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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OLHINHOS DE GATO / Cecília Meireles
OLHINHOS DE GATO / Cecília Meireles

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OLHINHOS DE GATO

 

       O SUSPIRAR do vento matinal por aquela alta folhagem. . .

       E as mil coisas que começava a desenhar, sobre o céu transparente, o seu sussurrante suspiro: lua crescente, branca e sem luz, esquecida no ar da manhã. . . flocos de cores das nuvens, com fios de ouro pelo meio. . . giro dos pombos, para longe, para longe, como para dar volta ao mundo, arqueando as asas. . . cigarras de bronze e cristal sonoramente aderindo ao galho rugoso. . . e o piar dos passarinhos — goelas vermelhas contra a luz, e ávidas, ávidas. . . teias de aranha estendendo redes de prata pela laranjeira. . . moscas verdes zumbindo. . . duros besouros roliços. . . libélulas vestidas de vidro. . . formigas deslizando num interminável cortejo pela goiabeira abaixo. . . abelhas rodando em volta da rósea flor toda aberta. . . lagartixas correndo pelos tijolos do muro. . . falas de bem-te-vi... pios de sabiá. . . pingo da torneira do tanque abrindo n'água trêmulos círculos sucessivos... o gato amarelo caminhando cuidadoso pela beira do telhado... e no alto da cerca o velho galo de curvos esporões endireitando o corpo para cantar. . . (Depois, ele abanava a cabeça, agitando as barbas e os brincos, moles e vermelhos, e punha-se a cacarejar cá para baixo, conversando com a família. . .) E o pintinho tremendo pri-pri-pri-pri-pri. . . e esquivando-se todo diante de uma pobre minhoca. . . e um fiozinho de água perdendo-se abandonado pela terra adiante, numa interminável lágrima. . . e o vento levantando as folhas secas do chão, virando-as, pousando-as, carregando-as, deixando-as, o vento, aquele vento caricioso, subindo outra vez pela árvore acima, jogando fora as flores pequenas e os frutinhos murchos, e fugindo pelo céu, perseguindo pássaros e empurrando nuvens...

      

       — OLHINHOS DE GATO!

       Voltou os olhos, fatigada.

       A mão, robusta e morna, pousou-lhe na testa, depois no pescoço, depois pelos braços, até o pulso.

       — Não, já não tem febre. . .

       Os dedos passaram-lhe entre os cachos:

       — Deixe-me ver a língua.. .

       Não. . . OLHINHOS DE GATO não gostava de mostrar a língua. . . Mas contou que a noite inteira levara vendo coisas pelas paredes: uns balões vermelhos que inchavam, inchavam, saíam uns de dentro dos outros, boiavam. . . Quanto mais se olhavam, mais fugiam. . . Quem os trazia? Quem os levava?

       — Era a febre. . . Era a febre. . .

       Sentava-se na cama, e abria a boca, pegajosa, amarga, quente, esperando a colher de remédio que lhe vinha chegando devagarinho, devagarinho. . .

       — Cuidado! para não pingar no cobertor. . .

       E OLHINHOS DE GATO ficava olhando: cobertor vermelho, tão grosso, peludo como o couro de um bicho. . . Peludo e lustroso. E, de lado a lado, um leão enorme caminhando. (Haveria leões vermelhos? Seria aquele cobertor uma pele de leão?)

       Escorregava de novo por entre os lençóis. Deixava pender a cabecinha para o lado. O sorriso em sua boca era uma flor emurchecendo, vergada. Unidos ao corpo, de um lado e de outro, por cima da roupa, os bracinhos longos e finos. Um anelzinho de ouro no dedo. Cabelo imóvel. Todas as pregas da cama no mesmo lugar.

       Só os olhos azuis-verdes-cinzentos começavam a viajar: resvalavam pela réstia do sol, buliam nos puxadores das gavetas (lá dentro estavam bem dobrados os lençóis e as fronhas cheirando a maçã e a malva. . .), seguiam pelo mármore, paravam nas flores pintadas na louça azul — ramos tão finos sobre a antiga porcelana, com cachos de flores vermelhas, como os "brincos-de-rainha" que oscilavam lá fora na cerca... A bacia pousava num pano de renda. Havia a saboneteira. Uma caixa redonda de cristal, com pó-de-arroz. Um copo facetado, com letras de ouro. Uma caixa de jóias, anéis, cordões de ouro, broches quebrados, santinhas de esmalte. . .

       Na prateleira estava o porta-relógio, que abria e fechava suas duas grandes conchas de nácar. Estava também o termômetro, armado num suporte difícil, com roxos cachos de pequeninas uvas, e retorcidos pâmpanos dourados.

       De onde viera tanta coisa? Onde estavam os donos daquilo? Do relógio fechado ali dentro, dos vestidos guardados naquele armário? Do imenso leque de tartaruga que um dia vira na gaveta?

       Os olhos azuis-verdes-cinzentos paravam no ar, e recordavam outras coisas, subitamente: um par de luvas brancas, de homem. . . uns sapatinhos de bico fino e pompom — tão pequeninos que quase lhe ficavam justos no pé. . . E aquela mesma voz ali do quarto, dizendo às vezes, a olhar para as nuvens: "Minha querida filha!" com duas lágrimas grossas, descendo. . .

       OLHINHOS DE GATO pousava então a vista no espelho, procurando, procurando. Todos aqueles rostos deviam ter passado por ali. . .

       Mas o espelho ainda é mais infiel do que a memória humana. . .

       Trapinho de seda branca. . . Pedaço de fita. . . Resto de renda...

       — Queres fazer um vestidinho para tua boneca?

       Não. OLHINHOS DE GATO prefere ficar vendo, apenas, todas aquelas sobras de pano, retorcidas, amassadas, de onde se exala um estranho cheiro, que não vem dos fios, que não vem das cores, nem dos desenhos, nem da gaveta. . . mas de muito antigamente, de um tempo desconhecido, onde havia outras casas, outras pessoas, outro viver, outras modas.

       — Esta chita de argolinhas! Ainda ficou um pedacinho disto! Há quanto tempo. . . Há quanto tempo!

       OLHINHOS DE GATO vai alisando os pedacinhos de pano: o de trevo de quatro folhas (havia trevos daquele tamanho, entre as malvas e as violetas. E tinham um gostinho azedo, mas bom), o de aneizinhos entrelaçados (quem os pudesse arrancar dali com a ponta do dedo!), o de quadradinhos de duas cores... o de salpicos. . . Telas entretecidas de fios de seda. . . gorgorões hirtos, de um brilho de bronze. . . Cores que já não se encontram: tons de madeira, de vinhos, de pássaros, de vidro. . . E negro, negro, negro, negro.

       OLHINHOS DE GATO mergulha as mãos nos crepes franzidos, para tocar os vidrilhos sobre o cetim e a gaze. Crepes pretos, vidrilhos pretos, cetim preto, gaze preta. . . Negro, negro, negro, negro. . . Levanta os olhos, ao retirar os bordados de palhetas e miçangas, que mal cintilam naquela treva. E o olhar que se encontra com o seu está dizendo lá longe, onde o olhar é ainda pensamento: "Luto, luto, luto, luto..."

       Suas mãos sobre aquele mundo são pássaros caídos, arrastando-se tristemente: sonho magoado... perdida direção . . .

      

       Acontece chamarem-na: "OLHINHOS DE GATO!"

       Volta-se para a porta, com as mãos cheias dos seus trapos de todas as cores. As visitas olham-na docemente, caminham para ela, brincam-lhe com os cabelos. Depois, uns dedos enluvados pegam-lhe no queixo, para lhe levantarem o rosto: "Mas é o retrato da mãe!" MÃE. Deixa-se estar com o rosto assim levantado, segurando bem os trapos, sobre o peito.

       Da posição? Da luz que lhe bate na vista? Da expressão com que a estão mirando? Seus olhos ardem como se os incendiassem. Ardem, dilatam-se, crescem, transbordam. Por quê? Vêm duas mãos enxugar-lhe o rosto brandamente.

       E já está de novo com os seus trapos, conversando com as cores, os fios, os desenhos, as contas.

       Um dia, no meio dos outros, aparece um pedaço grande, que se recusa a sair facilmente. Põe-se de pé, para poder puxar melhor. Arranca-o de dentro daquela multidão de chitas e sedas. E em suas mãos surpreendidas aparece um vestido inteiro, um vestido cor de abacaxi, com finas listas paralelas, em relevo, enfeites de renda amarelada, muitas barbatanas, e muitos, muitos colchetes. Mete-se dentro dele, abotoa-se como pode, e sai pela casa correndo.

       — OLHINHOS DE GATO! OLHINHOS DE GATO! Ela   está   como   as   princesas   que   lhe   mostraram   nos

       livros: para andar, arregaça a frente da saia; para trás, é a cauda, espalhando-se. E da gola muito larga e mal abotoada, surge o seu rosto pálido, de riso singular. Um riso que certos germens de pensamento perturbam e estremecem.

       — Não rasgues! Tem cuidado!

       OLHINHOS   DE   GATO   vê-se   no lustro   dos   móveis como num espelho. E a voz continua:

       — Tão bem que lhe ficava! Era a moda dos vestidos "princesa"?. . .

       Depois, havia um silêncio. OLHINHOS DE GATO, parada, esperava, mostrando-se.

       — Minha querida filha!

       Então, ia despindo lentamente aquela roupa que cheirava a flor murcha. Deixava-a cair do corpo, e saltava de dentro dela como quem pula de um túmulo.

       Certa vez, encontrou também uma blusa cinzenta, com rendas pretas, gola alta, mangas duplas. De bruços, no chão, pôs-se a viajar pelos caminhos das rendas pretas, que eram só flor sobre flor... de repente — de dentro das mangas? de dentro do peitilho? de onde? — caiu perto dela um pequeno lenço de seda branca bordado de roxo. Alisou-o com as duas mãos, estendeu-o no assoalho até ficar bem quadrado. E assim ficou. E olhava, olhava. E não era mais ali. Não sabia onde. Num canto de uma casa, um dia, perto de uma parede. . . Muita gente. Um cheiro diverso. . . Um ar diverso sobre as coisas. Uma pressa. Levantaram-na nos braços, como tirando-a de dentro do chão. Desviaram um lenço igual, igual àquele! — "Beije a mamãe!" E beijou um rosto duro e frio. Perto havia uma porta.

       — Onde estava esse lencinho? Ela ergueu os olhos, para explicar.

       Disseram para longe: "Não gosto de a ver brincando tanto com aquelas coisas."

      

       Em que dia se puseram a abrir malas, barricas, baús?

       Enxotavam-na docemente para longe: "Tem tanta poeira!" Mas a límpida ignorância de seus olhos nem estremecia. "Faz muito mal! Tem doenças!" Palavras sem sentido. . .

       As caixas abriam-se de repente, e, das tábuas levantadas, escapavam grossos livros com lombadas douradas, que, ao escorregar, entreabriam-se, mostrando e escondendo figuras. . .

       — Olha que te faz mal!

       As malas imensas custavam a ceder nos fechos. Por fim, levantavam as curvas tampas. E havia coisas tão apertadas, tão amassadas, que se tornavam irreconhecíveis. Era preciso desdobrá-las, uma a uma. Viam-se, então, cortinados de renda — muitos, muitos — roupas de banho de mar, de lã, com cadarços brancos e âncoras, capas de viagem, de uma seda que sussurrava com o movimento, fantasias de dominó, lantejoulas, galões de ouro, esfiapando-se, fitas e guizos. . . Uma dizia: "Eu não quero ficar perto disso!" Outra respondia: "Ora, que é que tem? Eu não acredito nessas coisas!"

       Certas peças tiravam com o maior cuidado: colchas de renda, camisolões de seda. Erguia-se aquilo nos braços como um corpo de criança. Murmurava-se: "Um enxoval tão bonito! Mal empregado! Que pena!" Analisava-se: "Estas rendas de crivo!. . . Estes bordados!..." Acrescentava-se mais baixo, e lentamente: "Tinha umas mãos de prata!"

       Tudo era como nos sonhos. Traziam-se, levavam-se aquelas coisas. Mas parece que ninguém sabia nem pensava por quê.

       Entre os cetins cor de marfim e de rosa, cintilavam traças, rapidamente. Desdobravam-se as roupas ao sol. A parreira desenhava sobre elas o recorte clássico de suas folhas, cuja nitidez a brisa às vezes perturbava.

       Quanto tempo se passou assim? Dias e dias seguidos. Os gaios cantavam, os pássaros faziam uma algazarra pelas árvores, passavam os burros do carvão, vinha o peixeiro de brincos de prata, subia o mascate, ouvia-se o pregão dos pretos do melado e das bananas, dormitava o gato embaixo da mesa. D. Sinhá cachimbava na sua rede, começavam a aparecer crianças lavadas pelas portas, chegavam os negrinhos das balas, do puxa-puxa, dos roletes de cana, a rua enchia-se de cantigas de roda, de corridas, de gritos, de gargalhadas, os homens voltavam do emprego (tão cansados, meu Deus!), acendiam-se os bicos de gás — nasciam claras estrelas — e todo esse tempo andavam a revolver essas coisas vindas de longe, a escolhê-las, a separá-las, a sacudi-las, a estendê-las ao sol ou a deitá-las para o lado: "Isto não serve mais... Isto também não..."

       Não serviriam também mais os dominós com seus guizos, e as roupas de banho com as suas âncoras?

       E por que se guardavam as camisas de seda tão leves, tão moles, com suas preguinhas muito finas e suas rendas de suaves rosas? Quem viria uma noite vestir aquela roupa linda, que parecia das pessoas impossíveis das histórias? Esperariam mesmo alguém? E por isso é que se abriam ao sol, com tanto carinho, os lençóis rendados e as colchas brilhantes?

      

       De que imenso caixote tiraram um dia os frascos? Eram tantos, tantos, que ninguém sabia onde os arrumar, nem que fazer daquilo. Apareceram assim: de todos os tamanhos, de todas as cores, mas principalmente uns pequeninos, amarelos e azuis. Que porção! Que porção!

       Diziam: "Pra que serviu tudo isto?". E olhava-se para eles, que não respondiam. Encheu-se uma mesa inteira, duas « mesas, e diziam que ainda havia mais, e continuavam a aparecer às mãos-cheias, fechados, abertos, cheios, vazios, muitos só com algumas últimas gotas no fundo. Às vezes, partiam-se. Eram muito finos. E deixavam na pele um cheiro acre e uma; frescura de álcool evaporando-se. Ardiam na língua. Tinham nomes tão difíceis que se desistia de aprender.

       Que iam fazer daquilo? Mesmo os que ainda estavam fechados, com um papelzinho pregueado por cima da rolha, mesmo aqueles — todos estavam convencidos — não serviam para nada. . . Que pena! Passavam de mão em mão... — e todos concordavam. Mas para onde atirá-los todos? Procurando uma solução, punham-se a separar os mais novos. "Quem sabe lá. . .? hein?" E olhavam para a criança. "Deus não há de permitir que seja preciso!" E conversavam: "Ninguém vai antes da sua hora! Quando ela tem de vir, vem mesmo..." "Cala-te daí!", o rumor dos vidros entrechocados abafava o resto da conversa. Cortava-se algum dedo, às vezes. E às vezes aparecia, entre tantos frascos, alguma linda colherzinha redonda, tão pequenina como as de brinquedo, ou mais. OLHINHOS DE GATO estendia a mão, procurando-a. Mas afastavam-na. "Não seja teimosa! Vá-se embora! Não ouviu dizer já que faz mal?" Fazia mal, muito mal. "Deus te livre!"

       E sobre os seus olhos ignorantes e tranqüilos, deixavam cair um aviso sério, em voz surda: "A Morte!"

      

       Havia também as barricas. Primeiro, tiravam apenas palhas. Mas depois começavam a aparecer coisas encantadoras: jarrinhas de tantos feitios, de tantas cores, tão enfeitadas de ouro! Uma, só de amores-perfeitos! E os príncipes. . . E as princesas. . .

       Quem pousou no limiar da porta o imenso jarrão azul, tão liso, tão igual, meu Deus! Caminhava-se, caminhava-se com os olhos e com as mãos por cima dele e só se pisava cor, aquela cor uniforme, certa, densa: tudo céu, tudo céu! Nenhuma esperança de nada mais, naquela estranhamente serena superfície, que dispensava todas as figuras, que altivamente dispensava todos os desenhos, todas as outras cores — que, entre todas as outras coisas, variadas e promíscuas, se bastava com a sua harmoniosa concentração.

       Diferente dela, a terrina, larga e acachapada, como uma barca, oferecia em seus flancos perspectivas para demoradas cismas: entre flores cinzentas, três veados olhavam, inquietos. Era a margem de um lago. Do outro lado, um castelo retangular prometia surpresas. Para além começava a floresta, e perdia-se em nuvens tênues. Diante daquela superfície, arqueada como uma saia sobre um ventre, a criança via o jogo confuso de suas lembranças, trançando-se e destrançando-se: "O veado qué fugi! O cachorro qué pega!" Gritos estridentes saíam de dentro da louça plácida. E entre o castelo e a floresta o rosto cego do eco tontamente clamava: "Oh!. . . Ah!..."

       E pousaram em redor as louças.

       O som dos cristais fazia o próprio gato franzir a testa, apreensivo. Os fios do bigode punham-se-lhe mais hirtos.

       E pousavam os quadros. . . OLHINHOS DE GATO debruçava-se sobre eles. Figuras desconhecidas, cenas incompreensíveis. O vidro era um muro transparente entre dois mundos. . . Mas, de tanto olhar para ele, o que ficava, pouco a pouco, meio revelada, meio encoberta, era apenas uma cara silenciosa de criança, de caracóis alourados, e o princípio de um vestidinho preto e branco...

      

       O assoalho, que os outros pisam indiferentes, tem, no entanto, suas paisagens secretas. É porque ninguém contempla muito as linhas e cores da madeira. Algumas, na verdade, são lisas, da mesma cor, em tons de pele humana — amareladas, róseas, morenas. Outras, porém, encerram desenhos tais que, olhando-se para dentro delas, poder-se-ia dispensar qualquer outro lugar do mundo. A princípio parecem apenas riscos, sem nenhuma significação. Mas pouco a pouco se observa que há ondulações de águas, praias, montanhas, um estremecimento de pássaros, florestas densas, que escurecem — logo, um súbito jorro de estrelas e de luas, borboletas infinitas adelgaçam as asas riquíssimas, e santos de mãos postas pairam por cima de encrespadas nuvens. . . Há um outro mundo, no assoalho que se pisa indiferente. E os grossos pés ignorantes andam sobre essas maravilhosas coisas, sobre os palácios e as flores, sobre os peixes e os olhos dos santos. . .

       Há outros mundos, também, noutras coisas esquecidas; nas cores do tapete, que ora se escondem ora reaparecem, caminhando por direções secretas. As pessoas de pé, olhando de longe e de cima, pensam que tudo são flores, grinaldas de flores... flores... Mas OLHINHOS DE GATO bem sabe que ali há noites, dias, portas, jardins, colinas, plantas e gente encantada, indo e vindo, e virando o rosto para lhe responder, quando ela chama.. .

       Por isso é tão bom andar pelo chão, como os gatos e as formigas. Por baixo das mesas e das cadeiras reina uma frescura que a madeira conserva como a sombra que projetou no tempo em que foi árvore. E desse lado é que se pode ver como certas coisas são feitas: recortes, parafusos, encaixes, pedaços de cola. . . É desse lado que as coisas são naturais e verdadeiras, como nós, quando nos despimos.

       O avesso dos panos é uma revelação: que estranhos caminhos tem de seguir cada fio para, em sentido contrário, formar os desenhos que todos admiram!

       Nas noites de luar, olhando-se bem, vêem-se princesas de vestido verde, passeando pelos jardins que há dentro da lua.

       E a terra, que ninguém observa muito, é igualmente um espantoso mundo repleto de maravilhas aparentes e ocultas. Ninguém dá conta dos filamentos de erva que uma só gota de orvalho, às vezes, prostra. Ninguém se lembra da solitária cintilação de um grão de areia. Ninguém vê que o úmido caracol e a raiva formiga cumprem seu inexplicável destino expostos miseramente ao risco dos imensos pés distraídos que passam. . .

       Que gosto de longe — mas de um outro longe —- há em cada objeto, em cada animal, em cada criatura! E que paciência de obedecer a um secreto compromisso! Tão sérias, as coisas! Tão sérios, os animais e as plantas! Muito mais sérios que as pessoas. Envoltos num sonho espesso. Andando, comendo, crescendo —- mas sempre dormindo. Viajando como nós todos para a morte, mas ainda mais indefesos. E tudo morre!

       Tudo?

      

       O palhaço branco fez uma cabriola, com a palma da mão na calçada. Sua cara cor de cal dava-lhe um ar de fora do mundo. De cada lado, e no queixo e na testa, trazia pintado um naipe encarnado. A cabriola que fez não perturbou a cartolinha bicuda que trazia de banda. Tirou do bolso uma rosa vermelha, e estendeu-a para Dentinho de Arroz:

       — O paiaço o que é? É ladrão de muié!. . .

       Oh! os ladrões... os ladrões. . .

       Nesse tempo, o mundo era povoado de ladrões: paravam pelas esquinas, rondavam as casas, vinham buscar de noite as crianças que choram e as que não querem ir dormir. . . Ladrões. . . Certamente, por isso é que tudo ali dava aquela impressão deserta. Por baixo das árvores não passeava ninguém. Ninguém tirava das caixas nem as mantilhas nem os chapéus de pluma, ninguém usava mais anéis, ninguém calçava os sapatinhos de bico fino, ninguém vinha dormir naquelas sedas lindas, que esperavam, guardadas. . . Foram ladrões que levaram tudo. . . ah!

       Ladrões. . . ?

       — Não. . .

       — A Morte.

       Dentinho de Arroz sorriu, abraçando-a: Oh! o palhaço não a levaria, não.

       Mas OLHINHOS DE GATO sentiu como se lhe puxassem o coração para fora do peito. Uma certeza súbita prendeu-a num círculo de sombra. Dentinho de Arroz iria também. Iria uma noite dessas, quando ela estivesse dormindo, talvez. Tudo vai. . . tudo vai. Aperta-se com o dedo a água na pedra, e ela está fugindo, fugindo e continuando seu rumo... Consegue-se prender mansamente na mão um pássaro macio, e ele desliza para o seu vôo, e só se sente a leveza que deixam, quando já não estão mais... De noite, misteriosamente, aparecem em nossos braços bonecas imensas, que falam e movem os olhos. . . e embaixo dos dedos acordam teclados tão sensíveis que basta pensar-se para que executem a música pensada.. . Quando se vai prender cada coisa, tudo se converte em névoa, muda de forma, some-se. . .

       — O paiaço que é?

       Só lhe resta fechar os olhos e aceitar. Mas dói, aceitar! Os olhos incham de lágrimas. No entanto, depois, por dentro delas, nasce um espaço maior que o céu, mais alto que as montanhas, um espaço que é sempre mais longe, mais fundo, mais imenso. Lá para dentro dos olhos, que lugar é aquele? Um lugar sem casas, sem ruas, sem ninguém. Tão silencioso. Tão escuro. Mas onde tudo desponta. . .

       — Não te ponhas a pensar nessas coisas... Isso é sono. . . E sono. . . Encosta-se aqui... Õ... ó... ó...

      

       . . . Uma rosa. . . um palhaço... pianos tocando em surdina, suavemente... E as figuras dos retratos sorrindo, abanando os leques, saindo dos seus lugares, pousando-lhe a mão nos cabelos: "OLHINHOS DE GATO!"

       Mas também a mão levantando um lenço de seda. Um rosto, duro e frio, abrindo os olhos. Depois, flores. E as outras coisas sucedendo-se...

       Imenso, o guarda-vestidos: como uma casa. Quem pudesse morar ali! Quem pudesse ficar entre aqueles vestidos de seda que ninguém veste, remexer naquelas caixas misteriosas, onde há plumas tão mansas: um sopro, nada mais que um sopro — e aquele cheiro antigo de rosa seca e de cinza. . . Num canto, entre as sedas, sente-se a guitarra encostada. Dlom. . . dlem. . . Há uma corda frouxa, burlando o toque: fl. . . Da ponta dos dedos sobe uma angústia pelo braço acima. Oh! aquele contato áspero da corda frouxa. . . E era como a ressonância do som, na madeira do instrumento, quando a corda tensa fazia: dlom. . .

       — OLHINHOS DE GATO!

       A seda das roupas farfalhava e emudecia.

       — OLHINHOS DE GATO!

       Farfalhava de novo a seda das roupas, rodava a porta, num gemido, e a carinha amarela aparecia, sorrindo.

       — Quando vier o ladrão, me escondo aqui dentro. .. Pulava para o chão, contando coisas atrapalhadas.

       O relógio apagava e acendia o relevo dourado da pêndula. Santo Antônio, bordado a veludo sobre um suave cetim azul, sorria para o menino sentado em seu braço, sobre um livro, e com a outra mão sustentava uma palma de flores. ("Tão bem que bordava! Mãos de prata!") O espelho vertical repetia a porcelana azul do jarro e pedaços de claridade da porta. Sobre o mármore escuro, panos de renda desenhavam extraordinárias flores redondas.

       Entre os móveis havia umas zonas de sombra onde o silêncio parecia ter folhas e flores. Alguma réstia de luz descia, obliquamente, a certas horas — mas não chegava até aí. Via-se então, nessa lâmina de luz, acordar um pequeníssimo e no entanto infinito universo, com astros bailando e brilhando, numa lei incomunicável, e com habitantes invisíveis.

       O príncipe de porcelana sorria eternamente para esses mistérios. E o próprio Santo Antônio se entretinha nessas contemplações, dividido entre o cuidado de sustentar ao colo o menino e na mão a sua palma de flores, que o vento não desmanchava, que o sol não queimava, mas que alguma sinuosa traça mordia às vezes numa folha, numa pétala, num pistilo.

       Há tantas coisas prodigiosas para ver e escutar! Aquele Santo Cristo que está ali de capinha amarela, cercado de flores de pena e de frutinhas de massa, mora em terra distante, numa igreja muito antiga, de onde, em certas ocasiões, o levam a passeio, entre cânticos e luzes, sobre andores forrados de seda. Mora lá, coberto de ouro, silencioso e quieto, mas vivo e atento ao destino dos homens. Ele é que livra de peste, fome, naufrágios, trovoadas e tentações do Demônio. Suas unhas crescem, embora as mãos estejam imóveis. Se uma flor distraída o espeta com algum espinho, logo sua presença responde: sua vida vem à superfície, sua carne sangra.

       Há pessoas que sabem dessas histórias que parecem mentira. Por isso ela gosta tanto de ver as negrinhas que sentam com tamanha graça nos velhos bancos de pés em W, para comerem com a mão carne-seca assada na brasa e pirão de mandioca. Passam por ali, lembram-se de entrar para o almoço, contam uma porção de coisas, e vão-se embora: "Até outro dia!" Têm cabelo de carrapicho, brinquinhos de ouro, colarzinho de coral muito vermelho, no pescoço preto. Gostam de melado com farinha, de pamonha e de caldo de cana. Recortam com muito jeito os bicos de papel para as prateleiras dos armários. Sabem assoviar e trepar nas árvores. Riem de maneira particular, desfranzindo uns lábios repolhudos e rodando os olhos, brancos e pretos, redondos e luzidios como bolas de gude. São um pouco pássaro, são um pouco gente. São mais bicho do que gente. Vê-se pelo cheiro. Vê-se também pelo modo por que falam dos outros bichos: dos macacos, das onças, dos tatus, dos gambás. E, além disso, dos lobisomens e das mulas-sem-cabeça.

       A própria quantidade humana que possuem é, por sua vez, encantada: vêm surgir os mortos, ouvem almas de escravos arrastando correntes, encontram nas encruzilhadas a sombra do demônio, que costuma até espantar os cavalos. Entendem de agouros, de cães que uivam, de urubus que esvoaçam, de corujas que grasnam, de arapongas que gemem. Sem falar nas borboletas douradas e pretas que querem dizer morte, nas moscas que zumbem e querem dizer visita, nos sapos mortos, que chamam chuva, nas aranhas que conforme a hora em que aparecem querem dizer uma coisa especial.

       Tudo tem um poder que é necessário dominar. A orelha vermelha, conforme o lado, revela que falam bem ou mal de nós. A mão que comicha anuncia dinheiro. Se a faca se enterra de ponta no chão, se a comida nos escapa da boca.. .

      Por isso tudo é que se traz ao pescoço, além do colarzinho vermelho, um fio de linha, que se esconde por dentro da roupa, e onde há breves amarrados, orações medidas de santos, sementes, pás, — que vencem todas as surpresas do Mal espalhado neste mundo para desabar sobre os desprevenidos.

       A própria Có, muito menos preta do que essas negrinhas, sabe de coisas bem espantosas: "Naquela tarde que a menina chorava, chorava, já ninguém sabia o que fazer com ela. E resolveram rezar. Pois foi nessa tarde que, depois da reza, quando ela se virou assim para o lado, viu... — com aqueles olhos que a terra há de comer! — viu o morto, com aquele seu ar de sempre, bondoso e simples, parado perto da menina, e por sinal com uma roupa velha com que gostava de andar em casa, e de que todos se riam, porque tinha os cotovelos furados."

       Boquinha de Doce ajunta, vagarosa, erguendo as fortes sobrancelhas ainda negras: "E eu? E eu não vi o Meu passar de repente de uma sala para a outra? E não soltei um grito. . .? E não fui atrás dele. . . ? E não vi diante de mim, ali perto, ali perto, desfazer-se o pedaço de sua perna, com a calça azul-marinho, com o vinco e tudo. . .?" Vinha uma pausa, como quem empurra uma porta sobre uma sala onde se passam graves cenas. Depois, a mesma voz murmurava, incerta, abafada e sozinha: "Não. . . ninguém sabe nada. . . Tudo é assim uma sombra pela vista. . . Talvez seja tudo sombra. . ."

       E até Maria Maruca, que não é preta, mas avermelhada e de cabelos ruivos, acredita em tudo isso. Faz uma cruz por cima da boca, ao bocejar, diz que não se deve rogar pragas, porque os anjinhos do céu estão sempre dizendo AMÉM — e se acertar o Amém com a praga, a desgraça acontece mesmo — e enquanto esfrega a roupa na tina, recita para OLHINHOS DE GATO, que a observa em silêncio:

       "Padre Nosso pequenino,

       quando Deus era menino,

       sete anjinhos a rezar,

       sete demônios a tentar,

       o Senhor é meu padrinho,

       a Senhora é minha madrinha,

       que me pôs a mão na testa,

       pra que o pecado não me empeça."

      

       — Aprendeste? — perguntava depois.

       Ela continuava escutando. . . Por detrás daquele firme azul do céu, andavam os anjos e os demônios, ocupados com os homens. Deus escrevia num livro enorme o que se fazia neste mundo. No dia da morte, abria-se uma página certeira. Punham-se o bem e o mal numa balança. Conforme o que pesasse mais, a alma seguia o seu destino: no céu, era só música, anjos de asas brancas, santos com coroas de ouro. No inferno eram os demônios pulando no meio do fogo. E as chamas dançavam sobre as almas sem nunca as consumir. "Para todo o sempre, por seculum seculorum, amém Jesus."

       Um beijo na ponta dos dedos selava a boca sobre as palavras santas. O mesmo beijo que ela depunha no pão que lhe caísse aos pés, apanhando-o pressurosa, e explicando, como ofendida: "É a face de Deus! A FACE DIVINA!" E era como se alguém — mas quem? — de um outro lugar, lhe ensinasse umas obscuras coisas.

      

       NEM todas as visitas são como aquelas senhoras de luvas de pelica e chapéus de plumas, que levantam o véu até a altura da boca e em pequeninos sorvos tomam uma pequenina xícara de café.

       Há, por exemplo, aquela velha — suja, pobre, mas bela — que não sabe entrar em casa, que não se sabe sentar em cadeiras — agacha-se nas pedras da escada, e enrodilha-se numas imensas saias, grossas e escuras. Pousa nos joelhos as grandes mãos, de unhas foscas e espessas como as dos gaios, e fala, fala coisas tristes, meneando a cabeça morena, por onde escorrega um lenço preto sobre umas velhas trancas, grisalhas e gordurosas. E uns brincos longos, em forma de coração, balançam-se nas suas longas orelhas — mas não cintilam, porque o ouro e os aljofres estão muito forrados de pó.

       Fala a pobre mulher. Mal se entende o que diz. Porque suas palavras, só ela as usa, e ainda vêm afogadas em suspiros. Mas algumas se desenham solitárias no chão cinzento de cimento, no ar azulado do dia: desgraça, loucura, fome. Nesses momentos, procura por entre o franzido da saia a abertura de um bolso, de onde retira um lenço sujo e enovelado, que passa pela cara, num gesto errante, virando para o céu uns grandes olhos nublados. Uns grandes olhos que alguém lhe está arrancando, porque há risco de sangue por entre as suas lágrimas.

       OLHINHOS DE GATO perde a vontade de ouvir, e vai andando para longe, com os seus cacos de vidro e os seus pedaços de concha.

       E a mulher, vendo-a passar, interrompe sua dor, e murmura: "Como está crescidinha! Graças a Deus que escapou! Deus lhe dê boa sorte!" — e põe-se de novo a chorar.

       Também costuma vir aquele homem risonho, de grandes olhos cor de folha, cuja mão, passando pela face de OLHINHOS DE GATO, deixa sobre ela, exatamente, a mesma aspereza e o mesmo cheiro dos tijolos, das pedras e dos troncos de árvore. De um misterioso lugar, que descreve sorrindo, traz maciços cravos crespos, de sufocante perfume, e jasmins-do-cabo, que se cheiram de longe, para não murchar, e malvas veludosas, para guardar nos armários de roupa; e gerânios que magoam a vista, de tão vermelhos, e uma porção de cravinas, florzinha à-toa, que nem brilha nem cheira, parece coisa de papel ou de chita, mas tem sempre uma novidade nas pétalas multicores, sobre as quais descem as cismas da menina e os seus monólogos.

       Junto com tanta flor, vêm os cachos de nêsperas, e umas tangerinas muito pequeninas, muito amarelas, muito azedas; e frutas-de-conde que se esborracham todas dentro do embrulho...

       Ninguém sabe por quê, o homem traz também folhas de laranja-da-terra, de guaco e erva-de-santa-maria. Ele, porém, explica: "A menina podia estar doente. Lembrei-me de trazer estas coisas, que são um santo remédio..." Mas antes assim, que não estava doente. Aquela parece que escapava, mesmo! Suas palavras vinham com laços de alegria. Depois, contava outras coisas: estórias de terras, escrituras, procurações. Mas pelo meio dessas conversas difíceis passavam raios coloridos, descrições de flores e frutas, focinhos de bichos engraçados — porcos, coelhos, cabritos — e os canteiros ficavam tão vivos, e as águas tão animadas, que se sentiam as couves abertas sob a chuva da rega, e, no fundo dos tanques, os cágados parados dentro da sua casca.

      

       Havia também a mulata gorda e lenta, de mantilha de renda e travessas nos bandos. Subia a escada gemendo, enxugando o suor da testa, e deixava-se cair sufocada na cadeira, com as mãos papudas em cima da carteira, do leque e do lenço.

       — Uf! Se agora me pusessem a mão na boca, eu morria. Essa não falava de bichos nem de flores. Falava de gente.

       De D. Sinhá, de D. Neném, de D. Marocas. Falava de lugares: de Mata-Porcos, de Paquetá, de Cachambi. E de doenças: varíola, febre amarela, tísica e gangrena. Quando estava muito bem disposta, que dava gargalhadas, tapando a boca com a mão, ocupava-se de coisas mais insignificantes, como sarampo, coqueluche, catapora, enxaqueca. . .

       — E a menina vai andando, hein? — perguntava, meio admirada de não haver notícias ruins. — Quem havia de dizer que se salvava!

       — É verdade...

       Com o ritmo da fala, moviam-se-lhe por baixo do queixo duas pelancas mais moles e finas que as orelhas dos gatos. Parecia impossível que se pudesse estar vivo com aquele pescoço. OLHINHOS DE GATO pensava que era alguma doença, e mirava-a com muito medo e muita pena do seu observatório, que era o próprio chão, onde se debruçava como os bichos e as esfinges.

