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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS MORTOS VIAJAM / Mark Halloran
OS MORTOS VIAJAM / Mark Halloran

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS MORTOS VIAJAM

 

Uma mistura explosiva: política e tráfico de drogas!

Dom Marty, repórter do Daily Leader, descobriu que Tony Lilac, candidato a senador, estava envolvido com tráfico de entorpecentes. E a situação estava cada vez mais complicada, pois Lilac havia comprado o Leader.

A descoberta de um cadáver, em total estado de putrefação, desencadeou verdadeira guerra entre duas quadrilhas dispostas a tudo para dominar o comércio de drogas em Los Angeles.

Marty resolveu investigar a fundo e, com auxílio do Tenente Stolz, da Polícia de Los Angeles, conseguiu desbaratar as duas quadrilhas, levando à prisão seus chefes...

 

Deve ser ótimo voltar para casa após alguns meses de ausência e encontrar uma mulher à nossa es­pera, com um monte de sorrisos, beijos e lágrimas. Mas não havia ninguém me esperando. Entrei em meu apartamento vazio e deitei-me para dormir em minha cama de solteirão. A viagem me esgotara.

Somente depois de ter tomado banho, mudado de roupa e saído outra vez foi que a encontrei. Pareceu-me impossível tê-la esquecido, porque ela não era dessas mulheres de quem a gente esquece, mas a ver­dade é que eu quase já não me lembrava mais do seu rosto. Seu nome era Lea Bates e ela morava no apar­tamento ao lado. Desde que ela foi morar ali, até o dia em que iniciei o giro pela Europa, nós fomos bons vizi­nhos, e até mesmo algo mais que isso. Fazia quatro meses que eu não a via, mas ela não mudara. Con­tinuava morena e tinha um belo corpo, com uma cin­tura fina e cadeiras bem contornadas. Suas pernas serviam de modelo para anúncios de meias. Seus olhos mantinham o mesmo brilho, sua pele era tostada de sol e seus lábios sensuais continham o mesmo fres­cor, sendo ainda proibidos para as pessoas emotivas. Era o tipo da garota que se costuma encontrar num grande estúdio fotográfico de publicidade ou no ca­marim de um clube luxuoso. Não sei por que, ela es­colhera a segunda profissão. Trabalhava no Samoa, em Cafión Uno.

Encontramos-nos no corredor.

— Dom Marty! — exclamou entusiasmada, com prazer e afetuosidade em sua voz. — Ora! Vejam só, Dom Marty!

— Não, é o meu irmão gêmeo! — respondi, sorrindo.

Ela veio em minha direção com as mãos estendi­das e eu as estreitei, observando-a dos pés à cabeça. Deleitei-me com seus cabelos crespos e curtos, com as grandes flores coloridas estampadas em seu vestido justo de seda negra, com seus tornozelos finos, com suas sandálias trançadas.

— Quando voltou?

— Hoje ao meio-dia.

— Fica por muito tempo?

— Acho que para sempre.

— Mas isso é ótimo!

— Não para mim, Lea.

Ela ficou intrigada. Deu-me o braço, levou-me em direção ao elevador e apertou o botão.

— Algum problema?

— Vários.

Alguém retinha o elevador no sétimo andar.

— Eu li alguns dos seus artigos... Da Alemanha, não foi? Eram interessantes. Não me lembro de nada deles, só sei que eram interessantes.

— Você não leu os últimos.

— Que quer dizer?

— Eles não foram publicados. Briguei com Crockett e ele quase me despediu, por isso voltei. E não é certo que eu continue trabalhando lá. Vou saber esta noite.

— Vai haver o diabo, hem?

— É o que eu acho. Entramos no elevador.

— Mas, por que, Dom? Que aconteceu?

— Gostaria de saber. Alguma coisa está aconte­cendo com o Leader. Política, acho eu... Sempre acon­tecem coisas quando se aproximam as eleições. Eles queriam me dizer o que eu devia escrever. Não concor­dei e Crockett mandou-me um ultimato. Que é que eu poderia fazer? Sou apenas seu empregado...

— Mas, por que isso, se você estava escrevendo da Alemanha?

— Aí é que está o mistério, Lea. Isto só poderia ser explicado se o Leader houvesse entrado na gaveta de algum candidato. Mas até agora o Leader foi um jornal independente.

Chegamos ao hall.

— Hum... — disse ela. — Compreendo. Você não poderia falar de Tony Lilac em seus artigos, não é isso, Dom?

Eu me detive.

— Isso mesmo. A lama que se espalhou pela Ale­manha há dois anos continua lá.

— Então, o seu mistério chama-se Tony Lilac.

— Que há com ele?

— Pretende se eleger senador.

— Tony Lilac?!

— Ele mesmo. Engoli em seco:

— Isso é absurdo, Lea. Seria o mesmo que Al Capone ou Dillinger terem aspirado a Presidência da República.

— Talvez eles não tenham se lembrado disso. Esta é a verdade, Dom. A notícia é de fonte limpa. Nin­guém ainda publicou nada a respeito, mas Lilac anda trabalhando na moita. Eu sei disso. Você se surpreen­deria com as coisas que se ouvem num camarim como o do Samoa, basta estar com os ouvidos atentos.

— Eu imagino.

Saímos à rua e ao chegarmos à esquina Lea parou.

— Bem, Dom, espero encontrá-lo noutra hora. Vou tomar o ônibus. Desejo-lhe felicidades no encontro com Crockett.

— Espere — respondi, tomando-a pelo braço. — Estou com o carro aí. Eu a levarei.

Dirigi, em silêncio, refletindo sobre o que Lea me dissera, e tive nojo. Tony Lilac sempre me inspirara asco, que aumentou ainda mais, quando eu soube o que ele andara fazendo na Alemanha. A ideia de que o Leader estivesse, de algum modo, ligado a ele era in­suportável.

— E como tem ido vocês, Lea — perguntei.

— Na mesma. Como se o tempo houvesse parado.

— E Rossana, como vai?

Perguntei apenas por perguntar, mas senti que ha­via tocado numa chaga. Foi incrível. Rossana Grant era colega de trabalho de Lea e as duas dividiam o apartamento, quando eu viajei. Ela era uma garota bonita, de riso fácil, corpo bem feito e belos olhos. Per­guntei por ela, apenas porque inúmeras vezes nós três, juntos, havíamos feito aquela mesma viagem no início da noite, quando elas se dirigiam ao Samoa, e eu ia para a redação do Leader. Foi só por isso.

O rosto de Lea se anuviou.

— Que há com Rossana? — perguntei. Lea segurou meu braço e apertou-o:

— Oh! Dom, agora me alegro, realmente, por você ter voltado. — Preciso... Preciso de ajuda... Não aguento mais. E não sabia a quem recorrer. Mas você me ajudará. Você pode fazer isso.

— Bem — insisti, preocupado pela ansiedade que ela deixava transparecer. — É alguma coisa de mau?

— É algo horrível. Você sabe que quero Rossana como a uma irmã... Bem, pois tudo começou pouco depois de você ter viajado. Ela conheceu um homem no Samoa, um sujeito conhecido por Dandy Toliver cujo nome de batismo é Thomas Tolliver. Ele tem muito cartaz entre as mulheres.

— Por quê?

— Não sei — respondeu, dando de ombros. — Eu devo ser uma exceção. Tolliver andou rondando o ca­marim, porém logo se cansou. Conseguiu, então, apa­nhar Rossana. Eu já o conhecia e apressei-me em pre­veni-la, mas... Como podem acontecer essas coisas, Dom? As melhores amigas do mundo tornam-se ini­migas quando aparece um homem. Rossana disse que eu estava me metendo em sua vida, por inveja e por não sei mais o quê... Brigamos. No dia seguinte ela deixou o emprego e pouco depois soube que Dandy a lançara em um numerosinho num music-hall de últi­ma categoria, ele lhe prometera transformá-la em es­trela, mas no momento não passava de seu amante. Você se lembra de bem de Rossana, Dom? Ela era uma garota ingênua, cheia de ilusões. Não bebia uma gota de álcool e nem sequer fumava... Logo mudou. Ago­ra... Você se assustaria se a visse... Se a reconhecesse. Ela não passa sem tomar drogas.

— Compreendo.

— Acho que a história não é muito original. A gente ouve falar desses casos às dezenas, mas não se faz ideia de como doem, até ver a coisa de perto. Dandy é um animal, um desses sujeitos que precisam se sentir constantemente superiores, porque não o são e sentem medo de si próprios. Transformou Rossana em sua escrava. Deve ter-se divertido muito pervertendo-a... Há homens que se divertem com isso. Agora ele pode desprezá-la e isto o agrada. Ele não a abandonaria por dinheiro algum, nem ela a ele, pois ela perdeu, inteiramente, a vontade de reagir.

— Isso significa que você tentou separá-los?

— Claro, mas que posso fazer? Espero que não seja muito tarde para salvar Rossana, porém não sei o que fazer.

— E eu?

— Ora, você é homem... E é jornalista! Poderia ameaçar Dandy.

— De que vive ele? De onde saiu?

— Apareceu em Los Angeles há quatro meses. É elegante, alto, amável, generoso em se tratando de gastar... Há muitos mais ou menos, parecidos com ele. De que vive ele? De que vivem esses sujeitos, Dom?

— De drogas?

— Ele tem drogas pelo menos para dar a Rossana.

— Tem amigos?

— Poucos, mas...

— Diga.

— Tony Lilac é o proprietário do Samoa e se Dandy vai lá é para falar com ele. E todos os lugares onde Rossana tem atuado pertencem direta ou indi­retamente a Lilac.

— Esse é um argumento contra Lilac, não contra Dandy. Isso apenas o favorece. Será difícil atacá-lo se ele tem um amigo tão poderoso como Lilac.

— É por isso que eu nada posso fazer. Dependo de Lilac para viver; é ele quem paga meu salário, e a época não está para se desprezar um emprego como o meu.

Voltei-me para olhá-la.

— Para uma moça como você deverão chover em­pregos melhores do que esse.

Ela ajeitou a saia, cobrindo o joelho.

— Pode ser que não sejam melhores — respondeu secamente.

— Eu estava me referindo a empregos honestos. De qualquer forma, se o Leader estiver, realmente, li­gado a Lilac, eu também não poderei agir livremente. — E a mim não me restará outra coisa senão me valer do físico, se Crockett me despedir.

— Mas Dom...

— Farei o que puder, fique tranquila. Onde pode­rei ver Rossana? Ela está trabalhando aonde?

— Ela, já não tem mais condições para trabalhar. Acho que você a encontrará na casa d e Dandy.

— Aonde fica isso?

— Não sei. Vou procurar saber esta noite.

— Combinado. Vou apanhá-la na saída, ou você tem algum compromisso?

— Não, Dom, nenhum. Tudo... Tudo continua como antes.

— Você ainda não foi mordida?

— Mordida?

— Pelo amor.

Ela fez uma careta que não expressava nada.

— Seja pontual — disse, apenas.

A amálgama de cores do Samoa surgiu, à nossa frente. Há alguns anos Cafión Uno era apenas uma campina, mas o rápido crescimento da cidade trans­formara-o em um bairro próspero, onde havia mais três casas tão iluminadas quanto o Samoa, colocadas entre os pinheiros que bordeavam a estrada. Todas pertenciam a Tony Lilac.

Parei o carro sob a intensa claridade do cartaz luminoso. Lea abriu a porta para descer, mas eu a se­gurei pela mão.

— Você disse que tudo continuava como antes, Lea.

Ela sorriu e, sem responder, inclinou-se para mim. Deixou que eu a estreitasse contra meu peito e fechou os olhos, enquanto eu a beijava.

Certamente, tudo continuava na mesma, pensei depois. Mas apenas entre Lea e eu. O resto havia mu­dado muito em quatro meses.

 

Até eu me encontrar com Crockett, eu não sabia como as coisas tinham mudado. Quatro meses antes, embora tivesse sessenta e cinco anos. Crockett era um homem de espírito jovem, lutador, enérgico e valente. Agora parecia estar à beira do túmulo. Desde que en­trei em seu gabinete percebi que a temida discussão não iria haver. Crockett não estava para discutir.

Ele disse que se alegrava muito em me ver, e o fez com um brilho de emoção nos olhos.

— Lamento o que aconteceu — acrescentou, — porém eu não podia fazer nada. Precisamos conversar, Marty. Sei que você está louco para me fazer pergun­tas. Eu responderei a todas elas.

— Que há, Crockett? Você já não é o mesmo.

— Não.

— E o Leader também mudou. Onde estão Brown, Karrigan, Leonard e Anne William? Perguntei por eles na redação e me disseram que...

— Que foram embora. É verdade. Abandonaram-me. E acho que você fará o mesmo esta noite.

— Alguma crise?

— Não de dinheiro.

— Quando começou?

— Há uma semana.

Puxei um cigarro e o acendi, sem tirar os olhos do velho jornalista.

— Crockett, me disseram que você não publicou as últimas crônicas que eu mandei da Alemanha, porque eu falava em Tony Lilac. É verdade?

Ele assentiu, lentamente.

— O que significa — prossegui — que o Leader vai apoiar Lilac na próxima campanha eleitoral. Não é isso?

— Isso mesmo, Marty.

— E por isso Anne e os rapazes o deixaram?

— Exatamente.

Expeli o fumo pelas narinas, enquanto raciocinava.

— O Daily Leader é um jornal independente — disse, por fim.

— Era.

— Os sócios proprietários...

— Não existem mais proprietários. Tony Lilac é o dono, agora.

— Crockett! — exclamei. — E você foi capaz de continuar no seu posto?

— Que vou fazer, Marty? — respondeu, lastimando-se. — Levei uma vida de cigarra, não de formiga, e estou pagando por isto. Sou obrigado a continuar junto do canhão até que ele arrebente. Quem vai que­rer um velho caduco como eu? Acha que não fui em­bora por que não quis? O que eu não daria para poder mandar Lilac para o inferno. E se eu fizer isso, o que será de mim?

— Todos os jornais da cidade o procurariam. Sua experiência e sua reputação...

— Eu experimentei, Marty — interrompeu-me ele significativamente.

Abaixei a cabeça:

— Lamento, chefe. Houve um largo silêncio.

— Só uma coisa me mantém de pé — disse Cro­ckett, finalmente. — O carinho que tenho pelo Leader, a ideia de que lhe continuo fiel, mesmo na adversi­dade.

— Isso não é ser fiel ao Leader, mas sim a Lilac. O Leader que nós amávamos morreu.

— Pode... Pode ressuscitar.

— Com uma nódoa de lama?

— Experimentemos, Marty. Atirei o cigarro longe.

— Não conte comigo.

Crockett olhou-me, esfregando nervosamente as mãos.

— Marty, quando recebemos suas últimas crô­nicas, Lilac mandou-me despedi-lo. Procurei contem­porizar e consegui que aguardassem a sua volta a Los Angeles, com a promessa de que eu tentaria conven­cê-lo a continuar trabalhando conosco. Eu lhe juro que não sei a que apelar: se para a nossa velha amizade, se para a compaixão que eu possa inspirar-lhe, ou ao nome do Leader, ou aos laços que esses anos de tra­balho em comum criaram entre nós. Preciso de você, Marty. Se você me abandonar como fizeram os outros, será o meu fim. Não quer compreender? Procuro con­tinuar dirigindo o Leader para que a catástrofe não se consuma. Sem colaboradores, fracassarei.

— Minha colaboração só lhe tornariam as coisas mais difíceis. Eu não posso ser fiel ao jornal e a Lilac ao mesmo tempo.

— Tente, eu lhe suplico, Marty.

Fiquei com pena e senti-me profundamente inco­modado.

— Impossível — insisti, sacudindo a cabeça. — Você conhece, como eu, o verdadeiro caráter de Tony Lilac e sabe que ele não passa de um gangster. Lilac foi à Alemanha e encheu os bolsos de ouro à custa da fome, da desordem e da desmoralização do após guerra. Falsificou certificados em nome de falsos soldados americanos e tirou várias dezenas de mocinhas da Europa para trazê-las aos Estados Unidos. Você sabe com que fim. E eu também. Isto se chama tráfico de escravas-brancas e é condenado por leis internacio­nais. Ele esteve a ponto de ser descoberto, porém con­seguiu se safar à custa de dinheiro e influência. Eu o descobri, novamente. Você vai me pedir, não só que eu guarde uma informação pela qual qualquer jornal da cidade me pagaria uma fortuna, mas que coopere para que um homem desses ocupe uma cadeira no Senado do meu país? É isso que você quer, Crockett?

Crockett mantinha as mãos muito quietas sobre a mesa.

— A única coisa que eu quero, Marty, é que você espere.

— Que eu espere o quê?

— Você disse que não podia ser fiel ao Leader e a Lilac ao mesmo tempo. Pois muito bem, não seja. Tive uma ideia. Espere. Se quer combater Lilac, se quer arrasá-lo, faça-o às custas do jornal. Você terá sua oportunidade. Fique e trabalhe.

— Uma traição? Crockett deu de ombros.

— Chame como quiser. O Leader é a única coisa que interessa a mim e a você.

— Não pode ser.

— Como sabe? Você tentou, por acaso?

— Preciso pensar.

— Pense, enquanto trabalha.

O velho era astuto. Suas extraordinárias qualida­des resistiam aos golpes da adversidade.

— Que aconteceu? — perguntei. — Ficou sem re­datores? É isso que o leva a procurar me reter, seja de que maneira for?

— Em parte — admitiu.

— Se eu aceitar, tem certeza de que não vai se ar­repender?

— Não sei, Marty. Nem me importa. Só sei que o Leader, sem você, não será o Leader. É a sua presen­ça em suas páginas que o sustenta. Aumentarei o seu salário. Lilac está disposto a lhe pagar o dobro se for preciso.

— Pois deixe-o dobrar. As traições custam caro.

— Então, aceita?

— Aceito.

Crockett fechou os olhos e afundou-se em sua pol­trona, respirando, aliviado.

— Combinado — disse, em tom de grande cansaço. — Não há mais o que falar. Eu lhe agradecerei, eter­namente, Marty. Agora pegue o carro e vá a Los Cerros.

— O quê?

Crockett voltou as palmas das mãos para cima.

— Compreendo que você esteja cansado e preci­sando de férias, mas agora não é possível. Preciso de você...

— Que há em Los Cerros?

— Os ferroviários declararam-se em greve esta ma­nhã. O movimento, por enquanto é local, mas se estende-se por toda a Southern Pacific, as consequências serão imprevisíveis. Capriche.

— Mas...

— Sim, admito que isto não seja matéria para você. É assunto para Leonard ou Karrigan, mas eles se fo­ram, e Hawks e 0'Hara estão muito ocupados. Preciso de uma informação de Los Cerros o quanto antes. Fa­ça-me este favor, Marty. Não se esqueça de que está ganhando em dobro.

— Está bem — respondi, aborrecido, — embora re­conheça que não é um bom princípio.

— Ora essa! — explodiu o velho. — Porque não faz com que Karrigan e os outros voltem ao jornal, se você está tão sensível?

— Também, com salários dobrados?

— Possivelmente.

Levantei-me e caminhei para a porta.

— Verei o que posso fazer. Vai ser curioso ver como Lilac se comporta, criando corvos.

— Ouça uma coisa, Marty — disse Crockett, quando eu já estava de saída. — Tony Lilac não é nenhum imbecil, não se esqueça. É esperto demais. Ele não criará corvos, a menos que possa tirar algum proveito dis­so. Ele sabe, muito bem, que tipo de lealdade pode es­perar de vocês e de mim.

— No entanto, se arrisca, mesmo sabendo.

— Ele pode se arriscar.

— Está certo.

Eu saí. Não me sentia satisfeito comigo mesmo; tinha a sensação de que Crockett conseguira me en­ganar. Apesar de tudo, eu estava trabalhando para Lilac e teria que engolir em seco quando o Leader iniciasse a todo vapor a campanha eleitoral. Meu pa­pel de cobra disfarçada na folhagem não me agradava. Nem mesmo com ordenado em dobro. Dizem que quem rouba de ladrão tem cem anos de perdão; não acre­dito.

 

A greve era uma coisa de nada: cinco empregados haviam se negado a descarregar um vagão na estação de Los Cerros; o feitor procurava obrigá-los, ameaçando-os de demissão e eles recorreram ao sin­dicato. O órgão de classe discutia a questão em assembleia e, daí, dependeria a eclosão ou não da greve-geral. Falei com o feitor e com o delegado sindical, tendo este se mostrado mais otimista.

— Os rapazes têm razão — disse, sacudindo a ca­beça. — Não está direito. É um abuso. Pode escrever isso mesmo: um abuso. Se quiser saber minha opinião, acho que isso irá longe. Não se pode brincar com a dig­nidade humana.

— O Sr. Kent, o feitor, não falou em dignidade hu­mana — respondi. — Segundo ele, seus empregados negam-se a descarregar mais vagões, porque eles não vêm cheios de água-de-colônia. Ele considera isto uma pretensão e, francamente, eu também acho a mesma coisa.

O delegado sindical não se abalou.

— Isto é apenas a maneira como ele apresenta o fato. Os rapazes não querem descarregar um vagão. Um único vagão. Eles não se importam em descarregar os demais.

— Porque este vagão não cheira a água-de-colônia?

— Deixe disso. Porque fede como quê.

— Coitadinhos — disse eu. — O mau-cheiro ofen­de seus narizinhos? Porque não usam máscaras, en­quanto trabalham?

— É uma questão de princípios. E, de certo modo, também de gostar do cheiro.

— Cheiro de quê?

— O fedor que sai do vagão. Eu lhe juro, repórter, que é o maior fedor do mundo.

Tudo aquilo era bobagem. Eu estava perdendo o meu tempo e o do jornal. Disse isso ao delegado sindi­cal.

— Para muita gente — disse ele — defender os direitos humanos é perder tempo. Eu não penso assim.

— Quer um conselho? — perguntei.

— Não — respondeu.

Eu lhe disse assim mesmo:

— Convença seus rapazes a cultivarem flores. Isto aqui não é trabalho para pessoas tão sensíveis.

Ele ficou-me olhando.

— Você é desses caras que gostam de gozar os outros, hem?

Dei de ombros.

— Bem, adeus, amigo.

Ele me segurou por uma das mangas.

— Espere.

— Aonde é que lhe dói?

— Você já cheirou o vagão?

— Não.

— Então, porque fala tanto? Se quiser fazer uma reportagem verídica, venha e dê uma cheirada. Se não quer, vá para o inferno. Vamos.

Ele me arrastou pelo braço da plataforma onde es­tiváramos conversando até o mais afastado dos desvios. Sob a luz de vários refletores avistei ali um vagão de carga, isolado. "Eis o móvel do crime", pensei. Percebi, também, que três grevistas, estrategicamente colocados, o vigiavam. Talvez a expressão certa fosse exageradamente distanciados. Quando passamos por eles, com­preendi porque guardavam toda aquela distância. Cer­ta vez tive a má ideia de abrir uma lata de conservas que tão tinha boa aparência e, quando a perfurei com o abridor de latas, jorrou dela um líquido com um mau-cheiro tão intenso e tão repugnante que passou sema­nas entranhado em meu olfato e nem mesmo com o passar dos anos consegui esquecê-lo completamente. Pois bem, um cheiro idêntico, fortíssimo, indescritível, horroroso, flutuava no ar em torno do vagão, e os três grevistas tinham tratado apenas de se manter longe do seu alcance.

O delegado puxou do bolso um lenço e aplicou-o ao nariz. Eu fiz o mesmo e não foi apenas por querer imitá-lo.

— Que me diz agora? — perguntou, quando era impossível nos aproximarmos mais.

Fiquei, um momento, pensativo.

— O que há dentro do vagão?

— Cargas.

— Que tipo de cargas?

— Caixotes, embrulhos, coisas assim.

— Quando chegou?

— Hoje de manhã.

— De onde?

— Da central de Los Angeles.

O mau-cheiro estava quase me fazendo desmaiar.

— Vamos sair daqui, depressa. O delegado sindical riu:

— O que me diz, agora? — repetiu.

— Como não descobriram antes que esse vagão fedia tanto? — perguntei. — Como foi que não viram isso em Los Angeles? Será que o pessoal lá tem nariz de ferro?

— Ora, entende-se que eles não tenham percebi­do. Não devia estar fedendo assim quando o carrega­ram, tampouco quando chegou aqui esta manhã, às nove horas. Os trens cargueiros não viajam tão rápi­dos como os expressos. Às vezes alguns vagões podem ficar até dois dias retidos numa estação, aguardando que se forme um comboio. Além disso, hoje fez muito calor. Tudo o que havia dentro dele foi-se estragando, penso eu. O caso é que quando os rapazes abriram as portas deste vagão quase caíram duros com a fedentina. E saíram correndo.

