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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASTELO ENCANTADO / Edith Nesbit
O CASTELO ENCANTADO / Edith Nesbit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CASTELO ENCANTADO

 

As férias

Eram três: Jerry, Jimmy e Kathleen. Jerry era o diminutivo de Gerald; o nome de Jimmy era James. Quanto a Kathleen, se os irmãos não estavam zangados com ela, chamavam-lhe Cathy. Frequentavam a escola, numa pequena cidade do Oeste da Inglaterra.

Encontravam-se aos sábados e domingos em casa de uma simpática solteirona, onde era impossível brincarem. Conhecem o género de casa? Daquelas onde quase não se consegue falar quanto mais brincar.

Assim, eles viviam à espera das férias, quando iam para casa e passavam juntos o dia inteiro, numa casa onde podiam conversar e brincar e onde as florestas do Hampshire estavam cheias de coisas interessantes para ver e fazer. Além disso, também lá estaria a prima Betty. A escola onde ela andava tinha fechado antes da deles e ela regressara a casa primeiro. Logo que chegou, apanhou sarampo, o que impediu os três irmãos de voltarem para casa.

Calculam como eles ficaram Sete semanas em casa da Miss Harvey, era impensável, e foi o que disseram aos pais quando lhes escreveram. Estes ficaram muito espantados pois pensavam que era óptimo terem o apoio de Miss Harvey.

Finalmente, após vários telegramas e cartas, ficou combinado que os rapazes iriam para a escola da irmã, onde só se encontrava a professora de francês.

- Vai ser melhor do que ficar em casa de Miss Harvey - decidiram os irmãos em uníssono.

- Temos de imaginar qualquer coisa para fazermos nas férias - disse Kathleen, depois do chá e de ter arrumado nas gavetas as roupas dos irmãos, o que a fez sentir-se muito crescida. - Podíamos escrever um livro.

- Não eras capaz - disse Jimmy.

- Eu não disse eu - respondeu Kathleen, aborrecida. - Disse nós.

- É demasiado cansativo - disse Gerald.

- Se escrevêssemos um livro - insistiu Kathleen -, acerca do que as escolas são na realidade, as pessoas certamente o liam e até nos iam achar inteligentes.

- Expulsavam-nos da escola, queres tu dizer - respondeu Gerald. - Temos é de arranjar brincadeiras lá fora, por exemplo, polícias e ladrões. Era bom arranjarmos uma gruta, pormos lá os alimentos e fazermos aí as nossas refeições.

- Não há grutas - disse Jimmy, que gostava de contrariar - e vais ver que a querida "Mamselle" não nos deixa sair sozinhos.

- Veremos - disse Gerald. - Vou falar-lhe como um pai.

- Então, que tal? - perguntaram os outros quando ele regressou.

- Está tudo bem - respondeu Gerald, com indiferença. - Eu tinha-vos dito que conseguia. O engenho

da juventude venceu a razão da preceptora estrangeira, a qual, quando era jovem, deve ter sido a beldade da sua aldeia.

- Não acredito que tenha sido. É tão carrancuda!

- disse Kathleen.

- És um farsante, não és? - perguntou Jimmy.

- Não, sou um... como é que se diz? É parecido com embaixador. Já sei, diplomata! De qualquer modo, temos o dia por nossa conta e havemos de encontrar uma gruta ou eu não me chamo Gerald.

A High Street estava deserta e inundada de sol; a rua estava seca mas as folhas das árvores, refrescadas pela chuva que caíra durante a noite, brilhavam ao sol como diamantes. As lindas casas antigas pareciam espreguiçar-se com o calor.

- Mas há mesmo bosques? - perguntou Kathleen, depois de passarem o largo do mercado.

- Mesmo que não haja - disse Gerald, sonhador -, havemos de encontrar qualquer coisa. Um dos meus colegas da escola disse-me que o pai lhe tinha contado que, quando era rapaz, havia uma gruta ao fundo de uma ribanceira, numa azinhaga perto de Salisbury Road. Mas, como também disse que havia um castelo encantado, se calhar não há nem uma coisa nem outra.

Seguiram pela Salisbury Road, muito quente e cheia de pó, acabando por beberem uma das garrafas de refresco que levavam.

- Vamos sentar-nos e comer qualquer coisa, não acham? - perguntou Jimmy.

Sentaram-se junto à cerca e comeram as groselhas que levavam para a sobremesa.

Enquanto descansavam, Gerald encostou-se à cerca, a qual cedeu levando-o quase a cair de costas. Algo se tinha movido sob a pressão das suas costas e ouvia-se o som de qualquer coisa pesada que caía.

- Jimmy - chamou ele -, há ali um buraco. A pedra a que eu estava apoiado desapareceu!

- Bem, gostava que fosse uma gruta - disse Jimmy -, mas não deve ser.

Gerald meteu a mão no meio da vegetação que cobria a cerca.

- Não encontro nada - disse ele. - É o vazio completo.

Os outros dois puxaram para trás a vegetação e viram uma abertura na encosta.

- Vou lá entrar - disse Gerald.

- É melhor não - disse a irmã. - Imagina se há cobras!

- Não há - respondeu Gerald, inclinando-se para a frente e acendendo um fósforo. - É uma gruta, gritou ele.

Pôs um joelho em cima de uma pedra musgosa onde tinha estado sentado, trepou por ela acima e desapareceu. Nada se ouviu.

- Estás bem? - perguntou Jimmy.

- Estou. Podem vir. É melhor deixarem-se escorregar porque há uma pequena inclinação!

- Vou eu a seguir - disse Kathleen, avançando os pés em primeiro lugar, conforme o recomendado, os quais baloiçaram perigosamente no ar.

- Cuidado - disse Gerald, no escuro. - Ias-me arrancando um olho! Põe os pés para baixo e não para cima. Não vale a pena tentares voar porque aqui não há espaço.

Ajudou-a puxando-lhe os pés para baixo e segurando-a depois pelos braços. Ela ouviu o restolhar de folhas secas debaixo dos pés e ficou de pé para ajudar Jimmy, que veio de cabeça como um mergulhador.

- É uma gruta - disse Kathleen.

- Os jovens exploradores - disse Gerald, tapando a entrada da gruta com as costas -, deslumbrados com a escuridão... não viram nada!

- A escuridão não deslumbra - respondeu Jimmy.

- Era bom termos uma vela - disse Kathleen.

- Deslumbra, pois - contrariou Gerald. - Este fantástico guia, cujos olhos se habituaram à escuridão, fez uma descoberta.

- Qual? - perguntaram eles.

Estavam ambos habituados à maneira como Gerald contava as coisas mas, em momentos excitantes, preferiam que ele não demorasse tanto tempo.

- Ele não revelou o tremendo segredo aos seus fiéis seguidores até que eles juraram manter a calma!

- Está bem, mantemos a calma - disse Jimmy, impaciente.

- Então - disse Gerald, deixando o tom oratório e voltando ao normal -, há ali uma luz. Olhem!

Eles olharam e lá estava: uma claridade pálida escoava-se nas paredes escuras da gruta e uma mais brilhante, cortada por uma linha escura, mostravam que, num canto, havia luz do dia e conseguiam ver uma gruta de pedra que se prolongava por três ou quatro metros e virava subitamente à direita.

- Vitória ou morte! - clamou Gerald. - E, agora, "avançar lentamente"!

Avançaram com cuidado por entre a terra e as pedras caídas no chão da gruta.

- Uma saída - gritou ele ao contornar a esquina.

- Que maravilha - disse Kathleen, inspirando profundamente o ar fresco.

- Só vejo uma passagem - disse Jimmy, que vinha atrás.

O caminho estreito terminava num pequeno arco de pedra rodeado de fetos e plantas trepadeiras. Atravessaram-no e encontraram-se numa vala funda, ladeada de pedras cobertas de musgo e em cujas fendas cresciam ervas. As copas das árvores uniam-se no topo, filtrando a luz do sol e tornando a vala fresca e sombria. O chão estava sulcado de folhas secas. O caminho ia dar a outro arco bem mais escuro e coberto de vegetação.

- Parece a saída de um túnel de comboios - disse Jimmy.

- É a entrada do castelo encantado - disse Kathleen.

Avançaram por um caminho e pararam junto à entrada do arco.

- Há degraus a descer - disse Jimmy. Cuidadosamente foram descendo os degraus por baixo do grande arco de pedra. Quando chegaram ao último, Gerald acendeu um fósforo e viram que se encontravam no princípio de uma passagem que curvava para a esquerda.

- Parece que vamos voltar à estrada - disse Jimmy.

- Ou passar por baixo dela - disse Gerald. Descemos onze degraus.

A passagem era muito escura e eles foram andando devagar com receio de encontrar mais degraus.

- Não gosto nada disto - sussurrou Jimmy.

Nessa altura, começaram a ver alguma claridade, que se foi tornando cada vez maior, acabando por desembocar num novo arco, para além do qual puderam contemplar um espectáculo de tal beleza que os deixou mudos. Uma álea bordejada de ciprestes conduzia a um terraço de mármore que brilhava ao sol. Eles apoiaram-se na balaustrada e viram, mesmo por baixo, um lago com cisnes, uma ilha e salgueiros. À volta agrupavam-se árvores, entre elas abrunheiros, por entre as quais resplandecia o brilho branco de estátuas. à esquerda, junto a uma pequena elevação, estava um

pavilhão redondo com pilares e, à direita, uma cascata cuja água, caindo por entre pedras musgosas, se despenhava no lago. Do terraço partia uma escada que ia dar ao lago e outra para o relvado. Ao longe, onde o

bosque se adensava, veados comiam abrunhos. Era algo de belo como eles nunca tinham visto!

- Afinal, aquele rapaz da escola. - disse Gerald.

- É um castelo encantado - disse Kathleen.

- Não vejo nenhum castelo - disse Jimmy.

- Então que nome dás àquilo? - perguntou Gerald, apontando para um renque de árvores, no meio das quais sobressaíam torreões brancos recortando-se no azul do céu.

- Parece não haver ninguém por aqui - disse Kathleen. - Está tudo tão sossegado. Até parece magia! Se isto fosse uma história que estivéssemos a ler, de certeza que era um castelo encantado.

- É um castelo encantado - disse Gerald em tom sonhador.

Nunca tinham visto um jardim que se parecesse tanto com os dos contos de fadas. Passaram junto aos

veados, que se limitaram a levantar as bonitas cabeças para os olhar sem se incomodarem. Depois de atravessarem um longo relvado, passaram sob um arco de tílias e desembocaram num roseiral, rodeado de sebes bem aparadas.

- Daqui a pouco encontramos um jardineiro que nos vai perguntar o que estamos aqui a fazer. Que vamos responder-lhe? - perguntou a Kathleen enquanto cheirava uma rosa.

- Dizemos que andamos perdidos, o que até é verdade - disse Gerald.

Mas não encontraram ninguém e a sensação de encantamento foi-se tornando cada vez maior, fazendo-os quase temer o barulho dos próprios passos. Para além do roseiral, através de um arco recortado na sebe de seixos, encontrava-se um labirinto.

- Tomem nota do que vos digo - disse Gerald. O segredo do encantamento está no meio daquele labirinto. Desembainhem as vossas espadas e escutem o grito de guerra!

Estava muito calor no labirinto e o caminho para o centro era difícil de descobrir. Por várias vezes se encontraram de novo no ponto de partida.

À quarta vez que tal aconteceu, Jimmy disse:

- O que eu queria... - e calou-se subitamente. Oh! - acrescentou numa voz diferente. - Onde está a nossa comida?

Em silêncio todos se lembraram de que o cesto tinha ficado à entrada da gruta e pelos seus olhos passaram as imagens das fatias de carne assada, dos tomates, do pão com manteiga, das maçãs e até do copo por onde tinham bebido o sumo.

- Vamos voltar para trás e comer - propôs Jimmy.

- Tentemos só mais uma vez! Detesto desistir seja do que for - disse Gerald.

- Mas eu estou esfomeado! - disse Jimmy.

- E por que não disseste isso antes? - perguntou Gerald.

- Porque não estava! - disse Jimmy.

- Então também não podes estar agora. Não se fica com fome de um momento para o outro! O que é aquilo? - perguntou Gerald.

"Aquilo" era um brilho avermelhado na base da sebe de teixos: uma pequena linha que não seria notada senão por quem estivesse a olhar fixamente a sebe.

Era um fio de algodão e Gerald pegou-lhe. Uma das pontas estava atada a um dedal com vários furos e a outra.

- Não está aqui a outra ponta! - disse Gerald, triunfantemente. - É uma pista! Diz lá, quanto vale a carne assada comparada com isto? Eu sempre soube que algo de mágico havia de acontecer e... aconteceu!

- Deve ter sido o jardineiro que pôs isso aí - disse Jimmy.

- Preso a um dedal de prata? - perguntou Gerald. - Olha, há uma coroa gravada no dedal! Vamos - disse em tom baixo e urgente. - Se querem ser aventureiros, têm de aguentar. Além do mais, de certeza que, entretanto, já alguém passou na estrada e levou o saco com a comida!

Eles avançaram, seguindo a linha vermelha que iam enrolando no dedo à medida que caminhavam. E era, de facto, uma pista que os levou direitinhos ao centro do labirinto.

O fio vermelho conduziu-os, subindo dois degraus de pedra, a um relvado redondo, no meio do qual havia um relógio de sol. À volta, encostado a uma sebe baixa, havia um banco de mármore. O fio atravessava o relvado a direito e terminava numa mão morena com anéis em todos os dedos. A mão estava, naturalmente, ligada a um braço com várias pulseiras cravejadas de pedras vermelhas, azuis e verdes. O braço estava dentro de uma manga de seda cor-de-rosa bordada a ouro, a qual fazia parte de um vestido de uma senhora que, estendida no banco, parecia dormir ao sol. Cobria-a uma capa bordada de tom verde pálido e tapava-lhe a cara um véu branco com estrelas prateadas.

- É a princesa encantada - disse Gerald, impressionado. - E bem tinha dito!

- Diz antes "A Bela Adormecida" - respondeu Kathleen. - Repara nas roupas antigas, parecidas com as das damas de Maria Antonieta e que vêm nas figuras do livro de História. Ela está a dormir há centenas de anos. Gerald, tu és o mais velho, deves ser o príncipe e nós não fazíamos ideia!

- Ela não é uma verdadeira princesa - disse Jimmy.

 

Mas os outros riram-se dele, não só porque acharam que ele estava a estragar a brincadeira, como porque não estavam bem certos de quem estaria ali deitada ao sol. Cada fase da aventura - a gruta, os jardins maravilhosos, o labirinto, a pista - tinha fortalecido a sensação de magia e, tanto Kathleen como Gerald, se sentiam parte integrante do encantamento.

- Tira-lhe o véu, Jerry - sussurrou Kathleen. Se não for bonita, é porque não é a princesa.

- Tira-lho tu - disse Gerald.

Puxou-Lhe cuidadosamente o véu para trás. A princesa tinha uma cara pequena e branca, rodeada de longas tranças de cabelo preto. As faces e o nariz estavam salpicados de sardas.

- Incrível! - murmurou Kathleen. - A dormir ao sol tantos anos!

A boca não era um botão de rosa mas parecia!

- Não é linda? - perguntou Kathleen.

- Não é feia - replicou Gerald.

- Jerry - disse Kathleen com firmeza. - Tu és o mais velho!

- Pois sou - respondeu Gerald.

- Então tens de acordar a princesa!

- Ela não é uma princesa - disse Jimmy, com as mãos enfiadas nas algibeiras dos calções. - É apenas uma rapariga vestida como tal.

- Mas são vestidos compridos - insistiu Kathleen.

- Está bem! Mas olha para onde estão os pés dela. Se estivesse de pé, não era mais alta do que o Jerry!

- Vá lá, Jerry - insistiu Kathleen. - Não sejas tolo! Tens de o fazer!

- Fazer o quê? - perguntou ele, batendo com os pés um no outro.

- Dar-lhe um beijo para ela acordar, claro!

- Eu? Nem pensar! - disse Gerald.

- Alguém tem de o fazer!

- Ela agarrava-se a mim logo que acordasse! disse Gerald, ansioso.

- Eu fazia-o num instante - disse Kathleen. Mas acho que não resulta se for eu a beijá-la.

Fê-lo mas, de facto, não resultou: a princesa continuou a dormir profundamente.

- Tem de ser! - disse Kathleen, voltando-se para o outro irmão. - Olha, Jimmy, beija-a e salta logo para trás. Assim, ela não consegue agarrar-te.

- Ela não vai querer agarrá-lo - disse Gerald. Com o ar de tolo que ele tem!

- Tolo és tu! - respondeu Jimmy. - Eu não me importo de a beijar, não sou cobarde como certaspessoas! Só que, se for eu a fazê-lo, passo a ser o comandante.

- Espera aí - gritou Gerald. Talvez.

Mas, entretanto, Jimmy beijou a face pálida da princesa e ficaram os três, contendo a respiração, à espera do resultado.

E o que aconteceu foi que a princesa abriu os grandes olhos escuros, mexeu os braços, bocejou, tapando a boca com uma mão morena, e disse claramente:

- Acabaram finalmente os anos a dormir? Como cresceram as sebes de teixo! Qual de vós é o meu príncipe, o que me acordou de um tão longo sono?

- Sou eu - disse Jimmy, já que ela não parecia querer agarrar-se a ninguém.

- Meu valente salvador! - disse a princesa, estendendo a mão que Jimmy apertou.

- Mas é mesmo uma princesa verdadeira? - perguntou Jimmy.

- Claro que sou! - respondeu ela. - Quem havia de ser? Olha para a minha coroa!

Puxou o véu completamente para trás e mostrou, por baixo dele, uma coroa coberta de diamantes.

- Mas... - começou Jimmy.

- Vocês deviam saber que eu estava aqui, interrompeu ela, pensativa -, ou não teriam vindo até este lugar. Como conseguiram vencer os dragões?

Gerald não respondeu.

- Acredita mesmo em encantamentos e coisas dessas? - perguntou ele.

- Tenho de acreditar, mesmo que os outros não o façam - disse ela. - Olhem, foi aqui que piquei o dedo na agulha.

- Então, este é mesmo um castelo encantado?

- Claro que é - respondeu a princesa. - São mesmo parvos!

Ela levantou-se e o vestido cor-de-rosa caiu-Lhe em suaves ondas até aos pés.

- Eu bem disse que o vestido era muito comprido

- disse Jimmy.

- Estava no comprimento certo quando adormeci

- disse a princesa. - Deve ter esticado ao longo desta centenas de anos.

- Não consigo acreditar que seja uma verdadeira princesa - disse Jimmy -, a menos que.

- Não te incomodes - respondeu a princesa. Tanto se me dá que acredites como não! - Voltou-se para os outros e disse: - Vamos para o castelo. Gostavam de ver as minhas jóias e as coisas bonitas que eu tenho?

- Sim, mas... - respondeu Gerald, hesitando.

- Mas, o quê? - perguntou a princesa, impaciente.

- Mas... nós estamos esfomeados!

- E eu também! - gritou a princesa.

- Não comemos nada desde o pequeno-almoço.

- E já são três horas da tarde - disse a princesa, olhando para o relógio de sol. - Vocês não comem há imensas horas. Agora, pensem em mim que não como há centenas de anos! Vamos para o castelo!

- Os ratos devem ter comido tudo - disse Jimmy, tristemente.

Ele via agora que ela era uma verdadeira princesa.

- Não comeram - respondeu a princesa, alegremente. - Esqueceram-se que tudo ficou encantado e o tempo parou por muitos anos. Vamos! Um de vocês leve-me a cauda porque eu não posso mexer-me com isto tão comprido!

 

Quando Jimmy acordou a princesa e ela convidou os três irmãos a acompanhá-la ao castelo para comerem, eles sabiam que iam a um lugar onde coisas fantásticas tinham acontecido, e seguiram-na. A princesa ia à frente, com Kathleen atrás a segurar a cauda, depois Jimmy, e, por fim, Gerald. Eles sentiam-se parte de um conto de fadas mas estavam tão cansados e com tanta fome que mal olharam para o caminho que seguiam nem ligaram à beleza dos jardins que atravessavam. Sentiam-se dentro de um sonho, do qual acordaram num grande átrio cheio de armaduras e com as paredes cobertas de bandeiras; pelo chão estavam estendidas peles de animais e viam-se pesadas mesas e cadeiras de carvalho.

A princesa entrou lentamente e, voltando-se para eles, disse:

- Esperem um pouco e não digam uma palavra enquanto eu não voltar. Este castelo está sob um encantamento e não sei o que poderá acontecer se falarem.

E, segurando nas mãos a comprida saia cor-de-rosa e ouro, saiu a correr, deixando entrever uns sapatos e meias pretos.

Assim, esperaram em silêncio até que a princesa voltou, descendo lentamente a escada e empurrando para a frente as longas saias em cada degrau. Trazia nas mãos um tabuleiro de estanho que poisou ruidosamente na ponta da mesa, dando um suspiro de alívio.

- Que pesado estava! - disse ela.

Não sei com que iguarias eles se tinham entretido a sonhar, mas no tabuleiro apenas se via um pedaço de pão, outro de queijo e um jarro com água. O peso devia-se aos pratos, facas e canecas.

- Venham comer - disse a princesa, hospitaleiramente. - Só consegui arranjar pão e queijo mas, como aqui tudo está encantado, transformam-se naquilo que mais gostarem. O que preferes? - perguntou ela a Kathleen.

- Frango assado - respondeu Kathleen. Sem hesitar A princesa cortou uma fatia de pão e pô-la num prato.

- Aqui tens frango assado - disse ela. - Queres que to parta?

- Sim, se faz favor - respondeu Kathleen, recebendo um prato com uma fatia de pão seco.

- Ervilhas? - perguntou a princesa, cortando uma fatia de queijo e pondo-a ao lado do pão.

Kathleen começou a comer o pão, utilizando garfo e faca tal como se fosse frango assado, sem coragem para dizer que era tudo menos frango e ervilhas.

Os outros pediram carne assada e legumes, o que lhes foi servido, embora a ela parecesse que também não passava de pão e queijo.

- Porque será que não se transforma? - cogitava Kathleen, enquanto a princesa declarava ter escolhido pavão assado.

Pão e queijo é capaz de não ser tão bom como carne assada, frango ou pavão, mas sempre é melhor que nada, quando não se comeu nada desde o pequeno-almoço e ainda falta muito para o jantar. Todos comeram e beberam e sentiram-se muito melhor.

- Agora - disse a princesa, sacudindo as migalhas que tinham caído para a sua capa verde -, se não querem comer mais nada, podem vir ver os meus tesouros. Não querem mesmo? Então, venham comigo.

Ela levantou-se e eles seguiram-na ao longo do átrio até duas escadarias de pedra, que se juntavam no topo formando uma galeria. Por baixo das escadas estava pendurada uma tapeçaria.

- Por trás deste cortinado - disse a princesa -, está a porta para os meus aposentos privados.

Levantou-os com as duas mãos, dado serem pesados, e mostrou a pequena porta que estava escondida por trás deles.

- A chave - disse ela -, está ali pendurada.

 

E, de facto, eles puderam vê-la, pendurada num grande prego ferrugento.

- Mete-a na fechadura e dá uma volta - disse a princesa.

Gerald fez o que ela lhe indicou e a grande chave deu a volta rangendo.

- Agora - continuou a princesa -, empurrem todos com força.

Eles fizeram-no e entraram de roldão no quarto, que estava escuro. A princesa seguiu-os depois de ter deixado cair os cortinados.

O quarto em que se encontravam era pequeno e alto.

O tecto estava pintado com estrelas douradas, as paredes eram de madeira apainelada e não se via qualquer mobília.

- Este é o quarto do meu tesouro - disse a princesa.

- Mas. onde está o tesouro? - perguntou Kathleen, delicadamente.

- Não conseguem vê-lo? - perguntou a princesa.

- Não, não conseguimos - respondeu Jimmy agressivo. - Não vamos voltar à história do pão e do queijo! Duas vezes, não!

- Se não conseguem mesmo ver. - disse a princesa. - Bem, tenho de dizer as palavras mágicas. Fechem os olhos, por favor, e dêem-me a vossa palavra de honra em como não os abrem até eu dizer, bem como nunca contarão a ninguém o que viram. Dar a palavra de honra era coisa que eles nunca tinham feito mas obedeceram e fecharam os olhos com força.

- Ai, bai, mucatai, ecas, pocas, popitecas, xanga, xanga, cola, troças - disse a princesa, rapidamente, enquanto eles ouviam o roçagar da capa de seda movendo-se através do quarto, seguido de rangidos.

- Ela está a fechar-nos à chave aqui dentro - gritou Jimmy.

- Deste a tua palavra de honra - lembrou-lhe Gerald.

- Oh, depressa - suplicou Kathleen.

- Já podem olhar - disse a princesa. Eles olharam. O quarto não parecia o mesmo, apesar do estrelado tecto azul e das paredes apaineladas: tudo resplandecia em tons de branco, azul, vermelho, verde ouro e prata. Havia estantes ao longo das paredes e nelas encontravam-se taças de ouro e salvas de prata, travessas repletas de pedras preciosas, peças decorativas em ouro e prata, tiaras de diamantes, colares de rubis, fios de pérolas e esmeraldas, enfim, um inimaginável esplendor contra um fundo de veludo azul. Parecia as jóias da Coroa, na Torre de Londres, só que em muito maior quantidade.

Os três irmãos olhavam espantados todo aquele esplendor à sua volta, enquanto a princesa, com o braço esticado em atitude de comando, sorria com orgulho.

- Que coisa! - murmurou Gerald.

Ninguém falava, à espera que a princesa dissesse qualquer coisa.

- Ainda acham que a história do pão e do queijo era uma brincadeira? - perguntou ela. - Sou ou não capaz de fazer magias?

- Claro que é! - respondeu Kathleen.

- Podemos. podemos tocar nas coisas? - perguntou Gerald.

- Claro que podem mexer no que quiserem. Tudo isto é meu - disse ela generosamente. - Só não podem levar nada daqui.

Kathleen ficou quieta com uma pulseira de diamantes na mão.

- Espere - disse ela. - E o Rei e a Rainha?

- Quem? - perguntou a princesa.

- Os seus pais - disse Kathleen. - Devem ter acordado também e hão-de querer vê-la, não acha?

- Ah, os meus pais - respondeu a princesa, lentamente. - Eu cumprimentei-os quando fui buscar o pão e o queijo. Agora devem estar a jantar e não me esperam tão depressa. Olha - acrescentou ela, pondo rapidamente uma pulseira de rubis no braço de Kathleen - vê como te fica bem!

Kathleen teria ficado de boa vontade o dia inteiro a experimentar jóias e a ver-se ao espelho de prata que a princesa tirara da estante, mas os rapazes depressa se cansaram desta actividade.

- Olha - disse Gerald -, se os teus pais não estão à tua espera, vamos até lá fora brincar a qualquer coisa. Podíamos brincar aos castelos sitiados naquele labirinto, a não ser que queiras fazer mais magias!

- Esqueces-te de uma coisa - disse a princesa. Eu já sou adulta, já não brinco. E não gosto de estar sempre a fazer magias porque é muito cansativo. Além disso, vamos levar imenso tempo a pôr tudo isto nos seus lugares.

E foi o que aconteceu. Eles tinham deixado as jóias por todo o lado, mas a princesa mostrou-lhes que cada colar, anel ou pulseira tinha o seu lugar nas prateleiras forradas de veludo. Quando Kathleen estava a arrumar a última jóia viu, na prateleira ao lado, anéis, alfinetes e cadeias, bem como outros objectos cujos nomes ela desconhecia, todos de metal escuro e de feitios esquisitos.

- Que fancaria é esta? - perguntou ela.

- Fancaria! - respondeu a princesa, chocada. - São todos objectos mágicos! Quem usar esta pulseira só consegue dizer a verdade; esta cadeia torna quem a usar tão forte como dez homens; usando esta espora, o cavalo que se montar é muito mais rápido ou, se for a pé, parece as botas das sete léguas.

- E este anel? - apontou Jimmy.

- Torna-te invisível - respondeu ela.

- Olha - disse Gerald, visivelmente excitado -, podias mostrar-nos como se utiliza uma destas coisas. Por exemplo, podias realizar-nos um desejo!

A princesa não respondeu logo. E imediatamente os três irmãos puseram-se a imaginar os desejos que gostariam de ver realizados.

- Não - disse a princesa, de repente -, não dá para realizar os vossos desejos, só os meus. Mas vou mostrar-vos como o anel me torna invisível. Fechem os olhos enquanto eu faço o encanto. Contam até cin quenta e depois podem olhar. Voltam a fechá-los, contam novamente até cinquenta e eu torno a aparecer.

Gerald começou a contar, enquanto ouviam barulhos de coisas a ranger.

- Quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove, cinquenta - disse Gerald, e eles abriram os olhos.

Estavam sozinhos na sala e, tanto as jóias como a princesa, tinham desaparecido.

- Vão ver que ela saiu pela porta - disse Jimmy, verificando, no entanto, que estava fechada.

- É mesmo magia! - disse Kathleen.

Gerald e Kathleen fecharam novamente os olhos, mas Jimmy não. Não foi de propósito; apenas se esqueceu. E, quando Gerald ia em vinte, ele viu abrir-se lentamente o painel que estava por baixo da janela.

- Ora toma - disse ele para consigo. - Eu bem sabia que era um truque!

E imediatamente fechou os olhos como um rapaz bem comportado.

Ao ouvir a palavra "cinquenta", abriram-se seis olhos mas o painel estava fechado e a princesa também não estava lá.

- Desta vez não deu resultado - disse Gerald.

- É melhor contarmos outra vez - disse Kathleen.

- Eu acho que há um armário por baixo da janela e que ela está lá escondida - disse Jimmy. - Deve ser um painel secreto.

- Tu viste! És batoteiro! - disse a princesa, com a voz a soar tão junto ao ouvido que ele até deu um salto.

- Não sou nada! - respondeu Jimmy.

- Mas, afinal. o que é que. - disseram os três ao mesmo tempo, verificando que a princesa continuava a não aparecer.

- Torna-te visível, querida princesa! - pediu Kathleen. - Queres que contemos outra vez até cinquenta?

- Não sejam estúpidos - disse a voz da princesa, com irritação.

- Nós não somos estúpidos - respondeu Jimmy, também ele irritado. - Porque não voltas e acabas com a brincadeira? Sabes muito bem que estás escondida!

- Não está nada - disse Kathleen amavelmente. - Ela está invisível, percebes?

- Isso também eu ficava se me metesse dentro do armário - disse Jimmy.

- Que piada - replicou a voz sarcástica da princesa. - Vocês pensam que são muito espertos! Mas eu não me importo de fingir que não me vêem, se isso lhes dá muito gosto!

- Mas não te vemos mesmo! - disse Gerald. Não há necessidade de zangas. Se estás escondida, como diz o Jimmy, é melhor apareceres. Se estás mesmo invisível, então quebra o encanto e torna-te visível outra vez.

- É verdade que vocês não me conseguem ver? perguntou a voz da princesa em tom muito diferente.

- Afinal, porque estás tão zangada? - perguntou Gerald, calmamente. - Disseste que te tornavas invisível e conseguiste!

- Não estou invisível - disse ela.

- Estás, pois! Vê-te ao espelho!

- Não estou! Não posso estar!

- Vê-te ao espelho - repetiu Gerald.

- Vocês estão a fingir que não me vêem, não é verdade? - perguntou a princesa, com ansiedade. Digam que sim! Já brincaram o suficiente comigo!

- Damos-te a nossa palavra de honra em como continuas invisível - disse Gerald.

- Venham - disse a princesa, após um silêncio. Vou levar-vos até lá fora e podem ir embora. Estou cansada de brincar convosco.

Eles seguiram a voz até à porta e ao longo da passagem até ao átrio. Ninguém disse uma palavra e todos se sentiam mal.

- Vamos embora depressa - murmurou Jimmy, logo que chegaram ao átrio.

Mas a voz da princesa ouviu-se:

- Venham por este lado, é mais rápido! Acho-vos detestáveis e lamento ter brincado convosco. A minha mãe sempre me disse para não brincar com crianças desconhecidas!

Uma porta foi aberta abruptamente, embora não se visse a mão que a abriu, e ouviu-se a voz da princesa:

- Saiam por aqui!

Foram dar a uma pequena sala com espelhos altos e estreitos entre as janelas igualmente altas e estreitas.

- Adeus - disse Gerald. - Obrigado pelo tempo agradável que passámos contigo. Vamos separar-nos amigos - acrescentou ele estendendo-lhe a mão.

Uma mão invisível pousou lentamente na dele e apertou-a.

- Agora - disse ele -, vais olhar para o espelho e verificar que não somos mentirosos.

E levou a princesa até um dos espelhos, virando-a de frente para ele.

- Agora, olha para ti própria!

Fez-se um silêncio subitamente rasgado por um grito de desespero.

- Oh, não! Estou mesmo invisível! Que vou eu fazer?

- Tira o anel - disse Kathleen, muito prática.

- Não posso - gritou a princesa. - Não sai! E não tem nada a ver com o anel. Os anéis não tornam as pessoas invisíveis!

- Mas tu disseste que aquele tornava e tornou, disse Kathleen.

- Não tornou nada - disse a princesa. - Eu estava a fingir que tinha poderes mágicos. Limitei-me a esconder-me no armário secreto e... oh! Que vou eu fazer agora?

- Fingir? - disse Gerald, lentamente. - Mas tu tens mesmo poderes mágicos: as jóias invisíveis e tu própria que ficaste invisível!

- Isso é só uma mola secreta que faz os painéis virarem. Que vou eu fazer agora? - lamentou-se ela.

Kathleen dirigiu-se a ela e abraçou um corpo vestido de seda cor-de-rosa e que ela não via. Braços invisíveis apertaram-na, uma cara invisível encostou-se à dela e lágrimas invisíveis correram por entre ambas.

- Não chores, minha querida - disse ela -, eu vou dizer ao Rei e à Rainha.

- A quem? - perguntou a princesa.

- Ao teu pai e à tua mãe - disse Kathleen.

- Não faças troça de mim! - disse a pobre princesa. - Sabes bem que isso também era a brincar!

- Tal como a história do pão e do queijo - disse Jimmy, triunfante. - Eu sabia!