       Mas o seu medo e a sua pena aumentaram muito quando lhe disseram que aquilo não era doença nem defeito, mas velhice.

       Ah! Boquinha de Doce iria, então, ficar também assim?

       Não. Boquinha de Doce conta-lhe muitas estórias prodigiosas. Conta-lhe que, no tempo em que Deus andava no mundo, um moço, que perdera sua mãe, foi pedir-lhe, chorando, para a botar de novo viva. Então, Deus disse-lhe: "Traze-me tua mãe." E meteu a morta na atafona, e deu-lhe uma volta, e ela ficou de novo não apenas viva, mas outra vez moça, e seu filho já não chorava — ria-se, ria-se de contentamento!

       Aconteceu, porém, que outro homem, que não queria saber de Deus, exclamou, zombando: "Grande milagre! Eu sei fazer a mesma coisa!" E meteu sua própria mãe na atafona, para que ficasse outra vez moça, e deu-lhe uma volta, e ela morreu, e ninguém a ressuscitou.

       Uma grande esperança pousa sobre a menina. Ela irá procurar Deus, quando for preciso. Se algum dia for preciso...

      

       Talvez Boquinha de Doce permaneça para sempre assim. De um lado e de outro da testa, seu cabelo já está todo prateado. Mas na parte de trás, é negro como uma caixa de piano.

       As pessoas que chegam, dizem: "Está muito bem conservada!"

       E ela responde: "Ah! não sei como ainda tenho estes olhos na cara!" Os outros replicam: "Mas é mesmo! Quanta coisa! E tudo assim ao mesmo tempo!" Ela sacudia a cabeça, com os olhos úmidos. "Ficar assim sem nada, de uma hora para a outra!" E suas mãos abriam-se como no meio de um deserto. "É verdade! — tornavam — E só a meninazinha ficou!"

       Olhavam para a criança, faziam-lhe festas. E murmuravam: "Benza-a Deus! Está bem gordinha! Ela não tem uma figuinha no cordão?"

       Depois, falavam outras coisas, OLHINHOS DE GATO sumia-se, andava para um lado e para o outro, com os bichos, as plantas, os desenhos das madeiras, as cores dos vidros.

      

       Talvez Boquinha de Doce permaneça mesmo assim. Sua mão é um pouco rugosa, mas deve ser de trabalhar.

       À janela, balança-se a gaiola redonda. O canário vira o olhinho de miçanga para o ar azul do dia. O enorme céu adere naquele pequenino ponto de luz. E canta, o canário. É pequenino, magrinho como um brinquedo — do tamanho da flor da trepadeira. A rua inteira, porém, ouve o seu canto. Seu canto tem sinos, assovios, flautas, e perfura o silêncio com parafusos de cristal. O canário solta o seu canto gravemente, como os sapateiros pregando solas, e os amoladores afiando as facas. Depois, experimenta a vibração que ficou em redor de si, e vai fazer outra coisa. Pula do poleiro, leve, leve. Parece que ainda não cantou. Debica o alpiste. Parece que não cantou nunca, em sua vida. Debica o alpiste, puxa os fios da couve. Vira a cabeça para o lado. Observa. E de novo preludia. Incha as pluminhas do pescoço com o seu canto, maior do que ele, maior que a janela, e a casa, e a rua. Vê-se bem que só para cantar é que ele foi criado. Mas depois se distrai de novo, e brinca com o bico na água.

       No entanto, um dia, aparece frio, seco, de lado na areia. Na cabecinha mole, nas asas rígidas, no hirto bico amarelo, não há um vestígio de som. E sabia-se que ele era só música. Isso dá uma certa melancolia.

       Os gatos sobem o muro: veludo frouxo, pluma, elástico. Um raio de sol queima-lhes os bigodes de vidro. Piscam de olhos ofuscados, arreganham a boca num miado untuoso. Às vezes, levantam a pata hesitante para uma borboleta que se inclina. Depois, saltam cautelosos, sem se magoarem nas pedras, sem amassarem as flores, e reclinam-se numa sombra, e sonham com o tempo em que eram tigres.

       Dias depois, aparecem estendidos no fundo do quintal, com muitas moscas por cima, e formigas em volta. Seu pêlo não brilha mais como um fino veludo. Tudo porque a mão de um menino arrojou uma pedra: têm a cabeça amassada, e um olho para fora.

       O balanço range, mas o ramo não verga. O rosto passa, ora na sombra, ora no sol. Um cheiro de umidade e de luz. Orvalho por cima das violetas. Lesmas por baixo das folhas. Fogem lagartixas pelos tijolos. Uma cigarra desabrocha fogo, de repente, sobre a resina dos cajueiros. Passam borboletas brancas, em grupos: ramos de flores voando.

       E, de longe, cansadinho e calado, chega o burro do carvão, chega o burro da água.. .

       O aguadeiro sopra na buzina de chifre. O animal espera. Ninguém compra? Descem pela outra rua, com a pipa sacudida pelo declive do caminho.

       O carvoeiro grita umas duas vezes com a sua voz do mato: "Eh! carvão!... Carvoeiro?" As criadinhas chamam por ele, risonhas, das varandas. E o burro espera, amarrado numa árvore, mascando um capinzinho dali de perto, ou sacudindo a campainha do pescoço com um ar tão discreto que não se sabe se ela lhe agrada ou desagrada. Às vezes, põem-lhe flores de papel encarnado e cor-de-rosa nas orelhas. Talvez no dia de aniversário. . . OLHINHOS DE GATO tem vontade de beijá-lo, de passar-lhe a mão pelo focinho. Os olhos são mansos e bonitos. Mas os dentes são tão grandes, tão grandes, e a narina se move de um modo tão singular!

       O cavalo do soldado também passa por ali de vez em quando, com a cauda amarrada, e o pêlo lustroso. Mas o burrinho é outra coisa. O burrinho vê-se logo que é gente encantada. Mesmo assim como burro, parece-se imensamente com uma menina de trancinhas duras, com fitas vermelhas, que pula corda todas as tardes embaixo da mangueira. Parece-se com a Edwiges, que engoma roupa de noite, num porão vazio, com um candeeiro de querosene. Parece-se com a Paulina, que amassa os pastéis, em dias de festa, e com a Luísa, que é quem sabe mais histórias de lobisomem e almas do outro mundo.

       Ah! o burrinho, mesmo sem as flores, é muito mais bonito que o cavalo, e mais bondoso. Se não fossem tantos arreios, certamente se sentaria para contar histórias. O cavalo é para voar para longe, por cima das casas e das montanhas. Para levar os noivos e os mortos. Os cascos dos cavalos quase não pousam no chão. E quando pousam, fazem fogo.

       E os burrinhos morrerão também?

      

       À tarde, o papagaio dá para falar. "Dá cá o pé, meu louro?" Depois, entusiasma-se:    

                                                  

       "Papagaio real,

       para Portugal,

       quem passa, meu louro?

       É o rei que vai à caça.

       Toca a trombeta e passa:

       Tá-tá-rá-tá.....tá-tá!"

      

       Seus olhos encarnados alargam-se e encolhem-se. Vira para um lado, vira para o outro, morde as vasilhas de lata, sacode a corrente do pé, roça o bico no poleiro, roda a cabeça para mirar as pessoas, e faz-se de engraçado:

        

       "Currupaco, papaco,    

       a   mulher   do   macaco

       caiu no buraco!

      

       Papagaio?"

       Fica num pé só. Fecha os olhos. Ensaia todas as variações da sua pobre vida. Nem para dormir sai dali. Sempre naquele pedacinho de poleiro. Triste coisa. De repente, deve sentir-se aborrecido: grita para longe:

      

       Rrrrrrrr........á!

       Rrrrrrrr........á!

      

       Por quem é que ele chama, coitado? Que é que ele quer? Onde é que está?

       Dão-lhe água fresca. Engrola umas outras coisas. Mergulha o bico pontudo no comedouro. Corvoca, dentro do bico, a sua grossa língua preta, como um bicho.

       Para distraí-lo, a menina inventa levá-lo a passeio no dedo. Anda com ele a passeio até em cima do ombro. Só ela. E todo o mundo se assombra daquilo. Parece que até o próprio papagaio. . . E ela, também.

       No jardim do doutor, os pavões soltam longas exclamações melancólicas, sopros de cinza nos lugares dourados da tarde.

       Depois, as pombas fartas voam com as lisas penas cheias de segredo e graça. Pousam na bola azul do telhado, murmuram, escondem-se. Vão para um mundo de ternura. Todos os beijos estão dentro de suas asas. Ouve-se de longe seu rumor de fonte veludosa: tão morno, tão manso!

       Um pouco de vento sobe também, para dormir nas árvores. As folhas deixam-no passar. As cigarras estremecem. Os passarinhos abrem ainda os olhos. Os grandes cães da chácara ladram para os muros, para os portões, para as janelas, para a lua. Estarão vendo os mortos? Sua voz é de pedra. De oco de pedra. De escuridão.

       Os grilos sacodem campainhas de ouro por dentro das paredes.

       — Esta cama já está ficando muito pequena. Faz mal dormir assim de pernas encolhidas. . .

       Puxam o filo do cortinado. Um mosquito fica zunindo, do lado de fora, rasgando fios de ar com as asas.

       Quase adormecido, o dedo da menina caminha pela parede assim:

      

       Ela mesma não sabe como foi: ela descobriu com surpresa uma coisa que não acaba.

       E dorme tranqüila, com esse descobrimento.

      

       A vida é pobre, o tempo é triste, mas a música embala os dias, desde manhã até a noite.

       Maria Maruca escorre o café e ferve o leite no fogareiro de carvão. Há um abano de palha, mas ela gosta é de soprar com a boca; incha as bochechas lustrosas e espalha cinza. Abre a torneira em cima da louça, arruma as colheres nos pires.

       Os passarinhos piam com fome. Piam os pintinhos. Há um alvoroço no galinheiro. Boquinha de Doce cuida dessas coisas. E Maria Maruca, assim tão cedo, já cantarola:

       "Eu tenho uma namorada

       que é mesmo uma papa-fina,

       lá na praça do mercado

       digo logo: é preta-mina!"

      

       E botando a mesa, requebra-se:

      

       "Laranja, banana,

       maçã, cambucá,

       eu tenho de graça,

       que   a preta me   dá!"

      

       Ameaça OLHINHOS DE GATO com um cabo de colher:

      

       "E Acugelê!

       E Acubabá!"

      

       Depois diz sem música:

       — Minha rica brasileirinha, tu andas muito amarela. Queres pão com queijo? Queres pão com banana? Queres mingau de fosfatina? Precisas comer, se não bates a bota, como os outros! E adeus, minhas encomendas!

       Na verdade, a menina sentava-se à mesa com indiferença. Boquinha de Doce dizia-lhe:

       — Vou fazer-te sopinhas de pão! É tão bom, tão bom! Tão branquinho! Vem ver!

       Cortava o pão, espalhava o açúcar, derramava o leite. Tão difícil que era comer aquilo, meu Deus! Maria Maruca já estava lavando roupa lá fora, com outra cantiga:

      

       "Eu não sei o que te diga,

       rapariga,

       quando vejo o teu olhar...

       Tua boca escancarada,                            

       perfumada,

       tem perfumes de matar!

      

       Assim, como te adoro,

       como te choro,

       na minha dor,

       contigo viver quisera,

       ó primavera

       do meu amor!"

      

       E como a menina aparecia, perguntava-lhe: — Então, já comeste? Comeste tudo? E em sinal de contentamento, bailava descalça, com os pés vermelhos no cimento molhado:

      

       "Olha o bailarino,

       baila quem quiser!

       Quem não esfolha milho

       nunca tem mulher!"

      

       Por entre essas músicas e cantigas, passam os gatos, os pintos, as galinhas, as bonecas quebradas, os tamancos, os pianos mudos, e a cara admirada de OLHINHOS DE GATO, mastigando um resto de pão.

       Passam também outras músicas.

       Dentinho de Arroz, com voz baixinha, uma voz forrada de flanela, murmura limpando os móveis:

       "Si já vivíamos todo' na 'pulência,

       temo' ago' a mais esta vantag'...

       d'spera' no pont' da pacienc'

       ô paga' 's trezento' da passag'...

      

       Duzento' rés é quanto cust' uma passag'...

      

       A portinhola dos bilhete' semp' aberta..."

      

       Quanto a Boquinha de Doce, sua tesoura range o dia inteiro por cima da mesa, cortando corpinhos, blusas, aventais. Os olhos da menina ficam rentinhos ao pano. O cheiro do morim, as figuras coloridas que vêm coladas às peças, andam pertinho do seu rosto. Boquinha de Doce está sempre com medo de espetá-la com a tesoura. "Tira-me esses olhinhos daí!" E continua a cantar, mas baixinho e triste:

    

       "Quisera amar-te, mas não posso, Elvira,

       porque gelado sinto o peito meu,

       não me crimines, que não sou culpado,

       amor no mundo para mim morreu."    

                      

       Com uma outra música também vagarosa e melancólica costumava cantar, cosendo:

      

       "Meu arvoredo sombrio,

       não digas que eu aqui vim,

       não quero que o meu bem saiba

       partes nem novas de mim..."

      

       A agulha entra e sai do pano, e faz um tlic-tlic no dedal. Se a máquina roda, então o rumor do pedal amassa a música e as palavras da cantiga.

       Assim se passam os dias. Amanhece. Entardece. A vida é pobre, o tempo é triste. . .

       Conforme a lua, deitam-se galinhas, e num dia previsto e infalível, nascem pintos que Boquinha de Doce ajuda a retirar das cascas, formas úmidas e moles, enroladas em si mesmas, e que ela facilmente desenrola e anima, falando num sorriso: "Vamos nascer que já é hora!" E eles dizem que sim, com um claro biquinho novo, cor de milho tenro, e daí a dias povoam a área, querem descer pela escada, piam de medo, fazem intervir a galinha raivosa que ameaça as folhas duras, as formigas, os caracóis... O galo marcha de perneiras e chapéu de galão. As outras galinhas passeiam distraídas, cantarolando também suas cantigas. . .

      

       Escurece. Dentinho de Arroz senta-se na esteira, conta histórias à menina, outras vezes canta:

      

       "À sombra frondosa de enorme mangueira,

       coberta de flores, da tarde ao cair. . ."

      

       É tão bonito, meu Deus! Vêem-se os vaga-lumes passar pelas árvores. Todos estão muito cansados. Deitam-se cedo.    

       Alta noite, porém, acontece passarem cantores que acordam a rua toda. Abrem-se janelas. Gente apressada vem para o luar ver a serenata. Ouvem-se rir as negrinhas, mal acordadas. Dentinho de Arroz também vai ver. E sossega a menina, que desperta inquieta:

       — São os violões!

       Embrulha-a no lençol, e tira-a da cama.

       Os violões descem a rua, misturando a música e os passos nas pedras. As janelas fecham-se. O mundo inteiro encanta-se de novo no sono. Mas a menina descobre, maravilhada, que se pode estar acordado no meio da noite, que o mundo não se acaba, enquanto se dorme! Vê a lua boiando por cima das árvores. Sorri para a frescura do ar. E torna a inclinar-se sobre o geral esquecimento.

       Numa noite assim, descobrirá nuvens brancas partindo em largas e tênues caravanas de um lado para o outro do céu. Vão apressadas: sente-se o vento bater nelas como um fino, mudo, invisível chicote. Para onde? Para onde? Multidão aérea, multidão de gigantes envoltos em seus brancos vestidos cheios de curvas, atravessando as alturas da noite, por cima das ruas desertas, das casas fechadas, das árvores cujos braços levantados nada podem fazer, para aquela distância — duros braços, frios, tristes, todos cobertos de flores, e sem poderem socorrer. . .

       Ah! mas então nem as nuvens descansam! Há uma continuidade de vida por dentro da noite, quando se está de olhos fechados e de corpo insensível! Há fugas, suspiros. . . pode haver lágrimas. Pode haver mortes!

      

       Nos dias de chuva, tudo se reúne numa intimidade comovente. Recolhe-se a gaiola do pássaro, muda-se o papagaio de lugar. A galinha fica num canto da cozinha, amarrada pelo pé, e os pintinhos sobem-lhe e descem-lhe pelas costas. Os gatos deitam-se nas cadeiras, embaixo da mesa, escondem-se por perto do fogão, na sombra e no morno. Todos esses bichos olham-se entre si, olham para as pessoas, como uma só família. Há uma tal naturalidade no encontro dessas vidas que todos parecem compreendidos e tranqüilos. Certamente, é por isso que não falam. Quer dizer, o papagaio fala — mas só para brincar. O que ele gostaria mesmo de dizer, ah! não, isso ele não diz. Isso ele engrola baixinho, na língua, curvando na pata preta a sua cabeça verde, com uma luazinha amarela, e outra encarnada.

       A estrelinha ruiva dos seus olhos palpita docemente, longe, longe — meu Deus! — nessa lonjura por onde passam todas as estrelas. . .

       Também por essa lonjura zune o vento, frio e triste. Ali perto, apenas estremece a franja de uma toalha, algum pano estendido. A chuva contínua sussurra nos telheiros de zinco.

       Roda a máquina de costura. A coisa mais linda do mundo é ver encher a bobina de linha: fffffff..... — vai-se enrolando o fio no longo carretel, docemente, docemente. De súbito, os metais resvalam, ouve-se um fino silvo: zzz. — está pronto. A mão recolhe-o com ternura. Parece uma cigarra, um inseto sonoro, de asas fechadas.

       Maria Maruca anda na cozinha e fala com os pintos. Ouve-se o gluglu da sopa, que ferve, pesada de legumes. Gritam cheiros de alho e cebola. Em cima da mesa esfria o tacho de doce de goiaba. E o vidro das compoteiras brilha e rebrilha, muito lavado, posto a escorrer sobre um pano muito branco.

       E escurece tão cedo! Até o papagaio já tem sono, e fecha os olhos, encolhido. O vento dá nas luzes, e quase que as apaga, a cada instante. As sombras movem-se pelas paredes, e enchem a casa de muita gente.

       OLHINHOS DE GATO tem um copinho dourado. Tem um talher pequenino. Tem uma cadeira alta.

       — Devagar com o andoire, que o santo é de bidro! — Maria Maruca entra com o jantar.

       Dentinho de Arroz dá-lhe a sopa, corta-lhe a carne. Espalha a comida no prato, para esfriar mais depressa. E conta-lhe histórias, para ela comer com mais vontade. Quando os príncipes chegam e os anões dançam, a menina pára de mastigar. É bonito, mesmo! Depois continua a comer. Os cavalos de casco de ouro estão parados à porta. O rei com a sua coroa vem saindo do corredor. . .

       Depois do jantar, distraem-na para que não adormeça. Continuam a andar em redor dela personagens extraordinários: Boquinha de Doce fala-lhe da menina que tinha uma estrela de prata na testa. (Ela passa a mão pela sua. . . Não, não é ela.) Bate-lhe as mãozinhas, uma na outra, murmurando:

      

       "Palminhas, meu bem, palminhas,

       para quando Papai vier.

       Papai há de dar beijinhos,

       Mamãe, sopinhas de mel. ..."

      

       Mas, às vezes, há uns silêncios que nada enchem. Que se alargam pela casa toda. Boquinha de Doce fica de olhos muito perdidos. Muito longe. Mais longe que a parede. Que a escada. Que o quintal. Para onde olha Boquinha de Doce? A menina se levanta, e põe-se diante dela, procurando os seus olhos. Então, ela os enxuga mansamente na ponta da blusa. E continuam a brincar.

       Vem Dentinho de Arroz, leva-a para a esteira. Uma esteira onde há figuras de santos, costuras, bruxas de pano. . . E que o gato arranha com suas unhas de lua crescente. Brotam as histórias de lobisomem, de saci-pererê,de mulas-sem-cabeça, de palácios mergulhados no mar.

       OLHINHOS DE GATO pergunta, a cada instante: "Mas isso é verdade mesmo?"

       — É, sim. Mas foi há muito tempo. . . Agora, não há mais... Os macacos falavam. . . Todos os animais falavam. . . Eram gente. Nosso Senhor pediu um copo d'água ao gato, o gato foi, e cuspiu dentro. Pediu ao cachorro, e o cachorro veio e lavou o copo bem lavadinho, com água e sabão. . . Por isso o cachorro e o gato ficaram inimigos. Nosso Senhor brigou com o gato, e ele ficou com sete fôlegos. Para custar mais a morrer!

       Dentinho de Arroz conhece todos os bichos e as suas histórias. O que eles foram antes, e o que vão ser depois. Viu a Arca de Noé. Era muito grande. Maior que aquela sala? Maior. Maior que o quintal? Maior. Do tamanho da rua? Devia ser do tamanho da rua. Que grande!

       OLHINHOS DE GATO sente de verdade os animais saírem da palma da sua mão, quando Dentinho de Arroz pergunta: "Cadê o toucinho que estava aqui?" e que ela mesma responde com outra voz: "O gato comeu." "E cadê o gato?. . ." "E cadê o boi?..." "E cadê a galinha?..."

       OLHINHOS DE GATO sente os bichos correrem dentro dos seus olhos, quando Dentinho de Arroz lhe pergunta: "Teu pai foi à caça? — Diga: Foi." (Foi.) "Que foi que ele caçou? — Diga: Um veado." (Um veado. . .) "Teve medo? — Diga: Não." (Não...) "fffffíff. . ." Haveria alguém que não piscasse com aquele sopro nas pestanas? OLHINHOS DE GATO dava uma gargalhada que fazia Boquinha de Doce dizer, lá de dentro: "Benza-te Deus!"

        Dentinho de Arroz fazia-lhe cócegas pelas costelas. . .

       E aí está: suas mãos eram brinquedo, seus olhos eram brinquedo, seus pés eram brinquedo, também:

       "Pé de pilão,

       carne-seca com feijão!

      

       Uma, duas angolinhas,

     finca o pé na pampolinha.

       O rapaz que jogo faz?

      

       E depois:

      

       "Pé de pilão!...

      

       O calcanhar batia na esteira: pum, pum. . . Que coisa engraçada, meu Deus! O ouro dos santos brilhava. . . A chuva era doce. A luz triste. . . — "Pé de pilão!" A criança ria-se, no meio do mundo. . . E Boquinha de Doce, ao longe, interrompia as orações, para rir também. Porque nesse tempo era assim: seu riso repercutia pela casa toda!

      

       Por muito, porém, que haja cantigas, por muito que às vezes se ria, há coisas que estão ali, coisas tristes de ver.

       Na beira do tanque, pousam vasos de barro, com alecrim, manjerico, tinhorões. Orvalham-se diariamente. "De manhã e de tarde!" Mas não passam daquilo. "Eu não sei si é do sol. . ." resmunga Maria Maruca. "Será algum bicho que pisa em cima?" Revira o beiço e acrescenta: "Será o mafarrico?"

       Na mesma beira de tanque está pousado o vaso com o craveiro. Vaso de folhas hirtas, onde sempre se espera e nunca vem uma flor. A menina olha, pensativa. Há brilhos de ouro, no barro de ardente cor. Formigas raivas. E as folhas hirtas. Mais nada.

       Lá embaixo despontam, de vez em quando, algumas violetas, num resto duro de canteiro. Mas tão pequeninas, tão pálidas, como se já nascessem murchas.

       Há uma espécie de névoa sobre o manacá, pequeno e ressequido, cujos galhos tortos não aumentam, cuja folhagem não se colore de folhas.

       — Plantado pelo teu avô. . .

       Há roseiras. Mas só com espinhos. Até as folhas vão minguando, crespas e velhas.

       Uma videira sobe enlatada, forma um toldo de folhas, moles e largas. Mas não quer frutificar.

       A casca das goiabeiras desprega-se em lâminas, como de papel tostado. As abelhas e os besouros dançam ao sol, por cima dela. As formigas percorrem-na em fileiras intermináveis. Mas as flores são raras. Desmancham-se à toa, com o balançar de um ramo, com a passagem do vento. . . Uma vez ou outra, descobre-se uma fruta, que custa a crescer. Quando amadurece, enche-se toda de bichos.

       Os mamoeiros desprendem folhas amarelas e enormes, que caem do alto, inesperadamente, como guarda-sóis.

       Olham para o abacateiro, já bem grande, e dizem: "Tem a sua idade!" Mostram o cajueiro, cuja flor se desfaz nos dedos, cuja resina escorre em lágrimas de mel: "Aqui embaixo, teu avô morreu."

       Os abios rolam podres, franzidos e pardos, do alto dos galhos.

       E as laranjeiras — quem as queimou? Têm uma folhagem dura e cinzenta, uma folhagem de zinco. Só os espinhos prosperam: enormes, pontiagudos, e aduncos como os esporões dos gaios. Se uma flor, porém, se aventura, branca e perfumosa, por essa árvore triste — é uma festa em redor: abelhas, besouros e borboletas dançam com delícia no meio da devastação.

       Debruçam-se na cerca, rubros e oscilantes, os brincos-de-rainha. Mas a cerca é tão velha! Vêm as enxurradas, levam os paus. Conserta-se. Tornam a ir. Sempre assim.

       — Havia ali um pessegueiro — murmuram. Olha-se, e apenas se vêem pedras, uma roda de pedras segurando a terra em declive.

       Por que tudo é tão triste? Por que é mais triste, tudo, de repente? Estão passando nuvens pelo alto do céu? Não. O céu é azul, e brilha o sol.

       — Havia aqui uma horta. . .

       E agora só se encontra algum pé de couve, para o passarinho, ou um tomateiro manchado de ferragem, e amarrado nuns espeques. Gordas lagartas rastejam pelos caules. Úmidos caracóis deslizam. £ quase sem esperança que a água do regador borrifa essas pequenas coisas. . .

      

       Tudo isso lembra, por contraste, um outro tempo, de que se fala em voz baixa. As mãos do Avô andavam por ali, entre folhas e flores. As mãos do Avô andavam rente à terra, dentro das paredes, por cima dos muros. As mãos do Avo pousavam no corrimão da escada, enrolavam as trepadeiras nas cercas. Os pássaros comiam nessas mãos. Os cães lambiam-nas. Das mãos do Avô saíam casas, saíam árvores. As mãos do Avô andavam no ar, em toda a roda, tomando conta de tudo. Elas sabiam fazer música, também, nas cordas daquela guitarra, à sombra fresca do quintal, perto do tanque verde onde as libélulas beijam os musgos. Recorda-se disso aquela tremura redonda da água?

       Os pés do Avô tinham pisado longamente aquela terra. E atrás dele, o grande cão, silencioso, parava ou seguia, continuando o seu dono.

       Um dia, o corpo inteiro do Avô deixou-se cair para ali, debaixo do imenso cajueiro, de onde o vento desprendia doces frutos, cheirosos e moles, e onde as cigarras afiavam seu canto nas cordas de ouro da resina.

       Já não existia mais o cão, seu companheiro, que o tocasse, que o sentisse, que anunciasse para longe o súbito acabamento do seu dono.

       Era um homem sozinho, entre as árvores. E ali ficou. Sozinhos, seus olhos se fecharam rente às pedras. Suas mãos esfriaram, sem ninguém, no barro, sobre as folhas secas, perto dos caroços de fruta, das conchas quebradas, das formigas andarilhas que, apenas, talvez, mudaram um pouco o itinerário.

       Seu corpo caiu sobre a terra, como árvore dentre as árvores. Sua boca morreu no chão, como fruto dentre os frutos.

       — Como era o rosto dele? — a menina perguntava.

       Mas disseram-lhe que nunca tirara o retrato. (PARA NÃO MORRER.)

      

       Um dia, porém, tudo começou a mudar.

       Vinham pessoas. Conversavam por baixo das árvores: "Por aqui, pode passar um rego-d'água. Ali, põem-se umas pedras. . . A terra é como a gente — precisa de trato e de amor."

       Serraram galhos, pintaram troncos. Cavaram o chão. Revolveram a terra.

       O homem risonho, de olhos cor de folha e mãos grossas de tijolo, chegou sobraçando plantas novas. Com que graça ela o via manejar o seu canivete, prender galhos postiços nas árvores, e dizer-lhe com umas palavras que cheiravam muito a fumo: "Daqui é que vai nascer uma laranjinha doce para você chupar!"

       As crianças da rua queriam ver, também. Metiam os olhos por entre a cerca, agarradas às outras... Os vizinhos perguntavam o que havia. Davam idéias. "Eu, se fosse a senhora..." Alguns diziam para os homens: "Se eu fosse vossemecê..." E contemplavam. Nessa contemplação, o que havia era, principalmente, expectativa. "Nasceria mesmo alguma coisa? Seria possível?"

       Maria Maruca, diante de uma cova aberta, teve uma brusca inspiração. Agarrou a menina, levantou-a nos ares para metê-la dentro. "É agora! Vou-te enterrar!" Boquinha de Doce abriu os braços, desesperada. Maria Maruca ria-se: "Ora, eu estava brincando!" Mas a voz de Boquinha de Doce tremia, no quintal aberto: "Fazer isso com a criancinha! Que lembrança! Tanto trabalho para a criar! e, de repente..."

       Mas a menina, na verdade, achara graça, e, puxando-lhe a saia, pedia a Maria Maruca: "Me planta. . . Me planta de novo..." Devia ser bom ser plantada naquela terra morna e cheirosa, e ir crescendo, toda verde. . . cheia de flores. . .

       O chão ficou mais escuro e fofo. Parecia um outro lugar. Como quem estivesse viajando, e encontrasse sítios diferentes. . . Andava um cheiro bom, de barro molhado, até dentro de casa. Era como depois das tempestades, quando aparece o arco-íris.

       Naquela quadra de fervor agrícola, a menina semeou também caroços de feijão e de milho. E como tinha pressa de verificar o milagre, desenterrava-os todos os dias, com o maior carinho. "Olhando, não nasce" — diziam-lhe. "Essas coisas são segredo." Então, ela percebeu que havia forças „ ocultas, invioláveis. Era como acontecia com ela, quando se punha a chupar frutas. Maria Maruca exclamava: "Estás te regalando, hein?" E logo Boquinha de Doce murmurava: "Não se deve olhar, nem falar, em certas ocasiões. Mesmo sem querer, se dá quebranto." E acrescentava-lhe baixinho: "Come, para ficares grande."

      

       E os dias passaram. E os caroços enterrados pela menina tomaram estranhas formas debaixo do chão. E ela acreditou no mistério da terra, e deixou-os sozinhos, e viu aparecer, afinal, o corpo sinuoso das plantas, verde e limpo, saído do barro e da água. E também, de certo modo, da sua mão. . . Ficou muito tempo de joelhos, mirando pensativa as folhas — tão leves que até a sua respiração as abanava. . .

       E esse pequeno milagre se reproduziu largamente: dos troncos rugosos e tristes, de árvores escuras e secas, brotaram galhos viçosos, que causavam estranheza, como braços novos nascendo em ombros de velhos.

       Com uma grande atividade, subiam e desciam as formigas pelos muros; e as abelhas rondavam, procurando, perguntando, chamando pelas flores. Até que as flores vieram, afinal, entre as folhas envernizadas, que o sol fazia brilhar na sua cor de pintura fresca.

       Longamente cantaram as cigarras. Os passarinhos instalaram-se nos ramos altos. E até morcegos apareceram, ao entardecer.

       Os vizinhos paravam, de novo, e convenciam-se, admirados.

       O homem risonho, de olhos de folha, ainda esfarelava, às vezes, a casca de um galho, soprava algum bichinho da ponta de um ramo, calcava a terra com o pé, em certos lugares. E ria-se, apontando uma flor que desabrochava. Era de tal espécie, o seu riso, que os seus olhos se enchiam de orvalho.

       Então, a menina sentia brisa e sol por dentro de si. Saltava pelas pedras, abraçava-se às árvores. Tudo renascera! Tudo renascia! Boquinha de Doce, de mãos postas, parava no alto da sacada, olhando. A menina considerava-a de longe, com pensamentos indeterminados, mas que exprimiam esta emoção: "Ela é imortal!"

       Tiraram o balanço, para concertar a goiabeira. E a goiabeira transformou-se toda. Como era torta, sustentaram-na com paus. Como tinha pedaços podres, cortaram-lhe muitos galhos. Como estava com as raízes de fora, chegaram-lhe mais terra. E quando as flores surgiram com duras pétalas de mármore, e no meio uma fina penugem cheia de pólen. . . ah! — Boquinha de Doce passava a mão pela casca do tronco, alisava alguma folha mais grossa, e amorosamente falava: "Estavas tão velhinha. . . tão maltratada. . . Pobre de ti! Mas agora vai ser melhor. Sofreste um pouco, mas vai ser melhor!" E falava para o abacateiro novo: "E tu, quando é que darás flor, também?" Virava-se para a menina, e acrescentava: "É da tua idade." E, embora ela não a fizesse, a menina ouvia o resto da pergunta: "Quando é que darás flor, também?"

      

       Pois até a parreira, com suas hastes ressequidas e suas preguiçosas folhas, desenrolou pâmpanos verdes e ácidos; e esqueletos de cachos armaram um frágil desenho de pérolas verdes por cima da sebe.

       Maria Maruca descobriu as primeiras goiabas. "Ah! estas, sim..." Descobria os cajus nascentes. Descobria os mamões, amontoando-se.

       Os vizinhos queriam comprar frutas. Vinha gente de longe, para buscá-las. Batiam palmas. Ia-se ver, e mulheres desconhecidas falavam com Maria Maruca:

       — Queria saber se a moça dava uns cajus daqueles. . . ou vendia. . . Minha irmã passou por aqui, e ficou com um tamanho desejo. Coitada, ela está para cada hora. ..

       Maria Maruca ia dar, mas voltava de mau humor, e resmungava consigo, toda suada: "Para cada hora. . . Para cada hora. . . Não podem é ver nada dos outros! Cruzes! Credo! Que esganação!"

       Vinha mesmo um velhote de barbicha, vinha de longe, de longe, com um saco embaixo do braço, para comprar abios. Trepava na árvore, enchia-se de fruta, depois descia farto, e com o saco cheio. Enrolava um cigarro de palha. Punha-se a contar, formando montes. Contava de dez em dez. Jogava para o lado a fruta estragada. Depois perguntava: "Cadê sá dona? É pr'ela vim conta. . ." Os garotos da rua ficavam pedindo fruta. Metiam por baixo do portão as mãos sujas, pretas, mulatas, com unhas lascadas, com perebas nos dedos. "Dou?" perguntava Maria Maruca. Mas perguntava sem carinho. Para acabar com aquela choradeira. E Boquinha de Doce respondia paciente: "São crianças, coitadinhos... E são pobres. .. Nunca se recusa a quem pede. .-." Maria Maruca ia-se embora, apanhava a fruta, resmungava: "A mim, nunca me deram nada..."

      

       Por fim, a rua toda entendia de abastecer-se ali.

       — Faz favor de me dizer se aquele mamoeiro é macho ou fêmea?

       Lá ia Maria Maruca perguntar.

       — Não é macho, não.

       — Ah! que pena. . . É que eu precisava fazer um xarope. . .

       Quando a velha se retirava, ela abria numa risada:

       — Graças a Deus, que não é macho!

       A qualquer hora da noite ou do dia, batiam palmas, com a maior naturalidade:

       — Faz favor de me dar umas raspas de cajueiro?

       — Faz favor de me dar umas folhinhas de abacate?

       — A senhora tem sabugueiro? tem pitanga?

       — Faz favor de me dar umas folhinhas de laranja-da-terra?

       A turca do bazar descobriu a parreira viçosa, e veio buscar umas folhas para fazer trouxinhas de arroz.

       — Esses carcamanos têm cada comida! — exclamava Maria Maruca.

       Não, na turca ela achava graça. Quando a via subir a rua, dizia assim: "Olha só a perninha torta que ela tem!"

       Uns vieram procurar tansagem para feridas, outros, erva-de-santa-maria para doenças do peito, galhinhos de arruda para benzer espinhela caída.

