava em mim. É claro que eu não tinha nem um mísero centavo, mas ela não sabia disso. Agora ela achava que devia me trazer mais daquela maravilhosa sopa espessa e rica que me tra­zia no início.

Acontece que ela, você não vai acreditar, era realmente estú­pida em sua avareza! Ao retornar, ela não trouxe nada além da­quele velho pão dormido. Um pão imundo, nojento, que parecia ter sido chutado pelo chão durante uma semana. Eu não podia acreditar naquilo.

Não há mais nada - ela me disse, emburrada.

Você está mentindo, sua porca velha - resmunguei. Eu te­ria atirado a sua própria artimanha na cara dela, se não estivesse tão esfomeado. - E a sopa? Você costumava me dar uma boa sopa. O que houve? O trajeto até onde o meu dinheiro está es­condido é muito longo. Eu preciso de boa comida pra me fortalecer e buscá-lo. Você quer que eu faça isso, não é, Melanie?

Ela me fitou com um ar estúpido e mordeu o lábio, como uma garotinha emburrada.

Não consegui nada... - ela choramingou.

Mentirosa! Olha só para você! Você está gorda. Você está gorda e eu estou magro. Vê se traz a sopa, Melanie, ouviu? A sopa que você costumava trazer. Está certo?

Ela baixou os olhos com tristeza. Eu estava furioso! Será que ela não tinha nem um pingo de bom senso?

Só preciso de algumas refeições decentes para me fortale­cer e sair para nos trazer um pouco de ouro, e você é imbecil demais para arranjar comida para mim - falei furiosamente.

Vou tentar.

Isso era como uma óbvia bola de neve. Ela estava muito gor­da. Andava quase como um pato. Mas era tão estúpida e avarenta que esperava que eu pudesse melhorar e trazer o bacon para casa enquanto ela quase me matava de fome. Estúpida!

No dia seguinte, quando ela retornou, eu estava preparado para comer qualquer coisa. Já tinha me arrastado três ou quatro vezes degraus acima, mas estava claro que eu precisava de algu­ma comida se quisesse recuperar minhas forças. Eu sonhava com a sopa que ela me traria: uma sopa grossa, quente, com bons pedaços de carne gordurosa e grandes nacos de verduras e ceva­da. Cheguei até a pensar com afeto na pobre Melanie. Naquele instante ela devia estar cambaleando pelo caminho de cascalhos com a sopa alojada em seus braços, protegendo com zelo a sua preciosa panela dos exércitos dos meio-homens.

E quando ela chegou, adivinhe só. Isso mesmo, estava com a sopa! Eu bem que sabia que aquela velha piranha mentirosa ti­nha sopa. Mas fiquei um pouco desapontado com o tamaninho da panela. Nos meus devaneios, ela carregava nas costas um gran­de caldeirão fervente, com pedaços enormes de carne e verduras que quase pulavam para fora. Em vez disso, ela me entregou uma panelinha de barro.

Está fria - reclamei. - É muito pequena!

A velha porca era tão estúpida! Só precisava cuidar de mim com decência para que houvesse fartura. Será que ela não conse­guia entender isso?

Melanie não disse nada. Observou atentamente, enquanto eu levantava a tampa.

A panela estava quase cheia de um líquido ralo e escuro. Le­vantei-a e olhei lá dentro. Alguns pedaços preciosos estavam boiando. Olhei com avidez para Melanie. Levei a tigela até a boca e suguei um bom bocado que flutuava na superfície. Carne, eu pen­sei! Mas não passava de um pouco de papa em cima de verdura cozida. Suguei então um gole do líquido. Era uma sopa rala, azeda e rançosa. Era nojenta até mesmo para um homem faminto.

Sua piranha estúpida - resmunguei. E, para mostrar o que eu achava daquela sopa vagabunda, joguei a tigela sobre os ombros.

Melanie não disse uma única palavra. Acompanhou com os olhos a tigela pelo ar e depois saiu cambaleando com rapidez até o lugar em que a tigela tinha se espatifado contra a parede. Le­vou um dos cacos da louça aos lábios e sugou os resquícios de sopa que ainda restavam. Catou alguns poucos pedacinhos que conseguiu encontrar na sujeira e os comeu. Ficou de joelhos, abai­xou a borda da saia até a poça do líquido que escoava rapida­mente pelas fendas e o esfregou como uma dona-de-casa maluca que faz a limpeza. Em seguida, levou o tecido molhado aos lábios e sorveu o que ainda sobrava de aproveitável.

Tudo ficou extremamente silencioso. Ouvia-se a minha respira­ção em breves arfadas furiosas. Ouvia-se o silvo de Melanie en­quanto ela sugava a borda da saia.

O que você andou comendo? - perguntei.

Por enquanto, não há muita coisa - ela respondeu.

E aquela sopa grossa?

- Já acabou, garoto, já acabou. Eu estoco coisas. Acabou tudo, garoto. Fiz o que pude.

Até então, eu ainda não tinha notado, eu nunca a vira comer. Eu me aproximei e segurei seu braço. Debaixo daquelas grossas camadas de trapos enrolados em várias voltas, ela era muito magra, extremamente esquálida. Toda a gordura dela era feita de pano, exatamente como fazem os pobres do mundo para afas­tar o frio que sentem com tanta intensidade.

E finalmente comecei a pensar... finalmente eu começava a pensar! A maneira com que ela descia os degraus do porão e sen­tava, arfando por uns dez minutos antes mesmo de poder falar. Será que ela sempre tinha sido assim? A expressão contraída do seu rosto. Ela nunca havia reclamado, nunca disse coisa alguma para mim. Então, pensei: que tipo de avareza é essa que sempre se coloca em segundo plano? Eu a sacudi pelo braço. Não havia nada nela.

Sua velha tola. - E caí em prantos.

 

Em uma clareira, em uma floresta, em uma torre, em uma cadei­ra de rodas, uma garota estava sentada e acorrentada enquanto olhava pela janela. Ela tinha quinze anos de idade e seu coração estava congelado, tão duro quanto os vegetais em solo gelado.

Lá fora, um vento frio espirrava gelo nas janelas e escurecia as folhas, mas por trás da vidraça dupla estava confortável e quen­te. Uma batida baixa de discoteca pulsava ao fundo, música de tempos remotos. O ar-condicionado zumbia e a mobília estava arrumada em cima do tapete. A prisão de Signy reconquistara sua antiga opulência. Depois de ter matado tudo o que ela conhe­cia e amava, Conor cortejava novamente sua jovem esposa.

Uma outra garota, mais ou menos um ano mais jovem que Signy, ajoelhava-se diante da cadeira de rodas e chorava. Cherry estava envelhecendo no ritmo felino, a sua puberdade era rápi­da. Alguns meses mais e ela seria mais velha que sua dona.

Ele está morto - disse Signy com frieza, como se não se importasse com a outra criança.

Não! Eu o salvei. Eu vi a velha mulher-porco... já te falei! - Cherry protestou. Ela se desesperava com sua amada dona.

Você já teria escutado alguma coisa, ou mesmo Conor. Já faz meses. - Signy balançou a cabeça.

Odin deu a faca para ele!

Agora ela é de Conor.

Você precisa dar um tempo para que ele se recupere. Eu o vi escapar!

Então, onde ele está?

Vou encontrá-lo, você vai ver. A velha mulher-porco se mudou para outro lugar. Ela está escondendo ele, mas vou encontrá-la de novo. Não vou decepcionar você não, não vou! E repito, qualquer homem vale uma fortuna por aquelas bandas, eles dão bons escravos, aprendem rápido. Os meio-homens não matam os homens assim simplesmente. O bom senso deles é maior que isso.

Ele está morto. E eu também.

Ele está escondido! Os meio-homens estão se retirando para as terras livres. Conor está os dizimando aos milhares! Seu irmão não pode simplesmente se levantar e sair passeando por aí. Ele tem que se recuperar, tem que ficar bom, os ferimentos dele pre­cisam sarar...

Cherry se calou. Cada vez que Signy abria a boca, a cabeça de Cherry se movia abruptamente. Ela estava apavorada com a possibilidade de sua dona cumprir a ameaça e se matar.

Você pode me manter viva para sempre com essa história se eu permitir. - Signy soltou um leve suspiro.

Como é que ficariam as coisas se você se matasse e ele ainda estivesse vivo, hein? - Signy balançou a cabeça e seus olhos encheram-se de lágrimas. - Ele não gostaria de te ver assim. - Ela esfregou o braço na perna de Signy, como se essa perna fosse um gato. - Conor quer você de volta.

Ele é louco!

Sim, sim, louco! Mas ama você.

Amor - Signy replicou. De fato, Conor a amava. Mas, por quê? Ele tinha alguma coisa a ganhar com isso? Talvez para ele isso significasse a vitória definitiva sobre o seu velho inimigo; fazer a filha de Val se apaixonar por ele depois de tudo que ele fizera.

O que ele sabe sobre o amor? - ela continuou pensativamente.

Cherry instalou-se aos pés de sua dona. Um bruxuleio de pêlos surgiu no seu rosto.

Durma com Conor e você vai poder cortar a garganta dele. Use-o. Finja que o perdoou e espere o momento certo para se vingar.

Não posso, Cherry. Não tenho essa força. Eu só quero morrer. - Signy deixou as lágrimas que sempre estavam nos seus olhos escorrerem.

A cabeça de Cherry inclinou-se abruptamente para trás.

Não diga isso - ela miou.

Não tenho a força necessária - Signy sussurrou. - Só em me manter viva eu já gasto todas as minhas forças. Não tenho como lutar com ele, Cherry. Ele me destruiu.

Tudo o que você precisa fazer é viver - suplicou Cherry.

Encontre Siggy para mim, Cherry, e viverei para sempre, se for preciso. Se você não encontrá-lo, eu juro que estarei morta na primavera e, se precisar, eu prendo a respiração para fazer isso. - Signy balançou a cabeça.

De repente, Cherry começou a chorar, agarrada nas pernas aleijadas de Signy.

Mas eu te amo, eu te amo, eu te amo tanto... - Cherry agarrou-a com firmeza e chorou com amargura.

Signy olhou-a com frieza.

Encontre Siggy para mim e você vai poder ficar comigo para sempre. - Um ligeiro sorriso fatigado instalou-se no rosto de Signy. Ela se curvou para tocar em Cherry no instante em que ela se transformava em gato. Os dedos de Signy afagaram os pêlos e ela sentiu um tremor de excitação enquanto o pequeno animal esfregava a cabeça em seus dedos. Cherry era cheia de vida, mas, para Signy, o seu próprio toque já estava morto.

Cherry se remexeu, virou-se e disparou para fora do quarto. Logo depois um passarinho marrom levantou vôo do peitoril da janela com um leve farfalhar de asas e rumou para o norte, na direção dos guetos da terra dos meio-homens, na direção do centro comercial, na direção da terra de ninguém, rumo a qualquer lugar onde Cherry pudesse prosseguir com sua busca pelo irmão perdido.

As suas costas, Signy mirava as mãos, sentindo a enorme pro­porção da escuridão instalada dentro dela. Cada manhã era um vazio disforme que parecia se estender para sempre - um negror eterno. Ela já teria posto um fim nisso há muito tempo se não fosse pela pequena e arrastada esperança de que o seu irmão gêmeo, Siggy, pudesse estar vivo. Cherry era a sua única chance de encontrá-lo.

- Agora não falta muito - Signy prometeu a si mesma. Ela aguardava ansiosamente pelo dia em que poderia se livrar de tudo aquilo.

Quando os antigos deuses retornaram ao novo mundo, eles trou­xeram coisas consigo. Rumores: mais uma vez havia gigantes nas terras congeladas do norte, não havia...? Talvez fosse verdade. Naqueles dias, nem todos os monstros eram produzidos. Trolls, anões, diabretes e até mesmo dragões... como se já não existis­sem monstros suficientes na terra governada por Conor.

E o que esses deuses queriam? O homem com chapéu de aba larga e um único olho fora visto mais de uma vez, geralmente no auge da batalha. Certamente era um deus, ou algo semelhante. Mas que deus? Também existiam outros deuses, figuras que apare­ciam nos campos arados, nas margens dos rios e no meio da maquinaria ou dos armamentos. Cada um desses deuses exigia um sacrifício particular.

Entre eles havia um deus ruivo cuja aparição sempre fazia com que as coisas tomassem rumos inesperados. Mesmo que de forma torta. Loki, o trapaceiro, o dissimulado, o enigmático, o metamorfosista.

Uma bruxa havia sido encontrada alguns anos atrás, vivendo no Estado de Conor. Tratava-se claramente de uma bruxa, mes­mo ela sendo jovem e bela. Segundo os rumores, eles a encurra­laram e a bruxa se transformou em pássaro e tentou voar por uma janela, mas a janela estava fechada e ela foi pega. De qualquer maneira, ela seria declarada culpada. A bruxa tinha pupilas em forma de talhos, uma linha de pêlos que descia por sua espi­nha e uma cauda. Na verdade, para qualquer um do lado de dentro da Muralha que tivesse sangue de meio-homem, era me­lhor esquecer o Estado. Impreterivelmente, este ser seria decla­rado culpado.

Ela foi julgada, condenada e executada na fogueira poucos dias depois. Disseram que seus gritos lembravam os uivos de um gato. Ela lutou, implorou e fez promessas, mas, quando percebeu que suas artes não seriam capazes de salvá-la, gritou através do fogo palavras sobre uma determinada casa em uma determinada estrada, onde sua prole poderia ser encontrada no recanto de um muro destruído.

Foram até lá e encontraram dois garotinhos, malhados, com garras retráteis. Ambos foram capturados e destruídos. Ninguém notou um filhotinho de gato rajado, de olhos verdes e bigodes brancos, que estava escondido num canto e tremia de tão jovem que era.

Cherry tinha apenas uma vaga idéia do que lhe havia acon­tecido a partir do momento em que seus irmãos foram levados embora até o momento em que se viu amparada pelo povo-cachorro na terra dos meio-homens. Ela se lembrava apenas de que quando estava muito, muito faminta, um homem de cabelos ruivos e flamejantes abriu a boca e engoliu-a inteira. Lembrava que um tempo depois fora vomitada aos pés de um perplexo grupo de homens-cachorros, um dos quais a entregou mais tarde para Signy.

Ela chegou a ver o homem ruivo em outras ocasiões. Uma vez havia sido em sonho, embora soubesse que ele era real. De uma bolsa de couro a tiracolo, ele puxou três figuras.

- Para você, filha. Lembre-se. - E uma a uma ele entregou as figuras a ela: um pássaro, uma noz e uma menina.

A busca de Cherry levou-a para todos os lugares onde uma criança, um gato ou um passarinho marrom conseguiam enxer­gar; das torres do centro de Londres, agora ocupadas pelas tro­pas de Conor, até as torres grandiosas das terras livres, na nova cidade de Ragnor. Acontece que a metamorfosista não esperava encontrar Siggy em qualquer um desses recantos. Ele não pode­ria chegar tão longe com seus ferimentos. Se ele tivesse chegado até os governantes mais prósperos dos meio-homens, certamen­te Cherry teria ouvido alguma coisa a respeito. Eles sabiam dela. Como é que eles poderiam esquecer do dia que Loki deu um gatinho de presente a um deles? Não. O mais provável é que ele ainda estivesse escondido com a velha mulher-porco que Cherry viu ao seu lado na terra de ninguém. A questão era então onde? Talvez a mulher-porco ainda estivesse na terra de ninguém ou nos guetos dos meio-homens, assim como poderia ter atravessa­do a Muralha e o levado aos guetos dos humanos. Ou, então, como Signy acreditava, ele já estava morto.

Cherry fazia compras nos mercados duas ou três vezes por semana. Era comum que garotas de catorze anos ou mesmo mais jovens fizessem as compras da família. Era fácil para ela circular furtivamente pela torre, o que seria impossível para uma pessoa, ou mesmo para um gato. O problema era o dinheiro, mas Cherry tinha um grau de intuição aprimorado pela sua astúcia natural. Enquanto Signy estava no telhado da torre de água contemplan­do um possível suicídio, Cherry tomava suas providências. Ela quebrara algumas jóias de sua dona e escondera os pedaços den­tro dos lustres, atrás dos cabides. De vez em quando ela arranca­va um pequeno diamante ou uma tira de ouro de algum bracelete. Era o bastante para os subornos que ela precisava fazer.

Lá fora havia um mundo de contrastes. Porcos que espalha­vam lixo pelas ruas, enxotados para os lados por carrões elegan­tes pintados de cores reluzentes. Cabras que ciscavam restos de árvores em jardins suburbanos; homens com roupas caras e mu­lheres vestidas para coquetéis que caminhavam entre as poças, cercados de guarda-costas armados. Gangues de crianças que mendigavam, assaltavam ou furtavam pelas ruas que saíam à pro­cura de lixo nas esquinas escuras ou de quem fosse tolo o bastan­te para andar sozinho. Muitas vezes as entradas das lojas chiques que vendiam jóias, comidas exóticas, medicamentos, bebidas e roupas da moda se empesteavam com o fedor de algum esgoto abarrotado de detritos, soprado da esquina por um pé de vento eventual. Montes de crianças famintas tremiam pelas esquinas à espera da morte.

Agora Cherry fazia a sua busca no mercado de Leytonstone. Era bem próximo da Muralha e atraía uma boa quantidade de meio-homens e, vez por outra, todas as espécies de vida passa­vam por lá. Era possível comprar armas, lã, ferramentas, porcos, rádios e todas as coisas necessárias ou desnecessárias para se vi­ver na cidade. Cherry discutia e negociava com os proprietários das barracas, falava mal das frutas em exposição, mordia uma maçã e dizia "Não". Ela fazia piadas, amigos, inimigos, mas, aci­ma de tudo, coletava fofocas. Ela não se importava se estava irritando ou agradando, desde que pudesse conversar com as pessoas. Metade do mercado conhecia a garota de olhos estra­nhos que tinha dinheiro para gastar e adorava fofocar enquanto circulava pelas barracas. Cherry sempre tinha muitas fofocas para contar e muitas fofocas para ouvir. Se alguém soubesse de algo a respeito de algum homem de mãos e cara quebradas, ali era o lugar apropriado para descobrir os detalhes.

Naquele dia, mais tarde, quando Cherry caminhava pela longa e estreita fileira de barracas, ela quase foi derrubada por um homem enorme que saiu em disparada de sua barraca de açougueiro na direção da rua. Ele agarrou uma velha mulher de aparência desleixada e a sacudiu pelos ombros. Ela era me­tade porca e metade mulher, talvez mais porca, e quase morria de fome. Debaixo dos seus trapos só havia pele e osso. A medi­da que o homem sacudia a velha mulher, Cherry ouvia o chiado da respiração nos pulmões dela. Ela deve ter vindo atraída do outro lado da Muralha para procurar comida, como muitos meio-homens estavam fazendo agora que a guerra de Conor cortara os suprimentos.

Sua ladra velha... - O homem revistou os trapos da mulher com grosseria e puxou uma peça de costeletas de porco. A velha foi empurrada com tanta força que teria caído se a rua não esti­vesse tão cheia.

Não quero te ver por aqui nunca mais! - berrou o comerci­ante. Recostada na barraca do açougueiro, Cherry observou a velha mulher cambalear para dentro da multidão. Sim, sim, sim! Era ela. Estava mais magra, muito mais magra. Mas era mesmo ela, Cherry tinha certeza.

Ao perceber que deixara a barraca sozinha na sua tentativa de recuperar as costeletas de porco, o comerciante arregalou os olhos e voltou apressado para atender um cliente.

Tem gente que é completamente gananciosa - Cherry sus­surrou para o homem enquanto ele passava.

É uma piranha de mãos leves... Ela teve sorte porque a deixei sair ilesa. Eu deceparia as mãos dela se fosse cobrá-la por aquilo. Porca velha. Metade dela é de porco, se você quer saber.

Cherry apressou-se no meio da multidão, no encalço da ve­lha mulher. E encontrou-a não muito distante dali, arfando, in­clinada contra um muro. Ela havia sido sacudida com muita violência pelo homem da barraca. Para alguém no estado dela, isso era o mesmo que levar uma surra.

Ouça... - Cherry segurou a velha pelo ombro com firmeza, de modo que ela não pudesse fugir, e olhou nos seus olhos. A princípio, a velha evitou o olhar de Cherry, até que se deu conta dos talhos denunciadores daqueles olhos e retribuiu o olhar. - Se você quer ser uma ladra, é melhor que seja boa nisso - disse Cherry. Ela deslizou a mão para dentro do bolso e puxou um pe­queno lombo de porco, com um suculento e gordo pedaço de rim aninhado no osso. - Mas você fez um bom trabalho quando distraiu o homem - ela completou com um elogio. E em seguida sorriu e pôs a carne na mão da velha.

A mulher-porco encarou Cherry. A mão dela se fechou com firmeza sobre a carne gordurosa e a tirou de vista antes que Cherry mudasse de idéia.

Presente do rei Val - Cherry sussurrou, deixando cair algu­mas moedas na mão da velha e sorrindo para ela. - Agora me diz - Cherry falou. - Onde é que você mora, querida, hein? Como é que está Siggy Volson?

Hein? - Melanie olhou-a sem entender.

Você ouviu.

Melanie suspirou e baixou a cabeça. Como é que as notícias podiam ter se espalhado por toda a cidade? Agora ela entendia. Havia mais alguém atrás do seu homem!

É melhó vir comigo então, quirida - ela sussurrou. Olhou Cherry de relance e seguiu em frente, mancando e abrindo cami­nho entre a multidão, com Cherry logo atrás.

Cherry estava orgulhosa de si mesma. Signy ficaria tão con­tente! Ela mal podia esperar para interrogar a velha porca. No entanto, primeiro era melhor se afastar da multidão. Ela cami­nhava logo atrás de Melanie, com sorrisos e ronronados para si mesma. Já estava no papo!

Cherry era jovem, sadia e bem alimentada, e Melanie, velha, fraca e magra. Mas a velha porca era mais astuta do que aparen­tava. Aquelas costeletas realizavam o que ela sonhara e as moe­das também vinham a calhar, mas nem todas as costeletas e nem todo o dinheiro do mundo a fariam entregar o seu homem!

Ela mancava muito e vez por outra cambaleava entre os tran­seuntes. Cherry a observava com preocupação. Ela estava nas últimas! Como é que estaria Siggy, sendo cuidado por alguém como ela? As duas zanzaram pelo caminho por uns duzentos metros, até que, por fim, a pobre coitada se mostrou esgotada. Inclinou-se contra uma parede, arfando de terror e exaustão, ao mesmo tempo que seus grandes olhos cor de âmbar ondulavam deploravelmente na direção de sua captora.

- Upa! E agora? - Cherry reclamou. Mas a velha mulher se limitou a gesticular e balançar a cabeça, incapaz de falar. - Quer beber alguma coisa? - Cherry perguntou, ao notar que estavam paradas ao lado de uma barraca que vendia suco de maçã. A velha mulher assentiu com a cabeça, era visível que ela estava quase morrendo de fome. Cherry deu alguns passos na direção da barraca enquanto enfiava a mão no bolso em busca de dinhei­ro. Pediu um copo e virou-se para olhar a velha, que já tinha sumido.

Desesperadamente, Cherry correu pela rua de um lado para outro. Era impossível que a velha tivesse se afastado mais que al­guns metros, mas Melanie desaparecera. Isso era enfurecedor. Quem é que podia imaginar que aquele trambolho velho podia ser tão rápido? Mais dez minutos e de repente ela notou um cano encoberto bem ao lado de onde Melanie havia estado. Cherry meteu-se lá dentro e escorregou até o fundo, é claro que o rastro estava lá. Em um segundo a velha porca havia disparado para bai­xo e recolocado a tampa no lugar, isso tudo enquanto Cherry dava alguns passos até a barraca e pedia um copo de suco.

Cherry chiou de admiração. A velha não era tão burra quan­to parecia! Cherry seguiu o rastro até onde pôde, mas o interior do cano era muito fedorento e ele logo se dividia em dois, e depois, em três, e, mais tarde, em quatro, e não havia jeito de saber por qual deles Melanie havia seguido. A caçada estava per­dida. Cherry nem sequer conseguiu descobrir se Siggy estava vivo ou morto.

 

Alguns flocos de neve caíram, apenas um ou dois. Os flocos des­ceram suavemente pela chaminé e se depositaram ali, recusando-se a derreter.

Inverno.

Em cada canto do país a população saía à procura de tecidos grossos para agasalhar os bebês; introduziam papel nas fendas e nas brechas das casas e abrigos, e ficavam nervosos ao primeiro sinal de uma tosse ou de um espirro. O Rei Inverno, o assassino. Fui criado para ser um gângster, um guerreiro, mas este inimigo não podia ser visto e ouvido, nem podia ser ameaçado ou alveja­do. Quando você está sendo mal alimentado e não tem aqueci­mento, uma tosse pode lhe matar em poucas semanas. Eu estava tão impotente frente ao inverno quanto estivera frente ao Porco. O inverno estava em mim, em cima de mim, ao meu lado. O inver­no estava me esgotando. Eu me sentia sonolento o tempo todo. Era como se eu me movesse através de uma neblina espessa.

Eu estava morrendo de fome.

E sabia o que precisava fazer: grande porco gordo, cheio de gordura. Mas eu estava fraco demais. E pensava: quando eu esti­ver melhor, quando eu recuperar minhas forças. Eu dizia para a velha Melanie, só mais alguns dias, vou sair e quando eu voltar, garota...

O problema é que não havia jeito de recuperar minhas for­ças, a menos que eu me alimentasse decentemente. Fiz o que pude. Melanie já não se preocupava em me trancar; estávamos do mesmo lado, não estávamos? Por isso, fiz a minha parte reco­lhendo lixo. Não que eu fosse muito bom nisso. Certa noite, eu me arrastei para fora, até chegar a uma plantação, e me empanzinei de grama molhada como uma vaca. Que banquete! Pelo menos enchi a barriga, pensei, mas fiquei cagando feno mole por um dia inteiro, até ficar exausto. Eu me resguardei durante se­manas. Melanie fez o que pôde. Ela sempre levava alguma coisa para casa, mas, na maioria das vezes, eram crostas de pão e ver­duras mofadas. Ela prometia comida fresca, mas tudo era fanta­sia. Ela me dera tudo o que tinha e não sobrara nada, nem mesmo o seu vigor. Ela estava mais faminta do que eu.

Eu ainda me exercitava. Já estava curado. Podia circular, po­dia levantar pesos, podia correr, mas isso tudo só estava ajudan­do a me matar. Não há sentido em se exercitar quando não se tem combustível para queimar. Eu tinha que recuperar as forças para pôr em prática o roubo que planejava!

Ora, dá pra acreditar? A velha Melanie chegava de novo com presentes. Costeletas! Costeletas de porco, costeletas frescas. E pão fresco. Ela parecia tão maravilhada quanto eu. Não sei se al­guma vez na vida ela chegou a ver uma costeleta. Ela cozinhou tudo em casa. Eram três costeletas e ainda estavam quentes.

Onde você conseguiu isso? - Eu estava pasmo.

Um presente - ela disse.

Quem você conhece que tem costeletas de porco para dar?

Ahh! - Ela esfregou o nariz. Eu estava sendo intrometido. Ora, bem, costeletas são costeletas...

Peguei uma delas. Segurei-a com as duas mãos. Dei um leve apertão. Ohhhh... Estava firme. Saborosa. Carne sólida. Dei uma cheirada. Eu ia gostar daquilo. Então, dei uma grande e demora­da mordida. E procurei morder um grande naco de gordura jun­to com a carne. Minha boca estava tão molhada que dava pra lavar roupa dentro dela. Estava excelente! Logo perdi a sereni­dade e comecei a devorar desesperadamente.

Eu estava roendo o osso quando notei que Melanie me olha­va de lado. Eu sempre esquecia. Engraçado, quando se está fa­minto... quer dizer, não sei se é assim quando se é faminto a vida inteira, mas quando se está acostumado com comida aos montes e de repente se fica faminto, realmente faminto, passando fome de verdade... em nenhum momento se pensa que uma outra pes­soa também possa estar faminta. Eu sabia que ela estava passan­do fome por me alimentar, mas eu sempre esquecia.

Você já comeu alguma? - perguntei a ela.

Ora, claro - ela disse. - Fique à vontade.

Comi metade do pão e ofereci o resto a ela, mas ela recusou. Ataquei uma outra costeleta. Dei cabo do pão e já estava mor­dendo a terceira e última costeleta quando pensei: espere aí, ela está mentindo de novo.

Você não comeu nada, fale a verdade; você comeu? - eu quis saber.

Cumi - ela insistiu. E, bem, eu sabia que ela estava mentin­do, mas de qualquer forma acabei de comer a costeleta. Eu sei. Sou um cretino. Minha boca fez isso por mim. Eu simplesmente devorei tudo antes de ter tempo de pensar. Depois fui perambular lá fora, para dar um bom arroto e deixá-la mastigar as pequenas tiras de carne e a cartilagem nas bordas dos ossos sem a minha presença. Eu me senti péssimo. Péssimo por ter comido tanta carne e com tanta rapidez depois de ter passado fome por sema­nas. Eu estava tendo cólicas terríveis. E novamente me senti pés­simo por não ter deixado nada para ela.

Foi quando tomei uma decisão. Mesmo que estivesse enfra­quecido, eu passaria um bom tempo até colocar tanta comida no estômago outra vez, a menos que eu próprio a conseguisse.

Lá dentro, Melanie fingia que estava enrolando os ossos num pano. Eu podia ver a gordura nos cantos de sua boca. Fui até a pilha de tijolos velhos, onde eu tinha escondido a velha arma que ela havia me dado, e retirei-a de lá.

Melanie, essa é a última vez que você faz algo por mim. - Eu me aproximei e dei um tapinha de leve na sua testa. - Na próxima vez que você me vir, menina, você estará rica.

E ela sorriu como uma criança no Natal.

Grande porco gordo, cheio de gordura...

Sem ofensas. Não tenho nada contra porcos, alguns dos meus melhores amigos são porcos, como se costuma dizer. Encaremos os fatos, meu único amigo é um porco. Mas existem porcos e porcos. A espécie na qual eu pensava não tinha nada a ver com animais.

Desta vez seria diferente. Quer dizer, nos velhos tempos, ao lado de Signy, não era de verdade. Isto teve início quando éra­mos crianças e brincávamos de Robin Hood. Era totalmente se­guro, de verdade, desde que os outros soubessem quem éramos nós, e todos sabiam a respeito de Siggy e Signy. Quem é que lu­taria contra os filhos do maior chefão de gangue de Londres?

Desta vez, seria diferente. Agora ninguém hesitaria em atirar em mim.

- Tá legal, que lugares os ricos costumam freqüentar? - per­guntei a Melanie. A minha intenção era entrar num cassino, ou num bom hotel, e achar algum executivo gordo. Bem, a velha garota me olhou, olhei de relance para ela e pensei: oh, oh...

Tudo se torna difícil quando se é pobre! Vestido daquela maneira eu não conseguiria me aproximar de qualquer rico que valesse a pena assaltar. Acho que deve ser por isso que os pobres roubam dos pobres e os ricos roubam dos ricos. Ora, esqueça. Eu era o filho de Val ou o quê? Para início de conversa, os pobres não tinham dinheiro para serem roubados, e, de qualquer for­ma, nenhum pobre teria o bastante para mim.

É preciso usar o cérebro.

Entrei na cidade através do velho túnel de Northern Line e cheguei a Camden assim que escureceu. E segui em frente na mesma hora. Aparência, pensei. O primeiro lugar que visitei foi uma loja de roupas.

Fiquei zanzando furtivamente pelas redondezas, até a hora de fechar. Era uma terça-feira, não havia muita gente andando por ali. Deslizei para dentro e me meti atrás de uma coleção de ternos baratos, enquanto os funcionários atendiam os últimos clientes. O último comprador saiu e a porta foi trancada. Fiquei à espera. Restavam apenas dois sujeitos, dois garotos magricelas com penteados propositalmente bagunçados que ainda perambulavam por ali. Fiquei aguardando que eles fossem embora. Mas, em todo caso, minha arma já estava preparada.

Eu estava apavorado. Engraçado, eu sempre ficava apavorado, ficava apavorado quando fazia isso com Signy e, naquele mo­mento, continuava apavorado. É preciso encarar isso como uma espécie de pânico de palco: ignore-o e vá adiante, mesmo que cinco minutos antes de entrar em cena você esteja escondido atrás de uma parede, com ânsia de vômito.

Pois bem, lá estava eu, tremendo entre os cabides dos ternos, enquanto os dois rapazes examinavam o ambiente, vasculhando tudo quanto é canto.

Que cheiro é esse, George? - um deles quis saber. Fiquei ofendido. Só por isso eu podia ter me aproximado e dado um murro nele. Mas ele estava certo. Eu estava fedendo. Acontece que eu vinha respirando aquele cheiro havia tanto tempo que nem notava mais.

Tem trocado de cueca ultimamente? - o outro perguntou. E ambos começaram a fazer piadinhas sobre cuecas sujas e coisas assim. Enfim, logo em seguida eles saíram à procura do fedor. A verdade é que eu me encontrava bem visível. Não existe escon­derijo possível para alguém que fede tanto. Não demorou e um deles se aproximou dos ternos baratos, cheirando sem parar. Ele cutucou as roupas, remexeu-as - e ali estava eu. E ali estava eu. Eu me encarreguei de fazê-lo avistar o cano da arma antes que me visse. A cara dele... desabou. E logo ele viu a minha cara.

Calado, George - eu disse. Ele foi se afastando à medida que eu saía do meio das roupas, seu nariz se afastava do cano da arma. Respirei fundo. - TÁ LEGAL, VOCÊS DOIS! CONTRA A PAREDE! QUE NINGUÉM TENTE NADA! VÃO ANDANDO, VÃO ANDANDO! - gritei.

Essa era o tipo da hora em que o meu rosto vinha a calhar. Sou bom nisso. Deixei os dois se cagando de medo. Na verdade, assustei até a mim mesmo. Em momentos como esse, é preciso ter nervos de aço. Os clientes precisam acreditar que você está falando sério, que você é louco, mau e letal. Mesmo que você não passe de um bom garoto.

Eles se colocaram rapidamente contra a parede. Agarrei o que parecia estar menos assustado. Uma regra de ouro: sempre se dirija ao maior e mais malvado. Uma vez que ele esteja intimi­dado, os outros ficam exatamente onde você quer.

- CERTO - berrei. Eu balançava a arma no ar, bem na cara dos dois, como se lutasse com a arma para impedi-la de atirar, fazendo a minha melhor imitação de um maníaco homicida. Eu fazia uma careta nojenta, mal-humorada e retorcida, como se estivesse prestes a devorar os dois. - EU QUERO ALGUMAS ROUPAS! - berrei. - VAMOS LÁ, DINAMISMO! E NÃO ESTOU FALANDO DE ESTILO! - Tive um acesso de tosse, toda aquela gritaria estava acabando com meus pulmões. Um dos rapazes saiu apressado da parede e começou a correr de um lado para outro. - CINTURA TAMANHO TRINTA E SEIS! - gritei. Eu não estava comendo muito bem ultimamente. - SAPATOS NÚMERO QUA­RENTA E DOIS! - Em seguida, quase aconteceu um desastre, fiquei prestes a ter um ataque de riso. Quer dizer, é engraçado ter que gritar a medida da cintura com uma voz de Mad Max. Engoli os risos. - E NÃO SUMA DA MINHA VISTA, SENÃO O GEORGEZINHO MORRE!

Uau! O clímax! Muita gente pode achar que sou realmente maluco, quase morrendo de fome e entrando numa loja de rou­pas. Mas era necessário. Não me importo com moda, mas só se consegue vítimas de bom nível quando se está bem vestido. Pois bem, a arma não estava carregada e acho que no estado em que eu estava até aquelas duas bonequinhas teriam me rendido. Fui então obrigado a fazer com que eles ficassem morrendo de medo só de pensar em tentar qualquer coisa. Cheguei até a ameaçar abrir fogo se as cores não combinassem direito.

Depois de ter colocado tudo nos eixos, amarrei George e seu colega com um conjunto de gravatas de seda e fiz o meu desfile de moda particular, experimentando as roupas e posando em frente ao espelho. Tive o maior choque de minha vida. Quer di­zer, de vez em quando eu via a minha cara, mas não com tanta freqüência, e, de qualquer maneira, sempre esquecemos do que está à frente de nossa cabeça. Era o primeiro espelho decente que refletia a minha cara, Jesus! Eu nunca tinha visto nada como aquilo. Não era de espantar que os dois sujeitos tivessem se as­sustado. Só de olhar, quase botei um ovo por dentro das calças. Minha mandíbula se projetava para o lado e para a frente como um caco de louça, minhas mãos pareciam garras. Eu era puro osso, meus olhos brilhavam como pedras polidas. Eu parecia o demônio e podia ter chorado, mas engoli em seco e disse para mim mesmo: Siggy, você vai assombrar esta cidade.

O que você acha, George? - perguntei, voltando ao meu costumeiro comportamento amigável, agora que eles estavam amarrados.

O bege ca-cai bem no senhor - ele respondeu. Era um bom terno bege-rosado com colete. Também peguei alguns jeans, vá­rios pares de sapatos, camisas, tênis, tudo. Meias, cuecas, o pacote todo. Quando terminei, eu estava apto a entrar em qualquer cassi­no ou hotel da região. Exceto pelo fato de que eu ainda fedia. E também exceto pela minha cara. Isso não dá pra se esconder com roupas novas. Ora, os outros iam ficar me encarando, mas este mundo é cruel. Eu não seria o único lá de fora a ter sido quase todo devorado.

Amordacei e vendei os dois funcionários... e fiz uma bela fuga. Esvaziei o caixa e parti para a noite. Era dezembro e fazia horas que estava um breu. Peguei um táxi até Hackney, eu não que­ria chegar muito perto do centro, não com aquela cara. O mo­torista torceu o nariz para mim. Era desagradável. Eu não estava acostumado a feder.

Mesmo assim, eu me sentia bem. O plano estava funcionan­do! Como eu havia previsto, as pessoas recuavam ao me olhar, mas a linguagem monetária fala mais alto que a corporal. Parei para comprar pastis e bebi no banco de trás do táxi. O motorista deve ter pensado que tinha pegado um porco. Depois, me regis­trei num hotel - ah, me lembro muito bem disso, nem dava para imaginar - e subi as escadas pra tomar um ba-aa-aa-aa-nho. Cara, isso foi o paraíso. Um paraíso que escorria das torneiras. Era um bom hotel, não era o melhor, mas era bom o bastante para ter água quente. Fiquei deitado por muitas horas na água quente, ensaboado, e tanto a pobreza como a dor escorreram para fora de mim em longos filetes escuros e gordurosos ralo abaixo. As bolhas ficaram pretas. Esvaziei a banheira e comecei tudo de novo.

Eu me sentia um novo homem. Estava salvo. Eu sou pagão, mas se fosse adepto do cristianismo, diria que Jesus é um sabonete.

Eu então me vesti e desci as escadas para fazer uma refeição, um prato leve, apenas. Fiquei dois dias no hotel, recuperando as forças. Ora, sei o que você está pensando. Que tipo de sujeito asqueroso faz isso? Primeiro pega o dinheiro e depois senta e se refestela durante dois dias, enquanto em casa a pobre Melanie passava fome. Ouça, eu estava exausto. Eu tinha que recuperar um pouco as forças. E fiz isso. Apenas alguns dias de boa comi­da, deitado numa boa cama, tomando banhos. Porra, eu precisa­va disso! E no final desses dois dias eu estava revigorado e pronto para qualquer parada que surgisse em meu caminho.

Pensei comigo: por que parar por aqui? Temos os meios, temos a tecnologia. Saí em busca de um roubo proveitoso.

Eu estava pronto para qualquer coisa. E imaginava a cara que Melanie faria quando eu voltasse com meu terno elegante, chei­rando a sabonete doce, com uma pequena sacola abarrotada de moedas de ouro, anéis e jóias. Ora, eu não queria pouca coisa. Desejava grandes transações.

Aquele hotel era um verdadeiro chiqueiro. Não estou dizen­do que era sujo. O que quero dizer é que estava abarrotado de porcos gordos, cheios de gordura.

Escolhi um porco gordo e velho. Geralmente os mais velhos são também os mais ricos, e merecem o que acontece com eles. Eles têm uma vida inteira de ganância nas costas. Avistei o meu no restaurante; ele avançava nas carnes, nas batatas fritas, no bolo da sobremesa, na garrafa de vinho da mesa ao lado. Tinha olhos lacrimejantes e cerrados, e um estômago que combinava com eles. Sentado, ele mastigava incessantemente, mesmo quan­do lhe serviam porções gigantescas, ainda limpava a gordura do prato com um pãozinho e sempre pedia balinhas extras junto com a conta para chupar depois do jantar.

Velho demais pra pensar, gordo demais pra se mexer, eu pen­sei. Era o meu tipo de porco.

E quanto a mim? Eu me sentia esperto e durão.

Fiquei à espreita perto dos elevadores - o hotel tinha gerado­res próprios - e subi junto com o gordo. Era um gordo enorme.

Esse tipo de cara deveria pagar mais caro peio uso do elevador, pensei comigo mesmo. Quanto é que custaria carregar aquele saco de tripas e gordura dois andares acima eu tive até medo de imaginar. Saí do elevador com ele. Mas não fiquei muito próxi­mo dele. Esperei no corredor enquanto ele pegava a chave e en­trava no quarto. Dois outros hóspedes passaram por ali. Assim que o caminho ficou livre, avancei e bati na porta do gordo.

Olá - ele grunhiu.

Mensagem para o sr. Harabin.

Não sou o sr. Harabin.

Quarto 127? - Li na porta.

Sim...

É para o senhor mesmo. O senhor pode dar uma olhada, por favor?

Eu podia ouvir o movimento desajeitado do homem lá den­tro. A cama rangeu.

Não pode ser pra mim... o número do quarto deve estar errado. - Mas é claro que ele estava curioso. Todo mundo é curio­so. Ele foi até a porta e a abriu para ser apresentado ao meu sor­riso e ao cano da minha arma.

Vá entrando - empurrei o ombro dele. Era como empurrar um carro com o freio de mão puxado. Dei um cutucão nele com a arma e o homem recuou para dentro do quarto. - Fique perto da cama e esvazie os bolsos.

Ele era tão gordo que não dava nem para acreditar que existia um homem daquele tamanho. Ele começou a se virar e se valeu desse gesto para esticar a mão e dar um safanão na minha arma. Enquanto o observava, eu pensava: seu idiota. Quer dizer, se a arma estivesse carregada, eu poderia tê-lo matado. A carteira valia tanto assim para ele? Dei um passo atrás, mas...

Eu tinha me esquecido, não é? Ele era velho, lento e, quase com toda certeza, burro. Enquanto eu era jovem e treinado para matar. Por outro lado, eu ainda estava quase faminto. Algumas boas refeições e uma arma na mão não apagam a realidade de quem foi feito em pedaços e passou três meses deitado para se recuperar. Dei um passo atrás, mas as minhas pernas pareciam estar em câmera lenta. Notei que a mão dele avançava no ar - ele era muito rápido para um gorducho - e me dei conta de que ele atingiria o alvo. Meus dedos carcomidos e magros apertaram com firmeza, mas ele agarrou minha mão, fez um movimento rápido com o pulso e me deixou surpreso enquanto a arma voava pelo quarto, batia contra a parede e caía no chão.

Ele era umas vinte vezes mais forte que eu.

Deu dois passos à frente e se jogou em cima de mim.

Quase desmaiei. A próxima cena que pude ver foi quando ele se arrastou por cima de mim, com os joelhos em torno do meu pescoço e uma bunda que parecia uma almofada de três toneladas no meu peito. Eu nem conseguia respirar. Minha boca abria e fechava. Entrei em pânico, embora eu tentasse mexer um pouco os braços e pegar um sopro de ar, não havia como.

