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O PUNHO DE DEUS / Frederick Forsyth
O PUNHO DE DEUS / Frederick Forsyth

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PUNHO DE DEUS

Primeira Parte

 

O homem a quem restavam dez minutos de vida estava a rir.

A fonte do seu divertimento era uma história acabada de contar pela sua assessora pessoal, Monique Jamirié, que o levava a casa naquele entardecer glacial e chuvoso de 22 de Março de 1990, do escritório para o apartamento.

Dizia respeito a uma colega mútua nos escritórios., da Sociedade de Pesquisas Especiais na Rua de Stalle, considerada uma autêntica vamp devoradora de homens, que se tornara homossexual. A fraude encantava o sentido de humor obsceno do homem.

Eles tinham abandonado os escritórios no subúrbio de Bruxelas de Uccle às sete menos dez, com Monique ao volante do Renault 12 do Estado. Alguns meses atrás, ela vendera o Volkswagen do patrão, porque receara que este, péssimo condutor, acabasse por se matar.

Embora o percurso entre os escritórios e o apartamento no bloco central do complexo de três edifícios Chendreu, perto da Rua François Folie, não excedesse dez minutos, pararam pelo caminho numa padaria. Entraram ambos, a fim de ele comprar um pain de oampagne, que apreciava particularmente. A chuva era varrida por vento agreste, pelo que eles inclinavam a cabeça para o peito, o que os impediu de se aperceberem do carro que os seguia.

Não havia nada de estranho na omissão, pois nenhum dos dois possuía treino na matéria, O veículo anónimo, com dois ocupantes de expressões sinistras, seguia o cientista,com persistência nas últimas semanas, sem se aproximar demasiado,

apenas na expectativa, e ele não se dera conta. Outros tinham reparado, sem que se achasse, porém, ao corrente.        ;

Emergiu da padaria diante do cemitério, colocou o pão no banco de trás e subiu para o carro, a fim de completar o trajecto até casa. Às sete e dez, Monique travou diante da porta de vidro laminado do bloco de apartamentos, que se erguia a quinze metros da borda do passeio. Ofereceu‑se para subir também, todavia ele recusou. Ela sabia que esperava a sua amiguinha Helene e não queria que as duas mulheres se conhecessem. Tratava‑se de uma das vaidades em que o seu respeitoso pessoal feminino colaborava: Helene não passava de uma boa amiga, que lhe fazia companhia, quando se encontrava em Bruxelas e a esposa no Canadá.

Ele apeou‑se, a gola do impermeável levantada, como sempre, e suspendeu do ombro o enorme saco de lona preto que quase nunca abandonava. Pesava mais de quinze quilogramas e continha uma grande quantidade de papéis ‑documentos científicos, projectos, cálculos e dados. O cientista não confiava nos cofres e pensava ilogicamente que todos os pormenores dos seus planos mais recentes beneficiavam de maior segurança suspensos do seu ombro.

A última vez que Monique o viu, o seu patrão encontrava‑se diante da porta de vidro, o saco pendurado num dos ombros e o pão debaixo do outro braço, enquanto procurava as chaves. Aguardou que entrasse no átrio do prédio e a mola fechasse a porta automaticamente atrás dele. Em seguida, pôs o carro em movimento.

O académico vivia no sexto andar do bloco de oito. Os dois elevadores situávam-se nas traseiras do edifício, ladeados pela escada, com uma saída de incêndio em cada piso. Ele entrou numa das cabinas, que abandonou no sexto. Acto contínuo, a luz do corredor acendeu‑se, também automaticamente. Fazendo tilintar as chaves entre os dedos, um pouco curvado ao peso do saco e com o pão debaixo do outro braço, voltou à esquerda e depois novamente à esquerda, ao longo da alcatifa castanho-avermelhada, até que tentou introduzir a chave na fechadura da porta do seu apartamento.

O assassino estivera à espera do outro lado do poço do elevador, fora do campo visual do recén chegado. Naquele momento, emergiu do esconderijo empunhando a Beretta de 7,65 mm automática munida de silenciador, envolta num saco de plástico para evitar que as cápsulas ejectadas se espalhassem pelo chão.

Cinco tiros, disparados de menos de um metro de distância, todos dirigidos à nuca e costas, foram mais do que suficientes. O homem alto e possante tombou para a frente contra a porta e deslizou para a alcatifa. O pistoleiro não perdeu tempo a verificar ‑não havia necessidade. Efectuara aquele tipo de trabalho no passado, a exercitar‑se com prisioneiros, pelo que sabia que a missão fora cumprida. Desceu rapidamente os seis níveis de degraus, transpôs a porta das traseiras, cruzou o jardim sulcado de árvores e saiu para o carro que o aguardava. Uma hora mais tarde, encontrava‑se na embaixada do seu país e, vinte e quatro horas depois, abandonava a Bélgica.

Helene chegou cinco minutos mais tarde. A princípio, supôs que o amante sofrera um colapso cardíaco. Dominada pelo pânico, entrou no apartamento e chamou os paramédicos. Soube posteriormente que o médico‑assistente dele morava no mesmo bloco e telefonou‑lhe igualmente. Os paramédicos foram os primeiros a chegar.

Um deles tentou levantar o pesado corpo, ainda de bruços. Retirou a mão coberta de sangue. Minutos mais tarde, ele e o médico pronunciaram a vítima irremediavelmente morta. A outra única ocupante dos quatro apartamentos daquele andar assomou à porta do seu ‑uma mulher de meia‑idade que estava a ouvir um concerto clássico e não se dava conta de coisa alguma que se desenrolasse do outro lado da sua porta de madeira maciça. Na verdade, Cheridrea era uma área muito discreta.

O homem que jazia no chão sem vida era o Dr. Gerald Vincent Buli, um génio excêntrico, designer de armas de fogo para o mundo e, mais recentemente, armeiro de Saddam Hussein, do Iraque.

Na sequência do assassínio do Dr. Gerry Buli, começaram a acontecer coisas estranhas um pouco por toda a Europa. Em Bruxelas, a contra‑espionagem belga admitiu que, durante alguns meses, ele fora seguido quase diariamente por uma série de carros anónimos que continham dois homens de compleição escura do Mediterrâneo Oriental.

A 11 de Abril, funcionários alfandegários ingleses apreenderam, nas docas de Middlesborough, oito secções de tubos de aço, admiravelmente forjados e torneados, prontos para receberem fortes parafusos e porcas. Os funcionários anunciaram, triunfantes, que não se destinavam a uma fábrica petroquímica como especificavam os conhecimentos de carga e os certificados de exportação, pois faziam parte de uma potente peça de artilharia concebida por Gerry Buli para o Iraque. Nasceu assim a farsa da Superpeça, que seria representada repetidamente, com a participação de desonestidade, as garras subtis de várias agências de serviços secretos, um volume maciço de inépcia burocrática e alguma chicanice política.

Em poucas semanas, fragmentos da Superpeça começaram a aparecer por toda a Europa. A 23 de Abril, a Turquia anunciou que interceptara um camião húngaro que transportava um tubo de aço de dez metros para o Iraque, supostamente pertencente à arma em causa. No mesmo dia, funcionários gregos apreenderam outro camião com peças de aço e detiveram o infortunado condutor inglês durante várias semanas por cumplicidade.

Em Maio, os italianos interceptaram 75 toneladas de peças confeccionadas pela Società delia Fucirve e mais 15 na fábrica Fucine, perto de Roma. Estas últimas eram de uma liga de aço e titânio e destinavam‑se à culatra da peça, assim como outras encontradas num armazém de Bresoia, no norte do país.

Os alemães entraram em cena com descobertas em Frank‑furt e Bremerhaven, fabricadas pela Mannesmann AG, também identificadas como componentes da já mundialmente famosa Superpeça.

Na verdade, Gerry Buli fizera as encomendas para a sua criação, habilmente e com perfeição. Os tubos que formavam os canos foram na realidade fabricados em Inglaterra por duas firmas ‑a Walter Somers, de Birmingham, e a Sheffield For‑

gemasters. os oito descobertos em Abril de 1990 eram os últimos de cinquenta e duas secções, suficientes para constituir dois canos completos com 156 metros de comprimento e o incrível calibre de um metro, capazes de disparar um projéctil do tamanho de uma cabina telefónica cilíndrica.  :

Os munhões, ou apoios, provinham da Grécia, os tubos, bombas e válvulas que formavam o mecanismo de recuo da Suíça e Itália, o bloco da culatra da Áustria e Alemanha e o propulsor da Bélgica. Ao todo, havia sete países envolvidos como empreiteiros e nenhum sabia com exactidão o que fabricava.

A Imprensa popular dispunha de vasto material para expio‑rar, assim como os exultantes funcionários alfandegários e o sistema legal britânico, que começou avidamente a levantar processos contra qualquer entidade inocente envolvida. O que ninguém referia era que a caça grossa se escapara. O material interceptado constituía as Super peças Dois, Três e Quatro.

Quanto ao assassínio de Gerry Buli, originou algumas teorias bizarras nos media. Naturalmente, a CIA foi mencionada pela brigada «a CIA é responsável de tudo». O que representava mais uma insensatez. Embora Langley tenha, no passado e em circunstâncias especiais, apoiado a eliminação de determinadas personagens, ocupou‑se quase sempre de alvos do mesmo ramo: contratar funcionários indesejáveis, renegados e agentes duplos. A ideia de que o lobby em Langley 1 fica chocado com os cadáveres de antigos agentes abatidos pelos próprios colegas em obediência a ordens de director genocidas é divertida, mas absolutamente natural.

De resto, Gerry Buli não pertencia a esse mundo subter‑

 

(1) Sede da CIA, nos Estados Unidos. (N. do T.) ,.

16

 

râneo. Era um cientista, designer e empreiteiro de artilharia muito conhecido, convencional e assaz despido de convencionalismos, um cidadão americano que trabalhara para os Estados Unidos durante anos e falava copiosamente com os seus amigos do exército americano, sobre o que fazia. Se todos os designers e industriais da fabricação de armamento ao serviço de um país não considerado (de momento) inimigo da América fossem «desperdiçados», cerca de quinhentos cavalheiros da América do Norte e do Sul e da Europa teriam de se candidatar ao lugar.

Finalmente, Langley tem visto os movimentos algo restringidos, pelo menos nos últimos dez anos, pela nova burocracia de comandos e comissões de fiscalização. Nenhum membro da agência determina uma «baixa» sem uma ordem escrita e assinada. Para um homem como Gerry Buli, essa assinatura teria de ser do próprio director da Central Intelligence.

O DCI na altura era William Webster, antigo magistrado íntegro de Kansas. Seria quase tão fácil obter de William Webster uma ordem de semelhante natureza como escavar um túnel com uma colher de chá, para fugir da Penitenciária Marion.

Mas, substancialmente distanciada do topo do pelotão dos corredores do enigma de «quem matou Gerry Bull», figurava naturalmente a Mossad israelita. Toda a Imprensa e a maior parte dos amigos e família da vítima abraçaram a mesma conclusão. Buli trabalhava para o Iraque, que era o inimigo de Israel. Dois e dois são sempre quatro. O pior é que, no mundo de sombras e espelhos deformadores, aquilo que pode ou não parecer dois tem possibilidade de somar quatro, porém as probabilidades indicam que talvez não seja assim.

A Mossad é a agência de serviços secretos mais pequena, implacável e eficiente de todas as existentes no mundo. No passado, dedicou-se indubitavelmente a muitos assassínios, recorrendo a uma das três equipas kidon          o termo é hebraico e significa baioneta. O kidonim depende da Divisão de Combaten‑tes, ou Komemiute, indivíduos anónimos, a brigada dura. Mas até a Mossad possui as suas regras, apesar de auto‑impostas.

Os extermínios dividem‑se em duas categorias. Uma con^ siste na «exigência operacional», emergência imprevista em que uma operação que envolve vidas de amigos se acha em perigo e a pessoa de permeio tem de ser removida do caminho, rápida e permanentemente. Nestes casos, o responsável do caso, ou katsa, tem o direito de «desperdiçar» o oponente que compromete a missão e obtém apoio retroactivo dos chefes situados em Telavive.

A outra categoria refere‑se àqueles que já figuram na lista de execução, a qual existe em dois lugares: o cofre pessoal do Primeiro-Ministro e o do chefe da Mossad. Todo o novo Primeiro‑‑Ministro tem a obrigação e direito de a ler, podendo conter entre trinta e oitenta nomes. Tem a faculdade de rubricar cada nome e conceder luz verde à Mossad numa base de «se‑e‑‑quando» ou insistir em ser consultado antes de cada nova missão. Em qualquer dos casos, deve assinar a ordem de execução.

De um modo geral, os que figuram na lista dividem‑se em três classes. Há os poucos nazis importantes que restam, embora esta classe quase tenha deixado de existir. No passado, se bem que Israel montasse uma operação de grande envergadura para raptar e julgar Adolfo Eichmann com vista a um exemplo internacional, outros nazis foram simplesmente liquidados em segredo. Na segunda classe figuram quase todos os terroristas contemporâneos, em particular os árabes que já derramaram sangue israelita ou judeu, como Ahmed Jibril, Abu Nidal, ou gostariam de o fazer, com alguns não‑árabes à mistura.

À terceira, que poderia conter o nome de Gerry Buli, pertencem os que trabalham para os inimigos de Israel e cuja acção, se prosseguir, envolve grande perigo para este e respectivos cidadãos.

O denominador comum reside em que os alvos devem ter as mãos ensanguentadas ‑de facto ou em perspectiva.

Se se impõe uma eliminação, o Primeiro‑Ministro confia o assunto a um investigador judicial tão secreto, que poucos juristas israelitas e nenhum cidadão chegam a inteirar‑se, o qual põe em marcha «um tribunal» com a leitura da culpa, um acusador e um defensor. Se o pedido da Mossad se confirma, o caso regressa ao Primeiro‑Ministro, para que aponha a assinatura. A equipa kidon encarrega‑se do resto... se puder.

O problema da teoria «a‑Mossad^matou‑Bull» consiste em que apresenta pontos fracos em quase todos os níveis. Com efeito, ele trabalhava para Saddam Hussein, ao conceber nova artilharia convencional (que não poderia alcançar Israel), um programa de mísseis (que talvez pudessem, um dia) e uma peça gigantesca (que não preocupava Israel minimamente). Mas faziam o mesmo centenas de outros. Meia dúzia de firmas alemãs encontrava‑se por detrás da indústria de gases venenosos do Iraque, com cujos produtos Saddam já ameaçara Israel. Alemães e brasileiros trabalhavam abertamente para os mísseis S&ad 16. Os franceses foram os primeiros impulsionadores e fornecedores das pesquisas iraquianas para a fabricação de um engenho nuclear.

De que Buli, as suas ideias, projectos, actividades e progressos interessavam profundamente a Israel não subsiste a menor dúvida. Na sequência da sua morte, explorou‑se o facto de que, nos meses precedentes, ele se preocupara com repetidas intrusões dissimuladas no seu apartamento, quando se achava ausente. Nunca levaram nada, mas ficaram vestígios. Copos mudados de lugar, janelas deixadas abertas, uma video‑cassette rebobinada e retirada do respectivo leitor. Estaria a ser advertido e encontrar‑se‑ia a Mossad por detrás de tudo? A resposta a ambas as dúvidas era afirmativa, mas por uma razão de modo algum óbvia.

Após o crime, os desconhecidos de compleição escura e sotaque gutural que o seguiam por toda Bruxelas foram identificados pelos media como assassinos israelitas à espreita do momento oportuno para actuar. Infelizmente para a teoria, os agentes da Mossad não andam por aí com aspecto e modos próprios de Pancho Villa. Estavam na verdade presentes, toda^ via ninguém os viu ‑Buli, os amigos ou família deste ou a polícia belga. Encontravam‑se em Bruxelas com uma equipa que podia passar por europeia ‑belgas, americanos ou o que lhes apetecesse. Foram eles que revelaram às autoridades locais que Buli era seguido por outra equipa.

Além disso, Gerry Buli era um homem de uma indiscrição extraordinária. Não resistia a um desafio. Trabalhara para Israel, gostava do país e dos seus habitantes, tinha muitos amigos no exército israelita e revelava‑se incapaz de guardar um segredo. Desafiado com uma frase como «Gerry, aposto que nunca conseguirá que os mísseis Saacf 16 funcionem...», enveredava por um monólogo de três horas para descrever com exactidão o que fazia, até que ponto o projecto avançara, quais os problemas surgidos e como esperava ultrapassá‑los ‑numa palavra, tudo. Para os serviços secretos de qualquer país, constituía um sonho de indiscrição. Ainda na última semana da sua vida, recebera dois generais israelitas no seu gabinete e fornecera‑lhes uma exposição minuciosa da situação, registada fielmente pelos gravadores ocultos nas pastas destes últimos. Para quê destruir uma cornucópia de informação valiosa?

Finalmente, a Mossad tem outro hábito, quando lida com um cientista ou industrial, mas nunca com um terrorista. Transmite sempre uma última advertência ‑não um exótico assalto a um domicílio para mudar copos de sítio ou rebobinar vídeo‑cassettes, mas de natureza verbal. O processo foi observado até com o Dr. Yahia El Meshad, físico nuclear egípcio que trabalhava no primeiro reactor iraquiano, assassinado no seu quarto do Hotel Meridíen, em Paris, a 13 de Junho de 1980. Um katsa de língua árabe procurou‑o nos seus aposentos e explicou abertamente o que lhe sucederia, se não desistisse. O cientista replicou que o deixasse em paz‑atitude a todos os títulos imprudente. Responder torto a um membro de uma equipa kidon não constitui uma táctica aprovada pela indústria dos seguros. Duas horas mais tarde, Meshad expirava. Mas fora‑lhe concedida uma oportunidade de evitar o passamento prematuro. Um ano mais tarde, todo o complexo nuclear abastecido pelos franceses em Osirak Um e Dois era destruído por uma incursão da aviação israelita.

Buli era diferente‑cidadão americano nascido no Canadá, jovial, acessível e consumidor de uísque, de talento impressionante. Os israelitas podiam conversar com ele como se fosse um amigo, o que acontecia com frequência. Teria sido a coisa mais fácil do mundo enviar alguém para lhe comunicar que parasse com a actividade a que se dedicava, sob pena de a brigada dura o procurar. «Não veja nada de pessoal nisto, Gerry. Contingências da vida.»

Buli não se ocupava de nada que justificasse a concessão de uma medalha a título póstumo. De resto, já admitira aos israelitas e ao seu amigo íntimo George Wong que desejava cortar todos os laços com o Iraque. Estava farto. O que na realidade lhe aconteceu foi algo de muito diferente.

Gerald Vincent Buli nasceu em 1928, em North Bay, Ontário. Nas aulas, revelava‑se inteligente e impelido pelo desejo de triunfar e conquistar a aprovação do mundo. Aos dezasseis anos, poderia obter a formatura, mas, por ser tão jovem, o único estabelecimento capaz de aceitar um aluno daquela idade era a Universidade de Toronto ‑a Faculdade de Engenharia, mais concretamente‑, onde demonstrou que, além de inteligente, merecia o adjectivo de brilhante. Aos vinte e dois anos, tornou‑se o PhD (2) mais jovem. A engenharia aeronáutica dominava‑lhe a imaginação e, especificamente, a balística‑o estudo de corpos, quer projécteis, quer mísseis, em voo. Foi isto que o conduziu ao caminho da artilharia.

Depois de Toronto, ingressou no Estabelecimento de Desenvolvimento de Armamento e Pesquisas Canadiano, CARDE f), em Valcartier, então uma pequena e tranquila vila nos subúrbios de Quebeque. Em princípios dos anos cinquenta, o Homem erguia o rosto não só para os céus, mas também para além deles‑‑o Espaço propriamente dito. A palavra de ordem era «foguetes». Foi então que Buli provou que era algo mais do que brilhante tecnicamente. Um ser diversificado‑inventivo, despido de convenções e imaginativo. Foi durante os dez anos no CafiDE

 

(2)       Philosophiae Doctor. (N. do T.)

(3)       Canadian Armament and Research Development Establishment. (N. do T.}

 

que desenvolveu a ideia que se converteria no sonho do resto dos seus dias.

À semelhança de todas as ideias novas, a dele parecia extremamente simples. Quando se apercebeu da aparição da gama de foguetes americanos, no final dos anos cinquenta, descobriu que nove décimos dos que então se revelavam impressionantes estavam na fase inicial. No topo, em apenas uma fracção do tamanho total, encontravam‑se a segunda e a terceira e, de dimensões ainda mais reduzidas, a carga a transportar.

A primeira e gigantesca fase consistia em elevar o foguete nos primeiros cento e cinquenta quilómetros, onde a atmosfera era mais densa e a gravidade maior. Após a marca dos 150 km, necessitava muito menos propulsão para conduzir o satélite ao Espaço e orbitar num ponto entre os 400 e 500 quilómetros da Terra. Cada vez que um foguete se elevava, todo o volumoso e dispendioso conteúdo da primeira fase era destruído‑queimado‑para mergulhar eternamente nos oceanos.

«E se fosse possível disparar a segunda e terceira fases, além da carga de explosivo, nesses primeiros cento e cinquenta quilómetros por meio de uma peça de artilharia gigantesca?», cismava Buli. Assegurou a indivíduos endinheirados que, em teoria, era possível, mais fácil e menos oneroso, e a peça poderia voltar a ser utilizada um largo número de vezes.

Foi o seu primeiro contacto com políticos e burocratas, de que saiu derrotado, sobretudo em virtude da sua própria personalidade. Odiava‑os e eles pagavam‑lhe na mesma moeda.

Em 1961, a sorte bateu‑lhe à porta. A Universidade McGill entrou em cena por prever alguma publicidade interessante. E o Exército dos Estados Unidos fê‑lo por razões especiais: guardião da artilharia americana, entrava na luta pelo poder com a Força Aérea, que se esforçava por obter o controlo de todos os foguetes e projécteis que ultrapassassem altitudes superiores aos 100 quilómetros. Com os seus fundos combinados, Buli pôde montar um pequeno estabelecimento de pesquisas na ilha de Barbados. O Exército concedeu‑lhe uma embalagem que continha uma peça fora de uso da Marinha de 16 polegadas (o maior calibre do mundo), um cano sobressalente, uma pequena unidade de rastreio de radar, uma grua e alguns camiões. A McGill procedeu à montagem de uma oficina. A situação podia comparar‑se a enveredar pela indústria de corridas do Grand PNx com as disponibilidades de uma garagem de segunda ordem. Não obstante, ele alcançou o seu objectivo. Principiara a sua carreira de invenções surpreendentes, aos trinta e três anos de idade ‑acanhado, desleixado, inventivo e, todavia, intrépido.

Chamou às instalações em Barbados Projecto de Pesquisas de Grande Altitude, ou HARP(4). A velha peça de artilharia da Marinha foi montada e ele começou a trabalhar em projécteis. Deu‑lhes o nome de Martinete, em homenagem ao pássaro heráldico que figura na insígnia da Universidade McGill.

Pretendia colocar uma carga de instrumentos em órbita terrestre mais barata e rápida do que qualquer outra entidade. Sabia perfeitamente que nenhuma criatura humana poderia suportar as pressões de ser disparada de uma peça, mas admitia acertadamente que, no futuro, 90 por cento das pesquisas científicas e trabalho no Espaço dependeriam de máquinas e não de homens. A América, sob a égide de Kennedy, e estimulada pelo voo do astronauta russo Gagarini, desenvolvia no Cabo Canaveral o mais espectacular, mas, em última análise, o mais inútil exercício de colocar ratos, cães, macacos e, eventualmente, homens em órbita.

Entretanto, em Barbados, Buli continuava a trabalhar com a sua única peça de artilharia e os projécteis Martinete. Em 1964, expeliu um a 92 quilómetros de altitude, após o que acrescentou 16 metros ao cano da peça (custou‑lhe exactamente 41 mil dólares) e tornou o total de 36 o mais longo do mundo. Graças a isso, atingiu os mágicos 150 quilómetros com uma carga de 180 quilogramas.

Ia resolvendo os problemas à medida que surgiam. Um de relevo foi a propulsão. Numa peça pequena, a carga aplica ao projéctil um único impulso ao passar do estado sólido ao gasoso num microssegundo. O gás tenta escapar à compressão e a única saída consiste na extremidade do cano, com o que empurra o obus. Mas no caso de um cano tão longo como o de Buli, havia necessidade de uma carga propulsora especial de acção retardada para não o destruir ou, pelo menos, rachar. Carecia de um pó que enviasse o projéctil ao longo do enorme cano de consumo gradualmente crescente. Por conseguinte, concebeu‑o.

Também não ignorava que nenhum instrumento resistiria à força de gravidade de 10 000 causada pela explosão de uma carga propulsora, mesmo de consumo lento, pelo que concebeu um sistema absorvente de choques para a reduzir a 200. Um terceiro problema foi o recuo. Não se tratava de uma espingarda de pressão de ar, pelo que o recuo resultaria enorme, à medida que os canos, cargas e instrumentos transportados se avolumassem. Nessa conformidade, concebeu um sistema de molas e válvulas, a fim de o reduzir a proporções aceitáveis.

Em 1966, os seus antigos adversários entre os burocratas

 

(4) High Altitude Research Project. (N. do T.)

 

do Ministério da Defesa Canadiano convenceram o ministro da tutela a suspender o financiamento. Buli protestou que podia colocar uma carga substancial de instrumentos no Espaço por uma fracção do que custava ao Cabo Canaveral. Não lhe serviu de nada. Para proteger os seus interesses, o Exército dos Estados Unidos transferiu‑o de Barbados para Yuma, no Arizona. Aí, em Novembro desse ano, enviou uma carga a 180 quilómetros de altitude, recorde que se manteve durante vinte e cinco anos. Mas, em 1967, o Canadá retirou‑se totalmente da corrida ‑o Governo e a Universidade McGill. O Exército dos Estados Unidos seguiu‑lhe o exemplo e o projecto HARP foi encerrado. Buli fixou‑se, numa base puramente consultiva, em Highwater, propriedade que comprara, na fronteira de North Vermont e o Canadá.

Houve dois pós‑escritos, no caso HARP. Em 1990, custava dez mil dólares cada quilograma de instrumentos colocados no Espaço, através do programa do Vaivém Espacial com sede no Cabo Canaveral. Até ao final da sua existência, Buli manteve‑se convencido de que o teria conseguido por seiscentos. E, em 1988, o trabalho recomeçou com um pequeno projecto no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia, o qual envolve uma peça gigantesca, mas, até agora, com um cano de apenas 4 polegadas de calibre e 50 metros de comprimento. Espera‑se, mais tarde, e pelo custo de centenas de milhões de dólares, construir outro muito maior, com vista a disparar cargas para o Espaço. Foi‑lhe dado o nome de Projecto de Pesquisas de Supergrande Altitude, ou SHARP (5).

Gerry Buli viveu e dirigiu o seu complexo em Highwater, na fronteira, durante dez anos. Nesse período, abandonou o seu sonho irrealizado de uma peça que disparasse cargas para o Espaço e concentrou‑se na sua segunda área de perícia ‑a mais lucrativa da artilharia convencional.

Começou com o problema mais importante ‑quase todos os exércitos do mundo baseavam a sua artilharia na peça universal do obus de 155 mm. Ele sabia que, num duelo de artilharia, quem domina o maior alcance é rei. Pode repelir e destruir o inimigo e permanecer incólume. Assim, dispôs‑se a aumentar o alcance e melhorar a pontaria da peça em causa. E principiou pelas munições. A experiência fora efectuada diversas vezes, sem êxito. Ele alcançou o seu objectivo em quatro anos.

Nos testes, o obus de Buli ultrapassou uma vez e meia o limite máximo das outras peças de idênticas características, revelou‑se mais rigoroso e explodiu com a mesma impetuosi

 

O Super‑High Altitude Research Project. (N. do T.)

 

dade em 4700 fragmentos, número muito superior aos 1350 dos da NATO. Esta não se mostrou, porém, interessada. E, pela graça de Deus, a União Soviética tão‑pouco.

Imparável, Bui] prosseguiu na sua senda e produziu um novo obus de longo alcance. Ante o mesmo desinteresse da NATO, que preferia continuar com os seus fornecedores tradicionais e o obus de curto alcance.

Mas se as Potências lhe voltavam as costas, a atitude do resto do mundo era diferente. Afluíam as delegações militares e Highwater para consultar Gerry Buli. Entre outras, havia as de Israel (foi nessa ocasião que ele cimentou amizades iniciadas com os observadores em Barbados), Egipto, Venezuela, Chile e Irão. Também fornecia conselho à Grã‑Bretanha sobre outras questões de artilharia e depois à Holanda, Itália, Canadá e Estados Unidos, cujos cientistas militares (se não o Pentágono) continuavam a estudar com assombro os seus trabalhos.

Em 1972, tornou‑se discretamente cidadão americano. No ano seguinte, começou a trabalhar na peça de campanha de calibre 155. Em dois anos, descobrira que o comprimento perfeito do cano de um canhão era nem mais nem menos do que quarenta e cinco vezes o seu calibre. Aperfeiçoou uma nova concepção da peça de campanha de calibre 155, a que chamou CP (Calibre de Peça)‑45. A nova arma, com os seus obuses de longo alcance, dominaria qualquer artilharia em todo o arsenal comunista. Mas se estava a contar com contratos, ficou desapontado. O Pentágono continuou fiel ao lobby do armamento e à sua nova ideia de obuses, com um preço por unidade oito vezes superior. O rendimento de ambos os obuses era idêntico.

Buli começou a cair em desgraça de um modo aparentemente inocente, quando foi convidado, com a conivência da CIA, a ajudar a aperfeiçoar a artilharia e obuses da África do Sul e depois a combater os cubanos apoiados por Moscovo em Angola.

Na realidade, ele era politicamente ingénuo a um grau quase incrível. Partiu para lá, descobriu que gostava dos sul‑‑africanos e deu‑se bem com todos. O facto de o país desfrutar da discutível honra do desprezo internacional em virtude da sua política de apartheid não o preocupava. Ajudou‑os a conceber o novo parque de artilharia em obediência às linhas da peça de CP‑45 de cano e alcance longos. Mais tarde, os sul‑‑africanos produziram a sua própria versão, e foram esses canhões que esmagaram a artilharia soviética e repeliram os russos e os cubanos.

De regresso à América, Buli continuou a expedir os seus obuses. O Presidente Jimmy Cárter ascendera ao poder, e a rectidão política constituía a nova palavra de ordem. Assim, Buli foi detido e acusado de exportações ilegais para um regime banido. A CIA largou‑o como uma batata escaldante. Foi convencido a guardar silêncio e confessar‑se culpado. Não passava de uma formalidade, garantiram‑lhe, e condená‑lo‑iam simplesmente por uma infracção de natureza técnica.

 16 de Junho de 1980, um juiz dos Estados Unidos sentenciou‑o a um ano de prisão, com a pena suspensa durante seis meses, e uma multa de 105 000 dólares. Acabou por cumprir quatro meses e dezassete dias na cadeia de Allenwood, Pensilvânia. Mas, para Buli, não era isso que interessava.

Afligiam‑no a vergonha e desonra, além da sensação de traição. Como fora possível que lhe fizessem aquilo? Ajudara a América sempre que pudera, adquirira a sua cidadania e aceitara o conselho da CIA, em 1976. Durante o período de clausura, a sua companhia faliu e fechou as portas. Estava arrumado.

Quando foi posto em liberdade, abandonou a América e o Canadá para sempre e emigrou para Bruxelas, onde regressou à estaca zero num apartamento de uma divisão assoalhada com kitchenette. Alguns amigos revelaram mais tarde que se modificou depois do julgamento e nunca voltou a ser o mesmo. Jamais perdoou à CIA e à América, apesar do que desenvolveu esforços durante anos para a revisão do processo e concessão do perdão.

Voltou a dedicar‑se à actividade de consultor e aceitou uma oferta apresentada antes do julgamento: para trabalhar na China na remodelação da sua artilharia. Ao longo do princípio e meados dos anos oitenta, consagrou‑se principalmente à Beijing e reconcebeu o seu parque de artilharia assim como as linhas do canhão CP‑45, agora vendido ao abrigo de uma licença mundial pela Voest‑Alpine da Áustria, a qual lhe comprara a patente por dois milhões de dólares. Buli sempre se revelou um péssimo homem de negócios, de contrário ter‑se‑ia tomado multimilionário.

Haviam‑se registado várias ocorrências, na sua ausência. Os sul‑africanos serviram‑se dos projectos de Bui! e aperfeiçoaram‑nos substancialmente, criando um obus denominado C‑5, do seu CP‑45, e um canhão de autopropulsão, o C‑6, ambos com um alcance de quarenta quilómetros, que a África do Sul vendia a diversos países. Em resultado do seu modesto acordo com eles, Buli não recebeu um único cêntimo de direitos.

Entre os clientes interessados nessas armas, figurava um certo Saddam Hussein, do Iraque. Foram esses canhões que arrasaram as vagas humanas de fanáticos iranianos, na guerra de oito anos Irão‑lraque, para acabarem por derrotá‑los na região pantanosa de Fao. No entanto, Saddam Hussein juntou‑lhes um ingrediente de sua própria inspiração, em particular na batalha de Fao. Encheu os obuses de gás letal.

Buli trabalhou então para a Espanha e a Jugoslávia e converteu a velha artilharia de 130 mm de fabricação soviética do exército jugoslavo, com os novos canhões de 155 mm de obuses de longo alcance. Embora ele não vivesse o suficiente para o ver, foram estas peças herdadas pelos sérvios aquando do colapso do país, que serviram para pulverizar as cidades dos croatas e muçulmanos na guerra civil. Em 1987, inteirou‑se de que a América utilizaria finalmente o canhão de lançamento de cargas no Espaço, mas com a sua participação firmemente eliminada.

Naquele Inverno, recebeu um telefonema estranho da Embaixada do Iraque em Bona. Estaria o Dr. Buli interessado em visitar Bagdade como convidado do Iraque?

Ele não sabia, porém, que, em meados dos anos oitenta, aquele país assistira à «Operação Estanque», esforço concertado americano para «secar» todas as fontes de importação de armamento destinado ao Iraque. Isto seguiu‑se à carnificina de marines dos Estados Unidos em Beirute, num ataque apoiado pelos iranianos ao seu aquartelamento por fanáticos Hezbollaá.

A reacção do Iraque, embora beneficiasse na sua guerra com o Irão com a Operação Estanque, consistiu em «se eles podem fazer isto ao Irão, podem aplicar‑nos a mesma receita». A partir de então, decidiu importar não armamento, mas, sempre que possível, a tecnologia para o fabricar. Ora, Buli era, acima de tudo, um designar, pelo que lhe interessava.

A missão de o recrutar competiu a Amer Saadi, Número Dois no Ministério da Indústria e Industrialização Militar, mais conhecido por MIM1. Quando Buli chegou a Bagdade, em Janeiro de 1988, Saadi, diplomata/cientista cosmopolita de maneiras suaves, que dominava os idiomas inglês, francês e alemão, além do árabe, «preparou‑o» admiravelmente.

Explicou que o Iraque necessitava dele para concretizar o seu sonho de colocar satélites de paz no Espaço. Para tal, precisava de conceber um foguete capaz de colocar a carga lá em cima. Os seus cientistas egípcios e brasileiros tinham sugerido que o primeiro passo consistiria em reunir cinco mísseis Scud dos 900 que o Iraque comprara à União Soviética. No entanto, havia problemas técnicos‑e não poucos. Careciam de acesso a um supercomputador. Poderia Buli ser‑lhes útil nesse sentido?

Este último adorava os problemas, que constituíam a sua raison dêtre. Não tinha acesso a qualquer supercomputador, mas considerava‑se o mais próximo substituto de duas pernas. De resto, se o Iraque pretendia realmente ser a primeira nação árabe a colocar satélites no Espaço, havia outra maneira... menos onerosa, mais simples e rápida do que foguetes a partir do zero. «Conte‑me tudo», solicitou o iraquiano. E Buli contou. Revelou que, apenas por três milhões de dólares, produziria uma peça de artilharia gigantesca que executaria o trabalho. Tratar‑se^ia de um programa de cinco anos. Deixaria para trás os esforços dos americanos em Livermore. Constituiria um triunfo árabe. O Dr. Saadi exultava de admiração. Exporia a ideia ao seu governo e recomendá‑la‑ia com veemência. Entretanto, importava‑se o Dr. Buli de inspeccionar a artilharia iraquiana?

No final da visita de uma semana, o cientista aceitara a tarefa de solucionar os problemas de reunir cinco mísseis Scud para formarem o primeiro andar de um foguetão de âmbito intercontinental ou espacial, conceber duas novas peças de artilharia para o exército e apresentar uma proposta formal para a sua peça de colocação de uma carga em órbita.

Tal como acontecera no caso da África do Sul, Buli conseguiu isolar a mente da natureza do regime para o qual trabalharia. Pessoas amigas haviam‑no informado do recorde de Saddam Hussein como sendo o homem de mãos mais ensanguentadas do Médio Oriente. Mas, em 1988, havia milhares de companhias respeitáveis e dezenas de governos ansiosos por negociar com o perdulário Iraque.

Para Buli, o engodo era a sua peça ‑a sua estimada peça‑, sonho da sua vida, finalmente com um patrocinante disposto a ajudá‑lo a aperfeiçoá‑la e ingressar no panteão dos cientistas.

Em Março de 1988, Amer Saadi enviou um diplomata a Bruxelas para conversar com ele. Este confirmou que efectuara progressos quanto aos problemas técnicos do primeiro andar do foguete iraquiano e acrescentou que teria o maior prazer em os divulgar após a assinatura de um contrato com a sua companhia, mais uma vez a Space Research Corporation. O acordo foi consumado. O Iraque reconheceu que a oferta da peça por três milhões de dólares era ridícula, pelo que a elevou para dez milhões, mas exigiu maior rapidez.

Quando se dispunha a trabalhar depressa, Buli trabalhava mesmo depressa. Num mês, reuniu uma equipa dos melhores colaboradores independentes que conseguiu encontrar. À testa do grupo da superpeça no iraque, encontrava‑se um engenheiro de projectos britânico chamado Christopher Cowley. O próprio Buli baptizou como Projecto Pássaro o programa de foguetes baseado no Saad 16, no norte do país. A tarefa da superpeça propriamente dita foi denominada Projecto Babilónia.

Em Maio, as especificações exactas do Babilónia tinham sido determinadas. Seria uma máquina incrível. Um metro de diâmetro, um cano de 156 metros de comprimento e o peso de 1665 toneladas ‑mais do dobro da altura da Coluna de Nelson em Londres e igual à do Monumento a Washington. Quatro cilindros de recuo com o peso de 60 toneladas cada um e dois de amortecimento de sete toneladas. A culatra pesaria 182.

O aço tinha de ser especial, para suportar 4900 quilogramas por centímetro quadrado de pressão interna e uma resistência tênsil de 1250 megapascais.

Buli já deixara bem claro a Bagdade que teria de construir um protótipo mais pequeno, um Mini‑Babilónia com o diâmetro de 350 mm e o peso de apenas 113 toneladas, em que poderia testar cones de «nariz», úteis para o projecto do foguete. Os iraquianos ficaram satisfeitos com a ideia, pois também necessitavam desse tipo de tecnologia.

O pleno significado do apetite insaciável deles pela tecnologia de cones de nariz parece ter escapado a Buli na altura. Existe a possibilidade de que, no seu entusiasmo ilimitado para ver o sonho da sua vida concretizado, se limitasse a ignorá‑lo. Os cones de nariz de concepção muito avançada são necessários para evitar que a carga arda em resultado do atrito ao reentrar na atmosfera terrestre. No entanto, as cargas em órbita no Espaço não regressam ‑permanecem lá em cima.

Em fins de Maio de 1988, Christopher Cowley fazia as suas primeiras encomendas a Walter Somers, de Birmingham, de secções de tubo que constituiriam o cano do Mini‑Babilónia. As destinadas ao Babilónia Um, Dois,, Três e Quatro surgiriam mais tarde. Ao mesmo tempo, outras estranhas encomendas de aço eram efectuadas um pouco por toda a Europa.

Entretanto, Buli trabalhava a um ritmo impressionante. Em dois meses, avançara de um modo que uma empresa do governo levaria dois anos a igualar. Em fins de 1988, concebera duas novas peças para o Iraque ‑de autopropulsão e não rebocadas como as fornecidas à África do Sul. Seriam tão potentes que poderiam esmagar virtualmente as peças das nações à sua volta‑Irão, Turquia, Jordânia e Arábia Saudita‑?, que se abasteciam da NATO e América.

Mas conseguiu igualmente superar os problemas relacionados com a reunião de cinco Scuds para formarem o primeiro andar do foguete Pássaro, que se chamaria Al‑Abeid, o Crente. Descobrira que os iraquianos e brasileiros do Saad 16 trabalhavam baseados em dados deficientes proporcionados por um túnel de vento que não funcionava nas melhores condições. A partir de então, confiou os seus cálculos recentes aos brasileiros, para que se guiassem por eles.

Em Maio de 1989, a maior parte da indústria do armamento e da Imprensa, juntamente com observadores do governo, compareceram a uma importante exposição de armas em Bagdade. O interesse geral concentrou‑se nos modelos de protótipos das duas enormes peças. Em Dezembro, o Al‑Abeid foi testado na presença dos abismados media e sobressaltou seriamente os analistas europeus.

Perante as câmaras da TV iraquiana, o impressionante foguete de três andares ergueu‑se da Base de Pesquisas Espaciais Al‑Anbar, ganhou altitude e desapareceu no Espaço.

Mas os analistas traçaram conclusões. Se o Al‑Abeid podia fazer aquilo, também podia ser um míssil balístico intercontinental. Os serviços secretos ocidentais viram‑se apressadamente forçados a corrigir a suposição de que Saddam Hussein

não oferecia o menor perigo, situado a anos de distância de poder representar uma ameaça importante.           

As três principais agências ‑CIA, nos Estados Unidos, SIS, na Grã‑Bretanha, e Mossad, em Israel ‑reconheceram que, dos dois sistemas, a peça Babilónia não passava de um mero brinquedo e o Pássaro uma verdadeira ameaça. Laboravam em erro. Foi o Al‑Abeid que não funcionou devidamente.

Buli sabia porquê e revelou aos israelitas o que acontecera.

O Al‑Abeid subiu a 12000 metros e foi perdido de vista.

O segundo andar recusou separar‑se do primeiro. O terceiro não existia. Era um simulacro. Ele achavarse ao corrente, porque fora incumbido de tentar convencer a China a fornecer-lhe terceiro andar e partiria para Beijing em Fevereiro.          ;

Seguiu na verdade para lá, mas os chineses rejeitaram a proposta com prontidão. Durante a estada naquele país, encontrou‑se e conversou demoradamente com o seu velho amigo George Wong. Alguma coisa correra mal no assunto do Iraque que o preocupava seriamente, e não eram os israelitas. Insistiu várias vezes que queria «libertar‑se» do Iraque, e o mais depressa possível. Acontecera algo, dentro da sua própria cabeça, e ansiava por abandoná‑lo. Era uma decisão absolutamente correcta, mas pecava por tardia.

A 15 de Fevereiro de 1990, o Presidente Saddam Hussein convocou uma reunião plenária do seu grupo de conselheiros, no Palácio de Sarseng, no topo dos montes curdos.

Ele gostava particularmente do local. Erguia‑se numa área altaneira e, das janelas de vidros à prova de bala, podia contemplar o território em volta onde os camponeses curdos passavam os agrestes Invernos nas suas frágeis cabanas. Não distava muitos quilómetros da aterrorizada vila de Halabja, onde, ao longo de dois dias ‑17 e 18 de Março de 1988‑, determinara que a localidade de 70000 habitantes fosse punida por pretensa colaboração com os iranianos.

Quando a artilharia completou a sua obra, havia 5000 cães curdos mortos e 7000 incapacitados para toda a vida. Saddam ficara particularmente impressionado com os efeitos do cianeto de hidrogénio ejectado dos obuses da artilharia. As empresas alemãs que o haviam ajudado com a sua tecnologia a adquirir e criar o gás, assim como os agentes Tabun e Sarin, receberam a sua gratidão. Mereceram‑na com o seu gás, muito similar ao Ziklon‑B, empregado com extrema eficácia com os judeus no passado e num provável futuro.

Postou‑se atrás da janela do seu quarto de vestir e contemplou a manhã. Havia dezasseis anos que se encontrava no poder‑um poder indiscutido‑?, durante os quais se vira obrigado a castigar muitas pessoas. Mas também conseguira muitas coisas.

Erguera‑se uma nova Senaquerib da velha Nínive e outra Nebucadnezzar da Babilónia. Alguns tinham‑no aceitado pela pela maneira mais fácil, a submissão. Outros, ao invés, do modo mais difícil e estavam agora quase todos mortos. Não obstante, ainda restavam muitos que precisavam de aprender. Mas aprenderiam, sem a menor dúvida.

Ouviu o ruído dos helicópteros provenientes do sul, enquanto o costureiro o ajudava a vestir‑se. Quando se considerou satisfeito, Saddam pegou na arma portátil pessoal ‑uma Beretta de coronha de ouro de confecção iraquiana ‑introduziu‑a no coldre e colocou este último à cintura. Tivera de a utilizar, uma ocasião, sobre um ministro do seu Gabinete, e a necessidade poderia repetir‑se. Por conseguinte, levava‑a a toda a parte.

Um lacaio de libré bateu à porta e informou o Presidente de que os convocados o aguardavam na sala de reuniões. Quando ele entrou no vasto aposento de janelas panorâmicas sobranceiras à paisagem nevada, todos se levantaram, como que impelidos por uma mola comum. Somente ali, em Sarseng, o seu receio de ser assassinado diminuía. Sabia que o palácio estava rodeado por três filas dos membros mais eficientes do seu pelotão de segurança presidencial ‑o Amn‑al‑Khass ‑, comandado pelo seu próprio filho Kusay, pelo que ninguém se podia aproximar das amplas janelas. No telhado, havia mísseis antiaéreos Crotale franceses, além de que os seus «caças» cruzavam o céu sobre os montes.

Por fim, sentou‑se na cadeira com a configuração de um trono no centro da mesa do topo que formava a haste do T. Ladeavam‑no‑dois de cada lado ‑quatro dos seus assessores mais fidedignos. Para Saddam Hussein, havia apenas uma qualidade que exigia aos homens que desfrutavam da sua simpatia: lealdade. Uma lealdade absoluta, total, servil. A experiência ensinara‑lhe que havia gradações nela. Em primeiro lugar, figurava a família, depois o clã e por último a tribo. Existe uma máxima árabe do seguinte teor: «Eu e o meu irmão contra o nosso primo; eu e o meu primo contra o mundo.» Ele aceitava‑a sem reservas, absolutamente convicto de que funcionava.

Saddam provinha de um bairro miserável de uma pequena povoação chamada Tikrit e da tribo do al‑Tikriti. Um número extraordinário de membros da sua família e do al‑Tikriti ocupavam altos cargos no Iraque e podia perdoar‑se‑lhes qualquer brutalidade, erro ou excesso pessoal, desde que lhe fossem leais. O seu segundo filho, por exemplo, o psicopata Uday, espancara um criado até à morte e fora perdoado.

À sua direita, sentava Izzat Ibrahim, seu primeiro adjunto, e, a seguir, o genro, Hussein Kamil, chefe do Ml Ml, encarregado da aquisição de armamento. À esquerda, encontravam‑se Taha Rarnadan, Primeiro-Ministro, e depois Sadoun Hammadi, adjunto deste último e muçulmano xiita devoto. Saddam Hussein era sumia, porém a sua única área de tolerância residia em assuntos de religião. O Ministro dos Assuntos Estrangeiros, Tariq Aziz, era cristão. Que havia de mal nisso, se cumpria todas as suas ordens?

Os chefes militares sentavam‑se perto do topo da haste do T: os generais que comandavam a guarda republicana, infantaria, blindados, artilharia e engenharia. Seguiam‑se os quatro peritos em resultado de cujos relatórios e experiência fora convocada) a presente reunião.

Dois permaneciam à direita da mesa: o Dr. Amer Saadi, tecnólogo e assessor do genro de Saddam, e, a seu lado, o brigadeiro Hassam Rahmani, chefe da ala de contra‑espionagem do Mukhabarat. Na sua frente, achavam‑se o Dr. Ismail Ubaidi, que controlava o braço estrangeiro do Mukhabarat, ou serviços secretos, e o brigadeiro Ornar Khatib, director da temível polícia secreta, a AmnalAm.

Os três homens do serviço secreto tinham tarefas claramente definidas. O Dr. Ubaidi conduzia a espionagem no estrangeiro; Rahmani contra‑atacava a espionagem montada pelo estrangeiro no Iraque; e Khatib mantinha a população iraquiana na ordem, esmagando toda a oposição interna possível através de uma combinação da sua vasta rede de vigilantes e informadores e do terror puro e simples originado pelos rumores do que ele fazia aos oponentes detidos e levados para a prisão de Abir Gbraib, a oeste de Bagdade, ou para o seu centro de interrogatório pessoal conhecido ironicamente por Ginásio, nos subterrâneos da sede da AMAM.

Não eram poucas as queixas apresentadas a Saddam Hus‑sein sobre a brutalidade do chefe da sua polícia secreta, todavia acolhia‑as invariavelmente com uma risada sardónica. Constava que fora ele próprio que atribuíra a alcunha a Kathib‑AI Muazib, o carrasco. Este último era, evidentemente do ai‑Tikriti e leal até ao fim.

Alguns ditadores gostam de manter uma reunião pouco numerosa, quando se trata de discutir assuntos delicados. Saddam pensava precisamente o contrário ‑se havia trabalho sujo para executar, deviam envolver‑se todos. Assim, ninguém poderia alegar que tinha as mãos limpas e ignorava o que se passava. Deste modo, todos os que o rodeavam assimilavam a mensagem: «Se eu cair, vocês cairão comigo.»

Depois de devidamente instalados, o Presidente inclinou a cabeça para o genro, Hussein Kamil, o qual indicou ao Dr.‑Saadi que falasse. O tecnocrata leu o seu relatório sem erguer os olhos uma única vez. Ninguém, possuidor de um mínimo de prudência, se atrevia a fitar Saddam abertamente. Este último alegava que podia ler na alma de um homem através da vista, e muitos acreditavam. Se ele suspeitava de deslealdade, o transgressor sucumbia usualmente a uma morte horrível.

Quando o Dr. Saadi completou a leitura, Saddam conservou‑se pensativo por um momento.

Esse homem... esse canadiano, que sabe?

Não tudo, mas creio que não tardará a saber o suficiente para traçar conclusões, sayidi.          .

O interpelado empregava a fórmula árabe honorífica equivalente ao ocidental sir, mas mais respeitosa. Um título alternativo e aceitável era Sayid Rais ou senhor presidente.

Dentro de quanto tempo?

Em breve, se porventura não se inteirou já, sayidi.

E tem conversado com os israelitas?    

Constantemente, Sayid Rais. É amigo deles desde longa data. Visitou Telavive e deu lições de balística aos seus oficiais superiores de artilharia. Sim, conta com muitas amizades, possivelmente até entre os membros da Mossad, embora ele talvez não o saiba.

Podemos terminar o projecto sem ele? ‑quis saber Saddam, porém o genro interveio.

É um homem estranho. Insiste em levar sempre consigo os documentos científicos, num saco de lona. Transmiti instruções ao nosso pessoal da contra‑espionagem para que os examinassem e copiassem.

Já o fizeram? ‑inquiriu o Presidente, volvendo o olhar para Hassan Rahmadi, chefe da contra‑espionagem.           

Imediatamente, Sayid Rais. O mês passado, durante a sua visita ao nosso país. É um grande consumidor de uísque. Drogámos‑lhe a bebida e ele dormiu longa e profundamente. Aproveitámos então para confiscar o saco e fotocopiar todas as páginas que continha. Também gravámos as suas conversas de natureza técnica. Os documentos e transcrições foram entregues ao nosso camarada, Dr. Saadi.

O olhar presidencial transferiu‑se de novo para o cientista.

Volto a perguntar, o projecto pode ser completado sem ele?

Pode, Sayid Rais. Estou convencido disso. Embora alguns dos cálculos só façam sentido para o seu autor, os nossos melhores matemáticos estudam‑nos há mais de um mês. Disseram que conseguem entendê‑los. Os engenheiros podem ocupar‑se do resto.

Hussein Kamil dirigiu uma mirada de advertência ao seu adjunto: «Oxalá não te enganes, meu amigo...»

Onde está ele agora? ‑perguntou o Presidente.

Partiu para a China, sayidi ‑informou o homem da contra‑espionagem no estrangeiro, Ubaidi. ‑Tenta encontrar um terceiro andar para o foguete Al‑Abeid. Lamentavelmente, não o conseguirá. É esperado de regresso» a Bruxelas em meados de Março.

Temos agentes lá... dos bons?

Sim, sayidi. Mantivemo‑lo sob vigilância constante durante dez meses, em Bruxelas. Foi assim que soubemos que recebeu delegações de Israel, no seu gabinete. Também dispomos das chaves do prédio em que se situa o seu apartamento.

‑           Então, arrumem o assunto. No seu regresso.

‑Sem a menor demora, Saydi Rais.

Ubaidi pensava nos quatro homens que tinha em Bruxelas. Um deles, já se incumbira de uma tarefa idêntica, no passado. Abdelrahman Moyeddin. Confiar‑lhe‑ia a delicada missão.

Os três homens dos serviços secretos e o Dr. Saadi foram dispensados. Depois de saírem, Saddam Hussein voltou‑se para o genro.

‑           E o outro assunto? Quando estará pronto?

‑           No final do ano, segundo me asseguraram, Abu Kusay.

Como pertencia à «família», Kamil podia empregar a designação mais íntima de «Pai de Kusay». Ao mesmo tempo, recordava aos outros presentes quem era e quem não era da família. O Presidente emitiu um grunhido.

‑           Precisamos de um lugar novo, uma fortaleza, e não de um já existente, por muito secreto que seja. Um lugar novo e secreto que ninguém conheça. Ninguém, à excepção de um pequeno punhado de pessoas. Não um projecto de engenharia civil, mas militar. Pode ser?

O General Ali Musuli, da unidade de engenharia, empertigou‑se e fixou o olhar no peito do Presidente.

Com o maior orgulho, Sayid Rais.

Escolha o seu melhor homem.

Sei quem é, sayidi. Um coronel. Brilhante na construção e logro. O russo Stepanov disse que era o seu melhor aluno de maskírovka de todos os tempos.

Nesse caso, que venha à minha presença. Não aqui, mas em Bagdade, dentro de dois dias. Eu próprio o nomearei. É um servidor fiel? Leal ao partido e à minha pessoa?

Totalmente, sayidi. Morreria pelo seu Presidente.

Assim como todos vós, espero. ‑Registou‑se uma pausa e Saddam acrescentou com brandura: ‑Confiemos em que a situação não chegue a esse ponto.

Como ponto final da reunião, funcionou perfeitamente.

O Dr. Gerry Buli regressou a Bruxelas a 17 de Março, exausto e deprimido. Os colegas pensavam que a depressão se devia ao seu desaire na China. Mas havia algo mais.

Desde que chegara a Bagdade, mais de dois anos atrás, deixara‑se convencer, porque se tratava do que queria acreditar, que o programa dos foguetes e a peça Babilónia se destinavam ao lançamento de pequenos satélites com instrumentos para a órbita da Terra. Compreendia pelo menos os enormes benefícios em amor‑próprio e orgulho para todo o mundo árabe, se o Iraque lograsse a proeza. Além disso, resultaria lucrativo e abriria o caminho para que o país lançasse satélites de comunicações e meteorológicos para outras nações.

Segundo ele entendera, o plano consistia em a peça Babilónia disparar o seu míssil‑satélite para sudoeste, sobre o resto do território iraquiano, a Arábia Saudita e o sul do Oceano Índico, até ficar em órbita. Fora para isso que Buli o concebera.

Vira‑se obrigado a concordar com os colegas em que nenhuma nação ocidental o encararia desse modo. Depreenderiam que se tratava de uma arma militar. Daí o subterfúgio de encomendar as peças para formar o cano, a culatra e o mecanismo de recuo.

Somente ele, Gerald Vincent Buli, conhecia a verdade, que era muito simples: não poderia ser utilizada como arma de lançamento de obuses explosivos convencionais, por gigantescos que fossem.

Antes de qualquer outra consideração, a peça Babilónia de cano de 156 metros não podia permanecer rígida sem apoios. Precisava de um munhão, ou apoio, ao longo das 26 secções do cano, mesmo que, como previa, este último se situasse num ângulo de 45 graus com a montanha. Sem eles, o cano tombaria como um esparguete amolecido e desconjuntar‑se‑ia à medida que as junções se abrissem.

Por conseguinte, não podia aumentar ou diminuir a sua elevação ou deslocar‑se lateralmente. E, portanto, ficaria impossibilitada de atingir uma variedade de alvos. Para modificar o ângulo ‑para cima e para baixo ou para os lados ‑teria de ser desmontada, o que consumiria semanas. Mesmo para proceder à limpeza e recarregá‑la entre dois disparos demoraria duas semanas. Por outro lado, os repetidos disparos desgastariam o altamente dispendioso cano.

Por último, a Babilónia não podia ser oculta a um contra‑‑ataque. Cada vez que disparasse, uma coluna de chamas com 90 metros de altura brotaria do cano, visível de todos os satélites e aviões. As suas coordenadas estariam em poder dos americanos dentro de escassos segundos. E as ondas de choque da reverberação seriam captadas por qualquer bom sismógrafo em lugares tão distantes como a Califórnia.

O problema de Buli consistia em que, depois de dois anos no Iraque, chegara à conclusão de que, para Saddam Hussein, a ciência só tinha uma aplicação‑nas armas de guerra e poder que elas proporcionavam, e nada mais. Então, por que carga de água financiava a Babilónia? Só poderia ser disparada uma vez antes que bombardeiros de retaliação a reduzissem a fragmentos, e apenas um satélite ou um obus convencional.

Foi na China, na companhia do cordial George Wong, que decifrou o mistério. Seria a última equação que resolvia.

 

O longo Ram Charger rolava velozmente na auto‑estrada de Qatar em direcção a Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. O condicionador de ar mantinha o interior fresco, e o condutor dispunha dos acordes dos seus números de música country favoritos a fazer vibrar a atmosfera, provenientes do leitor de cassettes, a recordarem‑lhe a terra nata!.

Depois de Ruweis, havia o campo aberto, com o mar à esquerda visível apenas intermitentemente entre as dunas, e à direita o vasto deserto que se estendia em centenas de arenosos e inóspitos quilómetros no sentido de Dhofar e o Oceano Índico.

Sentada ao lado do marido, Mrs. Maybelle Walker contemplava, extasiada, o deserto ocre‑castanho que parecia fervilhar ao sol do meio‑dia. Ele, Ray, conservava o olhar fixo na estrada. Consagrado à exploração petrolífera desde sempre, cansara‑se de ver desertos. «Quem vê um vê todos», costumava resmungar, quando a esposa emitia uma das suas frequentes exclamações de admiração perante vistas e sons inteiramente novos para ela.

No entanto, para Maybelle Walker, era tudo novidade e, embora colocasse na bagagem, antes da partida de Oklahoma, medicamentos em quantidade suficiente para abrir uma sucursal da Eckerd, adorara cada minuto da digressão de duas semanas ao Golfo Arábico.

Tinham começado no norte, no Koweit, seguido para sul em direcção à Arábia Saudita, atravessado Khafji e Al‑Khobar, cruzado a área pantanosa até ao Bahrain, depois retrocedido através de Qatar e entrado nos EAU. Em cada paragem, Ray Walker procedera a uma «inspecção» superficial da delegação da sua companhia ‑razão aparente da viagem ‑, enquanto ela recorria a um guia e visitava os pontos de interesse turístico. Sentia‑se muito corajosa ao percorrer as ruas estreitas tendo apenas um homem branco como companhia, inconsciente de que correria muito mais perigo em qualquer das cinquenta cidades americanas do que entre árabes do Golfo.

O que via encantava‑a, na sua primeira e provavelmente última viagem fora dos Estados Unidos. Admirava os palácios e minaretes, maravilhava‑se com a torrente de ouro exposta nos souks e abismava‑se com a vaga de rostos e vestes multicoloridas que redemoinhavam à sua volta, nos bairros antigos.

Tirara fotografias a tudo e todos para poder mostrar no Clube das Senhoras na terra natal onde estivera e o que vira, e prestara a devida atenção à recomendação do representante da companhia em Qatar para não fotografar um árabe do deserto sem a sua autorização, pois alguns ainda acreditavam que a objectiva de uma máquina capturava parte da alma da pessoa visada.

Recorda a si própria com frequência que era uma mulher feliz e dispunha de muitos motivos para tal. Casara quase logo após o liceu com o homem que a acompanhava regularmente durante cerca de dois anos e desfrutava de uma posição sólida numa empresa petrolífera de que agora era vice‑presidente.

Possuíam uma bela vivenda nos arrabaldes de Tulsa e uma casa de praia para as férias em Hatteras, entre o Atlântico e Pamlico Sound, no norte da Califórnia. Fora um bom matrimónio de trinta anos, recompensado com um belo filho. E, agora, isto: uma digressão de duas semanas, a expensas da firma, através daquela mescla de vistas, sons, cheiros e experiências exóticas de outro mundo ‑o Golfo Arábico.

A estrada é boa ‑observou, enquanto subiam uma encosta sob o sol ardente. Se a temperatura dentro do carro não excedia os vinte graus, ultrapassava sem dúvida os quarenta no deserto.

Nem se podia esperar outra coisa ‑redarguiu o marido.

‑Fomos nós que a construímos.

A companhia?

Não. O Tio Sam, gaita.

Ray Walker tinha o hábito de acrescentar a palavra «gaita», quando fornecia uma informação. Conservaram‑se imersos em sociável silêncio, enquanto Tommy a aconselhava a apoiar sempre o seu homem, (6) como ela nunca deixara de fazer e tencionava continuar assim ao longo da aposentação.