       Lá num canto, Dentinho de Arroz descobriu caruru. Deu para nascer também beldroega. E, pela sombra, havia trevos, muitos trevos, de tão linda cor, de tão fina seda. . . "Os de quatro folhas dão felicidade" — dizia Maria Maruca, dizia Dentinho de Arroz, dizia a velha Quinca, parando na subida, com o seu livro de missa na mão. A menina, ajoelhada, procurava o trevo miraculoso, folha por folha, descobrindo as formigas que viajavam sob aquele toldo tão suave. Mas, de quatro folhas, nunca encontrou nenhum.

      

       Depois de descobrir o nascimento de cada fruta, Maria Maruca fez um mais sensacional descobrimento: a terra estava dando ouro. "Estão pensando que é mentira?" Ela foi cavar na barreira, para encher as latas dos craveiros, e encontrou o ouro, saindo à toa. Primeiro, nem acreditou. Mas olhou, viu — era ouro mesmo!

       Todos se riam. Ela alargava os olhos, deslumbrada e triste. "Mas era ouro! Se ela até ficara com medo de bulir! Estava tudo brilhando, lá embaixo. . . Não queriam acreditar! Pois ia buscar uns torrões!" E desceu a escada a correr. Os outros continuavam rindo-se. OLHINHOS DE GATO, não.

       OLHINHOS DE GATO foi atrás dela, convencida. Tudo podia ser. OLHINHOS DE GATO também não tinha dúvida de que a terra pudesse estar dando ouro. É tão misteriosa, a terra! Deviam ser os tesouros dos Reis e dos Feiticeiros de que Dentinho de Arroz tanto falava. Ninguém sabia que estavam ali tão perto! E, de repente — tal qual nas histórias — Maria Maruca, sem querer, o encontrou. . .

       Foi atrás de Maria Maruca, e estacou diante da barreira de ouro. De ouro, sim. Ouro meio cor-de-rosa, é certo. Mas ainda mais maravilhoso. Ouro encantado. Ah! ela mesma ajudou a destacar, também, do duro barro, aquelas palhetas, com a ponta da unha — embora machucassem um pouco, finas e cortantes como vidro.. .

       É verdade que, na mão, aquele ouro desfalecia logo: tinha a transparência das asas das libélulas, das asas dos cupins, que caíam, de noite, em redor da luz. Mas a barreira continuava a faiscar com suas paredes preciosas. . .

       Maria Maruca foi buscar uma colher de pedreiro: não queria quebrar aquelas lascas muito miudinho. Poderiam duvidar ainda. "Estão rindo — dizia. Mas vão ver, só!..." Para convencer absolutamente, foi mesmo buscar uma enxada. Ela queria arranjar um grande bloco brilhante. Mas o ouro quebrava-se facilmente. Ouro prodigioso! Quanto mais se cavava, mais aparecia!

       Subiram a escada com as mãos cheias daquelas palhetas cintilantes. OLHINHOS DE GATO sentia sua existência ligada às histórias de fadas. Não compreendia a estranheza causada por aquele encontro. Pois não era tão natural que o ouro surgisse ali? Não compreendia, principalmente, que Dentinho de Arroz pudesse também ter dúvidas. Ela, que sabia muito bem como um cavalo vira um príncipe, e sai um palácio do fundo do mar. . .

      

       Boquinha de Doce olhou para aquilo com um ar que era, ao mesmo tempo, de pena, de graça, de complacência: "Isso é malacacheta..."

       — Como é o nome? — "Malacacheta..."

       OLHINHOS DE GATO olhou para as faíscas que estavam na sua mão. "La-ma-ca-che-ta!" Nome bonito, mas difícil. Difícil mesmo.

       "E bota-se   fora?"   —   insistia   Maria   Maruca.   "Pois então.. .   — responderam. "Ah!" Seu aspecto era uma coisa sem descrição.

      

       Foi por aqueles dias que apareceu a tia Totinha. Foi dessa vez que lhe levou um pratinho novo para o mingau: pratinho amarelo, com um príncipe de casaca roxa e uma princesa de vestido decotado. OLHINHOS DE GATO quis mostrar-lhe a montanha de ouro para saber a sua opinião. Tia Totinha era muito sábia. Tocava piano e fazia pão-de-ló. Ela pegou naquelas faíscas com muito cuidado, e disse: "Vou levar, para os meninos brincarem."

       Ela era muito magra, muito branca, e parecia um pássaro. Em redor de seus olhos, a pele ficava muito fina, e tornava-se azul. Usava uma gola alta, de barbatanas. Viam-se todos os ossos de suas mãos. Mas OLHINHOS DE GATO gostava dela, do seu nariz, que parecia porcelana, do suave movimento do seu corpo muito fino.

       Levou só uns pedacinhos de malacacheta, mas falou com as raparigas que precisava de um bocado grande de barro, para tirar manchas de querosene no assoalho. Depois, foi-se embora. Quando chegou à esquina, voltou-se, para dizer adeus. Os babados da sua saia arregaçada desapareceram.

       E Boquinha de Doce murmurava como quem reza: "E esta senhora está tão magra... tão magra... Irá morrer, também? Irá também atrás dos outros?..."

      Maria Maruca observava: "Eu não sei por que é: os prosas acabam sempre assim — só em esqueleto. Acho que é porque eles não comem, não é?"

       OLHINHOS DE GATO escutava uma e outra, olhando o príncipe dentro do prato. E via em redor aquelas mãos tão brancas e lustrosas, parecidas com as velas e com as teclas dos pianos. Assim polidas. Daquela cor.

      

       Maria Maruca não se desencantava do seu descobrimento. Parava diante da barreira, e achava impossível.. . Queria, mesmo, chamar o homem do chumbo velho, para lhe vender todo aquele ouro. "Ninguém acredita... — dizia ela — ... um dia hão de se arrepender. . ."

       O mundo era o terraço que a parreira enfeitava de sombras móveis — o quintal que descia por ali abaixo, carregando suas árvores — a rua que passava defronte, sem casas, reduzida a um muro esboroado e as espessas frondes de mangueiras cor de bronze — era o fundo das outras casas, com cordas de roupa, gatos andando — e as outras ruas mais longe — telhados, vermelhos ou pretos, com chaminés, clarabóias, janelas de sótãos — torres das igrejas — trens — gasômetros — palmeiras — pedreiras — morros — e as montanhas: primeiro, verdes; depois, roxas; por fim, azuis... E as nuvens... E os pássaros... E a luz nascente... E aquele rumor humano que se ouvia, de alto a baixo... — E o céu.

       Para além de tudo isso, era Deus. Mas não era mais o mundo...

       Boquinha de Doce estava na sua janela. (As campainhas dos bondes tilintavam, ao longe. . . Batia um sino, grave. Batia um outro, mais juvenil. . . Ia-se acabando, o sol...)

       Ora, as nuvenzinhas chegavam-se umas às outras, leves e brancas, franzindo-se numa espuma frágil. Depois, coloriam-se de ouro e de rosa. Depois desmanchavam-se. Boquinha de Doce olhava-as e sorria. "As invenções de Deus!" — dizia com ternura. Mas não era só das nuvens que falava: as plantas, as pessoas, as estrelas — tudo eram invenções, também; outras invenções... Deus inventava, escondia-se. E a gente dava para gostar de suas invenções e esquecia-se dele. Ah! mas só ele valia a pena. . . Iam procurá-lo nos livros, nos altares. . . como se ele pudesse estar num lugar certo.. . E falavam por ele! Como se por ele alguém pudesse falar. . .

       Parava um pouco, ratificando-se: "A não ser, talvez, Jesus..."

       " Seus olhos cinzentos boiavam no tempo. . . "Há quantos anos... Aquelas coisas... Ninguém sabe..."

       Mas, se a lua surgia, considerava-lhe o aspecto e, caso fosse oportuno, parava no caminho, ou detinha-se no sair da janela, para "salvá-la".

      

       "Deus te salve, lua nova,

       não te vi sinão agora.

       Deus te dê boa clausura,

       a mim, boa formosura:

       que me cresça o meu cabelo

       até baixo da cintura."

      

       E a menina olhava, encantada. Encantada, porque ela dizia "luna".

       Maria Maruca ajuntava: "Ai quem me dera também uma trança bem comprida." E repetia com o nariz vermelho empinado para o céu:

      

       "Deus te salve, lua nova. "

      

       Mas nem sempre era assim. Vinham dias sem essas nuvens infantis. Sem essa transparente luz, como um partido aro de vidro. Grandes nuvens grossas subiam, subiam, em torno do mundo, e iam fechando-o. "As nuvens bebem água no mar" — explicava Maria Maruca. "Depois, vêm regar a terra." E a menina olhava aqueles estranhos animais cinzentos, imensos, enchendo, enchendo seus ventres de numerosas curvas num mar que as casas não deixavam ver.

       E agora lá vinham elas, tão cheias que se fundiam umas nas outras, e ocupavam todo o céu, e faziam a escuridão. Todos os pássaros voltavam, assustados. E até os pintinhos corriam, piando, à procura de asa em que se escondessem. Um enorme susto parava a respiração de tudo. Depois, lá longe, uma onda ruiva se elevava, alta e esparsa, afogando rapidamente as torres. Dobravam-se as palmeiras, molemente, de um lado para o outro. Esfriava. A onda ruiva alastrava-se, acercava-se. Já vinha chiando nas folhas secas do chão e nos últimos ramos das árvores.

       Batiam portas, voavam latas, caíam coisas. As negrinhas corriam a recolher a roupa da corda. E um grosso trovão principiava, enchia-se, rolava como uma pedra num precipício, abalava o mundo, a casa, estremecia o corpo da gente por dentro. E ficava no ar um tremor de pássaro, um vibrar finíssimo de grilos.

       Era um espetáculo tal que a menina não resistia ao desejo de vê-lo. Mas o vento lançava-lhe terra nos olhos e na boca. O vento enchia-lhe os ouvidos de um tumulto imenso — casas carregadas pelos ares, navios virados, árvores arrancadas — ELA MESMA levada por entre essas coisas perdidas — para onde? para onde? — e sem se poder agarrar a nada, sem que ninguém a puxasse — caída para fora do mundo, pela força do vento.

       Então, vinha-lhe um pânico, uma necessidade de não ver, de não ouvir, de não saber que o vento estava ali — e de gritar, de gritar muito, pedindo que o detivessem, que o parassem, que o mandassem embora.

       Criança nem homem, nunca ninguém sofreu tanto, nunca ninguém chorou tão convulsamente, por coisa perdida, por vida acabada — como a menina aterrorizada com o poder destruidor do vento.

       E entre lágrimas, maiores que os seus olhos, viam-se os raios cair, velozes e claros — ao longe, sobre as montanhas afogadas na sombra.

       — Por que o céu fica assim preto.. . ? Edwiges interrompeu a reza:

       — Num diga preto, menina. Um home que falo essa palavra, num dia assim, veio o curisco, pego nele e deixo que nem carvão. (Pruquê preto é "ele" — o Canhoto. . .) A gente deve de dizê: escuro.

       Outra rajada de vento matava perguntas e respostas.

       Nem Boquinha de Doce podia nada, no meio daquela estranha desordem? "Lá se vão as flores das árvores!" murmurou baixinho. "A laranjeirinha nova é capaz de quebrar-se, com este vento..." "Os pintinhos recolheram-se todos?"

       OLHINHOS DE GATO sentia-a vigilante sobre as coisas lá fora. Só o seu pensamento parecia ainda coisa firme e segura, no meio daquela confusão. "Pobrezinho de quem anda em águas do mar..." — e a menina sentia que ela não caminhava apenas pelo seu quintal, em pensamento, mas por cima de todas as vidas, como estendendo muitas mãos para tudo que se encontrasse em perigo.

       E abraçando a menina, Boquinha de Doce dizia, gravemente: "Não chores, ouve:

      

       San Jerônimo, Santa Bárbara Virgem,

       lá no céu está escrito, entre a cruz e a água benta:

       Livrai-nos, Senhor, desta tormenta!"  

                                

       Maria Maruca aparecia desgrenhada: "Desta vez, vem o mundo abaixo!"

       Seria?   A menina olhava   para Boquinha   de   Doce.   E Boquinha de Doce segredava-lhe: "Não é nada! Isto passa! Não tenhas medo..."

      

       Um pingo d'água no telheiro da cozinha.

       Outro pingo.

       Muitos pingos, nítidos, flores, como moedas tinindo.

       No telheiro da cozinha. No cimento. Nos tijolos do muro. Nos vidros. Na folhagem.

       Muitos pingos. Tantos, que já nem se ouvem separadamente. Um cheiro acre de barro novo, de chão regado, de terra úmida. Ah! um cheiro de alegria. O ar atravessado de grossas linhas d'água, entortadas com o vento.

       Ainda alguma lufada. O céu clareando.

       "San Jerônimo, Santa Bárbara Virgem..."

      

       — Eu não te dizia?

       Os trovões afastando-se, viajando para outros lugares. . .

       Já se ouviam chiar as panelas de Maria Maruca. Edwiges dizia: "Tá bom, minha gente, eu já vou indo. . . O vento passo... Eu tinha medo é que ele me levasse pelos ares; ou me virasse o guarda-chuva. . . Tá bom, gente, té ôtro dia. Cadê a neném? Adeusinho, neném. Benza-te Deus!"

       Às vezes, ainda havia tempo para se formar o arco-íris, com todas as suas cores. Maria Maruca chamava-o de "Arco-da-Velha" e perguntava sempre consigo: "De que será aquilo?"

       Seu nariz empinado no ar, não conseguia entender nada. Apenas, ela ainda acrescentava: "Na minha terra também havia um, igualzinho, que aparecia de vez em quando..."

       Os grilos, nas noites de chuva, enchem o quarto de uma festa de guizos. O filo do cortinado fica tão friozinho!

       E a água rola pelas pedras tão docemente que, navegando-se pelo seu rumor, chega-se ao país do sono sem medo nem dificuldade.

      

       Dentinho de Arroz, Dentinho de Arroz. Gente, mesmo? Ou boneca de pano? Tão macia. . . Tão silenciosa. . . Seus olhos negros — olhos ou miçangas? — mornos, levemente vesgos, destilando uma luz oleosa. Névoa tênue de buço, pelo sorriso. Névoa menos tênue de mágoa, no olhar.

       Diante do pequeno espelho, enganchado num prego, seu cabelo se alarga numa densa fronte, eriçada e negra. Suas mãos finas, da cor do jacarandá, vão submetendo, em calmos movimentos de trança, a espessa massa que o óleo de coco ilumina de frisos metálicos.

       E quando o penteado termina, então aparecem as pequenas orelhas, muito redondas, transpassadas por uma sutil argolinha de ouro.

       Seu sorriso forma duas covinhas na face. E sobre o lábio estremece um sinalzinho preto.

       Subir a ladeira sentada no seu ombro é uma aventura como um passeio por cima do vento, sentindo as pedras diminuírem, e as estrelas e as nuvens aproximarem-se. Descobre-se, pela janela gradeada dos porões, um mundo secreto, agitando-se. (Um mundo velhíssimo, que ficou esquecido ali.) Descobre-se, na varanda, a ponta dos chinelos do general, na sua cadeira de balanço. . .

       Brincar ao seu lado é sair invisível, e viajar por países azuis e dourados, onde os peixes conversam com as princesas, os pássaros puxam carros festivos, e as palavras, ditas três vezes, formam e desfazem as pessoas e as coisas mais impossíveis.

       Ela conhece (pessoalmente) o Rei, a Rainha, a Fada, a Bruxa, o Gigante e o Anão. Conhece mesmo muitíssimas outras coisas, de que os outros não falam nem parecem ter notícia. Além disso, sabe para onde voam os palácios, de que lado vêm as feras, e em que lugar enterraram os tesouros. (É estranho que não acredite na barreira mágica de Maria Maruca.)

       Também sabe do Saci-Pererê, do Lobisomem e da Mula-sem-cabeça. Mas disso quem sabe melhor, na verdade, é a negrinha Luísa, que gosta de carne-seca com farofa, e costuma trazer do subúrbio cana-crioula, melado, "mariola de capote", pamonha e, às vezes, moringuinhas de barro vermelho.

       Se OLHINHOS DE GATO lhe estende a mão para que lhe corte as unhas, revira os olhos, e declara: "Hoje, não, que é sexta-feira."

       Todas essas coisas pertencem a um mundo diferente. Mas mesmo neste mundo há coisas que só ela sabe ver e sabe contar. O trenzinho que vai passando ao longe, por exemplo: ela o acompanha com uma voz baixinha: "Tira terra, bota terra, tira terra, bota terra..." (É isso que o trem vai falando. . .) "Quer ver como ele agora vai apitar? Ó: — piuim!" — E apitava mesmo. Sem estar vendo o trem, ela sabe por onde ele passa: "Agora chegou a São Francisco Xavier. . ." "Agora, parou..." "Agora, tornou a andar..." "Agora, a moça chegou à janela. . ." "A moça disse adeus. . ." "A moça gosta do foguista." "Tira terra, bota terra... — lá vai ele. . ." "Quer ver como vai apitar de novo?" — E apitava mesmo, outra vez. Alguém mais sabia essas coisas, além de Dentinho de Arroz! Ninguém. O sino, por exemplo. Os outros pensam que o sino bate. Pois não é não. O sino canta uma cantiguinha. O sino diz assim:

      

       "Quem

       tem,

       dá.                                                          

       Quem não tem

       não tem nada que dá!"

      

       Na noite estrelada, embaixo da laranjeira florida, quando os vaga-lumes caem na sombra como florezinhas de vidro, balbucia uma cantiga doce e triste:

      

       "Senhora Sant´Ana,

       Senhor São Joaquim,

       na hora da morte,

       lembrai-vos de mim!"

      

       Como ficam bonitos seus olhos! Parece que estão cheios de flores de laranjeira. Ela veio de um lugar longe. De um lugar com igrejas e procissões. "Os boizinhos vão todos cobertos de rosas de papel. . . As criancinhas vestem-se de anjos: anjinhos pretos, com asas brancas..." Dentro dela há muitos sonhos claros: luas, velas, véus, toalhas de renda.. .

       Mas a sua alegria é também a banda de música da praça, e os botões reluzentes das fardas. Arrumando a casa, pergunta de repente: "Sabe como é mazurca? É assim." E começa a rodar num passinho miúdo, agarrada à vassoura. "E sabe como é chotis? " Pega na mão da menina para trás e para a frente, e modula: "tará-rará-rará. . ."

       É bom dormir sobre o seu peito, diferente dos outros. Uma curva diferente. E um outro cheiro. Encostada a ela, a menina pensa viajar para longe, para a roça, pelo mato, onde moram animais engraçados, de nomes esquisitos: gambás, cangurus, caxinguelês — que surgem dentre folhas densas, ásperas e de cheiro acre.

       Seus dedos têm uma doçura boa. Quase não pousam: e a gente fica sentindo-os para sempre!

       Há o licoreiro azul, da boneca; há o pianinho de dez teclas; há muitas bonecas de celulóide, de massa, de pano. Pois aqueles dedos passam por esse mundo como uns finos cavalinhos escuros, levantando as patas com graça, e pisando as flores pintadas nos vidros e nos panos, sem quebrar uma pétala.

       O quadrado branco do luar é como um papel estendido no chão. Sobre esse território claro e frio, ela inventa as histórias das fadas. As tábuas dissolvem-se, pelo seu poder. O quadrado de luar muda-se em lago, muda-se em jardim, muda-se em paraíso. O sono inclina para ele suas plantas, solta sobre ele seus barcos, mergulha nele seus peixes vagarosos. . .

    

       "Pisei na pedra,

       a pedra balanceô — ou. ..

       O mundo estava torto,

       Rainha endireito   —   ou..."

      

       E EXISTIA aquela rua! Antiga rua, larga e pobre, escancarada ao sol e às tempestades.

       As águas da chuva cortavam-na de regos irregulares. Vinha o sol e arrancava à miséria daqueles sulcos profundos — cheios de latas, papéis, vidros, coisas perdidas — um manso crescimento cintilante de ervas rasteiras. Alastrava-se o verde pelo barro acima. As lavadeiras estendiam ali lençóis anilados, roupas numerosas de criança, saias brancas de babado e cadarços. As ceroulas, de pernas abertas, pareciam ainda homens dormindo ao sol.

       Conversavam vizinhas   pelas   varandas   e   pelas   janelas.

       Desciam criadinhas para as compras — dançantes, nas perninhas finas, com um pano pela cabeça e uma cesta no braço.

       Chegava o verdureiro, cheirando a plantas e a terra, com as mãos e os pés grossos e vermelhos, da mesma dura substância das cenouras e beterrabas. Por entre as couves e as bananas, surgiam molhos de dálias brancas e amarelas e róseas e vermelhas, dálias fortes, carnudas, de onde caía uma súbita chuva de grande orvalho.

       O peixeiro trazia uma lata de água para ir molhando os peixes, pelo caminho. (A menina pensava: "Será que os peixes assim continuam vivos?") Ele era feio, áspero, escuro, e usava um brinco. Maria Maruca chamava-o "carcamano", com uma risada de desprezo. Mas o filho, ainda menino, que o acompanhava, tinha uns olhos tão bonitos e uma boca tão séria! Parecia uma figura dos livros. A pele do seu rosto era a de um pêssego: dourada, com manchas incertas de carmim. E uma fina penugem, contra o sol. Cheirava, porém, de tal modo a maresia. . .

       Os gatos da rua miavam lamentosamente em redor dos cestos. Há quanto tempo andariam aqueles gatos sem comer, meu Deus? Com uma grande faca na mão, o homem insistia nos preços. Iria matar alguém? Às vezes saía sem vender nada. Boquinha de Doce murmurava atrás dele, franzindo um pouco as sobrancelhas: "Que grandissíssimo teimoso! Tem palavra de rei!"

       Quanto ao comprador de ferro velho, usava paletó de veludo, meio verde, meio amarelo. Vinha de saco às costas, as pernas arqueadas, e gemia de vez em quando: "Tchumbo, metale, cama velha. . ." Parava, para gemer. Esgaravatava no chão, pensando que tinha encontrado alguma coisa. Mas não tinha encontrado nada. Olhava para os ramos das árvores, para o vôo dos pássaros. E continuava a subir. Suspirava entre os dentes uma cantiguinha. Nunca soube do ouro de Maria Maruca. Desaparecia no céu azul.

       Todos esses — e o lixeiro, e o garrafeiro, e o laranjeira — pareciam trabalhar duramente. Subiam a custo com a sua mercadoria ou o seu serviço, e soltavam um grito longo, anunciando-se. Pesado grito. O do amolador vinha da própria roda de pedra. Que silvo tão alto! Tão alto, tão duro, tão veloz e tão triste!

       Outros, porém, cortavam a calma da rua com uma graça arisca de cores e de vozes, e corria-se para vê-los mesmo sem se comprar nada, tanto a sua presença era rica e alegria. Certamente, não andavam por ali para vender o que traziam — mas simplesmente para enfeitar a vida: para que as crianças parassem de chorar; e os doentes, de sofrer; e os que estivessem cansados descansassem, e os que estivessem amargurados pudessem, talvez, sorrir.

       O mascate batia com dois paus na mão. Dizia brandamente: "É renda de linho!" e logo se via tremer no ar colorido o fio trêmulo das rendas esgarçando-se em arabescos. Mas o dizer ainda não era nada. Trazia às costas, uns sobre os outros, vários baús azuis, com flores cor-de-rosa. E punha-se a abri-los, pelas portas. Havia "sapanetes" em caixas excessivamente cheirosas, fitas brilhantes, de todas as cores, alfinetes com cabeça de vidro azul, em forma de passarinho; gaitas, assovios, flautas de lata lustrosa, tão lustrosa como o próprio som que desprendiam, e que fazia aparecer todos os garotos da rua. As cartas de alfinete deixavam desdobrar-se lentamente o seu longo papel amarelo: parecia uma escala, cujos degraus fossem caindo. As negrinhas aspiravam com delícia o vidrinho de extrato; miravam extasiadas os espelhinhos de encostar, com rosas e jasmins pintados no vidro, e enterravam na carapinha — só pra exprimentá — as travessas de celulóide, com pinturinhas de ouro e de prata.

       Boquinha de Doce verificava gravemente os metros de cadarço para as saias e calças; e o número de botões para os corpinhos. Escolhia, calada, rendas e bordados, meditando sobre os desenhos. E mostrava a OLHINHOS DE GATO: "Olha a florzinha bonita!" "Olha o elefante com a sua tromba!"

       Os bordados, as rendas, o ponto russo tinham, para a menina, uma secreta magia. Podiam repetir-se interminavelmente, figura sobre figura. Não acabavam nunca. Sempre, depois de uma flor, podia vir outra flor. Sempre, depois de um elefante, outro elefante... E ela pensava no número com uma intraduzível esperança. Há coisas, então, que não acabam? Há coisas que não morrem. . . Pode ser? É o número que mata a morte. Sempre que se acrescenta mais um, o que não tinha parado continua. Na verdade, assim não há fim.

       Oh! isso já estava no desenho inventado pela sua mão, e que ela repetia com os lápis nos papéis, e a ponta do dedo nas paredes:

      

       O moleque da cana e o do puxa-puxa, decididamente, brincavam apenas de vender. Um parava na esquina: reco-reco-reco. . . Outro descia a ladeira, saltitando duas varinhas no baú do doce: tirique-tique, tique-tique, tique-tique. . .

       Muito longe, o da pamonha gritava molemente, fanhosamente, como um pássaro esquisito: "Eeeeeh. . . pamonha ..." "Oiã o pamonheirõ!..."

       Mas o moleque das balas, carregado de cartuchos cênicos, com uma etiqueta de papel lustroso que, pela cor, indicava a natureza do conteúdo — esse, segurando a armação redonda em que os cartuchos se apinhavam, concêntricos, ainda cantava, com a outra mão em concha sobre a boca, requebrando o corpo, por um cruzar e descruzar dos pés:

      

       "Bala de ovo, altéia, chocolate,

       hortelã-pimenta, iaiá. . .!"

      

       Em certos dias — aos domingos, talvez — trazia imensas redes de papel fino, vivamente colorido, cheias de balas enfeitadas de franjas, de crespos trabalhados a tesoura, e com pedacinhos de papel dourado. Que riqueza! As crianças andavam em redor, de mãos para trás, deslumbradas com aquele esplendor.

       Com uma roupa tão branca que doía na vista, chegava o angueiro, de cavalete embaixo do braço, com um surdo anúncio muito grave: "Ongu!" (Três ou quatro passos, de chinelo arrastado.) "Oi u ongúêro?"

       A mercadoria vinha atrás, num tabuleiro, em grandes panelões enrolados em panos brancos, transportada por um pretinho de olhos místicos, que não dizia nada: destapava, servia, fechava, ia andando. O outro recebia o dinheiro. Metia-o devagar na bolsa de couro. Sua mão preta, de unhas brancas, desafivelava, fazia o troco, afivelava — independente do seu olhar, que vagava ao longe, e apenas baixava uma ou outra vez, para conferir.

       Maria Maruca quis provar aquela comida de pretos. "Olhe lá. . . Tome cuidado... — dizia Dentinho de Arroz.

       Essa gente sabe muita coisa. .. Podem botar dentro alguma 'porcaria'..."

       Maria Maruca desdenhava: "Eu lá tenho medo de feitiços!" — Sua cara vermelha brilhava ao sol.

       Amontoaram-lhe no prato o pirão de milho, e viraram-lhe, ao lado, umas colheradas do ensopado de bofe e coração. O gato lambia-se. "Bem cheiroso que está!" Disse e passou a língua pela colher, numa experiência. Provou, provou — e animou-se a uma colher cheia. (A cara de nojo que Dentinho de Arroz fazia, com o seu olhinho estrábico e o sinalzinho suspenso no sorriso!) "Arre!" Largou o prato em cima da mesa, e saiu soprando, com a boca toda encarnada. "Tem fogo!" E, como se houvesse mesmo um incêndio, abriu a boca embaixo da bica.

       Dentinho de Arroz sacudia a cabeça e ria-se baixinho.

       — É preciso tomar uma coisa! Vou ficar com as tripas queimadas!

       E abanava a boca com o avental.

       E o dia continuava.

       Por fim, já tinham passado todos os vendedores. Já se tinha comprado. Já se tinha vivido. Escurecia. Embora acendessem os bicos de gás, a rua ficava numa sombra densa de fuligem. Apenas — uma sombra balouçante, pelo palpitar das estrelas, dos vaga-lumes e dos cacos de vidro.

       Então, uma voz risonha, leve, uma voz ainda sem tormento, vinha cantando, cada vez mais perto:

      

       "Sorvetinho, sorvetão,

       sorvetinho de ilusão,

       quem não tem duzentos réis

       não toma sorvete, não."

      

       Uma pausa de uns três ou quatro passos. Depois:

      

       "Sorrrrrrrvete, iaiá!

       Olha a fama do bom sorvete,

       sinhá!"

      

       As negrinhas caíam na gargalhada. Jogavam a gargalhada para dentro do avental. "Arre, sorveteiro prosa!" Mas o dono da voz não via nem ouvia. Não sabia de nada. Estava ainda na outra rua. E sentia-se que sua boca ia sempre sorrindo, pela maneira por que cantava:

      

       "Sorvetinho, sorvetão..."

      

       As pessoas bocejavam, no meio da conversa. "Sábado, é o casamento da Leonor.. ." OLHINHOS DE GATO começava a sentir o corpo mole. "Casamento e mortalha..." Levavam-na para a cama e despiam-na. Cama de pauzinhos torneados: vinha um pauzinho de um lado, encontrava-se com o outro, depois com o outro. . . com o outro. . . certinhos, todos. E, do alto, o cortinado caindo,, desfranzido... A cama grande era para as doenças, com seu cobertor peludo, com tantos travesseiros, com a colcha franjada, por onde as rosas se alastravam, num brando relevo. Aquela, a pequenina. . . a de todos os irmãozinhos.. . Filo do cortinado... O mosquito do outro lado, zunindo... o brilho do espelho enevoando-se... A luz mor-

       E, justamente nessa hora do sono, se escutava um arrastar de passos, lá fora, lá em cima, pela calçada irregular. Um bater de tamancos nos degraus tortos. E uma voz de preto velho, voz escura e calma, resmungando — dolente, quebrada, triste, triste:

          

       "Balangandim   tá   to'adinho. . .                  

       tá quentinho                                                

       balangandim..."  

                                            

       Sempre com um passo igual, os pés iam-se arrastando, como se não esperassem que jamais alguém os mandasse parar. Vender — seria uma casualidade, não uma esperança, nem um propósito. Para muito longe ia andando aquela voz. Para além dos muros. Para os confins da terra. OLHINHOS DE GATO pensava mesmo que aquilo que ia passando não devia ser gente. Era uma sombra, talvez. A Sombra que trazia o sono. Sua voz monótona — uma canção de embalo, perdida, sem destinatário certo. . . E escutava-se o bater dos tamancos. Ninguém comprava, não. E esse último passante era o que mais impressionava. Não parecia trabalhar nem divertir-se. Parecia cumprir, somente, aquela pena de andar e de apregoar.

      

       Quanto mais subia, mais a rua se tornava interessante. Ali perto, a casa do doutor, e a de D. Sinhá.

  1. Sinhá tinha cachorrinhos peludos, sabiás e micos. Depois, arranjou também um papagaio, que parecia causar certa curiosidade ao da casa de OLHINHOS DE GATO. D. Sinhá vivia o dia inteiro de bata com babados na gola e nas mangas. D. Sinhá dormia a sesta na varanda, numa rede listrada. Via-se, às vezes, subir a fumaça azul do seu cachimbo. A latada de maracujá desabrochava sobre o seu sono flores roxas e frutas amarelas. D. Sinhá balançava-se na rede. Que bom! Abanava-se com uma ventarola. Que frescura! Comia bolinhos, e tomava goles de café. Quando D. Sinhá se ria, todo o mundo interrompia o que estava fazendo. O gato abria os olhos; o passarinho virava a cabeça. D. Sinhá era tão gorda que, para subir uma escada, parava em cada degrau. Como era grossa, a perna de D. Sinhá! D. Sinhá usava almofadinhas na janela, para não machucar os cotovelos. Tinha muitos anéis nos dedos, uns por cima dos outros, e muitas pulseiras nos braços. Da sua casa estava sempre vindo um tlec-tlec de ovos batidos e cheiros adormecedores de erva-doce, canela e cravo.

       A casa do doutor tinha cortinas de renda, e lá dentro via-se um grande piano. Em certas noites, moças de voz muito longa cantavam diante das visitas, cerrando os olhos, e estremecendo a cabeça carregada de cachos. Mas todos os dias, por um terraço com plantas cor de vinho, o afilhado do doutor caminhava de um lado para o outro, perguntando de repente: "Por que é que o profeta Jeremias andava sempre chorando?" A menina, de longe, debruçada nas pedras, olhava para ele e pensava em cavalos brancos. Maria Maruca resmungava: "Aquele prosa anda mas é estudando para maluco..."

       Na casa seguinte, havia um sabugueiro muito grande. No meio do jardim, um canteiro oval. À noite, quando a sala estava acesa, via-se, pela janela aberta, resplandecer o grande espelho da parede, e sobre ele passarem, obliquamente, os moradores.

       Depois, vinha um terreno vazio. Depois, uma casa com muitas crianças pequenas, dessas que ontem estiveram com catapora, hoje com coqueluche, amanhã com caxumba. As mães olhavam para longe, tristes, com elas ao colo. Diziam assim: "Fui leva as criança na botica. Eu trato elas com agüinha 1. Desta vez tá custando muito. Parece que percisa percurá a cumadre Zefa — pra fumigação."

       E mais uma casa. E mais um jardim. E uma figueira alargando-se sobre os passantes. Lá no alto, uma última grade: —e a rua acabava. Acabava rente ao céu. As estrelas, de noite, estavam perto da cabeça de quem ia lá em cima. Perto das mãos. Perto mesmo dos pés.

       Numa tarde muito límpida, escalando pedras e saltando valas, ela chegou também lá no alto, e um grande portão verde se abriu para a deixar passar. Dentinho de Arroz segurava-lhe a mão. Afastaram os cães para longe. Grandes cães, de voz grossa, e olhos de gente. E havia um terreiro, muito varrido, muito liso, com árvores em roda. No centro, estava sentada

  1. Erotides, com os seus cabelos armados, e, em redor, todas as suas filhas, já moças, de saia comprida, laços nas trancas e travessas nos bandos.
  2. Erotides tinha os cabelos completamente brancos. Brilhavam como vidro. Seu rosto redondo era acetinado e cor-de-rosa — todo cor-de-rosa: na testa, no nariz, no queixo. Estava de vestido preto, e pousava as duas mãos no regaço. O espaldar da cadeira subia acima dos seus ombros. As moças, sentadas em banquinhos, inclinavam-se para a frente, com os braços sobre os joelhos, conversando. Talvez estivessem apenas ouvindo. Naturalmente D. Erotides ficava ali contando histórias.

     Ao longe, avistavam-se os telhados das casas situadas na outra vertente, copas de árvores, pessoas, escadas, tanques.

       E,   envolvendo tudo, o céu claro, de um azul meigo, quase branco.

       O terreiro parecia um grande tapete redondo, e D. Erotides uma rainha, com suas damas. Tudo igual às figuras dos livros de histórias.

       Dentinho de Arroz chegou perto dela, sorriu timidamente, e entregou-lhe uma grande bandeja, cheia de belos abacates. Ela ergueu o guardanapo, sorriu também, depois, levantou os olhos dos grandes frutos, verdes e lustrosos, e disse coisas de agradecer. Uma das moças tomou-lhe a bandeja das mãos. E ela falou para outra: "Vá buscar umas flores para a menina." Chamou a menina para perto; bateu-lhe na face levemente, com as pontas dos dedos; perguntou-lhe com carinho: "Está boazinha, hein?"

       A moça chegou com as flores, a outra voltou com a bandeja vazia, o grupo retomou seus lugares, todas as moças sorriam, e a menina saiu com o ramo de muitas cores, onde havia rosas, monsenhores, cravinas e amores-perfeitos.

