Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MITOS & LENDAS SUL AMERICANAS
COMO NASCERAM AS ESTRELAS
Existem muitos mitos sul-americanos que falam da maneira como as estrelas encheram o céu. Este mito, contado pela tribo dos Bororós, começa com uma manhã, tranquila e igual a muitas outras, passada numa povoação.
Os homens da aldeia tinham partido para a caça, de modo que as mulheres pegaram nos seus cestos e foram colher milho para fazer tortilhas. O pior é que encontraram muito poucas maçarocas.
- Que safra tão pobre - comentou uma delas. - Passei a manhã toda à procura e tenho o meu cesto quase vazio.
- Vamos pedir ao pequenito - sugeriu uma idosa. - Ele tem muito jeito para encontrar as maçarocas... ainda não percebi como consegue. É tão miudinho e o milho cresce tão alto, mas o certo é que consegue dar com as maçarocas!
E foi assim que uma das mulheres voltou à aldeia para chamar o pequenito. Encontrou-o junto da avó, que tentava ensinar algumas palavras novas à arara de estimação. São aves espertas, que conseguem aprender a dizer todo o tipo de palavras.
- O pequenito pode ir connosco para nos ajudar a encontrar maçarocas? perguntou a mulher à avó do rapaz.
- Claro que sim - replicou a avó. - Vá, pequenito, toca a andar. O pequenito acompanhou a mulher até ao milharal.
- Vê o que consegues encontrar - incitou-o ela.
Como já era de imaginar e tal como a velha previra, o pequenito foi achando maçaroca atrás de maçaroca, até os cestos das mulheres ficarem a abarrotar.
Estas sentaram-se então numa clareira, a tirar o milho das maçarocas. Depois arranjaram umas pedras lisas, com as quais esmagaram os bagos até os reduzirem a farinha.
- Assim teremos muitos bolos e tortilhas para dar aos nossos maridos quando eles voltarem da caçada - observou a velha. - Ficarão todos contentes!
O pequenito, porém, sempre que apanhava uma delas distraída, roubava um pouco de farinha para si, escondendo-a dentro do interior oco de talos de bambu.
«Claro que isto não é roubar», disse de si para si. «Como fui eu quem encontrou a maioria das maçarocas de que esta farinha foi feita, tenho todo o direito de ficar com um bom bocado.»
Não tardou que o rapazito juntasse uma quantidade suficiente para fazer uma festa. Pegou nos paus de bambu e voltou para junto da avó, que ficara na aldeia a tomar conta das crianças.
- Avó! Avó! - exclamou. - Quero dar uma festa para todos os meus amigos... Aqui tem a farinha para os bolos. Importa-se de os fazer?
Sacudiu a farinha que trazia dentro dos paus de bambu, juntando uma boa quantidade num monte.
A avó esbugalhou os olhos de surpresa.
- Onde é que arranjaste toda esta farinha, pequenito? - perguntou, espantada.
«Pequenito», cantarolou a arara, imitando-a.
- A avó sabe que eu fui apanhar maçarocas com as mulheres - respondeu o menino. - Ajudei-as a encontrar tantas que me disseram que já tinham farinha que chegasse para os homens.
- Portanto resolveste roubar esta, não foi? - perguntou-lhe a avó.
- Claro que não - mentiu o rapaz. - Elas é que me disseram para tirar a que fosse capaz de carregar.
«Carregar», guinchou a avó.
A avó franziu o sobrolho mas, logo a seguir, o seu rosto abriu-se num sorriso.
- Acredito em ti - disse, deitando mãos ao trabalho na preparação dos bolos.
Não tardou que a casa da avó se enchesse com o odor delicioso dos bolos acabados de cozer... e a abarrotar de crianças, pois o pequenito convidara todos os amigos para a festa.
A avó do rapaz ficou sentada a um canto, juntamente com a arara de estimação, a ver a miudagem a encher a barriga de bolos. Começava a duvidar de que o pequenito tivesse contado a verdade. Se calhar o neto não recebera a farinha mas, sim, roubara-a.
- Será que o meu pequenito é um ladrão? - murmurou. A arara ouviu a palavra «ladrão» e repetiu-a.
«Ladrão!», guinchou. Como achou a palavra agradável de pronunciar, continuou a repeti-la: «Ladrão! Ladrão!» As crianças calaram-se.
- Não quero que aquele pássaro maluco nos denuncie - disse o pequenito. «Ladrão!», gritou a arara.
Sem parar para pensar no que estava a fazer, o rapaz agarrou na ave e cortou-lhe a língua. Alguns contam que depois chegou a fazer o mesmo à avó, para se certificar do seu silêncio. No entanto, é provável que a avó tenha ficado suficientemente assustada com o que acontecera à sua pobre ave para não dar com a língua nos dentes.
A maldade estava consumada. Não havia como voltar atrás. Então, como muitas vezes acontece, as coisas más não ficaram por ali. As crianças, com a barriga cheia como há muito não acontecia, saíram de casa atrás do pequenito e foram soltar todas as outras araras de estimação da aldeia.
Foi então que, com a mesma certeza e lentidão com que o Sol nasce pela manhã, o pequenito começou a aperceber-se das maldades terríveis que cometera. Cortara a língua a uma ave, roubara farinha, assustara a avó... o que viria a seguir? Tinham de fugir, as crianças precisavam de se pôr a salvo antes que os pais descobrissem o que haviam feito!
Contudo, para onde poderiam escapulir-se sem serem descobertas pelos adultos?
-Já sei - exclamou o pequenito. - Os crescidos não são bons trepadores porque pesam muito. Subamos para um sítio aonde eles não possam chegar.
- Para onde? - perguntou uma menina, ainda com a boca suja de migalhas.
- Para o céu! - exclamou o pequenito.
- Mas... como? - quis saber um rapaz mais velho.
- Há sempre uma maneira! - declarou o pequenito ao avistar, naquele preciso momento, uma trepadeira grande. Tinha o caule cheio de nós salientes; portanto, seria fácil subir por ela. Pousado na planta estava um beija-flor.
O pequenito segredou algo ao ouvido do beija-flor e logo a ave pegou numa das pontas da trepadeira e voou com ela para o céu, prendendo-a no sítio certo.
- Despachem-se! - incitou o pequenito, começando a subir pela planta, em direcção ao céu. Em breve era seguido por uma fila de crianças.
Quando as mulheres regressaram à aldeia com os cestos cheios de farinha, prontas para começar a cozinhar para os seus homens, não encontraram os filhos. Correram para casa da avó do pequenito e encontraram-na a chorar pela sua pobre arara.
- Que aconteceu? - perguntou uma das mulheres.
- Onde estão as crianças todas? - inquiriu outra, aflita.
Nesse instante, uma delas ainda viu as pernas da última criança a subir pela trepadeira, antes de desaparecer no céu.
- Olhem! - gritou a mulher. - Estão além!
Deitou a correr em direcção à trepadeira, seguida pelas outras mulheres. Em breve tentavam, desesperadamente, subir pelos nós da planta, a fim de alcançar os filhos.
O pequenito, no entanto, tivera razão. Os adultos jamais conseguiriam ir atrás deles até àquele lugar. A trepadeira não aguentou o peso e desprendeu-se do sítio onde o beija-flor a prendera.
Caiu então por terra com um terrível CRAQUE!, fazendo lembrar uma corda enrolada, e as mulheres, que eram mães, tias e primas, espojaram-se no meio do chão, em grande choro. Nesse dia, porém, o solo foi generoso para elas. Em vez de morrerem todas, pois tombaram de uma grande altura, ao tocar na terra seca e
dura, transformaram-se em diferentes animais. Esta estranha mistura de criaturas começou então a galopar, correr, rastejar, saltar e andar por ali fora.
Nessa noite, quando os homens voltaram da caça, em vez de serem saudados pelo cheiro de petiscos e pela gritaria dos filhos, não viram ninguém para além da velha.
