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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PASSAGEM AO AMOR / Amanda Stevens
PASSAGEM AO AMOR / Amanda Stevens

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Ele não tinha passado… Ela era seu passado, seu presente e seu futuro…

Um acidente tinha roubado a memória de Zac Riley, mas logo descobriu que era um soldado de elite treinado pela organização secreta Projeto Fênix. E só ele podia realizar uma missão vital… Que mudaria sua vida para sempre.

Camille Somersby, encarregada de desprogramar os soldados do Projeto Fênix, tinha tido êxito com todos, menos com o homem que uma vez tinha amado e depois perdido. Agora tinha que cumprir sua própria missão: deter Zac para evitar repercussões catastróficas.

Entre o engano e o desejo, Zac e Camille voltaram a apaixonar-se loucamente, sabendo que não podiam confiar em ninguém…

 

 

 

 

                             A Cidade Secreta, 1943

     Seu disfarce tinha sido descoberto. É obvio, não tinha provas, só a suspeita de que a estavam vigiando.

     Camille Somersby introduziu a mão na bolsa e a capa do Colt 45 deu valor enquanto corria para seu carro. Subiu, fechou a porta com força, ligou o motor e brigou um momento com as marchas antes de conseguir tirar o Studebaker da zona lamacenta do estacionamento.

     Quando chegou à primeira esquina, olhou pelo espelho retrovisor. Não viu que a seguissem, mas não podia estar certa. Em época de guerra havia espiões por toda parte, sobre tudo ali, em um lugar que seus habitantes chamavam a Cidade Secreta.

     A cidade, situada em um vale pitoresco do leste do Tennessee rodeado de colinas cobertas de árvores, ficava isolada do mundo exterior apesar da cercania do Knoxville.

     A comunidade, que tinha lojas, escolas, uma igreja, um hospital, um jornal e casas individuais e geminadas, tinha sido construída da noite para o dia pelo Corpo de Engenheiros do Exército para albergar aos milhares de cientistas, engenheiros e pessoal de desenho empregados nas três instalações de alto segredo conhecidas somente por seus nomes em senha: X–10, E–12 e K–25.

     A segurança em torno do perímetro da cidade era muito restrita. Os limites eram patrulhavam constantemente e ninguém podia entrar nem sair sem um passe. Escutavam-se as ligações de telefone e se censurava o correio. Em um lugar assim, era normal que estendessem o medo e o receio.

     Camille pensou que aquela sensação de ser observada podia ser simplesmente isso, uma paranóia dela. A carga de seus segredos atacando seus nervos.

     Ostensivamente era uma das centenas de mulheres jovens que tinham chegado à zona procurando emprego na reserva do Governo. Mas em realidade tinha sido enviada para observar uma entidade menor e ainda mais secreta conhecida como Projeto Arco íris. A unidade dirigida pelo doutor Nicholas Kessler, um cientista mundialmente famoso cuja pesquisa em campos eletromagnéticos tinha chamado à atenção dos militares no começo da guerra.

     O doutor Kessler não sabia ainda, mas seu futuro estava irrevogavelmente unido ao de Camille. Tinham-na enviado ali para protegê-lo, mas tinham descoberto seu disfarce, toda a missão podia estar em perigo. Não seria fácil proteger o doutor Kessler se acabasse morta em algum beco.

     Ao aproximar-se da grade, olhou de novo por cima do ombro. Mostrou seu passe ao guarda, esperou que levantasse a barreira sorriu e agitou a mão ao cruzá-la.

     Fora da cerca de arame farpado, relaxou um pouco e rumou para o norte, em direção a Ashton, uma comunidade pequena situada a oito quilômetros dali onde tinha tido a sorte de encontrar uma casinha de aluguel. O fluxo maciço de trabalhadores da zona exterminou rapidamente todas as casas do Governo, de modo que os últimos em chegar se viam obrigados a procurar teto fora da reserva, onde além de ter que lutar com o ressentimento dos habitantes da zona, tinha que sofrer também os racionamentos de gasolina e os atolamentos para entrar e sair do projeto.

     Camille se preocupava no princípio que viver fora da cidade pudesse impedir de cumprir com sua missão, mas até esse momento parecia ter virado em seu favor. Ashton era uma comunidade pequena e sabia que, se aparecesse alguém por ali fazendo perguntas estranhas, se inteiraria em seguida.

     Também tinha aprendido a apreciar rapidamente a tranqüilidade da casinha. Estava situada perto de um lago e a brisa que chegava de noite procedente da água recordava tempos mais felizes. Quando Adam ainda vivia.

     Depois do tempo transcorrido, ainda enchia os olhos de lágrimas ao pensar em seu filho. Fazia mais de um ano de sua morte, mas a dor seguia sendo tão profunda e intensa como no primeiro dia. A única coisa que tinha mudado era sua fúria, parecia crescer cada dia. Fúria contra a pessoa responsável por sua morte.

     E fúria contra o único homem que teria podido impedi-la.

   Uma imagem desse homem abriu passagem entre os muros que Camille tinha construído em torno de seu coração e por um momento recordou muito. Olhos escuros e uma voz profunda. Mãos fortes e carícias peritas.

     Seu modo de abraçá-la na escuridão. Seu modo de beijá-la, acariciá-la, comovê-la como nenhum homem a tinha comovido nunca.

     Ele tinha sido o amor de sua vida.

     E agora não se lembrava dela.

   Pensou com amargura que alguma lembrança de seus sentimentos por ela tinha que ficar. Algum resto enterrado que pudesse aproveitar em benefício próprio quando se apresentasse ali.

     Porque ele iria. Isso sabia sem sombra de dúvidas. Depois de tudo, era a razão pela qual tinham enviado ali. Para que descobrisse o que se propunha e, se fosse necessário, o deter qualquer preço.

     A qualquer preço.

   Apertou o volante com força e pensou no que isso podia resultar. Enganos. Assassinato.

     Camille começou a tremer. Acabar com uma vida, embora fosse época de guerra, não era algo que ela contemplasse superficialmente. Matar ao homem em que em outro tempo tinha amado certamente a faria ganhar um lugar muito especial no inferno.

     Mas não podia fazer outra coisa. Ele era agora o inimigo.

   E que Deus os ajudasse a todos se ela esquecesse esse fato embora fosse por um momento.

 

                        Filadélfia. Época atual

   Era a quarta noite consecutiva que o velho ia ao Blue Monday. Zac Riley supunha que devia agradecer que o clube tivesse um cliente novo. Nos últimos meses havia poucos, nem velhos nem jovens, e se aquilo não se animasse, logo ficaria sem trabalho. Outra vez.

     Mesmo assim, um homem que parecia ter um pé na cova não era precisamente o cliente procurado por um clube de blues perto do rio. E naquele homem havia algo, além da idade, que punha tremula a carne de Zac. Não sabia por que exatamente, mas supunha que tinha a ver com o sonho. A recorrência do pesadelo tinha coincidido com a primeira aparição do velho no clube. E desde esse dia, Zac tinha tido o mesmo pesadelo todas as noites.

     Os detalhes não variavam nunca. Sempre estava apanhado em um lugar escuro, sem janelas e sem saída. Podia ouvir o tinido do metal, a destilação da água e gritos à distância.

     Mas o que mais recordava ao despertar do sonho era seu medo. Um terror paralisante como não tinha conhecido jamais.

     Depois permanecia acordado durante horas, sem se atrever a voltar a dormir. Mas às vezes dormitava em seu pesar e então aparecia ela. Uma mulher envolta na névoa. Uma mulher sedutora que o chamava e procurava, mas sempre permanecia fora de seu alcance.

     Zac não sabia se ela era real ou não. Possivelmente era alguém a quem tinha conhecido muito tempo atrás, uma vida atrás, antes do acidente que tinha apagado boa parte da memória. Ou possivelmente era só uma fantasia, uma amante de sonho invocada pelo medo e pelo desespero.

     Fosse o que fosse, levava anos atormentando seu sonho.

     E agora Zac tinha a impressão de que o velho e ela estavam relacionados de algum modo.

     Um calafrio subiu por sua coluna e olhou o ancião aproximar-se do extremo do balcão, onde subiu, com bastante esforço em um tamborete e se sentou com os braços cruzados e a cabeça baixa… esperando.

     Que fazia um homem assim em um clube como aquele? O álcool era aguado, a atmosfera era lúgubre, e estava localizado na parte escura e sórdida de atrás da parte elegante do South Street. Havia centenas de bares pulverizados por toda a Cidade do Amor Fraterno. O que o tinha levado a aquele?

     Zac não acreditava que o velho fosse um vagabundo sem lar, já que deixava boas gorjetas, mas tinha o aspecto de um homem esquecido pelo tempo. Seu pesado casaco de lã se desfiava em alguns lugares, mas Zac suspeitava que tivesse sido elegante em outro tempo, possivelmente feito sob medida para aquele corpo alto e magro.

     Esperou um momento e se aproximou do extremo do balcão. Limpou a superfície de madeira e perguntou corajoso.

     —O que vai ser esta noite?

     —Uísque. —murmurou o velho sem levantar a cabeça.

     Sua voz áspera produzia em Zac o mesmo efeito que umas unhas arranhando um quadro negro.

     Serviu o uísque. Os dedos esqueléticos do velho se fecharam ao redor do copo e levantou a vista. Seus olhos eram da cor da noite. Escuros, frios, tétricos.

     Zac, desconcertado por seu olhar, começou a virar-se, mas se deteve.

     —Nos conhecemos? Vimos-nos antes?

     O velho levantou o uísque.

     —Você acredita que nos vimos antes?

     Zac tentou rir para ocultar seu desconforto.

     —Agora fala como um psiquiatra.

     O velho baixou seu copo vazio.

     —Não sou psiquiatra, sou cientista.

   —Cientista, é? Por aqui não vêm muitos. —Zac limpou um círculo invisível no balcão —. O que traz um homem educado como você em um antro como este?

     —Você, Zac.

     Este sentiu que seus cabelos arrepiavam na nuca.

     —Como sabe meu nome?

     Os olhos escuros do velho brilharam na luz apagada.

   —Sei muitas coisas sobre ti. Certamente mais que você mesmo.

     —De verdade? —Zac começava a zangar-se apesar do medo—. E como você sabe tanto?

     —Porque eu sou o homem que te criou.

     Zac sentiu uma pressão no coração. Como um punho que tentasse arrancar sua vida.

     —Que demônio significa isso? —perguntou muito incomodado.

     O velho tirou um cartão do bolso do casaco com um sorriso e o deixou sobre o balcão. Zac o olhou em seu pesar. Doutor Joseph Von Meter. O endereço era na zona do Chestnut Hill, um bairro histórico muito afastado do estilo do Blue Monday.

     Zac levantou o olhar.

     —Você está muito longe de casa.

     —E você também, Zac. E você também.

     Voltou na noite seguinte. E também as duas depois dessa. O fim de semana era fácil evitá-lo. A música que vinha direto do Blue Monday atraía uma multidão ruidosa, composta em sua maioria de velhos hippies e gente dos subúrbios que ia ao centro para beber e divertir-se. Zac manteve a distância e deixou que o barman novo servisse aquele ancião estranho.

     Mas na segunda-feira à noite o lugar voltava a ficar vazio e Zac estava sozinho atrás do balcão quando chegou Von Meter, as nove em ponto, igual às outras noites.

     Aborrecido e ansioso por fechar, Zac estava olhando pela janela quando a limusine parou diante do clube e um chofer uniformizado saiu para abrir a porta ao velho. Definitivamente, não era nenhum vagabundo.

     O chofer esperou que o velho chegasse à porta através da neve, voltou a subir no carro e se afastou.

    Uma rajada de ar frio seguiu Von Meter ao interior do clube. O velho vestia o mesmo casaco desfiado com o mesmo sombreio impregnado nos olhos. Aproximou-se do extremo do balcão e ao mesmo tamborete de sempre, cruzou os braços sobre o mostrador, baixou a cabeça e esperou.

     Zac o olhou com apreensão e se amaldiçoou interiormente por não ter fechado antes. Não tinha tido um cliente em toda a noite. A nevasca tinha mantido às pessoas em suas casas, que era onde ele deveria estar. Ou tinha esperado inconscientemente a chegada de Von Meter?

     «Sou o homem que te criou».

   Aproximou-se devagar do velho.

     —O que vai ser esta noite?

     —Uísque. —respondeu a voz áspera de Von Meter.

     Zac serviu a dose e passou. Quando os dedos magros se fecharam em torno dela, teve uma sensação de deja vu. Tinham representado já muitas vezes essa cena.

     —Quanto tempo pensa continuar assim? —perguntou com brutalidade.

     O ancião deixou o copo vazio no mostrador e levantou a vista. Seus olhos eram mais escuros do que Zac recordava. Escuros, frios e… intemporais.

     —Até que faça a pergunta correta.

     Zac arqueou as sobrancelhas.

     —E por que não economiza as muitas moléstias e me diz qual é essa pergunta?

     O velho lambeu os lábios como se saboreasse o uísque.

     —Você não lembra muito de seu passado, verdade?

     — Não lembro de você. —repôs Zac—. Mas tenho a impressão de que acredita que nos conhecemos. O que foi o que disse? Ah, sim, que era o homem que tinha me criado. Agora me vai dizer que é meu pai ou algo assim.

     Os olhos escuros sustentaram seu olhar.

     —Não sou seu pai, mas estamos relacionados.

     —Como?

     Von Meter não respondeu imediatamente, mas sim estendeu o copo para que voltasse a encher-lhe — devo falar da mulher? —perguntou logo com expressão enigmática.

     Zac sentiu o sangue gelar e por um momento foi incapaz de falar.

     —Que mulher? —perguntou com raiva—. De que demônio está falando?

   —Da mulher com que sonha. É encantadora, verdade? Etérea, fantasmal… muito formosa para ser real.

     Zac começava a se assustar seriamente.

     —Como sabe você isso?

     O velho se inclinou através do balcão.

     —Eu a criei. Coloquei-a em sua cabeça. Foi um presente que te fiz.

     —Você criou a ela, criou-me. Quem é você, Deus?

     Von Meter sorriu e tirou outro cartão do bolso. Deixou-o na barra e desceu com esforço do tamborete.

     —As lembranças são algo curioso, Zac. Nas mãos adequadas, pode-se manipular apagar, plantar. Como pode saber o que é real? E de verdade quer saber?

     —Olhe — respondeu Zac com raiva—. Não sei que jogo trás em mãos, mas eu não quero ter nada a ver com ele. Se voltar por aqui, jogá-lo-ei na rua. Entendeu?

     —Eu entendo tudo. E você também entenderá logo.

     E sem mais nem menos, o velho cruzou o lugar e abriu a porta. Através da neve, Zac viu que a limusine dobrava a esquina, como se o condutor tivesse sido chamado por telepatia. Um momento depois tinham desaparecido.

     Durante o resto da noite, Zac tentou ignorar os sinos de advertência que ressonavam em sua cabeça, a sensação premente do estômago que dizia que se aproximava um desastre. Enquanto se preparava para fechar tentava convencer-se de que Von Meter não era mais que um velho estranho que se divertia confundindo-o.

     Mas à medida que avançava a noite, também o fazia seu mal-estar.

     Quando fechou, tomou seu casaco e, de caminho à porta se deteve a olhar uma vez mais o cartão, que seguia no balcão. Pensou em jogá-lo fora como tinha feito com o primeiro, mas depois de um momento de vacilação, tomou e o guardou no bolso da jaqueta.

     Quando saiu à rua, nevava ainda com mais força. Zac estremeceu e parou para olhar diante do salão de tatuagens, situado ao lado. Apesar da luz amarelada das luzes, os flocos caíam formosos. Brancos, cristalinos, como um sonho. Sua beleza delicada recordava algo… a alguém.

     «Eu a criei. Eu a pus em sua cabeça. Foi um presente que te fiz».

     Zac tentou invocar a imagem da mulher, mas foi impossível.

   «As lembranças são algo curioso, Zac. Nas mãos adequadas, podem ser manipulados, suprimidos, plantados. Como pode saber o que é real? E de verdade quer saber?».

     Zac baixou a cabeça para se proteger do frio e correu rua abaixo. O vento que soprava do rio Delaware era brutal, mas, por sorte, não tinha que ir longe. Seu apartamento alugado estava no final da rua.

     Estava na metade do caminho, perdido em seus pensamentos, quando um táxi parou ao seu lado. Zac passou adiante e viu que o taxista ia sozinho. Estava sentado com os braços cruzados, como se esperasse a um cliente.

     Mas a rua estava vazia.

     Exceto por ele.

   Tinha as mãos nos bolsos e tocou o cartão que tinha metido antes ali. Tirou-o e leu o nome e o endereço à luz da luz.

     Retrocedeu pela calçada e chamou com os nódulos do dedo no guichê do condutor.

     —Ei! Espera alguém?

     O taxista baixou o vidro.

     — A você, amigo. Aonde quer ir?

   —Chestnut Hill — Zac deu a direção e perguntou quanto custaria. Soltou um assobio ao ouvir a cifra e contou mentalmente o dinheiro que levava na carteira. Aquilo custaria a metade do dinheiro que tinha, mas que mais importava? Tampouco era tão necessário comer.

     Sentou no assento de trás, apoiou a cabeça no respaldo do assento e aproveitou da calefação. Devia ter cochilado, porque quando despertou o taxista tinha a sensação de que só tinha passado um instante.

     — Ei, amigo! Está acordado?

     Zac se endireitou e esfregou os olhos.

     —Sim, estou acordado. —mas tinha a sensação desconcertante de que o tinham transportado a um mundo novo e estranho. O bairro era um desses lugares de cartão de Natal em que a neve se tornava ainda mais surrealista.

     Zac pagou ao taxista, saiu e olhou um momento a seu redor. A casa de Von Meter era um edifício de três andares separado da rua por uma elaborada grade de ferro. A porta da grade estava entreaberta, como se antecipassem sua chegada.

     Entrou no jardim congelado, com partes de gelo pendurando de uma fonte e uma estátua de pedra coberta de neve e correu pelo caminho de pedra até tocar a campainha da porta.

     Uma empregada uniformizada atendeu em seguida a abrir.

     —Sim?

     —Meu nome é Zac Riley. Quero ver o doutor Von Meter.

     A jovem sorriu e fez uma pequena reverência.

     —Por favor, entre, senhor Riley. O doutor Von Meter o está esperando.

     —Espera-me?

     — Claro que sim. Permite-me tirar sua jaqueta?

     —Não, acredito que me deixarei vestida se não se importar — decidiu Zac, se por acaso tivesse que sair precipitadamente.

     O vestíbulo era comprido e espaçoso, com chão de madeira, uma escadaria magnífica e uma cúpula com clarabóia pela qual podiam ver as nuvens de dia e as estrelas de noite. Essa noite, entretanto, o vidro estava coberto de neve, o que produzia claustrofobia em Zac.

     A empregada o conduziu por um corredor em penumbra até umas portas de madeira que abriu depois de chamar discretamente com os nódulos dos dedos. A sala de dentro estava luxuosamente mobiliada com móveis de couro, tapeçarias e umas estantes que cobriam uma parede inteira e estavam cheias de livros. Cheirava a fumaça de charuto e a segredos velhos.

     Von Meter estava de pé olhando pela janela.

     — O senhor Riley chegou. —anunciou a donzela.

     O velho não disse nada, mas assentiu brevemente com a cabeça. A donzela fez gestos a Zac de que entrasse e saiu da sala. Von Meter só se voltou completamente quando ouviu as portas fecharem.

     Essa noite parecia distinto. Seu cabelo era tão branco como a neve e seu rosto parecia ainda mais magro do que Zac recordava.

     —Uma casa estupenda. —comentou este.

     O velho sorriu fracamente.

     —É velha e têm correntes, mas responde a minhas necessidades.

     Zac encolheu de ombros.

     —É melhor que o antro onde vivo agora. —disse.

     —Possivelmente — o velho se aproximou de sua escrivaninha, sentou-se e fez gestos de que se acomodasse em frente—. Mas seu apartamento tem seus pontos bons, não? Refiro a jovem do 3C, é obvio.

   O estômago de Zac se encolheu.

     —Como sabe isso?

     —Os dois têm sido muito amigos nas últimas semanas. Temo que isso tenha que acabar. Não pode se permitir essas distrações.

   Zac ficou em pé, subitamente furioso.

     —O que é isto? Como sabe tanto de minha vida pessoal?

     Von Meter permaneceu aparentemente imperturbável.

     —Por favor, procure se acalmar. Logo esclareceremos isso tudo.

     Apertou um botão de sua mesa e a empregada abriu a porta um momento depois.

     —Sim?

     —Roth está ainda aqui?

     —Acredito que está na estufa, senhor.

     —Quer pedir a ele que venha?

     —É obvio.

     Pouco depois abria de novo a porta e entrava um homem alto, bem vestido, de constituição magra e musculosa. Seu cabelo, de um prateado, contrastava com o pulôver de gola alta que vestia, mas o que mais chamava atenção em seu aspecto eram a cor de seus olhos, um azul e um verde e o dois tão frios como o gelo.

     Quando seus olhares se encontraram, Zac sentiu um calafrio. Não era uma pessoa que se deixasse levar pelas aparências, mas sentiu uma aversão imediata por aquele homem. Apesar da roupa cara e do corte bom de cabelo, havia algo… Impróprio em seu aspecto. Como se sua natureza sinistra espreitasse sob a superfície, esperando liquidar o despreparado.

     O homem sorriu como se lesse seu pensamento.

     —Ora, ora, ora. —disse com uma voz que podia ter pertencido ao mesmo diabo. Uma voz suave, untuosa, decadente—. O famoso Zac Riley.

     —Conhece-me? —perguntou este com o cenho franzido. Se tivesse cruzado antes com ele, alegrava-se de que a lembrança não tivesse sobrevivido.

     —Possivelmente deva deixar as explicações para o doutor Von Meter. —sugeriu o homem.

     —Sim, possivelmente sim. —assentiu o aludido. Olhou para Zac—. Este é Roth Vogel. Está aqui para ajudar com sua formação, mas antes tem que se instalar. Preparamos um quarto em cima. Enviarei a procurar suas coisas…

     —Nada disso — Zac ficou em pé—. Não sei o que traz entre mãos, velho, mas não quero ter nada a ver com isso.

     Voltou-se, mas antes que pudesse chegar à porta, esta fechou, como por vontade própria. Zac se voltou e encontrou uma pistola apontada para seu peito. Olhou para Vogel nos olhos e viu que brilhavam de antecipação. Zac conhecia esse olhar, tinha-o visto antes, em um homem que tinha tentado cortar seu pescoço uma noite em um beco escuro pelos vinte dólares que levava na carteira.

     —Que diabo é isto? —perguntou entre dentes—. Um ataque? Sinto decepcioná-los, mas só levo umas dez pratas no bolso. Se achar que pode pegá-los, venham. —desafiou a Vogel.

     — Guarda isso! —gritou Von Meter—. Não há necessidade de violência — olhou para Zac—. Peço desculpas. Não é prisioneiro aqui; é livre para partir quando quiser.

     —Nesse caso, adeus — fez uma saudação rápida.

   Saiu pela porta e desceu até o vestíbulo, meio esperando ouvir em qualquer momento passos que o perseguiam. Mas ninguém o seguiu nem tentou detê-lo.

     Uma vez na rua, parou um táxi e subiu no assento de atrás, mas desceu de novo antes que partisse. Sem fazer caso da maldição indignada do taxista, voltou para a casa e tocou a campainha. Abriu a mesma empregada e dessa vez Zac estendeu o jaquetão. Von Meter estava de novo sozinho no estúdio.

     — Permita-me desculpar-me de novo pelo comportamento de Roth. — disse. Fez gestos para que se sentasse.

   —A que veio isso? —quis saber Zac.

     Uma expressão de desgosto cruzou o rosto de Von Meter.

     —Refere-se à pistola? —Já a porta fechada. Como tem feito esse truque?

     —Não era um truque. Roth domina a telequinesia.

     —Telequinesia, né? E eu que pensava que era simplesmente um idiota!

     —É temperamental, isso é certo. Impulsivo, insubordinado, ambicioso — suspirou Von Meter—. Mas tem sua utilidade.

     —Esqueça-se de Vogel — disse Zac cortante—. O que quer de mim?

     —Quero te ajudar — respondeu Von Meter—. Você quer saber do passado e eu posso te dar os detalhes que faltam, mas antes preciso saber o que recorda.

     — Por quê?

     —Porque sem isso não saberia por onde começar.

     Zac supunha que a explicação era bastante lógica, mas continuava sem confiar no velho.

     —Não lembro muito — admitiu a contra gosto—. Meus pais morreram quando era só um menino. Estive em muitas casas até os dezoito. Depois vagabundeei um pouco e acabei por entrar na Marinha. Ao final terminei trabalhando na comunidade de inteligência antes que me recrutassem para um programa especial com o nome chave de Fênix.

     Deteve-se e Von Meter assentiu com a cabeça para respirar a seguir.

     —Continue, por favor.

     —Treinavam-nos em uma série de bunkeres na base Montauk da Força Aérea em Long Island. Lembro muito pouco do tempo que passei ali ou das missões que levamos a cabo, mas me recordo a bordo de um submarino em algum momento. Houve um acidente. Algum tipo de explosão e caímos no fundo do Atlântico Norte, onde estivemos dias. Morreu a maior parte da tripulação, mais de cem homens. Acredito que houve outros sobreviventes além de mim, mas não os vi nunca. Passei semanas no hospital, onde me submeteram a longos períodos de isolamento e fortes sessões de interrogatórios. Perdi a noção do tempo e os detalhes do acidente começaram a se apagar. Em alguns dias custava muito recordar meu nome.

     Fez uma pausa ao ser de novo invadido pela sensação de solidão e confusão de outro tempo. Encolheu os ombros.

     —Isso é tudo. Logo me licenciaram da Marinha.

     —Disseram que estava mentalmente incapacitado para o serviço.

     Zac se levantou e se aproximou para olhar a neve pela janela. Aquilo continuava doendo depois de cinco anos.

     — Mencionaste o projeto Fênix — disse Von Meter atrás dele—. Era, e segue sendo, uma operação muito ampla.

     Zac se voltou a olhá-lo.

     —Em que sentido?

     —O projeto Fênix é uma organização encoberta criada com recursos privados e formada por cientistas, militares e líderes dos negócios e a tecnologia, algumas das mentes mais claras do mundo. Os avanços que temos feito em estudos psicotrônicos, telequinéticos e fases inter dimensionais, por nomear só uns poucos, são muito mais vastos do que possa começar a imaginar a maioria das pessoas.

     Zac se perguntou se estaria lutando com uma mente lúcida. As coisas das que o velho falava eram impossíveis. E, entretanto… algo em seu interior o advertia de que Von Meter dizia a verdade. E essa verdade estava diretamente relacionada com ele. Por isso estava ali.

     Observou um momento o velho, tentando calibrar sua prudência.

     —Embora o que diz seja certo, o que tem que ver isso comigo?

   —O objetivo do Projeto Fênix era criar um exército de guerreiros secretos, super soldados com habilidades paranormais. Quando tinham completado uma missão, apagavam suas lembranças e os enviavam de retorno à sociedade até que necessitasse de novo. Por isso está aqui, Zac. Tem que voltar para o serviço.

     —Um momento — o pulso de Zac se acelerou em seu pesar—. Está dizendo que eu sou um desses super soldados?

     O velho assentiu e Zac pôs-se a rir, mas a risada soou a oca inclusive a ele.

     —É evidente que se equivoca de homem, doutor. Se eu tivesse habilidades especiais, paranormais ou de outro tipo, não trabalharia em um antro como o Blue Monday. E certamente, não estaria aqui agora.

     —Mas sim tem uma habilidade especial — assegurou Von Meter—. Uma que te qualifica para a missão em que está a ponto de embarcar.

     —Missão? Ah, não, parece-me que não. Sinto muito, velho. Eu não aceito ordens nem de você nem de ninguém mais. E embora aceitasse, não disse nada que me convença de que isto não é um engano. O único lugar ao que penso ir eu é a minha casa.

     Fez gesto de levantar-se, mas a voz resmungona de Von Meter o interrompeu.

     —Espera. Escute-me só um momento mais. Se quando terminar se ainda quiser partir, pode ir com minha bênção.

     Para Zac dava igual contar ou não com sua bênção, mas voltou a sentar-se. Depois de tudo, lá fora fazia frio e a farsa de Von Meter podia ser interessante.

     — Ouviu falar do Experimento Filadélfia?

     Zac assentiu.

     —Sim. É um bar no South Street.

     O ancião agitou uma mão no ar com impaciência.

     —Eu não refiro a um bar, a não ser a um sucesso. O desaparecimento de um casco de navio de guerra americano em 1943.

     Zac o olhou com cepticismo.

   —Sei ao que se refere, mas o Experimento Filadélfia é um mito. Uma lenda urbana apoiada nos experimentos da Marinha com campos eletromagnéticos durante a guerra. Os cientistas queriam procurar um modo de fazer os navios invisíveis para o inimigo desmagnetizando os cascos, mas, segundo a lenda, o que conseguiram foi uma ocultação visual, invisibilidade óptica ou como quero chamá-lo. É assim?

     Von Meter assentiu com a cabeça.

   —Sim, exatamente. Mas e se dissesse que o Experimento Filadélfia é algo mais que uma lenda? —inclinou-se para frente com olhos brilhantes—. E se dissesse que os poderosos campos magnéticos criados pelos geradores especialmente desenhados instalados nesse navio abriram de algum modo um buraco na unidade espaço–tempo? E se dissesse que o navio não se fez invisível, mas sim entrou em outra dimensão? Viajou para frente no tempo e, quando voltou, deixou algo atrás de si.

     Zac sentiu um comichão na coluna.

     —Do que está falando?

     —Estou falando de um corredor secreto. Um túnel do tempo, se o preferir. Um corredor que une o presente com o passado. Com 1943, para ser exato — o velho sorriu—. O encontramos. Conhecemos a posição desse túnel e temos a intenção de enviar alguém através dele. Alguém que está especialmente qualificado para essa missão. Esse alguém… é você.

 

    Sonhou que Adam continuava vivo. A visão parecia muito real, era como se aquele dia no parque não tivesse acontecido nunca.

     Mas inclusive no sonho, Camille sabia que não era real. Adam estava morto e nada ia trazê-lo de volta.

     Mas sua voz… ainda podia ouvir sua voz no sonho:

     —Mamãe, de verdade vai me ensinar a jogar beisebol? —perguntava-lhe.

     No sonho, Camille sorria para ele com o coração cheio de amor.

   — Claro que sim. Ensinarei a você igual a minha mãe me ensinou.

     — Por que seu pai não te ensinou?

     —Porque meu pai morreu quando era pequena. Mas isso já sabe Adam. Já falamos disso.

     —Meu pai também morreu? —perguntou o menino com solenidade—. Por isso não está aqui para jogar beisebol comigo?

   Como responder àquela pergunta quando ela ainda não tinha podido aceitar a verdade? O pai de Adam não estava morto. Simplesmente… não se lembrava deles.

     Por sorte, o menino então pareceu distrair-se com algo e deixou o assunto.

     —Mamãe, por que esse homem está olhando para nós?

     Ela levantou a vista, sobressaltada.

     —Que homem?

     —Aquele homem — Adam apertou a mão como se percebesse algum perigo.

     Camille seguiu o olhar de seu filho. A uns dez metros do caminho havia um homem de pé à sombra de um olmo. Uns óculos de sol obscureciam seus olhos, mas notava que os olhava.

     Um calafrio percorreu suas costas. Havia algo… perigoso no modo em que os olhava. Como se… os conhecesse.

     Camille estava certa de não havê-lo visto nunca porque tinha um aspecto estranho que não era fácil esquecer. Vestia-se todo de negro e era alto e magro, com o cabelo loiro prateado penteado para trás do rosto.

