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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM GRITO NA NOITE / Mary Higgins Clark
UM GRITO NA NOITE / Mary Higgins Clark

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM GRITO NA NOITE

 

Jenny começou a procurar a cabana ao amanhecer. antivera-se deitada toda a noite, imóvel, na maciça cama de quatro colunas, incapaz de dormir, entre o silêncio da casa, opressivo e envolvente.

 

Apesar de haver semanas que sabia que não aconteceria, continuava com os ouvidos sintonizados para o choro de fome do bebé. Os seios conservavam-se cheios, preparados para acolher com satisfação os pequenos e ávidos lábios.

 

Por fim, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. O quarto assumiu um aspecto menos inóspito, e a saboneteira de cristal em cima da cómoda captou e reflectiu a luz. Os pequenos sabonetes de pinho que a enchiam projectavam uma tonalidade algo sinistra no espelho e nas escovas de prata antigos.

 

Abandonou a cama e começou a vestir-se, escolhendo a roupa interior comprida e o impermeável de nylon que usava por baixo do fato de esquiar. Ligara o rádio às quatro horas. A previsão meteorológica permanecia inalterada para a área de Granite Place, Minnesota, com a temperatura de dez graus abaixo de zero.

 

Não importava. Nada importava. Mesmo que morresse enregelada durante a busca, não desistiria de procurar a cabana. Encontrava-se, indubitavelmente, algures naquela floresta de bordos, carvalhos, sempre-verdes, pinheiros noruegueses e vegetação rasteira. Ao longo das horas sem sono, Jenny concebera um plano. Erich devia dar três passos por cada um dos seus. A passada naturalmente mais larga levava-o a andar mais depressa, embora talvez não tivesse consciência disso, e costumavam trocar comentários jocosos a esse respeito. "Espera por uma moça da cidade", protestava ela.

 

Uma ocasião, ele esquecera-se da chave e regressara imediatamente para a levar. Estivera ausente quarenta minutos. Isso significava que, para ele, a cabana se situava a uns vinte minutos a pé da orla do bosque.

 

Nunca a levara lá. "Tenta compreender, Jenny", suplicara-lhe. "Os artistas precisam de um lugar para estar totalmente sós."

 

E ela nunca tentara localizá-la, até então. O pessoal da quinta estava terminantemente proibido de entrar no bosque. O próprio Clyde, encarregado da propriedade há trinta anos, afirmava que não sabia onde a cabana se encontrava.

 

A espessa camada de neve endurecida apagara qualquer possível rasto, mas também facilitava as pesquisas dela para efectuar diligências a corta-mato. Por outro lado, necessitava de ter cuidado para não se perder. Com a densidade da vegetação, e o seu deplorável sentido de orientação, poderia perfeitamente andar às voltas sem se aperceber.

 

No entanto, pensara nisso e decidira fazer-se acompanhar de uma bússola, um martelo, pregos e pedaços de pano. Assim, poderia pregar estes últimos nos troncos para encontrar o caminho de regresso.

 

O equipamento de esquiar estava lá em baixo, no armário à entrada da cozinha, e, enquanto a água para o café não fervia, enfiou o fato. A aromática bebida contribuiu para lhe estabelecer um pouco de ordem no espírito. Durante a noite, ponderara a hipótese de procurar o xerife Gunderson. Todavia, decerto recusaria ajudá-la e limitar-se-ia a olhá-la com a familiar expressão de desdém especulativo.

 

Resolveu igualmente levar uma garrafa-termo com café. Não tinha a chave da cabana, mas partiria um vidro com o martelo, a fim de entrar pela janela.

 

Embora houvesse mais de duas semanas que Elsa não aparecia, a enorme e antiga casa brilhava com provas visíveis dos seus princípios rígidos sobre o asseio. Tinha o hábito de, antes de se retirar, arrancar a folha desse dia do bloco-calendário junto do telefone na parede, e Jenny comentara o facto ironicamente com Erich: "Ela não só limpa o que nunca esteve sujo como elimina todas as noites dos dias úteis."

 

Agora, arrancou a folha correspondente a sexta-feira, 14 de Fevereiro, amarfanhou-a na mão e cravou o olhar no espaço em branco abaixo das maiúsculas: SÁBADO, 15 DE FEVEREIRO. Percorreu-a um estremecimento. Havia quase catorze meses desde aquele dia na galeria, em que conhecera Erich. Não, não podia ser. Fora uma vida inteira atrás. Passou a mão pela fronte.

 

O cabelo castanho-avelã escurecera até se tornar quase preto, durante a gravidez, e parecia-lhe desgrenhado e sem vida, ao introduzi-lo debaixo do capuz de lã. O espelho à esquerda da porta constituía uma nota incongruente da solene cozinha de vigas de carvalho. Viu-se nele e notou os olhos com pesadas sombras em volta. Normalmente de uma tonalidade entre a água-marinha e o azul, reflectiam para ela as pupilas grandes e inexpressividade. As faces estavam tensas. A perda de peso desde o parto deixara-a demasiado magra. A veia no pescoço latejava, enquanto ela abotoava o fato até acima. Vinte e sete anos de idade. Afigurava-se-lhe que parecia pelo menos dez anos mais velha e sentia-se como se lhe pesasse um século nos ombros. Se, ao menos, o torpor se dissipasse. Se a casa não estivesse tão silenciosa, tão temível e assustadoramente silenciosa.

 

Volveu o olhar para o fogão de ferro fundido na parede leste da cozinha. O berço, cheio de lenha, voltava a estar ao lado dele, restituído à sua velha função.

 

Observou-o atentamente, forçou-se a absorver o choque constante da sua presença na cozinha e, por fim, voltou-lhe as costas e foi buscar a bússola, martelo, pregos e pedaços de pano. Depois de colocar tudo num saco de lona, puxou o cachecol para o rosto, calçou as botas de esquiar a corta-mato, enfiou as mãos em luvas de lã grossas e abriu a porta.

 

O vento cortante converteu o cachecol num ornamento inútil. Os mugidos abafados das vacas no estábulo recordaram-lhe os soluços do luto profundo. O Sol despontava, deslumbrante em contraste com a neve, abrupto na sua beleza vermelho-dourada, um deus distante que não podia afectar o frio glacial.

 

Clyde devia estar já a inspeccionar o celeiro, enquanto o resto do pessoal decerto levava palha para lá, a fim de alimentar as dezenas de reses Angus negras, incapazes de pastar na neve endurecida. Trabalhava meia dúzia de homens na enorme quinta, mas não havia um único nas proximidades da casa. Não passavam de pequenos vultos, como silhuetas, tendo o horizonte como pano de fundo.

 

Os esquis encontravam-se lá fora, junto da porta da cozinha. Jenny arrastou-os pelos seis degraus do terraço e afivelou-os às botas, congratulando-se por ter aprendido a esquiar bem no ano anterior.

 

Passava um pouco das sete quando começou a procurar a cabana. Limitou-se a não esquiar mais de trinta minutos em qualquer direcção e principiou no ponto em que Erich sempre desaparecia entre o arvoredo. As ramagens achavam-se tão emaranhadas sobre a sua cabeça que os raios solares quase não conseguiam atravessá-las. Depois de avançar tanto quanto possível em linha recta, cortou à direita, prosseguiu durante mais trinta metros, tornou a virar à direita e começou a retroceder para a orla do bosque. O vento apagava o rasto quase imediatamente após a sua passagem, mas ela pregava um pedaço de pano numa árvore em todos os pontos de mudança de direcção.

 

Às onze horas, voltou para casa, aqueceu sopa, mudou de meias, para eliminar a sensação desagradável da humidade nos pés, esforçou-se por ignorar as pontadas na fronte e mãos e tornou a sair.

 

Às cinco da tarde, meio enregelada, quando os raios solares começavam a extinguir-se, preparava-se para dar as pesquisas daquele dia por terminadas, mas decidiu transpor mais um dos pequenos outeiros. Foi então que a avistou, a cabana de toros, pequena, de telhado baixo, construída pelo bisavô de Erich em 1869. Contemplou-a de olhos arregalados,  mordendo os lábios à medida que o desapontamento furioso a atingia com o impacte físico de um bisturi.

 

Os estores estavam baixados e o aspecto geral da construção infundia a impressão de que não era ocupada há algum tempo. A chaminé achava-se coberta pela neve e não se vislumbrava qualquer luz.

 

Esperaria ela porventura que, quando a descobrisse, brotasse fumo da chaminé, houvesse o clarão de candeeiros através das cortinas e pudesse aproximar-se da porta e abri-la?

 

Havia uma placa metálica pregada à porta. Os dizeres estavam apagados, mas ainda se podiam ler: ENTRADA RIGOROSAMENTE PROIBIDA. OS TRANSGRESSORES SERÃO LEVADOS A TRIBUNAL.

 

Jenny avistou um alpendre com uma bomba à esquerda da cabana e uma estufa parcial e discretamente dissimulada por pinheiros frondosos. Tentou imaginar o jovem Erich de visita ao local com a mãe. "Caroline gostava da cabana tal como se encontrava", revelara-lhe ele. "O meu pai queria modernizá-la, mas ela opôs-se com veemência."

 

Deixando de prestar atenção ao frio, esquiou até à janela mais próxima. Em seguida, retirou o martelo do saco de lona, ergueu-o e partiu a vidraça. Indiferente às gotas de sangue, imediatamente congelado, que um dos fragmentos lhe produziu e tendo o cuidado de evitar os que tinham ficado na moldura da janela, soltou o fecho e impeliu-a para cima.

 

Depois, sacudiu os pés para se libertar dos esquis, trepou ao peitoril, afastou o estore e saltou para dentro.

 

A cabana consistia numa única sala com cerca de sete metros de lado. Um fogão Franklin junto da parede norte tinha lenha empilhada ao lado. Uma descolorida carpeta oriental cobria a maior parte do sobrado de pinho. Um sofá de espaldar alto e cadeiras a condizer estavam dispostos em torno do fogão. Perto das janelas da frente viam-se uma mesa de carvalho, longa, e respectivos bancos. Uma roda de fiar parecia ainda funcional. Num maciço aparador de carvalho, encontravam-se alguma loiça e candeeiros de petróleo. Uma escada íngreme prolongava-se para a esquerda. Junto dela, estavam numerosas telas sem moldura.

 

As paredes eram de pinho branco, sem nós, imaculadamente aplainado, cobertas de pinturas. Como num sonho, Jenny moveu-se de uma para outra. A cabana era um museu. Nem a luz deficiente conseguia encobrir a beleza rara dos óleos e aguarelas, os desenhos a carvão e caneta e tinta. Erich ainda não expusera os seus melhores trabalhos. Como reagiriam os críticos quando vissem aquelas obras-primas?

 

Algumas das telas das paredes já se apresentavam emolduradas. Deviam ser as próximas que ele tencionava expor. O celeiro sob uma tempestade de Inverno. Que tinha de diferente? A corça, de cabeça inclinada, à escuta, na iminência de fugir para o bosque. O vitelo que se refugiava junto da mãe. Os campos de luzerna, cobertos de flores azuis, prontos para a safra. A igreja congregacional, à qual acudiam filas de fiéis. A rua principal de Granite Place, sugestiva de uma serenidade intemporal.