       E vieram descendo. E diante da larga paisagem que descortinava, a menina pensava que seria possível erguer-se no ar, pisar os telhados, caminhar pelos ramos, atingir as altas montanhas, estendidas ao longe. O céu era puro, a brisa, leve. Silêncio e amplidão. Entre as flores, a menina trazia aquela imagem do terreiro: D. Erotides e suas filhas. E acordava em seus ouvidos a cantiga de Boquinha de Doce, quando, pela manhã, lhe enrolava os cachinhos:

      

       "Estava a bela Infanta

       no seu jardim assentada,

       penteando trancas de ouro

       com   seu   pente de marfim..."

      

       Cá de baixo, virou-se para ver a casa, que ficara pequenina, com o telhado quase rente ao chão.

       Dentinho de Arroz apontou: "Depois daquela, é a casa do Sotero."

       O Sotero tinha uma barbicha branca e não falava com ninguém. Às vezes, descia com um saco às costas e um fuzil. Ia caçar. De noitinha, voltava com as costas vergadas, e umas formas misteriosas dentro do saco. Estava escuro, não se podia descobrir o que era. Subia nas pontas dos pés e em ziguezague. Porque assim a subida cansava menos. Era a explicação que os outros davam.

       Ah! mas o lado de lá da rua! Aquele lado. . .! Diziam que era muito mais difícil de subir, de tão empinado e sulcado de regos. Diziam que ainda era mais pobre: "Tirando a casa do João, a da Quinca... a da..." E deviam passar-se por lá estranhas coisas.

       Dele surgia, como brotando do chão, enrodilhada nas suas roupas que, elas mesmas, pareciam uma continuação do barro e das ervas, a pobre Mariana, de lenço preto, de olhos gastos de choro, de orelhas sujas, com suas bichas de ouro carregadas de estrume e aljôfar. Dali vinha a Mariana, que se sentava na escada para conversar e enxugava os olhos de vez em quando, ou no lenço ou na blusa.

       Foi de lá que veio, num tristíssimo dia, com os cabelos esfiapados, o vestido em pedaços, os pés descalços e as pernas de fora, a boca cheia de gritos, e de olhos saídos do lugar, a Laurinda, sua filha, que enlouquecera de repente. "Tudo por causa de um homem!"

       Houve um grande estardalhaço, em toda a rua. Apareceram pelas portas as mães com os filhos ao colo. E as negrinhas. As criadas velhas, pitando cachimbo. Os velhos de paletó de alpaca, arrastando os pés. Todo aquele mundo de que a gente não se lembrava há tanto tempo. As senhoras espiavam pelas venezianas, pelas frestas das janelas. O afilhado do doutor estendeu, na ponta do pescoço fino, a sua cara de cavalo branco, com os dentes de fora. Os garotos, circunspectos, enrolavam os fios dos papagaios, e assistiam, encostados aos muros... Os cachorros pulavam por cima da sua sombra, abanando a cauda e latindo. As galinhas corriam, cheias de pintos. . .

     O carro do Hospício parou na esquina, para levar a doida. E os homens cercavam-na, correndo de uma calçada para a outra.

       Foi quando despontou do chão, lá em cima, a velha Mariana, com os seus cabelos cinzentos muito mal enrolados, andando sem pressa, entre aquele tumulto — uma ponta do avental em cima dos olhos, enxugando as lágrimas, sem movimento. Assim de cara coberta, humilhada e trágica, ela descia a rua, atrás da filha doida — sem olhar, entregue ao instinto de seus pés escuros e fortes, que assentavam vigorosos nas pedras e na terra. As ervas agarravam-se aos panos da sua saia, e, por entre as pregas sem fim da sua roupa suja e grossa — mas que caía como a das estátuas — não se viam senão suas duas mãos, suas mãos grandes, direitas, como as de um homem, queimadas do sol, gastas pelo trabalho, escondendo, com aquela chita, a face e a dor. Como se andasse dormindo. Como se andasse já morta. Só quando passava bem perto é que se sabia que, dentro daqueles panos, sua voz, grave e dolorosa, repetia apenas sobre duas notas: "Ai Je-sú! Ai Je-sú!"

       Oh! lá do alto, lá do alto, descia de vez em quando, um caixãozinho branco e dourado, com muitas flores cor-de-rosa e azuis. "São os anjinhos!" exclamava Maria Maruca. "É o melhor tempo para morrer: não se sabe nada, não se sente nada. Não se faz falta a ninguém. . . Antes eu tivesse ido daquela idade!" Ficava pensativa, a sua cara vermelha.

       E os garotos da rua, todos lavados e de sapatos, o cabelo espichado para o lado, caminhavam pausadamente, com raminhos duros de flores. Um deles trouxe, mesmo, uma vez, um coração todo feito de miosótis. Parecia mentira que soubesse pegar naquelas flores o pequeno que, habitualmente, não fazia senão matar sapos e passarinhos. Pois trazia o coração azul hirto, nas duas mãos, com uma fita que ia batendo e levava letras de prata. Enfim, Maria Maruca muitas vezes dizia: "A morte ensina a gente." Coisa estranha, a morte. Maria Maruca estacava à entrada da porta. "Ahn! pensei que estavas dormindo! Vinha acordar-te. Porque dizem que não é bom a gente estar deitada, quando passa um enterro." Explicava: "A alma do defunto pode levar a da gente, também."

       Oh! lá em cima. . . Oh! do outro lado da rua passava-se cada coisa! Havia até negros feiticeiros, bruxas, lobisomens, pessoas que falavam com as almas. . .

       — Quem me leva a passear do outro lado do morro?

       Mas Dentinho de Arroz dizia: "Eu não sou. Do outro lado do morro. . . — xi! moram os ladrões." Maria Maruca prometia: "Deixa estar, que um dia te levo." Ajuntava, porém: "Mas tens que ir com o calcanhar para a frente."

       Essa condição — ela bem que a experimentava — não se pode dizer que fosse fácil. . . Assim, muda e sozinha, a menina olhava melancolicamente lá para cima... O Sotero subia, subia, com o saco às costas, e o fuzil. . . D. Erotides devia estar embaixo da árvore, com seus cabelos de vidro. . . O cavalo do soldado ia sumindo, sumindo, e acabava-se. E os outros... Os outros. . .

      

       Quando se ouvia aquele tremor no chão, aquele "Eia! Eia!" bravio, depois aquele estalar de chicotes, aquele sacudir de rodas, aquele tilintar de campainhas — eram as "andorinhas". A menina sentava-se na soleira, para ver os móveis passarem.

       As outras crianças já estavam na esquina esperando-as. Ela, não: o limite da sua liberdade parava ali. Olhava-as quase distraidamente, sem nenhuma inveja: umas, limpavam o ranho com as costas das mãos; outras, concertavam minuciosamente os barbantes dos suspensórios; algumas, mordiam o beiço, a fim de puxarem com mais força uma lasca teimosa da unha do pé.

       E as "andorinhas" rodavam, pesadas e barulhentas, no chão de pedras irregulares. Difícil, fazer as mulas pararem num lugar certo. Umas puxavam para cá outras para lá, e os homens, descendo da boléia, falavam com os animais, comandavam, convenciam ou lutavam peito a peito com eles, até conseguirem colocar as carroças em boa posição. Que caras vermelhas! — como a de Maria Maruca. Que negros bigodes retorcidos!

       Os garotos recuavam um pouco, e observavam, assombrados, entre os seus barbantes, as suas feridas, os seus trapos. Uns eram brancos, muitos eram mulatos, alguns, pretos. De vez em quando mostravam uns aos outros os seus descobrimentos: "A mula mais forte é aquela!" Os companheiros examinavam, com respeito.

       Os carroceiros começavam a enrolar as cordas. Apanhavam o suor da testa e atiravam-no para o chão em gotas como pedras. Depois, desprendiam as mesas, que vinham amarradas pelo lado de fora, e colocavam-nas na calçada. Abriam as portas da "andorinha", e começavam a retirar pedaços de coisas: gavetas, cheias de roupa; camas desarmadas; portas de espelho; tábuas irreconhecíveis. Sobre móveis escuros desabrochavam flores douradas; em portas de vidro, havia desenhos brancos de pássaros e flores. E apareciam os mármores. Os mármores que são feitos de nuvens de muitas cores, sumidas umas nas outras, esquecendo-se e recordando-se. Mas a coisa mais bela eram os espelhos. Espelhos de porta, espelhos de paredes, e estes com molduras tão extraordinárias que nem se podia compreender como fossem feitas. Então, as crianças da rua punham-se de cócoras, mirando-se. Achavam muita graça em aparecerem todas juntas, ali no vidro liso e luminoso: riam-se umas para as outras, como enlouquecidas, e discutiam sobre o nariz e sobre os olhos, e abriam a boca, para ver seus próprios dentes. Os gatos recuavam, um pouco pensativos e constrangidos, dando de cara consigo, naquele vidro. E os carregadores começavam a subir com os móveis. E os espelhos, quando passavam, reproduziam árvores, portões, telhados, e naquele ritmo iam sendo levadas dos seus lugares, num incerto passeio, as coisas que estavam presas sempre: e ao deslizarem por perto da menina diziam-lhe docemente: "Até logo! Até logo!" E ela não ia. Não, ela ficava ali, séria e sozinha, olhando aquela partida festiva.

       De repente, os espelhos refletiam o sol. E jorravam pela rua, de alto a baixo, grandes luzes quebradas e vivíssimas, que feriam duramente os olhos. Os garotos exclamavam: "Olha o relâmpago!" Os pretinhos, porém, que sempre sabem muitas coisas, diziam com um ar mais grave: "Num é relampo, seu. . . é holofote!"

       Os donos da mudança chegavam com ares importantes e altivos, como proprietários da rua inteira e das paisagens. As crianças, com bengalinhas, bonés, chapéus de pluma, tinham caras estúpidas. Os meninos, sardentos, assim tão bem vestidos, ficavam olhando para os vizinhos, ou contemplando a vista, com metade do dedo dentro do nariz. Retiravam-na para apontar qualquer coisa ao longe, murmurando melosamente: "O trem!" "A palmeira!" "A igreja!"

       Maria Maruca dizia para a menina: "Estás vendo os cacarecos, hein?" E ia cuidar de outra coisa.

       Mas a menina, na verdade, estava vendo muito mais: esvaziava-se a última carroça: a que trazia a mesa da cozinha, a máquina de café, as plantas enterradas em latas de banha, a gaiola do papagaio, arrepiado e desbotado; os baús da criada, com pinturas azuis e cor-de-rosa; os colchões com pedaços de palha saindo; as esteiras enroladas, os regadores, os bancos de pés em forma de W. . . E a menina singularmente se transportava para a casa ao longe vazia, com o jardim triste de onde deviam ter vindo aquelas plantas, e a parede em que ficara sozinho o prego onde dependuravam a gaiola do pássaro.

       ... Tudo isso porque a lembrança mais remota da sua vida era também um quarto de onde saíam e entravam homens como aquele, com toalhas enroladas na cintura, e bigodes espessos, levando nos braços os pedaços dos móveis desarmados. Só uma cama ainda restava inteira, e um banquinho baixo, como aqueles em forma de W. O banquinho estava encostado à parede, perto talvez de uma janela. E na cama estava deitada a moça, que de repente se sentou, passando as pernas para o lado de fora. Nesse momento, eram só duas pessoas: ela e a menina. Depois, não havia nada. Que se passou? Para onde foram? Como desapareceram as duas figuras? A moça tinha cabelos pretos, e estava toda de branco.

       Todas as vezes que ela pedia que lhe explicassem onde era, quem era, Boquinha de Doce ficava impressionada e triste. Mas, um dia, fez um esforço, e declarou, em voz baixa: "Tua mãe." Tão baixinho que falou! Quase não entreabriu os lábios. Quase não descerrou os dentes.

       Mais tarde, esteve comentando essas lembranças com outras pessoas. "Tão pequenina, meu Deus! Tão pequenina! Como é que pode ter guardado aquilo?"

       Então, OLHINHOS DE GATO, ali perto, recompunha dentro de si aquela visão. E sofria por não sentir a figura com mais clareza: via o movimento, a cor da roupa, o desenho sumário das pernas e dos braços. O cabelo preto contornava um rosto vago.

       Maria Maruca insistia em perguntar-lhe: "E de que mais ainda te lembras?" Mas pensavam que era invenção quando ela se punha a explicar com desespero que, antes de ser assim como era, tinha sido uma bola vermelha que girava, girava, girava. . . "Essa agora!" "As mentiras que 'isto' já vai contando!" E, no entanto, a sua grande angústia era precisamente não saber em que momento passara da antiga condição àquela atual. Havia uma espécie de vala de silêncio, de sombra, de sono.

       "Não se ponham a esgaravatar muito na cabeça da criança!" observava Boquinha de Doce. Mas também Dentinho de Arroz e Có lhe perguntavam por suas lembranças. E gostavam que ela contasse a cena da mulatinha brigando com um quitandeiro por causa de uma bandeja de quingombôs! As gargalhadas que davam, diante da sua descrição, com atrapalhadas frases!

       — E isso ainda era no Rio Comprido! — exclamava Boquinha de Doce.

       Os outros diziam: "Que memória! Mas que memória! Benza-te Deus!"

       Sentando-a no colo, Boquinha de Doce ia dizendo: "Estes olhinhos de gato — que não se esquecem.. . não se esquecem. . ." E apertando-lhe o queixo ainda tornava: "Parecem mesmo uns olhinhos de gato!"

      

       Dentinho de Arroz sopra no ferro de engomar.

       Desenrola-se o gorjeio do canário: uma nuvem branca se ergue por cima dos telhados.

       Dentinho de Arroz ensaia a temperatura do ferro, aplicando-lhe o dedo molhado de cuspo. Chiou. Está bom.

       Maria Maruca tira roupas do cabide e estende-as em cima da cama. A capa de Boquinha de Doce é como a do Santo Cristo dos Milagres: toda brilhante de vidrilhos e com babados de gaze.

       Dentinho de Arroz esquenta o ferro de   tuyauter. E, cantarolando baixinho: "Não és tu quem eu amo, não és..." enrola e desenrola naquelas hastes compridas e quentes os inúmeros babadinhos do vestido branco.

       — Toda faceira... — diz para a menina — toda faceira, com seu vestido de tiotê. . .

       Dos sapatos brancos vinha um cheiro peculiar, um cheiro felpudo, veludoso e suave. A menina, em calcinhas, estava sentada em cima da mesa, e alisava as meias com as mãos.

       Agora, Dentinho de Arroz tira-a para o chão. Veste-a, de joelhos. E seus dedos escuros pulam, como cavalinhos, por cima dos babados, rápidos e leves.

       — Cadê a faixa?

       Passa-lhe a faixa pela cintura. — Sabe quem lhe deu aquela fita tão bonita? Orelhinha Peluda. — Arma-lhe um grande laçarote.

       — Cadê o cordãozinho de ouro?

       Passa-lhe pelo pescoço a correntinha, onde tinem as tetéias. A menina, de cabeça baixa, mira o calunga de casaca e cartola; os olhos de Santa Luzia; Nossa Senhora da Conceição, pintada de azul; a Fé, a Esperança e a Caridade penduradas na mesma argolinha; a figa de coral, a de azeviche; o signo-de-salomão; a moeda de ouro, com uma cabeça de moça; e uma linda coisa de esmalte azul, com um aljôfar no meio — que ninguém sabe mais o que teria sido, porque está quebrada: e a gente contempla, contempla, não se cansa de contemplar. ..

       E Dentinho de Arroz sempre ajoelhada.

       Pela janela, vê-se a nuvem, cada vez maior. Toda redonda. Branca, branca. O gorjeio do canário enrosca-se como a ponta das trepadeiras. Em si mesmo. No ar.

       Os cachos do seu cabelo também são enrolados assim: sobre si mesmos. Para quê?

       Fica bonitinha, assim.

       Desce-lhe pelo rosto uma onda sufocante de pó-de-arroz. "Agora vamos soprar as pestanas. Quando é que você cria sobrancelha, hein, menina?" E já no alto da cabeça está o chapéu de babados, cujo elástico passa por baixo do queixo.

       Pela rua afora, Boquinha de Doce murmura: "Está fazendo calor. . . Tem cuidado com as pedras. . . Não sujes os sapatos. . . Não olhes para trás..."

       Coisa difícil, andar na rua!

       — Aonde é que nós vamos? — arrisca-se a menina a perguntar.

       — Lá em casa do teu padrinho. . . Muito< longe... Lá para o Largo dos Leões.

 

       LARGO DOS LEÕES...

 

       — Ah!

       OLHINHOS DE GATO anda, anda. . . Do lado, no peito, ficou uma pequena mancha esverdeada, do perfume que lhe puseram, e ainda não acabou de secar. Cheirinho bom, que vem dali! A capa de Boquinha de Doce brilha ao sol. Os salpicos de veludo do véu atrapalham a expressão do seu rosto. A mão, que a vai levando, está quente, escondida numa luva de seda, cheia de botões. E no chão, por baixo da saia, aparecem e desaparecem os bicos pretos das botinas de Boquinha de Doce.

      

       LARGO DOS LEÕES...

      

       Extensões imensas abrem-se na imaginação da menina. Um terreiro maior que o de D. Erotides. Oh! muito maior. E os leões em volta, sentados, rugindo. Naturalmente, aqueles leões enormes que Dentinho de Arroz lhe mostra no alto dos portões. Rugindo com aquelas vozes muito grossas, vozes de oco de pedra, que se ouvem só de noite, ao adormecer, à hora em que os leões descem das pilastras, se desencantam, viram animais vivos. . .

       Lá vão, lá vão os burrinhos do bonde, com suas lindas campainhas ao pescoço. A viagem é toda por dentro dessa música. . . — ligue-ligue, ligue-ligue, ligue-ligue. . .

       O homem do bonde dá um assovio estridente, que estremece a criança e os burros. Saltam baleiros pelo estribo, com seus cartuchos de confeitos e pára-quedas de papel rendado. "Artéia? Ovo? Chiculate?

       E as patas dos animais batem nas pedras — tão direi-tinhas! — plec, plec, plec. . . Mas de vez em quando o chicote dá uma volta pelo ar, e estala em cima deles. Que dor!

       A criança, com medo e pena, refugia-se na capa de Boquinha de Doce, Cheira a calor, a malva seca, a madeira do armário. A outras pessoas. A outras casas. Coisas guardadas. Perdidas. Tempo,

       Entra pelo bonde um ventinho bom, leve e atual.

       Os burrinhos apressam o passo: plec, plec, plec. . . E as campainhas cantam.

       Para esquecer-se do chicote, a menina fecha os olhos.

       Esquece-se   da   viagem,   de   si   mesma,   vai-se   esquecendo, esquecendo...

       Talvez dormisse.

       Uma vez, porém, não se cuidou do vestido de tiotês. Havia pressa. Precipitação. E "ohs!" e "ahs!" abafados. "Apanha-me as luvas! Valha-me Deus! Valha-me Deus!"

       Talvez o tempo estivesse encoberto: as nuvens andavam por dentro de casa, iam de um lado para outro, com as pessoas, pousavam em cima dos móveis, boiavam, dilatavam sua tênue cinza.

       Depois, foi uma descida pelas pedras úmidas, rente aos muros limosos. Caíam das árvores flores molhadas e pegajosas. Uma, ainda oscilava no ar, num fio de baba. E andava-se, andava-se. . .

       A menina levava no braço o casaquinho vermelho, enfeitado de fitas pretas. "Esta fazenda é muito boa. Aquece muito. Desta fazenda é que se fazem as roupas dos soldados." "Ah! É?" (A menina tinha uma raiva daquele casaquinho!)

       Ficou-lhe a lembrança de um alto portão de ferro, que rangia. De um homem de mangas arregaçadas, movendo-se entre flores. Muitas flores molhadas. Molhos de flores. Rodas de flores. E uma longa escada de mármore, onde a chuva fazia poças. E uma varanda fria.

       Ficou-lhe aquela impressão de um cheiro de fogo e de rosas moles. Uma impressão, também, de olhos vermelhos, de lenços torcidos, de cabelos desmanchados.

       Chegava gente. Limpavam os pés à entrada da porta. As pessoas caíam nos braços umas das outras, e falavam baixinho, nos ouvidos. . . Alguém dizia, de uma cadeira: "Tão de repente. . . Tão de repente..."

       E ela andava por ali, no meio daquilo.

       . . . Um dia, num canto de uma casa, perto de uma parede. . . Também assim muita gente. . . Mas agora já sem rosto, sem corpo. . . Um cheiro diverso... — este cheiro. . . Um ar diverso sobre as coisas... — este ar.. . Levantaram-na nos braços, como tirando-a de dentro do chão. Desviaram um lencinho de seda enfeitado de raminhos roxos. Oh! os raminhos ela está vendo: durinhos, na seda, com folhinhas e flores. . . "Beije a mamãe." O rosto era duro e frio. Brilhava. Perto, havia uma porta.

       O menino soluçava tanto que ela queria também chorar.

       Ficou-lhe uma impressão de móveis desarrumados, de grande desordem. De sala vazia, no meio da tarde. De restos de flores. E o cheiro morno do ar perdendo-se.

       Uma criada escura, nos intervalos daquela pressa triste, puxava-lhe os cachinhos — que esticavam, esticavam, e, de súbito, se enrolavam sozinhos — e batia-lhe no lábio, fazendo biro-biro-biro. . .

       Por fim, parece que escureceu. As últimas figuras partiam. Ouvia-se falar: "Já é tão tarde! Como iremos, agora, para tão longe..." Ouvia-se responder: "Não... Não vão. Fiquem hoje conosco. . ." Era muito grave, porque a voz chorava.

       E dormiram muitas pessoas no mesmo quarto. Por baixo dos travesseiros, puseram uns livros muito grandes...

  

       _ Có!                            

       Ela era pequenina. Ainda nem tinha sobrancelhas! Parava nessas duas letras. Mas sabia que não estava dizendo tudo. Como é, porém, que se pode dizer mais? E deixava-se estar sorrindo e olhando de longe.

       — Cadê ela, xente?

       — Có...

       — U-u?

       — Có...

      Deixava cair das mãos os brinquedos, e vagarosamente ia surgindo por entre os móveis. E levava o seu sorriso com um cuidado, que parecia carregar um copo de vidro... —- Mas cadê ela?

       — Có... Voltavam-se, esperando-a.

       Có animava-a, seduzia-a com olhares e sorrisos, e fingia que a procurava por outros lugares:

       —   Mas cadê essa menina, xente? Cadê ela que eu não estou vendo?      

       Então, OLHINHOS DE GATO, às gargalhadas, projetava-se nos braços que lhe estendiam, e deixava que lhe fizessem cócegas e festas. E ficava ali abraçada, ouvindo a conversa. Perguntas, respostas. Sempre a mesma coisa. Ela mirava o rosto de Có.

       No rosto de Có se misturavam, como numa paisagem, elementos confusos de sua alegria: o olhar de certos animais familiares — cores do chão, doçuras de céu — uma presença de sombra de árvore — lembranças de águas e flores.

       A voz, cheia de viagens e visitas, mostrava e apagava logo pessoas e coisas, transportando tempos, explicando coisas extremamente antigas, que ela estava talvez dizendo pela última vez.

       Voltando-se para a menina, e apontando para o embrulho em cima da mesa, Có arregalava os olhos, prometendo surpresas.

       — Camisolinha!. . . Vestidinho de renda!. . . Calcinha nova!. . . Despregava do embrulho os alfinetes, que ia juntando nos dentes. Depois, espetava-os na blusa e, abrindo o papel, tirava e mostrava à menina encantada a roupinha com bordados e ponto russo, que Boquinha de Doce analisava miudamente. Conversavam sobre pregas, babados, colchetes — e com saudade e alívio recordavam entretelas e barbatanas.

       Assim falando, iam metendo a criança nas calcinhas novas. "Está barrigudinha! Cadê o umbiguinho dela?" Viravam-na para um lado e para o outro.

       Pois não é que Có sabia fazer pela beira das calcinhas aquele desenho com linha vermelha que não acabava nunca?

       Depois, experimentavam as camisolinhas e os vestidos de babado e cabeção. Ela corria para mostrar a Dentinho de Arroz. Maria Maruca vinha ver. O papagaio ficava contente: "Currupaco, papaco!" E o gato esticava-se, bocejava, e roçava pelas pernas dela desde o bigode até a ponta da cauda. — Cadê ela?

       O cheiro do pano, das rendas, dos bordados, a sensação dos tecidos novos, de que às vezes se esfarelava um pouco de goma, causavam-lhe uma inexprimível felicidade. Tudo aquilo, vestido pela primeira vez, era como um anúncio de renascimento. Parecia a terra do quintal, quando as árvores foram tratadas. . .

       No entanto, Boquinha de Doce murmurou esta coisa tão estranha: "Já não tenho paciência para essas coisas miudinhas. . . Já estou ficando velha: olha para esta cabeça! Se Deus não me desse coragem... De uma hora para outra a gente acaba. . . Não viste a Nenenzinha. . . ?"

     Ficou um silêncio. Pousou a mosca na renda. Có dobrou o papel.

       Por cima da mesa as palavras continuavam, como pedras, como pregos: "Estou ficando velha. . . a gente acaba. . . Se Deus não me desse coragem..."

       Ninguém tirava aquelas palavras dali?

       "Nem diga isso. . . Ainda está muito moça. . . Ainda está muito forte! Nem pense numa coisa dessas... A Nenenzinha sempre sofreu do coração..."

       Por cima da mesa, as palavras novas saíam como plantinhas do chão. Com certa dificuldade. . . Havia tanta pedra, tanto prego. . .

       E a menina suspirava.

       Có brincava de dar palmadas. Depois, levantava-se. "Bom, vamos andando..."

       — Có!

       Enternecida, mirava-a descer a escada, deixando-se ir atrás dela, convertida em rastejante olhar. Acompanhava o movimento de sua saia de dois babados, que a mão direita arregaçava do lado. Sumia-se. E não se sumia. Continuava guardada a imagem, num sereno lugar sem janelas nem terremotos, de onde ressuscitava de vez em quando, mesmo sem estar presente.

       Mas naquela noite ela estava tão mal! Doía-lhe tudo. Que tinha? Por que lhe deram a beber tantos remédios diferentes. . .? Por que, diante dos seus olhos cansados, insistiam em flutuar aqueles imensos balões vermelhos que mudavam de forma, quando se fitavam, e nessas metamorfoses se iam sucedendo e fugindo, saindo de umas paredes, entrando noutras paredes, sem que ninguém mais os visse, ninguém mais. . . ? Ah!...

       E por que lhe aplicaram aquelas coisas chamadas sinapismos, que no dia seguinte lhe deixavam tamanha bolha um pouco acima dos calcanhares?

       E por que não adiantava nada a ternurinha ciciosa de Dentinho de Arroz, que lhe mostrava figuras muito coloridas, muito cheirosas de tinta, figuras lustrosas de moças de olhos pretos, saídas das caixas de passas?

       Por que era também inútil a voz grossa de Maria Maruca: "Trata de ficares boa! Anda, fica boa depressa, que te dão uma boneca! Fica boa, para chupares bala de coco: chegou agora mesmo um cartuchão!"?

       Por que era vã, completamente, a presença de Boquinha de Doce, pensativa e serena, acendendo uma vela diante do Senhor Santo Cristo?

       E por que veio Có, e lhe falou baixinho, e lhe levantou da testa o cabelo tão suado, e lhe consertou o travesseiro, e lhe apalpou por baixo das cobertas o corpinho mole, magro e ardente, e lhe sorriu com a sua boca muito sinuosa, de lábios largos, e girando os olhos para o lado lhe perguntou quase sem voz: "Mas cadê ela?"

       E por que a fez sorrir doridamente, naquele abatimento triste, longe dos bichos, das plantas, do sol... ?

       E por que lhe pediu que dormisse, com tão bom modo, e diminuiu a luz, e sentou-se à beira da cama, e tomou nas suas a mãozinha sem força, gasta de tanto calor. . .?

       Os grilos cantavam tremulamente. A chama da vela crepitava, leve e longa: a capa do santo brilhava e escurecia. E o tic-tac do relógio na sombra. . . E num cabide uma blusa com um ar muito triste.. .

       . . .E por que lhe disse, num sorriso cheio de confiança: "Dorme, que eu fico."?

       — Toda a noite?

       "Ah! Graças a Deus. . . Parece que já está melhorzinha..."

       — Toda a noite.

       E por que ela dormiu, naquela segurança, levando dentro dos olhos Boquinha de Doce rezando, Dentinho de Arroz guardando as figuras inúteis, e Có, sentada pertinho, sorrindo-lhe e conservando nas suas, como para sempre, a sua mão?

       E por que, num momento invisível, essas mãos se desprenderam da sua, que ficou sozinha sobre o lençol — e se foram nas pontas dos pés... e abriram a porta sem rumos. . . ?

       E por que, no dia seguinte, à primeira luz da manhã, ela abriu os olhos tão fatigados, tão nutridos só de esperança, e recordou-se, e deu por falta da imagem no lugar em que a deixara, e balbuciou: "Co!" — e disseram-lhe: "Ela volta. . . Teve de ir em casa, mas volta. . ."?

       E por que uma estranha coisa se passou dentro dela, como se um pássaro preto e grande pousasse no seu peito e em silêncio a apertasse nas garras, para sempre, e cada vez mais?

       O mesmo peso e a mesma sombra estiveram, anteriormente, sobre o coração.

       Ela andava entre as folhas secas, e as pedras, e as raízes das plantas, sozinha, falando sozinha, abaixando-se para apanhar uma concha misturada com a terra, ou perguntando coisas a algum caco de vidro. Os espinhos puxavam-lhe o vestido. As pombas fugiam dos seus sapatos. Nos quintais sossegados, cachorrinhos latiam. Era doce o ar, e deitavam-se cores atrás das montanhas. Um papagaio de papel balançava-se muito alto, no caminho dos pássaros.

       Então seu ouvido percebeu como um gemido baixinho.

       Parou entre as árvores, para descobri-lo.

       Ouviu o zunir de um inseto, o suspiro da tarde nas folhas, o pingo de água no tanque, um pio de pássaro muito longe. . . — as coisas mais mínimas. Até o frufru do papel de seda do papagaio lá no céu.

       Pedras. Buracos. Raízes entrelaçadas. Sombra das frondes...

       E o gemido continuava.

       Correu para a moita dos "brincos-de-rainha", afastou os galhos, debruçou-se para dentro, sustida numa folha com os pés a fugirem do barranco — e na sombra dois olhinhos mal abertos se levantaram para os seus, com o tênue gemido, numa expressão tão compreensível de medo e queixa como se ali estivesse uma outra criança igual a ela: e sofresse.

       Tropeçando nas pedras, rasgando-se nos espinhos, subiu a correr, com o coração rápido, metendo-se por entre coisas velhas — regadores, panelas, ancinhos — à procura de qualquer coisa que aumentasse os seus braços, que a fizessem chegar até o fundo daquele — para ela imenso — abismo, e de lá retirar aquela vida que gemia.

       E com uma alça de barbante, sozinha, a trouxe do fundo da sombra, e a levou pelo quintal acima, pela escada acima, com as pernas já moles do esforço e da emoção, para espanto de todos, que lhe perguntavam: "Mas onde arranjaste esse bicho tão feio! E não tiveste medo? E que vamos fazer agora desse cachorrinho?"

       E o bicho movia-se pelo chão, pretinho e encaracolado, e a menina, de cócoras, ria-se e tinha medo, ao mesmo tempo. Maria Maruca resmungava: "B muito engraçadinho, sim, para me sujar a cozinha toda." Dentinho de Arroz não lhe queria tocar: "Eu sei lá de onde veio isso! Essa gente sabe muita coisa. . . Pode ser alguma 'porcaria'."

       Mas Boquinha de Doce dizia: "A criança também há de brincar com alguma coisa. Contanto que não se machuque. . . Deixem o pobre bichinho. Uma coisinha tão pequenina! Que trabalho é que isto dá!" Mas Maria Maruca implicava: "É mais uma coisa para atrapalhar os pés da gente. . ."

       OLHINHQS DE GATO estava brincando com ele, mas estava também escutando. E Boquinha de Doce perguntou-lhe: "Como é que se vai chamar?" Discutiu-se o nome. A criança queria que fosse "Jasmim". "Ai, um jasmim preto! — ria Maria Maruca — nunca na minha vida vi!" E troçando chamava-o: "Jasmim, Jasminzinho, anda cá, meu cheiroso Jasmim!..."

       E a casa encheu-se daquela nova alegria. Patinhas negras pulando os degraus da escada, corpinho negro encolhendo-se por debaixo dos móveis, . . Focinho negro, de olhinhos estufados, diante do qual o gato surpreendido e contrariado fazia "ffff...!" como a corda frouxa da guitarra. . .

       Mas um dentinho branco e pontudo pode passar de raspão, como um espinho, e uma gota de sangue despontar, como um pingo de orvalho. Corre-se com o vidro de iodo. "Eu, por mim, punha-lhe açúcar em cima, e depois uma teia de aranha. . ."

       E, alta noite, ela mesma não sabe que a mão, robusta e morna, pousa-lhe na testa, no pescoço, nos braços. Que se examina o dedo ferido, que se torna a apagar a luz. Que talvez se reze.. .

       O que sabe, porém, no dia seguinte, é que não anda mais nem pela casa nem pelo quintal aquele brinquedo peludo de olhinhos tão redondos e dentinhos tão finos.

       Lá vai ela, calada e sozinha, mais com apreensão do que com esperanças. Por baixo dos móveis, já viu; por dentro das barricas e dos cestos, também; e atrás das portas não está. . . E não caminha para mais longe. Procura por entre as pedras, afasta de novo a moita de "brincos-de-rainha" — como naquela tarde. . . Mas não está. Não se ouve mesmo nenhum gemido. Não o encontra e não pergunta. E não pergunta só pelo medo da resposta.

       E deixaram-na procurar tanto! E deviam ter visto que estava sofrendo. . . E seu coração doía como se o tivessem pisado duramente e sem socorro.

       Maria Maruca veio implicar: "Não achaste o Jasminzinho? Foi-se embora, o maroto! Fugiu. . ."

       E ela, então, chorou alto, convulsamente, sob muitos tormentos reunidos e confusos, e as pessoas se desfizeram diante dela, como estátuas de cinza, e a casa ficou vazia, sem mais braços, sem mais rostos, sem mais vozes certas. Sozinha ela existia entre as coisas imóveis, que talvez lhe falassem, se pudessem, e a abraçassem, se não estivessem presas na sua forma. Sozinha ela existia — com as cadeiras, os espelhos, as paredes, as árvores, as nuvens, o sol. . .

       Era assim.

  

       SOLIDÃO, solidão. . . Acumulam os dias solidão.

       No entanto, as pessoas passam, param, entram, falam. . . Mas há valas, grades, muros. . .

       As próprias crianças desencantam: ou porque têm sardas, ou os olhos sujos, ou porque metem os dedos no nariz, ou porque andam com a cara toda melosa de calda de balas ou de visgo de frutas.

       As crianças chamam por ela: "Coisinha! vem cá, coisinha!" Ela, porém, não pode ir. Não a deixam ir — e mesmo não tem muita vontade. "Coisinha, me dá aquela flor?" "Coisinha!, qué me dá a tua boneca?" Falam de longe, de longe, e nem adianta responder. Custam tanto a ouvir! "Coisinha, qué troca a tua boneca por uma bala?"

       Não a deixam ir porque há sarampos, coqueluches, perobas ... "É a morte certa! Esticas a canela que nem se tem tempo de chamar o doutor-da-mula-ruça!"

       "Coisinha, sabe? — eu vou a Niterói!"

       E há ruas! Há ruas, sim, por onde passam cavalinhos, puxando tílburis. . . Há ruas, onde os doceiros se sentam embaixo das árvores. . . Há ruas com grandes casas de escadarias de mármore, em que, de cada lado, pajens de pedra seguram lampiões de vidro, em forma de archote. Há jardins com grutas onde uma água esverdeada esfria, silenciosa, sob estalactites de cimento. . . Há cascatas com muitas conchinhas frisadas ... Há canteiros cheios de flores, por perto dos quais parecem mesmo ir passando anões de carapuça, gordos e corcundinhas, com uma risonha cara vermelha e barbada. . . No alto dos portões os leões de pedra meditam. Pelos telhados das casas, fileiras de moças, brilhantes e brancas, soerguem seus mantos de louça, de pregas imóveis, no vento. . .

