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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEDUÇÃO E VINGANÇA / Cathy Williams
SEDUÇÃO E VINGANÇA / Cathy Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEDUÇÃO E VINGANÇA

 

Branço era uma cor horrível. Olhando no es­pelho da penteadeira, Isabel achava que nunca mais voltaria a vestir branco. Dava uma sensação de desespero.

Começou a escovar os cabelos, compridos, escuros, quase negros, que caíam em pequenas ondas sobre as costas. Mais cedo ou mais tarde teria de descer para a sala, pensou.

Estava lá em cima no seu quarto havia quase duas horas, vestindo-se. Na verdade, esquivando-se do que ocorria lá embaixo.

Três batidas na porta. Sua mãe abriu. Entrou. Sorriu. Isabel sorriu também. Os músculos da face doíam com o esforço, mas ela não tinha escolha. A noiva tinha de estar feliz. Quem já ouviu falar de uma noiva deprimida?

—        Estou quase pronta — disse, voltando-se e ouvindo o farfalhar do vestido. As mangas justas inibiam seus movimentos. Achava também o decote muito profundo. Mas a culpa era toda dela, pois deixara a mãe escolher o modelo de uma revista, sem nem ao menos dar uma olhada. Tirara as medidas, experimentara, concordara com a mãe e com a costureira. E mal tinha visto o vestido.

Agora percebia que o detestava. Mas, na verdade, detes­taria qualquer vestido de noiva.

—        Que tal estou? — perguntou.

Está linda, querida. — A mãe sorriu mais amplamente, os olhos brilhando.

Nada de lágrimas, você prometeu.

Claro. Se a mãe começasse a chorar, ela começaria tam­bém. Aí, além de uma noiva deprimida, seria uma noiva deprimida com a maquilagem estragada. Um quadro nada agradável.

—        Onde foi parar a minha menina? — A sra. Chandler segurou as mãos da filha.

Isabel olhou para a mãe com ternura, sentindo um nó na garganta.

Ainda estou aqui, mamãe — respondeu. — Você não está perdendo uma filha. Está ganhando um filho. — Dizer aquilo era difícil, pois aumentava seu mal-estar.

Claro, querida, mas seu pai e eu... bem... onde foram parar todos esses anos? Ainda ontem você estava engatinhando. Agora... está se casando.

Eu tinha de crescer um dia. — Isabel falava baixo, tentando parecer despreocupada. Não era conveniente que os pais começassem a suspeitar de que algo não ia bem. Começariam a fazer perguntas e, com certeza, iriam des­cobrir a verdade. Isso ela não podia permitir, pois os amava muito para vê-los sofrer. Era a única e tão desejada filha de um casal que tinha perdido as esperanças de ter filhos, adorada desde o dia em que nascera.

E eu, como estou? — A sra. Chandler deu uma voltinha.

Um espetáculo.

Estava mesmo. A sra. Chandler era alta como a filha, tinham os mesmos olhos azuis. A única diferença era que a mãe era loira. Aos sessenta anos, ainda conservava a mesma beleza. O mal de Parkinson podia ter comprometido seus movimentos, mas não tinha diminuído seu brilho.

Papai é um homem de sorte...

Você não diria isso se o tivesse visto há pouco. — A sra. Chandler riu. — Ele estava furioso, tentando entrar naquele smoking, o mesmo que usou quando nos casamos.

O último botão vai ter de ficar aberto, mas acho que ninguém vai notar. Todos estarão olhando para você, querida. Sorriu outra vez, tentando parecer radiante.

Como vão os preparativos? — perguntou, mudando de assunto. — Eu sei que devia estar ajudando, mas...

Nada disso. Você não poderia estar correndo por aí nesse vestido. Eu sei que deve estar nervosa. Eu também estava no dia do meu casamento. Mas tem gente suficiente lá embaixo cuidando para que nada saia muito errado. Tudo o que encomendamos já chegou e a comida parece deliciosa. Os convidados também já começaram a chegar. Seu pai está lá embaixo.

Jeremy já chegou? — Isabel continuava sorrindo, si­mulando felicidade.

Não deve demorar. Agora, querida, preciso descer e ajudar seu pai. Ele vem buscar você daqui a pouco — parou, voltou-se. — Estou tão feliz, querida. É verdade que seu pai e eu — a mãe agora parecia medir as palavras — ficamos desapontados por você não terminar a faculdade. Mas, hoje, vendo você tão feliz, acho que você sabia o que estava fazendo.

A mãe finalmente saiu. Isabel sentou na cama. Agora que estava sozinha no quarto podia parar de sorrir. Preferia que a mãe não tivesse tocado naquele assunto.

Isabel suspirou. Da cama podia ver sua imagem no grande espelho da parede. Na verdade, não estava tão preocupada com o passado. Mais com o futuro.

Calçou os sapatos. Desconfortáveis. Isabel era alta, estava acostumada a sapatos baixos. Mas este vestido pedia sapatos altos. Completavam o quadro. Sem dúvida, um lindo quadro.

A mãe certa vez lhe disse, orgulhosa, que ela tinha sido vistosa desde bebé. E Isabel nunca teve motivos para du­vidar. Bastava olhar no espelho mais próximo para ver que aquela aparência vistosa nunca a tinha abandonado.

O cabelo era sedoso, a pele branca, as feições perfeitas. Desde criança, ela sempre tinha sido admirada. E acabou se acostumando com isso. Embora achasse a beleza uma bênção, também a achava irrelevante. Beleza, afinal, era algo transitório. E, às vezes, podia ser grande desvantagem. Abria portas, claro. Mas a recepção a seguir nem sempre era a esperada.

Isabel foi até a janela. Olhou para o imenso jardim dos fundos, que seus pais tinham cultivado desde que mudaram para aquela casa. Logo teriam de contratar um jardineiro ou reduzir o tamanho do jardim. Mas claro que adiariam isso enquanto fosse possível. A mãe sabia desde o início da doença que suas condições iam piorar mas, com certeza, continuaria jardinando.

Dali não dava para ver os convidados chegando. Eles entrariam pela porta da frente. Parentes, alguns que ela não via fazia muito tempo. Amigos da faculdade, que pro­vavelmente ficariam boquiabertos com as dimensões da casa de seus pais porque ela nunca tinha deixado transparecer como sua família era rica. Outros amigos, dela e de Jeremy, conhecidos há muito tempo, tanto quanto ela e Jeremy co­nheciam um ao outro.

Olhando para o jardim, Isabel tentava imaginar o que estariam pensando deste casamento. A maioria devia achá-lo uma espécie de desfecho natural, algo previsível. Mas os amigos mais chegados já tinham manifestado seu horror à ideia. Não conseguiam entender como ela podia desistir do curso de medicina para casar. Claro que ela não dizia nada. Como poderia?

Os pais, embora desapontados, procuravam não censurar sua escolha. Tinham ficado perplexos quando, seis meses atrás, ela dissera que ia casar com Jeremy Baker.

Chegaram a achar que ela estivesse grávida. O que, para ela, foi a única nota divertida do lamentável episódio.

— Mas, querida... assim, tão de repente? — a mãe tinha comentado, tentando compreender o incompreensível. — Eu nem sabia que você e Jeremy eram tão próximos. Achava que...

Isabel sabia o que a mãe achava. E tratou de mudar de assunto bem depressa.

Mas vocês não podem esperar um pouco? — o pai perguntou preocupado.

Achamos que assim é melhor para nós — Isabel murmurou. E, quando lhe perguntaram sobre o curso de medicina, deu uma desculpa qualquer, dizendo que não gostava muito de sangue.

No fim, ambos acabaram concordando. E a mãe começou a ajudá-la nos preparativos.

Seu pai exercia grande influência na comunidade, o que facilitava e agilizava tudo. Dos bastidores, Isabel observava, reprimindo a angústia que ameaçava dominá-la.

Claro que sempre a consultavam sobre tudo. Os convites, os guardanapos, as flores. Todas em diferentes tons de ama­relo porque a mãe achava que a primavera era amarela e as flores simbolizariam a primavera. Francamente, o inver­no teria sido mais apropriado. Mas Isabel tinha evitado o comentário.

Andando pelo quarto, Isabel contemplava lembranças de sua infância que ainda andavam por ali. Livros de aventuras que ela devorava quando adolescente, antes que os de bio­logia se tornassem mais fascinantes. Uma boneca que ga­nhou dos pais aos cinco anos, presente de aniversário. Um desenho da família que ela tinha feito aos quatro e os pais tinham orgulhosamente emoldurado, três figuras estranhas com dedos pontiagudos. Apesar do orgulho dos pais, ela sabia que não era uma artista. Tinha uma mente mais lógica.

Ironicamente, sua vida, sempre orientada para a conclu­são mais lógica deste mundo, uma formação no campo que ela adorava, uma carreira onde poderia ajudar pessoas, ti­nha chegado ao mais irracional dos fins.

Aquilo a fazia pensar em Jeremy. E sentir de novo aquele nó na garganta.

Em menos de uma hora ela seria a esposa dele. E não havia sentido em ficar se torturando com a insanidade da ideia, uma vez que não podia fazer nada para evitar.

Bateram na porta outra vez. Não era o pai. Não ainda.

Isabel enrijeceu. Olhou no relógio de pulso, que dizia que ela ainda tinha uns quarenta e cinco minutos de liberdade. E respondeu:

—        Sim. Entre.

Provavelmente era a mãe, com um detalhe de última hora. Ou talvez Abigail, sua melhor amiga, que sem dúvida desandaria a fazer outro sermão sobre a insensatez daquele casamento.

—        Boa ideia — ela dissera quando Isabel lhe falou sobre Jeremy. — Entregue sua vida àquele verme. Jogue fora sua vontade de ser médica. E enquanto não faz isso, por que também não se joga debaixo de um caminhão? — Abigail estudava arte dramática e cultivava um modo teatral de se expressar. — Não vou dizer mais uma palavra sobre esse assunto, nunca mais — mas continuava comentando o tema toda vez -que se encontravam.

Não era Abigail. Não era a mãe. Era a última pessoa no mundo que ela queria encarar. Mas encarou. Desafiadoramente.

Então — ele disse, entrando no quarto e fechando a porta —, a noiva já está pronta... —, sarcasmo na voz, in­solência na expressão.

O que você está fazendo aqui? — Isabel perguntou, sentindo o coração acelerar. E uma certa falta de ar. A presença dele sempre provocava aquela sensação estranha.

Você achava que eu não viria? — Lorenzo tentou sorrir.

Achava. Mas, já que veio, devia estar lá embaixo com os outros.

Na verdade, ele devia estar em qualquer outro lugar, não aqui, no quarto dela. Ela não podia mais suportar esse jogo de crueldade que ele vinha fazendo desde quando soube sobre Jeremy. Mesmo que pudesse entendê-lo.

Nunca achei que você fosse mesmo fazer isso — Lorenzo se aproximou. — Quando, há cinco meses, você me disse o que estava planejando, achei que fosse uma piada, uma piada de mau gosto.

Não é piada, Lorenzo.

Lorenzo segurou os braços de Isabel, que estremeceu.

—        Por quê? Por quê?

Já lhe disse...

Você não me disse nada — Lorenzo a soltou. Foi até a penteadeira. Encostou-se nela, punhos cerrados.

Isabel foi atrás, contendo-se para não abraçá-lo.

—        Por que você está fazendo isso, Isabel? Você não ama Jeremy Baker.

Isabel respondeu rapidamente, para evitar o assunto amor:

Como você pode falar dele nesse tom? Eu achava que ele fosse seu amigo!

Nós dois o conhecemos muito bem — Lorenzo respondeu. — Ele é um irresponsável. Você mesma já disse isso. Não foi esse um dos motivos pelos quais você passou a evitá-lo, mesmo como amigo, quando ele começou a trabalhar com seu pai? Ele a assustava. Você estava contente de estar na faculdade.

Você também me assusta, quando age desse jeito...

Lorenzo estava furioso, uma vez que não conseguia en­tender a situação. Isabel fitava aquele corpo másculo, mo­reno, cuja aparência sensual tinha virado a cabeça de tantas garotas na escola anos atrás. Já naquela época, aos dezesseis anos, seu rosto sugeria o homem admirável que viria a ser.

—        Estou tentando ser razoável, Isabel — ele disse num tom nada razoável —, tentando descobrir se há algo que não sei ou se você precisa ser internada num manicômio.

Lorenzo estreitou o olhar. O cabelo escuro e pele morena realçavam o brilho curioso de seus olhos castanhos. Ele era filho de imigrantes italianos. Brilhante, tinha facilmente conseguido uma bolsa e estudado numa das melhores escolas particulares da Inglaterra. Entre os outros alunos, sem o mesmo brilho, mas muito ricos, parecia um leopardo entre um rebanho de ovelhas.

Lorenzo era diferente de todos, mas nunca se importou com isso. Não precisava. Seu cérebro era suficiente para garantir respeito. Aos dezesseis anos, comentava-se, tinha inteligência comparável à de muitos professores. Brilhante e criativo, mostrava ainda uma incansável vontade de ven­cer. Até hoje.

Sei o que estou fazendo, Lorenzo — Isabel murmurou, olhando para as próprias mãos, cruzadas.

Não, não sabe! — Lorenzo rugiu.

Isabel, nervosa, olhou para ele. E para a porta.

Você vai acabar trazendo todo o mundo aqui para cima.

E vou dizer a todos o mesmo que estou dizendo a você. Que você está maluca!

Você não entende.

Lorenzo foi atrás.

Não entendo o quê?

Isabel não sabia o que dizer. Sabia que havia uma sus­peita sob toda aquela raiva. Que ela não podia aguçar. Lo­renzo era sagaz. Saberia perceber a verdade sob aquela farsa.

Gosto dele — respondeu, evitando aquele olhar. Mas Lorenzo levantou seu queixo, forçando-a a olhar nos olhos dele.

Não, não gosta. Eu sei de quem você gosta. Quer que eu prove? — Seus lábios esboçaram um sorriso.

Lorenzo, não...

Por quê? Tem medo?

Claro que não. Vou casar com Jeremy — disse, colocando as mãos no peito dele. E sentindo aquela energia masculina fluir para seu próprio corpo como uma corrente elétrica. — Você pode não gostar da ideia, mas não pode me impedir.

Você era minha amante — ele disse, voz baixa, áspera. — Ou estava me enganando com ele?

Não.

Você mal o via quando estava na faculdade. Pouco vinha para casa. E os fins de semana passava comigo — Lorenzo pensava e repensava. — E durante a semana ele não poderia. O trabalho não lhe deixava tempo.

Ele escrevia — Isabel admitiu. Uma pequena concessão. Verdadeira. Jeremy tinha mesmo escrito.

Compreendo. Apaixonaram-se por correspondência...— Lorenzo ironizou.

Isso não é da sua conta.

Você esteve envolvida comigo desde os dezesseis anos. Agora tem vinte e fomos amantes por quase um ano. Jeremy nunca fez parte desse quadro. Você sempre me pertenceu.

Tais palavras evocavam lembranças dolorosas. Dos mo­mentos em que ela esteve nos braços dele. Lorenzo tinha sido seu primeiro e único amante.

Pertenço a mim mesma.

Então diga que está apaixonada por ele — Lorenzo desafiou, chegando mais perto.

Ele estava muito perto, tão perto que ela podia perceber as batidas de seu coração, sentir a textura de sua pele. Desde que soube que casaria com Jeremy, Isabel tinha pro­curado evitar Lorenzo Cicolla, porque sua proximidade era o que ela mais temia.

Não pode, não é? Por quê? Ele ameaçou você? Responda!

Claro que não — Isabel respondeu rápido. Muito rá­pido. — Eu o conheço desde criança. Brincávamos juntos. Tínhamos os mesmos amigos.

Eu brincava com uma menina chamada Francesca quando tínhamos dez anos, mas nem por isso vamos casar um com o outro. Além disso, você está falando do passado. E o passado é história.

Somos produto da história.

Você esquece que eu também conheço Jeremy muito bem. O suficiente para saber que ele pode ser perigoso. Ele sempre correu riscos desnecessários e idiotas. E só fazia isso porque seus pais tinham bastante dinheiro para livrá-lo de qualquer encrenca.

Ele tem um emprego!

Isso não significa nada.

Por que aceitou ser seu padrinho de casamento se o detesta tanto? Por que está aqui?

Você não compreende, Isabel? Ele me convidou como um desafio. E nunca recuso um desafio.

Você é tão ruim como ele.

Sou mais inteligente — Lorenzo retrucou. — Só corro riscos calculados. Jeremy me viu como uma ameaça desde quando pus os pés naquela escola. E, quando percebeu que não podia me intimidar, resolveu se aproximar. Francamente, não ligo a mínima para o que ele faz ou deixa de fazer. Mas por trás da sua amizade sempre houve inveja e ressentimento.

Eu sei — Isabel murmurou. — Mas ele gosta de você.

Ele me respeita. É muito diferente — Lorenzo corrigiu. —     Quando ele me convidou para ser seu padrinho, nós dois sabíamos o motivo. Você.

Isabel se voltou. Não queria ouvir mais nada.

—        Você era o prémio, sempre foi — Lorenzo prosseguiu. —     Nesta comunidadezinha fechada, você era a estrela mais brilhante. Mais fascinante. O grande trofeu.

Aonde é que você quer chegar, Lorenzo? — Isabel per­guntou, fazendo o impossível para continuar falando baixo.

Você está mergulhando de cabeça num desastre, des­truindo a própria vida — Lorenzo grunhiu, vermelho de raiva. — Mas ainda tem tempo de evitar.

Aquilo era o máximo que ele pediria, Isabel sabia disso. E sentia uma vontade irresistível de fazer o que ele dizia.

Tudo o que ele tinha dito era verdade. Jeremy sempre tinha tido por ela verdadeira obsessão. Mas nunca lhe ocor­reu que sua privilegiada situação económica, que sempre tinha lhe permitido comprar o que quisesse, não poderia comprá-la. Ele a tinha pedido em casamento quando ela ainda estava no colégio, aos dezesseis anos. E depois, na faculdade, quatro anos mais tarde. E Isabel tinha rido. Ago­ra a piada era ela.

—        Vou casar com Jeremy — Isabel olhou seu relógio de pulso — em menos de trinta minutos — sussurrou. — E isso é tudo.

Lorenzo contraiu os lábios. Sua expressão já não mostrava raiva, mas desprezo. E Isabel não sabia qual detestava mais.

Nunca achei você covarde ou idiota, Isabel. Mas estou mudando de opinião.

As pessoas são mais complexas do que você imagina — Isabel respondeu baixinho.

O que é que você está tentando dizer? — Os olhos de Lorenzo brilhavam. O sol, que entrava pela sacada e o atingia pelas costas, emoldurando sua silhueta, lhe conferia um ar soturno e perigoso, que a assustava e excitava.

Lorenzo sempre a tinha assustado e excitado. Tinha che­gado àquela escola e a deixado boquiaberta. A ela e todas as garotas da classe. Numa época em que, ainda hesitantes, elas cruzavam a linha divisória entre a infância e a idade adulta, percebendo com um arrepio ambíguo que meninos não eram assim tão chatos como elas supunham. Lorenzo Cicolla, com seu cabelo negro e pele morena, quatro anos mais velho mas muito mais maduro que outros garotos de sua idade, tinha frequentado a imaginação de todas elas. A distância, entre risinhos, todas o observavam com a ino­cência da juventude. Interessadíssimas.

O fato de ele não olhar para ela, nem para qualquer outra da turminha, só fazia aumentar o interesse. Na ver­dade, foi só quando ela já tinha dezesseis anos, e ironica­mente foi através de Jeremy, que eles vieram a se tornar amigos e ele admitiu, divertindo-se com a reação dela, que sempre a tinha notado. Ele podia ser jovem, mas já cultivava aquela compostura sombria, consolidada ao ficar mais velho.

Nada. Não estou tentando dizer nada.

Não? Então por que tenho a impressão de que você está falando por enigmas?

Nem imagino — Isabel deu de ombros. Mas as mãos tremiam. E ela rapidamente as cruzou atrás das costas.

O que é que as cartas diziam?

Isabel em princípio não entendeu, mas logo percebeu do que ele estava falando. Claro que ele não demoraria a ex­plorar aquela imprudente admissão de que Jeremy tinha escrito. Uma única carta. Mas ela não revelaria seu teor.

Várias coisas — Isabel murmurou, embaraçada. —- Mas por que falar disso?

Seja mais específica.

Não posso. Não me lembro.

Estranho. Não lembra do que as cartas diziam, mas resolveu casar com ele assim mesmo.

Não. Você não entende. Está distorcendo o que eu digo — Isabel respondeu confusa.

Lorenzo a agarrou, olhar tão feroz que ela chegou a temer que ele pudesse fazer algo horrível, fazê-la em pedaços. Abriu a boca para protestar. Mas não foi possível. Um beijo a impediu. Um beijo selvagem, furioso.

Isabel se debatia, empurrava-o. Até que Lorenzo final­mente a largou e se afastou.

—        Qual é o problema, Isabel? Não quer se despedir de seu amante?

—        Pare com isso — ela implorava, quase em pranto. No dia em que Isabel lhe contou sobre Jeremy, Lorenzo ficou furioso. Mas seu orgulho impediu qualquer pergunta. Ele apenas saiu do alojamento dela na faculdade e não voltou mais. O tempo parecia ter maturado sua raiva. Era um cum­primento estranho, ambíguo, que ela preferia ter evitado.

—        Por quê?

—        Você sabe por quê. Agora pertenço a Jeremy...

Lorenzo se voltou abruptamente. Mas ela ainda pôde per­ceber o ódio que a resposta tinha causado. O que talvez um pouco mais de tato tivesse evitado. Porém, naquelas circunstâncias, prestes a perder o controle, era impossível escolher as palavras.

Hesitante, Isabel deu um passo na direção dele. Ouviu baterem na porta. Voltou imediatamente.

Era seu pai, que olhou para os dois intrigado. Ao que Lorenzo respondeu, tranquilamente, como se nada tivesse acontecido:

—        Vim desejar boa sorte à noiva. Duvido que possa falar com ela depois que o casamento começar. E, como nos conhecemos tão bem — sorriu para Isabel —, resolvi vir aqui me despedir.

O pai entrou no quarto. Alheio ao que estava acontecendo, apenas sorriu.

_ É compreensível, meu rapaz — concordou cordialmen­te. Ele sempre tinha gostado de Lorenzo. — Jeremy tem muita sorte de levar minha linda filha embora.

            Não sei se sorte tem algo a ver com isso — Lorenzo olhava para Isabel com fria cortesia. — Talvez amor, não é, Isabel?

Sim, claro — Isabel respondeu, segurando a mão do pai. Olhar para Lorenzo era impossível, estava além de suas forças naquele momento.

Bem, mocinha, sorte ou amor não muda o fato de que sua hora chegou. — O pai acariciou a mão de Isabel. E ela pensou em quanta verdade havia naquele comentário fortuito. — Espero que você não esteja muito nervosa. Preciso de sua ajuda para não ter um colapso antes de chegarmos ao altar — voltou-se para Lorenzo. — Espere só até ter minha idade e sua filha resolver casar. Você vai descobrir o que é ficar nervoso. Já fiz palestras para auditórios lotados, mas nunca senti algo assim antes. — Passou as mãos sobre o estômago. — Viola diz que é porque insisti em entrar dentro desta roupa. Mães! Elas não sabem nada. — Sua voz mostrava ao falar da esposa a mesma ternura que ela mostrava ao falar do marido.

—        Experimente dizer isso a elas — Lorenzo respondeu. Minha mãe sempre diz que quem manda lá em casa é ela. O que é verdade.

Todos riram. Menos Isabel.

Bem, querida, podemos descer agora e fazer nossa entrada triunfal? — o pai sugeriu. Depois, voltando-se para Lorenzo, informou: — Jeremy estava à sua procura. Eu lhe disse que não sabia se você já tinha chegado.

Em seguida, saiu em direção à porta, já concentrado na tarefa que tinha pela frente, sem perceber as diferentes reações que aquela alusão a Jeremy tinha provocado.

Isabel agarrou a mão do pai e deixaram que Lorenzo saísse primeiro. Lorenzo saiu, descendo a escada de dois em dois degraus. Quando já não ouvia mais seus passos no vestíbulo de mármore lá embaixo, Isabel sentiu uma horrível sensação de resignação, como se tivesse envelhecido cin­quenta anos em meia hora.

Tanto a cerimónia de casamento como a recepção seriam na grande tenda amarela e branca armada nos fundos da casa, onde estariam todos perto uns dos outros. Perto de­mais. A mãe tinha achado boa ideia e Isabel tinha concor­dado com cordial apatia.

Ela e o pai caminhavam solenemente pela escada curva, pelo vestíbulo, pela sala, de onde já tinham sido retirados copos e bandejas vazias, e finalmente pela porta dupla em direção à tenda. Quanto mais avançavam, mais tensa Isabel ficava.

Chegaram à tenda. Todos os olhares se voltaram na di­reção deles. Isabel morria por dentro. Olhava para a frente, para ninguém, muito menos para suas amigas dissidentes, todas na primeira fila. Com o canto do olho, viu Abigail, cabelo loiro, feições severas, olhar crítico.

Mais à frente, viu Lorenzo, sombrio, implacável, olhan­do-a com um desprezo velado que só ela podia perceber. Além dele, Jeremy, o obstinado Jeremy, cujo destino agora estaria entrelaçado ao dela para sempre.

 

O contador estava dizendo alguma coisa. Isa­bel olhou, tentando se concentrar no que ele dizia. Perto dela, estava a mãe, imóvel, sentada numa poltrona, a dor estampada no rosto. Estava assim fazia três meses. Andava, falava, mas parecia não ter mais alma.

—        Vai demorar um pouco — o dr. Adams tinha dito a Isabel pouco antes no consultório —, mas ela vai acabar superando tudo.

Isabel olhava para a mãe, aflita. Será que um dia ela superaria mesmo tudo aquilo?

Sugiro que vocês vendam — o contador disse, exami­nando uns papéis.

Vender? — Isabel repetiu, confusa.

O sr. Clark balançou a cabeça. Era um homem baixinho, careca, olhar impaciente, movimentos nervosos. Mas com­petente. Ele e seus dois assistentes tinham vasculhado aque­las contas minuciosamente.