 

Apesar da sua desolação, a beleza sensível da colecção proporcionava a Jenny uma impressão momentânea de silêncio e paz.

 

Por fim, debruçou-se sobre as telas sem molduras. A admiração dominou-a mais uma vez. A dimensão incrível do talento de Erich, a habilidade para pintar paisagens, pessoas e animais com igual autoridade, a alegria do jardim de Verão com o antiquado carrinho de bebé, O...

 

De súbito, viu-o. Sem compreender, começou a correr entre as filas de outras telas e desenhos.

 

Aproximou-se da parede e moveu-se de um quadro para outro. Os olhos arregalaram-se de incredulidade. Sem a consciência exacta do que fazia, cambaleou em direcção à escada de acesso ao sótão e transpôs apressadamente os degraus.

 

O sótão era baixo, em virtude da curvatura do telhado, e ela teve de se inclinar para a frente no topo da escada, antes de entrar.

 

Ao endireitar-se, uma explosão de cor de pesadelo, proveniente da parede ao fundo, assaltou-lhe a visão. Chocada, contemplou a sua própria imagem. Um espelho?

 

Não. O rosto pintado não se moveu, quando Jenny começou a aproximar-se. A luz do crepúsculo que penetrava pela estreita janela incidia na lona e produzia-lhe colunas pálidas, como dedos que apontassem acusadoramente.

 

Ela olhou o quadro, imóvel, durante cinco minutos, incapaz de desviar a vista, enquanto absorvia todos os pormenores grotescos, sentindo a boca contrair-se de angústia de desespero e escutando o som proveniente da sua própria garganta.

 

Por último, obrigou os dedos entorpecidos e relutantes a segurar a lona e arrancá-la da parede.

 

Segundos depois, com o quadro debaixo do braço, esquiava para longe da cabana. O vento, agora mais forte, sufocava-a, privava-a de alento, abafava-lhe o grito frenético.

 

Acudam-me! exclamava. Acudam-me, por favor!

 

O vento varria-lhe as palavras dos lábios e espalhava-as pelo bosque na escuridão.

 

Era óbvio que a exposição de telas de Erich Krueger, o artista do Médio Oeste recentemente descoberto, constituía um êxito surpreendente. A recepção destinada aos críticos e convidados especiais principiou às quatro, mas os curiosos haviam afluído à galeria ao longo de todo o dia, atraídos por Recordação de Caroline, o esplendoroso óleo exposto na vitrina principal.

 

Com oportunidade constante, Jenny movia-se de crítico para crítico, a fim de apresentar Erich, trocar algumas palavras com os coleccionadores e providenciar para que o pessoal não parasse de circular com bandejas de acepipes e garrafas de champanhe e renovasse as provisões da assistência.

 

O dia apresentara-se-lhe difícil desde que abrira os olhos, pela manhã. Beth, em geral condescendente, mostrara-se renitente em seguir para o centro de cuidados diurnos. Tina, a contas com a aparição dos molares, acordara meia dúzia de vezes durante a noite, a chorar convulsivamente. O intenso nevão do dia de Ano Novo deixara Nova Iorque convertida num pesadelo de engarrafamentos de trânsito e passeios cobertos de uma camada escorregadia. Quando deixou as crianças no centro e começou a atravessar a cidade, estava quase uma hora atrasada para o trabalho, e Mr. Hartley mostrara-se agastado.

 

Está tudo a correr mal, Jenny. Não há nada preparado. Previno-a de que preciso de alguém com quem possa contar.

 

Peço imensa desculpa. Ela guardou o casaco no armário. A que horas deve chegar Mister Krueger?

 

Por volta da uma. Imagine que três telas só foram entregues há poucos minutos!

 

Jenny tinha a impressão de que o pequeno sexagenário regressava aos sete anos de idade, quando se enervava. Agora, enrugava a fronte e a boca tremia.

 

Mas já cá estão todas, suponho? disse ela, num tom conciliador.

 

Pois estão, mas quando Mister Krueger telefonou, ontem à noite, perguntei-lhe se tinha enviado aquelas três e ficou horrorizado com a perspectiva de se haverem perdido. E insistiu em que a que representa a mãe seja exposta na vitrina principal, apesar de não estar à venda. Não me canso de lhe dizer, Jenny. Você podia ter posado para esse quadro.

 

Mas não posei. Dominou o impulso de aplicar uma palmada tranquilizadora no ombro do homem. Uma vez que já chegaram todas, vamos pendurá-las.

 

E entrou imediatamente em actividade, tratando de agrupar os óleos, as aguarelas e os desenhos a caneta e tinta e a carvão.

 

Tem olho para isto admitiu Mr. Hartley, visivelmente satisfeito, quando a última tela se encontrou no seu lugar. Eu sabia que conseguiríamos.

 

"Pois sabias!", reflectiu Jenny, esforçando-se por não suspirar.

 

A galeria abria às onze. Cinco minutos antes, o quadro principal estava exposto, juntamente com os dizeres, num fundo de veludo: PRIMEIRA EXPOSIÇÃO EM NOVA IORQUE DE ERICH KRUEGER. A tela começou imediatamente a atrair os transeuntes da Rua 57. Sentada à secretária, Jenny via as pessoas deterem-se para a admirar, e muitas entravam para ver os outros trabalhos. E não foram poucas as que lhe perguntaram:

 

Você foi o modelo para aquele quadro da vitrina? Ela limitava-se a menear a cabeça com um sorriso e, distribuir brochuras com a biografia do pintor:

 

Erich Krueger alcançou proeminência instantânea no mundo da arte. Natural de Granite Place, Minnesota, começou a pintar aos quinze anos por mera vocação. Reside numa herdade pertencente à família há quatro gerações, onde cria gado premiado em concursos, além de que é presidente da Krueger Limestone Works. Um negociante de objectos de arte de Minneapolis foi o primeiro a descobrir o talento de Krueger, o qual, desde então, promoveu exposições em Minneapolis, Chicago, Washington e São Francisco. Tem trinta e quatro anos e é solteiro. Jenny olhou a fotografia na capa da brochura. "E é também maravilhosamente bem-parecido", pensou.

 

Às onze e meia, Mr. Hartley aproximou-se. A expressão de ansiedade e apreensão quase desaparecera por completo.

 

Tudo em ordem?

 

Sem uma falha assegurou ela. Antecipando-se à pergunta seguinte, informou: Os críticos de The Times, The New Yorker, Newsweek, Time e Art News confirmaram que viriam, e já transmiti as instruções necessárias ao fornecedor da comida e bebidas. Podemos contar com pelo menos oito pessoas na recepção e mais de uma centena de oportunistas habituais que se apresentam sem serem convidados. Fecharemos as portas ao público às três. Assim, o pessoal disporá de tempo mais que suficiente para os preparativos indispensáveis.

 

É a eficiência personificada, Jenny. Agora que se achava tudo a postos, Mr. Hartley mostrava-se descontraído e condescendente... até que ela lhe anunciasse que não podia ficar até ao final da recepção. Bem, vou...

 

Lee acaba de entrar anunciou Jenny, referindo-se à sua ajudante, que trabalhava em regime de tempo parcial. Por conseguinte, já nada pode correr mal acrescentou, com um sorriso. Escusa, pois, de se preocupar.

 

Vou fazer o possível. Diga-lhe que voltarei antes da uma para almoçar com Mister Krueger. Aproveite agora para ir comer qualquer coisa.

 

Ela acompanhou-o com a vista, enquanto se encaminhava para a porta. Por um momento, registava-se uma pausa no  número dos recém-chegados. Desejava examinar o quadro na vitrina, pelo que seguiu para lá, sem perder tempo a vestir o casaco. Para absorver melhor a perspectiva da tela, retrocedeu alguns metros da vidraça. Os transeuntes olhavam-na e ao quadro e desviavam-se para não se interpor.

 

A jovem representada sentava-se numa cadeira de balouço, num terraço, voltada para o sol-poente. A iluminação era oblíqua, com sombras avermelhadas, purpúreas e malva. A esbelta criatura achava-se envolta numa capa verde-escura. Pequenas madeixas negro-azuladas emolduravam-lhe o rosto, sacudidas pela brisa. "Compreendo ao que Mr. Hartley se refere", cogitou Jenny. Com efeito, a fronte alta, sobrancelhas espessas, olhos grandes, nariz direito e estreito e boca generosa assemelhavam-se muito às suas próprias feições. O terraço estava pintado de branco, com uma coluna esguia ao canto. A parede de tijolos da casa atrás encontrava-se vagamente sugerida em segundo plano. Um garoto, emoldurado pelo sol, cruzava o campo a correr em direcção à mulher. A neve endurecida fornecia uma ideia do frio que dominaria a noite iminente. A criatura da cadeira de balouço estava imóvel, com o olhar fixo no pôr do Sol.

 

Apesar da criança que se acercava com ansiedade, da solidez da casa e da sensação geral de paz, pareceu a Jenny que havia algo de peculiarmente isolado na mulher. Porquê? Talvez em virtude da expressão melancólica que lhe perpassava no olhar. Ou dever-se-ia ao facto de o aspecto geral do quadro sugerir frio cortante? Porque pretenderia alguém encontrar-se sentado numa cadeira de balouço ao ar livre com uma temperatura tão baixa? Porque não contemplava o pôr do Sol de uma das janelas?

 

Estremeceu involuntariamente. A camisola de lã de gola alta fora uma prenda de Natal do ex-marido Kevin, que se apresentara inesperadamente em casa na véspera com o agasalho para ela e bonecas para as filhas. Nem uma palavra ao facto de nunca lhe enviar dinheiro de apoio e na realidade estar a dever-lhe mais de duzentos dólares de "empréstimos". A camisola, embora barata e de propriedades de aquecimento reduzidas, era, pelo menos, nova, e a tonalidade turquesa um pano de fundo apropriado para o cordão de ouro e medalhão de Nana. Evidentemente que uma das características do mundo da arte consistia em que as pessoas se vestiam para agradar a si próprias, e a sua saia de lã demasiado comprida e as botas demasiado largas não representavam positivamente uma admissão de pobreza. Não obstante, convinha que voltasse para dentro. O que menos desejava era contrair um resfriado, como acontecia a um número substancial de nova-iorquinos.

 

Tornou a fixar os olhos na tela e admirar a perícia com que o artista orientava a atenção do público da mulher na cadeira de balouço para a criança ao clarão do pôr do Sol.

 

"Belo!" murmurou. "Simplesmente belo."

 

Ao mesmo tempo, retrocedia sem se dar conta, escorregou e colidiu com alguém. Acto contínuo, mãos vigorosas seguraram-lhe os ombros e equilibraram-na.

 

Costuma andar na rua sem casaco, com este frio, e falar sozinha? O tom de voz combinava contrariedade e ironia.

 

Jenny deu meia volta com brusquidão, confusa, e balbuciou:

 

Queira desculpar. Magoei-o?