— Quer dizer que este vagão esteve parado no sol, com as portas fechadas, das nove da manhã às cinco da tarde.

— Isso mesmo.

— E com as portas fechadas não se percebia o fedor?

— Só um pouco. Não era nem sombra do cheiro que você sentiu agora.

Deixei o delegado sindical na plataforma e entrei no escritório do feitor. O Sr. Kent fumava um cigarro e lia um número atrasado do Collier's, com os pés so­bre a mesa.

— Há telefone aqui?

Ele me Indicou o aparelho e eu liguei, imediata­mente, para o Departamento de Polícia de Los Angeles, pedindo para falar com o Tenente Stolz.

— Aqui é Dom Marty — disse, quando ele atendeu.

— Marty! — exclamou. — Quando chegou?

— Esta tarde.

— Que surpresa! Alegro-me que você tenha volta­do. Tudo bem?

— Mais ou menos, Stolz. Acho que tenho algo para você.

— Já?

— Não estou certo. Pode dar um pulo aqui em Los Cerros? Traga alguns homens com máscaras antigas.

— Algum incêndio?

— Não, é algo que cheira mal como que. Ele titubeou, mas já me conhecia.  

— Irei já.

— Estarei esperando-o na estação. Não demore. O feitor tossiu quando eu desliguei o telefone.

— Você fez uma barbaridade — disse ele. — O sindicato armará um barulho dos diabos se a polícia intervier nisso. Não é que eu esteja do lado deles, claro, mas os tiras não me agradam. Eu também preciso ape­lar para a greve, de vez em quando, compreenda.

— Sabe por que aquele vagão cheira tão mal?

— Não tenho a menor ideia.

— Já deu uma olhada na relação de cargas?

— Já.

— Deixe-me vê-la.

O feitor apanhou o papel de uma gaveta e mos­trou-me. Ele dizia a verdade. Na lista não havia qual­quer indício.

— Daqui a pouco veremos se fiz uma barbaridade ou não. Estou apostando dez contra um como fiz bem.

Ele não aceitou a aposta. O Tenente Stolz chegou logo depois, trazendo quatro homens em seu carro, e apertou-me a mão, calorosamente. Ele era um bom rapaz; simples e inteligente. Foi o único policial com quem pude me entender em toda a minha vida.

— Que é que há, Marty?

Fiz-lhe sinal para que me seguisse e desci da pla­taforma,. O feitor observava-nos, pensativo, parado à porta de seu escritório.

— Eh! Aonde vão? — perguntou o delegado sindi­cal. — Que significa isso?

— Tenha calma — disse-lhe eu. — Ninguém vai prejudicar os seus rapazes.

— Eh! — insistiu, caminhando ao nosso lado. — Eh!

— Este vagão está cheirando mal como o diabo — disse a Stolz. — Ninguém sabe o que há dentro dele que possa estar provocando tal fedentina. Pode ser que não seja nada, não lhe garanto; todavia, achei melhor que você investigasse.

— Compreendo.

— Você entenderá melhor quando perceber que ti­po de cheiro é...

— Hum... — fez o tenente, um instante depois. — Eu soube que estourara uma greve aqui, contudo não me ocorreu...

— A mim, também não, até ter sentido o cheiro. Que acha?

— Vão descarregar o vagão? — perguntou o de­legado.

— É melhor botar um cadeado nessa boca resmun­gou Stolz.

Os três grevistas de vigia lançaram-nos um olhar venenoso, sem tentar fazer coisa alguma. Nós paramos próximo deles e os policiais sacaram suas máscaras. Stolz entregou-me uma delas, e eu a coloquei no rosto.

No mesmo instante, vi que o delegado dava meia volta e corria para a estação, e desconfiei que ele ia pedir socorro ao sindicato.

Os policiais alcançaram o vagão, subiram nele e acenderam suas lanternas elétricas. Stolz e eu ficamos em baixo. O trabalho foi iniciado imediatamente e a carga avolumou-se no leito da estrada de ferro. Ha­via, aproximadamente, uma dezena de caixotes, quan­do o tenente acenou energicamente para seus homens. Naquele momento, dois agentes empurravam para a porta um grande embrulho informe de papel, reforçado por cordas de um dedo de espessura. Não sou o que se costuma chamar de um homem sensível, mas juro que senti o estômago embrulhar, quando vi as grandes man­chas de umidade que impregnavam o papel.

O fardo foi arrastado até o círculo de luz ao pé de um refletor. No silêncio que as máscaras nos impu­nham, nós seis nos inclinamos para ver sua etiqueta. Segundo esta, o remetente chamava-se John Smith e residia no número 1414, da Rua Union, em Los An­geles; o destinatário era Frankie — assim, no diminutivo — Konno, de La Fiesta, Los Cerros. Viam-se tam­bém duas letras e um número de três algarismos es­critos com lápis vermelho, sem dúvida pelo despachan­te da cidade.

Stolz sacou uma lâmina e cortou as cordas, e os agentes ajudaram-no a retirar o papel de embrulho. Havia, porém, um invólucro plástico e mais papel. Não creio que algum de nós ainda ignorasse o que iríamos encontrar, mas, nem por isso, a descoberta foi menos as­sustadora.

Aquilo fora, algum dia, um homem. Dava náuseas vê-lo. Estava monstruosamente esquartejado, reduzi­do a pedaços e envolto em suas próprias roupas, e de­via estar morto há muito tempo, a julgar pelo seu adi­antado estado de putrefação. O que senti não passou de autossugestão, mas me pareceu que, apesar da más­cara, seu cheiro repugnante invadia-me as narinas. Afastei-me, enquanto Stolz e seus homens focalizavam as lanternas no rosto do cadáver e revistavam, apres­sadamente, os bolsos da roupa que envolvia seus restos mortais.

Antes de eles se afastarem daquele monte de carne podre, dando por terminada a macabra tarefa, reu­niram uma porção de coisas do morto. Foi, então, que eu aproximei-me deles, novamente. Agachado, Stolz examinava no chão os objetos encontrados: um maço de cigarros Camel, uma caixa de fósforos, um lenço, chaves, uma carteira, um porta-notas, uma cigarreira com oito cigarros egípcios longos, de filtro um Ronson dourado e umas moedas. Stolz abriu a carteira e a pri­meira coisa que encontrou foi uma carteira de moto­rista em nome de Thomas Tolliver. Li aquele nome duas vezes, compreendendo que era de Dandy Tolliver, de quem Lea Bates havia-me falado.

Achei que já tinha visto o bastante e regressei à estação. Os três grevistas, mais distanciados do va­gão que antes, e colocados sob um dos faróis, observa­vam, curiosamente, o meu passo. Quando tirei a más­cara e respirei fundo, percebi que eles me seguiam e logo avistei o delegado sindical e o feitor sentados na plataforma. Aproximei-me deles.

— E então? — perguntou o feitor, tranquilamente.

— Eu estava com a razão.

— Por quê?

— Encontramos um homem morto no vagão, Era o responsável pelo mau-cheiro.

Os três grevistas e o delegado cercaram-me, curio­sos.

— Um homem morto? Quem era?

— Consta de suas anotações uma encomenda para um sujeito chamado Frankie Konno, de La Fiesta? — perguntou Stolz ao Sr. Kent.

— Frankie Konno? — repetiu o feitor. E acrescen­tou — Espere. Não, por favor, não venha ao meu escri­tório. Ele vai ficar cheirando a podre o resto do ano.

Logo, em seguida, ele retornou, trazendo a lista de carga.

— Não — disse. — Não há nada para Frankie Konno.

— Tem certeza?

— Pelo menos aqui não consta nada.

— Sabe o que significam as letras L e T e o núme­ro 552, escritos com lápis vermelho, na etiqueta? O Sr. Kent acabara de sofrer um enorme golpe.

— Deus do céu! — exclamou.

— O que foi?

— Havia essa anotação no pacote?

— Sim, havia.

— Bem... Pois significa que devia ter sido enviado no vagão-frigorífico. Espere. Agora... Está tudo ex­plicado ...

O feitor voltou ao seu escritório.

— Num vagão-frigorífico! — disse Stoltz. — Um morto viajando no vagão frigorífico! Claro... Isso quer dizer que o pacote passou algum tempo na geladeira da central, que foi colocado neste vagão por engano, e que entrou em decomposição mais depressa do que em circunstâncias normais.

O feitor reapareceu, agitando uma folha de papel.

— Aqui está! — anunciou. — "Remessa em va­gão-frigorífico LT 552 para Frankie Konno, de La Fiesta; despesas pagas."

"Era o suficiente", pensei. Aproveitei-me da abstração de Stolz e seus homens, dei a volta na estação, saltei no meu carro e arranquei.

 

A casa se erguia bem meio a um bosque de pinheiros.

Era uma bela residência, de estilo espanhol, bem cuidada e iluminada, cercada por um jardim, onde ha­via uma piscina e uma alameda, por onde entrei com meu carro.

Um filipino atendeu-me à porta.

— O Sr. Konno está? — perguntei.

Ele não me respondeu, limitando-se a me olhar inquisitivamente.

— Sou da Southern Pacific — expliquei. — Houve um pequeno engano com uma encomenda para o Sr. Konno e eu gostaria de tratar do assunto, pessoalmen­te, com ele.

— Vou ver — respondeu-me.

Ele me deixou num hall majestoso, voltando pouco depois.

— Siga-me, por favor.

Percorremos um corredor cujas paredes eram ador­nadas com cabeças de touro empalhadas e saímos em uma varanda, situada na parte traseira da casa. Um homem estava sentado numa espreguiçadeira ao lado de outra, ocupada por uma linda mulher. Olhei muito mais para ela do que para ele. A mulher trajava um vestido negro, muito justo, que lhe revelavam as belas formas; era um desses vestidos decotados, fechado por um broche muito abaixo do pescoço. Ela fumava, usan­do piteira e, embora se fingisse sonolenta e displicen­te, olhou-me duas vezes quando entrei. O homem era forte e moreno, de grossas sobrancelhas e estava em mangas de camisa. Tanto ele como ela tinham copos nas mãos e próximo estava um bar portátil aberto.

Mais atrás avistei um toca-discos, que tocava uma mú­sica lenta e baixinha, formando um fundo musical. Para dizer a verdade, eles estavam compondo a ima­gem exata da felicidade em uma noite de verão. Tive inveja de Frankie Konno.

— Que quer? — perguntou-me ele.

Frankie Konno era justamente o tipo de homem que se poderia pensar em encontrar numa casa como aquela. Ele não inspirava confiança e faltava-lhe res­peitabilidade, honradez. O modo como arrastou as pa­lavras, ao falar, levou-me a olhar para baixo de seu braço, em busca de um coldre. Ele não estava ali.

— Vim pedir-lhe desculpas, Sr. Konno — disse-lhe eu. — Cometemos um erro imperdoável. Uma en­comenda para o senhor, que devia ter vindo no vagão frigorífico, nos foi remetida, da central, no vagão co­mum de carga e seu conteúdo perdeu-se inteiramen­te. Naturalmente, desejaríamos chegar a um acordo com o senhor sobre a indenização.

Konno franziu o cenho.

— O senhor é funcionário da estrada de ferro?

— Esta noite descobrimos o ocorrido — respondi, fazendo um gesto ambíguo, que não denotava assentimento, nem negação.

Era tarde. Ele se alarmara. Tinha os olhos gruda­dos em mim e algo fervia no fundo deles.

— Acontece que não estou esperando encomenda alguma. Quem me enviou?

— O Sr. Smith, da Rua Union 1414, Los Angeles.

— Em meu nome?

— Sim, não há dúvida alguma.

— E o que contém?

Olhei significativamente para a mulher. Konno ergueu-se e fez um gesto claro.

— Dê o fora, garota.

A mulher levantou-se, permitindo-me vier suas per­nas bem torneadas. Passou por mim levando seu copo e olhou-me pelo canto dos olhos ao entrar na casa.

— Quer um drinque? — perguntou Konno.

Aceitei e ele me serviu quatro dedos de uísque es­cocês puro. Seus modos haviam-se modificado ligei­ramente.

— Quem é você? Um detetive?

— Porque pensa que sou um detetive?

— Bem, seja lá quem você for, diga-me de que consta a encomenda. E fale claro.

— Conhece Dandy Tolliver? Ele apertou os olhos.

— Eu lhe pedi que falasse claro.

— Está bem. A encomenda contém um cadáver esquartejado e em adiantado estado de decomposição. O cadáver é de um homem chamado Thomas Tolliver.

Apesar de estar esperando por algo mais ou menos errado, ele ficou atônito. O mais curioso é que a notí­cia pareceu-me tê-lo tranquilizado. Ocorreu-me pensar, então, o que poderia haver em um pacote que fosse pior do que um corpo esquartejado. Konno esvaziou seu copo de uma só vez, voltou a enchê-lo e tornou a beber tudo num só gole. Um disco de Lena Horse dava voltas no toca-discos.

— Olhe aqui, meu amigo — disse Konno, lenta­mente — vai querer me convencer de que estou louco, ou é você quem está? Não conheço nenhum Smith que more na Rua Union nem preciso que ninguém me en­vie coisa alguma. Pode ficar com esse embrulho, se é que ele existe mesmo.

— Mas conhece Dandy Tolliver — afirmei.

— Com que direito você me faz tantas perguntas? Afinal de contas, quem é você?

— É melhor deixar isso para lá. Estas discussões sobre direitos e identidades nunca acabam bem.

Konno murmurou uma expressão de baixo calão, voltou-se de costas para mim e desligou o toca-discos, com violência.

— Não quero ouvir mais uma palavra a respeito dessa história, está compreendendo?

— Vai ter que ouvir. A encomenda é dirigida a você.

Ele se inclinou para mim.

— Olhe aqui, rapaz. Você vai sair desta casa e es­quecer que me conheceu. Será muito melhor não se meter onde não é chamado ou, do contrário, vai se arrepender para o resto da vida. Está-me ouvindo? Po­nha na cabeça: eu só aviso uma vez. Uma vez só.

Levantei-me, puxei um cartão de visitas e coloquei-o sobre o bar.

— Como quiser — disse-lhe eu. — Telefone-me se mudar de ideia. Não tenho nada contra você, Konno. Vim-lhe fazer um favor. Quero apenas lembrar-lhe que isto é um assassinato, que está nas mãos da polícia e que logo você será incomodado. Se eu puder ajudar-lhe mais tarde, procure-me.

Em meio à cólera, ele se riu:

— Não seja ingênuo. Acha mesmo que a polícia vai se meter nisso?

— Que quer dizer?

Ele apertou uma campainha instalada no bar e leu o meu cartão.

— Você não parece muito esperto para um jorna­lista. É do Leader, hem? Você ficou maluco? Ou está querendo me enganar?

— Não sei do que está falando — confessei. O filipino surgira à porta.

— Olhe, vá se embora — disse Konno, impaciente. — Vá-se embora e deixe-me em paz. Arranje uma ben­gala de cego para andar pelo mundo até que lhe abram os olhos.

O filipino conduziu-me de volta, pelo mesmo ca­minho, até a porta da rua. Eu estava tão desconcerta­do que nem percebi já estar na rua e que a porta se fechava às minhas costas. Konno me tratara como se eu fosse um imbecil e, provavelmente, tinha razão para isso. Ele me falou uma porção de coisas que eu não entendi, como se tivesse conversado comigo em chinês.

Antes de abrir a porta do carro, vi alguém dentro dele. Era a mulher. Entrei e sentei-me ao seu lado.

— Que surpresa agradável!

— Vamos depressa até a estrada — sussurrou. — Preciso lhe falar.

Algo em seu tom levou-me a acender a luzinha da chave de ignição. Olhei-a nos olhos e vi que estava chorando. Liguei a chave e partimos.

— O que é que você tem?

— Fiquei atrás da porta e ouvi toda a conversa. É verdade que mataram Dandy?

— Mataram.

— E que mandaram seu cadáver em... Em peda­ços?

— Foi.

— Oh! — gemeu e, logo depois, soluçou.

— Você gostava dele?

Pelo jeito dela compreendi que eu estava enganado.

— De Dandy? Oh! Claro que não!

— Porque está chorando, então?

— Não compreende? Por... Por mim e por Fran­kie. Eu disse a Frankie que isso ia acontecer. Ele ti­nha-me prometido um colar de brilhantes e uma casa em Beverly Hills. Nós já a tínhamos, inclusive, esco­lhido. Sabe qual é? A casa onde Ray Milland morou no ano passado. É um sonho de casa. E depois iría­mos à Europa. Oh! Não, não.

Quando chegamos à estrada eu parei o carro.

— Bem, não fique assim. Tudo isso se perdeu com a morte de Dandy?

— Sim. Quer dizer...

— Konno é amigo de Tony Lilac? — perguntei, de supetão.

— O quê?

— Não, nada — apressei-me em retificar. — Eu não disse nada. Não vejo... Você sabe quem matou Dandy?

— Claro que sei! — exclamou, tão surpresa como se eu tivesse perguntado quem descobriu a América. — Quem mais poderia tê-lo assassinado?

— Quem foi?

— Você mesmo não acabou de citá-lo?

— Tony Lilac?

— Venha cá, está querendo brincar comigo?

— Nem pense nisso. Tony Lilac matou-o, está cer­to. Por quê?

Ela ficou pensativa. A julgar pelo ritmo de sua respiração, ela se acalmava pouco a pouco. Voltei a acender a luzinha para ver seu rosto, porém vi algo que me agradou mais: seu decote.

— Por tudo isso... — disse, afinal. — Não posso lhe contar... Você disse a Frankie que era detetive, não disse?

— Jornalista.

— Ah, é? Eu entendi mal. Bem, não importa. Você me agrada. Parece ser um homem decidido. Esperei-o para lhe pedir que o faça. Sei que você o fará. Se precisar de dinheiro, eu lhe darei.

— Fazer o quê?

Ela se chegou mais para perto.

— Frankie confia muito em si mesmo para pedir ajuda. Eu sei que ele se dará mal se não for ajudado. Estou assustada. Você deve ajudá-lo, senão...

— O que poderei fazer?

— Mandar Tony Lilac para a cadeira elétrica pelo assassinato de Dandy, naturalmente! Você não acha que é a única solução?

— Sem saber por que ele o matou? Acho difícil.

— Isso não pode ser revelado, senão de nada adiantará que condenem Lilac.

— Você está querendo dizer que se souberem o mo­tivo do crime, Konno será prejudicado; que, de qualquer forma, terá que inventar um novo motivo...

— Sim, é isso. Um novo motivo.

— Vou tentar. A propósito, meu nome é Donald Marty. Pode me tratar por Don. Telefone-me amanhã para o Daily Leader. Você encontrará o número no ca­tálogo.

Ela suspirou:

— Obrigada, Don. Pode me chamar de Nancy. Fui enfeitiçado pelo tom de sua voz e enlacei-a pela cintura, atraindo-a suavemente para mim, quando ouvimos uma sirena, distante.

— A polícia — disse eu. — Será melhor eu ir. Não se esqueça de me telefonar amanhã. Frankie é ciumento?

— Só quando não tem outra coisa em que pensar — respondeu ela, rindo. Saltou do carro e afastou-se. Era uma das mulheres mais imbecis que eu conheci, no entanto, a experiência me ensinou que a burrice é uma das qualidades que torna as mulheres mais ado­ráveis e, também, mais úteis. Já se viam os faróis do carro de Stolz, quando eu arranquei em direção con­trária.

 

parei o carro em uma drogaria de Los Cerros e te­lefonei para o jornal.

— A greve deu no diabo — disse a Crockett. — Um assassinato, o mais sensacional desde o tempo do Sá­dico Misterioso que atacava casais de namorados. Ha­via um cadáver esquartejado apodrecendo no vagão que os ferroviários não queriam descarregar.

— Oh! — disse o velho, secamente. Ele tinha bom faro jornalístico e sabia distinguir uma reportagem de uma notícia. — O morto foi identificado?

— Foi. É Dandy Tolliver, um amigo de Lilac.

— Um amigo de quem?

— Do patrão.

Houve um pequeno silêncio. Imaginei a cara que Crockett estava fazendo.

— Tenha calma, Don. É só o que eu posso lhe dizer.

— Você não disse que eu teria minha oportunida­de?

— Se está se referindo a acabar com Lilac e...

— Isso mesmo.

— Gostaria que você já tivesse esquecido.

— Eu fiquei com essa condição.

Houve novo silêncio, até que Crockett perguntou:

— E daí?

— Acho que a oportunidade é esta. Aposto minha caneta esferográfica, contra a sua dentadura postiça, como sob esse assassinato se esconde tanta sujeira como a que houve nos negócios de Lilac, na Alemanha. Cedo ou tarde todo mundo irá saber. Conhece Frankie Konno?

— Não, não sei. Ouça, Don, espere — acrescentou apressadamente. — Não se precipite. Você acaba de regressar a Los Angeles e não sabe como estão as coisas por aqui. É o próprio inferno. Eu não apostaria um centavo por nada e nem em ninguém.

— Daqui a pouco estarei aí para escrever a maté­ria — respondi, sem lhe fazer caso. — Guarde-me um espaço na primeira página.

— Não posso lhe garantir que seja publicada na íntegra,

— Eu imagino.

— Ah, e ande logo. Já estamos fechando.

— Não vou demorar. Antes, porém, tenho que falar com Lilac.

— Você vai falar com Lilac? Para quê?

— Para esclarecer alguns pontos.

— Don! — gritou.

Bati o telefone. Procurei o número de Samoa, no catálogo, e telefonei. Perguntei se Tony Lilac estava e me responderam que não. Eu disse, então, que era Don Marty quem estava falando e que precisava vê-lo na­quela mesma noite. Fizeram-me esperar uns cinco mi­nutos e, por fim, me informaram que ele me receberia uma hora depois, no seu escritório no Navajo. Uma hora era muita coisa, mas achei que Crockett esperaria, em virtude da importância da matéria que eu estava apu­rando.

O empregado da drogaria estava fazendo palavras cruzadas.

— É preciso fazer alguma coisa para ajudar a pas­sar o tempo, hem? — disse-lhe eu. — Alguma dificul­dade?

Ele bocejou, depois perguntou:

— Conhece algum deus mitológico que tem patas de cabra e cujo nome se escreve com três letras?

— Pan.

— Pan? — repetiu, em dúvida. — Isso eu já pus aqui. Veja, "alimento por excelência". Três letras, Pan. Não dá.

— Experimente. Ele experimentou.

— Dá certo — reconheceu ao cabo de um instante, sem, contudo, estar muito convencido. — Tem certeza de que é esse o nome?

— Tenho.

— Pan — murmurou, sacudindo a cabeça. — Pan, que grande imbecilidade!

Deixei-o desabafar.

— Queria pedir-lhe um favor — acrescentei. Ele me olhou com um meio-sorriso.

— O que é?

— Sou jornalista e estou preparando uma série de reportagens sobre casas californianas de estilo es­panhol. Quero fotografa-las e tudo o mais. É para uma revista de luxo. Julguei que você talvez conhe­cesse algumas em Los Cerros.

— Claro. Umas duas ou três.

— Bem cuidadas?

— Já ouviu falar em La Fiesta?

— Nunca.

Ele juntou as pontas dos dedos e beijou-as:

— É uma joia.

— Quem é o proprietário?

— Frankie Konno...

— Konno? — repeti, franzindo o cenho.

— Você não o conhece. Ele é forasteiro e está aqui há menos de um mês. É um figurão. Comprou a casa e transformou-a em nova.

— Ele é boa praça? Ou é difícil falar com ele?

— Que! A loura é muito mais acessível do que ele. De vez em quando vem aqui... Não por minha causa, claro... É que ela gosta dos nossos cosméticos.

— Konno? — insisti, pensativo. — Eu já ouvi esse nome em algum lugar. Quem é ele? Sabe alguma coisa a seu respeito?

— Eu diria que ele... Que ele é um grande gangster, ou algo assim, como um desses magnatas da criação de gado, por exemplo. Não sei, mas acho que veio a Los Cerros para descansar. Raramente ele dá as ca­ras, a não ser numa noite ou outra, quando sai com a loura por aí.

— Porque acha que ele é justamente um gangster?

— Porque é de Chicago.

— Como sabe?

— O carteiro me disse que Konno é assinante do Chicago Herald.

Fiquei um instante calado.

— É, não consigo me lembrar nada a respeito de­le... Sabe mais alguma coisa, amigo?

Ele começou a rir.

— Nem que você fosse da polícia! Não, não sei mais nada. Vá visitá-lo e tirará suas dúvidas.

— Vou tentar — respondi.

— Boa sorte.

