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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DESTINO DE LUCY / Barbara Cartland
O DESTINO DE LUCY / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DESTINO DE LUCY

 

             Sião, 1868.

             Ser esposa de alguém, mesmo de mentira, era algo que revoltava lady Lucy, que fora criada como um rapaz desde pequena. Mas o desafio de conhecer países exóticos e misteriosos como Sião e Gibraltar não podia ser desprezado. Além de tudo, lorde Ivan Templeton, como ela, tinha horror ao casamento. Apenas deveriam fingir ser casados. Porém, pouco depois de chegarem, Ivan foi ferido gravemente por um tiro. Lucy se desvelou em sua cabeceira, cuidando, velando aquele jovem corajoso e belo. E, quando tudo passou, uma lágrima rolou por seu rosto. Era tempo de voltar, a aventura acabara e também a paz em seu coração… Estava apaixonada!

 

 

            Lorde Templeton amava o campo e os cavalos. Era com extremo desagrado, portanto, que estava deixando os dois novos cavalos que havia acabado de adquirir.

            Os estábulos de sua propriedade em Sussex eram famosos não só pela quantidade, mas principalmente pela qualidade dos cavalos.

            Sua presença se fazia necessária em Londres. Não havia como evitar a viagem. Lorde Stanley, o Secretário de Estado para Assuntos Estrangeiros, mandara-lhe uma carta convocando-o com urgência.

            A vontade de lorde Templeton de permanecer longe do calor da capital, das estradas poeirentas e dos negócios o levou a considerar a possibilidade de inventar uma desculpa para não atender ao chamado.

            Não teve coragem. Afinal, era seu dever.

            Ao chegar à cidade, se dirigiu a sua casa em Berkeley Square em primeiro lugar, para se refrescar e comer alguma coisa antes de se apresentar no Ministério da Guerra.

            Ele já havia servido à Pátria muitas vezes. Depois do último trabalho que fora especialmente difícil, pensara ter cumprido sua obrigação e merecido umas férias no campo, mas o Governo não parecia ser da mesma opinião.

            — Bom dia, milorde — cumprimentou-o o responsável pela recepção.

            — Tínhamos esperanças de que fosse chegar mais cedo. — Lorde Russell o esperou até a pouco, mas tinha uma reunião marcada com o primeiro-ministro e se encontra em seu gabinete neste momento.

            — Lamento o desencontro — lorde Templeton respondeu —, mas quando cheguei a Londres passava da uma hora.

            Enquanto conversavam, o oficial conduziu lorde Templeton à sala particular do secretário de Estado que ficava no fim de um longo corredor.

            Foi com grande prazer que lorde Templeton encontrou seu velho amigo, sir James Redwell, que era o subsecretário de Estado para Assuntos Estrangeiros.

            Sir James Redwell era o homem mais inteligente e culto que lorde Templeton conhecia. Trabalhar a seu lado era um privilégio.

            — É muito bom vê-lo, Ivan. — Ele se levantou da escrivaninha e apertou-lhe a mão, vigorosamente. — Receei que fosse recusar nosso convite, por causa de seus cavalos.

            Lorde Templeton sorriu e sentou-se numa cadeira.

            — O dever me chamava. — Como poderia recusá-lo? — lorde Templeton respondeu, sorrindo. — Mas quero avisá-lo desde já que não tenho planos de ir a nenhum lugar remoto e selvagem simplesmente porque você teme o surgimento de algum tipo de rebelião nos próximos vinte anos.

            Sir James se recostou na cadeira e riu.

            — Você gosta de caçoar de mim, Ivan, mas eu não ligo. — Sabe tão bem quanto eu que nunca lhe confiei nenhuma missão que não fosse de real importância.

            — Importante ou não, eu tenho estado ocupado demais com meus negócios para deixar a Inglaterra neste momento.

            Fez-se silêncio.

            — Quando ouvir o que tenho a lhe dizer, aposto que pensará de outro modo. — Afinal, quem o está chamando é alguém que você muito admira.

            — Quero fazer de conta que não o ouvi — lorde Templeton respondeu.

            Ambos riram.

            Em seguida, sir James apanhou alguns papéis sobre a mesa e continuou:

            — Você sempre admirou o rei Mongkut do Sião e seu bem-sucedido governo.

            Lorde Templeton sentou-se abruptamente.

            — Não me diga que ele está com problemas! — Eu sempre pensei que o Sião fosse um país lindo e tranqüilo.

            — Oh, não! — Felizmente não é o rei quem está com problemas — sir James respondeu. — Sou da mesma opinião que você quanto a ele ser um excelente rei e que seria terrível se algo de ruim lhe acontecesse.

            — Neste caso, o que há de errado? — Lorde Templeton quis saber.

            — O rei está solicitando nossa ajuda porque está preocupado com o que vem acontecendo em Khmer.

            Lorde Templeton franziu o cenho.

            — Está insinuando que os franceses voltaram a perturbá-lo?

            — Sinto muito, mas você acertou. — Não teremos como nos recusar a ajudar o rei Mongkut, não acha?

            — O que, exatamente, ele deseja? — Lorde Templeton indagou depois de dar um profundo suspiro.

            — Ele quer que enviemos alguém para investigar a situação e conferir se os rumores são corretos de que os franceses estão se infiltrando no país com a intenção de dominá-lo eventualmente.

            Fez-se um breve silêncio.

            — Talvez se trate de rumores apenas. — Você sabe como os orientais costumam ser exagerados, James.

            — Neste ponto sou obrigado a concordar com você — sir James declarou. — Por outro lado, você sabe tão bem quanto eu que o rei não teria pedido nossa ajuda, se não estivesse realmente preocupado.

            Lorde Templeton admitia que sir James estivesse certo.

            O rei Mongkut governava o Sião havia dezessete anos e fizera de seu país um dos mais lindos e agradáveis que ele tivera a oportunidade de visitar.

            O Khmer, entretanto, que se localizava do outro lado do Sião, não podia ser descrito com igual entusiasmo.

            Seu rei havia subido recentemente ao trono e estava mais interessado em se divertir do que em administrar e ajudar o país.

            Os ingleses estavam cientes havia algum tempo de que os franceses pretendiam expandir seu território, e o Khmer parecia o lugar ideal para iniciarem essa política.

            Como lorde Templeton se mantivesse calado, sir James disse:

            — O que esperamos que você; faça se possível, e ambos sabemos que é possível, é usar seu charme e sua inteligência, dons que não lhe faltam, a fim de descobrir o quanto há de verdade nesses rumores. — É preciso também que você conscientize o rei do Khmer de que ele precisa, a todo custo, firmar-se no trono e não permitir que os franceses dominem seu país.

            — Acredita que a missão será fácil?

            Sir James sorriu em resposta.

            — Nenhum rei gosta de ouvir sugestões quanto a seu modo de se comportar. — Embora eu não conheça o rei de Khmer pessoalmente, tenho a impressão de que ele se recusará a ouvir suas recomendações.

            Lorde Templeton considerou o relato antes de comentar:

            — Os franceses são muito espertos. — Se eles estão dispostos a dominar o lugar, conseguirão se infiltrar no país antes que o rei se dê conta.

            — Concordo com seu ponto de vista — sir James afirmou. — Não tenho mais ninguém, contudo, para enviar nessa missão, e que tenha metade da chance do sucesso que você já alcançou nas vezes em que nos ajudou.

            — Também não conheço nenhuma outra pessoa que saiba falar o idioma daquele país.

            Sir James estava certo. Lorde Templeton era filho de um diplomata e tivera a sorte de conhecer vários países.

            Como seu pai sempre gostara de conversar com as pessoas e de fazer amigos em cada lugar que visitava, ele teve a oportunidade de aprender idiomas estrangeiros, desde muito pequeno, quase tão bem quanto o inglês.

            Mais tarde, como não tivesse necessidade de trabalhar, pois seu pai era muito rico, lorde Templeton continuou viajando pelo mundo.

            Sua amizade pelo subsecretário de Estado para Assuntos Estrangeiros o levou a prestar favores não-oficiais, mas muito apreciados pelo primeiro-ministro e por todos os membros do ministério.

            Pelo fato de sempre alcançar sucesso em suas missões, lorde Templeton começou a ser chamado a intervalos cada vez menores.

            Naquele momento, ao surpreender o olhar quase súplice do amigo, lorde Templeton disse:

            — A razão por eu não querer me afastar da Inglaterra nos próximos dias é que um de meus cavalos está inscrito para a corrida de Ascot, e eu acredito que ele tenha chance de conquistar a taça de ouro.

            — Eu sei que estou pedindo muito, Ivan, mas você tem de compreender que a situação é delicada demais para eu pensar em outro nome que não seja o seu.

            Lorde Templeton suspirou.

            — O problema é que você sempre fala comigo de um jeito que torna impossível minha recusa. — Se eu tivesse um pouco de bom senso, nunca mais voltaria a este escritório.

            — Eu sabia que você não me decepcionaria! — Sir James exclamou, agradecido.

            — Imagino queo trabalho deva ser feito imediatamente — lorde Templeton murmurou.

            — Ontem teria sido perfeito — sir James respondeu.

            — Sim, é   claro. — Eu devia ter imaginado que não me seria permitido permanecer na Inglaterra nos próximos dois meses, apesar de eu ter esperado tão ansiosamente pelas corridas.

            — Ora, talvez não seja tão ruim — sir James caçoou — Quem sabe você estará de volta em breve com a notícia de que os rumores eram infundados. — Por outro lado, caso as suspeitas se confirmem, você terá impedido a França de ocupar Khmer.

            — Eu sei. — Eu sei — lorde Templeton respondeu. — Já conheço essa história. — Acabarei tendo de fazer o que você quer. — Mas faço questão de deixar bem claro que, estarei partindo da Inglaterra contra minha vontade.

            — Quer você goste quer não, o importante é que atenda meu pedido

            — sir James respondeu e, em seguida, pigarreou. — Ainda me resta lhe contar algo que o perturbará ainda mais.

            — De que se trata? — Lorde Templeton quis saber.

            Sir James hesitou por um instante.

            — Para sua tranqüilidade, deve dizer ao rei Mongkut que se casou depois da última vez em que esteve em seu país.

            Lorde Templeton arregalou os olhos.

            — Eu! — Um homem casado! — Você sabe perfeitamente que eu não tenho a menor intenção de me casar por enquanto. — Aliás, acho que não me casaria nunca, se não fosse por causa da necessidade de passar meu título e meus bens para um herdeiro.

            — Eu conheço seu ponto de vista. — Esta é a razão por eu lhe aconselhar, para sua própria segurança, que leve uma esposa em sua viagem.

            — Uma esposa falsa. — Assim, nenhum dos dois reis se atreveria a ter idéias a seu respeitei

            — Você enlouqueceu James! — É a única explicação! —  Lorde Templeton exclamou. — Por que eu deveria mentir que sou casado, se não sou?

            — Porque tanto o rei Mongkut quanto o rei Norodom de Khmer são inteligentes o suficiente para perceber que seus poderes seriam maiores se eles se unissem aos ingleses por meio de um casamento.

            Lorde Templeton sorriu.

            — Muitos reis já tiveram essa idéia. — Esqueceu-se de que a rainha é chamada de a “casamenteira da Europa”?

            — Eu nunca vi um apelido mais apropriado — concordou sir James.

            — Há noivas inglesas espalhadas por todos os países da Europa.

            — Menos em Khmer e nas terras do rei Mongkut ao que parece. — É

            por isso que eles não descansarão enquanto não conseguirem a mesma façanha.

            — Não posso acreditar — lorde Templeton respondeu, rindo.

            — Honestamente, acho essa história ridícula. — Não bastam as noivas inglesas que se encontram, agora, nos Bálcãs?

            — Esses casamentos foram um sucesso — sir James comentou. — Você sabe tão bem quanto eu que os russos não têm mais condições de brigar com os ingleses. — Sua Majestade foi muito esperta. — Ela nos salvou do que teria sido uma terrível carnificina.

            — Eu concordo com sua política — declarou lorde Templeton.

            — Apenas não penso que o rei Mongkut sinta necessidade de se proteger a esse preço.

            — Para sua informação, Ivan, o último homem que esteve no Sião, recentemente, é um conde de família muito tradicional e respeitada em nosso país. — Ele não teria razões para mentir.

            Sir James se deteve por um instante para se certificar de que lorde Templeton estava prestando atenção ao relato.

            — Ele disse que o rei Mongkut e seus cortesãos imploraram para que voltasse à Inglaterra casado. — E seriam eles quem escolheria a noiva.

            — Quando o conde se recusou, chegou a ser ameaçado. — Pode imaginar algo pior?

            — Foi realmente assim que aconteceu? — Lorde Templeton franziu o cenho.

            — Eu não estou exagerando, se é isso que insinuou — sir James respondeu. — Foi com grande dificuldade que o conde conseguiu sair do Sião sem uma noiva e uma aliança no dedo. — Uma vez em que ele bebeu mais do que devia, escapou por pouco. — Quando pensaram que estava inconsciente devido ao álcool, chegaram a lhe dar uma caneta e uma certidão de casamento para que ele a assinasse.

            — Se eu não o conhecesse há muito tempo — lorde Templeton respondeu —, duvidaria de que estivesse me contando a verdade.

            — Infelizmente é verdade — sir James insistiu. — Procure uma noiva e leve-a consigo para o Sião.

            — Acredita que exista a mulher capaz de concordar com uma sugestão tão absurda? —Talvez eu até encontre uma, mas tenho certeza de que, depois, ela tentará arquitetar um plano para que eu a leve ao altar. — O que eu não tenho a menor intenção de fazer.

            — Eu sei disso — sir James respondeu.

            Embora lorde Templeton não gostasse de tocar nesse assunto, sir James estava ciente da razão que o tornara tão amargo com relação a casamentos.

            A jovem a quem ele amava perdidamente e com quem pretendia se casar abandonou-o. Após esse terrível golpe, lorde Templeton jurou que se casaria; somente quando estivesse mais velho e apenas pela necessidade de ter um herdeiro.

            Ele tinha dezenove anos quando se apaixonou e foi desprezado. A jovem que era filha de um dos amigos de seu pai contava com a mesma idade.

            O casamento havia sido acertado quando eles ainda eram crianças, portanto não havia empecilhos para aquela união.

            Qual não foi a surpresa de lorde Templeton quando, poucos dias antes de o noivado ser anunciado, lhe contaram que sua noiva havia fugido com o instrutor de equitação e se casado com ele em uma aldeia distante.

            Ivan ficou desolado.

            Nada nem ninguém podiam consolá-lo.

            Seu pai, então, tomou a decisão de enviá-lo para uma viagem ao redor do mundo.

            Foi o que de melhor poderia ter acontecido á lorde Templeton nessa fase de sua vida.

            A viagem ajudou-o a se recuperar do golpe sofrido e levou-o a se decidir, de uma vez por todas, a nunca mais pensar em casamento enquanto não chegasse a uma idade madura.

            Sir James, como amigo que era, estava a par da história e gostaria de ajudar lorde Templeton em tudo que pudesse.

            — Não estou sugerindo que você se case de verdade, Ivan. — Tenho um plano para preservar sua condição de solteiro e, ao mesmo tempo, enviá-

            lo para o Oriente sem que corra riscos de se casar com alguém indicada por um dos reis. — Quer ouvir o que tenho em mente?

            — Estou pronto para ouvi-lo, mas aviso-o desde já que não sou bom em mentiras. — Não creio que conseguirei representar o papel de marido.

            — E não acredito que a mulher, que você está pensando em me indicar, seja uma tola. — Aliás, ela deve ser muito esperta. — Quando a viagem chegar ao fim; serei acusado de ter arruinado sua reputação e obrigado a reparar meu erro. — Você conhece outra forma de reparação que não seja uma aliança de ouro no dedo?

            Lorde Templeton falou com sarcasmo, mas sir James não se intimidou.

            — Ouça minha proposta antes de tomar uma decisão definitiva. — Eu entendo seu receio. — É muito provável que ele tenha fundamento.

            — O mero fato de você reconhecer isso é um passo na direção certa —

            lorde Templeton observou.

            — Agora, por favor, ouça-me. — Prometo que só direi a verdade do começo ao fim.

            Lorde Templeton se recostou na cadeira e fitou o amigo intensamente.

            — Minha irmã Aretta, que você não conhece, foi uma jovem muito atraente. — Os rapazes assediavam-na em todas as festas, mas ela os recusava. — Recebeu inúmeros pedidos de casamento. — Eu conheci alguns dos pretendentes e confesso que os teria recebido de bom grado em nossa família. — Sir James fez uma pequena pausa antes de prosseguir:

            — Ela estava com vinte e sete anos quando, finalmente, resolveu ficar noiva. — Foi uma surpresa para mim, confesso, pois o noivo era muito mais velho do que ela.

            Um suspiro interrompeu o relato.

            — Eles se casaram e pareciam felizes. — Pouco tempo depois, minha irmã teve uma filha. — O pai não pareceu muito contente. — Como era muito rico, ele queria um menino para deixar sua fortuna quando morresse.

            Sir James tornou a suspirar.

            — Eu não me dei conta da tragédia no início.

            — Tragédia? — Lorde Templeton questionou.

            — Sim. — Minha irmã teve complicações durante o nascimento da filha e os médicos disseram que ela não poderia mais engravidar. — Foi horrível. — Além desse golpe, minha irmã teve de ouvir do marido que a única razão que o levara ao casamento fora a necessidade de ter um herdeiro não apenas para deixar sua fortuna, mas também seu título.

            — O que ele fez? — Tentou gerar um menino apesar dos diagnósticos?

            Sir James negou com um movimento de cabeça.

            — Ele criou sua filha como se ela fosse um menino.

            Lorde Templeton ergueu uma sobrancelha.

            — Como?

            — A menina foi tratada como menino quase que desde que saiu do berço. — O pai a levava para cavalgar e para caçar. — Os assuntos que conversava com ela, quando estavam a sós, eram de interesse masculino.

            — A mãe não se opunha?

            — Minha irmã nunca mais gozou de boa saúde depois de ter a filha.

            — Os médicos não conseguiram diagnosticar exatamente o mal. — Um dia, finalmente, ela deixou este mundo.

            Sir James parecia estar falando sozinho. Seu semblante estava carregado de tristeza.

            — Minha sobrinha não era como as outras crianças de sua idade, e as diferenças foram se acentuando com a idade. — O que mais a interessava era praticar esportes, algo que a maioria das jovens não considera atraente.

            Lorde Templeton ouviu a história em silêncio, mas havia sarcasmo em sua expressão.

            — Para finalizar, meu cunhado faleceu num acidente no mar entre dois navios que colidiram, e Lucy veio morar comigo. — Ela é minha sobrinha e gosto dela, mas a verdade é que quase não a vejo.

            Sir James pôs-se a andar de um lado para outro.

            — Você deve estar se perguntando por que eu estou tão preocupado com ela. — A resposta é que tenho dificuldade para compreendê-la. — Lucy é muito diferente, em todos os sentidos, das outras moças de sua idade.

            — Quantos anos ela tem? — Lorde Templeton indagou.

            — Quase vinte e um. — Nos últimos tempos ela vem insistindo para que eu lhe dê permissão para tentar o teatro.

            — Teatro! — A vida artística certamente não combina com alguém que pertence à sua família.

            — Foi o que eu disse — sir James observou. — Eu a proibi de mudar de nome e de se juntar à companhia teatral. — Imagine que ela pretendia representar o papel de um homem idoso.

            Lorde Templeton pensou que a sobrinha de seu amigo era uma jovem realmente amalucada, mas como o assunto não lhe dizia respeito preferiu se mantiver calado.

            — Se você levar Lucy; consigo como sua esposa, tenho certeza de que ela saberá representar o papel. — Minha sobrinha é muito inteligente.

            — Além disso, você poderá viajar tranqüilo. — Nem os reis, lá no Oriente, nem ela, quando voltarem, pensarão em fazer de você um homem casado.

            Lorde Templeton se levantou e introduziu as mãos nos bolsos.

            — Acho sua idéia completamente maluca, mas ela me diverte, confesso.

            — Não é tão maluca quanto pensa — sir James retrucou. — Espere até conhecer Lucy. — Ela resolveria seu problema com relação ao rei Mongkut.

            — Fingiria ser sua esposa enquanto fosse conveniente. — Mais tarde, quando voltarem, ela não lhe criará os problemas que as outras mulheres certamente criariam, pois não deseja se casar, assim como você.

            — Como pode ter certeza?

            — Porque ela se considera um homem para todos os efeitos. — Fala como homem, se veste como homem e pensa como homem. — Seus planos para o futuro não incluem um casamento com um homem, eu garanto!

            Lorde Templeton voltou a sentar-se e riu.

            — Não dá para acreditar. — O caso é tão extraordinário que você deveria escrever um livro. — Eu não me espantaria se ele se tornasse um best-seller.

            — O que eu acabei de lhe contar é inteiramente confidencial. — Sir James lembrou o amigo. — Ninguém está á par da situação como eu. — Lucy trata as pessoas com gentileza e respeito quando eu as recebo em minha casa.

            — Mas eu noto é claro, seus olhares. — Todos acham estranho seu modo de se vestir, embora Lucy não chegue ao extremo de usar calça comprida. — E os assuntos de seu interesse não são os comuns às mulheres.

            — Ela deve ser uma pessoa rara.

            — É isso que eu quero que você constate por si mesmo  — sir James insistiu. — Está convidado para jantar conosco amanhã à noite. — Aceite, por favor, e fale com ela com a mente aberta. — Tenho certeza de que não se arrependerá caso decida levá-la para o Sião com você. — Além de ficar livre das pressões do rei para que se case com uma de suas importantes súditas, talvez filhas, não precisará se preocupar com chantagens femininas na época do retorno.

            Lorde Templeton tornou a rir.

            — Ainda não consigo acreditar. — Eu acho que você inventou essa história assim como aconteceu da primeira vez em que me enviou a uma missão. — Disse que eu seria recebido com flores e um tapete vermelho, mas o que eu vi foi uma arma apontada para mim.

            Sir James ergueu as mãos num gesto de desalento.

            — Nós cometemos um erro e você não nos permite esquecê-lo.

            — Foi um erro muito desagradável — lorde Templeton declarou.

            — Pensei que meu fim havia chegado aquele dia. — O modo com que fui tratado me fez recear que não tivesse tempo nem para rezar antes de ser mandado para o outro mundo.

            — Você já reclamou inúmeras vezes sobre esse acontecimento — sir James murmurou. — Eu lhe pedi desculpas pelo susto. — Torno a pedir, se isso o faz sentir-se melhor. — Mas você tem de admitir que eu também já lhe; proporcionei muitas aventuras divertidas.

            Sir James se virou para a parede e apontou várias regiões no mapa.

            — Tenho certeza de que você gostou de viajar ao redor do mundo em nosso nome e de ser tratado, na maioria dos casos, com honrarias dignas de um estadista.

            — Sim, eu admito que muitas das viagens; foram interessantes. — Esta que está me propondo agora, contudo, é absurda. — Eu lhe asseguro que ninguém poderá me obrigar a levar uma noiva ao altar, se esse não for meu desejo.

            — Nosso amigo Featherstone que foi o último representante inglês a visitar o Sião e Khmer afirma que nunca sentiu tanto medo em sua vida.

            — Os homens realmente o ameaçaram para que se casasse com alguém de seu país. — Ele também afirma que tentavam dopá-lo com soporíferos que colocavam em sua comida e em suas bebidas.

            Lorde Templeton encarou sir James com firmeza.

            — Isso é verdade ou você está inventado mentiras para me impressionar?

            — Juro que estou dizendo a verdade e que não gostaria que você passasse por esse tipo de experiência. — Eu detestaria jogá-los aos leões, por assim dizer, sem preveni-lo do que poderia lhe acontecer.

            — Está realmente falando sério quando diz que aqueles dois reis não se deteriam diante de nada para conseguir a proteção de nossa bandeira?

            — Procure Featherstone e pergunte — sir James sugeriu. — Ele lhe dará todas as respostas que quiser e com todos os detalhes. — Tenha cuidado, Ivan. — Eu lhe asseguro que correrá perigo se for ao Sião desacompanhado.

            — Com seu título, sua boa aparência e, principalmente, com sua capacidade de falar o idioma deles, você não conseguirá voltar para á Inglaterra solteiro.

            Fez-se silêncio.

            Lorde Templeton refletiu por alguns instantes sobre as palavras que acabara de ouvir. Antes que se decidisse a falar, sir James prosseguiu incapaz de suportar a tensão que pairava na ambiente.

            — Meu convite para jantar continua válido. — Permita que eu lhe apresente minha sobrinha e verá que ela é completamente diferente das outras mulheres que já conheceu. — Depois, se houver um pouco de sensatez em você, concordará com minha proposta. — Ou então, o que também seria recomendável, decida-se por outra jovem em quem deposite sua inteira confiança, para que ela o ajude nesse jogo perigoso de enganar aqueles que estão tentando enganá-lo.

            Lorde Templeton não pôde evitar um sorriso.