Seu fedelhozinho - ele vociferou. O enorme punho de por­co do gordo ergueu-se no ar e logo desabou. Pou! Minha cabeça girou no pescoço e senti o sangue quente na boca. Pou! Eu me contorcia e tentava desesperadamente sorver o ar, enquanto via o punho dele subir e descer, subir e descer sem parar. Tentei abrir a boca, sou só um garoto, mas não tive fôlego. Em meio aos socos, ele gritava por socorro. Tive uma vaga visão de algumas arrumadeiras e uns sujeitos de terno que chegaram para ver o que acontecia, e logo depois eles o seguraram e o puxaram. De todo modo, foi o que pensei que estivessem fazendo. Eles só de­viam estar o ajudando a se levantar.

O gordo se abaixou e me puxou. Eu já não passava de um maldito inválido. Ele me puxou do chão como se eu fosse uma de suas camisas velhas.

Maldito ladrãozinho - o gordo rosnou. - Que tipo de hotel é esse? - Ele rasgou minha jaqueta e meteu a mão no meu bolso, enquanto a outra mão agarrava o meu pescoço. Ele puxou o volumoso maço de notas que eu tinha roubado no caixa da loja de roupas. - Não acredito que isso pertença a esse sujeito - ele disse. Depois deu um empurrão nas minhas costas e voei pelo ar até cair nos braços de um dos idiotas de terno.

Ele me empurrou com força. E eu estava fraco, como água. Minha cabeça abaixou com a força do empurrão e aos trancos e barrancos voei alguns metros até cair em cima do idiota - plaft!

Bem na barriga dele. O idiota se encrespou com um UFA! E eu segui em frente, só isso. Eu já não me sentia mais esperto e du­rão. Eu me sentia como uma pena que voava pelo vento. E só me molhar que eu grudo em alguma coisa, é só me assoprar que eu vôo. Tente me pegar, eu não tenho peso.

As penas, no entanto, são difíceis de pegar. O gordo, as arrumadeiras, os sujeitos de terno, os hóspedes do hotel, todos cor­riam atrás de mim. Eu me sentia como o biscoito daquela velha história. Cada vez aparecia mais gente que pulava de dentro dos quartos em cima de mim; gente que saía de todos os cantos e gritava e guinchava "Ladrão, ladrão, peguem ele!". Eu tinha cer­teza de que seria agarrado a qualquer momento. Se algum deles me tocasse, eu teria caído no chão. Mas a minha cara ajudava. As pessoas estão acostumadas a se deparar com coisas feias, mas aquelas sempre recuavam por um segundo quando estendiam as mãos para me tocar.

Eu corria desajeitado pelo corredor, por baixo dos braços e por cima das pernas daquela gente. A minha corrida desordenada me fez chegar à escada e desci. O saguão de entrada estava cheio de gente. Caí nos braços deles e dei o fora antes que se dessem conta de que eu estava sendo perseguido. Alguém segurou a minha camisa. Puxei-a de volta. Cheguei à porta com um enorme esforço, cheio de medo, tirando força não sei de onde. Minhas pernas se moviam pesadamente para cima e para baixo. Bang, bang, bang! Mais cem metros e meus pulmões já explodiam, minhas pernas se atropelavam por baixo de mim como duas tiras de papel molhado sob o vento. Escorreguei em alguma coisa úmida, caí de bunda no chão e me levantei com um salto. Por fim, apareceu um beco que dava para os guetos e disparei naquela direção, através de um denso claustro de transeuntes, barracas e fedor. Eu me tornei outra vez uma pena e continuei correndo e me esquivando de um lado para outro.

Mais duzentos metros e eu consegui escapar. Sentei-me na soleira de uma porta, o meu corpo arfava sem fôlego, e, de re­pente, vi-me enfraquecido e totalmente doente.

Esperei por uma mão no meu ombro, mas ela não veio. Eu os havia deixado para trás. Ninguém gosta de se embrenhar tão fundo nos guetos apenas para pegar um ladrão. Para quê? Os guetos estavam repletos de ladrões e ir até lá era pedir para ser roubado.

Eu os havia deixado para trás, mas, em compensação, também deixei todo o resto. Perdi as roupas que ficaram no quarto do hotel. Perdi a arma, perdi o dinheiro. Perdi até mesmo as roupas que vestia, que rasgaram na parte de trás. Perdi o jantar. Afundei a cara nas mãos e, debilitado, fiz força para vomitar. Os pobres perambulavam. Fiquei sentado por mais ou menos meia hora, até que comecei a sentir calafrios e segui rumo à escola.

 

Eu era o homem durão.

Eu não tinha nada, apenas uma mísera nota de vinte libras que encontrei enfiada no bolso traseiro da minha calça imunda. O assalto naquela loja de roupas, e depois o banho, a boa comi­da, o descanso, tudo isso me fez pensar que eu era eu mesmo de novo. Mas não era. Eu era inútil. Fiquei pensando em Melanie à minha espera na sala da caldeira. Eu tinha fingido que era a sorte grande dela, mas ela quase morrera de fome por mim, e o que fiz cm retribuição?

Quando cheguei, ela estava à minha espera. Abriu um largo e tolo sorriso de avidez. Acho que estava quase certa de que eu tinha me mandado, como todos os outros em sua vida. E agora que eu retornara, ela achava que estava rica.

Ela se sentou e se remexeu sobre o seu velho traseiro es­quelético, à espera do prêmio. Limitei-me a abaixar a cabeça. Eu estava extremamente envergonhado. Depois de ter conquistado tantas coisas, acabei perdendo tudo por causa da minha cabeça oca, e já não se tratava mais de brincadeira, como eu e Signy fazíamos. Isso era o inverno. Isso era vida ou morte.

Rei Inverno, eu pensei, e curvei a cabeça diante dele.

Enfiei a mão no bolso e puxei as vinte libras.

Melanie olhava o dinheiro. Eu mal podia olhar. E um sorriso ainda mais ávido e mais aberto que o anterior irradiou naquele saco enrugado e contraído que era o seu rosto. Ela tombou a cabeça para trás, abriu os braços, me abraçou e começou a pular em cima dos meus pés.

- Meu garoto adorável, meu querido! - Ela beijou o dinheiro e me beijou. Só consegui pensar: o quê? O que é que havia ali para ela ficar tão satisfeita?

Fui compreendendo aos poucos. O fato é que para Melanie uma nota de vinte libras era realmente uma fortuna. Todos os seus sonhos haviam se tornado realidade. Quanto a mim, eu não fazia a menor idéia do preço das coisas, nunca precisei comprar nem uma salsicha em toda a minha vida. Fiquei pensando nas coisas que eu e Signy costumávamos distribuir entre os pobres - centenas, milhares de libras. Para mim, isso é que era tesouro. No entanto, com o tipo de comida que Melanie se alimentava, dava para viver uns dois meses com vinte libras. Ela dançava, sorria e cantava. Nunca vi ninguém demonstrar tanta felicidade, e tudo por conta das míseras vinte libras. Pensei: não é preciso mui­ta coisa, não é mesmo?

E, depois, me dei conta, é melhor deixar para lá; no fim, acabei conseguindo. E isso aí...! Eu tinha conseguido! Peguei suas mãos e iniciamos uma dança lenta e faminta, como o vaivém em círculos de dois insetos pegajosos, até que nos cansamos e caímos amonto­ados na pilha de trapos e imediatamente peguei no sono.

Nas horas que se seguiram, dormi como um bebê, ou pelo menos algo próximo disso. A última coisa que lembro é que tudo ficou escuro e depois Melanie me sacudiu para me acordar, colo­cando uma tigela com um ensopado grosso, quente e borrachudo em minhas mãos.

Os bons tempos estavam de volta!

Nas duas semanas seguintes, eu e Mels vivemos como... bem, como dois porcos. Passávamos o tempo engolindo tigelas de en­sopado e pedaços de pão. Devorávamos vasilhas de batatas. Quer dizer, pelo menos eu devorava. Meu apetite era como um vagão sem freios, seguia sempre em frente. Ela me observava enquanto eu enfiava a cara na comida, como se eu fizesse parte de um circo de aberrações. Eu dizia "Coma, coma!". Mas ela não conseguia me acompanhar. Ela comia pequenas porções. Nos velhos tem­pos eu não teria alimentado nem o meu ratinho de estimação com tão pouco.

Eu comia queijo aos montes. Ovos! Fiquei vidrado em ovos. De repente, passei a ter desejos vorazes por frutas, iogurte, car­ne, maçãs, pão com manteiga, biscoitos, bolo de frutas, ensopa­do, salsichas, tortas...

Você vai ficar doente - ela reclamava. Eu sorria e exibia a musculatura da minha perna.

Qual é o problema? Consegui dinheiro, não consegui?

Eu estava fazendo exercícios e, com a comida boa e abun­dante, recuperava as forças com rapidez. Mas não deixei que a gordura me tomasse por inteiro. Eu corria pelas escadas para cima e para baixo, cinqüenta, cem vezes por dia. E me dava ao luxo de voltar a pensar nas coisas. Em Conor, por exemplo. Ele tinha a minha faca. E a minha irmã...

Eu ficava pensando: vou recuperar minha irmã e minha faca. Pela primeira vez eu de fato achava que era capaz de obter algu­ma coisa além da próxima refeição. E isso aí, eu estava numa maré de sorte! Estava recuperando minha saúde, entrando em forma e readquirindo minha confiança.

Mas é claro que isso não podia durar.

Melanie fizera um tremendo estardalhaço por causa daque­las vinte libras. Eu não fazia a menor idéia do preço das coisas. Achei que fosse durar para sempre. Bem, talvez com Melanie pudesse durar para sempre, já que ela vivia de pequenas porções de batatas e verduras, como eu falei. Ela não comia queijo, nem manteiga, muito menos presunto ou carne. E não engolia quatro ovos, um atrás do outro. Assim, mais cedo do que eu havia pen­sado, um dia Melanie pôs uma tigela de sopa na minha frente.

Tá na hora de arranjar mais dinheiro, garoto, se você qui­ser comer amanhã - ela falou.

E mais uma vez me surpreendi! Que imbecil. Em um segun­do eu pensei que vinte libras não eram nada e um instante de­pois eu já pensava que durariam para sempre. Mas o dinheiro tinha acabado. Melanie o fez durar bastante, agora eu vejo. Eu tinha que sair à caça novamente, e eu sabia que dessa vez não seria tão fácil.

Não havia armas. Quando se está fraco, as armas são neces­sárias. E para isso que elas servem.

Preciso de uma arma, Mels - eu disse. - Não posso assaltar sem uma arma.

Eu me vi tentando convencê-la de que ela havia enterrado algumas libras em algum lugar, certamente o bastante para uma pequena arma quebrada, não é?

Obviamente, ela não tinha nada. Discutimos. Ela realmente me deixou irritado ao dizer que se eu não quisesse roubar, pelo menos que fizesse outra coisa, como mendigar, por exemplo.

Eu! Mendigar? - Fiquei furioso. Mas como Melanie de­monstrou, não melhorava em nada esperar que ela mendigasse por mim.

E então ela disse o seguinte...

Ela estava deitada sobre a pilha de trapos, com suas mãos de porco dobradas sobre a barriga, contemplando sonhadoramen­te o ar.

Talvez o rei Val acabe me dando mais algumas costeletas - ela disse.

Eu quase engasguei.

Rei Val?

Aquelas costeletas - ela repetiu, ainda com um ar sonha­dor, como se tivesse dezessete anos e estivesse se lembrando de um velho namorado.

... O rei Val é que lhe deu aquelas costeletas? - Passei a língua nos meus lábios secos. Não era possível! Papai estava morto, não estava? - Meu pai? - falei melancolicamente.

Nah, era uma garota. - Ela me olhou e franziu as sobran­celhas.

Quase agarrei Melanie pelo pescoço.

Eu estava lívido! Por que diabos ela não havia me dito? Ela sabia tudo sobre o meu pai; quem não sabia? Mas estava convic­ta de que aquilo fora obra de algum agente de Conor. Só para me irritar ainda mais, ela não conseguia se lembrar da aparência da garota. Ela se lembrava muito bem das costeletas. De como a gordura era consistente. Daquele belo pedaço de rim grudado nos ossos. Mas da garota...

Eu não conseguia entender. Primeiro ela disse que a garota estava mais ou menos vestida como homem. Meu coração dispa­rou. Era Signy! Depois, a garota tinha cabelos vermelhos. Não era Signy. Então, quem era? Talvez ela estivesse certa. Os agentes de Conor deviam saber de mim e estavam à minha procura.

Eu insisti com ela várias vezes, até que finalmente descobri uma pista. Ao que parecia, a tal garota tinha olhos estranhos. Olhos de gato, para ser mais exato. O que me fez pensar: onde é que eu já vi alguma coisa assim?

No dia seguinte, fui ao mercado em Leytonstone. Andei por lá e mendiguei. Sabe, não havia o menor problema em mendigar dis­farçado, isso não me humilhava. Para falar a verdade, até que me saí bem. A minha cara era boa para a coisa. Arrecadei duas libras em um dia. Voltei no dia seguinte, e no outro dia, e no outro. E, então, ela apareceu.

Naquele dia, na terra dos meio-homens, eu tive apenas um breve vislumbre. De repente, ela oscilou diante de meus olhos e tive uma impressão completa, mais do que uma visão, dos seus cabelos grossos e ruivos, do seu pequeno queixo pontudo e da­queles grandes olhos insuportáveis durante o beijo que ela me deu na bochecha. E, depois, quando ela surgiu gingando pelo mercado, gritando e fazendo confusão, tive medo de falar com ela porque, no fim das contas, podia ser uma armadilha. E ela estava mais velha, muito mais velha. Já era quase uma mulher. Como é que ela podia ter envelhecido tanto em poucos meses? Achei que talvez ela fosse irmã daquela garotinha, mas na oca­sião eu não sabia o que sei agora. Os gatos envelhecem em um ritmo diferente do das pessoas.

Claro, eu também quase não parecia mais comigo mesmo. Mas o fato é que ela era - mais uma vez! - a minha única chance. Eu me aproximei e pedi uns trocados. Garota esperta, muito esperta. Ela se deu conta na mesma hora. Agarrou-me pelo braço e sorriu.

- Eu te conheço - ela disse.

 

Quando Signy soube que o irmão estava vivo, esboçou uma me­lancólica celebração. Agora ela precisava viver. Como brinde ao retorno de Siggy e dos Volson, peixe e creme para a gata e vinho para ela e a garota.

Cherry estava em êxtase. Sua amada dona viveria! Ela se pôs a dar voltas em torno da mesa, como gato, como garota, como pássaro. E se agarrava ao pescoço de Signy e chorava pelo seu amor, jurando que nunca esmoreceria.

Signy bateu as mãos na mesa.

Agora nós vamos destruir Conor - ela disse. E assim ela deixou a escuridão de lado e começou a traçar seus planos.

Na manhã seguinte, um pequeno pássaro marrom entrou voando pela janela de um apartamento em Leytonstone, próxi­mo aos limites da Muralha, onde a metamorfa escondera o seu achado junto com Melanie, a mulher-porco. Siggy havia se recu­sado a se mudar sem Melanie. Cherry os encontrou deitados em uma pilha de almofadas no meio do chão, um fogo alto reluzia na lareira para afastar as correntes de ar, havia cobertores enfia­dos em tudo quanto é canto, até debaixo da porta, e edredons empilhados. Por todos os lados espalhavam-se sacos de papel manchados de gordura, farelos, caroços de maçã, garrafas vazias e pequenos amontoados de comida. Cherry avançou em meio aos entulhos com o nariz ligeiramente franzido e largou uma carta no colo de Siggy. Em seguida ela se transformou em gato. O lixo era bom demais para ser desperdiçado.

Oh, Deus! - gritou Melanie de sua pilha de cobertores. Cherry saltou no ar e ao tocar o solo se transformou em garota. Melanie gemia. Siggy ria. Havia um quê de nauseante em pre­senciar corpos se metamorfoseando com tanta rapidez.

Não se preocupe, Mels, ela faz isso o tempo todo - disse Siggy.

Uau! Um formato é mais qui suficienti pra qualqué um - grunhiu Melanie. Ela se arrastou para o fundo das cobertas, mas mantendo os olhos aguçados no homem e na garota. Melanie queria saber tudo o que estava acontecendo.

Cherry fitou Siggy, que sorriu para ela enquanto abria a car­ta, e logo franziu as sobrancelhas e desviou o olhar. Ela era uma garota bonita. Por um instante, ele se sentiu lisonjeado, antes de se lembrar do ferimento miserável que seu rosto se tornara. Mas Cherry o olhava com a simplicidade dos gatos. Ela não nutria qualquer sentimento pela aparência. Na verdade, ela achava que por baixo do mau cheiro de gordura e da fumaça que impregna­va o quarto, até que aquele homem cheirava bem. Então, cruzou as pernas e se pôs a ronronar baixinho, ao mesmo tempo que Siggy abria a carta e começava a ler.

Era a primeira comunicação entre os irmãos desde o massa­cre, mas Siggy estava tomado pela esmagadora sensação de que a carta era uma fraude, escrita por um estranho. Acontece que era mesmo de Signy; ele conhecia o estilo dela tão bem quanto o pró­prio. No entanto, era uma Signy que até então ele não conhecia. E como ela falava tolices!

Vingança? Derrotar Conor? Recuperar as terras dos Volson? Restaurar o sonho do pai? Siggy baixou o olhar, na direção do seu próprio corpo destroçado, e começou a dar risadas.

Eu, rei! Rei, eu! Rei da Merda! - Ele gesticulava pelo quarto. - Rei das Migalhas! Rei dos Porcos! Rei de... - Sorriu debilmente e olhou para Melanie, como se a convidasse a dar risadas com ele. - Eu, rei. - Ele gargalhou. - Você, rainha! Lutar com Conor.

Melanie, porém, o olhava inexpressivamente. Siggy sentiu suas risadas se dissipando.

Cherry - ele disse -, precisamos tirá-la de lá.

 

Eu sou a informação, eu sou a traição. Aqui, do lado de dentro, pertenço a este lugar. Eu sou uma espiã. Conor me quer. Ele não sabe o que é o amor, mas ele me quer. Ele não confia em mim, ainda não. Mas vai confiar. Sou o maior trunfo que temos e Siggy quer que eu fuja!

Ele não quer mais me ver humilhada, é o que ele diz. Siggy precisa entender, não há humilhação. Não há vergonha, exceto a vergonha de não poder acabar com Conor até a última gota de sangue. Se eu tiver que dormir com ele, farei isso. Vou abrir as pernas com um sorriso amável. Se eu tiver que beijar seus lábios e olhar nos seus olhos como um cordeiro, enquanto declaro o meu amor, e o confortar quando os demônios noturnos surgirem, farei isso com ternura. Se eu tiver que cuidar dos filhos dele, farei isso também, com a única intenção de degolá-los na frente dele. Ele tem que sofrer da mesma forma que me fez sofrer. Da mesma forma que fez o meu pai sofrer.

Eu sei que Siggy sofreu mais que eu. Ele teve que ver nossos irmãos sendo devorados. Teve que entregar nosso pai a Odin. Mas, no fim, isso não faz diferença. Ele pode virar de um lado a outro o quanto quiser, mas não tem escolha. Não está nas mãos dele. Ele vai entender.

Odin deu a faca para ele. Odin me abraçou. Nosso destino está nas mãos dos deuses.

Olhe para Cherry deitada aos meus pés. Por que outra ra­zão ela estaria aqui - metamorfosista; uma parte humana, ou­tra parte de animal e outra parte de deus? Olha só para ela! Ela me olha e sorri.

Tem um jeito - ela ronrona. - Se você quiser, posso tirar você daqui.

Você disse isso a ele?

Não.

Bom! Jamais conte a ele. Ele deve pensar que estou presa. - Mordo a cutícula em torno das minhas unhas. - Tudo deve ser feito da maneira certa. - Então, sorrio para ela e pronuncio a terrível palavra - Conor... - só para ouvir o rosnado profundo de Cherry.

Ele quer possuir você da mesma maneira que um cachorro mija em sua vítima - diz Cherry. Sim! Ela sabe. - Ele quer o seu amor porque não pode amar a si mesmo. Ele quer que você o deseje porque assim a vitória estará completa. Ele quer o seu perdão. - Ela mia e se arrasta até o meu colo. Pobre Cherry! Afa­go suas orelhas enquanto ela se transforma em gato.

Vou deixar que ele faça comigo o que quiser - eu digo. - E quando chegar o momento, vou matá-lo. Vou eliminar os exérci­tos dele e vou fazer minha família voltar ao lugar que ele rou­bou. Eu não vou esquecer. Nunca.

... Procure sempre odiá-lo - murmura a gatinha rajada no meu colo. Seus olhos são como pedras, duros. Ela sempre sente exatamente o mesmo que eu sinto.

Eu terei o poder. Já providenciei para que alguns guardas fossem mortos. Eu os apontei da torre para Conor enquanto eles desfi­lavam numa parada. Falei para Conor que eles haviam me estu­prado. Eles foram mortos. Conor ficou furioso ao imaginar que a sua propriedade tinha sido usada por soldados comuns. Eles foram pendurados pelos calcanhares nas árvores e espancados até não poderem mais gritar. Os guardas sabem que eu tenho o poder de vida e de morte. Um dia todo mundo vai saber.

Conor quer que tudo fique como sempre foi. As vezes, tole­ro isso. Ele enche a minha prisão de brinquedos e fingimos que não é uma prisão. Ele enche os meus ouvidos de promessas e fingimos que eu acredito. Ele enche a minha vida com o vazio dele e eu finjo que estou completa. Ele ainda não confia em mim, mas vai confiar. Ele quer confiar. O pobre Conor mente com tanta facilidade para si mesmo. Pobre homem; sabe o que mais? Ele não faz idéia da diferença entre o ódio e o amor. Eu posso induzi-lo a pensar qualquer coisa. Posso até induzi-lo a pensar que sinto amor por ele.

Cada vez que ele se aproxima é como se o meu coração fosse se partir novamente. Eu o amei tanto... tanto! Pode-se pensar que ele é capaz de notar o verdadeiro olhar por trás dos meus olhos e estremecer, mas, em vez disso, ele chora, se ajoelha à fren­te da minha cadeira e implora pelo meu perdão.

Eu te amo - ele repete diversas vezes. E depois me olha com uma expressão animalesca. Ergue ligeiramente as sobrancelhas. Está à espera. Eu percebo com surpresa que o que ele espera é que eu também diga que o amo.

Tudo que sei é que se para ganhar a confiança dele eu tiver que me apaixonar por ele de novo, farei isso, só para feri-lo.

Sou sua prisioneira. Como é que você pode esperar que eu te ame? - eu digo.

Você me amou.

Desvio os olhos. Isso é insuportável!

Você acha que pode me amar de novo? - ele pergunta, enquanto inspeciona suas mãos limpas.

Sou sua, sou os despojos de sua vitória - digo, muito espan­tada com a pergunta dele.

Ao ouvir essas palavras, ele ruboriza como um menino.

Estava fora do meu controle - ele resmunga. Ora, claro, meu querido, não tem nada a ver com você. Pobre inocente. Olha só como feri os sentimentos dele! Mas minto tão bem que quase sinto pena dele.

Então, quem fez isso comigo? - replico, retirando a cober­ta de cima do meu colo de modo que ele possa ver minhas belas pernas. Ultimamente, ele odeia quando tem que olhar minhas pernas. Elas o ofendem.

Foi um acidente - ele resmunga. - Você sabe disso. - Ele balança a cabeça, menosprezando o ocorrido. - Isso precisava acontecer, você não entende, Signy? Não tinha como dar um fim nisso, tudo já estava em andamento há muitos e muitos anos.

O pacto era impraticável. Havia muita gente de ambos os lados que queria acabar com o pacto. Era Val ou eu. Os deuses quise­ram assim!

Por isso eles lhe deram a faca - eu digo, apontando para o objeto pendurado em seu cinto.

Claro, claro - Conor assente. Ele está surpreso por eu en­tender isso, mas não tão surpreso quanto eu por ele acreditar nas minhas palavras. O sarcasmo não quer dizer nada para ele.

A faca foi oferecida a mim - ele concorda.

Balanço a cabeça, que parece estar prestes a explodir. Mas nada disso transparece no meu rosto. Nunca deixo que nada transpareça. Se alguma coisa transparecesse no meu rosto diante de Conor, eu me transformaria em pedra.

Se você quer me amar, Conor, precisa me conquistar. Nada mais será de graça. Você precisa me mostrar o quanto me ama.

Como? Me diz como...? Qualquer coisa.

Me deixe sair daqui - respondo, enquanto vejo seus olhos se arregalarem. O que ele esperava que eu pedisse? Chocolates?

Não é possível...

Porque você não me ama.

Não é isso! É que existem pessoas poderosas, inimigos; os mesmos que me forçaram a matar o seu pai. - Ele está mentindo, é claro. Mas já está pensando que vou acreditar nele porque qua­se já convenceu. Ele pensa tanto em si mesmo que até acredita nas próprias mentiras. — Não vou pôr você em risco, você é mui­to importante para mim - ele diz.

Então mate os seus inimigos.

Não, eu preciso deles! Ainda não, ainda não, Signy. Me dê um tempo!

Eu não entendo. Por que é que ele me mantém aqui? Será que ele tem medo de mim? Ou, no fundo, percebe que eu signi­fico a destruição dele?

Deixe-me saber quando, antes que você volte. - Aponto para a porta.

Você não entende. - A voz de Conor baixa. E agora ele começa a falar de política. Ele traça uma imagem de associações poderosas, grupos de homens e mulheres que trabalham contra ele, contra nós, pessoas fortes demais para serem derrotadas. Ao contrário de Vai, acho que foi o que ele quis dizer. Essas pessoas precisam ser agradadas.

Pelo menos por enquanto - ele implora. - Você é capaz de entender isso?

Eu suspiro. Meneio a cabeça com hesitação, como se duvidan­do se devo acreditar nele, e o pobre Conor acha que me enganou. A única pessoa que ele engana é a si mesmo. E claro que ele pensa que metade do mundo quer destruí-lo. E quer. Só que eles não estão necessariamente nos lugares que Conor acha que estão.

Concordo com um aceno de cabeça, escuto, aceno mais um pouco. E fecho a cara.

Você deveria ter me contado tudo isso antes.

Conor suspira e sorri para se desculpar. Como ele consegue passar por cima da vida de todos da minha família com tanta tran­qüilidade!

Um dia eu vou me libertar deles - ele me promete. - Vou matá-los, cada um deles. Você terá a sua vingança. Mas isso leva tempo!

Ah, Conor, meu querido, as suas promessas! Tantas promes­sas feitas! Mas vou tomar providências para que esta promessa seja mantida.

Eu quero ter as cabeças deles antes de ter você - digo a ele.

Eles vão morrer; você terá sua vingança - ele repete com ansiedade. Nós sorrimos e concordamos um com o outro. Os inimigos imaginários acabaram se tornando reais. E por causa deles que fico presa nessa torre. E por causa deles que minhas pernas estão aleijadas, foram eles que destruíram nosso amor. Nada disso tinha relação com Conor. Pelo contrário, ele me aju­daria na minha vingança.

Sou obrigada a desviar os olhos. Como posso manter esse acordo de mentiras? Quanto tempo isso vai durar?

Se durar para sempre, vou sustentar isso para sempre. Esse é o tempo que vai durar.

Conor - digo com tristeza. - Oh, Conor. Não espere que eu acredite por muito, muito, muito tempo nas coisas que você diz. Ora, claro, ainda te amo... - Ele olha com prazer para a mentira que escoa com tanta facilidade dos meus lábios. - Claro, ainda te amo, apesar de tudo. Mas vou precisar confiar em você antes que me toque outra vez. Foram essas pessoas que deram as ordens para que eu ficasse aleijada. Foram elas que o forçaram a destruir o meu pai. E você me diz o quanto você é forte, mas com essas pessoas o intimidando dessa maneira me parece que você é fraco. Você diz que nunca quis isso. Muito bem, prove para si mesmo. Traga as cabeças deles para mim.

Ele perdeu a paciência e explodiu, enfureceu-se porque o cha­mei de fraco e o acusei de ter sido intimidado, embora ele pró­prio tenha dito isso. Obviamente, Conor é tudo, menos fraco. E ele quem intimida. Bem, deixe que ele se engasgue com suas pró­prias mentiras. Ele atira uma cadeira na porta e quase me acerta, e, por um instante, acho que vai me estuprar. Deixe Conor para lá. Sobrevivi a coisas piores que isso. Mas é estranho quando me dou conta de que ele nunca levantou a mão para mim quando eu não queria; não naquelas ocasiões, nem nunca.

No fim, ele quebrou mais alguns móveis e se acalmou. Já co­meçou, pensei. Minha vingança. Terei as cabeças que ele prome­teu a mim, cabeças de gente inocente, sem dúvida, mas será o pretexto para ele me libertar. Vou pegar tudo de volta. Conor quer tudo, quer matar meu pai, entregar meus irmãos para o Porco e depois barganhar o meu amor. E um louco! Essa é a sua fraqueza. Ele realmente acredita que pode ter tudo o que quiser. A mim, inclusive.

Vai levar tempo, mas as coisas estão em andamento. O pro­blema é Siggy. Eu sou forte, mas ele é fraco. Como posso fazer o meu irmão se fortalecer? Quem é que está lá para ajudá-lo? Ou para moldá-lo?

 

Esta história acompanha o transcorrer dos anos. Começa com crianças e termina com homens e mulheres adultos. Existem be­bês. Os bebês crescem; alguns deles, pelo menos.

Conor mantinha o esqueleto de Val fixado nos altos portões do Estado. As palavras "Rei de Todos, Ele a Tudo Contempla" esta­vam inscritas em bronze e aparafusadas no muro acima dele, de onde fitava cegamente o mundo enquanto as ervas se enraiza­vam nos seus ossos e a chuva derramava lágrimas no seu rosto. Um tordo fez ninho entre as suas costelas e por um tempo ele teve um coração que outra vez tremulava dentro dele.

Signy não via nada disso, mas ouvia a respeito. Conor dera ordens para que ela não soubesse de nada, mas as crianças se aglomeravam do lado de fora da torre e zombavam dela.

- Como é que tá seu pai? Como é que tá seu pai? - Signy fechava as cortinas e chorava. Conor lhe falou que as crianças estavam mentindo, que os inimigos dele as haviam colocado lá para atormentá-la. No entanto, Signy sabia que Cherry nunca mentia.

Uma das crianças arranjou um filhote de gralha e o treinou para dizer "Como é que tá seu pai? Como é que tá seu pai?". O filhote sentava nos beirais das casas e berrava essa única frase dia após dia. Signy teve uma conversa com Conor e, dessa vez, ela queria ação. A gralha e a criança desapareceram e a floresta ao redor da torre tornou-se território proibido para o resto do Es­tado. O isolamento de Signy na torre aumentou.

No mundo lá de fora as campanhas de Conor continuavam com um sucesso crescente. A terra dos meio-homens estava repleta de esqueletos bizarros, que eram bicados e roídos à medida que a fome se intensificava. No outro lado do território, os meio-homens mendigavam, roubavam e pediam empréstimos aos seus criado­res em Ragnor e em outras cidades e metrópoles vizinhas. O povo lá de fora não amava os meio-homens, mas tampouco ama­va Londres. Convinha a eles que Conor e os meio-homens esti­vessem em pé de guerra. Isso lhes poupava de semear a guerra com as próprias mãos.

Os meio-homens mais organizados elegeram líderes e luta­ram. O nome Dag Aggerman tornou-se conhecido - um terrorista na visão do chefão de gangue, um bicho-papão no ideário povo londrino, um guerreiro da liberdade para os meio-homens. Mas ninguém detinha Conor. Raça após raça, os meio-homens eram dizimados.

Desde o início, Conor havia planejado o genocídio dos meio-homens, mas ele já estava acometido pela insanidade dos tiranos. Seus propósitos militares originais começaram a se transformar na filosofia do ódio e, por fim, num ato de fé. Os meio-homens não eram simplesmente inimigos, eram aberrações. Somente as raças criadas pelos deuses podiam caminhar pela terra. Qual­quer um que tivesse o menor sinal de sangue animal era inteira­mente bestial; imundo, obsceno, monstruoso.

Durante décadas, ocorreu reprodução interna e tráfico se­creto no interior da Muralha, e nos últimos meses muitas raças de meio-homens de aparência mais humana se arrastavam furti­vamente para tentar escapar das batidas policiais. Por isso, a bus­ca aproximou-se do lar, invadindo a própria Londres e as árvores genealógicas. As aparências podiam ser ilusórias; o mal era astu­to. Conor via sangue meio-homem onde lhe convinha.

Agora, ninguém mais estava a salvo. As estranhas idéias de Conor sobre a pureza racial se alastraram como uma doença em um grande número de pessoas. A polícia secreta estava nas ruas. Os indivíduos comuns tornaram-se espiões - filhos contra pais, professores contra alunos. Se alguém tivesse uma fissura no pé ou marcas na língua, não era humano. Mais da metade da popu­lação nas áreas próximas da Muralha tornou-se animalesca da noite para o dia.

Enquanto Conor se enfurecia e lutava contra o mundo inteiro, o seu maior inimigo estava em casa e tinha o sangue mais puro possível.

Signy havia fisgado Conor de um jeito que ele não conseguia entender nem acreditar. Ela jogava com ele com a paciência de quem passou a vida inteira no cativeiro. Um dia, ela deixava que ele a beijasse e a abraçasse; no dia seguinte, ela chorava incontro- lavelmente quando ele se aproximava dela. Um dia, ela lhe reve­lava segredos que só compartilhara com Siggy; no dia seguinte, ela recuava aterrorizada quando ele erguia a mão para coçar a própria bochecha. Um dia, ela o deixava desabotoar sua blusa e beijar seus seios; no dia seguinte, ela o atacava quando ele tenta­va beijá-la.

Até que chegou o dia, um ano após o início da campanha de Signy, em que as provocações que ela fazia com Conor alcança­ram o resultado inevitável. Signy deixou que ele a carregasse, e eles fizeram amor. A conversa na cama girou em torno de exérci­tos e generais, de ataques surpresa e estratégias. Conor delirava de felicidade, achando que já possuía tudo que queria, mas na visita seguinte Signy se desesperou de frustração, humilhação e medo.

Deixe-me sair daqui - ela choramingava sem parar.

Não vou arriscar. Nossos inimigos...

Traga-me as cabeças deles - ela insistia. - Traga-me as cabe­ças deles. Destrua os nossos inimigos. - Signy sabia muito bem que os inimigos de Conor existiam apenas na imaginação dele. Cherry transmitia fielmente todas as informações; fazia muito tempo desde a última divergência proveitosa no governo de Conor e de seu pai, Abel. O poder do tirano crescia diariamente, assim como sua loucura. Os inimigos a respeito dos quais ele falara para Signy podiam ter começado como mentiras úteis para negar a responsabilidade dele pelo que acontecera, mas logo se torna­ram bem reais para Conor. Eram como pesadelos; quanto mais Conor exercia o seu controle sobre o mundo, mais fortes esses pesadelos se tornavam.

Mate-os. Mate todos eles - disse Signy. - Você já fez uma vez. Por que não fazer de novo?

Conor mordeu os lábios e balançou a cabeça. Ele queria Signy ali, onde ele podia vigiá-la. Ela já tinha quase o convencido de que o amava, mas a confiança era mais difícil. Como é que Conor podia confiar em alguém, se não confiava nem em si mesmo?

Enquanto isso, Cherry se infiltrava em todo lugar. Que grande espiã ela dava com suas diversas formas! Cherry sentava debaixo das cadeiras, nas conferências e nos comitês. Cherry se escondia atrás das cortinas ou se empoleirava nos peitoris das janelas, en­quanto os chefes da segurança maquinavam plano após plano, não para destronar Conor, e sim para convencê-lo da lealdade deles. Cherry ficava à escuta dos grandes e pequenos homens, de modo que Signy podia surpreender Conor com suas idéias a respeito do que ocorreria, a mando de quem, quando e como.

Mas como é que você sabia? - ele perguntava.

Conor não estava apenas apaixonado, ele também estava impressionado. Signy tinha uma compreensão quase mágica dos assuntos de Estado.

Dois anos após Cherry ter encontrado Siggy na praça do mer­cado, Signy e Conor dormiam juntos regularmente. Certa noite, pela primeira vez desde o assassinato da família de Signy, Conor pegou no sono deitado na coxa dela. Ou assim pareceu. Na verda­de, ele estava fingindo. Signy o abraçou com tanta ternura quanto abraçaria um bebê e afagou seu pescoço, e se pôs a observá-lo com olhos lacrimejantes enquanto Cherry se detinha na porta de um quarto vizinho com uma faca de cozinha afiada na mão.

Ela balançou a cabeça. Mesmo que não tivesse adivinhado que Conor apenas a testava, seria muito fácil matá-lo. Isso arrui­naria tudo. Ela queria o mundo inteiro dele em suas mãos.

Viu? Peguei no sono. Confio em você. - Ele se gabou ao abrir os olhos. Mas Signy balançou a cabeça, suspirou e disse que se ele confiasse mesmo nela, ele a deixaria sair de sua prisão. - Um dia - ele falou. E ele já começava a pensar que um dia talvez fizesse mesmo isso.

 

Muswell Hill é um lugarzinho desgraçado para se viver. Ele me serve como uma luva. Conseguimos esse grande e velho aparta­mento no quarto andar de um prédio de tijolos vagabundo e feio que dá para a rua principal. Tínhamos condições de pegar um melhor, mas os bons prédios chamam atenção. Gosto de Muswell Hill. O crime organizado é abundante nas ruas. Quer dizer, você pode se perder na multidão.

Só se vêem lâmpadas a óleo e velhos móveis empoeirados, mas tem uma ótima vista do leste de Londres e o mercado está na rua abaixo de nós. Tudo isso pode ser visto - metade das pessoas mastiga folhas de repolho catadas na sarjeta e outra metade faz troca de vídeos. Dá para conseguir boas coisas no mercado de Muswell. Graças ao crime organizado, é claro. Passo muito tem­po sentado aqui em cima com meu binóculo, vigiando as coisas. Na verdade, não faço mais nada. Isso se chama estar deprimido. Melanie enche os meus ouvidos. Ela está sempre fora ou atarefada. O tempo todo ocupada. Isso me assusta. Eu devia acompanhá- la, vigiá-la. Amo essa velha porca fedorenta. Mas não posso. Quer dizer, não consigo me convencer a fazer isso.

Cerca de um ano após Cherry ter nos encontrado, voltei à Cidade pra ver o que Conor havia poupado do nosso território e não tinha mais nada por lá. Tudo acabado. Ele teria mudado até o traçado das estradas se pudesse. Ou seja, foi uma estupidez ir até lá. Signy sempre me falava: ainda deve haver algumas pes­soas, você só precisa cavar bem fundo. Bem, eu cavei. E não voltaria mais.

Conor não tinha apenas nos derrotado na batalha, ele tam­bém aniquilara tudo que se relacionava com os Volson. Não só a família. Não só os generais e os gângsteres. Nem só os mercado­res que enriqueceram com Val, nem os importadores e exporta­dores, nem os contrabandistas, nem os grandes proprietários de lojas. Foi todo mundo. Não importava o quanto fossem peque­nos. Se eles eram pequenos sob a nossa regência, Conor os mata­va. Até mesmo os homens e mulheres pobres que nada possuíam, até as crianças. Qualquer um que falasse com carinho de nós, qualquer um que nos admirasse, qualquer um que aparentasse nos admirar... todos foram exterminados.

Lá fora existe uma indústria. Eles fazem sacrifícios contínuos em honra ao Pai de Todos ao longo de toda a Moorgate. Veja só... Conor nos roubou até o nosso deus. Fui andando até lá; eu os vi. Eu os conhecia. Pendurados pelos pés, mãos atadas nas costas; homens, mulheres e crianças com sangue escuro gotejando de suas bocas e caindo pelo chão. Meio quilômetro deles. Eles os penduravam em qualquer coisa que estivesse disponível - dos postes de iluminação, sinais de trânsito e janelas até os mastros dos andaimes presos de janela em janela, e se não fosse assim eram simplesmente pregados na parede pelos calcanhares. Já havia se passado meses após nossa derrota e todos os dias Conor encon­trava novas vítimas.

Tudo isso por conta de qualquer resquício de esperança que poderíamos ter deixado. Não havia mais ninguém. Todo mundo sabe que um território não é uma terra, é um povo. Eu e Signy somos praticamente os únicos remanescentes.

E mesmo assim ela quer que eu lute contra Conor! Lutar com o quê? Com Melanie e Cherry, armadas com lixas de unha? E, bem, Melanie de vez em quando me vem com esse papo de "a resistência". E o que é isso? Um bando de animais de fazenda bran­dindo armas enferrujadas no ar. Tudo bem, já vi meio-homens o bastante para saber que eles não são os monstros que todos imagi­nam, mas isso não quer dizer que eles possam ser impelidos a lutar contra uma organização como a de Conor. Melanie, ela tem um bom coração; é só ver o que fez por mim. Eu a amo, ela é tudo que tenho. Mas eu não confiaria nela para sentar à mesa, eu não a incumbiria dos planos para uma invasão.

O que realmente me preocupa, no entanto, é Signy. Como ela consegue suportar? Depois de tudo que ele fez! Ela ainda carrega os ferimentos no corpo; está aleijada. E, mesmo assim, permite que seu carcereiro entre. Eles fodem; ora, de que outra maneira você quer que eu fale? Fazem amor? E a troco de quê? Por vingança, foi o que me disseram. Bem, eu não acredito muito em vingança. Quer dizer, para que isso? O que é que isso faz? Eu não engulo. É uma desculpa. Ela não está lá pelo bem de nossa família. Ela está lá porque quer estar lá. Ela podia sair quando bem entendesse. Ela podia estar comigo nesse exato momento se qui­sesse, mas prefere continuar lá com Conor. Depois de tudo que ele fez! Quer dizer, esqueça o que ele fez com Val e com Ben e com Had. Esqueça o que ele fez comigo. Olhe só o que ele fez com ela!

Às vezes me dá vontade de vomitar as lembranças que tenho dela. Mas não posso, simplesmente não posso. Ela é minha mana e eu a amo. Ainda a amo mesmo quando a odeio. Isso é tudo.

Bem, Signy era durona, mas vamos ser honestos, ela já tinha agüentado demais. O que passei foi muito ruim, mas ela realmente gamou por Conor. Ela o amou. Ela acreditou nisso e agora não pode desistir. Acho que isso a deixou louca.

É o que digo a mim mesmo. Ela está louca. Não é culpa dela, não é mais ela que está agindo. Não é mais a minha irmã que está lá, é uma outra pessoa. Conor acabou com tudo, até mesmo com a mente de Signy. E agora ele pode subir aquela escada e transar com o que restou dela sempre que sente vontade... e isso... ISSO... é o que não consigo perdoar. E digo o seguinte, se houvesse qualquer coisa, qualquer coisa que me convencesse de que eu tenho uma chance de enfiar uma faca nas costelas de Conor, eu faria isso, faria isso amanhã. Faria isso agora. Eu morreria por isso. Faria isso, mes­mo que custasse a vida de cada alma desta cidade de Londres.

Acontece que não posso.

Eu sou assim, sempre o realista. Conor é muito forte e eu sou muito fraco. É isso, Conor destroçou Signy. Mas também me destroçou. Nós dois seguimos com nossas vidas, mas agora servi­mos para quê? Ela é um pedaço de carne que Conor usa toda vez que o impulso o domina. E eu, eu sento aqui e fico olhando para o mundo e me pergunto o que é que o mundo fará comigo em seguida, e tudo que me restou para amar e me apegar é um gordo pedaço de carne de porco com um grande sorriso no rosto chama­do Melanie.

 

                         Melanie

Essi humano, o meu Siggy, eli é rico qui nem rei i eu também.

Todo dia eu sai pra ir ao mercado. Barganhas... oinc. Barga­nhas! Tudo é barganha si ocê tem dinheiro. Achei qui catar di lata di lixo era boa compra. Agora saio o tempo todo, compran­do cumida, cumida boa, cumida ruim; é tudo cumida, né? Si num é boa pra mim vai sê boa pra outra pessoa. Eu oinc-compra barato latas amassadas di fruta e verdura, i então sô trapaceada. Oinc-oinc, rá-rá-rá! Bem, é isso que Sigs pensa, mas sô esperta demais pra isso. Não, oinc, não-não. Groinc. Eu dô um calote neles por um punhado di muedas, i depois dô cincão pra algum pobre coitado ou junto num cofrinho pro nosso Dag! Então con­to pra Sigs.