Com cerca de sessenta anos, Ray Walker entrara nesse período com uma pensão substancial e alguns excelentes títulos da Bolsa, além de que a companhia, como prova de gratidão, lhe oferecera uma viagem em primeira classe, com todas as

 

H Alusão a uma passagem da canção Stand By your man, popularizada nos anos setenta. (N. do T.)

 

despesas pagas, ao Golfo, para «inspeccionar» as várias dependências ao longo da costa. Embora também nunca tivesse visitado a área, via‑se forçado a admitir que se sentia menos impressionado do que a esposa com o que se lhe deparava, mas congratulava‑se com a satisfação dela.

Ansiava por visitar Abu Dhabi e Dubai o mais rapidamente possível e embarcar no avião com destino aos Estados Unidos, com escala em Londres. Aí, ao menos, poderia pedir um Bud gelado sem ter de o fazer à socapa numa delegação da companhia. O islão podia ser muito agradável para algumas pessoas, mas depois de permanecer nos melhores hotéis do Koweit, Arábia Saudita e Qatar e ser informado de que não serviam bebidas alcoólicas, ele perguntava‑se que espécie de religião era aquela que impedia uma pessoa de tomar uma cerveja fria num dia escaldante.

Trajava como considerava próprio de um homem ligado a assuntos petrolíferos no deserto‑botas altas, jeans, cinturão, camisa e Stetson, O que não se tornava inteiramente necessário, pois era na realidade um químico do controlo de qualidade.

Consultou o conta‑quilómetros: faltavam cento e vinte quilómetros para o desvio de Abu Dhabi.

Vou parar para urinar, querida ‑anunciou a meia‑voz.

Mas tem cuidado ‑advertiu Maybelle.‑Deve haver escorpiões por aí.

Duvido que possam dar saltos de mais de meio metro de altura‑replicou ele, e soltou uma gargalhada com o comentário jocoso. Ser mordido por um escorpião na ponta do membro... Não podia deixar de contar essa aos rapazes, quando

regressasse.

‑ És terrível, Ray ‑acusou ela, mas também achou graça.

O marido encostou o Ram Charger à berma da estrada deserta, desligou o motor e abriu a porta. A onda de calor irrompeu para o interior do carro como se proviesse de uma fornalha. Após um segundo de hesitação, apeou‑se e tratou de fechar a porta imediatamente, para impedir a saída do ar fresco que restava.

Maybelle conservou‑se sentada, enquanto Ray se encaminhava para a duna mais próxima e puxava o fecho da braguilha. De súbito, arregalou os olhos na direcção do pára‑brisas e murmurou:

‑Não posso perder isto, meu Deus. ‑Pegou na Pentax,

 

7) Chapéu de feltro de configuração similar ao dos vaqueiros. (N. do T.)

 

abriu a porta do seu lado e saiu. ‑Achas que ele se importa se o fotografar, Ray?

Este, que se voltava para o outro lado, entretido a conceder uma das maiores satisfações de um homem de meia‑idade, replicou:

‑           Vou já, querida. A quem te referes?

O beduíno encontrava‑se no meio da estrada, aparentemente procedente de entre duas dunas, tendo surgido como que por artes mágicas. Maybelle Walker conservava‑se junto do pára‑‑choques da frente, de máquina fotográfica na mão, indecisa. O marido deu meia volta, ao mesmo tempo que puxava o fecho da braguilha para cima, e fixou o olhar no homem.

‑           Não sei. Suponho que não. Mas não te aproximes muito.

É capaz de ter pulgas. Vou ligar o motor. Tira a fotografia e se ele reagir mal salta para dentro. Depressa.

Instalou‑se ao volante e ligou o motor, com o que o con‑dicionadòr de ar recomeçou a funcionar, o que constituiu um alívio.

Maybelle Walker deu alguns passos para a frente e levantou a máquina fotográfica à altura do rosto.

‑           Posso tirar‑lhe o retrato?‑aventurou. ‑Máquina fotográfica? Fotografia? Um estalido, e já está. Para o meu álbum de recordações.

O homem permanecia imóvel e calado, fitando‑a sem pestanejar. O outrora branco djellaba, cheio de nódoas e pó, prolongava‑se dos ombros até quase aos pés, enquanto o keffiyeh lhe cobria o rosto, do nariz até ao pescoço. Os olhos negros brilhavam como carbúnculos. Maybelle já dispunha de muitas fotos para enriquecer o álbum, mas nenhuma de um beduíno tendo o deserto como pano de fundo.

Corrigiu a posição da máquina fotográfica, sem que o homem se movesse. Enquanto espreitava pelo visor, perguntava‑se se conseguiria alcançar o carro a tempo, se o árabe se precipitasse para ela. Clique.

‑           Muito obrigada ‑agradeceu, em voz não totalmente firme.

Ele mantinha‑se imóvel. Maybelle começou a recuar em direcção ao carro, com um sorriso. «Sorria sempre», recordava‑se de ter lido no Readers Digest, como recomendação aos americanos quando confrontados por alguém que não falava inglês.

‑           Acaba lá com isso, querida ‑chamou o marido.

‑           Acho que não há novidade ‑disse ela, abrindo a porta.

A cassette chegara ao fim, enquanto ela tirava a fotografia, o que desligou automaticamente o rádio. A mão de Ray Walker estendeu‑se para a ajudar a subir para o carro, que em seguida se pôs velozmente em marcha.

O árabe viu o carro afastar‑se, encolheu os ombros e encaminhou‑se para detrás da duna onde estacionara o seu Land‑‑Rover camuflado. Instantes depois, abandonava igualmente o local, rumo a Abu Dhabi.

Para quê tanta pressa? ‑perguntou Maybelle.‑Ele não tencionava atacar‑me.

Não é isso que me preocupa. ‑Ray Walker assumira uma expressão grave, preparado para enfrentar qualquer emergência internacional. ‑Seguimos para Abu Dhabi e tomamos o primeiro avião para casa. O Iraque invadiu o Koweit, esta manhã, gaita. Os tipos podem chegar aqui a todo o momento.

Eram dez horas da manhã, tempo do Golfo, de 2 de Agosto de 1990.

Doze horas antes, o coronel Osman Badri aguardava, tenso e excitado, junto de um tanque de combate T‑72, perto de um pequeno aeródromo chamado Safwan. Embora o ignorasse na altura, a guerra pela posse do Koweit começaria e terminaria aí, em Safwan.

Ao lado do aeródromo, que tinha pistas, mas nenhuma construção, estendia‑se, a auto‑estrada norte‑sul. Na parte norte, que ele percorrera três dias atrás, situava‑se a encruzilhada onde os viajantes podiam seguir para leste em direcção a Basra ou noroeste, rumo a Bagdade.

Na parte sul, a estrada prolongava‑se directamente através do posto fronteiriço do Koweit, a oito quilómetros de distância. Do ponto onde se encontrava, voltado para sul, ele avistava o ténue clarão de Jahra e, para além, do outro lado da baía, as luzes da cidade do Koweit.

Estava excitado, porque chegara a hora da sua pátria. O momento de castigar a escumalha koweitiana pelo que fizera ao seu país, pela guerra económica não declarada, pelos prejuízos financeiros e pela extraordinária arrogância.

Ao longo de oito sangrentos anos, o Iraque impedira as hordas da Pérsia de invadir o norte do Golfo e pôr termo ao seu luxuoso estilo de vida. E a recompensa de agora consistia em assistir impassível, enquanto os koweitianos se apoderavam de uma porção muito superior à que lhes competia do petróleo do campo partilhado de Rumailah. Deveriam limitar‑se a uma posição quase de indigência, ao mesmo tempo que o Kcweit excedia as suas quotas de produção e aviltava os preços? Deveriam sucumbir docilmente, enquanto os cães de Al Sabah insistiam no pagamento do miserável empréstimo de quinze milhares de milhões de dólares concedido ao Iraque durante a guerra?

Não, o Rais abarcara a situação da forma correcta, como sempre. O Koweit era, historicamente, a décima nona província do Iraque ‑sempre fora, até que os ingleses tinham traçado a maldita divisória na areia, em 1913, e criado o emirado mais próspero do mundo. Agora, o Koweit seria reclamado, naquela noite, e Osman Badri faria parte da operação.

Como engenheiro do exército, não se encontraria nas primeiras linhas, mas achar‑se‑ia perto, com as suas unidades de sapadores, tractores e outro material irresistível, para rasgarem o caminho, se porventura os koweitianos tentassem bloqueá‑lo. Em todo o caso, o reconhecimento aéreo não revelara qualquer obstrução. Não obstante, as tropas de engenharia estariam presentes, comandantes por Osman Badri, para abrir o caminho aos blindados e infantaria motorizada da guarda republicana.

A poucos metros do lugar em que se encontrava, a tenda do comando de campanha estava cheia de oficiais superiores, que se debruçavam sobre mapas e introduziam pequenas alterações de última hora no plano de ataque, enquanto aguardavam a ordem para avançar do Rais, em Bagdade.

Osman Badri já trocara impressões com o seu comandante‑‑general Ali Musuli, responsável por todo o corpo de engenharia do exército iraquiano, ao qual devia obediência absoluta por o ter recomendado para o «serviço especial», em Fevereiro passado. Pudera assim assegurar ao chefe que os seus homens estavam totalmente equipados e prontos para entrar em acção.

Enquanto conversava com Musuli, aparecera outro general e fora apresentado a Abdullah Kadiri, comandante da unidade de blindados. Vira, à distância, o genera) Saadi Tumah Abbas, comandante da elite da guarda republicana, entrar na tenda. Na sua qualidade de membro leal do partido e idólatra de Saddam Hus‑sein, ficara perplexo ao ouvir Kadiri articular entre dentes «oportunista político». Como se podia admitir uma coisa daquelas? Porventura Tumah Abbas não era íntimo de Saddam Hussein, recompensado por ter vencido a batalha crucial de Fao, que assinalara a derrota final dos iranianos? O coronel Gadri afastara do espírito a ideia de que a vitória se devera ao agora general Maher Rashid.

À sua volta, soldados e oficiais das divisões de Tawakkulna e Wledina da Guarda achavam‑se reunidos em número elevado, na escuridão. Os pensamentos dele recuaram à memorável noite de Fevereiro em que o general Musuli o afastara do seu cargo. Achava‑se convencido de que seria agora reintegrado.

‑O Presidente quer falar consigo ‑anunciou Musuli, bruscamente.‑Mandá‑lo‑á chamar. Vá para as instalações dos oficiais e esteja disponível dia e noite.

Badri mordeu os lábios. Que fizera? Que dissera? Nada de menos leal, sem margem para a mínima dúvida. Teria sido falsamente denunciado? Não, o Presidente não pretenderia falar com alguém em semelhante situação. O infractor ver‑se‑ia simplesmente nas mãos dos brutais agentes da Brig, a temível Amn‑al‑Amm de Khatib, para ser‑lhe administrada uma lição. Ao ver‑lhe a expressão apreensiva, Musuli rompeu a rir, os dentes brilhantes sob o espesso bigode preto que muitos oficiais usavam em imitação ao de Saddam Hussein.

‑           Não se preocupe. Ele tem uma missão para si. Uma missão especial.

E tinha, de facto. Menos de vinte e quatro horas mais tarde, Badri fora chamado às instalações dos oficiais superiores, onde o aguardava um longo carro de comando preto, com dois homens da Amn‑al‑Khass, brigada de guarda‑costas do Presidente. Conduziram-no directamente ao palácio presidencial para o encontro mais emocionante e momentoso da sua vida.

O palácio situava^se então na esquina das ruas Kindi e 14 de Julho, perto da ponte do mesmo nome, que assinalava a data do primeiro dos dois coups de Julho de 1968, o qual levara ao poder o Partido Baath e pusera termo ao domínio dos generais. Badri foi introduzido numa sala de espera, onde o conservaram durante duas horas. Revistaram‑no minuciosamente duas vezes, antes de ser levado à presença do Presidente.

No momento em que os guardas que o ladeavam se detiveram, apressou‑se a imitá‑los, após o que procedeu à saudação, que se prolongou por três segundos, e retirou o barrete da cabeça, para o colocar debaixo do braço. Em seguida, conservou‑se perfilado.

‑           Com que então, é você o génio maskirovka, hem?

Haviam‑lhe recomendado que não fitasse o Rais nos olhos,

mas quando este se lhe dirigiu não o pôde evitar. Saddam Hussein estava bem disposto. O olhar do jovem oficial na sua frente brilhava de amor e admiração, óptimo, não tinha nada a temer dele. E, em tom pausado, revelou ao engenheiro o que pretendia, enquanto o peito deste último se dilatava de orgulho e gratidão.

Ao longo de cinco meses, esforçara‑se por cumprir o prazo impossível e conseguira‑o com dois dias de antecedência. Dispunha de todas as facilidades que o Rais lhe prometera. Tudo e toda a gente se encontravam ao seu dispor. Se necessitasse de mais aço ou betão, bastar‑lhe‑ia telefonar a Kamil para o seu número secreto, e o genro do Presidente trataria de o comprazer imediatamente através dos recursos do Ministério da Indústria. Se precisasse de mais mão‑de‑obra, enviar‑lhe‑iam centenas de operários, sempre coreanos ou vietnamitas.

À parte os coolies, (8) ninguém utilizava a estrada, pois esta, que seria mais tarde destruída, destinava‑se apenas aos camiões que transportavam material. Todos os outros seres humanos, à excepção dos condutores de pesados, chegavam em helicópteros russos MIL, e só depois de se acharem no seu destino retiravam as vendas aos passageiros, operação que se repetia no regresso. Esta maneira de proceder tanto se aplicava ao iraquiano mais humilde como ao mais importante.

Fora o próprio Badri que escolhera o local, após dias de reconhecimento aéreo de helicóptero nas montanhas. Acabara por optar pela área elevada na Jebal Hamreen, onde as colinas da cordilheira Hamreen se convertiam num maciço, sobranceiro à estrada para Saluaymaniyam.

Ele trabalhara vinte horas diárias, dormira desconfortavelmente no local, maltratara, ameaçara, bajulara e subornara os seus homens para que operassem maravilhas, do que redundara a conclusão dos trabalhos antes do termo de Julho. Em seguida, haviam sido removidos todos os vestígios do que acontecera, sobretudo o mínimo fragmento de aço susceptível de reflectir os raios solares e despertar a atenção de alguma personagem indesejável que sobrevoasse o local.

As três aldeias em redor tinham sido completadas e habitadas, com as suas cabras e ovelhas. Por último, a estrada foi eliminada total e eficientemente e a paisagem readquiriu o aspecto primitivo. Ou quase.

Com efeito, ele, Osman Badri, coronel de engenharia, herdeiro da perícia que contribuíra para erigir Nínive e Tiro, estudioso do grande Stepanov da Rússia, mestre de maskirovka, a arte de dissimular algo para que parecesse outra coisa ou absolutamente nada, construira para Saddam Hussein a Qaala, a Fortaleza. Ninguém a podia ver, nem sabia onde se situava.

Antes do seu encerramento, assistira à montagem do impressionante canhão cujo cano parecia alcançar as estrelas. Quando tudo ficou concluído, partiram todos, ficando apenas a guarnição, que viveria aí. Ninguém sairia a pé. Quem tivesse de chegar ou partir, fá‑lo‑ia de helicóptero, e sempre de olhos vendados. Os pilotos e tripulantes permaneceriam encerrados numa única base aérea, sem visitas nem telefone. Assim, com a paisagem em volta restituída ao aspecto anterior, a Fortaleza foi abandonada ao seu isolamento.

Embora não fosse do conhecimento de Badri, os operários que tinham chegado de camião tinham sido levados neste meio de transporte e depois transferidos para autocarros com janelas opacas. Num local isolado, os veículos, que continham três mil

 

(8) Trabalhadores assalariados, indianos ou chineses. (N. do T.)

 

trabalhadores asiáticos, detiveram‑se e os guardas abandonaram‑nos. Quando as explosões abalaram os montes circundantes, ficaram sepultados para sempre. Depois, os guardas foram abatidos por outros. Todos tinham visto a Qaala.

As evocações de Badri foram interrompidas por uma erupção de gritos provenientes da tenda de comando, e circulou o aviso de que chegara o momento do ataque.

Ele correu para o seu camião e subiu para o lugar do passageiro, ao mesmo tempo que o condutor ligava o motor. A viatura conservou‑se imóvel, enquanto as duas divisões da Guarda que precederia a invasão enchiam a atmosfera de ruído» e os T‑72 russos abandonavam o aeródromo em direcção ao Koweit.

Tudo se desenrolou virtualmente como numa carreira de tiro, segundo explicaria mais tarde ao irmão Abdelkarim, coronel e piloto de «caça» da força aérea. O frágil posto de polícia da fronteira foi esmagado sem dificuldade. Às duas da madrugada, a coluna encontrava^se bem internada em território kowei‑tiano e continuava a rolar para sul. Se o Ocidente estava convencido‑de que se limitariam a capturar as desejadas ilhas de Warbah e Bubiyan, a fim de Bagdade dispor do há muito ansiado acesso ao Golfo, equivocava‑se redondamente. As ordens emanadas de Bagdade eram bem claras: conquistar todo o território.

Pouco antes da alvorada, registou‑se um recontro de tanques na pequena vila petrolífera de Jahra, a norte da cidade do Koweit. Os koweitianos lutaram com denodo e bem e mantiveram em respeito a nata da guarda republicana durante uma hora, mas não tinham a menor possibilidade de triunfar. Os poderosos T‑72 soviéticos esmagaram os T‑55 chineses. Os defensores perderam os seus vinte tanques noutros tantos minutos e os sobreviventes acabaram por bater em retirada.

Osmar Badri, que observava o embate de longe, não podia prever que, um dia, aqueles T‑72 das divisões de Medi na‑e Tawakkulna seriam por sua vez esmagados pelos Challenger e Abrams dos ingleses e americanos.

Ao amanhecer, as primeiras unidades penetravam nos subúrbios a noroeste da cidade do Koweit e dividiam os seus efectivos para cobrir as quatro auto‑estradas de acesso ‑a de Abu Dhabi, ao longo da costa de Jahra, entre os subúrbios de Granada e Andalus, e a Quinta e Sexta rodovias circulares, mais a sul. Finalmente, convergiram para a parte central do Koweit.

O coronel Badri quase não era necessário, pois não havia escavações para os seus sapadores abrirem, nem obstruções para fazer voar com dinamite ou pontes para reconstruir. Somente numa ocasião a sua vida correu perigo.

Quando rolava através de Sulaibikhat, muito perto do cemitério cristão, um Skyray isolado visou o tanque à sua frente com quatro mísseis ar‑terra, o qual oscilou, perdeu uma das cremalheiras e começou a arder, enquanto a tripulação em pânico o abandonava precipitadamente. Em seguida, o Skyray descreveu um largo círculo e concentrou o fogo nos restantes tanques. Badri viu o pavimento irromper na sua frente e projectou‑se pela porta do camião, que, quase simultaneamente, era atingido e se desviava para a berma.

Ninguém ficou ferido, mas Badri estava indignado com o arrojo do piloto e completou o percurso noutro camião.

Houve tiroteio esporádico ao longo do dia, enquanto as duas divisões atravessavam a cidade de Koweit. Um grupo de oficiais koweitianos encerrou‑se no Ministério da Defesa e tentou enfrentar os invasores com o modesto armamento de que dispunha.

Um dos comandantes iraquianos salientou que nenhum sobreviveria se abrisse fogo com o canhão do seu tanque. Enquanto alguns dos sitiados tentavam argumentar antes da rendição, os outros despiram os uniformes e escaparam‑se pelas traseiras, como civis vulgares. Um destes últimos tornar‑‑se‑ia mais tarde chefe da resistência koweitiana.

A principal oposição verificou‑se na residência do emir Al Sabah, embora este e a família tivessem há muito partido para o sul, em busca de refúgio na Arábia Saudita. Foi, porém, igualmente esmagada.

Ao pôr‑do‑Sol, o coronel Osman Badri encontrava‑se de costas para o mar no ponto mais setentrional da cidade, do Koweit, na Rua do Golfo Arábico, e contemplava a fachada dessa residência ‑o Palácio Dasman. Alguns soldados iraquianos já se achavam dentro e, de vez em quando, emergia um com um artefacto inapreciável arrancado das paredes, passando por cima dos corpos sem vida estendidos na escadaria e nos jardins, para o depositar num camião.

Badri quase se sentiu tentado a guardar algo para si, mas conteve‑o a herança da maldita escola inglesa que frequentara durante vários anos em Bagdade, apenas devido à amizade do pai com o britânico Martin e à admiração de tudo o que provinha da Inglaterra.

‑Pilhar é roubar, rapazes, e o roubo um delito. A Bíblia e o Corão proíbem‑no. Portanto, não o façam.

Ainda hoje conseguia recordar a voz de Mr. Hartley, director da Escola Preparatória da Fundação, dependente do consulado britânico, a perorar perante os alunos ingleses e iraquianos.

Por conseguinte, devido a um director escolar, vinte e cinco anos atrás, abstinha‑se de participar na pilhagem ao Palácio Dasman, embora isso fizesse parte da tradição de todos os seus antepassados e os ingleses não passassem de imbecis.

Ao menos, a sua permanência na escola preparatória ensinara‑lhe a dominar o idioma britânico fluentemente, o que resultara útil nas suas conversas com o coronel Stenanov, o qual fora o oficial mais graduado do Grupo de Conselheiros Militares Soviéticos antes de a Guerra Fria terminar, altura em que regressara a Moscovo.

Osman Badri tinha trinta e cinco anos, e 1990 revelava‑se o ano mais prometedor de toda a sua vida. Como confidenciaria ao irmão mais velho: «Diante do Palácio Dasman, de costas para o Golfo, pensei: "Conseguimo‑lo, pelo Profeta. Tomámos finalmente o Koweit. E apenas num dia". Tudo terminou aí.»

Estava redondamente equivocado. Era apenas o princípio.

Enquanto Ray Walker desenvolvia penosa e ininterrupta azáfama no aeroporto de Abu Dhabi para que lhes fornecessem a passagem de regresso aos Estados Unidos, vários compatriotas seus chegavam ao fim de uma noite em claro.

A sete fusos horários de distância em Washington, o Conselho de Segurança Nacional passara toda a noite em actividade constante. Outrora, costumavam reunir‑se na Sala de Situação, na cave da Casa Branca, porém a tecnologia mais recente permitia‑lhes trocar impressões dos diferentes locais em que se encontravam através de uma rede de vídeo secreta.

Na noite anterior, ainda 1 de Agosto em Washington, as primeiras informações indicavam trocas de tiros ao longo da fronteira norte do Koweit. O facto não se podia considerar inesperado. As imagens obtidas pelos potentes satélites KH‑11 da área setentrional do Golfo haviam revelado a acumulação de forças iraquianas e elucidado Washington muito mais do que o embaixador no Koweit na realidade sabia. O problema consistia em descobrir quais eram as intenções de Saddam Hussein. Ameaçar ou invadir?

Tinham sido enviados frenéticos pedidos de informação à CIA, no dia anterior, porém Langíey não se mostrara minimamente prestável, limitando‑se a fornecer análises repletas do advérbio «talvez», com base nas imagens de satélites recolhidas pela Organização de Reconhecimento Nacional e rumores políticos já obtidos pela Divisão do Médio Oriente do Departamento de Estado.

‑Qualquer burro vesgo pode obter isso ‑grunhiu Brent Scowcroft, director do NSC (9J. ‑Não temos ninguém dentro do regime iraquiano?

 

  1. V) National Security Council. (N. do T.)

 

A resposta a esta pergunta cifrou‑se num pesaroso «não». Tratava‑se de um problema abordado com frequência no passado.

A resposta ao enigma surgiu antes das dez da noite, quando o Presidente George Bush se foi deitar e não recebeu mais telefonemas de Scowcroft. Já amanhecera no Golfo e os tanques iraquianos haviam ultrapassado Jahra, para penetrarem nos subúrbios a noroeste da cidade do Koweit.

Foi uma noite em cheio, como os participantes recordariam mais tarde. Havia oito pessoas na rede de vídeo, em representação do NSC, Tesouro, Departamento de Estado, CIA, Chefes do Estado‑Maior e Defesa. Registou‑se a emissão de uma série de ordens, que foram executadas. Entretanto, uma série similar provinha de uma reunião convocada apressadamente pelo COBRA (Anexo da Sala de Informações do Conselho de Ministros) (10), em Londres, que se achava a cinco horas de distância de Washington, mas apenas a duas do Golfo.

Todos os bens financeiros iraquianos no estrangeiro foram congelados por ambos os governos, assim como (com o acordo dos embaixadores koweitianos nos dois países) os do Koweit, para que nenhum governo fantoche a soldo de Bagdade pudesse movimentá‑los. Estas decisões imobilizaram biliões e biliões de petrodólares.

O Presidente Bush foi acordado às 4.45 de 2 de Agosto para assinar os documentos. Em Londres, Margareth Thatcher, há muito levantada e activa, fizera o mesmo antes de embarcar no avião para os Estados Unidos.

Outro passo importante consistiu em reunir o Conselho de Segurança das Nações Unidas em Nova Iorque para condenar a invasão e ordenar a retirada imediata do Iraque, o que foi efectuado através da Resolução 660, assinada às 4.30 da mesma madrugada.

Terminada a conferência da rede de vídeo, perto da alvorada, os participantes dispuseram de duas horas para ir a casa, tomar banho, fazer a barba, mudar de roupa e regressar à Casa Branca para assistir, às 8.00, à reunião plenária do NSC, presidida por George Bush.

Entre os recém‑chegados, figuravam Richard Cheney, da Defesa, Nicholas Brady, do Tesouro, e o procurador‑geral Richard Thornburgh. Bob Kimmitt continuou a representar o Departamento de Estado, porque o secretário, James Baker, e o sub‑secretário, Laurence Eagleburger, estavam ausentes da cidade.

O chefe do Estado‑Maior General, Colin Powell, regressara da Florida acompanhado do general responsável do Comando

 

H Cabinet Office Briefing fíoom Annexe. (N. do T.)

 

Central, um homem alto e possante, do qual muito se ouviria falar posteriormente. Norman Schwarzkopf encontrava‑se ao lado do general Powell, quando entraram.

O presidente abandonou a reunião às 9.15, quando Ray e Maybelle Walker se achavam finalmente no ar e sobrevoavam a Arábia Saudita, rumo a noroeste e à segurança. George Bush embarcou num helicóptero em direcção à base da Força Aérea Andrews, onde se transferiu para o aparelho Air Force One e partiu para Aspen, Colorado. Estava previsto que pronunciaria uma conferência sobre as necessidades dos Estados Unidos no capítulo da defesa. Na realidade, tratava‑se de um tema apropriado, porém o dia revelar‑se‑ia muito mais atarefado do que estava previsto.

Durante a viagem, recebeu um telefonema do rei Hussein da Jordânia, um dos vizinhos mais obscuros do poderoso Iraque. O rei haxemita encontrava‑se no Cairo, para conferenciar com o presidente egípcio Hosni Mubarak.

Hussein suplicou desesperadamente que a América concedesse aos Estados Árabes alguns dias para tentarem resolver a situação sem uma guerra e propôs uma conferência de quatro países, que incluiria Bubarak, ele próprio, Saddam Hussein e o rei Fahd, da Arábia Saudita, que presidiria aos trabalhos. Declarou‑se convicto de que semelhante reunião bastaria para que o ditador iraquiano retirasse as suas forças armadas do Koweit pacificamente. No entanto, tornavam‑se necessários três ou mesmo quatro dias e nenhuma condenação pública do Iraque por qualquer das nações participantes.

Bush replicou:

‑           De acordo. Tem o meu apoio. ‑Só que o infortunado

presidente não se encontrara com a dama de Londres, que o aguardava em Aspen. Esse encontro realizou‑se naquela noite.

A Dama de Ferro não tardou a aperceber‑se de que o seu bom amigo estava na iminência de transigir. Em duas horas, enfiou o cabo de uma vassoura tão profundamente na perna esquerda da calça do presidente, que emergiu quase à altura do colarinho da camisa.

‑           Não podemos de modo algum permitir que ele leve a sua avante, George.

Colocado perante aqueles olhos azuis penetrantes e o tom da voz cortante, tendo o zumbido do condicionador de ar como fundo, George Bush admitiu que os Estados Unidos também perfilhavam essa posição. Mais tarde, fontes próximas deixaram transparecer que estava menos preocupado com a artilharia e blindados de Saddam Hussein do que com a interlocutora britânica.

A 3 de Agosto, a América trocou algumas palavras discretas com o Egipto. Foi recordado ao Presidente Mubarak até que ponto as suas forças armadas dependiam do armamento americano, o quantitativo que o Egipto devia ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional e a forma como os Estados Unidos costumavam apoiar as suas pretensões. A 4 do mesmo mês, o governo egípcio emitia uma declaração em que condenava abertamente a invasão de Saddam Hussein.

Ante o desalento ‑embora não surpresa ‑do rei da Jordânia, o déspota iraquiano recusou comparecer à conferência de Jeddah e sentar‑se ao lado de Homi Mubarak, sob a presidência do rei Fahd.

Para o rei da Arábia Saudita, a atitude constituiu uma brutal manifestação de despeito no seio de uma cultura que se orgulhava da sua elaborada cortesia. O rei Fahd, que encobria um cérebro político particularmente sagaz por detrás de maneiras a todos os títulos deferentes, não ficou contente.

Este foi um dos factores que fez abortar a conferência de Jeddah. O outro dizia respeito ao facto de o monarca saudita ter mostrado fotografias americanas tiradas do Espaço que provavam que o exército iraquiano, longe de conter o seu avanço, continuava a avançar para sul em direcção à fronteira saudita, na área meridional do Koweit.

Tencionaria invadir também a Arábia Saudita? Os dados aritméticos batiam certo. Este último país possuía as maiores reservas de petróleo do mundo. Em segundo lugar, figurava o Koweit, com mais de uma centena de anos de reservas aos actuais níveis de produção. Em terceiro, o Iraque. Ao tomar o Koweit, Saddam Hussein invertera as posições. Além disso, 90 por cento dos poços e reservas do petróleo saudita situavam‑se no extremo nordeste do reino, em volta de Dharran, Al‑Khobar e Jubail e no interior destes portos. O triângulo localizava‑se no caminho das divisões da Guarda Republicana, e as fotografias demonstravam que continuavam a entrar outras no Koweit.

Por sorte, Sua Majestade nunca descobriu que as fotografias tinham sido forjadas. As divisões próximas da fronteira continuavam a avançar, porém os tractores haviam sido eliminados.

A 6 de Agosto, o reino da Arábia Saudita pediu formalmente o envio de tropas aos Estados Unidos para defesa do seu território.

As primeiras esquadrilhas de caças‑bombardeiros partiram para o Médio Oriente no mesmo dia. Principiaram a operação Protecção no Deserto.

O brigadeiro Hassan Rahmani apeou‑se do carro de comando e subiu apressadamente os degraus do Hotel Hilton, que fora prontamente requisitado para quartel‑general das forças de segurança iraquianas no Koweit ocupado. Divertia‑o, enquanto transpunha a porta de vaivém e entrava no átrio, naquela manhã de 4 de Agosto, o facto de o Hilton se situar junto da embaixada americana, com ambos os edifícios virados para as águas azuis do Golfo Arábico.

A admirável vista era tudo o que o pessoal da embaixada obteria por algum‑tempo, pois, por sugestão dele, fora imediatamente cercada por forças da Guarda Republicana, situação que se manteria. Não podia evitar que diplomatas estrangeiros transmitissem mensagens do interior do seu território soberano aos respectivos governos, além de que sabia perfeitamente que não possuía os supercomputadores necessários para decifrar os códigos mais sofisticados como os que os ingleses e americanos utilizavam.

Mas, como chefe da contra‑espionagem da Mukhabarat, podia providenciar para que dispusessem de pouco material interessante para transmitir, limitando as suas observações à vista de que desfrutavam das janelas.

Subsistia, evidentemente, a possibilidade de obterem informação de compatriotas ainda em liberdade no Koweit, pelo telefone. Outra prioridade máxima: tomar as providências necessárias para que todas as comunicações telefónicas com o exterior fossem cortadas. E daí, não ‑conviria mais colocar as linhas sob escuta, mas os seus homens mais experientes encontravam‑se todos em Bagdade.

Entrou na suite que estava reservada à equipa da contra‑espionagem, despiu o dólman, entregou‑o à ordenança que trouxera as suas duas malas de documentos e aproximou‑se da janela para contemplar a marina do Hilton, com a piscina a antecedê‑la. Decidiu que iria dar um mergulho mais tarde, mas mudou imediatamente de ideias ao ver dois soldados encherem lá os cantis e outros dois a urinar, não muito longe dos primeiros, o que o levou a soltar um suspiro de resignação.

Com trinta e sete anos, Rahmani era alto e elegante, bem‑‑parecido, de rosto impecavelmente escanhoado ‑não suportava sequer a hipótese de usar um bigode afectado como o de Saddam Hussein. Sabia que se encontrava na actual posição devido à sua competência inquestionável e não em virtude de qualquer tipo de bajulação política ‑um tecnocrata num mundo de cretinos guindados a lugares de realce graças a manobras escusas.

Amigos estrangeiros tinham‑lhe perguntado com frequência por que servia aquele regime. A interrogação costumava surgir nas ocasiões em que ele os embriagava parcialmente, no bar do Hotel Rashid ou num local mais isolado. Convivia com esses indivíduos, porque fazia parte da sua profissão. Mas conservava‑se sempre sóbrio. Não objectava às bebidas alcoólicas por motivos religiosos. Em regra, pedia gim com água tónica e certificava‑se de que o barman lhe servia apenas esta última.

Por conseguinte, sorria ante a pergunta, encolhia os ombros e replicava que se orgulhava de ser iraquiano, pelo que não podia servir qualquer outro governo.

Intimamente, sabia perfeitamente bem por que trabalhava para um regime cujos luminares, salvo raras excepções, desprezava. Se existia alguma emoção nele, concentrava‑se naquele país e no seu povo‑o povo vulgar, que o Partido Baath há muito deixara de representar.

No entanto, a razão fundamental consistia em que queria triunfar na vida. Para um iraquiano da sua geração, existiam poucas opções. Podia opor‑se ao regime e demitir‑se do cargo que exercia, para auferir um salário modesto numa actividade civil obscura no estrangeiro ou permanecer no Iraque.

O que conduzia a três opções. Opor‑se ao regime e terminar a existência nas câmaras de tortura do animal que dava pelo nome de Ornar Khatib, criatura que detestava, consciente de que o sentimento era plenamente retribuído; tentar sobreviver como homem de negócios independente numa economia hermética; ou continuar a sorrir aos idiotas e guindar‑se a uma posição confortável graças ao seu cérebro e talento.

Não via nada de censurável na terceira opção. Era como fizera Reinhard Gehlen, que servira primeiro Hitler, depois os americanos e finalmente os alemães‑ocidentais; ou Marcus Wolf, ao serviço dos comunistas da Alemanha Oriental sem acreditar numa única palavra do que diziam. Ele, Rahmani, vivia para o jogo de xadrez em que se envolvera, os movimentos intrincados de espiar e contra‑espiar. O Iraque constituía o seu tabuleiro pessoal, e sabia que outros profissionais espalhados pelo mundo compreenderiam a sua posição.

Afastou‑se da janela, sentou‑se à secretária e começou a escrever. Havia muitíssimo que fazer para que o Koweit se tornasse razoavelmente seguro como décima nona colónia do Iraque.

O seu primeiro problema residia no facto de não saber quanto tempo Saddam Hussein tencionava permanecer no Koweit, e duvidava de que ele próprio fizesse uma ideia concreta a esse respeito. Não havia necessidade de montar uma vasta operação de contra‑espionagem, vedando todas as eventuais fugas de segurança, se o Iraque acabasse por se retirar.

Estava persuadido de que Saddam lograria o seu intento. Todavia, isso implicaria uma actuação revestida de um mínimo de diplomacia. A primeira diligência tinha de consistir em participar na reunião do dia seguinte em Jeddah, a fim de adular o rei Fahd e proclamar que o Iraque apenas pretendia um tratado justo sobre o petróleo e acesso ao Golfo, após o que recolheria a Bagdade. Assim, conservando tudo em mãos árabes e os americanos e ingleses fora do assunto por todo o preço, Saddam poderia confiar na preferência árabe para continuar a falar até que o inferno congelasse.

O Ocidente, acabaria por se cansar e deixá‑los resolver a situação, e, desde que o petróleo continuasse a fluir para criar o smog que os sufocava, os anglo‑saxões ficariam contentes. A menos que o Koweit fosse brutalizado selvaticamente, os media desinteressar‑se‑iam do caso, o regime de Al Sabah seria esquecido no exílio algures na Arábia Saudita, os kowei‑tianos reatariam as suas vidas sob um novo governo e a conferência sobre a retirada do Koweit poderia apresentar declarações mais ou menos bombásticas durante uma década, até que se perdessem no campo da banalidade.

Sim, seria possível consegui‑lo, mas com o tacto indispensável. O tacto de Hitler: «Pretendo apenas um acordo pacífico com as minhas exigências; esta é a minha última ambição territorial.» O rei Fahd cairia na esparrela. Ele e Hussein da Jordânia terminariam por se desinteressar da sorte dos kowei‑tianos como Chamberlain fizera em relação aos checos, em 1938.

Só que Saddam era, estratégica e diplomaticamente, uma nulidade. Acabaria por proceder sem a prudência conveniente e contribuir para a destruição do petróleo e prosperidade inerente durante uma geração, ao brindar o mundo ocidental com um fait accompli.

E o Ocidente significava a América, com os ingleses a seu lado, e, no fundo, eram todos anglo‑saxões. Rahmani conhecia‑os bem. Os cinco anos que passara na Escola Preparatória Adisiya de Mr. Hartley permitira‑lhe aprender o inglês fluente em que se exprimia, a compreensão do temperamento britânico e o hábito anglo‑saxão de aplicar um murro no queixo sem aviso prévio.

Levou a mão ao queixo em que recebera um murro, num passado distante, e soltou uma risada seca que fez estremecer a ordenança, no outro lado da sala. Onde se encontraria agora o sanguinário Mike Martin?

Por fim, debruçou‑se sobre a tarefa que tinha entre mãos. Do milhão e oitocentos mil habitantes do Koweit, somente seiscentos mil eram koweitianos. Podiam juntar‑se‑lhes outros tantos palestinianos, alguns dos quais se manteriam leais ao país, enquanto outros alinhariam ao lado do Iraque, porque a OLP o fizera, embora um número elevado se abstivesse de qualquer manifestação e se concentrasse unicamente em sobreviver. Havia também trezentos mil egípcios, muitos dos quais decerto trabalhavam para o Cairo, o que, actualmente, equivalia a fazê‑lo para Washington ou Londres, e duzentos e cinquenta mil paquistaneses, indianos e fílipinos, na sua maioria empregados de escritório ou domésticos.

E, por último, cinquenta mil cidadãos da Primeira Guerra Mundial ‑ingleses, americanos, franceses, alemães, espanhóis, suecos, dinamarqueses, etc. E ele devia suprimir a espionagem estrangeira. Rahmani emitiu um suspiro saudosista. Bons tempos aqueles em que as mensagens significavam mensageiros e telefones. Como chefe da contra‑espionagem, podia encerrar as fronteiras e cortar as ligações telefónicas.,Agora, qualquer imbecil com um satélite tinha possibilidade de marcar dígitos num telefone celular ou num computador modem e falar para a Califórnia. A fonte era difícil ou impossível de localizar ou interceptar, a menos que se dispusesse de equipamento sofisticado, como não acontecia na contra‑espionagem iraquiana.

Não merecia a pena perder tempo a tentar o impossível, embora ele tivesse de fingir que o fizera e fora bem sucedido. O principal alvo teria de consistir em impedir a sabotagem activa, a morte de iraquianos e destruição do seu equipamento e formação de um movimento de resistência. E necessitava de evitar que uma eventual organização clandestina recebesse auxílio do exterior sob a forma de homens, know‑how ou equipamento.

Neste aspecto, teria de enfrentar os seus rivais da AMAM, polícia secreta, instalada dois pisos abaixo dele. Inteirara‑se naquela manhã de que Khatib, instalara o rufia do Sabaawi, indivíduo particularmente brutal, como chefe da AMAM no Koweit. Se algum resistente koweitiano lhe caísse nas mãos, os gritos resultantes das torturas ouvir‑se‑iam na fronteira. Por conseguinte, Rahmani concentrar‑se‑ia apenas nos estrangeiros.

Naquela manhã, o Dr. Terry Martin terminou a aula na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) H, faculdade da Universidade de Londres na Govven Street, pouco antes do meio‑dia e recolheu à sala comum dos docentes. Quando ia a entrar, cruzou‑se com Mabel, secretária que partilhava com dois outros professores de estudos arábicos.

‑Tenho um recado para si, Dr. Martin. ‑Ela procurou na pasta, apoiada ao joelho erguido e extraiu um pedaço de

 

(") School of Oriental and African Studies. (N. do T.)

 

papel. ‑Este senhor telefonou e disse que tinha urgência em lhe falar.

Uma vez na sala comum, ele pousou os apontamentos sobre o califado de Abassid que utilizara na aula e serviu‑se do telefone público ao canto. Uma voz feminina quase musical atendeu ao segundo toque e limitou‑se a enunciar o número. Não mencionou qualquer nome de assinante ‑apenas o número.

Mr. Stephen Laing está? ‑perguntou Martin.

‑Quem deseja falar‑lhe?

O Dr. Martin. Terry Martin. Ele telefonou‑me.

Perfeitamente, Dr. Martin. Um momento, por favor.

Ele enrugou a fronte. Ela estava ao corrente do telefonema e do seu nome. No entanto, Martin não fazia a menor ideia de quem pudesse ser Stephen Laing. Por fim, surgiu uma voz de homem, do outro lado do fio.

‑Fala Stephen Laing. Estou‑lhe imensamente grato por telefonar com tanta prontidão. Fomos apresentados, há algum tempo, no Instituto de Estudos Estratégicos. Na altura em que você pronunciou a brilhante alocução sobre a persistente aquisição de armamento pelo Iraque. Tem algum compromisso para o almoço?

Laing, quem quer que fosse, adoptava uma maneira de se exprimir difícil de refutar.

Hoje? Agora?

A menos que tenha outros planos. Qual era a sua ideia?

Sanduíches, no refeitório ‑disse Martin.

‑           Não aceitaria um decente linguado meuníère, no Scotts?

Suponho que conhece o estabelecimento? Na Mount Street.

Na verdade, conhecia um dos restaurantes mais selectos e dispendiosos de Londres, cuja especialidade era o peixe. A vinte minutos dali, de táxi. E ele adorava o peixe. Além de que o Scotts se achava fora do alcance do seu salário académico. Estaria Laing porventura ao corrente destes pormenores?

Pertence ao ISS (12)? ‑acabou por perguntar.

Explico‑lhe tudo durante o almoço, doutor. Digamos à uma? Até já. ‑E a ligação foi cortada.

Quando Martin entrou no restaurante, o chefe dos empregados de mesa acudiu ao seu encontro.

‑           Dr. Martin? Mr. Laing aguarda‑o. Queira acompanhar‑me.

A mesa situava‑se a um canto sossegado, onde se podia conversar fora do alcance de ouvidos indiscretos. Laing ‑alto e magro, de fato cinzento‑escuro, gravata de uma tonalidade mais clara e cabelo grisalho ralo‑indicou uma cadeira ao convidado e, com um leve movimento de cabeça, a garrafa de

 

(I2) Institute for Strategic Studies. (N. do T.)

 

Meursault gelado no respectivo balde metálico, ao que Martin acedeu com um leve gesto.

‑           Suponho que não pertence ao Instituto, Mr. Laing?

Este não se mostrou minimamente embaraçado. Aguardou que o empregado servisse o vinho e se afastasse e ergueu o copo.

‑           Na realidade, pertenço à Century House. Isso contraria‑o?

O Serviço de Contra‑Espionagem Britânico tem a sede na Century House, um edifício de aspecto algo decrépito a sul do Tamisa, entre o Elephant and Castle e a Old Kent Road, que não corresponde à natureza das actividades que se supõe desenrolarem‑se no seu interior e tão labiríntico que os visitantes não necessitam de utilizar os seus passes de segurança ‑em poucos segundos, perdem‑se e acabam por implorar misericórdia.

‑           Não, desperta‑me apenas o interesse ‑replicou Martin.

Na verdade, somos nós que estamos interessados.

Incluo‑me entre os seus admiradores. Tento manter‑me a par das inovações, mas não estou tão elucidado como você.

Custa‑me a querer ‑declarou, embora se sentisse intimamente lisonjeado.

É absolutamente exacto ‑insistiu Laing. –Linguado para dois? Excelente. Espero ter lido todas as suas comunicações apresentadas ao Instituto, ao pessoal dos Serviços Unidos e na Chatham. Além de, claro, os dois artigos publicados na Survíval.

Ao longo dos cinco anos precedentes, apesar da sua juventude,, com apenas trinta e cinco anos, o Dr. Martin tornara‑se cada vez mais solicitado para apresentar comunicações eruditas em estabelecimentos como o Instituto de Estudos Estratégicos, o Instituto dos Serviços Unidos e à outra instituição de estudos intensivos de assuntos estrangeiros, Chatham House. Survíval era a revista do ISS, e vinte e cinco exemplares de cada uma das suas edições seguiam automaticamente para o Departamento do Estrangeiro e da Comunidade, na King Charles Street, cinco dos quais tomavam o rumo da Century House.

O interesse de Terry Martin por aquela gente não se devia à sua excelência escolástica sobre a Mesopotâmia medieval, mas ao segundo chapéu que usava. Em obediência a mera curiosidade pessoal, principiara, anos atrás, a estudar as forças armadas do Médio Oriente, frequentando exposições de métodos de defesa e cultivando amizades entre fabricantes e seus clientes árabes, onde o seu fluente arábico lhe permitira estabelecer muitos contactos. Passados dez anos, era uma enciclopédia ambulante do tema que escolhera para os tempos livres, escutado com respeito por profissionais de relevo, mais ou menos como o romancista americano Tom Clancy, encarado como um perito mundial de equipamento defensivo da NATO e do antigo Pacto de Varsóvia.

Os dois linguados meunière foram servidos e eles começaram a comer com entusiasmo.

Oito semanas atrás, Laing, então director de Operações da Divisão do Médio Oriente na Century House, solicitou dados biográficos completos sobre Terry Martin ao pessoal da secção de pesquisas, e o que se lhe deparou impressionou‑o profundamente.

Nascido em Bagdade, criado no Iraque e instruído em Inglaterra, Martin saíra de Haileybury com três Níveis Avançados, todos com distinção, em Inglês, História e Francês. Aquele estabelecimento de ensino considerava‑o um brilhante intelectual, candidato a uma bolsa de estudo em Oxford e Cambridge.

Porém o rapaz, que já se exprimia em arábico fluente, queria aprofundar os estudos de assuntos árabes,, pelo que se candidatou à SOAS (13) em Londres e submeteu‑se aos respectivos testes na Primavera de 1973. Admitido imediatamente, começou a frequentar as aulas no período do Outono do mesmo ano, para estudar particularmente a história do Médio Oriente.

Obteve o diploma de Primeira Classe em três anos e consagrou mais três ao doutoramento, especializando‑se no Iraque do oitavo ao décimo quinto séculos, com referência especial ao califado dos Abássidas de 750 a 1258 AD. Obteve o PhD em 1979, e encontrava‑se no Iraque quando este país invadiu o Irão, em 1980, o que originou a guerra de oito anos, experiência que lhe estimulou o interesse pelas forças militares do Médio Oriente.

No regresso, ofereceram‑lhe o cargo de leitor com apenas vinte e seis anos de idade, um sinal de honra na SOAS, considerada justificadamente uma das escolas de aprendizagem de arábico mais exigentes do mundo. Tornou‑se depois leitor de história do Médio Oriente aos trinta e quatro.

Laing lera tudo isto na biografia escrita. O que lhe interessava ainda mais eram os seus conhecimentos sobre os arsenais do Médio Oriente. Durante anos, fora um assunto periférico, abafado pela Guerra Fria, mas agora...

‑Trata‑se desse assunto no Koweit ‑acabou por revelar.

Consumidos os linguados, os pratos haviam sido retirados

 

(") School of Oriental and African Studies Escolha de estudos orientais e Africanos. (N. do T.)

 

e os dois homens tinham declinado a sobremesa. O M&ursault deslizara muito satisfatoriamente, e Laing preocupara‑se em que o convidado ingerisse a parte de leão. Agora, havia dois cálices de Porto na sua frente.

‑           Como deve calcular, tem havido intensa azáfama, nos últimos dias.

Na realidade,, Laing ficava aquém da verdade. A Dama regressara do Colorado num estado de espírito que os mandarins referiam como de Boadiceia, numa alusão à rainha inglesa de outrora que costumava reduzir a estatura dos súbditos romanos cortando‑lhes as pernas pelos joelhos com as lâminas de espadas que emergiam das rodas da sua carruagem, se se aproximavam demasiado. Constava que o secretário dos Assuntos Estrangeiros, Douglas Hurd, encarava a possibilidade de vir a usar capacete de aço, e a exigência de uma informação completa imediata surgira nos gabinetes da Century House.

Gostávamos de introduzir alguém no Koweit para averiguar exactamente o que se está a passar.

Apesar da ocupação iraquiana? ‑estranhou Martin.

Receio bem que sim.

Porquê eu?

Vou ser franco ‑disse Laing, que tencionava ser tudo menos isso. ‑Precisamos de facto de nos inteirar do que se

passa. A natureza da ocupação iraquiana, natureza dos efectivos, grau de perícia, equipamento, etc. Os nossos compatriotas enfrentam a situação satisfatoriamente, correm perigo, podem ser retirados com segurança? Necessitamos de um homem implantado no meio. Toda essa informação é vital. Daí, a escolha de alguém que fale arábico como um nativo: koweitiano ou iraquiano. Ora, você passou a vida entre pessoas que se exprimem nesse idioma, muito mais do que eu...

Mas deve haver centenas de koweitianos aqui, na Grã‑Bretanha, que poderiam ser introduzidos no seu país.

Produziu um som algo desagradável com a boca, para tentar desalojar um resíduo de linguado entre dois dentes.

Aqui para nós, preferimos alguém da nossa nacionalidade.

Um britânico? Capaz de se fazer passar por árabe no meio deles?

Exactamente. E começávamos a duvidar de que existisse algum nessas condições.

Deve ter sido do vinho ou do Porto. Terry Martin não estava acostumado a beber Meusault e Porto ao almoço. Mais tarde, teria arrancado a língua, se pudesse fazer o ponteiro do relógio retroceder alguns segundos. No entanto, falou e depois já não pôde voltar atrás.

‑           Conheço um. O meu irmão Mike, major no SAS. Pode passar perfeitamente por árabe.

Laing dissimulou a excitação que lhe acudiu, ao mesmo tempo que retirava o palito da boca com o incomodativo fragmento de linguado.

‑           Não me diga! Acha que sim?

LAING regressou à Century House de táxi, dominado por um misto de surpresa e euforia. Convidara o arabista académico para almoçar na esperança de o recrutar para outra tarefa, que continuava presente no seu espírito, e abordara o assunto do Koweit apenas para encetar a conversa.

Anos de experiência haviam‑lhe ensinado a começar com uma pergunta ou um pedido que o alvo não podia satisfazer e passar ao verdadeiro tema. A teoria consistia em que o perito, abalado pela solicitação inicial, ficaria mais dócil para aceitar a segunda.

A revelação surpresa de Martin respondia a uma necessidade que fora abordada durante uma reunião de alto nível na Century House, no dia anterior. Na altura, tinha sido encarada de um modo geral como um desejo sem esperança de concretização. Mas se Martin não mentia... Um irmão que falava arábico ainda melhor do que ele... E que pertencia aos quadros do Regimento do Serviço Aéreo Especial e estava, por conseguinte habituado à vida mais ou menos clandestina... Sim, interessante, muito interessante mesmo.

Ao chegar à Century, Laing procurou imediatamente o seu superior, o Controlador do Médio Oriente. Após conciliábulo de cerca de uma hora, dirigiram‑se ao piso superior, a fim de conversar com um dos dois subchefes.

O Secret Intelligence Service, ou SIS, também conhecido popular, embora incorrectamente, por M.1.6, continua a ser, mesmo numa época de governo supostamente «aberto», uma organização obscura imersa em secretismo. Somente em anos recentes uma Administração britânica admitiu formalmente a sua existência. E foi só em 1991 que o mesmo governo mencionou publicamente o chefe, atitude considerada na maior parte dos círculos, insensata e injustificada que só serviu para condenar a infortunada personalidade a ter de se deslocar a toda a parte acompanhado por guarda‑costas pagos pelos contribuintes. Assim vão as futilidades de uma política correcta.

O pessoal do SIS não figura em qualquer manual, limitando‑se a aparecer ‑quando aparece ‑como funcionários públicos nas listas de uma variedade de ministérios, em particular no dos Assuntos Estrangeiros, sob cujos auspícios o Serviço se encontra. O respectivo orçamento não se acha mencionado em parte alguma e advém de contribuições dissimuladas sob epígrafes banais de uma dúzia de outros ministérios.

O seu próprio quartel‑general supôs‑se constituir um segredo de Estado durante anos, até que se tornou óbvio que qualquer motorista de táxi de Londres a quem um cliente mandava seguir para a Century House, replicava: «Ah, refere‑se ao Castelo dos Fantasmas?» Nessa altura reconheceu‑se que, se os taxistas londrinos conheciam a sua localização, a KGB decerto teria chegado à mesma conclusão.

Embora muito menos famosa que a CIA, a «Firma» conquistara uma sólida reputação entre amigos e inimigos pela qualidade do seu «produto» (informações de contra‑espionagem obtidas secretamente). Entre as agências de informações mais importantes do mundo, somente a Mossad israelita funciona em maior sigilo.

O homem que dirige o SIS é conhecido oficialmente por Chefe e nunca, apesar das intermináveis alusões erradas da Imprensa, por Director‑Geral. É a organização irmã ‑o M. 1.5, ou Serviço de Segurança‑, responsável pela contra‑espionagem dentro das fronteiras do Reino Unido, que possui um Director‑Geral.

Dentro de portas, o Chefe é conhecido por «C», à primeira vista a inicial de Chefe, mas tal não acontece. O primeiro foi o almirante Sir Mansfield Cummimgs, e esse «C» provém do apelido do há muito falecido cavalheiro.

Na escala hierárquica, seguem‑se dois subchefes e cinco assistentes, que dirigem os cinco departamentos principais: Operações (que recolhe a informação secreta), inteMgence (que a analisa, na esperança de encontrar uma sequência significativa), Técnico (responsável pelos documentos falsos, mini‑câmaras, escrita secreta, comunicações ultracompactas e todos os outros pedaços de metal para fazer algo de ilegal e escapar às consequências num mundo hostil), Administrativo (que abarca os salários, pensões, listas de pessoal, contabilidade, Secção Legal, Registo Central, etc); e Contra^Espionagem (que tenta manter o Serviço limpo e penetração inimiga por meio de uma inspecção profunda).

Abaixo das Operações, há os Controladores, que se ocupam das várias divisões no mundo ‑Hemisfério Ocidental, Bloco Soviético, África, Europa, Médio Oriente e Austrália ‑, com uma subsecção para Ligação, que tem a delicada tarefa de tentar cooperar com agências «amigas».

Naquele Agosto de 1990, o foco das atenções fixava‑se no Médio Oriente e em particular na Secção do Iraque, à qual todo o mundo político e burocrático de Westminster e Whitehalf parecia ter acudido como um clube ruidoso e indesejável.

O Subchefe escutava atentamente o que o Controlador do Médio Oriente e o Director das Operações dessa região tinham para dizer e inclinava a cabeça repetidamente. Afigurava-se-lhe que era, ou poderia vir a ser, uma opção interessante.

Não era que não chegasse qualquer informação do Koweit. Nas primeiras quarenta e oito horas, antes de os iraquianos encerrarem as linhas telefónicas internacionais, todas as empresas britânicas com delegações naquele território tinham utilizado o telefone, telex ou fax para contactar com o seu responsável local. A embaixada do Koweit atordoava os ouvidos do Ministério dos Assuntos Estrangeiros com as primeiras histórias de terror e exigências de libertação imediata.

O problema consistia em que virtualmente nenhuma das informações existentes era do tipo que o Chefe podia apresentar ao Gabinete como totalmente fidedigna. Na sequência da invasão do Koweit, havia uma «irritante confusão de notícias», segundo a expressão do secretário dos Assuntos Estrangeiros.

O próprio pessoal da embaixada britânica estava agora firmemente imobilizado na PERIFERIA do Golfo, quase à sombra das pontiagudas Torres do Koweit, tentando estabelecer contacto telefónico com os cidadãos britânicos de uma lista largamente desactualizada, para saber se se encontravam bem. Segundo a informação recebida desses alarmados homens de negócios e engenheiros, ouviam‑se disparos esporádicos.

Ora, um homem implantado no local e, ainda por cima, com treino de penetração secreta profunda, capaz de passar por árabe... Sim, poderia resultar muito interessante. À parte informações reais sobre o que acontecia, subsistia uma possibilidade de mostrar aos políticos que se estava na verdade a fazer alguma coisa e obrigar William Webster, da CIA, a engasgar‑se com as pastilhas digestivas com que costumava concluir as refeições.

O Subchefe não tinha a menor dúvida quanto à estima (mútua) quase felina de Margaret Thatcher pelo SaS desde aquela tarde de Maio de 1980 em que este havia liquidado os terroristas entrincheirados na embaixada iraniana em Londres e ela passara o serão com a equipa no aquartelamento da Albany Road a ingerir uísque e escutar a descrição dos seus feitos heróicos.

‑Acho que é melhor trocar impressões com o DSF ‑acabou o Subchefe por decidir.

Oficialmente, o Regimento de Serviço Aéreo Especial não tem nada de comum com o SIS. As redes de comando são totalmente diferentes. O vigésimo segundo de serviço activo do SAS (em oposição ao vigésimo terceiro de regime part‑time) tem a base num aquartelamento que se intitula simplesmente «linhas stirling», nos arrabaldes da vila de Hereford, no oeste de Inglaterra. O seu comandante presta contas ao Director das Forças Especiais (14), cujos escritórios se situam num edifício incaracterístico do oeste londrino.

O DSF depende do Director de Operações Militares (um general), que, por sua vez, é responsável perante o Chefe do Estado‑Maior General (um general ainda mais antigo), por seu turno sob as ordens do Ministério da Defesa.

No entanto, o termo «Especial» na designação do SAS existe por um motivo. Desde a sua fundação no Deserto Ocidental, em 1941, por David Stirling, esse Serviço tem funcionado secretamente. As suas missões incluíram sempre penetração profunda, com vista a observar movimentos inimigos; penetração profunda com vista a sabotagem, assassínio e morticínio geral; eliminação terrorista; recuperação de reféns; protecção próxima, eufemismo de guarda‑costas para os altos e poderosos; e missões de treino no estrangeiro.

À semelhança dos membros de uma unidade de elite, os oficiais e pessoal anónimo do SAS tendem para viver discretamente no seio da sua própria sociedade, impossibilitados de discutir as suas actividades com estranhos ao serviço, recusando‑se a ser fotografados e raramente emergindo das sombras.

Por conseguinte, os estilos de vida dos membros das duas sociedades secretas tinham muita coisa em comum‑o SIS e o SAS conheciam‑se, pelo menos de vista, e haviam cooperado com frequência no passado, quer em operações conjuntas, quer com o pessoal da intelligence, pedindo «emprestado» um soldado especialista do Regimento para uma tarefa em particular. Era algo do género que o Subchefe do SIS (o qual pedira autorização para a visita a Sir Colin) tinha em mente, ao aceitar um uísque do brigadeiro J. P. Lovat no quartel‑general secreto de Londres, naquela tarde, quando o Sol se aproximava do Ocaso.

 

(") Director Special Forces: DSF. (N. do T.)

 

O alvo dessa discussão e reflexão privada em Londres e no Koweit debruçava‑se naquele momento sobre um mapa noutro aquartelamento a muitos quilómetros dalí. Nas últimas oito semanas, ele e a sua equipa de doze instrutores haviam vivido numa secção das instalações atribuídas à unidade de guarda‑costas do xeque Zayed bin, sultão de Abu Dhabi.

Tratava‑se de uma tarefa que o Regimento executara numerosas vezes no passado. Ao longo da costa ocidental do Golfo, do sultanato de Omana, no sul, até Bahrain, no norte, há uma série de sultanatos que os ingleses têm visitado durante séculos. Os Trucial States, agora Emirados Árabes Unidos, tinham esse nome porque a Grã‑Bretanha, uma ocasião, assinara uma trégua 15) com os seus governantes para os proteger com a Royal Navy contra os piratas que infestavam a área, em troca de privilégios comerciais. A situação perdura, e muitos desses governantes dispõem de unidades de guarda em pontos estratégicos através de equipas de instrutores do SAS. Existe uma remuneração, sem dúvida, mas reverte para o Ministério da Defesa, em Londres.

O major Mike Martin tinha um largo mapa do Golfo e da maior parte do Médio Oriente aberto na sua frente, na mesa da sala da messe, e estudava‑o, rodeado por vários dos seus homens. Com trinta e sete anos, não era a pessoa mais velha presente, pois dois dos seus sargentos atingiam os quarenta, embora ninguém se atrevesse a desafiá‑los para uma confrontação física.

‑           Há alguma coisa para nós, chefe? ‑perguntou um destes últimos.

Como em todas as unidades pequenas e herméticas, os nomes de baptismo são largamente empregados no Regimento, mas os oficiais costumam ser tratados por «chefe» pelos subalternos.

‑Não sei ‑admitiu Martin. ‑Saddam Hussein instalou‑se no Koweit. Resta saber se se retirará espontaneamente. Em caso negativo, as Nações Unidas autorizarão a intervenção de tropas para correr com ele? Se resolver sair de sua livre vontade, creio que haverá algo para fazermos.