- Mas. e o teu vestido, e o sono no labirinto, e.

- Eu vesti-me assim para me entreter porque todos tinham ido para a feira. Deixei a pista para parecer mais real. Comecei por fingir que era uma fada mas, quando vos ouvi a falar no labirinto, pensei que era mais divertido fazer de "Bela Adormecida". E agora tornei-me invisível! E nunca mais vou voltar ao normal, sei que não vou! É castigo por eu ter mentido, mas eu nunca pensei que vocês acreditassem completamente em tudo.

- Mas, se não és uma princesa, afinal quem és? perguntou Kathleen, continuando a abraçá-la.

- Eu. a minha tia vive aqui - disse a princesa invisível -, e deve estar quase a voltar. Que vou eu fazer?

- Talvez ela saiba como desfazer o encanto!

- Que disparate - respondeu ela. - A minha tia não acredita em coisas destas e ficava aborrecida. Nem me atrevo a que ela me veja assim nem que saiba que vocês estiveram aqui! Ficava furiosa.

O maravilhoso castelo encantado em que os três irmãos tinham acreditado parecia agora um sonho longínquo, do qual apenas restara a princesa invisível. E até isso era um grande problema.

- Eu só disse aquilo - lamentou-se a voz - e. resultou! Quem me dera nunca ter brincado com magias nem com nada!

- Não digas isso - disse Gerald, de modo amigável. - Vamos até ao jardim, ao pé do lago, está lá

muito mais fresco e vamos pensar na maneira de resolver o assunto. Está bem assim?

- Esperem - gritou subitamente Kathleen. - A fivela: serve para anular os outros encantamentos!

- Não serve, não - murmurou a voz triste. - Eu só disse que servia.

- Também só disseste em relação ao anel - respondeu Gerald. - Vamos tentar!

- Tu não, vou eu - disse a voz. - Vão para o Templo de Flora, junto ao lago. Eu vou voltar à sala das jóias e, assim, a minha tia não vos vê.

- E a ti também não, de certeza! - disse Jimmy.

- Não continues a irritá-la - disse Gerald. Onde é o Templo de Flora?

- Descem aqueles degraus - explicou a voz - e seguem o caminho que atravessa uma moita com arbustos. Não há que enganar. O Templo é de mármore branco e, lá dentro, está a estátua da deusa.

Os três irmãos dirigiram-se ao Templo de Flora, seguindo o caminho indicado, e sentaram-se à sua sombra. Tinha arcos a toda a volta, excepto por trás da estátua, e lá dentro estava confortavelmente fresco.

Ainda lá não estavam há cinco minutos, quando ouviram distintamente o barulho de pés a correr no caminho e uma sombra escura projectou-se no chão de mármore branco.

- Pelo menos, a tua sombra não é invisível! - disse Jimmy.

- Quero lá saber da minha sombra! - replicou a voz da princesa. - Deixámos a chave do lado de dentro da porta, que se fechou com o vento, e agora não se pode lá entrar!

Fez-se um silêncio, que Gerald quebrou dizendo em tom prático:

- Senta-te, princesa, e vamos discutir o assunto!

- Bem gostava - disse Jimmy -, que acordássemos e verificássemos que tudo isto não passava de um sonho.

- Não temos essa sorte! - disse a voz.

- Bem - disse Gerald -, em primeiro lugar, como te chamas? E, se não és a princesa, afinal quem és?

- Eu sou - disse a voz, entrecortada com soluços -, a sobrinha da governante do castelo e chamo-me Mabel Prowse.

- Tal e qual como eu pensei - disse Jimmy, sem ponta de verdade, já que nada tinha levado a adivinhar tal coisa.

Os outros mantiveram-se calados e com as ideias completamente baralhadas.

- Mas, de qualquer maneira - disse Gerald -, tu vives aqui.

- Eu vivo aqui - respondeu a voz, com uma entoação de desespero -, mas de que serve isso se estou invisível?

Por artes mágicas

Os leitores que já tiveram uma companhia invisível sabem bem como isso é incómodo. E, por muito convencidos que estejam de que tal companhia é mesmo invisível, de certeza que pensam, de vez em quando, que estão a sonhar! E foi isto que Gerald, Kathleen e Jimmy sentiram, sentados no Templo de Flora, olhando, através dos seus arcos, para o parque ensolarado e ouvindo a voz da princesa encantada, que até nem era uma princesa mas Mabel Prowse, a sobrinha da governante e que, como disse Jimmy, "estava suficientemente encantada".

- Não vale a pena discutirmos nada - disse a voz, vinda agora de um espaço entre dois pilares. - Nunca imaginei que acontecesse uma coisa destas.

- E não podemos ajudar-te em nada? - perguntou Gerald. - Se não pudermos, então penso que é melhor irmos andando.

- Também acho - disse Jimmy -, até porque eu quero lanchar

- Lanchar! - disse Mabel, furiosa. - Quer dizer que vocês se vão embora por causa do lanche e deixam-me aqui sozinha, depois de me terem metido num sarilho destes?

- És a princesa mais antipática que eu conheci.

- começou Gerald a dizer.

- Não a provoques - interrompeu-o Kathleen. Pensa como deve ser horrível estar invisível!

- Penso que a minha tia vai detestar encontrar-me neste estado - disse Mabel. - Ela não me deixou ir à feira por eu não ter arrumado um sapato antigo usado pela Rainha Isabel I. Eu tinha-o tirado da vitrina para ver se me servia.

- E servia? - perguntou Kathleen, muito interessada.

- Não, era muito pequeno - respondeu Mabel. Acho que nunca deve ter servido a ninguém!

- Eu quero lanchar - repetiu Jimmy.

- Realmente é melhor irmos embora - disse Gerald -, já que nada podemos fazer por ti.

- Tens de dizer à tua tia - disse Kathleen, gentilmente.

- Não, nem pensar nisso - lamentou-se Mabel. Levem-me convosco. Eu deixo um recado à minha tia a dizer que vou para um sítio ao pé da praia.

- Não sejas tonta! As crianças não vão sozinhas para a praia!

- Às vezes vão - disse a voz. - E até embarcam como clandestinos se não arranjam trabalho a bordo de um barco!

- Mas tu não arranjavas, de certeza! - disse Kathleen.

- Então, que vou eu fazer?

- Realmente - disse Gerald -, também não sei o que há-de ela fazer. O melhor é levá-la connosco para casa e.

- Lanchar - disse Jimmy, levantando-se de um salto.

- Conversarmos para tentarmos encontrar uma solução.

- Depois do lanche - insistiu Jimmy.

- Mas, entretanto, a tia vai descobrir que ela não está cá

- É a mesma coisa se eu ficar!

- Vamos embora! - disse Jimmy.

- Mas a tia vai pensar que lhe aconteceu alguma coisa

- E até aconteceu!

- A minha tia vai chamar a polícia e vão procurar-me por todo o lado!

- Só que não vão conseguir encontrar-te - disse Gerald. - Lembra-te que estás invisível!

- Tenho a certeza que a minha tia prefere nunca mais me ver a saber que eu estou assim. Adoecia e nunca mais se curava. Ela tem ataques, sabem? Eu vou escrever-lhe e deixo o recado na caixa do correio que está no portão por onde vamos sair. Alguém tem um papel e um lápis?

Era um estranho espectáculo ver a lapiseira a escrever sozinha.

- Podemos ver? - perguntou Kathleen. Não se ouviu qualquer resposta e a lapiseira continuou a escrever.

- Podemos ver? - repetiu Kathleen, impaciente.

- Claro que podem - respondeu a voz, junto ao papel. - Eu já tinha dito que sim com a cabeça! Oh, esqueci-me que não podiam ver!

A lapiseira formava letras redondas na folha arrancada ao bloco e dizia o seguinte:

" Querida tia,

"Não sei se vai voltar a ver-me durante algum tempo. Encontrei uma senhora que tem um automóvel e ela tomou conta de mim. Vamos directas para a costa e aí apanhamos um barco. Não vale a pena tentar seguir-me. Adeus e felicidades. Divertiu-se na feir?

Mabel. "

- Tanta mentira junta! - disse Jimmy.

- Nem por isso, é só imaginação! - disse Mabel. - Se eu dissesse a verdade, então é que ela julgava que eu estava a mentir!

- Vamos embora - disse Jimmy. - Podemos discutir isso no caminho para casa.

Gerald dobrou a carta e Mabel levou-os por um caminho muito mais curto, através do parque, demorando menos tempo a chegar a casa.

Enquanto estavam no Templo de Flora, o céu tinha ficado nublado e caíam as primeiras gotas de chuva quando chegaram à porta de casa, muito atrasados para o lanche.

- Vêm atrasadíssimos - ralhou a Mademoiselle. - Aconteceu-vos alguma coisa?

- Pedimos imensa desculpa - disse Gerald. - A verdade é que demorámos mais tempo a regressar do que imaginávamos. Espero que não tenha ficado preocupada. Fartei-me de pensar em si no caminho para casa!

- Calculo! - disse a francesa, sorrindo. - Agora vão ter uma refeição que é lanche e jantar ao mesmo tempo

Estavam todos esfomeados e a cozinheira resmungou quando teve de preparar fatias de pão com manteiga pela terceira vez.

- Eu bem vos tinha dito que queria lanchar - disse Jimmy.

- E eu digo - respondeu Gerald -, que vai ser muito difícil o pequeno-almoço da Mabel! A Mademoiselle vai estar presente e dá-lhe um ataque se vê garfos com presunto a desaparecerem e a reaparecerem sem ele.

- Temos de comprar comida e alimentar a nossa amiga às escondidas.

- O nosso dinheiro não vai durar muito - disse Jimmy, preocupado. - Tu tens algum dinheiro? perguntou ele, virando-se para o lugar onde uma caneca de leite estava suspensa no ar.

- Não tenho dinheiro - foi a resposta vinda de junto do leite -, mas tenho montes de ideias!

- Amanhã de manhã falamos no assunto - disse Kathleen. - Vamos dar as boas-noites à Mademoiselle e depois tu vais dormir comigo, Mabel. Empresto-te uma das minhas camisas de noite.

Era tremendamente estranho, pensou Kathleen, ver os fatos de princesa a virem do nada. Em primeiro lugar, apareceu, pendurado no ar; o véu de tule. Em seguida; a coroa começou a brilhar em cima da gaveta das meias. Por fim, a saia cor-de- rosa foi aparecendo, enquanto escorregava pelas pernas invisíveis, acabando por fazer um anel no chão. À medida que Mabel se ia despindo as roupas que tirava iam-se tornando visíveis e a camisa de noite, que estava em cima da cama, num instante se deixou de ver.

- Deita-te depressa - disse Kathleen, muito nervosa. A cama rangeu e apareceu uma cova na almofada. Kathleen apagou a luz e foi também para a cama; estava cansada de tantas emoções mas a verdade é que agora, ali no escuro, as coisas não pareciam tão aterrorizadoras. Mabel abraçou-a logo que ela se deitou e as duas amigas beijaram-se no escuro, onde o visível e o invisível estavam em pé de igualdade.

- Boa-noite - disse Mabel. - Tu és tão boa, Cathy! Foste tão simpática comigo e podes crer que nunca o esquecerei. Não quis dizer nada em frente dos rapazes porque eles acham logo que a gratidão é um sentimentalismo! Mas eu estou-te mesmo grata. Boa-noite!

Kathleen continuou acordada ainda algum tempo, pensando em tudo o que acontecera durante o dia. Estava quase a adormecer quando se lembrou que as roupas de princesa não tinha sido guardadas e a criada as veria, no dia seguinte, quando fosse acordá-las.

- Vou ter de acordar cedo e escondê-las - pensou ela. - Que maçada ter-me esquecido!

Enquanto tal pensava adormeceu e já era dia claro quando acordou, com Eliza olhando espantada para a cadeira onde se amontoavam as roupas que Mabel despira na véspera.

- Meu Deus, que é isto? - exclamou a criada.

- Por favor, não lhes mexa! - disse Kathleen, saltando da cama.

- Onde é que a menina foi arranjar isto?

- Emprestaram-me para usar numa peça que vamos representar - respondeu Kathleen, com uma súbita inspiração.

- A menina podia mostrar-me isso tudo - pediu Eliza.

- Não, não, nem pensar! - disse Kathleen, pondo-se em frente da cadeira e tapando-a com o corpo. Quando representarmos a peça logo vê as roupas todas. E não conta a ninguém, não?

- Se se portar bem, não conto! - respondeu Eliza. - Mas tem de me prometer que depois me deixa ver essas lindas roupas

Neste momento ouviu-se tocar a campainha da porta e Eliza teve de ir a correr atender o carteiro, o que fez de boa vontade porque tinha muito interesse em falar com ele.

- E agora temos mesmo de arranjar uma peça e representá-la - disse Kathleen, calçando as meias. Isto tudo está a tornar-se difícil!

- Representar uma peça? - perguntou Mabel, enquanto uma meia se elevava no ar e desaparecia rapidamente. - Vou gostar!

- Esqueces-te - disse Kathleen -, que as actrizes invisíveis só podem actuar em peças mágicas.

- Oh! - gritou a voz que saía debaixo de uma saia que rodopiava no ar. - Tive uma rica ideia!

- Contas-nos depois do pequeno-almoço - disse Kathleen, enquanto água, vinda de algures, caía no lavatório. - Bem gostava que não tivesses escrito aquelas palermices à tua tia. Continuo a crer que não se deve mentir a ninguém.

- Para que serve dizer a verdade se ninguém acredita? - perguntou a voz, por entre o barulho da água.

- Não sei - respondeu Kathleen. - O que sei é que deve sempre dizer a verdade!

- Pois faz como dizes, se queres - disse a voz, abafada pela toalha que se mexia no toalheiro.

- E vamos mesmo, depois do pequeno-almoço, ou seja, depois do teu pequeno-almoço. Esperas aqui até conseguirmos arranjar qualquer coisa para tu comeres. Livra-te de fazeres alguma partida à Eliza quando ela vier arrumar o quarto!

A invisível Mabel achou divertidíssimo remexer as roupas e ir escangalhando o que Eliza arranjava e arrumava.

- Malvadas roupas! - disse Eliza. - Até parece que estão embruxadas.

Ela procurou as lindas roupas de princesa que tinha encontrado de manhã mas Kathleen tinha-as escondido em lugar completamente seguro: por baixo do colchão, uma vez que Eliza nunca se dava ao trabalho de o virar.

Eliza limpou rapidamente o chão do quarto e Mabel, esfomeada e exasperada pelo tempo que os outros se demoravam, não conseguiu evitar dizer ao ouvido da criada:

- Deve limpar-se sempre debaixo da cama! Eliza parou e ficou muito pálida, murmurando:

- Devo estar doida! Até parece que a minha mãe estava aqui a ver que eu fazia como ela me ensinou! Oxalá não me dê para ficar tonta com a tia Emily. Olhem só o que é a sugestão!

Levantou o tapete da lareira e limpou por baixo dele e do guarda- fogo. Mantinha-se no entanto tão pálida que Kathleen, ao entrar com um pedaço de pão, seguida de Gerald, exclamou:

- Eliza, que se passa? Parece doente! Que Lhe aconteceu?

- Achei que devia dar ao quarto uma boa limpeza!

- respondeu ela, continuando muito pálida.

- Mas aconteceu alguma coisa que a tivesse perturbado? - perguntou Kathleen, desconfiada.

- Não foi nada, menina - respondeu Eliza. Isto é só a minha imaginação a trabalhar. Sempre fui assim, desde criança! A sonhar com diáfanos percorridos por anjos em que se via só as nossas cabeças e as deles. Até comentava para comigo própria que era muito mais barato, em termos de roupa, do que ter crianças!

Logo que Eliza saiu do quarto, Mabel comeu o pão que lhe tinham trazido.

- Temos de passar o dia inteiro fora outra vez - disse Kathleen, quando o último pedaço de pão se desvaneceu no ar -, além de que Gerald pensa como eu acerca de mentiras. Combinámos que íamos à tua tia dizer onde é que tu estás, na realidade.

- Ela não vai acreditar!

- Paciência! - insistiu Kathleen. - O importante é dizermos a verdade.

A High Street resplandecia à luz do sol, o que tornou claramente visível o facto de haver quatro sombras produzidas por aparentemente três crianças.

Todos ficaram satisfeitos e se sentiram melhor logo que deixaram o centro da vila.

Contar o que se passava à tia de Mabel não deu o resultado que qualquer deles esperava, incluindo Mabel. Encontraram-na sentada à janela da sala da governanta, lendo um romance de amor. Essa sala dava para um terraço cheio de plantas trepadeiras, ao qual tinha sido conduzido por Mabel.

- Peço desculpa de interromper - disse Gerald -, mas julgo que a sua sobrinha desapareceu, não é verdade?

- Não desapareceu, meu rapaz - respondeu a tia, que era alta e magra, com aspecto desleixado e uma voz muito amável.

- Nós podemos dar-lhe notícias dela - insistiu Gerald. 

- Não é possível - respondeu a tia, com voz cautelosa. - A minha sobrinha foi-se embora e eu não estou nada preocupada com as travessuras dela. Se ela vos pregou alguma partida, não se preocupem porque é apenas brincadeira e não é por mal. Agora, vão-se embora porque eu estou muito ocupada.

- Leu o recado que ela deixou? - perguntou Kathleen.

A tia mostrou mais interesse ao ouvir a pergunta mas continuou a segurar o livro.

- Então vocês estavam presentes quando ela se foi embora? Estava contente? - perguntou ela.

- Bastante contente - respondeu Gerald, sem faltar à verdade.

- Então, também eu fico contente! - disse a tia.

- Mas não vai fazer nada? Chamar a polícia ou.

- Chiu! - disse Mabel.

- Eu não me calo - disse Jimmy. - A sua sobrinha Mabel está invisível! Ela está aqui mesmo ao pé de mim

- Não suporto mentiras - disse a tia, zangada. Não se importam de levar daqui esse rapaz? Estou muito satisfeita com o que aconteceu a Mabel e é tudo!

- Não há dúvida de que a senhora é a tia - disse Gerald. - Mas eu gostaria de saber qual é a opinião dos pais de Mabel.

- Os pais dela já morreram - respondeu a tia, enquanto Gerald ouvia um pequeno soluço.

- Está bem - continuou Gerald -, mas não pense que não lhe dissemos a verdade!

- Vocês não me disseram nada, excepto aquele rapaz - disse a tia. - O que ele me disse foi uma rematada mentira!

- Tudo bem! - respondeu Gerald. - Não se importa que passeemos pelo parque? Prometemos não mexer em nada!

- Não é permitido visitar a propriedade - respondeu a tia, virando-se novamente para o livro.

- Mas nós não somos meros visitantes - disse Gerald, com ar muito simpático. - Somos amigos de Mabel. O nosso pai é o Coronel do regimento...

- Ah, sim? - respondeu a tia.

- E a nossa tia é Lady Sandling, portanto, pode ter a certeza de que não vamos estragar nada!

- Estou certa de que não farão mal a uma mosca

- respondeu a tia, já com ar ausente e os olhos postos no livro. - Adeus e portem-se bem!

Eles saíram rapidamente.

- A tua tia não é boa da cabeça - disse Gerald, quando já se encontravam fora do terraço. - Não se rala nada com o que possa ter-te acontecido e imaginou uma linda história acerca da senhora com o automóvel.

- Eu já sabia que ela ia acreditar naquilo que eu escrevi - disse Mabel. - Ela não é maluca mas farta-se de ler aqueles romances. Eu só        leio os livros que vou buscar à Biblioteca. É uma sala bem engraçada e que cheira a couro por causa daqueles livros encadernados que estão nas prateleiras. Um dia levo-vos lá! Bem, agora que já acalmaram a vossa consciência em relação à minha tia, vou contar-vos a ideia que tive. Vamos para o Templo de Flora. Ainda bem que a minha tia vos deixou andar por aí, senão ia ser muito aborrecido andarem a esconder-se dos jardineiros!

- Também pensei nisso - respondeu Gerald. O dia estava tão ensolarado como o da véspera e a vista, a partir do templo de mármore branco, parecia uma tela pintada à mão ou uma cópia a óleo.

Quando as três crianças se sentaram nos degraus que levavam à estátua, ouviu-se a voz da quarta dizer tristemente

- Por favor, não pensem que eu sou ingrata, mas estou com muita fome e a verdade é que vocês não vão conseguir estar sempre a tirar coisas para eu comer, através da janela da despensa. Se quiserem, volto para o castelo e vou lá vivendo. Parece que é um castelo assombrado e eu posso assombrá-lo tão bem como qualquer pessoa, já que sou uma espécie de fantasma!

- Nem pensar - disse Kathleen. - Ficas connosco

- Eu também prefiro mas. e a comida? Repito que não sou ingrata mas pequeno-almoço é pequeno-almoço e pão é só pão!

- Se conseguisses tirar o anel podias voltar a casa!

- Eu sei - disse Mabel -, mas não consigo! Ontem à noite, na cama, tentei e outra vez hoje de manhã mas não deu resultado. Além disso, tirar coisas da despensa é roubar, mesmo que seja só pão.

- Lá isso é! - respondeu Gerald, que tinha ficado responsável pela "actividade".

- O que temos de fazer é tentar ganhar dinheiro

- disse Mabel.

Jimmy concordou imediatamente mas Gerald e Kathleen mostraram-se cautelosos.

- Eu queria dizer - continuou a voz -, aproveitarmo-nos de eu estar invisível para termos umas aventuras!

- Nem sempre é bom ter aventuras - murmurou Gerald.

- Mas esta vai ser óptima! Não podemos é estar todos juntos. Vou explicar: se o Jerry conseguisse disfarçar-se de pessoa vulgar.

- Facílimo - disse logo Jimmy, enquanto a irmã lhe pedia para não ser antipático.

- Não sou nada - respondeu Jimmy -, só...

- Só que ele pensou que a Mabel nos ia meter em sarilhos - disse Gerald - e não quer, nos próximos anos, andar por aí a vaguear sozinho e outras coisas no género

- Não vos meto em sarilhos, palavra! - disse a voz. - Da maneira como me ajudaram ontem passei a considerá-los como irmãos para toda a vida! A minha ideia era o Gerald ir para a feira e fazer magias.

- Mas ele não sabe fazê- las! - disse Kathleen.

- Eu é que as fazia! - respondeu Mabel. - Eu pegava nas coisas, fazia-as desaparecer e voltar a parecer, etc. Mas não dá resultado se estivermos todos juntos porque as pessoas começam logo a pensar no que andarão tantas crianças a fazer sozinhas.

- O verdadeiro mágico considera estas palavras cheias de sabedoria - disse Gerald, continuando com voz lúgubre -, pelo que o irmão e a irmã deverão misturar-se com a multidão! E finjam que não me conhecem. O melhor é andarem ao pé de adultos como se lhes pertencessem, senão algum simpático polícia se encarrega de os considerar perdidos e diligentemente os leva para casa, ou seja, para os braços da professora francesa.

- Vamos então! - disse a voz, sobressaltando-os, já que não conseguiam habituar-se a que ela viesse de sítios diferentes, conforme Mabel se mexia.

A feira estava instalada num local a cerca de oitocentos metros dos portões do castelo. Quando já estavam suficientemente perto para ouvirem a música do carrocel, Gerald sugeriu ir comprar alguma comida com o dinheiro que lhes restava, o qual seria reposto com os eventuais ganhos do trabalho de magia. Os outros esperaram à sombra de umas árvores.

Quando voltou, trazia nozes, maçãs riscadinhas, pêras maduras, pão de especiarias, um pacote de pas tilhas de mentol e duas garrafas de refresco.

- Podemos considerar isto um investimento - respondeu ele, quando Kathleen comentou tal extravagância. - Precisamos de boa alimentação para conservarmos as energias, especialmente o mágico!

Foi uma refeição deliciosa, alegrada pela música que se ouvia ao longe. Os rapazes não se cansavam de ver Mabel a comer, ou seja, de verem a comida a desaparecer magicamente no sítio onde Mabel estava, e levavam-na a comer mais do que ela queria.

- Isto é um espanto! - dizia Gerald.

Quando acabaram de comer, Jimmy e Kathleen foram andando para a feira, onde se misturaram com a multidão.

Ficaram ao pé de uma enorme mulher que estava a ver o tiro aos cocos e observavam, neste momento, uma figura estranha que, de mãos nos bolsos, atravessava a relva seca e juncada de papéis e garrafas vazias que sujam tudo e que se podem encontrar em qualquer feira inglesa. A estranha figura era Gerald, a quem começaram por não reconhecer. tinha tirado a gravata e enrolara na cabeça o lenço da escola, a fazer de turbante. A gravata estava a fazer de lenço de algibeira. A cara e as mãos estavam completamente negras.

Todas as pessoas se voltavam para o observar.

- Parece mesmo um mágico! - sussurrou Jimmy. Seguiram-no à distância e, quando ele passou junto a uma tenda em cuja entrada estava sentada uma mulher de rosto comprido e triste, pararam e fingiram que estavam a acompanhar um agricultor que tentava ganhar um prémio, batendo com um grande martelo num bloco de madeira.

Gerald dirigiu-se à mulher e perguntou:

- Tem ganho alguma coisa de jeito?

Ela respondeu-Lhe que se fosse embora e não fizesse troça dela. Mas Gerald insistiu:

- Estou a falar de negócios. Sou mágico e vim da Índia!

- És tão mágico como eu - disse ela. - As tuas orelhas estão bem brancas na parte de trás.

- Estão? Mas que inteligente é a senhora! - disse ele, esfregando as mãos nas orelhas. - Está melhor assim?

- Está - respondeu ela. - Afinal, qual é o teu jogo?

- Magia verdadeira e pura - disse Gerald. - Há, na Índia, rapazes mais novos do que eu e que sabem fazer toda a espécie de magias. Olhe, eu devo-lhe bastante por me ter avisado das orelhas e ofereço-lhe uma parte dos lucros do espectáculo se me deixar utilizar a sua tenda para o fazer.

- Nem pensar! Olha que grande negócio! Estás é a gozar-me! Olha se sabes fazer magias, então faz lá uma para eu ver.

- Está bem! - disse Gerald. - Está a ver esta maçã? Vou atirá-la ao ar devagarinho e, quando eu dis ser "vai", ela desaparece.

- Desaparece na tua boca, não é? - escarneceu ela. - Vai-te embora e não digas mais disparates!

- A senhora é demasiado inteligente para ser tão incrédula - disse Gerald. - Ora veja!

Pegou numa das maçãs e a mulher começou a vê-la elevar-se sozinha no ar e desaparecer quando Gerald gritou "vai".

- Que tal? - perguntou ele, triunfante. A mulher estava abismada e os seus olhos brilhavam de excitação.

- É o melhor que eu tenho visto! - dizia ela. Sabes mais truques destes?

- Montes deles - respondeu Gerald. - Dê-me a sua mão

Ela estendeu-lhe a mão e, vinda não se sabe donde, a maçã caiu-lhe em cima da mão.

Ela ficou a olhar um momento e disse-Lhe, em voz baixa:

- Anda! Vamos fazer o negócio mas só entre nós. Não vais usar a tenda, fazes as magias no lado de fora desta parede. Cá fora junta-se mais gente e faz-se o dobro do dinheiro!

- Mas as pessoas não vão pagar nada se puderem ver o espectáculo lá fora - disse Gerald.

- Não pagam à primeira vez mas depois ainda dão mais. e não te esqueças de dizer uma lenga-lenga com palavras mágicas

- Empresta-me o seu xaile? - pediu Gerald.

Ela tirou-o e entregou-o a Gerald. Era tecido de fio preto e vermelho e ele estendeu-o no chão, tal como tinha visto fazer a mágicos indianos, e sentou-se em cima com as pernas cruzadas.

- Não posso ter ninguém atrás de mim - disse ele. Então, a mulher pôs vários sacos atrás dele e prendeu-os às cordas da tenda.

- Estou pronto! - disse Gerald.

A mulher foi buscar um tambor e pôs-se a bater nele, enquanto um grupo de pessoas se ia juntando ali para ver o que se ia passar.

- Senhoras e senhores - disse Gerald. - Vim da Índia e posso apresentar-vos alguns números de magia como nunca viram. Posso começar logo que me ponham uma moeda em cima do xaile.

- Aposto que sim! - exclamou um espectador, seguindo-se uns risos escarnecedores muito desagradáveis.

- Claro que - disse Gerald -, se não conseguem arranjar uma moeda entre vós, então não se pensa mais no assunto!

Havia cerca de trinta pessoas ali à volta e, uma a uma, lá foram deitando moedas.

- São muito generosos, obrigado - disse Gerald. - Mas eu também o sou, portanto, vou mostrar- vos aquilo que nunca pensaram ser possível verem. Não quero enganá-los pelo que ficam a saber que tenho um ajudante invisível.

A multidão riu-se.

- Com a ajuda desse companheiro - continuou Gerald -, vou ler a carta que um de vós tenha na algibeira. Agradeço que um de vós venha até junto desta corda e fique em pé à minha frente para que o meu ajudante invisível possa ler a carta por cima do seu ombro.

Imediatamente avançou um homem de aspecto rude. Tirou uma carta da algibeira e manteve-se de pé onde toda a gente podia ver que era impossível ler a carta por cima do seu ombro.

- Agora! - disse Gerald.

Após uma pequena pausa, ouviu-se uma voz cantante dizendo:

- "Exmo. Senhor. Com referência ao pedido de hipoteca da sua propriedade, lamentamos informá-lo que não dispomos de capacidade. "

- Cala-te! - gritou o homem, virando-se para Gerald.

Ao voltar para junto das outras pessoas explicou que era mentira e que nada daquilo estava escrito na carta.

No entanto, ninguém o acreditou e um murmúrio de interesse começou a alastrar, parando apenas quando Gerald voltou a falar.

- Agora, ponham os olhos nas moedas que estão em cima do xaile e verão que elas desaparecem uma a uma. - E, claro está, foi o que aconteceu após o que a mão invisível de Mabel voltou a deixá-las cair. As pessoas aplaudiam

- Bravo! Mostra-nos mais magias!

E os que estavam atrás empurravam os outros para passarem para a frente e verem melhor.

- Faço mais - disse Gerald. - Mas têm de pôr mais moedas em cima do xaile!

Imediatamente mais dinheiro caiu e ele fez mais magias. Quando os que estavam à frente deixaram de pôr dinheiro, Gerald pediu que passassem para trás e deixassem os outros ver melhor.

De facto, com um ajudante invisível, era possível fazer uma variedade de "magias", desde fazer levantar objectos no ar até levá-los a desaparecer nos bolsos de Mabel. A dona da tenda estava cada vez mais satisfeita vendo o dinheiro a aumentar e batia no tambor sempre que Gerald acabava uma "magia".

Entretanto, Jimmy e Kathleen, misturados com a multidão, assistiam ao espectáculo.

Já passava bastante da hora do lanche e Gerald, bas tante satisfeito com a sua parte nos lucros e muito cansado, procurava maneira de acabar com aquilo.

- Como é que vamos sair disto? - murmurou ele enquanto Mabel fazia desaparecer o turbante de cima da cabeça dele, puxando-o e guardando-o no bolso. Não nos vão deixar ir embora! Nem me tinha lembrado disso!

- Deixa-me pensar - sussurrou ela, após o que Lhe disse ao ouvido. - Divide já o dinheiro e paga-lhe o xaile. Põe o teu dinheiro nele e diz o seguinte.

Claro está que Gerald estava a trabalhar à sombra da tenda para que ninguém visse a sombra de Mabel quando ela se mexia para fazer desaparecer as coisas.

Gerald pediu à mulher que dividisse o dinheiro, o que ela fez com toda a honestidade.

- Dou-lhe mais este dinheiro pelo xaile - disse ele, enquanto a multidão se comprimia à sua volta.

A mulher discutiu o preço mas chegaram a acordo e Gerald guardou o dinheiro ganho na algibeira das calças.

- Este xaile vai agora desaparecer - disse ele, atirando-o a Mabel que o guardou.

A multidão aplaudiu.

- Agora - disse ele - vou mostrar-vos o último truque: vou dar três passos para trás e sou eu a desaparecer.

Fez o que havia dito e Mabel envolveu-o no xaile, o qual, embora invisível, não o levou a desaparecer. As pessoas gritaram:

- Olhem para ele! Não consegue!

- Quem me dera poder meter-te dentro da minha algibeira! - disse Mabel.

A multidão aproximava-se cada vez mais e tudo podia acontecer se alguém tocasse na rapariga. Gerald enfiou os dedos no cabelo, sinal de que estava a ficar enervado e ela apertou as mãos com desespero.

- Olha - murmurou ela -, já consigo tirar o anel!

- Vá, rapaz - disse um homem - devolve-nos o dinheiro!

- Calma! Desta vez vou mesmo desaparecer! disse ele, ordenando, em seguida, a Mabel que se escondesse dentro da tenda, lhe passasse o anel por entre os panos e se fosse juntar aos outros. Ela fez o combinado e, perante a estupefacção de todos, Gerald desapareceu.

- Sou eu - disse ao ouvido de Kathleen uma Mabel muito pálida e visível. - Gerald tem o anel! Vamos embora antes que todos comecem a dispersar.

Logo que saíram do recinto da feira, ouviram uma exclamação de surpresa e perceberam que Gerald tinha mesmo desaparecido.

Tinham já andado cerca de quilómetro e meio quando ouviram passos na estrada. Olharam para trás e não viram ninguém. No momento seguinte, ouviram a voz de Gerald a dizer claramente no espaço vazio:

- Olá!

- Que horror! - gritou Mabel. - Até me fizeste dar um pulo! Tira o anel que me faz impressão ouvir-te e não te ver!

- Foi exactamente o que aconteceu connosco em relação a ti - disse Jimmy.

- Não o tires ainda - disse Kathleen, que era muito sensata para a idade -, porque deves estar ainda com a cara toda preta, e pode alguém reconhecer-te, levar-te ainda e obrigar- te a fazer "magias" o resto da tua vida.

- Eu tirava-o - disse Jimmy. - Não vale a pena continuar invisível e as pessoas a verem-nos com Mabel e a dizerem que fugimos de casa com ela.

- Claro, tudo isso é muito tolo! - redarguiu ela impaciente. - Além disso, quero o meu anel.

- Agora ele é tanto teu como nosso - disse logo Jimmy.