       Em certos domingos, pode-se passear por alguma dessas ruas.

       Vêem-se os quadros com molduras de veludo, e os bronzes e as jarras, por entre as cortinas das janelas. Vêem-se as famílias nas varandas, conversando com as visitas. E as crianças, com cara de quem está de castigo, ouvem sem dizer nada, hirtas nos seus laçarotes e bengalinhas, como plantas presas em estacas.

       Tudo isso — e as palmeiras enegrecendo contra as cores violentas do crepúsculo. E então de uma sala distanciada no fundo de um jardim, algum piano derramando uma chuva de ouro sobre um telhado de cristal e um secreto vento levando-a e trazendo-a, ora leve, ora intensa, ora copiosa, ora tão lenta que se esperava cada gota, que se podiam contar uma a uma. E depois, nada mais. Silêncio. Nada mais? Não: uma espécie de melancolia que modifica todas as coisas que se vão encontrando. . .

       Solidão, solidão. . .

       O homem de bigodes retorcidos pega os peixinhos de chocolate carinhosamente: "Quere o azul? Quere o dourado?" E depois de receber o tostão faz uma festinha no queixo da menina.

       Mais tarde, estende-se a toalha, com alguns furinhos, sobre a mesa, e pousa-se a travessa dos pastéis, a da carne assada, a do arroz-doce. "Ainda temos doce de goiaba?" A compoteira chega, com uma formiguinha no pé. "Precisamos dar cabo destas formigas." — "Já fiz três cruzes de carvão: não adiantou nada."

       E como ainda não escureceu, e não é hora de ter sono, abre-se o álbum de retratos, em cuja pesada capa de couro voam anjinhos de bronze com asas de borboleta.

       Dias e dias sobre o pano de crochê, aquela casa encantada não deixa entrar dentro de si um raio de sol, um sopro de ar, para os seus silenciosos habitantes. Não há um protesto, não há uma lágrima: cada figura continua no seu lugar, olhando para coisas invisíveis, indiferente ao que tinha sido antes, e ao que viesse também a ser depois.

       Uma traça corre entre os cartões dourados, anda sobre as imagens um brilho pálido de marfim.

       Passa a moça de caracóis e broche redondo. Passa o jovem de plastrom e roupa contornada de seda. "Já não me lembro quem eram estes. E tu, te lembras?" "Não é a D. Estefânia?" — "Não, a D. Estefânia é a do leque." — "Então, não sei."

       Apareciam gordas senhoras, com camafeus e corais.

       Boquinha de Doce vinha também, mas com uma expressão muito diferente. "Tão bonito que era este vestido! De gorgorão francês, cor de ouro velho, com o peitilho de surah cor-de-rosa! Ainda foi comprado no Nicolau! As mangas daquele tempo! E tantas barbatanas! Para quê? Para quê?"

       Todos os outros retratos, de barbatanas e mangas de presunto, passavam diante da pergunta: "Para quê? Para quê?" E não respondiam nada. Com certeza nenhum deles sabia, também. E era um pouco triste.

       Depois, vinha a menina pequenina, de lindos pezinhos nus, com as mãozinhas gordas amarrotando a camisola. Boquinha de Doce não deixava de se lamentar: "Tão linda! Tão linda! E já a buscar o jornal para dar ao pai. E apontava para as letras, e dizia: O País!. . . Ah! Morte malvada. . ."

       O outro irmãozinho ainda parecia mais bonito, sentado numa poltrona imensa de veludo, e com a boquinha aberta, como dizendo alguma coisa que o papel não conservava, e que seria extremamente interessante de ouvir...

      Por fim, aparecia uma criancinha despida, aninhada num móvel estofado, com os dedos dos pés encolhidos e as mãos puxando os berloques do colar. "Estes olhinhos. . . Estes olhinhos de gato..."

       Aquela era ela. Era ela, e não se lembrava. Ainda não tinha cachos. A bem dizer, não tinha mesmo cabelo. E, em toda a coleção de retratos, dos senhores de casaca e das senhoras de cauda aos meninos de bengalinha, e às crianças de laçarote, era a única a aparecer assim tão nua, limitada a um paninho branco, que nem lhe tapava o umbigo.

       Não virava depressa essa página. Ficava pensando muito tempo sobre muitas coisas e comparando-se aos dois outros retratos, dos irmãozinhos tão bem sentados nos seus vestidos com franzidos e laços.

       Finalmente, vinha Có. Boquinha de Doce, Có e ela eram, na verdade, as únicas sobreviventes naquela imensa casa dos retratos, de habitantes mortos, e parados entre móveis complicados, vasos de bronze e cestas de flores.

       Nenhuma das três, porém, se parecia mais com o que era.

       De modo que, na verdade, não sendo mais o que tinham sido, estavam também mortas em parte. Ela mesma, a princípio, ficara admirada de saber que estava diante de si mesma. Pensava que era também uma criança já morta, como as outras. E continuava a olhar com certa aflição para essa que tinha sido — sem poder saber mais daqueles pezinhos gordos, daquela boquinha mole, daquele corpo pequenino que ainda nem se podia sentar.

       E como a do retrato estava morta, e no entanto sobrevivia, quem sabe se andaria por alguma parte alguma coisa de todos os outros mortos, que, por isso, estavam ali tão tranqüilos na mesma posição?

       "Por onde andarão eles, coitadinhos?" "Destes eu não me lembro nada, nada..." "Ah! Pois eu, é como se os estivesse ouvindo falar..."

      

       Além das figuras do álbum, existem as dos quadros e as dos livros.

       Sobre o cetim azul, o rosto moreno do santo sorri, sem sofrimento. Se a menina fica triste, senta-se perto dele. Assim moreno, com aquelas feições, era um pouco seu parente. E, embora ninguém a acreditasse, se isto fosse contado, o certo é que freqüentemente o santo movia a cabeça do lugar, virava o rosto para vê-la. Nessas ocasiões, ela ficava extremamente feliz.

       E havia um pequeno quadro com muitas, muitas pessoas reunidas: como um retrato de numerosa família. O papel envernizado, oleoso, revelava cores inacreditáveis de ver sobre um papel. Vermelhos sem crueza, verdes com sugestões douradas, profundos azuis riquíssimos, azuis de pedra de anel. "Ai, este é S. Pedro — dizia Maria Maruca. Aqui está ele com as chavinhas da porta do céu!" Depois acrescentava: "E ali está o galo. Aquele foi o que cantou o cocoricó!"

       Todas aquelas figuras tinham nomes escritos em letra miudinha, e a menina pedia: "Me lê! Me lê!" Maria Maruca respondia: "Ai, não enxergo bem. . . L-e-Le. . . Não sei não. . . São os papas. Eu sempre ouvi dizer que isto eram os papas..."

       E a menina olhava para os papas, e os papas olhavam para a menina.

       Mas Dentinho de Arroz lembrou-se um dia de folhear um velho livro. Passaram palácios, figuras de homem, figuras de mulher. De repente, porém, apareceu um touro de asas. E a mão da menina pousou na página, para que não a virassem logo. E o touro tinha rosto humano, com barbas frisadas, e via-se que estava caminhando, porque uma das patas avançava, grave e forte. E a menina quis saber se era mesmo verdade. "Haveria gente com corpo de bicho? Ou bichos com cara de gente?" Dentinho de Arroz achava que sim — uma vez que estava nos livros. . . Mas nunca tinha visto assim com barbas e asas. . . Assim com corpo de touro, não. O que ela conhecia era lobisomem. Disso havia muito, muito. Principalmente na roça. . . Mas ali mesmo naquela rua, ela cismava com o "seu" Frederico, que tinha uns dentes tão compridos e uma cara tão amarela. . .

       Seu Frederico morava do outro lado da rua. O outro lado da rua era "cheio de coisas..." Só às vezes seu Frederico descia pelo lado de cá. Por quê? Ah! E quando descia, todo o mundo sentia que ele era diferente das demais pessoas. Mesmo a sombra dele tinha um feitio esquisito. Via-se mais a sombra dele do que ele mesmo.

       Quando ele passava, as vizinhas cochichavam umas com as outras. Algumas diziam: "Qual! Coitado. . . é mais um que não tarda a bater a bota. . ." E apontava para o peito:

       "Entisicou... Foi a oficina..."Dentinho de Arroz ia-se embora, e sussurrava: "Deus me perdoe, se ele não é lobisomem.. ."

       E a menina via passar, entre as duas opiniões, a pobre criatura amarela, magra, curvada, silenciosa, que passava com uma roupa esverdeada, gasta nos punhos e na gola, e lustrosa nas costas onde os ossos marcavam inícios de asas. Que passava sem tirar o chapéu, subia, subia, parava de vez em quando, e afinal sumia-se entre o céu e a terra.

       Nunca ninguém reparou quando deixou de passar para sempre. Não se soube se mudou de rua, se morreu. Ninguém nunca deu grande atenção a ele. Era apenas uma sombra, uma espécie de sombra que ia bater a bota qualquer dia. . . Ele mesmo, aliás, parecia já não saber também de si. . . Mas OLHINHOS DE GATO preferia que ele fosse lobisomem a cadáver.

       E é possível que Dentinho de Arroz tivesse razão: do outro lado da rua devia haver um mundo sobrenatural. De noite, desde o escurecer, ouvia-se um bater de tambores que impressionava. Vozes de mulher erguiam um tino coro de angústias; e entre elas perpassava uma voz séria e grossa de homem como uma árvore que andasse e falasse dentro de temporal enorme.

       Os tambores batiam um ritmo certo. E incansável.

       Havia um outro gemido insistente, e dentro da música. Dentinho de Arroz, falava: "São as cuícas." E acrescentava: "Essa negrada não se dá ao respeito." Maria Maruca olhava para ela. "Coitado do negro que não se preza", murmurava ainda.

       Maria Maruca dava de ombros: "Feitiçarias. . . feitiça-rias! Eu lá faço caso disso! Eu lá vou ter medo dessas porcarias!"

       No entanto, Boquinha de Doce, erguendo as sobrancelhas e baixando as pálpebras, falava de um modo muito especial: "Não me quero meter nisso. . . Esses pretos antigos sabem muita coisa. . . Há muita coisa neste mundo que não se sabe explicar..." Parava, levantava as duas mãos, concluindo, e de olhos abertos dizia: "Eu sei, porque já vi."

       Ninguém sabia se tinha relação com a batucada: mas em certas manhãs, apareciam na esquina da rua estranhas coisas: farofas, velas espetadas de alfinetes, embrulhos grandes de jornal, panelas de barro com vinténs, pedaços de fita, frangos mortos ou vivos. . .

       Dentinho de Arroz, se tinha de sair, dava uma grande volta: "Não vê que eu passo por perto dessas porcarias! Quem põe em cima fica com o mal que era para os outros. . ."

       Maria Maruca ria-se a valer. Seu nariz ficava extremamente vermelho.

       Os garotos da rua vinham-se chegando, com paus nas mãos. Apontavam uns para os outros o que iam descobrindo: "Olha ali um pedaço de cabelo! Xi, não bole, seu! É feitiçaria! Olha só quanto charuto!" Vinham outros: "Que é, hein? Tem muamba?" E um dia puxaram o dinheiro com a ponta dos paus, e foram comprar balas na venda...

       Boquinha de Doce considerava aquilo de longe, com imenso respeito. Mas no dia em que viu a galinha branca amarrada por uma perna ao caco de panela, e debatendo-se ali horas seguidas, sem milho, sem água, em pleno sol, disse para Maria Maruca: "Vai buscar o pobre bichinho!" E colocou-a num canto de sombra, deu-lhe de comer e beber, conversando com ela: "Pobrezinha! Andaram fazendo contigo uma grande judiaria, hein?"

       A galinha estava tão cansada, que nem fechava as asas, e completamente derreada, de olhos sonolentos, mergulhava o bico lentamente na panela de água fresca. Nem parecia engolir. Ficava-lhe uma gota de água suspensa ali na ponta do bico. Mais para a tarde, levantou-se e ensaiou uns passos mirando as coisas. "Já estás mais descansadinha? Vai, vai brincar com as outras..." Era a "galinha dos feiticeiros". Dentinho de Arroz, olhava-a sempre com certa repugnância. Quando passava por ela, desviava a saia.

       Do outro lado do morro, a batucada continuava.

       Dentinho de Arroz repetia: "Negrada suja." E cantarolava:

          

       "Batuque na cozinha,

       sinhá num qué,                  

       por causa do batuque,

       queimei meu pé..."

      

       A colcha da índia, com suas copiosas primaveras, jaz na cadeira de pés arqueados, na imensa cadeira onde umas três ou quatro crianças poderiam brincar ao mesmo tempo: azul de céu, azul de anil, azul de louças guardadas, de esmaltes de santos, de vidros achados entre as pedras. . . E as curvas folhas amarelas semeadas de grãozinhos redondos, e logo as flores cortadas ao meio, com um coração de pérolas. . .

       Nos puxadores das gavetas as flores de metal cravam as pétalas na madeira. A luz do dia toca só nos relevos, e a flor aparece. Mas que sucederia se a lua entrasse apenas pelos sulcos? "Esta criança às vezes põe-se com umas perguntas muito, muito esquisitas."

       As madeiras e os mármores são como a terra e o mar; têm caminhos, têm pedras e plantas por dentro. Têm animais passando e pessoas e santos. Mas as porcelanas e os cristais são como o céu: profundos, lisos, cada vez mais vazios, mesmo quando há um jorro de estrelas na intimidade gloriosa da luz.

       Mas quem havia de dizer que o verde se vestia? O verde era apenas o rosto oculto dos vidros, das águas limosas, da folhagem. E a moça de verde apareceu: "Esta menina tem umas mãos para aprender piano. Por que não vai estudar? Muito pequenina? Ah! mas quanto mais cedo, melhor." E o vestido verde da moça mostrava bem que era sonho... As cores de vestir são: o branco, o azul, o cor-de-rosa e o preto. Principalmente o preto. Também há o vermelho: mas é só das negrinhas. "Só das negrinhas."

       Os objetos deixam-se mover para qualquer lado: alguns deixavam-se mesmo desconjuntar facilmente — sem parafusos, desarmados, postos em pedaços sobre a mesa, falavam calmamente: "Aqui estamos. Faze o que quiseres de nós. . ." Esses, tinha-se vontade de beijar longamente, e fazia-se o possível para os fazer voltar à antiga forma. E então eram eles que ouviam: "Não te fiz mal nenhum. . . Queria só ver como eras por dentro... És tão bonzinho. . . Gosto de ti, sabes?" E sorria-se, e via-se o objeto sorrir também, mesmo quando estava com as peças fora do lugar.

     Outros, porém, resistem muito. Resistem tanto que se pede socorro: "Me tira, me tira isto aqui! Me puxa esta tampinha! Me abre, me abre, que eu quero ver!" Todos dizem que não. "Onde é que já se viu desarmar as coisas que estão direi-tinhas, quebrar o que está inteiro só para ver o que há por dentro?" A menina olha para esses duros mistérios, tristemente. E afasta-se com desamor.

       Há também os animais que consentem, e os que fogem: os gatos permitem que se veja até o lado de dentro de suas orelhas, e se procurem as pulgas no pêlo fofo de seus flancos. Mas os pombos, tão lindos nas suas curvas de flor polpuda, escapam sempre. Apenas escapam com uma tal beleza, uma tal inocência, que o olhar os acompanha com tristeza mas com saudade.

       Depois, há as criaturas humanas. As criaturas vestidas e penteadas, que acordam, falam, andam, riem-se, choram, trabalham, divertem-se, e nunca se mostram inteiramente, em nenhum desses momentos. Isso é particularmente amargo.

       Os animais e as plantas jazem, simples, sem vestuário, com uma expressão tão sincera de si mesmos que sempre se pode saber o que estão querendo ou estão sentindo. E as pessoas, não. Falam, falam, falam, e entre suas palavras e seus olhos há uma incoerência tão grande que logo se sabe que estão mentindo. Elas mesmas não o percebem, muitas vezes. Muitas vezes estão só dizendo uma coisa e pensando outra. Para se ver tudo isso, é preciso ainda não se saber falar direito, e estar-se num profundo silêncio, olhando incessantemente esse mundo que se sucede dia a dia, com vizinhos, fornecedores, visitantes, transeuntes fortuitos.

       "Venha dar um abraço na moça!" Naquela moça? Não. Naquela, nunca. . . "Um abraço, venha, que a moça está esperando!" Os brincos de pedras cintilam. A boca sorri. Mas por dentro dos olhos há uns inexplicáveis raios... "É assim. . . Às vezes, foge das pessoas! Que se há de fazer? Talvez, crescendo, passe. . ."

       Tudo no mundo é duplo: visível e invisível.

       O visível, de resto, interessa sempre muito menos.

  

       — E VOCÊ também vai ficar de orelhas peludas?

       — Não. Ele, é porque é homem. . .

       Na verdade, os dedos eram peludos, também. E o queixo acabava em cavanhaque. A própria voz era peluda. De vez em quando, afastando os pêlos, ouvia-se o pigarro: "Gqran, gqran. . ." Mas nada disso impressionava tanto como aquele pêlo das orelhas, que vinha lá de dentro da cabeça, lá de dentro da vida, num tufo cerrado, como restos de uma estranha vegetação. . .

       — Você também vai ter papo como D. Aninha? Seus dentes também vão cair como os de D. Berta?

       — Não, não. Só muito tarde! Muito tarde. . . Quando se fica muito velho. . . já para morrer. . .

       — E você também vai morrer?

       — Olha os pombos! Olha os pombos! Olha o pardalzinho, olha, que bonito!                                                              

       — Hein? Você também vai morrer? Diz! Maria Maruca vai passando com uma braçada de roupa:

       — Arre, que raça de perguntadeira! Ninguém vai morrer aqui, não. Aqui, todos vão ficar para semente!                      

       — Olha o pardalzinho. . . E olha os pombos de novo... olha os pombos!                                                                    

—Fala! Você também vai morrer? Dentinho de Arroz vem buscá-la:                                  

       — Está na hora de irmos!

       Concertam-lhe a fita de cabelo, e passam-lhe pó-de-arroz. Orelhinha Peluda agora não está lá longe. Agora não se vai mais no bondinho de burro: dlem, dlem, dlem. . .

       A porta já está mesmo aberta, esperando-a. E perto do piano, duas moças altas e lindas, paradas num degrau de madeira preta, arregaçam seus vestidos brancos, do mesmo mármore do seu corpo. Não há nada tão branco como o corpo dessas moças. Só, às vezes, alguma nuvem. Não, nem as nuvens.

       Sobre o piano, há um pedaço de menina dormindo com o rosto pousado no braço, e o braço dobrado sobre um livro. Entre os seus cabelos abre-se uma flor. Que teriam feito do resto do corpo dela? Talvez não fosse bonito perguntar. . .

       Dentro de um armário de vidro surgem coisas assim: uma pedra azul, transparente, como essas dos anéis, mas grande, grande: maior que a mão da criança que a mira acocorada. Parece um navio. Está cheia de luz e de água. Não se sabe se é o sol, não se sabe se é a lua. . . Um sapatinho de vidro dourado, um só. Com bico fino e salto alto. Não, nem o seu pé cabe ali. Ou é de boneca ou de fada. Um leque todo de ouro e de seda, com príncipes dançando embaixo de árvores. . . Oh! os vestidos coloridos e os chapéus de bicos! Caixas com pinturas lustrosas de moças muito rosadas, despindo mantos verdes e vermelhos. . . Tantas coisas de prata. . . E conchas. E búzios. . .

       A mocinha dava uma volta na chave. "Está achando bonito?" e tirava lá de dentro o búzio grande, e botava-o no ouvido da menina. "Está ouvindo? É o mar. . . Está-se ouvindo daqui o mar..." E a menina fechava os olhos e sorria. Tão bom! E via de perto as caixas com figuras luminosas. Passava o dedo devagarinho pela extraordinária pedra azul. . . Abanavam-na com o leque de príncipes. . .

       A mocinha tornava a dar a volta à chave: "Gostou? É bonito?" A porta de vidro fechava-se.

       Iam pisando tapetes macios, afastavam cortinas, e numa sala um passarinho abria sozinho a porta de sua casa, e cantava para anunciar as horas. E em cima de um móvel um negrinho de bronze — do tamanho dela! — punha na boca uma cometa de chifre. Iria tocar? Parecia o aguadeiro: mas estava despido.

       Orelhinha Peluda brincava com os dedinhos dela: "Cadê o toucinho que estava aqui?"

       Depois, lavaram-lhe as mãos com um sabonete muito cheiroso. "O gato comeu..." E o gato, e o mato, e o fogo tudo ia descendo com a água da torneira, pela pia branca. E era tão bom deixar que as mãos fossem lavadas nessa água tão fresca, com tanta espuma cheirosa, e enxugadas numa toalha tão macia. . .

       Sentaram-na numa almofada, puseram-lhe um guardanapo pelo peito, e trouxeram para a mesa o prato de ovos, que nadavam em manteiga. Toda a sala se encheu daquele cheiro de manteiga fervente. . . E chamaram: "Eva!" Então, ela estremeceu. Estremeceu, e perguntou para a mocinha: "É a Eva do Adão?" Todos se riram: risos frescos, risos discretos, riso pegajoso de Orelhinha Peluda, com seu pigarro, "Gqra. . .". A mocinha passou-lhe a mão pelo rosto, alegremente. E a Eva chegou à porta, "Olha ali a Eva!" Era gorda, mole, mulata, risonha, e limpava as mãos no avental.

       Como ali era um reino encantado, a mocinha disse-lhe: "Feche os olhos!" E ela fechou. Passaram-lhe um vidrinho frio pelo pescoço. E um imenso perfume encheu o quarto, saiu pela varanda, pairou pela rua, partiu pelo mundo. E a menina ia levada dentro dele, como as nuvens. As casas, as pessoas, eram densas, pesadas. Ela, não. Ela voava por cima de tudo. Ia para onde o vento mandava. Nem se movia. Era o próprio ar que a tomava ao colo e a transportava.

       A moça dava-lhe frascos pequeninos cheios desses perfumes inacreditáveis. "É verdade que há gente de asas? É verdade que há bichos com cara de gente?" "Quem foi que disse isso?" "Eu já vi! Eu já vi um lobisomem. . . eu já vi um saci-pererê... Eu já voei..." "Você já voou? Você já andou de balão?" "Não, eu vôo sem balão. . ." "Ah!"

       De dentro das gavetas saíam coisas para ela: luvinhas de renda, faixas de franja, leques pequeninos com flores e borboletas...

       Naquela casa mágica, uma noite, dentro de um armário, começaram a cantar criaturas secretas. Orelhinha Peluda disse-lhe baixinho: "Vai procurar quem está cantando!" Ela estava sentada no tapete: foi andando de joelhos, para espiar por baixo do móvel. Não viu nada. Mas não achou muito espantoso. Aquela casa era assim mesmo. Dava-se corda no armário e ele falava e cantava sozinho.

       À noite, Orelhinha Peluda pegou-lhe a mão, e enrolou-lhe um barbante em torno do dedo. Ela compreendeu logo que o barbante ia virar qualquer coisa surpreendente. E virou mesmo. Dias depois, mandaram-lhe numa caixinha, sobre um tapetezinho de algodão azul, um anelzinho de ouro trançado, com uma correntinha pendente, e um coraçãozinho na ponta. No meio do coração havia uma pedrinha encarnada que nem uma gotinha de sangue.

       A menina resolveu socar milho para os pintos. Um pintinho beliscou a pedrinha e levou-a. Abriram o papo do bichinho, para tirá-la. E ele tremia — pri, pri, pri, pri ...— e fechava os olhinhos pretos. Como as pálpebras eram muito finas, ficavam azuladas, sobre as miçangas dos olhos. E o coraçãozinho dele batia pum, pum, pum. . .

      

       "Oh! logo sobre a mesa! Não sei o que me parece!" Levaram-na para cima da cama. Custaram a desatar o barbante! E, quando tiraram a tampa, a menina viu aquela criatura de louça, quase do seu tamanho, que sorria com suas redondas bochechas, mostrando miúdos dentes de vidro. Ah! Orelhinha Peluda, o mágico!

       De um chapéu de plumas cor-de-rosa, saia-lhe o cabelo em cachos dourados, e pousava nas rendas engomadas do vestido, salpicado de seda. Tinha as unhas desenhadas por um traço vermelho, e em cada dedo uma covinha. Os pés estavam em sapatinhos de cetim bicudo, que seria bom que também se vendessem para as meninas.

       Desprenderam os barbantes do fundo da caixa. E a menina quis vê-la pelas costas. Então, descobriu, tristemente, que atrás o seu cabelo já não era mais em cachos sedosos, mas apenas de um pêlo áspero e escorrido, como um pedaço de lã. As rendas do vestido terminavam na costura do ombro. Os entremeios da saia acabavam na costura dos lados. . . Ah!. . . Por que uma noite Có se sentou pertinho dela, e lhe disse com tão bom modo: "Dorme, que eu fico. . ." "Toda a noite?" "Toda a noite." E no dia seguinte, quando abriu os olhos, responderam-lhe: "Ela teve de ir à casa. . . Mas volta. . ." Ah! E Maria Maruca, rindo-se com os seus largos dentes: "Fugiu, o maroto. . . O maroto do Jasminzinho cheiroso ..." A. mesma sombra, descendo. O mesmo peso. É um pássaro, não é? É um pássaro que vem e bebe o coração da gente?

      

       Mas um dia, na sua velha máquina, cansada e rouquenha, Boquinha de Doce começou, por brincadeira, um enxovalzinho. E houve um outro vestido, branco, pobre, correto. Não era de seda, não tinha aqueles laços nem aqueles fios dourados: apenas uma renda estreita, e umas preguinhas. Mas era honestamente acabado. A renda fazia uma volta completa até às costas, e até, como os vestidos de verdade, fechava atrás, com casas e botões. Nesse dia, a criança teve uma grande felicidade. E olhou para Boquinha de Doce com uns olhos ternos. Mas ninguém viu.

       E vestiu-se a grande boneca. E andava-se com ela, e dizia-se: "Mas é tal qual uma criança. Abre e fecha os olhos, fala —- só lhe falta andar." Qual é a diferença que há entre as bonecas tão perfeitas e as crianças? Andou alguns dias assim, procurando o sentido da diferença. O sentido devia estar por dentro, no mundo invisível. O sentido devia andar por detrás, naquele outro lado das coisas que é também o outro lado das pessoas — o lado de que se fica triste, sem que os outros vejam, e onde se pensam coisas que os outros não sabem.

       Na verdade, a menina só lhe empurrou um olho. Mas caíram os dois. Depois soube que foi por causa do arame que os prendia. Caíram os dois lá para dentro e deixaram dois buracos vazios. Por esses buracos, ela espiou para ver se avistava a alma da boneca. Mas não se avistava. E para puxarem os olhos para o lugar mexeram em tanta estopa, em tanto elástico, em tanto arame que a menina passou a gostar mais dos simples bonecos de celulóide, que se vendem nuzinhos, que se vêem logo inteiros e bonitos, dos pés à cabeça, e alguns mesmo podem sentar-se e levantar os braços, e têm o sorriso dos meninos bonitos que as mães mostram do alto das janelas, quando ela passa.

       Mas as bonecas não lhe interessam extremamente, e os meninos absolutamente nada. Tem mesmo um certo medo deles. São assim moles, andam tão embrulhados em coisas difíceis! E de repente começam num berreiro interminável.

       Não, ela gosta mais do relógio.

       O relógio vive ali no quarto, ao pé dela. Adormece-a com o seu tic-tac. Tem uma forma de casa, mas o mostrador parece uma cara de bicho com dois olhos redondos nos buracos de dar corda, sobre o 8 e sobre o 4. A pêndula é dourada, e sobe e desce, com um parafusinho que há por baixo. Bate o sol, e chispa ouro pela casa.

       Dentro do relógio estão duas coisas preciosas: a chave com que o fazem andar, e o nível com que lhe regulam a posição.

       Boquinha de Doce também fala com eles: "Então, estás cansadinho? Não andas? Tens falta de corda? Ah! meu filho, espera um bocadinho, tem paciência, que agora estou ocupada..."

       "Tá-tá-tá-tá, tá-tá-tá-tá, tá-tá-tá-tá, trrrr." A corda vai sendo enrolada lentamente. Depois, rodam-se os ponteiros, move-se a pêndula, e as horas começam a cantar: 1, 2, 3, 4 ... Acerta-se o nível, fecha-se a portinhola, e está pronto. "Aqui não se toca!" Não, ali não se tocava. Mas uma vez consentiram que sua mão movesse os ponteiros, suavemente. E a menina sentiu a imensa frescura que havia dentro daquela pequena casa, sentiu a sombra macia, sentiu o doce segredo daquela harmoniosa obediência do mecanismo escondido. Gostaria de parecer-se com aquilo.

       E então, se parasse, viria Boquinha de Doce com a chave e o sorriso, e a palavra amorosa: "Que foi? Não andas? Cansaste? Tem paciência..." E de novo acordariam as horas. E o sol chisparia ouro na pêndula. E o tempo recomeçaria.

      

       — Acho-a tão amarelinha! — As mãos da tia Chica andavam entre os craveiros.

       "Estará suada?"

       — Isso, para mim, são bichas. Mas não seja alguma fraqueza. . .

       Vestiram-lhe camisetas de lã: não se fosse resfriar. Maria Maruca puxava-lhe as mangas desabridamente, e esfregava-lhe as costas até ficarem vermelhas: "Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém."

       — Eu começava a dar-lhe óleo de fígado de bacalhau. Aquilo toma-se tão bem! Há crianças que até o tomam com pão!

       Levantam-lhe os cachos. Miram-lhe com desolação as orelhas, que não se colorem.

       — Talvez fosse bom levá-la ao médico! Depois, aqui-del-rei, e adeus, minhas encomendas! O seguro morreu de velho.

       "Ora! os médicos lá sabem nada! Tanto médico, tanto médico..."

       Dentinho de Arroz perguntava-lhe: "Que diferença há entre o médico e a água?" E ela se lembrava do afilhado do doutor: "Por que é que o profeta Jeremias andava sempre chorando?"

       Reforçaram os mingaus e as papinhas de leite. Ela preferia andar lá fora com os bichos e as plantas. Mas era difícil. Consentiram em suavizar-lhe as refeições: enchiam-lhe a boca e deixavam-na ir dar uma voltinha: até o tanque, até a grade, até o pote de tinhorão. . . Entre uma garfada e outra, davam-lhe a chupar um gomo de laranja. Ela ia facilmente, mas voltava a custo: porque sempre há uma borboleta que pousa-não-pousa na beira de um ramo, e alguma formiga querendo atravessar um fio de água, ou algum caracol viajando com sua bagagem às costas e sondando o caminho com sua estranha testa. . .

       — Anda, menina!

       Tantas vezes a chamavam que não havia remédio senão voltar. Vinha entretida com os movimentos de seus próprios pés. Os sapatos tinham cara de gente e olhavam para ela, com suas bochechas redondas. Quando a punham na cama, rezavam-na:

      

     "Menina, si tens quebranto,

       aqui to tiro,

       em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo."

      

       Uns disseram que seria bom usar figuinhas de azeviche. Outros opinaram que as de coral eram melhores. Tia Tota preferia um remédio de frasquinho azul, com uma tampa de vidro parecida com a cabeça do caracol, e a particularidade de deixar cair uma gota de cada vez, quando colocada em certa posição. Depois de quebrado, o vidro fornecia cacos muito lindos, por onde se via o dia de um modo diferente.

       A cada instante lhe examinavam as solas dos sapatos: não acontecesse andar com os pés molhados. Mas também com o sol tinham cuidados especiais: podia morrer de insolação. . . Se começava a escurecer, traziam-na depressa para casa: porque há o sereno, que infiltra doenças mansamente, pela cabeça. Se faz luar grande, fecha-se a janela, porque essa fria luz estraga a vida. "Tudo faz bem, mas só até certo ponto."

       Andam vidros novos por cima dos móveis.

       Debaixo das árvores que se cobrem de flores, que sacodem sobre ela um orvalho miúdo de flores, a menina se entretém sozinha, esperando que o tempo passe. "Quando fores grande... — se chegares até lá..." Os outros, que já são grandes, que fazem eles? Quis ensaiar essa vida em expectativa: mas Maria Maruca ouviu seus monólogos, em que imitava todos os conhecidos: "O diabo aparece, quando se fala sozinha!" O Diabo, esse vago personagem de que ouvia falar às vezes.

  

       O CHÃO florido tinha um perfume delicioso. Todo o seu corpo parecia absorvê-lo pela pele, entranhá-lo profundamente em si. Não era apenas o cheiro habitual da terra, confuso,   áspero,   interminável. Nem o cheiro das horas de rega e dos dias de chuva, ardente e exacerbado. Era tudo isso, mas ao longe, mas debaixo de uma alegria, de uma frescura, de um modo flutuante e envolvente, como a atmosfera dos sonhos.

       Pôs-se a fazer "caminhas-de-gato" nos dedos dos pés. Dentinho de Arroz não chegava. Maria Maruca não se ocupava dela. Boquinha de Doce tinha tanta mas tanta coisa que fazer, e chegava tão triste: "Que dor no coração, ver tudo aquilo em ossinhos. . . em ossinhos. . . No meio da terra, ainda apareceram os botões dos punhos. Eram de ouro, e o coveiro veio com aquilo nas mãos. . . Ah!" E a menina viu seus olhos dilatando-se espelhantes, partindo seus cristais pelo rosto abaixo. Todos se perturbaram com a sua chegada. Mas, antes de aparecer, ela já tinha ouvido. . . Tranqüilizaram-se: "Não entende nada. . . Isto ainda não entende nada!" — e pousavam as mãos no seu cabelo.

       Ela, porém, ficava triste, porque não o sabia dizer: mas entendia tudo, tudo.

      

       Um dia, eram os gatos pretos: chegavam tranqüilamente, sem estranheza, como visitas antigas. Subiam as escadas, miravam a cozinha, moviam a cabeça com ares de quem recorda: "Por onde andará Fulana? Será esta?" Pareciam convencer-se de que haviam acertado: instalavam-se onde entendiam, lambiam-se com a língua rósea e mole, e fina, e longa, semicerravam os olhos, mergulhavam em pensamentos, em sonhos, em mundos ou em nada.

       Mais tarde, despontavam finos miados, tímidos e inquietos surgiam gatinhos novos amontoados pelos cantos. Depois, já arranhavam com as unhas os pés das cadeiras, já corriam às cambalhotas, uns com os outros, já se enfeitavam, pela manhã, sentados no alto do muro — e iam desaparecendo, e vinham outros gatos — e eram os malhados, e eram os amarelos — e vinham novos gatinhos. . . e assim por diante.

       "Sempre fazem falta: não há como os gatos para se acertar o relógio. Ao meio-dia em ponto, os olhos dos gatos acabam-se. Então você nunca reparou? Pois olhe, é uma coisa que eu sei desde pequena. Os olhos dos gatos são como a lua: crescem e diminuem."

       A mesma coisa com os pássaros, a mesma coisa com as plantas. . . Folhas, flores, frutas, chegavam, estavam, partiam, voltavam. . .

       "Para saber as horas certas, o melhor é olhar para o sol: conforme o lugar por onde ele passa. Está vendo aquela sombra no muro? São nove horas."

       O mesmo com os vestidos, com os sapatos, com as pessoas. . .   Com as pessoas? Sim, com as pessoas.

       Um dia, os meninos botavam calças compridas. "Está ficando um homenzinho, hein? Até já tem buço!"                       Dunduca ficou de repente tão grande que já diziam: "Oxalá não seja também como os outros! — crescem assim, não comem, não se tratam, só querem gulodices, o corpo não agüenta. . . e lá se vão eles. . ." LÁ SE VÃO ELES. . .

       Có alisava a fazenda: "Aqui já não há mais nada que desmanchar: não há mais prega que descer. . . O remédio é ... mesmo fazer outro. . ." E sorria com os seus largos lábios... . Em cima da mesa desenrolavam-se os figurinos coloridos: as moças de cintura tão fina, com o peito tão arredondado, com , as golas de renda de tia Xota, e chapéus de plumas frisadas vertendo-se pela aba. . .                                                              

       Buliam-lhe nos cachos ou na covinha do queixo: "Cadê ela, xente, cadê o queixinho de rabeca?"