‑           Óptimo ‑disse o sargento, com satisfação, enquanto os outros seis homens em torno da mesa aquiesciam com acenos de cabeça, conscientes de que havia muito tempo que não participavam numa operação de combate.

Há quatro disciplinas básicas no Regimento, e cada recruta deve frequentar pelo menos uma. Assim, temos os Queda Livre, que se especializam em descidas de pára‑quedas de grande

 

(") Truce, em inglês; daí Trucial. (N. do T.)       

 

altitude, os Montanheses, cujo terreno preferido são as áreas rochosas e os picos elevados, os Batedores de Blindados, que actuam em Land Rovers inexpugnáveis, e os Anfíbios, que actuam em canoas e outras embarcações ligeiras insufláveis.

Na sua equipa de doze homens, Martin dispunha de quatro de Queda Livre, contando com ele próprio, quatro Batedores de Blindados, que ensinavam aos Abu Dhabis os princípios do ataque e contra‑ataque rápidos do deserto, e, como Abu Dhabi se situa junto do Golfo, quatro instrutores Anfíbios.

Além da sua própria especialidade, os homens do SAS devem possuir profundos conhecimentos das outras disciplinas, pelo que as permutas são frequentes. À parte isto, têm de se familiarizar com a rádio, primeiros socorros e línguas.

A unidade de combate básica consiste em apenas quatro homens. Se algum fica fora de acção, as suas tarefas são prontamente partilhadas pelos sobreviventes, quer estejam a operar a rádio, quer como uma unidade médica.

Orgulham‑se de um nível de educação muito mais elevado do que em qualquer outra unidade do Exército, e como têm de viajar, o domínio dos idiomas constitui um requisito indispensável. Todos os soldados têm de aprender um idioma além do inglês. Durante anos, o russo foi o favorito, mas o termo da Guerra Fria fê‑lo passar de moda. O malaio é muito útil no Extremo Oriente, onde o Regimento combateu ao longo de anos em Bornéu. O espanhol está a adquirir importância crescente, desde as operações secretas na Colômbia contra os barões da cocaína, de Medellín e Cali. O francês também se aprende‑pelo sim pelo não.

E como o Regimento passou anos a prestar assistência ao sultão Qaboos de Omã, a sua guerra contra infiltrações comunistas provenientes do Iémen do Sul para o interior de Dhofar, além de outras missões de treino ao longo do Golfo e na Arábia Saudita, muitos homens do SAS falam um arábico sofrível. O sargento desejoso de entrar em acção era um deles, mas via‑se obrigado a reconhecer que «o chefe é surpreendente. Nunca vi ninguém como ele. Bronzeado como um árabe.»

Mike Martin endireitou‑se, fez deslizar a mão bronzeada pelo cabelo e decidiu:

‑São horas de irmos para a cama.

Passavam poucos minutos das dez, mas tinham de se levantar ao amanhecer para a habitual corrida de quinze quilómetros antes que o Sol se tornasse insuportável. Era uma tarefa que os Abu Dhabis detestavam, mas o seu xeque insistia nela. Se aqueles estranhos soldados ingleses diziam que lhes fazia bem, eles também tinham de a executar. De resto, pagava por isso e queria algo em troca do seu dinheiro.

O major Martin recolheu às suas instalações e não tardou a adormecer profundamente. O sargento tinha razão. Os seus homens perguntavam‑se por vezes se adquirira a pele cor‑de‑‑azeitona e olhos e cabelos pretos de antepassados mediterrânicos. Ele nunca os elucidara, mas estavam equivocados.

O avô materno dos dois irmãos Martin fora um plantador de chá em Darjeeling, índia. Quando crianças, tinham visto fotografias dele ‑alto, faces rubicundas, bigode louro, cachimbo entre os dentes, espingarda na mão, de pé ao lado de um tigre abatido.

Em 1928, Terence Granger fizera o impensável: apaixonara‑se por uma jovem indiana, com a qual insistira em casar. O facto de ser bonita e possuidora de qualidades não interessava. A ideia estava simplesmente fora de qualquer conceito. A companhia produtora de chá não o despediu, mas enviou‑o para o exílio interno numa plantação isolada no distante Assa.

Se a intenção consistia em castigá‑lo, não foi alcançada. Granger e a jovem esposa, ex‑Miss Indira Bohse, adoraram o local ermo, o clima e os habitantes. Susan nasceu aí em 1930. Em 1943, a guerra chegou à índia, com o avanço dos japoneses através da Birmânia até à fronteira. Granger tinha idade suficiente para não ser obrigado a alistar‑se, mas insistiu e, após treino básico, foi colocado nos fuzileiros de Assa. Em 1954, perdeu a vida em combate. O seu corpo nunca foi recuperado, passando a fazer parte das dezenas de milhares que ficaram perdidos nas selvas da Birmânia.

Com uma pequena pensão, a viúva regressou à sua própria cultura. Dois anos mais tarde, surgiram complicações. A índia estava a ser desmembrada, em 1947. Os ingleses abandonavam‑na. Ali Jinnah insistia no seu Paquistão muçulmano, a norte, enquanto o pandita Nehru se contentava com a índia hindu no sul. Vagas de refugiados das duas religiões deslocavam‑se constantemente de norte para sul e vice‑versa e eclodiu a guerra em que perdeu a vida mais de um milhão de pessoas. Mrs. Granger, temendo pela filha, enviou‑a para Haslemere, Sur‑rey, onde vivia o irmão mais novo do seu falecido pai, arquitecto de renome. Seis meses mais tarde, ela morria vitimada pelos tumultos constantes.

Com dezassete anos, Susan Granger desembarcou em Inglaterra, pátria dos pais, que nunca vira. Permaneceu um ano numa escola de‑raparigas perto de Haslemere e mais tarde no hospital‑geral de Farnham, como enfermeira, seguido de um como secretária de um solicitador na mesma localidade.

Aos vinte e um, idade mínima em que tal era permitido, concorreu para hospedeira da British Overseas Airways Corporation. O treino de enfermeira foi‑lhe extremamente útil para o convívio com os passageiros, e o seu aspecto contribuiu para lhe assegurar o lugar. Escolheram‑na para a carreira número um, Londres‑índia, opção óbvia para uma jovem que falava hindu fluentemente.

A viagem era longa, naqueles tempos em que se utilizavam Argonautas quadrimotores. O percurso obedecia à sequência Londres‑Roma‑Cairo‑Basra‑Bahrain‑Karachi‑Bombaim. E daí para Díli, Calcutá, Colombo, Rangune, Banguecoque e finalmente Singapura, Hong‑Kong e Tóquio. É claro que uma única tripulação não podia resistir a semelhante tirada sem interrupção para repousar, pelo que a primeira paragem para esse fim situava‑se em Basra, ao sul do Iraque, onde se procedia à substituição.

Foi aí, em 1951, quando tomava uma bebida no clube local, que ela conheceu um tímido contabilista da Companhia Petrolífera Iraquiana, na altura pertencente aos ingleses. Chamava‑se Nigel Martin e convidou‑a para jantar. Embora ela tivesse sido alertada para a existência de «lobos» naquelas paragens, pareceu‑lhe simpático e aceitou.

Na sua próxima passagem por Basra, voltaram a encontrar‑se. Desta vez, no Outono de 1951, jogaram ténis, nadaram na piscina do clube e percorreram os bazares locais juntos. Por sugestão de Martin, ela meteu uns dias de férias e acompa‑nhou‑o a Bagdade, onde ele trabalhava.

Casaram em 1952, na Catedral de S. Jorge, igreja anglicana na Haifa Street, com a assistência de pessoal da embaixada a Ha CPI.

Os Martin tiveram dois filhos, nascidos em 1953 e 1955 Michael e Terry, tão pouco parecidos como o giz e o queijo Michael herdara os genes de Indira Bohse ‑cabelo preto, pele bronzeada e olhos da mesma cor‑e muitos membros da comunidade britânica afirmavam que parecia árabe. Terry, surgido dois anos mais tarde, saía ao pai ‑baixo, atarracado, rubicundo, cabelo ruivo.

O major Martin foi acordado por uma ordenança às três da madrugada.

‑Chegou uma mensagem, sayidi.

Tratava‑se de uma comunicação simples, porém continha o código de urgência blitz, indicativo de que provinha pessoalmente do director das Forças Especiais. Não exigia resposta. Ordenava‑lhe apenas que regressasse a Londres no primeiro avião disponível.

Martin delegou as suas atribuições no capitão do SAS que efectuava a sua primeira missão para o regimento e figurava a seguir na escala hierárquica, após o que se dirigiu para o aeroporto, devidamente desfardado.

O voo das 2.55 para Londres já devia ter partido, e os passageiros ensopados limitaram‑se a emitir grunhidos de contrariedade, quando a hospedeira anunciou que por «motivos técnicos», haveria uma demora de noventa minutos na descolagem.

‑           Raios partisse o árabe ‑murmurou alguém, quando viu

surgir um homem de pele cor‑de‑azeitona, Jeans, botas do deserto e blusão, obviamente a causa do «motivo técnico» do atraso.

Quando amanheceu no Golfo, duas horas mais tarde, o «jacto» da British Airways voava em direcção a noroeste, para aterrar em Heathrow pouco antes das dez da manhã, hora local. Mike Martin foi dos primeiros a desembaraçar‑se das formalidades alfandegárias, porque não teve de aguardar qualquer bagagem. Não havia ninguém à sua espera, como calculara. E sabia perfeitamente aonde se devia dirigir, para o que se meteu num táxi.

Ainda não despontara a alvorada em Washington, mas as primeiras indicações do aparecimento do Sol já se desenhavam nas colinas distantes do condado Prince Georges, onde o rio Patuxent rola para se juntar ao Chesapeake. No sexto e último piso do imponente edifício oblongo entre o aglomerado que forma o quartel‑general da CIA, conhecido simplesmente por Langley, as luzes ainda estavam acesas.

O juiz Wiiliam Webster, director da Central Intelligence Agency, pousou as pontas dos dedos nos olhos fatigados, levantou‑se e aproximou‑se da janela panorâmica. O arvoredo que o impedia de apreciar a vista na época da sua folhagem plena, como agora acontecia, achava‑se imerso na penumbra. Fora mais uma noite em claro. Desde a invasão do Koweit, apenas conseguira passar pelas brasas entre telefonemas do Presidente, do Conselho da Segurança Nacional, do Departamento de Estado e, ao que parecia, de todos os outros que conheciam o seu número.

Atrás dele, não menos cansado, sentavam‑se Bill Stewart, subdirector (Operações), e Chip Barber, chefe da Divisão do Médio Oriente.

‑           Com que então, é isso? ‑proferiu o DCI, como se a repetição da pergunta pudesse suscitar uma resposta mais satisfatória.

Mas não se registou qualquer alteração. A situação consistia em que o Presidente, o NSC e o Estado clamavam por uma informação minuciosa do que se passava no coração de Bag‑dade e dos próprios conselheiros de Saddam Hussein. Decidiria permanecer no Koweit? Retirar‑se‑ia ante a ameaça das resoluções das Nações Unidas que brotavam do Conselho de Segurança? Hesitaria perante o embargo ao petróleo e bloqueio comercial? Que pensaria naquele momento? Que planeava?

E a agência não fazia a menor ideia. Dispunha de um chefe e posto em Bagdade, sem dúvida, mas o homem fora neutralizado, semanas atrás. O facto era do conhecimento do filho da mãe do Rahmani, dirigente da contra‑espionagem iraquiana, e tornava‑se agora óbvio que o material fornecido ao chefe de posto não passara de um ardiloso produto da sua imaginação. Tudo indicava que as suas melhores «fontes» trabalhavam para Rahmani e se tinham limitado a ser portadoras de elementos falsos.

Havia, evidentemente, as fotografias, em número suficiente para traçar conclusões. Os satélites KH‑12 e KH‑12 sobrevoavam o Iraque a intervalos de poucos minutos para fotografar todo o país a seu bel‑prazer. Analistas desenvolviam azáfama ininterrupta para identificar o que podia ser uma fábrica de gás venenoso, uma central nuclear... ou uma simples oficina de reparação de bicicletas.

Os analistas do Departamento de Reconhecimento Nacional, empresa pertencente, em partes iguais, à CIA e à Força Aérea, juntamente com os luminares do ENPIC, Centro de Interpretação Fotográfica Nacional, construíam uma imagem que, um dia, estaria completa: isto é um posto de comando, isto uma rampa de lançamento de mísseis, isto uma base de «caças». Não pode ser outra coisa, porque estas fotografias o confirmam. Mas que mais havia? Oculto, dissimulado no subsolo?

Os anos de desinteresse pelo Iraque produziam agora frutos. Os homens afundados em cadeiras atrás de William Webster eram fantasmas dos velhos tempos que tinham conquistado a fama e larga experiência de assuntos relacionados com o Muro de Berlim, quando o betão deste ainda não secara. Datavam de uma época remota, antes de o equipamento electrónico sofisticado substituir a recolha meticulosa e não pouco penosa de elementos através de meios por assim dizer artesanais.

E tinham‑lhe comunicado que as câmaras do NRO (16) e os ouvidos atentos da National Security Agency de Fort Meade não podiam revelar planos, espiar intenções ou introduzir‑se na cabeça de um ditador.

Por conseguinte, o NRO continuava a tirar fotografias e os ouvidos de Fort Meade a escutar e gravar todas as palavras proferidas em todas as chamadas telefónicas e mensagens da rádio, para e do Iraque. E continuava a não surgir qualquer revelação pertinente.

A mesma Administração e o mesmo Capitólio que tanto se

 

C6) National Reconnaissance Office. (N. do A.)

 

tinham mesmerizado com as inovações electrónicas no valor de milhares de milhões de dólares exigiam agora informações que o sofisticado equipamento não se achava em condições de fornecer.

E os homens sentados atrás dele afirmavam que a elint ‑abreviatura de electronic Intelligence ‑constituía um apoio e suplemento da humint ‑human Intelligence gathering {")‑, mas não o seu substituto. O que resultava agradável de saber, mas não solucionava o problema.

Em resumo, a Casa Branca exigia respostas que só podiam ser dadas com autoridade por uma fonte, um denunciante, um espião, um traidor, ou algo do género, situado numa posição elevada da hierarquia iraquiana. Que ele não possuía.

Contactaram com a Century House?

Sim. Estão como nós.

Parto para Telavive, dentro de dois dias ‑disse Chip

Barber. ‑Devo encontrar‑me com Yaacov Dror. Quer que lhe pergunte?

O DCI assentiu com uma inclinação de cabeça. O general Yaacov «Kobi» era o chefe da Mossad, a mais avessa à cooperação de todas as agências «amigas». Webster ainda não se recompusera do caso de Jonathan Pollard, conduzido pela Mossad no seio da América e contra os Estados Unidos. Com amigos daqueles... Na realidade, custava‑lhe pedir favores à agência israelita.

‑           Pressione‑o, Chip. Se dispõe de uma fonte no interior de Bagdade, queremo‑la. Precisamos desse produto. Entretanto, voltarei à Casa Branca, para tornar a enfrentar Scowcroft.

E a reunião terminou numa atmosfera quase de desalento.

Os quatro homens que aguardavam no quartel‑general do SAS em Londres, naquela manhã de 5 de Agosto, tinham desenvolvido intensa actividade durante a maior parte da noite.

O director das Forças Especiais, brigadeiro Lovat, estivera quase sempre agarrado ao telefone, apenas com uma breve passagem pelo sono de duas horas na cadeira, entre as duas e as quatro. Pouco antes da alvorada, lavara‑se, fizera a barba e ficara em condições para mais um dia de azáfama quase ininterrupta.

Fora o seu telefonema a um «contacto» das altas esferas da British Airways, à meia‑noite (hora de Londres), que fizera o avião atrasar a partida de Abu Dhabi. O executivo da BOAC, acordado no seu domicílio, absteve^se de perguntar a razão pela qual devia retardar a descolagem de um aparelho a quase

 

C7) Recolha de informação secreta humana. (N, do T.)

 

cinco mil quilómetros de distância até que determinado passageiro pudesse embarcar. Conhecia Lovat porque eram membros do Clube das Forças Especiais, em Herbert Crescent e sabia vagamente a que natureza de trabalho se dedicava, pelo que lhe fez o favor sem pretender inteirar‑se do motivo.

À hora do pequeno‑almoço, o sargento de serviço contactou com o aeroporto de Hethrow e foi informado de que o voo de Abu Dhabi recuperara um terço do atraso de noventa minutos e aterraria por volta das dez. Assim, o major deveria chegar ao aquartelamento cerca das onze da manhã.

Um mensageiro apresentara‑se com a folha de serviço de determinada pessoa, proveniente do quartel de Browning, quartel‑general do regimento de pára‑quedistas, em Ald&rshot. A documentação continha todos os elementos relativos à carreira de Mike Martin nos Paras desde o dia em que se apresentara, aos dezoito anos, e abarcava os dezanove, durante os quais fora um soldado profissional, à excepção dos dois longos períodos na sua transferência para o regimento SAS.

O comandante do 22. do SAS, coronel Bruce Craig, deslocara‑se de carro de Hereford durante a noite, acompanhado do processo que cobria esses dois períodos, e chegou pouco antes da alvorada.

‑           Bom dia, JP. Que há de novo?

Os dois homens conheciam‑se bem. Lovat ‑JP ou Jaypee ‑comandava o pelotão que recuperara a embaixada iraniana das mãos dos terroristas, dez anos atrás, e Craig chefiava um piquete que colaborara na operação.

A Century quer implantar um homem no Koweit ‑informou Lovat, quase secamente, pois as longas tiradas não eram da sua predilecção.

Um dos nossos? Martin? ‑O coronel largou o processo que trouxera em cima da secretária.

Parece que sim. Mandei‑o regressar de Abu Dhabi.

Que se lixem. Tenciona ir nisso?

Mike Martin era um dos oficiais de Craig, e também se conheciam de longa data. Este detestava que a Century House lhe «roubasse» o pessoal. O DSF encolheu os ombros.

‑           Talvez não tenha outro remédio. Se se lhes meteu a ideia na cabeça, são capazes de recorrer a todo o poder de que desfrutam nas altas esferas.

Craig emitiu um grunhido e aceitou o café que o sargento lhe oferecia. Chamava‑se Sid e haviam combatido juntos em Dhofar. Quando se tratava de política, o coronel sabia as linhas com que se cosia. Em caso de necessidade, o SIS podia puxar cordelinhos aos níveis mais elevados. Ambos os militares conheciam Margareth Thatcher perfeitamente e sabiam que, à semelhança de Churchill, manifestava tendência para a «acção imediata». Por conseguinte, a Century House acabaria por triunfar e o regimento ver‑se‑ia compelido a colaborar.

Os dois homens da Century chegaram pouco depois do coronel. O mais graduado era Steve Laing, que trouxera consigo Simon Paxman, chefe da secção do Iraque. Introduziram‑nos numa sala de espera e foi‑lhes oferecido café, juntamente com os documentos para estudarem. Momentos depois, mergulhavam nos antecedentes de Mike Martin a partir dos dezoito anos. Na noite anterior, Paxman conversara com o irmão mais novo daquele durante quatro horas, para se elucidar do passado da família e período de permanência em Bagdade e Haileybury.

Martin escrevera uma carta pessoal aos Paras durante o último semestre de estudos, no Verão de 1971, e fora‑lhe concedida uma entrevista em Setembro do mesmo ano em Alders‑hot. Acabou por ser admitido e iniciou o treino no mesmo mês, ao longo de vinte e duas esgotantes semanas que conduziram os sobreviventes do curso a Abril de 1972.

O soldado Mike Martin fora há muito considerado um excelente oficial potencial e, em Maio daquele ano, ingressou na Royal Military Academy, em Sandhurst, para frequentar o primeiro dos novos cursos militares padrão.

Mais tarde, o novo tenente Martin seguiu directamente para Hythe, a fim de tomar conta de um pelotão em treino preparatório para a Irlanda do Norte, que comandou durante doze excrucíantes semanas, num posto de observação denominado Flax Mill, o qual cobria o enclave ultra‑republicano de Ardoyne, Belfast. Naquele Verão, porém, a vida decorria calmamente naquela área, porque, desde o domingo sangrento de Janeiro de 1972, o IRA manifestava tendência para evitar os Paras, como se fossem uma epidemia.

Martin foi em seguida colocado no terceiro batalhão, mais conhecido por Pára Três, e, depois de Belfast, regressou à base de Aldershot para comandar o pelotão de recrutas, onde colocou os recém‑chegados no mesmo purgatório que ele próprio suportara. No Verão de 1977, voltou para o Pára Três, então localizado, desde Fevereiro anterior, em Osnabruck, fazendo parte do exército britânico no Reno.

Foi mais um período penoso, até que, em Novembro de 1977, pediu transferência para o SAS.

Um número apreciável dos efectivos do regimento provinha dos Paras, porventura porque o treino apresentava pontos comuns, embora o SAS afirme que o seu era mais duro. O domínio do idioma arábico de Martin não passou despercebido aos superiores que se debruçaram sobre o seu processo, pelo que foi convidado para o curso de selecção no Verão de 1978.

Frequentou o de selecção «inicial» de seis semanas, entre outros paras, fuzileiros e voluntários de diferentes armas. No primeiro dia, um instrutor sorridente anunciou:

‑           Neste curso, não tentamos treiná‑los. Tentamos matá‑los.

E não faltava à verdade. Somente dez por cento dos candidatos costuma resistir a esse curso preliminar do SAS. Mas poupa‑se assim tempo mais tarde. Martin passou. Houve depois a continuação do treino, um período de permanência em Belize e mais um mês, de novo em Inglaterra, dedicado à resistência ao interrogatório. «Resistência» significa tentar guardar silêncio, enquanto são infligidas práticas a todos os títulos indesejáveis. A boa notícia consiste em que tanto o regimento como o voluntário têm o direito constante de insistir, no RTU (18), regresso à unidade.

‑           São loucos ‑resmungou Paxman, pousando o processo e servindo‑se novamente do café. ‑São mesmo lunáticos.

Laing emitiu um grunhido. Achava‑se imerso na segunda tranche do processo, que se referia à experiência do homem na Arábia de que necessitava para a missão que tinha em vista.

Martin passara três anos no SAS da primeira vez, com a patente de capitão e o cargo de comandante. Optara pela Esquadrilha «A», dos Queda‑Livre ‑as Esquadrilhas são A, B, C e G‑, o que constituía uma escolha natural para quem saltara, quando se encontrava nos paras, com a sua equipa de queda livre de grande altitude, os Diabos‑Vermelhos.

No período de três anos, 1979‑81, prestara serviço junto das forças do sultão de Omã, em Dhofar Ocidental, ensinara protecção a VIP em dois emirados do Golfo, instruía a Guarda Nacional saudita em Riade e prestara assistência aos guarda‑‑costas do xeque Isa, também de Riade. Os registos revelavam que regressara aos paras após três anos de permanência no SAS, no Inverno de 1981, e verificara com satisfação que eles participavam na Operação Rocky Lance durante os meses de Janeiro e Fevereiro de 1982, nada menos do que em Omã. Por conseguinte, voltou ao Jebel Akdar por esse período, antes de entrar em férias em Março. Em Abril, foi convocado de urgência: a Argentina invadira as Falkland.

Embora o Pára Um se conservasse no Reino Unido, o Dois e Três partiram para o Atlântico Sul a bordo do paquete Cam‑berra, convertido apressadamente em transporte de tropas. Enquanto o Pára Dois expulsava os argentinos de Goose Green, o Três avançava para Port Standely e instalara‑se numa herdade

 

H Return to unit. (N. do T.)

 

solitária chamada Estancia House, a fim de se preparar para o assalto final a Port Stanley, o que implicava tomar primeiramente o Monte Longdon, defendido com pesados efectivos. Foi naquela agitada noite de 11 para 12 de Junho que o capitão Mike Martin recebeu a sua bala.

Tudo principiou com o ataque silencioso às posições argentinas, que se tornou assaz ruidoso no momento em que o cabo Milne pisou uma mina que lhe destruiu o pé. As metralhadoras dos argentinos abriram fogo, os verylight iluminaram o monte como em pleno dia e o Pára Três viu‑se perante a alternativa de recuar para se refugiar algures ou prosseguir em direcção à origem do tiroteio inimigo e tomar Longdon. Optou pela segunda, com vinte e três mortos e mais de quatro dezenas de feridos. Um destes últimos era Mike Martin, com um projéctil na perna e larga manifestação de cólera por meio de interjeições apropriadas, por sorte em arábico.

Foi transferido, quando a situação em redor o permitiu, para uma enfermaria em Ajax Bay e, depois de receber os primeiros socorros, para o naviohospital Uganda, onde se encontrou num beliche ao lado de um tenente argentino. No decurso da viagem até Montevideu, tornaram‑se amigos e ainda se correspondiam.

O Uganda fez escala na capital uruguaia para desembarcar os argentinos, e Martin figurava entre os suficientemente recuperados para voar para Inglaterra. Os paras concederam‑lhe então três semanas em Headley Court, Leatherhead, para convalescer.

Conheceu aí a enfermeira Lucinda, que se tornaria sua esposa, após breve namoro. Instalaram‑se num chalé perto de Chobbam, num lugar conveniente para o trabalho dela em Leatherhead e o dele em Aldershot. No entanto, passados três anos, depois de o ver num total de quatro meses e meio, Lucinda colocou o marido entre a espada e a parede: «Tens de escolher entre os paras e o raio do deserto e mim.» Ele reflectiu e inclinou‑se para o deserto.

Ela fez muito bem em o abandonar. No Outono de 1982, Martin frequentou o curso para oficial superior, antecâmara de um cargo mais elevado atrás de uma secretária, porventura no Ministério. Em Fevereiro de 1983, chumbou no exame.

Fez de propósito ‑disse Paxman. ‑A anotação do seu comandante garante que podia ter passado com uma perna às costas, se quisesse.

Eu sei ‑assentiu Laing. ‑Também li isso. O homem é... invulgar.

No Verão de 1983, Martin foi investido das funções de oficial do estado‑maior britânico, colocado no quartel‑general das forças terrestres do sultão de Oman em Mascate, onde se manteve dois anos, acabando por comandar o regimento da fronteira norte e sendo promovido a major no Verão de 1986.

Os oficiais que prestaram um período de serviço no SAS podem voltar para um segundo, mas somente por convite. Mal acabara de desembarcar em Inglaterra, no Verão de 1987, altura em que o seu divórcio se consumou oficialmente, quando surgiu o convite de Hereford. Regressou como comandante de esquadrilha em Janeiro de 1988, prestando serviço no Flanco Norte (Noruega), depois com o sultão de Brunei e seis meses com a equipa de segurança interna em Hereford. Em Junho de 1990, foi enviado para Abu Dhabi com a sua equipa de instrutores.

O sargento Sid bateu à porta, assomou a cabeça e anunciou:

‑O brigadeiro solicita a vossa presença. O major Martin vem a caminho.

Quando este último entrou, Laing apercebeu‑se do rosto bronzeado e olhos negros e trocou uma mirada de inteligência com Paxman. O homem parecia ideal para a missão. Restava saber se conseguiria levá‑la a cabo e dominava o arábico como diziam.

JP adiantou‑se e apertou a mão do recém‑chegado com o vigor habitual.

‑           Muito prazer em tornar a vê‑lo, Mike.

‑Obrigado, brigadeiro ‑disse Martin, e estendeu a mão ao coronel Craig.

Deixe‑me apresentar‑lhe estes dois senhores ‑volveu o DSF. ‑Mr. Laing e Mr. Paxman, ambos da Century. São portadores de uma proposta interessante. ‑Virou‑se para os dois forasteiros. ‑Preferem conversar com ele a sós?

De modo algum ‑apressou‑se Laing a esclarecer.‑ O chefe está esperançado em que, se desta reunião resultar algo de positivo, seja uma operação conjunta.

«Oportuna alusão a Sir Colin», reflectiu JP. «Para deixar transparecer até que ponto os filhos da mãe estão dispostos a ir.»

Os cinco homens sentaram‑se. Laing encarregou‑se de explicar os antecedentes políticos da situação e a incerteza quanto à possibilidade de Saddám Hussein abandonar ou não o Koweit com prontidão, o que, no segundo caso, implicaria o recurso à força para o expulsar. No entanto, segundo os analistas, o Iraque depauperaria em primeiro lugar o Estado conquistado de todos os seus valores e em seguida faria exigências que as Nações Unidas não tencionavam minimamente aceitar. O que poderia tardar meses consecutivos.

A Grã‑Bretanha precisava de saber o que se passava no Koweit, através de informação fidedigna e não de rumores ou conjecturas sem bases concretas. Sobre os cidadãos britânicos que ainda se encontravam lá, tropas de ocupação e eventualidade, caso fosse necessário recorrer à força, de uma resistência koweitiana poder revelar‑se útil para desgastar os efectivos de Saddam.

Martin inclinava a cabeça ocasionalmente, com uma ou outra pergunta, e escutava em profunda concentração, enquanto os dois oficiais superiores dirigiam o olhar para a janela. Laing terminou o arrazoado pouco depois do meio‑dia.

Creio que abarquei tudo, major. Não espero uma resposta imediatamente, mas lembro‑lhe que o tempo urge.

Importa‑se que troquemos algumas palavras com o nosso colega a sós? ‑perguntou JP.

Com certeza que não. O Simon e eu vamos voltar para o escritório. Você tem o número. Se pudesse informar‑me esta tarde...

O sargento Sid acompanhou os dois civis à saída e aguardou no passeio até que os viu subir para um táxi, após o que voltou para dentro.

JP abriu um pequeno frigorífico e pegou em três cervejas. Em seguida, os três homens retiraram as cápsulas e ingeriram um trago.

‑Você tem mais experiência na matéria do que qualquer de nós, Mike. Se a proposta lhe parece alucinada, concordaremos consigo.

Decerto ‑confirmou Craig.‑No regimento, ninguém é expulso por dizer que não. A ideia pertence‑lhes e não a nós.

Mas se aceitar a missão, entrará na porta da casa deles, por assim dizer, e não sairá de lá até ao fim ‑salientou JP.

‑Também estaremos envolvidos, claro, pois provavelmente não poderão prescindir de nós, mas o comando das operações pertencer‑lhes‑á. Quando tudo terminar, voltará para cá como se tivesse estado de férias.

Martin sabia perfeitamente como aquelas coisas funcionavam. Inteirara‑se disso através de outros que haviam trabalhado para a Century. Uma pessoa deixava de existir para o regimento até ao seu regresso. Depois, limitavam‑se a dizer‑lhe: «Temos muito gosto em voltar a vê‑lo.» E nunca mencionavam o local onde estivera, nem lhe faziam perguntas a esse respeito.

‑           Aceito‑declarou, por fim.

O coronel Craig levantou‑se. Tinha de regressar a Hereford.   ‑Felicidades, Mike ‑proferiu, estendendo a mão.

‑           Antes que me esqueça ‑disse o brigadeiro. –Está convidado para almoçar. Nesta rua. Ideia da Century.

Entregou um pedaço de papel a Martin, despediu‑se e este retirou‑se. Segundo a indicação no papel, o almoço decorreria num pequeno restaurante a quatrocentos metros dali e o anfitrião era Wafic Al‑Khouri.

À parte o M. I. 5 e o M. I. 6, o terceiro braço importante dos serviços secretos britânicos é o quartel‑general de comunicações do governo, ou GCHQ, (19) um complexo de edifícios numa área protegida nos arrabaldes da vila de Cheltenham, em Glou‑cestershire.

Q GCHQ é a versão britânica da Agência de Segurança Nacional americana, com a qual colabora intimamente. Graças à sua cooperação com o GCHQ, a NSA (20i) tem vários postos em território britânico, além de outros de escuta espalhados pelo mundo, e o GCHQ dispõe das suas próprias instalações no Ultramar, em particular uma estação muito importante em Ahrotiri, Chipre.

Esta última, por se encontrar mais perto do cenário, coordena o Médio Oriente, mas transmite todo o seu produto a Cheltenham para análise. Entre os analistas, figuram vários peritos que, embora árabes por nascimento, desfrutam de posições de relevo. Um deles era Al‑Khouri, o qual há muito decidira fixar residência na Grã‑Bretanha, naturalizar‑se e casar com uma inglesa.

Esse jovial indivíduo, antigo diplomata jordano, exercia agora as funções de analista‑chefe no serviço arábico do GCHQ, onde, embora haja muitos especialistas de arábico britânicos, conseguia com frequência ler nas entrelinhas da gravação de um discurso de um dirigente do mundo árabe. Era ele que, a pedido da Century, aguardava Mike Martin no restaurante.

A refeição prolongou‑se por duas horas e o diálogo desenrolou‑se inteiramente em arábico. Quando se separaram, Martin regressou ao edifício do SAS. Haveria horas de instrução antes que se achasse devidamente preparado para partir para Riade, com um passaporte que a Century entretanto prepararia sob uma identidade falsa, munido dos vistos indispensáveis.

Antes de abandonar o restaurante, Al‑Khouri marcou um número no telefone das instalações sanitárias.

‑Não há problema, Steve. Ele é perfeito para o trabalho. Na verdade, não me recordo de ter jamais conhecido alguém assim. Não se trata de arábico intelectual, mas de algo de melhor, do vosso ponto de vista. Arábico das ruas, com todo o seu calão, imprecações, etc. E sem o menor sotaque... Não, não me agradeça, amigo. Tive muito gosto em lhe ser útil.

Trinta minutos mais tarde, seguia no carro pela estrada M4 em direcção a Cheltenham. Antes de entrar no quartel‑gene‑

 

  1. V) Government Communications Headquarters. (N. do TO (20) National Security Agency. (N. do T.)

 

ral do regimento, Mike Martin também efectuou uma chamada, para determinado número na área da Gower Street. O homem a quem telefonou levantou o auscultador no gabinete da SOAS onde trabalhava com determinados documentos, numa tarde em que não tinha aulas.

‑           Olá, Bro. Sou eu.

O militar não necessitava de se apresentar. Desde que tinham frequentado juntos a escola preparatória em Bagdade, sempre tratara o irmão mais novo por Bro. Registou‑se uma exclamação abafada no outro extremo do fio.

Mike? Onde diabo estás?

Em Londres, numa cabina.

Julgava‑te algures no Golfo.

Regressei esta manhã. É provável que volte a partir logo à noite.

Não vás, por favor. A culpa foi minha. Devia ter‑me mantido calado.

Martin soltou uma gargalhada.

Tinha de haver alguma razão de peso para os tipos se terem lembrado subitamente de mim. Levaram‑te a almoçar, nem?

Sim, e estávamos a falar de outra coisa. O teu nome veio à baila por mera casualidade. Mas não és obrigado a aceitar. Diz‑lhes que exagerei...

É tarde de mais. De resto, já aceitei.

Valha‑me Deus... ‑Seguiu‑se uma pausa. ‑Cuida bem de ti, Mike. Rezarei para que não te aconteça nada.

Está bem, Bro. Até ao meu regresso.

Martin cortou a ligação, enquanto o irmão, no seu gabinete solitário, apertava a cabeça entre as mãos.

Quando o aparelho da British Airways das 20.45, com destino à Arábia Saudita, descolou de Heathrow, Mike Martin encontrava‑se a bordo com um passaporte noutro nome, e havia alguém à sua espera no final da viagem: O chefe de posto da Century na embaixada em Riade.

 

DON WALKER calcou o pedal do travão e o Corvette Stingray de 1963 imobilizou‑se por um momento à entrada principal da base da Força Aérea Seymour Johnson, para deixar passar dois campistas, antes de enveredar pela auto‑estrada.

Fazia calor. O sol escaldante de Agosto incidia na pequena localidade de Goldsboro da Carolina do Norte e o asfalto parecia fervilhar. Era óptimo ter a capota baixada e sentir o vento, apesar de quente, agitar‑lhe o cabelo louro cortado curto.

Rolou através da povoação em direcção à rodovia 70 e depois entrou na 13, rumo a nordeste.

Naquele Verão quente de 1990, Don Walker tinha vinte e nove anos, solteiro, e acabava de se inteirar de que ia para a guerra. Enfim, talvez. Tudo indicava que isso dependia de um chanfrado árabe chamado Saddam Hussein.

Naquela manhã, o coronel (mais tarde general) da aviação, Hal Hornburg, expusera‑lhe a situação claramente. Dentro de três dias, a 9 de Agosto, a sua esquadrilha, a Rock&teers 336 do Nono Regimento do Comando Táctico Aéreo, partiria para o Golfo Arábico. As ordens tinham sido emanadas pelo comando do TAC (21) da base da Força Aérea em Langley, Hampton, Virgínia. A euforia entre os pilotos fora quase delirante. Qual a utilidade de tantos anos de treino se nunca podiam pôr a perícia em prática?

A três dias de vista, havia muito trabalho para ultimar, sobretudo para Walker, como oficial do armamento. Mas solicitara vinte e quatro horas de licença para se despedir da família, e o tenente‑coronel Steve Tumer, chefe do armamento, advertira‑o de que, se faltasse o mínimo pormenor a 9 de Agosto, quando os Eagles F‑15 E estivessem prestes a descolar, trataria de o «recompensar» pessoalmente. Depois, exibira um

 

Tactical Air Command. (N. do T.)

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sorriso e dissera‑lhe que, se queria regressar ao nascer‑do‑Sol, não devia perder tempo e partir imediatamente.

Por conseguinte, Walker atravessava Snow Hill e Green‑vilíe às nove da manhã, rumo à série de ilhas a leste do Pamlico Sound. Por sorte, os pais não tinham regressado a Tulsa, Oklahoma, de contrário não disporia de tempo para os ir ver. Em Agosto, encontravam‑se no local habitual de férias, numa casa da família perto de Hatteras, a cinco horas de automóvel da base.

Ele sabia que era um excelente piloto e regozijava‑se com isso. Ter vinte e nove anos, fazer aquilo que mais lhe agradava e de forma inexcedivelmente perfeita, constituía uma sensação aprazível. Gostava da base e dos colegas e adorava o Eagle F‑15 McDonnelI Douglas que pilotava, versão de ataque do 15C. Considerava mesmo que se tratava do melhor avião que toda a Força Aérea dos Estados Unidos possuía.

Em Bethel, seguiu para leste em direcção à Colúmbia e Whalebone, onde a estrada se prolongava para a série de ilhas. Com Kitty Hawk atrás dele, à sua esquerda, voltou para sul no sentido de Hatteras, e a rodovia terminou finalmente, com o mar de ambos os lados.

Agora que o pai tencionava aposentar‑se do cargo que exercia numa companhia petrolífera de Tulsa, talvez pudesse passar mais tempo com a mãe na casa da praia e Walker teria oportunidade de os visitar mais vezes. Era suficientemente jovem para não admitir sequer a possibilidade de não regressar do Golfo, se participasse numa guerra iminente.

Completara o curso liceal em Tulsa animado de uma única ambição: queria voar. Assim, frequentou a Faculdade de Oklahoma e formou‑se em engenharia, em Junho de 1983. Prestou serviço militar no Campo de Treino de Oficiais na Reserva e, naquele Outono, ingressou na Força Aérea.

Após onze meses de instrução, adquiriu as asas de piloto, em quarto lugar entre quarenta candidatos, e verificou com alegria que os cinco primeiros eram requisitados para frequentar um curso de «caça» num centro de instrução de Alamagordo, no Novo México.

Na Unidade de Treino Intensivo de Homestad, Florida, deixou de pilotar os T‑38 e transitou aos Phantom F‑4, aparelhos sem dúvida mais pesados e eficazes.

O 336. Regimento de Goldsboro, no Verão de 1987, proporcionou‑lhe a oportunidade de pilotar Phantoms durante um ano, a que se seguiram quatro meses nos Luke AFB de Phoenix, Arizona, onde passou aos Strike Eagle, e havia mais de um atno que os pilotava, quando Saddam Hussein invadiu o Koweit.

O Stingray alcançou a série de ilhas por volta do meio‑dia e, através de Nags Head, seguiu a fi‑ada de reboques de campistas até que por último dispersaram em direcção aos diferentes destinos e desimpediram a estrada, o que lhe permitiu chegar finalmente à casa de madeira dos pais, cerca da uma da tarde. Foi encontrá‑los no terraço voltado para o mar azul e calmo.

Ray Walker foi o primeiro a avistar o filho e soltou uma exclamação de prazer. Maybelle emergiu da cozinha onde preparava o almoço e correu a abraçá‑lo. Por seu turno, o avô sentava‑se na cadeira de balouço e contemplava o oceano. Don aproximou‑se e disse:

‑           Olá, avô. Sou eu, o Don.

O ancião ergueu os olhos, inclinou a cabeça com um sorriso e tornou a virar‑se para o mar.

‑           Não tem passado muito bem ‑explicou Ray. –Umas vezes reconhece‑nos, outras não. Bem, senta-te e conta novidades. Que dizes a duas cervejas para um par de homens com

sede, Maybelle?     

Enquanto bebiam, Don comunicou que partiria para o Golfo dentro de cinco dias. A mãe cobriu a boca com a mão, num gesto de angústia, enquanto o marido assumia uma expressão grave.

‑           Bem, acho que foi para isso que te treinaste com afinco ‑acabou por admitir.

Don levou o copo aos lábios, ao mesmo tempo que se perguntava por que teriam os pais de se preocupar sempre tanto. Entretanto, o avô fitava‑o, com um leve clarão de reconhecimento nos olhos congestionados.

‑O Don vai para a guerra! ‑gritou‑lhe Ray.

O sogro participara na guerra do Pacífico nas tropas do general MacArthur, como testemunhavam as dezassete cicatrizes dispersas pelo corpo, e sobrevivera ao inferno de Iwo Jima, como comprovavam algumas condecorações. Figurava igualmente entre os que haviam desembarcado na Coreia e terminara a actividade nas Forças Armadas como primeiro‑sargento, pois negara‑se sempre a concorrer a oficial.

O ancião fez sinal ao neto para que se acercasse e este levantou‑se da mesa para o comprazer.

‑           Cuidado com os japoneses, rapaz ‑recomendou num murmúrio. ‑De contrário, tratam‑te da saúde.

‑           Não se apoquente, avô. Nem os deixarei aproximar.

Inclinou a cabeça e pareceu satisfeito. Tinha oitenta anos.

Actualmente, passava a maior parte do tempo imerso num sonho agradável, com a filha e o genro a cuidar dele, porque não tinha para onde ir.

Após o almoço, os pais falaram a Don do cruzeiro ao Golfo Arábico de que tinham regressado quatro dias atrás. Maybelle foi buscar as fotografias, acabadas de chegar do laboratório.

Don sentou‑se ao lado da mãe, enquanto ela lhas mostrava e identificava os locais visitados.

‑           Tem cuidado, quando lá chegares ‑advertiu. ‑É gente muito perigosa. Basta ver‑lhe os olhos.

Don observou a foto que de momento tinha na mão. O beduíno encontrava‑se entre duas dunas, com o deserto atrás dele e o rosto parcialmente encoberto pelo kffiyh. Somente os olhos se achavam bem visíveis, cravados na objectiva.

‑           Serei cuidadoso ‑prometeu por fim.

Às cinco da tarde, decidiu que devia empreender o regresso à base e dirigiu‑se para o carro, onde se despediu dos pais. Antes de o pôr em marcha, olhou para trás. O avô, apoiado a duas bengalas, surgiu no terraço. Em seguida, devagar, pousou‑as no parapeito e empertigou‑se, lutando, momentaneamente vitorioso, com o reumatismo que lhe flagelava as costas e ombros. Depois, ergueu a mão, com a palma para baixo, até à pala do boné de basebol, onde a conservou, como um velho guerreiro a saudar o neto que partia para mais uma guerra.

Don retribuiu o gesto, levantando a mão. Por último, pôs o carro em movimento. Não voltou a ver o avô. O ancião expirou durante o sono, em fins de Outubro.

Em Londres, já anoitecera. Terry Martin trabalhara até tarde, porque embora os alunos se achassem ausentes nas férias de Verão, tinha conferências para preparar. No entanto, naquele serão, empenhara‑se especialmente em ter algo para fazer, a fim de distrair o espírito daquilo que o preocupava.

Sabia para onde o irmão partira e imaginava os perigos envolvidos na tentativa de penetrar no Koweit ocupado pelos iraquianos, sem ser interceptado.

Às dez, enquanto Don Walker rolava em direcção à base, abandonou a escola, dirigiu uma saudação cordial ao porteiro e percorreu a Gower Street e St. Martins Lane, rumo a Trafal‑gar Square, animado da vaga esperança de a iluminação pública lhe neutralizar a amargura.

Em St. Martin‑in‑the‑Fie!ds, reparou que a porta estava aberta e, através dela, soava o cântico de hinos. Entrou, sentou‑se num dos bancos da retaguarda e escutou o ensaio do coro. Todavia, as vozes límpidas só serviram para lhe intensificar a depressão e evocou a infância que partilhara com Mike, trinta anos atrás, em Bagdade.

Nigel e Susan Martin viviam numa casa de dois pisos confortável em Saadun, bairro elegante na metade da cidade denominada Risafa. Mike nascera em 1953 e ele dois anos depois. A sua primeira recordação, quando tinha dois, era a de o irmão a vestir‑se com esmero para o primeiro dia na escola pré‑primária de Miss Saywell.

A vida era fácil e divertida para a comunidade britânica, em Bagdade dos anos cinquenta. Havia o clube Mansour e o Alwiya, com piscina, corte de ténis e recinto de squash, onde os funcionários da Iraq Petroleum Company e da embaixada se reuniam para jogar, nadar ou tomar bebidas frescas no bar.

Ele lembrava‑se de Fátima, a ama, uma jovem roliça de uma aldeia do interior, a qual economizava o dinheiro do salário, a fim de poder casar com um jovem abastado, quando regressasse à sua tribo. Terry costumava jogar ténis com ela, antes de irem buscar Mike à escola de Miss Saywell.

Dois anos mais tarde, ele passou igualmente a frequentar esse estabelecimento, mas, devido à sua inteligência e facilidade em aprender, entraram juntos para a Escola Preparatória da Fundação, dirigida por Mr. Hartley.

Ele tinha seis anos e o irmão oito, quando se apresentaram em Tasísiya, frequentado igualmente por garotos iraquianos das classes mais elevadas.

Entretanto, já houvera um golpe de Estado. O rei‑menino e Nuri‑as‑Said foram assassinados e o general neo‑comunista Kassem assumira o poder absoluto. Embora os dois garotos ingleses se achassem inconscientes do facto, os pais e a comunidade britânica começavam a preocupar‑se. Com o apoio do Partido Comunista iraquiano, Kassem procedia a um pogrom implacável entre os nacionalistas do Partido Baath, que, por seu turno, procuravam eliminá‑lo. Um dos membros do grupo que tentara abater o ditador era um fogoso jovem que dava pelo nome de Saddam Hussein.

No seu primeiro dia na Escola Preparatória, Terry viu‑se rodeado por vários rapazes iraquianos.

É um aborto ‑disse um.

Não sou nada‑replicou ele, e começou a chorar.

És, pois. Gordo, branco e com cabelo esquisito. Não pareces outra coisa. Aborto, aborto, aborto!

E os outros fizeram coro, até que Mike se aproximou.

Não chamem isso ao meu irmão.

Ele é teu irmão? Mas vocês não se parecem nada. Não passa de um aborto.

O emprego do punho cerrado não faz parte da cultura árabe. Com efeito, acha‑se banido de muitas culturas, à parte em determinadas partes do Extremo Oriente. Mesmo a sul do Sara, não constitui uma arma tradicional. Os negros de África e seus descendentes tinham de ser ensinados a utilizá‑lo, após o que se tornaram os melhores do mundo nessa prática. O soco do punho cerrado é sobretdo uma tradição do oeste do Mediterrâneo e, em especial, dos anglo‑saxões.

O de Mike Martin contactou violentamente com o queixo do colega que tomara a iniciativa de insultar o irmão e derrubou‑o sem dificuldade. Desde esse dia, ninguém voltou a chamar‑lhe aborto.

Surpreendentemente, Mike e o iraquiano acabaram por se tornar bons amigos e, durante os anos na Escola Preparatória, foram inseparáveis. O garoto em causa chamava‑se Hassan Rahmani. O terceiro membro do «bando» de Mike era Abdel‑karim Badri, que tinha um irmão mais novo, Osman, da mesma idade de Terry. Por conseguinte, este e Osman tornaram‑se igualmente amigos, o que resultou útil porque o Badri mais velho visitava a casa dos pais deles com frequência. Era médico e os Martin escolheram‑no para assistente da família. Foi ele que acudiu a Mike e Terry ao longo das habituais doenças mais ou menos infantis: sarampo, varicela, papeira, etc.

Terry recordava‑se de que o mais velho dos irmãos Bradi tinha inclinação especial para a poesia, sempre imerso na leitura de um livro de poetas ingleses, e conquistara vários prémios pela perfeição com que dizia versos, mesmo em competição com rapazes daquela nacionalidade. O mais jovem, Osman, brilhava em matemática e queria ser engenheiro ou arquitecto. Sentado ao fundo da sala do templo, Terry perguntava‑se o que teria acontecido a todos eles.

Enquanto estudavam em Tasisiya, a situação à sua volta no fraque modificava‑se. Quatro anos depois de tomar o poder com o assassínio do rei, Kassem foi por sua vez derrubado e morto por um exército que se preocupava crescentemente com o seu servilismo aos comunistas. Seguiram‑se onze meses de governo partilhado pelas forças armadas e o Partido Baath, durante os quais os membros deste último exerceram represálias sangrentas sobre os antigos perseguidores.

Contudo, o exército acabou por afastar o Baath e relegou‑o mais uma vez para a clandestinidade, governando sem companhia até 1968.

Em 1966, com treze anos, Mike fora enviado para uma escola pública inglesa chamada Haileybury, a fim de completar a educação, e Terry seguiu‑lhe as pisadas, dois anos mais tarde. Naquele Verão, os pais levaram‑no a Inglaterra, em fins de Junho, para poderem passar as férias grandes todos juntos, antes de Terry se juntar a Mike em Haileybury. Escaparam assim, por mero acaso, aos dois coups, a 14 e 30 de Julho, que derrubaram o exército e colocaram o Partido Baath no poder, sob a égide do Presidente Bakr e a vice‑presidência de um certo Saddam Hussein.

Nigel Martin suspeitara de algo do género, pelo que tomara as devidas precauções. Abandonou a IPC f22) e ingressou numa empresa petrolífera com sede em Inglaterra chamada Burmath Oil. Depois de recolher os bens da família e resolver os assuntos pendentes em Bagdade, fixou residência nos subúrbios de Hertford, de onde se podia deslocar diariamente a Londres, para o novo emprego.

Tornou‑se um exímio jogador de golfe e,, nos fins‑de‑semana, os filhos faziam de seus caddies, quando enfrentava um colega da Burmah Oil chamado Denis Thatcher, cuja esposa manifestava particular interesse pela política.

Terry adorava o ambiente de Haileybury, então dirigida por William Steyvart, e os dois rapazes encontravam‑se na Melvill House, na altura sob a orientação de Richard Rhodes‑James. Como era de prever, ele tornou‑se no intelectual e Mike no atleta. A atitude protectora deste último em relação ao irmão, iniciada na escola de Hartley, em Bagdade, foi confirmada em Haileybury.

Desprezando a oportunidade de triunfar na universidade, Mike não tardou a anunciar a intenção de fazer carreira no Exército, decisão com a qual Rhodes‑James concordou sem reservas.

Terry Martin abandonou a igreja quando o ensaio do coro terminou, cruzou Trafalgar Square e tomou o autocarro para Bayswater, onde partilhava um apartamento com Hilary. Quando passava diante do estádio de Park Lane, recordou‑se do encontro final de râguebi contra Tonbridge, com que o irmão terminara os seus cinco anos em Haileyburgh e durante o qual brilhara e tivera um papel decisivo na vitória das suas cores. À saída, reuniu‑se a Terry, que o aguardava exultante, estendeu a mão e revolveu‑lhe o cabelo, enquanto dizia:

‑Ganhámos, Bro.

E agora, procedendo como um estúpido, quando devia, conservar‑se calado, fizera com que o irmão fosse despachado para o Koweit ocupado. A custo continha as lágrimas de revolta e frustração.

Apeou‑se do autocarro e percorreu Chepstow Gardens. Hilary, ausente por três dias em serviço, já devia ter regressado. Oxalá que sim, pois ele necessitava de consolação. Quando

 

(22) Iraq Petroleum Company. (N. do T.)

 

abriu a porta do apartamento, chamou e ouviu com profunda alegria, a voz responder da sala.

A indignação consigo próprio atenuou‑se nos braços confortáveis da pessoa com a qual partilhava a vida.

Mike Martin passara dois dias com o chefe de posto em Riade, cujos efectivos acabavam de ser aumentados com a adição de mais dois homens da Century.

O posto de Riade costuma funcionar na embaixada e como a Arábia Saudita é considerada o país mais receptivo aos interesses britânicos, nunca exigiu uma guarnição numerosa e equipamento complexo. No entanto, a crise no Golfo, já com dez dias de existência, alterara o panorama.

A recém‑criada Coligação de nações ocidentais e árabes opunha‑se veementemente à continuação da ocupação do Koweit pelo Iraque e já nomeara dois comandantes‑chefes: o general Norman Schwarzkopf, dos Estados Unidos, e o príncipe Khafed bin Sultan bin Abdulaziz, militar profissional de quarenta e oito anos, treinado em Sandhurst, Inglaterra, e nos Estados Unidos, sobrinho do rei e filho do Ministro da Defesa, príncipe Sultan.

O príncipe Khaled, em resposta ao pedido britânico, mostrara‑se tão atencioso como sempre e, com notável prontidão, fora adquirida uma vivenda nos arrabaldes da cidade para alugar à embaixada de Inglaterra.

Técnicos de Londres instalavam receptores e transmissores com os inevitáveis dispositivos de codificação para uma utilização segura, e o local estava na iminência de se tornar o quartel‑general do Serviço Secreto Britânico, enquanto a emergência perdurasse. Algures do outro lado da cidade, os americanos procediam de modo muito similar para a CIA, a qual tencionava visivelmente ter uma presença de peso. A animosidade que mais tarde se desenvolveria entre as altas patentes das forças armadas dos Estados Unidos e os civis da agência ainda não principiara.

Entretanto, Mike Martin ficara na residência privada do chefe de posto, Julian Gray. Os dois homens reconheceram que haveria qualquer vantagem em o primeiro ser visto em companhia de alguém da embaixada. A encantadora Mrs. Gray, dona de casa de carreira, fora sua anfitriã e nunca se lembrara de lhe perguntar quem era ou o que fazia na Arábia Saudita. Martin não pronunciava uma única sílaba em arábico diante do pessoal saudita, limitando‑se a aceitar o café oferecido com um sorriso e um «Obrigado» em inglês.

No serão do segundo dia, Gray procedeu à transmissão de instruções finais, e pareceu‑lhes que tinham abarcado tudo o possível, pelo menos em Riade.

Você segue de avião para Dharran, pela manhã. É um voo civil de Saudia. Deixaram de os efectuar directos para Khafji. Haverá alguém à sua espera. A Firma estabeleceu um «expedidor» naquela cidade, que o acompanhará ao norte. Aqui para nós, creio que pertenceu ao Regimento. Sparky Low.

Conhece‑o?

Conheço ‑assentiu Martin.

‑Tem todas as coisas que você disse que precisava. E descobriu um jovem piloto koweitiano com o qual decerto gostará de conversar. Receberá de nós todas as fotografias mais recentes dos satélites americanos da área fronteiriça e das principais concentrações de tropas iraquianas a evitar, além de tudo o resto que obtivermos. Finalmente, estas fotos acabam de chegar de Londres.

Gray estendeu várias em cima da mesa da sala de jantar.

‑           Saddam parece que ainda não nomeou um governador‑geral iraquiano. Tudo indica que procura formar uma administração de traidores koweitianos, sem até agora o conseguir.

Nem a própria oposição do Koweit quer colaborar. No entanto, dá a impressão de que já existe uma polícia secreta numerosa.

Este aqui deve ser o chefe da AMAM local, chamado Sabaawi, um filho da mãe de todo o tamanho. O seu patrão em Bagdade é o chefe da Amn‑al‑Amm, Ornar Khatib. Este.

Martin observou o rosto da fotografia ‑uma expressão quase bestial, com um misto de crueldade e esperteza saloia nos olhos e cantos dos lábios.

‑           Tem reputação de sanguinário. Como o seu homólogo no Koweit, Sabaawi. Khatib tem cerca de quarenta e cinco anos, oriundo de Tikrit, pertencente ao clã de Saddam e seu homem de mão de longa data. Ainda não sabemos muito sobre

Sabaawi, mas ir‑nos‑emos elucidando gradualmente.:‑Gray indicou outra foto. ‑Além da AMAM, Bagdade enviou uma equipa do Departamento de Contra‑Espionagem da Mukhabarat, provavelmente para se ocupar dos estrangeiros e qualquer tentativa de espionagem ou sabotagem. O patrão da CE é este aqui, considerado extremamente astuto e inteligente. Talvez seja o merecedor de mais atenção.

Era o dia 8 de Agosto. Mais um Calaxy C‑5 ecoou sobre as suas cabeças em direcção ao aeroporto militar das proximidades, parte da vasta máquina logística que já se achava em actividade e trazia o seu interminável material para um reino muçulmano nervoso, incompreensivo e extremamente tradicional.

Mike Martin baixou os olhos e fixou‑os no rosto de Saddam Hussein.

Era de novo Steve Laing que estava ao telefone.       

‑Não quero falar ‑disse Terry Martin.

Acho que deve, Dr. Martin. Está preocupado com seu irmão, não é assim?

Muito.

Não tem motivo para tal. Ele sabe cuidar de si. De resto, queria ir. Não há a menor dúvida a esse respeito. Concedemos‑lhe plena liberdade para recusar.

Eu devia ter‑me mantido calado.

Tente encarar a situação do nosso ponto de vista, doutor.

Se as coisas se agravarem, talvez tenhamos de mandar muitos outros irmãos, maridos, filhos, tios e seres amados para o Golfo. Não lhe parece, pois, que nos compete recorrer a todos os meios para limitar as baixas?

Está bem. Que pretende?

Mais um almoço, se não vê inconveniente. É mais fácil trocar impressões frente a frente. Conhece o Hotel Montcalm?

À uma, está bem?

Apesar dos miolos que tem, é um emocional –dissera Laing a Simon Paxmam, naquela manhã.

Santo Deus! ‑bradou este último, como um entomologista que acabava de descobrir uma nova espécie debaixo de uma pedra.

O mestre‑espião e o académico ocupavam um reservado discreto, pois Mr. Costa providenciara nesse sentido. Depois te ter servido as tranches de salmão, Laing abordou o assunto.

A verdade é que talvez acabe por haver guerra no Golfo.

Não para já, claro, pois precisamos de tempo para organizar os efectivos necessários. Os americanos estão nitidamente inclinados nesse sentido, com o apoio absoluto da nossa dama de Downing Street, para expulsar Saddam Hussein e os seus rufias do Koweit.

E se ele decidir retirar‑se espontaneamente? –sugeriu Martin.

Nesse caso, não haverá necessidade de irmos para a guerra ‑admitiu Laing, embora intimamente considerasse que essa alternativa, no fundo, não resultaria muito conveniente, pois havia rumores pouco tranquilizadores no ar, principal causa daquele almoço com o arabista. ‑De contrário, não hesitaremos, sob os auspícios das Nações Unidas.

Fala no plural...       

Refiro‑me em particular aos americanos. Enviaremos efectivos para os ajudar: por terra, mar e ar. Temos navios no Golfo neste momento e «caças» e bombardeiros que se dirigem para o sul. A Dama de Ferro está disposta a mostrar ao mundo que não nos deixaremos intimidar. De momento, não passa da Protecção do Deserto, para impedir o filho da mãe de tentar invadir a Arábia Saudita. Mas a situação pode agravar‑se. Suponho que ouviu falar das WMD 233?

Armas de destruição maciça?

Com certeza.

É esse o problema. NBC. Nucleares, bacteriológicas e químicas (24). O nosso pessoal da Century tem tentado prevenir discretamente os chefes políticos nos últimos tempos. O ano passado, o Chefe apresentou uma comunicação intitulada «Os Serviços Secretos nos Anos Noventa». Esclarece que a grande ameaça, após o termo da Guerra Fria, é a Proliferação.

O nosso amigo Saddam Hussein dispõe de matérial abundante dessa natureza.

É aí que reside o busílis. Calculamos que ele gastou cinquenta mil milhões de dólares nos últimos dez anos em armamento sofisticado. Daí ter chegado à bancarrota, pois deve quinze mil milhões ao Koweit e outros tantos aos sauditas,

e isto apenas de empréstimos durante a guerra Irão‑Iraque.

Invadiu o território koweitiano porque o governo local se negava a perdoar a dívida e facilitar‑lhe mais trinta milhões para equilibrar a economia interna. Ora, o pormenor menos tranquilizador no meio de tudo isto é que a terça parte desses cinquenta mil milhões, nada menos que dezassete mil, foi gasta com a aquisição de WMD ou de meios para as obter.

E o Ocidente acordou finalmente?

Com uma vingança. Há uma operação gigantesca em marcha. Langley recebeu instruções para percorrer o mundo, a fim de tentar determinar os governos que venderam esse tipo de matéria‑prima ao Iraque e verificar as licenças de exportação. Nós fazemos a mesma coisa.

Não deverá tardar muito, se esses governos colaborarem, como decerto acontecerá.

Não é tão fácil como pensa. Embora ainda seja cedo para traçar uma conclusão definitiva, parece não subsistirem dúvidas de que o genro de Saddam, Kamil, montou uma máquina de aquisição altamente eficiente. Centenas de pequenas empresas falsas espalhadas pela Europa e três Américas, que se dedicam aparentemente a actividades inocentes. No entanto,

 

V3) Weapons of mass destruction, (N. do T.

C24) Nuclear, bacteriological and chemical. (N. do T.)          

 

uma vez reunidos os produtos «inofensivos» de que se ocupam, obtém‑se um todo altamente preocupante.