Com língua ou sem ela, o certo é que a avó do pequenito ficara completamente muda com o que vira; portanto, nada disse.
Viam-se alguns animais esquisitos a deambular por entre as casas, mas os homens não lhes deram atenção, tão aflitos andavam à procura das mulheres e dos filhos.
- O que lhes terá acontecido? - perguntou um dos caçadores. - Não há sinais de ataque... Deve ter havido aqui alguma bruxaria.
- E o que é aquilo? - exclamou um outro apontando, admirado, para o céu escuro.
Os homens da aldeia ficaram a olhar, espantados, para as estranhas luzes que brilhavam no meio da escuridão, luzes que hoje conhecemos como estrelas.
Depois de a trepadeira cair, as crianças ficaram para sempre presas no céu. Ainda ali estão e nunca envelhecem. Às estrelas são os seus olhos a brilhar com as lágrimas que choram pelas terríveis maldades cometidas.
O FOGO E O JAGUAR
Existem muitas versões diferentes deste mito nas várias tribos dos Caiapós, porém todas elas contam como o povo descobriu o segredo do fogo e começou a cozinhar os seus alimentos.
No tempo em que as pessoas secavam carne ao sol, para depois ser mais fácil mastigá-la, um homem e um rapaz partiram para a caça. A certa altura, o primeiro avistou um ninho de arara no alto de um rochedo escarpado.
- Botoque, tens de subir lá cima para veres se naquele ninho há ovos ordenou ao rapaz.
- Porque hei-de ser eu? - perguntou Botoque. - Tu és mais crescido e forte.
- Precisamente por isso! - exclamou o homem. - Esta tarefa é a indicada para uma pessoa pequena.
Botoque tentou escalar o rochedo; porém, não tinha onde apoiar as mãos e os pés.
- Não consigo! - queixou-se.
- Não desistas com essa facilidade! - aconselhou-o o homem, que era marido da irmã de Botoque. - Precisamos de te fazer uma escada.
Procurou no mato em volta, até encontrar o tronco de uma árvore caída.
- Achei! - exclamou. - Ajuda-me a arrastar este tronco para a clareira. Botoque e o cunhado começaram a abrir saliências na madeira morta para improvisar uma espécie de escada, enquanto, no ar, por cima deles, um par de araras voava em círculo, soltando guinchos de alarme.
Depois de terminarem, o homem e o rapaz arrastaram o tronco até ao rochedo e apoiaram-no contra a sua superfície.
Botoque percorreu o comprimento do tronco com os olhos, desde o chão até mesmo ao cimo, que chegava exactamente à beira do sítio onde as araras tinham feito o seu ninho. Tinha muito que subir.
- Achas que sou mesmo capaz de subir isto tudo até lá cima? - perguntou, nervoso.
- Claro que sim - respondeu o cunhado. - Eu seguro no tronco cá em baixo, para o tornar firme.
Botoque, francamente relutante, foi subindo até chegar ao topo. Saltou do tronco para cima da saliência rochosa e olhou para o ninho.
- Quantos ovos vês? - perguntou-lhe o homem lá de baixo.
Botoque mal podia acreditar nos seus olhos. O ninho continha apenas duas pedras arredondadas.
- Nenhum! - gritou em resposta, inclinando-se para pegar nas pedras.
- Nesse caso, o que tens tu nas mãos? - perguntou o cunhado, fazendo pala com a mão sobre os olhos, para ver o que Botoque estava a fazer.
- Pedras! - gritou Botoque de novo. - Devem ter caído do alto do rochedo.
- Estás a mentir! - gritou o homem. - O irmão da minha mulher é um miúdo mentiroso! Tens aí dois belos ovos de arara e queres ficar com eles só para ti.
Mal Botoque pousou o pé na primeira saliência da escada, com a intenção de descer, o cunhado, enraivecido, começou a abaná-la.
- Pára com isso! - gritou o rapaz, em pânico. - Não estou a mentir. Agarrou-se ao tronco com as duas mãos e deixou escapar as pedras, que caíram mesmo em cima do cunhado furibundo.
- Como te atreves a atirar-me pedras! - gritou o homem quando uma delas o atingiu na cabeça. Cambaleou para trás e largou o tronco de árvore, que se estatelou no meio do chão fazendo uma barulheira infernal e partindo-se ao meio. Não seria de admirar que o cunhado de Botoque a tivesse largado de propósito, de tão furioso que estava.
Felizmente para Botoque, este ainda teve tempo para voltar apressadamente para cima da plataforma rochosa antes de a escada improvisada tombar. Mas infelizmente, ele estava agora preso lá em cima, na plataforma, impossibilitado de descer.
- Socorro! - gritou. - Ajudem-me!
O cunhado, no entanto, não lhe prestou qualquer atenção e foi-se embora.
Ao chegar à aldeia, mentiu em relação a Botoque, dizendo que o rapaz não lhe obedecera e correra a esconder-se no mato.
Botoque ficou sozinho dias a fio, na estreita saliência do rochedo. As araras, assustadas com a sua presença, abandonaram o ninho. Botoque passou muita fome e frio, não tardando a ficar reduzido a pele e osso. O seu corpo desenhava uma estranha sombra no chão poeirento que se estendia em baixo.
Foi então que, um dia, um jaguar - um enorme gato selvagem - que ia a passar, reparou na sombra e, pensando tratar-se de alguma criatura esquisita, tentou atirar-se a ela. De cada vez que saltava, Botoque encolhia-se contra a parede do rochedo e a sua sombra deixava de se ver no chão.
Intrigado, o jaguar olhou para cima e foi então que reparou em Botoque.
- Quem és tu? - perguntou.
- Sou um ser humano - respondeu Botoque.
- Não sabia que os humanos viviam em ninhos feitos no meio das rochas observou o jaguar que, à semelhança de todos os grandes gatos, caminhava bem assente sobre as suas quatro patas. Subiu então pela parede rochosa, encontrando apoio em sítios que os humanos jamais teriam descoberto.
Botoque contou-lhe a traição do seu cunhado, mas, quando o grande gato lhe sugeriu que subisse para cima do seu dorso, sentiu-se receoso.
- Confia em mim - disse-lhe o jaguar. - Quem te traiu foram os da tua espécie, não os da minha. Vais comigo para minha casa e passas a ser como um filho para mim.
Botoque subiu então para o dorso do jaguar e depressa chegaram a casa deste. No meio do chão via-se um tronco de jatobá a arder exuberantemente.
- Que é aquilo? - perguntou Botoque, que nunca vira tamanha magia. As chamas de cores brilhantes pareciam dançar diante dos seus olhos.
Também crepitavam e transmitiam calor.
- Chama-se fogo - informou o jaguar. - Serve para cozinhar a comida.
- Cozinhar? - admirou-se Botoque, que nunca ouvira semelhante palavra. Como os humanos não conheciam o segredo do fogo, comiam tudo cru.
- Já vais ver - respondeu o jaguar, chamando a mulher.
- Quem trazes aí? - perguntou-lhe ela.
- Apresento-te o Botoque - disse o jaguar. - Foi traído pelos da sua própria espécie. Portanto, resolvi adoptá-lo como nosso filho.
- Mas daqui a pouco teremos um filho mesmo nosso - insurgiu-se a mulher do jaguar, que esperava uma cria, mirando Botoque à luz das chamas tremeluzentes.
- Nesse caso ficaremos com dois filhos - retorquiu o jaguar, dando a conversa por terminada. - Agora vamos comer.
Foi assim que Botoque se tornou o primeiro do seu povo - provavelmente dos seres humanos - a comer carne cozinhada ao lume. Ficava deliciosa! Não só era mais fácil de mastigar do que a crua, como também ganhava muito mais sabor. Foi a melhor refeição que o rapaz já comera na vida. Nessa noite foi dormir, repleto e feliz, ao pé da fogueira, aquecido pelo seu calor.