            — Bem, espero não me arrepender por estar depositando minha confiança em você mais uma vez. — Não se trata apenas de uma nova e original maneira de arranjar o casamento de uma sobrinha, não é?

            Sir James deu um; tapinha no ombro de lorde Templeton.

            — Quando conhecer Lucy terá sua resposta. — Ela não pretende se casar com homem algum. — Foi criada como se fosse um menino e se comporta e pensa como tal. — Pelo que pude observar durante muitos anos, ela não apresenta as emoções comuns às mulheres, e não está interessada em senti-las.

            — É muito estranho — lorde Templeton murmurou. — Aceito seu convite para jantar, mas fique certo de que não mudarei de idéia quanto a me casar, aconteça o que acontecer.

            Sir James tornou a sorrir.

            — O mais importante é que, depois de conhecer minha sobrinha, você estará pronto para viajar ao Sião num prazo de vinte e quatro horas.

            — É rápido demais! — Lorde Templeton protestou. — Não será possível!

            — Por que não?

            — Preciso pensar em minha família e tenho uma série de coisas para preparar e resolver.

            Sir James balançou a cabeça em sentido negativo.

            — Você sempre foi muito eficiente em tudo o que faz. — Bastará dar uma ordem ou duas e os problemas deixarão de existir.

            — Ora, ora, se não estou ouvindo um elogio. — Não me resta outra atitude a tomar, nesse caso, exceto agradecer. — Fico contente em saber que considera meu trabalho preciso e perfeito.

            — Sempre foi e sempre será eu tenho certeza disso — sir James confirmou. — Eu o considero um homem esperto e inteligente desde que o conheci. — Além de falar vários idiomas; pensa com clareza e é muito organizado. — Mesmo que tivesse de partir para a lua, e não para o Sião, não teria problemas e não deixaria nenhum para que outro o resolvesse.

            — Esse foi o maior cumprimento que já recebi — lorde Templeton disse, sorrindo.

            Sir James se levantou.

            — Espero-o em minha casa. — Rua Charles, número dez, às oito horas.

            — Não participarei sua decisão á lorde Stanley até amanhã de manhã, apesar de que ele preferiria ser informado a respeito ainda esta noite.

            Lorde Templeton suspirou.

            — Esta noite ou amanhã, creio que tanto faz. — Afinal, eu sempre acho impossível me recusar a atender um pedido seu. — Estou certo de que acabarei indo ao Sião.

            Sir James ficou radiante.

            — Era exatamente o que eu esperava ouvir de você. — Obrigado!

            — Obrigado, Ivan, por consentir em nos ajudar como sempre tem feito. — Estou muito satisfeito! — Muitíssimo satisfeito!

            — Será um prazer atendê-lo, desde, é claro, queeu vá sozinho.

            Sir James não tentou deter o amigo quando este se dirigiu à porta.

            — Falaremos sobre isso amanhã. — Até lá, não se esqueça de consultar os relatórios feitos pelo último homem que visitou o Sião e o Khmer.

            — Não será preciso — lorde Templeton respondeu. — Eu já estive no Sião e conheço os costumes daquele povo. — Pretendo voltar para lá sem me deixar influenciar pelo que as pessoas dizem.

            — Você é quem sabe — sir James replicou. — Retiro meu oferecimento de lhe mostrar o relatório. — O importante é que está disposto a atender meu pedido e do primeiro-ministro.

            Lorde Templeton pareceu refletir.

            — Se eu realmente me decidir a viajar ao Sião, pois ainda paira uma dúvida sobre essa questão, irei; em meu próprio iate. — Não seria prudente me enviarem em outro meio de transporte que os faça pensar que se trata de uma missão especial.

            Sir James fez um sinal afirmativo com a cabeça.

            — Também seria um erro se os franceses desconfiassem de minhas intenções — lorde Templeton prosseguiu. — Eu fingirei que estou de férias e resolvi ir ao Oriente para rever os lugares que conheço e os amigos que deixei.

            — Você está certo, Ivan. — Eu havia me esquecido de que é   dono de um iate. — Afinal, são poucas as pessoas que têm esse privilégio. — Trata-se de uma diversão muito cara, você sabe.

            — É cara, mas eu prezo minha privacidade. — Já imaginou o que seria ter de viajar por um longo tempo e ser obrigado a ouvir conversas que não lhe interessam, de pessoas com quem não simpatiza?

            Lorde Templeton se deteve, subitamente, ao notar o brilho divertido nos olhos de sir James.

            — Você não desiste, hem? — Sei o que está pensando! — Está ansioso por me dizer que eu deveria aproveitar a tranqüilidade das noites no mar para conhecer minha esposa.

            Sir James pôs-se a rir.

            Lorde Templeton fez um gesto com as mãos e abriu a porta.

            — Até logo. — Nos veremos à noite. — Ao menos será diferente das outras.

            Antes que sir James pudesse responder, o amigo já havia fechado a porta atrás de si.

            Ele deu alguns passos pela sala e voltou para sua escrivaninha. Estava pensando que a batalha seria dura, mas que tivera a sorte de vislumbrar uma pequena chance de vitória.

           

            Sir James Redwell preferia a vida no campo à vida na cidade, mas sabia que o secretário não podia prescindir de sua colaboração.

            “Os secretários de Estado vêm e vão cada vez que muda o primeiro-ministro, mas eu permaneço sempre em meu cargo”, era o que ele freqüentemente pensava.

            Com razão.

            Por ser um homem experiente e educado todos gostavam de trabalhar com sir James.

            Uma vez que vivia permanentemente em Londres, sir James resolveu adquirir uma casa junto ao Tamisa a apenas meia hora de distância do Ministério da Guerra.

            A casa contava com um grande jardim, onde ele mandou plantar flor dos mais variados tipos e cores. Era bonita e confortável e ele gostava de viver ali.

            Isso não impedia, contudo, que sentisse saudade de seu lar ancestral em Huntingdon.

            A mansão em estilo Tudor pertencia aos Redwell havia muitos séculos e foi nessa propriedade que ele passou os melhores anos de sua vida em companhia da esposa.

            O casamento, porém, durou somente dez anos em virtude de seu lamentável e prematuro falecimento.

            Sir James Redwell nunca mais quis se casar. Tampouco desejou ter filhos, pois sua esposa havia morrido de parto.

            Talvez fosse por essa razão que ele sentia tanta dificuldade em cuidar da sobrinha.

            A seu ver, ela estaria melhor com qualquer outro membro de sua família.

            O problema era que ninguém a queria. Jamais haviam gostado de seu pai e o fato de ela ter se tornado um pseudo-homem, embora não os surpreendesse não lhes despertava nenhum sentimento de pena.

            Eles pensavam que o atrevimento do Sr. Hadley em educar uma menina como se fosse um menino era algo que não podiam esperar de nenhuma outra pessoa.

            Mesmo quando sir James sugeria que a recebessem por um curto período de férias, eles inventavam alguma desculpa ou, então, pediam para que conversassem sobre esse assunto em outra ocasião.

            Desta forma, sir James não pôde evitar zelar pela sobrinha e se tornar seu pai, sua mãe e seu conselheiro, sem nenhum tipo de ajuda ou apoio.

            Enquanto subia a alameda em cujo final erguia-se a casa, sir James admirou suas lindas flores e pensou que seria ótimo se pudesse passar a noite sentado no jardim, lendo o jornal, algo que raramente conseguia fazer por falta absoluta de tempo.

            Ao chegar diante da porta, ele entregou as rédeas da carruagem ao cavalariço.

            — Prepare a carruagem para amanhã cedo, no horário de sempre.

            — Serei pontual, sir — o criado respondeu e tocou em seu chapéu num gesto de obediência e cortesia.

            Era um procedimento formal que ambos repetiam todos os dias.

            Assim como o cavalariço tinha certeza de que seu patrão estaria pronto, sir James sabia que a carruagem o estaria esperando, pontualmente, quer fizesse sol ou chuva.

            O mordomo que o servia havia trinta e cinco anos curvou-se à sua entrada.

            — Boa noite, sir James. — Duas pessoas o procuraram esta tarde.

            — Uma delas deixou uma mensagem, que coloquei sobre sua escrivaninha. — A outra pediu que o avisasse de que entraria em contato oportunamente em seu local de trabalho.

            — Melhor assim — sir James respondeu. Enquanto caminhava ao longo do corredor em direção ao escritório, sir James pensava que nada o aborrecia mais do que ser incomodado em sua casa, à noite, quando tudo o que queria era descansar.

            Não entendia por que as pessoas se recusarem a procurá-lo em seu gabinete, no horário normal de expediente.

            Ele entrou no escritório, viu os dois bilhetes sobre a escrivaninha e empurrou-os para o lado.

            Não conseguia pensar em mais nada a não ser em sua sobrinha.

            Adivinhando que ela se encontrava na biblioteca que era seu recanto favorito, para lá se encaminhou.

            A biblioteca de sua casa na cidade era pequena em comparação com a que contava no campo, mas continha todos seus livros favoritos.

            Ano a ano as prateleiras se tornavam tão repletas; que ele se viu obrigado a empilhar muitos dos livros no chão.

            Conforme imaginava, Lucy estava sentada em uma das poltronas, lendo um livro.

            Ele leu o título e pensou que seu tema era forte demais para uma mulher, e que o recomendaria apenas aos amigos do sexo masculino.

            Ao sentir sua presença, Lucy ergueu os olhos e, em seguida, se levantou.

            — Não esperava vê-lo tão cedo, tio James. — Os jornais de hoje incluíam tantos artigos sobre política que pensei que o primeiro-ministro fosse prendê-lo até mais tarde.

            — Tive a sorte de não ser chamado — sir James respondeu. — Mas vi alguém que necessita de sua ajuda e que poderá lhe interessar.

            Lucy olhou para o tio com curiosidade. Qualquer pessoa que a visse, e que não a conhecesse, julgaria tratar-se de um rapaz.

            Sir James estava pensando o mesmo ao se sentar no sofá.

            — Sente-se ao meu lado e ouça-me com atenção, pois a sugestão que lhe farei é algo que, provavelmente, nunca lhe passou pela mente.

            Lucy se apressou a obedecer.

            Estava usando um conjunto escuro de sua escolha e que a tornava muito masculina na aparência. Sob o casaco vestia uma blusa branca que poderia ser confundida com uma camisa. Ao redor do colarinho havia amarrado uma fita escura que parecia uma gravata.

            Os cabelos estavam penteados para trás. Embora fossem naturalmente ondulados quase não era possível notar, pois Lucy aplicava um óleo vegetal sobre eles e os escovava de forma a alisá-los.

            No rosto não aplicava nenhum tipo de maquilagem.

            Apesar da falta de cuidados, no entanto, seus traços eram clássicos e quase perfeitos.

            A pele era alva e acetinada e despertaria o orgulho de qualquer mulher que a possuísse.

            Lucy se recostou no sofá, ao lado do tio, e disse:

            — Conte-me. — Espero que sua sugestão encerre algum tipo de aventura. — Ando cansada dessa monotonia. — Acho que o senhor tem trabalhado demais e que não quase não tem mais tempo de ficar em casa.

            — Um descanso seria mais do que merecido.

            — Não estou pensando em mim, mas em você — sir James a corrigiu.

            — Tenho uma proposta a lhe fazer e estou certo de que ficará entusiasmada ao ouvi-la.

            — Uma proposta?

            — Sim. — Que acha de fazer uma viagem ao Sião e a Khmer?

            Lucy olhou para o tio com espanto.

            — Está falando sério?

            — Muito sério. — Como já tive a oportunidade de visitar várias vezes o Sião e conheço suas preferências, tenho certeza de que gostará de ver aquele lindo país que é banhado pelo mar além de contar com magníficos templos.

            — Parece maravilhoso. — Mas como eu iria?

            — Esse é o ponto que precisamos discutir — o tio afirmou.

            — Continua disposta a tentar o teatro?

            — Claro que sim.

            — Neste caso, poderia me ajudar a solucionar um problema difícil e ainda provar que realmente é uma boa atriz.

            — Não estou entendendo. — Conte-me tudo desde o começo — Lucy pediu.

            — O Sião está extremamente preocupado com o interesse francês no Khmer, o país vizinho. — A Inglaterra também foi alertada sobre esse grave problema. — Se os franceses invadirem o país, nosso poderio sobre aquela parte do mundo será fortemente abalado.

            — Parece fascinante! — Lucy exclamou. — Mas ainda não entendo o que eu poderia fazer a respeito.

            Sir James respirou fundo.

            — Fomos convocados a ajudar o Sião por meio de um de nossos homens mais inteligentes e espertos. — Seu nome é lorde Templeton. — Eu o conheço bem. — Ele alcançou sucesso em todas suas empreitadas no passado.

            Quando outros falhavam em suas missões, lorde Templeton era chamado a fim de resolver a situação. — Eu confio nele sei que não falhará agora, como não falhou antes.

            — Já ouvi você falar sobre ele algumas vezes, ainda não; consigo imaginar o que eu teria de fazer com relação a esse problema em particular.

            Sir James fez uma ligeira pausa antes de explicar:

            — Quero que você represente um papel muito importante nessa história para facilitar o trabalho de lorde Templeton.

            Lucy olhou para o tio e esperou que ele continuasse:

            — Tanto o rei do Sião quanto o rei de Khmer estão ansiosos por casar uma de suas mulheres com um inglês.

            — Nós temos ajudado esses países de todas as maneiras, mas eles continuam se sentindo inseguros. — Acreditam que um relacionamento mais estreito lhes seria; de maior vantagem. — O último homem que enviamos para lá teve sérias dificuldades em evitar um casamento. — Por esse motivo, por mais que supliquemos por sua volta, ele afirma que nunca mais pisará naquelas terras.

            Lucy continuava atenta, mas sir James sabia que ela ainda não tinha condições de entender aonde ele queria chegar.

            — O que espero que faça Lucy, é viajar para o Sião na companhia de lorde Templeton e representar o papel de sua esposa.

            Lucy endireitou as costas e pestanejou. Por um momento, sentiu-se incapaz de falar.

            — Eu teria de fingir que sou casada com ele? — O que você quer dizer com isso?

            — Exatamente o que disse — sir James respondeu. — Você iria ao Sião como lady Templeton e protegeria nosso homem, com sua simples presença, de ser pressionado a se casar com uma das parentas do rei do Sião ou do rei de Khmer.

            — Representar o papel de uma esposa! — Lucy tornou a exclamar incrédula. — Como poderia fazer uma coisa dessas?

            Sir James encolheu os ombros.

            — Você me disse uma porção de vezes que seu maior desejo é representar e ser uma atriz de teatro. — Eu imaginei que adoraria ter a oportunidade de realizar esse sonho. — Não seria num palco, é claro, mas num país exótico e diferente.

            — Mas a idéia de representar o papel de uma esposa nunca passou por minha cabeça — Lucy argumentou. — Embora eu aspire subir a um palco, desejo representar um papel sério, não o de uma mulher.

            Sir James sorriu.

            — Mas, minha querida, você é uma mulher. — Eu não poderia pedir que um homem fingisse ser a esposa de lorde Templeton.

            Fez-se silêncio.

            — Eu adoraria conhecer o Sião. — Por que não me deixa acompanhar esse senhor simplesmente e convida mais duas ou três pessoas para se juntar a nós? — Não acredito que os reis o forçariam a se casar com uma estranha estando ele com uma grande comitiva.

            — É aí que você se engana — Sir James disse. — Um amigo meu que acaba de retornar daquele país contou que os siameses chegaram ao cúmulo de dopá-lo com soporíferos para que concordasse em se casar. — Imagina sua situação se, ao acordar, ele descobrisse estar casado com uma mulher desconhecida, cuja única qualificação era possuir sangue azul nas veias.

            — Ao menos ela teria se casado com ele porque esse era seu desejo —

            Lucy retrucou. — Eu, ao contrário, me sentiria constrangida demais. — Não creio que seria capaz de representar esse tipo de papel, meu tio.

            Sir James mordeu o lábio.

            — Você sempre insistiu em dizer que era uma boa atriz e que foi aplaudida em todas as peças de que tomou parte. — Se isso é verdade, tenho certeza de que não encontrará dificuldade em se apresentar perante a Corte como esposa de lorde Templeton, e se portar com delicadeza quando estiverem sozinhos em seu iate.

            — Está me dizendo que Sua Senhoria concorda com sua proposta?

            — Asseguro-lhe que ele está tão relutante quanto você em aceitar essa tarefa. — Lorde Templeton não suporta a idéia de ser forçado a um casamento com uma estranha, seja ela do Sião ou de Khmer, simplesmente porque os reis desses países querem que a bandeira inglesa seja hasteada ao lado da bandeira deles.

            Lucy refletiu por alguns instantes.

            — Suponho que terei de me vestir como uma mulher sofisticada.

            — Como uma mulher socialmente importante, você quer dizer — o tio observou. — Eu confesso que ficaria muito satisfeito em vê-la usando roupas graciosas em vez desses conjuntos sóbrios que a fazem parecerem tão masculinas.

            — Eu me acostumei a usá-los. — Meu pai insistia nesse tipo de roupa

            — Lucy declarou. — Depois de tantos anos, sinto-me desconfortável quando experimento algo diferente.

            — Bem, eu estava esperando que você me ajudasse a resolver essa difícil situação. — Como tinha certeza de que adoraria conhecer o Sião e Khmer, seu nome foi o primeiro que me ocorreu. — Mas, se você acha que será impossível atender meu pedido, talvez eu deva começar a pensar em outra pessoa.

            — Onde encontraria alguém disposta a aceitar uma missão tão inusitada?

            — No teatro, sem dúvida — Sir James respondeu com um sorriso.

            — Afinal, existem muitas atrizes no mundo. — Tenho certeza de que encontrarei uma que aceitará, com prazer, a oportunidade de fazer uma viagem e ainda receber muito dinheiro em troca de seu favor.

            Lucy atravessou a biblioteca e se deteve diante da janela.

            Sir James sabia que ela estava se debatendo entre o desejo de viajar e conhecer um mundo novo do qual só ouvira falar e lera nos livros, e o inconveniente de ter de fingir que era casada.

            Era difícil não pensar que dezenas de mulheres adorariam ser escolhidas para essa missão, pois além da oportunidade de visitar o Sião, estariam acompanhando um homem atraente e atencioso.

            Como Lucy era diferente das outras jovens e lorde Templeton era um homem bonito, sir James resolveu antecipar o problema antes que ele pudesse atrapalhar a sobrinha em sua tomada de decisão:

            — É bom você saber que lorde Templeton não pretende se casar com ninguém até que fique bem mais velho e precise de um filho a quem deixar seu título e sua fortuna quando morrer. — Se o que a preocupa é a possibilidade de ele tentar namorá-la, eu garanto que não correrá nenhum risco. — Ele é um homem extremamente inteligente e muito interessante. —

            Sir James continuou: — Para ser franco, ele é um dos homens mais notáveis que conheço. — Nunca falhou em nenhuma missão que lhe foi confiada.

            — Eu o admiro e respeito.

            Fez-se um longo silêncio.

            Sir James se calou para que a sobrinha tivesse chance de refletir em suas palavras.

            — Você tem certeza de que lorde Templeton não se interessará por mim como mulher?

            — Seria algo muito improvável — respondeu o tio. — Você deve admitir que não seja muito atraente. — Se lorde Templeton quisesse alguém para cortejar, haveria uma fila de mulheres prontas para caírem em seus braços.

            Quando percebeu que Lucy estava quase aceitando sua proposta, sir James acrescentou:

            — Eu já conversei seriamente com lorde Templeton. — Ele está tão avesso à idéia de levá-la consigo quanto você de não acompanhá-lo.

            — Você acha que é realmente importante que ele leve alguém em sua viagem, fingindo ser sua esposa? — Lucy indagou com hesitação.

            — Eu lhe dou minha palavra de honra de que ele não pode correr o risco de ofender os reis nem de se casar contra sua vontade.

            — Suponhamos que esse seu amigo não me aprove — Lucy murmurou.

            — Depois de tudo que você me contou sobre suas atuações no teatro.

            — E do modo com que implorou para que eu não a obrigasse a desperdiçar seu talento, não posso acreditar que tenha dúvidas quanto ao seu sucesso nesse novo papel. — Do jeito com que se zangou comigo quando me recusei a permitir que subisse aos palcos, pensei que representar fosse algo natural em você.

            De repente, quando sir James menos esperava, Lucy pôs-se a rir.

            — Oh, tio James, você diz as coisas de um modo muito engraçado, mas eu o compreendo. — Está insinuando que eu deveria me sentir grata por sua oferta de um papel no que seria o palco do nosso governo.

            — Um grande palco, você tem de admitir — sir James concordou.

            — Se você não conseguir convencer os orientais de que é a charmosa e encantadora lady Templeton, por mais que tente me convencer de seu talento, no futuro, eu não acreditarei que seja capaz de representar nem sequer uma peça de Natal de crianças.

            Lucy tornou a rir.

            — Oh, tio James, você é realmente engraçado, mas espero que concorde comigo de que foi um choque ouvir sua proposta, e que será muito difícil para mim; mudar de comportamento. — Lembre-se de que tenho fingido ser homem quase que desde que nasci.

            — Eu acho que dará uma linda e bem-comportada lady Templeton —

            sir James afirmou com convicção. — É claro que, em primeiro lugar, terá de comprar algumas roupas decentes que combinem com sua posição de representante da Grã-Bretanha. — E os siameses imaginam que todas as inglesas são loiras e muito bonitas e que seus olhos são azuis.

            — Não posso dizer que sou bonita, mas, ao menos, sou loira e tenho olhos azuis. — Tentarei ser uma esposa elegante e graciosa, apesar de tudo não passar de uma grande mentira.

            — Ninguém, absolutamente ninguém, eu insisto, pode saber que você não é casada com lorde Templeton. — Sei que não é como a maioria das mulheres, embora eu possa estar errado, que não vive sem fofocar com as amigas.

            — Você não está errado — Lucy afirmou bem-humorada. — Não tenho o hábito de fofocar com as amigas. — Mesmo que quisesse trocar confidencias, aliás, não poderia. — Esqueceu-se de que não tenho nenhuma amiga?

            — Para ser sincero, eu não tenho a menor idéia sobre você ter ou não ter amigas. — Nunca convida ninguém para vir a esta casa. — Se as encontra, só pode ser em meu horário de trabalho.

            — Eu tenho amigos, meu tio, mas do sexo masculino apenas, e eles me tratam como se eu fosse um deles.

            — Neste caso, eles não podem saber sobre sua viagem. — Confio que não trairá minha confiança. — O plano do Secretário de Estado para Assuntos Estrangeiros seria completamente arruinado.

            — O plano dele ou o seu, tio James? — Sabe tão bem quanto eu que o Secretário sempre deixa todos os problemas difíceis em suas mãos. — Em outras palavras, ele não se encarrega do trabalho sujo.

            — Como sabe? — Eu nunca disse nada a ninguém!

            — Sei disso por instinto. — Cada vez que você chega a casa como se estivesse carregando um peso imenso sobre os ombros, percebo que lhe foi delegada a responsabilidade de resolver o problema e assumir a culpa caso a missão fracasse.

            — Seu problema, Lucy, é ser inteligente demais. — Nada é mais perigoso do que uma mulher com cérebro.

            Lucy sorriu.

            — Agora eu faço parte de seu trabalho. — Não poderei falhar em meu papel, apesar de que todo o crédito da missão será dado ao Secretário de Estado e não a você.

            — Você sabe demais, fala demais e pensa demais — o tio respondeu.

            — Tudo o que posso lhe dizer Lucy, é muito obrigado. — Só você poderia me ajudar a resolver esse problema. — Direi á lorde Templeton que ele terá uma esposa para acompanhá-lo ao Sião.

            — A possibilidade de conhecer esse país longínquo é   a única vantagem que vejo em toda a história — Lucy disse. — Eu sonhava com essa viagem. — Por coincidência, li um livro sobre o Sião há poucos dias, e fiquei muito interessada em visitá-lo.

            — Não se esqueça de que terá de visitar o Khmer também. — E que terá de pensar muito antes de falar. — Quanto às palavras que eles disserem, guarde-as bem na memória para depois reportá-las a mim.

            — Uma tarefa difícil a que está me dando, mas eu lhe prometo que farei o melhor que puder — Lucy respondeu. — Espero que lorde Templeton fique grato a você por lhe proporcionar uma esposa, mesmo que ela tenha aceitado o encargo com relutância.

            — Eu já lhe contei a razão por ele ter tanta repulsa ao casamento? — A verdade é que lorde Templeton sofreu uma grande decepção amorosa quando era mais jovem, e essa experiência o tornou muito amargo com relação às mulheres. — Tenho quase certeza de que ele nunca foi visto com uma jovem. — Penso que pedirá segredo sobre sua existência e que a levará em seu iate sem que ninguém a veja a fim de manter a imprensa em completa e total ignorância.

            — Entendo o que você está querendo dizer. — Teremos de tomar muito cuidado para que as pessoas não descubram que nosso casamento é de mentira, caso contrário lorde Templeton se sentirá obrigado a reparar o erro, e nós dois detestaríamos que isso acontecesse.