A empresa de seu pai está afundando, mas o processo está apenas no começo. Ela foi muito mal administrada nos últimos anos. Não por culpa do sr. Chandler, claro. Afinal, ele estava praticamente aposentado nesse período. Esse é um problema comum em empresas familiares. Empregam amigos, confiam neles demais — recostou-se na cadeira. Cruzou as pernas, as mãos sobre os joelhos. Olhou para as duas com o que devia considerar um olhar sereno.

O fato é que vocês agora são donas da empresa. E seria loucura manter a administração que está lá. O pro­blema só aumentaria. E, quando vocês resolvessem vender, ela não valeria mais nada. Isabel olhou para a mãe.

—        É melhor sair, mamãe. Você parece cansada. A sra. Chandler tentou sorrir.

Claro que não, querida. Afinal, o problema é tão meu quanto seu.

Tenho um possível comprador — o sr. Clark disse sem rodeios. — Sugiro que vocês pensem no assunto seriamente. Ele fez uma proposta bastante generosa. Você e sua mãe ficariam milionárias.

O dinheiro não significa nada para nós. Ele não vai trazer David de volta, vai? — a sra. Chandler parou. Co­meçou a soluçar, "apoiando o rosto nas mãos.

Isabel abraçou a mãe rapidamente. Ela mesma mal tinha tido tempo de chorar. Precisava amparar a mãe.

—        Espere por mim no vestíbulo, sr. Clark — Isabel disse. O sr. Clark levantou. Saiu da sala.

Sinto muito, querida — a mãe se desculpou. — Sei que devia me controlar — olhou para a filha, que tentava aparentar tranquilidade embora por dentro estivesse aos pedaços. Tentou sorrir entre as lágrimas, o que fez Isabel se sentir ainda pior. — Não tenho ajudado muito, não é?

Você sempre ajuda, mamãe.

Pobrezinha. Sua perda foi bem maior — a mãe suspirou. — Vá em frente, querida, veja o que o sr. Clark sugere. Faça o que achar melhor.

Isabel hesitou, mas só por um instante. Era preciso de­cidir. Os números que o sr. Clark tinha levantado não dei­xavam tempo para lamúrias. Era preciso seguir vivendo. A vida não respeita a morte.

O sr. Clark esperava pacientemente no vestíbulo. Isabel foi até lá. Levou o homem até a cozinha. Serviu café. Sentou à mesa na cadeira em frente à dele.

—        Quem é o comprador, sr. Clark? — Isabel foi direto ao assunto.

Tenho falado com um sr. Squires, de Londres — ele respondeu, bebericando o café. — Na verdade, há vários interessados. A empresa de seu pai foi mal administrada, mas ainda tem potencial considerável. E muitos clientes.

Neste caso, por que não posso tocar o negócio eu mesma?

Inexperiência — o sr. Clark pousou a xícara no pires. Olhou nos olhos dela. — Tentar tocar a empresa por razões emocionais não vai resolver o problema. Boas intenções não significam necessariamente sucesso nos negócios. Muitos naquela empresa têm de ser demitidos. Alguns são amigos da família. Você faria isso? E se ela falir, haverá bem mais desempregados do que se ela for vendida.

Fazia sentido. Tudo o que ele tinha dito nas últimas se­manas fazia sentido. O sr. Clark, estava claro, era um ho­mem sensato.

Quando preciso responder?

Quanto antes melhor.

Isabel levantou. O homem também. Guardou os papéis na pasta. Tinha vindo muito bem preparado. E estava certo. Ela entendia bem pouco de finanças. Claro que podia apren­der com o tempo, mas não havia tempo. E sabia que o pai não gostaria de ver sua empresa falida. Melhor tentar evitar.

O sr. Clark foi embora. Isabel deu uma olhada na mãe, que tinha adormecido na poltrona, e foi para a biblioteca pensar.

Ser forte era difícil. Cansativo. Era preciso decidir. E a mãe não estava em condições de decidir nada.

Sentada na cadeira giratória de couro, Isabel fechou os olhos. O pior era recordar. Lembrar-se sentada ali, no colo do pai, quando criança. Ou passeando com ele pelo jardim, ouvindo sobre as plantas e árvores que havia lá.

Isabel não soluçava como a mãe. As lágrimas apenas rolavam por seu rosto, mas ela não tentava impedir. Caíam nas suas mãos, no colo, no vestido.

Já não tentava mais acreditar que a qualquer momento acordaria e descobriria que tudo tinha sido um terrível pe­sadelo. Lembrava apenas da polícia trazendo a notícia de que tinha havido um acidente de carro e que os dois ocu-pantes tinham morrido.

Jeremy estava ao volante do Jaguar, acima do limite de velocidade. Tentando ultrapassar outro carro, tinha batido num caminhão que vinha em sentido contrário.

Na manhã seguinte, Isabel ligou para o sr. Clark.

—        Pode vender, sr. Clark — disse. — Assinarei o que for preciso, mas não quero me envolver na negociação.

Sua mãe tinha saído com a mãe de Jeremy. Iam tomar chá.

Sozinha, Isabel voltou para sua própria casa. Desde o acidente, tinha estado morando com a mãe.

A casa onde morava com Jeremy, mesmo depois de quatro anos de casamento, nunca tinha parecido um lar. Apesar dos quadros, dosvasos de plantas, do jardim, ainda parecia um lugar vazio. Sem amor, uma casa nunca poderia ser um lar. E a falta de amor ali era evidente.

Isabel abriu a porta da frente. Recolheu a correspondência do chão. Começou a guardar as roupas de Jeremy em caixas de papelão. Mandaria tudo para uma instituição de carida­de. Devia ter feito isso antes, semanas antes, mas o tempo tinha passado tão depressa.

Tudo tinha sido tão inútil. Ela ainda lembrava de seus vinte anos. De estar apaixonada. Lorenzo. Claro que aquilo tinha sido outra fase de sua vida, que ela já tinha superado. O tempo sempre cicatriza todas as feridas.

Nem da mãe dele ela lembrava mais, porque a sra. Cicolla tinha ido para a América fazia três anos, para estar perto do filho.

Mas ainda lembrava da sensação horrível que tinha sen­tido quando soube, no dia do casamento, através dos pais, que Lorenzo tinha decidido ir para os Estados Unidos.

—        Dentro de duas semanas — ele tinha dito casualmente, mãos nos bolsos, sem nem mesmo olhar para ela, proscrevendo-a de sua vida. A ex-amante casada com outro homem.

Aquilo tinha sido quatro anos atrás, mas a lembrança era tão vívida como se tivesse sido apenas ontem, apenas há poucas horas.

Isabel ouviu a campainha da porta. Desceu a escada para atender. Abigail. Isabel abriu um grande sorriso ao ver a amiga que não via desde o funeral, três meses antes.

—        Passei antes na casa de sua mãe — Abigail disse ao entrar. — Como não havia ninguém, achei que você devia estar aqui. Precisa de ajuda com alguma coisa?

Lá em cima, continuaram as duas a encaixotar as roupas. Em poucos anos, Abigail tinha ficado famosa. Estava sempre nos jornais.

Como vai sua mãe?

Nada bem. Está cada vez mais ensimesmada.

E compreensível.

Não sai nem para ir ao jardim. Diz que cada folha de grama a faz lembrar papai.

Abigail ficou algum tempo calada.

E você?

Também estou sempre pensando nele — Isabel admitiu.

E Jeremy?

Isabel ficou de pé, sacudiu a poeira da roupa e respondeu:

Foi ele que causou o acidente. Mas pedi para que isso não fosse divulgado.      

Você sempre o detestou, não é?

Não... Ele me forçou a casar com ele. Por favor, não pergunte como nem por quê.

Aqueles papéis, Isabel franziu a testa. Onde estavam os papéis? Jeremy devia tê-los escondido em algum lugar. Eles não podiam ter desaparecido. E ele não descuidaria deles. Afinal, eram sua garantia se ela um dia resolvesse cair fora daquele casamento.

—        Claro que no começo o detestei. Mas é impossível de­ testar para sempre. Muito cansativo. Depois de algum tempo o instinto de conservação acaba prevalecendo. Senão a gente ficaria maluca.

Desceram à cozinha para tomar café.

Era bom ter alguém para conversar. Ajudava a ordenar as ideias. E Isabel acabou falando também da proposta do sr. Clark, do que ela pretendia fazer com a casa, do trabalho.

Talvez eu até volte a estudar medicina — comentou. — Richard acha uma boa ideia.

Richard? Você está falando do dr. Adams?

Sim. Ele tem me dado o maior apoio.

Ah, já entendi... — Abigail teatralizou o comentário.

Não é nada disso, Abigail — Isabel riu. — Você e essa sua mente dramática... Richard e eu somos apenas bons amigos. Sempre fomos. Faz anos.

O assunto ficou como estava. Abigail foi embora no fim da tarde. Isabel voltou para a casa da mãe, que já tinha chegado e parecia bem melhor que nas últimas semanas.

—        Emily está me ajudando a botar a vida em ordem — a mãe disse, bebericando seu chá e escolhendo salada no prato como um passarinho. — David foi embora e me trancar em casa não vai mudar nada. Já passei muito tempo trancada aqui. E hora de começar a pensar no futuro. O que o sr. Clark disse?

Isabel contou. Na manhã seguinte, estranha coincidência, o sr. Clark ligou para dizer que o comprador tinha chegado e pedir que ela fosse a seu escritório assinar uns papéis.

Isabel se vestiu com esmero para a ocasião. Tailleur de lã cinza, sapatos combinando, colar de pérolas.

Olhou no espelho. Viu uma mulher de vinte e quatro anos, quase vinte e cinco, que, depois de uma grande perda, agora se sentia livre pela primeira vez em quatro longos anos.

Sorriu. O reflexo sorriu também, mostrando o que ela não via fazia muito tempo. O mesmo rostinho lindo, o cabelo agora mais curto, o corpo gracioso, olhos um tanto tristes, como se tivessem visto coisas demais.

Saiu de casa, sentindo-se melhor do que nos últimos tem­pos. Chegou ao escritório do sr. Clark na hora combinada.

O sr. Squires não estava lá. Isabel tomou café, conversou um pouco com o contador, começou a sentir certa irritação por estar ali esperando. Será que o homem nunca tinha ouvido falar de boas maneiras?

Olhou o relógio de pulso e para o sr. Clark, que também olhava preocupado para o próprio relógio e não demorou a levantar, dizendo que ia sair para ver o que tinha havido com o cavalheiro.

—        Talvez ele tenha se perdido — o sr. Clark arriscou. Talvez ela não devesse lhe vender a empresa do pai.

O sr. Clark saiu da sala.

Dez minutos depois, quando já tinha decidido que o sr. Squires estava definitivamente fora da lista de prováveis compradores, Isabel ouviu a porta abrir. Olhou ao redor.

O choque ao ver Lorenzo Cicolla foi tão grande como se tivesse olhado pela janela e visto um cogumelo pairando sobre a cidade, anunciando a guerra nuclear.

Lorenzo entrou na sala, sem tirar os olhos dela. Isabel levantou, como se tivesse visto um fantasma.

—        Lorenzo! O que está fazendo aqui? Estou esperando um sr. Squires. Você não é o sr. Squires. — Foi tudo o que ela conseguiu dizer.

Isabel não esperava voltar a ver Lorenzo Cicolla. Ele tinha feito sua vida em pedaços, que ela nunca mais tinha conseguido juntar.

—        Não, não sou.

Aproximando-se, Lorenzo sentou na cadeira ao lado. Cru­zou as pernas. Isabel queria parar de olhar para ele. Mas não podia. Fazia muito tempo.

O tempo mostrava seus efeitos nas pequenas rugas sob os olhos, mas fora isso era o mesmo Lorenzo de antes. A mesma aparência sombria, o mesmo encanto.

Desculpe o espanto, mas é difícil acreditar que seja mesmo você — Isabel arriscou um sorriso tímido. Que ficou sem resposta.

Sinto muito pelo que houve com seu pai — Lorenzo desviou o olhar. — Só vim a saber algum tempos,depois.

Obrigada. Foi um acidente trágico — Isabel respondeu com um lugar-comum. Tinha se acostumado com eles, res­pondendo às muitas condolências dos vizinhos.

Sinto muito por Jeremy também.

Obrigada.

            Como foi o acidente?

Isabel deu de ombros, alisando a saia de lã.

Jeremy perdeu o controle do carro. Bateu de frente num caminhão. Morreu na hora. Papai... morreu na ambu­lância, a caminho do hospital.

E sua mãe, como está?

Por que você está aqui? — agora, passada a surpresa, já era mais fácil perguntar.

Lorenzo sorriu tranquilamente. Mas dava para ver an­tipatia e desprezo sob o sorriso.

Ainda não terminamos o preâmbulo, Isabel. Foram anos... quatro anos para ser mais exato.

É verdade. Você foi embora sem se despedir. — O coração ainda batia descompassadamente. Isabel tinha a sensação de ter entrado num mundo absurdo, como Alice no País das Maravilhas. Uma piscada, e tudo sumiria. Piscou, mas nada su­miu, nem mesmo a dificuldade que tinha para respirar.

Lorenzo deu de ombros.

Eu sabia que voltaria. Quando chegasse a hora.

E por que acha que a hora chegou?

Porque vou comprar a empresa de seu pai.

Você!? — Isabel não podia acreditar. — Mas o sr. Clark disse...

Que o sr. Squires estava interessado. Verdade. Ele é meu procurador.

Isabel levantou. Começou a andar pela sala. Lorenzo ficou onde estava, só olhando, olhar impenetrável.

Você não pode estar falando sério — ela disse finalmente, parando na frente dele. Não muito perto, porque havia nele uma sutil ameaça. Não, aquele não podia ser o homem que uma vez tinha despertado sua paixão.

Nunca falei tão sério em toda a minha vida.

Mas por quê?

Lorenzo comprimiu os lábios.

Porque gosto da beleza das voltas que o mundo dá.

Vingança, Lorenzo? — Isabel murmurou, incrédula.

Vingança é uma palavra feia.

Então por que a empresa de meu pai?

Ela é um desafio interessante.

E o fato de ela ter sido de meu pai não tem nada a ver com isso?

Um pouco, acho — ele deu de ombros sem tirar os olhos dos olhos dela. — Além disso, cansei da cidade grande. Chicago perdeu a graça. Vai ser bom viver aqui algum tempo.

Você está voltando a viver aqui?

Claro. O que você esperava?

Não isso. Tudo menos isso, Isabel pensava. Quatro anos atrás, a separação tinha sido amarga. Ela ainda lembrava do desastroso dia de seu casamento, daquele horrível confronto no jardim, antes que ele sumisse de sua vida. Será que só estava esperando uma oportunidade como esta? Ou será que a morte de Jeremy e seu pai tinha reacendido a raiva dele?

Você não parece muito entusiasmada com a possibilidade — Lorenzo ergueu as sobrancelhas. E torceu os lábios com certo cinismo.

Claro que sim. Vai ser bom ver você... — Isabel parou.

—        Não minta, Isabel. Você não sabe mentir. Isabel corou, furiosa.

—        O que queria que eu dissesse? Você volta à cidade quatro anos depois e diz que vai morar aqui. Não é uma notícia agradável, é? Você não pretende se estabelecer aqui para o bem da comunidade, mas para acertar contas. Não acha que estamos velhos demais para isso?

Lorenzo deu um murro na mesa. Com tal força que Isabel se afastou, temendo que ele se tornasse violento. Depois riu de si mesma. Claro que não. Ele nunca tinha sido dado a demonstrações de violência.

O tempo passou, uma vozinha advertia. As pessoas mu­dam. O homem para o qual ela olhava agora era um es­tranho, sombrio, ameaçador.

Velhos demais? — ele ironizou. — Para esquecer o passado, Isabel?

Aquilo foi há muito tempo... — Isabel olhou para a porta. Lorenzo olhou também. Sorriu.

O sr. Clark vai esperar até eu terminar.

O quê?

Eu lhe disse que antes queria discutir com você um assunto particular.

A venda da empresa de meu pai não é assunto particular — Isabel respondeu. Mas não era isso o que ele queria discutir. — Não podemos deixar de lado o que passou? Podemos ser amigos...

Amigos? Estou certo de que você gostaria disso.

E isso significa o quê?

Ora, apenas que sou rico, bem-sucedido... dois requisitos básicos, se é que me lembro bem, para você se inte­ressar por um homem.

Não é verdade!

Não? Então por que casou com Jeremy? Por que ficou quatro anos casada com ele? Por causa do seu precioso status, não é? Você precisava tanto dele que por isso sacrificou a própria vida.

Isabel levantou, trémula, pálida.

Não tenho de ficar aqui ouvindo isso — disse, voltan­do-se na direção da porta.

Sente-se!

Isabel olhou para ele por sobre o ombro.

Você não manda em mim, Lorenzo Cicolla!

Sente-se! — Lorenzo voltou a berrar. E Isabel sentou bem depressa, imaginando se o berro não faria o sr. Clark entrar correndo no escritório. Não fez.

Agora escute, a empresa de seu pai precisa de um comprador para não desaparecer.

Posso escolher a quem vender — ela respondeu. E Lorenzo sorriu.

É mesmo?

O sr. Clark me disse que havia vários interessados.

Não há, Isabel.

Mas...

Sou o único. Sem mim, a empresa de seu pai vai afundar. Foi sorte ainda não ter afundado. E, neste caso, será vendida aos pedaços. E o trabalho de seu pai estará perdido. É isso o que você quer?

Isabel olhou para ele enojada. Ele estava gostando da­quilo, gostando de ver seu mal-estar, gostando de vê-la em posição de indefesa submissão. Como ela pôde um dia ter amado esse homem?

Claro que depois de todos estes anos ela podia lhe dizer por que tinha casado com Jeremy. Mas, se ele estava de­cidido a se vingar, a confissão podia lhe dar mais munição. Muito arriscado. O pai estava morto, já não podia mais sofrer. Mas a mãe estava viva, vulnerável. E já tinha sofrido demais.

Além disso, estava evidente que aquele não era o Lorenzo Cicolla que ela conhecia. O homem que um dia tinha feito amor com ela, há tanto tempo que ela mal podia lembrar. Este era outro homem. Que ela não conseguia compreender.

O que é que você ganha com isso, Lorenzo?

Satisfação transitória.

Às minhas custas.

Isso é tão difícil de entender? — Lorenzo sorriu com desdém.

Por que brigar quando podemos?...

Fazer amor?

Isabel corou, sentindo a temperatura subir.

—        Quando podemos ser amigos... — sussurrou. Lorenzo só olhava, o olhar perambulando insolentemente pelo corpo dela.

Uma ideia tentadora — disse baixinho. — Você ainda é uma mulher linda. Ainda mais linda que antes. Mas acho que posso resistir. — Voltou a sorrir. — Não suportaria pensar que você só me ofereceu sua amizade porque agora sou rico o suficiente para pagar o preço.

Você é desprezível.

Agora foi Lorenzo quem corou, furioso.

—        Seu casamento com Jeremy Baker também foi desprezível, Isabel. Ou talvez seja meu lado caipira que insiste em ver as coisas dessa forma inconveniente.

Caipira? Não mesmo. Ele podia ter vindo do nada, como Jeremy sempre fazia questão de dizer quando o assunto era Lorenzo Cicolla. Mas olhando para ele ninguém diria isso. Sentado ali, naquele terno bem cortado, ele parecia exatamente o que era: rico, refinado. Cruel.

Por que não ficou onde estava? — Mais que curiosi­dade, Isabel exprimia sua agonia.

Já disse. Cansei da cidade grande.

Difícil acreditar. Ele devia era ter achado que havia um de­safio maior, mais interessante, esperando por ele aqui. A em­presa do pai dela devia tê-lo interessado por estar no seu ramo de negócios. E a atual proprietária lhe conferia mais sabor.

Como soube da?...

Saiu no jornal — ele respondeu. — Bob Squires, meu homem em Londres, mandou um fax do artigo. Achou que eu podia me interessar, ou, no mínimo, achar a coincidência divertida. Claro que ele não sabe muito sobre minha vida pessoal, mas sabia onde eu tinha vivido quando jovem.

Compreendo. E alguém sabe muito sobre sua vida pessoal, Lorenzo? — Isabel perguntou, recebendo em troca um olhar furioso, desconfortável. Fugaz, mas suficiente para que ela percebesse que havia algo mais sob aquela aparência fria e arrogante.

Não gosto de gente que tenta bisbilhotar o que não é da sua conta — Lorenzo levantou de repente, olhando pela janela, dando-lhe as costas.

Que vida solitária você deve ter levado esses anos todos — ela murmurou.

Lorenzo se voltou outra vez, desprezo no olhar.

—        Duvido que você esteja qualificada para julgar a vida de outras pessoas — respondeu. — Casamento por dinheiro, francamente, me dá nojo. Você algum dia foi feliz, Isabel? Quando o agito social terminava e vocês ficavam sozinhos naquela casa imensa, cara, vazia?

Isabel desviou o olhar. Não respondeu.

—        Acho que não — Lorenzo tinha recobrado a pose, mas não voltou a sentar. Começou a andar pela sala, sem tirar os olhos dela.

Sabia que não poderia responder a nada que ele dissesse, porque era incapaz de justificar seu passado.

—        Se quer que eu assine os tais papéis — disse formal­mente —, posso assinar. Se não, vou embora.

—        Você vai embora quando eu deixar. Isabel encarou aquele olhar gelado, furiosa.

Não trabalho para você, Lorenzo. Você não é meu chefe! Estou vendendo a empresa de meu pai a você porque o sr. Clark recomendou. Mas, além disso, não quero nada com você!

Finalmente algo sensato — ele murmurou, aproximando-se por trás dela e apoiando as mãos na cadeira. Isabel gelou. Não queria nada com ele. Mas a sexualidade de Lorenzo, que a tinha cativado anos atrás, continuava tão intensa como sempre. Ela podia senti-la emanando da­queles braços fortes a apenas poucos centímetros de distância.

Do que é que você está falando?

Você poderia — ele murmurou — trabalhar para mim. Não seria divertido?

Não — Isabel resmungou, voz abafada.

—- Não — ele concordou —, talvez não fosse. Ou talvez não fosse o suficiente. — Seus olhos castanhos esquadri­nhavam o corpo dela.

—        Continuo não entendendo — Isabel subiu o tom de voz.

—        O destino da empresa de seu pai está nas minhas mãos, Isabel. Sem mim, tudo o que ele levou a vida inteira para construir vai desaparecer como uma nuvem de fumaça — Lorenzo sorriu, como se aquela possibilidade lhe causasse grande satisfação.

Isabel olhou para ele, chocada.

Podemos encontrar outro comprador — insistiu.

Acho que não — Lorenzo voltou a sorrir, caminhando em direção à janela, mãos nos bolsos. Parou. Voltou-se para ela outra vez. — Desta vez estou por cima, Isabel Chandler. Vou ter você. E descartá-la quando me cansar...

E você disse que não queria vingança?

Vingança é uma coisa tão primária. Mas talvez você esteja certa. Talvez seja vingança a única coisa que pode me satisfazer. Vou pôr um anel no seu dedo e você será minha enquanto eu quiser. Em troca, vou salvar a empresa de seu pai.

 

Nunca! — Isabel bradou, agarrando os braços da cadeira. — Você está louco!

Por quê?

Não acredito que você fosse tão longe, Lorenzo... o passado está morto e enterrado...

Para mim não. Agora chegou a minha vez.

Nunca vou casar com você!

Ele a detestava. Antipatia, desprezo, orgulho ferido, nada seria suficiente para descrever o que sentia por ela. Isso agora estava claro. Como estava claro que ela jamais poderia lhe contar a verdade. Se ele estava disposto a casar com ela apenas para saciar seu desejo de vingança, como poderia confiar nele?

Você vai fazer exatamente o que estou dizendo, Isabel. Porque não tem escolha.

Nunca! Entendeu, Lorenzo? Nunca!

Por que não, querida? Na verdade, não imaginava que você resistisse a uma proposta tão interessante. Afinal, você poderá manter seu status, seu rico estilo de vida. Se é que me lembro bem, essas coisas eram muito importantes para você. Bem mais que eu.

Você pode acreditar no que quiser.

Lorenzo deu a volta na mesa. Rapidamente. Antes que ela percebesse, estava ao lado dela. Começou a acariciar seu cabelo.

Isabel sentiu o coração bater mais forte. Ela nunca casaria com ele, mas algo dentro dela insistia em responder àquela carícia. Ela precisava se afastar o quanto antes.

Mas não podia. Imóvel, ela tentava não sentir o calor que se espalhava por todo o seu corpo.

—        No que eu quiser, Isabel? — Lorenzo repetiu. — Ou no que você me disse há quatro anos?

Silêncio. Havia como responder o irrespondível?

As lembranças pululavam na sua mente como monstros saídos da escuridão. O dia do casamento, ensolarado, um dia de primavera que mais parecia de verão. A satisfação de Jeremy, por saber que ela agora lhe pertencia. A surpresa de ver Lorenzo ficar para a recepção, não tão surpreendente já que sair dali na primeira oportunidade seria fugir, de­sistir, admitir a derrota. Era o que Jeremy queria. Mas não era o estilo italiano.

Entre amigos e parentes, Isabel observava Lorenzo com o canto dos olhos. Claro, a explosão era só uma questão de tempo.

Jeremy tinha passado a tarde exibindo-a, açulando a ira do rival.

Pensando no assunto, Isabel? — a voz macia e cruel a trouxe de volta ao presente.

Que assunto? — Isabel fez que não entendeu. Melhor que admitir que ele estava certo. Lorenzo sempre tinha tido uma espantosa capacidade de adivinhar os pensamentos dela.

No dia de seu casamento. Tanta gente bonita. Vestida com esmero para o evento do ano.

Isso não é justo!

E você estava ótima, claro. Seus pais deviam estar orgulhosos — ele prosseguiu, como se não tivesse ouvido.

Isabel fechou os olhos. Lembrou dos cumprimentos. Ela estava linda, todos diziam. E ela sorria para todos. No fim da tarde, a boca doía.

—        Todos os homens comentavam a sorte de Jeremy Baker — Lorenzo insistia. — Ele sumia perto de você. Como todos, não é, Isabel? Todos, exceto eu.

Isabel sentiu o coração bater ainda mais forte. Lembrou deles dois juntos, fazendo amor, daquele corpo moreno junto ao seu, branco como a neve.

A imagem irrompeu na sua mente com chocante nitidez. E Isabel a descartou, confusa, perturbada.