     Estremeceu-se de novo. Adam e ela se afastaram de propósito da zona mais concorrida do parque para ter espaço para jogar sem preocupar-se de que pudessem acertar a bola em algum menino pequeno.

     —Adam, possivelmente deveríamos voltar… —sugeriu Camille.

     —Não, mamãe, por favor — insistiu o menino—. Prometeu que me ensinaria hoje. Não podemos ficar um pouco mais? Por favor?

     Não era próprio de seu filho ser tão obstinado. Se fossem esqueceria logo sua decepção. Era um menino tranqüilo, carinhoso e afetivo embora, igual a seu pai, tinha uma luz que piscasse nos olhos escuros e tristes, olhos que podiam derreter o coração com um só olhar. E quando a olhava assim… como naquele momento… ela não tinha nenhuma possibilidade de negar nada a ele.

     —Tudo bem, só uns lançamentos. —cedeu. Depois de tudo, se gritasse os ouviriam na zona de jogos e eram visíveis da rua. Era de dia, fazia uma tarde ensolarada e formosa. O que podia acontecer?

   Passou uns minutos ensinando Adam a sustentar a bola.

     —Suas mãos agora são muito pequenas para sujeitá-la bem, mas de momento tenta sustentá-la com as pontas dos dedos. Vê? Assim — mostrou a técnica—. E deixe a mão solta e para trás. Assim pode usá-la para lançar melhor.

     Depois de uns minutos de instruções, retrocedeu e lançou a bola para ele.

   —E agora lance para mim como te ensinei.

     Depois de várias tentativas, ele conseguiu lançar a bola com certa eficácia e segura-la quando ela a devolveu.

     —Já consegui, mamãe! Viu-me? —Adam saltou de entusiasmo.

     —Muito bem. Sabia que aprenderia muito depressa.

     Era certo. Tinha herdado a fortaleza atlética de seu pai, além de sua beleza morena e seu carisma inato. Algum dia seria um rompe corações. Igual a seu pai.

     Jogaram vários minutos mais. Camille estava a ponto de sugerir que voltassem para carro quando uma bola escapou de Adam e ele pôs-se a correr atrás dela rindo. Camille também ria ao princípio, mas de repente sua respiração acelerou com alarme.

     Ali acontecia algo.

   A erva deveria ter freado o impulso da bola, mas, em vez disso, esta rodava e rodava, sempre fora do alcance de Adam. Camille o ouviu rir de novo enquanto tentava caçá-la.

     —Espera! Eu vou buscar a bola! Adam!

     De repente viu de novo o desconhecido pela extremidade do olho. Trocou-se ao sol e agora podia vê-lo com mais claridade. Enquanto o observava, ele levantou a mão devagar e tirou os óculos escuros. Camille teve um sobressalto. Havia algo estranho em seus olhos…

     Um punho de terror oprimiu seu coração. Queria lhes fazer mal. Sabia sem o menor indício de dúvida. Tinha que chegar até Adam, tinha que protegê-lo…

     Mas quanto mais tentava alcançá-lo, mais longe parecia estar.

     Já estava quase na rua e seguia atrás da bola. E por muito que ela tentasse, não podia alcançá-lo.

     —Adam! —gritou, mas um golpe de vento repentino afogou sua voz—. Adam!

     A bola rodava até o centro da rua e parava. Adam corria atrás dela sem vacilar. Estava tão dependente da bola que não viu o carro azul que se aproximava dele…

     Camille despertou com o nome de seu filho morto nos lábios e o rosto molhado de lágrimas. A princípio acreditou que o tamborilar em sua cabeça era o eco dos batimentos de seu coração, mas não demorou a se dar conta de que alguém chamava com força à porta.

     Levantou a cabeça e olhou o relógio. Eram pouco depois das sete. Tinha dormido?

     Olhou a janela, por onde podia ver o sol deslizando-se por detrás de uma cúpula longínqua. Respirou aliviada. Era pela tarde, não pela manhã. Tinha dormido enquanto ouvia as notícias. A rádio seguia ligada. Estendeu uma mão e a desligou.

     As batidas soaram de novo, dessa vez mais desesperadas, e uma voz gritou seu nome. Levantou uma mão aos olhos e tentou despertar de todo enquanto baixava as pernas ao chão. Passou os dedos pelo cabelo revolto, levantou-se e correu à porta.

     O sonho seguia tão vivido em sua cabeça que, quando viu o menino pequeno de pé no alpendre, seu primeiro instinto foi abrir a porta e tomá-lo em seus braços, embora quase imediatamente o reconhecesse como um dos meninos dos Clutter, que viviam um pouco mais abaixo. Nem sequer se parecia com o Adam. Ele era moreno e Billy era ruivo com sardas.

     Camille fez uma careta.

     —Billy? A que vem tanta animação? Acontece algo?

     Segurou-lhe a mão e a puxou.

     —Tem que vir senhorita Camille. Davy diz que tem que vir agora mesmo.

     —Espera um momento, um momento. Ir aonde? —perguntou Camille.

     —Tem que vir à mina — o menino levantou a voz, agitado—. Davy diz…

     —À mina? Refere-te à mina deserta de carvão que há em cima da colina? Vocês não vão ali, verdade? Esse lugar é perigoso — Camille deixou cair de joelhos e apertou os ombros do menino—. Diga-me o que aconteceu. Há alguém ferido? —o menino assentiu e a ela sentiu encolher o estômago—. Quem está ferido? Um dos gêmeos? Donny?

     Billy negou com a cabeça.

     —Não, Donny não. E Davy tampouco. É um homem. O encontramos na mina. Está morto e Davy diz que certamente é um espião alemão.

     Camille tentou falar com calma e não deixar transparecer seu medo. Soltou Billy com um esforço.

     —Está certo que está morto?

     O menino assentiu com a cabeça.

     —Sim, senhora, está bem morto. Davy me disse que viesse procurá-la porque papai não está em casa e você saberá o que terá que fazer.

 Camille não estava tão certa disso.

     —Onde está seu pai?

     —No trabalho. E certamente não chegará em casa até muito tarde.

   Daniel Clutter, um homem viúvo, trabalhava como engenheiro em uma das instalações secretas da cidade e seu trabalho o obrigava a passar muitas horas na reserva. Fazia pouco que tinha contratado a uma mulher para que cuidasse dos meninos em sua ausência, mas a mulher tinha mais de sessenta anos e podia fazer pouco com um menino precoce de sete anos e menos ainda com seus irmãos gêmeos de doze, que quase sempre estavam idealizando alguma travessura. Davy, chefe do grupo por designação própria, era preparado, inteligente e temerário. Uma combinação perigosa, em opinião da Camille.

     E agora parecia que tinha levado a seus irmãos ao interior de uma mina abandonada, sem ter nem idéia dos perigos que podiam encontrar ali. Um espião alemão morto era o menor deles.

     E o que podia fazer? A casinha não tinha telefone e o caminho até a mina estava cheio de buracos e intransitável para carro. Teria que ir a pé.

     — Escute-me bem — pôs uma mão em Billy debaixo do queixo—. Quero que vá para casa e diga à senhora Fowler que eu subi à colina para procurar os gêmeos. Os levarei para sua casa assim que os encontre. Entendeu?

     O menino engoliu em seco.

     —Sim, senhora, mas Davy disse que não posso dizer a ninguém exceto a você. Disse…

     —Não importa o que disse seu irmão — Camille baixou a voz, mas falou com firmeza—. Faz o que te digo e possivelmente, só possivelmente, possa conseguir que os gêmeos não se metam em confusões.

     Voltou-o para a rua e deu um tapinha no seu traseiro.

     —Depressa. Diga à senhora Fowler que os dois têm que ficar em casa até que tenham notícias minhas.

     O menino pôs-se a correr e Camille entrou em casa, tirou o estojo de primeiro socorros do banheiro e o meteu em uma bolsa junto com uma lanterna e seu Colt 45. Dois minutos depois estava em marcha.

     O caminho detrás da casinha levava para o bosque, mas o atalho terminava depois de um quilômetro e o terreno ficava difícil e cheio de mato. Caía a escuridão, mas Camille não acendeu a lanterna. Não era fácil encontrar pilhas e tinha aprendido às racionar o máximo possível; mas pouco depois cairiam os últimos raios do sol e a topografia ficaria mais traiçoeira.

     Pelo menos conhecia a zona. Tinha procurado familiarizar-se com cada metro quadrado do terreno que a rodeava. Tinha encontrado todos os possíveis esconderijos e os atalhos que levavam a cidade. Desde um dos pontos altos tinha memorizado a mudança dos guardas e os pontos débeis nas defesas da cidade e sabia melhor que ninguém o facilmente que podia penetrar um espião ou um assassino sem ser descoberto.

     Saiu ofegando a um claro na parte de cima do precipício e imediatamente viu um dos gêmeos passeando diante da boca da velha mina. A entrada tinha estado fechada com pranchas em certo momento, mas algumas se soltaram e as demais estavam rotas. O estilhaçado recente da madeira sugeria que alguém tinha entrado e saído fazia pouco.

     Camille correu até o menino e viu a cicatriz que tinha em cima da sobrancelha direita e que indicava que se tratava do Donny, o mais dócil dos gêmeos.

     —Onde está Davy? —perguntou com ansiedade.

     Donny apontou a entrada da mina com a cabeça.

     —Aí dentro — pegou uma lanterna pendurada em um prego ao lado da entrada—. Venha. O mostrarei.

     —Não, irei eu sozinha — falou Camille—. Você espera aqui.

     —Mas Davy disse…

     — Pouco me importa o que diga Davy. —Camille sabia que sua voz soava dura, mas não se importava. Tinha que fazer compreender aos meninos quão perigosa era a mina. Tinha que assegurar-se de que não voltassem ali.

     —Sabe o estúpido que foi vir aqui, por não falar de arrastar ao pobre Billy com vocês? Podia ser um de vocês o que estivesse morto agora.

     Apontou a entrada da mina.

     —Este lugar está há anos abandonado. As vigas estão podres. E se afunda? E se acabam ficando presos lá dentro? Ninguém teria sabido onde procura-los. Poderiam ter ficado enterrados vivos e ninguém teria sabido o que tinha acontecido com vocês.

     Donny abriu muito os olhos enquanto a escutava. Melhor assim. Possivelmente se o assustasse o suficiente não deixaria que seus irmãos voltassem ali.

     Camille tirou sua lanterna da bolsa.

     —Agora vou entrar aí e procurar seu irmão e quero que o dois vão diretamente para casa e não voltem nunca por aqui. Entendeu-me?

     Donny engoliu em seco e assentiu com a cabeça.

     —Sim, senhora.

     —Bem.

     Ela entrou na mina, acendeu a lanterna e enfocou ao seu redor.

     A tarde era quente, mas dentro da mina a temperatura caía pelo menos dez graus. Camille estremeceu e olhou por cima do ombro. Donny a observava ansiosamente da entrada. Quando viu que o olhava, retrocedeu um pouco.

     —Por onde? —perguntou ela.

     Ele se aproximou de novo à entrada.

     —Vê esse túnel dali? Quando se bifurca, siga à direita. Davy está ali.

     As séries de túneis se prolongavam horizontalmente para o interior da colina. O que seguiu Camille era estreito e muito escuro. Ela seguiu os trilhos de metal que usaram em outro tempo para transportar o carvão da mina. Ao aproximar-se da bifurcação começou ouvir água que caía em algum lugar próximo e o ruído mais detestável dos rangidos dos troncos velhos de madeira sob seu peso.

     —Davy?

     —Aqui. —disse uma voz suave.

     A abertura estava a sua direita e, quando Camille passou por ali, teve um sobressalto.

   O homem morto estava caído no chão sujo, com o rosto e a roupa cobertos de sangue e sujeira. O fedor a carne suja impregnava o ar e Camille teve que apertar a boca com a mão para não vomitar.

     Davy Clutter, ao que parecia não se afetava nem com o aroma nem com a vista de tanto sangue, estava agachado ao lado do cadáver. Tinha pendurado um farol perto e sua luz vacilante lançava sombras pelas paredes e dava ao corpo uma aparência estranha e demoníaca.

     Tinha um pau em uma mão e tinha estado desenhando com ele no chão enquanto esperava a Camille. Quando ouviu seu pulo, levantou a vista.

     —Davy? Está bem?

   —Sim, senhorita — ficou em pé—. Mas ele não. Mataram-no.

     —Como sabe?

     —Tem um golpe na cabeça.

     —Melhor caiu e bateu numa pedra. —Camille olhou a contra gosto a figura imóvel no chão—. Está certo que está morto?

     Davy empurrou o corpo com o pau. Ao não obter resposta, encolheu de ombros e levantou a vista.

     —Vê?

     Camille tentou não mostrar nenhuma reação à atitude imperturbável do menino. Em época de guerra, a morte não era estranha para ninguém, nem sequer para os meninos. Era evidente que Davy lutava com a situação o melhor que sabia. Convenceu-se de que o homem morto era um espião inimigo e, portanto, indigno de compaixão.

     Camille decidiu que devia tomar o pulso ao homem, mas quando se aproximava do corpo, uma avalanche de terra e pedras pequenas caiu ao túnel detrás dela.

     —Temos que sair daqui — disse a Davy—. Este lugar não é seguro.

     Um estrondo procedente de um lugar próximo fez que os dois dessem um salto. Pela primeira vez, Camille viu o medo no rosto do menino, que avançou para ela.

     —O que é isso?

   —Acredito que houve um deslizamento atrás da mina — o coração de Camille pulsava com força; tomou a mão do menino—. Vamos. Terá que sair daqui.

     Davy olhou o cadáver.

     —O que fazemos com ele?

     —Teremos que deixá-lo aqui no momento. De todas as maneiras não podemos fazer nada por ele. Vamos. Terá que ir depressa.

     Empurrou Davy para o túnel e se dispunha a segui-lo quando um movimento chamou sua atenção e olhou de novo ao cadáver.

     Tinha os olhos abertos. Antes não tinha sido assim.

     Camille levou uma mão à boca. Estava vivo!

     Outra chuva de terra e pedras caiu no túnel e Davy puxou sua mão.

     —Vamos!

     Mas ela não podia mover-se. Não podia apartar o olhar daqueles olhos. Uns olhos escuros, brilhantes, sedutores.

     Os olhos do homem ao que a haviam enviado para matar.

    

     —Posso continuar? —perguntou Von Meter.

     —Para que incomodar-se? Ouvi muitos contos de fadas por uma noite — Zac se levantou e se aproximou da janela para olhar a neve.

     A voz de Von Meter se voltou impaciente.

     —Você chama conto de fadas, mas só te disse a verdade. Por que duvidas de mim?

     Zac riscou com o dedo o contorno de um floco de neve no cristal congelado.

     — Considere-me um cético se quiser, mas tenho tendência a acreditar só no que vejo com meus olhos. E sei que alguma vez vi a ninguém… como há você disse?… passando a outra dimensão. Mostre-me alguém que possa atravessar uma parede e falaremos.

     —Mas você viu o que pode fazer Roth. Viu com seus próprios olhos suas habilidades telequinéticas.

     —Fechar uma porta é algo muito fácil de forjar. Além disso, você mesmo o disse. Esta casa é velha — Zac olhou ao seu redor—. Certamente as portas se fecham sozinhas freqüentemente. Terá que pensar em algo melhor para me convencer de que está dizendo.

     —Mostra-se deliberadamente obtuso — acusou Von Meter com exasperação—. Você viu todas as coisas que descrevi. Presenciou fenômenos extraordinários que não podem nem imaginar, e muito menos explicar, no mundo corrente.

     —E que conveniente que eu não recorde nada — Zac falou com secura.

     Von Meter suspirou com cansaço, como se ele, um homem de ciência, não estivesse acostumado a lutar com uma mente tão cínica.

     —É certo que se apagaram suas lembranças depois da explosão, mas já expliquei isso. Era uma precaução necessária. O segredo era, e segue sendo, da máxima importância para o Projeto Fênix. Não podemos permitir que as mentes estreitas dos entremetidos do mundo destruam o que tanto esforço tem nos custado conseguir — respirou fundo—. Quanto a suas lembranças… retornarão com o tempo. Pelo menos algumas. As que necessita para levar a cabo sua missão.

     —Já estamos outra vez — respondeu Zac—. Não sei como posso ser mais claro. Eu já não estou de serviço, assim não tenho que aceitar ordens de ninguém. Deixei tudo isso para trás. Estou mentalmente incapacitado para o serviço, recorda? Assim, seja qual for à missão que não deixa de falar, mais vale que se busque outro. Não me interessa.

     —Mas está aqui — observou Von Meter.

   Sim, estava ali, mas Zac não sabia por que. Era evidente que o velho estava louco. Fases inter dimensionais, poderes telequinéticos, viajem no tempo. Ao que parece tudo era possível no universo demente do velho.

     E a mulher que atormentava seus sonhos? Residia também no universo de Von Meter? Ou tinha existido de verdade?

     —Eu a criei. Eu a pus em sua cabeça. Foi um presente que te fiz.

     Bem, aquilo respondia à pergunta, não? Caso pudesse acreditar em algo do que havia dito Von Meter. E isso era supor muito.

     —Há muito mais que precisa saber e nosso tempo está acabando. Por favor, me deixe terminar — pediu Von Meter.

     Zac encolheu de ombros.

   —Pode falar tudo o que quiser, mas já tomei uma decisão. Não me interessa nada do que tenha que propor.

     —Acredito que isso terá que ver, não é?

     Von Meter tirou um charuto de uma caixa que havia sobre a escrivaninha. Mas em vez de acendê-lo, limitou-se a passá-lo por debaixo do nariz, inalou profundamente e o devolveu à caixa.

   —A tecnologia que falei as fases inter dimensionais, telequinesia, psicotrônica, a raiz de toda essa tecnologia pode se encontrar no experimento que levou o cabo com esse navio faz mais de sessenta anos.

     —O Experimento Filadélfia.

     —Sim. Na II Guerra Mundial, o Governo criou muitos programas secretos, o mais famoso dos quais foi, é obvio, o Programa Manhattan. O desenvolvimento da bomba atômica se concentrou basicamente em três lugares secretos: Hanford, em Washington; Os Alamos, em Novo o México; e Oak Ridge, no Tennessee. Enterrado nos limites do Oak Ridge havia outro programa conhecido como Projeto Arco Íris, que era dirigido por um homem chamado Nicholas Kessler…

     Zac o olhou.

     —Kessler?

     —Esse nome te diz algo? —perguntou Von Meter.

     Zac estudou os traços do velho.

     —Não estou certo. Deveria?

     —Possivelmente o conhece por sua reputação — respondeu Von Meter, mas seu tom resultou evasivo a Zac, como se tentasse ocultar informação deliberadamente—. Kessler era um físico de fama mundial que tinha trabalhado com gente como Albert Einstein e Max Born antes da guerra. Possuía uma das mentes mais brilhantes da época, mas, desgraçadamente, sua genialidade se via diminuída por sua falta de coragem e visão. Começou a ter sérias dúvidas sobre o trabalho que fazia para o Governo e fez o possível para que fechassem o projeto. Mas era muito tarde. Os militares tinham visto as possibilidades que podia oferecer uma tecnologia assim. Podia se ganhar a guerra, não em anos nem em meses, mas em dias.

     Zac o olhou de marco em marco.

     —Fala como se acreditasse no que diz.

     —É obvio que acredito. E você também acreditará logo.

     —Isso é o que você diz — murmurou Zac.

     — Preparou-se um experimento com um casco de navio de guerra para em 15 de agosto de 1943, apesar das repetidas advertências de Kessler sobre a segurança da tripulação. Os militares ignoraram suas objeções. Em sua opinião, o sacrifício da tripulação de um navio não era um preço muito alto tendo em conta os milhões de vidas que podiam salvar.

     —O bem de muitos ultrapassa a necessidades de uns poucos — disse Zac.

     —Exatamente. Mas na véspera do experimento, o doutor Kessler subiu a bordo do navio e tentou sabotar os geradores usados para produzir os campos magnéticos. Foi apreendido antes que pudesse destruí-los e o experimento teve lugar no dia seguinte como estava previsto. Quando se desatinarem os geradores, um brilho verde estranho envolveu a coberta. O navio começou a apagar-se até que só ficou uma débil silhueta. Depois desapareceu de tudo e reapareceu cinco horas mais tarde em outra névoa verde. Deve ter sido o espetáculo mais assombroso que alguém poderia presenciar. —disse Von Meter com reverência.

     —E a tripulação?

     O velho vacilou.

     —Tal e como o doutor Kessler havia predito, houve problemas.

     —Que classe de problemas?

     —Vários homens estavam muito doentes. Outros tinham morrido ou padeciam de confusão e demência. E ao menos faltavam pessoas. Os que sobreviveram foram declarados mentalmente incapacitados para servir no Exército — o velho olhou para Zac—. Sim. Igual a você quase sessenta anos mais tarde.

     —Está insinuando que há algum tipo de relação? —perguntou Zac duvidoso.

     —Só sugiro que neste mundo não há coincidências — o velho passou uma mão pelos olhos como se ele também começasse a se cansar da conversa—. Depois do experimento, Kessler ficou tão afetado pelo estado da tripulação que redobrou seus esforços por obter que fechassem o projeto. Conseguiu convencer a um Comitê do Congresso de que a nova tecnologia não só tinha o poder de mudar o mundo que conhecemos, mas também podia alterar a mesma essência do ser humano.

     —Tinha razão?

     —Sim. Mas Kessler se negava a considerar a possibilidade de que o resultado final dessa tecnologia incrível fora um ser humano melhor — Von Meter se moveu incomodado em sua cadeira—. Os políticos nunca foram famosos por sua visão de futuro e aquele grupo não foi uma exceção. Mostraram-se de acordo com Kessler e retiraram os recursos para o projeto. Kessler inclusive queimou suas notas com a esperança de que jamais se repetisse o experimento, mas, por sorte, algumas se salvaram e se converteram na base do Projeto Fênix.

     —É uma história fantástica — comentou Zac—. Mas não se esquece de uma coisa? Não explicou o túnel no tempo.

     —Ah, sim, o túnel — Von Meter tocou o queixo com a mão—. Olhe, um túnel no tempo é uma entidade inerentemente instável. Quando o navio voltou a materializar-se, o túnel através do qual tinha viajado deveria haver derrubado uma vez que tinha sido atalho de sua fonte de energia. Mas Kessler fez algo nos geradores aquela noite. Danificou-os de um modo que impedia que ao menos um deles se apagasse devidamente. E o resultado foi que o túnel do tempo pôde reunir energia negativa suficiente, matéria exótica a chamamos, para superar o puxão gravitacional e estabilizar-se.

     —A mim isso parecem tolices — disse Zac.

     —Não vejo por que. A física quântica leva décadas teorizando sobre a existência de túneis no tempo e a existência deste túnel em concreto conhecemos há anos. Até recentemente, entretanto, fomos incapazes de localizar a entrada apesar de registros exaustivos. E todo o tempo estava justo diante de nossos narizes.

     —E agora que o encontraram, querem me enviar por ele — comentou Zac—. Com que propósito?

     —Destruí-lo.

     Zac arqueou as sobrancelhas.

     —Deixa ver se entendo. Levam anos procurando essa coisa e agora que a encontraram querem que a destrua? Por quê?

     —Porque é o único modo — respondeu Von Meter—. Pense nas conseqüências de um túnel assim. Alguém do presente poderia viajar de retorno a 1943 e mudar o curso da história usando a tecnologia moderna. Mudar o resultado da guerra, possivelmente. Imagina um mundo em que os aliados tivessem sido derrotados.

     Zac fez uma careta.

     —Entende agora por que terá que destruí-lo? —perguntou Von Meter.

     —Entendo-o, mas assumindo que tudo isto fosse verdade, por que não procurar um modo de fechar a abertura? Ou de escondê-la…

     —Embora isso fosse possível, sempre existiria o risco de que antes ou depois alguém descobrisse algumas gerações futuras. Não podemos correr esse risco.

     —Mas se eu voltar atrás no tempo, minha mera presença não mudará a história? —insistiu Zac.

     A expressão de Von Meter se tornou sombria.

     —Por isso deve ter muito cuidado. Vamos enviar você de volta a um lugar muito perigoso. Alguns tentarão te envolver nas intrigas de então, mas você não deve participar. Haverá tentações, mas terá que resistir a qualquer preço. A menor interferência poderia ser desastrosa. Sua missão é singela. Tem que impedir que o doutor Kessler sabote os geradores para que quando o navio se materialize, possam-se fechar bem. O túnel do tempo se destruirá, mas todo o resto permanecerá igual. Compreendeu?

     Zac se aproximou da mesa do velho e se sentou.

     —Só por curiosidade. Vamos assumir que tudo o que disse é verdade e digamos que eu aceite voltar e consiga que esses geradores se desconectem de todo… O que acontece quando for destruído o túnel?

     Os olhos de Von Meter se obscureceram.

     —É muito possível que fique preso em 1943.

     Zac soltou um risinho.

     —Agora entendo por que não há uma fila de voluntários em sua porta.

     —Para retornar a sua época, tem que voltar a entrar no túnel antes que o navio se materialize de novo. Segundo a logística da missão, isso será muito difícil a menos que…

     —A menos que…?

     —A menos que possa recrutar a alguém do passado que acredite em você e te ajude.

     —E tem alguém em mente?

     O olhar do velho se escureceu um instante.

     —Nicholas Kessler.

     —E por que acredita que estaria disposto a me ajudar? —quis saber Zac—. Ou a me escutar sequer? E agora que penso, por que escuto eu a você? Pelo que sei, pode ser um demente escapado de um hospício próximo.

     Von Meter abriu uma gaveta de sua mesa e tirou um cordão de ouro que pendurava um medalhão. Estendeu e Zac que pegou a contra gosto.

     —O que é isto?

   - Uma jovem que conheceu deu ao Kessler antes de sair da Alemanha. Mais tarde morreu em um campo de concentração. Fizeram-na especialmente para ele na joalheria de seu pai em Berlim. É única.

     —E como você a tem? —perguntou Zac com receio.

     Levantou o cordão e o ouro brilhou a luz, produzindo uma sensação de deja vu. Tinha visto essa medalha antes. Tinha-a tido em suas mãos.

     Um calafrio subiu pela coluna. Olhou a Von Meter.

     —De onde a tirou? —perguntou.

     —Dá no mesmo como chegasse a minha posse — repôs o velho—. A única coisa que importa é que seja útil para você.

     —A que se refere?

     —Esse medalhão convencerá Nicholas Kessler de que deve te ajudar.

     —Como?

     —Tem que confiar em mim nesse ponto.

   Zac fechou o punho com o cordão dentro.

     — Por que vou confiar em você?

     —Porque não tem escolha.

     —Não tenho escolha? —Zac ficou em pé—. Sempre há escolha, velho.

     Voltou-se para a porta.

     —Pode ir — disse Von Meter com suavidade a suas costas—. Mas se sentirá impulsionado a voltar como se viu impulsionado a vir aqui e como se viu impulsionado a voltar antes. E sabe por quê? Porque no fundo já sabe que digo a verdade. Você é um super soldado, Zac. Um guerreiro Fênix treinado e programado para chegar a extremos insuspeitados com tal de cumprir uma missão. Não tem escolha porque isso é o que é.

     Zac o olhou com desprezo. Mas embora a fúria crescesse lentamente em seu interior, sentia também algo mais. Excitação. Adrenalina. A emoção da caça.

     E mais profundo ainda, o despertar de sentidos que não sabia que possuía.

     O sonho se apagou. Von Meter desapareceu e Zac ficou sozinho na escuridão. Tinha a vaga sensação de estar ferido, de que o cuidavam. Sentia umas mãos gentis no corpo de vez em quando, mas não podia despertar. Parecia estar apanhado em um mundo em sombras onde os sonhos se mesclavam com a realidade.

     Ela estava ali. A mulher que tinha atormentado tanto tempo seus sonhos.

     Conhecia-a já intimamente. Suas mãos, seus lábios. A sensação de sua pele pálida e sedosa sob os dedos dele.

     Sua voz era como um canto de sereia. Seu tom consolador tinha o poder de tirá-lo da escuridão… ou de colocá-lo mais profundamente nela.

     Agora podia ouvir essa voz suave e poesia lírica.

     —Sabia que viria — dizia ela—. Só era questão de tempo.

   Pôs-se a rir, com uma risada dura e seca que pareceu atravessar a alma de Zac.

     —Mas o tempo é um conceito muito relativo, verdade?

   Guardou silêncio um momento e, quando falou de novo, a amargura tinha desaparecido.

     —O que te aconteceu? Quem te fez isto? Quem pode querer te matar… além de mim?

     —Acredito que não posso prosseguir com isto — sussurrou ela—. Sei o muito que há em jogo e, entretanto, quando te vi ali caído… Quando acreditei que estava morto…

     Por um segundo, Zac teria podido jurar que sentia a mão dela no rosto, o roçar de seus lábios nos dele. Era quase suficiente para fazer deixar atrás a escuridão.

     Quase… mas não de tudo. Ainda não.

     Ela respirou forte, como se tentasse reprimir as lágrimas.

     —Por que você veio? Por que tinha que acertar o avô? Por que tinha que ser você?

     Guardou silêncio de novo e Zac acreditou ouvir o batimento do coração do coração dela. Ou era o seu próprio?

     —Mas não posso deixar que nada disso tenha importância, verdade? —disse ela com dureza—. Tenho um trabalho que fazer. Tenho que descobrir por que está aqui, assim no momento preciso de você com vida. Não pode morrer agora, Zac. Ouve-me? Não pode morrer… sem saber do Adam.

     Zac sabia que tinha visto antes ao menino. Havia algo comovedoramente familiar naquele rosto solene e aqueles olhos escuros e inocentes.

     Tinha uma luva de beisebol em uma mão e uma bola na outra, e para Zac parecia que o menino estava banhado em luz. Uma luz branca brilhante que esquentava o coração de Zac.

     —Né, senhor, quer brincar de lançar? —perguntou o menino esperançado.

     Zac se encolheu de ombros.

     —Claro… O beisebol é meu esporte favorito.

     O menino o olhou entrecerrando os olhos.

     —Joga bem?

     —Não muito mal — Zac retrocedeu uns passos e se agachou—. Tudo bem, menino, vejamos como lança.

     O menino tomou pontaria e lançou uma bola perfeita. Zac a apanhou ao vôo.

     —Né, menino. Onde aprendeste a lançar assim?

     — Minha mãe me ensinou.

     —Sua mãe, é? —Zac se levantou e olhou a seu redor—. Onde está?

     —Está esperando você.

     —Me espera?O que quer dizer?

     O menino se aproximou devagar, com os olhos escuros e brilhantes fixos nele.

     — É tarde, senhor. Melhor que se vá.

     —Aonde?

     Zac compreendeu de repente que não tinha nem idéia de onde estava nem o que tinha que fazer. Nunca em sua vida havia se sentido tão perdido.

     O menino se aproximou dele e deu-lhe um empurrão.

     —Tem que ir-se, vale? Já é hora…

    

     — Supõe-se que você esteja morto, senhor Riley. —disse uma voz zangada em seu ouvido.

     A voz tirou Zac do sonho e do menino. Debateu-se um momento, mas estava muito fraco para resistir muito.

     A voz se aproximou mais a seu ouvido.

     —Que fazia na mina abandonada? Quem o enviou aqui? O FBI? O Departamento de Defesa? Dá no mesmo. Não podemos permitir que os militares terminem o que começaram detrás dessa grade. Não toleraremos sua intromissão…

     —O que se acredita que está fazendo? —perguntou uma segunda voz.

     Zac sentiu outra presença no lugar.

     A primeira visitante guardou silêncio um momento e depois respondeu com calma:

     —Só estava afofando o travesseiro.

     —Afofando o travesseiro? —repetiu a segunda voz duvidosa—. Por um momento pensei…

     —O que pensou?

     Ela soltou um risinho nervoso.