            — Um casamento de verdade está fora de cogitação — sir James declarou. — Lorde Templeton é um homem de grande valor para nosso governo. — Ele nos prestou serviços inestimáveis no passado e eu espero e rezo para que continue do nosso lado no futuro. — Lembre-se, Lucy, de que não se trata de uma viagem de lazer. — É extremamente importante que os franceses sejam investigados antes que a situação fique ainda mais complicada. — Estou lhe contando isso para que saiba o quanto confio em você e porque não quero enganá-la quanto ao perigo que o Khmer está correndo.

            — Espero encontrar livros sobre ambos os países na biblioteca — Lucy disse. — Preciso saber tudo o que está se passando antes de partir. — A propósito, tio James, para quando está marcada a viagem?

            — Como lorde Templeton estará se ausentando da Inglaterra contra sua vontade por causa de seus cavalos, acho que a viagem será marcada para breve. — Ele inscreveu um de seus cavalos para a corrida de Ascot e acredita que tem boas chances de sair vencedor. — Mas, se conseguirá voltar a tempo, ninguém pode saber. — Tudo irá depender do que estiver acontecendo em Khmer.

            A essa altura da explicação, sir James notou que a sobrinha o fitava com ar de perplexidade.

            — Estou muito grato a você, Lucy, por me prestar esse grande favor.

            — Prometo-lhe que farei tudo que estiver ao meu alcance para ajudá-la e á lorde Templeton. — Espero que o considere, assim como eu, um homem culto e gentil, e que não se importe por ele ser mais velho do que você.

            — Todos que o conhecem apreciam sua companhia.

            — Estou ansiosa por conhecê-lo — Lucy respondeu. — Meu único receio é falhar em meu papel de esposa e ter de voltar para casa derrotada.

            Sir James sorriu.

            — Acho muito improvável. — De qualquer forma, aconselho-a a usar seu cérebro e entender que lorde Templeton a encara apenas como uma arma de defesa. — Quando estiverem sozinhos no iate aprenderão a se conhecerem melhor. — Espero que não se sintam constrangidos pelo fato de serem homem e mulher.

            Sir James não estava se sentindo à vontade para falar sobre as dificuldades que poderiam surgir entre a sobrinha e o amigo. Mas Lucy entendeu perfeitamente o que ele estava querendo dizer.

            — Eu já reparei, por diversas vezes, que você nunca me esconde a verdade, doa ela o quanto doer, tio James.

            — Eu faço questão de ser franco. — Uma ligeira pausa e sir James prosseguiu: — Deverá começar a se preparar para a viagem amanhã cedo.

            — Compre tudo o que for necessário e não se preocupe com as despesas do enxoval. — Qualquer que seja o custo valerá á pena, se conseguirmos salvar o Sião.

            — Será um desperdício de dinheiro e eu lamento, pois não tornarei a usar as roupas quando voltar. — Mas, como você me incumbiu de representar o papel de uma mulher, certamente terei de me vestir de acordo.

            — Se quer saber minha opinião, acho que você ficará surpresa consigo mesma a se ver vestida de uma forma decente.

            — Quer dizer que o jeito com que sempre me vesti lhe parece indecente?

            — Acho que se veste de maneira errada e que suas roupas são escuras e sem graça.

            — Nunca me disse isso antes! — Lucy protestou.

            — Adiantaria? — Sir James questionou. — Para ser sincero, eu detesto vê-la com roupas que a fazem parecer um homem. — Se sua mãe fosse viva, tenho certeza de que não aprovaria seu modo de se vestir e também de se pentear. — Ela era uma mulher bonita e vaidosa e todos elogiavam seus cabelos loiros e cacheados.

            — Eu, ao contrário, recorro a vários truques para alisá-los, embora eles se recusem a me obedecer, especialmente nas pontas.

            — Bem, finalmente eles terão a chance de ficarem soltos e naturais.

            — E não os corte durante a viagem para que possam segurar a tiara que pretendo lhe emprestar.

            — Oh, não! — Precisarei usar uma tiara? — As mulheres que as exibem ficam ridículas. — Lembro-me de ter ouvido uma se queixar, após a abertura do Parlamento, de que a tiara estava tão apertada que lhe provocou uma dor de cabeça.

            — Você terá de impressionar os homens e mulheres do Oriente.

            — Eles não podem duvidar de que você é realmente a esposa de lorde Templeton. — Asseguro-lhe que ficarão admirados com a beleza da tiara que era de sua mãe e se encontra guardados em meu cofre desde que ela morreu.

            — Se eu resolvi sair na chuva, acho que terei de me molhar — Lucy brincou. — Se concordei em fazer o papel de uma mulher, não posso me recusar a usar jóias. — Você está certo, meu tio.

            — Eu tenho cogitado com freqüência, que não é natural essa sua falta de interesse pelas jóias que sua mãe lhe deixou. — Elas são maravilhosas.

            — Seu pai, que era muito rico, gostava de comprá-las para a esposa e ficava satisfeito quando as pessoas demonstravam sua admiração.

            Enquanto falava sobre o pai de Lucy, sir James notou uma mudança na expressão da sobrinha.

            Ele havia ouvido vários comentários, no passado, sobre o fato do cunhado não tratar bem a filha, pois ficara decepcionado por ela não ter nascido do sexo masculino. Sua única admiração pelo Sr. Hadley foi ao sentido de ele ter deixado uma fortuna para a filha quando morreu. Como sir James não costumava falar sobre sua família com os amigos, ninguém sabia da verdadeira situação financeira de sua sobrinha. Dessa forma, e também pelo hábito que formara de se vestir e de se portar como homem, não acreditava que ela viesse a se tornar vítima, um dia, de um caçador de fortunas.

            “Só Deus sabe como esta história complicada terminará”, ele pensou.

            “Mas de uma coisa eu tenho certeza. Ninguém deverá nem sequer desconfiar do que está acontecendo.

            No andar de cima, em sem quarto, Lucy se olhava ao espelho.

            Lentamente, como se temesse o resultado, penteou os cabelos sobre as orelhas em vez de puxá-los para trás, como sempre fazia. Sentiu-se estranha.

            Nunca se examinava ao espelho a não ser para verificar se os cabelos estavam arrumados e empastados de óleo. Não se lembrava de ter usado um vestido algum dia.

            Estava cogitando se ficaria atraente como mulher, e se os homens a admirariam.

            Até o momento, por ser inteligente e espirituosa capaz de conversar com os homens sobre os assuntos mais difíceis, recebera muitos elogios, mas nenhum sobre sua beleza.

            Ninguém, jamais, tentara beijá-la.

            E se lorde Templeton fosse diferente?

            O pensamento lhe provocou um arrepio de horror, mas ela logo se acalmou. Maridos e esposas não se beijavam em público. Não precisava se preocupar.

            Seu tio não lhe garantira, afinal, que lorde Templeton estava tão relutante quanto ela em aceitar essa sugestão extraordinária no sentido de enganarem os reis?

            “Por mais difícil que seja meu papel, preciso representá-lo com perfeição. Acho que valerá a pena. De outra forma, talvez nunca consiga visitar o Sião.”

            Inesperadamente, Lucy sorriu para sua imagem. Um instante depois, porém, fez uma careta.

            “Sou um homem e não pretendo mudar. Terminada a missão, voltarei a ser como sempre fui.”

           

            Na manhã seguinte, Lucy despertou ansiosa pelos acontecimentos que o dia lhe reservava. Sua mente estava cheia de dúvidas e ela tinha muitas perguntas a fazer ao tio.

            Não quisera importuná-lo na noite anterior, pois ele estava muito cansado, e   ela não achava justo perturbá-lo quando tinha tanto o que planejar.

            Encontrou o tio à mesa, lendo o jornal.

            — Bom dia, Lucy — ele a cumprimentou. — Dormiu bem?

            — Não muito. — Como também deve ter acontecido com você, fiquei pensando nessa aventura extraordinária que me espera.

            Sir James sorriu.

            — Sente-se e eu lhe contarei meus planos.

            Lucy serviu-se de uma variedade de peixes e ovos e sentou-se ao lado do tio com um olhar inquisitivo.

            — Eu já tenho tudo esquematizado em minha mente ele declarou.

            — Espero que concorde comigo de que essa é a única maneira de agirmos.

            — Estou ouvindo.

            — Bem, em primeiro lugar — o tio continuou — você precisa comprar roupas e se vestir como uma mulher, não como um homem.

            Lucy não respondeu. O assunto já havia sido discutido na noite anterior e ela não entendia a razão de ele estar repetindo-o.

            — Um amigo meu, que viajou recentemente para a América, pediu que eu cuidasse de sua casa durante sua ausência. — Como a casa fica em Mayfair será perfeita para nós.

            — Do que você está falando? — Lucy perguntou tensa.

            — Seguiremos para lá. — É de suma importância que ninguém desconfie de que você estará a bordo do iate de lorde Templeton.

            Lucy pôs-se a saborear seu desjejum enquanto ouvia o tio. Queria prestar atenção em todos os detalhes, pois estava totalmente envolvida no caso, mas era difícil não se lembrar de que precisava sair às compras.

            Ela tinha medo de que as vendedoras se recusassem a lhe vender peças e acessórios femininos se a vissem em seus trajes habituais.

            — Diremos aos criados desse meu amigo que a casa onde você mora pegou fogo.

            A informação foi tão inesperada que Lucy arregalou os olhos.

            — Eu já mandei um aviso às três melhores lojas de Bond Street sobre o que lhe aconteceu. — Disse que, embora você não tenha se ferido, o incêndio a deixou em choque. — Por esse motivo não terá condições de fazer as compras pessoalmente, como pretendia.

            Lucy quis interromper o tio, mas ele continuou:

            — Representantes das três lojas irão à casa de meu amigo esta tarde para que você escolha as roupas que lhe parecerem mais finas e apropriadas.

            — Eu pedi que não se atrasassem porque você está com uma viagem marcada para o próximo sábado, o que é a verdade.

            — Sábado! — Lucy exclamou. — Só terei dois dias para comprar tudo de que preciso!

            — Eu sei que o tempo é curto — o tio respondeu — mas mesmo que eu lhe desse; dez dias tenho certeza de que suas dificuldades seriam as mesmas em escolher as roupas certas.

            — Difícil ou não, como poderei comprar um enxoval completo, que é o que você exige, em dois dias?

            — A resposta é simples: nós temos o dinheiro e eles, a mercadoria.

            Lucy respirou fundo.

            Em sua opinião, seu tio estava cometendo um grande erro em não lhe dar mais tempo para procurar as roupas de seu agrado, e que tivessem o melhor caimento. Porém, antes que pudesse protestar, ele continuou:

            — Escrevi uma carta. — Quando a ler, concordará comigo e me cumprimentará por minha esperteza. — Eu disse que minha pobre sobrinha teve todos seus pertences destruídos pelo fogo e depende deles providenciar para que ela substitua as roupas perdidas pelo que houver de mais moderno e atraente em Londres. — Disse ainda que eles; precisam ter muito cuidado, pois a primeira etapa de sua viagem será Paris, a capital da moda. — A coleção, eu insisti, deverá incluir três vestidos de noite para que os exiba nas festas e bailes que certamente lhes serão oferecidas.

            Sir James fez uma pausa.

            — Quando as vendedoras chegarem, você as receberá no quarto.

            — No quarto? — Lucy estranhou.

            — Sim. — Sabe tão bem quanto eu que não tem nenhuma roupa feminina para recebê-los. — Eu perguntei à governanta se sua mãe, por acaso, havia deixado alguns modelos aqui, mas depois de procurar no sótão, ela encontrou apenas algumas camisolas. — As demais roupas se encontram na casa de campo.

            — Eu terei de receber as vendedoras de camisola? — Lucy perguntou, espantada.

            — Você não tem sequer um vestido com que se apresentar minha querida. — Por esse motivo, deve experimentar as camisolas o mais rápido possível. — Espero que sirvam. — Embora eu tenha conseguido suas medidas com a ajuda de uma das criadas, a fim de informar as lojas, não tive tempo para conferir as medidas das camisolas.

            — Você está me surpreendendo! — Lucy exclamou. — Está agindo depressa demais. — Pensei que fosse me dar duas semanas, no mínimo, para me preparar e também para ensaiar meu papel.

            — Sendo uma boa atriz você não precisa ensaiar com tanta antecedência — sir James retrucou. — Eu posso estar enganado, mas acredito que você ficará linda com as novas roupas. — As lojas que escolhi são de propriedade das mulheres mais elegantes do Beau Monde . — Quando vestir suas roupas ficará completamente diferente do que é hoje.

            Depois de um instante de silêncio, Lucy murmurou:

            — Não imagina o esforço que isso me custará.

            — Lembre-se de que estará ajudando a rainha e seu país.

            Lucy entendeu que não havia como se recusar. Após o desjejum, Lucy e sir James se dirigiram de carruagem, à casa de Park Street.

            Ao vê-la, Lucy sentiu algo estranho. Era como se a partir do momento em que pisasse em seu interior, não apenas seu aspecto exterior, mas também sua personalidade fosse impelida a mudar.

            Uma vontade imensa de fugir e de se esconder a dominou.

            O tio, entretanto, não lhe deu tempo para tentar.

            Quando deu por si ele a havia coberto com um penhoar e colocado uma touca em sua cabeça.

            Essa atitude a tomou de surpresa.

            — Segure meu braço — ele ordenou — e caminhe devagar. — Os criados devem pensar que continua em estado de choque, pois foi isso que eu disse a eles.

            Sir James saltou da carruagem e ajudou-a, em seguida.

            Enquanto o cocheiro se apressava a anunciar a chegada, tio e sobrinha caminhavam, lentamente.

            Por mais que estranhasse esse comportamento, contudo, o cocheiro nada comentou.

            A porta foi aberta por um criado de idade avançada.

            — Recebi sua mensagem, sir, e mandei preparar o melhor quarto da casa, no primeiro andar, para milady. — É a primeira porta à direita no topo da escada.

            — Eu agradeço em nome de minha sobrinha — respondeu sir James.

            — Ela está muito fraca e a viagem a cansou. — Poderia, por favor, lhe servir uma xícara de café com leite?

            — Imediatamente, sir — respondeu o criado e se afastou. Sir James apressou o passo a fim de examinar o quarto que não era grande, mas que estava muito bem mobiliado.

            — Dispa-se depressa! — Ordenou. — E me entregue suas roupas para que eu possa levá-las embora. — Depois; coloque a camisola de sua mãe e vá para a cama.

            Dadas as instruções, sir James saiu do quarto e permaneceu junto à porta como se estivesse esperando pele café, quando sua verdadeira intenção era se certificar de que ninguém entraria no quarto de Lucy antes que ela estivesse deitada.

            Sua atitude foi prudente, pois a governanta surgiu no corredor, tendo subido a escada dos fundos, em um minuto Sir James a deteve com um gesto de mão.

            — Muito obrigado por sua atenção em receber minha sobrinha nesta casa. — Como lhe expliquei, ontem, por meia de uma carta, Lucy sofreu um tremendo choque com o   incêndio de sua casa.

            — Que coisa horrível! — Como aconteceu? — a governanta indagou.

            — Acredita-se que tenha sido um descuido na cozinha. — Como a casa era muito velha, o fogo se espalhou rapidamente.

            — Ninguém merece que algo assim lhe aconteça — a governanta lastimou.

            — É verdade — sir James concordou. — Imagine a situação de minha sobrinha que está de viagem marcada para o próximo sábado. — Não sei como farei para conseguir roupas suficientes para substituir as que se queimaram, em período tão curto.

            — Vossa Senhoria deve estar muito ocupado.

            — Sem dúvida — sir James admitiu. — Sua bondade me será de grande valia. — O fato de Lucy poder descansar aqui por duas noites fará com que se refaça o suficiente para embarcar no sábado.

            A governanta balançou a cabeça.

            — Espero que Vossa Senhoria esteja certo. — Um choque pode deixar uma pessoa tão fraca quanto um bebê.

            — Não gostaria que esse fosse o caso com relação à minha sobrinha.

            Ditas essas palavras, sir James bateu à porta, certo de que Lucy já estava deitada a essa altura.

            — Posso entrar querida?

            — Sim, tio James.

            Ele abriu a porta e entrou seguido pela governanta que não poderia ter se mostrado mais curiosa.

            Lucy estava usando uma camisola enfeitada de renda e uma touca que lhe fazia conjunto. Ela se lembrava de que sua mãe costumava usá-la quando não tinha tempo ou condições de arrumar os cabelos.

            A governanta se aproximou da cama e disse:

            — Pobre menina. — Imagino o que está sentindo. — Quero que saiba que todos, nesta casa, lamentam o que lhe aconteceu.

            — Obrigada — Lucy respondeu baixinho.

            Sir James teve dificuldade em não demonstrar o quanto estava surpreso com a mudança da sobrinha. Lucy parecia outra pessoa.

            Naquele instante, o mordomo chegou com o café, mas foi á governanta quem adicionou o leite e o açúcar e serviu Lucy.

            — É muito amável — Lucy agradeceu.

            Sir James pigarreou.

            — Acho melhor que a deixemos, agora, para que possa descansar até a chegada da encomenda. — Procure dormir um pouco, minha querida.

            — Eu tentarei — Lucy respondeu.

            — Ficarei com você para ajudá-la a escolher os artigos necessários para sua viagem. — Enquanto descansa, esperarei na sala.

            Lucy não esperava que o tio fosse se; dar a esse trabalho também. Na certa, ele estava preocupado que ela fosse escolher as roupas mais simples do mostruário.

            Seus olhos se encontraram e ela reconheceu que ele tinha o direito de se preocupar, pois o sucesso da missão de lorde Templeton dependia dela em grande parte.

            — Muito obrigada — respondeu, por fim.

            — Agora, feche os olhos e descanse — disse o tio. 

            A governanta foi até a janela e fechou as cortinas. O mordomo retirou a bandeja.

            — Vou lhe trazer uma garrafa com água quente para que se sinta mais confortável, milady. — Depois de um choque, as pessoas sentem muito frio.

            — Obrigada por pensar nisso — Lucy respondeu com um fio de voz, como se realmente estivesse sem forças; — É muita bondade sua.

            Assim que a governanta e o mordomo se retiraram sir James se inclinou sobre a sobrinha e disse:

            — Sua atuação está merecendo aplausos. — Até agora representou seu papel de forma magnífica.

            Lucy sorriu.

            — Agradeço o elogio. — Quando lhe falei sobre trabalhar no teatro, não pensei que a oportunidade surgisse em minha vida real.

            — O que posso dizer é que até aqui correu tudo bem — sir James declarou. — Agora vou descer e ler o jornal, que tive a lembrança de trazer, até que as vendedoras cheguem.

            O tio estava prestes a abrir a porta quando Lucy o deteve.

            — Não sei por que. — Mas tenho a sensação de que tudo isso faz parte de um plano seu para me transformar na mulher que sempre desejou que eu fosse.

            — Como sabe o que penso? — Sir James indagou. — A verdade é que eu considero os homens e mulheres comuns muito enfadonhos. — Em meu trabalho encontro pessoas de todos os tipos. — Existem as românticas, as práticas, as interessantes e muitas é tão incomum quanto você sempre quis ser.

            — Está insinuando que se trata de uma encenação de minha parte? —

            Lucy olhou firmemente para o tio.

            — Não quero responder a essa pergunta agora — sir James respondeu.

            — Esperarei até sua volta quando você terá de decidir se prefere continuar sendo um pseudo-homem ou uma mulher linda e inteligente.

            — Eu estou pronta a lhe dar essa resposta. — Quando retornar; voltarei a ser o que sou e o que sempre fui — Lucy retrucou com rebeldia.

            O tio girou a maçaneta da porta.

            — Eu acho que a resposta está nas mãos dos deuses.

            Lucy não conseguiu fechar os olhos depois que sir James saiu sem lhe dar chance para protestar. Os pensamentos ricocheteavam por sua mente.

            Estava zangada com seu tio. Ele havia sido muito esperto e conseguido o que queria: afastá-la de suas roupas masculinas.

            “Se ele pensa que conseguirá me transformar numa boneca empetecada pelo resto de minha vida está muito enganado. É uma pena que eu não possa visitar o Sião; sozinha. Não me agrada nem um pouco a idéia de passar por esposa de um inglês esnobe que, certamente, se irritará com tudo que eu fizer e disser.

            Na sala, sir James abriu o jornal, mas não conseguiu se concentrar na leitura. Seus pensamentos estavam voltados para sua sobrinha e também para as dificuldades que lorde Templeton deveria encontrar quando chegasse ao Sião.

            Por sorte, antes que as preocupações o envolvessem demais, viu-se diante da primeira das vendedoras.

            Esperou até que um dos criados carregasse todas as caixas para o quarto, e, então, subiu. Precisava tomar cuidado para que ninguém desconfiasse da verdade. Desta forma, informou á vendedora que Lucy estava muito fraca e que ele gostaria de ver as roupas a fim de ajudá-la na escolha, pois se tratava de um enxoval destinado a uma importante viagem.

            Ele se sentou numa poltrona, na saleta contígua, e pediu que os vestidos lhe fossem apresentados ou por uma manequim ou pela própria sobrinha, se ela se sentisse forte o suficiente para exibi-los.

            Ciente de que a conta seria paga por ele, a vendedora não teve alternativa senão atender ao pedido.

            — Felizmente, recebemos vários modelos de Paris há dois dias. — Eu trouxe o maior número que consegui carregar. — E posso lhe garantir que são os mais lindos da coleção.

            Alguns minutos depois, uma manequim desfilou com um vestido rosa pálido com flores de renda e fitas de cetim, que sir James considerou belíssimo.

            O design ,  não era preciso dizer, pertencia a Frederick Worth.

            Por estar sempre atualizado com relação à moda e à política de outros países, sir James sabia que Frederick Worth era o mais famoso dos costureiros e que ele vinha revolucionando o uso das armações de crinolína.

            Em suas criações, Frederick Worth colocava os enchimentos na parte posterior do vestido, não mais na frente nem nas laterais.

            Embora estranhasse um pouco, sir James achou que aqueles modelos tornavam as mulheres mais atraentes e mais delicadas.

            Era difícil dizer qual vestido era o mais bonito. Cada um parecia mais lindo do que o anterior.

            Até que a segunda vendedora chegasse, Lucy já havia visto modelos de tarde e de noite suficientes para lotar todos os armários do quarto.

            Radiante com os gastos generosos feitos por sir James a primeira vendedora se retirou com a garantia de que as roupas seriam entregues pela manhã do dia seguinte, uma vez que os ajustes seriam mínimos.

            A segunda coleção que era mais voltada para o dia do que para a noite também foi impossível de ser ignorada.

            Sir James sorriu consigo mesmo ao pensar que sua sobrinha que sempre fizera grandes esforços para não ser notada, agora atrairia todos os olhares, onde quer que esteja.

            Ele não se surpreendeu, portanto, quando a vendedora reclamou que Lucy estava recusando seus vestidos por eles serem atraentes demais.

            — Faça com que ela vista um e que venha até mim! — Sir James sugeriu.

            A vendedora apressou-se a atendê-lo. Dez minutos depois, Lucy se apresentou com um vestido que faria todos os rostos se voltarem em sua direção.

            —Eu me recuso a usá-lo— Esbravejou. —Recuso-me terminantemente!

            — Estou me sentindo uma tola dentro dele!

            — Ao contrário. — Você está muito bonita — sir James retrucou.

            — Mas ninguém a obrigará a usar aquilo que não é de seu gosto. — O

            que eu considero uma pena. — Afinal, esse vestido é da mesma cor de seus olhos. — Bastaria que o apertassem um pouco na cintura para que se tornasse uma arma útil quando Lorde Templeton tiver de apresentar uma esposa aos reis que o esperam.

            Lucy se calou.

            — Eu entendo o que você está querendo dizer, mas não creio que conseguirei usá-lo sem me sentir constrangida.

            — Duvido que isso venha a acontecer. — Lembre-se de que estará competindo com mulheres acostumadas a usar as mais elaboradas e coloridas confecções do Oriente e jóias que certamente brilharão mais do que as suas.

            — Em seu lugar, portanto, eu procuraria escolher os modelos mais espetaculares para não correr o risco de ser ignorada.

            — Eu não me importaria — Lucy replicou. — Você sabe disso. — Está se referindo ao fato de que lorde Templeton se importaria se não me engano.

            — Você está certa — sir James concordou. — Ele tem uma tarefa muito difícil a fazer. — Eu lhe peço, por favor, que o ajude de todas as maneiras que puder.

            Lucy ergueu o queixo.

            — Muito bem. — O que importa se eu parecerei uma tola desde que lorde Templeton consiga deter os franceses?

            Como Lucy falou em tom mais alto do que deveria, sir James fez um gesto para que se calasse.

            — Desculpe — Lucy apressou-se a dizer. — Eu não deveria ter mencionado o assunto. — Espero que elas não tenham ouvido.