 

Recuou um passo e ao fazê-lo descobriu que o rosto na sua frente era o mesmo da brochura que passara a manhã a distribuir. "Santo Deus!", reflectiu. "Tinha de esbarrar nem mais nem menos do que com Erich Krueger!"

 

Viu o rosto empalidecer, ao mesmo tempo que os olhos se arregalavam e os lábios comprimiam. "Ficou fulo", pensou, desolada. "Quase o derrubei." E estendeu a mão, algo receosamente.

 

Lastimo profundamente, Mister Krueger. Perdoe-me, por favor. Distraí-me, enquanto admirava o retrato de sua mãe. É... é indescritível. Entre, por favor. Chamo-me Jenny MacPartland. Trabalho na galeria.

 

O olhar dele conservou-se cravado no rosto dela, como se o examinasse minuciosamente. Como não sabia o que devia fazer, Jenny mantinha-se imóvel, na expectativa. A pouco e pouco, porém, a expressão dele suavizou-se.

 

Jenny. Sorriu e repetiu: Jenny. E acrescentou, após breve pausa: Não me surpreendia nada se dissesse... Não interessa.

 

O sorriso melhorou-lhe largamente a aparência. Como se olhavam praticamente ao mesmo nível e as botas tinham saltos de sete centímetros, Jenny concluiu que ele devia medir cerca de um metro e setenta. O rosto, classicamente bem-parecido, era dominado por olhos azuis algo encovados. As sobrancelhas abundantes impediam a fronte de ser demasiado larga. O cabelo bronze-ouro, com vários vestígios grisalhos, emoldurava-lhe o semblante e recordava a imagem de uma moeda da antiga Roma. Tinha o mesmo nariz estreito e boca da mulher do quadro. Vestia sobretudo de pêlo de camelo, com um lenço de seda em volta do pescoço. Jenny perguntou-se o que esperara. No instante em que ouvira pronunciar a palavra herdade, congeminara a imagem mental de o artista se apresentar na galeria em casaco de cabedal, calça denim e botas enlameadas. A ideia fê-la sorrir e regressar prontamente à realidade. A situação tinha algo de ridículo. Encontrava-se na rua, a tremer...

 

Mister Krueger...

 

Está enregelada, Jenny cortou ele. A culpa é minha, desculpe.

 

Krueger pousou a mão no cotovelo dela e conduziu-a para a porta da galeria, que abriu para que o precedesse.

 

Começou imediatamente a inspeccionar a localização das telas, comentando que fora uma circunstância afortunada as três últimas terem chegado a tempo.

 

Afortunada para o expedidor salientou, sorrindo.

 

Jenny acompanhou-o, enquanto ele prosseguia a inspecção com a maior meticulosidade, detendo-se por duas vezes para endireitar quadros levemente torcidos. Por fim, inclinou a cabeça, aparentemente satisfeito.

 

Porque colocaram a Lavra da Primavera ao lado da Safra?

 

Não é o mesmo campo? Pressenti uma continuidade entre arar a terra e admirar em seguida a colheita. Só lamento que não haja também uma cena do Verão.

 

Mas há asseverou ele. Só que decidi não a enviar. Ela lançou uma olhadela ao relógio por cima da porta. Era quase meio-dia.

 

Se não se importa, Mister Krueger, vou instalá-lo no gabinete particular de Mister Hartley. Ele reservou mesa para almoçarem juntos no Russian Tea Room, à uma. Deve estar a aparecer e eu vou ausentar-me por uns minutos, para comer uma sanduíche.

 

Receio que Mister Hartley tenha de almoçar sozinho. Erich ajudou-a a vestir o casaco. Estou cheio de fome e tenciono comer consigo. A menos, claro, que vá encontrar-se com alguém.

 

Não. Tencionava ir à drugstore da esquina.

 

Experimentamos antes o Salão de Chá. Creio que arranjarão um recanto para nós.

 

Jenny acedeu sob protesto, consciente de que Mr. Hartley ficaria furioso e a sua conservação do cargo que ocupava se tornava cada vez mais precária. Com efeito, chegava tarde com excessiva frequência e, na semana anterior, necessitara de faltar dois dias consecutivos, em virtude de Tina ter contraído tosse convulsa. No entanto, reconhecia que não lhe restava qualquer alternativa.

 

No restaurante, ele ignorou o facto de não terem reservado mesa previamente e conseguiu que lhes dessem o lugar ao canto que pretendia. Ela rejeitou a sugestão de tomar vinho. Ficava tonta em menos de quinze minutos e era capaz de adormecer. Passei quase toda a noite em claro. Para mim, Perrier, por favor.

 

Pediram sanduíches reforçadas e em seguida ele inclinou-se sobre a mesa. Fale-me de si, Jenny MacPartland. Ela esforçou-se por não rir. Frequentou algum curso de Dale Carnegie? Não. Porquê? É a pergunta que ensinam a fazer no primeiro encontro. Mostrar interesse pelo interlocutor. "Quero saber coisas a seu respeito. Mas acontece que quero mesmo. Serviram as bebidas, que consumiram gradualmente, enquanto Jenny revelava:

 

Sou a chefe daquilo a que o mundo moderno chama família de pai único". Tenho duas raparigas: Beth, de três anos, e Tina, de dois. Vivemos num apartamento da Rua Trinta e Sete.

 

Um piano de cauda, se o possuísse, ocuparia quase todo o espaço. Trabalho para Mister Hartley há quatro anos.

 

Como é possível que trabalhe para ele há tanto tempo, com duas filhas tão pequenas?

 

Meti duas semanas de férias, quando nasceram.

 

Precisava de regressar ao trabalho tão depressa? Encolheu os ombros.

 

Conheci Kevin MacPartland no Verão a seguir à minha formatura em Belas-Artes, na Universidade Fordham, no Lincoln Center. Kev interpretava um pequeno papel numa peça de um teatro fora da Broadway. Nana disse-me que cometia um erro, mas não liguei, naturalmente.

 

Nana?

 

A minha avó, que me criou desde que tinha um ano de idade. Afinal, não se enganou. Kev é um rapaz simpático, mas... um peso-pluma. Duas filhas em dois anos de casamento não figuravam na sua agenda. Saiu de casa logo após o nascimento de Tina.

 

Sustenta-as, ao menos?

 

O rendimento médio de um actor são três mil dólares ao ano. Na verdade, ele é bom actor e, com uma ou duas oportunidades mais lucrativas, aguentaria as oscilações do barco. Mas, de momento, a resposta à sua pergunta é negativa.

 

Suponho que não deixa as crianças num centro de assistência diurno desde que nasceram?

 

Sentiu formar-se-lhe um nó na garganta e compreendeu que, dentro de instantes, os olhos se lhe arrasariam de lágrimas. Por conseguinte, apressou-se a acrescentar:

 

A minha avó cuidou delas, enquanto eu trabalhava. Infelizmente, faleceu há três meses. Preferia não falar dela, neste momento.

 

Lamento, Jenny. (Ela sentiu a mão dele pousar na sua.) Desculpe. Não costumo ser tão obtuso.

 

É a minha vez. Ela logrou esboçar um sorriso. Fale-me de si. E levou a sanduíche à boca, enquanto ele falava.

 

Decerto leu a biografia na brochura. Sou filho único. A minha mãe perdeu a vida num acidente na quinta, quando eu tinha dez anos. Por sinal, foi mesmo no dia do meu aniversário. O meu pai morreu há dois anos. A orientação dos trabalhos encontra-se a cargo do caseiro, pois eu passo a maior parte do tempo no estúdio.

 

Seria uma autêntica pena se não passasse. Pinta desde os quinze anos, não é assim? Nunca se tinha apercebido do seu valor?

 

Erich moveu o vinho no copo, hesitou e encolheu os ombros.

 

Eu podia alegar, como acontece com frequência, que o fazia unicamente por vocação, mas não corresponderia à verdade. A minha mãe era uma artista. Não tinha muito talento, embora o pai fosse razoavelmente conhecido. Chamava-se Everett Bonardi.

 

Mas ouvi falar dele! exclamou Jenny. Porque não incluiu isso na sua biografia?

 

Se o meu trabalho possui algum mérito, quero que seja exclusivamente por ele. Espero ter herdado um pouco do seu talento. A minha mãe limitava-se a fazer esboços, com o que experimentava profundo prazer, mas o meu pai tinha inveja da arte dela. Creio que se sentiu como um boi diante de um palácio, quando conheceu a família dela em São Francisco. Segundo concluí do que ouvi, trataram-no como um labrego do Médio Oeste com palha colada às solas dos sapatos. Ele pagou-lhes na mesma moeda, aconselhando a minha mãe a empregar a sua habilidade na confecção de coisas úteis, como colchas de cama. Apesar disso, adorava-a. No entanto, nunca duvidei de que lhe custaria descobrir que eu "perdia o meu tempo a pintar", pelo que me abstive de lho confessar.

 

O sol do meio-dia conseguira perfurar a camada de nuvens, e alguns raios dispersos, coloridos pela vidraça da janela, bailavam sobre a mesa. Jenny pestanejou e voltou a cabeça.

 

Erich, que a observava pensativamente, declarou de súbito:

 

Deve ter estranhado a minha reacção, quando nos conhecemos. Na verdade, julguei ver um fantasma. A sua parecença com Caroline é assombrosa. Ela tinha mais ou menos a sua altura, com cabelo mais escuro e olhos de um verde brilhante, ao passo que os seus são azuis com laivos esverdeados. Mas há outros pormenores. O sorriso. A maneira como inclina a cabeça para o lado, quando escuta. É esbelta como ela. O meu pai comentava constantemente a sua magreza e tentava obrigá-la a comer mais. E sinto vontade de lhe dizer neste momento: "Coma a sanduíche, Jenny. Mal lhe tocou."

 

Gosto de comer devagar, não se preocupe. Mas importa-se de mandar vir um café? Mister Hartley deve estar apopléctico por você ter chegado durante a sua ausência. E o facto de não me encontrar na recepção antes do seu início não contribuirá para melhorar a minha cotação.

 

Tem planos para esta noite? perguntou ele, com uma expressão repentinamente grave.

 

Enormes. Se me atrasar a ir buscar as minhas filhas ao Centro de Assistência Diurna Progressivo de Mistress Curtis, passarei um mau bocado. Jenny arqueou as sobrancelhas, franziu os lábios e imitou Mrs. Curtis. "A minha hora habitual de fechar as portas é às cinco da tarde, Mistress MacPartland, embora costume abrir uma excepção para as mães que trabalham. Mas as cinco e meia é o máximo. Não quero ouvir desculpas acerca de autocarros atrasados ou telefonemas de última hora. Se volta a aparecer depois dessa hora, na manhã seguinte pode deixar as suas filhas em casa. Entendeu?"

 

Entendi. Erich soltou uma gargalhada. Fale-me agora das suas pequenas.

 

Bem, isso é fácil. Como deve calcular, são inteligentíssimas, lindas, adoráveis e...

 

Começaram a andar aos seis meses e a falar aos nove. Parece a minha mãe. Constou-me que era nesses termos que costumava descrever-me.