‑           Sabemos que ele possui gás venenoso ‑assentiu Martin.‑Utilizou‑o contra os curdos e os iranianos em Fao. Fosgénio, gás mostarda. Mas constou‑nos que também existem agentes nervosos. Sem odor ou qualquer indício visível. Mortais

a curto prazo.

‑           Bem me parecia que você era um poço de informação.

Laing achava‑se ao corrente de tudo aquilo, mas também conhecia as vantagens da adulação.

‑           Há depois o antraz. Ele também se dedicou a expriências com isso e porventura com a epidemia pneumónica. Mas não se podem manipular essas coisas com luvas de cozinha. Há necessidade de equipamento químico especializado, que devia figurar nas licenças de exportação.

Inclinou a cabeça e emitiu um suspiro de frustração.

‑‑Sim, devia. Mas os investigadores já estão a contas com dois problemas. Uma muralha de ofuscação da parte de algumas companhias, sobretudo na Alemanha, e a questão do uso duplo. Alguém resolve expedir um carregamento de pesticida, e que há de mais inocente num país que tenta incrementar as suas produções agrícolas? Outra companhia de outro país envia um produto químico diferente, também um «pesticida». Por fim, um especialista junta‑os e... bingo. Surge um gás venenoso. Em seguida, ambos os fornecedores choramingam: «Não sabíamos de nada!»

A chave reside no equipamento da mistura química.

Estamos perante alta tecnologia. Não se podem juntar ingredientes desses numa banheira. Procurem as pessoas que abastecem essas fábricas básicas e aquelas que preparam os produtos.

Fábricas básicas?

Sim, unidades fabris construídas do zero por companhias estrangeiras contratadas. O novo proprietário limita‑se a receber a chave e entrar. Mas nada disto explica este nosso almoço. Vocês devem ter acesso a químicos e físicos. Eu só

estou ao corrente dessas coisas por interesse pessoal. Por que me escolheu?

Laing moveu a colher na xícara de café por um momento, consciente de que devia agir com prudência.

‑           Sim, dispomos de químicos e físicos. Peritos de todas as espécies. E decerto acabarão por chegar a conclusões úteis.

Depois, traduzi‑las‑emos em linguagem clara. Trabalhamos em colaboração total com Washington. Os americanos farão o mesmo e compararemos as nossas análises. Obteremos assim algumas respostas, mas não todas. Estamos convencidos de que você tem algo de diferente para oferecer. Daí o presente almoço. Como talvez não ignore, quase todas as nossas altas patentes pensam que os árabes não são capazes de montar um triciclo quanto mais inventá‑lo.

Compreendeu que acabava de tocar num nervo sensível. O psico‑retrato do Dr. Terry Martin que encomendara estava na iminência de demonstrar a sua utilidade. O académico corou e replicou:

‑           Aqui para nós, vou aos arames quando oiço os meus compatriotas insistirem em que os povos árabes não passam de condutores de camelos com toalhas de chá enroladas à cabeça. Sim, estou ao corrente dessa crença. Na realidade, eles construíam palácios, mesquitas, portos, auto‑estradas e sistemas de irrigação extremamente complexos, quando os nossos antepassados ainda percorriam a Terra envoltos em peles de urso. Movíamo‑nos sem rumo definido no limiar da História, quando eles já tinham governantes de valor e legisladores de notável discernimento.

Inclinou‑se para a frente e apontou a colher do café ao homem da Century na sua frente.

‑           Garanto‑lhe que os iraquianos contam com cientistas brilhantes e, como construtores, não têm comparação. Os seus arquitectos superam os de toda a sua área, e não excluo Israel.

Admito que muitos recebessem treino na União Soviética ou no Ocidente, mas absorveram os conhecimentos como esponjas e acrescentaram‑lhes muitos e valiosos elementos de sua autoria.

Fez uma pausa e Laing apressou‑se a voltar à carga.

Concordo inteiramente consigo. Apesar de a minha permanência na Divisão do Médio Oriente da Century datar somente de um ano, cheguei à mesma conclusão. Os iraquianos são um povo muito talentoso. No entanto, governa‑os um homem que já se dedicou ao genocídio. Todo o seu dinheiro e talento serão realmente utilizados para matar dezenas ou porventura centenas de milhares de pessoas? Saddam oferecerá a glória aos seus súbditos ou arrastá‑los‑á para uma carnificina indiscriminada?

Tem razão. O homem é uma aberração. Perverteu o nacionalismo do antigo Partido Baath em Nacional‑Socialismo, inspirado em Adolfo Hitler. Que pretendem de mim?

Laing reflectiu por um momento. Achava‑se demasiado perto de conseguir o que tinha em mente, para o perder com alguma imprudência.

‑           George Bush e a Dama de Ferro concordaram em que os nossos dois países criassem um corpo de investigação e analisasse toda a área das WMD de Saddam. Os investigadores fornecerão os factos à medida que os descobrirem e os peritos revelar‑nos‑ão o seu significado. Que possui ele concretamente? Com que grau de desenvolvimento? Em que quantidade? De que necessitamos para nos proteger disso, se eclodir a guerra? Máscaras de gás? Fatos espaciais? Seringas com antídotos?

Não percebo nada dessas coisas ‑argumentou Martin.

Mas percebe de algo que ignoramos. O funcionamento da mente árabe, de Saddam. Ele utilizará o que possui, endurecerá a sua posição no Koweit ou acabará por se retirar? Que métodos o obrigarão a renunciar? Levará a sua intenção até ao fim? O nosso pessoal não entende o conceito árabe do martírio.

Soltou uma gargalhada.

O Presidente Bush e todos os que o rodeiam actuarão em conformidade com os princípios pelos quais foram educados, que se baseiam na filosofia moral do cristianismo, apoiada pelo conceito de lógica greco‑romano. E Saddam reagirá com base na sua óptica de si mesmo.

Como árabe e muçulmano?

O islão não tem nada a ver com isso. Ele está‑se nas tintas para o hadith, ou ensinamentos codificados do Profeta.

Reza diante das câmaras, quando lhe convém. Não, temos de recuar a Nínive e à Assíria. Preocupa‑se pouco com quantos têm de morrer, desde que pense que pode vencer.

Não pode vencer contra a América. Ninguém pode.

Engana‑se. Emprega o termo «vencer» como qualquer inglês ou americano. Da mesma maneira que Bush, Scowcroft e os outros à sua volta. Saddam encara as coisas de um modo muito diferente. Se retirar do Koweit porque o rei Fatíd lhe

pagou, o que podia ter acontecido, se a conferência de Jeddàh se realizasse, vencerá com honra. Ser pago para renunciar aos seus desígnios considéra‑se aceitável. Fica a ganhar. Mas a América não o permitirá.

Nem pensar.

Mas se retirar sob ameaça, perde. Toda a Arábia o compreenderá. Perde e provavelmente morrerá. Por conseguinte, não recuará.

E se a máquina de guerra americana for lançada contra ele? Ficará reduzido a fragmentos irreconhecíveis.

Tem o seu bunker. O povo morrerá, mas isso carece de importância. Por outro lado, se lograr abalar a América, vencerá. Se a afectar com gravidade, cobrir‑se‑á de glória. Vivo ou morto. Vencerá.

Safa que o assunto é complicado‑grunhiu Lairsg, com um suspiro.

Nem por isso. Verifica‑se um salto profundo na filosofia moral, quando se cruza o Jordão. Permita‑me que repita a pergunta: que pretendem de mim?

A comissão está em formação. Precisamos que tente elucidar os nossos peritos sobre a questão dessas armas de destruição maciça. As peças de artilharia, tanques, aviões e quejandos ficam a cargo do Ministério da Defesa. Não constituem o fulcro do problema. São coisas que podemos destruir do ar. De momento, há duas comissões: uma em Washington e a outra em Londres. Com observadores ingleses na deles e americanos na nossa. Haverá pessoal do Ministério dos Assuntos Estrangeiros, Aídermaston e Porton Down. A Century tem dois locais. Vou enviar um colega, chefe da Secção do Iraque, Simon Paxman. Gostava que você lhe fizesse companhia, para verificar se existe algum aspecto da interpretação susceptível de nos passar despercebido por se tratar de uma faceta peculiarmente árabe. É o seu ponto forte, que lhe permite contribuir com eficiência.

Muito bem. Contribuirei com o que puder, que se poderá resumir a nada. Que nome tem a comissão? Quando se reúne?

‑‑Simon telefona‑lhe mais tarde, para fornecer esses e outros esclarecimentos. Na verdade, tem um nome muito apropriado Medusa.

O crepúsculo começava a envolver a base aérea Seymour Johnson, naquela tarde cálida de 10 de Agosto.

Os homens da Esquadrilha de Caças Táctica 334 que ainda não estavam operacionais com os F‑15E e os dos 335 TFS, os Chefes, que seguiriam para o Golfo em Dezembro, assistiam à azáfama à sua volta. Com a Esquadrilha 336, constituíam o Quarto Grupo de Caças Táctico da Força Aérea 9. Era a 336 que se preparava para partir.

Dois dias de actividade frenética chegavam finalmente ao seu termo ‑quarenta e oito horas de preparação dos aparelhos, planeamento da rota, escolha do equipamento, alojamento dos manuais secretos e do computador da esquadrilha, com todas as tácticas de combate armazenadas no seu banco de dados. A mudança de uma esquadrilha de aviões não é a mesma coisa que uma mudança de casa, que, mesmo assim, não causa pouco trabalho. Parece mais a transferência de uma pequena cidade.

Na pista, os vinte e quatro Eagle aguardavam em silêncio ‑feras temíveis à espera das pequenas criaturas da mesma espécie que as tinham concebido e construído, para comandar o seu poder imenso com pontas dos dedos insignificantes.

Encontravam‑se a postos para o longo voo em direcção à península arábica numa única tirada. Embora transportassem uma quantidade enorme e pesada de material, mais tarde, uma caravana aérea de Starlifterss e Galaxies levaria o resto, em que estaria incluído o equipamento electrónico e variadas máquinas para as oficinas de eventuais reparações.

Cada Strike Eagle, naquela tarde, representava quarenta e quatro milhões de dólares de caixas pretas, ligas de alumínio e fibra de carbono, computadores e peças hidráulicas, juntamente com algum trabalho de design inspirado. Embora este originasse de trinta anos atrás, o Eagle era um novo avião de caça.

À testa da delegação cívica da vila de Goldsboro, estava o governador da comunidade Hal K. Plonk, conhecido pela diplomacia hábil com que enfrentava os periódicos e exigentes, visitantes oficiais de Washington, o que lhe permitia levar a bom termo as suas pretensões. Naturalmente, obtinha uma, maioria de votos confortável nas sucessivas eleições regionais.

Ao lado do comandante de esquadrilha Hal Hornburg, a delegação cívica contemplava com orgulho os Eagles, os quais, rebocados por tractores, emergiam dos hangares e eram gradualmente ocupados pelos tripulantes. Assim que um aparelho se imobilizava no extremo da pista, o pessoal de manutenção apressava‑se a rodeá‑lo para as verificações usuais antes da partida.

‑Conhece aquela do general e a prostituta? ‑perguntou o governador ao oficial da Força Aérea a seu lado.

Por sorte, naquele momento Dom Walker ligou os motores, e o uivo dos dois turbojactos Pratt and Whitney F100‑PW‑22O abafou os pormenores das deploráveis experiências da mulher em causa às mãos do general.

Ao longo da pista até ao ponto de descolagem, havia grupos de guardas armados e da polícia da Força Aérea. Uns acenavam e outros perfilavam‑se,, enquanto os aparelhos desfilavam para lá.

Os Eagles aguardavam pacientemente ‑20 metros de comprimento, 6 de altura e 13 de largura, com o peso de 18000 quilogramas sem carga e 40 000 com a capacidade máxima de largada, como quase acontecia naquele momento. A descolagem seria uma operação prolongada.

Por fim, os aparelhos avançaram na pista e, cerca de dois quilómetros adiante, à velocidade de 185 nós, as rodas deixaram de contactar com o solo, após o que o trem de aterragem recolheu lentamente às entranhas do respectivo avião.

A esquadrilha não tardou a dispor‑se em formação ampla, cem aproximadamente mil e quinhentos metros entre as extremidades das asas dos diferentes aparelhos. Uma hora mais tarde, os pilotos avistaram as luzes de presença do primeiro «petroleiro» KC‑10.

Don Walker foi o primeiro a abastecer‑se, para o que, coadjuvado pelo co‑piloto, Tim, procedeu à manobra de abordagem, após o que o carburante se transferiu rapidamente até atingir o quantitativo desejado.

No final da operação colectiva, prosseguiram através da noite, que não foi longa, pois a esquadrilha deslocava^se em direcção a Nascente. Seis horas mais tarde, o Sol surgiu, quando sobrevoavam a costa de Espanha e se deslocavam tanto quanto possível a norte para evitar a Líbia. À medida que se acercavam do Egipto, parte das forças da Coligação, a 336 rumou a sueste, alcançou o espaço aéreo do Mar Vermelho e os tripulantes avistaram pela primeira vez a imensa extensão de areia chamada Deserto Arábico.

Depois de quinze horas no ar, cansados e rígidos, os quarenta e oito jovens americanos aterraram em Dhahran, na Arábia Saudita. Em seguida, na sequência de um intervalo de cerca de duas rumaram ao seu destino final: a base aérea de Thumrait, no sultanato de Omana.

Viveriam aí em condições que mais tarde recordariam com nostalgia ‑a mil e duzentos quilómetros da fronteira iraquiana e da zona de perigo, durante quatro meses, até meados de Dezembro. Tripulariam missões de treino sobre o interior de Omã, quando o equipamento de apoio chegasse, tomariam banho nas águas azuis do Oceano Índico e aguardariam o que Deus e Norman Echwarzkopf lhes reservasse.

Em Dezembro, internar‑se‑iam na Arábia Saudita e um deles, embora nunca viesse a sabê‑lo, alteraria o curso da guerra.

 

O aeroporto de Dhahran estava superlotado. Parecia a Mike Martin, ao chegar de Riade, que a maior parte dos habitantes da costa oriental queria sair dali. Situado no coração da longa fiada de campos petrolíferos que proporcionavam à Arábia Saudita a sua riqueza fabulosa, há muito que se acostumara à presença de americanos e europeus, ao contrário de Taíf, Riadie, Yenbo e outras cidades do reino.

Nem o próprio porto de Jeddah tinha o hábito de albergar tantos rostos anglo‑saxões nas suas ruas, mas, na segunda semana de Agosto, dir‑se‑ia na iminência de rebentar pelas costuras com a invasão.

Alguns tentavam abandonar a área e muitos tinham percorrido a estrada de carro até Bahrain, para embarcar aí num avião. Outros ainda acudiam ao aeroporto de Dhahran, na sua mataria esposas e famílias de indivíduos envolvidos na indústria petrolífera, com destino a Riade e ligação com um voo que os conduzisse ao país de origem.

Assim, o movimento nas pistas era virtualmente ininterrupto. O aparelho civil de Martin conseguira aterrar entre dois Galaxies C‑5.

Não se tratava da Tempestade no Deserto, campanha para libertar o Koweit, ainda a cinco meses de distância, mas apenas da Protecção do Deserto, destinada a dissuadir o exército iraniano, agora aumentado para catorze divisões dispostas ao longo da fronteira e de todo o Koweit, a partir do sul.

Para um observador vulgar postado no aeroporto de Dhahran, o cenário poderia resultar impressionante, porém uma observação mais atenta revelaria que a camada protectora tinha a espessura do papel. A artilharia e blindados americanos ainda não haviam chegado ‑as primeiras partidas pelo mar começavam a abandonar as águas dos Estados Unidos‑e o material transportado pelos Galaxies, Starlifters e Hércules não passavam de uma fracção da carga que um navio podia transportar.

Os Eagles estacionados em Dhahran, os Hornets dos Fuzileiros em Bahrain e os Tornados britânicos que acabavam de chegar a Dhahran e ainda não haviam praticamente arrefecido do longo percurso desde a Alemanha dispunham entre si de material suficiente para montar meia dúzia de missões antes de se esgotar.

Martin abriu caminho com o ombro através da multidão, com o saco que constituía a sua única bagagem sobre o ombro, e descortinou um rosto familiar do outro lado da sala das chegadas.

No seu primeiro curso de selecção para o SAS, quando lhe disseram que não tentariam treiná‑lo, mas matá‑lo, o objectivo quase fora atingido. Um dia, efectuara uma marcha de

cinquenta quilómetros nos Brecons, um dos terrenos mais

cruéis da Grã‑Bretanha, sob chuva glacial, com cinquenta quilogramas de equipamento na mochila. À semelhança dos companheiros, achava‑se exausto, encerrado num mundo hermético onde toda a existência representava um pesadelo de dor e desconforto e só a força de vontade sobrevivia.         

De súbito, avistou o belo e atraente camião. Significava o termo da marcha e, em termos de resistência humana, o final do percurso. Cem metros, oitenta, cinquenta, enquanto o martirizado corpo já antevia os prazeres de um largamente merecido repouso.

Havia um homem sentado na retaguarda do camião, com o olhar indiferente pousado no rosto amargurado que se acercava. Quando o taipal se encontrava a trinta centímetros dos dedos estendidos, a viatura pôs‑se subitamente em marcha, para desaparecer no horizonte. Esse homem era Sparky Low.

‑           Olá, Mike. Tenho muito gosto em voltar a ver‑te.

Um episódio daquela natureza não se esquecia nem perdoava com facilidade.

‑           Viva, Sparky. Como vai isso?

‑       Podia ir muito melhor, para ser franco.    ‑ Sparky conduziu o decrépito jipe de tracção dupla para fora do superlotado parque de estacionamento e, trinta minutos mais tarde, os dois homens deixavam Dhahran para trás e rumavam a norte. Khafji distava 320 quilómetros, um trajecto de três horas, mas depois de o porto de Jubail deslizar para a sua direita, eles ficaram com menos problemas de tráfego para resolver. Na verdade, a estrada achava‑se quase deserta, porquanto ninguém tinha vontade especial de visitar Khafji, pequena comunidade petrolífera na fronteira do Koweit, agora reduzida a uma vila fantasma.          

‑Continuam a chegar refugiados? ‑perguntou Martin.

Alguns, mas o maior afluxo já passou. Os que vêm pela estrada principal são sobretudo mulheres e crianças com passes.

Os iraquianos deixam‑nas seguir para se livrarem delas. Se eu dominasse o Koweit também quereria desembaraçar‑me dos expatriados. Chegam igualmente vários indianos, que eles parecem ignorar. Quanto a mim, fazem mal. Esses tipos dispõem de boas informações, e consegui convencer alguns a voltar para trás e levar mensagens aos nossos.

Arranjaram o que pedi?

‑Sim. O Gray deve ter puxado alguns cordelinhos. Chegou num camião, com dizeres de origens sauditas, ontem. Mandei‑o colocar no quarto vago. Esta noite, jantamos com aquele piloto da Força Aérea do Koweit de que te falei. Diz que tem contactos no interior do país, pessoas de confiança que podem ser‑nos úteis.

A vivenda requisitada por Sparky Low não era má, na opinião de Martin. Pertencia a um executivo petrolífero americano da Aramco, que o transferira para Dhahran.

Martin considerou prudente não perguntar a Sparky o que fazia naquele sector arborizado. Era óbvio que também fora pedido «emprestado» pela Century House e a sua tarefa parecia consistir em interceptar os refugiados que se infiltravam no sul e, se queriam falar, extrair‑lhes tudo o que haviam visto e ouvido.

Khafji estava virtualmente deserta, à parte no tocante à Guarda Nacional saudita, instalada em posições defensivas dentro e em redor da localidade. Mas havia alguns sauditas desconsolados que continuavam com as portas do seu negócio abertas, à espera de um eventual e improvável cliente. Assim, Martin pôde adquirir a roupa de que necessitava.

Ainda havia energia eléctrica, em meados de Agosto, o que implicava que o condicionamento de ar funcionava, assim como a bomba de água do poço e o termoacumulador. Ele podia tomar banho, se quisesse, todavia absteve‑se de o fazer.

Havia três dias que não se lavava, barbeava ou utilizava a escova de dentes. Se Mrs. Gray, sua anfitriã em Riade, se dera conta do mau odor crescente, como decerto acontecera, a educação esmerada que recebera impedira‑a de mencionar o facto. Como higiene dentária, Martin limitava‑se a utilizar um palito, no final das refeições. Sparky Low também não emitiu qualquer comentário, mas conhecia o motivo.

O oficial koweitiano era um jovem bem‑parecido de vinte e seis anos, indignado com o que fora feito à sua pátria e claramente apoiante da derrubada dinastia real de Al Sabah, agora alojado num hotel de luxo em Taif, como hóspede do rei Fahd, da Arábia Saudita.

Mostrou‑se algo perplexo ao verificar que, embora o seu anfitrião correspondesse ao que imaginara‑, um oficial britânico trajado civilmente‑, a terceira personagem à mesa, aparentemente árabe, usava um thob encardido, com um keffiyeh que lhe cobria mais de metade do rosto. Quando Low procedeu às apresentações, exclamou:

‑           É realmente inglês? ‑Depois de lhe ser explicado o motivo pelo qual Martin trajava daquele modo e ocultava parte da fisionomia, inclinou a cabeça. ‑Aceite as minhas desculpas, major. Compreendo perfeitamente.

Referia‑se à circunstância de o seu interlocutor considerar conveniente que não lhe visse o rosto, para eliminar a possibilidade de o descrever mais tarde, se fosse feito prisioneiro e torturado.

A sua história era simples. Fora chamado em casa, na tarde de 1 de Agosto, para se apresentar na base aérea de Ahmadi, onde se achava colocado. Ao longo da noite, ele e os outros oficiais escutaram as informações pela rádio da invasão do seu país pelo norte. Ao amanhecer, a sua esquadrilha de Skyhawks preparou‑se para a descolagem. Aquele tipo de avião, apesar de não obedecer aos requisitos mais modernos, ainda se podia revelar útil. Embora não pudesse enfrentar vitoriosamente os MIG 23, 25 ou 29 iraquianos ou os seus Mirage de origem francesa, até agora não se lhe deparara nenhum.

Encontrara os seus alvos nos subúrbios a norte da cidade do Koweit, pouco após a alvorada.

‑           Destruí‑lhes um dos tanques com os meus mísseis ‑ explicou, excitado. ‑Posso afirmá‑lo, porque o vi arder. Ainda neutralizei dois ou três camiões de apoio, até que fiquei sem munições e regressei à base. Mas quando sobrevoávamos Ahmadi, a torre de controlo indicou‑nos que seguíssemos para sul em direcção à fronteira e salvássemos os aparelhos. Tinha o depósito de carburante quase vazio no momento em que aterrei em Dhahran. Conseguimos levar para lá mais de sessenta: Skyhswks, Mirage e Hawks de treino. Além de helicópteros Gazelte, Puma e Super‑Puma. Agora combaterei a partir daqui e regressarei quando formos libertados. Pensam que o ataque principiará em breve?

Sparky Low exibiu um sorriso cauteloso, ante o entusiasmo do rapaz.

‑           É natural que ainda demore um pouco. Há que ter paciência. Existe um longo trabalho preparatório a efectuar. Fale‑nos do seu pai.

Segundo parecia, o progenitor do piloto era um comerciante extremamente abastado, amigo da família real e figura influente no território.

Colaborará com as forças invasoras?

Nunca! Pelo contrário, fará tudo ao seu alcance para acelerar a libertação. ‑O rapaz voltou‑se para o rosto parcialmente encoberto. ‑Se se encontrarem, pode confiar nele.

É possível que nos encontremos ‑admitiu Martin.

Importa‑se de lhe levar uma mensagem minha?

O piloto escreveu durante alguns minutos numa folha de papel, que entregou a Martin, o qual a queimou mo cinzeiro, depois de o outro se retirar. Não podia levar nada de comprometedor para a cidade do Koweit.

Na manhã seguinte, ele e Low colocaram o «equipamento» que pedira na retaguarda do jipe e seguiram de novo para o sul até Manifah, onde cortaram para oeste ao longo da estrada de Tapline, que se estendia perto da fronteira iraquiana, através da Arábia Saudita. Chamavam‑lhe Tapline, porque TAP eram as iniciais de Trans‑Arabian Pipeline.

Mais tarde, a estrada Tapline tornar‑se^ia a principal artéria de transporte dos maiores efectivos militares terrestres jamais vistos, quando 400000 americanos, 70000 ingleses, 10000 franceses, 200000 sauditas e outros soldados árabes se juntaram para a invasão do Iraque e Koweit pelo sul. Mas naquele dia apresentava‑se deserta.

Alguns quilómetros adiante, o jipe virou de novo a norte e tornou a aproximar‑se da fronteira da Arábia Saudita com o Koweit, mas num lugar diferente, mais para o interior. Perto da aldeia infestada de mascas de Hamatiyyat, do lado saudita, a fronteira situa‑se no ponto mais próximo da cidade do Koweit.

As fotografias dos reconhecimentos por via aérea efectuadas por Gray em Riade mostravam que o grosso das forças armadas iraquianas se concentrava acima da fronteira, mas perto da costa. Quanto mais para o interior uma pessoa ia, menor o número de postos de vigilância das tropas do Iraque. Agrupavam‑se entre a encruzilhada de Nuwaisib na costa e o posto fronteiriço de Al‑Wafra, 60 quilómetros para o interior.

A aldeia de Hamatiiyyat situa‑se a 50 quilómetros da orla do deserto. Os camelos que Martin pedira aguardavam‑nos numa pequena herdade dos subúrbios ‑uma fêmea e respectivo rebento.

‑           Para que é a «criança»? ‑perguntou Low, enquanto se conservavam sentados no jipe e observavam os animais no curral.

‑Para efeitos de «cobertura». Se alguém me interrogar, digo que a levo às herdades de camelos de Sulaibiya, para vender. Lá, os preços são melhores.

Martin desceu do jipe e foi acordar o condutor de camelos que dormitava à sombra da sua barraca. Os dois homens conservaram‑se de cócoras durante trinta minutos, para discutir o preço dos animais. Nunca passou pela cabeça do árabe que não falava com um beduíno endinheirado interessado em adquirir dois bons camelos.

Concluído o negócio, Martin pagou o preço ajustado e levou os dois animais para um local, a cerca de dois quilómetros de distância, onde se achavam a coberto de olhares indiscretos pelas dunas. Low reuniu‑se‑lhe no jipe.

Este último mantivera‑se a um par de centenas de metros do curral e entretivera‑se a observar os acontecimentos. Embora conhecesse bem a península árabe, nunca trabalhara com Martin e achava‑se impressionado. O homem não se limitava a fingir que era árabe. A partir do momento que se apeou do jipe, converteu‑se num autêntico beduíno.

Se bem que ele o ignorasse, no dia anterior, no Koweit, dois engenheiros britânicos, ansiosos por abandonar a região, emergiram do seu apartamento trajados como autênticos kowei‑tianos. Haviam percorrido metade da distância que os separava do seu carro, quando uma criança gritou: «Por muito que se vistam como árabes, andam como ingleses.» Os engenheiros voltaram para o apartamento, de onde não tornaram a sair.

Transpirando abundantemente ao sol, mas fora do campo visual de algum eventual curioso, os dois homens do SÁS transferiram o «equipamento» para as cestas de bagagem que pendiam de cada lado da camela, a qual se encontrava agachada e protestava com o peso suplementar através de uma espécie de grunhido prolongado.

Os 100 quilogramas de explosivo Semtex‑H foram acondicionados numa das cestas, cada bloco de três quilogramas envolto em pano, com alguns grãos de café por cima, a fim de tranquilizar um soldado iraquiano que insistisse em espreitar. Na outra, deram entrada as metralhadoras‑ligeiras, munições, detonadores e granadas, juntamente com o pequeno, mas potente, emissor‑receptor de Martin, o qual tinha incorporado o prato de uma antena parabólica e pilhas de cádmio‑níquel sobresselentes. Mais uma vez, uma quantidade apropriada de grãos de café cobria o conteúdo.

Quando terminaram, Low perguntou:

Há mais alguma coisa que eu possa fazer?

Não, é tudo, obrigado. Ficarei aqui até ao pôr‑do‑Sol.

Escusas de esperar.

Lamento aquilo dos Brecons ‑proferiu, estendendo a mão.

‑‑Isso já lá vai. ‑Martin apertou‑a. ‑Sobrevivi.

‑Sim, é o que todos nós fazemos. Sobreviver. Continua com sorte, Mike.

Quando ficou só, este último encostou‑se à sela do camelo, puxou o keffíyeh para o rosto e entregou‑se a reflexões sobre os dias que se avizinhavam. O deserto não constituiria um problema,, mas a confusão que decerto reinava na cidade do Koweit talvez representasse um obstáculo. Até que ponto estariam apertados os controlos e as barreiras nas estradas? Qual o grau de astúcia dos soldados que os guarneciam? A Century oferecera‑se para tentar obter‑lhe documentos falsos, porém ele discordara. Os iraquianos podiam ter modificado os requisitos para comprovação da identidade.

Estava convencido de que o disfarce que escolhera era dos melhores no mundo árabe. Os beduínos circulam à sua vontade. Não oferecem qualquer resistência a exércitos invasores, porque assistiram à presença de muitos ao longo dos tempos: sarracenos e turcos, cruzados e templários, alemães e franceses, ingleses e egípcios, israelitas e iraquianos. E sobreviveram a todos, porque se alhearam propositadamente dos assuntos de natureza política e militar.

Muitos regimes tentaram subjugá‑los, sem êxito. O rei Fahd, da Arábia Saudita, decretou que todos os cidadãos deviam ter uma casa e mandou construir uma pequena povoação chamada Escan, equipada com todos os requisitos modernos ‑piscinas, casas de banho e água corrente em toda a parte. Alguns beduínos deixaram‑se atrair pelas inovações e instalaram‑se lá. No entanto, após um período mais ou menos breve de permanência, retiraram‑se, depois de explicar polidamente ao monarca que preferiam dormir sob as estrelas. Escan foi aproveitada pelos americanos durante a crise do Golfo.

Martin também sabia que o problema mais agudo consistia na sua altura. Tinha um metro e setenta e cinco e quase todos os beduínos eram muito mais baixos.

A ausência de documentos de identificação não o apoquentava, pois vários governos tinham tentado, em vão, obrigar os beduínos a possuí‑los, e acabado por se preocupar unicamente com providências para evitar que causassem distúrbios. Por conseguinte, nunca lhes passaria pela cabeça envolverem‑se em qualquer movimento de resistência koweitiano. Martin sabia‑o perfeitamente e acalentava a esperança de que os iraquianos também estivessem conscientes disso.

Passou pelo sono até ao pôr‑do‑Sol e subiu para a sela da camela, que, não sem porfiada insistência dele, terminou por se pôr em marcha, com o filhote na peugada. Os animais tinham sido bem alimentados no curral, pelo que não se cansariam durante dias.

Martin encontrava‑se a noroeste do posto da polícia de Ruqaifah, onde passa uma estrada rudimentar do Koweit para a Arábia Saudita, quando cruzou a fronteira, pouco antes das oito. A noite, à parte o brilho ténue das estrelas, podia considerar‑se escura. O clarão distante do campo petrolífero de Ma‑nageesh, no Koweit, situava‑se à sua direita e decerto contava com uma patrulha iraquiana, porém o deserto em frente achava‑se vazio.

Segundo o mapa, as herdades de camelos a sul de Sulai‑biya, distrito que precedia a cidade do Koweit, onde ele tencionava deixar os animais até que voltasse a necessitar deles, distavam 50 quilómetros. Antes, porém, enterraria o «equipamento» no deserto e marcaria o local.

A menos que fosse interceptado e retido, fá‑lo‑ia na escuridão, antes do nascer‑do‑Sol, dentro de nove horas. A décima hora conduzi‑lo‑ia às herdades dos camelos.

Quando o campo petrolífero de Manageesh ficou para trás, passou a orientar‑se pela bússola de pulso segundo uma linha recta. Calculava que os iraquianos patrulhariam as estradas, e até os caminhos solitários, mas nunca o deserto. Com efeito, nenhum refugiado tentaria escapar‑se por aí.

Martin sabia que, uma vez nas herdades dos camelos, ao amanhecer, poderia saltar para bordo de um camião que se dirigisse para o coração da cidade, 30 quilómetros adiante.

Sobre a sua cabeça, silencioso no céu nocturno, um satélite KH‑11 do National Reconnaissance Office cruzava o espaço silenciosamente. Anos atrás, outras gerações de satélites‑‑espiões americanos tinham de tirar fotografias e ejectar as cápsulas a intervalos em veículos de reentrada na atmosfera terrestre, para serem laboriosamente recuperadas, a fim de revelar a película.

Os KH‑11, de 20 metros de comprimento e o peso de 15000 quilogramas, são mais «espertos». À medida que vão fotografando a superfície do Globo que sobrevoam, codificam automaticamente as imagens numa série de impulsos electrónicos, expedidos para cima, em direcção a outro satélite.

Este último, à semelhança de vários outros, faz parte de uma rede posicionada em órbita geossincronizada, o que significa que se deslocam no espaço a uma velocidade e rumo que os mantém sempre sobre o mesmo ponto da Terra. Na realidade, pode dizer‑se que pairam.

Depois de receber as imagens do KH‑11, o satélite paira‑dor pode enviá‑las directamente para a América ou, se a curvatura da Terra se interpõe, expeli‑las para outra «ave» paira‑dora, que as faz então seguir para os americanos interessados.

Deste modo, o NRO pode recolher a informação fotográfica escassos segundos depois de as imagens terem sido obtidas.

As vantagens, em termos de guerra, são enormes. Significam que o KH‑11 pode ver, por exemplo, um comboio inimigo em movimento a tempo de enviar uma esquadrilha de bombardeiros para pulverizar os camiões. E o satélite pode funcionar com a mesma eficiência dia e noite, através de céu encoberto ou de denso nevoeiro.

Emprega‑se com frequência a expressão «não lhe escapa nada». Infelizmente, não corresponde inteiramente à realidade. O KH‑11 daquela noite não viu o beduíno solitário penetrar em território proibido nem se apoquentaria com isso, em caso contrário. Deslocava‑se dos céus do Koweit para os do Iraque e via muitos edifícios, grandes e extensões de minicidades industriais, em torno de Al‑Hillah e Tarmiya, Al‑Atheer e Tuwaitha, mas não o que havia dentro. Assim, passavam‑lhe despercebidas as tinas de gás venenoso em preparação ou o hexafluoreto de urânio destinado às centrifugadoras de difusão de gás da fábrica de separação de isótopos.

Prosseguiu para norte, captando os aeródromos, estradas e pontes. Até se apercebeu do cemitério de carros em Al‑Qubai, mas não lhe prestou atenção especial. Assim como os centros industriais de Al‑Quaim, Jazira e Al‑Shirqat, a oeste e norte de Bagdade, mas não os dispositivos de mortes em massa que estavam a ser preparados no interior. Sobrevoou o Jebei AI Hamreen, sem todavia ver a fortaleza que fora construída pelo engenheiro Osman Badri. Só se apercebeu de um monte entre outros e aldeias de montanha. Em seguida, passou sobre o Cur‑distão, em direcção à Turquia.

Mike Martin continuava a avançar através da noite a caminho da cidade do Koweit, invisível numa indumentária que não usava havia quase duas semanas. Sorriu ao recordar o momento em que, quando regressava ao seu Land‑Rover de um passeio para desentorpecer as pernas no deserto nas proximidades de Abu Dhabi, ficara surpreendido ao ser interceptado por uma turista americana que lhe apontara a máquina fotográfica e gritara «Clique, dique!»

Ficara assente que a Comissão Medusa se reuniria para a sua conferência preliminar numa sala por baixo do Gabinete do Conselho de Ministros, em Whitehall. O principal motivo consistia em que o edifício oferecia segurança absoluta, pois era inspeccionado com regularidade, em busca de dispositivos de escuta.

O local para o qual os oito convidados foram conduzidos situava‑se dois pisos abaixo do nível da rua. Sir Paul Spruce, um burocrata experiente com a patente de Subsecretário Permanente do Gabinete, assumiu a presidência, após o que se apresentou e os outros entre si. A embaixada americana e, por conseguinte, os Estados Unidos, estavam representados pelo adido assistente da Defesa e Harry Sinclair, membro astuto e calejado de Langley, que dirigira o posto da CIA em Londres nos últimos três anos.

O americano inclinou a cabeça e piscou o olho a Simon Paxman, com quem se encontrara uma vez numa reunião da Comissão dos Serviços Secretos Conjuntos, em que a CIA tinha assento permanente em Londres. A sua tarefa consistia em anotar tudo o que se revestisse de interesse apresentado pelos cientistas britânicos e transmiti‑lo a Washington, onde o ramo americano da Comissão Medusa, consideravelmente mais numeroso, se achava também reunido. Em seguida, toda a nova informação seria compilada e comparada para analisar o potencial do Iraque para causar baixas importantes.

Havia dois representantes de Aldermaston, Estabelecimento de Pesquisas de Armas Atómicas, em Berkshire, cuja missão consistia em determinar, perante os elementos, recolhidos pelos diferentes serviços da especialidade, o grau de avanço do Iraque no âmbito do domínio da tecnologia para produzir uma bomba atómica.

Encontravam‑se presentes mais dois cientistas, estes de Porton Down‑um químico e um biólogo especializado em bacteriologia.

Porton Down foi acusado frequentemente pela Imprensa da esquerda de trabalhar no desenvolvimento de armas químicas e bacteriológicas para utilização da Grã‑Bretanha. Na realidade, as suas pesquisas têm-se concentrado, desde longa data, na busca de antídotos para todo o tipo de armas de gás e germes apontadas a tropas inglesas e aliadas. Infelizmente, é impossível desenvolver antídotos sem conhecer as propriedades da toxina em causa. Por conseguinte, os dois representantes de Porton tinham sob a sua égide, e em condições de segurança maciça, algumas substâncias assaz perigosas. Mas o mesmo acontecia, naquela data ‑13 de Agosto‑, a Saddam Hussein. A diferença consistia em que a Grã‑Bretanha não tinha a menor tenção de as utilizar contra os iraquianos, enquanto nada fazia prever que o presidente do Iraque se viesse a revelar tão prudente.

A tarefa dos homens de Porton cifrar‑se‑ia em verificar se, com o estudo das listas de produtos químicos adquiridos pelo Iraque nos últimos anos, podiam deduzir o que possuía, em que quantidade, grau de nocividade e possibilidade de utilização. Também examinariam fotografias aéreas de uma série de fábricas daquele país, à procura de indícios reveladores da existência de unidades de descontaminação ou de natureza similar, susceptíveis de identificar centros de fabricação de algum gás venenoso.

‑           O fardo mais pesado está depositado sobre os vossos ombros ‑disse Sir Paul, dirigindo‑se aos quatro cientistas.‑ Nós, os restantes, prestar‑lhes‑emos todo o apoio possível.

Tenho aqui dois volumes da informação secreta recebida dos nossos agentes no estrangeiro: pessoal das embaixadas, missões comerciais e... hum... pessoas que actuam na sombra.

Trata‑se dos primeiros resultados da selecção das licenças de exportação para o Iraque na última década, provenientes de governos que manifestam apoio absoluto e incondicional às nossas intenções. Lançámos a rede numa área extremamente

ampla. Faz‑se alusão à exportação de produtos químicos, materiais de construção, equipamento de laboratório, produtos de engenharia especializada; em suma, praticamente tudo, excepto guarda‑chuvas, novelos de lã e brinquedos.

«Algumas dessas exportações, porventura a maioria, revelar‑se‑ão sem dúvida as normais de um país árabe em vias de desenvolvimento para fins pacíficos, e peço desde já desculpa pelo tempo que perderão com essas. Mas agradeço que se concentrem não só em aquisições especializadas para a produção maciça, como igualmente nas de utilização múltipla que se possam adaptar ou modificar para um objectivo diferente do proclamado. Creio que os nossos colegas americanos tão‑pouco se têm mantido inactivos.»

Entregou uma das suas pastas de plástico aos homens de Porton Down e outra aos de Aldermaston. O representante da CIA pegou também em duas e deu‑lhes idêntico destino. Os visados contemplaram com alguma perplexidade o trabalho em perspectiva que tinham em frente.

‑           Tentámos evitar as duplicações, tanto nós como os americanos‑acrescentou Sir Paul. ‑Mas, deploravelmente, é natural que não o conseguíssemos por completo. As minhas desculpas antecipadas. Tenha a bondade, Mr. Sinclair.

O chefe de posto da CIA, ao contrário do funcionário público de Whitehall, que quase conseguira adormecer os cientistas com a sua verborreia, entrou directamente no assunto.

‑           A verdade, meus senhores, é que talvez tenhamos de combater contra esses filhos da mãe. ‑Assim era muito melhor. Sinclair expremia‑se como os ingleses gostavam de conceber os americanos: sem rodeios nem medo de chamar as coisas pelos seus nomes. Graças a isso, quatro cientistas concederam‑lhe atenção absoluta. ‑Se esse dia surgir, avançaremos primeiro com a força aérea. À semelhança dos ingleses, desejamos sofrer o mínimo de baixas. Nessa conformidade, concentrar‑nos‑emos na infantaria, artilharia e aviação do inimigo. Visaremos de preferência os silos de mísseis SAM, elos de comunicações e centros de comando. Mas se Saddam utilizar armamento de destruição maciça, haverá perdas humanas elevadíssimas. Por conseguinte, precisamos de saber duas coisas.

«Em primeiro lugar, que possui ele? Depois, poderemos fazer planos em termos de máscaras de gás, antídotos químicos, etc. Em segundo, onde raio escondeu esse equipamento? Poderemos então bombardear as fábricas e armazéns, para destruir tudo antes que decida pô‑lo em prática. Portanto, estudem as fotografias, recorram a lupas potentes, prestem especial atenção a todos os pormenores suspeitos. Continuaremos a procurar e interrogar os empreiteiros que construíram as fábricas e os cientistas que as equiparam. Com essas diligências, deveremos apurar elementos úteis. No entanto, subsiste a possibilidade de os iraquianos terem transferido o mais importante para outros lugares. Em face disso, os analistas terão a última palavra. Podem contribuir para salvar muitas vidas, identifiquem as WMD e avançaremos para reduzir tudo a fragmentos irreconhecíveis.»

A perplexidade dos quatro cientistas acentuou‑se visivelmente. Tinham uma missão a cumprir e estavam bem cientes da sua natureza. Por seu turno, Sir Paul parecia algo chocado.

‑           Pois é... Bem, creio poder afirmar que estamos todos muito gratos a Mr. Sinclair pela sua... hum... exposição. Proponho que voltemos a reunir‑nos quando Aldermaston ou Porton Down tiver algo de interessante para comunicar.

Quando abandonaram o edifício, Simon Paxman e Terry Martin imergiram no sol quente de Agosto e seguiram a pé em direcção à Parliament Square, repleta de transportes de turistas, como habitualmente. Encontraram um banco desocupado perto do bloco de mármore de homenagem a Winston Churchill, que cravava o olhar austero nos simples mortais que acudiam à sua volta.

Já sabe as últimas de Bagdade?‑perguntou Paxman.

Com certeza.

Saddam Hussein acabava de se oferecer para retirar do Koweit, se Israel abandonasse a margem ocidental e os sírios saíssem do Líbano. Todavia, as Nações Unidas tinham rejeitado a proposta imediatamente. Continuavam a brotar resoluções do Conselho de Segurança, para isolar o comércio do Iraque e congelar as exportações de petróleo, movimento de divisas, viagens aéreas e obtenção de quaisquer recursos. Entretanto, a destruição sistemática do Koweit pelas tropas invasoras prosseguia.

Obteve algum efeito?

Não, apenas a agitação habitual. Previsível, aliás. A OLP gostou, claro, mas nada mais. Não se trata de um plano de caça.

Ele tem algum? ‑inquiriu Paxman.‑Em caso afirmativo, ninguém consegue entendê‑lo. Os americanos julgam‑no louco.     

Eu sei. Ouvi o Bush na TV, ontem à noite.       

Acha‑o louco? O Saddam?

Como uma raposa.

Então, por que não segue para sul e ocupa os campos petrolíferos dos sauditas enquanto pode? Os preparativos dos americanos encontram‑se nas primeiras letras e os nossos também. Algumas esquadrilhas e transportes de tropas no Golfo, mas nada em terra. O poder aéreo só por si não basta para deter o homem. Esse general que os americanos acabam de nomear...

Schwarzkopf ‑esclareceu Martin. ‑Norman Schwarz‑ kopf.

Isso. Reconhece que precisa de dois meses para reunir os efectivos e proceder a uma invasão em larga escala. Por que não atacar já?

Porque isso significaria atacar um estado árabe vizinho com o qual ele não tem qualquer desentendimento. Provocaria humilhação. Alienaria todos os árabes. É contra a cultura.

O homem quer dominar o mundo árabe. Ser aclamado por ele e não abominado.

Invadiu o Koweit‑salientou Paxman.

Isso é diferente. Pode alegar que corrigia uma injustiça imperialista, porque o território koweitiano fez sempre, historicamente, parte do Iraque. Como Nehru, quando invadiu Goa, administrada pelos portugueses.

Ora, ora! O tipo invadiu o Koweit porque tem o país na bancarrota. Toda a gente o sabe.         

Sim, a verdadeira razão é essa. Mas a aparente consiste em que reclamava um território que, por direito, lhe pertencia.

São coisas que estão constantemente a acontecer pelo mundo fora. A índia tomou Goa, a China o Tibete, a Indonésia Timor‑Leste. A Argentina tentou fazer o mesmo com as Falkland. Em todos os casos, é reclamada uma parcela de território a que se tem direito.

Então, como se explica que os outros países árabes se insurgissem?

Pensam que Saddam não se safará.

E não há‑de safar mesmo. Nesse ponto, têm razão.

Somente por causa dos Estados Unidos e não da atitude do mundo árabe. Se ele quer conquistar a aprovação deste último, precisa de humilhar a América e não os seus Vizinhos árabes. Já esteve em Bagdade?

?‑Recentemente, não ‑admitiu Paxman.

Está cheio de fotografias e cartazes de Saddam representado como guerreiro do deserto, a cavalo, de espada desembainhada. É tudo fogo de vista, sem dúvida, mas ele encara‑se assim.

É tudo muito teórico ‑observou, levantando‑se. –Mas obrigado pelas suas considerações. Infelizmente, tenho de lidar com factos reais, palpáveis. De qualquer modo, ninguém consegue descortinar como o homem poderia humilhar os Estados Unidos. Os ianques possuem todo o poder, toda a tecnologia.

Quando estiverem devidamente preparados, entrarão em cena para o arrasar.

‑‑Baixas, Simon. A América pode suportar muitas coisas, mas não baixas maciças, ao contrário do Saddam. Para ele, carecem de importância.

Mas ainda não há lá americanos em número suficiente.

Precisamente.

O Rolls‑Royce que transportava Ahmed Al‑Kalifa deteve‑se quase abruptamente diante do bloco de escritórios que se anunciava em inglês e arábico como sede da Al‑Khalifa Trading Corporation, Ltd.

O condutor, um indivíduo de porte atlético, que acumulava as funções de motorista com as de guarda‑costas, abandonou o lugar atrás do volante e apressou‑se a abrir a porta ao amo.

Talvez não fosse muito sensato trazer o Rolls, porém o milionário koweitiano ignorara as recomendações para utilizar o Volvo, com receio de ofender os soldados iraquianos que se encontravam nas barreiras erguidas nas estradas.

«Que apodreçam no inferno», resmungou durante o pequeno‑‑almoço. Na verdade, a viagem decorrera sem qualquer incidente, da sua sumptuosa residência rodeada de muros inexpugnáveis no subúrbio de Andalus até ao bloco de escritórios em Shamiya.

Dez dias após a invasão, os soldados disciplinados e profissionais da Guarda Republicana iraquiana tinham sido retirados da cidade do Koweit e substituídos pelos rufias do exército popular. E se ele detestava os primeiros, só sentia desdém pelos segundos.

Nos primeiros dias, os homens da guarda haviam saqueado a cidade, mas sistemática e deliberadamente. Al‑Khalifa vira‑os entrar no Banco Nacional e apoderar‑se de barras de ouro no valor de cinco mil milhões de dólares, que constituíam a reserva nacional. Mas não se tratava de pilhar para lucro pessoal. As barras de ouro tinham sido acondicionadas em contentores, colocados em camiões blindados e levadas para Bagdade.

O Gold Souk proporcionara mais mil milhões de dólares em artefactos de ouro maciço, que haviam seguido o mesmo caminho.

As barreiras nas estradas montadas pelos homens da Guarda Republicana, identificáveis pelas boinas pretas e fardamento de oficial, tinham sido rigorosas e profissionais. Até que, de repente, se haviam transferido mais para sul, a fim de tomarem posições ao longo da fronteira com a Arábia Saudita.

Para os substituir, surgira o exército popular, composto por indivíduos quase andrajosos e indisciplinados e, por isso mesmo, mais imprevisíveis e perigosos, facto testemunhado pelo assassínio de um koweitiano por se recusar a entregar o seu carro.       

Em meados de Agosto, o calor abateu‑se na área ‑com a impetuosidade de um martelo numa bigorna. Os soldados iraquianos construíram protecções de madeira ao longo das ruas que deviam vigiar e refugiaram‑se dentro. Quando refrescava,

ao amanhecer e depois do pôr‑do‑Sol, saíam para tentar provar que eram, acima de tudo, militares zelosos. Nessas ocasiões, brutalizavam os transeuntes e procediam a saques indiscriminados, com o pretexto de revistar viaturas em busca de‑contrabando.        

AlKhaifa gostava de começar a trabalhar às sete da manhã, mas, como só o fazia às dez, nos dias de calor intenso, passara pelos postos controlados pelos homens do exército popular, quando estes se encontravam nos refúgios, pelo que ninguém o interceptara.

No entanto, compreendia que a situação não se manteria por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, um rufia das hostes invasoras apoderar‑se‑iam do Rolls. Paciência, compraria outro.

Por conseguinte, apeou‑se diante do bloco de escritórios e o motorista contornou o carro para regressar ao volante e levá‑lo para o parque de estacionamento da empresa.

‑Uma esmola, sayidi! Há três dias que não como nada.

Al‑Khalifa reparara vagamente no homem agachado no passeio, nas proximidades da porta, aparentemente adormecido ao sol, cenário muito corrente em qualquer cidade do Médio Oriente. Agora, encontrava‑se junto dele ‑um beduíno de indumentária encardida e mão estendida.

O condutor do Rolls apercebeu‑se do que se passava e retrocedeu para afastar o mendigo com uma fiada de imprecações. Todavia, Al‑Khalifa ergueu a mão. Era muçulmano praticante e procurava reger‑se pelos ensinamentos do Corão, entre os quais figura o de que uma pessoa deve dar sempre esmola na medida das suas posses.

‑Vai arrumar o carro ‑ordenou ao condutor.

Em seguida, puxou da carteira e extraiu uma nota de dez dinares. Acto contínuo, o beduíno aceitou‑a com as duas mãos, indicando que a esmola do benfeitor era tão pesada que exigia a utilização de ambas para a segurar.

‑           Shukran, sayidi, shukran‑proferiu e, sem alterar o tom da voz, acrescentou: ‑Quando estiver no seu gabinete, mande chamar‑me. Trago notícias do seu filho no sul.

Al‑Khalifa julgou que tinha ouvido mal, enquanto o homem se afastava e guardava a nota no bolso. Por fim, entrou no edifício, saudou o porteiro com uma inclinação de cabeça e subiu ao último piso onde se situava o seu gabinete, imerso numa espécie de aturdimento. Depois de se sentar à secretária, reflectiu por um momento e premiu uma tecla do intercomunicador.

‑           Está um beduíno no passeio. Quero falar com ele.

Mande‑o buscar, por favor.

Se a recepcionista supôs que o patrão enlouquecera, não o deixou transparecer. Somente o nariz franzido, quando introduziu o homem no gabinete, cinco minutos mais tarde, indicava o que pensava acerca do odor corporal do estranho visitante.

Quando ela se retirou, o empresário gesticulou para uma cadeira.

Disse que viu o meu filho? ‑perguntou secamente, admitindo a possibilidade de o indivíduo se encontrar ali para obter uma nota de banco de valor ainda mais elevado.

Exacto, Mr. Al‑Khalifa. Estive com ele há dois dias, em Khafji.

O coração do koweitiano sofreu um sobressalto. Havia duas semanas que não tinha notícias do filho. Apenas soubera, indirectamente, que descolara, naquela manhã, da base aérea de Ahmadi, e depois... nada. Nenhum dos seus contactos habituais pudera fornecer‑lhe qualquer informação útil sobre o que acontecera. Na verdade, registara‑se confusão generalizada, no dia 2 de Agosto.

É portador de uma mensagem dele?

Sim, Sayidi.

Entregue‑ma, por favor. ‑Al‑Khalifa estendeu a mão.‑ Recompensá‑lo‑ei bem.

Tenho‑a na cabeça. Como não podia trazer qualquer papel comigo, memorizei‑a.

‑           Muito bem. Diga‑me o que ele lhe pediu para comunicar.

Mike Martin recitou a carta de uma única página que o piloto do Skyhawk escrevera, sem omitir uma palavra.

‑           Querido pai, apesar do seu aspecto, o homem que tem na sua frente é um oficial britânico...

AlKhalifa agitou‑se na cadeira e arregalou os olhos de incredulidade, experimentando alguma dificuldade em acreditar no que via e ouvia.

‑           Veio ao Koweit em missão secreta. Agora que ficou a sabê‑lo, tem a vida dele nas suas mãos. Aconselho‑o a aceder ao que lhe pedir. Estou em segurança e bem, com a Força Aérea Saudita em Dhahran. Consegui participar numa missão

contra os iraquianos e destruí um tanque e um camião. Continuarei a prestar serviço nesta unidade até à libertação da nossa pátria. Rogo todos os dias a Alá que abrevie a data em que poderemos voltar a estar juntos. Seu filho sempre

obediente e fervoroso, Khaled.

Martin fez uma pausa. O koweitiano levantou‑se, aproximou‑se da janela e olhou para fora. Respirou fundo várias vezes e quando se recompôs o suficiente regressou à cadeira.

Obrigado. Estou‑lhe infinitamente grato. Que pretende?

A ocupação do Koweit não durará algumas horas ou dias, mas meses, a menos que Saddam Hussein possa ser convencido a retirar‑se...

Os americanos não virão em breve?

Eles, os ingleses, os franceses e as restantes forças armadas da Coligação precisam de tempo para reunir os seus efectivos. Saddam possui o quarto maior exército do mundo: mais de um milhão de homens. Alguns são mera escória, mas

muitos sabem o que fazem. As tropas de ocupação não serão desalojadas por um punhado de soldados.

‑Sim, compreendo.

Para já, pensa‑se que todos os militares, tanques e armas susceptíveis de serem neutralizados não poderão utilizar‑se na fronteira...

Está a falar de resistência armada, retaliação. Aqueles que o tentaram foram abatidos pelas patrulhas iraquianas.

Eliminados como cães.

Acredito. Eram corajosos, mas imprudentes. Há maneiras apropriadas de actuar. O objectivo não consiste em matar centenas ou ser morto, mas em manter o exército de ocupação constantemente enervado, com medo, necessitado de escoltar cada oficial aonde quer que se desloque, sem conseguir dormir descansado.

‑Escute, senhor inglês. Acredito que esteja animado de boas intenções e acostumado a estas situações. Mas eu não. Os iraquianos são um povo cruel e selvagem. Conhecemo‑los desde longa data. Se procedermos como indica, haverá represálias.

É como a violação.

A violação?

Quando está na iminência de ser violada, uma mulher pode resistir ou sucumbir. Se for dócil, será violada, provavelmente espancada e talvez morta. Se resistir, será igualmente violada, sem dúvida espancada e porventura morta.

O Koweit é a mulher e o Iraque o violador. Isso já eu sabia. Por conseguinte, para quê resistir?

Porque temos de pensar no futuro. Amanhã, o Koweit olhar‑se‑á ao espelho. O seu filho verá o rosto de um guerreiro.

Ashmed Al‑Khalifa cravou o olhar no rosto bronzeado e barbudo do inglês durante alguns segundos, até que declarou:

E o pai dele também. Que Alá se compadeça do nosso povo. Que pretende? Dinheiro?

Não, obrigado. Isso já eu tenho.

Com efeito, Martin dispunha de 10000 dinares, obtidos através do embaixador em Londres, que os levantara do Banco do Koweit, na esquina da Baker Street com a George Street.

Preciso de casas para me alojar. Seis.

Não haverá qualquer problema a esse respeito. Temos milhares de apartamentos abandonados e...

Apartamentos, não. Vivendas isoladas. Os apartamentos têm vizinhos. Ninguém se lembrará de investigar os antecedentes de um pobre homem encarregado de cuidar de uma vivenda abandonada.

Procurá‑las‑ei.

‑E documentos de identidade. Koweitianos autênticos. Um total de três. Um para um médico do Koweit, outro,para um contabilista indiano e o terceiro para um jardineiro de fora da cidade.

Muito bem. Tenho amigos no Ministério do Interior.

Creio que ainda controlam a tipografia que produz esse tipo de documentação. E quanto à fotografia de que necessitam?

Para o jardineiro, procure um velho das ruas. Pague‑lhe.

Nos casos do médico e do contabilista, escolha alguém do seu pessoal vagamente parecido comigo, mas de rosto escanhoado. Depois, preciso de carros. Um de comando branco, um jipe de tracção dupla e uma carrinha tipo bate‑latas. Todos em garagens trancadas e com chapas de matrícula novas.

‑Conte com eles. Onde irá buscar os documentos de identidade e as chaves das casas e das garagens?

Conhece o cemitério cristão?

Al‑Khalifa enrugou a fronte.

Ouvi falar dele, mas nunca lá estive. Porquê?

‑           Fica na estrada de Jahra, em Sulaibikhat, perto do principal cemitério muçulmano. Tem um portão muito obscuro,, com uma placa que diz: PARA OS CRISTÃOS. A maior parte das lápides é de libaneses e sírios, com alguns filipinos e chineses. No canto ao fundo, à direita, há uma de um homem da marinha mercante, Shepton. Está solta e por baixo abri uma cavidade. Deixe tudo aí. Assim como alguma mensagem que tiver para mim. Passe por lá uma vez por semana para verificar se há alguma para si.

‑           Não tenho estofo para esse género de actividades ‑ observou, meneando a cabeça.

Mike Martin desapareceu entre a confusão de pessoas que percorriam as ruas estreitas e becos do bairro de Bneid‑al‑‑Quar. Cinco dias mais tarde, sob a lápide do túmulo do marinheiro Shepton, encontrou três bilhetes de identidade, três conjuntos de chaves de garagens e de chaves de ignição e seis de casas, com os endereços nas respectivas etiquetas.

Transcorridos mais dois, um camião iraquiano que regressava à cidade do campo petrolífero de Umm Gudayr voou em mil pedaços, em virtude da explosão de algo que o rodado pisou.

O chefe da Divisão do Médio Oriente da CIA, Chip Barber, encontrava^se no seu segundo dia em Telavive, quando o telefone do gabinete que lhe tinham concedido tocou. Era o chefe de posto da América.

‑           Está tudo em ordem, Chip. Ele já regressou e combinei um encontro para as quatro horas. Você dispõe assim de tempo para seguir no último voo de Ben Gurion. Os tipos disseram que nos vinham buscar à embaixada.

Encontrava‑se fora da embaixada, pelo que se exprimia em generalidades, para a eventualidade de a linha se achar sob escuta. Assim era, com efeito, mas pelos israelitas, que, de resto, estavam ao corrente de tudo.

«Ele» era o general Yaacov «Kobi» Dror, chefe da Mossad, e o escritório a «embaixada» e os «tipos» os dois homens do pessoal daquele, chegados num carro anónimo às três e dez.

Barber considerava cinquenta minutos excessivos para cobrir a distância que separava a embaixada da sede da Mossad, situada numa torre de escritórios denominada Hadar Dafna, no bulevar Rei Saul.

Mas a reunião não se efectuaria aí. O carro abandonou a cidade pela estrada do norte, passou pelo aeródromo militar de Sde Dov e enveredou pela rodovia marginal em direcção a Haifa.

Nos arrabaldes de Herzlia, existe um complexo de apartamentos, com um hotel, chamado simplesmente Country Club, aonde acodem alguns israelitas, mas,, sobretudo, judeus do estrangeiro para um período de repouso. Sentem‑se tão descontraídos e felizes no ambiente aprazível que nunca lhes ocorreu espreitar para o outro lado da colina sobranceira à área.

Se o fizessem, veriam, logo após o topo, um imponente edifício. E se perguntassem de que se tratava, dir‑lhes‑iam que era a residência de Verão do Primeiro Ministro.

O Primeiro‑Ministro de Israel está de facto autorizado a visitar o local ‑um dos poucos governantes que desfrutam de semelhante concessão‑, pois é a escola de treino da Mossad, conhecida no seio desta última por Midrasha.

Yaacov Dror recebeu os dois americanos no último piso do edifício, uma sala espaçosa e bem iluminada, com o condicionador de ar a tornar a atmosfera mais confortável. Era um homem baixo e atarracado, que usava a camisa de meia‑‑manga e gola aberta do regulamento israelita e fumava os sessenta cigarros diários da ordem.

Barber congratulou‑se intimamente ao notar que o condicionador de ar estava ligado, pois o fumo de tabaco convivia pessimamente com a sua sinusite.

O chefe dos espiões israelitas levantou‑se de trás da secretária e avançou para os recém‑chegados.

‑           Como tem passado, Chip, meu caro amigo?

E abraçou o americano mais alto. Divertia‑o proceder como um mau actor que interpretava o papel de um judeu cordial. Na verdade, não passava de uma simulação. Em missões anteriores, na sua qualidade de chefe de operações, revelara‑se muito inteligente e extremamente perigoso.

Chip Barber retribuiu a manifestação de afecto. Os sorrisos tinham tanto de postiços como as recordações de antigas. E não havia muito tempo que um tribunal americano condenava Jonathan Pollard, dos serviços secretos da Marinha, a um longo período de prisão por exercer espionagem em favor de Israel, operação que se desenrolara indiscutivelmente contra a América, dirigida pelo cordial Kobi Dror.