       "Quando veio para cá — lembras-te? — os olhinhos ficavam-lhe rente à mesa. . . Aqui pela beirinha. . . Estava sempre com medo de espetá-los com a tesoura...Estes olhinhos de gato.. ."

       E desciam-na da cadeira: "Põe-te de pé, põe-te de pé. Vês? O que isto cresceu! Como já está ficando grande!"        

       Havia um luminoso pasmo. O   silêncio   dizia:   "Parece mentira que não tenha morrido! COMO OS OUTROS." Depois, o silêncio acabava:   "Muito   trabalho   me   tem   dado! Sempre pensando no que lhe hei de dar de comer, sempre cuidando de a agasalhar. . ." parava um pouco. E mais baixo: "Sempre rezando por ela. . ."

       Quem vinha, parava para vê-la, levantava-lhe o queixo para analisá-la melhor. Depois de muitas coisas, sempre concluíam: "Tem mesmo uns olhinhos de gato."

       "... Não há nada como os olhos de gato, para acertar os relógios. . . São como a lua: crescem e diminuem. Nunca ... tinha reparado, não?"

       E todos queriam dar-lhe uma coisa. Mas quase todos eram tão pobres. . . A pobreza tem presentes tão singulares: um ovo, uma golinha de crochê, um pezinho de tinhorão, uma tigelinha de doce de abóbora. As negrinhas traziam rapadura e mariola de capote. Traziam pedaços de cana. E tocavam música para diverti-la, com um pedaço de papel fino num pente. . .

       O mata-mosquitos oferecia-lhe com encanto tiras intermináveis do seu papel de calafetação, para ela fazer bonecos: "Quando voltar aqui, quero encontrar: uma menina, uma casa, um cachorrinho, e o balão do Santos Dumont!"

       E ela fazia os seus bonecos, gravemente, na soleira da porta. Quando os gatos queriam passar, pulavam por cima dela. Maria Maruca insistia: "Levanta-te. Vai para outro lugar! Olha que a gente não cresce deixando alguém pular por cima de si, quando está deitado..."

       A menina riscava o papel, gravemente. Apareciam flores e rostos humanos. As pessoas olhavam para o papel, olhavam para ela, e ficavam pensativas. "Ora essa!"

       Embora Maria Maruca lhe assegurasse que o Diabo aparecia, embrulhou-se em cortinados, enfeitou a cabeça com penas de espanador, e representou grandes dramas, diante do espelho. Santo Antônio olhava e sorria.

       E para separar-se definitivamente do mundo de todos, construiu um muro de livros, e declarou: "Eu agora moro ali dentro."

       "Já sabe. . . já sabe o A e o B. Já sabe o W e o pissilone..."

       "É. . . mas tão amarelinha..."

       "As crianças muito espertas, Deus vem buscar: leva para seus anjinhos..."

      

       Maria Maruca virava as rabanadas na frigideira.

       O carteiro entregava postais coloridos, com flores estufadas. Chegavam folhinhas novas, com vapores e retratos de reis.

       As vizinhas diziam umas para as outras "Boas-festas!" E os criados espanavam as salas de visitas.

       Dentinho de Arroz como ficava contente! O sinalzinho do seu lábio movia-se rapidamente, com o sorriso.

       A colherzinha luzia entre suas mãos escuras: o açúcar e a canela misturavam-se docemente.

       O dia inteiro cuidava-se de doces, e ouvia-se o estalar das nozes, das amêndoas, das avelãs.

       Depois, quando arrumavam a mesa, Boquinha de Doce entristecia. "Os outros, coitadinhos, se estivessem ali. . ." E a menina escutava, muito longe: "Só em ossinhos... tudo em ossinhos. . . Não dá uma dor no coração?" Vinha um suspiro, que tinha viajado nos olhos, por aqueles lugares: "Lá se foi tudo!"

       E um aroma cálido de cravo e canela subia dos pratos e das compoteiras. Maria Maruca dissipava as nuvens! "Não se pensa nessas coisas! A gente também há de ir!" E bailava:

      

       "Ó minha caninha verde,

       anda à roda do vapor,

       ainda está para nascer

       quem há de ser o meu amor!"

      

       E recordava a seu modo: "Hoje, lá na minha terra, minha madrinha me dava dez réis para comprar uma cavaca."

       Chegavam pessoas. Servia-se um vinho louro em copinhos iguais a flores.

       As negrinhas da rua começavam a passar, sorridentes, dando "Boa-tarde" e "Boas-festas!" Tinham vestidos novos, azuis e cor-de-rosa, seus olhos resplandeciam e as pedrinhas-d'água de suas travessas, também.

       O afilhado do doutor mastigava figos e perguntava: "Por que é que o profeta Jeremias andava sempre chorando?" E a gargalhada de D. Sinhá saía de dentro da rede como um pássaro batendo as asas.

       "Currupaco-papaco" — o louro saboreava o açúcar da rabanada. Pelas pastinhas molhadas, via-se que os garotos da rua tinham tomado banho. E sentavam-se nas beiras dos muros, com os pés apertados nos sapatões.

       "O doce de laranja tem o seu preceito." "Cadê ela, xente?" O pano novo do vestido cheirava a farinha de trigo.

       "Coisinha! Tu tá de vestido novo! pronde que tu vai?"

       O cartaz dizia: "ENTRADA FRANCA". Havia uma tal claridade que os olhos se assustavam. E na claridade boiavam panos azuis e papéis prateados. Em fios de arame pairavam estrelas, luas e sóis. Anjinhos cor-de-rosa, anjinhos muito redondos voavam com fitas escritas   na   mão.   Dentinho de Arroz soletrava: "Gló-ria-a-Deus. . ." Da estrela maior de todas caía uma faixa de prata cada vez mais larga, que vinha dar num casebre coberto de palha. Aí estavam a santa e o santo, com a cabeça virada para o ombro, o menino nuzinho e, de um lado e de outro, o burro e o boi com suas largas ventas soprando. . .

       Naquela confusão de dia e noite, com estrelas e sol ao mesmo tempo, as galinhas de crista vermelha andavam por ali com os pintinhos. Havia homens a cavalo, passando, e trens de ferro correndo.

       Num regato com água de verdade, nadavam patos e barquinhos, quase do mesmo tamanho: mas achava-se muito natural. As lavadeiras lavavam ajoelhadas, os peixes boiavam perto delas, e, ao longe, numa curva, estava uma árvore com ninhos, ovos, passarinhos, levantava-se uma ponte, com a locomotiva, e as asas dos moinhos esperavam pelo vento.

       Vinha muita gente de longe, com carneirinhos pelo chão e também aos ombros. Todos tinham roupas muito brilhantes: encarnadas, azuis, verdes, e com barras douradas. No entanto, pareciam tão velhinhos e tão pobrezinhos, e tão tristes!

       Ainda de mais longe, vinham os camelos dos três reis, com suas coroas, seus olhos levantados para o céu, seus mantos salpicados de flores, e suas caixas de presentes nas mãos. . .

       Os meninos sardentos, com dentuça amarela, gaguejavam coisas: "Xi. . . o carneiro não quer andar..." "Aquilo não é rio. . . Aquilo é vidro..." E queriam meter o dedo, para verificar.

       Mas quando o procuraram tinha desaparecido. Dizem que subiu para o céu.

       A música ao longe esgarçava-se. "Eu acho que vão passar por aqui."

       E a menina indagava: "Que é, hein?"

       Dentinho de Arroz vinha para perto dela. Seu sinalzinho tremia no sorriso: "São as pastorinhas: escuta só!"

       E repetia, ali perto, as palavras que a música levava, ao longe:

      

       "Oh de casa, nobre gente,

       escutai, e ouvireis,

      

       que das bandas do Oriente

       já chegaram os três Reis!"

      

       Parava um pouco, ensaiava um passo de dança e mudava de ritmo:

      

       "Se eu soubesse

       que havia função,

       trazia a mulata do meu coração!"

      

       O coro ao longe continuava, ora mais perto, ora mais longe. Sentia-se, pela voz, o caminhar das pessoas:

      

       "Se eu soubesse

       que havia função..."

      

       DEPOIS de a vestirem e enfeitarem, disseram: "Benza-te Deus!" E Maria Maruca ainda acrescentou, enxugando as mãos no avental: "Quando olharem para as tuas pernas, faz uma figa, por causa do quebranto!" A menina abaixou a cabeça para ver as pernas. E saiu fazendo figas com as duas mãos.

       As figuras de mármore continuavam arregaçando o vestido junto ao piano. Mas o piano estava aberto, e de dentro dele vinha um cheiro muito forte de madeira, verniz, metal.

       A mocinha tomou-a nos braços: "Oh! mas está ficando muito pesada! Não pode mais andar de colo!" e levou-a pela mão para mostrá-la a todas as pessoas.

       Ouviam-se as vozes dos meninos: "Puxa! Puxa mais! Agora solta! Puxa de novo!" E, pela janela aberta viu-se passar um deles, caminhando com cuidado por cima do muro, com barbantes e arames na mão.

       As pessoas falavam umas com as outras, com vozes fanhosas. E o pigarrinho de Orelhinha Peluda tropeçava no meio delas! "O grã. . ."

       A mocinha levou-a de novo, encostada a si — seus pés perdiam a memória, pisando aqueles tapetes, sua vida flutuava como uma penugem dentro daquela casa.

       A mocinha tomou-lhe a mão gorda, mole, passiva, e começou a bater com os seus dedinhos nas teclas:

      

       "Vem cá, Bitu,

       Vem cá, Bitu,

       Vem cá, vem cá, vem cá..."

      

       Mas o moço tirou-a dali, levantou-a nos ares, sentou-a diante de uma máquina, meteu-se embaixo de um pano preto, e disse: "Olhe aqui para a ponta do meu dedo: vai sair um passarinho daqui!" Podia ser que saísse, mesmo: naquela casa, era tudo encantado! E ela deixava-se estar, num sorriso apreensivo... E os meninos gritavam por cima do muro: "Solta! Agora pode puxar! Puxa mais! Está bem!"

       Mas ao escurecer é que tudo se tornou bonito, porque os meninos armaram no jardim uma casa de papel, que tinha nos cantos da cobertura bolas douradas, vermelhas e azuis, lindas e lustrosas como bolhas de sabão monumentais.

       Em longos fios estendidos em várias direções, acenderam-se lanternas coloridas. A luz artificial pousava nas árvores como sobre pessoas dormindo. Todas as crianças da rua encostavam o rosto nas grades do portão, e seus olhos encantados luziam, percorrendo o jardim iluminado. A rua parecia ter desaparecido. Pareciam ter desaparecido todas as outras casas, na escuridão que se acumulara lá fora. O mundo acabava ali no portão. E os meninos subiam e desciam a escada, caminhavam pelas beiras dos muros, e ninguém dizia para que era aquela barraca de papel, toda iluminada, e onde podiam caber umas duas ou três crianças. O vento fazia-a palpitar, como um balão. Os meninos falavam muito, e muito depressa. As crianças do portão falavam também, perguntando coisas. A mocinha desaparecera. E a menina pensava.

       E a menina tinha de ir-se embora. Como era ali perto, o menino foi levá-la até em casa.

       Primeiro, era muito escuro. Depois, começaram a verse, à distância, as casas iluminadas pelos frouxos lampiões. Em algumas, havia pessoas à janela. Mais adiante, encontravam-se também pessoas embaixo das árvores. Ao dobrar a esquina, viram ainda pretinhas pulando corda,   e garotos fanhosos, que gritavam:

      

       "Que tempo será?

       NI NI, CÓ CÓ!

       Laranja da China?

       Tabaco em pó!"

      

       E as duas crianças andavam. Ela, de vez em quando, tinha medo. Podia sair alguém de uma esquina, ou da sombra de uma árvore. Mas ele dizia: "Não sai, não." E fazia uma voz valente.

       Ela perguntava: "E se aparecesse um ladrão?"

       Ele respondia rindo: "Não vem, não. Se viesse... a gente corria e gritava."

       "E se for uma alma do outro mundo?" Ele não respondeu logo. Ela insistiu: "Hein?" Sentiu um frio nas dobras das pernas, e teve vontade de correr. Ele falou distraído: "Não vem, não..." A menina olhou para ele, e sentiu que ele pensava na festa, na barraquinha iluminada, nas lanternas acesas.

       Separaram-se no portão. Ele desceu a correr, ela subiu a correr. Todos se admiraram de que chegasse tão sozinha. Seus olhos estavam cheios de luzes. Seus olhos viam a máquina dos retratos com o pano preto: "Plic! Está pronto..." Viam os meninos subindo e descendo os muros e as escadas. Os olhos das outras crianças luzindo junto às grades. Tudo tinha sido maravilhoso. E, no entanto, parece que ela não tinha gostado.

      

  1. Teresa morava lá "onde o Judas perdeu as botas". Pois, em tempos passados, uma menina sonhou longamente com esse lugar. "Sabe, coisinha, estive em Botafogo! Sabe, coisinha, estive em Niterói!" Ela murmurou simplesmente: "Eu também vou passear muito longe daqui. Vou ao lugar mais longe do mundo. Vou lá onde o Judas perdeu as botas." E as outras crianças ficaram pasmas, olhando para ela. Nenhuma tinha nem ouvido falar nesse lugar.

       E foi mesmo. E com ela ia a lua, andando, andando. Sempre que levantava os olhos, encontrava-a perto. O chão, a casa, os muros, tudo ficava cada vez mais branco. Os vidros da igreja chispavam prata. Havia caramanchões, de onde se entornava um perfume branco de leite florido. Diziam: "Oh! os jasmins. . ." Diziam: "Oh! a baunilha..." Respirando-se muito, os olhos fechavam-se mansamente.

       Até as crianças pretas estavam pinceladas de branco, e rolavam pelas ruas, em volta das árvores. Homens bêbados reclinavam-se nas calçadas. Pousavam brancuras nos chapéus amassados, e nas pesadas mãos: "Eu sô o emperadô; vosse-mecê é a emperatriz?" Caíam brancuras na voz pegajosa.

       As moças de pedra arregaçavam seus mantos, rente aos telhados. Como eram frios e alvos os seus joelhos, meu Deus! E os grandes leões de louça, embebidos na sua juba, resplandeciam branquíssimos, por cima dos portões.

       Ouvia-se plec, plec, plec. . . "Deve ser o tílburi do conselheiro!" As patas prendiam-se ao branco, soltavam-se do branco. A campainha oscilava como um lírio de vidro.

       Encontraram a chácara. Oh! a lua no chão molhado. . . Por que os homens andavam ainda com regadores, se o luar já tinha regado tudo? Chão empapado de brancura. Chão de hortaliças brancas. As couves alargavam-se repletas de claridade. As rosas pareciam felizes, de tão abertas, e pareciam pedir ao céu que as acabasse de desfolhar.

       E os grilos revestiam o chão de uma sedosa música, e uns rastros de água circulavam sem ruído, como xales brancos, exalando um cheiro confuso de terra molhada, de luar, de folhas verdes e de flores.

       Andava-se, andava-se, e andava a lua. E a chácara continuava, com seus muitos muros e suas muitas grades. Os braços em mangas de camisa carregavam regadores que escorriam pingos brancos. Deviam pesar bastante, porque o corpo ia vergando para o lado.

       E os lampiões batiam em cheio no rosto dos velhos, à janela. E tudo ficava amarelo. Mas para longe continuava branco.

       E um menino rodava um arco, e ouvia-se o aro bater nas paredes. . .

       E das salas abertas saíam vozes de gente e de piano.

       Nos porões, as negrinhas passavam roupa a ferro, sozinhas, com a roupa ali amontoada. . .

       "Onde foi que o Judas perdeu as botas?"

       "Você já está ficando muito grande para andar de colo.. ."

       Era um tempo muito passado, aquele. Sua capa branca tinha um capuz caído para trás. E seus cabelos passavam perto das trepadeiras, e sua mão tocava grandes flores, parecidas com a lua. E o perfume ia andando sobre o seu rosto. . .

       No fundo de um jardim cheiroso, numa janela de cortinas brancas, distantes um do outro, sorria um rosto de moça para um rosto de homem. A areia do jardim brilhava com a lua. Não havia mais ninguém. Tinham-se acabado as crianças, os bêbados, os tílburis, as janelas. Não havia mais o resto da rua. E a menina secretamente desejou ser grande, ter aquela blusa de babados, e sorrir assim, sob cortinas brancas, numa noite de lua, num silêncio com flores. . .

      

       Um dia, os mascarados chegavam. "Você me conhece?" E as caras de papelão rodavam para um lado e para outro,

       As crianças já saíam da cama sacudindo pandeiros e soprando cometas estridentes. Punham cadeirinhas do lado de fora, sentavam-se também na soleira da porta, tagarelavam com a língua muito embrulhada, e a boca cheia de cuspo. De vez em quando, um pandeiro rolava pela rua abaixo.

       Risadas, vozes fanhosas, sacudir de guizos: vinha gente enrolada em lençóis, segurando a máscara de pano com uma das mãos, e fechando com a outra a vestimenta sobre as pernas. "Você me conhece? Como vai? Adeusinho!" Sacudiam o leque entreaberto, e passavam para a outra rua, com aquela misteriosa forma simplificada. Os garotos meio apreensivos, contavam: "Um fantasma! Dois fantasmas!" Mas vinham muitos. Era uma família inteira de fantasmas. E o vento inchava-lhes os panos brancos da roupa, e pareciam capazes de subir, como balões.

       Desciam negros de perna cambada, vestidos de mulher, sapatos de salto alto, e cara prateada, abanando-se. Os garotos apostavam: "É home! Num é! É home! Num é não. . ."

       As meninas debruçavam-se para fora das janelas, e balançavam na rua sacos de talagarça, com confete vermelho ou verde.

       "O paiaço que é? É ladrão de muié!"

       O sol batia nas rodas dos pandeiros. Punha-se a mão por cima dos olhos, para se poder enxergar. Tilintavam guizos. Por onde? Para lá das casas, dos telhados, das ruas, um bando de vozes cantava:   "Ó abre alas, que eu. . .   quero passar!"

       O menino saía da cadeira, gritando, com a cometa na mão:

       — Olha o clove! Olha o clove!

      E os outros garotos respondiam: "Dois! Três!. . . inda vem mais!"

       Um depois do outro, eles iam aparecendo. Na cara mole de pano preto, balançava-se o narigão encarnado. A boca parecia cheia de sangue. Os olhos eram tristes como os dos animais doentes. Saíam dois tufos triangulares, imitando o cabelo. Pareciam duas chamas. Eram mesmo cor de fogo. Brilhavam as palhetas do bolero bordado. No meio das costas, estava o sol com seus raios. Depois vinham as estrelas, as luas, as lantejoulas dispersas à toa. Brilhava a franja de prata nas curvas do veludo. Um depois do outro, os cloves iam subindo a rua.

       As meninas puxavam para cima os sacos de talagarça, e soltavam punhados de confete que o vento desbaratava em cores vivas.

       Os cloves iam subindo a rua. As calças coloridas dilatavam-se com o movimento. O andar era fatigado, como se estivessem vindo de muito longe, e ainda tivessem que ir para mais longe, dentro daquelas roupas, debaixo daquele sol.

       Mas do alto do morro brotava um grupo muito maior. Os garotos gritavam e pulavam. Até os cachorros e os gatos vinham ver. Gente de cara pintada, com guarda-chuvas quebrados, agitando ventarolas de papelão, arrastavam calças grandes demais, que a cada instante arregaçavam, e abanavam, com a dança, os molambos dos paletós vestidos pelo avesso. Sacudiam chocalhos, tamborilavam em latas, cantavam com voz esborrachada, e dançavam de pés espalhados. Arrastavam consigo um companheiro metido numa roupa de urso. As negrinhas achavam graça, e jogavam dinheiro no pires que eles estendiam. Dentinho de Arroz, dizia: "Que sujeira! Essa negrada não se dá ao respeito!" E o sinalzinho do seu lábio arregaçado subia — numa expressão de repugnância e desprezo.

       Boquinha de Doce comentava, mirando de longe: "Tudo loucura! Tudo loucura! Andam nessa folia. . . — e há gente sofrendo! Quantos estão doentes, por aí, a esta hora, em cima das camas!. . . Quantos, quantos estão morrendo a esta hora! E eles cantam!"

       Os cães latiam, enlouquecidos. As negrinhas gritavam: "Olha a cara dele!" E a outra voz continuava: "Cansam-se desta maneira, à toa, à toa! Amanhã estarão todos tísicos. . . Amanhã morrerão também..."

       Depois, havia uma serenidade. "Os mascarados, a esta hora, vão todos dormir. . ." D. Sinhá balançava-se na sua rede. Os sabiás piavam, nítidos e tristes. A moça de trancas fechava a janela. O afilhado do doutor desaparecia. Desapareciam as cadeirinhas com as crianças. As cometas e os pandeiros. Todas as máscaras se escondiam. Do outro lado do filo, dançava, ciciando, um mosquito.

       Depois, reapareciam as portas, as cadeirinhas, as vozes, os guizos, lentamente. Um guincho de cometa estremecia. "Você me conhece?" E havia outra vez a rua, com os mascarados andando, sem saberem que tinha havido nenhuma interrupção no tempo. Os pandeiros rolavam pela rua. Os garotos esmurravam-se. Alguns choravam com muitas lágrimas, fazendo escorrer pela cara o bigodinho desenhado a carvão.

       Vagarosamente descia o dr. Burro, com uma cabeça enorme, a casaca abanando, um livro debaixo do braço. Não falava nada. Caminhava, apenas, com um passo refletido, e de vez em quando abria o livro para estudar um bocado mais.

       E os índios giravam os arcos, sérios, quase ferozes. Dos pés à cabeça, oscilavam todos, nas penas que balançavam mares coloridos.

       Os dominós das malas não sairiam mais, com seus guizos e suas franjas? Não havia ninguém para os vestir, nunca mais. Por onde teriam eles andado, uma vez. . . uma vez?

       Mas passava a noite, de vestido azul, bordado de estrelas. O seu diadema cintilava intensamente, com suas luas de espelho.

       Descia, porém, um vulto de preto, com uma foice às costas e uma campainha na mão. "Delem, delem, delem, delem . . .!" O manto abria-se e aparecia uma caveira muito branca. De dentro dos seus compridos dentes cerrados, uma voz aguda e trêmula gritava para o mundo inteiro: "OLHA A MORTE!" As negrinhas encolhiam-se: "Cruzes!" Sentia-se um arrepio.

      

       A RUA estava tão cheia como se todas as pessoas do mundo houvessem corrido por ali. Quase todos parados: uns de pé, outros em cadeiras e bancos. As criancinhas de colo dormiam, moles, no ombro das mulheres e dos homens. Quando eles se moviam, os bracinhos delas se balançavam, tristemente desengonçados. Mas seus olhinhos continuavam sem se abrir. A borda das pálpebras tinha um brilho duro e liso de nácar.

       Era noite e as luzes da rua estavam acesas. E as árvores, recebendo essa claridade por baixo das folhas, amarelavam-se, envelheciam: seus galhos ficavam duros e frios como ossos. Mas na verdade fazia muito calor; e a multidão palpitava em ventarolas e leques, em chapéus de palha e em bonés.

       As velhas gordas cochilavam com as mãos cruzadas no regaço. As moças e os rapazes sorriam com dentes de ouro, e davam gritinhos sem expressão. Apertavam-se bisnagas de água perfumada. Brilhava confete dourado no cabelo das moças. Os garotos espertos amontoavam no chão, pelas esquinas, o confete caído junto com pontas de cigarro e papéis velhos. "Aí! Hein? Toda na ponta!" "Pois então! na ponta do Bedengó!" As mulatinhas mostravam os dentes brancos e oblíquos, e seus olhos, virando-se para um lado e para outro pareciam velas acesas.

       Cada vez havia mais gente. Cheirava a muitos cheiros: a roupa, a suor, a pó-de-arroz, a brilhantina, a cerveja.. .

       No meio dessa multidão, uma negra velha, com movimentos de pato, segurava seu tabuleiro de pastéis, e com um garfo preto na mão fazia troco, murmurando coisas numa inflexão conformista, erguendo as sobrancelhas com todo o poder da sua paciência.

       E conseguia-se andar no meio do povo. E havia velhos rindo-se às gargalhadas, e crianças chorando com lágrimas longas. Porque as crianças pediam às mães coisas impossíveis: doces, confete, cometas. . .

       E os dominós passavam, cansados, com a cara de fora, falando na sua voz natural. Os homens fantasiados levantavam para a cabeça as enormes carrancas de boi, de burro, de veado e bebiam refrescos, e fumavam cigarros, e enxugavam com grandes lenços sujos a testa e o pescoço, todos lustrosos de suor.

       Nas obras da igreja estavam sentados coxos, cegos, para-líticos, gente coberta de feridas. E todos, mesmo os cegos, levantavam a cabeça para aquele movimento vagaroso e denso da rua repleta. E, apesar de toda a algazarra, ouvia-se subir das pedras e da escuridão um gemido sucessivo: "Dá, dá! Uma esmolinha pelo amor de Deus!" E em outros tons, vozes diversas explicavam, umas graves, umas agudas, todas doloridas: "Um ceguinho de nascença!" "O aleijadinho, o aleijadinho!" E o coro repetia: "Dá! Dá!"

       E a menina levantava os olhos interrogativos. "Vai dar a eles!" E as mãos se aproximavam, abertas e tateantes, debaixo da sua, e entre os saltos dos palhaços e o berrar das cometas, ouvia-se rastejar o murmúrio dos mendigos: "Minha rica menina!" Passava um jorro de confete dissipando-se no ar. "Deus te crie para o bem!" "Ó abre alas, que eu quero passar!" "... te faça feliz..."

       Mas por perto do quiosque não a queriam levar. Mesmo por entre a multidão, ela via um pouco adiante as suas luzes brilharem, e braços peludos tirarem das prateleiras garrafas e maços de cigarro. Ouvia-se um tinir de copos, de canecas, e vozes de homens diziam muito alto, muito alto, mais alto que toda a multidão coisas desarticuladas, de que os outros se riam brutalmente. "São os bêbados. . . São os bêbados..." A mão que levava a sua estremecia: e os pés tomavam outro caminho.

       Mas um chinês de rabicho avançava, amarelo e magro, e indiferente, com um pau atravessado no ombro, e um cesto pendurado, em cada ponta. Seus bigodes de linha preta passavam hirtos como cadáveres. E por dentro da menina começava uma canção:

      

       "Quem eu amo, te digo, está longe,

       lá nas terras do império chinês,

       num palácio de louça vermelha,

       sobre um trono de azul japonês..."

      

       De repente, todos recuavam para as paredes, subiam para as grades, para as pedras, para as árvores. "Já vem o Zé-Pereira!" diziam os garotos. "Já vem o Zé-Pereira!" gritavam as mocinhas. As velhas repercutiam como quem fala dentro de uma caixa: "Já vem o Zé-Pereira!"

       Os que estavam cochilando reanimavam-se com um profundo suspiro, enxugavam a boca, esfregavam as pestanas. Sacudiam-se as criancinhas para as acordar: elas bamboleavam, descerravam os olhos, deitavam o rosto sobre a outra face, e continuavam a dormir.

       Mais para longe ainda se ouvia a propagação daquele anúncio: "Já vem o Z é-P e r e i r a. . .!"

       E o zabumba aparecia:

      

       "Zé-Pereira! Pum, pum, pum!"

      

       As negras, com cheiro forte de bicho, passavam jeitosas, para não amassarem os babados dos vestidos: "me dá licença. . ." E os negros de bonés com gomos de várias cores sorriam de lado, com salpicos de confete azul e verde pela cara. . .

      

       Surgia uma claridade cor-de-rosa, como nuvem que houvesse baixado à altura das casas. Oh! surgia uma claridade verde, de um verde que levava fumaças azuis dentro de si. . . Um som de metal muito fino, muito agudo, gritava ordens ardentes. As crianças paravam de comer a cocada, com os dedos todos lambuzados e a boca aberta. Só algum rapaz, de cara de cavalo, como o afilhado do doutor, ainda aproveitava o êxtase imenso para dizer doçuras à menina que sorria olhando para o leque aberto.

       Passavam os fogos cor-de-rosa. . . Passavam os fogos verdes... A música insistia. O bombo ajudava.

       E então chegavam, num lento deslizar, sobre pesados carros, os dragões dourados, abrindo e fechando a bocarra imensa, onde apareciam e desapareciam moças nuas, que, enfeitadas de lantejoulas, sorriam e atiravam beijos.

       Rodavam flores, de ouro vermelho, de ouro azul, de ouro amarelo: ora de costas, ora de frente, moças nuas, cobertas de lantejoulas, atiravam beijos, sorrindo.

       A multidão apertava os olhos para ver bem. Os dominós, sem máscaras, contemplavam, silenciosos e fatigados.

       Balanços prateados entravam e saíam de portas mágicas. Outras moças atiravam beijos, sorrindo, e as lantejoulas choviam por todo o seu corpo.

       Abriam-se conchas imensas, dentro de águas cintilantes: moças nuas, de pé, sorriam, atirando beijos. . .

       Nuvens de fogo róseo, nuvens de fogo azul contornavam as cenas deslumbradoras.

       Vozes roucas bradavam, no cortejo: "Viva! Viva! Viva!" Longe, a música insistia; o bombo ajudava.

       Só as criancinhas dormiam, sob o cheiro das bisnagas, entre o abanar dos leques, no meio da multidão em delírio, diante dos grandes carros faiscantes que rodavam, rodavam, rodavam. ..

       E ela adormecia também, com aquelas coisas encantadas sobre os olhos. Giravam as flores. Abriam-se as conchas. E as moças todas azuis! E as moças todas verdes! E as estrelas que brotavam do seu corpo. . . E os braços ficavam tão brancos, tão brancos...

       Junto a esse mundo extraordinário, ali ficava, como um gato, como um cão adormecido na soleira de uma porta.

      

       Debaixo da árvore, as negrinhas perguntaram-lhe:

       — Tu qué brinca também de roda, com a gente?

       Ela achou muito singular dar a mão àquelas criancinhas desconhecidas, de língua vermelha e olhos de bola de gude, que pulavam como passarinhos de um lado para o outro, abanando os vestidos de chita no alto das perninhas de ave, pretas e finas.

       Antes de começar, as negrinhas perguntaram de novo:

       — Como é o teu nome?

       Ela disse uma vez — com a renda do cabeção em cima da boca. Depois tornou a dizer, porque elas não tinham entendido.

       As negrinhas ficaram satisfeitas. Uma disse: "Eu me chamo Djanira, esta aqui se chama Coleta!" e ensinaram-lhe a segurar nas mãos, para brincar de roda. "Com força! — diziam — você tem a mão muito mole, pequena!"

       E depois ensinaram-lhe as palavras e a música, e os movimentos. "Mas segura na mão da gente!" E começaram todas juntas:

      

       "Olha o passarinho, dominó!

       que caiu no laço, domine!

       dá-me um beijinho, dominó!

       dá-me um abraço, dominé!"

      

       "Segura na mão da gente, pequena! Assim, olha: com força. Viu como é? Tu nunca brincou de roda, não?" E prosseguiram todas juntas:

      

       "Foi por esta rua, dominó,

       que passou meu bem, dominé,

       será só por mim, dominó,

       ou por mais alguém? — dominé."

      

       Quando a pequena sacudiu a mão dela, OLHINHOS DE GATO estava vendo abrir-se a mala velha, cravejada de pregos dourados, e os dominós vermelhos e azuis, cheirando a mofo, desdobrarem suas pregas, levantarem seus capuzes, abanarem seus guizos e suas franjas douradas, e, sem ninguém dentro, pularem também na dança, animadamente, cantando em falsete com a Coleta e a Djanira. . .

      

       Quanto aos dominés. . . Os dominés. . .

       "Tu num qué mais brinca, não, pequena?"

       E caía a tarde. E os troncos das árvores ficavam cada vez mais negros. Por cima das chaminés, surgia a lua. Alguém passava carregando latas d'água. Ficava um rastro molhado pelo chão.

      

       "Olha o passarinho, dominó,

       que caiu no laço, dominé..."

      

       Do alto da árvore começaram a cair umas flores imensas, amarelas e moles, com as pétalas frágeis e enrugadas, e um miolo cor de vinho, e um veludoso pistilo. . . Tão bom, apanhá-las e pousá-las no rosto — como lenços, borboletas, mãos... sonhos. . .

       "Tu num qué brinca mais, pequena?"

       E a Djanira, e a Coleta, e as outras olhavam para ela, com seus olhos de bola de gude.

       Mas o menino chegou de manso, com um assovio de madeira, com um som fino e enroscado que nem o canto do canário, e trinava, trinava. . . e todos correram para perto dele: "Me mostra! Me mostra! Me deixa soprar também!"

       E a madeira destingia na boca. E a menina olhava encantada a bela cor nos lábios polpudos das negrinhas, e por cima dos dentes. . .

       — Tão bonito! Encarnado! — exclamou.

       Mas a outra negrinha disse com desprezo: "Isso não é encarnado, sua boba, isso é — SULFERINO!"

       Ah!

       E ela não se importou de ter sido boba. Ela achava tão bonito, tão bonito! SULFERINO!

       É assim. Cada coisa tem um nome certo. E é preciso saber o nome certo das coisas.

      

       E ela ouvia dizer com delícia: "Mas onde se teria metido essa criança?" Ouvia dizer, e sentia no nariz o cheiro particular daquele recanto de escuridão. "Estará no armário?" Seu coração batia forte: pum, pum. Não, no armário não estava. . .

       Maria Maruca bateu todo o quintal à sua procura. Dentinho de Arroz foi espiar, mansamente, por entre os vestidos.

       E ela via os pés de Dentinho de Arroz: o bico triangular, o bico de verniz dos chinelos de pêlo branco e preto. . . Via o contorno amarelo da sola. Via a pele do calcanhar, um pouco gretada. . . Via também a poeira brincando na réstia de sol que vinha modelar o pé torneado da cadeira... A franja branca da colcha caía de um lado a outro, reta, por igual. Não se respirava muito bem, o corpo não estava muito à vontade, mas era fresco, e talvez assim se conseguisse escapar daquele perigo.

       Quando ela viu, porém, que os pés se aproximavam: "Se não está no armário, então..." e sentiu que se ajoelhavam, e percebeu que levantavam a barra da colcha — suspendeu a respiração, e fechou os olhos. Mas foi inútil... ah! foi inútil! . . . "Eu logo vi! Não disse? Saia já daí, seu bicho-do-mato!" E a mão tocava-lhe o vestido, o joelho, um trecho do braço — a mão que não se via, no escuro, mas que se sentia movendo os dedos finos e elegantes como cavalinhos caminhando. . . E o rosto espiava sob a franja da colcha: "Vamos, que estão esperando!" E os dentinhos brancos luziam miúdos como sementes. E os olhos ficavam bonitos como o luar na água.

       Quando saiu do seu esconderijo, Boquinha de Doce também tinha chegado: "Mas onde isto se foi meter! E todos procurando! E a tia Tota. . . e o priminho..."

       Mas seus cabelos estavam despenteados, e o vestido todo torcido no corpo. "Venha conhecer o priminho!" Não, o priminho ela não queria conhecer de modo algum. Os meninos, caçadores de borboletas e passarinhos, amarradores de caudas de libélula e rabos de gato, quebradores de vidraça e apedrejadores de frutas, constituem uma casta de sua profunda antipatia. Não queria saber do primo. Eram eles, os meninos, que, depois de crescidos, se transformavam em ladrões. Positivamente, não queria saber dessa gente.

       Dentinho de Arroz, concertando-lhe a roupa e o cabelo, ia dizendo: "Bicho-do-mato, que você é! Onde já se viu menina bonita fazer uma coisa assim? Seu primo vai dizer a todo o mundo que você é um bicho-do-mato. . . E ele é tão bonitinho! Só vendo! Usa pastinha. . . Tem uma roupa de gravata e cabeção. . . Traz uma bengalinha. . .   Parece um príncipe!"