Voltei ao carro e não sei se o balconista ficou sur­preso ao ver-me indo em direção ao centro da cidade. Como eu tinha bastante tempo, parei num bar para tomar alguns drinques e coordenar minhas ideias para a reportagem que iria escrever. E isso foi um bocado difícil. Após uma hora eu não conseguira coisa alguma. O Navajo era um dancing pretensioso. Estava bem mon­tado e não lhe faltavam garotas bonitas, como acon­tecia com todos os negócios de Tony Lilac. Quando che­guei, encontrei um ambiente de grande animação, pa­recendo que os instrumentos da orquestra eram au­tênticos metais em brasa. Disse ao porteiro quem eu era e o que pretendia. Ele me entregou aos cuidados de um dos leões-de-chácara, que me conduziu ao es­critório de Lilac. Lá chegando, bateu na porta, fez com que eu entrasse e me seguiu.

Tony Lilac estava sozinho no escritório. Nós tro­camos um olhar e, por fim, ele me fez um sinal.

— Sente-se.

Eu me sentei e Lilac caminhou então calmamente para sua escrivaninha, sentando-se atrás dela. Ele era talvez o homem mais bem vestido da cidade; sua roupa não tinha o menor defeito e seu físico corpulento cor­respondia exatamente aos seus quarentas anos e ao seu metro e oitenta de altura. Em sua fronte, os cabelos eram brancos e seu rosto era moreno, duro e enérgico. Seria, provavelmente, o senador mais arrogante do país, se fosse eleito. Eu sabia que isto jamais aconteceria, e estava disposto mesmo a apostar meu último dólar.

Ele me olhou nos olhos.

— Bem, Marty, diga a que devo o prazer de sua visita. Sei que acaba de regressar a Los Angeles e já soube que você chegou a um acordo com Crockett. Isso é um motivo de alegria para os dois. Quer um tra­go? Sim, claro que quer. Vamos ver, sirva-nos um drin­que, Buddy.

O leão-de-chácara serviu-nos uísque e eu só abri a boca depois que os dois copos estavam cheios.

— Prefiro lhe falar a sós, Lilac — disse, então. Lilac fez um gesto:

— Não se preocupe com Buddy. É um velho amigo.

— Não estou preocupado. Acontece apenas que não considero necessária a sua presença. Eu quero falar apenas com você.

Lilac deu de ombros.

— Ouça, Marty. É meu costume que Buddy assista a todas as minhas conversas e estou em minha casa, e nela faço aquilo que tenho vontade. Buddy não nos vai incomodar... E é melhor para nós que ele fique aqui.

— Não — respondi. — Ele vai sair.

Buddy deu um riso breve, semelhante ao roncar de um motor de quarenta cavalos. Pelo canto dos olhos percebi que ele me observava, atentando para o fato de que era um palmo mais alto do que eu e que pesava vinte quilos mais.

— Não seja tolo, Marty — disse Lilac, procurando mostrar-se amável.

Voltei-me para Buddy.

— Vá embora, meu amigo. Vá dançar um pouco. Você precisa de exercício, está ficando balofo.

Ele não gostou do que eu disse. Deixou o copo so­bre a mesa e caminhou em minha direção com os pu­nhos cerrados. Daquele jeito ele intimidaria qualquer pessoa. Inclinou-se um pouco:

— Balofo, é? — perguntou. — Você deve ser o bom, não é mesmo? Porque não experimentamos?

Desferi-lhe um pontapé e empurrei-o, fazendo-o perder o equilíbrio, ao mesmo tempo em que lhe aper­tava o pescoço com as pontas dos dedos. Ele se contorceu de dor e eu o acertei, então, nos rins. O leão-de-chácara arquejou, ficou um instante indeciso e procu­rou afastar-se de mim. Eu o segui e atingi-o inespera­damente na nuca e desferi outro golpe no pomo-de-adão. Ele deu um guincho e caiu sentado. Por um mo­mento, fiquei olhando para ele e, então, voltei-me para Lilac:

— Isso é judô. Gosta?

Lilac levou o copo aos lábios e assentiu. Pareceu-me que eu o tinha impressionado.

— Levante-se, Buddy — disse eu. — Não queria machucá-lo, mas vá de uma vez. Você estará mais se­guro lá fora.

Ele se levantou e, ao passar por mim, tentou me pegar de surpresa, mas eu segurei seu braço e apli­quei-lhe uma chave. Ele deu um berro e permaneceu com a cabeça dura, olhando fixamente para frente.

— Interessante, não é? — perguntei a Lilac. — Inteiramente paralisado. Quando eu o soltar, ele ficará inconsciente por um minuto ou dois. Indefeso como uma criança.

Larguei o sujeito e ele permaneceu imóvel, tentan­do em vão mover a cabeça. Dei-lhe um tapa na cara para ajudá-lo e seus lábios começaram a sangrar. Pou­co a pouco seu rosto foi ganhando cor novamente.

— Apanhe seu copo e suma-se rápido! Estou can­sado de olhar a sua cara.

Ele olhou para Lilac e este assentiu. O leão-de-chácara apanhou o copo com mãos trêmulas e eu nem me voltei para vê-lo sair.

— Muito instrutivo — disse Lilac, indiferente. — Mas acha que era necessário fazer isso?

Sentei-me diante dele e acendi um cigarro antes que ele me oferecesse um de seus havanas.

— Era, Lilac — respondi. — Principalmente por você. Nenhum homem gosta que haja testemunhas, quando começa a fracassar.

 

Lilac não se alterou. Pelo contrário, minha observa­ção pareceu diverti-lo.

— Você é um sujeito engraçado, Marty — disse ele.

— E você não imagina como sou, quando quero re­almente ser engraçado... Mas talvez você tenha uma ideia quando eu sair daqui esta noite.

Ele riu:

— Que impressionante!

Deixei passar um minuto em silêncio tentando dei­xá-lo nervoso, mas não consegui.

— Vim-lhe fazer uma proposta — disse, então.

— Fale.

— A primeira coisa que eu soube ao chegar a Los Angeles é que você é candidato a senador. Gostaria que me confirmasse, pessoalmente.

— Pois está confirmado. É a pura verdade.

— Bem, pois você terá que renunciar à sua can­didatura esta noite.

— Por quê?

— Porque eu quero. Não, não me interrompa, Lilac. Eu não estou louco. Você sabe o que diziam as últimas crônicas que mandei da Alemanha, e que o Leader não publicou. Elas bastariam para acabar com você. Qual será o seu argumento? Que não há provas suficientes? Que eu não poderei sustentar um processo por difa­mação? Que tudo isso pertence ao passado? Bem, Li­lac, talvez você tenha razão... Em parte. Mas há mais. Há mais coisas agora. Dandy Tolliver foi assassinado e a polícia descobriu seu cadáver. Foi cometido um erro que você não pôde prever. Você matou Tolliver e mandou seu corpo esquartejado para Frankie Konno, através dos serviços frigoríficos da Southern Pacific, sem qualquer risco. Konno teria seu castigo e não con­taria a ninguém. Iria fazer desaparecer a encomenda que você lhe mandou. Mas torno a lhe dizer que hou­ve um grande erro, Lilac. Um erro fatal. Um empre­gado imbecil enganou-se e colocou o pacote com os restos de Tolliver num vagão de carga comum. O ca­dáver começou a apodrecer, até que o fedor chegou a tal ponto que os carregadores da estação negaram-se a descarregar o vagão e entraram em greve em Los Cerros. A polícia interveio e agora não há mais remé­dio, Lilac. A investigação está em andamento. Que dirá você, Lilac? Que saberá o que fazer para a inves­tigação fracassar? Que não haverá provas suficientes? Não, Lilac. A polícia não está só. Aonde ela não quiser ir, irei eu. Disponho de meios e não teria vindo aqui se não os dispusesse. E eu não quero que você seja senador. Eu me envergonharia de meu país se você o fosse. Renuncie aos seus sonhos, Lilac. Aspire menos. Queira apenas uma cela em Alcatraz, por exemplo.

Eu nunca havia me sentado a uma mesa com ele, mas, naquele momento, descobri que Lilac devia ser um extraordinário jogador de pôquer. Nem um músculo de seu rosto moveu-se, enquanto eu falei. A expressão de seus olhos e o frio sorriso em seus lábios não se al­teraram. De repente, ergueu o copo e olhou-o contra a luz.

— Você disse que veio me fazer uma proposta — disse ele, por fim, com voz gelada. — De que se trata, Marty?

— Estou disposto a não agir contra você, a deixá-lo em paz e a me esquecer de sua existência, se você, por sua vez, entregar a propriedade do Leader e re­nunciar às suas ambições políticas.

A bomba que eu soltei não produziu o menor efeito.

— Você não estará se excedendo? — perguntou-me Lilac, tranquilamente.

— Sei o que estou dizendo.

Ele moveu compassivamente a cabeça.

— Receio que você esteja querendo carregar um peso maior que as suas forças, Marty. Você formou uma opinião equivocada sobre o assunto. Ao que pa­rece você supõe que eu vou ficar sentado aqui, tranquilamente, enquanto você recolhe provas para me liquidar. A coisa não será assim, nem muito menos do que você está pensando. Gosto de ação. Tenho uma fraqueza especial pela ação.

— Pois de pouco vai lhe servir.

— Tem certeza? Que aconteceria, por exemplo, se lhe ocorresse um acidente?

— Quer dizer um acidente como o que sofreu Dandy Tolliver?

— Quem sabe? Há tantas coincidências absurdas no mundo!

— Aceito o risco. Você não ganhará nada me eli­minado. Restará a polícia. Desde que ela intervenha, seus planos estarão fracassados. É uma pena que a encomenda que você enviou a Konno não tenha segui­do num vagão frigorífico, como estava previsto, mas agora é tarde.

Ele me olhou muito satisfeito e fez-me uma per­gunta que me intrigou:

— Por que você insiste em dar tanta importância à polícia?

O tom com que ele falou fez-me lembrar do riso de Frankie Konno, e sua observação acerca de que se eu acreditava, realmente, que a polícia ia meter-se no caso. Eu parecia entender então o que ele quisera dizer.

— A corrupção e o suborno não chegam a todas as partes — respondi, enfurecido. — No mundo não existem apenas canalhas. Este caso está com o Tenen­te Stolz. Eu conheço Stolz.

— Eu também.

Apertei os punhos.

— Olhe, Lilac...

— De qualquer forma, sua proposta não é comple­tamente absurda. Deve haver algo nela. Eu sou da­queles que acham que você não é tão tolo como parece. Gostaria de saber de uma coisa. Precisa de dinheiro?

— Do seu, não.

— Compreendo. Tem muito apego ao seu posto no Leader?

— O suficiente para sacrificá-lo em meus propó­sitos, sem vacilar.

— Perfeitamente. Bem, Marty, está decidido a executar seu plano até o fim, arriscando-se a tudo? Não lhe importa que eu me transforme em seu inimi­go declarado?

— Chega de conversa, Lilac! Você não conseguirá nada!

Lilac poliu as unhas na lapela de seda do smoking e, em seguida, olhou- as com ar crítico, as sobrance­lhas arqueadas.

— Vou pensar — disse, indiferente. — Amanhã pela manhã você saberá minha resposta.

Fiquei surpreso por haver triunfado tão facilmente.

— De acordo — respondi. Levantei-me.

— Quer outro trago?

— Não.

— Apesar de tudo — disse repentinamente Lilac, quando eu me dirigia para a porta — aconselho-o a manter alerta os seus sentidos e a andar armado, se possível. Ou, melhor ainda, que saia da cidade. Não me responsabilizo se algum dos rapazes souber o que você está pretendendo de mim. Não que eles tenham mau caráter, mas é que gostam de apertar o gatilho e às vezes perdem o controle dos nervos. Tome isto como uma advertência amistosa, Marty.

Seu olhar, porém, não tinha nada de amistoso. Eu não me assustei. Pensei apenas que já era uma grande coisa ter tirado Lilac do seu canto. Saí batendo a porta.

Eu teria gostado de trocar impressões com Stolz antes de escrever minha reportagem, mas já era mui­to tarde e Crockett devia estar uma fera com a minha demora. Fiquei dois minutos observando os pares que dançavam na pista e logo me retirei, atento a um pos­sível tropeção em Buddy, mas não o vi. Cheguei à rua sem novidade, meti-me no carro e fui para o jornal.

— Que aconteceu? — perguntou-me o velho, an­siosamente .

— Nada. Nada de especial.

— Para que você queria ver Lilac?

Para convencê-lo a desistir de sua candidatura e a vender o Leader. Ele ficou apavorado:

— O quê? E como ele recebeu uma proposta dessas?

— Com calma. Amanhã de manhã me dará sua resposta.

Crockett deixou-se cair numa poltrona.

— Você é um insensato, Marty. Não compreendo.

— Não compreende porque desconhece em que pé estão as coisas. Ouça-me, Crockett. Lilac deu um passo em falso. Ele anda metido em algum negócio muito sujo, no qual, provavelmente, encontrou um ri­val que se chama Frankie Konno. Konno chegou de Chicago há um mês e, pela sua pinta, se não é um sujeito que passou a vida toda driblando a lei, eu não me chamo Donald Marty. Acontece que no mesmo caso havia um terceiro personagem: Thomas Tolliver, mais conhecido por Dandy. Tolliver parecia manter boas relações com Lilac mas, de repente, foi assassinado e seu cadáver, após ter sido esquartejado, foi cuidadosa­mente empacotado e enviado para Konno, sob os cui­dados do serviço de frigoríficos da Southern Pacific. Isso tem toda a pinta de uma advertência ameaçado­ra, e que ameaça! Sem dúvida alguma, tinha o fim de amedrontar a Konno e obrigá-lo a sair do negócio. Konno, naturalmente, ao receber o cadáver esquarte­jado de Dandy, não diria uma palavra, porque a na­tureza do negócio em que todos estão metidos não o permitira abrir a boca. Tudo ficaria entre eles mesmos. Pode ser que Konno resolva tomar vergonha e provo­que uma guerra entre as duas quadrilhas, e pode ser que não. Eu não acredito que isto aconteça, porque Lilac é muito poderoso em Los Angeles. Seja como for, um erro involuntário botou tudo a perder. O cadáver de Tolliver não foi despachado num vagão-frigorífico, mas sim num vagão de cargas comum e entrou em decomposição durante a viagem. O mau-cheiro acusou a presença do cadáver, que foi descoberto pela polícia. Lilac encontra-se agora em posição delicada e tem medo. O mesmo acontece com Frankie Konno. Mas nenhum dos dois tem medo de ser arrolado no assas­sinato de Tolliver, porque há muitas formas de esca­par de uma situação dessas e, em último caso, o assas­sinato seria imputado a qualquer pistoleiro profissio­nal de quarta ou quinta categoria. O que eles têm me­do mesmo, é que alguém descubra em que tipo de ne­gócio estão eles envolvidos. Konno, particularmente, está desesperado, porque a advertência que Lilac lhe enviou é muito significativa. A morte de Dandy parece significar que lhe secou alguma fonte de dinheiro. A mulher que está com ele chorava por ver desfeitos to­dos os seus sonhos. Frankie já não lhe comprará um colar de brilhantes, nem uma casa em Beverly Hills. Tanto assim que procurou me seduzir no sentido de que eu conseguisse com que responsabilizassem Lilac pela morte de Dandy, e o levassem à cadeira elétrica, mas sem revelar o verdadeiro motivo do crime. Claro, se Lilac desaparece e se o negócio vira segredo, Fran­kie Konno terá o caminho livre e poderá comprar to­das as casas que estejam à venda em Beverly Hills ou em Hollywood. E é possível, inclusive, que dentro de dois anos procure ser eleito senador.

Crockett ouviu-me sem perder uma palavra. Seus olhos se anuviaram.

— Você tem provas de tudo isso, Marty? — per­guntou.

— Não será difícil encontrá-las. Desconfio de qual seja o negócio em que Tony Lilac está metido. Nada excepcional. Chego a esta conclusão pelo pouco que sei a respeito de Dandy Tolliver.

— O que é?

— Drogas.

— Se eu não entendi mal -- disse o velho, tranquilo — você contou a história a Lilac e prometeu-lhe nada contar se ele retirar sua candidatura e renunciar à propriedade do Leader.

— Isso mesmo.

Crockett levou as mãos à cabeça.

— Sabe qual será sua resposta, Marty?

— Vai aceitar.

— Aceitar! Mas que burrice! Lilac vai-lhe meter um monte de balas na barriga, você verá! Será possí­vel que você não desconfie disso, Marty? Como é pos­sível uma coisa dessas?

Deixei-o gritando e fui escrever a matéria. Seria uma reportagem inofensiva, embora sensacionalista, mas antes de começar fiz uma ligação telefônica para a redação do Herald, em Chicago, e pedi a Ted Gordon, um velho amigo meu, que conseguisse um infor­me completo e detalhado das atividades de Frankie Konno. Ele prometeu conseguir tudo o mais rápido possível. Eu lhe pedi que telefonasse para a redação do Leader ou para o meu apartamento, se eu não es­tivesse mais no jornal. Desliguei e comecei a atacar o teclado da máquina de escrever.

 

Era bem tarde quando saí da redação, mas eu conhe­cia Stolz e sabia que ainda poderia encontrá-lo em seu gabinete, no Departamento. Fui para lá e achei-o com uma cara muito pior do que eu tinha imaginado. Ele estava em mangas de camisa, o venti­lador funcionava a toda velocidade. Sobre sua mesa tinha à sua frente uma folha de papel na qual desenhara cinco figuras grotescas e escrevera as pala­vras egípcio, fósforo, Camel e Ronson.

— Problemas insolúveis? — perguntei-lhe.

Ele me respondeu com um palavrão e, em seguida, disse:

— Serão insolúveis para quem procurar resolvê-los, Dom. Não para mim. Eu estou fora disso.

Custei a acreditar:

— Você pediu?

— Uma droga!

— Quer dizer que lhe tiraram da jogada? Sem ex­plicações?

— Com um pretexto imbecil.

— Quem está encarregado agora da investigação?

— O Capitão Monaghan.

Eu sabia quem era. Monaghan era um homem jo­vem e esperto. Não me pareceu mal, por mais que Stolz não quisesse concordar comigo.

— Que tem você contra Monaghan? — perguntei. O Tenente sorriu:

— Nada.

— Vamos, diga.

— Nada. A não ser... A não ser que sua mulher se veste com o melhor costureiro da cidade e que Mo­naghan compra um carro novo a cada metade de ano e... Bem, que importa? Bobagens. Não me dê impor­tância, Dom. Uns homens são mais espertos do que os outros, e Monaghan é dos mais espertos, apenas isto.

Ele continuava vermelho de raiva, e tudo quanto disse não era outra coisa senão uma alusão direta a Tony Lilac, ao dinheiro de Tony Lilac. Fora isso que Lilac me insinuara e o que a observação de Konno significava. Lilac, portanto, entrara em ação. Gostaria de saber qual seria sua próxima jogada.

— Compreendo — disse, amargamente — Não se preocupe... Eu já sabia que isto ia acontecer de um momento para outro. Diabo! Para um policial, infeliz­mente você é muito susceptível, Stolz.

Ele quis protestar, mas se conteve:

— Está bem, Dom, diga o que quiser.

Fiquei em silêncio, esperando que ele se acalmasse e logo apontei para a folha de papel.

— Em que pensava quando eu cheguei? Ele se animou um pouco.

— Você observou o que havia nos bolsos de Tolli­ver, Marty? À primeira vista não parecia haver nada de mais, lembra-se? Mas havia coisas que chamavam tanta a atenção como elefantes. Tolliver tinha nos bol­sos um maço de cigarros Camel, e uma cigarreira con­tendo cigarros egípcios, uma caixa de fósforos e um isqueiro de ouro. Os fósforos estavam intactos. Não sei se você prestou atenção... A caixa era amarela, com um trevo negro impresso. Era propaganda. Era uma caixa de fósforos de um clube ou coisa assim... Mas sem uma só palavra que indicasse sua procedência. Quanto ao fumo, pareceu-me curioso que Tolliver fu­masse dois tipos de cigarro ao mesmo tempo. Tive tempo de mandá-los analisar e tanto o Camel como os cigarros egípcios continham fumo comum. Mas, sur­preenda-se, Marty, na cigarreira havia partículas mi­croscópicas de algo que não era tabaco. Era marijuana.

Não me surpreendi.

— Que deduziu daí? — perguntei.

— Que Tolliver fumava Camel, embora andasse habitualmente com cigarros de marijuana na cigar­reira, e que alguém trocou esses cigarros pelos egíp­cios, como medida de precaução.

— Provavelmente — assenti. — E os fósforos?

— Oh! Os fósforos ele conseguiu em alguma parte e não os utilizou, porque tinha constantemente o is­queiro. Guardou a caixinha de fósforos por guardar. A não ser... Que alguém a tivesse colocado propo­sitadamente em suas roupas...

— Para quê?

— Para que servissem de aviso... De advertên­cia... Como uma indicação para que a pessoa que re­cebesse o cadáver soubesse quem o havia enviado. Na­turalmente o homem e o endereço do remetente constante na etiqueta eram falsos. Estava na cara, mas mesmo assim eu mandei comprovar. Diga, Marty — Stolz inclinou-se para mim com os olhos brilhantes. — Você não percebe a importância de que a enco­menda estivesse destinada a Frankie Konno e somente por casualidade se tenha descoberto seu conteúdo? Você acha que Konno teria comunicado à polícia que recebera um cadáver esquartejado se as coisas tives­sem acontecido como foram planejadas?

— Não, não teria dito nada. Que lhe disse Konno?

— Nada. Nem sequer admitiu que conhecesse Tol­liver. Você o visitou antes de mim, não foi? Ele lhe disse alguma coisa?

— Nada — respondi. Tudo o que Stolz dizia con­firmava minhas deduções mas, ao mesmo tempo em que ele ficava à margem do caso, eu concedi uma tré­gua a Lilac e não pretendia quebrá-la, a não ser que as circunstâncias me obrigassem, por isso fiquei ca­lado. Não estando responsável pelo caso, Stolz não po­deria me obrigar a falar. — Konno me botou para fora de casa a pontapés — acrescentei — quando sou­be que eu era repórter.

— Compreendo. E você, Marty, que acha de tudo isso?

Sua pergunta deixou-me num beco sem saída.

— Acho que está na cara. — disse, titubeando — Se a gente tomar por base a sujeira que fizeram com você, ao lhe tirarem do caso, chega-se à conclusão de que o assassinato de Tolliver e o envio de seus restos estão estritamente relacionados com alguém que tem muita influência nesta cidade; alguém capaz de conseguir que as investigações caiam no esquecimento, nas mãos de Monaghan...

— Tony Lilac — interrompeu-me Stolz, amarga­mente .

— Exato. Ele suspirou.

— Sim, é isso o que está acontecendo, Marty. Azar. Resta-me o consolo de pensar que a justiça, no final das contas, não sairá perdendo tanto. Matar um sujeito como Dandy Tolliver não é exatamente um delito, mas sim um ato de... De utilidade pública. Pelo que sei dele, acho que para a sociedade é melhor como ele está agora. Esquartejado.

Gostei que ele encarasse as coisas daquele modo. Eu teria tempo de fazê-lo mudar de ideia se fosse preciso.

— Você tinha algum plano quando lhe afastaram do caso?

— Cozinhar Konno, fuçar a vida e os negócios de Dandy e, sobretudo, colocar alguns homens na pista do papel de embrulho, das cordas que o amarraram e do sujeito que despachou a encomenda.

— As partículas de marijuana são um bom in­dício.

— Eram — corrigiu-me ele. A gente pode con­seguir muito dessa pista, é só querer. Aposto minha credencial de policial como os sinais de marijuana encontrados nos levariam a descobrir o motivo do crime.

Eu teria apostado mil dólares e mais a sua cre­dencial como ele estava certo.

— E agora, Stolz?

— Não sei. Vou trabalhar no que aparecer. Peque­nos roubos... Coisas que não tenham mais consequências. Eu lhe juro Marty — acrescentou, num rasgo de sinceridade — que não aguento mais isto. Eu tinha sempre a esperança de que as coisas mudariam um dia ou outro, mas à medida que passa o tempo essa nojei­ra aumenta, aumenta e aumenta. Tentei passar para a polícia federal, mas se o FBI não me admite, eu me tornarei detetive particular. O resto que fosse para o inferno.

— Se precisar de um sócio, avise-me.

— Está falando sério?

— Sim.

— Falaremos sobre isto — prometeu-me.

— Que acha que eu devo fazer agora? Qual a mi­nha posição, Stolz? Que digo amanhã no Leader?

— Já escreveu alguma coisa?

