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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LIVRO DA MORTE / Peter Debry
O LIVRO DA MORTE / Peter Debry

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Mudros contava eliminar Vandam, um conhecido vigarista belga, fazendo-o cair na armidilha do livro da capa verde.. A armadilha consistia em Vandam “comprar” na livraria mais conhecida das arcadas dos Cahmps Elisees, e nessa altura ser liquidado por dois combatentes de guerra. Suspeitando que algo de errado estaria para acontecer Vandam, não se dirigiu à conhecida livraria, no final do dia, quando o stand estava para fechar os dois atiradores cansados da longa espera de um homem que eles não conhecia, apenas sabiam que tinham de liquidar o homem que comprasse o livro, terminaram a trabalho, para infortuniu de Mudros.

 

 

                                                  CAPÍTULO 1

Max Jarnac descia os Campos Elísios. Os primeiros dias frios do inverno começavam e o céu estava sombrio. Afundou mais o gorro de astracan preto e abotoou até em cima sua japona. Levava debaixo do braço uma pasta que emprestava certa seriedade à sua figura juvenil. Era seu disfarce. Gostava de disfar­çar sua forçada ociosidade e aquela pasta lhe dava o aspecto de um homem de negó­cios quando ia entrevistar-se com Denis, o Caolho, também apelidado o Tártaro.

O constante ir e vir dos transeuntes não oferecia mais do que uma segurança ilusó­ria. Jarnac pressentia o perigo no encontro com Denis, elemento de enlace de uma orga­nização desconhecida.

Essa organização precisava de ex-comba­tentes, homens desajustados, que não sabiam como voltar à vida normal. Gente como De­nis, que perdera um olho na Indochina e um pulmão na Argélia.

Ou como o próprio Jarnac, que, após o serviço militar na Argélia, combatendo nos ferozes comandos de Massu, alistara-se como mercenário no Congo.

Denis esperava no lugar combinado, ves­tindo um grosso casaco escuro e com o cha­péu afundado até as orelhas. Óculos escu­ros escondiam o olho que perdera em Diem Bien Fu. Cyr Denis, de nacionalidade indefi­nida, prosseguia com sua profissão de guerri­lheiro de modo particular e secreto, com um salário de comandante legionário. Seu olho são via muito bem, mesmo de longe. Reco­nheceu o mercenário Jarnac que surgia em meio à multidão. Denis comandava uma meia dúzia de mercenários. Mas dois deles estavam mortos agora, vítimas de seus pró­prios erros.

O terceiro apodrecia num presídio, porém mantinha um honroso silencio. Esta era a qualidade principal daqueles infelizes desesperados, pensava Denis, vendo Jarnac apro­ximar-se sem pressa.

Era seu ponto de honra nunca delatar. O quarto mercenário havia se aposentado por causa de uma mulher bonita e cultivava a terra numa aldeia ao sul da França. Parecia feliz.

Somente restavam Denis e dois mercená­rios: Jarnac e Plambel, que não se conheciam mutuamente. Iam conhecer-se dentro em pouco e Denis padecia pensando em que se veria obrigado a empregar toda a sua força de choque numa operação do qual não sabia quase nada.

Jarnac deteve-se um momento do outro la­do da rua, atrás de algumas pessoas que es­peravam a luz verde para atravessar. Por ci­ma de suas cabeças via o Tártaro, encostado à fachada do cinema Eliseu. Seu bigode negro, de pontas caídas, dava-lhe um ar cruel.

Jarnac perguntava-se, às vezes, como aquele quarentão de porte atlético, conse­guia escapar às emboscadas com uma fisio­nomia tão chamativa. A razão de tão longa impunidade devia residir nas precauções que Denis se impunha em sua função de interme­diário .

O cigarro era uma de suas precauções. Se estivesse apagado, Denis poderia ser abordado sem perigo. Se estivesse aceso, se­ria melhor passar ao largo, sem voltar a ca­beça.

Uma só vez Jarnac pusera a perder o con­vencionado por distração. E recebera uma reprimenda em regra, estilo Legião Estran­geira:

- Você é impetuoso e imbecil, Jarnac! Al­guém me seguiu e está nos observando por trás dos vidros daquele carro preto. Nunca se deve mostrar a cara dessa forma! Pode es­tar certo de que seu rosto já foi fotografado. Desta vez outro se encarregará de sua mis­são. Meia volta e vá para o inferno!

O sinal da rua Pierre-Charon deu passa­gem aos pedestres. Denis levantou negligen­temente a mão esquerda enluvada que sustinha o cigarro apagado. Fez menção de pro­curar algum fumante, para acender o cigar­ro.

Max Jarnac aproximou-se e apresentou-lhe seu isqueiro. Estava bem perto e podiam fa­lar sem erguer a voz. Denis murmurou, sem mudar de expressão:

- Está muito atrasado, rapaz. Estou espe­rando há quase uma hora... Fez boa via­gem?

- Não foi das piores. Mas fiquei de pé no trem desde Nantes e nevou toda a noite en­tre Lyon e Limoges.

Foram subindo até a Praça de l'Étoile, se­guindo a ribeira da alameda. O ex-capitão da legião estrangeira avançava com passo mar­cial, e seu bastão branco de falso cego, mar­telava o solo.

- Essa missão será muito bem paga. Tudo está previsto para retirar rapidamente o pes­soal do terreno de combate...

- Mesmo que a ação fracasse?

- Sim. Mas, cá entre nós, não confie muito numa retirada fácil. Faça seu trabalho o me­lhor que puder, garantindo a retirada. É o melhor sistema para contentar a organiza­ção. E você é um rapaz decidido e frio, sem ódios nem vícios. Com você estamos quase certos de que não haverá erros.

- Agradeço o bom conceito que tem de mim.

A seriedade com que Jarnac falava,, não deixava perceber se havia ironia em suas pa­lavras .

Denis afirmou:

- O que mais aprecio em seu modo de agir é seu desaparecimento instantâneo. Após agir eficientemente, regressa a seu canto, co­mo uma boa espada à sua bainha. Até a pró­xima vez...

- Não haverá próxima vez. Acabo de per­correr oitocentos quilômetros em plena noite para anunciar-lhe que não deve mais contar com meus serviços.

Denis surpreendeu-se:

- Está brincando?

- Nunca falei tão a sério em minha vida. E a prova disso é que estou aqui. Gosto das situações claras e prefiro que cortemos nos­sas ligações de comum acordo. Dessa forma um não prejudicará o outro, se as coisas se complicarem.

Denis não respondeu. Continuava cami­nhando sem pressa. Jarnac não sabia nada dele, nem sequer sua identidade verdadei­ra.

Para ele, Denis era o Caolho, ex-oficial legionário, um homem discreto, digno de con­fiança, que nunca o envolvera em assuntos escusos. Um ex-combatente empregando ou­tros ex-combatentes inadaptados, em as­suntos relacionados com a luta direta con­tra assassinos e espiões estrangeiros.

A multidão começava a espalhar-se do outro lado da avenida. Denis deteve-se pa­ra acender o cigarro. Seu rosto largo estava congestionado e seus óculos negros lhe da­vam um ar mais sombrio.

- Não deserte agora - disse incisivamente - Deixe para depois, por favor.

Aquilo era mais um pedido do que uma ordem. Jarnac sentiu pena, mas nada pode­ria modificar sua resolução. Denis lhe mos­trara que poderia empregar armas de fogo na selva do asfalto de Paris, sem crises de consciência, pois atiraria contra pistoleiros assassinos, numa guerrilha secreta. E não haveria riscos nem represálias, se agisse sem­pre como um soldado, isto é, como um ins­trumento, e se levasse uma vida decente.

- Preferi vir até aqui para lhe falar claro, De minhas possibili­dades. você sabe perfeitamente que, a par­tir de agora, minhas chances de uma retira­da segura são quase nulas e que as probabi­lidades de cair nas mãos da polícia aumenta­ram. Seria injusto exigir mais de um assala­riado que até agora cumpriu seu dever, mas que começa a sentir medo.

Denis contemplou longamente a ponta de seu cigarro apagado e replicou:

- Não exijo nada. Se insisto é porque sua negativa me coloca numa situação muito difícil. Vamos, rapaz,   seja camarada e não abandone seu sargento... Max Jarnac enfureceu-se:

- Por uma vez, não lhe custará fazer você mesmo o trabalho. O tremor de suas mãos passará subitamente quando empunhar uma metralhadora...

Deu meia volta bruscamente e aproveitou o sinal verde para atravessar a avenida. Já dissera tudo. Era pouco, mas aquela breve explicação com o intermediário de um chefe desconhecido bem valera a viagem.

 

                                             CAPÍTULO 2

Denis alcançou-o na esquina da rua Berri e caminhou em silencio a seu lado. Tenta­va encontrar as palavras adequadas. O tem­po corria. Além disso, a experiencia lhe mos­trara o que custava, às vezes, prolongar o contato com um futuro condenado à morte.

- Só algumas palavras mais, Jarnac. De­pois poderá ir embora para onde quiser.

Jarnac deteve-se por íntimo respeito ao ex-oficial condecorado. Fitou-o ínterrogativamente e Denis disse com voz cansada:

- Com um homem como você de nada vale­riam as ameças. Desejo somente que recor­de aquela humilde taverna de Montparnasse, onde se reuniam os desesperados de Pigalle e adjacências. Sem mim acabaria na miserável legião dos gangs baratos, à merce de um chefe sem escrúpulos.

- Sim, lembro-me disso tudo e sou-lhe mui­to grato. Nada mais.

- Por favor, faça a soma de seus minutos de trabalho efetivo em três anos. Não repre­sentam nem uma semana de existência de um honrado funcionário de escritório ou de um soldado regular. Por tão pouco traba­lho, viveu sempre confortavelmente, benefi­ciando-se de uma segurança quase absoluta, não é verdade?

- Sim, mas arrisquei a pele em cada missão e nada me obriga a uma operação suplemen­tar.

Calaram-se para deixar passar duas mu­lheres, envoltas em seus casacos de peles. Jarnac as devorou com o olhar. Mas para Denis, a mais bela avenida do mundo esta­va povoada apenas por fantasmas. Recome­çou pacientemente:

- Comprometi-me até o pescoço sem pen­sar nem por um momento que você ia deser­tar. Sabe muito bem do que lhe falo; já rece­bi instruções, dinheiro...

- Esqueça as instruções e devolva o dinhei­ro.

- Já é muito tarde. Minha negativa será in­terpretada como uma traição e alguém me fa­rá pagar por isso dentro de vinte e quatro horas.

- Então faça como eu. Livre-se de seu ar­senal particular e procure refúgio nos verdes campos de alguma aldeia. Não me inquieto por seu futuro, Denis. Tenho certeza de que economizou alguns milhões...

- Eu sempre o tratei como um bom soldado, como um amigo. Se me abandonar agora, se arrependerá depois.

- Irei para bem longe. você se arranjará sem mim.

- Então, adeus. E não sinta remorsos ao abrir o jornal depois de amanhã. A notícia de minha morte não ocupará mais espaço do que a de um cão atropelado...

Jarnac ia afastar-se, mas Denis fez um ges­to inesperado. Tirou os óculos, baixando-os até metade do nariz. E apareceu diferente, muio mais idoso do que indicava sua silhue­ta. Quase parecia um velho operário, fatigado por anos de trabalho extenuante. Sua pálpebra direita, marcada por uma fina cicatriz vermelha, enfeiava-o pateticamente. O olho esquerdo, redondo e muito azul, brilha­va com tenue umidade. Max Jarnac só vira aquela máscara de miséria em postos de so­corro de primeira linha. A triste máscara de um homem maduro que sente a proximidade da morte. Hesitou. O olho sadio e suplicante do ve­lho Denis tinha uma enorme força de persuasão. Furioso consigo mesmo por aquela prova de fraqueza, Jarnac perguntou:

- Onde e como?

Cry Denis colocou novamente os óculos. Sua voz readquiriu o tom firme de comando:

- Imediatamente. Estamos quase no lugar da ação. Siga-me.

- E o armamento?

- Já se encarregaram disso, você entrará lá com as mãos nos bolsos e se retirará do mesmo modo.

Penetraram na rua de Berri, seguindo a calçada da direita. O céu escurecera bastan­te e começavam a cair os primeiros flocos de neve. Jarnac disse secamente:

- De qualquer forma, gostaria de saber de que se trata.

- Não haverá explicações. Além disso, compartilhará com outro a honra de apertar o gatilho.

- Não me agrada muito o trabalho de equi­pe para esta espécie de guerrilha.

- A mim também não. Mas isso é preciso por causa do caráter especial da operação. Trata-se de uma emboscada que requer co­operação. O outro lhe explicará.

- Quem é ele?

- Um homem como você. É preciso que confie nele.

- E o pagamento?

- Como de costume, será feito por meu in­termédio. Amanhã à noite, em nosso lugar habitual de encontro, na Porta de Orleans. Ou na estação do metrô de Luxemburgo, se teme que o reconheçam.

- Isso não dependerá de mim. Mas se eu não aparecer no primeiro lugar, procure es­tar sem falta às sete da manhã no metrô de Luxemburgo.

Continuaram caminhando em silencio até a esquina da rua Nogent, onde o Caolho se deteve e disse com rapidez:

- Aqui o deixarei. Dobre à direita e des­ça até o número 65. Entrando pelo hall en­contrará um pátio interno, onde estacionam veículos. Ao fundo verá uma escada que le­va ao primeiro andar e é usada para fins co­merciais. Estão localizados ali mais de qua­renta escritórios, separados por um corredor central. No outro extremo está a saída prin­cipal, mas é melhor desconfiar dela. Não há sentinelas lá em baixo nem guardas. So­mente encontrará gente apressada. Todas as portas tem número. Tome a chave do 22. Ali será seu posto de observação. Não é preci­so dizer mais. Quando estiver lá, compreen­derá qual é a sua missão. Está sendo espe­rado .

Encurvado, Denis dirigiu-se para os Cam­pos Elísios. Mas não percorreu mais de vin­te, quilômetros naquela direção e regressou com rapidez, sem. esquecer de se apoiar no bastão branco.

Viu Jarnac chegar diante do 65, com a gola da japona bem erguida e entrar como um homem que conhece bem o lugar.

 

                                                 CAPÍTULO 3

O corredor se prolongava a perder de vis­ta como a ponte de um transatlântico, ilumi­nado por uma luz fortíssima. Jarnac encon­trou apenas um empregado de avental bran­co, que acabava de servir café em algum es­critório. Este contava a gorjeta que recebe­ra e não o viu. Uma discreta placa de cobre sobre a porta, anunciava:

GEO BEYULS - Empresário

Jarnac introduziu a chave na fechadura e girou-a normalmente. Entrou com rapidez, fechando a porta às suas costas, suavemen­te. A pequena sala-de-espera estava às es­curas. Não havia ruído algum, salvo o mur­múrio surdo procedente dos outros escritó­rios. Jarnac fechou a porta à chave.

Ao fundo, uma faixa de claridade difusa delimitava uma porta entreaberta. Jarnac encaminhou-se para ela e, empurrando um pouco, deteve-se no umbral do grande escri­tório .

A sala estava fracamente iluminada por uma janela protegida por uma cortina. Perto da janela um homem estava estendido de bruços, na clássica posição do atirador à es­preita. Olhava atentamente para baixo através do Visor telescópico de uma carabina de caça. A culatra da arma encaixava-se em seu ombro direito. A extremidade do cano, prolongado por um grosso tubo preto, repousava sobre um tripé metálico.

Max Jarnac tossiu suavemente para anun­ciar sua presença. O desconhecido tinha ner­vos de aço. Girou lentamente, mostrando seu rosto magro, de olhos cinzentos e ar irônico. Seu crânio redondo estava recoberto por densa cabeleira loura cortada à navalha.

- Já estava em tempo... Aquele idiota do Denis devia ter dado um jeito de lançá-lo de pára-quedas aqui ao mesmo tempo que eu. Estou congelado desde às nove da manhã nesta posição. você logo ficará no mesmo estado.

- Vim de fora e viajei toda a noite. Quem é Denis?

- Ei! você não veio de parte do caolho?

- Claro que sim. Mas não sabia seu nome. Isso é tudo.

O louro voltou à sua posição de atirador à espreita e, sem deixar de observar através das esteiras finas da cortina, perguntou:

- Como é o seu nome?

- Jarnac.

- Ora! Então você é Jarnac... Denis falou-me várias vezes em você e contou-me algu­mas de suas aventuras.

- Pensava que o caolho fosse menos conversador. Sempre pensei que o anonimato fosse uma cláusula muito importante entre nós.

- Não leve a mal, compadre. Acha que te­nho cara de liquidar companheiros de armas? Denis e eu lutamos juntos na Argélia. Meu nome é Flambel.

- Muito prazer - disse Jarnac, com ironia. Erguendo o queixo num gesto brusco em direção à cortina, Flambel prosseguiu:

- Do jeito que vão as coisas, acho que nos veremos em complicações antes do anoite­cer .

- De que se trata?

Flambel mostrou-se sinceramente surpre­so:

- Denis não lhe disse nada?

- Não.

- Instale-se à minha direita e eu lhe expli­carei a operação. Mas primeiro faça como eu. Ponha-se à vontade.

Flambel estava em mangas de camisa, mostrando antebraços musculosos, salpica­dos de sardas.

Após tirar a japona e o gorro, Jarnac es­tendeu-se sobre o tapete, ao lado de Flam­bel. Logo descobriu o campo de tiro através das cortinas de plástico. Sua surpresa diver­tiu Flambel.

- Não adivinhou ao subir? A escada tam­bém dá acesso ao edifício do lado. O 65-B. Os escritórios situados do lado esquerdo, do­minam as Arcadas do Prado, que põem em comunicação os Campos Elísios com a rua Nagent. O posto de espreita que agora ocu­pamos está instalado aproximadamente no centro da passagem.

Jarnac examinou com curiosidade aquela rua interior, profusamente iluminada. Re­cordou te-la atravessado duas ou três vezes antes.

Eram apenas onze horas, mas muitos transeuntes já circulavam nos dois sentidos, parando para olhar as vitrinas. Jarnac co­mentou aturdido:

- Isto é uma loucura! Não podemos atirar nesse formigueiro humano...

Flambel ergueu os ombros com indiferen­ça.

- Por que não? Atrás desta cortina ninguém nos verá lá de baixo. você observou bem as «ferramentas»? Com um silenciador deste ta­manho, o tiro fará menos ruído que a rolha de uma garrafa de champanhe...

- Mas quando alguém cair, todos olharão cá para cima.

- E no mesmo instante fecharemos por completo a cortina, eu desmontarei a arma um em dois tempos, escondendo-a dentro do estojo daquela máquina de escrever e sairemos daqui assobiando tranquilamente.

- E que acontecerá no corredor?

- Todos estarão nas janelas do lado das Ar­cadas e chegaremos lá em baixo sem necessi­dade de apressar o passo. Ao entrar no hall não viu dois carros estacionados no pátio?