 

Ela experimentou uma leve contracção no coração ao ver-lhe a expressão de nostalgia.

 

Tenho a certeza de que correspondia à verdade murmurou.

 

E eu tenho a certeza de que não correspondia. Ele voltou a rir. Nova Iorque não pára de me abismar. Como é uma pessoa criar-se aqui?

 

Enquanto tomavam café, continuaram a conversar animadamente. Jenny, sobre a vida na cidade: "Não há um prédio em Manhattan que eu não estime." Ele, secamente: "Não posso imaginar isso. No entanto, você nunca experimentou realmente a outra faceta da vida." Também trocaram impressões a respeito do casamento dela.

 

Que sentiu, quando terminou?

 

Surpreendentemente, apenas o mesmo grau de pesar que suponho me acudiria pelo típico primeiro amor. A diferença consistia em que havia as minhas filhas, pelas quais sempre estarei grata a Kev.

 

Quando regressaram à galeria, Mr. Hartley encontrava-se à espera. Não sem certo nervosismo, Jenny apercebeu-se dos pontos avermelhados de irritação nos malares, e em seguida admirou o modo como Erich o tranquilizou.

 

Como decerto concordará, a comida estilo avião é imprópria para consumo e, como Mistress MacPartland ia sair para almoçar, pedi-lhe que me deixasse acompanhá-la. Não comi praticamente nada e agora estou à sua disposição para uma refeição substancial juntos. E permita-me que o felicite pela forma como distribuiu os meus trabalhos pela sala.

 

Os pontos vermelhos atenuaram-se. Lembrando-se da enorme sanduíche que Erich comera, Jenny aventurou:

 

Recomendo o frango à Kiev para Mister Krueger. Convença-o a pedir isso, Mister Hartley.

 

Erich arqueou uma sobrancelha e, quando passou junto dela, murmurou:

 

Obrigadinho.

 

Mais tarde, ela arrependeu-se do impulso. Na realidade, mal conhecia o homem. Como se explicava, pois, aquela afinidade? Ele mostrava-se muito simpático e, ao mesmo tempo, dava a impressão de uma força latente. Na verdade, se estava habituado ao dinheiro desde sempre, era bem-parecido e possuía talento, porque não havia de se sentir seguro na vida?

 

A galeria permaneceu em actividade toda a tarde. Jenny prestava atenção especial aos coleccionadores importantes. Embora todos tivessem sido convidados para a recepção, ela sabia que muitos apareceriam mais cedo, a fim de disporem do ensejo de inspeccionar as telas calmamente. Os preços eram elevados, muito elevados mesmo, para um artista novo. No entanto, ele parecia indiferente ao número de transacções efectuadas.

 

Mr. Hartley reapareceu quando a galeria já se encontrava encerrada ao público e comunicou a Jenny que Erich se dirigira ao hotel para mudar de roupa para a recepção.

 

Parece que o impressionou profundamente, Jenny acrescentou, algo intrigado. Fartou-se de me fazer perguntas a seu respeito.

 

Às cinco da tarde, a recepção achava-se no auge. Com a habitual eficiência, Jenny escoltava Erich dos críticos para os coleccionadores, apresentando-o, conversando sobre banalidades, proporcionando-lhe a oportunidade de dizer algo e depois levando-o para apresentar a outro visitante. Por mais de uma vez, perguntaram-lhes:

 

Esta jovem é o modelo de Recordação de Caroline?

 

Começo a convencer-me disso respondia ele, aparentemente divertido com a curiosidade manifestada.

 

Mr. Hartley concentrava-se na tarefa de cumprimentar os convidados, à medida que chegavam. A avaliar pelo seu sorriso beatífico, Jenny deduzia que a exposição constituíra um êxito.

 

Era óbvio que os críticos estavam igualmente impressionados com Erich Krueger, o homem. Entretanto, ele substituíra o casaco sport e calça de flanela por um fato azul-escuro de corte irrepreensível e usava um anel de ouro no mindinho da mão esquerda. Jenny, que já reparara nele durante o almoço, compreendeu agora porque lhe parecera familiar. Vira-o na mão da mulher do quadro. Decerto era a aliança de casamento da mãe.

 

Deixou-o a conversar com Alison Spencer, jovem e elegante crítica da revista Art News, a qual vestia um conjunto saia-casaco branco que lhe complementava o cabelo louro-cinza. Jenny deu-se subitamente conta da qualidade pouco atraente da sua saia de lã e do facto de as botas parecerem antiquadas, apesar de terem sido engraxadas. Por outro lado, sabia que a camisola parecia aquilo que era uma peça de vestuário barata.

 

Tentou justificar a depressão repentina que lhe acudira. Fora um dia longo e sentia-se cansada. Eram boas horas de se retirar, e quase temia o momento de ir buscar as filhas. Quando Nana vivia com elas, o regresso a casa constituía um prazer.

 

"Senta-te e descontrai-te", costumava dizer a avó. "Vou preparar cocktails para ambas." Gostava de se inteirar do que se passava na galeria, e lia uma história de embalar às crianças, enquanto Jenny se ocupava do jantar. "És melhor cozinheira do que eu desde que completaste os oito anos."

 

"A verdade é que, se não preparasses hamburgers durante tanto tempo, não pareceriam pucks de hóquei", replicava ela, com um sorriso.

 

Desde a morte de Nana, Jenny ia buscar as filhas ao centro diurno, levava-as de autocarro para casa e entretinha-as com biscoitos, enquanto tratava do jantar.

 

Quando se preparava para vestir o casaco, um dos coleccionadores mais importantes abordou-a. Por último, às

17.25, conseguiu livrar-se dele e ponderou se devia despedir-se de Erich, mas viu que continuava a manter animada conversa com Allison Spencer. No fundo, que se importaria ele com a sua saída? Finalmente, tentou repelir a renovada sensação de depressão e abandonou a galeria discretamente pela porta de serviço.

1 Disco de borracha utilizado no hóquei sobre o gelo. (N. do T.)

As placas de gelo no passeio tornavam o percurso perigoso. A Avenida das Américas, Quinta, Madison, Park, Lexington, Terceira, Segunda. Quarteirões intermináveis. Quem, certa ocasião, dissera que Manhattan era uma ilha estreita, nunca tivera de atravessar os seus pavimentos escorregadios. No entanto, os autocarros deslocavam-se com lentidão, pelo que Jenny preferia ir a pé. De qualquer modo, chegaria atrasada.

 

O centro diurno de assistência situava-se na Rua 49, perto da Segunda Avenida. Passava das seis e quarenta e cinco, quando ela, ofegante em virtude da quase correria a que se entregara, tocou a campainha do apartamento de Mrs. Curtis, a qual se mostrou claramente irada, com os braços cruzados sobre o peito e lábios convertidos num corte estreito no rosto desagradável.

 

Mistress MacPartland! vociferou, em tom estentóreo. Tivemos um dia horrível. A Tina não parou de chorar. E a senhora disse-me que a Beth fora ensinada a utilizar a "retrete", o que está longe de corresponder à realidade.

 

Garanto-lhe que foi ensinada a utilizar a rer... digo, a retrete protestou Jenny. Talvez ainda não se habituasse à daqui.

 

Nem terá oportunidade de se habituar. As suas filhas dão demasiadas ralações. Tente compreender a minha posição.

 

Uma criança de três anos incapaz de fazer chichi sozinha e outra de dois que chora sem interrupção dão água pela barba a qualquer pessoa.

 

Mamã...

 

Ela ignorou Mrs. Curtis. Beth e Tina estavam sentadas no decrépito sofá do vestíbulo mal iluminado a que a mulher chamava pomposamente "pátio de recreio", e Jenny perguntou-se há quanto tempo se encontrariam ali, vestidas para sair. Impelida por um acesso de ternura, abraçou-as com vigor.

 

Olá, ratinho. Olá, meu chocalho.

 

As faces de Tina achavam-se alagadas pelas lágrimas, e ela afastou-lhe os cabelos colados pela humidade. Ambas haviam herdado os olhos castanhos-avelã de Kev, assim como as pálpebras cor de fuligem e o cabelo.

Esteve assustada todo o dia disse Beth, apontando para a irmã. Chorou muito.

 

O lábio inferior de Tina tremia e ela ergueu os braços para a mãe.

 

E voltou a chegar atrasada acusou Mrs. Curtis.

 

Desculpe articulou Jenny, num tom que sugeria ter o pensamento concentrado noutra coisa. Tina tinha os olhos inchados e as faces coradas. Estaria iminente um ataque de anginas? A culpa era daquela casa, onde nunca devia ter deixado as filhas.

 

Pegou em Tina, e Beth, receosa de ficar esquecida, levantou-se do sofá. Continuo a tomar conta delas até sexta-feira, o que pode considerar um favor advertiu a mulher. Mas nem mais um dia. Jenny abriu a porta e saiu, sem se despedir. Anoitecera por completo e soprava um vento cortante, Tina afundou a cabeça na abertura da gola do casaco da mãe, enquanto Beth procurava proteger o rosto entre as pregas.

 

Só me molhei uma vez afirmou esta última,

 

Deixa lá isso agora, ratinho. Aguentem um bocadinho, que não tardamos a estar no quente do autocarro.

 

No entanto, passaram três com a lotação completa. Por fim, Jenny desistiu e resolveu ir a pé. Tina era um peso morto e, se estugasse o passo, teria de arrastar praticamente Beth. Depois de transpor dois quarteirões, inclinou-se para baixo e pegou-lhe ao colo.

 

Eu posso andar, mamã protestou a garota. Já sou grande.

 

Eu sei que és, mas assim vamos mais depressa. Entrelaçando os dedos de ambas as mãos à sua frente, Jenny conseguiu equilibrar os dois pequenos corpos nos braços. Segurem-se bem, que vai começar a maratona.

 

Necessitava de transpor mais dez quarteirões até à parte baixa da cidade e outros dois no sentido transversal. "Não pesam muito", tentava convencer-se. "São as tuas filhas."Onde encontraria outro lugar para as deixar, na próxima segunda-feira? "Fazes-nos tanta falta, Nana querida!" Não se atrevia a pedir que a dispensassem mais tempo na galeria. Erich teria convidado Allison Spencer para jantar?

 

Alguém surgiu a caminhar a seu lado. Ela voltou-se, surpreendida, no momento em que Erich lhe retirou Beth dos braços, enquanto os lábios desta formavam um círculo misto de perplexidade e certo medo. Parecendo pressentir que se preparava para protestar, ele sorriu-lhe.

 

Chegamos a casa mais depressa, se eu te levar e desafiarmos a mamã e Tina para uma corrida.

 

Mas... começou Jenny.

 

Decerto não se opõe a que a ajude? Não me importava de levar também a mais pequena, mas duvido que ela me deixasse.

 

De facto, não deixava, e estou-lhe muito grata, Mister Krueger, mas...

 

Que é isso de "Mister Krueger"? E porque me deixou com aquela enfadonha mulher da Art News atrelada? Fiquei à espera de que me fosse salvar. Quando soube que se tinha retirado, lembrei-me do centro diurno. O horrível espantalho que dá pelo nome de Mistress Curtis disse que passara por lá, mas consegui arrancar-lhe o seu endereço. Decidi ir bater-lhe ao ferrolho, até que, de repente, vi à minha frente uma moça atraente necessitada de ajuda, e o resto é do seu conhecimento.