— Já, esta noite. Uma matéria inofensiva, sem conteúdo. Uma laranjada.

— Pois eu não sei, Marty. Se você não quiser se meter em dificuldades, deixe de lado as iniciativas e limite-se a publicar o que o Capitão Monaghan for informando.

— É o que farei.

Saí do departamento achando que Stolz tinha ra­zão; que a nojeira era a mesma por toda a parte e que havia muitos Tony Lilac na face da Terra. O mais sensato era se deixar levar pela onda, deixar que a mulher se vestisse no melhor costureiro e comprar um carro último tipo todo ano. Dessa forma, pelo menos, se adquiria a fama de esperto. Só os estúpidos perdem tempo lutando.

Fui para o meu apartamento e preparei uma dose de uísque. Enquanto ia bebendo em pequenos goles, tirei o casaco e a gravata, e ia tirar as calças quando bateram na porta.

Voltei a apertar o cinto, corri ao escritório e tirei da gaveta um revólver que eu guardava ali. Fui então à porta e espiei pelo olho mágico. Eu me alarmara em vão. Era Lea Bates, minha vizinha. Pareceu-me impossível tê-la esquecido de novo, mas era verdade. Abri a porta e encontrei-a aborrecida.

— Eu teria envelhecido no Samoa se tivesse con­tinuado esperando por você — disse ela. — Por que você é assim, Dom? Quando se poderá confiar em sua palavra? Que...? Eh! Para que essa pistola?

Ela estava vestida exatamente como da última vez que a vi, mas notava-se que estava cansada e tris­te. Provavelmente estivera controlando o meu regres­so atrás de sua porta.

Guardei a arma no bolso.

— Você me desculpe. Eu tive uma noite infernal... Eu me meti até o pescoço em um assunto que vai agi­tar a cidade. Entre e sente-se. Tome um drinque. Vou-lhe dar a melhor notícia que você já ouviu em sua vida.,

Ela não me deu muita importância, mas aceitou o uísque e sentou-se.

— Dandy Tolliver, está morto — disse-lhe eu. Ela arregalou os olhos.

— Dom! Você não...

— Não, não fui eu quem fez este favor ao mundo. Deixe-me contar tudo.

Eu não omiti nenhum detalhe e ela me escutou, atentamente. Quando terminei, ela se levantou. Esta­va nervosa e lembro-me que bebeu o uísque de uma só vez. Colocou então o copo sobre uma mesa, caminhou até a porta e voltou, torcendo as mãos.

— Dom, é preciso fazer alguma coisa antes que seja tarde. Rossana não pode ficar lá sozinha. No es­tado em que ela se encontra, sabe Deus com quem ela ficará agora... Dom, é horrível. A morte de Dandy piorou tudo, você não percebe? Ele era tudo para Rossana. Era ele quem lhe dava as drogas e ela morrerá se não as conseguir... E ainda mais com a polícia e os repórteres em volta... Oh! Não, Dom!

Achei que era difícil a polícia estar investigando qualquer coisa, mas nada lhe disse a respeito.

— Como posso ajudá-la, Lea?

— Você ainda pergunta? Vá onde ela está e tra­ga-a para cá.

— Agora?

Ela encolheu os ombros. Cheguei à conclusão de que ela tinha sentimentos maternais para com Rossana Grant, e quando as mulheres têm sentimentos ma­ternais, não se deve discutir com elas.

— Dandy Tolliver mora em um prédio de aparta­mentos na Rua Adams, no número doze.

— Morava — corrigi-lhe, caminhando para a por­ta. — Morava, querida.

 

Tolliver devia ter sido um sujeito dado ao luxo, a julgar pelo lugar que ele escolhera para morar. As casas no extremo da Rua Adams, afastadas do tráfego da cidade, ficavam bem próximas de um bosque, onde há tempos funcionou o Instituto Mineralógico. O pré­dio de número doze, de apenas três andares, ficava no centro de um frondoso jardim, tendo um pequeno caminho de pedras até a porta. Não havia porteiro, de noite. Procurei os nomes dos moradores num quadro na portaria e encontrei o de Thomas Tolliver junto ao número seis. Apertei o botão da campainha e esperei tanto tempo que pensei não haver ninguém. Insisti por mais duas vezes, e, por fim, o ferrolho correu e a porta abriu-se.

Tomei o elevador e saltei no último andar. No cor­redor havia uma réstia de luz vermelha que se filtrava por uma porta entreaberta. Era a porta do apartamen­to número seis. Empurrei-a, entrei e fechei-a às mi­nhas costas.

Realmente, se eu não estivesse prevenido, não te­ria reconhecido Rossana, ainda mais encontrando-a inteiramente bêbeda. Ela estava caída em uma pol­trona, com os braços e as pernas muito abertos. Olha­va-me sacudindo a cabeça e dava a impressão de ter visitado todos os bares da cidade. Ela vestia um an­tigo traje de noite dourado, muito exagerado — era o tipo de roupa que uma garota de dancing compraria se acertasse um páreo no hipódromo de Santa Anita.

— Que é que há, rapaz? — resmungou. — Quem é que você está procurando?

A única luz do aposento era uma lâmpada coberta por um quebra-luz vermelho. Olhei em volta. A desor­dem era total. Sobre uma mesa vi meias e um par de sapatos. Sobre uma cadeira, uma peça íntima. Havia três garrafas vazias no chão e outra, pela me­tade, sobre o divã. Tudo indicava que o apartamento não era varrido há vários dias.

Rossana reconheceu-me quando a luz bateu, em cheio, em meu rosto. Ela soltou uma gargalhada estú­pida e fez um gesto de saudação.

— Mas é Dom Marty! Como vai, Dom? Bom dia!

— Olá, Rossana.

Ela se levantou com grande esforço e caminhou em minha direção, trocando as pernas. Estava sentada sobre a bolsa. Quando chegou bem próximo, segurou-se em meus ombros para não cair e eu a sustive pela cintura. Vista de perto e já com a maquilagem des­feita, seu rosto era uma calamidade. Parecia mentira que em quatro meses toda a sua beleza houvesse desa­parecido. Ela tinha agora olheiras violáceas e olhos fundos. Ao aproximar-se da luz percebi suas pupilas, tão pequenas como cabeças de alfinete.

— Que foi isso? — perguntei. — Morfina, heroína?

Ela baixou a cabeça, apoiou-se em meu peito e apertou-me.

— Estive numa festa — respondeu em tom sonha­dor. — que festa! Uma garrafa de Martini gelada... É uma bênção para a sede.

— Isso foi morfina? — insisti.

— Que lhe importa?

Livrei-me de seu abraço e levei-a de volta à pol­trona.

— Foi Lea quem me mandou aqui, Rossana. Ela quer que você volte.

Ela fez uma careta.

— Oh! Sim. tia Lea não se esquece de mim! Boa moça, hem, Dom? Boa dona de casa, honesta e bonita. Uma joia para o lar. Uma joia! Ela não é uma perdi­da. Tia Léa! Quer dizer, então, que ela quer que eu volte? Por quê? Estou bem aqui. É o meu lugar. Minha máscara... Qual é a sua máscara, Dom? Com que máscara você vai pelo mundo?

— Cale a boca.

Ela deu outra gargalhada.

— Quantas máscaras vi esta noite! Dancei com uma... Uma máscara, de valente. Um homem duro. De outras vezes eu o vi derreter-se quando era olhado por... Quando o olham.

— Quando quem o olha?

— Eu disse quando o olham.

— Aonde você foi esta noite?

— A uma festa. Não lhe direi, Dom. Olhe, por que não prepara um drinque? Alguma coisa fresca. Aí está o bar. O refrigerador fica atrás da porta. Traga gelo.

Achei que um trago a mais não lhe faria mal ne­nhum e obedeci. Quando voltei como gelo Rossana li­gara o toca-discos e requebrava-se, apoiada no encosto da poltrona, ouvindo uma música de Tony Martin.

— Esta era a nossa canção — disse, tristemente.

Vi que ela chorava e não me surpreendi. De re­pente, ela passara da alegria para o abatimento. Eu lhe servi um conhaque com soda e gelo, e sentei-a de novo na poltrona, tirando a bolsa que lhe incomodava.

— Há quanto tempo você não o vê? — perguntei.

       — Quatro dias.

Ela estava pensando em Dandy Tolliver, natural­mente. Ela pensava nele, inclusive quando ria e não podia pensar em outra coisa.

— Foi embora?

Ela fez que sim. Rossana procurava conter as lá­grimas, mas acabou cedendo quando tomou o último gole da bebida. Então, estendeu-me o copo que eu lhe servisse, de novo.

— Assim são vocês os homens, Dom — disse ela. — Cães vagabundos. O olfato os conduz para cá, de­pois para lá e vocês mordem as pessoas que lhes que­rem botar coleira.

— Onde está Dandy?

— Não sei.

— Ele não disse aonde ia?

— Não me disse nada.

— Sumiu, assim, de repente? Sem avisar? Ela estava a ponto de chorar outra vez.

— Sim, Dom, Sumiu, de repente. E não levou nem a escova de dentes.

— Veio alguém aqui na ausência dele?

— Ninguém.

— Tem certeza? E a polícia, também, não apa­receu?

— Não! Dom...

— Que é?

— Aconteceu alguma coisa?

— Não lhe ocorreu que possa ter acontecido algo? Dandy tinha o costume de desaparecer assim?

— É que discutimos e... Oh! Não, Dom! Que está havendo?

Devido ao seu estado, eu não sabia se lhe dizia ou não. Resolvi não contar nada.

— Nada. Por enquanto nada. Vamos, Rossana, seja sensata. Léa quer que você volte a morar com ela e mandou-me buscá-la. Apanhe as suas coisas.

— Você está falando sério? Acha mesmo que eu vou?

— Acho.

Ela começou a rir. Houve algo em seu riso e em suas lágrimas que me fez compreender que com ne­nhum argumento eu a convenceria.

— Está certo. — disse-lhe eu. — Mais cedo ou mais tarde você teria mesmo que saber: Dandy foi assassinado.

Ela reagiu como se tivesse levado uma bofetada.

— Mentira! — berrou.

Começou a me xingar, mas engasgou-se e tossiu, violentamente. Derramei mais conhaque em seu copo, muita soda, outro cubinho de gelo e coloquei o copo à sua frente. Ela o colheu com mãos trêmulas, ansio­samente, como se daquele copo dependesse sua vida. Depois de beber acalmou-se e deixou-se cair na poltro­na, com a cabeça inclinada para trás. Seus olhos es­tavam fechados e as lágrimas desciam pelo rosto.

Deixei-a assim e revistei, minuciosamente, o apar­tamento. Havia quatro quartos e eu não tinha dúvida de que Dandy gastara os tubos com um decorador pro­fissional, e eu apostaria minha vida como fora um decorador de Hollywood para arranjar o apartamento. Mas, também, estava claro, apesar do que Rossana me dissera que alguém esteve ali antes de mim. Alguém que não tinha boa mão nem muito senso de ordem.

Não fora a polícia, porque os guardas nesses casos movem as patas com mais delicadeza. Provavelmente te­riam sido os capangas de Tony Lilac. Ao perceber isso, compreendi que tudo quanto podia haver de interes­sante no apartamento já fora levado. Mesmo assim revistei até o fim, perdendo um bocado de tempo. Gos­taria de ter encontrado uma ponta de cigarro insigni­ficante, algum botão, algo diferente, enfim, alguma dessas coisas que gente como Philo Vance e Ellery Queen encontram nas novelas, mas não tive tanta sor­te e voltei para junto de Rossana um pouco decepcio­nado.

Rossana dormia profundamente, como costuma acontecer às pessoas que estão cheias de morfina e álcool, por mais fortes que sejam as emoções sofridas. Apanhei sua bolsa e a abri. Ela continha o que há dentro de todas as bolsas de mulheres: um lencinho, chaves, um lápis, pó de arroz, batom e moedas soltas. Também encontrei outras coisas: uma pistolinha com seis balas, uma seringa com agulha hipodérmica e duas ampolas transparentes, com gravações chinesas. Uma das cápsulas estava vazia e a outra continha um líquido amarelado.

Conservando a bolsa comigo, levantei Rossana da poltrona. Ela tinha um corpo esbelto, embora não pe­sasse muito. Saí com ela do apartamento e fechei a porta, deixando a luz acesa em seu interior. Desci pelo elevador e atravessei o jardim. Rossana respirava pesadamente. Coloquei-a no carro, sentei-me ao vo­lante e desci, lentamente, a Rua Adams.

Na primeira cabina telefônica eu parei e avisei a Léa que estava a caminho, pois eu não queria que o porteiro do edifício fizesse suposições escabrosas. Lea esperou-me na calçada e, segurando Rossana entre nós dois, levamo-la para o apartamento. Lea já havia transformado um divã em cama e tinha tudo pronto.

Eu tive que rir ao me lembrar o que Rossana dissera sobre suas qualidades de dona de casa.

— Deixe-nos sozinhas, Dom — pediu Lea. — Ela está inconsciente, coitada. Eu cuidarei dela. Vá dormir.

— Não está inconsciente. Ela está dormindo. Foi a uma festa onde havia muito Martini gelado. Acho que ela bebeu tudo sozinha.

Lea roçou os lábios nos meus ao se despedir.

— Boa noite, Dom e obrigada. Nunca esquecerei isto, eu lhe juro.

Voltei ao meu apartamento, trazendo comigo a bolsa de Rossana e todo o seu conteúdo, e guardei-a, à chave, numa gaveta da escrivaninha. Subitamente fiquei com um sono terrível. Tirei, então, a calça e a camisa e, naquele momento, o telefone tocou. Aten­di-o, dormindo em pé.

— Onde diabo você estava? Era Ted Gordon, de Chicago.

— Por aí — respondi. — Estou quase maluco. Você telefonou outras vezes?

— Quatro vezes. A que horas vocês costumam dor­mir aí em Los Angeles?

— Quando se tem tempo... Bem, diga o que há, Ted. Estou caindo de sono.

— Que é que você quer saber sobre Konno?

— Tudo.

— Bem, ele é um sujeito esperto, mas sem sorte. Ainda não encontrou sua oportunidade, mas quando isto acontecer ficará milionário. Ele é novo. Começou na rua, logo com um salão de bilhares. Freguesia es­colhida, entende? Teve cabeça para formar uma qua­drilha com o pessoal que passava o dia todo jogando bilhar e abriu uma "boca de fumo" de marijuana. Dois anos depois ele tinha dez "bocas de fumo". Eliminara todos os concorrentes e abastecia toda a cidade com a sua droga, dispondo de protetores em toda a parte.

Isso não durou, entretanto, mais que dois meses. Ele se meteu numa encrenca, e quando se descobriu até onde ia a influência de Konno, o governador abafou o escândalo, que iria atingir alguém muito importante. Houve, então, uma epidemia de demissões na polícia, e seus quadros foram inteiramente reorganizados. Quanto a Konno, o tropeção custou-lhe a ruína. Pagou pesada multa e teve que sair de Michigan. Ele está em Los Angeles, agora?

— Sim, está aqui. Um sujeito chamado Thomas Tolliver teve alguma coisa a ver com tudo isso?

— Se teve! Dandy Tolliver era o braço direito de Konno.

— Eram amigos?

— Eram mais unidos que unha e carne.

— E continuaram sendo, depois do desastre?

— Que eu saiba sim. Por quê? Aconteceu alguma coisa?

Ted assobiou.

— Conte o que há.

Contei a meu modo.

— Voltarei a telefonar para você, amanhã — disse ele, quando eu concluí. — Isso vai interessar ao Herald. Bom serviço, Dom.

Agradeci-lhe e fui dormir.

 

Meu despertar foi sumamente desagradável. Pri­meiro, porque, a julgar como a cabeça me doía, algo do que bebi na véspera deve ter-me feito mal; em segundo lugar, porque tinha diante dos olhos o cano de uma Luger. A princípio eu não sabia onde estava, nem quem era o sujeito que empunhava a pis­tola. Aos poucos, com grande esforço, vi que estava no meu próprio apartamento e reconheci o hipopótamo do Buddy.

— Vamos, levante-se — disse Buddy, então. — E nada de brincadeira.

Levantei-me com grande esforço. Junto à porta estava outro sujeito, de cabelo cor de palha, que mas­tigava não sei o quê. Nem ele nem Buddy pareciam estar de bom humor.

— Psiu! — chamou-me, displicentemente. — Vi­mos apenas lhe trazer um recado de Lilac, mas vamos demorar. Levante-se!

Obedeci. Eu estava de cueca e camiseta, mas ne­nhum dos dois pareceu ligar muito para isso. Camba­leando um pouco, dirigi-me para uma cadeira e por duas vezes, na curta caminhada, quase caí. Eu não esperava pelo que aconteceu então: Buddy, que me seguira, bateu-me no rosto com o cano da arma. Vi tudo escurecer e pensei que fosse morrer. Contive um grito de dor.

— Isto é por minha conta — disse Buddy. — Não gosto de ficar devendo nada a ninguém. O de Lilac você terá daqui a pouco.

Tentei atingir-lhe a barriga com o joelho, mas ele estava prevenido e esquivou-se.

— Venha cá, Sloane — disse Buddy.

O sujeito segurou-me pelos braços, tentando levá-los às costas. Fora uma precaução tola deles, porque as náuseas que eu sentia depois do golpe não me da­vam condições para me defender. Sloane riu e o ani­mal do Buddy voltou a me bater com o cano da pis­tola, não uma, mas várias vezes. Ele bateu o suficiente para me arrebentar a cara, mas não para me deixar inconsciente. O sangue escorria-me pelo rosto e en­trava pela boca. Buddy tinha os olhos brilhando. Fi­nalmente se cansou.

— Ontem à noite você desafiou Lilac, não foi, im­becil? — ouvi-o dizer vagamente, como se eu estivesse muito longe. — Que é que você está pensando? Que é o dono da cidade? Muito bem, Marty, a culpa é sua. Se Lilac tivesse me ouvido, você agora estaria morto. Lilac tem um coração de ouro. Ele mandou fazerem uns carinhos para você esquecer o passado. Lilac lhe mandou dizer que esta é a resposta dele.

Eu devia ter visto logo que a resposta dele não poderia ser outra. Haviam-me prevenido. A culpa era exclusivamente minha.

Cuspi em Buddy e ele atingiu-me no rosto. Tentei libertar-me de Sloane e consegui. Agarrei Buddy como pude e dei-lhe uma dentada. Ele gritou, mas eu esta­va muito fraco e logo fui dominado. Os dois homens caíram em cima de mim, e eu e a cadeira rolamos pelo chão. Tive a impressão de que caía num abismo pro­fundo.

Quando recobrei os sentidos, Sloane estava despe­jando uma jarra de água em meu rosto, enquanto Bud­dy, sentado na cama, apontava-me a Luger. Julguei que não fosse resistir à dor que sentia na cabeça. Era demais. Eu não me importaria de morrer naquela hora, contanto que eles me deixassem em paz.

— Gostou, Marty? — perguntou Buddy. — Pois saiba que nós mal começamos. Quando nós acabar­mos você vai ver. Aguente mais um pouco.

Sloane deixou a jarra e tirou do bolso um porrete, que esfregou contra a calça. Eu reuni todas as minhas forças e ri o mais alto que pude:

— Acha que vou assustar-me com isso? É o que Lilac está pensando? Pois estão enganados. Estão per­dendo tempo. Você, Buddy, vai-se arrepender pelo res­to da sua vida. Eu juro!

— Agora? — perguntou Sloane com o cassetete pronto.

Buddy acenou, Sloane partiu sobre mim, mas o golpe não me pegou, porque eu girei rapidamente e joguei-lhe as pernas em cima, fazendo-o cair. Gritan­do um palavrão, Buddy saltou para ajudar seu amiguinho. Arrastei-me para fora de seu alcance, em dire­ção a uma cadeira onde estavam minhas calças e em cujo bolso se encontrava meu revólver. Buddy disparou sobre mim, a bala roçou-me a cabeça e o ruído do dis­paro ecoou no quarto. Enfiei a mão no bolso da calça, saquei a pistola e antes que Buddy pudesse atirar de novo, dei ao gatilho.

Infelizmente, porém, distraí-me vendo aquele im­becil saltar para trás, atingido pela bala, e se estatelar contra a cômoda. Sloane aproveitou-se de minha dis­tração e apanhou-me sem defesa. Ele me bateu feroz­mente com o cassetete. Um golpe, outro, outro... Ten­tei escapar, mas foi em vão. Ele me pisara na mão ar­mada e o salto do seu sapato imobilizara meu pulso. Voltou a pegar-me não sei quantas vezes. Minhas pou­cas forças se desvaneceram e eu achei que chegara o fim.

— Patife! — gemeu, então, Buddy. — Solte-o! Vamos embora. Vai aparecer gente aqui feito o diabo!

Sloane levantou-se e desferiu-me, por fim, um pontapé. Pude vê-lo sair correndo atrás de Buddy, que apertava o ombro esquerdo com a mão direita, en­quanto seu braço pendia inerte.

Levantei-me e tive a impressão de que o chão su­bia e descia. O quarto dava voltas. Andei como um bêbedo para o banheiro e tranquei-me por dentro. Co­mecei por aliviar o estômago e senti-me melhor. Com­preendi que eu fora salvo pelos tiros, que atraíram muita gente, que naquele momento estavam no meu quarto.

— Sr. Marty!

— Eh, Sr. Marty! O senhor está bem?

— Que aconteceu?

— Onde está você, Dom? — perguntou Lea.

— Estou aqui, no banheiro! — gritei. — Será que não se pode tomar banho em paz?

— Que tiros foram esses?

— Nada! Um acidente! O gatilho da minha pis­tola prendeu!

— Aqui há sangue! — exclamou alguém. — Está ferido?

— Um arranhão a toa! Não é nada! Podem ir em­bora, não se preocupem!

— Dom... — disse Lea junto à porta do banheiro.

— Não é nada, menina — tranquilizei-a. — Daqui a pouco irei vê-la. Leve essa gente daqui.

Pouco a pouco o silêncio se refez. Limpei as feri­das que tinha no rosto e na cabeça, utilizando a água de barba. Não ficou mal, mas meu rosto começou a inchar. Resignei-me, tomei um banho quente e logo em seguida uma ducha gelada. Voltei para o quarto me enxugando. Pensei que não houvesse mais ninguém ali mas, apoiado na porta, avistei o porteiro. Sua cara era de quem estava apavorado.

— Não gosto disso, Sr. Marty — disse ele. — Vi os homens que o visitaram. Vi quando eles entraram e quando saíram. Um deles estava com o ombro fe­rido.

— E daí? Seu lugar é lá em baixo, Johnson. Nin­guém o chamou aqui.

Ele sacudiu a cabeça.

— Eu teria que dar parte à polícia.

— Muito bem, dê parte, mas vá embora.

— Forçaram a porta deste apartamento, Sr. Marty.

— Mudarei a fechadura. Quer ir embora, Johnson? Ele suspirou e foi embora. Tomei duas aspirinas e bebi um quarto de litro de uísque e quando terminei de me vestir estava com vontade até de cantar. Acen­di, então, um cigarro e sentei-me para pensar.

Entre a paz e a guerra, Tony Lilac escolhera a guerra. Tanto melhor, pensei. Nós dois poderíamos nos fazer muitos danos mutuamente, mas eu estava certo de que seria o último a bater. E bateria forte.

Pedi ao porteiro, pelo telefone, que me trouxesse um exemplar do Daily Leader. Quando ele me trouxe o jornal estava com a mesma cara feia, que não se alte­rou nem mesmo com a gorjeta que eu lhe dei.

Procurei minha reportagem na primeira página; não estava. Não estava em página alguma. Em seu lu­gar, li uma nota de seis linhas, noticiando, sem maio­res detalhes, que um cadáver fora encontrado na esta­ção de Los Cerros.

Telefonei para Crockett.

— Lamento, Marty — disse-me ele, tristemente. — Lilac telefonou-me pouco depois de você ter saído. Você está despedido, sabe? E eu não aguento mais. Vou pedir demissão hoje de manhã.

— Não faça isso, chefe. Aguente a mão. É questão apenas de alguns dias, e quando isto terminar vou precisar de você aí, no seu lugar.

— Quer dizer que vai continuar com essa loucura?

— Não diga que é loucura.

Crockett murmurou algo que eu não entendi, e lo­go disse:

— O melhor que você pode fazer é sair da cidade. E saia o quanto antes. Se você tivesse ouvido Lilac ontem à noite...

— Você fique firme aí no seu posto. Mais alguns dias e não se fala mais nisso — atalhei. Logo depois desliguei e telefonei para o número particular de Stolz:

— Sou eu, Dom Marty, Tenente. Tenho algo a lhe contar sobre o caso Tolliver.