- Não é nada vosso, é meu! - teimou ela.

- Parem com a discussão - disse a voz irritada de Gerald. - Qual é a piada de estarem com isso?

- Eu quero o anel - disse Mabel, embirrante.

- Queres! Querer parece ser a tua palavra preferida! Fica sabendo que não podes tê-lo porque eu não consigo tirá-lo

 

O detective

A dificuldade que aparecia agora não era só o facto de Gerald não conseguir tirar o anel e manter-se invisível. A verdade é que Mabel já não podia entrar em casa às escondidas. Eles tinham de justificar a ausência de um deles e ainda o aparecimento de alguém completamente desconhecido.

- Não posso voltar para a minha tia - disse Mabel. - Garanto que não vou! Nem que fosse mil vezes mais visível!

- Ela havia de desconfiar dessa história da senhora que queria tomar conta de ti! - disse Gerald. - E que vamos nós dizer à Mademoiselle acerca de ti?

- Digam-lhe a verdade - respondeu Mabel.

- Ela não ia acreditar - disse Cathy. - E, se acreditasse, ficava completamente furiosa!

- Não arriscamos contar-lhe - disse Gerald. Como ela é muito simpática, pedimos-lhe para tu ficares lá esta noite por já ser muito tarde para voltares para casa.

- Está bem - disse Jimmy. - E o que dizemos de ti?

- Que fui para a cama com uma tremenda dor de cabeça. E não é mentira nenhuma porque tenho mesmo uma! Deve ter sido do sol que apanhei na feira.

- Ou das pêras e do pão de especiarias! - zombou Jimmy. - Vamos! Quem me dera ser invisível! Havia de fazer qualquer coisa mais interessante do que ir para a cama com uma dor de cabeça!

- O que é que tu farias? - perguntou a voz de Gerald, mesmo por trás dele.

- Vê lá se páras quieto no mesmo lugar - disse Jimmy. - Apanho um susto cada vez que falas e não imagino onde estás. Caminha entre mim e a Kathleen.

- Afinal, que farias tu? - repetiu Gerald.

- Faria de detective!

- É exactamente o que eu vou fazer - disse Gerald. - Passamos pela esquadra da polícia e vemos o que há em matéria de crimes.

Assim fizeram e leram a informação que estava afixada do lado de fora e ficaram a saber que tinham desaparecido dois cães, uma bolsa e uma pasta com papéis "com valor apenas para o proprietário". Também tinha havido um roubo de peças em prata na Houghton Grange e que "eram oferecidas vinte libras de recompensa a quem pudesse dar qualquer informação que levasse à recuperação dos objectos roubados".

- Aí está o meu trabalho: descobrir o assaltante de casas - disse Gerald, acrescentando: - Vou ficar acordado toda a noite e tentar descobrir não só onde estão a bolsa e as pratas, como outro crime que esteja planeado e que ainda não tenha sido cometido. E, depois, hei-de seguir os assaltantes até conseguir saber onde estão guardadas as coisas roubadas, para que haja provas suficientes para serem condenados!

- Oh! - gritou Mabel, de repente, acordando Gerald dos seus sonhos de heroísmo e glória.

- Que foi? Dói-te alguma coisa? - perguntou ele, ansioso. - Se calhar, as maçãs fizeram-te mal. Estavam um pouco verdes!

- Não é isso - respondeu Mabel - Que horror, Nunca mais me lembrei!

- Nunca mais te lembraste de quê? - perguntou Gerald, impaciente.

- Da janela!

- Qual janela?

- A da sala das paredes apaineladas, no castelo! Deixámo-la aberta e os cortinados corridos. As jóias e as outras coisas estão à vista! E a minha tia não vai dar por nada porque nunca vai àquela sala! Tenho de ir já para casa, é perigoso deixar tudo como está!

Kathleen concordou mas Jimmy disse que não valia a pena porque a porta tinha ficado fechada com a chave lá dentro.

- Tem de se chamar um dos jardineiros para a arrombar - disse ela.

- Nem pensar! - respondeu Gerald. - Jerry, "O Invisível" resolve o assunto muito melhor do que qualquer jardineiro! Trepo até à janela, entro na sala, fecho a dita janela, corro os cortinados, fecho a porta à chave, ponho esta no seu lugar e volto pelo corredor sem ninguém me ver! Tenho muito tempo para fazer isto tudo porque os ladrões não vão começar a "trabalhar" logo ao princípio da noite, com certeza!

- E não tens medo? - perguntou Mabel. - Podes ser apanhado

- Não sou nada! - respondeu Gerald, meditando no facto de ter sido levantada a questão por Mabel e não por Kathleen, que costumava ser muito medrosa.

Mas tudo o que a irmã disse, foi:

- Então, adeus! Amanhã vimos ver-te, Mabel. Encontramo-nos às dez e meia da manhã no Templo de Flora. Espero que não tenhas problemas por causa da tua história acerca da senhora com automóvel que queria tomar conta de ti!

- Vamos jantar! - disse Jimmy.

- Adeus - respondeu Gerald, friamente. Sentiu-se magoado por os outros não darem o devido valor à aventura em que ele se ia meter, considerando o jantar uma coisa muito mais importante! Ah, mas ele não ia aborrecer-se com tal situação, não! E, pegando na mão de Mabel, disse:

- Deixa a janela da despensa aberta para eu poder entrar, depois de ter feito o meu trabalho de pesquisa.

A Mademoiselle estava sentada a ler cartas à janela da sala.

- Eis que chegam! - disse ela. - E vêm outra vez atrasados! Onde está o meu amigo Gerald?

Houve um silêncio embaraçoso e Jimmy acabou por responder:

- Ele disse que ia para a cama porque tinha uma dor de cabeça terrível.

- Pobre Gerald! - exclamou a Mademoiselle. Acham que lhe leve lá acima qualquer coisa para ele comer?

- Ele nunca come nada quando está com dores de cabeça - respondeu Kathleen, sem faltar à verdade.

Jimmy e Kathleen foram deitar-se completamente descansados em relação ao irmão e a Mademoiselle continuou a ler as cartas.

- É uma maravilha estar fora de casa a esta hora

- disse Gerald, gozando a tépida brisa nocturna.

- Realmente, é! - respondeu Mabel. - Só espero não ir encontrar a minha tia muito furiosa comigo!

Foi a própria tia que abriu a uma trémula Mabel a porta utilizada pelo pessoal que trabalhava em Yalding Towers. Ela começou por olhar fixamente para a rapariga até que esta disse, em voz baixa:

- Tia!

A tia deu um passo atrás e fez um gesto como se fósse bater-lhe:

- Malvada rapariga! - gritou ela, zangada. Como pudeste pregar-me um susto destes? Havias de ficar de castigo, na cama, durante uma semana! Oh, Mabel, felizmente não te aconteceu nada de mal!

E, abraçando-a, levou-a para dentro de casa. Entretanto, Gerald, ao caminhar pelos parques, relvados e bosques apercebeu-se que aquele castelo era muito especial, sentindo-se um pouco excitado embora não amedrontado. Tinha uma maravilhosa sensação de que tudo estava encantado e que ele fazia parte desse encantamento, ainda que não conseguisse, se lho pedissem, exprimir o que sentia.

- Ainda não vou para dentro de casa - pensou ele. - É cedo e não será fácil voltar a estar aqui à noite. Aliás, deve ser a noite que torna tudo tão diferente!

Entretanto, algo se moveu por baixo de um salgueiro e umas mãos brancas afastaram os seus longos ramos, aparecendo, em seguida, uma figura com o aspecto de um rapaz. Gerald não sentiu qualquer receio enquanto a figura saltava pela relva em direcção a ele. Quando se aproximou, Gerald verificou que era uma estátua cujo pedestal se encontrava agora vazio.

- As estátuas estão a ficar com vida! - disse ele, à medida que outras figuras saíam do Templo de Flora e desapareciam para lá dos loureiros.

Nesse momento, a Lua saiu detrás das nuvens e ele apercebeu-se de que algo enorme e pesado, de tom cinzento, se dirigia a ele. Era um animal pré-histórico!

- Não posso acreditar - exclamou ele. - Também este tem vida!

Ao passar por Gerald o monstro tocou-lhe com a cauda, fazendo com que desatasse a fugir apavorado, sentindo afinal medo. Depois de ter escalado a janela e ter entrado na sala, olhou para o jardim e viu tudo calmo e nos seus lugares.

- Que extraordinário! - disse ele. - Quem diria que era possível caminhar por um jardim a dormir e sonhar tais coisas!

Fechou a janela e, acendendo um fósforo, correu os cortinados. Com outro fósforo, fechou a porta, guardou a chave no prego e dirigiu-se para o átrio através da passagem. Aí, parou para habituar os olhos à claridade do luar, que passava pelas janelas.

- Quem me dera saber onde é a cozinha! - disse Gerald, quase esquecido de que era um detective em acção.

Na verdade, ele só queria era ir para casa e contar aos irmãos todas as coisas extraordinárias que lhe tinha acontecido.

- Não deve haver problema com as portas que eu abra - pensou ele. - Como ainda estou invisível, ninguém me vê! Experimento esta.

Abriu várias portas que davam para salas cuja mobília estava coberta com panos brancos, outras com lustres enormes pendendo dos tectos, outras ainda com as paredes completamente cheias de estantes com livros ou com belos quadros. Só não conseguiu encontrar a porta da cozinha. A última que abriu dava para uma passagem estreita, com degraus que subiam e outros que desciam, ao fundo da qual se via luz. Era difícil abrir aquela porta só com uma mão porque era bem pesada.

- Que disparate - monologou Gerald. - És ou não invisível?

Abriu então a porta e alguém, lá dentro, resmungou qualquer coisa em tom irritado. Gerald parou, encostando-se à parede, enquanto um homem saltava em direcção à porta e iluminava a passagem com a lanterna.

- Está tudo bem - disse o homem. - Foi só a porta que se abriu porque é muito pesada.

- Maldita porta! - respondeu outra voz resmungona. - Palavra que pensei que era um polícia!

Voltaram a fechar a porta, o que agradou muito a Gerald que não gostara nada do ar ameaçador que eles tinham. Apesar de saber que estava invisível, parecia-Lhe que aqueles homens adivinhavam a sua presença e, além disso, já tinha visto tudo quanto queria, sabendo que tinha razão quanto ao bando de malfeitores. Com uma tremenda sorte - sorte de principiante, teria considerado um jogador - tinha descoberto quem assaltava as casas logo na primeira noite da sua carreira de detective. Os homens retiravam os objectos de prata de duas grandes arcas, embrulhavam-nos em panos e guardavam-nos em sacos de serapilheira. A porta daquela sala era muito grossa e os homens tinham arrombado a fechadura. As ferramentas utilizadas estavam no chão, arrumadas num saco.

- Despacha-te - ouviu Gerald dizer. - Não precisas de levar a noite toda a fazer isso!

As pratas chocalhavam umas nas outras.

- Não faças tanto barulho! - disse a voz mal-humorada. - Julgas que estás a tocar castanholas? Gerald afastou-se rapidamente e com todo o cuidado.

- O feliz detective - monologou ele -, obteve um sucesso muito maior do que o previsto, necessitando agora do apoio adequado para que tudo resulte.

Mas que apoio poderia ele ter? Claro que havia homens em casa, a própria tia também lá estava, mas ele não podia avisá-los. Invisível como estava não conseguia convencer ninguém, ainda que Mabel corroborasse tudo o que ele dissesse. Quanto à polícia, demoraria tanto tempo a chegar que, entretanto, os ladrões se teriam posto a salvo com as pratas.

Gerald parou e pôs-se a pensar numa solução. E, de repente, encontrou-a. Pegou no bloco e no lápis e escreveu a seguinte nota:

"Sabem qual é a sala onde estão guardados os objectos de prata. Ladrões arrombaram a porta e estão a roubá-los. Vou segui-los se a polícia não chegar aqui a tempo.

Um amigo (isto não é uma brincadeira)".

Enrolou o papel numa pedra e atirou-o, pela janela, para dentro da sala onde Mabel e a tia celebravam o facto de estarem de novo juntas.

Esperou que as exclamações de espanto terminassem e a tia apanhasse a pedra e lesse o papel.

- Que disparate! - disse a tia, agora mais calma. - Claro está que isto é uma partida que nos querem fazer

- Por favor - pediu Mabel -, chame a polícia, tal como ele diz!

- Ele quem? - perguntou a tia.

- Ele. seja quem for! - respondeu Mabel, atrapalhada.

- Chamem imediatamente a polícia - disse Gerald lá de fora e fazendo uma voz o mais adulta possível. Não vos posso ajudar em mais nada e vão arrepender-se se não o fizerem!

- Eu vou soltar os cães atrás de si - gritou a tia.

- Não, por favor, tia não faça isso! - suplicou Mabel. - Acorde o Bates e vai ver que é melhor!

- Não acredito numa única palavra do que está aqui escrito

Nem Bates acreditou, depois de ter sido acordado pela tia ao aceder às insistentes súplicas de Mabel. No entanto, ao ler o que estava escrito optou por pegar na bicicleta e ir chamar a polícia, o que receava menos do que ir à sala para ver se, de facto, tinha havido um roubo.

Quando a polícia chegou, encontrou a porta arrombada e quase todos os objectos de prata tinham desapacecido.

O bloco e o lápis de Gerald foram novamente utilizados naquela noite e eram cerca das cinco da manhã quando, finalmente, ele se meteu na cama completamente gelado e cansado.

- Menino Gerald - era a voz de Eliza a soar junto aos seus ouvidos. - São sete horas, está outro lindo dia e houve outro assalto a uma casa! Credo! Que aconteceu? - gritou ele, depois de ter aberto os cortinados e ao voltar para a cama. - Vejam só como está esta cama! Os lençóis estão todos manchados de preto e não está ninguém na cama!

Com tal gritaria Kathleen veio a correr do quarto e Jimmy saltou da cama a esfregar os olhos.

- Que aconteceu? - perguntou Kathleen.

- Eu não ando boa da cabeça! - disse Eliza, sentando-se pesadamente em cima da cama. Primeiro, encontro a cama vazia e a roupa tão negra como a chaminé. Depois, volto a olhar e lá está ele na cama como sempre! Eu estou a endoidecer! Já não me sentia bem com a história de ontem ter ouvido vozes e agora acontece-me isto! Garanto que vou fazer queixa à Mademoiselle das vossas brincadeiras. Andarem a enfarruscar-se e a sujar lençóis e fronhas lavados! Isto assim não pode ser!

- Estou tão contente por não te ter acontecido nada de mal - disse Kathleen, logo que Eliza saiu.

- Sim? Não parecias assim tão preocupada ontem à noite! - respondeu Gerald.

- Nem quero pensar no que me passou pela cabeça, ontem, para não ter tentado impedir-te de ir e não me ter preocupado! Mas, hoje de manhã, quando acordei, lembrei-me de tudo o que podia ter acontecido e fiquei muito aflita - disse Kathleen.

- Bom, tudo está bem quando acaba bem - disse Gerald, fazendo uma festa à irmã.

- Afinal, como é que voltaste a ser visível? - perguntou Jimmy.

- O anel saiu precisamente quando ela me chamou

- respondeu Gerald.

- Conta-nos tudo quanto se passou - pediu Kathleen.

- Agora, não! - disse Gerald, com ar misterioso.

- Onde está o anel? - perguntou Jimmy, depois do pequeno-almoço. - É a minha vez de o usar!

- Esqueci-me completamente dele! - disse Gerald. - Deve estar caído na cama!

Mas, quando foram procurá-lo, Eliza já tinha feito a cama e não estava à vista.

- Juro que não estava lá nenhum anel - disse ela. - Se lá estivesse eu tinha-o visto!

Eliza e o anel

- Uma vez que a busca se revelou infrutífera - disse Gerald -, o detective, herói desta história, considera que "o que não tem remédio, remediado está" e, se todos estão de acordo, vai pasmar-vos com a descrição dos acontecimentos em que ele teve uma importante participação.

- É melhor esperarmos pela Mabel para ela também ouvir - disse Kathleen, heroicamente, já que ardia em curiosidade.

- Tínhamos combinado encontrar-nos às dez horas, não tínhamos? Gerald podia contar-nos pelo caminho, até porque não há-de ser nada de muito importante! - sugeriu Jimmy.

- Isso mostra - replicou Gerald, docemente -, como estás longe de imaginar o que se passou realmente! No que me diz respeito, a querida Mabel vai ter de esperar bastante pelo encontro - e começou a cantar a "Cereja Madura" até levar um beliscão da irmã.

Jimmy voltou-lhe as costas e disse:

- Quando deixares de ser parvo talvez possamos conversar.

Mas Gerald continuou a cantar.

- Como podes ser tão provocador? - perguntou Kathleen.

- Não sei - respondeu Gerald. - Ou é sono ou intoxicação provocada pelo sucesso! Vamos para onde ninguém possa ouvir-nos. "Vamos para onde possamos, falar, porque à porta alguém está a escutar" - sussurrou ele, e abriu subitamente a porta do quarto encontrando Eliza ali parada.

- Sabes muito bem que não se deve escutar às portas! - disse Jimmy.

- Eu só passei aqui por acaso, não estava a ouvir nada! - respondeu Eliza, muito corada.

Eles saíram, subiram a High Street e foram sentar-se no muro junto ao adro da igreja. Durante o caminho, Gerald não disse uma única palavra.

- Jerry - disse Kathleen -, por favor, deixa de te fazer caro! Sabes que estamos mortos por saber o que se passou!

- Assim, é melhor - respondeu Gerald e começou a contar.

À medida que o ouviam, os irmãos iam ficando cada vez mais espantados e imaginavam o jardim ao luar, as estátuas a ganharem vida e a caminharem em direcção ao lago. Depois, foi a descrição do assalto à casa, da pedra atirada para dentro de casa como aviso do roubo! Gerald tudo contou com abundância de detalhes e o relógio da igreja assinalava as onze e meia quando ele terminou:

- E tendo desenvolvido uma tremenda actividade sem qualquer outra ajuda, o nosso jovem detective... Olha, vem aí a Mabel!

E era ela!

- Já não conseguia esperar mais - disse. - Pedi uma boleia e aqui estou! Aconteceu alguma coisa? Os ladrões já tinham fugido quando o Bates entrou na sala onde estavam guardadas as pratas.

- Queres dizer que toda esta história é mesmo verdade? - perguntou Jimmy.

- Claro que é verdade! - disse Kathleen. - Continua, Jerry. Íamos na parte em que tu atiraste uma pedra que foi cair no pudim de pão com manteiga da Mabel

- Tu tornaste-te visível outra vez - exclamou Mabel -, e muito mais rapidamente do que eu!

- Tendo deixado o aviso, Gerald, o Sherlock Holmes, protegido pela sua invisibilidade, voltou à sala onde os assaltantes continuavam diligentemente a roubar! Como não via necessidade de me expor a perigos demasiados, esperei naquele corredor que tem os degraus, sabem? Eles saíram com todo o cuidado e, julgando que ninguém os estava a ver, foram saindo em fila indiana e afastaram-se levando os sacos com as pratas. O nosso herói seguiu-os silenciosamente. Os três patifes procuraram o carreiro, atravessaram o relvado e "aquelas coisas de pedra que ganham vida" observaram-nos à medida que eles iam passando. Eles não se deram conta de nada mas eu vi! É tão esquisito não é?

- Mas que coisas de pedra são essas que ganham vida? - perguntou Mabel, muito espantada.

Os outros tiveram de lhe contar a experiência que Gerald tinha tido com as estátuas.

- Mas eu fui ao jardim à noite imensas vezes e nunca as vi tornarem-se vivas! - disse Mabel.

- Mas vi-as eu! - insistiu Gerald.

- Acredito - respondeu ela. - Só quero dizer é que elas só devem tornar-se visíveis quando alguém está invisível e estou a falar de ganharem vida e não de serem estátuas e estarem lá!

- És capaz de ter razão - disse ele. - Os jardins e o castelo devem estar encantados e eu gostava de saber desde quando e porquê. Continuando, segui-os pelo caminho que vai dar àquela gruta por ond entrámos na primeira vez e quase os perdi. Tive lhes dar um avanço, na estrada, para não ouvirem meus passos, de maneira que acabei por descalçar os sapatos e. estraguei as meias! Fui seguindo os homens pelo bairro dos pobres até chegarem ao rio.

Finalmente, regressei e fui informar a polícia do paradeiro dos gatunos.

- Trouxemos uma amiga para almoçar - disse Kathleen, quando Eliza abriu a porta. - Onde está a Mademoiselle?

- Foi visitar Yalding Towers. Hoje é dia de abertura ao público. Despachem-se a comer porque hoje é a minha tarde de folga e não quero fazer esperar o meu amigo.

- Prometemos comer num instante - disse Gerald. E cumpriram. O almoço: carne picada com batatas e pudim de arroz, que é uma comida terrivelmente sem graça, estava terminado ao fim de um quarto de hora.

- E agora - disse Mabel, quando Eliza e um jarro de água quente desapareceram pela escada acima -, onde está o anel? Tenho de voltar a pô-lo donde o tirei.

- Ainda não foi a minha vez de o usar - disse Jimmy. - Logo que o encontremos, Kathleen e eu também queremos experimentar.

- Quando o encontrarem? - perguntou Mabel, tornando-se muito pálida.

- Desculpa, sabes. - começou Kathleen, acabando todos por lhe contar a história do desaparecimento do anel.

- Com certeza não procuraram bem - protestou Mabel. - Não tinha pernas para fugir!

- Podes ter a certeza de que virámos tudo do avesso

- disse Gerald. - Caiu-me do dedo quando estava na cama e não voltámos a vê-lo. Se calhar, fez-se desaparecer a ele próprio, tal como faz connosco.

- Não se importam que vá eu procurar? implorou Mabel. Uma vez que, se ele se perder, sou eu a culpada.

- Vamos todos procurar outra vez - disse Cathy. - Hoje de manhã estávamos com pressa e podemos não ter visto bem.

Subiram ao quarto de Gerald e procuraram por todo o lado: dentro e debaixo da cama, debaixo dos móveis e dos tapetes, sacudiram os cortinados, verificaram todos os cantos e encontraram pó e cotão mas. do anel nem sinal.

- Só pode ter acontecido uma coisa - disse Mabel. - A Eliza apanhou-o e ficou com ele. E eu vou dizer-lhe isso mesmo!

Era o que ela teria feito se, nesse momento, não tivessem ouvido a porta a bater, o que queria dizer que Eliza, toda aperaltada, acabava de sair para ir ter com o namorado.

- Não vale a pena! - disse Mabel quase a chorar. - Deixem-me sozinha um pouco, sim? Ter todos à minha volta acaba por me distrair. Vou resolver tudo e tentar encontrar o anel.

- Cheios de respeito pelo estado emocional da amiga, os companheiros retiram-se em boa ordem! disse Gerald.

Saíram do quarto fechando a porta docemente. Esperaram por Mabel, como manda a boa educação, além de que não podiam sair porque não havia quem abrisse a porta à Mademoiselle quando ela voltasse para casa.

Estava a ser uma tarde bem aborrecida, sobretudo quando Jimmy se lembrou de que Gerald tinha os bolsos cheios com o dinheiro ganho na feira e que nada haviam comprado, excepto uns pãezinhos doces que ele nem sequer tinha provado!

Parecia ter passado uma hora, quando na realidade não tinha ido além de dez minutos, e finalmente ouviram os passos de Mabel a descer a escada.

- Não encontrou nada - disse Gerald.

- Como sabes? - perguntou Jimmy.

- Pela maneira como caminha - respondeu Gerald.

De facto, consegue-se quase sempre descobrir se alguém encontrou aquilo que procurava pela maneira como anda. E os pés de Mabel diziam "não" tão claramente como se estivesse a falar.

E a expressão do seu rosto confirmava tal suposição. Subitamente, ouviram bater violentamente à porta traseira. Dado que todos os criados excepto Eliza tinham ido para férias, os rapazes foram abri-la, enquanto Gerald dizia:

- Pode ser que seja o padeiro e compramos um bolo. Com um almoço daqueles, bem precisamos de sobremesa

Mas não era o padeiro. Quando abriram a porta, viram, no terraço onde estava o reservatório, a bomba da água e o caixote do lixo, um jovem com o chapéu às três pancadas, a boca aberta sob um grande bigode e uns olhos muito redondos. Vestia um fato cor de mostarda, tinha gravata azul e um relógio de corrente pendurado no colete. Tinha um aspecto tão estranho que Kathleen tentou logo fechar a porta, murmurando tratar-se de um louco que fugira do manicómio. Mas algo impedia que a porta se fechasse.

- Desaparece. Deixa-me em paz! - disse o jovem.

- Podes crer que te deixo mesmo! - ouviram Eliza dizer, embora não a vissem.

- Alguém o incomodou? - perguntou Kathleen.

- Foi ela, menina - respondeu o infeliz rapaz.

- Ela quem? - perguntou Kathleen, para ganhar tempo, porque, como explicou depois, já se tinha apercebido de que era o pé de Eliza que não deixava que a porta se fechasse.

- A minha namorada! Pelo menos, parecia a voz dela. Houve qualquer coisa que veio ter comigo mas eu não consegui ver o que era.

- Não pára de dizer estas parvoíces - disse a voz de Eliza. - Sou eu que estou maluca ou é ele?

- Na minha opinião estão os dois! - disse Jimmy.

- Vá, se és um homem, olha para mim e diz que não me vês! - disse Eliza.

- Não vejo, de verdade! - disse o confuso rapaz.

- Se eu tivesse roubado um anel - disse Gerald, com ar sonhador -, entrava em casa e ficava muito quietinho em vez de continuar à porta a fazer figura de tolo!

- E podia ser bem pior! - murmurou Jimmy.

- Eu não roubei nada a ninguém - disse o rapaz. - Deixem-me em paz, fui eu que imaginei coisas! Deixem-me, ouviram?

De repente, cambaleou e foi de encontro ao reservatório da água. Eliza, pelos vistos, "largara- o"! E empurrou os amigos. afastou-os do caminho com cotovelos invisíveis mas Gerald, segurando-a por um braço, disse-lhe ao ouvido:

- Fica quieta e não digas nem mais uma palavra ou chamo a polícia!

Receosa, ela fez o que ele lhe disse e ouvia-se apenas uma espécie de assobio, que era o barulho que ela normalmente fazia quando respirava com dificuldade.

O rapaz do fato cor de mostarda tinha recuperado o equilíbrio e olhava para eles ainda mais espantado.

- Afinal, o que é isto?

- Desculpe, mas não posso explicar-lhe - respondeu Gerald, muito delicadamente.

- Será que eu estive a dizer barbaridades? - perguntou ele, tirando o chapéu e passando a mão pela cabeça.

- Algumas - respondeu Mabel.

- Espero não ter faltado ao respeito a ninguém!

- disse o rapaz, muito ansioso.

- Claro que não! - disse Kathleen. - Só contou que a sua namorada lhe pegou na mão e que não conseguiu vê-la.

- E continuo a não conseguir!

- Nós também não! - disse Mabel.

- Mas não é possível eu ter sonhado tal coisa e ter feito uma tão grande figura de parvo!

- Você é que sabe! - respondeu Gerald.

- Mas - gritou a pobre vítima vestida de cor de mostarda -, quer dizer que.

- Não quero dizer nada - respondeu Gerald, com sinceridade. - Só lhe dou um conselho: vá para casa, deite-se e ponha um saco de gelo na cabeça. Vai ver que amanhã estará melhor!

- Mas, eu.

- Deve fazer-lhe bem - disse Mabel. - O sol está muito forte

- Eu sinto-me bem - disse ele -, mas, bem peço muita desculpa por ter feito esta cena. Não é meu hábito e nunca me tinha acontecido uma coisa destas. Devo ter-me desencontrado de Eliza. Ela não saiu para ir ter comigo?

- Hoje, ela não pode encontrar-se com ninguém

- disse Mabel. - Está em casa e não pode sair.

- A menina não vai contar- lhe a cena que eu fiz, pois não? Ela era capaz de não querer voltar a sair comigo

- Pode estar descansado que não contamos nada à Eliza. Vá para casa, deite-se e descanse porque está bem precisado!

- Então, boa-tarde, menina - disse ele. - Veja lá que ainda me parece sentir os dedos dela! Espero que o meu patrão não venha a saber de nada porque ainda fico prejudicado!

- Não, nem pensar! Adeus - disseram em coro. Ficaram a vê-lo ir-se embora lentamente e fecharam a porta.

- Estou perdida! - disse a voz de Eliza. - Vou morrer encarcerada na cela de uma prisão!

E uma gota de água molhou o chão ao pé da porta.

- Parece que está a começar a chover dentro de casa! - disse Jimmy. Mas era apenas uma lágrima de Eliza.

- Estou perdida! - repetia ela. - Por favor, não deixem que eu seja presa aqui na cidade - outro soluço. - Todos me conhecem e respeitam - novo soluço. - Prefiro que me prendam longe daqui e que não seja o Johnson a fazê-lo - os soluços continuavam -, porque ele é amigo do meu primo e minha família ficava a saber! Estou muito grata por vocês não terem contado a verdade ao Elf. E eu não queria roubar o anel, só queria usá-lo hoje por ser meu dia de folga, e assim eu ia mais bonita sair com o meu namorado.

As crianças contemplavam interessadas as lágrimas visíveis que rolavam pela cara invisível de Eliza.

- Não te preocupes - disse Gerald -, nós não conseguimos ver-te.

- Foi isso que o meu namorado disse - respondeu a voz de Eliza.

- E tu também não consegues ver-te a ti própria - explicou Gerald. - Experimenta lá com a tua mão Ela tentou, e, claro, verificou que ele tinha razão. Deu um grito que teria atraído a atenção da polícia, se por acaso algum agente estivesse ali perto, e teve uma crise de nervos. Eles tentaram acalmá-la, lembrando-se de tudo o que anteriormente tinha lido em livros, mas era muito difícil acertar numa pessoa invisível e vestida com roupas "de sair". Daí o terem vindo a encontrar um chapéu completamente desfeito e um lindo vestido azul que nunca mais pôde ser usado.

Quando ela se acalmou, explicaram-lhe, com toda a gentileza, que estava realmente invisível e que nunca se sabe o que pode acontecer quando se rouba ou se "pede emprestado" um anel.

- Mas eu vou ficar assim para o resto da minha vida? - lamentou-se ela, quando eles foram buscar o espelho que estava pendurado na cozinha. - Eu até ia casar na Páscoa! Ninguém se casa com uma rapariga invisível! Que desgraça a minha!

- Não é para sempre - disse Mabel. - Tens é de agüentar durante algum tempo. Faz de conta que é sarampo! Amanhã já deves estar bem.

- Penso que não será amanhã mas ainda hoje à noite - profetizou Gerald.

- Nós ajudamos-te em tudo o que pudermos e não contamos a ninguém - disse Kathleen.

- Vamos preparar o lanche da Mademoiselle, disse Gerald.

- E o nosso também - sugeriu logo Jimmy.

- Não - respondeu Gerald. - Nós vamos lanchar fora. Vamos fazer um piquenique e levamos a Eliza conosco . Vou à rua comprar bolos.

- Menino Jerry, eu não como bolo nenhum! disse a voz de Eliza. - Nem pense nisso! Não quero que vejam o bolo a ir pela minha garganta abaixo. Não é decente andar por aí a mostrar o que vai para o estômago. Mas que castigo tão pesado por um empréstimo!

Eles sossegaram-na, prepararam o lanche da Mademoiselle, que chegou com ar cansado e um pouco triste, esperaram que Gerald voltasse com os bolos e, finalmente, partiram para Yalding Towers.

- Não é permitido fazer piqueniques nos jardins

- disse Mabel.

- O nosso tem de ser - respondeu Gerald. Olha, Eliza, dás o braço a Kathleen e eu vou atrás de ti para disfarçar a tua sombra. Por favor, tira o chapéu! A tua sombra parece nem sei o quê. Quem nos visse pensava que éramos loucos fugidos do manicómio.

Foi nessa altura que, tornando-se visível nas mãos de Kathleen, viram o estado em que o chapéu ficara.

- Meu rico chapéu! - disse Eliza, seguindo-se um silêncio preenchido com fungadelas.

- Olha lá, deixa de te lamentares - disse Mabel. - Se tens a consciência pesada em relação ao anel, faz de conta que isto é tudo um sonho!

- E eu volto a acordar?

- Claro que sim. Agora vamos vendar-te os olhos para passares por um sítio e não resistas, senão chamamos a polícia e acaba-se o sonho num instante.

É difícil descrever a entrada de Eliza na gruta: entrou de cabeça, com as raparigas a empurrarem e os rapazes a apanharem-na. O que valeu foi Gerald ter-lhe atado as mãos, senão tinha-os arranhado, como aconteceu com a mão de Mabel que ficou toda esfolada por se ter entalado entre a parede rochosa e um pé calçado que não parava de mexer. Por outro lado, a linguagem que ela utilizou até chegarem à zona do lago, deixou-os pasmados. Tiraram-Lhe a venda debaixo de um salgueiro, junto a uma estátua de Diana apoiada só num pé e com um arco na mão.

- Finalmente chegámos! - disse Gerald. - Paz, sossego e bolos e ainda coisas bonitas para se ver!

- São mais que horas de comer! - disse Jimmy. Eliza, uma vez convencida que, apesar de invisível, não era transparente e, portanto, não se via a comida a escorregar pela garganta para o estômago, demonstrou ter muito apetite e comeu tanto como os seus companheiros. Para um lanche tão apreciado contribuiu decisivamente o almoço de carne picada com batatas e pudim de arroz, várias horas de excitação e uma refeição tão tardia.

Os tons do jardim começavam a mudar: o verde suave ia-se tornando dourado e as sombras cinzentas iam escurecendo. As águas do lago onde os cisnes se miravam iam tomando o tom rosado das nuvens ao pôr do Sol.

- Que lindo é tudo isto! - disse Eliza. - Até parece um postal ilustrado!

- Tenho de ir andando para casa - disse Mabel.

- Não posso voltar para casa desta maneira, disse Eliza. - Vou tornar-me uma selvagem e viver numa cabana que tenha ao menos porta e janelas.

- Ela está a falar do Templo de Dionísio - disse Mabel, apontando-o.