Na manhã seguinte, Botoque acordou e viu que o jaguar lhe fizera um arco e flechas - uma arma jamais vista por nenhum humano - e os dois foram, rapaz e animal, caçar juntos. Tornaram-se grandes amigos, o que já não acontecia em relação à mulher do jaguar.
Sempre que ficava sozinha com Botoque, arreganhava-lhe os dentes e mostrava-lhe as garras. Não o deixava aproximar-se da carne e havia mesmo ocasiões em que o rapaz ficava sem comer. Não lhe agradava nada ter aquele novo «filho» em sua casa.
Certa manhã, depois de o jaguar partir para a caça, rosnou a Botoque com tal ferocidade que ele agarrou no arco e nas flechas e disparou-lhe uma para a pata.
Botoque, horrorizado com o que fizera, achou que chegara a altura de regressar à aldeia e juntar-se aos da sua própria espécie.
Agarrou num bocado de carne cozinhada e seguiu apressadamente para casa.
Ao chegar à aldeia, a família recebeu-o com muita alegria... com excepção do cunhado. Quando todos o imaginavam morto, eis que voltava com uma história fantástica sobre certo jaguar e algo chamado fogo. Os mais velhos provaram a carne cozinhada e admitiram que nunca nada lhes soubera tão bem.
Ficaram maravilhados diante do arco e das flechas e concordaram que o tal jaguar era, sem dúvida, uma criatura muito esperta.
- Temos de ter um pouco desse fogo para nós - disse um dos anciãos.
Os habitantes da aldeia reuniram então alguns animais a fim de lhes pedir ajuda, e em seguida traçaram os seus planos.
Atravessaram furtivamente a floresta, em direcção à casa do jaguar. Ali chegados, um tapir carregou com o tronco em fogo nos costados e, a coberto da escuridão, voltaram todos para a aldeia.
O jaguar, que estivera a observá-los de entre as sombras, sentiu-se profundamente triste. Tratara Botoque com bondade e, no entanto, fora traído. Jurou então nunca mais caçar com arco e flechas e servir-se apenas dos dentes e das garras, decidindo igualmente jamais voltar a comer carne cozinhada, limitando-se à crua. O único fogo que voltou a sentir depois do acontecido foi uma raiva chamejante dentro de si contra os humanos - criaturas que traem não só os outros animais como também os da sua própria espécie.
Botoque e os aldeãos, por outro lado, passaram a dispor do fogo para iluminar a escuridão, comer carne cozinhada e aquecer-se nas noites frias.
UM MUNDO DE CÉUS INFINITOS
Segundo a maioria dos mitos sul-americanos, os primeiros humanos eram imortais. Podiam viver para sempre. No entanto, este mito carajá conta a história de maneira diferente.
Há muito, muito tempo, os humanos não viviam à superfície da Terra, mas sim no seu interior. Quando a noite caía no lado de fora, no interior reinava o dia, e a explicação era simples: quando o Sol baixava e deixava de se ver no final de cada dia, desaparecia dentro da Terra e iluminava o seu reino subterrâneo. Depois, quando a manhã chegava, o Sol erguia-se no horizonte, saindo de dentro da Terra, e voltava para o céu.
Entre as pessoas que viviam neste mundo subterrâneo - e é preciso não esquecer que, no princípio, era aí que todas elas moravam - havia um homem chamado Kaboi, dotado de grande sabedoria.
Às vezes, quando Kaboi se deitava no seu leito à noite - no interior da Terra era noite, enquanto à superfície era dia -, ficava a escutar um canto estranho que lhe chegava de cima.
Embora os dois mundos estivessem divididos por uma espessa camada rochosa, aquele canto chegava-lhe com muita nitidez, deixando-o curioso quanto à sua origem. Nunca pensou que se tratava do canto de uma seriema, ave que vivia nas vastas planícies verdejantes da savana.
Não tinha possibilidade de saber que as próprias ervas cantavam quando o vento passava por entre elas. Verdade seja dita, ele também nada sabia acerca de ventos, pois, no interior da Terra, o ar estava parado e nunca nenhum humano vira o mundo que ficava por cima.
Certa noite, Kaboi não conseguiu aguentar mais. Resolveu seguir o som e tentar descobrir de onde vinha. Várias pessoas concordaram em acompanhá-lo; porém, os seus nomes já foram, há muito, esquecidos.
Kaboi e os seus companheiros subiram pelas paredes rochosas do mundo subterrâneo, até chegar ao lugar onde o som se ouvia com mais força.
Kaboi sentiu no rosto uma brisa suave, ele que nunca antes experimentara tal sensação. E pelas narinas entrou-lhe um odor estranho... o odor da erva da savana. Kaboi olhou para cima e avistou, mesmo por cima da sua cabeça, um buraco aberto na rocha. Deitava para um longo túnel que, por sua vez, ia dar à superfície.
Nesse preciso momento, a seriema cantou de novo e as pessoas que rodeavam Kaboi soltaram exclamações de entusiasmo.
- Tinhas razão - observou uma delas.
- Encontraste um caminho que vai dar a outro sítio! - exclamou outra.
Foi um momento de grande entusiasmo para Kaboi. Se, de facto, havia um mundo novo no lado de fora, ele ficaria para sempre conhecido como aquele que descobrira o caminho para lá chegar.
Kaboi achou que devia dizer algumas palavras para marcar aquele momento importante; porém, estava de tal maneira entusiasmado que se içou para a entrada do túnel. O pior é que não conseguiu passar, pois a abertura era demasiado pequena para a sua enorme barriga.
- Temos de abrir um túnel mais largo! - declarou alguém.
- Não vale a pena - respondeu Kaboi. - O que interessa, acima de tudo, é descobrir o que está no outro lado - salientou. - Só vos resta subir pelo túnel e partir à aventura.
Os companheiros de Kaboi apercebiam-se bem do grande desgosto que este experimentava por não poder visitar a superfície; no entanto, achavam que as suas palavras faziam sentido e estavam todos ansiosos por partir à descoberta do que havia no exterior.
Antes de o último homem desaparecer pelo túnel acima, Kaboi pousou-lhe a mão no ombro.
Não te esqueças de ver de onde vem o canto que costumo ouvir à noitem recomendou.
- Prometo não me esquecer - retorquiu o homem.
Os primeiros seres humanos a visitar a superfície da Terra, a que agora chamamos nossa, mal podiam crer no que os seus olhos viam. O céu azul que se estendia, a perder de vista, por cima das suas cabeças, era algo que jamais tinham imaginado. As árvores, as plantas, as aves... Tudo era novo e espantoso para eles.
- O Kaboi descobriu-nos um paraíso! - rejubilou-se um deles.
- Todos quererão viver aqui - disse outro.
- Estou ansioso por lhe contar - acrescentou um outro.
Houve mais alguém que desejou falar; porém, a sua voz foi abafada pelo canto da seriema.
- Ah! Ah! - exclamou essa pessoa em tom triunfante, depois de a ave se afastar. - Ali está a criatura cujo canto fez com que chegássemos a este lugar maravilhoso. Temos de voltar para junto do Kaboi e contar-lhe o que vimos.
- Acho que também devemos levar connosco coisas para lhe mostrar sugeriu o primeiro.
Todos concordaram com a ideia.
Colheram fruta, juntaram abelhas, mel e bocados de madeira seca que tiraram de uma árvore morta, subindo, em seguida, até ao lugar onde ficava o túnel que os conduziria de novo ao mundo subterrâneo.
- Kaboi, encontrámos um lugar maravilhoso! - exclamou um deles.
- O tecto do mundo lá de cima não é feito de pedra como o nosso, mas sim de ar azul que se estende a perder de vista - disse outro.
Não podia utilizar a palavra «céu», porque ela não existia. Nunca nenhum humano o vira, melhor dizendo, até então.