— Eu já não lhe disse que é Monaghan quem está com esse caso?

— Acho que já, mas escute-me.

Contei-lhe tudo com os mínimos detalhes, incluin­do a proposta da loura de Konno e terminando com a visita de Buddy e Sloane.

— E daí? — perguntou ele.

— Você não está vendo que Tony Lilac está fa­zendo ginásticas para não cair? Não compreende que um simples empurrãozinho será suficiente para der­rubá-lo? Este é o momento oportuno, Stolz. Quer aju­dar-me?

Ele titubeou.

—   Como quer que eu o ajude? Eu sou um policial, estou sujeito a uma disciplina. Não posso arriscar-me numa aventura dessas.

— E a agência de detetives particulares de que falamos? Será uma solução... Se nós fracassarmos.

Houve uma pausa.

— Bem, vamos ver, diga o que pretende. Eu não lhe prometo nada.

— Preciso que você leve adiante a investigação de que me falou, sobre o papel de embrulho, as cordas, o homem que esquartejou, o cadáver e os sinais de ma­rijuana. Você pode fazer isso, Stolz. Não me diga que não. Você pode, perfeitamente, investigar por sua conta sem que ninguém precise saber de nada.

— Sim, posso — assentiu. — Mas por que não procuramos uma ajuda? Lilac tem muitos inimigos. Você conhece Lincoln 0'Hara? Vai ser o mais perigoso rival de Lilac, na luta pelo cargo de senador e tem bons jornais nas mãos. Por que não fala com ele?

— Talvez o faça, mas não pela imprensa de que ele dispõe. Quero que o próprio Leader acabe com Lilac; é um privilégio que estou guardando para o meu jornal. O Leader vai precisar encabeçar esta cam­panha para se reabilitar perante a opinião pública, depois do que fez utilizado como órgão de Lilac na cam­panha eleitoral.

— Compreendo.

— E a polícia? Você não encontraria ajuda no de­partamento? Não há ninguém aí que mereça con­fiança?

Stolz demorou alguns segundos para responder.

— Prescott.

James Prescott era chefe da Divisão de Detetives e um homem extraordinário.

— Realmente — respondi. — Eu me esquecera dele. Prescott nos atenderá se nós lhe falarmos, Stolz. Converse com ele. Exponha-lhe o caso tal como nós o encaramos. Insista que é mais importante desco­brir o que há por trás do assassinato de Dandy, do que propriamente encontrar o assassino, e Prescott nós dará razão. Ele é um homem honrado. Se você conseguir o seu apoio, comece a trabalhar imediata­mente. Tente. Eu vou falar com 0'Hara.

— Está bem — suspirou Stolz.

Enquanto desligava, pensei com infinito prazer nas consequências que aquela conversa poderia ter para Tony Lilac.

 

Bati à porta do apartamento de Lea.

— Oh! — exclamou ela ao ver em que estado estava o meu rosto. — Que foi isso?

— Uma visita dos amigos de Lilac. Nada de mais, não se preocupe. Botei-os para fora a tiros.

— Que queriam?

— Que eu deixasse seu cacique em paz.

Observei que, sem dúvida alguma, minha resposta a tranquilizava.

— O que você acha que eles poderiam querer, Lea? Ela juntou as mãos:

— Algo... Algo relacionado com Rossana. Não sei se convém você entrar, Dom. Ela está muito excitada. Estou tentando acalmá-la e não posso... Eu temia que eles tivessem vindo buscá-la, entende?

— Olhe, Lea — disse-lhe eu — essa moça passou quatro meses tomando drogas, quando bem tinha von­tade e é uma loucura privá-la agora de entorpecentes. Se você fizer isso, ela morrerá. Ela deve ficar aos cui­dados de um médico de um sanatório. Não a contrarie, porque ela lhe dará um desgosto.

— Isto está a ponto de acontecer. Ela quer ir em­bora. Não compreendo como não entende que é para o seu próprio bem. Ela me xingou de tudo quanto se possa xingar uma mulher, Dom. Nunca vi ninguém tão furioso. Tive que esconder todas as suas roupas e as minhas também, e trancar os armários a chave, pois do contrário ela já teria ido embora.

— Onde está ela?

Não foi preciso que Lea me respondesse.

— Eh! — gritou uma voz áspera de mulher através da porta do quarto. — Quem está aí? É você, Lea? Está falando com quem?

— Deixe-a sair — disse.

Lea vacilou, mas abriu a porta. Rossana surgiu, sem maquilagem e com o corpo envolto num lençol azul, os cabelos em desordem. Parecia ter fugido de um manicômio. Seus olhos ardiam e assumiram uma expressão triunfante, quando se fixaram em mim.

— Oba, você está aqui, Dom! — exclamou. — E então, cavaleiro andante? Fizemos boa viagem da Rua Adams até aqui?

— Cale a boca, Rossana — respondi. — Se você for boa moça conseguirá o que quer; se não... Dane-se.

Ela avançou ameaçadoramente para Lea, que per­maneceu ao meu lado, segurando-me pelo braço.

— Mande-a me dar minha roupa! Quero ir em­bora!

— Calma, Rossana.

— Vá para o inferno! Isto é um rapto. É ilegal. Chamarei a polícia, você vai ver.

— Pode chamar; quem vai entrar em cana é você, por tráfico de entorpecente.

Ela me olhou franzindo o cenho, os olhos brilhan­do de astúcia.

— Pela última vez, Lea, você vai, ou não vai me dar minha roupa?

— É um vestido de noite — respondeu Lea, fir­memente. — Como você vai sair a uma hora dessas com um traje de noite?

— Empreste-me um vestido seu. Pela última vez, Lea.

Lea me olhou. Eu movi, negativamente, a cabeça,

— É inútil, Rossana.

Rossana soltou uma gargalhada seca e procurou se desvencilhar do lençol azul.

— Oh! — gritou Lea. — Não fique nua!

Sem lhe dar importância, Rossana tentou tirar o lençol.

— Espere! — gritou Lea. — Está bem, eu lhe da­rei um vestido!

Ela correu para apanhar um, entregou a Rossana e depois voltou ao seu quarto.

— Sente-se. Tenho que falar com você — disse a Rossana.

Ela se sentou num diva, sobre as pernas dobradas.

— Dê-me um cigarro, pediu.

Joguei-lhe o maço e meu isqueiro. Rossana expe­liu duas tragadas pelo nariz. Sua vitória a acalmara notavelmente.

— O fato de Lea ter lhe dado um vestido, não sig­nifica que ela a deixará ir embora — disse-lhe olhando-a nos olhos e sem amabilidade. — Você está me­tida numa grande enrascada e não lhe convém sair daqui.

— Preciso sair — respondeu com voz cansada.

— Para procurar morfina, não é? Se for por outro motivo, fale.

Ela encolheu os ombros, sem replicar.

— Muito bem — prossegui — se só se trata disso, eu arranjarei para você. Dar-lhe-ei a morfina que você quiser... Contanto que você fique aqui... E negue o que lhe perguntarem.

Ela me olhou, receosa.

— Que negue o quê?

Lea regressou do quarto. Estava com cara de pou­cos amigos.

— Sente-se também e ouça, Lea — disse-lhe eu. Ela obedeceu.

— Que é isso? — perguntou Rossana. — Uma conferência?

— O cadáver de Dandy foi encontrado ontem — falei. — Estava morto havia três ou quatro dias, e foi Tony Lilac quem o mandou matar... Se ele mesmo não o matou. Vou conseguir mandá-lo para a cadeira elétrica por isto, mas preciso da sua ajuda, Rossana. Conto com ela.

Rossana ficou muito quieta. Começou a rir,

— Estou entendendo — murmurou. — Onde está a morfina, Dom?

— Você a terá logo,

Seu sorriso congelou-se.

— Quero, agora, ou não há acordo.

Vacilei, mas, por fim, saí do apartamento, fui ao meu, apanhei a bolsa de Rossana e dela tirei a serin­ga e a ampola cheia. Regressei e entreguei-lhe. Avida­mente, Rossana ergueu o lençol e, sem se preocupar em esterilizar a agulha, meteu-a na ampola, extraiu dali o líquido para a seringa e injetou a morfina em si própria, demonstrando grande prática.

Aguardei um minuto, durante o qual Rossana se transfigurou. Um raio de luz pareceu acariciar seu ros­to, que tomou uma expressão beatífica de paz, de alí­vio e satisfação. Seus traços se distenderam e seu sor­riso tornou-se doce. Transcorrido um minuto, recostou-se languidamente no sofá e dirigiu a mim e a Lea o primeiro olhar humano. A expressão de Lea indicava profundo desgosto e uma certa repulsa. Ela não estava, no entanto, disposta a dar uma palavra.

— Que quer saber, Dom? — perguntou Rossana com naturalidade.

— Em primeiro lugar, quando você viu Dandy pela última vez?

— Que dia é hoje?

— Sexta-feira.

— Eu o vi no domingo à noite. Tivemos uma dis­cussão e ele saiu.

— Aonde você supôs que ele havia ido?

— Por aí, tomar uns tragos.

— Que horas eram?

— Onze horas ou meia-noite.

— Que fez você desde então?

— Nada. A princípio esperei-o. Depois, fui pro­curá-lo.

— Onde o procurou?

— Perguntei por eles aos seus amigos.

— A Tony Lilac?

— Sim, e a todo mundo. Todos me disseram que o viram no domingo. Esteve jogando até as duas da manhã. Depois desapareceu.

— Ganhou ou perdeu?

— Perdeu, mas pouco.

— Dandy era muito amigo de Tony Lilac?

— Mais ou menos.

— Ele vivia de quê?

— Dos seus negócios.

— Vamos, Rossana, diga a verdade. Que fazia ele? Vivia de chantagem? De coação? Da venda de entor­pecentes? Ou era apenas um pistoleiro pago por Lilac?

Os olhos de Rossana se anuviaram.

— Ele se aproveitara de tudo. Era esperto.

— Mas, não distribuía drogas? Não arranjava para você?

— Sim, também.

— Fazia isto por conta de Lilac, não é?

— Não sei.

— Que relação havia entre Lilac e Dandy?

— Não sei!

— E entre os dois e Frankie Konno?

— Não sei, Dom!

— Por que Lilac matou Dandy? Ele o traiu?

— Vá para o inferno! Rossana chorava.

— Não minta, estúpida! — gritei. — Você sabe de tudo! Mataram seu homem, você não entende? Fale de uma vez! Você não estava doidinha por ele?

Rossana jogou a cabeça para trás e deu uma gar­galhada nervosa.

— Doidinha! — exclamou. — Não seja bobo, Dom... Eu não queria Dandy, como ia gostar dele? Eu gostei dele, mas isso foi há muito tempo... e apenas por uns dias... Até descobrir que tipo de sujeito era ele. Mas agora... Eu o odiava! Eu dependia dele, mas o odiava! Estou perdida sem ele, mas o odiava! Está entendendo, bobalhão? Estar louca por ele... Louca por ele... Que pensa de mim, Dom? Que sou alguma im­becil?

— Não penso nada.

— Não? E você diz que se eu ficar aqui e lhe responder tudo, você me dará toda a morfina que eu quiser, não é? Pois sim! Sei de onde você tirou esta dose: de minha bolsa. E não há mais. Para que você precisa de mais? E quando eu acabar de contar tudo, babau. Acabou-se o que era doce. Oh! Não, Dom. Esse tipo de acordo não me convém.

Seu tom, ao pronunciar a última frase, levou-me a levantar a cabeça. Ela tramava algo.

— Tenha cuidado, Rossana. Adivinho o que você pretende. Você está tão metida nessa porcaria, que não se importa que o assassinato de Dandy fique impune, contanto que você disponha de um meio de fazer chan­tagem com o assassino e dele conseguir a droga. Por isso não quer falar. Mas é perigoso. Você não vai du­rar se tentar isso. Eu não daria um tostão pela sua vida.

— Pois não dê — respondeu, tranquilamente. — Ninguém lhe pediu coisa alguma.

— Isso é uma imbecilidade — insisti. — Você fi­cará trancada aqui até arrebentar. Se eu não lhe der morfina, ninguém mais lhe dará. Acorde, menina. Não fique sonhando. Sua única saída é confiar em mim.

— Prefiro arrebentar. Parece que há uma coisa que você não entende, Dom.

— O quê?

— Eu lhe disse que odiava Dandy, lembra-se? E prefiro arrebentar a ter que mover um só dedo contra o homem que me fez o imenso favor de matá-lo. Eu queria botar esse homem num pedestal, Dom, e ado­rá-lo o resto de meus dias.

Compreendi que, de certo modo, ela tinha razão.

— Está bem — disse eu, apesar de tudo. — Agora que você acabou de tomar a sua morfina, pensa as­sim. Vamos ver se continuará com a mesma opinião, quando acabar o efeito da droga.

— Vamos ver — desafiou-me Rossana.

Olhei, casualmente, para o meu relógio e fiquei boquiaberto ao ver que era quase uma hora da tarde.

— Eh, Lea, vamos almoçar! — exclamei.

— E Rossana? — perguntou ela.

— Nós lhe traremos salgadinhos. Tranque-a no quarto e vamos.

Rossana agarrou-se às almofadas do divã.

— Não penso sair daqui — disse.

Esquivei-me da almofada que ela me atirou, pe­guei-a no colo e apesar de seus socos e pontapés le­vei-a para o quarto e coloquei-a sobre a cama. Lea me seguiu. Saímos do quarto e fechamos a porta à chave.

Doze minutos depois estávamos sentados, frente a frente, consultando um cardápio.

— É teimosa como uma mula — disse Lea.

— Rossana? Ela tem seus motivos — respondi. — São motivos estranhos, mas ela os tem. Vai-nos dar trabalho.

— Você acha que ela sabe muito a respeito de Dandy?

— Eu acho que ela sabe tudo. E mais cedo ou mais tarde eu lhe arrancarei a verdade. Ela agora está se impondo... Mas a simples necessidade de morfina vai amansá-la. Lidar com viciados é como um jogo. A gen­te pode conseguir deles tudo o que se quiser. É preciso apenas ter paciência.

O que eu dizia parecia ter lógica, naquele ins­tante, mas deixou de ter pouco depois. Exatamente quando regressamos, trazendo salgadinhos para Rossana,

Ela botara o vestido que Lea lhe deu, abriu a ja­nela e fugiu pela escada de incêndio. Nunca me senti tão imbecil.

 

Telefonei a Stolz e contei-lhe o que havia acon­tecido.

— Temos que encontrar Rossana, outra vez — disse eu. — Ela é peça fundamental em qualquer acusa­ção contra Lilac. Será uma bomba. Ela sabe tudo o que nós precisamos saber e não seria muito difícil fazê-la falar. Sei que fui um imbecil permitindo que ela escapasse, mas agora não adianta mais falar nisso. Você pode fazer alguma coisa, Stolz?

— Quase nada. Aonde acha que ela está?

— Com Lilac, ou rondando-o. Ela vai fazer chan­tagem com ele, para conseguir as drogas que antes recebia de Dandy. E eu não acho que Lilac vá se sub­meter a ela. Isto complica tudo.

— Não posso fazer quase nada mesmo.

— Você não compreende que vão acabar com Rossana se nós não interviermos?

— E daí, Marty? Ela procurou. Se ela quer ir ao encontro de Lilac, como posso impedir?

— Tente, Tenente — supliquei.

Stolz cede. Eu sabia que ele ia ceder.

— Bem, vou procurar um pretexto. — Descreva-ma e eu farei com que meus homens a sigam.

Descrevi Rossana com todos os detalhes de que me lembrava.

— Há alguma novidade? — perguntei, depois.

— Não estou com tanta pressa.

— Falou com Prescott?

— Mais tarde. Calma, Marty! Que diabo! Acha que sou o dono do departamento? Verei Prescott, quando ele chegar. Já tenho trabalhando no caso toda a gente de que disponho, sem que ninguém se meta comigo. Não posso fazer mais nada.

Ele estava de péssimo humor.

— Desculpe-me, Stolz. Voltarei a telefonar esta noite. Boa sorte.

Tive que dizer a Lea que tudo estava arranjado e que Stolz nos tiraria do apuro, para tranquilizá-la, Eu falei sem convicção alguma, mas ela não percebeu.

Quando voltei ao meu apartamento o telefone to­cava.

— Dom?

Era Nancy, a loura de Konno.

— Como vai, boneca? É um prazer ouvi-la.

— Dom, eu precisava falar-lhe.

— Mas claro! Eu lhe disse para me telefonar. Pre­cisamos conversar.

— Não... Você não está me entendendo. Ontem à noite eu me enganei.

Ela estava assustadíssima.

— Enganou-se em quê?

— Sobre Tony Lilac. Foi uma ideia de momento. Lilac não matou Dandy, é impossível. Está me enten­dendo, Dom? Tire da cabeça. Enganei-me sem querer.

— Tem provas de que Lilac não matou Dandy?

— Não, mas... Também não tenho de que ele o matou.

— Quem andou lhe metendo medo, Nancy?

— Não sei o que você quer dizer.

— Frankie soube da nossa conversa? Ou será que você chegou a um acordo com Lilac a respeito do ca­dáver de Dandy?

— Oh! Não.

O assombro de sua exclamação pelo menos era sincero.

— Olhe, Nancy, as coisas já foram longe demais para que uma mentira a mais ou a menos me faça mu­dar de opinião. Temos que falar, mas agora terá que ser a sério. Seria possível você se encontrar comigo hoje a noite.?

— Eu lhe disse ontem que gostei de você, Dom.

— Que quer dizer?

— É melhor você acreditar que Lilac não matou Dandy. Não se trata de uma mentira a mais ou a me­nos; se lhe estou dizendo é porque tenho razões para isso. Será que você ainda não me entendeu?

— Está me prevenindo contra alguma coisa?

— Claro, diabo!

— Contra Frankie?

— Contra todos! Pelo amor de Deus, afaste-se disso e esqueça o que eu lhe disse ontem à noite! Não quero ser culpada do que possa lhe acontecer!

— Ah, é isso! Agradeço-lhe de coração, Nancy. Você é um anjo. Fique tranquila. O que você me disse não contribuiu para que eu me metesse no assunto. E agora é tarde para que eu volte atrás.

— Lamento.

— Poderei vê-la esta noite?

— Para quê?

— Eu lhe direi quando nos virmos. Houve uma pausa.

— Às oito? — perguntou.

— Vamos jantar juntos?

— Não.

— Bem, às oito. Aonde?

— No bar de Paolini. Conhece?

Eu conhecia, e me parecia um lugar um tanto es­quisito para uma moça como Nancy.

— Sim, está certo.

Desliguei e procurei no catálogo o número do te­lefone do escritório de O'Hara. De todos os advogados de Los Angeles, O'Hara era, provavelmente, o que ga­nhava mais dinheiro. Ele fizera no fórum um nome mais sólido que o Empire State, e era rodeado por uma tão pesada auréola de honradez que quase não podia com ela. É sempre difícil se tratar com homens assim e, sem dúvida, no meu caso, seria mais ainda, pelas circunstâncias em que eu me propunha a abordá-lo, mas pensei que, se realmente ele se lançara na cam­panha pelo cargo de senador, estaria mais ou menos disposto a tudo e não se surpreenderia com certas coi­sas. Falei, pois, com a sua secretária e marquei uma audiência para aquela tarde. Com a saliva que eu gas­tei para conseguir o encontro, o nível do Oceano Pa­cífico teria aumentado meio metro.

Matei o tempo até a hora do encontro, saindo à rua e metendo-me num bar onde preparavam uns es­tranhos combinados de uísque de centeio que, senão por outra coisa, eram suficientemente baratos para que se pudesse tomar meia dezena. Subi, então, ao es­critório de O'Hara, magnificamente localizado no Edi­fício Millikan. Tive que esperar vinte minutos numa sala majestosa e solene como um templo. Surgiu, en­tão, uma mulher feia que me conduziu ao escritório. Eu continuava confiante. Sou muito teimoso.

O'Hara era meio calvo, alto e fraco; estava vestido de preto, com uma gravata cinza, usava óculos de aros dourados e sorria, torcendo as mãos.

— Sr. Marty? — perguntou, com a amabilidade especial que certos políticos empregam ao tratar com os jornalistas, quando se aproximam as eleições. — Não tinha o prazer de conhecê-lo, pessoalmente, mas sou fã de suas crônicas no Leader. Muito boa a sua cobertura na Alemanha. "Lúcida" é a palavra adequa­da. Conheço o país e posso opinar, embora tenha es­tado ali há muitos anos. Quer um cigarro, Sr. Marty? Um uísque escocês? Como eu estava lhe dizendo, há muitos anos...

Ele me contou tanta coisa sobre a Alemanha que valia por uma enciclopédia inteira, Não o interrompi. Bebi e fumei em silêncio. Afinal de contas, quem es­tava perdendo tempo era ele, não eu.

Ele acabou ficando cansado.

— Minha secretária disse-me que sua visita não tem caráter profissional. Devo confessar que fiquei surpreso. Está em alguma dificuldade, Sr. Marty? Pre­cisa de algum conselho?

Movi a cabeça.

— Eu não o procurei como repórter, tampouco vim ver o advogado, mas sim falar ao senador.

— Ao futuro senador — disse ele, sorrindo. Enquanto eu o via e o ouvia falar, cheguei à lastimosa conclusão de que, embora em qualidades pes­soais estivesse muito acima de Lilac, O'Hara seria in­teiramente derrotado falando ao público através do cinema, do rádio, da televisão, ou dos jornais. Seria mais ou menos como fazer Clark Gable competir com Peter Lorre em simpatia do público.

— O senhor sabe que Tony Lilac comprou o Leader? — perguntei.

Ele ficou em dúvida, sem saber se fingia se sur­preender ou se dizia que sabia.

— Sei — respondeu, afinal.

— E que eu deixei o jornal?

— Sei que Anne William, Leonard e outros se de­mitiram. Para lhe ser franco, supunha que o senhor faria o mesmo, quando regressasse. Será sobre isto, por acaso, que me quer falar? Quer que eu lhe reco­mende a algum dos jornais onde tenho influência? O senhor se recomenda por si mesmo, Sr. Marty, mas se acha que eu lhe posso ser útil, o atenderei com prazer.

— Obrigado, não se trata disso. Vim, em primeiro lugar, contar-lhe uma história. E o senhor vai gostar.

Contei-lhe tudo. De cabo a rabo, sem omitir um detalhe. Desde a greve na estação de Los Cerros, até o meu encontro com a loura de Konno.

O'Hara ficou com o rosto afogueado e seus olhos brilharam. No en­tanto, quando terminei, ele fez a pergunta de praxe, que eu já esperava:

— Tem prova de tudo isso?

— Ainda não.

Ele sorriu, tristemente.

— Nem as terá, Marty. Lilac nunca permitirá que um assunto como esse, que você supõe existir, sob a morte desse Tolliver, venha a público. Ele pode ser o que for, mas não é tolo. E sem provas, nem se fala. Nestes casos, ou a gente consegue tudo, ou abandona o caso. Uma coisa é se expor a um julgamento por difamação, por outro lado, o senhor sabe o que acon­tece durante as campanhas eleitorais. Nós, os candidatos, dizemos-nos as maiores barbaridades, nos atri­buímos mutuamente delitos monstruosos, lançamos-nos acusações ignominiosas, e o público não acredita em nenhuma palavra de tudo isto. O momento é, portan­to, inoportuno para o que o senhor pretende, Sr. Mar­ty. Claro que, com provas, as perspectivas seriam outras.

— As provas — respondi calmamente — custarão dinheiro.

O advogado lançou-me um olhar penetrante.

— Que quer dizer?

— Dinheiro que de, pelo menos, para comprar um colar de brilhante. Prescindo da casa em Beverly Hills, da viagem à Europa e de outras coisas mais.

— Que está dizendo?

— Por que acha que marquei um encontro esta noite com a amiguinha de Konno?

O'Hara ficou confuso.

— Pois... Ah, compreendo. Quer comprar seu testemunho.

— Procuro compensá-la, em parte, da perda que ela sofrerá se Konno sucumbir. Se eu puder conven­cê-la de que é melhor escapar num bote, do que afun­dar com um navio inteiro, o senhor terá uma testemu­nha que lhe entregará de bandeja sua cadeira de se­nador.

— E ela sabe o suficiente?

— O que ela não souber, eu e o Tenente Stolz des­cobriremos.

O'Hara levantou-se e pôs-se a passear de um la­do para outro no escritório, com as mãos para trás, como um avestruz. Observei-o, atentamente. Fiquei contente ao ver que seu rosto pouco a pouco ia cla­reando.

Finalmente parou diante de mim.

— Quanto custa?