- Claro que vi. Olhei bem para ver se ha­via gente dentro espiando.

- O mais próximo à escada está à nossa disposição para a retirada. Ainda que você não visse, tem um chofer. Estará preparado para abrir-nos a porta e, cinco minutos de­pois, brindaremos o feliz término de nossa missão em qualquer bar elegante da Porta de Clichy. Será fácil, companheiro!

- Prefiro retirar-me só e a pé. O caolho re­petiu-me muitas vezes que na selva do as­falta nunca se deve depender de ninguém para a fuga... você conhece o chofer?

- Nunca o vi, mas pode ter confiança no ve­lho Denis. Tem o dom inato da estratégia e da organização.

- Será que o velho não podia escolher um lugar menos concorrido? Isso é como atirar uma bomba no interior da Ópera e...

Flambel agitou bruscamente a mão es­querda para faze-lo calar. Ao mesmo tempo a direita deslizava para perto da carabina. Jarnac ergueu a cabeça para olhar entre as lâminas da cortina. Várias pessoas estavam paradas ante as estantes duma livraria.

Um homenzinho de rosto avermelhado es­tava parado exatamente diante do ponto de mira da carabina. Folheava placidamente um livro. Ao cabo de alguns instantes deixou-o na estante inclinada e afastou-se. Suspiran­do, Flambel deixou repousar a culatra da ar­ma. Sua testa brilhava de suor e exclamou:

- Que inferno! Desde às nove da manhã es­tou apontando para cretinos que nunca esti­veram tão perto da morte. Tudo por causa de um livro... Ainda bem que você veio substituir-me...

Jarnac tentou dissimular seu assombro:

- A quem devemos liquidar? - Flambel inclinou a cabeça e riu:

- Pode chamar-me de louco, mas não tenho nem idéia. Nem Denis. As instruções que me deu são tão absurdas como a escolha deste lugar. Tenho a impressão de que nem o che­fe de Denis sabe a identidade do condenado à morte. Ocupe meu lugar e logo compreen­derá o que o caolho espera de seus melhores atiradores.

Após lançar um último olhar através da cortina, Flambel rolou agilmente para um la­do. Jarnac colocou-se por trás da carabina e olhou para baixo.

- Uma Skoda, calibre   38 - disse Flambel, com irreverencia. E depois acrescentou com um sorriso irônico:

- Se você vir aparecer sob as Arcadas um rinoceronte, atire... Pode ser um espião dis­farçado ... E essa carabina dará conta de­le...

Liberto de sua posição, flexionou os mús­culos, após secar o rosto com um lenço. De­pois ajoelhou-se junto a Jarnac e disse em voz baixa:

- A partir de agora não abandone a linha de mira e esteja preparado para atirar. Não estou brincando. Eu mesmo montei essa ins­talação e o cano aponta para um ponto pre­ciso. Que está vendo agora?

- As estantes da livraria. A do fundo fica paralela a vitrina da camisaria...

- Não! Não empregue seus olhos e, sim, a lente telescópica. Ela lhe dará exatamente o objetivo de morte.

 

                                                 CAPÍTULO 4

Jarnac aplicou o rosto contra a culatra e o alvo apareceu subitamente em frente a ele, no disco luminoso: as linhas do visor cruza­vam-se exatamente sobre um grosso livro de capa de pele verde. Este estava colocado na prateleira, como muitos outros. Jarnac não percebeu nada fora do comum no livro, a não ser a encadernação de pele verde. Não ha­via título, inscrição ou etiqueta de preço...

- Já viu? - perguntou Flambel.

- Por enquanto só vejo um livro de capa verde.

- Ótimo. Não o deixe escapar. Enquanto estiver ali, teremos uma oportunidade de ga­nhar nosso dinheiro. Este livro serve de is­ca. Segundo Denis, antes do anoitecer, um homem se deterá para comprá-lo. É a esse homem que devemos suprimir.

- Que aspecto tem ele?

- Não tenho nem idéia. Pode aparecer a qualquer momento e sua aparição não deve pegar-nos desprevenidos. Para nós a maior dificuldade está em não errar o tiro. Só de­ve ser eliminado o homem que agarrar o li­vro verde. E agora você já sabe tanto quan­to eu.. .

Jarnac, sem afastar a vista do visor telescópico, perguntou:

- O primeiro idiota que se enamorar do li­vro de capa verde e quiser comprá-lo, leva­rá um tiro na cabeça. Como poderemos ter certeza de que eliminamos o homem certo?

- Já pensei nisso. Falei a Denis e ele, rindo, disse que esse escrúpulo poderia custar-me a vida. Segundo ele, esse livro, oferecido a qualquer comprador, só pode tentar uma pes­soa. A que estou esperando em vão, desde as nove da manhã.

- Essa explicação foi suficiente para você?

- Bem, suponho que os vendedores estejam a par do segredo e só soltarão o livro nas mãos do «condenado».

- Estive observando os balconistas. Não tem aspecto de agentes de espionagem. Acha que se mostrariam tão calmos se estivessem a par do segredo?

Flambel levantou-se um pouco para ob­servar o interior da livraria. Os dois ven­dedores andavam de um lado para o outro, perfeitamente calmos. Um deles, velho e cal­vo, sorria satisfeito, sem perder de vista a vitrine.

O outro, mais jovem e moreno, com ar de intelectual, ia de uma estante para a outra para estimular os compradores indecisos. Não havia o menor artifício em seu compor­tamento. Os dois pareciam preocupar-se unicamente em vender. Jarnac comentou:

- Acha que tem o aspecto de saber que, de um momento para o outro, pode chover chumbo nos fregueses?

- Já os observei com atenção. Quer saber minha opinião? O livro em si não represen­ta nada e cometeríamos um erro se lhe concedêssemos mais importância do que esses dois homens. Talvez já esteja vendido, ou pelo menos deve estar reservado para o compra­dor que se apresentará hoje.

- Mas você continua sem saber qual é o seu aspecto.

- Ninguém sabe nada a respeito desse ho­mem, nem os discretos chefes de Denis. Pe­lo visto ele se denunciará infalivelmente ao levar esse diabólico livro verde... Às vezes a gente se aborrece lendo livros maçudos... Mas nunca ouvi falar num livro que conde­nasse o leitor à morte!

Jarnac notou o telefone colocado no chão, sobre o tapete. Flambel explicou:

- As vezes soa. Não faça caso. Não é para chamar o empresário. Geo Geyuls desapare­ceu de circulação há seis meses. Por outro lado, ninguém fala do outro lado do fio. De­nis não me falou nada nesse telefone, por isso desligo sempre sem lhe dar importância.

- Não acha estranhas essas chamadas na ausência do dono do escritório?

- Como a chamada é feita a intervalos regulares, suponho que os chefes se inquietam por nossa causa. Ao desligar, demonstro que estamos em nosso posto. Por outro lado, te­nho a certeza de que alguém nos observa, para comprovar os efeitos de nossa pontaria.

Flambel levantou-se, afastando-se um mo­mento. Jarnac começava a suar por trás da carabina. Cada vez que alguém parava per­to do livro verde, seu dedo fechava-se sobre o gatilho.

Flambel consultou o relógio e disse:

- São onze e meia. Vou deixá-lo por um momento. Até as doze, digamos. Se por azar o homem aparecer durante esse intervalo, elimine-o e vá embora sem me esperar. Não sou frouxo, mas três horas deitados aí me deixaram mal. Estou cansado e preciso ir até um bar beber um pouco. Quando voltar, fa­remos turnos de quinze ou vinte minutos. A propósito, você já almoçou?

- Não ponho nada no estômago desde o ca­fé da manhã.

- Posso trazer-lhe um sanduíche - riu Flambel.

- Prefiro ficar em jejum... Talvez assim atire melhor...

- Você superestima sua resistencia, Jarnac. Aposto que quando voltar o encontrarei exas­perado e suando em bicas.

- Não sei... Até agora só agi individual­mente na «selva» de Paris. Nunca tive com­panhia .

- Mas cansou de agir em grupo na Argélia ou no Congo, não? É sempre mais divertido ter companhia. Até logo, companheiro.

Sua alta silhueta esfumou-se na escuri­dão. Pouco depois, Jarnac ouviu o ruído da porta fechando-se.

Passado o meio-dia, uma velha de casaco de peles deteve-se inocentemente ante a es­tante. Abriu o livro verde com mãos tremu­las, fez algumas perguntas ao empregado, que informou-a com grande delicadeza. De­pois abriu a bolsa e começou a mexer na car­teira... Por fim deixou o livro em seu lugar e afastou-se sã e salva. Jarnac respirou aliviado e murmurou furioso:

- Você se salvou de boa, vovó...

Deu um pulo ao ouvir soar o telefone. Estendendo a mão esquerda, apanhou o fo­ne. Não ouviu nada, mas percebeu uma pre­sença vaga no outro extremo do fio. Aquele silencio exasperou Jarnac que, apertando os lábios, assobiou.

Como resposta ouviu uma risada abafada:

- Como vai? Aqui quem fala é Flambel. O livro continua em seu lugar? Tive uma idéia genial. Antes de subir, vou dar uma volta para ver o maldito livro mais de perto.

- Você acha que o caolho aprovará essa curiosidade fora do regulamento? Sua atitu­de pode provocar o interesse de qualquer es­pião escondido pelos arredores. E se ele o seguir até o escritório, estragará tudo. Aca­be logo de comer e venha substituir-me, sem cometer imprudências. Não deixei de vigiar um momento, desde que você saiu. E estou nervoso como nunca...

- Tenha um pouco de paciência, amigo. Daqui há pouco aparecerei nas Arcadas, pelo lado dos Campos Elísios.

- Não faça isso! você vai se meter numa casa de maribondos da qual só poderá sair li­quidando uma meia dúzia...

- Não seja tão pessimista, rapaz! Não pen­se que o mundo inteiro está com os olhos nes­se livro... Quero saber o que ele contém. Nada de erros, amigos... Não vá me trans­formar numa vítima inocente de seu nervosis­mo. Trate de ocupar-se do resto.

- Que resto?

- Quando eu voltar as costas, observe os li­vreiros. Se fizerem parte do plano, você logo verá pela sua reação.

 

                                                 CAPÍTULO 5

Flambel apareceu pelo lado dos Campos Elísios, ao lado do Hotel Claridge. Pareceu-lhe muito alto e largo de ombros. O rosto risonho e inteligente tinha algo de diabólico. O clássico aventureiro despreocupado. Ao chegar às estantes de livros, ergueu o rosto e piscou um olho. Logo agarrou o livro de pele verde cem as mãos enluvadas. Abriu-o pela metade, com expressão plácida.

O velho calvo saíra, cem certeza para al­moçar. O moço recolhia dinheiro, devolvia o troco, enrolava os pacotes, respondia pergun­tas tudo, sem perder o ar de vendedor consciencioso. Aproximou-se do fregues louro que se interessava por aquele livro encader­nado em couro verde. Flambel perguntou-lhe alguma coisa. O Vendedor respondeu, como que lamentando ter de recusar. Regateavam. O vendedor negava com crescente energia.

Por fim Flambel deixou o livro e afastou-se. O vendedor de ar intelectual tinha uma expressão dura, agora. Enquanto Flambel se afastava em direção à rua Nogent, agarrou o telefone e discou rapidamente um número.

Falou muito depressa, sempre com os olhos fixos no homem que se afastava. A co­municação durou quinze segundos.

Jarnac deixou a carabina enfocada sobre o livro verde e foi até à sala de espera para abrir a porta. A saída do meio-dia esvazia­ra os escritórios. O corredor estava totalmen­te deserto. Subitamente apareceu Flambel, caminhando apressado. Ninguém o seguia. Nenhuma porta se abriu após a sua passa­gem. Deu um pulo ao ver Jarnac parado à porta.

- Você está louco? Por que soltou a espin­garda?

- Ela não atirará sozinha, não se preocupe. Seria melhor que tivesse mais cuidado com a sua pele. Não quero perder a minha numa missão que já vejo fracassada de antemão. Você foi localizado. Os dois livreiros estão metidos no assunto. você não devia ter apa­recido justamente no lugar escolhido para suprimir um dos de seu bando...

Fechou a porta à chave e girou o comutador. A lâmina do teto inundou-os repenti­namente de luz. Agora Flambel pôde ver com nitidez seu cúmplice, do qual só adivi­nhara a estatura e a fisionomia na penumbra do escritório.

Apesar de sua juventude, de seu perfil romano, de seus olhos escuros e aveludados, o favorito do caolho não parecia muito amá­vel e sua fisionomia agradável ocultava uma crueldade latente. Era preciso ter cuidado com um homem assim...

- Acalme-se, Jarnac. Não briguemos por to­lices... Apenas reconheci um pouco o terre­no. Não vejo onde está a imprudência.

A chamada estridente do telefone os fez regressar ao escritório. Flambel agarrou o fone e Jarnac voltou para o seu lugar. Nada mudara. O livro verde continuava ali. No interior da loja, o jovem vendedor aproveita­va a calma para, sentando junto à caixa, fo­lhear uma revista. Flambel recolocou o fo­ne no gancho sem falar. Comentou com sua costumeira ironia:

- Outra vez o grande chefe. Queria saber se esse sujeito nos vigia através da parede ou do teto...

- Não é o único. Logo que você voltou as costas, o livreiro mais moço correu ao telefo­ne para anunciar sua visita. A quem? Tal­vez ao velho calvo. De qualquer forma, te­mos de prestar atenção a esses dois.

- Que faria se eu levasse o livro?

- Pode estar certo de que não falharia. Se­ria uma pena, pois seu chapéu é de primei­ra...

- Bem... Vejo que tem senso de humor... Isso ajuda muito. Vou substituí-lo, pode ir comer alguma coisa.

Arregaçando as mangas, sentou-se atrás da carabina, enquanto Jarnac abria o pacote com o lanche. O bom vinho seco e o sanduí­che devolveram-lhe um pouco o bom humor. Aproximou-se do companheiro, que fumava tranquilamente e perguntou:

- Que tem esse livro de tão precioso?

- É difícil imaginar que um homem possa ser liquidado por semelhante coisa. É sim­plesmente um velho catálogo da Fábrica de Armas e Bicicletas de Le Nouvion. Data do ano de 1904. À primeira vista, não tem na­da de particular, a não ser o couro esplendi­do, que parece muito luxuoso para envolver quinhentas páginas de papel mofado. Fo­lheei todo o volume sem descobrir anota­ções.

«O vendedor fez comentários que me pa­receram sinais. Disse coisas assim: Esta en­cadernação é uma beleza. Revestiria ade­quadamente as obras de Arnaldo Visconti.» Esperava, sem dúvida,, uma resposta à altu­ra, mas eu nunca ouvi falar nesse Visconti... Não entendo muito de literatura...

- Que mais lhe disse?

- Quando lhe perguntei o preço, ele res­pondeu calmamente: duzentos francos anti­gos. Fingi indignar-me. ele replicou: «Esta obra fazia parte da biblioteca de um prínci­pe... Sua encadernação foi feita por Mar­tin Grelto...» Então fui embora sem insistir mais...

- Mas aquele homem teve tempo para gra­var bem sua fisionomia. Fez uma chamada telefônica para identificá-lo. Se você passar outra vez por perto do tal livro verde, manda­rá um assassino eliminá-lo...

- Você pensa demais, rapaz. Vamos, venha substituir-me um pouco. Já estou ficando com os braços dormentes.

Trocaram de lugar. Apesar de sua expe­riencia, Jarnac estremeceu ao aproximar-se da arma carregada e olhar para os transeun­tes que desfilavam como marionetes ao fun­do do visor. Ao cabo de alguns instantes, murmurou:

- Essa foi a missão mais idiota que me en­comendaram até agora! O caolho devia infor­mar-se melhor...

- Acha que Denis mobilizaria seus melho­res homens para eliminar um simples pisto­leiro? Todos os que liquidei nessa guerrilha secreta não valiam grande coisa... Eram criminosos internacionais. Portanto, como so­mos dois agora, deve tratar-se de uma caça bem maior. E o pagamento será à altura.

- Eu não devia estar aqui. O tártaro quase me obrigou, apelando para a minha solida­riedade humana.

- De qualquer forma, receberá vinte notas das grandes. E eu, outro tanto. Um dos dois ganhará sem precisar sequer atirar. A mis­são pode nos parecer muito estranha, mas merece toda a nossa atenção e disciplina. O resto não é problema nosso.

 

                                                      CAPÍTULO 6

Dyrk Vandam encontrava-se exatamente a quarenta e cinco metros da boca da Skoda. Mas entre ele e a espingarda estavam os es­pessos muros de Claridge. E seria preciso a explosão de um obus para tirar-lhe a alegria de viver.

Uma provocante loura chamada Dora aca­bava de sentar-se em seus joelhos e ele se di­vertia fazendo-a saltar e estalando a língua, para imitar o ruído de cascos de cavalos. Mas sua atenção estava concentrada no decote do robe dela.

Dora perguntou, indignada:

- Que negócio é esse de falar em voltar, se mal chegamos em Paris?

Se perdesse uma hora ou duas além do horário calculado, Vandam corria o risco de ser localizado pelo inimigo. Nada em sua aparência fazia suspeitar o traficante de drogas e divisas. Dora servia-lhe de disfar­ce há seis meses, mas não sabia de nada. Co­nhecera a bela loura uma noite, numa cove onde ela trabalhava num número de strip-tease.

Erguendo-se bruscamente, Vandam fez a loura cair sobre o tapete e ajudando-a a le­vantar-se, disse:

- Tenho de fazer uma visita aqui perto do hotel. Não demoro. Enquanto isso, trate de vestir-se. Iremos almoçar num lugar formi­dável .

Vestindo o paletó, Vandam desceu pelo elevador repleto de turistas americanos. Ha­via muita gente no hall, A expressão alegre de Vandam ocultava uma constante vigilân­cia, que se tornava mais aguçada nos aero­portos, estações e halls de grandes hotéis. Mas não viu nenhum daqueles homens som­brios e solitários, cuja presença em meio aos alegres turistas desentoa e provoca uma im­pressão de ameaça latente no viajante in­quieto. Nunca tivera complicações com a po­lícia francesa, mas as coisas ficariam feias se a Interpol se metesse.

Ao sair, tornou a encontrar o céu nublado e a neve que deixara em Bruxelas. Ateve-se estritamente às instruções de Raven e pene­trou lentamente nas Arcadas do Prado. Ao passar diante do café, o livro verde atraiu o seu olhar. Estava exposto no lugar indicado, no centro da estante à direita, ao alcance de qualquer mão.

Naquele momento uma senhora idosa de casaco de peles erguia o livro para examiná-lo mais de perto. Sem poder evitá-lo, Van­dam sentiu-se quase escandalizado. Logica­mente o negócio só podia funcionar sem peri­go graças a um estratagema prudente que enganasse a polícia. Mas parecia-lhe um pe­rigo terrível a curiosidade da velha, que exa­minava e folheava a obra. Um livro que re­presentava para ele mais de duzentos mil francos líquidos.