Passados dez minutos, entraram no assunto que motivara o encontro. O Iraque.

‑           Acho que vocês estão a actuar da melhor maneira ‑ disse Dror, renovando a dose de café de Chip que o privaria de sono por vários dias, ao mesmo tempo que apagava o seu terceiro cigarro no cinzeiro.

Barber esforçou‑se por conter a respiração, mas teve de renunciar.

Se tivermos de intervir e ele não abandonar o Koweit, começaremos com ataques aéreos.

Naturalmente.

E visaremos sobretudo as armas de destruição maciça.

Isso também favorece os nossos interesses. Precisaremos de alguma colaboração, como deve calcular.

Há anos que vigiamos essas WMD. Até os avisámos do perigo que representam. A quem pensa que se destina todo aquele gás venenoso e bombas disseminadoras de epidemias? A nós, sem dúvida. Fartámo‑nos de lançar o alarme, mas ninguém se preocupou. Há nove anos, destruímos os geradores nucleares de Osirak, retardando‑lhes substancialmente as pesquisas para a fabricação de uma bomba atómica, e o mundo condenou‑nos. Os Estados Unidos também...

Todos sabemos perfeitamente que não passou de uma atitude de cosmética.

Está bem, Chip. Agora que estão em jogo vidas de americanos, deixou de ser cosmética. Podem morrer americanos a valer.

Tem a paranóia à mostra, Kobi.

Tretas. Escute: convém‑nos que vocês lhes destruam as fábricas de gás, os laboratórios de epidemias e as pesquisas de bombas atómicas. Convém‑nos mesmo muito. E temos de nos manter à margem disso, porque o Tio Sam passou a contar

com aliados árabes. Por conseguinte, quem é que se queixa?

Israel não. Nós revelámos‑lhes tudo o que possuímos sobre programas de armas secretas. Tudo o que possuímos, repito.

Sem ocultarmos nada.

Precisamos de mais. Admito que descurássemos um pouco o perigo iraquiano, nos últimos anos, mas tínhamos a Guerra Fria com que nos entreter. Agora, surgiu em cena o Iraque e falta‑nos «combustível». Precisamos de informação

e não de lixo a nível das ruas. Elementos palpáveis e eficazes.

Nessa conformidade, faço‑lhe uma pergunta muito directa: vocês dispõem de alguma toupeira entre as altas esferas do regime iraquiano? Necessitamos de esclarecimentos com urgência.

Tencionamos pagar, em obediência às regras.

Seguiu‑se um silêncio, durante o qual Kobi Dror contemplou a ponta do cigarro com uma expressão meditativa, enquanto os dois visitantes pareciam muito interessados no tampo da mesa à sua frente. Por fim, o primeiro declarou:

‑Garanto‑lhe que não, Chip. Se tivéssemos algum agente a alto nível dos poderes de Bagdade, não o ocultaria. Dou‑lhe a minha palavra.

 

MiKE MARTIN viu o rapaz, de contrário este teria morrido ali mesmo. Ele conduzia a decrépita carrinha cheia de mossas e de melancias que comprara numa das várias herdades dos arredores de Jahra, quando avistou a cabeça e respectivo turbante, que assomavam e desapareciam prontamente atrás de um monte de entulho ao lado da estrada. E também não lhe passou despercebida a extremidade do cano da espingarda que empunhava.

A carrinha cumpria perfeitamente as suas funções. Martin pedira uma viatura naquelas condições porque calculava que, mais cedo ou mais tarde, os soldados iraquianos começariam a confiscar os veículos em melhor estado para sua própria utilização.

Olhou pelo espelho retrovisor, travou e encostou à berma. Um pouco atrás, avançava um camião com militares do Exército Popular.

O jovem koweitiano apontava a arma ao transporte de tropas, quando uma mão pesada lhe pousou na boca, ao mesmo tempo que outra lhe arrancava a espingarda.

‑           Suponho que não queres morrer hoje, hem? –murmurou uma voz junto do seu ouvido.

O camião prosseguiu em frente e o momento apropriado para o atingir extinguiu‑se igualmente. O rapaz, que já se sentira inseguro com o acto que se preparava para cometer, achava‑se agora visivelmente aterrorizado.

Quando o camião desapareceu ao longe, a pressão das mãos atenuou‑se e ele libertou‑se com um movimento brusco. Na sua frente, encontrava‑se um beduíno barbudo, de expressão dura.

Quem é você? ‑balbuciou.

Alguém que nunca se atreveria a tentar matar um iraquiano na presença de duas dezenas de outros. Onde está o teu veículo de fuga?

‑           Acolá ‑indicou o rapaz, que aparentava cerca de vinte anos.

Tratava‑se de uma scooter, a uns vinte metros de distância, junto de um grupo de árvores. O beduíno suspirou. Pousou a espingarda, uma velha Lendfield .303 que o jovem devia ter adquirido num antiquário, e levou‑o firmemente para a carrinha.

Depois, colocou a arma na retaguarda, foi buscar a scooter e depositou‑a em cima das melancias, algumas das quais se abriram.

Em seguida, rolaram em direcção a um lugar isolado perto do porto de Shuwaikh, onde Martin travou.

O rapaz conservava o olhar fixo no pára‑brisas marcado pelas moscas. Exibia uma expressão amargurada e os lábios tremiam.

‑           Violaram a minha irmã. Uma enfermeira... no Hospital de Aí Adan. Eram quatro. Deram cabo dela.

Martin inclinou a cabeça.

Há e haverá muitos casos similares. E resolveste retaliar matando iraquianos?

Todos os que puder. Antes de morrer.

A habilidade está em não morrer. Se é isso que pretendes, talvez convenha treinar‑te. De contrário, não duras vinte e quatro horas.

O jovem fungou com desdém.

Os beduínos não lutam.

Nunca ouviste falar da Legião Árabe? E, antes disso, do príncipe Faisal e Revolta Árabe? Eram todos beduínos. Há

mais como tu?

Na verdade, tratava‑se de um estudante de Direito, que frequentava a Universidade de Koweit antes da invasão.

Somos cinco. Todos animados do mesmo propósito.

Decidi ser o primeiro a tentar a sorte.

Fixa este endereço. ‑Martin mencionou‑o (uma vivenda numa rua escusa de Yarmuk) e fez o interlocutor repeti‑lo vinte vezes. ‑Esta tarde, às sete. Já terá anoitecido, mas o recolher obrigatório só principia às nove. Deixem as scooters a uns duzentos metros pelo menos. Entrem com intervalos de vinte minutos. A porta estará aberta.

Viu o rapaz afastar‑se e tornou a suspirar. «É material básico, mas de momento, não disponho de outro», reflectiu com resignação.

Os jovens compareceram pontualmente. Martin conservava‑se deitado num terraço do outro lado da rua e viu‑os chegar. Estavam enervados e inseguros, com olhares desconfiados em volta. Tinham visto demasiados filmes de Humphrey Bogart. Depois de entrarem todos, ele deixou transcorrer mais dez minutos, mas não apareceu qualquer membro da segurança iraquiana. Por fim, desceu do terraço, cruzou a rua e entrou na casa pelas traseiras. O grupo estava sentado na sala com a luz acesa e as cortinas descerradas. Quatro rapazes e uma rapariga, de expressões e atitudes sombrias.

Voltavam‑se para a porta do corredor, quando ele entrou da cozinha. Os jovens tiveram oportunidade de o ver apenas de relance, antes de apagar a luz.

‑           Corram as cortinas ‑ordenou.

A rapariga encarregou‑se disso. Era uma tarefa de mulher. Só então Martin voltou a acender a luz.

‑           Nunca se mantenham numa sala iluminada com as cortinas descerradas ‑advertiu. ‑Não convém que os vejam juntos.

Dividira as suas seis residências em dois grupos. Utilizava quatro para viver, transferindo‑se de uma para outra sem qualquer sequência pré‑concebida. De cada vez, deixava pequenos sinais para si próprio, devidamente dissimulados. Se lhes notasse a menor alteração ou mesmo o seu desaparecimento, ficava com a certeza de que o local tinha sido visitado. Nas outras duas, armazenara o «equipamento» que trouxera do esconderijo no deserto. A que escolhera para o encontro com os estudantes era a menos importante das seis e, a partir de agora, não a tornaria a utilizar para dormir.

Na realidade, não eram todos estudantes, pois um deles trabalhava num banco. Martin insistiu em que se apresentassem e explicou:

‑           Precisam de novos nomes. ‑Enumerou os cinco propostos. ‑Não os revelem a absolutamente ninguém. Sempre que forem empregados, saberão que a mensagem provém de um de nós.

‑Como lhe chamamos? ‑quis saber a rapariga, que acabava de se tornar «Rana».

‑           Beduíno é suficiente. ‑Ele apontou para um dos outros.

‑Repete o endereço daqui.

O visado puxou de um pedaço de papel, porém Martin retirou‑lho da mão.

Tem de ser tudo memorizado. Nada de papéis. O Exército Popular pode compor‑se de estúpidos, mas a polícia secreta

não. Se os revistassem, como os explicariam? ‑Martin fez uma pausa. ‑Conhecem bem a cidade?

Razoavelmente ‑disse o mais velho, que era o empregado bancário e tinha vinte e cinco anos.

‑           Não basta. Amanhã, comprem mapas e roteiros e estudem‑nos, como se fosse para um teste de fim de curso. Fixem bem cada rua, beco, praça e parque, assim como os edifícios públicos importantes e mesquitas. Sabem que as placas com os nomes estão a ser arrancadas?

Eles assentiram com inclinações de cabeça. Transcorridos quinze dias desde o início da invasão, recompostos do choque inicial, os koweitianos começavam a oferecer uma resistência passiva de desobediência cívica. Fora espontânea e descoordenada. Um dos objectivos consistiu em arrancar as placas com os nomes das ruas. A cidade tem uma topografia complicada e, sem essas indicações, convertia‑se num labirinto.

As patrulhas iraquianas começavam a ficar compreensi‑velmente desorientadas. Para a polícia secreta, encontrar o endereço de um suspeito constituía um pesadelo.

Naquela primeira noite,, Martin deu aos novos pupilos algumas noções de segurança básica. Deviam estar sempre munidos de uma explicação susceptível de ser confirmada, para qualquer percurso ou encontro. Absterem‑se de ter consigo documentos comprometedores. Tratar os soldados iraquianos com respeito a roçar a deferência. Não confiar em ninguém.

‑           Doravante, cada um de vocês é duas pessoas. Uma corresponde ao original, à que todos conhecem, o estudante

ou empregado. Delicado, atencioso, cumpridor da lei, incoerente, inofensivo. Os iraquianos não o incomodarão, porque não constitui uma ameaça. Nunca lhes insulta a pátria, a bandeira ou o chefe supremo. Jamais desperta a atenção da AMAM. Contenta‑se com permanecer vivo e em liberdade. A outra personalidade só surge durante uma missão. Torna‑se então cauteloso, hábil e perigoso... e esforça‑se por se conservar vivo.

Falou‑lhes da segurança numa reunião. Chegar cedo e deixar o transporte a uma distância conveniente. Confundir‑se com as sombras. Observar o local durante vinte minutos, prestando particular atenção às casas próximas. Procurar cabeças nos telhados, prenunciadoras de uma emboscada. Apurar os ouvidos para tentar detectar passos pesados de soldados. Quando, finalmente, os mandou embora, antes do início do recolher obrigatório, eles mostraram‑se desapontados.

E a respeito dos invasores? Quando começamos a matá‑los?

Quando soubermos como o podemos fazer.

Não há nada para efectuarmos, já?

Os iraquianos costumam andar por aí a pé? ‑perguntou Martin.

‑Não ‑informou o estudante de Direito. ‑Utilizam camiões, carrinhas, jipes, carros roubados.

‑           Que têm as cápsulas dos depósitos fáceis de retirar.

Basta rodá‑las levemente. Cubos de açúcar, vinte por cada depósito. Dissolve a gasolina, introduz‑se no carburador e transforma‑se em caramelo espesso com o calor do motor, acabando por destruí‑lo. Tenham a maior cautela para não serem surpreendidos. Actuem aos pares e depois de anoitecer. Um fica de atalaia, enquanto o outro verte o açúcar no depósito, após o que se apressa a colocar de novo a cápsula. Bastam dez segundos. ‑Martin fez nova pausa. ‑Um pedaço de contraplacado de dez centímetros por dez, com quatro pregos aguçados a atravessá‑lo. Empurrem‑no com o pé para debaixo de um pneu de um veículo estacionado. Há abundância de ratos no Koweit, pelo que muitas lojas vendem raticidas. Comprem do branco, à base de estricnina. Depois, adquiram massa de

pão numa padaria, misturem‑lhe o veneno, utilizando luvas de borracha, e em seguida destruam estas últimas. Cozam o pão no forno do fogão da cozinha, mas só quando estiverem sós em casa.

Os estudantes arregalaram os olhos. ‑‑Temos de o dar aos iraquianos?

‑           Não, levam‑no em cestas descobertas nas scooters ou nas malas de carros. Eles interceptá‑los‑ão nas barreiras e não deixarão de o roubar. Bem, voltamos a encontrar‑nos aqui, dentro de uma semana.

Quatro dias mais tarde, começaram a verificar‑se avarias em motores de viaturas iraquianas. Umas eram rebocadas e outras abandonadas: seis camiões e quatro jipes. Os mecânicos descobriram a causa, mas não conseguiram apurar quando ou o local em que a sabotagem se desenrolara. Passaram a registar‑se frequentes explosões de pneus e os pedaços de contraplacado com pregos foram entregues à polícia de segurança, que quase também explodiu de frustração e espancou vários koweitianos, detidos ao acaso nas ruas.

As enfermarias dos hospitais principiaram a encher‑se de soldados com problemas gástricos. Como se alimentavam do que encontravam ao seu alcance, pois não dispunham de rações de combate, as autoridades sanitárias concluíram que as indisposições se deviam a água inquinada.

Até que, no Hospital de Amiri em Dasmã, um técnico de laboratório koweitiano procedeu à análise de uma amostra de vómito de um dos iraquianos e, altamente perplexo, procurou o chefe do departamento.

Tudo indica que tragou raticida, mas ele garante que, nos últimos três dias, só comeu pão e fruta.

Pão do exército iraquiano?

Não. A distribuição desse é irregular e ele roubou‑o ao moço de uma padaria, que o levava a um cliente.

Onde está a amostra?

No laboratório.

Deite‑a fora, sem deixar vestígios. Não aconteceu nada, entende?

O chefe do laboratório meneou a cabeça, abismado, quando o outro se retirou. Raticida misturado na massa do pão. Quem se teria lembrado disso?

A Comissão Medusa voltou a reunir‑se a 30 de Agosto, porque o perito de bacteriologia de Porton Down considerou que descobrira tudo o que podia acerca do programa de guerra bacteriológica do Iraque.

Receio que estejamos perante meras insignificâncias ‑ anunciou o Dr. Bryant.‑A principal razão consiste em que o estudo da bacteriologia se pode efectuar adequadamente em qualquer laboratório de medicina legal ou veterinário com o

mesmo equipamento que existe num vulgar, o que não figura em licenças de exportação. A esmagadora maioria do produto destina‑se ao benefício da Humanidade, para curar doenças e não para as propagar. Por conseguinte, nada de mais natural num país em desenvolvimento do que pretender estudar enfermidades como a bilharzíase, beribéri, febre amarela, malária, cólera, tifo ou hepatite. São todas humanas. Há outra gama das pertinentes animais que colegas veterinários desejarão naturalmente estudar.

Por outras palavras, não há qualquer maneira de estabelecer se o Iraque dispõe de meios para fabricar uma bomba de germes? ‑precisou Sinclair, da CIA.

Concretamente, não ‑assentiu Bryant.‑? Existem registos de que, em 1974, quando Saddam Hussein ainda não ocupava o trono, por assim dizer...

Era vice‑presidente e o poder por detrás do trono ‑ esclareceu Terry Martin.

Bem, lá o que fosse ‑volveu Bryant, contrariado com a interrupção. ‑O Iraque assinou um contrato com o Instituto Merieux de Paris para a construção de um projecto de pesquisas bacteriológicas, aparentemente destinado a estudos veterinários de doenças de animais, e talvez fosse verdade.

E quanto às histórias de culturas de antraz para utilizar contra seres humanos? ‑quis saber o americano.

Bem, é possível. O antraz é uma doença particularmente virulenta. Afecta sobretudo o gado, mas também pode contaminar seres humanos, se manipulam ou ingerem produtos de origens infectadas. Como sabemos, o governo britânico efectuou experiências dessa natureza na ilha Grinard, das Hébridas, durante a Segunda Guerra Mundial. A doença continua incontrolável.

É assim tão grave, nem? Onde teria Hussein obtido essa «matéria‑prima»?

É aí que reside o busílis, Mr. Sinclair. Não se pode visitar um laboratório de renome europeu ou americano e pedir:

«Podem fornecer‑me algumas culturas de antraz, porque quero envenenar certas pessoas?» De resto, nem seria necessário fazê‑lo. Há gado contaminado em praticamente todo o Terceiro Mundo. Bastaria tomar nota de um surto e comprar duas ou três carcaças infectadas, operação que não figura na papelada oficial de um governo.

Nesse caso, ele pode ter culturas dessa doença para utilizar em bombas ou obuses, mas ignoramo‑lo. É esta a situação? ‑perguntou Sir Paul Spruce, que conservava a esferográfica de ouro suspensa sobre o bloco‑notas.

Mais ou menos ‑aquiesceu Bryant. ‑Mas isso representa a má notícia. A boa consiste em que duvido que funcionasse contra um exército em marcha. Penso que, perante um inimigo a avançar sobre ela, qualquer força armada deseja sustá‑lo e, se possível, repeli‑lo.

É, de facto, o caso ‑confirmou Sinclair.

Pois bem, o antraz não o conseguiria. Impregnaria o solo, se fosse lançado segundo uma série de jactos do ar e adiante do exército. Tudo o que houvesse no chão... relva, fruta, legumes... ficaria infectado. Todos os animais que pastassem aí sucumbiriam. Quem comesse a sua carne, bebesse o leite ou manuseasse a pele sofreria o contágio. Por outro lado, o deserto não é o meio ideal para a cultura de semelhantes esporos. Os nossos soldados alimentar‑se‑ão sem dúvida de refeições pré‑preparadas e beberão água engarrafada.

Como, aliás, já fazem ‑observou.

Portanto, não exerceria efeitos indesejáveis, a menos que eles inalassem os esporos através da respiração. A doença nos seres humanos tem de alcançar os pulmões ou o canal digestivo por ingestão. De qualquer modo, suponho que usarão máscaras antigas?

Figura nos nossos planos.

E nos nossos ‑acudiu Sir Paul.

Então, não vejo por que havemos de nos preocupar com o antraz ‑declarou Bryant. ‑Não reteria os soldados como uma variedade de gases e aqueles que o contraíssem poderiam ser curados com antibióticos potentes. Há um período de

incubação. As tropas podiam ganhar a guerra e depois adoecer.

Confesso que me parece mais uma arma de terroristas do que de militares. No entanto, se se despejasse um frasco de antraz concentrado no sistema de abastecimento de água de uma cidade, poderia originar‑se uma epidemia catastrófica que confundiria os serviços médicos. Mas se eu pretendesse «borrifar» soldados em combate num deserto, escolheria um dos vários gases nervosos. São invisíveis e de acção rápida.

Em face disso, não há qualquer indicação de onde um laboratório de preparação de armas químicas se pode encontrar, se porventura existe? ‑observou Sir Paul Spruce.

Na verdade, eu indagaria junto de todos os institutos e colegas veterinários ocidentais. Para verificar se professores ou outras delegações visitaram o Iraque, nos últimos dez anos.

Perguntar aos que o fizeram se lhes foi vedado algum local, rodeado de precauções de quarentena. Em caso afirmativo, deve ser aí que decorrem os estudos que nos interessam.

Sinclair e Palfrey escreviam furiosamente. Mais uma tarefa para os investigadores.

‑           Se isso não produzir qualquer resultado, restam os serviços secretos ‑acrescentou Bryant. ‑Um cientista iraquiano dessa especialidade que se tenha transferido para o Ocidente. Os investigadores de bacteriologia gostam de formar

um grupo hermético. Costumamos saber o que se passa nos nossos países, mesmo numa ditadura como o Iraque. Se Sadttam dispõe de algo do género que nos interessa, um homem nessas condições pode estar ao corrente.

‑Bem, estamos‑lhe profundamente gratos, Dr. Bryant ‑disse Sir Paul, enquanto todos se levantavam. ‑Mais trabalho para os detectives dos nossos governos, hem, Mr. Sinclair? Ouvi dizer que o nosso outro colega em Porton Down, Dr. Rei‑nhart, poderá fornecer‑nos o resultado das suas deduções sobre gases venenosos dentro de cerca de duas semanas. Obrigado por terem comparecido, meus senhores.

O grupo no deserto observava em silêncio a alvorada que começava a cobrir as dunas. Os jovens que haviam acudido à casa do beduíno na véspera não sabiam que passariam a noite em claro. Contavam com mais uma prelecção.

Assim, não se tinham feito acompanhar de agasalhos, e as noites no deserto são agrestes, mesmo em pleno Agosto. Por conseguinte, tremiam e perguntavam‑se como explicariam a ausência aos pais preocupados. Imobilizados algures pelo recolher obrigatório? Então, por que não tinham telefonado? O aparelho não funcionava. Sim, era a única justificação mais ou menos plausível.

Três dos cinco voluntários perguntavam‑se se tinham feito a opção acertada, mas era demasiado tarde para reconsiderar.

O beduíno dissera‑lhes que chegara a altura de assistirem a alguma acção e conduziu‑os a um maltratado Land‑ROver estacionado a dois quarteirões de distância, encontrando‑se em pleno deserto antes do recolher obrigatório.

Rolaram para sul ao longo de trinta quilómetros, até que interceptaram uma estrada no areal que, segundo eles suspeitavam, se estendia do campo petrolífero de Manageesh para oeste em direcção à Rodovia Exterior. Não ignoravam que todos os poços de petróleo contavam com guarnições de iraquianos e as estradas principais estavam infestadas de patrulhas. Algures a sul do ponto onde se encontravam, havia dezasseis divisões do Exército e da Guarda Republicana, voltadas para a Arábia Saudita e para a vaga crescente de americanos, o que os enervava.

Três membros do grupo deitavam‑se na areia ao lado do beduíno, com o olhar cravado na estrada, à claridade crescente. Era muito estreita. Os veículos teriam de se desviar para a berma pedregosa para se cruzarem.

Havia uma prancha com numerosos pregos que cobria metade da estrada. O beduíno retirara‑a da viatura, colocara‑a no local apropriado e dissimulara‑a com algumas sacas velhas e areia, coadjuvado pelos companheiros.

Os outros dois ‑o empregado bancário e o estudante de Direito ‑concentravam‑se na vigilância. Cada um postara‑se atrás de uma duna a 100 metros do local, para comunicar a aproximação de algum veículo.

Passavam poucos minutos das seis da manhã, quando o estudante de Direito acenou de determinada maneira, que significava: «Demasiado material para os nossos recursos.» O beduíno puxou a linha de pesca cuja extremidade segurava e a prancha deslizou para fora da estrada. Trinta segundos mais tarde, passaram dois camiões repletos de soldados. Em seguida, ele aproximou‑se e voltou a preparar a armadilha.

Transcorridos mais alguns minutos, foi a vez de o empregado bancário fazer sinal. Era o apropriado. Acercava‑se um carro de comando que seguia para o lado dos campos petrolíferos.

O condutor não prestou atenção especial à área coberta de areia na estrada e os pregos não tardaram a furar as rodas da frente, enquanto as sacas vazias as envolviam e o veículo oscilava perigosamente, até que se imobilizou.

O homem saltou para o chão e emergiram dois oficiais do banco de trás ‑um major e um alferes ‑, que começaram a gritar‑lhe, ao mesmo tempo que apontavam para as rodas. Seria impossível aplicar o «macaco», em virtude do ângulo caprichoso em que o carro ficara.

O beduíno indicou aos surpreendidos pupilos que aguardassem onde estavam, levantou‑se e encaminhou‑se para a estrada. Tinha uma manta a cobrir o ombro e braço direitos e exibia um largo sorriso, quando saudou o major.

‑           Salaam aleikhem, sayidi major. Vejo que têm um problema. Talvez lhes possa ser útil. Os meus companheiros encontram‑se perto daqui.

O oficial levou a mão à pistola, mas em seguida acalmou‑se e inclinou a cabeça.

Aleikhem salaam, beduíno. Este excremento de camelo deixou o carro sair da estrada.

Tem de ser puxado para a faixa de rodagem, sayidi. Conto com muitos irmãos.

O beduíno achava‑se a menos de três metros, quando ergueu o braço. Fez fogo no estilo do SAS: duas rajadas da Kalashnikov desmontável, uma pausa, mais duas e nova pausa. O major foi atingido em pleno coração. Um leve movimento da arma para a direita não permitiu que o alferes acabasse de sair do veículo e a rajada final pôs termo à vida do condutor.

O ruído dos disparos pareceu ecoar nas dunas, porém o deserto e a estrada estavam vazios. Por fim, o beduíno chamou os três aterrorizados estudantes dos seus esconderijos.

‑           Coloquem os corpos no carro, com o condutor sentado ao volante e os oficiais na retaguarda ‑indicou aos dois rapazes, após o que entregou uma chave de fendas à rapariga.

Fura o depósito de combustível em três pontos.

Em seguida, olhou para os locais onde se encontravam os vigias, os quais gesticularam para referir que não se aproximava ninguém. Voltou‑se de novo para a rapariga e mandou‑a embeber o lenço em gasolina, ao qual aplicou um fósforo aceso e atirou ao carro, depois de lhes indicar que se afastassem para o lugar onde haviam deixado o Land Rover, não sem pegar previamente na prancha e nas sacas.

Durante o percurso de regresso, e na sequência de um longo silêncio, Martin perguntou:

Observaram tudo com atenção?

Absolutamente.

Que lhes pareceu?

Foi tudo... muito rápido ‑disse a rapariga.

Pois a mim pareceu que nunca mais acabava –declarou o empregado bancário.

Foi rápido e brutal ‑asseverou Martin. ‑Quanto tempo lhes pareceu que estivemos na estrada?

Meia hora?

Seis minutos. Ficaram chocados?

Ficámos.      

Óptimo. Só os psicopatas é que não Se semtiriam chocados na primeira vez. Um general americano chamado Patton...

Sabem a quem me refiro?

Não.

Disse uma vez que não lhe competia certificar‑se de que os seus soldados morriam pela pátria, mas de que os outros infelizes morriam pela deles. Compreendem?

A filosofia de George Patton não se traduzia muito bem em arábico, mas eles traçaram a conclusão geral.

‑           Quando uma pessoa vai para a guerra, pode esconder‑se até determinado ponto. A partir daí, há uma alternativa. Ou morre ela ou o inimigo. Escolham já. Podem regressar aos estudos ou ir para a guerra.

Os jovens reflectiram durante alguns minutos, até que Rana foi a primeira a falar.

‑           Vou para a guerra, se me mostrar como devo proceder.

Perante essa atitude, os outros tiveram de concordar.

‑           Muito bem ‑disse Martin. ‑Mas primeiro tenho de lhes ensinar a destruir, matar e conservar a vida. Encontramo‑‑nos em minha casa, dentro de dlois dias, ao amanhecer, quando terminar o recolher obrigatório. Levem livros de estudo, todos, inclusive tu, bancário. Se forem interceptados, comportem se com naturalidade. São meros estudantes que vão para as aulas.

Agora, desçam. Arranjem transporte para a cidade em veículos separados.

Entretanto, tinham alcançado a estrada pavimentada. Ele apontou para uma garagem onde os camiões decerto parariam e lhes dariam boleia. Quando os jovens se afastaram, regressou ao deserto, desenterrou o rádio do esconderijo, afastou‑se cerca de cinco quilómetros do local, montou o prato da parabólica e começou a exprimir‑se em código para determinada casa em Riade.

Uma hora após a emboscada, o carro de comando carbonizado foi encontrado por outra patrulha e os corpos levados para o hospital mais próximo, Al Adan, nas cercanias de Fintas, na costa.

O médico‑legista que procedeu às autópsias perante um impaciente coronel da polícia secreta, AMAM, descobriu os orifícios das balas. Era um chefe de família, com duas filhas e conhecia a jovem que fora brutalmente violada.

Por fim, cobriu o terceiro corpo com o lençol e principiou a descalçar as luvas.

‑           Tudo indica que morreram asfixiados quando o carro se incendiou, após o despiste ‑anunciou. ‑Que Alá se compadeça das suas almas.

O coronel emitiu um grunhido e retirou‑se.

No terceiro encontro com o seu grupo de voluntários, o beduíno levou‑os para o interior do deserto ‑um local a oeste da cidade do Koweit e a sul de Jahra, onde podiam estar em isolamento absoluto. Sentados na areia como em piquenique, os cinco jovens assistiram com curiosidade, enquanto o instrutor pegava numa mochila e retirava dela vários dispositivos estranhos, que ia colocando em cima da manta que estendera previamente, ao mesmo tempo que os identificava.

‑           Plástico explosivo, fácil de manipular, muito estável...

Eles empalideceram visivelmente, quando o viram espremer a substância entre os dedos, como se fosse barro de esculpir. Um dos rapazes, cujo pai possuía uma tabacaria, trouxera, por indicação de Martin, algumas caixas de charutos.

‑           Temos aqui um detonador com um lápis temporizador incorporado. Quando se imprime uma rotação ao parafuso do topo, é esmagado um tubo de vidro que contém ácido, o qual começa a abrir caminho através de um diafragma de cobre em cerca de sessenta segundos. A seguir, o fulminante de mercúrio activa o explosivo. Prestem atenção.

Com estas palavras, Martin pegou num pedaço de Semtex do tamanho de um maço de cigarros, colocou‑o numa caixa de charutos e introduziu o detonador no centro da massa.

‑           Quando se faz girar o parafuso, assim, basta fechar a caixa, colocar um elástico em volta e mantê‑la fechada. Isto só se faz no último momento. ‑Depositou‑a no centro do círculo.‑Sessenta segundos são um lapso muito mais longo do que pensam. Chegam para ir até ao camião iraquiano, bunker, ou qualquer refúgio, atirar a caixa para lá e fugir. Mas sempre em andamento normal, sem correr. Uma pessoa em corrida desencadeia o alarme. Afastem‑se sempre com antecedência suficiente para alcançar uma esquina. E continuem a caminhar,

sem correr, mesmo depois de ouvirem a explosão.

Entretanto, conservava o olhar no relógio de pulso. Trinta segundos.

Uma coisa... ‑aventurou o bancário.       

O quê?                     

Suponho que isso não é real?     

A que te referes?

‑           À bomba que acaba de preparar. É um simulacro, hem?

Quarenta e cinco segundos. Martin estendeu o braço e pegou na caixa.

‑           Não, é real. Quis mostrar‑lhes a duração de sessenta segundos. Nunca entrem em pânico, com estas coisas. O pânico só serve para atrair a atenção e a morte. Conservem sempre a calma.

Com um movimento rápido, atirou‑a para as dunas. Pousou atrás de uma e explodiu quase imediatamente. O estrondo abalou o pequeno grupo e levantou uma nuvem de areia.

Num local a norte do Golfo, um avião de reconhecimento americano observou a deflagração num dos seus detectores e o técnico comunicou‑o ao controlador da missão, o qual se debruçou sobre o ecrã, onde o clarão da fonte de calor se atenuava gradualmente.

Intensidade?

Das dimensões de um obus de tanque.

Está bem. Registe o facto. Não há necessidade de tomar quaisquer medidas.

Vocês também conseguirão preparar engenhos destes, ainda hoje‑afirmou o beduíno. ‑Transportarão e guardarão os detonadores e os lápis temporizadores aqui.

Pegou num invólucro de charuto, envolveu o detonador em algodão e introduziu‑o nele, após o que voltou a aplicar a cápsula da extremidade.

‑           E o plástico aqui ‑acrescentou.

Retirou o envoltório de um sabonete e substituiu este por um pedaço de massa de plástico das mesmas dimensões e configuração.

‑Vocês mesmos tratarão de comprar mais caixas de charutos, Mantenham sempre dois autênticos dentro, para o caso de serem interceptados e revistados. Se um iraquiano quiser apoderar‑se de um ou de toda a caixa, não se oponham.

Obrigou‑os a praticar sob o sol ardente, até que conseguiram desembrulhar o sabonete, esvaziar os envoltórios dos charutos, preparar a bomba e colocar o elástico em trinta segundos.

‑           Podem fazê‑lo no banco de trás de um carro, nos lavados de um café, num portal ou à noite sob a protecção de uma árvore. Primeiro escolham o alvo, certifiquem‑se da inexistência de outros soldados afastados que possam sobreviver, para só então imprimir a rotação ao parafuso, lançar a bomba e bater

em retirada, com as precauções que referi. Contem até cinquenta, devagar, a partir do momento em que actuarem no parafuso. Se, passados cinquenta segundos, continuarem com ela nas mãos, atirem‑na o mais longe que puderem. E como a operação se desenrolará quase sempre na escuridão, é o que vamos fazer a seguir.

Indicou aos pupilos que se aplicassem mutuamente vendas e observou como procediam. Ao fim da tarde, verificou que conseguiam dar conta do recado de modo satisfatório. Antes de partir, distribuiu o resto do conteúdo da mochila, suficiente para cada um preparar seis «sabonetes» e outros tantos detonadores. O filho do dono da tabacaria comprometeu‑se a fornecer as caixas e envoltórios de alumínio dos charutos. Cada um trataria de comprar o algodão, sabonetes e elásticos. Por último, regressaram à cidade.

Ao longo de Setembro, a sede da AMAM no Hotel Hilton começou a receber uma série de relatórios de uma escalada de ataques a soldados e equipamento militar iraquianos. O coronel Sabaawi tornava‑se cada vez mais indignado, à medida que a sua frustração aumentava.

As coisas não se desenrolavam em conformidade com o que fora previsto, pois haviam‑lhe assegurado que os koweitianos eram cobardes e obedeceriam sem discutir.

Na realidade, havia vários movimentos de resistência em formação, na sua maioria isolados e descoordenados. No bairro xiita de Rumaithiya, os soldados iraquianos não paravam de desaparecer. Os muçulmanos xiitas tinham motivos especiais para odiar os invasores, porquanto os seus co‑religionários, os do Irão, haviam sido chacinados aos milhares, durante a guerra Iraque‑Irão. Soldados iraquianos que se aventuravam no labirinto de ruas que constituíam o bairro de Rumaithiya arriscavam‑se a ser degolados, com os corpos abandonados nas sarjetas, jamais recuperados.

Entre os sunitas, a resistência concentrava‑se nas mesquitas, onde os iraquianos raramente se atreviam a entrar. Aí, trocavam-se mensagens, forneciam‑se armas e planeava-se ataques.

A resistência mais organizada provinha da orientação de notáveis do Koweit, indivíduos cultos e abastados. Al‑Khalifa tornou^se no seu banqueiro e utilizava os fundos para fornecer alimentos para que os koweitianos pudessem comer, e outros tipos de carga oculta sob os géneros provenientes do exterior.

A organização tinha seis alvos em mente, cinco dos quais uma forma de resistência passiva. Um consistia na documentação: todo o resistente recebia elementos de identificação perfeitos, forjados por colaboradores do Ministério do Interior. Outro dizia respeito a serviços de informação: conhecimento dos movimentos dos iraquianos rumo ao quartel‑general da Coligação em Riade, em particular acerca do número de efectivos, armamento, fortificações costeiras e localização de rampas de lançamento de mísseis. Um terceiro ramo abarcava o funcionamento dos serviços: água, electricidade, brigadas de bombeiros e saúde. Quando os iraquianos, derrotados, acabaram por abrir as torneiras do petróleo e destruir o próprio mar, engenheiros petrolíferos do Koweit indicaram aos bombardeiros americanos que válvulas deviam visar para estancar a inundação.

Circulavam por todos os distritos comissões de solidariedade da comunidade, que contactavam frequentemente com os europeus e outros residentes do Primeiro Mundo ainda alojados nos seus apartamentos, para os afastar das redes de arrasto do Iraque.

Foi introduzido clandestinamente um sistema de telefones via satélite proveniente da Arábia Saudita, no reservatório falso de um jipe. Não se achava codificado como o de Martin, mas mudando‑o constantemente de poiso a resistência koweitiana conseguia evitar a detecção iraquiana e contactar com Riade sempre que havia algo de útil para informar. Um rádio‑amador desenvolveu notável actividade durante todo o período de ocupação, enviando sete mil mensagens a um seu homólogo no Colorado, as quais foram comunicadas ao Departamento de Estado.

E existia a resistência ofensiva, coordenada por um tenente‑‑coronel koweitiano, um dos poucos que se haviam escapado do edifício do Ministério da Defesa, no primeiro dia. Como tinha um filho chamado Fuad, o seu nome de código era Abu Fouad, pai de Fouad.

Saddam Hussein acabou por desistir de formar um governo fantoche e nomeou o meio‑irmão, Ali Hassan Majid, governador‑‑geral.

A resistência não constituía um mero jogo. Desenvolvia‑se nos meios subterrâneos uma guerra pequena, porém extremamente suja. A AMAM respondeu com a instalação de dois postos de interrogatório: no centro desportivo de Kathma e no Estádio de Qadisiyah. Os métodos do chefe desses departamentos, Ornar Khatib, foram importados da prisão de Abu Ghraid, nos subúrbios de Bagdade, e empregados indiscriminadamente. Antes da libertação, morreram quinhentos koweitianos, duzentos e cinquenta dos quais executados, muitos deles após tortura prolongada.

O chefe da contra‑espionagem, Hassan Rahmani, sentava‑se à sua secretária no Hotel Hilton e lia os relatórios preparados pelo pessoal destacado para os locais de acção, no decurso de uma breve visita, a 15 de Setembro. O texto que se lhe deparava constituía leitura sombria.

Registava‑se um acréscimo de ataques aos postos iraquianos de estradas solitárias, veículos e barreiras. Aquilo achava‑se dentro da alçada da AMAM. A resistência local fazia parte das suas atribuições e, no entender de Rahmani, o cretino brutal do Khatib desfrutava com a situação.

Rahmani manifestava escassa inclinação para a tortura a que o seu rival da estrutura dos serviços secretos iraquianos se mostrava tão dedicado. Preferia confiar na acção paciente da investigação, dedução e astúcia, embora se visse forçado

a reconhecer que, no Iraque, fora o terror e nada mais que mantivera o Rais no poder durante tantos anos. Tinha de admitir para consigo que o psicopata e antigo arruaceiro das vielas de Tikrit lhe provocava um certo receio.

Tentara convencer o seu presidente a deixá‑lo encarregar‑se dos serviços secretos internos no Koweit, porém a resposta consistira num rotundo «não». Era uma questão de princípio, segundo o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Tariq Aziz, lhe explicara. Ele, Rahmani, estava incumbido de proteger o estado da espionagem e sabotagem de fontes estrangeiras. O Rais não queria conceder que o Koweit era território forasteiro. Tratava‑se, ao invés, da décima nona província do Iraque. Nessa conformidade, competia a Ornar Khatib providenciar para que isso se verificasse na prática.

Enquanto contemplava o maço de relatórios na sua frente, naquela manhã, no Hotel Hilton, Rahmani sentia‑se aliviado por não ter a tarefa a seu cargo. Não passava de um pesadelo e, como predissera, Saddam Hussein jogara os seus trunfos da pior maneira.

O recurso a reféns ocidentais como escudos humanos contra o ataque revelava‑se catastrófico e totalmente contraproducente. O Presidente deixara escapar a oportunidade de avançar para sul e ocupar os campos petrolíferos sauditas, o que obrigaria o rei Fahd a comparecer à mesa de negociações, e agora os americanos acudiam em número cada vez maior.

Todas as tentativas para absorver o Koweit estavam a revelar‑se infrutíferas, e, dentro de um mês ou provavelmente menos, a Arábia Saudita seria inexpugnável com o seu escudo americano ao longo da fronteira norte.

Ele estava persuadido de que Saddam Hussein não conseguiria abandonar o Koweit sem humilhação, nem permanecer lá, se fosse atacado, sem uma afronta ainda mais ignominiosa. Não obstante, o estado de espírito entre os círculos mais próximos do Rais continuava a ser de confiança, como se estivesse à espera de algo de imprevisto que alteraria radicalmente a situação. Mas que demónio aguardava o homem que sucedesse? Que Alá descesse pessoalmente dos céus para esmagar o inimigo?

Rahmani levantou‑se da secretária e aproximou‑se da janela. Gostava de se movimentar, enquanto reflectia ‑desanuviava‑lhe o cérebro. Olhou para baixo e observou que a marina parecia transformada num local de recolha de lixo.

Havia algo nos relatórios que o preocupava particularmente. Voltou a sentar‑se, para nova leitura. Sim, existia algo de estranho. Alguns dos ataques aos iraquianos provinham de armas ligeiras e outros de bombas fabricadas com TNT industrial. No entanto, havia outro tipo de atentados que indicava o recurso a explosivo de plástico. Ora, o Koweit nunca possuíra aquele género de material, e muito menos o Semtex‑H. Por conseguinte, quem o utilizava e onde o obtinha?

Como se isso não bastasse, falava‑se de um transmissor de mensagens codificadas situado no deserto, em mutação constante da sua fonte e períodos de duração variáveis, assim como no tocante à hora.

Havia igualmente a alusão a um beduíno misterioso, que surgia e desaparecia como por artes mágicas, nos lugares mais inesperados, e deixava sempre uma esteira de destruição. Dois soldados feridos com gravidade haviam revelado, antes de expirar, que tinham visto o homem, alto e senhor de si, de keffiyeh vermelho e branco, uma de cujas extremidades lhe cobria parte do rosto.

Dois koweitianos haviam mencionado, sob tortura, a lenda do beduíno invisível, embora alegassem que nunca o tinham visto. O homens de Sabaawi tentavam convencê‑los do contrário, através de martírios ainda mais excruciantes.

Quanto mais ponderava o assunto, mais Hassan Rahmani admitia a possibilidade de ter entre mãos um infiltrador estrangeiro, indiscutivelmente integrado na sua autoridade. Custava‑lhe a crer que existisse um beduíno familiarizado com explosivos de plástico e transmissores de mensagens codificadas, se porventura se devia tudo ao mesmo homem.

Resultaria impossível localizar e deter todos os beduínos que vagueavam pela cidade e pelo deserto. A AMAM decerto procederia assim, mas limitar‑se-ia a arrancar unhas durante anos consecutivos, sem chegar a qualquer resultado prático.

Para ele, o problema resumia‑se a três opções. Capturar o homem durante um dos seus ataques, mas seria contingente e talvez nunca acontecesse. Deter um dos seus colaboradores koweitianos e, a partir daí, tentar localizar o covil. Ou surpreendê‑lo debruçado sobre o seu transmissor, no deserto.

Rahmani concentrou‑se na terceira alternativa. Mandaria vir do Iraque duas ou três das suas melhores equipas de detectores de rádio, colocá‑las‑ia em pontos diferentes e tentaria triangular a origem da transmissão. Necessitaria igualmente de um helicóptero do exército pronto para acudir, com um grupo das forças especiais, que se encarregaria do resto. Trataria disso assim que regressasse a Bagdade.

Hassan Rahmani não era a única pessoa interessada no beduíno, naquele dia, no Koweit. Numa vivenda suburbana a alguns quilómetros de distância do Hilton, um jovem koweitiano de thob de algodão branco sentava‑se numa poltrona e escutava o amigo que o procurara com uma informação interessante.

Estava no carro, à espera que a luz dos semáforos mudasse, quando reparei num camião do exército iraquiano no cruzamento, com os soldados em volta do capot, a comer e fumar.

De repente, um jovem surgiu de um café com um objecto que parecia uma caixa de charutos na mão. Não achei nada de extraordinário no facto, até que o vi atirá‑la para debaixo da viatura. A seguir, dirigiu‑se para a esquina e desapareceu. A luz mudou, mas continuei onde me encontrava. Deviam ter passado uns cinco segundos quando o camião se desintegrou e varreu os soldados. Acto contínuo, afastei‑me velozmente, antes que os homens da AMAM chegassem.

Plástico ‑murmurou o oficial do exército. ‑Quanto eu não daria por possuir algum! Devia tratar‑se de um dos homens do beduíno. Quem será o filho da mãe? Gostava de o conhecer.

Mas eu reconheci o rapaz.

Não teria vindo de propósito para te comunicar uma coisa que decerto já sabias. Garanto‑te que identifiquei o tipo que lançou a bomba. Há anos que compro tabaco na loja do pai dele.

Quando falou na Comissão Medusa, em Londres, três dias mais tarde, o Dr. Reinhart parecia cansado. Embora tivesse suspendido todas as suas outras atribuições em Porton Down, a documentação que levara consigo da reunião anterior e a informação suplementar chegada quase ininterruptamente desde então haviam‑no sobrecarregado com uma tarefa monstruosa.

O estudo talvez ainda não esteja concluído, mas nota‑se já uma imagem muito clara ‑anunciou. ‑Antes de mais, sabemos que Saddam Hussein dispõe de uma grande capacidade de produção de gás venenoso. Estimo‑a em mais de mil toneladas por ano. Durante a guerra Irão‑lraque, alguns soldados iranianos gaseados foram tratados aqui, na Grã‑Bretanha, e tive oportunidade de os examinar. O fosgénio e gás mostarda identificaram-se sem dificuldade. A notícia mais grave consiste em que não me resta a mínima dúvida de que o Iraque possui reservas de dois dos gases mais letais, agentes nervosos de invenção alemã denominados sarin e tabun. Se foram empregados nessa guerra, como creio, não mereceria a pena tratar as vítimas em hospitais ingleses. Teriam morrido.

Qual é o alcance da gravidade desses... hum... agentes?

‑perguntou Sir Paul Spruce.

É casado?

O mandarim urbano mostrou‑se surpreendido,   com certeza.         

Sua esposa costuma perfumar‑se por meio de um pulverizador?

Sim, na verdade vejo‑a fazê‑lo diversas vezes.

Reparou nas minúsculas gotas?

Sim, notei que eram minúsculas e, atendendo ao preço, congratulei‑me com isso.

Duas gotas como essas de sarin ou tabun na pele, e a pessoa morre ‑explicou o químico de Porton Down. Fez uma pausa para apreciar o efeito produzido. ‑As pesquisas dos iraquianos no campo dos gases nervosos remontam a 1976. Nesse

ano, contactaram com a empresa britânica ICI para produzir exterminadores de pulgas, mas os materiais que pediam levaram‑na a rejeitar a ideia. As especificações que apresentam destinavam‑se a vazilhas de reactores, tubos e bombas anticorrosivos, indícios suficientes para a convencer de que era um gás nervoso e não pesticidas que estava em jogo.

Ainda bem que a pretensão foi rejeitada‑murmurou Sir Paul, ao mesmo tempo que escrevia algo no bloco‑notas.

Mas não se lhes fecharam todas as portas –salientou o antigo refugiado vienense. ‑O pretexto consistia sempre em que o Iraque necessitava de produzir herbicidas e pesticidas, o que, naturalmente, exige o emprego de venenos.

Decerto não queriam realmente produzir esses exterminadores agrícolas? ‑aventurou Paxman.

Nem por sombras ‑asseverou Reinhart. ‑Para um químico profissional, a chave reside nas quantidades e tipos. Em 1981, conseguiram que uma firma alemã lhes construísse um laboratório de uma natureza muito especial e invulgar. Destinava‑se à produção de pentacloreto de fósforo, ponto de partida químico do fósforo orgânico que constitui um dos ingredientes do gás nervoso. Nenhum laboratório de pesquisas universitário necessitaria de manipular essas hediondas substâncias tóxicas.

Os engenheiros químicos envolvidos deviam estar ao corrente do facto. Outras licenças de exportação revelam encomendas de tiodiglicol. O gás mostarda obtém‑se a partir dele, quando misturado com ácido clorídrico. O tiodiglicol, em pequenas quantidades, também se utiliza para produzir a tinta das esferográficas.

‑Que quantidade compraram? ‑quis saber Sinclair.

Quinhentas toneladas.

Dão para muitas esferográficas ‑comentou Paxman, secamente.

Isto aconteceu em 1983 ‑prosseguiu Reinhart. –No Verão, a importante fábrica de veneno de Samarra entrou em laboração, para produzir iperite, que é o gás mostarda, e começaram a empregá‑lo contra os iranianos em Dezembro do mesmo ano. Durante os primeiros ataques destes, os iraquianos serviram‑se de uma mistura de chuva amarela, iperite e tabun. Em 1985, aperfeiçoaram‑na com cianeto de hidrofénio, gás mostarda, tabun e sarin, conseguindo assim uma taxa de mortalidade de sessenta por cento entre a infantaria do Irão.

Não podemos concentrar‑nos apenas nos gases nervosos, doutor? ‑sugeriu Sinclair. ‑Parecem‑me ser os realmente letais.

E são ‑confirmou o Dr. Reinhart.‑A partir de 1984, os produtos químicos que eles adquiriam eram o oxicloreto de fósforo, importante precursor do tabun, e dois precursores do sarin: o fosfito trimetílico e o fluoreto de potássio. Do primeiro destes três, tentaram encomendar duzentas e cinquenta toneladas a uma companhia holandesa. Trata‑se de pesticida suficiente para matar todas as árvores, arbustos e relva do MédioOriente. No entanto, os holandeses negaram‑se a comprazê‑los, à semelhança da ICI, mas, apesar disso, os iraquianos lograram adquirir dois produtos químicos não controlados na altura: a dimetilamina para produzir tabun e o isopropanol para o sarin.

Se não eram controlados na Europa, por que não podiam ser utilizados para pesticidas? ‑perguntou Sir Paul.

Por causa das quantidades, do equipamento de manufactura e instalações fabris ‑explicou Reinhart. ‑Para um engenheiro químico, nenhuma dessas aquisições se podia destinar a um objectivo que não fosse o gás venenoso.

Sabe quem tem sido o maior fornecedor ao longo dos anos?

Decerto. Registou‑se uma importante contribuição de natureza científica por parte da União Soviética e Alemanha Oriental, nos primeiros tempos, e algumas exportações de cerca de oito países, na maioria dos casos de pequenas quantidades de produtos químicos não controlados. Mas oitenta por cento da maquinaria, equipamento especial, tecnologia e know‑how proveio da Alemanha Federal.

Na verdade, há anos que protestamos junto das autoridades de Bona ‑esclareceu Sinclair. ‑Sem resultado, claro, pois afirmam que as nossas suspeitas são infundadas. Pode

identificar as fábricas de gás nas fotografias que lhe fornecemos, doutor?

Com certeza. Umas estão referenciadas à parte, enquanto outras podem observar‑se com uma lupa. ‑O químico dispôs cinco fotos ampliadas em cima da mesa. ‑Desconheço os nomes árabes, mas estes números bastam sem dúvida para o elucidar.

Basta que aponte os edifícios ‑disse Sinclair.

‑           Aqui, há um complexo de dezassete... temos aqui outro conjunto, este de apenas oito... e mais este...

Consultou uma folha de papel que extraiu da pasta e inclinou a cabeça, com uma expressão sombria.

‑           É o que nós calculávamos. Situam‑se em Al‑Qaim, Fal‑lujah, Al‑Hillah, Salman Pak e Samarra. Estou‑lhe muito grato, doutor. Os nossos rapazes chegaram exactamente à mesma conclusão. Todos esses locais serão incluídos na primeira vaga de bombardeamentos.

No final da reunião, Sinclair, Simon Paxman e Terry Martin seguiram a pé até Piccadilly e tomaram café em Richoux.

Não sei o que vocês pensam a esse respeito, mas, para nós, o ponto crucial é a ameaça do gás ‑observou Sinclair, enquanto movia a colher no cappuccino. ‑O general Schwarz‑kopf está convencido de que isso corresponde ao que classifica

de cenário de pesadelo. Ataques de gás maciços às nossas tropas. Terão de estar equipadas da cabeça aos pés para enfrentar esse tipo de inimigo. A faceta menos pessimista da situação é que o gás não tem uma duração prolongada, quando exposto ao ar. Você não parece seguro disso, Terry.

Essa chuva de projécteis... ‑grunhiu o interpelado.‑ Como tenciona o Saddam lançá‑los?

Sinclair encolheu os ombros.

Por meio de uma barragem de artilharia, suponho. Foi o que fez contra os iranianos.

Mas as peças dele só têm um alcance de trinta quilómetros. Devem estar algures no deserto.

Sim, dispomos da tecnologia necessária para as localizar, apesar da camuflagem.

Por conseguinte, se lhe destruírem a artilharia, como lançará a chuva de gás?

Por meio de bombardeiros, sem dúvida.

Mas também terão sido destruídos, quando as forças terrestres avançarem. Ele não disporá de nada para voar.

Então, recorrerá a mísseis Scud ou qualquer outra coisa.

Bem, amigos, vou andando.

Qual é a sua ideia, Terry?‑ perguntou Paxman, quando o homem da CIA se retirou.

Não sei bem ‑admitiu Martin, com um suspiro.‑ O Saddam e os seus estrategos devem estar ao corrente de tudo isso. Duvido que minimizem o poderio aéreo dos americanos. Pode arranjar‑me todos os discursos do homem nos últimos seis meses, Simon? Mas têm de ser em arábico.

Julgo que sim. Devem estar arquivados no GCHQ em Cheltenham ou no serviço arábico da BBC. Gravados ou transcritos?

‑           Gravados, se possível.

Ao longo de três dias, Martin escutou a voz gutural proveniente de Bagdade. Passou as gravações diversas vezes sem conseguir libertar‑se da persistente convicção de que o déspota iraquiano produzia os ruídos errados para um homem tão profundamente imerso em apuros. Ou não reconhecia a extensão destes últimos ou sabia algo que os seus inimigos ignoravam.

A 21 de Setembro, Saddam Hussein pronunciou novo discurso, ou melhor, uma declaração, no Conselho do Comando Revolucionário, que continha o seu vocabulário peculiar. Afirmou que não existia a menor possibilidade de uma retirada do Koweit e qualquer tentativa para o desalojar de lá conduziria à «mãe de todas as batalhas».

Os media adoraram a expressão, que passou a ser repetida a propósito ou despropósito de tudo.

Terry Martin estudou o texto e finalmente telefonou a Simon Paxman.

Estive a consultar o vernáculo do Alto Tigre‑anunciou.

Que passatempo! ‑comentou o outro.

Por causa da expressão que ele empregou: «a mãe de todas as batalhas».

Sim, e daí?

‑O termo traduzido por «batalha» também significa baixa ou banho de sangue.

Seguiu‑se um momento de silêncio.

‑           Não se preocupe com isso ‑acabou Paxman por dizer.

No entanto, Martin preocupava‑se.

 

O filho do dono da tabacaria estava assustado © o pai também.

‑Diz‑lhes o que sabes, rapaz ‑indicou este último.

Os dois homens da delegação da Comissão de Resistência do Koweit tinham‑se mostrado absolutamente delicados ao identificarem‑se, mas firmes quanto ao desejo de que o jovem fosse sincero.

O dono da tabacaria, embora soubesse que os nomes declinados não correspondiam aos verdadeiros, compreendia que tinha na sua frente dois indivíduos poderosos e influentes. E ficara totalmente surpreendido ao inteirar‑se de que o filho estava envolvido em resistência activa.

Como se isso não bastasse, acabava de saber que não fazia parte da organização oficial koweitiana, pois lançara uma bomba a um camião iraquiano por ordem de um bandido qualquer de quem nunca ouvira falar. Na verdade, tudo aquilo bastava para deixar um pai extremamente abalado.

Encontravam‑se os quatro sentados na sala da residência confortável do tabaqueiro em Keifan, e um dos visitantes explicava que a organização não tinha nada contra o beduíno e apenas pretendia contactar com ele, para estabelecerem uma plataforma de colaboração.

Por conseguinte, o rapaz descreveu o que acontecera desde que o seu amigo fora impedido de alvejar os ocupantes de um transporte de tropas iraquianas, emboscado atrás de um monte de entulho, na berma da estrada. Os dois homens escutaram em silêncio, apenas com uma ou outra pergunta ocasional de esclarecimento. O que mantinha mutismo absoluto e usava óculos escuros era Abu Fouad.

O interrogador estava particularmente interessado na casa onde o grupo de jovens se reunia com o beduíno. O rapaz forneceu o endereço e acrescentou:

‑           Duvido que haja qualquer vantagem em procurá‑lo. Ele é muito cauteloso. Um de nós foi lá uma vez para lhe falar e encontrou a porta trancada. Apesar de supormos que não vive lá, inteirou‑se da visita na sua ausência e recomendou que não o repetisse, de contrário interromperia o contacto connosco e não o tornaríamos a ver.

Abu Fouad inclinou a cabeça em assentimento. Ao contrário dos outros, era um militar treinado e julgava reconhecer a presença de alguém nas mesmas condições.

Quando é a próxima reunião? ‑perguntou a meia‑voz.

Ele contacta com um de nós, que informa os outros.

Talvez demore algum tempo.

Os dois koweitianos retiraram‑se. Levavam consigo a descrição de dois veículos: uma carrinha cheia de mossas, aparentemente disfarce de um agricultor que transportava fruta da herdade para a cidade, e um potente Land‑Rover para as digressões ao deserto.

Abu Fouad revelou os números de matrícula a um amigo que trabalhava no Ministério dos Transportes, mas só conseguiu apurar que eram fictícios. O único indício suplementar consistia nos bilhetes de identidade que o homem necessitaria de utilizar para não ser retido nos locais de inspecção e barreiras nas estradas.

Através da sua comissão, contactou com um funcionário do Ministério do Interior, e desta vez a sorte não lhe voltou as costas. O homem recordava‑se de emitir um bilhete de identidade falso para um agricultor de Jahra, um favor que fizera ao milionário Ahmed Al‑Khalifa, seis semanas atrás.

Abu Fouad ficou simultaneamente encantado e intrigado. O comerciante era uma figura influente e respeitada no seio do Movimento, mas sempre se supusera que se limitava a participar na faceta financeira da organização. Que motivo o levaria a proteger o misterioso e letal beduíno?

Entretanto, a sul da fronteira do Koweit o fluxo de armamento americano prosseguia. Na última semana de Setembro, o general Norman Schwarzkopf, instalado no labirinto de salas secretas dois pisos abaixo do Ministério da Força Aérea Saudita, em Riade, reconheceu finalmente que dispunha de material e homens suficientes para declarar a Arábia Saudita a coberto de um eventual ataque iraquiano.

No ar, o general Charles «Chuck» Horner construíra um «guarda‑chuva» de aço em patrulha constante ‑uma frota aérea de «caças, bombardeiros e aviões de reabastecimento, em número suficiente para aniquilar uma possível invasão.

Norman Schwarzkopf sabia que possuía unidades mecanizadas e artilharia ligeira e pesada para enfrentar qualquer coluna iraquiana, cercá‑la e destruí‑la.

Na última semana de Setembro, em condições de sigilo absoluto ao ponto de nem os aliados da América se inteirarem, foram traçados planos para passar da posição defensiva para a ofensiva. O assalto ao Iraque achava‑se projectado, embora o mandato das Nações Unidas ainda se limitasse a garantir a segurança da Arábia Saudita e dos Estados do Golfo, e apenas isso.

Mas Schwarzkopf também enfrentava problemas. Um consistia em que o número de tropas, armas e tanques voltados contra ele era o dobro do existente quando chegara a Riade, seis semanas atrás. Quanto ao outro óbice, residia em que necessitaria de duplicar os efectivos das forças da Coligação para libertar o Koweit.

O general esforçava‑se por seguir à risca as maneiras de proceder de George Patton: uma baixa entre as suas forças representava um morto a mais. Assim, antes de entrar em acção, pretendia duas coisas: duplicar o número de soldados com que actualmente contava e a garantia de um ataque aéreo com â certeza de «degradar» em cinquenta por cento o poderio das forças iraquianas dispostas a norte da fronteira.

O que implicava mais tempo, equipamento, armamento, tanques, tropas, aviões, combustível, alimentos, armazéns e, sobretudo, muito mais dinheiro. Por fim, comunicou aos abismados Napoleões de poltrona do Capitólio que, se queriam obter a vitória, tinham de lhe satisfazer o pedido.

O planeamento desenrolado na última semana de Setembro desenrolou‑se no meio do maior segredo. E ainda bem que foi assim, pois as Nações Unidas, sem planos definidos, aguardariam até 29 de Novembro, antes de dar luz verde para expulsar as tropas iraquianas do Koweit, a menos que Saddám Hussein prometesse retirá‑las antes de 16 de Janeiro. Se o planeamento fosse iniciado em fins de Novembro, não teria sido completado a tempo.

Ahmed Al‑Khalifa estava profundamente embaraçado. Conhecia, evidentemente, Abu Fuad, e sabia quem e o que era. Além disso, o seu pedido causava‑lhe satisfação. Mas, como explicou, empenhara a sua palavra de honra, pelo que se achava impossibilitado de o comprazer.

Absteve‑se, pois, de lhe revelar que o beduíno em causa era na realidade um oficial britânico. No entanto, aceitou deixar uma mensagem para ele num local que sabia que visitaria, mais cedo ou mais tarde.

Nessa conformidade, na manhã seguinte, depositou uma carta, com a sua recomendação pessoal para que se encontrasse com Abu Fuad, sob a lápide de mármore do túmulo do marinheiro Shepton, no cemitério cristão.

O grupo compunha‑se de seis soldados, comandados por um sargento, que ficaram tão surpreendidos como o beduíno, quando este surgiu na esquina.

Mike Martin deixara a carrinha na garagem habitual e atravessava a cidade a pé em direcção à vivenda que escolhera para aquela noite. Quando avistou os iraquianos e compreendeu que também o tinham visto, amaldiçoou‑se entre dentes, consciente de que, na sua actividade, um homem podia morrer em resultado da mínima distracção.