- Ah, Sigs, oinc-oinc, oinc-oinc, boo-hoo-hoo! Fui trapacea­da di novo!

Quanto mais vai custá pra ti manter em forma, Mel? - Eli vira os olho i eli diz: - I como cê gasta tanto e o armário está sempre vazio, hein, Mels? - eli fala.

É qui eu preciso de prática, Sigs. Fazer compras num é fácil pra velha Mels, eu precisa di um pouco di prática, veja bem, Sigs. Groinc - I eu fala.

Eli num gosta qui eu fique ajudando pessoas por aí, mesmo qui eu já tenha ajudado eli. Ondi eli estaria si num fosse por mim? Acho qui eli é ciumento, eu acho, sim. Groinc. Bem, é um apartamento grande, oinc, eu sou um troço muito, muito velho, num posso mudar maneira minha. Ora, eu sempre traz coisas pra casa, tudo qui eu consigo encontrar.

É tudo lixo, Mels - eli fala.

É. I alguns disso estão vivo qui nem você estava - i eu fala. Mas eli num entende.

Qui é isso, então? - Sigs fala, mostrando pra mim esse po­bre vira-lata faminto qui eu soltei na cozinha i falei pra eli si vi­rar. Sigs empina nariz arrogante. - Bem, Melanie, encontrei essi aqui enfiando os dedos no armário da cozinha - eli fala.

Oh, oh, oinc-arrogante-oinc - eu fala. - Sua Alteza compro meio quilo di porco pra comê no jantá. Mas o meio quilo di porco pega o garfo. Sua Alteza é qui é o jantá!

Outra vez eli acha esse passarinho soltando pena na cama deli, i eli ficou furioso di verdade. Groinc.

Qui isso tá fazendo aqui - eli grita, batendo os pés. - Eu odeia pássaros, eu ODEIA essas merdas de pássaros! - eli fala. Elis deve ter assustado muito eli alguma vez. Bem, eli teria ficado mais irritado ainda si soubesse qui aquele era um espião de Dag qui tinha sido ferido. Groinc. Oinc. É; eu faz um bocado por Dag; não que eu fale isso pra Sigs, eli odeia esse tipo di coisa. Fez eu prometer qui eu num teria nada a ver com a resistência, mas eu num me importo di mentir por uma boa causa.

Uma coisa é certa, tá ficando perigoso oinc-lá fora. Rei Conor, eli tá fazendo tudo qui pode pra acabá com meio-homens. Até meu velh'umano, eli quase foi pego mais di uma vez. Groinc. Com uma cara daquela, eli tem menos chance qui eu! Eli oinc-foi pego pelos homens de Conor, oinc-oinc, sim, despido e revis­tado, i elis só deixaram eli ir embora no fim porque as forca já tava toda ocupada naquele dia. Ora, sim, quando cê tem um lábio leporino, cê é inforcado. Elis faz essas execuções públicas; matança, é como elis chamam. Só os humanos di verdade num podem ser executados, você sabe. Sigs, eli tá sempre mi falando pra num sair, pra oinc-ficar dentro di casa, oinc-num faz isso, oinc-num faz aquilo. Com medo di eu ser presa, e eu também, groinc, claro que fico com medo! Mas qui eu posso fazer, sentá im casa quando pessoa precisa de ajuda? Meu Sigs, eli mi ama, i eu ama eli também, mas eli é um egoistazinho irritanti i eu num teria pequena alma deli, nem por todo dinheiro que irmã deli manda pra eli!

Claro, eli tenta fingir qui temos os mesmo direito, homens i meio-homens, oinc-todos juntos, mas, groinc! Vou acreditar nis­so quando eli entrar na luta. Groinc. Acho qui ele é qui nem a maioria, elis preferem que Conor tortura elis qui ser governados pelos meio-homens. Macacos estúpidos. Da próxima vez é a vez delis! Cê escuta essas histórias. Esse sujeito que era um general tinha olhos di pássaro, esse outro tinha os dentes di trás di uma cabra. Dente di trás é uma boa, cê não pode oinc-ver elis! Claro, isso pode ser verdade, quer dizer, isso pode ser verdade. Mas é mais provável qui é tudo invenção, groinc, pra Conor tê descul­pa pra matar quem eli quiser.

Outro ataque teve contra meio-homens uns dois dias atrás i eu quase dancei. E-oinc, eu tava na rua cum esse cara, um manda­chuva, nome importante, mandado por Dag. Eu fica falando qui Sigs num é bom, dá um tempo pra eli, eu fala. Mas eles quer eli. Eli foi um homem importante uma vez, eles acham que eli deve ser di novo.

Di qualquer maneira, fomos pegos nesse ataque. Groinc. Esse cara qui tava comigo contou qui eli era humano cem por cento, mas quem é qui sabe nesses dias? Cê tem uma mancha nas costas, cê é meio-homem. A gente tava andando... bang! Começo tiro­teio. As pessoas corriam sem rumo, corriam, gritavam. Barracas caía, fruta e verdura, a carne no chão, os cachorro latiam, os cachorro gritavam! I gritavam i berravam i urravam i rosnavam- oinc-oinc, i im todos os lugares si espalhavam laranjas.

Foi ataque da polícia. Outros soldados, elis veste as cores do chão, mas estes, não era trabalho delis se misturar, veja só. Elis queria assustar. Groinc. Funciono direitinho. Ti dizê uma coisa, si eu ver uma laranja na bacia de frutas o coração meu dispara. Então, eu i esse sujeito, nós corre se abaixando, pra fora de vista, enquanto os soldado pega qualquer um com muito pêlo, ou com nariz úmido demais. Porca velha como eu sou, seria alvo fácil, mas oinc a velha Mels, ninguém nota aqueles-oinc qui nem eu. Elis só pensa: pobre velha, di qualquer maneira ela vai morrer logo. Mas eu tava atraindo atenção di um ou dois, i tive qui sair di vista, mi escondendo atrás di uma carroça, i eu podia tê saído, mas soldado qui mi viu achou um belo porquinho pra mexê.

Esse amigo du Dags - Armatage era o nome deli eli pula, mi puxa e nós corre os últimos cinqüenta metros até nossa porta. Oinc! Nós entra pela porta e logo, logo lá está Sigs gritando:

Melanie! Mel! - Eli tá inclinado, cum mão na arma. Eli olha pra mim ofegando. - Melanie, sua vaca burra... - eli fala.

Sou uma porca - eu resmunga. Mas tive choque. Pensei que eu oinc-ia virá purê de maçã dessa vez, pensei. Groinc.

Cê qué ser pega por um desses malditos?

Num quero ficá sentada no sofá como certo cabeça-dura qui eu conheço. - Eu senta nos degraus, esperando o coração meu pará de dançá dentro de mim.

 

A bela Molly se mandou

I Cabeça-Dura ficou a enraivecer.

A bela Molly, ela transou,

Enquanto Cabeça a cama foi fazer.

 

Falei pra eli:

A bela Molly levou um maldito tiro. - Eli rosna todo irrita­do. Eli odeia essa rima porque, claro, eli mesmo eli nunca tinha transado. Eli ficô se lamentando comigo durante manhã toda sobre isso.

Cê dá uma saída i cê pode encontrar uma boa moça - eu falei. Mas eli tava certo. Uma cara que nem aquela; eli num tinha chance. Só si eli procurasse uma boa moça meio-homem, mas eli não era tão assim a favor di direitos iguais.

Então, convidado meu bota cara pra fora das escada, e Sigs franze olhos qui nem cachorro. Eli enfia cara pra fora do parapeito pra esse tal di Armatage vê. Humanos! Nunca conheci um animal tão vaidoso com a própria aparência.

Cê deu uma boa olhada? - Sigs resmunga. Depois eli vira i volta apressado pro sofá, como si fosse o único amigo qui eli tem no mundo inteiro.

 

Era um cara jovem, bonitão, só para piorar as coisas. Virei de costas, mas ouvi Mel subindo com ele pelas escadas. Eu estava furioso. Nós tínhamos feito um acordo - não trazer pessoa algu­ma para casa. Se ela queria desperdiçar dinheiro, e daí? Eu é que não queria os lixos dela emporcalhando o lugar.

Um dia desses, ela ia acabar me fazendo ter um ataque do co­ração. Ela sempre se arrisca. Eles ergueram uma forca lá no mer­cado, fileiras de traves e vigas sobre armações de tijolos. Estava claro que era uma estrutura que deveria permanecer ali por mui­to tempo. É onde eles penduram os cadáveres pelos pés, de cabe­ça para baixo, exatamente como fazíamos no elevador. De minha janela eu posso ver parte da rua. Todo dia, quando acordo, a primeira coisa que faço é pegar o binóculo e procurar pelas no­vas aquisições. Um dia desses, eu ia acabar vendo Melanie lá na forca, gotejando sangue no chão.

O fato é que Melanie só saía para fazer compras, até onde os Alaranjados sabiam. Além de ser um porco, ela é velha, feia e sem valia. Todo dia se vêem pessoas penduradas pelos pés, cem vezes mais apresentáveis que ela. A polícia secreta pára e revista qualquer um que bem entender. Simplesmente detém o sujeito e o deixa nu para ver se é humano por baixo das roupas. Aconte­ceu comigo uma vez. Eles me moeram de pancada apenas por­que sou feio. Por isso, evito sair, mas, da janela, fico de olho no movimento o máximo possível e vejo algumas coisas, isso eu afir­mo com certeza. Outro dia, vi uma garota deslumbrante; achei que eles só estavam tirando suas roupas para vê-la nua, e prova­velmente estavam. Mas logo eles tiraram a calcinha dela e adivi­nha só. Ela tinha um adorável rabinho de porco na base da espinha. A menina era bastante sexy, pelo que deu para ver com o binóculo. Seus braços pendiam para os lados e ela nem ao me­nos se importava em cobrir os seios. Ela sabia que não tinha mais jeito. E quando se olhava para o seu rosto, ela já não era mais tão sexy assim. Parecia aterrorizada. Alguns dias depois, eu a vi pen­durada na forca, junto com os outros.

Do meu canto, no sofá, eu ouvia os cochichos de Melanie com o humano na cozinha. Olhei para a televisão e me enfureci. Seres humanos! O que é que já saiu de bom deles?

Xícara di chá, oinc, chá? - Ouvi Melanie perguntar.

Chá! Eu podia ter gritado! A gente tinha um pouquinho. Chá era um luxo total, principalmente depois que a guerra começou. Cherry contrabandeou um pouco para a gente. Por que Melanie oferecia chá para aquele humano?

De repente, inesperadamente, as lágrimas começaram a es­correr pelo meu rosto. Não me pergunte por quê. Isso acontecia com freqüência naqueles dias.

Ouvi Melanie e o convidado indesejado se dirigirem para a sala de estar. Eu me levantei para sair, mas Melanie me impediu.

Trouxe essi aqui pra falar com cê.

Tentei ignorar o humano. Eu sentia os olhos dele fixos na minha cara arruinada. Ora, se ele não tomasse cuidado, eu é que arruinaria a dele. Engoli minhas lágrimas e tentei falar cal­mamente:

Você precisa parar de sair - eu disse a ela. - Quer ser mor­ta? Quer que eu seja morto?

O estranho não parava de me encarar.

O último dos Volson - ele comentou.

Como ele sabe disso? Como ele sabe quem diabos eu sou? - eu quis saber. Melanie não tinha o direito de contar para nin­guém! Dei alguns passos na direção dela. Eu estava tão furioso que poderia ter batido nela.

Melanie se limitava a me olhar. Que diabos significava aqui­lo? O que ela faria agora? Seu rosto não demonstrava absoluta­mente nada. Uma das coisas animalescas em Melanie é que ela não tinha expressões. Ela daria uma ótima jogadora de pôquer se quisesse.

Para que fazer segredo? - perguntou o estranho. Ele evita­va olhar pra mim. Coloquei minha cara na frente dele.

Dê uma boa olhada - eu disse a ele. - Aposto que você nunca viu ninguém assim. É isso que acontece quando um porco conserta a sua cara.

Só disse isso para magoar Melanie.

É o rosto de um herói - o homem replicou.

Fiquei surpreso. Eu o fitei. Franzi os olhos. Tudo o que eu tinha feito era sobreviver. Que tipo de herói era esse? De qual­quer forma, tudo não passava de besteira.

É uma honra conhecê-lo, Sigmund Volson. Nós todos nos lembramos do seu pai e das esperanças que ele fomentou antes de ser traído. - O estranho estendeu a mão.

Tudo isso já era. - Dei de ombros.

O homem, no entanto, balançou a cabeça.

Foi Dag que me enviou.

Balancei a cabeça. Aquele nome me era vagamente familiar. Melanie bateu o pé.

A resistência! - ela gritou. - A resistência. Groinc! Dag Aggerman, eli é nosso líder. Vivo lhi dizendo, vivo lhi dizendo isso, Sigs!

Era verdade, ela realmente vivia me dizendo. E eu sempre a ignorava. Para que tudo aquilo?

Um punhado de cachorros com espingardas de ar compri­mido - zombei.

O estranho balançou a cabeça.

Dag é o líder do povo cachorro. É um grande homem - ele afirmou, com um sorriso torto.

Homem? Meio-homem! Dei uma risada. Líder da resistên­cia? Amigo do povo, um cachorro estúpido? Não me diga. Ho­mens e meio-homens se odeiam desde a primeira geração. Olhei atentamente para o estranho, à procura de traços caninos. Talvez sua língua fosse manchada.

Achei que você fosse humano - eu disse a ele.

E sou. Puro sangue. É por isso que fui enviado.

Balancei a cabeça.

Uma aliança com os meio-homens - insistiu o homem. - É o próximo passo. Juntos, podemos deter Conor. A vida dos meio-homens sob o governo de líderes meio-homens tem sido melhor que a vida dos humanos sob o governo de líderes humanos.

Nós é mais civilizado qui ocês humanos - Melanie falou com presunção. Ela sempre se referia à nossa barbárie para me provocar. Bem, eu não tinha como negar isso, tinha?

Finalmente, homens e meio-homens estão unindo forças. Seu pai achou que podia unir o povo e derrotar os meio-homens antes de sair de Londres. Mas nós todos precisamos nos unir; ho­mens, meio-homens, todo mundo.

Conor é muito forte. Talvez no fim, se ele for muito longe, Ragnor o pegue. - Dei de ombros. Era inútil.

O tempo de Ragnor já passou. Eles só nos mantiveram apri­sionados porque nos fizeram odiar uns aos outros. Eles não go­vernam o resto do país, mas esqueça o país. Agora só existem cidades-Estados; Londres, Birmingham, Glasgow. Assim como nós as outras cidades também estão contra Ragnor. É a hora, Volson.

Se fosse verdade, seria interessante. Mas não interessante o bastante.

Conor é muito forte - repeti.

Conor não pode ganhar essa guerra - o homem retrucou. - As outras cidades estão se organizando contra ele. Elas é que estão nos armando. Os meio-homens são fortes e estão ficando ainda mais poderosos. Conor conseguiu coisa demais, rápido demais. Suas linhas de comércio já estão bastante diluídas. Em breve ele terá dificuldades para abastecer suas próprias tropas.

Os dois me olhavam, eufóricos e excitados, como duas crian­ças de escola pedindo pirulito. Bem, eu não tinha mais doces. Abanei a mão no ar.

Façam o que quiserem. Só não me envolvam nisso.

Você já está envolvido nisso. Odin deu a faca para você.

Odin! Era algum ciborgue de Ragnor.

Dag Aggerman acredita nisso. E eu também. - O jovem ho­mem ganhou um ar desafiador.

Que diferença faz pra alguém aquilo em que você acredita?

O estranho continuou me olhando. De repente, senti vonta­de de chorar outra vez. Eu já não havia tido o bastante? Já não era hora de me deixarem em paz?

Você ganhou a faca. Você é um herói! E você tem experiên­cia. Você sabe como organizar pessoas, você fez esse tipo de tra­balho para Val. Você é um general, um líder. Olha... - O estranho estava se exaltando. Ele realmente acreditava nessas besteiras. - Dag uniu os meio-homens, mas o fato é que nós precisamos de um humano, alguém de quem as pessoas possam se aproximar. Precisamos de você. Você é um Volson! Isso significa muita coisa. Você escapou de Conor, você derrotou o Porco! Todos conhe­cem a história de como você lutou com ele mandíbula a mandíbula. Precisamos de você.

Precisamos docê, Sigs - repetiu Melanie. Limitei-me a fitá-la. Ela sabia o quanto eu estava um caco por aqueles dias. Só porque eu conhecia alguém que havia enchido a dispensa, ela não precisava achar que eu era um líder dos homens, esqueça os meio-homens.

Meu povo precisa docê, e seu povo também - ela disse, olhando-me com seus grandes olhos felinos.

Bem, Melanie sempre me surpreende. Agora que estava de barriga cheia, o cérebro dela florescia. Agora ela era uma guer­reira da resistência!

Espremi as lágrimas com minhas pestanas e balancei a cabeça.

Homens e meio-homens; nunca vai dar certo.

Melanie abriu os braços e balançou a cabeça. Ela não preci­sava dizer nada. O seu gesto queria dizer: E quanto a nós dois, Sigs?

Eu já tivera o bastante.

Não. - E passei por eles.

Pense nisso! - o estranho gritou enquanto eu saía do apar­tamento. Tudo o que eu queria fazer era gritar bem alto. Desci correndo pelas escadas na direção da rua. Quem eles pensavam que eram? Querendo que os sonhos do meu pai fossem ressusci­tados por cachorros e porcos! Vão se foder, eu pensei. É isso aí, vão se foder!

 

É primavera. Eu vejo a cor empoada das campânulas que flores­cem debaixo das árvores. Em breve as folhas serão muito espes­sas para que se possa ver o chão e fico muito entusiasmada com as flores-do-campo. Passo horas na janela com o nariz franzido, sorvendo o azul. Peço a Conor para me trazer buquês dessas flores ou um monte de suas raízes para que cresçam no peitoril da janela. Encho o meu quarto com tudo que floresce - cam­pânulas, prímulas, narcisos, tulipas. Quando chego meu rosto bem próximo delas, sinto o aroma lá de fora. Quando fecho os olhos, imagino o vento que não sinto a mais de quatro anos em contato com a minha pele.

Cherry saiu, estou só. Na maior parte do tempo estou só. As horas intermináveis que eu passo sozinha se arrastam como as horas da eternidade.

Isso me lembra uma história que certa vez meu pai me con­tou. Em um grande e plano deserto existia uma montanha gigan­tesca, a maior do mundo. Ela se erguia imensa e inconquistável. Uma vez a cada mil anos um passarinho marrom voava através do deserto e pousava no ponto mais alto. Ele dava algumas bica­das na pedra, um-dois, um-dois, e depois partia e voava por mais mil anos. No dia em que o pássaro levou com seu bico a monta­nha ao chão, tornando-a tão plana quanto o deserto que a cerca­va, acabara então de passar um segundo da eternidade.

Um segundo do meu cárcere.

Estou só, mas não estou isolada. Cherry voa de um lado para outro com novidades intermináveis. Conor me conta suas men­tiras. Ele quer que eu tenha um filho dele, um herdeiro que car­regue seu manto. Ele acha que eu devo me sentir orgulhosa por ter sido escolhida para ser sua rainha. Ele faz promessas sobre o dia em que deixarei em triunfo a minha prisão. Ouvindo-o, você pensaria que este desejo é a única vontade dele, o único propósi­to ao qual ele se dedica noite e dia, mas já estou quase abando­nando a idéia de sair daqui. Para ele é conveniente me manter presa. Fico à disposição dele. Sou a putinha dele, pronta, à espera.

Eu me previno contra esse filho de Conor. Tenho certeza que eu vomitaria se ficasse grávida dele. Uma pequena pílula todo dia me deixa a salvo. Cherry traz para mim.

Lá... ao longe, um passarinho voa pela janela e o meu coração dispara. Será ela? Ela está fora faz dois dias, sobrevoando os cam­pos de batalha a leste, onde Conor avança e guerreia rumo a Ipswich. Seu território já é grande o bastante para que ele o chame de reino e se chame de rei. Pelo menos nesta questão ele me diz a verdade. Mas já estão reagindo contra ele. O povo das outras ci­dades e os meio-homens também. Ninguém, humano ou animal, pode ser tão estúpido a ponto de querer ser governado por meu marido. O mundo todo está pronto para lutar. O meu irmão é o único que fica sentado em casa sem fazer nada.

Nenhum sinal do passarinho marrom. Eu me viro e vou me deitar, embora não esteja cansada. Fico encarando o teto. Tem um lugarzinho à direita, bem em cima da minha cama, que gosto de ficar olhando. Na maioria das vezes, eu apenas olho, mas, em certas ocasiões, ponho-me a imaginar as coisas que essa parte do teto observa aqui embaixo, na cama. Meus olhos se acomodam ali. Fico observando por horas a fio, à espera de um leve tap, tap, tap na vidraça. Venha, Cherry; se apresse! Estou tão solitária!

 

Finalmente, ao anoitecer, Cherry chega. Eu a alimento e ouço suas novidades a respeito da guerra, a respeito de pessoas próxi­mas e distantes. Nós conversamos, damos risadas e choramos um pouco. Ela está cansada, mas não posso deixá-la dormir. Acho que eu morreria se ela fosse dormir! Cherry não se importa. Ela me ama e não consigo imaginar por quê. Talvez isso seja uma ordem dos seus criadores.

Mais tarde, ao longo da noite, encolho as minhas pernas atrofiadas e me enrosco perto do aquecedor, enquanto Cherry me conta outras histórias. Bebo um vinho quente e ouço sua voz que me comove e me acalma:

Tem uma que mora há anos dentro de um tanque. A única vista que ela tem do lado de fora é a parte de cima das árvores, atrás de sua prisão. Tem outra cujo único amigo é uma criatura sem forma e sem alma. No seu coração, amor e ódio convivem lado a lado, até que se fundem e se tornam uma coisa só. Ela tem uma alma apaixonada pela busca por vingança.

O vento forte bate nas laterais da torre de água. O interior da torre é confortável e quente. Gentilmente, Cherry conta a história que mais gosto de ouvir, a minha própria. Ela sabe o que penso e o que sinto antes mesmo que eu saiba:

No início ela tinha um coração aberto, cru, de modo que todos podiam perceber, mas aos poucos ela foi aprendendo a conter as lágrimas. Quando o tirano veio visitá-la, ela aprendeu a sorrir e a ficar feliz. É claro... - E Cherry se aproxima para ver o meu rosto enquanto coloca tempero na história: - E claro que agora ela sabe que está louca, e não está na ignorância. Sim, sim, o plano de Signy era fingir sanidade. Esta era a sua loucura.

Talvez os deuses quisessem dessa maneira - sugiro, e Cherry sorri como se conhecesse todas as respostas.

Às vezes me pergunto se ela conta essa história para mais alguém. Para Siggy? Para a velha mulher-porco que meu irmão tanto ama? Ela é um problema; não é o tipo de companhia que desejo para Siggy. E onde é que Cherry aprende essas histórias que enxergam o interior das coisas tão claramente que quase se pode pegá-las e numerá-las? Será que aprendeu com seu pai, Loki? Ou talvez do próprio Odin? Ouço tudo o que ela tem a dizer, não quero perder nem uma única palavra.

Qual deles o Porco comeu primeiro, Cherry? Foi Had ou Ben?

Had, foi o Had. O monstro abriu as mandíbulas e deu uma mordida nele, como se os ossos fossem cenouras frescas e sabo­rosas. O sangue jorrou. Siggy e Ben gritaram. Eles sabiam que logo seria a vez deles.

Cada história contada pela minha Cherry transmite a mais pura verdade. Ela me fala sobre Dag Aggerman, o líder cachorro que vem acumulando vitórias sobre Conor com nossa ajuda. De tempos em tempos, Cherry passa informações para ele. As coisas vão esquentar quando Siggy se juntar a ele. Ela me narra todas as intrigas internas do Estado e as entre os generais. Sei quem está aliado com quem, quem está tramando contra quem, quem é forte e quem é fraco. Mas de uma coisa eu sei muito bem: Conor é forte. Todo o resto é fraco.

Às vezes, ela me conta a história do que ainda vai acontecer:

... E quando a criança nascer, o tirano vai se encher de alegria, sem saber que o garoto vai significar a destruição dele.

Que garoto? Que garoto, Cherry?

Cherry, no entanto, franze as sobrancelhas e balança a cabe­ça, como se as palavras fossem colocadas em sua boca. Eu e mi­nha gata, contando histórias fantásticas que um dia se tornarão realidade. Sozinhas na noite, enquanto o vento bate.

O pai não é o pai, o pai é o irmão. O filho não é o filho. A mãe é a irmã...

Acorde, Cherry, você está sonhando. - Acontece que lem­bro de cada palavra que ela diz. Inclino-me para a frente e toco na sua boca. - E quando ela desce da torre, o que ela vê?

Ela vê cabeças empaladas que lhe dão as boas-vindas. Flo­res amarelas estão entre as cabeças.

E o que ela escuta?

Ela escuta as tropas gritando: "Salve a rainha! Salve a rai­nha!"

E como ela se sente, Cherry?

Ela se sente vitoriosa. Mas ao mesmo tempo está tão, tão cansada...

Chega disso. Conte a respeito de Siggy. Conte, conte...

Todos os dias, Siggy se levanta e joga água no rosto, mas toma cuidado para não tocar na pele. Ele mora numa casa sem espelhos. Seu rosto é a única coisa no mundo que o assusta, e ele se esqueceu de como amar.

Mas e quanto ao coração dele? E quanto aos planos dele, Cherry!

Ele não tem planos; só quer ser deixado em paz e deixar tudo para lá. Ele não tem coração, seu coração foi arrancado.

Sua única pretensão é manter a mulher-porco alimentada e gorda, e sempre que ela bate na barriga e grunhe, ele se acha tão sortudo quanto é possível alguém como ele ser.

Meu pobre Sigs! O que fizeram com você? Conor fez de você um fraco e agora essa meio-homem está lhe transformando num animal. Como posso fazer de você novamente um homem?

Meu amado vem me visitar durante os dias que passa no Estado, às vezes duas ou três vezes por dia. Ele traz presentes para minha prisão. Tapetes de seda, cortinas espoliadas de casarões antigos. Aparelhos eletrônicos roubados dos meio-homens que os com­pram ou até mesmo surrupiam de Ragnor. Certa vez ele me trou­xe um gatinho.

Para fazer companhia ao seu outro bichano.

Aceitei. Aceito todos os seus presentes. Dei creme e peixe pa­ra o gatinho, mas no dia seguinte ele desapareceu. Quando per­guntei a Cherry onde ele estava, ela lambeu a mão e disse que não fazia idéia. Desconfio que ele não tenha vivido muito. Mi­nha Cherry é um bichano ciumento.

Em outra ocasião Conor me trouxe um canário dentro de uma gaiola de ferro trançado. Ele disse que o pássaro tinha sido pego na casa de um rico comerciante meio-homem e durante uma semana fiquei de olho no canário para ver se ele assumia outras formas. Mas ele continuou o mesmo, cantando belamente todas as manhãs. Ele me fazia lembrar o lado de fora, e então Cherry pôs uma poltrona em frente ao canário, onde sentava e se punha a observá-lo por toda a manhã. Eu poderia ter pendu­rado a gaiola fora do alcance da gata, apenas por segurança, mas é claro que ela a alcançaria na sua forma de menina. Era só uma questão de tempo. Por fim, soltei o canário antes que eu flagrasse Cherry com penas na boca.

Outros presentes: informações. Notícias a respeito das últi­mas vitórias de Conor na guerra. Supostamente, isso deveria me encher de alegria:

Conquistamos Ipswich, ou pelo menos o que restou dela. Aqueles animais derrubaram todas as casas.

Era mentira. De fato, Conor havia conquistado Ipswich. Mas os meio-homens não tinham derrubado todas as casas - ele é que derrubara. Foi um acesso de raiva por eles terem se ocultado durante tanto tempo. Mas naturalmente que eu precisava me comportar como se acreditasse em tudo o que ele dizia. Por sor­te, Conor é um homem ocupado com inúmeros inimigos. Por outro lado, eu tenho apenas um inimigo. Em tudo aquilo que diz respeito ao Conor, eu me tornei uma especialista.

Outro dia, ele me bateu. Foi a primeira vez que ele levantou a mão para mim. Gostei disso porque o fato de me machucar o deixa com raiva de si próprio. Ele acha que é um sinal de fraque­za. Voltou com flores, chocolates e um pequeno dispositivo-espião de metal que seus homens encontraram no escritório de um meio-homem, para que eu pudesse observar secretamente os quartos vazios da minha própria prisão. Para ver o quê? Escon­der aquilo de quem? A ironia disso me deu vontade de feri-lo. Ele também trouxe um vestido e um folheto ilustrativo dos tan­ques uterinos. Ah, sim, ele planejava conseguir alguns tanques e um técnico que soubesse operá-los. Os meio-homens tinham es­ses tanques. Ao que parece, eles roubaram de Ragnor. Depois eu poderia entrar em um tanque uterino para fazer com que minhas pernas aleijadas crescessem outra vez.

Eu li o panfleto e pus o vestido: era reto, fino e curto, o tipo de coisa que fazia Conor me desejar. Comi os chocolates. Deixei que ele beijasse o meu pescoço e se aninhasse em meus seios. Deixei que ele deslizasse a mão pela minha perna e me tocasse... apenas me tocasse...

Aqui não.

O quê? Como assim? - Ele ficou furioso com isso. Ele me tinha à disposição por aqueles dias.

Aqui não.

Onde, então?

Lá fora. - Apontei na direção da janela.

Ele estava furioso. Como é que eu ousava impor condições a ele? Como é que eu ousava dizer o que ele podia e não podia fazer? Como é que eu ousava levá-lo a...

Você veste as minhas roupas - ele resmungou. - Então você faz o que eu quiser.

Ora, se é uma ordem, eu obedeço. Mas não espere que eu goste disso.

E foi aí que ele me bateu com força na boca.

Isso foi pelo seu atrevimento - ele disse e me deixou lam­bendo o sangue da minha boca.

Me deixe sair - gritei. - Me deixe sair! - Ele, no entanto, abriu a portinhola e desceu as escadas, sozinho, sem dizer mais nenhuma palavra.

Meus dentes latejavam nos meus lábios. Tomei isso por um bom sinal.

O que é que ele acha que eu poderia fazer se ele me deixasse sair? Matá-lo? Eu também poderia fazer isso daqui de cima. Será que ele tinha medo que eu fosse assassinada? Será que ele estava acreditando em suas próprias mentiras?

Quero que você seja a minha rainha - ele diz quando lhe pergunto isso. Mas por que é que a rainha dele tem que ficar es­condida, fora de vista? Ele não diria, talvez ele nem saiba. Mas Cherry sabe. Ela sabe de coisas que nem mesmo Conor desconfia.

Conor quer ter um filho seu - ela falou sorrindo. - Quer que você dê à luz a dinastia dele. Você sabe, ele não confia em você. Ele quer ter certeza de que a criança seja dele.

É claro, pensei. É claro. Nenhum outro homem pode me tocar.

É claro.

E eu soube exatamente o que precisava fazer.

 

Os planos dos deuses, as reviravoltas do destino; não tente en­tender. Apenas digo isso: às vezes, existe a sensação de que os deuses estão concentrados; então se apresenta um momento, uma pessoa, um lugar no qual eles podem se alimentar. Este lugar ou evento tanto pode proporcionar alegria ou tristeza como pode não significar absolutamente nada para os homens e os meio-homens. Mas quando aqueles de nós que compreendem são to­mados por essa sensação das coisas se juntando, sente-se então um gosto de destino... Sim, sim... até mesmo Odin lamberia os beiços com este pensamento.

Eu sempre soube que ela estava bem no centro das coisas.

Posso farejar isso ao redor de Signy. Posso farejar isso ao re­dor de Siggy, mesmo ele sendo incrédulo. Siggy afirma que os deuses são criações de Ragnor! Pedaços de metal e misturas de criaturas! Que diferença faz se suas máquinas são de carne e osso ou de plástico e barras de metal? O destino é feito da carne dos momentos e do fôlego dos séculos. Qual é o técnico de Ragnor que pode manufaturar um único segundo extra de tempo? Ou mesmo acabar com esse segundo?

Isso é algo para os deuses, e eu sou a sacerdotisa deles.

- Cherry, eu posso deixar aqui? - ela perguntou.

- Pode sim. Mas não comigo - respondi.

Os formatos são fáceis. Só é preciso ter mais de um para enten­der na mesma hora como passar de um para outro. Toda magia é assim; é algo ofertado que jamais se pode entender até que se o tenha, e aí se vê que não há absolutamente nada para ser com­preendido. Você tem os seus dons. Visão. Tato. Audição. As sen­sações do sexo. Os deuses lhe deram essas coisas. E eles lhe deram um formato de menino ou de menina para se vestir. Eles me deram um formato de menina, um formato de gato, um formato de pássaro e o formato de uma noz.

A dádiva dos formatos - ou o empréstimo deles. Acontece que isso é difícil. Tenho que escrever as runas e conversar com os Dadivosos, os próprios deuses. Sei como chamar Aquele que é Astuto, o deus do fogo e dos truques, o doador dos formatos. Falo com ele da maneira que nós falamos; ele aceitou as runas e autorizou a minha solicitação.

Se eu soubesse quais eram os planos dela, eu não teria pedido.

- É claro - ela gritou. E ela se vestiu... de mim. Vestiu o meu formato de pássaro para que ele a tirasse da prisão - minha Signy voa com minhas asas velozes enquanto eu fico sentada em casa, no seu formato de menina. Ela pegou o meu formato de humana escondido lá onde os formatos se adaptam, bem no fundo, espe­rando para serem retirados, e o dilatou, dominou a carne e se apossou dela. O tempo todo, eu, a obediente Cherry, fiquei dei­tada em sua cama, sentada em sua cadeira de rodas, usando a sua boca para comer. Falei com Conor e o proibi de dormir comigo, como ela me instruíra. Ela, a minha Signy, vestindo o meu for­mato de gato, avançou para o norte e se dirigiu até a casa dele, onde se vestiu com minhas melhores roupas - de mim, do meu formato de menina. Com o meu corpo, ela bateu suavemente na porta de seu irmão...

 

Ouvi uma batida suave e fiquei com medo.

Quem está aí?

Não houve resposta. Mas novamente uma batida suave. Pen­sei: quem é que entra silenciosamente pela porta da frente e de­pois bate na porta do meu quarto?

Arrastei-me para fora da cama e puxei uma arma que manti­nha debaixo do travesseiro. Eu estava a dois passos no tapete quando...

Siggy...

Devia ser encrenca. Vesti as calças e abri a porta. Ela estava pálida como a lua, ansiosa, definitivamente aquele não era o seu jeito habitual.

O que houve? - perguntei. Parecia perigoso. Por que ela viera tão silenciosamente, tão tarde e, ao que parecia, em segredo?

- Siggy.

Ela ficou parada e sorriu para mim, um sorriso pequeno e estranho. Comecei a me aproximar dela para conduzi-la até a cozinha, mas ela se apoiou em mim.

Você está tremendo - comentei. Havia lágrimas em seus olhos. Ela se limitou a balançar a cabeça e sorrir.

Cherry? O que é isso? O que aconteceu?

Sentei com ela na cama. Ela esfregou os olhos com os dedos e tocou no meu rosto.

Você é lindo - ela sussurrou.

Dei uma risada. Eu, lindo! E depois senti um calafrio. Ela está zombando de mim, pensei.

O que você quer? - perguntei. O tom de minha voz era ríspido.

Pobre Sigs, o que fizeram com você?

Limitei-me a balançar a cabeça. Não entendi. Definitivamen­te, Cherry não era ela mesma. Aquilo não era como Cherry.

Ela se inclinou, pôs os braços em volta do meu pescoço e en­terrou o rosto no meu ombro. Abracei-a com muita delicadeza. Senti tanta ternura! Senti que se eu a apertasse, eu poderia parti-la em duas. Eu podia sentir nossos corações batendo - bang, bang, bang! Ela também devia estar sentindo, porque ergueu os olhos e sorriu. Eu não sabia o que fazer. Ela me parecia tão estranha.

Abaixou o rosto, bem próximo de mim, pousou a mão em minha perna e acariciou-a. Beijou o meu pescoço...

... E pensei... ahhhh...

Esperei por um instante. Eu não queria cometer equívocos. Alguns anos atrás ela havia sido uma menina, mas agora estava crescida. Sua vida passava com rapidez, entende? Ela era mais gato que humano, sua vida passava com a velocidade dos gatos. Ela crescera mais que o bastante para isso. Meu coração batia tão forte que cheguei a pensar que poderia assustá-la. Era isso que ela queria? Havia se passado tanto tempo desde que tive uma garota. Agora nenhuma garota seria capaz de me querer, nem mesmo um animal iria me querer agora. Mas sua mão me acariciava e ela pôde me sentir inchando ao seu toque.

Isso é gostoso - ela disse. Abaixei a mão, toquei no seu peito e ela suspirou, suspirou bem suavemente. Eu queria ter certeza de que era isso mesmo que ela queria. Eu queria que ela dissesse sim, durma comigo, faça isso comigo. Eu queria ter cer­teza de que ela não estava fazendo isso só porque sentia pena de mim. Eu queria que ela me dissesse que me queria.

Ela beijou a cavidade do meu pescoço e cheirou minha pele. Fiz o mesmo com ela. Então, de repente, eu me apressei, segurei seus seios e toquei nos mamilos.

Hummm. - Ela suspirou e inclinou-se para trás. Inclinei-me sobre ela e comecei a tirar seu vestido... lenta e delicada­mente, era como se estivéssemos enfeitiçados... como se ela estivesse sonhando e eu pudesse acordá-la se fosse muito bru­to. Mas eu precisava me esforçar muito para me concentrar e não ser violento.

Siggy, Siggy - ela murmurou. Gemeu um pouco. Vi seus olhos se abrirem e a observei enquanto ela me observava a obser­vá-la em nosso beijo, e de repente seus olhos se fecharam. Ela enrijeceu debaixo de mim e pensei: que merda, ela está acordan­do! Mas ela esteve completamente acordada o tempo todo por­que levou a mão até a minha calça e começou a me puxar.

... Sim? - falei.

Sim. Sim! - Ela riu. Puxei seu vestido, cheirei sua pele e...

 

Que espécie de união é essa? Gêmeo com gêmea, irmão com irmã, um sem saber quem é o outro. Ou será um trio - humano com humano e com meio-homem, junto a um formato que era um presente do deus dos truques? Cherry, parte humano, parte gato, parte pássaro, parte deus, está lá dentro, em algum lugar. A metamorfosista, a garota louca e aleijada, e o garoto do rosto arruinado.

O aroma do destino atraiu no pequeno quarto aqueles que se alimentam de fardos, exatamente como Cherry predissera. Se al­guém tivesse olhos capazes de enxergar tais coisas, teria visto os recém-despertos deuses pendurados nas paredes, agrupados na janela, perscrutando, observando, participando. Odin, o Pai de Todos, estava ali, observando o que já sabia que ia acontecer. Frey e Freya, divindades da fertilidade, estiveram ali. Outros deu­ses recém-nascidos, emergidos dos tijolos, das rodas enferruja­das, do maquinário quebrado, do concreto e do aço também apareceram para respirar o aroma do destino, como se isso fosse a fumaça de um sacrifício ofertado a eles. E Loki, o deus que podia desviar a passagem do tempo e levá-lo até onde estava fadado a ir por rotas súbitas e inesperadas, mas que não podia mudar nada, sorria dependurado na parede como uma sangues­suga. É claro que ele estaria ali. Ele não perderia aquilo por nada neste mundo.

 

Ela me disse que tinha aprendido a fazer profecias e que eu seria um grande homem, um rei, e que eu derrubaria Conor e o meu reinado se estenderia para mais além de onde qualquer outro homem que já houvesse existido. Ela sussurrou essas coi­sas no meu ouvido, mas não dei importância porque naquele momento eu estava muito ocupado. Lembro-me de ter pensado vagamente que Signy devia tê-la mandado, era por isso que ela estava fazendo aquilo. Mas eu não me importava com o motivo que a impeliu a estar ali comigo... eu simplesmente estava mui­to feliz por ela estar aqui.

Acontece que quando fizemos o que fizemos eu tive a sen­sação de que a estava usando, embora ela fosse bastante perspi­caz e eu nunca tivesse falado nada com ela. Ela pareceu ter gostado. Mais tarde, fizemos de novo e ela ficou em várias po­sições sem que eu pedisse - dessa e daquela maneira, de bruços contra o travesseiro, olhando atentamente para mim, ela pare­cia amedrontada, agora que lembro do que aconteceu. Talvez ela apenas quisesse ser abraçada, mas de alguma forma não con­seguia interromper o sexo. Mas ela teve um orgasmo, e pareceu bom. Adormecemos abraçados e, quando acordei, ela já tinha ido embora.

Alguns dias depois eu a vi de novo, mas ela estava furiosa. Não deixou que eu me aproximasse. Passei um longo tempo sem entender. Talvez ela estivesse no cio, como uma gata, e não pôde evitar, pensei. Tanto faz. Mas ficou claro que, aos olhos de Cherry, dormir comigo havia sido um grande erro.

 

Quando Signy falou para Conor que estava grávida, o tirano vibrou. Uma criança! A criança dele. O início da dinastia.

É claro que Conor podia ter qualquer mulher que quisesse. O Estado e as ruas estavam cheios de filhos dele, mas quase to­das as mães eram sujas. Quem é que as conhecia? Signy era uma princesa, puro sangue, filha de Val Volson. Aprisionada em segu­rança na sua torre, ela era mais dele do que qualquer outra mu­lher já fora de um homem.

Um filho. Todos os impérios precisam de um filho.

Existiam, no entanto, perigos dentro de casa. A criança havia mudado as coisas para pior. Certamente os inimigos invisíveis tinham seus próprios planos para a sucessão. Eles se sentavam tarde da noite em quartos secretos e aguardavam ansiosamente o dia em que o rosto de Conor se tornaria negro, com ele pendurado de cabeça para baixo num poste de luz. Enquanto isso não acontecesse, eles fariam de tudo para matar Signy e seu filho ainda por nascer.

Mãe e filho precisavam ser mantidos longe dos olhos de to­dos por motivos de segurança. Ao mesmo tempo que atacava o mundo, Conor começava a temer pelas preciosidades que tinham ficado em casa, sem se dar conta de que a coisa mais perigosa de todas era aquela que ele guardava com tanto ciúme. Ele intensificou a guarda na torre de água, instalou vidros blindados em diversas janelas e selou as outras com aço. A própria guarda era vigiada, para que os inimigos invisíveis não oferecessem subor­nos e não se infiltrassem. Ninguém podia entrar nem sair da tor­re sem a autorização de Conor, a menos que fossem pássaros capazes de voar para o telhado.

Signy, a jóia preciosa guardada na caixa-forte, atravessou a gravidez vendo apenas Conor e Cherry, tendo alguns vislumbres pela janela, vislumbres dos guardas que circundavam sua masmorra aérea.

Todos os dias, Conor pousava a mão na barriga de Signy e falava a respeito do seu amor. Veja como ele a mantinha segura! Que outra prova ela ainda precisava? Um dia, muito em breve, ele prometia a Signy, ela desceria as escadas e teria os seus inimi­gos a olhá-la de suas cabeças empaladas, exatamente como ela solicitara. E esse dia chegaria quando essa criança, metade com sangue dos Volson e metade com sangue dele, governasse o país enfim unificado sob a regência de um único rei.

- Finalmente os sonhos do seu pai se tornarão realidade! - ele se vangloriou, achando que isso ainda importava para ela.

