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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CÍRCULO DO MEDO - p.2 / Sandra Carvalho
O CÍRCULO DO MEDO - p.2 / Sandra Carvalho

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SAGA DAS PEDRAS MÁGICAS

 

 

Livro IV / Parte II

O CÍRCULO DO MEDO 

 

As histórias que nos chegavam do Império falavam de uma sociedade próspera, onde os comerciantes negociavam em segurança, e as pessoas viviam abastadas e felizes, sob a proteção da espada de um rei poderoso e justo, e o favor divino de um Deus soberano e compassivo. Ao descer do Dragão dos Mares, testemunhei algo bem diferente!

O porto fedia. Eu crescera junto ao mar e habituara-me ao cheiro intenso do peixe e do suor dos homens. Contudo, aqui, o ar estava empestado por uma podridão que fazia lembrar uma aldeia destruída, após um combate sangrento, quando os mortos começam a decompor-se. E não tardei a perceber porquê! Nas sombras das barracas de madeira amontoavam-se cadáveres; despojos de uma noite de rixas, de frio e de miséria. As discussões entre os comerciantes e os marinheiros brotavam do nada; inventavam-se pretextos para elevar a voz, cerrar os punhos e revelar a lâmina de um punhal. O meu pai manteve-me próximo do seu corpo, ao atravessarmos a rua tumultuosa, enquanto o rei-lobo e a sua alcatéia abriam caminho para passarmos.

Os mendigos multiplicavam-se, qual enxame desregrado, e caíam sobre nós, atraídos pela imponência das roupas e das armas dos guerreiros. Uma idosa, coberta por andrajos, alcançou o tio Berchan e lançou-lhe as mãos ao rosto, guinchando num tom estridente que me causou calafrios:

— Volta para trás, homem sábio... Volta para trás, antes que seja tarde!

Ele recuou, sobressaltado, e a sinistra anciã desapareceu entre a multidão. Passado algum tempo, ainda o via esfregar as faces, ansioso por se livrar da impressão incômoda deixada pelas unhas sebentas.

À saída do porto, já mal conseguíamos dar um passo. O progresso teria de ser feito à força. Sempre que um pedinte era repelido, dois tomavam o seu lugar. Além de sujas e esfomeadas, estas pessoas estavam doentes. E as suas maleitas alastravam-se da carne para o espírito. Que rei permitia que a sua gente se finasse desta forma indigna, enquanto ele e a sua corte se elevavam como deuses, aos olhos dos estrangeiros?

— Pelas barbas de Odin! O que é que se passa aqui? — bradou o meu pai.

— Não sei — retorquiu o tio Stefan, com a testa vincada por uma ruga de inquietação. — Já pisei este porto muitas vezes, mas jamais observei tamanha desordem!

O jarl ordenou que se evitasse o uso das espadas. Os guerreiros ergueram os escudos e empurraram a multidão. Um sussurro alcançou-me a mente, carregando a urgência da desesperança, distinguindo-se da arruaça qual facho nas trevas. Olhei em volta, confusa, ciente de que provinha de alguém com sangue mágico. Porém, só avistei cabeças desgrenhadas, olhos ansiosos, bocas desdentadas... Então, inesperadamente, o apelo findou. E, um instante depois, o troar de uma corneta sobrepôs-se a todos os clamores.

Os mendigos dispersaram-se com uma rapidez apavorada. O meu pai deteve o avanço dos homens, esperando pelos cavaleiros que vinham ao nosso encontro, com as bandeiras do Império oscilando orgulhosas ao sabor do vento. Reconheci o comandante da coluna. Simon, Mão de Ferro, era um dos mais respeitados generais do rei William. O fato de ser ele a receber-nos, podia ser considerado uma demonstração de apreço... ou um mau presságio. Suspirei de alívio quando desmontou e se inclinou diante dos nossos líderes. Estes saudaram-no e Lorde Stefan declarou a intenção de falar com o soberano. A resposta de Mão de Ferro deixou-me gelada:

— Lamento informá-los de que sua majestade, rei William, o Conquistador, se encontra em campanha nos mares do Sul. Contudo, em nome da rainha Mary, tenho o prazer de convidá-los a desfrutar da hospitalidade do Império, e a assistir às festividades que exaltam a união do seu herdeiro, príncipe John, com a excelsa princesa Estrid, filha da casa de Edwin McGraw e do rei Steinarr do povo Viking.

Um burburinho de assombro escapou aos lábios dos homens. Ivarr enrubesceu de fúria, mas o meu pai conteve o seu ímpeto. Simon era apenas um mensageiro, sem autoridade para fornecer-nos explicações.

— E quando será celebrada essa união? — indagou o jarl, com a respiração suspensa.

— O casamento está a realizar-se enquanto falamos — replicou Mão de Ferro, surpreendido ante o seu desconhecimento. — A rainha Mary regozija-se por terdes chegado a tempo de congratular os noivos, uma vez que a princesa Estrid lamentou o fato da família não poder comparecer...

A sua voz foi esmorecendo, até se extinguir. Simon e Throst conheciam-se há muitos anos; eu até me atrevia a afirmar que eram amigos. Para o general, tornava-se óbvio que nós não viajáramos até o Império pelas razões que a soberana conjecturava. Não levantou a mínima resistência quando o jarl demandou:

— Leve-nos imediatamente à presença da rainha Mary!

A cidade era sombria, quase lúgubre. As casas, construídas com pedras negras e barro, exibiam um ar austero e pouco acolhedor. As ruas principais também estavam forradas a pedra e eram tão espaçosas, que duas carroças não teriam dificuldade em cruzar-se, se circulassem em sentidos opostos. Contudo, o mau cheiro que empestava o porto parecia entranhado na névoa que deslizava entre as habitações, sufocando o odor agradável da madeira que alimentava as lareiras.

Encontramos as ruas desertas. Ao escutarem o estrépito de cavalos e guerreiros, homens e mulheres haviam-se refugiado às pressas no interior das casas, deixando para trás os utensílios domésticos e as armas. Agucei o olhar e percebi rostos assustados e corpos trêmulos, que se atreviam a espreitar os forasteiros por uma nesga da janela. Era certo que a robustez dos nossos homens, aliada aos cabelos e barbas compridas, e às peles de animais que nos aqueciam, inspiravam temor. Em tempos, por estas paragens, a visão de um guerreiro do Norte bastaria para que uma mulher desmaiasse e um homem se borrasse de medo. Todavia, eu julgara que o Tratado lhes demonstrara que, apesar de vigorosos, os Vikings não eram bestas sanguinárias, movidas pelo instinto. Pelo visto, enganara-me... Melhor assim! Neste momento, a última coisa que nos interessava era parecer inofensivos.

O tio Stefan e o meu pai cavalgavam ao lado de Mão de ferro, com expressões carregadas. O sucesso da nossa campanha assentara na convicção de que William escutaria o apelo dos seus aliados e entregaria Estrid à família, assim como a pedra mágica que ela roubara. Jamais nos passara pela cabeça que o rei se encontrasse ausente! Tal explicava muita coisa... Os conspiradores tinham aguardado a sua partida, a fim de pôr em marcha o plano traiçoeiro. E não perdiam tempo! Mal chegara de viagem, Estrid já subia ao altar! Nós tínhamos de detê-la a todo o custo. Casada com o herdeiro do Império, a ladra assassina se tornaria intocável.

Deixamos o povoado para trás e começamos a subir a encosta, com as muralhas do majestoso castelo do rei William a elevarem-se diante de nós. O forte do rei Steinarr era grosseiro, ameaçador, feito para dissuadir os inimigos com um simples olhar. Esta construção não parecia tão resistente; antes imponente... Plantava no espírito dos homens o desejo de parar para admirá-la e comentar a sua nobreza. Noutras circunstâncias, eu teria sido a primeira a deslumbrar-me. Porém, naquele momento, só desejava pôr as mãos nos cabelos de Estrid!

Uma corneta anunciou a chegada de Mão de Ferro. Ao atravessar os colossais portões do castelo, tive a sensação de penetrar na bocarra ávida de um monstro. No centro do terreiro, uma impressionante cruz de madeira erguia-se na direção do céu. Diante desta, o chão estava negro de tão queimado. Perdi o fôlego, sem necessitar apelar à imaginação para ver as labaredas de uma gigantesca fogueira a devorarem um infeliz qualquer, que se atrevera a cruzar o caminho de Esteban. Os gritos de dor e desespero ensurdeceram-me por um instante... Pisquei os olhos com força, renegando a Visão. De toda a parte, surgiam guerreiros de aspecto rude e ameaçador. Apesar de existir um entendimento entre os Vikings e o Império, os soldados do rei William denunciavam nervosismo. Sabiam perfeitamente que, se os ânimos se exaltassem, de pouco lhes valeria a superioridade numérica.

O meu olhar foi atraído por uma construção que se destacava da altivez do edifício principal. A cruz sobre a porta sólida, que se encontrava aberta, e os sinos pendurados no pináculo de pedra, não deixavam dúvidas de que se tratava de uma igreja da nova fé. Foi para lá que Mão de Ferro nos conduziu. O jarl Throst fez sinal aos seus guerreiros, para que aguardassem no exterior. Fixei Thora, apreensiva, mas a minha irmã acenou-me, pedindo que não temesse pela sua segurança. Como se tal fosse possível! A cada passo, o meu coração apertava-se e os músculos enrijeciam. No preciso instante em que nos aproximávamos da porta, os sinos começaram a tocar.

De imediato, senti-me tonta, com as pernas a bambolear. Ivarr apercebeu-se e amparou-me. Não reclamei. Concentrei-me em contrariar o feitiço, que me envolvia como uma segunda pele, antes que perdesse os sentidos. Esteban preparara-me uma armadilha! Se, ao menos, eu tivesse a Lágrima do Sol no bolso da túnica, para me socorrer na sua luz... Raios! A magia do cristal vivia em mim, desde que o Guardião da Montanha me reconhecera. Eu não necessitava tê-lo nas mãos para senti-lo pulsar, para invocar a sua magia... para me libertar deste malefício!

— Edwina...? — apelou Ivarr, preocupado.

O meu pai deteve-se, fitando-me com o cenho franzido. Reuni alento para incentivá-lo a prosseguir. Os sinos repicavam. Um cântico de louvor erguia-se no interior da igreja. Busquei dentro de mim a energia que o feitiço de Esteban sufocava. Encontrei-a muito débil, envolta por uma sombra devoradora, e concentrei-me em reacendê-la. Eu era Guardiã da Lágrima do Sol... O bruxo renegado enganava-se, se julgava que podia prostrar-me tão facilmente!

A minha luz rasgou a bruma do malefício, no instante em que o jarl Throst irrompia pela igreja, ignorando o protesto de Mão de Ferro sobre a necessidade de anunciar a nossa presença. Lorde Stefan seguiu-os... Mas foi o brado trovejante de Berchan McGraw que silenciou o coro festivo:

— Parem imediatamente esta perfídia!

Entrei na igreja diante de Ivarr, pelos meus próprios pés. A sala era pequena e não recebia a bênção dos raios do Sol. Que conveniente, para um servo da Arte Obscura! Uma passadeira vermelha dividia o espaço. De cada lado, as filas de bancos de madeira eram ocupadas por familiares do rei do Império, que se erguiam com expressões ultrajadas. As senhoras agitavam compulsivamente os leques e recuavam. Os homens deslizavam as mãos para o punho das espadas... e só o apelo da rainha os deteve:

— Acalmem-se senhores! Estão diante dos tios da noiva...

A passadeira terminava num altar, enfeitado por uma colcha de renda alva... que escondia símbolos mais antigos do que a memória do Homem! Eu já estivera nesta sala; não em corpo, mas em essência! A bela cruz de prata, que enfeitava a parede ao fundo, como que dormia, desprovida da luz que me guiara até à passagem secreta, que conduzia ao covil do demônio feiticeiro. Diante da mesa ritual, o príncipe John ostentava um sorriso triunfante. Ao seu lado, Estrid mal se sustinha nas pernas, de tão aterrorizada. O seu vestido suntuoso, bordado a ouro e prata, acentuava-lhe o volume generoso dos seios. Com os cabelos louros soltos sobre os ombros, a minha prima deveria parecer um anjo. Contudo, as enormes manchas negras que ensombravam o olhar verde desfiguravam-lhe o rosto. As suas mãos apertavam as de John, e uma delas exibia o brilho de um magnífico anel. Nós chegamos muito tarde!

Por trás do altar de pedra, o falso padre observava os intrusos, com uma serenidade glacial. A luz das velas manchava a pele lisa do seu crânio com reflexos escarlates. O olhar negro assimilava as emoções dos comuns mortais... Todavia, ao deparar comigo, a sua placidez foi abalada. Jamais esperara ver-me invadir os seus domínios com tamanha convicção, quanto mais surpreender no meu olhar a chama do conhecimento.

Eu mal conseguia respirar, perturbada pelo esgar vitorioso de John, quando a mente do feiticeiro me devassou. O chão desapareceu-me debaixo dos pés. Fui engolida por uma escuridão funérea, onde o ar cortava como lâminas de gelo. Porém, ao invés de sujeitar-me à loucura, este choque teve o poder de restituir-me o discernimento. Cerrei os dentes e apertei os punhos, ciente de que a queda no abismo era uma ilusão. Esteban pretendia aterrorizar-me a todo o custo, para que eu desatasse a gritar despautérios e a estrebuchar como uma demente. Assim, não teria dificuldade em acusar-me de estar possuída pelo demônio, e em declarar-me maldita. De uma assentada, desacreditaria a minha família e teria um pretexto para condenar-me à fogueira. Pelas ígneas chamas do Sol, este execrável ardil já fora longe demais!

Sustentei a energia do ataque e envolvi-a no meu poder, para depois cuspi-la sobre o hediondo assassino. De imediato, o chão tornou-se sólido e o ar leve. Na sombra do altar, Esteban estremeceu ao provar o seu próprio sortilégio. Sem que ninguém se apercebesse, buscou o apoio da pedra para recuperar o equilíbrio. O seu rugido ameaçador troou-me na mente:

«O dia do nosso ajuste há de chegar, Guardiã... Mas não será hoje! Que esta contenda se resolva com os argumentos dos Homens... De outra forma, aqueles que te acompanham jamais tornarão a ver o Sol!

— Venha imediatamente conosco, traidora! — vociferava o tio Berchan.

— Como ousa insultar a minha mulher? — exaltava-se John, puxando Estrid para trás de si.

— Qual o motivo de tamanha contrariedade, senhores? — indagava a soberana, atônita...

Engoli em seco. O feiticeiro tinha razão! Antes que o alcançasse, muitos dos que eu amava se finariam. Poderia confiar que ele não apelaria à magia, de qualquer maneira, para atacar-nos? Talvez... Esteban receava ser exposto. Por isso, queria decidir a questão com palavras... ou com ferro! E eu tinha de ceder à sua vontade... Pelo menos, por enquanto! Neste momento, só a boa vontade da rainha Mary impedia o confronto.

— A casa do rei William está em festa... — insurgia-se, ofegante. — E vós deveríeis partilhar dessa alegria e celebrar a união das nossas famílias, que em muito fortalecerá a Aliança que tanto prezamos! Ao invés disso, irrompem por este lugar sagrado, com os semblantes carregados e as vozes alteradas. Espero que tenham uma boa justificativa para tamanha descortesia!

— A vossa preocupação com os bons costumes surpreende-me, senhora — revidou o tio Stefan, mastigando a ira. — Principalmente, quando acaba de abençoar o casamento do príncipe John com a minha sobrinha, sem o conhecimento ou consentimento da nossa família!

Um coro de perplexidade ecoou pela capela. O príncipe John levou a mão à espada e bramiu:

— Que calúnia é essa que pretende impor-nos, McGraw?

— Acalme-se, John! — ordenou a rainha, voltando-se para os seus convidados. — Saiam, por favor. Desejo falar a sós com os nossos... visitantes!

A indignação subiu de tom. Temi que a vontade da soberana não fosse respeitada. No entanto, ainda que relutantes, homens e mulheres começaram a deslocar-se para a porta. Mão de Ferro e os seus guerreiros não se moveram. O mesmo aconteceu com John e Esteban. Estrid tentou sair de mansinho, mas a rainha deteve-a:

— Fique! Não deseja esclarecer este equívoco, diante da tua família?

A expressão da minha prima era reveladora da sua vontade de sumir no ar. Contudo, como não possuía argumentos para escapar, foi forçada a obedecer. No meio da multidão que deixava a igreja, duas faces distinguiram-se pela palidez: a da princesa Isobelle e a do meu primo Quinn. Assim que viu a sua determinação cumprida, a rainha enfrentou-nos, numa voz que provava que se valera desta pausa para recuperar o fôlego e a compostura:

— É óbvio que sois movidos por um lamentável engano! A princesa Estrid recebeu a bênção do seu pai!

— E que prova tem disso, senhora? — retrucou o jarl, com uma serenidade admirável.

John antecipou-se:

— O meu sogro não pôde comparecer ao casamento, por motivos de saúde, mas confiou a sua jóia de família à princesa Estrid, como testemunho de aprovação!

Throst ignorou-o e continuou a dirigir-se à rainha:

— Os motivos que impediram Lorde Edwin de nos acompanhar prendem-se ao fato de que a própria filha o tenha envenenado, para roubar-lhe a jóia de que o vosso herdeiro fala, e exibi-la diante de vós...

— É mentira! — berrou Estrid, cortando-lhe a exposição. — Vós sempre me odiastes! Sempre me invejastes, porque o príncipe John me entregou o seu afeto, ao invés de dirigi-lo a uma das vossas filhas!

E desatou a chorar, cobrindo o rosto com as mãos. Surpreendi-me ao verificar que era Esteban quem avançava para confortá-la. Sem constrangimentos, Estrid repousou a cabeça no peito do falso padre, soluçando. A rainha já exclamava, horrorizada:

— Essa acusação é gravíssima, jarl Throst!

— Tendes a minha palavra, a palavra dos irmãos McGraw e do príncipe Ivarr do povo Viking, em como tudo o que eu vos disse é verdade — asseverou o meu pai.

— E eu garanto a falsidade desta delação, minha mãe — contrapôs John, afrontando-nos descaradamente. — A insurreição que o jarl Throst lidera faz parte de um conluio contra o glorioso Império, que o padre Esteban pode comprovar!

Confusa, a rainha Mary voltou-se para o feiticeiro. Era óbvio que não queria acreditar na nossa deslealdade e que não tinha a opinião do filho em grande consideração. Porém, no que se referia ao conselheiro do rei, a sua postura alterava-se. Um homem santo jamais mentia...

Esteban conhecia bem a influência que detinha sobre a soberana. Continuou a apoiar Estrid na sua exibição de desgosto, mas o olhar ameaçador não abandonou o meu, fulgindo num aviso velado, enquanto discursava:

— Devo confessar-me culpado pelo triste anúncio da debilidade de Lorde Edwin chegar ao conhecimento da minha rainha deste modo grosseiro. Fui eu que aconselhei a princesa Estrid a não mencionar a doença do pai, para não ensombrar a cerimônia. A verdade que estes senhores tentam sonegar a todo o custo é que, no seu leito de morte, Lorde Edwin admitiu o passado abominável da família McGraw, que sempre se dedicou à prática de magia negra e de rituais demoníacos, usando para tal as pedras que herdaram da sua avó feiticeira...

— Isso é falso! — troou o tio Stefan, mas Esteban desprezou-o e prosseguiu, numa voz que tinha o poder de subjugar o raciocínio dos Homens:

— O Senhor iluminou-lhe os últimos dias, mostrando-lhe que a única forma de expiar os seus pecados seria entregar a pedra amaldiçoada à filha, para que a princesa Estrid a fizesse chegar às minhas mãos. Foi com profunda emoção que benzi a jóia e concedi o perdão divino à alma atormentada que a guardou em vida, para que, após a morte, Edwin McGraw desfrute do descanso eterno...

O tio Berchan urrou, de tal forma enlouquecido pela raiva, que temi vê-lo investir contra Esteban. Ivarr agarrou-o a tempo. O feiticeiro manteve-se impávido, mas o príncipe John já bravejava; a fúria chispando no olhar cinzento, qual chuva mortal de raios, ao defrontar os McGraw:

— Se entraram nos domínios do rei William com o propósito de recuperar essa pedra maldita, irão se arrepender! Há muito que o meu pai incumbiu o padre Esteban de expulsar os espíritos malignos destas terras, e todos nos congratulamos com o seu trabalho. Retirem as acusações que fizeram à minha esposa e peçam-lhe perdão, ou terei de considerar esta injúria como uma declaração de guerra!

— Basta! — O grito da rainha Mary ecoou pela capela. — Nenhum sangue será derramado neste lugar sagrado! — Voltou-se para os líderes do meu povo, com a cabeça erguida, as faces coradas e o peito oscilando ao sabor da respiração descompassada. — Peço-vos que se retirem, senhores... Regressai às vossas terras, antes que algo seja dito ou feito que comprometa irremediavelmente a paz conquistada pelo Tratado. Em atenção à amizade que o rei William, meu nobre marido, vos devota, considerarei que o que aqui se passou foi conseqüência de uma deplorável confusão...

— Mãe... — tentou interromper John, revoltado.

— Minha rainha... — apelou Esteban, igualmente contrariado. A soberana impôs silêncio e continuou:

— Simon, Mão de Ferro, irá escoltá-los e providenciará as provisões de que necessitam para a viagem. Se o vosso barco não deixar o porto, até o nascer do Sol, concluirei que o Tratado que une os nossos povos foi violado pela má vontade de Vikings e Aliados da Grande Ilha... E entregarei a resolução desta divergência ao príncipe John, meu herdeiro.

Apesar da sua voz soar desprovida de gentileza; até ameaçadora, havia algo de estranho na forma como Mary fixava Throst. Súplica? Ansiedade? Angústia? Olhei para o meu pai, sem compreender... mas ele parecia ter entendido a mensagem, pois segurou o braço do tio Stefan, impedindo-o de expressar a sua indignação. A estranha troca de olhares também passara despercebida a Ivarr, que se mantinha atento às reações do tio Berchan. O sábio já não se debatia, embora mirasse Esteban com um ódio tempestuoso.

Após um momento de reflexão, o jarl aquiesceu:

— Cumpriremos a vossa vontade, rainha Mary, pelo respeito que vos devemos... Porém, este assunto não fica sanado! Provaremos ao rei William que falamos a verdade e exigiremos justiça. Nesta sala, existem traidores à causa do Império e ao Tratado... mas não somos nós!

Acreditei que John reagisse à insinuação. Todavia, limitou-se a cerrar os dentes. Apesar de amparada por Esteban, Estrid denunciava um temor crescente. Sabia que a nossa família não jurava em vão, e que o meu pai raramente se deixava abater. Um dia, a verdade emergiria... E ela teria de pagar pelos seus crimes! Surpreendentemente, o feiticeiro parecia mais interessado em confortá-la, do que em tecer novas ameaças. Senti um frio intenso nos ossos, ao vê-lo conduzir Estrid por uma porta lateral, que presumi comunicar-se com o interior do castelo.

Mão de Ferro aguardou que o jarl tomasse a iniciativa de sair. Throst reverenciou a soberana do Império, antes de se encaminhar para a porta principal. A rainha correspondeu ao cumprimento e dirigiu-me um olhar de profundo pesar. Apesar da disparidade das nossas culturas e crenças, eu sabia que ela prezava os valores do Tratado, e que não desejava a guerra. Pelo contrário, o seu primogênito fixava as costas do meu pai e resmungava entre dentes:

— Isso... Vai-te embora com o rabo entre as pernas, cão selvagem!

Mão de Ferro quedou-se ao lado do jarl Throst, enquanto os guerreiros se azafamavam a reabastecer o Dragão dos Mares com água e comida. Apesar dos seus lábios mal se moverem, percebi que conversavam. Quando a noite caiu, o drakkar estava pronto para empreender a viagem de regresso à Enseada da Fortaleza. O general do Império despediu-se do meu pai e liderou os seus homens de volta ao castelo. Retornariam ao nascer do Sol, para certificar-se de que a vontade da rainha seria cumprida.

Os Vikings espalharam-se pelo convés, sob o fogo das lanternas, cuidando das armas, como se a frieza e o brilho das lâminas os fizesse esquecer este dia terrível. A ausência do rei William e o casamento de John com Estrid haviam tornado a nossa empresa vã. Naquele momento, a única forma de recuperar a pedra mágica seria declarar guerra ao Império. E tal representaria o fim do Tratado... A concretização do maior sonho de John e Esteban! Nós não poderíamos dar essa vitória aos traidores, por mais que a humilhação nos custasse! Quando os nossos líderes se reuniram à proa, para trocar idéias, as palavras do jarl Throst apoiaram as minhas suspeitas:

— Durante a discussão, a expressão da rainha alterou-se. Apesar de ter mantido a firmeza, vi que estava assustada. O seu olhar suplicava-me que recuasse, porque não podia justificar-se diante do filho e de Esteban. Tenho certeza de que, antes de partirmos, teremos notícias suas.

— Acha que Mary pretende enviar-nos um mensageiro, para negociar um acordo? — indagou o tio Stefan.

— E se estiver enganado, Throst? — replicou Ivarr, manifestando a ansiedade que o agitava. — John não hesitará em declarar que nos retiramos por covardia!

O jarl pousou-lhe uma mão no ombro, respirando fundo antes de redarguir:

— Eu entendo a tua indignação, Ivarr! Contudo, por vezes é necessário engolir o orgulho, para mais tarde assegurar a vitória. Nós não viajamos até aqui para declarar guerra ao Império, mas para esclarecer a posição do rei. Parece-me óbvio que o William ignora por completo esta perfídia.... Concordar com o jogo provocador de John teria nos apaziguado a ira, mas não responderia às nossas dúvidas, nem serviria o nosso povo nem a nossa causa, de nenhuma maneira!

— Tem razão! — apoiou o tio Stefan, com um suspiro resignado. — Primeiro, esta guerra terá de ser travada com a razão, e, só depois, com a espada. O feiticeiro planejou o seu ardil em pormenores... Aos ouvidos dos crédulos, todas as suas mentiras se transformam em verdades!

— Eu o tive em minhas mãos! — exclamou o tio Berchan, com uma brusquidão que nos sobressaltou. — Senti-o dobrar-se à minha vontade... Estive tão perto de derrotá-lo! Tão perto...

Fitei-o, perplexa. O sábio não dissera uma palavra, desde que deixáramos o castelo. Mal chegara ao barco, sentara-se com os olhos postos no mar, ignorando a azáfama dos guerreiros e o debate dos líderes. Quem não o conhecesse, julgaria que meditava, alheio a todo o resto. Porém, eu sabia que esta era a sua forma de conter a raiva. Agora, que se pronunciara, as suas afirmações não faziam sentido! Só um tonto acreditaria que Esteban estremecera sob o seu poder! No entanto, Berchan McGraw falara com convicção... até com ressentimento, como se a interferência de Ivarr o tivesse impedido de subjugar o feiticeiro. O irmão e o cunhado franziram o cenho, mais preocupados com a saúde da sua mente do que impressionados com a sua prestação. Contudo, após tão inusitadas declarações, o sábio voltou a mergulhar no silêncio.

O jarl tornou a devotar-nos a sua atenção, revelando:

— Há pouco, Mão de Ferro confidenciou-me que o rei foi forçado a viajar para o Sul, a fim de suster uma rebelião num território recentemente conquistado... E que a rainha tem tido dificuldade em controlar os ímpetos do filho. Segundo parece, John só não se atreve a sentar no trono, porque o exército do Império não lhe devota grande simpatia!

— Isso pode pesar a nosso favor — notou o tio Stefan. — Se William sustentar a nossa causa, John não se atreverá a insurgir-se contra o pai sem o apoio dos guerreiros. — Fez uma pausa, esboçando um gesto de desalento. — O que aconteceu hoje foi muito estranho! Mesmo que John planeje derrubar o rei, não compreendo a sua urgência em desposar Estrid... Nem o assentimento da rainha! Eu conheço Mary e posso abonar a sua lealdade ao marido e ao Império. Ela jamais condescenderia no casamento do seu primogênito, de um momento para o outro, e na ausência de William, sem um motivo muito forte...

— Eu estou a par dos motivos da rainha, meu pai!

Todos os olhares se fixaram no homem que acabara de saltar para bordo do drakkar. Antes que alguém reagisse, Thora gritou de alegria e correu ao encontro de Quinn, esmagando-o contra o peito. Bryan seguiu-a, quase levantando o irmão no ar tal o entusiasmo.

— O Império tem te tratado bem! — gracejou, sacudindo-o pelos ombros. — Olha para ti... Quem diria que este pequeno resmungão viria a tornar-se um senhor?

A excitação que aconteceu à chegada de Quinn fez os guerreiros esquecerem a primeira questão que os assaltara: como é que ele chegara até aqui, sem que ninguém detectasse a sua presença? O meu primo nunca se recuperara plenamente dos danos que Magnor lhe infligira, durante a sua prova de iniciação. Ao fim de tantos anos, eu continuava a arrepiar-me sempre que recordava a noite fatídica, em que o irmão de Ivarr quase matara Quinn, por despeito e temor de que este o superasse na Caçada e se tornasse um guerreiro-lobo. Apesar dos cuidados da feiticeira Catelyn, o meu primo perdera a destreza na mão direita e coxeava ao andar. Ainda hoje, eu vira-o arrastar a perna, quando saíra da igreja.

Quinn já se inclinava diante do pai e suplicava humildemente:

— Perdoe-me... Fui um mau filho! Devia ter ficado ao vosso lado...

O tio Stefan puxou-o para os seus braços e beijou-o, replicando comovido:

— Não diga tolices, rapaz! Eu não te criei para reagir sob os impulsos do coração! Percebi que tinha as tuas razões... E a prova é que está aqui!

Cumprimentei Quinn com satisfação. Tornara-se um belo homem, muito parecido com o pai, apesar do cabelo curto lhe alterar as feições.

A sua inteligência superior declarava-se no olhar. Fora essa agudeza de espírito que maravilhara o rei do Império e lhe valera um convite para viver na corte e tornar-se conselheiro. Desde o início que o amor de Quinn e da princesa Isobelle se adivinhara condenado ao fracasso, já que a jovem estava destinada a entrar para um convento. Todavia, a persistência de ambos levara o soberano a reconsiderar... até que o príncipe John decidira intervir. Agora, os dois apaixonados padeciam novamente da agonia da incerteza. E os últimos acontecimentos não pressagiavam nada de bom!

— A rainha Mary pediu-me que vos falasse — começou Quinn, com uma expressão grave. — Acompanhou a celebração do Tratado e privou muitas vezes convosco, para acreditar que tenham vindo à sua presença com motivos traiçoeiros...

— Então, por que não nos escutou, ao invés de nos expulsar do seu território? — contrapôs Ivarr, exasperado.

— Apesar de tudo, a rainha não consegue acreditar na má índole do seu primogênito — respondeu Quinn, mantendo a serenidade. — E pensar em ir contra a vontade de Esteban fá-la estremecer, com pavor de enfrentar um castigo divino. A única vez que eu vi a sua fé abalada foi hoje! Antes da vossa chegada, estava confusa... Agora, está assustada! É uma mulher inteligente e já percebeu que, à sua volta, nem tudo é o que parece. — Fez uma pausa para recuperar o fôlego, antes de transmitir a mensagem que lhe fora confiada. — A rainha pede-vos que sejam pacientes e aguardem pelo regresso do rei William. Conta com a vossa compreensão e boa vontade, para evitar um conflito com o príncipe John... Tal como vós, ela não deseja a guerra!

— Nesse caso, por que consentiu na união de John e Estrid? — retrucou o meu pai, desejoso de apurar a verdade.

O meu primo passou a mão pela testa, como se o que estava prestes a revelar o enojasse. Por fim, murmurou, quase num gemido:

— A Estrid está grávida.

Enquanto escutava Quinn, fui forçada a amparar-me na amurada, para me impedir de cambalear tal o choque. Até onde ia o gênio dos conspiradores? Segundo o meu primo, após a partida do rei William, John fora acometido por uma paixão avassaladora por Estrid, que o levara a solicitar à mãe a celebração imediata do casamento. A rainha ficara perplexa, pois há muitos anos que observava as tentativas infrutíferas da jovem para conquistar o príncipe. Contudo, sem desconfiar da perfídia que se escondia por trás de tanto ardor, mantivera-se firme na negação. Celebrar um casamento na ausência do marido era inaceitável. Além disso, a família McGraw e o rei Steinarr deviam ser consultados. Ao dar permissão a Estrid para visitar o pai, na Ilha dos Sonhos, a rainha Mary não podia imaginar o desfecho dessa viagem...

— Ontem, mal chegou ao castelo, Estrid anunciou que está grávida, diante da rainha e da corte, ao mesmo tempo que exibia a pedra do tio Edwin, para provar que recebera a bênção da nossa família — concluiu Quinn. — John manteve-se ao seu lado, como o mais apaixonado dos homens... Então, Esteban interferiu, dizendo que o casamento teria de realizar-se logo pela manhã. De outra forma, as almas de Estrid e do mais jovem herdeiro do Império seriam condenadas à eterna tortura do fogo do Inferno... E a rainha seria responsável pela sua perdição!

Fez-se silêncio no drakkar, mesmo entre os guerreiros. Agora, tudo se explicava! John vira na ausência de William a oportunidade ideal para lhe usurpar o trono. Decerto pedira auxílio ao seu mentor, e Esteban concordara em ajudá-lo, em troca da pedra mágica... Para pôr as mãos no troféu, John fora forçado a vergar-se aos caprichos de Estrid; daí a sua súbita paixão! E, além de assegurar o seu futuro, a minha prima também soubera evitar a justiça da família. Na posse da pedra mágica, conhecedora da trama e com o herdeiro do Império no ventre, exigira a celebração do casamento antes que nós chegássemos para castigá-la, impedindo-nos de arrastá-la até à Ilha dos Sonhos. Esteban tinha plena consciência da devoção da rainha à nova fé e sabia que, ao apresentar-lhe um argumento tão hediondo, ela cederia, incapaz de imaginar-se a viver com os remorsos de ter danado o espírito do próprio neto.

O meu pai foi o primeiro a reagir, dando voz aos meus pensamentos:

— Desconfio que, em breve, o Império será forçado a aclamar um novo rei!

— Sim — concordou o tio Stefan, apreensivo. — E se bem conheço John, não terá pudor de sujeitar a mãe e os irmãos à lâmina da sua espada.

— Não há nada que possamos fazer...? — começou Thora, mas Quinn interrompeu-a:

— O Império é soberano! Qualquer interferência da vossa parte será considerada uma afronta, e John não hesitará em aproveitar-se dessa vantagem, para esmagar a autoridade da mãe. Por enquanto, devem acatar o pedido da rainha Mary... e rezar, para que o rei William retorne depressa para casa.

Engoli em seco, hesitando. Nas palavras que teimavam em cair-me dos lábios, podia residir a salvação do Tratado... ou a sua ruína! Por fim, decidi falar:

— E se houver um modo de denunciar a verdadeira identidade de Esteban?

Foi o tio Stefan quem respondeu:

— Isso é impossível! A rainha acredita veementemente que esse traidor é um homem santo, e respeita-o tanto quanto o teme! Quem o acusar, diante dela, da prática de magia negra, acabará nos calabouços... ou na fogueira!

— Eu sei onde fica o seu covil — asseverei. E os homens sustiveram o fôlego.

— Sou todo ouvidos, Edwina — declarou Quinn, gravemente. Divulguei a localização do esconderijo do mestre da Arte Obscura.

Quando terminei, as faces do meu primo estavam mais pálidas do que a Lua que enfeitava o céu.

— Se eu conseguisse convencer a rainha a seguir-me por essa passagem... — murmurou, ofegante.

— Teria de ser extremamente cuidadoso — alertei-o. — Depois do que aconteceu na igreja, os conspiradores não hesitarão em matá-lo, se suspeitarem das tuas intenções. Lembre-se que o feiticeiro possui muitos recursos para manipular a mente; pode transformar o mais valoroso dos guerreiros num ser submisso, ou o mais sereno dos homens num animal raivoso.

De novo, recordei a explosão de fúria do tio Berchan. Sem a interposição de Ivarr, John o teria varado com a espada. Depois, seria impossível suster o ímpeto dos homens e o dia terminaria num massacre sangrento. Busquei o sábio com o olhar, surpreendida por não ouvi-lo reagir às minhas declarações. Verifiquei que já não se encontrava onde se sentara. Com os sentidos a troarem em alarme, pensei que nem sequer me lembrava de vê-lo cumprimentar Quinn...

— Onde está o tio Berchan? — indaguei, com a voz a tremer. O meu pai e o tio Stefan sobressaltaram-se. A pergunta voou de boca em boca, até concluirmos que o sábio não estava a bordo do drakkar.

— Mas ele não desceu ao porto! — tartamudeou Ketill, confuso. — Teria de passar por mim!

— E por mim! — corroborou Ragnar.

Engoli em seco, sentindo as pernas fraquejarem. Se Berchan McGraw desejasse, podia iludir a percepção dos guerreiros e passar tão despercebido como a brisa noturna. Os únicos com capacidade para divisar os seus truques estavam ocupados a decifrar o conluio que ameaçava o Império e o Tratado.

— Será que...? — começou o jarl, mas não se atreveu a concluir.

— Ele tem estado fora de si! — declarou o tio Stefan, receoso. — Temos de encontrá-lo!

Cruzei os braços sobre o peito, subitamente gelada. Não me era difícil buscar a essência do meu tio, ou adivinhar o seu propósito... Só esperava que não fosse muito tarde para detê-lo!

 

Sob o véu estrelado da noite, um homem deixou para trás o drakkar Viking e fundiu-se com as sombras esquivas das cabanas miseráveis. Os guerreiros encarregados de vigiar a segurança do Dragão dos Mares nem se aperceberam da sua partida, cegos e surdos devido a um encantamento simples mas eficaz.

Uma voz ecoava dentro da cabeça do sábio da Ilha dos Sonhos... Um desafio que lhe envenenara o espírito, no instante em que pisara o porto do Império, e que se fora entranhando nos seus nervos, corroendo-lhe a razão ao longo do dia, até ser impossível de ignorar. A sua mente perturbada rebelava-se contra a submissão dos companheiros. Como é que Stefan e Throst se dispunham a se retirar, sem resgatarem a pedra vermelha? Ele jamais se sujeitaria! O feiticeiro não era assim tão poderoso! O sábio estivera prestes a dominá-lo e o teria desmascarado diante da rainha e da corte, se o medroso príncipe Viking não o tivesse impedido.

Stefan e Throst estavam ficando indolentes com a idade. Nada faziam, além de desperdiçar conversa! Não compreendiam a importância das pedras mágicas... Ou talvez não se importassem! No passado, Stefan quisera destruí-las... E Throst era um guerreiro, com pouco ou nenhum entendimento do mundo místico. Pois Berchan McGraw recuperaria a pedra da sua avó Aranwen sem ajuda! Afinal, não se preparava para salvar a Terra, desde que os Druidas o tinham levado para a sua aldeia, quando ainda era uma criança? Este era o seu destino... E ele não o temia!

Um grupo de guerreiros saía de uma taberna, cambaleando ao sabor da bebedeira, enquanto berravam canções obscenas. Um pouco mais à frente, dois facínoras caíam sobre um homem que cochilava debaixo de uma coberta de lã, roubada do varal de uma casa abastada. A manta ficou manchada de sangue, quando o mendigo tentou resistir. Os ladrões abandonaram-no a uma morte solitária e cruel, fugindo com o precioso agasalho... O sábio não permitiu que estes incidentes o distraíssem do seu objetivo. O apelo aumentava de tom. Não havia tempo a perder!

Afastou-se das casas num passo acelerado, através de um caminho acidentado, ladeado de pedregulhos e arbustos espinhosos. A luz dos archotes foi fenecendo com a distância, mas ele prosseguiu, desbravando as trevas com convicção. Estava a penetrar em solo sagrado. Durante centenas de anos, os aldeões haviam cremado aqui os seus mortos. Mais recentemente, os padres da nova fé tinham começado a espetar cruzes no solo. Isso pouco importava! Quer fossem cristãos ou pagãos, a energia dos espíritos pulsava no mesmo ritmo, como o coração da Terra.

Quinn insistiu em acompanhar-nos, mas o tio Stefan mostrou-se irredutível na recusa. Se os traidores o vissem ao nosso lado, a vida do filho não valeria um cabelo. O meu primo ainda podia fazer muito pela nossa causa, mas este não era o momento! Resignado, Quinn desejou-nos boa sorte... e desapareceu, tão misteriosamente como havia chegado.

Num instante, o jarl reuniu cavalos suficientes para o grupo de busca. O tio Stefan, Ivarr e os seus guerreiros-lobo montaram conosco. Eu não necessitava da luz dos archotes para avançar na noite, sem hesitar. E, à medida que percorria a trilha pedregosa, sentia a essência de Berchan McGraw, perturbada pela influência de um malefício que lhe deturpava o raciocínio. Tal como tentara quebrar-me o espírito, Esteban, mestre da Arte Obscura, acirrara o orgulho do sábio, a sua soberba, o desejo de provar quão valoroso era o seu poder. E o meu tio deixara-se enredar no ardil, qual borboleta incauta, prisioneira da teia de uma aranha. Quanto mais se debatia, mais a morte se aproximava...

Ao avistar o cemitério, apercebi-me da energia que acometia ao encontro do sábio, gélida como o abraço da morte, violenta e esfomeada. A essência abominável do feiticeiro Esteban era inconfundível! Os olhos da minha mente viram-no surgir, com tal leveza que dir-se-ia levitar. O corpo incrivelmente alto e esguio vestia-se de sombras e, sobre o seu peito, cintilava o amuleto roubado de Edwin McGraw.

— Esta é a noite em que vai morrer, druida! — silvou na sua voz glacial.

O meu tio respondeu-lhe com bravura... ou insensata ingenuidade:

— Devolva-me a pedra vermelha ou porei fim à tua existência maldita!

Esteban limitou-se a sorrir; o olhar negro abrasando-se ao revidar:

— A linhagem de Aranwen se extinguirá, muito antes do tempo vincar o meu rosto. Pode um pássaro voar, se nascer sem asas? Não! Assim como tu és incapaz de me combater, porque o teu sangue é fraco. Hoje, aprenderá que os humanos nasceram para servir os Feiticeiros! Hoje, há de adorar-me de joelhos, impuro... E suplicar-me que eu aceite a pedra branca, da rameira da tua avó, como prova de devoção!

Vi lágrimas de ódio no olhar verde-floresta do meu tio... E soube que era tarde demais para salvá-lo.

— Não! — bradei desesperada, forçando o cavalo a galopar com maior rapidez. Os guerreiros mantiveram-se no meu encalço. O tio Stefan clamou o nome do irmão, ao entrar no cemitério. Sob o olhar atento da Lua, os cascos das nossas montarias projetavam terra em todas as direções. O gemido de Berchan McGraw foi tão débil, que mal o escutei. Então, testemunhamos a torpe aberração.

Soberano das trevas, Esteban quedava-se inerte, com o rosto erguido ao céu e as mãos estendidas num louvor vitorioso. Numa, segurava a pedra vermelha de Aranwen; na outra, a pedra branca. Aos seus pés, como um cão suplicando a atenção do dono, encontrava-se o sábio da Ilha dos Sonhos.

Quando as chamas dos archotes dos guerreiros iluminaram a noite, as pedras mágicas tinham desaparecido no interior das vestes de Esteban. A atitude ostentosa e triunfante do feiticeiro cedera lugar à postura sóbria do padre. O tio Berchan sustinha-se com dificuldade, como se necessitasse do apoio do bruxo para respirar. O seu olhar estava alterado: o verde-vida fora substituído por um vazio lúgubre. Temi que a sua mente se encontrasse perdida.

— Monstro perverso! — trovejou o tio Stefan, por trás de mim. — Eu vou...

Não teve tempo de completar a ameaça, pois o seu cavalo empinou-se e derrubou-o. O meu pai saltou da montaria, em seu auxílio, logo seguido por Bryan. Ivarr e Thora colocaram-se ao meu lado, mal acreditando nos seus olhos. Como se brotasse da própria noite, um exército vestido de preto assumia posições por trás de Esteban. Estavam fortemente armados e pareciam multiplicar-se a cada instante. Era óbvio que estes guerreiros não marchavam sob as ordens dos soberanos do Império!

— Edwina...? — O apelo de Thora pedia orientação. De esguelha, vi que o tio Stefan se levantava com a ajuda do jarl. Não tardou a avançar, ordenando numa voz trêmula de repulsa:

— Liberte o meu irmão, criatura abominável!

A um gesto de Esteban, o sábio prostrou-se abraçando as suas pernas. A voz glacial gelou o vento que nos açoitava:

— Berchan McGraw veio até mim de livre vontade, arrependido do seu passado ao serviço da magia negra...

A nossa situação era precária. Todos os guerreiros que acompanhavam o jarl Throst seriam insuficientes para vencer o exército do feiticeiro. E ele sabia disso!

— O meu irmão jamais se vergaria à tua vontade, demônio! — rugiu o tio Stefan.

Um burburinho de exaltação percorreu os soldados vestidos de negro, como se tivesse sido proferida a maior das ofensas. No entanto, Esteban limitou-se a responder:

— Esta pobre alma suplicou-me que a ajudasse a expiar os seus pecados, até estar preparada para abrir o coração a Deus.

Engoli em seco, fustigada pela lembrança do corpo mutilado do jovem Julien. Como era possível que este Deus permitisse que um ser tão perverso usasse impunemente o Seu nome?

— Se assim é — insurgiu-se o meu pai —, que seja ele a declarar-nos a sua vontade!

Senti as entranhas se apertarem ao ouvir o tio Stefan replicar entre dentes:

— O Berchan foi enfeitiçado, Throst! Fará tudo o que o bruxo lhe ordenar...

O jarl negou com a cabeça, contrapondo:

— Confie na força do teu irmão!

A intenção do meu pai era óbvia. Para libertar a voz do sábio, Esteban teria de enfraquecer o domínio que exercia sobre a sua mente. E o espírito de Berchan McGraw não se conformaria com a servidão! A questão era: iria o feiticeiro cair nessa artimanha? Talvez... Os Seres Superiores adoravam tentar o destino, brincar com os Homens, levá-los ao extremo para que, no fim, o gozo da sua vitória fosse sublime. Sustive o fôlego ao escutar a voz do meu tio, arrastada, sofrida:

— Voltem... para casa... Salvem-se...

Quando dei por mim, já gritava, assolada pela ira:

— O rei William saberá quem tu és na verdade, Esteban, feiticeiro assassino! E te fará engolir a cruz que tanto envergonhas, antes de te queimar na fogueira que tu próprio incendiaste!

Um clamor de indignação ensurdeceu o cemitério, enquanto os meus companheiros sustinham o fôlego. Eu acabara de iniciar um jogo perigoso, que podia determinar o nosso fim. Porém, movia-me a convicção de que Esteban não se atreveria a investir contra nós, e a declarar guerra aos Aliados da Grande Ilha e aos Vikings, pelo menos, enquanto não fosse o senhor do Império. E também não podia acusar-me de bruxaria! Se eu o atacasse, seria obrigado a revelar-se diante daqueles que estremeciam de horror à simples menção da magia. Os soldados que reverenciavam o padre Esteban jamais seguiriam um Feiticeiro!

Uma energia quente percorreu o ar; um prenúncio de tempestade. Esteban fechou os punhos e cerrou os dentes, apelando a um controle que levara mais de mil anos a conquistar. Ainda assim, a voz tremia-lhe um pouco, ao retorquir:

— É lastimoso... vergonhoso até, verificar que tão distintos líderes necessitam de que uma simples mulher fale em seu nome!

Pretendia acirrar o orgulho másculo dos meus companheiros. Se me desacreditasse, diminuiria o efeito que as minhas palavras haviam causado no seu exército. Talvez tivesse conseguido esse intento, se o rei Steinarr estivesse conosco! Porém, para o meu pai, o tio Stefan e Ivarr, tais argumentos eram ridículos. Respondi com uma firmeza intimidante:

— Eu sou Edwina, princesa do povo Viking... E falo em meu nome, pois sou senhora da minha vontade.

— Estou vendo! — mastigou Esteban, cerrando o olhar negro. — Vamos negociar... Eu tenho algo que vós desejais. E vós tendes algo que eu pretendo! Liberarei o meu servo e o deixarei regressar à vossa terra... em troca da pedra amarela de Stefan McGraw.

Estremeci sem querer. Esta exigência era a prova da suprema sagacidade de Esteban! Usara Estrid para capturar a pedra vermelha, sabendo que a família acabaria por segui-la. Manipulara a ambição e o orgulho do tio Berchan, atraindo-o para um duelo que não podia vencer, a fim de se apoderar da pedra branca. Agora, preparava-se para lançar as garras à pedra amarela! Tudo isto, sem derramar uma gota de sangue; sem sacrificar um dos seus homens; sem deixar cair a máscara de perfeição divina... sem comprometer a sua identidade!

O tio Stefan estava petrificado. No entanto, os seus lábios moveram-se num gemido rouco:

— Não... Ficaríamos à mercê de dois celerados!

— Escolham! — bradou Esteban, impaciente. — Entreguem-me essa pedra funesta, para que eu liberte o mundo da ameaça que o demônio colocou nas vossas mãos, e permitirei que este infeliz parta convosco... Ou ides enfrentar a ira de Deus, pela espada dos valorosos guerreiros do Império, e perecereis sem glória e sem benção! De uma forma ou de outra, a maldição extinguir-se-á ao nascer do Sol.

— Não! — A voz do tio Berchan soou trêmula, denunciando um esforço sobre-humano para libertar-se da influência do feiticeiro. — Salve a tua pedra, irmão... É tudo o que nos resta...

Esteban silenciou-o com um pontapé na boca. O jarl, Ivarr e os seus lobos levaram as mãos às espadas. Os primeiros raios de Sol espreguiçavam-se sobre as ondas do mar. Dentro em pouco, esta contenda terminaria em ferro e sangue... o nosso sangue! E, desta vez, a rainha nada poderia fazer para impedir o confronto.

— Não, Throst! — O tio Stefan impediu o meu pai de ordenar o ataque. — O bruxo tem razão... A pedra será sua, por bem ou por mal! E, se ainda há uma possibilidade de salvar o meu irmão...

Sem terminar, levou a mão ao pescoço e quebrou o fio que lhe fora posto ao peito, no dia em que nascera. Começou a avançar, decidido, mas Esteban deteve-o:

— Que seja a mulher a trazer-me a jóia!

— A Edwina não poderá carregar o tio até nós — segredou Ivarr.

— Então, porque não a acompanha, príncipe? — replicou o feiticeiro, provando, mais uma vez, que escutava o mais sumido dos nossos suspiros.

— E que garantias me dá de que, uma vez na posse da pedra, não matará Lorde Berchan e a minha filha? — insurgiu-se o jarl.

— Um padre não mente, bárbaro! — rugiu Esteban. — Além disso, esquece que o tempo corre contra vós? Se ainda pisardes o solo do Império, quando o Sol se erguer, o príncipe John fará cumprir a vontade da nossa digníssima rainha!

Apreendi a dor do tio Stefan, ao tomar a amuleto da sua mão. Perto do que nos estava a acontecer, a humilhação a que Aesa nos sujeitara, nos Pântanos Nebulosos, era um gracejo. Ivarr acompanhou-me, passo a passo. Enquanto nos aproximávamos do mestre da Arte Obscura, estranhas recordações me afloravam à mente. Seriam uma forma de defesa; de impedir-me de pensar, para não sucumbir ao temor? Era uma loucura, mas, neste instante em que uma terrível ameaça pairava sobre a minha cabeça, eu só conseguia recordar o último sonho que tivera com o meu primo Edwin. Via-me a bailar num leito de flores, rindo até a felicidade me sublimar. E o Rei da Lua envolvia-me no seu abraço... Se Esteban me matasse, ficaríamos finalmente juntos?

Quedei-me diante do mestre da Arte Obscura. Ao meu lado, Ivarr ajudava o sábio da Ilha dos Sonhos a suster-se. O tio Berchan gemia, torturado no corpo e no espírito. Eu era alta, mas tive de erguer o rosto para encarar o olhar de Esteban. Esperei encontrar zombaria, triunfo, desdém, ódio... Porém, a sua expressão estava assustadoramente vazia. Era como se vencer fosse algo tão banal, que já não lhe trouxesse satisfação. Parecia... aborrecido! Fui percorrida por um calafrio, quando falou à minha mente:

«Ainda não está preparada para enfrentar-me, Guardiã da Lágrima do Sol... Aplique-se no treino, para que o nosso confronto seja inesquecível, aos olhos dos Homens e dos deuses.»

Estremeci, horrorizada, ao compreender o seu anseio. O feiticeiro estava convicto de que podia vencer-me sem o menor esforço... E não o desejava! Queria que eu lhe desse luta, que lhe proporcionasse um verdadeiro desafio, pois, após a minha morte, não restaria ninguém na Terra capaz de fazer-lhe frente. Sem saber porquê, dei por mim a responder-lhe:

«Tu morrerás como viveste, Esteban... Sozinho! »

Reparei que engolia em seco. Por alguma razão, o meu desabafo perturbara-o. Estendeu-me a mão e ciciou:

— A pedra...

Suspendi a mão sobre a sua, para não correr o risco de lhe tocar. O amuleto moldara-se à minha carne e recusava-se a cair. Escutei o apelo de Ivarr e prendi o fôlego, esticando os dedos. E a pedra amarela tombou no abismo de perdição... Uma rajada de vento desarranjou-me os cabelos. Era como se o espírito da feiticeira Aranwen se revoltasse, ao verificar que toda a magia que deixara na Terra se encontrava na posse de servos do mal.

— Vem, Edwina... — repetiu Ivarr, forçando-me a quebrar o contato com o olhar negro e profundo. Desta vez, Esteban esboçou um sorriso, ao exclamar:

«Até ao nosso derradeiro encontro, Guardiã da Lágrima do Sol!»

Foi o tio Stefan quem reparou que o irmão estava ferido ao içá-lo para o seu cavalo. A mancha de sangue na túnica do sábio era tão pequena, que devia provir de um ferimento insignificante. Confirmamos que se tratava de um arranhão no ventre, o qual provavelmente resultara de uma queda sobre um arbusto espinhoso, durante o duelo com Esteban.

Montei, sentindo o olhar do feiticeiro queimar-me as costas. Ivarr e o meu pai escudaram-me com os seus corpos, enquanto galopávamos de regresso ao drakkar. Ao ver-nos, as pessoas que perambulavam pelo porto apressavam-se a procurar o refúgio das tabernas ou a buscar abrigo nos barcos ancorados. O Sol erguia-se orgulhosamente no horizonte, quando pisei a madeira nobre do Dragão dos Mares. Só me apetecia gritar, espernear e chorar de raiva. Esta não fora uma boa noite! Por todas as serpentes do submundo, o que mais podia correr mal nesta campanha?

O tio Berchan deixou escapar um gemido, quando o pousamos na proa do barco. Levou a mão à testa e a sua expressão denunciou uma dor lancinante.

— Ele ficará bem. — O tio Stefan tentou tranquilizar-me, apesar da fraca convicção. — Preste atenção ao porto, Edwina... Receio que o bruxo ainda nos reserve alguma surpresa!

Aquiesci e abri caminho através da confusão de corpos, que se sentavam e agarravam nos remos, às ordens do meu pai. O príncipe John fazia a sua aparição a cavalo, apoiado pelo exército do Império. A sua contrariedade era notória. Decerto alimentara a esperança de ver-nos desobedecer à rainha, desejoso de ter um pretexto para pôr fim ao Tratado que tanto abominava. Esteban também alcançava o porto, seguido pelos soldados vestidos de negro. Os remos do Dragão dos Mares caíram na água e começamos a nos afastar do ancoradouro...

«Edwina! »

De início, o chamado confundiu-se com o barulho dos homens, os gemidos da madeira e as pancadas das ondas. Só lhe prestei atenção quando se repetiu:

«Ajude-me...»

Percorri o porto com o olhar, surpreendida e assustada. Eu já ouvira este apelo, quando chegara ao Império. Quem seria...? Então, a vi. Deixava as sombras das tabernas e arriscava uma corrida desesperada, na nossa direção. Poderia confundir-se com as dezenas de mendigos que enxameavam pela cidade, se a sua súbita aparição não tivesse causado um descomunal sobressalto em Esteban, que bradava:

— Apanhem-na! Ela não pode escapar!

Mão de Ferro e os seus homens não se moveram. Foram os guerreiros que serviam o falso padre que iniciaram a perseguição, pisoteando os cestos de peixe e legumes, derrubando caixas e sacas, destruindo à força da espada tudo o que lhes atrapalhava o progresso.

— Alguém sabe quem é aquela infeliz? — inquiriu o meu pai, apreensivo.

Ouviu-se um coro de negação. Porém, devia ser alguém muito importante, para provocar tamanho alvoroço. O apelo ecoou-me novamente dentro da cabeça:

«Edwina! Por favor...»

Fosse quem fosse, sabia o meu nome; suplicava o meu auxílio. E eu não podia deixá-la para trás, à mercê de um príncipe louco e de um bruxo assassino.

— Parem de remar... — pedi, subitamente.

— Parem de remar! — repetiu o meu pai, com o cenho franzido, mas sem contestar-me.

E o Dragão dos Mares deslizou pela água, até se deter.

— O que é que se passa, Edwina? — indagou Ivarr, aproximando-se.

— Temos de ajudá-la! — respondi, sem fôlego. — Eles vão matá-la.

— Mas o que é que podemos fazer? — questionou Bryan. — Estamos muito longe...

O primeiro soldado da guarda de Esteban erguia a espada para interromper a corrida da fugitiva. Nesse instante, o seu peito foi trespassado por uma seta. Olhei por cima do ombro, com a respiração suspensa, e vi Thora preparar-se para voltar a disparar. O guerreiro que ela atingira tombou e atrapalhou aqueles que o seguiam. A mulher continuou a correr, sem olhar para trás.

— Para o porto — ordenou o jarl, enquanto armava o seu arco. De imediato, os nossos homens recomeçaram a remar.

Ivarr tomou conta do leme. Os arqueiros que se encontravam a bordo juntaram-se ao meu pai e a Thora. Uma chuva de flechas voou-me por cima da cabeça e todas encontraram um alvo em solo do Império. A fugitiva alcançou o fim do ancoradouro... e saltou para o mar.

— Matem-na! — berrava Esteban! — Matem a bruxa, seus incapazes!

A mulher estava exausta e as suas braçadas perdiam vigor. Na beira do ancoradouro, os homens de negro arremessavam-lhe espadas e punhais... Depois tombavam, prostrados pelas nossas setas.

— Vou ajudá-la! — gritou Bryan. E, antes que alguém pudesse detê-lo, lançou-se da amurada para a água gélida. Ketill praguejou e seguiu-o.

O príncipe John surgiu com um arco e disparou com uma precisão letal. Levei as mãos aos lábios, mal contendo um grito. A mulher desapareceu sob as ondas. Quase de imediato, Bryan e Ketill submergiram. Em terra, John teve que escudar-se das nossas setas, por trás da barreira de cadáveres. Uma corneta de alarme estrondeou. A guerra, que tentáramos impedir a todo o custo, parecia inevitável!

Ketill veio à tona e olhou em volta, desorientado. Escutei o assobio das lanças, antes de vê-las rasgar o ar; raios prateados sob o esplendor do Sol.

— Mergulhe — bradou Ivarr com um ímpeto ensurdecedor. E a cabeça do primo afundou-se.

Cerrei os dentes. Já perdêramos as pedras de Aranwen e o orgulho... Raios, eu queria lá saber que o Império me condenasse! Respirei fundo e deixei a magia fluir do corpo e cruzar a superfície do mar, qual escudo. As lanças bateram na barreira invisível e quebraram-se sob o impacto. Um clamor de assombro agitou o porto. E, de imediato, Esteban vociferou:

— Bruxa! A filha do jarl da Ilha dos Sonhos é uma bruxa! Maldita! Para sempre maldita!

Os guerreiros do Império abrigaram-se das nossas flechas, por trás dos seus escudos, e tornaram a arremessar lanças... Só que, desta vez, estas tomaram a direção do drakkar.

— Protejam-se — gritou o jarl. E os nossos homens dispersaram-se em busca dos escudos. Porém, antes que os alcançassem, ergui a barreira que lançara sobre o mar e interceptei o aguaceiro mortal. O som do ferro a bater na parede de energia era arrepiante!

Bryan emergiu, trazendo a mulher consigo. Dois guerreiros mergulharam a fim de ajudá-los. Ketill também já trepava para o barco. No porto, o padre Esteban apontava para o drakkar, rugia e espumava de raiva. Os Vikings eram servos do demônio! Deus castigaria o Império, se o Tratado não fosse revogado...

— Aos remos! — comandou o meu pai, reassumindo o seu lugar ao leme.

Ivarr já ajudava a içar a mulher para bordo. Estava viva, mas inconsciente. A seta varara-lhe as costas, perto do ombro, e o espigão de madeira emergia-lhe grosseiramente das vestes. Bryan não tardou a segui-la, extenuado. Apesar da curiosidade me queimar, forcei-me a vigiar o porto do Império. Se John ordenasse uma perseguição ao Dragão dos Mares, eu trataria de assegurar que os peixes fossem presenteados com uma fausta refeição! O príncipe decerto adivinhou-me o intento, pois mandou os homens recuarem. Esteban quedou-se ao seu lado, observando-nos com o olhar carregado de ódio. Não ansiara por um desafio? Pois tivera-o!

Roubara-nos as pedras mágicas, mas nós salváramos a sua presa. Quem era esta jovem, que tanto os incomodava?

Assim que acreditei estarmos em segurança, fui ao seu encontro. Bryan amparava-a nos braços e Thora cobria-a com um agasalho, após tê-la libertado da flecha. Prodigiosamente, a ferida não era mortal. A fugitiva recuperara a consciência e tremia sem controle. Ivarr perguntava-lhe o nome, sem obter resposta. Parei diante da misteriosa figura e os nossos olhos encontraram-se... Perdi o fôlego. Perdi a fala. O seu olhar era violeta, intenso e brilhante; uma cor maravilhosa, tão exclusiva, que me trouxe à memória outro olhar igual, que jamais cessaria de me assombrar... De repente, tudo se conjugava: a obsessão de Esteban em capturá-la; o fato de tê-la marcado como bruxa; a perseguição do Império... E o seu conhecimento da minha identidade!

— Tu és a irmã de Julien... — constatei, sufocada.

De imediato, o rosto da jovem foi assolado pela dor e os olhos violeta reviraram-se nas cavidades. Tentei acudir-lhe, mas ela esmoreceu, sem sentidos.

O vento tornou-se nosso aliado, esticando o pano da majestosa vela vermelha, empurrando-nos para longe da cidade do Império. O jarl reuniu-se com Lorde Stefan e o príncipe Ivarr, pois urgia firmar decisões. Tínhamos de alcançar rapidamente a Enseada da Fortaleza. Se o príncipe John retaliasse, essa seria a sua primeira paragem. O tio Stefan devia informar os chefes de clã que respondiam às suas ordens do que acontecera, e preparar a defesa do seu povo.

O ânimo dos nossos guerreiros estava elevado. Após as numerosas baixas que tínhamos imposto à guarda do feiticeiro, o insucesso da campanha fora esquecido. Que o exército do Império viesse buscar desforra! Encontrariam muito ferro Viking à sua espera! Só o tio Berchan não se conformava com o desfecho da contenda. Num dos seus escassos momentos de consciência, revoltara-se de tal forma, que negara a ajuda do irmão, declarando que teria sido preferível deixá-lo morrer a ceder a última pedra mágica a Esteban. O reconhecimento do altruísmo alheio nunca fora o seu forte!

Aos poucos, o espírito do sábio bania a influência do feiticeiro, sem que eu necessitasse interferir. O verde-floresta regressara-lhe ao olhar, e a razão, ao discernimento. Porém, a sua condição física começava a inquietar-me. Ardia em febre, sem motivo aparente, e queixava-se de dores no ventre. O pequeno arranhão parecia ser a origem do mal. Apesar de pouco profundo, não conseguíamos que parasse de verter sangue e adquiria uma tonalidade púrpura. Mesmo depois dos disparates que o irmão bradara, o tio Stefan não saía do seu lado, apelando às habilidades curativas para aliviar-lhe o sofrimento. Contudo, os seus esforços não estavam a surtir efeito.

A nossa protegida não tornara a abrir os olhos. O choque e a exaustão haviam-na empurrado para um sono profundo, do qual não despertaria tão cedo. Eu tentara responder às interrogações do jarl, apesar de não possuir certezas. Quem era esta mulher e por que Esteban a perseguia? Durante a Visão que me revelara o suplício do infeliz Julien, o feiticeiro manifestara a obsessão de capturar-lhe a irmã. O valor da jovem era inquestionável! Todavia, quanto à miríade de outras questões que se levantavam, só ela poderia elucidar-nos.

Bryan tornara-se seu guardião. Após tê-la arrancado dos braços da morte, não saía do seu lado, atento à sua respiração. Os companheiros gracejavam, dizendo que ele fora enfeitiçado pela sereia que resgatara do mar. A bem da verdade, ninguém ficava indiferente à beleza da jovem, fresca como uma manhã de Primavera. Os cabelos louros e suaves caíam-lhe sobre os ombros, qual chuva luminosa. A sua figura alta e esguia, com seios pequenos e cintura estreita, jamais se confundiria com a das mulheres Vikings... E esta diferença obrigava a um segundo olhar.

O grito do tio Berchan cortou-me os pensamentos e deixou o drakkar em alerta. Apressei-me a ir ao seu encontro, tentando amenizar-lhe as dores. Mal o sábio se rendeu a um sono atormentado pela febre, o tio Stefan afastou-lhe a túnica, murmurando temeroso:

— Ele não está sarando.

— Como é possível...? — tartamudeei, ao verificar que o corte se encontrava roxo e inchado.

— Não sei... Estou ficando desesperado!

O meu pai veio inteirar-se da situação. Enquanto o tio Stefan explicava que os ungüentos pareciam agravar a infecção, ao invés de curá-la, uma idéia terrível assaltou-me a mente.

— Veneno... — arquejei. — Assim como entregou a Estrid a receita para matar o tio Edwin, Esteban pode ter condenado o tio Berchan, sem que ninguém se apercebesse.

— Maldição! — praguejou o jarl. — O que é que podemos fazer?

«O Que Tudo Vê» ensinara-me que algumas misturas de ervas e de secreções de animais podiam paralisar, até mesmo matar um homem, num piscar de olhos ou muito lentamente. O mestre da Arte Obscura dissimulara a sua infâmia, certificando-se de que nós só nos aperceberíamos da gravidade da condição do sábio, quando já fosse tarde para remediá-la! Da mesma forma que para anular um feitiço era necessário um contrafeitiço, para libertar o corpo do veneno era necessário um contraveneno. Sem o conhecimento da substância que Esteban usara, pouco podíamos fazer, além de piorar a enfermidade com os ingredientes errados. Era isso que estava acontecendo! O tio Stefan tomou consciência do fato e enveredou imediatamente por outro caminho:

— A tua magia pode salvá-lo, Edwina?

Fechei os olhos e enchi o peito de ar. Estaria o caprichoso destino a pregar-nos uma peça? O único feitiço eficaz que me ocorria era aquele que a rainha Lyria do Povo da Terra me ensinara, ao qual eu recorrera para salvar Aled... com a acirrada oposição de Berchan McGraw! Porém, ainda que estivesse disposta a apelar mais uma vez à Arte Obscura, para livrar o meu tio da morte, mesmo que à sua revelia, necessitaria de ajuda para concretizar o sortilégio. E aqueles que me rodeavam não possuíam suficiente magia no sangue, para que ousasse aventurar-me. Se teimasse, estaria condenando-nos a todos!

Ao ver-me hesitar, o jarl insistiu:

— Pode fazer o mesmo que o Thorson...?

— O Thorson não se socorreu de um feitiço, papai — atalhei, com um suspiro desalentado. — Usou a magia da sua própria essência! Eu não tenho o poder de curar com o toque...

— O Ivarr tem... — intrometeu-se Thora, num sussurro, como se receasse a minha reação.

— Sim — concordei, incapaz de manter a rispidez afastada da voz. — Contudo, apenas dentro do círculo místico que o une aos seus irmãos de sangue. Se nós duas estivéssemos morrendo, o rei-lobo poderia salvar a tua vida... mas não a minha!

Thora baixou o rosto, para ocultar a comoção. Não pude remediar a minha desmesura, porque o tio Stefan já balbuciava, com os olhos molhados:

— Quer dizer... que não há esperança?

O meu olhar atravessou o convés, até o local onde Bryan guardava o sono da sua protegida. Se Esteban perseguia esta jovem com tamanha ferocidade, a sua magia devia ser muito poderosa. Todavia, neste momento, estava muito fraca para se manifestar.

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance — asseverei, com a firmeza que consegui reunir. — Porém... receio que tenhamos que contar com a boa vontade da nossa hóspede.