 

Ela sentiu o braço dele enfiado firmemente no seu e, de súbito, em vez do cansaço e depressão, acudiu-lhe uma alegria absurda, e ergueu os olhos para o rosto do companheiro.

 

Dedica-se a exercícios destes todas as noites? perguntou ele, numa inflexão mista de incredulidade e preocupação.

 

Quando faz mau tempo, costumamos ir de autocarro, mas hoje passavam todos cheios.

 

O quarteirão entre as Avenidas Lexington e Park estava cheio de prédios de tijolo castanho, e Jenny apontou para o terceiro do lado direito. Em seguida, contemplou a artéria com afecto. Para ela, as duas fiadas de edifícios proporcionavam uma sensação de tranquilidade: casas com quase cem anos de existência, construídas quando Manhattan ainda tinha áreas espaçosas de lares de poucas famílias. A maioria desses chalés desaparecera ou achava-se reduzida a escombros, para ceder lugar a mais arranha-céus.

 

À entrada, Jenny tentou despedir-se de Erich, porém ele negou-se a ser afastado.

 

Acompanho-a até lá dentro declarou com firmeza. Ela precedeu-o com relutância em direcção ao estúdio do rés-do-chão. Confeccionara coberturas de cores atraentes para dissimular os estofos do mobiliário em segunda mão. Uma carpeta castanha cobria a maior parte do sobrado. As camas, pouco maiores do que berços, encontravam-se no pequeno quarto de vestir junto à casa de banho, quase ocultas pela porta. Gravuras de Chagall dissimulavam parte das escamas de tinta das paredes, e as plantas nos respectivos vasos conferiam certa alegria ao peitoril da janela por cima do lava-loiça da cozinha.

 

Aliviadas por se sentirem à solta, Beth e Tina correram para o quarto. Antes, todavia, a primeira voltou-se para trás e disse:

 

Estou muito contente por estar em casa. Dirigiu uma olhadela à irmã e acrescentou: E a Tina também.

 

Sei o que queres dizer, ratinho replicou Jenny, rindo. É pequena, mas adoramo-la explicou a Erich.

 

Compreendo porquê. É muito acolhedora.

 

Não a inspeccione com muita atenção. O senhorio está a deixá-la degradar-se propositadamente. Tenciona converter o prédio em propriedade horizontal, pelo que não quer gastar mais dinheiro com ele.

 

Pensa comprar o apartamento?

 

Nem em sonhos. Começou a puxar o fecho do casaco de Tina. Ele pede setenta e cinco mil dólares por isto, imagine. Ficaremos até que nos despejem e depois procurarei outro poiso.

 

Vamos despir essa roupa pesada. Erich pegou em Beth e desembaraçou-a do casaco. Agora, temos de tomar uma decisão. Convidei-me para jantar, Jenny. Por conseguinte, se tem outros planos, corra já comigo. De contrário, indique-me o supermercado mais próximo. Fez uma pausa e encararam-se em silêncio por um momento. O que vai ser: o supermercado ou a porta?

 

Ela julgou detectar uma ponta de ansiedade na pergunta. No entanto, antes que pudesse responder, Beth deu um puxão na perna das calças dele.

 

Podes ler-me uma história, se quiseres.

 

Então, está assente declarou Erich, com firmeza. Fico. A mamã não tem voto na matéria.

 

"Ele quer realmente ficar", reflectiu Jenny. "Deseja sinceramente estar connosco." A descoberta provocou-lhe uma onda inesperada de prazer.

 

Não precisa de ir às compras anunciou, por fim. Se gosta de carne assada, há que chega e sobra para todos.

 

Em seguida, serviu Chablis e ligou o rádio para que ele escutasse o noticiário, enquanto ela dava banho e de comer às filhas. Depois, foi preparar o jantar e Erich leu-lhes uma história. Ao mesmo tempo que punha a mesa e confeccionava a salada, Jenny observava-o, sentado no sofá, com uma das crianças em cada lado, lendo Os Três Ursinhos na intonação apropriada. Tina não tardou a adormecer e ele transferiu-a cautelosamente para cima dos joelhos. Ao invés, Beth escutava com atenção e os olhos não se desviavam do rosto dele.

 

Gostei muito afirmou a garota, no final. Lês quase tão bem como a mamã.

 

Ele dirigiu uma olhadela a Jenny e exibiu um sorriso de triunfo.

 

Depois de as garotas estarem deitadas, eles jantaram na mesa do pequeno recanto sobranceiro ao jardim. A neve em baixo continuava branca. As árvores de ramos desprovidos de folhas brilhavam com o reflexo da luz da casa. Sempre-verdes grossas e altas quase ocultavam a vedação que separava a propriedade dos quintais adjacentes.

 

É como que o campo dentro da cidade explicou Jenny. Depois de as pequenas estarem deitadas, costumo tomar o café aqui e imaginar que contemplo os meus domínios. Turtle Bay, uns dez quarteirões ao norte, é uma área muito bonita. As casas têm lindos jardins. Isto não passa de uma imitação modestíssima, mas fico com pena quando chegar o dia da mudança.

 

Para onde irá?

 

Ainda não decidi, mas disponho de seis meses para me preocupar com isso. Hei-de encontrar alguma coisa. Passamos ao café? Soou a campainha da porta e Erich mostrou-se contrariado, enquanto ela mordia os lábios. Deve ser a Fran, do andar de cima. De momento, não tem namorado e vem visitar-me com regularidade.

 

Afinal era Kevin, cujo arcaboiço enchia o espaço da porta, juvenilmente bem-parecido, com a dispendiosa camisola de esquiar, longo cachecol, cabelo ruivo cortado irrepreensivelmente e rosto bronzeado.

 

Entra, Kevin convidou Jenny, tentando exprimir-se com naturalidade, embora pensasse com aborrecimento que o ex-marido possuía o condão de aparecer nas ocasiões mais inoportunas.

 

Ele aproximou-se e deu-lhe um beijo de raspão na face, o que a embaraçou ainda mais, consciente da observação de que eram alvo por parte de Erich.

 

As miúdas já estão deitadas? perguntou o recém-chegado. É pena. Esperava poder vê-las. Mas parece que tens visitas.

 

O seu tom alterou-se, tornou-se formal, quase inglês. "Nunca perde uma oportunidade de recorrer aos seus dons histriónicos", reflectiu Jenny. O ex-marido conhecia o novo amigo da ex-esposa numa comédia de sala de estar. Dominando um suspiro, procedeu às apresentações e os dois homens inclinaram a cabeça sem sorrir.

 

Por fim, Kevin pareceu disposto a desanuviar o ambiente.

 

Cheira bem, Jen. Que estiveste a cozinhar? Examinou o topo do fogão. Que apetitosa carne assada! Separou um pequeno pedaço e introduziu-o na boca. Excelente. Cada vez compreendo menos porque permiti que te afastasses de mim.

 

Porque foi um erro horrível disparou Erich, em inflexão glacial.

 

Concordo plenamente volveu Kevin, com desprendimento. Bem, não lhes tomo mais tempo. Estava nas imediações e lembrei-me de passar por cá. Podes conceder-me um momento a sós, Jen?

 

Ela sabia exactamente o que ele pretendia. Era o dia de pagamento. Esperançada em que Erich não se desse conta, pegou dissimuladamente na bolsa quando se encaminhava para o vestíbulo.

 

Aqueles presentes de Natal para ti e as pequenas deixaram-me mal de finanças. Por outro lado, é altura de pagar a renda e o senhorio começa a arreganhar os dentes. Basta que me emprestes trinta dólares por cerca de uma semana.

 

Trinta dólares? Não posso.

 

Preciso deles, Jen.

 

Temos de conversar. Ela puxou da carteira com relutância. Creio que vou perder o emprego.

 

Ele embolsou as notas de banco com prontidão e voltou-se para a porta de saída.

 

O velhote nunca te porá na rua. Sabe distinguir os bons empregados dos maus. No teu lugar, eu pedia-lhe aumento do ordenado. Não conseguiria outra funcionária como tu pelo que te paga. Experimenta e verás.

 

Quando Jenny voltou para dentro, Erich levantava a mesa e abrira a torneira do lava-loiças. Em seguida, pegou na travessa com a carne que sobrara e acercou-se do recipiente do lixo.

 

Um momento protestou ela. As pequenas podem comer isso amanhã.

 

Depois de aquele actor seu ex-marido lhe ter tocado, nem pensar! Deitou fora a carne e virou-se para Jenny. Quanto lhe deu?

 

Trinta dólares. Mas ele há-de restituir-mos.

 

Por outras palavras, deixa-o entrar, beijá-la, tecer comentários jocosos acerca da separação e raspar-se com o seu dinheiro para gastar no bar mais próximo?

 

Precisava do dinheiro para pagar a renda da casa.

 

Não se iluda. Quantas vezes a ludibriou com argumentos do género. Todos os dias de pagamento, aposto.

 

Não, falhou o do mês passado articulou Jenny, com amargura. Não mexa na loiça, por favor. Eu lavo-a mais tarde.

 

Já tem demasiado com que se entreter.

 

Pegou numa toalha, sem replicar. Porque teria Kevin escolhido precisamente aquela noite para a procurar? Na verdade, só uma insensata como ela lhe entregaria dinheiro.

 

A expressão de desaprovação no rosto de Erich começou a dissipar-se e, arrancando-lhe a toalha da mão, proferiu: Largue isso.

 

Verteu vinho em dois copos e levou-os para o sofá. Jenny sentou-se ao lado dele, agudamente consciente da intensidade indefinida que irradiava. Tentou analisar os seus sentimentos, mas não conseguiu. Dentro em pouco, retirar-se-ia. Na manhã seguinte, regressaria ao Minnesota. Na próxima noite, àquela hora, ela encontrar-se-ia ali, sozinha. Lembrou-se da alegria no rosto das filhas quando Erich lhes lia a história, o alívio que sentira quando ele aparecera e a libertara do peso de Beth. O almoço e o jantar tinham sido invulgarmente agradáveis, como se, apenas com a sua presença, pudesse fazê-la esquecer as preocupações e solidão.

 

Em que pensa, Jenny? A voz dele deixava transparecer uma ternura irresistível.

 

Não creio que estivesse a pensar. Ela tentou esboçar um sorriso. Estava... simplesmente satisfeita, suponho. E eu não me recordo de sentir um bem-estar tão aprazível. Diga-me uma coisa: tem a certeza de que não ama ainda Kevin MacPartland?

 

Que ideia! A possibilidade afigurava-se-lhe tão absurda que soltou uma gargalhada.

 

Nesse caso, porque lhe dá o dinheiro tão facilmente?

 

Talvez devido a uma distorcida noção de responsabilidade. A preocupação de que a razão que invoca possa corresponder à verdade.

 

Escute, Jenny. Parto de avião, de manhã cedo, mas posso voltar a Nova Iorque no próximo fim-de-semana. Está livre, na noite de sexta-feira?