Signy ouviu, beijou-o e disse que ele estava perdoado e que ela o amava. Mentiras e verdades se confundiam dentro dela. Em certos dias ela sentia que poderia ser enfim feliz, bastava apenas esquecer o passado, mas ela já tinha as suas metas inteiramente traçadas; nada menos que a total destruição de Conor e de todas as suas obras.

Aquela criança tomaria tudo de volta, aquela criança com o sangue puro dos Volson restituiria o coração fraco do seu irmão e o entronaria. Ela jamais teve dúvidas de que a criança seria um menino. Ela estava certa disso, como se o próprio Odin houves­se lhe prometido. Ela cantava para o filho canções de ninar se­cretas sobre o ódio e a vingança. Esse dia haveria de chegar, talvez com ela morta e Siggy velho. Mas esse dia chegaria. Chegaria porque ela havia planejado. Os seus planos estavam garantidos pelo destino. A sua vingança podia levar a vida toda, mas não havia nada que Signy não estivesse preparada para fazer, desde que no fim o império fosse destruído e aquele homem morresse como um cão.

 

Estou aqui, sentada na minha cadeira de rodas. Conor está ajoe­lhado ao meu lado, passando óleo na palma da mão. Os aromas mornos preenchem o quarto: óleos de amêndoa doce, de olíbano e de cenoura para amaciar a pele da minha barriga. Sou muito vai­dosa e não quero marcas de estrias quando eu recuperar a mi­nha forma.

Ele abre o meu roupão e nós dois rimos. Como o meu corpo está grande e inchado e minhas pequenas pernas estão finas e esguias!

Vou lhe dar suas pernas de volta. Vou lhe dar tudo de volta - sussurra Conor. Ele fala sério. Colocaram um útero de vidro num dos quartos abaixo de nós, um daqueles úteros artificiais usados para gerar criaturas alteradas geneticamente. Ele o roubou de um comboio que negociava mercadorias entre Ragnor e Birmingham. Assim que o bebê nascer, eu devo entrar neste útero.

Assim que o bebê nascer. É claro, não pode acontecer nada que possa afetar o bebê. Deus me livre!

Conor acaricia minha barriga enrijecida.

Meu pote de reis - ele diz. Isso sou eu, um pote de reis. Ele beija meu umbigo. Eu dou um grito estridente porque o óleo está pingando na seda do meu roupão. Ele resmunga e mordisca o meu umbigo. O meu umbigo está para fora e ele consegue fazer isso. É desagradável! Faz cócegas.

Você tinha que estar me fazendo relaxar - eu reclamo. Conor se desculpa. Espalha o óleo na palma das mãos e começa a esfregá-lo na pele da minha barriga com círculos lentos e cálidos. Ele tem mãos mornas, sempre muito, muito mornas. Não são como as minhas. Eu o faço gritar quando ponho minhas mãos frias em sua barriga ou em suas coxas. Ele odeia o frio. Logo que tiver acabado de esfregar a minha barriga, ele vai querer fazer o mesmo nos meus grandes seios.

Isso é algo para se esperar com ansiedade.

É como se eu estivesse submersa numa piscina de água para­da; bem calma, tranqüila, profunda. Às vezes, quase me sinto em paz. Mas essa piscina está estagnada. A água está apodrecendo. Conor está podre, e eu também... eu sou a coisa mais podre de todas. Pensamentos e sentimentos são como cadáveres de sapos que bóiam e coágulos de ovas que apodrecem.

Cherry diz que a gente ama aquele que está presente para ser amado, pois amar é humano. Não temos escolha.

- É como respirar. - É o que ela sussurra. Ela também me ama. Veja só, estou cercada de amor!

Bem, não me leve a mal por ter muita consideração pelo amor. Talvez o amor seja tão forte que mesmo depois de tudo que Co­nor fez eu ainda possa amá-lo. Eu tenho que amá-lo, sempre o amarei, não importa o que ele tenha feito ou venha a fazer. O amor é corrupto; o amor continua até mesmo quando se ama um monstro, até mesmo quando dentro de você existe o ódio mais violento pela mesma pessoa a quem se ama, lado a lado, no mesmo coração.

As mãos cálidas de Conor terminam de fazer o trabalho e nós ficamos com vontade de fazer amor... é essa a palavra? Ele me conduz até a cama. Eu me arrasto e tombo sobre o colchão. Pareço uma pilha de sobras sendo jogada fora, mas não digo nada. Não quero estragar o clima. Estou tão gorda que preciso deitar de lado enquanto ele me penetra por trás.

Eu fecho os olhos e a imagem do rosto arruinado de Siggy flutua oniricamente à minha frente. Uma lembrança do motivo pelo qual estou aqui.

Conor é muito gentil comigo. Verdade; somos os melhores amantes. Damos risadinhas graças às suas piadas bobas, apoia­mos um ao outro para nos proteger de nossos temores. Ele chega até a me confortar pela perda do meu pai e dos meus irmãos que foram devorados pelo Porco. As vezes, ele chora comigo por piedade. Quando fazemos amor, ele ajeita o meu corpo dessa e daquela maneira, suspira, geme, e seus gemidos me dão comichões de prazer. Ora, claro, Conor é um homem capaz de um grande amor. Ele me ama. E ama a criança... e como ele ama essa criança que ainda nem nasceu! Ele deita com o ouvido na minha barriga. E põe um copo sobre ela para ouvir melhor.

Dorme, neném, no útero de Signy... - ele canta uma canção de ninar para a minha barriga gorda. As lágrimas escorrem dos seus olhos, lágrimas de puro, espontâneo amor.

É claro que não se poupa gastos para o pequeno príncipe. Tenho o meu próprio ultra-som instalado para que Conor possa ver seu precioso garoto antes mesmo dele nascer. Ele quer saber de tudo o mais rápido possível.

Isso é a mão dele? Isso é a cabeça dele? - ele me pergunta, olhando atentamente o borrão cinzento na tela.

Como posso saber? Sou apenas o pote - rio. Zombo de Conor por ele achar que eu conheço a minha parte de dentro melhor que ele, mas ele não pára:

Isso é a cabecinha dele, Signy? Signy, o que você acha?

Um dia você estará livre - diz Cherry, mas sei que jamais estarei. Conor é o arquiteto das prisões sem paredes, sem chaves, sem saídas. Meu coração está aprisionado. Se eu fosse levada de volta para a casa do meu pai, meu coração continuaria aqui, em minha torre, fazendo amor com meu carcereiro. Nada jamais irá mudar para mim. Mas o mundo lá fora... ah, isso é outro assun­to. Lá talvez eu faça alguma diferença.

Como é que ele poderia suspeitar que o que ouve são as ba­tidas do coração de sua própria destruição? Ainda que Conor me bombeie com seu esperma, o bebê é um Volson, completamente Volson. Este bebê não vai coroar a glória de Conor. Este bebê é a morte dele.

Eu o abraço com força e sinto que sua respiração vai diminu­indo até se tornar contínua. Ele está adormecendo, pobre Conor, cheio de confiança. Eu sou a única coisa no mundo na qual ele confia. Que loucura! Mas vamos enlouquecer juntos, meu queri­do. Vamos morrer juntos, você e eu, meu único, doce e amado querido, meu príncipe, meu rei, meu sagrado e verdadeiro amor. E você vai me encontrar no inferno.

 

À uma hora da manhã, escondido no fundo dos abrigos cavados no leito de rocha debaixo do seu quartel-general de Finchley, Conor gritava com seus generais. Ele estava certo de que um de­les o havia traído.

Os abrigos eram mais seguros contra ataques que qualquer outro lugar do seu reino, mas Conor os temia e os odiava. Ele se sentia encurralado pelos mesmos homens que guerreavam ao seu lado. Ele teria preferido muito mais estar lá fora, percorrendo as frentes de batalha em meio a uma frota de carros blindados, com guarda-costas por todos os lados para protegê-lo. Os guarda-costas eram extremamente fortes, além de serem os únicos ho­mens no planeta em quem ele confiava plenamente. Eles eram aqueles que protegiam Signy. Se não fosse por ela, Conor teria parado de visitar o Estado muito tempo atrás.

Obviamente, era muito perigoso levar Signy até os campos de batalha, e era quase tão perigoso deixá-la naquele lugar, entre inimigos sem forma que se escondiam com tanta astúcia. Em meio às reluzentes luzes de neon, com mapas espalhados à sua frente, Conor investigava rosto após rosto e silvava com desconfiança. Os generais suavam e tentavam se mostrar confiantes.

Naquela semana, mais que em todas as outras, era importan­te que Conor se mantivesse perto do seu tesouro secreto na torre de água. Ele aguardava as boas-novas.

O motivo de sua raiva era uma outra missão que fracassara. Ele vinha planejando essa missão semana após semana, uma ba­tida policial devastadora no centro da resistência dos meio-homens, em Swindon. Os exércitos dele circulavam pela área, traçando oculta e secretamente o seu real objetivo. Assim, quan­do ele tinha certeza de que o general meio-homem descansava no seu respectivo quartel, uma súbita e inesperada investida de suas forças entrava na área; alguns deles marchavam ininterrup­tamente durante dias para chegar até o alvo, outros usavam veí­culos roubados.

Essa jogada havia sido importante. Os meio-homens eram mais organizados, mais ferozes e mais perigosos que os lentos cidadãos do sul e das áreas centrais que os usavam como uma máquina de guerra contra Conor. Se Conor pudesse destruir a resistência dos meio-homens, daria fim a seu inimigo mais peri­goso. Dag Aggerman era uma figura para se levar a sério.

Toda a investida fora organizada com perfeição. Os exérci­tos se limitavam a se mover dentro de um perímetro de ataque, mas estavam aparentemente prontos para combater o exército de Dag em outra parte. Pequenos ataques falsos induziam a ras­tros errôneos, e, então, houve um ataque surpresa. Ninguém poderia prever. Fora bem planejado e minuciosamente executado.

E quando eles chegaram lá, o lugar estava deserto.

Como foi então que eles souberam de tudo?

Conor encarou cada um dos rostos ao redor da mesa. Eram as únicas pessoas que sabiam o que estava se passando. Um deles entregara o jogo. Mas qual?

Foi você? - Ele apontou.

Senhor! Não, jamais!

Então, quem foi?

Não sei.

E por que não sabe?

A simples ignorância já era uma traição. Conor estava furio­so. Ele caminhava furtivamente de um lado para outro e gritava, enquanto aqueles homens poderosos mantinham-se como crian­ças constrangidas. Conor tinha razão; tratava-se de um trabalho interno. Só podia ser um deles. Ninguém mais sabia. Um daqueles homens teria que ser o traidor. Nesta atmosfera, Conor seria ca­paz de matar todos eles apenas para ter certeza de que, de qual­quer maneira, apanhara o homem certo.

A conferência foi interrompida por um jovem soldado que vestia o uniforme azul-claro da escolta pessoal de Conor. Os ge­nerais observavam com ansiedade, enquanto o soldado se incli­nava para sussurrar algo no ouvido de Conor.

Conor, no entanto, sorriu. Bateu nas costas do soldado e o olhou com sofreguidão enquanto este deixava o recinto. Ele deu dois passos no rastro do soldado e se deteve; a conferência ainda não terminara, mas claramente o seu coração não estava mais lá quando ele se virou para outra vez tagarelar sua lista de acusa­ções e interrogatórios. Ele ficou olhando para cima, sorrindo e balançando a cabeça com satisfação.

Senhores, vocês podem me dar os parabéns. Eu sou pai. Minha mulher deu à luz um garoto perfeito.

Ah...! Surpresa! E ninguém sabia! Seria possível? Parabéns, progenitor!

Bem, a verdade é que os generais sabiam de tudo. Uma coisa assim não podia ser guardada em segredo. Todos sabiam que Co­nor visitava a torre de água com freqüência, assim como sabiam quem era mantida lá. Era preciso ser cauteloso para que Conor e sua escolta não tomassem conhecimento do que os outros sabiam. De fato, o Estado inteiro sabia que a garota na torre de água era o verdadeiro segredo.

Então, os rumores eram verdadeiros: havia uma criança. Os generais se aproximaram e cumprimentaram:

Parabéns, senhor!

Não fazíamos idéia!

Conor acenou com a cabeça, mas o sorriso já se dissipava de seu rosto. Como é que ele podia ter sido tão estúpido para falar aos seus traidores sobre o seu filho? Ele deixou escapar sem que­rer. E começou a fechar a cara. Nervosos, os homens voltaram para os seus lugares ao redor da mesa, lançando olhares ansiosos uns para os outros. O que haveria agora? Era a primeira vez que Conor se referia a Signy, era a primeira vez que noticiava a res­peito do seu filho, e ele já estava se arrependendo disso.

Alguns minutos depois, Conor saiu para ver a criança, o seu precioso filho, o futuro rei. Às suas costas, os generais ergueram as sobrancelhas.

Eu gostaria que ele não tivesse dito isso - disse um dos homens. Cada um deles se sentia como se houvesse sido pou­pado. Todos eles haviam tido um encontro cara a cara com a morte.

Algumas horas depois Conor chamou seu guarda-costas para ver a criança, exposta atrás de um vidro à prova de balas de uma janela da torre. Mil homens de azul fizeram uma saudação com a cabeça e juraram fidelidade ao bebê. Nenhum daqueles generais estava incluído neste grupo. Os mais sábios entre eles já estavam tomando providências para escapar enquanto podiam.

 

Antes do nascimento do bebê, eu temia que houvesse alguma coisa errada com ele, mas não há. Ele é apenas um garotinho muito, muito bonito. Até mesmo os guardas que estavam atentos aos médicos e às parteiras sorriram.

Ouça, ele chora tão alto!

O quarto era como um... um assalto, um seqüestro. Era uma espécie de crime. Eu não queria nenhum deles ali comigo, só queria Cherry, mas claro que eles não queriam um gato no quar­to onde o príncipe estava nascendo. Mas Cherry os enganou. Escondeu-se debaixo da cama por todo o tempo, e alguns minu­tos depois do bebê ter nascido ela saiu e me deu os parabéns. Ela pulou em cima da cama, ronronando como um motor, e come­çou a lamber o sangue do bebê. Estava tudo bem, o bebê também era de Cherry. Mas o médico se irritou e fiquei com medo de que eles contassem a Conor, então deixei que eles a enxotassem.

Mais tarde - falei pra ela, mas Cherry se ofendeu, cruzou a porta de queixo empinado e não olhou para trás.

Depois, eles quiseram tirá-lo de mim para lavá-lo, mas o colo­quei em cima do meu peito e na mesma hora ele soube o que fazer.

Você sempre deve saber exatamente o que fazer - sussurrei para o meu filho. Ele era tão lindo. Eu queria deixar a limpeza por conta de Cherry, mas, assim que chegou, Conor ficou furio­so por ver o bebê ainda sujo e os fez lavá-lo imediatamente. Por baixo da sujeira, a pele do bebê era macia e exibia uma linda tonalidade de pêssego.

Ele é um segredo, esse meu bebê. Nem mesmo o pai dele sabe qualquer coisa sobre ele. Ele terá mais de um formato, como Cherry.

Depois de terem lavado o bebê, Conor começou a sorrir e segurou aquela pobre coisinha contra sua bochecha áspera. Po­bre Conor, ele não sabia de nada. O bebê chorou. Conor estava muito pálido. Eu não o queria lá. Senti frio porque havia muito amor em mim, mesmo sabendo que não sobrava espaço para esse tipo de sentimento. Ele tentou me entregar o bebê.

Tome aqui, leve-o, preciso dormir - eu disse. E ele se irri­tou porque eu não amava o meu bebê o bastante. Mas ele o levou e o mostrou aos guardas, e todos se arquearam com reverência. Cherry me disse. Eu poderia ter rido alto porque eles estavam reverenciando a destruição de Conor.

Muito mais tarde, quando o quarto se esvaziou e o bebê já estava comigo de novo, Cherry veio vê-lo. Ela chegou como gato e pôs as patas em cima da cama. Eu a levantei e deixei que ela fi­casse ao lado do bebê e o cheirasse.

Você também é mãe dele - eu lhe disse. Mas ela ainda esta­va ofendida e pulou para fora da cama. Fiquei atormentada. Eu não quero que Cherry se chateie. Saí da cama e me arrastei no seu encalço, mas ela se escondeu num armário. Por fim, peguei o bebê e o deixei no armário com ela. Em pouco tempo eu pude ouvir o ronronado dela no quarto.

Esperei alguns minutos.

Não podemos deixá-lo aí, querida, senão Conor vai ver e quem sabe o que ele fará? - falei a seguir.

Ela me perdoou e saiu do armário. Ficamos aconchegadas na cama com o bebê entre nós e adormecemos. Acordei no meio da noite e ela estava em seu formato de gato lambendo o bebê. Acor­dei diversas vezes ao longo da noite com o ronronado de Cherry, e o bebê dormia um sono pesado entre nós duas, então pensei: se continuar assim amanhã, e semana que vem, e no ano que vem! Talvez eu possa ser feliz.

Quando penso no tipo de homem que meu filho precisa se tornar, eu choro.

 

É noite sem lua, uma semana após o nascimento. No ar úmido e estagnado das noites nubladas de fevereiro, as árvores desbotadas que circundam a torre de água se intensificam de vida interior. É uma noite sobrenatural. Vincent, a criança, o filho de duas mães, descansa nos braços de Signy. Conor está na frente de batalha do sul. A cidade de Portsmouth está sitiada. Ele espera acabar com a resistência à sua conquista em poucos dias e encher o cais do porto com sacrifícios.

No interior da torre de água os soldados da guarda adorme­cem um após outro, como homens em contos de fadas. De re­pente, as cabeças abaixam e se ouvem os baques quando os homens tombam no chão, frutas militares de um azul desbotado. Nas proximidades, entre as bétulas, uma pessoa de cabelos ver­melhos e de quase tantos formatos quanto existem na criação esfrega as mãos. É uma contribuição do deus astucioso. Nada a ver com impérios ou vinganças, nada a ver com destino e sina, nem com grandes emoções, como o ciúme, o amor e o ódio. É uma traquinagem feita apenas por fazer.

Enquanto os guardas dormem um sono pesado, um silêncio que tem a capacidade de inverter as coisas domina a torre. Ge­ralmente é o barulho que quebra o silêncio, mas este silêncio é que quebra o barulho. No alto da torre, a portinhola se abre co­mo em sonho. O som que isso produz é interrompido pela quietude. Signy chora e beija o seu bebê. Que outra mãe abriria mão de seu filho quando ela própria não tem mais ninguém? Ela está prestes a lançar o seu pequeno míssil vivo contra Conor.

Agora uma garota com o mesmo tipo de cabelo do deus que está parado entre as árvores emerge e sobe alguns degraus da escada. O bebê é entregue a ela. Cherry está outra vez cuidan­do dos negócios de sua dona. Signy observa o deslizar silencio­so dela pela escada, enquanto muda de forma e vai embora. A gatinha desaparece no meio das árvores desfolhadas e Signy contempla o ar úmido por mais um instante. Em seguida, ela conduz a cadeira de rodas pelo quarto que ela e Cherry tinham destruído com tanta minúcia, um dos quartos seguros que Conor havia construído para ela. Paredes e portas de aço, tudo tranca­do por dentro.

Alguns minutos depois os guardas começam a acordar com os gritos da jovem mãe. Esfregam os olhos e estremecem com des­crença.

Meu bebê, eles levaram meu bebê!

Os guardas correm e sentem calafrios ao depararem com a destruição. Apesar de todo o cuidado e de toda a atenção, os piores pesadelos de Conor haviam se tornado realidade; e agora eles podiam estar certos de que os deles também.

A porta é aberta e Signy aparece. Ela conta aos guardas a his­tória de uma gangue de soldados que entrara no quarto e a per­seguira, carregando o seu bebê enquanto ela tentava escapar com vida...

Eles teriam me matado se eu não tivesse me trancado!

E enquanto os soldados assustados disparam o alarme e ini­ciam uma busca infrutífera, lá embaixo, na floresta, um passari­nho marrom levanta vôo rumo a oeste. As suas patas agarram uma pequena noz marrom.

 

Dag Aggerman estava dentro de um grande prédio de pouca al­tura que abrigava uma fileira de vinte e poucos tanques com a frente de vidro, tanques uterinos. Os meio-homens roubavam, trocavam ou vendiam essas maravilhas da tecnologia moderna de Ragnor e de outras cidades e metrópoles para fora do seu território e as utilizavam para fazer reparos nos generais feridos e nos líderes de guerrilha. Algumas vezes também produziam especialistas para determinados trabalhos. Os tanques também podiam ser usados para clonagem. Os técnicos trabalhavam incansavelmente ao redor de Dag para causar boa impressão, che­cando temperaturas, nutrientes, proteínas e o desenvolvimento. Ao lado do líder meio-homem via-se uma garota de aparência estranha com um bebê nos braços.

Dag não havia gostado do que lhe pediram, mas ele precisa­va de Cherry. Essa garota era tão importante quanto um exérci­to. A resistência já teria sido aniquilada sem as informações que ela transmitia.

O filho de Conor, hein? - ele ladrou sorrindo. - Ele vai ficar maluco quando descobrir que isso desapareceu. - No seu esforço para se mostrar satisfeito, a sua cauda, com um corte agressivamente curto, oscilou com tanta violência que suas cos­tas sacudiram e suas pernas viraram no chão de concreto.

Cherry sorriu e envolveu a coisa preciosa contra o peito.

Isso é para ser o quê, hein? Hein? Algum tipo de substituto para Sigmund? Eu podia ter feito com a coisa real, mas ele está fora. Todo mundo diz que ele está acabado. Rá-rá! É isso aí, fica sentado em casa o dia inteiro, não sai. Então, para que vai servir esse aí?

Minha dona garantiu que Siggy vai se unir a você. E ele realmente irá. Esse pequenino vai ajudar.

Por isso ela quer isso? - ele perguntou com curiosidade e grunhiu:

Minha dona quer qualquer coisa que ajude a destruir Conor.

E como é que isso vai ajudar? Hein?

Os deuses disseram para ela. - Cherry sorriu.

Dag grunhiu de novo. Cherry tinha a reputação de ser filha de Loki. Fosse lá o que isso significasse, era problema na certa; mas não o tipo de problema que se pode fazer alguma coisa a respeito.

Fazemos um clone, como ela quer. E depois, com esse aí?

Esse aqui volta para viver com a mãe dele.

Cherry caminhou até um dos tanques em atividade e bateu no vidro. Lá dentro a forma esbranquiçada de um homem se contorceu com o barulho. Seu rosto gorducho exibia pêlos e ele tinha dedos curtos com membranas. Suas pernas haviam se jun­tado como uma espécie de nadadeira.

Ele vai se incorporar à marinha - Dag ladrou e riu.

Você já tem os detalhes? - Cherry quis saber.

Dag olhou para o pedaço de papel com as instruções, instru­ções dos acréscimos que Signy queria adicionar ao seu bebê quan­do ele entrasse no tanque de vidro.

Isso me parece mais bruxaria que ciência - ele resmungou.

Quanto tempo, então? Quando ele vai estar pronto para lutar?

Cada mês no tanque eqüivale a um ano aqui fora. Cresce completamente em dezoito meses, é. Mas vamos tirá-lo mais cedo. Catorze meses, talvez. Ele vai precisar de alguns anos para se tornar um soldado. Não vamos deixá-lo crescer num tanque, né?

Cherry fez que sim com a cabeça.

É melhor seguir logo com isso. O original tem que voltar em algumas horas.

Dag acenou para os técnicos. O bebê chorou quando o leva­ram. Em um segundo tiraram uma pequena amostra de sangue do seu corpo e um resíduo de sua boca. Era o necessário para começar a fabricar um clone. Ainda seriam adicionados outros materiais genéticos, e em poucas horas a criatura planejada por Signy estaria crescendo. Cherry ficou observando a agulha en­trar no bebê enquanto ele gritava. Ela estremeceu. E em seguida deu uma demorada piscadela para Dag.

 

                         Cabo Haggerstaff

Eu estava lá.

Estava lá quando o bebê nasceu. Fiquei apontando uma arma para a garganta do médico que anestesiava a Minha Senhora. Fiquei com o dedo no gatilho até ele terminar de dar a injeção na Minha Senhora e respirei bem alto para que ele ouvisse e soubes­se que se alguma coisa desse errado eu o mataria. Eu podia sentir o cheiro do seu medo. Mas não havia necessidade daquela arma na minha têmpora. A lealdade da escolta é absoluta. Toda sema­na, no dia de Odin, todos nós bebemos o sacrifício de sangue em nome do rei Conor. Ninguém precisa duvidar da gente. Mesmo assim, eu era vigiado. Todos eram vigiados.

Eu também estava lá quando o alarme soou. Eu não estava de guarda, graças a Odin, ou não estaria aqui para lhe contar isso. Quando a sirene disparou, eu estava de folga, na cantina. Estava na cara que se tratava de um trabalho interno. Não, não da escolta! A escolta está acima de qualquer suspeita. Mas eles se inflitram secretamente em todos os outros lugares do Estado. Mesmo com grandes esforços não somos capazes de desmascará-los. Um homem tão favorecido pelos deuses como Conor des­perta muita inveja naquela gente menor que gravita ao redor dele. Muita gente gravita ao redor dele.

Com a insistência da sirene, larguei minha colher e corri para ajudar. Minha Senhora estava perturbada. Ela nos amaldiçoava e nos ameaçava, queria descer para ajudar na busca, mas isso é proibido. Todos os desejos dela, por menor que sejam, valem mais que o maior desejo de qualquer outra pessoa, mas não esse. Nós colocamos o lugar abaixo e vasculhamos a floresta, mas já era tarde demais. O bebê não estava mais lá. Era bruxaria. De que outra maneira eles podiam ter passado pela escolta?

Não que eu confie na Minha Senhora. Os olhos dela me dão calafrios; o cheiro dela é esquisito. Não costumo dizer isso. Por um motivo, não é sensato duvidar da esposa do rei Conor. E por outro motivo, o odor é um assunto particular. Para mim, tem a ver com vergonha, é uma questão de sigilo. E fácil entender como isso seria mal compreendido. Eu também tenho inimigos. Eles acolheriam de bom grado um pretexto para me acusar de impu­ro. E talvez eles estivessem certos.

Mesmo de longe eu conseguia entender. Mesmo que isso não seja tão perceptível assim.

Ficou claro, desde que eu era criança, que os meus camara­das não conseguiam farejar pessoas como eu consigo. Não é uma coisa boa de saber a respeito de si mesmo. E um segredo que me penduraria pelos calcanhares se algum dia viesse à tona. Somen­te humanos de sangue puro podem servir na escolta. Fiquei de boca fechada sobre isso durante toda a minha vida, mas não du­vido dos meus sentidos. O fedor da traição exala da Minha Se­nhora. Por isso eu fico por perto, vigiando-a, mas não posso revelar meus temores porque aqui a prova do odor não provaria nada a ninguém.

Eu também estava presente na execução dos homens que esta­vam de guarda. Foi justo. Mesmo com Ivan, que era o meu melhor amigo desde a infância, mesmo com ele. Não hesitei quando o pendurei, mas providenciei para que o trabalho da faca na sua gar­ganta fosse rápido e certeiro. Não desperdiçamos balas com traidores, Ivan deve ter compreendido isso. Vi pelos seus olhos. Foi justo e não havia nada que pudesse ser feito quanto a isso.

É, claro, como todos já devem ter ouvido, a criança foi en­contrada por mim. Pode-se dizer que a busca foi rigorosa; vira­mos o Estado do avesso, casa por casa. Não tínhamos esperança de encontrá-lo. Como eu disse, devia ser mesmo bruxaria, e quem é que sabe o que as bruxas podem ou não podem fazer? Mas qualquer lógica normal diria que não havia como tirar a criança do Estado. Somente a guarda ao redor da torre de água teve o ataque de sono. A razão dizia que ele ainda devia estar pelas ime­diações, se é que ele ainda estava vivo.

Quanto a mim, eu tinha certeza de que o herdeiro do rei já estava morto e enterrado, devorado por cachorros. Fosse lá como fosse, ele já estava liquidado. Colocamos tudo quanto é casa abai­xo e deixamos transparecer para os suspeitos que não haveria piedade se fosse encontrado o menor vestígio de culpa, e provavelmente mesmo que não fosse. Passei por várias casas e por aca­so terminei na residência de Margaret O'Hara. O Cabeça da Segurança... quem teria imaginado? Jamais suspeitei dela, pois ela sempre era a mais impiedosa na execução das vontades do rei. Ela ficou à espera, com uma expressão repleta de ameaças, enquanto eu e os outros abríamos os armários com violência. Uma mulher poderosa, forte o bastante para saber se mostrar orgulhosa e não nos repreender pelos vestidos que estavam sen­do arrasados e pisoteados, enquanto as gavetas eram derrubadas e seus diários e papéis particulares, lidos.

Em meio à busca, eu me dei conta de onde a criança estava. Eu o farejei - cheiro de leite e urina vindo do cesto de roupas sujas. Não pude evitar e me virei abruptamente, dei dois passos na direção do cheiro e a flagrei olhando para mim. Mas ela era mui­to controlada. Eu a admiro por isso. Ela devia saber onde o bebê estava escondido, mas quando me viu andando na direção dele, tudo que fez foi recuar.

Então, me detive. O que é que eu responderia se eles me perguntassem como eu sabia? Para chegar ao bebê, eu precisaria sair do quarto. Por sorte, o bebê começou a chorar. Vi o rosto dela se tornar lívido. Ela sabia que havia sido pega, mas eu não entendia como ela poderia ser tão estúpida a ponto de se deixar ser flagrada daquela maneira. O bebê gritava, chutava e tossia. Empurrei a mulher para fora do caminho e corri na direção da lavanderia. Um gato se meteu por debaixo das minhas pernas e quase me fez tropeçar. Levantei a tampa e o bebê estava deita­do dentro do cesto. Mesmo antes de vê-lo, eu soube que era o filho do rei. Todos os bebês se parecem, mas o cheiro daquele bebê era diferente.

Peguei o pequenino e o embalei em meus braços. A bruxa velha estava parada atrás de mim.

Não faço idéia de como... - ela começou, mas lhe dei um chute repentino. Eu já não tinha mais medo dela; sua culpa estava revelada. Chutei-a no chão e fiquei parado em cima dela, arfan- do, com o bebê ainda apertado contra o peito. Meu capitão per­mitiu que eu desse mais uns chutes e depois me conteve:

Agora chega, cabo. Deixe um pouco para Conor.

A mulher começou a chorar, de medo, eu acho. Passei por cima dela e levei o bebê para o rei.

 

Existe uma história de um ogro que só podia ser morto se o coração dele fosse destruído. Para impedir que isso acontecesse, ele guardava o próprio coração dentro de um ovo e o escondia em um ninho em cima de uma árvore, em uma floresta situada em uma ilha no meio de um lago. Mas, certo dia, o tolo do ogro se apaixonou por uma princesa e deixou-a guardar seu coração.

Este é o momento em que Conor me deu seu coração.

Agora, depois de me dependurar na torre de água, eles me fazem descer daqui com cordas amarradas à minha cadeira. A luz machuca os meus olhos. Vincent balbucia e murmura suavemen­te no meu colo. Cherry me contou essa história muitas e muitas vezes, sempre foi uma das minhas histórias favoritas. E está acon­tecendo agora, ao vivo e em cores; as árvores com seus galhos desfolhados, os narcisos na relva úmida, o asfalto que brilha lá embaixo com a chuva, o mar azul desbotado formado pelos guar­da-costas ajoelhados diante de mim. Atrás deles, a multidão do Estado que chegou aqui para me ver, os bebês e os avós, os generais e os gângsteres. A frente de todos, nas cadeiras da primeira fila, as cabeças dos supostos traidores, fincadas em pedaços de paus como uma coleção de maçãs do amor do dia das bruxas. Abaixo deles, a relva se avermelha com o sangue lamacento. E lá embai­xo, Conor, o próprio ogro, rói os dedos enquanto as coisas mais preciosas do seu mundo descem aos balanços de onde ele nos havia mantido "seguros" por tanto tempo.

Fui eu que dei os nomes para ele, os nomes dos traidores. Ele levou muito tempo para acreditar em mim, mas agora tem pro­vas. Eu lhe disse que Odin me apareceu em sonhos. Para ele é conveniente acreditar que os deuses estão ao seu lado. De que outra maneira eu poderia saber que o bebê seria encontrado na casa de Margaret O'Hara? Pobre Margaret, eu me lembro dela nos jantares solenes logo que acabei de chegar aqui. Seus modos à mesa eram bastante elegantes. Ela me tratava como uma garotinha tola, e eu era. Ela tinha o sangue de dez mil pessoas em suas mãos, mas agora é o sangue dela que encharca a relva, o sangue dela e de toda a sua família. Eu disse que o bebê estaria lá, e estava. Então, se digo a Conor que Simon Patterson, Ruddock Goodal, Randolf Carhill são traidores, é claro que ele também acredita nisso. E lá estão eles agora para me saudar, cabeças fin­cadas em paus com os corvos empoleirados nas árvores atrás de­las, à espera do momento em que estarão sozinhos com seu banquete.

O coração que Conor depositou em minhas mãos é a confi­ança. Na história, a princesa dá o coração para o príncipe esma­gar, mas aqui sou eu que devo apertar este coração... apertar e esmagá-lo lentamente ao longo dos anos, até que Conor esteja gritando de dor. E, assim que ele gritar tão alto quanto às pesso­as dos meus sonhos, eu o matarei.

Fico balançando enquanto desço, como um cesto de ovos, e, quando toco o chão, mãos trêmulas de medo se aproximam para desamarrar as cordas. Eles já sabem o quanto sou temível. Conor é o único que não entende. O pequeno Vincent murmura, emba­lado pela oscilação da jornada de descida. Eu dou a ponta do meu dedo para ele sugar e penso: sua coisinha indefesa, assim que eu tiver terminado você terá menos em comum comigo do que terá a cópia. Conor se aproxima, põe a mão no meu ombro e sorri com ansiedade para mim, como uma criança assustada. Quem pode culpá-lo por se assustar comigo? Eu sou a profeta, a que é prevenida pelos deuses! Pobre Conor, tão fraco que pode ser tapeado por seu próprio truque. Ele acha que eu o amo!

Ele ergue o punho no ar.

Esta é a rainha de vocês! - ele grita. Os oitocentos homens da escolta e toda a população do Estado gritam em resposta:

Salve a rainha! Salve a rainha!

Eu sorrio para o meu marido. Agora, o poder aqui sou eu.

 

Eu nem fiquei sabendo que ela estava grávida.

Só descobri cerca de uma semana atrás. Cherry me excitava. Ela é extremamente provocante, está sempre flertando, isso me deixava louco. Depois daquela vez, eu quis mais um pouco e, de vez em quando, durante mais ou menos o último ano, ela me deixava ter. Ora, claro, é por isso que vale a pena viver. Cherry envelhece com rapidez, agora parece ter cerca de trinta anos, e eu só tenho vinte, mas ela está tão maravilhosa quanto sempre. Ela me deixava beijá-la, mas nove entre dez vezes só ficava me seduzindo. Eu pensava: talvez dessa vez ela esteja falando sério, e depois eu me aproximava e ela - fittz! - ria e saía em disparada. Isso me deixava louco, ter que assistir àquele passarinho que zunia até os arbustos. E, depois, uma canção repentina que sempre soava absolutamente sarcástica.

Eu não podia evitar. Em todas as ocasiões em que isso acon­tecia eu ficava cada vez mais irritado. Tudo bem, então, eu admi­to ter sido um pouco cretino durante aquele tempo. Eu me sentia envergonhado quando pensava que merecia aquilo. Naquele dia, ela me levou um pouco mais longe - eu tinha dormido pouco - e segurei-a pelo braço. Eu a segurei com força. Pude ver a expres­são nos seus olhos. Ela sabia que eu a possuía. Pânico.

- Agora, vou te possuir - falei e aproximei o meu rosto do dela.

Cherry mudou de forma. Primeiro para pássaro, depois para gato e, por fim, de novo para garota. Limitei-me a agarrá-la com força. Ela arranhou, bicou, mordeu. Finalmente, tornou-se um gato e ficou à espera, pronta para o bote nos meus braços, olhan­do para mim. Cada pêlo do seu corpo se crispava.

Diga algo que eu não saiba - zombei e larguei-a.

Tudo bem. - A garota estava lá outra vez. Isso sempre me dava arrepios. E olha só o que ela fez.

Sua irmã teve um bebê.

O quê?

E ele é seu.

Como assim meu? Não seja estúpida.

Quer dizer... - Cherry sorriu com frieza. - Quer dizer, ela quer que você fique com ele.

Ela explicou, mas precisei de um tempo para engolir. Ela queria que eu cuidasse de uma versão incrementada do filho que teve com Conor. O quê? Por quê? Você quer saber o que é um clone? Não é simplesmente uma cópia. E uma falsificação. E como eu vejo. E é transgênico! Eu fico me perguntando que tipo de acessórios a querida Signy acrescentou. Ossos fortalecidos, algu­ma parte de uma águia atrás da retina? Melhorias. O que ela ha­via feito com a mente dele? O que ela havia feito com a alma dele, se é que se pode chamar assim?

Fiquei então furioso. Signy não tinha esse direito! Para início de conversa, ela não tinha o direito de dormir com aquele merda. Como é que ela agüenta? Com ele dormindo ao seu lado... em cima dela... dentro dela! Por que ela não vomita na cara dele? Por que o organismo dela não aborta seja lá o que ele deposite dentro dela?

Por que ela fez isso?

Ela não tem escolha.

Ela podia fugir! Você sabe que ela podia fugir! Para que ficar lá? Conor não pode ser derrotado, você sabe disso. Por que você não fala para ela, Cherry?

... Se ela quer ter a confiança dele, não tem outra escolha senão dormir com ele. E ela tem a confiança dele. Dag Aggerman fica sabendo de cada passo que Conor dá.

Mas isso é você quem faz, Cherry! Você pega as informa­ções e passa para ele, Signy não precisa de maneira nenhuma estar lá. E agora ela tem um filho com ele! Qual é o problema da minha irmã? Ela está louca, não está? E isso, ela está louca. Você não consegue perceber isso? Não consegue me ajudar, Cherry?

Podíamos tirá-la de lá, você e eu. Antes você gostava de mim, Cherry. Nós dormimos juntos. Achei que podia me apaixonar por você. Cherry, por que você não me ajuda?

E em seguida comecei a chorar, as lágrimas desciam pelo meu rosto trêmulo. Cherry ficou me olhando e por um segundo achei que ela também fosse chorar. Seu rosto parecia estar mudando. Quando ela falou, a voz dela estava trêmula, mas suas palavras saíam claras.

Os deuses querem assim, Siggy. Não discuta. Não tente nada. Tudo está como deve estar e nada pode mudar isso. Tudo que você pode fazer é dar o melhor de si.

Quantas vezes ouvi meu pai dizer essas coisas?

Que os deuses fiquem com isso, não quero ter nada a ver com essa história. Isso fede. O filho de Conor!

O filho dela. E o filho dela também é seu filho - Cherry insistiu, mas balancei a cabeça.

Um clone. - Eu não conseguia entender o que ela estava tramando. E por que eu devia ter qualquer coisa a ver com isso? Tentei falar alguma coisa, mas as palavras saíam sem fazer senti­do. Cherry me fitava e eu podia ver que ela também estava cha­teada. Cambaleei na sua direção, estendi os braços e logo ela estava nos meus braços. Foi tão bom. Ela me apertou com força. Eu soluçava. Então, não pude evitar, eu gostava muito dela... isso me excitava e ela deve ter sentido uma agitação lá embaixo, porque recuou e olhou nos meus olhos. Seus lábios se abriram. Os olhos ficaram delicados e úmidos. Eu teria me inclinado para beijá-la, mas estava assustado, a minha cara é tão fodida...

... E de repente ouvi um farfalhar de asas marrons e ela já estava no céu como uma pedra atirada. Mas dessa vez não ouvi o canto de escárnio de pássaro. Pude ver as lágrimas nos seus olhos enquanto ela se transformava.

E pensei comigo que o que eu queria mesmo era ter engra­vidado Cherry. Eu seria capaz de amar um filho meu. Mas essa coisa de Conor, essa coisa dentro de um tanque que Signy queria me dar, isso me deixava com náuseas. Uma coisa, com certeza, eu sabia: eu não teria nada a ver com isso. Nada.

 

Meeeer-da! Só digo isso, essa coisa me deu arrepios antes mes­mo de sair. E... ah, quer saber? Esses tanques sempre me deram arrepios. Rá-rá! Aquelas coisas todas enrugadas pelo tempo que ficam no líquido, bebês compridos e sorrateiros, fetos gigantes com florescênçias na pele, todos balofos e inchados, com a boca aberta como peixes. Os pescoços ficam meio inchados quando eles tomam o oxisuco. Uau! Alguns deles têm tubos enfiados no umbigo, às vezes com sangue dentro e outras vezes com fios. Iuc, iuc, iuc. E, fui até lá uma vez para dar uma olhada, para checar. Tive que passar no meio de fileiras de coisas-cachorros, coisas- gatos e coisas-porcos até chegar às coisas-pessoas; e lá estava ele, deitado, enrolado como uma grande merda branca no fundo do seu tanque. Oh, não, rá-rá-rá! Era a coisa mais feia que já vi. Os olhos arregalados, o pescoço inchava só para minguar logo de­pois. Ele já estava maior que um homem.

E, mamãe fez algumas mudanças no seu garotinho querido.

Não o vi de novo até ele nascer. Eu também teria ficado dis­tante no nascimento, mas precisava estar lá. Cherry também esta­va chegando. Oh, sim. É. É preciso ficar perto dessa espécie. Nah! Quer saber? Ela não falou muito. Ficou na forma de gato o tempo todo. E, merda de bola de pêlos, ela só estava fazendo isso para me provocar!

Nascimento em tanques não é muito divertido. A coisa toda se resume a luzes brilhantes de néon. O rosto dele fazia expressões, enquanto ele largava o oxisuco e se acostumava com o ar. Quan­do o tanque foi esvaziado, ele se inclinou contra o vidro. Parecia um homem morto por sufocamento. Quando a porta se abriu, ele caiu no chão.

Os técnicos saltaram em cima dele e o arrastaram de cabeça para baixo para expelir o oxisuco. Eu e o gato só observávamos. Ela lambia as patas, mas não me enganava. Assim como eu, ela também não gostava desse cara. Eu podia farejar isso.

Ele começou a tossir e arfar, enquanto o oxisuco fluía para fora de sua boca como se ele estivesse doente. Mas na mesma hora eu soube, fossem lá quais fossem as mudanças que haviam feito, que eram boas mudanças, porque aqueles sujeitos tinham que suar para agarrá-lo. O garoto era forte como um touro. De­pois, eles o largaram e todos nós o cercamos e o olhamos, en­quanto ele arfava no chão e tentava respirar.

Ele era igual a todos os outros que saíam dos tanques - carne gorducha, todo branco e inchado por causa dos meses dentro do líquido. Mas atrás disso ele tinha boa aparência; bons músculos, alto, um belo jovem. É. Nós o ajudamos a se levantar e o condu­zimos para fora, para a luz do sol. Cherry, ela não disse nada, apenas se retirou rapidamente com a cauda levantada à nossa frente. Quanto a mim, eu também estava curioso. Queria observá-lo no momento em que ele visse pela primeira vez o mundo, a grama, o ar e o sol. Ora, claro, não se pode deixar de gostar dis­so, do velho mundo, mesmo com toda essa merda. Eu me perguntei se seria tão espantoso para ele quanto foi pra mim, mas acho que ele tem mais coisas a fazer antes de se espantar.

Ele saiu lentamente, enquanto a respiração normalizava. Levantou-se todo bamboleante e se ajoelhou um pouco no chão para se recuperar. A medida que o tempo passava, ele ficava mais boni­to. Cherry se sentou sobre a cauda e farejou o ar. Eu também a observava, e posso afirmar, todos os pêlos de suas costas se crisparam em uma faixa comprida. Quanto a mim, eu só queria latir sem parar, mas fiquei de boca fechada. Eu me aproximei para ajudá-lo a se levantar, mas comecei a rosnar assim que cheguei perto. Não pude evitar. Aproximei meu focinho dele e lhe dei uma boa fareja­da. E, o mais impressionante, ele não tinha cheiro!