            — Todo cuidado é pouco — sir James murmurou. — No lugar para onde você está indo a discrição pode significar a diferença entre a vida e a morte.

            — Terei cuidado, prometo — Lucy garantiu. — E usarei este vestido nem que seja apenas para lhe agradar.

            Enquanto Lucy voltava para o quarto, sir James sorriu.

            Tinha certeza de que o constrangimento de sua sobrinha acabaria dando lugar a uma sensação de vaidade e orgulho. Não acreditava que existisse uma mulher que não sentisse prazer em ser aclamada como a belle 

            de um baile.

            Quando a última das vendedoras se retirou, o guarda-roupa de Lucy estava repleto.

            Havia vestidos pendurados em todos os cabides e pilhas de roupas sobre as cadeiras e também sobre a cômoda que ficava junto à janela.

            O guarda-roupa continha de tudo: vestidos para a manhã, á tarde e a noite, artigos íntimos, meias de seda, sapatos, luvas e uma capa ricamente bordada para o caso de ela sair à noite.

            Os chapéus enfeitados com flores e penas faziam Lucy parecer ainda menos consigo mesma.

            — Acho que este chapéu é exagerado demais — Lucy comentou com o tio.

            Tratava-se de um acessório forrado em veludo cor-de-rosa entremeado com penas de pavão, para ser usado com um vestido do mesmo tecido.

            — Em minha opinião ele será simples em comparação com os trajes usados pelas mulheres do Sião. — A última vez em que estive naquele país; admirei a beleza das indumentárias e das jóias, e não creio que as mulheres tenham deixado de usá-las nos últimos anos.

            Como o tio fizesse questão, Lucy concordou em usar o chapéu de pena e meia dúzia de outros igualmente afetados.

            Finalmente a sós com o tio, após proporcionarem lucros mais do que satisfatórios às três lojas de Bond Street, Lucy se deitou na cama.

            — Estou exausta. — Se tivesse de trabalhar como manequim, tirando e vestindo roupas por horas seguidas, acho que não suportaria.

            — Bobagem! — O tio exclamou. — Acabará gostando de ser o alvo das atenções, como acontece com todas as mulheres!

            — Aposto que não acreditaria em mim se lhe dissesse que preferiria me transformar num camundongo escondido num canto a fim de observar os outros se portando como tolos.

            — Depois de vê-la com aqueles vestidos deslumbrantes e imaginando como ficará linda ao se apresentar no palco da vida que a espera do outro lado do mundo, recuso-me a lhe dizer outra coisa que não seja um elogio.

            — E repito que acabará apreciando cada minuto de seu trabalho.

            Lucy não respondeu.

            Sir James sabia que ela não concordava com seu ponto de vista, mas foi com grande alegria que a viu descer para jantar vestindo um dos modelos recém-comprados.

            Embora fosse um dos mais simples, ele era tão bem talhado que lhe caía sobre o corpo como se tivesse sido feito sob medida.

            Lucy estava completamente diferente da jovem masculinizada que ele se acostumara a ver todos os dias.

            Além de usar um vestido, que era algo inédito, Lucy estava exibindo um novo penteado.

            Ciente de que não poderia levar a sobrinha a um salão de beleza, onde os rumores se espalhariam, sir James pediu que o mordomo providenciasse para que um cabeleireiro discreto fosse trazido àquela casa.

            Como seria um erro contratar um profissional conhecido pelas mulheres de Mayfair, sir James aceitou a indicação de um cabeleireiro que morava nas proximidades.

            Segundo as ordens do tio, Lucy não aplicou óleo em seus cabelos após o banho.

            Ao natural, os fios se enrolaram em pequenos cachos loiros que refletiam o sol da manhã.

            Nunca os cabelos de Lucy lhe pareceram tão claros e brilhantes. O uso do óleo não só os escurecia como alisava os cachos tão atraentes.

            Ao ver a sobrinha tão bonita, sir James lastimou que lorde Templeton não pudesse vir conhecê-la antes que se encontrassem a bordo do iate.

            Ele o havia convidado para jantar, mas lorde Templeton decidira voltar para sua casa no campo.

            Antes disso, porém, enviara-lhe uma carta por um portador.

            Espero que entenda e me desculpe, mas não creio que seja recomendável que meu nome e o de sua sobrinha possam ser juntados. No meu parecer é essencial que nós não nos encontremos até a partida do iate.

            Espero que concorde comigo que toda a discrição é pouca.

            O mais importante é que ninguém, absolutamente ninguém, desconfie que sua sobrinha e eu; temos qualquer ligação um com o outro.

            Sir James leu duas vezes a carta e concordou com a idéia do amigo.

            Era vital para o sucesso da missão que os rumores fossem evitados.

            Ninguém deveria saber que ele iria viajar na companhia de uma mulher. Seria ainda pior se descobrissem que a mulher em questão era a sobrinha de sir James Redwell.

            Ele não mostrou a carta nem deu explicações a Lucy. Limitou-se a dizer:

            — Não há pressa. — Só precisaremos embarcar às nove horas. — Isto é, você terá de estar a bordo nesse horário. — Eu apenas subirei para me despedir.

            — Qual a razão de tanto segredo?

            — Ninguém pode saber sobre a ligação entre você e lorde Templeton.

            — Ele não quer que as pessoas comentem sobre seu envolvimento com uma nova mulher.

            — E quanto ao capitão e aos tripulantes? — Não terei de viajar trancada em minha cabine até o Sião, eu espero.

            O tio sorriu e negou com um movimento de cabeça.

            — Tenho certeza de que lorde Templeton não a forçaria a tal sacrifício.

            — Ele pensa o mesmo que você sobre o casamento. — E o segredo será benéfico a ambos. — Já pensou se nossos parentes descobrirem que você está viajando sozinha com um homem? — Aposto que ficariam à sua espera, em cada; porto, com uma certidão de casamento nas mãos.

            Lucy sentiu um arrepio lhe percorrer as costas.

            — Seria um desastre! — Oh, tio James, às vezes não entendo como pôde me colocar numa situação tão difícil. — Estou muito assustada.

            — Não há motivo para receios desde que você desempenhe bem seu papel e não cometa erros — sir James respondeu. — Quanto ao capitão e à tripulação, estou certo de que lorde Templeton sabe muito bem o que lhes dizer.

            Sir James pareceu convicto de suas palavras, mas a verdade era que ele não conseguia adivinhar qual a desculpa que lorde Templeton inventaria para a presença de Lucy no iate.

            Sua única certeza era que tanto lorde Templeton quanto sua sobrinha tinha uma profunda aversão ao casamento e que não pretendiam mudar o rumo de suas vidas depois que aquela aventura estivesse terminada.

            Para Lucy, conforme ele dissera, seria uma oportunidade para pôr em prática seu talento de atriz sobre um grande palco.

            Ele sabia também que ninguém, jamais, desconfiaria que aquela jovem elegante, vestida de acordo com os últimos ditames da moda de Paris, fosse a mesma estranha figura masculina com quem vivia e o constrangia cada vez que era obrigado a apresentá-la a um visitante.

            “Preciso rezar a Deus para que esta aventura não nos traga surpresas desagradáveis”, sir James pensou. “Agora que as engrenagens entraram em funcionamento, fico cogitando se não cometi um erro.” Ele e Lucy deixaram a casa onde haviam se hospedado, às vinte horas e trinta minutos do sábado.

            Lucy trajava um conjunto de viagem muito fino e completamente diferente do amontoado de roupas que seu tio estava levando de volta para casa.

            A carruagem que os levou ao local onde o iate de lorde Templeton estava ancorado era alugada. Como a viagem precisava ser mantida em segredo, sir James não quis que seus criados soubessem para onde sua sobrinha se dirigia.

            Sua intenção era dizer a eles, no dia seguinte, que Lucy havia se reunido com alguns amigos e que juntos iriam passar uns dias no campo.

            Lucy não disse uma única palavra enquanto seguiam pelas ruas silenciosas.

            Sir James procurou deixá-la com suas reflexões durante algum tempo, mas o desconforto da situação acabou vencendo-o.

            — Ficarei pensando em você, minha querida. — Tenho certeza de que adorará a viagem. — Bangcoc é uma cidade tão linda e exótica que ficará para sempre em sua lembrança.

            — Estou ansiosa por conhecê-la — Lucy declarou. —Espero não decepcioná-lo. — Você confia em mim e eu quero ajudá-lo.

            — Você terá sucesso, eu tenho certeza disso — sir James afirmou.

            — Quando voltar; conversaremos longamente e você me contará todos os detalhes de sua extraordinária aventura num dos países de que mais gosto no mundo. — Farei questão de saber tudo que lhe aconteceu e de ouvir uma descrição de cada pessoa que encontrar.

            — Gostaria de ser uma artista para poder desenhar ou pintar cada rosto e lhe mostrar — Lucy respondeu. — Mas você deve conhecer todas as pessoas a quem serei apresentada. — Desta forma, deveria ter sido você a desenhar seus rostos, nos últimos dias, para que eu já soubesse algo sobre elas quando desembarcar no Sião.

            — O que mais me chamou a atenção, quando estive em Bangcoc pela primeira vez, foram os templos. — Eles são de uma beleza inigualável.

            — Espero que sinta o mesmo que eu quando visitá-los.

            — Muito obrigada por tudo. — Estes dias têm sido os mais excitantes de minha vida. — Espero que os próximos continuem a ser também.

            Pelo tom de voz de Lucy, sir James percebeu que ela temia a idéia de se encontrar com lorde Templeton que já deveria estar aguardando-os em seu iate.

            Para evitar que fossem vistos por algum conhecido, sir James ordenou que o cocheiro seguisse diretamente para a Torre de Londres, sem fazer nenhuma parada. Era importante que não tomassem o rumo da Casa dos Comuns. Assim como lorde Templeton, eles também deviam se precaver contra os rumores.

            O iate estava ancorado perto da Torre em uma parte antiga do porto que não era usada, havia muito tempo, por aqueles que se orgulhavam de ser donos de embarcações maiores e mais modernas.

            A carruagem se deteve no local indicado por sir James e a enorme bagagem de Lucy foi carregada para o iate.

            Em seguida, Sir James pagou o cocheiro e lhe ofereceu uma generosa gorjeta antes de dispensá-lo.

            — Por que não pediu para que ele o aguardasse e o levasse de volta para casa? — Lucy quis saber.

            — Sempre há uma carruagem Hackney à disposição nesta parte da cidade — o tio explicou. — Não quis que o cocheiro ficasse à minha espera porque não sei a que horas exatamente lorde Templeton deseja partir. — Se a espera se prolongasse, o homem poderia ficar curioso e fazer comentários indesejáveis.

            Lucy apertou as mãos.

            — Você está me deixando assustada. — Oh, meu tio, eu gostaria tanto que pudesse ir comigo. — Seria tão divertido se pudéssemos visitar o Sião juntos em vez de eu ser obrigada a acompanhar um completo desconhecido.

            — Seria ótimo se pudessem dispensar meus serviços no momento para que fôssemos juntos nessa viagem, mas, como você sabe o problema do Sião não é o único que estamos enfrentando nos últimos tempos. — Sua Majestade exige que fiquemos atentos para que os movimentos suspeitos nos países com os quais nos relacionamos sejam identificados antes de se tornarem perigosos.

            Lucy apoiou-se no braço do tio.

            — Se quer saber o que eu acho tio James, você é mais devotado à Inglaterra do que a si mesmo.

            — É assim que deve ser — sir James confirmou.

            — Quando eu voltar; farei com que me leve a algum lugar bem diferente que nenhum de nós conhece. — O Tibete, talvez, ou o Himalaia.

            — Espero que chegue esse dia — o tio respondeu, rindo. Eles subiram a bordo e um marinheiro se apressou a informar lorde Templeton, no salão, onde ele lia o jornal. Ou tentava ler.

            A verdade era que não conseguia se concentrar na leitura, pois sua mente insistia em cogitar se a sobrinha de sir James desistiria da viagem no último instante para permanecer na Inglaterra.

            Se fosse sincero consigo mesmo admitiria que não soubesse se a idéia o agradava ou aborrecia.

            Lorde Templeton gostava de viajar sozinho e vinha se perguntando, há vários dias, se não fora precipitado em ouvir o amigo e aceitar sua sugestão.

            Seria horrível viajar pelo mar na companhia de uma jovem que certamente o cansaria.

            Ao notar que a porta do salão era aberta por um dos marinheiros, ele se levantou.

            — Os visitantes chegaram milorde.

            Sir James entrou em primeiro lugar e se dirigiu a ele com a mão estendida.

            Lorde Templeton estava apertando-a quando seus olhos pousaram sobre a mulher que o seguia.

            Surpreendeu-se com sua elegância. O toque parisiense, aliás, o deixou perplexo.

            Sem que se desse; conta do que estava fazendo, estendeu a mão e sorriu para a linda jovem com quem certamente teria o prazer de viajar.

            Longe de ser uma moça de aparência monótona, a sobrinha de Sir James chamaria a atenção de todos, por onde quer que passe.

            No momento em que ela retribuiu seu cumprimento, lorde Templeton teve a estranha sensação de estar abrindo a porta de um local secreto cujo interior lhe era completamente desconhecido.

           

            Sentaram-se no salão, enquanto sir James tomava o drinque que lhe fora servido e informava lorde Templeton sobre os últimos relatórios recebidos do Sião.

            Terminado o discurso, sir James se levantou e disse:

            — Sei que é essencial que parta o quanto antes para não serem vistos.

            — Não é minha intenção retardá-los. — Ficarei aguardando sua volta com ansiedade. — Espero que façam boa viagem e que não tragam a notícia de que os franceses tiveram sucesso em seus planos.

            — Você sabe que não medirei esforços para impedi-los de tomar o que não lhes pertence — lorde Templeton garantiu.

            Sir James tocou-o no ombro.

            — Você sempre foi bem-sucedido em suas missões passadas. — Não creio que falhará agora.

            Lorde Templeton sorriu e observou o modo carinhoso com que sir James se dirigiu à sobrinha.

            — Cuide-se, minha querida. — Espero que se divirta tanto na viagem quanto em sua visita ao Sião.

            — Não se preocupe comigo, tio James — Lucy procurou tranqüilizá-lo.

            — Eu ficarei bem.

            Enquanto falava, Lucy estendeu a mão que foi apertada pelo tio.

            Lorde Templeton estranhou que os dois não se abraçassem nem trocassem um beijo de despedida, mas não fez nenhum comentário, é claro.

            No instante seguinte, sir James desceu do iate e desapareceu na noite.

            — Vamos partir imediatamente — lorde Templeton informou.

            — Venha comigo, por favor. — Vou lhe mostrar a cabine para onde sua bagagem já foi levada.

            Ao acompanhar lorde Templeton ao longo do deque, Lucy pensou que as instalações do iate eram bonitas e modernas.

            Quando ele abriu a porta, ao final da proa, ela adivinhou que estaria entrando na suíte máster, que sempre era a maior e mais confortável.

            Virou-se imediatamente e olhou para lorde Templeton.

            — Não posso dormir aqui. — Esta é a principal cabine do iate e lhe pertence.

            Lorde Templeton sorriu.

            — Não quando o dono do iate é, supostamente, um homem casado com você.

            — Mas eu lhe afirmo que ficarei bem numa cabine menor — Lucy protestou.

            Para sua surpresa, lorde Templeton entrou na cabine e fechou a porta.

            — Ninguém pode desconfiar da verdade. — Precisamos fazer com que as pessoas acreditem que somos casados. — O capitão e os marinheiros, inclusive. — Eu disse ao capitão que estávamos planejando nos casar a muito tempo. — Infelizmente, quando nos decidimos a anunciar nosso noivado, sua avó faleceu.

            Lucy ouviu a explicação em silêncio, com os olhos muito abertos.

            — De acordo com as regras estabelecidas pela rainha, como você deve saber, o luto nos obrigaria a adiar o casamento por um período mínimo de seis meses.

            Lucy fez um movimento afirmativo com a cabeça.

            — Eu inventei essa história e contei-a ao capitão, em confidencia.

            — Dessa forma, sentindo-se merecedor de minha confiança, ele não espalhará a notícia. — Seria um erro se alguém viesse a suspeitar de que você não é quem finge ser.

            Lucy deu um pequeno suspiro.

            — Entendi. — Como sua esposa eu devo dormir na melhor cabine.

            Lucy não teve coragem de acrescentar que o que realmente temia era a necessidade de dormirem na mesma suíte.

            Virou-se com impaciência e declarou:

            — Estou certa, milorde, de que seu procedimento foi correto e ninguém suspeitará de que não somos o que fingimos ser. — Garanto-lhe que não terá motivos para se preocupar comigo. — Tomarei cuidado para não despertar a suspeita nem sequer do mais humilde de seus servos.

            — Era isso que esperava ouvir de você. — Por favor, não torne a me chamar de milorde. — Para todos os efeitos somos marido e mulher.

            Lorde Templeton fez uma pausa.

            — Espero que se sinta à vontade aqui. — Como pode observar meu valete, que trabalha comigo há anos, cuidará de seu bem-estar e já desfez as malas.

            Assim dizendo, lorde Templeton apontou para a camisola enfeitada com rendas que havia sido estendida sobre a cama.

            Lucy olhou para ela e achou que era sofisticada e muito feminina.

            Enquanto conversavam, Lucy percebeu que o iate começava a se movimentar ao longo do rio.

            Lorde Templeton se dirigiu à vigia e puxou a cortina.

            — Estamos partindo. — Em pouco tempo deixaremos o Tamisa e alcançaremos o mar. — Espero que seja uma boa marinheira e que as águas estejam calmas.

            — Eu também — Lucy respondeu. — Muito obrigada por sua atenção.

            Lorde Templeton fez um movimento com a cabeça e Se encaminhou para a porta.

            Antes que saísse, porém, Lucy o chamou em voz baixa:

            — Acho que não conseguirei me despir sozinha. — Devo chamar seu valete para me ajudar?

            Ele a fitou e sorriu.

            — Não é preciso. — Acredito que serei capaz. — Caso contrário é só você me dizer que necessito de mais prática.

            Lucy não respondeu.

            Tirou o chapéu, jogou-o sobre uma cadeira e se virou de costas para lorde Templeton que, com rapidez e perícia, desabotoou o vestido o suficiente para que ela pudesse continuar a tarefa sozinha.

            — Obrigada e boa noite. — Tenho certeza de que dormirei muito bem nesta cama ampla e confortável.

            — Se desejar alguma coisa, basta tocar a sineta e ela soará na cabine de meu valete. — Ou me chamar, o que, talvez, seja mais fácil. — Minha cabine fica ao lado da sua.

            — É muito amável, mas eu espero não incomodá-lo até amanhã de manhã — Lucy respondeu, aliviada por ele não ter intenções de dormir na mesma cabine que ela.

            — Boa noite, então. — Nos veremos ao desjejum — lorde Templeton se despediu.

            Lucy ouviu quando ele abriu a porta da cabine ao lado. Em seguida, ela se sentou na beirada da cama e suspirou profundamente de alívio. Ao contrário de suas expectativas, Lorde Templeton não parecia um esnobe.

            A verdade era que se sentia eufórica. Estava a bordo de um lindo iate a caminho de um país que sempre desejara conhecer.

            — Estou iniciando uma aventura! — Falou consigo mesma. — Preciso ter cuidado, muito cuidado para que ninguém desconfie de que não sou casada com lorde Templeton.

            Ele era um homem muito atraente. Quando seu tio o descrevera, a idéia que se formou em sua mente foi a de um homem mais velho e autoritário.

            “Ele fará tudo que tiver de fazer, por mais difícil que seja”, Lucy pensou.

            Por fim, quase cedendo ao cansaço, ela terminou de despir o vestido que tanto a desagradava. Era uma pena que não pudesse usar as roupas masculinas de costume. Achava-as muito mais cômodas.

            O mesmo se aplicava à camisola que pertencera à sua mãe.

            Mas, como era imprescindível que usasse roupas femininas, vestiu-a e se deitou.

            Antes de conciliar o sono, porém, Lucy se lembrou de seus cabelos.

            Levantou-se rapidamente e se olhou ao espelho. Precisava memorizar o estilo criado pelo cabeleireiro para poder imitá-lo nos dias que se seguiriam.

            “Como é cansativo ser mulher”, Lucy pensou e se afastou do espelho.

            “Prefiro ser homem e ter liberdade. Não sei se suportarei me tornar uma das criaturas que sempre desprezei”.

            Depois que se deitou, Lucy se repreendeu. Estava pensando de modo errado. Se pretender representar bem seu papel e provar que seu tio estava certo ao confiar nela, precisava ter cuidado com o que pensava e com o que falava.

            Lera em algum livro que o povo oriental tinha o poder de ler os pensamentos alheios.

            “Preciso me vigiar constantemente”, Lucy decidiu. “Se houver alguma falha no plano, não quero que ela seja minha.” Dormiu placidamente.

            Ao acordar, sentiu que o iate estava jogando um pouco, o que significava que haviam alcançado o mar.

            Seu primeiro impulso foi correr para o deque e assistir ao movimento das ondas contra o casco. Antes, porém, teria de tomar um banho e se vestir.

            Como esposa de lorde Templeton, certamente não deveria preparar o banho; sozinha embora nunca tivesse precisado do auxílio de um criado antes.

            Tentou se colocar no lugar de sua mãe e se lembrar de qual seria a atitude a tomar.

            Com um suspiro, tocou a sineta.

            Era isso que devia fazer todos os dias, antes de se levantar.

            Alguns minutos depois, o valete bateu à porta e entrou.

            Era um homem de meia-idade e seus cabelos começavam a embranquecer nas têmporas. Pela expressão de seu rosto, Lucy sentiu que era uma pessoa respeitadora.

            — Bom dia, milady. — Posso lhe trazer o desjejum?

            — Antes eu gostaria de tomar um banho, por favor, e de me vestir.

            — Prefiro tomar o desjejum com Sua Senhoria no salão.

            — Eu o prepararei num instante, milady. — Aceita, ao menos, uma xícara de chá? — Não conheço nenhum inglês que não deseje uma xícara de chá ao acordar.

            Lucy sorriu.

            — Tem razão. — Eu adoraria um chá se não for lhe dar muito trabalho.

            — Estarei de volta em dois minutos, milady — disse o valete.

            Assim que o homem saiu da cabine, Lucy ouviu o barulho de água corrente no pequeno banheiro.

            “Não imaginava que o iate fosse tão luxuoso”, Lucy pensou, enquanto se recostava nos travesseiros. “Lorde Templeton possui um banheiro privativo em sua cabine.”

            Ela havia notado, ao subir a bordo, que o iate contava com várias cabines, de ambos os lados do corredor.

            Sentia-se aliviada por serem os únicos passageiros naquela longa travessia. Se tivesse de representar diante de uma série de pessoas, sua dificuldade seria muito maior.

            Os criados eram pessoas simples e crédulas, mas os convidados se sentiriam curiosos a respeito do súbito casamento e fariam inúmeras perguntas.

            Quando Newman, o valete, retornou com o chá e uma fina fatia de pão com manteiga, o banho de Lucy estava quase pronto.

            — Esperarei lá fora, milady, para ajudá-la a se vestir depois do banho.

            — Fiquei surpreso quando Sua Senhoria me disse, ontem, que milady não havia trazido sua dama de companhia.

            —Ela enjoa muito nas viagens marítimas — Lucy mentiu, — Newman compreendeu.

            — Pobre senhora. — Eu já vi muitas pessoas passarem mal e fico com pena delas. — Lamento que esteja sozinha, mas lhe prometo que farei tudo o que puder para tornar sua viagem o mais agradável possível.

            — Eu lhe agradeço.

            — Será um prazer, milady — o valete respondeu.

            O banheiro era pequeno, mas muito confortável e Lucy se banhou rapidamente.

            Escolheu um vestido leve e simples, mas que havia custado caro, e chamou Newman para que ele o fechasse nas costas e também para que a ajudasse a calçar os sapatos.

            — Sua Senhoria a espera no salão — ele avisou. — Espero que goste do desjejum que o chef   lhe preparou.

            — Tenho certeza de que ele está muito saboroso.

            — O mar está um pouco agitado — Newman informou. — Espero que milady seja uma boa marinheira.

            — Não vou responder que sim nem que não — Lucy respondeu.

            — Entendo o que quer dizer. — O teste definitivo pelo qual todos passam é a Baía de Biscaia.

            — Certamente. — Se eu atravessar a baía sem sofrer nada, eu saberei que posso enfrentar qualquer situação no mar.

            Lorde Templeton a esperava no salão conforme Newman lhe dissera.

            Assim que a viu, levantou-se polidamente.

            — Estava me perguntando se passaria o dia na cabine ou se seria forte o suficiente para enfrentar as ondas.

            — Não quero perder um minuto desta excitante viagem.

            Antes que lorde Templeton pudesse responder, o comissário trouxe dois pratos com ovos e bacon . 

            Em virtude da agitação da noite anterior, Lucy não conseguira jantar muito bem. Nesse momento, portanto, ao sentir o aroma da comida, descobriu que estava com fome.