O sol pôs-se subitamente por trás do renque de abetos ao cimo do talude, e o templo branco, que fora ganhando um tom rosado, tornou-se cinzento.

- É um lugar maravilhoso para se viver! - disse Kathleen.

- Que horror! - respondeu Eliza. - Tantas sacadas para limpar. Além disso, para que fazem casas sem paredes? Quem iria viver num lugar. Que é aquilo?

- O quê?

- Aquela coisa branca que desceu as escadas. É um rapaz em mármore!

- Aqui, ao pôr de Sol, as estátuas ganham vida, respondeu Gerald calmamente.

- Já percebi - respondeu Eliza, sem parecer surpreendida nem alarmada. - Olha outro! Tem asas nos pés, parece um pombo!

- Deve ser Mercúrio - disse Gerald.

- É Hermes - disse Mabel -, mas...

- Não vejo nada do que estão a dizer - exclamou Jimmy. - Estão a gozar comigo?

- Não percebes? - perguntou Gerald, falando baixo, o que não era necessário porque a atenção de Eliza estava toda concentrada no espectáculo que estava a ver. - As estátuas ganham vida a partir do anoitecer e só se consegue vê-las assim quando se está invisível, e só te assustas se lhes tocas.

- Vamos fazer com que ela toque uma! - lembrou

Jimmy.

- Atirou-se à água! - disse Eliza, extasiada. - E não sabe nadar! E aquele que tem as asas de pombo anda a voar por cima do lago! Que engraçado! Parece os cupidos que se vêem nos bolos de noiva! E aquele: é um rapazinho com orelhas grandes e vai a correr com um veado ao lado. Não posso ver aquela senhora a atirar o bébé como se fosse uma bola!

O parque estava a encher-se cada vez mais de sombras, no meio das quais se viam as estátuas no seu brilho de mármore branco. Mas Eliza via outras coisas que observava agora em silêncio.

- Olha, o rapazinho com o veado vem direito a mim! - disse ela, ouvindo-se em seguida os seus gritos e o barulho de pés a correr.

- Venham depressa - disse Gerald. - Ela tocou-lhe e está aterrorizada. Vai ser um sarilho se ela chega à vila e só ouvem a voz e não a vêem. Corram

Correram mas Eliza levava um bom avanço e, com o medo, parecia ter asas nos pés. Por outro lado, quando corria sobre a relva, deixavam de a ouvir e tinham de esperar que ela voltasse ao empedrado para se orientarem. Parecia, no entanto, que ela ia instintivamente pelo caminho mais curto.

- Fico aqui - disse Mabel. - Até amanhã.

- Vamos pelas traseiras - disse Gerald, quando chegaram à esquina da rua em que moravam.

Quando lá chegaram, uma figura invisível lutava para abrir a porta enquanto o relógio da igreja dava as horas.

- Nove e meia - disse Gerald mal conseguindo respirar. - Experimenta tirar o anel, Eliza, talvez já saia.

Ao voltar-se para o degrau da porta, viu a rapariga ofegante com o cabelo a cair, a gola rasgada, o vestido amachucado. Ela estendeu-Lhe uma mão claramente visível ao luar e na qual se encontrava o anel mágico.

 

Que teatro

A polícia tinha actuado com inteligência. Perseguira os assaltantes, frustrara os seus planos e recuperara os objectos roubados. De acordo com a opinião pública, não tinha atirado o recado pela janela, embrulhado numa pedra; Mabel e a tia julgavam que havia uma pedra mas era apenas uma bola de papel!

Gerald saiu de manhã para comprar o jornal antes do pequeno-almoço, e leu aos irmãos a reportagem publicada.

- Eu sinto que a culpa é nossa por publicarem tantas mentiras - disse Kathleen. - A verdade é que, se não fosse Jerry, não tinham conseguido nada.

- Não interessa - respondeu Gerald, com ar de quem afastava do pensamento assuntos importantes. Onde vamos hoje? A fiel Mabel está a chegar e vai querer o anel. Tu e o Jimmy também o querem. Sim, sei, não temos dado atenção nenhuma à Mademoiselle o que não é delicado!

- Gostava que não falasses tão pomposamente

disse Jimmy. - Não te admiro assim tanto!

- Eu admiro ambos - disse logo Kathleen.

- Linda menina! - respondeu Gerald. - Trata bem do teu irmãozinho mais novo até voltar a ama!

- Não vais sair sozinho, pois não? - perguntou Kathleen.

Como resposta, Gerald começou a cantar:

" Vou já para aquele lado, porque é dia de mercado. E aí hei-de comprar Rosas para o meu bazar. "

E acrescentou:

- Se querem vir comigo, despachem-se! Encontraram Mabel numa esquina do recinto onde todas as sextas-feiras se realizava o mercado. Havia bancadas com as mercadorias mais diversas.

Junto aos vegetais havia bancadas com flores e todas elas tão bonitas que eles tiveram dificuldade na escolha.

Decidiram-se pelos cravos: um ramo de amarelos, da cor do enxofre, um de brancos, como natas batidas, e outro de vermelhos, como as bochechas da boneca de Kathleen, com a qual ela nunca brincava. Levaram as flores para casa e ataram-nas com uma fita verde que Kathleen costumava usar no cabelo.

Com o ramo na mão, Gerald bateu à porta da sala onde Mademoiselle costumava passar o dia.

- Entre! - respondeu ela.

Gerald entrou e viu que, contrariamente ao habitual, ela não estava a ler mas debruçada sobre um caderno de esboços. Em cima da mesa havia uma caixa de aquarelas e várias cores que, pelo aspecto, não tinha sido adquirida em Inglaterra.

- Com um abraço de todos nós - disse Gerald, entregando-lhe o ramo de flores.

- Mas que simpáticos vocês são! - exclamou ela. - Isto merece um beijo de agradecimento!

E antes que Gerald lhe pudesse explicar que era já muito crescido para tais manifestações, ela deu-lhe um beijo em cada face à maneira francesa.

- Está a pintar? - perguntou ele, tentando afastar o aborrecimento por ser tratado como uma criança.

- Estou a acabar um esboço do que vi ontem, respondeu ela.

E, antes que ele tivesse tido tempo para imaginar o que teria ela visto no dia anterior que merecesse ser pintado, mostrou-lhe uma magnífica reprodução de Yalding Towers.

- Que maravilha! - exclamou ele. - Posso chamar os outros para verem também?

Os outros vieram, incluindo Mabel, que ficou atrás deles, e olharam para a pintura por cima do ombro de Jimmy.

- É uma verdadeira artista! - disse Gerald.

- Para que serve o talento se se passa a vida unica= mente a ensinar crianças? - comentou a Mademoiselle.

- Consegues ver? - perguntou ela a Mabel. uma amiga vossa aqui da vila?

- Como está? - respondeu Mabel, delicadamente. - Eu não sou da vila, vivo em YaldingTowe.

Isto pareceu impressionar a Mademoiselle, e levou Gerald a pensar que ela poderia ser daquelas pessoas que dão preferência a pessoas importantes.

- Yalding Towers - repetiu a Mademoiselle.

Que extraordinário! Por acaso és da família de Lord Yalding?

- Ele não tem família - respondeu Mabel. - É solteiro.

- Eu queria dizer prima, irmã ou sobrinha.

- Não - respondeu Mabel, corando. - Não sou assim tão importante. Sou a sobrinha da governante de Lord Yalding.

- Mas conhece-lo, não conheces?

- Não - respondeu Mabel. - Nunca o vi.

- Ele nunca vem ao castelo?

- Nunca veio desde que eu cá vivo, mas parece que vem na próxima semana.

- Mas porque não vive ele aqui? - perguntou a Mademoiselle.

- A minha tia diz que ele é pobre - respondeu Mabel, passando a contar a história que tinha ouvido. O tio de Lord Yalding deixou quase toda a fortuna a um primo em segundo grau deste Lord. Assim, ele vive não se sabe onde, porque só tem dinheiro para ir mantendo a casa em condições mas não para viver nela. E não podvendê-la porque se trata de herança condicionada.

- O que é isso? - perguntou a Mademoiselle.

- É uma coisa escrita por advogados - explicou Mabel, muito importante com os conhecimentos que demonstrava ter -, que determina que a coisa herdada tem de passar de geração em geração, sempre dentro da família.

- Mas que crueldade deixar uma casa destas e não deixar dinheiro para a manter! - comentou a Mademoiselle.

Kathleen e Jimmy estavam espantados pelo interesse demonstrado por uma história tão desagradável.

- Também sei a razão de isso ter acontecido disse Mabel. - Lord Yalding queria casar com uma senhora que não agradava ao tio. Era empregada de bar, ou bailarina ou qualquer outra coisa no género e, como não desistia de o fazer, o tio deixou a fortuna ao outro primo.

- E ele acabou por não casar?

- Pois acabou, porque a senhora foi para um convento!

- E esse Lord nunca procurou a tal senhora?

- Fartou-se de procurar - assegurou Mabel. Mas há milhares de conventos e ele não fazia ideia em qual ela estaria. Até escreveu para muitos mas as cartas vieram sempre devolvidas!

A professora teve um sobressalto, como se se tivesse lembrado de qualquer coisa de repente.

- Está na hora do almoço - disse ela. - A vossa amiga Mabel é convidada e vamos fazer uma espécie de festinha. Kathleen, põe as flores numa jarra com água, se fazes favor. Eu vou, num instante comprar bolos para a sobremesa. Lavem as mãos e estejam prontos quando eu voltar.

Sorrindo para as crianças, correu pela escada acima.

- Parece uma jovem! - disse Kathleen.

- Ela é jovem - disse Mabel. - Há imensas mulheres que se casam com mais idade do que a dela. Já assisti a vários casamentos em que as noivas eram muito mais velhas do que ela. Porque não me disseram que era tão bonita?

- Achas que é bonita? - perguntou Kathleen.

- Bem bonita! E muito simpática por ir comprar bolos por minha causa e chamar-me "convidada"!

- Olhem - disse Gerald -, ela foi mesmo muito simpática! E não nos podemos esquecer que as professoras mal ganham para sobreviver e que ela está a gastar connosco o pouco que tem. Podíamos ser simpáticos também, não saímos à tarde e ficávamos a jogar com ela. Deve passar um tempo muito aborrecido!

- E achas que ela vai gostar? - perguntou Kathleen. - A tia Emily diz que os adultos só jogam para dar prazer às crianças.

- O que eles não sabem - respondeu Gerald -, é quantas vezes o fazemos para ficarem eles contentes!

- Podíamos fazer um teatro e usar aquelas roupas da princesa - lembrou Kathleen.

- Isso pode ser mais perto da hora do lanche, disse Jimmy -, para termos de interromper e, assim, a representação não dura tanto!

- Guardaram bem essas coisas? - perguntou Mabel.

- Guardámos. Depois digo-te onde estão. Anda, Jimmy, vamos ajudar a Eliza a pôr a mesa e pedir-lhe que ponha o serviço bonito.

- Foi uma sorte - disse Gerald -, que os assaltantes não tenham levado as jóias que estão na sala do tesouro.

- Não podiam - disse Mabel, falando baixo. Não acredito que, além de mim, alguém saiba que estão lá! Vocês agora também sabem mas estão obrigados a guardar segredo. Nem a minha tia sabe. Eu descobri por acaso. Lord Yalding nunca disse nada.

- Também gostava de ter um segredo desses disse Gerald.

- Olha, lá vem a Mademoiselle com os bolos!

Vamos a despachar!

A Mademoiselle não trouxe só bolos. Havia ameixas, uvas, tortas com doce, gasosa, xarope de amora, lindas caixas de chocolates, jarros com natas bem batidas e... um grande ramo de rosas! Ela mostrava-se alegre e divertida, o que não era hábito numa professora. Serviu-lhes doses bem grandes de tudo o que havia na mesa, fez grinaldas de flores para lhes pôr na cabeça e, embora não tivesse comido muito, fez uma saúde a Mabel com o refresco composto de xarope de morango e gasosa. Até conseguiu convencer Jimmy a usar a grinalda que lhe tinha feito, dizendo que não só as deusas gregas mas também os deuses as usavam em ocasiões de festa.

Nunca houvera, desde que começou a haver professoras francesas, uma que se lembrasse de fazer uma festa tão divertida, com brincadeiras, anedotas e tanto riso. Jimmy fez uma série de truques com talheres, fós foros e maçãs que, apesar de muito conhecidos, foram bastante apreciados. A Mademoiselle contou-lhes histórias de quando era criança e andava na escola. Nessa altura, usava duas grossas tranças e, como eles não soubessem que penteado era, pediu papel e lápis e desenhou o seu próprio retrato, em criança, com duas grandes mechas de cabelo a saírem de cada lado da cabeça. Foi ainda desenhando tudo o que eles lhe pediam até Mabel, num murmúrio ao ouvido de Gerald, lembrar que tinham de preparar a peça para representar.

- Desenhe, por favor, o auditório de um teatro francês - pediu Gerald.

- É igual ao dos teatros ingleses - respondeu ela.

- Gosta de teatro? - perguntou Gerald.

- Gosto muito - respondeu a Mademoiselle.

- Então, se quiser, esta noite vamos representar uma peça para si.

- Claro - disse a Mademoiselle -, façam como

preferirem.

- Mas nós queremos é fazer como a Mademoiselle preferir, porque todos nós gostamos muito de si - disse Mabel.

E saiu indo ter com os outros, ao andar de cima. A Mademoiselle sentou-se na saleta onde costumava passar os dias e foi muito bom que não tivesse tido a ideia de se concentrar na leitura de algum livro interessante porque eles passaram a tarde a abrir e a fechar a porta: podiam levar a coberta e as almofadas do sofá? podiam levar as cordas da roupa que estavam na lavandaria? etc.

A Mademoiselle nada lhes negou, tendo eles usado inclusivamente rolos de papel de parede, que estavam guardados, os pincéis e a caixa de tintas que ela utilizava nas suas pinturas.

Para os quatro companheiros, aquele dia foi de felicidade. Até o lanche no jardim - havia um espaço empedrado onde foi posta a mesa - foi delicioso, apesar de não pensarem senão na peça que iam representar e a Mademoiselle parecer perdida em pensamentos que não tinham nada a ver com o lanche nem com a peça.

Ainda não anoitecera quando soou a campainha normalmente utilizada para chamar as alunas para as refeições. (depois do lanche tinham combinado tudo com Eliza e a Mademoiselle, depois de fechar o livro, passou para a sala de jantar. Eliza abriu a porta e entrou atrás dela. Os cortinados estavam corridos e as toalhas de mesa verdes e vermelhas pendiam da corda da roupa usada no quintal, tapando a parte que era o palco.

No outro lado da sala, tinham sido colocadas todas

as cadeiras existentes na casa e a Mademoiselle estacou ao verificar que uma parte delas estava ocupada por

pessoas com ar muito estranho: uma mulher muito idosa com um lenço vermelho na cabeça e que atava debaixo do queixo, uma senhora com um grande chapéu enfeitado de flores e cujas estranhas mãos repousavam na cadeira da frente, vários homens com aspecto muito esquisito e todos com chapéu na cabeça.

- Vocês convidaram outras pessoas? - perguntou baixinho a Mademoiselle através das aberturas das toalhas de mesa. - Não acham que deviam ter-me pedido autorização?

Ouviu-se um coro de risos e a voz de Mabel dizendo:

- Pode acender a luz! Isto faz parte do espectáculo! Eliza, rindo à sucapa, passou por entre as filas de cadeiras, deu um piparote no chapéu de um dos espectadores e foi acender as luzes.

A Mademoiselle olhou para a pessoa que estava mais perto, observou-a atentamente e sentou-se com uma gargalhada:

- Não são pessoas a sério! Eliza, também a rir, disse:

- Não têm nada lá dentro!

De facto, os sete espectadores que já estavam sentados, "não tinha nada lá dentro"! Os corpos eram travesseiros enrolados em cobertores, suportados por vassouras, as pernas e os braços eram tacos de "hockey" e chapéus-de-chuva. Os ombros eram os cabides que a Mademoiselle usava para pendurar os casacos e as mãos eram luvas cheias de lenços de assoar. As caras eram máscaras de papel, que Gerald pintara durante a tarde, atadas a cabeças feitas com fronhas de almofadas enroladas. E eram umas caras mesmo horríveis Gerald fizera o melhor que pudera mas, se não fosse estarem na posição que as caras normalmente ocupam, ou seja, entre o pescoço e o chapéu, algumas delas pareciam tudo menos o que pretendiam ser!

- Vocês é que fizeram os espectadores? Bravo! exclamou a Mademoiselle, batendo palmas.

 

Imediatamente a seguir, o pano subiu, ou, melhor dizendo, afastou-se, e ouviu-se uma voz dizendo: "A Bela e o Monstro".

Tratava-se de um verdadeiro palco, feito com as mesas da sala de jantar unidas umas às outras e cobertas com toalhas cor-de-rosa e branco. Era um pouco difícil andar em cima dos panos mas o efeito era impressionante.

O cenário era simples mas demonstrava imaginação: uma grande folha de cartolina, cortada em quadrado e atrás de cujas ranhuras se via uma vela, representava claramente a lareira; uma caixa de chapéus redonda, pertencente a Eliza, colocada em cima de um banco e com um candeeiro de mesa de cabeceira por baixo, era sem dúvida uma caldeira de cobre; um cesto de papéis com algumas batas da escola e um casacão lá dentro e um par de pijamas pendurados nas costas de uma cadeira, constituíam o toque final do cenário.

A voz que se ouviu nos bastidores dizendo: "A lavandaria em casa da Bela", era desnecessária perante a eloquência do que se via.

A representação começou e constituiu um êxito. Mabel, com os seus fatos de princesa, era uma verdadeira Bela e Gerald encarnava o Monstro como poucos artistas o fariam. Jimmy não era um Mercador muito falador mas Shakespeare decerto o apreciaria. Kathleen foi uma surpresa para todos, incluindo ela própria, pela rapidez com que mudava de personagem, fazendo de vendedor, criado e mensageiro.

No fim do segundo acto, Mabel lembrou a Gerald de que devia devolver o anel.

- Claro que devolvo - respondeu Gerald, que nunca mais se tinha lembrado de que o tinha com ele. Dou-to no fim do próximo acto mas não o percas nem o ponhas no dedo, não vás desaparecer ou ficares sete vezes mais visível e acabamos por só ver as tuas sombras!

Quando chegou a altura combinada, Gerald meteu a mão na algibeira, por baixo da grande capa, e, rolando os olhos, disse, com ar de profundo sofrimento:

- Adeus, minha Bela! Regressa depressa porque sem ti o teu Monstro morrerá! Toma este anel mágico e, quando quiseres regressar, põe-no no dedo, formula o teu desejo e logo te encontrarás a meu lado!

A Bela pegou no anel que Lhe era oferecido, o pano desceu e ouviram- se dois pares de mãos a aplaudir.

- Gostava - disse Mabel -, que aquelas criaturas que nós fizemos estivessem vivas! Assim, tínhamos muitos mais aplausos!

- Ainda bem que não estão! - respondeu Gerald. - São horrorosas! Até fico com os cabelos em pé só de olhar para aqueles olhos de papel!

O pano subiu. No palco estava o Monstro junto à fonte e rodeado pelo cenário tropical. A Bela preparava-se para fazer a sua entrada triunfal, apresentando-se num paroxismo de desespero, quando subitamente aquilo aconteceu: tanto a Mademoiselle como Eliza batiam palmas fortemente num merecido aplauso ao cenário e, de repente... mais seis ou sete pessoas batiam palmas, fazendo um barulho ensurdecedor! Nove caras em vez de duas estavam voltadas para o palco, sete das quais feitas de cartolina pintada, mas com vida. Mabel entrou no palco e o seu ar aterrorizado fez com que os aplausos aumentassem, não impedindo, no entanto, que os gritos de Mademoiselle e de Eliza se ouvissem. Ambas se levantaram a correr, derrubando cadeiras na pressa de sair da sala e, logo de seguida, bateram as portas dos respectivos quartos.

- Desçam o pano, depressa! - disse Mabel, numa voz irreconhecível. - Jerry, aquelas coisas ganharam vida! Que vamos nós fazer?

- A culpa é tua - disse Gerald. - Não percebeste o que aconteceu? O anel tornou-se um anel que realiza desejos. Eu já calculava que ia acontecer alguma coisa! Tira o canivete que está na minha algibeira para podermos cortá-los. Jimmy, Cathy, os monstros de papel ganharam vida! Mabel tinha o anel mágico no dedo e pediu um desejo... que obteve! Vão desfazer os monstros.

Jimmy e Cathy passaram para o outro lado do pano e recuaram com ar horrorizado.

- Não contem comigo! - exclamou Jimmy.

- Nem comigo! - secundou-o Cathy. Gerald, já liberto das roupas que o caracterizavam, ouviu um barulho enorme e passou também para o outro lado do pano.

- Eles estão a ir-se embora! - gritou Kathleen. Estão a andar com as pernas feitas de chapéus-de-chuva e de cabos de vassouras! Que horror, Jerry, não podes pará-los!

- Amanhã todas as pessoas da vila estão doidas se não conseguirmos detê-los - disse Gerald. - dê cá o anel depressa! Vou ver se consigo anular o desejo!

E, pegando no anel, gritou, correndo para a porta da sala:

- Desejo que os monstros deixem de estar vivos! Enquanto pedia tál desejo, imaginou o átrio, até então vazio, pejado de chapéus, vassouras, casacos, luvas e todos os outros objectos de que se tinham servido para fazer aqueles bonecos, tudo caído no meio do chão e sem qualquer vestígio de vida. Mas, quando lá chegou, o átrio estava cheio de "coisas" vivas, todas do tamanho dos objectos de que eram feitas. Uma mão flácida gesticulava, uma cara com bochechas rosadas estava virada para ele e, duma boca sem lábios, saíam palavras que ele não conseguia entender. Esta voz fazia-lhe lembrar a de um velho pedinte, que costumava estar ao pé da ponte, e que não tinha céu da boca. Claro que estas criaturas também não o tinham, nem...

- Ó-in-à-om-é? - perguntou novamente a voz. Foi preciso que estes sons fossem repetidos quatro vezes para Gerald perceber que lhe perguntava delicadamente: "Pode indicar-me um bom hotel? "

 

Os monstros

"Pode indicar-me um bom hotel? " Seria de facto aquilo, que Gerald ouvia de alguém com uma cabeça feita de papel e sem nada lá dentro? Alguém cujo casaco não cobria uns ombros, mas um cabide? Alguém cujas mãos eram luvas cheias de lenços de assoar e na mão o chapéu de chuva que Kathleen usava na escola. E "aquilo" estava vivo e fazia uma pergunta que qualquer ser humano logicamente poderia

fazer!

Gerald sentiu que tinha de fazer algo naquele preciso momento, só que não sabia bem o quê!

- Desculpe, não percebi - conseguiu ele dizer.

- Ó-in-à-om-é?

- Quer que eu Lhe indique um bom hotel? - perguntou Gerald, com ar estupefacto.

- Om-é - repetiram os lábios pintados.

- Lamento muito mas os bons hotéis fecham por

volta das oito horas da noite e já passa muito dessa hora

- respondeu ele, com toda a delicadeza.

Entretanto, os outros monstros tinham-se aproximado e rodeavam Gerald, o qual estava já a considerar-se perito em "traduzir" o que diziam pessoas sem céu da boca.

- Se não pode ser um hotel, ao menos uma pensão - disse a senhora com o grande chapéu.

- Eu conheço uma pensão - respondeu ele -, mas...

O monstro mais alto agarrou-o, não o deixando continuar a falar. Estava vestido com o casacão e o chapéu que costumava estar pendurado num cabide, no átrio da escola, para desencorajar possíveis assaltantes, dando a ideia que vivia ali um homem e que ele se encontrava em casa. Este monstro tinha um ar mais desportivo do que o outro e não tinha o mesmo aspecto educado. Tentou começar a dizer algo mas foi prontamente interrompido pela senhora do chapéu, que falava muito mais claramente do que qualquer dos outros. Isto devia-se, verificou Gerald, ao facto de os lábios terem sido pintados abertos e o papel da fenda ter sido virado para dentro, o que lhe dava uma espécie de pequeno céu da boca.

- Eu quero é saber o que se passa com as carruagens que mandámos vir - disse ela. - Ainda não chegaram

- Não sei - respondeu Gerald -, mas vou fazer o possível por ver o que se passa. Temos é de sair daqui porque o espectáculo já acabou e as pessoas da casa querem fechar tudo e apagar as luzes. Vamos!

Gerald avançou para a porta e todos os monstros o seguiram.

- É com a maior satisfação - disse Gerald educadamente -, que vos dou toda a ajuda que for possível. Às vezes as coisas não correm da forma prevista mas há sempre alguma solução! Se puderem esperar um instante, posso acompanhar-vos e tentar encontrar alojamento para todos.

Os monstros olharam uns para os outros com ar interrogador.

- Talvez fosse preferível - sugeriu a senhora do chapéu -, procurarmos nós uma pensão.

- Eu não me arriscava a isso - disse Gerald. Dizem que a polícia leva para a esquadra todos os estranhos à vila. Se tal vos acontece... bem, não é a espécie de alojamento que pretendem! E eu não quero imaginar-vos nas celas de uma prisão!

O monstro respeitável murmurou qualquer coisa que soou como: "Que mais estará para acontecer? ", enquanto se iam juntando debaixo da varanda. Gerald despediu-se deles, dizendo que faria o possível por não demorar. Ele estava preocupado com os companheiros que deviam estar completamente aterrorizados. Ele não o estava, mas só porque tinha o anel no dedo.

Quando chegou ao átrio, chamou:

- Cathy, Jimmy, Mabel, onde estão vocês? Apareçam

A porta da sala de jantar abriu-se lentamente, apenas uns centímetros.

- Mas que tontos - disse ele, empurrando a porta com o ombro. - Porque se fecharam aqui?

- Estás sozinho? - perguntou Kathleen, tremendo.

- Claro! Não sejas parva! - respondeu ele, olhando à volta e vendo três caras assustadas e as cadeiras desarrumadas em que os espectadores se tinham sentado.

- Onde estão eles? Conseguiste desfazer a magia? ouvimo-los falar. Era horrível!

- Estão no pátio - respondeu Gerald, com a melhor imitação de alegria que pôde arranjar. - São muito engraçados! São amáveis e simpáticos tal como se fossem pessoas verdadeiras! É melhor, no entanto, não deixar que a Mademoiselle e a Eliza os vejam. Vou tratar delas! Kathleen, tu e Jimmy vão para a cama depois de levar a Mabel a casa, vou ver se arranjo sítio para eles ficarem. Tenho imensa pena que não possam ir também porque eles são mesmo engraçados!

- Achas? - perguntou Kathleen, com ar muito

duvidoso.

- Pois claro! - respondeu ele, com firmeza.

Agora, ouçam o que eu vou dizer à Mademoiselle Eliza e não estraguem tudo com comentários parvos.

- Olha lá - disse Mabel -, tu queres dizer que vais levar-me lá para fora e juntar-me com aquelas criaturas horrorosas? Nem penses!

- Quando estiveres ao pé deles - disse Gerald

vais ver que não são tão horrorosos como tu pensas. São apenas pessoas que me pediram para lhes encontrar um hotel. Ao princípio, não percebi bem, só porque não têm céu da boca, claro, mas depois entendemo-nos.

Claro que esta referência foi um erro e Gerald percebeu-o imediatamente: Kathleen e Mabel agarraram-se uma à outra aterrorizadas e o irmão deu um pulo do sítio onde estava sentado.

- Isso da falta de céu da boca não tem importância - explicou Gerald. - Quando vinha para aqui ouvi-os dizer que eu era muito simpático, portanto, como vês, até são muito gentis!

- Não me interessa a gentileza deles! Se não fores comigo até casa, podes crer que não saio daqui! Vais ou não?

- Claro que vou! E agora vou à Mademoiselle disse ele.

Enquanto falava, Gerald tinha vestido o casaco e arrumado as cadeiras. Os outros ficaram no átrio a ouvi-lo bater à porta da Mademoiselle como se não tivesse acontecido nada, dizendo:

- Sou eu, Gerald!

Ouviram a conversa travada em voz baixa até que, tanto a Mademoiselle como Eliza, se mostraram completamente descansadas.

- Gostava de saber que aldrabices está ele a impingir-lhes - murmurou Jimmy.

- Não são aldrabices - disse Mabel. - Está apenas a dizer-lhes a parte da verdade que elas precisam de saber.

- Lamento imenso ter-vos assustado tanto! - dizia Gerald. - Nunca pensámos que teriam tanto medo.

Mas foi um truque muito engraçado, não foi?

- Olha - disse Jimmy, muito baixinho. - Está a convencê-las de que foi um truque!

- E até foi! - respondeu Mabel, em voz igualmente baixa.

- De facto, foi um truque estupendo - respondia a Mademoiselle. - Como conseguiram?

- Já fizemos várias vezes - explicava Gerald. Usam-se cordéis.

- Também é verdade - murmurou Kathleen.

- Mostrem-me lá como fazem isso - disse a Mademoiselle, dirigindo-se para a escada.

- Já tirámos tudo da sala - respondeu Gerald, falando com toda a verdade. - Como ficaram tão as sustadas, pensámos que não queriam voltar a olhar para aquele amontoado de roupas e cordéis.

- Então - propôs a Mademoiselle, entrando na sala de jantar e verificando que "os espectadores" já lá não estavam -, que tal fazermos uma ceia e conversarmos sobre o vosso maravilhoso espectáculo?

Gerald explicou-lhe que os irmãos certamente gostariam muito mas que ele devia ir levar Mabel a casa porque a tia certamente já estava preocupada por ela ainda não ter regressado.

Assim, Mabel pôs o chapéu que lhe pertencia, vestiu um casaco que não era dela e saiu com Gerald.

- Mabel - disse ele -, eu sei que tu és muito

corajosa e por isso, engendrei este plano. Posso confiar plenamente em ti?

Podes - respondeu Mabel, sentindo que tinha de fazer das tripas coração para não destruir tal reputação.

- Então, espera aqui ao pé do candeeiro. Quando os vires chegar comigo, lembra-te que são inofensivos e fala com eles como se fossem pessoas iguais ás outras.

Voltou-se para a deixar, mas parou para responder à pergunta natural que ela lhe fez:

- Para que hotel os vais levar?

- Bolas! - disse ele. - Tinha-me esquecido completamente! Há algum sítio, nos jardins do castelo, onde eles possam ficar? É só durante a noite porque, tal como aconteceu connosco quando ficávamos invisíveis, o encanto vai durar umas horas e depois vai apenas haver um monte de casacos e chapéus para levarmos para casa. Lembras-te de algum sítio?

- Só se for a passagem secreta - respondeu Mabel, enquanto um dos monstros aparecia ali perto a espreitar a rua.

- Vou já - disse Gerald, correndo para ele. Foi precisa muita força de vontade para Mabel não desatar também a correr mas no sentido oposto. Mas manteve-se firme e sentiu-se orgulhosa de si própria, apesar de ter sido uma noite que nunca mais esqueceu.

No silêncio necessário para um tio louco não ser incomodado, todo o grupo saiu de ao pé da casa e começou a andar pela rua fora.

- Não faças tanto barulho a andar - disse a senhora do chapéu ao monstro cuja perna era uma vassoura, fazendo com que Gerald fizesse um esforço enorme para não rir, ao ver o grotesco da situação.

Mabel caminhava, repetindo para si própria que não tinha medo, que não passavam de um monte de roupa com cabides e tacos de jogar, mas não esquecia como as mãos lhe tinham gelado quando Gerald a tinha apresentado aos monstros, dizendo:

- Esta é uma das nossas amigas e chama-se Mabel. Lembram-se, com certeza, de que no espectáculo ela fazia de Princesa.

Nessa altura, o monstro bem educado dirigira-se a ela e estendera-lhe uma mão constituída por uma ponta de vassoura coberta por uma luva cheia de lenços. Apesar do momento de pânico, conseguiu estender-lhe a dela e cumprimentá-lo, o que o fez dizer gentilmente:

- És um amor de menina! Anda, vem ao meu lado na rua

Era, de facto uma estranha procissão mas, felizmente, os habitantes da vila deitavam-se cedo e as botas do polícia ressoavam de tal maneira na rua que seriam ouvidas muito antes de ele aparecer, possibilitando uma rápida alteração do percurso seguido.

Só encontraram um homem, que prontamente fugiu, e que, ao contar o que vira, no dia seguinte, foi desmentido pela mulher, a qual considerou que era uma desculpa para andar fora de casa até tão tarde. Entretanto, Gerald era submetido a um longo interrogatório pelo monstro mais alto, acerca dos estudos, dos desportos que fazia, dos passatempos e dos desejos que tinha para quando fosse adulto. Enquanto respondia a tais perguntas, ia pensando quantas horas estariam aquelas criaturas vivas. Seriam sete? Seriam catorze? Seriam vinte e uma? Desta vez, teria alguma coisa a ver com o número sete como tinha acontecido com eles?

Não tinha encontrado qualquer resposta quando chegaram aos portões do castelo que, claro, estavam fechados.

- Como vêem, estão fechados - explicou ele aos monstros. - Já é muito tarde. Há outro caminho. tem de se escalar uma gruta.

- Não é muito próprio para senhoras - começa a objectar o monstro bem educado, que foi imediatamente interrompido por elas.

- É uma aventura maravilhosa! Vamos adorar! Assim, continuaram pela estrada e fizeram o caminho da gruta que já conhecemos.

Quando saíram do túnel e se encontraram nos jardins encantados, ao luar, e viram todas aquelas maravilhas, mostraram-se verdadeiramente encantados. Quanto ao castelo, foi considerado "um hotel com aspecto magnífico".

- Temos de dar a volta e entrar pelas traseiras, disse Mabel. - A porta da frente é fechada às nove e meia da noite.

Assim, contornaram o lago com as margens de mármore e cujas águas brilhavam esplendorosamente ao luar, e subiram os degraus que levavam ao Templo de Flora. A parte de trás do templo não tinha arco e estava encostada a uma pequena colina arborizada.

Mabel contornou a estátua da deusa, mexeu em qualquer coisa e, à luz da lanterna de Gerald, todos puderam ver uma abertura que se prolongava por uma passagem estreita. A pedra que constituía a porta até então fechada, rodara docemente sob a pressão dos dedos de Mabel.