A noite tornou impossível o progresso do Dragão dos Mares. Ao nosso redor, o mar estava infestado de rochedos pontiagudos, capazes de despedaçar o casco do navio num piscar de olhos. Mesmo alguém que conhecesse esta costa, arriscaria a vida dos seus homens, se teimasse em navegar na obscuridade. Por isso, o jarl Throst mandou a tripulação descansar, para que pudéssemos seguir viagem mal o dia despontasse. A conversa dessa tarde redobrara a sua urgência de alcançar a Enseada da Fortaleza. A vida do tio Berchan sustinha-se por um fio, e o meu pai não tinha vontade de ver-me celebrar o sinistro ritual mágico dentro do drakkar, em frente de dezenas de homens. Bastaria que um espírito mais fraco se impressionasse, para lançar o pânico a bordo e provocar uma desgraça.

Abri os olhos, incapaz de adormecer. Sobre nós, as nuvens cinzentas deslizavam suavemente, ocultando o manto negro salpicado de estrelas. Os gemidos da madeira e o ressonar dos homens que dormiam no convés eram os únicos sons que perturbavam a canção das ondas. Um nevoeiro gélido erguia-se ao nosso redor, úmido e salgado. Estavam reunidas as condições ideais para que os monstros marinhos saíssem dos seus esconderijos, para caçar... E para que as sereias se divertissem a atormentar os marinheiros.

Pensar no Povo da Água fez-me recordar o rapto de Thorson, o homem da capa preta... e o terrível pesadelo que me fizera despertar em prantos, na outra noite. Por mais que me recusasse a acreditar que o meu primo Edwin deixara o reino dos mortos para castigar o pai moribundo, a lembrança desse sonho mau causava-me agonias. Não! Tal como Ivarr dissera, a imaginação pregara-me uma peça torpe! Porém, não sendo Edwin, nem Sigarr, quem era o mestre da Arte Obscura que nos seguira até à Ilha dos Sonhos? E por que desaparecera tão misteriosamente, quando já me tinha prisioneira das suas garras? Agora, que a ameaça de Esteban ficara adiada, voltava a inquietar-me com a segurança de Thorson... e a condição do tio Edwin. Teria conseguido resistir ao veneno? Ou o regresso para casa nos reservaria a declaração de mais uma tragédia?

Thora partilhara a manta comigo, mas levantara-se há pouco, a fim de cumprir o seu turno de vigia. O meu pai não protestara quando ela se oferecera para velar pela nossa segurança, durante a noite. Além da sua capacidade de ver no escuro, que superava qualquer um dos homens a bordo, a minha irmã era imune aos cânticos das sereias. Ansiosa por libertar a mente dos temores que me torturavam, tencionava levantar-me para lhe fazer companhia. Contudo, detive-me, ao verificar que alguém tivera a mesma idéia.

A tensão inundava o corpo de Ivarr, enquanto atravessava o convés ao encontro da sua protegida. As batidas do seu coração aceleravam, até me ribombarem aos ouvidos. Cerrei os punhos, zangada. Eu não queria sentir-me assim, tão desamparada e angustiada, sempre que ele se aproximava de Thora! Não desejava ceder à tentação de espiar cada um dos seus gestos; das suas emoções... Todavia, era mais forte do que eu! Mantive os olhos fechados, mas vi claramente o sobressalto da loba prateada, quando o rei-lobo se quedou ao seu lado.

— Eu não preciso de uma ama — resmungou com maus modos.

— Sei disso — revidou ele. — Mas não conseguia dormir... e pensei que gostaria de conversar.

Thora não respondeu. Fixou os olhos no mar, rasgando as trevas em busca de um sinal de ameaça. O seu coração era um tambor de guerra... Decerto que Ivarr também se apercebia do seu nervosismo, pois não a pressionou. Encostou-se à amurada, em silêncio, até que o desconforto os abandonou.

— O que acha que irá acontecer ao tio Berchan? — indagou ela, subitamente.

O príncipe respirou fundo, antes de retorquir:

— Deve preparar-se para o pior... Ele está muito mal, Thora!

— Eu já vi a Edwina realizar o impossível! — objetou a jovem, recusando-se a ceder à desesperança.

— É verdade — concordou o rei-lobo, num tom sóbrio. — Porém, para que consiga resgatar um espírito das trevas do submundo, é necessário que ele queira permanecer na Terra... E, sinceramente, eu acho que o Berchan perdeu a vontade de viver!

— A Edwina não vai desistir...

— Ela deve respeitar a convicção do seu tio! — cortou Ivarr, com uma serenidade arrepiante. — O Berchan abomina a Arte Obscura. Duvido que aceite submeter-se a esse feitiço... ainda que a opção seja a morte!

Thora esforçava-se por resistir ao pranto. O seu corpo estremeceu e mal conteve um soluço. Ivarr agarrou-lhe a mão, tentando confortá-la. O gesto foi instintivo e isento de malícia... No entanto, o olhar que trocaram nada tinha de inocente. As lágrimas ruíram pelas faces da minha irmã, ao desviar o rosto. Hesitante, Ivarr começou a recuar... mas ela impediu-o! Os seus dedos entrelaçaram-se e a cabeça da loba prateada buscou o apoio do ombro do rei-lobo. De imediato, os olhos de Ivarr encheram-se de luz. Fechou-os e cerrou os dentes, enquanto erguia a outra mão para acariciar-lhe as tranças, e murmurava, numa voz muito rouca para ser humana:

— Estou orgulhoso de ti... Portou-se muito bem nesta campanha! O teu controle no cemitério foi irrepreensível!

Thora engoliu em seco e, quando respondeu, também a sua voz estava alterada:

— A inatividade custou-me um pedaço da alma.

— Eu sei... Senti o mesmo! Mas foi para o bem de todos.

— Não compreendo como o tio Berchan se deixou enganar. Ele sempre foi tão... ponderado!

— Decerto as suas intenções eram as melhores! Não o condene... Todos nós falhamos! Todos temos momentos de fraqueza...

Thora afastou-se e o príncipe não tentou detê-la. Eu tinha a certeza de que recordavam aquela noite, na praia... O segredo que se cravava no coração de ambos como uma adaga!

— Vai dormir, Ivarr — pediu ela, quase suplicante.

— Eu não quero que faça esta vigia sozinha.

— Não confia em mim? Tem medo de que eu adormeça e as sereias te raptem?

O rei-lobo sorriu levemente, antes de responder:

— Tu jamais permitirias que elas me levassem, garota!

— Se voltar a me chamar de garota, dou-te uma pancada na cabeça e atiro-te borda fora, para lhes facilitar o trabalho!

Havia uma gravidade ameaçadora no tom de Thora. Ela detestava que Ivarr a tratasse assim... E ele adorava fazê-lo, para provocá-la! Esta brincadeira já desencadeara zangas violentas. Porém, esta noite, o rei-lobo não queria discutir. Voltou a assumir uma expressão séria, replicando:

— Quantas vezes já se privaste do sono, para que eu não ficasse só durante um turno de vigia? Deixe-me fazer-te companhia, Thora...

— Está me distraindo!

— Desculpe! Juro que saberei me comportar.

Thora respirou fundo e encarou as brumas que vagueavam sobre o mar. Ivarr aquietou-se e o silêncio envolveu-os. O tempo passou... E eu continuei mais desperta do que nunca, atenta a cada um dos seus suspiros. Porém, nada mais foi dito. A mão do rei-lobo repousava sobre a amurada, à distância de um dedo da mão da loba prateada. E eu pressentia nele o desejo de tocar-lhe, de apreciar a suavidade da sua pele. No entanto, conteve-se, talvez receando destruir a harmonia que partilhavam; ou, talvez temendo desencadear algo que fosse impossível de sustar.

Ivarr prometera-me que, após esta viagem, as nossas divergências finariam... Porém, parecia incapaz de cumprir o seu voto. A mente do príncipe forçava-o na minha direção, mas o corpo do rei-lobo clamava por Thora. A cada dia, a razão travava uma luta contra o instinto...

E estava a perder! Sem dúvida, esta ia ser uma noite longa... muito longa!

Passei a manhã junto da nossa misteriosa passageira. Se ela não despertasse em breve, o tio Berchan estaria perdido. Parecia que a sua mente se recusava a regressar à realidade... Há quanto tempo viveria escondida de Esteban? Quantas atrocidades já testemunhara, para mergulhar nesta negação? Eu tinha de tocar a sua consciência e assegurar-lhe que estava em segurança... Contudo, enfrentava um intricado dilema. Se lhe entregasse a minha energia curativa, ficaria enfraquecida para celebrar o sortilégio que salvaria o sábio da Ilha dos Sonhos. Se não a ajudasse a acordar... não teria ninguém para salvar!

— Edwina... — O apelo do meu pai forçou-me a encará-lo. — Tu não és uma deusa com autoridade sobre a vida e a morte, querida! Deve começar a mentalizar que esta guerra talvez esteja perdida! Mesmo que essa jovem desperte... Tu nada sabes acerca dela! Quem te garante que pode ou quer ajudar-nos? Eu não permitirei que arrisque a tua vida!

Quando ele se afastou, tomei uma decisão. Debaixo do olhar alarmado de Bryan, coloquei as mãos sobre a testa da jovem, e deixei a energia fluir, enquanto a minha essência mergulhava ao encontro da sua.

Foi um salto para o abismo. Caí desamparada num negrume gélido que parecia não ter fim. Então, quando estava prestes a desesperar-me, vi céu... Uma vastidão interminável de azul puro, que pairava sobre majestosos castelos de cristal, os quais cintilavam esplendorosamente à luz do Sol. Pássaros de cores magníficas exibiam-se nos ramos das árvores luxuriantes e os cervos passeavam livremente pelos jardins, bebendo das fontes cristalinas e alimentando-se dos arbustos carregados de suculentas bagas. Eu nunca estivera neste lugar, mas reconheci-o de imediato. Visitara-o muitas vezes, através das recordações do meu bisavô Hakon. Esta era a Ilha Sagrada, o último reduto dos Seres Superiores! Como é que este lugar podia habitar a mente da fugitiva do Império? Os entes de sangue misto não eram admitidos na casa dos Feiticeiros!

— Melina...

Pelos olhos da jovem que me acolhia no seu espírito, vi uma senhora de indescritível beleza. O seu rosto era ainda mais perfeito do que aquele onde as minhas mãos repousavam. Ela veio até mim e envolveu-me nos seus braços, murmurando:

— Amo-te, querida filha... Perdoe-me, mas não posso continuar a viver neste tormento!

Senti a dor da jovem como se fosse minha; uma sensação de perda, de incomensurável tristeza. Os seus olhos cor de violeta piscaram... e as lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu estava de novo em queda... E, desta vez, não era céu que me rodeava. Era fogo!

As labaredas espargiam-se, lambiam as paredes de madeira e consumiam o teto da casa. Eu escutava os gritos da minha mãe... Mas era tarde para salvá-la! Onde estava o meu irmãozinho? Se ele morresse, a minha vida perderia o sentido!

O fumo negro cercava a pequena cama. Um menino gritava e chorava, com os braços magros estendidos na minha direção. Por cima dele, o teto de chamas ruía...

— Não!

Apelei à magia de forma a protegê-lo, até que o estreitei nos meus braços. Queria chorar, cobri-lo de beijos... Mas não havia tempo! A atenção do mestre da Arte Obscura voltava-se para nós, atraído pela manifestação do meu poder. Estiquei o braço e rebentei a parede, apressando-me através da abertura que revelava a densa floresta. O ar frio da noite envolveu-nos. Lá atrás, as chamas devoravam a cabana... Porém, o maior perigo vinha no nosso encalço!

— Corre! — murmurou o pequeno. — Corre...

Corri com todas as minhas forças... Contudo, sabia que não seria suficiente! Ele ia nos apanhar! Ele ia nos matar! Tropecei na raiz de uma árvore e tombei desamparada, rodando o corpo para proteger o meu irmão da queda. O galope do cavalo que nos caçava fazia o solo estremecer. Já escutava a respiração do nosso algoz, ofegante e enraivecida. Rastejei para a sombra do tronco e apertei o menino contra o peito. O seu olhar violeta, úmido e aterrorizado, rasgava a obscuridade e refletia o meu. Deitei-lhe a cabeça sobre o meu ombro, para impedi-lo de testemunhar o horror que estávamos prestes a enfrentar, enquanto sussurrava:

— Desculpe, Julien...

Então, senti a sua magia aflorar a minha... E abracei-a. Nesse instante, o cavalo surgiu da cerração. Prendi o ar, fixando o cavaleiro com o olhar esbugalhado de pavor. A montaria empinou-se, quando a figura vestida de negro constatou que perdera o nosso rastro. Vi-o voltar-se para buscar-nos. Fechei os olhos e apelei à concentração que podia reunir. Este era o momento de pôr em prática tudo o que aprendera.

Eu era terra... Era madeira... A magia do menino, apesar de pouco desenvolvida, fortalecia-me. Abri os olhos e vi o feiticeiro desmontar, a poucos passos de onde nos encontrávamos. Eu já ouvira falar a seu respeito. A sua maldade excedia os limites da imaginação... Porém, em carne e osso, era ainda mais assustador! Óttarr, o Sacerdote do Conselho Superior que muitos haviam profetizado vir a tornar-se Mestre Supremo, devido à sua inteligência e poder excepcionais, era agora Esteban, um renegado, cujas atrocidades praticadas na Terra eram descritas para assustar os jovens traquinas que descuidavam os estudos.

O monstro perscrutou a floresta com o olhar negro e glacial. O meu irmão estremeceu. Se soluçasse, estaríamos perdidos! Eu era seiva, era casca, era ramo, era folha... Era só mais uma árvore da floresta!

O renegado deteve-se, escutando o pulsar da natureza. Depois, e durante algum tempo, andou em círculos, como as feras que os humanos aprisionavam em jaulas e que acabavam por enlouquecer. Por fim, ergueu os braços ao céu e clamou a sua raiva. E esse grito jamais cessaria de me assombrar...

 

— Edwina...

As mãos do tio Berchan apertaram debilmente as minhas. As suas manifestações de carinho eram tão raras, que demorei a reagir. O olhar verde cintilava, possuído pela febre, pelo sofrimento, por uma infinita tristeza que lhe transpareceu na voz, ao balbuciar:

— Tenho que pedir-lhe perdão... Devo pedir perdão a todos vós! Por minha causa, as pedras mágicas perderam-se. Fui arrogante e presunçoso... Fui tolo, ao acreditar que estava preparado... Que podia resolver o problema sozinho...

O suor escorria-lhe em torrente pelas faces. Limpei-o com cuidado, ciente de que ele estava com muitas dores. O ferimento no seu ventre era agora uma roda negra, estriada de vermelho, maior do que o punho de um homem. Eu recorrera a todos os artifícios de curandeira e de Guardiã da Lágrima do Sol, mas nada o aliviava. Troquei um olhar com o jarl, replicando:

— Por favor, tio... Poupe as tuas forças!

— Fui muito rigoroso contigo — continuou como se não me tivesse ouvido. — Por vezes, até te julguei mal! Desculpe-me... É uma boa menina! E será melhor Guardiã da Lágrima do Sol, do que eu alguma vez seria...

O sábio estava se despedindo! Esse reconhecimento gelou-me. Sacudi veementemente a cabeça, interrompendo-o:

— Tem de ser forte e continuar a lutar. A magia da nossa hóspede é muito poderosa! Assim que recuperar os sentidos, pode ajudar-me a salvar-te.

— Como? Apelando ao feitiço que a rainha Lyria te ensinou? — Libertou um sorriso, antes de continuar. — Isso só revela a grandeza do teu coração... Depois da mágoa que a minha opinião te impôs, ainda está disposta a ajudar-me! E eu te agradeço, querida sobrinha... Contudo, tenho de declinar a tua generosidade, não só porque invocar novamente a Arte Obscura enfraqueceria a tua essência, mas também porque a minha convicção não mudou, só porque sinto a morte a aproximar-se. Devo aceitar a minha sorte; abraçar o destino com serenidade. Se cedesse ao que me propõe, tudo aquilo em que acredito e defendo... toda a minha existência perderia o sentido!

— Então, vai se render à morte? — repliquei, indignada.

— Edwina! — protestou o meu pai, ante tamanha franqueza.

— A morte não é o fim, sobrinha — continuou o sábio. — O meu espírito continuará a lutar ao teu lado, até à derrota dos nossos inimigos!

Fui forçada a afastar-me, para que ele não me visse chorar. A atenção do tio Berchan voltou-se para o irmão e o cunhado, declarando-lhes as suas últimas vontades, assim como as mensagens que desejava fazer chegar aos ouvidos daqueles que amava e que não tornaria a ver.

Mantive o olhar preso nas ondas que o Dragão dos Mares rasgava, esmagada pelas emoções. O fato de não ter pregado os olhos durante a noite, debilitava-me o corpo e a mente. A proximidade de Ivarr e Thora roubara-me a paz... E, depois, ainda teimara era viajar pelas recordações de Melina e testemunhara, de novo, a selvageria de Esteban. Ao despertar, estava mais confusa do que quando a vira surgir, no porto do Império! Porém, uma certeza tornava-se inquestionável: ainda que aceitasse ajudar-me, a jovem não despertaria a tempo de salvar o meu tio. A sua essência tinha muitas batalhas para travar, muita dor para assimilar, muita aceitação a fazer, muita energia mística para recuperar, antes de estar apta a enfrentar esta nova realidade.

— Diz à Cat que ela será sempre a minha irmãzinha... — continuava o sábio, numa voz que já mal se distinguia. — Que o seu sorriso será a luz que me libertará das trevas... Que o seu amor viverá eternamente no meu coração... Somos seis, mas somos um só...

Deixei de escutá-lo... E, no instante seguinte, o tio Stefan começou a chorar, sem se importar com o julgamento dos homens. Bryan acorreu a ampará-lo. Thora procurou o meu abraço e eu estreitei-a contra o peito. Pouco depois, o nosso pai confortava-nos com o calor do seu corpo e a força do seu espírito. Ao longe, o forte da Enseada da Fortaleza começava a tomar forma. Se o entusiasmo do vento não esmorecesse, chegaríamos a porto seguro antes de anoitecer.

 

Todos te estimamos, Berchan McGraw... Descansa em paz, com a certeza de que nunca será esquecido.

Quando o jarl da Ilha dos Sonhos terminou o comovido discurso de homenagem ao defunto, Ivarr, Ragnar, Bryan e Ketill encostaram os archotes à pira funerária, e as chamas iluminaram a praia da Enseada da Fortaleza. Esta fora uma das últimas vontades expressas pelo sábio: queria ser cremado junto ao mar e que as suas cinzas fossem levadas para a Floresta Sagrada, onde repousariam no cemitério da família.

Entre os braços de Thora, fechei os olhos e as lágrimas verteram, ao recordar-me, ainda criança, no colo do tio Berchan, soltando gargalhadas de satisfação, enquanto emaranhava os dedos nos seus belos caracóis negros. Vi-me como uma jovem aprendiz, escutando atentamente os ensinamentos do sábio e almejando, um dia, igualar o seu conhecimento e a firmeza do seu caráter. E desejei que todo este mal pudesse ser desfeito!

Berchan McGraw não merecia uma morte tão dolorosa, tão indigna! Este fora o fim que Esteban, mestre da Arte Obscura, lhe impusera... Por mais que todos os que me rodeavam afirmassem o contrário, eu não conseguia deixar de sentir-me culpada; de pensar que falhara em protegê-lo. Se tivesse estado mais atenta, teria percebido quando o feiticeiro lançara o desafio ao meu tio, e poderia ter evitado esta desgraça.

O tio Stefan apertava a esposa nos seus braços e fixava as labaredas que consumiam o corpo do irmão, com um olhar perdido. Berchan sempre fora o pilar da família; aquele a quem todos recorriam, quando tinham um problema; aquele cuja opinião escutavam e seguiam. Apesar de, nos últimos anos, se ter tornado um homem amargo, o sábio continuara a ser a nascente de água que sustinha os McGraw. Eu nem podia imaginar o que a minha mãe sentiria, quando tomasse conhecimento do seu infortúnio! E a tia Ingrior... E a pequena Lyonnete, que adorava o pai... E Trygve... Tanta dor! Tanto sofrimento provocado pela maldade de um feiticeiro. Um dia, Esteban haveria de prestar-me contas por esta morte!

— Edwina... — Ivarr avançava ao meu encontro. Thora afastou-se, mas houve um instante em que nós três estivemos próximos... tão próximos que senti o sobressalto dos seus corações; a confusão, a negação que lhes torturava os espíritos. As mãos do meu marido enlaçavam-me a cintura... mas era em Thora que o seu olhar se fixava. Recuei instintivamente, rugindo entre dentes:

— Não me toque!

Ivarr estacou, perplexo. Por trás dele, as chamas estendiam-se até o céu, libertando o espírito de Berchan McGraw. Rodei sobre os calcanhares e desatei a correr pela praia.

— Edwina!

Ignorei o apelo e continuei, cega pelas lágrimas. Orei para que o rei-lobo não viesse no meu encalço. Não queria encará-lo; não desejava falar-lhe e, muito menos, sentir-me prisioneira dos seus braços. Precisava esfriar a cabeça e ponderar bem, antes que dissesse ou fizesse algo de que me arrependesse. Para isso, necessitava de tempo... Contudo, Ivarr não parecia disposto a conceder-me! Deteve a minha fuga, estreitando-me com força, enquanto replicava:

— Pare, Edwina! Deixe-me ajudá-la...

Empurrei-o sem cortesia, ostentando uma expressão tão feroz que o paralisou. A minha voz soou tenebrosa, até para os meus ouvidos:

— Eu não quero a tua ajuda, filho de Steinarr! Não quero mais nada de ti!

Lancei-me numa nova corrida e Ivarr não me seguiu.

A noite ia avançada, quando Berchan McGraw me procurou. Sentei-me na cama, encarando o olhar verde-floresta sem temor. De todos os irmãos, ele era o que mais se parecia com a minha mãe. O seu semblante já não revelava sinais de tormento, ou de frustração, pelo que ficara por fazer e dizer. Aceitei as mãos da sua forma espiritual e apertei-as entre as minhas, assimilando a tranqüilidade que me transmitiam. O meu tio estava em paz.

— Lamento... — comecei. Porém, ele silenciou-me, contestando:

— Aceita o que não pode ser alterado, Guardiã da Lágrima do Sol! O meu destino dependia exclusivamente das minhas decisões... Tu nada podias fazer para me ajudar! Perdoa-me pela soberba e retira da minha insensatez uma lição: nunca despreze os aliados e não subestime os adversários. Duras provações esperam-te, mas eu sei que as superará com coragem e sabedoria.

Deixei-me cair nos seus braços e estreitei-o com força, sabendo que seria a última vez.

— Obrigada por tudo... — murmurei emocionada.

A sua essência tocou a minha, dissipando a tristeza que me prostrava. Os seus lábios repousaram-me na testa, antes de declarar:

— Não tema o futuro, Edwina... O Sol e a Lua podem voltar a brilhar fora do Círculo do Medo, se não calar a voz do teu coração!

Sem mais, partiu. No entanto, o seu propósito fora alcançado. Tranqüila, afundei a cabeça na almofada e adormeci de imediato. Sonhei com crianças... Eu estava junto da Pedra do Tempo, no cume da Montanha Sagrada, a entrelaçar flores para fazer um colar igual ao que me pendia do pescoço. Diante de mim, um menino e uma menina rodopiavam de mãos dadas, soltando gargalhadas, com os olhos verde-floresta voltados para o céu. Os seus cabelos louros e encaracolados resplandeciam ao sol, com reflexos de fogo. Teriam três, talvez quatro anos... E eu os amava mais do que à minha própria vida!

Voltei a atenção para o colar, desejando que ficasse perfeito. Ele vinha reclamar o seu prêmio... Eu não precisava olhar para trás, para sentir a sua essência, qual onda de calor que avançava sobre mim. Fechei os olhos, inspirando felicidade. As suas mãos fortes repousaram-me nos ombros, antes de me sussurrar ao ouvido:

— Edwina...

— Edwina!

Abri os olhos e encontrei a tia Enya debruçada sobre a cama, abanando-me gentilmente. Sentei-me, respirando com dificuldade, assolada pelas emoções que o sonho despertara.

— Sinto muito por tê-la acordado, querida — desculpava-se a minha tia. — Mas a jovem que salvou recuperou finalmente a consciência e pede para falar-te.

Vesti o robe, tentando concentrar-me nesta nova tão importante. Sacudi a cabeça, decidida a esquecer os rostos sorridentes das crianças. Agora que acordara e percebera que não eram reais, a sua recordação só me faria sofrer. Não valia a pena agarrar-me a um sonho... quando tinha a dolorosa certeza de que este jamais se concretizaria.

O jarl Throst e Lorde Stefan já se encontravam no quarto que acolhera a fugitiva do Império, desde que chegáramos à Enseada da Fortaleza. O meu tio fixava o olhar assustado da jovem e dizia, num tom firme:

— Seja bem-vinda à minha casa! Não tema... Aqui, está a salvo!

A resposta da hóspede foi desconcertante:

— Ninguém estará a salvo, enquanto Esteban caminhar sobre a Terra!

Assim que me viu, estendeu-me os braços, com a ansiedade de uma criança perdida que reencontra a mãe. Sentei-me ao seu lado e aninhei-a contra o peito, assolada por uma estranha emoção. Ela chorou, com tal veemência, que o corpo esguio quase se desfazia de encontro ao meu. No entanto, não deixou escapar um som! Quantas vezes pranteara em silêncio, muito aterrorizada com a possibilidade de ser capturada pelos soldados do Império, ou pelo próprio Esteban, para se permitir libertar um gemido?

— Talvez devêssemos deixá-las — sugeriu a tia Enya, ao constatar o seu descontrole.

— Não... — Melina deteve-os, respirando fundo para se recompor. — Por favor, fiquem... Eu lhes devo uma explicação... E um agradecimento, por me terem salvo a vida!

A nossa proximidade bastava para perceber que, apesar de ter recuperado a consciência, a sua magia ainda demoraria a alcançar a plenitude. Entretanto, havia muito que explicar! A minha incursão nas suas recordações revelara algo absolutamente extraordinário. Melina não possuía mistura de sangue humano, como o irmão. Melina era uma verdadeira feiticeira!

A nossa protegida nascera na Ilha Sagrada, há cinqüenta anos, o que a tornava jovem segundo os padrões feiticeiros. O seu pai, irmão de um Sacerdote do Conselho Superior, era um homem austero e severo, que a forçava a estudar com afinco para, um dia, tomar o lugar do tio, que não tinha herdeiros. Por outro lado, a sua mãe era uma mulher sonhadora e grande admiradora do trabalho que Hakon e Aranwen haviam desenvolvido junto dos Homens. Fora através dela que Melina conhecera a história da nossa família e com verdadeira emoção que assistira ao nascimento do amor de Throst e Catelyn. Porém, por essa altura, a sua vida sofrera um tremendo sobressalto. Sem que nada o fizesse prever, a mãe abandonara a Ilha Sagrada e unira-se, na Terra, a um Sábio de sangue humano. Dessa união proibida nascera Julien, um irmão que Melina amara desde o primeiro instante... um irmão que o pai a proibira de ver.

Julien ainda era um garoto, quando o falso padre Esteban, em nome do Império, invadira o povoado onde os seus pais viviam. Não ficara pedra sobre pedra! Na Ilha Sagrada, os Seres Superiores assistiram impassíveis à carnificina. Todavia, Melina não se conformara! Sem a permissão do Conselho ou do pai, descera à Terra, a tempo de ver a mãe ser queimada viva. Nada pudera fazer para salvá-la, mas conseguira fugir com o irmão... E fugia desde esse dia!

Os dois haviam-se tornado inseparáveis, até à noite fatídica em que o feiticeiro capturara Julien. Melina fora forçada a deixar o esconderijo para buscar mantimentos e o irmão sacrificara-se para salvá-la, com a convicção de que ela tinha de viver para deter Esteban. Consternados, a ouvimos apelar, num tom assombrado pela angústia de uma perda insuportável:

— Agora, que sabem do que aquele maldito é capaz, por favor, ajudem-me a destruí-lo!

O meu pai respirou fundo, antes de replicar com sobriedade:

— Tem noção de que a aliança que propõe dificultará o teu regresso à Ilha Sagrada? Nós não somos propriamente... agraciados pela tua raça!

— Eu não pretendo voltar à Ilha Sagrada — objetou Melina, resoluta. — Não, depois de comprovar que os Feiticeiros desprezam tudo o que se passa no exterior do seu refúgio de egoísmo e ambição! Não, depois de ter bradado ao meu pai por ajuda, enquanto o fogo consumia o corpo de minha mãe, e de não ter obtido resposta! Ela já havia perdido o dom da magia, como castigo pela sua traição... Não merecia aquela morte horrenda! E que crime cometeu o meu irmão, que nem sequer pediu para nascer? Julien possuía o sangue dos meus avós, mas nenhum deles afrontou Esteban! E nem os meus avós, nem o meu pai, me acudiram no porto do Império! Para vós, eu era uma estranha... No entanto, não hesitaram em me salvar! Será uma honra lutar convosco, se me receberem no vosso seio... Será um privilégio colocar a minha magia ao serviço da Guardiã da Lágrima do Sol, para combater os mestres da Arte Obscura. Se um dia a minha raça me usurpar a magia, me restarão dois braços para empunhar armas. Não existe glória no Conselho dos Seres Superiores que se iguale à liberdade de exprimir o pensamento, sem barreiras nem temores!

Se eu não tivesse simpatizado instantaneamente com Melina, a paixão do seu discurso teria me arrebatado. O silêncio que se seguiu foi a prova de que ninguém ficara indiferente à sua sinceridade, ao seu tormento, à coragem e ao sonho que partilhávamos. Depois de todas as adversidades que esta campanha nos trouxera, a descoberta de uma aliada poderosa era um jorro de luz entre as trevas.

Os nossos líderes sentaram-se para discutir o próximo passo. O tio Stefan convocara os principais chefes de clã da Grande Ilha e começara a mobilizar guerreiros, na expectativa de um ataque liderado pelo príncipe John. O meu pai apoiava a sua iniciativa. No entanto, achava que os conspiradores não se atreveriam a seguir-nos de imediato. O seu objetivo era o trono do Império e não iriam desperdiçar energias noutras frentes. O incidente no porto fortalecera a posição de John e Esteban, e enfraquecera a autoridade da rainha. O príncipe declararia diante do conselho que, graças à condescendência da mãe, os Vikings tinham espalhado a morte e a destruição no seu território. O Tratado estava ferido de morte... Ou talvez não!

— Existe uma última esperança para manter a paz... — começou o meu pai, num tom que me indicou que há muito ponderava no que estava prestes a declarar. — O rei do Império tem de ser avisado do que está acontecendo, para que regresse para casa de imediato!

O tio Stefan fixou-o, retorquindo com o cenho franzido:

— Não contesto que tem razão... Mas quem abraçará essa missão? Com tamanha ameaça a pesar sobre nós, é impensável viajar para o Sul, ou dispensar homens e recursos...

— Eu irei — determinou o jarl, sem deixá-lo concluir. — O rei do Império me conhece bem e escutará o que tenho para dizer. Enquanto isso, Stefan, continuará a preparar-se para repelir um eventual ataque. E tu, Ivarr, navegará para a Ilha dos Sonhos, a fim de avisar o meu irmão do que está se passando. Bjorn também deve organizar a defesa do arquipélago. Depois, siga para o norte e alerte o teu pai. Se o William ignorar a razão, a guerra será inevitável!

Eu mal acreditava nos meus ouvidos... O meu pai não podia estar falando sério! Se ele embarcasse nesta temeridade, quem comunicaria a desventura de Berchan McGraw à família? Perdi o fôlego, ao compreender que teria de ser eu a fazê-lo! E, como se não bastasse a dor que ia causar à tia Ingrior e à minha mãe, também pesaria sobre mim o fardo de contar-lhes que o jarl Throst viajara para o sul, provavelmente a caminho da morte, quando a sombra da guerra se erguia no horizonte, marchava sobre as nossas casas e as nossas vidas...

Em privado, tentei convencer o meu pai a mudar de idéia, mas foi em vão. Além de possuir a convicção de que conseguiria influenciar o rei William, o jarl também me chamou a atenção para o fato do Dragão dos Mares ser mais veloz do que qualquer navio da frota do tio Stefan. E ele era o único capaz de manobrá-lo em segurança. Abraçou-me com carinho e fixou-me com o seu olhar azul celeste, apelando emotivamente:

— Mantenha-se firme, Edwina! A tua mãe vai necessitar do teu apoio. Diga-lhe que não tardarei... E que o meu pensamento a acompanhará, a cada batida dos nossos corações. Não se preocupe, querida... Vai correr tudo bem!

Eu queria acreditar que sim... Mas não conseguia engolir a angústia que me estrangulava.

— Tu não tens vontade de ir! — constatei.

— É verdade! — admitiu. — O meu maior desejo é chegar em casa, abraçar a Catelyn e enxugar as suas lágrimas. Porém, tenho consciência de que sou o homem indicado para resolver este problema... Não posso ceder ao apelo do meu coração, quando a sorte da nossa gente depende do resultado da abordagem ao rei do Império; do meu poder de persuasão. Um dia, foi-me revelado que o meu destino era acabar com a guerra e unir os povos do Norte aos seus inimigos... Dediquei a minha vida, o meu suor, o meu sangue a esse objetivo, filha! Não permitirei que a ambição de um príncipe imberbe e a perversidade de um feiticeiro destruam tudo o que construí!

A viagem até à Ilha dos Sonhos foi morosa, quase opressiva. A tripulação do drakkar seguira o jarl Throst para o sul, e o tio Stefan encarregara um dos capitães da sua frota de conduzir-nos ao nosso destino. Ivarr e Bryan passavam o tempo a conversar com o guerreiro, interessados no comportamento do navio aliado, tão diferente dos barcos Vikings. Thora reunira-se a eles... No início, o capitão revelara alguma impaciência ante a curiosidade da jovem. Porém, após escutar a sua pertinência e constatar-lhe a sagacidade, acabara por render-se e entregara-lhe, por breves instantes, o comando do navio.

Ragnar e Ketill ajudavam os marinheiros nas suas tarefas, incapazes de se acomodarem à inércia. Quanto a Melina, poucas palavras dissera, desde que entrara a bordo. Apesar de não se queixar, parecia assustada com o rebuliço e incomodada com o olhar curioso dos homens. Garanti-lhe que ninguém lhe faltaria ao respeito, mas, mesmo assim, senti-a insegura. Os últimos tempos, passados na imundice do porto do Império, aguardando uma oportunidade de escapar de Esteban, haviam deixado marcas dolorosas no seu espírito. Bryan era o único homem que não a intimidava, talvez por lhe ter salvado a vida. Em contraste, o meu primo alterava-se completamente diante da feiticeira. O macho garboso e sedutor cedia lugar a um garoto envergonhado, que se atrapalhava com as palavras e corava violentamente, para nosso pasmo. Os companheiros de alcatéia não tardaram a elaborar gracejos. Porém, o rumor do encantamento do meu primo acabou por melindrar a jovem... As conversas que lhe traziam um tímido sorriso aos lábios findaram abruptamente, para minha aflição e desgosto de Bryan.

Concentrar-me nos problemas dos outros era uma forma de evitar encarar os meus. Depois do que acontecera na praia da Enseada da Fortaleza, Ivarr não voltara a dirigir-me a palavra, exceto quando surgia uma questão fundamental. Confuso, aguardava uma explicação; talvez um pedido de desculpas. Todavia, eu achava que não tinha de justificar-me e, muito menos, de retratar-me. Pelas garras do Guardião da Montanha, não era eu que andava a suspirar de enlevo ao ouvido de outro homem! A cabeça de Thora devia estar num turbilhão, e o seu coração, em profunda agonia. O que é que Ivarr pretendia? Enlouquecer-nos às duas?

O cansaço do rei-lobo era evidente. Andava a alimentar-se mal e uma tristeza profunda escurecia-lhe o olhar. Há dias que mal dormia e esquecia-se de aparar a barba. Fixei o mar, com um nó na garganta. Por vezes, desejava buscar a sua atenção, mas o orgulho impedia-me. Sentia-me cansada, decepcionada, inquieta... Estávamos prestes a chegar à Ilha dos Sonhos, com um porão carregado de más notícias. Mas o que nos esperava podia ser igualmente terrível. Vivia oprimida pelo temor de descobrir que o sinistro pesadelo, que me mostrara a morte do tio Edwin, fora real. Se o meu primo tivesse regressado das brumas do submundo, para assombrar a família e buscar vingança, eu feneceria de desgosto. Durante todos estes anos, só a convicção de que o seu espírito se encontrava em paz me ajudara a superar a dor da sua perda.

«O Sol e a Lua voltarão a brilhar fora do Círculo do Medo, se não calar o teu coração.»

Estremeci, percorrida por um calafrio, ao escutar a voz do tio Berchan, tão distinta como se ele estivesse ao meu lado. Nos últimos dias, essa expressão enigmática flutuara-me na mente; enchera-me de dúvidas. Porém, eu tudo fazia para suprimi-las. Jamais tornaria a seguir os impulsos do coração! Sempre que o ousara, pagara um preço elevado. Após a morte de «O Que Tudo Vê» e do meu primo Edwin, jurara não dar nem mais um passo sem examinar o terreno onde pisava... E não pretendia revogar essa decisão!

Aportamos na Ilha dos Sonhos sem alarido. O momento não era de festa. Pouco depois, eu já estava sentada no salão da casa onde crescera, segurando as mãos da minha mãe, enquanto lhe explicava as razões por que o jarl Throst não regressara. Ela escutava-me, com as lágrimas presas por trás do olhar verde. O temor de não voltar a ver o homem que amava declarava-se em sua expressão, mas não se permitiu libertar um gemido de agonia.

A tia Ingrior também se manteve firme, embora enxugasse constantemente as lágrimas. Quando terminei, refugiou-se no quarto, onde a pequena Lyonnete já dormia, sem dizer uma palavra. A minha mãe desculpou-se e seguiu-a. Mais tarde, fiquei sabendo que, também aqui, os últimos dias não tinham sido fáceis. Apesar da distância, o tormento do tio Berchan não escapara à excelsa percepção de Catelyn e Ingrior. O choque fora tão violento, que Freya se vira forçada a chamar Trygve, para que o primo a ajudasse a confortar as nossas mães. Eu surpreendera-me, ao encontrá-lo em casa, mas ficara aliviada por contar com o seu apoio. Trygve era o meu melhor amigo, desde que me conhecia. Crescêramos juntos, tivéramos o mesmo treino, fôramos inseparáveis... até o dia que ele assumira o seu destino, como Sacerdote da Ilha dos Penhascos. Depois disso, faláramos poucas vezes, mas era como se o tempo não tivesse passado por nós.

O tio Bjorn e Ivarr envolveram-se numa troca de impressões, sobre estratégias de combate. Sempre que o meu pai se ausentava, era o seu irmão mais novo que assumia a administração da Ilha dos Sonhos, em colaboração com o tio Edwin. Desta vez, tivera de fazê-lo sozinho. Percebi que também ele ficara contrariado com a decisão do jarl de rumar ao Sul, apesar de não expressá-lo em voz alta. Este não era o momento ideal para acrescentar mais raios à tormenta. Tinha de agarrar-se a todas as informações disponíveis e preparar a defesa do território.

Apesar da consternação que nos rodeava, nem todas as notícias eram más. Fora com intensa alegria que eu vira surgir o tio Edwin, e não me contivera de abraçá-lo, como se receasse que não fosse real. O seu farto cabelo caíra, mas o novo já lhe cobria o crânio, castanho-dourado, hirto e forte. Ainda estava muito magro, embora a pele começasse a ganhar cor. Movia-se com o auxílio de um cajado... Mas estava vivo! E isso significava que eu podia pôr as sombras daquele terrível pesadelo para trás! O meu tio guerreiro correspondera com ardorosa emoção, estreitando-me até me roubar o fôlego, enquanto me beijava a testa e murmurava:

— Minha filha... Minha querida filha...

Ambos cedêramos ao choro. Não obstante o sofrimento e a incerteza, aquele momento fora só nosso e avigorara as nossas almas.

Freya fizera as honras da casa e acomodara Melina. Thorson simpatizara de imediato com a jovem feiticeira e recusara-se a deixá-la. A minha irmã receava que a hóspede se aborrecesse com o arrebatamento do filho, mas eu sosseguei-a. Thorson tinha finalmente alguém disponível para lhe dar atenção e distraí-lo dos choros e gemidos que ecoavam ao seu redor. Quanto a Melina, era evidente que a companhia do pequeno lhe apaziguava a tristeza.

— Vai descansar, Edwina! — As mãos de Trygve pousaram-me nos ombros, com carinho. — É muito tarde e tu estás esgotada.

Só agora, que ele me despertava para o fato, é que me apercebia da exaustão que me prostrava. Desculpei-me e deixei o salão, onde os homens continuavam a debater o futuro do Tratado. Reparei que Ivarr me observava pelo canto do olho, mas não demonstrou qualquer intenção de seguir-me. Acabara de deitar-me, quando a minha mãe chegou. Deslizou para o meu lado e envolveu-me nos seus braços. Mal nos instaláramos, Freya apareceu, trazendo Thorson ao colo. A cama já parecia pequena para tantos corpos, mas ninguém reclamou quando Thora surgiu, perguntando se podia dormir conosco. Nessa noite, o conforto do espírito era muito mais importante do que um braço ou uma perna dormente.

Quando despertei, a casa mantinha-se silenciosa, extenuada por uma noite de emoções intensas. Durante algum tempo, desfrutei do aconchego da minha família e apreciei o conforto que a Lágrima do Sol me oferecia. Agora que a recuperara, interrogava-me como conseguira subsistir sem o alento da sua magia. Tinha a certeza de que fora o cristal que avivara o poder de Thorson e o ajudara a salvar o tio Edwin. Apesar da tenra idade, o meu sobrinho já era um herói! Ninguém questionava que as suas habilidades seriam decisivas para o futuro do nosso povo.

Saí da cama com cuidado, animada pela necessidade de esticar os membros doloridos. O salão estava deserto. As criadas ainda dormiam. Talvez este fosse o momento ideal para procurar Ivarr e esclarecer a dúvida que erguia uma geleira entre nós. Porém, ao invés de me conduzirem até o quarto onde o príncipe repousava, meus pés guiaram-me para fora de casa.

— Covarde! — mastiguei entre dentes, enquanto atravessava o povoado sonolento. — É uma covarde, Edwina! Sabe perfeitamente que adiar esta conversa será pior para todos. Já nem consegue olhá-lo nos olhos! E ele desistiu de buscar a tua atenção...

A maré vazava e deixava uma infinidade de tesouros a descoberto na areia branca: conchas e pedras de mil e uma cores, caranguejos esquivos e minhocas que tentavam escapar do bico implacável das gaivotas. Sorri, ao lembrar-me que Thorson adorava brincar com as conchas mortas. Enchia-as com pequenos ramos, que simbolizavam a família, e fazia-as voar ao encontro das estrelas. A sua imaginação não tinha limites!

Descalcei-me e ousei avançar, entregando as faces às carícias dos primeiros raios de Sol. As ondas desfaleciam, muito antes de alcançarem os meus pés, incentivando-me a ir mais adiante. Uma infinidade de sulcos rasgavam a areia encharcada e devolviam a água ao mar. Os gritos das gaivotas, misturados com o agitar das suas asas, o murmúrio do vento e o cântico das ondas, formavam um coro celestial, que me envolvia e fazia levitar. Inspirei um fôlego de ar fresco e senti-me renascer.

— Rainha do Sol...

Num instante estava a pairar, no seguinte esmagava-me no solo. Com o coração a ameaçar romper-me o peito, abri os olhos e deparei com o meu primo Edwin, à distância de um braço. Via-o sob a forma da sua essência, mas a túnica e as calças de linho que o cobriam denunciavam-lhe a robustez do corpo. Os traços do seu rosto eram os mesmos que eu tão bem recordava. Contudo, os olhos verdes revelavam uma nova e sombria maturidade. Os cabelos caíam-lhe sobre os ombros, tão rebeldes e encaracolados como os meus... e a madeixa vermelha fulgia entre o louro brilhante, qual cascata de fogo.

Tentei falar, mas não consegui. Arfei, lutando para contrariar o tremor que me vergava as pernas. Concentrei-me em manter os olhos abertos, receando que Edwin desaparecesse se piscasse. Então, de repente, outro apelo soou nas minhas costas.

Voltei-me instintivamente e encontrei Trygve, acenando-me com um sorriso nos lábios. Sem fôlego, virei a cabeça para buscar Edwin... mas só avistei uma imensidão de céu e de mar.

— Não... — gemi sufocada.

Trygve aproximava-se... E eu não queria que surpreendesse o meu enleio! Ele já tinha muitos problemas nas mãos, para atender aos meus desvarios; às minhas alucinações. Respirei fundo e forcei um sorriso, antes de encará-lo. Sabia que era impossível enganá-lo, mas podia tentar convencê-lo de que a minha perturbação se devia à tempestade que assolava as nossas vidas. De alguma forma consegui-o, pois Trygve abraçou-me, murmurando apaziguador:

— Não ceda ao desespero, Edwina... Havemos de superar esta dificuldade, como fizemos com tantas outras!

O seu esforço era de louvar, mas encontrava-se despido de convicção. O tio Berchan estava morto e todas as pedras mágicas perdidas. Tal como eu, Trygve sabia que a nossa família jamais se recomporia deste golpe.

— Vamos nos sentar — pediu, incentivando-me a andar até à areia seca. — Preciso te falar, antes que o povoado desperte. Não posso arriscar que alguém ouça a nossa conversa.

Deixei-me cair na areia, com o coração apertado por garras de ferro. Trygve procurara-me porque ansiava por notícias de Oriana, e temia questionar-me dentro de casa, onde uma palavra perdida no ar podia condenar Amora à morte. Eu também desejava saber novas da Sacerdotisa dos Penhascos... No entanto, os meus olhos teimavam em percorrer a praia, buscando o impossível. Cada vez que a imaginação me pregava uma peça, eu insistia em torturar-me com uma esperança mais do que vã.

Fixei o rosto desejoso do meu primo e contei-lhe o muito que a filha crescera, nos últimos meses, e os progressos que fizera sob a orientação da avó. Trygve escutava-me com uma mistura de orgulho, embevecimento e tristeza. A cada dia, parecia-se mais com o tio Berchan na juventude: a mesma constituição física, olhos da cor das folhas novas das árvores, cabelos negros, encaracolados e compridos, barba crescida... Ninguém diria que não era filho do sábio, mas do primeiro marido da tia Ingrior, assassinado numa emboscada planejada pelo sanguinário Gunnulf, seu meio-irmão. Um jovem skald podia cantar a história da nossa família, até o dia da sua morte, que muito ficaria por relatar!

— A Amora está a fraquejar — confessou-me. — O nosso fardo também é pesado, Edwina! Eu a amo mais do que à própria vida... E, a todo o instante, tenho de recordar-me que não posso tocá-la, que nem sequer posso sussurrar-lhe uma palavra de conforto, com receio de que alguém nos ouça. Sempre que celebramos os rituais de Renovação, temo que o seu espírito se quebre, ao ver-me nos braços de outra mulher, sabendo que dessa união há de nascer mais uma criança... enquanto a Oriana cresce, ignorando a nossa existência.

Engoli em seco, estrangulada pela emoção. O meu olhar perdeu-se no mar, enquanto a voz me fluía da garganta, livre do domínio da vontade:

— Por que é que quem ama está condenado a sofrer?

Ele sorriu, condescendente, e agarrou-me a mão, replicando:

— Talvez seja o preço a pagar, por conhecermos uma felicidade que está ao alcance de poucos, ainda que por breves instantes! — Tocou-me no queixo, buscando o meu olhar. — Apesar das adversidades, não podemos deixar a esperança fenecer, senão, o que nos restará? Não quero ver-te abatida! Tu és a Guardiã da Lágrima do Sol... A tua luz é o sustento dos nossos espíritos!

— A minha luz está a finar — respondi, denunciando a angústia que me corroía. — O meu coração já sofreu tantos golpes que sinto não ter mais sangue para derramar! A cada dia, convenço-me de que estou a viver um cruel engano... Tenho vontade de subir a Montanha Sagrada e esquecer que sou princesa do povo Viking; de viver exclusivamente para a missão de Guardiã.

Ele franziu o cenho, indagando gravemente:

— Está assim porque se desentendeu com o Ivarr? Percebi que mal se falam... O que foi que aconteceu? Vós sois o casal perfeito...

— Sim! — atalhei com amargor. — Perfeito para os nossos pais, para a família, para o povo...

— O que é que está dizendo? Tu sempre amaste o Ivarr! Sonhava casar-se com ele...

— E ele? Desejava casar-se comigo, ou o fez para não contrariar o rei Steinarr?

— Não compreendo...

Respirei fundo, contrariada. Não queria aprofundar o assunto. Levantei-me de repente, deixando-o perplexo ao declarar:

— É melhor regressarmos!

Trygve ergueu-se atrás de mim e segurou-me o braço, impedindo-me a fuga.

— Edwina... — Hesitou, buscando a melhor forma de me transmitir a sua intenção. — Eu estarei sempre disposto a escutá-la, quando quiser desabafar.

Sorri tristemente e abracei-o com carinho. Era bom saber que, apesar do mundo estar ruindo debaixo dos nossos pés, a cumplicidade que nos unia permanecia intocada.

Na casa do jarl vivia-se a azáfama da manhã. Mal entrei, o tio Edwin barrou-me o caminho e arrastou-me até o quarto. Apreensiva, receei ouvi-lo dizer que se sentia regredir na cura. Todavia, os seus olhos cintilavam de antecipação e a voz tremia-lhe de ansiedade, ao indagar:

— Ele falou contigo?

— Quem? — balbuciei, desprevenida.

— O Edwin! Ele me garantiu que não deixaria a ilha, sem te procurar.

O ar tornou-se sólido. O meu coração ameaçou parar. Se as suas mãos não me segurassem com firmeza, decerto teria caído, pois já não sabia se assentava os pés no chão ou no teto.

— De... de quem... é que o tio está falando?

— Não me ouviu? Do meu filho! Do Edwin!

— Tio... — interrompi-o, quase com brusquidão. — O tio esteve doente, a delirar com febre...

— Raios! — cortou ele, impaciente. — Eu não estou louco! O Edwin chegou na sua ausência. Pediu-me que guardasse segredo e eu aquiesci. Tem dormido na Gruta da Renovação... Porém, esta noite, quando nos encontramos na floresta, anunciou que tinha de partir. Mas eu não podia deixá-lo ir, sem falar contigo! Afinal, os seus espíritos estão ligados... Não acredita em mim? O Edwin regressou para me salvar... E perdoou-me...

A voz do meu tio desvaneceu-se. Por um instante, vi-o a agonizar, debaixo do olhar atento da rainha do submundo. Vi a minha mãe e Thorson, ao seu lado, profundamente adormecidos... e a entrada intempestiva de um homem envolto numa capa preta.

«Não há nada a perdoar... meu pai! »

O pesadelo fora real! Edwin estava vivo!

O meu tio continuava a falar, mas o som arrastava-se no tempo. A sua figura também se distorcia. Pisquei os olhos com força, lutando contra as brumas que me devoravam a consciência. Eu não podia desmaiar... Eu não ia desmaiar! Tinha o resto da vida para deixar-me prostrar pelo choque. Agora, urgia saber a verdade, ou seria eu quem enlouqueceria!

Voltei as costas a Edwin McGraw e cambaleei até à porta, por puro instinto. O meu passado era um punhado de areia revolvido pelo vento... Já nada fazia sentido! Apercebi-me de que me chamavam, mas não me detive. A brisa fresca da manhã ajudou-me a recuperar a visão... E desatei a correr, animada por uma ânsia fervorosa.

Corri como louca, por caminhos que há muito não trilhava. Corri, como se a salvação da minha alma atormentada me aguardasse no fim da trilha. Não permiti que as lágrimas me cegassem, nem tampouco cedi à razão, que me avisava da insensatez de tamanho arrebatamento. Concentrei-me em correr... Correr ao encontro de um passado que eu acreditara decidido; de uma chama que julgara extinta.

O Sol já ia alto, quando cheguei ao cume da Montanha da Magia. As Pedras do Mundo surgiram orgulhosas, sob o azul glorioso do céu, como sete portas para um universo mágico. No centro, a majestosa pedra negra cintilava numa explosão de cores que não pertenciam ao mundo do Homem. Parei de correr e comecei a gritar:

— Edwin... Edwin, onde está?

Detive-me à entrada da Gruta da Renovação, trespassada pelo respeito que o lugar me inspirava. Era aqui que, desde que havia memória, na noite do nosso Festival de Verão, o Sacerdote dos Penhascos fecundava uma Mãe da Renovação e iniciava um novo ciclo de vida para o povo nativo. Fora aqui que Amora quebrara o voto de castidade, para salvar a sua gente de uma profecia maldita. E fora aqui que alguém passara as últimas noites! As pegadas não mentiam! Eu até podia identificá-las como pertencentes a um homem alto e robusto...

Percorri o corredor em forma de cotovelo, pé ante pé, em silêncio. Depois de tanto correr e gritar, o temor reprimia-me. As tochas suspensas nas paredes acenderam-se sob a minha vontade. Se Edwin era, na verdade, o misterioso homem da capa preta, era também o mestre da Arte Obscura que degolara a mulher do Povo da Água e tentara raptar Thorson; que quisera matar o rei-lobo e a sua alcatéia, na Floresta dos Carvalhos! Eu já o enfrentara... E já me prostrara aos seus pés, suplicando clemência! Como fora possível não reconhecê-lo? Será que a sua essência mudara de tal forma, que se tornara estranha aos meus olhos? Quem era este Edwin, regressado do submundo? O jovem que eu amara e pelo qual me dispusera a morrer? Ou um monstro? Para o bem ou para o mal, estava prestes a descobrir a resposta.

Estaquei, ao deparar com a caverna vazia. Apurei a sensibilidade e pressenti vestígios de uma energia poderosa. Porém, nada me garantia que se tratasse de Edwin... a não ser a representação fiel do Guardião da Montanha, sobressaindo em luz da parede de pedra. Surgido do nada, o colossal dragão movia-se diante dos meus olhos, voltando o focinho feroz na direção da Lua. Esta imagem viva não fora pintada, nem sequer esculpida... Fora entalhada com magia, e chamava por mim. Assim que me aproximei, irrompeu em chamas. Não recuei, ansiosa por descobrir o que tinha para revelar. E, no instante em que o toquei, a gruta desapareceu.

Edwin surgiu diante de mim, tão real como o coração que me galopava dentro do peito. Viajava num navio, com os olhos postos no mar, rumo ao desconhecido. A capa preta cobria-lhe os ombros e os cabelos louros esvoaçavam ao sabor do vento. De alguma forma, tomou consciência da minha essência, pois fixou-me... Surpreendi um relampejar de emoção no seu olhar. Porém, logo o ardor se transformou em desafio, em desprezo! Estremeci, ante a rispidez da sua voz:

«Não posso dizer que é aqui que os nossos caminhos se separam, Rainha do Sol, porque há muito que tomamos rumos diferentes! Não me procure, e eu também não te buscarei. O nosso destino é claro... traição e morte! Se teimar em me perseguir, da próxima vez que a tiver à minha mercê não serei clemente.»

A sua mão agitou-se diante do meu rosto... e a Visão desvaneceu-se. A parede de pedra da Gruta da Renovação surgiu abruptamente, qual gigante prestes a esmagar-me. Recuei, atordoada, e acabei por trocar os pés e cair. A representação mágica do Guardião da Montanha desaparecera e a caverna encontrava-se mergulhada na escuridão. Quedei-me, prostrada, completamente desorientada. Isto não estava acontecendo! Isto não podia ser verdade!

Por entre a tempestade que me deflagrava na mente, recordei o instante em que a figura demoníaca de Vulcan, rei do Povo do Fogo, se precipitara sobre a sua presa, nas escarpas negras da ilha vulcânica. Durante anos, eu tentara apagar da memória o olhar desamparado de Edwin, enquanto arrastava o corpo quebrado e ensangüentado para o abismo... E a dor na sua voz ao despedir-se: «Voltaremos a nos encontrar, Rainha do Sol...»

Nesse dia, eu fizera-lhe uma promessa... Uma promessa vã! Acreditando no seu infortúnio, obrigara-me a sufocar o amor que me preenchia o coração, para minorar o sofrimento. Contudo, Edwin subsistira! Saberiam as forças divinas a que custo, e sob quantas provações... Para, no fim, descobrir que a mulher que amava, a mulher que lhe jurara amor eterno, se casara com outro homem e o abandonara. Podia condená-lo por buscar vingança? Por me considerar uma traidora?

Transtornada pela alucinação, desejei recuar no tempo... Contudo, era tarde! Tarde para o amor. Tarde para o perdão. Tarde para a paz. A mensagem de Edwin era uma declaração de guerra... E eu não possuía argumentos para aplacar o seu ódio.

 

— Edwina... Tenha calma! Está tudo bem...

Fitei Ivarr através de uma cortina úmida e pegajosa. Nos meus olhos cansados, as lágrimas haviam secado. Sentia-me amorfa, vazia, despida de quaisquer sentimentos humanos.

As sombras da Gruta da Renovação eram rasgadas pelas chamas do archote que o rei-lobo trouxera. Os braços fortes envolveram-me, puxando-me para o seu colo, de encontro ao peito. Com brandura, afastou-me os cabelos das faces e acariciou-me o rosto. Movi os lábios, num sussurro desprovido de vontade:

— O Edwin está vivo...

— Eu sei — interrompeu Ivarr. — Depois que saiu, o teu tio contou-nos.

Não havia aspereza nem exprobração na sua voz. Embalava-me sem exigências nem pressa; o olhar cristalino flamejando à luz da tocha, triste... apenas triste. Dei por mim a deslizar os dedos pela seda negra dos seus cabelos. Ele segurou-me a mão e beijou-a. Decidi que era chegado o momento de confrontá-lo com o seu enlevo por Thora. Quando terminei, Ivarr respirou fundo e hesitou, antes de retrucar pesarosamente:

— Lamento, Edwina! Nos últimos tempos, a vida impôs-nos conflitos e sofrimento. Porém, apesar de nos termos afastado, continuo a acreditar que podemos ser felizes, se perdoar as minhas fraquezas e quiser lutar pelo futuro do nosso povo.

Foi a minha vez de fechar os olhos. Não esperava ouvir essa resposta... E não tinha forças para contradizê-lo. Só desejava aninhar-me no seu calor e adormecer. Apesar de tudo, era-me impossível imaginar um futuro longe de Ivarr. Murmurei o seu nome e o príncipe estreitou-me com mais força, falando baixinho:

— Dorme em paz, querida... Estarei aqui quando despertar.

 

Eu estava sentada sobre as rochas, admirando o pôr do Sol, quando a minha mãe me procurou. Os últimos dias haviam sido tão atribulados, que mal conseguíramos conversar. Recebi-a com um grande sorriso e busquei o carinho dos seus braços, como fazia em criança. Agora, eu era muito mais alta e robusta, o que nos levou a escorregar da pedra e a soltar algumas risadas, antes de encontrarmos uma posição confortável. Deitei a cabeça no seu peito e libertei um suspiro enlevado. Há muito que não me sentia tão bem!

— Era aqui que eu vinha conversar com o teu pai, ao fim do dia, quando ainda eram pequenas — disse a senhora da Ilha dos Sonhos, num tom saudoso. Aguardei que acrescentasse algo, mas o seu rosto ficou subitamente sombrio, e fui eu que continuei:

— Não se preocupe, mamãe! O papai não tardará a regressar...

— Tomara, Edwina! Eu sinto tanto a sua falta! Com a sua partida, a casa ficará vazia e triste. Sofremos tantas perdas nos últimos tempos... — Suspirou, desconsolada. — Gostaria de ter o teu pai ao meu lado, para partilhar este fardo. No entanto, compreendo as razões dele... e respeito-as, por muito que a sua ausência me doa. A paz é o sonho de Throst! Ele dedicou-se de alma e coração às negociações entre os Vikings e o Império. E irá lutar com todas as suas forças pela salvação do Tratado!

— O papai há de despertar o rei William para a perfídia do príncipe John — declarei, com uma convicção que não sentia. — Talvez até consiga recuperar as pedras mágicas!

— Não conte com isso, querida — replicou ela. — Ficarei feliz se o Throst for capaz de evitar a guerra! As pedras encontram-se fora do alcance de qualquer argumentação. Só a destruição de Esteban as libertará.

Estremeci ao recordar o olhar negro, profundo e aterrorizador do mestre da Arte Obscura. Quase com medo, dei voz a uma dúvida que me atormentava:

— Acha que Esteban irá propor uma aliança a Aesa...?

— Para unir as pedras e libertar a sua magia? — completou Catelyn, mostrando que já ponderara essa possibilidade. — Não me parece... Ao longo destes anos de guerra, eu nunca vi um feiticeiro maldito estender a mão a outro. Mesmo quando Sigarr, Aesa e Gwendalin decidiram trabalhar em conjunto, cada um concentrou-se na sua própria ambição e tentou ludibriar os companheiros. O egoísmo e a prepotência desses monstros impediu-os de vencer, no passado... E será a nossa esperança, no futuro! Os mestres da Arte Obscura não partilham poder... Mais depressa Esteban desafiaria Aesa para um duelo pela posse das pedras, do que se disporia a repartir a sua magia.

A opinião da minha mãe fazia sentido. De qualquer forma, se assim não fosse, o futuro do Homem adivinhava-se negro!

Uma gaivota gritou, antes de mergulhar com uma rapidez implacável. Depois, ergueu-se nos ares, com um peixe estrebuchando no bico. Outras chegaram, atraídas pelo apelo, e tentaram a sorte. O cardume foi apanhado desprevenido e não teve tempo de buscar refúgio entre as pedras.

— A Melina pediu-me para ficar — anunciou Catelyn, despertando-me a atenção. — Eu disse-lhe que podia desfrutar da hospitalidade da Ilha dos Sonhos, enquanto desejasse. Também acho que não deve viajar para o Norte, pelo menos de imediato. O seu espírito está ferido e necessita de serenidade para se curar. Aqui, ela poderá restaurar a confiança e dedicar-se à Arte, sem as pressões que a agitação da vida no castelo de Steinarr acabariam por lhe impor.

Isto não era novidade, já que Melina solicitara o meu parecer, antes de buscar a senhora da ilha. Eu também apoiava a sua vontade, não só pelas razões que a minha mãe apontara, mas também devido ao entusiasmo crescente de Bryan. O meu primo ansiava pela atenção da jovem... e ela não estava preparada para lidar com a paixão de um homem. A distância impediria que se magoassem, ou comprometessem irremediavelmente a sua amizade. Por último, eu viajaria mais tranqüila, sabendo que a feiticeira estava na casa do jarl, a poucos dias de socorrer o tio Stefan, na eventualidade de um ataque do Império.

— O dom curativo da Melina será de grande valia à comunidade — acrescentou Catelyn. — Pelo menos, enquanto a Ingrior não se restabelecer! O Trygve tem sido incansável, mas deverá regressar à Ilha dos Penhascos, em breve. O nosso povo sentirá tanta falta do apoio de Berchan...

Calou-se bruscamente, com a voz toldada pela emoção. Eu não conseguia ver os seus olhos, mas sabia que estavam cheios de água. A minha mãe jamais se conformaria com a morte do irmão! Berchan McGraw seria chorado durante longos anos e a sua obra viveria para sempre na nossa memória.

Voltamos a nos acomodar no silêncio. O Sol deixava um rastro de fogo no céu, ao desaparecer no horizonte. Um vento inoportuno deslizava sobre o mar, enrolava-se nas ondas e desarranjava-nos os cabelos. Algumas nuvens avançavam ao nosso encontro. A noite adivinhava-se fria.

— Esta tarde, fui visitar a prima Signy — revelei, com o coração apertado. — Ela nem me reconheceu! A Svana está aflita, sem saber o que fazer. Não seria melhor elas ficarem contigo, durante alguns dias?

A senhora da ilha respirou fundo e encolheu os ombros, penalizada.

— A Signy quase enlouqueceu, ao saber da morte de Krum. Durante dias, recusou-se a comer e a proferir uma palavra. A Ingrior estava a despertar-lhe as reações, quando a sombra do infortúnio de Berchan se abateu sobre nós. Ficamos tão perturbadas, que a Svana achou que seria melhor levar a mãe para casa. Eu discordei... mas não tive alento para contrariá-la. E, agora, o mal está feito! Só espero que não seja tarde para trazer a Signy de volta à realidade.

Eu partilhava do seu receio. Signy era uma mulher recatada e muito sensível, que sempre vivera para a família, incapaz de tomar uma decisão sem consultar Krum. Agora, andava à deriva no desespero. Svana não possuía maturidade para cuidar da mãe. Talvez Signy devesse regressar ao Norte, para viver com o filho! Decerto Eric ficaria muito contente por recebê-la. Porém, o temor de que ela sofresse um ataque de loucura, durante a viagem, e se lançasse ao mar, fez-me reprimir a sugestão. Então, a minha mãe surpreendeu-me, ao declarar:

— É um alívio verificar que se entendeu com o Ivarr! Confesso que, quando o Edwin nos revelou que o seu primogênito sobrevivera, tive medo de que se precipitasse no seu encalço, sem escutar a razão. Fico muito feliz por te ver disposta a esquecer o passado e a investir no futuro, ao lado do teu marido.

O calor subiu-me às faces, ao recordar as últimas noites passadas nos braços do rei-lobo. Era certo que a insegurança ainda me abalava! Afinal, o homem que possuía o meu corpo era incapaz de esconder a sua paixão... mas o lobo que habitava a sua essência continuava a mirar-me de esguelha, insensível à minha magia. Ainda assim, eu dispunha-me a ganhar a sua confiança. Um dia, a minha mãe dissera-me que existiam muitas formas de amor... Hoje, eu compreendia-a! O amor que me unia a Ivarr não era aquele que me levaria a dar a vida para conquistar um beijo seu... Era aquele que me levaria a dar a vida para escudá-lo do mal; para trazê-lo para o conforto do lar, e vê-lo sorrir ao abraçar os filhos. Não era esse sentimento mais nobre do que o outro? Era, com certeza, um sentimento pelo qual valia a pena lutar!

Contei-lhe o ultimato que recebera do rei Steinarr. Catelyn rangeu os dentes, indignada, mas confessou:

— Já esperava que isso acontecesse! O Steinarr é um bom homem... Mas é também um soberano implacável, que coloca os interesses do reino acima da sua própria felicidade.

— Se eu continuar a ceder ao ardor de Ivarr, acabarei por engravidar — prossegui, com o coração dividido entre o desejo e o temor. — E depois, mamãe? Tenho tanto medo!

Catelyn beijou-me a testa, inclinando-se para buscar o meu olhar.

— Tenho refletido muito acerca do teu problema, Edwina. Já tentamos tudo, sem resultado... Talvez devesse consultar a Velha do Tronco Oco. Na sua longa experiência de vida, pode ter deparado com uma situação semelhante, ou ser capaz de vislumbrar algo que esteja  além do alcance da nossa percepção.

A Velha do Tronco Oco era a mais idosa das videntes Vikings. Alguns acreditavam que fora uma das primeiras feiticeiras renegadas pelo Conselho dos Seres Superiores. Outros, garantiam que pertencia ao Povo da Terra, mas que decidira afastar-se da sua raça. Todos eram unânimes na crença de que sobrevivia à passagem do tempo, graças à água que bebia de uma fonte encantada, e que tinha o poder de alterar a forma do corpo; de transformar-se num veado, num lobo, ou até numa galinha! Aqueles que a conheciam, juravam que nenhuma mente lhe guardava segredos, e que as suas adivinhações resultavam em profecias inevitáveis. Para mim, os enigmas da Velha do Tronco Oco eram simplesmente irritantes! Estava convicta de que ela não passava de uma anciã com habilidades ilusórias, que protegia os seus domínios incutindo pavor nos espíritos mais curiosos. Sabia ler os segredos das Runas sagradas... Mas outros o faziam! E com maior precisão!

As profecias da Velha do Tronco Oco já haviam causado muito amargor à nossa família. Pasmava-me ouvir a minha mãe sugerir que a consultasse, sendo ela uma das vítimas do seu fracasso! Em tempos, a vidente garantira-lhe que Throst teria três filhos, herdeiros de três reinos... Catelyn quase enlouquecera, ao saber-se incapaz de gerar um varão, após o nascimento das gêmeas. Eric também se vira prejudicado pelas previsões da anciã, ao iludir-se acerca de Thora, porque lhe fora dito que o seu destino era desposar uma valorosa guerreira. A profecia dirigida a Ivarr, que determinava o fim da guerra no Norte, mal unisse as armas às da sua companheira, fora outro desacerto colossal! O nosso casamento durava há anos, mas os conflitos persistiam...

Decerto denunciei incredulidade e aversão, pois a minha mãe acrescentou, condescendente:

— Não seja tão severa no julgamento, querida! O que tem a perder? Prometa que irá pensar!