            Enquanto saboreava o prato, Lucy teve a impressão de que estava sendo observada com curiosidade por seu companheiro de viagem.

            Naquela manhã, vestido com uma roupa branca, ele estava muito elegante. Esperava não decepcioná-lo com a escolha de seus vestidos.

            De repente, Lucy teve uma idéia e se dirigiu a ele com entusiasmo.

            — Há condições de jogarmos tênis no deque durante a viagem?

            — Sabe jogar tênis? — Ele indagou surpreso.

            — Sim. — É um de meus esportes preferidos.

            — Neste caso eu a desafio imediatamente para uma partida. — Faz tempo que não jogo e estou precisando me exercitar. — O mar não está tranqüilo, mas eu creio que poderemos contar com alguns minutos, ao menos, de agradável diversão.

            — Eu aceito seu desafio com prazer. — Com estes sapatos baixos de sola de borracha que Newman me calçou, tenho certeza de que poderei correr sem perigo de cair.

            — Newman sempre sabe o que é melhor para as pessoas — lorde Templeton respondeu. — Agora, vamos jogar enquanto podemos. — O

            capitão me informou que o mar ficará cada vez mais agitado no decorrer do dia.

            Lorde Templeton se admirou da capacidade de Lucy em jogar tênis. Se fosse sincero consigo mesmo, admitiria que ela; era uma parceira difícil.

            A partida durou duas horas.

            Ao término, eles se sentaram em duas espreguiçadeiras na sombra.

            — Aceita uma bebida? — Lorde Templeton ofereceu.

            — Sim, obrigada. — Adoraria um copo de limonada para me refrescar.

            — Não prefere algo mais forte?

            Lucy negou com um movimento de cabeça. Em seguida, lorde Templeton se afastou para dar a ordem.

            — Ainda não tivemos chance de conversar — ele comentou. — Sou-lhe muito grato por estar me ajudando nesta missão que, segundo seu tio, é muito importante.

            — Ele está preocupado com a situação no Oriente — Lucy respondeu.

            — Tio James é sempre assim. — Se algo, de errado acontece em qualquer país do mundo ele se sente no dever de resolver o problema. — Ou, ao menos, impedir que os inimigos atinjam seu objetivo.

            Lorde Templeton fez um movimento afirmativo com a cabeça.

            — Você descreveu seu tio com perfeição. — Eu o conheço e sei o que quer dizer. — Acrescento, ainda, que ele alcança sucesso em nove entre dez casos.

            — Oh, sim! — Lucy exclamou. — É por isso que não podemos falhar nesta missão.

            Fez-se silêncio por alguns instantes até que lorde Templeton voltou a falar:

            — Não vou mentir para você nem para ninguém. — A vitória não será fácil. — Seu tio é muito otimista ao afirmar que eu tenho poderes para realizar milagres. — Os franceses pensam de modo diferente.

            — Eu entendo. — Há momentos que sinto dúvidas. — Pergunto-me se estamos certos em tentar interferir em outros países do mundo.

            — O problema com a Inglaterra — lorde Templeton explicou — é que ela se sente no direito de governar o mundo de acordo com suas idéias do que é certo e errado. — Por outro lado, somos forçados a admitir que a maioria dos países em que a Inglaterra se estabeleceu se tornou mais feliz e pacífica.

            — Isso é   verdade — Lucy concordou. — A Inglaterra ajuda os povos a reencontrarem a paz e se livrarem das guerras. — Após sua intervenção eles se tornam mais felizes.

            A seguir, lorde Templeton e Lucy conversaram longamente sobre os vários países que se encontravam sob a tutela inglesa.

            Lorde Templeton se sentia cada vez mais admirado. Lucy era a primeira mulher que conhecia que era capaz de manter uma conversação tão elevada. Ela sabia tudo sobre o império e sobre seus governantes.

            As mulheres que conhecia se interessavam por ele e por seu trabalho, mas nenhuma tinha conhecimento ou interesse em saber sobre assuntos outros que não fossem puramente femininos.

            Em certos momentos, ele se sentia como se estivesse conversando com sir James e não com sua sobrinha.

            Ela o surpreendia tanto, aliás, que acabou se sentindo tentado a submetê-la a alguns testes de conhecimento e lhe fez perguntas difíceis sobre variados assuntos.

            O que não imaginara era que Lucy soubesse ainda mais do que ele com referência a um ou dois temas.

            À hora do almoço, eles haviam alcançado um trecho do mar cujas ondas passaram a castigar o casco do navio.

            Não era prudente caminharem pelo deque, sob o risco de se desequilibrarem.

            Lorde Templeton sugeriu que continuassem sentados e que apoiassem os pés sobre um banco.

            — Se quiser estar com seu capitão, por favor, não se prenda por mim

            — Lucy fez questão de dizer. — Entendo que sua presença se faz necessária na ponte como segundo homem do iate.

            Lorde Templeton não se moveu.

            — Prefiro continuar ao seu lado. — Sua conversa e sua inteligência são muito mais interessantes do que o canal inglês.

            — Obrigada. — Acho que esse foi o cumprimento mais gentil que já recebi.

            — Eu fui sincero — lorde Templeton respondeu. — Quero que saiba que eu não tinha a menor idéia de que sir James era tio de uma jovem tão atraente e tão adorável.

            Lucy pensou que ele não diria aquelas palavras se a tivesse visto nos trajes masculinos que ela considerava tão mais confortáveis.

            Os elogios que lhe fizera certamente se deviam mais à sua aparência por causa do lindo vestido importado de Paris que estava usando.

            — O que eu acho mais interessante — lorde Templeton confessou, após se passar mais uma hora de conversa — é que conhecendo seu tio como conheço, e tendo comparecido a muitas festas em Londres, eu nunca a tenha encontrado nem ouvido comentários a seu respeito.

            Uma jovem tão bonita e bem vestida como Lucy certamente teria despertado o interesse do Beau Monde .  E sir James era seu amigo havia muito tempo. Por que não os apresentara antes?

            — Onde você tem se escondido? — Lorde Templeton quis saber.

            — No campo, sempre que possível — Lucy respondeu. — Você ficará surpreso, talvez, mas eu prefiro cavalgar pelos bosques e campos a passear pelas ruas elegantes de Londres. — E não gosto de dançar.

            — Então você deve ser muito diferente das mulheres de Mayfair.

            — Elas adoram circular por Rotten Row exibindo sua beleza e não faltam a nenhuma festa, principalmente as que acontecem em Malborough House.

            — Talvez você ache estranho, mas eu nunca compareci a nenhuma delas. — E não me arrependo. — Pelo que ouvi falar, não perdi nada.

            — Realmente não consigo entender a razão de seu mistério. — Você seria a presença mais linda de qualquer baile. — Por que se esconde?

            — Como acabei de dizer, considero os cavalos mais fascinantes do que os homens. — Divirto-me mais na companhia do meu tio, no campo, quando jogamos bridge do que num salão de bailes lotado.

            Lorde Templeton a encarou por um momento.

            — Está me dizendo á verdade ou brincando comigo?

            — Eu sempre digo a verdade. — Isto é, quando possível sempre digo a verdade — Lucy se corrigiu. — Se você visse os cavalos que meu tio possui em seus estábulos, entenderia meus motivos.

            — Entendo que goste de cavalos e do campo — lorde Templeton declarou — mas o bridge não é   um jogo adequado às mulheres. — Uma contradança e um rapaz atraente deveriam ser preferíveis a qualquer moça em idade de se casar.

            — Acontece que eu, como você, não pretendo me casar. — Não estou procurando, portanto, nenhum noivo.

            — Isso não está certo! — Lorde Templeton se viu dizendo impetuosamente. — Com sua beleza e com o dinheiro que herdou de seu pai, pelo que ouvi dizer. — É importante que se case e que tenha um marido que zele por seu bem-estar e lhe dê filhos.

            Lucy jogou a cabeça para trás num gesto de desafio.

            — E isso que você e que dúzias de pessoas pensam, mas eu lhe asseguro que não quero me casar com ninguém. — E tenho certeza de que continuarei apreciando mais um bom jogo de bridge do que uma pista de danças. — Enquanto tiver idade para enxergar as cartas, é claro.

            — Talvez seja esta a primeira vez em minha vida que não encontro palavras para responder! — lorde Templeton exclamou. — Eu deveria estar preparado para sua atitude, mas ainda me sinto surpreso. — Afinal, você foi muito corajosa em aceitar participar desta estranha viagem quando poderia estar se divertindo nesta época em que a temporada das festas está se iniciando.

            Lorde Templeton fez uma pequena pausa antes de prosseguir:

            — Não me diga que não costuma ir a Ascot e desfilar com um de seus mais lindos vestidos e com um elegante chapéu, causando inveja em todas as demais mulheres, e a admiração em todos os homens? — No castelo de Windsor, eu tenho certeza de que atrairia a atenção do príncipe de Gales, e que ele a tornaria seu par durante todo o baile.

            Lucy sorriu.

            — Você fala como se estivesse chocado com meu comportamento não convencional. — Mas eu lhe garanto que nenhum desses acontecimentos sociais me atrai. — Acima de tudo, não quero um marido, assim como fui informada de que você não quer uma esposa.

            — São situações diferentes — lorde Templeton retrucou. — Eu não sou totalmente avesso à idéia de me casar. — Quando estiver mais velho, precisarei ter um filho para deixar meu título e meus bens. — No momento, contudo, não tenho a menor intenção de me ver preso á uma jovem enfadonha que deixará de me despertar interesse assim que terminarmos nossa lua-de-mel.

            Ele falou com tanta convicção e desprezo que Lucy sentiu vontade de rir.

            — Entende, agora, como me sinto? — É por isso que afirmo que devemos nos divertir e aproveitar esta viagem sem pensar que somos diferentes. — Não precisa se preocupar em demonstrar interesse por mim.

            — Principalmente, eu lhe peço não se sinta na obrigação de ser galante, só porque eu sou uma mulher. — Lembre-se de que pode continuar a conversar e a jogar tênis comigo como se estivesse na companhia de um amigo.

            — Eu realmente não quero me casar. — Estou farto de ser pressionado pelos parentes e por todos que se consideram íntimos o suficiente para insistir que é   meu dever me casar. — E gerar filhos que continuem a linhagem e compartilhem dos tesouros que me chegaram às mãos após diversas gerações.

            — Entendo como se sente — Lucy murmurou. — Para conseguir o que quer, entretanto, precisa ser firme como eu tenho sido.

            — Pensando nisso, estou surpreso que você não tenha sucumbido e se tornado noiva de alguém antes de se dar conta do que estava acontecendo.

            Lucy cogitou o que lorde Templeton diria se a tivesse visto em suas roupas masculinas. Provavelmente, como seus parentes, diria que ela era um caso perdido.

            Eles haviam insistido muito, mas acabaram se convencendo de que ela não os ouviria e que nenhum homem que a visse se interessaria por ela como mulher.

            Como Lucy se calasse por um instante, lorde Templeton continuou:

            — Se você não gosta de abordar o assunto casamento, assim como eu, proponho banirmos essa palavra de nossas próximas conversas e nos divertimos como párias do mundo social.

            Lucy concordou de imediato.

            — Eu acho ótimo. — Agora não mais recearei estar aqui ao seu lado nem serei obrigada a ouvir os abelhudos lhe dizerem que precisa fazer de mim uma mulher decente.

            Enquanto Lucy falava, lorde Templeton olhou ao redor para se certificar de que ninguém os ouvia.

            — No lugar para onde nos dirigimos ninguém sabe que você não é minha esposa. — Desempenharemos nosso papel com convicção. — Mais tarde, quando voltarmos à civilização, teremos nossas vidas de volta e ninguém nos incomodará, pois nosso segredo é conhecido apenas por seu tio.

            — Era isso que eu esperava ouvir de você. — Obrigada por me tranqüilizar.

            — Eu; é quem agradeço — lorde Templeton respondeu. — Quando seu tio insistiu que eu levasse alguém comigo para o Sião e para o Khmer sob o risco de me ver pressionado a me casar com uma oriental, eu não quis ouvi-lo. — Mas ele disse a verdade e eu sou obrigado a concordar com sua opinião.

            — Muitos países querem noivas e noivos ingleses para seus súditos, pois isso os tornaria mais próximos e amigos da rainha.

            — Eu prometo que irei ajudá-lo para que isso não aconteça — Lucy declarou e estendeu a mão, como se quisesse selar o acordo aos moldes de um homem.

            Lorde Templeton apertou-a.

            — Agora que nossos planos estão definidos, e como você demonstra saber muito sobre os lugares para onde estamos viajando, gostaria que me contasse tudo o que puder. — Afinal, quanto mais soubermos sobre a história e sobre os costumes daqueles povos, mais chances; teremos de conquistar sua confiança e ajudá-los.

            — Eu acredito que eles já perceberam isso. — As pessoas sempre procuram meu tio James quando estão com problemas. — Por outro lado, quando tudo está bem, eu noto que elas o ignoram.

            — O mundo é assim mesmo — lorde Templeton observou — e nós não conseguiremos mudá-lo. — Quanto a mim, confesso que mudei de opinião.

            — Antes não queria que você me acompanhasse nesta viagem.

            — Agora agradeço sua presença e acho que me será muito útil.

            — Em que sentido? — Lucy quis saber.

            — As mulheres costumam falar mais do que os homens. — Quando você estiver entre elas terá chance de descobri mais do que eu — lorde Templeton respondeu. — Se não pudesse contar com sua ajuda, teria de procurar fazer, amizade com uma mulher, talvez até cortejá-la, para conseguir uma informação mais sigilosa.

            — O preço poderia ser mais alto ainda. — Para obter uma informação muito importante você seria forçado eventualmente a galgar os degraus de um altar.

            Lorde Templeton fez uma expressão de horror.

            — Não diga isso nem em sonhos, Lucy. — Por favor, salve-me de uma situação desastrosa como essa. — Ajude-me a obter o máximo de informações que for possível conversando com os homens que demonstrarem admiração por você e que tentarão lhe falar de amor, não de política.

            Lucy suspirou.

            — Oh, Deus! — Estou vendo que teremos muitos problemas pela frente. — Eu quero evitar os homens assim como você quer evitar o casamento. — Acho que tio James não nos preparou para todas as dificuldades que poderão surgir.

            — Em minha opinião, ambos teremos condições de realizar o trabalho que seu tio nos confiou, sem nos prejudicar nem comprometer nossa felicidade. — Acho que James é   um homem brilhante.

            — Eu também — Lucy concordou. — Minha sugestão é esquecer as dificuldades futuras e aproveitarmos o presente que o mar e suas ondas magníficas nos apresentam.

            Lucy falou com tanta ênfase que lorde Templeton a fitou com curiosidade.

            Não havia dúvida. A sobrinha de sir James era a jovem mais estranha e interessante que já conhecera e ele se sentia agraciado pela sorte por ela ter sido colocada em seu caminho.

            — Pela primeira vez desde que conversei com seu tio no Ministério da Guerra, e ele me disse que eu deveria-me sentir aliviado por tê-la como passageira em meu iate, e não outra mulher, eu concordo plenamente com ele.

            Lucy sorriu.

            — Eu estava pensando o mesmo. — Agora poderemos relaxar e desfrutar da companhia um do outro.

            — Você está certa. — Eu lhe sou grato e á seu tio que é o melhor subsecretário do Estado para Assuntos Estrangeiros que a Inglaterra já teve.

            — Brindarei a ele durante o jantar — Lucy declarou. — Esta noite aceitarei seu convite para um drinque. — Acho que meu tio merece ser brindado com champanhe e não com um copo de limonada.

            Lorde Templeton achou graça do comentário.

            Tudo o que Lucy dizia, aliás, era gracioso e interessante. Além de linda, ela era diferente de todas as mulheres que conhecia. Sentia-se à vontade ao lado dela e, principalmente, seguro.

             

            Ao   se ajoelhar diante da imagem de Buda no momento em que chegou a Bangcoc, Lucy teve a impressão de que ele vibrava por ela e que a abençoava.

            Lorde Templeton havia parado diante da estátua verde, a caminho do palácio onde o rei os esperava.

            Eles ainda estavam; admirando o monumento quando lorde Templeton sussurrou:

            — Precisamos de toda ajuda que pudermos obter. — Acho que seria um erro se passássemos pelo templo, sem no deter, como se Buda fosse alguém sem importância.

            — Ele é muito mais importante do que o rei — Lucy declarou. — Seus adeptos o seguem com fé, há gerações. — Suas preces e o amor que lhe dedicam acima de tudo o tornaram mais real e o mais poderoso do que qualquer rei.

            — Nunca ouvi alguém comentar isso antes — lorde Templeton declarou. — Tentarei me lembrar de suas palavras no futuro.

            Diante do palácio, encontraram uma comitiva de recepção composta pelo representante do departamento de Assuntos Estrangeiros e por um grande número de servidores.

            Lorde Templeton e Lucy sorriram e foram; escoltados para o interior do magnífico palácio que havia sido construído em 1782 com muros tão altos que faziam do lugar uma verdadeira fortaleza.

            Exatamente como Lucy esperava, o palácio contava com estátuas e quadros famosos dignos de longas horas de contemplação.

            Mas, como o rei os aguardava, seguiram direto para a sala do trono.

            Ele se levantou ao vê-los e caminhou em sua direção. Seus olhos estavam fixos em Lucy. Era óbvio que as notícias sobre o casamento de lorde Templeton já haviam se espalhado.

            Lucy estava usando um vestido que chamou a atenção do rei e das mulheres da corte de tão bonito. Mas era a tiara, o broche e o colar de diamantes que refletiam a luz que a tornavam ainda mais digna de admiração.

            — Sinto-me como se estivesse pisando no palco de um importante teatro — Lucy confessou á lorde Templeton, baixinho.

            — Continue assim. — Em países estrangeiros você nunca pode estar usando jóias os suficientes. — É o que mais desperta a admiração das pessoas.

            Lucy olhou para as esposas do rei e para as demais damas da corte e notou que elas também estavam cobertas de jóias.

            Lamentava não dominar o idioma daquele país. Seus conhecimentos permitiam que respondesse algumas perguntas básicas e entendesse relativamente o que as pessoas diziam ao seu redor.

            Lorde Templeton e ela foram; convidados para jantar com o rei.

            A sala de banquete era impressionante de tão grande e luxuosa. Os pratos numerosos eram muito exóticos. Lucy não tinha a menor idéia de como e com quais ingredientes eles eram preparados.

            Os conhecimentos do rei quanto ao idioma inglês eram poucos. Por sorte, ele era fluente em francês assim como lorde Templeton e Lucy.

            Após efusivos cumprimentos, o rei disse á lorde Templeton que estava deveras preocupado com a infiltração dos franceses no país vizinho.

            — Seria lamentável se a França resolvesse dominar também o Sião —

            lorde Templeton concordou. — A Inglaterra o ajudará de todas as maneiras a evitar isso.

            Enquanto procurava tranqüilizar o rei, lorde Templeton estava pensando que a situação não poderia ser mais difícil para a Inglaterra, pois a rainha não queria inimizade com a França.

            A paz entre ambos os países não era tão duradoura havia séculos.

            Lucy estava apreciando cada prato que lhe era servido.

            Como não entendia siamês e as pessoas ao seu redor não falavam inglês, ela se limitou a sorrir cada vez que se sentia observada.

            Entretanto, apesar dos problemas de comunicação, era fácil notar que todos se esforçavam para causar uma boa impressão nos visitantes e para conseguir o apoio da Inglaterra.

            Ao término do jantar, que se estenderam por um longo tempo, os hóspedes foram conduzidos à sala de recepções onde se apresentaria um grupo que cantou algumas músicas famosas e outras mais típicas.

            Algumas horas mais tarde, o rei se despediu de lorde Templeton e de Lucy com um cordial boa-noite.

            Lucy fez uma reverência e lorde Templeton inclinou a cabeça.

            Assim que o rei se recolheu, lorde Templeton e Lucy foram escoltados pelos palafreneiros à carruagem que os aguardava.

            No trajeto, quando estavam se aproximando da estátua verde de Buda, Lucy perguntou se poderiam parar novamente e entrar no interior do templo.

            — Claro que sim — lorde Templeton respondeu e transmitiu a ordem ao cocheiro.

            Ao chegarem ao templo, Lucy pensou que a imagem estava ainda mais linda à luz de uma infinidade de velas.

            Permaneceu fitando-a por um longo tempo e se sentiu inundada por uma forte vibração de amor e proteção.

            Com receio de que lorde Templeton fosse se aborrecer com sua demora, Lucy se afastou do templo e voltou para a carruagem onde ele conversava animadamente com o mais importante dos palafreneiros do rei.

            Enquanto se dirigiam ao local onde ficariam hospedados, Lucy murmurou:

            — Foi uma noite muito interessante, não acha?

            — Para ser franco, eu acho que a noite foi desgastante — Lorde Templeton retrucou.

            — Por quê?

            — Porque o rei estava determinado a me casar com uma de suas filhas para que pudesse se unir mais positivamente à Inglaterra.

            — Você já lhe disse que isso será impossível?

            — Já e ele ficou boquiaberto quando expliquei que não poderia ter outra esposa. — Sem querer desistir de seu propósito, ele sugeriu, então, no caso de você ter uma irmã, que ela se casasse com o irmão dele. — Imagine seu desapontamento quando lhe contei que você era filha única.

            Lucy balançou a cabeça.

            — Ele está realmente determinado a se unir à Inglaterra. — Tenho certeza de que a rainha Vitória o ajudará e ao Sião. — Ela é, afinal de contas, a

            “casamenteira da Europa”.

            — Essa é a questão — lorde Templeton respondeu. — Nós não estamos na Europa. — No meu entendimento, a rainha se recusará a atender qualquer pedido que venha do rei Mongkut.

            — Eu não havia pensado nisso — Lucy murmurou. — Só espero não ser afastada de sua vida de um modo violento para que a filha do rei tome meu lugar ao seu lado.

            Lorde Templeton franziu o cenho.

            — Nós dois precisamos ter muito cuidado. — Sua Majestade, a rainha Vitória, alertou-me que a visita ao Rhmer podia ser muito perigosa.

            — Por quê? — Lucy indagou.

            — Porque os franceses não querem que a Inglaterra interfira em seus planos. — Podem, portanto, tentar me eliminar.

            Lucy fez uma expressão de horror.

            — Está me dizendo que eles poderão tentar matá-lo?

            — Sim, mas de um modo muito bem-feito. — Eles precisariam ter cuidado, pois qualquer mal-entendido entre os dois países certamente resultaria numa guerra.

            Lorde Templeton respirou fundo e se deteve por um instante.

            — Sempre existem aqueles que desejam mais do que podem ter. — Os extremamente gananciosos são capazes de qualquer coisa para ganhar dinheiro.

            — Você precisa ter cuidado, muito cuidado — Lucy aconselhou.

            — Nós dois precisamos ter cuidado — lorde Templeton retrucou.

            — Aliás, eu já pedi proteção.

            — Está se referindo a um guarda-costas?

            — A dois. — Essas pessoas nos vigiarão principalmente durante a noite. — Mandei que colocassem dois soldados armados, um de cada lado da porta do nosso quarto.

            — Eu não havia pensando, nem por um momento, que nossa visita ao Sião seria perigosa — Lucy disse tensa.

            — Sempre existe perigo quando dois países não se relacionam muito bem e necessitam pedir ajuda à Inglaterra. — Mas não se preocupe. — A partir de agora estaremos protegidos. — Com exceção, é claro, do dia em que eu tiver de visitar o Khmer.

            — Não está pensando em me deixar aqui sozinha, está? — Lucy indagou.

            — Infelizmente, sim.

            — Oh, não! — Lucy protestou. — Eu me recuso a ficar aqui. — Insisto em acompanhá-lo.

            — Você ficaria mais segura. — Tanto o rei quanto suas esposas disseram palavras muito lisonjeiras sobre você.

            — Eles podem dizer o que quiserem de mim, mas eu não pretendo me separar de você sabendo que estará pisando em território inimigo. — Você se esqueceu de que o rei de Khmer também está ansioso por casá-lo com uma das mulheres de seu país?

            — Eu acho que sir James fez uma tempestade num copo d'água —

            Lorde Templeton observou. — Tenho certeza de que o povo de Khmer nos receberá tão bem quanto as pessoas do Sião. — Não creio que o perigo de uma invasão francesa seja iminente. — Pelo que sei sobre os orientais, eles costumam ser um pouco exagerados. — A ansiedade em casar alguém de seu povo com um inglês ou uma inglesa é apenas uma desculpa para se formar uma ligação mais estreita entre o rei e Sua Majestade, a Rainha.

            Lucy fez silêncio por um minuto.

            — Espero que esteja certo. — Não quero acreditar que as pessoas, que conhecemos ontem á noite e que pareciam gostar da vida estejam empenhadas em declarar uma guerra, seja contra a França ou qualquer outro país.