Todos desataram a falar ao mesmo tempo, ansiosos por transmitir as maravilhas com que tinham deparado.
- Calem-se - pediu Kaboi. - Temos tempo para falar de tudo isso.
- Olha o que trouxemos - disse um dos membros do grupo que partira em investigação, enquanto pousavam os frutos, abelhas, mel e madeira seca em frente do sábio Kaboi.
Kaboi pegou numa peça de fruta, cheirou-lhe a pele e deu-lhe uma dentada na polpa. O suco escorreu-lhe pelo queixo.
- Que delícia! - elogiou. - O mundo que gera delícias como esta deve ser maravilhoso.
A seguir, examinou as abelhas e o mel.
- Os insectos do mundo exterior são trabalhadores esforçados continuou, metendo depois um bocado de favos de mel na boca. - E não há dúvida de que o que produzem é doce. Não restam dúvidas de que este mundo novo é fantástico, é um mundo de abundância.
Por fim, pegou no bocado de madeira seca, que virou e revirou várias vezes entre as mãos.
- Onde é que acharam isto? - quis saber.
Um dos elementos do grupo abriu caminho até à frente.
- Encontrei isso numa árvore - explicou.
- Todas as árvores do mundo exterior são feitas de madeira como esta?
- Não - respondeu o homem. - As outras árvores estão de pé e direitas, cheias de folhagem verdejante. Essa estava deitada por terra e não tinha quaisquer folhas. Foi por isso que te trouxe um bocado da sua madeira.
Kaboi ficou com uma expressão solene.
- Não há dúvida de que o mundo lá de cima é muito belo e produz em abundância. Mas também é um mundo onde, a seu tempo, tudo morre.
Via-se, pela cara das pessoas, que estas não tinham percebido bem o significado das palavras do sábio Kaboi.
- No mundo lá de cima, tudo o que tem vida acabará por definhar e morrer - explicou ele.
- Mas aqui em baixo também morremos - contrapôs o homem que trouxera os bocados de madeira seca.
- É um tipo de morte completamente diferente - disse Kaboi. - Aqui, nós não mirramos e secamos como este bocado de madeira. Aqui, nós nascemos e vivemos durante centenas de anos, até deixarmos de existir retorquiu Kaboi. - Lá em cima as coisas nascem, vivem e vão ficando cada vez mais velhas e gastas, até morrerem. Se algum de vocês optar por viver no mundo exterior, também morrerá muito antes daqueles que, entre nós, forem suficientemente ponderados para ficar.
Gerou-se um silêncio de estupefacção.
Como os nossos antepassados viviam no mundo subterrâneo não sabiam o que era a decadência, tinham muita dificuldade em compreender as palavras do sábio Kaboi. Mesmo aqueles que tinham uma vaga noção do que ele queria dizer, acharam que o preço a pagar era demasiado pequeno comparado com a possibilidade de viver naquele mundo novo tão belo.
Foi assim que muitas pessoas subiram pelo túnel e passaram a viver na superfície da Terra, onde hoje nos encontramos todos, tendo o céu límpido por cima das nossas cabeças e o chão firme debaixo dos nossos pés.
Descendemos todos desse primeiro povo que optou por essa vida nova à superfície onde, mais cedo ou mais tarde, a morte acaba por nos apanhar a todos.
Quanto a Kaboi, este continuou no subsolo, satisfeito por saber que viveria mais tempo do que os que estavam na superfície poderiam alguma vez imaginar.
Kaboi continuou a poder escutar o canto da seriema e a imaginar o aspecto que a ave teria, agora que lha tinham descrito. Mas também ouviu outros sons: o das pessoas a rir, chorar e morrer.
TERRA, FOGO E ÁGUA
Existem, espalhados por esse mundo, muitos mitos e histórias que falam de grandes cheias que representam uma segunda oportunidade para a humanidade. Este mito dos Tupinambás é uma história que fala da Terra, do fogo e da água.
No tempo em que o planeta era completamente plano, sem a menor colina, vale ou montanha à vista, a terra estendia-se a perder de vista. Não havia mares nem oceanos, apenas o número suficiente de lagos para fornecer a água de que as pessoas necessitavam para beber e as árvores para crescer.
Esse mundo, assim como o seu povo, fora criado e cuidado por alguém chamado Monan, que existia antes do princípio de si mesmo, portanto não tinha começo nem fim. Era, é e será sempre.
Monan tratava os humanos como crianças mimadas e deixava-os fazer o que queriam, desde que o respeitassem como seu criador, assim como à Terra, que fizera para nela viverem.
No começo, tratava-se de uma situação satisfatória. Todos os dias eram dias de descanso e prazer para o seu povo que, no entanto, à medida que o tempo ia passando, se foi tornando ingrato.
- Para que precisamos nós de Monan? - perguntou um, levando um fruto à boca e saboreando a sua doçura pegajosa. - Quem me dera que nos deixasse em paz.
- Temos tudo o que queremos - acrescentou um outro. - Monan não nos serve para nada.
A certa altura, as pessoas começaram a falar mal do seu criador e a criticar o mundo que este fizera para eles.
- Seria melhor que tornasse os dias mais ensolarados - queixou-se um.
- Cá por mim, não eram tão brilhantes - resmungou outro.
- Porque terá o céu este azul tão enfastiante? - lamuriou-se um outro. E o que ainda era pior, houve quem começasse a falar da Terra como se esta tivesse aparecido por acaso... esquecendo-se completamente de Monan.
No início, Monan não ligou importância ao facto. Achava que as ideias disparatadas do seu povo acabariam por passar e que, em breve, todos voltariam a sentir-se gratos como no passado. No entanto, enganava-se.
Monan, preocupado com o rumo seguido por aqueles que criara com tanto carinho, voltou as costas à Terra e aos seus habitantes, deixando-os entregues à vida sem ele. Mas quando o seu comportamento começou a tomar proporções graves, achou que lhe competia pôr termo a tal situação.
Enviou um fogo terrível do céu. Este fogo, chamado Tatá, era tão quente e violento que não só destruiu tudo o que era vivo como também fez com que a Terra se enrugasse e encarquilhasse, dando origem ao que hoje são os montes, vales e montanhas que conhecemos.
Este acontecimento teria representado o fim da humanidade, se Monan não tivesse salvo uma pessoa antes de enviar o fogo. Era-lhe muito penoso destruir todas as suas criações, daí que tenha preservado um homem chamado Irin-Mage.
Irin-Mage olhou para a Terra e viu as chamas subirem cada vez mais alto.
- Quereis que as chamas também destruam o céu e as estrelas? perguntou ao seu criador. - Se não fizerdes nada para as suster, em breve este fogo devastador chegará aqui acima e consumirá o vosso próprio lar!
Monan fez então cair do céu uma chuva abundante como nunca se vira até então nem nunca mais se voltou a ver. A água brotou das alturas em vastas cascatas, extinguindo o fogo de Tatá.
As cinzas do incêndio foram varridas para longe e surgiram então os mares e os oceanos que hoje existem. As águas, ao misturarem-se com as cinzas, tornaram-se salgadas, razão pela qual diferem das dos rios, lagos e ribeiros, alimentados por chuvadas vindas mais tarde.
A Terra, com os seus montes, vales, montanhas, oceanos e mares, parecia até mais bela do que antes.
- Irei pôr-te ali, Irin-Mage - disse Monan. - O teu lugar não é no céu.
- Fico-vos grato - retorquiu o único ser humano que sobrevivera. Além de me salvardes a vida, colocais-me num mundo maravilhoso... apesar de saber que a solidão me será muito pesada por não ter alguém com quem o partilhar.
Monan fitou-o com bondade.
- És um homem bom - disse -, o que me faz feliz por te ter escolhido. Arranjar-te-ei uma esposa com a qual possas partilhar este mundo novo. Tende muitos filhos, pois será de vós que todas as pessoas virão.