     —Pareceu-me que tentava asfixiar ao pobre homem.

     A primeira pessoa pôs-se a rir também.

     —Asfixiá-lo? Isso sim que tem graça.

     —Devo estar trabalhando muito. Estou tão cansada que tenho visões — as duas riram de novo, mas na segunda voz ficava uma nota estranha que bem podia ser receio.

     —Parece que você quer pôr o termômetro e eu tenho coisas que fazer, assim que a deixarei tranqüila — disse a primeira voz.

     —Não quero expulsá-la.

     —Não, não importa, voltarei logo — uma mão posou no ombro do Zac—. Pode contar com isso.

     —Não tem que ir para casa? — perguntou Zac.

     —Não posso ir até que você vá — respondeu o menino.

     Zac o olhou confuso.

     — Por quê?

     O menino encolheu os ombros.

     —Pode ser que não encontre o caminho sem mim — tomou a mãos de Zac—. Vamos. Acompanharei-te uma parte.

     —Não deveria ser ao contrário? — perguntou Zac—. Não deveria ser eu a te levar para sua casa?

     —Não pode.

     —Por que não?

     O menino demorou um momento em responder.

     —Porque não funciona assim.

     Era um menino muito estranho. E, entretanto, havia algo muito atraente nele. Zac descobriu que não queria deixá-lo. Ajoelhou-se e pôs as mãos nos ombros do menino.

     —Te conheço? Acredito que não nos vimos nunca, mas… parece-me familiar.

     Os olhos do menino brilharam e se voltou de repente, limpando-a nariz com uma mão.

     —Temos que ir, ok? Logo estará escuro.

   —Antes me diga seu nome — pediu Zac—. E depois irei contigo.

     Mas era muito tarde. O menino já se foi sem ele e Zac nunca havia se sentido tão sozinho.

    

     —Como está hoje, doutor?

     Zac ouviu a voz suave como se procedesse de uma grande distancia.

     —Parece que pior. O pulso está débil, a pressão arterial está caindo… temo que seja só questão de tempo.

     —Pobrezinho! É uma lástima. É bastante atraente, não acha?

     —Eu disso não entendo enfermeira. E sugiro que, no futuro, preocupe-se mais de atender as necessidades do paciente e menos de suas fantasias românticas sobre ele.

     —Sim, doutor.

     Tinha um aspecto horrível. Até limpo da sujeira e o sangue da mina, seu rosto estava tão magro e pálido que Camille apenas o reconheceu.

     Uma vez tinha sido o homem mais viril e atraente que tinha conhecido nunca, e agora doía vê-lo assim. Tão pálido e imóvel. Tão perto da morte…

     —Não posso voltar a passar por isso — sussurrou—. Não posso…

     E, entretanto, apesar da angústia, reconheceu a ironia de sua dor. Ele era o inimigo agora. Não podia esquecer esse fato nem por um segundo.

     Tentou endurecer seu coração, mas o olhou e, em lugar de ódio e desprezo, sentiu um desejo irresistível de beijá-lo nos lábios e insuflar sua própria vida nos pulmões.

    

     — Por que voltou? —perguntou Zac ao menino.

     Este tinha aparecido de repente a seu lado e Zac sentia uma entristecedora sensação de alívio. Revolveu o cabelo do menino com afeto.

     O menino se separou dele.

     —Tem que ir senhor.

     —Meu nome é Zac.

     —Tem que ir …Zac.

   —Não deixa de dizer isso, mas não há nenhum lugar onde precise estar. Prefiro ficar aqui contigo. Podemos ir a uma partida de beisebol se quiser. Você gostaria?

     O menino negou com a cabeça, mas o brilho de seus olhos partia o coração de Zac e o fazia desejar algo que nem sequer era consciente de ter perdido.

   —Podemos brincar de lançar —sugeriu esperançoso—. Só um momento.

     O menino voltou a negar com a cabeça.

     —Tem que ir.

     —Por favor…

     Mas Zac não compreendia sua própria súplica. Só sabia que, quando partisse, não voltaria a ver o menino e a dor que isso causava era quase mais do que era capaz de suportar.

     —Não posso te deixar — sussurrou.

     O menino levantou a mão e apontou atrás de Zac. Este se voltou.

     E ali estava ela, ainda envolta em névoa. Ainda tão elusiva como sempre.

     —Está te esperando — disse o menino.

     —Mas não é real — protestou Zac.

     — Precisa de você. Tem que ajudá-la.

     —Ajudá-la em que?

     O menino começou a retirar-se.

     —Não, não vá. —suplicou Zac.

     —Tenho que ir.

     —Ainda não. Por favor. Só um pouco mais.

     —Ela precisa de você. —disse o menino—. Tem que ir com ela. Tem que ajudá-la.

     Zac olhou à mulher. Não podia ver o rosto, mas sentia sua presença. Sentia também outra presença. Um perigo que espreitava nas sombras. Ela também pareceu senti-lo. Levantou uma mão em um gesto de súplica e Zac sentiu de repente um forte impulso de correr até ela, tomá-la em seus braços e não deixá-la partir nunca.

     Uma pena infinita se apoderou dele quando olhou ao menino. Tinha que tomar uma decisão.

     —Acredito que agora o entendo. Tenho que ir.

     O menino assentiu e seguiu afastando-se.

     —Espera! —Zac levantou uma mão para detê-lo—. Por favor. Só me diga seu nome.

     O menino vacilou um momento.

     —Adam — respondeu—. Chamo-me Adam.

     E desapareceu de tudo…

    

     — Moveu os dedos.

     —Certamente é um tic muscular — a mais alta das duas enfermeiras se levou uma mão à boca e reprimiu um bocejo.

     —Não, os vi se mover. —insistiu a enfermeira loira—. E olhe seus olhos. Movem-se as pálpebras. Acredito que está despertando.

     Camille acabava de entrar no andar e se deteve com o coração galopante escutando a conversação das enfermeiras. Seria certo? Zac saía enfim do coma?

     Tinha passado quase uma semana desde que Davy e ela o tirassem da mina. E Camille quase tinha renunciado à esperança de vê-lo…

     Fechou os olhos, desejando poder sucumbir aos sentimentos que ameaçavam sugá-la. Mas sabia que tinha que combater a tentação. Não podia se permitir entrar de novo no universo de Zac Riley. Não tinha funcionado a primeira vez e tampouco funcionaria agora. Não podia ser.

     O que tinha que fazer era cumprir com sua missão. Muitas coisas dependiam de seu êxito.

     — Vou procurar o doutor. —a enfermeira alta e ruiva fez gesto de mover-se, mas a outra a sujeitou pelo braço.

     —Viv, espera! Olhe! Quer dizer algo.

     —Pode entendê-lo? O que é o que diz?

     Quase contra sua vontade, Camille deu um passo mais em direção à cama. Viu que Zac movia freneticamente os lábios, mas não pôde ouvi-lo.

     —Vamos, vamos — tranqüilizou a enfermeira loira—. Tente conservar a calma.

     Zac a agarrou pelo braço com uma força surpreendente e puxou ela para si. A enfermeira se inclinou sobre ele, escutando com atenção.

     —Pode entender o que diz? —perguntou a enfermeira alta com ansiedade.

     —Não estou segura. Acredito que é um nome. Repete-o uma e outra vez.

    —Que nome?

     —Adam. Acredito que pergunta por alguém chamado Adam.

     Os joelhos de Camille se dobraram e procurou cegamente a parede para apoiar-se.

     —Vamos. É hora de despertar.

     A voz profunda penetrou no mundo de sonho do Zac, mas estava muito fraco e cansado para responder. Queria enterrar-se na escuridão, mas a voz não o permitia.

     —Vamos acorde. Pode fazê-lo. Isso. Continue lutando…

     Zac abriu os olhos e a claridade fez baixar as pálpebras. A luz fazia mal. Queria fechar os olhos e afundar-se de novo na escuridão, mas era muito tarde. Agora estava acordado e não havia volta atrás.

     Três rostos ansiosos o olharam.

     —Onde estou? —perguntou.

   —No hospital do Condado — disse o homem—. Sou o doutor Cullen. Elas são a enfermeira Wilson e a enfermeira Brody. Estiveram cuidando de você.

     A enfermeira mais baixa, uma loira de olhos azuis e covinhas profundas, sorriu-lhe.

     —Estávamos todos muito preocupados com você.

     A outra enfermeira, uma ruiva alta e magra, assentiu com a cabeça.

     —É certo. Todo mundo se alegrará de saber que voltou para nós.

     Zac olhou confuso ao seu redor.

     —O que faço aqui?

—Tem uma ferida na cabeça — disse o doutor—. Faz uma semana que está inconsciente.

     —Uma semana? —Zac sentiu pânico. Tinha que ir a algum lugar… havia algo que tinha que fazer…

     —Pode nos dizer seu nome? —perguntou o doutor com gentileza.

     Ele pensou um momento.

     —Zac… Riley.

     O doutor assentiu com satisfação.

     —Esse é o nome que encontramos em sua carteira. Recorda algo do acidente?

     Acidente? Que acidente? Zac negou com a cabeça.

     —Encontraram-no em uma mina de carvão abandonada — explicou o doutor—. Acreditam que se feriu em um desabamento, mas é só uma especulação por nossa parte. Suspeito que você recordará tudo logo e poderá nos dar os detalhes.

     Uma mina de carvão? Que raios acontecia ali? Do que falava aquela gente?

   Zac os olhou com atenção. Havia algo estranho em seu aspecto. As mulheres levavam gorros antiquados de enfermeiras e uniformes brancos engomados de manga comprida, apesar de que a temperatura no interior do hospital parecia muito alta.

     Seus estilos de penteado eram também diferentes, assim como o corte do traje do doutor. Os três pareciam atores de um filme velho em preto e branco

     E então Zac recordou algo.

     «Encontramos um túnel no tempo. Um corredor secreto que une o presente com o futuro. “Com 1943 para ser exato.»

     —Que dia é hoje? —perguntou. Tentou sentar-se, mas o doutor pôs as mãos nos ombros e o empurrou com firmeza contra o travesseiro.

     —Procure conservar a calma — aconselhou—. Necessita tempo para orientar-se e…

     Zac segurou o seu braço.

     —A data. Que dia é hoje?

     —É sete de agosto.

     —E o ano?

     As duas enfermeiras trocaram um olhar.

     —Mil novecentos e quarenta e três — disse a loira.

     Zac se deixou cair sobre o travesseiro.

   —Então não é tarde. Não cheguei tarde.

     —Tarde para que? —perguntou a enfermeira loira.

     —Para salvar o futuro. —murmurou Zac justo antes de perder os sentidos.

     Ouviu a enfermeira rir e um segundo antes que a escuridão voltasse a tragá-lo. Zac teria podido jurar que o doutor entrecerrava os olhos com receio.

     As enfermeiras estavam constantemente em cima dele. Quase dava a impressão de que rivalizavam para ver qual podia dedicar mais cuidados.

     Zac supunha que devia sentir-se adulado, mas suspeitava que sua atitude tivesse mais a ver com a falta de homens durante a guerra que com seu carisma pessoal. De todas as maneiras, agradecia seu interesse, sobre tudo tendo em conta a escassez de pessoal no hospital. Tinha ouvido as enfermeiras comentarem que parte do pessoal com mais experiência tinha sido transferido fazia pouco ao hospital do Oak Ridge, o que tinha posto ao Hospital do Condado em um aperto. Os empregados que ficavam freqüentemente tinham que fazer turnos duplos, e às vezes triplos. Mas as enfermeiras encontravam tempo para parar em sua cama de vez em quando.

   O doutor Cullen também demonstrou um grande interesse por seus progressos. Parecia admirado e confundido pela rapidez com que Zac melhorava depois de ter estado quase uma semana em coma. Zac compreendeu, por alguns comentários das enfermeiras, que o doutor o tinha dado virtualmente por morto e ele despertara de repente sem mais moléstias que algumas dores de cabeça e visão nublada às vezes. Uma recuperação milagrosa na opinião de todos.

     —O doutor diz que lhe dará alta logo - informou Betty, a enfermeira loira. Seus olhos azuis brilhavam a luz do sol que entrava por uma janela situada em um extremo da planta—. Que planos tem quando sair daqui?

     Zac encolheu os ombros.

     —Suponho que terei que procurar um trabalho e um lugar onde viver.

     —Não deveria voltar a trabalhar até que esteja totalmente recuperado — brigou ela—. E possivelmente eu possa ajudar a procurar um lugar onde ficar, ao menos temporariamente. Falarei com meu tio. Meu primo Tom está no Pacífico com a 25ª Infantaria. Esteve na Guadalcanal[1] —disse com orgulho—. Certamente poderá ficar uma temporada em seu quarto.

     —Não quero incomodar a ninguém — disse Zac—. Além disso, necessitava um lugar onde pudesse entrar e sair a qualquer hora sem despertar suspeitas.

     —Não seria um problema. Tio Herbert gostaria de ter companhia. Está bastante solitário desde que Tommy partiu. E, além disso, não há mais moradias por aqui. Até as estalagens e apartamentos do Knoxville estão cheios. Algumas famílias inclusive alugaram seus galinheiros — estremeceu com delicadeza—. Nesta zona não estamos muito acostumados a luxos, mas terá que estar muito desesperado para dormir em um galinheiro. Não são mais que caixas…

     —Betty Lou, já está cansando outra vez o pobre homem? —brigou Viviam, a ruiva, aproximando-se da cama.

     —Só estávamos tentando buscar um lugar para o senhor Riley… ao Zac — sorriu Betty com doçura—. Para quando derem alta para ele.

     —Não há necessidade de preocupar-se disso. Já falei com minha mãe — repôs Vivian—. Está tudo arrumado. Pode ficar conosco.

   Betty se mostrou surpresa.

     —E onde vai dormir? Em seus dormitórios já há muita gente. Não me diga que vai colocá-lo com o bebê. Esse menino uiva mais alto que um cão infectado de pulgas.

     —Bom, seria melhor que ouvir seu tio falar da metralhadora que meteram em certa… zona delicada durante a I Guerra. —replicou Vivam—. E te ouvi bem? Estava sugerindo ao senhor Riley que durma em um galinheiro?

     — Com certeza prefere dormir com galinhas a suportar a todos os mucosos de sua casa — murmurou Betty.

     —Em realidade, eu tenho uma habitação livre — disse uma voz feminina atrás delas—. Não é muito luxuosa, mas posso garantir certa paz e tranqüilidade.

     Estava emoldurada por tanta luz que Zac ao princípio não pôde ver os seus traços. Assumiu que seria outra enfermeira; até que se aproximou da cama e ele conteve o fôlego. Era a mulher mais bonita que tinha visto em sua vida. Alta, esbelta, de cabelo escuro e olhos formosos que se destacavam ainda mais pelo vestido azul que usava. Era um objeto singelo, mas a saia reta e a cintura ajustada mostravam curvas suaves e convidativas. Usava o cabelo dividido no meio e caía sobre o rosto até os ombros.

     Havia algo estranhamente familiar em seus traços, mas Zac não conseguia recordar de onde a conhecia. Como podia ter esquecido uma mulher assim?

     Quando seus olhares se encontraram, seu coração se encolheu com uma emoção que não compreendeu.

     —Conheço-a? —perguntou vacilante.

   Ela se colocou junto à cama. As enfermeiras pareceram notar que a recém chegada monopolizava toda sua atenção e retrocederam, embora não sem certo ressentimento.

   Zac apenas se deu conta. Só tinha olhos para aquela mulher.

     —Conheço-a? —perguntou uma vez mais.

     Ela tocou a corrente de ouro que levava no pescoço. A luz arrancou brilhos à corrente e lembrou a Zac o medalhão que Von Meter tinha dado a ele. Confiou em que estivesse ainda onde o tinha escondido, na mina.

     —Meu nome é Camille Somersby. Fui eu quem o tirou da mina. Embora não todo o mérito seja meu; contei com a ajuda dos filhos de meu vizinho. Eles o encontraram.

     Zac franziu o cenho. Algo se agitava em sua memória, mas a imagem parecia mover-se nas sombras, fora de seu alcance.

     —Suponho que devo a vida a eles e a você — murmurou.

     —Sim, suponho que sim — havia algo relutante na atitude dela, como se não estivesse ali por vontade própria, mas sim por uma necessidade que não se decidia a admitir—. Bom — continuou com brutalidade—. Recorda o que fazia na mina?

     Ele negou com a cabeça.

     —A verdade é que não. Sei que vim aqui procurar emprego na reserva. Tenho experiência em construção e me disseram que contratavam pessoas.

     —Algumas das enfermeiras acreditam que deve ter escutado falar da mina no povoado e que, como não pôde encontrar um lugar onde ficar, decidiu subir para acampar ali. Isso faz lembra-se de algo?

     —Temo que tudo é uma nuvem — Zac decidiu que tinha chegado o momento de mudar de assunto—. E falando de lugar para ficar, disse que tem uma casa para alugar?

     —Sim. Tenho uma casa livre. Como já teria descoberto, ter onde viver se converteu em um problema nesta zona. Não sei se sabe muito sobre o Oak Ridge…

     —O suficiente para ser consciente de que o que fazem os militares atrás dessa cerca está provocando muito ressentimento nas pessoas por aqui.

     —Sim, bom, o que ocorre atrás da cerca fica ali — respondeu ela—. Não nos permite falar disso.

     —Nos?

   —Eu trabalho em uma das plantas — olhou a seu redor, como para se assegurar de que não a ouviam—. Bom, o que me diz? Aceita a casa? —viu que ele vacilava—. Se preocupa-se com o aluguel, esqueça. Há muito que fazer na casa. Há goteiras e estou certa de que pode ganhar casa e comida até que encontre um emprego. Possivelmente até possa te ajudar com isso.

     Zac sorriu com receio.

     — Você é muito generosa com alguém a quem não conhece. Se fosse uma pessoa desconfiada, perguntaria por que.

     —Não tem nada de misterioso — respondeu ela, mas o movimento nervoso da mão com que tocava a cadeia desmentia suas palavras—. Tenho interesse em seu bem-estar, lembre que ajudei a salvar sua vida.

     Sorriu, mas algo em seus olhos, uma sombra perdurável levou Zac a acreditar que Camille Somersby era uma mulher com segredos. Segredos perigosos.

     Sinos de advertência soaram em sua mente.

     —Não posso evitar pensar que nos conhecemos. —murmurou.

     —Em outro tempo possivelmente sim — repôs ela com ligeireza. Enrolou a corrente no dedo—. Se você acredita nessas coisas.

    

     Zac esperou até que apagaram as luzes em sua ala, levantou-se devagar, colocou a roupa e saiu do hospital. A lua acabava de subir por cima das árvores quando se pôs a andar por aquelas ruas desconhecidas.

     Depois das muitas sessões que tinha tido com Von Meter, Zac tinha uma idéia bastante boa da cidade. Depois daquela primeira noite na casa do velho, tinham passado muitas outras revisando mapas e documentos, com a ajuda de Von Meter e às vezes de Vogel, até que conheceu a zona que rodeava Oak Ridge tão bem como seu bairro da Filadélfia.

     Também sabia que dentro da grade não seria fácil aproximar-se de Kessler. A cidade estava bem fortificada. Os guardas patrulhavam seus limites vinte e quatro horas e ninguém podia entrar ali sem um passe ou um objetivo concreto.

     Mas a preocupação mais imediata de Zac era o transporte. Tinha que fazer muitas coisas nessa noite e, se se via obrigado a mover-se a pé, gastaria as poucas horas que tinha até as doze, quando chegaria o turno de noite ao hospital. Até o momento, tinha escapado à atenção das autoridades locais, mas agora que tinha saído do coma seguramente haveria perguntas.

     E detrás das autoridades locais chegariam a Divisão de Segurança e Inteligência e o FBI. Se algum dos dois suspeitava dele, podiam prendê-lo e encerrá-lo durante semanas, meses ou até que acabasse a guerra. Zac não podia permitir que isso ocorresse. Era imperativo não chamar a atenção.

     Pego aos edifícios para passar mais despercebido, conseguiu chegar à praça e dali avançou para o norte pelo Edgemont Avenue, onde Betty Wilson, a enfermeira loira, tinha mencionado que vivia uma tia dela.

     A jovem enfermeira, ansiosa de companhia masculina, tinha repartido muita informação sobre sua vida pessoal. Sua conversa interminável poderia ter aborrecido a outro, mas Zac se aproveitou dela, sabedor de que qualquer dado inócuo podia ser de utilidade no futuro.

     E tinha sido um acerto pensar assim. Betty tinha mencionado de passagem que sua tia tinha ido de ônibus até Nashville para visitar um parente doente, o que implicava que sua casa estaria vazia e, o mais importante, seu carro estaria sem vigilância em sua ausência.

     Não foi difícil encontrar a casa apesar da escuridão e, para alívio de Zac, parecia realmente estar vazia. Penetrou pela parte de trás até o abrigo que guardava o carro e soltou um assobio suave quando viu o Packard de 1937. Os pára-choque de cromo brilhavam a luz da lua, mas se permitiu só um instante para admirar as linhas esbeltas do veículo antes de subir, tirar o freio de mão e empurrá-lo silenciosamente até a rua com um pé no chão e um ombro contra a carroceria.

     A rua da parte da frente da casa desenhava uma costa leve e Zac seguiu empurrando o carro até o final dela. Saltou ao interior, fechou a porta e rezou para que a bateria não estivesse gasta. Girou a chave de contato e comprovou com alívio que o carro ficava em marcha.

     Dirigiu-se para o sul e abriu a janela para deixar entrar o ar noturno. Não havia mais carros na estrada e o campo parecia dormir e silencioso por cima do ronronar dos doze cavalos do motor. As granjas que passava na escuridão se viam escuras e desoladas e suas silhuetas pareciam tétricas à luz da lua.

     A noite possuía uma qualidade surrealista e Zac tinha a sensação de estar apanhado em um sonho.

     A três quilômetros da cidade, entrou em um caminho de cascalho, percorreu meio quilômetro mais e parou o carro. Mais adiante podia ver a janela iluminada de uma casa, o que significava que ainda havia gente em pé e não queria que o ruído do carro chamasse a atenção; além disso, de onde estava só havia um passeio curto até a mina.

     Saiu do carro e olhou a seu redor com todos os sentidos alerta. Cantavam os grilos e um vaga-lume cruzava às vezes o ar, mas, além disso, nada perturbava a tranqüilidade da noite. Fazia calor e Zac sentiu uma solidão estranha no coração. Talvez fosse só nostalgia. Depois de tudo, estava muito longe da Filadélfia; ao menos da Filadélfia que ele conhecia.

     Na distância se elevavam, contra o horizonte, uma série de colinas, como corcundas de um camelo. Procurou em sua memória e pôs-se a andar.

     Quando se aproximava da primeira casa, ouviu vozes na escuridão e seu primeiro instinto foi meter-se no bosque próximo, mas não o fez, mas sim, empurrado pela curiosidade, seguiu o som até a beira do pátio.

     Três meninos brincavam de perseguir-se à luz da lua e suas risadas intensificaram a estranha melancolia de Zac. Sabia que devia continuar andando, mas não conseguia que as pernas lhe obedecessem. Escondeu-se detrás de um matagal e observou os meninos entrar e sair das sombras.

     — Está com você, Billy! —gritou um dos meninos maiores.

     —Não é verdade! —respondeu o menor—. Eu te peguei.

     —Não se aproximou de mim.

     —Sim me aproximei.

     Abriu-se a porta da casa e um raio de luz amarela saiu ao pátio. Zac se aconchegou mais em seu esconderijo.

     —Meninos! —gritou uma mulher—. É hora de para a cama.

     —Ah, é muito cedo para deitar-se — protestou um dos maiores.

     —Sim — repetiu o pequeno—. É muito cedo para deitar-se.

     —Não, não é. São mais de nove horas e têm que se levantar cedo para fazer os… — a mulher se interrompeu porque algo peludo passou entre suas pernas.

     O cão saiu pela porta e correu em linha reta para Zac, com os três meninos detrás dele.

     —Daisy, espera! Daisy!

     O animal quase conseguiu chegar ao esconderijo de Zac antes que um dos meninos o apanhasse. O cão tentou soltar-se e começou a ladrar a pleno pulmão.

     —O que acontece com Daisy? — perguntou o menino menor.

     — Possivelmente tenha algo aí fora. — respondeu um dos maiores em voz baixa.

     —Certamente é um esquilo — disse o outro encolhendo os ombros.

     A mulher correu pelo jardim para eles.

     —Daisy! —ordenou—. Pare esse ruído infernal! Deita!

     Para surpresa de Zac, a cadela deixou-se cair ao chão com as patas sobre a cabeça.

     Os meninos se atiraram ao chão a seu lado.

     —Muito bem, Daisy.

     —Eu disse para que entrem —disse a mulher. Estava mais perto e Zac podia vê-la com mais claridade. Era uma mulher velha, alta e roliça, de voz dura e maneiras nervosas—. Eu me ocuparei de Daisy.

     Os meninos protestaram, mas a mulher se manteve firme e ao fim os três moços se dirigiram para casa. A mulher se inclinou e acariciou a cabeça de Daisy.

     —O que acontece, moça? O que vê?

     A cadela seguia gemendo. A mulher se endireitou e olhou a escuridão. Por um momento, Zac teve a impressão de que o olhava, mas logo o olhar dela se afastou.

     —Há alguém aí? —perguntou—. Você viu? —acrescentou com mais suavidade.

     Quando tudo permaneceu em silêncio, voltou-se para a casa.

     —Vamos, Daisy.

     O animal vacilou e ela levantou a voz com dureza.

     —Vamos, Daisy! Schnell!

    

     As cortinas flutuavam como fantasmas na brisa quando Camille se sentou no chão e cruzou os braços no batente da janela. Olhou o lago com um estremecimento. Ainda não tinha se acostumado a quão depressa caía à escuridão no campo, ao silêncio tão profundo que havia ali. Custava acreditar que a meio mundo de distância houvesse uma guerra.

     Mas ali, nas colinas do Tennessee, só se ouvia o rumor das folhas das árvores e, mais longe, a chamada de uma ave noturna.

     O grito denotava uma solidão insuportável e Camille sentiu o coração oprimido pela pena. Seria muito mais fácil dormir… e não despertar nunca.

     Adam estaria esperando por ela no outro lado?

     A tentação de averiguá-lo era quase irresistível, mas a morte era um luxo que não podia se permitir. Ainda havia muito que fazer. Estavam em jogo muitas coisas.

     Mas a dor… quanto tempo mais poderia suportá-la? Sabia que não desapareceria nunca, por muitos meses, anos ou décadas que passassem. Sempre choraria por seu filho. Dez anos depois desejaria ainda seu sorriso. Vinte anos depois, choraria ainda em seu aniversário. O tempo não faria desaparecer isso. O tempo não acalmaria seu sofrimento.

     Só uma coisa podia obter isso.

     Tocou o medalhão que levava na garganta. Em noites assim, quando a dor era insuportável, Camille pensava em vingança.

     No fundo sabia que não tinha direito de culpar Zac pela morte de Adam. Ele era uma vítima da ambição maníaca de Von Meter igual a dúzias, ou possivelmente centenas, de outros que tinham passado pelos bunkeres subterrâneos do Montauk.

     Os «super soldados» de Von Meter tinham sido torturados, lavado seu cérebro e tinham manipulado suas vidas e suas mentes até que ficava muito pouco da pessoa que tinham sido em outro tempo. Logo os tinham soltado para que se convertessem em vagabundos e mercenários ou algo pior, homens que alugavam suas habilidades por dinheiro, poder e em ocasiões por um prazer escuro e retorcido.

     O doutor Nicholas Kessler, destroçado por aquela metamorfose da tecnologia da que tinha sido pioneiro, propôs procurar a esses homens e tentar desfazer o dano causado a suas mentes e a suas vidas.

     Alguns deles podiam se salvar; outros não. Zac Riley era um dos fracassos de seu avô.

     Embora tivesse havido um tempo em que Camille tinha pensado que ela sim poderia salvá-lo. A ingenuidade da juventude, provavelmente. Ou possivelmente a cegueira do amor.

     Quando começou a trabalhar na organização de seu avô, este a advertiu que seria desastroso misturar-se nos casos a nível pessoal. Nunca poderiam estar seguros de seu êxito porque alguns dos «detonantes», a semelhança de sugestões pós hipnóticas, estavam tão profundamente implantados no subconsciente da vítima que permaneciam ocultos inclusive depois de uma psicoterapia intensiva.

     Apesar das advertências de seu avô, Camille tinha estado decidida a salvar Zac… de Von Meter e de si mesmo. E por um tempo o tinha conseguido. Ou isso ela pensava.

     Até que uma manhã despertou e descobriu que tinha partido. Fora-se durante a noite, sem uma palavra e sem uma nota, porque evidentemente o puxão subconsciente que o empurrava era um estímulo muito mais poderoso que seus sentimentos por ela.

     Isso fazia cinco anos. Camille não havia tornado a vê-lo até que o tinha encontrado meio morto na mina e sabia que sua presença ali só podia significar uma coisa. Seguia estando sob o controle de Von Meter e ela seria muito parva se confiasse nele.

    

     Zac tinha estado inconsciente quando Camille e os meninos o tinham tirado da mina, mas o terreno não era desconhecido para ele. Antes de entrar no túnel do tempo, Von Meter e ele tinham viajado ao Tennessee e percorrido a zona, ou melhor, dizendo, ele tinha explorado enquanto o velho permanecia em seu hotel em Knoxville… até que dominou o terreno de cor.

     Para surpresa dela, o lugar logo que tinha trocado. O caminho que levava ao lago estaria asfaltado trinta anos depois e no boom dos anos oitenta se construiriam uma urbanização ao lado da água, mas, em sua maior parte, seguia sendo uma zona rural e o atalho que levava até o topo da colina se encheriam ainda mais de mato até que desaparecesse todo rastro dos tempos em que se extraía carvão.

     Zac tinha passado horas estudando a zona, a forma dos precipícios, o contorno do lago… de modo que, sessenta anos atrás no tempo podia ainda conhecer seu paradeiro.

     Tinha sido um tempo bem empregado, já que agora o permitiu localizar o atalho na escuridão e, uns minutos depois, a mina. Acendeu a lanterna que tinha conseguido na zona de enfermeiras e iluminou um pouco o que o rodeava até que soube onde estava.

     Seguiu os trilhos de trem que voltavam para a colina até chegar a uma bifurcação. Continuou pela direita, passou a primeira abertura e avançou mais pelo interior da colina até que ao fim chegou a um segundo túnel. Essa vez tomou o da esquerda e o corredor tornou-se tão estreito que roçava as paredes com os ombros ao avançar.

     Ali, no profundo da terra, seus sentidos se aguçavam. A distância ouviu uma gota de água que caía e o ruído ocasional de sobrecarrega ao se chocar contra o chão. Zac não acreditava que se veria apanhado em um deslizamento, mas era muito consciente do perigo de todos os modos.

   Seguia sem recordar o que tinha acontecido ao sair do túnel do tempo, mas tinha a forte suspeita de que o tinham atacado na mina e deixado para morrer. Não conhecia a identidade de seu atacante nem sabia por que queria matá-lo. Se o atacante sabia quem era, isso só podia significar duas coisas. Ou alguém o tinha seguido no túnel do tempo… ou alguém o estava esperando ali. E qualquer dos dois cenários apresentava um grande problema. A presença de alguém do futuro era algo com o que não tinham contado nem Von Meter nem ele.

     Zac agachou a cabeça e entrou em um túnel pequeno cheio de lixo. Ajoelhou-se, deixou a lanterna no chão a seu lado e começou a escavar com cuidado em um montão de pedras até que descobriu uma bolsa de tecido impermeável. Abriu-a com rapidez, iluminou o interior com a lanterna e pinçou em seu conteúdo… Um quarto de milhão de dólares em dinheiro, cupons de racionamento, documentos falsos que ajudariam a evitar a burocracia governamental e, quase no fundo, uma pistola semi-automática Águia do Deserto do calibre 44 provida de silenciador. Tudo estava ali, inclusive o medalhão de ouro.