Há muito que soara o recolher obrigatório e, embora estivesse habituado a percorrer a cidade quando se encontrava deserta de transeuntes vulgares e somente as patrulhas iraquianas frequentavam as ruas, esforçava‑se por permanecer nas ruas menos iluminadas, enquanto as forças invasoras preferiam vigiar as principais estradas.

Todavia, na sequência do regresso de Hassan ahrnani a Bagdade e seu vitriólico relatório quanto à ineficiência do Exército Popular, estavam a verificar‑se algumas alterações na rotina. As boinas verdes das Forças Especiais começavam a aparecer.

Embora não se equiparassem à Guarda Republicana, os Boinas Verdes eram pelo menos mais disciplinados do que a escória de recrutas que dava pelo nome de Exército Popular. Seis deles encontravam‑se agora junto do seu transporte, num cruzamento onde normalmente não costumava haver iraquianos.

Martin apenas teve tempo de se apoiar pesadamente ao bordão de que se fazia acompanhar e adoptar a atitude de um ancião. Tratava‑se de uma postura conveniente, pois a cultura árabe concede respeito aos velhos.

‑Chega aqui! ‑bradou o sargento.

Havia quatro espingardas de assalto apontadas ao vulto solitário de keffiyeh de xadrez, que fez uma pausa e em seguida recomeçou a coxear.

Que fazes na rua a estas horas, beduíno?

Tento chegar a casa antes do recolher obrigatório.

‑O recolher começou há duas horas, velho‑tonto.

Este meneou a cabeça, confuso.

‑           Não sabia, sayidi. Não tenho relógio.

No Médio Oriente, os relógios não são indispensáveis; apenas altamente apreciados, como sinal de prosperidade. Os soldados iraquianos no Koweit não tardaram a possuir um, roubado, naturalmente. Mas o termo «beduíno» deriva de bidun, que significa «sem».

O sargento emitiu um grunhido. A explicação afigurava‑‑se‑lhe plausível.

‑           Documentos ‑exigiu.

Martin pousou a mão livre na túnica encardida.

Parece que os perdi ‑gemeu.

Revistem‑no.

Um dos soldados adiantou‑se para obedecer. A granada de mão fixada à parte interna da coxa esquerda do suposto beduíno parecia‑lhe uma melancia como as da sua carrinha.

‑           Não me toques nos tomates‑advertiu, bruscamente.

O soldado deteve‑se e um colega soltou uma risada divertida, enquanto o sargento procurava manter uma expressão grave.

‑           Vá, Zuhair. Revista‑o.

O interpelado hesitou, embaraçado, consciente de que estava a ser desfrutado.

‑           Só a minha mulher pode tocar aí‑? volveu o beduíno.

Dois soldados não conseguiram conter a hilaridade © baixaram as espingardas. Os outros não tardaram a imitá‑los, ao passo que Zuhair continuava indeciso.

‑           É claro que não lucras nada com isso ‑persistiu Martin.

‑A idade já não me permite essas coisas.

Desta vez, nem o próprio sargento conservou o ar sisudo.

‑           Muito bem, velhote. Segue o teu caminho. E não voltes a andar cá fora depois do recolher.

Martin afastou‑se com lentidão e, ao alcançar a esquina, fez uma pausa e voltou‑se, ao mesmo tempo que introduzia a mão na túnica. Quando a granada que lançou pousou junto da biqueira da bota de Zuhair, todos a fitaram de olhos arregalados. Por último, explodiu. Foi o fim dos seis militares. Era igualmente o último dia de Setembro.

Naquela noite, longe dali, em Telavive, o general Yaacov Kobi Dror, da Mossad, estava sentado no seu gabinete, no edifício Hadar Dafna, a saborear uma bebida após o trabalho com um velho amigo e colega, Shlomo Gershon, mais conhecido por Sami.

Este último era chefe dos Combatentes, ou Divisão Kome‑niute, secção responsável pelos agentes «ilegais», perigoso ramo da espionagem. Encontrava‑se presente, com outro homem, quando o seu superior hierárquico mentira a Chip Barber.

‑           Não teria sido conveniente dizer‑lhes? ‑perguntou, por que o assunto voltara a ser abordado.

Dror levou o copo aos lábios e pousou‑o, antes de replicar:

‑           Que se amolem e recrutem os seus agentes.

Era um sabra, nascido e educado em Israel, sem a amplitude de vistas nem a indulgência de pessoas como David Ben Gurion.

A sua lealdade política voltava‑se para o partido Likud, quase da extrema‑direita, com Menachem Begin, que estivera no frgun, e Itzhak Shamir, outrora da linha dura.

Uma ocasião em que assistia a uma prelecção de um seu subordinado aos novos recrutas, ouvira‑o pronunciar a expressão «agências de serviços secretos amigos», mandara‑o calar e dirigira‑se aos alunos nos seguintes termos:

‑ Israel não tem amigos de espécie alguma, salvo a possível excepção de uma diáspora judaica. O mundo divide‑se em duas categorias: inimigos e neutrais. Quanto aos primeiros, sabemos como enfrentá‑los. No caso dos segundos, aceitamos tudo o que têm para nos oferecer, sem darmos nada em troca. Somam‑lhes, apliquem‑lhes palmadas nas costas, tomem uma bebida com eles, elogiem‑nos, agradeçam as informações, mas não lhes revelem nada.

‑Esperemos ao menos que eles nunca o descubram ‑observou Gershon.

‑           Como o hão‑de descobrir? Somos só oito a sabê‑lo.

E pertencemos todos ao mesmo departamento.

Talvez fosse devido à bebida, mas Dror esquecia‑se de uma pessoa.

Na Primavera de 1988, um homem de negócios britânico chamado Stuart Harris visitou uma feira industrial em Bagdade. Era director de vendas de uma firma de Nottingham que fabricava e vendia equipamento para construção de estradas. O certame realizava‑se sob os auspícios do Ministério dos Transportes iraquiano e, à semelhança de quase todos os ocidentais, instalara‑se no Hotel Rashid, na Yafa Street, construído quase exclusivamente para os estrangeiros, que estava sempre sob vigilância.

No terceiro dia da exposição, quando regressou ao quarto, Harris descobriu que haviam introduzido um sobrescrito por baixo da porta. Não tinha a indicação de qualquer nome; apenas o número dos aposentos, que era o correcto.

Continha uma folha de papel e outro sobrescrito em branco, do tipo da correspondência por via aérea. Na primeira, em inglês e maiúsculas, lia‑se: QUANDO REGRESSAR A LONDRES, ENTREGUE ESTE SOBRESCRITO A NORMAN, NA EMBAIXADA ISRAELITA.

Apenas isto. Stuart Harris sentiu‑se dominado pelo pânico, aterrorizado mesmo. Conhecia a reputação da temível polícia secreta do Iraque. O que quer que o sobrescrito encerrasse, poderia contribuir para a sua detenção, tortura e porventura morte.

Não obstante, conseguiu manter‑se calmo e tentou analisar a situação. Porquê ele, por exemplo? Havia dezenas de homens de negócios ingleses, em Bagdade. Por que o haviam escolhido? Não podiam saber que era judeu e o pai chegara à Grã‑Bretanha em 1935, procedente da Alemanha, com a identidade de Samuel Horowitz.

Embora nunca viesse a inteirar‑se, houvera uma conversa, dois dias atrás, no refeitório do recinto da feira, entre dois funcionários do Ministério dos Transportes do Iraque. Um falara ao outro da sua visita à fábrica de Nottingham, no Outono anterior, onde Harris fora seu anfitrião no primeiro e segundo dias, desaparecera durante vinte e quatro horas e finalmente regressara à circulação. Quando lhe perguntara se estivera doente, um colega presente rira e revelara que se ausentara para celebrar o Yom Kippurí.25).

Os dois funcionários públicos iraquianos não voltaram a pensar no assunto, ao contrário de alguém que se encontrava sentado perto deles, o qual repetiu a conversa ao seu superior. Este fingiu não lhe ligar importância, porém mais tarde ponderou o assunto, decidiu mandar investigar Stuart Harris, de Nottingham, e inteirou‑se do número do seu quarto no Hotel Rashid.

Harris perguntava‑se o que deveria fazer. Mesmo, que o autor anónimo da missiva descobrisse a sua ascendência judaica, havia uma coisa de que nunca tomaria conhecimento, por mais que se esforçasse. Por extraordinária coincidência, era um sayan.

O Instituto de Contra‑Espionagem e Operações Especiais israelita, fundado em 1951, por determinação do próprio Ben Gurion, é conhecido fora das suas portas por Mossad, termo hebraico que significa Instituto. No seu seio, nunca se emprega essa designação, mas sempre o «Gabinete». De entre todas as organizações congéneres do mundo, é sem dúvida a menos numerosa, com um orçamento reduzido, comparativamente.

Deve‑se a dois factores conseguir funcionar com uma guarnição e verba modestas. Um consiste na facilidade com que «suga» informação no meio da população civil israelita –

 

(25) Festividade dos judeus, celebrada em Setembro. (N. do T.)

 

população essa ainda surpreendentemente cosmopolita, que contém uma enorme variedade de talentos, idiomas e origens geográficas.

O outro factor diz respeito a uma rede internacional de colaboradores ou assistentes, em hebraico sayanim. Trata‑se dos judeus da diáspora, os quais, embora provavelmente leais ao país em que residem, manifestam simpatia especial pelo estado de Israel.

Há dois mil só em Londres, cinco mil no resto da Grã‑‑Bretanha e dez vezes mais nos Estados Unidos. Nunca intervêm directamente em operações ‑pedem‑se‑lhes unicamente favores. E devem ser convencidos de que a colaboração solicitada não faz parte de qualquer acção contra o seu país de nascimento ou adopção, pois o conflito de lealdades não é permitido. No entanto, o recurso a essas pessoas permite reduzir os custos operacionais substancialmente.

Por exemplo: uma equipa da Mossad chega a Londres para montar uma operação contra uma brigada secreta palestiniana. Precisa de transporte. Para tal, um sayan dedicado à venda de veículos recebe o pedido para deixar um carro usado em determinado lugar, com as chaves debaixo do tapete. Mais tarde, quando já não é necessário, devolvem‑no. O sayan nunca se inteira do objectivo para o qual o utilizam e fica registado nos livros da firma que foi cedido para a eventual venda a um interessado.

Essa mesma equipa carece de uma «fachada». Um sayan envolvido na compra e venda de bens imobiliários cede‑lhe uma loja desocupada, e outro ligado ao comércio de doçaria abastece‑a. Para ponto de entrega da «correspondência», outro sayan empresta as chaves de um escritório vago.

Stuart Harris encontrava‑se em gozo de férias na estância de veraneio israelita de Eilat, quando, no bar do Red1 Rock, entabulou conversa, ou vice‑versa, com um jovem bemparecido que dominava perfeitamente o idioma inglês. Num encontro ulterior, o mesmo jovem apresentou‑se com um indivíduo mais idoso, o qual conseguiu hábil e subtilmente inteirar‑se da posição de Harris quanto aos interesses de Israel. Antes de terminar o período de férias, este último admitiu que, se alguma vez lhes pudesse ser útil...

De regresso a Inglaterra e à casa em que vivia com a esposa, tudo se desenrolou normalmente durante dois anos, sem que o incumbissem de qualquer missão. Não obstante, um visitante de modos cordiais procurava‑o periodicamente por mera cortesia. Com efeito, uma das tarefas mais fastidiosas dos katsas em serviço no estrangeiro consiste em estar a par da situação dos sayanim da sua lista.

Por conseguinte, Stuart Harris conservava‑se dominado pelo pânico num quarto de hotel de Bagdade, sem saber o que fazer. A carta podia perfeitamente constituir uma provocação e alguém o interceptaria no aeroporto, quando pretendesse embarcar com ela no bolso. Deveria introduzi‑la dissimuladamente na bagagem? Duvidava de que fosse capaz. De resto, como a recuperaria em Londres?

Por fim, acalmou‑se e elaborou um plano, que executou perfeitamente. Queimou o sobrescrito exterior e o bilhete num cinzeiro, pulverizou as cinzas e lançou‑as na sanita, após o que accionou o autoclismo. Em seguida, ocultou o segundo sobrescrito debaixo do cobertor de reserva dobrado no armário, depois de o limpar de impressões digitais.

Se efectuassem uma busca ao quarto, juraria que não precisara do cobertor e a carta devia ter sido deixada por um ocupante anterior.

Entrou numa papelaria para comprar um sobrescrito de maiores dimensões e num edifício dos Correios, a fim de adquirir estampilhas suficientes para expedir uma revista para Londres. Para o efeito, optou por uma que enaltecia as virtudes do Iraque como organizador da feira.

No último dia da sua estada, antes de partir para o aeroporto com os dois colegas, recolheu ao quarto, introduziu a carta entre as páginas da revista e esta no sobrescrito, que endereçou a um tio em Long Eaton. Sabia que havia um marco postal no átrio e a próxima extracção da correspondência se efectuava dentro de quatro horas. Calculou que mesmo que a embalagem fosse aberta por eventuais agentes iraquianos, ele já se encontraria então a bordo de um avião britânico, que nessa altura provavelmente sobrevoaria os Alpes.

Diz‑se que a sorte favorece os intrépidos ou os imprudentes, ou ambos. Na realidade, o átrio era vigiado por homens da AMAM, particularmente interessados em observar se algum estrangeiro prestes a partir era abordado por um iraquiano, para tentar entregar‑lhe qualquer objecto suspeito. Harris levava o sobrescrito debaixo do braço esquerdo, dentro do casaco. Um homem entrincheirado atrás de um jornal aberto prestava atenção ao que se passava, porém um carro com bagagem interpôs‑se no momento em que o inglês depositava o sobrescrito no marco. Quando reapareceu no campo visual do iraquiano, encontrava‑se junto da Recepção, para entregar a chave do quarto.

A revista foi entregue em casa do tio, uma semana mais tarde. Harry sabia que ele estava ausente de férias e, como possuía a chave, para a eventualidade de se registar um roubo ou incêndio, utilizou‑a para a recolher. A seguir, dirigiu‑se à embaixada israelita em Londres e pediu para falar com o seu contacto. Conduziram‑no a uma saleta e indicaram que aguardasse.

Pouco depois, surgiu um homem de meia‑idade, que lhe perguntou o nome e motivo pelo qual desejava avistar‑se com «Norman». Harry elucidou‑o, extraiu o sobrescrito da algibeira e pousou‑o na mesa. O diplomata empalideceu, solicitou‑lhe que esperasse um momento e saiu.

Ele aguardou interminavelmente, segundo lhe parecia. Embora o ignorasse, estava a ser observado e fotografado, ao mesmo tempo que se desenrolavam diligências para confirmar que se tratava realmente de um sayan e não de um terrorista palestiniano. Por fim, dissipadas todas as dúvidas, o jovem katsa entrou na sala.

Sorriu, apresentou‑se com a identidade de Rafi e convidou Harris a contar a sua história desde o princípio, em Eilat. Apesar de se achar ao corrente de tudo, necessitava de se certificar. Quando a narrativa chegou a Bagdade, o seu interesse aumentou e passou a formular várias perguntas. Não anotou nada, porque estava a ser tudo devidamente gravado. Por último, pegou no telefone e manteve diálogo em voz baixa com um colega mais graduado, que estava no aposento contíguo.

O seu derradeiro acto consistiu em agradecer profusamente a Harris, felicitá‑lo pela coragem e sangue‑frio revelados, exortá‑lo a não divulgar o incidente a ninguém e desejar‑lhe feliz regresso a casa.

Um homem de capacete de segurança, blusão protegido e luvas levou a carta, a fim de ser fotografada e submetida aos raios‑X. A embaixada israelita já perdera um homem com uma missiva armadilhada e não queria que o facto se repetisse.

A carta foi finalmente aberta. Continha duas folhas de papel apropriado do correio aéreo cobertas de caracteres arábicos. Rafi não falava o idioma e ainda menos o lia. E o mesmo se aplicava ao resto do pessoal do posto de Londres, pelo menos para decifrar a complexa caligrafia. Em face disso, ele enviou um relatório minucioso a Telavive e pela rádio e a seguir redigiu uma descrição ainda mais pormenorizada no estilo formal e uniforme denominado NAKA, na Mossad. Seguiram ambos na mala diplomática do voo da noite de Heathrow, com destino ao aeroporto de Ben Gurion.

Um estafeta armado que se deslocava numa motocicleta recebeu a encomenda do avião e levou‑a para o imponente edifício no bulevar Rei Saul, onde, após a hora do pequeno‑‑almoço, foi entregue ao chefe da Secção do Iraque, um eficiente e jovem katsa chamado David Sharon.

Este falava e lia arábico fluentemente e o que se lhe deparou nas duas páginas de papel quase transparente produziu‑lhe uma sensação muito semelhante à que o invadira quando se lançou de pára‑quedas sobre o deserto de Negev, durante o período de treino nos Paras.

Serviu‑se da sua própria máquina de escrever, evitando recorrer à sua secretária e ao processador de palavras, para bater uma tradução literal do texto. Em seguida, levou‑a, juntamente com o relatório de Rafi, ao seu superior imediato, director da Divisão do Médio Oriente.

Segundo a carta, o signatário era um funcionário de alto nível do regime iraquiano disposto a trabalhar para Israel em troca de uma remuneração, e só com esta condição.

Havia mais algum texto e o endereço de uma posta‑restante no edifício principal dos Correios de Bagdade, mas a essência era essa.

Naquela noite, houve uma reunião cimeira no gabinete privado de Kobi Dror. Estavam presentes Sami Gershon, chefe dos Combatentes, Eitan Hadar, superior imediato de Sharon como Director do Médio Oriente, ao qual ele levara a carta, nessa manhã, e o próprio David Sharon.

Gershon mostrou‑se incrédulo desde o princípio.

‑           É tudo falso‑asseverou. ‑Nunca vi uma tentativa de vigarice tão grosseira. Não estou disposto a enviar um único dos meus homens para se certificar, Kobi. Seria o mesmo que mandá‑lo para a morte. Nem sequer incumbiria um ater de.se

deslocar a Bagdade para proceder ao contacto.

Oter é um árabe utilizado pela Mossad para estabelecer um contacto preliminar com outro árabe; um elo de ligação de baixo nível e muito mais dispensável que um eficiente katsa israelita.

O seu ponto de vista parecia prevalecer. A carta não passava de uma manobra pouco hábil para atrair uma alta patente katsa a Bagdade, para ser preso, torturado, submetido a julgamento e executado em público. Por fim, Dror voltou‑se para Sharon.

Cortaram‑lhe a língua, David? Qual é a sua opinião?

Creio que Sami deve ter, quase inevitavelmente, razão.

Seria rematada loucura enviar um bom agente.

Eitan Hadar dirigiu‑lhe um olhar de advertência. Havia a rivalidade habitual entre Divisões. Não convinha conceder a vitória de bandeja a Gershon.        

Noventa e nove por cento das hipóteses indicam que se trata de uma armadilha.

Só noventa e nove? ‑ironizou Dror. ‑E o um por cento que resta, meu amigo?

‑É uma ideia sem pés nem cabeça que acaba de me ocorrer. O um por cento significaria que caiu do céu aos trambolhões no nosso seio um novo Penkovsky.

Seguiu‑se um pesado silêncio. O nome pairava na atmosfera como um desafio aberto. Gershon expeliu o ar dos pulmões através de um longo silvo. Por seu turno, Kobi Dror fitava o chefe da Secção do Iraque e Sharon contemplava as pontas dos dedos.

Em espionagem, existem apenas quatro maneiras de recrutar um agente para infiltração nos altos níveis de um país em mente.

A primeira e de longe a mais difícil consiste em recorrer a um dos cidadãos do país interessado, mas treinado para passar por súbdito da nação visada. Trata‑se de um objectivo quase impossível, a menos que o infiltrador tenha nascido e vivido nele e possa ser enviado de novo para lá, com uma explicação convincente da sua ausência. Mesmo assim, tem de esperar anos primeiro que ganhe acesso a segredos importantes ‑período que por vezes se chega a prolongar por dez anos.

Não obstante, Israel fora mestre nessa técnica. E isto porque, quando o Estado era jovem, afluíam os judeus que se haviam criado em diferentes partes do mundo. Havia‑os capazes de passar por marroquinos, argelinos, líbios, egípcios, sírios, iraquianos e iemenitas. Sem contar com os provenientes da Rússia, Polónia, Europa Ocidental e Américas.

O mais bem sucedido de todos foi Elie Cohen, nascido e criado na Síria, introduzido em Damasco como um sírio que estivera ausente vários anos e decidira regressar. Com o seu nome nativo, tornou‑se íntimo de políticos, funcionários públicos e generais importantes, os quais se exprimiam livremente durante as sumptuosas recepções que ele promovia. Tudo o que diziam, inclusive todo o plano de batalha sírio, chegou ao conhecimento de Telavive a tempo para a Guerra dos Seis Dias. Cohen foi descoberto, torturado e executado publicamente na Praça da Revolução de Damasco. Essas infiltrações são extremamente perigosas e muito raras.

Mas os anos passaram e os primeiros imigrantes israelitas envelheceram. Os seus filhos sabra não estudavam arábico, pelo que não podiam tentar emular Cohen, razão pela qual a Mossad, em 1990, dispunha de muito menos arabistas do que se poderia imaginar.

Havia, porém, uma segunda razão. A penetração dos segredos árabes efectua‑se mais facilmente na Europa ou na América. Se um Estado Árabe compra um «caça» americano, os pormenores podem ser roubados facilmente e com menos riscos nos Estados Unidos. Se um árabe bem situado na vida parece mais susceptível de uma abordagem, por que não efectuá‑la quando visita pontos importantes da Europa? Era por isso que, em 1990, a esmagadora maioria das operações da Mossad se desenrolava de preferência na Europa e América de baixo risco do que nos Estados Árabes de risco elevado.

No entanto, o rei de todos os infiltradores foi Marcus Wolf, o qual, durante anos, dirigiu a rede dos serviços secretos da Alemanha Oriental. Possuía uma vantagem importante ‑um alemão oriental podia passar por alemão federal.

No decurso da sua época, «Mischa» Wolf infiltrou várias dezenas de agentes seus na Alemanha Federal, uma das quais se tornou secretária particular do chanceler Willi Brandt. A especialidade de Wolf consistia na secretária solteirona de meia‑‑idade que conseguia revelar‑se indispensável para o seu patrão‑‑ministro, capaz de copiar todos os documentos que lhe passavam pelas mãos, a fim de informar Berlim Oriental.

O segundo método de infiltração diz respeito à utilização de um nativo da Agência agressora, fazendo‑se passar por alguém proveniente de uma terceira nação. O país alvo sabe que o infiltrador é estrangeiro, mas julga que se pode considerar amigável e simpatizante.

A Mossad dedicou‑se a esta operação de forma brilhante com um homem chamado Zeev Gur Arieh, que nascera, em 1921, em Mannheim, Alemanha, com o nome de Wolfgang Lotz. Tinha um metro e oitenta de altura, louro, de olhos azuis, não circuncidado, mas judeu. Chegou a Israel em criança, criou‑se aí, adquiriu um nome judeu, combateu no movimento de resistência Haganah e veio a tornar‑se major do exército israelita, até que a Mossad decidiu pegar‑lhe na mão.

Foi enviado para a Alemanha durante dois anos para aperfeiçoar as suas noções do idioma e «prosperar» com o dinheiro fornecido pela Mossad. Em seguida, com uma atraente esposa germânica, emigrou para o Cairo e montou uma escola de equitação.

Constituiu um êxito extraordinário. Os oficiais egípcios adoravam descontrair‑se com os seus cavalos, sob as vistas do atencioso Wolfgang, alemão direitista e anti‑semita no qual podiam confiar. E não confiavam pouco. Tudo o que diziam era transmitido a Telavive. Lotz acabou por ser desmascarado, mas teve a sorte de escapar à execução e, após a Guerra dos Seis Dias, foi trocado por prisioneiros egípcios.

Mas um impostor ainda mais bem sucedido foi outro alemão de uma geração anterior. Antes da Segunda Guerra Mundial, Richard Sorge exercia as funções de correspondente estrangeiro em Tóquio e dominava perfeitamente o idioma japonês, com contactos importantes no governo de Hidêki Tojo, o qual aprovava os manejos de Hitler e supunha que Sorge era um nazi ferrenho ‑pelo menos, este assim proclamava.

Nunca ocorreu a Tóquio que, ao invés, se tratava de um comunista alemão ao serviço de Moscovo. Durante anos, revelou às autoridades soviéticas os planos de guerra de Tojo. O seu coup supremo foi o último. Em 1941, as tropas de Hitler encontravam‑se às portas de Moscovo. Estaline precisava de saber com urgência se o Japão montaria uma invasão à URSS a partir das suas bases na Manchúria. Sorge averiguou que não tencionava fazê‑lo. Assim, o dirigente russo pôde transferir 40000 soldados mongóis do Leste para Moscovo. A carne de canhão asiática manteve os alemães em respeito por mais algumas semanas até à chegada do Inverno, altura a partir da qual Moscovo ficou livre de perigo.

Mas não Sorge, que foi descoberto e enforcado. Todavia, antes de morrer, a sua informação provavelmente alterou o curso da História.

O método mais comum de assegurar a presença de um agente no país alvo é o terceiro: recrutá‑lo simplesmente quando se encontra ainda «no local». O recrutamento pode ser fastidiosamente moroso ou surpreendentemente rápido. Com esse objectivo em vista, «detectores de talentos» patrulham a comunidade diplomática em busca de um funcionário superior do «outro lado» susceptível de se sentir desencantado, insatisfeito e rancoroso ou de algum modo suficientemente maduro para se deixar aliciar.

São estudadas as delegações que visitam países estrangeiros, para verificar se algum dos seus membros se revelará sensível a uma abordagem para uma troca de lealdades. Quando o detector de talentos encontra um «possível», os recrutadores entram em cena através de uma amizade banal, que se vai aprofundando com o tempo. Por último, o «amigo» solicita um pequeno favor ‑uma informação de escassa importância.

A partir do momento em que a armadilha está montada, não há fuga possível. Os motivos para o recrutamento com vista a servir outro país variam. O recruta pode estar crivado de dívidas, ter sido preterido numa promoção, detestar o regime vigente ou ambicionar simplesmente uma vida de dinheiro e luxo.

Muitos soviéticos, como Penkovsky e Gordievsky, mudaram de campo por razões de «consciência» sinceras, mas a maioria dos espiões obedece a fins mais pessoais e egoístas, persuadidos de que se revestem de importância especial no esquema das coisas.

Mas o mais singular de todos os recrutamentos denomina‑se de «entrada». Como o termo indica, o recruta limita‑se a entrar, inesperadamente, sem se fazer anunciar, e oferecer os seus préstimos.

A reacção da agência abordada reveste‑se sempre de profundo cepticismo: tratar‑se‑á de uma «implantação» do outro lado? Assim, quando, em 1960, um russo de estatura elevada procurou os americanos em Moscovo, declarou que era coronel dos serviços secretos militares soviéticos‑o GRU ‑e se prontificou a espiar para o Ocidente, foi rejeitado.

Perplexo, o homem procurou os ingleses, que decidiram conceder‑lhe uma oportunidade. Oleg Penkovsky revelou‑se um dos agentes mais surpreendentes. Durante a sua breve carreira de trinta meses, entregou 5500 documentos à operação anglo‑‑americana que o «dirigia», todos pertencentes à categoria de «secreto» ou «ultra‑secreto». No decurso da crise dos mísseis cubanos, o mundo nunca se apercebeu de que o Presidente Kennedy estava inteirado de todos os trunfos que Nikita Khrus‑chev tinha para utilizar, como um jogador de póquer com um espelho atrás do ombro do oponente. O espelho era Penkovsky.

O russo expôs‑se a riscos extremamente perigosos, ao recusar‑se a vir para o Ocidente definitivamente, quando o podia fazer. Após a crise dos mísseis, foi desmascarado pela contra‑espionagem soviética, julgado e fuzilado.

Nenhum dos outros três israelitas presentes no gabinete de Kobi Dror naquela noite em Telavive precisava de esclarecimentos acerca de Oleg Penkovsky. No seu mundo, fazia parte de uma lenda. O sonho pairou nas suas mentes, quando Sharon mencionou o nome. Um traidor real, de vinte e cinco quilates, em Bagdade? Seria verdade? Poderia ser verdade?

Kobi Dror dirigiu uma mirada intensa a Sharon.

Qual é a sua ideia, meu rapaz?

Bem, estava apenas a pensar ‑replicou o interpelado.

‑Uma carta... sem riscos para ninguém... uma mera epístola com algumas perguntas... perguntas difíceis, de coisas que gostaríamos de saber.

O olhar de Dror transferiu‑se para Gershon, e o homem que dirigia os agentes «ilegais» encolheu os ombros, como se pretendesse dizer: «Limito‑me a colocar homens no terreno. Quero lá saber de cartas!»

‑           Muito bem, jovem David. Vamos responder, fazemos algumas perguntas e aguardamos o resultado. Colabore com o David nisto, Eitan. Mostrem‑me o texto, antes de o enviarem.

Eitan Hadar e David Sharon retiraram‑se juntos.

‑           Oxalá saiba o que está a fazer ‑advertiu o chefe do Médio Oriente ao seu protegido.

A carta foi redigida com o maior cuidado por vários peritos na matéria; pelo menos, na versão hebraica. A tradução seria efectuada mais tarde.

David Sharon apresentou‑se apenas com o nome de baptismo, e desde o início. Agradeceu ao signatário os incómodos a que se expusera e assegurou‑lhe que a carta chegara ao destino pretendido por quem a redigira.

E prosseguia referindo que o signatário decerto compreendia que a missiva suscitava surpresa e suspeita consideráveis, tanto pela sua origem como pelo método de envio.

Se a bon& {ides do seu autor pudesse ser estabelecida, a exigência do pagamento não provocaria qualquer problema, embora o produto tivesse de justificar a compensação financeira, importar‑se‑ia por conseguinte de responder às perguntas enumeradas na folha apensa? E terminava com um endereço em Roma para onde a resposta poderia ser enviada.

Na realidade, esse endereço correspondia ao de uma «casa segura» pouco utilizada que o posto de Roma indicara a pedido de Telavive. A partir daí, o pessoal de Roma manteria o local sob vigilância permanente. Se alguém da segurança iraquiana aparecesse lá, seria detectado e o assunto terminaria virtualmente antes de haver começado.

As vinte perguntas da lista foram escolhidas meticulosamente e após longa meditação. A Mossad já conhecia as respostas a oito, pelo que qualquer tentativa para ludibriar Telavive não funcionaria.

Outras oito referiam‑se a desenvolvimentos cuja veracidade poderia ser investigada, depois de ocorrerem. E as restantes quatro envolviam factos que Telavive desejava na verdade conhecer, em particular sobre as intenções de Saddam Hussein.

‑Bem, veremos até onde o filho da mãe pretende ir ‑murmurou Kobi Dror, quando acabou de ler a lista.

Por último, foi chamado um professor da Faculdade Arábica da Universidade de Telavive para incutir à redacção da carta um estilo impecável. Sharon assinou‑a com a versão árabe do seu nome: Daoud.

O texto continha mais uma questão. Como David gostaria de atribuir uma identidade ao seu correspondente, importar‑se‑ia que se chamasse simplesmente Jericó?

A carta foi expedida do único país árabe em que Israel tinha embaixada no Cairo.

Em seguida, David Sharon dispôs‑se a aguardar pacientemente. Quanto mais pensava no assunto, mais alucinado lhe parecia. Um «marco postal» num país cuja rede de contra‑‑espionagem era dirigida por alguém tão arguto e implacável como Hassan Rahmani afigurava‑se‑lhe rematada loucura. Assim como mencionar informação ultra‑secreta em linguagem clara, e não existia qualquer indicação de que Jericó estava minimamente familiarizada com a escrita secreta. O recurso ao correio vulgar achava‑se igualmente posto de parte, se porventura o assunto prosseguisse em frente. Em todo o caso, era muito provável que tudo ficasse por ali.

Não foi, porém, o que aconteceu. A resposta de Jericó chegou a Roma quatro semanas mais tarde e seguiu para Televive numa caixa inviolável. Tomaram‑se precauções extremas. O sobrescrito podia conter um explosivo ou emanar uma toxina letal. Quando os cientistas o declararam finalmente «limpo», foi aberto.

Ante o assombro geral, Jericó excedia as previsões mais optimistas. Das oito perguntas de que a Mossad conhecia as respostas, não havia uma única incorrecta. Outras oito‑? referentes a movimentos de tropas, promoções, demissões, viagens ao estrangeiro de luminares identificáveis com o regime ‑teriam de aguardar confirmação, quando e se ocorressem. Quanto às quatro finais, Telavive não tinha possibilidades de proceder à verificação, mas revelavam‑se verosímeis.

David Sharon redigiu uma carta de resposta, através de um texto que não causaria problemas de segurança, se fosse interceptada. «Prezado tio: Agradeço a tua carta que acabo de receber. Congratulo‑me por saber que estás bem de saúde. Algumas das coisas que referes levarão o seu tempo a averiguar, mas prometo voltar a escrever em breve. O teu dedicado sobrinho, Daoud.»

Começava a generalizar‑se a convicção, no edifício Hadar Dafnat de que Jericó poderia revelar‑se merecedor de confiança e útil. Se fosse o caso, havia necessidade de passar à acção com urgência. A permuta de duas cartas era uma coisa, mas orientar um agente secreto instalado numa ditadura brutal diferia substancialmente. Nem pensar em prosseguir a comunicação através de linguagem clara e do correio público, ingredientes seguros de um desastre prematuro.

Seria necessário um agente da sede para se introduzir em Bagdade, viver lá e «dirigir» Jericó por meio das armas usuais: escrita secreta, códigos, marcos postais «mortos» e um método sem intercepção de fazer o produto sair de lá, rumo a Israel.

Não vou nisso ‑repetia Gershon. ‑Não quero colocar um katsa experiente israelita em Bagdade numa missão «negra», para uma permanência prolongada. Sem cobertura diplomática, nada feito.

Pronto, Sami ‑acedeu Dror. ‑Pode contar com ela.

Vejamos o que temos.

O ponto notável acerca da cobertura diplomática consiste em que um agente «negro» pode ser detido, torturado e enforcado. Um diplomata acreditado, mesmo em Bagdade, pode evitar esses desconfortos. Se for surpreendido a exercer espionagem, declaram‑no persona non grata e é expulso. Acontece com frequência.

Naquele Verão, várias divisões importantes da Mossad exerceram actividade extraordinária‑em particular, a de Investigação. Gershon pôde anunciar imediatamente que não possuía qualquer agente em qualquer embaixada acreditada em Bagdade, pelo que se achava livre de embaraços a esse respeito. Principiaram, pois, as diligências para encontrar um diplomata que satisfizesse as condições indispensáveis.

Foram identificadas todas as embaixadas estrangeiras em Bagdade e adquiridas listas das capitais de todos os países do seu pessoal naquela cidade. Não havia ninguém que tivesse trabalhado para a Mossad e pudesse ser reactivado. Não figurava sequer um sayan nelas.

De súbito, surgiu alguém com uma ideia: as Nações Unidas. A organização tinha uma agência com base em Bagdade, em 1988 ‑a Comissão Económica da Ásia Ocidental.

A Mossad tem uma penetração profunda das Nações Unidas em Nova Iorque, pelo que foi adquirida uma lista do pessoal. Um nome despertou prontamente a atenção ‑um jovem judeu chileno chamado Alfonso Benz Moncada. Embora não fosse um agente treinado, tratava‑se de um sayan, pelo que se achava presumivelmente preparado para ser útil.

As informações de Jericó revelaram‑se totalmente exactas.

‑Ou o próprio Saddam está envolvido nisso ou Jericó trai o seu país sem apelo nem agravo ‑comentou Kobi Dror.

David Sharon enviou uma terceira carta, também protegida por uma aura de inocência. Aludia a uma encomenda efectuada pelo cliente instalado em Bagdade de peças extremamente delicadas de vidro e porcelana. Tudo indicava que havia necessidade de proceder a uma embalagem segura, a fim de evitar quebras durante o transporte.

Um katsa de língua espanhola radicado na América do Sul foi enviado a Santiago, para convencer os pais do senor Benz a chamar o filho a casa com urgência, devido a doença grave da mãe, e o próprio pai incumbiu‑se de transmitir a mensagem para Bagdade. O preocupado filho apressou‑se a solicitar três semanas de licença e seguiu de avião para o Chile.

Aguardava‑o, não a mãe enferma, mas toda uma equipa de agentes de treino da Mossad, os quais lhe rogaram que acedesse à sua proposta. Ele discutiu o assunto com os pais e acabou por aceder.

Outro sayan em Santiago, sem conhecer o motivo, emprestou a sua vivenda de Verão, rodeada por um jardim murado, fora da cidade e junto do mar, e a equipa de treino iniciou os trabalhos.

O treino de um katsa costuma prolongar‑se por dois anos, sobretudo para se tornar num agente secreto em território hostil. a equipa dispunha de três semanas e as actividades desenrolaram‑se a um ritmo de dezasseis horas diárias, no final das quais o instruendo aprendeu virtualmente a enfrentar todas as situações difíceis e, em particular, desembaraçar‑se delas.

No termo desse lapso de tempo, Alfonso Benz Moncada despediu‑se dos pais quase lavados em lágrimas e regressou a Bagdade de avião, via Londres. O chefe dos instrutores, reclinado numa poltrona na vivenda, passou a mão exausta pela fronte e desabafou:

‑           Se aquele fulano conseguir conservar a vida e a liberdade; participo numa peregrinação a Meca.

Os outros soltaram gargalhadas, pois era um judeu irredutivelmente ortodoxo. Enquanto instruíam Moncada, permaneciam totalmente ignorantes da natureza da sua missão em Bagdade. De qualquer modo, não era de sua conta. E o chileno também não fora elucidado nesse sentido.

Durante a escala em Londres, foi conduzido ao Hotel Penta de Heathrow, onde se encontrou com Sami Gershon e David Sharon, que o esclareceu.

‑           Não tente identificá‑lo ‑recomendou Gershon. –Deixe isso connosco. Limite‑se a estabelecer os «cestos» e abastecê‑los. Enviar‑lhe‑emos as listas do que pretendemos que seja averiguado. Não as compreenderá, porque estarão redigidas em arábico. Pensamos que Jericó entende mal o inglês, se é que

não o desconhece por completo. Nunca tente traduzir o que lhe enviarmos. Deixe‑o num dos «cestos» e faça o sinal apropriado a giz, para ele ver de qual se trata.

Noutro quarto, Alfonso Benz Moncada recebeu a sua nova bagagem. Havia uma máquina fotográfica que parecia uma Pen‑tax de turista, mas podia tirar uma centena de fotos com um único rolo de películas e um suporte de alumínio de aspecto inocente para a manter à distância conveniente acima de uma folha de papel.

O estojo de higiene pessoal incluía produtos químicos combustíveis dissimulados sob a forma de loção para depois da barba e várias tintas invisíveis. Por último, explicaram‑lhe a maneira de entrar em contacto com eles, método concebido durante o treino no Chile.

Escreveria cartas relativas ao seu interesse pelo xadrez ao amigo Justin Bokomo, do Uganda, que trabalhava no Secre‑tariadoGeral das Nações Unidas, em Nova Iorque. A sua correspondência abandonaria Bagdade sempre na mala diplomática e as respostas proviriam através de Bokomo.

Embora Benz não o soubesse, havia na verdade um ugan‑dense chamado Bokomo, em Nova Iorque, assim como um katsa da Mossad na sala de distribuição da correspondência para proceder às intercepções.

As cartas de Bokomo teriam um reverso que, quando devidamente tratado, revelaria a lista de pedidos da Mossad, a qual deveria ser fotocopiada em segredo e entregue a Jericó, num dos «cestos» previstos.

De regresso a Bagdade, o jovem chileno, com o coração na boca, estabeleceu seis «cestos», na sua maioria em tijolos soltos de muros antigos ou casas abandonadas, debaixo de lajes em becos obscuros e um sob o peitoril de uma loja encerrada.       

Cada vez que se entregava a essa tarefa, imaginava que o cercavam agentes da temível AMAM, porém os cidadãos de Bagdade mostravam‑se tão corteses como sempre e ninguém parecia reparar nele, quando se dedicava aos arriscados preparativos.

Anotou devidamente a localização dos seis «cestos» ‑três para conterem mensagens suas para Jericó e os restantes destinados às respostas deste. Escolheu igualmente seis lugares ‑muros, portões ou estores ‑, a fim de marcar a giz a advertência de que havia necessidade de visitar determinado esconderijo.

Quando considerou tudo pronto, escreveu os elementos à máquina; depois de memorizar todos os pormenores, destruiu a fita, fotografou as folhas e enviou a película a Bokomo. Através da sala de correspondência do edifício das Nações Unidas em Nova Iorque, a pequena encomenda chegou às mãos de David Sharon, em Telavive.

A parte arriscada consistia em enviar toda essa informação a Jericó, pois implicava uma última carta à malfadada posta‑‑restante em Bagdade. Sharon escreveu ao «amigo» que os documentos que pedira seriam depositados ao meio‑dia em ponto de 18 de Agosto de 1989, dentro de duas semanas, com a obrigatoriedade de os recolher uma hora mais tarde, quando muito.

As instruções precisas, em arábico, encontravam‑se em poder de Moncada no dia 16. Ao meio‑dia menos cinco de 18, entrou no edifício dos correios, dirigiu‑se à posta‑restante e depositou o pequeno volume. Ninguém o interceptou ou tentou prender. Uma hora mais tarde, Jericó abria a caixa e retirava o embrulho. Também ninguém o interceptou ou tentou prender.

Uma vez estabelecido o contacto seguro, o movimento passou a desenrolar‑se com naturalidade. Jericó insistiu em que imporia o «preço» de cada tranche de informações que Telavive pretendesse, as quais seriam obtidas e enviadas depois da recepção do dinheiro. Para o efeito, indicou um banco muito discreto em Viena, o Winkler, na Ballgasse, perto da Franziska‑nerplatz, e o número da conta.

Telavive concordou e tratou imediatamente de investigar acerca do estabelecimento bancário em causa. Era pequeno, ultradiscreto e virtualmente inexpugnável. Continha claramente uma conta numerada que correspondia à indicada, porque a primeira transferência no valor de 20000 dólares procedente de Telavive não foi devolvida.

A Mossad sugeriu a Jericó que se identificasse, «para sua própria protecção, na eventualidade de alguma coisa correr mal e os amigos do Ocidente não lhe poderem acudir. No entanto, ele recusou peremptoriamente, e foi mesmo mais longe. Se se apercebesse de alguma tentativa para vigiar os «cestos» ou abordá‑lo de qualquer modo ou ainda o dinheiro não chegasse pontualmente, suspenderia as actividades.

Alfonso Benz Moncada «dirigiu» Jericó durante dois anos, e o resultado não podia ser mais valioso. Referia‑se a política, armas convencionais, progressos militares, mudanças de comando, importação e armamento, mísseis, produtos para a guerra química e duas tentativas de golpe de estado contra Saddam Hussein. Jericó só se mostrava hesitante no referente a progressos de natureza nuclear.

No Outono de 1989, comunicou a Telavive que Gerry Buli era alvo de suspeitas e vigiado em Bruxelas por uma equipa da Mukhabarat do Iraque. A Mossad, que na altura utilizava os préstimos do cientista sobre outra fonte de progressos do programa de mísseis iraquiano, tentou preveni‑lo o mais subtilmente possível. Não lhe podia revelar abertamente o que sabia, pois equivaleria a admitir que tinha alguém infiltrado nas altas esferas de Bagdade.

Por conseguinte, o katsa que controlava o posto em Bruxelas incumbiu os seus homens de penetrar no apartamento de Buli em diversas ocasiões durante o Outono e Inverno, para deixarem mensagens oblíquas através da rebobinagem de uma cassette de vídeo, alteração do lugar de um ou dois copos utilizados diariamente, uma janela injustificadamente aberta e até alguns cabelos de mulher na almofada da cama.

O cientista preocupou‑se, com efeito, mas não o suficiente. Quando chegou a mensagem de Jericó relativa à intenção de o liquidar, era demasiado tarde. A execução consumara‑se.

A informação deste último proporcionou à Mossad um quadro quase completo dos preparativos da invasão do Koweit, em 1990. O que divulgou sobre as armas de destruição maciça de Saddam confirmou e ampliou os elementos fornecidos por Jonathan Pollard, entretanto condenado a prisão perpétua.

Tendo presente o que a Mossad sabia e o que supunham que a América também não ignorava, os israelitas aguardaram a reacção desta última. No entanto, como, enquanto os preparativos de natureza química, nuclear e bacteriológica prosseguiam no Iraque, o torpor no Ocidente persistia. Telavive resolveu guardar silêncio.

Em Agosto de 1990, dois milhões de dólares tinham sido transferidos da Mossad para a conta numerada de Jericó em Viena. Este resultava dispendioso, mas revelava‑se efeciente e Telavive admitia que merecia o dinheiro. Por fim, ocorreu a invasão do Koweit e o imprevisto aconteceu. As Nações Unidas, que tinham aprovado a resolução de 2 de Agosto no sentido de que o Iraque abandonasse o território imediatamente, reconheceram que não podiam continuar a apoiar Saddam mantendo uma presença em Bagdade e, a 7 do mesmo mês, a Comissão Económica para a Ásia Ocidental foi encerrada e os diplomatas regressaram a Nova Iorque.

Benz Moncada conseguiu efectuar uma última tarefa. Deixou uma mensagem num «cesto», para explicar a Jericó que se via forçado a abandonar o país e o contacto era interrompido. Não obstante, existia a possibilidade de regressar, pelo que Jericó devia estar atento à eventual aparição de alguma marca a giz nos lugares habituais. O jovem chileno prestou longas e minuciosas informações em Londres, até não haver mais nada que pudesse revelar a David Sharon.

Assim, Kobi Dror pôde mentir a Chip Barber sem pestanejar. Na altura, não tinha qualquer agente implantado em Bagdade. Resultaria excessivamente embaraçoso admitir que não conseguira descobrir o nome do traidor e agora até perdera o

contacto com ele. No entanto, como Sami Gershon salientara,

se os americanos se inteirassem... No fundo, talvez devesse ter mencionado Jericó.   

 

MIKE MARTIN visitou o túmulo do marinheiro Shepton, no cemitério de Sulaibikhat, a 1 de Outubro, e encontrou o pedido de Ahmed Al‑Kalifa.

Não ficou particularmente surpreendido. Se Abu Fouad ouvira falar dele, também se inteirara do movimento crescente da resistência no Koweit. Nessa conformidade, era quase inevitável que viessem a encontrar‑se, mais cedo ou mais tarde.

Em seis semanas, a posição das forças de ocupação iraquianas alterara‑se dramaticamente. A invasão constituíra pouco mais que um mero passeio, o que levara os altos poderes a concluir que a consumação da conquista se desenrolaria sem esforços especiais.

A pilhagem revelara‑se fácil e lucrativa, a destruição divertida e a utilização das mulheres agradável. Fora uma sucessão de factos que remontava aos tempos de Babilónia.

Todavia, transcorridas seis semanas, o panorama começou a alterar‑se. Mais de cem soldados e oito oficiais haviam desaparecido ou sido encontrados mortos. Os desaparecimentos não se podiam explicar na totalidade por deserções. As forças de ocupação tinham medo pela primeira vez.

A resistência obrigara o Alto Comando a substituir o exército popular pelas forças especiais, tropas treinadas para o combate que deveriam encontrar‑se na linha da frente, para a eventualidade de um ataque americano. O começo de Outubro não constituiu para o Koweit, para parafrasear as palavras de Churchill, o princípio do fim, mas o fim do princípio.

Como não dispunha de meios para responder à mensagem de Al‑Khalifa no momento em que a leu no cemitério, Martin só o pôde fazer no dia seguinte.

Acedeu em se encontrarem, mas segundo as suas próprias condições. A fim de dispor da vantagem da escuridão e no intuito de evitar o recolher obrigatório, às 22.00, marcou a reunião para as sete e meia. Forneceu indicações minuciosas sobre o local em que Abu Fouad devia estacionar o carro e o grupo de árvores onde se encontrariam. O lugar que referia situava‑se no bairro de Abrak Kheitan, perto da auto‑estrada da cidade para o actualmente destruído e inoperante aeroporto.

Desconhecia por completo o conceito de segurança do homem, pelo que preferia supor que não era brilhante, e pretendia tomar todas as precauções para evitar um possível dissabor. Mencionou a tarde do dia sete e deixou o bilhete no cemitério, onde Ahmed Al‑Khalifa o recolheu setenta e duas horas antes da data do encontro.

Quando se voltou a apresentar perante a Comissão Medusa, o Dr. Joho Hipwell, não parecia um físico nuclear e muito menos um dos cientistas que passavam as horas de trabalho por detrás da segurança maciça do estabelecimento de armas atómicas, em Aldermaston, a conceber ogivas de plutónio para os mísseis Trident.

Um observador vulgar imaginaria que se tratava de um agricultor provinciano, mais à vontade num mercado de gado do que a orientar a delicada e, sobretudo, letal operação de revestir discos de plutónio de ouro puro.

Embora a temperatura ainda fosse estival como em Agosto, usava camisa de flanela, gravata de lã e casaco de tweed. Sem perguntar se alguém se opunha, encheu o cachimbo antes de se debruçar sobre o seu relatório. Sir Paul Spruce franziu o nariz com desagrado e fez sinal para que subissem dois furos o regulador do ar condicionado.

‑           Ora bem, meus senhores. A boa notícia consiste em que o nosso amigo Saddam Hussein não tem uma bomba atómica à sua disposição. Por enquanto e nem de longe –frisou Hipwell, ao mesmo tempo que desaparecia no meio de uma

nuvem de fumo azulado.

Registou‑se uma pausa, enquanto ele prestava atenção momentânea ao cachimbo. Entretanto, Terry Martin reflectia que, se uma pessoa se arriscava diariamente a receber uma dose mortal de raios de plutónio, a cortina de fumo de tabaco constituía uma ninharia. Por fim, Hipwell concentrou‑se de novo nos seus apontamentos.

‑           O Iraque procura fabricar uma bomba atómica desde meados dos anos setenta, quando Saddam Hussein pegou nas rédeas de todo o poder. Parece ser a sua principal obsessão.

Nessa época, o país comprou um sistema de reactor nuclear completo à França, que não estava vinculada ao Tratado de Não‑Proliferação Nuclear de 1968.

Chupou o cachimbo quase com volúpia, sem se preocupar com o facto de cair alguma cinza nos papéis à sua frente.

Desculpe a interrupção ‑disse Sir Paul‑, mas esse reactor destinava‑se à produção de electricidade?

Suponho que sim‑admitiu Hipwell.‑Uma insensatez, claro, e os franceses sabiam‑no. O Iraque possui os três maiores depósitos de petróleo do mundo. Por conseguinte, podia construir uma central de energia alimentada com esse carburante por menos de metade do preço. Não, a intenção consistia em abastecer o reactor de urânio de baixa concentração, denominado bolo amarelo ou caramelo, que poderiam convencer fornecedores estrangeiros a vender‑lho. Depois de utilizado num reactor, o produto final é plutónio. Verificaram-se inclinações de cabeças em torno da mesa. Todos sabiam que o reactor britânico de Sellafield criava electricidade para a rede de abastecimento e produzia o plutónio que seguia para os domínios do Dr. Hipwell, destinado às suas ogivas.

Portanto, os israelitas entraram em acção‑ prosseguiu este último. ‑Primeiro, uma equipa de comandos fez ir pelos ares a enorme turbina de Toulon, antes de ser expedida, o que obrigou o projecto a recuar dois anos. Depois, em 1981, quando

as preciosas fábricas de Saddam, Osirak Um e Dois, se preparavam para entrar em laboração, caças‑bombardeiros israelitas reduziram-nas a escombros. Desde então, o homem não conseguiu comprar novo reactor, até que desistiu de tentar.

Por que carga de água procedeu assim? –perguntou Harry Sinclair, do extremo oposto da mesa.

Porque mudou de rumo ‑esclareceu Hipwell, com um largo sorriso, como se acabasse de resolver o problema de palavras cruzadas do Times em meia hora, ‑Até então, seguia a via do plutónio para chegar à bomba atómica. A partir daí,

enveredou pela do urânio. Com algum êxito, diga‑se de passagem. Mas não o suficiente. Em todo o caso...

Não estou a compreender‑confessou Sir Paul Spruce.

‑Qual é a diferença entre uma bomba atómica baseada no plutónio e outra obtida com base no urânio?

A do urânio é mais simples ‑informou o físico. –Há várias substâncias radioactivas que se podem empregar para uma reacção em cadeia, mas para uma bomba atómica simples, básica e eficiente, o urânio é o ideal. Daí o interesse de Saddam nele desde 1982. Ainda lá não chegou, mas continua a tentar e, um dia, será bem sucedido. ‑E recostou‑se no espaldar da cadeira, com novo sorriso, como se agora tivesse decifrado o enigma da Criação.

 

No entanto, à semelhança da maior parte dos que se sentavam em torno da mesa, Sir Paul Spruce continuava perplexo.

‑           Se Saddam pode comprar esse urânio para o reactor destruído, por que não consegue fabricar uma bomba com ele?

O interpelado lançou‑se sobre a pergunta como um agricultor a regatear o preço de um novilho numa feira de gado.

Tipos diferentes de urânio, meu caro. O urânio é um corpo curioso. Muito raro. De mil toneladas de minério, obtém‑se apenas um bloco do tamanho de uma caixa de charutos. Bolo amarelo. Chama‑se Urânio Natural, com o número isotópico de 238. Pode‑se abastecer um reactor industrial com ele, mas não fabricar uma bomba. Não é suficientemente puro. Para isso, há necessidade do isótopo mais leve, o Urânio 235.

De onde vem? ‑perguntou Paxman.

Está dentro do bolo amarelo. No bloco do tamanho de uma caixa de charutos, há Urânio 235 bastante para colocar debaixo de uma unha sem desconforto. O busílis consiste em separá‑los. Chama‑se a isso separação isotópica. Muito difícil, muito técnica, muito dispendiosa e muito lenta.

Mas você disse que o Iraque caminhava para lá ‑argumentou Sinclair.

Pois disse, mas ainda não chegou. Existe apenas uma maneira viável de purificar e refinar o bolo amarelo para obter a pureza necessária de noventa e três por cento. Há anos, no Projecto Manhattan, os americanos tentaram vários métodos.

Emest Lawrence optou por um e Robert Oppenheimer por outro.

Naquela época, usavam‑se ambos de forma complementar e criavam Urânio 235 em quantidade suficiente para produzir o Little Boy.

«Após a guerra, foi inventado o método centrífugo, aperfeiçoado lentamente. Hoje, só se emprega esse. Basicamente, coloca‑se o bloco alimentar numa coisa chamada centrifugadora, a qual gira tão rapidamente que todo o processo tem de se desenrolar num vácuo; de contrário, os rolamentos convertem‑se em geleia. A pouco e pouco, os isótopos mais pesados... os que não interessam... são atraídos para a parede exterior da centrifugadora e expelidos. O que resta é um pouco mais puro do que inicialmente. Apenas um pouco, note^se. Tem de se repetir a operação milhares de horas, só para obter uma hóstia, chamemos‑lhe assim, de urânio do tamanho de uma estampilha postal.

Mas ele está a fazer isso? ‑insistiu Sir Paul.

Está. Há um ano. Quanto às centrifugadoras... bem, para poupar tempo, ligamo‑las em séries a que damos o nome de cascatas. Mas são necessárias milhares de centrifugadoras para dispor de uma cascata.

Se eles enveredaram por esse caminho desde 1982, por que tardaram tanto? ‑interpôs Terry Martin.

Não se pode entrar numa loja de utilidades e comprar uma centrifugadora de difusão de gás de urânio‑lembrou Hipwell. ‑Ainda tentaram fazê‑lo, mas levaram sopa, como os documentos revelam. Desde 1985 que compram as partes componentes para construir um complexo fabril destinado a esse objectivo. Obtiveram cerca de quinhentas toneladas de bolo amarelo de urânio básico, metade disso de Portugal. Adquiriram

grande parte da tecnologia da centrifugadora à Alemanha...

Eu pensava que os alemães tinham assinado um conjunto de acordos internacionais limitadores da difusão da tecnologia de bombas nucleares ‑protestou Paxman.

Talvez assinassem, mas os iraquianos conseguiram peças de várias origens.

Vejamos se estou a abarcar a situação ‑disse Harry Sinclair.‑O Saddam ainda tem centrifugadoras de separação de isótopos ao seu serviço?

Sim, uma cascata. Está a funcionar há cerca de um ano.

E em breve entrará outra em actividade.

Sabe onde tudo isso se encontra?

A fábrica da centrifugadora situa‑se num local chamado Taji... aqui.‑O cientista estendeu uma fotografia aérea ampliada ao americano, em que se via uma série de edifícios industriais.‑A cascata parece encontrar‑se no subsolo, não longe dos destroços do velho reactor francês, em Tuwaitha, a que chamavam Osirak. Não sei se vocês conseguirão localizá‑la com um bombardeiro, porque está muito bem camuflada.

E a nova cascata?

Não faço a menor ideia. Pode estar em qualquer lugar.

Provavelmente noutro sítio ‑opinou Terry Martio. –Os iraquianos praticam a duplicação e dispersão, desde que puseram todos os seus ovos numa cesta, que os israelitas pulverizaram.

Sinclair emitiu um grunhido de contrariedade.

Como podemos ter a certeza de que Saddam Hussein não possui já a bomba? ‑inquiriu Sir Paul.

É uma questão de tempo ‑disse o físico. ‑Ainda não dispôs do suficiente. Para uma bomba atómica básica, mas utilizável, precisa de trinta a trinta e cinco quilogramas de Urânio 235 puro. Tendo partido do zero há um ano, mesmo admitindo que a cascata pode funcionar vinte e quatro horas por dia... que não é o caso... um programa de centrifugação carece pelo menos de doze horas por centrifugadora.

«São precisas mil rotações para passar de zero por cento para os noventa e três indispensáveis. O que representa quinhentos dias de centrifugação. Isto sem contar com as pausas para limpeza das peças de manutenção e eventuais avarias. Mesmo com mil centrifugadoras a funcionar em cascata actualmente e nos últimos trezentos e sessenta e cinco dias, haveria necessidade de cinco anos. Admitindo que começava a funcionar uma segunda cascata no próximo ano, poderia abreviar‑se o prazo para três.

Por conseguinte, ele só disporá de trinta e cinco quilos em 1993, pelo menos? ‑interpelou Sinclair.

Exacto.

Uma última pergunta. Se obtiver o urânio, quanto tempo faltará para conseguir uma bomba atómica?

Pouco. Algumas semanas. Um país que pretenda fabricar o seu próprio engenho atómico, terá a engenharia nuclear a funcionar paralelamente. Não se trata de uma operação muito complicada, desde que se saiba o que se está a fazer. E Jaafar sabe‑o, pois treinámo‑lo em Harwell. No entanto, o caso é que o Saddam ainda não tem urânio puro em quantidade suficiente.

Dez quilogramas, quando muito. Está atrasado três anos... pelo menos.

O Dr. Hipwell foi felicitado pelo resultado das semanas de análise a que se dedicara e a reunião chegou ao fim.

Sinclair regressaria à embaixada para redigir extensos relatórios que seguiriam para a América, devidamente codificados. Uma vez aí, seriam comparados com as análises dos peritos locais, efectuadas nos laboratórios de Sandia, Los Alamos e, principalmente, Lawrence Livermore, na Califórnia, onde, durante anos, uma secção secreta denominada Departamento Z acompanhava a disseminação da tecnologia nuclear em redor do mundo por conta do Departamento de Estado e do Pentágono.

Embora Sinclair não o soubesse, o resultado das pesquisas das equipas britânicas e americanas confirmavam‑se mutuamente com um rigor notável.

Terry Martin e Simon Paxman abandonaram o local da reunião juntos e percorreram Whitehall sob o sol benigno de Outubro.

‑           Que alívio ‑murmurou o segundo. ‑O velho Hipwell foi bem categórico. Ao que parece, os americanos concordam inteiramente. O filho da mãe ainda está longe de possuir a bomba atómica. Enfim, menos um pesadelo para nos afligir.

Separaram‑se na esquina. Paxman atravessou o Tamisa em direcção à Century House e Martin cruzou a Trafalgar Square e seguiu em direcção à Gower Street.

Estabelecer o que o Iraque possuía, ou mesmo provavelmente possuía, era uma coisa. Averiguar com exactidão onde se situava diferia por completo. As fotografias continuavam a ser tiradas. Os KH‑11 e KH‑12 cruzavam os céus numa sequência interminável para captar tudo o que se lhes deparava em território iraquiano.

Em Outubro, mais um dispositivo passou a cruzar o espaço: um avião de reconhecimento americano tão secreto, que o‑Capitólio desconhecia a sua existência. Tinha o nome de código Aurora, voava na periferia do espaço interior e atingia velocidades da ordem de Mach 8, quase oito mil quilómetros por hora, muito para além do alcance do radar iraquiano ou dos mísseis de intercepção.

Ironicamente, enquanto o Blackbird era retirado do activo, outro aparelho ainda mais idoso sobrevoava o Iraque, naquele Outono. Com quase quarenta anos de existência, denominado Dragon Lady, o U‑2 ainda funcionava e tirava fotografias. O modelo renovado de 1990 tinha sido reequipado mais como «ouvinte» do que como «observador», embora ainda tirasse fotos.

Toda a informação de professores e cientistas, analistas e intérpretes formava uma imagem global do Iraque que de modo algum se podia considerar tranquilizadora.

Graças a milhares de fontes, tudo se concentrou finalmente numa sala muito secreta, dois pisos abaixo do Ministério da Força Aérea da Arábia Saudita, denominada simplesmente «Buraco Negro».

Foi no isolamento do Buraco Negro que se assinalaram os locais que deveriam ser destruídos, num total de setecentos, seiscentos dos quais militares‑no sentido de que constituíam centros de comando, pontes, aeródromos, arsenais, rampas de lançamento de mísseis e concentrações de tropas ‑e os restantes albergavam armas de destruição maciça, laboratórios químicos e armazéns.