Dito isto, Monan colocou Irin-Mage na Terra, juntamente com a sua nova esposa.
O tempo foi passando e Irin-Mage gerou muitos filhos na sua esposa, porém nenhum era tão poderoso como Maira-Monan, assim chamado para homenagear o criador que dera uma segunda oportunidade à humanidade.
Maira-Monan era um feiticeiro poderoso e conhecia todos os segredos da Natureza. Gostava de viver longe de todos; no entanto, partilhava muitos dos seus segredos com os outros, tornando assim mais fácil a vida na Terra. Transmitiu às pessoas o segredo do fogo e ensinou-as a cultivar as suas próprias safras.
Os poderes de Maira-Monan eram, no entanto, muito superiores. Foi ele que transformou os animais em todas as diferentes espécies que hoje conhecemos. Quando Monan colocou os pais de Maira-Monan na Terra, depois do fogo e da cheia, forneceu-lhes muitos tipos diferentes de árvores e plantas; porém, os animais eram todos iguais. Foi Maira-Monan que, servindo-se das suas artes, os tornou diferentes uns dos outros, criando tatus, garças, piranhas, abutres, entre uma miríade de outros. Encheu a terra, a água e o ar de vida.
Algumas pessoas - naquela altura já eram muitas - tinham medo de Maira-Monan.
- Que ele queira criar todos esses tipos diferentes de animais não tem importância - comentou uma mulher. - O pior é se ele decide focar a sua atenção em nós. E se resolve achar que devemos ter uma forma diferente?...
- Ou outra cor, ou tamanho? - concordou o marido.
- E se ele achar que devemos viver no oceano como se fôssemos peixes? Quem é que irá fazer-lhe frente? - perguntou a mulher. É demasiado poderoso.
- Temos de o impedir que o faça! - exclamou o vizinho.
- Sim - entoaram em coro. - Sim!
Finalmente, traçaram um plano e chamaram Maira-Monan a uma aldeia próxima.
- Ficamo-vos gratos por terdes vindo, grande sábio - saudou o chefe da aldeia. - Temos um pedido a fazer-vos, mas antes disso gostaríamos que demonstrásseis os poderes de que tanto temos ouvido falar.
- Se assim o desejais - acedeu Maira-Monan, filho de Irin-Mage, ignorando a armadilha que lhe preparavam e divertido com a ideia de ter de provar o seu poder. - Que quereis que eu faça?
- Apenas que atravesseis três fogueiras que acendemos para esse fim disse o chefe da aldeia.
- Se isso vos der prazer - aquiesceu Maira-Monan, sendo, então, conduzido até à primeira fogueira.
Caminhou lentamente por entre as labaredas, pisando as brasas incandescentes com as solas nuas dos pés como se não fossem mais do que pedrinhas de arestas afiadas. Saiu do outro lado sem a menor chamuscadela.
- Não sei o que isso poderá provar - observou o grande feiticeiro -, mas estou pronto para a segunda fogueira.
Os aldeãos levaram-no então até à segunda fogueira. Esta continha um feitiço com o qual Maira-Monan não contava. Mal entrara no meio da chamas, vacilou e caiu sobre os joelhos, perante as exclamações de quem assistia. Tê-lo-iam realmente derrotado?
As chamas envolveram Maira-Monan, que desapareceu numa explosão de luz brilhante, à qual se seguiu um estrondo tão violento que chegou aos céus.
Aqueles que o tinham enganado fugiram em pânico, aterrorizados com o que tinham feito, sem saberem se haviam de tapar os olhos ou os ouvidos.
No alto, a explosão chegou a um espírito chamado Tupan, que apanhou o feixe de luz cegante e transformou-o em raios. Quanto ao barulhento PUM, fez dele um trovão. Desse dia em diante, Tupan passou a ser o espírito dos trovões e dos raios.
Portanto, sempre que surge uma tempestade acompanhada de raios e trovões, é em memória de Maira-Monan. Também nos faz recordar a maior de todas as borrascas que o mundo já conheceu, quando o Criador inundou a Terra e deu aos humanos uma segunda oportunidade.
PACARI QTAMBO
A fabulosa civilização inca, com os seus templos em forma de pirâmide e a abundância de ouro, desenvolveu-se no que é hoje o Peru, estendendo depois o seu império para norte e para sul da cordilheira dos Andes. Este mito inca conta-nos de onde vieram os primeiros incas.
Pacariqtambo, que por vezes se diz Paccari Tampu, significa «o lugar de origem». Era um lugar com três cavernas - três janelas para o mundo. Da caverna do meio saíram quatro irmãos e quatro irmãs, todos envergando belas vestes e mantas de lã e trazendo sumptuosos recipientes de ouro artisticamente trabalhado.
Os irmãos chamavam-se Ayar Manco, Ayar Cachi, Ayar Auca e Ayar Uchu. As quatro irmãs eram Mama Ocllo, Mama Raua, Mama Huaco e Mama Cora. Das cavernas laterais saíram as pessoas que viriam a ser os antepassados de todos os clãs do povo inça.
- Estes são os Inças, o povo eleito do Sol. São o nosso povo - disse Ayar Manco aos seus irmãos e irmãs. - Temos de os chefiar e guiá-los até uma terra onde possam viver.
Ayar Manco levava um bastão feito do mais puro ouro.
- Devemos testar todos os lugares que visitarmos com este bastão declarou. - Quando ele se afundar na terra, será aí que o nosso povo deverá instalar-se.
A jornada em busca de uma terra que os acolhesse levou vários anos e, com o tempo, os irmãos e irmãs foram ficando fartos de um dos elementos do seu grupo. Ayar Cachi andava sempre a exibir a sua enorme força, até que, um dia, foi longe de mais.
Tinham subido até ao cimo da montanha de Huanacauri e olhavam para a terra que se estendia diante deles.
- Algures além há um lugar onde o nosso povo poderá viver e construir uma civilização poderosa - observou Ayar Manco.
- A paisagem é linda - salientou Mama Ocllo, a mais velha das irmãs.
- Mas sempre poderá sofrer algumas melhorias - declarou Ayar Cachi, juntando algumas das pedras soltas que juncavam o chão, a seus pés.
Enfiando as pedras na sua fisga, começou a atirá-las para os campos em baixo... com uma força tal que estas abriram enormes cavidades e sulcos na paisagem, criando colinas e ravinas onde antes a terra era plana.
- Como vêem, até a Terra se verga à minha vontade! - gabou-se Ayar Cachi.
- Ele está a ficar demasiado poderoso para o seu próprio bem observou Mama Ocllo mais para o fim desse mesmo dia.
- Deve ser reprimido antes que dirija a sua força contra o nosso povo disse Ayar Manco. - Temos o dever de proteger os filhos do Sol.
- Mesmo que lhe peçamos, ele não mudará - observou Mama Raua. Portanto, como poderemos pensar em silenciá-lo?
- Atribuir-lhe-emos uma missão importante - sugeriu Ayar Manco, começando a engendrar uma ideia. - Algo a que ele não se possa negar. Pedir-lhe-emos que volte à grande abertura de onde saímos e traga o lama sagrado para nos ajudar na nossa jornada.
- E depois? - quis saber Ayar Auca.
- Depois, uma vez estando ele lá dentro, emparedamo-lo dentro da caverna, de onde nunca mais poderá sair para nos aborrecer! - exclamou Ayar Manco.
- Um plano excelente - concordou Mama Cora.
Os irmãos e as irmãs de Ayar Cachi foram, pois, ter com ele.
- Temos uma tarefa importante e parece-nos que tu és o mais indicado para a executar - disse-lhe Ayar Manco, pedindo em seguida ao irmão que fosse buscar o lama à caverna.
- Porque hei-de ser eu? - perguntou Ayar Cachi.
- Porque és o mais rápido - respondeu uma irmã.