     Tomou a pistola, comprovou o carregador e a devolveu à bolsa. Até que não dessem alta no hospital, a pistola e o dinheiro estavam mais seguros ali que com ele. Voltou a enterrar a bolsa, assegurou-se de que tudo parecia estar em seu lugar e refez o caminho pelo interior da mina.

     Quando se aproximava da entrada, ouviu vozes no exterior. Apagou rapidamente a lanterna e se agachou no túnel justo no momento em que alguém entrava na mina. A luz de uma lanterna alagou a caverna principal, mas Zac não podia ver nada de sua posição.

     Calibrou rapidamente suas opções. Se tentasse retroceder pelo túnel sem acender a lanterna, corria o risco de fazer ruído e isso trairia sua presença. Se ficasse onde estava, certamente seria descoberto se os recém chegados decidiam explorar um pouco.

     Pregou-se à parede e esperou. As vozes se afastavam, mas a luz seguia ali. Zac assumiu que voltariam e, quando apareceu ao túnel principal, apareceu uma sombra na entrada. Só pôde jogar uma olhada breve antes de pegar-se de novo à parede. Havia duas pessoas, um homem e uma mulher. Falavam em voz baixa, por isso entendia muito pouco da conversação, mas ouvia os passos que entravam e saíam da mina e o golpe ocasional do que pareciam caixas ao amontoar uma em cima de outra.

     Ao fim houve uma diminuída na atividade e o homem disse com alívio:

     —Já está. Esta é a última.

     A voz da mulher soava apagada, como se estivesse fora da mina, e Zac não pôde captar sua resposta.

     —Não se preocupe, voltarei mais tarde e o transladarei tudo a um dos túneis — disse o homem—. Temos que retornar antes que sintam falta de nós.

     A mulher disse algo e o homem soltou um risinho.

     —Sim, é uma pena que não acabasse com ele quando teve ocasião. Mas partirá logo. Até então, faz tudo o que possa para que esses condenados meninos não venham por aqui.

     As vozes se afastaram junto com a luz da lanterna e um momento depois Zac saía de seu esconderijo. Acendeu a lanterna e iluminou a parede oposta, onde se amontoavam as caixas. Aproximou-se para examiná-las, mas as tampas estavam pregadas e, sem um martelo ou uma gazua, não podia ver o que continham sem danificar as caixas. Decidiu que a próxima vez iria melhor preparado.

     Recordou a advertência de Von Meter.

     —… deve ir com muito cuidado. Vai voltar para uma época muito perigosa. Alguns quererão te colocar em suas intrigas, mas você não deve se misturar. Haverá tentações, mas deve resistir a qualquer preço. Até a menor interferência pode ser desastrosa. Sua missão é singela. Tem que impedir que o doutor Kessler altere os geradores para que, quando se materializar o navio, possam-se apagar todos. O túnel do tempo desaparecerá, mas todo o resto tem que permanecer igual. Entendido?

     E Zac sim o entendia. O que houvesse naquelas caixas não era assunto dele.

   Saiu da mina, respirou fundo o ar fresco e começou a retroceder o caminho. Quando saiu de entre as árvores, a luz da lua brilhava na superfície do lago e se deteve um momento a analisar onde estava.

     Então a viu.

     Estava de pé ao lado da água e seu rosto se via pálido à luz da lua. Levava um vestido de tecido leve, que se movia na brisa e, enquanto Zac a observava, levou-se uma mão ao rosto, como se secasse umas lágrimas.

     Estava chorando? Que fazia uma mulher como ela chorando sozinha à luz da lua? Chorava por alguém ao que tinha perdido na guerra? Um amante? Um marido?

     Não queria pensar muito naquilo, mas não sabia por que. Não a conhecia. Camille Somersby era uma desconhecida para ele e, entretanto, havia sentido uma conexão do primeiro momento em que a viu. Um vínculo estranho que não compreendia.

     Era possível que ela fosse a mulher de seus sonhos?

   Não via como podia ser assim. Ele era de outra época, de outro lugar. Como poderiam haver se conhecido?

     —É você? —sussurrou na escuridão; e embora sabia que ela não podia ter ouvido, viu que se voltava, como se intuísse sua presença.

     Meteu-se mais nas sombras, já que não desejava falar com ela. A atração que sentia por ela era perigosa e sabia que o mais inteligente seria manter as distâncias.

     Mas ela estava ali, chorando à luz da lua…

     —Está te esperando. Tem que ir com ela.

     A voz soou com tal claridade na mente de Zac que se voltou quase esperando ver o menino a seu lado. Mas não havia ninguém. Na escuridão só se movia uma brisa suave, que agitava as folhas por cima de sua cabeça.

     Quando se virou de novo, a mulher também tinha desaparecido.

 

Betty, a enfermeira loira, mal podia conter sua excitação quando entrou no andar na manhã seguinte. Dirigiu-se diretamente à cama do Zac.

     —Há um agente do FBI fazendo perguntas sobre você. — disse com ar conspirador enquanto afofava seu travesseiro—. Chama-se Talbott. Agora está com o doutor Cullen.

     Zac tentou manter a voz tranqüila.

     —O que você acha que quer?

   —Certamente é uma visita de rotina — assegurou Betty; mas mordeu o lábio com consternação—. O Governo está muito suscetível com a segurança nesta zona. Sempre estão investigando e fazendo perguntas. É exaustivo ter ao tio Sam olhando constantemente por cima do ombro, mas suponho que têm que fazê-lo – interrompeu-se —. Ali chegaram — sussurrou.

     Zac seguiu seu olhar. O doutor Cullen e outro homem acabavam de entrar no andar e, ao igual à Betty, dirigiam-se diretamente para sua cama.

     —Como se encontra esta manhã, senhor Riley? —perguntou o doutor.

     A fadiga escurecia seus olhos azuis e olhou à enfermeira com ar desaprovador, mas Zac teve a impressão de que a irritação do médico não se devia à presença de Betty, a não ser ao homem que o acompanhava.

     —Este é o agente especial Talbott, do FBI. Quer lhe fazer umas perguntas, se não se importar.

     Zac se encolheu de ombros.

     —Claro que não. No que posso ajudá-lo?

     O agente era alto e forte, de ombros largos e levava um traje negro que ficava estreito. Seu cabelo moreno e penteado para trás realçava a palidez de sua pele e o remendo que levava no olho direito. Estudou um momento Zac e se dirigiu ao médico.

     —Se a enfermeira e você nos desculpam, eu gostaria de falar com o senhor Riley em particular.

     O doutor franziu o cenho.

     —É obvio.

     Fez gestos a Betty de que o seguisse e deu um tapinha em Zac e obedeceu.

     Talbott olhou ao seu redor para determinar se o resto dos pacientes podiam ouvi-lo. O que viu não o satisfez, já que se colou à cama de Zac, embora não disse nada por um momento.

     Seu silêncio não enganou a Zac. Estava jogando com ele; pretendia intimidá-lo. E em outras circunstâncias, sem dúvida seu estratagema teria dado resultado. Só seu tamanho já era imponente, e o modo em que seu olho de ciclope posava nele resultava desconcertante.

     Zac devolveu o olhar até que Talbott apartou a vista. Caminhou até o final da cama e voltou atrás.

     —O doutor diz que você tem feito muitos progressos e sairá logo do hospital.

     Zac encolheu de ombros.

   —Suponho que sim. Mas me surpreende um pouco que minha recuperação interesse ao FBI.

     O olho frio azul posou de novo nele.

     —Não se confunda senhor Riley. Tanto o Departamento de Justiça como o de Defesa se interessam muito por seus movimentos.

     — Por quê?

     —A zona está enchendo se de desconhecidos. Muitos vêm por razões legítimas, mas há outros que não se propõem a nada bom — o olhou nos olhos—. Pode ser que os campos de batalha estejam em ultramar, mas o inimigo está aqui, dentro de nossas fronteiras. E neste momento está planejando nosso fim.

     —E o que isso tem a ver comigo? —perguntou Zac.

     —Pode que você tenha os documentos de identidade apropriados, senhor Riley, mas tenho a impressão de que oculta algo — Talbott enrugou a fronte—. De que oculta muito.

     —Não tenho nada que ocultar — repôs.

     —Espero para seu bem que seja verdade. Porque o FBI tem um lema: «sempre apanhamos a nosso homem» — o agente olhou a seu redor e se inclinou sobre ele—. O estarei vigiando — sussurrou—. Pode estar certo.

    

     Quando chegavam ao Oak Ridge, todos os empregados, tanto civis como militares, recebiam um folheto com instruções detalhadas sobre o código de conduta apropriado enquanto estivessem atrás da grade. O lema do Governo era «O que veja aqui e o que ouça aqui não deve sair daqui». E para recordar esse lema, penduravam-se pôsteres por todo o complexo avisando aos empregados e aos residentes de que estivessem atentos à presença de agentes inimigos.

     Mas apesar de todas as precauções tomadas pelo Governo, as violações da segurança eram inevitáveis. Em um dia normal até vinte mil pessoas cruzavam a grade para entrar ou sair da reserva. Não era difícil imaginar que um espião, ou inclusive um sabotador, pudesse deslizar-se entre as pessoas.

     Embora sempre consciente desse perigo, Camille procurava não deixar-se apanhar pela paranóia da espionagem. Não tinha retrocedido sessenta anos no tempo para procurar espiões nem interferir no desenvolvimento da guerra. Tinha ido ali só por uma razão: salvar a seu avô, o doutor Kessler, do plano macabro de Von Meter, fosse este o que fosse.

     Ao pensar em seu avô, não podia evitar um sorriso. A primeira vez que o tinha visto no Oak Ridge tinha sido um momento surrealista. O homem ao que tinha deixado atrás na Califórnia tinha mais de noventa anos e sua mente se debilitava por dias. O doutor Kessler de 1943 era só uns anos mais velho que ela, certamente não passava dos trinta e cinco. Era um homem de ombros largos, aspecto estudioso, cabelo moreno e olhos que irradiavam calidez e amabilidade. A Camille oprimia o coração saber que o avô que ela conhecia o Nicholas Kessler do futuro, não ficaria muito tempo neste mundo.

     Não gostava da idéia de perdê-lo também. Seu pai tinha morrido nos últimos dias da Guerra do Vietnam e sua mãe dez anos depois. Até que Zac chegou a sua vida, seu avô tinha sido sua única família. Depois chegou Adam. E agora se foram os dois. Adam estava morto e Zac… Zac vivia ainda, mas ela o tinha perdido igualmente.

     Obrigou-se a sair de seu sonho doloroso e a concentrar-se em seu trabalho. Era uma das dúzias de mulheres jovens empregadas nos escritórios administrativos da reserva cujos deveres consistiam em arquivar os milhares de documentos secretos associados com o projeto Manhattan.

     Desde sua mesa podia ver literalmente como se fazia a história. Os homens que passavam pelos escritórios, os laboratórios e os pisos levavam placas de distintas cores que indicavam seu nível de segurança e com nomes que algum dia seria famosos em círculos científicos: Ernest O. Lawrence, J. Robert Oppenheimer e Arthur Holly Compton.

     —Parece que esteja a um milhão de quilômetros daqui.

     Camille levantou a vista com um sorriso. Uma jovem estendia uma xícara de café.

     —Parece-me que necessita.

     Camille pegou a xícara.

     —Obrigada.

   Alice Nichols se sentou na quina da mesa de Camille e tomou um gole de sua xícara. Loira e de olhos azuis, era uns anos mais jovem que Camille, certamente não chegava aos vinte e cinco, e tinha uma personalidade amável e um sorriso contagioso. Tinha contado a Camille que tinha levado uma vida muito protegida até que estourou a guerra. Então, apesar dos protestos de seu pai, deixou de estudar para unir-se ao Corpo de Mulheres, com a esperança de que a enviassem a ultramar; mas tinha acabado enterrada em papéis no Oak Ridge.

     Olhou a seu redor e se inclinou sobre Camille.

     —Prestou atenção na quantidade de gente importante que entra e sai hoje daqui? Está acontecendo algo.

     Camille encolheu os ombros.

     —Não notei nada fora do normal. O que acontece?

     Alice olhou de novo a seu redor e baixou a voz até convertê-la em um sussurro.

     —Acredito que Kessler tornou a fazer das suas.

     Camille procurou manter um tom de voz neutra.

     —Sério? O que tem feito?

     A outra vacilou.

     —Não deveria dizer nada.

     Mas, é obvio, morria de vontades de fazê-lo. Tinha deixado cair em uma ocasião que tinha um amigo que trabalhava no laboratório do doutor Kessler e que, apesar das normas que o proibiam, fazia freqüentes visitas ao dormitório de mulheres da reserva onde vivia Alice.

     Aquilo não era nada estranho. De fato, o número de gravidezes fora do matrimônio dentro da reserva era uma das preocupações do Governo.

     —Algo vai acontecer no dia quinze — sussurrou Alice—. E Kessler está tentando impedi-lo. É tudo altamente secreto. Meu amigo tinha medo de falar comigo. Diz que tem a ver com um navio da Marinha e que, se tudo for bem, a guerra poderia acabar em questão de semanas ou inclusive de dias.

     O Experimento Filadélfia. Camille sentiu acelerar o coração. Faltava menos de uma semana para o dia quinze. Fosse o que fosse o que se propunha Zac, teria que agir antes e ela teria que estar preparada para detê-lo.

     —O que acontece? —perguntou Alice, assustada—. Está pálida.

     Camille tentou sorrir.

     —Nada. Temos que voltar para trabalho.

     —OH… tudo bem. —Alice se levantou e voltou para sua mesa. Mas quando se sentou Camille levantou a vista e viu que a olhava com curiosidade. Suspeitava algo? Sua documentação estava em ordem e sua cobertura era muito boa, mas fazia dias que tinha a impressão de que alguém a vigiava.

     Esse alguém seria Alice Nichols?

    

     Quando Zac abriu os olhos, Camille estava ao lado de sua cama. Por um momento pensou que seguia sonhando, mas logo ela sorriu e o desejo que invadiu o corpo dele foi muito real.

   Era ainda mais bonita do que recordava.

   Usava o cabelo recolhido para trás do rosto, ao estilo da época, e muito pouco carmim. Zac recordou ter lido em alguma parte que o carmim tinha ficado fora da lista de restrições na fabricação de artigos de luxo em tempo de guerra porque o Governo tinha decidido que os cosméticos eram importantes para manter a moral. Olhou os lábios cheios de Camille e aplaudiu em silêncio a decisão do Governo.

     —Como está hoje? —perguntou ela com uma voz que parecia sair diretamente de seus sonhos. Era uma voz doce e feminina, mas com um tom decidido que fez que ele pensasse de novo em seus motivos. Quem era e por que se interessava por ele?

     Queria sentir-se adulado por seus cuidados, mas, a diferença das enfermeiras, que pareciam famintas de cuidados masculinos, Camille dava a impressão de ser uma mulher com uma missão.

     Não sabia qual era essa missão nem o que tinha que ver com ele, mas pensava averiguá-lo.

     —Receberei alta hoje — informou.

   —Sim, sei. Falei com o doutor Cullen. Por isso estou aqui… para repetir minha oferta.

     —Da casa?

     —Sim. Mudou de idéia?

     Ele observou seu rosto.

     —Não. Suponho que continuo me perguntando por que uma pessoa como você faz uma oferta assim a um desconhecido. Não sabe nada de mim, de minha personalidade... Poderia ser um criminoso, um assassino.

Seus olhos brilharam

     —Não tenho medo de você, senhor Riley.

     —Isso já se vê — ele fez uma pausa—. Possivelmente eu tenha de você.

     Ela pareceu surpreendida.

     —A que se refere?

     —Há algo em você… — ele se interrompeu e moveu a cabeça—. Sempre que a vejo, tenho a impressão de que nos conhecemos antes. Mas não consigo saber do que.

     Ela vacilou. Encolheu-se de ombros.

     —Possivelmente seu subconsciente detectou minha presença na mina e é isso o que recorda.

     —Possivelmente — repôs Zac duvidoso—. Seja como for, não estou em condições de rechaçar sua oferta. Nestas circunstâncias, seria um parvo se o fizesse.

     Zac a olhou brigar com as marchas antes de sair ao meio-fio e concluiu que não estava acostumada ao Studebaker. Talvez não fizesse muito que o tinha.

     Supôs que isso não seria estranho para a época. Muitas mulheres pensavam ainda que conduzir era uma atividade masculina, embora a guerra estivesse mudando rapidamente as idéias antigas. Muitas tinham começado a trabalhar desde que tinha começado e sua contribuição dentro e fora do país era uma parte fundamental do esforço de guerra.

     Camille Somersby parecia pertencer à nova raça de mulheres independentes. Usava um traje alfaiate azul marinho muito prático e sapatos cômodos, mas suas pernas estavam nuas, já que as meias, como tantas outras coisas, eram difíceis de encontrar durante a guerra.

     Levantou a vista e viu que ela o observava. Tinha surpreendido- lhe olhando suas pernas, mas em lugar de ofender-se, sorriu e voltou a vista à estrada.

     Uma nova raça de mulheres, sim.

     Uns minutos depois, saía do caminho de cascalho que levava ao lago. Ao aproximar-se da água, passaram uma casa grafite de branco com três meninos jogando no jardim. Eram os mesmos que Zac tinha visto na noite anterior. Quando viram o carro de Camille, correram à rua saudando com a mão e gritando seu nome.

     Ela parou o carro e baixou o vidro do carro.

     —Davy, Donny, Billy, quero lhes apresentar ao senhor Riley. É o homem que me ajudaram a resgatar da mina o outro dia.

     Os meninos o olharam com atenção. Zac decidiu que os dois maiores teriam uns doze anos e pareciam gêmeos. Billy, o mais jovem, era um ruivo sardento que certamente não teria mais de seis anos.

     —Né, senhor, pode-se saber que fazia na mina? —perguntou Davy.

     —Isso não importa a você — informou seu irmão Donny.

     —Sim me importa. Nós salvamos sua vida, não?

   —Sim — assentiu Billy—. Nós salvamos sua vida — sorriu para Zac, orgulhoso de si mesmo.

     —Você nem sequer estava ali — protestou Davy.

     —Sim estava — se defendeu Billy—. Eu fui chamar à senhorita Camille como você me disse.

     —Eu só queria me livrar de você para que não estivesse no meio — informou Davy. Olhou para Zac—. A senhorita Camille e eu o tiramos dessa mina. Se não fosse por nós, estaria morto.

     —Parece-me que estou em dívida com vós. —respondeu Zac.

     —Comigo também? —perguntou em seguida Billy.

   —É obvio que sim — Camille estendeu o braço e revolveu seu cabelo—. Seu trabalho essa noite foi muito importante. Fez o que lhe disseram. Estou muito orgulhosa de ti. Estou orgulhosa dos três — acrescentou—. Mas não quero que voltem a se aproximar dessa mina. Ouvem-me? Esse lugar é perigoso.

     «E enquanto isso, você faz todo o possível por impedir que esses condenados meninos venham por aqui.»

     Zac observou o perfil da Camille com o cenho franzido. Era possível que tivesse estado na noite anterior na mina? Pensou no que tinha visto e ouvido. O homem tinha falado mais, mas Zac estava seguro de que seu acompanhante era uma mulher que falava com suavidade e por isso não podia ouvir suas respostas. Camille tinha uma voz suave.

     E quando ele saiu do bosque, ela estava ao lado do lago. Tinha Tinham chegado só uns minutos antes que ele?

     Isso explicaria por que parecia tão impaciente por lhe dar acolhida. Temia que pudesse descobrir suas atividades ilegais, era razoável que quisesse vigiá-lo de perto.

     Olhou-a uma vez mais. Era muito bonita, misteriosa e, se se deixava levar por seus instintos, perigosa. Ocorreu-lhe que Camille Somersby bem podia ser o Arbusto Hari do Oak Ridge.

     —Prometam-me que não voltarão a subir ali? —perguntou Camille aos meninos.

     —Sim, senhora — assentiu Billy.

     —Sim, senhora — repetiu Donny.

     Davy não disse nada. Zac o olhou nos olhos. O olhar do menino era desafiante.

     Zac franziu o cenho. Entre o menino e Camille, ia estar muito ocupado.

     —É aqui.

   Camille levantou a cortina e mostrou um alpendre pequeno convertido em moradia, com janelas no lado que dava ao lago e no em outro, que dava ao bosque que subia pela colina. O chão de madeira rangeu perigosamente quando Zac entrou na estadia e olhou ao seu redor. Havia poucos móveis… uma cama estreita e uma cômoda. Mas a vista das janelas compensava de sobra a falta de luxos.

     —Está muito bom — disse—. Seguro que estarei muito cômodo aqui.

     —Pode ser que não diga isso amanhã. — advertiu Camille - Isto é um forno quando sai o sol.

     —Arrumarei isso.

     Zac deixou seus poucos pertences na cama e se aproximou da janela para olhar o lago. Antes de sair do hospital, Betty tinha entregado um pacote de emergência que incluía várias mudas de roupa que tinha emprestado seu primo e sabão e artigos de barbear que tinha comprado com seus próprios cupons.

    Zac tinha intenção de pagar por tudo, mas tinha que ir com cuidado. Não queria levantar suspeitas mostrando-se muito generoso com seus cupons de racionamento falsificados nem queria alimentar a esperança de Betty de que entre eles pudesse haver algo mais que uma amizade. Era uma garota amável, atraente e inteligente, mas ele não tinha ido ali procurar noiva.

     Olhou a Camille, quem lhe sorriu.

     «Haverá tentações, mas tem que resistir a toda custo».

     Voltou-se rapidamente para olhar o lago.

   —Suponho que devo fazer algo para jantar — disse ela a suas costas—. Tem fome?

     —Sim. O que posso fazer para ajudá-la?

—Nada. Sente-se e descanse um momento. Chamarei quando estiver preparada.

     Zac a olhou.

     —Mas tenho que ganhar a manutenção, recorda?

     —OH, ganhará — prometeu ela—. Ganhará.

     Camille se alegrava de que Zac não estivesse ali para vê-la lutar com o jantar. Ainda não se tinha acostumado ao forno, que era de gás e teria que acendê-lo com um fósforo, nem à falta de eletrodomésticos modernos como batedeiras e esse tipo de coisas. Sim havia uma geladeira antiquada de bordas arredondada e a cozinha era bastante bonita, com patas curvadas e porcelana grafite feita à mão.

     Como todos outros, Camille consumia muita comida enlatada, inclusive a carne, mas essa noite tinha comprado um frango que pensava assar e servir com batatas novas e bolachas caseiras.

     Tirou a jaqueta, arregaçou as mangas, tirou os sapatos e ficou a trabalhar. Enquanto o frango e as batatas assavam, mediu farinha, levedura, leite e sal e amassou a mistura até que adquiriu a consistência que procurava. Estendeu-a e cortou as bolachas com a borda de um frasco de fruta. Lubrificou de gordura a bandeja e a colocou no forno com as bolachas.

     O termostato do forno não parecia funcionar, por isso tinha que permanecer perto para assegurar-se de que não queimava nada. Quando a comida esteve terminada, ela estava coberta de farinha e sufocada pelo calor. Colocou as bolachas em uma cesta e o frango e as batatas em uma bandeja, deixou tudo em cima da cozinha para que se conservasse quente e foi lavar se.

     Prendeu o cabelo e jogou água fria na cara e no pescoço, depois tirou a saia e a blusa e vestiu um vestido leve de algodão.

     Ao voltar do banho à cozinha, olhou em direção ao alpendre. Não tinha ouvido nada de Zac desde que o tinha deixado ali. Não gostava de despertá-lo, mas a comida se esfriaria se não o fazia.

     Depois de um instante de vacilação, colou o ouvido à cortina e escutou.

     —Zac? —chamou com suavidade—. O jantar está preparado.

     Ao não obter resposta, apartou a cortina e apareceu. Estava deitado na cama, aparentemente dormindo, mas tão imóvel que o coração de Camille parou por um momento. Até que viu que seu peito se elevava e caía e respirou aliviada.

     Cruzou a estadia até a cama e seu tocou o ombro com gentileza.

     —Zac? Está bem?

     Ele abriu os olhos e antes que ela soubesse o que ocorria, agarrou-a pelos braços e a baixou em cima dele. Depois mudou a posição até ficar deitado em cima, com o joelho no abdômen dela e a mão em torno de sua garganta.

    

     Soltou-a quase imediatamente e Camille se apartou e se levantou segurando a garganta.

     —O que acha que está fazendo?

     Ele se levantou; parecia horrorizado.

     —Perdoe. Não queria fazer mal. Foi um reflexo.

     —Um reflexo?

     —Estava dormindo — passou uma mão pelo cabelo—. Assustou-me. Não era minha intenção fazer mal. — repetiu.

     Parecia tão contrito e confuso que o aborrecimento de Camille desapareceu. Tinha visto reações similares no passado e tinha aprendido a não aproximar-se o por trás nem despertá-lo com brutalidade. Seus reflexos eram quase sobre-humanos e, em outro tempo, ela quase tinha esquecido quão perigoso podia ser; mas agora o recordava.

     Era subitamente consciente de muitas coisas sobre Zac Riley. O passado estava entre eles. O fato de que não estivesse de camisa…

     Seus músculos reluziam na luz da tarde e Camille os olhou a seu pesar.

   Recordava bem suas carícias, o corpo dele sobre o seu. Nas noites longas e escuras que tinham passado juntos, tinha aproximado-a mais ao paraíso que nenhum outro homem e essas lembranças a tinham mantido acordada mais noites das que queria recordar.

     Levantou a vista e viu brilhar algo nos olhos de Zac. Um reconhecimento da atração que tinha sido tão intensa e letal como um raio do verão.

     Procurou sua camisa.

     —Perdoe-me — murmurou—. Antes fazia calor aqui.

     Camille desviou a vista.

     —Não tem por que desculpar-se; esta é sua casa. Pode fazer o que quiser. Dentro de uma ordem — sentiu-se obrigada a acrescentar.

     Ele sorriu.

     —Quer dizer nada de convidadas depois da meia-noite?

     Não achou graça. A imagem de Zac com outra mulher a tinha atormentado durante anos. Mas ele não sabia claro.

     — Vim dizer que o jantar está pronto. — comentou com rigidez.

   —Vou em seguida — ele ficou a camisa—. Dê-me um minuto para me lavar.

     —De acordo.

     Camille olhou de novo da cortina. Zac estava vestindo a camisa, mas parou com os olhos fixos nos dela. Por um momento a Camille pareceu que o tempo parava; logo o mundo voltou a girar de novo e correu a cortina apressadamente.

     Zac entrou na cozinha e encontrou a Camille batendo num bloco de gelo na pia.

   —Fiz limonada — disse ela—. Mas temo que esteja um pouco azeda, devido à escassez de açúcar. Embora pelo menos está fria. Caso, claro, que consiga partir gelo suficiente.

     — Deixe comigo.

     Zac se aproximou da pia e, para sua surpresa, lhe passou o punção de gelo sem protestar. Inclusive voltou a olhar a comida, coisa que requeria certo valor depois do acontecido no dormitório.

     Ou possivelmente sabia que não corria perigo com ele. Zac sentiu que retornavam as dúvidas, mas as separou de sua mente.

     Coisa nada difícil com o aspecto que oferecia ela essa tarde. O calor realçava sua beleza natural. Estava muito sexy com o cabelo preso e o vestido de algodão.

     Quando ela viu que a olhava, centrou rapidamente de novo a atenção na comida.

     — Pensei que podíamos comer no alpendre dianteiro. — ajeitou uma mecha de cabelo com o dorso da mão—. Estará um pouco mais fresco que aqui.

     —Está bem para mim— assentiu ele.

     Ajudou a levar tudo e, quando terminaram e estiveram sentados vendo o sol se pôr sobre o lago, ela pareceu mais relaxada.

     —Deve ser um dos lugares mais bonitos da terra — murmurou.

     —E pensar que muita gente nem sequer sabe que existe! — comentou ele.

     Ela o olhou.

     —E você? Tinha estado antes nesta zona do país… senhor Riley?

     —Antes me chamou de Zac.

     —Acreditava que estava dormido — acusou-o ela.

     —Sim, mas me pareceu ouvir meu nome justo antes de despertar. Em qualquer caso, por favor, me chame Zac. Parece-me lógico, já que vamos viver juntos.

     Ela franziu o cenho.

     —Alugo uma casa para você. Não é o mesmo que viver juntos. Pelo menos para minha reputação.

     —É obvio — assentiu ele—. Mas tem que admitir que vivemos em uma época estranha. Faz uma semana não nos conhecíamos e agora estamos aqui… — encolheu de ombros. Levantou o copo e o chocou com o dela—. Pela vitória — disse.

     Era sua imaginação ou ela vacilou antes de levantar o copo e devolver a saudação?

     —Pela vitória — murmurou.

     Comeram vários minutos em silêncio e depois ela disse:

     —Não respondeu a minha pergunta. Esteve antes aqui?

     —Uma vez, faz muito tempo.

     —Tem… laços aqui?

     Zac se perguntou aonde quereria parar.

     —Já o disse no hospital — repôs—. Vim aqui procurar trabalho.

     —Atrás da grade.

     —Sim.

     —Que classe de trabalho você faz? — olhou-o um instante nos olhos, mas desviou em seguida a vista, como se tivesse medo de delatar-se.

     — Trabalhei em muitas coisas, inclusive em construção, mas estou aberto a novas possibilidades. —ele tomou um gole de limonada—. Falava a sério quando disse que falaria com alguém para me ajudar?

     Camille vacilou.

     —Claro que já tem feito bastante — ele se apressou a dizer —. Dar-me um lugar onde viver era mais do que eu podia esperar.

     Algo brilhou nos olhos dela, e esse algo provocou um calafrio em Zac.

     —Não o tenho feito pela bondade de meu coração. Espero receber algo em troca.

     Mas como, precisamente, era o que preocupava a Zac.

     O que queria dele?

     Quando terminaram de esfregar os pratos e guardar as sobras, deram um passeio pela beira do lago. Entardecia brandamente sobre o campo e com o crepúsculo chegava uma brisa procedente da água e o coração da Camille se enchia de melancolia.

     Sentia falta de seu avô, embora estivesse a pouca distância. Sentia falta de Zac, embora caminhasse a seu lado. Sentia falta de Adam, embora sempre estivesse em seu coração.

     Essa noite parecia mais próximo que nunca, possivelmente porque podia vê-lo em Zac. No rosto de Zac podia ver o que poderia ter sido Adam maior.

     Voltou-se e piscou para ocultar as lágrimas.

     —O que acontece contigo? —perguntou Zac preocupado.

     Ela passou uma mão pelo rosto.

     —É… pessoal.

     — Perdeste a alguém na guerra? —ela não respondeu—. Não pretendo fofocar. É só que… parece muito triste.

     Camille tentou afastar a tristeza.

     —Vivemos uma época triste.

     —Era um amante? —havia uma urgência estranha na voz do Zac.

     Camille o olhou confusa.

     —O que?

     —A pessoa que perdeu. Era um amante? Seu marido?

     Ela negou com a cabeça.

     —Meu filho.

     Ouviu-o respirar com força.

     — Meu Deus! —disse—. Não tinha nem idéia. Sinto muito. Quanto tempo…?

     —Um ano — repôs ela—. E não quero falar disso.

     —Compreendo.

     Mas ela podia ouvir em sua voz as perguntas que ele calava. Como ocorreu? Quantos anos tinha? Como se chamava?

     Recordou o dia em que ele saiu do coma no hospital e perguntou por Adam.

     Perguntou-se não pela primeira vez como o tinha sabido. Como tinha podido saber?