Foi igualmente registada a linha de manufactura da centri‑fugadora de gás em Taji, nas proximidades do complexo de Tuwaitha.

Mas a fábrica de «engarrafamento» de água de Tarmiya não figurava nos planos, assim como Al‑Qubai. Na realidade, ninguém conhecia a sua localização.

Uma cópia do relatório minucioso de Harry Sinclair foi fazer companhia às de outros provenientes de várias partes dos Estados Unidos e do estrangeiro. Por último, uma síntese do conjunto deu entrada numa secção muito discreta e confidencial do Departamento de Estado, conhecida por Political Intelligence and Analysis Group. O PIAG é uma espécie de estufa de análise de assuntos estrangeiros e redige relatórios absolutamente vedados ao consumo público. Com efeito, a unidade depende directa e unicamente do Secretário de Estado, na altura James Baker.

Dois dias mais tarde, Mike Martin encontrava‑se deitado de bruços no terraço do qual podia observar a secção de Abrak Kheitan, onde marcara o encontro com Abu Fouad.

À hora combinada, viu um carro abandonar a estrada Rei Faisal que conduzia ao aeroporto e enveredar por uma rua transversal. Pouco depois, imobilizava‑se diante do local que ele descrevera na sua mensagem a Al‑Khalifa e apearam‑se duas pessoas: um homem e uma mulher. Olharam em volta para se certificarem de que nenhum veículo os seguira e encaminharam‑se para um grupo de árvores.

Abu Fouad e a companheira tinham recebido instruções para aguardar meia hora. Se, até lá, o beduíno não aparecesse, retirar‑se‑iam. Na realidade, esperaram quarenta minutos antes de regressar ao carro, visivelmente frustrados.

‑           Deve ter sido retido‑observou Abu Fouad. ‑Talvez se lhe deparasse uma patrulha iraquiana. Que maçada! Terei de começar tudo de novo.

            Acho que fazes mal em confiar nele ‑replicou a mulher.

            Não sabes de quem se trata.

Exprimiam‑se em voz baixa, e o dirigente da resistência koweitiana não parava de olhar nos dois sentidos da rua para se certificar de que não havia soldados iraquianos nas imediações.

            É hábil e astuto e actua como um profissional. Basta‑me saber isso. Gostava de colaborar com ele, se concordar.

‑           Não tenho nada a objectar.

Ela soltou um grito abafado e Abu Fouad estremeceu no seu lugar ao volante.

            Não se voltem‑indicou a voz no banco de trás.‑ Conversemos assim.

Pelo espelho retrovisor, o koweitiano viu os contornos de um Keffiyeh de beduíno e detectou o odor de quem não dispõe de muito tempo livre para tomar banho, o que o levou a emitir um suspiro de alívio.

            Actua com subtileza, beduíno.

            Não há necessidade de fazer barulho, Abu Fouad. Atrai os iraquianos, coisa que não me agrada, a menos que esteja preparado para os receber.

            Muito bem. Agora que nos encontrámos um ao outro, conversemos. Mas por que se escondeu no carro?

Se este encontro tivesse sido uma armadilha para mim, as suas primeiras palavras quando entrou difeririam.

Auto‑incriminadoras...

Exacto.

E?...

Você já não estaria vivo.

Entendido.

Quem é a sua companheira? Não mencionei testemunhas.

Como foi você que preparou o encontro, eu também tinha de tomar precauções. É uma colega de confiança. Asrar Qabandi.

Muito bem. Saudações, Miss Qabandi. De que querem falar?

Armamento. Pistolas automáticas Kalashinov, granadas de mão modernas, Semtex‑H. Com esse material, o meu povo poderia tornar‑se muito mais eficiente.

O seu povo está a ser capturado. Dez homens foram cercados na mesma casa por uma companhia da infantaria iraquiana chefiada por homens da AMAM. Não escapou um. Todos adolescentes.

Abu Fouad não replicou. De facto, fora um desaire importante.

‑           Nove ‑acabou por corrigir.‑O décimo fingiu‑se morto e fugiu mais tarde. Está ferido, mas cuidamos dele. Foi ele que nos informou.

‑De quê?

Foram traídos. Se também tivesse morrido, nunca nos inteiraríamos.

Sim, a traição. É um perigo sempre possível num movimento de resistência. E o traidor?

Sabemos quem é, claro. Pensámos que podíamos confiar nele.

Mas é de facto culpado?   

Parece que sim.     

Parece apenas?

Abu Fouad suspirou.

O sobrevivente jura que somente o décimo primeiro homem estava ao corrente da reunião e do local. No entanto, pode ter havido uma inconfidência noutro ponto, ou talvez algum fosse seguido.

Nesse caso, o suspeito deve ser testado. E, no caso de a culpabilidade se confirmar, punido. Importa‑se de nos deixar sós por uns momentos, Miss Qabandi?

A jovem volveu o olhar para Abu Fouad, o qual assentiu com um movimento de cabeça. Em seguida abandonou o carro e encaminhou‑se para o grupo de árvores. O beduíno explicou a Abu Fouad o que pretendia dele.

‑           Só sairei da casa às sete ‑concluiu. ‑Por conseguinte, em caso algum o telefonema se deve efectuar antes das sete e meia. Entendido?

Em seguida, apeou‑se e desapareceu na escuridão, enquanto Abu Fouad punha o carro em movimento e ia recolher Asrar QabEndi.

O beduíno não tornou a vê‑la. Antes da libertação do Koweit, foi capturada pela AMAM, torturada, violada em grupo, fuzilada e decapitada, sem ter revelado uma única palavra.

Terry Martin falava ao telefone com Simon Paxman, o qual se achava assoberbado de trabalho e dispensava perfeitamente as interrupções. Foi apenas graças à simpatia que o laborioso professor lhe merecia que atendeu a chamada.

Desculpe incomodá‑lo, mas conhece alguém no GCHQ?

Com certeza. Sobretudo no Serviço Arábico. O director, por exemplo.

É capaz de lhe telefonar e perguntar se me quer receber?

Sem dúvida. Qual é a sua ideia?

Trata‑se da informação que está a chegar do Iraque.

Estudei todos os discursos de Saddam, naturalmente, reparei nas alusões a reféns e escudos humanos e assisti a discursos bombásticos na televisão. Mas gostava de verificar se está a ser recebida mais alguma coisa que não tenha sido autorizada pelo Ministério da Propaganda.

Bem, é o que o GCHQ costuma fazer ‑admitiu Paxman.

‑Não vejo qualquer inconveniente. Uma vez que você pertence à Comissão Medusa, dispõe automaticamente de autorização.

Vou telefonar.

Naquela tarde, Terry Martin seguiu de carro para Glouces‑tershire e apresentou‑se à entrada do bem guardado edifício que compreendia o terceiro braço principal dos serviços secretos britânicos, juntamente com o M. I. 6 e o M. 5, quartel‑general das comunicações do governo.

O director do Serviço Arábico era Sean Plummer, sob cujas ordens trabalhava o mesmo Al‑Khouri que testara o arábico de Mike Martin no restaurante de Chelsea, onze meses atrás, embora Terry Martin e Plummer não estivessem ao corrente disso.

Este último acedera em recebê‑lo a meio de um dia atarefado, porque ouvira falar do jovem catedrático da SOAS e admirava as suas pesquisas sobre o califado dos Abássidas.

‑           Em que lhe posso ser útil? ‑perguntou, depois de se sentarem, diante de chávenas de chá. Ao ouvir o interlocutor referir que estava surpreendido com a escassez das intercepções procedentes do Iraque que lhe haviam mostrado, o seu olhar iluminou‑se. ‑Tem toda a razão. Como sabe, os nossos amigos árabes gostam de pairar como gralhas em circuitos abertos. Nos últimos anos, o tráfego interceptável diminuiu. Agora, ou a índole do nativo mudou ou...

Cabos enterrados ‑aventurou Martin.

Exacto. Tudo indica que o Saddam e os seus rapazes enterraram mais de sete mil quilómetros de cabos de comunicação de fibras ópticas. Em face disso, como‑querem os luminares de Londres que a minha unidade continue a fornecer‑lhes catadupas de informações? Que pretende ver?

Durante as quatro horas seguintes, Martin examinou uma variedade de intercepções. As transmissões pela rádio eram demasiado anódinas. Interessava‑lhes mais algo do género de um telefonema irreflectido, uma palavra aparentemente deslocada, um erro qualquer. Por fim, fechou o grosso volume e pediu a Plummer:

‑           Importa‑se de prestar atenção especial a qualquer por menor que pareça estranho e, à primeira vista, careça de sentido?

Mike Martin começava a pensar que um dia deveria escrever um guia turístico sobre os terraços da cidade do Koweit. Afigurava‑se que permanecera tempo considerável deitado num deles, para vigiar a área em baixo. Por outro lado, constituíam lugares excelentes para um PP, ou posição de pé.

Havia quase dois dias que se encontrava naquele, para observar a casa cujo endereço fornecera a Abu Fouad, uma das seis que lhe haviam sido cedidas por Ahmed Al‑Khalifa e não voltaria a utilizar.

Embora tivessem transcorrido cerca de quarenta e oito horas e não devesse acontecer nada até àquela noite de 9 de Outubro, não interrompera a vigilância, dia e noite, alimentando‑se de pão e fruta.

Se aparecessem soldados iraquianos antes das sete e meia da tarde de 9, saberia quem o traíra: o próprio Abu Fouad. Consultou o relógio‑19.30. O coronel koweitiano devia estar a fazer o telefonema, como lhe fora indicado.

Com efeito, no outro extremo da cidade, Abu Fouad acabava de levantar o auscultador e marcava um número. Alguém atendeu ao terceiro toque.

Salah?

O próprio. Quem fala?

Não nos conhecemos pessoalmente, mas constaram‑me

muitas coisas agradáveis a seu respeito. Sei que é leal e corajoso, um dos nossos. Dou pelo nome de Abu Fouad. ‑Registou‑se uma exclamação abafada no outro lado do fio. ‑Preciso da sua ajuda, Salah. Podemos... o movimento... contar consigo?

Sem dúvida, Abu Fouad. Basta dizer o que pretende de mim.

Não sou eu propriamente, mas um amigo. Está ferido e debilitado. Sei que é farmacêutico. Leve‑lhe medicamentos: antibióticos, analgésicos, ligaduras. Ouviu falar de alguém conhecido por beduíno?

Com certeza. É das suas relações?

Isso não interessa, mas há semanas que trabalhamos juntos. Reveste^se de uma enorme importância, para nós.

Vou descer à farmácia imediatamente, para recolher os produtos necessários e levar‑lhos. Onde o encontrarei?

Está refugiado numa casa em Shuwaikh e não se pode mover. Leve também papel e lápis.

Abu Fouad fitou o endereço que lhe fora indicado.

Irei no carro, sem demora ‑prometeu Salah.‑Pode confiar em mim.

É um bom homem e será recompensado.

Abu Fouad cortou a ligação. O beduíno dissera que telefonaria ao amanhecer, se não acontecesse nada, e o farmacêutico estaria livre de suspeitas.

Mike Martin viu, mais do que ouviu, o primeiro camião pouco antes das oito e meia. Rolava graças ao impulso adquirido, com o motor desligado para não produzir qualquer ruído, e transpôs o cruzamento antes de parar, poucos metros adiante. Martin inclinou a cabeça, num gesto de aprovação.

O segundo camião fez mais ou menos o mesmo, momentos depois, e desceram vinte homens de cada um. Boinas Verdes bem compenetrados da missão que lhe fora cometida. Avançaram em fila indiana ao longo da rua, precedidos de um oficial que segurava um civil pelo braço. Com as placas arrancadas de virtualmente todas as esquinas, os militares iraquianos precisavam de um guia para localizar a rua que lhes interessava. No entanto, os números das portas ainda prevaleciam nos devidos lugares.

O civil deteve^se diante de uma casa, consultou o número e apontou. O oficial manteve breve diálogo com o seu sargento, o qual se afastou com quinze soldados em direcção a um beco para cobrir as traseiras do prédio.

Seguido dos que restavam, o oficial ‑um capitão ‑impeliu o portão de ferro de acesso a um pequeno jardim. Depois de o transpor, viu que havia luz numa janela do primeiro piso. A maior parte do rés‑do^chão era ocupada pela garagem, que se encontrava vazia. Uma vez junto da porta da frente, as precauções foram abandonadas. O oficial verificou que se achava trancada e gesticulou para um soldado, que disparou uma rajada com a espingarda automática, e a fechadura foi destruída.

Os Boinas Verdes irromperam pela abertura, sempre precedidos do capitão. Alguns dividiram‑se pelos aposentos do piso térreo, enquanto ele e os outros subiam a escada.

Do patamar do primeiro andar, o capitão avistou o interior do quarto debilmente iluminado, com uma poltrona de costas para a porta e o keffiyeh de xadrez que assomava no topo. Não fez fogo. O coronel Sabaawi, da AMAM, fora bem explícito: queria o homem vivo para o interrogar. Quando começou a avançar, o jovem oficial não se apercebeu do fio de nylon em contacto» com as canelas.

Ouviu os seus homens irromper nas traseiras e outros a subir a escada. Viu a túnica encardida recheada com almofadas e a melancia a que fora enrolado o keffiyeh. O seu rosto contorceu‑se de cólera e ainda dispôs de tempo para dirigir um insulto ao trémulo farmacêutico que se imobilizara à entrada do quarto.

Três quilogramas de Semtex‑H não produzem um ruído espectacular e ocupam pouco espaço. As casas das cercanias eram de pedra e betão, razão pela qual sofreram apenas estragos superficiais. No entanto, aquela em que os militares se encontravam desapareceu virtualmente. Telhas dela foram encontradas mais tarde a várias centenas de metros do local.

O beduíno não aguardou para assistir à sua obra. Achava‑se já a dois quarteirões de distância, caminhando despreocupadamente, quando ouviu o estrondo abafado, como o bater de uma porta, o subsequente segundo de silêncio e o desmoronar de pedra e caliça.

No dia seguinte, aconteceram três coisas, todas depois de anoitecer. No Koweit, o beduíno teve o segundo encontro com Abu Fouad. Desta vez, o koweitiano compareceu sem companhia e os dois homens conversaram à sombra de um portal a apenas duzentos metros do Sheraton ocupado por dezenas de oficiais superiores iraquianos.

Ouviu, Abu Fouad?

Muito bem. Eles estão em polvorosa. Perderam mais de duas dezenas de homens e tiveram numerosos feridos. ‑ O interpelado suspirou. ‑Vai haver mais represálias.

Vocês querem parar, agora?

Não. É impossível. Mas durante quanto tempo teremos ainda de sofrer?

Os americanos e ingleses virão salvá‑los. Um dia.

Esperemos que Alá o permita em breve. Salah encontrava‑se com eles?

Pelo menos, acompanhava‑os um civil. Não falou a mais ninguém?

Não, só com ele. Tem as vidas de nove homens a pesar‑lhe na cabeça. Não ingressará no Paraíso.

Muito bem. Que mais pretende de mim?

Não lhe perguntarei quem é ou de onde vem. Como oficial do exército treinado, sei que não pode ser um mero beduíno do deserto. Dispõe de reservas de explosivos, armas, munições

e granadas. O meu povo poderia ocasionar muitos estragos

com material desse.

E a sua oferta?

Junte‑se a nós e traga o material. Ou então, continue

isolado e partilhe‑o connosco. Não vim para o ameaçar^ mas

apenas para pedir. Se quer ajudar a nossa resistência, é essa

a maneira de o fazer.

Martin reflectiu por um momento. Ao cabo de oito semanas, dispunha de metade do material inicial, ainda sepultado no deserto ou disperso pelas duas vivendas que só utilizava como armazéns. Das outras quatro, uma fora destruída e outra, onde se reunira com os pupilos, estava comprometida. Podia entregar o material e solicitar mais ‑operação possível, embora arriscada, desde que as suas mensagens para Riadie não fossem interceptadas, do que não existia a mínima garantia. Ou mais uma viagem através da fronteira e regresso com novo carregamento, devidamente dissimulado. Esta última hipótese também não se achava despida de riscos, pois havia actualmente dezasseis divisões de iraquianos postadas ao longo daquela área, o triplo das existentes quando ele chegara.

Era altura de voltar a contactar com Riade e pedir instruções. Entretanto, daria a Abu Fouad quase tudo o que possuía. Havia mais, a sul da fronteira, e necessitaria de o ir buscar, de uma maneira ou de outra.

Onde quer que o entregue? ‑perguntou, por fim.

Temos um armazém em Shuwaikh. Oferece a maior segurança. O dono, que é dos nossos, guarda lá peixe.

Daqui a seis dias.

Combinaram a hora e local onde um homem de confiança de Abu Fouad se encontraria com o beduíno, que o acompanharia ao armazém. Martin descreveu o veículo que conduziria e o seu próprio aspecto naquela altura.

Na mesma noite, mas duas horas mais tarde, devido à diferença dos respectivos fusos horários, Terry Martin encontrava‑se num restaurante sossegado próximo do seu apartamento e fazia girar um copo de vinho numa das mãos. O convidado que aguardava, entrou poucos minutos mais tarde‑um indivíduo idoso, de cabelo grisalho, óculos e gravata de pintas pretas e brancas.

‑           Estou aqui, Moshe ‑indicou Martin, vendo‑o olhar em volta.

O israelita aproximou‑se dele, que se levantara, e cumprimentaram‑se efusivamente.

Como vai isso, meu rapaz?

Melhor, agora que chegou. Não podia permitir que passasse por Londres sem ao menos uma oportunidade de jantarmos juntos e palestrar um pouco.

Moshe Hadari tinha idade suficiente para ser pai de Martin, porém a sua amizade baseava‑se em interesses comuns. Eram ambos académicos e estudiosos incansáveis das antigas civilizações árabes no Médio Oriente, com as suas culturas, arte e línguas.

Foi um jantar animado e agradável e o tema abordado limitou‑se quase exclusivamente às recentes pesquisas, as novas percepções do estilo de vida nos reinos do Médio Oriente, dez séculos atrás.

Consciente de que estava vinculado pelo sigilo, as suas actividades na Century House não podiam ser abordadas. Não obstante, na altura do café, a conversa orientou‑se naturalmente para a crise no Golfo e perspectivas de uma guerra.

‑           Parece‑lhe que ele retirará do Koweit? –perguntou Moshe.

Martin meneou a cabeça com veemência.

‑           Não o pode fazer, a menos que lhe concedam uma via marcada com clareza, concessões que lhe seja permitido invocar para justificar a retirada. Se regressa a Bagdade de mãos vazias, está perdido.

O outro suspirou.

Tanto dinheiro, suficiente para converter o Médio Oriente num paraíso na Terra, esbanjado, com a imensidade de talentos e vidas de jovens. E para quê? Diga‑me uma coisa, Terry. Se houver guerra, os ingleses combaterão ao lado dos americanos?

Com certeza. Já enviámos a Sétima Brigada de Blindados e creio que a Quarta não tardará a partir para lá. Só isso, constitui uma divisão, sem falar dos «caças» e vasos de guerra.

Não se preocupe com o assunto.

Pois sim, mas morrerão mais jovens.

Martin inclinou‑se para a frente e deu uma leve palmada no braço do amigo.

‑           É indispensável travar o homem. Mais cedo ou mais tarde. Israel deve saber até que ponto ele se aventurou com as suas armas de destruição maciça. Pode dizer‑se que, de certo modo, estamos a descobrir gradualmente a verdadeira escala do que possui.

Nós temos colaborado, sem dúvida. Aliás, talvez sejamos o seu principal alvo.

O nosso problema fundamental é a obtenção de informações directamente do local. Não dispomos de um agente infiltrado em Bagdade. Tanto nós como os americanos ou mesmo

vocês.

O jantar terminou vinte minutos mais tarde, e Terry Martin acompanhou o convidado a um táxi, que o conduziria ao hotel.

Por volta da meia‑noite, três estações de triangulação eram implantadas no Koweit por ordem de Hassan Rahmani, em Bagdade.

Tratava^se de «pratos» de rádio destinados a localizar a fonte de uma emissão. Uma dessas estações era fixa, montada no telhado de um edifício alto no bairro de Ardiya, a sul da cidade do Koweit, com o prato voltado para o deserto.

As outras duas eram imóveis instaladas em carrinhos, com os pratos no tejadilho e uma verdadeira cabina de escuta no interior. Um dos veículos encontrava‑se fora de Jahra, a oeste do seu homólogo de Ardiya, e o terceiro noutro ponto da costa, no recinto do Hospital Al Adão, onde a irmã do estudante de Direito fora violada, nos primeiros dias da invasão.

Na base aérea de Ahmadi, de onde outrora Khaled Al‑Kha‑lita descolara no seu Skyhawh, um helicóptero Hind de fabrico soviético, devidamente armado permanecia em estado de alerta permanente. A tripulação pertencia à força aérea e os técnicos incumbidos do rastreio eram membros do serviço de contra‑espionagem.

O professor Moshe Hadari passou uma noite agitada. Algo que o amigo dissera preocupava‑o profundamente. Considerava‑se a todos os títulos leal a Israel, oriundo de uma antiga família que emigrara no princípio do século com homens como BenYehuda e David Ben Gurion. Nascera nas cercanias de Yaffa, quando ainda era um concorrido porto dos árabes palestinianos, e aprendera arábico em criança.

Criara dois filhos, assistira à morte de um, na sequência de uma infame emboscada no sul do Líbano e tinha cinco netos. Por conseguinte, quem se podia atrever a sugerir sequer que não amava a pátria?

Mas havia algo de errado. Se eclodisse a guerra, morreriam muitos jovens, como acontecera ao seu Zeev, mesmo que fossem ingleses, americanos e franceses. Seria o momento oportuno de Kobi Dror se revelar vingativo e mesquinhamente chau‑vinista?

Levantou‑se cedo, pagou a conta, fez as malas e mandou chamar um táxi para o conduzir ao aeroporto. Antes de abandonar o hotel, conservou‑se uns minutos junto dos vários telefones públicos no átrio, mas acabou por mudar de ideias.

A meio caminho do aeroporto, indicou ao motorista que saísse da estrada M4 e procurasse uma cabina. A sorte protegia‑o, pois foi Hilary quem atendeu o telefone no apartamento em Bayswater.

‑           Um momento, que ele vai a caminho da porta.

A voz de Terry Martin surgiu na linha no momento imediato.

É o Moshe e disponho de pouco tempo. Comunique aos seus amigos que o instituto tem na verdade uma fonte altamente situada em Bagdade. Que perguntem o que aconteceu a Jericó. Adeus, meu amigo.

Um instante, Moshe! Tem a certeza? Como o sabe?

Não interessa. Você nunca ouviu falar de mim. Adeus.

Em Chiswick, o idoso académico regressou ao táxi e prosseguiu em direcção a Heathrow. Tremia devido à enormidade do que acabava de cometer. Como poderia explicar a Terry Martin que fora ele, o professor de arábico da universidade, que codificara a primeira resposta a Jericó, em Bagdade?

O telefonema de Martin surpreendeu Simon Paxman sentado à secretária, na Century House, pouco depois das dez.

Almoçar? Lamento, mas não posso. É um dia infernal.

Talvez amanhã.

Tem de ser hoje, Simon. É urgente.

Paxman suspirou. O mais certo era o académico ter descoberto uma nova interpretação de uma frase numa emissão da rádio iraquiana que supunha susceptível de alterar o significado da vida.

‑           Garanto‑lhe que me é impossível. Tenho uma reunião importante aqui. Só se for uma bebida rápida. No Hole‑in‑the‑Wall, um botequim debaixo da Ponte de Waterloo, perto do meu

antro de trabalho. Às duas? Posso conceder‑lhe meia hora.

‑           Chega e sobeja ‑asseverou Martin. ‑Até logo.

Pouco depois do meio‑dia, os dois sentavam‑se diante de cervejas no estabelecimento por cima do qual os comboios da linha do sul rugiam em direcção a Kent, Sussex e Hampshire. Sem revelar a sua fonte, Martin repetiu o que lhe fora dito naquela manhã.

Com a breca! ‑murmurou Paxman. ‑Quem lhe disse?

Não o posso divulgar.

‑Tem de o fazer.

‑Ele cometeu uma indiscrição, por assim dizer. Prometi‑lhe guardar segredo. Só posso acrescentar que é um catedrático de meia‑idade.

Reflectiu por um momento. Um académico que convivia com Martin. Também arabista, sem dúvida. A informação tinha de ser transmitida à Century House e o mais depressa possível. Por fim, agradeceu a revelação, deixou a cerveja a meio e regressou apressadamente à base.

Em virtude da reunião à hora do almoço, Steve Laing não abandonara o edifício. Assim, Paxman chamou‑o à parte e elucidou‑o. O outro apressou‑se a comunicá‑lo ao chefe.

Sir Colin, pouco propenso a exageros, considerou o general Kobi Dror «um tipo altamente maçador», prescindiu do almoço normal, ordenou que deixassem algo na sua secretária e subiu ao último piso, onde recorreu a uma linha extremamente segura para falar com o juiz William Webster, director da CIA.

Ainda eram apenas 8.30 em Washington, porém o magistrado gostava de começar o dia cedo, pelo que se encontrava no seu gabinete para atender a chamada. Fez duas ou três perguntas sobre a fonte da informação, emitiu um grunhido ante a reserva do colega britânico e terminou por reconhecer que se tratava de algo que não podia ser ignorado.

Em seguida, repetiu a revelação ao subdirector (Operações), Bill Stewart, o qual explodiu de fúria, após o que conferenciou durante meia hora com Chip Barber, chefe das Operações do Médio Oriente. Este último ainda se mostrou mais furioso, porque fora ele que se sentara diante do general Dror, na sala soalheira no topo da colina nos subúrbios de Herzlia, e este lhe mentira.

Combinaram o que pretendiam fazer e foram apresentar a ideia ao director.

A meio da tarde, William Webster reuniu‑se com Brent Scowcroft, responsável do Conselho da Segurança Nacional, o qual levou o assunto ao conhecimento do Presidente Bush. Perguntou o que pretendia que se fizesse e foi‑lhe concedida autoridade absoluta para actuar.

O Secretário de Estado, James Baker, consultado sobre a eventualidade de uma colaboração íntima, anuiu imediatamente. Naquela noite, o Departamento de Estado enviou um pedido urgente a Telavive, o qual foi apresentado ao destinatário na manhã seguinte, apenas três horas mais tarde, devido à diferença de fusos horários.

O Ministro‑adjunto dos Assuntos Estrangeiros de Israel na altura era Benjamin Netanyahu, diplomata elegante e bem‑parecido e irmão de Jonathan Netanyahu, único israelita morto durante o assalto ao Aeroporto Éntebbe, em que comandos

daquele país libertaram os passageiros de um avião francês desviado por terroristas palestinianos e alemães.

Benyamin Netanyahu fora educado parcialmente nos Estados Unidos e, em virtude do seu conhecimento de línguas e arreigado nacionalismo, fazia parte do governo de Itzhak Sha‑mir, exercendo com frequência as funções de seu porta^‑voz nos contactos com os media ocidentais.

Desembarcou no Aeroporto Dalles de Washington dois dias mais tarde, a 14 de Outubro, algo perplexo com a urgência do convite do Departamento de Estado para que se deslocasse aos Estados Unidos, a fim de participar em discussões de importância considerável.

Ainda ficou mais perplexo, quando duas horas de diálogo privado com o Subsecretário Lawrence Eagleburger apenas revelaram uma análise pormenorizada dos desenvolvimentos no Médio Oriente desde 2 de Agosto. Por fim, absolutamente frustrado, preparou^se para regressar a Israel num voo nocturno.

Quando abandonava o Departamento de Estado, um funcionário entregou‑lhe um rectângulo de cartolina, encimado por uma espécie de brasão pessoal, em que o signatário lhe solicitava que não abandonasse Washington sem efectuar uma breve visita a sua casa, para discutirem um assunto urgente «para os nossos países».

Ele reconheceu a assinatura ‑era de um homem das suas relações, abastado e poderoso. A sua limusina aguardava à porta. O ministro israelita tomou uma decisão: ordenou ao seu secretário que regressasse à embaixada, a fim de ir buscar a bagagem, e se encontrasse com ele, duas horas mais tarde, em determinada casa de Georgetown, de onde seguiriam para o aeroporto. Por último, subiu para a limusina.

A residência era sumptuosa, situada na M Street, a menos de trezentos metros da Universidade de Georgetown. Foi conduzido a uma biblioteca decorada com esmero e luxo e, momentos depois, surgia o anfitrião, de mão estendida.

‑Não tenho palavras para lhe agradecer a concessão destes breves minutos, meu caro Bibi.

Saul Nahanson era simultaneamente banqueiro e financeiro, actividades que o tinham tornado excepcionalmente rico. À semelhança do político israelita, irradiava elegância e tinha cabelos grisalhos.

Instalaram‑se em poltronas diante da lareira acesa e um empregado inglês de libré aproximou‑se com uma garrafa e dois copos numa salva de prata.

Saul Nathanson era demasiado subtil para entrar de chofre no assunto que suscitaria o encontro, pelo que as primeiras palavras abordaram quase banalidades. Em seguida, o diálogo enveredou pelo tema do Médio Oriente.

Palpita‑me que vai haver guerra ‑proferiu, com uma expressão de amargura.

Não tenho a menor dúvida a esse respeito.

Antes de terminar, muitos jovens americanos morrerão, mancebos fortes e saudáveis que não merecem tal sorte. Temos de fazer tudo ao nosso alcance para manter o número de baixas tão reduzido quanto possível, não concorda? Mais vinho?

Estou inteiramente de acordo.

Onde pretenderia o homem chegar? O diplomata israelita não fazia a menor ideia.

‑O Saddam é uma ameaça ‑continuou Nathanson, com o olhar fixo no lume. ‑Talvez mais para Israel do que para qualquer dos outros estados vizinhos.

É o que dizemos há anos. Mas quando lhe bombardeámos o reactor nuclear, a América condenou-nos.

A gente de Cárter ‑proferiu, com um gesto de desdém.

‑Uma mera atitude de cosmética. Tenho um filho a cumprir o serviço militar no Golfo.

Não sabia. Faço votos para que regresse são e salvo.

Obrigado, Bibi. ‑O anfitrião parecia sinceramente impressionado. ‑Rezo todos os dias para que tal aconteça.

Quanto a mim... em face da gravidade da situação... a colaboração entre todos nós deve ser firme e constante.

Não creio que haja duas opiniões quanto a isso. ‑ O israelita tinha a desconfortável sensação de que se aproximavam más notícias.

Para reduzir as baixas ao mínimo. É essa a razão pela qual solicito a sua colaboração, Benyamin. Estamos do mesmo lado, suponho? Sou americano e judeu.

A ordem de precedência com que ele empregou os dois termos ficou a pairar no ar.

E eu israelita e judeu ‑replicou Natanyahu.

Precisamente. Mas em virtude de ter sido educado aqui, decerto compreende... como direi?... que os americanos às vezes se tornam muito emocionais. Posso exprimir‑me com franqueza?

‑Decerto‑assentiu o israelita, cada vez mais intrigado.

‑           Se se fizesse algo, ainda que insignificante, para reduzir o número de baixas, eu e os meus compatriotas ficaríamos eternamente gratos a quem contribuísse para semelhante fim.

A outra metade do sentimento permaneceu omissa, mas Netanyahu era um diplomata demasiado experiente para que lhe escapasse. Se se fizesse ou deixasse fazer algo que contribuísse para aumentar o número de baixas, a memória da América revelar‑se‑ia longa e a vingança desagradável.

‑           Que pretende de mim?

Saul Nathanson levou o copo aos lábios e voltou a fixar o olhar no lume.

‑           Ao que parece, há um homem em Bagdade, com o nome de código de Jericó...

Quando os dois homens se separaram, foi um ministro‑adjunto dos Assuntos Estrangeiros que seguiu velozmente para o aeroporto de Dulles, a fim de embarcar no voo que o conduziria à pátria.  

 

A barreira que o interceptou situava‑se na esquina da Rua Mohammed ibn Kassem com a Quarta Circular. Quando a avistou de longe, Mike Martin sentiu‑se tentado a efectuar uma rotação de cento e oitenta graus e voltar para trás.

Mas havia soldados iraquianos postados de cada lado da artéria de acesso ao local de inspecção, aparentemente apenas com essa intenção, pelo que constituiria rematada loucura empreender a fuga. Assim, viu‑se forçado a continuar em frente e incorporar‑se ha fila de veículos que aguardavam.

Como sempre, ao atravessar a cidade do Koweit, procurara evitar os locais mais concorridos, porém o percurso através de qualquer das estradas circulares que envolviam a área numa espécie de faixas concêntricas só se podia efectuar numa encruzilhada importante.

Por outro lado, ao fazê‑lo a meio da manhã, Martin acalentava a esperança de se perder no meio da confusão do tráfego ou descobrir que os soldados iraquianos se protegiam do calor algures.

Mas em meados de Outubro o tempo arrefecera, além de que os membros das forças especiais se revelavam muito mais eficientes do que os do exército popular. Por conseguinte, ele decidiu aguardar pacientemente a sua vez, sentado ao volante da carrinha Volvo branca.

Ainda era noite, quando se aventurara no deserto para desenterrar os explosivos e restante equipamento que prometera a Abu Fouad. E, pouco antes da alvorada, procedera à sua transferência do jipe para a Volvo, na garagem de uma rua estreita de Firdous.

Entre a transferência de um veículo para o outro e o momento em que calculou que o Sol estaria suficientemente alto e quente para obrigar os iraquianos a protegerem‑se à sombra, conseguira passar pelo sono durante cerca de duas horas sentado ao volante da carrinha. Por fim, mudara de roupa, trocando a túnica encardida de beduíno pela indumentária impecável de um médico koweitiano.

Os carros que o precediam deslocavam‑se lentamente em direcção ao grupo de soldados de infantaria em torno de barricas cheias de cimento que assinalavam a barreira. Em alguns casos, eles limitavam‑se a lançar uma olhadela aos documentos de identidade dos condutores e gesticulavam para que prosseguissem o seu caminho; noutros, mandavam‑nos abandonar a fila, para uma busca minuciosa. De um modo geral, eram os veículos que transportavam alguma espécie de carga que tinham de se desviar para a berma.

Martin achava‑se desconfortavelmente consciente dos dois caixotes atrás dele, no sobrado da área de carga da carrinha, que continham material em quantidade mais do que suficiente para justificar a sua detenção e entrega às nada delicadas mãos dos agentes da AMAM.

Finalmente, foi a sua vez de se submeter à inspecção. O sargento não se deu ao trabalho de lhe pedir os documentos de identificação. Ao ver os caixotes na retaguarda da Volvo, apontou peremptoriamente para a berma e vociferou uma ordem aos subordinados que se encontravam aí.

Surgiu um mal encarado indivíduo fardado do lado da janela do condutor, cujo vidro Martin já baixara.

‑Cá para fora ‑ordenou o soldado.

Martin obedeceu e empertigou‑se, ao mesmo tempo que exibia um sorriso cortês. Aproximou‑se outro sargento, e o soldado contornou a viatura e espreitou para dentro.

‑           Documentos‑exigiu o primeiro.

Examinou o bilhete de identidade que Martin lhe entregou e procedeu à comparação visual do rosto da fotografia com o original. Se notou alguma diferença entre o oficial britânico na sua frente e o empregado da empresa de Al‑Khalifa cuja foto fora utilizada para o efeito, não o deixou transparecer.

O documento exibia a data de emissão do ano anterior, lapso

de tempo durante o qual um homem podia perfeitamente deixar

crescer a barba.

‑É médico?  

‑           Exacto, sargento. Trabalho no hospital.

‑         Qual?  

‑         O da Jahra Road.   ‑Para onde vai?         

-Para o Hospital Amiri, em Pasman.      

O homem não possuía cultura especial, pelo que considerava um médico uma pessoa de erudição e importância consideráveis. Por fim, emitiu um grunhido e encaminhou‑se para a retaguarda da carrinha.

‑           Abra‑a ‑ordenou.

Martin obedeceu e a porta, impelida pela mola, subiu acima das suas cabeças, após o que o iraquiano fixou o olhar nos dois caixotes.

Que há aqui dentro?

Amostras. Foram pedidas pelo laboratório de pesquisas do Hospital Amiri.

Mostre‑mas.

Martin puxou de um molho de chaves. Os caixotes tinham fechaduras de bronze e, enquanto ele fingia procurar a adequada, observou:

Como talvez saiba, o interior está refrigerado.

Refrigerado? ‑repetiu o sargento, como se tivesse dificuldade em entender o significado do termo.

Sim, frio. As culturas têm de se manter a uma temperatura constante. Se eu abrir os caixotes, o ar escapa‑se e tornam‑se muito activas. É melhor recuar um pouco.

Ante a advertência, o sargento enrugou a fronte, empunhou a carabina que trazia à bandoleira e apontou‑a a Martin, suspeitando de que os caixotes continham armas.

Porquê? ‑inquiriu, em inflexão brusca.

Lamento, mas não o posso evitar. Os germes escapam‑se para o ar à nossa volta.

Quais germes? ‑Estava visivelmente confuso e irritado, tanto com a sua ignorância como com a atitude do suposto médico.

Não lhe disse onde trabalho? ‑perguntou Martin, em tom quase melífluo.

Disse, no hospital.

Na secção de isolamento, onde há uma infinidade de amostras de germes de varíola e cólera para análise.

Desta vez, o sargento retrocedeu, pelo menos um metro. As marcas que ostentava nas faces constituíam uma recordação pungente da varíola que o atacara em criança e quase lhe provocara a morte.

‑           Leve isto daqui para fora, imediatamente!

Martin desfez‑se em desculpas, fechou a porta da retaguarda da carrinha, sentou‑se ao volante e partiu prontamente.

Uma hora mais tarde, entrava num armazém de peixe no porto de Shuwaikh e entregava a carga a Abu Fouad.

 

Departamento de Estado dos Estados Unidos Washington, DC 20520

MEMORANDO PARA: James Baker, Secretário de Estado DE Grupo Político de Contra‑Espionagem e Análise ASSUNTO: Destruição da Máquina de Guerra Iraquiana DATA: 16 de Outubro de 1990 CLASSIFICAÇÃO: Só para os olhos

Nas dez semanas que decorreram desde a invasão do Emirado do Koweit pelo Iraque, procedeu‑se à mais rigorosa investigação, de nossa parte e dos nossos aliados britânicos, sobre a exacta dimensão, natureza e estado de preparação da máquina de guerra actualmente à disposição do Presidente Saddam Hussein.

Os críticos dirão sem dúvida, com o habitual benefício do discernimento, que essa análise se devia ter efectuado antes desta data. Seja como for, os resultados das várias investigações estão agora na nossa frente e apresentam um aspecto assaz preocupante.

Só as forças convencionais iraquianas, com o seu exército de um milhão e duzentos e cinquenta mil homens, peças de artilharia, tanques, baterias de mísseis e frota aérea moderna, tornam o Iraque de longe a força militar mais poderosa do Médio Oriente.

Há dois anos, estimou‑se que, se o efeito da guerra com o Irão consistira em reduzir a máquina de guerra iraniana ao ponto em que não podia constituir uma real ameaça para os seus vizinhos, os danos produzidos pelo Irão à máquina de guerra do Iraque se revestiam de uma importância similar.

Torna‑se agora claro que, no caso do Irão, o embargo criado deliberadamente por nós e pelos ingleses fez com que a sua situação não se alterasse. No caso do Iraque, porém, os dois anos intermédios foram preenchidos com um programa de rearmamento de um volume assustador.

Como recordará, senhor Secretário, a política ocidental na área do Golfo e mesmo em todo o Médio Oriente há muito que se tem baseado no conceito do equilíbrio; a noção de que a estabilidade e, portanto, o statu quo só se podem manter se nenhuma nação da área conseguir adquirir um poder suficiente para ameaçar até à submissão todos os vizinhos e estabelecer assim o domínio total.

Só na frente da guerra convencional, é óbvio que o Iraque adquiriu esse poder e se prepara agora para criar o domínio.

Mas este relatório preocupa-se ainda mais com outro aspecto dos preparativos iraquianos: o estabelecimento de uma reserva assombrosa de Armas de Destruição Maciça, juntamente com projectos permanentes do seu acréscimo e sistemas de entrega internacionais e porventura intercontinentais.

Numa palavra, a menos que se consiga a destruição total dessas armas e respectivos sistemas de entregas, o futuro imediato apresenta‑se sob um cariz catastrófico.

Dentro de três anos, o Iraque possuirá, de acordo com os estudos apresentados à Comissão Medusa e com os quais os ingleses concordam inteiramente, a sua própria bomba atómica e a capacidade para a lançar em qualquer ponto dentro de um raio de dois mil quilómetros de Bagdade.

A esta perspectiva deve acrescentar‑se a de milhares de toneladas de gás venenoso e potencial de guerra bacteriológica, que inclui o antraz, tularemia e, possivelmente a peste bubónica e pneumónica.

Mesmo que o Iraque fosse governado por um regime benigno e razoável, essa perspectiva seria assustadora. Ora, o seu actual presidente, Saddam Hussein, acha‑se claramente dominado por dois flagelos de natureza psiquiátrica: megalomania e paranóia.

Dentro de três anos, salvo se houver uma acção preventiva, o Iraque poderá dominar, somente por meio da ameaça, todos os territórios desde a costa norte da Turquia ao Golfo de Adem e dos mares ao largo de Haifa até às montanhas de Kandahar.

O efeito destas revelações deve consistir em modificar radicalmente a política do Ocidente. O desmantelamento da máquina de guerra iraquiana e, em particular, das Armas de Destruição Maciça, tem de passar a constituir o objectivo supremo da política ocidental. A libertação do Koweit tornou‑se irrelevante e serve apenas de justificação.

O alvo pretendido só pode ser frustrado com a retirada unilateral do Koweit pelo Iraque, pelo que se devem desenvolver todos os esforços para garantir que tal não acontecerá.

Nessa conformidade, a política dos Estados Unidos, em conjugação com os nossos aliados britânicos, deverá visar quatro metas:

  1. a) Na medida do possível, apresentar, secretamente, provocações e argumentos a Saddam Hussein destinados a levá‑lo a recusar abandonar o Koweit.«

Rejeitar qualquer solução de compromisso que ele ofereça para retirar do Koweit, removendo assim a justificação da nossa projectada invasão e destruição da

sua máquina de guerra.

Instar as Nações Unidas a aprovar, sem mais adiantamentos, a Resolução 678 do Conselho de Segurança que autoriza os aliados da Coligação a iniciar a Guerra Aérea, assim que eles estiverem preparados.

, 4)) Dar a impressão de que se acolhe favoravelmente, mas na realidade frustrar qualquer plano de paz que permita ao Iraque escapar incólume do seu actual dilema. Neste aspecto, o secretário‑geral da ONU, Paris e Moscovo constituem os principais perigos, capazes de propor a qualquer momento um esquema inocente susceptível de boicotar o que se deve fazer. É claro que o público continuará a convencer‑se do contrário.

Respeitosamente, É desta vez, temos de alinhar com eles, Itzhak.

O Primeiro‑Ministro de Israel parecia, como de costume, inferiorizado pela enorme cadeira rotativa e secretária na sua frente, quando o seu adjunto dos Assuntos Estrangeiros o enfrentava no gabinete fortificado; sob a Knesset, em Jerusalém. Os dois pára‑quedistas armados do outro lado da porta de aço não podiam ouvir nada do que se dizia no interior.

Itzhak Shamir enrugou o cenho, enquanto as pernas curtas oscilavam sobre a carpeta. O adjunto dos Assuntos Estrangeiros diferia do Premier em todos os sentidos ‑alto, enquanto o dirigente nacional era baixo, elegante e não desleixado como Shamir e delicado, ao passo que este último se revelava bilioso. Não obstante davam‑se muito bem e partilhavam o mesmo ponto de vista sobre o seu país e os palestinianos, pelo que o Primeiro^Ministro nascido na Rússia não hesitara em escolher e promover o diplomata cosmopolita.

Benyamin Netanyahu expusera a situação com clareza. Israel precisava dos Estados Unidos ‑da sua boa vontade, outrora garantida automaticamente pelo poder do lobby judaico, mas estava agora sob o fogo cruzado do Capitólio e dos media americanos, seus donativos, armamento e veto no Conselho de

 

í26) Political Intelligence and Analysis Group. (N. do T.]

 

Segurança. Era muita coisa junta para arriscar por um suposto agente iraquiano dirigido por Kobi Dror em Telavive.

‑           Que fiquem com Jericó, quem quer que ele seja ‑opinou Netanyahu. ‑Se os ajudar a destruir Saddam Hussein, tanto melhor para nós.

O Primeiro‑Ministro emitiu um grunhido, inclinou a cabeça e estendeu a mão para o intercomunicador.

‑           Diga ao general Dror que preciso dele aqui, no meu gabinete‑indicou à secretária particular. ‑Quando estiver livre, não. Já!

Kobi Dror abandonava os domínios do superior quatro horas mais tarde, dominado por cólera surdia. Na realidade, não se recordava de outra ocasião em que se sentisse tão furioso.

Ouvir o Primeiro-Ministro dizer‑lhe que procedera mal não se podia considerar nada agradável. Mas ter de se sujeitar ao epíteto de casmurro estúpido excedia tudo o que se lhe afigurava admissível.

De regresso ao seu gabinete, mandou chamar Sami Gershon e transmitiu‑lhe a novidade.

Como raio souberam os ianques? ‑uivou.

Quem deu com a língua nos dentes?

Ninguém daqui ‑asseverou. ‑Que acha do professor?

Sei que acaba de regressar de Londres.

Traidor imundo! ‑bradou Dror. ‑Quebro‑lhe a espinha.

Aposto que os «bifes» o embebedaram, para que falasse.

Bem, o mal está feito. Como vamos agir?

Revelar tudo acerca de Jericó. Mas não conte comigo para isso. O Sharon que se encarregue da tarefa. A reunião efectua‑se em Londres, onde ocorreu a inconfidência.

Gershon ponderou a sugestão e esboçou um sorriso malicioso.

De que se ri? ‑quis saber Dror.

Já não podemos contactar com Jericó. Eles que tentem fazê‑lo. Continuamos sem conhecer a verdadeira identidade do filho da mãe. Não me admirava nada que metessem a pata na poça.

Envia‑se o Sharon esta noite. Depois, lançamos outro projecto. Aliás, já há algum tempo que andava às voltas com ele na cabeça. Chamar‑lhe‑emos Operação Josué.

Porquê? ‑quis saber Gershon, perplexo.

Não se recorda exactamente do que Josué fez a Jericó?

A reunião em Londres foi considerada suficientemente importante para Bill Stewart, subdirector de Langley (Operações), cruzar o Atlântico, acompanhado de Chip Barber, da Divisão do Médio Oriente. Instalaram‑se numa das casas seguras da Agência, um apartamento nas proximidades da embaixada americana, em Grosvenor Square, e jantaram com o subdirector do SIS e Steve Laing. A presença do subdirector devia‑se a questões de protocolo, em virtude do grau hierárquico de Stewart. Seria substituído na altura das declarações de David Sharon por Simon Paxman, que tinha a seu cargo a pasta do Iraque.

David Sharon deslocou‑se de Telavive com um nome suposto e tinha à sua espera um katsa da embaixada israelita, em Palace Green. O serviço de Contra‑Espionagem Britânico, Ml.5, que não gosta dos agentes estrangeiros, mesmo os de países amigos, que apreciam as brincadeiras no porto de entrada, fora alertado pelo SIS, pelo que localizou o kotsa da embaixada. Assim que este saudou o recém‑chegado «Mr. Eliyáhu», proveniente do voo de Telavive, o grupo do Mv 1.5 entrou em cena para dar as calorosas boas‑vindas a Mr. Sharon e prontificar‑se para lhe tornar a estada o mais aprazível possível.

Os dois irritados israelitas foram escoltados ao carro e depois seguidos noutra viatura até ao centro de Londres.

As revelações de David Sharon principiaram na manhã seguinte e prolongaram‑se por todo o dia e metade da noite. O SIS decidiu utilizar uma das suas casas seguras ‑um apartamento bem protegido e «armadilhado» eficientemente, em South Kensington.

; Era (e ainda é) um local espaçoso, em que a sala de jantar serviu de teatro da reunião. Um dos quartos continha os bancos de gravadores e dois técnicos que registavam todas as palavras pronunciadas. Uma jovem esbelta e eficiente requisitada à Century House ocupava‑se da cozinha, para que os seis homens não passassem fome.

Dois indivíduos de porte atlético permaneceram todo o dia no átrio do prédio para reparar o elevador que funcionava perfeitamente, embora na verdade providenciassem para que só entrassem os habitantes usuais dos diferentes andares.

Sentados em torno da mesa da sala de jantar, viam‑se David Sharon e o katsa da embaixada de Londres, o qual, de qualquer modo, era um agente «declarado», os dois americanos, Stewart e Barber, de Langley, e os dois representantes do SÍS, Laing e Paxman.

Por indicação dos americanos, Sharon contou a sua história pormenorizadamente.

‑Um mercenário? Um mercenário de «entrada»? ‑estranhou Stewart, a dada altura. ‑Suponho que não está a brincar comigo?      

‑           Recebi instruções para usar de absoluta sinceridade redarguiu o israelita. ‑Foi assim que as coisas se passaram.

Os americanos não tinham nada contra um mercenário. Na verdade, até constituía uma vantagem. Entre os motivos para trair a pátria, o dinheiro é o mais simples e fácil para a agência recrutadora. Com um mercenário, uma pessoa sabe as linhas com que se cose. Nada de sentimentos torturados de arrependimento, angústia de autodesdém, ego frágil para ser massajado e adulado ou penas eriçadas para alisar. Um mercenário no mundo dos serviços secretos assemelha‑se a uma prostituta. Não há necessidade de jantares à luz das velas e pequenas atenções para consumar a conquista. Basta depositar um punhado de dólares em cima da mesa‑de‑cabeceira.

Sharon descreveu a busca frenética de alguém que podia viver em Bagdade sob cobertura diplomática em regime de permanência prolongada e da eventual «escolha de Hobson» de Alfonso Benz Moncada, com o respectivo treino intensivo em Santiago e reinfiltração para «dirigir» Jericó durante dois anos.

Um momento‑interrompeu Stewart.‑Esse amador dirigiu Jericó ao longo de dois anos? Procedeu a setenta recolhas de «cestos» e safou‑se?

Juro pela minha saúde ‑confirmou Sharon, secamente.

‑           Que acha, Steve?

Laing encolheu os ombros.

Sorte de principiante. Em Berlim Oriental ou Moscovo não se safava, de certeza.

Exacto‑concordou Stewart. ‑E nunca o seguiram a um «cesto»? Nem se descaiu?

Nunca ‑afirmou Sharon. ‑Foi seguido algumas vezes, mas sempre de forma esporádica e pouco hábil. No percurso de casa para a Comissão Económica ou vice‑versa e uma ocasião quando se dirigia para um «cesto». Mas apercebeu‑se a tempo e mudou de rumo.

‑‑Suponhamos que o seguiram mesmo até um «cesto». Rapazes da contra‑espionagem de Rahmani ficaram de atalaia no local e capturaram Jericó ‑sugeriu Laing. ‑Submetido a persuasão suficiente, este viu‑se forçado a colaborar...

‑           Nessa eventualidade, o produto perderia grande parte do seu valor ‑disse Sharon. ‑Ele estava a produzir estragos profundos. Rahmani não permitiria que isso continuasse.

Teríamos assistido ao julgamento público e execução de Jericó, e Moncada seria expulso do país, se a sorte não lhe voltasse as costas.

«Tudo indica que os perseguidores faziam parte da AMAM, embora os estrangeiros pertençam à tutela de Rahmani. De qualquer modo, mostraram‑se tão ineptos como sempre e Meneada descobriu‑os sem dificuldade. Como sabemos, a AMAM gosta de se intrometer nos assuntos da contra‑espionagem.»

Os outros aquiesceram, com inclinações de cabeça. A rivalidade interdepartamental não constituía uma novidade. Também se verificava nos seus países.

No momento em que Sharon chegou ao ponto em que foi retirado abruptamente do Iraque, Bill Stewart soltou uma imprecação.

Está‑nos a dizer que ele desligou, cortou o contacto?

Por outras palavras, Jericó anda à solta, sem controlador?

Aí é que bate o ponto ‑replicou o israelita, pacientemente. Virou‑se para Chip Barber e prosseguiu: ‑Quando o

general Dror disse que não tinha qualquer agente em Bagdade,

falou verdade. A Mossad estava convencida de que Jericó, como operador activo, se encontrava de patas para o ar.

‑Queremos restabelecer o contacto‑declarou Laing, a meia‑voz. ‑Como?

Sharon indicou as seis localizações de marcos postais de cartas mortas. No decurso dos seus dois anos, Moncada mudara duas ‑num dos casos, porque o local estava a ser terraplanado para construção de um bloco habitacional e no outro em virtude de a loja abandonada utilizada ter sido reactivada. No entanto, as indicações agora expostas correspondiiam às válidas na última informação da fontte antes da sua expulsão.

A posição exacta desses «cestos» e locais apropriados para as marcas a giz que referiam a necessidade de visitar aqueles achavam‑se mencionados com a aproximação de centímetros.

Talvez pudéssemos convencer um diplomata de um país amigo a abordá‑lo, para revelar que regressava à actividade e a remuneração era mais compensadora ‑sugeriu Barber.‑ Evitavam‑se essas visitas a esconderijos debaixo de tijolos

e lajes.

Não‑declarou Sharon. ‑Ou nos conformamos com os cestos ou não haverá a menor possibilidade de estabelecer contacto.

Porquê? ‑perguntou Stewart.

‑Talvez não acreditem, mas juro que é verdade. Nunca nos inteirámos da sua verdadeira identidade.

Os quatro agentes ocidentais fitaram o israelita com incredulidade durante alguns momentos.

‑Não conseguiram identificá‑lo? ‑articulou Stewart, pausadamente.

‑Não. Tentámos e insistimos em que nos dissesse quem na realidade era, para sua própria protecção, mas recusou e ameaçou fechar a torneira, se persistíssemos com a ideia. Procedemos a análises da escrita e elaborámos psico‑retratos. Comparámos a informação que fornecia com a que se achava fora do seu acesso. Acabámos por ficar com uma lista de cerca de quarenta homens dos círculos de Saddam Hussein, no seio do Conselho do Comando Revolucionário, do Alto‑‑Comando do Exército e das altas patentes do Partido Baath.

«Nunca lográmos aproximar‑nos mais do que isso. Em duas ocasiões, introduzimos um termo técnico inglês nos nossos pedidos e foi‑nos devolvido com o pedido do equivalente em arábico. Parece que domina mal a nossa língua ou a desconhece por completo. É claro que se pode tratar de um subterfúgio. Por conseguinte, escreve sempre em arábico.»

Stewart emitiu um grunhido de contrariedade, convencido.

‑           Parece a repetição do Garganta Funda. ‑‑ Todos se recordavam da fonte secreta no caso Watergate, que fornecera informações confidenciais ao Washington Post.

Mas Woodward e Bernstein identificaram‑no ‑argumentou Paxman.

É o que eles garantem, mas duvido‑volveu Stewart.

‑Penso que o tipo se manteve imerso na sombra, como esse Jericó.

Havia algumas horas que anoitecera, quando os quatro homens permitiram que o exausto David Sharon regressasse finalmente à sua embaixada. Steve Laing tinha a certeza de que, desta vez, a Mossad não guardara qualquer trunfo na manga, pois Bill Stewart explicara‑lhe o nível da pressão a que o israelita fora submetido em Washington.

Os dois agentes britânicos e outros tantos homólogos americanos, fartos de sanduíches e café, seguiram para um restaurante das proximidades. Stewart, que padecia de uma úlcera gástrica e um stress elevado, de modo algum acalmados por doze horas de sanduíches, contentou‑se com uma dose de salmão fumado.

‑           É um filho da mãe, Steve. Um autêntico filho da mãe de quatro olhos. À semelhança da Mossad, vamos ter de tentar encontrar um diplomata acreditado possuidor do tipo de treino conveniente e convencê‑lo a trabalhar para nós. Pagamos‑lhe, se for caso disso. Langley está na disposição de abrir os cordões à bolsa até onde for necessário. As informações de Jericó podem salvar muitas vidas, quando principiarem os combates.

‑? Por conseguinte, que temos pela frente? –observou Barber. ‑Metade das embaixadas em Bagdade já fecharam e as outras devem estar sob vigilância apertada. Há a sueca, a irlandesa, a suíça, a finlandesa...

Os países neutrais não alinham, de certeza –asseverou Lamg. ‑De resto, duvido que tenham um agente treinado destacado em Bagdade. Ignoremos as embaixadas do Terceiro Mundo, pois implicariam iniciar todo um programa de recrutamento e treino.

De qualquer modo, não haveria tempo, Steve. Há urgência premente. Não podemos percorrer o mesmo caminho que os israelitas. Agora, Bagdade está em pé de guerra. A vigilância deve ser muito apertada. Partindo do zero, eu necessitaria de um mínimo de três semanas para treinar um diplomata com eficiência.

Stewart assentiu, com um movimento de cabeça.

À parte isso, só alguém com acesso legítimo. Alguns homens de negócios ainda entram e saem de lá, em particular os alemães. Podíamos arranjar um germânico ou japonês convincente.

O pior é que a sua estada tem uma duração limitada.

Idealmente, pretende‑se alguém que «dirija» Jericó durante os próximos... quantos?... quatro meses. E um jornalista?‑ aventou Laing.

Paxman sacudiu a cabeça.

‑           Tenho conversado com todos os que vêm de lá. Precisamente devido à sua profissão, são alvo de vigilância apertada.

Um correspondente estrangeiro não pode percorrer vielas escuras, sem um agente da AMAM no seu encalço. Não esqueçamos o que pode acontecer a quem cair nas mãos de Ornar Khatib.

Os quatro homens sentados à mesa do restaurante estavam ao corrente da reputação brutal de Khatib, chefe da AMAM, mais conhecido por al‑Muazib, o Atormentador.

É inevitável correr certos riscos ‑lembrou Barber.

Referia‑me mais à aceitação ‑explicou Paxman.‑Que homem de negócios ou repórter se exporia, consciente do que lhe estaria reservado se fosse apanhado? Confesso que preferia a KGB à AMAM.

Bill Stewart pousou o garfo, frustrado, e pediu mais um copo de leite.

‑           Então, tem de ser assim. A menos que encontremos um agente treinado capaz de passar por iraquiano.

Paxman dirigiu uma mirada rápida a Steve Laing, que aquiesceu com uma inclinação de cabeça.

Temos um tipo que obedece a esses requisitos ‑anunciou o primeiro.

Um árabe treinado? Isso também a Mossad e nós próprios ‑retrucou Stewart. ‑Mas não ao nível necessário.

Trata‑se de uma operação de alto risco.

‑           Refiro‑me a um inglês, um major do SAS.

O americano imobilizou a mão com que levava o copo de leite aos lábios. Por seu turno, Barber pousou a faca e o garfo e parou de mastigar o bife.

Falar arábico é uma coisa, mas passar por iraquiano no interior do país outra muito diferente ‑disse Stewart.

Tem pele bronzeada, muito escura, cabelo preto e olhos castanhos, mas é cem por cento inglês. Nascido e criado neste país. Pode dar perfeitamente conta do recado.

E foi devidamente treinado para operações secretas? ‑ insistiu Barber. ‑Gaita, onde diabo está?

De momento, no Koweit‑informou Laing.

Abóbora! Quer dizer que se encontra lá encurralado?

Não. Segundo as nossas últimas informações, desloca‑se livremente aonde quer.

‑^‑Então, se pode raspar‑se, de que está à espera para o fazer?

‑           Prefere continuar lá a matar iraquianos.

Stewart ponderou a resposta por um momento e inclinou a cabeça.

Tem tomates ‑murmurou. ‑Podem tirá‑lo de lá? Gostávamos que nos emprestassem.

Suponho que sim. Informá‑lo‑emos, a próxima vez que entrar em contacto connosco pela rádio. Mas será dirigido por nós. E partilharemos o produto.

‑De acordo.

nè Paxman levantou‑se e limpou a boca com o guardanapo. ‑Vou informar Riade.

Mike Martin estava acostumado a procurar a sua própria sorte, mas viu a vida salva por um triz, naquele Outubro.

Devia contactar pela rádio com a casa designada do SIS, nos arrabaldes de Riade, durante a noite de 19, a mesma em que os quatro membros superiores da CIA e da Century House jantavam juntos em South Kensington.

Se o tivesse feito, teria terminado o contacto, devido à diferença de duas horas, antes de Simon Paxman regressar à Century House e comunicar a Riade que era procurado.

Pior ainda, teria estádo no ar durante cinco a dez minutos, para discutir com o interlocutor maneiras de lhe serem enviados mais explosivos e armas.

Na verdade, achava‑se na garagem onde guardava o jipe, pouco antes da meia‑noite, e descobrira que o veículo tinha uma roda vazia.

Praguejando entre dentes, passou a hora seguinte a tentar retirar as porcas, que uma mescla de massa lubrificante e areia do deserto quase haviam grudado. À uma menos um quarto, conseguiu finalmente rolar para fora da garagem e, menos de um quilómetro adiante, verificou que a roda sobresselente também deixava escapar algum ar.

Restava‑lhe unicamente regressar à procedência e desistir do contacto com Riade.

Precisou de dois dias para dispor dos dois pneus reparados, e somente na noite de 21 pôde aventurar‑se no deserto, a sul da cidade, onde montou o transmissor e emitiu uma série de breves blips, para indicar que era ele que chamava e se preparava para estar «no ar».

Ficara estabelecido que utilizaria um canal diferente em cada dia do mês. Por conseguinte, transmitia agora no 21 e, depois de se identificar, passou à escuta e aguardou. Transcorridos escassos segundos, uma voz grave e abafada proferiu:

«Montanha Rochosa, Urso Preto, recebo em cinco.»

Os códigos identificativos de Riade e Martin obedeciam igualmente a uma sequência prevista.