- Desculpe, minha senhora, mas este catá­logo já está vendido.

A mulher afastou-se resmungando, en­quanto o vendedor dava meia volta e regres­sava ao interior da livraria. Vandam ficou confuso por causa daquele movimento brusco e decidiu aguardar, observando os arredores.

Raven não lhe dissera nada de especial em relação aos guardiães do livro verde. Na­quele momento só estava ali um rapaz quase imberbe, de rosto fino e que dissimulava mui­to bem sua participação.

O lugar era perfeito para um contato anô­nimo. O fato de comprar um livro entre mil não podia intrigar ninguém.

Vandam percebeu que as lojas daquele lado das Arcadas dispunham de um segundo pavimento, com janelas do vidro fosco. Olhando para cima viu que o andar superior abrigava exclusivamente escritórios comer­ciais, cujas janelas davam para as Arcadas. Um daqueles escritórios, o que ficava logo acima da livraria, tinha a janela entreaberta, mas uma cortina de metal ocultava o interior em penumbra.

Contornou todo o slaid, deixando-se le­var pela multidão, o que o fez regressar em poucos minutos ao seu ponto de partida. Ao chegar novamente perto da livraria, fez um gesto de aborrecimento.

Parecia que todos haviam se combinado para fazer fila diante do mesmo artigo. Um homem louro e forte, acabava de apanhar o livro verde. Manipulava-o com rudeza, dis­cutindo obstinadamente seu conteúdo e pre­ço. O jovem vendedor resistia magnificamente ao ataque e não soltaria a presa, mas a comédia não podia durar muito tempo.

Intimamente desesperado, Vandam ini­ciou sua segunda volta, para esperar um mo­mento mais favorável. Aqueles contratempos haviam despertado seu receio. Num assunto daqueles, as pequenas coisas costumavam prenunciar grandes dificuldades. Contudo, estava certo de que ninguém o seguira nem espreitara quinze horas antes, nas escadas da estação de Bruxelas.

Como de costume, Dora chegara separa­da ao encontro e os dois haviam se encontra­do às onze da noite na cabina do Trans-Europ procedente de Amsterdam. Na Esta­ção Norte, em Paris, quem iria ocupar-se de um casal de namorados perdidos no tumulto da saída?

Finalmente só se hospedara no Claridge duas vezes em três anos e a polícia francesa não tinha motivo nenhum para seguir a pis­ta de um simples turista.

Vandam acelerou a marcha ao comprovar que os clientes se haviam dispersado diante da estante à direita. Deteve-se no lugar indi­cado e ergueu a mão para chamar a atenção do vendedor. Abandonando a caixa, o rapaz aproximou-se. Nunca se haviam visto, mas Vandam percebeu em seu amável sorriso uma espécie de cumplicidade que o reconfortou.

Ia agarrar o livro verde quando, por ca­sualidade, seu olhar pousou nas silhuetas que se moviam do outro lado do slaid. O vendedor o animava:

- Temos livros de arte de muito valor. Es­colheu algum em particular?

- Sim... Bem... Talvez - e balbuciando aquelas palavras, retirou a mão.

Empalideceu. Por cima dos ombros do vendedor seus olhos se cravaram num rosto de expressão hostil.   O homem, envolvido num casaco marrom, folheava um livro de bolso, mordendo uni cachimbo apagado. Vandam o conhecia muito bem. Era o Comis­sário Rocher. Vira-o testemunhar em Bruxe­las ante um tribunal, durante um processo de tráfico de brancas. Dois amigos de Vandam, que haviam conseguido escapar de um longo interrogatório, o haviam prevenido contra aquele homem de expressão fria e distraída, que ocultava uma astúcia diabólica.

O vendedor colocava a mão sobre o livro verde, dizendo:

- Também temos obras obtidas em leilão. Esta preciosidade, por exemplo...

Insistia. Alguém, certamente Raven, de­via ter-lhe fornecido dados sobre o visitante, mas fora combinado também que este se apre­sentaria sob um anonimato total e ante aque­la insistência, Vandam decidiu ir embora. -Pensarei um pouco e voltarei mais tarde.

Retrocedeu e ocultou-se entre a multidão. O Comissário Rocher não erguera a vista do livro de bolso. Mas aquilo não significava nada. Seus homens podiam estar patrulhan­do o setor. Vandam afastou-se das Arcadas e não se sentiu seguro enquanto não penetrou no elevador do Claridge.

Dora, perfumada e maquilhada, acabava de vestir-se. Para não assustá-la, Vandam es­forçou-se por recuperar a calma e ajudou-a a colocar seu casaco de vison.

- Você vai me fazer um pequeno favor, be­leza. Uma coisa muito simples.

A moça não estranhou. Dyrk pedia tão pouco e dava tanto que ela lhe perdoava to­dos os mistérios.

- Que quer que eu faça? - perguntou.

- Conhece as Arcadas do Prado?

- Claro, seu bobo. Compro sempre minhas meias numa loja daquelas, perto da rua Nogent...

- Muito bem... Conhece bem o lugar?

- Claro que sim... Uma mulher sempre olha para tudo.

- Que há no centro da passagem?

Dora permaneceu em silencio por um mo­mento, contemplando a parede com expres­são estúpida. Por fim, murmurou:

- Agora me lembro!... É uma livraria...

- Ótimo. Você é muito esperta... Agora ouça bem: você deve entrar na Arcadas pe­le portal à direita do hotel e dirigir-se direta­mente à livraria. No centro da primeira es­tante há um livro grosso e encadernado em couro verde. Não precisará pagar nada. É só recolhe-lo e apresentá-lo ao vendedor, di­zendo: «Vim buscar este livro de parte do tio Chil.» Depois volte depressa e ganhará o melhor almoço de sua vida.

- Tudo isso me parece muito infantil. Que o impede de buscar pessoalmente esse livro?

- Sou muito crescido para dizer tolices a pessoas que não conheço. Ririam de mim. Mas com você será muito diferente...

Dora ajustou a boina de pele antes de sair e disse:

- Não sabia que você era tão tímido, gordu­cho...

Ao deixar o hotel, girou à esquerda em dire­ção àg Arcadas. Entrou pela passagem e co­meçou por comprar seis pares de meias. Lo­go dirigiu-se para a livraria. O volume de capa verde estava bem à vista, apanhou-o decidida e estendeu-o distraidamente ao ve­lho livreiro, que lhe disse sorridente:

- Sinto muito, senhorita. Este livro já está vendido.

- Eu sei - replicou Dora. - Venho recolhe-lo de parte de meu tio Chil. Enrole-o duma vez, que estou com pressa.

O que parecia preocupar tanto o gordo Dyrk não passava de um simples passeio pa­ra ela. Não percebeu sequer a súbita rigidez do velho vendedor, nem sua atitude servil, enquanto debruçava-se sobre a mesa, abrin­do e fechando caixas, em busca de uma que servisse. No outro extremo do stand, um li­vreiro mais moço, com aparência de intelec­tual, contemplava a cena com falsa despreo­cupação.

De seu posto, Jarnac tomou posição para atirar. A seu lado, Flambel sorriu satisfei­to.

- Por fim! Assunto terminado! Missão cum­prida. Logo que atirar, desenrosque o silenciador. Enquanto isso, desmontarei o resto. Guardaremos tudo no estojo da máquina portátil e você sairá na frente, sem preocupar-se comigo. Eu me encarregarei do transpor­te.

Parado por trás da cortina, observava o campo de tiro com apaixonado interesse. Jar­nac replicou calmamente:

- Prefiro aguardar o último segundo. Por enquanto nada prova que a loura se afastará com o livro. Como Denis não nos deu infor­mações sobre o comprador, temos de ser pru­dentes antes de apertar o gatilho.

- Vá para o inferno! Que está esperando?

- Não receberíamos pagamento algum por eliminar uma loura intrometida. Pense um pouco, rapaz. Deve haver algum erro... Essa loura não tem cara de criminosa...

- Nada de sentimentalismos agora! Atire! Daqui há pouco já será tarde...

- Não. Ainda não. Além disso, você não é meu chefe...

- Atire! A moça está se afastando... Lançou-se para Jarnac dando-lhe um em­purrão. Um joelhaço fe-lo encolher-se e ro­lar para o lado. Agarraram-se freneticamente sobre o tapete. Max Jarnac só tinha uma idéia em mente. Sair sem complicações da­quela espantosa confusão, passar a fronteira mais próxima e despistar para sempre o cao­lho e sua organização...

 

Lá em baixo, o velho livreiro, encurvado sobre a mesa, acabava de embalar o livro. O rapaz abandonou a caixa e aproximou-se do velho, que se mantinha imóvel. Trocaram al­gumas palavras em voz baixa olhando em torno, inutilmente. A loura desaparecera.

Submetido à força, Jarnac ergueu o bra­ço em sinal de rendição. Soltando-o, Flambel retrocedeu e perguntou sorridente:

- Que, diabos, houve com você? Qual é a seu jogo?

Observavam-se na penumbra, como dois felinos dispostos a atacar-se. Flambel insis­tiu:

- Denis enganou-se com você. Se tem tan­tos escrúpulos, devia mudar de profissão...

- Quero apenas salvar a pele. Você se en­tusiasma com facilidade. Não vê nada além do ponto de mira de uma arma. O Tártaro meteu-nos numa missão que funciona como uma ratoeira...

- E você sabotou tudo! Agora a loura su­miu!

Jarnac ergueu o busto, apoiando-se nos cotovelos. Aproximou-se do visor da carabina e disse:

- Venha ver o panorama.

Afastou-se, enquanto Flambel inclinava-se por sua vez sobre o visor. Nada mudara. O objetivo continuava à vista. O livro verde continuava sobre a prateleira. O dono da li­vraria e seu filho atendiam os clientes. Flam­bel murmurou:

- Caramba, você estava com razão! Por en­quanto não podem censurar-nos por nada. E ao dizer censurar, você já sabe...

Passou um dedo pela garganta num gesto eloquente, antes de acrescentar:

- Peço-lhe que seja leal até o fim e que não me deixe só.

- Ficarei de sentinela mais uma hora. Se dentro desse tempo o livro verde ainda esti­ver aí irei embora. E aconselho-o a fazer o mesmo. De qualquer forma, ficará com a mi­nha parte. Não quero ver mais o caolho.

Voltando à sua posição junto à arma, Flambel murmurou:

- Gostaria de saber o que aconteceu com a loura... Agarrou o livro com decisão, es­perou que o enrolassem e de repente desapa­receu. Talvez a cara do livreiro a tenha as­sustado ...

- Não. Ela viu outra pessoa, do outro lado do stand

- Como sabe?

- Eu estava na «primeira fila», será que já esqueceu? Segui a direção do seu olhar. Es­tava com o dedo sobre o gatilho, mas a ex­pressão da loura me fez hesitar.

- Parecia assustada?

- Não. Estava furiosa.

À princípio Dora achou que o velho se demorava muito para empacotar o livro. Er­guendo distraidamente os olhos para o stand da frente e ficou petrificada. Um ho­mem gordo e baixo abria passagem entre os clientes da livraria para dirigir-se ao fundo das Arcadas. Vestia um casaco de pele de camelo muito usado e levava debaixo do braço uma pasta de couro de porco.

Indignada, Dora murmurou:

- Que bandido!... Dessa vez ele não me escapa...

E afastou-se rapidamente da livraria. Passou apressada pelo café e encurtou o ca­minho através das mesinhas do bar, sem preocupar-se com os protestos dos fregueses. O homem gordo perdera-se de vista. Furio­sa, Dora perdeu cinco minutos explorando as lojas no caminho. Uma caminhada que a levou finalmente às portas envidraçadas que davam para os Campos Elísios. Mas nem ali havia rastro do sujeito.

Regressando ao interior das Arcadas, des­cobriu a escada iluminada que conduzia ao andar superior. Na parede lateral havia um quadro com o nome de umas cinquenta com­panhias. Examinou-as sem grandes esperan­ças até que subitamente achou o que encon­trava: «Geo Beyuls - Empresário - Sala 222.

 

                                               CAPÍTULO 7

Jarnac acabava de substituir Flambel e os minutos transcorriam num mal-estar indefinível. Lá em baixo, as Arcadas viviam o momento mais movimentado do dia. Uma densa multidão circulava entre as vitrinas. O telefone soava a intervalos regulares.

O rumor que vinha da rua era tão inten­so que nenhum dos dois ouviu o ruído da fe­chadura. A porta de comunicação abriu-se, inundando-os de luz. Flambel, que estava parado junto à cortina, ficou na expectativa. A silhueta do recém-chegado recortava-se contra a porta. Jarnac voltara-se, sentando-se para encobrir a carabina.

- Que fazem aqui? - perguntou o recém-che­gado, em tom indignado.

Flambel replicou:

- Enganou-se de porta, amigo. Quem é você?

- Geo Beyuls. Estou voltando de viagem. Este escritório é meu.

- Era. Está vazio há seis meses. O gerente entregou-nos as chaves. Não seja teimoso e vá embora...

Jarnac interveio:

- Não nos aborreça mais...

Beyuls avançou para os desconhecidos e perguntou:

- Que estão fazendo aí?

- Estamos filmando a multidão das Arcadas com uma teleobjetiva. Quer ver?

Jarnac afastou-se. Beyuls inclinou-se com curiosidade sobre a Skoda 38 e retrocedeu sobressaltado, como se acabasse de ver um monstro. Flambel derrubou-o com um direto na cabeça e Beyuls caiu sem sentidos.

- Eu cuido dele - disse Flambel a Jarnac. - Não se afaste da carabina.

O empresário foi encerrado num armário de parede do corredor, com os pés e as mãos amarrados. Voltando para perto de Max, Flambel lamentou-se:

- Se tivermos de sustentar uma luta de duas frentes, as coisas ficarão feias. Avisarei o chefe pelo telefone. você não estava nada errado sobre essa missão...

- E Beyuls?

- Dormirá um pouco. Esperemos que o livro verde encontre seu dono antes que o empre­sário acorde. Seguirei seu conselho.   Será melhor mesmo fugir pela outra escada. Aque­le carro que está parado lá no pátio já me parece um coche fúnebre...

Fitou com ar de censura seu companheiro de luta:

- Você devia ter liquidado a loura. Um ti­ro bastava para dar por acabada a missão.

Começaram a vigiar novamente e passa­ram longos minutos em silencio. De repente a campainha da porta soou. Voltando a ca­beça, Jarnac disse:

- Alguém está batendo na porta!

- Isso não estava no programa... Denis não falou que receberíamos visitas...

O visitante apertava a campainha com insistência, alternando toques breves e longos. Jarnac disse:

- Não pode ser o caolho. Não se arriscaria tanto.

- Desligue a chave da luz. Fica dentro do armário. Se o empresário acordar, faça-o dormir de novo...

Jarnac dirigiu-se à sala de espera, abriu o armário e desligou a corrente. Geo Meyuls delirava mansamente:

- Soltem-me, canalhas! Esta noite devo apresentar vinte misses européias no Kursal de Buenos Aires. Um contrato de milhares de pesos...

Jarnac fechou a porta do armário e diri­giu-se à porta da frente. O buraco da fechadura era mais estreito que o visor da Skoda... Mas conseguiu distinguir o casaco de peles de Dora. Ela passara a bater fortemente na porta com os punhos. Flambel perguntou:

- Quem está aí, Jarnac?

- Não sei... Parece uma mulher...

- Abra a porta e trate de convence-la a ir embora, se não teremos todo mundo aqui, dentro em pouco...

- E se ela não se convencer?

- Mande-a fazer companhia ao empresário. Não posso abandonar meu posto.

Jarnac fechou a porta de comunicação e tornou a ligar a luz. Continuavam as batidas na porta. Max abriu, saltando para o lado. A visitante entrou impetuosamente. Jarnac tornou a fechar e reconheceu com surpresa a loura que momentos antes estivera com o li­vro nas mãos. Furiosa, Dora gritou:

- Onde está Beyuls? Abra logo aquela por­ta, se não...

- A senhorita enganou-se. Beyuls estará ausente até o fim do mês. Vai exibir algumas misses na América do Sul...

- Mentiroso! Eu sei que ele está aqui! Vi-o há pouco nas Arcadas!...

Dora sacudia energicamente a maçaneta da porta de comunicação. Jarnac insinuou amavelmente:

- Deve tratar-se de alguém muito parecido. Entre tanta gente, a senhorita confundiu-se...

- Não! Seria impossível enganar-me com a cara de Beyuls!... Quem é você?

- O secretário do Sr. Beyuls... Que dese­ja?

Dora soltou bruscamente a maçaneta da porta e avançou lentamente para Jarnac, com expressão ameaçadora.

- Seu secretário? Pois bem, se Beyuls não aparecer dentro de dez segundos, você vai re­ceber em seu nome...

Inclinou-se e tirou um sapato, agarrando-o solidamente pela ponta e erguendo-o como uma arma. Jarnac perguntou:

- Que tem contra Beyuls?

- Ele é um espertalhão. Maldito o dia em que apareceu no Bierstrip e extorquiu-me dez mil francos de comissão sobre um contrato fa­buloso! ... Imagine, ia levar-me em triunfo pelo Egito, a Síria e o Iraque... Continuo es­perando a passagem de avião até agora... Por isso quero encontrar Geo Beyuls. Quero meus dez mil francos de volta!

- Se os tivesse a mão, não haveria proble­mas. Mas Beyuls é muito avarento e sempre esvazia todas as gavetas antes de sair do es­critório. Volte amanhã que o encontrará.

- Mentiroso! Sei que ele está no escritório, ali dentro! Abra, ou começarei a quebrar tu­do!

Esgrimiu o sapato, batendo na porta. Jar­nac teve de interpor-se. Esquivando-se por milímetros ao salto do sapato, tentou empur­rar a loura para a porta de entrada. Dora debatia-se e subitamente deu-lhe uma bofe­tada e gritou:

- Tome isso por conta, canalha! Se seu pa­trão não aparecer...

Jarnac apoiou ambas as mãos nos ombros da loura, empurrando-a para o sofá, onde ela aterrissou de pernas para cima. O choque a fez sossegar de repente e ela começou a ge­mer:

- Eu sou mesmo uma idiota... Aquele ca­nalha não se contentou apenas com meus dez mil francos... Durante cinco noites se­guidas levou minhas comissões e tenho ver­gonha de recordar as propostas que me fez...

O empresário começou a gemer dentro do armário, arranhando a madeira com os sapa­tos . Dora levantou-se assustada:

- Você ouviu isso? Há alguém dentro da armário...

- Sim. É o cachorro do patrão. Nós o en­cerramos no armário durante as horas de ser­viço ...

Levantando-se, Dora gritou:

- Vou levar o cão como adiantamento!