Merda! Todos eles têm cheiro de alguma coisa. Óleo de Mo­tor, já ouviu falar dele? Era um cavalo transgênico, burro como uma ovelha, forte como um vagão. Era parte de um experimen­to, nós tínhamos poucos motores. Alguém teve a idéia brilhante de construir um motor animal, uma máquina de carne e osso. Eles o chamaram de Óleo de Motor porque ele tinha esse cheiro, suor de cavalo misturado com óleo de motor. Estranho! O pro­blema é que ele era tããão burro. Nenhuma caixa de engrena­gens, nenhum painel de instrumentos, nenhum volante, somente pernas e um cérebro que não conseguia manejar uma broca. Es­queça as cinco toneladas de músculos e armações de metal. Ele foi morto no Atoleiro e, é sim, o sangue dele era vinte e cinco por cento de óleo de motor. Eles drenaram o sangue e depois o utilizaram para abastecer os vagões. Cara, isso realmente funcio­nava bem! Ah! É sim, óleo vivo! Era incrível; mantinha o motor em boas condições, atacava a ferrugem, renovava o motor dos danos causados pelo desgaste. Óleo vivo! Óleo de Motor era mais útil morto do que vivo.

Onde está meu pai? - o clone perguntou. Foram suas pri­meiras palavras. Assim que ele falou, a coisinha felina foi embo­ra, correu para os arbustos. Ela já tinha visto o que queria ver e não estava mais circulando por lá. Mas fiz um alarde, só por precaução:

Ora, você vai vê-lo muito em breve, pode apostar. - Pus o braço em torno dos seus ombros e o tirei dali, para lhe dar um pouco de comida e bebida, sabe? Mas eu não estava enganando ninguém. Eu tinha que me conter, precisava me segurar para não mordê-lo. Ah, uou-uou-uou! Eu tentava manter minha cauda le­vantada, mas ela insistia em se abaixar. Ele simplesmente não tinha cheiro de nada! Cada um dos meus pêlos se eriçava.

Transgênicos... pode ficar com eles! Nah, nah, nah! Dê algum subsídio para as pessoas responsáveis pela criação e elas fazem uma bagunça ainda maior do que a que os deuses fizeram. Não é simplesmente... nós lhe demos uma cauda, vá balançá-la. E pre­ciso que digam por que se deve balançá-la, quando você vai balançá-la. Eles lhe dão sentimentos. Eles lhe dão pensamentos. Nah, nah, nah. Jogue isso fora. Eles lhe dão instintos. Bem, para que dar pensamentos a eles? Os instintos funcionam melhor. Você tem que pensar no pobre fabricante. Ele passa por todos os pro­blemas e despesas, ele não quer que a criatura dele se vire e diga: nah, hoje não estou com vontade.

Que presentinhos então Signy tinha para o filho dela?

Não quero ser mal compreendido. Prezo muito meus instintos. Eles são uma das minhas coisas favoritas. A gente come, a gente transa, a gente caga, a gente cheira. Amo tudo isso! O que mais? A gente amamenta. Talvez a gente fale, talvez a gente saiba como se apaixonar, talvez a gente faça amigos. Tudo certo, ótimo. Um monte de presentes legais!

Mas que tipo de presentinhos Signy dá ao seu garoto?

Ódio, é isso que ela dá. E para isso que ele está aqui, certo? Ódio por Conor, por tudo o que ele representa, por tudo o que ele fez e pelo que venha a fazer. Nah! E também as outras coisas, as coisas retiradas. O que se faz não é só adicionar o que se quer. Também retiramos o que não queremos. Styr, ele era impiedoso. Nunca se viu um jovem tão perverso! Você não adiciona isso! Ele não tinha medo, está entendendo? Foi tudo retirado.

Mistura perigosa, é sim! Pensei: talvez pudéssemos passar sem esse aí.

A primeira coisa que ele fez antes de ir para Siggy - ordens da Mamãe - foi ter um pouco de treinamento. Ele é um solda­do, esse garoto. Não um general, ela não o fez para isso. Ele só quer lutar.

Eu o mandei fazer então alguns trabalhos, trabalhos sujos, como qualquer soldado comum. Você devia ler os relatórios! Ele teve alguns problemas para se adaptar, comportava-se como um membro da realeza. Era um Volson, filho de reis! E sim, bem, meus cachorros e minhas cadelas não gostam muito desse tipo de atitude. Você precisa lutar para ser respeitado. Por isso, ele en­trou em algumas brigas, brigas duras. E assim com a gente. Você precisa se sair bem ou acaba ridicularizado.

Ah, sim! Sou obrigado a dizer, ele era excelente. Certamente Signy sabia como montar um soldado. Ele entrou em brigas, ga­nhou todas. Vamos encarar os fatos, ele fez aqueles garotos em pedaços. Seguia as ordens que lhe eram dadas, mesmo quando achava que sabia melhor das coisas, mas ele lutava como uma cadela pelos seus filhotes. Oh, sim, ele era o melhor, o melhor de todos. E cada um dos meus cachorros que passava algum tempo com ele, voltava desejando ter feito outra coisa.

O que há então com ele? - perguntei.

Ele não cheira bem - responderam. E, é, bem, a essa altura ele já tinha um cheiro. Você não vive nesse mundo sem pegar um cheiro. Mas como eles disseram, o cheiro dele não era adequado. Veja só, o cheiro dele era daquilo que ele fazia e nunca daquilo que ele era. Está entendendo o que quero dizer? Não, humano imbecil, como é que você poderia entender? Nah! Está vendo? É isso aí! Seu macaco estúpido!

 

Existe um abrigo secreto. Chame-o de casa-forte, talvez. É um lugar onde os tesouros ficam seguros. Nesta casa-forte estavam duas mulheres, uma mais nova que a outra, um homem idoso e um tanque alto de vidro que abria na frente. A mulher mais nova, na verdade quase uma garota, era aleijada. Com um batom na mão, ela se inclinou em sua cadeira de rodas e escreveu no vidro "Eu amo mamãe" com uma caligrafia deliberadamente infantil.

Ela sorriu para a sua amiga. O homem idoso não deixava os sentimentos transparecerem no seu rosto.

A mãe verdadeira de Signy morrera no parto quando ela e Siggy nasceram.

Cherry mordia os lábios com ansiedade. Ela se curvou com uma pergunta:

Eu sei o que você está adicionando, mas você também está tirando alguma coisa?

Signy ergueu as sobrancelhas. Ela não consegue resistir à ten­tação da provocação.

Piedade? Compaixão? Pesar? Que tal o velho e constrangedor amor? - Cherry, no entanto, estava tão aborrecida que Signy riu. - Não acredite em mim. Como é que eu poderia não amar o meu menininho? - Cherry riu e abraçou-a, acreditando em tudo. - E eu também não iria tirar o pesar. O que eu própria seria sem isso?

O velho guardou seus pensamentos para si mesmo.

Tire a minha roupa - disse Signy.

E quanto a ele? - Cherry olhou para o homem.

Ele vai ter que me ver. Quem se importa?

Conor vai se importar. - Cherry ajudava a sua dona com os botões.

Conor está na frente de batalha. A guerra é mais importan­te que eu.

Isso não é verdade!

Bem, de qualquer maneira ele está fora. Eu quero nascer nua.

Olhar os poderosos é sempre um negócio curioso. Olhá-los desnudos é ainda mais pitoresco. O velho estava tão curioso quan­to qualquer um, mas tentava desviar os olhos da rainha. Depois de Conor, ela era a segunda pessoa mais poderosa na nação, e até onde o velho podia ver, era tão assustadora quanto.

Signy ruborizou por sua exposição, mas estava decidida a entrar nua no tanque. Seu corpo estava ridículo - na parte de cima era flácido e macio, afora aquelas perninhas pequenininhas, fraquinhas e inúteis. Mas ela já estava prestes a recuperar tudo, e muito mais.

Quando suas roupas foram retiradas, Cherry e o homem lhe ajudaram a subir para atravessar a porta aberta do tanque. Ela deu um beijo de despedida em Cherry. Partia para uma jornada de dois meses.

Cuide de tudo pra mim - ela sussurrou. Aqueles tempos eram os mais perigosos para ela. Ela estava fora de ação como um caranguejo que solta a casca. Estaria indefesa no tanque. Custou-lhe muito caro estar nesta situação, mas as recompensas seriam enormes.

Leve o garoto para Siggy quando ele terminar o treinamen­to com Dag. - Signy sorriu. - Ele sabe como fazer Siggy entrar no combate.

E quanto ao outro? - Cherry perguntou depois de hesitar.

Que outro?

O bebê. O seu filho. O original. - Quase não havia traços de reprovação na voz de Cherry.

Ah, esse! Meu filho verdadeiro está com Dag. Conor pode ficar com o outro. - Signy riu. - Ou então você. Pode ficar com ele, se quiser.

Cherry deu de ombros. Ela adoraria ser a mãe do garoto, mas tinha muito a fazer. Mesmo com todas as formas que possuía, ela só podia estar em um lugar de cada vez.

Desculpe. Eu sei. Fique então de olho no pequenino para mim - disse Signy, apenas para agradar a sua gatinha.

Cherry sorriu e se afastou, e o velho, um técnico capturado junto com o tanque uterino, recebeu ordens para fechar a porta. Mas ele se deteve por um segundo e olhou para Signy.

O que é? - perguntou a rainha.

- A senhora tem certeza? Quer dizer, existem outras mudan­ças que posso fazer, se a senhora quiser.

Que mudanças?

Paz de espírito.

O que eu iria querer com isso?

O velho silenciou, antes de soltar a palavra que queria dizer:

Sanidade - ele sussurrou.

Por que eu iria querer isso nessa loucura? Feche a porta.

Indignada com a maneira ousada com que o velho se dirigira a Signy, Cherry rosnou para ele, que por sua vez fechou a porta apressadamente e girou as chaves de pressão para trancá-la lá dentro. Ela ficou à espera, sentada no fundo do tanque alto. Cherry fez o homem girar a trava que soltava um gás sonífero dentro da pequena câmara.

Funcionou em um segundo. Signy caiu no chão. Agora vinha a parte que Cherry não aguardava com ansiedade - o afogamento que acompanhava o retorno ao útero. Eles não se arriscavam a usar drogas paralisantes muito pesadas, porque poderiam afe­tar o sistema respiratório. Mesmo depois de adormecido, o cor­po de Signy lutaria contra a entrada inicial do líquido em seus pulmões. Cherry se escondeu por trás do tanque uterino e ficou espiando enquanto o líquido deslizava pelas coxas, pela cintura e pelos seios de sua dona. Signy se contorceu quando o líquido alcançou seu rosto, ela se mexeu um pouco em sono profundo quando o líquido começou a fazer cócegas em sua boca e em seu nariz. Depois, à medida que o líquido a cobria, ela começou a se contorcer e se remexer, em pânico, em câmera lenta, lutando pelo ar que já não estava lá. O tanque encheu rapidamente. Em poucos segundos estava lotado de líquido e, dez segundos mais tarde, Signy soltava bolhas até a superfície. A medida que bom­beava líquido para dentro e para fora dos pulmões, o pescoço dela adquiria o inchaço característico. Ela ainda lutou um pouco mais enquanto expelia os últimos resquícios de ar, e em seguida foi lentamente tomada pela paz enquanto seu corpo abalado caía na inatividade. Ela se acostumaria aos poucos com o líquido nos seus pulmões. E poderia recuperar a consciência em três ou qua­tro dias.

Lá dentro, outra vez trancada para ser mantida em seguran­ça, Signy seria reconstruída. As pernas, claro. Mas sem o conhe­cimento de Conor, ela também tinha especificado algumas outras características. Ela queria ser melhor, maior, mais rápida e mais forte. Ela teria os ossos fortalecidos e os músculos melhorados por uma tecnologia de ponta. Ela queria ficar estéril. Já tivera todos os bebês que queria.

E ainda uma ou duas regalias para Conor. Seios maiores, por exemplo.

Cherry olhou para a garota inerte, desmoronada, desajeitada, indefesa e nua dentro do tanque. Era possível ver algumas partes que não deviam estar à mostra e Cherry quis entrar para colocá-la numa posição decente. Olhou aguçadamente para o técnico, para se certificar se ele não estava olhando para onde não devia.

É melhor obedecer todas as ordens que ela deu com exati­dão - ela disse tranqüilamente.

As ordens serão obedecidas, senhora - o velho retrucou. Ele fizera o que podia. Bem que a garota podia ter se transforma­do em uma força do bem, em uma governante benevolente, mas era sempre assim com os poderosos, eles só atuavam em prol de si mesmos.

Ele olhou os mostradores ao lado do tanque.

Exatamente como ela falou - ele repetiu.

Cherry assentiu com a cabeça, satisfeita pelo fato de que o homem não ousaria mentir. Ela ainda olhava fascinada para o tanque, para as nuvens rarefeitas de bolhas que subiam pelos cabelos e saíam do nariz inclinado de Signy. Pequenas bolhas pra­teadas brilhavam nos braços, nas pernas e nos pêlos púbicos da rainha. O rabisco de batom "Eu amo mamãe" pendia no vidro acima dela.

Cherry começou a chorar. Ela não fazia idéia de como faria para sobreviver dois meses inteiros sem o aconchego de Signy, sem o colo dela, onde podia cochilar. Ela levaria a cadeira de rodas para algum lugar seguro e dormiria nela, em sua forma de gato, até que sua dona estivesse pronta para emergir.

 

Muswell Hill ainda é uma merda de lugar para se viver e ainda cai como uma luva pra mim. O mercado, o crime organizado. Eles já me conhecem um pouco melhor. Agora eu saio um pou­co mais do que saía antes. E claro que não preciso. Cherry traz dinheiro mais do que o suficiente para mim e Mels, mas gosto de me meter nas coisas. E aquela velha história... grande porco gor­do, cheio de gordura. Conor vai ganhar a guerra, creio que nada adiantaria contra isso, mas sinto algum prazer em espetar os pés de alguns cretinos gordos que se beneficiam com o regime dele.

E isso faz Melanie feliz.

Ainda temos o velho apartamento em cima do mercado, mas agora também temos outros esconderijos. Precisamos ter bura­cos onde nos esconder nesses dias de ataques contra os meio- homens. Quanto a mim, só saio à noite. A minha cara me faz passar por meio-homem, mas não consigo suportar o perigo em que a maldita e estúpida Melanie sempre se mete. Ela passa o dia fora ou ocupada, à caça de barganhas, dando alimentos para qualquer um que lhe peça. Ela me custa uma fortuna. Qualquer dia desses eles vão pegá-la. E aí o que vai sobrar no mundo para o pobre e velho Siggy? Eu amo aquela velha porca gorda. Ela salvou a minha vida. Ela não precisava fazer isso. Quase morreu de fome por um velho pedaço de carne de uma raça que nunca fez qualquer favor. E ela me ensinou muito. Principalmente uma coisa, a humanidade nem sempre tem forma humana. Melanie é mais humana que a maioria das pessoas que conheço. Mais hu­mana que Conor, que Signy, que eu ou mesmo Vai, para falar a verdade. Em certos momentos, acho que o mundo foi construído de paredes e mais paredes feitas de merda, mas aí eu penso em Mels. Ah, é isso aí, Melanie é o que há de mais verdadeiro, meu raio de sol gordo, feio e com cara de porco.

 

Era fevereiro, fazia um frio maldito, um dia feio, a neve acastanhada pela bosta de cavalo cobria as estradas. Melanie tinha saí­do. Tivéramos mais uma briga. Ela está sempre insistindo comigo para que eu me junte à resistência. É quase tão má quanto Signy.

Nada vai mudar se você não tentar - ela resmungou.

Nada vai mudar, mesmo se eu tentar. - Como muitos san­tos, Melanie sabe como usar a boca. E ela é tão fora da realidade. Quer dizer, para que tudo isso? O mundo é assim.

Eu... não sou... nenhum herói - eu lhe disse, alto e claro para que ela entendesse.

Nenhum de nós é. E daí? - ela grunhiu e saiu de casa baten­do os pés, para fazer boas ações a algum pobre coitado.

Coloquei um DVD e deitei no sofá para assistir. Depois de cerca de uma hora ouvi batidas na janela, mas eu estava de mau humor e continuei deitado por mais meia hora, ouvindo o toc, toc, toc da piranhazinha por muito mais tempo antes de levantar para abrir a janela e deixá-la entrar.

Um passarinho marrom entrou voando baixo, rente ao chão, e pousou no braço de uma cadeira.

Oi - eu disse.

Cherry se sacudiu para voltar à sua forma original; não te­nho outra maneira melhor para descrever como ela faz isso. Cherry sentou de lado na cadeira e franziu os olhos para mim por um instante.

Faz meia hora que estou batendo. -Ah...

Ela estava furiosa. Não disse mais nada, só ficou me olhando de lado com seus olhos castanho-amarelados e caminhou furti­vamente até a cozinha.

Eu estava assistindo a um DVD.

Ela voltou com um copo e parou na frente da tela.

É uma bela porcaria. - Ela me deu as costas. Estava certa; aquilo era mesmo uma porcaria; um antigo filme americano, todo desbotado e vagabundo, para início de conversa. Os únicos fil­mes de qualidade naqueles dias vinham do Extremo Oriente.

Não reclamei por ela ter se posto parada na frente da tela. Ela estava com... sei lá, talvez trinta e tantos anos, mas sua apa­rência era muito melhor que qualquer coisa no filme. Ela enve­lhece com muita rapidez, mas, de alguma forma, isso não faz tanta diferença quanto faria se ela fosse humana. Quer dizer, ela só vai viver uns oito ou nove anos.

Cherry se virou e se deixou cair ao meu lado, no sofá. Tomei isso por um convite. Acariciei seu rosto e ela olhou de lado para mim. Virei meu rosto e a beijei.

Beijar Cherry é como mel. E verdade que ela passou a ter um pouco de mau hálito, mas ainda fazia minha cabeça girar. Segu­rei sua cintura e puxei sua blusa para fora da saia, de modo que eu pudesse acariciar a pele e aquela tirinha elegante de pêlo ma­cio em sua espinha. Acompanhei o pêlo de suas costas até os ombros e depois fui descendo, fui descendo, até enganchar meus dedos na sua meia-calça e abaixá-la alguns centímetros para se­guir adiante...

Hummmm - ela ronronou. Em seguida se remexeu e pu­xou de volta a meia-calça.

Cherry, você está me matando!

Você é muito novo. - Ela franziu os olhos.

Sou mais velho que você...

Estou aqui a negócios, Siggy. Tome... - Ela me atirou uma pequena sacola de plástico com um papel bem dobrado dentro dela. Ainda estava molhada nas dobras e reclamei quando a lim­pei no meu braço. - Nunca se sabe por onde essas coisas andam. - Cherry me ignorou e sentou-se para beber um refrigerante e assistir ao filme, mesmo sendo uma porcaria.

A verdade é que eu sabia por onde a carta andara. Cherry carregava coisas no papo em sua forma de pássaro. Mas não tive como não implicar. Olhei na direção dela. A medida que enve­lhecia, ela se distanciava cada vez mais de mim, mas eu ainda sentia tesão por ela. Vai saber, talvez porque eu não tinha chance com mais ninguém, mesmo assim...

Ela era toda fofa, todo o corpo dela era fofo, isso afirmo. Fico pensando naquela adorável tirinha de pêlos. Aliás, peluda não é a palavra certa. Era uma elegante tira avermelhada e macia de pêlo curto que se afilava ao descer pelas costas. Muito bonitinha até lá embaixo, onde desaparecia. Continuei com o desejo de descer os dedos pela tira. E isso aí, eu e ela. Talvez estivesse tentando me amolecer para que eu ficasse com Styr, talvez ela tivesse recebido ordens de Signy para fazer isso. Mas eu gostaria que fosse ela que estivesse querendo, apesar da minha cara. As mulheres meio-homens não se ligam muito na aparência da fren­te da cabeça.

Tentei tirar Cherry de minha mente e me sentei para ler a carta de Signy; eu já devia saber. De fato, já esperava por isso.

Às vezes minha irmã me assusta.

Eu sempre digo a ela, só quero saber onde Conor estará em certo momento para que eu também esteja lá e coloque uma bala no pescoço dele. Mas não. Isso não a satisfaz. Signy quer que tudo seja feito "corretamente". Não apenas Conor, todo o impé­rio tem que ser derrubado até o fim, e os Volson, postos de volta ao seu lugar.

Aqueles dias acabaram para sempre. Os Volson são como uma casa vazia. Já nem penso mais em mim como um Volson. Eu e ela... o que nós valemos? Ela não pode escapar de Conor, mesmo tendo os meios para fazer isso se quiser, e eu, eu sou apenas carne morta que continua de pé.

Ela vem piorando desde que o bebê nasceu. Fala de Odin, da faca, de Vai, do império. O assunto do momento era Styr, é cla­ro: o clone. A coisa do tanque. Eu sempre digo a ela: não quero me envolver nos seus planos, com nenhum deles, principalmente com Styr. Mesmo assim, Signy nunca teve dúvidas de que eu faria o que ela queria. Olhe só pra isso - uma carta escrita sema­nas antes de sua ida ao tanque. Ela nem mesmo esperou emergir para descobrir se eu faria isso.

Merda.

Cherry olhou para mim com aquele sorriso torto dela.

Não serei babá do pirralho de Conor.

Ele tem quase quinze anos, Sigs.

Isso está errado, ele foi concebido alguns meses atrás - amassei a carta e atirei pela janela. - Não gosto disso; não quero isso, não vou ter nada a ver com isso.

Cherry sorriu para mim e abriu a mão. Na palma havia uma noz. Fiquei observando aquilo, taciturno.

Pensei que você não pudesse emprestar formatos - eu disse.

Eu tinha que conseguir ajuda. Fiquei surpresa com a con­cordância dele. - Ela deu de ombros.

Ela se referia a Loki, obviamente.

Às vezes sinto que os deuses sobrevoam em cima de mim como corvos. Primeiro foi Odin, claro, entrando em cena com algumas aparições; distante, austero, onisciente. Um pouco estereotipado para o meu gosto. Ainda não sei se ele é alguma coisa de Ragnor ou não. Seja lá o que for, não é prudente discutir com um patrono como ele; você sabe o que vai acontecer mesmo que ele esteja do seu lado. Mas, Loki... o que é que Loki já fez de bom?

Por outro lado, se o que ele estava fazendo era melar os pla­nos de Odin, talvez não fosse uma coisa tão ruim. Mas não é bem isso que quero dizer! Não se isso envolve Styr.

Cherry entoou alguns encantamentos. A noz brotou.

Era impossível não assistir, ainda que causasse náuseas. Isso era pior, porque até onde eu sabia o garoto era um monstro de verdade. Ele caiu de quatro e se levantou desajeitadamente, do jeito que os cachorros saltam. Você sabe; sem perceber que esta­va parecendo tolo. Logo a metamorfose terminou e pude vê-lo em sua forma verdadeira e...

A primeira coisa é que eu quis sair correndo do quarto. A outra coisa... Bem, depois fiquei hipnotizado. Ele era igual a mim. Pensei: o quê? Por quê? Quer dizer, tudo bem, eu e Signy somos gêmeos, mas não gêmeos idênticos. No entanto, ele era extrema­mente parecido comigo. Só que, lógico, era uma versão melho­rada. Maior, mais forte, bonito. Nunca fui de me achar bonito. Eu me dei conta de que estava tocando no meu próprio rosto e pensei: eu era assim? Tentei me afastar, mas me peguei circulan­do em torno dele, como um cachorro. Era como... isso sou eu? Estou olhando pra mim mesmo? Será que de alguma maneira ela me clonara?

Enquanto circulava, eu sentia todos os pêlos da minha nuca se arrepiando. Era extraordinário. Era como se eu estivesse me trans­formando em um animal. Pensei: não! Não sou um animal, ele é que é. Apesar disso... ouça, apesar disso, apesar de tudo, naquele mesmo instante eu soube que o amava. Eu o amava e não tinha escolha. E isso me assustava mais que qualquer outra coisa.

O que é isso? - resmunguei, olhando pra Cherry.

O seu garoto.

Tire-o daqui.

Signy quer que você o treine.

- Não.

Ela quer...

- Não!

Eu me virei para sair, cheguei até a porta, pus a mão na ma­çaneta e o garoto gritou...

- Pai!

... Estanquei, com a mão na maçaneta. Eu não conseguia me mover, simplesmente não conseguia. O pior de tudo é que eu sabia. Antes mesmo que ele dissesse isso, eu sabia do que se tra­tava.

Como pode ser? - sussurrei.

Emprestei o meu formato a ela - Cherry explicou.

Então era isso. Eu não precisava questionar, eu sabia. Devo ter ficado com uma aparência péssima, porque Cherry se aproxi­mou e me envolveu de maneira protetora em seus braços.

Por quê? - perguntei.

Ela me pediu - Cherry se justificou.

E nas outras vezes?

Cherry olhou de viés para mim e quase sorriu.

Não, aí era eu, Siggy. - Ela pôs a mão carinhosamente em cima da minha mão e sussurrou: - Desculpe. Eu não sabia que ela ia fazer isso.

Mas, de qualquer forma, você fez - falei, e ela não teve co­mo negar.

Durante todo o tempo o garoto ficou me observando atenta­mente, como se sua vida dependesse do que eu fosse fazer. O rosto dele era sempre assim, não revelava nada, exceto que aqueles olhos pareciam duas pedras quentes. Ele se moveu com alguns passos na minha direção para se juntar a nós, de mãos estendi­das, querendo me tocar.

Não! - Eu não podia suportar o toque dele. Depois me peguei o olhando para ver se o tinha magoado. A minha carne e a carne de Signy, pensei. Não é de espantar que ele me conheça até mesmo melhor que eu.

Me teste - ele disse.

Balancei a cabeça. Testá-lo? Por quê? Sangue? Ele se referia à sua força, claro, à sua habilidade de soldado. Signy queria que ele me ajudasse a destruir Conor. Vamos supor que ele fosse o melhor do mundo. Que diferença isso faria fosse lá para o que fosse?

Dag Aggerman me ensinou - o garoto disse em voz clara. - Ele manda saudações, pai, e quer saber quando é que você vai se juntar a ele para guiar a resistência humana contra o tirano.

Balancei a cabeça. Eu queria sair dali. Cheguei até a dar um passo na direção da porta. Cherry apertou minha mão com deli­cadeza e eu a puxei. Mas eu não conseguia sair. Era impossível rejeitá-lo. Talvez Signy tenha organizado as coisas dessa manei­ra. Ou então Odin, ou Loki. Ou era eu que era um coração mole? Não sei, só sei que em vez de sair pela porta eu me vi com a cabeça para fora da janela respirando ar puro.

Era dia de mercado. Quase todo dia era dia de mercado, al­gumas pessoas sempre estão com coisas à venda espalhadas pela calçada. Mas naquele dia era oficial, e o movimento era grande. Desde pessoas com bugigangas deprimentes em cima de panos no chão que queriam trocar por algumas migalhas igualmente deprimentes até barracas com toldos listrados que vendiam coi­sas interessantes. As lojas ficavam ao redor das barracas, algumas pobres, outras ricas, e algumas outras poderosas.

Eu me virei para olhar Styr. Ele estendeu os braços.

Quero que você me ensine. Quero ser um bom soldado. Eu posso ajudar. Faça um teste comigo - ele parou por um segundo. - Eu te amo, pai.

Eu ri. Como é que ele podia me amar se nunca me vira antes? Mas ele me amava. Eu sabia que ele me amava. E eu o amava.

Então, pensei comigo, que direito essa criatura tem sobre os meus sentimentos? Desejei que ele estivesse morto... de verdade, desejei que ele estivesse morto. Eu estava com muito medo dele, de onde ele tinha vindo, do tanque de vidro, das mentiras, do incesto. Então, tive outro pensamento e falei...

E quanto ao outro?

Cherry fez uma careta.

Sigs, não - ela disse.

O original, e quanto a ele? - perguntei ao clone.

Uma espécie de sobressalto tomou conta do garoto. Ele ba­teu no próprio peito.

Eu sou o original - ele gritou. - Sou a razão para... - Ele esticou o braço e claro que era verdade. Ele era a razão para a exis­tência do outro, do bebê que nascera no Estado de Conor. Por esse ângulo, ele era o original.

Ele não conta - disse o clone. - Ele não passa de uma criança.

E quanto à sua infância? - indaguei maliciosamente.

É tarde demais para isso. - Ele deu de ombros.

Eu me virei para olhar pela janela. Lá fora, em Muswell Hill, era dureza. Era preciso conhecer os lugares certos para se ir, era preciso saber o que fazer. Antes de tudo, era preciso saber o que não fazer. Calculei que não seria tão difícil bolar um teste pra ele não passar.

Acenei e ele chegou perto de mim. Fui imediatamente domi­nado por essa sensação - essa sensação nunca me abandonou toda vez que ele ficava perto de mim. Repulsa e atração, amor e ódio, tudo junto.

Lá. - Apontei. - Está vendo? A casa de penhores...

Era o lugar de Do Hawkins. Ele faz um monte de coisas boas. Não são só os pobres que vão até Do quando precisam de di­nheiro. Muita gente rica penhora jóias de família por lá. Não era preciso ter boa reputação ou um crédito significativo. A política de segurança de Do se diferenciava um pouco de simplesmente verificar se fazia empréstimos às pessoas certas. Quando ele não era pago, ou qualquer outra coisa assim, os seus ajudantes faziam uma "visitinha" ao devedor. Do era o que mais se aproximava de um chefão de gangue que ainda restava no norte de Londres. Ele tinha nas costas uma infinidade de trambiques, roubos, extor­sões, assassinatos. Eu mesmo fiz alguns trabalhos pra ele. Um grande número de pessoas que sequer precisavam de dinheiro pedia empréstimos a Do, só para lhe dar o prazer de ter o dinhei­ro de volta com uma boa taxa de juros.

Ele também era bom nisso. Havia uma pequena fortuna de­positada naquela loja. Pode-se pensar que essa seria um chamariz irresistível para os ladrões, mas não é assim que a coisa funciona. Ninguém - e digo ninguém mesmo - tentava roubar de Do. Era muito perigoso. Era preciso ser um gênio só para conseguir en­trar lá.

Pegue a grana e você está dentro - falei para Styr.

Eu tremia enquanto voltava à janela para assistir. Cherry estava furiosa:

Você o matou.

Trinquei os dentes.

Ele só tem quinze anos, Siggy.

É um teste, ele precisa ser testado - insisti.

Ela balançou a cabeça e se aproximou para olhar a rua lá embaixo. E depois, sorriu.

Olha lá ele.

Espiei pela janela. Foi rápido. Fiquei impressionado. O mo­leque circulava no meio da multidão e já se aproximava.

Ele vai tentar mesmo - fiquei surpreso.

Ora, claro. - Cherry riu ao me ver desconcertado. - Você tem que impedir que ele faça isso - ela falou. Mas eu não conse­guia me mover.

Styr já estava perto, espremido na multidão, já estava chegan­do perto do balcão. E logo sacou uma arma.

Eu saltei e gritei. Aquilo era loucura! A loja inteira ficou pa­ralisada. Pude ver uns caras grandões olhando para ele, mas não arriscaram fazer nada... ainda. Styr estava tão tranqüilo quanto se pode imaginar. Ele afastava com a arma as pessoas que passa­vam atrás dele. O sujeito atrás da mesa esvaziou o caixa em uma sacola e entregou-a. Merda, ele tinha realmente conseguido!

Ele ia morrer.

De repente, com o coração na boca, pensei: vamos lá, garo­to, vamos lá, você vai conseguir! Mas ao mesmo tempo eu sabia que ele não tinha chance. Mesmo que ele saísse da loja, estaria morto em poucos minutos.

Styr se virou e começou a margear a loja.

Porra, os malditos vão matá-lo! - Inclinei-me no parapeito. Eu estava assustado! - Eles vão matá-lo!

O seu próprio filho - disse Cherry.

Eu a amaldiçoei. Abaixo de nós, Styr se virava e saía correndo. De repente, um estrondo de tiros. A multidão abria e fechava para deixar Styr passar. Ele estava correndo... e logo a rua se encheu de grandalhões com ternos elegantes que corriam atrás dele.

Que garoto estúpido! - gritei. Saltei para trás e fui até a porta. Ele não tinha chance! Enquanto eu disparava pelo corredor, ouvi Cherry às minhas costas:

É melhor se apressar.

Atravessei o corredor como uma bola de pinball. Despen­quei pelas escadas e segui porta afora. Ele já devia estar morto! Agarrei um transeunte.

Para que lado ele foi?

O quê? - O homem não fazia idéia do que eu estava falan­do. Eu o larguei e corri na direção da loja de Do. Agarrei um dos grandalhões. Ele me reconheceu, todo mundo conhecia a minha cara, ou pelo menos o que restara dela.

Para onde eles foram?

Ele é seu? O que você pensa que está fazendo?

ONDE? - O homem empalideceu. Ele não gostava que gri­tassem com ele, mas tinha mais o que fazer do que discutir comi­go. Ele apenas apontou.

Saí correndo por trás da Avenida Queens, onde as barracas de roupa sumiam aos poucos, dando lugar à venda de ferro ve­lho e ferramentas. Agarrei outro transeunte. Tive que agarrar mais dois até encontrá-los. Eles o tinham contra uma parede cheia de caixas de madeira repletas de folhas de repolho e frutas estragadas. Eram mais ou menos seis que lhe davam uma lição para que todos vissem, antes de acabar com ele. A neve estava verme­lha de sangue. Styr também fizera um grande estrago. Alguns deles estavam estirados no chão, uns mortos e outros ofegando e arfando. Mas os que ainda estavam de pé mantinham as botas no alto. Eu calculei que a intenção era chutá-lo até a morte.

Os braços do garoto golpeavam como um chicote. Ele já es­tava um estrago. Os sujeitos se fartavam.

Larguem-no! - gritei. Eles se viraram para me olhar. Não sou assim tão grande a ponto de ser olhado. O sujeito que estava atrás cuspiu, o outro recuou a bota para trás e acertou a cara do garoto outra vez. Styr se crispou um pouco.

Eu tinha perdido. Tinha realmente perdido. Às vezes, isso acontece comigo. Tudo era apenas uma bruma vermelha. Quan­do cheguei, fiquei de costas contra a parede, com Styr aos meus pés e os valentões caídos no chão. Havia sangue por todo canto, nas paredes, na sarjeta. Dei a coisa por encerrada com o último golpe. Aquele cara que deu o último chute, ele não devia ter feito isso. Ajudei Styr a se levantar e alguma coisa nele dizia, até pelas mudanças que Signy fizera nele, que ele ainda seria capaz de caminhar. Levei-o de volta à casa de penhores. Do soube da confusão e estava à minha espera. Toda a área do mercado sabia do ocorrido.

Bem, Do era um grande jogador. Maior que eu. Mas ele me conhecia. E sabia quem eu era.

Joguei a sacola de dinheiro aos seus pés. O dinheiro se espa­lhou pelo assoalho.

Mesmo se ele roubar a sua mulher e você tocar nele, vou fazer com você o que acabei de fazer com seus capangas - rosnei. Do Hawkins me olhou. E olhou para os seus outros comparsas. - Você me conhece, Hawkins. Sou um Volson. - Inclinei-me e gritei na cara dele.

Eu me certifiquei se tinha falado alto o bastante para que os outros ouvissem. Aquele nome ainda significava alguma coisa. A multidão murmurou. Hawkins assentiu.

Ora, Den, nós não sabíamos, não é? - ele disse. E assim que me chamam por lá. Chutei a mesa e peguei um punhado de dinhei­ro, só para esfregá-lo na minha mão, antes de deixá-los e arrastar nossos cacos escada acima.

- Fizeram um estrago nele, não é mesmo? - Cherry me repreen­deu. Ela estava com desinfetante, bandagens e tudo o mais, ti­rando terra do rosto de Styr. Eles devem ter esfregado o rosto dele no chão. Ele ficou sentado, encolhido, enquanto ela limpa­va o seu rosto.

Você vai me mandar de volta? - o garoto me perguntou.

E se eu mandar?

Eu fracassei. - Ele levou as mãos ao rosto e começou a chorar, com soluços secos e estridentes que vinham direto de seu coração.

Eu também senti vontade de chorar. Pobre garoto; afinal, ele era apenas um garoto. Peguei um prego na gaveta e preguei na parede a nota que tirara de Do.

É o seu primeiro troféu - falei. - Aprovado. Você passou. Fica comigo.

 

Naquele dia, o garoto me fisgou pela juventude e a coragem, mas eu me arrependi porque sabia que ele não era bom. Quer dizer, que tipo de bagunça Signy e Loki estavam fazendo com ele? No fim, eu também precisei adicionar a minha parte, você sabe, ele me amava. O amor faz você amar de volta, eu não podia evitar. Ainda que tenha sido a minha irmã quem fabricou esse amor, funcionava.

Eu o levei lá para fora para testá-lo, sabe como é; aquelas tarefas de grandes porcos gordos, o tipo de coisa que eu e Signy apreciávamos.

Vai até a coluna daquela janela, dê um jeito de chegar ao corredor, sai e abre a porta para mim... - eu disse. O rosto pálido e duro de Styr assentiu. Ele teria que seguir completamente sozi­nho pelas entranhas escuras do prédio. E adivinha quem é que começou a suar? Eu!

Comecei a pensar: Santa Mãe do Céu, e se ele for pego? Eles vão pendurá-lo na forca. Fiquei nas sombras, todo assustado. Logo se ouviu o chacoalhar da fechadura, a porta abriu e ele apareceu, me olhando sério. Nenhum sorriso ou expressão de "eu-te-falei".

Garoto estúpido, pór que fez isso?

Você é que falou pra eu fazer.

Tá certo, vai lá e pula dentro do fogo...

A vida de Styr não valia nada se era reduzida a uma ordem e eu estava fraco demais para gostar disso. Fossem lá quais fossem as palavras que saíssem da minha boca, eram o próprio evange­lho, sem dúvida. Se falasse para ele descascar batatas, as batatas eram descascadas. Se falasse para se esconder no esgoto cheio de bosta, ele se escondia. Se falasse para apontar uma arma para o coração de um homem e atirar se ele se movesse, ele apontava. Mas nunca precisou atirar. Ele era apenas um garoto, mas todos sabiam; só de olhar, até o mais durão sabia que ele faria qualquer coisa se tivesse que fazer. Ou talvez até se apenas sentisse vonta­de de fazer.

Ora, Styr assustava todo mundo: homem, animal ou meio-homem, mas acho que ele próprio não era nada disso. Ele tinha, por exemplo, as minhas lembranças. Ele conhecia Val. Ele se lem­brava do avô, lembrava-se de ter sentado no joelho dele.

Veja, Vai morreu antes de você nascer - eu disse.

Mas eu o conheci. Eu o conheço. - Styr sorriu, assentindo. Ele me olhava nos olhos e me desafiava a contradizê-lo, porque ele conhecia Val, intuitivamente, do jeito que um cachorro sabe morder, do jeito que uma andorinha sabe para onde voar no inverno. Ele sabia melhor das coisas do que qualquer homem é capaz de saber.

Ele também se lembrava de quando os meus irmãos foram devorados pelo Porco. Obrigado, mamãe! Que presente abenço­ado. O que me assustava era o fato de que as lembranças dele eram minhas. Como é então que Signy pôde botar as mãos ne­las? Quem é que as tinha roubado para ela? Cherry? Odin? Loki? E não eram somente as minhas lembranças. Styr se lembrava de ter visto o corpo de Vai pendurado em uma estrutura enquanto Conor marchava pela cidade de volta ao Estado. As lembranças de Signy. Você daria ao seu filho "lembranças como essas?

Nenhum ovo de Páscoa. Nenhum presente de Natal. Nenhum passeio de bicicleta, nenhum brinquedo ou amiguinho. Nenhum você-me-mostra-a-sua-e-eu-te-mostro-o-meu atrás de uma moita. Só assassinato.

Alguma mãe.

Além de Conor, havia uma outra coisa que ele odiava. A sua outra metade, a que vivia com Conor. O pequeno Vincent, meu filho verdadeiro. Talvez porque o garotinho era o original, era aquele que teve infância, aquele que teve mãe. Tentei conversar com Styr sobre isso, mas as conversas não significavam nada para ele. Styr nunca questionava a lealdade e o ódio que carregava dentro de si. Essas coisas lhe foram dadas.

Ele não tem nada para fazer - Styr costumava dizer. - Ab­solutamente nada. Nenhuma razão para existir.

Styr, no entanto, era leal a mim e eu era leal a ele, e eu preci­sava amá-lo, mesmo que ele me enchesse de medo. Eu era como uma criança, chegava até a sentir ciúme de seus outros amores. Ora, ele tinha outros amores, mas não por pessoas. Ele amava a vingança. Dava para ver os olhos dele quase brilhando quando falava sobre o que faríamos com Conor assim que colocássemos as mãos nele.

E ainda amava outra coisa: a faca de Odin.

Quando você recuperar a faca... Quando a faca estiver en­fiada na garganta de Conor - ele dizia com ar sonhador e gentil. A faca era a mamadeira que aquele bebê nunca teve. Acontece que ele queria que eu a tivesse. Isso não é estranho? Amar algu­ma coisa e desejar que outra pessoa a tenha? Quer dizer, você faz isso pelos seus filhos, não pelos seus pais. Isso foi coisa dos tan­ques. Você pode fazer um homem amar qualquer coisa, até mes­mo uma faca. Mas o engraçado é que quanto mais ele insistia com isso, mais eu queria a faca. Era praticamente a única coisa que parecia fazer sentido. Comecei a achar que toda essa confu­são não passava de uma jornada que a faca de Odin deveria per­correr para voltar ao meu cinto.

 

Era aquela velha rotina - grande porco, gordo e cheio de gordu­ra. Mas esses porcos eram diferentes.

James e Percy Wallace. Já ouviu falar deles? Você devia ter ouvido, mas não vai ouvir. Eles eram homens de negócios. Che­fiavam várias operações dentro e ao redor de Londres. No passa­do eles haviam se mostrado úteis a Conor, que lhes deu muitas outras operações fora da cidade, no novo território que ele controlava. Conor sabia que quando queria um trabalho bem-feito podia confiar naqueles dois.

James e Percy não eram populares. Ora, e daí? Ninguém es­pera que os homens de negócios sejam legais. O que se espera dos homens de negócios é que eles tenham lucros polpudos e que dêem uma fatia bem gorda a Conor, e era exatamente o que esses dois faziam. Coordenavam operações ilícitas, assim como muitas outras pessoas faziam, com a única diferença de que esses dois tornaram-se mais ricos e mais sujos que qualquer outro. Eles coordenavam atividades químicas em Hackney Marshes, tinturarias em North Islington e uma unidade armada em Kilburn, da qual ninguém sabia a respeito até a destruição daquelas sete ruas, incluindo uma escola que deixou um saldo de cerca de tre­zentos mortos.

Ninguém gostava de trabalhar na organização dos irmãos Wallace porque era o tipo de lugar onde não se vivia muito. A vida sob o controle de Conor não era brincadeira e freqüen­temente havia alguém disposto a fazer qualquer trabalho, não importa o quão perigoso fosse e o quão baixos fossem os salá­rios. Mas isso não acontecia com as operações dos irmãos Wallace. Eram lugares guarnecidos por escravos retirados dos novos territórios ou por pessoas raptadas nas ruas. Lá não se faziam perguntas.

Eu acho que em nossos dias - os dias de Vai, claro - centenas de pessoas acabaram soterradas quando essas ruas desabaram, e só Deus sabe quanta gente do interior e londrinos do centro morreram nas tinturarias. Quem se importava? Desde que Conor obtivesse a sua fatia, ninguém ousava se importar. É claro que fora da cidade todo trabalho realmente escuso que Conor deixa­va para trás era levado avante pelos irmãos. Eles controlavam "operações de segurança privada" (proteção), "serviços de infor­mação" (tortura), "gerenciamento pessoal" (espionagem e assassi­nato) - todo esse tipo de coisa. E atividades menos óbvias também. Um tirano como Conor precisa de muita limpeza depois de tudo, e quem você acha que ficava responsável pelos corpos? Os genocídios fazem grandes estragos. E o que me diz da vez em que Conor resolveu dar um exemplo em Ipswich? Para onde você acha que aquelas centenas e milhares de corpos foram? Pense nisso na próxima vez que você comprar um pacote de adubo na loja da esquina.