     Adam tinha nascido depois de que Zac se fora. Ela não tinha tido contato com ele nem o tinha visto até o dia da mina. Como podia saber algo de seu filho… do filho de ambos?

     —E seu marido? —perguntou Zac.

     Ela não se incomodou em corrigi-lo.

     —Tampouco está já. —disse quase com raiva.

     Algo em sua voz devia ter lhe advertido que não seguisse por esse caminho. Zac olhou o lago e houve um silêncio profundo entre eles.

     Camille ouviu risadas à distância, seguidas de um chapinho.

     —Parece-me que os meninos estão nadando — murmurou Zac.

     —Espero que a senhora Fowler os esteja vigiando — disse Camille, preocupada.

     —Quem é a senhora Fowler?

     —É a governanta. O senhor Clutter a contratou para que cuide dos meninos enquanto ele trabalha, mas me parece que os deixa muito tempo sozinhos.

     —Acredito que isso é uma sorte para mim — disse Zac.

     Camille o olhou.

     —A que se refere?

     —Se fosse mais estrita com eles, eu podia ter morrido na mina.

     —Isso é certo — suspirou ela—. Mas me preocupam.

     Escutou a risada dos meninos. Encolheu o coração para ouvir que as risadas se convertiam em gritos. Tomou ao Zac do braço.

     —Algo acontece.

     Ele pôs-se a correr com ela colada em seus calcanhares. Quando se aproximavam da borda, Camille viu duas figuras distantes na água escura. Na borda do lago, Donny se esforçava por lançar o bote que usavam para pescar.

     —Donny, o que aconteceu? —gritou ela.

     Ele levantou a vista com expressão aterrorizada.

     —É Billy. Seguiu Davy até onde cobre e não sabe nadar.

     Zac tirou rapidamente a camisa e os sapatos e se lançou à água. Camille o seguia de perto, mas ele não demorou em se distanciar. Ela o viu aproximar-se aonde Davy tentava corajosamente manter a cabeça de seu irmão em cima da água. Camille sabia que se cansaria logo. Se Zac não chegasse a tempo, podia os dois afogar-se.

     A cabeça de Billy desapareceu debaixo da água e a seguir também a de Davy. Este reapareceu um momento depois, mas não havia nem rastro de Billy.

     —Agüenta — sussurrou Camille.

     Assim que o disse, viu que Zac chegava até Davy. Disse-lhe algo ao menino e se afundou. Uns segundos depois, Camille fazia o mesmo.

     Debaixo da superfície estava tão escuro que temeu não poderem encontrar ao menino, mas logo viu Zac a poucos metros de distância e já tinha Billy.

     Saíram os dois à superfície, lutando por respirar. Zac começou a nadar para a borda, puxando o menino, e Davy e Camille os seguiram. Quando chegaram à parte onde não cobria, Zac tomou Billy nos braços e o tirou da água. Colocou-o de costas e pôs o rosto de lado. Billy cuspiu um jorro de água.

     Zac se ajoelhou com uma perna a cada lado dos quadris do Billy e pôs as mãos, uma em cima de outra, na parte superior do abdômen do menino. Apertou com a palma várias vezes enquanto seguia saindo água da boca de Billy. Depois de uns segundos, o menino começou a tossir. Depois se pôs a chorar.

     Camille se ajoelhou e o abraçou.

     —Não aconteceu nada, ficará bem. —mas quanto mais tentava consolá-lo, mais gritava ele.

     Ouviu-se uma portada perto e pouco depois chegava à senhora Fowler correndo.

     —O que acontece? Ouvi gritos.

   —Billy quase se afogou — disse Camille com brutalidade—. Os meninos não deveriam nadar sozinhos. E menos na escuridão.

     —Mas só os deixei um momento — protestou a mulher—. E acreditava que Donny e Davy cuidariam dele.

   —Não é sua responsabilidade cuidar dele?—repôs Camille com tom acusador.

   —Tranqüila — murmurou Zac.

     Tinha razão. Quanto mais brusco era seu tom de voz, mais se alterava Billy.

   —Temos que levá-lo para dentro e vestir roupa seca antes que entre em choque — aconselhou Zac.

     Inclinou-se e tomou o menino nos braços. Billy, que estava tenso e quase histérico nos braços de Camille, relaxou-se nos de Zac. Abraçou-se ao seu pescoço e colocou a cabeça em seu peito.

     Camille deu um coice e seus olhos se encheram de lágrimas. Ver assim Zac, com Billy nos braços…

     Nunca o tinha visto assim com Adam. E pela primeira vez pôde esquecer sua amargura e dor o suficiente para reconhecer que isso não tinha sido culpa de Zac.

     Este levou a menino para casa e, a instâncias de Billy, ajudou-o a colocar o pijama e meter-se na cama.

     Donny e Davy andavam perto, olhando-o como a um herói, e a senhora Fowler retorcia as mãos na soleira da porta.

     —Há um telefone? —perguntou Zac por cima do ombro.

     —Sim. O Governo pôs uma linha nova quando construíram a reserva.

     —Chame à operadora e diga que chame com o hospital. Veja se consegue que um médico venha.

     —Agora parece estar bem — protestou a senhora Fowler.

     Zac se voltou.

   —Ou chama você ou chamo eu. O menino necessita que o veja um médico. Entendido?

     —Eu sei usar o telefone — disse Davy—. Chamarei o doutor Macy.

   —Alistou-se no exército — recordou Donny.

     — Diga-lhe a operadora localize ao doutor Collins - interveio Zac—. Diga-lhe que é uma urgência.

     Davy saiu ao telefone e a senhora Fowler seguiu na soleira da casa. Fora soou a porta de um carro seguida de passos. Daniel Clutter apareceu na soleira com olhos muito abertos pela preocupação. Ao ver Billy, correu até a cama.

   —Filho, está bem? O que aconteceu?

     Zac se apartou para dar lugar a ele.

     — Ficará bem, mas acredito que seria boa idéia que o visse um médico, só para estar seguros.

     —Sim, é obvio — Daniel se sentou na cama e pôs as mãos nos ombros de Billy—. O que aconteceu, filho?

     — Foi aonde não alcançava e quase se afoga — respondeu Donny—. Mas o senhor Riley o salvou. Tinha que vê-lo, papai. Nada como um peixe.

     —Mais rápido — disse Davy, que voltava a entrar na habitação—. E apertou o estômago do Billy e saiu água pela boca.

     Camille, que observava à senhora Fowler, viu que esta parecia muito surpreendida e olhava ao Zac com o cenho franzido.

     Este pôs uma mão no ombro do Davy.

     — Chamaste ao médico?

     — Disse que vem em seguida.

     —Bem — Zac olhou para Camille—. Acredito que deveríamos ir e deixar descansar o Billy. Teve uma noite ocupada.

     —Salvou-lhe a vida — disse Davy com solenidade.

     —Bom, é o justo, já que vós salvaram a minha.

     Daniel Clutter se levantou e lhe estendeu a mão.

   —Não sei como agradecer. —era um homem pouco atraente, de rosto anguloso e entradas no cabelo.

     —Não é necessário. Alegro-me de que o menino esteja bem.

     Uma expressão de culpabilidade cobriu o rosto de Daniel. Camille pensou que essa era a maldição de todos os pais sozinhos, que não podiam estar em dois lugares de uma vez.

     Quando saíram fora, Zac e ela recolheram seus sapatos e voltaram para a casa em silêncio.

     —Acredito que devemos pôr também roupa seca — murmurou ela—. Não vamos pegar um resfriado.

     —Nem sujar o chão.

     —O chão não me preocupa — ela respirou fundo—. Os meninos têm razão, Zac. Estiveste incrível. Se não fosse por ti…

     — Você o teria resgatado.

     —Mas eu não nado tão bem como você. Poderíamos nos ter afogado os três.

     —Então é uma sorte que eu estivesse perto — murmurou ele.

   Camille assentiu com a cabeça; as emoções da noite punham um nó em sua garganta.

     —Amanhã tenho que madrugar, assim que vou para cama.

     — Boa noite.

     — Boa noite.

     Ela entrou em seu dormitório e fechou a porta com chave. Como se assim pudesse manter longe a tentação.

     Despiu-se, secou-se com rapidez e vestiu uma camisola. Quando se sentou ante o espelho para escovar o cabelo, ouviu uma batida na porta.

     O coração bateu com força no peito. Vacilou um momento, mas se levantou e foi responder. Zac estava ao outro lado, ainda com a roupa molhada.

     Camille o olhou.

     —Sim?

   —Tenho que te perguntar algo — a olhava com intensidade, quase como a acusando.

     —Do que se trata?

     — Por que não me perguntaste como o tenho feito?

     Camille sabia a que se referia, mas fingiu que não era assim.

     —Não sei do que me fala.

   — Por que não me perguntou, Camille? —ouvir seu nome nos lábios dele fez que subisse um calafrio pela coluna—. Não sente curiosidade pelo procedimento que usei?

     —O único que me importa é que Billy continue vivo. Você o salvou — o olhou nos olhos e agora era ela a que soava acusadora—. Só gostaria que tivesse podido salvar meu filho.

    

Na manhã seguinte, um homem que Camille nunca tinha visto se aproximou de sua mesa no trabalho. Sabia que era alguém importante ou não teriam permitido entrar em uns escritórios que guardavam tantos documentos secretos.

     —Senhorita Somersby?

     —Sim.

     Camille olhou para ele e sentiu um calafrio. Era um dos homens de aspecto mais formidável que tinha visto. Alto, forte, de cabelo moreno penteado para trás e um tapa-olho que lhe dava aspecto de sátiro mais que de pirata.

     Olhou-a com frieza.

   —Sou o agente especial Talbott, do FBI — mostrou seus créditos—. Eu gostaria de falar com você.

     —É obvio — concordou ela a contra gosto.

   Talbott observou a sala, onde trabalhavam dúzias de secretárias e pessoal de arquivos. Camille fez o mesmo e seus olhos se encontraram com os de Alice Nichols, que a olhava interrogante. Camille moveu levemente a cabeça e olhou de novo a Talbott.

     —Há algum lugar onde possamos falar em particular?

     Era mais uma ordem que uma pergunta, assim que ela assentiu e se levantou. Precedeu ao Talbott pelo corredor, até uma sala pequena mobiliada com umas quantas mesas e cadeiras de madeira. Apontou a mesa mais afastada da porta e se sentaram os dois.

     — O que deseja? —perguntou com brutalidade.

     Os olhos azuis dele a observaram um momento.

     — Você tem um homem vivendo em sua casa. O senhor Zac Riley. Quero que me diga tudo o que saiba dele.

     Camille franziu o cenho.

     — Por quê? Fez algo errado?

   —Eu farei as perguntas, se não se importar. O que pode me dizer do senhor Riley? De onde é? Por que veio aqui?

     Camille encolheu os ombros.

     —Assumo que veio pela mesma razão que todos. Procurar trabalho.

     —Que fazia na mina?

     —Não sei. As enfermeiras do hospital acreditam que se meteu ali para refugiar-se dessa tormenta terrível que houve na semana passada.

     —O que diz ele?

     Ela se encolheu de ombros de novo.

     —Não parece recordar muitos detalhes de antes ou depois do acidente.

     —Que conveniente para ele! —murmurou Talbott—. Surpreende-me que pareça saber tão pouco sobre ele.

     —Por quê? É meu inquilino. Não somos amigos.

     —E, entretanto, convidou-o para sua casa. Minha mãe lhe diria que você brinca com fogo, senhorita Somersby.

     —Ele necessitava de um lugar onde viver e eu tinha uma vaga para alugar. É simples assim. Suponho que conhece o problema de moradia que há por aqui. Muita gente convidou desconhecidos para suas casas. Alguns inclusive diriam que é um ato de patriotismo.

     —É você uma patriota, senhorita Somersby?

     —É obvio.

     —E cumpriria com seu dever de patriota de procurar uma vitória aliada?

   Camille franziu o cenho. Aquele homem a punha cada vez mais nervosa, mas procurou que não se notasse.

     —Aonde quer chegar?

     Ele se inclinou para ela, que teve que reprimir o impulso de apartar-se.

     —E se lhe dissesse que sabemos que há um espião inimigo no Oak Ridge que vive e trabalha entre nós? Sabemos que esse agente recrutou ao menos a uma pessoa para sua causa e que juntos estão preparando algo grande neste momento.

     —E por que não o prendem? —perguntou ela.

   —Ainda não conhecemos sua identidade. Mas se não os encontrarmos logo, o dano para nossa causa poderia ser catastrófico.

     Camille moveu a cabeça.

     —Não compreendo. O que você acha que posso fazer? Não sou mais que uma arquivadora.

     —Com autorização para ver documentos muito secretos — ele recordou —.Peço que tenha os olhos e os ouvidos abertos. Que esteja alerta ante qualquer atividade suspeita no trabalho… ou em casa.

     Camille o olhou com frieza.

     —Quer que espie a Zac Riley? É isso o que me pede?

     —Você está em uma posição ideal para vigiá-lo. Se fizer ou disser algo que possa resultar duvidoso, quero que me relate em seguida. Mas devo lhe aconselhar muita cautela — a olhou nos olhos—. Tenho o pressentimento de que o senhor Riley é um homem muito perigoso.

    

     Alice Nichols e Camille comiam juntas habitualmente na cafeteria, mas uma remessa de documentos para arquivar tinha entretido Camille nesse dia e quando ao fim pôde sair Alice não estava à vista. Camille se perguntou se teria ido reunir-se furtivamente com seu amante.

     Caminhava pelas pranchas de madeira da calçada, tentando em vão proteger-se do barro, mas este penetrava entre as junturas de um modo tão insidioso que era impossível evitá-lo. As pessoas estavam tão acostumadas à lama, que comparava carinhosamente a reserva com os dias da febre do ouro no Klondike. E ao igual à na maioria dos assentamentos da fronteira, a população era jovem. Entretanto, havia uma diferença importante com aqueles: a presença constante dos militares.

     Enquanto caminhava, Camille pensava em sua conversa com Talbott e a informação de que havia um espião inimigo infiltrado no Oak Ridge e planejava algo grande.

     Perguntou-se se esse algo teria a ver com o trabalho de seu avô. O Experimento Filadélfia estava preparado para 15 de agosto. Era possível que os agentes inimigos se inteiraram do projeto e queriam sabotar o navio? Ou, pior ainda, roubar os documentos secretos que lhes permitiriam repetir o experimento?

     Uma parte dela desejava ardentemente destruir o experimento pessoalmente. Quantas vidas teriam podido salvar inclusive a de seu filho, se não se desenvolvera alguma vez a tecnologia que tinha levado ao Projeto Fênix? Se não se dera rédea solta à megalomania de Von Meter?

     Mas seu avô a tinha advertido contra uma intromissão desse tipo. Não tinha ido ali para mudar a história nem para brincar de Deus. Tinha ido assegurar-se de que Von Meter e seus soldados tampouco o faziam.

     Entrou na cafeteria, encheu uma bandeja e procurou uma mesa em um canto tranqüilo de onde podia ver a porta. Alice Nichols entrou uns minutos depois e, antes que Camille tivesse tempo de lhe fazer gestos, dirigiu-se ao outro lado da sala. Sentou-se em uma mesa ocupada por um homem que estava de costas a Camille, inclinou-se para ele e sorriu. Camille acreditou ver algo íntimo e sedutor naquele sorriso.

     Alice se voltou de novo para trás e, quando deixou sua bolsa na mesa, caiu um papel ao chão. Seu acompanhante e ela alargaram a mão ao mesmo tempo, mas o braço do homem era mais largo. Tomou o papel e, em lugar de devolver-lhe a Alice, o colocou ao bolso.

     Tudo ocorreu muito depressa, sem chamar a atenção. Camille olhou a seu redor. Estava certa de que ninguém tinha notado o intercâmbio e se perguntou o que devia fazer a respeito.

     Nada, é obvio. Não podia intrometer-se e, além disso, podia ser simplesmente uma carta de amor.

     Um momento depois, o homem se levantou e caminhou para a porta. Camille o observou e notou que o pêlo da nuca se arrepiava. Havia algo nele…

     Voltou-se da porta a olhar por cima do ombro e ela pôde ver claramente seu perfil. A pele pálida, o cabelo moreno, o tapa-olho…

     Talbott. Respirou fundo. Tinha-o reconhecido. Tinha-o visto antes. Não só aquela manhã no escritório, mas também em outra época e outro lugar…

     Uma visão foi a sua mente. Adam e ela jogando beisebol no parque. Um homem que os observava de pé na sombra. Logo saía à luz e, quando tirava os óculos de sol, havia algo estranho em seus olhos… algo que dava calafrios a Camille.

     E agora sentiu o mesmo frio enquanto observava ao agente especial Talbott sair pela porta.

     Quando Camille chegou essa tarde em casa, Zac jogava beisebol com Billy diante da porta. A jovem permaneceu um momento no carro observando-os. Era como ter uma imagem do que podia ter sido… E uma lembrança do que tinha perdido.

     Billy correu para ela assim que saiu do carro.

     —Sabe uma coisa? Zac está me ensinando a jogar beisebol.

     —Que maravilha! —conseguiu dizer Camille, a pesar do nó que tinha na garganta—. Mas é quase hora de jantar. Não acha que deve ir para casa?

     O menino olhou para Zac.

     —Só uns minutos mais. Por favor. Por favor.

     O nó na garganta da Camille se fez ainda maior. Zac revolveu o cabelo do menino.

     —A senhorita Camille tem razão. É hora de ir para casa — o menino começou a protestar—. Vamos, vá já. Jogaremos amanhã outra vez.

     —Promete?

     —Prometo. E você lembra o que me prometeste.

     —Se não me aproximar da mina, me ensinará a lançar bem?

     —Exato. E agora vá e procura não te colocar em confusões.

     Billy sorriu para ele e se afastou correndo.

     Zac olhou a Camille.

     —Aconteceu alguma coisa?

     Ela desviou a vista.

     —Não. Por que pergunta?

     —Parece alterada.

     — Foi um dia exaustivo.

     —É mais que isso. Vi seu rosto ao chegar. O que acontece, Camille?

   Algo na voz, no modo de pronunciar seu nome, fez que os olhos dela se enchessem de lágrimas.

     —É só que… meu filho adorava beisebol — se ouviu dizer—. O dia que morreu estávamos jogando no parque.

     — Meu Deus! —murmurou Zac.

     Ela se voltou e entrou na casa. Ele a seguiu um momento depois.

     —Sinto muito. Não tinha nem idéia.

     Ela se aproximou para olhar o lago pela janela.

     —Não podia tê-la.

     —O que houve? —perguntou ele com suavidade.

     —Correu na rua atrás da bola e um carro o atropelou.

     Fechou os olhos e sua mente se encheu de imagens. Os gritos, as sirenes, os batimentos do coração de seu coração. O saber que seu filho, ao que embalava nos braços, já estava morto…

     Voltou-se e pôs-se a andar para o dormitório.

     — Vou me trocar e fazer o jantar.

     —Não, não vá. Fale-me dele.

     Havia uma súplica estranha na voz do Zac.

     —Não… não posso falar dele. Nem contigo com ninguém — tentou afastar-se, mas Zac a segurou pelo braço.

     —Camille…

     Seu olhar era escuro, misterioso e… gentil. O que via em seus olhos não era lástima, era compreensão. Era confusão. Era tudo o que ela também sentia.

     Zac levantou uma mão e secou uma lágrima. Camille estremeceu ante o contato e as lembranças que evocava.

     Permaneceram assim um momento, olhando-se nos olhos, com a mão dele no rosto dela. E logo ele baixou a cabeça muito devagar.

     Camille se apartou.

     —Tenho que me trocar.

   Foi correndo a seu quarto, fechou a porta e se apoiou fracamente nela enquanto tentava acalmar seu coração galopante.

     Por um momento tinha estado segura de que Zac queria beijá-la.

     E por um momento, também tinha estado segura de que ela ia permitir.

     Um ruído estranho despertou a Camille. Permaneceu deitada na escuridão, tentando identificá-lo. Ao princípio pensou que era uma ave noturna na colina, mas depois se deu conta de que estava mais perto. Procedia do interior da casa.

     Levantou-se com o coração golpeando no peito e cruzou a estadia em silêncio. Abriu a porta e apareceu. Tudo parecia estar em seu lugar. Nada se movia na escuridão. Então ouviu de novo o ruído e se deu conta de que procedia do alpendre de trás. Zac estava em apuros.

     Camille não se incomodou em chamar. Levantou a cortina e conteve o fôlego.

     Zac estava nu em cima da cama. Tremia com tal violência que a cama se movia sob seu peso e lutava por respirar, como se lhe custasse trabalho levar ar a seus pulmões.

     Camille se aproximou da cama. Conhecia o perigo de despertá-lo com brutalidade, mas não podia permitir sofrer assim. Inclinou-se e tocou o ombro. Assim que o viu abrir os olhos, saltou para trás.

     Mas em lugar da reação violenta que esperava, ele permaneceu imóvel, procurando-a com os olhos na escuridão.

     —Camille?

     Ela cruzou as mãos com nervosismo.

     —Teve um pesadelo.

     —Faz… muito… frio — seus dentes batiam ao falar.

     Era certo que a temperatura estava mudando, assim Camille estendeu o edredom que tinha caído no chão. Zac se tampou com ele, tremendo ainda.

     —Onde estou? —perguntou ao fim.

     —Não se lembra?

     Zac olhou um instante a seu redor e se deixou cair de novo sobre o travesseiro.

     —Oak Ridge… 1943—sussurrou.

     —Exato.

     Ele lambeu os lábios.

     —Tenho sede. Acha que… pode me trazer um copo de água?

     —É obvio.

     Camille se sentia aliviada de ter algo que fazer. Foi procurar a água e, quando voltou, Zac tinha posto a calça e estava sentada na beira da cama com o rosto entre as mãos. Para ouvi-la levantou a cabeça.

     —A água.

     —Obrigado — pegou o copo e o esvaziou de um gole.

     —Quer mais?

     Zac deixou o copo no chão.

     —Não, assim está bem. Sinto ter te acordado.

     —Não importa. Eu sinto ter despertado você, mas estava preocupada. Parecia muito alterado.

     Ele desviou a vista.

     —É um pesadelo recorrente.

     —Quer falar dele? Pode ser que isso ajude.

     Zac passou uma mão pelo cabelo.

     —Não ajuda nada. Exceto…

     —Exceto o que?

     —Uma distração.

     A Camille pulsou com força o coração. O que pretendia insinuar?

     Quando ele ficou em pé, ela retrocedeu um passo involuntariamente.

     —Devo ir — murmurou—. Deixar você dormir.

     —Não poderei voltar a dormir. Nunca posso depois do pesadelo.

     Pôs-se a andar devagar para ela e Camille retrocedeu de novo.

     —Nesse caso… eu deveria dormir. Tenho que madrugar.

   —Não vá. — murmurou ele. Estendeu uma mão, mas não a tocou, mas sim se apoiou na parede como se não pudesse sustentar-se sozinho.

     —Tenho que te fazer uma pergunta.

   —Do que se trata? — pulsava-lhe o coração com tanta força que custava esforço respirar. Por que reagia assim se sabia que não ia ocorrer nada entre eles?

     — Por que tenho a sensação de que te conheço? —perguntou ele quase com desespero.

     Ela retorceu com os dedos a corrente que levava no pescoço.

     —Já disse isso. Seu subconsciente certamente me recorda da mina.

     —Isso não explica por que seu nome me soa tão familiar — ele estendeu a mão e tocou sua garganta à altura do pulso. Camille sabia que estava acelerado. Agora ele também sabia—. Por que conheço seu sabor, suas carícias… O modo em que seu corpo se move quando fazemos amor.

     Camille deu um pulo. Ia protestar, mas as palavras dele a tinham deixado sem fala. Suas palavras, sua proximidade e a lembrança de seu corpo nu contra o dela.

     Os dedos de Zac rodearam seu pescoço e a atraiu para si.

   —Te conheço, Camille. Sei o que você gosta. —sussurrou. E a beijou para demonstrar que tinha razão.

     Conhecia-a. Ainda. Depois de tanto tempo.

   Beijou-a tão profundamente que suas pernas começaram a tremer. Passou os braços ao redor de seu pescoço e devolveu o beijo. Beijou-o profundamente, como gostava que o beijassem.

     Porque ela também o conhecia. Ainda. Depois de tanto tempo.

     Ele se separou com um sobressalto.

     — Meu Deus!

     Ela o atraiu para si, beijou-lhe os lábios e o saboreou com a língua. Tirou-lhe a camisola pela cabeça com um grunhido e a atirou ao chão. Tomou-a em seus braços e a levou a cama. Camille não resistiu. Deitou-se e se deixou olhar.

     —Te desejo — a voz dele tremia de emoção. De necessidade.

     —Sei.

     A mão dele roçou seu seio e Camille fechou os olhos, tomou uma mão e a levou a coração.

     —Eu também te desejo. Fazia tanto tempo…!

     —Quem é? —sussurrou ele.

     Camille abriu os olhos. Ainda a olhava, mas o desejo tinha diminuído substituído por um receio frio. Ela estremeceu ante seu olhar e procurou a camisola.

     Zac a segurou pela mão.

     —Responda droga! Quem é?

     Camille tentou soltar-se.

     — Solte-me!

     Ele a sujeitou com mais força.

     —Quando me responder.

     —Responder o que? —perguntou ela com raiva—. Não sei do que está falando.

     —Que demônios quer de mim?

     —Nada! Te ofereci um lugar porque não tinha aonde ir.

     —Não acredito em você. Não acredito que seja quem diz ser.

     E Camille não podia acreditar quão frios se tornaram seus olhos nem quão selvagem soava sua voz. Em um abrir e fechar de olhos converteu-se em um homem ao que não conhecia, mas ao que sempre tinha temido.

     — Por que veio aqui esta noite? O que esperava conseguir me seduzindo?

     — Te seduzindo eu? — tremeu a voz de raiva.

     —Não tente me convencer de que se deixou arrebatar pela paixão. Esses não são os atos de uma mulher que chora a um marido, e muito menos a um filho morto.

     Ela sentiu encolher o coração.

     —Como se atreve! —sussurrou—. Como se atreve a utilizar Adam para me fazer dano desse modo?

     Zac ficou imóvel.

     —O que?

     Soltou-a e Camille se separou dele. Levantou-se, pegou a camisola, apertou-a contra seu corpo e retrocedeu para a porta.

     —O que disse? —ele se levantou devagar.

     —Não se aproxime. — advertiu ela.

     —Chamaste-o Adam — voltou a sentar-se na cama como se ficasse subitamente sem forças. Quando levantou de novo a vista, Camille nunca tinha visto tanta angústia em um olhar.

     Seu aborrecimento se evaporou e deu um passo involuntário para ele.

     — Vá embora daqui. — disse Zac com uma voz que não reconhecia—. Saia daqui antes que faça algo que o dois possamos lamentar.

 

     Camille não gostou de ver Alice aproximar-se de sua mesa no dia seguinte. Tinha começado a suspeitar dela desde que a viu com Talbott na cafeteria. Que relação tinha com ele e o que tinha sido do jovem ajudante de investigação com que se encontrava? Segundo Alice, trabalhava em uma zona altamente secreta do andar E–12. Tinha passado alguma informação confidencial? Informação que ela a sua vez transmitia ao Talbott?

     Alice mostrou-lhe um carretel metálico e sorriu com ar de desculpa.

     — Quebrei a fita da máquina de escrever — disse—. Necessita de alguma do quarto de fornecimentos?

   —Não, obrigada. —Camille continuou classificando documentos, mas assim que a outra saiu da estadia, levantou-se e a seguiu.

     O som das máquinas de escrever a seguiu pelo corredor comprido e estreito. Alice ia diante e, quando se voltou a olhar por cima do ombro, Camille se meteu a toda pressa em um escritório vazio. Apareceu por uma esquina e viu que Alice abria o quarto de fornecimentos e desaparecia em seu interior.

     Momentos depois a porta se abria de novo e saía Talbott. Olhou a seu redor e pôs-se a andar em direção contrária onde estava Camille. Um momento depois, aparecia Alice com aspecto de ser o gato que comeu ao canário e voltava para seu posto.

     Essa tarde a chamaram do escritório do doutor Kessler. Camille ficou muito surpresa. Só tinha visto seu avô de passagem. Ainda não tinham se conhecido formalmente, mas sempre que o via sentia tentações de contar quem era. Continha-se por duas razões. A primeira, porque o fato de que ele conhecesse sua identidade podia ser prejudicial para o futuro de ambos e a segunda, porque ele certamente a tomaria por louca e a expulsaria da reserva.

     Camille, pois, guardava silêncio, mas quando entrou nessa tarde em seu escritório, surpreendeu-se uma vez mais quão diferente era do homem a que conhecia como seu avô. Diferente, embora muitas coisas nele continuassem curiosamente familiares. A inclinação dos ombros. O olhar gentil. E o pouco que lhe importava seu aspecto. Esse dia levava um traje enrugado, a gravata torcida e a camisa muito desgastada no pescoço e os punhos.

     Quando ela entrou, levantou a vista.

     —A senhorita Somersby, verdade?

     Camille assentiu e apontou uma cadeira em frente da escrivaninha.

     Ela se sentou e tirou um caderno de taquigrafia.

     —Não necessitará disso — disse ele—. Não a chamei para ditar nada.

     Camille esperou com curiosidade.

     —Observei-a desde que chegou aqui — disse ele—. E estou impressionado com o que vi.

     —Obrigada. —murmurou Camille; mas não pôde deixar de perguntar-se por que a tinha chamado.

     —Vi-a comer às vezes sozinha na cafeteria. Suponho que não tem muitos amigos aqui.

     Camille deu de ombros.

     —Não tenho muito tempo.

     —Não, mas se nota que é você uma jovem séria. Não é propensa a conversas inúteis como tanta gente. É trabalhadora, eficiente e, o mais importante, discreta. Por isso acredito que posso pedir um favor a você.

     Ela o olhou surpreendida.

     —Que classe de favor?

     —Sabe mecanografia?

     —Sim.

   —Nesse caso… — tomou uma pasta de sua mesa—. Antes tenho que estar certo de que o conteúdo desta pasta ficará entre nós dois. Não exagero se disser que sua prudência pode ser questão de vida ou morte.

     Camille assentiu.

     —Compreendo.

   —Nesta pasta encontrará uma série de cartas manuscritas — explicou ele—. Quero que me as passe a máquina, mas é imperativo que ninguém conheça sua existência.

     A jovem voltou a assentir.

     —Não faça cópias de papel carvão — advertiu ele—. E quando tiver terminado me traga os dois jogos de cartas junto com a fita da máquina. Entendido?

     —Sim, é obvio — Camille pegou a pasta e ficou em pé.

   —Uma coisa mais, senhorita Somersby — disse seu avô quando ela chegou à porta.

     Camille se voltou.

     —Sim?

     Ele pareceu não saber o que dizer por um momento.

   —Há alguma possibilidade de que nos tenhamos visto antes?

     Camille quase sorriu.

     —Não acredito. Por quê?

     —Há algo familiar em você. Notei-o a primeira vez que a vi, mas não consigo definir do que se trata.

     —Possivelmente recorde a alguém — sugeriu-a.

     Ele pareceu pensativo.

     —Sim, suponho que será isso — murmurou—. É seu sorriso, acredito. Recorda a uma jovem que conheci em Nova Iorque. Uma companheira da universidade onde dava aulas antes da guerra. Freqüentemente pensei o que terá sido dela… — se interrompeu.

     Camille sabia de quem falava. Elsa Chambers. A mulher que se converteria em sua avó.

     —Possivelmente possa procurá-la quando terminar a guerra — sugeriu.

     —OH, não sei — repô-lo—. Certamente esteja já casada. Era uma mulher muito formosa. Em qualquer caso, não acredito que se lembre de mim.

     —Pode que tenha uma surpresa — murmurou Camille.

     Mas não acreditou que ele a tivesse escutado. Nicholas Kessler parecia sumido em seus pensamentos.