- E o mais apto - acrescentou um irmão.
- Além disso, não te cansas com tanta rapidez - lembrou a outra irmã.
- E certo que sou mais rápido e capaz, e tenho mais energia que vocês todos - declarou Ayar Cachi. - Daí que não me custe perceber porque querem que seja eu a ir buscar o lama sagrado à caverna. Assim farei.
Tal como Ayar Manco previra, a vaidade do irmão levara-o a cair na armadilha.
Ayar Cachi, sem saber que estava a ser seguido, voltou às cavernas de Pacariqtambo. Mal entrou na do meio, de onde os oito tinham saído para o mundo, fecharam-lhe a abertura.
- Que está a acontecer? - gritou Ayar Cachi, batendo com os punhos enormes contra a parede da caverna que, no entanto, se manteve sólida e fez com que os seus gritos lhe ecoassem nos ouvidos.
- Deixem-me sair! - implorou. - Deixem-me sair!
Restavam agora três irmãos para prosseguir a jornada juntamente com as quatro irmãs.
Ayar Uchu fez uma declaração:
- Resolvi ficar aqui em Huanacauri, o lugar de onde o nosso irmão Ayar Cachi atirou as pedras.
As irmãs imploraram-lhe que as acompanhasse.
- Tens deveres para connosco e o povo Inca - declarou Mama Raua.
- Precisamos de ti - lembrou Mama Huaco.
- Vocês, precisarem de mim, Mama Huaco? - admirou-se Ayar Uchu.
- Creio que não. Tu és uma guerreira muito mais valorosa do que eu alguma vez poderei ser. Passarão bem sem mim. Já decidi.
- Que irás fazer? - perguntou Mama Cora.
- Ficarei a vigiar o nosso povo aqui deste lugar alto... para sempre respondeu ele.
No preciso momento em que proferiu essas palavras, Ayar Uchu transformou-se em pedra.
Ayar Manco pousou as mãos na pedra.
- Adeus, irmão - disse, afastando-se em seguida.
O povo eleito construiu um santuário em redor da pedra, tornando aquele lugar sagrado.
Há quem diga que Ayar Cachi arranjou maneira de se escapulir da caverna de Pacariqtambo e foi para junto de Ayar Uchu, no topo da montanha, transformando-se, também ele, numa pedra. Seja como for, apenas dois dos quatro irmãos, Ayar Manco e Ayar Auca, prosseguiram viagem.
- Estou a ficar farto de tanto viajar - desabafou Ayar Auca certa manhã. Será que alguma vez encontraremos um sítio para os incas se instalarem?
- Temos de continuar a procurar e acabaremos por encontrar retorquiram as irmãs.
- Mas eu viajo melhor sozinho - insistiu Ayar Auca.
Dito isto, despediu-se do irmão Ayar Manco e das irmãs Mama Ocllo, Mama Raua, Mama Huaco e Mama Cora, seguindo depois o seu próprio caminho. Contam que acabou por ficar nos arredores de uma cidade e, tal como os irmãos, transformou-se numa pedra sagrada.
Ayar Manco passou a ser, portanto, o único irmão presente. Foi ele que acompanhou as irmãs até ao vale de Cuzco, quem tocou com o bastão sagrado no chão para testar a riqueza do solo... que era tão grande que o fez desaparecer terra dentro.
- Aqui, as colheitas serão abundantes - declarou Mama Ocllo. - É um lugar fértil.
- Será neste lugar que o nosso povo se instalará e prosperará - anunciou Ayar Manco.
- Mas já aqui estão pessoas a viver - lembrou Mama Cora.
- Nesse caso temos de as mandar embora - disse Mama Ocllo, que já dera à luz um filho de Ayar Manco, Sinchi Roca. - Os incas são o povo eleito do Sol. Precisam desta terra para colher o seu sustento. Aqueles que já aqui estão devem abdicar dela em seu favor.
Não tardou que a notícia da chegada do povo eleito, conduzido por Ayar Manco e as suas quatro irmãs, se espalhasse. O povo do vale lutou longa e corajosamente para defender a sua terra, que era tudo o que possuíam.
- Lutam com bravura - comentou Ayar Manco -, e são muitos. Como é que poderemos derrotá-los?
- Através do medo - retorquiu Mama Huaco.
Ayar Uchu tivera razão. Mama Huaco era uma guerreira muito valorosa. Quando o inimigo voltou a atacar, pegou nas suas bolas - pedras amarradas umas às outras - e atirou-as, rodopiando, contra o seu alvo. As bolas enrolaram-se em volta do pescoço do homem, matando-o antes de tocar no chão.
Mama Huaco arrancou os pulmões ao homem caído no chão e soprou-lhes para dentro, inflando-os como se fossem balões. As pessoas que habitavam o vale ficaram tão horrorizadas com aquela visão que fugiram com quantas pernas tinham. O vale de Cuzco foi conquistado para o povo INca graças a uma das quatro irmãs da caverna do meio de Pacariqtambo.
A partir dessa altura, Ayar Manco passou a ser conhecido por Manco Capac, o fundador dos Inças. Diz-se que ele e suas irmãs construíram as primeiras casas dos incas no vale, com as suas próprias mãos.
A seu tempo, Manco Capac transformou-se em pedra, tal como acontecera com seus irmãos. Sinchi Roca, seu filho, veio a ser o segundo imperador dos incas - o povo eleito do Sol.
A JORNADA DA CHALEIRA
Segundo os Inças El Nino controlava o vento, o tempo, o oceano e as suas criaturas. ElNino era Todo-Poderoso e zangava-se com facilidade. Este mito oriundo do Peru mostra como, por vezes, El Nino também sabia ser generoso.
Pouco depois da conquista espanhola, uma zona do Peru, até então governada pelos poderosos Inças, era habitada não só por seres humanos como também por gnomos... pelo menos assim conta a história.
Os ditos gnomos usavam roupas muito parecidas com as dos incas que tinham governado o império; no entanto, apresentavam-se com os cabelos compridos e desgrenhados, assim como barbas enormes... melhor dizendo, barbas enormes para gnomos. A barba de um gnomo inca mal cobriria a ponta de um polegar nosso! E, tal como a maioria dos gnomos do mundo, também estes adoravam andar sempre a pregar partidas.
Certo dia, num lugar chamado Callo, sobranceiro ao mar, um pequeno grupo de gnomos resolveu que era tempo de pôr um ponto final na situação.
- Nós, gnomos inças, adoramos divertir-nos - declarou um -, o que deixou de acontecer desde que os Espanhóis passaram a governar-nos. Sugiro que partamos para outro lado qualquer.
- Um belo sentimento, sem dúvida - comentou um segundo. - Mas para onde, exactamente, iríamos?
- Ora, para além, claro! - respondeu um terceiro, apontando na direcção do horizonte.
- O que é que fica além? - perguntou um quarto.
- Sabe-se lá! - respondeu um quinto. - Seria divertido descobrir.
- Mas como é que chegaremos lá, seja lá onde for? - inquiriu um sexto.
- Pediremos ajuda ao Pelicano Castanho - asseverou o sétimo gnomo. Como já devem ter depreendido, se têm estado atentos, este grupo específico devia ser formado por sete elementos.
Ora bem, o Pelicano Castanho era um mensageiro de El Nino, senhor do tempo, vento e oceano. Cabia-lhe a tarefa de informá-lo sobre se as pessoas se tinham portado bem e mereciam a sua bondade, ou se haviam sido más e precisavam de ser castigadas.
O Pelicano Castanho gostava muito mais dos gnomos do que dos invasores espanhóis; no entanto, não tinha tempo para os transportar consigo até ao outro lado do horizonte.
- Descansem que hei-de levar-vos até Machu-Pichu - garantiu-lhes a ave.
- Mas porque teremos nós de ir para lá? - quis saber um dos gnomos. Um outro deu-lhe uma cotovelada de lado.