- É por aqui - disse ela.

- Passe para a frente com a lanterna, por favor, pediu a Gerald, o monstro bem educado.

- Eu sou o último para fechar a porta - respondeu ele.

- Então, pode ir a princesa! Nós tomamos conta dela.

- Peço desculpa, mas nós somos os responsáveis por manter tudo em condições. Certamente não quererão trazer-nos problemas quando estamos a tentar ajudá-los! - disse Gerald, voltando-se, em seguida, para o monstro bem educado. - Pegue na lanterna e vá à frente. Sei que posso confiar em si!

Entretanto, perguntou baixinho a Mabel:

- Há muitos degraus?

- Nem por isso - respondeu ela no mesmo tom de voz. - Vai a direito uns metros e depois começa a curvar.

- Aos segredinhos, Que falta de educação - disse um dos monstros mais baixo e que quase não havia falado até então.

- Não façam caso, ele é que não a tem! - disse- lhes a senhora do chapéu.

O monstro bem educado empunhou a lanterna, entrou na passagem e os outros seguiram-no, enquanto Mabel e Gerald sustinha a respiração, mal podendo acreditar que o plano estava a resultar.

Quando passou o último, deram um suspiro de alívio e começaram a empurrar a porta.

No entanto, tal alívio foi prematuro porque, sem eles perceberem a razão, os monstros voltaram para trás e quiseram sair. Ou algo os assustara naquela passagem tão escura ou, instintivamente, perceberam que não era a entrada traseira de um hotel e estavam a ser enganados.

Gerald e Mabel empurravam a porta com quanta força tinham, sabendo que já não eram encarados como amigos. O silêncio da noite foi cortado por gritos:

- Não queremos continuar aqui! Apanhem esses malandros!

Os dois amigos sentiram-se no limite das suas forças quando, subitamente, a escuridão foi quebrada pela luz de um farol de bicicleta e uma mão possante empurrou a porta e a fechou.

- Que se passa aqui, afinal? - perguntou o recém-chegado, enquanto Mabel se atirava para o chão soluçando de alívio e de cansaço. - Não estejas tão nervosa! Já acabou tudo!

- Não posso contar-lhe nada - disse Gerald.

- Já vamos discutir isso, está bem? É melhor saírmos daqui e irmos conversar ao luar. Sempre é mais agradável!

Enquanto caminhavam, Gerald pensou que talvez aquele homem fosse um guarda de caça. No entanto, pela maneira como falava, certamente teria um passado muito romântico que o levara a tal profissão. Por outro lado, não parecia tão crédulo como Eliza, Johnson ou até a Mademoiselle, pelo que não serviria para nada contar-lhe a história já contada, com êxito, aos outros. Parecia daqueles que se contentavam só com a verdade!

Quando chegaram aos degraus do templo, o desconhecido sentou-se entre as duas crianças e disse:

- Ora vamos lá ouvir a história que têm para contar

Mabel rompeu em soluços novamente, o que é compreenssível já que todas as heroínas têm os seus momentos de fraqueza!

- Não vale a pena - disse Gerald. - Eu podia inventar uma história qualquer mas tenho a certeza de que descobria logo que era mentira!

- Obrigado pelo elogio à minha inteligência, disse ele. - Mas, porque não me contas a verdade.

- Porque não ia acreditar - respondeu Gerald.

- Experimenta! - retorquiu o desconhecido. Ele trazia vestido um casaco de bombazina, o rosto estava bem barbeado e tinha uns grandes olhos que brilhavam à luz do luar.

- Não posso - disse Gerald, com toda a sinceridade. - ía pensar que estávamos todos doidos, metia- nos num hospital ou... qualquer outra coisa! Agradeço muito a ajuda que nos deu mas, agora, deixe-nos voltar para casa, por favor!

- Estava a pensar se vocês teriam alguma imaginação!

- Partindo do princípio que os inventámos. começou Gerald a dizer, calando-se prudentemente.

- Se, quando dizes "os", estás a referir-te àquelas pessoas que eu ajudei a prender na gruta - disse o desconhecido, passando o braço por cima dos ombros de Mabel -, lembra-te de que eu os ouvi! E, com todo o respeito pela vossa imaginação, duvido que conseguissem imaginar algo tão convincente!

Gerald apoiou os cotovelos nos joelhos e o queixo nas mãos, com ar pensativo.

- Acalma-te - disse ele a Gerald - e, entretanto, eu apresento a situação do meu ponto de vista, já que também não devem perceber o que estou a fazer aqui. Eu vim de Londres para tratar de um assunto muito importante.

- Pensei que era um guarda de caça - disse Gerald.

- É um herói em apuros - disse Mabel, encostando a cabeça aos ombros do desconhecido. - Tenho a certeza!

- Nem por isso! - disse ele. - Ainda não estou

com a corda ao pescoço! Logo na primeira noit resolvo vir dar um passeio ao luar e, ao aproximar-me de um edifício branco, ouço um barulho enorme, gritos de pessoas a pedir que as libertem e pedidos de ajuda. Levado pelo entusiasmo, dou a ajuda pedida.

Fecho não sei quem por trás de uma porta de pedra. Acham que não é razoável eu tentar saber o que se passa e saber a quem ajudei?

- É razoável - respondeu Gerald.

- Então.

- Bem, o que acontece. - disse Gerald. - O que acontece é que eu não posso contar!

- Está bem - respondeu o desconhecido. Então vou tentar os outros. Vou abrir aquela porta e descobrir sozinho a história toda!

- Conta-lhe - disse Mabel. - Tanto se me dá que ele acredite como não. Não podemos deixar sair cá para fora aquelas criaturas!

- Então, eu conto - disse Gerald. - Mas primeiro, tem de nos dar a sua palavra de honra em como nunca contará a ninguém o que lhe dissermos nem nos manda internar num hospital psiquiátrico, por muito louca que lhe pareça a história que vai ouvir.

- Prometo - respondeu ele. - Mas, se vocês se envolveram numa luta e encarceraram a outra parte, não seria melhor libertá-los? Pareceram-me muito assustados e devem ser crianças também!

- Espere até saber tudo! - disse Gerald. - Quer que lhe conte o que se passou com eles ou tudo desde o princípio?

- Tudo desde o princípio!

- Então, começo eu - disse Mabel. - Encontrei um anel e disse que ele me tornaria invisível. Eu disse aquilo por brincadeira mas a verdade é que aconteceu. Estive invisível vinte e uma horas. Não interessa onde encontrei o anel! Continua, Gerald.

E Gerald contou a história que já sabemos.

- Assim - terminou ele -, pusemo-los ali dentro e daqui a sete, catorze ou vinte e uma horas, ou quaisquer horas relacionadas com sete, deixarão de ter vida e passarão a ser casacos, luvas, etc. Ficaram com vida às nove e meia da noite, portanto, devem acabar lá para as quatro e meia da manhã. Já podemos voltar para casa?

- Vou levar-vos a casa - disse o desconhecido, em tom exasperantemente gentil. - Vamos!

- Não acreditou em nós - disse Gerald. - Não acreditou, nem ninguém acreditaria! Mas, se eu qui- sesse, até lhe provava que é verdade!

Estavam os três de pé e o desconhecido examinava Gerald, até que este lhe respondeu, como se lesse pensamentos:

- Não pareço doido, pois não?

- De facto, não! - respondeu ele. - Mas, não estarás com febre ou com uma doença qualquer?

- E a Cathy, o Jimmy, a Eliza, a Mademoiselle, estão todos doentes? O senhor também os ouviu! Será que também está com febre ou com alguma doença que não conheça?

- Que eu saiba, não! Venham, vou levá-los a casa!

- Mabel vive em Yalding Towers - disse Gerald.

- Não tenho qualquer parentesco com Lord Yalding - apressou-se a explicar. - Sou a sobrinha da governante.

Quando chegaram à porta de serviço, Mabel deu um beijo no desconhecido e entrou em casa.

- É um amor! - comentou ele, enquanto se dirigiam para os portões. E chegaram, finalmente, à porta da escola.

- Ouça - disse Gerald, ao despedir-se -, eu sei muito bem o que está a pensar fazer! Vai abrir aquela porta, não é verdade?

- Muito esperto! - comentou o desconhecido.

- Por favor, não o faça! Pelo menos até de manhã e nós estarmos consigo. Podemos estar lá por volta das dez da manhã!

- Está bem! Encontramo-nos às dez da manhãconcordou o desconhecido. - Vocês são os miúdos mais estranhos que eu conheci até hoje!

- Podemos ser estranhos mas também o seria se. Boa-noite

No dia seguinte, enquanto atravessavam o relvado que levava ao Templo de Flora, as quatro crianças conversavam sobre as aventuras da noite anterior e a coragem demonstrada por Mabel. Não eram dez horas mas meio- dia e meia. Tinha-se demorado porque Eliza e a Mademoiselle haviam insistido em que eles tinha de ajudar a limpar e arrumar o "lixo" da véspera.

- Tu merecias uma medalha - dizia Cathy. - E uma estátua também!

- Ganhava vida se a pusessem aqui! - comentou Gerald.

- Eu não teria medo! - disse Jimmy.

- À luz do dia - assegurou-lhe Gerald -, tudo tem um aspecto muito diferente.

- Espero que ele esteja aqui à nossa espera - disse Mabel. - Vais ver, Cathy, é muito simpático e um verdadeiro cavalheiro

Subiram os degraus de mármore que brilhavam ao sol e, naquela altura, era difícil imaginar quão aterradora tinha sido a cena que se desenrolara ao luar.

- Vamos abrir a porta? - sugeriu Kathleen. Assim, já podemos começar a levar as roupas para casa.

- Espera - disse Gerald. - Vamos ouvir primeiro. Pode ser que ainda não tenham voltado a ser roupas.

Todos encostaram a cabeça à porta de pedra, atrás da qual tinham ficado os monstros, e não ouviram qualquer som. Foi só quando se viraram é que viram o homem com quem se vinham encontrar: estava no outro lado da estátua de Flora e jazia de costas no chão.

- Olhem - gritou Cathy.

As faces tinham uma cor esverdeada e, de um golpe na testa, correra um fio de sangue que manchava o mármore branco do chão.

Ao mesmo tempo, mas sem gritar, Mabel apontou para um maciço de redodendros, no qual se via uma cara de papel pintado e que imediatamente desapareceu no meio da vegetação.

 

Mais um desejo

A situação era clara: o infeliz desconhecido tinha aberto a porta antes do encanto ter terminado, pelo que os monstros eram ainda algo mais do que roupas, vassouras e tacos. E tinham sido eles a agredi-lo!

As raparigas tentaram logo socorrê-lo. Mabel pôs a cabeça dele no seu próprio colo e disse aos rapazes:

- Tragam água, depressa!

- Onde? - perguntou Jimmy, desorientado.

- No teu chapéu, por exemplo! - respondeu ela. Os rapazes deram meia volta e desataram a correr.

- Supõe que eles vêm atrás de nós! - disse Jimmy.

- Eles, quem? - perguntou Gerald.

- Os monstros - replicou Jimmy.

- E quem tem medo deles? - perguntou Gerald. No entanto, apesar da resposta dada ao irmão, olhou cuidadosamente à sua volta e escolheu um caminho que não passava pelo meio da vegetação. Encheram os chapéus de água e voltaram ao Templo de Flora, onde as raparigas, com o lenço de Gerald molhado na pouca água que não tinha escorrido do chapéu, limparam o sangue que estava na testa do desconhecido.

- Precisávamos de sais - disse Kathleen, quase a chorar.

- Pois precisávamos! - confirmou Mabel.

- A tua tia não tem?

- Tem, mas.

- Não vais ser cobarde agora - disse Gerald -, quando foste tão valente ontem à noite! Eles não te fazem mal! Ele deve tê-los insultado. Olha, tu vais a correr e nós vigiamos para ver se vai alguém atrás de ti. Está bem?

Como não havia alternativa, Mabel resignou-se a ceder a cabeça do desconhecido ao colo de Kathleen e, lançando um olhar desconfiado aos redodendros, voou para o castelo, enquanto os outros três ficavam a tomar conta do desmaiado.

- Não está morto, pois não? - perguntou Jimmy, ansioso.

- Não - respondeu Kathleen. - O coração está a bater. Mabel e eu encostámos o ouvido ao peito dele para confirmarmos. É como fazem os médicos! Está com mau aspecto, não está?

- Não é muito famoso, não! - admitiu Gerald.

- Nunca percebi o que querem vocês dizer quando se referem a bom aspecto - queixou-se Jimmy.

Nesse momento projectou-se uma sombra ao lado deles e não podia ser ainda a de Mabel. Levantaram a cabeça e viram o monstro bem educado, o que fez com que Jimmy e Kathleen gritassem.

- Que jovem tão apresentável! - disse ele.

- Brutos! - gritou Gerald, que ainda tinha o anel no dedo. - Calem-se!

E acrescentou baixinho, virando-se para os irmãos:

- Vou levá-lo daqui!

- Muito aborrecido, tudo isto! - disse o monstro bem educado.

Ele falava com um sotaque esquisito. Pronunciava os erres, os emes e os enes como se tivesse um cubo de gelo na boca mas já não se ouviam os sons desarticulados da noite anterior.

Kathleen e Jimmy encostaram- se ao desconhecido que, apesar de desmaiado, parecia ser uma protecção. Gerald, com a fortaleza de ânimo dada pelo anel, levantou-se para começar a afastar-se. Ao olhar para o monstro, verificou que a cara tinha o mesmo aspecto que ele lhe dera quando a pintara mas agora era uma cara verdadeira, assim como o resto do corpo: pernas, braços, enfim, tudo era real!

- Que aconteceu? - perguntou ele.

- Algo muito aborrecido - respondeu o monstro. - Os outros perderam- se naquela passagem e não conseguiram encontrar o hotel.

- E o senhor conseguiu? - perguntou Gerald, estupefacto.

- Claro - respondeu o monstro. - Era um belíssimo hotel, tal como tu tinhas dito! Mais tarde, resolvi sair pelo mesmo sítio por onde tinha entrado porque, além de querer ver à luz do dia o maravilhoso espectá culo que pude apreciar ontem ao luar, as pessoas que estavam no hotel não souberam indicar-me a porta principal. Quando cheguei ao princípio da passagem, encontrei todos os outros zangadíssimos, depois de terem estado toda a noite a tentar sair. De repente, a porta abriu-se, calculo que tenha sido esse jovem, e, antes que eu pudesse protegê-lo, aquele senhor do chapéu, lembras-te? bateu-lhe na cabeça e ele caiu precisamente onde está agora. Cada um foi para seu lado e eu ia procurar ajuda para tratar do jovem quando vos vi.

Nesta altura, Kathleen estava branca como o papel e Jimmy lavado em lágrimas:

Que te aconteceu, meu rapaz? - perguntou-lhe o monstro.

Instantaneamente, Jimmy passou das lágrimas para os gritos, o que levou Gerald a enfiar-lhe o anel no dedo, a ver se ele perdia o medo e deixava de berrar. Nessa altura, Gerald avaliou o terror por que passara Mabel! Mas... era de dia e ele não era cobarde!

- Temos de procurar os outros - disse ele.

- Devem estar a tomar banho porque vi as roupas todas espalhadas pela relva - respondeu o monstro.

- Vocês dois vão ver o que se passa - disse Gerald. - Eu fico a segurar na cabeça dele.

Logo que se afastaram, Jimmy, agora corajoso como um leão, começou a encontrar monstros espalhados ali à volta. mas já não passavam dos bonecos que eles tinham feito e pintado! A vida desaparecera, conforme ele provou à irmã, muito receosa, abanando-os e escangalhando- os.

- Quebrou-se o encanto - disse ela - e aquele senhor idoso é verdadeiro, embora seja parecido com o monstro que fizemos.

- De qualquer modo, traz o casaco que costuma estar no bengaleiro do átrio! - respondeu Jimmy.

- Não é o mesmo, é só parecido! Vamos voltar para ao pé do nosso amigo desmaiado.

Quando lá chegaram, Gerald pediu ao senhor idoso que fosse com Jimmy dar um pequeno passeio.

- Sabe, se este jovem volta a si, pode ficar incomodado ao ver pessoas que não conhece. E o meu irmão é o mais adequado de nós todos para lhe fazer companhia.

Claro que ele disse a maior verdade, uma vez que Jimmy tinha o anel no dedo E lá foram os dois passear.

Mabel regressou precisamente quando o novo amigo abria os olhos.

- Afinal, não valia a pena ter ido buscar os sais

- disse ela. - No entanto...

E, ajoelhando-se, chegou o frasco aberto ao nariz do jovem que, após ter aspirado os sais, afastou o frasco com a mão e fez a pergunta sacramental:

- Que me aconteceu?

- Magoou-se na cabeça - respondeu Gerald. Deixe-se estar deitado!

- Está bem, mas não quero cheirar mais esse frasco! - disse ele, com voz fraca.

Passado pouco tempo, sentou-se e olhou à volta, no meio do silêncio que se fizera. Ali estava um adulto que conhecia o segredo da noite anterior e nenhuma das crianças sabia qual era a pena que a lei previa para pessoas, qualquer que fosse a idade, que fazia marionetas e lhes davam vida, tornando-as, ainda por cima, perigosas e agressivas. Que iria aquele adulto fazer?

- Estive desmaiado muito tempo? - perguntou ele.

- Imenso - respondeu Mabel.

- Nem por isso - disse Kathleen.

- Não fazemos ideia - respondeu Gerald. - Já o encontrámos assim!

- Já estou bem - disse ele, olhando para o lenço sujo de sangue. - Parece que bati com a cabeça em qualquer lado e foram vocês que me socorreram. Agradeço muito Mas. é estranho

- O que é que é estranho? - sentiu-se Gerald na obrigação de perguntar.

- Bem. parece-me que, antes de desmaiar, eu estava à espera de vos encontrar! Depois, tive um sonho muito esquisito no qual vocês participavam mas deve ter sido quando estava desmaiado!

- Só nós é que fazíamos parte do sonho? - perguntou Mabel.

- Não. Havia outras coisas mas eram muito disparatadas e, portanto, absolutamente impossíveis! Mas 2ocês são perfeitamente reais!

Todos deram um suspiro de alívio, considerando que fora "um golpe de sorte".

- Tem a certeza de que está mesmo bem? perguntaram-lhe eles, logo que ele se pôs de pé.

- Estou óptimo, obrigado - respondeu ele, olhando para a parte de trás da estátua de Flora. Imaginem que eu até sonhei que havia ali uma porta, o que, claro, é impossível! Não sei como agradecer-vos. Foi uma sorte terem aparecido por aqui! Já sabem, podem vir sempre que quiserem e têm liberdade para andarem por onde vos apetecer!

- É o novo administrador da propriedade, não é?

- perguntou Mabel.

- Sou. Como é que sabes?

Mas, em vez de lhe responderem a esta pergunta, informaram-no de que tinham de ir embora, despedindo-se amigavelmente e manifestando o desejo de se encontrarem novamente.

- Queria saber - disse Gerald, observando o novo administrador que se afastava caminhando pelo relvado -, o que pensam vocês fazer hoje. É que eu tive uma ideia!

Como elas não tinham outra ideia, ele explicou:

- Vamos encontrar uma maneira de nos vermos livres daquele marioneta e seguimos direitinhos para casa. Logo que lá chegarmos, metemos o anel dentro de um sobrescrito e lacramo-lo. Assim, deixa de ter poderes mágicos e não nos mete em mais trabalhos. A seguir, vamos para o terraço e passamos um dia calmo a ler livros e a comer maçãs. Já estou mais que farto de aventuras!

Elas concordaram.

- Agora - pediu Gerald -, pensem o mais que puderem para descobrirmos a maneira de nos vermos livre dele.

Mas, por mais que pensassem, estavam demasiado cansados e não encontravam uma solução apropriada.

- Espero que o Jimmy esteja bem - lembrou, de repente, Kathleen.

- Claro que está, tem o anel, - respondeu Gerald.

- Espero que ele não formule nenhum desejo maluco - disse Mabel.

- Está calada e deixa-me pensar - pediu Gerald. - Vou sentar-me e pensar alto porque, comigo, costuma dar mais resultado! Ora bem, não há dúvida de que aquela marioneta se tornou uma verdadeira pessoa. E isso aconteceu quando foi até ao fundo da passagem. Se conseguíssemos levá-lo lá outra vez, talvez o encanto se quebrasse e nós só tínhamos de trazer cá para fora as roupas.

- Não haverá outra maneira? - perguntou Kathleen.

- Podes ter a certeza de que eu não vou ali para dentro - garantiu Mabel.

- Não me digas que tens medo! À luz do dia! disse Gerald.

- Lá dentro não há luz do dia! - respondeu Mabel.

- Se formos ter com ele - lembrou Kathleine, de repente, lhe despirmos o casaco, já que ele é só roupas, não pode continuar a existir!

- Ai não que não pode! - retorquiu Gerald. Sabes lá como é que ele está por baixo do casaco!

- Não me tinha lembrado disso - respondeu ela.

- De qualquer modo - continuou Gerald -, vamos tentar levá-lo lá e, depois, toca a ler o "Robinson Crusoe" ou outro livro que não trate de magias! Vamos. Ele não é muito horroroso e até é uma pessoa verdadeira.

- Realmente, isso modifica tudo - disse Mabel, tentando convencer-se a si própria.

- E agora é dia - insistiu Gerald. - Vamos!

Deu a mão a cada uma delas e dirigiu-se resolutamente para o maciço de redodendros, atrás do qual devia estar Jimmy e o monstro. Enquanto caminhavam, ele ia repetindo:

- Ele é uma pessoa verdadeira! Está um lindo dia de sol! Daqui a pouco está tudo resolvido!

Logo que se aproximaram da vegetação, os ramos mexeram-se e Jimmy apareceu. Com espanto, verificaram que estava sozinho.

- Onde está ele? - perguntaram as raparigas.

- Anda a passear de um lado para o outro – disse Jimmy. - Tem um caderno de apontamentos e está a fazer contas. Diz que é muito rico e que tem de ir depressa para a cidade por causa da Bolsa. Sabem, aquele sítio onde se compra e vende papéis que valem dinheiro. Deve ser engraçado assistir a uma sessão da Bolsa! Não gostavam de saber como é? Eu gostava!

- Eu não quero saber disso para nada – disse Gerald. - Já me chega tudo o que assisti até agora.

Mostra-nos onde ele está para tentarmos ver-nos livres dele.

- Ele diz que tem um automóvel – continuou Jimmy, enquanto passavam pelos redodendros -, um jardim muito grande com um campo de ténis e um lago, uma carruagem puxada por uma parelha de cavalos e vai muitas vezes passar férias a Atenas.

- O melhor que temos a fazer - disse Gerald -, é dizer-lhe que o caminho mais curto atravessa o hotel onde ele ficou de noite. Levamo-lo para a passagem, damos-lhe um encontrão e fechamos logo a porta.

- Mas, se ele é uma verdadeira pessoa, acaba por morrer à fome e isso não podemos deixar que aconteça - disse Kathleen.

- Esperemos que o encanto não dure assim tanto - disse Gerald. - Além disso, não encontro outra alternativa.

- Acho que ele é mesmo muito rico - continuou Jimmy, completamente alheio à conversa dos irmãos. - Diz que mandou construir uma biblioteca pública, na cidade onde vive, e vai lá pôr um retrato dele para dar prazer aos habitantes.

Depois de passarem os maciços de redodendros, as crianças chegaram ao caminho relvado, ladeado por pinheiros e abetos.

- Está ali naquele canto - disse Jimmy. - Ele está a nadar em dinheiro. Nem sabe o que fazer a todo o que tem. Vai também mandar construir uma fonte com um pedestal no meio e um busto dele em cima. Só não percebo porque não mandou fazer uma banheira privativa, ao lado da cama, e todas as manhãs rolava e deixava-se cair lá dentro. Quem me dera ser rico! Hei-de dar-Lhe esta ideia!

- Realmente é um desejo muito sensato - disse Gerald. - Não sei porque nunca nos lembrámos de tal coisa. Oh Não.

No silêncio do bosque, olharam uns para os outros horrorizados: Jimmy obtivera o seu desejo! O Jimmy com quem brincavam tornou-se, em poucos segundos, um homem adulto, de meia-idade, alto, com ar muito educado e próspero, de casaca chapéu alto e bengala.

- Oh, Jimmy, não continues! - gritou Mabel.

- Mas que estupidez - disse Gerald, enquanto Kathleen começava a chorar.

- Não chore, minha menina - disse "aquele-que-tinha- sido-Jimmy".

- E você, meu rapaz, pode dar uma resposta capaz a uma pergunta normal?

- Ele não nos conhece! - lamentou-se Kathleen.

- Quem é que não vos conhece? - perguntou "aquele-que-tinha-sido".

- Não digas mais nada! - soluçou Kathleen.

- Não digo! - respondeu "aquele-que-tinha-sido". - Não sabia que ia incomodá-la tanto!

- Oh, Jimmy, Jimmy! - dizia Kathleen, soluçando cada vez mais.

- Ele não nos conhece mesmo - confirmou Gerald. - Olha lá, Jimmy, se estás a brincar, pára com a brincadeira porque não tem graça nenhuma!

- O meu nome é. - disse "aquele-que-tinha-sido", dando o nome com toda a correcção. (A propósito, para simplificar, vamos passar a chamar-lhe apenas Aquele )

- O que vamos nós fazer? - murmurou Mabel, aterrorizada. E continuou, em voz alta. - Sr. Jámes, ou lá como se chama, dá-me esse anel que tem no dedo?

- Claro que não! - respondeu Aquele. - Mas que menina tão mal educada!

- Mas o que vai fazer? - perguntou Gerald, em tom desesperado.

- Essa pergunta é perfeitamente despropositada respondeu Aquele com frieza. - Importa-se de me indicar o caminho para a estação dos comboios?

- Importo! - respondeu Gerald.

- Então - disse Aquele, ainda com toda a delicadeza mas claramente furioso -, pode indicar-me caminho para o hospital psiquiátrico mais próximo?

- Não - gritou Kathleen -, não podes ser assim tão mau

- Talvez não. Mas vocês são, com certeza - retorquiu Aquele. - Vejo além um senhor com ar de pessoa normal. Parece-me que estou a reconhecê- lo!

De facto, aproximava-se um cavalheiro idoso que não era outra coisa senão o monstro.

- Não te lembras do Jerry? - perguntou Kathleen, a chorar. - Nem da tua irmã Cathy? Jimmy, não sejas estúpido!

- Minha menina - disse Aquele, olhando-a fixamente através dos óculos -, lamento profundamente terem-na educada tão mal!

E, voltando-lhes as costas, foi direito ao monstro. Cumprimentaram-se tirando cada um o seu chapéu, falaram um pouco e começaram a caminhar, lado a lado, seguidos pelas crianças completamente horrorizadas e sem imaginarem como iria aquilo tudo acabar.

- Ele quis ser rico, logo, é rico - diss Gerald. Portanto, tem dinheiro para comprar os bilhetes do comboio e para tudo quanto precisar. O pior será quando o encanto se quebrar e ele se encontrar num sítio completamente estranho, por exemplo, um hotel, e sem fazer ideia de como lá foi parar.

- Gostava de saber quanto tempo demorou o encanto dos outros - disse Mabel.

- A propósito - respondeu Gerald. - É melhor que tu e a Kathleen vão apanhar as roupas e as outras coisas todas. Escondam-nas em qualquer sítio e amanhã levamo-las para casa. Se houver um amanhã!

- Não digas isso - pediu Kathleen, novamente lavada em lágrimas. - Com um dia tão bonito, não podemos ter pensamentos tristes!

- Ouçam - disse Gerald. - Eu vou seguir o Jimmy. Vocês vão para casa e dizem à Mademoiselle que eu e o Jimmy fomos apanhar o comboio com um cavalheiro que parecia um tio. Por acaso, até parece!

Depois, levamos uma descompostura mas, paciência, tem de ser!

- Que grande carrada de mentiras - disse Kathleen. - Parece que já nem sabes falar verdade!

- Não te preocupes - respondeu o irmão -, não são mentiras. São verdades como tudo o resto que tem acontecido nesta confusão de magias. É como dizer mentiras nos sonhos: não consegues evitar.

- Eu queria era que se quebrasse o encanto!

- Vale-me de muito esse teu desejo! – respondeu Gerald. - Até logo! Tenho de me ir embora e vocês têm que fazer aqui. Se te ajuda, ficas a saber que eu não acredito que isto seja real: é demasiado confuso e estranho para que o possa ser. Diz à Mademoiselle que eu e o Jimmy voltamos à hora do lanche. Se não for possível, logo se vê! Adeus!

Desatou a correr para apanhar os dois homens, que tinham apressado o passo.

- Vamos apanhar aquelas coisas todas – disse Mabel. - Eu, dantes, gostava de ser uma heroína, mas o que imaginamos é muito diferente da realidade, não é?

- Lá isso é! - respondeu Kathleen. - Anda!

vamos esconder tudo isto? Terá de ser naquela passagem?

- Nem pensar - disse logo Mabel. – Vamos metê-lo no buraco da barriga da estátua do dinossauro.

- Mas ele ganha vida! - lembrou Kathleen.

- Durante o dia, não - respondeu Mabel. - sem o anel, nós não damos por isso.

- Que pena! - disse Kathleen. - Afinal não vamos ter uma tarde sossegada com livros e maçãs.

- Pois não - respondeu Mabel. - Mas, logo que chegarmos a casa, vamos fazer a coisa mais infantil que há: vamos fazer uma festa com as bonecas, com chá e tudo. Ao menos, não tem nada a ver com magias

- Então, tem de ser um chá muito forte! - disse Kathleen.

E agora acompanhemos Gerald, que caminhava pela estrada poeirenta atrás dos dois homens. Ao meter a mão na algibeira das calças, sentiu-se feliz por lá encontrar o dinheiro que tinha ganho na feira, dando-lhe uma sensação de segurança.

Como levava calçados sapatos de ténis, os dois homens nunca se aperceberam de que estavam a ser seguidos e, ao entrar na estação, ouviu Aquele pedir:

- Um bilhete de 1. a classe para Londres, se faz favor.

Gerald esperou que eles se dirigissem para a plataforma e foi à bilheteira comprar um bilhete de ida e volta para Londres, em 3. a classe. O comboio chegou, fazendo muito barulho. Os perseguidos entraram numa carruagem cujos bancos estavam estofados com tecido azul e o perseguidor foi sentar-se numa com bancos de madeira pintados de amarelo. Ouviu-se um apito, uma bandeira foi agitada e o comboio partiu.

- Não compreendo - disse Gerald, sozinho na carruagem de 3. classe -, como comboios e magias conseguem funcionar ao mesmo tempo! E a verdade é que conseguem.

Mabel e Kathleen, embora nervosas, voltaram aos maciços de rododendros e apanharam todas as coisas que tinham ficado espalhadas quando as marionetas tinham deixado de estar encantadas. Ofegantes por causa do calor, carregaram com tudo até à colina onde estava a enorme estátua do dinossauro. Este tinha um grande buraco na barriga. Mabel dobrou-se para a frente e Cathy subindo para as costas dela, conseguiu arrumar lá dentro tudo o que tinham trazido.

- Há imenso espaço lá dentro - disse Kathleen. A cauda vai até ao chão e até parece uma passagem secreta

- Imagina que sai de lá qualquer coisa e salta para cima de ti! - disse Mabel, fazendo com que a amiga descesse rapidamente.

As explicações a dar à Mademoiselle prometiam ser difíceis de aceitar mas, como mais tarde concluiu Kathleen, qualquer pequena coisa é suficiente para desviar a atenção dos adultos. Quando ela tentava contar a história do pseudo-tio com quem os rapazes tinham ido a Londres, alguém passou na rua, junto à janela, o que levou a Mademoiselle a interrompê-la, perguntando:

- Quem é?

Elas espreitaram e viram que era o novo administrador que, obviamente, vinha do médico, pois trazia um grande penso no sítio onde tinha o ferimento.

- É o novo administrador de Yalding Towers responderam elas.

E a Mademoiselle não fez mais perguntas acerca da ausência dos rapazes.

O lanche foi tardio e silencioso, já que ninguém mostrava grande disposição para conversas. Logo a seguir, a Mademoiselle saiu, levando na cabeça um chapéu enfeitado com rosas cor-de-rosa e, na mão, uma som brinha da mesma cor.

Kathleen e Mabel fizeram uma festa com as bonecas com chá verdadeiro, tal como tinham combinado. À segunda chávena, começaram ambas a chorar.

- Quem me dera saber o que se passa com eles, disse Kathleen, soluçando. - Sempre custava menos!

Gerald sabia onde ambos estavam mas isso não lhe facilitava nada. No preciso momento em que Kathleen servia a segunda chávena de chá, Gerald estava escondido na escada dos Edifícios Aldermanbury, em Old Broad Street. No andar imediatamente abaixo havia uma porta com uma tabuleta que dizia "Sr. U. W. UGLI

- Corretor-Escritórios". No outro andar abaixo, outra porta apresentava o nome do irmão embora não especificasse o ramo de actividade. Assim, Gerald não conseguia saber o que tinha tornado o irmão tão rico!

Quando ele entrou, só conseguia ver muitas pessoas a trabalhar e várias secretárias de mogno. Parecia ser um grande escritório e com muito trabalho.

O que poderia Gerald fazer?

Era praticamente impossível, sobretudo para um rapaz da idade dele, entrar num grande escritório de Londres e explicar que o respectivo dono era o seu irmão mais novo, que tinha crescido e enriquecido por obra e graça de um anel mágico! Nem podia bater à porta do escritório do andar de cima e dizer aos trabalhadóres do Sr. Ugli que o patrão não passava de um monte de roupas que, por acaso, se tinham tornado num ser vivo ao passar a noite num hotel que até nem

existia!

Era, de facto, uma situação bem espinhosa! E, a acrescentar a estas desgraças, a hora do almoço já passara há muito e Gerald estava a morrer de fome, o que, como é sabido, perturba bastante o pensamento.

O desespero começava a tomar conta dele quando um rapaz, cujo cabelo parecia um espanador, começou a subir as escadas. Trazia na mão um saco azul escuro.

- Dou-te meio xelim se me arranjares uns bolos disse-lhe Gerald, com a pronta decisão de quem està habituado a comandar.