E correu para o armário antes que Jarnac pudesse alcançá-la. Ao abrir a porta, deu um grito de satisfação. Deitado de costas, Beyuls esperneava. Seus olhos tinham uma expressão vaga. Confundiu Dora com uma das vinte misses que deviam ir a Buenos Aires.

Murmurou com voz pastosa:

- Que está fazendo aqui? Pepe a espera, no Kursul, para o desfile de misses. Não esque­ça que o biquíni tem duas peças e não faça escândalo, como em Montevidéu...

Agitando seu sapato, Dora gritou:

- Quero meus dez mil francos! - Jarnac interveio:

- Não fique nervosa. ele deve ter algum di­nheiro. Pegue o que lhe deve, que eu fecha­rei os olhos...

Dora revistou os bolsos do casaco de pe­le   de   camelo   até   encontrar   a   carteira. Beyuls não opôs resistencia.

Dora recuperou seus dez mil francos e, como despedida, bateu violentamente com o salto do sapato na testa de Beyuls, fazendo-o dormir novamente.

- Conta liquidada. Hoje não preciso desse dinheiro, mas fui enganada no momento mais miserável de minha vida...

- Nunca se deve perdoar uma coisa dessas - concordou Jarnac.

Já mais calma, Dora percebeu que seu in­terlocutor era um rapaz muito simpático. Sor­rindo, ajustou o casaco de vison que cheira­va a perfume caro. O empresário tornava a roncar no armário e o sofá estava perto. Jar­nac teve esperança de receber uma boa comissão. Dora apontou para a porta:

- Há alguém ali dentro?

- Não. A sala acaba de ser pintada.

- Isso não é motivo suficiente para encer­rar-se no armário - disse ela, rindo. - Por que esse trapaceiro deitou-se aí dentro?

- Com certeza a reconheceu quando pas­sou pelas Arcadas. Não me disse nada ao chegar, mas estava louco de medo...

Aproximando-se da jovem, acariciou a go­la de seu casaco.

- Bonita pele. Se brincarmos de lobo e cordeiro, prometo que me deixarei apanhar logo...

Dora consultou o relógio. Dirk a espera­va no quarto do Claridge.

- Tenho de voltar à livraria.

Jarnac regressou subitamente à terra.

- Não é preciso apressar-se - disse. - Come­teria um erro voltando lá. É melhor pensar bem antes de fazer um favor a outra pessoa.

Dora fitou-o surpresa.

- Você me viu?

- Estava parado junto à janela do escritó­rio. Você escolheu um livro sem se preocu­par com as pessoas que rondavam a livraria. Geo Beyuls desviou sua atenção no momento oportuno... Se levasse o livro verde, passa­ria por maus momentos...

- Por que?

- Há certas coisas na vida que não são para mulheres. Acho que o tal livro não era pa­ra você...

- Nunca li um livro inteiro, não sei ler di­reito. E já é tarde para aprender... Mas se voltar ao hotel com as mãos vazias, Dirk fi­cará furioso. Parece que tem grande interes­se pelo tal livro verde.

- Quem é Dyrk? - Ela riu.

- É meu amigo. Tem muito dinheiro. Pos­sui duas agencias de câmbio em Bruxelas e outras duas em Amlberes.

- É simpático?

- Nada disso! É muito gordo...

- Acho que ele não gostaria de saber de sua complicação com Beyuls...

Ela ergueu o rosto, surpresa:

- Chantagem? - perguntou.

- Não. Nunca vivi disso. É simplesmente uma advertência para que cale a boca. Não gostaria que o Bierstrip se visse subitamente privado de uma estrela...

Dora parecia fascinada por aquele rapaz moreno e atlético. Não tinha bastante intui­ção para atribuir-lhe uma profissão concreta. Mas adivinhava em seu olhar um humor inquietante que lhe inspirava docilidade.

- Que devo fazer?

- Volte imediatamente ao hotel... Em qual deles está?

- No Claridge.

- Volte para lá então e diga a Dyrk que o livro verde está à sua disposição. Veremos o que decidirá.

- É um medroso. Eu o conheço bem. Será capaz de enviar o mensageiro do hotel...

Levou uma das mãos à boca e seu rosto ficou tenso:

- Que acontecerá se ele aparecer na livra­ria?

- Não sei. Dependerá de sua sorte.

- Que me aconselha? Se não o vir voltar, agarre suas malas e vá embora.

- Dyrk corre perigo! Seria melhor avisar a polícia.

- Não é preciso. É muito possível que a po­lícia ande atrás dele há mais de vinte e qua­tro horas.

A jovem estremeceu:

- Vou embora... Nunca mais nos veremos...

- É uma pena. você me agradou muito. E sou seu amigo, acredite.

- Gostaria de tornar a vê-lo.

- Quando sair, recorde que poderá cau­sar minha morte se falar demais. Isso não importa muito, mas não gostaria de deixá-la à merce de um traficante de brancas e de um vigarista internacional.

- Já não tenho mais nada a ver com Beyuls.

- E com Dyrk?

- Ele é muito rico... Não posso permitir-me o luxo de deixá-lo.

- Então não se aproxime de forma alguma do livro verde e volte o mais depressa possí­vel para Bruxelas. A fatalidade e o destino se encarregarão do resto.

- Está zombando de mim?

- Não.   Estou sendo sincero, acredite.   É evidente que ignora onde se meteu e eu me esforço per ajudá-la. Se ao sair, tornar a sentir-se inconscientemente otimista, viverá pouco tempo, entende?

Ela ergueu-se na ponta dos pés e beijou Jarnac. Depois saiu apressada e ele viu que ninguém a seguia pelo corredor.

No escritório, Flambel demonstrou sua impaciência:

- Como demorou! Que queria ela?

- Queria falar com Beyuls.

- Suponho que concordou e que agora os dois continuam, a conversa bem amarrados no armário ...

- Deixei-a ir-se. É uma tola e não ameaça­rá nossa tranquilidade.

- Pelo visto você se esquece do barulho que ela fez à porta. Sua sensibilidade delicada o perderá um dia...

- Achei mais útil reservar o armário para os visitantes mais agressivos. Se o desfile continuar, em breve não haverá mais lugar.

Flambel riu sem vontade. Jarnac apontou para a cortina:

- Nada de novo?

- Sim. Alguém está mordendo o anzol. Mas conservarei o dedo no gatilho alguns minu­tos mais... Talvez esse seja o verdadeiro as­pirante ao repouso eterno...

Jarnac ajoelhou-se para contemplar o ani­mado espetáculo das Arcadas. No stand um homem folheava o livro verde. Mordia um cachimbo apagado. A aba do chapéu sombreava seu rosto cheio, do qual só se distinguia a boca fina e os maxilares salientes. Vestia um abrigo muito grosso e usado. O velho catálogo parecia captar toda a sua atenção. Flambel resmungou:

- Estou com cócegas nos dedos.

- Então reze para que não seja esse o ho­mem.

- Por que? Para mim tanto faz.

- Se eliminar esse homem, pode contar co­mo certo que um dia irá parar na guilhotina.

- O que? Deixe de brincadeiras macabras... Quem é ele afinal?

- Um policial. Nada mais nada menos do que Guy Rocher, comissário de Polícia.

 

                                                   CAPÍTULO 8

Ao cabo de alguns segundos, sentindo-se observado, o Comissário Rocher ergueu os olhos. O velho proprietário da Livraria Gulbrich estava parado do outro lado da estan­te e comentava amavelmente:

- Um exemplar excepcional. Uma peça ra­ra, procedente das coleções Godinsky. Vejo que o senhor sabe apreciar os livros de qua­lidade. Infelizmente vendi-o ontem.

- Por quanto?

- Duzentos francos.

- Um livro raro assim corre perigo. Seria melhor tirá-lo da estante. Alguém pode rou­bá-lo ... Passa tanta gente por aqui...

A expressão irônica do policial não con­vidava à réplica. Cumprimentou Gulbrich e afastou-se lentamente. Fazia uma hora que o Comissário Rocher perambulava pelas Ar­cadas suportando uma espera que ameaçava prolongar-se até a noite. Era ainda muito cedo para saber se a primeira saída de Dyrk Vandam tinha algum significado. Vira-o comprar um jornal e dar uma olhada nos li­vros de arte. O comissário deixara-o ir-se, pois não vira nada de suspeito.

Além disso, mantinha quatro agentes es­palhados por ali para assegurar o exito da caçada. Dois esperavam no hall do Claridge; o terceiro, Prevost, patrulhava incansavel­mente os arredores, efetuando a ligação en­tre seu chefe e o carro patrulha, dentro do qual o quarto agente ouvia o rádio transmis­sor e receptor da polícia judicial.

Aquela ratoeira camuflada no movimento de uma grande avenida era para deixar cor­rer o rato, sem deixar-se ver, até a toca onde estava o queijo: divisas, drogas, documen­tos...

Quinze horas antes, quando Vandam dei­xara seu quarto em Bruxelas, uma chamada urgente da Interpol pusera em movimento a equipe do Comissário Rocher, que saía ago­ra das Arcadas. Prevost corpulento e jovial, aguardava-o perto do número 403, com o chapéu descido até as orelhas. Deu sua in­formação:

- A atriz do Bierstrip acaba de regressar ao ninho. Subiu diretamente ao quarto de Van­dam ...

- A fome logo os fará sair..

- Ouça, chefe, cá entre nós... Seu infor­mante em Bruxelas devia ter-lhe dito que a loura participava do tráfico...

- Por que?

- Os dois saíram cada um por sua vez do hotel, como para sondar o terreno em algum lugar...

- Não creio que Dora seja cúmplice de Dyrk...

- Por que, chefe?

- Essa gente é muito esperta para empre­gar uma loura burrinha como Dora.

- Então, por que foram um após o outro às Arcadas?

- Vandam foi comprar um jornal e a loura comprou meias numa loja ao fundo.

- Mas ela demorou muito...

- Não. Eu a segui, ela saiu dentro de seis ou sete minutos.

- Sim, chefe, mas tornou a entrar nas Arca­das .

- Quando?

- Quase em seguida. Avancei até o portal e como o senhor parecia aguardar atrás de uma vitrina, pensei que mantinha contato e regressei ao carro.

- Que fazia Dora?

- Estava parada perto da escada e exami­nava o quadro com o nome dos inquilinos.

- E depois?

- Continuei lá fora. Quinze minutos depois Dora saiu e regressou ao Claridge.

- Vamos ver as coisas mais de perto. Aproximaram-se da escada. Rocher foi lendo as placas. À primeira vista todos aqueles escritórios eram suspeitos e podiam servir de camuflagem a negócios ilegais. As siglas e abreviaturas denunciavam um ca­ráter provisório, pouco dinheiro e fins-de-mês dramáticos. Rocher decidiu:

- Eliminaremos os vendedores de tapetes, os produtores de curta-metragens e os agen­tes de publicidade. Em sua opinião, o que Dora poderia procurar aqui?

Prevost riu:

- Pode eliminar também os fabricantes de fraldas e vestidos para gestantes... Se Dora estivesse esperando um bebe, não estaria no Bierstrip...

Finalmente, depois de muito selecionar, Rocher reteve somente três nomes: «Créditos Regai -Transações e Investimentos Bibliofan...»

- Por que anota Bibliofan? Parece uma bi­blioteca para estudantes, chefe.

- É uma sigla intraduzível e parece camu­flar alguma coisa. Visitarei também este ou­tro. Prevost leu em voz alta o nome que Ro­cher apontava: «Geo Beyuls -Empresário».

- Antes que você pergunte, Prevost, eu lhe darei a resposta. Um empresário pode ter re­lações com uma strippteaser, não acha?

- Claro, chefe.

- Volte ao carro e não saia de lá. Se algum dos dois sair, já sabe onde poderá encontrar-me. Começarei a investigação pelo empresá­rio.

Flambel agarrou uma garrafa de conha­que. Jarnac ouviu o ruído da tampa.

- Não vá se embriagar agora, companhei­ro. Será capaz de matar um dos livreiros...

- Beber durante uma missão é contrário a meus princípios, mas já não aguento mais. Bebeu um grande gole, estalando a lín­gua e perguntou:

- Quer um pouquinho, Jarnac?

- Por enquanto não, Flambel.

Jarnac continuava espreitando a livraria Gulbrich. O velho livreiro conversava com seu filho e não parecia satisfeito.

Por cima do ombro do companheiro, Flam­bel comentou:

- A espera também começa a se tornar enervante para eles.

- Já está convencido que estão envolvidos no golpe?

- Que esperam o comprador do livro verde é coisa certa, mas não devem saber que esta­mos aqui, prontos para atirar. Se soubessem, não andariam tão à vontade...

Andou de um lado para o outro do escritó­rio, acrescentando:

- Vou fumar um cigarro e depois o substitui­rei . Denis acertou ao contratar dois homens para esta missão. Um só aqui dentro ficaria louco.

A chama de seu isqueiro iluminou breve­mente os cartazes e as fotografias de starlets penduradas nas paredes. De repente a cam­painha da porta soou.

Flambel praguejou, atirando o cigarro sa­ibre o tapete e amassando-o com fúria.

- Qual de nós atenderá? - perguntou Jar­nac.

- Esperemos um pouco.

O intervalo de silencio tranquilizou-os progressivamente, até que a campainha soou de novo. Jarnac murmurou:

- Deve ser a moça de antes. Se nos fizer­mos de surdes é capaz de recomeçar o «con­certo» .

- Vou abrir a porta, mas juro que desta vez ela vai acabar fechada no armário...

Flambel dirigiu-se à sala de espera, fe­chando à chave a porta de comunicação e acendendo a luz. Abriu com violência a por­ta de entrada. No mesmo instante reconheceu o homem que batera.

- O Sr. Beyuls está? - perguntou este.

- Sou o Sr. Beyuls. Que deseja?

Rocher estendeu lentamente sua placa de identificação. Flambel estremeceu, mas ado­tou um ar ofendido:

- Gostaria de saber o que a polícia vem fa­zer em meu escritório.

Rocher replicou:

- Não fique nervoso. Quero apenas uma pequena informação. A Srta. Dora Coumans esteve aqui há pouco, não?

- Não conheço ninguém com esse nome.

- Trata-se de uma loura, com casaco e boi­na de vison, que ganha a vida fazendo stiiptease...

- Ah, já sei... Sim, ela veio aqui há pou­co.

Rocher penetrou com agilidade pela aber­tura o fechou a porta. Estava intrigado com o rosto irônico do suposto Beyuls, cujos olhos cinzentos revelavam um homem de ação, sem escrúpulos.

- Que discutiu com a Srta. Dora Coumans?

- Ela queria com urgência um contrato pa­ra a América do Sul. Mas eu acabo de re­gressar, após ter perdido tudo menos a hon­ra e não pretendo voltar, nem com seis dú­zias de beldades ...

- Tem certeza de que ela não mentiu?

- Sim. Conheço bem essa espécie de mu­lheres. Mas não contrato nem Sofia Loren. Tive de zarpar de Montevidéu num navio de carga que transportava toneladas de carne congelada. Imagine! Seis meses antes, meu senhor, desembaraçara em Bruxelas num iate de luxo escoltando vinte minhas da beleza, cujo desfile congestionou a cidade.

- Que aconteceu depois?

- Miss Alaska perdeu-se na praia. Os ha­bitantes do lugar assaltaram-me e roubaram as restantes. Fiquei apenas com Pepita, uma coroa que fugiu com um bonitão e levou to­do o meu dinheiro. Creio que isso é suficien­te para explicar porque a loura enganou-se vindo procurar trabalho aqui.

O hálito do suposto empresário rescendia a conhaque e seus redondos olhos de lince expressavam uma inquietude inteligentemen­te contida. O olhar do comissário percorreu a sala de espera. Pousou os olhos curiosos, nos antebraços musculosos do falso empre­sário .

- Por que usa essas luvas pretas? - pergun­tou com indiferença.

- Sofro de alergia. Quando o senhor bateu estava fazendo uma limpeza. Quando passo algum tempo fora, encontro isto convertido num chiqueiro.

Flambel já sabia uma coisa, o policial pressentira algo suspeito. E estava afastado do segredo apenas por uma porta fechada. E Flambel dispôs-se a enviá-lo ao armário no momento oportuno. Rocher deu alguns pas­sos, fingindo refletir e aproximou-se da por­ta de comunicação. Como sem querer, sua mão torceu a maçaneta, mas a porta não se abriu.

Com expressão indiferente, perguntou:

- Por que conserva essa porta fechada à chave?

- Acabo de chegar. Não tive nem tempo de inspecionar meu escritório. Mas Dora não está aí dentro, comissário, caso contrário, já estaria fazendo um barulho dos infernos.

Estendeu-lhe a chave. Seu gesto espontâ­neo confundiu Rocher, cuja desconfiança de­sapareceu:

- Permite-me? - perguntou, levando a cha­ve à fechadura.

- Faça o favor. Está em sua casa...

E Flambel preparou-se para agredi-lo. Rocher abriu e, sem atravessar o umbral, não precisou acender a luz. As lâminas da corti­na, erguidas na horizontal, deixavam pene­trar a luz indireta das Arcadas. O escritório estava inundado agora por uma luz suave e dourada, que apenas roçava a parede do fundo. Flambel conteve por centímetros o golpe fulminante que o deixaria desacordado o agente e parou muito surpreso. Jarnac e a carabina haviam desaparecido magicamente. As almofadas estavam em seu lugar nor­mal, sobre o sofá. Tudo estava em ordem.

Rocher devolveu-lhe a chave e apontou para a outra porta.

- Para onde dá essa porta?

- É um armário.

- Posso olhar?

- Bem... Toda a minha roupa suja, que trouxe da Argentina, está ali...

Rocher não insistiu.

- Desculpe o incômodo - disse.

- O senhor foi muito correto. Não posso di­zer o mesmo da loura.

- Continuo estranhando sua visita. Tem um protetor muito rico. Para que viria à pro­cura de um contrato? Tem certeza que ela não queria outra coisa ao bater aqui?

- Posso jurar que não veio por causa de meus belos olhos... E estou muito cansado para pensar em aventuras amorosas.

- Boa tarde.

Rocher saiu, pensando que aquele ho­mem louro e atlético era um vigarista, mas sua modesta atividade não podia camuflar um tráfico de drogas em escala internacio­nal . Continuou até o fundo do corredor e deu uma olhada nos Créditos Regai. Era uma agencia de informações por correspondência que editava um boletim trimestral. Ao ver a datilografa meio anêmica atrás de uma bar­ricada de pastas poeirentas, o comissário de­sistiu .

Ao dar a volta, não prestou atenção à porta do 22, que se entreabriu lentamente. Flambel, muito prudente, temia um retorno imprevisto do comissário. Viu-o deter-se di­ante da última porta, erguer a mão para apertar a campainha e deixá-la cair aborrecidamente.

A misteriosa Bibliofan continuava fecha­da.