- Chiu! - sibilou. - Ainda fazes com que o Pelicano Castanho não nos leve a parte nenhuma.
- Bem visto - sussurrou um outro, apesar de também não perceber por que razão a ave desejava levá-los para Machu-Pichu, uma cidade inca que ficava no alto da cordilheira dos Andes. Em tempos fora uma cidade cheia de vida e cor, mas depois da conquista ficara vazia e em ruínas.
- És muito generoso em quereres ajudar-nos, mas porquê Machu-Pichu? perguntou um quarto gnomo inça.
- Vão ver - respondeu o Pelicano Castanho. - Subam todos para o meu dorso e agarrem-se bem... mas cuidado com as minhas penas.
Assim, os sete gnomos treparam para cima do Pelicano Castanho, ali se acotovelando e empurrando uns aos outros para tentarem ficar com um bom campo de visão sem se aproximarem demasiado das pontas. Nenhum deles tinha vontade de cair quando levantassem voo e seguissem viagem.
Aterraram em cima de um dos muros em ruínas de Machu-Pichu.
- Cá estamos - declarou o Pelicano Castanho. - Agora tenho de me ir embora. Façam boa viagem!
- Mas porque nos trouxeste aqui? - perguntou-lhe um dos gnomos estupefactos, ainda ligeiramente entontecido devido ao voo no dorso da ave.
- Para que arranjassem um barco - respondeu-lhe o Pelicano Castanho ao afastar-se céu fora. - Não podem fazer-se ao mar sem uma embarcação.
- Ele deve ser completamente louco - declarou um dos gnomos.
- Completamente - concordou um segundo.
- Sem dúvida - reforçou um terceiro.
- Como é que conseguiremos arranjar um barco num sítio como este? perguntou um quarto.
- Olhem! - exclamou um quinto.
- Que é? - quis saber um sexto.
- Além! - respondeu o sétimo.
Acocoraram-se todos em redor de um objecto que estava encostado a uma parede próxima.
- É um barco! - exclamou um alegremente.
- Afinal o Pelicano Castanho foi muito bom para nós! - exclamou outro.
- Onde estão as velas? - inquiriu um terceiro.
- Boa pergunta! - declarou um quarto.
- Podemos nós improvisá-las - sugeriu um quinto.
- Têm a certeza de que é um barco? - perguntou um sexto.
- Para os gnomos é um barco - disse o sétimo -, e para os humanos é uma chaleira.
Tinha razão. Feita argila, aquela chaleira era um misto de caldeira antiga e de bule, normalmente utilizada para preparar chá de semente de papoila. Só era preciso arranjar sementes de papoila e água a ferver. Mas os sete gnomos incas não estavam ali, de modo algum, para fazer chá. Deitaram mãos, portanto, à tarefa de transformarem a chaleira num barco!
Quando chegaram ao fim, El Nino mandou o grande Pássaro Prateado ter com eles, sulcando os ares. Os gnomos tinham acabado de subir a bordo do seu navio
- ao qual tinham posto o nome de Chaleira - quando a ave fez voo rasante e enfiou o bico na asa, levando-os até à praia.
Aí chegados, encontraram mais ajuda. Um peixe prateado mágico rebocou-os até ao oceano Pacífico. Foi aí que a sua viagem começou a sério. El Nino deu-lhes uma pequena ajuda ao soprar um vento suave que os levou em direcção ao horizonte.
Até que, um dia, estiveram quase a ser vítimas de uma desgraça. Deram consigo a passar em frente das ilhas das Iguanas, onde os lagartos-dragões viviam.
- Se nos aproximarmos de mais, a Chaleira esmagar-se-á contra as rochas advertiu um dos gnomos.
- Se nos chegarmos de mais, daremos à costa - declarou um segundo.
- Se nos aproximarmos de mais, serviremos de almoço aos dragões - alertou um terceiro.
- Que havemos de fazer? - perguntou um quarto em tom lamuriento.
- Que tal soprarmos para a nossa própria vela? - sugeriu um quinto.
- Que ideia disparatada! - exclamou um sexto.
- Cala a boa e sopra - ordenou o sétimo.
Assim fizeram; porém, por mais que se esforçassem por soprar para a vela a fim de o barco se afastar da costa, mais este era atraído para terra.
Como se a situação não fosse já suficientemente perigosa, a minúscula embarcação despertou a atenção de uma das Iguanas, levando-a a descer desajeitadamente pelas rochas. A babar-se com a perspectiva de ter sete gnomos para o almoço, a criatura abriu as maxilas e, como acontece com a maioria dos dragões, deixou escapar uma torrente de chamas e vento quente.
Felizmente para os nossos viajantes, as chamas não chegaram ao barco, mas o vento quente sim. Inflou-lhe a vela e afastou-o da costa, lançando-o de novo para o mar. A Chaleira foi apanhada por uma corrente e continuou a sua jornada em segurança.
Os sete gnomos incas viveram muitas aventuras na sua chaleira transformada em barco... Houve uma altura, até, em que foram apanhados por uma tempestade terrível. Dia após dia, ondas enormes esmagaram-se contra a Chaleira, atirando-a ao ar para depois a estatelar no mar... até que, por fim, o mau tempo passou.
- Livra! - exclamou um.
- Desta vez foi por pouco - observou outro.
- Convenci-me de que nos afundaríamos - confessou um terceiro.
- A Chaleira abriu uma racha - informou um quarto.
- Está a meter água - assustou-se um quinto.
- Salve-se quem puder! - gritou o sexto.
- Nenhum de nós sabe nadar! - lembrou o sétimo.
- Não entrem em pânico - aconselhou um golfinho que passava, atirando a Chaleira, com os sete gnomos dentro, para cima do dorso.
- Estamos a ser raptados! - gritaram os gnomos ao mesmo tempo.
- Claro que não estão - disse o golfinho. Convém não esquecer que El Nino controlava todas as criaturas que habitavam os oceanos. - Estou apenas a dar-vos uma boleia.
Os gnomos ficaram agradecidos. De verdade. O pior é que os golfinhos têm o costume de se divertir andando aos pulos, descrevendo arcos graciosos por puro prazer, de modo que, sempre que tal acontecia, a Chaleira, com o seu carregamento, não parava um instante nas costas da criatura.
Por fim, os gnomos resolveram o problema amarrando a sua embarcação ao pescoço do golfinho - melhor dizendo, ao sítio onde este estaria se o tivesse até alcançarem terra firme.
- Chegámos! - exclamaram os gnomos, saltando alegremente para cima da areia. - Chegámos!
Não tinham, no entanto, ideia do sítio aonde tinham ido parar.
Na verdade, segundo reza o mito, o vento, as ondas e as criaturas marinhas de El Nino tinham levado os sete gnomos incas até à Austrália, onde viveram o resto dos seus dias contentes e felizes!
ASARE
Há um velho mito dos Xerentes que fala de um grupo de sete irmãos que desgraçaram os pais e tiveram de abandonar a segurança da aldeia onde viviam. O mais novo deles chamava-se Asare e teve muitas aventuras. Esta foi apenas uma delas.
- Tenta manter-te junto de nós - disse o mais velho. - Temos um longo caminho a percorrer, Asare.
- Estou cheio de sede - protestou o rapaz. Caminhavam há muitas horas e sentia a garganta seca.
- Esse problema é simples de resolver - declarou o mais velho. - Olha. Apontou para um cacho de cocos que se via no alto de um coqueiro, frutos que, como se sabe, contêm um suco adocicado.
Os irmãos foram imediatamente procurar um pau suficientemente comprido para conseguir atirar os cocos ao chão. Correram de um lado para o outro mas, por fim, quem acabou por achar um ramo partido no chão foi Asare.
- Encontrei um - gritou, entusiasmado. Pousou o seu arco de caça no chão e entregou o ramo ao irmão mais velho.