- Mostra lá o dinheiro - respondeu o rapaz com igual prontidão. - Está bem. Dá cá.

- Nem pensar! - respondeu Gerald. - O pagamento só é feito contra a entrega da mercadoria.

- Espertalhão! - disse o rapaz, olhando-o com admiração.

- Nem por isso - respondeu Gerald, com modéstia. - Vai lá depressa. Eu tenho de ficar aqui na escada.

Se quiseres tomo conta do teu saco.

- Não querias mais nada? - disse o rapaz. Também já sou esperto há uns anos. Mais ou menos

desde a tua idade!

Lá foi e voltou com dois pacotes de bolos.

Um pouco mais tarde, ao ver o rapaz sair do escritório do Sr. Ugli, Gerald chamou-o.

- Que espécie de indivíduo é ele? - perguntou,

apontando para a placa.

- Um endinheirado sempre a querer mais - respondeu o rapaz. - Tem automóvel e todas essas coisas que os ricos têm.

- Sabes alguma coisa do outro do andar de baixo?

- Esse é ainda mais rico! A empresa é muito antiga e sólida. Têm um cofre especial no Banco de Inglaterra que está cheio de caixas com dinheiro. Menino, só te digo que não me importava nada de estar lá uma meia hora, com as portas abertas e sem polícia a tomar conta. Ainda apanhas uma indigestão se comes os bolos todos!

- Queres um? - perguntou Gerald, entregando-Lhe o saco.

- Obrigado - disse o rapaz, servindo-se. - Dizem lá no escritório que eles não se podem ver um ao outro, em questões de negócios, está bem de ver!

Entretanto, Gerald pensava na espécie de magia havida para dar um passado e uma história tão completa àquelas duas personagens. Se o encanto se quebrasse, eles desapareceriam da memória de todos os tra balhadores e pessoas que com eles lidavam? Desapareceriam, por exemplo, da memória deste rapaz? Desapareceriam com eles toda a mobília de mogno que estava nos escritórios? Os trabalhadores seriam reais? A mobília existiria de facto? Este rapaz seria real? Ele próprio seria real?

- Consegues guardar um segredo? - perguntou ele ao rapaz. - Estás numa folga?

- Não. Tenho de voltar ao escritório.

- Então, volta.

- Não sejas estúpido - respondeu o rapaz. - Eu ia dizer que não tinha importância. Sei muito bem que desculpa hei-de dar quando me atraso!

- Então, dou-te cinco xelins.

- Para quê? - foi a pergunta natural do rapaz.

- Para me ajudares.

- Dispara - disse o rapaz, na sua linguagem pouco educada.

- Sou um detective particular - disse Gerald.

- Tu? Não pareces nada!

- Para que serve sê-lo se o pareces? - perguntou Gerald, evidenciando uma lógica irrefutável. - Aquele indivíduo do andar de baixo é procurado.

- Pela polícia? - perguntou o rapaz muito excitado.

- Não, por parentes arrependidos.

- Estou a perceber - disse o rapaz. - Andavam todos zangados e agora querem fazer as pazes. A velha história do "tudo perdoado e esquecido", não é?

- Isso mesmo! Tenho é de ver se consigo que ele vá ter com os parentes. Talvez tu pudesses ir levar-lhe um recado de alguém que ele costume atender por causa dos negócios.

- Espera aí - disse o rapaz. - Sei uma maneira muito melhor. Vais falar com o Sr. Ugli porque ele dava tudo para ter o outro longe daqui por dois ou três dias. Ainda hoje de manhã ouvi comentarem isso no escritório.

Gerald levantou-se, acabou de comer o bolo e disse:

- Tens razão. Vou tentar. Toma lá os teus cinco xelins que bem os mereceste!

Sacudiu as migalhas, endireitou a roupa, bateu à porta do Sr. Ugli e entrou.

Passado um bocado, o rapaz ouviu a voz do patrão a dizer:

- Nessa altura eu peço-lhe que me deixe ver o anel, pego nele e deixo-o cair. Você apanha-o logo. Lembre-se de que é um acidente e que não me conhece de lado nenhum. Não quero o meu nome misturado numa situação dessas! Tem a certeza de que não é nada de mal?

- A certeza absoluta - respondeu Gerald. - Ele é louco por aquele anel e correrá atrás dele, tenho a certeza! Pense nos parentes que querem fazer as pazes com ele!

- Claro que é neles que eu estou a pensar - respondeu o Sr. Ugli.

Assim, o Sr. Ugli foi ter com o amigo e, passado pouco tempo, Gerald, que aguardava na escada, ouviu a voz de Jimmy, ou seja, Aquele, dizendo aos empregados que ia sair para almoçar. Os dois rapazes seguiram-nos.

- Que vais tu fazer? - perguntou o rapaz do escritório em voz muito baixa.

- Já vais ver - respondeu Gerald.

- Tens de me dizer porque eu tenho de voltar ao trabalho.

- Então, digo, só que tu não me vais acreditar. Aquele cavalheiro de meia idade não é velho, é apenas o meu irmão que, subitamente se tornou naquilo que estás a ver. Quanto ao outro, também não é verdadeiro, é apenas um monte je roupas velhas sem nada lá dentro.

- Por acaso até parece! - disse o rapaz. - Mas, tu estás a inventar isso tudo, não estás?

- Adeus - despediu-se Gerald.

- Continua lá - pediu o rapaz.

- O meu irmão ficou assim por causa de um anel mágico.

- Impossível! - exclamou o rapaz. - Aprendi na escola que não há objectos com poderes mágicos.

- Mas este tem - respondeu Gerald. - Se eu conseguir enfiá-lo no dedo e desejar que estejamos num determinado lugar, o meu desejo realiza-se logo. E, nessa altura, posso tratar dos dois.

- Tratar? - estranhou o rapaz.

- Sim, porque o anel não anula desejos. O encanto quebra-se com o tempo. Mas tenho a certeza de que realiza outro desejo. Pelo menos vou tentar.

- Tens muita imaginação, não tens? - perguntou o rapaz, admirado.

- Espera e verás! - prometeu Gerald.

- Não vais entrar aí dentro, pois não? Não podes!

- disse o rapaz, perante o aspecto majestoso do restaurante Pymm's.

- Claro que vou - respondeu Gerald. - Não nos põem fora se nos portarmos bem. Anda, vamos encomendar o almoço.

Não se sabe a razão que levou Gerald a ligar-se a este rapaz, que não tinha o mesmo tipo de educação que ele. Talvez fosse o facto de ser a única pessoa que conhecia em Londres e com quem podia falar, excepto Jimmy e o monstro. E, claro, não queria falar com nenhum deles.

O que aconteceu a seguir foi tão rápido que, como, mais tarde Gerald disse, "até parecia magia". O restaurante estava cheio de pessoas apressadas que comiam rapidamente a comida trazida por criados atarefados e Ouvia-se o tinir dos talheres e dos pratos, o barulho de cervejas a serem despejadas das garrafas para os copos e o murmúrio das conversas. E aspirava-se o cheiro de tantas coisas boas para comer.

- Duas costeletas, se faz favor - encomendou Gerald, brincando com o dinheiro a fim de que não houvesse dúvidas quanto à intenção de pagar, e prestando atenção à conversa que se desenrolava na mesa ao lado.

- Sim, é um objecto que se mantém na minha família há várias gerações - dizia Aquele, passando o anel para as mãos do Sr. Ugli.

Este murmurou qualquer coisa acerca de se tratar de uma peça única, certamente de muito valor e uma verdadeira antiguidade, enquanto o observava. O rapaz do escritório olhava com toda a atenção.

- Há mesmo um anel! - admitiu ele. Entretanto, o anel caiu da mão do Sr. Ugli e rolou pelo chão. Imediatamente, Gerald saltou da cadeira, apanhou-o, enfiou-o no dedo e gritou, perante o pasmo de todos os presentes:

- Desejo que eu e Jimmy estejamos na passagem cuja porta está por trás da estátua de Flora!

Foi este o local de que ele se lembrou onde poderiam estar a salvo. Subitamente, desapareceram as luzes, o barulho e os odores do restaurante, não se sabendo nunca mais o que se teria passado depois. Nem nos jornais apareceu qualquer notícia sobre "o extraordinário desaparecimento de um conhecido homem de negócios". Em vez das luzes e do barulho, havia agora a escuridão e o silêncio, e Gerald procurava as palavras adequadas para explicar ao companheiro o que fizera e porquê.

No entanto não foi preciso, porque ouviu a voz de Jimmy, seu irmão, e não a do velho rico em que ele se tornara pela manifestação de um desejo insensato, perguntou-lhe:

- Jerry, estás acordado? Tive um sonho tão esquisito

Por um momento, Gerald não conseguiu falar, limitando-se a apertar a mão do irmão.

- Está tudo bem, Jimmy! - disse ele. - Agora já não é um sonho. É aquele maldito anel outra vez! Tive de desejar que estivéssemos aqui para quebrar o teu encanto.

- Mas aqui, onde? - perguntou Jimmy, agarrado à mão do irmão de uma maneira que, noutras ocasiões, teria considerado absolutamente infantil.

- Estamos na passagem por trás da estátua de Flora

- respondeu Gerald.

- Acredito que está tudo bem - disse Jimmy, com voz ligeiramente irritada. - Sabes, por acaso, como vamos sair daqui?

- Vou fazer outro desejo - respondeu o irmão, Embora soubesse que o anel não desfazia desejos já realizados.

De facto, ambos tentaram mas... sem resultado. Continuavam na escura passagem que, segundo o Sr. Ugli, levava a "um bom hotel", a porta de pedra estava fechada e eles não sabiam como abri-la.

- Se, ao menos, eu tivesse fósforos! - lamentou-se Gerald.

- Porque não me deixaste continuar no sonho? queixou-se Jimmy. - Lá havia luz e eu ia começar a comer salmão e pepinos!

- E eu - suspirou Gerald -, ia comer costeletas com batatas fritas!

- Sempre tentei imaginar - disse Jimmy -, como seria ser enterrado vivo. Agora já sei! Mas, não deve ser verdade! Isto é que deve ser um sonho!

- Claro que é um sonho - respondeu Gerald corajosamente. - Vamos passar a chamar, de vez em quando, só para prevenir. Mas, tenho a certeza, não passa de um sonho!

- Pois não! - respondeu Jimmy.

 

Gigante e estátua

Há uma separação, fina como uma teia de aranha, e transparente como o vidro e forte como o ferro, entre o mundo da magia é aquele que consideramos o real.

Mas tudo pode acontecer quando se abrem fendas nessa separação, motivadas por anéis, amuletos, etc.

Assim, não é de surpreender que Kathleen e Mabel, que continuavam conscienciosamente a brincar com as bonecas, sentissem, de repente, um estranho, pouco razoável e irresistível desejo de voltar ao Templo de Flora.

Foram e, quanto mais se aproximavam do local, mais forte era a convicção de que estavam a fazer o que era acertado.

Também não é de admirar, portanto, que logo os primeiros gritos dados por Gerald e Jimmy "por precaução", tenham imediatamente sido ouvidos.

Começou a aparecer uma réstea de luz no sítio onde eles imaginavam ser a porta, esta foi-se abrindo lentamente e, num instante, eles estavam cá fora abraçando as raparigas, saboreando a luz e o calor do sol e contando-lhes as aventuras por que tinham passado.

- E deixaram o Sr. Ugli em Londres - comentou Mabel, ao terminar a narrativa. - Deviam tê-lo trazido convosco!

- Ele está lá muito bem - respondeu Gerald. Eu nem podia pensar em mais nada! Aliás, não, muito obrigado, já me chega o que passei com ele! Vamos para casa fechar o anel dentro de um sobrescrito lacrado! - Eu ainda não utilizei o anel! - reclamou Kathleen.

- Nem penso que o queiras fazer - disse Gerald -, quando vês tudo o que tem acontecido por causa dele!

- Não aconteceriam coisas destas se tivesse sido eu a manifestar desejos - protestou Kathleen.

- Olha - disse Mabel -, vamos pôr o anel na sala do tesouro e acabar com as magias. Eu nunca devia ter de lá tirado o anel. É uma espécie de roubo, assim como a Eliza tê-lo pedido "emprestado" para fazer figura quando saísse com o namorado!

- Se preferes voltar a pô- lo lá - disse Gerald -, por mim está tudo bem. Só te peço que, se algum de nós tiver um desejo sensato, deixes que volte a ser usado.

- Está bem - concordou Mabel.

Dirigiram-se todos para o castelo e mais uma vez Mabel fez rodar o painel, aparecendo a estante com as jóias. O anel foi colocado junto das peças esquisitas que Mabel dissera terem poderes mágicos.

- Parece tão inocente - comentou Gerald. Quem diria que tem tais poderes! Olha- se para ele e só se vê um anel antigo! Tenho estado a pensar no que a Mabel disse das outras coisas. Será que também têm poderes mágicos? Podíamos tentar saber!

- Por favor, não - pediu Kathleen. - Os objectos mágicos são maus. Divertem-se a levar-nos para sítios horríveis.

- Eu não me importava de tentar - disse Mabel -, só que já me esqueci do que disse acerca de cada um deles.

Os outros também não se lembravam e deve ter sido por isso que as várias tentativas que fizeram, atribuindo qualidades a diferentes objectos, não resultaram.

- Só o anel é que é mágico - concluiu Mabel, acrescentando numa voz diferente: - Estou a pensar.

- Em quê?

- Suponham que o anel também não é mágico!

- Mas nós sabemos que é!

- Eu não - respondeu Mabel. - Nem sei se hoje é hoje! Pode ser aquele outro dia e termos estado a sonhar montes de coisas!

- Não é - disse Gerald. - Naquele dia tu tinhas vestido as tuas roupas de princesa.

- Que roupas de princesa? - perguntou Mabel, abrindo muito os seus grandes olhos escuros.

- Não sejas parva - disse Gerald, irritado.

- Não sou parva - respondeu Mabel - e acho que já são horas de irem andando para casa. Certamente o Jimmy tem vontade de lanchar.

- Claro que tenho - respondeu Jimmy. - Mas, naquele dia, tinhas mesmo as roupas da princesa! Bom, vamos fechar as estantes e deixar o anel na sua "casa".

- Que anel? - perguntou Mabel.

- Não ligues - disse Gerald. - Ela está a fazer-se engraçada.

- Não estou, não - respondeu ela. - Repito, que anel?

- O anel dos desejos - disse Kathleen. - O que te tornou invisível.

- Não percebem - perguntou Mabel -, que o anel é aquilo que quisermos que seja? Por isso é que eu fiquei invisível: disse que era a magia dele e foi. Não podemos deixá-lo aqui, uma vez que é tão valioso.

Digam, o que é este anel?

- É um anel de desejos - disse Jimmy.

- E foi, quando desejaste aquele tremendo disparate - disse Mabel, cada vez mais excitada. - Eu digo que não é um anel de desejos. É um anel que torna aquele que o usar cerca de três metros e meio mais alto.

Enquanto falava, pôs o anel no dedo e imediatamente, perante os olhos arregalados dos companheiros, foi-se tornando cada vez maior até atingir o tamanho de que falara.

- Fizeste-a bonita! - disse Gerald.

Mabel tinha razão. Não fora em vão que ela dissera que não era um anel de desejos. De facto, era o anel que ela acreditara que fosse.

- E não sabes quanto tempo vai durar o efeito, disse Gerald. - É como a história da invisibilidade.

- Pode durar montes de dias! - disse Kathleen. Oh, Mabel, que tonta foste!

- Pois fui, já sei! - respondeu ela, furiosa. – Se tivessem acreditado no que eu dizia, não tinha tido que vos provar que tinha razão e não estava agora com este tamanho todo! Que vou eu fazer?

- Temos de te esconder até voltares a ter o tamanho normal - disse Gerald.

- Mas onde? - perguntou a pobre Mabel, batendo o pé de sessenta centímetros.

- Num dos quartos vazios. Tens medo?

- Claro que não! - respondeu ela. – Quem me dera tirar o anel e não lhe mexer mais!

- A gente não teve a culpa - disse Jimmy, falando verdade mas com pouca correcção de linguagem.

- Vou já tirá-lo - disse Mabel.

- Se eu fosse a ti - aconselhou Gerald -, não o fazia. Não queres ficar com esse tamanho para sempre, pois não? Desconfio que, se não tiveres o anel no dedo quando acabar o tempo do encanto, este não se quebra.

Mabel tocou no segredo, os painéis fecharam-se e as jóias desapareceram da vista. Mais uma vez a sala ficou vazia.

- Agora - disse Mabel -, onde vou eu esconder-me? Ainda bem que a minha tia me autorizou a dormir na vossa casa. O melhor é um de vocês ficar comigo para eu não estar sozinha com este estúpido tamanho!

De facto, ela estava enorme e as roupas tinham crescido com ela. Parecia uma garota que estivesse a ver-se naqueles espelhos, que é costume encontrar nos parque de diversões, e que tornam magras as pessoas gordas e gordas as magras, altas as baixas e baixas as altas. Subitamente, ela sentou-se no chão parecendo desconjuntar-se.

- Não te serve de nada sentares-te aí - disse Gerald.

- Não estou a sentar-me - retorquiu Mabel. Pus-me assim para poder passar na porta, senão ando às cotoveladas e joelhadas por todo o lado.

- Por acaso não têm fome? - perguntou Jimmy.

- Nem sei se tenho ou não! - respondeu a infeliz Mabel.

- Vou dar uma vista de olhos para ver se há alguém por aí - disse Gerald.

- É melhor eu ir lá para fora antes que escureça

- lembrou Mabel.

- Nem penses! Imagina se alguém te vê!

- Ninguém me vê se formos por um carreiro que

há no meio de um bosque de teixos. É tal e qual como

num livro de aventuras que eu li. Aliás, foi esse livro

que me deu a ideia de procurar passagens secretas, painéis que se movem com segredo, portas disfarçadas e

coisas no género. Posso ir a rastejar, como se fosse uma

serpente, e, como o caminho vai dar ao maciço de rododendros junto do dinossauro, podemos ficar aí.

- Mas nós temos de ir para casa comer - disse

Gerald.

- Estou a ver que não! - lamentou-se Jimmy.

- Não vão abandonar-me! - exclamou Mabel. Olhem, vou escrever à minha tia a pedir que vos dê comida

para um piquenique.

E escreveu o seguinte recado no bloco de Gerald:

"Querida tia.

"Pode mandar alguma comida para fazermos um piquenique? Geraldpode trazer. Se não estivesse tão cansada eu própria ia buscar tudo. Devo ter crescido muito depressa.

" Um abraço da sua sobrinha

Mabel"

  1. S. - Mande muita comida, se faz favor, porque estamos cheios de fome. "

Foi muito difícil e lento o caminhar, ou, melhor dizendo, o deslizar de Mabel até ao local combinado. Demoraram tanto tempo que, mal lá chegaram, apareceu também Gerald, ajoujado sob o peso de um grande cesto cheio de comida que deixou cair em cima da relva.

- Uf! Estava a ver que não aguentava! - disse ele. - Onde está a nossa amiga Mabel?

Em resposta, a enorme cara dela saiu de um maciço de redodendros, dentro do qual escondera o resto do corpo.

- Assim, pareço-me com qualquer outra pessoa, não é? - perguntou ela. - O resto dos meus metros estão escondidos na vegetação.

- Cobrimo-la com ramos e folhas - disse Kathleen. - Não te mexas muito, Mabel, senão abanas isso tudo e pode sair do sítio.

Entretanto, Jimmy dedicara-se à tarefa de abrir o cesto. A tia de Mabel não se poupara a esforços para que nenhum deles morresse de fome! Havia um grande pão e um pacote de manteiga, uma garrafa de leite e outra de água, um bolo e uma enorme caixa cheia de groselhas doces e sumarentas.

Gerald partiu o pão, barrou-o com manteiga, partiu o bolo e abriu a caixa das groselhas para que todos se pudessem servir. A pobre Mabel teve de esticar cuidadosamente os seus grandes e incríveis braços, acabando por ficar toda arranhada no movimento de levar a comida à boca.

Até saciarem a fome imperou o silêncio, cortado apenas pelas frases comuns em tais circunstâncias:

- Dá-me mais bolo, por favor!

- Deita aqui mais leite!

- Põe a caixa das groselhas deste lado!

Após tão lauta refeição, todos se sentiram muito

melhor e até a infeliz Mabel viu a vida com lentes um pouco rosadas.

- Sinto-me um novo ser humano - disse Gerald, exprimindo o pensamento de todos. - Não conseguia comer nem mais uma groselha ainda que me oferecessem todo o ouro do mundo!

- Pois eu podia - respondeu Mabel. - Sei que não há mais e que eu comi a minha parte mas a verdade é que comia mais! Deve ser deste tamanho todo

- Aposto que ele também gostava de ter tido uma refeição tão boa como esta! - disse Gerald.

- Quem? - perguntaram os outros.

- O dino qualquer coisa - respondeu Gerald, apontando para o dinossauro.

- Por acaso, até já teve uma hoje e bem copiosa!

- disse Kathleen, dando uma risada.

- Pois teve! - confirmou Mabel, rindo também.

- Que querem vocês dizer com isso? - perguntou Jimmy, desconfiado com as risadas delas. - Que brin cadeira é essa?

- É verdade! Ele teve uma refeição - disse Mabel, continuando a rir -, ou seja, teve coisas dentro da barriga

- Podem ser engraçadinhas à vontade! - respondeu Jimmy, muito zangado. - Nós também não estamos interessados em saber, pois não, Jerry?

- Eu estou - respondeu Gerald. - Estou a morrer por saber! Como estou cansado vou dormir uma soneca. Acordem-me quando deixarem de fingir que não querem contar!

E deitou-se, fechando os olhos.

- Não sejas parvo! - disse Kathleen. - O que aconteceu foi que nós enchemos a barriga do dinossauro com as roupas com que fizemos as marionetas.

- Já podemos levar isso tudo para casa - disse Gerald, mascando uma folha de relva.

- Olhem - disse de repente, Kathleen -, emprestem-me o anel só um bocadinho. Não vos digo qual é a minha ideia porque pode não resultar e vocês depois dizem que eu sou uma tola. Prometo devolvê-lo antes de irmos embora.

- Não se vão já embora! - pediu Mabel, enquanto tirava o anel e o entregava a Kathleen. - Fico muito feliz por tentares realizar a tua ideia, por muito tola que seja!

No entanto, a ideia de Kathleen era muito simples: ela pensou que o anel podia mudar de poderes se tal fosse desejado por alguém que não estivesse sob o seu encantamento. Assim, logo que o teve em seu poder, levantou-se de um salto e começou a correr em direcção ao monstro pré-histórico, gritando para os irmãos:

- Vamos esvaziar o dinossauro agora!

Kathleen queria levar um avanço na corrida porque pretendia, sem que eles a ouvissem, dizer algo:

- Isto é um anel de desejos e realiza tudo o que se quiser!

E conseguiu fazê-lo antes de os irmãos a apanharem, o que aconteceu já muito perto da estátua.

- Como sei exactamente onde estão as coisas, vou eu lá para dentro e atiro-as para baixo - disse ela.

Gerald inclinou-se para a frente, Jimmy ajudou-a a subir e ela entrou na escura barriga do animal, começando logo a atirar as roupas.

- Cuidado com as vossas cabeças! - advertiu ela, ao passar aos tacos e cabos de vassouras.

- Não desças já - disse Gerald, quando ela anunciou ter terminado. - Vou aí dar uma vista de olhos!

E, segurando-se aos bordos do buraco, saltou lá para dentro.

- Não está tão fresco aqui dentro? - perguntou Kathleen. - As estátuas devem ser sempre muito fresquinhas! Gostava de ser uma estátua!

Aquele oh! foi um grito de horror e angústia cortado subitamente por um silêncio de pedra.

- Que aconteceu? - perguntou Gerald, embora intimamente soubesse o que tinha acontecido.

Ainda de joelhos, procurou um fósforo na algibeira dos calções, acendeu-o e viu, contra o cinzento do interior da estátua, a figura da irmã completamente em mármore branco. Kathleen realizara o seu desejo: era uma estátua!

Gerald ficou em silêncio, horrorizado. Era o pior que poderia ter acontecido!

- Jimmy - chamou ele. - Agora é que eu percebo porque Kathleen começou a correr daquela maneira! Ela quis que o anel voltasse a ser um anel de desejos e conseguiu. Só que a tola esqueceu-se de que tinha o anel posto, desejou ser uma estátua e o desejo realizou-se.

- Ela transformou-se mesmo em estátua? - perguntou Jimmy.

- Sobe e anda cá ver! - respondeu Gerald. e Jimmy, ajudado pelo irmão, saltou para dentro da barriga do dinossauro.

- É mesmo uma estátua! - exclamou ele. - Que horror!

- Podia ser pior - disse Gerald. - Vamos contar à Mabel o que se passa!

Mabel continuava escondida nos maciços de rododendros quando eles regressaram e lhe deram a notícia.

- Meu Deus! - lamentou-se ela, mexendo-se de tal maneira que escangalhou o monte de vegetação que a tapava, ficando com as longas pernas ao sol. - Que mais irá acontecer?

- Nada - respondeu Gerald, calmamente. - Passado algum tempo ela há-de voltar ao normal!

- E eu? - perguntou Mabel. - Não tenho o anel e o meu tempo deve acabar antes do dela! Por favor, vão lá tirá-lo do dedo dela. Prometo que, logo que esteja no meu tamanho normal, vou pôr-lho outra vez.

- Não vale a pena chorar por causa disto - disse Jimmy, em resposta aos soluços e fungadelas que tinham constituído as vírgulas e os pontos do "discurso" de Mabel.

- Vocês não imaginam o que é ter um tamanho destes - lamentou-se Mabel. - Além disso, o anel é muito mais meu do que vosso, eu é que o achei e disse que era mágico. Por favor, vão buscá-lo!

- Julgo que o anel também se transformou em pedra - disse Gerald. - Foi o que aconteceu às roupas e aos sapatos. Vou ver o que se pode fazer, mas não faças uma fita se eu não conseguir!

E Gerald voltou à barriga do dinossauro. Acendeu um fósforo e viu logo o anel no dedo da irmã feita em estátua. Para sua grande surpresa, tirou-o com toda a facilidade.

- Desculpa, Cathy, mas tem de ser! - disse ele, fazendo uma festa na estátua.

E, então, lembrou-se que talvez ela ouvisse o que ele dizia, pelo que se pôs a contar-lhe o que eles iriam fazer. Isto ajudou-o a clarificar as ideias e, quando voltou ao maciço de rododendros, conseguiu explicar o que planeara com a convicção de que era o mais acertado.

- Toma o teu precioso anel! - disse Gerald. Agora já não tens medo, pois não?

- Não - respondeu Mabel, surpreendida. Olhem, é melhor eu ficar aqui, ou até mais para o interior do bosque, e vocês cobrem-me com os casacos para eu não ter frio durante a noite. Como a Cathy sabe onde eu estou, vem aqui ter comigo quando deixar de ser estátua.

" - Eu tinha pensado precisamente nisso – disse Gerald.

- Vocês dois vão para casa e dizem à Mademoiselle que ela fica esta noite em Yalding Towers.

- O que até é verdade - disse Jimmy.

- O encanto funciona de sete em sete horas – disse Gerald. - Tu estiveste invisível vinte e uma horas, eu catorze e a Eliza sete. Quando começou a ser um anel de desejos, começou por funcionar sete horas. Agora, não sabemos como vai ser em termos de tempo nem qual das duas vai voltar ao normal em primeiro lugar.

De qualquer modo, logo que dermos as boas-noites à Mademoiselle, saltamos pela janela da despensa e vimos até cá para ver como estão as duas. sódepois é que vamos para a cama. Era melhor tu ires para junto do dinossauro e nós tapamos-te antes de irmos embora a Mabel saiu de debaixo das árvores e pôs-se de pé.

Parecia tão delgada como um choupo e tão irreal como o resultado errado de uma conta de dividir com um divisor de dez algarismos Teve a vantagem de chegar rapidamente ao pé do dinossauro e, enfiando o longo braço pela abertura, abraçar ternamente Kathleen.

- Está tudo bem, querida - disse ela à estátua.

Vou ficar aqui e podes chamar-me logo que te sintas a voltar ao normal.

A estátua manteve-se impávida, como é lógico.

Mabel deitou-se, os rapazes cobriram-na e seguiram

para casa, já que não convinha que a Mademoiselle desse pela falta de Kathleen. Certamente iria logo à polícia e imaginem o choque que qualquer agente teria ao descobrir a desaparecida, não só na barriga de uma estátua de dinossauro como, ainda por cima, ela própria uma estátua também. E isto para não falar da Mademoiselle que, sendo estrangeira, teria um verdadeiro ataque! Quanto a Mabel... bom, era melhor nem ima ginar...

- Qualquer pessoa perderia a cabeça se a visse agora - disse Gerald. - Excepto nós, claro!

- Nós somos diferentes - respondeu Jimmy. Depois do que já passámos, não perdemos a cabeça com facilidade.

- E aconteceria o mesmo em relação à pobre Cathy.

- Podes crer!

O Sol pôs-se e a Lua começou a subir no firmamento. Mabel, bem tapada, apesar do seu tremendo tamanho, adormeceu pacificamente. Dentro do dinossauro, Kathleen, viva no interior da sua capa de mármore, adormeceu também. Ela tinha ouvido tudo o que Gerald dissera e vira perfeitamente a luz dos fósforos. Continuava a ser a mesma Kathleen, só que estava protegida por uma camada de mármore que não a deixava fazer qualquer movimento. Nem sequer conseguiria chorar, ainda que o quisesse, o que, de facto, não lhe apetecia mesmo nada. O interior do mármore não era frio nem duro, pelo contrário, era muito macio e dava uma agradável sensação de calor e segurança. Não tinha dores nas costas por estar de pé nem lhe doíam as pernas por estar

tanto tempo sem se mexer. Estava tudo bem e era só esperar que o tempo passasse para voltar a ser a Kathleen de sempre. Assim, adormeceu tão calmamente como se estivesse na sua própria cama.

Acordou a sentir as pernas dormentes e os braços, que tinham estado levantados, muito cansados. Esfregou os olhos e, de repente, lembrou-se: tinha-se transformado em estátua e estava dentro do dinossauro!

" - Quebrou-se o encanto - concluiu ela.

Sentou-se, pôs as pernas para fora do buraco para saltar e sentiu um solavanco que a fez deter-se. O dinossauro estava a mexer-se!

- Que estranho! - disse ela. - Deve estar luar e ele ganhou vida, tal como o Gerry contou!

E era verdade! Ela não se atreveu a saltar com medo de ser pisada por um daqueles enormes pés. Este pensamento levou-a a outro: onde estaria Mabel? Ela sabia que estava muito perto dali. O dinossauro não a teria magoado, já que aquele inconveniente tamanho lhe impedia a mobilidade normal? O dinossauro andava cada vez mais depressa, o que fazia com que ela baloiçasse muito e começasse a ficar agoniada. Desceram a colina e, após ter parado um momento, Kathleen ouviu um "splash". Estavam mesmo à beira do lago onde Hermes e Juno estavam a nadar e onde o dinossauro se preparava para entrar também. Kathleen aproveitou o saltar do buraco e correu para a sombra do pedestal de uma outra estátua. E em boa hora o fez porque o

animal atirou-se à água de imediato, nadando na direcção da pequena ilha que se via no meio do lago.

- Não te mexas, minha menina, porque eu vou saltar - ouviu Kathleen dizer a alguém cuja voz vinha do pedestal.

E, no momento seguinte, Febo saltou aterrando uns metros adiante.

- És nova aqui, não és? - perguntou ele. - Se já te tivesse visto, não me esqueceria!

- Sou até muito nova - respondeu Kathleen. Não sabia que falavas!

- Porque não? - perguntou Febo, rindo. - Tu também falas

- Mas eu estou viva!

- E eu não estou?

- Parece que sim - respondeu Kathleen, pensativa mas sem medo. - Eu pensei que só quem tivesse o anel posto é que conseguia ver-vos com vida.

Febo pareceu compreender o que ela queria dizer, apesar de não ter sido muito clara.

- Isso é só para os mortais - disse ele. - Nós podemos ouvir e ver-nos uns aos outros durante o pouco tempo em que temos vida. Faz parte do encantamento.

- Mas eu sou mortal - afirmou Kathleen.

- A tua modéstia é encantadora - respondeu Febo. - A água chama-me. Adeus!

Kathleen voltou a subir a colina para procurar Mabel. Era tão bom que ela já estivesse do tamanho natural para poderem ir para casa logo! A esta hora o encanto já devia estar no fim!

Encontrou-a com facilidade e ficou a olhar para aquela Mabel tão comprida. Depois, tocou-lhe devagarinho e ela acordou.

- Que se passa? - perguntou ela, com voz sonolenta.

- Sou eu - respondeu Kathleen.

- Tens as mãos tão frias! - disse Mabel.

- Acorda, para podermos conversar - pediu Kathleen.

- Não podemos ir para casa? – perguntou Mabel. - Estou tão cansada e com tanta fome!

- Não podes voltar para casa enquanto estiveres desse tamanho!

E Mabel lembrou-se do que lhe tinha acontecido.

- Cathy - gritou ela, de repente. - Estou a sentir-me tão esquisita! Assim, como aquelas tiras de papel dobradas em harmónio e que se encolhem para caber dentro das caixas. Eu também me sinto a encolher!

Kathleen concordou ao ver os longínquos pés de Mabel a aproximarem-se, os longos braços a encurtarem e a cara a tornar-se mais pequena.

- Estás a voltar ao tamanho normal! – gritou Kathleen. - Estou tão contente!

- É verdade! Eu sinto! - disse Mabel.

- Já estás óptima! Que maravilha! - disse Kathleen. - Já podemos ir para casa!

- Ir para casa? - perguntou Mabel, sentando-se e olhando fixamente para Kathleen. – Nesse estado?

- Qual estado? - perguntou Kathleen.

- Não sabes mesmo? - perguntou Mabel. – Olha para as tuas mãos, para o teu vestido...

Kathleen olhou para as mãos. Estavam brancas da cor do mármore, tal como o vestido, os sapatos, as meias e até as pontas do cabelo. Toda ela estava tão branca como neve acabada de cair.