     Quando Camille terminou as cartas, meteu-as na pasta junto com a fita de algodão da máquina de escrever e as levou ao escritório de seu avô. Bateu na porta, entrou… e se deteve bruscamente ao ver que não estava sozinho.

     —Vejo que terminou os informes. —disse seu avô, pondo uma ênfase especial na palavra informe.

     —Ah, sim — Camille se aproximou e estendeu a pasta, mas, antes que pudesse dar-lhe Talbott estirou o braço e interceptou o pacote.

     —Não me disse que trabalhava diretamente para o doutor Kessler — comentou.

     —Não me perguntou — replicou isso Camille.

     —Há algum problema? —perguntou seu avô, confuso—. A senhorita Somersby tem acesso a documentos secretos. As garotas dos arquivos trabalham todos os dias com milhares de documentos classificados. Por que o preocupa o trabalho que faz para mim?

     —Preocupam-me todos os aspectos da segurança nesta cidade —Talbott olhou um momento a pasta e a passou a Kessler- Seus informes ele também enfatizou a palavra.

     —Obrigado. —Kessler tomou a pasta e a deixou na mesa- Isso é tudo, senhorita Somersby. A menos que o agente Talbott tenha algo para você.

     —Não, nada — sorriu o homem—. Acredito que a senhorita Somersby e eu nos compreendemos muito bem.

    

     Zac registrou a mina com uma lanterna que encontrou na cozinha de Camille. As caixas que tinha visto duas noites atrás tinham desaparecido da caverna principal, mas ele tinha o pressentimento de que continuavam escondidas na mina.

     Encontrou-as a uns cem metros no interior do túnel e colocou mãos à obra rapidamente. Deixou a lanterna com cuidado no chão, abriu a tampa de uma das caixas com a lanterna e lançou um assobio ao ver o conteúdo. Ali, envoltos em serra, havia cartuchos suficientes de dinamite para voar toda a maldita colina.

     As outras caixas continham armas, documentos e mais explosivos.

   Voltou a tampar as caixas, pregou-as como antes, olhou ao seu redor para comprovar que não deixava rastro e seguiu andando pelo túnel para recuperar sua pistola.

     Um momento depois, saía de entre as árvores ao pé do precipício e olhava rapidamente a seu redor. Era pleno dia e não parecia haver ninguém perto, mas sabia que devia ir com cuidado. As pessoas que armazenavam a dinamite sem dúvida vigiariam a mina de perto.

     Devolveu o martelo e a gazua ao abrigo de ferramentas atrás da casinha e guardou a bolsa com o dinheiro e a pistola debaixo da cama do alpendre. Camille não parecia o tipo de pessoa que fora a registrar seus pertences, mas havia algo nela que produzia desconfiança.

     Como não queria pensar em Camille nem no beijo da noite anterior, saiu ao alpendre dianteiro e se sentou para pensar no que tinha visto. Dinamite. Armas. Documentos falsos. Segundo todos os sinais, tinha topado com a guarida de um sabotador profissional, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito porque não podia interferir na história.

    

     Camille esperava na porta da grade, com outras dúzias de trabalhadores, o ônibus que os levaria a casa essa noite. Havia empregados que tinham até duas horas de viagem, mas ela se descia nos subúrbios de Ashton e dali havia um passeio curto até sua casa.

     Quando chegasse seria quase de noite, mas não podia evitá-lo. Tinha levado o carro ao trabalho os últimos dias e seus cupons de gasolina se esgotavam, por isso não tinha mais remédio que usar o ônibus.

     Não se importava muito. A viagem e o passeio dariam tempo a ela de preparar-se para ver de novo Zac. Essa manhã tinha saído cedo de propósito, não só porque tinha que pegar o ônibus, mas também porque desejava evitar a todo custo um enfrentamento com ele.

   Quando viu os faróis do ônibus na distância, franziu o cenho. O beijo da noite anterior a tinha pego despreparada embora tivesse querido que acontecesse do momento em que Zac abriu os olhos na mina. Tinha sonhado anos com aquele beijo, desejado seus abraços e sua voz sussurrando que o mundo iria bem porque eles estavam juntos.

     Mas o mundo não ia bem. Estavam em guerra e Camille tinha uma missão. E essa missão muito bem podia obrigá-la a escolher entre o homem que amava… e o futuro.

     Mas essa decisão já estava tomada. Tinha tomado o dia que tinha convencido a seu avô de que era a pessoa idônea para o trabalho, e a única que podia deter Zac Riley.

     —Mas você ainda sente algo por ele. — havia dito seu avô—. Não subestime o poder desse amor, querida.

     —Não o faço — repôs ela—. Mas sei o que há em jogo e sei o que terei que fazer. E se eu continuo sentindo algo por Zac tenho que acreditar que, no profundo de seu subconsciente, ele também sente algo por mim. E posso aproveitar desses sentimentos e conseguir que confie em mim…

     O ônibus se deteve ruidosamente, o que devolveu Camille ao presente. Quando subia, viu Alice Nichols diante dela, mas não a chamou, mas sim fingiu que não a tinha visto e se sentou várias filas atrás dela.

     Vinte minutos depois, quando parou o ônibus em Ashton, Alice saiu e Camille duvidou um momento e fez o mesmo, embora a seguinte parada tivesse estado muito mais perto de sua casa. Agora teria que andar mais de três quilômetros no crepúsculo.

     Alice se afastou rapidamente da parada, mas Camille esperou um momento para misturar-se com o povo. Quando considerou que estava segura, seguiu-a, embora a distância suficiente para evitar ser descoberta.

     Umas ruas mais à frente, Alice se deteve a admirar algo em uma vitrine. Um momento depois, parava um carro a seu lado. Alice olhou furtivamente a seu redor e subiu no veículo.

     O carro avançou em direção a Camille, que se ocultou na soleira de uma porta e tentou fundir-se com as sombras.

     O guichê estava baixado e, embora só pudesse ver um instante ao homem sentado ao volante, foi suficiente para reconhecê-lo.

     O condutor era Daniel Clutter.

    

     Betty e Viv tomavam com gosto a limonada que lhes tinha servido Zac apesar de seu gosto ácido. Ele a tinha preparado para o jantar dessa noite como uma oferta de paz para a Camille, mas quando as duas enfermeiras se apresentaram inesperadamente na porta, não ocorreu outra coisa que lhes oferecer. Tinham ido andando da cidade e sentiu que era o menos que podia fazer depois de tudo o que o tinham ajudado elas.

     E além não era completamente imune a seus encantos. As duas eram muito atraentes, divertidas e coquetes e a competitividade que mantinham as levava às vezes a comportamentos fora do comum. Também eram faladoras, verdadeiras fontes de informação sobre as pessoas da cidade e muitos de quão forasteiros tinham chegado à zona para trabalhar detrás da grade.

     — Passamos para saudar seu vizinho, mas não estava em casa — disse Betty. Tomou um gole grande de limonada.

     — Refere-se a Daniel Clutter? — perguntou Zac surpreso—. O conhecem? É de daqui, não?

     —Chegou faz uns meses, mas como é viúvo, Betty o conhece — respondeu Viviam com secura.

     Betty enrugou o nariz.

     —Você não disse nada quando sugeri que passássemos para vê-lo.

     —Não, mas tinha que havê-lo feito. Viu como nos olhou essa mulher horrível? Como se fôssemos umas prostitutas — Viv cruzou as mãos sobre o regaço—. Não me gostou de nada.

     —Não é muito hospitaleira — assentiu Betty. Olhou para Zac—. A conhece?

     —À senhora Fowler? Sim, tenho esse privilégio.

     Betty sorriu.

     —Tem uns olhos de uma cor muito estranha, não notou? São escuros, quase negros, e muito frios. Não como os seus — olhou para Zac—. Também são escuros, mas são muito quentes e… apaixonados.

     —OH, por favor! — murmurou Viv.

     —O que? — perguntou Betty com ar inocente—. Sabe muito bem que eu gosto dos olhos marrons.

     —Ah, sim? E então por que falava tanto esta manhã dos olhos do doutor Cullen? «São de um azul maravilhoso» — a imitou Viviam. Levou as mãos às bochechas—. «Juro que quando me olhe poderia me perder neles».

     Betty a olhou com raiva.

     —Tem inveja porque você não tem noivo.

     —E você sim?

     —É possível.

     —Quem é? — quis saber Viv.

     —Não o conhece — disse Betty.

     —Não o conheço — repetiu seu amiga com incredulidade—. Eu conheço todos os que você conhece.

     Betty sorriu.

     —Isso é o que você pensa.

     —Quem é? Como se chama? E por que não te vi nenhuma vez com ele?

     —Uma mulher jamais divulga seus segredos — sorriu Betty—. Não é verdade, Zac? — Moveu as pestanas com tal força que ele temeu que fora a pôr-se a voar.

     Antes que pudesse responder, adiantou uma voz das sombras.

     —Não sabia que tínhamos festa esta noite ou teria tentado voltar antes.

     Para ouvir Camille, Zac se sentiu culpado sem saber por que. A visita da Betty e Viv era bastante inocente e, além disso, Camille e ele eram pouco mais que estranhos.

     Mas a sensação de culpabilidade persistia, e ficou em pé com desconforto.

     —Só vieram ver como estava.

     —Seriamente?

   A frieza de seu tom fez que as enfermeiras se levantassem também apressadamente.

- Meu Deus, que tarde é! Temos que voltar para a cidade.

—Sim — assentiu Viv—. Obrigada pela limonada. É um prazer vê-lo tão recuperado.

    —É quase de noite — disse ele—. Possivelmente deveria acompanhá-las à cidade.

     —Tolices. Não nos acontecerá nada… —Viv se interrompeu porque Betty lhe deu uma cotovelada nas costelas.

     —Se insiste… — disse esta última.

     Viviam a olhou de marco em marco.

     —São mais de oito quilômetros entre ida e volta. O senhor Riley está ainda recuperando-se.

     —É obvio. No que estava pensando? — murmurou Betty—. É que parece tão… sadio. — o olhou com admiração até que sua amiga a puxou pelo braço e atirou dela para a rua.

    —Ainda não me parece bem — disse Zac—. Estão certas que não querem que as acompanhe ao menos parte do caminho?

     —O tio da Betty vive perto daqui — respondeu Viv, adiantando-se a sua amiga—. Prometemos que passaríamos para vê-lo e há dito que nos levaria no carro.

     Quando suas vozes morreram na distância, Camille entrou em casa. Zac esperou um minuto e a seguiu.

     Ela não levantou a vista, mas sim seguiu tocando os botões do rádio.

     —Encontrei ferramentas no abrigo de trás — informou ele—. Amanhã começarei a trabalhar no telhado.

     Ela guardou silêncio.

     —Está zangada por algo? —perguntou ele ao fim.

     Camille o olhou. Seus olhos jogavam faíscas.

     — Por que estaria zangada?

     —Não sei, mas é evidente que algo te incomodou. Se estiver furiosa porque vieram as garotas…

     Ela golpeou a rádio com tal violência que ficou com o dial na mão. Lançou-o contra o sofá.

     —Se quer entreter a suas noivas enquanto eu trabalho, é teu assunto. Mas preferiria que buscasse outro lugar para fazê-lo.

     Zac a olhou com incredulidade.

     —Não são minhas noivas. São enfermeiras que cuidaram muito bem de mim no hospital.

     —Sim, já vi como cuidavam de você — Camille o olhou com ironia—. Se tratarem igualmente a todos os pacientes, surpreende-me que alguém queira sair do hospital.

     —Está com ciúmes? —perguntou Zac com incredulidade. Com esperança.

     Ela abriu muito os olhos.

     —Ciúmes? E por que vou estar com ciúmes? Importa-me um nada com quem passes o tempo.

     —De verdade? —Zac a observou com a cabeça inclinada para um lado—. Porque a mim teria podido enganar.

     —E não te ocorreu que possa querer vir para casa depois de um longo dia de trabalho e encontrar paz e tranqüilidade?

     —Possivelmente devia pensar nisso antes de me convidar a ficar aqui. O que me recorda que faz dias que quero te perguntar algo. Por que me convidou a vir aqui?

     —Já falamos disto — repôs ela—. Você necessitava um lugar onde viver e eu tinha uma casa livre. Pensei que podia ser um acordo benéfico para ambos.

     —Embora eu não tenha trabalho nem meio de vida aparente? Ah, foi pelas goteiras, verdade?

     —As goteiras, o alpendre… — ela encolheu de ombros—. Há uma dúzia de coisas que necessitam acerto, mas se o acordo não te parece bem, busca outro emprego. Fique ou vai. Faz o que queira. Eu vou para cama.

   Ia sair da sala, mas Zac a segurou pelo braço. Ela o olhou de marco em marco.

     —Solte-me.

     Ele obedeceu; mas continuava havendo um vínculo entre eles. Uma conexão que Zac não compreendia, mas que estava seguro de que ela sim.

     —A respeito de ontem à noite…

     —Não quero falar disso — respondeu ela zangada.

   —Pois eu sim. O que aconteceu entre nós não ocorre entre desconhecidos. Parecia… familiar.

   —Não me surpreende — burlou-a—. É evidente que é aficionado à companhia feminina.

     —Não era isso e sabe. Há algo entre nós, Camille. Por que não é sincera? É por que… ainda sente algo pelo pai de seu filho?

     Ela o olhou surpresa e, por um momento seu rosto se crispou como se estivesse a ponto de perder o controle de seus sentimentos. Depois endireitou as costas e, quando voltou a olhá-lo, havia tornado a recuperar sua máscara.

     — Deixe-me em paz, Zac. Por favor… Deixe-me em paz.

 

     Os rangidos de passos no alambrado despertaram a Camille. Alguém caminhava pela casa. Um momento depois ouviu abrir a porta e fechar-se de novo com cuidado.

     Levantou-se sem fazer ruído, aproximou-se da janela e olhou ao exterior. Ao princípio não viu nada, mas depois avistou Zac afastando-se da casa. Seguiu-o com a vista até que desapareceu entre as árvores da colina.

     Vestiu-se rapidamente, colocou sua pistola na bolsa, tomou uma lanterna e saiu de casa.

     Tomou o mesmo atalho e se deteve de vez em quando a escutar na escuridão.

     Quando chegou ao claro, Zac não estava à vista. Supôs que tinha entrado na mina, mas não tinha nem idéia do que se propunha.

     Entrou e se deteve escutar. Ao princípio todo estava em silêncio, mas depois ouviu passos procedentes do túnel.

     Seguiu o som, com o feixe de luz da lanterna dirigido ao chão para evitar que a vissem. Uns cem metros mais à frente, viu luz procedente de um dos outros túneis e apagou rapidamente a lanterna.

     Agachou-se e se pegou à parede. Esperou um momento e olhou a seu redor. Um farol pendia de um prego na parede e em um canto havia um par de mantas e várias latas de comida.

     Em uma das paredes havia um montão de caixas empilhadas e no chão se viam ferramentas pulverizadas.

     Não havia nem rastro do Zac.

     Era esse seu esconderijo? Tinha levado ele todas essas coisas?

     Agachou a cabeça e entrou no túnel. Aproximou-se das caixas e tentou abrir uma, mas a tampa estava pregada.

     Olhou as ferramentas, divisou uma gazua, agarrou-a e ficou a trabalhar na caixa mais próxima.

     Estava tão centrada na tarefa que não viu a sombra na parede até que foi muito tarde.

   Levantou a cabeça quando sentiu arrepiar os cabelos da nuca. Embora o medo percorresse suas veias, sua mão apertava a gazua e se preparava para a luta.

     Antes que pudesse voltar-se, uma mão forte agarrou a mão. Outra tampou a boca e uma voz lhe sussurrou ao ouvido:

     —Não se mova. Nem sequer respire.

     Camille, que tentava soltar-se a todo custo, mordeu-lhe a mão e Zac reprimiu um juramento.

     —Pretende que matem aos dois? —disse ao seu ouvido—. Vão voltar. Temos que sair daqui.

     Arrastou-a para a entrada e, ao ver que ela não opunha resistência, considerou que era seguro soltá-la. Assim que se viu livre, ela se voltou para ele com olhos chamejantes, mas quando Zac levou um dedo aos lábios, ela assentiu com a cabeça.

     Seguiu-o pelo túnel principal e tomou a mão e a guiou pelo passadiço até que chegaram a outro claro. Puxou ela e só então Camille se atreveu a falar.

     —O que acontece? O que há nessas caixas…?

     Interrompeu-se para ouvir vozes longínquas. Quando se aproximavam, apertou o braço de Zac.

     Permaneceram quietos na escuridão. Ele não podia ver sua expressão, mas ouvia sua respiração rápida.

     Quando se apertou contra ele para aproximar a boca a sua orelha, seus Seios lhe roçaram o torso e o único som que ouviu então Zac foi o dos batimentos de seu coração.

     —Quais são? —sussurrou ela.

   Ele moveu a cabeça. Como ela não se apartava, rodeou-a com um braço, aproximando-a ainda mais. Ela não resistiu. Certamente era o medo o que a voltava tão complacente, mas Zac queria acreditar que era outra coisa.

     Apoiou a cabeça na parede e tentou controlar suas emoções. Aquilo era uma loucura. Os dois corriam perigo, o mundo corria perigo e ele só podia pensar na proximidade dela e em como desejava beijá-la.

   As vozes se aproximaram e depois se afastaram quando entraram no túnel que continha as caixas. Tudo ficou um momento em silêncio, logo a risada da mulher ressonou na escuridão. A risada se converteu logo em murmúrios e gemidos de prazer.

     Camille fechou os olhos envergonhada. Não era nenhuma puritana, mas ouvir outros fazer amor não era muito oportuno.

     Por outra parte…

     A sensação do corpo de Zac contra o seu sim gostava. Estava em muito boa forma. Era magro e musculoso… um homem na plenitude da vida.

     E ela era uma mulher que não tinha estado com ninguém em muito tempo. Desde que Zac partira no meio da noite cinco anos atrás.

     Disse que não devia pensar nisso naquele momento.

     Mas tinha que pensar. Tinha que recordar o facilmente que se foi assim que Von Meter o tinha chamado. Camille sabia que não era culpa dela; não tinha ido por vontade própria, mas o resultado tinha sido o mesmo. Tinha-a abandonado e não podia confiar nele. Seria uma idiota se confiasse nele.

     Os gemidos foram remetendo e, depois de uns momentos, os dois amantes abandonaram a mina.

     Camille tentou apartar-se, mas Zac a sustentou contra si. Antes de soltá-la beijou-lhe o cabelo.

     Não falaram até que não estiveram a salvo na casa. Camille deixou sua bolsa na mesa da cozinha e se voltou expectante.

     —O que aconteceu ali acima? Quem era essa gente?

     —Esperava descobri-lo esta noite — repôs Zac—. Mas você apareceu e tive que trocar de planos.

     —Quer dizer que sabia que iam estar ali?

     Zac se encolheu de ombros.

     —Esta noite ou qualquer outra. Sabia que voltariam antes ou depois pelo conteúdo das caixas.

     —O que há nas caixas?

     O vacilou.

     —Explosivos suficientes para voar toda a colina.

     Camille abriu muito os olhos.

     —Sabotadores?

     —Eu diria que é muito possível — assentiu ele sombrio.

     —Temos que detê-los. Temos que… — Camille se interrompeu ao recordar a advertência de seu avô. «Não deve interferir com a história. “Por mais tentações que sinta ou mais justificadas que lhe pareçam suas ações; só está ali para conter a loucura de Von Meter».

     Aproximou-se de olhar pela janela.

     —No trabalho nos advertem constantemente de que estejamos alerta ante possíveis sinais de espionagem, mas um ato terrorista…

     —Um quê?

     Ela se deu conta de seu engano. O terrorismo tinha existido durante séculos, mas a palavra não se popularizou até bastante depois da II Guerra Mundial.

     —Sabotagem — corrigiu.

     Ele a olhou de um modo estranho.

     — Por que tenho a impressão de que me esconde algo?

     —Não é certo. Não sei mais que o que sabe você.

     Zac entreabriu os olhos.

     —Pois eu acredito que sim. Acredito que sabe muitíssimo mais que eu. Acredito que há uma razão para que use a palavra «terrorismo» e acredito que é a mesma por que não questionou quando fiz a manobra do Heimlich em Billy para que saísse a água de suas vias respiratórias e pela que convidou a sua casa. E sabe que mais acredito?

     Avançou devagar para ela e Camille estremeceu ao ver a expressão de seus olhos.

     —Acredito que é uma mulher muito perigosa.

    

     Camille tomou um banho longo antes de deitar-se com a esperança de que a água quente a ajudasse a relaxar-se e a evitar Zac.

     Este fazia muitas perguntas e ela não sabia o que fazer. Tinha cometido um engano e agora podia estar em perigo toda a missão.

     Possivelmente deveria dizer a verdade. Apelar à parte dele que não estava sob o controle de Von Meter. À parte dele que ainda sentia algo por ela.

     Mas esses sentimentos não tinham sido antes o bastante fortes e não via motivos para acreditar que a situação fosse ser distinta agora. Não podia confiar nele, não se atrevia. Era assim de singelo.

     Secou-se, vestiu a camisola, abriu a porta e apareceu. A casa estava escura e silenciosa e supôs que Zac teria deitado. Entrou em seu dormitório e se meteu na cama com a esperança de que uma noite de descanso a ajudasse a ver tudo mais claramente pela manhã.

     Mas acabava apenas de dormitar quando despertou com uma batida em sua porta. Abriu os olhos e saltou da cama.

     —Camille? Abra. Quero falar contigo.

     Ela não queria falar com ele. Era a última coisa que desejava. Envolveu-se mais na roupa da cama.

     —Não pode esperar até amanhã?

     —Não. Abra a porta.

     A jovem vacilou ainda.

     —Abra a maldita porta ou juro que a derrubo — gritou Zac.

     Ela saiu da cama, vestiu a bata e se aproximou da porta. Sua intenção era abrir só uma fresta, mas Zac a empurrou e a obrigou a retroceder. Olhou-a de marco em marco.

     —Quem é você?

     —Já… sabe quem sou.

     —Não sei nada de ti e, entretanto… —sua expressão fez estremecer-se a Camille— A conheço.

     —Já disse. Recorda-me da mina.

     —De verdade? —olhou-a com frieza—. E como explica isto?

     A luz da lua iluminou seu cordão de ouro na mão dele.

     Camille levou uma mão ao pescoço. Tirara o cordão antes do banho e tinha esquecido voltar a colocar e Zac o tinha encontrado, tinha-o aberto e agora sabia tudo.

     —Se somos desconhecidos, por que leva minha foto em seu cordão? —perguntou.

     Camille não tinha uma explicação preparada. Olhou-o impotente.

     Ele abriu o cordão e olhou as fotos.

     —O menino é seu filho?

     Camille assentiu.

     — Por que o conheço?

     —Não o conhece — disse ela.

     Mas ele não pareceu ouvi-la. Observou a pequena fotografia com uma mescla de raiva e confusão no olhar.

     —Por que conheço sua cara e sua voz?

     Camille levou uma mão trêmula à boca.

     —Conheço-o, Camille. Vi-o. Sonhei com ele.

     Ela deu um pulo.

     —Isso não é possível — entretanto, tinha saído do coma perguntando pelo Adam.

     Zac levantou a vista.

     —Por que leva uma foto de seu filho ao lado da minha? Responda droga.

   Camille respirou fundo.

     —Porque era seu filho.

 

     Se o tivesse esbofeteado, não teria ficado tão atônito. Voltou-se para a porta e Camille pensou que ia sair, mas então ele girou de novo, a tomou pelos braços e a fez retroceder contra a parede.

     Ela não se acovardou. Agüentou a investida olhando-o aos olhos.

     —É verdade. Adam era teu filho.

     A pressão dele se fez mais intensa.

     —Não pode ser. Mente.

     —Não minto.

     Olhou-a aos olhos.

   —Tem que mentir. Isso não é possível. Eu nunca tinha estado aqui antes. Compreende?

     Ela respirou fundo.

    —Sim. Mas você mesmo disse antes. Há uma razão para que não questionasse o modo em que salvou Billy e uma razão pela que usei assim a palavra terrorismo.

     Brilharam-lhe os olhos. Sua expressão se endureceu.

     —Você veio pelo túnel no tempo?

     —Sim.

     Os olhos dele se cravaram em sua carne.

     —Quem te enviou? Von Meter?

     —Não. Nicholas Kessler.

     —Kessler?

     —É meu avô — disse ela—. Vim aqui para protegê-lo.

     —De quem?

     —De… ti.

     Ele a olhou com incredulidade.

   — Acha que vim a fazer mal a Kessler? Não. Esse não é o objetivo da missão.

     —Agora não quem não acredita sou eu. —replicou ela.

     Zac a soltou e retrocedeu. Saiu do quarto sem dizer uma palavra. Camille esperou uns segundos e o seguiu. Quando entrou na sala, ele estava de pé ao lado da janela, banhado pela luz da lua. Ela conteve o fôlego ao ver sua expressão. Era dura, zangada, resolvida… mas também vulnerável. Imensamente vulnerável.

     Enquanto o olhava, ele observava o medalhão que apertava ainda na mão. Por um momento não disse nada e, quando ao fim seus olhos se encontraram com os dela, seu rosto se tornou inexpressivo.

   — Fale-me dele.

     —Tentarei — murmurou ela—. Mas ainda me custa falar dele.

     —Disse que um carro o atropelou.

     Camille sentiu a garganta oprimida.

     —Sim. Morreu em meus braços pouco depois.

     Zac levou uma mão ao rosto e fechou os olhos.

     —Eu estava ali?

     —Não. Você nem sequer sabia que Adam existia. Ou pelo menos isso é o que sempre acreditei. Mas agora penso que deve tê-lo visto em algum momento, porque conhece seu rosto e seu nome. Suponho que eles o arrumariam de algum modo.

     —Eles?

     —Von Meter. O Projeto Fênix.

     Ele fechou a mão em torno do medalhão.

     —O que têm a ver eles com Adam?

     —Tudo. Ele era seu filho.

     Zac pareceu compreender a implicação.

     Uma expressão de dor passou por seu rosto e se voltou de novo para a janela.

     Camille se aproximou e se sentou na beira do sofá.

     —Quanto recorda do Projeto Fênix?

     Ele se encolheu de ombros.

     —Está apoiado em tecnologia desenvolvida durante a guerra. Esta guerra. Está se desenvolvendo nestes momentos. Um navio da Marinha USA desaparecerá do porto da Filadélfia em 15 de agosto. Segundo Von Meter, o navio entrará em uma dimensão paralela e viajará adiante no tempo. Quando retornar, abrirá um túnel que une o passado com o futuro. Sei que parece uma loucura, mas… — se voltou—. Aqui estamos.

     —Sim — murmurou ela—. Aqui estamos — a intensidade do olhar dele obrigou a desviar a vista. Cruzou as mãos no regaço e as observou um momento—. Que mais te contou Von Meter?

     —A mesma tecnologia que fará desaparecer esse navio será a base do Projeto Fênix. Depois do experimento, seu avô conseguirá fazer-se ouvir e o Governo retirará os recursos. O projeto passará à clandestinidade e, sem supervisão, a investigação se estenderá por zonas controvertidas… fases inter dimensionais, psicotrônica, controle do pensamento e telequinesia.

     Camille levantou a vista.

     —Falou dos experimentos a você?

     Zac se separou da janela e se sentou no sofá a seu lado.

     —Que experimentos?

     —Para desenvolver essa tecnologia, Von Meter e seus cupinchas usaram seres humanos — respondeu ela—. Ao princípio eram indigentes que tiravam da rua e às vezes pessoal militar que não tinha família, ninguém que fizesse perguntas se desaparecia um período longo de tempo. Torturavam-nos, tanto mental como fisicamente, até que se derrubavam de tal modo que era fácil manipular sua mente. Logo os reprogramavam com realidades preparadas que permitiam aos sujeitos aceitar uma verdade que se estendia muito além de nossa percepção tridimensional do universo. Fases inter dimensionais, psicoquinesia… inclusive viajem no tempo. Todas essas coisas se voltavam possíveis quando se rompiam as barreiras tridimensionais. E o que importavam umas quantas vidas comparadas com uma ciência assim?

     —O bem dos muitos ultrapassa as necessidades de uns poucos — murmurou Zac.

     —Sim — falou Camille com amargura—. Estou segura de que Von Meter o justificava assim. Mas não pode justificar os meninos — sussurrou—. Nada pode justificar isso.

     —Que meninos? De que falas?

     —Com o tempo descobriram que os meninos eram mais suscetíveis às realidades preparadas e os estados alterados de consciência que os adultos. E começaram a usar pessoas mais jovens. Alguns eram filhos de pessoal militar, outros de pessoas que trabalhavam no projeto… a outros simplesmente tomavam.

     —Quer dizer seqüestrados.

     —Sim. E também os torturavam. Quando se foram fazendo maiores os treinavam na arte da guerra e os convertiam em super soldados, homens dispostos a fazer algo por levar a cabo uma missão.

     —Um exército de guerreiros secretos — disse Zac.

     —Exato. Quando os soltavam, alguns dos homens não podiam lutar com a vida. Tinham perdido a maioria de suas lembranças e não tinham família para qual voltar. Sentiam-se… perdidos.

     Zac a olhou um momento, como se não soubesse confiar nela ou não.

     —Onde entra você em tudo isto?

     —Eu trabalho para meu avô. Sempre se sentiu responsável por esses homens e dedicou sua vida para buscá-los e tentar dar uma certa normalidade a suas vidas. Agora eu também me dedico a isso.

     —Uma cruzada — murmurou ele.

   Ela encolheu de ombros.

     —Nunca o considerei desse modo. Só tento fazer o que devo.

     Os olhos dele se escureceram.

     —Foi assim como nos conhecemos?

     —Não, não exatamente. Conhecemo-nos em Los Angeles. Meu avô vive ali e o quartel geral de nossa organização está ali. Um dia estava cruzando a rua sem prestar atenção. Tinha muitas coisas na cabeça. Passei diante de um carro e, se o condutor não tivesse freado a tempo, certamente me teria matado ou ferido gravemente. Ficou a centímetros de mim. Mas eu soube que tinham me salvado algo mais que os reflexos do condutor. E então te vi.

     Fez uma pausa, recordando.

     —Estava afastado do grupo de gente que se congregou na rua e me olhava com uma concentração tão fera que soube que você quem tinha me salvado. Você parou o carro… com a mente.

     Zac franziu o cenho.

     —Duvido-o. Eu não tenho essa habilidade.

     —Sim tem — insistiu Camille—. Pode que não seja consciente, mas está aí, enterrada em seu interior. Eu o vi.

     O cenho dele se fez mais profundo.

     —Talvez visse o que queria ver.

     —Foi algo mais que isso. Quando consegui abrir espaço entre as pessoas, você já se afastava. Te segui, você entrou em uma cafeteria, eu te segui e me sentei contigo.

     Zac quase sorriu para ouvir isso.

     —Eu não protestei?

     Camille sorriu também.

     —Não. Falamos um longo momento, mas eu só demorei uns minutos em me dar conta de que tinha acertado. Foi como todos outros que tinham passado pelo Montauk. Tinha os mesmos ocos na memória, a mesma relutância a falar de si, a mesma intensidade no olhar. E, entretanto… em você havia algo diferente… algo que fez que me importasse do primeiro momento.

     Ele a olhou e seu olhar pareceu suavizar-se ao observá-la. Camille se perguntou o que estaria pensando.

     —E o que aconteceu depois? —perguntou ele.

     —Começamos a sair juntos. Ao princípio não falei com meu avô de você porque acreditei estupidamente que podia te salvar sozinha. E quando enfim falei, tentou me advertir de que estava brincando com fogo; mas eu não o escutei. E um dia, você… desapareceu.

     —Desapareci?