Ao erguer a mão, o comissário viu a hora em seu relógio. Pensou que o casal de bel­gas poderia sair de um momento para o ou­tro do hotel e preferiu seguir uma pista se­gura .

Flambel esperou ainda alguns segundos e fechou a porta ao ouvir às suas costas o ruído da porta de comunicação. Voltou-se e exclamou jovialmente:

- Muito bem, Jarnac! Vejo que se pode contar com você numa situação difícil! Onde es­tava?

- Atrás da porta. Escondi todas as nossas ferramentas de trabalho atrás da mesa. Se o policial desse um passo para a frente, desco­briria tudo...

- Aquele idiota nos fez perder uns dez mi­nutos ...

- Não se preocupe. O livro verde ainda está na prateleira...

A Skoda voltou ao seu lugar. Agarrando a garrafa de conhaque, Jarnac confessou:

- Estas emoções foram demais para mim. Quer tomar um trago?

- Sim.

Em dois tempos esvaziaram quase meia garrafa. Flambel fechava a garrafa quando o telefone soou estridentemente. Ambos ri­ram e Flambel comentou:

- O grande chefe. Que vá para o inferno! Quem será ele?

 

                                                   CAPÍTULO 9

Pela vigésima vez, Mudros desligou o te­lefone sem dizer uma palavra. Tia Melba disse:

- Você acabará por deixar esses rapazes nervosos.

- Pago bem e tenho o direito de saber se continuam em seus postos.

- Sua armadilha parece não estar dando resultado. Se eu estivesse no lugar desses dois pistoleiros, teria eliminado a loura sem contemplações - declarou tia Melba, suave­mente.

- A loura não levou nada. Até Gulbrich e seu filho pareciam indecisos. Esperemos o regresso do major.

Apanhou o binóculo em cima da mesa e levantou-se com dificuldade, devido à sua corpulência.

A janela da Bibliofan era a segunda do andar dos escritórios e dominava o snack-bar. Entrevista de lado, a livraria Gulbrich ficava quase oculta pelos biombos do café. Mas o livro verde era perfeitamente visível no centro da estante. E ninguém podia apro­ximar-se dele sem ser visto imediatamente através da cortina do escritório número qua­tro .

Mudros ergueu o binóculo para espiar a multidão. Sua cabeça de bonzo, de pálpebras caídas, descansava sobre um corpo volumo­so. Seus cabelos, escuros e lisos, começavam a branquear, mas seu rosto rosado de ex-campones grego fazia com que parecesse mais jovem e quase ingenuo.

Tia Melba comentou:

- Seria bem melhor se tivéssemos passado o fim-de-semana longe   daqui. Isto é muito perigoso. Não sei o que faremos quando a polícia aparecer...

- Não tem motivo algum para vir até aqui. E quero estar perto no momento do tiro, para ver se o trabalho foi executado com perfei­ção. Não acha que será formidável assistir à morte do cretino que nos complicou a vida?

- Claro que sim - admitiu tia Melba. - Mas isso não impede que você esteja brincando com fogo. Como conseguiu se sair bem até agora, está se considerando o maior... Qualquer dia, ao colocar a mercadoria num lugar tão original, Gulbrich se verá mal e to­do o bando irá parar no xadrez...

Sem voltar-se, Mudros declarou lacónicamente:

- Você está ficando velha, tia Melba.

Tia Melba não era tia de ninguém, mas to­dos os membros do bando a chamavam as­sim . Tinha uma expressão de professora amá­vel e respeitavam-na muito por sua grande esperteza. Cercada doze vezes pela polícia, conseguira escapar milagrosamente. Fora condenada a um total de noventa anos de prisão em vários tribunais da França, mas, como a procuravam sob sete identidades di­ferentes, não se preocupava muito.

Mudros dava muito valor à sua amante, aquela mulher sempre vestida de preto, que ocultava grande energia sob a aparência de inocente professora primária.

Tia Melba insistiu:

- Recomendei-lhe cem vezes que vigiasse bem os dois iuguslavos e os mantivesse fora de circulação. Não confio neles. São volú­veis e caprichosos. Podem ser traidores em potencial.

Baixando o binóculo, Mudros explicou pa­cientemente:

- Até agora a livraria Gulbrich foi uma distribuidora automática perfeita. Ninguém suspeitará de uma pessoa que compra um li­vro e leva um pacote contendo dois milhões de francos novos. É a quantia em notas no­vas que pode conter uma caixa de oito cen­tímetros de altura por 22 de comprimento e 28 de largura. Este sistema oferece o máxi­mo de segurança. Até hoje, já despachamos sem contratempos dezenove dessas caixas-livrcs, ou seja, quase toda a emissão.

- A caixa número vinte cairá como uma bomba em cima de você. Os cambistas bel­gas, dinamarqueses, holandeses, suíços, ita­lianos e gregos que pagaram um terço de seu valor nominal por essas notas, significam um perigo, pois, se os polícias os apanharem, tratarão de dizer tudo o que sabem...

- A não ser nós dois, Gulbrich e o Major, ninguém conhece ninguém e nós temos clas­sificados em nossos arquivos todos os mem­bros da rede. Se acontecer alguma coisa, seremos logo avisados, sem que ninguém sus­peite da Bibliofan.

- Mas seu sistema de livro-pacote não me agrada.

- Era preciso escolher. Se despachássemos a mercadoria em pequenas quantidades, es­taríamos nos arriscando muito. Só podemos nos resguardar contra uma traição multipli­cando ao máximo os cúmplices...

Tia Melba replicou:

- Nosso antigo plano era mais tranquilo. Contratar quatro ou cinco contrabandistas para liquidar o estoque de uma vez, em lugar de passarmos todo o verão sobre um verda­deiro vulcão de notas novas...

- Você não deve confiar tanto nesses agen­tes que se dedicam a atravessar fronteiras, tia Melba. Lembre-se de Raven... Era de confiança e prudente. Entretanto, essas qua­lidades não o impediram de pisar demais no acelerador e esborrachar-se contra um cami­nhão. O idiota ficou em pedaços... E dei­xou-nos em maus lençóis, pois só ele conhe­cia o homem que queremos liquidar.

Mudros suspirou e tornou a sentar-se pe­sadamente. Logo acrescentou:

- Que aspecto tem Vandam? É gordo ou magro, louro ou moreno? Ninguém sabe... Só sabemos que a Interpol o persegue e que o cretino se descobrirá hoje diante de nós ao comprar o livro verde. Se não aproveitarmos este último segundo para liquidá-lo, será tarde demais. A polícia o apanhará e o fará falar. Todo o exito de nossa operação será comprometido e nos veremos obrigados a fe­char a Bibliofan.

- A morte de Vandam não me impressiona de forma alguma. Mas você poderia ter ar­ranjado as coisas de forma que fosse morto em outro lugar, e não precisamente sob nos­sas janelas.

- Onde e como? - perguntou Mudros, paci­entemente .

- Bastava segui-lo logo que apanhasse o livro e liquidá-lo em qualquer canto escu­ro .

- Que plano infantil, querida! A polícia o segue e não daria a menor oportunidade a nosso seguidor. E se este fosse capturado, a polícia logo se orientaria na pista de Denis, o Caolho. De que tem medo? Estamos prote­gidos pela divisão em compartimentos anôni­mos de nossa organização. Sentado diante de você, neste escritório, sou tão livre de sus­peitas como a solteirona dos Créditos Regai ou aquele velho doido do outro lado, que passa a vida colocando selos em envelopes.

- De qualquer forma, o tiro chamará muita atenção.

- Mas com a confusão que se formará nas Arcadas, a polícia não poderá determinar de onde partiu.

Silenciaram ao ouvir abrir-se a porta de entrada. O homem apelidado de Major, en­trou no escritório com passo marcial. Vestia inteiramente de cinza, o que ressaltava seu honrado aspecto militar, valorizado pelas condecorações roubadas que guardava no bolso. Mudros e tia Melba o interrogaram com o olhar. O Major disse:

- Acabo de falar com ZarkD Gulbrich. A loura deu a senha. Por sorte, o velho Gul­brich tinha suas dúvidas e demorou a fazer o pacote. A garota deve ter pressentido al­guma coisa e sumiu sem levar o livro.

Tia Melba voltou-se furiosamente para Mudros:

- Que foi que eu lhe disse, seu teimoso? Devia prever a possibilidade de Vandam mandar outra pessoa em seu lugar. Agora estamos fritos. - Eele aparecerá - afirmou Mudros.

O Major fez um gesto evasivo antes de ex­plicar:

- Por sorte, os guerrilheiros de Denis obede­ceram à combinação ao pé da letra. Mas se a loura levasse o pacote com o livro, eles a liquidariam sem proveito para a organização, pois é a Vandam que temos de eliminar. Tal­vez a loura volte, mas Vandam não se atre­verá a apresentar-se pessoalmente.

Mudros exclamou com energia:

- Que bando de idiotas! vocês pensam que o belga desprezará os duzentos mil de lucro que representa sua viagem de volta Paris-Bruxelas? Pode ser medroso, mas não a esse ponto. Só mandou a loura na frente para as­segurar-se de tudo ia bem e logo o veremos aparecer. Para que ficarmos nervosos?

- Nervosos estão os Gulbrich, pai e filho - declarou o Major.

- E com razão! Ponha-se em seu lugar: a perspectiva de ouvir um tiro de um momento para o outro dentro da livraria não é nada tranquilizante...

Tia Melba interveio:

- A polícia cairá em cima dos Gulbrich.

- Sim, mas eles serão simples testemunhas, como todos os donos das lojas próximas. De qualquer forma, dentro de quarenta e oito ho­ras já não poderão nem pensar em nos trair...

- Como? Mudros sorriu:

- É tradição entre certos fabricantes, des­truir o molde após o uso para limitar a tira­gem de uma série excepcional. Farei um ar­ranjo com Denis. ele nos livrará para sem­pre dos dois iuguslavos pelo mesmo preço que pediu para livrar-nos de Vandam.

O Major surpreendeu-se:

- Você não mede despesas.

- Não será dinheiro posto fora. Uma vez eliminados os Brulbrich, estaremos tão segu­ros como no início de nossa organização e a parte dos dois mortos e a de Raven será divi­dida entre nós.

Ergueu o indicador num gesto de profis­sional e disse:

- Mas não se esqueçam de que tudo irá por água abaixo se Vandam conseguir escapar.

Apontou para as paredes cobertas de es­tantes que subiam até o teto. Também ha­via estantes na sala de espera e na sala de leitura. Continham umas vinte toneladas de Enciclopédias. Dez anos antes um aficcionado aos livros fundara aquela biblioteca, dan­do-lhe o nome de «Fanal Bibliotecário» e transformando-o, para efeitos de distribuição e reembolso, em Bibliofan.

Antes de morrer, vendeu-a a Mudros, que logo planejou ter ali uma cobertura para seus negócios escusos.

Tia Melba trazia em dia o catálogo de li­vros e dava de presente à Casa da Mãe Sol­teira os duzentos e setenta e cinco francos anuais que o Ministério de Educação conce­dia como subvenção àquele centro cultural. De vez em quando algum estudante vindo da província arriscava-se a entrar na Biblio­fan e aborrecia-se ali algumas horas, sob o olhar irritado de tia Melba, jurando nunca mais voltar.

O Major alisou o bigode grisalho:

- Muito bem... Agora dependemos dos dois legionários contratados por Denis e do capricho daquele belga covarde que se es­conde por trás das saias de uma mulher. Isso deprecia o trabalho da gente. De agora em diante, se houver barulho, não contem comi­go.

- Não lhe pedi nada. Faça como tia Melba. Fique aqui à espera do tiro salvador.

Parados por trás das vidraças, os três contemplavam em silencio a multidão. Pouco depois a porta de entrada se abria, dando passagem ao jovem livreiro iugoslavo Zarko Gulbrich. Mudros acolheu-o com um sorriso irônico:

- Não precisamos de você aqui. Seu lugar é lá embaixo, ao lado de seu pai. O Major contou-nos como hesitaram com a loura. Se ela voltar, digam-lhe que o livro verde esta­rá à disposição de Vandam até às sete da noite. É nossa última oportunidade de faze-lo sair de sua toca.

O olhar sombrio de Zarko Gulbrich não exprimia sentimento algum. Replicou fria­mente:

- Espero que seus pistoleiros tenham boa pontaria. Meu pai e eu não gostaríamos de receber uma bala perdida... Nem vocês, ima­gino.

- Que está querendo dizer?

- Asseguramo-nos contra todos os imprevis­tos. Um acidente dessa espécie lhes custaria muito caro...

Saiu, caminhando de costas e fitando atentamente o temível trio de traficantes.

Quando a porta fechou-se, Mudros murmu­rou:

- Isso não passa de fanfarronada. Mas já que desconfiam, é melhor que eu encurte o prazo de suas vidas...

Voltou-se para o Major, que alisava seu Ibigodinho com ar pensativo:

- Você é o único que entra em contato di­reto com Denos. Telefone-lhe agora mesmo e diga-lhe que o espere dentro de meia ho­ra no lugar de costume.

O Major saiu e Mudros disse, esfregando as mãos:

- Não fique nervosa, minha velha. Tudo está previsto. Um pouco mais de paciência e acabaremos com o fantasma de Vandam.

 

                                               CAPÍTULO 10

Dirk Vandam roía as unhas por trás da porta de seu quarto no hotel. Entreabriu-a mais uma vez. Por fim Dora apareceu no cor­redor. Vinha sem pressa, com seu andar ondulante e fazendo girar a bolsa.

Vandam viu que não trazia mais nada na mão. Sua decepção foi grande. Ao fechar a porta por trás de Dora, perguntou:

- E o livro?

- O velho não quis me dar o livro. Até riu na minha cara quando eu lhe repeti aquelas palavras. Mas não se preocupe, gorducho. O livro verde continua lá e espera por você. Vá buscá-lo depressa e depois iremos almo­çar. Sabe que horas são?

Vandam tentou dominar sua fúria:

- Você não está falando a verdade! O li­vreiro não tinha motivo algum para recusar-se a dar-lhe o livro! você deve ter feito algu­ma coisa errada...

- Ponha-se no lugar dele. Com certeza lhe haviam dito que viria um homem maduro e gordo e de repente apareceu sem mais nem menos uma mulher... Era lógico que descon­fiasse!

- Você devia ter insistido, explicado que eu estava doente, qualquer coisa...

- Ora, não seja tão medroso! As Arcadas do Prado não são um lugar tão perigoso... Vá até lá. Sua cara de homem honesto será o melhor dos passaportes.

- Você já estragou tudo! Se eu aparecer agora, o velho ficará mais desconfiado ain­da...

- Pelo contrário, meu bem. Minha visita anunciou a sua.

- Isso é precisamente o que me inquieta! Vamos, Dorinha, compreenda... Um homem numa posição privilegiada como a minha, tem uma porção de inimigos... A polícia es­tá sempre vigiando. Os gangsters esperam em todas as esquinas...

- Não seja idiota! Faz tanto barulho por um livro mofado daqueles, como se fosse um pacote com um milhão de francos!

Vandam acalmou-se como que por encan­to:

- Não diga bobagens, Dora! A encomenda do tio Chil é uma bagatela sem importância. Eu não queria ir até lá de novo porque vi um homem mal-encarado rondando a livraria. Não queria encontra-lo novamente por nada deste mundo!

- Ele devia estar lá por casualidade. Ago­ra já deve ter ido almoçar, como todo mundo. Aproveite a ocasião! Vá até as Arcadas e traga o livro de tio Chil de uma vez!

Dyrk Vandam cocou o queixo, indeciso:

- No fundo não há muita urgência... Pode­ríamos almoçar primeiro...

- Isso mesmo! Aonde iremos?

- Prefiro comer aqui no hotel. Parece que a comida é muito boa.

Meia hora depois, Vandam recuperava a coragem com a segunda garrafa de vinho, que acompanhava um enorme filé.

- Logo que tomar o café, irei até lá e trarei o pacote. Enquanto me espera, encomende um conhaque especial.

Dora calculou que teria o tempo justo pa­ra apanhar um táxi e fugir.

- Por que não vai agora? - perguntou. - Eu o conheço bem, gorducho... Dentro de meia hora já não será capaz de dar um passo...

- Um Vandam não se entrega facilmente! Ergueu-se um pouco na cadeira, rindo tolamente. O vinho o animava, mas não a pon­to de faze-lo esquecer o perigo. Sugeriu:

- Pensando bem, será melhor irmos juntos, você sempre me deu sorte.

- Não conte comigo. Não sou cega, já vi que está louco de medo...

- Não temos nada a temer, beleza. Quero apenas te-la a meu lado durante o passeio... E não esqueça sua percentagem...

- Quanto ganharei?

- Bem... Desta vez - e baixou a voz - vinte mil.

Dora surpreendeu-se. Tossiu confusa e re­plicou:

- Já imaginava... Deve haver alguma coi­sa muito grande por trás desse livro verde...

Vandam inclinou-se para ela e sussurrou:

- Um montão de dinheiro.

Ao redor deles, na sala aquecida, com en­feites dourados e tapeçaria de veludo verme­lho, conversava-se em seis ou sete idiomas. Ninguém ouviu o sussurro extasiado de Van­dam, mas um dos dois comensais instalados no outro extremo da sala de refeições adivi­nhou-o .

O Comissário Rocher simpatizava com o agente Prevost, que ansiava por instruir-se:

- Geralmente a emissão de uma nova cédu­la suscita uma renovada atividade entre os falsários, principalmente quando o valor é grande, como no caso da nota de mil francos, com a efígie de Pasteur. As dificuldades de fabricação desanimam os falsários de me­nor importância, mas há verdadeiros artis­tas, munidos de material adequado e com uma organização perfeita.

Prevost mastigava as batatas fritas e con­cordava respeitosamente. Para ele o comis­sário era um prodígio de sabedoria. Rocher acrescentou:

- Um estoque de notas falsas será liquida­do com mais facilidade se seu aparecimento preceder de perto o da nota legítima, benefi­ciando-se da primeira confusão. O golpe ge­nial neste caso em que estamos trabalhando foi a coincidencia da saída do legítimo Pas­teur com o falso no mercado de divisas, mas limitando-se ao setor estrangeiro... Isso nos atrasou muito nas investigações.

Rocher mastigou um pedaço de peito de galinha e tirou do bolso do paletó uma bela nota nova, que alisou na beira da toalha. Os matizes dominantes, o rosa e o azul, faziam sobressair a efígie barbuda do grande sábio:

- Após um exame minucioso, este exemplar só revelou uma ínfima porcentagem de erros. Para poder atingir essa perfeição, o artista deve ter trabalhado tendo por modelo uma nota legítima. Algum membro da organiza­ção deve ter conseguido apoderar-se de uma nota legítima muito antes do início da fabri­cação em série.

Tomando um gole de vinho, Prevost re­plicou:

- Esse Vandam deve ser um homem muito audacioso.