 

Ele tencionava voltar por causa dela. Sentiu-se assolada mais uma vez pela deliciosa sensação de alívio e prazer que lhe acudira quando o vira surgir repentinamente na Segunda Avenida.

 

Estou. Procurarei uma sitter para que fique com as crianças.

 

E no sábado? Acha que elas gostariam de ir ao jardim zoológico, se não fizer muito frio? Depois, podíamos levá-las a almoçar ao Rumpelmayer.

 

Tenho a certeza de que adorariam. Mas francamente, Erich...

 

Lamento não poder ficar mais uns dias em Nova Iorque, mas tenho uma reunião em Minneapolis por causa de uns investimentos... Dá-me licença? Ele acabava de descobrir o álbum de fotografias na prateleira por baixo da mesa de cocktails.

 

Se quiser. Não encontrará nada de espectacular. Ingeriam o vinho em pequenos sorvos, enquanto Erich folheava o volume. Essa sou eu, numa ocasião em que me foram buscar ao lar de crianças. Fui adoptada. Esses são os meus novos pais.

 

Parece um casal muito simpático.

 

Confesso que já não me recordo deles. Morreram num acidente de automóvel, quando eu tinha catorze meses. Depois disso, ficámos apenas Nana e eu.

 

Esta foto é de sua avó?

 

Exacto. Tinha cinquenta e três anos, quando nasci. Lembro-me perfeitamente de quando andava na instrução primária e chegava a casa de cara comprida, porque os meus colegas escreviam postais no Dia do Pai e eu não tinha ninguém a quem enviar o meu. Ela então dizia-me: "Olha, Jenny. Sou a tua mãe, o teu pai, a tua avó e o teu avô. Não precisas de mais nada para escrever o teu postal. Envia-mo!"

 

Não admira que tenha tantas saudades dela murmurou Erich, rodeando-lhe os ombros com o braço.

 

Todavia, ela apressou-se a prosseguir:

 

Nana trabalhava numa agência de viagens, o que nos permitiu efectuar algumas viagens inesquecíveis. Esta foi tirada em Inglaterra, tinha eu quinze anos. Aqui, estávamos no Havai.

 

Quando chegaram às fotografias do casamento com Kevin, Erich fechou o álbum.

 

Está-se a fazer tarde reconheceu, consultando o relógio. Suponho que quer ir descansar.

 

Junto da porta, pegou nas mãos dela e aproximou-as dos lábios. Jenny descalçara as botas de saltos altos, pelo que era agora sensivelmente mais baixa.

 

Mesmo assim, parece-se muito com Caroline admitiu Erich, sorrindo. É muito alta com saltos e muito baixa sem eles. Considera-se fatalista?

 

O que tiver de ser será. Não sei se respondi à sua pergunta.

 

Perfeitamente.

 

E a porta fechou-se atrás dele.

 

O telefone tocou às oito em ponto.

 

Como dormiu, Jenny?

 

Muito bem.

 

E era verdade. Ela mergulhara no sono numa espécie de antecipação eufórica. Erich voltaria. Tornaria a vê-lo. Pela primeira vez desde a morte de Nana, não acordara perto da alvorada com a penosa sensação de um peso no coração.

 

Óptimo. Eu também. E devo acrescentar que fui visitado por sonhos muito agradáveis. Tomei as providências necessárias para que, a partir de hoje, uma limusina a vá buscar e às pequenas às oito e um quarto. Levá-las-á ao centro diurno e a si à galeria. E passará a recolhê-la todas as tardes às cinco e dez.

 

Isso é impossível, Erich.

 

Por favor, Jenny. Para mim, é uma coisa insignificante. Não quero passar os dias preocupado com a ideia de que percorre as ruas geladas com as crianças nos braços.

 

Mas, Erich!...

 

Tenho de desligar, Jenny. Voltarei a telefonar mais tarde.

 

No centro diurno, Mrs. Curtis mostrou-se inesperadamente atenciosa.

 

Tem um amigo muito distinto, Mistress MacPartland. Telefonou esta manhã, para explicar tudo. Quero que saiba desde já que não precisa de transferir as suas filhas. Necessitamos de nos conhecer melhor, para desfazer alguns mal-entendidos. Não é verdade, meninas? Ele telefonou para a galeria.

 

Acabo de chegar a Minneapolis. O carro apareceu?

 

Com certeza, e foi uma dádiva celestial. Que alívio, não ter de arranjar as crianças à pressa, com medo de perder o autocarro! Que disse a Mistress Curtis? Era toda melaço e vénias.

 

Acredito. Onde quer ir comer, sexta-feira à noite?

 

É-me indiferente.

 

Escolha um restaurante ao qual sempre tivesse desejado ir, sem que se apresentasse a oportunidade. Um local onde nunca esteve com ninguém.

 

Mas há milhares de restaurantes em Nova Iorque. Os da Segunda Avenida e Greenwich Village são os do meu nível.

 

Nunca foi ao Lutèce?

 

Não, que ideia!

 

Óptimo. Jantaremos lá na sexta-feira.

 

Jenny viveu o resto do dia através de uma espécie de neblina. E o facto de Mr. Hartley comentar repetidamente como Erich ficara impressionado com ela não contribuiu para lhe desanuviar o espírito.

 

Amor à primeira vista, Jenny. Atingiu-o em cheio.

 

Fran, a empregada de uma companhia de aviação que vivia no apartamento 4-E, procurou-a naquela noite, dominada pela curiosidade. Vi o indivíduo espampanante lá em baixo, ontem à noite, e calculei que tinha vindo aqui. E vão sair juntos na sexta-feira! Ena, pai! Ofereceu-se para olhar pelas crianças acrescentou: Gostava de o conhecer. Talvez tenha um irmão, primo ou antigo colega da faculdade. Jenny soltou uma risada e advertiu-a: É capaz de pensar melhor e telefonar a cancelar o encontro. Isso, sim! Fran sacudiu a cabeça de cabelo anelado. Tenho cá um palpite... A semana arrastou-se com lentidão. Quarta-feira. Quinta. E, de súbito, miraculosamente, surgiu a sexta.

 

Erich foi buscá-la às sete e meia. Jenny decidira usar um vestido de manga comprida que comprara num saldo. O medalhão de ouro situava-se admiravelmente no centro do decote e o diamante brilhava com intensidade em contraste com a seda preta.

 

Está encantadora murmurou ele, que vestia fato azul-escuro dispendioso, sobretudo de caxemira preto e lenço de seda branco ao pescoço.

 

Ela telefonou a Fran para que descesse e notou a expressão vagamente divertida no olhar de Erich ao ver a atitude abertamente aprovadora da outra.

 

Tina e Beth ficaram encantadas com as bonecas que ele lhes ofereceu. Jenny observou os rostos pintados nas cabeças de porcelana, os olhos que abriam e fechavam, e comparou-as mentalmente com as modestas prendas que Kevin escolhera para o Natal.

 

Quando o viu enrugar levemente a fronte ao ajudá-la a vestir o pouco dispendioso casaco, arrependeu-se de não ter aceitado a sugestão de Fran para levar o de peles dela.

 

No entanto, Nana recomendara-lhe com frequência que nunca usasse peças de vestuário emprestadas.

 

Erich alugara uma limusina, e Jenny reclinou-se no espaldar estofado, enquanto ele lhe pegava na mão e dizia:

 

Tive saudades suas.

 

Era uma frase simples e sincera, porém ela teria preferido que não a pronunciasse com tanto fervor.

 

No restaurante, olhou em volta e descortinou rostos de celebridades.

 

Do que sorri? perguntou ele.

 

Do choque cultural. Do abismo entre dois estilos de vida diferentes. Já pensou que nenhuma das pessoas presentes nesta sala está sequer ao corrente da existência do centro diurno de Mistress Curtis?

 

Esperemos que assim seja. O seu olhar deixava transparecer um clarão de ternura divertida. Enquanto o empregado servia o champanhe, prosseguiu: Reparei que usava esse medalhão, o outro dia. É muito bonito. Foi Kevin que lho ofereceu?

 

Não, Nana.

 

Ainda bem. Inclinou-se sobre a mesa, e os dedos esguios, esculturais, entrelaçaram-se nos dela. De contrário, irritava-me durante toda a noite. Assim, posso comprazer-me de o ver em si.

 

Depois, em francês irrepreensível, discutiu a ementa com o chefe de mesa. Quando Jenny lhe perguntou onde aprendera o idioma, explicou:

 

No estrangeiro. Viajei muito, durante uma temporada, até que acabei por descobrir que me sentia mais feliz e menos solitário na herdade entretido a pintar. Mas estes últimos dias foram horríveis.

 

Porquê?

 

Por causa das saudades suas.

 

No sábado, foram ao jardim zoológico. Revelando uma paciência inesgotável, Erich estabeleceu um sistema de rotação para levar as crianças aos ombros e, a pedido delas, visitaram a zona dos macacos por três vezes.

 

Ao almoço, cortou a carne em pedaços para que Beth a comesse melhor, enquanto Jenny preparava o prato de Tina.

 

Apesar dos protestos de Jenny, Erich insistiu em que cada uma das garotas escolhesse um dos famosos animais embalsamados do Rumpelmayer e pareceu não se aperceber do tempo interminável que Beth tardava a decidir-se.

 

Não terá, por acaso, seis filhos na sua herdade no Minnesota? perguntou Jenny, quando saíam. Ninguém é naturalmente tão paciente com as crianças.

 

Mas fui criado por alguém que possuía essa paciência em doses elevadas.

 

Gostava de ter conhecido a sua mãe.

 

E eu a sua avó. Porque estás tão contente, mamã? perguntou Beth. No domingo, ele apresentou-se com dois pares de patins" para Tina e Beth e dirigiram-se todos ao ringue de Rockefeller Center para patinar.

 

Naquela noite, levou Jenny ao Park Lane, para um jantar tranquilo. Durante o café, mergulharam em silêncio, até que Erich declarou:

 

Foram dois dias muito felizes.

 

É verdade.

 

Todavia, não aludiu a qualquer intenção de voltar a procurá-la. Ela desviou a vista e contemplou o Central Park, cintilante com a combinação do clarão da iluminação pública, faróis dos carros e janelas dos apartamentos das proximidades.

 

O parque é sempre muito bonito, não acha?

 

Sentiria muito a sua falta?

 

Falta?

 

A beleza do Minnesota é de outra natureza.

 

Que estava ele a dizer? Jenny olhou-o com perplexidade. Num gesto espontâneo, as suas mãos encontraram-se e os dedos entrelaçaram-se.

 

Escute, Jenny. Isto talvez lhe pareça precipitado, mas considero-o natural. Se você insistir, virei a Nova Iorque todos os fins-de-semana durante seis meses, um ano ou o tempo que for necessário, para namorarmos. Mas julga necessário?

 

Quase não me conhece!

 

Conheço-a desde sempre. Era um bebé solene, já sabia nadar aos cinco anos e obteve classificações elevadas nos estudos.

 

O facto de folhear o álbum de família de uma pessoa não significa que fique a conhecê-la.