Então, grandes porcos gordos. Ninguém era maior, mais gor­do ou mais porco que esses dois. Só que eu não me iludo. Não mudaria nada livrar o mundo de tipos como James e Percy; sem­pre existem muitos mais para pipocar seja lá de que buraco fedo­rento eles surjam. Mas isso fazia com que eu me sentisse melhor, e mais uma vez as notícias se espalharam. A população ouvia dizer que a verdadeira sujeira deste mundo havia encontrado o destino que merecia e me apraz pensar que eu proporcionava um pouco de satisfação ao fazer isso.

Você deve estar pensando que esse tipo de coisa agradava a minha querida porca. Nada disso.

- Cê divia tá lá fora com o nosso Dag, divia ser general, não ficá arriscando a vida com dois velhos esquisitos.

Obrigado, mas não, obrigado. Prefiro trabalhar sozinho.

Styr estava disposto a isso. É isso aí, Styr estava disposto a qualquer coisa. Tenho que dizer, não se podia achar que Styr era uma força benéfica neste velho mundo, mas ele e eu, nós dois éramos praticamente imbatíveis quando estávamos juntos.

Esses dois sujeitos eram as grandes estrelas de Conor e, se qui­sessem, poderiam ter tido um lugar dez vezes mais importante no Estado. Ninguém sabia realmente por que eles não aceitaram. Lá era seguro, a segurança era impermeável, ninguém sequer tossia sem que os seguranças soubessem. E esses dois precisavam disso; tinham muitos inimigos. Mas preferiam viver no lado de fora.

Passavam a maior parte do tempo em uma grande mansão, em Kentish Town. Uma porra de lugar bom, construído mais como cofre do que como fortaleza. Paredes de aço, juro por Deus, eu vi. Ninguém conseguia entrar ou sair de lá, nem mesmo eu e Styr. E era assim que eles seguiam, ano após ano após ano.

Foi Cherry, como sempre, que nos trouxe as novidades. A essa altura Cherry estava envelhecida. Fazia uns dois anos que eu tinha pegado Styr, mas ela já envelhecera oito anos ou mais. Eu daria a ela uns cinqüenta. Eu estava com vinte e quatro. Ela ain­da era bonita, mas não tão elegante, em minha opinião. O fato é que eu podia ter me apaixonado por Cherry e talvez ela pudesse ter se apaixonado por mim. Tivemos um caso durante alguns anos, que provavelmente terminava e recomeçava sob as ordens de Signy. Às vezes me pergunto se tenho parentes lá fora que se alimentam de ratos. Que coisa para se pensar! Mas faz com que eu seja muito mais legal com os gatos, posso dizer. Entretanto, tudo isso se dissipou logo depois que Styr entrou na cena. Tive duas garotas-gato que eu via de vez em quando. Não eram muito animalescas e eu gosto de um pouco de pêlo e de uma boa ron- ronada, embora elas geralmente tenham língua áspera.

Naqueles dias, Cherry era mais ou menos como uma tia para mim. Para falar a verdade, o jeito com que às vezes ela me olha­va, acho que devia sentir por mim o que eu sentia por ela. Enve­lhecer com tanta rapidez não devia ser muito divertido. Com toda essa velocidade, Cherry não podia mesmo ter mais que uns cinco anos de vida. De qualquer maneira, isso já está fugindo do assunto. O fato é que havia uma chance com os irmãos Wallace. Conforme eu disse, eles ficavam o tempo todo trancados naque­le castelo de aço inoxidável, em Kentish Town. Sabíamos que eles saíam de lá, mas quando? Eu sempre insistia neste ponto com Cherry, até que ela chegou com as boas-novas.

Ela estava com todas as informações - o horário de chegada deles, o endereço da casa e até os detalhes da segurança naquela noite. Era uma dádiva de Deus. Mesmo assim não seria fácil. Eles eram bem protegidos, possuíam veículos e tinham poder de fogo... um forte poder de fogo. E óbvio que seria um trabalho para mais de duas pessoas, mas os meus ajudantes habituais não estavam muito animados com essa tarefa. Para começar, eu não podia prometer a eles qualquer recompensa. E mais, o trabalho era muito perigoso para tipos como Desajeitado e Gambá, meus comparsas, e talvez estivesse um pouco fora do alcance deles. Então, no fim das contas deixei Styr me convencer que devíamos deixar Dag nos ajudar.

Bem, é isso aí. As águas têm que estar azuis e cristalinas entre mim e o movimento da resistência. Como eu disse, não é que eu não simpatize com essa idéia, mas já fiquei de saco cheio de merdas desse tipo para as próximas encarnações. E bem verdade que alguns dos meus inimigos nos últimos anos foram alvos políti­cos, o que me tornou popular no meio da resistência. E pouco importa que meus porcos gordos sejam alvos políticos, ou até mesmo militares, desde que eu seja bem recompensado. Nem por um segundo penso que isso fará algum bem verdadeiro, exceto pelo fato de que deixa a todos com o espírito animado e não há nada de errado nisso. Mas era a primeira vez que eu trabalhava junto com soldados e não gostei disso.

Era o mesmo cara que Melanie levou lá para casa naquela vez, em Muswell Hill. O mesmo porcaria de cara, desfiando a lista dos alvos militares que eu e Styr já tínhamos dado cabo e implorando para que eu me juntasse a eles.

Isso não é para mim - eu lhe disse.

Ele levou as mãos à cabeça, como se eu estivesse sendo estú­pido.

Metade dos generais da elite de Conor está em suas mãos e não é para você! - ele uivou. Enquanto isso, a velha Melanie zanzava de um lado para outro, grasnando e grunhindo.

Quando é qui cê vai ganhar juízo, meu Sigs?

Dag Aggerman... - o emissário começou a falar, mas eu já estava farto. Não queria saber o quão grandioso Aggerman acha­va que eu era.

Quer me ajudar a pegar os irmãos Wallace ou não? - rosnei, enfiando minha cartilagem na cara dele. Ele deu de ombros, mal-humorado, mas sabia fazer melhor que isso para me irritar; então, entramos nos detalhes. Foi uma negociação difícil, mas conseguimos cerca de vinte homens e um pouco de artilharia pesada. Era o suficiente para um ataque surpresa.

 

Cherry nos deixou orgulhosos, mas, ainda assim, não sabíamos muito bem quantos homens teríamos que confrontar. Conhe­cendo os irmãos Wallace, poderia haver um bom número escon­dido ou circulando nos arredores, mas no fim era como se eles estivessem contando com o sigilo, porque não havia tantos as­sim. Todos os homens de Dag eram apenas isso... homens. Fiz o papel do comandante, falei com dureza, bati nos ombros deles e os fiz se sentirem como se eu os conhecesse a vida inteira. Vai me ensinou como fazer isso. Fizemos alguns treinos, à noite, ao re­dor de Hackney, antes de partirmos para a realidade. Aggerman os mantinha bem treinados, apesar de toda a reclamação a res­peito das tropas humanas. Metade de nossas forças se aproxi­mou pelo subterrâneo, através dos esgotos, e o restante atacou simultaneamente pela frente e por trás.

Não tivemos que esperar muito. Um punhado de sujeitos guardava a casa, mas com certeza chegariam mais alguns em mar­cha acelerada dos quartéis de Station Road. Estava fácil para o começo. Os guardas deles eram bons, mas se encontravam em menor número e os pegamos desprevenidos. Metade jogava car­tas ao redor de uma mesa quando irrompemos pelas janelas da casa - BANG! Liquidamos o saguão e a sala de estar; Styr e eu já estávamos nas escadas antes mesmo que alguém pudesse tossir e deixamos o resto dos homens para acabar com a guarda e refrear uma possível ajuda que viesse de fora.

Nós os encontramos imóveis em suas camas: dois velhotes magricelas e grisalhos em duas camas bem-arrumadas de soltei­ro, alinhadas contra a parede junto a duas pequenas lamparinas a óleo, acesas, como se eles estivessem com medo do escuro. E sabe o que mais? Eles ainda estavam dormindo. Nós provoca­mos um holocausto, os homens morriam e todo o lugar se despe­daçava, enquanto eles, na cratera do vulcão, dormiam e roncavam.

Ficamos olhando para eles. Eram sujeitos de aparência mui­to estranha, como fantasmas de crianças, deitados pacificamente em seu quartinho. Mal dava pra acreditar que eles haviam mata­do cerca de um milhão de pessoas.

O que há com eles? - perguntei. Styr franziu os olhos e deu de ombros. Eu estava desconcertado... matar dois homens ador­mecidos? Mas Styr não viu problema algum nisso. Ele deu cabo deles com sua faca, um após outro, e limpou a lâmina no edredom com toda a tranqüilidade.

Foi pra isso que viemos - ele disse.

Já era hora de partir, o mais rápido possível. Fizemos baru­lho bastante para acordar os mortos. Eu estava prestes a correr quando avistei algo muito estranho pendurado na parede perto das camas.

Era um quartinho engraçado. Um papel de parede elegante coberto de pequenas flores rosadas e um baú de cuecas. Um pe­queno guarda-roupa, uma pequena estante de livros. De fato, muito aconchegante. Mas essas duas coisas penduradas perto das camas estavam deslocadas. A princípio, achei que fossem rou­pões com capuzes. Roupões cinzentos de pele. Mas tinham pêlos demais. Eram muito feios. Logo depois vi as orelhas, me aproxi­mei e tirei um do cabide.

Era pele de lobo. Estava pendurada num prego pela ponta do focinho e as cabeças eram o que tomei por capuzes. Estendi a pele nos meus braços e olhei para Styr. Ele se aproximou e alisou a pele áspera e grossa.

Lá fora, a encrenca estava a caminho. Eu ouvia os carros derrapando na rua. E carros significavam armamentos. Nós tínha­mos que sair.

Styr sorriu. Sacudiu a outra pele em cima do braço, como um alfaiate que exibe uma peça de tecido.

Lobisomens. Eram lobisomens.

Essas coisas existem?

E esses dois dormindo no meio disso tudo. - Ele sacudiu a pele mais uma vez e apontou para os dois corpos. Mortos eles não eram diferentes de quando estavam apenas dormindo. - Não são de verdade, sabe como é - ele disse. - Só são de verdade quando vestem isso.

Como você sabe?, eu pensei.

Vamos... - Eu só disse isso. Estava com pressa para sair.

Vamos experimentá-los - Styr falou, enquanto sorria e me olhava de esguelha.

Eu me detive. Por que um homem desejaria ser lobo?

Vamos experimentá-los... vamos lá - ele insistiu.

Não seja estúpido. Para quê?

Está com medo?

Por que estaria? - Eu estava com medo, é claro. Sempre estive, em todos os nossos serviços. Mas não creio que Styr sou­besse o significado dessa palavra.

Vamos lá, Siggy. Experimente para ver se serve...

Claro que eu tinha mais conhecimento que ele. Mas vamos encarar os fatos. Eu estava tentado. Você também não desejaria saber como era aquilo? E, outra coisa, já que estou sendo hones­to, eu devia ter tido bom senso, mas ele era meu filho e me ridi­cularizou ao dizer que eu era covarde. Meu sangue ainda estava quente pela matança. Lá fora os carros estacionavam. Brinquei comigo mesmo que seria uma boa maneira de passar pelas tro­pas. Assenti para Styr e soltei um sorriso malicioso. Passei o ca­puz por cima de minha cabeça. Ele fez o mesmo.

Minha primeira impressão era que doía. Doía muito! Uma dor de metal derretido derramado em cima do meu corpo. Fi­quei enrijecido, gritei e enquanto gritava caí de quatro e o meu grito tornou-se um uivo...

Eu venho de uma família importante, mas olhe para mim. Meus irmãos viraram comida de porco, meu pai tinha sido assassinado e seu esqueleto acabou pendurado no portão dos nossos inimi­gos. Minha irmã é uma concubina e eu me rebaixei tanto que acabei sendo salvo por uma velha mulher-porco com cuspe nos lábios. Dormi com minha própria irmã, mas juro por todos os deuses que em nenhum momento eu soube que era ela. Eu não pude evitar essas coisas, mas o meu ato mais vergonhoso foi ter vestido aquela pele de lobo. Isso começou com a vergonha por­que só vesti aquilo quando Styr me instigou. Um pai precisa mostrar aos filhos como ser corajoso, mas também tem que mos­trar a eles a diferença entre coragem e estupidez. Styr tinha difi­culdade para aprender essa lição, mas permitir a ignorância dele tornou-se o meu pecado, e isso era imperdoável. E terminou... ora, você vai saber como.

Era como uma droga. Não lembro de muita coisa. Era como as tropas Berserker, aqueles que quando entravam nas batalhas dedicavam suas vidas a Odin e tomavam drogas alucinógenas para enlouquecer. Lembro de ter saltado pela janela e corrido na direção dos gângsteres na rua. Styr também havia pulado por outra janela do quarto. Primeiro andar; isso podia ter quebrado nossas pernas em vários pedaços. No fundo da minha mente - isso mesmo, a essa altura, com a pele ainda fresca em mim, eu ainda conservava um pouco da minha mente - brotava o pensa­mento de que seria o fim, eu estava prestes a morrer. Todos aqueles caras, e saltamos bem no meio deles. Era loucura, eu não conse­guia entender por que havíamos enlouquecido a ponto de mer­gulhar direto na linha de tiro. Aqueles homens estavam munidos de armas automáticas, alguns deles tinham canhões com poder de perfurar blindagens montados no teto dos veículos. Dispara­ram uma rajada de tiros na minha direção; eu via as balas traçantes vindo no meu encalço.

Assim que caí descobri o meu tamanho. Com as quatro patas no chão, eu era capaz de olhar sobre o teto de um carro estacio­nado. Minha boca era como uma bomba prestes a explodir. Eu sentia uma fúria incrível. Caí no meio de um grupo de gângsteres e os fiz em pedaços. Ouvi o uivo de Styr perto de mim. Depois, ao virar na direção de uma rajada de tiros, percebi que eu estava indestrutível. As balas apenas roçavam no meu corpo. Alguém jogou uma pequena granada; ela explodiu ao meu lado com a suavidade de uma flor e, naquele instante, eu me dei conta de que nada poderia nos deter. Uivei como um demônio; Styr tam­bém uivou vitorioso e nos viramos frente aos nossos adversários. A força que tínhamos era uma outra droga. Nós podíamos fazer qualquer coisa. E o que fizemos não foi só rasgar os gângsteres em pedaços, fizemos o mesmo com seus veículos. E chegamos até a triturar as armas com nossos dentes.

Não sei que deus ou demônio confeccionou aquelas peles de lobo. Eram coisas maléficas porque, quando terminamos com os gângsteres, nos voltamos contra nossa própria gente. E depois de liquidá-los, seguimos em frente à procura de mais sangue.

Tenho vislumbres de memória. A essa altura o lobo já tinha tomado conta de mim, mas em certos momentos eu ficava lúci­do. Não que isso me detivesse. Eu era um observador de minhas próprias mandíbulas. De como elas rasgavam os membros dos homens. De como elas agarravam as crianças e as cortavam ao meio. Sim, sim... crianças. O monstro não tinha piedade. Eu me lembro de fragmentos como esses, mas a maior parte das coisas eu descobri depois. A lenda que correu entre os londrinos era que dois monstros da terra dos meio-homens haviam escapado e entrado na cidade. Eles - nós - haviam deixado um rastro de morte e destruição por Londres até King Cross. A população era rasgada em pedaços, assim como os animais. Os bons, os maus, os ricos, os pobres. Mas a maioria era gente dos guetos. Agora, por que foi assim? Por que criaturas que amam unicamente o sangue preferem matar primeiro os pobres? O que posso con­cluir é que nos guetos tem mais sangue, as pessoas ficam amon­toadas.

Depois, quando voltei a ser homem, fui visitar as casas dos mortos e dos mutilados. As casas estavam em pedaços, com mar­cas de dente nos tijolos, partes de cadáveres espalhadas pelo chão. Uma procissão sem fim de caras em estado de choque. Fui até lá como espectador. Eu não podia acreditar que meus fragmentos de lembranças fossem reais, eu queria que fossem sonhos. Me fiz de benfeitor para as vítimas. Doei dinheiro, eu era generoso. Mas sou um Volson. Antes disso, nunca precisei me sentir culpa­do. E agora, quando me olho no espelho, vejo que perdi alguma coisa sagrada dentro de mim depois que coloquei aquela pele na minha cabeça, tudo isso por causa do idiota do meu filho.

Chega desse papo de matanças. O mundo inteiro está cheio de sangue, estou farto disso. Mas ainda há o que contar sobre aque­la noite.

Ao recobrar a consciência, eu estava na terra dos meio-homens. A luz coloria o céu. O meu formato ainda era de lobo, mas por dentro eu voltava a ser homem. Eu me peguei rosnando bai­xo, agachado, de quatro. Eu parecia ter encolhido. Minha boca estava áspera com o gosto do sangue. Eu tinha feridas na cabeça e nos ombros.

A bruma vermelha da fúria mortal se dissipava nos meus olhos, a pele de lobo caía enquanto a luz iluminava o ar. Depois que a pele tombou debaixo de mim e eu voltei a ser eu mesmo, me dei conta do que estava mastigando. Era um lobo: Styr. Levei um tempo para notar.

Matei meu próprio filho.

No fim, um se voltou contra o outro. Não lembro da luta, mas deve ter sido algo digno de se contemplar. Estávamos entre os restos abandonados de uma rua comercial. A terra havia sido arrancada com a nossa luta, as construções de pedra, derruba­das, os muros, despedaçados. Uma daquelas lojas vendia apare­lhos elétricos e nós espalhamos trambolhos enferrujados e peças de velhas máquinas de lavar, geladeiras e lava-louças por tudo quanto é canto. Styr jazia em cima de uma pilha de metal esma­gado, ainda como lobo. Sua garganta estava dilacerada.

Ouvi o som de água corrente nas proximidades e me arrastei para lavar a boca num riacho. Bebi, espirrei água pelo rosto e olhei os primeiros raios da manhã bruxuleando na corrente d'água. E pensei comigo: isso é real? Terei realmente que viver com isso? Eu não conseguia manter a coerência de sempre.

A medida que me aproximava de Styr, o sol caía sobre os edifícios destruídos, iluminando o mundo da terra de ninguém - carros enferrujados, muros derrubados, vigas espalhadas pelo chão, ervas e pequenas árvores que invadiam as ruas e o asfalto. Eu era humano. Deitei ao lado dele e comecei a chorar.

Fiquei deitado durante horas. Quando me levantei e tentei enxergar por trás da minha dor, o sol estava forte. Eu era de novo humano, porém menos do que fora no dia anterior. Deitei minha mão em cima do lobo. Ele estava frio como uma pedra. Pensei: onde está meu Styr? Isso é realmente ele? Tive a idéia maluca de que poderia trazer a sua parte humana de volta à vida.

Enterrá-lo estava fora de cogitação. Não importa o quão profunda fosse a sua cova, os monstros meio-homens que ainda viviam perto da Muralha o desenterrariam. Carne alguma era desperdiçada naquele lugar. Então, juntei gravetos e pedaços de madeira seca. Não consegui muito. Toda a madeira da velha casa fora retirada havia tempo, mas ainda restavam galhos velhos de árvores e o clima andava seco. Era mais do que o bastante para o meu propósito.

Eu me reconfortei um pouco com o trabalho, puxando os galhos, construindo a pira. Já tinha construído metade quando avistei a raposa. Ela saiu de trás dos arbustos floridos e das bétulas prateadas que cresciam em um bosque ali perto e farejou o ar na minha direção, antes de emergir em campo aberto e caminhar delicadamente por entre as ervas na direção do lobo morto.

Era uma bonita visão, a pequena raposa, uma coisinha fofa que trotava sobre o cascalho em meio às ervas altas. Seus passos eram saltitantes, é sempre um prazer apreciar algo selvagem. Ela chegou bem perto de Styr e se inclinou ligeiramente para cheirar a cabeça dele. Fiquei tenso. Será que ele não passava de carne para ela? Ela subiu no corpo, andou até o rosto e começou a lambê-lo.

Soltei um grito e corri na direção deles. Achei que ela estives­se atrás de sangue. Avancei uns três passos, tentando afugentá-la, mas a raposa não se assustou. Ela se deteve e virou para me olhar, uma olhada demorada e tranqüila. Meus olhos encontraram os dela, eram como olhos humanos, e, naquele instante, eu me dei conta de que não era uma raposa...

Ao contrário da maioria dos homens, eu vi os deuses. Odin pôs sua mão no meu ombro e me deu uma faca de presente. Mas não era Odin que eu estava observando.

A raposa virou de costas e continuou lambendo, enquanto cutucava o corpo com seu focinho pontudo. Esticava a cauda espessa de um modo curioso e fazia pequenos movimentos es­tranhos com as mandíbulas e as patas, como se dançasse e can­tasse baixinho. Fiquei observando. Ela começou a empurrar a pele de lobo com o focinho. Avistei a parte de pele humana. A raposa metia o focinho e empurrava, e Styr estava dentro da pele como um homem. A raposa se virou e me olhou de novo. Pela segunda vez era um olhar esperto e sagaz. Ela rapidamente incli­nou a cabeça para trás e riu para mim. Meu corpo formigava dos pés à cabeça porque aquela era uma risada humana. Uma raposa que tinha voz! Uma voz esperta e zombeteira. O que significava aquilo? Eu não fazia idéia. Talvez Styr não tivesse morrido por­que nunca esteve realmente vivo. Talvez. Ela não falou nada, mas outra vez olhou para mim e percebi que queria a minha ajuda. Corri na direção dela e, juntos, puxamos a pele de lobo do corpo de Styr. Foi trabalho pesado, a essa altura ele já estava enrijecido e frio. Eu mesmo puxei a pele por cima da cabeça dele. Os olhos estavam abertos, vidrados e cinzentos. Mas a feri­da na garganta desaparecera; apenas a pele de lobo estava rasga­da naquela parte.

À medida que retirávamos a pata do pé dele, o corpo se tor­nava flexível outra vez.

Assim que retiramos a pele, eu recuei. A raposa se pôs a lambê-lo. Sua língua comprida e rosada lavou os pés, o corpo e o rosto de Styr. Eu estava lá e vi tudo; vi a cor retornar aos membros de Styr à medida que a raposa lambia o frio da morte. Observei o rosto de Styr enquanto ela lambia a membrana cinzenta dos olhos dele. Vi a boca de Styr crispar debaixo da língua da raposa. Vi seus olhos tremendo e se abrindo.

Ele se sentou.

O que houve, pai? - ele perguntou, já que eu estava cho­rando. Ele nunca tinha me visto chorar.

Eu me aproximei do meu filho e o abracei, a princípio cautelosa­mente, pois ele estivera em um lugar de onde ninguém deve vol­tar. Foi um abraço desajeitado, feio, e, enquanto o abraçava, eu me dei conta das poucas vezes em que o abracei durante os anos em que esteve comigo, o que me deixou triste por ele. Lembro- me de ter pensado que ele não teve mãe, não teve infância, só teve sangue em sua vida. Isso não era jeito de um garoto crescer.

Assim que tive certeza de que ele estava quente e realmente vivo, a raposa foi embora. Nunca mais a vi, mas acho que sei mui­to bem quem era ela. Styr não se lembrava de nada da noite ante­rior, apenas da batida policial e do momento em que pôs a pele sobre a cabeça. Eu lhe perguntei onde ele tinha estado enquanto estava morto, mas não se lembrava de nada. A essa altura já estava tarde e fazia frio. A madeira para a pira funerária estava empilhada às nossas costas e nós a acendemos para nos aquecer. Eu estava ferido pela briga da noite anterior; comecei a me remexer e a tremer. Mas Styr estava intacto. Ele me olhou com o rosto ilumi­nado pelas chamas, com um sorriso raro no rosto.

Sabe qual é a pior parte disso tudo? - disse ele.

Qual?

Você me venceu numa luta limpa.

 

Styr seguiu alimentando o fogo, com a idéia de queimar as duas peles. Eu me sentei e me pus a observá-lo, como se ele fosse desaparecer a qualquer instante. Depois disso, fiquei com mais medo dele do que nunca. Ele trabalhou como uma máquina até a chama rugir e, então, atiramos as peles no fogo e recuamos para vê-las queimar. Fiquei pensando: pelo menos livrei o mundo des­sas coisas horríveis. Mas a verdade é que a pele do lobo morto, a pele de Styr, essa queimou bastante. Mas a minha continuou intocada, tal como aconteceu com as balas e as granadas na noite anterior, o fogo não conseguia danificá-la. Ela permaneceu lá, nas brasas flamejantes, uma bela visão que brilhava avermelhada com o calor, sem que um único pêlo se chamuscasse.

Discutimos um pouco sobre o que fazer com a pele. Styr achava melhor que a levássemos com a gente, mas eu não confia­ria nele com aquela coisa. Por fim, nós a enterramos. Cavamos uns dois metros e meio no barro duro, jogamos a pele no fundo do buraco e depois o enchemos com pedras, galhos e pedaços de metal retorcido para dificultar eventuais tentativas de desenterrá-la. No fim, espalhamos tijolos por cima para encobrir o local. Olhando agora para trás, acho que devíamos tê-la levado conosco para garantir que fosse descartada da forma apropriada. Alguém devia saber como destruí-la. Mas eu estava farto daquilo e não queria tê-la por perto.

 

Essa é a história do que aconteceu naquele dia. Uma história que nos transformou. Eu passei a ter menos espírito para a luta. Styr, eu diria, seguiu pelo caminho oposto, como se o gosto de tanto sangue o tivesse tornado ainda mais ávido.

E a raposa? Nem mesmo Cherry soube me dizer quem era ela. Talvez Odin a tivesse enviado. Mas creio que tenha sido Loki, que de uma maneira engraçada é parente do meu filho.

 

Quanto aos irmãos Wallace, você pode imaginar o quanto fiquei surpreso ao ser informado de que eles voltaram à ativa alguns meses depois de os termos matado. Pelo menos um dos dois esta­va morto. James desaparecera, mas aparentemente Percy conti­nuava tocando os negócios. Cherry nos disse que ele havia aceitado uma oferta de Conor para organizar uma negociação alguns meses depois, em East Ham, durante uma insurreição. A princípio, não acreditei. Eu tinha visto os dois sangrando na ponta da adaga de Styr. Mas Cherry me disse que a única maneira de matar aquela espécie era com eles na forma de lobo. Apunhalá-los inúmeras vezes obviamente não servira de nada; então, no fim das contas, perdemos nossa chance.

Depois de ter sido informado a respeito disso, voltei sozinho à terra de ninguém para dar uma olhada. Encontrei uma grande barragem de pedras e terra e um enorme poço cavado no solo, onde havíamos enterrado uma das peles. Vasculhei a área, mas não encontrei mais nada, somente os restos de um corpo huma­no, agora apenas ossos, espalhados pela região.

Minha hipótese é que os irmãos foram procurar as peles, talvez suas almas as tenham farejado. Eles encontraram somen­te uma pele, houve uma luta e, se os rumores são verdadeiros, quem venceu foi Percy. Ele deve ter apanhado a pele e deixado o corpo do irmão para os meio-homens, que chegaram lá, de­voraram a carne e roeram os ossos que encontramos espalha­dos alguns meses depois.

 

É noite sem lua outra vez. Um ano se passou desde que Siggy e Styr lutaram até a morte e a partir daí Siggy ajudou diversas ve­zes a resistência com dinheiro e assassinatos, mas continua se recusando a se juntar a eles. As discussões entre os líderes meio-homens e a turba de guerreiros humanos prosseguem. São humanos orgulhosos que relutam a acatar ordens de um cachorro, embora eles próprios não tenham bons líderes. O único humano que pode pegar esse serviço prefere brincar de Robin Hood em vez de assumir as responsabilidades deixadas por sua família.

Isso leva qualquer um à loucura - Signy, Dag, Styr, todo o movimento da resistência. É para isso que ele nasceu. Signy con­tinua aos poucos com o fluxo de informações e promete mais, muito mais, se Siggy se juntar à resistência. Mas ele se recusa a fazer isso e as nações sofrem por sua teimosia. Styr implora, Me­lanie suplica, Dag manda emissário após emissário e se oferece a ir pessoalmente. Mas Siggy segue impassível. Ele só quer ser dei­xado em paz e viver sua vida. Como se sua vida lhe pertencesse! Como se ele não estivesse bem no centro dessa história.

A porca Melanie resmunga e rosna pelas barracas do mercado e as ruas laterais. Anoitece. Não é mais possível rosnar e resmun­gar pelas ruas durante o dia. Muswell Hill tem meio-homens de sobra, mas ninguém está seguro com os ataques organizados que ocorrem quase toda semana. Melanie sabe como farejar longe da vista dos outros. Ela tem muita prática com a terra de ninguém. Ultimamente, precisa guardar suas boas ações para as horas de escuridão.

Boas ações! Uma porca gorda que faz boas ações é o que ela sempre foi e sempre será, conforme Siggy descobriu para sua própria alegria. Agora ela quer disseminar boas ações por toda Londres e além das fronteiras da cidade.

Livrar-se de Conor. Tudo se resume a isso. É só se livrar de Conor que a Muralha vem abaixo. E só se livrar de Conor que cessam os ataques organizados. E só se livrar de Conor e as pes­soas terão uma chance de viver uma vida decente. Um homem nefasto a mais ou a menos não altera tanto assim o resultado da felicidade e da miséria humanas, a menos que este homem seja Conor. Que tirania foi mais completa do que a sofrida pelos lon­drinos nas mãos de Conor? As vezes, Melanie acha que a única coisa que mantém Conor, o tirano, no poder é a ilusão dos hu­manos de que ele só deseja destruir os meio-homens.

- Você é o próximo - murmura a coisa velha e gorda, en­quanto espia o letreiro de um outdoor em cima de uma padaria, na Closewell Street: "Somente para quem tem cem por cento de sangue humano."

Você é o próximo. Certamente. Na verdade, já está sendo. O padeiro tem que dar metade dos seus lucros para os esforços de guerra e durante o dia esconder o filho caçula que tem cara de porco. O garoto já tinha sido espancado quase até a morte no seu último dia de aula, porque grunhiu de um jeito infeliz na hora do almoço. Mas o padeiro não culpou Conor e sim os meio-homens. Você podia chutar os meio-homens. Você podia mantê-los distantes de sua loja. O que se podia fazer com Conor senão obedecer?

Agora, Melanie se sente irritada e de alguma forma sem fôle­go. Sem fôlego porque ultimamente ela está realmente gorda. Cortesia de Siggy. Fazer boas ações não significa que não se pos­sa comer bem. Sempre à espreita de alguns extras, como ela sem­pre esteve, mas ultimamente os extras não se limitam a migalhas e cascas, uma ou duas costeletas e um azeite tão vagabundo que dá dor de barriga de noite. Ultimamente, os extras são peças suculentas de carne assada, cestos cheios de bolos, peixe, verdu­ras frescas, manteiga. Itens interessantes, comida. Fascinante, na verdade. Mas ainda mais interessantes para Melanie são os ou­tros extras. Chapéus entupidos de jóias e barras de ouro e de prata. Dag Aggerman não tem ninguém que trabalhe melhor para ele em toda Londres. Agora, nas costas de Melanie, uma mochila com colares reluzentes, braceletes e anéis para serem entregues debaixo de um toldo mal iluminado atrás de uma confeitaria, na Cresswell Street.

Um dos ganhos de Siggy.

Quanto custa para manter sua barriga cheia, Melanie? - ele perguntou ao jogar as jóias no sofá alguns dias atrás.

Num sou eu qui preciso di comida, você sabe disso - ela grunhiu, acariciando as coisas bonitas. Colocou um colar no pes­coço e ficou zanzando enquanto Siggy ria.

Fique com um deles... para o traje de noite. Você está ma­ravilhosa - ele disse, beijando a orelha de Melanie até ela gritar. Ora, o que um porco ia querer com jóias? A verdade é que Melanie teria gostado de ficar com uma delas, mas Dag precisava mais do dinheiro. Comida para soldados, comida para armas. O sucesso de Conor fora contido, mas não cessado, deixado na direção oposta, segundo as informações de Signy. Espere Siggy se juntar à luta e as informações serão infindáveis. O último dos Volson! Signy não derrotaria Conor para o bem da população. Para ela, os sonhos de seu pai já não significavam nada. Se não fosse um Volson que fizesse esse serviço agradável, esse serviço agradável não significaria nada para ela. A justiça pura e simples não tinha qualquer importância.

Isso deixava Melanie furiosa. Seu Sigs, ele não a amava? Ela não o amava? Sim, sim, a velha cara feia dela era tudo que ele tinha neste mundo e ela sabia que o coração dele estava no lugar certo. Cara a cara, Siggy faria qualquer coisa pelas pessoas. Sai­ria para roubar a gordura de velhos porcos gordos, bancaria o fora-da-lei, abriria mão de fortunas todo dia. Mas, assim como Signy, não faria isso por justiça, não faria pelo bem da popula­ção. Ele faria isso porque gostava de agradar a sua Melanie. E talvez porque precisava de exercício.

Certamente não em prol da aliança.

Não, nada a ver com você, hein, Sigs?

Humanos! Sempre discutindo, são sempre os que sabem mais. E o último dos Volson, o homem que portava o nome, as habi­lidades, a reputação para liderá-los, passava o tempo roubando velhos endinheirados, como se uma pitada de boas ações fora-da-lei respondesse ao genocídio que ele via pela janela todas as manhãs.

Isso agrada algumas pessoas — ele disse a Melanie. Claro. Robin Hood Volson, que rouba dos ricos para dar aos pobres. Volson rouba e a velha porca entrega o dinheiro para Dag Aggerman. É espantoso como esses aristocratas simpatizam com o povo! Me­lanie, no entanto, não queria que algumas pessoas ficassem contentes. Ela queria um fim à tirania, queria justiça, queria esperança. E seu amado Siggy não ajudaria.

Não posso ajudar...

Não vai ajudar - Melanie terminou a frase para Siggy e lá vai ele se emburrar no seu amado sofá.

Ora, não subestime Melanie. Ela tem um grande coração, mas também possui um cérebro. Ultimamente, o principal assun­to de Mels é política. Ela passa informações de um lado a outro, se vale da inteligência de Cherry, tenta mandar mensagens para Signy, embora nunca receba respostas.

Não vai fazer negócios com um porco - é o que ronrona a garota-gato.

Melanie conhece todo mundo, sabe em quem confiar e em quem não confiar. Ouro e informação... o que mais o líder dos meio-ho­mens podia querer? A resposta, Siggy. A aliança precisa dele e isso Melanie não pode dar, e, por este motivo, ela se irrita, resmunga e bate as patas pela calçada enquanto caminha para a reunião.

Debaixo do toldo, umedecidas pela garoa, com um odor de torta barata de batata descascada, nabo e rutabaga que impregnava o ar, as jóias são entregues. A sacola à prova d'água que Melanie sempre usa para esse fim é virada de cabeça para baixo para se ter certeza de que nenhuma argola de ouro ou de prata, nenhu­ma gema pequenininha que pudesse ser transformada em bala fosse desperdiçada. O receptor, um velho que enrola o bigode e precisa se barbear quase até os olhos, o que dá à sua cara uma aparência curiosa, que indica que foi depilada, enfia as merca­dorias dentro da sacola dele.

E Sigmund? - ele pergunta com voz ríspida.

Ah, groinc! O mesmo di sempre. Istúpido.

Macacos estúpidos - concorda o velho, que essa noite tem pela frente uma longa jornada nos túneis até o outro lado da Muralha.

Mas eli tá vindo - insiste Melanie. - Eli faz tudo isso, num faz?

Para você, Melanie. Ele faz isso só para você - diz o velho, colocando a sacola nos ombros.

Eli tem coração.

O velho concorda. Os dois se separam. O homem segue por um esgoto que se liga secretamente à velha Linha do Norte, Me­lanie volta pelos atalhos na direção do apartamento que divide com Siggy, em Muswell Hill. Está mais irritada que nunca. O que havia de errado com Sigs? Por que ele não lutava? Ele já estava na rua novamente, pela sua Melanie, de novo na rua, no Hyde Park, nessa mesma noite, fazendo mais ganhos em prol da boa luta. Em breve, ele vai se juntar. Certamente ninguém ficaria impassível diante de todo aquele mal por muito tempo. Era sim­plesmente necessário que se fizesse o máximo possível.

A velha Melanie estava preocupada com seu "piqueno hu­mano". As pessoas não entendiam o quanto ele já tinha agüenta­do. Isso levava tempo.

 

De volta às ruas. Subindo pela Wayward Road, atravessando Caversham em disparada e entrando pelas ruas de paralelepípedos lamacentos e sujos de Harlow Square, cheias de tocas e po­rões soterrados, relíquias de casas derrubadas muito tempo atrás pela pilhagem de madeira e pedra. Ultimamente, muita gente boa vivia no subterrâneo e quase nunca se arriscava a emergir.

Logo a seguir, Battle Grove... Oh, Melanie, querida, olha lá, agora! Uma figura surge de um beco logo à frente. Melanie se detém... se detém... olha para trás a fim de ver para onde pode correr. Nenhum esgoto por perto para se esconder. Ela fareja com seu nariz ofegante e sente cheiro de sapato de couro, de peixe cozido para o jantar, de um viscoso chapéu de lã e de cabe­lo. Ela não gostou disso. Era um humano. Nunca confie em hu­manos. Em sua mente despontam rimas que ela usava para assus­tar seus porquinhos:

 

O cordeiro, o homem, o porco i o bodi

Foram passeá no vermelho boti.

O cordeiro, o porco e o bodi foram devorado,

E o homem, o único que sobro no boti.

 

Melanie, sou eu.

Ela reconhece a voz e relaxa, mas não muito. Quem é que pode relaxar com uma companhia dessas, ainda que ela saiba onde jaz a lealdade desse homem? A decisão dela de não correr na direção dele é uma decisão intelectual. Cada osso do corpo de Melanie grita pela fuga.

Oh. Qui cê tá fazendo aqui?

Precisamos conversar, Melanie. - O homem se aproxima o bastante para tocá-la, segurá-la. Cuidado, porca Melanie! - É sobre o Siggy.

O que tem o Siggy? - Os pequenos olhos se desviam nervo­sos de um lado a outro. Ela recua. Perto demais, perto demais! Ele está sozinho? - Por que aqui?

Tem um jeito de fazer com que ele se junte a Dag, eu sei como.

Agora está ficando interessante. Ninguém conhece Siggy melhor que esses dois. Se ele tem um plano, vale a pena ouvir.

Conor ainda não fez o suficiente para Siggy entender o que tem que fazer. - Um passo à frente, ele dá mais um passo à frente.

Num fez o suficiente? Qui mais eli podia fazer?

A resposta sai mais rápida do que aqueles olhos de porco podem ver, disparada de um braço de aço; dedos de ferro agar­ram o pescoço de Melanie e esmagam a sua laringe. Sem gritos por socorro, sem grunhidos, as palavras de Melanie terminam ali.

Siggy ama muita gente - o homem rosna, atirando-a no chão, onde ela se contorce enquanto segura a garganta arruinada e luta, sufocada, pelo ar. Ele a puxa do chão e a joga por sobre os ombros. - Isso vai mostrar a ele, entende, Melanie? Conor não estará satisfeito até que tudo de valor esteja destruído.

Se havia alguma ironia na expressão "tudo de valor", Melanie não apreciou o elogio. Nauseada e contorcendo-se por aqueles últimos suspiros preciosos, ela luta inutilmente contra a força cibernética do homem e se sacode, com ele se elevando bem atrás dela. Em sua mente rodopia uma outra pequena rima:

 

Num me importo si num tenho coração,

Minha pele é pelada como a morada de um leão.

Confiando im ocê, confiar im mim ocê vai podê,

E ATÉ À MENOR DAS ARFADAS, SERÁ OCÊ A MINHA REFEIÇÃO!

 

Ele joga Melanie de novo na calçada, como se ela fosse um monte de carne suína. Surpresos, dois Alaranjados se viram ime­diatamente para o lado de fora do quartel a fim de verem quem anda com tanto atrevimento na direção deles.

Encontrei esse porco se fingindo de mulher. - O homem toca o chapéu felpudo em saudação e recua, com os olhos ainda nos soldados, e antes mesmo que lhe façam perguntas, vai embora.

Quem está aí? - grita um deles, mas já era tarde. Os Ala­ranjados saem em perseguição, mas está claro que não há amea­ças e, de qualquer maneira, Styr já tinha desaparecido. As ruas estão silenciosas. Assustador! Ele chegou tão sorrateiramente, podia até ter estrangulado os dois e eles nem saberiam quem era.

Irritados, eles se viram para o ponto da estrada onde o porco se arrasta.

O que está havendo? - Eles jogam Melanie de costas com três chutes bem dados. - Fale! - Ela grasna e arfa. Nenhuma pa­lavra. Um deles se abaixa e rasga o vestido dela.

Ela é mesmo um porco. Tem mais tetas que dedos.

O outro solta uma gargalhada. Eles chutam a cabeça dela al­gumas vezes para acalmá-la e arrastam-na até a estação. O pensa­mento de Melanie é que pelo menos Styr podia ter acabado com ela. Ele podia ter acabado com ela facilmente, se ao menos tives­se uma gota de decência correndo em suas veias. Os Alaranjados sempre matavam lentamente os meio-homens. Isso servia como um bom exemplo para o resto deles.

 

Eram duas da manhã. Hyde Park. Não era um lugar que eu fre­qüentava. Eu fazia um trabalho com alguns "amigos".

Eu não estava saindo muito, mas era preciso trabalhar. Bem, pra falar a verdade, nem isso eu precisava fazer. Cherry trazia tudo que era necessário, mesmo sabendo que isso tornava Melanie gananciosa. Uma vez por semana Cherry trazia uma sacolinha cheia de coisas - jóias, ouro e muitas outras bugingangas, dos mais variados tipos. Mas no final de cada semana os armários estavam sempre vazios. Tudo bem que as coisas nunca haviam sido tão caras, mas ninguém me convence que um bolso cheio de ouro e prata não conseguia pagar as compras da semana. Nada disso. É a resistência. Melanie entrega cada centavo para Dag Aggerman. Então, quem pode dizer que não faço a minha parte? O dinheiro que eu e Styr trazemos pra casa deve deixar os meio-homens empanturrados por um ano.

É claro, tudo vai pelo ralo. Se eu enchesse a casa com dia­mantes, estaríamos comendo sobras no final da semana, mas não regateio um só centavo com a minha velha garota; aliás, nem com Dag Aggerman. Não que isso vá fazer algum bem a alguém. Eleva os espíritos, acho eu, a idéia de reagir com luta. Eu me lamento um pouco quando não tem cerveja na geladeira, mas minha reação básica é aumentar a renda. Isso me tira de casa, mas deixa Melanie feliz, e, convenhamos, devo isso a ela.

E isso também deixa Styr feliz. É a única coisa que o deixa feliz, já que eu me recuso a me juntar à resistência. Minha irmã tirou todo resquício de bondade dele, tirou a piedade. Para que serve um soldado com piedade? Em vez de piedade, ele tem leal­dade, a mim. Muita lealdade. Meu filho é uma má notícia. Nada de bom sairá dele, sei disso. Carrega muito ódio dentro de si. Mas ele é meu. Desculpe, não é minha culpa, mas é isso aí.

Geralmente ele sai comigo, mas se mostrou constrangido quando mencionei esse trabalho e acabou que... adivinhe? Ele arranjou uma mulher. Uma garota! Eles crescem com tanta rapi­dez, em um instante são recém-nascidos e dois anos depois estão por aí tentando transar. Eu o dispensei do trabalho num piscar de olhos. Diabos, pela primeira vez Styr tinha uma vida privada. Fiquei contente. Talvez o garoto ainda se tornasse um ser humano.