Aquiesci, apenas para não contrariá-la. Submeter-me às adivinhações da Velha do Tronco Oco estava fora de questão! Se os apelos à Pedra do Tempo tinham ficado sem resposta, e a Visão da minha mãe nada revelara acerca da razão por que os meus filhos pereciam à chegada da sexta lua cheia, não seriam os devaneios de uma velha caduca que iriam me ajudar!

Pouco depois, Freya e Thorson vieram ao nosso encontro, seguidos por Thora. Esta era a última noite que passávamos na companhia de Catelyn, antes de deixarmos a Ilha dos Sonhos. Afastei-me para que Thorson se enroscasse nos braços da avó, enquanto as minhas irmãs se sentavam noutra rocha, tagarelando alegremente. O Sol acabara de se pôr e, apesar do vento nos arrepiar, ninguém parecia disposto a arredar pé. Para o momento ser perfeito, só faltava a presença do meu pai... Fixei a estrela mais brilhante e desejei que ele voltasse depressa para casa, com boas novas. Só nesse dia os nossos corações sossegariam.

 

No regresso ao Norte, o Falcão Real fez uma paragem na ilha onde quase perdêramos Thorson. Os dias estavam mais quentes, os cantis vazios, e os homens ansiavam por água fresca. O acampamento foi montado com a rapidez habitual. Temendo que o Povo da Água tentasse novamente a sua sorte, Thora declarou que, nessa noite, dormiria com a irmã gêmea e o sobrinho.

Os guerreiros regressaram da floresta com um porco selvagem e alguns coelhos. Após uma farta refeição, ainda sobrariam mantimentos para o resto da viagem. Sentei-me à fogueira com Freya e Thorson, Ivarr e os seus lobos. Quedei-me a observar Thora, por entre as chamas que nos separavam. Ragnar animava a refeição com um dos seus poemas tolos, e ela gargalhava, com os olhos a brilhar. Ao reconciliar-me com Ivarr, fora a sua reação que eu mais temera. Nem imaginava o que faria, se a minha irmã denunciasse tristeza... ou ciúme. Porém, Thora recebera a notícia com satisfação e, deste então, parecia descontraída. Teria eu feito uma tempestade dentro de um búzio, teimando ver paixão onde só existia devoção e camaradagem?

Ketill também estava inspirado, mas o seu alvo era Freya. A minha irmã escutou a canção que o jovem lhe dedicava, com o rosto em brasa, enquanto os companheiros o incentivavam no meio de assobios e aplausos. Julguei que tamanho arrojo a faria zangar-se... Porém, quando ele terminou, Freya agradeceu-lhe com um beijo no rosto. Thorson intrometeu-se entre os dois e, após algumas travessuras, desafiou Ketill para um duelo, desembainhando a sua espada de madeira com um trejeito ameaçador. O guerreiro entrou na brincadeira, e logo os elogios à destreza do pequeno traquina incendiaram o acampamento.

Freya observava o filho, dividida entre o orgulho e a apreensão. A mim, o vigor de Thorson não causava deslumbre! Era de esperar que se tornasse um guerreiro excepcional, sendo filho do príncipe Helgi do povo vândalo. O que me deixava estupefata era a intensidade com que a Arte se manifestava na sua essência. O auxílio que prestara ao tio Edwin fora prodigioso! Mesmo que o restabelecimento do enfermo não tivesse sido obra sua, pelo menos ajudara-o a segurar-se à vida, até que o verdadeiro salvador aparecesse.

Recordar o Rei da Lua fez-me estremecer. Antes de deixarmos a Ilha dos Sonhos, Ivarr tentara fazer com que Edwin McGraw reconhecesse o perigo que o seu primogênito representava. A conversa originara uma discussão violenta, acerca das últimas ações do mestre da Arte Obscura. Segundo o meu tio, se o filho atacara o rei-lobo, fora por ciúme. Quanto a Thorson, por que acreditávamos que o tínhamos surpreendido a raptá-lo, ao invés de salvá-lo? Afinal, Edwin não matara a verdadeira captora? Não entregara o pequeno ileso? E, no fim, não salvara a vida do pai que nunca vira? Que mais provas queríamos? Se Edwin desejasse mal à família, teria espalhado o caos na casa do jarl, sem dificuldade, uma vez que o seu poder lhe permitira entrar e sair, sem que ninguém o detectasse.

Eu não interferira na disputa. Por mais que me insurgisse, os argumentos do meu tio tocavam-me o coração. Por isso, guardei segredo acerca da Visão que tivera na gruta. Se Ivarr soubesse da ameaça que Edwin me lançara, mobilizaria o exército Viking e não descansaria enquanto não o matasse. E isso não podia acontecer! Eu devia resolver este problema sozinha! Tinha que descobrir o que acontecera com Edwin. Como sobrevivera ao afogamento? Onde estivera todos estes anos? E o que se passava na sua cabeça? Por que é que, no meio de tanto ódio, cedera à indulgência e salvara o pai?

O aviso do meu primo não me intimidava! Ele era Guardião da Lágrima da Lua, mas, enquanto servisse a Arte Obscura, a Montanha Sagrada não lhe revelaria os seus caminhos. Logo, seria impossível recuperar o cristal e reclamar o seu poder. E sem a magia da Lágrima, a essência de Edwin não podia suplantar-me. Ele o sabia tão bem como eu! Por isso, pusera-se em fuga e exigira que me mantivesse afastada...

— Acha que está grávida, querida? — A pergunta de Ivarr, sussurrada ao meu ouvido, foi como uma pedrada na cabeça, que me arrancou das reflexões. Encarei-o, perplexa, e respondi por instinto; a voz trêmula de tão constrangida:

— Não sei... Ainda é cedo para ter a certeza...

— Tomara que sim! — replicou, sem reparar na tensão que me petrificava. — Seria bom, se voltássemos para casa com boas notícias!

Talvez Ivarr estivesse preocupado com a nossa felicidade... Porém, depois de tudo o que acontecera, eu apostava no seu temor de chegar diante do pai sem uma gravidez como troféu! A forma como abordara o assunto fora, no mínimo, rude e inoportuna. Desgostosa, escapei dos seus braços e busquei a tranqüilidade da beira-mar. Contudo, Bryan tivera a mesma idéia. Sem vontade de conversar, tentei passar despercebida e tomar outro rumo. Porém, assim que me viu, o meu primo interpelou-me, num desabafo exasperado:

— Por que não consigo tirá-la da cabeça, Edwina? A única mulher que me rouba o sono não quer nada comigo!

A causa da sua angústia era óbvia. Forcei-me a domar a impaciência. Seria injusto descarregar a minha frustração em cima de Bryan.

— A Melina passou por grandes apuros — respondi, no tom mais calmo que consegui forjar. — A sua confiança nos homens está abalada...

— Eu lhe disse que saberia esperar! — interrompeu-me, tão enervado que nem se apercebeu da minha ansiedade. — Que a seguiria até o fim do mundo! Que a protegeria até o dia da minha morte! E ela respondeu-me que, embora estivesse grata pelo que eu fizera, jamais entregaria o seu coração a um humano! Que vivia para o objetivo de destruir os mestres da Arte Obscura, e não podia distrair-se nem arriscar-se a ser castigada pelo Conselho dos Seres Superiores!

— A Melina não poderá combater Esteban, se os Feiticeiros lhe usurparem o poder...

— Mas nós jamais permitiremos que ela o enfrente sozinha!

— O Esteban é muito forte, Bryan! — repliquei, sentindo que estava a nadar contra a corrente. — Toda a magia e força de armas que pudermos reunir, pode ser insuficiente para derrotá-lo!

— Está dizendo que é inútil alimentar uma esperança?

— Não! Porém, não sei se será prudente fazê-lo! A Melina deixou claras as suas intenções...

— Bem claras! — cortou o meu primo, num tom azedo. — Eu sou muito humano para ela!

E, com isto, voltou-me as costas, embrenhando-se na noite. Respirei fundo, passando a mão pela testa. O destino adorava pregar peças aos Homens! Quem diria que, após dezenas de aventuras amorosas, Bryan acabaria por apaixonar-se pela única mulher que recusava a sua atenção?

Voltei ao acampamento, macambúzia. Freya já se recolhera e Thora afastara-se da algazarra dos companheiros. Sem vontade de encarar Ivarr, sentei-me ao seu lado na areia, com o olhar preso no mar. Pouco depois, ela rompia o silêncio para indagar:

— Acha que o príncipe Galinn ainda está no castelo?

— Ele deixou-te impressionada! — exclamei, libertando um sorriso de agradável surpresa.

Thora enrubesceu e desviou o rosto, ao contestar:

— Não é o que está pensando...

— Então, não te interessa saber que o Galinn acha que tu és muito bonita e talentosa...

— Verdade? — interrompeu a minha irmã, apertando-me o braço com um entusiasmo veemente. — Ele disse isso?

Uma sombra cortou-me a resposta. Ivarr surgira por trás de nós e escutara a conversa. A ira avermelhara-lhe as faces e alterara-lhe a respiração. O seu olhar em brasa fulminou Thora como se fosse um raio. De imediato, a minha irmã pôs-se de pé e murmurou uma despedida atabalhoada, e foi quase correndo para a tenda. Contrariada com a reação dos dois, anunciei que ia dormir. Esperei que o rei-lobo me detivesse, para, de alguma forma, justificar a sua reação. Porém, não o fez, nem me seguiu para o conforto do abrigo... De manhã, quando o acampamento despertou, verifiquei que ele acabara por dormir ao relento, junto dos seus guerreiros.

 

O rei Steinarr recebeu-nos com grande entusiasmo, feliz com o nosso regresso. O príncipe do Povo da Terra mantivera-se ao seu lado, certificando-se de que nenhum poder místico ameaçava o País dos Vikings. Cumprimentou-nos com um sorriso afável e palavras delicadas, mas o seu olhar fulgiu numa explosão de estrelas, ao encarar Thora. A minha irmã enrubesceu, quando Galinn lhe tomou a mão com brandura e a levou aos lábios. Parecia-me que a estabilidade da alcatéia do rei-lobo enfrentava um novo perigo!

Ivarr resumiu os reveses da campanha ao pai, enquanto o seguia até o salão. Steinarr franziu o cenho, ao tomar conhecimento da perda das pedras mágicas para o feiticeiro Esteban, bem como da conspiração que prenunciava o fim do Tratado e um eminente confronto com o Império. Os seus olhos revelaram pesar, ante o abrupto desaparecimento de Berchan McGraw... Porém, só se deteve ao saber que o jarl Throst tomara a iniciativa de buscar o rei William. Após um momento de ponderação, estreitou Ivarr e exclamou:

— Basta de política, neste dia de festa! Vá refrescar-se. Durante o jantar, quero que esteja descansados e com um sorriso nos lábios. Vamos comer até arrebentar, e afogar tristezas e dúvidas na nossa excelente cerveja! — Pôs as mãos sobre os ombros do filho e determinou:

— Amanhã, reunirei o conselho para firmar decisões. Não se inquiete, Ivarr... Se existe um homem capaz de tocar a consciência do William, é o Throst! A sua viagem é uma temeridade... Mas pode salvar o Tratado!

A Senhora Doralia aproximou-se, trazendo Oriana pela mão. Assim que me viu, a pequena delirou de alegria. Saltou-me para o colo e lambuzou-me de beijos, com uma ânsia que só a saudade confere. Thorson tentou trepar-me pelas pernas, para alcançar a amiga, e tivemos de impedi-lo de sufocá-la com o seu entusiasmo. Entretanto, a alcatéia do rei-lobo começou a dispersar-se. Se bem os conhecia, deviam estar tão ansiosos quanto eu por um banho quente e roupas lavadas, antes de desfrutarem do faustoso jantar prometido pelo rei.

— Princesa Thora... — O apelo de Galinn quase a fez tropeçar. — Posso dar-lhe uma palavra?

Ivarr voltou-se bruscamente, como que para impedir a loba prateada de responder. Contudo, era tarde! Ela já ia ao encontro do príncipe da Gente Bela, desejosa de conhecer a sua intenção.

Chegada ao quarto, solicitei que me preparassem um banho e escolhi um vestido bonito para trajar. Após vários dias passados num barco, sem a menor privacidade ou conforto, necessitava de sentir-me arrumada. Quando a tina ficou cheia, mandei chamar por Ivarr. Seria bom abraçá-lo, no aconchego da água morna e perfumada. Porém, a criada voltou pouco depois, com os olhos postos no chão e o rosto corado. O senhor mandara dizer que se lavaria mais tarde... Pelo seu constrangimento, adivinhei que Ivarr a repreendera por tê-lo incomodado, no que quer que fosse que o atrasava. Mastiguei a frustração e dispensei a criada. Se o meu marido não queria se banhar comigo, pior para ele!

As pétalas das flores de Verão flutuavam ao meu redor, num festival de cores alegres. Fechei os olhos e respirei fundo, tentando descontrair-me. Planejava contar a Ivarr que as minhas regras estavam atrasadas e que, provavelmente, esperávamos um filho. Contudo, ele teimava em fazer do nosso casamento a sua última prioridade. Estaria a relatar ao rei os pormenores da viagem... ou a espiar a conversa do príncipe Galinn com a loba prateada?

Sacudi a cabeça e mergulhei dentro da água. Quando criança, costumava competir com Thora, para ver quem conseguia suster a respiração por mais tempo. Ela ganhava, a não ser que eu recorresse à magia. Hoje, como Guardiã da Lágrima do Sol, podia reter o fôlego por longos períodos, sem me sentir indisposta. Teria sido assim que Edwin sobrevivera ao afogamento? O meu espírito demorara tanto tempo a conformar-se com o desfecho da batalha da Ilha do Fogo, que ainda não assimilara as implicações do seu regresso. O desejo de falar-lhe, de esclarecer o que se passara nos últimos anos, misturava-se com o medo de descobrir que o homem que eu tanto amara morrera de verdade, e que este que surgia, esquivo e rancoroso, esfomeado por vingança, era um estranho, cuja essência, supostamente ligada à minha desde a concepção, eu nem sequer reconhecia.

Apesar de Steinarr ter determinado que a noite celebraria o nosso regresso, e que a política ficaria para a reunião do dia seguinte, já muito se falara acerca da malograda missão, que impusera aos McGraw a perda da totalidade das pedras mágicas. Indignada, surpreendi Nereior, o mais velho dos conselheiros do rei, a ciciar:

— Isto é uma vergonha! Os guerreiros do meu tempo teriam fincado os pés naquele maldito porto e lutado até à última gota de sangue, pela honra e pela vingança! Jamais permitiríamos que um cão do Império gargalhasse na nossa cara! Aquele Stefan McGraw é um fraco! Ao invés de vingar o irmão, voltou para casa a choramingar. E que valente se revela o Líder Supremo! Onde já se viu? Pretender negociar com o inimigo, em lugar de esmagá-lo...

— Nereior! — A voz poderosa de Steinarr susteve o fôlego dos homens, em redor da mesa. — O Sol derreterá todas as geleiras do Norte, antes de eu admitir que o Líder Supremo seja desrespeitado e as suas decisões questionadas! O jarl Throst responde diante do rei Viking e de mais ninguém. E, que eu saiba, ainda sou o rei Viking!

— Senhor... — engasgou-se o velho fanfarrão. — A minha intenção...

— Eu sei perfeitamente qual é a tua intenção! — tornou o soberano, sem permitir que o outro terminasse. — O rei Steinarr do povo Viking não volta as costas à guerra, quando o seu povo e as suas terras são ameaçadas ou a sua soberania é desafiada. Porém, o tempo em que a espada governava sobre a palavra terminou, e é bom que se habitue a isso! O Tratado celebrado com o Império e a Grande Ilha abriu-nos as rotas de comércio, mantém as nossas famílias unidas e põe comida com fartura nas nossas mesas... A comida que tu estás a tragar, ancião! Os Vikings não se tornaram mais fracos... tornaram-se mais sábios e mais respeitados! Se o rei William rosnar na direção do Norte, ouvirá o nosso rugido! Porém, se as suspeitas do jarl Throst se confirmarem, não irei declarar guerra a um homem que está a ser apunhalado nas costas pelo próprio filho! Quanto a Lorde Stefan McGraw, que se levantem aqueles que duvidam da sua honra e coragem, pois não são bem-vindos à minha mesa. Muito há para discutir acerca deste assunto, senhores, mas não na noite em que eu festejo o regresso do meu filho! Algum de vós tem algo a acrescentar?

Durante um instante, um silêncio incômodo pairou no salão. Esperei que a proclamada valentia de Nereior o levasse a aceitar o desafio do rei e a abandonar a mesa. Porém, o bufão ferrou os dentes nas costelas do cabrito e continuou a comer, com tamanha descontração que qualquer um pensaria que a ira de Steinarr não lhe era dirigida. O soberano fez sinal para que os músicos continuassem a tocar. Logo, o incidente pareceu esquecido... No entanto, não o fora, pois nenhum homem se atreveu a mencionar as controversas questões.

A minha atenção voltou-se para Ivarr. Embora conversasse animadamente com o pai, o seu rosto denunciava uma exaustão severa. Eu tinha a certeza de que nem reparara em mim, quando chegara para jantar. Respirei fundo, esforçando-me por conter as lágrimas. Seria a desconfiança de estar grávida a causadora da vulnerabilidade que me subjugava?

— Edwina... — apelou Galinn, num tom preocupado. — Está indisposta?

O príncipe da Gente Bela sentava-se diante de mim, com um tabuleiro de legumes à frente, enfeitado com um esmero que revelava que as cozinheiras do rei já se tinham rendido aos seus encantos. Apesar da fartura que nos era oferecida, não me apetecia comer. Sentia a cabeça a latejar. Se, ao menos, pudesse deixar o castelo para trás; subir à Montanha Sagrada e ser apenas Guardiã da Lágrima do Sol, sem as obrigações de uma princesa, sem as angústias de uma mulher...

— Só estou um pouco cansada — forcei-me a responder.

— A Thora contou-lhe que partirei de manhã?

Fixei-o com sincero pesar, enquanto replicava:

— Não... Não tivemos oportunidade de conversar.

Galinn mastigou devagar, e só depois continuou:

— Convidei-a a vir comigo... Ela é, sem dúvida, uma excelente guerreira, mas a magia que vive no seu sangue está pouco desenvolvida. Eu poderia ensiná-la a combinar a destreza das armas, com o poder da Arte. E, talvez... tornar-me mais do que um simples mestre!

A sua voz carregava tamanho desalento, que o interrompi, ansiosa:

— A Thora declinou o teu contive?

— A loba prateada declinou o meu contive — corrigiu o príncipe, com um sorriso amargo. — A sua lealdade para com o rei-lobo vai além da compreensão. Disse-me que morreria por ele, com um sorriso nos lábios! O meu receio é que isso venha realmente a acontecer. Temos dias de tempestade pela frente, Edwina... E eu não sei se a tua irmã está preparada para enfrentá-los!

Engoli em seco, tentando não me assustar com o prenúncio de Galinn, e concentrei-me na dor que toldava o brilho do seu olhar estrelado.

— Disse-lhe... que a estima?

— Não. Só iria assustá-la e pôr em perigo a confiança que deposita em mim. Eu não sou um predador, Edwina! Na verdade, sou até bastante reservado com as mulheres. Neste momento, a Thora não está disponível para ouvir um estranho falar de amor. E eu já excedi, em muito, o tempo que podia permanecer ao vosso lado. Aguarda-me a nobre missão de educar o meu sobrinho. E a rainha Lyria não me perdoará, se falhar!

Havia uma urgência na voz de Galinn, que revelava o quanto a ajuda prestada ao rei Steinarr, durante a nossa ausência, interferira com as ordens que recebera da irmã. Lyria era uma mulher bondosa, justa... mas dirigia o seu reino com um rigor severo que a levara a desposar um homem que não amava para gerar um herdeiro. Há muito que o Povo da Terra se recuperara da guerra contra Aesa, e a proteção do exército Viking ao seu território tornara-se desnecessária. Por isso, eu pouco mais sabia acerca do filho da rainha, do que o seu nome.

— Fale-me de Lysander — pedi-lhe. — Já deve ser um belo rapaz!

— Belo e forte! — asseverou Galinn, orgulhoso. — Herdou os olhos dos homens da minha família; os meus olhos! Os seus cabelos são como os de Lyria, negros como a mais profunda das noites, mas cheios de reflexos de prata. As feições são as do seu pai, nobres e determinadas... Um dia, será melhor guerreiro do que eu!

Sorri, impressionada. Eu nunca vira o príncipe da Gente Bela combater, mas a sua essência denunciava grande poder. O seu aspecto inofensivo era, decerto, um trunfo no campo de batalha. Há muito que eu aprendera a não subestimar um adversário aparentemente mais fraco. Aqueles que tinham cometido esse erro em relação a Thora estavam mortos! A única coisa que me deixou intrigada na sua discrição foi a referência ao pai de Lysander. Era discutível que Cyrus tivesse uma expressão nobre e determinada. Severa e afetada, talvez! De qualquer forma, ainda que para treinar o sobrinho, custava-me ver Galinn partir com o coração destroçado.

— Lamento que a Thora tenha rejeitado a tua proposta — afirmei, com sinceridade. — Acredite que não lhe é indiferente! No entanto, os laços que a unem a Ivarr são tão complicados, que até eu já desisti de tentar compreendê-los!

Galinn fixou a minha irmã e surpreendeu-a a observar-nos. Embaraçada, Thora desviou o rosto corado para a malga praticamente intocada. Também ela parecia não ter apetite. Nesse instante, Steinarr tornou a exigir a atenção dos presentes. Levantou-se, com o corno de beber em punho, e premiou o irmão da rainha Lyria com um discurso elogioso, que foi brindado com cerveja e aplaudido com veemência. Ivarr não o desfeiteou e Galinn apreciou o seu empenho, dirigindo-lhe um cumprimento. No fim, agraciou-nos com a música da sua flauta.

Fechei os olhos e permiti-me levitar. A magia de Galinn sarava os nossos espíritos, através da melodia encantada. Enquanto durou, os Vikings sustiveram o fôlego, temendo perturbar a harmonia, comovidos e extasiados. Quando o príncipe terminou, o mais duro dos guerreiros tinha os olhos úmidos. Seguiu-se um instante de silêncio, em que homens e mulheres se agarravam à recordação do som, atordoados de prazer. Depois, alguém se atreveu a bater palmas. Em menos de nada, a maravilhosa Arte de Galinn era louvada com ardor.

Outras flautas começaram a tocar e os guerreiros dirigiram-se às damas, tentando a sorte numa dança. O meu coração bateu com mais força, ao ver Galinn abordar Thora. Por trás deles, Ivarr deteve-se a meio do que estava a dizer, forçando o pai a seguir o seu olhar. O rei Steinarr franziu o cenho e coçou a barba. Tornou a encarar o filho, mas este esquecera-se da sua existência; a visão da sua loba a ser desafiada pelo rival ocupava-lhe todos os recursos da mente.

Sem desconfiar do que se passava nas suas costas, Thora sorriu e condescendeu. Galinn deu-lhe a mão e levou-a para o centro do baile. Trocaram um olhar repleto de significado e uniram-se aos outros pares, numa dança alegre, que pouco combinava com os seus pensamentos. Quem aparentava estar se divertindo bastante era Freya, que rodopiava nos braços de Ketill. A campanha forçara-os a conviver e aprofundara a sua amizade. A minha irmã ainda corava quando ele lhe dirigia um galanteio, mas já não o repelia.

A escrava do Sul tentava recuperar as atenções de Bryan, mas ele afogava a sua mágoa num pote de cerveja. Ragnar tomou a rapariga nos braços e o meu primo nem se manifestou. A sua mente estava prisioneira da recordação da jovem feiticeira de cabelos cor de sol e olhar violeta. Nada perturbava mais um homem, do que a cobiça de algo que não podia ter!

O rei-lobo confirmava-o; não se movia, sequer piscava os olhos, como se o tempo tivesse parado no instante em que Thora aceitara dançar com Galinn. Na agitação do bailado, a loba prateada e o príncipe da Gente Bela trocavam sorrisos. A música terminou. Os pares aplaudiram. Nova música começou. Sem largar a mão de Thora, Galinn acompanhou-a até o seu senhor... Ivarr mal respirava, tão tenso e rubro que parecia prestes a explodir. O seu olhar revelava um temor instintivo e espantoso. Julgaria que os dois pretendiam anunciar-lhe uma paixão arrebatada?

Diante do rei Viking e do seu herdeiro, o príncipe do Povo da Terra beijou a mão de Thora... antes de entregá-la a Ivarr. Com uma lentidão que revelava o seu enleio, o rei-lobo segurou a mão da loba prateada e fixou-lhe o olhar. Ela parou de sorrir e voltou o rosto para o chão. Depois disto, Galinn inclinou-se em reverência e abandonou o salão.

Ivarr sustinha a mão de Thora, como se não soubesse o que fazer. Steinarr interpôs-se entre os dois, rodeando-lhes os ombros com os braços e gargalhando da sua própria piada. Sem se aperceber da tensão que flutuava no ar, Ragnar solicitou uma dança à companheira de armas. Thora seguiu-o, visivelmente aliviada. Steinarr murmurou algo ao ouvido do filho e este despertou para a minha existência. Cerrei os dentes; a raiva fervendo no sangue, a cada passo que Ivarr arrastava na minha direção. Levantei-me e empinei o nariz, altiva e gélida. Ao interpelar-me, o meu marido forçou um sorriso tão débil, quanto a sua vontade de estar comigo.

— Quer dançar, Edwina?

— Estou cansada — respondi asperamente. — Vou me deitar. Com licença...

Deixei o salão, sem me incomodar em verificar os estragos causados pela minha ira no orgulho do rei-lobo.

 

Num céu azul de fim de tarde, vi o Sol e vi a Lua, reinando em extremos opostos do firmamento. Eu era leveza. Eu era paz. Era conforto. Era vento... E murmurava:

«Serei tua até morrer.,.»

Outro vento soprava em sentido contrário. Enredava-se na minha essência e sussurrava:

«Voltaremos a nos encontrar...»

No céu, o manto da noite encobria o Sol e as nuvens ocultavam a Lua. Uma nova canção alegrava o ar, mas provinha das vozes dos Homens, que se misturavam com o compasso de palmas e tambores. Num lugar incerto, uma fogueira dava vida a um acampamento. Mulheres giravam em torno do fogo, agitando as saias coloridas. Duas crianças brincavam com cães tão pequenos que mais pareciam ratos. Os homens regavam as gargantas com uma bebida forte, que os fazia arrotar e gargalhar alto... Só um não se juntava à festa. Sentado no chão, à entrada de uma tenda, usava um ramo para desenhar na terra solta as figuras do Sol e da Lua.

Inspirei um fôlego de coragem e encarei o meu primo Edwin. O seu rosto estava manchado pelas lágrimas. Limpou-as apressadamente, ao verificar que uma jovem corria na sua direção. A jovem tinha pele escura e cabelos negros, lisos e brilhantes como as crinas de um cavalo de raça. O seus olhos pretos e profundos revelavam uma alegria fulgente. Parecia mais nova do que as minhas irmãs. Era bonita e audaz. Lançou-se de joelhos diante dele, arruinando os desenhos sem sequer se aperceber. O meu primo não se zangou. Pelo contrário, sorriu e acariciou-lhe o rosto corado, terminando com um piropo no nariz. Foi ela quem falou primeiro:

— Estou muito feliz por ter regressado!

Edwin respirou fundo e respondeu:

— É bom estar de volta!

Engoli em seco, ao vê-la inclinar-se ao encontro dos seus lábios. Edwin desviou-se a tempo de evitar o contato, mas depositou-lhe um beijo na face, mantendo o sorriso, como se a ousadia da jovem lhe acalentasse o coração. Ela sorriu-lhe de volta, com uma expressão que revelava que não pretendia desistir de conquistar os seus favores. Agarrou-o pelo braço e desafiou:

— Vem... Vamos dançar!

Edwin deixou-se arrastar para o bailado. Aceitou um corno de beber e emborcou-o de um só trago. Depois, pegou no jarro e despejou-o na boca, encharcando as vestes coloridas e arrancando gargalhadas àqueles que o rodeavam. A jovem estouvada lançou-lhe os braços ao pescoço. E, desta vez, ele não fugiu do seu beijo...

 

Sentei-me na cama; olhos escancarados para a realidade do meu quarto, corpo trêmulo, respiração ofegante. Depois de tantos anos adormecida, a minha percepção voltava a reconhecer a essência de Edwin, e a conduzir-me ao seu encontro... Levei as mãos ao rosto e senti-o molhado. Um soluço escapou-me dos lábios e dei por mim a chorar compulsivamente. O meu coração latejava de dor... Pelo visto, enganara-me nas razões que tinham levado o Rei da Lua a exigir que eu me mantivesse à distância! Ele encontrara outra vida... Outro amor!

Deslizei de regresso à almofada e enrijeci, alarmada. As minhas roupas colavam-se ao corpo, úmidas... À medida que a influência da Visão se desvanecia, apercebi-me de um desconforto familiar. A vontade da natureza era soberana! Apesar de atrasadas, as minhas regras não tinham falhado. As expectativas que acalentara nos últimos dias haviam sido vãs. O trono Viking continuaria a aguardar a chegada do seu almejado herdeiro.

Tapei a cabeça com a manta, fugindo da luz da lareira. A música e as gargalhadas dos homens ainda ecoavam pelo castelo, ribombavam-me na cabeça, destroçavam-me os nervos. Senti-me terrivelmente infeliz... encarcerada e sufocada; terrivelmente só! A minha vida era uma permanente queda no abismo. Por mais que tentasse agarrar-me a esperanças e içar-me até solo firme, tudo acabava por ruir. Como podia concentrar-me na missão de Guardiã da Lágrima do Sol, quando a minha existência como princesa era uma verdadeira catástrofe?

 

Foi com pesar que vi Galinn e os seus guerreiros desaparecerem para lá dos portões do castelo, rumo à Floresta de Lyria. Não sabia explicar porquê, mas a sua presença inspirava-me tranqüilidade. Talvez fosse a força do seu olhar estrelado, ou a firmeza do seu caráter... Ou a magia da sua música! Pelo menos, Ivarr parecia ter superado a sua aversão instintiva. Esteve até presente na despedida, quando o rei Steinarr dirigiu algumas palavras solenes de agradecimento ao príncipe do Povo da Terra e à sua rainha, pela colaboração prestada ao povo Viking.

Depois, tal como ficara assentado no dia anterior, o soberano fechou-se na sala de reuniões com o seu herdeiro, os conselheiros e alguns homens da sua confiança. Como eu já esperava, a opinião da Guardiã da Lágrima do Sol foi ignorada. Furiosa e magoada, recolhi-me no quarto e dei ordens para não ser incomodada. Steinarr enganava-se, se julgava que as paredes de pedra do seu castelo me manteriam afastada das decisões que regiam os destinos do meu povo!

Sentei-me na cama e acariciei o cristal mágico que o meu bisavô me deixara como herança. A missão de um Guardião era observar, refletir e aconselhar. Se houvesse necessidade de interferir, a Arte Luminosa estaria ao serviço dos Homens e contra os mestres da Arte Obscura. Porém, apesar de eu já ter provado o meu valor, Steinarr insistia em tratar-me como uma jóia preciosa e intocável, que devia ser poupada a todo o custo das atribulações que ameaçavam o País dos Vikings e a Grande Ilha. Não compreenderia que, ao desprezar o meu parecer, só dificultava a resolução dos problemas?

Deixei a mente fluir até o interior da sala de reuniões. O rei Steinarr sentava-se no seu cadeirão e escutava os pormenores da campanha, relatados por Ivarr com extrema minúcia. Fiquei ainda mais indignada, ao verificar que o rei-lobo se fizera acompanhar por Bryan, que, aparentemente, representava a família McGraw, vítima do roubo das pedras mágicas. Por que raio é que o meu primo se encontrava entre aqueles que tomavam decisões e eu não?

A reunião alongou-se pela tarde. Depois de ouvir muitas opiniões, surpreendi-me quando o soberano decidiu levar alguns navios da sua frota ao encontro do jarl Throst, para confirmar a lealdade do rei William ao Tratado. Na sua ausência, todas as resoluções seriam tomadas por Ivarr. No que se referia às pedras mágicas, Steinarr também achava que estavam perdidas. Para resgatá-las, seria necessário desafiar Esteban... E, mais facilmente se provaria a traição do príncipe John do que se desmascararia o feiticeiro, aos olhos crédulos do soberano do Império! Por fim, o rei fez questão de elogiar a decisão de Lorde Stefan, que comprometera o orgulho na esperança de salvar o irmão. Por vezes, viver para enfrentar um novo desafio requeria mais coragem, do que ceder a vida inutilmente. Um dia, Berchan McGraw seria vingado... E os Vikings estariam ao lado dos Aliados, contra os conspiradores que ameaçavam a estabilidade e a prosperidade do nosso reino.

Após instruir os seus generais, para que estes mobilizassem os guerreiros e preparassem os navios para a nova campanha, o rei Steinarr deu por encerrada a reunião, dispensando todos, à excepção do seu herdeiro. Ivarr aguardou que o último homem fechasse a porta, para indagar:

— O que se passa, meu pai? Problemas com os Vândalos?

Steinarr hesitou, agitando-se sobre o majestoso cadeirão, como se o assunto a tratar fosse motivo de contrariedade. Acabou por endurecer a expressão e responder:

— Não. Pelo contrário! A Floresta Sombria continua isolada e chegam até nós rumores de quezílias internas. A estratégia do cerco começa a surtir efeitos. Os Vândalos nunca estiveram em tão grande desvantagem!

— Folgo em sabê-lo! Então, o que é que te preocupa?

De novo, Steinarr rangeu os dentes; os nós dos dedos tornaram-se brancos sobre os braços do cadeirão. O seu tom de voz manteve-se baixo, mas implacável:

— Antes de partir, tivemos uma conversa que não foi agradável. Como teu pai, custa-me insistir. Porém, como teu rei, tenho o dever de perguntar... Há novas de um herdeiro para o trono Viking?

O meu coração disparou a galope. Tive de apelar a todo o controle, para que a percepção aguçada de Ivarr não surpreendesse a minha essência. Felizmente, ele ficou tão indignado, que nem notou a oscilação de energia.

— Esta intromissão constante na minha intimidade desgosta-me, pai! — replicou. — Estou farto de ver a Edwina ser tratada como uma parideira. Ela merece mais deferência da tua parte! Por que não a convocou para esta reunião, na qualidade de Guardiã da Lágrima do Sol? Aqueles que a menosprezam jamais a respeitarão, se não forem confrontados com o seu poder!

A objeção de Ivarr deixou-me estupefata. Jamais imaginara que a desconsideração que os conselheiros do rei me votavam o incomodasse. Estremeci quando Steinarr revidou:

— Os que contestam a tua mulher não terão pudor de humilhá-la na primeira oportunidade! Queria que a chamasse para a reunião e a expusesse ao escárnio? Na primeira intervenção, questionariam o seu poder, perguntando como é que uma mulher que não consegue prover o reino de um herdeiro acredita ser capaz de determinar a sorte dos Vikings. Sabe perfeitamente que eu amo a Edwina como se fosse minha filha, Ivarr! Porém, a cada dia, torna-se mais evidente que as obrigações da Guardiã da Lágrima do Sol estão em conflito com os seus deveres de princesa! Como pai, o vosso infortúnio entristece-me... Todavia, como rei, não posso permitir que esta indefinição continue a arrastar-se! Eu já lutei muito por esta terra. Abri mão de coisas que me eram preciosas, para honrar o compromisso que assumi diante do nosso povo. E tu terá de fazer o mesmo, se pretende abraçar o meu legado!

— O que é que isso significa? — Ivarr engoliu em seco, alarmado.

— Significa que este trono já esperou demais por sangue novo! Um varão deve nascer rapidamente. Se a Edwina não o pode dar, toma uma segunda mulher...

— O quê? — cortou o príncipe, em choque.

— Ouviu bem! Escolhe uma jovem de origem nobre, entre o nosso povo ou dos Aliados, e assegure a tua descendência.

— Eu não acredito que esteja me exigindo tal coisa! — tartamudeou o filho. — A Edwina morreria de desgosto... de vergonha...

— Não subestime a tua esposa, Ivarr! — Steinarr ergueu-se e pousou-lhe as mãos sobre os ombros. — Ela há de compreender que existem sacrifícios que têm de ser feitos, para assegurar a estabilidade do reino! Além disso, como tua primeira mulher, não perderá o direito de sentar-se no trono e governar ao teu lado. É livre da obrigação de gerar um filho, que lhe causa tanta angústia, poderá dedicar-se inteiramente à Arte... Conseguirá impor-se como Guardiã da Lágrima do Sol!

Esperei que Ivarr refutasse veementemente a vontade do pai... Contudo, ele quedou-se. Não estava satisfeito... mas ponderava! Ponderava nesta perversidade!

— Talvez não seja necessário enveredar por um caminho tão tormentoso — respondeu devagar. — Acredito que a Edwina está grávida. As suas regras estão atrasadas...

— A tua mulher já concebeu três vezes! — atalhou Steinarr, inexorável. — Quem nos garante que, desta vez, o desfecho da sua gravidez será diferente?

Ivarr reteve o fôlego, antes de expulsá-lo com força. Ao falar, a voz refletia a tortura com que a sua mente se debatia:

— Os deuses hão de nos ajudar, meu pai! Não imporei tamanha humilhação à Edwina... Pelo menos, enquanto existir uma esperança!

 

A noite encontrou-me no quarto, sufocada de ressentimento e frustração, incapaz de digerir a intolerância dos perversos conselheiros, os desígnios de Steinarr... e a passividade de Ivarr! Depois de tudo o que ouvira, a minha revolta teimava em cair sobre o meu marido. Eu sabia que os conselheiros do rei não gostavam de mim, principalmente um dos seus irmãos, pai de Otkatla, que ambicionava, no futuro, ver um neto sentado no trono Viking. Também entendia as razões de Steinarr... e uma delas era impedir que o dito irmão conseguisse o seu intento! Porém, era impossível desculpar a inércia de Ivarr. Ele deveria ter enfrentado o pai e recusado a calúnia com firmeza! No entanto, limitara-se a adiar a questão... a deixar uma porta aberta para uma afronta intolerável à minha dignidade!

Não desci para jantar. Freya veio verificar se eu estava indisposta, e tive de controlar-me para não descarregar o azedume sobre a sua cabeça. Felizmente, a minha irmã conhecia-me bastante bem. Sem insistir, desejou-me boa noite e partiu.

Preparei-me para dormir... Ou para fingir que dormia! Não queria encarar Ivarr. Uma palavra sua bastaria para fazer-me explodir! Com um pouco de sorte, os compromissos acabariam por retê-lo junto ao pai. Talvez a manhã me trouxesse uma luz, que me permitisse encarar o futuro com maior serenidade. Uma visita à Montanha Sagrada me devolveria a paz de espírito... Sim! Mal o Sol nascesse, visitaria a Pedra do Tempo e suplicaria por uma orientação. Desta vez, não aceitaria o seu silêncio, quando a questionasse acerca da minha desventura. Aliás, deixaria bem claro que não voltaria para casa sem resposta!

Satisfeita com esta resolução, cobri-me com a manta e fechei os olhos. Nesse instante, Ivarr chegou.

O meu coração saltou no peito; o corpo ficou mais rígido do que uma tábua. Forcei-me a manter a respiração compassada. Se me julgasse adormecida, Ivarr não me incomodaria... Ouvi-o deter-se. Talvez se arrependesse de buscar a cama tão cedo e descesse para beber um corno de cerveja com os companheiros... Cerrei os dentes, ao perceber que descalçava as botas. Definitivamente, a sorte abandonara-me! As penas do colchão cederam sob o seu peso... E uma mão forte pousou-me na cintura.

— Edwina... Querida... Está acordada?

Raios! Era só o que me faltava! Sacudi-o, resmungando como se ensonada:

— Deixe-me dormir...

Sobressaltei-me quando senti os seus lábios no pescoço. A mão que eu afastara regressou com uma determinação férrea, reclamando o meu calor, até fechar-se sobre um seio. Incapaz de sustentar a farsa, voltei-me para declarar-lhe a minha indignação. E, de repente, os seus lábios sufocavam-me... Comecei a debater-me; a razão evaporando-se sob as chamas da ira, como se toda a fúria que engolira durante o dia se libertasse num vômito de rancor:

— Solte-me... Solte-me!

Após receber alguns socos e pontapés, o príncipe convenceu-se de que algo estava errado. Afastou-se; o rosto revelando perplexidade. Afinal, há algum tempo que o seu ardor não era recusado. Tentou questionar-me, mas eu continuei a gritar, enlouquecida pela fúria:

— As minhas regras apareceram, Ivarr!

— O quê? — Uma única expressão que denunciava espanto, incredulidade... e dor.

— Foi o que ouviu! Eu não estou grávida! Agora, pode ir ter com o teu pai e dizer-lhe que aceita casar-se com a primeira rameira que ele te impuser! Aliás, por mim, pode casar-te com um prostíbulo inteiro! Dá ao rei Steinarr o que ele tanto almeja: uma casa cheia de bastardos!

Ivarr começou a recuar.

— Andou escutando atrás das portas, Edwina?

Sentei-me com um impulso furibundo, rugindo:

— Eu sou a Guardiã da Lágrima do Sol! Não preciso de escutar atrás das portas, para saber que andam conspirando pelas minhas costas!

— Se é assim, sabe que eu não concordei...

— Também não recusou!

Ivarr saltou da cama, impaciente. Calçou as botas, enquanto mastigava:

— Eu não vou discutir contigo! Falaremos quando estiver mais calma.

— Não há nada para falar!

— Há, Edwina... Muito!

E com isto, saiu e bateu com a porta.

Caí sobre a cama e esmurrei-a, até perder as forças; guinchei, até faltar-me a voz... e desatei a chorar. Por fim, arrastei-me para o chão, arquejando. Estava sufocando! Precisava de ar... Precisava de ar...

Rastejei até às janelas e abri-as com a força da mente. Engatinhei pela pedra, até alcançar o parapeito da varanda. Icei-me a custo e descobri-me cega... O grito de Thora chegou-me aos ouvidos como um eco deturpado:

— Ivarr! Ivarr, o que foi...?

Os meus olhos mal distinguiam as chamas dos archotes, rasgando a bruma mística que me toldava a visão. Foi a mente que me revelou Thora. Deixava para trás a fonte, onde se sentara a contemplar a noite, para seguir o seu senhor. O rei-lobo corria para a cavalariça, sem se dignar a responder-lhe, possuído pelo fogo que a nossa conversa abrasara. Os rapazes encarregados de tomar conta dos cavalos foram surpreendidos pela sua entrada intempestiva. Quando a guerreira surgiu, apressaram-se a sair. Vi, com clareza, Ivarr a aprontar o cavalo para partir e Thora precipitando-se ao seu encontro.

— Espere...

— Deixe-me! — revidou ele, com maus modos. — Quero ficar sozinho!

— Onde pensa que vai, nesse estado? — objetou a minha irmã, ignorando a sua rispidez.

— Não tem nada a ver com isso!

— Eu sou responsável pela tua segurança. — tentou detê-lo, agarrando-o pelo braço. — Não vou permitir que...

O príncipe reagiu instintivamente. O rugido que se libertou da sua garganta arrepiou a noite; o olhar cristalino ofuscou o brilho da lanterna... e os braços empurraram Thora, com tamanha brusquidão, que, se ela não fosse dotada de uma excelente condição física, teria  se estatelado no chão. O embate fez com que saltasse para trás e suster-se com as pernas dobradas, apoiada numa mão. Porém, ao invés de gritar de revolta ante tamanha brutalidade, a guerreira rangeu os dentes... e lançou-se contra Ivarr.

Foi uma mulher que deixou o solo... mas foi uma loba que atingiu o objetivo; as presas escancaradas num desafio mortal, as garras esticadas como lâminas, o olhar flamejando de raiva. O rei-lobo foi derrubado e prostrado, mas não se deixou submeter. Por um instante, rolaram na terra, tentando obter o domínio: um lobo de pêlo cor de neve, exuberante de poder e majestade, e uma loba de pêlo cor de prata, igualmente magnífica. As bocarras repletas de dentes mortais laceravam o ar, buscando a carne do adversário... Um deles ia ficar seriamente ferido!

O lobo branco subjugou finalmente a loba prateada; as presas como adagas cravadas no seu pescoço. A fêmea ganiu e quedou-se, inerte. Na minha mente, a ilusão desfez-se e vi o corpo de Ivarr sobre o de Thora; as pernas aprisionando-a de forma a não poder surpreendê-lo com um dos seus célebres pontapés, que já tinham arruinado a masculinidade de muitos homens; as mãos prendendo-lhe os punhos sobre a cabeça; o rosto enterrado no seu pescoço. Quando começou a erguê-lo, tive a certeza de que a minha irmã estaria sangrando... Mas enganei-me! Os dois adversários enfrentaram-se com o olhar: verde contra verde; fogo contra fogo... E Ivarr rolou para o lado, libertando Thora do seu peso.

Ficaram deitados, sem se tocarem, lutando para domar a respiração. Ivarr foi o primeiro a falar; a voz recordando o lobo que habitava a sua essência:

— Perdi o controle... Desculpe!

Thora suspirou e fechou os olhos. Quando reagiu, a sua voz soou restabelecida:

— Discutiu com a Edwina?

Ivarr hesitou e ela não o apressou na resposta. Os anos de convívio haviam elevado o seu entendimento a um nível que eu jamais conseguiria igualar.

— Estou a ser confrontado com uma decisão que mudará as nossas vidas — confessou, por fim, abanando a cabeça. — A tua irmã não compreende... E eu estou dividido entre o coração e o dever, sem ninguém para desabafar ou a quem pedir conselhos.

— Pode desabafar comigo! — retorquiu a guerreira, com uma inocência genuína.

Ivarr fechou os olhos e sorriu tristemente.

— Não, Thora... — murmurou. — Desta vez não posso!

— E por que não busca a orientação da Pedra do Tempo? A Edwina consulta-a sempre que tem de tomar uma decisão importante. E eu também o fiz, antes de...

Calou-se tão abruptamente, que Ivarr se inclinou para encará-la, insistindo:

— Antes do quê?

— Não importa...

— Thora!

Ela suspirou e acabou por condescender; as faces assumindo um tom escarlate:

— Foi a Pedra do Tempo que me disse que eu devia ficar contigo, ao invés de seguir o Eric!

Isto era uma novidade! Ivarr ergueu-se sobre um braço e buscou-lhe o olhar, pedindo:

— Conte-me o que viu.

Thora corou ainda mais e fugiu do verde cristalino, prosseguindo num tom sumido:

— Vi uma grande batalha. Nós dois combatíamos na frente... E vencíamos! O nosso povo festejava... O Eric também estava lá. Ainda era um de nós... Mas, ao mesmo tempo, já não era! Não consigo explicar...

— Eu entendo, Thora.

A minha irmã surpreendeu-se com a sua convicção e acabou por fitá-lo. O silêncio tornou-se tão profundo, que nem os cavalos se atreviam a resfolegar. Desta vez, foi Ivarr quem desviou o rosto, engolindo em seco antes de responder:

— Eu gostaria de consultar a Pedra do Tempo... Porém, infelizmente, tal graça encontra-se fora do meu alcance. A minha magia provém da essência do Espírito da Luz... E a Montanha Sagrada só revela os seus caminhos a quem possui sangue feiticeiro.

— Não é bem assim! — contrapôs ela. — O Eric e o Bryan nunca viram os caminhos... E deveriam vê-los, uma vez que descendem de Seres Superiores como eu.

— E sabe quais são as leis que regem a vontade da Montanha? — inquiriu Ivarr, interessado.

— Não — retorquiu a guerreira, pensativa. — Mas deve existir uma maneira de contrariar essa magia! Ainda que tu não vejas a trilha, ela está lá! Eu consigo percorrê-la... — Levantou-se de um salto.

— Tenho uma idéia! Vem comigo...

Já corria na direção de Bravo, quando Ivarr a deteve:

— Espere! O que quer que seja que tem em mente, não é correto, Thora! E... E se eu não for digno de pisar o solo sagrado?

— Nesse caso, a Montanha há de nos castigar aos dois! — respondeu ela, com um entusiasmo infantil, ansiosa por dar vida ao seu plano. — Não quer questionar a Pedra do Tempo?

— É claro que sim...

— Então, por que não arrisca? A Montanha não te negará a sua graça! Tu és o rei-lobo...

— E tu és louca! — cortou Ivarr, com uma gargalhada bem-disposta, como se esquecido do motivo que o instigara a cavalgar às cegas, através da noite. — Algo me diz que hei de me arrepender...

— Está com medo?

O príncipe fixou a sua guerreira e respirou fundo, exclamando num tom solene:

— Não! Vamos conquistar a Montanha Sagrada!

Os cascos dos cavalos de Ivarr e Thora ainda ecoavam nas pedras do pátio, quando a Visão me libertou. Pisquei os olhos, sem fôlego, tentando encontrar um sentido no que acabara de acontecer. O ar estralava, repleto de energia. O vento tornava-se quente, úmido sobre a pele. Para lá do castelo Viking, nuvens pesadas formavam-se sobre o mar e acometiam em direção à costa, engolindo as estrelas à sua passagem. Fixei-as, estupefata. O tempo alterava-se drasticamente... E a causa dessa mudança não era natural!

Um relâmpago incendiou o negrume da noite e uma rajada de vento açoitou-me o corpo, obrigando-me a cambalear. No pátio, os sentinelas trocavam exclamações de pasmo, com os olhos postos no céu. O estouro do trovão fez estremecer a Terra; um último aviso aos Homens, para que buscassem abrigo. As forças divinas despertavam... E toda a sua atenção se voltava para o rei-lobo e a loba prateada.

Precipitei-me para o interior do quarto, fechei as janelas e os cortinas. Depois, corri para a cama e sentei-me, sustendo a Lágrima do Sol diante dos olhos. Algo de muito grave estava prestes a concretizar-se... E fora a minha discussão que o desencadeara! Eu não podia ceder ao desânimo que me feria o peito. Tinha que deter Ivarr e Thora, antes que o seu ímpeto tresloucado ofendesse a magia da Montanha Sagrada, e esta os castigasse severa e impiedosamente.

A luz que brotava do cristal preencheu o quarto; raios de fogo e prata misturavam-se com as cores do arco-íris, num redemoinho de cintilação que cegava os olhos e deslumbrava a consciência. Lá fora, a noite tornara-se tenebrosa... Porém, a magia que brotava do centro da Terra iluminava a trilha por onde Ivarr e Thora seguiam, sem que eles próprios se apercebessem. Os trovões rugiam furiosamente... Contudo, o avanço dos guerreiros era acompanhado por cânticos celestiais. A chuva miúda transformou-se num aguaceiro, que os encharcou até os ossos. Ainda assim, o rei-lobo e a loba prateada incitavam os cavalos a galopar; o sangue queimando como lava, acerando-lhes a determinação.

Uma passagem surgiu como por encanto, rasgando a floresta cerrada... No mesmo instante, Thora deteve o seu garanhão. Ivarr parou mais à frente, olhando em redor com uma expressão frustrada.

— Chegamos, não é verdade? — arquejou, ansioso. — Mas eu nada vejo, além de árvores e arbustos espinhosos... É inútil, Thora!

Ela fez-lhe sinal para que a seguisse, replicando:

— É a tua mente que deturpa a realidade. Deve esforçar-se para ver além dos sentidos! Acompanhe-me e ignore o que os olhos te revelam. Mesmo que um precipício se abra aos teus pés, não recue, pois não passará de uma ilusão; um artifício da magia para te enganar. Confie em mim! Não serei filha de Throst e Catelyn, se esta noite não estiver diante da Pedra do Tempo!

A sua expressão libertou o sorriso de Ivarr, que sacudiu a cabeça, contrapondo:

— Tu serás sempre filha de Throst e Catelyn, mesmo que eu jamais suba à Montanha! Em ti vive a coragem e a força do teu pai, e a magia e o esplendor da tua mãe. Se a morte me aguardar como castigo por esta transgressão, quero que saiba que foi uma honra fazer parte da tua vida.

Ela virou o rosto, para esconder o rubor que lhe incendiava as faces, e incitou Bravo a andar.

— Deixe de tolices e venha! — retrucou, com dobrada exigência.

O sorriso de Ivarr alargou-se ainda mais. Seguiu os passos de Thora, com uma resolução férrea. Porém, ao pisarem a trilha, as imagens que a mente lhe impunha fizeram-no hesitar... E essa indecisão foi fatal! De imediato, uma miríade de troncos, trepadeiras e ramos espinhosos se cerraram em torno do seu corpo, impelindo-o a debater-se para se libertar. Perplexa, a loba prateada viu-o lutar contra uma força sobrenatural, que lhe rasgava a túnica em pedaços. Instintivamente, obrigou Bravo a recuar e saltou sobre o rei-lobo, empurrando-o para longe dos atacantes invisíveis... para fora do caminho mágico.

Caíram desamparados sobre o solo alagado. As montarias empinaram-se, assustadas, e afastaram-se para uma distância segura. Thora foi a primeira a se recuperar e arrastou-se até Ivarr, sob a cascata de água morna que tombava do céu.

— Está bem?

O príncipe sentou-se e levou as mãos à testa, atordoado.

— É inútil! Chega de tentar a sorte, Thora! Jamais me perdoaria se te ocorresse algum mal.

— Está sangrando! — constatou ela, ao ver os retalhos da sua túnica manchados de vermelho. — Deixe-me ver.

— São só arranhões provocados pelos espinheiros — resistiu o rei-lobo, tentando erguer-se.

— Não existem espinheiros aqui, Ivarr! — objetou a jovem, impondo-se para conseguir que ele se aquietasse, enquanto lhe observava os ferimentos. — Tu te deixaste influenciar pela visão. Talvez, se eu te vendar...

— Tu queres vendar-me? — atalhou ele, incrédulo.

— É uma forma de iludir a tua percepção. Se não tiver consciência do que te rodeia, não lutará contra a magia da Montanha... E ela não poderá magoar-te! Quando estiver diante da Pedra do Tempo, experimentaremos retirar a venda...

— E se todos os pesadelos deste mundo se abaterem sobre a minha cabeça, no instante em que tornar a ver? — contrapôs Ivarr, franzindo o cenho. Retraiu-se instintivamente, quando Thora lhe tocou no peito. A minha irmã quedou-se, abismada ante os cortes profundos na sua carne. A Montanha não se apiedara do invasor! O rei-lobo agarrou-lhe as mãos, reafirmando a convicção: — Não, Thora! A Montanha acabou de provar-me que não sou bem-vindo. Não irei desafiar a sua vontade e arriscar-me a...

Deteve-se bruscamente; a expressão revelando um assombro colossal. Assustada, Thora levantou-se de um salto e desembainhou a espada, esperando deparar-se com uma criatura ameaçadora. No entanto, à parte a chuva que fustigava a floresta, nada se movia ao seu redor ou perturbara o clarão proveniente do caminho mágico.

— A trilha... — balbuciou ele, antes que a minha irmã o questionasse. — Eu vi a trilha! Por breves instantes... Estava ali! — Apontou para o local exato onde se encontrava a vereda que conduzia ao topo da Montanha. — Desapareceu, quando se afastou... — Calou-se, fixando-a com estranheza, antes de repetir num tom baixo e trêmulo: — Quanto se afastou...

A jovem encolheu os ombros, confusa.

— O que será que aconteceu?

Ivarr ergueu-se ao seu encontro, raciocinando em voz alta:

— Tu tocaste-me... — Estendeu a mão e aguardou que Thora correspondesse. Embora hesitante, ela aquiesceu... e, de imediato, o rei-lobo perdeu o fôlego.

— O que foi? — indagou a loba prateada. — Consegue ver a trilha?

Ivarr soltou-a. Engoliu em seco e tornou a buscar o contato, só que, desta vez, entrelaçou os dedos nos dela. Perturbada, a jovem murmurou o seu nome, num apelo. O olhar cristalino envolveu-a, enquanto afirmava:

— A trilha está diante de mim... Mas só quando nos tocamos!

— Não entendo...

— De alguma forma, o nosso elo alimenta a minha magia, fortalece-me a essência... permite-me ver além dos sentidos! Acho que poderei subir à Montanha, se tu me guiares.

— Então, vem! — A guerreira puxou-lhe pela mão qual criança ansiosa.

— Thora... — Ivarr deteve-a, prendendo-lhe o olhar. — Eu não sei se devemos!

— Não precisa de ajuda para tomar a tal decisão importante? — interrompeu ela, enfrentando-o sem piscar.

— Sim...

— Então, não faça a Pedra do Tempo esperar!

No instante em que o rei-lobo e a loba prateada pisaram terreno sagrado, o nevoeiro colorido veio recebê-los. Entrou-lhes pelo nariz, pela boca, pelos ouvidos... E bloqueou-me a Visão.

Quase gritei de frustração, quando a minha mente regressou ao corpo. Encontrei-me no quarto, de onde Ivarr partira há pouco, para uma aventura que, eu tinha a certeza, transformaria as nossas vidas de forma irreversível. Rangi os dentes e forcei o olhar através da Lágrima do Sol... mas só vi luz; um brilho incessante e mavioso, onde as cores bailavam numa harmonia serena. Sacudi o cristal, profundamente irritada. A Montanha Sagrada não podia recusar-me o conhecimento do que estava prestes a acontecer com o meu marido e a minha irmã!

— Eu sou a Guardiã da Lágrima do Sol! — vociferei, sentindo a magia incendiar-se no sangue. — E a minha casa não me guardará segredos!

O clarão extinguiu-se abruptamente... e o nevoeiro colorido deslizou diante dos meus olhos, em nuvens de vapor quente, que se dispersaram para revelar Ivarr e Thora, de mãos dadas, no cume da Montanha. A chuva não parara de cair, mas era incapaz de apagar as pequenas chamas que brotavam do solo, desenhando um padrão apenas compreensível ao olhar dos deuses. A Pedra do Tempo brilhava como se um mundo de estrelas pulsasse no seu interior, exercendo uma atração irresistível sobre os visitantes.

— Pelas barbas de Odin! — murmurou Ivarr, enlevado. — Se estiver sonhando, quero morrer no instante em que abrir os olhos, pois não poderei subsistir se esta maravilha não for real!

Thora parecia lutar para manter-se sóbria, enquanto a magia se apoderava da sua vontade. Só a custo conseguiu sussurrar:

— É real, Ivarr... E chama por ti...

— Não! — objetou ele, puxando-a ao seu encontro, e trespassando-a com um olhar selvagem e feroz, ardente e esfomeado; o olhar do Espírito da Luz. — Chama por nós... Porque, diante da Pedra do Tempo, a nossa essência é uma só! Sente a energia que nos atrai?

Thora deixou a testa tombar no seu peito. Teve de respirar fundo, antes de responder:

— Sim...

— Não receie. A magia não nos uniu por acaso! Nós estávamos destinados a viver este momento... Talvez desde o dia em que nascemos! Caminhará ao meu lado, Thora?

Ela ergueu o rosto e susteve o olhar em chamas. As lágrimas rolaram-lhe pelas faces, misturando-se com as gotas de chuva, ao declarar:

— Até o fim da minha vida!

Com uma exclamação deleitada, Ivarr levou as mãos de ambos ao encontro da Pedra do Tempo... E, no instante em a que tocaram, o solo estremeceu. Uma luz radiosa precipitou-se sobre eles, como se todos os relâmpagos que dominavam o céu se fundissem num só. As suas vozes rasgaram a noite num clamor extasiado. Quando o esplendor se dissipou, Ivarr e Thora jaziam abraçados; as testas unidas, os corpos aninhados na rocha pujante de vida e magia. Foi ele quem reagiu primeiro, acariciando-lhe o rosto. A jovem tremia sem controle e o seu coração ribombava na noite, ao arquejar, sem se atrever a encará-lo:

— Meu senhor...

— Não, Thora! — Ivarr buscou o olhar verde-floresta; a voz enrouquecida pelo ardor que o consumia. — Tu não és minha serva! É a mulher que eu amo... A companheira que eu desejo, como lobo... e como homem!

A minha irmã fechou os olhos e entreabriu os lábios, para libertar um suspiro... que foi assimilado pela boca ávida de Ivarr. Com um arrebatamento apaixonado, o rei-lobo esmagou-a contra o corpo, beijando-a como se pretendesse devorá-la; como se toda a sua vida se resumisse àquele contato. E a energia que se libertava do seu abraço era suficiente para secar o mar, para inundar um deserto, para sugar o fogo do Sol e reduzir a Terra a cinzas.

O clarão da Pedra do Tempo voltou a descer sobre eles e a consciência humana cedeu lugar à essência dos lobos. Num fôlego de agonia, vi o macho, branco e possante, e a fêmea, prateada e sedutora, envolverem-se numa dança de lascivo reconhecimento, até ser impossível dissociarem-se. Até se tornarem um só ser, esplêndido e magnânimo... Uma Entidade divina!

Os fenômenos dessa noite foram recordados com assombro, ao longo de gerações. Tudo começara com uma mudança brusca no comportamento do vento. Depois, nuvens densas como rochas tinham marchado sobre o País dos Vikings, carregando no cerne uma tempestade colossal. Em seguida, o fogo passeara pelo céu, rugindo num fragor enfurecido. A chuva caíra com tal veemência que alguns aldeões haviam temido morrer afogados. Por fim, uma explosão de luz varrera a terra e o mar, transformando a noite em dia e pondo fim à tormenta. Quando o clarão se desvanecera, o ar ficara repleto de cintilações azuis, verdes e alaranjadas, que se moviam entre o céu e as ondas, quais espectros dançarinos, que maravilhavam o olhar dos Homens, ao mesmo tempo que lhes aterrorizavam os espíritos. Só os primeiros raios de sol tinham dissipado a deslumbrante energia mística... Os mesmos raios de sol que me surpreenderam diante da morada da Velha do Tronco Oco!

Pouco tempo se passara, desde que eu despertara no castelo do rei Steinarr. Com o coração apertado, recordara que a magia da Montanha Sagrada quisera impedir-me de testemunhar o enlace do rei-lobo com a loba prateada. Todavia, eu desafiara-a... e a vitória pertencera-me! Esta noite, o meu poder crescera para além das capacidades que o sangue misto me concedia. A parte humana do meu espírito por pouco não fora suplantada pela feiticeira. No passado, tal reconhecimento teria sido alarmante, até mesmo aterrador... Hoje, era confortante, quase desculpa para uma soberba, que me fizera levantar a cabeça, pegar na Lágrima do Sol, voltar as costas ao fogo que fenecia na lareira e enfrentar a alvorada. A energia que eu despendera praticamente esgotara a magia na minha essência. Contudo, conseguira ocultar-me da percepção dos guardas e deixar para trás o forte, sem que ninguém se apercebesse.

Se as conseqüências da união do rei-lobo com a loba prateada eram imprevisíveis, os efeitos do enlevo de Ivarr e Thora eram óbvios — duas das pessoas que eu mais amava, e em quem confiava plenamente, tinham-me traído! E teriam de prestar-me contas, no mesmo lugar onde tudo acontecera! Se a Pedra do Tempo fora testemunha do seu arrebatamento, devia igualmente atestar as conseqüências da sua leviandade. Eu queria estar diante deles quando despertassem; ver a culpa e o remorso a humilhá-los, quando enfrentassem o meu olhar! O orgulho da princesa Edwina podia estar em cinzas... Mas a Guardiã da Lágrima do Sol teria a sua desforra!

Movida pela raiva, embrenhara-me na floresta, buscando a trilha que me conduziria à Montanha Sagrada. E, sem saber como, entrara nos domínios da mais respeitada e temida das videntes Vikings.

No centro de uma clareira sombria, reinava um tronco sem idade, que já servira de inspiração a uma miríade de histórias. Porém, nenhuma fazia justiça à sua imponência! Nos seus tempos áureos, o prodígio reinara sobre as florestas do Norte. Ao longo de incalculáveis anos, as trepadeiras e os musgos haviam-lhe vestido a casca com um verde brilhante e fresco, que pouco revelava da sua cor original, castanho-escura, quase negra. O tronco era tão largo, que seriam necessários os braços de dezenas de homens para circundá-lo. As suas raízes elevavam-se do solo, quais tentáculos de um monstro marinho, para depois mergulharem no coração da Terra, sem sinais de decadência. Ao contrário do que muitos asseveravam, a gigantesca árvore não fenecera! Antes... adormecera, para despertar quando achasse conveniente, e, mais uma vez, ofuscar as companheiras com a sua majestade.

Forcei a égua a recuar. Em todos estes anos, eu nunca me interessara em descobrir o caminho para a casa da Velha do Tronco Oco. Por que raio é que, logo hoje, viera parar à sua porta? Decidi esquecer o incidente e concentrei-me no desejo de subir à Montanha Sagrada. Até o presente, tal bastara para que o caminho mágico se revelasse aos meus olhos! Contudo, por mais voltas que desse, não via sinal da luz quente que sempre me guiava, nem do nevoeiro colorido que brotava do solo para dar-me as boas-vindas. Era como... como se estivesse perdida!

Uma oscilação na energia da floresta fez-me acreditar que, finalmente, tomara o rumo certo. Todavia, ao invés da vereda que me conduziria à minha morada espiritual, deparei novamente com uma clareira... e com a casa da Velha do Tronco. Isto não podia estar acontecendo! Será que a anciã se apercebera, de alguma forma, da fraqueza da minha essência e pretendia impressionar-me com os seus truques? Não! A magia daquela velha caduca, que se divertia a confundir os tolos com enigmas, não era rival para a Guardiã da Lágrima do Sol!

Mais uma vez, conduzi a montaria para a floresta. Se não me apressasse, quando chegasse diante da Pedra do Tempo, Ivarr e Thora já teriam partido! De repente, a égua resfolegou em protesto, quase se negando a andar. Olhei em volta e entendi a sua hesitação. A nossa frente, os trilhos entrecruzavam-se e as árvores multiplicavam-se, todas iguais, como se produto de um reflexo que se repetia até o infinito. A verdade fulminou-me, arrancando-me uma exclamação de assombro. Eu não seguira a direção errada! Simplesmente, a Montanha Sagrada recusava-se a acolher-me... porque a minha essência fervilhava de rancor! O berço da magia da Terra era um lugar de reflexão, onde os espíritos buscavam respostas para as suas inquietações e alcançavam a paz. E, nesse momento, as minhas intenções nada tinham de benévolo!

Cerrei os dentes e arquejei, indignada. A tentação de exigir o meu direito de Guardiã da Lágrima do Sol fazia-me estremecer. Eu já derrotara a vontade da Montanha, esta noite! Se não estivesse tão fraca...

Então, por entre o ardor da fúria, soprou uma brisa de razão. A minha herança de sangue não devia ser usada para subverter o poder que regia a sorte da Terra, desde o início dos tempos! Eu tinha por missão honrar e fazer respeitar os desígnios da Montanha... E não sujeitar a sua magia aos meus intentos, por mais justificados que estes pudessem parecer-me!

Essa admissão varreu-me a ira dos olhos. Incitei a égua a avançar e o animal obedeceu prontamente. Diante de nós, abriu-se uma clareira... E, pela terceira vez, encontrei-me diante da morada da anciã vidente. Sobre a minha cabeça, o Sol reclamava o domínio do céu. Respirei fundo e senti uma estranha serenidade apossar-se do espírito. Decerto, a magia da floresta não teimara em guiar-me até aqui em vão! Na última noite que passara na Ilha dos Sonhos, a minha mãe sugerira que eu buscasse, junto da Velha do Tronco Oco, as respostas para as questões que me atormentavam. Como eu me escusara a tomar essa decisão, a força suprema que regia o meu destino assumira-a por mim, no instante em que a minha vida era assolada pelo caos.

Desmontei, disposta a vergar-me à imposição da energia mística. Ao meu redor, as folhas das árvores agitaram-se como se fustigadas por um vento forte. A égua resfolegou, quebrando o silêncio tenebroso. Senti todos os pêlos do corpo eriçarem-se e engoli em seco, ao constatar que tremia. O que raio é que se estava a se passar comigo? Então, reparei numa pequena abertura no tronco que, ainda há um instante, não se encontrava lá. A Velha do Tronco Oco convidava-me a penetrar nos seus domínios... Eu sentia a sua presença; a pulsação da sua magia. E o poder que me aguardava não provinha de um ser de sangue misto; de uma simples vidente que conhecia alguns dos segredos da Arte. O poder que me aguardava era magistral!

Dirigi-me ao tronco, hesitante, como se esperasse que as enormes raízes me prendessem os pés ou a entrada se encerrasse na minha cara. Contudo, nada aconteceu. Uma luz tremeluzia no interior da morada da Velha do Tronco Oco. Chamei, mas não obtive resposta. Decidi avançar... E deparei com um espaço que não podia ser real.

Os meus pés assentavam em trevas sólidas... E trevas era tudo o que me rodeava, à exceção de uma estranha luz branca, que se movia como algo vivo, no centro desse vazio. Um som mórbido ecoou nas minhas costas e fez-me saltar de surpresa. Rangi os dentes, ao verificar que o tronco me aprisionara. As minhas mãos mergulharam no bolso do vestido e envolveram a Lágrima do Sol, tentando dissipar o temor que me prendia os músculos. Respirei fundo e arrisquei um passo; depois outro...