 

Discordo. E também me conheço bem. Sempre entendi claramente o que procurava, confiado em que, quando aparecesse, o reconheceria. E você também. Confesse-o.

 

Já cometi um erro. Supunha que sentia tudo o necessário por Kevin.

 

É injusta para consigo. Deu um passo errado ainda muito jovem. Segundo me revelou, ele foi o primeiro que lhe despertou um certo interesse. E, por maravilhosa que a sua avó fosse, decerto sentia a falta de um homem na sua vida: um pai, um irmão... Por conseguinte, estava preparada para se apaixonar por Kevin.

 

Ela ponderou estas palavras por um momento e inclinou a cabeça.

 

Talvez tenha razão.

 

E as suas filhas. Não perca a infância delas. Mostram-se tão contentes quando está com elas. Creio que também gostariam da minha presença no lar. Case comigo, Jenny. Em breve. Uma semana atrás, ela não o conhecia. Notou o calor da mão dele, viu-lhe a expressão de ansiedade no olhar e pressentiu que o seu espelhava o mesmo fogo de amor. E sabia, sem margem para a mínima dúvida, a resposta que daria. Continuaram a conversar no apartamento, até à alvorada. Quero adoptar as suas filhas, Jenny. Incumbirei os meus advogados de preparar a papelada para MacPartland assinar. Duvido que ele renuncie às crianças.

 

Penso que o fará. Desejo que elas tenham o meu nome. Quando surgirem filhos nossos, não quero que se sintam intrusas. Prometo ser um bom pai, ao passo que ele é pior do que mau, com a sua indiferença. A propósito, que espécie de anel de compromisso obteve de Kevin? Nenhum. Óptimo. Mandarei adaptar o de Caroline ao seu dedo. Quarta-feira à noite, pelo telefone, Erich anunciou que preparara um encontro com Kevin para a tarde de sexta. Julgo preferível conversarmos a sós acrescentou. Tina e Beth passaram a semana a perguntar quando "Mr. Kruer" voltaria e, sexta-feira à tarde, ao vê-lo, correram a abraçá-lo. Jenny sentiu acudirem-lhe lágrimas de felicidade ao ver a ternura com que ele as tratava. Durante o jantar em The Four Seasons, Erich descreveu o encontro com Kevin. Não foi muito cordial. Receio que estejamos perante um desmancha-prazeres, querida. Não lhe interessas nem as crianças, mas não quer que pertenças a outro homem. No entanto, consegui convencê-lo de que assim seria melhor para todos, ele incluído. Concluiremos as formalidades por volta do fim do mês. Depois, os trâmites da adopção demorarão uns seis meses. Podemos casar a três de Fevereiro, quando haverá cerca de um mês que nos conhecemos. Antes que me esqueça. Fez uma pausa e abriu a pasta, cuja presença no jantar ela estranhara. Vejamos se isto te serve. Era um anel em que se via uma esmeralda. Quando ele lho introduziu no dedo, Jenny olhou com admiração a beleza extraordinária da pedra.

 

Decidi não o alterar esclareceu Erich. Pareceu-me perfeito assim.

 

É lindíssimo.

 

Já agora, arrumemos mais isto. Puxou de um maço de papéis. Quando prepararam os documentos de adopção, os meus advogados insistiram em se ocupar do acordo pré-marital.

 

Acordo pré-marital? repetiu ela, distraidamente. Na verdade, concentrava-se na admiração do anel. Não vivia um sonho. Era tudo bem real. Ia casar com Erich. Quase sorriu ao pensar na reacção de Fran. "Ele é incrivelmente perfeito, Jenny. Bem-parecido, rico, talentoso e adora-te. Não consegue desviar os olhos de ti e é louco pelas crianças. Deve ter algum defeito oculto. Joga, bebe de mais ou trata-se de um bígamo."

 

Sentia-se tentada a repetir essas palavras a Erich, mas conteve-se a tempo. Sabia que o humorismo cáustico de Fran não desfrutava das suas simpatias. Que dizia ele, entretanto?

 

É que sou aquilo a que se costuma chamar... bem... rico. Os meus advogados não se mostravam satisfeitos com a rapidez dos factos ocorridos. Diz aqui simplesmente que, se nos separarmos antes de completados dez anos, os interesses Krueger permanecerão intactos.

 

Se nos separássemos, eu não quereria nada de ti articulou ela, surpreendida.

 

Preferia morrer a perder-te, Jen. Isto não passa de uma formalidade. Erich pousou os documentos ao lado do prato dela. É natural que queiras que os teus advogados examinem tudo antes de assinares. Na verdade, recebi instruções para te recomendar que, mesmo que todas as cláusulas te satisfaçam, não devolvas a papelada antes de passarem quarenta e oito horas.

 

Não tenho advogado.

 

Jenny dirigiu uma olhadela à primeira página, mas meneou a cabeça ante a terminologia legal, que não entendia. Acudiu-lhe, incompreensivelmente, ao pensamento o hábito de Nana de inspeccionar com meticulosidade o talão da mercearia e, uma vez por outra, exclamar, triunfante: "Cobraram-me os limões duas vezes!" Na verdade, ela não assinaria documentos como aqueles sem os examinar minuciosamente.

 

Não quero quebrar a cabeça com termos técnicos que não compreendo acabou por declarar. Onde tenho de assinar?

 

Assinalei os lugares a lápis.

 

Inscreveu o nome apressadamente, ao mesmo tempo que reflectia que os advogados dele deviam recear que o desposava pelo dinheiro que possuía. No fundo, eram os responsáveis da desagradável situação, que, não obstante, lhe produzia uma sensação de desconforto.

 

Por outro lado volveu ele, há também uma provisão no sentido de um fundo para as duas garotas, que herdarão ao completarem vinte e um anos de idade, cujo efeito principia logo após a conclusão dos trâmites da adopção. Existe ainda a cláusula respeitante aos meus bens, que te pertencerão integralmente por minha morte.

 

Não fales sequer nisso, por favor!

 

É uma coisa muito pouco romântica, mas indispensável comentou Erich, guardando os documentos na pasta. Que queres para o nosso quinquagésimo aniversário?

 

Darby e Joan.

 

O quê?

 

São figuras Royal Doulton. Um homem e uma mulher idosos sentados, felizes, ao lado um do outro. Sempre os apreciei particularmente.

 

Na manhã seguinte, ele apresentou-se com uma caixa debaixo do braço. Continha as duas figuras.

 

Ainda mais do que o anel, deixaram Jenny segura quanto ao resto da sua vida.

 

Aprecio devidamente a tua atitude, Jen. Trezentos dólares são uma boa ajuda. Sempre foste uma boa camarada.

 

Bem, juntámos isto juntos. Acho, portanto, que metade do dinheiro te pertence.

 

Quando me lembro de que percorríamos as ruas a meio da noite para recolher o mobiliário que os outros deixavam à porta com o lixo... Recordas-te de que batemos um fulano ao sprint, interessado no sofá? Sentaste-te nele antes que chegasse lá.

 

Sim, recordo-me. Ficou tão furioso que receei que puxasse de uma navalha. Ela fez uma pausa. Preferia que tivesses vindo mais cedo. O Erich deve estar a chegar e duvido que fique contente de te ver aqui.

 

Encontrava-se de pé, no meio do apartamento desmantelado. O mobiliário já fora levado, pois Jenny vendera-o por menos de seiscentos dólares. As paredes, sem as alegres gravuras, apresentavam-se sujas e com fendas. A decrepitude básica do ambiente era revelada cruelmente sem os móveis e a carpeta para encobrirem a sua nudez. As malas novas constituíam os únicos objectos da sala.

 

Kevin usava casaco de camurça dispendioso, e ela reflectia que não surpreendia que estivesse sempre com dificuldades financeiras. Observava-o desapaixonadamente e apercebia-se das leves bolsas abaixo dos olhos. "Mais uma ressaca", pensou. Não sem uma ponta de emoção de culpa, descobriu que sentia mais nostalgia por abandonar o minúsculo apartamento do que pela perspectiva de não voltar a ver o ex-marido.

 

Estás linda, Jen. Esse tom de azul fica-te a matar. Com efeito, Jenny usava um vestido de seda azul de duas peças. Numa das visitas habituais, Erich insistira em vesti-la e às crianças no Saks, indiferente aos protestos dela.

 

Encara o caso deste modo: quando enviarem a conta, já serás minha mulher.

 

Agora, as malas estavam cheias de vestidos, blusas, camisolas, calças e trajos de noite, botas Raphael e sapatos Magli. Passado o embaraço inicial por deixá-lo comprar tudo aquilo antes de serem casados, ela passara umas horas maravilhosas. E que prazer experimentara ao efectuar compras para as filhas!

 

Estragas-me com mimos era o seu refrão constante.

 

Amo-te, Jenny. Cada moeda que gasto é um prazer para mim. Nunca me senti tão feliz.

 

E ajudara-a a escolher a roupa, pois tinha um sentido apurado para o modelo apropriado.

 

Onde estão as miúdas? perguntou Kevin. Gostava de me despedir delas.

 

Fran levou-as a passear. Iremos buscá-las, depois da cerimónia. Ela e Mister Hartley almoçam connosco. A seguir, vamos directamente para o aeroporto.

 

Acho que te decidiste demasiado depressa. Há apenas cerca de um mês que conheces Krueger.

 

É tempo suficiente, quando se tem a certeza... a certeza absoluta dos sentimentos. E ambos temos.

 

Pois eu é que ainda não tenho acerca da adopção. Não quero renunciar às minhas filhas.

 

Já discutimos o assunto. Jenny esforçou-se por dominar a irritação. Aliás, assinaste os documentos. Nunca te preocupaste com elas. Não as sustentas. Na verdade, sempre que te entrevistam, negas ter família.

 

Que pensarão quando crescerem e compreenderem que lhes voltei as costas?

 

Ficar-te-ão gratas por lhes concederes a oportunidade de viver com um pai que as estima. Pareces esquecer que também fui adoptada. E estarei sempre agradecida a quem me abandonou. Ser criada por Nana representou uma experiência inolvidável.

 

Concordo com o que dizes a respeito de Nana, mas não simpatizo com Erich Krueger. Tem qualquer coisa...

 

Kevin!

 

Está bem, pronto. Vou-me embora. Mas terei saudades tuas, Jen. Ainda te amo, como sabes. Ele pegou nas mãos de Jenny. E também amo as minhas filhas.

 

"Final do terceiro acto. Desce o pano", reflectiu ela. "Não há um único par de olhos enxutos em toda a sala."

 

Por favor, Kevin. Não quero que o Erich te encontre aqui.

 

Há uma possibilidade de eu actuar no Minnesota. Estou esperançado em fazer parte do elenco do Guthrie Theater, em Minneapolis. Se tal acontecer, procuro-te.

 

Agradeço-te que não o faças! Abriu a porta do apartamento. Quase ao mesmo tempo, soou o "besouro". Deve ser ele articulou com nervosismo. Que maçada... Não queria que te visse. Vou acompanhar-te à saída.