Na maioria das vezes trabalhamos em nossa própria área: Muswell Hill, Barnet, Wood Green, às vezes Hampstead e Stoke Newington - lugares um pouco distantes de onde havia um pou­co de riqueza, mas não tanto a ponto de se precisar de um exér­cito particular a postos na esquina. Os roubos até que são bons, mas claro que o verdadeiro desafio está dentro da cidade, nas propriedades particulares por trás dos portões de ferro ou nos pequenos condomínios privados. E onde está o trabalho de ver­dade. Não é um tipo de serviço que se faça sozinho.

O grupo era eu, Desajeitado, Gambá e Soneca. Soneca era um homem durão, antes tinha sido um gângster de Conor, mas o afastaram. As coisas desapareciam e eu continuava acumulando. Você podia confiar as suas costas a ele, mas não era prudente lhe entregar o seu casaco. Geralmente ele era um bom sujeito, desde que você não esperasse receber dele a sua parte. Ele simplesmen­te não conseguia evitar, parecia até a velha Melanie. O verdadei­ro nome do Gambá era Jo, mas ele tinha uma pitada da velha bola de pêlos, se é que você me entende. Ele achava que esse troço era de cachorro, mas a opinião geral é que estava mais para gambá. Ora, não era bem isso... E que ele não gostava de ser chamado de Gambá, e era assim, claro, que todo mundo o cha­mava. Quanto a Desajeitado, ele era uma doninha, puro e sim­ples, mas não da espécie animal. Bem, trabalho é trabalho. Não peguei esses caras para serem meus amigos.

O nosso objetivo era um casarão na margem do Hyde Park. Nada difícil. Eles não estavam acostumados com roubos. Havia meia dúzia de sujeitos com estranhos uniformes domésticos, mas só tinha uma passagem para entrar e sair da fortificação, e por isso nós simplesmente trancamos a porta. Foi simples! Quando começaram a gritar, disparamos algumas flechas lá dentro e eles logo calaram a boca. Aqueles idiotas; sustentam valentões só para ostentar, é como ser dono de um cortador de grama, isso aparen­ta que se tem dinheiro. Eles nem mesmo haviam lido o manual de instruções.

Amarramos toda a família na balaustrada. Eu os aterrorizei com minha cara e depois fomos até as gavetas. O alvo principal eram as jóias, não se pode transportar nada maior que isso. E dinheiro, claro. Desajeitado e Gambá destruíram o lugar. Era co­mo se eles achassem que isso era obrigatório. Desajeitado fez cocô em cima do piano. Escapamos pelas janelas dos fundos. Os guar­das olhavam pelas janelas, assustados.

- Deixa a gente sair! Deixa a gente sair! - eles sussurravam emquanto escapávamos, com medo do que a família pudesse fa­zer com eles após ser libertada. Se a família recebesse um serviço adequado, mesmo sendo tão estúpida, seria como se eles fossem empregados de bundões.

No caminho de casa, atravessando o parque. O dia estava realmente lindo, mas isso é que era o mais perigoso. Em casa sempre estávamos seguros, a menos que as vítimas fossem pode­rosas e tivessem uma linha direta com a polícia ou o exército. No caminho de volta, os Parasitas estavam por todo canto.

O Hyde Park não é tão ruim durante a noite, mas à medida que você se distanciava, soava o toque de recolher. Antes de nos­sa saída, ficamos à espera no parque até o sol raiar e as pessoas aparecerem. Os meus comparsas não tinham muito com que se preocupar. A aparência deles era razoavelmente humana, até mesmo o Gambá, que era um meio-homem. Eu é que era o ani­mal. Um vislumbre de mim e metade da população já estava gri­tando pelo socorro dos Parasitas. Isso acontecia o tempo todo. Geralmente crianças. Talvez elas achassem que era uma brinca­deira. Elas gritavam "Animal!". E logo um pobre vira-lata fugia correndo antes da chegada dos Parasitas.

Aconteceu comigo em várias ocasiões. Algumas vezes cheguei até a brigar com os Parasitas, mas geralmente eu os pegava de surpresa. Não esperavam se deparar com um civil carregando armas.

Eu praticamente deixei de sair, exceto para trabalhar. Preci­sava me esgueirar de olhos abertos o tempo todo. Coloquei um cachecol cobrindo o rosto, o que não era lá muito convincente, mesmo com a manhã fria. Os outros três seguiram na frente para me avisar se tinha gente por lá. Era um serviço arriscado. Eu devia trabalhar mais perto de casa, mas os grandes golpes eram irresistíveis. Fizemos um tremendo ganho naquele dia.

Foi uma longa e arriscada caminhada, como já disse, mas gos­tei: ar puro, primeiras horas da manhã, folhas mudando de cor. Tudo seguia bem. Chegamos a Kentish Town, onde havia alguns cavalos esperando pela turma. Desajeitado e Soneca montaram, mas eu e Gambá seguimos a pé. Cavalos não me faziam bem, naturalmente, só de ficar no alto com minha cara já chamava a atenção de todo mundo. Não, obrigado. Fui a pé. Mas foi bom ter Gambá para me fazer companhia. Gostei disso.

Éramos então só nós dois a caminhar pelo mercado de Muswell.

Estava havendo uma espécie de feira. A música soava. Al­guém tocava um daqueles velhos órgãos a vapor. O instrumento fervia alegremente, chacoalhando velhas e tolas melodias. Algu­mas bandas mandavam ver, com muita percussão. Um amplificador fora ligado a um gerador, de modo que as guitarras elétricas estavam presentes. Os Parasitas espalhavam-se por todos os can­tos, alguns tentavam entrar no clima da feira, outros estavam putos da vida. Eles tinham a tendência de não gostar de música eletrônica. Talvez pelo som. Ou talvez simplesmente pensassem que era um desperdício de gasolina.

O mercado estava divertido, mas a minha preocupação era trombar com Parasitas na multidão. As pessoas me conhecem por aquelas bandas; ninguém me denunciaria e, se denunciasse, muita gente estaria disposta a me esconder. Todo o lugar estava iluminado, barracas por todos os lados, comida no fogo, crian­ças. Todos se divertiam e os pequenos brincavam, mesmo sob o domínio de Conor. Seguindo a rua, corpos dependurados pelos calcanhares, como nos açougues, e a banda tocando. Aqui se vive nesse clima sombrio, aqui se pensa com freqüência em todas es­sas barbaridades. Não se pode reclamar que o povo tenha uma manhã de folga de sua miséria.

Demos uma zanzada à procura de um drinque. As barracas vendiam roupas, ferramentas velhas, ornamentos reluzentes. Pas­samos por crianças que vendiam pequenos animais modelados com papel laminado. Andamos pelo meio da rua das forcas. Vi­rei o rosto e lá estava ela.

Reconheci o vestido. Era cor-de-rosa, com listras douradas e azuis, e pendia de sua cabeça. Uma das pernas estava torta e os braços formavam ângulos, nunca ela pareceu tanto com porco. Apesar de suas grandes mandíbulas, bracinhos e pernas suínas, Melanie era bastante humana. Merda, até mesmo alguém inteiramente humano parece animal se pendurado desse jeito.

Vamos, Sigs - disse Gambá. - Seremos vistos.

Ele estava certo. Não era uma boa idéia ser visto por ali. Os Parasitas circulavam na rua para cima e para baixo. Eles interro­gavam quem parecesse chateado.

De qualquer maneira, ela vai fazer falta - Gambá comen­tou. - Um monte de gente gosta da sua Melanie.

Isso me deixou furioso. Eu não precisava de chavões.

Cala a boca, Gambá.

Não desconte em mim, cara. Estou sendo sincero. Ela esta­va gastando muito dinheiro, não estava? Ajudando os outros, comprando suprimentos para os homens de Dag, esse tipo de coisa. Ela tinha aquele apartamento em Talbot Street como es­conderijo. E como ela queria morrer, Sigs, na luta...

Gambá se remexia e olhava com aflição para todos os lados enquanto segurava meu cotovelo e tentava me puxar, mas estan­quei no mesmo lugar.

De repente, eu quis ver o rosto dela, para me certificar, sabe? Ou talvez apenas para vê-la morta. Eles haviam rasgado um lado do seu vestido e se podia ver o rosto. Eles sempre faziam isso para que as pessoas pudessem saber quem era. Eu me aproximei para virá-la de maneira que ela ficasse de frente pra mim.

Não seja louco, cara! - Gambá agarrou meu braço, mas o repeli.

Empurrei um de seus pés e ela girou. O rosto de Melanie havia sido muito golpeado. Havia sangue e cuspe pelo rosto todo. Ela estava parecendo carne de açougue. A idéia era essa.

Ouvi o gemido de Gambá, mas era tarde demais. Os Parasi­tas tinham chegado. Um deles marchava com seu belo uniforme alaranjado, todo em sorrisos e zombarias, como se estivesse mui­to bem-disposto.

Encontrou sua mãe, garoto? - ele começou a falar, mas silenciou e chiou quando o olhei. Assustou-se com meu rosto, para variar. Não tenho a cara de um animal, é pior que isso. - Cer­to... - Ele se aproximou para me pegar, mas eu não o deixaria encostar um dedo em mim. Como eu disse, eles são pegos de surpresa pelas armas de fogo. Atirei bem na bochecha dele. Ouvi o grito de Gambá. Metade dos Parasitas não portava armas. Elas eram necessárias na frente de batalha. Tive que atirar em mais dois e em seguida me mandei. A multidão se abriu para mim como o Mar Vermelho, eclodiu uma ovação. Conor não é um homem popular, nem mesmo no seu próprio país.

Depois disso, fiz algumas investigações e descobri a guarnição que estava envolvida. Eu e Styr fizemos uma visitinha a dois Pa­rasitas, descobrimos onde ficava a área deles e os pegamos de surpresa na calçada, em frente ao supermercado de Graveries. Cutuquei o ombro de um dos homens e mostramos o que tínha­mos em nossas mãos.

Você é louco - ele disse, incrédulo. Mas quando os dois olharam a minha cara, ficaram realmente assustados.

Agora você vai morrer - falei para ele. - Quanto a você, aqui está uma mensagem para o rei Conor. Diga a ele que Siggy está de volta - falei para o outro. Depois, atirei neles, um levou um tiro na cabeça e o outro, no joelho.

Agora, eu e meu filho tínhamos uma jornada pela frente.

 

Era uma marcha de três dias a oeste através de uma extensão de relva amarela e de canteiros de flores silvestres ao longo de cen­to e sessenta quilômetros. Uma terra rala fora lentamente culti­vada no M4 durante duas gerações. Ainda era muito rala para grama, mas as flores silvestres adoravam. Siggy e Styr, pai e filho, que dupla! Unidos em uma operação de guerra e... em lealdade? Bem, Siggy acreditava nisso. Eles seguiram em frente, dispersando sementes e despertando gafanhotos. A vastidão cobrira as pasta­gens em ambos os lados com emaranhados de amoreiras silves­tres, aqui e ali algumas bétulas prateadas e carvalhos jovens. As florestas refloresciam, mas ainda havia pastagens com ovelhas e vacas, e tranqüilas plantações de repolho e outros vegetais. Era preciso comer, mesmo em tempos de guerra.

Na maior parte do tempo eles caminhavam em silêncio. Styr nunca fora de falar muito, mas em uma encosta salpicada de ruínas de velhas casas eles tiveram uma discussão inflamada. Siggy queria que seu filho entendesse o que siginificava tudo aquilo, aquela jornada para se unir a Dag Aggerman em prol da boa luta. Não era porque os deuses queriam. Não era porque Signy que­ria. Não era pela grandiosa glória da casa dos Volson. Nenhuma, nenhuma, nenhuma dessas coisas. Acima de tudo, eles tinham motivos para se afastar dessa guerra. Siggy desprezava a vingan­ça e desprezava a glória. O que de bom essas coisas traziam?

Tudo aquilo era por justiça, por Melanie, pela humanidade. Conor era um pedaço de maldade que precisava ser removido para sempre da face da Terra, não só por conta do que ele fizera aos Volson, mas também pelo que fizera a todos. Parado entre os muros quebrados nos arredores da terra dos meio-homens, com a Muralha a se erguer acima das árvores por trás deles, Siggy se voltou contra os deuses e suplicou para que a justiça inspirasse o coração sombrio de seu filho. Siggy sabia que os deuses o haviam designado para o papel de senhor da guerra e ele detestava per­ceber que seu ódio pela injustiça não passava de uma rede para pescá-lo. Mas o que pretendiam os deuses, quais seriam suas vontades e seus motivos? O que contava era justiça, justiça e entrega total de si mesmo para tornar a vida um pouco melhor aos milhões que sofriam sob o poder de Conor.

Styr jurou aliança... a Siggy, à justiça, à causa. Bateu o punho no chão e ofereceu a vida em prol da luta do seu pai. Mas Siggy não se iludia com o fervor de Styr. Nenhum desses ideais signifi­cava qualquer coisa para ele. Era o mesmo que tentar convencer uma formiga de que era bom morrer pela glória do formigueiro. Styr morreria, sim, mas não pela causa. Isso era um instinto que ele carregava dentro de si. Da mesma forma que ele soubera do­brar tão meticulosamente o pai à sua vontade, sabia que Conor precisava morrer. Era simples assim.

Siggy se enfureceu. Styr não compreendia. Ele não havia con­cordado com tudo que foi dito pelo pai? A verdade é que Styr ficaria feliz se os Volson subissem ao poder, mesmo que eles go­vernassem com dez vezes mais violência que Conor.

 

Eles então seguiram em frente a passos pesados, roubando repo­lhos e cenouras, até que finalmente chegaram ao topo de uma colina longa e baixa e olharam para baixo, para o destino deles - um acampamento esfumaçado que se mantinha com dificuldade fora das árvores, das amoreiras silvestres e das heras que subiam pelos entulhos nos quais o vilarejo se firmava. Como inúmeras cidades dos meio-homens, não havia muitas casas inteiras. Al­guns simplesmente dormiam em abrigos, mas isso era uma op­ção. Os meio-homens não eram animais tão tropicais quanto os inteiramente humanos e tinham menos necessidade de calor e de cobertura.

As criaturas da terra dos meio-homens passeavam entre as casas retorcidas e os estábulos. Cabeças de porcos, asas de pássa­ros, cachorros e gatos perambulavam e se espremiam uns contra os outros. Vacas de verdade pastavam nos estábulos, galinhas de verdade cacarejavam... ou seriam eles? Era tão difícil definir onde terminavam os animais e começavam os meio-homens quanto definir onde terminavam os meio-homens e começavam os hu­manos. E quem é que podia saber onde os próprios meio-homens tinham traçado esta linha? Talvez um cordeiro com rosto humano fosse tão saboroso para um homem-cachorro quanto um cordeiro sem rosto humano.

É um bom motivo para virar vegetariano - Siggy murmu­rou para si mesmo.

Lá estava o acampamento de Dag Aggerman, o centro da resistência contra Conor. Do ponto avantajado em que se en­contravam, Siggy e Styr avistavam as divisões do exército: a do povo cachorro, a do povo porco e também a divisão menor dos humanos. Via-se em uma parte desse acampamento um campo com fileiras e mais fileiras de forcas alinhadas. Pendurados nessas forcas, o que era uma visão comum naqueles dias pagãos, fileiras e mais fileiras de corpos de cabeça para baixo, pendurados pelos calcanhares, sacrifícios para Odin.

Parece que ultimamente todo mundo ama Odin - disse Siggy. - Menos eu... - ele completou ao perceber que os sacrifícios não eram somente de humanos.

Siggy suspirou e seguiu com o filho colina abaixo.

 

                   Dag Aggerman

Mijei três vezes pelos muros antes de me aproximar dele, duas para ele saber quem era eu, uma para dar sorte. Ele podia ser uma coisa boa para a gente, sim. Ah! Deixa acontecer! Eu daria meus filhotes aos deuses!

Ele estava ao lado do clone. Iuc. Segurou um cachorrinho, segurou-o no ar pelo pescoço, só pra que eu soubesse quem era ele. Eu sabia, eu sabia. Ah! E ele sabia que eu sabia, caso contrá­rio não teria se arriscado. Um humano, no meu quintal, brincan­do com meus soldados! Nah, nah! Eu teria mesmo que querê-los muito. Eu o queria muito!

Cheguei apressado, com os pêlos eriçados. Ele se virou para me olhar e meus pêlos se eriçaram outra vez. Aquele cara! Não era humano, não era animal. Não era nada deste mundo. E ele também sabia como usá-la... rá-rá! Fazendo caras e bocas, torcendo-as, ugh! Só de olhar fazia você rosnar! E o clone, Styr, ao lado... aquela dupla era o bastante para fazer qualquer um co­mer cocô.

Deixa o meu guarda! Deixa o meu guarda! - lati.

Esse cara é muito prepotente para um guarda - ele retru­cou. - Seus guardas tratam todo mundo assim ou só os hu­manos?

Quem é você?

Você sabe quem eu sou.

Pensei comigo: é isso aí!

E se eu não soubesse? - falei.

Mas você sabe.

Sim, sim, sim. Ah! - Dei uma risada. E pensei: sim, sim, você é um soldado. Você vai servir. E ele me respeitou. Ele sabia que eu tinha bons espiões. De que outra maneira um humano andaria no meu acampamento? Só se eu permitisse que ele fizes­se isso.

Sou inconfundível. - Ele sorriu para mim.

Seja bem-vindo! Seja bem-vindo, Volson! - E ele até ficou parado enquanto eu cheirava a bunda dele.

Espero que você não se acostume com isso.

Desculpe, desculpe. Ah! Só estou te conhecendo. É boa educação!

Não lá de onde venho.

O garoto, agora um jovem, ficou parado ao lado, respeitosa­mente. Jamais o vi ser respeitoso com ninguém que não fosse Siggy. Eu lhe dei uma cheirada e me sacudi.

Como está a vida? - perguntei. E ele não disse nada, só fez um gesto para Siggy e soltou um sorrizinho simpático, todo or­gulhoso, como se tivesse me dando de presente as jóias da coroa. Puta merda! E ele estava! E, ele estava! Eu os conduzi até o QG. Queria ver que senso de estratégia tinha aquele clone.

Solte os guerreiros - ele disse e ficou surpreso quando eu ri.

 

Eu e Sigs nos debruçamos sobre os mapas e ele fez o que todo bom general faria, ficou taciturno quando viu a extensão das conquis­tas de Conor e se animou quando se deu conta de que estava exigindo muito de si mesmo. Ah, ah, isso é algo que posso dizer! A cara dele? Isso não significava nada. Eu sou um cachorro estú­pido! Não consigo decodificar expressões da mesma forma que os macacos. Mas nós temos nossos meios. Os sentimentos têm cheiro! E, gostei dele. Ele cheirava bem.

Sabe, ele era um tipo prático. Sem visões, nada daqueles tro­ços que se ouve por aí a respeito do pai dele - unificar a nação, esse papo furado. Siggy só não gostava de sofrimento, e Conor era uma boa parte da sujeira que ele precisava limpar, só isso. E isso é bom, sabe, porque...

Ora, só há espaço para um único cachorro-chefe! Eu! Ora, eu quero união. Da nação, das espécies... de tudo. Sob o meu comando. É! É! Eu não quero simplesmente ser o chefe dos ca­chorros. Eu também quero ser o chefe dos porcos, o chefe dos homens. Então, sem esse papo visão, talvez ele não queira lutar comigo, não é?

Talvez sim. Talvez não. Eu nunca soube de um general que não quisesse conservar o poder.

Andei um pouco com ele para lhe mostrar as divisões. Todo mundo queria vê-lo. Volson, este nome significava alguma coisa. Ele era igual ao resto de sua espécie, com cabelos eriçados e ten­tando aparentar tranqüilidade. Mas eles não entendem, perce­be? Eles fedem! E, é, dá para pegar cada sopro de medo. Eu sorria e dava risadas sem parar até que ele me perguntou por que eu estava fazendo isso e contei para ele. Ele riu de si mesmo! Gosto disso.

Bem, as pessoas, a expectativa delas é ver gatos-aranhas, pássaros-cachorros, homens-besouros e bebês que voam e agarram no seu cabelo, mas todas essas coisas extravagantes desaparece­ram há muito tempo. Nah, nah, nah! Não são férteis, são tipos muito diferentes. Há cachorros e há porcos, esqueça o resto. Cavalos? Têm gosto bom! Gatos? É, bem, nunca confie num maldito gato, colega! Nunca. Nah, nah! Pássaros? Estúúúúúpidos! É!

Pessoas? Perigosas! Ah. Ora, sim.

Então, mais tarde Sigs foi falar com as tropas humanas. É, bem, isso já era alguma coisa. É parte do trabalho. E preciso fazer com que eles pensem que você sabe tudo, cara. É preciso fazer com que eles pensem que você é realmente um deles. Ora, rapaz, ele os tinha em suas malditas mãos. Ele sabia como os humanos funcionam, e, quando se trata de espécies, há cachorros, há porcos e há pessoas, e são nas pessoas que se tem que ficar de olho. É!

E não foram apenas os macacos, sem ofensa, é um apelido para a raça humana, sabe como é, macacos estúúúúpidos. Todo mundo empinou as orelhas quando Sigs falou. A voz dele ecoava pelos campos. A chama dele os iluminava. No fim, explodiu uma ovação rouca. Sigs praticamente prometeu a vitória e eles foram estúpidos o bastante para acreditar!

Que discurso! Você os fisgou direitinho, né? - eu disse.

É preciso. O moral.

É como se isso fosse uma outra coisa prática. É preciso estar inspirado ou então não se vence.

E, no fim do dia, mostrei a ele os úteros de vidro.

Macacos e seus rostos. Quando se é cachorro, perde a orelha, cortam o seu rabo, arrancam as suas costelas... quem se importa? As cadelas? Hah! Quando é uma cadela, os cachorros se impor­tam? Nah, nah! Veja só, quando se é um cachorro, é o cheiro que conta. Se você perde o cheiro, você já era, mas quem é que perde o próprio cheiro? Isso você conserva até o fim, você pode ter cada osso do seu corpo quebrado que ainda terá um cheiro! Mas pessoas... E só arrumar uma cicatriz na bochecha que é a morte da vida sexual, é assim que eles são. Ainda lembro de um garoto, um dos seus, garoto corajoso aquele, lutava como um cachorro. Ele teve o rosto queimado por óleo quente e começou a chorar. E quer saber? Esqueça a dor, era a aparência com que ficaria que o desesperava!

- Meu rosto, como é que está! Como é que está! - o garoto ficava gritando. Acho que ele preferia ter seu "equipamento" cortado a perder seu rosto. Então, assim que vi Sigs, pensei nos tanques.

Hoje em dia nós preferimos seguir a procriação à moda anti­ga, mas, caso haja um pedido um pouco mais específico - um pouco mais especial, entende? -, então é preciso usar um tanque. Dizem que os deuses talvez tenham nascido de tanques. É, um técnico qualquer fez alguns truques. Quer dizer, quando se con­segue um sacerdote de Odin que saiba manejar um útero, o que acontece? Nah, mas não acredito muito nisso. Ragnor jamais produziu deuses, mas talvez os deuses tenham produzido Ragnor.

Algumas vezes nós utilizamos tanques para produzir solda­dos malucos. Coisas com dentes e garras de aço. Fizemos al­guns homens-bombas. E, eles se esgueiram até o acampamento inimigo e então BANG! Claro que não se fala isso para eles. Ora, é possível fazer qualquer coisa com os úteros, só não se sabe quanto isso pode viver depois. Você pega um filhote de ca­chorro, introduz nele aparas de unhas humanas, uma perna de aranha, algumas raspas de aço inoxidável, faz as anotações cor­retas e pronto! Só é preciso um técnico para executar a receita, mas nós também conseguimos técnicos. O tanque retira o DNA das aparas de unhas e da perna, organiza o aço e é isso aí! Você conseguiu um cachorro com dentes de aço e mãos que cagam teias! Uau!

Mas é um negócio arriscado. Eles não vivem muito tempo. E também não gostam muito disso. Dizem coisas como "Pra que cê me deu essa merda de rabo? Pra que essa merda de dente?". Ou como "Você não vai me obrigar a fazer isso, não sou uma máqui­na!". Por isso, na maioria das vezes, usamos os tanques como hospitais. O tanque retira o seu DNA e conserta você. Sabe aquele garoto com o rosto derretido? Nós o colocamos num tanque e uma semana depois ele saiu tão bonito quanto antes. E! As meni­nas amavam aquele cara!

Então, na mesma hora pensei em Sigs...

Você devia sentir o cheiro dele! Os tanques uterinos, uma tremenda visão. Os técnicos circulando, checando coisas, toman­do notas. As coisas nos tanques, inchadas e enrugadas, com o pescoço inflando e desinflando...

Que acha disso, camarada? Rá-rá, rosto novo? Rosto anti­go de volta? E, por que não?

Sigs pensou um pouco. Aquele acúmulo de cartilagem na fren­te do pescoço dele... Nem eu desejaria aquilo.

Nah - ele disse. - Está havendo uma guerra. Vou recuperar minha boa aparência quando tudo estiver em paz. Este meu ros­to é para a guerra.

Cara, ele era um tipo focado! Eu só lati para demonstrar que estava feliz pra caralho com isso! Um rosto para a guerra! É! É isso aí! Eu e Sigs, nós formamos uma boa dupla!

 

O tempo passa, as crianças crescem, os corações endurecem. Finalmente Londres se abrira para o resto do mundo, se fosse possível cruzar as zonas de guerra para entrar ou sair. Naqueles dias de guerra, as coisas desmoronavam mais rápido que nunca. Certa noite de janeiro um furacão varreu a cidade, atirou telhas pelo ar, despedaçou os muros que já caíam aos pedaços e arran­cou painéis dos altos escritórios. O furacão arrebentou inúmeras janelas do velho edifício Galaxy. Avistava-se a poeira secular que soprava com força até o outro lado, enquanto a manhã despon­tava sobre a cidade destruída. Temendo que o edifício não fosse mais seguro, Conor colocou explosivos em volta do grande pré­dio e o pôs abaixo. Naquela massa de entulho e aço retorcido jazia o elevador, um grande cilindro que nunca fora abalado por furacões e explosivos ou pelo próprio tempo. O único dano era uma fenda estreita bem no fundo dele, onde um dia um homem morto cravou uma faca de pedra.

A partir do dia que Conor permitiu que Signy saísse da torre de água, a sorte dele começou a mudar. Com Siggy na luta e Signy fazendo de tudo para ajudar o inimigo, Conor tem hoje como sina assistir tudo que ele conquistou desmoronar com seu toque. A princípio, ele se enfureceu e lutou com ainda mais vio­lência. Houve expurgos e seus mais próximos e mais poderosos generais foram massacrados. Quem além deles estaria tão infor­mado a ponto de passar seus planos meticulosos ao inimigo? Nos primeiros dias, ele chegou a suspeitar de Signy e colocou-a sob vigilância, monitoramentos e checagens sucessivas, mas todos acabaram concordando que ela não tinha como passar informa­ções. Era simplesmente impossível. Não era ela que aconchegava a cabeça de Conor e o confortava quando outra batalha era per­dida? Não era ela que chorava junto com ele enquanto cidade após cidade escapava de seu domínio? À medida que os meses tornaram-se anos, Conor passou a confiar em Signy a ponto de deixar que ela o ajudasse na elaboração dos planos de guerra. General após general era pendurado pelos calcanhares, mas a lealdade e o amor de Signy continuavam inquestionáveis. Os pla­nos de Conor seguiam fracassando. No fim, ele próprio come­çou a acreditar nos boatos que circulavam pelas ruas de Londres a seu respeito, isto é, que Odin estava contra ele.

Não para sempre...

Os anos passaram... um ano, dois anos e a sorte da guerra continuava contra ele.

Não para sempre - ele sussurrava para si, enquanto assistia a outra frente desmoronar, outra batalha perdida. A sorte da guerra continuava contra ele... mas não para sempre. Nos sub­terrâneos, lá no fundo da rede de abrigos que Conor estava cons­truindo na rocha debaixo do Estado, a faca de Odin ainda era conservada. Como é que Odin podia estar contra Conor se ele ainda tinha o presente do deus?

Conor também guardava outros tesouros no abrigo secreto: Vincent, seu único filho, o futuro rei, agora com sete anos de idade. Ele desejava e rezava por mais filhos, mas eles nunca vie­ram; pelo menos não de Signy. O garoto cresceu sozinho com suas enfermeiras; a mãe e o pai lhe eram estranhos.

É, claro, Conor mantinha sua rainha segura nos abrigos. Pouca gente a via separada dele, nem mesmo os generais que seguiam os planos dela, nem mesmo os gângsteres que viviam e morriam pelas palavras dela, nem mesmo o seu próprio filho. Certamente os aliados de Signy, Dag e Siggy, também não, mesmo dependendo extremamente de sua colaboração para a guerra.

Conor não precisou forçá-la a ficar no subterrâneo. Ela se retirou com alegria para dentro da terra e lá permaneceu como um cupim, manipulando a disputa de ambos os lados com sua própria melodia. Lá, toda informação passava por ela - quem, onde, quando, o quê, como. Ela é que decidia onde as batalhas seriam travadas, quem ganharia e quem perderia. Às vezes, pelo bem das aparências, ou até mesmo por mero capricho, deixava Conor vencer - um presente de aniversário, quem sabe, um agrado de Natal. Ela era o verdadeiro centro do poder e construía sua rede a favor e contra Conor, elaborando planos de conquista para ele com a intenção de entregá-los aos inimigos. Conor não suspeitava de nada. Ele jamais viu o passarinho marrom que voa­va pelas tubulações de ventilação na direção do céu, indo e vin­do, para um lado e para outro, ocupado com as intermináveis tarefas da ambição de Signy.

Siggy guerreava com uma ferocidade que aumentava a cada dia, e como Dag previra, começou a perder a humildade e a indife­rença face ao poder. Por que lutar com tanto ardor e ver tanto sofri­mento se não é para tomar o poder para si mesmo? Odin não o havia tocado? Não lhe dera a faca? Era como se a faca estivesse presente o tempo todo, à espera, chamando por ele. Às vezes, temia que Styr pudesse desejá-la, mas havia se esquecido de que naquele dia remoto, no edifício Galaxy, Odin também abraçara Signy.

No silêncio dos intervalos vazios entre as batalhas, freqüen­temente Siggy se perguntava o que aquele gesto significava e de onde viera. Seria um plano de Ragnor que agora escapava do controle? Nos últimos dias, Ragnor estava sendo arrastada para a guerra. Conor havia se estendido tanto que no ápice do seu poder ordenava que se fizessem batidas policiais até a cidade doura­da. Agora, em declínio, ele ouvia histórias a respeito das deman­das dos meio-homens naquela região: mais dinheiro, mais armas. Ultimamente, essas demandas se acompanhavam de ameaças. A aliança entre humanos e meio-homens se tornava agora o poder que Conor tanto desejara para si mesmo.

Ou será que essa estranha história era realmente um trabalho dos deuses? E se assim fosse, isso seria simplesmente o desdobra­mento dos fatos que tinham de acontecer, o mundo a se movi­mentar como uma máquina perfeita no seio da eternidade e a desdobrar esses eventos da mesma maneira que um teclado compõe uma carta? Talvez os deuses simplesmente não passassem de uma engrenagem da máquina do mundo, talvez eles observas­sem para tomar partido, tal como as pessoas faziam. Ou será que o mundo estaria dançando conforme a melodia dos deuses? E será que alguém poderia interromper ou mudar essa melodia a despeito dos desejos dos deuses?

Siggy não sabia, mas havia uma outra pessoa que fazia exata­mente essa pergunta a si mesma.

 

- Conte uma história pra mim, Cherry.

Ela se senta na cadeira e se inclina para me observar. Agora ela é uma mulher velha, as rugas do seu rosto formam um emara­nhado de linhas finas, seus olhos são negros como buracos. Bu­racos que dão para um futuro onde não sou bem-vinda.

Era uma vez uma mulher que abriu mão de tudo em prol da vingança... - Ela franze os lábios.

Sim! Conte para mim o que não sei...

... Ela abriu mão de tudo para vingar sua família. - Ela se inclina para a frente. - Tudo - repete.

Não, não, Cherry, essa não! Conte outra coisa.

-... Ela tinha o destino da guerra na palma da mão. Forçou o rei a matar seus melhores homens...

Não! O passado não, o futuro. Você sabe o que quero.

Cherry olha para mim e fecha a cara.

A história é essa. Não sou eu que a construo, apenas conto - ela me repreende.

Conte o fim. Conte o fim de tudo.

Ela faz beicinho como uma menina emburrada.

Não sei o fim. Os deuses não me mostram o fim.

É exatamente o que digo a Conor. - Sorrio para mim mesma.

Cherry se inclina para a frente da cadeira e tenta me enlaçar nessa teia da qual eu faço parte há tanto tempo.

Eis alguém que jamais esquece. Eis alguém que viveu uma vida de amor com a intenção de destruí-la. Eis alguém que se­guiu a pedra endurecida do seu coração rumo às chamas da des­truição. - Ela se assenta de novo e me observa atentamente para ver se estou ouvindo. Eu a olho em silêncio. - Quando ela deixou Siggy entrar nos abrigos, o fim estava bem próximo. Conor, ainda incapaz de reconhecer que o traidor dormia em sua pró­pria cama, se enfureceu e gritou com seus generais para que eles o salvassem, mas nenhum deles podia adivinhar onde se encon­trava o verdadeiro perigo. Somente quando estava prestes a morrer é que Conor se deu conta de que era o amor que trazia em seu coração que o havia destruído.

Sim, sim, Cherry, eu também vi isso nos sonhos que me fo­ram enviados. Mas...

E o que acontece comigo? - Foi só o que perguntei.

Cherry mexe a cabeça com fúria. Será que ela está irritada porque não sabe o bastante? Ou é porque... é porque comecei a querer demais?

Ela conta suas histórias. Lá está Siggy, o rei... Rei Sigmund. A nação unificada tal como meu pai sonhara. Mas onde estou nisso tudo? Por que deve ser ele? Essa guerra é minha.

Onde fico nesse novo regime?

Ela desvia os olhos e não responde. Será que vou morrer junto ao meu marido, como se fosse uma parte do corpo dele?

Ouça, Cherry. Eu também tenho uma história para contar. Era uma vez alguém que não faria parte da história de outra pessoa. Cherry... Cherry? Olhe pra mim, Cherry!

Cherry me olha com olhos duros, profundos e furiosos. Ela odeia tudo isso.

Quero que você conte do meu jeito!

Não. Você tem que fazer... - Ela balança a cabeça.

O que me disseram para fazer?

Conforme o desígnio das coisas. Não há outro jeito.

Ela senta na cadeira, fitando o fogo, e não responde nenhu­ma outra pergunta.

Não há outro jeito - ela repete.

As chamas são para mim? É isso que está reservado para mim? Você não vai levantar um dedo pra me salvar disso?

Mas não há resposta. Para essa pergunta, nunca há resposta.

 

Três anos após Siggy ter se juntado à aliança, treze anos após o massacre de Val Volson e seu povo, Dag Aggerman foi morto em um ataque que partiu de seu próprio acampamento. A opinião geral era que Conor cultivara seus próprios meio-homens e os utilizara para inflitrá-los na escolta dos homens-cachorro, mas outros alegavam que fora um golpe interno; eles diziam que Siggy havia tomado providências para que o líder meio-homem fosse morto enquanto a guerra ainda estava em andamento, abrindo assim caminho ao trono para si mesmo quando as lutas cessas­sem. Certamente Styr estava no acampamento naquele dia, e ele e Siggy eram como dedos da mesma mão. Certamente Styr sobreviveu ao massacre; o único sobrevivente em mais de cinqüen­ta baixas em ambos os lados. É claro, Styr era uma máquina de guerra nunca igualada nem antes nem depois, mas ainda assim...

Ao assassinato de Dag seguiu-se uma calmaria nos avanços dos aliados, enquanto brotava uma batalha feroz pela sucessão. Depois de seis meses de luta, Jack Tebbs, um outro homem-cachorro, emergiu como o novo líder dos meio-homens, mas o verdadeiro vencedor acabou sendo Siggy. Ele era o comandan­te dos aliados e o entendimento de todos era que ele governa­ria Londres e as terras vizinhas quando Conor fosse finalmente derrotado.

Com seu poder consolidado, Siggy reingressou na guerra com uma ferocidade terrível. Conor observava as cidades de seu do­mínio sendo consumidas como farelos pelos exércitos aliados. Bournemouth e Portsmouth haviam sido perdidas tempos atrás. Winchester, Salisbury e Bracknell tinham caído. Agora, ele via os inimigos avançando na direção de Guildford. Em certa ocasião, fez um cerco a Birminghan, ao norte, mas, naquele momento, uma confederação de aliados e de tropas da cidade sob o coman­do do próprio Siggy perseguia o tirano, rumo ao sul, de campo a campo, de cidade a vilarejo. Ao redor, o pequeno império se comprimia. Desesperadamente, Conor tentava encontrar aliados no exterior, mas ninguém se interessava pelas guerras locais de uma pequena ilha obscura. Derrotas se acumulavam em cima de derrotas. Agora, o rumo da guerra estava claro, até mesmo para os mais cegos dos seus seguidores. Era apenas uma questão de trabalhar em cima disso. A medida que o círculo se fechava, Conor dava ordens enlouquecidas e contraditórias. Algumas cidades foram inteiramente incendiadas. Em outros casos, ordenava aos seus homens que pilhassem todos os tesouros, que eram deixa­dos para trás depois do período de ocupação. Ele desenvolveu um gosto pelos monumentos grandiosos e, enquanto os bombardeios do inimigo varavam os ares, suas tropas se ocupavam em desmantelar prédios inteiros, pedra por pedra, e guardá-las em caixotes numerados para que os prédios fossem reconstruídos no lado de dentro da Muralha de Londres. Igrejas, catedrais, antigos escritórios que sediavam corporações multinacionais, tudo isso foi derrubado pedaço por pedaço e guardado em caixas nu­meradas. O Grande Hall de Winchester foi inteiramente incen­diado. As ruínas de Stonehenge foram removidas e reerguidas em Hackney Marsh. Quando se fechou um movimento em gan­cho das tropas aliadas ao redor de Oxford, elas encontraram os pedaços da Igreja de Cristo empilhados ao redor de um desvio da estrada de ferro, com cada uma de suas pedras meticulosa­mente numerada. Mas ninguém jamais encontrou os planos para recompô-la novamente.

Outros tesouros - estátuas, jóias, carros antigos, trens, avi­ões - foram removidos com sucesso; relíquias da era da ciência saqueadas de museus e de residências imponentes. Pinturas, equi­pamentos eletrônicos, livros, gravações, documentos, qualquer coisa que tivesse valor ou importância. Muitas dessas pilhagens eram exibidas ao redor de Londres como uma tentativa tardia de Conor de apaziguar a população desesperada que vivia em seu território. Mas quase já não havia tempo para reconstruir os pré­dios da maneira correta. Os londrinos olhavam perplexos as igre­jas semiconstruídas, as estranhas ameias de antigos castelos, as chapas de vidro e de metal e os polímeros de elegantes edifícios comerciais. Isso até que pode ter ajudado a popularidade de Conor por um breve período de tempo. Os londrinos eram conhecidos pelo seu sentimento de superioridade e era uma boa estratégia manipular isso. Mas logo eles ficaram desesperados, não por status, mas por comida.

A guerra em Londres entrava em sua fase final.

Agora que Conor avistava o fim, começava a se valer de todos os meios que dispunha para virar o jogo. Foram lançados gases venenosos, armas químicas, radioativas e bacteriológicas, esto­cados durante muito tempo. A noite, os ventos se enchiam de venenos capazes de reduzir pulmões a pústulas e de vírus capazes de revirar fígados. As pragas perduraram ao longo dos meses, acabando com milhares de vidas de ambos os lados. E era ali que se escondia o problema: terrores assim não podiam ser contidos. Esses terrores atacavam todos e Conor não podia arcar com as baixas tanto quanto Siggy. As armas eram tão terríveis que não se podia fazer nada para alterar o resultado, só atrasá-lo. Foram descobertos antídotos. Os suprimentos de Conor minguavam e não havia como reabastecê-los. Após um ano apocalíptico de destruição, os ventos sopraram puros e a guerra retornou à sua trilha determinada.

Um ano após a morte de Dag, a batalha voltou para casa, para onde começara há mais de cem anos, quando as forças do governo haviam abandonado as cidades, transformando-as em terra de nin­guém. Os velhos monstros - o Porco, a mulher-aranha, os pássa­ros - já eram coisas do passado. Agora, a terra de ninguém encontraria o seu mestre. Humanos e meio-homens lutavam lado a lado e Londres reagia da forma que fizera na última vez que fora ameaçada pelos meio-homens, retirando-se para trás da Muralha. As tropas fugiam para o interior de sua fortaleza, o portão estava atijolado e as fortificações, reforçadas. Lá dentro, a população es­perava aterrorizada sem saber o que os monstros fariam a seguir. E lá fora, no solo revolto da terra de ninguém, humanos e meio-homens acampavam sob o estandarte dos Volson.

Agora Conor tinha todas as suas tropas concentradas numa pequena área. As informações de Signy ainda eram úteis, embora não fossem mais decisivas, pois ele já não estava no ataque.

Tinha munição o bastante para continuar por anos, se fosse preci­so. Siggy estava ciente de que Conor ainda podia ter venenos mortais e armas bacteriológicas em seu arsenal, e temia que pu­desse usá-los com toda a intensidade para destruir a população da cidade. Signy insinuou isso e Conor já mostrara sua indiferen­ça em relação à vida de seu próprio povo. Então, que valor teria toda essa guerra para Siggy, se não restasse ninguém para ele libertar e governar?

Siggy realizou então uma pausa em seus planos, determinado a trazer Conor aos seus pés assim que tudo terminasse.

A guerra se congelou por dois longos e inertes anos. Nada entrava ou saía da grande cidade de outrora. Londres era gran­de, a população se reduzira ao longo das décadas e já fazia tem­po que as pessoas haviam se tornado especialistas em usar a terra para produzir comida. Mesmo assim, à medida que as semanas se transformavam em meses e os meses se aproximavam do fim do primeiro ano, a fome se intensificava. Os pombos que antes orbitavam em torno dos prédios abandonados agora desapareci­am do céu. Os gatos e os cachorros, e depois os ratos e os camundongos, sumiam das ruas. Alguns meses depois começaram a surgir os troncos ossudos dos homens, mulheres e crianças fa­mintas que caminhavam como zumbis de um lugar a outro, na vã esperança de topar por acaso com alguma coisa para comer.

A população passava fome, e quanto às tropas? Ainda que não surpreendesse o fato de que os soldados conseguissem a melhor parte das provisões, era estranho que eles continuassem bem alimentados e saudáveis ao longo do segundo ano. Os ru­mores começaram a se espalhar. Circulavam notícias de mais sa­crifícios ao Pai de Todos. Diziam que ultimamente os corpos não ficavam pendurados por muito tempo e que, no fim, somente os ossos eram enterrados.

Conor descobrira a derradeira e mais literal maneira de de­vorar seu próprio povo. A fome não assolaria seu coração até que a última alma de Londres alimentasse os seus exércitos. Es­tava claro que o cerco não funcionaria. A medida que o segundo ano de fome se aproximava do fim, diariamente se aguardava a ordem para o ataque.

 

Conor está dormindo, fungando na semi-escuridão à minha fren­te. Acho que está tremendo, ou serei eu? Ele está à minha mercê pela milionésima vez, mas, agora, ele finalmente está em peri­go. E só uma questão de tempo.

Esta noite, querido? Conor, acorde! Acorde, querido, e diga que me ama. Talvez você esteja prestes a morrer.

Ando um pouco no tapete felpudo e morno sobre o chão de concreto aquecido por baixo. Conor se agita e fala, mas não consigo entender a tagarelice de seus sonhos. Devo matá-lo esta noite? Mas primeiro vamos ver o que ele tem nos bolsos.