— Vou saber.

Ele descruzou as mãos e voltou as palmas para cima.

— Está bem — suspirou. — O senhor tem carta branca, Sr. Marty. Telefone-me depois de seu encontro com esta mulher. O senhor me encontrará aqui. E creia que não terá queixa de mim, mesmo que fracas­se. Vale a intenção. O senhor ganhou um amigo sincero.

Eu acreditei. Ele era um homem feio, calvo, negro, mas íntegro. E eu sabia, por experiência, que esta combinação é excelente.

 

Às oito horas e dois minutos entrei no Paolini. A freguesia era jovem e amava o ruído dos tambo­res. Sempre soavam tambores na eletrola a centavo que dominava a sala de baile ao fundo do bar. Logo na entrada havia um corredor apertado entre o bal­cão e a parede, que desembocava numa sala quadrangular, onde sempre se dançava.

Nancy fora pontual e era uma autêntica festa para os olhos, sentada diante de uma bebida gelada.

— Paolini tem os melhores refrescos da cidade.

— Olá, Dom? Oh! Quem lhe fez isto no rosto?

— Você está com o nariz sujo de refresco — res­pondi. — Quanto à minha cara, foi meu treinador quem a deixou assim. Estou-me preparando para en­frentar Frankie. Desde garotinho que quero brigar por uma mulher.

Paolini perguntou-me o que eu queria tomar e eu pedi genebra e uísque em partes iguais, com soda, gelo e uma rodela de limão.

— Por uma mulher? — perguntou Nancy. — Oh! Você está-se referindo a mim?

— Se eu fosse Frankie, andaria o dia todo atrás de você com uma pistola na mão, morto de ciúmes. As mulheres como você são perigosíssimas. Podem até parar o trânsito. Podem deixar qualquer pessoa louca. Provocam revoluções e alteram o curso da História.

— Eh, calma! — exclamou. — Que há com você, Dom?

— Estou me sentindo como se esta fosse a primei­ra vez que eu me encontrasse com uma mulher.

Veio coquetel que Paolini me trouxera.

— Nancy — disse-lhe, então — você quer mesmo um colar de bri­lhantes?

— Claro.

— Pois sinto ter que lhe dizer que você jamais terá um se depender de Frankie.

— Dom!

Dei-lhe palmadinhas numa das mãos.

— Pois é querida, é isso mesmo. Frankie Konno não tem sorte. A polícia agora anda atrás de Lilac, mas está de olho em Frankie para quando as coisas se aclararem. Descobriu-se o que ele fez em Chicago. Ninguém se engana sobre o que se pode esperar de Frankie, entende?

— Então...

— Então, o negócio fracassou.

Ela sacudiu a cabeça e a julgar como me olhava, não estava acreditando em mim.

— Não, não é possível — A polícia não está atrás de Lilac. Acreditarei em qualquer coisa, menos nisso.

— Você sabe quem é Lincoln O'Hara?

— Um fura-eleição, não é?

— Um homem quase tão poderoso quanto Lilac e muito mais honrado, que também está concorrendo à cadeira de senador que Lilac pretende. O'Hara é um adversá­rio perigoso. Se Lilac tem influência na polícia, ele também tem; se Lilac pode interromper uma investi­gação, ele pode fazê-la recomeçar. E é isso o que ele está fazendo agora. Ele vislumbrou uma ocasião de acabar com seu adversário e não descansará até que o motivo do assassinato de Dandy Tolliver seja desco­berto. Lilac irá passear quando tudo for descoberto mas, que acontecerá a Frankie Konno?

Nancy não me respondeu e eu quase tive pena dela.

— Como está vendo — prossegui — a casa em Beverly Hills, a viagem à Europa e o colar de brilhantes escaparam-lhe das mãos, Nancy. Claro que tudo tem remédio. As desgraças podem ser grandes ou peque­nas, depende apenas de a gente ser esperto ou não.

Dois rapazes e duas moças empurraram as portas vaivém do bar, saudaram Paolini e foram se reque­brar ao som da eletrola. Os casais que ali já estavam, acolheram os recém-chegados com gritinhos amistosos.

— Eu não sou esperta, Dom — confessou Nancy, num arrebatamento de sinceridade. — Não sou nem um pouco. Quase sempre ponho tudo a perder.

— Mas você me entendeu, não é? Entendeu que Frankie Konno perdeu a partida, e que você não con­seguirá tirar mais nada dele, não é mesmo?

— Entendi.

— Que aconteceria se eu lhe desse o tal colar?

— Você? Está falando sério?

— Sim! Não lhe ofereço numa viagem à Europa, um palácio em Hollywood, nem a Lua, mas um colar de brilhantes, sim. Ou o seu valor em dinheiro. Contadinho. Mais vale um pássaro na mão que centenas deles voando, Nancy.

Ela me olhou como se quisesse me furar com os olhos.

— Ninguém dá presentes por nada. Isso só acon­tece nos contos.

— Eu jurei a mim mesmo acabar com Tony Lilac.

— Que tem isso a ver com o colar?

— Vou precisar que alguém diga num tribunal quais são os negócios clandestinos de Lilac, que tinha Dandy Tolliver a ver com isto e porque foi assassina­do. Ou, pelo menos, que alguém diga à polícia como descobrir tudo isso e como provar. Ou, senão à polícia, que pelo menos me diga.

Ela apertou os lábios.

— E terei que ser eu, Dom? É isto o que você quer dizer?

— Por que não? É um bom negócio. Entre perder tudo e salvar um colar, parece-me que não há esco­lha. É um colar em troca de nada.

Ela pensou um pouco.

— Não é um colar em troca de nada. É um colar em troca de Frankie.

Dei de ombros.

— Há muitos Frankies no mundo.

Ela parecia a ponto de chorar. Naquele instante um bando de jovens deixou a sala correndo, e trepou nos tamboretes do bar, gritando por refrescos.

— Vamos embora daqui — disse eu. — Não aguento mais.

Nancy acabou seu refresco em dois grandes goles, enquanto eu pagava a conta e saímos. Quando trans­pusemos as portas de vaivém do bar, ela parou subitamente.

— Gowan — sussurrou.

Vi um Pontiac conversível mover-se do outro lado da rua, dirigido por um sujeito com um cigarro nos lábios.

— Quem é?

— Um dos rapazes de Frankie. Oh! Dom, ele veio me seguindo. Tenho medo.

— Pensei que Frankie não fosse cuidadoso.

— Não é isso. É que ele...

— Você lhe deu motivos para que ele suspeitasse que você o traísse?

— Ele deve ter descoberto que eu vinha encon­trar-me com você.

Fomos para o meu carro.

— Bem, que decide?

— Assim, de repente? Preciso pensar.

— Preferiria que você não voltasse agora a La Fiesta.

— Não, Dom... Seria horrível se eu não voltasse. Você não conhece Frankie. É preciso fazer as coisas com cuidado. Deixe-me pensar. Eu o avisarei.

Tive um mau pressentimento. Eu não gostara de ver aquele Pontiac estacionado diante do bar de Paolini.

— Está bem, Nancy. Você saberá o que lhe con­vém. Vamos. Eu a levarei a Los Cerros.

Levei bastante tempo para chegar a Los Cerros, porque não me limitei apenas a dirigir o carro... Dei­xei Nancy quase diante da drogaria e, por duas vezes, olhei para vê-la caminhar pela calçada. Ela tinha um modo de andar que fazia a gente se sentir feliz da vida.

Voltei para o centro da cidade e fui jantar num restaurante barato. Depois telefonei para Stolz.

— O papel que envolvia o cadáver de Tolliver — disse-me ele — é fabricado pela Chapman Limited e serve a grandes pedidos. Entre outras indústrias a dois ou três armazenadores de presunto. Encontramos o selo de Gordon, e ele diz que fornece para todos os estabelecimentos de Lilac. As cordas são de pinho de Wisconsin. Os fabricantes de uísque empregam-nas em suas embalagens.

— Isso acusa tanto a Lilac como a todos os outros proprietários de bares, restaurantes e dancings da cidade. Gordon não lhe serve presunto especial, não é mesmo?

— Não, mas são evidências. E há outra. Você viu mais papéis sob as cordas, grudados ao cadáver, não viu? Bem, pois eram folhas de jornais. Quase todas de jornais mexicanos, Marty.

— E daí?

— Os clubes de Lilac não recebem jornais mexi­canos e, pelo que apuramos, ninguém ali os lê, e tam­pouco serviam para embrulhar alguma coisa chegada do outro lado da fronteira, porque eles não receberam nada.

— Grande coisa! Saiu, então, Deus sabe de onde.

— Você tem ideia de alguma coisa que possa che­gar do México para Lilac, secretamente?

— Sim — reconheci.

— Está pensando o mesmo que eu: marijuana. Que tal se Tolliver tivesse sido morto numa "boca de fu­mo"?

— Tudo é possível. Prossiga.

— Por enquanto é só.

— Falou com Prescott?

— Prescott me garante. Tem medo, mas vai me ga­rantir.

— Ótimo. Há alguma coisa quanto a Rossana Grant?

— Não. Quer dizer... Sabe se ela ia a um salão de beleza que há na esquina da Rua Shelton com a Avenida Nelson Milles?

— Não... Não sei. Por quê?

— Um dos meus homens julgou tê-la visto sair dali, mas perdeu-a de vista no tráfego. Perguntou no salão e lhe disseram que se tratava de uma antiga cliente que esteve sumida durante algum tempo e que igno­ravam o seu nome. É um salão barato. A moça era loura e estava vestida de branco. Ele pode ter mudado de roupa. Meu agente acreditou reconhecê-la pela des­crição que eu lhe dei, mas pode ser uma coincidência e nada mais.

— Mandou vigiar o apartamento de Tolliver?

— Mandei. Ela não se aproximou da Rua Adams.

— Bem, vou perguntar a Lea Bates.

Desliguei e telefonei a O'Hara. Disse-lhe que ainda não havia nada resolvido, mas que Nancy parecia ter mordido a isca e que não tardaria em saber sua res­posta. Ele me desejou boa sorte e eu agradeci, porque realmente estava precisando.

Fui para Cafión Uno e perguntei por Lea no Samoa.

— Não está — informou-me uma morena impres­sionante. — Ela não veio hoje.

— Como não veio? Por quê?

— Não sei. Não avisou nada.

— Há telefone por aqui?

Ela me levou até o aparelho e eu liguei para o apartamento de Lea. Ninguém respondeu, embora eu passasse quase dez minutos com o fone grudado ao ouvido.

Saí correndo para o carro e pisei fundo o acele­rador. Cheguei em poucos minutos. A porta do aparta­mento de Lea estava trancada. Desci à portaria.

— Viu a Srta. Bates sair? — perguntei ao por­teiro.

— Não tenho certeza. — respondeu. -— Acho que não.

— Receio que lhe tenha acontecido alguma coisa. Vamos, apanhe uma chave e venha comigo.

— Mas...

— Não está ouvindo, Johnson? Ande depressa! Ele era um homem obstinado e não gostara de me ver trocando tiros com dois desconhecidos ao meio-dia, mas obedeceu. Subimos juntos e sua chave abriu a porta.

Senti o cheiro de fumo havana. Lea, claro, nunca fumara aquilo. Lancei-me contra a porta do quarto. Ali havia três gigantes fumando. E Lea também esta­va lá, vestida com uma simples saída de banho, ras­gada em meia dezena de lugares. Ela fora amarrada a uma cadeira e amordaçada. Um dos gigantes empunhava um cinturão de couro como se fosse um chicote e, ao que parece, nós o surpreendemos em pleno exercício.

 

Johnson, o porteiro, deu um grito de espanto. Eu agarrei o primeiro objeto que vi — um pesado relógio — e o atirei na cabeça do gigante mais próximo. Ele cam­baleou e agarrou-se na cama para não cair.

O porteiro saiu correndo, mas outro dos gigantes saiu em seu encalço. Quando ele passou por mim eu o calcei, e ele e Johnson foram ao chão. Johnson gri­tava e, de repente, seus gritos morreram sob fortes pancadas. Saltei em direção ao sujeito que tinha o cinturão, ele ergueu a mão e eu a torci, arrancando-lhe um grito de dor. Inclinando-me, desferi-lhe um pontapé que o jogou de cabeça no chão. No mesmo instante recebi violenta pancada nas costas e com­preendi que o cara que eu tinha derrubado com o re­lógio, já se tinha recuperado. Antes de me voltar, sal­tei duas vezes com os pés juntos sobre a cara do gi­gante caído. Quando eu enfiava meu pé em seu estô­mago, recebi uma segunda pancada nas costas que me jogou do outro lado do quarto.

O primeiro gigante atirou-se sobre mim. Voltei-me para escorá-lo e seu peso me cortou a respiração. Ele me deu duas cabeçadas, uma no peito e outra no ombro, tentando me atingir no queixo. Eu quis lhe des­ferir o golpe do coelho, mas falhei. A terceira cabeça­da me pegou em cheio na cara. Deixei-me cair no chão, agarrei seu tornozelo e o torci. Ele gritou e caiu espetacularmente, tal como caem os prédios de doze andares ao serem dinamitados.

Caí sobre ele e finquei meus dedos em sua gar­ganta, disposto a estrangulá-lo; mas era um sujeito tão forte que conseguiu girar, arrancando-me de cima.

Quando nós dois estávamos no chão ele atingiu-me um soco de esquerda no estômago e logo outro, de di­reita, no mesmo lugar. Penosamente arrastei-me para fora de seu alcance. Pensei que fosse desmaiar. Engoli em seco e girei, evitando o terceiro golpe.

Ao levantar, encontrei-me diante de uma cadeira. O gigante estava abaixado, respirando penosamente. Ergui a cadeira e baixei-a com toda a força nas suas costas. Ele não se moveu mais.

Foi aí que apareceu o assassino do porteiro. Ele veio correndo e, encontrando-me exausto, não teve di­ficuldade em me pegar pelos braços e desferir uma joelhada nos meus rins.

— Vamos, pegue-o! — arquejou. — Pegue-o, Pat!

Pelo jeito, Pat era o gigante do cinturão, que na­quele momento estava se recuperando. Ele não se fez de rogado. Pegou-me. Poucas vezes me pegaram com as mãos limpas como ele me pegou. E o animal sabia bater, sabia despejar todo o peso do corpo num soco. Ele parecia entender muito de anatomia, pois sabia exatamente quais eram os pontos mais sensíveis do corpo humano.

Compreendi que não iria resistir mais cinco segun­dos naquela situação e fiz um esforço desesperado. Mandei um pé para trás. O sujeito me largou na hora e eu emendei um soco em Pat, que voou e caiu pesa­damente aos pés da cama. Seu companheiro, dobra­do para frente, apertava o ventre com as mãos e fazia caretas de dor. Parti para cima dele. Ao dar o primeiro passo senti náuseas e vi uma sombra negra flutuando ao redor, enquanto o quarto girava e o chão baixava e subia como o convés de um navio em plena tempestade. Segurei-me na parede.

Pat levantou-se e o mesmo fez o sujeito em cima de quem eu arrebentara a cadeira. Julguei que eles fossem me atacar de novo, mas Pat gemeu e disse: — Vamos...

Nem sei como eles saíram, porque eu estava in­teiramente inconsciente. Fui até o banheiro, tirei o paletó, e entrei vestido com o resto da roupa e sapatos debaixo do chuveiro. Em seguida, voltei ao quarto. A ducha melhorara meu estado. Lea continuava amar­rada à cadeira e tinha os olhos arregalados. Antes de atendê-la, procurei ver como estava Johnson, mas não o encontrei. Supus que ele escapara e que voltaria com a polícia. Foi, então, que eu soltei Lea.

— Dom! — gemeu ela convulsamente.

Ela enlaçou-me o pescoço e começou a chorar.

— Que aconteceu? — perguntei. — Que queriam esses animais?

— Queriam saber onde está Rossana.

— E por acaso você sabe?

— Eu lhes disse que não e eles não acreditaram em mim.

Por entre os farrapos da saída de banho vi algo que me desagradou: marcas vermelhas na pele, deixa­das pelo cinturão utilizado como chicote. Senti um ódio feroz roer-me as entranhas, mas não disse nada. Carreguei Lea para o banheiro, lavei as feridas que ela tinha nos ombros e curei-as como melhor pude. Jurei, então, que vingaria aquilo com juros.

Lea deixou-me tratar dela em silêncio. Parecia uma menina assustada. Olhava-me nos olhos com ex­pressão de grande sentimento. E não sei por que, mas naquele momento, descobri que estava unido a ela por laços de afeto que nunca me haviam unido a ninguém, e foi uma descoberta tão deliciosa que a cólera aban­donou-me a alma. Aos poucos tudo voltou ao normal, Lea ficou serena. Foi então que percebeu que estava pouco vestida.

— Saia e me espere, Dom. Não vou demorar.

Saí, cruzei o quarto e sentei-me na sala, mas as roupas molhadas no corpo incomodavam-me e fui ao meu apartamento mudá-las. Quando me olhei no es­pelho tomei um susto. Depois das duas surras que eu levei, não creio que em Los Angeles houvesse alguém com cara pior que a minha. Procurei me ajeitar, pen­teei-me, pus minha melhor roupa e tomei uma grande dose de uísque. Achei que uma boa dose de uísque, também faria bem a Lea. Enchi um segundo copo e voltei ao apartamento dela.

O porteiro fora mesmo chamar a polícia e espera­va na sala junto a um guarda com cara de cão. Lea ainda estava no quarto e não saiu dali enquanto o porteiro e o policial não foram embora. Fui eu quem fez declarações e inventou uma história mais ou me­nos verossímil para justificar o que acontecera. O guarda não pareceu ficar convencido, mas a mim pou­co importou. Ele disse que nós seríamos intimados a prestar depoimento no distrito; eu lhe respondi que estava bem, que fossem embora e que não incomodas­sem Lea, Eles se foram e Johnson me lançou um olhar venenoso ao sair.

Quando Lea saiu do quarto, vi que ela tinha se esforçado para recompor sua aparência. Vestia um vestido azul-escuro, tinha os cabelos em ordem e o rosto maquilado. Um lenço amarelo ocultava-lhe as marcas deixadas em seu pescoço.

Dei-lhe o uísque e, enquanto bebia a pequenos go­les, ela me contou o que acontecera. Vestia-se para ir trabalhar, quando bateram na porta. Ela foi atender, vestida com a saída de banho e ao abrir a porta não pôde impedir que os três gigantes invadissem o apar­tamento. Impediram-na de gritar e perguntaram an­siosamente onde estava Rossana. Como ela não lhes respondesse, eles apelaram para a ignorância, prometendo-lhe dez chibatadas se não disse a verdade. Lea não pôde convencer-lhes de que não sabia e eu só che­guei quando eles estavam terminando.

Tudo aquilo, pensei, não tinha muito sentido. Se Rossana realmente fugiu para extorquir morfina de Tony Lilac, como ele não sabia onde ela estava? Ou não era Lilac quem queria saber? Os três gigantes não seriam mandados por ele? Seriam enviados por Fran­kie Konno, então? Será que Konno queria saber onde estava Rossana para impedir que ela falasse a respei­to de Tolliver? O que...?

A campainha da porta tocou. Eu mesmo fui abrir e fiquei estupefato. O visitante era o Tenente Stolz.

— Olá! — O porteiro me disse que eu deveria en­contrá-lo aqui. Parece que houve barulho, hem?

— Houve — respondi, — mas não era preciso você se incomodar.

— Não vim por isso.

— Oh! — lembrei-me. — Descobriu alguma coisa sobre o salão de beleza?

Ele me interrompeu com um gesto.

— Não é por causa disso, também. Isso já não tem mais importância. Acho que encontramos Rossana Grant.

— Onde está?

Ele olhou de relance para Lea.

— No necrotério.

Ouvi um soluço afogado.

— Assassinada?

— Foi encontrada por guardas rodoviários numa estrada da costa, próximo de Casitas. Ela, pelo menos, viajou antes de morrer. Vim-lhe pedir que identifique o cadáver, Marty.

— Vamos — disse eu.

— Eu vou também —- disse Lea, com voz rouca. Saímos os três.

 

Pobre Rossana. Parecia um passarinho molhado.

Não tinha nem a gravidade natural na morte, nem a beleza ascética dos cadáveres. Seu rosto melan­cólico e maquilado estava contraído por uma careta desagradável. Deram-lhe um tiro na nuca e o sangue empapara seus cabelos, dando-lhes um tom pardo. Ninguém se preocupou em lhe fechar os olhos esbugalhados, atônitos, imobilizados no olhar de horror de quem assoma os confins do mundo físico.

Ela estava sobre uma mesa do depósito, coberta por um lençol e sob uma luz que lhe destacava crua­mente as rígidas formas. Em outra mesa estavam sua roupa e seus pertences, que se reduziam a um batom, um maço de cigarros, dez dólares e umas quantas moe­das soltas. Alguém deve ter-lhe dado dinheiro depois que ela fugiu do apartamento de Lea; Lilac, provavel­mente. Mas ela ainda estava com vestido branco e vermelho e não com o branco que Stolz imaginara, supondo que fosse ela a moça vista saindo do salão de beleza na Rua Shelton.

Lea e eu a olhamos alguns minutos em silêncio.

— Veja — disse o Tenente.

Ele me mostrava na palma, de mão a caixa de fós­foros entreaberta. Faltavam quatro ou cinco palitos. Era uma caixinha roxa; não amarela, mas sim roxa. Tinha impresso na tampa um trevo negro, e não havia uma só inscrição em parte alguma.

— Outra vez? — murmurei.

— Outra vez, mas acho que agora é coincidência. Ela obteve a caixa em algum lugar onde esteve de­pois que saiu do apartamento de Lea, antes de ser assassinada.

Acho que Rossana teve o mesmo destino de ou­tras moças iguais a ela; de moças que continuarão existindo enquanto no mundo houver algum Dandy Tolliver. Ninguém podia sentir-se bem, vendo-a ali estendida e lembrando quão alegre, livre e ingênua fora no passado. Uma moça vistosa, de riso fácil, cor­po trepidante e olhos sonhadores, demasiado sonhadores, talvez. Como tantas, porém, também teve má-sorte! Alguns sujeitos deviam poder morrer duas vezes. Dandy, por exemplo. Se fosse assim, eu poderia ter tido o gostinho de meter-lhe umas balas na barriga, mas alguém chegara na minha frente.

Quase xinguei Tony Lilac, pensando nisso. Mas não, Lilac fazia parte, havia corrompido. Era do ambiente onde Rossana era apenas um elo da corrente que a arrastara para a morte ignóbil. Olhando para o mí­sero cadáver da moça, eu jurei que pegaria cul­pado muito breve. Muito breve mesmo. E como!

— Que há de mais com esses fósforos? — pergun­tou Lea, de repente.

Stolz e eu nos voltamos para ela.

— Havia outros semelhantes, numa caixinha ama­rela, com o cadáver de Tolliver. Não sabemos de onde são.

— Eu vi muitas delas. Caixinhas amarelas, roxas, vermelhas e azuis...

— No Samoa? — perguntou Stolz rapidamente.

— É.

— Eles distribuem isso lá?

— Não. Vi gente que as usava.

— Quem?

— Ora, uma porção de gente. Stolz parecia muito interessado.

— Mas... Diga-me uma coisa: pessoas de quem se pudesse suspeitar que fossem viciadas em drogas? Fumadores de marijuana, talvez?

Bem, não eram pessoas recomendáveis, salvo algumas exceções.

— Você sabe o nome de algumas dessas pessoas? Lea franziu o cenho.

— Sammy Costello... Ted O'Rourke... Louetta Robinson... Geórgia Paddy, Joe Hauptmann... David Lawrence...

— Lawrence? Você quer dizer o diretor de ci­nema?

— Sim, ele mesmo. E também eu vi com essas cai­xinhas Monty Melloy, Nell Strauss e outros atores e pessoas de Hollywood.

— Costello e O'Rourke são dois dos guarda-costas de Lilac, não são?

— Realmente.

— E quem são Paddy e Hauptmann?

— Dois músicos da banda de King Carstairs. Ê uma das que atuam no Samoa,

— Ah, sim. Geórgia Paddy é o negro que toca trombone.

— E Hauptmann é o pianista.

— E Louetta Robinson? É a mesma que aparece nas notas sociais? É a filha do banqueiro?

— Ela mesma.

Stolz emitiu um longo assobio.

— Que escrete!

— Por quê? Que importância têm esses fósforos?

— O Tenente desconfia que eles procedam de uma ou várias bocas de fumo de marijuana. Não é isso, Stolz? — disse eu.

— Exato. Da fonte secreta de Tony Lilac.