Lembrou de Jeremy. Magro, loiro, olhos azuis, com aquele tipo de beleza gracioso nas crianças, mas nada sensual nos adultos.

Ela nunca o achara particularmente atraente. Apenas pertenciam à mesma turminha, o que era inevitável numa cidadezinha daquele tamanho, onde todos eram filhos de pais que se conheciam.

Por que falar do que passou? — Isabel murmurou, evitando olhar nos olhos dele. Respirar aquela masculinidade a estava deixando tonta. Olhar naqueles olhos terrí­veis, hipnóticos, só pioraria as coisas.

Não é isso o que velhos amigos fazem?

Velhos amigos?...

Lorenzo se afastou rapidamente, voltando para trás da mesa. Como se fosse o dono do lugar.

Isabel arriscou um olhar. A situação era grotesca, ridí­cula. Um mínimo de bom senso a faria se recompor e cair fora dali. Mas, em vez disso, ficou. Ouvindo o silêncio. Voltou a sentar.

Outra incómoda lembrança daquele maldito dia. Abigail perguntando com toda a franqueza se devia parabenizá-la.

Só se você achar que deve — Isabel tinha respondido, puxando o laço do vestido.

Assim você vai rasgar esse vestido.

Não tem importância — ela tinha dito.

Claro que tem — outra amiga tinha replicado. — Você devia guardá-lo para uma das filhas que com certeza vai ter com Jeremy.

Nunca!

Bem, Isabel pensava agora, pelo menos não tinha havido filhos. Teria sido a loucura definitiva.

—        Você mudou — Isabel comentou sem saber por que, surpreendendo até a si mesma. Não pretendia dizer aquilo. Pretendia apenas dizer que ia embora, já que ele não compraria mais a empresa de seu pai, uma vez que casamento como condição estava fora de questão.

Lorenzo recostou na cadeira giratória.

É verdade. Hoje sou rico e bem-sucedido.

Não era a isso que eu me referia.

O olhar furioso que Lorenzo lhe dirigiu a teria calado se ela permitisse. Mas ela não permitiria.

Não estou interessado em ouvir suas impressões — ele disse, tamborilando os dedos sobre a mesa.

E eu não estou interessada no que você está ou não está interessado. Por que deveria? Evidentemente, você não liga a mínima para mim.

Magoada, Isabel? Desapontada por eu não estar disposto a juntar os pedaços do nosso relacionamento, que você destruiu há quatro anos?

Claro que não.

Você superestima seus encantos, Isabel. Pode ser muito encantadora aqui, mas esquece que existem outras mulheres igualmente encantadoras — Lorenzo a observava como um cientista, esperando para ver como ela reagia a diferentes estímulos.

Com grande esforço, Isabel mantinha a calma.

—        Não superestimo nada. E tenho certeza de que há muitas mulheres lindíssimas. Seja qual for o motivo do seu comentário...

Lorenzo não parecia impressionado com a resposta. Será que esperava mesmo que ela se rendesse sem luta? Que fizesse o que ele dizia?

Agora foi Isabel que sorriu.

—        Imagino que você tenha tido muitas mulheres na Amé­rica. É o que está tentando insinuar?

—E por que imagina que a iniciativa tenha sido minha? — ele ironizou. — Todos são iguais por lá.

O que devia tê-lo incomodado bastante, Isabel pensou. O estilo dele não admitia mulheres independentes. Embora a família dela fosse muito rica, ele jamais tinha permitido que ela pagasse um jantar. Em vez disso, iam sempre comer em lugares mais baratos. Ou comiam na cama mesmo, antes de...

Isabel voltou a sentir aquele calor por todo o corpo. Olhou para ele furtivamente. Depois para as próprias mãos.

Isabel ainda lembrava de como tinha reagido, no dia do casamento, à notícia de que ele ia embora do país. Passado o choque inicial, tinha dito a ele, discretamente:

—        Você nunca me disse que pensava em ir para a América. Ao redor, várias vozes discutiam os prós e contras de começar a vida sem nenhuma ajuda financeira.

Teria feito alguma diferença? — ele tinha perguntado. E Isabel não tinha respondido. — Acho que não — ele tinha prosseguido. — Já marquei minha passagem.

Onde você vai ficar?

Provavelmente num lugar bem barato. Como nós dois sabemos, apartamentos de cobertura estão fora do alcance de quem não tem pais ricos para dar uma mãozinha.

Eu poderia...

Não, obrigado. Caridade me dá nojo.

Caridade, Isabel pensava, olhando para ele agora, obvia­mente era um sentimento que ele não tinha cultivado. Nada poderia estar mais longe de seus propósitos.

—        Você vai achar bem chato viver aqui — disse, tentando pensar em coisas inconsequentes para fazer o calor passar.

-— Bem, acho que a novidade da situação vai me manter interessado durante algum tempo.

Isabel sabia o que ele queria dizer. A novidade seria ela. Quando cansasse, ele iria embora de novo.

—        Neste caso, você vai ter de se arranjar sem a empresa de meu pai porque sua condição para comprá-la é inaceitável.

Isabel levantou outra vez.

—        Sente-se. Já deixei claro que você não sai daqui antes de eu terminar.

—        E eu já deixei claro que você não manda na minha vida.

—        O sr. Clark não lhe disse o que vai acontecer se eu não comprar aquela empresa?

—        Sim. Disse que a empresa tem potencial considerável e muitos clientes — ela respondeu, omitindo grande parte do que o sr. Clark na verdade tinha dito.

O problema é juntar as duas coisas. Em menos de um ano não terá nem potencial nem clientes.

Um ano é bastante tempo — Isabel replicou. — Muita coisa pode acontecer.

Por exemplo?

Por exemplo — Isabel procurava um exemplo bem inteligente, e plausível —, encontrar alguém para dirigir a empresa por mim.

Quem?

Bem, se eu tivesse alguém em mente, não estaria aqui... me humilhando.

Lorenzo ergueu as sobrancelhas.

—        Se humilhando? E assim que você se sente? Isabel só olhava, cada vez mais preocupada.

—        Eu... — disse, procurando manter o tom de voz — não sei do que você está falando.

Ele agora estava bem perto. Isabel continuava só olhando, sentindo impotência e frustração.

Por que ele não tinha ficado nos Estados Unidos? Lem­branças eram dolorosas, mas era mais fácil lidar com elas. A presença dele ali era muito mais contundente.

Lorenzo ergueu a mão e correu um dedo pelo rosto dela. Um gesto tão inesperado que seu coração pareceu parar de bater.

—        Desde que me viu aqui, você mudou de cor — ele disse, baixinho mas com a mesma ironia.

—        Deve ser a raiva — Isabel murmurou, enquanto Lorenzo agora deslizava o dedo pelo seu pescoço. — Quer, por favor, tirar a mão de mim?

Por quê?

Porque isso me causa um certo mal-estar.

E por que será?

Talvez, seja porque eu não goste de ser tocada por um homem que me detesta.

Tem certeza, Isabel? Seu corpo está dizendo algo bem diferente.

Sem tirar os olhos dela, Lorenzo tocou seu seio, devida­mente protegido pelo tailleur de lã.

O efeito foi imediato. Por um instante, tudo pareceu fora de controle. O seio pareceu inchar, o mamilo endureceu, desejando que ele não parasse.

Isabel se afastou.

—        Como se atreve? — perguntou, furiosa. Com ele e com ela mesma. E, temendo começar a gaguejar, não disse mais nada.

Isabel já não lembrava como era ser tocada por um ho­mem. Tinha se imposto um celibato voluntário, tentado se convencer de que fazer amor era algo de que não precisava. Estava errada. A fugaz carícia de Lorenzo, destinada apenas a provar o que dizia, tinha causado um efeito que ela julgava impossível.

Isabel cruzou os braços. Seu olhar fuzilava.

—        Você dizia?... — Lorenzo sugeriu, como se nada tivesse acontecido.

Ainda aturdida, Isabel se perguntava do que é que ele estava falando agora.

—        Você falava de suas ideias para salvar a empresa de seu pai... — ele prosseguiu, aproximando-se da janela e dando-lhe as costas.

Falar com alguém de costas era desconfortável. Mas era evidente que conforto era algo que ele não pretendia lhe proporcionar.

—        Ainda não tenho ninguém em mente — Isabel respondeu. — Mas tenho certeza de que posso encontrar alguém.

Onde? — ele perguntou, ainda de costas. — Na rua?

Existem consultorias. Lorenzo se voltou. Lentamente.

 

E que tipo de pessoa você lhes pediria? — perguntou, parecendo se divertir com as ideias dela sobre o assunto.

Alguém qualificado.

Qualificado em quê?

Em administração de empresas, claro.

E como saberia que o cara é bom?

Não sou nenhuma idiota. Usaria meu instinto.

Claro. E o que faria com os diretores que ainda estão lá? Demitiria? Você conhece todos pessoalmente. Está dis­posta a se tornar impopular numa cidadezinha como esta?

Tanta lógica deixava Isabel ainda mais irritada.

Eu os manteria lá.

Boa ideia. Assim perderia dinheiro mais depressa.

Prefiro correr o risco. Antes isso que me envolver em qualquer tipo de associação com você.

Quanta virtude! — Lorenzo ironizou. — Mas se associou a Jeremy Baker há quatro anos. Você não o amava, mas isso não importava muito, não é? Como conseguiu justificar isso para si mesma, Isabel? A união de duas famílias tão ilustres era assim tão importante?

Você é detestável!

Isso é um elogio, vindo de você.

Você não pode me comprar, Lorenzo. — Mal acabou de dizer aquilo, Isabel se sentiu ridícula. Em última análise, ela tinha sido comprada quatro anos atrás. E agora sentia o gosto amargo da verdade.

Isabel ainda lembrava alguns comentários de Jeremy no dia do casamento. Estavam os três juntos. Como tinha sido embaraçoso.

        Você tem sorte de ter chegado aonde chegou, Lorenzo — ele tinha dito, depois de beber mais do que devia. — Sem nunca ter tido dinheiro. Bolas, sua mãe trabalhava na casa de alguns de seus amigos. — Jeremy ria, como se tivesse dito algo muito engraçado. Mas foi o único a rir.

—        Dinheiro compra tudo — Lorenzo dizia agora. — E você não é exceção.

—        Dinheiro não pode comprar felicidade. Não pode comprar amor. Nem respeito.

Lorenzo desviou o olhar.

—        Quanta filosofia — comentou sarcasticamente. E Isabel suspirou, cansada de tudo aquilo.

Por favor, não faça isso — ela pediu. — Sei que você ficou chateado quando casei com Jeremy...

Bastante.

Mas isso não o impediu de ir para os Estados Unidos, sem se despedir, e se envolver com sabe-se lá quantas lindas mulheres!

Você esperava que eu mandasse notícias, Isabel? Que escrevesse dizendo o que sentia? Para que você pudesse consolar meu coração através do Atlântico?

Você não tem coração!

A expressão de Lorenzo endureceu.

Que sorte a minha, não é? Era isso o que você queria? Que eu ficasse por perto embora você estivesse casada? Que continuássemos amantes enquanto você e Jeremy posavam de casal perfeito?

Esta conversa está muito desagradável!

Há coisas mais desagradáveis, Isabel — ele retrucou rispidamente.

Isabel procurava forças para se afastar daquele estranho que pretendia se apossar de sua vida para destruí-la quando achasse melhor.

Lorenzo relembrava. A expressão dizia. Isabel sabia o que ele estava lembrando. A mesma lembrança a tinha as­sombrado durante quatro anos. A lembrança que ela tanto tinha tentado esquecer. Mas, como toda lembrança desa­gradável, tinha criado raízes.

Não me diga que já esqueceu aquela linda cena no jardim de seus pais quatro anos atrás?

E bobagem desenterrar o passado.

Jeremy me abordou no jardim. Ainda não estava contente. E eu já começava a me arrepender de ter aceitado ser seu padrinho e ter ido àquela festa.

Ele tinha bebido demais.

Como sempre. Jeremy sempre gostou de uma garrafa. Isabel lembrava muito bem. Estava com a mãe quando viu com o canto do olho os dois se afastarem. Pelo menos, ninguém ouviria uma eventual discussão, pensou. Se não queria aquele casamento, queria menos ainda que houvesse uma briga entre o noivo e o padrinho.

Tão logo pôde, ela foi procurá-los para ver o que estava acontecendo. O jardim era grande. Demorou algum tempo a achá-los, atrás de uma árvore.

Estavam discutindo. Jeremy gesticulava. Lorenzo permane­cia imóvel, contendo a raiva, Isabel notou quando se aproximou.

Sempre dinheiro, não é Isabel? — Lorenzo perguntou. — A barreira intransponível.

Não — era tudo o que Isabel podia dizer. Não tinha sido dinheiro, mas como explicar isso sem revelar o segredo que ela devia guardar para si mesma?

Lorenzo a estava levando a falar de coisas que ela seria incapaz de defender, mesmo agora. Olhando nos olhos dele, Isabel ainda podia ver a mesma raiva. Depois de tanto tempo.

—        Não? Você deve ter a memória curta. Se me lembro bem, dinheiro era tudo o que importava para você.

Isabel não respondeu. Apenas relembrava a cena no jar­dim, quando tinha sido convocada a confirmar o que Jeremy dizia. — Minha querida esposa — Jeremy tinha dito com um sorriso triunfante — me disse que você não era digno dela. Que pobreza poderia ser até algo romântico durante um certo tempo, mas no fim seria bastante incómodo.

Isabel não tinha podido negar. Estava de mãos atadas.

E Lorenzo a tinha olhado com profundo desprezo. Da mesma forma como a olhava agora. Da mesma forma como a tinha olhado ao entrar no escritório do sr. Clark. Não tinha esquecido nada e não estava disposto a perdoar. Nunca estaria. Extrairia dela até a última gota de sangue e para isso usaria todos os meios disponíveis.

Agora que Jeremy não está mais por perto você tem a oportunidade de corrigir um equívoco, Isabel. Estou ansioso para ouvir sua versão. Diga que foi tudo um terrível engano. Que meu juízo está errado.

Por que eu deveria lhe dizer alguma coisa? Você não acreditaria em nada que eu dissesse. Só voltou aqui por acaso, porque viu uma oportunidade de me fazer sofrer. Más não pretendo me submeter a seus caprichos. Não sou idiota.

Você sempre foi idiota, Isabel — Lorenzo respondeu. — Foi idiotice ter se envolvido comigo. Simples curiosidade, não foi? A menina bem-nascida queria ver como era um menino da periferia. Foi um erro grave, querida. E, já que o acaso me deu esta oportunidade, vou usá-la.

Não vou permitir — Isabel disse, confusa e assustada. Lorenzo sempre tinha sido sincero. Costumava avaliar uma situação, medir as consequências, e arremeter. No passado, tal ímpeto a tinha divertido e fascinado, porque ela o via com os olhos de uma garota apaixonada. Mas agora era diferente. Agora ela estava no caminho. E sabia que seria atropelada.

Não tenho mais nada a dizer — Isabel informou. — Não vou lhe vender a empresa de meu pai, seja qual for a oferta.

Ela ainda vai me pertencer, Isabel. Você também. Inú­til tentar evitar. E só uma questão de tempo — Lorenzo foi na direção da porta. Abriu. O sr. Clark não demorou a aparecer.

Olhando para ele, Isabel devia ter sentido uma sensação de alívio. Mas não sentiu. Sentia apenas medo da ameaça de Lorenzo.

Então? Tudo acertado? — o sr. Clark perguntou, sentando na cadeira atrás da mesa, olhando para os dois sem notar nada estranho na atmosfera.

Ainda não — Lorenzo sentou na cadeira em frente, cruzando as pernas elegantemente.

Não? — o sr. Clark estranhou. — Qual é o problema?

Não vou vender — Isabel respondeu. Embora não olhasse para Lorenzo, sentia por todos os poros a presença dele na cadeira ao lado. Uma sensação horrível porque não se sentia vulnerável fazia muito tempo.

Ela vai acabar vendendo — Lorenzo disse. — Só pre­cisamos acertar algumas condições.

Isabel não precisava olhar na cara dele para ver a con­fiança que ele mostrava. Pelo menos, o sr. Clark parecia convencido de que tudo correria normalmente, apesar das objeções dela. Simples detalhes, provavelmente.

Isabel queria protestar. Mas ficou calada.

Não era hora nem lugar de discutir o assunto. Mas Lo­renzo Cicolla não ia conseguir o que pretendia. Se queria guerra, teria guerra.

 

Que bom para você, querida — a sra. Chandler sorriu para a filha. Mas Isabel não sorriu. Fazia cerca de uma semana que ela tinha, reencontrado Lorenzo. E a perspectiva de ele voltar a viver na Inglaterra a assustava cada vez mais.

Ele a detestava, isso tinha ficado claro no escritório do sr. Clark. E agora, quatro anos depois, tinha os meios para despejar sobre ela toda a sua ira.

Isabel olhou para a mãe e respondeu, tão diplomatica­mente quanto podia:

Ele mudou, mamãe. Mudou muito.

Ora, Isabel, as pessoas não mudam da noite para o dia.

Quatro anos não é da noite para o dia — Isabel le­vantou. Começou a tirar a mesa.

A mãe levantou para ajudar. Bom sinal. Nos últimos meses uma profunda letargia a tinha impedido de qualquer atividade, mas nas duas últimas semanas já começava a mudar de comportamento.

O que quero dizer é que fundamentalmente as pessoas não mudam, querida. Podem enriquecer, mudar o estilo de vida, mas basicamente continuam sempre as mesmas.

Sua teoria não vale para Lorenzo Cicolla — Isabel respondeu. Não queria prolongar a conversa mas também não sabia como encerrá-la. — Ele se tornou insensível e cruel. Por isso minhas reservas em negociar com ele.

Melhor começar falando em reservas, assim seria mais

fácil a mãe aceitar a ideia quando se tornasse inevitável dizer não. Já tinha sido difícil convencê-la de que vender imediatamente não era a melhor alternativa. Afinal, ambas conheciam Lorenzo, um homem honrado e correto.

Isabel abriu a torneira, esperou a água esquentar, come­çou a lavar os pratos.

—        Acho que você está exagerando um pouco, querida. Talvez tenha se sentido um tanto desconfortável porque costumava sair com ele.

Isabel não estava nada disposta a discutir aquele assunto. Tanta água tinha rolado sob a ponte que até a paisagem tinha mudado.

—        O que você pretende fazer amanhã? — Isabel pergun­tou, tentando mudar de assunto.

A mãe sorriu, divertida.

—        Claro que vou ter de me encontrar com ele. Não fazê-lo, seria falta de cortesia.

Nem imagino onde ele esteja. Além disso, por que você tem de encontrá-lo? — Isabel replicou, evitando olhar para a mãe. — As negociações estão apenas no começo. E não temos de nos sentir agradecidas.

O que aconteceu entre vocês lá no escritório do sr. Clark? — a mãe perguntou, curiosa.

Nada. O dinheiro e o poder lhe subiram à cabeça, só isso — Isabel murmurou. — Pronto. Pratos limpos. Café? — Serviu café em duas xícaras e foram para a sala.

Lá fora, a tarde de outono começava a virar noite. A luz dourada infiltrava-se por entre as árvores do jardim bem-cuidado. Isabel tinha contratado um jardineiro, apesar dos débeis protestos da sra. Chandler.

—        Querida, sei que você está cuidando de tudo, mas tenho de estar de acordo com qualquer decisão, não é? — a sra. Chandler prosseguiu, como se a conversa não tivesse sido interrompida. — Seria estranho deixar de vê-lo quando ele está pensando em comprar a empresa. Afinal, ele não é amigo da família?

Não — Isabel recostou-se na poltrona, simulando sono, esperando que aquilo fizesse a mãe mudar de assunto.

Isabel, você está sendo indelicada.

Não, não estou — Isabel respondeu. — Apenas não vejo motivo para tanto alvoroço em torno de Lorenzo Cicolla. Só porque ele resolveu voltar a esta cidadezinha? Ou por que acha que vai comprar a Chandler e mandar na gente?

Não, querida. Porque você gostava muito dele. E porque eu me lembro dele como um garoto e gostaria de ver como ele está agora.

Isabel suspirou. E deu de ombros.

Bem, talvez ele reapareça. Provavelmente resolveu se afastar por não ter conseguido o que pretendia na primeira tentativa. — Isabel nunca admitiria, mas ao longo da última semana tinha mesmo estado esperando que ele aparecesse.

Talvez você devesse procurá-lo para saber o que houve — a mãe sugeriu.

—        Procurá-lo? Eu? Depois de tudo o que lhe contei?

Sim. Você tem algo contra? Acho que seria simpático convidá-lo para jantar. Um jantar simples, claro. Acho que eu gostaria de discutir com ele os obstáculos à venda da empresa. Estou certa de que poderemos chegar a um acordo.

Jantar? — Isabel mal podia respirar. Bebeu o café rapidamente.

—        Por que não? — a sra. Chandler levantou. — Acho que já vou subir. — Aproximou-se de Isabel, beijou a filha no alto da cabeça. — Não deve ser difícil encontrá-lo. Me avise quando será o jantar. Nós duas podemos cuidar de tudo. — Sorriu pensativa. — Sabe, nunca vou esquecer as festas maravilhosas que seu pai e eu costumávamos dar. Todos os vizinhos... — suspirou. — Acho que nunca mais vou fazer aquilo. Mas será bom ver uma cara diferente. E Lorenzo sempre foi tão encantador. — Suspirou outra vez.

Isabel observava enquanto a mãe ia lentamente em di-reção à porta. Quando ela sumiu de vista, esparramou-se no sofá.

Maldito Lorenzo Cicolla. Na verdade, havia muitas perguntas que ela gostaria de lhe fazer, mas desde o início ele tinha deixado sua hostilidade bem clara.

Isabel levantou, recolheu as xícaras vazias, levou para a cozinha.

Agora ela não tinha escolha. Tinha de convidá-lo para jantar.

Isabel passou os dois dias seguintes imaginando se devia fingir ter esquecido o assunto Lorenzo Cicolla, se devia si­mular algum esforço para encontrá-lo, talvez ligar para onde ele menos provavelmente pudesse estar, ou se devia sim­plesmente concordar com o que a mãe sugeria.

Mas não precisou fazer nada porque trombou com ele por acaso quando ia para casa de bicicleta, depois do tra­balho. Ou melhor, foi fechada e obrigada a desmontar.

—        Achei que era você — ele disse, saindo do Jaguar. Estava de calça escura e camisa branca, mangas arregaça­ das apesar do friozinho da tarde.

Isabel só olhava, mãos grudadas no guidão.

—        Que surpresa. Eu achava que você tinha desistido de voltar aqui agora que não tem mais motivos para ficar —Isabel tentava ignorar o coração batendo mais forte. E a sensualidade que ele exalava por todos os poros.

Não, não achava. Você sabia que eu voltaria.

Como eu poderia saber se você não estava por perto?

Andou procurando por mim, Isabel? Muito lisonjeiro. Que talento para interpretar um comentário inocente, Isabel pensou, antes de responder:

—        Bem, tem muita gente por aqui e preciso ir para casa. Se você não se importa, acho que já vou indo.

Aquele maldito convite para jantar ia ter de esperar. Sua mãe tinha razão, as decisões sobre a empresa precisavam de sua aprovação, mas ela agora não tinha nenhuma vontade

de esticar a conversa.

A deliciosa atração sexual que ele costumava exercer sobre ela anos atrás agora tinha virado apreensão e intranquilidade.

Lorenzo não voltou para o carro. Ficou onde estava, olhan­do para ela. Depois, olhando ao redor, disse:

—Você tem razão. Muita gente por aqui. O pessoal está saindo do trabalho.

E trancou a porta do carro.

—        Não vou segurar você aqui. Minha resposta continua a mesma — Isabel começou a se afastar, mas ele agarrou o guidão da bicicleta, forçando-a a parar.

O que acha que está fazendo? — ela perguntou furiosa, olhando naqueles olhos e aumentando o próprio desconforto.

Por que não vamos até aquele café?

Para quê?

Ora, isso é maneira de dois velhos amigos se tratarem?

Aquele café está fechado — Isabel informou. — Nossa conversa amigável vai ter de ficar para outra vez.

Podemos ir a outro lugar.

Tenho outros planos para esta noite, Lorenzo — Isabel mentiu.

Que planos?

Não é da sua conta.

Venha comigo. Quero falar com você.

Não vou a parte alguma. E não tenho nada a lhe dizer. Você deixou tudo muito claro na última vez que con­versamos. Eu o tratei cordialmente, mas você nem tanto.

E você ficou chateada, querida?

Não ligo a mínima para o que você diz ou faz — Isabel respondeu rapidamente.

—        Compreendo. — Lorenzo sorriu. Isabel estava cada vez mais perturbada.

O que é que você quer, Lorenzo? Não temos mais nada a discutir sobre a empresa de meu pai. Você me detesta e compreendo que...

Você é muito compreensiva — Lorenzo segurou o braço dela.

Estes confrontos não vão levar a nada.

Aquele barzinho do velho Wilkins ainda existe? — Lorenzo mudou de expressão. A serenidade estava de volta.

Sam Wilkins morreu faz dois anos — Isabel disse. — Mas não pretendo ficar aqui contando quem morreu ou não morreu.

Lorenzo abraçou sua cintura e, antes que ela pudesse reagir, a tirou da bicicleta. Isabel se afastou dele, tremendo da cabeça aos pés. O contato das mãos dele foi como uma descarga elétrica, fazendo-a lembrar de como tinha se sen­tido quando ele a tocou naquele escritório.

Deixe de tanto recato, Isabel — ele disse. — Ambos sabemos que você não é uma garota ingénua. Ambos sabe­mos que você se vendeu pelo maior lance.

Vá para o inferno, Lorenzo — ela devolveu. Em voz baixa. Não queria boatos se espalhando pela cidade.

A qualquer momento um dos transeuntes vai parar e perguntar se está tudo bem. Não é mais fácil vir comigo?

Para quê? Para ser insultada?

—        Como posso insultá-la se você é tão indiferente a mim? Ponto para Lorenzo. Quando ele se voltou, Isabel o seguiu, segurando o guidão tão forte que seus dedos doíam.

O barzinho não era longe. Havia pouca gente lá. Tom, o dono, filho de Sam Wilkins, sorriu para Isabel. Mas dedicou mais atenção a Lorenzo.