O clarão branco não era originado por uma única luz, mas por centenas de partículas incandescentes, que flutuavam numa escuridão aquosa. Em grosseira comparação, era como observar o reflexo das estrelas, na superfície serena de um lago. Porém, nem todos os pontos brilhantes se encontravam fixos. Muitos moviam-se, deixando um rastro luminoso atrás de si, para depois desaparecerem, consumidos pela noite eterna, enquanto outros nasciam, brotavam do nada e alimentavam o esplendor que me deslumbrava. A medida que a sua pulsação me capturava a mente, apercebia-me de um som que pairava na obscuridade. Foi subindo de tom, até tornar-se tão impressionante quanto o universo que se expandia sob o meu olhar. Era o cântico de uma miríade de vozes divinais... Um coro que eu já ouvira, havia muito tempo:

«Um futuro para aqueles que sonham;

Um futuro para aqueles que amam;

Um futuro para aqueles que lutam,..»

Aos poucos, senti-me descontrair, incapaz de recusar o encantamento que as vozes me impunham. Fundi-me com as trevas e mergulhei na imensidão do céu estrelado. Havia magia por toda a parte, dentro e fora de mim. Eu era uma entre milhares de chamas brancas... E fulgia de poder! O Conhecimento estava ao alcance de um pensamento. Nenhuma das interrogações da Guardiã da Lágrima do Sol ficaria sem resposta!

Pensei em Ivarr e Thora e, de imediato, vi-os diante dos meus olhos, iluminados pelo coruscar das estrelas e protegidos pela sombra da Pedra do Tempo. Jaziam abraçados, no aconchego do solo sagrado, prostrados pela magia que determinara a união das suas essências. E, ao redor dos dois, o nevoeiro colorido tecia uma teia, que Homem algum teria capacidade de rasgar...

Diante dessa Visão de suprema perfeição mística, busquei dentro de mim a raiva que me dilacerara a mente; o rancor que me envenenara o sangue, ao deixar o castelo... Porém, tudo o que senti foi uma profunda tristeza! Como podia condenar o amor de Ivarr e Thora, quando sabia que eles o haviam combatido com todas as suas forças? Se tinha de revoltar-me, era contra as caprichosas Entidades que governavam o destino dos Homens, e que se divertiam a desdenhar dos nossos sentimentos, a torturar os nossos corações, a brincar com as nossas vidas, como se fôssemos pedras toscas sobre um rústico tabuleiro de jogo. As lágrimas brotaram-me dos olhos, ao apreender que não fora a dor da traição que me fizera querer enfrentar Ivarr e Thora... Fora a incapacidade de admitir que fracassara na missão de princesa herdeira do trono Viking! Eu perdera Ivarr porque não conseguira dar-lhe o herdeiro que ele tanto almejava... Consternada, dei por mim a repetir a pergunta que há anos me atormentava: Porquê? Porquê? Porquê?

A Montanha Sagrada desapareceu, tão abruptamente como surgira. Do nada, senti o frio cortante de uma noite do Norte e fui confrontada com uma Visão do passado: num quarto exíguo de um albergue, a essência do meu primo Edwin procurava-me, para suplicar que lhe tomasse a vida, antes que a Arte Obscura o dominasse. Com redobrado terror, revivi o ataque dos lobos negros, as almas penadas que serviam Aesa... E a brusca aparição da feiticeira. O momento em que a monstruosa criatura me aprisionara debaixo do seu corpo e pretendera roubar-me a alma... E o instante em que me lançara uma maldição: «Estação após estação, o teu poder renascerá em mim, até que a loucura te devore!»

E a loucura devorara-me! Devorara-me a cada vez que perdera um filho... Devorava-me agora, ao compreender, finalmente, a argúcia da perversidade de Aesa. O choque que me abalava era tão violento, que me impedia de respirar. O meu sangue gelava e o coração negava-se a bater. Vi-me novamente rodeada de estrelas, mas já não havia conforto no universo para o meu martírio. De cada vez que engravidava, o sortilégio concretizava-se ao nascer da sexta lua cheia... A mestra da Arte Obscura apossava-se da essência dos meus filhos, usurpava-lhes a energia e roubava-lhes a vida, para rejuvenescer o seu corpo e aumentar o seu poder.

Uma a uma, as estrelas apagaram-se... E o cântico mavioso foi substituído por um coro de vozes graves e infelizes, que troavam:

«E para aqueles que não sonham, não amam e não lutam, não existe futuro! »

Os meus sonhos estavam desfeitos. O meu amor perdera-se na desilusão. Já não tinha forças para lutar... Libertei um último gemido de dor, antes das trevas me consumirem.

O crepitar de uma lareira forçou-me a despertar. Sentia-me quente e aconchegada entre mantas... Porém, tinha medo de abrir os olhos; de confirmar que as recordações que me apunhalavam a mente eram mais do que conseqüência de um terrível pesadelo. Por baixo dos meus dedos, a Lágrima do Sol deu-me algum alento. Eu tinha de ser corajosa! Afinal, era filha de Throst e Catelyn...

Fixei as chamas da lareira com a respiração suspensa. O fogo mágico iluminava e aquecia, mas não queimava. Uma figura pequena e andrajosa colocava um pó dentro do pote que repousava sobre as brasas. Decerto apercebeu-se de que eu acordara, porque começou a assobiar, imitando o canto afinado de um pássaro, forçando o meu espírito a serenar e os olhos a buscarem novamente a quietude das sombras. O cheiro de flores e de frutos maduros inundou-me as narinas. Eu sabia que não era real... Mas recebi-o com prazer. A minha essência sarava sob o efeito dessa magia curativa. Já conseguia acolher as memórias, sem estremecer de terror.

— Bebe! Se sentirá melhor.

Pela primeira vez, encarei a Velha do Tronco Oco. Os olhos cinzentos escuros sobressaíam-lhe na pele pálida como carvão na neve. Os cabelos alvos adornavam um rosto com tantas rugas, que seria impossível contá-las. Se desconhecesse que estava perante uma mestra de ilusão, poderia confundi-la com uma simpática avózinha, tão frágil, que apetecia aninhá-la nos braços. Contudo, a mulher diante de mim nada tinha de decrépita. O seu poder avultava-se à minha percepção como as estrelas na noite aquosa com que me deparara ao entrar nos seus domínios.

As mãos ossudas seguravam uma malga da mistela que eu a vira preparar. Talvez fosse chá... mas assemelhava-se a sangue! Recuei instintivamente, contendo um vômito a custo. De imediato, a sua voz troou em meus ouvidos, sem vestígios de amabilidade; toda a paciência perdida:

— Se eu te quisesse mal, criança, não me daria a tanto trabalho para te pôr de pé!

Condescendi a beber o líquido quente. Tinha gosto de mel e de casca de árvore; esquentava o corpo e aquietava a mente. Olhei por cima do seu ombro e verifiquei que as trepadeiras também forravam o interior oco do tronco. Junto da lareira, onde ardia o fogo mágico, encontravam-se tigelas de barro, cheias com todos os ingredientes que a natureza oferecia: ramos, folhas e frutos secos; a areia, pedras e seixos do rio, com variadas cores e formas; coisas pegajosas e duvidosas, que eu não tinha vontade de saber de onde provinham e para que serviam.

Além do banco onde a anciã se sentara à lareira, uma mesa baixa era a única mobília que saltava à vista. Sobre o pano de linho que a enfeitava, dispunham-se cuidadosamente os ossos gravados com Runas, que a vidente usava nas adivinhações. Um fôlego bastou para constatar que fora a sua magia que eu surpreendera, ao entrar neste templo ancestral... E para recordar as revelações que me haviam sido impostas! Apesar do efeito calmante do chá, as lágrimas afloraram-me aos olhos, enquanto pensava:

«Não pode ser verdade... A minha mãe perscrutou-me a essência, vezes sem conta, e nunca encontrou um sinal de que a maldição se tivesse concretizado!»

Quase gritei de susto, quando a voz da Velha do Tronco Oco se ergueu, sóbria e límpida:

— O malefício de Aesa fundiu-se com a tua energia; abrigou-se na obscuridade que o contato com a Arte proibida despertou na tua essência, durante os anos em que aliviaste o sofrimento do teu primo Edwin. Tornou-se parte de ti... E como parte de ti, não é estranha ao teu corpo ou ao teu espírito. Não é a perversão que a tua mãe buscava.

Fixei o olhar cinzento, perplexa. A vidente não só escutara os meus pensamentos, como apresentara uma justificativa terrível para a minha desventura. Sacudi a cabeça, numa negação horrorizada, e só a custo consegui retorquir:

— A senhora não sabe o que está dizendo!

— Mas é claro que não! — respondeu ela, num tom glacial. — Eu sou uma velha caduca! Uma vidente maluca, que fala por enigmas para confundir os tolos.

Perdi o fôlego, trespassada por um calafrio, ao ouvi-la recitar a opinião depreciativa que tantas vezes eu manifestara acerca da sua pessoa. Pousei a malga e livrei-me das cobertas, erguendo-me com esforço, enquanto balbuciava:

— Eu não devia ter vindo... Lamento o tempo que perdeu comigo!

A abertura no tronco escancarava-se diante dos meus olhos. Tive de conter-me para não correr, enquanto a Velha do Tronco Oco resmungava nas minhas costas:

— Para mim, o tempo é irrelevante. Porém, para ti e para o teu povo, o tempo esgota-se! Se não mudar de rumo, cairá num abismo de ódio e loucura... Trará a desgraça a todos aqueles que ama. Não é a maldição de Aesa que te condena, criança! É a tua cegueira, a teimosia... a covardia!

Detive-me a um passo da saída, estrangulada de indignação. Eu não podia ignorar tamanha ofensa! Voltei-me para encarar a anciã, arquejando:

— Os seus agouros não me assustam! Vós sois incapaz de acertar uma premonição!

Os olhos cinzentos flamejaram e a ira irrompeu-lhe da voz, ao defrontar-me:

— Como se atreve a questionar as minhas profecias? Fique sabendo que nunca falhei uma!

— Ah, não? — Agitei os punhos, descontrolada. — E quando profetizou que o jarl Throst seria pai de três varões?

— Varões? — A vidente arremeteu ao meu encontro, com assombrosa rapidez. Antes que eu pudesse reagir, já sacudia o dedo ossudo diante dos meus olhos. — Quem foi que falou em varões? Reinos! O neto de «O Que Tudo Vê» seria pai de três reinos: um para a união, outro para a paz e outro para a profecia... se a sua filha mais velha não tivesse enredado as linhas do destino! Guardiã da Lágrima do Sol, pois sim! Guardiã do Nariz Empinado! Se não fosse herdeira de «O Que Tudo Vê», há muito que estaria deitada no meu colo, a experimentar o peso da minha mão!

Deu-me as costas e recuou até à lareira, gesticulando impaciente, sem parar de resmungar:

— Por que é que os Homens fazem questão de complicar o que é simples? Eu lhes indico uma ponte para chegarem à margem oposta do rio; eles insistem em atravessá-lo a nado... Depois afogam-se e a culpa é minha!

Deixei de ouvir a vidente, esmagada pelo peso das suas palavras. E se eu tivesse realmente corrompido a minha sorte? Em tempos, a Velha do Tronco Oco profetizara que a felicidade de Ivarr e a paz no reino Viking dependiam de uma guerreira... E Thora era uma guerreira! Seriam os acontecimentos desta noite uma derradeira tentativa das forças divinas para emendar o meu erro? Teria eu comprometido o futuro de todos nós, quando aceitara desposar o rei-lobo? Uma coisa ficara provada, por mais que desejasse negá-lo... A maldição de Aesa concretizara-se! Toda a semente que germinasse no meu ventre seria vítima da mestra da Arte Obscura. E isso significava que eu não podia dar um herdeiro ao trono Viking!

Caí de joelhos, afogada em lágrimas. A Velha do Tronco Oco tinha razão! Eu perdera o rumo! Esquecera a minha verdadeira missão! Não nascera para ser princesa no castelo do rei Steinarr! Nascera para ser Guardiã da Lágrima do Sol e observar a Terra do topo da Montanha Sagrada... Nascera para proteger os Homens e combater os servos da magia negra! Nesse instante de profundo desespero, jurei que libertaria as almas dos meus filhos. Aesa haveria de morrer a chorar lágrimas de sangue, por toda a agonia que nos impusera!

— Sinto muito... — murmurei, prostrada pela dor.

Então, dois braços fortes envolveram-me. A minha cabeça encontrou o conforto de um peito quente; um abrigo contra o mal. Uma voz acariciou-me a mente, límpida e fresca como a água de uma nascente abençoada:

«Não se desespere, criança... Ainda nada está perdido! Deve permanecer ao lado daqueles que ama e ajudá-los a enfrentar a tormenta que se aproxima. Os mestres da Arte Obscura estão mais fortes do que nunca. Tudo farão para impedir a fundação dos três reinos!»

Atrevi-me a encará-la e a figura decadente da anciã estremeceu... Além dela, deparei com uma criatura que não era feita de carne e osso, mas de energia; de uma luz pura, de extasiante beleza. Uma entidade que eu nunca vira antes, dotada de um poder excepcional, insuperável; nem Feiticeira, nem pertencente ao Povo da Terra, do Fogo ou da Água. Era incorreto dizer que a magia vivia na Velha do Tronco Oco... A Velha do Tronco Oco era magia!

Muito assombrada para reagir, tartamudeei:

— Quem... Quem sois vós?

Ela respondeu, num tom solene e condescendente:

— Uma amiga, Rainha do Sol! Alguém que pode indicar-te o caminho da verdade. No entanto, para o bem ou para o mal, terá de trilhá-lo sozinha!

Sob a influência deste ser divino, a minha energia restabelecia-se. A pergunta fluiu-me dos lábios, num sopro de esperança:

— Pode curar-me desta abominação?

Todavia, a resposta não foi aquela pela qual o meu coração ansiava:

— Lamento, Guardiã... O malefício da feiticeira negra é irreversível. Mesmo apelando à «magia que a Terra já esqueceu» não é possível desfazê-lo.

Fechei os olhos, sentindo-me a mais infeliz das criaturas.

— Então, jamais conhecerei a alegria de ser mãe.

— Não forçosamente... No instante em que o sortilégio foi lançado, a tua essência encontrava-se fundida com a de um homem. Edwin, Guardião da Lágrima da Lua, partilhou da tua sorte... Todavia, a magia que vos unia impediu que a maldição destruísse os vosso elo. Separados, não podereis gerar vida. Mas, juntos...

— Não compreendo — repliquei, sufocada. E a vidente concluiu:

— As crianças concebidas pelo vosso amor estarão a salvo de Aesa.

Soltei um gemido de desalento. O que a Velha do Tronco Oco revelava era inconcebível! Ainda assim, as palavras tombaram-me dos lábios:

— Esse amor de que fala é impossível! Edwin e eu estamos separados por uma miríade de...

— A única coisa que vos separa é a ausência de coragem para assumir a razão por que nasceram — atalhou ela, com uma serenidade inabalável. — O Rei da Lua e a Rainha do Sol perderam-se dentro de um círculo de medo...

— O quê? — balbuciei chocada, ao reconhecer a enigmática expressão com que o espírito do tio Berchan se despedira.

— Tendes medo do que ficou para trás... — prosseguiu a vidente, ignorando o meu sobressalto. — Medo do que vos aguarda adiante... Medo de falhar. Medo de vencer. Medo de sentir. Medo de esquecer. Medo de desejar. Medo de sofrer...

Angustiada, verifiquei que a realidade se dissipava. A escuridão tornou a prevalecer... E onde, há um instante, repousavam os ossos mágicos, movia-se agora um mundo de estrelas. Eu ainda sentia o abraço da Velha do Tronco Oco... Porém, esse conforto também se distanciava da consciência, até restar apenas a sua voz:

«O destino colocou-os no mesmo ponto de partida, mas as forças do mal os obrigaram a percorrer caminhos opostos...»

A incandescência das estrelas assumiu a forma de um anel, suspenso diante do meu olhar. Prendi o fôlego, ao vê-lo incendiar-se; as chamas alastrando-se em sentidos inversos, como se concretizassem as palavras da vidente. Tentei fechar os olhos, silenciá-la, adivinhando que não ia gostar do que a magia tencionava mostrar-me. Tinha medo... Sim, tinha muito medo!

«O círculo está prestes a se fechar! Em breve ficarão frente a frente. Nessa altura, não será apenas a vossa sorte que se há de decidir... mas a sina de todos os povos da Terra!»

As duas frentes de fogo encontraram-se, tornando o círculo perfeito. De imediato, tudo se incendiou ao meu redor. Gritei, trespassada por uma dor insuportável, e apertei o ventre, onde o tormento se concentrava. Horrorizei-me, ao sentir o vestido encharcado. Não necessitei de olhar para as mãos, para saber que o líquido quente e viscoso era sangue... O meu sangue! A poucos passos, a figura de um homem ganhava consistência... Edwin arrastava-se na minha direção. Estava ferido... Mas era eu quem se finava!

— Não!

Debati-me com todo o vigor, mas a Velha do Tronco Oco impôs-me a imobilidade, até a Visão se desvanecer. Eu tremia tanto, que não tinha noção dos limites do corpo. Encarei-a, através de uma cortina de lágrimas, soluçando:

— Acabei de testemunhar o meu fim... nas mãos do Guardião da Lágrima da Lua!

A vidente assumia a sua forma de anciã. Os olhos cinzentos fulgiram na brancura da pele enrugada, ao objetar:

— Não está se precipitando no julgamento? Tem absoluta certeza de que foi isso que viu?

— É claro que sim! — revidei, agoniada. — O Edwin regressou com o coração possuído pelo rancor. Nós não estamos dentro de um círculo de medo! Estamos dentro de um círculo de ódio... De um círculo de morte! Mas eu não serei a presa desta caçada! O futuro que me foi revelado não se há de concretizar! Já mudei o meu destino uma vez... Hei de mudá-lo de novo!

— Edwina... — A voz sem idade carregava um aviso. — Tu és a última esperança do teu povo... Não permita que o temor te cegue! Acredite que o Sol e a Lua ainda podem brilhar, fora do Círculo do Medo, se não silenciar a voz do teu coração...

 

Eu sempre ouvira dizer que nos domínios da Velha do Tronco Oco o tempo se movia de forma distinta da do mundo dos Homens. Nesse dia, tive oportunidade de confirmá-lo. Ao entrar no castelo do rei Steinarr, apercebi-me de que nada mudara, como se a minha longa ausência não tivesse passado de um momento fugaz. Tornei ao quarto, invisível e silenciosa, após deixar a égua na cavalariça. Pouco depois, a criada trazia água fresca, como todas as manhãs. Dispensei-a com gentileza, tentando ocultar a comoção que me vergava o ânimo. Acabara de lavar o rosto, quando a porta se abriu de rompante e Ivarr entrou desembestado, dando voz à aflição que lhe desfigurava as feições:

— A Thora está aqui? — Os próprios olhos responderam-lhe, por isso acrescentou: — Sabe onde ela está?

Eu ponderara no que devia dizer-lhe... Agora, que o confrontava, nada me ocorria! No entanto, a minha expressão declarou mais do que mil palavras poderiam, pois Ivarr recuou, ciente do meu conhecimento. O seu olhar voltou-se para o chão. Começou a tremer, a soluçar, e acabou por cair de joelhos, cobrindo as faces com as mãos, enquanto gemia:

— Perdoe-me! Não sei explicar o que aconteceu... Eu não queria... Morreria antes de te magoar de propósito, Edwina!

Aproximei-me, com o coração apertado. O homem que se prostrava aos meus pés era tão belo, selvagem e puro como o lobo que habitava a sua essência... A fera que nos separava! Eu fora incapaz de amar o Espírito da Luz... mas amara Ivarr! Se tentasse explicar isto a alguém, mesmo a Freya ou à minha mãe, talvez não me entendessem. Todavia, para mim era óbvio! Entre nós, havia uma grande amizade; uma forte atração... Porém, não existia a ligação espiritual que torna o amor completo! Em conclusão, eu não perdera Ivarr, pois ele nunca me pertencera! Fôramos tolos, ao sujeitarmo-nos à vontade das nossas famílias, do nosso povo... E sofrêramos o castigo de anos de engano e frustração.

Depois das revelações da Velha do Tronco Oco, eu não tinha dúvidas de que a loba prateada nascera para ser a companheira do rei-lobo! E, após receber a dádiva mágica do restabelecimento oferecido pela vidente, que me sarara o espírito e limpara o coração, sabia que me restava afastar, para que os dois desfrutassem livremente do seu amor; da felicidade de uma união perfeita. Poderia a minha abnegação ser tomada por loucura? Talvez! Contudo, eu pouco me importava com o que os outros pensavam. Finalmente, tinha plena convicção de que estava a trilhar o caminho certo!

Deslizei os dedos pelos seus cabelos e afaguei-lhe os ombros. Ivarr estreitou-me pela cintura e escondeu o rosto no meu ventre, chorando alto.

— A culpa não é tua — murmurei, complacente. — Nem de Thora... O que aconteceu convosco não foi racional. Foi magia!

— Está dizendo... que me perdoa? — O olhar cristalino buscou o meu, pleno de expectativa. — Dou-lhe a minha palavra de que tudo não passou... de um beijo. — A sua voz esmoreceu, como se a simples recordação lhe cortasse o fôlego. — Depois, a Pedra do Tempo apossou-se das nossas consciências... e fomos... fomos apenas lobos!

Dei-lhe as mãos para ajudá-lo a erguer-se. Ivarr apertou-as com força, asseverando:

— Juro que não tornarei a fraquejar, Edwina! Pedirei o perdão de Thora, assim como peço o teu, e tudo voltará a ser como antes...

— Não, Ivarr! — objetei com firmeza. — É tempo de iniciarmos uma nova vida! O amor que partilha com a Thora é mágico: revelou-te a trilha da Montanha Sagrada e proporcionou-te a graça da Pedra do Tempo. Assuma-o sem vergonha! A união do rei-lobo e da loba prateada trará a paz ao nosso povo... e dará ao trono Viking o herdeiro que o rei Steinarr tanto deseja.

Ele franziu o cenho e gaguejou, atordoado:

— O que... O que é que... quer dizer com isso?

Respirei fundo, antes de asseverar:

— Se tem que tomar outra esposa, que seja a Thora! Eu lhes darei a minha benção, como Guardiã da Lágrima do Sol... e continuarei a amá-los, como até aqui.

Ivarr abriu e fechou a boca várias vezes, antes de conseguir replicar:

— Tu... Tu não te oporias a que eu desposasse... a tua irmã?

Apesar da minha determinação, magoava-me ver os olhos verdes cintilarem como estrelas, ante a possibilidade de concretizar o mais secreto dos seus sonhos. Incapaz de falar, confirmei com a cabeça. No mesmo instante, Ivarr começou a marchar pelo quarto, num nervosismo crescente; a mão sobre o peito, pressionando as marcas rituais que o ligavam à alcatéia.

— A Thora jamais me aceitará... Ela adora-te, Edwina!

Fiquei sabendo que o rei-lobo despertara sozinho, no cume da Montanha Sagrada. A loba prateada fugira para não ter de enfrentá-lo! Tomar consciência de que o afeto que devotava ao seu senhor ia muito além da lealdade e da amizade, devia estar a consumi-la. Para a minha irmã, não existia meio-termo entre o amor incondicional e o ódio destruidor... E, aos seus olhos, o amor de ambos jamais seria incondicional, pois representava uma traição para comigo.

Forcei-me a ignorar a inquietação de Ivarr, que o fizera esquecer-se dos cuidados que me devia, e retruquei:

— Isto foi um choque para todos nós... Porém, a Thora não é mulher de virar as costas aos problemas! Mal se recupere do susto, voltará. Então, poderá provar-lhe que o teu amor é verdadeiro, e as tuas intenções, muito sérias. Talvez ela resista de início... Mas acabará por ceder!

Nessa noite, a minha mente despertou da tranqüilidade do sono, no interior de um espaço que muitos só imaginavam existir nas histórias contadas para encantar as crianças. Eu apostava que nenhum aldeão, alguma vez, assentara um pé sobre as pedras polidas daquele chão; ou se maravilhara com a imponência das colunas que suportavam o teto; ou admirara o excelente trabalho do ferreiro, que dera formas intricadas aos castiçais que exibiam as velas e os archotes; ou apreciara as estátuas de pedra brilhante, que pareciam ganhar vida sob o olhar dos Homens; ou contemplara as magníficas tapeçarias que forravam as paredes. O salão que se estendia diante dos meus olhos era um espaço para desfrute dos reis e da elite do Império.

Uma das tapeçarias destacava-se pela sua grandeza. Ocupava toda a parede do fundo, em comprimento e largura, e fora bordada com uma miríade de pequenos desenhos, que, segundo o meu pai um dia contara, relatavam a intrincada história do Império. Era uma obra impressionante, fruto do trabalho de dezenas de mulheres, que a ela se tinha dedicado durante anos, sem descanso. Em frente desta, encontravam-se os tronos dos soberanos... Porém, na minha Visão, não era o rei William, o Conquistador, que se sentava no cadeirão talhado em madeira negra e cravejado de pedras preciosas, mas John, o seu herdeiro. Petrificada de incredulidade e horror, constatei que o príncipe estava nu. Uma jovem voluptuosa sentava-se ao seu colo e encostava-lhe uma taça de vinho aos lábios. Entornou-a propositadamente sobre o peito másculo... para depois limpar o líquido adocicado com uma língua irrequieta e ousada, soltando guinchos de satisfação. Aos pés dos dois depravados, em cima de mantas feitas de peles de animais, moviam-se homens e mulheres numa dança lasciva, realçada pela luz bruxuleante das velas. Era difícil perceber a quem pertenciam os corpos... e distinguir os gritos de dolorosa submissão, dos gemidos de prazer. Sobre esta insanidade obscena, ecoavam as gargalhadas vitoriosas do herdeiro do Império... Gargalhadas que aumentaram de tom, quando a mulher com quem se casara surpreendeu a sua perversão.

— Junte-se a nós, Estrid! — desafiou-a, enquanto agarrava um punhado de cabelos da escrava que se entretinha no seu colo, e a forçava a encarar a esposa. — Esta será a melhor noite da tua vida!

A minha prima estacou, em choque. Estava descalça e vestia um robe sobre a camisa de noite. Acabara de deixar a cama, em busca do marido. Rodou nos calcanhares e correu de volta ao quarto; a beleza do rosto desfigurada por lágrimas de ressentimento. As suas mãos apertaram o ventre, quando parou para recuperar o fôlego. A sua gravidez já se evidenciava. Por um instante, senti pena dela... Mas só por um instante! Eu jamais poderia perdoar Estrid por todos os crimes que perpetrara, para se tornar princesa do Império.

De súbito, pareceu mudar de idéia. Reiniciou a marcha, desviando-se do rumo inicial. Os seus passos levaram-na até uma porta sólida, de madeira grosseira. Sem se fazer anunciar, entrou num quarto luxuoso, iluminado por uma lareira moribunda. A cama, alta e larga, ainda não fora usada. O senhor do aposento encontrava-se sentado num cadeirão, entre almofadas de penas de ganso, observando-a sem surpresa, como se aguardasse a sua visita.

— Tranque a porta! — ordenou, na voz cavernosa que sempre me arrepiava. — E aproxime-se!

Estrid obedeceu, trêmula, mas determinada. Esta noite, Esteban, mestre da Arte Obscura, não tinha pretensão de fazer-se passar por um padre da nova fé. Assim que a princesa se deteve diante dele, rugiu num tom que denunciava ansiedade:

— Ajoelhe-se!

Quando a teve prostrada aos seus pés, ergueu-se; o corpo alto e magro coberto por um robe de seda rubra. Sem aviso, a lareira incendiou-se; as labaredas atingindo o máximo esplendor, evidenciando o brilho macilento do crânio do feiticeiro e a profundidade aterrorizadora do seu olhar negro. O robe entreabriu-se e expôs o peito nu, de onde pendia uma corrente com três jóias cintilantes: uma vermelha, uma branca e uma amarela — as pedras mágicas roubadas dos McGraw! Devagar, estendeu a mão à minha prima, que começou por enlaçá-la com temor, mas acabou por beijá-la com um ardor apaixonado. Presenciar esta atrocidade foi pior do que comprovar a devassidão de John! Contudo, jamais poderia imaginar o que estava prestes a acontecer.

Estrid levantou-se sem pressa e encarou Esteban. Assim que a tornou prisioneira do seu olhar, o mestre da Arte Obscura agarrou-a pelos ombros e empurrou-a para cima da cama. Ao cair, as vestes da minha prima exibiram-lhe a brancura das coxas. Porém, ao invés de tentar cobrir-se, ela revelou-se ainda mais, com um sorriso de antecipação a enfeitar os lábios carnudos. E, sem desviar os olhos do rosto corado da sua protegida, o feiticeiro livrou-se do robe e lançou-se sobre o corpo sedutor, urrando qual fera excitada.

Recuei, enojada. Não queria ver mais nada! Despertei na segurança do meu quarto e saltei da cama, com o coração a bater descompassado. Felizmente, o dia estava prestes a nascer. A luz ajudaria a me libertar da recordação da minha prima, entregue à luxúria do demônio feiticeiro, sem o menor respeito pela vida que lhe crescia dentro do ventre. Se a tia Geirny estivesse viva para assistir à loucura da filha, decerto se finaria de desgosto! Eu só esperava que o meu pai conseguisse chamar o rei William à razão, e o convencesse a regressar depressa para casa. De outra forma, o Conquistador poderia nunca mais se sentar no trono do Império!

 

O interrogatório de Otkatla fazia-me ranger os dentes. A mexeriqueira farejava um escândalo à distância. E, de alguma forma, já se apercebera de que algo se passava comigo, com Ivarr e Thora. Entre as mulheres da casa, foi ela a primeira a questionar a ausência da loba prateada.

— Decerto partiu numa missão, ao serviço do príncipe Ivarr — respondi impaciente, desejosa de que a refeição da manhã terminasse, para me livrar do seu olhar inquiridor. — Se tem algum assunto a tratar com a Thora, deve aguardar o seu regresso ou falar com o teu primo.

— Tem razão! — revidou ela com um sorriso cínico. — Desculpe, Edwina... Esqueci que a tua irmã é unha e carne com o teu marido! Se o Ivarr não está preocupado com o desaparecimento da sua... guerreira, é porque conhece o seu paradeiro!

Freya mirava-me, incapaz de ocultar a aflição. Não fora fácil explicar-lhe o que acontecera e, neste instante, arrependia-me de tê-lo feito. Bastaria que Otkatla a fixasse, para confirmar as suas suspeitas.

O enlace do rei-lobo e da loba prateada angustiara Freya. Quando questionara a minha passividade, eu confessara-lhe que não tencionava continuar casada. Mal Thora regressasse, subiria a Montanha Sagrada e assumiria plenamente a minha missão de Guardiã. Esta declaração deixara a minha irmã ainda mais contristada! Só esperava que ela não perdesse a compostura diante de Ivarr! O rei-lobo acreditava que teria duas esposas... E este não era o momento certo para desfazer-lhe as ilusões, pois as responsabilidades que a recente partida do pai lhe impusera, demandavam toda a sua atenção. De qualquer modo, ele acabaria por aperceber-se de que o fato de lhe ter exigido que dormisse noutro quarto, não derivava apenas da mágoa. Eu não pretendia voltar a deitar-me com Ivarr... E a maldição de Aesa não era a única responsável por esta resolução. A lei Viking podia admitir a partilha do amor, mas as filhas de Throst e Catelyn jamais o fariam!

O silêncio instalou-se em redor da mesa, quando Ivarr chegou. Cumprimentou as tias e as primas com um aceno gentil, antes de debruçar-se sobre mim e sussurrar:

— Preciso falar contigo em privado.

O olhar das mulheres queimou-me as costas, enquanto nos dirigíamos para a porta. Ivarr levou-me para a sala de reuniões e ordenou que não fôssemos incomodados. Temi que a sua apreensão estivesse relacionada com a ausência do pai. Apesar de, nos últimos tempos, não morrer de simpatia pelo rei, eu sentia-me grata pela sua iniciativa de rumar ao Sul com uma frota de quatro navios. Sabia que a verdadeira razão desta campanha não resultava do seu desejo de afirmar diante do rei William a devoção dos Vikings ao Tratado... Era o receio pela vida do meu pai que o movia! Steinarr pretendia assegurar-se de que o Império não nos guardava mais surpresas desagradáveis, e que o jarl Throst regressaria para casa são e salvo.

— A Thora está a caminho do território do Povo da Terra — declarou Ivarr, abruptamente.

— Como? — repliquei, surpreendida ante a causa da sua agitação.

— Ela possui a minha marca! — continuou o rei-lobo, quase impaciente. — Não pode esconder-se de mim! Eu tinha decidido esperar que se acalmasse e regressasse de livre vontade... Porém, isto já foi longe demais! Esta noite, apelei à nossa ligação espiritual e enviei a essência do meu lobo no seu encalço. Descobri-a abrigada numa caverna da Serra Rochosa. Estou convicto de que o seu objetivo é a casa da rainha Lyria. Eu não posso deixar o castelo agora, Edwina... Terá de ser tu a falar à sua mente e a convencê-la a regressar.

Abanei a cabeça e forcei-me a reagir, contrapondo:

— A Thora está confusa e assustada... Confrontar-me, neste momento, só piorará a situação. Talvez a aura mágica da Floresta de Lyria seja benéfica para o seu espírito! A rainha é uma mulher sábia e compreensiva. Lhe dará bons conselhos...

— Não são os conselhos da rainha Lyria que me preocupam, Edwina! — retrucou Ivarr, subitamente agreste. — É ele! Ele está lá... E não perderá esta oportunidade de conquistá-la!

Falava de Galinn... E o ciúme quase o fazia espumar de raiva.

— Não pode reagir assim! — repreendi-o. — O descontrole só te trará desvantagem!

— Aquele comedor de erva quer transformar a minha loba numa coelha! — gemeu, como se não me tivesse ouvido. — E a tua irmã será capaz de se atirar nos seus braços, só para fugir de mim!

— Sim — concordei. — Porém, mais depressa o fará, se a tratar como tua propriedade! Tu a conheces Ivarr...

— E o que quer que eu faça? Que cruze os braços, enquanto a mulher que amo vai procurar conforto junto de outro...? — Deteve-se bruscamente, ao ver as nuvens que me escureciam o olhar. — Perdoe-me, Edwina... — Tentou abraçar-me, mas eu recuei, magoada. Ivarr já não conseguia esconder os seus sentimentos, ao ponto de bradá-los ao vento... E havia um limite para as chicotadas que o meu orgulho podia suportar! Afinal, ele ainda era meu marido!

Respirei fundo e objetei:

— Tem que adormecer o lobo raivoso que te domina as emoções e começar a raciocinar como um homem! Se apertar a corda em volta do pescoço da Thora, acabará por perdê-la!

 

Ao longo do Verão, a Senhora Doralia desenvolveu um trabalho excelente na educação de Thorson. A mudança de comportamento do meu sobrinho era notória! As correrias desenfreadas pelo castelo, os gritos que ecoavam pelos corredores e as brigas constantes com os outros meninos haviam cessado, para grande alívio de Freya. De manhã, o pequeno sentava-se obedientemente ao lado de Oriana e bebia as palavras de sua tutora. Após a refeição da tarde, rendia-se ao sono, e sempre despertava com excelente disposição para aprender as regras da Arte. O treino realizava-se numa sala afastada dos olhares dos habitantes do castelo, para que o nosso segredo não fosse exposto. Se, por um lado, alguns ficariam maravilhados ao verificarem as habilidades místicas de Thorson, outros, berrariam o seu horror tão alto, que o estridor chegaria aos ouvidos de Aesa.

Nesse dia, desafiei-o para um jogo especial. Sentamo-nos no chão, frente a frente, e expliquei-lhe que tínhamos de fazer a Lágrima do Sol rolar entre nós, recorrendo à força da mente. Ele compreendeu que não podia usar as mãos. No entanto, de vez em quando, irritava-se com a dificuldade do exercício. A magia fluía-lhe livremente no sangue... Ainda levaria algum tempo a aprender a controlá-la; a ser seu senhor, ao invés de seu servo. Interferi, de modo a que, a cada vez que o meu sobrinho se esforçava infrutiferamente, eu abraçava a sua energia e incentivava-o, até atingir o objetivo. Era o mesmo que dar a mão a um bebe, para ensiná-lo a andar. Em breve, Thorson não necessitaria de ajuda para empurrar e fazer levitar o cristal.

Quando o treino terminou, dirigi-me à sala de costura, a fim de averiguar se as senhoras da casa necessitavam de alguma coisa. Angustiado como estava, Ivarr não suportava ser incomodado com ninharias. Por isso, desde a partida do rei Steinarr, eu tentava aliviá-lo desse fardo. Talvez fosse uma forma de compensá-lo, por ter me recusado a invadir a mente de Thora, para ordenar-lhe que regressasse ao castelo. Eu conhecia bem a minha irmã, e sabia que ela precisava de ver a luz da razão com os próprios olhos. Se, desde já, o rei-lobo não respeitasse a sua individualidade, bem que podia procurar outra esposa!

A ausência da loba prateada suscitava os mais díspares boatos. Os maliciosos garantiam que Ivarr a forçara a deixar Eric, e que ela fugira ao encontro do prometido, para casar-se em segredo. Os conspiradores afirmavam que vendera segredos aos Vândalos e se refugiara na Floresta Sombria, como Magnor antes dela. Os pessimistas imaginavam-na morta, no fundo de um penedo, devorada por uma fera ou afogada num rio... O príncipe tentara pôr fim às especulações, mas só conseguira instigar as línguas viperinas.

Mal entrei na sala de costura, as mulheres calaram-se e fixaram o chão. Uma começou a cantarolar uma música popular e as outras acompanharam-na. Era óbvio que as surpreendera a falar de mim!

Ainda assim, sorri e tentei ser agradável. Todavia, desejosa de afrontar-me diante da mãe e das tias, Otkatla voltou-se para uma prima e sussurrou, suficientemente alto para que eu não pudesse deixar de ouvi-la:

— Ainda não sabe? A Edwina encontrou a irmã na cama com o marido! Ficou desesperada, com medo de que a Thora desse um herdeiro ao reino Viking e a suplantasse. Por isso vingou-se, ordenando o seu exílio na Floresta do Povo da Terra. Mas o Ivarr não se conforma! O tio Steinarr exigiu-lhe que gerasse um filho... Tem medo de que algo lhe aconteça e o Magnor venha reclamar a sua herança de sangue. Estou certa de que o nosso primo não tardará a ir resgatar a amante. Para esta emproada, será bem-feito...

A mãe de Ketill ergueu a voz, tentando abafar o discurso da sobrinha. No entanto, Otkatla conseguira o seu intento... Eu estava furiosa! Cerrei os dentes, respirando com dificuldade. Se Thora estivesse entre nós, a criatura venenosa jamais se atreveria a proferir tais calúnias, com medo de levar um murro nas ventas. Otkatla provocava-me porque julgava que escaparia impune; que eu não teria coragem de reagir diante das mulheres da sua família. Não tinha noção do meu poder! Para ela, ser Guardiã da Lágrima do Sol era ostentar mais um título, desprovido de significado. Estava enganada... E eu teria muito gosto em elucidá-la!

Subitamente, as palavras da víbora atabalhoaram-se, enquanto a língua lhe esmorecia entre os dentes. Sentindo-se sufocar, deitou-lhe a mão... E esta pendeu-lhe para fora dos lábios, qual pedaço de carne morta. A saliva escorreu-lhe pelos cantos da boca e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Caiu de joelhos, emitindo roncos aflitivos com a garganta. Só parei de atormentar o verme que estrebuchava no chão, por atenção à sua mãe e às tias, que a rodeavam, gritando assustadas. De um momento para o outro, a língua de Otkatla voltou a obedecer-lhe. Permaneceria dormente por algum tempo, o que a impediria de falar. Assim, se lembraria de que eu não tornaria a admitir a sua insolência e maldade!

— Dêem-lhe água — ordenei.

E saí, sem contar quantas mulheres reprovavam o castigo, e quantas sorriam, divertidas por Otkatla ter recebido uma lição. Sentia-me enraivecida pelas palavras ferinas, mas igualmente zangada por ter-me deixado afetar. Até hoje, nunca usara a magia como instrumento de vingança. Mesmo que Otkatla merecesse a punição, o que eu fizera fora errado! Se começasse a atacar todos aqueles que antipatizavam comigo, me tornaria uma tirana, e não seria melhor do que os hediondos feiticeiros que me dispunha a combater.

Nessa noite, fui perturbada por sonhos estranhos. No interior de uma floresta tenebrosa, uma voz clamava em desespero. A minha essência perambulou sobre as copas das árvores, receosa de aproximar-se. Porém, os gritos eram de tal forma aflitivos, que reuni coragem para mergulhar no desconhecido, trespassar a barreira de espinheiros e invadir o reduto da feiticeira negra.

Um novo brado atraiu-me a uma cabana isolada das demais. Estremeci de horror, ao deparar com um leito que se assemelhava a um mar de sangue. Aesa, rainha do povo vândalo e mestra da Arte Obscura, subjugava o corpo mirrado de um homem que já fora robusto. Parei de respirar ao reconhecer Magnor. Muitas vezes se conjecturara a sua morte... Todavia jamais se lhe previra um destino tão execrável! Os seus pulsos estavam atados sobre a cabeça, e a força que fazia para tentar libertá-los quase separava as mãos dos braços esqueléticos e arroxeados. O seu rosto, outrora perfeito, era uma máscara grotesca de sofrimento. No seu peito, não havia um palmo de carne que não estivesse em chaga. Uma miríade de cicatrizes percorria-lhe o corpo, testificando a iteração desta crueldade. Os olhos cinzentos fixavam a sua carrasca, mas tinham desistido de ver; já não continham um vestígio de luz... uma sombra de esperança!

Aesa subjugava Magnor; nua, à exceção de um colar de onde pendiam três pedras de brilho mágico: uma verde, uma violeta e uma cor de laranja... Por todas as serpentes do submundo! Era para isto que os mestres da Arte Obscura cobiçavam as pedras de Aranwen? Para exibí-las, vitoriosos, diante das suas vítimas? As unhas da feiticeira dilaceravam a carne do jovem príncipe, tornando impossível vislumbrar-lhe a brancura da pele, entre o festim de sangue. Depois, mergulhava sobre ele e bebia-lhe a vida, com uma sofreguidão extasiada.

Voltei as costas a esta barbaridade, desejosa de partir. No entanto, ao encarar a noite, outra cabana me prendeu a atenção. A minha essência fluiu para o seu interior, e surpreendeu uma jovem de cabelos castanhos acobreados, encolhida contra as tábuas da parede, sobre as almofadas onde dormia. Pressionava os ouvidos com as mãos, como se o gesto a impedisse de escutar os berros de suplício que assombravam a aldeia. Diante de Helga, fui fustigada por sentimentos contraditórios. A aprendiz de Aesa jamais seguiria os passos da sua mestra, pois possuía uma consciência... e um coração que conhecia o amor.

Aquele que ela amava incondicionalmente, e que lhe retribuía com igual intensidade, chegou nesse instante. Helgi, príncipe vândalo e Espírito da Escuridão, correu a acudir à irmã gêmea, puxando-a para a proteção dos seus braços e embalando-a contra o peito, enquanto murmurava:

— Desculpe! Não pude vir mais cedo. O Snari...

Helga tocou-lhe nos lábios, com uma expressão que denunciava pavor.

— Não mencione o seu nome — suplicou; o olhar sem vida fixo no olhar incrivelmente azul. — Ele está cada dia mais forte! Pode nos ouvir...

O irmão franziu o cenho, como se não compreendesse o motivo de tamanha apreensão, e tentou assegurá-la:

— Não tenha medo, mana! Juro-te, pela minha vida, que não permitirei que te façam mal!

Helga buscou o amuleto que Helgi escondia dentro da túnica, junto ao coração. Era uma pedra azul, bela e tão mágica, que um simples toque foi suficiente para apaziguar o tormento do espírito. Ao constatar o alívio da irmã, o príncipe fez menção de pôr a pedra ao seu pescoço. Contudo, ela deteve-o, objetando numa voz dolorida:

— Não... Só a tua essência tem poder para ocultá-la! Ao meu peito, a rainha não tardaria a descobrí-la... E nos mataria por traição!

Helgi estremeceu diante do julgamento da irmã. Respirou fundo e respondeu num tom que denunciava reprovação:

— Por que convenceu o nosso pai a empreender esta loucura? Se a rainha descobre que foram as tuas palavras que o moveram, a castigará, na certa!

— As nossas crianças estão a morrer de fome!

— O Sna... O nosso primo estabeleceu novos contatos...

— Eu já não suporto a guerra, Helgi! — atalhou ela, exasperada. — Quero sair desta prisão... Buscar a felicidade numa nova vida! Tu já viste o mar... Negará essa satisfação ao nossos irmãos mais novos; a todas as crianças que sofrem, sem compreender por que não podem procurar comida para lá dos espinheiros?

Pela primeira vez, o guerreiro pareceu desconcertado com as palavras de Helga. Enterrou o rosto nos seus cabelos e engoliu em seco, até sentir a cabeça arrebentar sob o peso da comoção.

— Perdoe-me... — murmurou. — Perdoe-me por ser incapaz de aliviar a tua dor...

— Ela vai nos ajudar! Eu sei! Ela não nos voltará as costas!

— Como pode depositar tamanha fé numa inimiga?

— Ela não é nossa inimiga, querido irmão... Os inimigos do nosso povo são aqueles que nos conduziram a esta desgraça!

De súbito, a minha essência elevou-se para longe do abrigo dos príncipes. Não partia por minha vontade, mas por imposição da magia, antes de conseguir esclarecer os dilemas com que Helga e Helgi se confrontavam. Há muito que a jovem vidente tentava livrar-se do domínio da bisavó... Se a feiticeira descobrisse o seu sonho de liberdade, seria capaz de magoá-la, como Helgi insinuara? Aesa era terrível, mas atentaria contra o próprio sangue? O que estaria o rei Vândalo a planejar, que suscitava tanto temor ao seu filho? E quem seria a mulher que Helga jurava estar disposta a ajudá-los? Mais uma inimiga com que os Vikings teriam de se bater? Eu esperava sinceramente que não!

A Floresta Sombria ficou para trás. Acreditei que ia regressar para casa... Porém, a magia levou-me a sobrevoar os domínios do Povo da Terra. Detive-me na torre do palácio, onde a luz de uma lamparina repousava sobre uma mesa larga e iluminava as feições perfeitas da rainha Lyria. Um menino, pouco mais velho do que Thorson, aninhava-se no seu colo, com o rosto pressionado contra o seu peito, profundamente adormecido. Diante deles, Thora emocionava-se com a música da flauta de Galinn, enquanto uma das irmãs da soberana lhe desentrançava os cabelos... Mais do que uma surpresa, isso foi um choque! A loba prateada estimara as suas tranças, durante anos! O que a levara a admitir tão drástica mudança?

— Não vou voltar, Lyria! — afiançava, numa voz rouca de emoção. — Como poderei encarar a Edwina, depois do que aconteceu? — Levou a mão ao ombro, rente ao pescoço, acariciando a marca que o rei-lobo lhe impusera, na noite da sua iniciação. — Eu traí a confiança da minha irmã!

— Não se precipite em decisões, sem ouvir o seu julgamento — replicou a rainha, com serenidade. — A Edwina é uma mulher sábia. Tenho a certeza de que reconhecerá que foi a magia da Montanha Sagrada que comandou a vossa vontade.

— A nossa vontade ia muito além do que a Montanha nos impôs! — replicou Thora, num gemido mortiço. — Por isso, parti antes que o Ivarr despertasse. Se os nossos olhos se encontrassem... Eu... Eu não conseguiria viver com o remorso! Sinto-me tão perdida... Toda a vida trabalhei para ser a primeira guerreira do rei-lobo. Agora, nem ao seu lado posso combater!

Escondeu o rosto entre as mãos e começou a chorar. Galinn parou de tocar, rodeou a mesa e envolveu-a nos seus braços. Lyria observou-os em silêncio, mas o seu olhar denunciava apreensão. Se Thora desejasse tornar-se uma princesa da sua casa, a Gente Bela teria muito a ganhar... Porém, como vidente, a rainha sabia que grandes males se abateriam sobre a Terra, se a loba prateada renunciasse ao rei-lobo.

Fechou os olhos e beijou os cabelos do filho, inspirando o seu cheiro com verdadeira adoração... E foi envolta nesse perfume de noite e prata que eu regressei ao meu corpo e me rendi a um sono profundo.

«O Que Tudo Vê» sempre me dissera que era necessária muita ponderação para interpretar o significado profético dos sonhos. Infelizmente, eu nem sempre conseguia decifrar os meus, a tempo de evitar as calamidades. Nessa manhã gélida, que prenunciava a chegada do Outono, a revelação da Floresta Sombria ocupava-me o pensamento. Contudo, a solução para o enigma encontrava-se mais perto do que, alguma vez, eu poderia imaginar.

 

A agitação começou no pátio, quando um guerreiro Viking atravessou os portões a galope, bradando que trazia uma mensagem para o rei Steinarr. Os guardas levaram-no à presença de Ivarr, que treinava com Ragnar, Bryan e Ketill. Depois de ouvir o homem, o príncipe fechou-se na sala de reuniões, com os seus guerreiros e os conselheiros do rei. Quando eu já remoía o fato de ter sido novamente excluída, mandou-me chamar. Entrei na sala, ardendo de curiosidade, e deparei com uma discussão fervorosa. Nereior silvava na sua voz maledicente:

— É uma armadilha! Onde já se viu, um Vândalo a propor conversas a um Viking? Antes disso, a Terra rodopiará em torno do Sol!

— Concordo! — dizia o homem ao seu lado, batendo com o punho fechado no peito. — Isto é um truque da bruxa! Quer zombar de nós; humilhar-nos, como fez nos Pântanos Nebulosos!

— O rei Steinarr ordenou a morte dos Vândalos que se atrevessem a sair da barreira de espinheiros — prosseguiu Nereior, fortalecido pelo apoio do companheiro. — Não deve contrariar a sua vontade, príncipe Ivarr! Esquartejemos esses assassinos e os mandemos para casa, atados aos seus cavalos, para que a bruxa perceba que não somos imbecis.

— Tenho a certeza, de que o rei Steinarr não previu esta situação — contestou o rei-lobo secamente. — Além disso, deixou bem claro que todas as resoluções ficariam a meu cargo, na sua ausência. — Estendeu um braço, apontando para a porta. — Já escutei as vossas opiniões. Agora, deixem-me a sós com a princesa Edwina. Chamarei quando tomar uma decisão.

Os conselheiros ainda discutiam entre si, quando Ketill e Ragnar fecharam a porta. Ivarr afundou-se no cadeirão, passando as mãos pela testa, enquanto desabafava:

— Não sei por que o meu pai insiste em manter Nereior entre os conselheiros! Esse velho é louco e obcecado por sangue! — Respirou fundo, indicando-me o trono de Steinarr. — Sente-se, Edwina... Preciso dos conselhos da Guardiã da Lágrima do Sol.

O seu ar solene deixou-me ainda mais intrigada... e assustada.

— O que foi que aconteceu, Ivarr?

O príncipe não fez rodeios:

— É do teu conhecimento que, após a batalha nos Pântanos Nebulosos, o meu pai montou um cerco ao reduto da rainha Aesa. Com a morte de Arnorr e a debandada dos Mercenários, os Vândalos perderam praticamente todo o contato com o exterior. O anel de espinheiros, que era suposto protegê-los, transformou-se nas grades de uma gaiola; tornou-os prisioneiros da sua própria armadilha. Há muito não se manifestavam... Porém, nestes dias, dois guerreiros atreveram-se a entrar no nosso território. Traziam uma bandeira branca desfraldada e uma mensagem do seu rei para o rei Steinarr. Vestein solicita uma audiência e permite que o meu pai decida onde esta se realizará, desde que lhe seja garantido salvo-conduto.

Fiquei tão perplexa, que não reagi de imediato. As palavras de Ivarr encaixavam-se no meu sonho e levantavam uma imensidade de questões. Ao ver-me tão hesitante, ele prosseguiu:

— A realizar-se este encontro, seria a primeira vez na história que os nossos reis estariam frente a frente, para conversar. E se este pedido estiver relacionado com o Magnor? E se os Vândalos pretenderem usar o meu irmão para obter vantagem?

— Não creio que seja isso — repliquei, tentando organizar as idéias que me redemoinhavam na cabeça. — Esta noite, tive um sonho... ou uma Visão, como queira chamar-lhe! Arrisco-me a acreditar que as intenções do rei vândalo são pacíficas.

— Vestein quer negociar a paz? — redarguiu Ivarr, incrédulo. — Não! Aesa jamais se renderia aos Vikings!

— Tem razão! — concordei. — Aesa lutará contra nós até à sua última réstia de poder... Mas é o rei vândalo quem solicita este encontro, não a rainha! Isso pode significar que a discórdia está implantada no interior da Floresta Sombria! No fim, o que temos a perder? Vestein não deixou ao nosso critério a escolha do local do encontro? Então, conceda-lhe salvo-conduto até o castelo. Dentro destas muralhas, os Vândalos estarão tão vulneráveis como coelhos no covil dos lobos. Se Vestein aceitar, provará a sua boa vontade. Se rejeitar... fica tudo na mesma! De qualquer forma, estamos sempre à espera que nos declarem guerra!

Ivarr sorriu levemente e passou a mão pela barba, exclamando:

— Esse foi o conselho mais sábio que já ouvi hoje! Vai de encontro aos meus desejos... Mas, mesmo assim, não sei... E se o meu pai não quiser falar com o Vestein?

— O rei confiou-te a administração do reino... Isso significa que está disposto a assumir as tuas decisões!

O príncipe confirmou com a cabeça, pensativo. Por fim, resolveu:

— Marcarei o encontro para daqui a três semanas. Por essa altura, o meu pai terá regressado e poderemos definir uma estratégia. O tempo estará mais rigoroso, o que dificultará os movimentos dos Vândalos dentro do nosso território. — Agarrou-me a mão e levou-a aos lábios. — Obrigado, Edwina! Quem precisa de um exército de conselheiros, quando tem a ti?

Não pude deixar de rir e fui surpreendida pela rapidez com que Ivarr me puxou para os seus braços. Baixou o rosto e beijou-me gentilmente, ansioso por uma resposta. Deixei-me envolver... até a lembrança de Thora surgir como uma avalanche, que arrasou toda a emoção e me deixou gelada. Finquei as mãos no seu peito, para afastá-lo, enquanto desviava os lábios. Ivarr respirou fundo e recuou, murmurando cabisbaixo:

— Não queria que a nossa convivência se alterasse...

— Isso era inevitável!

— Mas eu te amo...

— Não, Ivarr! — respondi contrariada. — O que nos une é uma amizade sólida; um afeto assentado em todas as dificuldades que superamos juntos. Não vale a pena continuarmos a nos enganar!

Os ombros do príncipe se curvaram e o olhar cristalino fixou-se no chão. Nós dormíamos separados, desde que ele recebera a bênção da Pedra do Tempo. Eu determinara-o, por todas as razões que me assombravam o espírito, mas Ivarr também não reclamara. Talvez tivesse pensado que, assim, seria mais fácil conquistar Thora, quando ela regressasse! Porém, a loba prateada teimava em permanecer sob a proteção da rainha Lyria... E o rei-lobo não tornara a manifestar vontade de partilhar a minha cama. Este seu beijo fora quase casto; mais um apelo por carinho, do que uma declaração de ardor. A chama do desejo apagara-se... Ambos tínhamos consciência disso!

— Sinto falta da Thora — confessou, após um instante de silêncio. — É como se... parte de mim se tivesse perdido! Todos estes anos ela esteve ao meu lado... E, apesar de não poder envolvê-la nos braços, era suficiente ver o brilho dos seus olhos, ouvir a frescura do seu riso... — Calou-se abruptamente, ao deparar com o meu constrangimento. — Perdoe-me, Edwina! É só que... Tu és a única pessoa com quem posso desabafar!

Ofereci-lhe as mãos, retorquindo gravemente:

— Receio ter me enganado, quando te aconselhei a não seguir a Thora. Talvez ela não necessite de refletir, mas de ser assegurada! Começo a achar que devemos ir ao seu encontro...

— A Thora está se enamorando por Galinn, não é verdade? — Cortou Ivarr, num tom baixo e gélido, recolhendo as mãos. — Mudou de opinião, porque teve uma revelação que te inquietou!

— Não! — apressei-me a negar. — Mas a Thora está longe de casa... separada de ti! E a separação não é benéfica para os vossos espíritos! Neste momento, ela é uma loba ferida, perdida da alcatéia... Resolva os assuntos pendentes, para que possamos viajar até à Floresta de Lyria e convencê-la a regressar. De outra forma, temo que a angústia e o desencanto se apodere dos vossos corações, e prejudique irremediavelmente o destino de todos nós.

A intenção era a melhor... Porém, nos dias que se seguiram, tudo se complicou à nossa volta. Ivarr concordou em ceder uma audiência ao rei do povo vândalo, nas condições que eu lhe sugeri, contra a vontade da maioria dos conselheiros. A data do encontro foi definida, de modo a conceder ao rei Steinarr tempo para regressar. No entanto, cerca de uma semana depois, quando se aguardava ansiosamente a chegada do Falcão Real, o meu primo Darrin desceu de um navio de comércio, que viera da Ilha dos Sonhos, trazendo novas do soberano para o seu primogênito.

Apesar de Darrin ser irmão gêmeo de Estrid, as semelhanças dos dois terminavam na cor dos cabelos e dos olhos. Além de ser um excelente guerreiro, ele era um homem íntegro, a quem eu confiaria a vida sem hesitar. A viagem ao Sul concedera um bonito tom de bronze à sua pele, que lhe evidenciava o verde-floresta do olhar. Os cabelos castanho-claros mal lhe tocavam as orelhas; mais tarde, explicou-nos que os cortara para se defender do calor. Começou por ajoelhar-se diante de Ivarr, prestando-lhe a reverência devida a um rei. O príncipe riu alto e puxou-o para os seus braços, sacudindo-o para elogiar-lhe a robustez.

Na confidência da sala de reuniões, diante do rei-lobo e da Guardiã da Lágrima do Sol, Darrin relatou o encontro do jarl Throst com o rei do Império. William navegara até ao território revoltoso, confiante de que ia esmagar uma rebelião de nativos ignorantes. Contudo, aguardava-o uma força três vezes superior à sua, com uma estratégia eficaz e armados até os dentes. Em duas batalhas, o Conquistador perdera o navio e vira finar-se a maioria dos seus guerreiros. O meu pai encontrara-o barricado num último reduto, vergado pelo desespero e pela vergonha e não hesitara em liderar os seus homens numa ofensiva contra os selvagens, o que lhes concedera algum tempo. Porém, a vitória só ficara assegurada com a chegada da frota de guerra comandada por Steinarr.

A apregoada sensatez de William estava agora aliada a uma dívida de gratidão. O rei do Império encarava as vicissitudes que enfrentara com amarga perplexidade. Jamais lhe passara pela cabeça que iria encontrar tamanha resistência ao seu domínio. As informações que recebera haviam-no induzido num erro quase fatal... Um erro que o jarl Throst desconfiava estar relacionado com a traição do príncipe John. Para mim, essa desconfiança era uma certeza! Na minha Visão, John agira como se já fosse rei do Império. Parecia não ter quaisquer dúvidas de que o pai não regressaria da campanha.

Depois de escutar os aliados, William ficara muito abalado. Navegara para a sua cidade, a bordo do Falcão Real, e encontrara-a de luto, a chorar a sua morte, na véspera de John ser abençoado por Esteban como rei do Império. O povo e o exército que lhe era fiel haviam enlouquecido de alegria, ao verificarem que estava vivo e de boa saúde. De imediato, Mão de Ferro preparara-se para fazer frente à guarda do falso padre. Sem o apoio do rei Steinarr, talvez o desfecho desta história tivesse sido diferente. Porém, ao ver o pai rodeado por mais de uma centena de guerreiros Vikings, sem querer ouvir uma palavra acerca do confronto que nos opusera no porto, John não tivera outra opção, senão ajoelhar-se diante dele e saudar o seu retorno. As lágrimas de alívio que vertera, ocultavam a sua raiva... E o seu temor! O príncipe sabia que a confiança do pai estava ferida.

Por mais que lhe doesse, o rei do Império tivera de admitir que algo muito estranho se passara na sua ausência. Decidido a assegurar a continuidade do Tratado, pedira que Lorde Stefan McGraw viesse ao seu encontro, como representante dos clãs nativos da Grande Ilha, para que o juramento que fizera há alguns anos fosse reafirmado por John, diante do povo. Sem hesitar, o meu pai oferecera-se para ser o mensageiro, pois possuía o navio mais rápido. Quis o destino que Darrin chegasse à Enseada da Fortaleza, na mesma noite que o jarl, regressado da aventura pelos mares do Sul. Mal soubera da tragédia que abalara a família, e das novas vindas do Império, já se propunha a navegar até à Ilha dos Sonhos, para pôr Catelyn a par dos últimos acontecimentos e assegurar-se do restabelecimento do pai. Depois, sem delonga, rumara ao Norte, a fim de informar Ivarr de que o rei Steinarr não retornaria para casa nas próximas semanas.

Saber que, no momento em que Darrin falava, o rei Viking, o jarl da Ilha dos Sonhos e o senhor da Grande Ilha enfrentavam John e Esteban, deixou-me angustiada. Por mais que desejasse confiar na boa índole do rei William, temia um novo assalto do feiticeiro maldito. Darrin não possuía mais informações, mas eu imaginava que o mestre da Arte Obscura se sentisse encurralado, sem ter como justificar o ataque ao tio Edwin, o roubo das pedras mágicas e a morte do tio Berchan. Se apelasse ao seu talento para suplantar a vontade do rei do Império e dos Aliados, podíamos estar à beira da maior desgraça de que guardaríamos memória... E eu tinha a certeza de que Esteban não pretendia cruzar os braços e resignar-se à derrota!

— Os nossos líderes estão cientes do perigo, Edwina. — Ivarr tentou confortar-me, ao constatar a minha palidez. — William é um homem venerado pelo povo... Os conspiradores estariam a determinar o seu próprio fim, se se atrevessem a atacá-lo, e aos seus salvadores. Neste momento, a posição de John e Esteban é muito frágil para que se rebelem contra a vontade do rei. Decerto, estão mais preocupados em legitimar, aos seus olhos, as atrocidades que cometeram.

Por que é que nenhum destes argumentos me tranqüilizava? No entanto, parecia ser a única a inquietar-se. Cumprida a sua missão, Darrin voltava a inclinar-se diante de Ivarr e anunciava:

— Tomei conhecimento de que o Eric se tornou jarl da Terra Antiga e deixou o teu serviço. Apesar de não ser um guerreiro-lobo, ouso pedir-te que me concedas a honra de servir na tua guarda. Juro-te, pela minha vida, que tudo farei para te cobrir de glória.

O primo pôs-lhe uma mão sobre o ombro e afirmou:

— Conheço bem o teu valor e aprecio a tua amizade... Lutará ao meu lado, já que tanto o ambiciona. Agora, vá comer e descansar. Amanhã, começará a treinar com os meus guerreiros.

Darrin agradeceu e apressou-se a obedecer-lhe. Mal ficamos a sós, o príncipe deixou-se cair no cadeirão e escondeu a cabeça entre as mãos. Indaguei do porquê da sua perturbação, já que não se devia ao temor de uma traição do Império. A resposta deixou-me petrificada:

— O meu pai jamais regressará a tempo de encontrar-se com o rei dos Vândalos.

Era verdade! E agora? Ivarr dera a sua palavra; pior, dera a palavra do rei Viking, em como a reunião se realizaria. Cancelá-la seria entendido como uma afronta... Levá-la adiante, podia ser considerado uma humilhação, uma vez que Vestein esperava falar com Steinarr, e não com o seu herdeiro.

— Não pode voltar atrás! — declarei com firmeza. — Receberá o rei Vestein, em nome do rei Steinarr. Falará com a autoridade que te foi concedida e decidirá como achar conveniente. Está se preparando para se tomar soberano do nosso povo, desde que nasceu, Ivarr! Confie no teu julgamento e aja sem temor.

 

O Outono cravava as garras nas Terras do Norte. Os nevoeiros cerrados circundavam as montanhas e pairavam sobre os vales. Chovia a todo o instante e, à noite, a terra molhada cobria-se de gelo que estalava debaixo dos cascos dos cavalos. Eu não podia ver os cavaleiros, sem recorrer à Arte, mas ouvia distintamente esse som arrepiante, enquanto aguardava a chegada do rei Vestein e da sua comitiva, na varanda do meu quarto.

No pátio, há muito que se tinham acendido archotes. As brumas impediam os homens de enxergarem dois palmos diante do nariz. Alguns já se questionavam se o rei do povo vândalo decidira montar acampamento, devido ao mau tempo. Dois guerreiros aguardavam-no, para  conduzi-lo até à sala de reuniões, onde o príncipe se preparava para falar com ele. O rei-lobo escolhera criteriosamente aqueles que o acompanhavam. Além da sua guarda, só três dos conselheiros do rei Steinarr, por quem nutria plena confiança, haviam sido autorizados a assistir à conversa. Ao conhecer essa decisão, Nereior berrara tanto que quase demolira o castelo... até Ivarr lhe comunicar, com autoridade, que, se não se calasse, iria gritar para os calabouços.

Eu passara o dia a meditar, pedindo à Pedra do Tempo que me concedesse a sabedoria necessária para ajudar Ivarr neste momento crucial. Apenas uma preocupação me distraíra — certificar-me de que Freya manteria Thorson afastado dos vândalos. Conhecia demasiadamente bem o apelo do sangue, para saber que corríamos um risco tremendo.

Quase saltei de dentro das botas, quando uma corneta ecoou na muralha do castelo, anunciando a aproximação dos visitantes. Fundi-me com as sombras e observei a entrada de dois cavaleiros Vikings, seguidos por cinco cavaleiros vândalos. Mais guerreiros Vikings fechavam a comitiva... Vestein só trouxera quatro homens para protegê-lo?!

Recuei para o interior do quarto e preparei-me para descer. Antes de sair, apertei a Lágrima do Sol junto do peito e assimilei a sua luz. Uma nova esperança podia nascer esta noite, para o nosso povo e para aqueles que, entre os Vândalos, também desejavam a paz, caso, no decorrer da conversa, o ódio não suplantasse a razão.

O trono de Steinarr ficou vazio. Ivarr mandou trazer outro cadeirão, onde me sentei. Os três conselheiros quedaram-se de pé, no lado oposto. A guarda do rei-lobo mantinha-se imóvel, por trás de nós. Darrin enrubescia de emoção, por lhe ter sido concedida a honra de estar presente.

As portas abriram-se e o rei Vestein, filho de Bror, foi anunciado. Um homem alto e possante entrou, seguido por outro mais jovem, tão encorpado como um urso. O meu coração apertou-se, ao fixar o olhar no rei vândalo. Eu estivera a curta distância do arremesso do machado de Arkin, o seu primogênito. Jamais esqueceria as linhas da expressão do feroz guerreiro, tão semelhantes às do pai... Porém, não tanto como as de Helgi! Se a vida concedesse mais alguns anos ao Espírito da Escuridão, ele seria a imagem do homem que se encontrava diante de mim.

O guerreiro que acompanhava Vestein também era seu filho. A robustez deformava-lhe o semblante; tornava-o duro, até sinistro. No entanto, algo no seu penetrante olhar azul inspirou-me simpatia. Cerrei os dentes e abati o pensamento. Estes homens eram nossos inimigos, e nos seus corpos corria o sangue de Aesa! Se me esquecesse disto, acabaria morta ou a chorar aqueles que amava.

O rei Vestein apresentou cumprimentos ao príncipe Ivarr, com um olho pousado no trono vazio, o cenho carregado e a voz fria, quase exasperada. Isto era um mau começo!

Ivarr retribuiu a saudação e concluiu, com sinceridade:

— Devo desculpar-me pela ausência do rei Steinarr. A viagem do meu pai delongou-se... No entanto, asseguro-vos de que tudo o que falarmos chegará ao seu conhecimento.

Vestein ouviu... E não gostou.

— Eu vim diante do rei Steinarr, e do príncipe Ivarr, com o meu herdeiro, o príncipe Delling, para que pudéssemos conversar de igual para igual, de soberano para soberano, de pai para pai, de homem para homem... Infelizmente, vejo que Steinarr não reconhece o meu empenho e prefere desprezar-me com a sua ausência. Nesse caso, nada tenho a dizer...

— Lamento que pense assim — interrompeu Ivarr. — Reafirmo que o não comparecimento do meu pai se deve a motivos de força maior. Eu tenho permissão para falar e decidir em seu nome...

— Deveras? — Foi a vez de Vestein atalhar, numa voz que estrondeou como um trovão. — Quem me garante que a palavra de um príncipe será reconhecida por um rei?

— Se a minha palavra não lhe basta — respondeu Ivarr, num tom igualmente irascível —, ordenarei que o escoltem de regresso à Floresta Sombria, e nenhum de nós perderá mais tempo!