- Que é isto? - perguntou ela, começando a tremer. - Porque estou eu desta cor horrível?

- Não percebeste, Cathy? Tu ainda não voltaste ao normal. Continuas a ser uma estátua.

- Não sou nada! Não vês que estou viva e a falar contigo?

- Eu sei, querida! É por causa do luar!

- Mas tu bem vês que eu estou viva!

- Claro que vejo, Tenho o anel posto

- Mas eu tenho a certeza de que estou normal!

- Não percebes que não estás? - perguntou Mabel, docemente. - Há luar, tu és uma estátua e ganhaste vida tal como as outras. Quando a lua desaparecer, voltas a ser estátua. É por isso que não convém ir agora para casa. Imagina que te acontecia isso lá! Onde está o dinossauro?

- Está a nadar no lago e os outros todos também.

- Bem - disse Mabel, tentando ver as coisas pelo lado melhor. - De qualquer modo, uma situação já está resolvida!

 

Febo e os amigos

- Se eu sou uma estátua com vida - disse Kathleen, sentando-se ao pé de Mabel muito desconsolada -, espero que não tenhas medo de mim.

- Tenho o anel - respondeu Mabel. - Anima-te, vais ver que voltas ao normal num instante. Tenta não pensar no assunto!

Ela falou-lhe como se fala com uma criança que deu um grande trambolhão e se levantou com os joelhos todos esfolados.

- Eu sei - respondeu Kathleen, com ar ausente.

- Estive a pensar - disse Mabel - que podíamos saber mais coisas acerca deste lugar encantado se as outras estátuas fossem simpáticas e conversassem connosco.

- Acho que sim - assegurou Kathleen. - Pelo menos, Febo foi muito simpático e delicado.

- Onde está ele? - perguntou Mabel.

- No lago - respondeu Kathleen. - Há pouco estava.

- Vamos até lá. - disse Mabel. - Cathy, que bom que é estar do tamanho natural outra vez!

E feliz, levantou-se de um salto sacudindo as folhas e os ramos que a cobriam quando tinha aquele terrível tamanho.

As duas sentaram-se ao luar, rodeadas pela quietude da noite. O grande parque continuava a parecer uma pintura e o silêncio foi quebrado apenas pelo barulho da água que caía das fontes e pelo longínquo apito do comboio.

- Em que pensas, irmãzinha? - perguntou carinhosamente uma voz atrás delas.

Voltaram-se subitamente e viram, ao luar, Febo a sorrir-lhes amigavelmente.

- Oh, és tu! - disse Kathleen.

- Pois sou - respondeu Febo. - Quem é esta tua amiga que é um ser mortal?

- É Mabel - respondeu Kathleen.

Mabel levantou-se e, hesitante, estendeu a mão a Febo.

- Eis o vosso escravo, linda dama! - disse Febo, apertando-lhe a mão com os seus dedos de mármore. Não consigo compreender como consegue ver- nos e por que razão não tem medo de nós!

Em resposta Mabel levantou a mão e mostrou o anel que tinha no dedo.

- Explicação mais que suficiente! – comentou Febo. - Mas, já que tens isso, porque manténs o teu aspecto de mortal? Transforma-te em estátua e vem para o lago connosco!

- Não leve a mal mas prefiro não tentar – disse Mabel. - Sabe, este anel realiza os desejos mas nunca se sabe quanto tempo dura o encanto. Devia ser muito agradável ser uma estátua agora, mas de manhã era capaz de preferir não o ter feito!

- Já ouvi dizer que acontece isso com os mortais - disse Febo. - Mas o que me parece é que vocês não conhecem os poderes verdadeiros desse anel. É preciso pedir exactamente o que se quer para que seja realizado conforme o pedido. Se não põem um limite de tempo, os encantamentos são determinados por Aritmo, deus dos números, e vão alterar o desejo em relação ao que queriam. Portanto, deve dizer:

"Desejo ser, tal como a minha amiga e até à madrugada, uma estátua de mármore com vida. Depois, quero voltar a ser a Mabel dos olhos escuros e cabelos cor da noite".

- Oh, Mabel, faz isso! Seria tão divertido! - pediu Cathy. - Febo, se formos ambas estátuas, não temos medo do dinossauro?

- O medo não existe no mundo das estátuas vivas - respondeu ele. - Somos todos irmãos!

- E se eu quiser, posso nadar?

- Podes nadar, mergulhar e flutuar. E podes ainda participar na festa das deusas do Olimpo, comer a comida dos deuses, beber pelos seus copos, ouvir as suas músicas e captar o riso dos lábios imortais!

- Uma festa! - exclamou Kathleen. - Oh, Mabel, faz, peço-te! Se tivesses tanta fome como eu, não hesitavas

Mabel, tremendo um pouco, disse o desejo, tal como Febo lhe tinha ensinado e imediatamente passou a haver duas estátuas ao luar. Febo deu a mão a cada uma delas e disse:

- Corramos!

- É maravilhoso! - disse Mabel. - Olhem para os meus pés tão brancos em cima da relva! Pensei que me ia sentir rígida mas afinal mexo-me muito bem!

- Não há rigidez nos imortais! - disse o deus do Sol, rindo. - E esta noite tu és como nós

Quando chegaram à beira do lago, ele gritou:

- Saltem!

E saltaram os três.

Foram nadando lado a lado, tendo Febo o cuidado de o fazer lentamente para as acompanhar.

- Isto foi a coisa mais bonita que conseguimos com o anel! - disse Mabel.

- Já calculava que irias gostar! - respondeu Febo. - Só mais umas braçadas e chegamos à ilha.

Quando lá chegaram verificaram que estava coberta de uma vegetação luxuriante e variada, sentindo-se o delicioso aroma de flores.

Do outro lado do lago estava um grupo de vinte ou trinta estátuas vivas, formando uma mancha branca no meio da escuridão das árvores. Umas tinham as pernas dentro da água e brincavam com os peixes, outras dançavam dando as mãos e fazendo uma roda e duas jogavam à malha com um pedaço de mármore branco.

Quando eles chegaram, ouviu-se um riso alegre.

- Chegaste tarde outra vez, Febo - disse alguém. - Algum dos teus cavalos perdeu a ferradura?

- Trouxe duas convidadas - respondeu ele. Imediatamente as duas raparigas foram rodeadas pelas outras estátuas que lhes fizeram festas, as beijaram e lhes chamaram nomes muito doces.

- As grinaldas já estão prontas, Hebe? - perguntou a deusa mais alta e mais bonita - Faz mais duas, por favor.

Hebe veio com os braços cheios de grinaldas de rosas. Havia uma para cada cabeça de mármore.

Hebe fez rapidamente mais duas grinaldas, pôs-lhas nas cabeças e Afrodite, a deusa mais simpática e terna, deu-lhes a mão e disse:

- Venham, vamos acabar de preparar a festa! Eros, Psique, Hebe e Ganimede, preparem a fruta, sim?

- Não vejo fruta nenhuma - disse Kathleen, quando quatro figuras jovens se separaram do grupo e caminharam para elas.

- Há muita - respondeu Eros, por elas considerado um rapaz muito simpático. - É só apanhá-la!

- Assim - explicou Psique, levantando um braço até agarrar um ramo de uma árvore e mostrando, em seguida, uma romã na mão.

- Estou a ver! Basta... - disse Mabel, estendendo o braço para outra árvore e colhendo um pêssego.

- Tal e qual - disse, rindo, a simpática Psique. Depois desta explicação, Hebe trouxe alguns cestos de prata e os quatro fartaram-se de apanhar fruta. Entretanto, os mais crescidos dispunham pratos e talheres de ouro junto de travessas cheias de todo o tipo de comida que faz crescer água na boca. Não faltavam também jarros e copos de ouro com maravilhosas e exóticas bebidas.

- Quem me dera que os meus irmãos estivessem aqui - disse Cathy.

- E eu gostava de saber o que andarão eles a fazer agora! - disse Mabel.

- Neste momento - respondeu Hermes, que tinha ido dar uma volta e acabava de regressar -, estão à vossa procura ao pé do local onde costuma estar o dinossauro. Saíram de casa saltando por uma janela e estão completamente desorientados porque não vos encontram. Estão cheios de medo que vocês estejam a correr algum perigo e só não se desfazem em lágrimas porque lhes disseram que "um homem não chora"!

Kathleen levantou-se imediatamente e disse:

- Muito obrigada por tudo. Foram muito amáveis em nos terem convidado e gostámos imenso de tudo. Agora, pedimos desculpa mas temos de ir embora.

- Se estás preocupada por causa dos teus irmãos

- disse Febo -, é facílimo trazê-los para aqui. Empresta-me o anel só por um momento.

Tirou o anel da mão de Kathleen, fê-lo apanhar o reflexo de uma das sete luas, devolveu-lhe e disse:

- Agora, faz para eles o desejo que Mabel fez. Diz.

- Já sei - interrompeu-o Kathleen. - Desejo que os rapazes se transformem em estátuas vivas de mármore, tal como eu e Mabel, até ser madrugada. Nessa altura, voltarão a ser como são agora.

- Se não me tivesses interrompido. - disse Febo. - Enfim, não se pode esperar que ombros jovens tenham em cima cabeças adultas! Devias ter desejado que eles estivessem aqui! Não tem importância! Hermes, não te importas de ir buscá-los e vais contando o que se passa pelo caminho?

Ele voltou a fazer reflectir o anel na luz da lua e devolveu-o a Kathleen, dizendo:

- Toma. Já está limpo e pronto para uma nova magia!

- Não é nosso hábito fazer perguntas aos convidados - disse Hera -, mas a verdade é que estamos todos muito curiosos acerca desse anel.

- É "o"anel - disse Febo.

- Eu sei - respondeu Hera. - Mas, se não considerarem indelicadeza da nossa parte fazer-vos perguntas, gostaríamos de saber como foi ele parar às mãos de crianças mortais.

- É uma história muito comprida - disse Febo. Sugiro que comamos primeiro, depois ouvimos a história e, finalmente, a música.

Hermes devia ter explicado tudo muito bem porque, quando Gerald e Jimmy chegaram, agarrados aos pés alados do deus, mostraram-se completamente à vontade, fizeram graciosas vénias às deusas e sentaram-se nos seus lugares com tal desembaraço que parecia terem estado em ceias com todos os deuses do Olimpo durante a vida inteira.

Hebe fizera grinaldas para eles e, ao vê-los sentados a comer e a beber, completamente à vontade, Kathleen sentiu-se feliz por não ter esquecido os irmãos.

- E agora - disse Hera, logo que os rapazes acabaram de comer. - Vamos à história do anel!

- Sim - disseram Kathleen e Mabel.

- A história - disse Febo -, deve ser contada pelos nossos convidados!

- Oh, não! - disse Kathleen, encolhendo-se.

- Talvez os rapazes sejam mais corajosos - disse Zeus, o rei de todos os deuses, tirando a sua pesada grinalda de rosas.

- Eu não posso - respondeu Gerald. - Não sei nenhuma história

- Nem eu - disse Jimmy.

- Eles querem saber apenas como aconteceu termos o anel - disse Mabel. - Se quiserem eu conto! Era uma vez uma menina chamada Mabel.

E assim Mabel contou a história do que acontecera até àquela altura. Os deuses de mármore ouviram encantados.

- E então - terminou Mabel -, Kathleen fez o desejo para os irmãos e Hermes foi buscá-los. E aqui estamos todos convosco!

Um murmúrio de comentários começou a ouvir-se no grupo, interrompido por Kathleen que disse:

-Agora gostávamos que fossem vocês a contar-nos

- A contar-vos o quê?

- Como é que conseguem ganhar vida, o que sabem acerca do anel, tudo o que sabem acerca deste estranho encantamento.

- Tudo o que eu sei? - riu-se Febo. - A vossa vida inteira, meus queridos mortais, não seria suficiente para ouvirem contar tudo o que eu sei!

- Nós referimo-nos apenas ao anel e ao facto de conseguirem ganhar vida - disse Gerald. - Para nós, isso é muito confuso!

- Conta-lhes Febo! - disse a deusa mais simpática. E Febo começou a contar:

- Todas as estátuas, se quiserem, podem ganhar vida nas noites de luar. As que vivem em grandes cidades normalmente não querem. E para que haviam elas de querer só para verem as coisas horríveis e feias que há nas cidades?

- Claro - respondeu Gerald, para preencher a pausa que ele fizera.

- As estátuas dos santos, padres e guerreiros que estão nos vossos lindos templos - continuou Febo e adornam as suas sepulturas, ganham vida e passeiam pelos templos e pelos campos. Só há uma noite por ano em que podem ser vistas. Vocês descobriram-nos apenas porque usaram o anel mágico e somos irmãos enquanto o encanto vos mantiver como está" , tuas. Sem ser assim, só poderão ver-nos uma noite no ano.

- Que noite? - perguntou Gerald, delicadamente.

- A da festa das ceifas - respondeu Febo. Nessa noite, quando a lua se levanta, projecta um raio de luz que atinge directamente o altar de alguns templos. Um deles situa-se num local chamado Hellas e foi construído na base de uma montanha que Zeus, zangado, fez cair sobre ele. O outro situa-se nesta terra, mais propriamente neste grande jardim.

- Quer dizer - disse Gerald, muito interessado -, que, se nessa noite formos a esse templo, podemos ver-vos mesmo que não estejamos transformados em estátuas nem usemos o anel.

- Exactamente - respondeu Febo. - E mais: nessa noite respondemos a qualquer pergunta que os mortais nos façam.

- E quando é essa noite?

- Ah, ah! - riu-se Febo. - Queriam saber?

Nessa altura, o rei dos deuses disse a Febo:

- Chega de histórias! Toca a tua lira!

- Agora - murmurou Febo -, tenho de obedecer a Zeus. Mas, antes de ser madrugada, perguntem o que quiserem que eu conto tudo!

Eles encostaram-se às árvores e, juntamente com todos os outros deuses, ouviram os doces e melodiosos sons que saíam do instrumento tocado pelo deus do Sol.

De repente, Febo parou de tocar, levantou-se e gritou:

- Está a chegar a madrugada! Depressa, volte cada uma para o seu pedestal!

Todas as figuras de mármore começaram a correr por entre as árvores e, em breve, as crianças ouviram o barulho que faziam na água, nadando para o outro lado. Pelo maior ruído, souberam que o dinossauro estava a caminho do seu lugar no jardim!

Só Hermes, que não precisava de nadar por ter pés alados, pôde ainda murmurar-lhes.

- Encontramo-nos daqui a quinze dias no Templo das Pedras Estranhas.

- Mas qual é o segredo do anel? - perguntou Mabel.

- O anel é a base da magia - disse Hermes. Perguntem daqui a quinze dias, quando nascer a lua, e ficarão a saber tudo.

E, dizendo isto, elevou-se no ar e foi-se embora.

Logo que ele desapareceu, os reflexos da lua empalideceram, levantou- se vento, os pássaros começaram a gorgear, o céu começou a clarear. Desapareceu o grande relvado, o lago deixou de se ver bem como os lindos peixes que nele nadavam. E. eles já não eram estátuas mas seres de carne e osso como sempre tinham sido. E, neste momento, cheios de frio porque a madrugada estava fresca!

- Devíamos ter ido com eles - disse Mabel batendo os dentes. - Já não somos estátuas e, portanto, já não sabemos nadar. E, que eu saiba, estamos na ilha.

Era verdade

- Não há por aqui nenhum barco? – perguntou Jimmy.

- Não - respondeu Mabel. - Só há na casa dos barcos que é no outro lado do lago. Se conseguires nadar até lá!

- Sabes muito bem que não! - respondeu ele.

- Ninguém arranja uma solução? - perguntou.

- Quando descobrirem que desaparecemos, hão-de dragar o lago para terem a certeza de que não caímos à água nem nos afogámos - disse Jimmy. Nessa altura, começamos a gritar e chamamos as pessoas!

- Muito interessante! - comentou Gerald, aborrecido

- Não é preciso zangarmo-nos - disse Mabel, muito amável. - Temos o anel! Só temos que desejar estar em casa. Febo limpou-o com o reflexo da lua para ficar pronto para o próximo desejo.

- Não nos tinha contado! - disse Gerald, bem disposto. - Onde está?

- Tu é que o tinhas - lembrou Mabel a Kathleen. - Eu sei - respondeu ela, com a voz a tremer. Mas eu emprestei-o a Psique para ela o ver e sei que o pôs no dedo.

Todos tentaram não se zangar com Kathleen, o que conseguiram em parte.

- Como havemos de sair desta maldita ilha? perguntou Gerald. - Não fazes ideia onde está a estátua de Psique para irmos tirar o anel? Não estará na ilha?

- Não sei - respondeu Mabel. - Nunca vi essa estátua em lado nenhum!

Durante algum tempo ninguém conseguiu dizer palavra. O céu estava já de um tom cinzento e, a leste, começava a tomar um tom rosado. Os rapazes estavam de pé mas as duas raparigas continuavam sentadas no chão com as pernas e os pés completamente gelados. Um soluço cortou o silêncio.

- Não vale a pena chorar - disse Gerald. - Não resolve nada e só ajuda a desmoralizar. Vamos dar uma volta à ilha e talvez encontremos um barco escondido por baixo dos salgueiros.

- Como seria isso possível? - perguntou Mabel.

- Alguém podia tê-lo deixado aqui - respondeu Gerald.

- E como é que saía da ilha?

- Noutro barco, claro - disse Gerald. - Vamos! Desalentados e certos de não encontrar qualquer barco, começaram a explorar a ilha. Quantas vezes tinham imaginado aventuras em ilhas desconhecidas e, afinal, a realidade era bem diferente do que poderiam ter imaginado. Mabel, sobretudo, sofria bastante com esta realidade porque estava descalça e bem longe dos sapatos e das meias, tendo já as pernas e os pés completamente arranhados. Estavam também preocupados com a quase impossibilidade de não serem descobertos fora de casa. Seria difícil voltarem à escola a tempo de as camas feitas não mostrarem à Mademoiselle que eles tinham passado a noite fora e, nesse caso, como Gerald dizia, "adeus, liberdade ".

- Havemos de sair daqui - disse ele. - Nem que tenhamos de começar a gritar quando virmos um jardineiro. Passamos a ficar fechados em casa mas paciência!

- Sem dúvida! - responderam os outros.

- Vá, não desesperem - continuou ele – Já temos conseguido sair de tantos sarilhos que havemos de sair de mais este! Olhem, o sol já nasceu. Não se sentem melhor?

- Sim - responderam todos, com voz muito desanimada.

Continuaram por um carreiro no meio de densa vegetação e, de repente, Gerald, que ia à frente de tão triste procissão, deu um grito e desapareceu. Mabel, que ia logo atrás dele, mal teve tempo de saltar para o lado para não cair nuns degraus à entrada de um buraco no chão.

- Gerald - chamou ela. - Magoaste-te?

- Não - respondeu ele, corajosamente porque estava mesmo magoado. - Depois dos degraus há um túnel.

- É costume - disse Jimmy.

- Eu sabia que havia um túnel - disse Mabel. Vai por baixo da água e termina no Templo de Flora.

Os jardineiros também sabem que existe mas nunca quiseram explorá-lo com medo dos desabamentos de terras.

- Já podias ter dito - respondeu Gerald. Vamos experimentar ir pelo túnel.

- Nunca mais me lembrei de tal coisa - disse

Mabel. - Deve ir dar ao local onde o Sr. Ugli disse que havia o hotel.

- Garanto que não vou por um túnel tão escuro! - disse Kathleen.

- Está bem - disse Gerald. - Pode ficar aqui e nós vimos buscar-te de barco. Jimmy, dá-me a lanterna da bicicleta

Jimmy, qual Aladino, apresentou uma lanterna.

- Trouxemo-la para não tropeçarmos nas longas pernas de Mabel - explicou ele.

- Bem - disse Gerald -, não sei o que vocês querem fazer mas eu vou descer o resto dos degraus e seguir ao longo do túnel. Pode ser que venha a descobrir um bom hotel e uma coisa dessas nunca fez mal a ninguém.

- Não sei se vale a pena - disse Jimmy. - Sabes muito bem que, mesmo que consigamos chegar ao Templo de Flora, não sabemos como se abre a porta.

- Eu não sei - disse Gerald - mas deve haver um toque qualquer ou alguma coisa que a faça abrir. A verdade é que da outra vez não tínhamos luz e agora temos.

- Detesto estar debaixo do chão! - disse Mabel.

- Tu não és cobarde! - disse Gerald. - Eu sei muito bem que tu és corajosa! Dá a mão ao Jimmy que eu dou à Cathy.

- Eu não preciso de dar a mão - respondeu logo Jimmy. - Não sou nenhum miúdo pequeno!

- Coitadinha da Cathy, é medrosa! - disse Gerald, em tom sarcástico.

Mas o sarcasmo não resultou porque Kathleen deu-lhe a mão e disse:

- Muito obrigada, Jerry! És um amor de irmão e eu prometo tentar não ter muito medo!

Desceram os degraus e entraram no túnel que seguia por baixo da água, tornando-se cada vez mais escuro e com apenas a fraca luz da lanterna da bicicleta. Ao princípio, o chão estava coberto de folhas secas para ali arrastadas pelo vento mas, à medida que avançavam, foi-se tornando limpo. As paredes, o tecto e o chão do túnel eram de mármore branco e brilhante.

Após caminharem durante algum tempo chegaram a um átrio e o que viram deixou-os encantados e mudos de surpresa: o tecto era em abóbada, suportado por duas filas de pilares redondos. De cada canto saía uma luz suave que se coava por entre as fendas lembrando o efeito da água a cair das cascatas.

- Que lindo! - sussurrou Kathleen ao ouvido do irmão.

- Deixa-me dar-te a mão, Jimmy - murmurou Mabel. - Preciso de fazer qualquer coisa prosaica porque isto não me parece real.

De facto, para os quatro companheiros, aquele átrio era o sítio mais lindo do mundo! Todo ele era aos arcos e, em cada um, descobriram coisas inacreditáveis: no primeiro encontraram um jardim de oliveiras, no qual dois amantes davam as mãos ao luar; no outro, um navio num mar bravo; noutro ainda, um rei, no seu trono, estava rodeado pelos seus cortesãos; num quarto, um belíssimo hotel com o respeitável

Sr. Ugli à porta... As maravilhas não acabavam! E, com surpresa, verificaram que não eram pinturas ou esculturas mas tudo era real e com vida e, pelos vistos, imortal. Atravessaram lentamente o átrio e, quando estavam a chegar ao fim, viram de onde saía a luz que o iluminava: do local onde se erguia a estátua "que Mabel não fazia ideia onde estava", ou seja, a Psique.

Felizes, foram até ela e puderam ver o anel na mão que ela mantinha erguida.

Gerald, pôs um pé na base do pedestal, um joelho mais acima e ergueu-se junto da figura branca.

- Espero que não te importes! - disse ele, tirando-lhe delicadamente o anel e saltando para o chão.

- Não vamos usá-lo aqui. Não sei explicar porquê mas não sou capaz!

Passaram por trás da estátua e deixaram o átrio maravilhoso, entrando novamente na escuridão do túnel.

- Dá-me o anel, Gerald - disse Mabel. - Sei exactamente o que hei-de desejar!

Gerald deu-lho, embora com relutância.

- Desejo - disse ela, lentamente -, que em casa, ninguém descubra que passámos a noite fora e que estejamos deitados nas nossas camas, com os pijamas vestidos e a dormir.

E a coisa seguinte de que se deram conta foi a plena luz do dia, não o nascer do sol mas a luz que normalmente já existe quando se acorda, e cada um na sua cama.

De facto, Mabel tinha desejado algo muito sensato! Só se esqueceu de que era suposto ela passar a noite com Kathleen e, claro, a cama dela era em Yalding Towers. Assim, foi muito difícil a tia acreditar nas onze explicações que Mabel deu para justificar o facto de não ter voltado para casa até às onze horas da noite anterior (quando ela fechara a porta à chave) e estar, de manhã, na sua própria cama! A tia de Mabel não era uma mulher muito inteligente mas também não era completamente tola

A única explicação que Mabel não deu, a décima segunda, era a verdade mas a tia era suficientemente esperta para não acreditar naquilo!

 

O fantasma sem cabeça

Era o dia em que o Castelo de Yalding abria ao público e os três irmãos consideraram boa ideia ir visitar Mabel e, como disse Gerald, misturarem-se insuspeitamente com a multidão; sentiam-se secretamente satisfeitos com tudo o que só eles sabiam sobre o castelo, os painéis que se moviam, o anel mágico e as estátuas que ganhavam vida. Talvez até o que lhes desse mais gozo fosse conhecerem coisas que as outras pessoas não conheciam e que, ainda que tal acontecesse, nunca acreditariam nelas.

Na estrada, junto aos portões do castelo, estavam bicicletas, automóveis, carroças, enfim, todos os meios de transporte utilizados por aqueles que não tinham vindo a pé.

Lá dentro, os visitantes eram conduzidos pelas zonas que, uma vez por semana, eram abertas ao público.

 

Naquele dia a afluência era nitidamente superior ao habitual porque se tinha ouvido dizer que Lord Yalding estava em sérios apuros financeiros e que os panos que cobriam o rico mobiliário teriam sido retirados para que um americano, interessado em arrendar o castelo, pudesse vê-lo em todo o seu esplendor.

E assim era! Os cetins bordados, as tapeçarias, as cadeiras estofadas em couro, até então tapadas por panos, davam às salas um ar confortável de serem habitadas. Por todo o lado havia plantas e jarras com flores. A tia de Mabel tinha caprichado em alindar a casa e, para isso, estudara atentamente vários artigos publicados nas revistas de decoração e que se chamavam "Como dar um toque de classe à sua casa por pouco dinheiro".

Também os lustres de cristal brilhavam, as coberturas castanhas tinham sido tiradas das camas e não se viam os cordões vermelhos que indicavam ao público os locais interditos.

- Parece mesmo que vive aqui uma família - disse a filha do merceeiro de Salisbury ao amigo, que trabalhava na chapelaria.

- Se o americano não quiser a casa - disse ele à namorada -, podíamos nós vir morar para aqui quando casássemos, não achas?

- Oh, Reggie, tens tanta piada! - respondeu ela. Durante toda a tarde, houve um desfile de curiosos nos seus enfeitados e garridos fatos domingueiros, cujos risos e conversas quebraram o normal silêncio do castelo e dos jardins.

- Afinal, não foi uma ideia assim tão boa! - concluiu Gerald, enquanto observavam a multidão da janela de um pavilhão de pedra que se situava no fim do terraço. - Detesto ver toda esta gente invadir o nosso jardim!

- Foi o que eu disse, hoje de manhã, ao novo administrador - disse Mabel, sentando-se no chão de pedra. - E ele respondeu-me que uma vez por semana não era muito. Disse ainda que Lord Yalding devia permitir que as pessoas visitassem o castelo sempre que quisessem e que era o que ele faria se vivesse aqui!

- É louco! - respondeu Jimmy. - E disse mais alguma coisa?

- Montes delas - respondeu Mabel. - Gosto muito dele Estive a contar-lhe.

- Não!

- Sim! Contei-lhe muitas coisas sobre as nossas aventuras e ele é um óptimo ouvinte!

- Vamos ser internados num hospital de doidos por tua causa!

- Não vamos nada! - disse Mabel. - Contei-lhe toda a verdade e claro que ele não acreditou em nada. Disse-me que eu tinha um excelente talento para imaginar histórias e eu prometi-lhe que ele faria parte do primeiro livro que eu escrevesse quando fosse adulta.

- Nem sequer sabes como é que ele se chama - disse Kathleen. - Vamos fazer qualquer coisa com o anel.

- Não pode ser - disse Gerald. - Esqueci-me de vos dizer que combinei com a Mademoiselle encontrarmo-nos aqui e voltarmos para casa juntos.

- Combinaste?

- Exactamente - respondeu Gerald. - Pensei que devíamos ter esta atenção para com ela já que ela tem sido tão simpática connosco!

- Pode ser muito amável mas também é aborrecido - disse Mabel. - Vamos ter de esperar que ela chegue e eu prometi ao administrador que nos íamos encontrar com ele e fazíamos um piquenique com ele.

- Onde?

- Ao pé da estátua do dinossauro. Ele disse que me ia contar a história dos animais da arca de Noé como paga por eu o ter distraído com as minhas ficções.

- Quando?

- Às cinco horas, quando fecharem os portões.

- A Mademoiselle também podia ir - sugeriu Gerald.

- Ela não deve apreciar lanchar com um mero administrador de propriedades - disse Kathleen. Nunca se sabe como os adultos reagem a estas coisas simples

- Bem, vou dizer o que se vai fazer - disse Gerald. - Vocês vão ter com ele e eu fico à espera da Mademoiselle.

Mabel, encantada, considerou que era uma atitude deveras simpática e Jimmy disse que o irmão gostava muito de observar quem passava!

- Os miúdos não sabem o que é diplomacia disse Gerald. - Coscuvilhar é feio mas não faz mal nenhum ser amável e.

- Como é que sabes? - perguntou Jimmy.

- e nunca se sabe quando um adulto pode ser útil - continuou o irmão. - Aliás, eles adoram ser úteis e está nas nossas mãos proporcionar-lhes esses pequenos prazeres! Pensem como deve ser aborrecido ser velho. Que horror!

- Espero nunca vir a ser uma velha solteirona! disse Kathleen.

- Eu não hei-de ser! - respondeu logo Mabel. Nem que tenha de casar com um amolador ambulante!

- Eu preferia - disse Kathleen -, casar com um cigano e andar por aí a ler sinas, numa caravana.

- Se eu pudesse escolher - disse Mabel -, casava com um salteador, ia viver no seu esconderijo na montanha, era muito simpática para com os prisioneiros, ajudava-os a fugir e.

- Realmente, devias ser muito útil ao teu marido!

- comentou Gerald.

- Um marinheiro também era boa ideia - disse Kathleen. - Podia observar o navio dele a chegar e até punha uma luz à janela para o guiar no meio da tempestade. E, quando ele morresse, eu tinha um grande desgosto e todos os dias ia pôr flores na campa!

- Também podia ser um soldado - disse Mabel, quando ele fosse para a guerra.

- Quando eu casar - interrompeu-a Gerald -, há-de ser com uma mulher muda! Ou então, uso o anel mágico para conseguir que ela só fale quando lhe perguntar alguma coisa! Vou ver se ainda há muita gente!

Foi até a uma abertura na parede de pedra e disse:

- Estão a sair! É melhor irem andando porque nunca se deve correr o risco de perder um piquenique. O herói da nossa história, só e desamparado, incita os seus companheiros a cumprirem as promessas feitas, mantendo-se ele no seu perigoso posto, já que nasceu para aguentar no convés em chamas enquanto todos se salvam, dando uma derradeira esperança à raça humana já desesperada!

 

- Afinal, vou casar com um mudo! - disse Mabel. - E, no meu livro, não vai haver heróis, só uma heroína! Vamos, Cathy!

Ao saírem da fresca e sombria casa de pedra sentiram o chão escaldante do terraço, aquecido pelo calor do sol.

- Já sei o que sente um gato num telhado de zinco quente - disse Jimmy.

Os animais pré-históricos estavam num bosque, a algumas centenas de metros do castelo. Tinham lá sido mandados colocar pelo avô do actual Lord Yalding, em meados do século passado.

Muitas pessoas pensam que a hora a seguir ao almoço é a mais quente do dia mas estão completamente enganadas. Num céu sem nuvens, o sol brilha com tal intensidade que o calor vai aumentando, ao longo da tarde, atingindo o seu máximo à hora do lanche. Kathleen, Mabel e Jimmy foram tendo cada vez mais calor o que fez com que andassem mais lentamente até chegarem ao local combinado.

Aí, criaram uma alma nova perante a possibilidade de se sentarem e a visão dos petiscos que os esperavam.

- Olá! Como está? - cumprimentou Jimmy. O administrador estava com um aspecto muito janota. Substituira a bombazina por um fato cinzento de flanela que não seria desprezado por um conde; e o chapéu de palha seria certamente cobiçado por um duque; um príncipe não conseguiria usar uma gravata verde mais bonita!

Cumprimentou-os calorosamente e, sendo um homem de tacto, não fez qualquer referência à prometida lição sobre animais.

- Devem estar a morrer de sede - disse ele - e completamente esfomeados. Pus a chaleira a aquecer logo que vi, ao longe, a figura da minha escritora de histórias de fadas!

A chaleira apresentou-se ela própria através de uma série de ruídos borbulhantes, provenientes de dois bocados de madeira colocados em cima de uma lamparina.

- Não querem tirar os sapatos e as meias? - perguntou ele. - Ali adiante, há um riacho.

Foi indescritível a alegria que eles sentiram ao refrescar os pés na água fria.

Quando voltaram, o chá estava pronto, havia muito leite, bolos, ameixas e um grande melão muito fresco.

"Um lanche para deuses" pensou Jimmy. E, com este pensamento, disse em voz alta:

- Esta festa é tão boa como a dos imortais!

- Explica lá o que queres dizer com isso - pediu o administrador.

E Jimmy contou toda a história do que se passara na noite de luar.

- Leste isso tudo num livro? - perguntou o administrador, quando ele acabou.

- Não - respondeu Jimmy - Aconteceu!

- Vocês são um grupo de jovens sonhadores, não são? - perguntou ele oferecendo ameixas a Kathleen.

"Porque não havia Jimmy de estar calado? " pensou ela, enquanto lhe sorria com ar embaraçado.

- Não, não somos - respondeu Jimmy, com ar obstinado. - Aconteceu tudo o que eu e a Mabel contámos

- Está bem - disse o administrador.

Fez-se um silêncio incomodativo.

- Ouça - disse Jimmy -, acredita-me ou não?

- Não sejas parvo, Jimmy - murmurou Kathleen.

- Se não acredita, eu faço com que tal aconteça - insistiu Jimmy.

- Não! - disseram Mabel e Kathleen, ao mesmo tempo.

- Acredita ou não? - perguntou de novo Jimmy.

- Eu penso que vocês contam aventuras muito bem! - respondeu ele, cautelosamente.

- Muito bem - disse Jimmy. - Não me acredita! Que disparate, Cathy, mesmo sendo administrador, ele é bem educado.

- Obrigado - respondeu ele, piscando os olhos.