Ele voltou a transmitir, para pronunciar diversas frases.

Nos subúrbios da cidade do Koweit, a norte, um jovem técnico iraquiano foi alertado por uma luz intermitente na consola a seu cargo, no apartamento requisitado de um bloco residencial. Um dos seus sistemas de rastreio captara a transmissão.

Capitão! ‑chamou urgentemente, e aproximou‑se um membro da secção de comunicações do serviço de contra‑espionagem de Hassan Rahmani. ‑Acaba de aparecer alguém

no ar‑informou, indicando a luz intermitente.

Onde?

No deserto.

O técnico prestou atenção aos sinais recebidos nos auscultadores, enquanto o sistema de rastreio estabilizava na fonte da transmissão.

Deturpada electronicamente ‑anunciou.

Tem de ser ele. O chefe não se enganou. Quais são as coordenadas?

Ao mesmo tempo, o membro da contra‑espionagem estendia a mão para o telefone, a fim de prevenir as outras unidades de escuta ‑as carrinhas estacionadas em Jahra e no Hospital Al Adam, perto da costa.

‑           Dois zero dois graus.

O que significava vinte e dois graus sudoeste, e não havia absolutamente nada naquela direcção, além do deserto do Koweit, que se prolongava até ao saudita, na fronteira.

‑           Frequência?‑bradou o homem da contra‑espionagem, quando conseguiu ligação com o posto de Jahra.

O interpelado revelou‑lha. Tratava‑se de um canal pouco utilizado na gama de Frequência Muito Elevada.

‑Vá imediatamente à base aérea de Ahmadi e mande descolar o helicóptero. Diga que conseguimos determinar uma posição.

Longe dali, no deserto, Martin terminou o que tinha para dizer e passou à escuta, para se inteirar da resposta de Riade. Não correspondeu ao que esperava. Ele falara apenas durante quinze segundos.

«Montanha Rochosa, Urso Preto, regresse à gruta. Repito: regresse à gruta. Urgência máxima. Terminado.»

O oficial iraquiano comunicou a frequência aos dois outros postos de escuta. Em Jahra e no recinto do hospital, outros técnicos sintonizam o equipamento de rastreio para a frequência indicada, enquanto, sobre as suas cabeças, os pratos de um metro e vinte de diâmetro oscilavam de um lado para o outro. O da costa cobria uma área da fronteira norte do Koweit com o Iraque até à da Arábia Saudita. Os detectores de Jahra esquadrinhavam a área do leste para oeste, do mar a leste até ao deserto iraquiano a oeste.

Os três em conjunto puderam triangular um ponto fixo com um erro de cem metros e fornecer as coordenadas à tripulação do helicóptero Hind.

‑           Continua? ‑perguntou o oficial.

Os técnicos concentraram‑se no rastreio por uns momentos. O ecrã que antes apresentava um ponto luminoso bem definido, achava‑se agora virtualmente em branco. Só voltaria a aparecer quando e se o homem no deserto tornasse a transmitir.

Não, capitão. Desapareceu do ar. Talvez esteja a escutar a resposta.

Há‑de voltar ‑asseverou o oficial.

Mas equivocava‑se. O Urso Preto enrugara a fronte perante as instruções repentinas de Riade, desligara o transmissor e recolhera a antena.

Os iraquianos concentraram‑se naquela frequência durante toda a noite e, ao amanhecer, o Hind, em Al Ahmadi, desligou os rotores e os tripulantes saltaram para o chão.

Simon Paxman dormia no sofá do seu gabinete, quando o telefone tocou. Era um funcionário das Comunicações, na cave.

‑           Desço já.

Tratava‑se de uma mensagem muito breve, acabada de descodificar, procedente de Riade. Martin estabelecera contacto e tomara conhecimento das ordens.

Do seu gabinete, Paxman telefonou a Chip Barber, que se encontrava no apartamento da CIA, junto da Grosvenor Square.

Ele vai a caminho, mas não sabemos quando atravessará

a fronteira. O Steve quer que eu vá lá. Acompanha‑me?

Com certeza ‑assentiu Barber. ‑O DOO (27) regressa a Langley no voo da manhã, mas eu vou consigo. Tenho de ver o tipo.

Durante o dia 22, a embaixada americana e o gabinete dos Assuntos Estrangeiros britânico abordaram a embaixada saudita, para a obtenção de uma acreditação urgente de um novo diplomata em Riade. Não foi levantada qualquer objecção. Dois passaportes, nenhum dos quais em nome de Barber ou Paxman, receberam os necessários vistos e eles seguiram no voo das 20.45 de Heathrow, chegando ao aeroporto internacional do Rei Abdulaziz, em Riade, pouco antes da alvorada.

Havia um carro da embaixada americana à espera de Chip Barber e conduziu‑o à missão dos Estados Unidos, onde se situava a base da vasta operação da CIA, enquanto um veículo de aspecto mais modesto transportava Paxman à vivenda em que se alojava o pessoal do SIS britânico. A primeira notícia que este último recebeu foi que Martin aparentemente ainda não cruzara a fronteira.

A ordem de Riade para recolher à base era, na opinião de Martin, mais fácil de dar do que de cumprir. Regressara do deserto muito antes de amanhecer, a 22 de Outubro, e passara o dia a encerrar a operação.

Deixou uma mensagem debaixo da lápide do túmulo do marinheiro Shepton, no cemitério cristão, em que explicava a Al‑Kalifa que se via forçado a abandonar o Koweit. Noutro bilhete, destinado a Abu Fouad, indicava onde e como devia ir recolher as armas e explosivos que ainda se encontravam ocultos em duas das outrora seis vivendas.

À tarde, ultimados os preparativos, seguiu na carrinha em direcção à herdade perto de Sulaibiya, onde principiava o deserto.         !

Os seus camelos ainda lá estavam e em boas condições, e escolheu a cria, já suficientemente desenvolvida, para saldar a dívida ao dono da herdade, por haver cuidado deles.

Pouco antes de anoitecer, montou o adulto e rumou a su‑sudoeste, pelo que, quando escureceu por completo, estava confortavelmente distanciado dos últimos sinais de habitação.

Tardou quatro horas, em vez de uma como habitualmente, para alcançar o lugar onde enterrara o rádio, assinalado pelos

 

H Deputy Director (Operations): Suddirector (Operações). (N. do T.)

 

destroços enferrujados de um veículo que, num passadio remoto, sofrera uma avaria importante e fora abandonado.

Ocultou o rádio debaixo de um carregamento de tâmaras que acondicionara nas cestas. A viagem de agora diferia da anterior, em meados de Agosto. À medida que se internava no sul, Martin avistava cada vez mais sinais do enorme exército iraquiano que infestava a área a sul da cidade, estendendo‑se para oeste, em direcção à fronteira do Iraque.

Usualmente, conseguia avistar o clarão dos vários poços de petróleo que sulcavam o deserto e, consciente de que os iraquianos decerto os ocupavam, internava‑se no areal para os evitar.

Noutras ocasiões, notava o cheiro de fumo das suas fogueiras, pelo que conseguia contornar os acampamentos a uma distância confortável.

Havia apenas duas divisões da Guarda Republicana do Iraque a sul do Koweit, quando entrara, e achavam‑se mais para leste, a sul da Cidade do Koweit.

Agora, a Divisão Hammurabi juntara‑se‑lhes, e mais onze, na sua maioria do exército regular, tinham ocupado a área sul do Koweit, para enfrentar a concentração de tropas americanas e da Coligação, do outro lado da fronteira.

Catorze divisões constituem um volume de tropas substancial, mesmo espalhadas pelo deserto. Afortunadamente para Martin, parecia que não tinham o hábito de manter sentinelas e dormiam profundamente nos seus veículos, apesar do que a consciência do número elevado dos efectivos o obrigava a deslocar‑se cada vez mais para oeste.

A alvorada surpreendeu‑o a poente do campo petrolífero de Manageesh e ainda a norte do posto de polícia de Al Mufrad, que assinalava a fronteira num dos pontos de travessia de pré‑emergência.

Entretanto, o terreno tornara‑se mais acidentado e ele descobriu um aglomerado de rochas para passar o dia. Quando o Sol despontou, desmontou do camelo, que prendeu nas proximidades, envolveu‑se na manta e adormeceu.

Pouco depois do meio‑dia, foi acordado pelo ruído de tanques nas cercanias e apercebeu‑se de que se encontrava demasiado perto da estrada de Jahra para o Koweit, que se internava na Arábia Saudita, no posto alfandegário de Al Salmi. Depois do pôr‑do‑Sol, aguardou até cerca da meia‑noite para reatar a marcha, consciente de que a fronteira não podia distar mais de vinte quilómetros do lugar em que se encontrava.

O luar permitiu‑lhe avistar o posto da polícia de Oairnat Subah ao longe e, três quilómetros adiante, calculou que cruzara a fronteira. No entanto, como medida de precaução continuou em frente, até que chegou à lateral que se estendia no sentido leste‑oeste entre Hamatiyyat e Ar‑Rugi, onde se deteve para montar o rádio e respectivo prato.

Como os iraquianos a norte tinham escavado vários quilómetros no lado do Koweit e o plano do general Schwarzkopf exigia que as forças da Protecção do Deserto também se mantivessem a certa distância, a fim de, na eventualidade de serem atacadas, ficarem com a certeza de que os iraquianos haviam realmente invadido a Arábia Saudita, Martin encontrou‑se numa terra de ninguém deserta. Um dia, aquele espaço agora vazio converter‑se‑ia numa torrente constante de tropas sauditas e americanas em direcção ao Koweit. Contudo, na escuridão que precedia a alvorada de 24 de Outubro, tinha‑o inteiramente por sua conta.

Simon Paxman foi acordado por um membro da equipa da Century House que ocupava a vivenda.

‑           O Urso Preto acaba de ir para o ar. Diz que cruzou a fronteira.

Saltou da cama e correu para a sala de comunicações em pijama. Um operador de rádio sentava‑se numa cadeira rotativa diante de uma consola que ocupava toda uma parede do aposento que outrora fora um elegante quarto. Como era o dia 24, os códigos tinham sido alterados.

‑           Corpo de Cristo a Vaqueiro do Texas, onde está? Repita a sua posição, por favor.

A voz era quase inaudível, quando brotou do altifalante, mas perfeitamente clara.

"A sul de Qaimat Subah, no Hamatiyyat da estrada de Ar‑Rugi.»

O operador voltou‑se para Paxman, que premiu o botão de transmissão e disse:

‑           Deixe‑se estar aí, Vaqueiro. Um táxi irá buscá‑lo. Escuto.

«Entendido», replicou a voz ténue. «Fico à espera do táxi preto.»

Não era propriamente um táxi preto, mas um helicóptero Blackhawk americano que sobrevoava a estrada, duas horas mais tarde. Um dos tripulantes, que estava munido de um potente binóculo, avistou o homem e observou‑o com desconfiança.

Afinal, tratava‑se de um beduíno, embora o local fosse exactamente o indicado, e recebera instruções para ir recolher um inglês. Enquanto hesitava, o beduíno dispôs uma série de pequenas pedras no chão e desviou‑se, na expectativa. O tripulante do helicóptero assestou o binóculo e leu: «ALÁ.»

‑           Deve ser o tipo ‑observou ao piloto. ‑Pesquemo‑lo.

Entretanto, Martin retirara as pesadas cestas e a não mais leve sela de cima do camelo e colocara‑as na berma da estrada. O rádio e a Browning de nove milímetros e treze tiros do SAS encontravam‑se na mochila suspensa dos ombros.

Quando o helicóptero desceu, o camelo entrou em pânico e pôs‑se em fuga. Martin viu‑o afastar‑se com um leve sorriso. Fora extremamente útil e não lhe sucederia nada de mal no deserto,, seu habitat natural. Vaguearia livremente, até que algum beduíno o descobrisse e passasse a utilizar, depois de se certificar de que não tinha qualquer marca.

Por fim, Martin inclinou a cabeça para evitar as pás das hélices e correu para a porta aberta do helicóptero.

Diz‑me o nome, por favor ‑solicitou o tripulante, levantando a voz para se fazer ouvir em virtude do ruído dos rotores.

Major Martin.

Uma mão estendeu‑se pela abertura, a fim de o puxar para dentro.

‑           Bem‑vindo a bordo, major.

Nas proximidades da cidade, o piloto alterou o rumo em direcção a uma vivenda isolada, junto da qual alguém estendera três fiadas de almofadas com a forma de um «H». Martin aguardou que o aparelho pairasse a cerca de um metro do chão, saltou e encaminhou‑se para a casa, enquanto o helicóptero se afastava. Atrás dele, dois empregados da vivenda começaram a recolher as almofadas.

Transpôs a pequena arcada e encontrou‑se num pátio pavimentado, onde acabavam de surgir dois homens, um dos quais reconheceu imediatamente do quartel‑general do SAS, a oeste de Londres.

‑           Simon Paxman‑apresentou‑se o mais jovem, estendendo a mão. ‑Muito gosto em tê‑lo de volta. Este é Chip Barker, um dos nossos primos de Langley.

Este último apertou a mão ao recém‑chegado, ao mesmo tempo que o observava ‑uma túnica branca encardida, manta dobrada sobre o ombro, keffiyeh de xadrez, olhos negros penetrantes e barba de vários dias.

Tenho muito prazer em conhecê‑lo, major. Falaram‑me muito de si. ‑Franziu o nariz. ‑Talvez deseje tomar banho...

Tem razão ‑interpôs Paxman. ‑Vou tratar disso imediatamente.

Martin inclinou a cabeça, agradeceu e entrou na vivenda, seguido dos dois homens. Barber estava quase eufórico com o que se lhe deparava. «Não me admirava nada que o homem desse conta do recado», reflectia.

Foram necessários três banhos consecutivos na banheira de mármore cedida aos ingleses pelo príncipe Khaled bin Sultan para Martin conseguir eliminar a sujidade e odor a transpiração de várias semanas. Em seguida, sentou‑se, com uma toalha em volta da cintura, enquanto o barbeiro chamado para o efeito lhe cortava o cabelo crespo, após o que escanhoou o rosto com utensílios emprestados por Simon Paxman.

A roupa que vestia à chegada foi entregue a um empregado saudita, que a queimou no pátio. Duas horas mais tarde, envergando calças de algodão e camisa de meia‑manga, também cedidas por Paxman, sentou‑se à mesa para fazer as honras a um lauto almoço.

‑           Posso saber por que me mandaram regressar?

Foi Chip Barber quem respondeu.

‑           É uma boa pergunta, major. Muito oportuna. Por conseguinte, merece uma resposta a condizer, hem? Gostávamos que se introduzisse em Bagdade. Na próxima semana. Quer salada com o peixe?

 

A CIA e o SIS tinham pressa. Embora o facto fosse pouco ventilado, então ou mais tarde, em fins de Outubro tinha sido estabelecida em Riade uma importante presença da Agência, para executar uma operação não menos capital.

A representação desta última não tardou a entrar em conflito com os chefes militares da «coelheira» das salas de planeamento das caves do Ministério da Força Aérea Saudita. Prevalecia a convicção, pelo menos entre os generais, de que, graças à utilização adequada do estendal de meios técnicos sofisticados à sua disposição, conseguiriam inteirar‑se de tudo o que necessitavam de saber sobre os métodos de defesa e preparativos do Iraque.

E era na verdade um estendal surpreendente. À parte os satélites no Espaço que forneciam uma sequência constante de imagens do território de Saddam Hussein e dos Aurora e U‑2, que faziam a mesma coisa, mas de mais perto, havia outras máquinas de uma complexidade impressionante destinadas a proporcionar outro tipo de informação.

Entre os aviões, a principal unidade era o Sistema de Aviso e Controlo em Voo, conhecido por AWACS f28) ‑aparelhos Boeing 707 que transportavam uma enorme cúpula de radar montada no topo da estrutura. Deslocando‑se em círculos lentos sobre o norte do Golfo, em turnos de vinte e quatro horas rotativos, os AWACS podiam informar Riade em poucos segundos de qualquer movimento aéreo sobre o Iraque. Praticamente, não podia descolar um aparelho daquele território sem que Riade se inteirasse do seu número, rumo, velocidade e altitude.

De apoio aos AWACS, havia outra conversão de Boeing 707, o E8‑A, conhecido por J‑STARS, que fazia em relação aos movimentos em terra o mesmo que os outros no ar. O seu

 

H Airborne Warning and Control System. (N. do T.)

 

potente radar procedia ao rastreio de uma vasta área à superfície, pelo que podia cobrir o Iraque sem entrar no espaço aéreo iraquiano e detectar quase qualquer objecto metálico que começasse a mover‑se.

A combinação destes e outros milagres da técnica em que Washington gastara muitos milhares de milhões de dólares convencia os generais de que se achavam em condições de tomar conhecimento imediato de tudo o que se movesse e, por conseguinte, destruí‑lo. Nada podia escapar aos olhos do céu.

Ora, os agentes da Informação de Lançley estavam cépticos e não o dissimulavam suficientemente bem. As dúvidas eram próprias dos civis e, em face disso, as entidades militares começaram a irritar‑se. Tinham uma função importante e decisiva a desempenhar e dispensavam perfeitamente os baldes de água fria despejados sobre a sua euforia,

Do lado dos ingleses, a situação era diferente. A operação do SIS no teatro do Golfo não se comparava à da CIA, apesar de se revestir de particular envergadura pelos padrões da Century House e, segundo o estilo desta, ser mais secreta.

Além disso, eles tinham nomeado comandante de todas as forças do Reino Unido e adjunto do general Schwarzkopf, um militar invulgar de antecedentes pouco comuns.

Norman Schwarzkopf era um homem corpulento, de porte e modos irredutivelmente marciais. Conhecido por Norman Temperamental ou «O Urso», a sua disposição podia variar da bonomia cordial a explosões de temperamento, sempre de breve duração, a que os seus subordinados se referiam‑por «entrar em trajectória balística». O seu homólogo britânico não podia ser mais diferente.

O general‑tenente Sir Peter de Ia Billíère, que chegara em princípios de Outubro para assumir o comando das tropas inglesas, era desoladoramente magro, de modos reservados e discurso relutante. O possante americano extrovertido e o frágil inglês introvertido constituíam uma parelha singular, que só funcionava porque cada um sabia o suficiente do outro para reconhecer o que havia por detrás da atitude formal.

Sir Peter, conhecido entre as tropas por PB, era o militar mais condecorado do exército britânico, pormenor a que nunca aludia em circunstância alguma. Também fora comandante do SAS, facto que lhe facultava conhecimentos especiais úteis do Golfo Arábico e operações secretas.

Como trabalhara em ligação com o SIS, a equipa da Century House encontrava nele um ouvido mais acostumado a escutar as suas reservas do que o grupo da CIA.

O SAS já contava com uma presença substancial no cenário saudita, instalado num recinto reservado na periferia de uma base militar nos subúrbios de Riade. Como antigo comandante daqueles homens, o general PB preocupava‑se para que os seus notáveis talentos não fossem desperdiçados em tarefas quotidianas que a infantaria ou os pára‑quedistas podiam executar. Na verdade, tratava‑se de pessoal especializado em penetração profunda e recuperação de reféns.

Constava que poderia ser utilizado para arrancar os britânicos das mãos de Saddam, o qual os conservava em seu / poder para uma eventual negociação, porém o projecto foi abandonado quando os dispersou por todo o Iraque.

Instaladas na vivenda perto de Riade, durante a última semana de Outubro, as equipas da CIA e da SIS congeminaram uma operação que se achava no âmbito dos talentos invulgares do SAS, a qual foi apresentada ao comandante local deste último, que começou a trabalhar no seu planeamento.

A tarde do primeiro dia de permanência de Mike Martin na vivenda foi inteiramente dedicada a explicar‑lhe tudo o que se relacionava com a descoberta dos aliados anglo‑americanos da existência do renegado em Bagdade que usara o nome de código de Jericó. Ele ainda podia recusar a missão e regressar ao seu regimento e, durante a noite, ponderou o assunto. Por fim, anunciou aos agentes da CIA e do SIS que aceitava, mas impunha condições.

O principal problema, como todos reconheciam, consistia na sua história de cobertura. Não se tratava de uma missão rápida do género "entrar e sair». Tão‑pouco podia contar com apoio como acontecera no Koweit, além de que escusava de pensar sequer em percorrer o deserto que circundava Bagdade como um beduíno nómada.

Entretanto, o Iraque convertera‑se num enorme campo armado. As próprias áreas que, no mapa, pareciam desoladas e vazias, eram atravessadas por patrulhas. No interior da Capital, havia soldados do exército e agentes da AMAM em toda a parte, com a polícia militar à procura de desertores e a secreta de todos os indivíduos suspeitos.

Nessa conformidade, se conseguisse introduzir‑se lá, ~ Martin deveria usar da maior prudência. O contacto com um agente como Jericó não seria fácil. Primeiro, teria de o localizar, para comunicar que regressava à actividade. Além disso, os «cestos» outrora empregados para a troca de comunicações podiam achar‑se sob vigilância. E nada garantia que o próprio Jericó não tivesse sido desmascarado e obrigado a confessar as suas comprometedoras actividades.

Como se tudo isto não bastasse, Martin necessitaria de estabelecer um lugar para viver, uma base de onde pudesse enviar e receber mensagens. Para tal, teria de esquadrinhar a cidade à procura de um esconderijo seguro.

Por último, e pior de tudo, não haveria cobertura diplomática para lhe evitar os horrores subsequentes à captura e denúncia em público. As celas de interrogatório de Abu Ghraid aguardá‑lo‑iam, com o cortejo de torturas inevitável.

Exactamente, o que tem em vista? ‑quis saber Paxman, ao ouvir a exigência.

Se não posso passar por diplomata, quero ser adido a um grupo diplomático.

Não vai ser fácil, amigo. As embaixadas estão sob forte vigilância.

‑           Não me refiro a embaixadas mas a um grupo diplomático.

‑Como motorista, por exemplo? ‑aventurou Barber.

Não. Daria muito nas vistas. O motorista tem de se conservar ao volante. Conduz o diplomata de um lado para o outro e é tão vigiado como ele.

Então, como quê?

A menos que as coisas mudassem radicalmente, muitos dos diplomatas mais importantes residem fora do edifício da embaixada e alguns têm mesmo uma vivenda isolada, com jardim murado e tudo. Ora, dantes, essas casas não dispensavam um bom jardineiro.

Um jardineiro? Mas isso é um trabalhador manual. Arrebanhavam‑no e recrutavam‑no para o exército.

Não. O jardineiro trabalha no exterior da casa. Cuida do jardim, vai ao mercado na sua bicicleta e vive num barracão a um canto do jardim.

E daí? ‑inquiriu Paxman.

Daí que é virtualmente invisível. Ninguém repara nele.

Se o interceptam, tem os documentos de identidade em ordem

e faz‑se acompanhar de uma carta, em papel timbrado da embaixada, redigida em arábico, para explicar que trabalha para o diplomata e está isento do serviço militar. A menos que

cometa alguma ilegalidade flagrante, se as autoridades o importunarem, a embaixada apresentará queixa.

Os dois homens ponderaram a ideia por um momento. Por último, Barber admitiu:

Talvez resulte. Banal, invisível. Que lhe parece, Simon?

Bem, o diplomata teria de estar dentro do assunto.

‑           Apenas em parte ‑salientou Martin. ‑Bastaria que recebesse ordens do seu governo para aceitar o homem que o procurasse e depois fechasse os olhos ao seu comportamento.

Independentemente das conclusões que traçar, não se manifestará - se quiser manter o lugar e a carreira. Isto se as ordens emanarem de um nível suficientemente elevado, claro.

A embaixada britânica fica desde já excluída –disse Paxman.‑Os iraquianos esforçar‑se‑iam por contrariar o nosso pessoal diplomático.

O mesmo se aplica ao nosso ‑concordou Barber.‑ Tinha alguém em mente, Mike?

Quando este o revelou, os dois interlocutores entreolharam‑se de assombro.

Não acredito que fale a sério ‑declarou o americano.

Pode convencer‑se ‑replicou Martin, calmamente.

Mas um pedido desses teria de ser apresentado à Primeira‑Ministra ‑argumentou Paxman.

E ao Presidente‑acrescentou Barber.

‑Onde está a dificuldade? Não somos todos amigos de infância, actualmente? Se o produto de Jericó contribuir para salvar vidas dos aliados, não merecerá a pena efectuar um simples telefonema?

O americano consultou o relógio. Em Washington, eram sete horas mais cedo do que no Golfo. Em Langley estariam a acabar de almoçar. Em Londres, a diferença era apenas de duas, para menos, mas os funcionários superiores talvez ainda se encontrassem nos seus gabinetes.

Barber regressou apressadamente à embaixada dos Estados Unidos e enviou uma mensagem em código ao subdirector das Operações, Bill Stewart, o qual, assim que a leu, a foi mostrar ao director, Wiiliam Webster, que, por seu turno, ligou à Casa Branca e solicitou um encontro com o Presidente Simon Paxman teve mais sorte. O telefonema codificado ainda apanhou Steve Laing no seu gabinete da Century House, e, depois de escutar, o chefe das Operações no Médio Oriente ligou ao chefe, no seu domicílio.

Sir Colin reflectiu por um momento e pôs‑se em contacto com o Secretário do Conselho de Ministros, Sir Robin Butler.

Aceitarse que o chefe do Secret Intelligence Service tem o direito, em casos que considere de emergência, de solicitar um encontro com a Primeira‑Ministra, e Margaret Thatcher sempre se distinguira pela acessibilidade aos homens que dirigiam os Serviços Secretos e as Forças Especiais. Por conseguinte, concordou em o receber no seu gabinete privado, no número 10 da Downing Street, na manhã seguinte, às oito.

Encontrava‑se, como sempre, atrás da secretária desde antes da alvorada e quase despachara todos os assuntos urgentes, quando o chefe do SIS chegou. Escutou o bizarro pedido com leve perplexidade, exigiu várias explicações, reflectiu e, por fim, tomou uma decisão.

‑           Trocarei impressões com o Presidente Bush assim que se levantar e veremos o que podemos fazer. Esse... hum... homem tenciona mesmo pôr a ideia em prática?

É, na verdade, a sua intenção.

É um dos seus funcionários, Sir Colin?

Não, trata‑se de um major do SAS.

Deve ser um indivíduo excepcional.

É, com efeito, essa também a minha impressão.

, ‑Quando tudo isso terminar, gostava de o conhecer.

‑           Providenciarei nesse sentido.

Quando o chefe do SIS se retirou, o pessoal de Downing Street efectuou a ligação para a Casa Branca, embora ainda fosse de noite em Washington, e preparou o telefonema pela linha quente para as oito da manhã, uma da tarde em Londres. Em face disso, o almoço da Primeira‑Ministra sofre um atraso de trinta minutos.

O Presidente George Bush, à semelhança do predecessor, Ronald Reagan, sempre experimentara dificuldades em recusar um pedido a Margaret Thatcher, quando esta recorria a toda a sua veemência.

Está bem ‑acedeu, após cinco minutos de diálogo.‑ Farei a chamada.

O pior que pode acontecer é dizer que não ‑? Observou a Primeira‑Ministra. ‑Mas não creio, depois de tudo o que temos feito por ele.

‑Sim, isso é verdade.

Os dois chefes de governo fizeram os respectivos telefonemas com o intervalo de uma hora e a resposta do homem perplexo do outro lado do fio foi afirmativa. Falaria com os seus representantes, assim que chegassem.

Naquela noite, Bill Stewart partia de Washington, enquanto Steve Laing embarcava no último voo de ligação do dia de Heathrow.

Se Mike Martin fazia alguma ideia da actividade que o seu pedido provocara, não o deixava transparecer. Passou os dias 26 e 27 de Outubro a descansar, comer e dormir. No entanto, deixou de se barbear. Por outro lado, havia quem desenvolvesse intensa azáfama por conta dele, em diferentes lugares.

O chefe de posto do SIS em Telavive visitou o general Kobi Dror com um derradeiro pedido e o dirigente da Mossad encarou com assombro.

Tenciona mesmo levar isso a cabo? ‑perguntou.

Só sei o que me incumbiram de lhe pedir, Kobi.

Mas ele será apanhado.

Podem fazê‑lo?

Com certeza.

‑Vinte e quatro horas?

‑Por você, meu rapaz, até sacrificava a mão direita. Em todo o caso, aquilo que propôs é uma rematada loucura.‑O israelita levantou‑se, contornou a secretária e pousou o braço em torno dos ombros do inglês. ‑Infringimos metade das nossas regras e tivemos sorte. Normalmente, nunca obrigamos os nossos homens a visitar marcos postais de correspondência morta. Podia tratar‑se de uma armadilha. Para nós, constitui uma via única: do katsa para o espião. No caso de Jericó, ignorámo‑la. Moncada recolhia o produto dessa forma, porque não havia outra maneira. E teve sorte, durante dois anos. No entanto, dispunha de cobertura diplomática. Agora, vocês querem... isto?

Pegou na fotografia de um árabe de expressão amargurada, cabelo preto crespo e barba de vários dias, que o inglês acabava de receber de Riade, trazida pelo «jacto pessoal HS‑125 do general de Ia Billière, que agora aguardava no aeródromo militar de Sde Dov.

Por fim, encolheu os ombros.

‑Está bem. Amanhã de manhã.

A Mossad possui indiscutivelmente alguns dos melhores serviços técnicos do mundo. Além de um computador central com quase dois milhões de nomes e dados apropriados e um dos mais hábeis grupos de arrombadores do planeta, há, na cave e subcave da sua central, uma série de salas cuja temperatura é regulada cuidadosamente.

Contém «papel». Não meramente papel velho, mas de uma natureza muito especial. Originais de quase todos os tipos de passaporte, juntamente com miríades de outros documentos de identidade, cartas de condução, cartões de segurança social, etc.

Há igualmente os documentos «em branco»: os bilhetes de identidade por preencher com que os especialistas podem trabalhar à vontade, servindo‑se dos originais como modelos para produzirem outros falsos de qualidade superior.

Os bilhetes de identidade não constituem a sua única especialidade. Podem produzir‑e produzem ‑notas de banco virtualmente à prova de qualquer inspecção, em quantidades elevadas, quer para ajudar a minar a moeda corrente de nações vizinhas hostis, quer para financiar operações «negras» da Mossad‑aquelas de que o Primeiro‑Ministro e a Knesset nunca chegam a inteirar‑se, nem vontade disso têm.

A CIA e o SIS não tinham acedido em pedir o favor à Mossad sem uma profunda introspecção, mas achavam‑se impossibilitados de forjar o bilhete de identidade de um trabalhador iraquiano de quarenta e cinco anos capaz de escapar incólume a qualquer tipo de inspecção no Iraque.

Por sorte, o Sayeret Matkal, grupo fronteiriço de reconhecimento tão secreto que o seu nome não pode sequer figurar em qualquer documento ou jornal israelita, efectuara uma incursão no Iraque, dois anos atrás, para depositar um agente árabe que necessitava de proceder a um contacto qualquer de baixo nível naquele território. Durante a sua permanência, os membros do grupo tinham surpreendido dois trabalhadores do campo, haviam‑nos manietado e aliviado dos bilhetes de identidade.

Em conformidade com o prometido, os falsificadores de Dror trabalharam toda a noite e, ao amanhecer, tinham completado um bilhete de identidade iraquiano, convincentemente desgastado pelo uso, em nome de Mahmoud Al‑Khouri, de quarenta e cinco anos, natural de uma aldeia nos montes a norte de Bagdade, que trabalhava na capital.

Os falsificadores ignoravam que Martin adoptara o nome do mesmo Al‑Khouri que testara o seu arábico num restaurante de Chelsea, em princípios de Agosto, nem podiam saber que escolhera o nome da aldeia de origem do jardineiro do seu pai, o velho que, havia muito tempo, debaixo de uma árvore em Bagdade, falara ao garoto inglês do lugar em que nascera, com a sua mesquita, bar e campos de alfalfa e meloais que o rodeavam. Havia mais uma coisa que os falsificadores desconheciam.

De manhã, Kobi Dror entregou o bilhete de identidade ao agente do SIS destacado em Telavive.

‑Isto não o deixará ficar mal. Mas garanto‑lhe uma coisa ‑acrescentou, pousando o volumoso indicador na foto.‑Este vosso árabe domesticado há‑de traí‑los ou ser capturado em menos de uma semana.

O homem do SIS limitou‑se a encolher os ombros. Nem sequer sabia que o indivíduo representado na fotografia não era árabe. Como não necessitava de se inteirar, não fora elucidado. Limitava‑se a fazer o que lhe tinham ordenado: levou‑a a alguém de confiança a bordo do HS‑125, que a entregou, em Riade.

Nos arrabaldes da cidade, numa base secreta do exército, estavam a ser preparados dois veículos especiais, trazidos por um Hércules da RAF da base principal do SAS noutro ponto da península saudita, parcialmente desmontados e reequipados para um percurso prolongado e árduo.

A essência da conversão dos dois Land‑Rover não consistia na blindagem e eficiência do armamento, mas na velocidade e raio de acção. Com efeito, cada um teria de transpor o seu complemento normal de quatro homens do SAS e, num deles, um passageiro, enquanto no outro viajaria uma bicicleta motorizada de pneus reforçados e depósito de combustível modificado para efeitos de uma maior capacidade.

O exército americano contribuiu com dois dos seus helicópteros bi motores Cbinook, que permaneciam na expectativa de uma ordem susceptível de surgir sem aviso prévio.

Mikhail Sergevich Gorbachev sentava‑se, como habitualmente, atrás da secretária no seu gabinete pessoal no sétimo e último piso do edifício do Comité Central, na Novaya Plo‑sehad, com dois colaboradores, quando soou o besouro do intercomunicador para anunciar a chegada de dois emissários de Londres e Washington.

Havia vinte e quatro horas que estava intrigado com os pedidos do Presidente americano e da Primeira‑Ministra britânica para que recebesse um emissário pessoal de cada um. Não se tratava de um político ou diplomata, mas de um simples mensageiro. E a perplexidade intensificava‑se ao pensar que, hoje em dia, qualquer mensagem podia ser transmitida através das vias diplomáticas normais. Até havia o recurso a uma «linha quente», a coberto de qualquer intercepção, embora tivessem de intervir intérpretes e técnicos.

Na realidade, estava intrigado e curioso, e como a curiosidade constituía uma das suas mais notáveis características, ansiava por esclarecer o enigma.

Dez minutos mais tarde, os dois visitantes eram introduzidos no gabinete privado do secretário‑geral do PCUS e presidente da União Soviética.

Em contraste com o estilo pesado e lúgubre dos dois antecessores, Andropov e Chernenko, Gorbachev, mais jovem, preferia uma decoração mais leve e arejada.

Quando os dois homens entraram, fez sinal aos dois colaboradores para que se retirassem, levantou‑se e avançou ao seu encontro.

‑           Saudações, meus senhores ‑proferiu em russo. ‑ Algum dos dois fala a minha língua?

Um dos interpelados, que ele julgou ser inglês, replicou em russo hesitante:

Seria aconselhável um intérprete, senhor Presidente.

Vitali‑chamou Gorbachev, e um dos colaboradores, já junto da porta, voltou‑se para trás. ‑Mande vir o Yevgeny.

Na ausência de comunicabilidade verbal, sorriu e gesticulou para que os visitantes se sentassem. O seu intérprete pessoal apresentou‑se pouco depois e ocupou uma cadeira ao lado da secretária.

‑           Chamo‑me William Stewart e sou subdirector de Operações da Central Intelligence Agency, em Washington ‑informou o americano.

Os lábios de Gorbachev comprimiram‑se e a fronte enrugou‑se.

‑           E eu Stephen Laing, director de Operações, Divisão do Médio Oriente, da Informação Britânica.

A perplexidade do dirigente soviético acentuou‑se. Espiões? Que demónio pretenderiam dele?

Cada uma das nossas agências apresentou um pedido ao seu respectivo governo para solicitar que nos recebesse, senhor Presidente. O Médio Oriente caminha para a guerra a passos agigantados. Ninguém o ignora. Para a evitar, precisa-mos de conhecer as intenções íntimas do regime iraquiano.

Estamos convencidos de que o que eles dizem em público e o que discutem entre si difere radicalmente.

Não há nada de novo nisso ‑observou secamente.

Absolutamente nada, de facto. No entanto, trata-se de um regime muito instável. Perigoso... para todos nós. Se conseguíssemos saber o que se passa no seio do Gabinete do Presidente Saddam Hussein, poderíamos planear uma estratégia

para eliminar o risco de uma guerra iminente ‑disse Laing.

É para isso que servem os diplomatas.

Sim, em situações normais. Mas há casos em que nem a própria diplomacia é suficientemente aberta para exprimir certas ideias ou projectos particulares. Decerto se recorda do caso de Richard Sorge?

Gorbachev assentiu, com um movimento de cabeça. Todos os russos conheciam o episódio relacionado com Sorge. Era um herói póstumo da União Soviética.

‑           Na altura, a informação dele de que o Japão não atacaria a Sibéria revelou‑se totalmente crucial para este país ‑ salientou Laing. ‑Mas não poderia ser transmitida através da embaixada. Temos motivos para crer que existe em Bagdade uma fonte, excepcionalmente situada em termos de importância, em condições de nos revelar as intenções secretas de Saddam Hussein. A obtenção dessa informação pode representar a diferença entre uma guerra e a retirada voluntária dos iraquianos do Koweit.

O secretário‑geral soviético assentiu, com uma inclinação de cabeça. Também não gostava de Saddam Hussein. Outrora cliente dócil da URSS, o Iraque tornara‑se cada vez mais independente e, recentemente, o seu Presidente mostrara‑se mesmo ofensivo.

Além disso, Gorbachev achava‑se plenamente consciente de que, se desejava levar a bom termo as reformas que tinha em mente, necessitaria de apoio financeiro e industrial. O que implicava a boa vontade do Ocidente. A Guerra Fria terminara. Era uma realidade incontestada. Fora por esse motivo que ele levara o seu país a aprovar a condenação iraquiana do Koweit promulgada pelo Conselho de Segurança.

Então, contactem com essa fonte, meus senhores. Obtenham informação que as grandes potências possam utilizar para alterar a situação, e ficar‑lhes‑ei profundamente grato. Eu e todo o meu povo. A União Soviética também não deseja que haja guerra no Médio Oriente.

Na verdade, gostaríamos de estabelecer esse contacto ‑volveu Stewart.‑Mas não podemos. A fonte recusa identificar‑se, e compreende‑se porquê. Os riscos a que se expõe devem ser enormes. Assim, para o conseguirmos, temos de evitar a via diplomática. Ele deixou bem claro que só comunicará connosco secretamente.

‑           Nesse caso, que pretendem de mim?

Os dois ocidentais respiraram fundo.

Queremos introduzir um homem em Bagdade para servir de agente de ligação entre a fonte e nós ‑explicou Barber.

Um agente?

Sim, senhor Presidente, um agente. Que se fará passar por iraquiano.

Têm alguém nessas condições? ‑inquiriu Gorbachev, surpreendido.

Temos. Mas precisará de viver algures. Secreta, discreta e inocentemente... enquanto recolhe as mensagens e entrega as nossas pretensões. Pedimos que seja autorizado a fazer‑se passar por iraquiano ao serviço de um funcionário superior da embaixada soviética.

Uniu as pontas dos dedos de ambas as mãos e pousou nelas o queixo. As operações secretas não lhe eram, de modo algum, estranhas e montara várias na KGB. Agora, solicitavam‑lhe que ajudasse antigos antagonistas daquela organização a montar uma e oferecer a embaixada soviética como guarda‑‑chuva do agente. Na realidade, a situação era tão impensável que quase soltou uma gargalhada.

Se esse homem fosse apanhado, a minha embaixada ficaria comprometida.

Não, senhor Presidente. A embaixada soviética teria sido ludibriada pelos tradicionais inimigos do Ocidente –referiu Laing. ‑Saddam engoliria a versão.

Gorbachev imergiu em reflexões. Ponderou o empenho pessoal de um presidente e uma primeira‑ministra no assunto. Era óbvio que o consideravam importante, e ele via‑se compelido a encarar a sua boa vontade para consigo não menos valiosa. Por último, inclinou a cabeça.

‑           Muito bem. Transmitirei as instruções necessárias ao general Vladimir Kryuchkov para que conceda a colaboração necessária.

O general mencionado era, na altura, director do KGB. Dez meses mais tarde, quando Gorbachev se encontrava em gozo de férias no Mar Negro, Kryuchkov, juntamente com o Ministro da Defesa, Dmitri Yazov e outros, promoveria um golpe de estado para derrubar o Presidente.

Os dois ocidentais agitaram‑se nas cadeiras com visível desconforto.

‑           Salvo o devido respeito, senhor Presidente, podemos solicitar que confie unicamente no Ministro dos Assuntos Estrangeiros? ‑aventurou Laing.

Eduard Shevardnaze era então o chefe da diplomacia soviética, amigo de confiança de Mikhail Gorbachev.

Somente em Shevardnaze? ‑estranhou este último.

Exacto. Ficar‑lhe‑íamos extremamente gratos.

Então, os preparativos decorrerão apenas através do Ministério dos Assuntos Estrangeiros.

Quando os dois ocidentais se retiraram, Gorbachev imergiu em cogitações. Queriam que só ele e Shevardnaze estivessem ao corrente do assunto. Não desejavam que Kryuchkov se inteirasse. Saberiam alguma coisa que o presidente da União Soviética desconhecia?

Ao todo, eram onze agentes da Mossad ‑duas equipas de cinco e o controlador operacional que Kobi Dror escolhera pessoalmente, retirando‑o de um período fastidioso como instrutor dos recrutas da escola de treino nos subúrbios de Herzlia.

Uma delas provinha do ramo de Yarid, secção da Mossad que se debruçava sobre a segurança e vigilância operacionais. A outra pertencia à Neviot, cuja especialidade consistia na instalação de dispositivos de escuta e introdução em lugares privados ‑por outras palavras, preocupava-se com tudo o que se relacionava com objectos inanimados ou mecânicos.

Oito dos dez agentes dominavam o alemão razoavelmente e o controlador da missão de forma fluente. O grupo avançado da Operação Josué introduziu‑se em Viena ao longo de três dias, procedente de pontos de partida diferentes, munidos de passaportes perfeitos e histórias de cobertura impecáveis.

Como no caso da Operação Jericó, Kobi Dror fechava os olhos a algumas regras, porém nenhum dos subordinados protestaria. Josué fora considerado um caso; ain efes, o que significava «impossível de falhar», e, proveniente do chefe, equivalia a prioridade máxima.

As equipas Yarid e Neviot costumam compor‑se de sete a nove membros, mas como o alvo era qualificado de civil, neutro, amador e destituído de suspeitas, o número fora reduzido.

O chefe de posto da Mossad em Viena contribuíra com três das suas casas seguras e três bodlim para as manter limpas, arrumadas e abastecidas constantemente.

Um bodel‑bodlim, no plural ‑costuma ser um jovem israelita, na maioria dos casos estudante, contratado como servente, após a investigação meticulosa dos seus ascendentes, e tem como missão fazer recados, executar pequenos trabalhos domésticos e não manifestar a menor curiosidade pelo que o rodeia. Em troca, permite‑se‑lhe que viva, sem pagar aluguer, numa casa segura da Mossad, benefício excelente para um estudante de escassas posses numa capital estrangeira. Quando chegam «bombeiros» de visita, o bodel tem de sair, embora possa continuar a efectuar os trabalhos anteriores.

Ainda que Viena não pareça uma das grandes capitais da Europa, sempre se revestiu de particular importância para o mundo da espionagem. O motivo remonta a 1945, quando o Terceiro Reich tornou Viena na segunda capital e foi ocupada pelos Aliados vitoriosos, que a dividiram em quatro sectores ‑francês, inglês, americano e russo.

Ao contrário de Berlim, Viena recuperou a liberdade; todavia o preço consistiu na neutralidade absoluta de toda a Áustria. Com a Guerra Fria a aumentar de intensidade durante o bloqueio de Berlim, em 1948, em breve se converteu num reino de espionagem.

Pouco depois da sua formação em 1951, a Mossad também se apercebeu das vantagens daquela cidade e instalou‑se lá de uma forma tão numerosa, que o chefe de posto supera o embaixador em peso hierárquico.

A decisão justificou‑se plenamente, quando a antiga capital do império austro‑húngaro se tornou num centro ultradis‑creto da banca, lar das três agências separadas das Nações Unidas e ponte de ingresso na Europa favorita dos terroristas palestinianos e outros.

Compenetrada da sua neutralidade, a Áustria possui desde longa data um aparelho de contra‑espionagem e segurança interna tão simples de tornear, que os agentes da Mossad costumam referir‑se aos seus homólogos austríacos com notável desdém.

O controlador de missão escolhido por Kobi Dror era um katsa dos duros, com anos de experiência europeia atrás de si em Berlim, Paris e Bruxelas.

Gideon Barzilai também prestara serviço numa das unidades de execução kidon perseguidoras dos terroristas árabes responsáveis da chacina dos atletas israelitas nos Jogos Olímpicos celebrados em Munique, em 1972. Afortunadamente para a sua carreira, não estivera envolvido noutro dos maiores desaires da história da Mossad, quando uma unidade kidon abatera a tiro um inofensivo empregado de mesa marroquino, em Lille‑hammer, Noruega, depois de identificado erradamente como sendo Ali H assa ir Salameh, cérebro que preparara a carnificina.

Gideon «Gidi» Barzilai era agora Ewsld Strauss, representante de uma fábrica de artigos sanitários em Francoforte. Não só tinha todos os documentos em ordem, como o conteúdo da sua pasta revelaria a um curioso as brochuras, livros de encomendas e correspondência adequados.

A documentação, assim como a dos outros dez membros da sua equipa, constituía o produto de outra divisão dos vastos serviços de apoio da Mossad.

Depois de se instalar no apartamento, celebrou uma longa reunião com o chefe de posto local e iniciou a missão com uma tarefa relativamente simples: averiguar tudo o possível sobre uma discreta e ultratradicional instituição bancária denominada Winkler Bank, na Franziskanerplatz.

Naquele mesmo fim‑de‑semana, dois helicópteros Chinook descolaram de uma base militar nas proximidades de Riade e rumaram a norte, para sobrevoar a Tapline Road ao longo da fronteira saudita‑iraquiana de Khafji até à Jordânia.

Acondicionado em cada compartimento‑de carga, havia um Land‑Rover reduzido às componentes essenciais, mas equipado com depósitos de combustível para percursos extralongos. Viajavam quatro homens do SAS em cada veículo, comprimidos o melhor possível na área atrás da tripulação.

O local do seu destino final situava‑se muito para além do seu raio de acção normal, mas na Tapline Road aguardavam‑nos dois enormes camiões‑cisternas, trazidos de Dammam, na costa do Golfo.

Quando os sedentos Chinook pousaram na estrada, as equipas dos camiões‑cisterna entraram em acção, até que os depósitos dos helicópteros voltaram a estar «atestados. Em seguida, descolaram de novo em direcção à Jordânia, voando a baixa altitude para evitar os detectores de radar postados do outro lado da fronteira.

Os Chinook aterraram mais uma vez llogo após a cidade saudita de Badanah, nas proximidades do ponto em que as fronteiras da Arábia Saudita, Iraque e Jordânia convergem. Havia mais dois camiões‑cisterna à sua espera para os reabastecer, mas foi aí que os helicópteros se desembaraçaram da carga e passageiros.

Se a tripulação americana sabia para onde os silenciosos ingleses se dirigiam, não o deixava transparecer e, em caso contrário, não tentou averiguá‑lo. Os carros camuflados deslizaram pelas rampas para a estrada e os aparelhos descolaram para regressar à base, enquanto os camiões‑cisterna abandonavam igualmente o local.

Os oito homens do SAS viram‑nos distanciar‑se e afastaram‑se no sentido oposto, a caminho da Jordânia. Oitenta quilómetros a noroeste de Bad&nah, detiveram‑se e aguardaram.

O capitão que chefiava a missão de dois veículos verificou a posição em que se encontravam. Nos tempos do coronel David Stirling, no deserto da Líbia, efectuava‑se recorrendo a pontos de referência como o Sol, a Lua e as estrelas. No entanto, a tecnologia dos anos noventa tornara a tarefa mais fácil e rigorosa.

Ele tinha na mão um dispositivo do tamanho aproximado de um livro de bolso, chamado Sistema de Localização Global, ou SATNAVA ou ainda magalânico. Apesar das suas dimensões, o GPS f29) pode localizar quem o utiliza dentro de um quadrado que não excede os dez metros de lado em qualquer lugar da superfície da Terra.

O do capitão podia ligar‑se para o código Q ou P. Este último oferecia um rigor do tipo do quadrado de dez metros de lado, mas exigia que quatro dos satélites americanos denominados NAVSTAR se encontrassem acima do horizonte ao mesmo tempo. Quanto ao código Q, apenas necessitava de dois acima do horizonte, porém o rigor decrescia para cem metros.

Naquele dia, havia apenas dois satélites para orientação, mas bastavam. Depois de confirmar que se achava no local combinado, ele desligou o GPS e refugiou‑se debaixo das redes de camuflagem estendidas pelos seus homens entre os dois veículos, para se protegerem do sol. O indicador de temperatura revelava que estavam cinquenta e cinco graus Célsius.

Uma hora mais tarde, surgiu o helicóptero britânico Gazelle, proveniente do sul. O major Mike Martin voara desde Riade num transporte Hércules da RAF à cidade saudita de Al Jawf, local mais próximo da fronteira, possuidor de um aeroporto municipal. Este último aparelho transportara o Gazelle com os rotores dobrados, o seu piloto, a tripulação de terra e os depósitos de combustível sobresselentes para levar o Gazelle de A! Jawf até à Tapline Road e regressar.

Para a eventualidade de haver algum radar nas cercanias, o helicóptero quase roçara a superfície do deserto, todavia o Piloto não tardou a avistar o verylight disparado pelo capitão do SAS, quando ouviu o ruído do motor aproximar‑se.

 

  1. P) Global Positioning System. (N. do T.)

 

O Gazelle pousou na estrada a cinquenta metros dos Land Rover e Martin saltou para o chão. Trazia uma espécie de mochila aos ombros e um cesto de verga na mão esquerda, cujo conteúdo levara o piloto do helicóptero a perguntar‑se se ingressara na força aérea de algum departamento agrícola. Com efeito, o cesto continha duas galinhas vivas.

À parte disso, Martin trajava como os oito homens do SAS que o aguardavam: botas do deserto, calça folgada de lona rija, camisa, camisola e blusão de combate camuflado. Em torno do pescoço, usava um keffiyeh que podia ser puxado para cima, a fim de proteger o rosto da areia arrastada pelo vento e na cabeça um pesado gorro de lã encimado por largos óculos protectores.

O piloto estranhava que os homens não morressem de calor, com aquela indumentária, mas nunca experimentara o frio intenso de uma noite no deserto.

Os membros do SAS só se sentiram à vontade quando o helicóptero partiu. Martin conhecia‑os, salvo duas excepções. Depois de se saudarem, dedicaram‑se ao que os soldados britânicos costumam fazer, quando dispõem de tempo: chá forte.

O ponto que o capitão escolhera para transpor a fronteira do Iraque era isolado e acidentado por duas razões. Assim, haveria menos possibilidades de se cruzarem com uma patrulha iraquiana, e a sua missão não consistia em os enfrentar e vencer em campo aberto, mas escapar totalmente à detecção.

A segunda dizia respeito ao facto de que tinha de depositar o pessoal que escoltava o mais perto possível da longa auto‑estrada sinuosa que se estendia de Bagdade para oeste, através do deserto, até à fronteira jordana, que atravessava em Ruweishid.

O posto isolado no deserto há muito que se tornara familiar aos telespectadores desde a conquista do Koweit, por ser o local onde a vaga de refugiados ‑filipinos, bengaleses, palestinianos e outros ‑atravessava, em fuga do caos que a invasão causara.

Naquele recanto a noroeste da Arábia Saudita, a distância da fronteira à estrada de Bagdade era a mais curta. O ponto escolhido para proceder à travessia situava‑se a cinquenta quilómetros do local em que se encontravam e depois eram mais cem até à estrada Bagdade‑Ruweishid.

Iniciaram a marcha às quatro da tarde. O sol ainda queimava e o calor fazia com que lhes parecesse que atravessavam uma fornalha. Às seis, principiou o crepúsculo e a temperatura baixou sensivelmente. Às sete, anoitecera por completo e começou a fazer frio. A transpiração secou nos corpos e eles congratularam‑se com as camisas que vestiam.

Conduziram sem luzes, porém o navegador utilizava uma lanterna‑lapiseira para consultar o mapa de que se havia munido e proceder às correcções de rumo necessárias.

Efectuavam paragens cada sessenta minutos para confirmar a posição com o magalânico. O avanço era lento em virtude de, cada vez que surgia uma elevação, um dos homens ter de ir averiguar previamente se não os aguardava uma surpresa desagradável do outro lado.

Uma hora antes de amanhecer, encontraram um uade, (30) seguiram até lá e cobriram‑se com a rede. Um deles deslocou‑se a uma proeminência próxima para observar o acampamento à distância e indicar as alterações necessárias para não despertar suspeitas a um eventual avião que sobrevoasse o local.

A marcha foi reatada após o pôr‑do‑Sol. Há uma pequena localidade iraquiana nas imediações da auto‑estrada, e, pouco antes das quatro da madrugada, eles avistaram as suas luzes de longe. O magalânico confirmou que se encontravam onde desejavam ‑a oito quilómetros da estrada.

Pouco depois, procuraram e encontraram uma área perto de outro uade, onde se camuflaram para mais um período de imobilidade quase total durante o dia.

Enquanto o navegador procedia aos cálculos habituais, Mike Martin despiu‑se totalmente e vestiu a túnica, turbante e sandálias de Mahmoud Al‑Khouri, o jardineiro e pau para toda a obra iraquiano. Com um saco de lona que continha pão, azeite, queijo e azeitonas para o pequeno‑almoço, uma carteira velha com o bilhete de identidade e fotografias dos supostos pais e uma caixa de estanho com algum dinheiro e um canivete, estava preparado para a etapa seguinte da sua odisseia.

Felicidades ‑desejou o capitão.

Boa caçada, patrão ‑disse o navegador.

Martin acenou a todos em despedida e principiou a cruzar o deserto em direcção à estrada. Minutos depois, os Land‑Rover punham‑se igualmente em marcha e o local ficou vazio.

O chefe de posto de Viena tinha nos seus registos um sayan que trabalhava na banca, um executivo superior num dos estabelecimentos bancários de maior relevo da cidade. Foi ele o incumbido de preparar um relatório tão minucioso quanto possível sobre o Winkler Bank. Explicaram‑lhe apenas que determinadas empresas israelitas haviam entrado em contacto com o Winkler e queriam certificar‑se da sua solidez, antecedentes e maneiras de trabalhar.

O sayan aceitou o motivo do inquérito e esforçou‑se por

 

CaD) Curso de água temporário no deserto. (No do T.)

 

fazer o seu melhor, que não foi nada mau, atendendo a que a primeira coisa que descobriu dizia respeito ao sigilo quase obsessivo com que o banco em causa costumava operar.

Fora fundado havia quase cem anos pelo pai do actual presidente. O Winkler de 1990 contava noventa e um anos e era conhecido em Viena por Der Alte, O Velho. Apesar da idade, negava‑se a abdicar da presidência e, como era viúvo, sem filhos, não existia um sucessor natural, pelo que a eventual disposição do controlo ulterior teria de aguardar a leitura, um dia, do testamento.

Não obstante, o funcionamento quotidiano do banco estava a cargo de três vice‑presidentes. As reuniões com o Velho realizavam‑se à razão de uma por mês na residência deste último, durante as quais a principal preocupação parecia consistir em se certificar de que os seus rigorosos princípios continuavam a vigorar.

Assim, as decisões executivas achavam‑se ao cuidado de Kessler, Gemutlich e Blei, os vice‑presidentes. Os clientes do Winkler Bank não procuravam recolher juros substanciais, pois preferiam a segurança e anonimato absolutos que aí lhes eram garantidos. Deste modo, a discrição do banco tornava‑se extensiva à identidade dos possuidores de contas numeradas.

Por outro lado, a aversão do Velho aos dispositivos modernos bania a existência de computadores para armazenamento de informação sensível, máquinas de fax e, tanto quanto possível, telefones. O Winkler aceitava instruções e informação por via telefónica, mas jamais as divulgava através desse meio de comunicação. Na maioria dos casos, recorria à correspondência ou a encontros pessoais no recinto do banco.

Quando leu o relatório, Gidi Barzilai entregou‑se a uma série de imprecações. O velho Winkler talvez desconhecesse por completo as técnicas mais recentes das escutas telefónicas ou interferência em sistemas de computadores, porém os seus instintos arcaicos revelavam‑se de um efeito radical.

Por conseguinte, se ele esperava infiltrar‑se no computador central do Winkler Bank, podia tirar daí o sentido, porque não existia. Restavam as escutas telefónicas e intercepção da correspondência. No entanto, duvidava de que lhe resolvessem o problema.

Muitas contas bancárias carecem de uma tosungSwOrt, uma «palavra de libertação» codificada para as movimentar e efectuar levantamentos ou transferências. Todavia, os seus titulares não costumam poder empregá‑la para se identificar num telefonema ou fax e muito menos numa carta. Segundo a maneira como o Winkler Bank parecia operar, uma conta numerada elevada pertencente a um cliente estrangeiro como Jericó disporia de um sistema de funcionamento muito mais complicado‑ou uma aparição forma! do titular, munido de abundantes meios de identificação ou um mandato escrito preparado de uma forma e maneira precisas, com determinadas palavras codificadas e símbolos situados exactamente nos lugares previamente estabelecidos.

Tudo indicava que o banco aceitaria um depósito de pagamento de qualquer pessoa. A Mossad sabia‑o, porque fora assim que remunerara Jericó. Contudo, persuadir o VVi‑nkler Bank a efectuar uma transferência para o exterior resultaria extremamente complicado.

A única outra coisa que o sayan conseguiu apurar foi que as contas excepcionalmente importantes eram controladas por um dos três vice‑presidentes e mais ninguém. O Velho escolhera‑os com cuidado, pois parecia tratar‑se de indivíduos implacáveis e muito bem remunerados. Numa palavra, eram impenetráveis. E o sayan concluía com a garantia de que Israel não teria qualquer problema com o Winkler Bank. Não subsistiam dúvidas de que o verdadeiro objectivo do inquérito lhe escapara. Por conseguinte, naquela primeira semana de Novembro, Gidi Barzilai começava a estar farto do famigerado Winkler Bank.

Havia um autocarro, uma hora após a alvorada, que se deteve para recolher o único passageiro que aguardava na estrada a cinco quilómetros de Ar‑Rurba. Entregou duas amarfanhadas notas de dinar, foi sentar‑se ao fundo, pousou o cesto com duas galinhas nos joelhos e adormeceu.

A patrulha da polícia estava postada no centro da vila, mas embora inspeccionasse os bilhetes de identidade de quem embarcava, contentou‑se com espreitar pelas janelas cobertas de pó. Procurava indivíduos com ar suspeito susceptíveis de encobrirem um eventual terrorista.

Após mais uma hora de percurso, o autocarro enveredou por um desvio para leste e cruzou‑se com algumas colunas militares e, duas ou três vezes, com viaturas do exército.

Conservando os olhos fechados, Martin escutava as conversas à sua volta e aproveitava para detectar uma ou outra palavra ou sotaque que pudesse ter esquecido, pois o arábico daquela área do Iraque diferia notavelmente do que se falava no Koweit.

Somente um observador excepcionalmente perspicaz se aperceberia de que a base do cesto que continha as galinhas tinha mais dez centímetros de largura que o interior e, dentro desse espaço havia alguns objectos que a polícia de Ar‑Rutba teria achado intrigantes, embora interessantes.

Um era um prato de parabólica dobrável. Outro, um emissor‑receptor de pequenas dimensões, apesar de mais potente do que o que Martin utilizara no Koweit, pois Bagdade não lhe proporcionaria a facilidade de transmitir, enquanto vagueava no deserto. Com efeito, as emissões prolongadas achavam‑se fora de questão, o que justificava a presença do terceiro e último objecto no esconderijo. Tratava‑se de um gravador, mas de um tipo especial.

Era fácil de utilizar e continha algumas características úteis. Uma mensagem de dez minutos podia ser lida lenta e claramente ao respectivo microfone. Antes de gravada na fita, um chip de silicone codificava‑a numa algaraviada que, se fosse interceptada, os iraquianos dificilmente lograriam decifrar.

Premindo determinada tecla, a fita rebobinava‑se. Recorrendo a outra, regravava, mas a uma velocidade cinzentas vezes inferior, o que a reduzia a uma «erupção» de três segundos, quase impossível de localizar.

Seria essa «erupção» que o transmissor enviaria para o ar, quando ligado à antena parabólica, à bateria e ao gravador. A mensagem seria captada em Riade, reduzida à velocidade normal, descodificada e passada em linguagem clara.

Martin apeou‑se do autocarro em Ramadi e embarcou noutro em direcção ao Lago Habbaniyah e antiga base da Royal Air Force, agora convertida numa unidade de «caças» iraquianos modernos, prosseguindo até alcançar Bagdade, onde os bilhetes de identidade foram inspeccionados.

Ele conservou‑se humildemente na fila de espera, sem largar o cesto das galinhas, enquanto os passageiros se aproximavam da mesa onde se encontrava o sargento da polícia. Quando chegou a sua vez, este examinou o documento e pousou o indicador no local correspondente à proveniência do portador.

Onde fica isto?

É uma aldeia a norte de Baji, muito conhecida pela

qualidade dos seus melões, bey.

O sargento comprimiu os lábios. «Bey» era uma forma de tratamento respeitosa que datava do império turco e só se usava ocasionalmente entre as pessoas no interior do país, distantes dos grandes centros populacionais. Por fim, gesticulou para que Martin passasse e este pegou no cesto e regressou ao autocarro.

Pouco antes das sete, o veículo voltou a parar e o major Martin apeou‑se no terminal de autocarros de Kadhnmiya, em Bagdade.

 

                                                                                            CONTINUA

 

                      

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