— Compreendo — disse Lea. — Quer dizer... Não, não compreendo. Essa gente, como Louetta Robinson e David Lawrence ou Monty Melloy, exibia suas caixi­nhas de fósforos em público. Como não percebiam que se estavam expondo a uma chantagem?

— Uma chantagem? Estando Lilac no meio? Não, minha, filha. Quem ia se atrever a tentar?

— O próprio Lilac.

— Para arruinar seu negócio? Nem diga isso, Lilac defende seus clientes. Seu poder é uma boa garantia.

— Sim — admitiu Lea — você tem razão. É por isso que Rossana morreu. Porque sabia demais e era muito franca. Porque Lilac precisava salvaguardar seu sujo negócio.

E Dandy?

— Dandy morreu por ser traidor.

— Por trair Lilac?

— Sim. Dandy nunca trabalhou para Lilac. Ape­nas fingiu. Na verdade, preparava-se para acabar com ele em benefício de outro. Esse outro era seu velho amigo Frankie Konno, que precisava eliminar Lilac, para estabelecer na rica praça de Los Angeles uma rede como a que perdeu em Chicago. Konno cometeu um erro fundamental. Mordeu um osso muito duro e perdeu os dentes. Por muito esperto que seja não é adversário para Tony Lilac. E Lilac advertiu-o da for­ma que nós sabemos, enviando-lhe o cadáver despe­daçado de seu amigo.

Stolz era um homem consequente e lúcido, disse a mim mesmo. Havia elaborado uma teoria esquemática que correspondia, exatamente, aos fatos conhecidos ou imaginados por ele e por mim. Não havia nela nenhum mistério, nem tinha porque existir. As coisas foram claras desde o princípio. Chegar ao fim era apenas questão de diplomacia e de uma enérgica ação no mo­mento oportuno. E, naquele dramático instante, eu senti que a fase de diplomacia já estava concluída e que o golpe de ação ia se tornando mais e mais imi­nente.

— Eu me encarregarei do corpo de Rossana — disse Lea, depois. — Ela era minha amiga. Eu lhe agradecerei se me avisar quando terminarem os trâ­mites legais.

— Eu avisarei — assentiu Stolz. — Ela tinha fa­mília?

— Acho que sim, no Leste. Eu cuidarei de tudo.

— Obrigado.

Olhamos para o cadáver pela última vez e Stolz levou-nos de carro para casa. Lea guardava um silên­cio que eu e o Tenente também respeitamos. Calculo que nós três estaríamos pensando mais ou menos dire­tamente em Tony Lilac e, a julgar pelos meus pensa­mentos, não era boa coisa para Lilac.

Stolz era um homem duro. No entanto, quando apertei sua mão antes de subir ao meu apartamento, vi em seus olhos um brilho de emoção. Presságio de tormenta. Ciclones desatados. Gostei daquilo. Foi mes­mo eletrizante. Sorri e dei-lhe uma palmada no ombro.

— Amanhã falaremos — disse-lhe.

Eu e Lea subimos peto elevador até o nosso andar e ao chegar à minha porta ocorreu-me que não pode­ria deixar que Lea ficasse sozinha, entregue aos lúgubres pensamentos acerca da morte de Rossana. Por isso ofereci-lhe um copo, um cigarro e um pouco de bate-papo. Ela vacilou e eu a conduzi ao meu aparta­mento, empurrando a porta cuja fechadura, destroça­da por Buddy e Sloane, precisava de conserto. Enxer­guei luz no interior do apartamento. Apalpei o bolso e praguejei por me esquecer da pistola.

— Espere — murmurei.

Entrei, sem vacilar. Primeiro vi umas pernas femi­ninas balançando na beira de uma poltrona. Em se­guida, avistei um vestido justo, de cor grená. Uma mão que empunhava um revólver e cabelos louros. Era Nancy.

Ela baixou a arma quando me reconheceu e fez um gesto. Voltei-me rapidamente, mas era tarde. Lea não tinha esperado. Assomava a cabeça, e a expressão de seu rosto dizia muita coisa.

— Entre, entre! — convidou-nos Nancy alegre­mente. — Não fiquem ai parados!

Eu avancei e vi junto à poltrona uma sacola de mão.

— Que significa isto?

Nancy fez-me uma careta, mas não olhava para mim, e sim para Lea, ainda imóvel no umbral.

— Significa que você ganhou, Dom — respondeu. — Eu não devia ter voltado a La Fiesta. Teria evitado o que houve.

— Com Konno?

— Não. Com Gowan. Ele não estava seguindo a mim, mas sim a você. E ele quis tirar partido de nos ter visto juntos e eu não tolero coações. Ele ia contar tudo a Frankie e eu fugi antes que ele o fizesse, que vá para o diabo! Convenci-me de que Frankie é um homem acabado. Pensei bastante.

— Você está trocando Frankie por brilhantes, hem?

— Definitivamente.

Lea entrou e fez uma pergunta venenosa: — Estou incomodando?

Tomei-a pelo braço e apresentei uma à outra. Em seguida, fui preparar um uísque, deixando-as sentadas frente a frente, observando-se. É engraçado ver como duas mulheres bonitas se analisam, e com que avidez se estudam e se comparam.

— Você não pode ficar aqui, Nancy — disse, quan­do acabei de preparar as bebidas.

— Mas querido, por quê?

— Porque Konno já nos deu muitos aborrecimen­tos e quando descobrir que você desapareceu virá pro­curá-la imediatamente aqui. Vou levá-la para um hotel.

Ela não gostou da ideia.

— Oh!... — exclamou.

— Mas antes precisamos conversar. Lea, vamos para o seu apartamento. Pelo menos lá poderemos trancar a porta. Para que você quer esse revólver, Nancy?

Ela olhou para a arma, em seu colo.

— Não confio em Frankie. Estive sentada aqui, temendo que ele aparecesse de um momento para ou­tro. Oh! Agora que você está ao meu lado sinto-me muito mais segura, Dom.

— É? — disse, observando de relance a fisiono­mia de Lea.

Apanhei o meu colt e levei as duas mulheres para o apartamento ao lado. Lea parecia ter colocado um cadeado na boca.

— Vai falar ou não, Nancy? — perguntei, então. — Vai contar tudo?

Ela sorriu, movendo afirmativamente a cabeça.

— Vou falar até que você se canse de me ouvir, meu bem. Pode perguntar que eu responderei. Mas fique sabendo que se o colar não aparecer logo — acrescentou ainda sorrindo — direi direitinho a Fran­kie onde ele poderá encontrá-lo para se vingar de você.

Sua advertência parecia uma brincadeira, mas olhando-se nos seus olhos, via-se que ela falava sério.

— Não se preocupe — respondi. — Como se livrou de Konno?

— Ele não estava em casa, quando eu cheguei; e eu saí antes que ele voltasse. Gowan vai contar a ele tudo o que aconteceu.

— E o que acontecerá?

— Pode ser que ele venha aqui, ou pode ser que não.

— Konno está em Los Angeles para atrapalhar um negócio de Tony Lilac, não é? Ele mandou Dandy na frente, para conquistar a confiança de Lilac penetrar em sua organização, preparando terreno para a sua chegada. Lilac descobriu e foi por isso que ma­tou Dandy e enviou seu cadáver a Konno, colocando em seu bolso uma caixinha de fósforos que indicava porque e aonde ele fora morto. Konno assustou-se, mas não perdeu as esperanças. Provavelmente, havia levado a coisa tão longe, que se atreveu a confiar em que, guardando segredo e permitindo que Lilac se gas­tasse para esconder a verdade, voltaria a ter outra oportunidade para dar o golpe. Não é isso?

— Sim, é isso — assentiu Nancy. — Você disse tudo.

— Quem é Pat?

— Pat? Você quer dizer Pat Flanagan? Descrevi-lhe os três gorilas que açoitaram Lea.

— São três dos rapazes de Frankie.

— Há muitos?

— Cinco.

— Konno tinha muito interesse em encontrar Rossana. Grant, a amiguinha de Dandy, não tinha?... Era para fechar-lhe a boca?

— Era.

— E ele a encontrou?

— Que eu saiba, não.

— Por que Gowan me seguia?

— Por isso, pensando em encontrar Rossana. Es­perava que você o levasse onde ela estava escondida. Não agradava a Frankie que ela andasse solta por aí.

— Qual é o negócio que Konno quer tomar de Lilac?

— Boca de fumo de juju.

Eu sorri. Não podia ser outra coisa. Stolz ficaria satisfeito em saber.

— Quantas há?

— Eu conheço cinco.

— Você conhece! Onde ficam?

— Duas em Hollywood e três aqui.

— Tem certeza de que pertencem a Lilac?

— Claro!

— Mas não é possível provar.

— E é possível se provar que a luz vem do Sol?

— É diferente, Nancy.

— Não sei porquê. Se as bocas de fumo não são de Lilac, de quem são então?

Havíamos dado um grande passo, pensei, mas não parecia o passo definitivo. E, no entanto...

— Você estaria disposta a declarar tudo quanto sabe de Lilac, Konno e das bocas de fumo diante de um júri?

— E o colar?

— Com o colar preso ao pescoço.

— Bem... Aceito. Quer dizer, se alguém me pro­teger; se não for assim, nem sequer me deixarão falar. Tapam-me a boca com uma bala.

— Compreendo. Vou providenciar para que não lhe falte proteção.

Seria insuficiente, pensei. Insuficiente para a sede de vingança, que eu sentia para o ódio que a morte de Rossana desencadeara em meu peito.

— Nessas bocas de vocês costumam dar aos fre­gueses uma caixinha de fósforos com um trevo negro impresso na tampa?

— Sim.

— De que cor?

— Conforme. Em uma caixa é azul, noutra é vermelha...

— Em qual é dada a caixa vermelha?

— Acho que na de Alamito.

— Poderia me levar Já?

A pergunta pareceu diverti-la.

— Claro, se você tiver grana.

— Quanto?

— Só a entrada custa duzentos.

— Duzentos! E o resto?

— Depende dos gastos.

— Bem, amanhã terei o dinheiro, e você terá o colar.

Falei com Lincoln O'Hara e ele me disse que no dia seguinte me daria o dinheiro. Eu ia saindo com Nancy para procurar um hotel, quando Lea, sem que ninguém a convidasse, veio com a gente. Deixamos Nancy num hotel, obrigando-a a jurar que não sairia do quarto enquanto eu não voltasse para apanhá-la, e eu e Lea voltamos para casa lentamente, sem nos fa­larmos, pensando e gozando aquela noite.

Somente quando saímos do elevador no nosso an­dar foi que ela me disse:

— Amanhã deixarei meu emprego no Samoa, Dom.

— Sim — respondi distraído — é natural. Tony Lilac acabou, não é?

Ela suspirou e segurou-me uma mão, quando che­gamos diante da minha porta.

— Você me julgaria louca, se eu lhe pedisse que não fosse amanhã a essa boca de fumo? '

— Só se é a companhia de Nancy que a preocupa.

— É a sua vida, Dom.

Achei graça. Aquela foi uma das poucas vezes em que me senti herói.

— Não tenha medo, menina. A mim ninguém vai matar como mataram Rossana.

— Nem como Dandy?

— Nem como Dandy. Eu lhe disse, com muita certeza, mas era uma cer­teza fingida. Quando me encontrei sozinho em meu apartamento, coloquei todos os móveis que pude atrás da porta da rua e fechei a porta do quarto à chave.

 

N0 dia seguinte levantei-me na hora do almoço, com o corpo dolorido e esgotado. Minha cara es­tava em carne viva e barbear-me foi um suplício. Quando terminei, estava me sentindo tão doente que tive vontade de mandar tudo para o inferno. Mas uma ducha fria e um bom trago fizeram-me mudar de opinião.

Bati na porta do apartamento de Lea para levá-la a almoçar, mas ninguém respondeu e o porteiro me disse depois que ela havia saído cedo. Fui a um restaurante chinês, comi quatro pratos e folheei os jornais. O'Hara devia ter recomendado discrição aos jornais onde tinha influência, porque as notícias a respeito dos assassinatos de Dandy e Rossana eram pobres, nada aclaravam e se baseavam principalmen­te em despachos telegráficos, que nunca são abundan­tes em detalhes. Ao que parece ninguém teve a ini­ciativa elementar de apurar o fato na estação de Los Cerros. Ou, se alguém a tomou, não foi levada em conta.

Dava pena ler o Leader. Suas páginas, como a de todos os outros jornais de Lilac, ignoravam que Dandy e Rossana estivessem mortos. Tony Lilac iniciava sua campanha eleitoral e não havia espaço para mais na­da. Declarações, artigos de fundo, revista das neces­sidades do Estado. Um senador de Los Angeles, a so­lução para a Califórnia. O Sr. Anthony Lilac, moder­no homem de empresa, mente esclarecida e honesta personagem política. Uma opinião do Sr. Lilac sobre política internacional. Como o Sr. Lilac vê a guerra na Coréia. O Sr. Lilac na intimidade.

Uma nota sobre as virtudes cívicas do Sr. Lilac, assinala pelo velho Crockett, fez-me espumar de raiva.

O almoço não me fez bem. À tarde fui ver O'Hara.

— Bem, bem, meu querido Sr. Marty! — disse, afetuosamente, quando me recebeu. — Como vai esse pequeno complô que estamos tramando?

— Julgue pelo meu aspecto — respondi...

Ele tirou os óculos, limpou as lentes com um pano de camurça, voltou a colocá-los e estudou-me atentamente.

— Vai mal? — perguntou.

— Ainda não sei. A loura de Konno abriu o jogo e voltará a falar mais ainda diante de um júri, se an­tes não lhe derem um tiro.

— Conte-me.

Contei-lhe tudo o que acontecera desde que nos vimos no dia anterior.

— Que vai fazer agora? — perguntou O'Hara, que es­tava nervoso e não parecia muito satisfeito. — Tomou alguma decisão? Parece que a coisa está chegando a um ponto morto, não é? Ou acha que convém nos lan­çarmos agora abertamente contra Lilac, esperar que ele mova um processo por difamação para então res­pondermos a ele com o testemunho público dessa moca?

— Nancy seria de grande efeito diante de um tri­bunal — respondi — principalmente se fosse com uma sala não muito larga. Vendo-a, talvez os jurados se esquecessem de que não temos provas materiais con­tra Lilac.

— Vamos, Sr. Marty... Que tipo de provas mate­riais o senhor quer? Uma ata de propaganda dessas bocas de fumo, assinada pelo punho e com a letra de Lilac e registrada em cartório?.

— Não confio em Tony Lilac. Nem um pouco.

— E daí?

Dei de ombros.

— Esta noite visitarei uma das bocas de fumo, a de Alamito, onde, segundo os fósforos encontrados em sua bolsa, Rossana esteve no dia da sua morte e de onde provavelmente saiu para morrer. Verei o que há lá e, conforme for, agiremos. O'Hara procurou sorrir.

— Onde prefere ser enterrado, Marty?

Fingi não ouvi-lo. Aquele tipo de piada não lhe caía bem...

— Nancy está reclamando o colar — disse-lhe.

Ele assentiu, apanhou um talão de cheques na ga­veta, preencheu um deles sem titubear, assinou-o e entregou-me. Vi que na importância havia pelo menos quatro zeros. Desabafei minha admiração com um as­sobio. Descobrir que O'Hara não era um homem taca­nho foi uma das maiores surpresas da minha vida.

— Também preciso de algum — disse, quando es­tava menos espantado.

— Paga-se entrada nas bocas de fumo de juju. Sinto ter que pedir ao senhor, mas estou duro,

— Mil dólares dão?

Engoli em seco, humilhado.

— Espero que sobrem uns centavos.

Ele se levantou, abriu a porta de um cofre, na pa­rede, contou o dinheiro e entregou-me.

— Esta noite, o mais tardar amanhã de manhã, o senhor terá notícias minhas — disse-lhe. Era o mínimo que eu poderia dizer em troca de tanto dinheiro. — E boas notícias.

Ele colocou a mão em meu ombro:

— Não espero menos, Sr. Marty.

Saí do Edifício Millikan sentindo-me milionário. Fui logo ver Nancy, porque imaginei que ela estaria chateadíssima. Realmente, ela estava aborrecida, ro­deada por revistas e copos sujos, mas recobrou toda a sua vitalidade normal e mais alguma coisa ao ver o cheque.

— Tem fundos? — perguntou.

Respondi-lhe que sim e ela se mostrou agradeci­da. Quando sua demonstração de agradecimento ter­minou, eu lamentei não ter outro cheque para que ela começasse tudo outra vez.

— Dom — disse ela, — você fará sempre comigo o que quiser. Você me compreende. Adivinha meus pontos fracos. Jamais encontrei um homem capaz de penetrar tanto em mim.

Imaginei que ela acabara de ler aquelas frases numa das revistas de fotonovela, mas nem por isso me desagradou. E, de certo modo, o que ela dissera aproximava-se muito da realidade.

— Prepare-se — disse-lhe eu. — Vamos embora, Nancy. Temos que comemorar isso com juju.

— Oh! É mesmo — exclamou.

Em poucos minutos ela estava pronta. Deixamos o hotel. A noite havia caído. A partir daquele momen­to, concedi a Nancy a iniciativa das operações, a co­meçar pelo volante do meu carro. Ela parou na esqui­na solitária de duas ruas arborizadas de Alamito.

— Agora temos que ir a pé — anunciou. — Eles não gostam que haja carros estacionados nas proxi­midades.

Andamos rua acima, passando diante das grandes casas, abrigadas por majestosos jardins e habitadas por pessoas ricas e poderosas. Coisa de quinhentos metros mais adiante, um pouco afastada das demais, •erguia-se uma casa, rodeada por verdadeiro bosque de pinheiros. Suas luzes estavam apagadas e Nancy ca­minhou até lá, sem hesitar.

O portão de entrada não estava trancado. Prosse­guimos por um caminho que atravessava o bosque e chegamos à varanda. Apertamos uma campainha, mas não a ouvimos tocar.

— Prepare a grana — disse Nancy.

Um homem vestido a rigor abriu a porta e colo­cou-se diante da luz que, naquele momento, era acesa no interior. Não pronunciou uma palavra. Dei-lhe os duzentos dólares, ele os embolsou e deu-me, em troca, um cartão vermelho com um trevo impresso no centro e um número no canto inferior direito.

Em sua companhia, percorremos um corredor atapetado. Subitamente, ele afastou uma cortina, abriu uma porta e nos vimos uma sala de dimensões médias, iluminada fracamente por luzes indire­tas, de chão encerado e em cujas paredes havia mais cortinas regularmente espalhadas. Ouvia-se a música de uma orquestra invisível que interpretava um blues sonolento, apagado, quase distante. Fora disso, a sala estava mergulhada no maior silêncio.

O homem afastou uma das cortinas, aparecendo uma porta. Ele a abriu, acendeu a luz e entramos en­tão num reservado decorado com gosto um pouco su­perado, onde havia uma mesa ao centro, sobre a qual fora aceso um quebra-luz rosa.

O homem fechou a cortina e deixou-nos a sós.

— Bem, que acha? — perguntou Nancy. Ela pa­recia estar em casa. Sentou-se comodamente em um divã e estendeu a mão para uma placa de cristal com três botões. Apertou um deles e um discreto alto-fa­lante começou a funcionar, introduzindo música no reservado. Em seguida, apertou outro, mas nada acon­teceu. — Aqui é como se estivéssemos a mil quilôme­tros do mundo, mas, seja lá o que você quiser, basta pedir e terá, como nos contos de fada.

— Sei — respondi, distraidamente.

Da mesma forma que a sala, os reservados care­ciam de janelas e estavam completamente isolados do exterior. Notava-se a pureza do ar condicionado. Pelo que eu estava vendo, nada que acontecesse no interior daquela casa, nem mesmo um batalha a tiros, se­ria ouvida além dos muros.

A    cortina correu, de repente, surgindo um cama­reiro gentil.

— Chamaram, senhores?

— Sim — disse Nancy. — Traga o cardápio.

— A senha, por favor?

Dei-lhe o cartão vermelho. Foi Nancy quem estu­dou o cardápio e pediu a ceia, sem consultar-me, en­quanto eu fumava um cigarro e me sentia, apesar de todo o conforto, mais e mais incomodado.

Se esperava divertir-se à beça, Nancy deve ter-se sentido roubada. Mas não o demonstrou. Engoliu sua ceia, sorrindo e falando, e eu me limitei a deixar-me levar. Foi uma boa ceia; a melhor de minha vida. Com champanha francês, que subiu à cabeça de Nancy. E isto não teria acontecido, se ela não houvesse bebi­do como uma mula que toma água.

O camareiro retirou o serviço, quando eu come­çava a pensar que se aquilo era tudo, nem tinha va­lido a pena ir até Alamito. No entanto, ele logo voltou com uma bandejinha contendo dez cigarros e uma caixinha de fósforo vermelha com um trevo impresso na tampa, e colocou a conta à minha frente. Paguei, sem reclamar. Com o que custou aquela ceia, eu po­deria jantar meio ano.

Nancy tomou um dos cigarros e aspirou-o com evidente prazer.

— Ah! — fez ela.

O camareiro se foi, após receber a gorjeta.

— Vai fumar essa porcaria?

— Por que não? Dei de ombros.

— Prove, Dom.

Levantei-me, afastei um pouco a cortina e olhei a sala. Dois pares dançavam, como num sonho. Seus rostos tinham uma expressão de êxtase. Junto à cor­tina da porta estava um homem parado, acendendo um cigarro. Vi seu rosto à luz do fósforo. Era Sloane, o patife que tão bem sabia usar seu porrete.

Nancy puxou-me pelo braço.

— Dom, não seja bobo.

O aroma do cigarro de juju que ela sustinha en­tre os dedos, fez-me cócegas no nariz. Formava uma combinação explosiva com o perfume que se despren­dia de sua pessoa. Eu a olhei fixamente. Era uma nova Nancy, e não porque estivesse baseada, seus olhos ar­diam. Ela respirava profundamente.

— Dom! — sussurrou.

Fui à mesa, apanhei os cigarros de juju e colo­quei-os no bolso.

— Vamos embora, boneca. Estou farto disto. Ela se apoiara na parede e parecia estar à beira de uma crise nervosa, que eu evitei, dando-lhe duas bofetadas. Toda sua tensão desfez-se em lágrimas.

Apanhei-a pelo braço e com a outra mão saquei a pistola e meti-a no bolso, mantendo-a segura. Saí­mos à sala e a cruzamos diretamente para a porta. Sloane continuava no mesmo lugar. Nancy cambalea­va um pouco. Soluçava, mas surdamente.

— Estou com uma arma no bolso, apontando para você, Sloane — disse, quando cheguei junto a ele. — Não quero brincadeiras.

Ele riu.

— Que esperto! — Não tenha medo que não vou pegá-lo aqui. Já tive tempo de sobra para isto. Acha que quero provocar um escândalo? Não faltará ocasião.

— É, mas vá andando na minha frente. Depressa.

Ele fez um gesto displicente, abriu a porta e pas­sou para o corredor, caminhando à nossa frente até a saída.

— Que é que a menina tem? — perguntou, então. — Não se divertiu?

— Abra a porta. Ele obedeceu.

— Até a vista, molequinho. E da outra vez não escolha uma chorona.

Chegamos à rua sem novidade, e ali, Nancy li­vrou-se de meu braço com uma sacudidela furiosa.

— Eu vou ficar. Vou ficar, está ouvindo? Vou ficar!

Eu a teria deixado com muito gosto, mas não po­dia arriscar-me. Era uma testemunha muito valiosa. Não tive outro jeito senão carregá-la no colo e levá-la dali. Ela resistiu bastante até que se cansou. Nós pa­recíamos dois palhaços, mas não vimos ninguém em todo o trajeto. Para falar a verdade, eu também es­tava cansado quando chegamos ao carro.

Ela ficou quieta no banco. Dirigi, observando-a com o rabo do olho e decidi dar uma volta pela cidade, para ver se o ar puro a acalmava. Somente quando ela se mostrou tranquila foi que a levei de volta ao hotel.

— Desculpe-me, Dom — disse ela, quando eu pa­rei o carro. — Você compreende. Sabe que eu não que­ria estragar-lhe a festa. Lamento.

Bati-lhe nas costas.

— Está bem. Vá dormir e não falemos mais nisso.

Esperei que ela desaparecesse na porta do hotel e, então, rumei para o meu apartamento. Eu pretendia telefonar para Stolz, mas quando entrei em casa o telefone já estava tocando insistentemente.

— Alô.

— Que diabo, Dom! Aonde você foi? Era novamente Ted Gordon, de Chicago.

— Que é que você quer?

— Notícias. Eu lhe disse que o caso do Tolliver interessava ao Herald. Procurei encontrá-lo ontem, nas nem sombra. Olhe, é verdade que o me disse?