            — Então você também ouviu boatos a esse respeito… Já me cansei de receber relatórios detalhados sobre o assunto. — Se você quer saber, eu acho que se trata de uma farsa para impressionar os ingleses no sentido de lhes oferecer ajuda. — Acima de tudo, os siameses desejam ter a bandeira inglesa tremulando ao lado da bandeira deles, sobre o palácio.

            Lucy sentiu vontade de rir.

            — Acho que você tem razão. — De acordo com meu tio James, os orientais são muito sutis quando querem esconder uma parte da verdade.

            A carruagem se deteve diante de uma mansão destinada especialmente ao uso de visitantes importantes.

            Ao entrar, Lucy ficou admirada com o luxo e a beleza dos móveis e adornos.

            Um criado lhes ofereceu sucos de frutas e coquetéis na sala de estar.

            Lorde Templeton se serviu de dois copos e estendeu um para Lucy.

            — Eu gostaria de brindar à sua saúde com algo mais forte. — Portou-se maravilhosamente esta noite. — Seu tio ficará orgulhoso da adorável sobrinha que tem.

            O modo com que lorde Templeton a elogiou foi tão caloroso que Lucy sentiu as faces corarem.

            — Fico contente por não ter falhado em meu papel. — Acho que tudo me ajudou. — Eu tive um palco esplêndido onde atuar.

            — Foi assim que se sentiu? — Lorde Templeton perguntou. — Eu não vou mentir para você. — Fiquei muito nervoso. — Passei o dia inteiro cogitando como dizer ao rei que não há muito, realmente, o que fazer quanto ao problema com os franceses.

            Lucy o fitou com espanto e ele procurou ser mais claro:

            — Creio que devemos ser práticos e encarar a verdade. — Ou seja: é importante mantermos uma relação amigável com a França no momento.

            — Embora tenhamos saído vitoriosos no passado, não é nossa intenção travarmos novas batalhas com eles.

            Lucy hesitou antes de dizer:

            — Você tem certeza de que a França está planejando dominar o Sião?

            — Seria um milagre se isso não acontecer — lorde Templeton respondeu.

            — O rei ficaria muito aborrecido — Lucy murmurou após um breve silêncio.

            — O problema é inevitável. — E eu não estou particularmente interessado no Sião nem em Khmer.

            — Você disse isso ao meu tio e às outras pessoas do Governo?

            — Não. — Antes eu queria pensar e me decidir. — Fiz isso   depois que chegamos.

            Lucy não soube o que dizer de imediato. Após alguns instantes, continuou:

            — Sua próxima tarefa é visitar o Khmer para verificar se a situação é tão ruim quanto o rei pensa. — Se você não vir nada de errado, o que seria excelente, ao menos poderá tranqüilizá-lo. — Embora, para ser sincera, eu não acredite que será fácil convencê-lo. — O rei quernossa ajuda deuma forma ou de outra.

            — Ainda bem que tenho você para me ajudar — lordeTempleton declarou subitamente. — A moça que se sentou ao meu lado à mesa era muito atraente. — Quandocomeçou a falar, entretanto, demonstrou que tinha o cérebro do tamanho deum ovo de pomba. — Issose eu nãoestiver exagerando.

            Lucy não pôde evitar o riso.

            — Você não é muito amável. — Quemsabe não seria muito feliz se acabasse se casando comuma dessas lindas moças que parecem ter saído de um conto de fadas?

            — Se não fosse por você eu realmente acabaria sendo levado ao altar por uma delas — lorde Templeton murmurou.

            — Fico contente por estar sendo útil — Lucy respondeu. — E por ter concordado em vir a este país em seu lindo e confortável iate. — Estou adorando cada minuto desta viagem.

            — Eu nunca pensei que uma mulher pudesse enfrentarcom tanta firmeza uma tempestade no mar. — Fiquei perplexo ao vê-la de pé quando outras teriam se trancado em suas cabines e se deitado.

            — Foi uma grande e assustadora aventura. — Eu não ateria perdido por nada no mundo.

            — Bem, se um dia resolver escrever sua autobiografia não se esqueça de incluir essa passagem — lordeTempleton brincou. — De minha parte,  espero que a viagemde regresso seja mais tranqüila.

            — Enfrentamos uma batalha e a vencemos. — Quero ver como se sairá nesta.

            — Eu nunca me vanglorio de umavitória antes da hora. — Mas sinto que, com sua ajuda, voltaremos paracasa; triunfantes.

            — Você está sendo otimista e é assim que deve ser.

            — Agora, porém, preciso deixá-lo e descansar, caso contrário não terei forças para subir em todas as torres que este país oferece. — E eu imagino que o rei programou para amanhã um dia de visitação.

            — Eu prefiro admirar as torres do chão e do lado de fora — Lorde Templeton afirmou.

            — Você está sendo preguiçoso — Lucy observou em tom de acusação.

            — Preguiçoso ou não, não pretendo subir ao alto das torres. — Se você se der a esse enorme trabalho para o bem da Inglaterra, prometo que pedirei ao primeiro-ministro que lhe dê uma medalha de bravura.

            Lucy sorriu.

            — Infelizmente, eu tenho certeza de que seu pedido será recusado.

            — É improvável que alguém se impressione com meu comportamento nesta viagem, embora eu esteja adorando-a.

            — Ainda bem que você está gostando. — Mas é melhor deixarmos a conversa para amanhã. — Você certamente precisa descansar seus pés antes de subir ao topo de ao menos meia dúzia de torres.

            — De repente, eu me lembrei que amanhã iremos para o Khmer.

            — Talvez eu não precise me preocupar com torres.

            — Para você isso pode ser um alívio, mas para mim é um mal muito pior.

            — Ainda não conhecemos o lugar. — E se ele for tão bonito quanto o Sião?

            — Pelo que ouvi falar, você ficará decepcionada. — Agora não direi mais nada. — Amanhã á esta hora nós saberemos se ele é ou não bonito.

            — Espero que você ganhe.

            — Você é muito generoso! — Lucy exclamou. — Palavras lisonjeiras são sempre bem-vindas embora nem sempre verdadeiras. — Boa noite, milorde. — Durma bem e sonhe com um dia de paz.

            Enquanto Lucy se dirigia à cabine, o riso de lorde Templeton acompanhou-a. Ela sorriu consigo mesma.

            Aquela viagem estava se revelando muito mais divertida e interessante do que imaginara.

            As vantagens eram tantas que ela já havia superado o desconforto das roupas e da necessidade de pentear os cabelos de um modo mais feminino e de maquilar o rosto.

            O iate a fascinara. O mesmo acontecera com Bangcoc.

            A imagem de Buda lhe veio à mente no momento em que se deitou.

            Jamais esqueceria a estranha sensação que experimentara ao vê-lo.

            “Não é de admirar que as pessoas o venerem”, ela pensou, antes de adormecer profundamente e sonhar que ela e lorde Templeton estavam subindo uma longa escadaria que tinha uma imagem de um Buda verde no topo.

            Quando acordou, na manhã seguinte, o sol banhava seu quarto.

            Arrumou-se com rapidez e saiu para encontrar lorde Templeton que já estava sentado à mesa saboreando seu desjejum.

            — Bom dia, Lucy. — Ele se levantou ao vê-la. — Dormiu bem?

            — Sonhou comigo?

            — Você é um presunçoso! — Ela respondeu bem-humorada. — Eu sonhei com o Buda verde, o que houve de mais importante até este ponto da viagem.

            — Creio que o rei ficaria desapontado se a ouvisse — lorde Templeton observou.

            Naquele instante, os criados trouxeram o desjejum de Lucy que consistia, a seu pedido, de café, torradas e croissants . 

            Eles tentaram fazer com que ela mudasse de idéia e aceitasse os inúmeros pratos que já se encontravam prontos para serem servidos. Como Lucy agradeceu, mas se manteve firme em sua decisão, eles apenas acrescentaram um prato de frutas variadas.

            Lorde Templeton se serviu de uma e disse:

            — Não encontrará frutas melhores do que estas em nenhum outro país. — Eu descobri isso na primeira vez em que estive aqui.

            — É um bom país e as pessoas estão nos tratando muito bem. — Eu gostaria muito de ajudá-los.

            Lorde Templeton suspirou.

            — Não será fácil. — Ao contrário. — Acho que será muito difícil.

            — Quanto à visita ao Khmer, eu estive pensando que seria melhor viajarmos em meu próprio iate sem anunciar a data de chegada para podermos examinar a situação; incógnitos.

            — Você quer fazer uma visita de surpresa?

            — Exatamente! — Lorde Templeton exclamou. — Quero ver como as 65 pessoas se portam nas ruas, ao natural. — As pompas das cerimônias de recepção mascaram a realidade e acabamos de ser homenageados com uma.

            — Você fala como se não tivesse gostado. — Acho que se sentiu entediado, inclusive. — Eu, como nunca vivi um momento similar, adorei cada segundo.

            — Você gostou também dos discursos enfadonhos que nenhum de nós conseguiu entender?

            — Também — Lucy respondeu. — Os homens estavam usando umas roupas engraçadas e falavam com tanto ímpeto que eu me senti emocionada.

            — Você é diferente de todas as pessoas.

            — Por que está dizendo isso?

            Ele não respondeu de imediato; parecia estar escolhendo as palavras.

            — Os homens estavam se referindo às batalhas que havia ganhado e no quanto este país significa para eles. — Como homem, eu já ouvi esse tipo de discurso milhares de vezes em diferentes lugares. — Eu também lutei muito por meu país e vi muitos homens morrerem por ele. — Os discursos representam um desafio, a meu ver.

            — O que quer dizer com isso? — Lucy indagou.

            — Que é um desafio à luta e talvez à morte. — Espero que entenda.

            — Esse é um privilégio restrito aos homens. — Não creio que uma mulher possa entender.

            — Eu entendo — Lucy retrucou. — Como meu tio deve ter lhe contado, sempre pensei como homem, não como mulher.

            Lorde Templeton sorriu.

            — Eu sei. — Permita-me dizer, sem preconceito, que é uma mulher muito atraente, mas que não me convence como homem.

            — Por que diz isso? — Lucy perguntou, indignada.

            — Porque como homem você está fingindo ser o que não é. — Como mulher você é natural. — Não precisa representar.

            — Sinto-me insultada ao ser chamada de mulher — Lucy confessou.

            — Parei de fingir ser um homem para ajudá-lo apenas. — Assim que voltarmos; continuarei á usar minhas roupas de antes e a me portar como um homem.

            — Era o que eu temia — lorde Templeton respondeu. — Acho que está muito errada em representar aquilo que não é. — Quando se torna mulher, sinto-me fascinado ao vê-la e interessado em tudo que diz.

            — Não se sentiria do mesmo modo se eu fosse um homem?

            — Não, claro que não! — Por melhor que você represente o papel de um homem, ele não deixa de ser um papel e uma mentira.

            Lucy se levantou da mesa e se dirigiu à janela.

            — Quero me divertir e não ficar me preocupando com suas críticas sobre o que eu fiz ou disse. — Neste momento, você está estragando o que para mim estava sendo uma experiência nova e excitante.

            Lorde Templeton não respondeu.

            Passados alguns instantes, Lucy se virou e percebeu que a mesa estava vazia.

            Após dizer o que pensava, lorde Templeton havia saído da sala, obviamente distraído com seus planos para o futuro e se esquecera de sua existência.

            Aborrecida, Lucy deu de ombros e resolveu ir para o quarto se preparar para a viagem a Khmer.

            Uma hora mais tarde, estavam a bordo do Sereia .  O capitão saudou-os com entusiasmo.

            — Estava ansioso por partirmos, milorde. — Soube que a vista ao longo da costa é maravilhosa e que as ilhas são freqüentadas por peregrinos por contarem com muitas relíquias sagradas.

            — Agora teremos oportunidade de vê-las — lorde Templeton disse.

            — Nossa visita a Khmer não é oficial. — Somos apenas duas pessoas curiosas que desejam conhecer um país onde nunca estiveram.

            — Estou certo de que Vossa Senhoria ficará muito satisfeito com o que verá pela frente. — Não só eu, mas toda tripulação está ansiosa por esta viagem.

            As ilhas surgiram e Lucy concordou com o capitão. Apesar de pequenas, elas eram lindas. Queria muito explorá-las. Mas Lorde Templeton tinha pressa em chegar a Khmer e observar o lugar de longe, sem ser visto.

            A idéia era original. Ele era um homem original.

            Quanto mais o iate se aproximava da terra, maior era a expectativa de Lucy.

            Era difícil enxergar claramente onde as pequenas cidades acabavam e o campo começava.

            Khmer era muito diferente do Sião. Aparentemente não havia uma cidade tão grande quanto Bangcoc com suas altas torres e templos majestosos.

            A impressão que tinha era de que a cultura naquele país era muito pobre.

            Não entendia a razão pela qual os franceses estavam; tão interessados em conquistá-lo. Mas sabia que os países europeus queriam impor seu poder e idéias aos povos mais simples do Oriente a fim de serem admirados por sua importância.

            Lucy achava lamentável que os povos não fossem deixados em paz.

            Por que eles eram obrigados a aceitar as ordens dos europeus que vinham tentar alterar seus costumes e crenças que haviam sido herdados há gerações?

            Os europeus achavam que estariam fazendo um bem ao país dominado, dando-lhes condições para modernizarem seus estilos de vida.

            Na opinião de Lucy, havia beleza e importância nas tradições.

            O Sereia   estava se aproximando da praia.

            — Quero desembarcar — lorde Templeton disse, de repente. — Este parece ser um bom lugar. — Creio que poderemos observar melhor o movimento daquele ponto, do que daqui.

            — Concordo plenamente, milorde — afirmou o capitão e se apressou a conduzir o Sereia   para a baía a fim de ancorá-lo naquelas águas calmas e tranqüilas.

            — Está pronta para desembarcar? — Lorde Templeton perguntou a Lucy.

            — Estou. — O lugar parece fascinante e deserto. — Não precisaremos nos preocupar em encontrar pessoas que nos cansariam com suas longas explicações de como a situação do país permaneceu inalterada durante milhares de anos.

            — Acho que ficaremos completamente sozinhos na linha — lorde Templeton concordou. — Disse ao capitão para não se preocupar se demorarmos algumas horas para retornar. — É a primeira vez que visito este país e ele parece bonito do mar.

            Lucy havia vestido uma das roupas confortáveis que escolhera para usar a bordo, mas que também era muito feminina.

            Ela e lorde Templeton foram; levados á terra em um barco conduzido por dois remadores.

            Ao chegar, subiram um caminho íngreme que os levou ao topo do rochedo.

            A vista era esplêndida e eles não se moveram por alguns instantes, ocupados em admirar a grande quantidade de árvores floridas sobre um manto verde.

            Mais além, o terreno continuava a subir como se quisesse se encontrar com o céu azul.

            — É adorável! — Realmente magnífico! — Lucy exclamou, e lorde Templeton concordou com ela.

            — Não é de admirar que os franceses queiram se apossar deste país.

            Ela desejou com muita fé que o rei não esmorecesse em sua luta e não cedesse à intrusão européia.

            Em seguida, com passos rápidos, lorde Templeton e Lucy se dirigiram para uma construção que deveria ser uma capela.

            Lucy havia lido que havia muitos locais sagrados naquela parte do mundo. Algumas capelas datavam de séculos. Apesar de o mundo civilizado ter esquecido os deuses antigos com o passar dos séculos, os peregrinos daquela região continuavam a buscar o campo para rezar.

            Por ser um lugar tão bonito e diferente de todos que ela conhecera Lucy não se cansava de contemplá-lo.

            — É um país simples e primitivo que ainda não foi contaminado pela civilização. — Precisamos cuidar para que os franceses não consigam seu objetivo.

            — Será muito difícil — lorde Templeton respondeu. — Pelo que eu soube ontem à noite, eles estão determinados a prosseguir com seus planos e esperam dominar o país sem grandes objeções.

            — Você está falando sério? — Lucy se espantou. — Neste caso, precisamos avisar o rei para se preparar e lutar para manter seu país como ele é hoje. — Por favor, precisamos impedir que os franceses; arruínem este lugar, trazendo para cá o que chamam de civilização.

            — Você percebe o que está dizendo? — lorde Templeton a fitou longamente. — Está querendo impedir o avanço do progresso que é muito importante.

            — Acho que a civilização muitas vezes estraga lugares singelos como este.

            Eles haviam alcançado o sopé da mais alta das colinas e Lorde Templeton se deteve.

            — Acho melhor voltarmos.

            — Por quê? — Está com medo de se cansar? — Lucy caçoou.

            Ele olhou para cima e Lucy imitou-o, notando várias aberturas nas encostas que deveriam ser grutas ou cavernas. Talvez fossem sagradas e atraíssem peregrinos.

            — Eu gostaria de escalar ao menos um trecho da montanha para ver uma ou duas cavernas — Lucy murmurou — ou minha curiosidade não me dará paz.

            Lorde Templeton sorriu.

            — Está bem, mas como eu não estou com vontade de me cansar muito, como você disse, vamos examinar apenas a primeira caverna. — Para ser franco, também estou curioso para ver o que poderemos encontrar de maravilhoso.

            No mesmo instante, Lucy começou a subir a pequena montanha e descobriu que o caminho não era tão fácil quanto imaginava.

            “Não posso desistir ou ele rirá de mim”, Lucy pensou. Sei que vou conseguir. Afinal, já subi montanhas mais altas do que esta.

            Acelerou o passo de propósito. Então, virou-se e disse:

            — Vamos! — Estou ganhando de você! — Os exploradores não podem ser preguiçosos!

            — Acho que você é melhor exploradora do que eu. — Confesso que estou encontrando dificuldade em escalar esta montanha.

            Lucy deu uma pequena risada.

             — Estou quase chegando. — Acho que me enganei sobre você. — Se fosse mais esperto do que eu teria me vencido.

            — Esse é um desafio que não tenho a menor intenção de aceitar.

            — Meu lema é devagar e sempre.

             —  Neste caso, eu vencerei, e você se arrependerá por não ter se esforçado mais.

            Lucy continuou subindo embora as pedras estivessem se tornando cada vez mais escorregadias.

            Por fim, quando estava quase chegando à caverna, virou-se para ver se lorde Templeton conseguiria alcançá-la. Mas não conseguiu completar o movimento devido ao susto que levou.

           

            Um grande pássaro levantou vôo e parecia prestes a pousar sobre a cabeça de Lucy, quando mergulhou em direção ao mar.

            O grito de susto de Lucy fez com que lorde Templeton erguesse imediatamente os olhos, mas ao ver o motivo do grito, ele pôs-se a rir.

            — Não sabia que você tinha medo de pássaros — caçoou.

            — Foi tão inesperado! — Lucy se justificou. — Nunca vi uma ave igual.

            — Há coisas estranhas nesta parte do mundo — lorde Templeton contou. — Mas o pássaro me pareceu inofensivo.

            — Eu não fiquei com medo dele — Lucy declarou, embora soubesse, no fundo, que estava faltando com a verdade.

            Ela esperou que lorde Templeton a alcançasse para prosseguirem juntos no pequeno trecho que faltava.

            No instante em que se viraram; para a montanha, ela notou a existência de uma caverna.

            — Veja!

            — Talvez o pássaro tenha saído daí — lorde Templeton sugeriu.

            — Pode ser. — Mas ele se foi, e a caverna ficou vazia. — Gostaria de entrar e verificar. — Sempre fui fascinada por cavernas. — Talvez por causa das histórias sobre tesouros escondidos em seus interiores.

            — Você é uma sonhadora se acredita que poderá encontrar outra coisa que não ovos de pássaros ou vestígios de eras passadas num lugar como esse.

            — Seria esplêndido se fizéssemos uma descoberta, não? — Nesse caso, teríamos permissão de levar o tesouro conosco?

            — Depende se somos ou não honestos — lorde Templeton respondeu.

            Lucy deu um suspiro.

            — Eu realmente gostaria de levar para casa um souvenir   desta viagem.

            — Algo diferente, que ninguém possui.

            — Entremos na caverna. — Vejamos se existe aí um Buda esquecido ou, talvez, outro pássaro como aquele que a assustou e que pode ser objeto da adoração do povo deste lugar.

            — Eu me assustei apenas por um momento — Lucy se defendeu.

            — Fui pega de surpresa quando menos esperava.

            Lorde Templeton sorriu, ciente de que Lucy estava envergonhada por ter se comportado como uma mulher numa situação em que um homem teria demonstrado maior controle.

            A entrada da caverna era baixa e estreita. Em seu interior, contudo, foi possível caminhar normalmente.

            Havia sinais pelo chão de que a caverna havia sido usada em tempos recentes, pois havia pedaços de pano espalhados como se tivessem sido usados como camas.

            Sobre uma pedra, no centro, havia alguns pequenos objetos.

            Era possível enxergar dentro da caverna, pois a claridade se infiltrava por uma série de buracos no teto. Num canto, Lucy viu uma porção de armas muito esquisitas.

            — Eu já ouvi falar sobre esse tipo de arma, mas nunca vi uma de perto

            — lorde Templeton confessou.

            — Nem eu — Lucy informou.

            — São usadas por uma tribo que está à beira da extinção, mas que já foi muito poderosa nesta parte de Khmer.

            — Que interessante! — Lucy exclamou, apanhando uma das armas e constatando que estava carregada.

            Ela entendia um pouco de armas de fogo, pois seu pai havia lhe ensinado a atirar.

            — São bem diferentes das armas modernas, mas igualmente mortais

            — lorde Templeton explicou.

            — Por que será que seus donos não se encontram aqui?

            — Imagino que estejam procurando ou roubando comida no vilarejo mais próximo. — Não acredito que sejam trabalhadores comuns.

            Lucy pensou que seu tio e outros homens interessados em colecionar armas adorariam possuir uma como aquela.

            — Posso levar uma para a Inglaterra? — Ela perguntou incapaz de se conter. — Talvez, se eu deixasse dinheiro em troca, não seria considerado um roubo.

            — Não deixa de ser uma desculpa para quem insiste em conseguir algo — lorde Templeton ironizou.

            Mal ele havia terminado de dizer aquelas palavras, um ruído de passos ecoou pelas pedras.

            Ambos se voltaram e depararam com um homem vestido de maneira estranha. Ele não era alto, mas seu físico era corpulento e as pernas musculosas.

            Ele ficou imóvel ao surpreender duas pessoas na caverna. Em seguida, antes que Lucy pudesse antecipar o que aconteceria, ele apontou para lorde Templeton e atirou.

            Lorde Templeton tombou para trás.

            Obedecendo a um súbito impulso, Lucy ergueu a arma que ainda carregava e revidou o ataque.

            Como era excelente atiradora, acertou o homem entre os olhos.

            Assim que ele desabou e soltou a arma, outro homem surgiu na entrada da caverna.

            Lucy tornou a disparar, matando-o.

            Ela se abaixou, largou a arma descarregada e apanhou outra. Precisava estar preparada para o caso de surgirem outros homens.

            Passados alguns minutos, como ninguém mais aparecesse, ela correu para lorde Templeton e notou que havia sangue em seu rosto e no ombro.

            Foi um alívio constatar que ele estava vivo apesar de inconsciente. Por outro lado, era imprescindível levá-lo para o iate antes que outros homens da mesma tribo os surpreendessem.

            Saiu da caverna com cuidado e olhou ao redor para se certificar de que não havia mais inimigos por perto.

            Então, para seu alívio, viu quatro homens subindo a colina, sendo que um deles era o valete de lorde Templeton.

            Precisava avisá-los de alguma maneira.

            Seu olhar recaiu sobre a arma que ainda carregava em sua mão. No mesmo instante ergueu-a para o alto e puxou o gatilho.

            Os homens, embora estivessem muito distantes, olharam na direção do som.

            Lucy acenou-lhes freneticamente com seu lenço branco para que eles percebessem que estava precisando de ajuda.

            Pensou em repetir o tiro, mas isso poderia ser arriscado. Seu medo era de que outros membros da tribo corressem para a caverna para verificar o que estava acontecendo.

            Após um momento de hesitação, os homens começaram a subir a colina. Levaram pouco mais de dez minutos para chegar até ela, mas a ansiedade de Lucy fez com que esses minutos parecessem uma eternidade.

            — O que houve milady? — Newman indagou, sem fôlego.

            — Lorde Templeton foi ferido e precisamos tirá-lo daqui o mais rápido possível — Lucy explicou desesperada.

            Newman fez um gesto para os três marinheiros que haviam se detido a alguns metros de distância e seguiu Lucy rumo ao interior da caverna.

            Ao ver os dois homens estranhamente vestidos e com os rostos banhados em sangue, ele não conseguiu falar nem se mover. Mas quando viu seu patrão inconsciente, com o ombro e um lado do rosto ensangüentado, correu para ele.

            Suas mãos tocaram a fronte e o pulso de lorde Templeton.

            — O que houve aqui? — Perguntou um dos marinheiros assim que os alcançou.

            — Eu atirei nesses homens — Lucy respondeu. — Eles feriram Lorde Templeton e eu o defendi. — Precisamos levá-lo para o iate o mais rápido possível antes que outros possam nos surpreender.