Vestein não se moveu, mas o sangue subiu-lhe às faces e evidenciou-lhe a cor acobreada dos cabelos. Hesitou... Era notório o esforço que fazia para domar a respiração. Os seus punhos estavam cerrados, o corpo tenso, o olhar em chamas... Ao seu lado, o gigante parecia perdido. Delling não demonstrava a convicção de um herdeiro. Ocorreu-me que talvez nunca lhe tivesse passado pela cabeça assumir tal responsabilidade. Afinal, era o segundo filho...

— A Guardiã da Lágrima do Sol confirma que o príncipe Ivarr fala em nome do rei Steinarr?

O olhar de Vestein caiu sobre mim, ao lançar a pergunta como um punhal. Quase me engasguei, desprevenida, mas respondi:

— Sim, senhor. Assim é.

Ivarr bufou de irritação:

— Devo concluir que confia na minha esposa, e não em mim?

— Eu confio na minha filha — retrucou Vestein, mirando-me com uma intensidade incômoda. — E ela disse-me para acreditar na portadora da marca do dragão do Sol.

Nesse instante, descobri a identidade da mulher a quem Helga se referira como uma aliada, durante a emotiva conversa que tivera com Helgi, e que a minha Visão surpreendera. Era em mim que ela depositava a sua esperança! Senti as lágrimas subirem-me aos olhos. Angustiava-me testemunhar a luta da princesa contra as trevas impostas pela magia que habitava na sua essência. Eu tinha que ajudá-la! Afinal, combatíamos a mesma inimiga! Se eu fora amaldiçoada por Aesa, a Helga impunha-se sobreviver ao jugo da bisavó feiticeira, numa batalha diária.

— O cerco por vós imposto, impossibilita os nossos homens de se afastarem em busca de comida. A caça foi espantada pela presença dos guerreiros e, agora, até a terra se recusa a prover-nos sustento. Sem pasto, os animais deixaram de dar leite e muitos morreram de fome. O solo da aldeia está a tornar-se estéril e poucas sementes conseguem vingar. O que recolhemos na estação quente não chegará para sustentar-nos no Inverno... E a magia da nossa rainha não pode acudir-nos nesta provação.

Vestein falava a verdade. A essência do poder de Aesa era a morte. Facilmente criaria um deserto ou um pântano... Porém, tornar um terreno fértil estava além das suas capacidades! Escutei o rei dos vândalos, impressionada. As suas palavras revelavam uma coragem digna de respeito. A humildade deste homem nunca seria motivo de zombaria ou humilhação, porque, apesar do peso que lhe vergava os ombros, ninguém se atreveria a menosprezá-lo.

— O ódio que nos separa é profundo... — continuou sobriamente. — Porém, o sofrimento do meu povo desespera-me! Venho até vós admitir que sois mais fortes, e pedir a clemência do rei Steinarr, para que o cerco seja levantado. Em troca, estou disposto a garantir que os Vândalos não atacarão os territórios Vikings... e a pagar tributo, desde que este não signifique a escravidão.

O prodígio realizara-se! Vestein rendia-se! O caminho para a paz abria-se diante dos nossos olhos... e colocava Ivarr numa posição delicada. Os conselheiros de Steinarr entreolhavam-se, temerosos de que a sua juventude o deixasse deslumbrado diante da proposta, e o levasse a assumir um compromisso, sem medir as conseqüências. Porém o príncipe provou que tinha os pés bem assentados na terra, ao replicar:

— Apraz-me saber que deseja pôr fim às hostilidades que há muito nos dividem. Contudo, é notório que os Vândalos têm... uma rainha de vontade forte! O que é que ela pensa da vossa intenção?

Vestein inclinou ligeiramente a cabeça e respondeu com firmeza:

— É verdade que os Vândalos têm uma rainha de vontade forte... Mas têm igualmente um rei soberano, que desfruta do apoio dos chefes de clã e do povo! Asseguro de que a rainha Aesa acatará a minha decisão.

Um dos conselheiros aproximou-se do príncipe e segredou-lhe ao ouvido. Quando terminou, os outros imitaram-no. Ivarr surpreendeu-me ao indagar:

— E o que me diz a Guardiã da Lágrima do Sol, da proposta do rei Vestein?

Retive o fôlego, com o coração a martelar-me o peito. Edwina, filha de Throst, tinha vontade de aplaudir o esforço do rei vândalo. Porém, a Guardiã da Lágrima do Sol pressentia que este processo não seria tão simples como o acordo de paz que unira as Terras do Norte à Grande Ilha. Havia magia imiscuída nos assuntos dos Homens. E Aesa jamais admitiria que alguém, mesmo o seu rei, lhe desse ordens! Não... Eu devia assegurar a proteção do meu povo! Recordei as palavras de Steinarr, que tanto me tinham custado a engolir: «Em tempo de guerra, a piedade conduz-nos a morte.» Sob o peso desta súbita responsabilidade, entendia finalmente o seu significado! Respirei fundo, antes de começar:

— Congratulo-me com esta concessão, que acredito trazer grandes benefícios aos povos aqui representados. No entanto, apesar da valorizar a palavra do rei Vestein, é minha convicção de que este acordo não pode ser celebrado, enquanto a rainha Aesa não apresentar provas de submissão à vontade do seu soberano.

Enquanto eu falava, o rei dos vândalos franzia o cenho.

— E que provas deseja, senhora? — retrucou.

Olhei para Ivarr, temendo que ele desejasse discutir este assunto em privado, antes de expô-lo a Vestein. Contudo, o príncipe esboçou um gesto de aprovação, convidando-me a terminar.

— A vossa rainha roubou as pedras mágicas da minha família — respondi. — Para que os Vikings levantem o cerco ao território dos Vândalos, estas deverão ser-me entregues, intactas.

A postura de Vestein cedeu um pouco. O seu rosto manteve-se inalterado, mas o olhar azul denunciava angústia ao retorquir:

— Pede a única coisa que não posso dar! Para a rainha Aesa, essas pedras são o maior tesouro da Terra... um valor mais precioso do que a vida do seu povo ou a união da sua família. Jamais abdicará delas!

— Eu faço minhas as palavras da Guardiã da Lágrima do Sol — interferiu Ivarr, com acirrada convicção. — Só haverá acordo, se as pedras mágicas nos forem restituídas.

O semblante de Vestein endureceu. Encheu o peito de ar e revidou:

— Então, príncipe Ivarr, não haverá acordo!

E voltou-se para sair, devorando o chão em passadas largas. O filho ficou para trás, como que atordoado. Então, sem que ninguém pudesse prever, a porta escancarou-se... e Thorson entrou correndo, parando a dois passos do rei dos vândalos. Este estacou, surpreendido. Freya surgiu, bradando o nome do pequeno, afogueada. E eu fechei os olhos e murmurei uma prece... sabendo de antemão que não seria atendida.

— Thorson... Não! Venha cá!

Freya conseguiu finalmente agarrar o filho e tentou arrastá-lo para fora da sala. O pequeno começou a gritar em protesto. Desejei com todas a forças que o rei Vestein seguisse adiante e os ignorasse. Porém, ele vociferou:

— Espere, mulher!

Foi o suficiente para que me lançasse em frente, ao encontro da minha irmã... e de uma catástrofe iminente. Num piscar de olhos, todos os Vikings tinham desembainhado as espadas e apontavam as lâminas ao peito do soberano vândalo. Delling usava o seu corpo avantajado para resguardar o pai, mas Vestein afastou-o com brusquidão. O seu olhar estava prisioneiro do garoto de cabelos castanhos acobreados e magníficos olhos azuis, que se debatia para tentar alcançá-lo. Com esforço, desviou-os e fixou-os em mim, perguntando num tom perigosamente enrouquecido:

— O que é que significa isso? Quem é este menino?

— É o meu filho! — vociferou Freya, apavorada. Por mais que se esforçasse, era incapaz de dominar o ímpeto de Thorson... e as lágrimas começavam a escorrer-lhe pelo rosto.

— Seu filho? — A voz de Vestein tornou-se mais branda, ao compreender que estava diante de uma mulher de sangue nobre. — E posso perguntar-lhe, senhora, quem é o pai desta criança?

As pernas de Freya cederam. Teria caído, se eu não a amparasse. Acabamos sentadas no chão, com Thorson apertado entre os nossos corpos, finalmente quieto, como se soubesse que não necessitava de prolongar os distúrbios, pois o seu propósito já fora alcançado. A minha irmã chorava compulsivamente e gemia o meu nome. Encontrei o olhar assombrado de Ivarr, que também se fixava em Thorson. O rei-lobo questionava-se como esta história pudera passar-lhe despercebida, quando, neste instante, era mais do que óbvia. De súbito, o príncipe Delling exclamou, num misto de espanto e maravilha:

— Por todas as serpentes do submundo...! Este pequeno é a cara do Helgi!

Ivarr embainhou a espada e ordenou:

— Guardem as armas e deixem-nos a sós com o rei Vestein.

Os seus guardas protestaram, sem compreenderem o que se passava.

O rei-lobo insistiu, tentando manter a calma que o momento exigia:

— Aguardem lá fora!

Os guerreiros recuaram, mas esperaram pelo príncipe Delling. Este hesitou, abismado. Porém, bastou um gesto do pai para que saísse, escoltado pelos Vikings.

Quando a porta se fechou, eu tinha uma irmã destroçada nos braços e um sobrinho irrequieto ao colo. Ivarr fitava-me, reprovador, descontente por ter sido excluído de um segredo tão importante. Vestein não desviava o olhar de Thorson, aguardando que alguém se dignasse a explicar-lhe como é que uma criança do seu sangue se encontrava na casa do seu maior inimigo.

Thorson tornou a estrebuchar e eu libertei-o. Após tamanho arrebatamento, temi vê-lo saltar para o pescoço do avô. No entanto, aproximou-se devagar e quedou-se diante dele, como se o enfrentasse de homem para homem. Vestein deixou escapar uma exclamação imperceptível. O azul-celeste do seu olhar fulgurava de comoção, quando perguntou:

— Como se chama?

O rapaz respondeu e o rei vândalo estendeu-lhe a mão, acrescentando:

— O meu nome é Vestein.

— Eu sei — respondeu Thorson, retribuindo o cumprimento com a solenidade de um adulto. Depois, fez algo espantoso. Manteve presa a mão do avô e espreitou-lhe o pulso, onde a tatuagem do dragão da Lua, símbolo de sua linhagem, lhe enfeitava a carne.

— Tu devias ter uma igual — declarou Vestein; a voz vincada por um carinho possessivo.

— O Thorson é livre — repliquei, ajudando Freya a levantar-se. — Não nasceu servo do Sol nem da Lua. — Com um gesto simples, mostrei-lhe o pulso da minha irmã, marcado pela tatuagem do dragão do Sol, tal como o meu.

Satisfeita a curiosidade, o pequeno veio ao encontro da mãe e abraçou-se às suas pernas. Freya agarrou-o ao colo e estreitou-o contra o peito. Vestein esperou que ela se sentasse no meu cadeirão e se recompusesse, antes de questioná-la:

— Posso saber o seu nome, senhora?

A minha irmã enxugou as lágrimas com a ponta dos dedos, e fixou o olhar verde floresta no rei vândalo, respondendo com altivez:

— O meu nome é Freya, filha de Throst e Catelyn da Ilha dos Sonhos, irmã da Guardiã da Lágrima do Sol... e bisneta de «O Que Tudo Vê».

Então, Vestein deu um passo em frente e inclinou-se sobre um joelho, reverenciando-a.

— É um prazer conhecê-la... — hesitou, refletindo. — Vejo que esta assustada, mas não tem razões para tal. Juro que, ao encontrar-me diante de vós e do vosso filho, as minhas intenções são as melhores. Peço-vos que me conte a sua história; que me ajude a compreender...

E Freya falou-lhe do dia em que um jovem aprendiz de druida lhe salvara a vida, na Ilha dos Penhascos, e de como tinham voltado a se encontrar, na Ilha dos Sonhos, durante a festa da Renovação. De novo sucumbiu ao pranto, escondendo o rosto nos cabelos do filho, e eu continuei:

— O Thorson foi concebido sob a influência de uma magia poderosa, que dominou a vontade da Freya e do Helgi. Porém, quando essa magia se dissipou, a minha irmã foi confrontada com a verdade cruel acerca da missão traiçoeira do homem por quem se apaixonara. Ele partiu, para entregar as pedras mágicas da nossa família à sua rainha, ignorando que aquela noite teve conseqüências... E esse desconhecimento manteve o Thorson a salvo! Já percebi que sois um homem ponderado, rei Vestein... E apelo à vossa sabedoria e compreensão. No instante em que a existência desta criança chegar ao conhecimento da rainha Aesa, o confronto entre Vikings e Vândalos será inevitável. Eu não desejo a guerra, mas lutarei até a última gota de sangue para manter o meu sobrinho afastado da mestra da Arte Obscura!

As últimas palavras soaram secas e gélidas, como uma ofensa. E foi propositado! Queria demarcar o meu território; deixar bem claro que Thorson desfrutava da minha proteção. No entanto, para nosso assombro, Vestein declarava-se um avô embevecido, ao invés de um rei inimigo. Ergueu a mão para acariciar os cabelos do neto e o garoto estendeu-lhe os braços. Receei que a minha irmã se retraísse, mas Freya teve o discernimento de libertá-lo. Ivarr observava-nos em silêncio, muito perplexo para se manifestar. No fim, enquanto Thorson brincava com as suas barbas, Vestein declarou:

— Devo confessar que esta revelação me deixou bastante abalado! Preciso de me recompor, de pensar... — Os seus olhos voltaram-se para o príncipe Viking. — Será ousadia da minha parte solicitar a hospitalidade do rei Steinarr, por mais um dia?

— Pode ficar quanto tempo desejar — respondeu Ivarr sobriamente. — Contudo, necessito da garantia de que nada fará para prejudicar o Thorson.

Recebeu-a no mesmo instante:

— Tem a palavra do rei Vestein do povo vândalo!

 

O rei Vestein ficou dois dias. Por fim, eu já me forçava a recordar que aquele homem afável era neto de Aesa... E esse fato varrera-se da mente de Freya! A minha irmã encantava-se, por ver Thorson ao colo do avô, como se se atrevesse a sonhar com um final feliz para a sua história. Quem não estava nada satisfeito era Ketill! O primo de Ivarr assimilara dolorosamente a verdade e afastara-se da mulher que amava. De certa forma, tal deixou-me aliviada. Eu não acreditava que Vestein soubesse que fora Ketill quem matara o seu primogênito... Porém, era melhor não desafiar a sorte! Nestes dias decisivos, um acerto de honra seria calamitoso para Vikings e Vândalos.

Delling revelou-se uma agradável surpresa! Aquele corpo formidável escondia um homem divertido, que nunca dispensava dizer uma piada. Thorson adorava-o! Em uma das nossas conversas, enquanto o sobrinho lhe trepava nos ombros e enterrava os dedos nas narinas, para se equilibrar, o colosso confidenciou-me:

— Tenho três traquinas como este, lá em casa... Não sei o que faria sem eles! Espero que a concessão do meu pai não seja vã, e que haja trégua entre os nossos povos. Se o cerco não for levantado, muitas crianças morrerão durante o Inverno, na Floresta Sombria.

O príncipe vândalo não tentava apelar à minha compaixão. Estava a ser sincero! A alma benévola de Delling declarava-se no seu olhar. Se o destino não nos tivesse colocado em campos opostos, talvez pudéssemos ser amigos. Nessa tarde, verti lágrimas de tanto rir, ao vê-lo engatinhar pela sala de estudo, com Thorson montado nas costas. O pequeno agarrava-se aos seus cabelos com ambas as mãos, e apertava-lhe os pés contra as costelas, como se o tio fosse um cavalo.

O rei Vestein e Ivarr chegaram nesse momento. Tinham acabado de reunir-se, mas não pareciam constrangidos. Afinal, talvez a ausência de Steinarr se provasse vantajosa! Era óbvio que o rei dos vândalos não encarava Ivarr como o seu principal adversário, e a inteligência e persistência do rei-lobo estavam a desbravar caminhos através de florestas sinuosas, permitindo a entrada de luz em locais que só conheciam trevas, desde que o Homem se recordava.

Freya tentou serenar o entusiasmo do filho... e acabou enrolada na brincadeira. Ivarr também não resistiu a participar. Ao meu lado, Vestein exclamou:

— Além de bela, a vossa irmã é uma grande mulher, princesa Edwina!

Encarei-o, com o coração apertado, e não segurei a língua:

— A Freya já sofreu muito, senhor... Espero que o futuro não lhe reserve mais tormentos!

O rei hesitou, tocado pela minha franqueza. Quando respondeu, conseguiu surpreender-me:

— No dia em que Helgi e Helga nasceram, a rainha Aesa escolheu-os para se tornarem seus guerreiros, em carne e em espírito. Ao longo dos anos, Helga sempre manifestou resistência à vontade da rainha. Pelo contrário, Helgi orgulhava-se de ser o seu preferido... Até o dia em que o vimos regressar da última grande missão que a bisavó lhe atribuiu. Tornou-se óbvio que algo mudara no seu coração, durante a... busca pelas pedras mágicas. A rainha tentou descobrir do que se tratava... Como não conseguiu, começou a castigá-lo! Hoje, o preferido de Aesa é o meu sobrinho Snari. E o Helgi praticamente trocou a espada pela enxada.

Fez uma pausa para recuperar o fôlego e fixou-me com o intenso olhar azul. A sua expressão tornou-se ainda mais solene ao continuar:

— Eu vim até o castelo do rei Steinarr com o coração carregado de rancor, forçado pela necessidade do meu povo a implorar a clemência de um inimigo. E o que vi e ouvi, em nada correspondeu ao que esperava! Hoje, ainda acho que dificilmente Vândalos e Vikings serão aliados... Mas penso que podemos tentar não ser adversários! Pelo menos, o devemos a um príncipe vândalo e a uma princesa Viking, que durante anos se amaram e sofreram em segredo, pelo que julgavam ser o melhor para os seus povos. Todavia, está provado que nenhum bem resultará deste conflito! A minha decisão está tomada, princesa Edwina... Se, ao regressar, o rei Steinarr reafirmar a vontade do seu filho e herdeiro, eu próprio entregarei à família McGraw as pedras mágicas que se encontram na guarda da rainha Aesa.

Freya chorou quando disse adeus ao rei Vestein e a Delling. O príncipe voltou atrás, desceu do cavalo, e abeirou-se dela, murmurando-lhe ao ouvido. Apelei à Arte para aguçar a audição, e ainda alcancei as suas últimas palavras:

— Quando o Verão chegar, os nossos filhos estarão a brincar juntos!

Engoli as lágrimas a custo e desejei que o rei Steinarr retornasse rápido, não só porque tal significaria que o Tratado estava salvo, e que os planos maléficos de John e Esteban haviam sido frustrados, mas também para que a determinação de Ivarr pudesse ser reafirmada ao rei vândalo. Eu nem imaginava como Aesa reagiria ao propósito do neto! Assim que os vândalos e a escolta Viking deixaram o castelo, Ivarr preparou-se para enfrentar um grupo de conselheiros irados. Durante anos, eu revoltara-me por Steinarr me excluir das decisões políticas. Nos últimos dias, sentia-me tentada a agradecer-lhe! Começava a achar que era mais fácil defrontar Aesa, do que agradar àqueles homens. Se Ivarr falhasse em impor-lhes a sua vontade, jamais seria respeitado como rei.

 

Darrin seguiu os companheiros até o pátio, para mais uma manhã de treinos rigorosos, empenhado em aumentar a sua destreza em combate. Fazer parte da guarda pessoal do príncipe Viking era um risco acrescido, no campo de batalha, e o meu primo não possuía o elo místico da alcatéia para protegê-lo. O seu empenho para evoluir era notável e os resultados evidenciavam-se, ao ponto de Bryan lhe ceder um elogio.

Depois de entregar Thorson aos cuidados da Senhora Doralia, Freya arrastou-me para o quarto. Intrigada, vi-a trancar a porta, com o rosto corado e as mãos pouco firmes. Estava tão excitada, que a voz tremeu-lhe ao exclamar:

— Ele ainda não se casou, Edwina!

Ia perguntar-lhe a quem se referia, mas o brilho no seu olhar elucidou-me. Sem dar conta da minha apreensão, Freya prosseguiu:

— O Delling confidenciou-me que, há muito, a rainha tenta casar o Helgi com uma prima. Contudo, ele recusa essa imposição. — O sorriso extravasou-lhe dos lábios. — Prometeu-me que averiguaria se o irmão ainda gosta de mim, sem contar-lhe acerca do Thorson...

— Está brincando com o fogo, Freya! — repliquei, horrorizada. — Como foi capaz de pedir tal coisa ao Delling? Esquece que ele possui o sangue de Aesa?

— Eu sinto que posso confiar nele, Edwina...

— Como podia confiar no Helgi? — contrapus, mesmo sabendo que ia magoá-la. — Enquanto a feiticeira respirar, o Thorson não estará seguro! Acha que o que aconteceu não foi muito arriscado? Mesmo que o rei Vestein seja sincero nas boas intenções, quem nos garante que Aesa não conseguirá ver através dele? Quando se trata da mestra da Arte Obscura, não podemos facilitar uma unha!

Eu detestava causar sofrimento à minha irmã, mas ela tinha de encarar a verdade! Preocupava-me constatar que, depois do longo caminho que percorrera, Freya tornava a sonhar com o impossível. O rei Vestein falara de paz... mas, ainda que esta fosse garantida, seria sempre periclitante. Para não falar do fato de que Helgi jurara lealdade à rainha, e não ao seu pai! Se Aesa se revoltasse contra o rei, o Espírito da Escuridão continuaria a ser nosso inimigo... Aí estava outro pensamento que não era, de todo, reconfortante!

 

A manhã que aconteceu a partida dos Vândalos nasceu gélida e cerrada de nevoeiro. Cuidei dos meus afazeres e recolhi-me ao quarto, sentando-me na cama com a Lágrima do Sol entre as mãos. A tentação de buscar Edwin era tão forte, que o esforço para contrariá-la me fazia estremecer. Porém, não cedia, apesar da sua recordação ser uma sombra que me acompanhava, mesmo quando a atenção se concentrava noutros problemas. Naquele malfadado dia, na casa da Velha do Tronco Oco, testemunhara o meu fim nas mãos do Rei da Lua... Devia concentrar-me em alterar esse futuro, não em provocá-lo! Contudo, dava por mim a conjecturar se as nossas vidas teriam sido diferentes, se eu me tivesse negado a perdê-lo; se continuasse a buscá-lo, mesmo quando julgara que toda a esperança estava perdida...

— Não! — murmurei entre dentes, dobrando a própria vontade. — Tu não és fraca, Edwina! Não se entregará ao teu carrasco!

Obriguei-me a esquecer Edwin. Havia outros assuntos que urgiam o meu cuidado. Thora não voltara a dar sinais de vida! Jamais me passara pela cabeça que suportasse estar tanto tempo longe de casa, afastada do rei-lobo. Começava a inquietar-me... E se ela estivesse tão perturbada, tão aterrorizada, tão confusa, que fosse incapaz de enfrentar o seu destino? Qual seria o futuro do nosso povo, se a loba prateada se rendesse ao desencanto e buscasse um novo rumo?

De súbito, a música de uma flauta deslizou-me pelos ouvidos; um chamado irresistível, que me arrancou do corpo e guiou através do País dos Vikings, até os domínios da rainha Lyria. No coração da floresta, à beira de um lago onde uma névoa enxertada de azul e prata se passeava, Galinn estava sentado sobre uma pedra alta, gasta pela passagem do tempo, e tocava uma melodia capaz de serenar a mais feroz das feras. A poucos passos, Thora rodopiava; cabeça voltada para o cinzento negro do céu, olhos fechados, cabelos soltos ao vento, braços estendidos para receber as primeiras gotas de chuva purificadora, que caíam sobre eles. A saia do seu vestido de lã só não se elevava para revelar-lhe os joelhos, porque a capa grossa e comprida a cingia. Desde quando é que a minha irmã se vestia como uma mulher?

Um trovão ecoou ao longe e a música calou-se. Surpreendida, Thora deteve a dança e encarou o olhar azul estrelado, que se fixava na sua figura graciosa, perguntando:

— O que foi? Por que parou de tocar?

Um sorriso enlevado iluminou o rosto de Galinn. A sua voz flutuou por entre as gotas de chuva, tão perfeita e serena como a sua música:

— Porque, se continuasse a vê-la bailando sobre a névoa, como uma deusa de fogo e de gelo, acabaria por apaixonar-me!

Esperei que Thora reclamasse da ousadia. Já a vira explodir de indignação com galanteios muito mais inocentes! Todavia, enrubesceu e retribuiu o sorriso, antes de se dirigir ao príncipe da Gente Bela e inclinar-se sobre ele, replicando provocadora:

— Isso seria assim tão mau?

E beijou-o nos lábios; uma carícia superficial, quase casta. Perplexo, Galinn não correspondeu... Mas impediu-a de afastar-se, rugindo num tom que desafiava a tempestade que se exaltava sobre as suas cabeças:

— Por que me tenta com um amor que não pode me dar?

A loba prateada não se queixou do seu ardor. Qual mestra de sedução, enlaçou os dedos nos cabelos negros do guerreiro e mergulhou no seu olhar, onde o brilho das estrelas se sobrepunha ao azul noturno, respondendo:

— Eu sou livre para oferecer o meu amor a quem quiser!

Um trovão fez o solo estremecer. As nuvens rasgaram-se e bátegas de água fustigaram o bosque. Alheio à tormenta, Galinn puxou Thora contra o seu corpo e envolveu-a nos braços, libertando a paixão que há muito o consumia, num beijo que fez a minha irmã desfalecer.

— Thora! — Dei por mim a gritar com todas as forças. — Thora, não!

A minha voz ecoou mais alto do que a sucessão de trovões que assombravam a Floresta de Lyria... e atingiu o objetivo. Atordoada, a loba prateada quebrou o beijo que a arrebatara da realidade, e fixou o vazio, indagando:

— Edwina...?

— Edwina! — Um brado troou-me na consciência, cortando o tênue elo que eu estabelecera com Thora. O regresso da minha essência ao corpo foi brusco e doloroso. Arfei, lutando para respirar. Quem me sacudia e arrancava da Visão, com tamanho ímpeto e insensatez?

Os olhos demoraram a definir formas. Alguém jazia ao meu lado, gemendo como se mortalmente ferido. O Espírito da Luz... Afligi-me, ao verificar que pressionava o peito com as mãos, sobre o coração, e que o sangue já lhe ensopava a túnica.

— Ivarr — apelei, julgando-o atacado por um inimigo, a finar-se no meu colo.

Quando o olhar cristalino me encarou, percebi que não era a dor física que o prostrava. Afastou a túnica para revelar o ferimento... As cicatrizes que lhe marcavam a carne, testemunho da magia ritual que o ligava aos seus guerreiros, estavam abertas! Não... Vendo bem, apenas uma fendera e sangrava — a que unia o rei-lobo à loba prateada!

— Eu a perdi, Edwina! — soluçou, incapaz de esconder o desespero. — Ela não vai voltar...

Tentei parar a hemorragia, enquanto encontrava voz para replicar:

— Não ceda, Ivarr! Apele à magia que vos une. Se recordares o instante em que o vosso elo se estabeleceu... Se te lembrares do que Pedra do Tempo vos revelou, a tua essência conseguirá alcançá-la e tocará o seu coração.

O rei-lobo estreitou-me com tanta veemência, que quase me magoou. Percebi o esforço que fazia para falar, e entreguei-lhe a minha energia, ajudando-o... deixando que as suas palavras tomassem forma na minha mente e percorressem a distância que nos separava da loba prateada.

— A Pedra do Tempo mostrou-me o País dos Vikings inundado de Sol... Não havia fronteiras; não havia armas nas mãos dos homens, mas enxadas e ancinhos. As mulheres lavavam a roupa no rio, enquanto as crianças corriam livremente pelos campos. Algumas aproximaram-se, e fizeram uma roda em minha volta, cantando e rindo. Um garoto veio dar-me a mão... Um garoto que tinha os meus olhos! A Thora estava conosco... Eu os abraçava... E esse abraço enchia o meu coração de luz, de vida, de magia...

A minha voz sobrepôs-se à sua:

— A loba prateada tornou-se companheira do rei-lobo, no instante em que a iniciou. Hoje, sabemos que a Thora é a tua rainha. Esse é um bom futuro, Ivarr... Temos de lutar por ele!

O príncipe parou de tremer. Só então me apercebi da tempestade que assolava o Norte. Contudo, dentro do quarto, cheirava a flores, a erva fresca e a terra virgem... Cheirava a esperança! Por um instante, revi a minha irmã, sentada na margem do ribeiro, chorando compulsivamente nos braços amáveis de Galinn. Os olhos verdes tornaram a fixar o vazio... Só que, desta vez, eu sabia que estavam a ver-me com clareza.

— Volta para casa, Thora — apelei com convicção. — O futuro do reino Viking depende de ti!

 

Ivarr entrou no quarto, quando eu me preparava para deitar. Após o incidente dessa manhã, não tornáramos a nos falar. A situação fora tão dolorosa e embaraçosa, que nenhum de nós desejava tecer-lhe comentários ou recordá-la além do necessário. Antes que eu pudesse reagir, declarou com uma expressão carregada:

— Temos um problema, Edwina!

— O que se passa? — repliquei, franzindo o cenho. — Está me assustando!

Fiquei ainda mais apreensiva, quando ele suspirou e afastou os cabelos do rosto, sem responder. Dir-se-ia que não sabia como começar.

— Uma patrulha chegou há pouco ao castelo, vinda da Floresta Sombria — revelou, por fim, numa voz que me arrepiou a cada palavra. — Ao atravessarem a Serra Rochosa, depararam-se com um acampamento arrasado... Entre os mortos, encontravam-se Vikings e vândalos.

O coração subiu-me até à garganta. Sacudi a cabeça, horrorizada:

— Decerto não eram...

Ivarr encolheu os ombros; o rosto atormentado pela ansiedade.

— Os guerreiros não têm certeza. Os lobos já tinham desfigurado os corpos... Mas quem mais pode ser? Ainda assim, devo confirmar com os meus próprios olhos...

— Eu vou contigo! — atalhei, correndo para a arca em busca da roupa de viagem.

Ivarr deixou escapar um gemido de angustiada resignação, antes de responder:

— Como teu marido, gostaria de contrariar-te... Porém, como príncipe, agradeço-te pela determinação. Talvez a tua Arte nos ajude a compreender o que se oculta aos olhos dos Homens!

Cavalgamos toda a noite, debaixo de uma chuva gélida. Os guerreiros estavam habituados a estas condições rigorosas e nunca se queixavam. Eram os mais duros e corajosos de entre os povos da Terra. Contudo, a expectativa do que íamos encontrar inquietava-os. Quem poderia ter devastado o acampamento, na Serra Rochosa? A visita do rei Vestein dividira opiniões, e um acerto de tréguas não agradaria a todos os Vikings... Assim como, para muitos Vândalos, seria impensável ceder à soberania de Steinarr. Este conflito enraizara-se no sangue e nos espíritos dos dois povos. Não existia família que não tivesse sofrido perdas, de ambos os lados da contenda... Todavia, o assassinato de Vestein em solo Viking, além de ser uma declaração de guerra aos Vândalos, também revelaria oposição à autoridade de Ivarr. E tão vil traição não podia ficar impune!

A manhã cinzenta encontrou-me encharcada, exausta e angustiada. Ivarr indagou da minha necessidade de descansar. Declinei, ciente de que cada instante perdido podia ser fatal para o apuramento da verdade. Por várias vezes, recorri à energia da Lágrima do Sol para suster-me em cima da égua. Pensei em Freya e a minha agonia aumentou. Nós saíramos sem que eu tivesse tido oportunidade de lhe falar. Quando ela tomasse conhecimento deste infortúnio, sofreria mais um violento desgosto. A memória castigava-me com o seu olhar esperançado, ao dizer adeus ao pai e ao irmão de Helgi. A minha irmã já sonhava com um futuro em que nada a separaria do homem que amava; um futuro em que Thorson poderia saltar para o pescoço do príncipe vândalo e chamar-lhe «pai». Um futuro novamente adiado... ou extinto!

A Serra Rochosa era um lugar inóspito e perigoso, formado por trilhas estreitas e instáveis, que conduziam a escarpas mortais. No Verão, a paisagem enchia-se de flores coloridas, que envolviam as pedras e tornavam agradável a passagem dos viajantes. Porém, com o frio do Outono, tudo o que saltava à vista eram arbustos secos e espinheiros agrestes, pedras, lama e mais pedras. Eu detestava este lugar! E mais uma vez o enfrentava... para confrontar a morte!

O acampamento que buscávamos, ou o que dele restava, fora montado num local estratégico, procurado pelos Vikings que necessitavam assegurar-se de que avistariam um inimigo muito antes deste surpreendê-los. Isto levantava outra questão: Como era possível que guerreiros tão experientes e hábeis fossem apanhados desprevenidos? Por que estes homens haviam sido surpreendidos pelos atacantes! Poucos tinham desembainhado as espadas e a terra não apresentava sinais de ter sido pisoteada no ardor de uma batalha. As únicas pegadas que se evidenciavam eram as dos lobos.

Ivarr e os seus guerreiros avançaram por entre os cadáveres, começando de imediato a identificá-los; perdida a esperança de que os mensageiros se tivessem enganado. Apelei à Arte, a fim de reunir a coragem necessária para dar o primeiro passo. O cheiro da morte era algo a que eu jamais me acostumaria! A chuva já lavara o sangue, mas a lama ostentava uma cor vermelha agressiva, que testemunhava o suplício dos homens.

Como se o destino o determinasse, o primeiro corpo com que me deparei foi o de Delling. As suas roupas tinham sido dilaceradas pela fúria predadora dos animais e parte do seu ventre desaparecera. Os ossos das costelas cintilavam sob a luz dos nossos archotes, como facas pontiagudas, quebrados e mastigados por presas extraordinariamente poderosas. Os cabelos castanhos acobreados estavam soterrados na lama, e o seu rosto de tal forma estropiado que não lhe distinguia os olhos. Arrepiei-me quando o vento trouxe a recordação da sua voz: «Quando o Verão chegar, os nossos filhos estarão brincando juntos...»

As minhas pernas começaram a tremer; os dentes a bater sem controle. Pisquei os olhos, recusando a náusea. Neste momento, a última coisa de que Ivarr necessitava, era que a Guardiã da Lágrima do Sol se prostrasse a vomitar diante dos seus guerreiros!

— Edwina! — A sua voz chegou até mim, com o efeito de um abanão. — Chegue aqui!

Deixei Delling para trás e respondi ao apelo. Ivarr ajoelhara-se junto de um homem que, pela riqueza das vestes, decerto era o rei vândalo. Quedei-me ao seu lado e partilhei da sua perplexidade. Todos os cadáveres apresentavam testemunhos da fúria dos lobos... Porém, o de Vestein jazia imaculado, como se as feras tivessem recebido ordens para não o profanarem. A causa da sua morte era óbvia. O assassino nem se dera ao trabalho de desenterrar o punhal com que lhe trespassara o coração. Era uma arma bela e perfeita, com a figura de um falcão gravado no punho de prata maciça... Uma arma que Ivarr e eu conhecíamos bem, pois já a víramos muitas vezes na mão do seu dono: Eric, filho de Krum!

— Eu não acredito — murmurou o príncipe. — O Eric jamais me trairia!

— Concordo contigo — respondi, com a voz embargada. — Alguém pretende cultivar a suspeita entre vós.

— Só pode ser alguém que desconhece o nosso elo! — rugiu o príncipe, revoltado. — Querem impor aos Vândalos a convicção de que o seu rei tombou pela mão do meu Primeiro Homem.

O silêncio que nos rodeava era constrangedor. Os guerreiros tinham palmilhado os destroços, em busca de pistas... e concluído absolutamente nada! Se houvera um confronto, e tal era forçoso, pois o punhal de Eric não caíra do céu, os lobos tinham devorado as provas.

— A tua Visão pode revelar-nos o que se passou aqui, Edwina?

Talvez... Mas a que custo? Conseguiria tornar a desfrutar de uma noite sem pesadelos, após visitar este horror? No entanto, a verdade tinha de ser exposta e os culpados punidos, ou arriscávamos a guerra que o rei vândalo tentara evitar. O seu povo jamais perdoaria estas mortes, se o assassino não lhes fosse entregue!

Respirei fundo e ajoelhei-me ao lado de Vestein, fixando-lhe o olhar escancarado ao vazio, prisioneiro de um tormento sem limites. Há muito que o seu espírito abandonara o corpo... Mas eu podia chamá-lo! Toquei-lhe nas frontes, ignorando o rigor gélido da morte, enquanto murmurava:

— Escuta o meu apelo, nobre rei, e volte para que a justiça seja feita! Deixe-me ver pelos teus olhos... Ouvir pelos teus ouvidos... Viver na tua carne...

De início, nada aconteceu. Depois, a magia manifestou-se... Arte Obscura, da mais funesta, decidida a ocultar a verdade da percepção dos homens! Contudo, não suficientemente poderosa para superar a minha vontade! De repente, as pegadas cresceram e aprofundaram-se. Ainda pareciam marcas de lobos... mas não de feras selvagens! Cerrei os dentes para não gritar de pavor, quando a pele do cadáver aqueceu debaixo dos meus dedos. Eu era a Guardiã da Lágrima do Sol! Superaria esta provação! O coração de Vestein reanimou-se, batendo descompassado dentro da minha mente. O seu olhar incrivelmente azul refletiu o meu. Senti o seu horror como fel a amargar-me a boca... E a realidade desvaneceu-se.

A sombra caiu sobre mim e despertou-me em sobressalto. Uma mão cobriu-me os lábios e a ponta de um punhal enterrou-se na minha garganta. Queria mover-me, mas não conseguia. O corpo que se moldava às minhas costas, qual casaco apertado, sugava-me as forças. A poucos passos, um dos meus guardas e um guerreiro Viking conversavam, aquecendo-se à fogueira. Todos os outros dormiam...

— Sabe quem eu sou, Vestein? — sussurrou o atacante. E eu reconheci-lhe a voz! Mas, não... Não podia ser!

— Senhor...? Estais bem, meu rei?

O meu guerreiro mirava-me com estranheza, sem distinguir o vulto que me subjugava. De súbito, um uivo arrepiou a noite... Responderam-lhe mais de uma dezena! Os homens acordaram e levantaram-se de um salto. Contudo, antes que pudessem desembainhar as espadas, sombras gigantescas investiram contra eles; lobos negros, do tamanho de pôneis, com olhos de fogo e vômito fétido escapando-se por entre as presas descomunais... Os servos da rainha Aesa!

Vi-os prostrarem os homens. Vi-os dilacerar membros e devorar carne. Moviam-se tão rápido, que o olhar era incapaz de acompanhá-los. Delling resistia; estrebuchava debaixo de um dos monstros. Eu tinha de subsistir! Tinha de vingar o meu filho e matar o traidor que me imobilizava! Porém, sentia-me desfalecer... Que maldição era esta, que me alquebrava à sua mercê?

— Lembra-se das vezes que fui desprezado, Vestein? — Sibilou o abjecto ser. — Todos os teus filhos eram melhores, mais fortes do que eu... Mas nenhum superou a minha inteligência! E nenhum superou a minha magia... Nem a tua aberração cega! Enquanto eles se exibiam aos olhos do povo, eu estudava, eu aprendia... Até que a rainha foi forçada a dar-me valor! Hoje, sou eu que lidero o seu exército, enquanto o Espírito da Escuridão, o príncipe escolhido pelos deuses, lambe do chão as migalhas que caem das minhas mãos.

Tentei responder-lhe, em vão. O meu filho estava morto... e os lobos negros banqueteavam-se com a carne dos homens. Eu seria o próximo!

O traidor largou-me e tombei, sem alento. O rosto do meu sobrinho sobrepôs-se a todo o resto, sorridente, vitorioso...

— Olha para mim, Vestein... Quero que veja bem o futuro rei do povo vândalo, antes que as serpentes do submundo te devorem!

Uma névoa negra tragava-me a consciência... Sem reação, observei Snari a erguer o seu punhal com ambas as mãos. Depois, veio a dor... e as trevas.

 

Ivarr liderava os guerreiros através do bosque frondoso, onde as árvores quase se recusavam a ceder passagem aos Homens. O solo da Floresta Sombria era um tapete de podridão, que a luz do Sol raramente abençoava. Os cascos dos cavalos enterravam-se na lama, a cada passo. E a chuva não parava de cair.

Talvez Steinarr tivesse simplesmente separado os cadáveres de Vikings e Vândalos, e acendido as fogueiras, a fim de entregá-los ao julgamento dos deuses, para depois regressar para casa e aguardar que os servos de Aesa lhe pedissem explicações. Porém, o coração de Ivarr impelia-o noutra direção. Ele convivera com o rei Vestein e com Delling, escutara das suas bocas o quanto desejavam trazer a paz ao seu povo... vira-os brincar com Thorson. Por tudo isto, sentia que lhes devia um último esforço de reconciliação, ainda que não acreditasse ser bem-sucedido.

Fomos recebidos por um dos generais da guarda avançada do rei Steinarr, encarregado do cerco ao reduto Vândalo, nessa fronteira. Enquanto o príncipe se inteirava dos movimentos inimigos, voltei a atenção para o covil de Aesa. A barreira de espinhos era aterrorizante! Durante a batalha nos Pântanos Nebulosos, eu observara os estragos que estes arbustos malditos podiam fazer aos guerreiros, perfurando carne, quebrando ossos, separando membros... Por serem animados por um sortilégio maligno, eram imunes ao fogo e nenhuma espada, nem mesmo os machados, conseguiam abrir caminho através deles. Os esqueletos de muitos Vikings encontravam-se aprisionados naquele emaranhado de ramos aguçados como lanças, longe do meu alcance. Aesa nascera feiticeira. Eu era uma humana de sangue misto. A magia do cristal do Sol tornava os nossos poderes equivalentes. Eu já a derrotara numa batalha... mas não me considerava mais forte! Talvez a minha vontade de subsistir, aliada a alguma sorte, tivesse ajudado à vitória. Porém, nada me garantia que, num próximo confronto, o resultado fosse idêntico.

O rei-lobo deteve-se a uma distância segura da magia dos espinheiros, encheu o peito de ar e bradou:

— Escutai, povo vândalo! Fala-vos o príncipe Ivarr do povo Viking. Trago novas do rei Vestein...

O silêncio opressor era apenas perturbado pelas pancadas da chuva nas folhas das árvores, pelo quebrar de ramos, pelo relinchar nervoso dos cavalos. Acreditei que não obteríamos resposta... Todavia, subitamente, os troncos dos espinheiros começaram a encolher-se e a recuar para o interior da terra, com gemidos lúgubres que me arrepiaram e colocaram em sentido. Não tinha a certeza de querer ver o que se encontrava além deles.

Mesmo à distância, o príncipe Helgi metia respeito. O cavalo de Ivarr agitou-se, inquieto, ao pressentir a energia antagônica do seu senhor. O rei-lobo dominou-o com a firmeza da sua vontade e encarou o outro rei-lobo. Não era a primeira vez que o Espírito da Luz e o Espírito da Escuridão se quedavam frente a frente. Eu só esperava que não tivesse chegado o momento da decisão divina, imposta às suas essências no dia do nascimento.

— Eu sei quem tu és e tu sabes quem eu sou! — troou o príncipe vândalo, numa voz que forçaria muitos homens a prostrarem-se de joelhos. — Vamos poupar-nos a cortesias inúteis. Onde está o meu pai? Por que não te acompanha?

Um guerreiro parou ao seu lado. As semelhanças eram tão vincadas, que o identifiquei como sendo outro filho de Vestein. Parecia mais velho do que Helgi, mas a energia que a sua essência exalava era bastante inferior.

Uma figura alta e esguia, quase etérea, deslizou até eles. Os seus cabelos dourados cobriam-lhe as vestes como uma cascata de ouro, reluzente e deslumbrante. O azul dos seus olhos resplandeceu, quais estrelas na noite. Esta exibição de candura era mera ilusão! Decerto que o seu aspecto de donzela frágil já atraíra muitos guerreiros para a morte. Porém, Aesa, mestra da Arte Obscura, jamais me enganaria! Era óbvio que se divertia com a iniciativa do príncipe Viking... Os nossos esforços seriam vãos; talvez só piorassem a situação! No entanto, eu nada podia fazer, além de escudar os meus guerreiros da sua imensurável maldade. Mantive o olhar preso no dela, atenta ao menor dos seus movimentos, enquanto Ivarr replicava:

— O rei Vestein foi recebido na casa do rei Steinarr e manifestou o desejo de que Vândalos e Vikings acordassem a paz. A sua proposta foi aceita... Porém, no regresso ao seus domínios, ao atravessar a Serra Rochosa, foi vítima de um ataque traiçoeiro, conspirado na sua própria casa. Com o rei Vestein, tombaram aqueles que o acompanhavam, incluindo os meus homens...

Enquanto Ivarr falava, os príncipes empalideceram. Outros, inequivocamente mais jovens, juntaram-se aos irmãos. Recordei-me de, certa vez, ter ouvido o meu pai dizer que Vestein possuía uma considerável descendência de varões. Ainda assim, foi Helgi quem deu um passo em frente e mastigou, com os punhos cerrados e o corpo trêmulo de emoção:

— Está dizendo que o meu pai e o meu irmão foram assassinados?

Um burburinho nasceu no interior da aldeia e foi crescendo, até se transformar num estridor. Aos poucos, os Vândalos saíam das suas casas e formavam uma parede humana por trás da sua rainha, de onde ecoavam gritos e choros.

— Sim, Helgi... — respondeu Ivarr. — E lamento-o profundamente! Dou-lhe a minha palavra de honra em como nenhuma mão Viking se ergueu contra ele. Deve procurar o culpado entre aqueles que te rodeiam...

— Estarei ouvindo bem? — sibilou Aesa; toda a candura transformada em indignação. — O príncipe Ivarr do povo Viking reclama que a barbaridade que proclamou não foi consumada por um dos seus homens? Não é Eric, filho de Krum, o executor da tua vontade? Negará, sob a tua palavra de honra, que foi o seu punhal que prostrou o rei dos Vândalos?

O clamor do povo era de tal forma ensurdecedor, que quase abafou a contestação de Ivarr:

— Como é que pode saber tal coisa, feiticeira, a não ser que esta atrocidade seja obra tua?

O irmão mais velho de Helgi avançou para defender a honra da rainha. Porém, o Espírito da Escuridão deteve-o, aguardando uma resposta. Esse movimento de instintiva suspeita não passou despercebido à bruxa. Os seus olhos chisparam, e eu tive a certeza de que, mais tarde, o bisneto pagaria caro pela ousadia. Todavia, Aesa tinha uma postura a defender... E uma justificativa para iludir o seu povo:

— Como tu próprio dizes, príncipe, eu sou uma feiticeira! Enquanto falava, fui acometida pela Visão do meu neto a ser assassinado pelo teu Primeiro Homem. Foi o seu punhal que trespassou o coração do rei vândalo. Depois, os cadáveres daqueles que buscaram a boa fé do rei Viking foram abandonados, para serem devorados pelos lobos.

— Isto é verdade, Ivarr? — trovejou Helgi; a ira incendiando-lhe as faces. — Foi o teu Primeiro Homem que matou o meu pai?

A honra era algo fundamental para o Espírito da Luz. Até o momento, ele tivera muito cuidado para omitir que o rei Steinarr não estivera presente na reunião com o soberano vândalo. Contudo, não havia como escapar a esta acusação. E Aesa sabia-o! O seu rosto era uma máscara de desgosto, mas a vitória resplandecia-lhe no olhar.

— Não foi o Eric que matou o rei Vestein — respondeu Ivarr, forçando-se a raciocinar rápido, diante do perigo eminente —, ainda que o seu punhal tenha sido usado na perfídia...

— E como é que isso é possível? — rugiu o Espírito da Escuridão, de tal forma transtornado, que temi que esquecesse a razão e arremetesse contra nós.

— Deve colocar essa pergunta ao teu primo Snari... — interferi, avançando cautelosa, tentando apelar ao elo que se estabelecera entre nós, no dia em que Helgi me salvara a vida. — E à tua rainha! Eu, como Guardiã da Lágrima do Sol, estive junto do teu pai e presenciei a agonia dos seus últimos instantes de vida, numa verdadeira Visão. Foi o sobrinho do rei que o matou, com a ajuda dos lobos negros da rainha Aesa.

— Está me acusando de atentar contra a vida do meu rei? — guinchou a bruxa, desfigurada pela raiva. — Contra o meu neto e o meu bisneto?

— Snari! — bradou Helgi, tão perturbado que ignorou o ultraje da rainha. — Revele-se, para que te vejam!

Duvidei que o outro lhe obedecesse. Afinal, eu testemunhara o rancor que devotava a Helgi! Porém, um homem destacou-se da multidão, detendo-se um pouco à frente dos filhos de Vestein. Alto e franzino, estava longe de possuir a estatura de um guerreiro. Contudo, a perversidade no seu olhar o denunciaria, se não tivesse tido o cuidado de dar as costas aos primos.

— É este o homem que acusa de matar o rei Vestein, o príncipe Delling e os melhores guerreiros entre Vândalos e Vikings? — fremiu o Espírito da Escuridão. — Antes que Snari conseguisse desembainhar um punhal, o meu pai já o teria desfeito!

O sorriso do assassino ia de orelha a orelha. O primo dissera exatamente o que ele queria ouvir. Helgi não desconfiava do tremendo poder que se ocultava por trás do seu aspecto insignificante e mesquinho. E Snari fazia questão de que assim continuasse! Quando recuou, o esgar desafiador cedeu lugar a uma expressão aterrorizada. O mais velho dos primos pôs-lhe um braço sobre os ombros, como que a protegê-lo da minha acusação. Dei por mim a libertar um aviso:

— Não se deixe enganar pelas aparências, Helgi! Senão, quando menos esperar, encontrará a morte!

— Basta de mentiras! — vociferou Aesa. — A morte do rei Vestein há de ser vingada, filho de Steinarr! Não descanse no teu sono... A justiça dos Vândalos será implacável!

E, com isto, a barreira de espinheiros começou a reorganizar-se. Os ramos cresciam e entrecruzavam-se, forçando-nos a retroceder. Do outro lado, desembainhavam-se espadas e gritavam-se insultos e ameaças contra os Vikings. Uma figura encurvada e emagrecida rastejou por entre a multidão, até se prostrar aos pés de Aesa, abraçando-lhe as pernas como se estivesse prestes a fenecer por carência de atenção.

— Magnor? — clamou Ivarr assombrado, ao reconhecer na criatura decrépita aquele que, em tempos, fora um rapaz vigoroso e altivo. Os cabelos negros do irmão encontravam-se repletos de fios brancos e a pele pendia-lhe flácida nas faces. O seu corpo parecia um esqueleto animado por um malefício abominável. Magnor tinha pouco mais de vinte anos; estava no auge da vida... No entanto, parecia um velho que se arrastava às portas da morte.

Antes que alguém pudesse impedi-lo, o rei-lobo lançou-se contra o reduto Vândalo, cego aos braços de espinhos que se fechavam ao seu redor. Em pânico, libertei a magia com toda a veemência, qual mão invisível que o agarrou e o puxou para trás, derrubando-o do cavalo. O animal empinou-se a um palmo dos espigões. Desequilibrada, também caí da égua e esmaguei-me no chão. Fixei os ramos que se preparavam para engolir Ivarr, meio atordoada. O seu cavalo fora apanhado e relinchava de dor; a carne perfurada por uma centena de aguilhões, o sangue regando o solo. Era impossível salvá-lo! Entretanto, a guarda do príncipe corria em seu socorro... Se eu falhasse, morreriam todos!

Os espinheiros tinham raízes profundas. Eu sentia-as palpitar no interior da terra, prenhes de magia. Os ramos continuariam a crescer e a multiplicar-se, até se estrangularem a si próprios. Arte Luminosa... Arte Obscura... Onde começava uma e terminava a outra? Enterrei os dedos no solo e evoquei a energia que alimentava as raízes. Traguei-a, até pensar que ia arrebentar; até cada partícula da minha essência estremecer de agonia. Então, a mente encheu-se de luz... e a dor desapareceu. Eu já não precisava assimilar a magia das raízes... Eu era a mãe de todas as raízes! E recusava-me a permitir que os ramos dos espinheiros crescessem!

— O príncipe está seguro! — Uma voz alcançou-me, qual eco distorcido e rouco, que se propagava até ao infinito... Porém, era tudo o que eu desejava ouvir! Fechei os olhos e a luz apagou-se. Enchi o peito de ar e recebi o suplício que me aguardava. As partículas da minha essência agitaram-se, como se prestes a separar-se... E comecei a libertar a energia, em vômitos de magia que as raízes sequiosas absorveram com sofreguidão. Os estalidos ensurdecedores dos ramos afiados provocaram exclamações de temor entre os guerreiros. Dois braços fortes envolveram-me... Inspirei um fôlego de alívio, ao escutar a voz de Ivarr junto do meu ouvido, como o calor salvador de uma fogueira na mais gélida das noites:

— Salvou-me a vida, Edwina...

— Não... — murmurei em resposta. — Salvei a alma do nosso povo!

 

As trompas do castelo Viking soaram, anunciando a chegada do jarl Eric da Terra Antiga. Despedi-me de Oriana e Thorson, e deixei-os entregues à Senhora Doralia, na sala de estudo. Freya seguiu-me até o pátio, quase correndo para acompanhar o meu passso. A sua magreza começava a inquietar-me. As olheiras profundas já lhe desfiguravam a expressão. A minha irmã escorregara de um sonho e estatelara-se num pesadelo. As esperanças que reunira diante do rei Vestein e do príncipe Delling tinham-se desvanecido. Quando lhe contara a fatalidade que a Serra Rochosa presenciara, ficara em choque, mergulhada em silêncio. Depois, as únicas palavras que proferira sobre o assunto haviam sido:

— É uma pena... Por pouco, não recuperamos as pedras mágicas!

Não me aproximei dos homens. Mais tarde, teria tempo de cumprimentar o meu primo. Por enquanto, só queria confirmar se ele fora bem-sucedido na missão a que se propusera.

No regresso da malograda viagem à Floresta Sombria, havíamos feito um desvio até à Terra Antiga, e confrontado Eric com os trágicos incidentes dos últimos dias. Como esperávamos, o jarl não fazia a menor idéia do que se passava. Já dera pela falta do seu punhal e revoltara-se contra si próprio, por ter sido descuidado a ponto de perdê-lo. Agora, deparava-se com a certeza de que este fora roubado para um fim funesto. E isso significava que existia um traidor na sua casa, ou entre os chefes de clã que o visitavam. De imediato, dispusera-se a identificá-lo... E, pelo visto, conseguira!

Ainda que coberto de lama e sangue, reconheci o homem que cambaleava atrás do cavalo do meu primo, com as mãos atadas. Era um dos líderes que colaborara com Arnorr e, posteriormente, se declarara arrependido e jurara fidelidade ao jarl. Prostrou-se ao chão, quando o príncipe Viking se aproximou, e bradou por clemência, alegando ter sido enfeitiçado pela bruxa da Floresta Sombria.

Ao meu lado, Freya estremeceu e buscou a minha mão. Apertei-a com força, percebendo que se angustiava só de imaginar o que ia acontecer.

— Vamos para dentro... — murmurei decidida, ao ver a mão de Ivarr mover-se até o punho da espada. — Este acerto de honra não nos diz respeito.

Há muito que não desfrutávamos de um jantar tão animado. A companhia de Eric acendera uma chama no olhar de Ivarr, que eu temera ter-se extinguido. E, apesar de satisfeito com as novas responsabilidades impostas pelo cargo de jarl, era óbvio que o meu primo sentia a falta do convívio com o rei-lobo e os companheiros de alcatéia.

No fim da noite, a conversa evoluiu para assuntos sérios. As movimentações intensificavam-se no reduto da feiticeira. Aqueles que haviam seguido o espírito pacificador de Vestein deixavam as suas artes, para pegar em armas às ordens da rainha Aesa. Esta não perdera tempo lastimando a morte do rei e já colocara um bisneto no trono. O príncipe que se seguia na linha de sucessão chamava-se Raud, e era conhecido como um homem de vontade fraca, que sempre vivera à sombra do pai e dos irmãos. Eu tivera oportunidade de observá-lo, durante a nossa tentativa frustrada de denunciar a verdade. Ele permitira que Helgi falasse em nome do povo vândalo, sem coragem para enfrentar Ivarr. Todos achavam que seria um fantoche sob o comando de Aesa... Na minha opinião, Raud não passava de um novo alvo para o dissimulado Snari, que se dispusera a matar todos aqueles que se atravessavam no caminho da sua ambição.

Ivarr reuniu os seus guerreiros em torno do mapa do território, que, alguns anos atrás, Magnor desenhara com grande mestria. Ninguém contestava que era imprudente cruzar os braços, à espera que Aesa granjeasse o consenso do seu povo e tomasse a iniciativa de atacar-nos. Até eu tinha de admitir que, enquanto a feiticeira vivesse, seria impossível negociar a paz. E o meu povo já sofrera muito com esta disputa! Devia esquecer a minha simpatia por Helgi e Helga, e encará-los como os inimigos que realmente eram... Porém, por mais que tentasse, não conseguia!

— A Edwina pode usar a magia para forçar os espinheiros a recuar, como fez no outro dia, para salvar o Ivarr — sugeriu Ragnar, como se tivesse acabado de descobrir a solução para todos os nossos problemas.

— Sim! — retrucou Bryan, num tom trocista. — Como é que nunca pensamos nisso? Está claro que, enquanto a Edwina se ocupasse dos espinheiros, tu combateria a bruxa!

— Esta questão não se resume à magia dos espinheiros — intrometi-me. — O nosso exército é muito superior ao de Aesa, mas ela possui outros recursos. Helga, a filha do rei Vestein, tem a faculdade de manter os seus guerreiros de pé, a lutar como touros, mesmo com as entranhas de fora. Os lobos negros podem aparecer em qualquer lugar, e já testemunhamos a crueldade desses monstros! Agora, também temos de contar com a interferência do novo protegido da feiticeira. Snari detém um talento aterrorizante... É capaz de subjugar um homem com um simples toque!

— Além disso, não posso ordenar um ataque aos Vândalos, sem o consentimento do meu pai — acrescentou Ivarr, com uma firmeza sóbria. — Tudo o que já aconteceu na sua ausência, é suficientemente grave. Acreditem que nenhum de vós deseja a morte da feiticeira mais do que eu! O que ela fez ao meu irmão... Bem sei que o Magnor escolheu o seu destino, mas nem a mais vil das criaturas merece uma existência tão miserável!

O desabafo do rei-lobo impôs-nos silêncio. Eu sabia que a demora do rei Steinarr o inquietava, ainda que tentasse ocultá-lo. A estação gelada aproximava-se e o mar tornava-se mais selvagem a cada dia. Dentro de uma semana, no máximo duas, seria impossível navegar nas águas do Norte. O pensamento provocou-me um calafrio. E se a campanha no Império tivesse corrido mal? Forcei-me a afastar o temor. Se as intenções do rei William fossem traiçoeiras, a minha mãe já teria encontrado uma forma de avisar-me! Tentei sossegar Ivarr, quando buscou o meu olhar. Porém, continuei oprimida, possuída por uma ansiedade irracional.

 

Dormia profundamente, quando ouvi o apelo:

— Edwina... Edwina, escute-me...

Abri os olhos e quase gritei de susto. Não estava no meu quarto! Encontrava-me numa cabana de madeira, rodeada por uma escuridão profunda. De súbito, uma lareira acendeu-se e revelou-me a figura fantasmagórica de uma mulher. Um vestido de formas simples cobria-lhe o corpo alto e esguio; a cor pálida da lã misturando-se com a brancura da sua pele... e o branco do olhar sem vida. O cabelo castanho acobreado, que lhe caía solto sobre os ombros, até à cintura, mais parecia uma cascata de sangue fresco... como aquele que lhe manchava as mãos estendidas. Assim que pressentiu a minha essência, cambaleou ligeiramente e declarou:

— Hoje perderei a alma, porque sou fraca, muito covarde para negar a vontade da minha rainha. Não te peço perdão pelo que vou fazer, pois nem eu serei capaz de perdoar-me.

Rasguei a névoa que me separava da realidade de Helga, filha de Vestein, e impus-lhe a minha energia. Por um instante, as nossas essências fundiram-se e consegui vê-la como nunca a vira antes: bela, pura, com um profundo olhar azul, perturbado pelo medo e pela negação. Helga abominava a magia que vivia na sua alma... Mas era impotente para combatê-la. Aesa, mestra da Arte Obscura, chamava-a, e ela tinha de obedecer-lhe.

— O que é que se passa? — indaguei com firmeza, obrigando-a a reagir. — O que vai fazer?

As lágrimas escorreram-lhe pelas faces. O seu espírito assimilava a minha energia com uma avidez desesperada, como se buscasse alívio, como se invejasse a minha luz. Por fim, recuou, respondendo por entre soluços sofridos:

— A rainha dos Vândalos chamou todos os homens... Até os meus irmãos mais novos! Muita gente perecerá nesta guerra. Fui tola em tentar ludibriar a nossa sorte... O meu pai morreu por minha culpa! Ele era o único que podia enfrentá-la!

— Foi o teu primo Snari que matou o rei Vestein — asseverei. — Por ordem da rainha Aesa!

— Eu acredito em ti — gemeu Helga. — Mas mais ninguém acredita! O Raud fará tudo o que a rainha mandar... e os outros estão cegos pela dor e pelo ódio. Já não posso resistir à vontade da minha bisavó, Edwina... Darei o que ela quer!

— E por que me chama, se já tomou uma decisão?

— Uma profecia está prestes a concretizar-se. O Espírito da Luz e o Espírito da Escuridão irão enfrentar-se em batalha. E, se nada for feito, um deles tombará! O Helgi é um bom homem...

— Não me peça para salvar o Helgi e condenar o Ivarr! — retruquei, estrangulada.

— O destino dos dois guerreiros repousa nas mãos de uma mulher. Nenhum terá de morrer, se ela assim o determinar!

— Eu não sou essa mulher, Helga!

— É verdade! Mas pode interceder junto dela... Salve o meu irmão, Edwina! Em troca, terá a minha vida, quando o momento do nosso confronto chegar.

Engoli em seco, buscando as suas mãos.

— Eu não quero a tua vida! Quero a tua liberdade; a liberdade de Helgi e do vosso povo! Até agora, tem sido forte... E continuará a ser! Não permita que a morte do teu pai tenha sido vã. Não deixe o vosso sonho fenecer...

— Eu nasci privada de sonhos... Mas me sacrificarei para que o Helgi possa sonhar! É tempo de nos separarmos, Guardiã da Lágrima do Sol. Em breve, o meu sangue será teu... É esse o voto que faço esta noite!

Só então percebi que o sangue que se acumulava nas nossas mãos lhe pertencia. Helga lacerara a carne para tornar o juramento sagrado. Porém, eu não desejava o seu sacrifício... E não me vincularia a ele!

Tinha de haver uma maneira de evitar o morticínio de dezenas de homens, entre Vikings e Vândalos! O ódio de Aesa não podia vencer! Foi esse pensamento que subsistiu, no instante em que a lareira se apagou e a minha mente assimilou a escuridão.

— Edwina!

Acordei, sobressaltada com o queixume de Freya. A minha irmã deixara a sua cama e viera ao meu encontro, tremendo sem controle. Embalei-lhe o choro, indagando aflita:

— O que foi? O Thorson...?

— Não — gemeu, por entre soluços. — Voltei a ter aquele pesadelo...

Em tempos, as noites de Freya haviam sido assombradas pela Visão de um campo de batalha, onde uma mulher com o seu rosto se batia com Helgi... e acabava por matá-lo. Com o passar dos anos, o sonho parara de atormentá-la, o que nos levara a acreditar que essa terrível premonição fora sanada por uma graça qualquer do destino.

— Havia sangue a banhar a terra — pranteava a minha irmã. — O sangue do meu amor! Tenho medo, Edwina... Tenho tanto medo!

As suas palavras despertaram-me a memória. Ergui as mãos diante dos olhos e perdi o fôlego, ao verificar que estavam sujas de sangue. Ao vê-las, Freya começou a gritar, apavorada. Tentei clarear a mente, no âmago desta loucura. A estranha aparição de Helga não fora um pesadelo... Os seus avisos eram reais!

Saltei da cama, ignorando os apelos da minha irmã. Tinha de alertar Ivarr... A guerra entre Vikings e Vândalos ia declarar-se, mais violenta do que nunca! Chegara o momento do Espírito da Luz e do Espírito da Escuridão decidirem na Terra o que não podia ser determinado no seu mundo: qual dos dois era mais forte.

 

Os Vândalos atacaram a fronteira leste, muito antes da débil luz da manhã romper as nuvens cinzentas, raiadas de vermelho e preto. Os guerreiros do rei Steinarr que sobreviveram à batalha, relataram que um nevoeiro denso se libertara do solo e deslizara silenciosamente pelo meio das árvores cerradas da Floresta Sombria, até ser impossível avistar um palmo diante do nariz. Então, a barreira de espinheiros ruíra e uma alcatéia de lobos de pêlo negro, grandes como pôneis, com olhos de fogo e bocarras suficientemente ferozes para arrancar a cabeça de um adulto com uma só dentada, acometera contra a guarda avançada do exército Viking. Enquanto os nossos homens tentavam repelir os monstros, os Vândalos surgiram qual avalanche mortal, organizados e bem armados. Cornetas de alarme foram sopradas, mas o nevoeiro ocultava os inimigos, que pareciam multiplicar-se e extrair forças do próprio ar.

Ao cair da noite, Aesa restaurara a sua supremacia, no interior profundo da Floresta Sombria. Estava aberta a porta para a entrada do exército que o príncipe Snari andara a recrutar, entre os povos das terras onde o gelo jamais derretia. Além disso, os Mercenários que, na Primavera, tinham sobrevivido ao confronto com os Vikings, e buscado o esconderijo dos fiordes, puderam atravessar os Pântanos Nebulosos e reclamar vingança.

No fim do segundo dia de batalha, a única fronteira que permanecia inviolada era a da rainha Lyria do Povo da Terra. Aesa estava muito concentrada em recuperar controle do território que em tempos lhe pertencera, para gastar recursos a combater a magia da Gente Bela. A feiticeira sabia que eu ia a caminho... E queria estar na sua melhor forma para receber-me!

 

Ivarr decidiu avançar até o limite do País dos Vikings e atravessar a Serra Rochosa, para entrar na Floresta Sombria pelo território da rainha Lyria, já que esse era o trajeto mais escrutado. Qualquer homem preferia enfrentar as escarpas escorregadias da serra, a penetrar na escuridão absoluta do bosque maldito, pela fronteira com a Floresta dos Carvalhos, e desbravar o longo caminho até o reduto da feiticeira, através das trevas silenciosas, arriscando-se a deparar com perigos temidos pelos próprios deuses. Os guardas das fronteiras garantiam que o mundo dos mortos tinha uma porta para esse lugar e que as mais terríveis das abominações tomavam forma sob a bruma. Contudo, quando o nosso exército chegou ao sopé da serra, a noite cravara as garras no Norte e chovia torrencialmente. Nem Lança parecia capaz de enfrentar a tormenta, e buscara refúgio no braço do seu senhor.

— Devemos acampar, Ivarr — aconselhou Eric, num tom inquieto. — Prosseguir nestas condições é uma temeridade!

— Nós somos a única esperança que resta àqueles que resistem na frente de batalha — objetou o rei-lobo, baixando a voz para que apenas a alcatéia o escutasse. — Não vou deitar-me a dormir, enquanto os meus homens dão o seu sangue aos Vândalos!

— A tua angústia é compreensível! — replicou Bryan. — No entanto, se continuarmos, muitos destes guerreiros sucumbirão nos abismos de pedra. E os mortos não podem valer aos vivos!

— E se atravessarmos o bosque? — sugeriu Darrin, com a inocência do desconhecimento. — O terreno não é acidentado. Ganharemos bastante tempo, se progredirmos durante a noite...

— Isso está fora de questão! — atalhou Ketill, nascido e criado na Terra dos Carvalhos, sobejamente conhecedor das narrativas de pesadelo que a Floresta Sombria inspirava. — Prefiro morrer esmagado debaixo de um pedregulho, ou cair de um precipício, do que ser devorado por uma das criaturas da feiticeira e condenado a vaguear por essas terras amaldiçoadas...

— Está louco? — insurgiu-se Darrin, indignado com o temor do primo. — Não vai me dizer que acredita em tudo o que ouve! Aposto contigo que essas histórias não passam de invenções da bruxa, passadas de boca em boca, para manter os Vikings afastados dos seus domínios!

— Não esteja tão convicto! — intrometeu-se Ragnar; o corpo possante sacudido por um calafrio. — O meu pai conta que, quando era jovem, viu um dos seus amigos ser comido vivo pelos monstros que ali habitam. E o meu pai não mente!