Há quanto tempo... — ele disse, enquanto servia as bebidas. — Ouvi dizer que você vai assumir a Chandlers. Pretende ficar muito tempo por aqui?

Só o suficiente — Lorenzo respondeu.

"O suficiente para fazer da minha vida um inferno", Isabel pensou. Mas não disse. Apenas perguntou pela mulher dele e as crianças.

Tom respondeu rapidamente, como se não quisesse mudar de assunto. E prosseguiu:

—        Esta cidade está mesmo precisando de sangue novo. E, claro — olhou para os dois —, com a morte de Jeremy...

—        Já chega, Tom — Isabel interrompeu. Lorenzo riu, achando tudo muito engraçado.

—        Continue, Tom — Lorenzo sugeriu. — Com a morte de Jeremy...

Bem... — Tom deu de ombros — mulheres não foram feitas para viver sozinhas... — disse, meio sem jeito.

Que ideia mais antiga, Tom — Isabel interveio rápido, começando a se sentir meio embaraçada, especialmente por­que sabia que Lorenzo a observava.

Pegaram as bebidas e foram para uma das mesas redon­das perto da lareira.

—        Tom Wilkins continua com a mesma língua comprida — Isabel comentou, sentando, cruzando as pernas e olhando para Lorenzo.

Lorenzo recostou na cadeira, levou o copo aos lábios, ob­servando-a por sobre a borda.

A sinceridade dele contrasta com a hipocrisia que vina cidade grande nos últimos quatro anos.

Você logo se cansaria disso, se ficasse por aqui —Isabel disse.

Lorenzo ergueu as sobrancelhas.

É o que você gostaria que acontecesse, ou andou es­tudando psicologia nas horas vagas?

Muito engraçado. Mas, afinal, o que é que você tem para me dizer? — Isabel perguntou, olhando no relógio de pulso. O que pareceu fazê-lo prolongar ainda mais o silêncio, observando-a com uma quase insolência.

Na verdade, achei que você podia estar interessada no que planejei para a empresa de seu pai.

Você não vai assumir a empresa de meu pai.

Quando tomo uma decisão, não há o que me faça mudar de ideia. Mais uma bebida?

Isabel sacudiu a cabeça, furiosa com tanta arrogância.

Uma reorganização -— Lorenzo prosseguiu. — Você sabe algo sobre os negócios de seu pai?

Já lhe disse que você não vai assumir...

Vou, Isabel — ele interrompeu, inclinando-se para a frente. — E vou assumi-la conforme as minhas condições. Agora responda, você sabe algo sobre os negócios de seu pai?

Não!

Nada?

Nada — ela repetiu. — Mas isso não é da sua conta.

Santo Deus, Isabel. O que é que você fez com si mesma durante estes quatro anos?

Trabalho num hospital. O dia inteiro. E isso também não é da sua conta — ela respondeu. Você pode achar que pode tudo, que vou concordar com suas condições ridículas. Mas está enganado!

Pretendo dinamizar o negócio. Atualmente aquela empresa parece um polvo, com tentáculos por toda parte, alguns nada lucrativos.

Esses tentáculos significam empregos...

Vou levar isso em conta quando decidir transformá-la numa instituição de caridade — ele respondeu. — Mas, por enquanto, a empresa precisa encolher.

Claro, os empregos que vão sumir não têm nenhuma importância — Isabel respirou fundo. — Algumas daquelas pessoas trabalham na empresa há muitos anos. O que pretende fazer com elas quando seu grande projeto de dinami­zação estiver em andamento? Um discurso sobre recessão?

Aquilo devia deixá-lo furioso. Na verdade, era o que ela pretendia. Mas Lorenzo apenas olhou e respondeu em voz baixa:

Então você reconhece que vou mesmo voltar para cá?

Não reconheço nada — Isabel respondeu, corando ao perceber que tinha sido envolvida pela argumentação dele.

Menti quando disse que podia resistir a você — Lorenzo declarou. — Você continua tão atraente como sempre foi. E ainda quero você.

Isabel sentiu uma sensação estranha por todo o corpo. Desviou o olhar, assustada. A voz de Lorenzo, rouca, sen­sual, afetava todos os seus sentidos. Custou algum esforço responder:

—        Desista, Lorenzo. Eu já... — Isabel parou, confusa. Lorenzo se aproximou. Segurando seu queixo, forçou-a a olhar nos olhos dele.

Já o que, Isabel? Fale!

Não tenho nada a dizer.

—        Você me traiu e quero saber por quê!

Aquela proximidade era perigosa. Com grande esforço, Isabel recobrou a serenidade.

Por que você não me esquece? Fique com a empresa. Eu vendo. Mas me deixe em paz!

Não — Lorenzo a soltou.

Silêncio. Um silêncio tenso, durante o qual Isabel parecia ouvir o próprio sangue correndo nas veias.

Sobre seus planos... o que faria com as pessoas que dispensasse?

Vou deixar você mudar de assunto desta vez — ele disse. — Mas só desta vez.

Já não importava que ele falasse de ideias que nunca viriam a ser colocadas em prática. Qualquer mudança de assunto seria bem-vinda. Qualquer coisa era melhor que aquela agressão a seus sentidos.

Além disso, talvez ela pudesse aproveitar uma ou duas dessas ideias. Podiam ser úteis caso um dia tivesse de re­solver o assunto por si mesma.

Tenho um excelente pacote de benefícios, que vai significar aposentadoria precoce para alguns dos funcionários mais antigos. Todos vão aceitar.

E como sabe disso?

Experiência. É um equívoco achar que a maioria das pessoas gosta de passar a vida trabalhando num escritório.

Fazia sentido, Isabel pensou.

—        E quem você convidaria a se aposentar? Hipotetica­mente falando, claro.

Lorenzo a observava. Talvez tentando aferir aquele súbito interesse num assunto que minutos atrás ela nem queria discutir. Mas ele não perceberia nada na sua expressão. Viver com Jeremy a tinha feito aprender a dissimular suas emoções. O que agora se mostrava bastante útil.

—        Greg Thompson, Vic Richards, Ronnie MacGraw. — Todos os que já não fazem nenhuma falta lá. Claro que eles terão todo o apoio para continuar tocando a vida.

—        Greg Thompson — Isabel murmurou. — Vic Richards, Ronnie MacGraw...

Que pena ela não ter um caderninho.

Mais perguntas? Tem certeza de que vai lembrar de tudo?

Lembrar?

Você não demitiria ninguém, Isabel. Esqueça. Sou o único que pode fazer isso. — Lorenzo sorriu. E Isabel pensou em jogar o resto da bebida na cara dele.

Já disse. Pode ficar com a empresa.

Você é parte do acordo.

Por quê? Por que casamento?

Porque tocar a empresa de seu pai não vai ser um passatempo para mim. Tenho outros negócios. Vou ter de viajar, embora tenha homens capazes de cuidar deles na minha ausência. Mas pretendo me estabelecer aqui. E nesta cidadezinha respeitabilidade é essencial. Você teria concor­dado em ser minha mulher... nas horas vagas?

Isabel corou.

Claro que não.

Quero você, Isabel, e vou conseguir o que quero. Ca­samento é um prémio para você.

E quanto à fidelidade? Amor?

—        Desde quando a falta de amor inibe suas atitudes? Isabel sentia a boca seca. Estarrecida ao vê-lo disposto a tudo para perpetrar sua vingança. Ele não a amava, mas casaria com ela porque sabia que isso era o que ela menos queria.

Quanto à fidelidade?

O que você acha?

Entendo... — estava evidente que fidelidade não significaria nada para ele. — Você não tem a menor intenção de ser fiel.

É o que você acha?

Preciso ir — Isabel levantou. Lorenzo levantou também.

Que tal trabalhar com Adams? — ele perguntou ca­sualmente enquanto iam na direção da porta.

Isabel olhou surpresa.

Você disse que trabalhava num hospital. Só tem um nesta cidade.

É verdade.

Não que isso tenha muita importância. Investiguei você antes de voltar para cá.

Você o quê?

Investiguei — ele repetiu tranquilamente. — Já sabia onde você trabalhava e para quem.

Mandou um detetive me seguir?

Tom Wilkins vai começar a se interessar pela nossa conversa se ficarmos parados aqui.

Alguém de capa e binóculo?

Quase. Pedi a Clark para descobrir o que eu queria saber sobre você e sua família.

É a coisa mais desprezível que já ouvi em toda a minha vida.

Então você deve ter vivido uma vidinha bem reclusa nestes últimos quatro anos.

Você não tinha o direito!

Achei que tinha. Vou gastar muito dinheiro comprando a empresa de seu pai. Além disso, também estava curioso.

—        Ah, estava curioso. Isso justifica tudo, claro. Seguiam lado a lado, devagar. Isabel procurava manter entre eles uma distância segura.

Adams não é casado, é? — Lorenzo perguntou.

Não.

Como ele está? Ainda parece uma girafa?

Tornou-se um homem muito atraente — Isabel respondeu. — Não que isso seja da sua conta.

Tudo o que tenha a ver com você é da minha conta — Lorenzo disse, sem olhar para ela.

Isabel arriscou um olhar.

Abigail certa vez lhe disse que achava Lorenzo o máximo. O homem mais sensual que ela já tinha conhecido.

—        Se fosse ator, ele faria o maior sucesso — Abigail tinha comentado. — Ele tem um porte imponente. Tem pre­sença. Nem precisa abrir a boca para ser notado.

Por que ele não ficou onde estava?, Isabel pensava. Por que não fez a gentileza de permanecer apenas uma lem­brança? Por que tinha de trazer sua imponente presença de volta à vida dela?

Que bom para você, trabalhar com um homem solteiro e atraente.

Sim — Isabel concordou. — Temos um excelente re­lacionamento — ia dizer profissional, mas não disse.

Eo que Jeremy achava disso?

Não vou responder a essa pergunta. Pergunte a seu espião.

Vocês têm um caso? — Lorenzo segurou o guidão da bicicleta.

Você pode achar o que quiser — Isabel respondeu.

Compreendo... um casamento aberto. Jeremy era assim tão ruim de cama? Ou você achou que depois de conseguir o que queria não precisava mais fingir que sentia algo por ele? Ou dormia com os dois ao mesmo tempo? Se me lembro bem, você sempre foi tão... fogosa.

Uns tapas era o que ele mereceria, mas isso não seria prudente num lugar público como aquele.

Preciso ir, Lorenzo — ela disse sem olhar para ele. Lorenzo segurou seu braço.

Não antes de responder minhas perguntas.

Isabel saiu, empurrando a bicicleta. Lorenzo não impediu, apenas seguiu a seu lado até chegarem ao carro, quando então a deteve e disse, com a mesma cortesia que já não a enganava:

Vou levar você em casa.

Por quê?

—        Quero ver sua mãe. Afinal, logo farei parte da família, não é?

 

Percorreram o curto trajeto em silêncio. Bem diferente de alguns anos atrás, quando fala­vam sobre tudo, riam, planejavam. Quando os silêncios entre eles eram tão calorosos.

Tão logo o carro parou em frente à casa, Isabel desceu. Lorenzo desceu também, sem pressa.

Decididamente, a sorte não estava do lado dela, pois a mãe logo abriu a porta. Ao ver Lorenzo, cumprimentou-o com grande entusiasmo.

—        Lorenzo! Que bom ver você.

Isabel esperava, impaciente. A conversa ali na porta já durava mais de cinco minutos.

Suponho que minha filha tenha convidado você para jantar. Embora tenha feito a travessura de não me avisar. — A mãe riu.

Na verdade, não convidou — Lorenzo respondeu.

Esqueci — Isabel disse prontamente, avançando dois passos e bloqueando a entrada. — Mas você está convidado para jantar qualquer dia desses, Lorenzo. Embora com cer­teza ande muito ocupado para aceitar o convite.

Aceito — ele respondeu, observando divertido a ex­pressão tensa de Isabel.

Por que não hoje? — a sra. Chandler perguntou por sobre o ombro da filha. — Tem um assado no forno. E legumes do nosso jardim.

Vou gostar muito — Lorenzo sorriu ao passar por Isabel.

Sua mãe tinha razão. Lorenzo Cicolla tinha mesmo muito charme. E sabia usá-lo. A mãe estava encantada com sua presença.

Mas tê-la encantado seria inútil. Ele acabaria percebendo isso por si mesmo.

Foram para a sala, Isabel atrás, ouvindo a conversa de duas pessoas que realmente gostavam uma da outra. E ten­tando imaginar uma desculpa que pudesse poupá-la do que prometia ser uma noite longa e desconfortável.

—        Bem — a sra. Chandler disse depois de servir a todos uma bebida —, podemos acabar logo com a parte desagra­dável deste encontro?

Lorenzo ergueu as sobrancelhas, curioso. E o humor de Isabel piorou um pouco mais. Engoliu rapidamente o copo de vinho. Tornou a enchê-lo. Recostou no sofá.

—        Fiquei feliz quando Isabel me disse quem estava interessado na Chandlers — a mãe prosseguiu, parecendo mesmo feliz. — Quando o sr. Clark nos comunicou que teríamos de vendê-la fiquei chocada. Você compreende, aquela empresa sempre foi a grande paixão de David. Seria muito desagradável vê-la nas mãos de um estranho, vindo não se sabe de onde, interessado apenas em lucros.

Lorenzo assentiu. Isabel olhou para ele, cética, tentando imaginar quanta sinceridade haveria naquele ar solidário.

Eu compreendo — ele murmurou.

E mesmo? — Isabel disse com ar inocente. — Imagino que você seja sempre assim, tão compreensivo, quando se interessa por uma empresa, que não se preocupe com o retorno do investimento.

Tenho procurado sempre ser justo.

Oh, que bom — ela murmurou com um sorriso doce.

Como já disse a Isabel — a sra. Chandler interveio rapidamente, dirigindo à filha um olhar de censura —, não vejo nenhum problema. Exceto que, numa análise mais cuidadosa, talvez você conclua que a empresa não vale o preço estabelecido. Por favor, seja franco conosco, Lorenzo. Afinal, nos conhecemos há tanto tempo.

Homens de negócios nunca são francos, mamãe — Isabel disse. — São apenas diplomáticos. Como políticos e vendedores.

Seu pai era franco.

Isabel não respondeu. Pensou em Jeremy, no seu casa mento, nos sacrifícios feitos antes de poder aproveitar a vida.

O preço não é problema, sra. Chandler., você disse que esperava franqueza, por isso vou direto ao assunto. Este negócio já podia ter sido fechado há uma semana, mas senticerta falta de cooperação de sua filha.

Isabel?

Lorenzo olhou para Isabel, que tentava dissimular a rai­va, e prosseguiu, sem pressa:

Acho que numa cidadezinha como esta é indispensável que eu tenha todo o respaldo dos membros da família. Talvez isso importasse menos se eu fosse um estranho. Mas todos aqui sabem que Isabel e eu nos conhecemos, e muitos sabem que estivemos... envolvidos até certo ponto.

E o que uma coisa tem a ver com outra? — Isabel perguntou rispidamente.       

Muito. Se eu assumir a empresa sem o respaldo de sua filha, sra. Chandler, os comentários não vão demorar. Vão começar a imaginar que vocês a venderam contra a vontade. E a suspeitar de mim como pessoa. Afinal, Chandler sempre foi um nome respeitável nesta cidade. Isso prejudicaria os negócios. Seria impossível operar com êxito num ambiente hostil.

Você não acha que está exagerando? — Isabel per­guntou, percebendo a armadilha e tentando escapar.

Lorenzo sacudiu a cabeça.          

—        Numa cidade grande é possível ser anónimo. Numa cidade como esta não. Há um permanente processo de simbiose no trabalho. Imagine o que aconteceria se Tom Wilkins vendesse seu bar a alguém que não fosse aceito pela comunidade. Quanto tempo você acha que demoraria para o bar começar a perder fregueses? Quanto tempo demoraria para fechar as portas?

A sra. Chandler assentia, parecendo concordar.

—        Estou de pleno acordo com a venda — Isabel murmurou, sentindo-se culpada, e furiosa por sentir-se assim, pois não tinha culpa de coisa alguma.

Era culpa dela ele ter voltado ali apenas para se vingar?

Você não tem mostrado muito entusiasmo, querida — a sra. Chandler comentou.

Nem um pouco — Lorenzo murmurou, parecendo de­sapontado, mas contendo-se para não rir.

Querida — a sra. Chandler levantou —, espero que você pense seriamente no assunto. E faça tudo o que puder para convencer Lorenzo de que ele tem todo o seu respaldo. Vou cuidar da comida e deixar vocês dois à vontade para discutir o assunto.

Você... você é detestável, Lorenzo!

—        Sua mãe disse que queria franqueza. — Lorenzo sorriu. Isabel voltou a encher o copo, para acalmar os nervos, enquanto tentava formular uma resposta bem mordaz para aquele comentário.

E você tem de admitir que tudo o que eu disse fazia sentido.

Não tenho de admitir nada!

Sua mãe concorda comigo.

Ela foi iludida por aquele seu discurso — Isabel mur­murou. — Você devia ter estudado direito. Tem uma mente suficientemente diabólica.

Isso foi um elogio?

Não, mas estou certa de que você vai achar que foi. Como pôde pôr minha mãe contra mim?

Eu só disse que precisava de sua cooperação.

Você e mamãe têm ideias bem diferentes sobre o que seja cooperação — Isabel ironizou. — O que acha que ela diria se eu lhe contasse a verdade? Se lhe dissesse que você pretendia pôr uma aliança no meu dedo?

Quem sabe? Talvez até gostasse da ideia.

E se eu lhe contasse que você quer minha cooperação por motivos que não têm nada a ver com a empresa?

Ela provavelmente não acreditaria em você.

Isabel olhou nos olhos dele, começando a sentir a cabeça girar. Vinho demais. Ela quase nunca bebia. Talvez devesse ter acalmado os nervos com água mineral ou suco de laranja.

Estou tonta.

Pobrezinha — Lorenzo murmurou. — Porque se deu conta de que vai casar comigo, goste ou não da ideia, ou porque bebeu demais?

Não bebi demais.

Três copos.

Detesto gente que conta os copos das outras pessoas. E não vou casar com você — Isabel deveria estar furiosa, mas estava mesmo meio alta e não conseguia reunir forças para discutir.

Quando a mãe voltou e disse que o jantar logo estaria pronto, Isabel levantou, disse que precisava mudar de roupa, traçou mentalmente uma linha reta pela sala e seguiu por ela, tentando não se afastar do trajeto.

Lá em cima, sob a água morna, tentava ordenar as ideias. Inútil.

Claro que não ia ceder. Só precisava encontrar uma ma­neira de detê-lo sem desagradar a mãe. Faria isso no mo­mento oportuno.

Quando começou a descer a escada, quinze minutos de­pois, de jeans e um blusão verde, podia ouvir a mãe rindo, encantada com a companhia de Lorenzo.

Ambos olharam quando Isabel chegou à sala. A mãe, ainda sorrindo, comentou:

Chega de falar de negócios por hoje. Lorenzo estava me contando sobre os Estados Unidos. Sempre quis ir até lá.

Não, não quis — Isabel disse, pensando em tomar um último copo de vinho. Afinal, a noite estava quase no fim e ela se sentia bem melhor depois daquele banho. — Você e papai detestavam sair da Inglaterra. Nas poucas vezes em que foram à Europa, voltaram para casa parecendo exaustos.

—        É verdade — a sra. Chandler concordou. — Mas Lo­renzo faz a América parecer tão interessante.

Lorenzo, Isabel pensou em dizer, podia fazer qualquer coisa parecer interessante. Claro que isso tinha sido muito tempo atrás, antes de ela descobrir que o detestava.

yocê sabia que ele tem várias empresas, querida?

É mesmo? Puxa, estou muito impressionada.

Isso deve ter sido bem difícil — a sra. Chandler comentou, voltando-se para Lorenzo. — Ouvi dizer que a Amé­rica do Norte é um lugar muito competitivo. É mesmo?

Bastante. Durante o primeiro ano lá, eu trabalhava como um louco, acho que dormia duas horas por noite. —Riu. A sra. Chandler riu também.

Quando ele decidia ser charmoso, Isabel pensava, não havia quem resistisse, muito menos membros do sexo oposto.

Morava num lugar pavoroso — Lorenzo prosseguiu. — Perto dele, o escritório era um palácio.

Deve ter sido horrível — a sra. Chandler comentou, olhando para a filha, ansiosa por alguma contribuição à conversa.

Também acho — Isabel interveio, prestativa. — Como foi que você conseguiu suportar? — Ela já sabia como agir. Parecendo cooperativa, pelo menos em frente à mãe, não poderia ser responsabilizada se o negócio fracassasse.

Antevendo o dia em que voltaria aqui, Isabel — Lorenzo respondeu, sério. — Fui para os Estados Unidos em busca de sucesso. Era tudo o que eu pretendia trazer na bagagem quando voltasse.

Chamo isso de tenacidade — a sra. Chandler comentou. Era algo que ela conhecia bem. O marido também tinha sido assim. — Espero que você fique mesmo com a empresa de David. Sei que assim ela estará em boas mãos — voltou-se para Isabel. — Você não acha, querida?

Claro, claro, mamãe. Estou certa de que Lorenzo vai aumentar a produtividade por lá.

David andava preocupado com a empresa desde bem antes de morrer — a mãe disse, para surpresa de Isabel, que nunca soube disso.

Por quê? — Lorenzo perguntou, parecendo realmente interessado.

Ele sabia que havia problemas na administração, mas era contra demitir velhos amigos.

Uma situação embaraçosa.

Bastante. Só o vi tão preocupado uma única vez antes, há muitos anos. Ele nunca me disse por que, mas, fosse qual fosse o problema, deve ter conseguido resolvê-lo. — A sra. Chandler levantou. — Bem, vou cuidar da comida. Cha­mo vocês quando estiver na mesa.

Era a deixa para Isabel se prontificar a cuidar de tudo. Mas a mãe não permitiu.

—        Não, querida. Fique aqui com Lorenzo. Faz tanto tempo que vocês não se vêem. — Olhou para Lorenzo com ternura. — E lembrem-se, nada de falar de negócios.

Tão logo a sra. Chandler saiu da sala, Lorenzo olhou para Isabel.

Ainda está tonta? — perguntou.

Nem um pouco.

Vai ficar se terminar esse copo. Quatro sempre foi o seu limite.

Isabel corou e terminou de beber.

—        Surpresa você ainda lembrar disso — comentou. — Dormindo duas horas por noite durante anos a fio.

Lorenzo riu. O mesmo riso contagiante de anos atrás. Ou era imaginação dela?

Não pense que vai conseguir o que quer só porque não estou discutindo com você — ela advertiu, achando de repente aquela sala muito quente, muito pequena.

Nem pensar.

Você está gostando disso, não é? — Isabel perguntou, com menos mordacidade do que pretendia. — Está se di­vertindo com meu desconforto.

Sempre gostei de olhar para você —- ele respondeu.

Isabel corou. Levantou. Começou a andar pela sala, tensa porque sabia que ele continuava olhando.

—        Pare com isso, Isabel. Isabel se voltou.

—        Você gosta mesmo de dar ordens, hein, Lorenzo? — Isabel se aproximou. Parou perto da poltrona onde ele es­tava, olhando para baixo.

Rápido como um gato, Lorenzo segurou seu pulso e a puxou para baixo, sentando-a no braço da poltrona. Isabel, furiosa, quase caiu no colo dele.

Assim é melhor — ele disse, ainda segurando seu pulso, impedindo-a de se afastar.

Você pode achar que vim aqui só para aborrecê-la, mas na verdade eu queria ver sua mãe — Lorenzo disse, voz profunda, aveludada. Isabel olhava para os traços de seu rosto, tentando não demonstrar como aquela proximi­dade a incomodava.

Como está a doença dela? — ele perguntou.

Ela tem sabido levar.

Sua mãe sempre foi uma mulher forte.

Richard também sempre diz isso.

Lorenzo estreitou o olhar. E apertou seu pulso um pouco mais.

Ah, o solteiro e atraente dr. Adams. Não terminamos de falar sobre ele, não foi? Ele diz isso no horário de trabalho ou depois? Você anda saindo com ele?

Somos amigos — Isabel informou.

Será que ele estava com ciúme? Pensar nisso lhe causou certo prazer, que infelizmente não durou muito. Se estivesse, não seria por razões emocionais. Seria apenas porque um homem na vida dela reduziria sua vulnerabilidade. E ele a queria vulnerável, numa posição em que pudesse machu­cá-la como ela o tinha machucado quatro anos atrás.

Mas o que importava o que ele sentisse por ela? Isabel olhava para o rosto dele e, no fundo de sua mente, uma resposta começava a tomar forma. Isabel, porém, a descar­tou rapidamente.

        Mamãe ficou arrasada quando papai morreu. Foram tantos anos juntos e ela sempre foi tão dependente. Era sempre ele que cuidava de tudo.

Será que ele estava ouvindo? Olhava para ela, mas pa­recia não ouvir nada. O que a deixava ainda mais confusa.

Bem, posso voltar ao meu lugar agora?

Não. Prefiro você aqui.

E sua mãe, como está?

Muito bem. Ansiosa para voltar para cá — Lorenzo cruzou as pernas, recostou na poltrona. — Está na Itália agora. Deve ficar lá uns dois meses, até eu ajeitar as coisas por aqui. — Distraidamente, começou a acariciar seu pulso com o polegar. Isabel sentiu a temperatura começar a subir. — Conte o que houve por aqui nestes quatro anos.

Seria muito demorado — Isabel se ajeitou no braço da poltrona. — Além disso, estou desconfortável nesta posição.

Está? — Lorenzo sorriu maliciosamente. Puxou-a na sua direção.

Isabel desabou no colo dele. Começou a se debater. Inutilmente.

        O que acha que está fazendo?

Lorenzo tinha um braço ao redor de seu pescoço. O outro sobre as coxas. Isabel continuava se debatendo. Isabel es­tava sem sutiã. Sob o blusão, podia sentir os seios incharem, os mamilos endurecerem.

        Minha mãe — disse, tão cuidadosamente quanto podia —teria um ataque cardíaco se entrasse aqui agora e visse a gente assim.

Ele estava muito perto. E ela sabia que, se não tomasse cuidado, aquela proximidade lhe subiria à cabeça e...

Poderíamos lhe contar que pretendo me tornar genro dela. Mas ela está na cozinha cuidando do jantar — Lorenzo respondeu.