            Os marinheiros, seguindo as instruções de Newman, carregaram lorde Templeton para fora da caverna e para baixo da colina.

            Newman os liderava, avisando sobre as condições do solo para que eles não corressem o risco de se desequilibrarem.

            Lucy seguiu o pequeno grupo, mas com o cuidado de olhar constantemente para trás para verificar se não estavam sendo seguidos.

            Ela ainda portava uma arma.

            Precisava ter com o que se defender no caso de os homens atirarem novamente.

            Estava muito angustiada com o estado de lorde Templeton. Receava que o disparo tivesse sido letal.

            Ciente de que Newman e os marinheiros levariam o dobro de tempo que ela até descerem a montanha e voltarem para a baía, Lucy apressou o passo.

            Queria ver o capitão e pedir que ele também ajudasse.

            — Leve-me para o iate e depois volte para recolher Sua Senhoria e os outros.

            O marinheiro obedeceu á ordem sem retrucar embora parecesse muito surpreso. O capitão estendeu a mão para ajudá-la a subir a bordo.

            — Por que voltou sozinha, milady? — Ele quis saber, preocupado.

            — O que aconteceu?

            — Sua Senhoria foi baleado — Lucy respondeu. — Precisamos encontrar um médico.

            O capitão empalideceu e olhou para a baía. Não foram necessárias maiores explicações, pois ele viu Newman e os outros carregando seu patrão lentamente pelo caminho estreito e escorregadio que ligava o alto do rochedo à praia.

            Lucy sufocou um grito ao ver um dos marinheiros escorregar. Não fosse a presteza com que os outros três homens reagiram; lorde Templeton teria sido derrubado.

            Por fim, eles chegaram ao barco e foram trazidos ao iate.

            O capitão e dois marinheiros levaram lorde Templeton, sob as ordens de Lucy, para a cabine máster.

            Enquanto isso, ela foi buscar ataduras e remédios na cabine de Newman, segundo suas instruções.

            — Milady sabe melhor do que ninguém o que Sua Senhoria necessitará.

            — Sim, é claro. — Já vou buscá-los.

            Lucy entrou na cabine do valete, que ficava próxima à sua, e achou que tudo estava muito limpo e arrumado.

            Não demorou a encontrar, em uma gaveta, a caixa de remédios e ataduras.

            Quando entrou na cabine máster, lorde Templeton estava sem a camisa e seu ombro continuava sangrando.

            Newman já havia, lavado o rosto e melhorado o aspecto de seu patrão, mas não era possível ignorar a gravidade do ferimento.

            Lucy rezou para que ele não sofresse muito e para que se restabelecesse.

            O capitão surgiu à porta.

            — Querem que eu; traga o médico que estiver mais próximo?

            Lucy se surpreendeu ao ver Newman negar com um movimento de cabeça.

            — Sei que há médicos em toda a parte, mas lorde Templeton precisa de um cirurgião, não de um médico qualquer. — Acho melhor procurarmos uma cidade e um médico inglês.

            — Tem certeza de que essa é a melhor medida? — Lucy perguntou.

            — Já acompanhei lorde Templeton em uma porção de viagens.

            — Sabemos que os médicos nativos não são muito bons em casos como este. — Eles conhecem ervas e medicamentos estranhos que conseguem curá-los, mas que não adiantarão no caso de Sua Senhoria.

            — O que faremos?

            — Acho que milady deveria escrever uma carta ao rei explicando que Sua Senhoria sofreu um pequeno acidente ao escalar uma montanha e que será melhor levá-lo para casa ou, talvez, para Gibraltar onde ele conhece um médico inglês.

            — O senhor acha que essa atitude é correta? — Não seria mais adequado se eu explicasse pessoalmente à Sua Majestade o que houve?

            — Quanto menos for dito, melhor — o valete declarou. — Conheço a fama desses homens das cavernas. — Deveria ter alertado lorde Templeton para não entrar em nenhuma, mas não pensei que eles tivessem ocupado essas que ficam junto ao mar. — Antes eles procuravam as mais escondidas, no alto das montanhas.

            Como Newman trabalhava com lorde Templeton havia muito tempo, Lucy não discutiu.

            — Acha que consegue cuidar dele sozinho; ou aceita minha ajuda?

            — Eu consigo — Newman respondeu. — Foi um milagre que ele tenha escapado com vida. — À bala não o feriu como as outras que atingiram os outros homens.

            Lucy não estava mais na cabine e não ouviu as últimas palavras. Ela havia se dirigido à cabine que antes era ocupada por lorde Templeton e se sentou à escrivaninha para escrever.

            Encontrou; canetas, tinta e papéis com o nome e endereço residencial de lorde Templeton.

            A carta seria dirigida ao rei e ela lhe agradeceria, com muito respeito, pela hospitalidade sua e de sua adorável família.

            Lucy escreveu sobre o acidente sofrido por lorde Templeton ao escalar uma montanha e sobre a necessidade, em sua opinião, de ele ser tratado por um médico inglês.

            Ela pediu desculpas por fim e pediu que o rei compreendesse suas razões para aquela súbita partida.

            Disse, ainda, que ele logo receberia notícias da parte do Secretário de Estado para Assuntos Estrangeiros e que todas as informações lhe seriam transmitidas.

            A carta foi encerrada de maneira formal como seu pai lhe ensinara quando se tratasse de um destinatário pertencente à nobreza.

            O iate estava se aproximando do Sião quando Lucy terminou de escrever.

            O capitão entregou-a a um homem que encontrou no porto e pediu que ele a levasse ao palácio.

            — Ele me jurou ser um homem de palavra — o capitão disse a Lucy.

            — Mas como eu aprendi a nunca confiar em ninguém nesta parte do mundo, dei-lhe a metade da importância que me pediu e avisei que ele receberia a outra metade do rei no momento em que a carta fosse entregue.

            — O senhor foi esperto — Lucy elogiou.

            — Estou acostumado com esses estrangeiros — o capitão respondeu.

            — Existem aqueles que são honestos, mas há outros que são indignos de confiança.

            — É verdade. — Estou preocupada com o estado de Sua Senhoria. — É

            muito importante que encontremos um médico com urgência.

            O capitão deu mostras de concordar com ela, pois em poucos instantes o iate estava se movendo com maior velocidade pelo mar.

            Assim que entregou a carta ao capitão, Lucy voltou correndo para a cabine de lorde Templeton.

            O valete havia terminado de lavá-lo e enfaixara seu ombro, mas ele continuava inconsciente.

            Ela tinha esperanças de que ele já estivesse acordado e consciente quando voltasse.

            — Tem certeza de que não podemos fazer mais nada para ajudá-lo? —

            Lucy indagou tensa.

            — Procure não se preocupar demais — Newman tentou tranqüilizá-la.

            — Sua Senhoria já sofreu outros acidentes tão terríveis quanto este e se recuperou.

            — Mas está demorando muito para ele voltar a si.

            — Eu o conheço bem. — Ele costuma ficar desacordado durante dias.

            — Não há nada que milady ou eu possamos fazer para acelerar o processo. — O ferimento estará quase curado quando ele acordar.

            Lucy franziu o cenho, mas Newman sorriu.

            — Reflita um pouco e concordará comigo. — Enquanto dorme, ele, ao menos, não sente dor. — A julgar pelo estrago que a bala causou, Sua Senhoria está bem melhor desse jeito.

            — Quanto tempo acha que ele ficará inconsciente?

            — Não sei. — Uma vez, na índia, ele se machucou escalando uma montanha e quase morreu. — Quando sarou, nunca mais tocou no assunto.

            Lucy olhou para lorde Templeton e ficou preocupada com sua palidez.

            — Tem certeza de que não podemos fazer nada por ele?

            — Só nos resta rezar e esperar que seu corpo reaja. — Já ouvi lorde Templeton dizer mais de uma dúzia de vezes que o sono e a paz são os melhores remédios.

            — Espero que esteja certo — Lucy murmurou. — O ferimento parece horrível.

            — Poderia ser pior — Newman respondeu.

            Lucy entendeu que ele estava se referindo aos tiros que mataram os dois homens que haviam entrado na caverna.

            O comissário veio avisá-la de que o chá estava pronto e perguntou se ela queria acompanhá-lo ao salão.

            Lucy saiu da cabine e notou que o iate cortava velozmente as águas.

            Rezou, então, para que chegassem rapidamente a Gibraltar.

            No dia seguinte, quando foi à cabine, Lucy percebeu que Newman havia passado a noite assistindo o patrão.

            — Vá descansar. — Eu ficarei aqui para o caso de ele acordar e precisar de alguma coisa. — A partir de agora, nós nos revezaremos à cabeceira. — O senhor não pode fazer tudo sozinho.

            — Eu estou bem, milady. — Só sinto um pouco de sono.

            — Ficarei com lorde Templeton até á hora do almoço. — Enquanto descanso o senhor assume o posto até á hora do chá. — Mais tarde pensaremos como dividir os turnos.

            Lucy pensou que Newman fosse protestar, mas ele concordou de imediato com o esquema.

            — Eu lhe ensinarei o que fazer caso ele acorde — Newman disse.

            — Em primeiro lugar, é claro, deverá me chamar por meio da sineta.

            — Prometo que farei isso assim que ele recobrar a consciência.

            — Agora, vá e descanse. — É mais do que justo dividirmos a vigília em turnos.

            Newman sorriu.

            — Preste atenção na respiração de Sua Senhoria. — Se notar algo diferente, me chame, por favor.

            — Pode ficar tranqüilo — Lucy garantiu.

            Mais tarde, enquanto estava sentada ao lado da cama, Lucy se lembrou de que uma amiga havia falado continuamente com seu pai quando este sofreu um colapso.

            Os médicos haviam dito que ele ficaria inconsciente por uma semana ou mais.

            — Mesmo sabendo que não podia me ouvir, eu lhe falei sempre que estava sozinha no quarto. — Não conseguia me conformar em vê-lo tão calado e ausente do mundo.

            — O que você fez? — Lucy quisera saber.

            — Bem, você pode não acreditar, mas meu pai me disse, quando acordou, que minha atitude foi muito inteligente.

            A amiga parecia muito confiante ao dizer:

            — Eu me sentava na beirada da cama e falava com ele. — Contava-lhe sobre os últimos acontecimentos e sobre as cartas e visitas dos amigos. — Eu fazia de conta que ele estava me ouvindo.

            — Ele não disse, quando acordou, que você perdeu seu tempo?

            — Não. — Aconteceu o oposto. — Ele me garantiu que sentiu minha presença, embora, no início, não entendesse minhas palavras.

            — Que estranho! — Lucy exclamou. — Sua presença o animou?

            — Mais tarde, os médicos me disseram que eu lhe salvei a vida.

            — Disseram também que é comum que os pacientes em coma sintam as presenças embora não consigam ver nem entender as pessoas, na maioria das vezes.

            A amiga fez uma pausa antes de continuar:

            — Papai me disse que sabia que era eu quem estava ao seu lado.

            — Que coisa extraordinária! — Lucy se surpreendeu. — Você ajudou-o a voltar a si e a não permitir que sua mente apagasse.

            — Foi o que eu pensei — a amiga admitiu. — Papai me disse que tinha certeza de que fui eu quem o manteve vivo.

            Lucy olhou para lorde Templeton e sentiu pena.

            Ele era um homem muito atraente. Deitado naquela cama estava ainda mais bonito.

            Ela não aceitara de bom grado a missão que seu tio lhe confiara e fora agressiva com lorde Templeton no início.

            Se o tio lhe tivesse pedido para cuidar de crianças ou de cavalos teria sido mais fácil. Mas representar o papel de esposa era algo muito diferente.

            Se fosse sincera consigo mesmo, Lucy admitiria que estivesse gostando de seu papel.

            Sentia-se bem na companhia de lorde Templeton e apreciava as longas e interessantes conversas que mantinha com ele.

            Abordavam os mais variados assuntos: política, história, geografia e também a importância da realeza.

            Divertira-se muito em seu iate a caminho do Sião e também na visita ao rei. Aprendera muito com lorde Templeton.

            Seu tio estava certo.

            Quando voltasse, teria de admitir a ele que aquela viagem fora a aventura mais excitante de sua vida.

            Na primeira noite de revezamento, seria Lucy a permanecer junto á lorde Templeton enquanto Newman dormia em sua cabine.

            Assim como sua amiga havia salvado a vida de seu pai, falando com ele quando estava em coma, ela estava determinada a tentar ajudar lorde Templeton.

            Contou-lhe sobre a carta que havia escrito ao rei e fez comentários sobre a consternação que a partida deveria ter causado no palácio.

            Depois, falou sobre Newman e sobre a eficiência com que ele e a tripulação o retiraram da caverna e o carregaram até o iate.

            — Agora estamos à procura de um médico inglês que possa lhe devolver a saúde. — Newman está absolutamente convencido de que você estará recuperado em poucos meses.

            Lucy se lembrou de que ele esperava que seu cavalo ganhasse a taça de ouro na corrida de Ascot. Disse, em seguida, que assim que o iate aportasse, compraria um jornal inglês e daria um jeito de descobrir se seu cavalo havia ganhado ou não.

            — Já pensou se ele saiu vitorioso? — As pessoas ficarão curiosas á seu respeito. — Aposto que farão perguntas sobre o motivo de sua ausência.

            Lorde Templeton havia lhe avisado para que não revelasse a ninguém o destino daquela viagem.

            — As pessoas poderiam ficar curiosas se soubessem que o ministério me enviou para o Sião. — Os franceses acabariam descobrindo e pensariam que a Inglaterra esta tentando interferir com seus planos.

            Lucy olhou para lorde Templeton como se ele pudesse vê-la.

            — Eu consegui tirá-lo da caverna e ninguém soube de sua presença em Khmer. — Os franceses poderiam ficar desconfiados se descobrissem que você foi ferido por aqueles homens estranhos, na caverna. — Provavelmente entenderiam mal sua presença ali.

            Lucy terminou o relato e desejou ouvir o riso de lorde Templeton ou suas observações divertidas.

            — Queria muito que você me respondesse — ela murmurou.

            A viagem estava chegando ao fim. O mais provável era que não tornasse a vê-lo. Lorde Templeton, afinal, precisaria ficar um longo tempo afastado da civilização e dos amigos.

            Por outro lado, ele poderia precisar de sua ajuda por mais tempo.

            Sem querer pensar nessas possibilidades, pois estava sentindo que elas a perturbavam, Lucy voltou a falar sobre a visita ao palácio e sobre a inveja que percebera nos olhos das mulheres por causa de suas jóias.

            Newman lhe deu uma boa notícia no dia seguinte.

            — Embora eu não seja médico e possa estar enganado, acho que Sua Senhoria está melhor hoje do que ontem.

            — Como sabe? — Lucy perguntou, quase sem fôlego.

            — Sua pulsação está mais estável e ele parece mais sereno — Newman respondeu.

            Não foram necessárias maiores explicações. Ela entendeu.

            Era compreensível que o corpo de uma pessoa que havia sido baleada ficasse com os músculos contraídos devido ao impacto.

            Depois da explicação de Newman ela examinou melhor o estado de lorde Templeton e concordou que ele parecia mais relaxado.

            Na noite seguinte, quando assumiu seu lugar ao lado dele, resolveu massagear-lhe gentilmente a testa.

            Sua amiga havia feito isso com seu pai enquanto conversava com ele.

            — “Tenho certeza de que a massagem também o ajudou — a amiga dissera. — Eu fui muito gentil. — Muitas vezes rezei por sua recuperação enquanto lhe massageava a fronte”.

            — “Ele deve ter ficado muito grato a você — Lucy murmurou.”

            — “Papai e eu sempre fomos muito chegados. — Meu irmão tinha ciúme. — Dizia que papai gostava mais de mim do que dele.”

            — “Ele estava certo?”

            — “De certa maneira. — Mas como mamãe sempre gostou mais de Anthony do que de mim, acho que ficamos quites.”

            — “Como pode dizer algo assim? — Lucy indagou perplexa.”

            — “Ela nunca fez segredo da verdade. — Meu irmão era dois anos mais velhos do que eu. — Quando o via, o rosto dela se iluminava. — Vivia dizendo que queria ter seis filhos, todos fortes e altos como Anthony.”

            — “Nunca falou que queria mais filhas, embora eu fosse á única.” Lucy sentira pena da amiga, mas compreendia sua mãe.

            Se ela tivesse um filho, o que não pretendia absolutamente, gostaria que ele fosse tão esperto e inteligente quanto lorde Templeton.

            — Queria muito que você pudesse falar comigo — sussurrou.

            — Newman ficou contente quando o viu esta manhã. — Depois de examinar o ferimento, notou que ele esta começando a cicatrizar. — Parecia tão satisfeito que eu cheguei a pensar que sairia dançando pela cabine. — Em vez disso, prometeu que daria o dobro de sua contribuição a igreja na próxima vez que a visitasse.

            Lucy sabia que lorde Templeton gostava muito do valete e que seu modo franco de falar o divertia. Seria tão bom se ele a estivesse ouvindo…

           

            Lorde Templeton sentia que havia alguém ao seu lado e que esse alguém lhe falava. Fazia muito tempo que tinha essa sensação de presença embora não conseguisse entender o que aquela voz dizia. De repente, a voz se deteve, e quando tornou a se manifestar, ele percebeu que as palavras estavam sendo coerentes.

            — Chegaremos a Gibraltar daqui a um ou dois dias, e eu estou com medo de que o médico o afaste de mim para deixá-lo aos cuidados de uma enfermeira. — Newman e eu queremos continuar tratando de você.

            — Combinamos de assisti-lo em turnos para podermos descansar um pouco. — Eu conto os minutos para substituí-lo e voltar para junto de você.

            Fez-se uma longa pausa e lorde Templeton tentou compreender o que acabara de ouvir.

            “Gibraltar! Por que estavam se dirigindo a Gibraltar?” A voz tornou a envolvê-lo, muito doce e suave:

            — Gosto de cuidar de você. — É como se eu tivesse um filho. — Quero ajudá-lo da forma que puder. — Espero aliviar sua dor.

            Ele ouviu um profundo suspiro.

            — O ferimento está quase curado. — Ou melhor, ele já está curado.

            — Apenas devemos ter cuidado para que não abra.

            Mais uma pausa e alguém; começou a lhe acariciar a testa com extrema delicadeza.

            Ele nunca havia sentido uma carícia tão relaxante e tão delicada. A não ser nos últimos dias, pensando bem.

            — Depois da parada em Gibraltar — a voz continuou —, seguiremos diretamente para a Inglaterra. — Não creio que voltaremos a nos ver. — Você ficará em Londres e eu irei para o campo. — Eu não suportaria a vida na capital após tudo que vimos e experimentamos. — As conversas vazias daquelas pessoas que só pensam em exibir suas roupas e jóias não me parecerão reais depois da aventura que vivi ao seu lado.

            Lorde Templeton tentou se lembrar de tudo que eles haviam visto e feito.

            Uma cena começou a se formar em sua mente. Era vaga em princípio, mas foi se firmando e ele viu uma montanha.

            Estava escalando-a embora não soubesse a razão para esse feito nem o que pretendia com isso.

            Então ele viu uma caverna e ouviu uma mulher sugerir que entrassem e explorassem seu interior.

            A mulher era Lucy. A linda jovem que o ajudara tanto embora ele não lembrasse por quê.

            Ela fizera aquela viagem com ele.

            Por quê?

            Por que ainda continuava ao seu lado?

            O que pretendiam fazer numa montanha de um país estranho?

            Muito lentamente, ele conseguiu recordar que sir James, seu grande amigo, o enviara ao Sião com sua sobrinha.

            Com que intuito?

            Deveria ter sido muito forte o motivo que o levara a visitar o Sião e Khmer.

            A escalada à montanha deveria estar ligada à missão. Mas e a caverna?

            O que encontraram em seu interior?

            — Adoro estar com você — a voz sussurrou em seu ouvido. — Quero ajudá-lo a voltar a si e a aliviar sua dor transmitindo-lhe minhas forças com minha proximidade e com a massagem. — Sinto-me como se estivesse cuidando de um bebê. — Gostaria que você fosse meu filho e que eu pudesse tê-lo sempre ao meu lado. — Lucy tornou a suspirar. — Em Gibraltar, contudo, você terá uma enfermeira e não precisará mais de mim. — Quando chegarmos à Inglaterra você me dirá adeus e eu voltarei a fingir que sou um homem. — Não o verei mais. — Mas, ao menos, terei esses últimos dias como lembrança. — Tenho certeza de que jamais o esquecerei!

            Lorde Templeton tentava se lembrar. Quem era exatamente aquela jovem e o que estava fazendo ali? Algo tocou seu rosto. Lábios muito macios, A massagem havia cessado para dar lugar ao beijo. Como se tivesse sido tocado por uma varinha mágica, ele teve, naquele instante, todas suas dúvidas respondidas. Ela era a estranha sobrinha de sir James que fingia ser um rapaz.

            Beijara-o e agora estava se afastando e se colocando por trás da cama sobre a qual ele estava deitado.

            A porta se abriu naquele instante.

            — Oh, Newman, bom dia! — Espero que tenha dormido bem.

            — Dormi o sono dos justos, milady — Newman respondeu baixinho.

            — Agora é sua vez de descansar.

            — Eu estava pensando que o médico, talvez, queira que Sua Senhoria seja assistido por uma enfermeira quando chegarmos a Gibraltar amanhã ou depois de amanhã — Lucy murmurou.

            Newman fez um movimento negativo com a cabeça.

            — Não creio que exista uma enfermeira melhor do que a senhorita tem sido. — Eu tenho certeza de que Sua Senhoria está a caminho da total recuperação. — Ontem à noite, quando troquei o curativo em seu ombro, achei que o procedimento logo não seria mais necessário.

            — Oh, Newman, será que ele ficará bom em breve? — Lucy indagou.

            — Seria maravilhoso se o ferimento já estivesse curado quando ele voltar a si para que não sinta dor. — Basta a preocupação que o espera; sobre os acontecimentos que culminaram com o ataque daquele homem cruel.

            — Resta um consolo, milady. — Graças a sua eficiência, o malvado nunca mais atacará ninguém. — Em minha opinião, até chegarmos a casa, Sua Senhoria estará novo em folha.

            — Espero sinceramente que não esteja enganado. — Tenho medo de estarmos sendo otimistas demais. — Sua Senhoria ainda precisa de cuidados especiais.

            — Isso não lhe tem faltado, graças á milady — Newman afirmou.

            Enquanto ouvia a conversa, lorde Templeton sentiu que sua mente, aos poucos, estava voltando a funcionar. Ele pôde se lembrar da viagem a Khmer e do que havia ocorrido quando o homem os surpreendera na caverna.

            O impacto em seu ombro o derrubara.

            Se estiver vivo e a bordo do Sereia  alguém deveria tê-lo carregado. Não tinha certeza, mas acreditava que estava ocupando a cabine.

            — Eu vou me deitar e dormir um pouco — ele ouviu Lucy dizer.

            — Mais tarde, prepararemos Sua Senhoria para ser examinado pelo médico.

            — Sabe o que eu acho? — Que ninguém poderá fazer por ele mais do que nós fizemos.

            Um breve silêncio invadiu o ambiente.

            — Está sugerindo que não deveríamos chamar um médico? — Lucy indagou surpresa.

            — Cabe a milady decidir, é claro, mas, no meu entender, quanto menos tocarem no ferimento, melhor será. — Não gosto muito de médicos.

            — Eles não sabem a metade do que aparentam — Newman respondeu. — Eu poderia apostar que Sua Senhoria estará completamente recuperado no dia em que chegarmos à Inglaterra e que desejará montar como das outras vezes.

            — Oh, Newman, se isso acontecer, eu ficarei muito, muito feliz.

            — Eu também. — Quanto mais penso em sua bravura ao atirar naqueles homens na caverna, mais convencido fico de que nós dois juntos somos melhores do que qualquer médico.

            Lucy sorriu.

            — Foi uma sorte que meu pai tivesse me ensinado a atirar desde que notou que eu tinha condições de suportar o peso de uma arma.

            — Eu concordo.

            —

            Aqueles homens cruéis morreram instantaneamente. — Milady fez um bom trabalho. — Nunca imaginei que uma mulher pudesse enfrentar uma situação de perigo com tanta coragem e perícia.

            — Se quer saber a verdade, eu também não sabia que era capaz.

            — Felizmente, consegui salvar Sua Senhoria e a mim. — Por pouco não morremos.

            — Em vez disso, foram eles que morreram — Newman retrucou.

            — Descanse, agora, milady. — Sua vigília ultrapassou cinco horas.

            — Deve estar exausta.

            — Fiquei com ele tanto tempo assim? — Lucy indagou.

            — São duas horas da manhã. — Deite-se e não se preocupe em se levantar para tomar seu desjejum. — Pedirei que ele seja servido em sua cabine às nove horas.

            — Oito horas; seria melhor — Lucy pediu. — Quero ficar o maior tempo possível com lorde Templeton antes de chegarmos a Gibraltar.