— Tem certeza? — Teimou Darrin, firme na convicção. — A mim parece-me que essa foi a forma que ele encontrou de te dissuadir a buscar aventuras na floresta, com medo de que fosse atacado pelas feras!

— Não seja insolente, garoto! — rugiu o gigante, dando um passo em frente.

— Calma! — apelou Eric, segurando o braço do companheiro. — De nada adianta discutirmos!

— Todas as histórias têm um fundo de verdade, Darrin — asseverou Bryan. — Muitos negavam a existência dos lobos negros de Aesa. No entanto, nós já testemunhamos a sua ferocidade!

— Eu não contesto os perigos da Floresta Sombria. — A voz de comando do rei-lobo atraiu a atenção da alcatéia. — Mas concordo com o Darrin! Se atravessarmos o bosque, ganharemos tempo precioso. Além disso, não entraremos desprevenidos na bruma! Temos a ajuda do falcão... E eu notarei a aproximação de quaisquer feras, enquanto a Edwina sentirá o mais leve desequilibro na energia mística. Qual é a tua opinião, Guardiã?

Fixei-o, sem saber o que dizer. Eu já ouvira Sven, o pai de Ragnar, narrar aquela história arrepiante à mesa do jarl Throst, muitas vezes para ignorá-la... E, o fato do meu pai nunca a ter desmentido, provava a sua veracidade.

— Somos uma grande força de homens e armas — ponderei. — Será mais rápido e seguro atravessar a floresta, do que seguir em fila através das trilhas estreitas e traiçoeiras da serra.

Ivarr acenou em concordância:

— Assim, evitaremos as derrocadas e não correremos o risco de que a lama nos arraste para uma queda mortal. Se avançarmos sem percalços, amanhã estaremos diante do reduto da feiticeira. O que me diz, Eric?

O novo jarl do reino Viking respirou fundo.

— Nenhuma das opções me agrada... Seja qual for a tua decisão, estarei contigo até o fim!

— Ragnar?

O gigante sorriu levemente, sacudindo os ombros:

— Sempre tive vontade de confirmar a história do meu pai!

— Bryan?

— Desbravar a Floresta Sombria é uma das minhas maiores ambições.

— Ketill?

O primo assoprou, fixando o olhar em Darrin.

— Não quero perder a oportunidade de ver o garoto borrar-se de medo! Vamos a isso!

Darrin sorria vitorioso. Porém, o esgar do rei-lobo bastou para pô-lo em sentido. Ivarr encarou os guerreiros que aguardavam as suas ordens e bradou:

— A Floresta Sombria é um lugar hostil... Mas não lhe voltaremos as costas! Esta noite, as trevas serão conquistadas! Que os monstros de Aesa saibam que nada faz parar um Viking! Quando o dia nascer, as criaturas que se ocultam na bruma estremecerão de pavor e fugirão, ao som dos passos dos filhos de Odin! Vamos ao encontro dos nossos irmãos! Vamos esmagar os Vândalos!

Um coro de louvor ergueu-se sobre o clamor da tempestade. A um gesto do seu senhor, Lança gritou e conquistou o reino dos ares. Vi-o desaparecer nas trevas do misterioso bosque, com o coração apertado. Por um instante, desejei estar no topo da Montanha Sagrada, meditando diante da Pedra do Tempo, longe desta provação. Depois, inspirei um fôlego de coragem e segui o rei-lobo. Como Guardiã da Lágrima do Sol devia garantir a vitória do meu povo!

A chuva não cessava de cair. Porém, a folhagem era tão cerrada, que mal deixava passar a água. Os guerreiros progrediam com alguma dificuldade, forçados a cortar os ramos desregrados para abrir caminho. Os archotes ardiam com vivacidade, já que o vento também parecia incapaz de vencer a vontade da floresta. Nada ao meu redor tornava este bosque diferente daqueles que me eram familiares. De início, os homens assumiam uma pose defensiva sempre que uma coruja piava, um corvo batia as asas, ou um rato se esgueirava por entre os seus pés. Uma vez readquirida a confiança férrea, nem os uivos distantes dos lobos os faziam hesitar.

A noite ia longa, quando alcançamos uma trilha menos densa. O grito de Lança ecoou sobre as nossas cabeças como um aviso. Bryan elevou a mão e Ivarr controlou o ímpeto dos homens, enquanto a sua guarda averiguava a segurança do percurso. Este lugar era perfeito para uma emboscada! Lança tornou a gritar e a minha sensibilidade surpreendeu um movimento busco na copa das árvores, à nossa frente; ramos que se partiam, folhas que caíam...

— Ivarr? — apelei num sussurro, fustigada por um calafrio.

A respiração do rei-lobo tornara-se profunda como se farejasse o ar. Usei a magia para perscrutar ao nosso redor, mas nada encontrei de anormal. No entanto, juraria que estávamos a ser observados por olhos ameaçadores. Bryan regressou e entregou a Ivarr o que descobrira: um tufo de pêlo áspero, de cor castanha.

— Não estamos sozinhos — murmurou. — Algo se move nas sombras...

— Sim — respondeu o rei-lobo. — Sinto o cheiro do medo! Ainda não nos atacaram porque nos temem. Talvez por sermos tão numerosos...

— Lobos? — indagou Eric, aproximando-se.

— Não... Mas podem ser feras!

Num piscar de olhos, a floresta calara-se. Nada mais se ouvia além do estridor da chuva. Nem mesmo os gritos de Lança...

— Se fizermos barulho, talvez consigamos espantá-las — sugeriu Ragnar.

— Não é prudente! — avisei. — Aesa enviará os seus monstros, assim que detectar a nossa presença.

— Vamos continuar — decidiu Ivarr. — E mantenham-se firmes... Se as criaturas pressentirem o nosso receio, não hesitarão em atacar.

Pouco tínhamos andado, quando nos deparamos com uma clareira saída do mais torpe pesadelo. Num espaço aberto entre as árvores, a lama podre do solo amparava centenas de ossos, amontoados na mais grotesca desordem; caveiras humanas misturavam-se com os esqueletos destroçados de animais. A mais recente das vítimas era um belo falcão, que todos conhecíamos e estimávamos. A luz dos archotes, sobre a brancura brilhante dos ossos, era possível verificar que a cabeça de Lança estava desfeita.

Ivarr praguejou enfurecido e Eric segurou-lhe o braço. Ketill inquiria, abismado:

— O que é que pode esmagar a cabeça de um falcão, durante o vôo?

— Uma pedra... — mastigou o rei-lobo.

— As feras não atiram pedras! — replicou Darrin.

Enchi o peito de ar e libertei o meu poder, numa busca ansiosa. De início, nada emergiu além do pulsar da terra e da energia da tormenta. Contudo, era evidente que algo se ocultava nas trevas! Algo que se esforçava arduamente para iludir a minha percepção... E isso significava que possuía magia no sangue!

No instante em que tomei consciência desse fato, ela foi-me revelada. Não era Aesa! Não era Helga, nem Snari! Não era humana, nem animal... antes, uma mistura dos dois! E a sua voz de fêmea arrojava-se na minha mente, como um rosnar incessante e ameaçador.

Entre os guerreiros erguera-se um rumor de assombro:

— Que abominação é esta?

— É um cemitério...

— Não! — contrapôs o rei-lobo, desembainhando lentamente a sua espada. — É um covil!

Sem aviso, os archotes começaram a apagar-se; dois a dois, quatro a quatro... Até que as trevas nos envolveram. Ramos partiam-se... Coisas deslizavam... O fedor do suor e do medo era agora nauseabundo... e chegava acompanhado pelo ruído de respirações ofegantes e arrastadas, que nos gelavam o sangue.

— Edwina... — murmurou Ivarr. — Isto é magia!

Sim... e poderosa! Através da escuridão, vislumbrei aqueles que nos caçavam, movendo-se nas copas das árvores; formas longas e esguias, que se assemelhariam a homens, se não estivessem cobertas por pêlo, e possuíssem focinhos horrendos e ferozes. Eu nunca ouvira falar de tais criaturas, mesmo entre os povos antigos... E não sabia como combatê-las!

Os meus dedos fecharam-se sobre a Lágrima do Sol, evitando os gestos bruscos. Os estranhos seres deslocavam-se sobre nós, mas hesitavam... Talvez se pusessem em fuga se eu os cegasse com a luz do cristal. Ivarr compreendeu o meu intento e não me pressionou. Todavia, os guerreiros já clamavam e brandiam as armas... A minha cautela era inútil! Levantei a Lágrima do Sol acima da cabeça e deixei a magia fluir, como as ondas provocadas por um pedregulho ao tombar na água. Nesse instante, as criaturas atacaram.

Caíram sobre o exército Viking qual chuva de lanças; garras afiadas, presas trituradoras, uma força desmedida, incoerente com a sua estatura. Não perdiam tempo — as unhas buscavam os olhos dos homens, e os dentes, as suas gargantas, como se a sede de sangue as enlouquecesse. A gritaria era ensurdecedora! Recorri à magia para afastá-las dos guerreiros... Mas, para cada uma que prostrava, duas surgiam, mais frenéticas e ávidas.

Fui derrubada por uma fêmea de pêlo grisalho, longo e desgrenhado. A Lágrima do Sol saltou-me das mãos, mas consegui manter a luz sobre a clareira com a força da vontade. Encarei a criatura que me prostrava. Fora ela que me desafiara há pouco! A magia que lhe pulsava no sangue era... diferente de todas aquelas com que eu já me deparara. A sua inteligência apurada identificara-me como a mais poderosa, entre os inimigos... e eu reconhecia-a como a matriarca do seu povo. Cravou-me as garras nos ombros e aprisionou-me ao chão. Instintivamente, empurrei-lhe a testa adunca, afastando as presas longas e pontiagudas que tentavam dilacerar-me a garganta. Num focinho enrugado e cravejado de verrugas, dois olhos enormes como os das corujas prenderam-me a atenção. Eram amarelos... Não, pretos! Amarelos... Pretos... Amarelos...

As cores alternavam-se e fundiam-se, em círculos cada vez menores... E a minha reação esmorecia, assim como a luz que iluminava os homens. Manter a criatura afastada representava um esforço descomunal! Queria dormir... Estava tão cansada! Os meus olhos fechavam-se...

— Edwina!

Escutei a voz de Ivarr, muito distante. Ele não podia valer-me... Estava sufocado por pêlo, rodeado de presas e garras. Eric, Bryan, Darrin... Se eu não reagisse, a escuridão venceria... E nada mais restaria do príncipe Viking e do seu exército, além de uma pilha de ossos!

Pretos. Amarelos. Pretos. Os círculos eram um poço sem fundo, onde eu mergulhava... e caía, caía... Os olhos eram a fonte do poder da matriarca; a lança que me perfurava a mente e capturava a vontade. Se eu conseguisse desviar o olhar... Não...! Então... Deslizei os polegares através da testa peluda... E as minhas unhas perfuraram os círculos!

A criatura guinchou de dor e recuou. Mal eu recuperara o fôlego, já me prostrara novamente. Porém, desta vez, os meus olhos estavam bem cerrados! Podia vê-la com os olhos da essência... E estes encontravam-se fora do alcance da sua influência! Já podia respirar. Já era capaz de contrariar a sua força... E estava furiosa!

— Solte-me, peçonhenta! — bradei, recorrendo à magia para arremessar o corpo esguio pelo ar e mantê-lo suspenso junto à copa das árvores. Então, sem contemplações, ateei-lhe fogo.

Ao meu redor, a gritaria das criaturas assumiu um tom aflitivo e misturou-se com os guinchos de horror da matriarca. Num estalar de dedos, os seres da floresta libertaram os homens e correram para as árvores, clamando em agonia, enquanto esticavam as mãos, tentado alcançar a língua de chamas. E algo nesse gesto desesperado tocou-me o coração... Piedade? Talvez! Quando dei por mim, já apagara as labaredas que devoravam a matriarca e pousava-a gentilmente em cima dos ossos que cobriam o solo. Ela estava muito ferida... mas ainda vivia! Um macho possante atreveu-se a descer à clareira. Agarrou o corpo trêmulo e colocou-o sobre um ombro. Depois, regressou às árvores... E todas as criaturas desapareceram.

O exército Viking observava-me, assombrado; mais perturbado com o meu gesto de compaixão, do que com a ferocidade do ataque. Aliviada, verifiquei que não sofrêramos baixas. Alguns homens estavam feridos, mas nenhum com gravidade. Já a sorte dos inimigos fora distinta. Graças à minha luz, muitas espadas haviam encontrado o objetivo e esquartejado criaturas suficiente para prover uma nova camada de ossos sobre a mórbida clareira.

Ivarr envolveu-me nos braços. As suas vestes estavam empapadas de sangue, mas pouco lhe pertencia. Sosseguei-o quanto aos meus próprios ferimentos, infligidos pelas garras da matriarca. Eu sarava depressa.

— Está ficando com o coração mole, prima! — gracejou Bryan, com um sorriso complacente.

— Por que não a matou, Edwina? — insurgiu-se Darrin. — Assim, irão atacar-nos outra vez!

— Não questione as razões da Guardiã da Lágrima do Sol! — retrucou Eric, com ardor. — Se o seu instinto a mandou poupar a líder destas criaturas, foi por alguma razão!

— Continuemos em frente! — determinou Ivarr, numa voz que incendiou os ânimos. — Ficou provado que as manhas da Floresta Sombria não podem nos deter! Somos filhos de Odin, a caminho de uma grande batalha, pela honra do povo Viking... E pela glória do rei Steinarr!

Os guerreiros retomaram a marcha, com dobrado entusiasmo.

Havia dois dias que a barreira de espinheiros mágicos se fendera, e o exército da rainha Aesa se precipitara contra o meu povo, com um ímpeto mortal. Um pequeno grupo de bravos conseguira suster a posição. Receberam-nos com uma alegria festiva, reacesa a esperança na vitória. O general Viking conduziu o rei-lobo e a sua alcatéia até à clareira onde ocorrera a última batalha. Eu acompanhei-os. Os guerreiros das terras onde o gelo nunca derretia, aliados da feiticeira, haviam estabelecido aí o seu acampamento, e exibiam os cadáveres dos nossos homens como troféus. Ver os corpos mutilados e as cabeças decapitadas espetadas em lanças, a assinalar o território conquistado, causou-me agonias; uma revolta sem limites.

Os inimigos eram mais baixos do que os Vikings, mas igualmente possantes... e muito numerosos. Mais reforços tinham chegado ao cair da noite, e a vitória dessa tarde era festejada à luz das fogueiras, com jarros de bebida servidos por jovens do povo vândalo, manifestamente apavoradas diante dos homens rudes e sujos, que se preparavam para abusar dos seus corpos. Aesa não poupava esforços para satisfazer aqueles que serviam a sua causa, mesmo que tal significasse a desonra e o sofrimento das mulheres que se encontravam sob a sua proteção.

Recuamos para junto das tropas. Depois de falar aos seus generais, Ivarr deu ordens para que os homens descansassem. Tanto os resistentes como os recém-chegados estavam exaustos, e ninguém duvidava que os selvagens atacariam ao nascer do dia, esperando eliminar a presença Viking na Floresta Sombria. O nosso objetivo era proporcionar-lhes uma surpresa desagradável... e letal!

Os guerreiros reuniram-se em grupos, para se protegerem do frio. Acender fogueiras estava fora de questão. Ao menor sinal da nossa presença, os aliados dos Vândalos atacariam... E a minha energia ainda não se restabelecera o suficiente para enfrentar Aesa!

A última vez que eu dormira aninhada entre o rei-lobo e a sua alcatéia, fora na noite em que aceitara casar-me com Ivarr. Era difícil evitar o constrangimento, mesmo sabendo que eles jamais me faltariam ao respeito. Thora não teria este problema, já que partilhava da sua ligação espiritual. O que estaria se passando na cabeça da minha irmã, ao verificar que os domínios Vikings se encontravam sob ataque, e que os companheiros combatiam sem a sua ajuda?

Dormi pouco e em permanente sobressalto. Apercebi-me quando Ivarr nos deixou e se sentou afastado, contra o tronco de uma árvore. Segui-o, inquieta, e afligi-me ao vê-lo desviar o rosto. O rei-lobo tentava esconder as lágrimas que faziam o olhar cristalino cintilar nas trevas. Sem saber o que dizer, limitei-me a abraçá-lo. Conhecia bem a causa da sua perturbação.

— A Thora não virá, não é? — desabafou, dando voz aos meus pensamentos. Todavia, antes que eu pudesse reagir, continuou: — O meu espírito está quebrado! Eu... não sei se serei capaz de enfrentar esta batalha sem ela! A fera dentro de mim uiva de desespero, a cada batida do coração.

— Tu tens os outros lobos ao teu lado! — retruquei, franzindo o cenho.

— Sim... Mas a loba prateada quebrou o nosso elo! Há momentos em que nem me apetece viver...

— Não diga isso! — ralhei, indignada com a sua sujeição. — Tu és o herdeiro do trono Viking! O nosso povo depende de ti!

Ivarr cobriu o rosto com as mãos e soluçou. Deixei-o recompor-se, enquanto tentava lembrar-me de algo que pudesse confortá-lo. Porém, ele antecipou-se, sussurrando num gemido:

— Sei que tenciona me deixar... Não negue! Há muito que percebi... E como posso te condenar, quando nada mais faço, além de chorar no teu ombro por causa de outra mulher? — Fixou-me com o olhar carregado de tristeza. — O meu destino se decidirá amanhã, Edwina... Sinto-o, como algo inevitável e definitivo! — Tocou-me nos lábios, impedindo-me de interrompê-lo. — Não sei se terei outra oportunidade de te agradecer pelo teu amor, pelo teu cuidado... pela tua amizade. Lamento não ter conseguido fazê-la feliz!

— Não lamente nada, Ivarr — respondi, forçando-o a escutar-me. — Eu fui feliz ao teu lado... Eu sou feliz ao teu lado! A nossa união não foi determinada pelos deuses... mas, mesmo assim, o carinho que nos une é precioso, único, e perdurará até o fim das nossas vidas, ainda que tomemos rumos diferentes.

As lágrimas caíram-lhe pelo rosto e, desta vez, não tentou ocultá-las.

— É uma mulher maravilhosa, Edwina!

— E tu és um bom homem e um guerreiro excepcional! — respondi, apertando as suas mãos contra o meu peito. — Não tema, Ivarr! Talvez tenha chegado o momento de enfrentar o teu destino... Mas eu sei que vencerá, porque os deuses reconhecem o teu valor e a pureza da tua alma.

— Eu vencerei, porque tu está comigo — retorquiu, beijando-me a testa. — Um homem que desfruta do afeto da Guardiã da Lágrima do Sol não tem nada a temer!

Em pouco tempo, os Vikings dissiparam os vestígios da sua presença. Ivarr escolheu com cuidado a árvore onde eu devia esconder-me, para que não corresse o risco de escorregar e cair durante a batalha, como acontecera na Floresta de Lyria. Ajudou-me a subir e, depois de me acomodar, beijou-me gentilmente os lábios, com uma ternura que me comoveu, ao pensar que podia ser a última vez... Não! Não ia sequer colocar essa possibilidade! Que raio de protetora era eu? Não trocamos uma palavra... Tudo já fora dito! Vi-o descer sem alarido e dar instruções aos seus homens, através de gestos, para que se ocultassem por trás das árvores. Mal o último guerreiro se quedara, escudado no silêncio, avistei os primeiros inimigos.

Avançavam com uma rapidez despreocupada, seguros de encontrar pouca ou nenhuma resistência. No dia anterior, haviam testemunhado a retirada desordenada dos Vikings e apenas pretendiam caçar os sobreviventes. Eu não sentia vestígios de magia no ar. Helga devia estar esgotada, após dois dias a fortalecer a determinação dos guerreiros. Quanto a Aesa... era muito egoísta para desperdiçar os recursos da sua Arte na proteção destes selvagens! Além disso, eu quase apostava que a sua atenção estava voltada para a fronteira com o Povo da Terra, aguardando a nossa entrada pelo território da rainha Lyria.

Deixei o meu poder cair sobre o exército do rei-lobo, como chuva miudinha, ocultando-os dos inimigos. Um a um, os guerreiros da terra onde o gelo nunca derretia foram passando pelos Vikings, sem vê-los, sem farejá-los, sem desconfiança de que estavam sendo observados. Alguns, de percepção mais sensível, voltaram-se para verificar a retaguarda, mas nada divisaram além de troncos possantes e folhagem densa. A fraca luz do dia, que penetrava através da copa cerrada das árvores, era minha aliada na ilusão. A umidade que pairava no ar obrigava os homens a arquejar. Quando os inimigos se embrenharam nas nossas posições, os Vikings atacaram.

Para os guerreiros das terras onde do gelo nunca derretia, foi como se a própria floresta ganhasse vida! Por entre um clamor de alarme e os berros daqueles que tombavam desprevenidos, o ferro encontrou o ferro e o ódio apossou-se dos sentidos

Da segurança do meu posto de vigia, vi os Vikings erguerem os escudos e susterem o primeiro ímpeto dos inimigos. A arma de eleição dos selvagens era o machado. Alguns conseguiam manusear um em cada mão, com impressionante destreza e terrível eficácia. Um homem podia sarar de um corte ou, se tivesse sorte, da perfuração de uma espada... mas dificilmente sobreviveria ao ataque de um machado. Nada detinha essa arma terrível, quando encontrava carne e osso.

Ivarr ordenara-me que não interferisse na batalha, confiante de que a surpresa lhe daria uma vantagem considerável, e levaria os Vikings a uma vitória rápida. Qualquer intervenção da minha parte me colocaria em inferioridade diante de Aesa e dos seus pupilos. Ainda assim, não fui capaz de obedecê-lo. Quando vi a cabeça de um dos nossos guerreiros ser separada do corpo por um vibrante machado, empunhado por um homem que possuía o vigor de um touro, libertei novamente o meu poder, num sortilégio destinado a enfraquecer a vontade dos inimigos. O rei-lobo percebeu e gritou o meu nome, irritado. Contudo, dei por bem empregue a energia gasta, pois os selvagens começaram a cair, prostrados pelo ardor combativo do nosso exército.

A guarda do príncipe reunia-se à sua volta, brandido as armas com um entusiasmo exaltado. Darrin ocupava o lugar de Thora, integrado na defesa do grupo. Um dos aliados dos Vândalos arremeteu contra ele; as mãos segurando um machado sobre a cabeça, disposto a rachá-lo ao meio. Darrin desviou-se e lacerou-lhe o ventre com a espada. O inimigo caiu, desequilibrado, e Bryan acabou por liquidar a presa do primo.

Do lado oposto, Ragnar usou a força dos punhos para afastar o guerreiro que o desarmara. O sangue jorrou da boca do homem, antes de o seu corpo encontrar o chão; o pescoço torcido numa posição incompatível com a vida. Ketill ludibriava dois guerreiros com a sua velocidade, e conseguia pô-los frente a frente. Quando se desviou, um selvagem varou o outro com a espada, e o primo de Ivarr só teve de cortar a garganta daquele que se sustinha de pé, mirando o companheiro com um olhar perplexo. Eric segurava o pulso de um gigante, impedindo-o de usar o machado. Puxou o inimigo contra si e infligiu-lhe joelhadas no ventre. O adversário vacilou e o jarl acabou por prostrá-lo com um dos seus belos punhais.

Ivarr saltou para o lado e um machado assobiou-lhe ao ouvido, indo cravar-se numa árvore. O guerreiro que o arremessara estacou, sem acreditar que falhara. Buscou outra arma no cinto, mas não encontrou nenhuma. O rei-lobo esticou a mão e agarrou no cabo do machado, libertando-o do tronco. O inimigo voltou-se para fugir, mas a lâmina implacável enterrou-se na sua cabeça. Estava morto, muito antes de cair no solo.

O clamor da batalha extinguia-se. Na terra tingida de vermelho jaziam cinco inimigos para cada Viking tombado. Ivarr levantou a sua espada ao céu e bradou vitória. Os seus guerreiros aclamaram-no, extasiados. Eu comecei a descer da árvore, com cautela, até escorregar para os seus braços. O príncipe incitou os homens, gritando:

— Pela glória da Guardiã da Lágrima do Sol!

O louvor tornou-se ensurdecedor. Ivarr trespassou-me com o seu olhar ardente e perguntou:

— Está pronta?

Olhei por cima do seu ombro e vi um manto de cadáveres, solo ensopado em sangue, cabeças decapitadas, membros decepados, as árvores da floresta feridas pelo ferro dos homens... Eu jamais estaria pronta para a guerra! Enchi o peito de ar e bradei, erguendo os braços numa exaltação aos nossos guerreiros:

— Vamos lutar e vencer, pela glória do rei Steinarr!

Entramos na clareira que testemunhara a batalha do dia anterior. O fedor dos cadáveres em putrefação tornara-se nauseabundo. No acampamento onde os aliados dos Vândalos tinham passado a noite, as mulheres que Aesa lhes oferecera choravam, aterrorizadas diante da visão dos Vikings. As ordens de Ivarr, os homens seguiram em frente como se elas não existissem. Senti pena daquelas jovens desgrenhadas, desesperadas, abandonadas... Se eu tivesse força para pôr fim a esta contenda, o seu tormento também findaria.

Embrenhamo-nos novamente na floresta. Logo a barreira de espinheiros surgia à nossa frente, qual muralha intransponível. Ivarr deteve os homens, gritando o nome de Aesa, em desafio. Não obteve resposta... Porém, no interior da minha mente, a voz da mestra da Arte Obscura vibrou, qual corneta desafinada:

«Vieste ao encontro da morte, princesinha abençoada!»

Eu ansiava pelo instante em que a bruxa se revelaria. Mais do que nunca, desejava enfrentá-la! Contudo, após a ameaça, sobreveio o silêncio.

— Não me responde, feiticeira? — provocou o rei-lobo. — Não existe um Vândalo com coragem suficiente para enfrentar o príncipe Ivarr do povo Viking?

Um trovão ribombou sobre as copas das árvores. Aesa evocava uma tempestade... A chuva dificultaria os movimentos dos homens e a trovoada acabaria por confundir-lhes os sentidos. Mal concluíra o pensamento, um nevoeiro espesso começou a formar-se junto ao solo.

— Bruxaria! — murmuravam os guerreiros, fixando-me alarmados, como se esperassem que eu estalasse os dedos e a névoa desaparecesse. Contudo, a minha percepção ocupava-se a tentar ver além do óbvio. Sentia uma forte concentração de energia, do lado oposto da barreira. O exército vândalo preparava-se para responder ao apelo do príncipe Viking. Porém, não era tudo... O equilíbrio das forças místicas corrompia-se a cada fôlego. Um poder tenebroso, malévolo e letal, movia-se sob a terra e tomava forma para lá dos espinheiros... Um poder que me era suficientemente familiar para inspirar horror!

— Ivarr... — sussurrei, para que apenas ele escutasse. — A Aesa está chamando as almas danadas. Se os lobos caírem sobre o nosso exército, neste local, perderemos muitos homens!

O príncipe não respondeu, mas esboçou um gesto que foi imitado pelos seus generais. Em silêncio, os Vikings começaram a recuar. Suspirei de alívio, ao ver o anel de espinheiros desaparecer. A tempestade aproximava-se; o nevoeiro já engolia os nossos joelhos... Todavia, a feiticeira ainda não estava pronta para atacar. Arrepiei-me quando a sua voz funesta tornou:

«Pode fugir, mas não pode se esconder, maldita! Hoje, a Guardiã da Lágrima do Sol encontrará a morte na Floresta Sombria, nas mãos da Senhora da Lua!»

Eu não estava fugindo! Porém, pouco me importava o que Aesa pensava. Na verdade, preocupava-me mais com a vida de Ivarr do que com a minha! Mas não podia deixá-la perceber esse fato, ou acabaria por usá-lo contra mim.

Os Vikings regressaram à clareira. As jovens do povo vândalo tinham-se reunido e choravam, abraçadas, possuídas pelo medo. Os lobos não iriam poupá-las à carnificina! Fui até elas e disse-lhes com firmeza:

— Procurem o abrigo da floresta e subam nas árvores, o mais alto que conseguirem. Depressa!

Obedeceram-me, ajudando-se mutuamente, pois algumas haviam ficado tão magoadas, após terem sido sujeitas à brutalidade dos aliados da sua rainha, que mal conseguiam andar. Regressei à linha de frente e assumi o meu lugar ao lado do príncipe. Ivarr estendeu-me um punhal, murmurando:

— Para o caso da magia não ser suficiente...

Agradeci, tentando sorrir e falhando. O olhar cristalino revelava inquietação... e desencanto. A sua esperança de ver Thora surgir já fenecera. Pensava que travaria a sua derradeira batalha sem o apoio da loba prateada... e que pereceria, pois a sua alma estava incompleta. Ivarr convencera-se de que Thora era a mulher destinada a decidir o resultado do confronto do Espírito da Luz com o Espírito da Escuridão... Mas como podia ser, se Helgi nem sequer a conhecia?

Começou a chover. O nevoeiro alcançara-me a cintura. Sobre nós, os relâmpagos chicoteavam o céu de cinza e sangue. A tênue luz do dia fora devorada pela tormenta. O vento soprava, gélido e implacável, açoitando os nossos cabelos e as roupas encharcadas. O estrondo do trovão não abafou o uivo do líder dos lobos danados, nem a resposta da sua alcatéia. Seguiu-se o estrépito da barreira de espinheiros que ruía, fazendo estremecer o chão sob os nossos pés. Depois, o tropel de dezenas de patas a galope... Quantos seriam? Decerto muitos; todos os que Aesa conseguira invocar. Desta vez, a feiticeira se empenharia na vitória, na morte do Espírito da Luz... e na minha destruição.

Os lobos negros, aberrações gigantescas, carregavam a maldade de uma alma condenada à tortura pelas forças divina. Aesa subvertera-lhes a vontade e tornara-os seus escravos. Só existia perversidade e horror por trás do olhar incandescente... Logo, apelar a um vestígio de consciência seria inútil! Eram imunes à dor. Eram imunes aos sortilégios. Podíamos esfolá-los, que continuariam a investir com a mesma voracidade; estripá-los, que sarariam diante dos nossos olhos; amputar-lhes um membro, que outro cresceria no lugar. Durante a batalha nos Pântanos Nebulosos, eu aprisionara alguns na fome devoradora das areias movediças. Contudo, isso não os matara... Ainda hoje viam, ouviam e sentiam, condenados ao tormento de uma existência eterna, enclausurados no interior da terra.

— A única forma de matá-los é cortando-lhes a cabeça ou trespassando-lhes o coração — gritei, de modo a que a minha voz alcançasse todos os Vikings, sob o ardor da tempestade.

Porém, nada podia prepará-los para a avalanche de pêlo, músculos, garras e presas que se abateu sobre nós. Eu não fui exceção. Um lobo, que mais parecia um cavalo, saltou de entre as árvores e atirou-me ao chão. Senti o impacto em todos os ossos do corpo, e vi a obscuridade encher-se de estrelas. Combati a inconsciência, apelando à magia para criar uma barreira entre a minha garganta e a bocarra do monstro. Apesar de atordoada, a mente pulsava em alarme. Não podia gastar muito poder, ou acabaria subjugada durante o confronto com a feiticeira.

Uma a uma, as estrelas ganharam a forma de dois olhos de fogo, que iluminavam presas aguçadas, mais compridas do que os dedos das mãos de um adulto, as quais tentavam devorar caminho através do escudo de magia protetora. Ergui o braço e espetei o punhal de Ivarr no pescoço do lobo, tantas vezes que lhes perdi a conta. O seu sangue espesso misturou-se com a água e a lama, empapando-me a lã da túnica. O vômito de fel, que lhe escapava por entre os dentes, escorreu sobre o escudo e queimou-me a pele. Senti as suas garras perfurarem-me a carne... Se continuasse a poupar magia, em breve estaria morta! Enviei um raio de energia através do corpo do monstro, que o paralisou por um instante. Contudo, foi suficiente para permitir-me deslizar o braço sobre a forma colossal e forçar o punhal ao encontro do seu coração.

O lobo rugiu, ganiu... e prostrou-se imóvel sobre mim. Empurrei-o e levantei-me, o mais rápido que as pernas permitiram. A dois passos, outra fera lançava-se contra um Viking. Este agüentou o impacto e tentou seguir as minhas instruções. A sua lâmina perfurou pêlo e carne... mas falhou o coração! Diante do meu olhar horrorizado, a garganta e parte do rosto do homem foram destroçados pelas presas do lobo. O seu corpo colossal ruiu no chão, sem um gemido... E a fera voltou-se para encarar-me, com os despojos sangrentos a pender-lhe da mandíbula. Sustive o fôlego e apontei-lhe o punhal. Ele arrojou-se no chão e preparou o salto... Então, um guerreiro caiu do céu, como se tomasse forma sob a chuva e os raios. Interpôs-se entre mim e o monstro; os joelhos flexionados, a espada já desembainhada. Pulei para trás, alarmada... mas o meu espírito vibrou de alegria ao reconhecer Thora.

O lobo atacou. Tentou passar pela desafiadora, chegar até mim... Mas Thora ergueu-se no último instante, rodopiou o corpo, elevou a espada... E a sua lâmina atravessou músculos e ossos. A aberração tombou aos meus pés; o sangue que lhe jorrava do pescoço encharcando-me as botas. A sua cabeça voara para longe. Nesse instante de extrema comoção, esqueci o perigo que nos rodeava e abracei a minha irmã.

— Estou tão feliz por ter voltado! — desabafei ao seu ouvido.

— Perdoe-me... — murmurou ela; a voz sufocada pelo estrondo de um trovão. O tormento que a fustigava era uma sombra que toldava o verde-floresta do seu olhar.

Não tive tempo de responder, pois outro monstro caiu sobre nós, tentando abocanhar-me. Combinamos esforços para matá-lo... E continuamos, socorrendo os homens que se batiam corajosamente contra os escravos de Aesa. Pelo canto do olho, vi Ivarr estacar, ao deparar-se com a loba prateada. A sua expressão iluminou-se... mas carregou logo em seguida, ao reparar em algo que, só agora, eu também constatava. Thora não viera sozinha. O príncipe Galinn acompanhava-a e trouxera a sua guarda pessoal.

Thora conseguiu alcançar os companheiros. Os gritos de euforia sobrepuseram-se aos odiosos sons da batalha e ao ardor da tormenta. Mais uma vez, o rei-lobo tinha a alcatéia completa... Mas teria a alma curada? Escusando palavras, os guerreiros abençoados pelos deuses formaram uma linha de defesa, que prostrou metade das criaturas danadas. As outras foram mortas pelo exército Viking e pelos reforços do Povo da Terra, com o sacrifício de preciosas vidas. Quando o último monstro tombou, o céu rasgou-se e os raios fustigaram a floresta.

— Abriguem-se! — bradou Ivarr.

Vários guerreiros sucumbiram, fulminados. Corri para o centro da clareira e ergui os braços, desafiando a energia. Um a um, os relâmpagos esqueceram os homens e precipitaram-se contra o meu corpo; o fogo trespassando-me a carne e fervendo o sangue, até os pulmões cessarem de respirar, até o coração parar de bater, até a mente estar prestes a arrebentar... Então vi Helga; a pele pálida do seu rosto enfeitada por longos cabelos castanho-acobreados. O olhar cego tornou-se azul e refletiu o meu, quando proferiu o apelo:

«Toma a minha vida, Guardiã da Lágrima do Sol...» Toda a energia que acumulara transformara-me num pequeno Sol, que queimava os olhos dos Homens. Tinha de expulsá-la rapidamente ou seria assimilada pelo fogo. A jovem vidente do povo vândalo pedia-me que a lançasse contra si, ciente de que não suportaria nem metade do impacto. Era o sacrifício a que se dispusera, para que eu interferisse na profecia e salvasse Helgi, no campo de batalha. Porém, apesar da sua morte enfraquecer substancialmente Aesa, não podia concordar com tamanha atrocidade. Helga e Helgi eram meus inimigos, mas eu não os encarava como tal! Os seus espíritos haviam sido capturados pela bisavó, no instante do nascimento. Todavia, a feiticeira fora incapaz de corromper-lhes definitivamente a essência. E essa era a prova de que os gêmeos representavam a última esperança do seu povo!

— Não! — gritei. E os olhos da vidente fecharam-se; todas as suas forças esgotadas.

Voltei-me na direção do reduto de Aesa e libertei o fogo, qual vômito de dragão. As árvores robustas da floresta ampararam a energia... e transformaram-se imediatamente em cinzas. Eu não conseguia ver nada, não conseguia ouvir nada... A minha percepção era um lento e doloroso palpitar, que me devorava a razão. O suplício manteve-se por um tempo indeterminado. Talvez um fôlego... Talvez uma eternidade... Até a chuva me despertar para a vida, limpa de magia, abençoada pela natureza. Entreabri os lábios e deleitei-me com a sua frescura. Depois, Ivarr surgiu ao meu lado. Resgatou-me do chão e tomou-me nos seus braços, indagando:

— Está bem, Edwina?

Verifiquei que as árvores que nos separavam da barreira de espinheiros tinham desaparecido. Só os arbustos malditos, imunes ao fogo, haviam impedido o progresso da destruição.

Um silêncio assombrado enchia a clareira. Diante da manifestação do meu poder, os guerreiros tinham-se prostrado de joelhos, por entre os cadáveres dos companheiros e dos lobos. Infelizmente, a estratégia de Aesa funcionara. Após as suas ofensivas, o nosso exército ficara reduzido a metade. Alguns dos homens que tentavam suster-se apresentavam ferimentos graves, que seriam fatais se não fossem atendidos de imediato. No entanto, era óbvio que a mestra da Arte Obscura não nos daria tréguas para lamber as feridas! O chão começou a tremer e o olhar de Ivarr encontrou o meu. A barreira de espinheiros abria-se novamente... O exército Vândalo ia cair-nos em cima, com toda a sua ferocidade!

— Consegue andar? — perguntou o príncipe.

Confirmei com a cabeça, embora tivesse as pernas bambas. Thora amparou-me e o seu olhar cruzou-se com o do rei-lobo. A emoção trespassou-os, quase tão violenta como a energia que destruíra parte da floresta. Então, Ivarr virou-lhe a cara e disse-me:

— Está muito fraca para interferir. Afaste-se o mais que puder! Se vir que a batalha está perdida, embrenhe-se na floresta e esconda-se, até conseguir regressar para casa. Por favor, Edwina... Não se deixe capturar!

Toquei-lhe no rosto... E ele afastou-se, gritando um incentivo aos seus homens. Thora tremia, à beira das lágrimas. As palavras caíram-lhe dos lábios, antes que pudesse segurá-las:

— Ele me odeia!

Tomei as suas faces entre as mãos e prendi-lhe o olhar, objetando:

— Sabe que isso não é verdade, Thora! Este é o momento de todas as decisões... E o teu lugar é ao lado de Ivarr!

— Eu não posso deixá-la sozinha! — replicou ela, confusa e assustada.

— A Guardiã da Lágrima do Sol nunca está sozinha... — Impeli-a com convicção, pois já se escutava o clamor dos guerreiros vândalos, por trás do anel de espinhos, que se quebravam e recolhiam ao solo. — Vai, loba prateada... Que a magia da Montanha Sagrada te acompanhe!

 

O Sol ocultava-se por trás das nuvens densas, mas eu sentia a sua energia... Assim como me apercebia do pulsar da terra e da água., por baixo do nossos pés. Aesa conseguira desgastar-me... Contudo, não me esgotara! A Floresta Sombria podia ser domínio seu, mas palpitava de vida... Vida, que me alimentava abnegadamente! O desfecho deste confronto ainda não estava decidido.

Os meus guerreiros passaram a correr, agitando as armas e exibindo a sua coragem sem igual. O príncipe Galinn e os seus guardas encontravam-se entre eles. Não recuei como Ivarr ordenara. Sentei-me no chão e fechei os olhos, recebendo as dádivas da natureza. A essência nefanda de Aesa acometia na minha direção. Escutei o eco das primeiras espadas que se cruzavam. Abri o espírito à batalha e vi Vikings e Vândalos baterem-se com um furor terminal. As nossas forças eram tão equivalentes, que, se a magia não interferisse nos assuntos dos Homens, provavelmente a luta permaneceria equilibrada, até restar apenas um soldado de cada lado da contenda.

Enchi o peito de ar e forcei a essência a separar-se do corpo. Mal tivera tempo de estabilizar a energia, a voz da mestra da Arte Obscura caiu sobre mim, com o ímpeto de um predador voraz, arrebatando-me a mente, enquanto rugia:

— Do pó da Terra nasceste, ao pó da Terra retornarás! Morre! Fenece, maldita!

Cada partícula da minha essência parecia murchar sob o efeito do sortilégio. Imaginei-me na Montanha Sagrada, diante da Pedra do Tempo, recebendo o calor do Sol Pai e a energia da Terra Mãe. A Terra não me faria mal... Eu era sua filha!

Empurrei a voz que me amaldiçoava, de volta aos lábios execrandos, e retorqui:

— Não serei pó, serei semente! Nasci da Luz e à Luz regressarei. Sou Guardiã da Lágrima do Sol. O meu sangue é alimento e vida para o meu povo... E o teu sangue será veneno e morte para o teu!

A cada palavra, a minha essência assimilava poder. Sobre nós, as nuvens dissipavam-se e deixavam penetrar os tímidos raios de sol. Ao perceber-me incólume e fortalecida, Aesa chamou a si os horrores da Arte Obscura. Num instante, era uma mulher bela e elegante, com brilhantes cabelos louros e olhos azuis celestes... No seguinte, era uma criatura saída do mais hediondo pesadelo. Os seus cabelos eram serpentes, os seus olhos abismos de fogo, a sua pele apodrecia e, sob ela, agitavam-se vermes. A sua boca sangrava, em decomposição, enquanto replicava numa voz grave e ensurdecedora, que jamais poderia provir de uma garganta humana:

— O meu sangue é veneno. O meu sangue é morte. A morte que cobre o teu corpo! A morte que devora a tua semente! Recorda-se, Edwina? Por cada lágrima derramada sobre o meu sangue, jorraram mil e uma lágrimas sobre o sangue de Hakon e Aranwen! A essência dos teus filhos vive no meu corpo... Tu não podes matar-me, porque destruiria um pedaço da tua alma! Esta é a tua maldição... A loucura que te consumirá!

O seu vômito de sangue cobriu-me o rosto. De imediato, parei de respirar. Um abismo negro abriu-se debaixo do meu corpo e engoliu-me. Tombei num redemoinho abissal, onde ventos gélidos me açoitavam a essência com uma ferocidade lacerante. A dor era insuportável... E do centro desse suplício, vozes ecoavam, choravam de agonia:

«Mãe... Mãe!»

As trevas atenuaram-se, revelando-me os vultos de três crianças, cujos braços se estendiam num apelo... Os meus filhos, prisioneiros de Aesa!

— Não!

Eu não enlouqueceria!

— Não!

Eu não me finaria!

— Não!

A única maneira de libertar a essência dos não-nascidos, e de todas as vítimas da feiticeira, era pôr fim à sua abominável existência! Ergui as mãos no vazio... E encontrei as faces de Aesa. A sua exclamação de irada surpresa chegou-me aos ouvidos. Como é que eu ainda tinha alento para reagir?

— Não pode extinguir a minha luz com as tuas trevas, bruxa! — arquejei; o ar abençoando-me novamente, ao mesmo tempo que os olhos recuperavam a visão. A magia libertou-se dos meus dedos, trespassando a feiticeira; ainda muito fraca para lhe causar dano, mas suficiente para fazê-la estrebuchar e guinchar apavorada, ao adivinhar-me a intenção. Concentrei todas as forças que me restavam e impedi-a de afastar-se. Um dos raios de sol que empurravam as nuvens acariciou-me o rosto. Capturei-o com o olhar e guiei-o ao encontro da essência disforme, enquanto declamava, numa voz que começou por ser um murmúrio e terminou num brado de revolta:

— Senhor do céu e da terra, mestre de toda a vida, fogo divino, essência da minha magia... A ti te invoco, Rei Sol, como tua humilde rainha, para que lances luz sobre a obscuridade e libertes os teus filhos do terror da noite, do gelo do Inverno, das garras do medo...

As tatuagens que me enfeitavam os pulsos ganharam vida e o campo de batalha foi percorrido pelo rugido ensurdecedor de um dragão. Vikings e Vândalos lançaram-se por terra, ao depararem com a magia do Guardião da Montanha. Então, o Sol das minhas tatuagens acolheu os raios do Sol que reinava no céu... e estes fundiram-se com a essência de Aesa, levando luz a todos os recantos da sua alma danada. A feiticeira berrou, cega pelo esplendor, sufocada pelo brilho, destroçada pelo tormento que o calor do conforto e da tranqüilidade lhe provocavam. E eu alimentei-a com o poder que a Lágrima do Sol me conferia, até que o seu espírito se fendeu, e as essências que a mestra da Arte Obscura aprisionara dentro de si, ao longo dos anos, para alimentar a sua magia abominável, fluíram ao encontro da luz... e da liberdade. Os meus olhos encheram-se de lágrimas por saber que, entre elas, se encontravam os não-nascidos do meu ventre. Este era o fim da sua maldição!

— Perdoem-me... — murmurei extenuada. — Descansem em paz...

Entre as minhas mãos, a energia de Aesa exauria-se, tornando-a transparente. Se a sua essência finasse, o corpo também pereceria... Esse pensamento deu-me ânimo para vencer a tontura provocada pela exaustão, que teimava em arrastar-me para a inconsciência. Eu só tinha de agüentar mais um pouco, para destruir de vez esta criatura maldita!

A oscilação de energia chegou até mim, como um sussurro carregado pelo vento. Por puro instinto, desviei os olhos da essência apagada de Aesa e busquei o meu corpo. Fui percorrida por um calafrio de terror, ao deparar com o homem que se arrastava por entre os cadáveres dos guerreiros e dos lobos, qual predador voraz. Snari dispunha-se a pôr fim à minha vida, antes que eu matasse a sua rainha! Recordei a experiência que vivera através dos olhos do espírito do rei Vestein. Se o príncipe vândalo me encostasse um dedo, eu estaria perdida!

Fixei Aesa. O seu rosto grotesco e decomposto sorria. A feiticeira sabia que, mais uma vez, eu falhava nas minhas ambições. Ela fora derrotada, mas viveria para travar outra batalha. Libertei-a e precipitei-me na direção do meu corpo. Não ia conseguir...

Abri os olhos para a realidade, e vi dedos compridos e unhas pontiagudas a descerem sobre a minha testa. Só tive tempo de rolar no chão. Snari praguejou e tentou agarrar-me, mas eu sustive-me, ainda que a cambalear, e empunhei a arma que Ivarr me dera. O príncipe vândalo quedou-se, perplexo ante a minha reação... e desatou às gargalhadas.

— Quer repetir a piada, vândalo, para que eu possa rir também?

A voz de Thora cobriu-me de alívio. A minha irmã surgira oportunamente ao meu lado. De imediato, puxou-me para trás do seu corpo. A distância de uma investida da espada da guerreira, Snari engoliu o riso e empalideceu. Começou a recuar... Depois voltou-se, e correu para o anel de espinheiros.

— Aquele covarde acredita que pode escapar-me? — rugiu a loba prateada, esboçando a intenção de persegui-lo.

De súbito, dois gritos destacaram-se de entre o fervor da batalha. Um pertencia ao príncipe Ivarr do povo Viking. O outro... O outro pertencia ao príncipe Helgi do povo vândalo! E eu sabia o que ambos significavam!

— Não! — murmurei, sem fôlego, buscando-os com o olhar. — Thora...

Ela não me ouviu, pois já se lançara ao encontro do seu senhor. Quedei-me gelada, sem um pingo de alento no corpo ou de magia na essência. Era um peso morto sobre o chão, impotente para interferir no rumo do destino; incapaz de chamar a atenção da loba prateada para a gravidade da situação que estava prestes a enfrentar. Lembrei-me de Freya e do seu desespero. Recordei a sua premonição. Pela energia cintilante da Pedra do Tempo... Thora estava prestes a matar Helgi! Fora isto que Helga tentara evitar! Fora isto que Freya temera, desde o primeiro dia em que o pesadelo lhe perturbara o espírito! Porém, nem ela, nem eu, havíamos feito nada para impedi-lo. E teria sido tão simples... Bastaria ter contado a verdade à nossa irmã!

— Rei Sol — arfei, desesperada. — Por favor, dá-me força...

A minha prece foi ouvida... Mas não da forma que eu almejava! De repente, todo o campo de batalha desapareceu diante dos meus olhos... à exceção do Espírito da Luz e do Espírito da Escuridão. O lobo branco e o lobo negro encontravam-se finalmente, dispostos a cumprir a profecia que os fizera eleger estes dois homens para acolher as suas essências.

Ivarr ergueu a espada e defendeu-se do ímpeto veemente de Helgi. As faces do príncipe vândalo estavam em fogo e todo o seu corpo se movia sob o ardor do ódio. Percebi que fora ele que buscara este confronto... e que Ivarr ainda tentava evitá-lo:

— Nós não temos de fazer isto! — bradava, apelando à consciência do adversário. — Chama os teus homens e eu chamarei os meus... Tem a minha palavra!

— A tua palavra não vale nada!

— Sabe que isso não é verdade! Vamos conversar... Estabelecer um acordo, como o teu pai desejava!

— O meu pai está morto — gritou Helgi, descontrolado, atacando com uma violência letal. — E foste tu que ordenaste a sua morte!

— É mentira! — negou Ivarr, esquivando-se a grande custo.

— O Delling era um bom homem! — continuou o outro, como se não o tivesse ouvido. — Os seus filhos hão de gostar de saber que o pai foi vingado!

Estas palavras trouxeram a Ivarr a recordação da sala de reuniões do castelo Viking; o momento em que Thorson nos interrompera, para se dar a conhecer ao avô.

— Helgi...

— Chega!

As espadas cruzaram-se diante dos seus corpos, acima das cabeças, rasgando o ar com uma rapidez que os olhos mal conseguiam acompanhar; batendo-se com tamanha irascibilidade que o ferro parecia incandescer. Helgi gritava a cada nova arremetida, cego pelo ódio, surdo pelo rancor. Por um instante, os homens desapareceram e fui confrontada com a Visão dos lobos. Presas aguçadas, garras distendidas, músculos que se apertavam num abraço mortal. Sangue... Feridas abertas no pêlo branco e no pêlo negro. Pisquei os olhos com força e tornei a ver Ivarr e Helgi, ambos feridos no peito, no ventre... onde as lâminas tinham encontrado brechas na defesa do rival. O seu poder era tão equivalente, que podiam retalhar-se e sangrar de pé, até à morte, sem que um subjugasse o outro. Estremeci de horror, ao pensar que, provavelmente, nenhum dos dois sobreviveria ao combate.

Sobre as nossas cabeças, as forças que moldavam o destino dos homens conspiravam... Havia uma profecia para concretizar! Ao esquivar-se de um ataque de Ivarr, Helgi tropeçou na perna de um jovem que sucumbira na batalha. Tentou desesperadamente equilibrar-se, mas o príncipe Viking aproveitou a vantagem para acometer contra ele, e combinar a força dos punhos com a perícia da espada. Dois socos, uma investida hábil, e a arma do príncipe vândalo voava para longe, enquanto o seu corpo robusto se esmagava no solo. O lobo negro ainda tentou levantar-se... mas a lâmina do lobo branco já pressionava a sua garganta.

— Renda-se, Helgi! — impôs Ivarr. — Cala o uivo do Espírito da Escuridão e deixa o homem raciocinar. Eu sei que não é fácil... Também nasci e fui treinado para enfrentar este momento! No entanto, recuso-me a permitir que quaisquer profecias governem o meu destino! Por mais que o Espírito da Luz rosne de raiva, eu sou senhor da minha vontade, e tenho a convicção de que tu podes fazer muito pelo teu povo!

Ditas estas palavras, afastou a espada e estendeu a mão ao vândalo. Os olhos de Helgi estavam carregados de lágrimas... Mas não eram de gratidão! Abanou a cabeça na direção do cadáver do jovem em quem tropeçara, mastigando com um ressentimento tenebroso:

— Este rapaz chamava-se Olave... e era meu irmão! Nunca poderá existir paz entre Vikings e Vândalos, Ivarr... Nunca!

A espada do irmão estava caída ao seu lado, e foi parar-lhe nas mãos quase por encanto. Ivarr olhava para o jovem degolado, que sangrara até à morte, com uma expressão de profundo pesar. O que estava a fazer um rapaz, que mal tinha idade para submeter-se às provas de iniciação, num campo de batalha? Quando a lâmina de Helgi lhe rasgou o ventre, saltou para trás, arfando de surpresa. A ferida não era letal, mas avisava-o de que o vândalo jamais escutaria a razão.

— Que assim seja! — murmurou. E investiu adiante.

De cada vez que as espadas de Ivarr e Helgi se batiam, eu escutava os uivos dos reis-lobo. Por um instante, acreditei que ia perder os sentidos. As formas distorciam-se e os sons alongavam-se no tempo. Caí de joelhos, muito fraca para me suster. Ivarr estava a perder muito sangue e vacilava debaixo do ímpeto selvagem de Helgi. A espada do príncipe vândalo tornou a lacerar o rival, e a visão do sangue incendiou-lhe ainda mais o ardor. Arquejei horrorizada, ao ver a expressão de Ivarr, no instante em que as suas pernas falhavam. Ergueu a arma diante da cabeça, detendo o ataque do Espírito da Escuridão, e conseguiu proteger o pescoço de um golpe fatal. Porém, Helgi não perdeu a oportunidade de atacar novamente. A espada do Espírito da Luz foi projetada para longe e o seu corpo despencou ao chão. Ainda não assimilara o impacto, já a lâmina do adversário caía em riste sobre ele, direta no coração...

— Não!

Thora rasgou o ar como se pudesse voar. A sua espada bateu na do príncipe vândalo e empurrou-a para longe do seu intento mortal. Helgi cambaleou sob a violência do impacto e viu-se desarmado sem compreender como. O rapaz baixo e franzino, que impedira o seu destino de cumprir-se, rolava no solo e tornava a erguer-se, como se não tivesse peso. Seria magia? Nenhum homem possuía tal agilidade, tamanha flexibilidade... O pequeno guerreiro já corria ao seu encontro.

O vândalo sentiu o punho da sua espada debaixo da bota e pontapeou-a, de modo a fazê-la chegar à mão, a tempo de bloquear o ataque do jovem Viking. Porém, este já segurava um punhal na mão esquerda, que ele nem sequer o vira desembainhar...

Os olhos de Helgi esbugalharam-se de assombro e choque, ao verificar que o seu atacante não era um rapaz, mas uma mulher... Uma mulher de longos cabelos repletos de caracóis negros, e com deslumbrantes olhos verdes! Uma mulher que, todos os dias, ele reencontrava nos seus sonhos!

— Freya...?

Nesse instante, o punhal de Thora lacerou-lhe a face. Helgi bradou de dor e recuou, levando a mão ao rosto, cego pelo sangue. A loba prateada rodou o corpo para ganhar impulso, e estendeu um dos pés, com o vigor de uma máquina de guerra, pontapeando-o no peito e impondo-lhe a queda. Depois, acometeu com um grito aguerrido, tentando vará-lo com a espada.

Helgi rolou no chão e a lâmina enterrou-se na lama, a um palmo da sua cabeça.

— Espera! — apelou transtornado. — Eu te conheço!

— Sim... — retrucou Thora. — Dos teu piores pesadelos!

Uma das suas botas esmagou o pulso de Helgi, forçando-o a largar a arma. Ele reagiu, e também usou os pés para atirar a espada da loba prateada para longe, enquanto suplicava:

— Olha para mim! Não se lembra...?

Tentou levantar-se, apoiando-se no braço machucado, mas tornou a cair com um gemido de dor. Thora bufou de raiva, ao ver-se despojada da espada. Lançou-se sobre o inimigo, com tamanho arrebatamento, que conseguiu imobilizá-lo debaixo do corpo. Helgi agarrou-lhe o pulso, com a mão sã, impedindo-a de cravar-lhe o punhal no peito.

— Não sabe quem eu sou? — balbuciou, apelando à mão partida para alcançar o colar, que a túnica encharcada com o sangue que lhe escorria da face ocultava.

— É um Vândalo! — rosnou Thora, juntando as mãos sobre a base do punhal para contrariar a sua força. — É um covarde; um assassino!

— É... É isso que pensa? — gaguejou Helgi; a expressão desfigurada por um sofrimento que não era físico. — Então, eu não quero viver...

Algo na sua voz deteve o ímpeto de Thora. As mãos de Helgi afastaram-se e prostraram-se ao lado do corpo, deixando a ponta da arma da loba prateada pressionada contra o seu coração. Os olhos da minha irmã estavam presos numa pedra azul, cuja cintilação espreitava do interior da túnica do vândalo. Depois, fixaram-se no rosto mutilado, reparando no azul celeste do olho que lhe restava, na cor castanha acobreada dos seus cabelos...

— Perdoe-me, Freya... — murmurou ele, vertendo uma lágrima. — Perdoe-me...

De onde me encontrava, vi o punhal de Thora deslizar até à garganta de Helgi. Bryan e Ketill socorriam Ivarr. Eric e Ragnar lançavam uma última ofensiva contra o exército inimigo, que não se renderia enquanto um Viking respirasse... Então, uma nova onda de guerreiros passou por mim, numa corrida desenfreada, liderada pelo rei Steinarr. Perante esta inesperada, e infinitamente bem-vinda, chegada de reforços, a voz de Raud, rei do povo vândalo, ergueu-se num clamor vibrante de aflição, pouco digno da posição que assumira:

— Retirar, homens! Retirar!

O solo tornou a estremecer e a barreira de espinhos fendeu-se... A minha visão turvou-se e o corpo desfaleceu. Já não senti o embate com o chão.

 

A viagem até o castelo Viking foi como um sonho vago, que se passeou na minha mente. Algumas recordações persistiram: a voz de comando de Steinarr; o cheiro purificador da floresta; as palavras reconfortantes dos meus primos, mesmo quando duvidavam que eu pudesse escutá-los; o abraço quente de Thora, durante a noite... Depois, o silêncio do quarto, o calor da lareira, o carinho protetor de Freya...

Mais tarde, fiquei sabendo que o rei Viking retornara para casa, logo após a nossa partida. De imediato, precipitara-se ao encontro do filho. A sua chegada intempestiva forçara o exército vândalo a recuar para o interior do anel de espinheiros. No rescaldo da batalha, Steinarr agradecera o apoio do príncipe Galinn e da sua guarda. O Povo da Terra aliava-se, uma vez mais, aos Vikings, para garantir a segurança das fronteiras. O nosso regresso fora silencioso e ausente de incidentes, apesar de ousarmos atravessar novamente a Floresta Sombria, e os domínios das estranhas criaturas que colecionavam os ossos das suas presas. Ivarr ficara de tal maneira ferido, que tivera de ser transportado durante a viagem. O mesmo acontecera comigo, porque me esgotara até à última gota de energia, física e mística.

A profecia que opunha o Espírito da Luz ao Espírito da Escuridão concretizara-se. Fora desvendado o mistério que rodeava a identidade da mulher destinada a decidir qual deles alcançaria a vitória. A sorte pregara uma peça à maldição, ao eleger, não uma campeã, mas duas... com o mesmo rosto! Thora e Freya haviam despertado o amor de dois guerreiros implacáveis. Porém, no momento da verdade, fora a loba prateada quem erguera a sua espada, para defender o lobo branco do ódio do lobo negro. Eu vibrava de alegria por saber que Ivarr estava vivo. Contudo, a morte de Helgi não pressagiava nada de bom; nem para o seu povo, nem para o nosso!

Ao libertar-me das brumas, o meu primeiro pensamento foi para Thora. Teria ela permanecido no castelo ou regressado à Floresta de Lyria? Freya estava comigo, velando o meu sono, e contou-me que a nossa irmã ficara. Porém, não tive tempo de experimentar o mais breve alívio, pois ela questionou-me, num tom de angustiada urgência:

— O que é que aconteceu a Helgi? A Thora... A Thora o matou?

Engoli em seco, desejando não ter de enfrentar aquela conversa.

Indaguei receosa:

— Ela não te relatou os pormenores da batalha?

— A Thora recusa-se a falar comigo! — respondeu, cruzando os braços sobre o peito, como se fustigada por um vento gélido. — Diga-me a verdade, Edwina!

— Eu não sei... — Engoli em seco. — Quero dizer, não tenho certeza... Eu... Eu desmaiei, Freya!

Covarde! Eu era uma covarde! De que servia prolongar a incerteza da minha irmã? Só lhe agravaria o sofrimento! Porém, não conseguia proferir as palavras fatais. Não, diante dos seus olhos molhados de esperança. Raios, por que é que o destino tinha de ser tão cruel?

Nesse instante, Thora entrou no quarto. Não olhou para a sua gêmea. Não indagou da minha condição. Enfrentou-me com os punhos cerrados, mastigando num tom agreste e acusador:

— Tu sabias! Sempre soube, não é verdade? — Apontou um dedo à sua gêmea, como se incapaz de encará-la. — Já que ela não confia em mim, tu devias ter me alertado! Mais cedo ou mais tarde, isto ia acontecer, Edwina! Aquele homem... O pai de Thorson é um Vândalo!

— E tu mataste-o, não foi? — gemeu Freya, em prantos, sem suportar o seu desabafo.

— O que é que acha? — Thora arrostou a gêmea com um ímpeto avassalador. — Num campo de batalha, não nos sentamos para beber cerveja com os nossos inimigos! Num campo de batalha, ou matamos, ou morremos! — Enfiou a mão trêmula de raiva na bolsa que lhe pendia do cinto, e revelou a pedra azul da feiticeira Aranwen, cujo brilho se escondia por baixo das manchas de sangue do príncipe Helgi do povo vândalo. A sua voz assumiu um tom jocoso ao prosseguir: — Ele teve a graça de nos confundir! Toma... Trouxe-te uma recordação do nosso encontro!

Freya derrubou a pedra com um safanão, bradando desesperada:

— Jamais te perdoarei! Jamais!

Saiu correndo, antes que eu pensasse em algo para dizer. Thora deixou-se cair sobre a cama e cobriu o rosto com as mãos, desatando a chorar. Envolvi-a nos meus braços, tartanaudeando:

— Sinto muito! Tem razão... Eu devia ter te contado!

— Como é que a Freya foi capaz? — exasperou-se ela, buscando o meu olhar. — Aquele homem é um ladrão, um assassino...

— Não a julgue tão cruamente — supliquei. — O Helgi era servo da vontade de Aesa... Mas possuía um fundo de bondade; uma pureza na alma que atraiu o coração da nossa irmã.

— Ele quase matou o Ivarr! — contrapôs a loba prateada, como se enunciasse o mais hediondo dos crimes.

— Era o seu destino — respondi. E falei-lhe da profecia, concluindo: — O Helgi morreu por tuas mãos, porque os deuses assim o determinaram... — Detive-me bruscamente, ao vê-la desviar o rosto. Thora não sabia mentir... E, por mais que se tivesse preparado para assumir esta farsa, a sinceridade traía-a. Balbuciei, sem fôlego, temendo estar enganada: — Tu não o mataste?

A minha irmã assoprou e esfregou a testa com força, denunciando frustração ao responder:

— Não fui capaz... Por todas as serpentes do submundo, eu não fui capaz!

— Então, por que deixou a Freya pensar...?

— Porque é o melhor para ela! — rugiu, saltando da cama e marchando nervosamente pelo quarto. — A Freya não pode acreditar que tem um futuro ao lado daquele homem!

— Não é por julgar que o Helgi está morto, que ela irá esquecê-lo! O coração não pára de amar, só porque nós desejamos que assim seja. Sabe disso muito bem!

Thora deteve-se, fixando-me com um misto de culpa e resignação.

— Sei perfeitamente o que está insinuando — respondeu, exausta. — Mas não tem que se preocupar comigo! Só vim até o castelo para certificar-me de que, tanto tu como o Ivarr, ficariam bem. Ele está sarando e tu já despertaste. Amanhã de manhã regressarei à casa de Lyria...

— Tu não vais a lugar nenhum! — repliquei, com uma firmeza autoritária.

— Eu não posso ficar...

— Porque está apaixonada pelo Ivarr?

As lágrimas regressaram aos olhos da minha irmã e os seus ombros vergaram-se, ao admitir:

— Sim...

— O Ivarr também te ama — retruquei, aliviada.

— Enlouqueceu, Edwina? — Se não estivesse tão prostrada pelas emoções, o tom de Thora soaria indignado. — Acabei de confessar que estou apaixonada pelo teu marido... E tu respondes-me, com um sorriso nos lábios... — Engasgou-se, gesticulando veementemente. — Devia gritar de ultraje! Acusar-me de traição...

Puxei-a para junto do meu peito, objetando:

— Tu não me traíste, irmãzinha... Pelo contrário! Eu é que deturpei o teu destino; apossei-me da felicidade que te pertencia! Lamento o sofrimento que vos causei... É tempo de pôr fim a esta agonia; de emendar o que está errado! Aquieta o teu espírito e escuta o que vou te dizer...

Thora não aceitou bem a imposição do rei Steinarr e dos seus conselheiros, para que o príncipe herdeiro desposasse outra mulher. Ficou ainda mais aflita, quando lhe assegurei que a futura rainha de Ivarr se encontrava diante de mim. De qualquer forma, não esperava vê-la saltar de satisfação, ao ouvir que o amor que sentia pelo seu senhor podia concretizar-se. As emoções que a perturbavam contrariavam todos os princípios de devoção e lealdade, que sempre defendera.

Quando lhe confessei que não pretendia continuar casada, ficou em pânico, chorou, suplicou-me de joelhos que não deixasse o príncipe. Demorei a explicar-lhe que a Guardiã da Lágrima do Sol não podia ser herdeira do trono Viking; que esta divisão de obrigações prejudicava o meu desempenho em ambas as frentes. Terminei, declarando que sempre estimaria Ivarr, mas que necessitava assumir a minha missão, diante da Pedra do Tempo. Agora, a loba prateada devia procurar o rei-lobo e escutar as suas intenções.

A única garantia que arranquei da minha irmã foi a da sua permanência no País dos Vikings, por mais alguns dias. Atendendo à natureza da fera que enfrentava, era uma excelente vitória! Só quando as idéias amadurecessem no seu espírito, e as palavras de Ivarr repercutissem as minhas, as convicções de Thora cederiam.

Deixei-a se recolher ao seu quarto e fiz um esforço para levantar-me da cama. A pedra azul de Aranwen continuava no tapete, onde caíra. Despejei água numa tigela e lavei o sangue de Helgi, com desvelo. O alívio inundou-me, ao recordar que Thora fora incapaz de pôr termo à sua vida. Talvez, apesar de tudo, ainda houvesse esperança para o povo vândalo! Desejei buscar Helga e assegurar-me de que, tanto ela como o irmão gêmeo, se encontravam bem. Porém, sabia que tal era impossível. O meu corpo recuperara a consciência, mas a essência levaria dias a restabelecer-se. Neste momento, não possuía um pingo de magia que me permitisse lançar o espírito ao encontro da jovem vidente. Além disso, devia respeitar a sua dor. Helga e Helgi estavam vivos, mas pelo menos um dos seus irmãos não partilhara dessa sorte. Esta não era a altura certa para tentar reconciliações do outro lado da contenda!

Procurei Freya e encontrei-a destroçada, com a cabeça enterrada debaixo da almofada, chorando copiosamente. Quis escapar ao meu abraço e tive de impor-me para que me escutasse:

— Sossega o teu coração, irmãzinha... O Helgi está vivo!

Ela começou por não acreditar... Thora nunca mentia! Contudo, o seu pavor de criar falsas esperanças acabou por transformar-se em alegria. Se a loba prateada concretizara a profecia e contrariara a maldição, talvez o rumo funesto traçado para o Espírito da Escuridão se alterasse! Talvez... Eu também desejava acreditar que assim seria! Mas não possuía a sua fé.

 

Steinarr deslocou-se ao quarto onde o filho repousava, para relatar-lhe o desfecho da sua viagem aos domínios do Império. Eu estava junto de Ivarr, atendendo aos seus ferimentos, e bebi ansiosamente cada uma das revelações do rei Viking. Além do que Darrin nos contara, ficamos sabendo que Esteban se desenvencilhara bastante bem nas explicações que apresentara ao rei William. Outra coisa não seria de esperar de um mestre da Arte Obscura!

A celebração apressada do casamento do príncipe herdeiro, na ausência do pai, fora justificada com a gravidez da noiva, uma vez que estava em causa a sua honra e a salvação da sua alma. Ao ser confrontada com os crimes que cometera, Estrid bradara inocência... E sofrera um desmaio muito oportuno, que, devido à sua condição, a forçara a manter-se recolhida, durante a estada da família no castelo. Porém, a sua defesa fora sustentada pelo falso padre, o qual garantira, sobre a cruz que carregava ao peito, que a protegida nada tivera com a maleita de Lorde Edwin.