Preparar legumes e arrumar a mesa não demora tanto —Isabel disse, ignorando a sugestão, que provocava nela uma sensação estranha, traiçoeira, uma chama esperando ser reacendida.

Lorenzo também ignorou o que ela dizia.

        Quando você casou — murmurou —, quase enlouqueci imaginando você fazendo amor com ele. — Lorenzo tocou seu seio.

Isabel respirava curto. Sentia que, se fechasse os olhos, nunca mais voltaria à realidade. Por isso mantinha os olhos bem abertos, lembrando que aquele homem não sentia por ela nada além de raiva e antipatia. O fato de seu corpo querer responder àquelas carícias era apenas algo tempo­rário. Ela precisava reagir. Se cedesse, nunca mais poderia encarar a si mesma. Era o vinho, claro. Tudo culpa daquele último copo.

Me largue — ela disse, esforçando-se para falar normalmente. — Não quero falar sobre ele nem sobre meu casamento. E não quero que você me toque.

Não quer? — ele sussurrou. — Você me quer tanto quanto quero você.

Não — Isabel tentou escapar, mas não tinha forças. Braços e pernas pareciam pesar uma tonelada. Queria lutar, queria fugir, mas seu corpo não atendia. Tinha decidido permanecer imóvel.

Lorenzo começou a brincar com seu mamilo. Isabel queria gritar, mas não podia. Cerrou os punhos, tentando respirar normalmente.

Não faça isso, Lorenzo. Não quero — sussurrou.

Não minta. Você está gostando. — Lorenzo levantou o blusão, expondo seus seios. Levou os lábios ao mamilo endurecido.

Isabel estremeceu. Somos inimigos, pensava, mas era inú­til. Seu corpo insistia em não ouvir a voz da razão.

Conte — ele murmurou. — Conte sobre ele. Preciso saber. Jeremy está morto e o passado não pode mais as­ sombrá-la.

Não há nada para contar — Isabel finalmente conse­guiu reagir, mortificada com o que tinha acontecido.

Raios, Isabel — Lorenzo a soltou. Isabel afastou-se dois passos, trémula.

Você não liga a mínima para mim, Lorenzo. Por que acha que eu confiaria em você? Por que acha que eu lhe falaria sobre os últimos quatro anos?

— Pode guardar seus segredinhos — Lorenzo respondeu, levantando-se da poltrona.

Isabel se afastou mais dois passos. Ele parecia a ponto de dizer mais alguma coisa, olhar duro, corpo tenso. Mas fosse o que fosse, Isabel ficou sem saber o que era porque a sra. Chandler entrou na sala. Ambos se voltaram imediatamente.

Isabel pendurou um sorriso no rosto, evitando olhar para Lorenzo. Ainda estava tonta. Não conseguia pensar.

Na verdade, o vinho nada tinha a ver com aquilo. Era como se uma represa tivesse rompido, e sensações reprimi­das durante anos tivessem de repente vindo à tona.

— Tudo pronto. —A mãe parecia contente. Pegou Lorenzo pelo braço, convidando-o a falar mais sobre a América e o que tinha andado fazendo por lá. Atrás deles, Isabel se perguntava se o corpo dele ainda palpitava como o dela, ou se o entusiasmo tinha arrefecido tão logo ela o tinha repelido.

Ele dizia desejá-la. Mas o ódio era mais forte que o desejo. Casando com ela, ele satisfaria a ambos.

Quem o visse agora, entretanto, jamais diria que ele tinha em mente algo além de um jantar agradável e uma conversa cordial.

O homem era um ator de primeira, Isabel pensava. Sem­pre teve, desde adolescente, a habilidade de dissimular o que sentia, habilidade que com o passar dos anos tinha desenvolvido à perfeição.

A sra. Chandler tinha trazido uma garrafa de vinho da adega, que entregou a Lorenzo, que a abriu rápida e efi­cientemente.

—        Isabel quase não bebe, não é, querida? E a primeira vez que a vejo beber mais de um copo. — A mãe dizia enquanto Lorenzo servia o vinho, interrogando-a com o olhar ao aproximar a garrafa do copo dela.

Imediatamente, sem nenhuma razão, Isabel se sentiu na defensiva.

—        Não, obrigada — recusou, amuada.

Lorenzo continuava olhando para ela, como se esperando ouvir mais alguma coisa. Isabel nunca tinha sido uma al­coólatra, mas gostava de um bom vinho. Na verdade, lem­brava de inúmeras vezes em que ela e Lorenzo tinham con­sumido uma garrafa inteira, enquanto falavam sobre coisa nenhuma. E sabia que ele também lembrava. Ele parecia lembrar de tudo.

—        Jeremy... — a mãe começou a dizer. Mas Isabel interrompeu.

—        Mamãe!

Claro que Lorenzo sabia que seu casamento tinha sido um fracasso, mas ela não estava inclinada a confirmar em que extensão. Seria impossível suportar a pena dele, além do desprezo.

Gostava de beber de vez em quando? — Lorenzo su­ geriu, pondo comida no próprio prato.

Bem mais que isso — a mãe confirmou, pensativa, olhando para a filha.

Os legumes — Isabel disse, mais alto do que seria necessário — foram cultivados aqui mesmo.

Era preciso impedir que a mãe começasse a falar sobre os porres de Jeremy, maiores à medida que o tempo passava. Claro que a mãe não via nenhum problema em comentá-los com Lorenzo, um velho amigo, digno de confiança. Mas Isa­bel não achava a mesma coisa.

—        Mamãe ainda os cultiva lá no jardim — ela prosseguiu, concentrando-se no próprio prato. — Também temos ver­duras e tomates. No verão colhemos morangos.

—        Não leve a mal, querida — a mãe disse, ainda pensativa —, mas, cá entre nós, seu pai e eu sempre esperamos... — fez uma pausa, voltando-se para Lorenzo, e Isabel olhou para ela horrorizada, imaginando o que ela ia dizer — sempre achamos que vocês dois... talvez... que bobagem a nossa, não é? — Sorriu.

E Lorenzo sorriu também. Um sorriso de triunfo, visível apenas aos olhos de Isabel. O sorriso do vencedor.

 

Logo mudaram de assunto. Mas, enquanto fa­tiavam de legumes e verduras, pela cabeça de Isabel rodopiavam as temerárias implicações dos comen­tários da mãe.

Com ela, a mãe nunca tinha feito nenhum comentário sobre tais devaneios. Por que tinha de fazê-lo agora? Na presença dele?

Olhando de soslaio, Isabel parecia ver nos seus lábios um sorriso de satisfação. Ou seria só imaginação?

Isabel despejou vinho no próprio copo, olhando para Lorenzo de modo desafiador.

—        Isabel me disse que Richard Adams vai muito bem— Lorenzo comentou casualmente.

Espertinho, Isabel pensou. Quer descobrir de outra fonte se entre ela e Richard existe algo mais do que ela disse. Será que pensa mesmo que eles tinham um caso enquanto Jeremy era vivo?

Que jovem adorável — a sra. Chandler confirmou entusiasmada. Olhou para a filha. — Você gosta mesmo de trabalhar com ele, não é, Isabel?

Bastante. Ele é brilhante, compreensivo, atencioso.

Um modelo de homem — Lorenzo disse com certa frieza. — Estranho ainda não ter casado.

Deve estar esperando a mulher certa — a sra. Chan­dler comentou.

Estranho você nunca ter casado, Lorenzo — Isabel disse alegremente, tomando um gole de vinho e olhando para ele por sobre a borda do copo.

Por quê?

Porque é solteiro e, imagino, um excelente partido.

Você acha mesmo? — Lorenzo perguntou, usando todo o seu charme.

Claro. Estou certa de que algumas mulheres o achariam interessante — Isabel respondeu, levantando o olhar.

—        Especialmente na América. Lá não há mais mulheres que homens?

—        É mesmo? Eu não sabia — Lorenzo sorriu para a sra. Chandler, parecendo ofendido. Voltou a olhar para Isabel.

—        Mas não sei se foi agradável ouvir que meu prestígio decorre de um excesso de mulheres.

A sra. Chandler riu, como se esperava. Mas tinha certa expectativa no olhar, da qual Isabel não tomou conhecimento.

Seja como for, não vou bisbilhotar sua vida particular, Lorenzo — Isabel respondeu rapidamente.

Sinta-se à vontade. O que gostaria de saber?

Nada.

Difícil acreditar. Você devia estar curiosa sobre mim, depois de quatro anos.

A sra. Chandler observava cuidadosamente, com um meio-sorriso divertido, como um adulto observando uma pe­quena rusga entre duas crianças. Mas Isabel conhecia a mãe bastante bem para se deixar enganar por aquela ex­pressão meiga.

—        Nem um pouco — Isabel encerrou o assunto e fechou a cara.

Lorenzo deu de ombros.

Tinham acabado de comer. A mãe trouxe a sobremesa. Torta de maçã que tinha sobrado do dia anterior, ela foi logo dizendo.

Começaram a falar sobre Abigail, a brilhante Abigail e sua brilhante carreira. Isabel começou a relaxar. Ela tinha grande orgulho da amiga. Abigail tinha se apresentado na Broadway. Lorenzo a tinha visto lá. Esse era um assunto sobre o qual podiam trocar ideias e Isabel poderia falar durante horas, rindo enquanto o vinho voltava a fazer efeito.

Falar sobre os velhos tempos era seguro, enquanto os velhos tempos não envolvessem lembranças de Lorenzo.

Quando queria, ele sabia ser inofensivamente espirituoso. Ao fim da torta, a eletricidade suspensa na atmosfera tinha evaporado.

A sra. Chandler começou a tirar os pratos, mas Lorenzo insistiu em que ela fosse para a sala e relaxasse, enquanto ele e Isabel cuidavam da cozinha.

O chef não lava pratos — ele disse. E ela rapidamente aceitou a sugestão, deixando os dois sozinhos na cozinha.

Parece que tomei um tonel de vinho — Isabel disse, começando a lavar os pratos. Era bom estar ali com ele, naquele lugar aconchegante, enquanto o vento do outono soprava lá fora. A cautela parecia ter desaparecido.

Parece que lhe fez muito bem — ele respondeu. — Agora você não parece estar afiando as garras.

Não sei se gostei da alegoria — Isabel riu. — Me faz parecer uma ave de rapina.

Discordo — Lorenzo chegou mais perto. — Você é bonita demais para ser comparada a uma ave de rapina.

Você acha? — Isabel sabia que não devia estar tão feliz. Não aqui. Não com ele. — Estou certa de que você esteve envolvido com mulheres mais bonitas.

Com que tipo de mulheres você acha que estive envolvido?

Nem imagino — Isabel mergulhou as mãos na pia, achando que havia algo perigosamente excitante naquela conversa.

Claro que imagina — ele sussurrou.

Mulheres lindas, provavelmente.

Nunca me interessei por mulheres ornamentais. Você devia saber disso.

Devia? Por quê?

Você se considera ornamental?

Considero o assunto impróprio para a ocasião.

Lorenzo largou o pano de prato. Olhou nos seus olhos. Segurou sua cintura com as duas mãos.

—        Sobre o que gostaria de falar? Horticultura? Política? Vida sexual dos castores?

Isabel olhou para as mãos dele. E percebeu que parte de sua tontura não se devia ao vinho. O coração batia rápido, tão rápido que sufocava.

—        Ou devemos falar sobre outra coisa, Isabel? Sobre Jeremy?

—        Não. Não há nada para falar. Minha vida não interessa. Lorenzo não respondeu. Apenas a abraçou e trouxe mais perto. Isabel podia ouvir as batidas de seu coração ao re­costar a cabeça no seu peito, contendo a repentina vontade de chorar.

—        Oh, Isabel — ele murmurou, afagando seu cabelo. — Sua vida tem sido assim tão horrível?

A sensação era agradável. Ela precisava tanto de conforto.

—        Sinto falta de meu pai — ela sussurrou.

Lorenzo não disse nada. Compreendia. Ela sabia disso.

—        Por que não fala sobre isso?

Isabel cerrou os olhos. Ouviu Lorenzo suspirar. Não a costumeira reação de raiva. Continuava afagando seu ca­belo. Amigos, ela pensou. Por enquanto.

Mas... ela não queria sua amizade, queria? Seria uma amizade impossível, porque duas pessoas nunca poderiam ser realmente amigas sob uma tendência de desprezo e des­confiança. No momento, ela tinha baixado a guarda, reco­nhecia. Provavelmente ele também. Afinal, ele também ti­nha tomado vinho.

Isabel se afastou e olhou bem para ele. Perceber que estava olhando para um homem que ainda amava, que nun­ca tinha deixado de amar, abalava suas estruturas.

Era preciso raciocinar. Aquela reação estúpida era fruto de circunstâncias incomuns. Jeremyjá não estava por perto. Seu pai, que ela amava tanto, já não estava por perto. Mas, de repente, Lorenzo estava. E a nostalgia fazia sua parte, provocando emoções que, quando ela parasse e pensasse, perceberia que na verdade não existiam.

O argumento, entretanto, parecia inconsistente. Isabel I fechou os olhos. Percebeu que seu coração sempre tinha pertencido a um único homem. Por outros motivos, ela tinha jogado fora a oportunidade de ser feliz com ele. Agora não tinha mais jeito. Ele a detestava.

Isabel respirou fundo. E se afastou.

Era preciso redobrar a cautela, Isabel pensou. Se Lorenzo queria machucá-la, não teria de fazer muito esforço se sou­besse o que ela ainda sentia por ele.

Isabel pegou três xícaras no armário, ciente de que ele a observava.

Isso significa que você não quer falar comigo sobre seu casamento.

Já disse. Não há nada para falar.

Neste caso, por que tanto segredo?

Por que você não esquece o que aconteceu?

Você foi forçada a casar com ele, não foi?

Por que diz isso?

Você nunca o amou. Ninguém que a conhecesse bem esperava esse casamento. Abigail achou que você casou por­ que precisava, porque foi forçada...

Abigail? — Isabel se voltou rapidamente. — Quando foi que você falou com Abigail a meu respeito?

Saímos para jantar depois de uma de suas apresentações.

E tinham de ficar falando de mim?

Não estávamos falando de você. Estávamos falando do passado e alguém mencionou você.

Oh, é mesmo?

Abigail nunca tinha mencionado tal encontro. Por quê? O que teria havido entre eles que recomendava tanta discrição?

Pelo amor de Deus, Isabel — Lorenzo disse aspera­mente. — Dá para ver o que passa por essa sua cabecinha. E é uma grande bobagem.

Pare de fazer de conta que me conhece — ela respondeu. — Pare de agir como se pudesse ler meus pensamentos.

Eu lhe disse que saí para jantar com Abigail. Ela não lhe contou. Você somou dois mais dois. E deu seis.

Você pode sair para jantar com quem quiser — Isabel disse. — Tudo bem, estou surpresa por ela não ter me contado. Mas ela deve ter achado que eu não estava interessada. E não estava mesmo.

:— Não? Por que sua vida aqui estava tão completa?

—        Que bobagem — Isabel se voltou. As mãos tremiam. A mente estava cheia de imagens da melhor amiga na cama com Lorenzo Cicolla.

Já lhe ocorreu que talvez ela não tenha dito nada porque eu estivesse com outra mulher quando fomos jantar?

Compreendo.

Talvez ela achasse meio desagradável. Talvez achasse que você, minha ex-amante, podia não gostar de ouvir.

Isabel riu. Ou pelo menos tentou.

Por que acharia isso? Eu tinha a minha própria vida aqui.

Se você acha que estar casada com Jeremy era viver.

Você não tem a mínima ideia de como vivíamos!

Não é difícil imaginar.

E claro que você estaria certo, não é? Quatro anos depois, o infalível Lorenzo Cicolla volta aqui, faz suas de­duções e, claro, acerta na mosca.

Você não o amava. Estava evidente no dia do casamento. Por que isso mudaria? Você nunca ligou para ele. Nem seus pais. Ele era um fanfarrão quando garoto, e nunca deixou de ser. Bebia. E sabe-se lá o que mais. Tinha outras mulheres?

Lorenzo, pare!

Por quê? Por que deveria parar? Quero saber por que casou com ele.

Seus olhos fuzilavam. E Isabel, em pânico, se perguntava como uma paixão podia virar tanto ódio.

Tudo já passou — Isabel murmurou. — Esqueça.

Esquecer? — Lorenzo a segurou pelos ombros. — Você esqueceria? Se eu tivesse me afastado de você quando éra­mos amantes, você sorriria e esqueceria?

Acho que não — Isabel admitiu sem olhar para ele.

Então por que acha que eu devia esquecer?

Porque não há razão para insistir no assunto.

Você diria o mesmo se eu tivesse voltado aqui de mãos abanando? Sem dinheiro?

Claro.

Claro — Lorenzo ironizou. E Isabel desviou o olhar dos olhos dele. — Quatro anos depois eu me tornei alguém interessante, não foi, Isabel? Por que não admite? Talvez Abigail estivesse enganada, talvez você me quisesse fazer crer num motivo obscuro para casar com ele porque a verdade era muito sórdida. Foi isso? Você casou com ele porque queria alguém do mesmo nível social? E o fato de termos sido amantes não passava de uma inconveniência?

Você pode acreditar no que quiser.

Dizer aquilo foi como agitar um pano vermelho na frente de um touro. Lorenzo a sacudiu como se ela fosse uma boneca de trapo.

Você me usou, Isabel. O que pensava quando estava comigo? O que sentia quando fazíamos amor? Que era tudo muito divertido? Que eu não era suficientemente rico para você? Um pobre menino italiano, filho de pais igualmente pobres, não é?

Não!

Cidadezinha pequena, sociedade fechada, mentalidade tacanha. — Lorenzo parecia não ouvir o que ela dizia, apertando seus ombros cada vez mais. Com certeza, as marcas estariam lá de manhã.

Por que voltou aqui então?

Você cometeu um erro achando que podia brincar co­migo, Isabel. Ninguém brinca comigo. Fui para a América, fiz fortuna. E vou ficar aqui. Vou ter a empresa de seu pai e vou ter você.

Nunca vou casar com você.

Lorenzo sorriu. Acariciou-lhe á nuca, sem muita delicadeza.

—        Como pode gostar disso? — Isabel perguntou, mas Lorenzo não precisava responder. — Você está louco — murmurou, torcendo para que ele se afastasse. Assim ela poderia pelo menos respirar. Sentir os dedos dele na nuca a deixava arrepiada.

—        Você tem de admitir que o casamento teria suas compensações — ele disse, voz rouca. — Você me quer tanto quanto quero você. Não é mesmo? — murmurou, esfregando o mamilo com o polegar, sentindo-o inchar e endurecer. —Inútil resistir. Vou ter você.

—        Você casaria comigo por simples vingança? Lorenzo continuava massageando seu mamilo, fazendo a temperatura subir cada vez mais. Beijou seu pescoço.

Então abraçou sua cintura, puxando-a de encontro a si. Isabel sentia o vigor de sua ereção, morrendo de desejo.

—        E uma pena — ele murmurou, sorrindo — que este não seja um lugar muito apropriado para fazer amor, não é?

Isabel se afastou bruscamente. Correu para o canto da cozinha. Pegou a bandeja, segurando-a em frente a si, como um escudo.

Por que você não vai lá para a sala?

Enquanto você se recompõe? — Lorenzo ainda sorria. —    Você parece mesmo excitada.

—        Que bom que você está se divertindo — Isabel disse. —       O que pensaria — acrescentou — sua amiguinha se o visse agora? Ou a mulher que Abigail esqueceu de mencio­nar não passava de uma brincadeirinha?

—        Pensei que você não se interessasse por mim. — Lo­renzo riu.

—        Sempre tive curiosidade sobre homens que querem dormir com duas mulheres ao mesmo tempo — ela retrucou.

A bandeja começava a pesar, mas isso não tinha impor­tância. Era preciso saber mais sobre a tal mulher. O ciúme a consumia e isso era detestável. Quatro anos de experiência amarga não a tinham feito amadurecer, Isabel pensava. Só a tinham feito mais boboca.

—        Jéssica é loira, linda, e minha contadora. Está satisfeita? Lorenzo saiu na direção da porta. Isabel foi atrás, braços cruzados.

Linda e inteligente, logo imaginou. Ele não se interessava por mulheres ornamentais. A imaginação de Isabel traba­lhava a todo o vapor. Também devia ser alta, ter lindas pernas, entender profundamente de finanças.

—        Ela deve estar ansiosa pela sua volta — Isabel disse atrás dele.

Lorenzo parou de repente. Voltou-se, sorrindo. Isabel qua­se o atropelou.

Eu sabia que você não desistiria do assunto tão facilmente.

Ah, sabia?

Claro. Conheço-a bem. Lembro de uma vez que cheguei tarde e você, embora não manifestasse nenhum interesse nos motivos, quis saber até de que lado do carro ficava o pneu que furou.

Isabel corou ainda mais, momentaneamente sem saber o que dizer.

Com um simples comentário, ele a tinha feito voltar no tempo, a uma época em que a vida era cheia de otimismo. E doía voltar ao presente, constatar que o otimismo era algo tão distante.

—        Mas, respondendo sua pergunta — Lorenzo prosseguiu —, nem imagino. Ela está sempre ocupada, trabalha muito. No fim do dia deve estar cansada demais para fazer qualquer outra coisa.

—        Estou surpresa por você ter se afastado de uma mulher tão dinâmica — Isabel respondeu. Sua imaginação já tinha elevado a tal mulher de brilhante a genial, do tipo que ocupava o pouco tempo livre perseguindo objetivos intelec­tuais elevadíssimos.

Também estou — ele respondeu, parecendo pensativo.

E por que fez isso? — ela alfinetou. — O aeroporto está cheio de aviões para a América.

Já lhe disse. Você não vai se livrar de mim. Tenho negócios a resolver aqui. E vou ficar até resolvê-los.

Você desistiria de uma mulher que ama apenas para satisfazer um pervertido desejo de vingança?

Quem falou em desistir? Você vai conhecer Jéssica quando chegar a hora. Ela vem aqui trabalhar para mim.

Não me diga que pretende trazer...

Claro.

Você me dá nojo.

Não percebi tantos escrúpulos quando você me deixou para casar com Jeremy Baker. São as regras do seu próprio jogo.

Eu tinha bons motivos — Isabel murmurou.

E quais eram seus motivos, Isabel?

O café está esfriando — ela resmungou, olhando para a frente.

Lorenzo fez meia-volta.

Pouco a pouco seu jogo ia ficando mais claro, Isabel pen­sava. As peças do quebra-cabeça começavam a encaixar. Ele queria casar para mantê-la cativa, para ter o que um dia tinha perdido. Mas ao mesmo tempo teria sua amante, a tal mulher.

Felizmente, não sabia que ela ainda o amava. Se sou­besse, o que seria dela? Mas ela não se permitiria mais este sofrimento. Já tinha sofrido demais. Nunca casaria com ele. Mais cedo ou mais tarde, ele teria de desistir.

Isabel o seguiu até a sala, onde a mãe, felizmente, não tinha adormecido. Desde a morte do marido, ela dormia mal durante a noite. E se recusava a tomar remédios. Por isso, tinha adquirido o hábito de dormitar no sofá da sala.

—        Puxa, vocês dois passaram um tempão lá na cozinha — a mãe comentou.

Isabel respondeu com um olhar de advertência, que ela ignorou.

Foi mesmo? — Lorenzo deixou a bandeja sobre a me­sinha e olhou para Isabel de soslaio enquanto a sra. Chandler servia o café.

Não que eu me importe. É bom para Isabel ter alguém para conversar.

Isabel não disse nada. Apenas bebericava o café.

—        Abigail — a sra. Chandler suspirou — agora está sem­pre viajando.

—        Vida de artista — Lorenzo concordou, acomodando-se na poltrona, parecendo não ter pressa alguma de ir embora.

—        Estou certa de que Isabel está contente de rever você — a sra. Chandler olhou para a filha. — Não é, querida?

—        Bastante — Isabel murmurou.

—        E bom ouvir isso, Isabel — Lorenzo sorriu.

—        Espero que seja possível vocês trabalharem juntos para pôr a empresa de David em ordem.

—        Também espero — Lorenzo disse num tom mais significativo, que Isabel logo percebeu, mas a mãe aparente­mente não.

—        Seria tão bom ter você por perto, Lorenzo — a sra. Chandler parou, parecendo procurar as palavras certas. -— Especialmente agora que resolvi sair umas semanas para visitar um parente na Cornualha.

Parente? — Isabel quase engasgou com o café. — Cor­nualha? Do que é que você está falando, mamãe?

Ainda não lhe disse?

Você sabe que não disse.

Oh, querida, eu ia dizer. Mas tenho andado tão preo­cupada com a empresa.

Que parente, mamãe? — Isabel insistiu. — Você não está falando da tia Dora, está?

Faz anos que não a vejo e ela está sempre nos con­vidando para ir lá.

Ela é uma chata. Você também acha.

Dora está convalescendo de uma operação — a sra. Chandler confidenciou a Lorenzo. — Coitadinha.

Ela tem quem cuide dela por lá — Isabel ponderou.

Ela se sentiria melhor com uma parente pòr perto, querida — a sra. Chandler sorriu. — Posso não ser a pessoa mais útil do mundo com minha doença, mas ainda posso fazer chá. E temos vários interesses comuns. Jardinagem, livros — suspirou. — Vai me fazer bem, Isabel. Estou mesmo precisando sair um pouco desta casa.

Isabel olhava para a mãe sem saber o que dizer.

—        Mas agora? — perguntou. — Por que agora?

Por que não?

Acho uma ótima ideia — Lorenzo interveio.

Que atrevimento. Dar palpites num assunto que não era de sua conta.

Bebericando o café, Isabel olhava para a mãe. Essa via­gem não podia ter nada a ver com ele, claro que não. A mãe não podia estar tentando aproximá-los. Mergulhada nos próprios pensamentos, Isabel mal ouviu a pergunta que a mãe dirigiu a Lorenzo.

Onde você está hospedado?

Num hotel — Lorenzo respondeu, um tanto surpreso com a pergunta. — O Edwardian, nos arredores da cidade. Parece que as coisas não vão muito bem por lá.

Distraída, Isabel mal ouvia o que diziam. Continuava tentando se convencer de que não havia nada estranho na repentina decisão da mãe de visitar Dora Gately, que estava mesmo convalescendo de uma operação. As duas não se viam fazia um bom tempo e mudar de ares certamente faria bem à mãe.