            — Se é isso que deseja, milady estou às suas ordens — Newman respondeu —, mas trate de dormir ou Sua Senhoria me chamará a atenção, quando acordar, por não ter cuidado de seu bem-estar.

            Lucy sorriu.

            — Espero que isso aconteça logo e que ele continue a ser como antes.

            Quanto a consultarmos um médico em Gibraltar, talvez realmente não seja mais necessário. — Eu também tive a impressão de que Sua Senhoria está muito melhor esta noite do que nos últimos dias.

            — Eu lhe disse que ele estava se recuperando. — Agora tente acreditar mais em mim e pare de se preocupar ou eu acabarei tendo de cuidar dos dois.

            — Não seria justo — Lucy retrucou. — Tem sido maravilhoso, Newman eu prometo que farei tudo que me pedir. — Espero que Sua Senhoria possa lhe agradecer pessoalmente, em breve.

            Lorde Templeton ouviu a portar ser fechada. Em seguida, ouviu os passos de Newman pela cabine. Mas continuou imóvel sobre a cama.

            Precisava refletir sobre o que acontecera.

            Newman verificou se o curativo estava no lugar. Depois se sentou no sofá e esticou as pernas sobre uma banqueta.

            Agora lorde Templeton tinha certeza de que era Lucy a pessoa que o acariciava na cabeceira da cama, pois seu valete o assistia do sofá.

            Alguns minutos mais tarde, a memória de lorde Templeton o levou para o dia anterior à partida para o Sião e ele entendeu a razão por ter levado consigo uma mulher. Para não ser obrigado a se casar com uma das filhas do rei, fingira estar acompanhado por sua esposa.

            Ele se lembrou também da imagem que guardara de Lucy da primeira vez que a vira. Ela costumava se vestir, falar e se comportar como se fosse um homem.

            Depois, vestida com as lindas roupas que o tio lhe comprara, ela causara uma ótima impressão não apenas ao rei, mas a toda corte do Sião.

            Queria se lembrar do motivo que o levara a visitar Khmer em seu iate, mas por mais que tentasse não estava conseguindo.

            Ele deveria ter dormido, pois quando deu por si as imagens estavam desfilando ante seus olhos como se ele lesse um livro.

            Soube por que haviam ancorado e desembarcado, por que escalaram a montanha e por que entraram na caverna.

            “Como pude me comportar de modo tão estúpido?” Ele se censurou.

            “Como pude me esquecer de levar um revólver?” Em suas viagens ao estrangeiro ele sempre carregava uma arma. Desta vez, entretanto, quem disparara fora Lucy. Ele lhe devia a vida.

            Pelo que ouvira, Lucy precisara defendê-lo e a si própria não apenas de um, mas de dois homens.

            Ela era uma jovem corajosa. Ao mesmo tempo, tinha a voz mais doce que já ouvira.

            “Preciso sarar. Quero conhecer a história inteira desde o princípio.” Lorde Templeton não abriu os olhos nem disse a Newman que estava consciente e que era capaz de entender o que lhe diziam. Ao contrário. Como se estivesse muito cansado de tanto refletir sobre o que lhe acontecera, tornou a dormir por quase sete horas.

            Quando acordou, sentiu que era Lucy quem estava à cabeceira de sua cama. Ela lhe massageava a fronte com os dedos, sem dizer nada.

            Newman veio substituí-la e lorde Templeton continuou imóvel aceitando o tratamento e a limpeza que o valete efetuava todos os dias.

            No deque, Lucy se dirigiu ao capitão.

            — Ainda estamos longe de Gibraltar? — Ela quis saber.

            — Chegaremos depois de amanhã — ele respondeu. — Como milady deve ter notado, eu diminuí a velocidade para não incomodar Sua Senhoria.

            — Felizmente, o mar anda tranqüilo e as ondas não nos castigaram como Newman tanto temia.

            — Ele tem sido maravilhoso — Lucy elogiou. — Tenho certeza de que lorde Templeton lhe dirá o quanto se sente grato por seus cuidados, assim que acordar.

            — Ele deve dizer o mesmo à milady — o capitão declarou. — Duvido que Newman; tivesse dado conta de tanto trabalho sozinho. — Foi uma bênção que estivesse a bordo para ajudá-lo. — A propósito, o valete me contou esta manhã, que lorde Templeton logo estará de pé.

            — É o que esperamos — Lucy confirmou.

            Enquanto se encaminhava para sua cabine Lucy pensou que Gibraltar não ficava muito distante da Inglaterra.

            Quando chegassem, era provável que ela nunca mais visse lorde Templeton.

            Seria horrível. Só em pensar nessa possibilidade sentia o coração apertado. Era preciso reconhecer a verdade. Estava apaixonada por lorde Templeton.

            No momento em que ele fora atingido, ficara muito aflita.

            Falara com ele enquanto dormia e tentara protegê-lo como protegeria uma criança assustada com o mundo.

            “Eu o amo. Eu o amo muito. Mas como ele jurou que se casaria; somente quando fosse mais velho, nosso casamento de mentira terá seu fim no instante em que chegarmos à Inglaterra.”

            A agonia dessa certeza fez os olhos de Lucy ficar marejados de lágrimas.

            Era a primeira vez que ela chorava por um homem. Era a primeira vez que realmente se sentia mulher.

            Seu coração doía.

            “Eu o amo. Mas ele nunca poderá conhecer a verdade ou rirá de mim e me desprezará. Prefiro morrer a ser desprezada por ele.” Embora lorde Templeton não pudesse vê-la, Lucy escolheu um de seus vestidos mais lindos para usar aquela noite.

            Ela abriu a porta da cabine máster e estava começando a cumprimentar Newman quando notou que seus olhos brilhavam.

            — Milady! — Eu estava ansioso por lhe contar!

            — Contar o que, Newman? — Lucy perguntou surpresa.

            — Sua Senhoria falou comigo quando terminei de lavá-lo e de vesti-lo.

            — Ele agradeceu e disse que estava se sentindo muito melhor.

            Lucy deu um grito abafado.

            — Ele realmente disse isso? — Oh, Newman, que esplêndido! — Ele recobrou a consciência.

            — Sim, milady. — Eu lhe prometi que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, embora não acreditasse em minhas palavras.

            Lucy não respondeu. Estava olhando para lorde Templeton.

            Ele continuava de olhos fechados, mas suas faces estavam um pouco mais coradas e ele parecia melhor do que estivera desde que levara o tiro.

            Newman apanhou a bandeja e se encaminhou para a porta.

            — Sua Senhoria está dormindo tranqüilo. — Quando acordar é bem provável que volte a falar naturalmente.

            — Eu rezarei para que isso aconteça — Lucy sussurrou, Newman sorriu enternecido e deixou a cabine.

            Lucy se colocou à cabeceira da cama e começou a acariciar não apenas a testa, mas todo o rosto de lorde Templeton.

            Talvez fosse a última vez. Talvez fosse a despedida. O silêncio se estendeu por um longo tempo.

            — Não vai falar comigo como sempre faz? — Lorde Templeton indagou, de repente.

            Lucy se deteve. Não tinha certeza se havia ouvido bem.

            — Como soube? — Perguntou num fio de voz.

            — Eu sentia sua presença — ele respondeu. — Não sabia quem você era nem a razão de estar ao meu lado, mas sentia-me bem ao ouvir sua voz.

            — Oh, finalmente você está podendo falar! — Lucy exclamou. — É

            maravilhoso! — Newman tinha razão. — Ele ficará muito feliz.

            — Acho que você queria muito que eu vivesse — lorde Templeton murmurou.

            — Rezei para que se recuperasse e para que não sofresse com o que lhe aconteceu.

            — Suas preces foram atendidas — lorde Templeton contou. — Eu estou me sentindo quase tão bem quanto antes.

            — É um milagre! — Lucy exclamou.

            Ao se dar conta de que continuava acariciando-o, Lucy se afastou depressa.

            — Não se mova — ele pediu. — Quero falar com você e gostaria que ficasse bem perto.

            — Como é possível? — Mal acordou e você já está em condições de manter uma conversação?

            — Acontece que eu ouvi tudo que você disse durante a noite — lorde Templeton explicou.

            — Tudo? — Lucy indagou perplexa.

            — Sim, além de ouvir eu compreendi o sentido das palavras.

            Lucy se lembrou de que ela não havia apenas falado, mas que lhe dera um beijo.

            Muito corada, tentou se afastar novamente, mas lorde Templeton não lhe deu tempo para reagir.

            — Acho que eu a ouvi durante todo o tempo. — Quando se afastava da cabine, sentia-me só e esquecido. — Quando voltava, contudo, suas vibrações me envolviam e eu não me sentia mais só, embora não pudesse entender o que dizia.

            — Não imagina como é bom saber que consegui ajudá-lo de alguma forma. — Newman e eu ficamos muito preocupados com seu estado. — Mas ele falava sempre com convicção que você se recuperaria e que o ferimento estava cicatrizando mais rápido do que ele esperava.

            — Ninguém está mais feliz do que eu — lorde Templeton afirmou.

            — Eu não suportaria ficar aleijado para o resto da vida.

            — Você não ficará. — O tiro pegou de raspão em seu ombro e na base do pescoço. — Poderia tê-lo matado. — Você está vivo por milagre.

            — Eu tive a impressão de que você rezava por mim. — Estava certo?

            — Claro que estava. — Eu rezei por você todos os dias, assim como sua tripulação. — Quando o carregaram para o iate, os marinheiros se mostraram tristes e preocupados, embora gratos por sua sobrevivência.

            — Que eu devo inteiramente a você — lorde Templeton agradeceu.

            — Ainda bem que meu pai me ensinou a atirar assim que eu tive idade suficiente para segurar uma arma.

            — Também sou grato a ele.

            Lorde Templeton falava como se estivesse muito cansado e Lucy se apressou a dizer:

            — Não se esforce demais. — Feche os olhos e durma enquanto eu massageio sua testa para que relaxe. — É um erro querer falar muito logo depois de recobrar a consciência.

            Lorde Templeton fechou os olhos e sorriu.

            — Está bem, enfermeira.

            Alguns minutos depois, Lucy percebeu que ele havia adormecido novamente e se sentiu mais tranqüila.

            Embora o ferimento estivesse fechado, lorde Templeton havia perdido muito sangue. Levaria tempo até que ele ficasse totalmente bom.

            Ao chegarem a Gibraltar, lorde Templeton já estava dando ordens.

            Parecia saber muito bem o que queria. Em primeiro lugar, recusou-se a procurar um médico.

            — Tive a assistência de dois excelentes amadores e estou me sentindo muito bem.

            Newman agradeceu e brincou:

            — A julgar pelo que comeu esta manhã, suas forças estão recuperadas, milorde. — Alimentou-se como se quisesse compensar todos os últimos dias.

            — Foi exatamente isso que eu quis fazer. — Preciso me alimentar bem para me fortalecer. — E como não quero cair pelo convés quando alcançarmos a baía de Biscaia, diga ao capitão para seguir bem devagar pelo Mediterrâneo.

            Lucy não pôde conter a curiosidade.

            — Mediterrâneo? — Quer dizer que não pretende desembarcar em Gibraltar nem regressar a Londres?

            — Não quero voltar para casa até estar completamente recuperado e capaz de fornecer um relatório decente sobre tudo que vi e ouvi — lorde Templeton explicou a Lucy. — Espero que concorde comigo. — Como convalescente, acho que mereço decidir o que melhor me convém. — E como o mar Mediterrâneo é   muito lindo e calmo, pensei que poderíamos aproveitar para conhecer alguns outros lugares e descansarmos à noite sem sermos perturbados.

            Foi com dificuldade que Lucy conteve um grito de alegria.

            Ele não queria voltar para a Inglaterra ainda. Isso significava que ela não o perderia tão depressa quanto imaginara.

            Quando Newman os deixou a sós, ela se aproximou de lorde Templeton e agradeceu:

            — Obrigada, muito obrigada por prolongar nossa viagem. — Eu não atravesso o Mediterrâneo desde que era criança. — Adorarei vê-lo em sua companhia.

            — Espero admirá-lo ao seu lado, no deque, daqui um dia — lorde Templeton respondeu. — Não vejo a hora de me levantar. — A propósito, foi você quem deu ordens para que eu almoçasse na cama?

            — Acho que as ordens partiram de Newman.

            — Eu pergunto a ele, e ele diz que foi você. — Pergunto a você, e você responde que foi ele — lorde Templeton protestou. — De que se trata? — De um complô? — Será que eu consigo encontrar um jeito de desafiar a ambos?

            — Você precisa ter paciência, pois a recuperação é lenta. — De que adianta se precipitar e, de repente, cair devido a uma tontura? — Você pode não acreditar, mas não se sentirá tão bem quando tentar pôr os pés no chão pela primeira vez.

            Lorde Templeton sorriu.

            — Você está me tratando como se eu fosse um bebê, nas acho que está certa. — O que diz faz sentido. — Preciso ir devagar.

            — Claro que eu e Newman estamos certos — Lucy retrucou. —Assim que sentirmos que o momento chegou, nós o ajudaremos a caminhar até o deque. — Ao contemplar a linda vista do mar azul e dourado do sol, você sentirá as energias voltarem.

            — Eu tenho obedecido a suas ordens há tanto tempo que estou me habituando — lorde Templeton replicou bem-humorado.

            Lucy sorriu.

            — Não imagina o quanto Newman e eu nos preocupamos por sua causa. — Vê-lo rindo e conversando como antes é a melhor recompensa que poderíamos receber.

            — Eu adoro estar com você — lorde Templeton sussurrou.

            Lucy sentiu as faces corarem.

            — Sei que devo minha vida a você — ele continuou. — Venho me perguntando, várias vezes, o que pretende fazer comigo no futuro.

            Lucy o fitou sem entender o que ele estava querendo dizer. Ao notar um brilho diferente em seus olhos, virou o rosto, tomada de timidez.

            — O importante — ela respondeu após alguns instantes — é que você se recupere e que não tenha pressa em retornar à Inglaterra. — Talvez eu esteja sendo egoísta, mas não gostaria de deixar este iate maravilhoso.

            — Além disso, no momento em que você chegar, aposto que terá mil afazeres e preocupações, e eu quero poupá-lo.

            — Eu já havia notado que era essa sua idéia, e também a de Newman

            — lorde Templeton respondeu. — Como disse antes, eu me rendo à vontade de ambos. — Afinal, são vocês que estão organizando minha vida desde o acidente. — Algo assim nunca havia me acontecido antes.

            — Oh, por favor, não fique ressentido conosco — Lucy implorou.

            — Claro que não. — Ao contrário. — Estou achando divertido. — Ele hesitou por um momento. — Para ser sincero; essa nova situação me parece maravilhosa.

            Lucy o fitou, sem compreender.

            — O que estou querendo dizer — lorde Templeton explicou, com um olhar significativo — é que não quero perdê-la quando esta viagem terminar.

            Lucy não respondeu. Estava sentada numa cadeira e foi obrigada a erguer os olhos para olhar para lorde Templeton que estava em posição mais elevada.

            Ela sabia que seria um erro responder que temia o momento da separação. Para não constrangê-lo, era preciso tomar muito cuidado com cada palavra que dissesse.

            Por mais que desejasse, não podia confessar o quanto desejava continuar ao seu lado e conversar com ele, sem ser interrompida.

            Após alguns instantes de silêncio, lorde Templeton afirmou:

            — Decidi me levantar amanhã.

            Lucy negou com um movimento de cabeça.

            — Você não pode! — Ainda é cedo demais!

            — Acho que não. — Eu me alimentei bem nos últimos dois dias e estou me sentindo em condições. — Quero ver o Mediterrâneo.

            — O Mediterrâneo é lindo e você poderá vê-lo quando quiser depois que se fortalecer. — Lembre-se de que perdeu muito sangue.

            — Newman já me disse isso uma porção de vezes — lorde Templeton respondeu. — Não quero mais ouvir a mesma coisa. — Sinto-me pronto para me levantar. — Por outro lado, se estiver enganado, basta voltar para a cama.

            Lucy sorriu.

            — Você fala como se fosse muito fácil. — Mas, se é   o que realmente deseja, não serei eu a impedi-lo.

            — Então está combinado! — Prometo que voltarei imediatamente para a cama se me sentir cansado e que não tornarei a me levantar por mais vinte e quatro horas.

            — Ora, você está brincando comigo. — Mas eu concordo desde que não exagere em seu primeiro dia fora do leito.

            — Não será a primeira vez que eu ficarei de pé — lorde Templeton confessou. — Ontem à noite, enquanto você dormia, eu me levantei devagar e dei alguns passos pelo quarto para ter certeza de que minhas pernas ainda funcionavam.

            — E elas funcionaram?

            — Como sempre — lorde Templeton respondeu. — Não senti tontura e não tropecei em nada.

            Lucy apertou as mãos.

            — Fico contente em ouvir isso. — Agora já não me sinto tão preocupada com sua intenção de caminhar até o convés.

            Naquela noite, Lucy e lorde Templeton jantaram juntos na cabine.

            Lorde Templeton se levantou, vestiu um roupão e se sentou à pequena mesa junto à vigia.

            Assim como acontecera nas últimas refeições, ele jantou com apetite.

            Mas, como Lucy adivinhava que o esforço havia sido grande, ela se retirou cedo para sua capine.

            — Amanhã será um grande dia — alegou. —Nós dois precisamos dormir profundamente. — Você para se preparar para o esforço, e eu para carregá-lo de volta a cama, se for necessário.

            — Você está exagerando — lorde Templeton caçoou. — Estou certo de que me comportarei como um homem normal que nunca foi ferido.

            — A proposta é ousada. — Espero que tenha sucesso.

            — Eu terei — lorde Templeton respondeu firmemente.

            A excitação pelo dia que a esperava fez com que Lucy se levantasse cedo.

            Estava preocupada com a insistência de lorde Templeton de se levantar e caminhar até o convés. Tinha dúvidas quanto a essa determinação dele. Temia que estivesse se arriscando demais.

            “Eu o amo! Preciso zelar para que se recupere, pois muito trabalho o espera em seu regresso à Inglaterra.”

            Seu tio James confiava em lorde Templeton para resolver os problemas difíceis.

            Os cavalos o esperavam no campo.

            “Não devo ser egoísta. Eu tive sorte, muita sorte, em tê-lo comigo durante todo esse tempo. Preciso aproveitar e agradecer cada dia, cada hora, cada minuto que ainda me restam ao seu lado.” Lucy tentou não pensar no que faria e para onde iria quando se separassem. Seu único propósito era ficar bonita para lorde Templeton. Se pudesse, compraria mais roupas ainda para que ele se lembrasse dela sempre como uma mulher atraente e feminina.

            Algum tempo depois, Lucy ouviu Newman entrar na cabine ao lado para ajudar lorde Templeton a se vestir. Esperou até que o valete saísse. Em seguida, ofereceu o braço á lorde Templeton para ajudá-lo em sua caminhada pelo deque.

            Ele queria andar mais depressa do que a prudência mandava.

            Diante da amurada, apoiou um braço em seu ombro e fez um gesto para que ambos se sentassem.

            O Mediterrâneo estava ainda mais azul do que Lucy se lembrava.

            O capitão ancorou o iate numa pequena baía de onde era possível enxergar a distância.

            Numerosos barcos cortavam as águas mansas e o sol fazia as ondas faiscarem.

            Era um cenário maravilhoso.

            Lucy não queria estar em nenhum outro lugar naquele momento.

            — Você é linda também — lorde Templeton murmurou.

            Eram as primeiras palavras que ele dizia desde que saíra da cabine e á deixaram envergonhada.

            — Você está lendo meus pensamentos? — Ela indagou baixinho.

            — Quando eu estava inconsciente e você falava comigo, adivinhava o que iria dizer antes que as palavras fossem proferidas.

            — Você me ouviu realmente? — Lucy indagou.

            Ela tentou se lembrar de tudo que dissera. Talvez tivesse dito o que não devia e isso a preocupava.

            — Eu sabia que alguém estava falando comigo embora, em princípio, não pudesse reconhecer a voz — lorde Templeton explicou. — Acho que foi isso que me manteve vivo e que me ajudou a me recuperar mais rapidamente.

            — Eu não acreditava seriamente que você estivesse me ouvindo —

            Lucy se justificou.

            — Eu achava muito interessante aquilo que me dizia e descobri uma verdade.

            — Que verdade? — Lucy quis saber.

            — Que você gosta de ser mulher. — Que sempre foi mulher embora fingisse ser um homem — lorde Templeton afirmou. — Que, como mulher, você é capaz de amar um homem e de querer viver ao lado dele.

            Lucy não respondeu.

            Após um instante de silêncio, lorde Templeton continuou:

            — Acredita que eu seria capaz de continuar vivendo sem você? — Eu te amo, Lucy, assim como você me ama.

            — Você me ama? — Ela repetiu atônita.

            — Acho que comecei a te amar antes do acidente, embora não tivesse percebido. — Agora sei que não posso continuar sem você. — Case-se comigo, Lucy, e faça de mim o homem mais feliz sobre a face da Terra.

            Lucy o fitou como se não tivesse certeza de ter ouvido bem.

            — Você afirmou várias vezes que não queria se casar enquanto fosse jovem.

            — Eu não sabia o que dizia — lorde Templeton retrucou. — Não acreditava que pudesse amar novamente. — A menos que esteja enganado, sinto que você também me ama um pouco.

            Lucy ficou muito corada.

            — Sim, eu te amo. — Eu te amo muito. — Não pude evitar.

            Lorde Templeton sorriu.

            — Então, por que estamos nos preocupando? — Nós nos amamos e devemos nos casar o mais rápido possível para que ninguém tente nos separar. — Tenho grandes planos para nós dois.

            — Oh, eu estou sonhando ou isso está mesmo acontecendo? — Lucy perguntou.

            — É verdade, minha querida. — Eu te amo e te venero. — Pode lhe parecer estranho, mas eu acredito que fomos feitos um para o outro e que nos conhecemos em vidas passadas.

            — Você diz coisas maravilhosas — Lucy murmurou. — Jamais imaginei que se importasse comigo.

            Lucy fez esse comentário com lágrimas nos olhos. Emocionado, lorde Templeton segurou-lhe as mãos.

            — Acho que terei de ser mais eloqüente e mais positivo em minha declaração de amor.

            Gentilmente, lorde Templeton segurou o queixo de Lucy e ergueu-o para que ela o fitasse.

            — Você me beijou enquanto eu dormia. — Tenho o direito, agora, de beijá-la.

            No momento em que seus lábios se encontraram, Lucy sentiu que seu coração pertencia a ele.

            O sol brilhava sobre eles como se fosse mágico.

            O beijo foi muito leve e suave no início, mas quando lorde Templeton sentiu Lucy tremer em seus braços, seus lábios se tornaram mais exigentes.

            Quando se afastaram, Lucy escondeu o rosto no ombro de lorde Templeton.

            — Minha querida! — Minha doçura! — Ele sussurrou. — Eu tenho tanto a lhe ensinar sobre o amor.

            — Eu te amo — ela respondeu. — Ás vezes eu sinto que estou vivendo um sonho.

            — Se isso é um sonho, precisamos ficar bem quietos para não acordarmos. — Mas, antes de nos calarmos, devemos aproveitar que estamos neste lindo lugar para decidir onde nos casaremos.

            — Mas ainda é muito cedo!

            — Quero você ao meu lado dia e noite, minha querida. — Todos pensam que somos casados, não é? — Por que não tornamos a mentira uma realidade o mais rápido possível?

            Antes que Lucy pudesse responder, ele a beijou com paixão.

            Casaram-se em segredo numa pequena capela na Grécia.

            A cerimônia foi simples e linda e Lucy sentiu que os anjos cantaram para eles e que sua mãe a abençoava do céu.

            Terminado o serviço religioso, os noivos voltaram para o iate, sem que a tripulação desconfiasse do que havia acontecido.

            Era tarde da noite quando Newman finalmente saiu da cabine e Lucy pôde entrar, segundo as instruções de lorde Templeton.

            Encontrou-o sentado sobre a cama, de braços abertos, e correu para eles como se fosse uma criança.

            — Eu te amo! — Ela sussurrou, enquanto ele lhe beijava os cabelos, a testa, o rosto e os lábios.

            — Eu também te amo — lorde Templeton respondeu com voz enrouquecida. — Oh, minha querida, como eu poderia ter suportado o futuro sem você? — Depois que a conheci tudo mudou e se tornou maravilhoso.

            — Comigo aconteceu o mesmo. — Como pude ter tanta certeza de que queria ser homem?

            — Para mim, você sempre; foi uma mulher e uma mulher muito bonita e carinhosa.

            Ele abraçou-a com força e colocou-a sobre a cama. Em seguida, tornou a beijá-la com tanta intensidade que Lucy sentiu como se ambos estivessem subindo ao céu.

            Eles haviam encontrado o verdadeiro amor. O amor que todos os homens buscam desde o início dos tempos. O amor que vem de Deus e que é parte Dele. O amor que faz da vida daquele que o encontra o paraíso. Não por alguns momentos apenas, mas por toda eternidade.

 

                                                                                            Barbara Cartland

 

                      

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