Ao contrário do que seria esperado, o feiticeiro não negara o incidente no cemitério. Todavia, afirmara que o druida o procurara, movido pela ânsia de rejeitar as convicções da sua fé pagã, e de sujeitar-se à lei de Deus. Pelo contrário, Lorde Stefan recusara-se a encarar a verdade e respondera com violência, quando Esteban lhe estendera a mão. O falso padre lastimava a morte de Berchan McGraw, mas asseverava que, qualquer ferimento que este pudesse ter sofrido, decorrera da hostilidade dos Vikings, no porto do Império, que vitimara dezenas dos seus guardas, afrontara a autoridade do príncipe John e promovera a fuga de uma perigosa assassina.

Quanto às pedras que os McGraw alegavam ser jóias de família, o embusteiro não hesitara em designá-las por «artefatos do demônio». Como tal, já tratara de destruí-las! No fim, não era sua missão assegurar-se de que toda a magia, responsável pela danação do Homem, seria banida da Terra? Um dia, Lorde Stefan veria a Luz Divina, e haveria de ser grato a Esteban por este tê-lo libertado de tão nefasta execração, como acontecera com os seus irmãos, antes dele!

Surpresa das surpresas... Apesar de ter gritado a plenos pulmões, no porto do Império, que eu era uma bruxa, maldita para todo o sempre, o feiticeiro não me reservara uma palavra no seu discurso. Teria sido esquecimento? Temor? Não! Tal como enunciara no cemitério, Esteban não desejava promover o nosso confronto, enquanto eu não fosse uma desafiadora à altura das suas capacidades!

Em suma, as pedras mágicas estavam perdidas, os nossos líderes não tinham forma de imputar a morte de Berchan McGraw ao feiticeiro, e, pelo menos até o filho nascer, Estrid encontrava-se fora do alcance da justiça da família. Contudo, os argumentos de John e Esteban não haviam restaurado a confiança do rei William. Em privado, o Conquistador assegurara ao rei Steinarr, ao jarl Throst e a Lorde Stefan que os seus alertas não seriam ignorados. Se manteria atento e apuraria a verdade! Na praça pública, perante todo o Império, forçara o primogênito a engolir o orgulho e a jurar fidelidade ao Tratado, sob a sua palavra. É que os nossos líderes não se iludiam! A palavra de John valia menos do que um excremento de bode! No entanto, a firmeza de William certificava os Vikings e os Aliados da boa vontade do Império... e libertava os nossos povos da sombra de mais uma guerra.

Por último, pretendendo aliviar a tensão que se erguera entre o Império e a família McGraw, o Conquistador dispusera-se, finalmente, a misturar o seu sangue com o de Lorde Stefan, abençoando a união da princesa Isobelle e do meu primo Quinn. O noivado se realizaria na próxima Primavera e o casamento no início do Verão. Era desnecessário dizer que os jovens tinham delirado de felicidade! E, perante as concessões e garantias de William, os nossos líderes haviam resolvido que a contenda com Esteban podia esperar. Ninguém acreditava que o feiticeiro tivesse destruído as pedras de Aranwen, como jurara diante do seu soberano... Porém, também estavam convictos de que estas não seriam usadas. O falso padre sabia que o mais inocente dos seus gestos seria julgado e, durante os próximos tempos, vestiria uma capa de magnânima perfeição, receando ser desmascarado e condenado à fogueira que tantas vezes ateara.

Firmadas as decisões, o tio Stefan tornara à Enseada da Fortaleza, o meu pai à Ilha dos Sonhos e o rei Steinarr ao País dos Viquings. Não tinham obtido uma vitória esmagadora... mas fora, ainda assim, uma vitória importante! Eu não me declarava satisfeita com as suas concessões, principalmente no que respeitava às pedras mágicas. Porém, admitia que pouco mais poderia ter sido feito, sem avançar para um confronto sangrento. Afinal, era a sua palavra contra a de John e Esteban, sem provas para sustentar tão graves acusações! Talvez a magia de Aranwen, ao invés de se revelar o troféu que o feiticeiro almejava, representasse o primeiro passo para a denúncia da sua falsidade! No fim, contrariando as expectativas dos traidores, o rei estava de volta, de boa saúde, com os olhos abertos e a confiança renovada nos aliados do Tratado! A sorte tinha estranhas formas de se impor... E a prova disso, era que a pedra azul regressara às mãos de Freya, para o bem ou para o mal!

Ivarr já conseguia suster-se, quando Thora reuniu coragem para procurá-lo. Eu o ajudara a deslocar-se até à janela, para que inspirasse o ar fresco da manhã, aproveitando uma pausa nos aguaceiros de fim de Outono. Assim que a minha irmã surgiu, corada até às raízes dos cabelos, fiz menção de sair. Porém, o rei-lobo deteve-me:

— Fica, Edwina! A Thora só veio comunicar-me que está de partida para a casa de Lyria... Não é verdade?

Por um instante, temi que a minha irmã recuasse. Contudo, depois de engolir em seco, ela replicou numa voz contundida:

— Eu farei o que tu quiseres...

— Não! — atalhou Ivarr, quase com brusquidão. — Tu farás aquilo que desejas! Sempre foi assim... e assim continuará a ser!

A loba prateada baixou o olhar, arquejando como se tivesse recebido um pontapé no estômago. Levou algum tempo para reencontrar a voz e perguntar:

— Algum dia conseguirá me perdoar?

— Perdoar-te? — revidou ele, num tom que mais parecia uma bofetada. — O que fez, que careça do meu perdão?

A expressão da jovem denunciou angústia. Os seus lábios tremeram ao responder:

— Falhei ao meu juramento de caminhar ao teu lado, em todos os momentos da nossa vida. Deixei a tua guarda sem uma justificativa e parti...

— Tu seguiste o teu coração — cortou o príncipe, numa voz gélida e implacável. — Eu compreendo, Thora! Se deseja renunciar ao nosso elo, eu não te impedirei!

— Ivarr! — exclamei indignada, deixando-o para amparar a minha irmã. — Está sendo cruel!

— Pelo contrário! — objetou o rei-lobo. — Estou a dar-lhe a oportunidade de ser feliz!

— Eu o desiludi... — tartamudeou a loba prateada, à beira do choro.

— Ivarr... — repeti, como um aviso. Ele estava brincando com o fogo! Thora não se vergaria muito mais.

— Sim! — mastigou o príncipe, ignorando meu apelo. — Desiludiu-me! Depois de tudo o que partilhamos, não foi capaz de me dizer que amava o Galinn!

— Eu não amo o Galinn!

— Então, por que correu para ele...?

— Eu não corri...

— Tu abandonaste-me, Thora!

— Eu não podia ficar...

— Porquê?

— Ivarr, por favor...

— Porquê, Thora? Porquê?

— Porque te amo! Porque sempre te amei! E já não agüento mais... Não agüento mais...

A troca de gritos, que estremecia as paredes de pedra, esmoreceu com esta confissão desalentada. Ivarr quedou-se em silêncio, respirando a custo. A minha irmã apertou-me com as forças que lhe restavam e chorou compulsivamente. O meu olhar reprovador caiu sobre o rei-lobo. Ele conseguira o que queria... mas a que custo? Thora estava destroçada e murmurava:

— Perdoe-me, mana... Perdoe-me... Perdoe-me...

Acariciei-lhe os cabelos, retorquindo:

— Viva o teu amor sem culpa, Thora! Só te peço que seja feliz...

Os braços de Ivarr estreitaram-nos. A sua voz soou rouca, ao sussurrar:

— Lamento! Eu não desejava que isto acontecesse... Perdi a cabeça!

Afastei-me devagar e Thora sobressaltou-se. Porém, já estava prisioneira do rei-lobo, que não tencionava voltar a libertá-la. Os seus lábios esmagaram-se contra a testa da protegida, num beijo ardente. Afundou o rosto nos caracóis negros e prosseguiu, com uma serenidade firme:

— Vamos conversar... Não tenha medo! Eu te quero muito bem, minha loba...

Deixei o quarto sem olhar para trás. Não queria chorar... Contudo, as lágrimas teimavam em queimar-me os olhos. Eu acabara de entregar a minha irmã ao meu marido! Por mais que repetisse que o meu futuro era servir a Pedra do Tempo, entristecia-me ver finar o sonho de ter uma família; de ouvir as gargalhadas de felicidade dos meus filhos, ao mesmo tempo que repousava a cabeça no ombro de um homem... Um homem com quem eu partilhava o verdadeiro amor... Bem, era tempo de enfrentar a realidade e aceitar que esse homem não existia!

Freya virava e revirava a pedra azul de Aranwen entre os dedos, enquanto Thorson explorava os segredos da Lágrima do Sol e os partilhava com Oriana. Nos últimos dias, a sua companhia preenchera o vazio que se instalara no meu coração. Diante de Ivarr e de Thora, eu tinha de sorrir para não deixá-los adivinhar a minha tristeza. Junto de Freya e dos meus protegidos, sentia-me mais tranqüila e confortada.

O príncipe ainda afirmava que devíamos manter-nos casados... Porém, a separação era inevitável! Eu não nascera para ser um mero adorno, e o destino de Thora não era tornar-se uma segunda esposa. Aliás, à medida que os dias passavam, e as confissões do rei-lobo e da loba prateada se aprofundavam, tornava-se óbvio que Ivarr só insistia por simpatia... por piedade. E eu não desejava inspirar compaixão a ninguém!

— Não consigo pôr a pedra no peito! — desabafava Freya. — É como se já não me pertencesse... Como se chamasse por «ele»...

— Por que não a esconde na Montanha Sagrada? — Sugeri. — Lembre-se de que essa pedra se tornou a única segurança da nossa família. E, atendendo à maldade daqueles que a perseguem, o seu guardião jamais estará livre de perigo!

— É uma boa idéia! — concordou, parecendo aliviada. — Virá comigo?

— Sim. O Ivarr ainda não pode montar a cavalo, mas pedirei à Thora que nos acompanhe.

Freya respirou fundo e aquiesceu. Aos poucos, a indignação que a movera contra a sua gêmea esmorecia. Afinal, Thora poupara Helgi... E o amor do rei-lobo pela loba prateada sobressaía ao olhar como algo belo e inevitável. Até Eric o reconhecera! Na verdade, surpreendera-me a tranqüilidade do meu primo, após a conversa franca que tivera com Ivarr. Dir-se-ia que o seu coração recuperara da desilusão que Thora lhe infligira. Ter-se-ia enamorado por outra jovem? Quando o insinuei, Eric sorrira e respondera que estava muito ocupado para pensar em namoricos. Despedira-se sem consternações, abraçando Ivarr e Thora e garantindo-lhes que marcaria presença na festa de noivado. Há dois dias, regressara para casa com os seus guerreiros. Após a cruenta batalha com os Vândalos, a Terra Antiga também tinha feridas profundas para sarar.

— Vai mesmo ter coragem de anunciar o fim do teu casamento, durante o Festival de Inverno? — inquiriu Freya, sem esconder o tremor.

Eu não podia revelar-lhe que essa decisão também me assustava. Porém, era o melhor para todos! O Festival de Inverno atraía centenas de pessoas ao castelo do rei Steinarr... E os Viquings deviam saber que a Guardiã da Lágrima do Sol já não seria a sua rainha. Este impasse não favorecia ninguém! Neste momento, Ivarr e Thora comportavam-se como bons amigos e apenas o olhar os denunciava. Ambos sentiam que me deviam respeito, e a loba prateada ainda tinha um longo caminho a percorrer até aceitar o carinho do rei-lobo sem constrangimento. A minha irmã nem admitia ficar noiva, antes de falar com os nossos pais! E, com o Inverno a avançar sobre o Norte, não havia forma de avisar Throst e Catelyn das mudanças que revolviam as nossas vidas.

— Não se preocupe, Freya — contrapus serenamente. — Vai correr tudo bem!

— E o que farei eu, quando se recolher à Montanha Sagrada e esquecer o mundo dos Homens? — retrucou, incapaz de esconder a apreensão. — A Thora mal se lembra de que eu existo... E não posso regressar à Ilha dos Sonhos! Tenho medo de afastar o Thorson da influência da Pedra do Tempo.

E tinha receio de deixar o Norte e pôr fim à ilusão de que, um dia, Helgi viria ao seu encontro, como um homem regenerado. Contudo, nenhuma de nós colocaria esse pensamento em palavras, para poupar o seu coração.

— Mesmo que a Montanha Sagrada se torne a minha morada, tu estarás sempre comigo, Freya! Esquece que o Thorson já provou reunir condições para herdar a minha magia? Em breve, terei de concentrar-me em treiná-lo, a fim de ser o próximo Guardião da Lágrima do Sol.

— Essa idéia não me agrada! — A sua preocupação era notória. — Queria tanto que o Thorson pudesse desfrutar de uma vida normal!

— Uma vida normal... como a tua, a da Thora ou a minha? — gracejei, condescendente. — Ou como a dos nossos primos e primas? Nós somos herdeiros da magia de Hakon e Aranwen... Jamais conseguiremos fruir de uma existência sem sobressaltos!

 

Os preparativos para o Festival de Inverno avançavam a bom ritmo. Todos os anos, quando as energias da noite mágica se libertavam, a Montanha Sagrada clamava pela essência da Guardiã da Lágrima do Sol. No entanto, eu faltava sempre ao chamado para atender aos rituais ao lado do meu marido, incapaz de definir em que ponto terminavam as obrigações como mestra do cristal, diante da Pedra do Tempo, e começavam as responsabilidades para com o meu povo, na qualidade de herdeira do trono.

A estação gelada assinalaria um novo período na minha vida, na vida de Ivarr e de todos os Viquings. Não havia como negá-lo! Numa primeira abordagem, o rei Steinarr opusera-se veementemente ao fim do meu casamento. Porém, vira-se confrontado com argumentos irrefutáveis: Desejava mesmo um neto? Eu não podia dar-lhe, porque o meu ventre fora amaldiçoado. Queria que Ivarr tomasse outra mulher a seu cuidado? O príncipe não aceitaria mais nenhuma, além de Thora. E a loba prateada jamais concordaria em se tornar segunda esposa de um homem, principalmente do marido da própria irmã! Após estas observações, o rei congratulara-me pela nobreza da minha decisão. Era fantástico como, para Steinarr, os interesses políticos se sobrepunham aos mais fortes sentimentos, num piscar de olhos. Será que, depois de todos os desgostos que sofrera, o guerreiro-urso ainda acreditava no amor?

 

Faltavam três dias para o Festival, quando os artistas nômades chegaram ao castelo, com um contagiante alarido feito de cor e alegria. Prometeram ao rei um espetáculo que nenhum Viquing poderia perder, em troca de mantimentos e agasalhos. Steinarr acabou por condescender, ao ver o entusiasmo das nossas crianças, diante das roupas coloridas e dos rostos pintados dos homens, que tocavam cometas e tambores.

O líder do grupo apresentou a sua homenagem ao rei, oferecendo-lhe um baú cheio de ervas de fumo, muito apreciadas pelos nossos guerreiros. Chamava-se Jafar e era um nativo do Sul, relativamente baixo, mas largo como um caldeirão. Uma das suas carroças transportava uma jaula, coberta por uma manta, que despertou o interesse dos mais novos. Um magnífico tigre rugiu estrondosamente, mal viu uma nesga de luz e uma dúzia de pequenos braços a agitarem-se. Os pequenos gritaram aterrorizados e dispersaram-se, numa corrida desenfreada até às saias das mães... à exceção de Thorson.

Ao encará-lo, o tigre engoliu os rugidos e recuou para o extremo oposto da jaula; o instinto alerta, devido à especialidade do humano. Pensei que teríamos de manter Thorson debaixo de olho, nos próximos dias; não pela sua segurança, mas para garantir a integridade dos demais. Movido por uma curiosidade inocente, o meu sobrinho seria capaz de desafiar os outros rapazes a provarem a sua coragem... Ou até, quem sabe, não se lembraria de libertar o bichano? Descurar a sua fome de saber, seria arriscar um caos sangrento no interior das muralhas do castelo.

Jafar pegou em Thorson, com um sorriso rasgado que exibia dentes extraordinariamente brancos, por trás da barba grisalha.

— Ora, ora! O que temos aqui? — indagou numa voz de trovão, carregada de sotaque mas compreensível. — Quem é esta fera que assustou o meu gatinho?

Freya apressou-se a avançar, tentando resgatar o garoto.

— É o meu filho. Peço desculpas pelo incomodo...

— Não incomodou nada, menina! — replicou o homem, com os olhos negros a brilhar. — Fazia-me falta um jovem como este, para continuar o meu trabalho! Os meus próprios filhos morrem de medo do gato!

O rumo da conversa estava a assustar Freya. Porém, eu não lhe atribuí importância. Se Jafar pretendesse raptar Thorson, não o apregoaria tão alto. Entretanto, o garoto esfregava a pele escura do homem, com toda a força das pequenas mãos. Chegou mesmo a molhá-las com saliva para tentar melhores resultados, arrancando gargalhadas do nômade:

— Nunca tinha visto um homem do meu povo? Espere até conhecer as nossas mulheres! Quando crescer, não há de querer outras!

— Está ferido? — questionou Thorson, espreitando por baixo do turbante colorido que ocultava os cabelos de Jafar, confundindo-o com uma atadura.

— Não, minha jóia — respondeu o nômade, explicando-lhe do que se tratava.

Freya suspirou de alívio ao recuperar o filho. Em menos de nada, desaparecera no interior do castelo, decidida a não permitir que Thorson voltasse a aproximar-se dos estranhos visitantes.

Depois disto, o pátio encheu-se de gente atarefada e de tendas de pele. A meu pedido, o rei Steinarr deu ordens para que a jaula do tigre fosse trancada dentro de um dos celeiros, e que um guerreiro guardasse a porta. Sanada esta inquietação, permiti-me descontrair e observar os movimentos daquelas pessoas com costumes tão diferentes. Mais tarde, indaguei da sua história, e fiquei sabendo que alguns tinham sido desterrados das suas tribos e aldeias, e encontrado uma nova oportunidade de vida, sob a proteção de Jafar. Outros, tinham simplesmente decidido seguir o líder, após observarem o seu espetáculo, apaixonados pela aventura.

Na Ilha dos Sonhos, por vezes recebíamos a visita de artistas nômades, que pintavam o rosto e faziam traquinices para deleite das crianças, tocavam músicas de festa, ou deslumbravam os adultos com cambalhotas e saltos prodigiosos. Jafar prometia muito mais! Eu ansiava por ver o que ele tencionava fazer com o tigre.

A distração era bem-vinda, já que a proximidade do dia em que teria de comunicar ao povo a minha decisão estava a deixar-me nervosa. Não conseguia dormir e, quando fechava os olhos era acometida por sonhos estranhos. Via-me fechada dentro de um círculo de fogo, que se cerrava à minha frente, como na Visão que me atormentara na casa da Velha do Tronco Oco. Por mais que corresse, era incapaz de ultrapassar as labaredas e alcançar a liberdade. Uma bruma erguia-se nas minhas costas... E eu sentia uma vontade irresistível de esquecer a ilusão de liberdade e mergulhar dentro dela, de experimentar a sua frescura, a sua calma. Só não o fazia por medo! Medo de perder-me nas trevas cintilantes e nunca mais despertar. Medo de deparar com as respostas que a luz não me cedia. Medo de descobrir que, afinal, não era a pessoa que julgava ser. No fim, teria mais medo de encarar o passado... ou de enfrentar o futuro?

 

Na véspera do Festival de Inverno, o salão do rei Viquing encheu-se de convidados que se acotovelavam, competindo pelos melhores lugares para assistir ao espetáculo de Jafar. Ninguém queria perder um instante da anunciada diversão.

Ivarr sentou-se ao lado do pai, com os guerreiros-lobo guardando as suas costas. Thora recusou-se a deixar os companheiros para se instalar na fila da frente, onde eu me encontrava, junto de Freya e da Senhora Doralia. A loba prateada não queria dar na vistas, principalmente agora, que o rumor de que o príncipe herdeiro ia tomar uma segunda esposa sob a sua proteção, extravasara para os corredores do castelo. Otkatla já garantira a pessoas da minha confiança que seria ela a eleita do primo. Mal contive o riso, ao ver o olhar de desafio que me dirigia, quando puxei Oriana para o colo. Decidi brincar um pouco, e respondi-lhe com uma expressão confusa. Otkatla soltou uma gargalhada e bamboleou as ancas, sedutora, piscando os olhos a Ivarr, que a fixava perplexo, decerto pensando que ela enloquecera de vez.

Thorson agitava-se no colo de Freya, desejoso de sentar-se no chão. A mãe deu-lhe um ultimato: ou ficava quieto, ou ia para a cama! Desta vez, funcionou. Amuado, o pequeno traquina sossegou assim que ouviu os tambores que assinalavam o início da festa.

Primeiro entraram as bailarinas, com os rostos ocultos por véus flutuantes. Alguém explicou que se tratava da mulher de Jafar e das suas três filhas. Vestiam-se com sedas coloridas, enfeitadas com pedras brilhantes e folhas de metal, que tilintavam ao mais leve movimento dos corpos ondulantes. Apesar do peito avantajado e das ancas largas, dançavam com tal graciosidade que pareciam borboletas a voar de flor em flor. Os homens observavam-nas, embevecidos. Algumas mulheres tentavam imitar-lhes os gestos. Eu apreciei a sua arte e aplaudi-as com entusiasmo, triste por vê-las partir.

Dois rapazes aproximaram-se a correr. Eram tão baixos e franzinos, que os tomei por crianças. Porém, ao deterem-se para cumprimentar o rei, confirmei serem adultos, talvez gêmeos, pois o rosto de um era o reflexo do rosto do outro. A sua pele tinha uma cor pálida e os olhos pareciam linhas finas, quer estivessem abertos ou fechados. Recomeçaram a correria, no centro do salão, e as vozes da assistência elevaram-se de espanto, ao vê-los saltar como gafanhotos e dar cambalhotas no ar. Depois, aquietaram-se... Sentaram-se no chão, frente a frente, com as pernas cruzadas e os olhos fechados. Quando uma voz já se erguia, indagando se tinham adormecido, começaram a dobrar-se, a contorcer-se como se não tivessem ossos. Os Viquings mal conseguiam respirar, de tão impressionados.

Após a saída dos gêmeos, uma mulher roliça surgiu a bater palmas e a saltitar, com cinco cães pulando atrás de si, apoiados nas patas traseiras. Oriana soltou uma exclamação maravilhada:

— São tão pequeninos!

Franzi o cenho diante dos curiosos animais, assaltada pela certeza de que já os vira em algum lugar. Mas onde? Thorson lutava novamente com Freya, desejoso de saltar do colo da mãe para brincar com os cães.

— Já vi ratazanas maiores do que estes bichos! — exclamava Steinarr, deliciado.

Ao som da música tocada pelos companheiros, a mulher elevava os braços e as pernas, guinchando palavras sem significado aparente. Todavia, os cães entendiam-nas como ordens, e pulavam, rolavam, rastejavam e dançavam, dançavam... Por fim, vieram inclinar-se diante do rei, prostrando-se na patas da frente, arrebitando os rabos curtos e inquietos. Steinarr gargalhou com tamanho ardor, que quase caiu do cadeirão. Depois, correspondeu ao cumprimento da mulher, beijando-lhe a mão. Ela corou violentamente e os seus olhos azuis cintilaram como estrelas. Quando saiu, com os cães saltitando atrás de si, mal se sustinha nas pernas bambas. Não seria a primeira a desfalecer sob o encantamento de Steinarr!

Em seguida, um homem oculto por uma capa vermelha atravessou o salão; a luz brotando do seu ser como névoa a abraçar o tronco de uma árvore. Ouviram-se gritos de terror, quando agitou o bastão negro e o fogo dos archotes estremeceu. Escondi um sorriso. Grande parte da assistência acreditava estar diante de um Ser Superior. Na verdade Adair era neto de um feiticeiro e de uma humana. No dia da sua chegada, eu sentira a presença de um ente de sangue mágico e tratara de descobrir se enfrentava uma ameaça. Concluíra que o seu poder era quase insignificante... e benigno. Porém, mesmo assim, o Império perseguira-o! Adair só escapara à fogueira por um triz. Havia três anos que acompanhava Jafar... E havia dois dias que se prostrava diante de mim, como se eu fosse a sua rainha.

— Os meus cumprimentos, Guardiã da Lágrima do Sol... Que a vossa graça nos proteja das forças do mal.

— Que a minha graça te acompanhe, Adair — respondi com um sorriso benévolo, sabendo o que devia dizer para alegrar o seu coração, atormentado pelas saudades de casa. — E que a tua magia impressione e maravilhe o povo Viquing.

Durante o último ano, Adair dedicara-se ao estudo das forças do Ar. Perante a estupefata assistência, ergueu do solo um guerreiro com o dobro do seu tamanho e o fez dar várias cambalhotas. Depois, engoliu uma espada maior do que o meu braço, até o punho. Criou fogo nas mãos, bebeu-o e cuspiu-o para o ar como se fosse um dragão. Fez desaparecer vários objetos diante do olhar assombrado dos seus donos, para, no fim, fazê-los aparecer nos locais mais impensáveis. Deixou-nos debaixo de um estrondoso aplauso.

Após uma curta pausa, um tambor começou a rufar. Esperei ver entrar Jafar e o seu tigre, e retesei-me no assento, quando uma enorme criatura de pele vermelha surgiu correndo. Deteve-se no meio do salão, rugindo e instigando o povo... O meu sobressalto foi tal, que tive de piscar os olhos para verificar que se tratava de um homem robusto, pintado da cabeça aos pés. Vestia uma tira de pele em redor dos quadris e trazia uma corda atada à cintura, para simular um rabo. O par de cornos, preso à sua cabeça, decerto pertencera a um boi possante. Ao seu redor, as pessoas recuavam e interrogavam-se do significado de tamanha aberração. Os seguidores da nova fé esboçavam o sinal da cruz sobre o peito.

— É um demônio! — alguém gritou.

Steinarr resmungou, desagradado. Apesar de não ter acompanhado o meu pai na campanha às Ilhas do Fogo, escutara descrições pormenorizadas do aspecto dos seus terríveis habitantes. Era inquietante constatar que Jafar e os seus homens conheciam tais criaturas!

Outro tambor juntou-se ao primeiro, no instante em que um homem surgiu, exibindo uma musculatura formidável. O horror de muitos cedeu lugar a aplausos e a gritos de incentivo, ao perceberem que estavam prestes a assistir a um combate. O humano e o pretenso demônio trocaram insultos e provocaram-se com gestos agressivos. Por fim, a situação tornou-se tão ridícula, que parte da assistência cedeu às gargalhadas. Quando a luta começou, a seriedade dera lugar à brincadeira. Porém, eu não sentia a menor vontade de rir! Esta encenação trazia-me à memória algo concreto... Um acontecimento que, ainda hoje, me causava pesadelos!

Comecei a sentir-me tonta. Sem querer, esmaguei Oriana contra o peito e a menina protestou. Entreguei-a ao cuidado da Senhora Doralia e respirei fundo, obrigando-me a pensar com clareza. O que estava a acontecer era uma farsa; uma coincidência perturbadora...

Os dois artistas lutavam como arruaceiros. O herói agarrou o demônio pela tira de pele e o nó que a prendia desfez-se. A assistência delirou de riso; as senhoras tapavam os olhos, enquanto os homens se dobravam, agarrados às barrigas. Foi necessário interromper o espetáculo, para repor a tira de pele e salvar a honra do nômade pintado de vermelho. Depois, o duelo recomeçou. Mais gritos, mais urros, mais socos e pontapés... Porém, quando todos já davam o herói humano como vencedor, o maléfico rival derrubou-o com um movimento traiçoeiro dos seus cornos, e deixou-o prostrado e imóvel, enquanto se vangloriava diante da multidão.

Os tambores soaram com um entusiasmo frenético, incentivando as vaias da assistência. O demônio regressou para junto do humano e preparou-se para declarar vitória. Então, quando tudo parecia perdido, os tambores calaram-se bruscamente... E o grito raivoso de uma mulher silenciou os Viquings. Sem acreditar nos meus olhos, vi uma jovem entrar em cena e acometer contra o Ser do Fogo, bradando como uma doida. Agarrou-o pelos cornos e fê-lo rodopiar em torno do herói, para depois agredi-lo... com um par de bofetadas!

Enquanto a multidão sucumbia novamente às gargalhadas, os meus dedos enterravam-se nos braços do cadeirão. O demônio caíra de joelhos, uivando de dor, e a bela e corajosa dama despertava o seu bravo com um beijo. A assistência explodia em assobios e aplausos... O rapaz ergueu-se e exibiu a sua salvadora, para que o povo a saudasse. Depois exclamou, com simulada indignação:

— Luta como uma garota!

As lágrimas afloravam-me aos olhos. Os meus lábios esboçavam a resposta que me vergastava os ouvidos:

— Eu sou uma garota!

Isto não era uma brincadeira! Isto era um pedaço da minha vida! Uma realidade que apenas fora testemunhada por outra pessoa, além de mim — o meu primo Edwin!

A verdade cobriu-me como granizo. Já recordava de onde conhecia os estranhos cães... De uma Visão! A Visão de um acampamento de artistas nômades... que hoje representavam para a corte do rei Steinarr. Edwin viajara com Jafar e os seus seguidores, tempo suficiente para convencê-los a exibir esta história! Talvez ainda os acompanhasse... Só porque não o vira entrar no castelo, com uma bandeira desfraldada para chamar a atenção, não significava que ele não se encontrasse por perto, aqui mesmo, no salão. Os nômades nem necessitavam de saber a sua identidade... Aliás, eu estava convicta da ignorância de Jafar! Ninguém no seu perfeito juízo ousaria vir à presença do rei Viquing, acompanhado por um mestre da Arte Obscura!

Olhei em volta e vi rostos, rostos e mais rostos... De mãos dadas, o rapaz e a jovem derrotavam o demônio e agradeciam aos Viquings, que aplaudiam extasiados. Mal os três artistas saíram, já os homens de Jafar abriam caminho para o líder, certificando-se de que ninguém ousava aproximar-se o suficiente para perder um membro.

Não encontraram resistência. Assim que o tigre surgiu, a multidão comprimiu-se para longe do alcance da corrente que Jafar segurava.

O meu coração galopava no peito, mas não devido à visão da bela fera, que nos desafiava com os seus rugidos. O que acabara de presenciar tivera um propósito... Até apostava que Edwin me observava em silêncio, com um sorriso pleno de sarcasmo, ante a minha confusão! Procurá-lo entre o povo era inútil. Eu estava muito alterada para ignorar as incontáveis distrações. Além disso, ele era suficientemente poderoso para ocultar-se da minha percepção! Depois de me ter ameaçado, para que não o buscasse, esta inusitada manifestação só podia significar uma coisa: Edwin mudara de idéia e viera cumprir o nosso destino!

Jafar prendeu a corrente a uma das argolas de ferro, que se encontravam cravadas no chão, assegurando-se de que o tigre não atacaria a assistência. Esta noite, trajava como um príncipe. O seu turbante estava enfeitado com uma jóia rubra, que brilhava mais do que o fogo, contrastando-lhe maravilhosamente com o branco imaculado das vestes. Sem vestígio de temor, fez estalar um chicote contra a pedra e ordenou que o animal se erguesse nas patas traseiras, para agradecer à multidão. As mãos dos guerreiros fechavam-se nos punhos das espadas, preparadas para uma eventualidade.

Apesar de excitado com a agitação e o fedor do medo dos Homens, o tigre obedeceu ao seu senhor. Jafar aproximou-se e agarrou-o pela cabeça, obrigando-o a escancarar a bocarra e a exibir as presas do tamanho de punhais. Eu não estava impressionada... Aliás, já nem conseguia prestar-lhes atenção! Enlouquecia-me a vontade de agir, de buscar respostas, de terminar com a angústia que me sufocava. A multidão soltou um brado de horror, quando Jafar se livrou do turbante e enfiou a cabeça dentro da boca do tigre. Algumas senhoras desfaleceram. As crianças choravam, assustadas. Thorson sorria, maravilhado... E eu aproveitei o choque que dominava o salão para escapar despercebida.

 

Os corredores pareciam-me intermináveis, cheios de sombras ameaçadoras, repletos de ruídos suspeitos e brisas gélidas, que me causavam calafrios. Encontrei muitos guardas pelo caminho, pois o rei Steinarr reforçava a proteção do castelo nos dias de festa, a fim de evitar que alguém aproveitasse a confusão para concretizar um mau intento. Todavia, tal como eu conseguia passar debaixo do nariz dos guerreiros, sem que eles me vissem, Edwin também podia fazê-lo, se assim o desejasse. Estaria obcecada? A preocupar-me em vão? Não! Apesar da calmaria que me rodeava, o instinto avisava-me do perigo. Edwin andava por perto... E fazia questão de não passar despercebido! Por que raio é que contara a nossa história aos nômades, senão para divertir-se a observar a minha reação, quando esta fosse representada?

Eu podia solicitar a ajuda de Ivarr e a proteção dos seus guerreiros... Mas tal faria da Guardiã da Lágrima do Sol uma covarde, que não confiava em si própria, nem no valor da sua magia. Além disso, se bem conhecia Edwin, ele aproveitaria depressa a proximidade daqueles que me eram queridos para ganhar vantagem. E eu não queria carregar a morte de um dos meus amigos, ou até da minha irmã, na consciência. O Rei da Lua era um problema meu... só meu!

Refugiei-me no quarto e tomei um fôlego de coragem, antes de dirigir-me às cortinas. Sacudi-as com violência, mal contendo o grito de desafio que se formava na minha garganta. Por que não aprecia Edwin para acabarmos com este impasse? Abri as janelas e um vento gélido invadiu o quarto, com o ímpeto de uma avalanche, transportando braçadas de neve. Lancei a mente através da escuridão do pátio e mais além, perscrutando as trevas... Nada! A tortura era um deleite para os mestres da Arte Obscura!

Voltei ao quarto, fechei as janelas e corri as cortinas com um arrebatamento furioso, murmurando um encantamento que se colou ao tecido como poeira. Se Edwin tentasse entrar por ali, um alarme soaria na minha cabeça. Um feitiço para vedar-lhe a entrada seria mais conveniente, mas decerto ele anteciparia essa defesa e encontraria forma de neutralizá-la. Disto, não se lembraria! Estava longe de ser a solução perfeita, mas me daria tempo para reagir. Afinal, a minha intenção não era evitar o confronto... Era não ser apanhada desprevenida!

Respirei fundo e dirigi-me à arca onde guardava o punhal que Ivarr me oferecera. Durante alguns dias, a pedra azul de Aranwen também ali repousara. Felizmente, já se encontrava na Montanha Sagrada, ao cuidado da Pedra do Tempo e longe das garras dos servos do mal.

Puxei o punhal para fora da bainha. Ivarr insistia que o trouxesse sempre comigo, mas eu detestava armas. Agora, teria que repensar a teimosia. Só uma ingênua acreditaria que, num duelo, Edwin recorreria exclusivamente à Arte. Como guerreiro, ele sabia que a sua força podia desequilibrar a batalha, quando os nossos poderes se esgotassem. Fixei a lâmina perfeita e bem afiada, que me salvara dos lobos danados de Aesa, na Floresta Sombria. Subitamente, a superfície brilhante refletiu o fogo da lareira... E a degeneração de luz que, sem razão, se verificara no quarto, como se uma janela se tivesse escancarado para as trevas.

Ergui a cabeça, recuando com uma exclamação de mudo sobressalto. A porta do quarto continuava fechada, mas um homem coberto com uma capa preta quedava-se diante dela, impedindo-me a fuga para o corredor. Eu não me apercebera... mas fora por ali que ele entrara, ludibriando dezenas de guerreiros Viquings.

Não me movi... Mesmo que quisesse, seria incapaz de fazê-lo! Eu nunca estivera frente a frente com Edwin. Fora sempre a minha essência a procurá-lo ou a sua essência a buscar-me... Porém, desta vez, era mesmo ele; carne e osso, homem e feiticeiro. O odor do seu corpo invadia-me o nariz, qual erva exótica destinada a embriagar os sentidos. A energia que exalava, enchia o quarto e abafava o ar, como uma manta de lã grossa e macia que despertava o suor. As suas mãos afastaram o capuz... E uma chuva de cabelos dourados emergiu da escuridão, adornando um rosto de traços perfeitos e marcantes, com olhos tão verdes como a mais luxuriante das florestas... O olhar que eu amara e julgara perdido!

Tentei falar; dizer o seu nome... mas até respirar era difícil! Comecei a vê-lo através de uma cortina de lágrimas, e pisquei os olhos para recuperar a visão, atenta ao menor sinal de agressividade. O coração impedia-me de atacá-lo, enquanto não me sentisse ameaçada. No fundo, ainda guardava uma esperança...

Edwin deu um passo e eu saltei para trás, arfando:

— Fique longe de mim!

Ele fixou o punhal, que eu instintivamente lhe apontara ao peito, e sorriu, replicando trocista:

— Vai obrigar-me... com isso?

Não se deteve. Mais dois passos e a ponta do punhal estava pressionada contra o seu peito. A mão tremia-me... Um impulso do braço e tudo terminaria! Edwin nem ponderava afastar-me, defender-se... Sempre gostara de testar a minha vontade! Encontrei o seu olhar e o quarto foi engolido por um círculo de chamas, enquanto uma voz sem idade me ressoava na cabeça: «O Rei da Lua e a Rainha do Sol vivem governados pelo medo... Medo de sentir. Medo de desejar... E o círculo está prestes a se fechar! »

— Edwin... — tartamudeei, num apelo que podia ser um protesto ou uma súplica. Eu não queria matá-lo... Mas, se não o matasse, seria eu quem me finaria!

— Sabe por que não é capaz de pôr fim à minha vida, Rainha do Sol? — sussurrou, erguendo uma mão, até tocar-me numa madeixa de cabelo, entrelaçando os dedos nos caracóis louros, como fazia quando éramos crianças. — Porque me ama... — A sua carícia aprofundou-se e buscou o calor do meu pescoço, enquanto a outra mão se fechava sobre a minha, e afastava o punhal que se interpunha entre nós. — Tanto quanto eu te amo!

Antes que eu pudesse reagir, os braços poderosos esmagaram-me contra a firmeza do seu peito. Os lábios de Edwin apoderaram-se dos meus com um ímpeto avassalador, impedindo-me de gritar, de respirar, de pensar... Se a sua essência me devassasse e sugasse para o abismo, teria forças para resistir? Porém, nesse instante de desvario, Edwin era simplesmente um homem... Um homem que eu desejava como nunca desejara nada, nem ninguém, na minha existência! A sua boca tinha gosto de mel... O seu corpo clamava pelo meu ardor, com a fome de uma vida de espera. E eu pertencia-lhe... Sempre lhe pertencera!

O punhal caiu no chão. Lancei os braços em redor do seu pescoço e enterrei-lhe os dedos nos cabelos. O nosso beijo tinha gosto de sal, regado pelas minhas lágrimas, regado pelas suas lágrimas. Nós éramos ondas de um mar bravio, fustigadas por uma tempestade. As nossas pernas cederam... mas os lábios permaneceram unidos. Por entre o prazer que as suas carícias me ofertavam, senti a sua magia aflorar a minha, como um brilho negro e fresco contra o meu clarão ardente, sem se misturar, sem se impor, quase pedindo permissão para coexistir. E eu a aceitei! Abri-me à essência do meu primo como fizera uma única vez, no passado... Só que nesse dia, os nossos corpos encontravam-se separados pela vastidão da Terra.

Edwin gritou dentro da minha boca... e eu gritei dentro da sua, arrebatada, perdida num redemoinho de êxtase que me devorava a razão. Era como se cada partícula dos nossos corpos se separasse... e se fundisse, até ser impossível dissociar-nos. Nós éramos essência da mesma chama. Pó da mesma estrela. Nós nascêramos para nos amar... E não haveria mais nada neste mundo capaz de nos separar!

— Edwina...

Abri os olhos devagar, dormente, tonta como se embriagada. O cheiro de Edwin ainda perfumava o ar... Mas era Freya quem me sacudia, tentando despertar-me para a realidade.

— Edwina, está bem? O que foi que aconteceu?

— Onde é que ele está? — indaguei, levantando-me a custo.

— Quem?

— O Edwin...

Quedei-me, apoiada na cama; trespassada por um desespero alucinado, que me roubava o fôlego, enquanto Freya balbuciava, com um gesto de incompreensão:

— Tu saíste antes do espetáculo terminar... Eu vim verificar como estava e encontrei-te desacordada. Será que teve uma Visão?

Levei as mãos à cabeça, num esforço para contrariar a vertigem. O meu coração batia como se fosse arrebentar. As minhas roupas estavam amassadas. O punhal encontrava-se no chão, onde caíra... Edwin estivera aqui! Dissera que me amava. Beijara-me e entregara-me a magia da sua essência. Por que partira sem uma palavra, sem uma justificativa? Teria se assustado com a aproximação de Freya?

Busquei a Lágrima do Sol no bolso do vestido. Necessitava da sua orientação. Precisava da sua energia... A Lágrima do Sol...? Lutei contra a fraqueza que me assolava o corpo e esmagava o espírito. O meu cristal desaparecera! Poderia ter caído do bolso, no meio do desvario? Não! A resposta veio até mim como uma gargalhada que me gelou o sangue, a carne e os ossos.

— Ele me roubou!

— O quê?

Lancei a capa mágica sobre os ombros, ignorando os apelos de Freya. Deixei o quarto correndo, devastada pela ira, pela frustração, pelo desprezo que sentia da minha própria ingenuidade. Todo o ardor de Edwin não fora mais do que um pretexto para se apossar impunemente do meu cristal. E eu cedera à sedução, como a mais inepta das criaturas!

A noite gelava a vontade dos mais fortes. Parara de nevar, mas o vento cortava a pele e tornava a respiração quase impossível. No entanto, nada me demoveu. Incitei a égua a galopar, deixando o castelo para trás, recorrendo à magia para que ninguém testemunhasse a minha partida. Já não me sentia fraca. Pelo contrário! Quer fosse pelo conforto da capa de Lyria, ou pela raiva que me queimava o sangue, acreditava-me capaz de enfrentar um exército!

— Grande bastardo! Filho de uma bruxa pérfida! Isto não vai ficar assim! Quer guerra? Pois terá guerra, infame traidor! Que eu seja maldita por toda a eternidade, se voltar a confiar em ti!

Edwin não se afastara muito. Eu surpreendera a sua fuga, no instante em que saíra dos portões do castelo. Apanhá-lo-ia se fosse rápida, pois conhecia melhor o território. O Rei da Lua podia ocultar-se da minha percepção, mas não conseguia quebrar o meu elo à Lágrima do Sol. E eu sentia o pulsar do cristal, como um rastro luminoso que me guiava nas trevas. De início, acreditara que seria fácil recuperá-lo. Chamara-o, vezes sem conta, esperando que respondesse ao apelo e tombasse da bolsa onde Edwin o aprisionara. Porém, tal não aconteceu... «O Que Tudo Vê» sempre dissera que a vontade do Guardião era soberana. Então, por que raio é que o cristal não me obedecia? É claro que o meu bisavô também me ensinara que a Lágrima do Sol possuía uma consciência... Estaria a sua magia a forçar a perseguição ao Rei da Lua, para que o nosso destino se cumprisse?

Odiava Edwin! Sim, nesse momento odiava-o com todas as forças do meu ser! Como é que ele fora capaz de me enganar dessa forma tão vil, pisando o meu coração, espezinhando o meu orgulho? Decerto gargalhara diante da minha entrega! Eu enfrentara-o com uma arma na mão, mas fora ele quem me apunhalara pelas costas!

Embrenhei-me na Floresta dos Carvalhos, ferrada na minha determinação. Não voltara a nevar, e as pegadas do cavalo de Edwin eram bem visíveis no manto branco e fofo que cobria o solo, à luz débil da manhã. Ponderei apelar à mente do Rei da Lua, mas o brio impediu-me. De qualquer forma, o que lhe diria? Que ele era um miserável? Que eu era estúpida, por ter acreditado na sua declaração de amor? Que, quando o apanhasse, haveria de fazê-lo arrepender-se de ter nascido? Ante o rancor que nos apartava, já nenhuma palavra faria diferença.

Não consegui alcançar Edwin na floresta, apesar de ter encurtado a distância que nos separava. Pelo visto, ele explorara bem os caminhos que percorria. Há quanto tempo andaria planejando esta perfídia? Desde que regressara da Ilha dos Sonhos e se reunira aos nômades? Para onde se dirigia? De um lado, estendia-se a Floresta Sombria; do outro, a Serra Rochosa... Até os Viquings concordavam que atravessar a Serra Rochosa, na estação gelada, era desafiar a morte! Talvez por isso, foi esse o rumo que o meu primo tomou. Edwin empenhava-se em deixar-me para trás... Porém, enganava-se, se julgava que eu ia desistir!

Era noite cerrada quando pisei a serra. Soprava um vento gélido e selvagem, que quase me arrancava a capa dos ombros. A égua começava a denunciar o cansaço do esforço violento que eu lhe impunha. Sabia que despender energia era arriscado, pois, se tivesse que bater-me com Edwin, ficaria em desvantagem. Contudo, a morte do animal só me traria transtornos, por isso não hesitei em apelar à magia para revigorá-la.

Decidi subir a serra a pé, com a égua pelas rédeas. Neste território inóspito e violento, o perigo anunciava-se a cada passo. Além dos precipícios e das derrocadas constantes, bastaria que alguns troncos se acumulassem sobre um buraco, para que o gelo ocultasse uma queda fatal. Mais valia atrasar-me, do que morrer!

Perdi a noção do tempo. Sentia que demorava uma eternidade para avançar um passo. O vento era um gigante que me empurrava e fustigava os ouvidos, com os gemidos e os urros estridentes dos condenados do submundo. Praguejei quando começou a nevar. Só me faltava cair um raio na cabeça! Por que é que as forças divinas, ao invés de me acudirem, só me dificultavam a empresa? Pareceu-me escutar o meu nome, entre o estrondo da tormenta. Estaria Edwin a suplicar por auxílio? Estaquei, paralisada de horror, ao perceber que o apelo não viera da minha frente, mas da retaguarda. Alguém me seguia...

— Freya... — murmurei apavorada, ao receber a Visão da minha irmãzinha, soterrada sob uma pilha de gelo, numa trilha que, há muito, eu deixara para trás.

Voltei a montar e apertei os braços em torno do pescoço da égua, encostando a cabeça à sua, enquanto suplicava:

— Ajude-me, amiga! Não pode ter medo... Tem que correr! Tem que correr ou a Freya morrerá!

Abri a mente à magia e revelei a trilha aos olhos do animal. A égua lançou-se a galope. Esta podia ser a nossa última aventura... Mas que opção me restava? A energia da minha irmã esmorecia à velocidade do pensamento. Lancei uma prece aos céus. Faltava pouco... muito pouco. Já avistava as faces roxas de Freya... Porém, o seu corpo fora engolido pelo gelo.

Saltei da égua e recorri à magia para libertar a minha irmã, temendo descobri-la esmagada por um pedregulho. Felizmente, era só um manto de neve solta que a cobria. As pedras tinham caído sobre o seu cavalo, que jazia a alguns passos, já sem vida. Se eu não me apressasse, Freya também não tornaria a abrir os olhos.

Despi a capa mágica e quase gritei de dor, quando o frio me ferrou os dentes na carne até os ossos. Envolvi o corpo inanimado de Freya na lã abençoada pelo Povo da Terra, e apelei novamente à magia, a fim de içá-la para cima da égua. Os meus recursos sustinham-se por um fio e só a custo consegui montar. Se tivesse a Lágrima do Sol comigo, poderia buscar alento na sua energia... Maldito Rei da Lua! Mil vezes maldito!

A caverna surgiu diante de mim qual graça divina; uma porta aberta para o coração da rocha, que podia ser a nossa salvação. Não me detive para questionar a sorte. A égua manteve-se calma, enquanto eu carregava Freya para um canto do abrigo, resguardado da tempestade que fustigava o Norte. Explorei o espaço e alegrei-me ao descobrir lenha. Acendi uma fogueira à entrada, e a égua resfolegou de contentamento. Acariciei-lhe o focinho castigado pelo gelo, murmurando:

— Obrigada pela tua lealdade, minha linda. Perdoe-me por exigir tanto de ti!

A oportunidade de bater-me com Edwin estava perdida. Era certo que o seu poder devia estar tão fraco quanto o meu... Porém, a distância que nos separava aumentava a cada instante. E, com Freya sob o meu cuidado, como podia teimar na perseguição?

A minha irmã permanecia desacordada, mas viveria. Aninhei-me junto ao seu corpo, de forma a que a capa mágica aquentasse a nós duas. Apesar de tudo, não estava zangada. Freya detestava montar a cavalo e morria de pavor das tempestades... Contudo, mesmo assim, enfrentara os seus medos para vir no meu encalço, acreditando que podia ajudar-me. Tal era uma colossal prova de amor! Acariciei-lhe os caracóis negros, sussurrando:

— O que é que eu faria se te perdesse, tolinha?

Pensei em Thorson... O pequeno decerto estava em prantos, sem saber o que acontecera à mãe e à tia. Ivarr e os seus lobos já deviam ter iniciado as buscas. Este ano, o Festival de Inverno ficara marcado pelo desaparecimento da Guardiã da Lágrima do Sol. Quando regressássemos, o rei Steinarr iria esmagar-me com a sua ira. E eu bem que merecia! Fora muito irresponsável, ao partir atrás de Edwin sem avisar ninguém. Contudo, era tarde para remediar o mal feito. Restava-me descansar e preparar-me para retornar ao castelo... mais uma vez derrotada!

Acordei com o relinchar da égua e assustei-me, ao verificar que Freya não se encontrava ao meu lado. Sosseguei, ao vê-la à entrada da caverna, espevitando as chamas da fogueira. Lá fora ainda estava escuro, mas o dia não traria mais claridade. O vento acalmara e parara de nevar. Edwin devia estar satisfeito!

— Perdoe-me! — começou Freya; o olhar verde carregado de pesar. — Quis ajudar e só atrapalhei! Por minha culpa, perdeu o rasto da Lágrima do Sol.

Levantei-me e acolhi-a nos meus braços, estreitando-a com carinho, enquanto contrapunha:

— Por tua causa, dormi uma boa noite de sono e recobrei as forças. Se teimasse em seguir o Edwin, talvez já tivesse perecido à mercê da tempestade. Não se atormente, querida! A tua intenção foi boa... E eu lhe agradeço pelo cuidado! Como se sente?

— Estou bem! Nem pense em desistir...

— Nós vamos regressar para casa — atalhei. — É inútil continuarmos.

— Não tem certeza disso! — objetou. — O Edwin enfrentou as mesmas dificuldades que nós, e não descansou. Mesmo que tenha conquistado terreno, deve estar faminto e exausto. Tu podes recuperar o tempo que eu te fiz perder!

Não me apetecia discutir. Preparei a égua para enfrentar a manhã gélida, e saí da caverna, decidida a tomar o rumo do castelo. Assim que Freya estivesse em segurança, pediria ajuda ao rei-lobo... Porém, ao lançar a mente em busca da Lágrima do Sol, estaquei, surpreendida. O cristal não se encontrava longe! Aliás, ainda nem deixara a serra!

Teria Edwin sucumbido ao frio? Não. Ele movia-se, mas tão devagar, que a esperança de detê-lo não estava perdida!

— Vamos, Edwina... — incentivou Freya, puxando-me pelo braço. — Eu consigo acompanhá-la! Sinto-me restabelecida e posso recorrer à magia, se começar a fraquejar.

— Como recorreu ontem à noite? — repliquei, severamente.

— Já tinha feito um longo caminho! — defendeu-se com ardor e eu não a contradisse. Estava bastante impressionada com a resistência que Freya demonstrara.

— E o Thorson? Não pode deixá-lo sozinho!

— A Senhora Doralia cuidará dele... Não perca mais tempo!

— Desconheço até onde esta perseguição me levará! Tu não podes vir...

— Concordo! — cortou Freya, impaciente. — Por isso, assim que alcançarmos os domínios da rainha Lyria, pedirei uma escolta para retornar para casa. Não se preocupe comigo! Concentre-se em resgatar a Lágrima do Sol. Se a perder, o nosso povo viverá dias de desespero!

Isso era verdade! Sem o poder do cristal, a minha essência ficaria debilitada... E os mestres da Arte Obscura esfregariam as mãos de contentamento.

— Vem, Edwina!

Acabei por segui-la, rendida aos seus argumentos.

Avançamos o mais rápido que a prudência permitia, evitando as armadilhas do terreno, desafiando a obscuridade do dia e a veemência gélida do vento. Pouco depois, fomos forçadas a nos deter, ante o enorme vulto que bloqueava a trilha. Sobressaltei-me, ao constatar que se tratava do cavalo de Edwin. O animal tombara de exaustão e perecera no frio. A neve testemunhava que o meu primo estivera caído ao seu lado... Teria tentado salvar a montaria, ou impusera-lhe a morte para se sustentar, usurpando o que restava da sua vitalidade?

— O que será que aconteceu? — questionou Freya.

— Vem! — Encorajei-a a avançar, puxando pelas rédeas da égua. Finalmente, o relevo acidentado permitiu-me um vislumbre do vale, que se estendia até o reino de Lyria, ladeado pela Floresta Sombria. Forcei a visão a rasgar as brumas e destingui a sombra de uma capa negra sobre a brancura do solo gelado. Edwin movia-se devagar, lutando para libertar as botas da prisão da neve. Nada o faria desistir! Mal o última trilha da Serra Rochosa ficou para trás, icei-me para a garupa da égua e puxei Freya para trás de mim. O corajoso animal avançou num passo tão rápido quanto as condições adversas permitiam. A minha irmã esticou a capa mágica sobre o meu corpo, ao abraçar-me pela cintura. Na obscuridade, Edwin era uma figura indistinta, que se sustinha a custo. Se mantivesse a direção da Floresta de Lyria, o alcançaríamos em breve. O sono restabelecera parte da minha magia... E o Rei da Lua estava tão fraco, que não poderia opor resistência! Desta vez, eu não me apiedaria da sua essência traiçoeira!

Recomeçou a nevar... Subitamente, o vento redobrou o seu ímpeto, urrando ensurdecedor, chicoteando-nos e lacerando-nos a pele com adagas de gelo. Eu já mal conseguia manter os olhos abertos. Senti a tensão dos músculos poderosos do pescoço da égua; o esforço que fazia para vencer a oposição dos elementos. As nevascas eram habituais no Norte, durante a estação fria. Porém, esta parecia-me demasiado brusca, excessivamente violenta... como se as garras de uma feiticeira acicatassem a ira da natureza. Estaria Aesa por trás disto?

Nesse instante, vi os lobos; três colossos de pêlo negro, que deixavam as trevas da Floresta Sombria e arremedavam contra Edwin, a uma velocidade vertiginosa. Num piscar de olhos, esqueci as razões que nos tinham trazido até aqui; toda a raiva que a traição do meu primo despertara. Gritei um apelo... e Edwin deteve-se. Talvez me tivesse escutado. Ou apercebera-se dos rugidos tenebrosos que rompiam o clamor da tempestade. Em pânico, pensei que os lobos iam matá-lo. Ele não estava em condições de contrariar o ímpeto assassino das almas danadas que serviam Aesa! E eu me encontrava muito longe para ajudá-lo.

— Mais rápido! — implorei à égua, batendo com os pés nos seus flancos, para reafirmar a urgência da súplica. — Por favor, corra como o vento...

E ela correu! O seu galope tornou-se simultaneamente vigoroso e suave, como se, amparado pelo meu poder, o corpo possante rasgasse o ar sem que os cascos açoitassem o solo. O gelo e as lágrimas cegavam-me, mas eu soube o preciso instante em que os monstros derrubaram Edwin e o prostraram, pois senti o seu terror na minha mente, a sua dor na minha carne... Transformei a dor em raiva e o terror em energia. Uma onda de magia sulcou o ar à minha frente, e dispersou os quatro corpos. Esperei que isso bastasse para que os lobos libertassem a presa... Porém, depois de rolarem na neve e sacudirem, como se pretendendo livrar-se da minha influência, as criaturas tornaram a se lançar contra o homem que jazia inerte.

A vida de Edwin sustinha-se por um fio. Era possível vislumbrar o vermelho do sangue, por entre o preto e o branco, enquanto o corpo do meu primo era disputado por presas e garras. A poucos passos de alcançá-los, gritei para Freya:

— Vá buscar ajuda...

E saltei para cima da amálgama de pêlo, que se agitava num frenesi. Tornei a apelar à magia para arremessar os lobos para longe. Ainda me batia com o último, e o primeiro já regressava ao ataque... E, desta vez, eu era o alvo!

Um raio irrompeu-me dos dedos e apanhou o monstro desprevenido no seu vôo de assalto. Transformado numa bola de chamas, ganiu e chocou contra um companheiro, arrastando-o na queda. Porém, não seria o fogo que iria detê-los! Urgia encontrar uma forma de trespassar-lhes a cabeça ou o coração... Eu precisava de uma arma! Porém, o punhal que me salvara na Floresta Sombria ficara caído no chão do meu quarto, e não havia um único pedaço de madeira por perto, que pudesse valer-me como espada ou lança. Ao nosso redor, só existia neve! Mas a neve era água... Era gelo! E o gelo podia cortar como a mais afiada das lâminas!

À minha frente, os lobos agrupavam-se. Latiam. Rosnavam. Desafiavam-me. Baixei-me lentamente, sem desviar os olhos das criaturas, receando que um gesto mais brusco desencadeasse a investida. Eu precisava de tempo... Enterrei as mãos no manto branco e gélido, e respirei fundo, invocando a magia. A Lágrima do Sol pulsou, em resposta ao chamado, ofertando-me a sua energia. A minha pele adquiria o brilho de uma estrela e devorava a escuridão ao nosso redor. Os lobos hesitavam, ofuscados, confusos... Por baixo dos meus dedos, as partículas de água agitavam-se. Com o poder da mente, comecei a fundi-las, a moldá-las à minha vontade. O feitiço que solidificava a água já me salvara a vida, nos Pântanos Nebulosos. Hoje, voltaria a ser meu aliado...

De súbito, um dos monstros lançou-se à galope e saltou para a minha garganta, as presas vorazes pingando com o sangue do meu primo. Caí de costas, gritando apavorada, ciente de que o sortilégio ficara incompleto. Por puro instinto, ergui a mão livre ao encontro do focinho descomunal, para impedi-lo de abocanhar-me. A outra fechava-se no punho de uma espada mágica, de gelo reluzente. Mirei-a de relance e o meu coração falhou uma batida, ao verificar que a sua ponta ainda não estava formada. O assalto do lobo fora tão rápido, que interrompera o encantamento.

Sobre mim, o monstro contrariava a força do braço que o mantinha afastado do seu objetivo, encharcando-me e queimando-me a pele com o vômito fétido, que ruía em cascata por entre as presas colossais. O vigor sobre-humano que a magia me conferia parecia ser insuficiente para contrariar o seu ímpeto assassino. Bradei de horror e cravei as unhas nos olhos ígneos, usando-as como garras até desfazê-los. Um muco viscoso gotejou-me nas faces, provocando-me náuseas. Se a criatura sentiu dor, não a acusou. Insistia em afundar-se nos meus dedos, como se nada mais importasse, além da ordem que lhe ecoava no espírito danado.

Outro lobo fincou as patas possantes nos meus ombros, enterrando-me na neve, prendendo-me ao solo. A espada de gelo separava os nossos peitos, mas a pressão da ponta romba não o demovia. Cerrei os olhos e agucei a determinação, impelindo o braço para cima... E a lâmina começou a cortar; a desbravar caminho por entre o pêlo crispado, através da carne, dos músculos, dos ossos... até alcançar o objetivo final: o seu coração.

O uivo do monstro ecoou pelo vale. O seu corpo descomunal ruiu sobre o meu, privando-me do fôlego. Empurrei-o com os pés e fixei a atenção no focinho desfigurado, que se agitava com veemência, prisioneiro das minhas unhas. A brancura cintilante da minha pele contrastava com o negridão do pêlo crespo. As presas afiladas mastigavam o ar, a um palmo da minha face. Tentei trespassá-lo com a lâmina de gelo, mas o terceiro lobo abocanhou-a, atalhando o golpe.

Esmagada debaixo das abomináveis criaturas, estrebuchei à mercê de um redemoinho de dentes e garras letais. O seu bafo era uma mistura insuportável de podridão e morte. A fricção do pêlo rasgava-me a roupa e arranhava-me a pele, até causar ferida. O feitiço que me fortalecia não me protegia da dor... Pelo contrário, sentia-a aumentar a cada batida de coração. Estava a enfraquecer! No instante em que a minha energia se esgotasse, Edwin e eu seríamos devorados vivos! Com um esforço descomunal, torci a espada mágica dentro da bocarra do lobo, e um rio de sangue desaguou-me no peito. A criatura retrocedeu com um ganido atroz... Porém, esta vantagem mostrou-se pouca, pois a lâmina de gelo partira-se. Na minha mão ficara uma arma pouco maior do que um punhal! Não obstante, teria de ser suficiente para vencer esta batalha. Pelo menos, agora tinha uma ponta afiada ao meu serviço!

Usei o ânimo que me restava para varar o focinho destroçado do lobo que os meus dedos imobilizavam. Este debateu-se, mas acabou por prostrar-se, inerte. A lâmina mágica surgiu, coberta de fluidos que me causariam pesadelos, caso superasse esta loucura. A dois passos, a outra criatura emitia um rugido gutural. A sua mandíbula pendia, numa ruína de sangue e ossos partidos. Ergui-me a cambalear, vendo o monstro através de uma cortina de névoa. Sentia o sabor do sangue na boca e custava-me respirar. Chegara o momento de matar... ou morrer!

O lobo investiu com tal veemência, que mal vi o seu corpo deslocar-se. De repente, voava pelo ar; as garras estiradas ao meu pescoço, com um ímpeto capaz de quebrar o tronco de uma árvore. Dei por mim a gritar e a lançar-me adiante, ao invés de me defender. A determinação que me movia forçou a mão que segurava a lâmina partida a erguer-se. O gelo mágico assumiu uma cintilação límpida, que quase feria os olhos. Depois, o meu mundo cobriu-se de negro. Esmaguei-me contra o solo, acreditando que era o fim. Esperei sentir o peso descomunal da criatura; a dor atroz causada pelas suas garras a lacerarem-me a carne... Porém, descobri-me a olhar para o céu vermelho fogo e cinza tempestuoso; a pele regada por uma chuva abençoada. Mas, se ainda há um instante estava nevando...!

Virei o pescoço a custo, e vi a forma gigantesca do monstro, tombada a dois passos, com a espada mágica cravada no peito. O gelo perdera o seu esplendor e derretia, por entre o sangue e a chuva. A sua missão fora cumprida... Respirei fundo e tive a ilusão de rodopiar, com o coração a martelar-me a cabeça e todos os ossos torturados por uma dor insuportável... Estava exausta! Aos poucos, a luz irradiada pela minha essência extinguia-se. Pisquei os olhos, obrigando-me a reagir. Tinha que acudir Edwin!

Arrastei-me penosamente ao seu encontro. Ao nosso redor, a neve transformara-se em lama escarlate. Senti os olhos inundarem-se de lágrimas de alívio, ao verificar que o coração do meu primo batia. Contudo, estava inconsciente... e muito maltratado! Os lobos haviam lhe retalhado o peito e, só por pouco, não o estriparam. A carne mastigada espreitava por entre os farrapos da capa e da túnica. As mãos e os braços, com que se defendera, sangravam abundantemente. O seu rosto estava intacto, mas a fronte também fora lacerada, e o sangue ensopara-lhe os cabelos; o vermelho da vida misturando-se com a madeixa rubra que perturbava a harmonia loura, e me recordava que Edwin era filho de Gwendalin, servo da Arte Obscura... e meu inimigo mortal.

A Lágrima do Sol encontrava-se ao alcance das minhas mãos. Só tinha de recuperá-la e voltar as costas ao passado. Porém, por mais que me indignasse, era incapaz de entregar o Rei da Lua à morte!

O laço que nos unia era demasiado forte... Ou seria eu demasiado fraca? Apesar de toda a sua perfídia, ainda sentia que Edwin fazia parte de mim! Mil e uma emoções digladiavam-se entre o coração e a mente, quando apelei à última réstia de magia que me animava para revigorá-lo, e impedir que se esvaísse em sangue. Depois, a consciência afastou-se do corpo, enquanto as trevas caíam sobre nós, qual mortalha... Se a ajuda não chegasse depressa, os meus esforços teriam sido vãos.

 

Tal como a Montanha Sagrada, a floresta da Gente Bela possuía um clima próprio, mais ameno do que aquele que se impunha ao Norte do mundo. Aqui, também nevava, mas o vento era impotente para quebrar a harmonia das árvores. O ar gélido, que cortava a respiração, cedia lugar a uma brisa suave. A chuva surgia como uma benção, não como uma catástrofe. A cidade da rainha Lyria era um santuário para aqueles que buscavam restabelecimento. E, nestes dias, eu necessitava mais de serenidade para o espírito do que de alimento para a boca!

As pontes suspensas, que ligavam as torres do Povo da Terra, encontravam-se cobertas por uma fina camada de neve. Observar os flocos coloridos a esgueirarem-se por entre as copas das árvores, a brincarem com as lanternas suspensas nos ramos e a flutuarem até às mãos das crianças, era um espetáculo maravilhoso que, combinado com a música da flauta do príncipe Galinn, relaxava o corpo e confortava a alma.

Entre os pequenos que saltavam alegremente, tentando capturar a neve entre os dedos, encontrava-se Lysander, príncipe herdeiro da Gente Bela, encantando a noite com o seu riso. A Natureza agraciava todas as crianças com uma beleza pura... Porém, o primogênito de Lyria era simplesmente precioso! O sangue mágico da sua raça vingara e emergira até à perfeição. Era impossível estar junto dele e não desejar segurá-lo ao colo, cobri-lo de beijos, acariciar os anéis dos seus cabelos, negros como as trevas, mas plenos de reflexos azuis e prata. Tal como Galinn contara, o sobrinho possuía os olhos dos homens da família real: um céu noturno de Verão, repleto de estrelas cintilantes, que provocavam o enlevo de quem o fixava. A magia manifestava-se no olhar de Lysander, muito antes do pequeno príncipe ter consciência do seu poder.

Galinn também me confidenciara que Lysander herdara as feições nobres e determinadas do pai. Na altura, tal causara-me estranheza, já que Cyrus, o marido da rainha Lyria, era um homem austero, até arrogante. Todavia, no instante em que conhecera o príncipe, as palavras de Galinn tornaram-se claras como água. Apesar das inegáveis características do sangue antigo, que o ligavam ao seu povo, reconheci de imediato no rosto de Lysander os traços de um homem... de um rei que não era Cyrus!

Senti a aproximação de Lyria e retive o fôlego. Não era a sua presença que me punha nervosa, uma vez que a nossa amizade tinha raízes profundas; era imaginar o que me ia dizer. Porém, talvez por me conhecer e saber o quanto eu estava perturbada, a rainha não falou. Encostou-se ao meu lado, na varanda do seu salão, e pousou a mão em cima da minha, sobre o parapeito. Respirei fundo e partilhei da sua energia. Durante algum tempo, assistimos às travessuras das crianças e escutamos a música de Galinn, até que o meu ânimo inquieto me forçou a perguntar:

— Por que se casou com Cyrus, se o teu coração pertencia a Steinarr?

Ela não respondeu de imediato. Temi tê-la melindrado com a indiscrição, mas Lyria acabou por replicar, com uma tranqüilidade neutra:

— O Steinarr escolheu partir... E eu resolvi a favor do meu povo!

— Ele teria ficado, se lhe contasse...

— Tu és mulher, Edwina — cortou ela, com firmeza. — Desejaria que um homem se sentisse forçado a desposá-la, porque carregava o seu filho no ventre?

— Steinarr amava-te...

— Talvez! — interrompeu-me, de novo. — Mas, ao contrário de Cyrus, para o rei Viquing o amor nunca foi uma prioridade.

Isso era indiscutível! Tornei a fixar os garotos, que agora se sentavam ao redor de Galinn e escutavam atentamente uma das suas histórias.

— Mais cedo ou mais tarde, ele vai descobrir!

— A Thora jurou que manteria segredo. Não espero menos de ti e de Freya!

Encarei-a, respondendo com o cenho franzido:

— O Steinarr tem o direito de saber! Além disso, não é algo que possa esconder... Os traços do Lysander são inconfundíveis!

Lyria sorriu levemente, sem acusar incômodo ante tamanha descortesia.

— O Steinarr saberá... quando estiver preparado para amar o filho! O meu dever é habilitar o Lysander para enfrentar o futuro, sem sobressaltos, pois muitos destinos dependerão da solidez e serenidade das suas decisões. Ele necessita de crescer sob a aura protetora desta floresta e de aprender a magia dos seus antepassados... E tu tens de confiar em mim, quando te digo que estou a fazer o que é melhor para todos!

Ponderei nas suas palavras... e decidi acatar. Pelo menos por enquanto, não me atrevia a questionar o julgamento da rainha. Se Steinarr descobrisse que Lysander era seu filho, seria capaz de raptá-lo, antes que Lyria conseguisse justificar-se. Depois, tornaria a concentrar-se nos assuntos do reino... e o pequeno cresceria desregrado e revoltado, como Magnor. Era lamentável, mas o soberano Viquing não tinha tempo para dedicar ao amor!