—        Pobre gente — a sra. Chandler dizia. — Albert Towser bebe, não é segredo. E bebeu todo o lucro que aquele hotel produziu nos bons tempos. Agora que o negócio vai mal estão pensando em vender. Mas todos dizem que o prédio está em péssimas condições. E eles não têm dinheiro para reformá-lo.

Isabel já não pensava mais nos motivos da mãe. Pensava em mudar para outro lugar do mundo se Lorenzo CicoUa continuasse mesmo insistindo no seu intento doentio. Talvez a Austrália. Lá, ao que diziam, o sol brilhava o ano inteiro. Simples devaneio, claro, pois ela nunca se afastaria da mãe.

—        A comida, dizem, também já não é a mesma — a sra. Chandler prosseguia — Alice sempre foi boa cozinheira e cuidava pessoalmente da cozinha, mas tem tido muito tra­balho com Albert nestes últimos anos.

A França, Isabel pensava agora, era mais perto da In­glaterra, mas longe de Yorkshire. Talvez a mãe concordasse em viver no sul da França. Lá também havia sol. Não, talvez não. E o curso de fisioterapia que ela pretendia co­meçar em breve? Além disso, seu francês deixava a desejar.

—        E verdade, a comida lá deixa muito a desejar — Lorenzo concordava. — Bem diferente da daqui, apesar da torta de maçã amanhecida. — Sorriu.

Dorset. Clima muito ruim, Isabel refletia, mas lá não haveria Lorenzo Cicolla para fazer de sua vida um inferno e, longe dele, ela poderia sarar desse amor idiota.

Uma coisa era certa, aqui ela não podia ficar. Também não podia esperar que ele sumisse só porque ela se recusava a casar.

—        Por isso acho — a mãe disse —, principalmente agora que decidi passar algum tempo com Dora, que você devia ficar aqui. Pelo menos até encontrar um lugar para morar.

Só então, alheia à conversa durante os últimos minutos, Isa­bel percebeu, horrorizada, a conclusão a que tinham chegado.

—        Além disso — a mãe prosseguiu, sorrindo entusias­ mada para a filha —, você faria companhia a Isabel.

 

Deitada na cama, Isabel olhava para o teto. JL-^No escuro, não podia ver nada. Mas seria inútil fechar os olhos. Não ia mesmo conseguir dormir.

— Como pôde convidá-lo para ficar aqui? — tinha per­guntado à mãe pouco antes, depois de ouvir em silêncio o que os dois tinham combinado. Lorenzo já tinha ido. E ficado de voltar na noite seguinte.

Nada mais natural. Esta casa é tão grande. E, enquanto eu estiver com sua tia, você se sentiria muito sozinha aqui. Eu ficaria preocupada.

Por quê? Gosto da minha própria companhia. Não preciso...

—        Eu me sentiria melhor sabendo que Lorenzo está aqui. — A mãe tinha parado em frente à porta do quarto, mas Isabel insistia no assunto.

—        Esta é a nossa casa. E Lorenzo Cicolla é um... estranho! E, ainda por cima, você vai me deixar... — Isabel já começava a proceder como uma criança.

—        Ele não é um estranho, querida. — A mãe sorriu indulgentemente. — Até parece que você não o conhece —puxou a colcha e sentou à penteadeira para tirar a maquiagem. — O que está havendo com você, querida? Sei que você ainda está chocada com a morte de Jeremy e seu pai ambas estamos. Mas você foi muito indelicada esta noite.

— Não fui indelicada — Isabel teimava. — Só não achi boa ideia abrir as portas a qualquer um que estiver passando.

— Lorenzo é um velho amigo. Achei que seria bom para você, que a companhia lhe faria bem. Você anda muito re­traída, querida. Além disso, poderão trabalhar juntos para resolver a situação da empresa de seu pai. Vocês eram tão amigos... mais que amigos. Não entendo o que está havendo.

Lorenzo ia se mudar para aquela casa, não havia dúvida.

Claro que ela podia ir para outro lugar, mas isso seria fugir. Além disso, mudar para sua própria casa, ou de Je-remy, como ela sempre a tinha considerado, seria péssima ideia. Seria insuportável ver-se cercada de tantas lembran­ças desagradáveis, lembranças do silêncio, do desespero oriundo de segredos que deveriam permanecer enterrados para sempre.

Isabel continuava olhando para o teto sem saber o que fazer.

Na manhã seguinte, acordou com olheiras, mal-humorada.

A mãe continuava entusiasmada com o fato de Lorenzo estar se mudando para aquela casa. Com uma pressa in­compreensível, arrumou as malas e informou-se sobre o ho­rário dos trens. Partiria naquela mesma noite.

Isabel saiu para o trabalho de bicicleta, com cara de pou­cos amigos. Se acaso encontrasse Lorenzo Cicolla no cami­nho, lhe diria umas verdades, o que só não tinha feito na noite anterior por estar muito chocada.

Não encontrou. Teve um dia cheio no hospital. Quando saiu de lá, às cinco, estava garoando.

Lorenzo estava à espera. Parecia estar adquirindo o mau hábito de abordá-la na saída do trabalho.

Isabel pensava se devia fingir não ter visto o carro parado do outro lado da rua. Enquanto pensava, ele desceu do carro e se aproximou.

Estava frio. Lorenzo usava um sobretudo preto, o que parecia enfatizar sua estatura e masculinidade.

Que bom encontrá-la — ele disse antes que ela pudesse dizer qualquer coisa. — Quero falar com você.

Está chovendo.

            Também notei. Venha.

Desta vez, Isabel não tentou protestar. De que adiantaria? Ele a teria arrastado como da última vez.

Isabel empurrava a bicicleta pela calçada, conservando-a entre eles, esforçando-se para manter o mesmo passo.

Quando chegaram ao bar de Tom Wilkins, ela estava ensopada.

        Você se molhou — Tom comentou, como se ela não tivesse notado.

        Você é muito observador, Tom — Isabel resmungou.

— Tem café?

        Parece que está virando hábito, não é? Vocês dois bebendo juntos.

Era impossível se irritar com Tom. Sua franqueza era desconcertante.

Continuamos trombando um com o outro — Lorenzo respondeu, sem olhar para ela. — São os acasos de cidadezinhas como esta, eu acho.

Acaso ou não, a mesa de vocês, perto do fogo, está vazia — Tom respondeu, indicando a mesa que tinham ocu­pado antes. Levo o café lá quando estiver pronto.

Nossa mesa? — Isabel sibilou para Lorenzo quando Tom já não poderia ouvi-los. — É só a segunda vez que a gente vem aqui!

        Num lugar como este duas vezes é frequência habitual. Tom trouxe o café. Fez mais alguns comentários sobre o tempo. Isabel só ouvia. Tão logo ele se afastou, dirigiu-se a Lorenzo, furiosa:

Como pôde?

Como pude o quê?

        Você sabe o quê. Como pôde aceitar o convite de mamãe para ficar lá em casa? Especialmente sabendo que ela não estaria lá!

        Nada como a objetividade, não é mesmo? Mas foi bom você ter tocado no assunto porque era exatamente sobre isso que eu queria falar.

        Seja breve.

Você está agindo como criança — Lorenzo disse.

Eu? Criança? Você quer mesmo complicar minha vida, não é?

Sua mãe teria ficado chateada se eu recusasse o convite. Ela quer fechar o negócio com a empresa de seu pai, uma das razões pelas quais está tentando nos aproximar. Além disso, não vê motivo para eu ficar num desconfortável quarto de hotel quando a casa dela é tão grande.

Fazia sentido, claro, mas aquilo só deixava Isabel ainda mais furiosa.

Num desconfortável quarto de hotel, você estaria longe de mim.

Não seja tão egoísta.

Você pode ficar na minha casa — Isabel sugeriu.

Ficou maluca?

Ela está vazia!

Para mim não está — Lorenzo olhava para ela ferozmente. — E procurei você antes de me mudar para lhe dizer que pare de agir como se quisesse me matar na frente dela. Ela vai sair para espairecer. Quer que ela viaje preocupada?

Não me diga o que vai preocupar minha mãe!

Digo, porque no momento você não está enxergando um palmo além do nariz. Vou mudar para lá. É melhor começar a se acostumar com a ideia.

Isabel cerrou os dentes. Lorenzo sorriu. Recostou na cadeira.

Por que vendeu a casa de sua mãe se pretendia voltar à Inglaterra?

Porque nem imaginava quando voltaria. Nem onde iria morar.

Até que as circunstâncias o trouxeram de volta — lá estava a amargura de volta à voz de Isabel.

Seria bobagem manter uma casa desocupada.

—        Então, presumo, você está mesmo procurando um lugar para morar?

—        Estou vendo um certo otimismo na sua voz? Isabel detestava aquela expressão, quando todo o seu charme vinha à tona. Ele não merecia confiança, estava determinado a se vingar, ela precisava ter isso sempre em mente. Por que os anos não o tinham transformado num homem de negócios gordo e sem graça? Talvez o coração dela não estivesse aos pulos se ele não fosse tão sensual.

        Curiosidade — ela respondeu finalmente. Lorenzo ergueu as sobrancelhas.

Bem, vou satisfazer sua curiosidade. Sim, estou pro­curando uma casa para morar. Alguma sugestão?

Depende do tipo de casa que você esteja procurando.

O que você recomendaria?

Não conheço suas preferências.

Não?

Não sei o que você pode pagar — ela respondeu, es­quivando-se da pergunta. Lorenzo riu.

Posso pagar qualquer coisa.

Então o melhor é procurar John Evans, em High Street, e ver o que ele tem disponível.

Boa ideia. Você podia fazer isso, não podia? — ele murmurou, achando graça na reação dela.

Não.

Por que não? Você sabe de que tipo de casa eu gosto, embora não queira admitir. Passávamos horas discutindo onde moraríamos quando nos casássemos.

Isabel não queria lembrar do passado. Não queria com­parar o que tinham vivido juntos com o que viviam agora.

No momento — Lorenzo prosseguiu —- não tenho tempo para pesquisas.

Por que não?

Preciso montar uma base operacional aqui, para poder me comunicar com minhas outras empresas, antes de me dedicar à de seu pai. Só por isso.

Só sobre o meu cadáver.

Jéssica está para chegar. Precisa ter onde trabalhar. Também preciso providenciar um fax.

Estou certa de que a fantástica Jéssica pode cuidar de tudo isso enquanto você procura um lugar para morar.

Ciúme?

Nem um pouco.

Você podia ter tido outra vida, Isabel, bem mais interessante. Estava predestinada a isso. Como pôde se con­tentar com menos?

São as voltas que o mundo dá.

Isso encerra o assunto?

Não tenho tempo de procurar casa para você.

Para nós — Lorenzo corrigiu, com um sorriso que mais parecia uma ameaça. — E prefiro acreditar que você tem. Afinal, não gostaria de me ver longe, pára poder chegar a um acordo com o inevitável? Sozinha?

Vou pensar no assunto — Isabel murmurou, levan­tando da cadeira.

Ela mesma não sabia o que pensar. Seria constrangedor se envolver em algo tão pessoal como escolher uma casa para Lorenzo Cicolla. Seria como começar a ceder às suas exigên­cias. Mas ele estava certo. Viver com ele sob o mesmo teto a deixaria maluca. E ela tinha mesmo mais tempo disponível.

—        É melhor voltar comigo — Lorenzo disse ao saírem. A garoa tinha virado chuva. Lorenzo pegou a bicicleta e correu para o carro. Isabel correu atrás.

Estavam os dois molhados ao entrarem no carro. Lorenzo ligou o motor, os limpadores do pára-brisa. Só algum tempo depois Isabel percebeu que não iam na direção da casa de sua mãe.

Para onde estamos indo?

Para o Edwardian.

Para quê?

—        Pegar minhas coisas. Roupas, papéis, computador. Al­guma objeção?

Isabel tentava parecer indiferente, mas estava nervosa ao chegarem ao hotel. No início, logo ao reencontrá-lo, pre­sumiu que poderia evitar qualquer contato. Mas estava pres­tes a dividir com ele a casa de sua mãe, e a visitar algumas imobiliárias.

O Edwardian ficava nos arredores da cidade. Como a sra. Chandler tinha dito, seus dias de glória estavam longe.

Os sinais de decadência eram visíveis já no saguão de en­trada. A pintura precisava de reparos, o papel de parede precisava de reparos, a mobília precisava de reparos... A sra. Towser estava na recepção. Não parecia muito feliz.

Sinto muito pelo que houve com seu pai e seu marido, querida — ela disse a Isabel, enquanto Lorenzo pagava a conta, olhando para ele de soslaio. — Sua casa deve parecer vazia sem seu marido por perto.

Estou na casa de mamãe — Isabel respondeu, olhando ao redor. Não queria encorajar a sra. Towser a fazer perguntas.

Parece boa ideia, querida — a expressão curiosa sumiu, a de cansaço voltou. Isabel tinha a impressão de que a sra. Towser estava preocupada demais com os próprios proble­mas para se preocupar com os dos outros.

Lorenzo fez o cheque, que a sra. Towser examinou ne­gligentemente. Isabel achou um alívio afastar-se daquela atmosfera desolada que circundava o balcão.

Elevador não havia. Seguiram por um corredor. Subiram alguns lances de escada. Finalmente chegaram ao quarto.

Espero você aqui fora — Isabel sugeriu, enquanto Lo­renzo abria a porta.

Não seja ridícula — ele respondeu, de costas. — Não sei quanto tempo vou demorar. Não há por que ficar aqui neste corredor gelado.

Isabel entrou, relutante, retomando a inspeção da deco­ração das paredes enquanto Lorenzo arrumava as malas.

Seus pais costumavam vir àquele hotel de vez em quando, para almoçar aos domingos, quando ela era criança. Era uma festa. Constatar que o lugar agora estava em tal estado, desprovido de todo o seu charme e elegância, causava certa melancolia.

Lorenzo acabou de arrumar as malas. Olhou ao redor para se certificar de que não estava esquecendo nada. Di­rigiu-se à porta, onde Isabel tinha estado calada nos últimos quinze minutos.

        Pronto — ele disse, recostando na porta, observando-a divertido —, tudo certo. E você escapou do perigo.

Isabel não respondeu. Levou a mão à maçaneta. Lorenzo também, sobre a dela. Isabel gelou.  

Por que estava tão relutante em vir comigo aqui, Isabel? Achou que eu não poderia resistir a estar num quarto com você?

Nem pensar — ela respondeu prontamente.

        Claro, admito que houve um tempo... Impossível dizer quanto tempo passaram assim, olhando um para o outro. O que estaria ele pensando? Apesar da expressão fechada, seu corpo parecia irradiar um certo calor. Ela precisava dizer alguma coisa, qualquer coisa, para que­brar aquele clima. Mas não conseguia dizer coisa alguma. Algo inexplicávela compelia a se aproximar, provocava nela um desejo que a impedia até de respirar.

Ela queria beijá-lo, sentir as mãos dele no seu corpo. Queria sentir a mesma sensação sentida anos atrás.

— Podemos ir, Isabel — Lorenzo disse de repente, abrindo a porta.

Ele também a desejava, Isabel pensava, entorpecida, en­quanto saíam para o corredor. Tanto quanto ela o desejava. Mas entre eles havia o passado, aquele segredo terrível, como um abismo sem fim.

Seguiram para a casa de sua mãe em silêncio. A sra. Chandler estava à espera. Tinha preparado o jantar. Algo especial, a julgar pelo cheiro que vinha da cozinha. Lorenzo logo adotou sua postura mais charmosa. Naturalmente.

Que noite — a sra. Chandler disse ao recebê-los. — Preparei um cozido delicioso. Embora não vá ficar para o jantar. Já chamei um táxi para me levar à estação.

Não era preciso. Eu poderia levá-la — Lorenzo disse rapidamente, mas a sra. Chandler recusou.

        Ainda acho que você não devia ir — Isabel acrescentou. A mãe fingiu não ouvir. Olhando para a pouca bagagem de Lorenzo, comentou:

Se fosse mulher, você com certeza teria muito mais bagagem. Não é, querida?

Acho que vou tomar um banho — Isabel mudou de assunto.

        Boa ideia. Vocês parecem mesmo estar precisando. Isabel fechou a cara. Que bom se a mãe parasse de tra­tá-los como duas crianças.

        Querida, mostre a Lorenzo o quarto dele. Você sabe qual é.

Isabel ia na frente, sem olhar para trás,» torcendo para que ele tropeçasse numa das malas e fosse buscar hospita­lidade no hospital, o que obviamente não ocorreu. Ele era muito forte e ágil para uma desventura dessas.

É aqui — Isabel abriu a porta do quarto e já ia embora, mas ele a segurou pela cintura.

Cuidado, Isabel. Pare de pensar em si mesma e pense um pouco em sua mãe.

Isabel correu para o próprio quarto, pouco além.

Lá dentro, recostou-se na porta fechada, tentando se acal­mar. Se continuasse a agir assim, estaria um caco em menos de uma semana. Ela precisava suportar impassivelmente a presença dele, não deixá-lo perceber o que ia por dentro dela.

Isabel tomou um banho rápido. Ao sair, não se sentia muito melhor.

Embrulhada na toalha, examinava distraidamente o guarda-roupa. Seus pensamentos estavam longe.

Era preciso achar uma casa para ele o quanto antes. Talvez pudesse faltar uns dias no trabalho para cuidar do assunto. Talvez pudesse resolver tudo num dia só.

Nove horas: imobiliária. Dez horas: começar a busca. Cin­co horas: busca encerrada. Seis horas: informá-lo de que tinha achado. Adeus.

Concentrada no seu plano de ação, Isabel não ouviu a porta abrir. Quando olhou no espelho e o viu lá, parado na porta, ficou furiosa.

Que está fazendo aqui? — perguntou, apertando a toalha ao redor do corpo.

Procurando uma toalha.

No armário de cima — Em pânico, Isabel não conseguia se mover. Lorenzo fechou a porta e avançou dois passos na sua direção.

Fora!

Lá estava ele, parado na frente dela. Ela devia ter vestido o roupão de banho em vez daquela inútil toalhinha que mal cobria seu corpo. Mas não podia imaginar que ele invadiria seu quarto.

—        Não quero você aqui!

—        E você acha que quero estar aqui? — Lorenzo perguntou. Isabel abriu a boca para insistir, mas não deu tempo.

Sabia que ele ia beijá-la antes mesmo que o fizesse. Ainda estava apavorada quando sentiu o contato daqueles lábios, daquela língua à procura da sua.

Lorenzo abraçou sua cintura, trazendo-a de encontro a si. Isabel podia sentir o vigor de sua ereção. Começou a derreter.

—        Não — o protesto não passava de um gemido.

—        Sim — Lorenzo agora beijava seu pescoço. Levantou-a. Carregou-a até a cama.

Não havia suavidade nos seus gestos. Lorenzo tinha no rosto a mesma expressão severa, agressiva, mas seus olhos estavam em fogo.

Isabel ainda segurava a toalha. Mas Lorenzo começava a removê-la.

—        Lorenzo — Isabel murmurava, voz rouca, olhos fechados. Parecia fazer um milhão de anos desde a última vez que ela tinha sentido a mesma turbulência, a mesma sensação de abandono, que aos poucos ia tomando conta de todo o seu corpo.

Removendo a toalha, Lorenzo agora beijava seus seios, dei­xando-a cada vez mais enlouquecida. Sua língua estacionou sobre um dos mamilos endurecidos. Isabel estremeceu.

Lorenzo não parava. Lentamente, começou a descer, espalhando beijos por sobre seu estômago. Isabel gemia e se contorcia.

Era isso o que ela tanto temia. Aquela reação horrível, compulsiva, aquele desejo alucinado, impossível de ser con­tido. Mesmo casada com Jeremy, ela continuava desejando Lorenzo.

Descendo mais e mais, a língua de Lorenzo chegava agora entre suas coxas, invadindo a doce essência de seu ser. Isabel teve de se conter para não gritar.

—        Faça amor comigo, Lorenzo — ela suplicava. Lorenzo levantou a cabeça. Olhou para ela. De repente, ficou de pé. Isabel sentou na cama, olhando para ele, con­fusa, o corpo ainda trémulo.

—        Levante — ele disse.

Foi quando Isabel percebeu o que estava acontecendo. Levantou da cama. Embrulhou-se na toalha outra vez. Por­que deitada estaria muito mais vulnerável.

—        Lorenzo... — começou a dizer. Mas Lorenzo a interrompeu.

—        Quando eu tiver você, Isabel, será na nossa casa. Você será minha. Não como um empréstimo temporário, mas com um anel no dedo.

Isabel não sabia o que dizer. Queria que o chão se abrisse e a engolisse. Lorenzo se voltou. Saiu. Fechou a porta.

Sozinha no quarto, Isabel desmoronou. Começou a chorar.

Quando cansou de chorar, lavou o rosto e se maquiou. Não queria que a mãe percebesse que ela tinha estado cho­rando. Nem Lorenzo. Faria parecer que estava tudo bem, que tudo não tinha passado de um lamentável incidente.

Quando Isabel desceu, Lorenzo ainda estava lá em cima. Otimo. Assim ela teria mais tempo para se recompor.

Sua mãe estava na cozinha. Tinha feito pão caseiro para levar. Também tinha comprado salmão defumado. Dora, com certeza, adoraria. Melhor que levar flores.

Quando Lorenzo chegou, Isabel nem ligou. Continuou fa­lando com a mãe, que olhava o relógio sem parar, atenta à campainha da porta.

—        Acho que vou começar a procurar uma casa para você amanhã mesmo — ela disse. — Lorenzo me pediu para ajudá-lo — explicou, voltando-se para a mãe.

—        Otima ideia — a sra. Chandler respondeu. — Que tipo de casa você está procurando, Lorenzo?

Uma bem antiga — ele respondeu. — Com jardim. Minha mãe faz questão de um jardim.

Eu também faria. Emily me disse que Bearwood Cottage está à venda. A sra. Jenkins está de mudança para Surrey. Vai morar com uma das filhas.

A campainha tocou. A sra. Chandler saiu em seguida, entre abraços e promessas de ligar todas as noites.

Ficaram os dois sozinhos. Comeram em silêncio. Quando pousou os talheres no prato, Isabel finalmente disse, sem olhar para ele:

—        Não posso, Lorenzo. Não posso casar com você. Eu não suportaria.

Lorenzo recostou na cadeira. Cruzou os braços.

Por que não?

Já não há mais nada entre nós. Só mágoa. Eu viveria sempre relembrando o passado.

Por que faria isso? Aposto que você não lembrava do passado enquanto estava com Jeremy.

Você nunca vai me deixar esquecer isso, não é?

Por que deveria? Passei quatro anos lembrando do que você me fez.

Seria melhor você ir embora, continuar vivendo no Estados Unidos...

Não me diga o que seria melhor — Lorenzo levantou. Foi para a sala. Isabel foi atrás. O telefone começou a tocar.

Isabel atendeu. Falou pouco. Seu coração gelou.

É para você — estendeu o telefone. Rígida.

Para mim?

Sim. Jéssica Tate. Parece que ela ligou para o hotel e lhe deram o número daqui.

"Odeio você", Isabel pensava enquanto ele falava com a mulher na outra ponta da linha. "Odeio você por voltar à minha vida."

 

Isabel entrou na casa, pensou um pouco, e decidiu que, quer Lorenzo gostasse ou não, aquela era a casa que ela andava procurando fazia duas semanas. A casa que poria fim à presença dele sob o teto de sua mãe.

O sr. Evans tinha lhe dado as chaves para que ela pudesse ver por si mesma, e assegurado que a casa só não tinha sido vendida ainda porque a maioria das pessoas não se interessava por casas precisando de pequenos reparos.

Pequenos reparos, Isabel pensava enquanto vagava pelos diversos cómodos da casa, devia ser um jargão dos agentes imobiliários para reforma completa. Mas isso podia ser feito se houvesse dinheiro. E dinheiro não faltava. Fora isso, a casa era mesmo agradável. Grande. Com jardim.

Os donos, o sr. Evans tinha dito, lamentavam muito ter de vendê-la. Problemas de família. Isso Isabel podia enten­der. Também tinha os dela.

As duas semanas anteriores tinham sido horríveis. Na verdade, Isabel pouco tinha visto Lorenzo, mas ele parecia estar em todos os cantos daquela casa. E ela vivia em per­manente tensão, temendo nova invasão de seu quarto, ou, pior ainda, quando se falavam civilizadamente em encontros casuais.

O que ele estaria tramando agora? Ameaças de casamento não tinha havido mais. Nem cobrança dos motivos que a tinham levado a casar. Mas o silêncio também a incomodava. Será que a chegada da amante tinha aplacado seu desejo de vingança? Depois que ela tinha deixado claro que jamais] poderia casar com ele, Lorenzo não tinha dito mais nada. Talvez o desespero contido nas suas palavras tivesse sido mais convincente que as explosões anteriores.

Agora, quando se dirigia a ela, Lorenzo o fazia com a distância de um estranho. E isso doía. No início, tinha dei­xado seu ódio bem claro, o que pelo menos mostrava sin­ceridade. Agora, só mostrava indiferença.

Isabel subiu a escada. Começou a inspecionar os dormi­tórios. Parou na janela do principal, observando o jardim malcuidado lá embaixo. Não queria pensar em Jéssica Tate. Mas não podia evitar.

Jéssica tinha chegado dois dias depois daquele telefone­ma. Para ela, Lorenzo tinha alugado um flat nos arredores da cidade. Mas isso não tinha reduzido suas inconvenientes visitas à casa de sua mãe.

Estava vigiando Lorenzo, sem dúvida, Isabel tinha per­cebido isso logo na primeira visita. Cobria-o de gentilezas, tentando deixar claro que ele era propriedade dela.

Isabel olhou ao redor mais uma vez, convencida de que a casa era mesmo perfeita. Na verdade tão perfeita que era uma pena entregá-la a Lorenzo. Mas tê-lo sob o mesmo teto a estava deixando maluca.

Enquanto descia a escada, Isabel dizia para si mesma que devia se concentrar na casa, não em Jéssica. Mas era impossível.

Seria por isso que Lorenzo andava tão sumido? Porque passava todo o tempo livre na cama com a amante? Por mais que tentasse, Isabel não conseguia tirar tal ideia da cabeça. Imaginava-os juntos, fazendo amor, nas ocasiões mais impróprias. No setor de congelados do supermercado, enquanto falava com outras pessoas, e, claro, em casa, à noite, quando tudo parecia ainda pior.