Estou de volta à torre de água. É aqui que Conor deseja pas­sar comigo nossas últimas horas. Ele a derrubou e faz alguns meses que a reconstruiu aqui, na rocha debaixo do Estado. Um gesto sentimental. Fizemos amor na primeira vez que vim aqui. Aqui o nosso filho nasceu. Conor é tão romântico.

Na semana passada, as primeiras granadas começaram a fa­zer buracos na Muralha. Siggy se cansou de esperar quando se deu conta de que a fome não arrasaria nem nós nem nossos sol­dados. O que ele espera? Se pode ter animais como seus compa­nheiros, podemos ter carne humana à mesa. Guerra é guerra, irmão camarada. Mas ele se cansou dos nossos truques e agora estamos devastados. As tropas inimigas estão por todo o lugar. Eu vi. Eles têm televisão! Ragnor ergueu sistemas de sinais sobre Londres, os satélites voltaram à ativa. Siggy e os meio-homens transmitem suas vitórias para o mundo inteiro. Assistimos junto às multidões admiradas como o grande general Siggy Volson seguia no seu carro pelas ruas de Londres, com todas as honras. Libertador! Conquistador! Homem da Paz!

É claro que a televisão não fazia menção a mim. Sou a pe­quena esposa do grande ditador. Tenha pena ou ódio de mim, mas não admire a pequena esposa. Ainda assim, poucos meses atrás, eu podia ter feito toda esta guerra dar uma guinada para o outro lado!

Agora é tarde demais. O lado de Conor - ou será o meu lado? - jamais voltará a governar. Os Volson estão de volta ao comando. Mas não se esqueça disso, jamais se esqueça disso... eu também sou um Volson.

Dou mais alguns passos. Aqui, onde tudo se fez com cinco metros de pedra dura por todos os lados, o assoalho não corre o risco de estalar. Não há vento a soprar no beiral, não há gelo no vidro, embora lá em cima seja inverno. Aqui, as janelas dão para pedras escuras, mas, mesmo assim, temos uma vista. Os homens de Conor tiraram fotos das janelas da torre de água antes de a derrubarem. Ampliaram as fotos e colocaram nas janelas certas, de modo que vemos de cada uma delas o que veríamos antes. É com esse tipo de coisa que Conor se ocupa ultimamente. Ele deixa a coordenação da derrota por minha conta.

Acho que o que Conor não suporta não é a derrota e sim as multidões que finalmente o destruíram. Foi quando o tremor começou... esse homem velho que sacode os membros e mexe sua cabecinha palerma em cima de seu pescocinho pegajoso; foi quando ele viu o nosso povo na televisão ovacionando, gritando e atirando pedacinhos de papel colorido, punhados de arroz e flores para o retorno do grande Volson, como se Siggy fosse al­gum tipo de noiva. Arroz! Depois que ele quase os matou de fome, dava arroz para que todos atirassem. Eu não disse uma única palavra, mas olhei pelo canto dos olhos as lágrimas que escorriam pelo rosto de Conor, e, sim, é verdade, vê-lo desse jeito quase partiu meu coração. A forma com que as pessoas pas­saram a ter raiva dele! Assim que percebeu que a luta fora perdi­da, Londres inteira, em uníssono, se voltou contra ele. Ele os havia liderado por tanto tempo, os retirara da cidade, conquista­do os meio-homens, tomado cidade após cidade, metrópole após metrópole... havia até levantado acampamento diante de Ragnor. Era pela glória deles, tanto quanto pela de Conor. Ainda lembro dos cartões-postais e dos cartazes feitos em cada cidade que ele conquistou. O povo os colecionava. A vitória também era do povo! Não eram apenas os clérigos, os comandantes e os ricos. Os mendigos mais esfarrapados, as prostitutas, os cafetões, até mesmo os ladrões que eram dependurados para Odin estavam todos tão orgulhosos quanto se fossem eles próprios os que con­duziram o exército de Londres até tão longe.

E então uma turba de feras adentrava pelos portões da cida­de e o povo as aplaudia. Que orgulho o povo passou a ter!

Ora, o que o meu querido Conor esperava? Ele falhou. Foi levado de volta à sua própria sujeira. Pode acreditar, se ele tivesse tomado Ragnor, se tivesse conquistado o mundo, o povo não o teria abandonado, o povo o teria amado por conta disso. Tal co­mo meu pai, Conor pensava muito alto. Mas não era essa a sua fraqueza fatal. Ele tinha uma outra fraqueza que meu pai nunca teve: ele me amava.

Siggy está alojado fora dos portões do Estado. Nos próximos dias, eles irão empreender o último ataque. Meu irmão será o rei de Londres. Conor estará morto. E eu... como estarei? Viva ou morta? Quem vai decidir o meu destino dessa vez?

Vi tantos carcereiros e tantas prisões na minha vida. Tantos homens me moldaram. Meu pai, que me fez casar por seus pró­prios interesses. Conor, que me trancou com seu coração tanto quanto com suas chaves. E quanto a Odin e seus joguetes? Quem será então o próximo? Faça uma jogada, arrisque. Que rei me quer? Odin? Eu vou morrer? Rei Siggy? Oh, desculpe, esqueci... parece que ele vai mudar o nome dele. Siggy não soa muito bem para a realeza. Sigmund é seu nome daqui pra frente. Rei Sigmund... bem melhor.

Fui eu que fiz tudo isso acontecer. Eles nunca teriam nos conquistado sem a minha ajuda. Trabalhei incansavelmente pe­los Volson, mas, ao que parece, no fim das contas só um homem pode ser um Volson. Fiz isso, tudo isso! E agora tenho que assis­tir a meu irmão tomar a multidão, o crédito e o poder.

Não há muita chance de governar por trás do trono de Siggy.

Por que ele e não eu? Não, não me diga, eu sei a resposta para essa pergunta. Já ouvi isso. Odin deu a faca a ele, Odin o esco­lheu para governar. Ora, eu digo que todo reinado é conquista­do, nunca é dado. Além disso, quem disse que Odin fez essas coisas? Ele não me abraçou também? E que chance eu tive de puxar a faca? É claro, só os homens tiveram essa chance. Nós, pobres garotas e pobres mulheres, fomos obrigadas a sentar e assistir. A faca funcionou com Siggy, mas talvez funcionasse co­migo também.

Eu podia ser a eleita. A faca podia ter sido minha. Talvez até mesmo devesse ser minha.

Psiu...! Conor se agita em seu sono, murmurando baixo. Não acorde, querido, não ouse fazer isso. Por que se incomodar em acordar, quando já se está praticamente morto? Dentro de um ou dois dias. Talvez seja uma questão de horas. Talvez até de mi­nutos, se as coisas acontecerem como eu quero.

Mas, primeiro, a faca.

Passou muito tempo desde a época em que Conor a manti­nha na cintura. E valiosa demais. De todo modo, ele nunca po­deria cortar nem mesmo uma fatia de queijo com ela. Se a usasse em qualquer coisa mais dura, ela teria que ser arrebentada. Ele a guardava trancada, como o ogro fez com o próprio coração: dentro de uma caixa, no subsolo, dentro de uma casa, dentro de uma montanha. Há um cofre feito de titânio a meio metro de profundidade no chão deste mesmo quarto. Só Conor tem a cha­ve. Posso levar Conor a fazer qualquer coisa, mas ele nunca me dirá onde a chave está. E eis uma coisa estranha: nem Cherry é capaz de me dizer onde ele esconde essa chave. Isso demonstra como o meu marido é reservado. Ele não permitiria nem a um gato ver o que faz com a chave.

Eu me arrasto na direção dele. Toda noite eu me levanto e me esgueiro pelo apartamento à procura da chave. Vasculho to­dos os cantos, todas as gavetas. Levanto as cadeiras e tateio den­tro dos cobertores. Enfio a faquinha de ponta afiada nas juntas da madeira, procurando por cavidades. Ele nunca sai desses quar­tos, deve estar por aqui, em algum lugar. Eu preciso dessa chave. Ah, Conor, isso é o que mantém você vivo, porque quando eu tiver a faca vou matar você!

Ouço na porta ao lado um resmungo baixo e persistente. Cherry está ansiosa, pobrezinha. Ela não aprova. A faca de Odin não é algo com que se possa brincar. Veja o que houve com Conor pelo descaramento que ele teve ao tomá-la do seu verdadeiro dono! O meu destino está traçado, ainda que Cherry não me diga que destino é esse. Odin já se decidiu. Cherry diz que o que tiver que ser, será, e que nem mesmo os deuses podem mudar isso. Mas vou mudar o que está escrito, e me detenha se for ca­paz! Sim, Cherry, isso é blasfêmia. Se eu conseguir achar a faca, vou fincá-la em Conor enquanto ele estiver dormindo, e vou fin­cá-la em você e em Siggy também, se for preciso. Pobre Cherry, eu a deixei para trás. Ela mia e chora, mas olha só! Já tenho até tecidos e tigelas para embeber o sangue de Conor. Você acha que não sou capaz de matar Siggy, que não vejo há anos, quando sou capaz de fazer isso com meu Conor?

Querido Conor. Quando você morrer, vai deixar um buraco dentro de mim, mas não no lugar onde está o meu coração... isso acabou há muito tempo. Silêncio! Estou tirando o lençol, ele está nu; não há chave alguma com ele. Suas roupas estão amon­toadas ao lado da cama. Abaixo, pego as calças, dou uma ligeira chacoalhada e escuto - sim! - ruído de chaves.

Tão perto! Enfio a mão no bolso e tiro um molho de chaves, mas assim que as vejo, eu me dou conta de que aquela que procu­ro não está aqui. Conheço muito bem a fechadura daquele cofre. Nenhuma dessas vai servir. Bem, nunca achei que fosse ser fácil.

Pego os sapatos dele e dobro os solados. Será que ele enfiou a chave aqui? Nas laterais do couro? Puxo a faquinha fina e afiada do meu vestido e enfio a lâmina entre as camadas da sola, ten­tando sentir o arranhado de um metal. Ocupada com minha ta­refa, esqueço por um instante de onde estou, e isso me faz saltar e abafar um grito quando olho para baixo e o vejo deitado ali, com os olhos abertos, a me observar.

- Não está aí, princesa - ele sussurra e fecha os olhos.

Isso me faz enrijecer de medo. Veja só, ainda tenho medo dele! Ele ainda me dá calafrios, apesar de ter perdido tudo, suas faculdades mentais inclusive.

O quanto ele realmente sabe?

Eu me viro para olhar na direção do outro quarto, onde Cherry se esconde. Posso ouvir que ela está saindo de lá, de novo na forma humana. Ela não vai se surpreender. Cherry diz que os desígnios dos deuses não podem ser frustrados.

Tiro o meu vestido por cima da cabeça e me arrasto até Conor, que agora finge estar dormindo. Eu me aninho ao lado dele e o roço com minha barriga. Ele se enrosca em mim e põe o braço nos meus ombros. Veja só, o lindo casal.

E aqui estamos nós, aqui estamos nós. Até que um mate o outro.

 

Há uma entrada. Sempre há uma entrada quando alguém está do lado de dentro, pronto para abrir a porta.

Siggy ficou à espera até receber o "tudo limpo" de Signy, antes de empreender o último ataque no próprio Estado. Ele queria ter certeza de que não haveria armas indefensáveis prontas para detonar, mas não era só isso. Ele pensava em seus deveres públicos, na conquista a qualquer custo, mas também não havia esquecido de seus deveres particulares: matar Conor e resgatar a irmã. De alguma forma, ele ainda achava que Signy precisava ser resgatada. Ele queria essas duas coisas para si mesmo e para Styr. Tinha que ter certeza de que saberia onde achá-los antes de dar as ordens finais da guerra.

No momento em que Siggy deu essas ordens, uma saraivada de granadas e mísseis rasgou o céu e atingiu o Estado com uma intensidade que até então a Europa nunca vira. Foi uma tempes­tade de fogo. O próprio ar começou a queimar. Em uma catás­trofe como essa, produzida pelo homem, não podia haver sobreviventes. Além de destruir a vida, não deixou qualquer ras­tro de vida para trás. Mais tarde, quando as tropas chegaram, encontraram uma grossa camada de vidro enlameado no chão, onde os prédios haviam se liqüefeito. E foi preciso usar mais gra­nadas para explodir a pedra derretida, de modo que pudessem achar as entradas subterrâneas para o sistema de abrigos, onde o fogo fora incapaz de penetrar. Naquele lugar, Conor havia fixa­do sua última resistência.

Os abrigos eram construídos no leito das rochas, um labirin­to de túneis, aposentos, edificações subterrâneas e saídas de emer­gência. Eles poderiam sobreviver a explosões nucleares se tais dispositivos ainda estivessem disponíveis. Todo o lugar estava repleto de armadilhas e era protegido, camada após camada, pelos guarda-costas de uniforme azul, como um jogo de computador feito de carne. Conor e sua rainha podiam estar em qualquer lugar lá de dentro, e a busca por eles podia ser um jogo demora­do e letal, talvez um jogo impossível de se concluir. Acontece que Siggy tinha um mapa, claro.

Ele esperou pelo uivo dos primeiros mísseis eclodir nos ares antes de entrar nos abrigos. Assistir ao início do ataque era uma questão de honra. Siggy, no entanto, mal podia esperar. Ele queria a faca novamente em sua cintura, ou até melhor, cravada na gar­ganta de Conor, enquanto as bombas ainda estivessem silvando na superfície. Ele quase podia ouvir a faca; seguramente, podia senti-la, clamando por ele com sua voz silenciosa através da rocha e da escuridão no subsolo, onde ficou escondida por tanto tempo.

A entrada ficava no porão de uma pequena casa geminada abandonada, em Hamilton Road, distante alguns quilômetros do QG de Conor. Quando os tijolos vermelhos do Estado se torna­ram pó e as pedras derreteram com o calor, Siggy e seus homens já estavam a duzentos metros de profundidade, arrastando-se como ratos através da passagem estreita. Ouviam impactos lon­gínquos acima de suas cabeças e sentiam vibrações quando co­locavam as mãos nas rochas ao redor... a única evidência do holocausto acima deles. Esta passagem os guiaria diretamente até as salas de estar de Conor, embaixo dos guardas, embaixo das armadilhas, embaixo de tudo. Mais uma vez, Signy havia passado informa­ções. Siggy estava prestes a receber seus desejos de bandeja, mas não estava tão alegre assim.

O túnel era apertado, estreito e úmido, e Siggy se sentia nau­seado pelo medo. Em parte porque sempre se apavorava antes de cada missão e, desde a operação Wallace, aquela era a primei­ra missão na qual estava presente seis anos depois. Um general não arrisca a própria pele. Ainda mais no ápice de tantas coisas. Ele também estava nauseado de medo, porque, aos seus olhos, Conor era um bicho-papão. E ainda havia Signy. Sua amada irmã. Embora soubesse que ela estava louca, ele não havia se dado conta de que também estava com medo dela. Ele confiava em Signy. Ela não cumpria sempre tudo que lhe prometia?

De que lado ela poderia estar senão do lado dele?

 

Eu não estava apenas me sentindo enjoado. Eu tinha enxaque­ca, diarréia e febre. Eu tinha que permanecer sempre abaixado atrás de alguma coisa e expelia um fedor amarelado pelas pe­dras. Que soldado! Que rei. Já havia se passado anos desde que eu fizera algo assim. Eu me amaldiçoava e minha vontade era deixar Styr por conta própria. Quer dizer, talvez não fosse pior do que sempre fora, mas eu estava acostumado a ter medo. E, naquela hora, eu estava com muito medo. Cada vez que eu para­va, via Styr me olhando.

- Talvez você devesse voltar - ele implicava. Eu nem sequer sorria. A passagem tornava-se cada vez mais estreita, eu me sen­tia claustrofóbico e pensava comigo: se os deuses querem que eu faça esse tipo de coisa, por que então não me fazem gostar disso? Olha só o Styr, era como se ele estivesse no chá das cinco. Isso não era justo.

Não sei o quão longe fomos. A essa altura não havia muitos pontos de referência, mas devíamos estar próximos da parte prin­cipal do abrigo porque podíamos ouvir as tropas de Conor. Eles estavam em túneis diferentes, claro, mas o nosso seguia rente a alguns dos túneis deles e podíamos ouvi-los com clareza. Ao menos uma vez eles devem ter estado a uns trinta centímetros de distância. Ouvíamos as vozes e os equipamentos que batiam nas paredes enquanto eles seguiam apressados.

Tudo isso significava que tínhamos que ficar completamente quietos, já que eles podiam nos ouvir. Na verdade, mesmo ou­vindo alguma coisa, provavelmente eles não se dariam conta de que éramos nós. Até onde eles sabiam, todos os nossos rapazes vinham do topo. Mesmo assim, estávamos por conta própria, a quilômetros de qualquer auxílio, atrás das linhas inimigas. E mesmo sabendo que o nosso túnel se encontraria com o deles apenas no final, esse único pensamento já nos fazia andar na ponta dos pés.

O problema é que não importava o quanto ficássemos quie­tos. Alguém sabia exatamente onde estávamos.

A coisa começou com um rangido, bem suave a princípio, mas nos fez estancar. Não era um barulho abafado; estava lá com a gente. Em nosso túnel. Era perceptível. Começou com vagar, de­pois ficou mais alto e foi acompanhado por um imponente BANG, um grande "bang" de verdade, como um gigantesco martelar às nossas costas. Isso fez a rocha tremer sob nossos pés, fez a gente tremer por dentro. Houve uma pausa e um ligeiro movimento de ar no túnel. Ficamos imóveis, um olhando para o outro.

Que merda foi essa? - alguém disse desconfiado, mas esta­va claro do que se tratava. Então, aconteceu de novo, dessa vez bem diante dos nossos olhos. Nós víamos sob a luz de nossas tochas; uma parte do túnel vinha abaixo. Mas não era um des­moronamento, o trabalho era muito bem-feito para ser isso. Era um pedregulho de cerca de meio metro de espessura. Tivemos uma fração de segundo para avistar o pedregulho vindo abai­xo... BANG! Nem consigo descrever o quão enorme era. Desa­bou com um baque alguns centímetros à nossa frente, com tanta violência que achamos que o teto também desabaria. Os homens gritaram e todos nos viramos e voltamos correndo pelo mesmo caminho que havíamos percorrido, mas era tarde, soubemos dis­so na mesma hora. Corremos cerca de dez passos e encontramos outra barreira, a que ouvimos antes, bloqueando o caminho.

Isso é o que chamo de armadilha - Styr comentou. E era exatamente isso. Conor devia estar sabendo do nosso trajeto o tempo todo, e no fim das contas fez sua última investida. Fiquei pensando: é isso? Então, vamos vencer, mas não vou estar lá para ver?

É claro que Conor devia estar morto havia muito tempo. O abrigo devia estar vazio, exceto pelo corpo da minha irmã. Va­mos encarar os fatos: se realmente ele sabia que estávamos des­cendo por aquele trajeto, deve ter descoberto quem nos contou.

- Eles vão nos resgatar assim que chegarem aqui embaixo - alguém falou, mas eu já estava achando que tinha sido uma boa idéia ter levado armas com a gente, pois não estava disposto a morrer de sede naquele lugar. A única chance, acho eu, era se Conor quisesse nos ver cara a cara para negociar.

Sentamos, nos recostamos nas paredes do túnel e ficamos à espe­ra. Até então ninguém estava realmente assustado. Era quase um alívio porque não teríamos que entrar em combate, mesmo sa­bendo que em breve as coisas se complicariam por lá. Styr era o único de pé e vasculhava aquela parte do túnel, comprimindo o ouvido contra as paredes para tentar ouvir alguma coisa.

E então - meia hora depois, segundo o meu relógio, mas parecia ter passado muitas horas - eclodiu um estrondo bem aci­ma de nós. Todos os olhos se voltaram para cima. A essa altura espocavam barulhos sucessivos, batidas, outros estrondos e de vez em quando o som de vozes, o que nos fez concluir que devia haver outras passagens próximas. Mas outra vez não era um som que se podia ouvir através da pedra, era um som que estava lá dentro com a gente. Alguém mirou uma tocha na direção do es­trondo e vimos uma pequena abertura. Um buraco por onde saía ar. Eram vários buracos ao longo do túnel. Alguma coisa estava derrubando aquilo para nós.

A coisa batia e chacoalhava na rocha, e o barulho ficava cada vez mais alto à medida que se aproximava. Todos se seguravam e se preparavam para se proteger, porque estavam certos de que devia ser algum tipo de granada. Mas eu não fiz isso. Eu olhava pra cima e sorria porque... eu sabia. Não me pergunte como. Simplesmente sabia. Até sentia a minha mão formigar no ponto onde eu estaria segurando a coisa em menos de um minuto. E isso aí, o bebê voltava para casa. Abri a boca pra dizer "é a minha faca", mas as palavras não saíram. Para quê? Olhei então para cima e esperei. Explodi em gargalhadas quando ela atravessou o buraco e todos se atiraram no chão. Sequer saltei na direção dela. Deixei que Styr a pegasse. Ele também sabia, também soube no mesmo instante. E como eu confiava nele, claro que ele teve que experimentá-la antes de me deixar ter o que era meu. Fiquei observando Styr cravar a faca na parede do túnel e depois a for­ma pela qual o corpo dele se movia, surpreso, enquanto tentava puxá-la para fora. Ele me olhou, segurou a faca com ambas as mãos e puxou com toda força, mas é claro que nada se moveu. Só então ele abriu espaço pra mim.

Da mesma forma que no passado, senti a faca saltando na minha mão. Fiquei no mesmo lugar, com meu coração e minha alma inteiros a cantar pela força da faca. Em seguida caminhei na direção da barreira de pedra que bloqueava o caminho à fren­te, cravei com força a faca na barreira e comecei a fazer um bura­co na rocha, no subsolo de Londres.

 

Sob duzentos metros de rocha a única evidência do bombardeio era o som longínquo das explosões, como as pegadas de um gi­gante acima de suas cabeças. Às vezes, os bocais das luzes tremi­am ligeiramente. Mais tarde, enquanto a noite se aproximava e o dia se distanciava, as luzes se apagaram.

Lá em cima, munidos de armamento pesado, os soldados de uniforme azul esperavam nas passagens que conduziam à super­fície e preparavam as armadilhas. Conor podia ter fugido, mas para onde? Ninguém lhe daria refúgio, mas, de qualquer forma, ele jamais fugiria. Ainda não havia perdido tudo. Restara uma coisa, uma coisa mais poderosa que cidades ou exércitos, ou que a própria sanidade. Ele ainda tinha a faca.

A faca significava tudo para Conor, como também significa­va tudo para Signy. Ao longo dos últimos dias e semanas ela ha­via explorado silenciosa e sistematicamente cada fresta, cada rachadura e cada fenda no abrigo inteiro, mas ainda não fora ca­paz de encontrar onde Conor guardava a chave. Naquele último dia ela ficou perto de Conor, observando, esperando, mas ele não deu indícios de que iria até o seu mais sagrado tesouro. Na manhã do último ataque ele mandou chamar o filho. Vincent, agora com onze anos, olhou horrorizado aquele pai estranho e trêmulo que antes nunca tivera nenhuma ligação. Conor o fez ler para ele e observou atentamente o rosto do filho que tropeça­va pelas palavras; era tudo o que o garoto podia fazer para man­ter os olhos na página. Depois de meia hora, Conor se virou abruptamente na direção da mulher para repreendê-la por não dedicar tempo ao garoto.

Veja, para que tem servido a vida dele? - Conor perguntou. Ele queria dizer que o garoto fora criado para um futuro que talvez nunca acontecesse. Agora ele morreria sem sequer apro­veitar o presente. Vincent compreendeu alguma coisa disso.

Nós podemos escapar. Por que não podemos escapar? - o menino suplicou. Mas seus pais não lhe responderam e ele ficou com medo de fazer mais perguntas a essas pessoas perigosas.

Conor mandou o garoto embora com o tutor e foi à mesa para comer, mas não conseguiu ingerir nada. Ficou lá por mais de duas horas com a cabeça afundada nas mãos. Quando as luzes apaga­ram, ele soltou um gemido. Signy ficou paralisada e o fitou ameaçadoramente através da escuridão antes de mandar buscar velas e lamparinas. Havia lágrimas em seus olhos; quem pode saber o motivo? Ela própria não fazia idéia. Ela se aproximou e se deteve atrás de Conor, à luz das velas, acariciando o pescoço dele, e de­pois o massageou para tentar destruir os nódulos de tensão.

Conor a observava por um espelho à frente dele.

Talvez a passagem até a superfície esteja bloqueada. Você acha que já estamos mortos? - ele perguntou.

Ainda não - ela respondeu, enquanto se recostava na pare­de e pensava consigo mesma: se ele não for logo pegar a faca, terei que obrigá-lo a isso. - Siggy vai tomar providências para chegar até nós - ela disse por fim.

Conor olhou-a com um sorrizinho curioso.

E o que ele vai fazer com você? - Conor quis saber. - Ele vai considerá-la uma traidora de sua própria família, não é? - Signy soube por aquele sorriso que ele não acreditava realmente nisso, mas não fazia idéia do quanto o marido sabia a respeito do papel duplo que ela desempenhava.

Logo depois as arremetidas longínquas do bombardeio ces­saram, mas ainda não se ouvia som de luta nos túneis e nas pas­sagens do abrigo. Em outro lugar, os servos estavam à espera. Entre eles, uma velha mulher com o rosto enérgico estava senta­da perto de Vincent, tentando confortá-lo enquanto ele chorava. Ela tinha estranhos olhos negros que não transpareciam nada e linhas profundas no rosto. Seus cabelos exibiam uma textura es­tranha, com tonalidades grisalhas, brancas e vermelhas. Nos úl­timos dois anos ela fora babá do garoto, mais mãe do que a pró­pria mãe dele. Cherry, agora velha, mas ainda forte, hoje não estava com sua dona. Signy não a queria nos momentos finais.

As seis horas da tarde os primeiros sons de luta começaram a descer pelos corredores superiores. Signy estava ficando assusta­da; se esperasse por mais tempo, os soldados chegariam e ela per­deria a sua chance. Mas não disse nada a Conor. Ainda nutria a esperança de que ele não resistiria ao impulso de resgatar sua pre­ciosidade e vislumbrá-la uma última vez antes do fim. Como era de esperar, à medida que os sons da batalha se aproximavam, Conor se agitava e lançava rápidos olhares para Signy, olhares que ele tentava ocultar. Quinze minutos se passaram e ele já estava de pé, deixando o quarto. Sentada à mesa com uma xícara de chá nas mãos, Signy ficou satisfeita e tentou não demonstrar excitação.

Conor fechou a porta às suas costas e ela continuou à espera, tremendo de desejo. Ela daria a ele cinco minutos e depois segui­ria para o quarto onde estava o grande cofre. Mas não precisou esperar muito. Pálido de medo, Conor irrompeu no quarto onde ela se sentava.

Onde ela está? Onde ela está? O que você fez? - ele berrou.

Signy levantou-se num salto. O que havia acontecido? Não era preciso perguntar o que Conor queria dizer. Ela se livrou de­le, das mãos que a agarravam, e seguiu para o quarto onde o cofre fora construído sobre um chão sólido, apenas alguns metros abaixo da passagem. E lá estava, a visão que até então ela nunca tivera - a passagem estava escancarada e a porta grossa, tombada no chão. Ela correu e olhou para dentro. Estava vazio.

O que você fez com ela? — Signy rosnou, mas no mesmo instante em que falou já estava certa de que não se tratava de um truque do marido. Conor estava apavorado. Apesar de tudo, de alguma forma ele havia acreditado que nada o machucaria en­quanto possuísse a faca. E, momentos antes, ele havia aberto o cofre e o tesouro sagrado sumira.

Conor olhou para Signy com descrença. Se não havia sido ela, quem teria sido então? Ninguém mais sabia! Aquela mentira havia ido longe demais.

Você não tem esse direito - ele falou furioso, pela primeira vez temendo realmente por sua vida. No quarto adjacente, os servos tremiam. O assassinato pairava no ar.

-Signy, no entanto, olhava ao redor, como se fosse descobrir alguma pista.

Quem foi? Quem...?

E, ao mesmo tempo que indagava, ela já sabia a resposta. Só havia uma única resposta. Antes de terminar a frase, ela virou a cabeça para procurá-la e ouviu... o sibilar furioso e assustado do animal acuado que cruzava a porta do quarto ao lado, onde Cherry aguardava e assistia a esse momento de descoberta.

Você! - Signy rosnou. - Você! - No último momento a metamorfosista fora mais fiel aos deuses do que à sua dona, que queria mudar o que já havia sido testemunhado pelos deuses.

Signy disparou na direção de Cherry. Sem emitir nenhum som, a metamorfa saiu em disparada pela porta aberta por sua dona. Conor se colocou no caminho de Signy, mas ela o empur­rou para o lado. Ele a olhou com horror. Ele jamais tivera indíci­os do quanto ela havia se fortalecido durante o período em que esteve no tanque. Cherry se dirigiu rapidamente até uma porta trancada, mas, em vez de se transmutar em forma humana - ela não estava habituada a fazer isso na frente de Conor -, tentou voltar atrás e Signy a pegou. Depois de um instante feroz de arranhões e agarrões, Signy segurou-a pelo pescoço, açoitando aquele pequeno corpo como um trapo uma, duas, três vezes, e em se­guida arrebentou os miolos de Cherry contra o guarda-louça ao lado da porta.

Aí está, sua traidora! - ela berrou, jogando o corpo aos seus pés.

À porta, Conor se detinha, com o rosto lívido, olhando aquela confusão esmagada no chão. De repente, a mulher que ele havia conhecido e amado por tantos anos tornara-se tão rápida quanto um animal, tão forte quanto uma máquina. Onde é que isso ha­via se escondido por tanto tempo? E por que ela destruía esse animal que tanto amara? Arfando, Signy se pôs na frente dele, com o rosto pálido, com lágrimas descendo pelo rosto. Finalmen­te, ela se revelava para Conor, mas, mesmo assim, ele estava mais assustado pela faca.

Você causou isso... você causou tudo isso - ele gritou. So­mente nesse momento, semi-enlouquecido pelo medo, Conor foi capaz de agir contra a esposa. Aproximou-se da garganta de Signy com as mãos em garras, mas ela o empurrou. Ele quase caiu, mas conseguiu se amparar na pesada escultura de vidro perto do guarda-louça. Pegou-a para espatifá-la na cabeça de Signy... mas en­tão se deteve. Signy era a única coisa que Conor jamais foi capaz de destruir. Ele jamais representou qualquer perigo para ela.

Signy deu um passo para o lado e derrubou a escultura da mão de Conor. O vidro caiu no tapete com um baque pesado. Depois, ela agarrou o braço de Conor, girou-o como uma crian­ça e cravou uma faca nas costas dele.

Adeus, meu querido - ela sussurrou no ouvido de Conor e enfiou a faca até o cabo. Ele arfou, com os olhos girando à pro­cura dos olhos dela, e tombou no chão, morto.

Naquele momento, Signy sentiu seu coração se partindo. Isso pegou-a de surpresa e, antes mesmo que se dessa conta, estava de joelhos, pranteando sobre o corpo do homem que a amara e a quem ela retribuíra com amor, mesmo com todas as deformida­des daqueles anos e das traições sangrentas. Agora tudo fora ti­rado dela, e o último ato havia sido realizado com suas próprias mãos. Com o coração partido, ela inclinou o rosto respingado de sangue sobre o corpo dele, surpresa consigo mesma, e chorou por tudo o que podia ter sido até sua garganta secar.

Alguns instantes depois, Signy percebeu os ruídos ao seu re­dor - os servos se amontoavam aterrorizados nos quartos próxi­mos, o barulho da batalha descia pelas passagens dos abrigos. Agora, ela já não se importava com qualquer coisa viva; estava apavorada com a possibilidade de um mundo sem Conor. Ela se sentou, olhou a gata morta alguns metros à frente e balançou a cabeça. Ela nunca pensou que Cherry fosse lhe trair. Pela primei­ra vez estava realmente sozinha com sua própria ambição.

Enquanto observava, ouviu um ruído, virou a cabeça e lá estava... seu filho. Assumindo toda a coragem de que era capaz, Vincent saíra do quarto ao lado para ver o que havia acontecido e se deparou com o pai morto e a mãe suja de sangue. Lá em cima os soldados corriam e ele queria saber...

Mãe? - ele perguntou. - O que vai acontecer comigo?

Signy o fitou. E claro que ela é que havia aprisionado Siggy e seus homens no túnel. A intenção dela era dar água e comida a eles, mas se faria ou não isso é uma outra questão. Alguns anos depois, quando todo o poder estivesse seguro em suas mãos, tal­vez pudesse libertá-los. Mas Cherry havia roubado a faca. Signy sabia muito bem que Siggy já estava livre e que aquelas paredes não seriam fortes o bastante para prendê-lo enquanto ele tivesse a arma nas mãos. Nenhum dos seus planos se concretizara, mas ela ainda tinha certas vantagens. Uma delas é que seu irmão não fazia idéia de que, naquele momento, ela passara a ser o inimigo. A outra é que ela estava com o filho dele.

Mãe? - o garoto chamou de novo.

Signy se levantou e tomou uma decisão. Ela se ergueu abrup­tamente e mal se deu conta de que seu filho recuava ao vê-la as­sim. Ignorando-o, foi lavar as lágrimas e o sangue do rosto. Em seguida, agarrou o menino pelo braço.

Venha comigo, vamos encontrar seu pai.

O garoto olhou para Conor; ele é que era seu pai, e seu pai estava morto! Signy o conduziu arrastando-o pela passagem por onde ela sabia que Siggy estaria chegando.

A faca de Odin era milagrosa, mas a rocha era rígida. Siggy levou duas horas para abrir caminho através do meio metro de rocha que o separava do resto da passagem. Levou mais meia hora para que o buraco ficasse suficientemente largo para um homem, e um após o outro, Siggy, Styr e os homens se arrastaram de volta ao túnel principal.

Até onde Siggy sabia, Conor é quem os tinha aprisionado e de alguma forma Signy roubara a faca e a mandara para ele atra­vés dos tubos de ventilação. Ele terminava seu trabalho com muita ansiedade e fúria, achando que Conor frustrara o resgate plane­jado por Signy assassinando-a.

Eles ouviram o rumor da batalha antes mesmo de avança­rem. Quando eles saíram da armadilha, as forças aliadas estavam a mais de cem metros de profundidade no abrigo, abrindo cami­nho com metralhadoras, granadas e gás. Siggy guiou seus ho­mens numa corrida veloz pela passagem, rumo aos aposentos da família. Era essencial que ele chegasse junto a Signy antes das tropas. Eles tinham recebido informações sobre o papel que ela desempenhava, mas era provável que nem todos acreditassem nisso. Nos últimos dias, ela vinha sendo considerada uma traido­ra e talvez até estivesse do lado de Conor desde o início. Se fosse pega em combate, por acidente ou por desígnio, era improvável que sobrevivesse. Siggy não fazia idéia de que Conor estava mor­to e que Signy descia ao seu encontro.

O ar lá dentro era desprezível. As bombas de absorção e o sistema de ar-condicionado haviam sido destruídos horas antes e os gases tóxicos dos explosivos impregnavam as passagens. Os homens arfavam e sufocavam naquela atmosfera abafada, mas, impelidos pelos temores do seu comandante, corriam o mais rá­pido que podiam. Eles estavam a uma pequena distância dos apo­sentos da família quando avistaram o tremular de uma lanterna na passagem à frente. Alguém vinha ao encontro deles.

Não atirem - Siggy gritou. Os homens deitaram no chão, alguns apontavam as armas enquanto outros iluminavam o ca­minho com lanternas. A força dos raios luminosos transpassou o ar sombrio e atingiu a figura alta de uma mulher que se curvava para pôr a lanterna no chão. Ao seu lado estava um garoto. Ela se levantou e olhou atentamente para a frente, com uma das mãos nas costas do garoto e a outra no ar, como se fizesse uma sauda­ção. Siggy se pôs a olhar. Era isso? Ela parecia mais alta, mais velha. Ora, claro que ela estaria mais velha...

E ela... - ele disse com um grito sufocado. Pôs-se de pé e saiu correndo. Seus homens olhavam nervosos uns para os ou­tros. Não confiavam nessa mulher que dividira a cama com o inimigo por todos esses anos. Somente Styr saiu no encalço de Siggy. Enquanto os dois corriam, a luz se bloqueou às suas costas e eles viram Signy iluminada por baixo, pela sua própria lanter­na, e isso a fez parecer grotesca, velha e mais alta do que nunca. Coberta de sangue, talvez do seu próprio sangue, o aspecto dela era terrível.

À medida que eles a examinavam, uma outra figura surgia na escuridão. O vulto de um homem se avolumava atrás dela. Ele usava um chapéu de aba larga e estendia os braços como se tudo aquilo fosse um presente para eles.

Os dois homens estancaram. Signy franziu os olhos e olhou para trás, acompanhando o olhar de ambos.

Odin! - Ela deu dois passos e se aproximou do deus, que tombou os braços e se deteve, observando-a silenciosamente. Era possível avistar seu único olho que cintilava por baixo do chapéu.

Um dos Volson vai morrer hoje - rosnou Styr. Ele esticou os lábios com um sorriso repentino, saltou com a arma na mão e atirou na figura sombria. Doze disparos. O pente da arma esva­ziou-se e ele se ajoelhou para recarregá-la. Odin se virou e com dois passos desapareceu na penumbra da passagem.

A arma de Styr estava pronta novamente, mas Siggy deu um safanão na mão dele. Por que ele se importava com o deus? Era a irmã que desejava. Ele correu para ela e a envolveu com os braços em um forte abraço, feliz por tê-la de volta. Ela deu um ligeiro toque nos ombros dele.

Rei Sigs - ela disse, sorrindo para Styr por cima dos om­bros de Siggy. Mas o clone de seu filho não tinha olhos para ela. Ele olhava fixamente para o garoto... para Vincent... para si mes­mo... e seu rosto era uma máscara que fez Signy estremecer.

É seu irmão - ela disse, sorriu para Siggy e completou: - É seu filho.

Styr não desviava os olhos do garoto, mas ela o viu recuar. Vincent se afastou do homem terrível à sua frente. Ele não estava entendendo nada. Irmão? Pai? Mas seu pai era Conor. E por que esse novo irmão tão parecido com ele o olhava com tanto ódio?

O que ele disse? - Siggy perguntou a ela, achando que Odin talvez tivesse falado alguma coisa.

Nada, mas eu sei que ele veio para nos abençoar, Siggy.

É mais provável que tenha vindo para pegar um de nós - Styr retrucou, olhando Signy pela primeira vez. Se um Volson tinha que morrer hoje, estava claro para ele quem seria. Mas, antes, o prêmio principal.

Onde está Conor? - ele perguntou.

Morto. - Signy balançou a cabeça por sobre as costas de Siggy.

Styr praguejou.

Meu filho mais velho - disse Signy, enquanto o observava atentamente na tentativa de amolecê-lo, mas Styr balançou a ca­beça com uma expressão carrancuda. Ele não queria outra mãe além dos tanques de vidro.

Signy recuou e segurou Siggy pelo braço, como se ele pró­prio fosse uma criança.

Você cresceu - disse Siggy, confuso. Antes ela era mais bai­xa que ele, mas, então, era mais alta um palmo que ele. Siggy havia se esquecido do tanque.

Ela sorriu e concordou. Seus olhos estavam cheios de lágri­mas por vê-lo... sim, no fim ela estava feliz por vê-lo e abraçá-lo. Era assim que as coisas eram antes entre eles, os gêmeos que foram tão próximos um do outro. Agora que estavam juntos novamente, tudo voltava.

Eu tinha esquecido - ela sussurrou, e Siggy sorriu, sabendo exatamente o que ela queria dizer. Depois, cautelosamente, ela baixou os olhos na direção do cinto do irmão. - Essa é a faca? Nunca pude tocá-la, Conor sempre a mantinha trancada. Posso? - Ela estendeu a mão.

A essa altura Siggy teria dado qualquer coisa para ela, absolu­tamente qualquer coisa, mas hesitou no segundo em que sua mão tocou o cabo, pensando no quanto aquilo era estranho. Não havia sido Signy quem jogara a faca pelo tubo de ventilação? Mas logo concluiu que talvez ela tivesse mandado Cherry fazer isso. Então, passou-lhe a faca e observou a mão dela fechando-se no cabo. Signy sorriu abrindo os lábios de prazer. Ao segurá-la pela primei­ra vez, Signy se sentiu exatamente como Siggy se sentira; seu pro­pósito era esse, sua mão fora moldada para esse contorno.

Onde está Cherry? - Siggy quis saber.

Morta - Signy respondeu, enquanto movia a mão como uma serpente.

Os soldados os haviam alcançado, mas tudo aconteceu com muita rapidez sob a luz opaca para que alguém pudesse ver ou entender quem era o traidor e quem era o traído. O próprio Siggy não fazia idéia se a lâmina o havia tocado ou não, não que isso fizesse diferença. A faca de Odin era capaz de cortar qual­quer coisa do mundo, exceto a carne de Siggy. A única coisa que ele viu foi sua irmã movendo a mão...

Styr abriu fogo. A primeira bala entrou na barriga de Signy, penetrou nas costelas e arranhou seu coração. Siggy agarrou-a na queda e tomou-a nos braços, enquanto ela gemia e sangrava.

O quê? Peguem-no! - ele gritou, arriando com ela no chão.

Ela tentou matar você! - Styr berrou ao mesmo tempo que atirava novamente. Se no primeiro assassinato restara qualquer dúvida de como aquele clone de homem era frio, o segundo dei­xou isso claro. Quem é que mataria uma criança, embora ela própria também fosse o assassino? O cano curto e grosso de sua arma rugiu selvagemente mais duas vezes. O sangue jorrou e Vincent tombou no chão, morto. - Ele me pertencia e eu podia matá-lo! - Styr gritou. Ele entrou em um frenesi incontrolável de morte e saiu em disparada pelo túnel na direção do rumor da batalha. Ele ainda queria matar o deus, e talvez também temesse que por ter começado a matar nunca mais fosse capaz de parar. Siggy soltou um terrível grito sem palavras na direção dele. - Os dois me pertenciam e eu podia matá-los! - Styr berrou e seguiu correndo.

Siggy se voltou para a irmã aninhada em seus braços. Eles se entreolharam por um segundo. Ele assistia à vida se esvair do corpo de Signy. Ela tentou falar "dessa vez os deuses consegui­ram", mas estava fraca demais. Em seguida, morreu.

Siggy deitou-a delicadamente no chão e ao se levantar já es­tava pronto para matar seu filho. Mas Styr havia ido embora, estava fora de vista, correndo velozmente na direção da batalha.

Um dos homens pôs a mão no braço de Siggy.

Eu também vi, é verdade, ela tentou apunhalar você - o homem disse, e outro concordou.

Não, ela caiu. Não acho que... - contrapôs um outro. Mas Siggy acenou para que eles se calassem. Eles se puseram a olhar o corpo, ouvindo o rumor da batalha se aproximando cada vez mais.

Vão em frente, achem-no, se puderem. Ele vai responder por isso. Vejam se conseguem encontrar Conor e tragam-no para fora, e também os servos dela - Siggy ordenou. Ele estava pen­sando em Cherry. - Quero todos eles vivos. Digam isso a ele. - Siggy acenou para onde Styr seguira, mas qual era a chance da­quele clone ter piedade por alguém, se não teve nem mesmo por sua própria mãe? - Vão logo... - Siggy acenou mais uma vez para que os homens seguissem em frente. Ele se inclinou e tirou a faca da mão de Signy.

Os homens hesitaram, não querendo deixá-lo sozinho, mas Siggy insistiu para que eles seguissem.

Podemos ficar e ajudar você? - um deles perguntou. Siggy olhou para cima e assentiu com a cabeça, incapaz de falar enquan­to recolocava a faca no cinto. Três homens permaneceram junto a ele e os outros saíram em disparada pelo túnel na caçada de Styr. Os que ficaram para trás esperaram constrangidos, até que Siggy se levantou e gesticulou para que eles pegassem Signy e a levassem pela passagem para longe da batalha. Ele seguiu em frente, totalmente sem gosto pela guerra às suas costas.

 

                                                                                Melvin Burgess  

 

                      

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