- Promete não contar a ninguém? - exigiu Jimmy.

- Contar o quê?

- Seja o que for.

- Claro que prometo. Dou a minha palavra de honra e sabes que a cumpro!

- Então. Cathy, dá-me o anel

- Não! - responderam as duas.

Nem elas queriam dar-lho nem Jimmy as forçou, e no entanto, foi-lhe parar às mãos e ele sabia que tinha chegado o momento de mostrar que nenhum deles era mentiroso.

- Este é o anel de que Mabel lhe falou - disse Jimmy. - É um anel que realiza desejos. Ponha-o num dedo, diga o que deseja e verá que acontece o que pedir.

- Por favor, não peça nada disparatado! - pediu Kathleen. - Nada do género de estar bom tempo na terça-feira ou ter para o jantar de amanhã o seu prato favorito. Peça uma coisa que deseje verdadeiramente.

- Tenho de dizer em voz alta? - perguntou ele.

- Acho que sim.

- Então, vou pedir a coisa que eu mais gostava de ter na vida. Desejo ter aqui a pessoa mais minha amiga!

Eles, que conheciam o poder do anel, olharam à volta para ver se aparecia a tal pessoa que, por muito amiga que fosse, certamente se mostraria amedrontada ao encontrar-se repentinamente naquele lugar.

No entanto, nenhuma figura de homem saiu do bosque. Apenas, caminhando lentamente pelo carreiro entre as árvores, vinha a Mademoiselle, lindíssima no seu vestido branco, e Gerald com ar afogueado mas muito delicado.

170

- Boa-tarde - disse ele. - Convenci a Mademoiselle.

Nunca mais se soube qual seria o fim da frase porque a professora francesa e o administrador estavam parados a olhar um para o outro com olhos de quem muito se procurou e finalmente se encontra, não prestando atenção ao que os rodeava.

- Tu! - exclamou o administrador.

- Mas... és mesmo tu! - disse a Mademoiselle, em voz trémula.

Após um longo silêncio, Jimmy perguntou:

- É ela a tal pessoa muito sua amiga?

- É - respondeu o administrador. - És muito minha amiga, não és?

- Claro que sou muito tua amiga - respondeu a Mademoiselle, com voz doce.

- Como vê - disse Jimmy -, o anel realizou o seu desejo

- Não vamos discutir isso agora! - respondeu ele. - Eu penso que foi uma coincidência mas certa mente a mais feliz de todas!

- Mas tu... - disse a Mademoiselle.

- Pois - interrompeu-a o administrador. Jimmy, dá chá ao teu irmão. Mademoiselle, vamos dar um passeio pelo bosque. Tenho mil coisas para te dizer.

- Aproveita para lanchares, Gerald - disse ela, parecendo muito mais jovem e com ar de princesa de conto de fadas. - Eu volto a tempo de irmos juntos para casa. Há muito tempo que Lord Yalding e eu não nos vemos e temos muito para conversar.

- Com que então ele é Lord Yalding! - disse Jimmy, enquanto o vestido branco e o fato de flanela cinzenta se afastavam por entre as árvores. - Aldrabão!

A dar-nos a ideia de que só queria uma pessoa amiga e, afinal, era ela que ele queria aqui! Que desejo tão diferente dos nossos! Valente anel!

- Amiga! - disse Mabel, fazendo uma careta. Vê-se mesmo que é a namorada! Não percebem que ela é a tal rapariga que foi fechada no convento porque era pobre e de quem ele andava à procura? E o anel fez com que agora possam viver felizes para sempre! Fico bem contente. E tu, Cathy?

- Eu também! - respondeu ela. - É tão bom como casar com um marinheiro ou um bandido!

- E foi o anel que conseguiu - disse Jimmy. E, se o americano arrendar a casa, já têm dinheiro para viver

- Gostava que casassem já amanhã! - disse Mabel.

- E nós podíamos ser damas-de-honor! - disse Cathy.

- Desculpem incomodar, mas passam-me o melão, se faz favor? - interrompeu Gerald. - Obrigado. Porque não soubemos que ele era Lord Yalding? Que burros nós fomos!

- Eu soube ontem à noite - disse Mabel, calmamente -, mas prometi não dizer nada. Como vêem, sei guardar um segredo.

- Pelos vistos, sabes - respondeu Kathleen, um pouco aborrecida.

- Não descobrimos porque ele se disfarçou de administrador - disse Jimmy.

- Um disfarce muito convincente - disse Gerald. - Ah, ah! Descobri uma coisa que Sherlock Holmes não viu: se quisermos um disfarce que ninguém descubra, o melhor é fingir que somos aquilo que na realidade somos! Não hei-de esquecer-me desta

- É como a Mabel, que diz a verdade acerca do que acontece e ninguém a acredita - disse Kathleen.

- A Mademoiselle tem imensa sorte - disse Mabel.

- Sim, podia ter escolhido pior! - condescendeu Gerald. - As ameixas, por favor.

Parecia que a magia continuava a actuar. Na manhã seguinte, a Mademoiselle era uma pessoa completamente diferente. Tinha as faces rosadas, os lábios vermelhos, os grandes olhos muito brilhantes e até fizera um penteado novo que Lhe ficava muito bem.

- Temos uma nova Mademoiselle – exclamou Eliza.

 

Logo após o pequeno-almoço, Lord Yalding apareceu numa pequena carruagem aberta, com os bancos estofados de azul e puxada por dois cavalos, para levar todo o grupo para Yalding Towers.

Logo que lá chegaram, os quatro amigos pediram para ver todo o castelo, o que lhes foi permitido.

Lord Yalding e a Mademoiselle começaram por os acompanhar mas, em breve, se cansaram, saíram para o jardim das rosas e foram sentar-se no meio do labirinto onde, no princípio desta história, os três irmãos encontraram a Bela Adormecida com o vestido de seda cor-de-rosa.

Quando eles saíram para o jardim, as crianças sentiram-se mais à vontade e Mabel mostrou-lhes todas as portas, escadas e passagens secretas que descobrira.

Foi ao saírem de uma escada secreta, em muito mau estado, que ia dar ao quarto de vestir, cuja porta abria para a luxuosa galeria do átrio, que deram de caras com um senhor baixo, de barbicha, e que, pelos vistos, se tinha enganado quanto ao dia de abertura ao público.

- Esta parte do castelo é privada - disse Mabel, com presença de espírito e fechando a porta atrás dela.

- Já sei - respondeu o senhor -, mas o Conde de Yalding autorizou-me a ver tudo à minha vontade.

- Desculpe, não sabíamos - respondeu Mabel.

- São parentes do Conde? - perguntou o barbudo.

- Não. Somos amigos - respondeu Gerald.

O senhor era magro e estava bem vestido, era moreno e tinha uns olhos pequenos e alegres.

- Estão a fazer algum jogo?

- Não. Estamos a explorar o castelo - respondeu Gerald.

- Pode um estranho candidatar-se a membro da vossa expedição exploratória? - perguntou o senhor esboçando um sorriso simpático. Eles olharam uns para os outros.

- Bem - disse Gerald -, quer dizer. é difícil de explicar. compreende?

- O que ele quer dizer - explicou Jimmy -, é que não o queremos levar connosco sem sabermos porque quer ir.

- É um fotógrafo? - perguntou Mabel. - Ou trabalha para algum jornal e quer escrever qualquer coisa acerca de Yalding Towers?

- Compreendo os vossos receios - respondeu ele. - Não sou fotógrafo nem trabalho para nenhum jornal. Tenho os meus rendimentos próprios e estou a viajar por este país com a intenção de arrendar uma casa. Chamo-me Jefferson D. Conway.

- Oh! - exclamou Mabel -, é o milionário americano

- Não gosto dessa descrição, minha menina, disse ele. - Sou um cidadão americano e não vivo com dificuldades económicas. Esta propriedade parece ser muito boa Se estivesse à venda.

- Não está, não é possível - apressou-se Mabel a explicar. - Os advogados escreveram isso num papel e Lord Yalding não pode vender. Mas pode viver nela se pagar ao Lord Yalding uma renda principesca e, assim, ele já pode casar com a professora francesa.

- Não digas mais - disseram, ao mesmo tempo, Kathleen e o Sr. Conway, tendo este acrescentado:

- Mostra o caminho, por favor. Sugiro que a exploração seja completa e exaustiva.

 

Assim encorajada, Mabel mostrou todo o castelo. Ele pareceu gostar embora tivesse um ar um pouco desapontado.

- É uma excelente mansão - comentou ele, quando voltaram ao ponto de partida -, mas julguei que, numa casa deste tamanho, havia um caminho secreto, ou um esconderijo de padre ou um fantasma.

- E há - disse imediatamente Mabel -, mas eu pensei que os americanos só gostavam de máquinas e jornais

Ela tocou no canto de um painel atrás dela e apareceu uma escada estreita e pouco segura. À vista de tal, operou-se uma transformação no americano: tornou-se animado, vigilante e muito interessado.

- Olhem! - gritou ele, parado à porta do quarto de vestir e que levava ao quarto de cama. - Isto é uma maravilha

As esperanças de todos eles aumentaram. Parecia quase certo que o castelo seria arrendado por uma quantia muito grande e que Lord Yalding poderia casar.

- Se houver um fantasma nesta casa tão antiga, disse o americano -, fecho ainda hoje negócio com o Conde Yalding.

- Se ficar cá para amanhã e dormir neste quarto, deve ver o fantasma - disse Mabel.

- Achas que sim? - perguntou o americano, muito feliz.

- Dizem - respondeu Mabel -, que o velho Sir Rupert, que foi decapitado no reinado de Henrique VIII, passeia aqui de noite, com a cabeça debaixo do braço, mas nós nunca o vimos. Só vimos a senhora vestida de cor-de- rosa e com diamantes no cabelo.

Os outros perceberam o plano de Mabel e apressaram-se a confirmar que tinham visto a senhora de vestido cor-de-rosa, o que era verdade!

Ele olhou para eles com os olhos semi-cerrados e disse:

- Já tinha pensado pedir a Lord Yalding que me deixasse passar a noite num dos seus quartos mais antigos. E, já que há um fantasma, se eu o ouvir ou o vir arrendo a casa.

- Faz muito bem! - disse Cathy.

- Parecem muito certos de que o vosso fantasma aparece - disse o Sr. Conway, continuando a fixá-los -, mas sempre vos digo que trago comigo uma pistola e que disparo quando vejo um fantasma. E tenho uma óptima pontaria!

Tirou a arma do bolso, dirigiu-se à janela do quarto, dizendo

- Estão a ver aquela rosa vermelha?

Eles disseram que sim.

Logo a seguir ouviu-se um estrondo e as pétalas vermelhas espalharam-se pelo terraço.

O americano voltou-se para as crianças, que estavam sem pingua de sangue, e disse:

- Jefferson D. Conway dedicou sempre especial atenção aos seus negócios e, por isso, teve sucesso. Muito obrigado pela vossa amabilidade.

- Imagina que fingias de fantasma e que ele te dava um tiro! - disse Jimmy. - Que rica aventura!

- De qualquer modo, ele vai ter o seu fantasma!

- disse Mabel, com ar de desafio. - Vamos procurar Lord Yalding e pedir- lhe que devolva o anel.

 

Lord Yalding tinha falado com a tia de Mabel e esta havia preparado um esplêndido almoço para os seis, servido no grande átrio e em baixela de prata. A Mademoiselle estava cada vez mais bonita e mostrou-se muito comovida quando Gerald se levantou e, erguendo o copo de limonada, propôs um brinde à saúde de Lord e Lady Yalding.

Quando Lord Yalding agradeceu, num discurso muito simpático, Gerald considerou o momento adequado e pediu:

- Sabemos que não acredita nos poderes do anél mas nós acreditamos. Pode devolvê-lo, por favor?

Lord Yalding concordou.

Mais tarde, na sala dos painéis que escondia as estantes com jóias e após um conciliábulo, Mabel disse:

- Este anel realiza desejos e eu quero aqui todas as espécies de armas que o americano tem.

Imediatamente a sala ficou completamente cheia das mais variadas armas desde as pistolas às espingardas passando por arcos e flechas, facas, adagas, ete. deixando os quatro amigos estupefactos.

- Ele deve coleccionar armas! - exclamou Gerald. - As flechas estão envenenadas, com certeza! Por favor, Mabel, manda isto tudo embora e tenta de outra maneira

Mabel desejou que as armas voltassem ao lugar onde estavam e eles deram um suspiro de alívio.

- Assim não dá - disse Mabel. - Temos de resolver o problema de outra maneira. Vou desejar que o americano pense ver um fantasma quando estiver na cama e até pode ser Sir Rupert com a cabeça debaixo do braço.

- Ele vai cá ficar esta noite?

- Não sei. Se calhar, é melhor desejar que ele veja Sir Rupert todas as noites para ter a certeza de que há mesmo um fantasma!

- Isso é demais - disse Gerald. - Como é que vamos saber se ele o viu?

- No dia seguinte, quando ele arrendar a casa! Tendo tudo combinado, Mabel foi fazer companhia à tia e os três irmãos regressaram a casa.

Quando estavam a jantar, apareceu Lord Yalding e disse-lhes:

- O Sr. Jefferson Conway quer que Gerald e Jimmy vão dormir esta noite no mesmo quarto que ele e eu já mandei colocar lá duas camas para vocês.

Importam-se? Ele julga que querem fazer um truque qualquer com fantasmas!

Eles concordaram, já que era impossível recusar sem levantar suspeitas, pelo que, às dez horas da noite, estavam deitados, cada um na sua estreita cama, no antigo e grandioso quarto, cujo tecto era altíssimo e tinha as paredes forradas com tapeçarias.

- Espero que não haja um verdadeiro fantasma!

- murmurou Jimmy.

- Também eu! - respondeu-lhe Gerald.

- Não quero ver o fantasma de Sir Rupert com a cabeça debaixo do braço! - insistiu Jimmy.

- E não vês! O mais que te pode acontecer é veres a cara do americano a olhar para o fantasma. A Mabel ia desejar que ele o visse e não nós. Vais ver que dormes a noite toda e não dás por nada! Fecha os olhos e conta até mil para adormeceres depressa.

 

Mas ele estava preocupado com Mabel e com o anel. E ela, logo que soube, pela tia, que o americano dormiria nessa noite no castelo, apressou-se a desejar "que Sir Rupert mais a sua cabeça aparecessem nessa noite no quarto".

Jimmy fechou os olhos, começou a contar e depressa adormeceu. O mesmo aconteceu com o irmão.

Foram acordados pelo barulho de um tiro de pistola. Lembraram-se imediatamente do que tinha acontecido de manhã e levantaram-se, esperando ver as pétalas vermelhas de uma rosa a caírem.

Em vez disso, observaram o quarto, fracamente iluminado por seis velas e o americano, em calças e camisa, com uma arma na mão. Ao fundo, vindo do quarto de vestir, avançava uma figura, envolta numa grande capa, com a cabeça debaixo do braço direito e cuja face mostrava um sorriso nos lábios. Os rapazes gritaram com o susto e o americano disparou outra vez. A bala atravessou Sir Rupert, que continuou a avançar sem parecer ter reparado em tal. Então, subitamente as luzes apagaram-se e a coisa de que eles se lembraram a seguir foi de ser já de manhã. Pelas janelas entrava uma luz do dia muito acinzentada, chuva forte batia nas vidraças e o americano tinha desaparecido.

- Onde estamos nós? - perguntou Jimmy, sentando-se e olhando à volta. - Já me lembro! Que horror. Só te digo que estou fartíssimo daquele anel!

- Que disparate! - respondeu Gerald. - Até foi engraçado. Eu não tive medo nenhum, e tu?

- Eu também não, claro! - declarou Jimmy.

- Parece que conseguimos - disse Gerald, mais tarde, quando souberam que o americano tinha tomado o pequeno-almoço com Lord Yalding e partira para Londres no primeiro comboio. - Foi desfazer-se da outra casa para poder ficar com esta.

- Creio que agora já acredita no anel - disse Jimmy a Lord Yalding, ao encontrá-lo na galeria. Isso do fantasma que o americano viu foi obra nossa! Ele tinha-nos dito que arrendava a casa se visse um fantasma e nós tratámos de lhe fazer a vontade.

- Ah, sim? - disse o Lord, em voz fria. - Então é a vocês que devo agradecer!

- Não tem de quê - respondeu Jimmy, amavelmente.

- Talvez estejam interessados em saber o que se passou.

- Pois estamos - disse Jimmy. - Que disse ele?

- Disse - respondeu ele, na mesma voz fria -, o seguinte: "Senhor, a mansão dos seus antepassados é, na verdade, o máximo que se pode exigir em grandiosidade e luxo. Vê- se que não se pouparam a esforços nem a gastos para que tudo resultasse perfeito, quer no interior quer no exterior. Penso, no entanto, que os seus antepassados deviam ter parado aí ". Respondi-lhe que, tanto quanto eu sabia, era o que tinham feito e ele disse: "Está enganado. Eles costumam passear-se durante a noite com a cabeça debaixo do braço. E, um fantasma que eu pudesse ver, até apertar a mão, bom, não me incomodaria e pagaria, se fosse preciso, um pouco mais de renda, atendendo à originalidade. Mas, fantasmas que se passeiam com a cabeça debaixo do braço e se mantêm impávidos ao serem atravessados por balas! Se é este o tipo de fantasmas que existe numa tradicional família inglesa, agradeço mas dispenso! ". E foi-se embora no primeiro comboio.

- Peço muita desculpa - disse Jimmy. - Não tivemos má intenção! Pensámos que estávamos a ajudá-lo e, afinal, parece que estragámos tudo. Talvez outra pessoa queira arrendar a casa!

- Não conheço mais ninguém que seja suficientemente rico para o fazer - disse Lord Yalding. - O mal foi o americano ter vindo um dia mais cedo do que tinha combinado porque, assim, vocês não se tinham metido no assunto. Foi uma partida indecente!

Fez-se um silêncio quebrado apenas pelo barulho da chuva a bater nas janelas.

- Ouça - disse Jimmy, com ar de quem tinha tido uma brilhante ideia. - Porque não vende as suas jóias?

- Eu não tenho jóias, meu rapaz – respondeu Lord Yalding, começando a afastar-se.

- Estou a referir-me àquelas que estão na sala com as paredes de painéis e o tecto com estrelas – insistiu Jimmy, indo atrás dele.

- Não há lá nenhumas - disse Lord Yalding. E, se isso é mais uma história do tal anel, previno-te que tenhas cuidado porque já estou mais que farto dessa conversa.

- Não é conversa nenhuma – exclamou Jimmy. - Há muitas prateleiras cheias de lindas jóias de família Pode vendê-las e...

- Não! - interrompeu a Mademoiselle, que acabara de entrar pela porta da galeria. - Não deves vender jóias de família!

- E não vendo até porque não há – respondeu ele. - Demoraste muito, minha querida! Nunca mais chegavas!

- Há sim, senhor! - disse Mabel, que vinha atrás da Mademoiselle.

- Vamos ver o que eles nos querem mostrar pediu a Mademoiselle ao ver que ele não se mexia.

- Pelo menos vai ser divertido.

- E é - disse Jimmy.

Com Mabel e Jimmy à frente, Lord Yalding e a Mademoiselle dirigiram-se para a sala.

- É mais seguro irmos de mãos dadas - disse Lord Yalding -, porque, com estes miúdos ao pé de nós, nunca se sabe o que vai acontecer.

 

O fim da magia

Seria muito interessante imaginarmos os pensamentos de Lord Yalding e da Mademoiselle.

Quanto a ele, era natural que se debatesse entre a dúvida e a esperança. Dúvida, porque não era possível que acontecessem coisas tão estranhas como a existência de jóias escondidas em locais secretos ou anéis com poderes mágicos. Esperança, porque aquelas crianças acreditavam profundamente em tudo o que contavam, a verdade é que o fantasma tinha mesmo aparecido, a Mademoiselle também e. podia acontecer qe os seus problemas se viessem a resolver com um final feliz.

A Mademoiselle, reflectia-se no seu rosto a grande felicidade que sentia e o quanto valera a pena os sacrifícios que fizera para, finalmente, encontrar o seu amado.

Jimmy, era fácil de adivinhar, só pensava que agora é que Lord Yalding seria obrigado a acreditar em tudo quanto eles tinham dito acerca dos poderes mágicos do anel. Só estava pesaroso por Gerald e Kathleen, que se encontravam a ajudar a tia de Mabel a cobrir novamente toda a mobília, não presenciarem o seu triunfo.

No entanto, não perderam muito porque, quando Mabel tentou abrir a parede secreta, nada aconteceu.

- Há uma mola secreta por aqui algures - disse Mabel, procurando com os dedos o ponto onde costumava carregar.

- Onde? - perguntou Lord Yalding.

- Aqui - respondeu ela. - Só que não consigo encontrá-la.

E por mais que tentasse, a parede manteve-se completamente imóvel e eles não conseguiram provar o que haviam dito.

- Como vêem - disse Lord Yalding asperamente -, já chega de brincadeiras e não quero ouvir falar mais em magias e encantamentos. Como encontraram o anel nesta casa, presumo que me pertence e, portanto, agradeço que mo devolvam já.

- É Gerald quem o tem - disse Mabel, com ar infeliz.

- Então, vão os dois buscá-lo!

Foram, e Lord Yalding durante a sua ausência, consolou a Mademoiselle, lembrando-lhe que havia coisas muito mais importantes na vida do que jóias.

Os quatro companheiros voltaram juntos.

- Já estou farto desta história do anel - disse Lord Yalding. - Dá-mo e não se fala mais no assunto.

- Não consigo tirá-lo - disse Gerald. – Acontece sempre isto quando há um desejo.

- Consigo eu - respondeu Lord Yalding. – Nem que seja com sabão!

Mas eles sabiam que o sabão não ia servir para nada.

- Ele não acredita que há aquelas jóias todas! disse Mabel, começando a chorar. - E eu não encontro a mola Não sei o que...

Calou-se subitamente porque, ao mexer novamente no painel, a parede moveu-se e ficaram à vista as prateleiras forradas de veludo e cheias de jóias.

- É inacreditável! - exclamou Lord Yalding.

- Meu Deus! - disse, ao mesmo tempo, a Mademoiselle.

- Não percebo porque resultou agora e há pouco não! - disse Mabel.

- Não há mola nenhuma - disse Gerald. - O que acontece é que agora o anel estava aqui na sala. Lembras-te que Febo nos disse que o anel era a base da magia.

- Fecha o painel, leva o anel lá para fora e experimenta.

Verificaram que Gerald tinha razão: quando o anel estava dentro da sala, o painel abria e, quando não estava, não abria.

- Como vê, tínhamos razão - disse Mabel a Lord Yalding.

- De facto, a mola está muito bem concebidadisse ele. - Vocês foram muito espertos em a descobrir e, se estas jóias são reais...

- Claro que são! - disse Mabel, indignada.

- Bem - disse Lord Yalding -, agradeço-vos muito. Parece que está a chover menos e eu vou mandar levar-vos a casa depois do almoço. E, se não se importam, eu fico com o anel.

Meia hora depois, o anel continuava sem sair do dedo já massacrado de Gerald, apesar das tentativas feitas com sabão.

- Tenho a certeza de que consigo tirá-lo se o desejar - disse Gerald, já irritado com o que Lhe faziam.

E, claro, instantaneamente o anel deslizou como manteiga quente.

- Obrigado - disse Lord Yalding.

- Tenho a certeza de que ele julgou que eu estava a fazer de propósito - disse Gerald, mais tarde, quando foram para o terraço da escola conversar sobre tudo o que se havia passado, acompanhados de uma taça de ananás e de uma garrafa de refresco. Estas pessoas nunca estão contentes! Só lhe veio a pressa de nos mandar para casa quando percebeu que a Mademoiselle viria ao mesmo tempo que nós. Gostava mais dele quando era apenas o administrador e, a continuar assim, parece-me que não volto a gostar.

- Ele não percebe o que se passa com ele - disse Kathleen. - Deve ter a ver com a magia! Não se lembram como a Mabel estava antipática quando se tornou invisível?

- Em parte, deve ser isso! - disse Gerald, tentando ser justo. - E a outra parte deve ser por estar apaixonado. Disseram-me que isso torna as pessoas completamente parvas. Aconteceu o mesmo à irmã do colega que me contou. E ela até costumava ser muito simpática antes de ficar noiva!

Ao lanche e ao jantar, a Mademoiselle mostrou-se cada vez mais bonita e simpática. Ao pequeno-almoço, no dia seguinte, continuou a demonstrar uma enorme alegria e, em breve, chegou Lord Yalding.

Foram conversar para a sala e os quatro companheiros, muito discretamente, foram para a sala de aulas onde se mantiveram até Gerald sair para ir ao quarto buscar um lápis e encontrar Eliza a espreitar pelo buraco da fechadura. A partir daí, ficou sentado ao cimo das escadas donde não podia ouvir a conversa mas era fácil vigiar a porta.

Pouco depois, Lord Yalding saiu abruptamente da sala, foi buscar o chapéu e saiu, batendo com a porta da rua de maneira muito pouco delicada.

Como a sala estava aberta, Gerald ouviu os soluços da Mademoiselle.

- Que horror! - pensou ele. - Já começam a discutir! Parece que isto não dura muito! Espero bem nunca me apaixonar!

Não havia tempo a perder porque Eliza podia aparecer de um momento para o outro e havia de querer saber o que se passava. Ora, Gerald queria desempenhar o papel de confidente. Desceu as escadas silenciosamente e entrou na sala.

- Acabou-se tudo! - disse a Mademoiselle, com as lágrimas a correr pela cara abaixo. - Não quer casar comigo!

Não se sabe como Gerald conquistou a confiança da Mademoiselle mas a verdade é que ele tivera sempre um jeito especial para lidar com os adultos. Assim, pegou-lhe na mão e foi-lhe dizendo:

- Não chore! Ele há-de voltar! Com certeza, não se passou nada de grave!

Então, a Mademoiselle começou a contar:

- Na noite passada, ele saiu para dar uma volta e pensar.

- Calculo que ele tinha o anel no dedo - disse Gerald -, e viu...

- Viu as estátuas ganharem vida - continuou a Mademoiselle, com a voz entrecortada por soluços. Ele já estava muito confuso com as histórias que vocês contaram. Diz que viu Afrodite e Apolo a moverem-se nos seus corpos de mármore e lembrou-se do que vocês lhe tinham contado. Tornou-se completamente louco, imaginou que a vossa história era verdadeira, com a ilha e o piquenique dos deuses, os animais pré-históricos a nadarem no lago! Ele próprio era uma estátua

com vida. Ao amanhecer, tudo aquilo acabou mas ele continuava transformado em estátua e assim esteve até às nove menos um quarto da manhã. Nessa altura desejou voltar a ser humano e foi o que aconteceu.

Isto foi um pesadelo mas ele perdeu a cabeça com as vossas histórias. Diz que não foi um sonho e que endoideceu e que um homem louco não pode casar.

E eu estou completamente desesperada! Assim, não vale a pena viver!

- Não vai desesperar - disse Gerald. - Há sempre uma última esperança! E a verdade é que nem ele sonhou nem está doido. É pura magia!

- A magia não existe - respondeu a Mademoiselle, chorando cada vez mais. - Ele enlouqueceu com a alegria de tornar a ver-me depois de tanto tempo.

- Ele falou com os deuses? - perguntou Gerald.

- Essa é a mais louca das ideias – respondeu ela. - Diz que Mercúrio lhe marcou um encontro para amanhã, quando a lua nascer e num determinado Templo.

- óptimo - exclamou Gerald. - Minha querida Mademoiselle, não seja tonta! Quero dizer, não seja fraca porque dos fracos não reza a história. Amanhã ele vai ao Templo e nós vamos também. Vai ver que tudo se resolve, que ele fica a saber que não está louco e vão compreender tudo Tome o meu lenço, limpe essas lágrimas e pense que a felicidade vai voltar!

Ela fez o que ele lhe pediu e disse:

- Só espero que não seja outro truque como o do fantasma!

- Não posso explicar nada agora - respondeu Gerald -, mas dou-lhe a minha palavra de honra que tudo correrá à medida dos seus desejos. Mesmo sendo francesa sabe o que, para um inglês, significa a palavra de honra e eu nunca disse uma mentira!

- É curioso - disse ela, limpando os olhos -, mas acredito plenamente em ti.

E deu-lhe um beijo.

" Ela fica contente e não me incomoda muito " pensou Gerald.

 

A lua estava quase a subir no firmamento. A professora francesa, sem saber muito bem em que acredi tar mas querendo estar perto do seu amado, ainda que este estivesse louco, e os quatro companheiros caminhavam pela relva fresca do orvalho. A leste, começa a haver uma claridade que se mistura com os reflexos fortemente rosados das nuvens que se acumulam a ocidente, últimos sinais do sol que se põe.

Passaram pelo bosque e foram desembocar ao cimo de uma pequena colina. Nela havia um círculo composto de pedras, no meio do qual se erguiam as ruínas de um pequeno templo também de pedra. Aí, divisava-se uma figura escura e, ao vê-la, a professora separou-se deles e correu para ela. Era Lord Yalding que lhe pediu para ela se ir embora.

- Nunca - respondeu ela. - Se tu estás louco, eu também estou porque acredito no que eles contam. Estou aqui e aqui fico contigo para ver seja o que for que o luar nos mostre!

- Não tens medo? - perguntou Lord Yalding

- Medo? contigo? - riu-se ela.

Ele rodeou-a com o braço e insistiu:

- Tens a certeza de que não tens medo?

Gerald foi ter com eles e disse:

- Se usar o anel, não tem medo com certeza. Peço

desculpa mas nós ouvimos o que disseram. Era impossível não ouvir.

- Não tem importância - disse ela, rindo novamente. - Vocês bem sabem quanto nos amamos.

Pôs o anel no dedo e ambos, juntamente com as crianças que se tinham aproximado, esperaram quietos.

À medida que a lua se ia erguendo no firmamento um raio de luz foi incidindo no Templo e, lentamente, foi-se aproximando do meio da pedra central. No momento em que o atingiu, pareceu que uma mola havia sido tocada e um facho de luz inundou toda a zona. Ao vê-lo tiveram a sensação de que se encontravam no centro do universo e que o tempo e espaço eram palavras sem significado. Era a eternidade!

Nenhum deles jamais conseguiria explicar a magia daquele momento e, logo a seguir, viram sombras que se aproximavam do cimo da colina.

Verificaram que iam aparecendo todas as estátuas, quer as que já conheciam do parque quer muitas outras vindas de pontos longínquos, e finalmente os deuses e as deusas com quem tinham estado na ilha. Ninguém disse uma palavra. Eles tinham pensado fazer várias perguntas, no entanto, nada disseram porque naquele círculo mágico de luz tudo se compreendia sem ser necessário falar

Então, todas as faces - pássaros, estátuas gregas, o monstro da Babilónia, crianças e adultos humanos se voltaram para cima e foram iluminadas pela luz magnificente.

- A luz! - exclamaram todos ao mesmo tempo. E a luz foi desaparecendo gradual e docemente deixando em todos uma sensação de paz e quietude.

A relva estava molhada e as nuvens tinham coberto a lua.

- Eu gostava - disse docemente a rapariga francesa -, de ir à gruta da ilha.

 

Dirigiram-se calmamente, através da noite, para a casa dos barcos, tiraram um e remaram até à ilha. Logo que lá chegaram, foram direitos aos degraus do túnel que levava à gruta.

- Eu trouxe velas - disse Gerald.

Assim, alumiados pelas velas, seguiram pelo túnel até ao átrio de Psique.

- O anel - começou Lord Yalding a dizer.

- O anel - disse a sua amada -, é o anel mágico que, há muitos anos, foi dado a um mortal e é precisamente aquilo que vocês dizem que é. Foi dado a um antepassado teu por uma senhora da minha família para que ele pudesse construir uma casa e um jardim exactamente iguais aos que ela tinha na sua terra. Assim, tudo isto foi construido, em parte devido ao amor e em parte devido à magia. Ela não chegou a viver para ver o resultado e foi esse o preço que pagou pela utilização do anel mágico!

Claro que ela estava a falar inglês, visto que as crianças a entendiam perfeitamente. No entanto, não parecia a pronúncia que a Mademoiselle costumava ter.

- Só às crianças - continuou ela -, o anel não exige paga. Tu pagaste por minha causa quando desejaste que eu viesse e o preço foi o medo de estares louco que tens vindo sentir. Só um desejo não tem preço!

- E esse desejo é...

- O último - disse ela. - Posso dizê-lo?

- Sim, por favor! - pediram todos.

- Então, desejo - disse ela -, que desapareça toda a magia que existe no anel e que passe a constituir unicamente o símbolo da nossa união por toda a vida.

Logo que ela se calou, a luz encantada desapareceu bem como tudo o resto que se encontrava na gruta. Gerald levantou a vela e, no lugar onde tinha estado a estátua de Psique, havia agora uma grande laje com palavras gravadas.

- É a sepultura dela - disse a Mademoiselle.

No dia seguinte, nenhum deles se lembrava exactamente de tudo quanto se passara na véspera, mas a verdade é que muitas coisas haviam mudado. O anel não passava de uma aliança de ouro que a Mademoiselle encontrara no seu próprio dedo quando, de manhã, acordara. Mais de metade das jóias tinham desaparecido e as que ficaram estavam bem à vista, nas prateleiras forradas de veludo e sem quaisquer painéis a cobri-las. Já não havia porta secreta por trás do Templo de Flora nem a maioria das passagens e quartos secretos do castelo. Também o número de estátuas existente no grande parque era muito inferior ao que se supunha. Finalmente, tinham desaparecido também algumas alas do castelo cuja reconstrução foi muito cara.

Parece poder concluir-se que o antepassado de Lord Yalding usara bastante o anel para ajudar à própria construção do castelo! No entanto, as jóias que restaram foram suficientes para ocorrer às despesas necessárias.

A rapidez com que a magia foi desfeita espantou-os de tal maneira que quase duvidaram que algo de mágico tivesse acontecido. Mas a verdade é que Lord Yalding casou com a professora francesa e, na cerimónia, foi usada uma aliança de ouro que, obviamente, era o anél mágico e que passou a ser o símbolo que os manteria unidos até à morte.

 

                                                                                Edith Nesbit  

 

                      

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