Jéssica Tate, numa análise isenta, objetiva, era o tipo de mulher capaz de suplantar a maioria das mulheres. Ti­nha uma aura de competência que, combinada à sua aparência e dotes físicos, induzia a uma imediata atitude de cautela.

Era alta, embora não tão alta como Isabel, cabelo loiro curto, e uns olhos azuis que avaliavam permanentemente tudo e todos. Tinham avaliado Isabel instantaneamente, e decidido que ela não constituía uma ameaça.

Você pode ser bonita, seus olhos azuis pareciam dizer, mas, no que diz respeito à inteligência, sou mais eu.

Por isso, nas ocasiões em que tinha falado casualmente com Isabel, ela tinha sido condescendente. Isabel, por sua vez, não via nenhuma razão para justificar sua existência aos olhos de uma mulher que parecia não ter o hábito de sorrir.

        É muita responsabilidade tantas promoções sucessivas ela tinha dito na primeira visita, tomando chá com biscoitos. Caseiros, pois o que mais teria para fazer alguém como Isabel quando não estava no seu empreguinho lá no hospital? — Às vezes fico pensando como seria maravilhoso tinha comentado, dirigindo seu olhar felino a Isabel — jogar tudo para o alto e fazer alguma coisa mais amena durante alguns anos.

Isabel tinha respondido com um sorriso cortês e murmu­rado algo inconsequente, enquanto pensava nunca ter visto tanta hipocrisia em toda a sua vida.

        Embora, talvez morresse de tédio duas semanas depois. A loira era especialista em comentariozinhos irónicos, Isabel logo percebeu.

"Você está sendo maldosa", Isabel se dizia agora, ao ins­pecionar a cozinha, onde os pequenos reparos não eram menos necessários. As dimensões eram perfeitas, mas es­tava tudo ruim. Até bolor nos cantos das paredes havia.

Jéssica ia jantar com eles esta noite. Olhando para as pa­redes emboloradas, Isabel antecipava a desagradável perspec­tiva de ter de passar pelo menos três horas na companhia de uma mulher que fazia todo o possível para diminuí-la.

        Esta cidadezinha é tão curiosa — Jéssica tinha dito a Isabel em outra ocasião. — O pessoal vive de fofocas. Como naqueles deliciosos filmes ingleses.

Mas seus olhos diziam Que vidinha você leva, fofocando o dia inteiro. Olhe só para mim. Não admira que Lorenzo me ache tão fantástica.         

Finanças, ela fazia questão de discutir nos termos mais complicados possíveis. Olhando de vez em quando para Isa­bel, para reiterar o recado tácito que seus olhos transmitiam desde sua chegada.

Alguém estava batendo na porta da frente, dissipando os pensamentos de Isabel, que correu para atender. Devia ser o sr. Evans. Provavelmente tinha vindo mostrar pes­soalmente as possibilidades do imóvel. Realçaria as linhas da construção, a linda vista de todas as janelas, a lareira maravilhosa na sala de estar, e minimizaria a fortuna ne­cessária para deixá-lo habitável.

Isabel abriu a porta. Não era o sr. Evans.

        Oi. É você? — Isabel sentiu um vazio no estômago. Lorenzo devia ter vindo direto do trabalho. Ainda estava de terno. Com aquele sobretudo preto que enfatizava sua estatura e masculinidade. — O que está fazendo aqui?

Lorenzo ergueu as sobrancelhas.

        Vou lhe dar três chances de adivinhar — respondeu. — Posso entrar?

Isabel saiu da frente. Lorenzo passou. Parou no meio do vestíbulo.

Era, ela pensava um tanto apreensiva, a primeira vez em duas semanas que ficavam os dois sozinhos. Realmente sozinhos. Não apenas no mesmo ambiente, quando geral­mente Jéssica também estava junto.

        Como sabia onde me encontrar? — Isabel perguntou. Lorenzo enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo. Estava mesmo frio. Isabel também estava agasalhada.

        Evans me disse — respondeu. — Achou, por estranho que possa parecer, que talvez eu também quisesse dar uma olhada no imóvel.

A pouca luz vinda da única lâmpada do ambiente realçava os ângulos de seu rosto, o cabelo negro, os olhos perspicazes. Curioso como alguém podia parecer tão ameaçador mesmo sem ter a intenção.

        Bem, já dei uma olhada.

Lorenzo se aproximou. Sem qualquer ameaça. Mas ela recuou. Arrependeu-se em seguida, de proceder de maneira tão infantil.

        Otimo — Lorenzo disse. — Então pode me mostrar tudo.

        Claro — Isabel foi na direção da escada. Lorenzo foi atrás, passos leves para um homem de sua estatura.

Isabel tinha a vaga impressão de que algo nele tinha mudado. Era como se ele tivesse tomado uma decisão. Mas, claro, devia ser apenas impressão.

        São só dois banheiros. Não sei como é seu apartamento em Chicago, mas casas como esta com certeza são bem diferentes.

É mesmo? — ele perguntou, mais perto do que ela imaginava. — Estou surpreso.

Um deles — Isabel abriu uma porta. — Bem pequeno, você deve achar.

        Bem ruinzinho — Lorenzo comentou, observando o teto e as paredes.

        Combina com o resto da casa — Isabel emendou. — Parece que os donos foram forçados a vender. Acho que cansaram de gastar dinheiro aqui, ou acharam que não valia mais a pena.

Depois de examinarem os dormitórios e os cómodos do andar de baixo, Lorenzo se voltou e perguntou:

        O que você acha?

Estavam agora na sala de estar, o único lugar da casa onde havia algum vestígio de civilização, na forma de uma cortina de filó amarelada que pendia precariamente sobre a janela. Velha e desbotada demais para justificar sua re­moção. Teias de aranha também pendiam nas paredes e o pó que havia por toda a parte poderia manter Cinderela ocupada durante semanas.

Eu gosto — Isabel admitiu, tom ligeiramente desafia­dor. — Ela tem atmosfera.

Está arruinada.

Com uma pequena reforma, ficaria linda.

Pequena reforma?

Basicamente pintura — Isabel olhava ao redor, imaginando a casa em ordem. — Móveis antigos, vasos de flores...

Reformas de base...

—        Pequenas reformas de base... Lorenzo riu. Isabel também, relutante.

Tem certeza de que não está dizendo isso porque me quer fora da casa de sua mãe?

Claro que não!

Está trabalhando para o sr. Evans?

Deus me livre!

Então por que não senta e me diz por que eu deveria investir meu dinheiro neste lugar?

Isabel olhou ao redor.

—        Estranho. Não vejo cadeiras por aqui.

—        Quem precisa? — Lorenzo tirou o sobretudo, estendeu perto da parede, indicou-o com uma mesura teatral. Isabel riu, baixando a guarda. Ele estava sendo cortês e isso de certa forma a incomodava, embora ela não soubesse por quê.

—        Bem — Isabel começou, sentando e sentindo certa apreensão quando ele sentou a seu lado —, duvido que você encontre outra casa tão charmosa por aqui. Ela é muito mais simpática que qualquer outra das muitas que já vi. Claro que você vai ter algum trabalho, mas o que se poderia esperar de uma casa velha, sem cuidados há anos?

Continue — ele murmurou. E Isabel voltou a sentir a mesma apreensão.

São seis quartos.

Mais que suficiente para receber visitas ocasionais — ele concordou.

E o jardim seria um desafio para sua mãe.

Por que você e Jeremy não tiveram filhos? — Lorenzo perguntou inesperadamente. Isabel suspirou.

Achei que você tinha desistido de perguntas desse tipo.

Por que você se recusa a responder?

A cozinha precisa ser refeita inteiramente. Está mesmo perigosa.

Não precisa ter medo de mim, Isabel — ele murmurou. — Admito que ao voltar aqui eu queria fazê-la sofrer, como você me fez sofrer um dia. Mas tudo já passou. Andei pen­sando no que você disse, sobre não poder casar comigo. Você tem razão. Uma vingança não poderia ser levada tão longe, seria insanidade. Você está livre. Vou comprar a empresa de seu pai, sem nenhuma condição. Se nem amigos podemos ser, podemos pelo menos deixar o passado em paz.

Isabel devia sentir alívio, sabia disso. Mas sentia uma estranha sensação de perda. Sentia estar perdendo o homem que ela ainda amava alucinadamente, mas que já não a queria. Hoje, ela não passava de um infeliz episódio na vida dele. Importante um dia, mas que já não importava mais.

Claro que ela podia contar por que tinha casado com Jeremy. Não havia o que temer. Ele não usaria isso contra ela. No fundo, sempre soube que ele seria incapaz disso.

Mas ela nunca lhe contaria. Como poderia contar sua agonia mais íntima a um homem que não a amava? Seu segredo seria só dela, para sempre. Não havia possibilidade de dividi-lo com ninguém, porque ela só o dividiria com um homem que amasse, um homem que retribuísse seu amor. E isso era algo que Lorenzo nunca faria.

Sentada ali, tão perto dele, lembrando do passado, Isabel tinha vontade de chorar.

Parece que Jeremy conseguiu mesmo o que queria, não foi? — Lorenzo perguntou. — Conseguiu nos separar. Porque me detestava. E ainda levou um prémio adicional durante quatro anos. Você.

Você já disse isso antes, que ele o detestava. Mas ele não tinha motivos para...

Tinha sim. Eu sabia algo sobre ele que ele certamente preferiria que eu não soubesse. Soube quase por acaso.

Isabel estava confusa. Do que ele estaria falando?

—        Lembra que minha mãe costumava trabalhar na casa dele?

Isabel lembrava.

Certa vez, Emily Baker estava lá. Tinha bebido demais, estava deprimida — Lorenzo parou, olhando o nada. — Quando minha mãe já ia embora, começaram a conversar. Emily acabou abrindo o coração. Sentia-se culpada por algo acontecido anos atrás — Lorenzo olhou para Isabel.

Você está dizendo que o marido dela não era o pai de Jeremy?

O marido era estéril — Lorenzo suspirou. — E ela tinha tido um caso com outro homem. A conversa teria sido esquecida, pois minha mãe não voltaria a tocar no assunto e Emily certamente não falava nisso todo dia. Mas Jeremy chegou e ouviu o que elas diziam.

E o que isso tem a ver com você?

—        Jeremy presumiu que minha mãe me contaria tudo. E contou, achando que eu talvez pudesse falar com ele, dar algum apoio. Mas Jeremy já não gostava muito de mim e, obviamente, o assunto era difícil. Depois de se remoer alguns meses, ele me acusou de menosprezá-lo. E cometi o erro de rir, porque, como sempre, ele estava errado. Achou que eu ria dele e disse que se vingaria. Claro que não dei impor­tância. Mas ele acabou conseguindo o que queria. Não foi?

Isabel refletia sobre o que acabava de saber. Aquilo ex­plicava muitas coisas. O sarcasmo com que Jeremy sempre se referia a Lorenzo, sua irresponsabilidade, sua dependên­cia da bebida. De seus pais, ele nunca falava. De Emily Baker, ela nunca soube muito. Mas como poderia? Aos olhos de todos, ela e o marido eram um casal feliz.

Tinha começado a chover. De novo. Isabel podia ouvir os pingos caindo na vidraça.

— Acho — ela disse — que devíamos voltar.

Lorenzo levantou.

Também acho.

Que tempo horrível — ela murmurou, enquanto iam na direção da porta.

Pior que em Chicago — Lorenzo concordou.

Isabel sorriu, olhou nos olhos dele. Por um segundo, achou que ele ia beijá-la. Mas foi só impressão.

Acho que eu devia voltar para a Itália. Montar minha base operacional lá.

Longe da chuva? Ou essa é uma forma delicada de dizer que meus esforços para encontrar uma casa foram inúteis?

Talvez não — Lorenzo deu de ombros. — Talvez eu ainda compre a casa. Para usar quando precisar voltar aqui. Vou ter de fazer isso de vez em quando para ver de perto a empresa de seu pai. Mas não teremos de nos encontrar.

Por que aquilo doía tanto? Ela devia estar contente.

Isabel abriu a porta. Correu para o carro. Uma parte dela sabia que era melhor não voltar a vê-lo. Mas outra parte ainda achava que vê-lo de vez em quando era melhor que nada.

Quando chegaram em casa, Jéssica já estava lá. Não pa­recia feliz ao vê-los chegarem, os dois molhados.

Onde você andava? — perguntou. — Está ensopado.

Procurando uma casa — Lorenzo respondeu.

Ah, sim — olhou para Isabel. — Esqueci que você estava cuidando disso. Como encontra tempo? Que bom se eu tivesse tido alguém para procurar meu apartamento em Chi­cago. Teria economizado um tempo precioso. Já encontrou?

Estamos tentando — Lorenzo respondeu.

A julgar pelo olhar, Jéssica não gostou do plural. Familiar demais.

Isabel deixou os dois lá embaixo e foi para seu quarto. Depois de um longo banho, vestiu uma saia branca comprida e uma blusa branca de mangas curtas. Justa. O espelho mostrava excelente resultado. Olhando para si mesma, Isa­bel se perguntava por que as pessoas sempre associavam beleza com felicidade. No seu caso, pelo menos, não era verdade.

Sentada à penteadeira, Isabel pensava sobre o que Lo-renzo tinha dito. Ela teria agido de outra forma em relação a Jeremy se soubesse o que sabia agora? Provavelmente não. Pela primeira vez, ela refletia sobre o passado, sem rancor.

Ela tinha sido forçada a casar. Mas, mesmo tendo sido tão infeliz, faria tudo de novo se tivesse de fazer a escolha outra vez.

De certa forma, não amar Jeremy tinha sido uma van­tagem. Tinha lhe permitido uma sublime indiferença àquele seu caráter arrogante. Ele era como uma criança teimosa, incapaz de compreender que o mundo não existia em função dele.

E Lorenzo, voltaria mesmo à Itália?, Isabel pensava, es­covando o cabelo. Provavelmente. Ele só tinha voltado a Yorkshire, a um lugar que tanto detestava, por causa dela. Agora que tinha desistido de se vingar, estava livre.

E ela, quando teria a liberdade? Lorenzo ainda era o homem da sua vida. Dali a vinte anos, as pessoas estariam cochichando umas com as outras Ela era tão bonita. Por que não casou outra vez? Agora não dá para agarrar outro homem. Tarde demais.

Bateram na porta.

Era Jéssica. Ela nunca tinha se atrevido a subir àquele quarto antes.

Preciso falar com você, assunto particular — Jéssica foi logo dizendo, parando no meio do quarto e cruzando os braços. — Queria lhe dizer que fui despedida, informada de que meus serviços não são mais necessários.

E mesmo?

—        Não se faça de inocente. Quando cheguei aqui, não achei que você fosse uma ameaça. Por que deveria? Você é bonita, claro, mas mulheres como você há muitas por aí. Bonitas e burras. Olhe para si mesma, enterrada aqui neste fim de mundo. Você não é mulher para Lorenzo.

E por que está me dizendo isso?

Só quero avisá-la de que você ainda não ganhou a guerra — Jéssica respondeu, olhar malicioso, sorriso felino nos lábios.

E melhor descermos — Isabel decidiu.

Não enquanto eu não disser o que vim dizer. Investi quatro anos nesse homem. Ninguém brinca com Jéssica Tate!

Não tenho nada a ver com...

Tem sim! Não sei o que houve entre vocês anos atrás, mas, seja o que for, ele ainda quer você.

Queria, Isabel pensou.

Não investi meu tempo nesse homem a troco de nada — Jéssica prosseguiu, parecendo falar de um negócio mal ­sucedido. Isabel podia imaginá-la pesando os prós e contras de se envolver com Lorenzo, ponderando se ele valia o tempo e esforço.

Sinto muito, se você se apaixonou por Lorenzo...

Me apaixonar? — Jéssica riu. — Não sou nenhuma adolescente ingénua, queridinha. Ele é atraente, claro, mas, mais que isso, é um bom partido. Provavelmente você achou que tinha tirado a sorte grande quando soube que ele vol­taria para cá.

Muito pelo contrário.

Você não vai conseguir o que pretende, queridinha. Isso eu garanto — Jéssica voltou a rir, como se pudesse mesmo complicar a vida de Isabel.

Para qualquer outra mulher, Isabel admitiria francamen­te que não tinha nenhum envolvimento com Lorenzo. Para esta não.

Entretanto, por via das dúvidas, manteve-se em guarda durante o resto da noite.

Durante o jantar, Jéssica informou casualmente que vol­taria para Chicago em menos de uma semana.

        Não me levem a mal, mas acho que eu morreria se ficasse mais tempo por aqui — disse com toda sua auto-confiança, sugerindo que sua partida seria uma lamentável perda para a comunidade.

Isabel permanecia em silêncio, impaciente. Mal olhava para Lorenzo, que parecia completamente alheio à conversa.

Antes, teria sido impossível imaginar que vê-lo tratá-la com aquela formal cortesia, olhar para ela com aquela neu­tralidade, pudesse doer tanto. Mas doía. O passado agora estava enterrado. Sua atitude em relação a ela era de com­pleta indiferença.

Isabel também não mostrava nenhum interesse na con­versa. Somente Jéssica, com sua inesgotável energia, con­tinuava falando sobre as oportunidades à sua espera em Chicago.

—        Posso lhe indicar algumas pessoas a quem seus serviços talvez possam interessar — Lorenzo comentou.

Jéssica sorriu.

—        Não será necessário, querido. Tenho meus próprios contatos lá.

A situação estava cada vez mais desconfortável. Isabel levantou, disposta a se afastar daquela atmosfera carregada, quando Jéssica disse, sorrindo:

Antes de ir, Isabel, eu gostaria de lhe mostrar umas coisinhas — Jéssica levantou, cruzou a sala, pegou sua pasta sobre uma cadeira perto da porta.

Coisinhas?

Sim. Têm a ver com a empresa de seu pai. Sei que o negócio ainda não foi fechado, mas, como sobrou um tempinho na semana passada, fui lá ver como andavam as con­tas da empresa. Disse-lhes que o negócio estava mais ou menos fechado e eles, claro, acreditaram. As pessoas são tão crédulas nestas cidadezinhas do interior.

Lorenzo olhou furioso, mas Jéssica nem ligou.

Você o quê? — Lorenzo levantou. Jéssica se retraiu. — Isso não foi nada ético.

Também acho — Jéssica concordou, expressão entediada.

Você não tinha o direito.

Claro que não — ela respondeu. — Mas precisava saber por que Lorenzo tinha tanto interesse naquela empresa.

Jéssica abriu a pasta. Começou a remexer alguns papéis. Isabel recostou na cadeira. A expressão de triunfo no rosto daquela mulher era mesmo preocupante.

Lorenzo também estava tenso. O que estaria pensando?

Jéssica, já é mais de meia-noite — disse, olhando o relógio. — Não pretendo falar de negócios até altas horas da madrugada.

Não vai demorar — ela respondeu, sem olhar para ele. — Aqui está — olhou para os dois. — Quem quer ver primeiro estes papéis tão interessantes?

Isabel já tinha visto aqueles papéis tão interessantes. Não os tinha encontrado entre as coisas de Jeremy. Mas não havia na época por que se preocupar. Mais cedo ou mais tarde eles acabariam aparecendo. Acabavam de aparecer.

Onde — perguntou, ainda mais pálida — achou isso?

Interessada, não é mesmo, queridinha? — Jéssica sorriu. — Nós, contabilistas, temos um talento especial para achar coisas interessantes. Estava examinando as gavetas da mesa de seu ex-marido, onde gentilmente fui levada e deixada sozinha, quando descobri o fundo falso de uma delas. Sempre achei que isso só acontecia no cinema. Confesso que não pude resistir.

Jéssica, o que é isso, afinal? — Lorenzo perguntou, começando a perder a paciência.

Jéssica não respondeu. Apenas lhe entregou os papéis.

—        Para você ler na cama, querido. Agora preciso ir. Infelizmente, não vou mais ver você, queridinha. Estou certa de que você vai lamentar o fato tanto quanto eu. Bem, vou deixar vocês sozinhos. Acho que vocês têm muito que conversar.

Jéssica saiu em seguida. Fechou a porta. Isabel olhava para Lorenzo, olhos arregalados. E aconteceu algo que nunca tinha acontecido antes.

Ela desmaiou.

 

Quando Isabel voltou a abrir os olhos, estava deitada no sofá. Levou alguns segundos para perceber o que estava fazendo naquela posição. Sentou de repente, tensa, ao ver Lorenzo.

Lorenzo estava examinando os papéis. De certa forma, era um alívio saber que agora tudo seria esclarecido, pelo menos entre eles dois.

Lorenzo olhou para ela, olhar inexpressivo.

—        Por que não me disse?

—        Como poderia?

Lorenzo deixou os papéis sobre a mesa, começou a andar pela sala, sem pressa, mãos nos bolsos da calça. Isabel ob­servava cuidadosamente cada um de seus movimentos.

Lorenzo parou na frente dela. Olhou nos seus olhos.

Muito fácil.

Tente entender minha posição...

Sua posição? Você se deixou chantagear por um homem disposto a tudo para conseguir o que queria.

É inútil tentar explicar alguma coisa para você. Você não quer entender.

O que seu pai fez não era o fim do mundo — Lorenzo disse, rispidamente.

Não, não era o fim do mundo. Mas, se viesse a público, a vida de meus pais estaria arruinada. Numa cidadezinha como esta, onde todos se conhecem...

Como foi que Jeremy soube disso? — Lorenzo perguntou. — E não tente se esquivar. Quero saber tudo, nem que tenha de arrancar a verdade de você. Isabel suspirou.

        Ele me ligou uma noite na faculdade. Ligava sempre. Nunca lhe contei porque você não teria gostado de saber. Jeremy... — Isabel hesitou — não me deixava em paz. Detestava saber que nós dois saíamos juntos, que você era parte da minha vida. Naquela noite parecia eufórico, disse ter descoberto algo que mudaria minha vida. Queria ir até a faculdade, discutir o assunto. Eu disse não, disse que... —Isabel lembrava o que tinha dito, que estava apaixonada por Lorenzo, mas não podia repetir isso agora — disse que estava envolvida com você. Disse-lhe para não me procurar mais.

        Você devia ter me contado. Isabel olhou bem nos olhos dele.

De que adiantaria? Além disso, acho que eu sentia pena dele. A gente se conhecia desde criança...

E depois, o que houve? — Lorenzo levantou. Foi até o bar no canto da sala. Pegou uma bebida. Ofereceu a Isabel, que recusou. Engoliu a bebida num gole só.

Ele me escreveu. Dizia que tinha alguns papéis, que mostravam que meu pai... — Isabel baixou a cabeça. — Se fosse um caso com outra mulher, eu ficaria preocupada, claro, mas seria diferente. Mamãe ficaria magoada, eu também, mas as pessoas esqueceriam o assunto em poucas se­ manas. O caso, porém, era outro.

Comprometia a credibilidade de seu pai — Lorenzo resumiu.

Isabel assentiu, desolada.

        Papai era um dos pilares da comunidade. Se viesse a público que ele estava desviando dinheiro...

Ali estava, finalmente, o segredo que Isabel tinha guar­dado a sete chaves, durante tanto tempo que ele já parecia fazer parte dela.

O silêncio na sala triturava seus ouvidos. Olhar nos olhos de Lorenzo era impossível.

        Jeremy tinha vasculhado velhos arquivos. Encontrou uns papéis que deviam ter ido para o lixo, mas por algum motivo não foram. Papai costumava anotar e guardar tudo, dizia que isso o ajudava a pensar. Nesses arquivos havia provas de fraude contra a empresa.

—        Provas?

—        Li e reli aqueles papéis — Isabel prosseguiu cabisbaixa —, tentando me convencer de que aquilo não era verdade, mas papai parecia ter criado algumas empresas fictícias, ou coisa parecida, para poder fazer pagamentos a fornece­ dores inexistentes.

—        Você viu as faturas?

—        Provavelmente foram destruídas — Isabel sacudiu a cabeça. — Mas os papéis que vi seriam suficientes para incriminá-lo. Era sua própria caligrafia.

—        Você chegou a falar com ele?

—        Claro que não! Eu amava meu pai. Não importava o que ele tivesse feito. Jeremy poderia destruí-lo se quisesse. Eu não podia permitir.

—        E concordou em fazer o que Jeremy queria?

—        Eu não tinha escolha. Ele estava obcecado. Queria me separar de você, embora eu não soubesse por quê. Até você me contar sobre a mãe dele.

Então a dócil Isabel resolveu ceder à pressão e concordou em posar de esposa submissa — o desprezo na voz dele era insuportável.

E o que você acha que eu devia ter feito? O que teria feito se eu tivesse lhe contado? Provavelmente teria procurado Jeremy para trucidá-lo!

Era o que ele merecia.

Teria sido inútil. Você sabe como ele era. Ele teria divulgado o que sabia.

O que mais ele a induziu a fazer, Isabel? A fazer amor com ele?

Por que quer saber? Que diferença faz?

Fale!

Eu... — Isabel respirou fundo, apavorada com o que via naqueles olhos. — Eu não podia. Ele tentou, mas... era inútil. Acho que não demorou a procurar outras mulheres. Saía sempre em viagens de negócios — Isabel já não falava, apenas sussurrava. — Ele se contentava em me exibir, pro­vocar inveja nos amigos, saber que tinha destruído o que tinha havido entre nós dois.

E por que você não me contou isso quando voltei? —Lorenzo perguntou. Não parecia inclinado a perdoá-la. Submissão era algo contrário à sua natureza. Algo que ele nunca conseguiria entender.

Como poderia?

Jeremy estava morto. Já não tinha nenhuma influência sobre você.

—- E daí? — Isabel perguntou. — Por que eu deveria lhe contar tudo quatro anos depois? Você me odeia, Lorenzo. Deixou isso claro logo que voltou aqui. E agora está insi­nuando que eu devia ter confiado em você?

E você, está insinuando que eu poderia tirar proveito da informação? Sua insinuação não podia ser mais insul­tuosa, Isabel.

Eu... não achava que você fizesse isso... mas não podia correr o risco. Minha mãe estava doente, vulnerável. Além disso, você era um estranho ao voltar, muito diferente do Lorenzo que conheci. Voltou falando em ódio, vingança... A verdade, Isabel — Lorenzo cerrou os dentes —, é que você não confiava em mim. Nunca confiou!