     —Uma manhã despertei e você tinha ido. Não voltei a te ver nunca mais.

     —Procurou-me?

     —A princípio sim. Logo me inteirei de que estava grávida e decidi que era melhor te deixar partir. Não queria que Von Meter nem ninguém de Montauk descobrissem meu estado. Tinha medo de que tentassem usar a nosso filho para te controlar. Ou pior, de que fizessem ao Adam o que tinham feito a ti.

     A expressão atormentada dele chegou ao seu coração.

     —E o deixou sozinha? Criou-o sozinha?

     — Meu avô me ajudou. E não foi difícil. Adam era um menino maravilhoso. Extrovertido e carinhoso… — interrompeu-se—. Acreditava que você não sabia nada dele. Mas de algum modo descobriu… — sua voz se endureceu—. Suponho que isso também foi obra de Von Meter.

     — Por que ia fazer ele isso? O que podia ganhar dizendo isso?    

     —Não sei. Talvez pensasse que podia usar Adam contra ti. Ou possivelmente queria estar seguro de que o vínculo entre pai e filho não era tão forte como seu controle sobre ti. Quando viu Adam, sua reação deve ter assustado. Por isso ordenou que o matassem.

     Zac voltou a cabeça com brutalidade.

     —Matá-lo? Você disse que o atropelou um carro. Foi um acidente.

     —Não foi um acidente.

     Camille se levantou e foi olhar pela janela. Não queria pensar mais nisso. Não queria reviver aquele dia terrível nesse momento porque sabia que então o reviveria de novo quando dormisse.

   —Como aconteceu? Diga-me.    

     A jovem fechou os olhos e Zac parou atrás dela. Camille falou devagar, e cada palavra era uma adaga que lhe atravessava o coração.

     —Esse dia havia um homem no parque. Adam o viu antes e me apontou. Estava nos… observando. Eu soube instintivamente que era perigoso. Queria que fôssemos, mas Adam me suplicou que jogasse beisebol com ele só um momento mais. Era um menino tão bom!… —ela passou uma mão pelo rosto— a bola escapou e correu à rua atrás dela.

     —Então foi um acidente — murmurou Zac.

     —Não — Camille apertou os punhos. Sentia as unhas cravando-se nas palmas, mas não se importou—. Ele fez que a bola rodasse até a rua. Sabia que Adam correria atrás dela.

     Zac a tomou pelos braços e a voltou com gentileza para ele.

     —Esse homem do parque… que aspecto tinha?

     —Era jovem, uns trinta e tantos anos, mas tinha o cabelo prateado. E havia algo estranho em seus olhos.

     Zac apertou seus braços com mais força.

     —Vogel.

     Camille o olhou surpresa.

     —Conhece-o?

     —Vi-o. E te prometo uma coisa — nos olhos de Zac brilhou algo perigoso—. Nossos caminhos voltarão a cruzar-se. Pode estar certa.

     —Quero te perguntar por algo que mencionou antes — disse Zac um pouco mais tarde.

     Tinha voltado para o sofá, mas Camille continuava de pé. Ele via seu reflexo na janela e adivinhava por sua expressão que seguia pensando em seu filho. O filho de ambos.

     Zac teve uma imagem repentina dele. O menino jogava no jardim de uma casa velha de dois andares próxima ao mar. Zac não ouvia as ondas, mas saboreava o sal no ar. E na névoa.

     Não sabia como tinha chegado ali e não sabia onde estava. Era como um sonho. Só sabia que algo o empurrava para essa casa, esse jardim e esse menino.

     O pequeno o viu, olhou um momento para a casa e pôs-se a andar para ele.

     —Olá — disse quando esteve perto—. Veio ver meu avô?

     —Não… estou certo.

     —Se perdeu? —perguntou o pequeno muito sério.

     —É possível.

     O menino tomou a mão.

     —Quer entrar e perguntar a minha mãe como chegar?

     Zac sorriu para ele ofegante.

     —Acredito que não é uma boa idéia. Certamente não gostará que fale com desconhecidos. Além disso… tenho que ir.

     —Tudo bem. Espero que encontre o caminho, senhor.

     —Eu também o espero — sussurrava Zac, vendo-o afastar-se.

     A imagem se apagou e ouviu a voz preocupada da Camille.

     —Está bem?

     Levantou a vista.

     —Sim. Estava… recordando algo.

     Ela voltou para o sofá e se sentou a seu lado.

     —Havia dito que queria me fazer uma pergunta.

     A visão o tinha alterado e Zac demorou um momento em recuperar-se.

     —Antes você disse que veio aqui para proteger seu avô.

     —Sim.

     —De mim.

     Ela assentiu.

     —Eu não vim fazer mal a seu avô, Camille.

     A jovem mordeu o lábio inferior.

     —E por que veio?

     —Von Meter disse que a véspera do Experimento Filadélfia seu avô tentou sabotar os geradores a bordo do Eldridge. É certo?

     —Sim. Tentou tudo o que estava em seu poder para deter o experimento. Escreveu cartas a congressistas e inclusive apelou diretamente ao presidente. Mas ninguém quis escutá-lo. Até que não viram por si mesmos o estado da tripulação, não fizeram conta. E para então já era muito tarde.

     — Me escute Camille. Isto é importante. O que fez seu avô a esses geradores impediu que pudessem apagá-los corretamente quando o navio se materializou. Ao seguir funcionando, o túnel do tempo pôde reunir energia suficiente para estabilizar-se. Minha missão é me assegurar de que esses geradores se apaguem totalmente. Por isso necessito sua ajuda. Tenho que chegar até seu avô antes que seja tarde.

     Ela se soltou horrorizada.

     —Não penso permitir que se aproxime de meu avô — a expressão atônita dele encolheu o coração, mas não podia retirar suas palavras. Ela também tinha uma missão.

     —Olhe, pode achar que sua missão é apagar esses ordenadores, mas duvido. Pensa bem, Zac. Por que quereria Von Meter destruir o túnel do tempo?

     —Porque se a pessoa equivocada se metesse nesse túnel, poderia ser o fim para todos nós.

     —Isso é verdade. Mas não lhe preocupava quando enviou à morte a mais de cem homens para recrear o Experimento Filadélfia e abrir um novo túnel.

     Zac franziu o cenho.

     —Do que está falando?

     —Quando o Eldridge se materializou deixou um túnel do tempo que unia o passado com o futuro. Se alguém tivesse conhecido sua existência em 1943, podia ter viajado adiante no tempo. Mas não ao contrário. Isso é uma distinção importante. Para que alguém do futuro, de nosso presente, viajasse atrás no tempo, teria que criar outro túnel que se unisse com o primeiro. Por isso os outros e você estavam a bordo desse submarino que se afundou no Atlântico Norte. Estavam recriando o primeiro experimento. Mas em lugar de viajar adiante no tempo, retrocederam. Abriram outro túnel. Quando o submarino voltou a materializar-se, houve uma explosão que o enviou ao fundo do oceano com todos os homens presos em seu interior. Acreditam que alguém fez explodir algo deliberadamente na sala de motores para que não houvesse testemunhas do acontecido.

     —Mas eu sobrevivi.

     —Você e os outros membros de sua equipe. Mas não o entende? Se Von Meter quisesse o túnel destruído, por que teria tanto trabalho e gasto tanto dinheiro e vidas em abrir outra passagem que unisse o presente com o passado? Ele não quer proteger a história, quer mudar em seu próprio benefício livrando do único obstáculo que se interpôs em seu caminho todos estes anos.

     O rosto do Zac se endureceu.

     —Seu avô.

     Camille assentiu.

     —Acredito que deram um objetivo falso a você Zac. Acredito que sua verdadeira missão é destruir meu avô.

     —Como? Ensinam-me a rainha de diamantes e me converto em um assassino? —disse ele com ligeireza.

     Camille assentiu.

     —Algo assim.

     Ele a olhou com curiosidade.

     —Se sua intuição for certa e Von Meter me enviou aqui a acabar com seu avô, isso põe muito interessante a situação entre nós. Você veio aqui para me deter.

     —Sim.

     —Como?

     Camille estremeceu, mas devolveu o olhar sem pestanejar.

     —Estou disposta a te matar se for necessário.

     —Bem, suponho que não pode ser mais clara. Já sabe como fará?

     —Isto não motivo de riso — disse ela com determinação—. Não posso permitir que se aproxime de meu avô. Não posso permitir que faça nada para mudar a história.

     —Mas já mudamos a história. Simplesmente por estar aqui mudamos a história.

     —Sim, mas se tomarmos cuidado…

     —Cuidado? —Zac a olhou com incredulidade. É muito tarde para tomar cuidado, Camille. Você mudou a história quando me tirou da mina. Eu a mudei quando salvei a vida do Billy. Mas tivesse querido você que não o fizesse?

     Ela apartou a vista.

     —Não, claro que não.

     —E isso nos leva a outra pergunta interessante. Se veio aqui para me matar, por que não tomou o caminho fácil e me deixou na mina?

     —Não era tão simples. Tinha que estar segura de que Von Meter te enviou. Tinha que saber o que te propunha. E, além disso, se te tivesse deixado ali, teria enviado a outro para te substituir.

     —Exato. Por isso temos que fechar esse túnel. Se de verdade quer matar a seu avô, continuará enviando gente até que consiga.

     Camille também tinha pensado nisso. Mas fechar o túnel prenderia Zac e a ela em 1943. Tinha pensado nisso?

     E seria tão mau? Com o túnel do tempo destruído, Von Meter não teria controle sobre Zac. Os dois podiam…

     Podiam o que? Começar de novo? Era muito tarde para isso.

     —Não podemos mudar a história, Zac. É muito perigoso.

   —O perigoso é não fazer nada — ele passou uma mão pelo cabelo com exasperação—. Diz que veio aqui para proteger seu avô de mim. E se eu não sou a única ameaça?

     —O que quer dizer?

   —Estou falando de caixas cheias de explosivos. O que acha que vão fazer com toda essa dinamite? Nessa mina há TNT suficiente para voar toda a cidade, com seu avô incluído.

     —Não haverá uma explosão. Isso sabemos pela história.

     —Mas e se formos nós que temos que impedi-la?

     Camille o olhou surpresa.

     —Isso não pode ser.

     —Como sabe? Nossa mera presença aqui já mudou tudo. E se o FBI ou a polícia ou quem quer que deteve a primeira vez aos sabotadores estão distraídos nos investigando e ignoram a autêntica ameaça?

     Camille o olhou impotente.

     —E o que você propõe que façamos?

     —Descobrir quem é responsável por acumular esses explosivos e o que pensa fazer com eles. E se for necessário, impedir-lhes.

     —E como o fazemos?

     Zac encolheu de ombros.

     —Se querem aproximá-lo suficiente para colocar os explosivos, necessitarão um cúmplice detrás da grade. Alguém com um nível de segurança muito alto. Você pode ter os olhos e os ouvidos abertos na cidade e eu posso vigiar a mina.

   Camille se levantou e começou a passear pela estadia.

     —A verdade é que já me preocupa alguém no trabalho — confessou—. Uma mulher chamada Alice Nichols. Tomou sob sua ala quando cheguei à reserva. Ao princípio pensei que era uma dessas pessoas que se fazem amigas de todo o mundo, mas nos dois últimos dias tenho a impressão de que me vigia.

     —Acha que sabe sobre você?

     —Não vejo como. Meus créditos e meu disfarce são muito bons. Meu avô se encarregou disso — o olhou—. Mas isso não é tudo. O outro dia veio para me ver um agente do FBI no trabalho. Fez-me muitas perguntas sobre ti. Inclusive queria que te espionasse.

     —Como se chama? —perguntou Zac.

     —Talbott.

     Zac assentiu sombrio.

     —Sim, conheço-o. Também veio me ver no hospital.

     —O que queria?

     —Assegurar-se de que sabia que me estaria vigiando.

     Camille começou a andar de novo.

     — Eu não gosto disso, Zac. Não acreditará…

     —O que?

     — Acha que veio mais alguém através do túnel? Alguém que tenta destruir nosso disfarce?

     Ele pensou um momento.

     —É possível. Mas não é estranho que o FBI suspeite dos estranhos, sobre tudo em tempo de guerra. E sobre tudo nos arredores de um laboratório nuclear muito secreto.

     —Suponho que tenha razão — Camille tentou tranqüilizar-se—. Suponho que isso pode explicar por que vi Alice com Talbott na cafeteria depois de que falou comigo, mas tive a impressão de que se conheciam. E Alice deixou cair um papel no chão e, quando Talbott o recolheu, o meteu no bolso da jaqueta em lugar de devolver a ela.

     — Acha que ela passa segredos para ele?

     —Não sei. Mas uma vez me disse que se encontra com um jovem ajudante de investigação do laboratório de meu avô. E sabe que vai ocorrer algo importante nos dia 15.

     —Ela disse isso a você?

     Camille ficou pensativa.

     — Quanto mais penso nisso, mais me parece que temos que vigiar a Alice. E não lhe contei tudo — se voltou—. Hoje a vi de novo com Talbott. Encontraram-se no quarto dos fornecimentos, no trabalho.

     —Podia ser um encontro de amantes?

   —Talvez, mas esta tarde a segui de novo. Desceu do ônibus em Ashton, caminhou várias ruas e subiu no carro de Daniel Clutter.

     —Clutter? — Zac deu um assobio—. Parece que Alice Nichols gosta de mover-se. Um agente do FBI, um ajudante de investigação e um engenheiro, todos com acesso a temas de alto segredo detrás da grade.

     —E o que fazemos? —perguntou Camille.

     —Vigia-a, mas tome cuidado. Não deixe que se dê conta. Se sentir-se abordada, pode ser perigosa.

     Camille o olhou um momento.

     —Não estou certa de nada disto. Supõe-se que não devamos interferir. Qualquer pequena mudança poderia ter conseqüências terríveis. Não podemos ir por aí mudando a história.

     —Sim podemos — ele se levantou e se aproximou lentamente a ela—. Temos o poder de mudar o futuro, de alterar o curso da história. Pense Camille.

     Ela pensava… ou ao menos o tentava. Mas ele não era fácil. Estava muito perto e a olhava de um modo que a deixava sem fôlego.

     Camille queria afastar-se dele, mas sabia que, não agüentava nesse momento, não poderia voltar a confiar em si mesma no que se referia a ele. Tinha que provar de uma vez por todas que tinha superado seu amor por Zac. Que ele não podia fazer mal a ela outra vez.

     Mas assim que tocou seu rosto, algo paralisou-se dentro dela. O coração começou a pulsar com força e sentiu dobrar seus joelhos só olhando.

     Pôs a corrente e o fechou debaixo do cabelo. Quando esteve em seu lugar, apoiado no oco da garganta dela, tocou-o com a ponta dos dedos.

     —Temos a ocasião de arrumar as coisas.

     Referia-se ao mundo… ou a eles dois?

     —Há coisas que não são possíveis — sussurrou ela.

     Ele levantou o olhar.

     — Acha de verdade?

     —Sim — ela fechou os olhos—. Tenho que acreditar. Se não, não poderia viver.

     Ele baixou a cabeça e a beijou, e Camille teve que fazer um grande esforço para não responder. Não se soltou, mas tampouco devolveu o beijo, e quando ele levantou a cabeça, olhou-a aos olhos.

     — Beije-me, Camille.

     —Não posso. Se te beijar…

     —O que?

     Ela engoliu em seco.

     —Se te beijar estarei perdida.

     —Eu também estou perdido — disse ele. E voltou a beijá-la.

   Não interrompeu o beijo nem para tomá-la nos braços e transportá-la até o dormitório nem para tirar sua bata. Tirou a camisola sem deixar de beijá-la e tirou a calça sem interromper o beijo. Não deixou de beijá-la… porque Camille não o permitia parar.

     Agarrava-se a ele com desespero, beijando o de tal modo que Zac sentia desaparecer sua força de vontade. Desejava-a. Queria vê-la ardente e trêmula em seus braços. Queria estar dentro dela, olhando seu rosto durante o orgasmo…

     Ela o puxou sobre a cama e seus braços e pernas se abraçaram sem interromper o beijo.

     Quando ao fim ele se apartou, seus olhos se encontraram à luz da lua.

     —Te desejo — sussurrou ela.

     —Eu também te desejo. Mais do que nunca saberá.

     Zac se ajoelhou ao pé da cama. Camille estava deitada de costas e o olhava. Acariciou-lhe o tornozelo e foi subindo pela perna. Inclinou-se para beijar a curva do joelho e passou os lábios pela parte interna da coxa até que ela começou a tremer. Não podia deter-se. Deslizou as mãos no cabelo dele e puxou para cima.

     —É muito formosa — sussurrou ele ao penetrá-la.

     Camille fechou os olhos e arqueou os quadris para recebê-lo. Sim. Isso era o que queria. O que tinha sentido falta por tanto tempo. O corpo de Zac em cima dela, dentro dela, fazendo-a sentir como se os dois estivessem destinados a estar juntos.

     Começaram a mover-se devagar, mas se beijaram de novo e seus movimentos ficaram mais frenéticos. Gemidos e sussurros suaves se mesclavam na escuridão. Zac a abraçava com ferocidade. Seus olhos se encontraram e, durante um momento glorioso, o tempo se deteve.

     Um momento depois, Camille jazia contra o corpo de Zac, com a cabeça apoiada na mão.

     —Está dormindo? —sussurrou ele.

     —Não, estou pensando.

     —Em que?

     Ela suspirou.

     —Em Adam.

     Zac a estreitou contra si.

     —Isso me parecia. Eu também pensava nele — a tristeza de sua voz fez com que os olhos de Camille se enchessem de lágrimas.

     Virou-se e apoiou a cabeça no peito dele.

     —Desde que morreu, minha vida foi um inferno, mas eu não queria que desaparecesse a dor se isso implicava perder também minhas lembranças dele. Sinto que você não tenha essas lembranças.

     Zac pigarreou.

     —Eu também sinto. Sinto não ter estado ali para salvá-lo.

     Camille o olhou.

     —Você não teve culpa. Em outro tempo eu me convenci de que sim, mas agora sei que era mais fácil jogar a culpa em você do que confrontar a minha. Eu estava ali… e podia tê-lo salvado.

     Zac jogou o cabelo para trás.

     —Não pode se sentir culpada.

     —Mas se tivesse feito caso a meu instinto… se tivesse obrigado a partir do parque quando soube que devíamos ir… — fechou os olhos—. Suplicou-me que ficássemos e não tive coração para negar.  

     —Porque o queria. Queria fazê-lo feliz.

     —E agora está morto.

     Zac guardou silêncio um momento.

     —Temos uma conta pendente, Camille.

     Ela levantou a cabeça.

     —Von Meter?

     —E Vogel. Pagarão pelo que fizeram. Prometo isso.

     —Você não pode acabar com eles. São muito poderosos. Te matarão.

     —Isso veremos.

     Apertou os lábios com crueldade e Camille pôde ver um lapso do super soldado que levava dentro. O super soldado que faria o que fosse para ter êxito em sua missão.

 

    Quando Camille foi trabalhar na manhã seguinte, Zac voltou para a mina para comprovar que não tinham movido as caixas durante a noite. Não conhecia os planos dos sabotadores, mas a proximidade do Oak Ridge fazia que ficasse fácil suspeitar que fora aquele seu objetivo. E se tinham informado do Projeto Arco Íris, era concebível que queriam atacar o laboratório do doutor Kessler. E então Camille estaria também em perigo.

     Zac sabia que faria tudo o que estivesse em seu poder para protegê-la, mas e se não fosse o suficiente? Não tinha sido capaz de proteger ao Adam.

     Um nó de dor se formou em seu coração, mas não se permitiu desfrutar nele. Havia muito que fazer, muitas coisas em jogo, e não podia distrair-se nem atormentar-se com o que podia ter ocorrido.

     Tampouco podia permitir pensar em Camille e em como suas noites juntos podiam afetar a sua missão. Seguia tendo intenção de procurar que apagassem todos os geradores depois do reaparecimento do Eldridge porque, dissesse o que dissesse Camille, era muito perigoso deixar o túnel aberto. E isso implicava que tinha que procurar o modo de aproximar-se do doutor Kessler. Preferivelmente com a colaboração de Camille, mas se não…

     Encontrou as caixas tal como estavam antes e registrou os túneis próximos, mas não descobriu nada mais suspeito, por isso voltou para a casinha para iniciar a vigilância. Das janelas que davam ao oeste, observava a colina com binóculos com a esperança de detectar algum movimento fora do corrente.

     Permaneceu nas janelas quase todo o dia e, pela tarde, quando as sombras da colina se faziam mais largas e profundas e a vigilância se tornava mais difícil, saiu com intenção de subir de novo à mina.

     Billy o esperava fora. Aproximou-se correndo com sua bola e sua luva.

     —Né, Zac! Quer jogar?

     —Hoje não posso. Tenho que fazer umas coisas — Zac se ajoelhou no chão ao ver a decepção do menino—. O que foi? Os gêmeos não querem jogar contigo?

     —Não estão em casa. A senhora Fowler enviou ao Donny à cidade e Davy subiu a… — se interrompeu e abriu muito os olhos com apreensão ao dar-se conta de seu engano.

     —Aonde foi Davy? —perguntou Zac com receio.

     —A nenhum lugar. —murmurou Billy, apartando a vista.

     Zac pôs uma mão no ombro e obrigou a olhá-lo.

     —Billy, Davy subiu à mina?

     O menino negou vigorosamente com a cabeça, mas o traíram os olhos. Não podia olhar para Zac.

     Este se perguntou como era possível que não tivesse visto o menino. Tinha vigiado o atalho durante todo o dia. E se Davy tinha subido sem que o visse, outros podiam ter feito o mesmo.

     Apertou o ombro do Billy.

     —Escuta, isto é importante. Davy subiu à mina?

     Ao Billy começou a tremer o lábio inferior.

     — Diga-me a verdade, filho — Zac tentou suavizar seu tom—. Não quer que aconteça nada ao Davy, verdade? Está na mina?

     Billy assentiu com ar contrito.

     —Zangará comigo por dizê-lo.

     Zac lhe apertou o ombro.

   —Fez o que devia. Essa mina é um lugar perigoso. Pode acontecer algo a seu irmão — sobre tudo se os sabotadores inimigos o surpreendessem bisbilhotando perto das caixas—. Vou a sua busca. Quero que vá para casa e nos espere ali. Entendido?

     Billy assentiu.

     —Sim, senhor.

     —Bem. Agora vá. —quanto antes subisse à mina, antes poderia tentar colocar medo em Davy Clutter.

     Pegou uma lanterna e sua pistola e subiu pelo atalho, atento a qualquer sinal de vida. Deteve-se justo na entrada da mina e escutou um momento antes de acender a lanterna. Ao princípio só ouviu os ruídos de costume… a destilação constante da água, o rangido da madeira velha. E depois, do profundo da mina lhe chegou o ruído de algo metálico ao se chocar com o chão.

     Estava bastante certo de saber de onde procedia o som. Seguiu os trilhos pelo interior da mina e repetiu o mesmo caminho que tinha feito essa manhã.

     Aproximou-se com cautela ao alargamento. Desde dentro emanava luz e ouvia alguém se movendo. Esmagou-se contra a parede e apareceu pela esquina esperando ver Davy; mas a pessoa que trabalhava freneticamente nas caixas era uma mulher.

     Estava de costas, mas Zac acreditou reconhecer o cabelo loiro e a figura esbelta.

     Tirou sua pistola e entrou na zona.

     —Levante as mãos e dê a volta devagar.

     Sua voz a sobressaltou de tal modo que deu um salto e soltou a gazua, que aterrissou no chão com outro golpe metálico.

     Betty Wilson se voltou lentamente, com as mãos trementes levantadas no ar. Quando o viu, sua primeira reação foi de alívio.

     —Zac! OH, graças a Deus que é você! —então viu a pistola e abriu muito os olhos—. Por que tem uma pistola?

     —O que faz aqui? —replicou ele—. O que sabe dessas caixas? —entrou na mina de modo que pudesse vigiar a entrada e a Betty.

     —OH, são tuas? —perguntou ela com ar inocente.

     Zac a olhou com frieza.

     —Eu acredito que você sabe de quem são. Acredito que ajudou às colocar aqui faz três dias.

     Os olhos azuis dela se aumentaram ainda mais.

     —Não é certo. Juro que não sabia nada delas até que ele me trouxe aqui ontem à noite.

     —Ele?

     Ela se ruborizou e desviou a vista.

     —Olhe, posso…? —baixou os braços.

     —Deixa as mãos onde possa as ver — advertiu Zac.

     Ela cruzou os dedos ante si.

     —Não é o que pensa. Conheci-o faz uns dias quando veio ao hospital ver você. Saímos umas quantas vezes, nada sério. Eu só… queria me divertir um pouco, e se por acaso não deste conta, não há muitos homens solteiros por aqui.

     Fez uma pausa e respirou fundo.

     —Depois de sair umas quantas vezes, disse-me que tinha contatos, que podia me conseguir meias, açúcar e essas coisas. E que a única coisa era te vigiar, avisar se dizia ou fazia algo suspeito. Ao princípio me pareceu emocionante e perigoso — umedeceu os lábios—. Mas eu jamais haveria dito nada sobre ti, Zac. Nada importante.

     A ele obscureceu o olhar. É obvio, não acreditava absolutamente.

     —Ainda não me disse seu nome.

     Ela abriu a boca para responder, mas um golpe surdo lhe arrancou um grito. O farol caiu do prego e o querosene explodiu assim que o cristal tocou o chão.

     Zac correu a apagar as chamas antes que chegassem às caixas. Pela extremidade do olho viu mover uma sombra na soleira, mas antes que pudesse dar a volta para defender-se, algo lhe golpeou a cabeça e caiu para frente.

    

     Camille estava sentada em sua mesa e pensava o que faria Zac naquele momento. Não queria pensar nele, mas não podia evitá-lo. Não queria pensar o que podia significar a noite anterior para o futuro, porque no fundo sabia que não significava nada. Zac a tinha deixado em uma ocasião e não havia motivo para acreditar que não voltaria a fazê-lo enquanto estivesse sob o controle do Von Meter. Como podia arriscar-se a passar outra vez por isso?

     E, entretanto… como podia não fazê-lo? Como dar as costas quando uma parte dela acreditava ainda que podia salvá-lo?

     —Camille Somersby?

     Levantou a vista e viu um jovem ao que não conhecia. Usava um traje escuro e uma placa que o identificava como pertencente à Divisão de Segurança e Inteligência.

     —Sim?

     —Pode vir comigo, por favor?

     Camille sentiu acelerar o coração.

     — Por quê?

     —Venha comigo, por favor.

     A jovem se levantou a contra gosto e o seguiu para o corredor. Ele a guiou por uma série de corredores e escadas até que estiveram tão profundamente dentro do edifício que a jovem duvidou de que pudesse voltar a encontrar a saída.

     Ao fim o agente se deteve diante de uma porta, chamou uma vez, esperou um momento e fez gestos de que entrasse. Camille esperava encontrar uma luz brilhante nos olhos, uma luz tão cegadora que impediria de ver as caras de seus interrogadores. Em lugar disso, o agente saudou com a cabeça a um de seus colegas e a precedeu através de outra porta até um laboratório que continha largas fileiras de equipamentos eletrônicos com válvulas e artefatos de aspecto complicado.

     Seu avô estava sentado ao final da sala, em uma mesa baixa, com a cabeça inclinada sobre seu trabalho. Levava uma bata branca e levantou a vista com ansiedade quando a viu aproximar-se.

     —Peço desculpas pelo subterfúgio — se despediu do agente com a mão e ficou em pé—. Não queria que o agente Talbott se inteirasse deste encontro.

     —Por quê? O que acontece? — perguntou ela com nervosismo.

     Ele esfregou a ponta do nariz como se tentasse aliviar a tensão com uma massagem.

     —Queria falar das cartas que datilografou ontem.

     —Sim? Não disse a ninguém, se for isso que lhe preocupa — assegurou Camille.

     Ele negou com a cabeça.

     —Não pensava que fosse fazê-lo. Não, queria falar de… seu conteúdo. Compreendeu você o significado dessas cartas?

     Camille vacilou não muito segura do que devia dizer. Compreendia tudo, mas ele não esperava que fosse assim.

     —Acredito que está tentando conseguir que os membros de um Comitê de Supervisão do Senado parem um experimento relacionado com um casco de navio de guerra.

     Ele suspirou.

     —É obvio, fracassarei. Igual às demais vezes que tentei apelar a suas consciências — se interrompeu e moveu a cabeça com tristeza—. Temo que seja impossível parar, mas… não é essa a razão pela qual queria vê-la.

     —E qual é? —perguntou ela, confusa.

     —Trouxe-a aqui porque há muito poucas pessoas na reserva em quem possa confiar. Você é uma delas — levantou uma mão antes que ela pudesse responder—. Sei que deve parecer estranho, já que apenas a conheço. Mas sei julgar às pessoas e do momento em que a vi soube que podia confiar em você. Não me peça que explique. Simplesmente soube que era você quão única podia me ajudar.

     —A que?

     Ele tirou um envelope do bolso de sua bata e o estendeu. Ia dirigido à senhorita Elsa Chambers, em uma universidade importante de Califórnia.

     Ela levantou a vista.

     —Não compreendo. O que é isto?

     —Pensei muito no conselho que me deu de que deveria me pôr em contato com a Elsa depois da guerra e cheguei à conclusão de que tem razão. Eu gostaria de muito avivar nossa… amizade, mas, por desgraça, pode que isso não seja possível.

     —Por que não? —perguntou Camille, assustada. O tom de seu avô era preocupante. Tinha o aspecto de um homem que levasse um peso monumental sobre os ombros.

     —O experimento ao que me referia nessas cartas terá lugar dentro de uns dias. Se, como temo, minhas súplicas caem de novo em saco quebrado, só fica fazer uma coisa.

     Camille sabia que se referia a destruir os geradores.

     Devia contar a verdade? Tentar convencê-lo de que esse ato final de desafio e desespero tinha o potencial de mudar o mundo de um modo que ele não podia nem imaginar?

     —O que vai fazer? —perguntou.

     Seus olhos brilharam com determinação.

     —Se não puder impedir que tenha lugar o experimento, terei que tomar parte dele.

     Camille o olhou de marco em marco.

     —A que se refere?

     —Penso estar a bordo desse navio para presenciar de primeira mão o caos que se produz quando o homem decide jogar o papel de Deus.

     Camille deu um coice.

     —Mas não pode fazer isso. Não pode ir nesse navio.

     Sua reação o surpreendeu palpavelmente.

     —É algo que tenho que fazer por minha própria consciência. Mas não sei qual será o resultado do experimento. Ninguém sabe. Por isso quero que se assegure de que Elsa receba esta carta. Quero que compreenda por que deixei as coisas como as deixei…

     Camille colocou as mãos na mesa e se inclinou para ele.

     —Não compreende? Sua presença nesse navio mudaria tudo. Teria conseqüências que não pode nem imaginar. O mundo precisa do senhor vivo. Eu preciso. Não permitirei que o faça, avô. Entende-me?

     Ele a olhou atônito.

     —Avô?

    

     Zac estava certo de que só tinha estado inconsciente uns minutos, mas nesse tempo o tinham miserável pelo chão, colocado os braços à costas e as mãos amarradas com algemas às vigas de madeira. Betty estava atrás dele, atada do mesmo modo.

     Tinham acendido outro farol e Zac olhou a seu redor e tentou ver seu atacante.

     —Foi-se — sussurrou Betty.

     —Tenho o pressentimento de que voltará — murmurou Zac.

     Puxou as vigas com as algemas e caiu uma ducha de terra e cascalho. Muito inteligente. Se esforçavam muito por libertar-se podiam fazer que a mina inteira se derrubasse sobre eles.

     —Está bem? —perguntou a Betty.

     —Sim. Não me tem feito nada. E você? Bateu muito forte.

     —Só foi um golpe de soslaio.