       Ouvia-se do outro lado a voz de Boquinha de Doce: "É uma criança muito boa, muito boa. . . Com tão bom coração, nunca vi, mesmo. Mas é tão teimosa, tão teimosinha. . . Muito esquisita. ESQUISITA. Embirra com as coisas e com as pessoas, não se sabe por quê. Por exemplo, a D. Carolina: não a quer enxergar na sua frente! Eu até fico envergonhada. . . Mas que se há de fazer? Outras vezes é com os bichos: houve um tempo — mas isso foi logo que veio para o meu poder — em que não podia ver nem ouvir o galo. Punha-se a chorar, a chorar, que não se sabia o que fazer. Depois foi passando, graças a Deus. Passou-lhe a mania do galo, mas veio-lhe a do vento. Era só começar uma folha a tremer nas árvores, e já ninguém podia com ela... Às vezes são outras coisas: pois não havia de cismar com um vestido que a madrinha lhe deu: "Porque não boto, porque não boto: porque este vestido é de homem. . . eu não sou homem, eu não boto o vestido." Levou nessa lengalenga, e não botou o vestido! Um vestido tão bom! De brim com uns risquinhos. Tudo porque não queria ser homem. É outra cisma, agora. . ."

       E a voz da senhora magra, de mãos de marfim e olheiras azuis respondia, grave e doce: "Criança é assim mesmo. . . É preciso ter paciência. . . Com o tempo endireitam..."

     Ela esperava pela voz do primo. Quem sabe ele também ia dizer alguma coisa? Mas o menino não dizia nada.

       — Quando acabar de enrolar os cachinhos, vamos pôr pó-de-arroz, e você vai aparecer. . . Você não é bicho-do-mato. . . Que coisa feia ter medo de homem!

       Mas nem com o pó-de-arroz e os cachinhos enrolados a menina se animou a aparecer.

       Dentinho de Arroz foi-se embora: "Também quando você me pedir para passear, eu não levo, não."

       A conversa caminhava por outros assuntos: coisas de doença, de festa, de casamento e de morte. . . O canário trinava. Pessoas de longe. . . Lembranças dos outros tempos. Notícias de outros lugares. . .

       E a menina, encostada à cama, pensava: "É tão bonitinho! Só vendo. Usa pastinha. . . Roupa de gravata e cabeção . . .   Bengalinha. . .   Parece um príncipe..."

       Mas era menino. . . Devia ser um futuro ladrão. . . Com certeza, tinha no bolso uma pedra para matar passarinhos. . . Mas usa pastinha. . . E deve trepar nas árvores dos outros para arrancar as flores. . . Mas tem uma bengalinha... E sai com um pau na mão para bater noutros meninos. . . Mas a sua roupa.. .

       Então, foi até o canto do quarto, bem no canto, atrás do cadeirão enorme, e olhou para a espada encostada à parede. Que espada imensa! Que espada pesada! "E si entrasse um ladrão de noite?" — costumava perguntar Dentinho de Arroz. "Oh! temos a espada ali..." — respondia Boquinha de Doce, sorrindo. Que espada! A bainha deixava ferrugem nas mãos. O punho retorcido parecia de madeira. E havia um pedaço de corrente grossa, que oscilava lentamente, quando se tocava na espada.

      

       O menino ficou olhando para ela sem pestanejar, com o queixo enterrado no grande laço da gravata de seda. Tinha pastinha grudada à testa, com os fios do cabelo muito alisados, separados uns dos outros, como pregados ali um a um.

       Tia Tota esboçou um sorriso muito suave, e seus olhos cor de violeta ficaram parados como um desenho. Sua boca mansamente perguntou: "Por que não vem falar conosco?" E de novo apareceram seus dentes longos e amarelados.

       Boquinha de Doce, que estava de costas, compreendeu que ela havia aparecido, e voltou-se para falar-lhe.

       Ela, porém, continuava imóvel como uma estátua, olhando para todos três em silêncio, com as duas mãos firmemente apoiadas na espada, cuja ponta assentava perpendicularmente no chão.

       Depois, tornou a entrar, arrastando a espada pela corrente, e sentou-se na beira da cama, cansada de seu desiludido esforço.

       Do outro lado sentia-se um silêncio grande, muito grande. E do meio dele, como um repuxo, a voz do canário ia subindo até muito alto.

       Para quê, tudo aquilo?

       Não achava parecença nenhuma, afinal, entre o primo e os príncipes.

  

       MARIA MARUCA apalpava na corda a roupa que não secava, e dizia em voz alta, mas para si mesma: "Ê mesmo muito esquisito: quando estes dias chegam, sempre dá pra ficar assim!"

       Por entre os gatos, as plantas, os pianinhos quebrados, a boneca deitada, as caixas vazias, a menina olhava o tempo, por cima dos muros, das árvores, dos telhados.

       Até os dias são de vida ou de morte. Umas vezes, é a luz dançando sobre as flores, laços de luz nos ramos, rendas de luz nas águas, pulseiras de luz pelo chão. Tempo feliz das borboletas e dos pássaros. Até as formigas parecem novas, de um cintilante vidro dourado. Até o rato que se escapa do muro parece andar preparando uma festa.

       Mas, de repente, tudo entristece. Numa secreta noite, tudo isso se desmancha, e o que existia na véspera já não se encontra mais. Nuvens, só nuvens, tudo nuvens. O céu forrado de nuvens, as montanhas vestidas de nuvens, as árvores enroladas em nuvens, as casas cobertas de nuvens, os quintais transbordantes de nuvens... O aveludado azul, o lustroso verde, os amarelos, os roxos, os vermelhos acabaram-se, naquela secreta noite. "TUDO MORRE" — exala o céu, exala a terra. E, no entanto, algumas coisas renascem: "São bichos enfeitiçados, as lagartixas: pode-se-lhes cortar o rabo, que torna a nascer. Até sem cabeça, andam!"

       As velhas de mantilhas pretas passavam cabisbaixas para a igreja. As franjas das nuvens pousavam nas suas costas, como xales de cinza. As franjas das nuvens balançavam-se com o toque triste do sino.

       Boquinha de Doce estendia na cômoda uma toalha engomada, e alumiava em silêncio as imagens dos santos. O vento dava nas chamas, as velas escorriam e secavam, formavam lágrimas, crostas, rendas, ninguém falava. A menina de braços no tapete virava as folhas dos livros.

       "Qual! isto hoje não seca mesmo!" — diziam de novo lá fora.

       Boquinha de Doce sentava-se na sua cadeira de vime, abria também seu livro, que era pequenino, mas grosso, e de beiras douradas, e ali ficava, entre nuvens. E a menina ajoelhava-se, levantava-se, chegava-se para perto dela, aninhava-se no seu colo, ficava entre o seu rosto e o livro. E as figuras passavam: homens de outros tempos abriam os braços falando para multidões; a cabeça do santo gotejava sangue, sob os espinhos; o corpo do santo se arrastava entre soldados; o santo morria na cruz, e as mulheres choravam ajoelhadas.

       Mas depois a figura do santo reaparecia, de braços alegres, abrindo nuvens, e o sol raiava de dentro de seu corpo, e um pouco de vento brincava no pequeno pano que lhe cingia o ventre.

       "Um homem levou seus criados para trabalharem no campo, no dia de hoje. — Mas no dia de hoje, vizinho? Pois neste dia ides semear? — Ora, o que for se verá! — E o que foi semeado até o meio-dia ainda vingou e produziu. Mas o do meio-dia para a tarde apodreceu, não deu nada..."

       Maria Maruca perguntava com os olhos cheios de nuvens: "Já passará do meio-dia? Fará mal cortar as unhas dos pés?"

       E as nuvens boiavam entre as árvores. As nuvens atravessavam a gaiola do pássaro. As nuvens toldavam as cores do papagaio, de olhos fechados, que, com as penas do pescoço eriçadas e frias, se cocava, se cocava, com a pata enrugada, coberta de pretas escamas velhas.

       A área úmida tomava a cor do céu. No rego do tanque, secava a ferrugem do limo. A hera do muro, cinzenta e fosca.

       No alto da pilastra, o vaso de barro. E uma pincelada de nuvem no triângulo do tinhorão vermelho.

       E um silêncio! Um silêncio tal que se ouvia lá longe as negrinhas conversarem embaixo das árvores, que se sentia muito distante — em que rua? em que rua? — uma última carroça rodar tristemente pelas pedras. E o rumor de um tílburi desenhava-se no ar igual a bolinhas de pedra — plec, plec — caindo na água.

       E o gato resvalava, encostava-se nas pessoas, miava sem som, como as teclas mudas dos pianos, erguia os bigodes, arreganhava a boca num bocejo vazio.

       Entrava-se, saía-se — dava-se uma volta por baixo das árvores — balançava-se o balanço, agitando as nuvens. E o dia não terminava.

       As galinhas amontoavam-se umas sobre as outras, parecendo esperar uma grande desgraça. Abriam os olhos de vez em quando, para ver se já teria chegado. Um galo atrevia-se a cantar noutros quintais? Seu grito, debaixo das nuvens, era uma pergunta para além: "Ainda estou vivo?" E um outro, de voz mais débil, repetia com angústia: "Ainda estou vivo?" Então, este também se encorajava, dava uns três passos para a frente, arqueava o peito, e respondia. As galinhas estremeciam nas pernas frouxas. "Ainda estou vivo." E as nuvens cerravam-se.

       Estavam todas as janelas fechadas. Um moleque descia a rua correndo, mas ia descalço e seus pés saltavam rápidos e mudos, com uma ligeireza áfona de borracha.

       E mais nada, senão algum mosquito fazendo círculos por cima de uma poça, alguma formiga marchando entre as pedras desconjuntadas.

       Entrava-se, saía-se. Boquinha de Doce, na sua cadeira, lia as pequenas páginas. E havia mantilhas negras estendidas nos quadros dos santos, e, de alto a baixo, todos os espelhos tinham sido cobertos de panos pretos.

       As nuvens estavam mais escuras, também. As nuvens já se acumulavam nas folhas do livro: os soldados confundiam-se. As mulheres sumiam-se com seus mantos. Os anjos ficavam imperceptíveis. O santo apagava-se.

       Em cima da cômoda, numa garrafa que as luzes douravam, desenhavam-se aquelas coisas do livro: cruz, escadas, martelos, cravos.

       Eram as mesmas coisas que nascem nas flores da trepadeira de D. Sinhá. Nas flores roxas e vermelhas, manchadas pelo sangue do santo.

      

       Mas de novo a noite secreta move suas invisíveis mãos. De novo muda o rosto do tempo, e entre o céu e a terra aparece outra vez o dia. Levam as invisíveis mãos, levam para longe, sem explicação nem rumor, as nuvens imensas que andaram por cima do sol e da lua.

       O negro Alcebíades pousa o balde, encosta a escova e arregaça as calças. A espuma começa a esbranquiçar os ladrilhos — Frch, frch, frch — começa a esbranquiçar os ladrilhos da varanda, a escorrer pelo muro, a descer para a calçada, a alastrar-se pela rua, a sumir-se pela esquina... Vai-se embora, vai-se embora. Por fim, desce uma água tão clara e brilhante que causa alegria: trança de prata em que flutua uma flor azul de trepadeira como uma jóia perdida.

       As negrinhas tagarelam de pano na cabeça: "Eu corri as sete igrejas. Quanto povo, minha Mãe Santíssima! — Hoje tem baile em São Cristóvão."

       Sobem as pretas velhas, com as mantilhas descaídas para o pescoço. "Também visitou as igreja, D. Quimica?" "Pois antão num havéra de í? Preméssa!"

       E os garotos, armados de pau, começam a aparecer, saindo dos corredores, pulando dos muros, descendo dos barrancos, furando cercas, surgindo das esquinas. Metem os dedos na boca e assobiam: chamam uns pelos outros, propõem, combinam, comunicam-se por meio dessa linguagem como se fossem pássaros.

       Abrem-se janelas, sacodem-se tapetes. As moças endireitam as travessas nos cabelos. E os regadores vermelhos circulam pelos jardins, derramando chuveiros de cristal.

       As botinas pretas vão subindo cansadamente, com o peso que as costas levam. As pontas de renda caem verticalmente de dentro dos baús azuis. O mascate ri-se para as freguesas, matraqueando com o metro. Seu chapéu de feltro sem abas, como um dedal, pende para um lado. Pelo outro, irrompe um tufo encaracolado de cabelo, em que resplandece uma rosa corada.

       Depois, é um turbilhão de penas, uma palpitação de asas presas, um resignado estertor — e uma voz que apregoa com uma estridência de clarim, de bandeira encarnada ao pino do sol: "Eh! frangos, perus, galinhas gordas!..." Passam como leques abertos, as penas brancas, as penas pretas, as penas cinzentas. . . Mas os olhos dos animais vão abertos e humilhados, mirando o que encontram, com aquela expressão ajoelhada do Santo coberto de espinhos. Mas um Anjo levantava o Santo, às vezes. A eles, é o braço peludo e suado que os levanta, de vez em quando, mostrando-o às criadas, nos portões. E ninguém aparece para socorrer aquela dor que passa sem nada pedir.

       O homem do realejo roda, roda, roda a sua música na caixa sonora. . . Que importa o destino das asas que palpitam só por alguns minutos mais? "Salta, Rosinha, vem tirar a sorte da moça!" Ê assim que fala o homem vestido de veludo, para o pequenino periquito que o acompanha. E o periquito retira com o bico um papel onde está dobrado um verso. As negrinhas exclamam: "Cruz! que bicho ensinado! Tem parte com o cão!" O homem ri-se com seu riso de carcamano. As crianças chegam-se para junto dele: os garotos com os paus nas mãos, as meninas, enternecidas, com as mãos para trás, miram a cena e murmuram: "Rosinha!" E em seus lábios sérios há uma espécie de êxtase.

       E a música roda: Fim, fim, fim, fim, fim, fim.

       Maria Maruca vai grudando as palavras aos sons:

      

       "Eu fui no Tororó,

       beber água, não achei,

       achei bela morena,

       que no Tororó deixei..."

      

       O homem desce com o periquito e o realejo; os garotos apedrejam os pássaros, cuspinham para o lado, como gente grande, e perguntam para a menina, sem cerimônia: "Como é? Você não vai malhar o Judas?

       E a menina foge.

       Foge: e vê os santos descobertos, as dálias orvalhadas nas jarras, a área secando ao sol, a roupa brilhando na corda, e Maria Maruca entre as galinhas que lhe escapam, em debandada.

       E é um turbilhão de penas e um alarido de vozes. Mas a criança está em silêncio. Está em silêncio e pensa no Santo. Ele salvará aquela galinha que vem nos braços de Maria Maruca? Ele saberá que é tão bonita, tão redonda, que se deita de lado com tanta graça e estende as asas para o sol tão mansamente?. . . E a menina pede ao Santo que não lhe aconteça nenhum mal. E embaixo de uma árvore, com o rosto escondido nos joelhos, espera que sossegue o tumulto do galinheiro.

       Maria Maruca alegremente canta:

      

       "Hoje é sábado de Aleluia,

       peixe no prato,

       farinha na cuia!"

      

       A menina sobe lentamente.

       Os sinos bimbalham como gente rindo-se no alto das torres. E as chaminés apitam. E apitam os trens, e os navios, longe, muito longe. . . E os garotos batem com os paus em latas, em ferros, em caixas. . . E rodas douradas de pandeiros estremecem cintilantes no meio dos grandes rumores... E as criadas soltam gargalhadas. . . E as patroas abrem as janelas. . . E um largo perfume de incenso se derrama de dentro das casas. . . "Malha! Malha o Judas!" Os paus batem num boneco de estopa: pan, pan, pan. . .

       A menina chega e vê sobre a mesa da cozinha a galinha morta, com as frouxas penas cheias de um tênue frio.

  

       AS MULATINHAS perguntavam: "É de berlinda?" E elas mesmas respondiam: "Parece que é de coupé. . ."

       E na outra rua progredia o trotar das parelhas ao tinir dos arreios.

       As janelas abriam-se com um estalar de fechos e um estremecer de cortinas. As moças de trança, morenas e pálidas, chegavam, como em sonho, definindo-se e diluindo-se entre as vidraças e a renda.

       As meninas levantavam-se dos canteiros, arrastando pelo chão as bonecas despidas; os meninos corriam para a porta com as espingardas e os arcos.

       Os moleques assoviavam uns para os outros, gritavam: "Lá vêm eles!" — e subiam pela rua aos pinotes, olhando para trás de vez em quando.

       Por entre as grades, por cima dos muros, no alto das varandas, apareciam as mulatinhas cochichando umas com as outras, e cobrindo a boca com a mão para rir. . .

       Até os velhos de paletó de alpaca saíam da cadeira de balanço, com o lenço na mão, arrastando as chinelas e cocando a cabeça por baixo do gorrinho de seda. As velhas gordas vinham-se chegando, cambando para um lado e para outro, como barcas, consertando na frente os franzidos da saia.

       Brilhava uma estrela na testa do cavalo. Brilhavam duas estrelas. Brilhavam todas as estrelas, e os arreios cobertos de guizos de prata. A cartola do cocheiro surgia, tão alta, muito acima do muro. Com uma sacudidela mais forte, sussurravam todos os guizos. E fazia-se uma pausa, dentro da qual se ouvia o rumor dos carros que vinham depois.

       — Que beleza! Cavalos brancos! exclamavam as mulatinhas, debruçando-se. Os moleques olhavam de longe, assombrados.

       "Ainda não é aquele!" apostavam as crianças. As moças pálidas olhavam sérias, muito de longe.

       "Vem mais outro!" gritavam os moleques.

       Os cavalos estremeciam: e, como se fosse musical todo o seu corpo, vibravam os guizos sobre cada músculo. Os cocheiros, de perna cruzada, e com a cartola para trás, enxugavam o pescoço por dentro do colarinho, e conversavam devagar uns com os outros.

       Enchia-se o fundo da rua de carros reluzentes, cujos vidros chispavam com o sol. E um deles era tão recamado de flores, tão fresco na sua brancura de lua e jasmim que se devia estar lá dentro com a mesma delícia que, no silêncio da noite, debaixo de um caramanchão.

       Lá em cima, o jardim se enchia de cores e movimento. Surgiam vestidos de gaze, molhos de flores, laços de fitas. Cintilavam ao sol já pálido rápidos leques de lantejoulas.

       E lá embaixo os cocheiros descruzavam a perna, e, endireitando a cartola, enxugavam pela última vez o suor d0 pescoço.

       Os cavalos levantavam uma pata, sacudiam a crina. As estrelas lampejavam. E a música dos guizos tremulava entre as velhas pedras do chão e a sombra mansa e densa das amplas mangueiras acinzentadas.

       Umas diziam: "Mas como está bonita!" Outras contrariavam: "Ah! eu não acho, não." Umas diziam: "Daqueles vestidos é que eu gosto. Está vendo? Todinhos de casas de marimbondo!" Outras diziam: "Que falta de gosto! Eu acho a madrinha muito mais bonita!"

       As moças pálidas, passando a mão pela trança, vertiam os olhos escuros pela janela abaixo, e pensavam.

       Mas o cortejo descia. O padrinho arqueava o braço com uma infinita solicitude. As meninas de laçarotes nos cabelos encrespados suspendiam muito sérias a imensa cauda do vestido. Os meninos, entalados em roupas novas, carregavam nos braços grandes almofadas de cetim branco, e davam passos miudinhos com os seus sapatos apertados e fulgurantes. . .

       Como uma figura de livro, a noiva parecia apenas um desenho: não falava, não olhava. Se lhe perguntassem quem era, talvez não soubesse. Parecia ter deixado o seu próprio nome em algum lugar, e só o seu desenho descia a rua, sem que se soubesse como, porque nem se lhe viam os pés.

       As pessoas tomavam seus lugares nos carros. Ouvia-se o bater das portinholas. Os guizos cantavam alegremente, com a voz unânime de todos os grilos da noite. . .

       As rodas rodavam, as patas dos animais martelavam cadenciadamente a rua, cada vez menos perto, menos perto. . . Ficavam pelo chão os moleques, olhando, misturados com os gatos, os cães, as pedras. . . Os vizinhos suspiravam, lembravam coisas, recolhiam-se. . .

       Mas dentro das casas sentia-se que a conversa continuava sobre os personagens da festa.

      

       Oh! quando voltavam os cavalos sussurrantes, começava a escurecer: e o brilho dos vidros, dos metais, dos cetins, das lantejoulas adquiria trepidações e transparências perturbadoras.

       Todas as janelas e portas se povoavam de novo: mas não se distinguiam muito bem os rostos: as formas fundiam-se em desenhos superpostos.

       O cortejo duplicava: cada pessoa levava consigo a sua sombra. Sentia-se que sorriam, sentia-se que falavam: mas os lábios se dispersavam na noite. As vozes se desfaziam facilmente. A asa dos leques sacudia estrelas para todos os lados. Aquela claridade passando lentamente, longa como um pássaro, era a noiva, coberta de flores, com um longo véu e uma longa cauda.. .

       Perdia-se no fim das ruas a música dos cavalos e o rodar dos carros. Giravam os morcegos entre as árvores. . . Acordava o tremor dos grilos pelas ervas, pelas paredes, nos interstícios do ar. Fechavam-se as casas. Apagavam-se as varandas. E a noite parecia uma noite qualquer.

       Ah! mas não era...

       Não era porque, do alto da rua, junto ao céu, perto das estrelas, um som cristalino começava a gotejar vagarosa melodia. Ouvindo-a, murmuravam: "É a festa! Vai começar a festa!" As negrinhas falavam umas com as outras, na sombra dos corredores e dos quintais: "A festa! Você não quer ir ver dançar?"

       Os garotos diziam lá fora: "Começou a festa! Vamos ver!"

       E alguma pessoa que ia subindo sem saber de nada, olhava o clarão, lá em cima, e perguntava: "É casamento? Ah?"

       E o clarão, lá em cima, anulava a pobre iluminação dos lampiões da rua. Era o jardim todo aceso, eram as salas iluminadas, eram as janelas abertas dissipando as luzes da terra e as luzes do céu.

       Custava-se muito a subir a rua. Os pés caminhavam pelo escuro, atentos mas cegos. As meias agarravam-se às ervas do chão. Brilhavam faíscas súbitas: os vaga-lumes fugiam.

       Às vezes, alguma coisa arranhava as pernas: algum bicho? alguma planta? Ficava um ardor que as unhas não acalmavam. E subia-se.

       Respirava-se com surpresa o ar estranho dos jardins vizinhos. De cada um, vinha não apenas os cheiros das flores, mas todos os cheiros que compunham a estrutura da casa e a sua respiração humana. Perfumes doces, nítidos, da trepadeira aparada estrelando com suas folhas a parede branca da casa do casal sem filhos; confusos cheiros de rosa e lodo, dentre as grades velhas do jardim do paralítico; aroma das plantas humildes alinhadas em latas enferrujadas; suave exalação dos canteiros regados, ainda com pingos de água nas folhas longas — canteiros da casa rica, entre os quais desce, constantemente, a voz do afilhado do doutor: "Mas por que é que o profeta Jeremias. . . ?"

       As velhinhas perguntavam do alto dos peitoris: "Vai ver a festa?" e seus olhinhos brilhavam no fundo rosto, surpreendidos de ainda se acharem acordados.

       Os gatos pulam para a rua. Um vento leve dança com os ramos. Alguém fecha num porão uma janela, devagar. Vê-se ainda luzir as candeias dos santos.

       Cai um fio de água limosa por um muro abaixo: o ar tinge-se dessa umidade, acre e pegajosa.

       Cachorrinhos nervosos latem à toa e pulam degraus de escada.

       Sentado no terraço, o velho cachimba, e ouve a música sozinho, sozinho, como se não houvesse mais nada no mundo senão mesmo a música e ele. E a fumaça do cachimbo boiava no seu desenho de longa nuvem, branca e leve, por baixo do céu. . .

       — Boa noite!

       Olhando-se para trás, via-se a rua perder-se numa confusa sombra. Desapareciam casas, jardins, pessoas, numa densa escuridão.

       Só existia cada trecho de rua no momento em que cabia dentro do olhar. E, longe, muito longe, ruas invisíveis, estendidas paralelamente, imitavam, na terra, com seu salpico de luzes débeis, o mistério do céu levemente estrelado.

       Mas a música ouvia-se cada vez mais perto. E agora havia mais gente pelas janelas e pelas portas, em grupos modelados de penumbra, onde apenas se destacavam alguns relevos tocados de luz, e a cintilação dos olhos feridos pela claridade.

       E de repente passava-se da escuridão para a zona iluminada: viam-se os bicos dos sapatos na terra clara; percebia-se o desenho verde das plantas rasteiras. Entrando-se nessa zona, mudava-se de mundo. Cessava aquele ermo e elevado silêncio em que existia apenas a alma frágil de grilos, vaga-lumes, estrelas e flores. E cujos habitantes humanos paravam como estátuas ou deslizavam como sombras.

       Nesta zona iluminada, uma vida turbulenta e ruidosa se agitava. As meninas, de camisolas de seda com grinaldas de flores, corriam umas atrás das outras, pela varanda, pelo jardim, desaparecendo entre as árvores e reaparecendo, com os cabelos batendo ao vento, numa cascata de cachos. Os meninos, de blusa de cetim, corriam também com elas e ouviam-se suas vozes gritando, ao longe, diminutivos:

       — Nininha!

       — Quinquim!

       O resto era um rumor risonho e perdido, que não se percebia com clareza, porque, no primeiro plano, estava a música, uma cristalina, brilhante, límpida música.

       Reluzia, inclinado na parede, um imenso espelho, pesado de ornamentos — e quadros com molduras de veludo inclinavam-se também como janelas onde sorriam, pessoas, com certeza já mortas.

       Viam-se as flores nas jarras — e, ora de frente, ora de costas, passavam dançando as moças de azul e as senhoras de cinzento, e a luz copiosa do lustre de pingentes fazia brilhar travessas de ouro e de pedras claras, nos cabelos armados em altos bandos.

       No fundo da sala, sentados no sofá, de face para a rua, os noivos assistiam ao deslizar dos pares. Não falavam, não sorriam, não olhavam um para o outro. Estavam ali, sentados, quietos, sérios, como duas pessoas adormecidas de olhos abertos. Uma coroa de flores de pelica cingia à frente da moça, muito pálida, o imenso véu que a cercava de nuvens brancas. Seus olhos eram escuros, com fortes sobrancelhas perfeitamente desenhadas. Lentamente ela movia o leque de rendas sobre o peito. E a luz feria as lantejoulas, que jorravam multiplicadas, numa distribuição mágica.

       A música docemente cantava, um pouco triste, mas tão linda!

       E os vultos perpassavam, alternando as suaves cores dos vestidos, numa deliciosa sucessão.

       Diziam: "A mais bonita é aquela de branco. Repare: vai passar agora." E passava a de branco, toda, toda cercada de gaze, como uma flor numa jarra de cristal. Respondiam: "É mesmo: mais bonita que a noiva! Parece uma santa!"

       De repente, a música parava, os cavalheiros faziam uma reverência, batiam palmas. O pianista agradecia, e abanava-se. Os pares saíam mansamente da sala, de braço dado.

       Ouviam-se as vozes risonhas das crianças por entre as árvores: "Quinquim!" "Mariazinha!"

       Na rua comentavam: "Agora estão nos doces. Viu quantos baús vieram da confeitaria? Estão abrindo o champagne!"

       Mas os noivos continuavam na sala. E sentavam-se perto deles senhoras de cabelos brancos. Ela fechava e abria o leque de lantejoulas; e uma serenidade imensa pousava em seu rosto pálido, a que as nítidas sobrancelhas davam um ar de misterioso pássaro.

       E a menina, cansada, com os olhos entontecidos de sono, sentia-se dentro daquele vestido rebrilhante, alegre de tanta brancura, abanando-se com aquele leque faiscante. E pensava que seria bom adormecer assim vestida, entre véus tão fofos cercada de flores tão eternas, e daquela música que parecia um bailado de estrelas — fina, leve, límpida. . .

       — Pois agora é que vai começar a quadrilha. . . — murmuraram.

       — Mas a menina já está caindo de sono. . .

       — Por que não volta depois? Venha ver o balance!. . . . . . Devia ser doce, a frescura do leque sobre as nuvens do véu. As lantejoulas se soltariam, seriam pássaros de luz, cantando nas ramagens da noite. As flores se abririam de um lado e de outro do sonho, silenciosas. E o moço, perto dela, estaria para sempre, imóvel, guardando-a para que ninguém a roubasse, adormecida e tão linda. . .

      

       Dobravam-se duas esquinas, passava-se pela grande árvore onde as negrinhas gostavam de brincar de "tempo-será", de quatro cantos ou de pular corda. Mesmo quando elas não estavam, ou eram as pedras, ou as paredes, ou os ramos, ouviam-se as vozes: "Pega! Foge! Quem pega passarinho não deixa fugi!"

       Depois, havia muitas janelinhas iguais. Era isso o que atrapalhava.

       Maria Maruca olhava o número, e dizia: "É aqui." Batia-se diretamente na porta sobre a rua. Abriam um postigo, olhavam: "Oh!" E quando a porta se abria, abriam-se também os braços: "Mas cadê ela? E como vem bonita! Cheia de babados!" Levavam-na por um corredor, e numa pobre mesa estendiam uma toalha dobrada, alteavam-lhe a cadeira com travesseiros, e serviam-lhe, num pires com florezinhas, doce de coco, ou arroz-de-leite, ou canjica, ou manjar-branco. Era sempre assim.

       Ela custava a tirar a colher da boca, absorvendo o último vestígio de açúcar pelo metal. Depois, tiravam-lhe o guardanapo, lavavam-lhe as mãos e, enquanto as enxugavam numa toalha com bordados de linha encarnada, diziam-lhe com meiguice, girando os olhos, e franzindo e desfranzindo os lábios largos: "Agora. . . quero que me recite um verso!"

       Então, ela se punha no meio da casa, abria os braços, e com um grande esforço de articulação, começava, numa cantilena:

      

       "Sou pequenina,

       meu vestido é curto,

       deixando, a furto,

       entrever meu pé..."

      

       Có ia seguindo suas expressões como um espelho: virava a cabeça, abaixava o queixo, mexia com os dedos.

       Quando aquilo acabava, saía correndo para esconder-se muito tempo nos braços que a esperavam.

       E Có animava-a, batendo-lhe nos babados do vestido: "Está ficando uma sabichona. Vá brincar! Precisa aprender outro versinho!"

       As crianças apareciam de todos os lados. Agarravam-na, analisavam-na: "Xi! Tem olho de gato! Deixa ver! Como é teu nome, coisinha? Tem um colarzinho de ouro! Me mostra. Que bonito! Tem calunga, tem figuinha, tem cruz, tem coração, quem te deu tudo isso, hein, pequena?"

       Puxavam-na para todos os lados. O vestido desabotoava-se. O colar abria-se. As crianças consertavam tudo outra vez: "Você qué vim brinca com a gente? Qué brinca de veado qué fugi?" E mostravam a variedade dos brinquedos: "A gente sabe brinca de Viuvinha; de Tempo-será; de marre dici; de Ciranda, cirandinha; de Manda tiro tirolá; de Bento que bento é o frade..."

       Uma negrinha mais espevitada intervinha e decidia:

       — De Tempo-será! De Tempo-será! O pique é ali na árvore. Vamo vê quem é a boiá:

       Encolhia a mão como a pata do papagaio, e estendendo um único dedo, pontudo, preto, engelhado como o de um velhinho, com uma unha branca, fosca e convexa, ia espetando o peito de cada uma dizendo muito gravemente esta lengalenga:

      

       "Un, deux, trois,

       marimbombô de chocolat..."

      

       E ordenava de vez em quando: "Sai fora!" Começavam a correr. Ralava-se o joelho nas pedras. Có intervinha com trapos molhados em vinagre. E voltava-se para brincar, meio capenga, limpando as últimas lágrimas nos babados da gola.

       Quando se ia embora, quando todas as negrinhas desapareciam, as pedras, as paredes, a árvore continuavam a brincar:

      

       "Foi por esta rua, dominó. . .!"

      

       Mas, uma noite, uma pessoa diferente tomou-a pela mão e disse-lhe: "Vamos." E deixaram-na ir. E a mão que a levava causava-lhe estranheza: tão fria, tão pegajosa, tão dura. Por que seria que a deixavam ir?

       Dobraram uma esquina. Dobraram a outra. Já se avistava a árvore, e, brandamente, por baixo dela, as vozes das coisas cantavam:

    

       "Nesta rua, nesta rua tem um bosque..."

      

       E estava escuro, e os lampiões vacilavam nas névoas da noite. Não havia quase ninguém. Algum gato, sentado nos muros, assustava com seus olhos fulgurantes. Um último ébrio vinha saindo de uma última porta. E a pessoa perguntou para si mesma, ou para a noite: "Será aí mesmo?" E a pessoa respondeu para si mesma — ou foi a noite: "Deve ser." E a mão bateu levemente na porta: "pan, pan, pan. . ."

       Então, sentiu-se uma luz caminhar, ouviu-se o arrastar dos chinelos no assoalho, e viram-se os vidros das janelas todos vermelhos. E abriu-se o postigo e um rosto fatigado apareceu, e murmurou qualquer coisa em voz baixa.

       E a mão suada, fria e dura, estremeceu, agarrando-se com força à mão da criança, e a voz suspirou inquieta: "É??. . ." E essa única letra tinha um som estranho, e prolongado, interminável, crescendo, crescendo no vazio da noite. . .

       E o postigo fechou-se. Nenhum sorriso dos lábios grossos e largos. Nem tempo para dizer: "Có!" E aliás... por quê? — parece que nem a tinham visto. . . E a pessoa apressando o passo, e a mão tremendo, na noite morna, na noite que envolvia de névoa os candieiros da rua velha. A boca murmurava para si mesma, ou para a noite, ou para a criança: "Meu Deus! Meu Deus!" E a pessoa corria, corria. A criança mal a podia acompanhar, embaraçando as pernas uma na outra. E a pessoa dizia, sufocada: "Depressa! Corre! Foge!" E a criança queria olhar, para ver se vinham soldados, se vinham ladrões, se vinham bichos. E a pessoa insistia: "Não olha, menina, não olha, que pega!"

       E a criança olhava, apesar de tudo. E não via nada. Nada, senão a noite, e as duas sombras quebrando-se pelas paredes. E no recanto deixado para trás misturavam-se, em seus ouvidos, as cantigas e os brinquedos, sobrepostos, entrelaçados, confundidos, e os corpos das negrinhas, e seus braços, suas mãos engelhadas, pedaços de umas nos corpos de outras. . .

       A pessoa deixou-se cair numa cadeira, e disse, amarela, fria, arquejante, com os olhos projetados para fora: "Bexigas!"

       A palavra sussurrou pela casa: "Bexigas. . ." e ainda mais baixo: "Bexigas."

       Boquinha de Doce suspirou apenas: "Seja o que Deus quiser!"

       A pessoa desatou a chorar. E ela dizia: "Não chore! Não tenha medo!" E batia-lhe no ombro.

       Maria Maruca profetizava num canto, com voz grossa: "Quanto mais medo, pior, é quando pega!"

       Despiram a menina, e deitaram-na.

       A pessoa devia ter-se ido embora quando ela já dormia.

      

       A NEGRA que trazia a notícia resmungava, encostada à parede:

       — Pois é verdade! Pois foi assim. . . Virge Nossa Senhora!

       E Boquinha de Doce, pensativa, murmurava: "Coitadinha! Tanto medo que teve! Sentou-se naquela cadeira tremendo. . .   Chorava como uma criança!"

       OLHINHOS DE GATO refazia a cena: "Ela corria! Ela dizia que pegava! Ela me puxou pela rua afora! A mão dela tremia! Ela estava com muito medo!"

       Maria Maruca amarrava o avental, e observava: "Eu cá sempre digo: quanto mais medo, pior. Deus me perdoe: mas eu não tenho medo de nada!"

       A negra que trazia a notícia tornava a dizer, encostada à parede: "Pois é verdade! Pois foi assim... Virge Nossa Senhora!"

       Uma pausa. O galo que canta, o passarinho que belisca o alpiste, Maria Maruca que vai lavar roupa. . .

       — Só Deus sabe o que está para acontecer a cada um! Boquinha de Doce separa as mãos, no seu gesto resignado: "Seja o que Deus quiser!"