Não é verdade!

Não? — Lorenzo escarneceu. — Eu poderia ter falado com ele, posto algum juízo naquela cabeça dura.

Não, não poderia. Vivi com ele quatro anos. Na verdade, Jeremy nunca cresceu. Podia proceder como adulto quando era necessário, mas no fundo era uma criança. Tudo tinha de ser como ele queria. Com o tempo, aprendi a evitá-lo.

Você renunciou à própria vida. Você se afastou de mim!

Isabel já não sabia o que dizer. Estava cansada de se defender.

—        Não me diga que passou o tempo todo lamentando — murmurou. — Você não demorou a curar seu orgulho ferido. Voltou aqui com Jéssica Tate a tiracolo, deixando claro que tipo de relacionamento tinha com ela! Quantas mais além dela, Lorenzo?

Ainda não terminamos. Quando se afastou de mim, você deixou algo inacabado.

Não sei do que você está falando.

Sabe sim — Lorenzo a agarrou. Beijou seus lábios com raiva e desejo.

Isabel tentava escapar, mas Lorenzo não deixava. Não de­orou a desistir. Subjugada pelos braços dele, entreabriu os lábios. Sua língua procurava a dele com incontida voracidade.

Isabel sabia o que ele pretendia. Emocionalmente, ela já não significava mais nada para ele. Mesmo assim, ele ainda a desejava. E precisava satisfazer seu desejo.

Mas, afinal, por que tentar resistir? Ela não tinha so­nhado com isso durante todos estes anos?

Lorenzo a pegou no colo. Levou para o tapete em frente à lareira. Desabotoou a camisa. Deitou a seu lado, beijando-a sem parar.

— Não posso suportar a ideia de que ele tocava você, Isabel — ele murmurava, voz rouca, beijando seu pescoço. Mas Isabel já não ouvia nada.

Um a um, Lorenzo abriu os botões de sua blusa. Depois o fecho do sutiã de renda, acariciando seus seios, beijando seus mamilos endurecidos.

Isabel sabia que perderia mais do que ganharia se fizesse amor com ele. Mas era inevitável.

Sem parar de beijá-la, Lorenzo abriu o zíper de sua saia. Tirou a saia. Em seguida, tirou a calcinha. Completamente nua, Isabel olhava para ele com um misto de tristeza e prazer.

Lorenzo levantou, tão ofegante quanto ela. Despiu-se ra­pidamente. Isabel contemplava cada linha de seu corpo como se nunca o tivesse visto antes.

Deitado a seu lado outra vez, Lorenzo seguia acariciando e beijando cada centímetro de seu corpo. Lentamente, descia pelos seios, estômago, cintura, coxas. Afastando suas pernas uma da outra, estacionou sobre seu segredo mais íntimo. Sua língua irrequieta não parava, explorando o âmago de seu ser, provocando nela um desejo alucinante.

Completamente fora de si, Lorenzo deitou sobre ela.

—        Não quero sentir o que sinto por você — ele murmurava. "Eu também, Lorenzo, eu também", Isabel dizia para si mesma. "Não quero amá-lo como amo, não quero acreditar que nunca estarei livre deste amor."

Lorenzo beijava seus lábios, enquanto a penetrava len­tamente. Seus movimentos, em princípio lentos, iam se tornando cada vez mais frenéticos, até encontrarem ambos uma harmonia perfeita e seus corpos se tornarem um só.

Isabel gemia, delirava, sentindo dentro de si um fogo cada vez mais intenso, até finalmente chegar ao orgasmo.

Ainda tremia quando Lorenzo deitou a seu lado. Imóvel. Calado.

Há muito tempo, quando eram amantes, sempre havia o que dizer depois. Agora, Isabel ouvia apenas o silêncio. O silêncio da última vez.

O que estaria ele pensando? Estaria satisfeito, agora que tinha conseguido o que queria?

Lorenzo levantou. Começou a se vestir. Sem nenhuma entonação, disse:

—        É hora de ir embora.

Isabel sentia os olhos lacrimejarem. Não se atrevia a olhar para ele.

Melhor assim. Melhor ele não saber o quanto ela ainda o amava.

—        Vou pegar minhas coisas. Não demoro.

Tudo bem — Isabel levantou, cabisbaixa. Começou a se vestir também.

Peça desculpas à sua mãe por eu não estar aqui quando ela voltar.

Claro — Isabel respondeu, sentindo uma estranha sen­sação de vazio. — Para onde você vai?

Londres. Devo ficar lá alguns dias. Depois vou para a Itália. Você vai achar outro comprador para a empresa de seu pai. Deixe tudo por conta de Clark.

Agora que estava tudo acabado, Isabel sentia uma ne­cessidade compulsiva de continuar a conversa. Antes, estar com ele causava apreensão. Agora, queria estar perto en­quanto fosse possível. Porque sabia que ali era o fim da linha.

E quanto à casa?

Seria bobagem — Lorenzo deu de ombros, seguindo em direção à escada. — Posso ficar num hotel quando voltar aqui. Se voltar.

—        No Edwardian? Lorenzo se voltou. Sorriu.

—        E um lugar meio sinistro, não é? Mas talvez as coisas melhorem por lá —.começou a subir a escada.

Ao chegarem lá em cima, Lorenzo se voltou outra vez, e disse:

—        Adeus, Isabel.

Não dava para ver seu rosto. Estava escuro lá. Ainda bem. Assim ele também não poderia ver o dela.

—        Adeus, Lorenzo. Boa sorte.

Isabel foi para seu quarto. Não acendeu a luz. Sentou na cama. Ficou ali, imóvel. Algum tempo depois, ouviu pas­sos no corredor. O resto, apenas imaginou. A porta da frente fechando atrás dele, a partida no motor do carro, a luz dos faróis iluminando a escuridão, enquanto ele ia para bem longe daquela cidadezinha. Para nunca mais voltar.

Mas por que ele foi embora tão de repente? — sua mãe perguntou quando ligou no dia seguinte. — Algum pro­blema com a mãe dele?

Não, mamãe, nenhum problema com a mãe dele. Ele apenas achou que devia ir.

Claro, claro. Estou certa de que ele teria ficado se não fosse algo importante — a sra. Chandler concordou, sempre disposta a conceder a todos o benefício da dúvida. Também estou certa de que você vai sentir falta dele.

Isabel não respondeu. Não sabia o que dizer.

Não se preocupe, querida. Ele vai voltar.

Não. Não vai.

-— Querida, se você ainda o ama, por que casou com Jeremy?

Isabel arregalou os olhos, surpresa.

P-porque... — gaguejou — porque parecia o melhor a fazer na ocasião.

Todos nós cometemos erros, querida. —A mãe suspirou a quilómetros de distância, preferindo não insistir no as­ sunto. — Mas Lorenzo vai voltar. Tenho certeza.

Era inútil esticar o assunto. Isabel logo desligou. E de­cidiu que o melhor a fazer era seguir vivendo. Sorrir para o mundo. Como tinha aprendido a fazer ao longo dos últimos anos.

Isabel passou sorrindo os dois dias seguintes. Um sorriso capaz de convencer os pacientes de que ela andava de muito bom humor. Mas tão logo ficava sozinha, começava a con­templar o túnel comprido e escuro à sua frente.

Na sexta-feira, Isabel estava a ponto de enlouquecer. Pre­cisava falar com alguém. Resolveu ligar para Abigail. O problema era encontrá-la. Naquela sua profissão, ela estava sempre viajando pelo país. Quando estava no país. Onde estaria agora? Londres? Manchester? Birmingham?

Isabel ligou para seu número em Londres. Três toques e a secretária eletrônica atendeu. A fita dizia que Abigail não podia atender no momento, mas ligaria de volta, na velocidade da luz. Apesar da sinceridade contida na grava­ção, Isabel sorriu. Sabia que Abigail só ligava de volta para bem poucas pessoas. E nunca na velocidade da luz.

Mas se enganou. Dez minutos depois, o telefone tocou. Era Abigail, bocejando.

Eu estava aqui, Izzy. Mas não podia atender quando você ligou.

Dormir demais faz mal à saúde.

Eu precisaria dormir uma semana — Abigail respondeu. — Mas você nunca me liga. O que houve?

Isabel sentou. Tinha tanto para falar, mas não sabia que dizer.

Nada. Só queria saber como você estava.       

Muito bem. Estou fazendo uma peça maravilhosa aqui. Nada cansativo, mas com diálogos muito espirituosos. Antes de viajar outra vez. Agora vou para Nova York.

—        Vida dura, hein? Londres, Nova York. Logo você vai dizer que está indo para Tóquio, mostrar seu talento aos japoneses — Isabel ria, mas não deixava quieto o fio do telefone.

Abigail não demorou a perceber o nervosismo na voz dela.

—        Qual é o problema, Izzy? Está claro que alguma coisa não vai bem. Algum problema com sua mãe?

—        Não, Abby. E comigo — Isabel finalmente admitiu. —Não tinha com quem.falar e resolvi ligar para você — respirou fundo e começou a contar à amiga o que tinha acon­tecido. Na verdade, pretendia resumir. Afinal, não há quem goste de ouvir problemas dos outros. Mas não conseguia parar de falar.

Só não disse nada sobre Jeremy e os motivos que a tinham levado àquele fatídico casamento. Sobre o resto, disse tudo. No fim da conversa, Abigail disse, com sua costumeira franqueza:

Que encrenca.

É assim que você consola uma velha amiga? — Isabel perguntou, enxugando com as costas da mão as lágrimas que rolavam pelo rosto.

Você precisa vir aqui.

Não posso.

—        Claro que pode e claro que vem. Amanhã de manhã. Vai passar o fim de semana comigo. Vou conseguir para você um ingresso da minha peça. Que sorte a sua, hein?

Isabel riu.

—        Não vou estar em casa durante o dia. Você vai ter de se virar sozinha — Abigail prosseguiu. — Você ainda tem a chave do apartamento, não tem? Claro que tem. Venha para cá, coma alguma coisa e depois vá fazer compras. E uma ordem! Compre uma roupa bem bonita para ir ao teatro. É a última apresentação e vai ter muita gente metida a famosa por lá. Os realmente famosos já viram a peça na primeira noite. Depois, quando eles cansarem de me aplau­dir, a gente sai para jantar.

As três e meia da tarde seguinte, sob um sol pálido que só tinha aparecido para dizer ao mundo que ainda existia, Isabel andava por Bond Street, procurando nas vitrinas uma roupa para ir ao teatro.

Fazia meses que ela não ia a Londres. Geralmente a cidade lhe dava claustrofobia, mas agora parecia maravi­lhosa. Era bom mudar de ares. Ela já se sentia menos de­primida, embora as lembranças de Lorenzo teimassem em continuar vagando por sua mente.

Depois de andar bastante, Isabel achou um vestido lindo. De lãzinha verde, mangas compridas. Ficou lisonjeada quan­do a vendedora lhe perguntou se ela era modelo. Também comprou sapatos. Voltou para o apartamento de Abigail às seis e meia, bem melhor do que quando tinha entrado no trem de manhã.

Talvez, Isabel pensava enquanto se vestia, ela e a mãe pudessem viajar durante algum. Talvez alguns anos via­jando a fizessem esquecer Lorenzo Cicolla.

Não, fugir da realidade nunca resolveu problema algum, apenas trazia outros, concluiu. E foi para o teatro.

Seu lugar era entre as poltronas da frente. A peça tinha sido bastante elogiada pela crítica e parecia não haver um único lugar desocupado no teatro. Isabel sentou entre uma elegante senhora grisalha, à esquerda, e um próspero e gor­do homem de negócios, à direita.

Eram apenas cinco atores no elenco. Todos muito bons. Abigail, como sempre, estava ótima. Representava com uma espontaneidade que magnetizava a atenção da plateia.

Durante o intervalo todos pareciam ansiosos pelo segundo ato. Isabel ficou onde estava, lendo o programa e lembrando de quando as duas tinham dez anos. Quem podia imaginar que suas vidas mudariam tanto?

Isabel fechou o programa. Bobagem relembrar o passado. Mais útil pensar no futuro.

Difícil era agir com tanta sabedoria, em vez de ficar lem­brando de Lorenzo o tempo todo.

A campainha avisava que o intervalo tinha terminado. Otimo, assim ela poderia se concentrar no segundo ato.

Quando a peça terminou, o público não parava de aplau­dir, de pé, enquanto o elenco voltava ao palco de mãos dadas para agradecer. Abigail, única mulher no elenco, recebeu flores. Um dos atores, simulando profundo desapontamento, perguntou:

—        Cadê as minhas?

Todos riram, claro.

Isabel já se preparava para sair quando ouviu Abigail dizer lá no palco:

—        E agora, eu gostaria de quebrar a tradição e fazer algo diferente...

Curiosidade geral. O silêncio tomou conta do ambiente. Nada cativa mais uma plateia do que o inesperado. E isto era inesperado. Isabel nem respirava, como, provavelmente, a maioria das pessoas ali presentes.

—        Eu gostaria — Abigail prosseguiu —, com a permissão de todos, de convidar minha amiga Isabel Chandler a. Vir aqui no palco.

Isabel arregalou os olhos, desconcertada. Mas não podia recusar o convite. Tremendo, caminhava por entre as pol­tronas, sob o olhar atento de todos.

Quando Isabel se aproximou, Abigail sorriu e disse:

—        Também gostaria de chamar aqui meu amigo Lorenzo Cicolla.

Aquela altura, Isabel já achava que aquilo não estava acontecendo, que era tudo um sonho. Quando finalmente subiu ao palco e chegou perto de Abigail, viu Lorenzo che­gando também.

Abigail então segurou a mão dos dois e, com seu carisma contagiante, declarou:

— Meus dois grandes amigos, que me conhecem desde criança, e que foram feitos um para o outro. Tiveram alguns contratempos, é verdade, mas agora estão aqui, juntos. E juntos devem ficar!

Aplausos, muitos aplausos. Vinham de todos os cantos do teatro, repercutiam nas paredes, deixando Isabel tonta.

Isabel não sabia como seus dedos se entrelaçaram aos de Lorenzo. Apenas olhava para ele, incapaz de dizer coisa alguma. Então, alguém na plateia gritou:

Não vai pedir a moça em casamento?

Lorenzo... — Isabel começou a dizer. E a plateia fez silêncio.

—        Isabel — Lorenzo olhou nos olhos dela. E ela sentiu a tontura aumentar. — Quer casar comigo?

 

Vamos sair daqui — Lorenzo disse. — Precisamos conversar.

Ainda estavam nos bastidores, entre os atores e as muitas pessoas que tinham ido cumprimentá-los. Abigail se aproximou, sorrindo.

—        Gostaram do meu improviso?

Isabel ainda estava meio tonta. Claro que não tinha le­vado a sério aquela proposta de casamento. Em frente a centenas de pessoas, o que mais ele poderia ter feito?

Você é uma romântica incorrigível, Abby — Isabel respondeu, sem olhar para Lorenzo.

Faço o que posso — Abigail disse. — Imagino que agora vocês gostariam de ficar sozinhos.

Sim — Lorenzo concordou, ao mesmo tempo em que Isabel dizia:

Não.

Bem, decidam-se — Abigail olhava para os dois, fin­gindo confusa inocência. — Sim? Não? Talvez?

O diretor se aproximou de Abigail, exultante. Estava claro que eles também queriam sair logo dali.

—        Tudo bem — Isabel acabou concordando.

—        Conheço um restaurantezinho ótimo perto daqui —Lorenzo sugeriu, tão perto de Isabel que a deixava arrepiada. — Pode ir, Abigail. — Sorriu. — E, caso eu não possa lhe dizer isso depois, além de excelente atriz, você é uma excelente cúmplice — arrematou, ainda sorrindo.

Lorenzo saiu do teatro com Isabel. Lá fora, sentindo o ar frio da noite, Isabel disse:

—        Sei que você não falava a sério. Sei o que casamento significa para você.

Sabe mesmo?

Bem, o que mais você poderia fazer? Com toda aquela gente olhando e esperando que você...

Aqui não é lugar para conversar. Vamos — segurou seu braço e caminharam em silêncio até um pequeno restaurante italiano, onde um garçom atencioso os conduziu a uma discreta mesa no canto da sala.

Sobre a mesa, havia um pequeno vaso de cravos, que Lorenzo afastou.

—        Quero ver você quando disser o que vou dizer. Isabel sentiu um vazio no estômago.

Eu não imaginava que Abigail fosse fazer o que fez — murmurou. — Como foi que ela encontrou você?

No hotel. Quando a vi na Broadway e saímos para jantar, eu lhe disse que costumava ficar no Savoy quando estava aqui em Londres.

Foi um alívio quando o garçom se aproximou para saber o que iam comer. Quando o garçom se afastou, Lorenzo perguntou:

Como vai sua mãe? Estranhou minha partida repentina?

Um pouco — Isabel respondeu, brincando com a haste da taça.

E você? Estranhou?

Por que deveria?

Porque não foi uma despedida amistosa, querida. Querida? Ele a tinha chamado de querida? Sem ironia?

—        E inútil — Lorenzo disse de repente, levantando. O garçom logo se aproximou, apreensivo com aquela situação inesperada.

—        Pois não, cavalheiro. Alguma coisa errada? — pergun­tou, ansioso.

—        Não. Nada errado — Lorenzo respondeu, tirando a carteira do bolso, e dela uma nota bastante atraente. — Estou certo de que a comida estaria deliciosa, mas desco­brimos que não estamos com fome. — Olhou para Isabel, que concordou, confusa, levantando e tentando imaginar o que estava acontecendo.

Saíram do restaurante. Pegaram um táxi. Logo chegaram ao Savoy.

O que viemos fazer aqui? — Isabel perguntou.

Conversar. Melhor aqui do que na presença de um frango ensopado.

Entraram. Isabel sabia para onde ele a estava levando. Mesmo assim, quando Lorenzo abriu a porta de seu apar­tamento, perguntou:

—        Por que precisamos conversar no seu apartamento?

—        Não faça perguntas. Apenas sente e ouça. Lorenzo serviu uísque com soda em dois copos. Ela estava mesmo precisando. Para acalmar os nervos.

Não é sua bebida preferida, mas... — Lorenzo sentou a seu lado.

Você lembra — ela murmurou.

Lembro tudo sobre você, Isabel — ele suspirou. —Como poderia esquecer?

Isabel baixou a cabeça. Não se atrevia a olhar para ele. Lorenzo afastou seu cabelo para poder ver seu rosto. Isa­bel sentia o contato daqueles dedos, e um arrepio.

—        Olhe para mim — ele disse. Isabel finalmente olhou.

—        Passei quatro anos lembrando de você — Lorenzo prosseguiu, sério, pensativo. — Quanto mais dinheiro eu ga­nhava, mais lembrava de você.

Só fiz o que fiz porque...

Não... Você não pode imaginar como eu a amava quando você...

Claro que podia. Ela sabia que ele a amava. Mas ouvi-lo dizer aquilo agora cortava o coração.

—        Você era meu- sol, Isabel. Eu adorava você. Sempre soube que você poderia ter o homem que quisesse. Todos os homens daquela maldita cidadezinha sonhavam com você —       Lorenzo parou, relembrando o passado.

Quando você me disse que ia casar com Jeremy — prosseguiu —, achei que devia haver um motivo. Mas era fácil acreditar quando ele dizia ser mais... apropriado. E você nunca negou isso...

Como poderia?

Agora vejo que não — ele admitiu. — Mas na época só via duas pessoas de mesmo nível social. E a mim como um intruso, que tinha tido a ousadia de se apaixonar pela mulher errada. Eu queria matá-lo quando ele separou você de mim. Queria matar vocês dois. Mas, em vez disso, achei melhor ir embora.

Isabel não queria interromper. Lorenzo estava destilando toda a sua amargura. Melhor deixá-lo ir até o fim.

Ela queria ouvir. Queria ouvir tudo, mesmo sabendo aon­de aquela confissão ia levar.

Ele a amava, ela era seu sol. Mas isso tinha sido há muito tempo. Hoje era diferente. Por isso ele podia falar do assunto com tal serenidade. Com tal indiferença.

Fui embora pensando em voltar um dia, com todo o dinheiro e poder necessários para ter você — Lorenzo prosseguiu.

E voltou.

Voltei. Embora em circunstâncias bem diferentes das que tinha imaginado. A vida é muito estranha. As vezes, mostra claramente o caminho a seguir. Outras vezes, embaralha os caminhos e você não sabe para onde vai indo.

Lorenzo acariciava seu cabelo e aquilo a desconcertava. Por mais que ela tentasse, era impossível manter a calma, falar do passado no mesmo tom.

Fiquei chocado quando soube daquele acidente.

Mas era a oportunidade de acertar contas comigo.

Parecia inevitável. Achei que poderia enterrar o passado para sempre. Mas, quando vi você naquele escritório, voltei a sentir a mesma raiva de antes. Como no dia de seu casamento. Queria você como nunca quis ninguém em toda a minha vida. Não pretendia forçá-la a casar comigo, mas olhava para você e sentia que você tinha de ser minha.

—        O ódio é um sentimento muito poderoso, Lorenzo.

—        Ódio? — Lorenzo olhou, incrédulo. E Isabel sentiu o coração acelerar. — Não sinto ódio por você, Isabel. É isso o que você acha?

Talvez não agora. Talvez agora sinta apenas indiferença.

Como poderia? — Lorenzo segurou seu rosto, olhando nos olhos dela.

O coração disparou. Isabel se sentia andando à beira de um precipício.

Amo você, Isabel — ele disse num tom estranho. — Nunca deixei de amá-la. Mas precisava saber por que você tinha casado.

Lorenzo, você me ama mesmo?

Sim. Quando soube por que você casou, fiquei furioso, achei que você não confiava em mim. Vim para Londres, mas foi um pesadelo.- No começo, nem conseguia pensar direito. Demorou algum tempo para começar a entender por que você fez o que fez.

Passei quatro anos enclausurada. O que me mantinha viva era pensar em você e meus pais.

Eles nunca desconfiaram de nada?

Provavelmente. Sabiam que havia algo errado, mas não podiam fazer nada. Eu sempre evitava o assunto.

Deve ter sido horrível.

Lorenzo beijou seus lábios ternamente, acariciando seu corpo por sobre o delicado tecido do vestido. Quando a pegou no colo e a levou para a cama, Isabel sentia ter chegado o momento tão ansiosamente esperado durante tantos anos. O momento em que ele a tocaria sem rancor. Apenas com amor.

Amo você, Lorenzo. Sempre amei. Nada poderia mudar isso. Jeremy jamais poderia destruir o que sinto por você.

Ele era inseguro — Lorenzo respondeu, deitando a seu lado, já sem camisa. — Sempre foi. Desde antes de saber sobre a mãe.

Lorenzo abriu o zíper de seu vestido. E Isabel se livrou dele rapidamente, sorrindo enquanto ele a olhava, fascinado, como se fosse a primeira vez.

— Você é tão linda — Lorenzo murmurou, beijando seus seios.

Isabel estendeu-se na cama, enquanto os lábios de Lo­renzo davam início a uma lenta e minuciosa exploração de seu corpo. Contorceu-se ao senti-los pairando sobre a es­sência de sua feminilidade.

Desta vez não havia raiva, ressentimento, aquela estra­nha sensação de estar prisioneira de uma paixão impossível de ser contida. Desta vez havia só ternura, a mesma ternura que dividiam quando jovens, antes que a vida os separasse.

Acariciando o cabelo de Lorenzo, Isabel abria as pernas, estimulando aquela ansiosa exploração.

Após o que pareceu um tempo interminável, Lorenzo vol­tava pelo mesmo caminho. Deteve-se sobre um dos seios, mordiscando o mamilo endurecido até Isabel sentir vontade de gritar.

Quando Lorenzo finalmente começava a invadi-la, Isabel sentia aquela deliciosa sensação de estar em casa. Seu corpo se contorcia de encontro ao dele. Aquela sensação deliciosa, alucinante, ia se tornando cada vez mais intensa. Mais, mais, mais... até que finalmente o mundo pareceu parar de girar...

E agora — Lorenzo disse mais tarde, apoiado no cotovelo, olhando nos olhos dela — que estamos aqui sozinhos e não há centenas de pessoas olhando, quer casar comigo?

Quero — Isabel riu, acariciando o rosto dele. — Sim. Sim. Sim. Esperei por este momento metade da minha vida.

 

Isabel nunca tinha imaginado que um dia poderia olhar as coisas de Jeremy com tal tran­quilidade, sem nenhuma amargura. Agora, olhando para aquela mala à sua frente, via que podia.

Lorenzo a tinha" feito mudar de atitude.

Tinham casado fazia sete meses, numa cerimónia sim­ples, com apenas alguns parentes e amigos mais chegados. Foi o dia mais feliz de sua vida. E ela não estava de branco.

Sorrindo, Isabel começou a pôr na mala aquelas últimas roupas, o que só agora tinha resolvido fazer. Antes, ela e Lorenzo tinham estado muito ocupados, redecorando sua nova casa e recuperando o tempo perdido.

Isabel já ia fechar a mala quando percebeu alguma coisa estranha no fundo, dentro de um compartimento com zíper. Um caderno. Começou a ler.

Era a letra de seu pai. O caderno estava cheio de suas costumeiras anotações. Ler aquilo não levou mais de quinze minutos.

Isabel sorriu. No fundo, ela sempre soube que o pai não tinha desviado dinheiro algum. E aqui estava o resto da história. O empréstimo bancário, todas as contas, o dinheiro que nunca tinha sido roubado.

Jeremy tinha escondido tudo. Tinha mostrado só o que interessava mostrar.

Isabel fechou a mala. Deixou perto da porta. As poucas coisas que ainda restavam naquela casa iriam para uma instituição de caridade. A casa devia estar vazia quando seus novos donos mudassem, no próximo fim de semana.

Ainda sorrindo, o caderno nas mãos, Isabel foi até a janela.

Lorenzo também sorriria ao ver aquilo. Mas não perderia a calma. O casamento o tinha domesticado, como ele cos­tumava dizer agora. Tinha domado o tigre.

Talvez não apenas o casamento, talvez algo mais.

Acariciando a própria barriga, Isabel dizia para si mesma que talvez fosse o bebé que estava ali o maior responsável por aquela mudança de comportamento.

 

                                                                                Cathy Williams  

 

                      

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