     —De soslaio? —perguntou ela com incredulidade—. Deixou-te inconsciente. Por um momento tive medo de que…

     —Tenho uma cabeça dura — Zac olhou a seu redor em busca de algo que pudesse usar como arma ou para soltar as algemas. Se conseguisse chegar à gazua com o pé…

     Então apareceu uma sombra na soleira. Zac levantou a vista e gelou o sangue nas veias.

     O cabelo prateado. Os olhos de cores estranhas.

     —Vogel — murmurou. Recordou o que havia dito Camille na noite anterior. Não foi um acidente. Fez correr à rua atrás da bola.

     Invadiu-o uma fúria que não tinha conhecido nunca e soube sem a menor duvida que, se tivesse estado livre nesse momento, teria arrancado seu coração com suas próprias mãos.

     Puxou inutilmente as algemas, mas só conseguiu provocar outra avalanche de terra.

     Vogel pôs-se a rir.

     —Está em uma situação comprometedora, não acha? Se te esforçar muito… pode afundar a mina. Muito engenhoso, embora eu seja o que o diga.

     —O que faz você aqui? —grunhiu Zac—. Von Meter te enviou?

     —Von Meter não manda em mim. Faz muito tempo que não.

     —E o que faz aqui?

     —Neste momento? Estou pondo os toques finais a uns explosivos que desenhei para meus novos amigos — Vogel cruzou a mina, tirou algo de uma das caixas e o colocou com cuidado na bolsa de couro que levava consigo. Endireitou-se—. Os alemães têm uma rede bastante impressionante nesta zona. Têm inclusive gente atrás da grade e estão impacientes por fazer entendimentos. Já tenho feito alguns contatos muito úteis, mas por que não? Eu sou um deles. Minha avó era uma espiã alemã, ou melhor, dizendo, é. Leva quase um ano trabalhando em Oak Ridge, diante dos narizes do FBI.

     Zac seguia trabalhando nas algemas e sentia que Betty fazia o mesmo.

     —Quem é? —perguntou.

     —Uma jovem inteligente chamada Alice Nichols. Não tem nem idéia de quem sou eu, é obvio, reservo essa informação para o momento idôneo — sorriu para Zac—. E você a conhece. Certamente não te lembra, mas te fez uma visita no hospital. Se não fosse pela enfermeira Betty, certamente não teria despertado do coma.

     —Ou seja, que sim tentava asfixiá-lo com o travesseiro — disse Betty com tom de ultraje—. Sabia.

     Vogel pôs-se a rir.

     —Pode culpá-la? Zac foi muito molesto. E também queria acabar contigo — disse a Betty—. Mas a convenci de que podia nos ser útil. Umas adulações, uns presentinhos e estava mais que disposta a espiar ao Zac para mim, verdade? Claro que isso agora já terminou. Temo que já não nos é de utilidade.

     —O que vai fazer conosco? —perguntou Betty, mas o tremor de sua voz transmitia seu terror.

     —Isso depende do Zac.

     Este o olhou.

     —O que significa isso?

     Vogel se aproximou e se ajoelhou junto a eles. Mostrou-lhes uma chave e a jogou no chão, a uns metros de distância.

     —Sempre foste o menino mimado de Von Meter apesar de eu ter dez vezes mais talento que você. Muitas vezes levaste a cabo missões que deveriam ter sido minhas. Mas todo isso está a ponto de mudar. Olhe Zac, nunca esteve a minha altura, nem no futuro nem aqui no passado. Olhe com que facilidade te apanhei.

     —Isto ainda não terminou — disse Zac.

     Vogel sorriu.

     —Assim que eu gosto. —empurrou a chave uns metros mais longe—. Vejamos o super soldado que é. Em outro tempo dominava a telequinesia. O que me diz? Pode mover a chave?

     Zac olhou um momento a chave, pensando que demônios tinha que fazer com ela. Segundo Camille, uma vez tinha tido o poder de parar um carro com a mente. Agora não sabia como começar a mover algo tão pequeno como uma chave.

     Vogel se pôs a rir, como se lesse seu pensamento.

     —Isso me parecia — se endireitou e se aproximou das caixas.

     —Diz que Alice Nichols é sua avó — Zac tentou centrar sua atenção na chave—. E seu avô?

     —Nunca soube quem foi — repôs Vogel—. Alguém a quem usava minha avó para conseguir informação dos aliados, suponho.

     —Que entendimentos tem feito com os alemães? —Zac seguia com a vista cravada na chave. Era sua imaginação ou se moveu um milímetro? Betty deu um coice atrás dele e se perguntou se ela também o teria visto.

     —Estão dispostos a pagar milhões por descobrir os segredos de detrás da grade. Pagarão ainda mais pelos segredos do Projeto Fênix. E eu só tenho que entregar ao doutor Fênix para eles. Preferivelmente vivo, mas se isso não for possível, bastarão suas notas.

     Zac sentiu um calafrio. Vogel planejava seqüestrar ou assassinar Nicholas Kessler. E a pessoa que se intrometeria em seu caminho seria Camille. Zac sabia que morreria protegendo ao seu avô, também sabia faria tudo o que estivesse em sua mão por assegurar-se de que isso não ocorresse. Não tinha podido salvar a Adam, mas salvaria Camille ou morreria no intento.

     Vogel fechou a bolsa de couro e se aproximou da entrada. Voltou-se para Zac.

     —Em uns minutos, quando estiver a salvo ao pé da colina, detonarei explosivos suficientes para selar a entrada desta mina e seu destino. Desta vez não sairá vivo daqui.

     —Se voar a mina não poderá voltar pelo túnel do tempo. Ficará preso aqui — disse Zac.

     Vogel se encolheu de ombros.

     —Os alemães me tratarão como a um deus quando entregar a vitória. Me cobrirão de riquezas e de poder. Acredito que, nessas circunstâncias, poderei me adaptar à época — fez uma saudação zombadora e desapareceu no túnel.

     —O que dizia? —perguntou Betty nervosa—. O futuro, o passado? O que significa tudo isso? E como tem feito que se mova a chave?

     —Você a viu mover-se? —perguntou Zac ansioso.

     —Claro que a vi. Pode-se saber como…? —se interrompeu porque a chave se moveu outro milímetro—. Como tem feito isso? —perguntou temerosa—. Quem são vocês? O que são?

     Zac tentou não fazer caso dela e concentrar-se na chave, mas não serviu de muito. Podia mover a chave um pouco, mas não o suficiente.

     —Quanto acha que falta para a explosão? —perguntou Betty preocupada.

     —Não muito — Zac se concentrou na chave com determinação fera. Tinha que haver um modo de controlar sua energia…

     —Zac? —sussurrou uma voz do túnel principal.

     —Davy?

     O menino olhou por cima do ombro e se arrastou pela abertura.

     —Acredito que foi embora.

     Zac sentiu o coração apertar de medo ao compreender o perigo que corria o menino.

     —Davy, tem que ir daqui. Pôs uma bomba.

     Mas em lugar de fugir, o menino se aproximou para pegar a chave. Abriu rapidamente as algemas de Zac e depois libertou a Betty.

     A jovem ficou em pé vacilante.

     —O que fazemos agora?

     Tudo começou como um murmúrio que foi crescendo até fazer-se ensurdecedor. Os chãos e as paredes tremiam, sobre eles caíam terra e rochas de modo que Zac só conseguia ver uns centímetros por diante dele. Seus olhos e a garganta ficaram tampados. Estendeu os braços às cegas, encontrou Davy e Betty e os puxou para a entrada.

     —Vamos! Terá que sair daqui!

     —Não há para onde ir — gritou Betty—. A entrada foi destruída. Estamos presos aqui.

     Davy atirou do braço do Zac.

     —Conheço outra saída.

     Entrou no túnel principal e Zac o seguiu, puxando Betty. Atrás deles, as vigas se partiam em dois e o túnel começava a afundar-se.

 

     —Responda! Por que me chamou «avô»? —perguntou o doutor Kessler.

     —Porque eu… — Camille levantou a cabeça para ouvir uma explosão longínqua. O equipamento da mesa tremeu um momento e o coração bateu com força no peito.

     —O que foi isso?

     —Soou muito longe — declarou seu avô—. Seja o que for não acredito que corramos perigo.

   Camille não estava tão certa. Recordava bem as caixas amontoadas na mina e a afirmação de Zac de que podiam ser uma ameaça para a vida de seu avô.

     Levantou a vista assustada.

    —Acredito que terá que sair daqui.

     —Como diz?

     —Da reserva. De Oak Ridge. Não é seguro que fique aqui.

     Ele franziu o cenho.

     —Não me respondeu. Por que me chamou assim? É evidente que não sou o bastante velho para ser seu avô. É uma espécie de chave? Quem é você? Algo me diz que não é uma empregada corrente.

     —Não, não o sou — admitiu ela—. Mandaram-me aqui para protegê-lo.

     Ele arqueou as sobrancelhas surpreso.

     —Enviado? Quem?

     Ela demorou um momento em responder.

     —Você.

     Kessler a olhou com incredulidade.

     —Isso não tem nenhum sentido. Eu a tenho feito chamar, mas não para me proteger. Já lhe disse que quero que entregue uma carta.

     —E eu disse que não pode estar nesse navio quando desaparecer. É muito perigoso.

     —Quando desaparecer — repetiu ele. Entrecerrou os olhos com receio—. Como sabe você isso? Eu não mencionava nada disso nas cartas que lhe dei. Como sabe…?

     —Que desaparecerá o navio? Porque você tem feito desaparecer outros objetos aqui no laboratório, verdade? Desenhou geradores que criam campos eletromagnéticos em torno dos objetos e ficam invisíveis. Exceto… não são só invisíveis. Transportam-se a outro tempo, a outra dimensão… e quando retornam, foram alterados. Por isso se preocupa tanto com o experimento que terá lugar nesse navio. Já viu o que pode ocorrer.

     Seu avô empalideceu.

     —Como sabe você isso? Como pode sabê-lo?

     —O experimento terá lugar como está planejado — disse Camille—. E quando o navio voltar a materializar, fará um buraco na unidade espaço–tempo e formará um túnel que unirá esta época, 1943, com o futuro. E dentro de sessenta anos se recreará o experimento usando um submarino. E se formará outro túnel que unirá o futuro com… agora. Com 1943.

     Ele a olhava como se fosse louca. Mas havia algo em seus olhos, um brilho de medo, que o fazia pensar que já sabia que dizia a verdade.

     —O que diz? Que alguém do futuro poderá viajar no tempo?

     —Não só no tempo. A este tempo. A 1943.

     —Isso não é possível.

     —Sim é — disse Camille com suavidade—. Eu sou a prova.

     Ele levou uma mão à boca e a observou comprido momento.

     —Tenta dizer que é você do futuro?

     —Tento dizer algo mais que isso — sorriu—. Tento dizer que sou sua neta. E vim aqui para protegê-lo.

   Ele teve um sobressalto.

     —Minha neta? Isso é ridículo. Como já disse antes, é evidente que não sou muito mais velho que você.

    —Mas dentro de sessenta anos será. É a verdade — disse ela com suavidade—. Você disse que soube que podia confiar em mim desde a primeira vez que me viu. Não entende? Há uma razão para isso. Temos um vínculo. Somos família. É você meu avô. Ou será.

     Ele passou uma mão pelo cabelo.

     —Como sei que tudo isto não é um engano elaborado? Uma brincadeira inimizade…

     —Não é. Sou sua neta — Camille estendeu uma mão para tocar a dele, mas Kessler a apartou rapidamente. Ela respirou fundo—. Bem, vejo que isto não vai ser fácil, assim lá vai. Depois da guerra, se casará com Elsa Chambers e terão uma filha que se chamará Elizabeth, como sua mãe. Eu sou filha dela.

     Kessler a olhava agora mais admirado que receoso.

     —Recorda-me muito a Elsa — murmurou.

     —Os dois terão um matrimônio comprido e feliz.

     Algo brilhou nos olhos dele.

     —Vive ainda? No futuro, refiro-me.

     Camille moveu a cabeça com tristeza.

     —Morreu faz uns anos.

     —E sua mãe? Elizabeth?

     —Também morreu. Por isso não pode ir nesse navio. É o único que tenho — Camille voltou a estender a mão e dessa vez ele não se apartou—. Se for nesse navio, pode que eu não exista. Se você morrer, eu morro também. Minha mãe e meu filho… não serão nem sequer lembranças porque não terão existido.

     Ele fechou os olhos.

     —O que quer que faça? —sussurrou.

     —Não suba a esse navio. O experimento deve ter lugar como a última vez.

     Kessler abriu os olhos.

     —Mas todos esses homens… morrerão.

     —E outros mais morrerão no futuro. A tecnologia que você criou destruirá vidas, mas não podemos mudar isso. Não podemos alterar o futuro. Não podemos jogar a ser Deus. Você me disse isso.

     —Um sentimento muito nobre.

     Uma porta se fechou detrás deles e Camille se voltou. Ao ver o homem que se aproximava devagar, conteve o fôlego.

     —Como entrou aqui? —perguntou seu avô—. Onde está o agente Wilkins?

     —O homem que estava de guarda na porta? Está… incapacitado no momento.

     Camille sentiu um calafrio; olhou-o nos olhos e soube onde o tinha visto antes. Tinha diante ao assassino de seu filho.

     —Bastardo! —lançou-se contra ele, mas ele tirou uma pistola e ela soube que não vacilaria em usá-la nem por um momento. Ficou imóvel, mas a fúria alagava seu coração. Queria matá-lo mais do que tinha desejado nada em sua vida. Mas a vingança teria que esperar; no momento devia proteger a seu avô.

     —O que quer? O que faz aqui?

     —Quero que o doutor Kessler venha comigo.

     Camille o olhou de cima em baixo.

     —Por cima de meu cadáver.

     Vogel se encolheu de ombros.

     —Isso pode se arrumar facilmente. Ou prefere que o mate e me leve o que necessito? Não me importa, mas pensava que a você sim.

     —Quem é você? —Kessler deu a volta à mesa e se situou ao lado dela. Pôs uma mão protetora no braço—. O que quer?

     —Já disse. Quero que venha comigo. Mas antes necessito que reúna todas suas notas e arquivos, tudo o que tenha sobre o Projeto Arco Íris. Logo nós dois faremos uma comprida viajem.

     —Aonde?

     —A Berlim como destino final.

     —Jamais conseguirá. —disse Camille—. Não conseguirá sair deste edifício, e muito menos do país.

     —OH, eu acredito que sim — repôs Vogel—. A explosão distraiu a maioria dos guardas. Os que se intrometam em nosso caminho morrerão. E, é obvio, está o túnel que seus colegas e você usam para entrar e sair da cidade — olhou ao doutor—. Muito inteligente de sua parte.

     Camille ficou tensa, mas seu avô apertou o braço para advertir que não tentasse nenhuma tolice.

     —Em questão de minutos teremos cruzado a grade — disse Vogel—. Alguém nos espera com um carro para nos levar a um aeródromo próximo. Dali voaremos até a costa e nos reuniremos com um submarino alemão no Atlântico.

     Camille se colocou rapidamente diante de seu avô. Este tentou empurrá-la, mas ela se manteve firme.

     —Não irá a nenhuma parte com você. Antes terá que me matar.

     —Isso não será difícil — Vogel apontou a pistola para ela.

     —Quieto!

   Vogel nem sequer piscou ao ouvir a porta abrir. Quase parecia que estivesse esperando a intromissão.

     — Largue a arma! —gritou o agente especial Talbott. Entrou devagar na sala, apontando as costas de Vogel com sua pistola—. Volte-se devagar — ordenou.

     Vogel começou a girar. Baixou a pistola a um lado, mas não a soltou.

     —Largue-a! Vamos!

     Vogel continuou se voltando.

   —Largue a arma ou disparo! —advertiu Talbott.

     —Você não vai disparar agente Talbott.

     Talbott apertou o dedo no gatilho.

     —Não esteja tão seguro.

     —Estou. Se fosse disparar, já o teria feito.

     Assim a pistola voou da mão do Talbott em um abrir e fechar de olhos. Nem sequer teve tempo de gritar antes que Vogel levantasse sua pistola e disparasse.

     Talbott cambaleou contra a parede, segurando o peito. Quando apartou a mão, seus dedos estavam cobertos de sangue. Olhou para Vogel e caiu no chão como em câmara lenta.

     O ruído de um disparo gelou o sangue de Zac. Camille!

   Tinha seguido o labirinto de corredores e escadas que tinha memorizado nos planos que Von Meter lhe dera, mas não estava seguro de ir na direção correta até que ouviu o disparo.

     E se ele o tinha ouvido, os guardas também. Em questão de minutos entrariam no laboratório de Kessler e ficaria muito difícil para Zac convencê-los de que estava de seu lado. Sobre tudo depois de ter aproveitado a distração da explosão para penetrar detrás da grade.

     Mas se os guardas chegassem, teria que lutar com eles. De momento sua preocupação principal era Camille. E seu avô.

     Desceu uma escada mais e viu uma porta aberta ao final de um comprido corredor. Dentro ouviam vozes. Ao reconhecer de Camille, suspirou aliviado. Graças a Deus, estava viva. Dessa vez não chegara muito tarde. Ainda não.

     Apertou-se contra a parede e avançou devagar para a porta.

     —Ainda respira — ouviu Camille dizer—. Mas morrerá se um médico não atendê-lo imediatamente.

    —Todos têm que morrer — falou Vogel com calma—. E acredito que vamos começar por você.

     —Vogel!

     Para ouvir a voz de Zac, voltou-se com o rosto crispado pela fúria. E logo sua expressão se converteu em surpresa quando a pistola voou de sua mão.

     —Você e eu sozinhos, Vogel — Zac entrou devagar na sala. Não queria olhar para Camille por medo de perder sua concentração, mas podia vê-la pela extremidade do olho. Estava ajoelhada ao lado de Talbott, seu avô ao outro e se alternavam aplicando pressão à ferida do moribundo.

     Zac observou tudo isso no segundo anterior antes de se lançar sobre Vogel. Suas mãos se fecharam no pescoço do outro e ambos caíram contra uma mesa cheia de equipamentos caros.

     Foi uma briga feia. Uma briga amarga até o final. Camille os observava com o coração na garganta, sabedora de que um dos dois não sairia vivo dali.

     No princípio, Zac parecia levar a vantagem, possivelmente porque tinha pegado Vogel despreparado. Mas este se recuperou rapidamente e conseguiu tirar as mãos de Zac de seu pescoço. Agarrou então a garganta de Zac e os dois caíram sobre outra das mesas.

     Camille viu a pistola de Talbott no chão e se lançou sobre ela. Apontou para Vogel, mas um segundo depois, este tinha trocado posição com Zac. Era impossível apontar bem.

     A briga parecia prolongar-se muito sem que nenhum dos dois levasse uma vantagem clara. Caíram no chão e Vogel agarrou um ferro e golpeou Zac na têmpora. Este subiu o braço para proteger a cabeça, mas não pôde evitar o golpe. Caiu para trás atordoado e, antes que pudesse recuperar-se, Vogel se jogou em cima dele. Com um pedaço de vidro quebrado e sua intenção estava muito clara. Queria cortar a garganta de Zac. Jogou o vidro para trás e, antes que tivesse tempo de baixá-lo, Camille disparou.

   Por um momento não estava certa de haver acertado. Disparou de novo, mas a bala pareceu passar através dele.

     E Vogel começou a desaparecer diante de seus olhos.

     —Está morto.

     Camille se voltou e olhou a seu avô, ajoelhado ainda ao lado do Talbott. Correu para Zac.

     Este se sentou e sacudiu a cabeça como se quisesse esclarecer visão.

     —O que aconteceu?

     —Não estou certa — disse Camille—. Disparei. Ou pelo menos, acredito que sim. E desapareceu. Evaporou-se — de Vogel não ficava nenhuma gota de sangue no chão.

     —Mas o que…?

     Uma batida na porta interrompeu as palavras de Zac. Voltou-se com Camille e viram Betty Wilson e Davy na porta.

     O olhar aterrorizado da enfermeira passou de Zac a Camille e de novo a ele.

     —Quem são vós? Como… como fizeram isso?

     Davy pareceu um momento sem fala, mas logo seus olhos brilharam de entusiasmo.

     —São de verdade do futuro. Donny não vai acreditar.

     Zac se levantou com um esforço e Camille e ele se aproximaram do homem morto. O doutor Kessler olhou.

     — Desapareceu no momento em que o agente Talbott deixou de respirar.

     Camille levou uma mão tremente à boca.

     —Então devia ser…

     —O avô de Vogel — terminou Zac—. Disse que sua avó é Alice Nichols. Ou teria sido. Talbott e ela deviam ter uma relação durante a guerra, mas ela não disse a ninguém. Talbott certamente nem sequer soube que estava grávida.

     —E ao matar a seu avô, Vogel deixou de existir — Camille segurou Zac Isso significa…

     Ele negou com a cabeça.

     —Não. Não sabemos o que significa. Não sabemos como mudou o futuro o que fizemos hoje.

     —Tem razão — interveio o doutor Kessler—. O túnel de que me falou antes, que se abriu depois do experimento… agora vejo quão perigoso é. Terá que destruí-lo. Não podemos correr o risco de que venham mais pessoas como ele — apontou o lugar onde tinha desaparecido Vogel—. E vocês dois… têm que voltar agora mesmo. Não podem continuar aqui. Olhem o dano que causaram.

     Camille olhou surpreendida.

     —Mas salvamos sua vida. Por isso vim aqui.

     Seu avô a olhou de cima em baixo.

     —Já cumpriste sua missão. É hora de ir os dois.

   —Tem razão — disse Zac—. A explosão selou a entrada da mina, mas Davy conhece outro caminho. Se não formos agora, pode ser que seja muito tarde. Os túneis estão derrubando. Pode que se afunde toda a mina — olhou para Kessler e lhe explicou rapidamente o que tinha que fazer aos geradores a bordo do Eldridge quando reaparecesse o navio.

     —Entendido — disse o cientista com impaciência—. E agora vão.

     Betty correu para Zac, jogou os braços ao redor de seu pescoço e o beijou nos lábios. Ele parou confuso.

     —Por que isso?

   —Aonde você vai eu serei uma anciã. Ou estarei morta. Pensei que esta era minha última oportunidade.

     Camille segurou Zac pelo braço.

     — Acertou.

     Betty sorriu com bom humor.

     —OH, quase esqueço. Encontrei isto na mina. Acredito que caiu de você — tirou um medalhão de ouro do bolso e o passou para Zac.

     Este o olhou um momento.

     —Parece-me que é seu — disse ao doutor Kessler.

     Este tomou o medalhão e o levantou a luz.

     —É precioso — disse—, mas não é meu. Nunca o tinha visto.

     Camille viu a expressão de Zac e ficou petrificada. Ele olhava o medalhão e ela soube que o detonador plantado em seu subconsciente tinha sido ativado. Levantou a pistola do Talbott no mesmo instante em que ele levantava a sua.

     Camille apertou o dedo no gatilho; o coração batia com violência.

     —Não posso deixar que o faça. —sussurrou.

     Ele parecia não ouvi-la. Seu olhar seguia cravado no medalhão.

     —Não o faça — suplicou ela—. Se o matas, me matas. Desaparecerei igual a Vogel. Deixarei de existir. É isso o que quer?

     Zac nem sequer piscou. Camille continuou com desespero:

     —E o que tem Adam? Pensa Zac. Agora poderia estar vivo. Pode ser que esteja no futuro, nos esperando. Só temos que ir buscá-lo. Solta a pistola, Zac. Por favor. Faça pelo bem de Adam.

     Zac, sem dizer uma palavra, baixou a pistola para o lado e a deixou cair no chão. Só então olhou a Camille nos olhos. E o que ela viu nos seus deu vontade de chorar.

  

     O buraco que levava ao interior da mina mal era o bastante largo para um adulto. Zac se enfiou primeiro, deixou-se cair um par de metros até o chão e levantou os braços para ajudar Camille a descer.

     O ar estava espesso de pó dos túneis que ruíram e as paredes e chãos tremiam ainda depois da explosão. Avançaram pelo corredor estreito, pisando em escombros e vendo-se obrigados a parar às vezes para limpar o caminho antes de continuar.

     Quando se aproximavam do túnel do tempo, o coração de Camille pulsava com força. Tomou a mão de Zac e a apertou.

     — Acha que é possível…?

     —Não sei. Tenho medo de pensar… de esperar… — olhou para ela—. Vamos tomar as coisas como vêm.

     Ela assentiu. Tinha razão. Teria que ir passo a passo. E o primeiro passo… era voltar para casa.

     —Preparada? —perguntou Zac.

     Camille respirou fundo e assentiu.

     E então ouviram a voz que os chamava. Camille pensou…

     Olhou ao Zac.

     —Esse é…?

     —É Davy. Deve ter nos seguido ao interior da mina.

     —OH, Meu deus! —Camille olhou a seu redor—. Os túneis estão ruindo. Ficará preso aqui.

     Tropeçou em algo no chão e perdeu o equilíbrio.

     Davy voltou a chamá-los, dessa vez com pânico na voz.

     Zac puxou Camille e a levantou.

     —Vá!

     —Não! Não irei sem ti!

     —Vá procurar Adam! —gritou ele. E sem mais, empurrou-a ao túnel do tempo e o último ruído que ouviu Camille foi o rugido de rochas e terra ao cair.

 

     Camille despertou e encontrou com uns rostos desconhecidos que a olhavam. Tentou sentar-se, mas umas mãos a empurraram com gentileza sobre o travesseiro.

     —Tranqüila. Ficará bem.

     Ela piscou confusa.

     —Onde estou?

     —No Hospital Memorial, em Knoxville. Uns turistas a encontraram inconsciente perto de uma mina abandonada nos subúrbios do Oak Ridge e a trouxeram para a Emergência. Recorda o que aconteceu?

     Camille levou uma mão à cabeça. Tudo estava muito confuso. Oak Ridge? Uma mina abandonada?

     —Levava contigo uns papéis muito estranhos — comentou o doutor—. Estavam datados em 1943 e assumimos que você trabalhava em um documentário que estão fazendo perto dali. Isso lhe lembra algo?

     Camille negou com a cabeça.

     —E o nome de Nicholas Kessler? Conhece-o?

     Camille levou um susto. Suas lembranças voltavam com rapidez. Oak Ridge. A mina. Zac.

     Tentou sentar-se de novo, mas o doutor não permitiu.

     —Tranqüila — aconselhou—. É evidente que passou por algo traumático.

     —Zac? —perguntou ela, nervosa—. E Zac? Chegou também?

     O doutor e a enfermeira trocaram um olhar.

     —Pelo que sabemos, você estava sozinha. O doutor Kessler… diz que é seu avô.

     Camille se deixou cair sobre o travesseiro.

     —Onde está? Tenho que vê-lo.

     —Está a caminho da Califórnia. Chegará em umas horas.

     —Há dito…? —Camille engoliu em seco—. Sabe algo sobre Adam?

     —Não. Quem é Adam?

   Ela apertou os olhos e uma dor profunda invadiu seu coração.

    

    

     Quando abriu os olhos, ele estava sentado na beira da cama. Ao princípio pensou que era um sonho, mas a imagem parecia tão real como se aquele dia no parque não tivesse existido nunca.

     Camille se viu assaltada pelas lembranças… lembranças do ano anterior… lembranças de Adam e ela em uma partida de beisebol… em um piquenique… voltando para casa da escola…

     Lembranças… como se ele não se fora nunca…

     Camille estendeu a mão para tocá-lo.

     —Adam? —sussurrou maravilhada—. De verdade é você?

     —E quem acha que sou? O ratinho Pérez? —pôs-se a rir e Camille pensou que nunca tinha ouvido nada tão maravilhoso.

     Riu também e o abraçou com tanta força que ele teve que lutar para soltar-se.

     —Mamãe, basta!

     Mas ela não podia parar. Não podia soltá-lo. Abraçou-o com tal ferocidade que ele terminou por ceder e devolveu o abraço. E para Camille foi a sensação mais maravilhosa do mundo.

     Era como se o dia no parque não houvesse existo nunca, porque não tinha existido.

     —Vamos, mamãe! Prometeste. —disse Adam.

     —Sei, mas… — Camille olhou ao seu redor. O parque ainda a aterrorizava. Aquele longínquo dia não era mais que um sonho, mas não podia evitar a sensação de terror que sentia quando iam ali para brincar.

     Adam tomou a mão e a apertou.

     —Mamãe, quem é esse homem dali? E por que nos olha?

     —Que homem?

     Camille levantou a vista e o coração bateu com força quando o viu. A sombra obscurecia o rosto, mas ela sabia que os observava.

     —Zac? —sussurrou.

     Ele os observou um momento mais e depois se voltou e se afastou.

    

    

     —Entre, senhor Riley. O doutor Von Meter o está esperando.

     —Sim?

     —Sim, é obvio. Permite-me seu casaco?

     —Não, acredito que me deixarei posto, se não se importar.

     Zac pensou que nunca se sabia quando teria que sair correndo. Levantou a vista. Esse dia não havia neve na clarabóia. O sol entrava através do vidro.

     A empregada o levou por um corredor comprido e sombrio até umas portas de madeira esculpida que abriu sem chamar.

     —Doutor Von Meter. O senhor Riley quer vê-lo.

     O velho estava de pé ao lado da janela e olhava o jardim. Não falou até que se fecharam as portas atrás da donzela.

     —Estava te esperando. —disse então, sem voltar-se.

     —Sério? —Zac se aproximou devagar a ele.

     O velho se voltou. Ao ver a expressão de Zac, algo parecido ao medo brilhou em seus olhos.

     —Basta — disse—. Não se aproxime mais.

     Zac continuou andando.

     —Temos uma conta pendente, velho.

     —Não sei a que se refere.

     —Sabe muito bem a que me refiro. Se você ou alguém associado com o Projeto Fênix voltar a aproximar-se de Camille ou de meu filho, matarei-o. Compreende?

     Von Meter levantou o queixo.

     —Como se atreve a me falar assim? Eu te criei. Eu te controlo…

     Zac levantou uma mão e a fechou em torno da garganta de Von Meter.

     —Tenho notícias para ti, velho. Você não é Deus. E já é hora de que deixe de fingir que é.

    

    

     Dessa vez Camille foi a primeira a vê-lo. Estava de pé na sombra, observando-os. Saiu à luz, seus olhares se encontraram e ela ficou imóvel.

     Adam se aproximou correndo e puxou seu braço.

     —Quem é esse, mamãe? Eu o vi antes.

     —Viu-o? Onde?

     O menino moveu a cabeça confuso.

     —Não sei.

     Zac se aproximou deles e ela sussurrou seu nome.

     —Von Meter está morto — disse.

     Camille conteve o fôlego.

     —Você o…?

     Ele negou com a cabeça e olhou para Adam.

     —Olá.

     —Olá.

     Zac se ajoelhou e olhou seu filho com o coração nos olhos.

     —Vi você jogar. Lanças muito bem.

     Adam sorriu.

     —Quer jogar comigo?

     —Claro. O beisebol é meu esporte favorito. Quer dizer… — olhou para Camille—. Se a sua mãe não se importar.

     —Não me importo — murmurou ela.

     Sentou-se em um banco próximo e, enquanto os observava através de um véu de lágrimas, o tempo pareceu deter-se. Seu olhar se encontrou com o de Zac e ele sorriu. Ouviu seu filho rir e guardou aquele momento em seu coração. Depois o mundo voltou a girar de novo. O tempo avançava uma vez mais.

 

 

[1] A Batalha de Guadalcanal, ou Campanha de Guadalcanal, foi uma batalha terrestre e aeronaval travada de agosto de 1942 a fevereiro de 1943 entre norte-americanos, australianos e japoneses na ilha de Guadalcanal, no arquipélago das Ilhas Salomão, Oceano Pacífico, durante a II Guerra Mundial 

 

                                                                                                    Amanda Stevens

 

 

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