- Ele não. Não passa de um agente inter­mediário. Pagará pelos outros, isto é, pelos chefes da organização. Sem saber, Vandam apregoou a falsificação por distração, ou por excesso de cobiça, ao descuidar-se de um da­do essencial: a data oficial fixada pelo Ban­co da França para colocar em circulação a nota de mil francos.

Prevost escutava surpreso. Rocher pros­seguiu:

- Anteontem um turista inocente apresen­tou-se num Banco de Liège para trocar uma nota de mil francos. Como era a primeira vez que viam a nota naquele banco, pergunta­ram-lhe por sua procedência. O homem res­pondeu que a adquirira na agencia de um cambista.

- Nosso amigo Vandam em ação...

- Sim, o mesmo que inicia sua terceira gar­rafa de vinho. Trocaram a nota para o tu­rista, mas logo começaram a funcionar os te­lefones entre Liège e Paris, Paris e Bruxelas, enquanto a Interpol era alertada em todas as capitais. Fomos informados por Bruxelas que mais de cinquenta dessas notas haviam sido trocadas em diversos estabelecimentos e que provinham da agencia de Vandam.

Rocher deteve-se um pouco para tomar um gole de vinho. Depois continuou:

- Ao primeiro exame revelavam ser notas boas, salvo por um pequeno detalhe. Todas traziam um número de série que não fora emitida pelo Instituto Nacional da Moeda.

- Os maiorais do governo francês devem es­tar tremendo...

- Não. Bastou enfocar o problema. Esto­ques tinham sido repartidos habilidosamente em várias nações por agencias pouco escrupulosas, dispostas a inundar o mercado de divisas. Mas como o dia do lançamento ofi­cial era hoje, o perigo foi suprimido ao pro-por^se a saída do Pasteur legítimo.

Prevost estava boquiaberto.

- Agora a polícia entra no jogo - continuou Rocher. - O comissário belga teve o cuidado de não assustar o pássaro, isto é, Vandam. Era preciso seguir seus movimentos para che­gar até a fonte e apanhar na mesma rede o fabricante, seus técnicos e seus vendedores em geral.

- E Vandam irá junto...

- Segundo a Interpol, ele não passa de um distribuidor entre muitos, que atuam de Ro­ma a Amsterdam. Supomos que veio a Paris apanhar as notas e isso nos dará a direção de algum maioral, que talvez nos leve ao chefe de toda a rede. Por isso não podemos perder o. contato com esse boa-vida.

Olharam através das folhagens que for­mavam um muro artificial naquele recanto da sala de refeições.

O bom humor de Vandam acabara por contagiar sua companheira. Com o casaco atirado sobre o encosto da cadeira, Dora sor­ria, erguendo a taça de champanha.

Prevost murmurou:

- Essa loura é uma uva, chefe. Deve ser fabulosa fazendo strip-tease...

- Conto com ela para incitar Vandam a co­meter uma tolice.

- Qualquer um...

- Não me refiro a essa espécie de tolice, idiota. Não é prudente viajar com uma mo­ça tão chamativa para ir ao encontro do che­fe. Os fabricantes de notas falsas costumam liquidar os imprudentes que, por excesso de cobiça, põem a perder seu trabalho. E se es­tivesse sozinho, Vandam se esconderia. Mas com a loura a seu lado acabará nos condu­zindo até os chefões...

- Mas é possível também que passe algu­mas noites se divertindo aqui em Paris e de­pois volte sem entrevistar-se com ninguém. Que faremos então, chefe?

- Nada. Nos limitaremos a segui-lo até Bruxelas, onde a polícia se encarregará de prende-lo.

Largou bruscamente a xícara de café. Ao fundo, Vandam e Dora se haviam levantado e, de braços dados, dirigiam-se à saída. Abandonado o Claridge, apressaram o pas­so em direção às Arcadas.

Vandam disse: - Sinto-me completamente novo agora. Mas não me faça parar para olhar vitrinas. Primeiro o livro do tio Chil, depois percorre­remos as lojas...

- Eu o conheço... logo voltaremos ao quarto e você se encolherá debaixo das co­bertas para curtir a bebedeira...

Quando chegaram perto da livraria Gulbrich, Vandam sentiu um leve arrepio e murmurou:

- Continuemos sem parar, dando uma pe­quena volta e, se não houver perigo à vista, cairei como um raio sobre a livraria e volta­remos para o hotel. Está bem?

Não olharam o livro verde ao passar. Mas Vandam comprovou com o rabo do olho que ele ainda permanecia em seu lugar. O volu­me preciosamente encadernado, não signifi­cava nada por si mesmo. Mas bastaria pro­nunciar diante do livreiro a senha para que se realizasse a preciosa substituição, que re­presentaria um lucro de sessenta por cento.

Vandam já pagara seu direito às notas falsas, remetendo dólares. Era o abono pre­liminar pela encomenda, entregue dias antes em Bruxelas, por um honrado contrabandis­ta chamado Raven e pagaria também o paco­te de notas falsas preparado sob a estante.

Pouco depois deram meia volta. Ao apro­ximar-se da livraria, Vandam ficou nervoso outra vez. Dora catucou-o com o cotovelo:

- Vamos, medroso! Já estamos aqui... Pe­ça o livro e vamos embora...

Hesitante, Dyrk Vandam viu o livro verde ao alcance de sua mão...

 

                                                   CAPÍTULO 11

Flambel espreitava com curiosidade por trás da cortina.

- Talvez esse gorducho seja nosso aspiran­te a cadáver... Mas não acredito muito. Tem o aspecto de um honesto burgues fazen­do a digestão em companhia de sua loura amante... De qualquer forma, olho nele, Jarnac... Nada de brincadeiras e não afaste o dedo do gatilho.

Estendido por trás da Skoda, Jarnac con­traiu os lábios. Cinco minutos antes reco­nhecera Dora em sua primeira volta. Lamen­tou ve-la agarrada ao braço de um bebedo, ao qual sua proximidade condenava à mor­te.

Flambel tomava com grande satisfação alguns goles de conhaque da garrafa, cujo nível desvia vertiginosamente. Com o último gole, tossiu, surpreso.

- Ei, será que estou tendo visões? Essa é a loura que apareceu por aqui ao meio-dia. Brigamos por causa dela, lembra-se?

Jarnac não disse nada. Deixando a gar­rafa, Flambel acrescentou:

- Isso muda tudo. Ouça... Poderíamos su­primir os dois, para não deixar nada penden­te, pelas dúvidas... Bem, foi apenas uma sugestão... Se sua vista está nublada, pas­se-me a carabina. Estou com vontade de ter­minar com isso logo. E com a Skoda, acabo com qualquer dúvida no mesmo instante, com dois tiros bem colocados...

Jarnac não demonstrou oposição. Mas preferia gastar a munição contra o teto da galeria do que deixar que o excessivamente alegre ex-combatente fizesse uma matança caprichosa. Disse roucamente:

- As coisas ainda não estão claras. O livro verde continua na estante e o gordo não pa­rece decidido a levá-lo, nem a loura. Se se tornar suspeito, fuzilarei o gordo, mas não ganharíamos nada eliminando a loura.

- Você é um sentimental - riu Flambel.

Lá em baixo a cena eternizava-se. O li­vreiro calvo estava atarefado, vendendo re­vistas e o rapaz moreno estava de costas pa­ra a estante. Nenhum deles notara ainda o regresso da bela loura que já se apresentara de parte do «tio Chil» para apanhar o livro e desaparecera misteriosamente.

Flambel resmungou, impaciente:

- Decida-se de uma vez, gordo duma figa... Veja como ele hesita... É capaz de ir embora sem pedir nada. E quando fecharem as lo­jas, ficaremos aqui em cima, plantados... E o pior é que teremos de voltar amanhã!

Consultou o relógio: - O grande chefe ligará daqui a pouco para mostrar que nos vigia de longe. Eu lhe darei a descrição desse gordo. Se for o nosso ho­mem, liquide-o de uma vez.

Dez janelas mais para diante, Mudros ex­plorava com o binóculo o stand e focou as lentes no livro verde. Um homem gordo e sanguíneo, envolto num casaco grosso, des­pertou sua atenção. Naquele momento Van­dam movimentou-se um pouco ao longa da estante e seu deslocamento descobriu o per­fil de Dora, à sua esquerda. Mudros lançou uma exclamação e, sem soltar o binóculo, chamou:

- Venha ver! Acho que a loura do casaco de vison voltou. E o homem que está com ela deve ser Vandam!...

Tia Melba correu para a janela e olhou por cima do ombro de Mudros, que estava excitadíssimo.

- É a loura, sim! Telefone para o escritó­rio de Beyuls para acordar os dois pistolei­ros.

Mudros não se moveu. Estava como hip­notizado pela expressão alucinada do desconhecido que dava um passo mais em direção à morte a cada segundo que transcorria. Comentou:

- Parece que suspeita de alguma coisa.. . Tia Melba riu:

- Isso é impossível... Somos os únicos a saber o que lhe aguarda. Está com pressa de ir embora com o dinheiro, por isso está com essa cara. Mas a presença da loura não prova que seu companheiro seja Vandam. Se é tão covarde como afirmava Raven, é muito provável que tenha enviado outro em seu lugar.

Mudros irritou-se subitamente:

- Que estarão fazendo os Gulbrich tão lon­ge do livro verde? Essa loura é mais provo­cante que a Brigitte Bardot e esses idiotas ainda não a viram...

Soltando o binóculo, dirigiu-se ao telefo­ne e discou o número da livraria. Tia Mel­ba viu o jovem Zarko Gulbrich voltar-se pa­ra apanhar o aparelho. Mudros gritava:

- Que, diabos, fazem vocês dois? A loura está parada perto do livro há dois minutos... Ficaram cegos? O gordo que está com ela de­ve ser Vandam. Vamos, façam alguma coi­sa!

Zarko Gulbrich recolocou o fone no gan­cho e voltou-se, ao mesmo tempo que seu pai, para a estante de livros de arte. Fingiramnão reconhecer a loura de casaco de vison, que lhes sorria estupidamente, mostrando al­guma coisa na estante. Ao lado dela estava um homem gordo e de rosto rosado. Zarko murmurou:

- Continue junto à caixa, papai. Não vale a pena expor-se.

- Pensou bem, Zarko?

- Sim. E não quero ser interrogado por um assassinato que só beneficiará Mudros. Se a loura insistir, eu lhe direi algo que a fará sair correndo... Mudros não tem direito de assassinar alguém em nossa livraria.

- Ele nos faria pagar isso com a vida. Dei­xe que eu me encarrego de tudo, Zarko. Ocu­pe-se dos jornais da tarde. Tudo acontecerá sem a sua participação. Se está com medo, vá embora. Eu me arranjarei sozinho.

Zarko Gulbrich contemplou o pai e repli­cou:

- Muito bem. Vamos. Mas após o primeiro tiro, outros dois nos derrubarão... Foi você quem quis.

Como dois autômatos, dirigiram-se para a estante. Embotado pela comida e pela bebi­da, Vandam continuava hesitando diante do livro verde. Estendeu timidamente a mão, com a impressão desagradável de que mil olhos o contemplavam. O livreiro calvo aproximou-se lentamente e disse: - O senhor já veio esta manhã e temos livros muito valiosos nesta seção. Se não en­controu o que procura, posso mostrar-lhe al­go de valor.

Atrás dele, Zarko sorriu. Dora disse, ner­vosa:

- Decida-se de uma vez!

Vandam abriu a boca para dizer a senha, mas não conseguiu falar. Pela segunda vez foi salvo pela aparição de seu anjo-da-gua-da, o Comissário Rocher. O velho Gulbrich voltou à carga:

- Já viu este velho livro verde? É uma obra muito valiosa... Pediram-me para reservá-lo, mas posso vende-lo a um colecionador in­teligente como o senhor.

Vandam não replicou. Continuava mudo, dominado pelo pânico. Dora exasperou-se: - Que há com você? Está doente? Pegue o livro e vamos!

Estendeu a mão para agarrar o livro, mas Vandam impediu-a, murmurando com voz rouca:

- Não toque nessa porcaria... Vamos em­bora depressa. Eu lhe explicarei tudo quan­do chegarmos ao hotel.

Puxou-a pelo braço e os dois desaparece­ram entre a multidão. Jarnac suspirou, aliviado. Flambel comentou, irritado:

- Eu não lhe disse? Do jeito que vão as coi­sas, ouviremos bater meia-noite sem receber o pagamento.

Um pouco mais longe, por trás das portas do número 4 e do 4-b, o chefe supremo da Bibliofan perdera sua calma oriental e gritava para tia Melba:

- Faça alguma coisa... Telefone para o stand... Diga a Zarko e ao velho que su­bam. Quero saber o que aconteceu com a loura e o gordo. E o Major? Onde estará ele? Vi-o aparecer e sair correndo, o covarde!... Tenho certeza de que os dois iugoslavos es­tão me traindo.

-É claro. Os Gulbrich não são tolos. Zarko é ainda mais esperto que seu pai. Adivinhou que você pretendia eliminá-los.

Começava a discar o número da livraria. Mudros gritou:

-Espere!... Deixe isso e venha ver... Pa­rece que já vimos aquele sujeito rondando o livro.

Tia Melba franziu as sobrancelhas e dis­se sem hesitar:

- Sim, ele veio esta manhã. Um pouco an­tes do meio-dia, como c outro. Se não me en­gano, até folheou o livro com muito interes­se.

- Será o belga?

- Tiraremos as dúvidas quando ouvirmos o tiro...

Mudros voltou-se para ela com impacien­cia.

- Que há com você agora?

- Você vive encerrado em sua torre de mar­fim. Eu já viajei muito e reconheço um poli­cial de longe.

Apontou para a livraria. Mudros ergueu o binóculo para focar o fumador de cachim­bo que folheava o livro verde.

O Comissário Rocher refizera, passo a passo, o mesmo percurso que haviam efetua­do Dora e Vandam, o qual o conduziu nova­mente à estante da livraria, junto ao livro verde. Pela segunda vez o comissário agar­rou o catálogo do ano 1902, tão luxuosamen­te encadernado, e folheou-o com curiosidade. Zarko Gulbrich aproximou-se, sorridente:

- Sinto muito, senhor. Este exemplar já es­tá vendido desde ontem.

- Seu pai já me disse isso boje de manhã. Posso examiná-lo, não?

Gulbrich concordou, preferindo afastar-se para atender outros fregueses. Após cin­co minutos de paciente exame, Rocher con­venceu-se que o livro verde só tinha de va­liosa a capa e que a repentina indisposição de Vandam tivera outra causa.

Deixou o livro em seu lugar, observando os arredores da livraria com atenção. Os dois livreiros, ocupados com a venda dos jornais, espreitavam-no. O velho Gulbrich sentia-se muito inquieto e seu rosto estava muito pálido. Mas seu filho sorria zombeteiramente. O Comissário Rocher aproximou-se de novo do livro. E pela terceira vez compro­vou que não havia nada de misterioso na­quelas páginas. Foi somente ao fechar o li­vro que viu uma espécie de selo minúsculo no canto superior da página branca da ante-capa. Era como um escudo cor de violeta, modesto e delicado como uma flor do campo. A inscrição central estava um pouco apaga­da, mas Rocher conseguiu le-la sem grande esforço: Biblicfan.

 

                                                      CAPÍTULO 12

Jarnac afastou-se da espingarda e voltou-se para Flambel. Estava muito cansado.

- Substitua-me, por favor. Não aguento mais.

- Não há nada pior para os nervos do que esse desfile de aspirantes à morte. Eu tinha muita esperança que o homem do cachimbo fosse o condenado. Se ele levasse o livro, que faria você, Jarnac?

- Nada. Não tenho nada contra a polícia.

- Eu também não. Os «tiras» até me inspi­ram certa simpatia.

Jarnac flexionou os membros entorpecidos e bebeu um gole de conhaque. Flambel es­tendera-se por trás da Skoda e fitando seu companheiro com o rabo do olho, disse:

- Uma segunda garrafa não viria mal. Talvez tenhamos de ficar aqui até às dez da noi­te. Meu estômago já está roncando de fome. Vá até o bar e traga alguns sanduíches...

- Prefiro ir a outro lugar. Não me atrai a idéia de passar por baixo dessa janela.

- Isso me ofende muito - disse Flambel, com ironia.

- Não se trata de desconfiança e, sim, de medo da má sorte. Imagine o que acontece­ria se eu estivesse passando pela livraria no momento em que você atirasse e a vítima caísse em meus braços...

A bebida deixara-os muito alegres e os dois riam, imaginando a cena. De repente Flambel apoiou o rosto contra o visor da es­pingarda para ver melhor.

- O «condenado» já chegou? - perguntou Jarnac.

- Olhe quem vem aí! - exclamou Flambel. E com intensa alegria, acrescentou:

- Que me enforquem se não é o próprio Denis. O coitado parece uma foca triste no meio dessa multidão alegre...

Os dois riram. Jarnac comentou:

- Ele não tem o costume de patrulhar na li­nha de frente. Aonde irá?

- Talvez o grande chefe o tenha mandado vir como reforço. Três veteranos do campo de batalha para liquidar um fantasma que está se divertindo à nossa custa...

Contemplaram com curiosidade o caolho. que avançava com passos rígidos, tateando com seu bastão branco. Seus óculos de len­tes escuras refletiam a claridade das vitri­nas. Chegando perto das estantes, passou lentamente diante do livro verde. Sua figu­ra de espantalho enquadrou-se por um ins­tante no fundo do visor. Com o indicador do­brado sobre o gatilho, Flambel riu: -Tenho vontade de fazer-lhe voar o cha­péu . Seria muito engraçado, não acha?

Denis detestava o contato com a multidão num lugar fechado e mal provido de saídas. Aquela lenta travessia das Arcadas o enervara e soltou um suspiro de alívio ao chegar ao hall de acesso aos escritórios. Desviara-se de propósito da abóboda sombria do pátio do 65 da rua Nogent para escapar ao olhar agudo do chofer, que esperava, desde cedo, dentro do carro azul. Outro que certamente devia estar lançando maldições contra o pro­motor daquela emboscada insensata, o gran­de chefe, aboletado detrás de seus telefones e de suas caixas-fortes.

Pelo menos assim o imaginava Denis atra­vés da figura assustada de seu porta-voz, aquele falso Major que tinha a petulância de usar condecorações ilegítimas.

Denis deteve-se um momento ao pé das escadas para sacudir os flocos de neve de seu chapéu. A dois passos um homem de casaco marrom enchia o cachimbo, consultan­do o painel de endereços na parede dos fun­dos .

Denis ia subir quando o Comissário Ro­cher aproximou-se. Enganado pelo bastão tranco e os óculos escuros, perguntou:

- Posso ajudá-lo a subir?