Este serviu-se do pau para arrancar os cocos do coqueiro com um sonoro TOQUE, ao qual se seguiu outro TOQUE quando caíram no chão.
Os irmãos acercaram-se rapidamente e abriram os cocos a fim de dar o seu suco a beber ao irmão mais novo.
Asare bebeu o suco de todos os cocos; no entanto, a sua sede não abrandou, o que levou os irmãos a procurar outro coqueiro e a deitar abaixo novo cacho de cocos... Ainda assim continuou sedento.
- Não é possível que continues com sede! - protestou um dos irmãos, furioso.
- O certo é que estou - asseverou Asare, aborrecido por gritarem com ele.
- Não te preocupes - disse o mais velho. - Por baixo da terra, no fundo daquele buraco, deve haver água. Escavaremos um poço.
Todos ficaram entusiasmados com a ideia. Um dos aspectos que mais lhes agradavam depois de terem saído da aldeia era o facto de os anciãos terem deixado de lhes dar ordens.
Assim, os irmãos desceram pelo buraco e começaram a escavar, primeiro com as mãos, depois com paus. A certa altura, ouviu-se um sonoro UUUUCHE e a água começou a jorrar do chão.
Asare bebeu até quase rebentar; porém, a água continuou a brotar do solo, formando o primeiro rio... que, mais tarde, se transformou num lago e, posteriormente, deu origem aos oceanos.
No princípio, os irmãos ficaram estupefactos com a visão do rio, mas depois o mais velho sorriu, tomando consciência das suas vantagens.
- A partir de agora, sempre que tiverem sede, só têm de beber daquelas águas - declarou.
Asare, no entanto, manteve-se sério.
- Deixei o meu arco no sítio onde encontrei o galho com que deitei os cocos ao chão - resmungou. - E isso fica no outro lado do rio.
- Nesse caso terás de fazer um arco novo para ti - ripostou-lhe outro dos seis irmãos.
- Não - disse Asare. - Aquele arco tem-me dado muita sorte na caça.
- Lá isso é verdade - concordou o mais velho. - Realmente já mataste muitos lagartos ao longo do caminho.
Asare voltou a resmungar. Os lagartos deviam ter sido levados pela água quando o rio se formara.
- É provável que os lagartos se tenham perdido - disse, ciente de que tal significava uma refeição a menos para os irmãos, na sua jornada -, mas ao menos poderei recuperar o meu arco.
Mal acabou de falar, saltou para dentro de água e começou a avançar para a outra margem do rio. Nenhum dos irmãos se atreveu a segui-lo.
- É demasiado perigoso - observou um.
- Ele ainda se mata - disse outro.
Asare, no entanto, subira já para terra firme, no outro lado, e corria em busca do arco que, para sua felicidade, ainda se encontrava em terra seca.
Voltar pelo mesmo caminho já não foi tão fácil para Asare. Por um lado, levava uma das mãos ocupadas a segurar no arco e, por outro, quanto mais água brotava do buraco que ele e os irmãos tinham escavado, mais forte se tornava a corrente do rio.
Asare fez um esforço desesperado para se agarrar a um tronco que passava perto, flutuando, o que o obrigou a largar o arco... o pior é que não se tratava de nenhum tronco... mas sim de um crocodilo.
Asare não teve culpa do engano, pois nunca antes vira um crocodilo, e isto porque até então nunca os houvera, tal como ainda não existiam nem rios nem oceanos.
Tratava-se do primeiro crocodilo a aparecer na face da Terra. Na verdade, antes de os irmãos escavarem o buraco, ele fora um dos lagartos caçados por Asare, mas, ao ser arrastado pela água, transformara-se num crocodilo. Não apresentava a menor semelhança com um tronco, pois tinha uns olhos malévolos e várias fiadas de dentes muito aguçados.
- Larga-me! - ordenou o crocodilo.
Asare obedeceu, mas teve dificuldade em manter a cabeça fora de água.
- Deixe-me subir para as suas costas, senhor do nariz feio - pediu -, e leve-me até à outra margem do rio.
- Não - declarou o crocodilo, começando a abrir e a fechar as mandíbulas.
Asare ficou tão assustado com aquela reacção que arranjou novas forças para nadar através da corrente forte e chegar ao outro lado.
Os irmãos não se viam em parte nenhuma. Como tinham visto o arco de Asare a flutuar rio abaixo, presumiram que este se afogara.
Asare viu-se de novo em terra seca, mas depressa descobriu que os seus problemas não tinham acabado. Os crocodilos, ao contrário dos troncos, não só possuíam olhos malévolos e dentes afiados como também se deslocavam sobre pernas... e aquele, em particular, estava a servir-se das suas para ir atrás de Asare, floresta dentro.
- Posso ter um nariz feio mas é comprido e seguirá o teu rasto para onde fores, pequeno humano! - gritou-lhe o crocodilo, não de muito longe.
Asare ouviu, no cimo, bem ao alto, o toque-toque dos pica-paus a bicarem numa árvore. Pediu-lhes ajuda e as aves cobriram-no de pedacinhos de casca da cabeça aos pés.
Desse modo, Asare não só ficou parecido com um monstro coberto de escamas - algo semelhante a um crocodilo de pé - como também viu o seu cheiro disfarçado pelo odor da madeira.
Quando o crocodilo se aproximou, esmagando a vegetação à sua passagem, não o reconheceu e perguntou-lhe:
- Viste passar por aqui algum humano?
- Foi por além - respondeu-lhe Asare, apontando para o interior da floresta. Os pica-paus também disseram que sim com a cabeça.
O crocodilo soltou um grunhido e seguiu o rasto falso.
Asare agradeceu aos pica-paus, livrou-se do disfarce e voltou para junto do rio. Acabara de entrar na água quando deparou com outro crocodilo. Nem sequer pensou em lhe pedir boleia até à outra margem, preferiu contorná-lo a nadar; no entanto, de nada serviu, pois o bicho foi atrás dele pela floresta dentro.
Asare seguiu, mais uma vez, em direcção à floresta e teve a impressão de escutar vozes mais adiante. Seriam os irmãos? Teriam atravessado o rio para vir em seu socorro? Estaria, finalmente, livre de perigo? Os irmãos tinham arcos e poderiam meter medo ao crocodilo. Mas não teve sorte; era apenas um grupo de macacos entretidos a comer frutos e a tagarelar sobre os acontecimentos do dia.
- Imploro-vos que me escondam - pediu o rapaz. - Estou a ser perseguido por uma criatura do rio que tem muitos dentes afiados.
Ao avistaram Asare, os macacos calaram-se e ficaram a olhar para ele.
Um deles apontou para as cascas de jatobá que tinham estado a comer, aglomeradas num monte enorme, em frente.
Asare mal tivera tempo de se esconder de baixo do monte quando o segundo crocodilo apareceu na clareira.
- Viram algum rapaz? - perguntou-lhes o bicho.
- És uma criatura muito esquisita - observou um dos macacos, não conseguindo deixar de comentar o aspecto do crocodilo.
- Vi muitos rapazes - respondeu outro.
- Para dizer a verdade... - ia a dizer o terceiro macaco, prestes a revelar ao crocodilo que Asare estava escondido sob o monte de cascas, pois os macacos não têm jeito nenhum para guardar segredos. Simplesmente não conseguem.
Felizmente para Asare, um outro macaco deu uma palmada na boca do que estava prestes a falar, e o crocodilo seguiu o seu caminho, metendo-se pela vegetação.
Asare saiu do seu esconderijo, agradeceu aos macacos e atravessou o rio a nado. Conseguiu, finalmente, alcançar os irmãos, que ficaram muito espantados e contentes por verem-no vivo.
Tomaram banho, juntos, no oceano recém-formado. Ficaram tão limpos e reluzentes que agora são sete estrelas a brilhar no céu, sendo conhecidas pelos Sete Irmãos.
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