— Foi.

— Bem, me conte.

— Agora não, Ted... Amanhã. Não posso dizer-lhe nada, por enquanto.

— Tem certeza?

— De mais.

— Como quiser. Mas eu tenho algo para você, Dom. Posso ajudá-lo. Sei, realmente, quem arrasou Konno, em Chicago, e sei também quanto cobrou para delatá-lo: quinze mil dólares!

— Quem foi?

— Ontem eu lhe contei algo que não é certo. Eu lhe disse que Konno e Tolliver continuaram sendo amigos depois do desastre, mas não é nada disso, Dom. Tolliver fugiu de Chicago para não ser apanhado numa vingança por Konno. Ele tinha medo. Esta in­formação é confidencial, exclusiva do Herald, mas tão verídica como...

— O quê?

— Foi Dandy Tolliver quem liquidou Konno, em Chicago. Por uma bobagem. Precisava momentanea­mente de dinheiro e traiu-o. Delatou-o, Dom.

— Meu Deus! — gemi.

— Que foi?

— Agora quem vai entrar pelo cano sou eu, Ted! Você conhece uma loura que se chama Nancy?

— Ela não vale nada! Ela está aí? Ainda ao lado de Konno?

— Sim.

— Fiel até a morte, hem? Muito cuidado com ela, Dom. É preciso ter cuidado. Ela é veneno puro. E mais esperta que o diabo.

— Esperta? Você disse esperta?

— Para lá de esperta. Konno lhe deve... Olhe, eu poderia lhe contar...

— Não conte mais nada — interrompi-lhe, ansio­samente. — Desligue, Ted. Desligue antes que eu te­nha um troço. Amanhã você terá toda a história.

— Dom!

— Desligue! Ele desligou.

Eu me deixei cair em uma poltrona. Acendi um cigarro e procurei raciocinar. É lógico que um homem procure raciocinar, quando todas as suas ideias viram poeira.

 

Levei dez ou doze minutos pensando. Logo procurei o telefone particular de Lincoln O'Hara, no catá­logo, voltei a apanhar o fone e liguei para ele. Tive a sorte de encontrá-lo em casa.

— O'Hara?

— Como vai, Sr. Marty?

— Mal. Ouça-me, O'Hara. Há alguma coisa que você precisa fazer amanhã de manhã, bem cedo, as­sim que pular da cama.

— O que é? .

— Chame o diretor do seu banco ou a pessoa com­petente e mande anular o cheque que você me deu es­ta tarde.

— O quê...?

— Não faça perguntas agora! Anule o cheque e não se arrependerá.

— Está bem, Marty. Como você quiser. Desliguei e fiz nova chamada, desta vez para a polícia. Pedi que me ligasse com Stolz.

— Stolz, nós nos deixamos enganar, como imbecis — falei. — Entramos pelo cano. Preciso compensá-lo pelo tempo que perdeu por minha culpa. É uma ques­tão de consciência. Estive pensando...

— Você ficou maluco, Marty?

— Não. Ouça-me...

— Você bebeu?

— Quer me deixar falar? Saia daí do seu escritó­rio, Stolz, imediatamente. Remova céus e terras. É pre­ciso encontrar o empregado da Southern Pacific que se enganou ao despachar o cadáver de Tolliver. Quan­do encontrá-lo, aperte-o. Ou muito me engano, ou você ficará assombrado com a história que ele lhe contará.

— Por que isso?

— É um palpite. Quer saber de uma coisa?

— Fale!

— Frankie Konno e Dandy não eram mais amigos. Foi Dandy quem arruinou Frankie, em Chicago. Em seguida, ficou com medo dele e fugiu da cidade.

Houve um silêncio considerável no outro extremo da linha. De repente, Stolz começou a rir. Eu sabia que ele acabaria rindo, porque, afinal de contas, era um homem esperto.

— Muito bem, encontrarei esse sujeito agora mes­mo. Se ele estiver na cama, pô-lo-ei para fora.

— Está certo. Outra coisa, Stolz. Você dispõe de homens para um plano? De homens seguros, entre os quais não possa haver uma infiltração? Pode conse­gui-los de Prescott?

— Para quê?

— No número 84, da North Garden, em Alamito, há uma das bocas de fumo de Lilac. É uma coisa lou­ca. Se quiser estourá-la, este momento é tão bom como outro qualquer.

— Prescott gostaria de fazer isso pessoalmente.

— Pois que ele faça, então.

— Muito bem, Marty. Terei notícias suas?

— Mais tarde. Tenho alguma coisa para fazer.

— Precisa de ajuda?

— Não.

— Boa sorte

Desliguei o telefone

Examinei o revólver, conferi a munição e, após tomar uma dose de uísque deixei o apartamento, seguindo para a casa de Konno.

Bati na porta e o filipino atendeu.

— Diga ao Sr. Konno que desejo falar com ele.

Ele me deixou no vestíbulo por alguns momentos e logo veio buscar-me, levando-me à mesma varanda da primeira vez.

      Ele estava jogando com Flanagan e mais dois gorilas que eu não conhecia.

— Diga o que quer, disse sem levantar os olhos das cartas.

Avistei uma das cadeiras preguiçosas armadas jun­to ao bar e fui me sentar nela. Apanhei um copo, ser­vi-me de uísque, soda e gelo. Depois, virei-me, prepa­rando-me para sacar a arma.

— Você está disposto, mesmo, a eliminar Lilac, Konno? — perguntei.

Ele estava de costas para mim e não se voltou.

— Estou — respondeu. E falando para os que jo­gavam disse: — aposto cinquenta.

— Passo.

— Cinquenta e mais cem — disse Flanagan.

— Acho que você fracassou — disse eu. — Temos a corda em seu pescoço, Konno. Você é um ingênuo, e os ingênuos sempre acabam entrando pelo cano. Vim-lhe pedir, em nome de Lilac, que você mesmo marque a data do seu funeral.

— Vou nesses cem — anunciou Konno — mas terá que pagar mais cem quem quiser ver meu jogo.

— Você perderá, Frankie — adverti-o.

— Ai vão os cem — disse Flanagan. E mostrou seu jogo.

Konno jogou as cartas, e eu disse, então:

— Esse é o mal de quem conta vantagens. Konno voltou-se para me olhar.

— Que diabo você quer?

— Quero preveni-lo — respondi. — Você perdeu sua oportunidade, Konno. Perdeu-a lastimosamente. Não foi bastante sutil. Sua trama estava bem urdida, mas não podia chegar a nos prejudicar. Lilac está acima disso tudo. Eu também. Talvez tivesse dado tudo no que você queria, se eu não houvesse me metido no assunto. Mas eu não me assusto facilmente. Eu pago para ver as suas cartas. Agora..., bem, marque a da­ta do seu funeral e não falemos mais.

— Você corta, chefe — disse Flanagan.

— Cale a boca! Continue falando, Marty. Você me diverte. Que relação há entre você e Lilac?

— Não sabe? Não adivinha? Eu sou a isca. Fui jogado para que você me mordesse e você mordeu.

— Continue.

— Você veio a Los Angeles em busca de Dandy, quando soube que ele estava metido num bom negócio com Lilac. Dandy serviu-se do dinheiro, da influência, e das garras de Lilac, e também da experiência que adquiriu com você, em Chicago. Era o tipo de negócio que você sonhava realizar e que ele mesmo, Dandy, o arruinou, quando você começava a colher os primeiros frutos. Você e Dandy tinham contas a ajustar, mas quando você ia fazê-lo pagar pela traição de Chi­cago, ocorreu-lhe uma ideia. Los Angeles e Hollywood são a terra de promissão dos fumadores de marijuana e do tráfico de entorpecentes. Com a ajuda de Dandy, Lilac tornou-se dono absoluto do mercado, mas por que não tomar-lhe o brinquedo? Por que não matar os dois pássaros com um só tiro? Sim, Konno, por que não?

Pareceu-me que Flanagan e o outro sujeito come­çavam a ficar nervosos. Apenas Konno continuava tranquilo, olhando-me.

— Assim — continuei — você liquidou Dandy, es­quartejou seu cadáver e fez uma embalagem que pudes­se incriminar Lilac: jornais mexicanos, que nos le­varia a pensarmos em envios secretos de marijuana, papel de embrulhar presunto, fibras de caixas de uísque. E uma caixinha de fósforo de uma boca de fumo entre as roupas do morto. E o detalhe desconcertante: cigarros egípcios na cigarreira que deveria conter juju. Em seguida, mandou para você mesmo o pacote, através dos serviços frigoríficos da Southern Pacific. Com uma gorjeta conseguiu que um em­pregado da estrada de ferro o extraviasse, despachan­do o pacote num cargueiro comum e permitindo que o cadáver fosse descoberto, quando começasse a apo­drecer. Quer que eu continue, Konno?

Ele disse que sim. Limpei a garganta com um gole de uísque e prossegui: — Você, naturalmente, não disse uma palavra contra Lilac. Achávamos que era impossível você falar, sob pena de pôr a perder todo o negócio que você al­mejava: o monopólio de entorpecentes. Foi Nancy quem representou a comédia, em vários atos. Primeiro com arrebatamentos sentimentais. Com que precisão você calculou que os inimigos de Lilac não desperdiçariam uma ocasião assim! Mas Lilac tem mais amigos do que inimigos, Konno. E, além disso, aqueles que são neutros não acreditariam que, numa hora de campanha elei­toral Lilac iria se comprometer estupidamente, come­tendo um assassinato, ainda mais um assassinato que não havia pressa alguma. O castigo de um traidor pode esperar. Isto é fundamental, Konno, você não se lembrou? Para Lilac seria muito mais fácil liquidar Dandy depois de ser senador, do que agora, quando é candidato.

Calei-me e o silêncio que se fez foi tão frio, que eu preferi continuar falando:

— Para terminar, você não se importava que a his­tória das bocas de fumo fosse a público. Tinha que ser assim, pois era a única forma de poder acusar Lilac de assassinato, com base. Mas, que alegria, quando ofereceram a Nancy um prêmio para que ela falasse num tribunal um segredo que vocês já não sabiam mais como guardar! Você se julgou muito esperto, Konno? Pois não foi, não. Cometeu um erro. Eu o teria deixa­do em paz se você tivesse se limitado a matar Dandy que era um patife, mas você foi além, matou Rossana Grant, e isto eu não perdoei. Rossana sabia quem era o verdadeiro inimigo de Dandy. Sabia perfeitamente quem o matou. Quando você mandou que a procuras­sem na Rua Adams, ela já tinha ido embora. Você, en­tão, se apavorou. Fez algumas investigações e pensou em Lea Bates e em mim. E atuou em consequência do que descobriu. Mas, enquanto isso, a mesma Rosa­na apresentou-se a você com a ameaça de delatá-lo, se você não a amparasse, em face do estado em que ela ficou após a morte de Dandy. Você, então, a matou e colocou uma caixinha de fósforo em sua bolsa, Ah, não, Konno, isso eu não perdoo. O assassinato de Rossana você vai pagar. Lilac ficará satisfeito com o meu serviço. As bocas de fumo nada têm a ver com a história. — Resolvi inventar. — A polícia encontrou no papel que envolvia o cadáver de Dandy e na bolsa de Rossana impressões digitais muito interessantes e esta noite os tiras apanharam o empregado da Southern Pacific, que você subornou. Ele não era um homem mui­to forte e abriu logo o bico. Contou tudo, Konno. O que aconteceu em Chicago será suficiente para man­dá-lo à cadeira elétrica. Lilac e as bocas de fumo estão de fora. Não me importam. Quase me alegro, acredite, contanto que o assassinato de Rossana seja punido. Afinal de contas, Tony Lilac tem muito dinheiro e gos­ta de gastá-lo. E é um sujeito simpático. Muito mais simpático que Lincoln O'Hara, pessoalmente.

A história acabava ali. Konno estava lívido. Nunca ninguém tinha me olhado como ele me olhava naquele instante.

Levantou-se da mesa e veio ao bar.

— Talvez... Possamos ajeitar isso, Marty — disse, com voz rouca. — Pensei que, falando em termos...

Parei de ouvi-lo. Percebi, imediatamente, que, sa­indo da mesa, ele me deixara a descoberto à frente de seus assassinos, e que Pat Flanagan tinha a mão sobre o cabo da pistola. Atirei-me da cadeira sacando o Colt. Flanagan disparou, mas não me acertou. Ouvi o estrépito de cristais, partindo-se. Durante uma fração de segundo eu pude velo sentado em sua cadeira e disparei, acertando-o na barriga. Os outros dois corre­ram, jogando-me a mesa em cima. Busquei desesperadamente um refúgio e ocultei-me atrás de uma pol­trona. Avistei Konno, escondendo-se atrás de uma co­luna. O gigante disparou, mas nada aconteceu. A bala apenas me roçou. Vi o outro sujeito correndo para o interior da casa e fiz fogo. Ele continuou correndo. Fiz fogo novamente e ele caiu de bruços, no umbral da porta.

Oculto atrás da coluna, Konno começou a disparar, também. Ele estava às minhas costas e obrigou-me a sair de trás da cadeira. O gigante teve-me, então, como um alvo perfeito. Compreendi que estava perdido. Senti um impacto e uma sensação estranha, como se algo muito grande houvesse se rompido dentro de mim. Não senti nenhuma dor. Dobrei-me e fiquei estendido de boca para cima. Quis mover-me e não pude. Horrori­zado, vi o gigante abandonar seu refúgio e caminhar em minha direção com a pistola, engatilhada.

— Que está esperando? — ouvi Konno gritar.

O indicador do gigante crispou-se sobre o gatilho. Soou um tiro e o rosto do gigante abriu-se, como uma flor negra e vermelha.

— Quieto, Frankie! Corra, Don! Não pode? Corra! Nancy estava na porta, com seu pequeno revólver fumegante na mão, observando como o gigante desa­bava, caindo quase aos seus pés. Tive tempo de pensar que ninguém é capaz de entender as mulheres, antes de ouvir a pistola de Konno disparar.

Nancy deu um grito e cambaleou. O revólver caiu de sua mão.

Konno saiu de seu abrigo, correndo para ela. Na­quele momento, saí do estado de paralisia em que me encontrava. Estiquei o pé e derrubei-o entre o monte de cadeiras e mesa caídas, garrafas e copos estilha­çados, cartas de baralho e fichas de pôquer espalhadas pelo chão. Ele disparou mais uma vez e, não sei como, arranquei-lhe a pistola da mão. Consegui ficar por cima dele e comecei a bater, até deixá-lo sem sentidos. E continuei batendo, até que alguém me arrancou de cima dele.

— Já chega, Marty.

Voltei-me e dei de cara com Stolz. A varanda estava cheia de policiais.

 

Stolz levou-me para dentro, deitou-me num sofá e começou a cuidar de meu ferimento. Tive que tirar a camisa e o paletó.

— Psss — fez ele. — Não está mal. Acho que a bala quebrou-lhe uma costela, mas não penetrou mui­to... O médico virá logo. Não se mova daí.

Eu estava tão atordoado que nem dei conta de que o tempo passava. Recobrei a consciência quando um sujeito de cabelo escovinha colocava-me ataduras no peito. Stolz estava atrás dele, com um copo na mão.

— Tome um trago, Marty. Tomei o copo e o esvaziei.

— Há mais?

Ele me trouxe uma nova dose. Comecei a me sentir melhor, embora as dores quase não me deixassem res­pirar. Pelo menos sentia a cabeça clarear.

— Porque veio aqui, Stolz? — perguntei.

— Porque não havia de vir? Encontrei o homem da Southern Pacific e não levei nem cinco minutos para fazê-lo falar. Achei que só restava, então, pren­der Konno.

— Agora você entende tudo, não é?

— Mais ou menos.

— Depois conversaremos. Sabe alguma coisa sobre Prescott?

— Prescott foi longe de mais. Prendeu Lilac. Acho que se arrependerá.

— Não, não se arrependerá, Stolz. Espere. Onde está Konno?

— Aí, ao lado.

— Já se refez?

— Já.

— Vamos vê-lo.

O sujeito de cabelo escovinha acabou de me colo­car as ataduras e Stolz pôs o paletó sobre meu ombro. Fiquei contente de ver que podia andar sem muito esforço.

Konno estava sentado em uma cadeira, de cabeça baixa e com um guarda, de pé, atrás dele.

— Que me diz agora? — perguntei burlonamente. — Ainda acha que vai liquidar Lilac? Não, Konno, você está longe disso. Você chegou ao fim.

— Isso veremos.

— Gosta de falar, hem?

— Não poderão me calar a boca. Haverá um julga­mento. Terei ocasião de falar, e o farei embora seja apenas para impedi-lo de vender seu triunfo a Lilac. Lilac tem dinheiro, não tem? E é um sujeito simpáti­co, não é? Bem, Marty, espere a minha hora de falar. Você quis assim.

Stolz fez uma cara de assombro.

— Deixe disso, Konno — respondi. — Ninguém acre­ditará. Lilac pôs a polícia em cima de você porque sabe que você poderá apenas falar. Não há provas.

— Não há provas! — explodiu. — Diz que não há provas! Bem... Tenha paciência. E não se surpreenda muito, quando as provas aparecerem.

— Bobagem.

Konno deu de ombros.

— Quer um conselho, Marty? Dê-me um tiro. É a única forma de salvar Lilac. Tenho as provas. Juro. Eu sabia que ia precisar delas, quando acusasse Lilac e seus negócios viessem a público, e se não me derem um tiro, eu não calarei. Vamos? Ou não tem coragem?

— Tem tempo — disse-lhe, sorrindo. Levei Stolz dali.

— Como conseguiu isso? — perguntou, atônito.

— Mentindo — respondi. — Para conseguir, vim aqui sem que ele esperasse, como homem de Lilac. A única maneira de dar caça a Konno sem que Lilac sa­ísse limpo da história, era fazê-lo crer que Lilac é quem o estava derrotando, não nós. Para se vingar de Lilac, Konno falará, mas para se vingar de nós, ele ficaria calado.

— Essa ideia saiu da sua cabeça?

— Sim.

— Incrível.

Eu ri. Na porta da varanda estava o sujeito de ca­belo escovinha e um colega seu que limpava os óculos num pano.

— Dois morreram, tenente — disse o primeiro, apontando para trás. — O outro viverá.

— E a moça? — perguntei?

— Não tem nada. Apenas uma ferida na mão, mas terá que fazer uma operação plástica para não ficar com a cicatriz.

— Acho que sei aonde ela vai agora — disse Stolz. Voltei-me para ele.

— Ouça, não se engane com Nancy. Ela nada tem a ver com isso.

— Tem certeza? — perguntou, com receio.

— Tenho! Sem a ajuda dela eu não estaria aqui. Foi ela quem atirou na cabeça do gigante que está caído lá na varanda. E Konno deu-lhe um tiro, por isto.

— Não foi você?

— Você está louco? Foi Konno. Stolz acariciou o queixo.

— Bem, você sabe melhor que eu.

Um dos guardas chamou-o no corredor. Ele vacilou antes de se afastar.

— Espere, Marty. Gostaria de esclarecer isso. Não o esperei. Eu tinha coisas mais importantes a fazer. Saí da casa e fui ao meu carro. Minhas costas doíam, mas eu tinha que dirigir, assim mesmo. Deixei Los Cerros, rumando ao centro da cidade. Eu tinha vontade de cantar enquanto cruzava Los Cerros e can­tei "Meu coração pertence a papai". É uma linda can­ção.

Cheguei à redação do Leader e entrei no gabinete de Crockett, sem bater.

— Don Marty! — espantou-se ele. — É você mesmo? Que houve com você? Foi atropelado?

— O jornal já rodou? — perguntei.

— Já começou. Mas Marty, meu Deus!

— Pare a rotativa, Crockett.

— Que aconteceu?

— Pare a rotativa que eu lhe contarei!

Ele me furou com seu olhar, mas me conhecia. Ha­víamos lutado juntos durante muito tempo. Ele apa­nhou o telefone interno e mandou suspender a impres­são.

Deixei-me cair numa poltrona.

— Tem algo para se beber?

Ele tirou uma garrafa de genebra e dois copos, não muito limpos, de sua gaveta. Serviu-nos uma dose. Ergui meu copo.

— Pelo velho Leader, chefe. E por nós. Só, então, ele começou a sorrir.

— Não me diga que Lilac já não existe.

— Está na cadeia. A polícia estourou suas bocas de fumo de juju e prendeu o assassino de Dandy e Rossana.

Crockett voltou a apanhar o telefone.

— Mandem uma taquigrafa ao meu gabinete, de­pressa. Marty — acrescentou sorrindo — acho que o Leader será o primeiro jornal do mundo que acusará seu próprio dono em benefício da verdade. Tiraremos uma edição extra. Quer outro gole?

— Claro! — exclamei.

Trabalhamos até muito tarde. Crockett não me deixou dirigir o carro, quando acabamos e fez questão de me levar a casa.

Despedimo-nos na porta, cheios de um sentimento arrebatador do dever cumprido, felizes e fatigados co­mo nos bons tempos. A vida era isso, pensei enquanto subia no elevador. Uma combinação de satisfação e can­saço em partes iguais.

A luz do meu apartamento estava acesa. Empurrei a porta lentamente.

— Olá, Don — disse Nancy.

Estava com um braço na tipoia e, pela primeira vez, eu a via com a aparência um pouco descuidada. Mas ela estava mais formosa do que nunca, com o rosto grave, o cabelo ligeiramente desordenado e um pro­fundo brilho nos olhos.

— Olá, Nancy — respondi.

Ela caminhou em minha direção e com o braço são tirou o casaco que eu colocara sobre o ombro.

— Eu já vou, Don. Esperei-o, apenas, porque que­ria agradecer-lhe e dizer-lhe algumas coisas.

— Não tem nada que agradecer. Você me salvou a vida.

— Essa é uma das coisas — assentiu. — Quero que você saiba que eu não pensava trair Frankie, que não teria feito por nenhum preço, nem por você, nem por ninguém. Mas não podia deixar que ele o matasse. Não aguentei, Don. Vi o que estava acontecendo da porta e não tive outro jeito.

— Compreendo.

Ela levantou os olhos e fixou-os nos meus.

— Outra coisa... É que... Não me arrependo do que fiz com você. Só o enganei um pouco, Don. Eu gostava de você, de verdade, Don. E continuo gostando. Você é um bom rapaz e tem um coração nobre e va­loroso. Pode ser que eu não volte a vê-lo, mas nunca esquecerei que o conheci. Precisava dizer-lhe isso... Porque... Em meio de tudo...

Fico muito nervoso, quando as mulheres choram diante de mim.

— Está bem... Está bem... Nancy. Não se preocu­pe. Acalme-se.

Soluçando, ela apanhou um papel dobrado e me entregou.

— Tome.

Eu o abri. Estava impregnado do seu perfume. Era o cheque assinado por Lincoln O'Hara.

— Não, isso não — disse.

Corri para o telefone e disquei o número do advo­gado. Esperei algum tempo para que atendessem.

— Anh! — fez uma voz pastosa.

— O'Hara?

— Eu...

— Vamos, acorde. É Donald Marty.

— Oh! Sr. Marty. Tem notícias?

— Uma só lhe chega: Lilac está na cadela.

— ótimo!

— Mas preciso que você me faça um favor.

— O que você quiser!

— Esqueça o que eu lhe disse sobre o cheque. Não avise o banco.

— Está esquecido, Sr. Marty!

Desliguei. Devolvi o cheque a Nancy e lhe, sorri.

— Don...

Não sei como aconteceu, nem me preocupei em sa­ber, mas, de repente, ela estava em meus braços. E, abraçado a ela, vi pelo rabo do olho que a porta do apartamento se abria e Lea Bates entrava. Perdi a res­piração. Pareceu-me impossível — parecia-me sempre impossível — tê-la esquecido, porque ela não era dessas mulheres que a gente esquece, mas a verdade é que eu quase não me lembrava do seu rosto. E era Lea Bates, não havia dúvida. Minha vizinha. Ali, parada, em pes­soa.

— Oh! — exclamou, ao ver-nos. Lea começou a retroceder.

— Lea, espere! — gritei, ainda abraçado a Nancy. Ela continuou retrocedendo. Nancy encostou o rosto no meu.

— Lea! —gemi. — Não vá embora!

Ela chegou à porta.

— Lea, por favor! — supliquei, desesperadamente. — Lea! — gritei, abraçado a Nancy. — Olhe! Quer ca­sar comigo?

Lea parou no umbral, subitamente. Voltou o rosto e olhou-me. E eu lhes juro que ela disse "sim".

A gente nunca vai entender as mulheres.

 

                                                                                Mark Halloran  

 

                      

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