Guardamos um instante de silêncio. Lyria procurara-me para falar comigo acerca de Edwin, mas esperava que eu tomasse a iniciativa... E para que adiar o inevitável? Suspirei e deixei cair a pergunta que me atormentava:

— Como é que ele está?

A rainha foi clemente e não demorou na resposta:

— Está a se recuperar bem... A tua irmã ficou a fazer-lhe companhia. Parece que simpatizaram um com o outro!

— O Edwin não simpatiza com ninguém! — desabafei com amargor. — Tudo o que faz, tudo o que diz, tem um propósito escuso!

— Por que não vai visitá-lo e escuta a sua explicação?

— Porque serei incapaz de acreditar numa única palavra que ele disser! — retruquei com total sinceridade. — O Rei da Lua regressou para me matar...

— Mas não te matou, apesar de já ter tido oportunidade de fazê-lo! E tu...? Tiveste-o à tua mercê, por que não o deixaste finar-se? Se crê realmente que a sua alma está perdida, por que me pediste que recorresse à magia do meu povo para salvá-lo?

Não sabia como refutar, por isso fiquei calada. Lyria prosseguiu:

— Sabe que eu só quero o teu bem, querida... Seja prudente! Conhece o coração do teu primo melhor do que ninguém... Tem que confrontá-lo! Tem que decidir se quer lutar por ele ou contra ele! Se continuar a adiar essa resolução, um dia, a sorte definirá um rumo... E tu serás forçada a dobrar-te aos seus desígnios!

 

A rainha da Gente Bela enviara dois mensageiros ao castelo Viquing, com a missão de informar o rei Steinarr do nosso paradeiro. Eu mandara um recado a Ivarr, pedindo que não viesse no meu encalço. Justificara esta intempestiva viagem com uma necessidade premente de afastar-me da confusão do castelo, para refletir. Esperava que tal fosse suficiente para manter o rei-lobo afastado dos domínios do Povo da Terra. De outra forma, o seu conflito com Edwin seria inevitável!

Não obstante a minha determinação, imaginar o que Ivarr e Thora estariam pensando impedia-me de adormecer. Além disso, angustiava-me lembrar a discussão que tivera com Freya. A minha irmã decidira não acompanhar os mensageiros e continuar ao meu lado, apesar do que havíamos combinado. Eu condescendera, pois não confiava na eficácia dos guerreiros de Lyria para protegê-la, caso Aesa voltasse a atacar. De qualquer forma, partiríamos dentro de poucos dias, mal a minha magia se restabelecesse... Porém, nesse momento, interrogava-me se tomara a decisão certa. Ao invés de desfrutar da hospitalidade de Lyria, a minha irmã passara a tarde com Edwin, falando-lhe acerca da nossa família. Quando a repreendera, voltara-me as costas, irritada e magoada. Não admitia que eu só desejava proteger-nos! Com um simples sorriso, o Rei da Lua conquistara o seu coração. Como podia ela descuidar a prudência, se conhecia a índole traiçoeira do primo? Decididamente, Freya padecia de um fascínio por homens perigosos!

A proximidade de Edwin também me impedia de sossegar. As recordações passeavam-se diante dos meus olhos e confundiam-me até à exaustão. Revi os anos em que enviara a essência até à Ilha do Fogo para alentá-lo; em que observara, com um desespero impotente, as forças da magia negra a apossarem-se da sua alma. O breve instante em que a promessa de liberdade enchera os nossos corações de calor e esperança, tivera um desfecho trágico. Ou assim eu julgara! Se o nosso elo lhe era precioso, por que não o usara para me avisar que sobrevivera? Sentei-me contra a almofada, lutando para respirar. Esta noite não podia findar sem que a verdade fosse denunciada!

Saí da cama, vesti o robe e percorri os corredores da torre, em direção ao quarto onde Edwin se recuperava. Surpreendi-me ao constatar que Lyria não deixara um único guarda à porta. Atendendo à periculosidade do hóspede, deveria ser mais cautelosa! Talvez não acreditasse que o Rei da Lua pudesse causar estragos numa cidade onde todos possuíam o domínio da magia... Ou talvez ele já a tivesse convencido de que era inofensivo!

Entrei num aposento pequeno, mas acolhedor, onde a chama tímida de uma lamparina iluminava um deslumbrante olhar verde. Perdi o fôlego. Não esperava encontrar o meu primo acordado... E, pela sua expressão, era evidente que ele também não aguardava a minha visita. Decerto a vontade de recuar refletiu-se no meu rosto, pois Edwin estendeu-me a mão, suplicando numa voz rouca e dolorida:

— Por favor, Edwina... Não vá...

Tive de apelar a toda a vontade para aproximar-me. Suspirei de alívio, ao verificar que havia um banco junto à cabeceira da cama. Não confiava nas pernas para me susterem, e acomodar-me ao lado do homem que me iludira e roubara, estava fora de questão. Afastei o banco para uma distância segura, antes de me sentar. Se Edwin tomou o gesto por desprezo ou temor, não o revelou. O seu tom aprofundou-se ao murmurar:

— Obrigado por me ter salvado! Eu não merecia o teu cuidado...

— É verdade! Não merecia! — A minha rispidez surpreendeu-me, mas já não podia voltar atrás. Fitei-o com um ardor rancoroso, sem permitir que a visão do seu peito e braços enfaixados me comovesse. Mesmo sob a influência da cura do Povo da Terra, as dores deviam ser atrozes! Porém, fora Edwin quem buscara este padecimento, ao furtar a Lágrima do Sol.

Por um instante, medimos forças com o olhar. Fiquei satisfeita quando ele cedeu primeiro. Fechou os olhos e deixou a cabeça pender sobre a almofada. Se não soubesse que estava diante de um mestre de falsidade, acreditaria que lutava contra as lágrimas.

— Por que é que me odeia, Edwin? — A pergunta saltou-me abruptamente dos lábios. Cerrei os dentes, com o coração a chicotear-me o peito. O silêncio que pesava o ar tornava-se sólido; um penedo que se erguia entre nós, fustigado por uma violenta tempestade. Dispunha-me a sair sem resposta, quando ele arquejou; cada palavra como um espinho arrancado da garganta:

— Tu devotaste-te a mim... E eu vivi por esse voto; para essa mentira!

— Eu te vi morrer! — exclamei, com as lágrimas a subirem-me aos olhos.

— Não! Tu me viu cair no mar!

— Eu busquei a tua essência! Procurei-te... Até o Povo da Água me garantir que estava perdido.

Edwin soltou uma interjeição imperceptível; quase um urro de dor. Engoli em seco, sentindo o quarto girar à minha volta, ao vê-lo cobrir o rosto com as mãos e a soluçar. O coração quase me rasgava o peito, tal a vontade de ir até ele e estreitá-lo nos braços. Contudo, eu não podia! Toda esta encenação de vulnerabilidade e angústia não passava de um truque para, mais uma vez, me enganar... Então, Edwin deixou pender os braços e fixou o teto, declarando:

— O Povo da Água raptou-me. Violentou-me o corpo e profanou-me a mente... Durante semanas, talvez meses, não soube quem era ou onde me encontrava. Quando a memória regressou, descobri-me prisioneiro de uma sereia louca, que queria um filho meu... Um filho que eu não podia lhe dar, porque estava amaldiçoado! Ao perceberem que eu não tinha préstimo, tentaram me matar...

A voz faltou-lhe e o silêncio tornou a preencher o quarto. Porém, desta vez era diferente... O ar queimava, sob a influência das emoções que nos agitavam. Eu sentia-me na obrigação de dizer algo... Mas o horror paralisara-me a língua. Por fim, ele se recuperou e prosseguiu:

— Consegui fugir... E vim para o Norte. — Voltou a me encarar, e a sua expressão era uma máscara de dor. — Sonhei com a nossa união, Rainha do Sol... Mas encontrei-te casada com o príncipe Viquing... Prenhe do seu filho...

Baixei o rosto e as lágrimas tombaram-me em cascata sobre o robe. Diante da agonia de Edwin, todas as minhas justificativas pareciam vazias de significado. Decidi que não iria expor-me ao seu julgamento. Ainda assim, tive de respirar fundo várias vezes, antes de enfrentá-lo:

— Por que nunca me procurou? Nós poderíamos...

— Ter-nos tornado bons amigos? — contrapôs ele, com um sorriso amargo. — Não, Edwina! Tu prometeste-me tudo... E deixou-me sem nada! Até mantém a Lágrima da Lua num lugar que me é proibido! Eu sou o guardião do cristal, mas estou separado da sua magia, porque a Montanha Sagrada recusa-se a revelar-me as trilhas...

— A vontade da Montanha é soberana! — argumentei. — Se a tua essência fosse pura, poderia reclamar a magia do dragão diante da Pedra do Tempo.

— Eu não tenho de reclamar nada! — A sua voz tornou-se agreste. — A Lágrima da Lua me pertence por direito!

Levantei-me; punhos cerrados e respiração alterada. Finalmente divisava o propósito que o movera. Com a mente num turbilhão, rugi acusadora:

— Tu roubaste-me a Lágrima do Sol, para me obrigar a te entregar a Lágrima da Lua?

— Era uma troca justa, não concorda? — replicou, no mesmo tom.

Sacudi a cabeça, profundamente desiludida. Por mais que a desventura de Edwin me entristecesse, não conseguia deixar de revoltar-me contra ele... e contra mim, por estar neste quarto, à espera de que, sob a inspiração de um prodígio divino, o meu primo fosse iluminado pela razão. Edwin era um servo da magia negra, impulsionado a agir sob a influência do Mal... Isso jamais mudaria!

— O Guardião da Lágrima da Lua confiou-me o cristal, para que eu o mantivesse a salvo da perversidade dos mestres da Arte Obscura. É isso que faço, desde esse dia... E é isso que continuarei a fazer!

— Fui eu que te confiei o cristal!

— Não! — Quase cuspi, tal a indignação. — Quem me entregou a Lágrima da Lua foi um homem de essência pura, de grande coragem e valor! Tu não és esse homem! E eu farei o que for necessário, para manter a magia do Guardião da Montanha longe das tuas mãos!

Edwin esboçou um gesto de impotência e a sua voz exasperou-se:

— Se eu não recuperar a Lágrima da Lua, muitas desgraças hão de ocorrer...

— Eu não tenho medo das tuas ameaças! — retruquei despeitada.

— E quem é que está te ameaçando? — vociferou o meu rival, rubro de fúria. — Lamento informá-la, mas não é o centro do mundo!

Apertei os lábios para impedir-me de gritar. No vazio opressivo da ausência das nossas vozes iradas, dois corações rufavam quais tambores de guerra. Recuperei o fôlego e rosnei entre dentes:

— Não sei por que ainda perco tempo a ouvir-te!

Voltei-lhe as costas e dirigi-me à porta.

— Espere, Edwina... — clamou o meu primo, quase desesperado; toda a arrogância esquecida. — Desculpe! Escute-me...

— Para quê? — insurgi-me, sacudindo os punhos tal a raiva que me assolava. — Para tentar me ludibriar com o teu olhar sedutor, a tua voz contundida e as tuas histórias de infortúnio, como fez com a minha irmã? Poupe-se ao esforço, porque eu te conheço bem demais! Tu não és um infeliz, Edwin! Tem uma família de grande valor, um pai que te adora e que nunca desistiu de acreditar em ti, um poder no sangue e na essência que podia tornar a Terra num lugar melhor... Contudo, ao invés de se esforçar nesse sentido, escolhe o caminho da mentira, do ódio e da vingança, da morte... Raios, não tenho mais nada para te dizer!

— Edwina...

Ignorei-o e parti, rumo ao meu quarto, com o alerta da rainha Lyria a espicaçar-me a mente. Resolver se queria lutar por Edwin ou contra Edwin... Seria mais fácil alterar o percurso do Sol e da Lua no firmamento! Bater-me contra o meu primo era admitir que falhara na minha principal missão de vida... E, de certa forma, seria arrancar o coração do peito e lançá-lo ao fogo! Porém, lutar por Edwin afigurava-se impossível. Eu desconfiava do mais sutil dos seus gestos; da mais inocente das suas palavras... Nada que ele fizesse ou dissesse restituiria a minha confiança! Como decidir, ante um dilema que era uma lâmina de dois gumes que feriam mortalmente?

Eu trouxera o meu primo para o reino de Lyria e suplicara à rainha que o salvasse. Agora, por mais que desejasse regressar para casa, a consciência impedia-me de partir e deixar a Gente Bela à mercê das suas manipulações.

Firmara a resolução de não voltar ao quarto de Edwin... Porém, ele não tardara a restabelecer-se o suficiente para sair. A todo o instante, eu era confrontada com a sua presença no salão... com o seu olhar intenso e gestos serenos; fogo e gelo no meu sangue, a cada vez que nos encarávamos. Irritava-me ver Lysander correr para o seu colo, e as longas conversas que mantinha com Galinn. Indignava-me o cuidado de Lyria, para com o seu bem-estar, e o desvelo de Freya, que parecia empenhada em compensá-lo por uma vida inteira de sofrimento e solidão. E enfurecia-me observar as donzelas da casa da rainha a pairarem ao seu redor, como traças em torno de uma lanterna, ignorantes do perigo da chama.

— Está com ciúmes! — zombou Freya, certa noite, ao ouvir-me bufar de desprezo, quando uma das irmãs de Lyria surgiu com um pente para desembaraçar os cabelos do hóspede.

— Ciúmes, daquele lagarto venenoso? — mastiguei, forçando-me a desviar os olhos da expressão embevecida da princesa. — Os Sentinelas da Ilha dos Penhascos são menos traiçoeiros... e, de longe, mais atraentes!

Freya não conteve uma gargalhada, ao recordar as abomináveis criaturas que guardavam a passagem para o interior da ilha, onde habitavam os nativos do arquipélago administrado pelo jarl Throst. O seu riso despertou a atenção dos convidados da rainha Lyria, que conversavam em redor do salão, e confrontou-me com o olhar verde-floresta do meu primo, e o seu sorriso trocista. Era só o que me faltava, ser chacoteada pela minha irmã mais nova e por aquele... presumido, pedinte de atenções, dissimulado! Vi Freya acenar-lhe e não me contive:

— Como é que pode ser tão condescendente com o homem que raptou o teu filho?

— O Edwin não raptou o Thorson! — contrapôs ela, em tom de censura. — Pelo contrário, salvou-o de um destino de servidão e loucura, à mercê das sereias. Tu sabes melhor do que ninguém, as dificuldades por que o nosso primo passou! Como consegue ser tão insensível?

— Insensível? — soprei, exasperada. — Já se esqueceu que só estamos aqui porque o Edwin me roubou?

— Ele já explicou por que o fez. Nem todo mundo é perfeito como tu, Edwina! O nosso primo merece uma segunda oportunidade de ser feliz. Custa-me acreditar que possa relevar a paixão do Ivarr pela Thora, e não entenda o quanto o Edwin padeceu, ao constatar que se tinha casado com outro...

— Basta, Freya! — atalhei; a ira a subir-me ao rosto. — O Edwin pode alegar o que quiser, mas nada me convencerá desta súbita reabilitação do seu espírito. Ele está escondendo algo... Prepare-se para sofrer uma desilusão!

Deixei o salão, com a intenção de fechar-me no quarto. Porém, dei por mim na rua, com o ar gélido a colar-se em meu rosto incandescente, assolada pela vontade de gritar; de chorar até mergulhar no esquecimento. Passara a vida a defender Edwin, a justificar as suas atitudes... E, agora, parecia ser a única que o acusava! Se não estivesse no território da Gente Bela, acreditaria que o meu primo pusera toda a comunidade sob a influência de um encantamento!

A história que Edwin contara, e que Freya teimara em transmitir-me, talvez explicasse os seus atos, mas não os legitimava! Depois de escapar ao Povo da Água, o Rei da Lua chegara ao Norte com o coração carregado de ódio. Juntara-se aos nômades e aguardara pelo momento certo para se vingar. Porém, ao enfrentar-me na Floresta dos Carvalhos, a minha luz tocara a sua essência... e despertara-lhe a consciência. Começara a seguir-me, movido por uma força mais poderosa do que a vontade — a necessidade de estar perto de mim. E fora essa força que o levara a libertar Thorson das garras das sereias... E a salvar o pai da morte!

Na Ilha dos Sonhos, diante de Edwin McGraw, as sombras que enegreciam o coração do Rei da Lua atenuaram-se. As longas conversas que mantivera com o pai, haviam-lhe confortado a alma e restituído a esperança. Porém, no instante em que soubera que eu ia regressar, o medo consumira-lhe a coragem... E fugira. Fugira, porque era capaz de controlar os impulsos nefandos da sua magia... mas não conseguia perdoar-me!

Regressara, então, para junto dos nômades e decidira iniciar uma nova vida. O seu espírito aquietara-se... Até que o chamado da Lágrima da Lua se tornara demasiado forte para ser ignorado. Ciente de que eu jamais lhe entregaria o cristal, convencera Jafar a oferecer um espetáculo ao rei Viquing, para se aproximar sutilmente da Lágrima do Sol...

— Está pensando em mim?

Saltei como se me tivessem espetado um ferro nas costas. Voltei-me para defrontar Edwin, com uma resposta torta na ponta da língua. Porém, ao encontrar o brilho do seu olhar, debaixo da lanterna que iluminava a entrada da torre, fui forçada a engolir em seco. Tornei a fixar a noite, prendendo a atenção nos flocos de neve que flutuavam ao sabor do vento, enquanto replicava:

— Estava a pensar na história que impingiu à Freya... E em como tudo me cheira falso!

— É pena que pense assim, porque fui sincero.

A sua voz soou demasiado perto do meu pescoço, deslizou-me pelos ouvidos, esquentou-me o sangue e arrepiou-me a pele. De imediato, o meu coração sobressaltou-se e as pernas bambolearam. Raios! Por que é que ele tinha este efeito sobre mim?

— Se me guarda tanto ressentimento, porque não me desafiou para um duelo? — retruquei, irritada ante o meu descontrole.

— Porque não sou tolo! — O seu riso ecoou-me junto à orelha. O calor da sua respiração fez os meus sentidos troarem em alarme. — A Pedra do Tempo já reconheceu o teu poder. Logo, tu és mais forte do que eu, Edwina! A única forma de me aproximar impunemente, era deixar-te perturbada, insegura... E foi o que fiz! Assim que entrei no teu quarto, soube que a vitória me pertencia!

Encarei-o, disposta a vociferar o meu ultraje. Porém, estávamos tão próximos que as nossas faces quase se tocaram. Recuei instintivamente... E o chão desapareceu-me debaixo dos pés. Teria caído nos degraus da entrada, se Edwin não me puxasse para os seus braços. Rápido como o pensamento, aprisionou-me entre a parede de madeira e o seu corpo, murmurando com o olhar preso no meu; os lábios movendo-se perigosamente perto:

— Eu tinha tudo planejado, Rainha do Sol! Ia apanhar-te de surpresa, deixar-te inconsciente e roubar-te o cristal...

— Não foi isso que fez? — balbuciei, paralisada pelo seu calor.

— Não! — arfou. — Diante desse olhar de céu e de mar, senti-me desfalecer... Esqueci tudo! Entreguei-me ao prazer de te ter e de te pertencer... Quando despertei, temi que chamasse os guardas. Depois do que tínhamos partilhado, seria incapaz de te enfrentar! Tornei a fugir... Mas, por tudo o que me é sagrado, Edwina, não irei fugir mais!

Os seus lábios desceram sobre os meus, numa carícia suave, que necessitava de permissão para se tornar um verdadeiro beijo. Por um instante, desejei que ele se tivesse imposto pela força. Seria mais fácil empurrá-lo e bradar de revolta... Assim, tudo ficava à minha consideração. E eu queria... Pelo bafo ardente do Guardião da Montanha, como eu queria!

— Pára... — arquejei, desviando o rosto a grande custo. — Eu... Eu não posso!

— E por que não? — sussurrou, sem se afastar. — A Freya contou-me que, em breve, deixará de ser mulher do Ivarr.

— A Freya fala demais!

— A tua irmã a adora e quer te ver feliz! E eu te amo, Edwina...

Reuni alento para colocar alguma distância entre nós, replicando:

— Tu não me amas...

A voz falhou-me ao vê-lo avançar. Tomou-me o rosto entre as mãos e declarou, com a expressão mais solene que alguma vez lhe observara:

— A rainha Lyria concedeu-me permissão para continuar a desfrutar da sua hospitalidade. A aura mágica desta floresta há de curar a minha essência! Um dia, quando for digno de ti, irei ao teu encontro na Montanha Sagrada. E tu me receberá, diante da Pedra do Tempo, e aceitará o meu amor sem receios... Até lá, sonharei com esse momento! — Baixou o rosto e beijou-me a testa. — Nós nascemos um para o outro, Rainha do Sol! Lamento o que ficou para trás... Mas aprendi com os meus erros e juro que não tornarei a decepcioná-la!

Na manhã seguinte, Lyria confirmou-me que autorizara Edwin a hospedar-se na sua casa, por quanto tempo desejasse. Ela também acreditava que o Rei da Lua era sincero no desejo de se libertar do apelo funesto da magia negra. Como o poder do Povo da Terra provinha de uma mistura de Arte Luminosa e Arte Obscura, faziam questão de ensiná-lo a controlar os ímpetos maléficos da sua essência, e a orientá-la na direção da luz. Ao deparar com o meu olhar perdido, a rainha aninhou-me contra o seu peito e confortou-me:

— Volte para casa e resolva o que deixou pendente, querida. Depois, poderá decidir em consciência se deseja se retirar para a Montanha Sagrada... ou regressar para cá, para observar a evolução do teu primo. Não quero interferir no teu futuro, mas devo confessar a minha simpatia por Edwin. O seu espírito confundiu-se na bruma, mas o seu coração manteve-se puro... E é esse coração que te ama, Edwina!

As lágrimas subiram-me aos olhos e deixei-as cair sem pudor. Para mim, Lyria era mais do que uma amiga... era um abrigo seguro, ao qual eu podia recorrer nos momentos de desespero.

— A Velha do Tronco Oco disse-me que nós estávamos perdidos dentro de um círculo de medo — confessei a custo. — Na altura, não entendi o que isso queria dizer... Todavia, agora sinto-o, qual anel de ferro em brasa que me tolda os movimentos e enreda o raciocínio. O receio tomou conta de mim! É tão grande o temor de desistir de Edwin como o de amá-lo. A vidente profetizou que, em breve, o círculo se fecharia; que nós ficaríamos frente a frente... E eu vi a minha morte nas mãos do meu primo, Lyria!

A rainha fixou-me, com o cenho franzido e um olhar de estranheza.

— Tem certeza? Não interpretou mal o que viu? É que... eu também tive uma Visão do seu futuro. E posso dizer que foi muito bela!

Encolhi os ombros, cansada e confusa.

— Será que contemplamos destinos diferentes, sujeitos ao acerto da minha resolução? Tenho medo de tomar a decisão errada...

— Então, pare de ter medo! — revidou ela, sacudindo-me levemente, como se pretendesse despertar-me de um sonho mau. — Liberte-se da influência desse círculo e siga o teu coração.

Forcei um sorriso triste, contrapondo:

— Não vai dizer que o Sol e a Lua ainda podem brilhar fora do Círculo do Medo, não é?

A rainha da Gente Bela sorriu com franqueza, replicando:

— Não sei do que está falando... Mas é uma imagem bonita!

 

Galinn passara a tarde a ensinar Edwin a tocar flauta. Uma multidão reunira-se em torno dos dois, rindo do desacerto do convidado. Porém, o Rei da Lua não se importou. A música fascinava-o, trazia paz à sua essência. E ele estava disposto a qualquer sacrifício para aprendê-la.

Deitada na cama, mais uma vez sem sono, parecia que a melodia ainda me ecoava aos ouvidos, misturando-se com os conselhos de Lyria: «Pare de ter medo e siga o teu coração!»

Freya ficara dividida entre o alívio e a tristeza, com o anúncio da nossa partida. Nos últimos dias, quando não estava embrenhada em intermináveis conversas com Edwin, recebia ensinamentos das anciãs curandeiras da casa da rainha. Tal como outras sábias antes delas, estas maravilhavam-se com os conhecimentos da minha irmã, sobre o poder das ervas e das rezas. A própria Lyria surpreendera-se, ao ver uma tia rabugenta colocar a sua Arte ao dispor da jovem hóspede, ensinando-lhe orações de restabelecimento. Se pudesse, Freya não se importaria de passar uma estação ou duas junto do Povo da Terra. Porém, o apelo do sangue chamava-a para casa. Mesmo sabendo que Thorson se encontrava em boas mãos, não deixava de inquietar-se... e as saudades tornavam-se insuportáveis.

A noite arrastava-se... E eu não conseguia fechar os olhos! Era como se uma força invisível me puxasse para fora da cama, com um propósito bem definido. E eu sabia para onde meus pés me levariam, se os pousasse no chão... Por isso obrigava-me a ficar quieta, enrolada nas cobertas.

Mais uma volta; um braço sobre os olhos, para impedi-los de encarar a noite. O meu coração saltava no peito, como se sujeito a uma corrida desenfreada. Isto tinha de terminar! Afastei a manta para o lado e calcei as botas. Mal vestira o robe, já encurtava distância até o quarto de Edwin.

Eu era suficientemente madura, para saber o que um homem cogitava quando uma mulher lhe batia à porta no meio da noite. Se esse homem e essa mulher tivessem uma história como a do Rei da Lua e a Rainha do Sol, era pedir confusão! Porém, quanto mais avançava, mais essa estranha força me empurrava. De súbito, andar já não bastava! Comecei a correr, com o coração a galope. Sentia a essência da magia negra pulsar, cada vez mais próxima. Uma sombra maligna precipitava-se contra a torre da rainha Lyria... E o seu destino era o mesmo que o meu!

Entrei de rompante no quarto de Edwin. A janela encontrava-se escancarada e a cama desfeita. Tombado no chão, o meu primo estrebuchava debaixo de uma forma mais preta do que uma noite de trevas cerradas. Duas asas descomunais embrulhavam-no, enquanto garras poderosas se cravavam no seu peito, e um bico do tamanho de uma adaga lhe golpeava o rosto. Ao aperceber-se da minha chegada, o colossal pássaro ergueu a cabeça para mirar-me. Os seus olhos ígneos, horripilantes, jamais poderiam pertencer a um ente gerado pela natureza. Aquilo não era um animal... Era um monstro!

Estendi as mãos, chamando o fogo para estorricar a criatura, antes que esta me atacasse. Porém, a aberração já largara a presa e fugia por onde entrara, a uma velocidade impressionante, fundindo-se com a escuridão da floresta.

— Edwin... — apelei aflita, correndo para o meu primo que tentava suster-se sem eficácia.

— Eu estou bem! — replicou, levantando um braço para afastar-me.

Ignorei o seu gesto, tomando-o pelo embaraço de não ter sido capaz de defender-se sozinho. Horrorizei-me, ao ver que a sua face fora dilacerada, logo abaixo da vista, e que o sangue lhe escorria até às vestes. O monstro só não lhe arrancara o olho por um triz!

— O que raio era aquilo? — arfei, sob o efeito do horror.

— Um corvo — respondeu Edwin, num tom irado. — A culpa foi minha! Deixei a janela aberta.

— O quê? — Foi a minha vez de indignar-me. — Aquilo não era um corvo! Nenhum pássaro tem aquele tamanho, aquela força! E os olhos vermelhos...

Calei-me abruptamente, ao perceber que objetava em vão. Nós dois sabíamos o que ele enfrentara... Só que, por alguma razão, Edwin não queria admiti-lo. Dirigiu-se à vasilha de água e usou a toalha molhada para pressionar a ferida, enquanto respondia, desprezando a minha alegação:

— Não se preocupe... Isto é só um arranhão. Amanhã nem se irá notar!

Não me encarava. As suas mãos tremiam, ainda que tentasse disfarçá-lo. Por um instante, vi-me diante do garoto desamparado e assustado que Edwin fora em tempos, quando se escondia dentro dos alvéolos de lava arrefecida, dos demônios que aguardavam no exterior para torturá-lo. Passei a mão pela testa; a mente conjecturando uma possibilidade terrível.

— Aquela coisa hedionda parecia um dos monstros de Aesa! A mestra da Arte Obscura está no teu encalço?

— Não invente problemas! — Edwin avançou e pousou uma mão no meu ombro, sustentando as interrogações do meu olhar. — Vá se deitar... Eu fico bem! Obrigado por se preocupar, mas já não sou um bebê que precise de cuidados e proteção constantes! Sei defender-me, Edwina!

— Não foi isso que vi...

— Eu estava dormindo e o corvo apanhou-me desprevenido....

— Edwin! — respinguei, sacudindo-o, revoltada com a sua negação.

— O que é que quer que te diga? Que a feiticeira quer matar-me? Provavelmente, ou não teria açulado os lobos contra mim! Mas também quer te matar, e a todos os que se dispõem a combatê-la! O quarto estava escuro... Tu viste-me a tentar livrar-me de um pássaro que entrou acidentalmente pela janela, e que devia estar mais assustado do que eu!

— Por que é que está mentindo? — contrapus, tão magoada quanto zangada.

Edwin encolheu os ombros monotonamente, e suspirou, replicando:

— Pense o que quiser! Sempre teve a convicção de que é senhora da verdade... Não vale a pena teimar contigo!

— O quê?

— Estou cansado, Edwina! Se não tem mais nada para dizer, quero ir dormir.

Abri e fechei a boca, sem acreditar na sua insolência. Era este homem que jurava me amar? Pois eu passava bem sem o seu amor! Ingrato! Arrogante! Estúpido... Não, eu é que era estúpida, por ainda estar diante dele, a humilhar-me! Senhora da verdade... Era só o que me faltava!

Rodei nos calcanhares e saí sem olhar para trás. Impedi-me de correr, enquanto consegui. Entrei desembestada no meu quarto e atirei-me para cima da cama, chorando compulsivamente. Idiota! Ingênua! Estúpida! Podia continuar até ao nascer do dia, e não teria vomitado todo o azedume. Como pudera sujeitar-me a tamanha afronta? Devia ter deixado o pássaro, corvo, monstro, criatura infernal, arrancar os dois olhos daquele grosseirão!

Quando bateram à porta, rugi instintivamente:

— Vai embora!

A cabeça morena de Freya espreitou; os olhos verdes esbugalhados de espanto.

— O que foi que te aconteceu?

Respirei fundo, percebendo que estivera prestes a despertar toda a torre. Enterrei a cabeça entre as mãos, gemendo desalentada:

— Aquele filho de uma feiticeira maldita põe-me doida! Estou com tanta raiva, que era capaz de matá-lo!

— Não diga isso! — ralhou Freya, sentando-se ao meu lado. — O que foi que o Edwin te fez?

Descrevi-lhe a luta que surpreendera, concluindo exasperada:

— O instinto garante-me que o nosso primo está  tramando algo... Na sua história, muitas coisas ficam por explicar ou simplesmente não fazem sentido! O roubo da Lágrima do Sol parece-me forçado... No dia em que salvou o tio Edwin, ele teve o cristal aos seus pés! Por que não se apoderou dele, então?

— Talvez ainda não tivesse pensado de que podia exigir uma troca...

— Não! — interrompi a justificativa da minha irmã. — Quanto mais penso, mais me convenço de que o Edwin me atraiu para cá, com o propósito de ganhar a confiança do Povo da Terra às minhas custas. Eu deixei a Aesa muito enfraquecida, no nosso último confronto... Como é que ela soube que o Edwin se encontrava próximo dos seus domínios? E por que mandaria os lobos atacá-lo? De onde veio o corvo gigante que o prostrou esta noite?

— A Aesa não se atreveria a enviar os seus monstros ao território da rainha Lyria! — contestou Freya. — E não compreendo a tua suspeita... O Edwin quase morreu devido ao ataque dos lobos!

— Quase... — murmurei, assolada pelo desconforto. — Quase... Mais parece que os lobos estiveram a brincar com ele! Se quisessem realmente matá-lo, bastaria ter-lhe arrancado a garganta, como eu já vi fazerem a tantos infelizes.

— Está insinuando que o ataque de Aesa foi um embuste? — horrorizou-se Freya. — Por que se sujeitaria o nosso primo a tamanha provação?

— Não sei... — sussurrei, sufocada. — Não sei...

Quedamo-nos em silêncio, mergulhadas em pensamentos obscuros.

Por fim, apertei as mãos da minha irmã e disse:

— Não há nada que possamos fazer esta noite... Amanhã, falarei com a rainha Lyria, antes de partirmos, e deixarei claras as minhas suspeitas. Agora, vai descansar! Temos uma longa e atribulada viagem pela frente.

Contrariada, Freya obedeceu-me. Mal ela saiu, tentei encontrar o sono. Porém, estava mais desperta do que no início daquela malfadada noite. Tornei a rolar na cama, até desejar gritar de desespero. Por fim, sentei-me; cada nervo do corpo trespassado por agulhas. De repente, não havia ar suficiente no quarto que me permitisse respirar. Saltei da cama para dentro das botas, abri a janela e deparei com as pontes suspensas, que ligavam as elegantes construções de madeira, onde o Povo da Terra habitava, oscilando suavemente ao sabor do vento. Apesar de trajar apenas a camisa de noite, debaixo do céu de Inverno, a minha pele ardia como se estivesse cheia de febre. Levei as mãos ao bolso e apertei a Lágrima do Sol entre os dedos, murmurando:

— O que é que se passa comigo?

Nesse instante, senti algo que só podia descrever como uma convulsão do ar. O equilíbrio das forças que nos regiam fora bruscamente comprometido! Num piscar de olhos, o vento parara de soprar, os ruídos da noite haviam cessado... e, a um único tempo, as lanternas que iluminavam a cidade da Gente Bela apagaram-se, deixando a floresta mergulhada na mais profunda negridão.

Recuei um passo, assustada. Os meus olhos adaptaram-se às trevas e buscaram um sentinela; alguém que alertasse a cidade para esta perversão. Porém, pelo que me apercebia, eu era a única alma desperta! Preparava-me para acorrer ao quarto da rainha, quando o vi — uma sombra movendo-se na escuridão, que se destacava à minha percepção qual tocha ardente. De imediato, recorri à magia para ocultar a essência. A tempo, pois Edwin perscrutava a noite, certificando-se de que ninguém testemunhava a sua aventura furtiva.

O que fazer? Um grito seria suficiente para expor a sua presença... Porém, se o Rei da Lua apresentasse uma justificativa plausível, sem que eu possuísse argumentos para refutá-lo, jamais haveria perdão entre nós. Não... Eu tinha de confirmar a sua perfídia com os meus próprios olhos, e confrontá-lo com esse conhecimento, antes de acusá-lo diante do Povo da Terra! E, para tanto, bastava-me segui-lo em segredo.

Sem mais hesitações, lancei-me atrás da presa... ou seria do caçador? O vento regressara com um ímpeto agressivo, como se a aura protetora da floresta tivesse sido consumida pelo estranho fenômeno que desequilibrara a sua harmonia primitiva. Todavia, a minha pele continuava a arder. Antes assim, pois nem me lembrara de pôr a capa mágica sobre os ombros! Toquei na Lágrima do Sol, para aguçar a determinação, e não tardei a encontrar o rastro de Edwin. Retive o fôlego, murmurando uma prece. Por mais que a suspeita me torturasse, o coração ainda não se resignara e a mente suplicava cautela. Se a traição do Rei da Lua se verificasse, esta noite nós sairíamos do círculo do medo... E entraríamos no círculo da morte!

Edwin avançava rápido. Aproximava-se da fronteira entre a Floresta de Lyria e a Floresta Sombria, quando hesitou, como se o próximo passo pudesse ser-lhe fatal... Depois, respirou fundo e continuou em frente. A minha resolução de deixá-lo concretizar o que quer que fosse que tinha em mente foi por água abaixo. Eu não podia persegui-lo através dos domínios de Aesa, ou arriscava-me a não tornar a ver o brilho do Sol! Previ o seu rumo e barrei-lhe o caminho, qual aparição vestida de branco com um olhar glacial.

— Vai embora sem dizer adeus? — ironizei num tom cortante. Edwin estacou, o rosto denunciando surpresa e horror.

— Como é que...? — gaguejou. — Eu certifiquei-me...

— De que não era seguido? — completei, com crescente desprezo.

— Edwina... — recuou, agitando uma mão que tremia quase tanto quanto a sua voz. — Suplico-lhe que volte para a segurança da cidade. Está em grande perigo!

— Tu é que estás em perigo! — respondi, reparando no volume que se ocultava por baixo da sua capa esfarrapada. — A minha paciência chegou ao fim! O que é que está escondendo, Rei da Lua?

Ele saltou para trás, fugindo do meu alcance enquanto implorava:

— Deixe-me ir, Edwina! Não há tempo para explicações... Eu... Por tudo o que te é sagrado, tem que confiar em mim!

Chamei a magia em meu auxílio e ataquei-o, usando o ar como arma. Edwin cambaleou, desprevenido, e tombou de joelhos, prostrado pelo impacto da força invisível. O seu protesto foi abafado pelo som de metal a bater contra as pedras pontiagudas, que rasgavam o manto de neve que cobria o solo. O olhar verde horrorizou-se, ao constatar que o objeto que guardara com tanto cuidado rolava para longe. Um brilho prateado rasgou as trevas, qual prenúncio de morte... E eu estaquei, paralisada pelo assombro, ao deparar com o pote de ferro que continha as cinzas da feiticeira Gwendalin.

Pisquei os olhos repetidamente, recusando-me a aceitar o que via. Isto não era verdade! Edwin não podia ter planejado toda esta perversidade, para roubar os restos mortais da sua mãe da guarda da rainha Lyria do Povo da Terra!

— Edwina... — arfou a custo. — Eu não tive opção! Por favor, acredite...

Fixei-o com as lágrimas a escorrerem-me pelas faces. De repente, a visão noturna deixara de revelar-me as formas em diferentes tons de cinzento. Tudo se tornara vermelho, escarlate, púrpura... Edwin não era o menino que eu ajudara a sobreviver ao jugo do feiticeiro Sigarr, nem o homem por quem me apaixonara! Era um ser repelente, traiçoeiro, monstruoso... um mestre da Arte Obscura!

Acometi contra ele, com tal veemência que rolamos no chão. Sem lhe dar tempo para reagir, apertei-lhe o pescoço e invoquei o fogo. A noite foi iluminada pelo clarão da magia... E pelo ardor do meu ódio! Edwin gritou em agonia e as suas mãos cobriram as minhas, forradas de gelo, até que as labaredas se extinguiram. Havia lágrimas nos seus olhos, quando tentou afastar-me. Não me comovi ao ver a sua carne em chaga. A existência do Rei da Lua terminava aqui!

— Espere! — gemeu numa voz quase irreconhecível. — Escute-me...

— Chega de mentiras, vil traidor! — bradei, descontrolada.

Recorri novamente ao fogo e Edwin defendeu-se, erguendo um escudo de ar entre os nossos corpos. Deixei de vê-lo por um instante, enquanto as labaredas se espalhavam sobre o seu vulto, sem, no entanto, o tocarem.

— Eu não quero lutar contigo... — ofegou. — Não vou lutar contigo!

— Então, vai morrer! — vociferei, num desabafo azedo.

A sua proteção ruiu, tão abruptamente que me apanhou desprevenida. Tombei sobre ele e fui subjugada pelo peso do seu corpo, sólido como um rochedo. Aprisionou-me as mãos por cima da cabeça e profanou-me o olhar. A sua voz forte ecoou-me na mente, tentando forçar-me a escutar as palavras que me recusava a ouvir dos seus lábios:

«Tem que sair daqui... Rápido! Ou morreremos os dois!»

Ignorei-o simplesmente. Não tornaria a acreditar em nada que viesse dele! Enfrentei-o e o meu poder suplantou-o. A sua voz calou-se dentro da minha mente e os seus lábios cederam um gemido de dor. Caiu para trás, aturdido, como se tivesse recebido uma bordoada nas frontes. Saltei sobre ele e foi a minha vez de devassar-lhe a essência. Chegáramos ao fim do círculo. Este era o momento de todas as decisões... E eu proporcionaria um espetáculo aos deuses!

Provei a energia de Edwin e devorei-a com sofreguidão. O olhar verde-floresta escancarou-se sob a influência do meu. Pela primeira vez, o Rei da Lua acreditava que eu seria capaz de matá-lo... Mesmo assim não reagiu! Confiaria que me arrependeria, no último instante? Enganava-se terminantemente! A sua perfídia não tinha perdão! Em vida, Gwendalin fora responsável pela destruição de centenas de inocentes. Depois de morta, não deixara de ser uma ameaça; um mal que Edwin se atrevera a desejar ressuscitar. Debaixo dos meus dedos, o seu coração falhou uma batida, duas...

«Amo-te, Rainha do Sol...»

Fui ofuscada por uma luz intensa... Quando a visão se restabeleceu, descobri-me dentro de uma caverna, cujas paredes resplandeciam com a cintilação de cristais de todas as cores. À minha frente encontrava-se um lago de água transparente, sob o qual pairava uma névoa brilhante. Eu já estivera aqui, num sonho maravilhoso em que Edwin me acompanhara, me amara... Todavia, desta vez surpreendi-me só. Terrivelmente só! E, nos meus pulsos, as tatuagens do dragão que desafiava o Sol sangravam... O que é que eu estava fazendo?

Libertei Edwin com um grito de agonia. Quando percebi que não reagia, tentei devolver-lhe a energia que lhe usurpara. Por baixo dos meus dedos, o seu coração pulsou timidamente... Então, sem aviso, uma mão agarrou-me e puxou-me pelos cabelos... E o mundo virou-se do avesso.

Fui arrancada de cima do corpo moribundo e aprisionada por dois braços magros. Estava tão embriagada pelo poder que pulsava na minha essência, que não consegui reagir de imediato. Lutei para raciocinar, para recuperar o domínio dos sentidos, para libertar-me... Deveria ser fácil, já que o meu captor era um homem franzino. No entanto, verifiquei ser incapaz de livrar-me do seu aperto. Toda a força se escoava do meu corpo como sangue a esvair-se de uma ferida profunda e letal. Lembrei-me de que já sentira esta sensação terrível... quando chamara a mim as derradeiras recordações do rei Vestein do povo vândalo! Gelei até os ossos, aterrorizada, ao compreender que caíra nas garras do príncipe Snari, o celerado herdeiro da feiticeira Aesa.

Uma chama forte brotou do nada, iluminando a trilha da floresta. A luz incidiu sobre Edwin e revelou-me o seu tormento. Os olhos verdes haviam escurecido e contrastavam-se lugubremente com a palidez das faces. Os lábios, rubros de sangue, escancaravam-se num grito mudo...

— Eis algo que eu jamais esperei ver! O Rei da Lua subjugado pela Rainha do Sol!

Eu conhecia esta voz... Porém, a mulher que as proferira era uma estranha aos meus olhos! Um homem de aspecto rude, coberto de cicatrizes, carregava o archote que guiava os passos da rainha dos Vândalos. Aesa trajava um vestido de lã preta... que assentava disformemente na sua figura magra e corcunda. Os seus longos cabelos, que outrora cintilavam como ouro, estavam mais brancos do que a neve e eram tão escassos, que deixavam transparecer a pele amarelecida do seu crânio. O rosto, sempre belo e altivo, envelhecera uma centena de anos... Só o olhar azul se mantinha igual! Fixava-me, repleto de zombaria, ao escarnecer:

— Um amor talhado nas estrelas... E incapaz de sobreviver às agruras da vida! Que pena! Devia ter escutado o teu predestinado, Edwina... É verdade que ele não teve escolha! Fui eu que lhe salvei a vida, enquanto tu se divertia na cama do príncipe Viquing. O Rei da Lua possui uma dívida para comigo, que tinha de ser saldada com este pequeno trabalho... ou o sangue dos seus amigos nômades!

Enquanto falava, a feiticeira dirigiu-se ao pote de ferro que Edwin trouxera até este lugar maldito, e recuperou-o da neve. O seu movimento fez as três pedras mágicas, que pendiam do colar que lhe ornava o peito, coruscarem à luz do facho. Cada vez mais esmorecida, ouvi-a continuar:

— Nos últimos dias, ele ousou acreditar que podia ludibriar-me... O amor tem destas tolices! Faz-nos pensar que somos capazes de vencer tudo e todos, quando, na realidade, nos torna fracos e vulneráveis. Por isso, hoje tive de relembrá-lo do seu juramento... Gostou da surpresa que o meu bisneto te enviou, Rei da Lua? Quem diria que o Snari se tornaria um jovem tão talentoso!?

Debaixo da chama do archote, Aesa ergueu o pote de ferro ao céu e libertou gargalhadas que assombraram a noite, como a trovoada que anuncia a mais irascível das tormentas. As chamas ameaçaram extinguir-se... Por um instante, as trevas foram iluminadas pelo brilho verde, laranja e violeta das pedras mágicas da feiticeira Aranwen, e pela incandescência púrpura do pote de ferro. Temi que este explodisse sob as mãos da bruxa e libertasse o mal aprisionado no seu interior. Porém, a claridade mística acabou por desvanecer-se, e o facho tornou a destacar o olhar gélido da mestra da Arte Obscura. Com o troféu apertado contra o peito, Aesa caminhou até Edwin, no seu passo debilitado pela velhice, e tocou-lhe com a bota no rosto, escarnecendo:

— É lamentável que não tenha herdado o gênio da tua mãe! Ela tinha tantos planos para ti! Infelizmente, não irá conhecê-la. Resta-lhe pouco tempo de vida... Contudo, o suficiente para desfrutar da minha vingança, que também pode ser tua! Afinal, a mulher que te condenou, é a mesma que me impôs esta debilidade infanda! — Voltou-se para encarar-me, com a expressão encarquilhada desfigurada pelo ódio. — Levarei anos para recuperar a juventude e o poder que me roubou, rameira ordinária. Mas irei passá-los no conforto da recordação deste dia!

Por mais que eu tentasse debater-me e resistir à dormência que se espalhava por todos os músculos, continuava amorfa entre os braços do meu captor. Até a energia da Lágrima do Sol parecia fora do meu alcance! Snari ria baixinho. Atreveu-se a lamber-me uma orelha, demonstrando o prazer que retirava da sua terrível habilidade. Quis gritar, mas descobri-me rouca, quase sem voz. No meu peito, o pavor crescia ao ritmo das batidas do coração, enquanto Aesa se aproximava... De súbito, um som penetrante perturbou as trevas. A feiticeira deteve-se bruscamente, com os olhos postos na floresta. Tive esperança de que fosse o exército do Povo da Terra, ou uma patrulha Viquing, que viesse em meu socorro. Então, a voz grosseira de um homem bradou:

— Veja o que eu encontrei, minha rainha!

Outra voz, fina e melodiosa, sobrepôs-se à sua... E o terror roubou-me a razão. Por pouco não desfaleci, ao ver Freya ser arrastada para o centro desta loucura, berrando e esperneando, prisioneira de um guerreiro vândalo. Lutei contra o desmaio e a fraqueza que me impediam de raciocinar. Diante de mim, a minha irmã chorava:

— Desculpe, Edwina... Eu só queria ajudar...

Trazia sobre os ombros a capa mágica que a rainha Lyria me oferecera, o que provava que regressara ao meu quarto. O desequilíbrio imposto às forças naturais não devia ter-lhe passado despercebido. Assustada, procurara-me e deparara-se com o aposento vazio, a janela aberta... Decerto, vira me esgueirar através das sombras da noite, no encalço de Edwin. E, depois do que eu lhe confidenciara, não hesitara em seguir-nos, na esperança de evitar uma desgraça.

— Mas que surpresa maravilhosa! — exclamou Aesa, desviando a atenção da minha pessoa, para concentrar-se na jovem que resistia corajosamente ao aperto brutal do seu algoz. — Afinal, o que é que nós temos aqui?

Os dedos esqueléticos da bruxa deslizaram pelo rosto da minha irmã, e as suas unhas laceraram a pele fina, até o sangue brotar. Freya gritou com as forças que lhe restavam, no auge do desespero. Deleitada, Aesa levou os dedos molhados aos lábios e provou o néctar quente. De imediato, o seu rosto pareceu rejuvenescer, tamanho o sorriso que o iluminou.

— Será possível? — declarou extasiada, capturando um braço de Freya e arregaçando-lhe a manga da camisa de noite, para revelar a tatuagem que lhe enfeitava o pulso. — Outra princesinha abençoada! Uma Rainha do Sol, à minha mercê! Este é um dia memorável! — Tornou a buscar o meu olhar, provocando-me: — Conhece a história do filho do dragão, o primogênito varão que nascerá com o poder de unir o conhecimento das Lágrimas do Sol e da Lua, Edwina? É claro que conhece! Durante anos, o meu irmão Sigarr perseguiu a realização dessa profecia... Mas, no fim, serei eu a concretizá-la! — Voltou-se para o guerreiro que capturara Freya. — Leve a jovem para o local do encontro e mantenha-a segura. Se alguém lhe tocar num fio de cabelo, a tua descendência será varrida da Terra!

— Sim, minha rainha! — acatou o homem, curvando-se em reverência antes de arrastar Freya para o interior da floresta.

Aesa quedou-se um instante, apreciando a minha agonia, enquanto escutava os gritos e o choro da minha irmã. A sua magia devia estar bastante enfraquecida! De outra forma, uma gota do sangue de Freya teria bastado para revelar-lhe a verdade. A bruxa apostava em trazer ao mundo o varão da profecia... sem saber que ele já nascera. Temi pela sorte da minha irmã, no instante em que Aesa descobrisse que o seu ventre já dera fruto. Contudo, neste instante, era o meu destino que se decidia. Sustive o fôlego, ao ver a feiticeira retirar um punhal do cinto e avançar.

— Já me fez perder muito tempo, impura arrogante! — exclamou. — Vai pagar pelas humilhações que me infligiu! Aspirou à glória de uma existência como Feiticeira... Mas morrerá como uma reles humana!

E, dito isto, espetou-me o punhal no ventre. Apesar de Snari ter devorado todo o meu alento, a dor trespassou-me, mais violenta do que qualquer atrocidade que eu já experimentara. Os meus lábios escancararam-se num grito de horror, mas a voz ficou retida na garganta, encravada na respiração. O meu olhar esbugalhado deparou com o sorriso extasiado da mestra da Arte Obscura. Com um urro de vitória, Aesa torceu a lâmina, rasgando, dilacerando, transformando as minhas entranhas numa ruína sangrenta. O suplício era indescritível! O meu corpo estava em chamas, o coração recusava-se a bater e o sangue inundava-me a boca.

— Foi um prazer, Guardiã! — murmurou-me Snari ao ouvido, introduzindo a mão no bolso da camisa de noite e apoderando-se da Lágrima do Sol, antes de me empurrar com desprezo.

Estatelei-me no chão, ao som das gargalhadas de Aesa. Ouvi o rumor dos passos que se afastavam sobre a neve, e o clarão do archote desvaneceu-se. Fiquei prostrada, na escuridão, a sufocar no meu próprio sangue, enquanto os ruídos da floresta me profanavam a mente. Levei uma mão ao ventre, e senti o punho da arma e a camisa ensopada. As estrelas surgiram no negrume do céu, lindas, chamejando em amarelo, alternado com vermelho, branco e laranja. Eu sabia que não eram reais... Estava a perder a consciência! A morrer da forma atroz que a Visão me revelara... Tanto me esforçara por evitar a tragédia, que acabara por provocá-la!

— Edwina!

O apelo do meu primo troou-me aos ouvidos, segurando-me à vida por mais um instante. Percebi que se arrastava ao meu encontro, demasiado débil para se suster. Chegáramos ao fim do Círculo do Medo e a morte aguardava-nos. Íamos ambos morrer, porque eu não fora capaz de escutá-lo! Gemi levemente, quando a sua mão apertou a minha. Senti-a extraordinariamente quente, sobre a minha pele gelada. Gostaria de olhá-lo uma última vez... mas a visão falhava.

— Aguente-se, meu amor! — Edwin chorava, batendo-se contra a fraqueza, tentando puxar-me para os seus braços. Desejei conseguir falar... Dizer que o amava. Que nunca deixara de amá-lo...

Não senti dor quando ele desenterrou o punhal. Já estava para além de qualquer sensação. Aninhei a cabeça no seu peito e fechei os olhos.

— Não desista! — bradou o Rei da Lua, com um ardor feroz. — A nossa luta ainda não acabou, Rainha do Sol! Eu esperei por ti toda a minha vida... E não hei de perder-te esta noite!

A voz de Edwin desvaneceu-se, por entre uma miríade de outras vozes que enchiam o ar de música:

«Um futuro para aqueles que sonham;

Um futuro para aqueles que amam;

Um futuro para aqueles que lutam...»

As estrelas desciam do céu para dar-me as boas-vindas. Estendi os braços ao encontro da sua luz morna e respirei fundo. Estava em paz...

 

No passado, Quinn McGraw almejara ser um guerreiro-lobo e servir o príncipe Ivarr do povo Viquing, tal como Bryan, o seu irmão mais velho. Porém, no ardor das provas de iniciação que o afirmariam como homem, fora arrastado para um duelo que o deixara incapacitado. Todos diziam que jamais tornaria a pegar numa espada... Durante algum tempo, ele próprio julgara que assim seria! E aceitara a sua sina. Viajara para o Império e dedicara-se aos estudos. Aprendera a olhar para dentro de si e a superar as limitações da sua condição, à medida que despertava o afeto e a admiração do rei William, o Conquistador. Então, certo dia, sem que nada o fizesse prever, a magia despertara no seu sangue.

Apesar de não ter ninguém que o orientasse, Quinn possuía a disciplina necessária para concentrar-se na perseguição desse inesperado objetivo. Em criança, assistira aos treinos da sua prima Edwina, Guardiã da Lágrima do Sol, e estava familiarizado com os passos que devia dar para concretizar pequenos feitiços, como acender o fogo, elevar a água ou levitar objetos com a força da mente. Ciente de que seria condenado à morte na fogueira, no instante em que o Império o surpreendesse, preocupara-se em ocultar a sua habilidade, inclusive da família. Se o pai desconfiasse do acontecido, o forçaria a regressar à Enseada da Fortaleza, temendo pela sua vida. E Quinn não queria deixar o conselho do rei William... Não podia deixar a princesa Isobelle!

Não demorou para que o jovem conselheiro descobrisse que não era apenas na sua mente que a magia realizava prodígios. O seu corpo também estava mudando, a fortalecer-se... a sarar! A primeira vez que conseguiu fechar a mão machucada no punho de uma espada, cedeu a um choro jubiloso. Pouco depois, apercebeu-se de que já não arrastava a perna por imposição do golpe que Magnor lhe infligira, mas porque se habituara a fazê-lo. O apoio do bordão tornara-se supérfluo! Podia saltar, correr, voltar a ser um guerreiro...

Porém, Quinn já não desejava ser guerreiro! Tudo o que almejava era provar que o príncipe John, herdeiro do trono, não passava de um facínora, um traidor que, no momento em que sucedesse ao pai, arrasaria a sua obra e aplicaria graves tormentos ao povo. E queria desmascarar o mestre da Arte Obscura, que se escondia por baixo do hábito de um padre venerado, e que conspurcava, todos os dias, a cruz que carregava ao peito. Esteban tinha de ser castigado... Todavia, pensá-lo era muito mais fácil do que realizá-lo! O feiticeiro era tão perverso quanto inteligente. Quinn necessitava aguardar que ele cometesse um erro... E isso significava passar despercebido, parecer inofensivo, continuar a ser o aleijado que entretinha o rei com os seus conhecimentos de ciência.

O estado de graça do falso padre fora severamente abalado com o incidente que envolvera os aliados do Tratado. Apesar de todas as alegações que escutara, o rei William ficara desagradado com a forma como Esteban agira... e as liberdades que permitira ao príncipe John. Por mais que lhe custasse acreditar que fora vítima de um conluio por parte do seu principal conselheiro e do próprio filho, o espinho da dúvida cravara-se no seu espírito. Neste momento, os dois conspiradores mal se atreviam a aparecer diante do soberano.

John voltara a dedicar-se aos treinos de combate, com um entusiasmo obsessivo, e raramente o viam no salão, ao lado da esposa. O príncipe já era um dos melhores guerreiros do Império, na luta com espada. E, depois da contenda que o opusera aos Viquings, nesse Verão, dispunha-se a não se deixar superar no manejo do arco e no arremesso da lança. Quanto a Esteban, devotara-se a pregar a palavra do Senhor, nas casas da cidade... Esta aproximação ao povo deveria corroborar a bondade do seu coração. Contudo, Quinn soubera que, só na última semana, duas grávidas haviam perdido os filhos, sem razão aparente, após uma visita do falso padre. Temeroso de que o rei o surpreendesse a apelar à magia, Esteban interrompera a caça às bruxas e abraçara outro meio de alimentar a tenebrosa fome da sua essência.

Há pouco, o jovem McGraw vira o feiticeiro partir para mais uma visita ao povoado. Já fizera um cálculo do tempo que este costumava demorar-se, e reunira finalmente a confiança necessária para invadir os seus domínios... Ou assim julgara! Agora, que se atrevera a entrar na igreja do castelo, com um propósito bem definido, sentia-se gelar de medo e incapaz de dar um passo.

Quinn era seguidor da nova fé e esforçava-se por cumprir os seus ensinamentos. Só não entendia por que os padres condenavam a Arte e aqueles que haviam sido abençoados com o dom de curar, quando, através da magia, se podia praticar o bem e aliviar o Homem de tantos tormentos. Se a Deus repugnasse o poder que pulsava no seu sangue, não lhe teria restabelecido o corpo e sarado as feridas do espírito! Este pensamento deu-lhe ânimo para avançar, de olhos postos na magnânima cruz de prata que enfeitava o altar. Com um suspiro de devoção, prostrou-se de joelhos e benzeu-se. Depois, os seus ombros vergaram-se e a cabeça pendeu, até quase tocar a passadeira vermelha. Entrelaçou os dedos e murmurou uma prece:

— Por favor, Senhor... Dê-me coragem para levar esta missão até o fim. Ajude-me a denunciar os crimes do feiticeiro... E, se eu tombar na defesa do Teu nome, proteja a princesa Isobelle da ira dos meus carrascos. Não permita que nenhum mal caia sobre a sua cabeça, pois ela é a mais pura e fiel das Tuas servas.

Levantou-se lentamente e respirou fundo, antes de contornar o altar. Naquela malograda noite, a bordo do Dragão dos Mares, Edwina explicara-lhe o que tinha de fazer. Ao espreitar por baixo da colcha de renda branca, Quinn encontrou de imediato os desenhos gravados na pedra. Engoliu em seco, ciente de que estava prestes a arriscar tudo o que conhecia e amava. A sua mão tremia, ao apertar no estranho símbolo que a prima lhe descrevera em pormenores. Teve esperança de que nada acontecesse... Porém, quase de imediato, o chão deslizou e revelou uma escadaria íngreme, que se perdia na escuridão. O conselheiro coxo jamais conseguira descê-la! Porém, neste momento, os nervos eram a única dificuldade que condicionava os movimentos de Quinn. Fechou os olhos e apertou os punhos... Não tinha o que temer, pois o Senhor caminhava ao seu lado! Sem mais hesitações, mergulhou nas trevas.

 

Esteban sentiu os ossos gelarem. Forçou o cavalo a deter-se, com a respiração suspensa. Algo acontecera... Não tinha certeza de quê, mas causara uma forte perturbação na energia que o servia. Os guardas que o escoltavam, guerreiros possantes vestidos de negro, pararam um pouco mais à frente; os cavalos relinchando em protesto.

— O que foi, senhor...? — começou o comandante.

— Silêncio! — rugiu o feiticeiro, olhando para a encosta onde se erguia o majestoso castelo. Deixou a mente fluir, buscando vestígios de uma essência inimiga, sem nada encontrar. Teria sido impressão sua?

Nos últimos tempos, tudo parecia escapar-lhe ao controle. Desde a juventude que não se sentia tão nervoso, tão inseguro. O fato de andar a sustentar a essência com migalhas de vida, desprovidas de magia, não ajudava. A percepção pregava-lhe peças e a Arte falhava-lhe nos momentos mais inoportunos... como agora!

Voltou o olhar para o povoado. Talvez devesse adiar as suas visitas... Era certo que, esta noite, ia estar com ela e queria oferecer-lhe o seu melhor desempenho. Todavia, não podia ignorar o alarme que lhe açoitava os sentidos! O instinto impelia-o a regressar ao castelo... E o instinto mantivera-o vivo durante mais de mil anos!

— Venham! — ordenou.

Os guerreiros seguiram-no a toda a velocidade, sem o questionarem. Pouco depois, cruzavam os pesados portões de madeira. Esteban saltou do cavalo e apressou-se na direcção da igreja, dispensando com firmeza os guardas que tencionavam acompanhá-lo. Se as suas suspeitas se confirmassem, não queria testemunhas das medidas que teria de tomar para repor a ordem. A cada passo, sentia o desconforto aumentar. Era cada vez menos provável que estivesse enganado. Empurrou a porta entreaberta... E estacou bruscamente, ao deparar-se com Quinn McGraw.

A imprestável criatura, que o rei William decidira agraciar com a mão da sua filha mais nova, só para contrariá-lo, encarou-o, pálido de susto. Encontrava-se sentado num banco, com as mãos postas em oração. Suspirou de alívio ao vê-lo, como se, após a sua entrada abrupta, temesse deparar com um touro enraivecido. Ergueu-se com alguma dificuldade, apelando à mão esquerda para buscar o apoio do bordão, já que a direita era incapaz de fechar os dedos.

— Saudações, padre Esteban! — cumprimentou-o na sua voz irritante. — Parece perturbado... Posso ser-lhe útil, de alguma forma?

O feiticeiro rangeu os dentes. Só lhe faltava ser questionado por um inválido! Deu um segundo olhar ao redor, buscando a ameaça que o cobrira de suores frios, no regresso ao castelo. Contudo, tirando o imbecil que coxeava na sua direção, a igreja estava vazia.

— Agradeço-lhe o cuidado, senhor conselheiro — respondeu com cortesia, embora o tom denunciasse desprezo. — Perdoe se lhe interrompi as orações. Julguei... ouvir alguém gritar por ajuda.

Observou o rosto do rapaz, buscando um sinal de inquietação. Porém, ele revelava-se tão enfadonho como sempre.

— Não... — respondeu-lhe com singeleza. — Aqui, ninguém gritou! E não se preocupe... Eu já tinha terminado de rezar e preparava-me para ir ao encontro de sua majestade.

Quinn McGraw partiu, arrastando uma perna atrás do corpo. Esteban fixou-lhe a nuca e recorreu à Arte para trespassar-lhe a mente. O néscio compunha um poema para entreter o rei... Estaria a enganá-lo? Não! O que podia este aleijado fazer para prejudicá-lo? Ainda assim...

O mestre da Arte Obscura dirigiu-se ao altar e levantou a colcha que encobria o acesso à passagem secreta. Tudo estava no seu devido lugar. Deixara-se influenciar pelos nervos... E tal não podia voltar a acontecer! Regressara ao castelo em vão, e, por causa da sua incômoda inquietação, seria incapaz de satisfazê-la nessa noite. Paciência! Haveria outras noites... Quanto ao conselheiro coxo, no futuro, seguiria os seus movimentos com atenção. Afinal, ainda que parecesse inofensivo, ele era um McGraw!

 

Estrid levou a mão ao peito, para acariciar as pedras mágicas da sua bisavó feiticeira. Esta noite, Esteban fora incapaz de agir como um homem, diante do seu ardor. Por isso, compensara-a, cedendo ao seu capricho de usar o colar. Era engraçado como tudo mudara, desde o dia em que condescendera em entregar-lhe a sua virtude. Recordava-se perfeitamente do asco que sentira, quando o feiticeiro a tocara pela primeira vez. Durante semanas orara, esperançada de que o seu sacrifício tivesse dado frutos, para que o acordo que haviam estabelecido se consolidasse. De início, tudo correra como planejado. Nem a intervenção da família lhe ensombrara a vitória! Todavia, John acabara por decepcioná-la... E, em breve, pagaria caro por todas as vezes que a humilhara, cedendo os seus favores a rameiras, enquanto ela suspirava pela sua atenção!

A jovem percebera que não amava o marido, na noite em que buscara Esteban pela segunda vez, disposta a tudo para vingar-se do desprezo do príncipe. O feiticeiro empenhara-se em agradá-la... e dera-lhe exatamente o que ela precisava! Desde então, Estrid contava o tempo, ansiosa por regressar ao seu leito. Esteban era um homem estranho... mas ela aprendera a fechar os olhos e a concentrar-se unicamente nas sensações que ele lhe proporcionava. Quando a magia que o animava ardia com uma intensidade veemente, o feiticeiro punha o seu corpo e alma em chamas. Entre os dois, palpitava uma vida que lhes pertencia. Um dia, o seu filho seria rei do Império... Que John se divertisse enquanto podia! Quando descobrisse que era ela quem agora desfrutava das graças do seu mentor, seria demasiado tarde!

Um sorriso distorceu os lábios finos de Esteban. Sabia exatamente o que a princesa estava pensando. A vida era estranha... Tivera muitos amantes, ao longo da existência, mas poucos o haviam entretido como Estrid! Ela ainda não lhe pertencia... não completamente! Tinha de ser cuidadoso na forma como lhe envolvia a essência, para não prejudicar o seu filho. Porém, assim que o futuro rei do Império nascesse, a jovem McGraw iria vê-lo com outros olhos! Algo lhe dizia que, desta vez, se passaria muito tempo, até sentir necessidade de buscar outra companhia. A cada dia, Estrid revelava-se mais perfeita... Quase como a alma gêmea, que o mestre da Arte Obscura julgara ser impossível de encontrar. No entanto, não podia deixá-la vislumbrar o seu entusiasmo, ou não hesitaria em manipulá-lo. O fato de ser uma mulher decidida e perigosa, tornava-a ainda mais atraente!

— É melhor voltar ao teu quarto. — ergueu a voz, num tom autoritário. — O teu marido regressará da caçada, antes do nascer do dia, e deve encontrar-te na cama.

Estrid fixou-o com um olhar desgostoso, replicando:

— Como se ele se importasse!

— Venha visitar-me amanhã — ordenou o feiticeiro, mantendo a frieza.

A jovem sentou-se na cama e deixou as pedras mágicas escorregarem sobre a pele alva dos seios nus, sorrindo sedutora.

— Se o meu senhor tiver algo para me oferecer...

Esteban cerrou os dentes, contendo a vontade de subjugá-la sob o seu peso, devorar-lhe os lábios cor de sangue e declarar que iria até aos confins do Império, a fim de buscar a energia que o seu corpo exigia para agradar-lhe. Ao invés disso, respondeu rispidamente:

— Concentre-se na missão que te confiei.

Estrid hesitou, fixando o anel que lhe adornava o dedo. Por baixo da pedra brilhante, existia um espaço secreto, onde ela escondia o pó que o feiticeiro lhe entregara. Até agora, não tivera dificuldade em fazê-lo chegar aos lábios do rei, uma vez por semana, como lhe fora exigido. Havia sempre uma forma de distrair a criada que lhe levava o chá. No entanto, começava a exasperar-se, pois não via quaisquer resultados da sua iniciativa.

— Tem certeza que não devo aumentar a quantidade de veneno... ?

— Faça o que te digo! — atalhou Esteban, impaciente. — Não queremos ver o William a estrebuchar como o teu pai! A sua enfermidade terá de parecer uma maleita; um triste infortúnio impossível de contrariar, para que ninguém desconfie de traição. Sossegue... Em breve, o nosso amado rei começará a agonizar. Quando a Primavera chegar, John subirá ao trono... E tu estarás ao seu lado!

— Mas, a rainha...

— John cuidará dela! — tornou ele a interromper. — Depois da humilhação a que a mãe o sujeitou, perante os bárbaros, uma palavra minha bastará para sanar esse problema.

Estrid quedou-se em silêncio, ponderando se desejava conhecer o plano do feiticeiro para matar a rainha do Império. Decidiu que não. Apesar de tudo, Mary sempre a tratara como uma filha! Infelizmente, colocava-se entre ela e o seu objetivo! Respirou fundo e inclinou-se sobre Esteban, permitindo que os seios volumosos pendessem tentadoramente sobre o peito magro, numa promessa do prazer, enquanto murmurava:

— Mal posso esperar para ver a ruína da minha família! O meu maior deleite será observar a Ilha dos Sonhos, debaixo de ferro e de fogo... — Roçou os lábios pelos do feiticeiro, completando: — Não se esqueça da promessa que me fez!

O mestre da Arte Obscura riu baixinho, antes de responder:

— Não esquecerei... Quatro fogueiras se acenderão na praça deste castelo, em tua honra!

Estrid inspirou um fôlego de antecipação, replicando:

— Até parece que estou ouvindo os gritos da tia Catelyn e das suas detestáveis filhas! Hão de bradar o meu nome... Hão de implorar misericórdia! E eu terei a satisfação de lhes acenar e sorrir, enquanto as labaredas as consumirem!

 

                                                                                            Sandra Carvalho  

 

                      

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