Maldizendo o intrometido, Denis balbuciou:

- Não se preocupe. Sei me arranjar sozi­nho. Só enxergo com um olho, mas poderei subir as escadas sem auxílio. - Não será incomodo para mim.

- Fico-lhe muito grato, mas não é preciso. Denis amassaria com prazer o nariz da­quele desconhecido. Rocher agarrou-o pelo braço, para ajudá-lo a subir, como se ele fos­se um inválido. Denis fervia de irritação. Enquanto subiam as escadas, conversavam sobre banalidades:

- Se este frio continuar, o inverno será du­ro.

- Será polar - admitiu Denis, pacientemen­te.

- Os cinemas estão cheios. Nunca vi tanta gente nas Arcadas.

- É um lugar muito acolhedor... Abriga­do das correntes de ar.

O comissário e o ex-combatente chegaram no primeiro andar, onde estavam os escritó­rios. Rocher declarou, satisfeito:

- Já chegamos. Saberá encontrar sua por­ta?

Já no fim da sua paciência, Denis inven­tou:

- É a décima à direita. Não posso enga­nar-me. Obrigado por sua ajuda.

- Eu o acompanharei até lá... Não diga que não! Eu insisto. Tenho tempo de sobra.

Subitamente Denis percebeu com terror que o homem que estava a seu lado era um policial. A firmeza com que apertava sua mão parecia maquinal... Mas já era tar­de para soltar-se, para dar meia volta e fu­gir. Continuaram caminhando juntos e de re­pente Denis estremeceu ao dar-se conta de sua má sorte. A décima porta era a do nú­mero 22, escritório do empresário Beyuls. Rocher riu jovialmente:

- Perdoe minha indiscrição, mas não com­preendo o que um homem como o senhor po­de querer no escritório desse vigarista...

Denis procurou uma idéia salvadora em sua mente confusa:

- Não há mistério nisso. Desejo organizar uma festa para os mutilados de guerra.

- Não encontrará mulheres no escritório desse empresário barato. Já o visitei. Boa tarde, senhor.

E afastou-se, deixando Denis quase à bei­ra de um colapso. O ex-combatente tinha uma chave do 22 e entrou sem bater nem fazer ruído. Ao fechar a porta, ouviu uma voz abafada, que parecia vir de dentro da pare­de e que gemia:

- Tirem-me daqui!

No escritório, os dois ex-combatentes riam ruidosamente. A voz abafada soou no­vamente:

- Abram! Não aguento mais!

Os pelos do bigode de Denis eriçaram-se. Acendeu a luz da sala de espera. Os gemi­dos e as pancadas surdas vinham de um grande armário. Denis abriu-o, e viu um ho­mem gordo e narigudo, amarrado ao fundo do armário. O homem balbuciou:

- Solte-me e telefone imediatamente, cha­mando o ônibus. Esperam-nos amanhã em Maracaibo, com as garotas...

Estupefacto, Denis fechou precipitada­mente a porta e correu para o escritório. Sua chegada inesperada surpreendeu Flambel e Jarnac, que conversavam animadamente, passando de um para o outro a garrafa qua­se vazia. Tirando o chapéu, Denis exclamou furioso:

- Então é assim que montam guarda! Ofe­reço-lhes uma fortuna para atirarem num idiota que nem sabe o que o espera e vocês se divertem bebendo e contando anedotas... Quem é aquele sujeito que está preso no armário

Rindo, Flambel declarou:

- É o empresário Geo. você pensa em tu­do, mas parece que esta missão fracassou. Sua visita já é a quarta que tivemos até ago­ra. E em vez de armar essa bronca toda, de­via felicitar-nos por termos neutralizado os tres visitantes anteriores sem chamar a aten­ção de ninguém.

Jarnac interveio:

- Você devia ocupar-se das visitas. Não se pode estar atento o tempo todo, desligar o telefone, abrir a porta e atender pacificamen­te às visitas, tudo ao mesmo tempo.

- Depois de Geo Beyuls, quem veio?

- Uma stripteaser com um casaco de vison... Tinha uma conta a ajustar com Geo. Depois de cobrar a dívida, foi embora sem mais problemas.

- E depois?

Desta vez quem falou foi Flambel:

- Um policial de casaco marrom, com um cachimbo na mão. Desde manhã cedo anda passeando pelas Arcadas. Seguia a pista da loura e queria saber o que a trouxera a este escritório. Recebi-o, fazendo-me passar pelo empresário. Minutos depois foi embora, e parece que não desconfiou de nada.

- Não? Pois esse mesmo policial me acom­panhou até aqui, agora! Que bela complica­ção! É um verdadeiro suicídio atirar em al­guém nessas condições.

Flambel riu:

- Alegra-me muito ouvi-lo, capitão. Jarnac já estava com vontade de ir embora e eu o imitarei. Nós lhe deixaremos a carabina e o estojo da máquina. Acho que ainda tem pon­taria suficiente para atingir o alvo...

Lívido, Denis exclamou:

- Foi o que ganhei por confiar em aventu­reiros sem moral! Mas fiquem sabendo que ninguém desertou impunemente de minhas fileiras. Está bem, rapazes! Ficarei só, mas estejam certos de que empregarei o dinheiro do pagamento para contratar quem os elimi­ne!

Flambel piscou um olho a Jarnac e afir­mou gravemente:

- Conte comigo, meu velho. Agradam-me os chefes que tem a coragem de sentenciar os desertores cara a cara, expondo-se a qual­quer má reação. Outro homem teria ficado calado. você não concorda comigo, Jarnac?

- Em primeiro lugar peço a nosso capitão que se acalme. Não conseguirá nada com essa fúria. Em segundo lugar, o livro verde ainda está na estante. Uma hora mais e cai­remos de sono e aborrecimento em cima des­sa carabina. Seria preciso que encontrasse um meio de ativar os acontecimentos.

Flambel insistiu, zombeteiro:

- Telefone ao grande chefe e diga-lhe que estamos fartos. ele tem certeza de que não se enganou?

- Foi ele quem me enviou!

- O grande chefe?

- Não, seu delegado. Pede-nos uma missão suplementar. Logicamente o pagamento será dobrado. Trata-se de eliminar o mais cedo possível os dois livreiros.

- Aqui e agora? - surpreendeu-se Flambel.

- Não! Em sua casa, logo que for resolvi­do o assunto do livro verde... Deixem-me falar. Será uma emboscada no bairro oeste. Tenho o carro e as armas à espera. Em ple­na noite e com toda essa neve, será uma brincadeira. Já me comprometi.

Jarnac e Flambel haviam bebido demais e não levavam nada a sério. Riram e Denis deu por aceite sua proposta. Não podia ima­ginar que perdera sua autoridade sobre os deis ex-combatentes, que, reunidos, haviam reencontrado sua antiga despreocupação e encaravam com zombeteiro ceticismo as ma­nobras daquela organização cuja finalidade ignoravam.

Tomando um bloco e um lápis, Denis dis­se:

- Vou desenhar a topografia do lugar da emboscada...

Jarnac, que se estendera por trás da ca­rabina, sugeriu:

- Primeiro encarregue-se de Beyuls.

O empresário fazia muito barulho dentro do armário. Denis foi ver o que estava acontecendo em companhia de Flambel. Beyuls, sufocando de fúria, reclamava a gritos o pa­gamento de um contrato em Lima e exigia a imediata presença de Miss Michigan. Flam­bel aconselhou amavelmente:

- Durma um pouso que lhe fará bem, Geo. Dizendo aquilo, aplicou-lhe um direto e Beyuls caiu de costas, inconsciente. Os dois homens dispunham-se a regressar ao escritó­rio, quando a campainha da porta soou, fa­zendo-os estremecer.   Flambel murmurou:

- O quinto visitante. Isso parece uma fei­ra de amostras...

Dirigiu-se lentamente para a porta. Pa­rado em frente à porta estava o policial de casaco marrom, imóvel e ameaçador. Seu ca­chimbo aceso fumegava suavemente ilumi­nando seu resto hostil, enquanto dizia:

- O senhor recebe muitas visitas. Que hou­ve com o velho?

Dando um passo à frente, Denis apareceu:

- Estou aqui.

- Já encontrou suas coristas?

Flambel recuperou sua personalidade de empresário e explicou:

- Ainda disponho de sete morenas da Martinica que são uma maravilha, pois além de cantar e dançar, são contorcionistas. Estou tratando de preço com este senhor e com esse contrato liquidarei definitivamente meus negócios.

Rocher limitou-se a fazer um aceno de despedida. Flambel fechou a porta, e ficou escutando por alguns instantes. Pouco de­pois, disse:

- Já foi.

- Não devíamos deixar que se afastasse com vida. Ainda não percebeu que esse homem é perigoso?

- Você me contratou para liquidar um agente inimigo, não para matar policiais. Além disso, ele deve ter uma missão muito mais importante que a de meter o nariz no escritório de um empresário.

Abriu um pouco a porta e os dois viram que o Comissário Rocher detivera-se diante da porta de número 4 e apertava a campai­nha.

 

                                                   CAPÍTULO 13

Por trás da cortina da janela, Mudros e tia Melba ouviram a campainha soar prolongadamente. Mudros disse:

- Não abra.

- Talvez o Major tenha esquecido as cha­ves. Isso já aconteceu muitas vezes.

Erguendo o binóculo, Mudros encolheu os ombros.

- Bem, vá atender, mas não deixe ninguém entrar. Não é hora de receber visitas.

Tia Melba foi até a sala de espera. A campainha soou novamente, impaciente. Es­piou pelo olho mágico, mas só viu a parede em frente. O inoportuno devia estar a um lado da porta. Abriu subitamente e quase fe­chou com a mesma rapidez ao reconhecer o policial que passeava pelas Arcadas desde às nove da manhã. Anunciou acremente: - A biblioteca fecha aos sábados pela tar­de. Sinto muito. Terá de voltar segunda-feira.

Com ar de contrariedade, o comissário replicou:

- Tenho de viajar amanhã. Não poderia fa­zer uma exceção? Será apenas um momen­to.

- Quem é o senhor?

-Guy Richard, professor da Faculdade de Rouen. Um de meus colegas falou-me na Bibliofan. Disse que era muito interessante. Es­tou de passagem por Paris e gostaria de con­sultar uma de suas obras.

Tia Melba dispôs-se a confundir o comis­sário, perguntando: - Qual é a obra?

- O volume cento e noventa e seis da Enciclopélia do Metodismo de Walter Goetz.

Fingiu lançar um olhar guloso às altas prateleiras cheias de volumosas e antiqua­das enciclopédias. Tia Melba respirou fundo para conter sua exasperação: - Com efeito, temos a série completa de Goetz. Volte outra vez. Os dois mil volumes da Bibliofan estarão à sua disposição.

Rocher já entrara. Disse jovialmente:

- Não pagarei uma passagem de ida e vol­ta Paris-Rouen apenas para fazer uma con­sulta de cinco minutos. Onde está o bibliote­cário?

- O Sr. Mudros vem somente nos dias de balanço e só recebe marcando o encontro com antecedência.

- Tenho certeza de que ele acharia justa a minha pretensão.

Tia Melba cedeu para acabar logo com aquilo e empurrou a porta que dava para a sala de leitura:

-Sente. Vou trazer-lhe o livro.

A decoração daquela sala era também fria e austera, mas a grande janela dos fun­dos abria-se para as Arcadas. Rocher olhou para trás. A mulher vestida de vermelho apanhara uma escada e subia agora em dire­ção aos Goetz, resmungando.

Aproximando-se da janela, viu a livraria onde trabalhavam os Gulbrich. Tornou a pensar que não fora um simples capricho o que atraíra às Arcadas primeiro Vandam so­zinho, depois Dora, logo os dois juntos. Que representava exatamente o livro verde em tudo aquilo? Seria um sinal? Em todo caso, algo falhara, como testemunhavam as três retiradas sucessivas efetuadas pelos hóspe­des do Claridge.

Surpreendeu-o a silenciosa aproximação da estranha mulher que, sobraçando um li­vro grosso e fitando-o com certa hostilidade, perguntava:

- Que faz o senhor por aqui? - perguntou ao ve-lo perto da janela.

- A vista é muito bonita.

- Tome o Goetz e faça sua consulta depres­sa, porque tenho de me retirar daqui a pou­co .

Rocher abriu o volume, limitando-se a examinar a primeira página em branco. Viu o pequeno escudo violeta. Deixando o livro sobre a mesa, comentou:

- A Bibliofan deve estar liquidando seus estoques, não?

- Por que pergunta isso? Rocher apontou pela janela:

- O livreiro aí embaixo está vendo um ca­tálogo antigo ricamente encadernado, com o escudo desta firma.

- É bem possível. À medida que recebemos doações, a falta de espaço obriga-nos a ce­der certas obras aos revendedores.

- O velho eslavo não quis me vender o li­vro. Não teria outro da mesma série em suas estantes?

Rocher deu alguns passos em direção á uma estante onde se alinhavam uns vinte li­vros de idêntico formato, em cromo verde. Tia Melba interpôs-se com energia:

- Vá embora ou gritarei!

- Por que? Tenho por acaso aspecto de la­drão?

- Aqui não se vende nada! Retire-se!

- Talvez volte muito em breve para ver o dono disto...

Tia Melba apontou para a sala de espera:

- A saída é por ali.

Rocher caminhou na direção oposta, abrindo bruscamente uma porta lateral. En­trou numa sala pouco iluminada, com pesa­das cortinas vermelhas e tapetes persas. Ao fundo, perto de uma janela com a cortina en-treaberta, viu um homem alto e corpulento, de tez rosada.

- Sou o diretor da Bibliofan - disse o homem gordo, amavelmente. - Makario Mudros. Que deseja?

Ostentava um sorriso amável, que oculta­va naquele momento um grande furor.

- Sou um colecionador muito obstinado. O catálogo que recusaram vender-me na livra­ria Gulbrich traz o selo desta instituição...

- É possível. E... ?

- Sua Bibliofan é uma instituição fantasma esquecida pelos que a fundaram e por um Ministério que continua pagando por descui­do o salário de seus faxineiros. Mas penso que poderia ser o esconderijo ideal para um homem rico e sem escrúpulos...

O homem limitou-se a baixar as pálpebras, acentuando sua expressão de indiferen­ça e falsa bondade:

-Não sou nem uma coisa nem outra.

Seu braço descansava sobre uma gaveta aberta. Mas não o suficiente, porque o silenciador da automática duplicava sua largura. Teria de puxar a arma muito velozmente e ainda não pudera adivinhar onde o «tira» le­vava o revólver.

Felizmente tia Melba estava vigilante e Mudros viu-a colocar um revólver dentro da manga do casaco. Rocher disse:

- Talvez o senhor seja um maníaco das enciplopédias, o que explica sua instalação aqui. Mas eu pertenço a um mundo diferen­te, onde se perdem horas a resolver proble­mas sem pé nem cabeça, que não tem nenhu­ma relação com seus livros. Por isso acho que não saberá responder a minha pergun­ta.

- Faça-a de qualquer forma.

- Quem é o comprador do livro verde? Aquele que os Gulbrich não quiseram me vender.

- É muito simples. O comprador sou eu. - Desconcertado,   Rocher coçou o queixo com o cabo do cachimbo apagado.

- Cada vez entendo menos...

- Não há mistério. Este catálogo nos foi roubado no mês passado, na sala de leitu­ra. Suponho que o livro passou de livreiro a livreiro, até que o descobri por casualidade ao passar pelas Arcadas. Gulbrich acabava de comprá-lo. Não se opôs a devolve-lo a mim com um pequeno lucro.

- Se o livro é seu, por que o deixa ali? Quando compro alguma coisa, levo-a logo comigo...

O grande chefe da organização de falsá­rios esboçou um amplo sorriso:

- Gulbrich é também muito curioso, como o senhor. Queria saber, por capricho, o que poderia ganhar com o livro roubado. Ao meio-dia uma anciã ofereceu-lhe duzentos e cinquenta francos.

- Em seu lugar eu não deixaria o livro lá embaixo, Sr. Mudros. Poderiam roubá-lo ou­tra vez. Boa tarde.

Sentado atrás da carabina, Jarnac desdo­brava as mangas da camisa, sem deixar de olhar para a livraria Gulbrich. Entrando com Flambel, Denis perguntou:

- Nenhuma novidade?

- Se tivesse acontecido alguma coisa, eu já estaria longe daqui. O livro verde ainda continua em seu lugar.

- O homem marcado não demorará.

- Durante sua ausência o livro atraiu a atenção somente de um vagabundo que procurava o calor das Arcadas. O infeliz já ia roubando o livro, quando chegaram os Gul­brich . Que aconteceria se ele o levasse? Qual seria minha obrigação? Dar-lhe um ti­ro ou deixá-lo fugir?

A pergunta de Jarnac era dirigida a De­nis, mas foi Flambel quem respondeu, rin­do:

- Esse é um dilema que nos angustia. Acho que seu contratante não pagaria tanto di­nheiro pela morte de uma velha ou de um vagabundo. E este é o risco que corremos, se aplicarmos suas instruções ao pé da letra... Conhece o cretino do grande chefe? Gostaria muito de faze-lo engolir o cano da Skoda...

Denis replicou secamente:

- O grande chefe que nos emprega, nunca sai de seu anonimato. Somente trato com suboficiais que escondem o rosto o mais que podem.

Jarnac se levantara e vestia a japona. Flambel ajoelhou-se por trás da espingarda. Denis, inquieto, exclamou:

- Ei, Jarnac! Suponha que tínhamos chega­do a um acordo. Aonde pretende ir agora?

- Ao bar mais próximo, capitão. É outro detalhe que esqueceu, a tropa precisa comer, sabe? E beber. Devia ter pensado nisso an­tes de colocar-nos nesta trincheira sem provi­sões. O comando devia prever que passaría­mos uma tarde inteira esperando um moleirão que até agora não se mexeu para apa­nhar seu livro...

- Será uma imprudência sair daqui...

- Somente apareci para a loura do vison. Você arriscou muito mais vindo até aqui.

Flambel interveio:

- Jarnac, traga-me um maço de cigarros.

O ex-oficial legionário não se atreveu a protestar. Inquietava-o a excessiva propen­são à brincadeira de seus dois ajudantes. Jarnac passou à sala de espera. No armário, Beyuls começava novamente a falar sozinho. No corredor, muito iluminado, não havia nin­guém. Ressoava a atividade dos escritórios. Jarnac dirigiu-se com passo tranquilo à es­cada, saboreando com prazer aqueles pri­meiros segundos de liberdade. Chegava ao fundo quando um homem que vinha do últi­mo escritório tropeçou nele. Retrocedendo um passo, Rocher disse:

- Perdão.

- Não há de que - replicou Jarnac, sorriden­te.

Reconhecera o comissário que também montava guarda nas Arcadas. O álcool in­gerido incitava Max a um alegre otimismo. Desceu as escadas, pensando que seria óti­mo acabar logo com tudo aquilo. No bar, comprou duas garrafas de bebida, uma de co­nhaque e outra de vinho, um maço de cigar­ros e um frango assado. O próprio Denis abriu-lhe a porta do 22, pois Flambel conti­nuava em seu posto.