       A negra descia a escada, com o corpo de lado, acertando com cuidado os pés nos degraus. No seu pulso preto e fino, em que o sol punha um risco branco, havia muitos, muitos fios de prata, enrolados uns sobre os outros. Depois, Maria Maruca comentava:

       — Qualquer dia vem aí o doutor, e vacina-te. Dizem que é muito bom. Eu cá não me vacino, não. Deus me livre! Isso é só para as crianças... E eu não tenho medo de nada. . .

       — Quando é que o doutor vem? — perguntava a menina.

       — Ah! qualquer dia destes. . . Quanto mais cedo, melhor. E cantava:

      

       "Lá vem o sr. doutor,

       com a sua camisa de chita,

       com a sua lanceta na mão fazer a sua visita..."

       A menina perguntava: "Que é lanceta?"

      

       Ela batia a roupa na pedra e explicava: "São instrumentos que os doutores usam."

       E Boquinha de Doce ainda murmurava: "Coitadinha! Parece que adivinhava..."

       — Coisinha, por que é que tu não vem brinca?

       — Num posso. . .

       — Por quê? Tu tá doente? Tá cum cunstipação? Que é que tu tem?

       Maria Maruca continuava: "Quanto mais medo, pior. Viu o que aconteceu cum a outra? Tremeu tanto, correu tanto, chorou tanto! O que tem de vir vem mesmo. E quando a hora chega, não há remédio senão esticar a canela."

       — Anda, coisinha! Tou te esperando!

       Boquinha de Doce suspirava: "Seja o que Deus quiser!" Então a menina descia a escada, e dava as mãos às crianças.

       — Por que tu demorou tanto! Tu num queria vim? Vamo brinca de roda:

      

       "Mariquinha morreu onte

       onte mesmo si enterrou

       na cova da Mariquinha

       nasceu um buquê de frô!"

      

       Mas no dia em que ela ouviu dizer que o doutor já estava na casa do vizinho, meteu-se no guarda-roupa e fechou as portas.

       Maria Maruca cantava muito animada:

      

       "Lá vem o sr. doutor,

       com a sua camisa de chita..."

      

       O doutor mandou buscá-la, e, a muito custo, ela sempre conseguiu aparecer.

       — Eu hoje não vacino, não — declarou ele à menina, brandindo a lanceta. Hoje, continuou, vou só marcar o lugar em que vacinarei depois.

       Então, ela deixou que lhe tomassem o braço, onde a lanceta fez três cruzes pequeninas.

       Maria Maruca exclamou com todos os dentes de fora:

       — Ai! tão bonitinho! Vês como o braço fica todo enfeitado? Deus me perdoe, mas até parece o do mascate!

       E o doutor acrescentou:

       — Agora não se toca, não se mexe, para não sujar tudo com a tinta. . .

       Ela olhou, olhou e compreendeu que aquela tinta vinha de dentro dela mesma, que era o seu sangue, que aparecia naqueles três pequenos desenhos.

       O doutor fechou a mala com um estalinho. Boquinha de Doce levou-o até a escada. Maria Maruca enrolou-lhe a manga do vestido no alto do braço.

       — Hoje não vacino, não. . . Vou só marcar os lugares. . .

       A menina sentiu dentro de si aquela melancolia indefinida das coisas inexatas. Como quando acordou e não encontrou Có perto dela. . . como quando lhe disseram que o cachorrinho tinha fugido. . .

     As pontas do fraque do doutor abanavam, no descer da escada.

       Dentinho de Arroz apalpa o chão cautelosamente. "Não: aqui está úmido. Vamos mais para cima." OLHINHOS DE GATO vai pulando na frente. Agarra-se ao tronco esverdeado e rugoso que seus braços não abarcam. O tronco é bonito, aveludado e, olhando-se bem, sente-se por dentro dele relva, roupas de seda, frascos, pedras limosas, tanques de água fria, cigarras.. .

       Dentinho de Arroz está olhando, olhando. "Você está vendo os morrinhos verdes. . .? o riacho. . .?"

       — Não, eu estou vendo é se tem formiga-de-fogo ou bicho-cabeludo pra queimar o pescoço da gente.

       Limpou com a mão o tronco, cuja casca se esfarelava à toa. Desfizeram-se em pó muitas paisagens dormentes: mas logo brotaram outras novas, na surgida madeira morena.

       Dentinho de Arroz enrola as saias nas pernas, e senta-se numa espécie de banco formado pelas raízes da árvore, e por algumas pedras. Senta em seu colo a menina.

       Pelo muro sobem umas pontas de hera. As extremidades, que são ao mesmo tempo verdes, vermelhas e pardas, brilham, úmidas ao sol, com um lustro vivo de verniz. Mas o resto é acinzentado e fosco. Na parte mais velha, a planta perde sua condição vegetal, converte-se na substância da caliça, dos tijolos, e suas raízes torcidas e duras são lavores de pedra.

       Correm lagartixas claras, de olhos salientes, que se somem nos tufos da folhagem. Brincam no chão as manchas de sol movidas pelas folhas, como grandes medalhas de ouro. Canta uma cigarra bem perto, outra, de longe, responde. Depois, a primeira cala-se, e rompe num súbito vôo, atravessando as folhas e o ar rumorosamente.

       Cantam galos, aqui e ali, pela rua toda. Mesmo os das outras ruas respondem, mas tão distantes, tão leves, tão aéreos, que o vento, um curto sopro de vento desfaz a ascensão de seu grito.

       E o sol chispa ao longe nas clarabóias. Cai uma folha. Passa uma formiga.

       Tão bom! Tão bom resvalar do colo para a terra, e abrir os braços, e encostar o rosto no chão áspero, sentindo rente aos olhos os grãos de areia, a penugem das ervas, a mescla de vermelhos, de negros, de amarelos que compõem o corpo do mundo. . . Num recanto mais sombrio, avistam-se os cogumelos de frágil carne rósea. Os cogumelos que Maria Maruca chama de "chapéu de sol dos sapos. . ."

       Tão bom, perto da terra! Por cima da terra... por dentro da terra. . . "Ali morreu teu avô. . . Como tinha chovido uns dias antes, quando o levantaram, o molde de seu corpo ficou aberto no chão..." As folhas ovais do cajueiro superpunham-se como pequenas ventarolas douradas, rubras, castanhas, verdes. . .

       "Ossinhos. . . tudo ossinhos... Oh! como dói o coração.. ."

       Salta um passarinho por entre os ramos. Os urubus, altos, altos, fazem círculos, círculos... O sírio dos pêssegos apregoa pela última vez, joga o cesto para o chão, joga a rodilha, joga o corpo, e à sombra do muro come o resto das frutas, cantando uma rouca melodia. E cospe para longe os caroços. . .

       Tão bom! A água do tanque vem vindo por um trilho esverdinhado. Passa pelo pé da laranjeira, arredonda-se entre as pedras, goteja, segue, some-se pelo chão.

       Nesse momento, numa casa longe, alguém abre um piano e começa a estudar escalas. Ouve-se cada nota nitidamente. Sente-se a mão suspensa, hesitando no compasso, e os dedos acertando cada nota trocada.

       É a menina loura que toca. Só a menina loura, em todo o quarteirão, faz daqueles exercícios tão fáceis.

       E Dentinho de Arroz, relembrando tempos de familiaridade com a música, — era ela que limpava o teclado, era ela que estendia um veludo bordado sobre o marfim — solfeja, acompanhando: dó, ré, mi, fá. . .

       E OLHINHOS DE GATO sonha, com os olhos fechados, cheios de luz cor-de-rosa. Sonha. Há quanto tempo ela sonha com um piano grande como aquele, como o da casa de Orelhinha Peluda! Um piano que tenha aquele misterioso cheiro de madeira, verniz, metal e música. . . Um piano vibrante, desses que têm vida humana por dentro, que respiram, falam, cantam, choram, quando se calca uma simples tecla. . . E que depois conservam ainda uma espécie de suspiro esparso, uma espécie de arquejo de alegria ou de mágoa, que paira em ondas pela sala toda.

       Esses seus sonhos de música, ela mesma não os entende. Mas pensa, pensa em certos sons muito finos, espaçados, extremamente agradáveis, como em alguma coisa inesquecível que se ouviu remotamente com infinito prazer. Virá das gravuras dos livros? de alguma coisa perdida em sua lembrança? de alguma coisa acontecida durante o sono? Nos pianinhos de dez teclas não é possível combinar esses sons que trazem dentro de si muitas visões, que não são nada, eles mesmos, — e, no entanto, trazem consigo tantas coisas arrastadas; — que são apenas pancadas batidas numa parede mágica, num chão de encantamento: rodam portas invisíveis, enroscam-se escadas ocultas, e chega-se a um outro mundo de habitantes desconhecidos e no entanto familiares, que não têm nome, e se reconhecem; que não falam, e se comunicam. E uma espécie de transparência, um sorriso geral circula e comove. . .

       Com um piano, OLHINHOS DE GATO desce constantemente a esse mundo. Mas, na verdade, todos os sons possuem essa secreta propriedade de a transportarem por profundas viagens: a voz do galo... — o canário cantando — o sussuro da água no chão — o quase silencioso ciciar dos insetos — o bater dos relógios e dos sinos — a gaita do doceiro, estridente e inábil — a cometa de chifre do aguadeiro — as campainhas dos cavalos — os pandeiros de Carnaval — as cordas da guitarra: dlen, dlon, fll. . .

       Que pena, ter desaparecido o piano que havia em casa, o piano em que Dentinho de Arroz estendia um pano de veludo bordado... Só restavam as músicas, com anjinhos gordos nas capas, e letras muito enoveladas, em curvas planturosas de nuvens.

       O piano da menina loura toca ao longe outro exercício: dó, ré, mi, ré, mi, fá, mi, fá. . .

       Mas havia uma espécie de proibição, verdadeiramente. Na primeira noite que ela sonhou possuir, afinal, o piano grande, chegou a sentar-se no banco e a pousar a mão no teclado. Mas as teclas eram mudas. Eram de algodão? Eram de leite? Música nenhuma pôde nascer daquela tentativa secreta dos seus dedos, naquela nuvem de ilusão e deserto.

       A segunda vez que a noite repetiu seu sonho, chegou-se a ouvir a primeira nota: mas só essa. Porque ela estremeceu de alegria e, por estremecer, acordou. E suas mãos ainda estavam comovidas, mas já tristes, sobre o seu coração.

       Depois não sonhou mais com isso. Apenas, ouvindo os pianos, principalmente nos exercícios fáceis, punha-se a viajar por lugares perturbadores. Os mesmos lugares por onde a transportavam os papagaios de papel que não conseguia empinar. Flecha, papel, linha crua, vento: tudo isso ela conseguiu. Ficaria feliz de dar uma parte de si mesma a esse colorido pássaro plano que as outras crianças tão facilmente deixavam ir até as nuvens. E não conseguia. Só uma vez, em casa de Orelhinha Peluda, o menino deixou-a segurar o fio do papagaio já muito alto. Era extremamente agradável. Estava-se na terra e no céu, ao mesmo tempo. Atravessava-se com um barbante a névoa e o sol. Ficava-se inteiramente solitário, mas ouvia-se o mundo, querendo-se.

       Mas, depois, o menino olhou para ela com indiferença: "Me dá, pra botar mais linha na fieira..." Ele não estava viajando pelo ar. Ele estava preocupado com a quantidade de linha...

      

       Como as obras da igreja não acabavam, resolveram fazer uma festa, com leilão de prendas. Andaram pedindo por toda a vizinhança. Boquinha de Doce dizia, sentada à mesa: "O poder divino não está em nada disso. Que importa, a Deus, ter mais ou menos uma igreja? O lugar de Deus é no coração das criaturas. Mas não se deve ir contra a fé de ninguém. Apenas, sem um coração limpo, não adianta nada tanta reza e tanto altar..."

       Nem Maria Maruca falava. Até Maria Maruca ficava atenta.

       "Há pessoas que pensam muito na salvação, e fazem tudo para a conseguirem, menos o essencial. O essencial é o amor. Não há nada para pedir senão andar pelo caminho de Deus. Cada um terá o que merecer. E o que não tiver, aceitará com paciência a sua sorte. Ninguém sabe o que está para acontecer a cada hora. Por que desesperar-se hoje, se amanhã talvez tudo mude? E por que alegrar-se também tanto agora, se daqui a pouco se pode estar morto? É viver. Ir vivendo no Bem. Amanhã todos estaremos de olhos fechados."

       Maria Maruca declarou, como quem se confessa: "Depois da minha morte, será o que Deus quiser. Eu sou dos pobrezinhos, como Jesus. Dos de pé no chão. O inferno é para esses prosas, para esses linguarudos, unhas-de-fome, invejosos e comilões. Esses é que vão para as caldeiras-do-pero-botelho. Levam roncando uma hora pra morrer. Dos remorsos do que fizeram. Os outros morrem como os passarinhos. Viram a cabeça para o lado e está pronto: a alma voou. E o resto são missas, missas: dominus vobisco, arroz com marisco. . ."

       No entanto, Boquinha de Doce mandou tirar dos armários e das barricas uma porção de coisas para o leilão.

       — Isto também? — perguntava Maria Maruca diante de um quadro.

       — Também. Para que quero mais quadros?

       — Ai, se fosse eu não mandava. . . Porque é muito bonito mesmo...

       O jarro azul de cristal, esse, então, deu-lhe uma grande agonia:

       — Ai, uma coisa tão bonita! Vendem isto por uns dez-réis. . . Vai parar na casa de alguma beata, para uma negrinha piolhenta o quebrar! Ai, se fosse eu não mandava. . .

       O par de bonecos de biscuit deixou-a sucumbida. Com um boneco em cada mão, perguntava com a incredulidade de quem não ouviu bem:

       — Mas. . . isto. . . ISTO vai pro leilão? ISTO? Este casal de príncipes.. . ?

       Boquinha de Doce dizia que sim, sorrindo, e ela insistia:

       — Ai, se fosse eu não mandava. . . Uma coisa destas, tão linda, tão linda. . . Antes ficasse pra mim, pra botar na minha sala de visitas... Se algum dia me casar... Se encontrar um Manei para mim. . .

       Separou-se tanta coisa ali na área, que parecia uma arrumação de mudança. Maria Maruca enxotava os pintos para não jogarem nada ao chão.

       No dia da festa, Maria Maruca e Dentinho de Arroz foram assistir ao leilão de prendas com a menina.

       O leiloeiro, inchando as veias vermelhas do pescoço, berrava: "Uma caixinha. . . uma caixinha de surpresas! 1$500... 1$500..." O povo dizia com dentes de ouro e pastinhas engraxadas com óleo de coco: "Ora, moço, como é que a gente vai dar 1$500 por uma coisa que nem sabe o que é?"

       O leiloeiro contemporizava: "Mas, minha gente, é uma caixinha de surpresas! Pode ter dentro um anel de ouro! 1$500...   1$500..."

       As mulatinhas de vestido engomado levantavam os olhos luminosos para os músicos da banda. E os trombones brilhavam, e as clarinetas e os aros dos bombos. . .

       O leiloeiro levantava pelas asas um galo de pés amarrados: "Um galo, um galo notável, um galo que põe ovos e choca pintos..." A cara do leiloeiro repuxava-se sangrenta em sorrisos que lhe comprimiam os olhos miúdos e brincalhões: "Quem quer ficar com o chantecler, vamos ver, vamos ver!" E, de um lado para outro, no alto do palanque, ora enxugava o pescoço no lenço, ora brandia o martelinho que marcava os lances na varanda de ripas.

       Entre uma prenda e outra, o leiloeiro bebia um gole de cachaça e dizia graças para o povo. Mas Dentinho de Arroz afastava-se do povo risonho: "Não gosto de palhaçadas. Não sei que vale ser branco, se não se preza."

       Havia um intervalo. A banda rompia em músicas de dança. Pares de negros cerimoniosos dançavam distantes um do outro, no adro da igreja. Dentinho de Arroz dizia: "Vamos ver os santos..." E benzia-se diante dos altares, e mostrava à menina as imagens: os santos estavam tão quietos, tão frios nas suas roupas azuis, vermelhas e douradas como se a festa lá fora não tivesse mesmo nada com eles. Nem uma flor se movia, nos jarros: eram todas de papel metálico. Na nave, alinhavam-se paralelos os bancos desertos. Lá fora, a música era uma coisa estranha. "O lugar de Deus é no coração das criaturas. . . Que importa mais um altar ou menos um altar..."

       Maria Maruca viu arrematarem o casal de príncipes. Sua cara parecia uma árvore seca. "Mas não se deve contrariar ninguém na sua fé."

      

       POR QUE seria que resolveram cortar-lhe os cachos? — era muito trabalhoso enrolá-los? — estaria muito ardente aquele verão? Ou seria porque a tia Mariquinhas sempre falava que se deve cortar o cabelo às crianças para, quando crescerem, terem uma trança até os calcanhares?

       "E uma trança de seda... e tão longa que a barriga...   das pernas...   alcança!"

       Boquinha de Doce decidiu por onde devia passar a tesoura: nem muito curto nem muito comprido — que se veja a pontinha da orelha. E cortado na frente. Com franjinha.

       Alguém acrescentou: "Podia-se dar-lhe agora uns brinquinhos. . . Umas bichinhas de ouro. . . com uma pedrinha de cor..."

       Mas Boquinha de Doce retorquiu: "Ah! não. . . furar as orelhas à pobre criança?... Se eu não sei como isto está vivo. . . Bem trabalho que me deu, para agora maltratá-la?. . . Não, não." Tornaram a dizer: "Mas também há bichinhas de tarraxa..."

       Dentinho de Arroz não estava por ali. Ela, sim, que tinha as orelhinhas furadas, com uma argolinha de ouro fininha, como essas luas que ainda estão principiando. . .

       E Maria Maruca, enganchando o cinto, dizia:

       — Vais ficar uma tetéia! Agora podes pentear à marrafa!

       Já iam no meio da escada quando Boquinha de Doce ainda se lembrou de recomendar: "E tragam-me para casa os cachinhos cortados! não se esqueçam!"

       Então, descendo a rua, a menina passou a mão melancolicamente pelo cabelo. Cabelo alourado, fino como o dos recém-nascidos, e encaracolando-se sozinho. Pensou vagamente: "Quando voltar..." Um estranho sentimento a foi levando para diante. As outras crianças riam-se para ela: "Você logo vem brincar de roda?" "Adeus, coisinha!" Depois, as cordas continuavam a bater, e as meninas a pular. Ela olhava para trás: ninguém se ocupava mais com ela. Os pais das crianças voltavam do trabalho, davam boa-tarde para os lados, faziam-lhe festa no rostinho: "Vai passear?" E as casas iam ficando longe, e aquela rua, e depois a outra, e os bondes, o quiosque. . .

       Maria Maruca ia andando, andando e levando-a pela mão.

       Por fim, o moço disse: "Que menina tão bonita! Tem uns olhinhos de gato..." E levantou-a com uma facilidade como se fosse uma formiga, uma folhinha seca, e sentou-a numa cadeira que subia e descia rodando, diante de um espelho com prateleiras cheias de vidros de perfume, de latas de pó-de-arroz.

       A cadeira rodou, rodou, levando-a, como nos carros mágicos de Carnaval. Quando o moço achou que estava de boa altura, tirou da gaveta um pano branco muito bem lavado, e esteve um momento com o pano aberto diante dela, como um toureiro, segurando-o só com dois dedos de cada mão. E a menina pensava que aquilo era uma brincadeira, como as que o Lulu fazia em casa de Orelhinha Peluda, tirando ovos da manga da camisa e virando copos cheios de água sem os entornar.

       Ela sorria, esperando pela brincadeira. Mas o moço tornou a dizer apenas, mirando-a: "Vai ficar muito bonitinha, de cabelo cortado."

       Passou-lhe o pano pelo peito e amarrou-o no pescoço. Estendeu outro pano pelas costas e perguntou para o lado: "À inglesa, não é?"

       Maria Maruca levantou-se e com a ponta do dedo descreveu-lhe por sobre a cabeça da criança a altura certa do corte, o lugar certo do risco, o comprimento certo da franja. E o moço disse: "Muito bem!" Maria Maruca tornou a voltar, para dizer ainda: "Os cachos são para levar para casa."

       Então o moço desatou a fita azul do laçarote, e pousou-a na prateleira. A menina, sentada firme, com o pano branco cobrindo-lhe os bracinhos, e as mãos pousadas nos joelhos, olhou para a fita transparente estendida sobre o vidro, refletida no espelho, amassada nas marcas do laço. Viu também no espelho seu rostinho pálido, de lábio triste, e de olhos claros e sozinhos, emoldurado — pela última vez! — nos cachos em que a luz despertava umas levezas de ouro claro.

       O moço tomava com uma das mãos os caracóis, com a outra fechava a tesoura, decepando-os, e contava, a brincar: "Um, dois, três..." Recolhia cada cacho na palma da mão, concertava-os um pouco, enrolando melhor algum fio disperso, e, entre um e outro, a tesoura fazia tchic, tchic, tchic... no ar, como os pés das crianças que apostam corrida, no instante em que se vão lançar a correr.

       A menina viu reunir assim todo o cabelo cortado numa das mãos e depois amarrá-los vagarosamente com a fita azul que tirou da prateleira. E viu-se a si mesma, de novo, no espelho, — mas uma outra, diferente da anterior, perdido aquele ar mais infantil dos cabelos esvoaçantes, onde a luz armava surpresas de claridade — mais séria agora, com os cabelos concentrados num tom mais escuro, parados, quietos, unidos, tristes.

       O moço colocou os cachos cortados na prateleira, e retomando a tesoura tornou a dizer falando para o espelho: "Vê, como está ficando bonitinha?" E sorria. E ela sorriu também. Sorriu e levantou, com pena, os olhos para os dele. E achou-o simples e inocente como uma criança. E achou-se cheia de pensamentos como uma velhinha.

       E a tesoura começou a cortar, num tom saltitante: plic, plic. Um homem que saía disse: "Boa noite!" Ela, porém, não pôde ver quem era, porque estava de cabeça baixa. Por cima do pano, desde os ombros até as suas mãos, rolavam pedacinhos de cabelo cortado, que caíam juntos, e depois se separavam, dispersando-se pelo pano, pelo chão. E diziam adeus! adeus! — adeus para ela mesma, adeus uns para os outros, — ADEUS.

       Depois, o moço levantou-lhe o queixo, mirou-a, tornou a sorrir, tomou um frasco de metal, molhou-lhe a cabeça toda. E esfregando-lhe o cabelo, misturando-o bem entre os dedos, perguntava-lhe: "Gosta do cheirinho, hein? Não é mesmo gostoso?" E ela olhava para o espelho, pensando porém outras coisas: vagas, distantes, fora dali. E ele explicava: "Isto é água de batata-doce." E com um pentinho muito estreito fazia um risco, e alisava o cabelo com a mão, e penteava esticando bem, e aparava no pano as gotas de água que caíam das pontas do cabelo. "Água de batata-doce." E havia aquele cheiro, em redor dela. . .

       A tesoura recomeçava: plic, plic. , . — e sacudia no ar as aparas miúdas: tchic, tchic, tchic. . . "Fique muito quietinha agora para não lhe cortar a orelha." A tesoura rangeu mais demorada, e caiu um grande pedaço de cabelo, unido e comprimido pela água.

       Ele tornou a mirá-la, sempre com o mesmo sorriso — de um lado e de outro, de frente e de costas. Segurando o pente e a tesoura, perguntou para o lado: "Estará bem?"

       Maria Maruca veio ver, encontrou as pontinhas das orelhas de fora e concluiu que estava bem.

       Então, ele pôs-se a acertar a franjinha. Passou o pente, passou a escova, pousou a mão — e a tesoura deslizava: plic, plic, plic. . .

       Retirou o pano das costas, sacudiu-o bem, tornou a estendê-lo, e disse assim: "Agora vamos raspar o pescoço." E com um pincel cheio de espuma, pintou-lhe o pescoço molemente, frescamente. A maquinazinha passava como um trem pela espuma estendida. Fez-se então uma grande frescura. Uma nuvem de pó-de-arroz dilatou-se no ar, e uma escovinha branda passeou pelo rosto, pelo queixo, pelo pescoço da menina: "Vê como está bonitinha?" E o moço rodava a cadeira, brincando com ela. "Você tem olhinhos de gato.. . tem olhinhos de gato.. . tem..."

       Maria Maruca, ao entregar-lhe o dinheiro, perguntou: "O sr. não tem um papelzinho para embrulhar os cachos?" E ele respondeu: "É verdade!" Os globos de gás eram cor-de-rosa. Num deles dormia uma grande mosca.

       E voltaram pelas ruas já escurecidas, em que os lampiões palpitavam fatigados, de longe em longe.

       Maria Maruca dizia: "Agora vai só andar na marrafa, hein?"

       E ela, passando a mão pela nuca raspada, sentia-se estranha, diferente, uma outra, que era e não era ela. ..

       As crianças disseram: "Ah! coisinha! cortou o cabelo! Corre, gente, vem ver! Oh! Tão cheiroso! Vem brinca de roda com a gente, vem!"

       Boquinha de Doce sorriu-lhe encantada: "Está ficando uma mocinha. . . Ainda parece mentira!. . . Deixe-me ver se está bem cortado! Estes OLHINHOS DE GATO! E os cachos? Onde estão os cachos?"

     E quando os viu cortados, amarrados com a fita, parou em silêncio a mirá-los, acariciou-os, beijou-os com um suspiro, como a uma outra criança, que se fosse embora, e lentamente os tornou a embrulhar.

       E a menina assistia, agradecida.

      

      Boquinha de Doce deu-lhe uma cadeirinha de vime. Ela sentou-se para ver a rua — e viu o mundo.

       Passaram os caixeirinhos de caderno na mão e lápis atrás da orelha; os açougueiros de avental e caixote enfiado no braço; os peixeiros e quitandeiros com muitos cestos sobrepostos pendurados num pau vergado no ombro. Passaram os meladeiros, os agüeiros, os aguadeiros e, com eles, os mascates e os laranjeiras: gente de todas as cores, falando de todos modos: "Arquitan e cófi, ongu e laranja siletra." Mas o homem de perna de pau era diferente de todos. Todos vendiam para ganhar a vida. Este vendia para fazer feliz. "Corre hoje! Corre hoje! É o 5.583! É o final do touro! Quem quer ficar com a sorte grande? Corre hoje! É a sorte! É a sorte! É o touro com 83!"

       A mulata velha chegava à janela, atrapalhada com a sua gordura. Chamava-o com a mão. O homem da perna de pau vinha subindo, e seu ombro subia e descia, forçado pelo movimento. A ponta da perna batia duramente na calçada. "O touro com 83." A cara do homem estava suada, seu chapéu de palha preta desfiava-se pelas beiras. Ele garantia à mulata: "Corre hoje. É a sorte! É o touro para hoje."

       E a criança compreendia o mistério do touro de cabeça humana, do touro de barbas que existia dentro de um livro.. . Seria aquele o da sorte grande? Seria?

       Mas as mulatinhas contavam umas para as outras. "Não compro, não. Em bilhete não tenho sorte. Tiro sempre o mesmo dinheiro. Só tenho sorte no jogo do bicho. Joguei no elefante, tirei 12$000. Hoje estou com palpite na borboleta. Cerquei o veado uma semana. O veado e o cachorro. Ganhei em todos dois."

       Longe, embaixo da árvore, as negrinhas saltavam de repente: "O veado qué fugi! O cachorro qué pega! Segura bem, pequena! Você tem a mão mole!..."

       Um dia a negra Ludovina explicou-lhe: "É assim: 1 — avestruz; 2 — águia; 3 — burro; 4 — barbuleta." Foi dizendo o nome de todos: jacaré e pavão, gato e camelo. . . A menina perguntou: "E passarinho, não tem?" E a negra dizia pacientemente: "Então num tem a barbuleta? Eu já num disse?" "A borboleta?" "A barbuleta, sim. Pois barbuleta não voa? Como qui num é passarinho?"

       "Corre hoje! É o touro com 83! Olha a sorte! Olha a sorte!" Ludovina explica: "Isso tem sua ciênça: sonha cum morto, dá elefante; cum arve, é cobra — cobra é que trepa em arve; cum soldado é camelo, pru causa da muchila. O sonho é munto bão. O sonho ensina tudo. Mas o jornazinho ainda é mió. A gente põe o copo cum água em cima dos calunga e vê lá dentro o parpite. Ou tá nos bigode, ou tá na carcunda, em carqué lugá ele está. Ah! si o meu São Jorge quisesse me ajuda um bocadinho... si ele quisesse ajuda a esta negra veia sua serva. . . Mas cuá..."

       "Corre hoje..." E a perna de pau batia, batia. . .

       — Quem qué lê sorte? Diz tudo: passado, presente e futuro!

       Esvoaçavam os lenços amarelos, os aventais vermelhos, as saias cheias de ramagens. E as pulseiras e os colares chocalhavam.

       As mulatinhas sibilavam: "Psiu... psiu..." As mulheres morenas vergavam para trás as mãos finas e escuras, de palma branca, com riscos cor de chocolate: "Tua amiga te engana. Tua amiga branca. Tu toma cuidado com a tua cabeça. No fim do ano tua vida vai muda..."

       OLHINHOS DE GATO ficava olhando para a palma da sua mão. Cada risquinho daqueles queria dizer então uma coisa... E suas mãos eram tão riscadas... Já tia Tota se tinha admirado, uma vez: "Essa menina vai ter uma vida muito atrapalhada... Só dificuldades, só dificuldades..." Mas Boquinha de Doce, que lhe afagava o cabelo, murmurou: "Talvez não. . . Oxalá que não... E há de ser o que Deus quiser..."

       A menina suspirou, sem saber nada.

       "É 500 réis... Lê tudo: passado, presente, passado, futuro. . . Lê a sorte, diz se casa, adivinha herança e dinheiro da loteria..."

       O vento inchava as saias de ramagens, as ciganas limpavam o suor no avental, e chocalhando as pulseiras, e balançando as trancas, iam-se embora, inclinadas para trás, coloridas como pássaros. Uma parava para arrancar um espinho do pé.

       Mas depois veio o cego, de rosto erguido, com uma bengala, um menino e um cão. E esse não falou. Esse não sabia nem o passado, nem o futuro, nem o presente. O menino bateu palmas, a janela abriu-se, a voz disse: "Deus o favoreça." Ele continuou a andar, levantando mais o rosto. Seus olhos eram brancos, de bordas vermelhas. Com a ponta da bengala é que ele via o caminho. Com as mãos do menino é que ele batia palmas. Com os seus ouvidos é que ele ouvia cair a esmola ou a palavra de consolo.

       Na cadeirinha de vime continuava a menina a olhar para a rua e a ver o mundo. Diziam-lhe: "Entra, que já está muito mormaço!" Ela se levantava e arrastava a cadeira, as ciganas, o cego, o perna-de-pau. Andava com eles por dentro de casa. Conversava com eles. E fazia-os conversar uns com os outros.

       O menino do lado perguntava lá fora: "Mas por que é que o profeta Jeremias andava sempre chorando?"

       Maria Maruca batia na testa: "O prosa virou pateta..."

       O gato levantava-se do sol e ia descendo a escada.

      

       Dessa cadeira, e debruçada para o mundo, foi que ela realizou o seu imenso descobrimento.

       Bastava olhar para o céu de noite, e acontecer cair-lhe na vista a "Gota-serena..." Bastava passar pelos olhos a mão suja do pólen das mariposas-.. .

       Passou a ser cega e a viver no mundo dos cegos — com a noite por todos os lados e apenas a própria memória sustentando a noção de sua presença: como uma pessoa perdida de noite numa casa escura e fechada. Como um enterrado vivo com as mãos pelas raízes, por baixo do chão. . . Assim esteve a menina ceguinha, sem encontrar sua roupa, sem saber sentar na cadeira, sem distinguir mais o lado certo da porta, sem perceber quem vinha pela sua frente. . . E recebeu a bengala das mãos do menino magrinho, deixando-se levar por ele, e falando para a direita com o cachorrinho meio leproso que o acompanhava pela esquerda. . . Assim foi a menina ceguinha, pela rua afora, sentindo o sol pelo calor das mãos, sentindo a chuva pelos pingos no rosto. . . Sem ver suas próprias botinas cobertas de pó e tropeçantes nas ervas. . . Nem a roupa estendida no capim. . . Nem o enterro do anjinho descendo. . . Nada, nada. E por sobre a sua cabeça rolava um negro vintém de esmola. Rolavam, mais claras, as palavras da moça pobre: "Deus o favoreça..."

       Quando recuperou a vista, OLHINHOS DE GATO compreendeu que voltava de uma profunda viagem, e realizara um imenso descobrimento.

       Começaram, então, as partidas sucessivas. Foi alternada-mente a moça pálida e séria das longas trancas — e a menina loura movendo as mãos ao longe, no invisível piano: dó, ré, mi, ré, dó. . .

       Sem sair do lugar andou por estranhos lugares, e sem que ninguém reparasse passou para dentro de todas as vidas. Tingiu-se de negro e desceu e subiu, com latas de água à cabeça, com filhos pequeninos ao colo. . . Perdeu a perna e vendeu bilhetes de loteria.

       Caiu bêbeda no capim, pesada de tristeza, com os olhos molhados e ardentes: "Vossemecê é a empelatriz. . . Eu sô o empeladô..." Levantou-se Frederico-o-lobisomem, de orelhas amarelas, com os ossos das costas espetados no paletó. . . Empurrou o portão como as negrinhas de olhos esquivos. "Passei por aqui, entrei pra armuçá..." e sentou-se no banquinho de pés em W para comer tutu de feijão.

       — OLHINHOS DE GATO! Que é que estás vendo, lá longe. . . lá longe?

       Ela ficava logo perto. Como poderia explicar o que estava sendo, fora da sua vida?. . .

       E tudo era ser e deixar de ser. Como quem despe um vestido, como quem solta um brinquedo e apanha outro: assim. Assim facilmente. E não apenas as pessoas: mas também os animais. Sentiu-se cachorro, morcego, formiga, lesma. . . Viu os vultos enormes das pessoas, e o mundo monumental das árvores, das casas, das igrejas, levantando-se perto dela, subindo para o ar e as nuvens, para a lua, para o céu.. .

       Então, foi vegetal também. Ficou fria, de pé, com muitos braços abertos, deixando passar os movimentos, as luzes, os sons. . . Sentiu o doce nível da altura, e o secreto convívio com a terra. Subia e descia pelo caule, como a voz incomunicável de um morto à procura de um vivo.

       E fechou-se dentro desse chão. E deitou-se inerte entre os mortos. "Ossinhos... Os ossinhos..." Fez-se ossos, apenas. "O poder divino... O poder divino. . . Não sei como isto ainda está vivo!" E ela estava ali sentada, sorrindo, e enterrada, e acabada, misturada com as sementes, as formigas, as conchas. "Embaixo do cajueiro. Ali foi que o avô morreu."

       E como todas essas vidas ainda eram consistentes e limitadas, afrouxou suas moléculas, dispensou qualquer contorno, espraiou-se na fumaça das nuvens, dissipou-se indeterminadamente pelo céu, foi tudo e nada ao mesmo tempo, sem lado de cima, sem lado de baixo, entregue ao campo que há por detrás do mundo, e por onde se rola sem nome, sem figura e sem fim. Mas chamaram lá dentro: "OLHINHOS DE GATO!"

       E então lembrou-se que era a ela que chamavam assim. E tornou a conformar-se em aparecer como uma criança de camisola, com um anelzinho de ouro no dedo, e o cabelo cortado um pouquinho acima da orelha.

       — Mas já conhece as letras todas. . . — diziam perto dela. — Até o W e o Y!

       — Muito bem!

       — E conta até 50, ou mais. . . E sabe fazer o Pelo-Sinal. . .

       — Parece mentira! Quem havia de dizer! Só ela escapou! E todos os mortos estavam em redor olhando: de dentro dos espelhos, de dentro dos quadros, de dentro do álbum, ou puramente nos ares — todos juntos e cada um deles sozinho, sozinho...

       E ela via os mortos e os vivos. E os vivos não sabiam. Nem talvez os mortos, também.

 

                                                                                            Cecília Meireles  

 

                      

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