- Perdeu a chave? - perguntou Denis.

- Não, mas estou com os braços cheios, não pude abrir a porta.

- Você se exibiu demais - resmungou De­nis. - O policial do casaco marrom seguiu-o quando vinha do bar.

- Não me apanhará. Tenho apenas um pé neste escritório... O outro já está se prepa­rando para apanhar o expresso para a costa italiana...

Apontou para os pacotes:

- Não quer tomar um trago, Denis? Vamos, não faça cerimônia... Não quero que me guarde rancor...

Denis fez-lhe sinal para calar-se e abriu bruscamente a porta. O Comissário Rocher estava parado do outro lado, mordendo o ca­chimbo com expressão pensativa.

- Parece estar a gosto neste antro - comen­tou. - Onde está Beyuls?

Jarnac replicou, sorridente:

- Está terminando a limpeza do escritório'. O velho Geo tem mania de limpeza...

- E você quem é?

- O mesmo eu lhe pergunto.

- Meu nome é Rocher.

-E u sou o secretário do Sr. Geo Beyuls. Sempre o substituí em suas longas viagens e agora nos dispúnhamos a festejar seu regresso. Se quiser pode entrar, Rocher. Será um prazer.

Jarnac mostrava os pacotes que deixara sobre o sofá e segurava uma garrafa de be­bida. Enquanto isso, pensava se teria de alojar o policial junto ao empresário. O Co­missário Rocher tinha uma excessiva confi­ança em si mesmo para suspeitar de alguma ameaça por parte daquele rapaz tão alegre.

- Tenho a impressão de que está zomban­do de mim, rapaz - disse.

- Não vejo porque. Mas devo lembrá-lo que o senhor apareceu aqui sem ser convi­dado...

Denis estava inquieto. Sua condição de suposto visitante impedia-o de intervir no debate. O desesperado desejo de fugir da­quele local levou-o a dizer:

- Vou embora. Recorde ao Sr. Beyuls que as artistas ensaiarão esta noite às onze ho­ras . Peça-lhe que não esqueça. Contamos com a presença dos dois.

Com seu bastão branco, fingiu tatear até a porta aberta. As suspeitas imprecisas de Rocher esfumaram-se e voltou-se amavelmente para o «cego» .

- Eu o acompanharei até as Arcadas. Denis já suportara aquela experiencia meia hora antes. Mas sacrificou-se para des­viar o policial que rondava tão de perto seus homens. Desceram em silencio, de braços dados. Rocher só soltou seu prisioneiro cir­cunstancial na saída das Arcadas.

- Tem certeza que saberá encontrar o me­trô?

- Claro que sim, obrigado. Vou tomá-lo aqui perto, na estação Vanves.

Rocher o viu desaparecer apressado e aquela rapidez num homem quase cego, dei­xou-o pensativo. Aproximou-se do carro e Prevost lhe disse:

- Calma, chefe. Vandam e sua loura não deixaram o quarto nem receberam telefone­mas .

- O Estado Maior disse algo de novo?

- Sempre a mesma coisa. Conservar conta­to e fazer-se ver o menos possível. Isso é cô­mico, chefe. Desde as nove da manhã só nos dois aparecemos...

- Bem, agora voltarei às Arcadas. Mais ce­do ou mais tarde Vandam irá recolher seu pacote.

 

                                     CAPÍTULO 14

Tia Melba acalmou Mudros:

- Não perca a esportiva, querido. Espere­mos o Major. Se o assunto começar a ficar perigoso, você telefonará para o escritório do empresário e fugiremos pela rua Nogent. Co­nhece o caolho?

- Nunca vi aquele idiota. Acho que não vi­ria até aqui.

- Mas o policial veio. Que idéia genial você teve ao colocar esse maldito catálogo na livraria dos Gulbrich!

- Era necessário um ponto de referencia bem visível para o enviado de Raven, mas sem interesse para a clientela habitual dos Golbrich.

Tia Melba replicou:

- Não há dúvida que você acertou, querido - sua expressão era irônica. - O livro verde atrai as pessoas como moscas ao mel. Até um vagabundo quis roubá-lo. E podiam ter-lhe arrebentado os miolos se Zarko não o vis­se a tempo. Não há dúvida que sua idéia foi genial...

- Não diga tolices... O policial subiu por­que viu o selo da Bibliofan no livro. Entre­tanto, eu o escolhi porque estava sem selar. Ontem à noite comprovei-o uma vez mais, antes de entregá-lo aos Gulbrich.

- Então não pense mais, meu amor. Foi um dos iugoslavos que carimbou o selo. Por sorte o caolho tem o endereço dos dois ban­didos. Ainda está em tempo de dar a ordem de cessar fogo.

Mudros deu um soco na mesa:

- Não! Não quero deixar aquele idiota do Vandam vivo! A polícia o vigia. O perigo se­ria muito maior e estaríamos todos perdidos.

Tia Melba olhou para baixo e anunciou:

- Finalmente vem vindo o Major.

O Major contornava o supermercado ane­xo ao bar. Viu que o livro verde continuava em seu lugar. Temia a acolhida de Mudros, mas este o recebeu amavelmente:

- Demorou muito. Pensávamos que tinha desertado. Que aconteceu?

- Denis escolheu outro bar para nosso en­contro - mentiu o Major. - Mas ficou tudo combinado em relação aos Gulbrich. Entre­guei-lhe o dinheiro e prometeu dar a notícia aos seus rapazes. Com certeza vocês o viram passar...

- Claro que o vimos! - gritou tia Melba. -Esse caolho é um idiota. Com sua mania de fazer-se de cego, caiu nas malhas do poli­cial que anda vigiando as Arcadas como um corvo.

Mudros perguntou:

- Onde foram parar os dois, o cego e o po­licial?

O Major afirmou:

- Não há perigo. O «tira» só quis ajudar um inválido. Denis ficou livre ao sair das Ar­cadas e encontrou-se comigo na estação do metrô, como combinamos. Tudo vai bem, seus homens ficaram avisados e o enterro dos Gul­brich será realizado amanhã mesmo.

Tia Melba consultou o relógio:

- Os Gulbrich fecham às sete, Não resta muito tempo. Talvez o belga se apresente no último minuto, mas que faremos se for embo­ra, sem vir?

- Mudaremos de ares o mais depressa pos­sível, cada um por si.

Tia Melba apontou pela janela:

- E os atiradores?

O chefe declarou, categórico:

- Não quero nem que ouçam o som de mi­nha voz. Major, você mesmo lhes telefonará para que desmontem a arma e vão embora. Às sete em ponto. Onde estará escondido aquele maldito Vandam?

Dyrk Vandam estava encolhido embaixo dos cobertores.

- Ninguém a conhece em Paris, Dorinha, e talvez a polícia francesa esteja informada de meu interesse pelo livro. Se você for recolhe-lo de parte do tio Chil, o assunto estará ter­minado .

- Pensei que depois de roncar três horas você se decidiria a dar os quarenta passos que o separam das Arcadas, gorducho.

Reclinando-se nos travesseiros, Vandam observou:

- A sorte nos estende os braços e você se recusa a recebe-la. Um simples passeio e ganhará vinte mil francos limpos.

- Nem fale nisso.

- Quarenta mil?

- Vou!

Vestindo seu casaco de vison, Dora ad­vertiu:

- Sou uma mulher honesta. Se me aconte­cer qualquer coisa, lembre-se disso. você se­rá preso, Vandam.

Já nas Arcadas, Dora olhava detidamen­te as vitrinas. Tentava convencer-se que não lhe aconteceria nada. O simpático rapaz que a aconselhara não seria capaz de fazer-lhe mal...

Jarnac e Flambel acabavam de esvaziar a garrafa de vinho.   Já não vigiavam por turnos por trás da carabina. Limitavam-se a dar uma olhada de vez em quando. Há dez minutos os populares já começavam a reti­rar-se das Arcadas. Os Gulbrich transporta­vam o conteúdo das estantes para dentro da livraria. O livro verde continuava em seu lugar, muito destacado. Flambel comentou: - Nunca esquecerei este dia. - Que espera para desmontar a carabina? Os livreiros já estão recolhendo os livros...

- Mas o maldito livro verde continua à vis­ta. Não deixarei o posto enquanto não o le­varem para dentro. Não podem demorar muito...

- Eu já vou embora - declarou Jarnac, ves­tindo novamente a japona. - você saberá en­contrar a saída sem minha ajuda.

- Ei! E o trabalho desta noite? Os dois Gul­brich?

Jarnac apontou para o stand:

- Estão aí mesmo, por que não atira? Se quer minha opinião, tenho a certeza que este caso não tem nada a ver com a contra-espio­nagem. O caolho nos enganou.

- Também tenho as minhas suspeitas. Mas para mim dá no mesmo, o que quero é rece­ber o dinheiro. Ouça, Jarnac, poderíamos montar um negócio independente, prescindin­do do caolho.

- Não, obrigado, prefiro criar galinhas. Já comprei uma granja nos arredores de Nápo­les. Se quiser trabalhar comigo, terá parti­cipação nos lucros...

- Não, eu me aborreceria demais. Preciso viver perigosamente.

- Já estou farto disso.

- Pois muito prazer em conhece-lo... Pas­se-me a garrafa de conhaque.

Após beber mais um gole, Flambel esten­deu-se na posição de tiro.

- Adeus - disse Jarnac. - Não durma na mi­ra, Flambel...

- Adeus, granjeiro. Boa sorte.

Ao atravessar o pátio do 65, Jarnac sur­preendeu-se ao ver a porta de um carro azul abrir-se. Dentro do carro havia um bastão branco e os óculos de Denis brilharam. O mo­tor começou a funcionar e Denis perguntou:

- Já está pronto? Que espera Flambel para retirar-se?

- Ninguém apareceu. Os livreiros já estão recolhendo sua mercadoria. Flambel não precisa mais de mim.

Denis saltou do carro e agarrou Jarnac pela gola da japona:

- Não admito deserções!

- Cuidado, general. Agora percebi que você pensa que ainda está em plena guerra. Tire as mãos de cima de mim...

- Você vai voltar imediatamente. E esta noite...

- Vá para o inferno!

Jarnac soltou-se com um empurrão que fez Denis cair sentado dentro do carro. O chofer voltou-se, ordenando:

- Faça o que ele diz. Sou eu quem está com o dinheiro para o pagamento. Se algum de vocês falhar será pago com...

Mas Jarnac já não ouvia. Tomara o úni­co caminho possível para evitar um tiro pe­las costas. O das Arcadas... Com uma agi­lidade surpreendente, o caolho o perseguia. Jarnac conseguiu escudar-se por trás de uma coluna perto da saída. As lojas já estavam fechando. Denis, com o rosto congestionado de fúria, apareceu do outro lado da coluna. Jarnac sorriu agressivamente:

- Você vai subir comigo - disse Denis.

- Esta manhã aceitei o «trabalhinho» por compaixão. Agora você está começando a me aborrecer...

Denis ia replicar violentamente. Mas de repente ficou rígido e dando meia volta desa­pareceu em meio aos transeuntes que saíam pela rua Nogent. O Comissário Rocher deteve-se diante de Jarnac:

- Brincavam de esconder? Eu pensava que o cego ficara satisfeito com as suas morenas da Martinica... Que queria agora?

- Queria mais coristas, mas louras... Pen­sa que Geo Beyuls tem o armário cheio de atrizes.

Franzindo a testa, Rocher perguntou: - Sabe quem sou?

- Não é difícil adivinhar. Aposto que per­tence à polícia...

- Ganhou a aposta. E pedirei a meus che­fes que apresentem seus cumprimentos ao seu patrão por ser traficante de escravas bran­cas disfarçado... A propósito, espero que já tenha terminado sua limpeza.

- Suponho que sim., E eu vou iniciar minha limpeza agora. Já não me interessa ser se­cretário de Geo Beyuls.

- Muito bem. Uma retirada a tempo é o mais indicado. Boa noite.

Atrás da cortina, Mudros via um horizon­te quase despovoado. Voltou-se para tia Melba:

-Tudo se acabou - disse. - Vamos embora de uma vez. Se continuarmos aqui a polícia pode apanhar-nos ...

O telefone soou. Mudros atendeu. Era o velho Gulbrich:

- Sabe que horas são? O prazo fixado por Raven a seu comprador acaba de expirar. Que devo fazer?

- Espere cinco minutos mais. Deixe o livro verde bem visível em seu lugar.

Desligando mal-humorado, Mudros disse:

- Chegou a hora de fechar, para todos.

- Até para a polícia. O comissário desapa­receu - comentou tia Melba.

- Que farei agora? - perguntou o Major.

- Telefone para o escritório de Beyuls e di­ga aos dois atiradores que vão embora. Su­ponho que o caolho os espera com o carro.

- Tudo está pronto para a retirada. E de­pois?

- Volte para casa e não saia durante uma semana. Eu lhe enviarei instruções de Porto-fino.

Já na porta, tia Melba perguntou:

- Sairemos por Nogent?

- Não. Não quero que o maldito Denis me veja. Mesmo cem um olho só poderia adivi­nhar de onde lhe veio seu último contrato. Por outro lado, quero dizer duas palavras aos Gulbrich. Esperem-me na esquina da No­gent, com o carro.

- Para que quer falar-lhes?

- Antes de tomar o avião, quero que os Gulbrich saibam que vão morrer.

Dora hesitava. E ficava cada vez mais nervosa ao ver como as Arcadas se esvazia­vam. E ali estava o livro verde simbolizan­do a fortuna. Decidiu-se. Correria o perigo. Então alguém agarrou-a energicamente pelo braço e ela exclamou:

- Largue-me ou gritarei!

- E acabaremos os dois no xadrez. Reconheceu o rapaz moreno do escritório do empresário.

- Este lugar não é nada saudável. Aconse­lhei-a a não voltar...

- E para onde irei se deixar Dyrk?

- Esta noite Dyrk morrerá ou irá para a ca­deia. Como é o seu nome?

- Dora.

- Ouça o que eu digo. Venha comigo.

A jovem deixou-se enlaçar docemente -Passaram pelo arco da saída. O agente Pre­vost trocou um sinal com seu chefe. Rocher chamou-o:

- Esqueça a loura. Vá vigiar o gordo que ronda agora a livraria. Está vendo?

- Não é Vandam, chefe.

- Eu sei. Seu nome é Mudros. Vigie-o com discrição

Na livraria, Zarko Gulbrich catucou seu pai:

- Aí vem nosso ex-patrão. A cerimônia de adeus não será longa. Procure adivinhar se ele pretende executar-nos.

Detendo-se diante da estante do livra ver­de, Mudros disse:

- Tiveram muita pressa em fechar hoje.

- Amanhã mesmo venderemos a livraria, que só nos dá dor de cabeça.

Mudros sorriu:

- E eu viajarei por algum tempo. Quando voltar, quem sabe...? Talvez voltemos a tra­balhar juntos. Chegou a hora da despedida.

Zarko Gulbrich estendeu-lhe algumas chaves:

- Esta noite não voltaremos para a casa que nos alugou no bairro oeste. É muito úmi­da para nós. Papai e eu iremos a um ho­tel ...

Mudros, furioso, apanhou as chaves. Ia retirar-se quando alguém o reteve pela man­ga. O Comissário Rocher sorria:

- O senhor está esquecendo alguma coisa, Sr. Mudros...

Apontava para o livro verde abandona­do na estante como um objeto sem valor.

Por trás da cortina Flambel abriu o estojo da máquina de escrever, dispondo-se a desmontar a carabina. De repente o telefo­ne tocou. Mas Flambel não atendeu porque acabava de ver algo muito interessante. Es­tendeu-se por irás da carabina:

- De onde terá saído essa montanha de carne? Sua cabeça enche todo o visor...

O telefone continuava soando estridente­mente. Mas Flambel não podia atender à chamada. Estava atento ao visor:

-Ora... Agora o policial e o gordo discu­tem por causa do livro... É claro que o «ti­ra» não quer o livro. Está oferecendo-o ao gordo... O gordo agarrou-o... Vai levá-lo debaixo do braço... Ah, mas não levará! Trato é trato!

Apertou o gatilho. O corpulento Mudros caiu sobre a estante, levantando uma nuvem de pó. O telefone continuava tocando. Flam­bel ergueu o fone e com a outra mão come­çou a desmontar a arma. Uma voz suave dis­se ao seu ouvido:

- Saiam imediatamente pela rua Nogent. Denis os espera num carro azul. Cumprirão a missão noutra oportunidade.

Rindo às gargalhadas, Flamibel replicou:

- A missão já foi cumprida, chefão! Acabo de fulminar um homem que ia saindo com o livro...

Desligando, o Major correu para a jane­la. Viu gente agrupada ao redor da estan­te. E a mão cheia de anéis, inerte de Mu­dros .

Correu para a rua. Desejava recuperar o quanto antes sua personalidade de trapa­ceiro vulgar. Pelo caminho ia tirando as con­decorações . Ao passar diante do Claridge, passou por um homem gordo e louro que saía do hotel. Dyrk Vandam estava esperando há meia hora e temia o pior. Carros da polícia chegavam às Arcadas. Preferiu perder para sempre o dinheiro e Dora, empreendendo a fuga. Um agente o seguiu, fazendo sinal a dois carros. Prevost aguardou ordens do Comissário Rocher.

- Hubert acaba de dizer-nos que o belga fugiu - disse ao comissário..

- A polícia de Bruxelas se encarregará de­le. Para nós já é suficiente os dois livreiros e o morto.

- Quem atirou, chefe?

- Não sei. O tiro veio de um dos escritórios lá em cima.

Alguns policiais ocupavam-se do morto e interrogavam os livreiros. O Comissário Ro­cher subiu diretamente ao escritório número 22. A porta estava aberta. A da Bibliofan também.

No armário, Geo Beyuls gritava pedindo socorro. O agente Prevost desamarrou-o. Ro­cher perguntou:

- Quem é o senhor?

- Sou Ge©oBeyuls! Que estou fazendo den­tro deste armário?

- Isto é o que eu queria saber!

Rocher comprovou sua identidade e ouviu seu relato. Quando Geo terminou, Rocher disse a Prevost:

- Leve-o para depor junto com os outros.

Exausto, o Comissário Rocher pensou que no dia seguinte tentaria esclarecer aquele mistério. Tentaria ver com maior clareza os acontecimentos daquele dia que nunca es­queceria e durante o qual tanta gente ronda­ra junto a um livro, que significava a morte para o imprudente que tentasse levá-lo.

Era um mistério que já não preocupava em absoluto a Dora Coumans e Max Jarnac que, no expresso para a Itália, faziam planos para uma nova existência. Uma vida tranquila, porque agora já não se sentiam sós. 

 

                                                                                Peter Debry 

 

 

                      

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