 

Erich aguardava atrás da porta trancada do átrio, com uma larga caixa envolta em papel de fantasia na mão. Ela viu com desolação que a expressão de antecipação se convertia em contrariedade, ao avistá-la no corredor ao lado de Kevin.

 

Por fim, Jenny abriu a porta exterior para que ele entrasse e apressou-se a explicar:

 

O Kevin passou por cá de fugida. Adeus, Kevin.

 

Os dois homens trocaram olhares acerados, sem proferir palavra. Em seguida, Kevin sorriu e inclinou-se para Jenny, a fim de a beijar na boca, após o que disse em tom de intimidade:

 

Gostei muito de te ver. Obrigado, mais uma vez, Jen. Voltaremos a ver-nos no Minnesota, querida.

 

"Estamos a sobrevoar Green Bay, Wisconsin, a uma altitude de dez mil metros. Aterraremos no Aeroporto de Twin Cities às oito e cinquenta e oito da noite. A temperatura em Minneapolis é de dez graus abaixo de zero. Faz bom tempo e o céu está limpo. Espero que o voo seja do vosso agrado. Renovo os agradecimentos da companhia por terem preferido a Northwest."

 

O voo é do teu agrado? Erich cobriu a mão de Jenny com a sua.

 

Muito respondeu ela, com um sorriso.

 

Os olhos de ambos fixaram-se na aliança de ouro no anelar esquerdo da sua mão. Beth e Tina tinham adormecido. A hospedeira retirara o braço central no assento e as garotas encontravam-se enroscadas juntas, com expressões serenas.

 

Jenny voltou-se para contemplar o tapete de nuvens que flutuava em torno do avião. Em segundo plano na sua felicidade, continuava furiosa com Kevin. Sabia que era um carácter fraco e irresponsável, mas sempre o supusera possuidor de um mínimo de fair-play. Afinal, não passava daquilo a que se podia chamar desmancha-prazeres e conseguira estragar-lhe o dia do casamento.

 

No apartamento, depois de ele se retirar, Erich perguntara:

 

Que estava a agradecer-te? Convidaste-o a aparecer em nossa casa?

 

Jenny tentara elucidá-lo, mas a explicação soara falso aos seus próprios ouvidos.

 

Deste-lhe trezentos dólares? exclamou Erich, incrédulo. Quanto te deve de dinheiro de apoio e empréstimos?

 

Mas não necessito disso, e metade do mobiliário era dele.

 

Ou talvez quisesses certificar-te de que possuía fundos para ir visitar-te?

 

Como podes dizer uma coisa dessas? Ela tentou dissimular as lágrimas, mas não foi a tempo de evitar que ele se inteirasse.

 

Perdoa-me, querida. No fundo, tenho ciúmes dele. Não o posso negar. Sinto repugnância só de pensar que aquele homem alguma vez te possuiu. Não quero que volte a tocar-te sequer com um dedo.

 

Descansa, que não volta. Isso posso prometer-te de certeza. Nem imaginas como lhe estou grata ter assinado os documentos da adopção. Fiz figas até ao último minuto.

 

A voz do dinheiro é muito convincente.

 

Não me digas que lhe pagaste, Erich!

 

Pouco. Dois mil dólares. Mil por cada uma das pequenas. No fundo, foi um preço modesto para nos livrarmos dele.

 

Vendeu-te as filhas! Jenny não logrou dissimular o desdém na voz.

 

Estava disposto a pagar-lhe cinquenta vezes mais.

 

Devias ter-me dito.

 

Não mencionaria o facto, se não quisesse que te restasse algum resíduo de compaixão por ele. Mas esqueçamo-lo. É o nosso dia. E se abrisses a tua prenda de casamento?

 

Oh, Erich!... Era um casaco de pele de marta.

 

Vá, experimenta-o. Ele fez uma pausa, enquanto ela obedecia. Condiz exactamente com o teu cabelo e olhos. Sabes o que me ocorreu, esta manhã?

 

Não.

 

Dormi pessimamente, esta noite murmurou, enlaçando-a. Detesto os hotéis, e a única coisa em que pensava era que, logo, estarias em minha casa. Conheces o poema "Jenny beijou-me"?

 

Não tenho bem a certeza.

 

Só consegui lembrar-me de algumas passagens. "Diz que estás cansada, diz que estás triste..." e depois a triunfante parte final: "Jenny beijou-me." Pensava nisso quando toquei a campainha e, no momento imediato, via Kevin MacPartland beijar-te.

 

Por favor, Erich...

 

Desculpa. Saiamos deste lugar. É deprimente.

 

E Jenny ainda não terminara de lançar um derradeiro olhar ao apartamento, quando ele já a arrastava para a limusina.

 

Mesmo durante a cerimónia, Kevin não lhe abandonara o pensamento, em particular o casamento com ele, em Santa Mónica, quatro anos atrás. Tinham escolhido essa igreja porque fora aí que se celebrara o de Nana. Esta sentava-se na primeira fila, sorridente. Embora não aprovasse o homem que Jen escolhera, tentou esquecer as dúvidas que a assolavam, quando reconheceu que não conseguia dissuadi-la. Que pensaria agora desta cerimónia perante um juiz de paz em vez de um sacerdote? "Eu, Jennifer, aceito-te..." Hesitou. Santo Deus, quase dissera Kevin. Notou a expressão de estranheza nos olhos de Erich e apressou-se a recomeçar a fórmula, agora com firmeza: Eu, Jennifer, aceito-te, Erich... Quem Deus uniu o homem não deve separar. O juiz de paz pronunciara as palavras em tom ssolene. Mas Jenny também as ouvira, no seu casamento com Kevin. Chegaram a Minneapolis um minuto antes da hora prevista. Um largo dístico dizia: "Bem-vindo às cidades geminadas." Ela observou o aeroporto com um misto de interesse e| avidez. Visitei praticamente toda a Europa, mas nunca me aventurei muito para oeste da Pensilvânia declarou,! rindo. Tinha uma imagem mental de aterrar no meio da pradaria. Levava Beth pela mão e Erich tinha Tina nos braços, A primeira olhou para a rampa de desembarque e pediu: Mais avião, mamã.

 

Desconfio que iniciaste um vício, Erich comentou Jenny. Parece que ficaram a gostar de viajar em primeira classe.

 

No entanto, ele não a escutava.

 

Recomendei ao Clyde que mandasse o Joe esperar-nos. Devia estar na porta de chegada.

 

Joe?

 

Um dos criados de lavoura. Apesar de não ser muito inteligente, entende a fundo de cavalos e sabe conduzir bem. Chamo-o sempre para me trazer ao aeroporto, quando não quero deixar o carro aqui... Ah, ei-lo!

 

Jenny viu correr para eles um jovem de cabelo cor de palha e corpo atlético que não aparentava mais de vinte anos, com olhos grandes de expressão inocente e faces rosadas. Vestia irrepreensivelmente um casaco térmico, calça de belbutina preta, botas pesadas e luvas. O boné de motorista permanecia a um lado da cabeça em equilíbrio periclitante. Tirou-o prontamente ao deter-se diante de Erich, e Jenny reflectiu que apresentava um ar apreensivo.

 

Peço desculpa pelo atraso, Mister Krueger. As estradas estão muito perigosas.

 

Onde está o carro? inquiriu Erich, em inflexão brusca. Vou instalar a minha mulher e as crianças e depois tratamos da bagagem.

 

Sim, Mister Krueger. A apreensão acentuou-se. Peço desculpa, mais uma vez...

 

Ora, ora! interpôs ela. Nós é que chegámos um minuto adiantados. Estendeu a mão. Sou Jenny.

 

Chamo-me Joe, Mistress Krueger. O rapaz apertou-a cautelosamente, como se receasse magoá-la. Estão todos ansiosos por conhecê-la. Não fazem outra coisa senão falar na senhora...

 

Acredito cortou Erich, secamente, pousando a mão no braço de Jenny, a fim de se afastarem, seguidos de Joe. Ela apercebeu-se de que o marido estava aborrecido. Talvez não desejasse que se mostrasse tão cordial com o empregado. A sua vida em Nova Iorque, a galeria Hartley e o apartamento na Rua 37 pareceram-lhe subitamente a uma distância incomensurável.

 

O Fleetwood castanho de Erich era um modelo recente e o único carro no parque de estacionamento sem marcas de lama. Jenny perguntou-se se Joe teria perdido preciosos minutos a mandar lavá-lo antes de se dirigir ao aeroporto. Erich instalou-a e a Tina no banco de trás, autorizou Beth a sentar-se no da frente e acompanhou o rapaz para recolherem a bagagem.

 

Transcorridos alguns minutos, abandonavam a área do aeroporto.

 

São quase três horas de viagem até à herdade informou ele. Porque não pousas a cabeça no meu ombro e dormes um pouco? Mostrava-se descontraído, cordial mesmo, como se tivesse esquecido o acesso de irritação.

 

Em seguida, estendeu os braços para Tina, que se lhe sentou confortavelmente sobre os joelhos. Ao ver o contentamento espelhado nas faces da filha, Jenny emergiu das saudades momentâneas.

 

O carro deslizava velozmente no campo e as luzes ao longo da auto-estrada começaram a desaparecer, até que a faixa de rodagem escureceu e tornou-se mais estreita. Joe ligou os faróis e ela descortinou o arvoredo irregular. Por outro lado, o terreno parecia incrivelmente plano. Na verdade, o aspecto geral da paisagem diferia em absoluto da de Nova Iorque. Fora por isso que lhe acudira a horrível sensação de alienação à saída do aeroporto.

 

Necessitava de tempo para meditar, focar devidamente a situação, adaptar-se. Por fim, pousou a cabeça no ombro de Erich e murmurou:

 

De facto, estou cansada.

 

Não queria falar mais, pelo menos naquele momento. Mas como era agradável apoiar-se a ele, saber que o tempo que passassem juntos não voltaria a decorrer sob o signo da pressa e quase frenesim. Erich sugerira que protelassem a lua-de-mel oficial, alegando que ela não tinha a quem deixar as filhas. Uma vez instalados confortavelmente na herdade, procurariam uma pessoa de confiança para cuidar delas e efectuariam uma viagem. "Quantos homens seriam tão previdentes?", ponderou Jenny.

 

Pressentiu que ele a olhava.

 

Estás acordada?

 

Todavia, não respondeu. A mão acariciou-lhe o cabelo e os dedos massajaram suavemente as têmporas. Entretanto, Tina adormecera e respirava com regularidade. No banco da frente, Beth parara de conversar com Joe, pelo que também devia estar a passar pelo sono.

 

Jenny esforçou-se por inspirar e expirar o ar com naturalidade. Era altura de traçar planos, voltar as costas à vida que acabava de abandonar e começar a antecipar a que a aguardava.

 

A casa de Erich não conhecia a mão de uma mulher havia cerca de vinte e cinco anos e era provável que carecesse de uma remodelação maciça. Resultaria interessante observar até que ponto a influência de Caroline persistia.

 

"É curioso", reflectiu. "Nunca penso nela como sendo a mãe de Erich. Sempre como Caroline."

 

Interrogou-se sobre se o pai dele também se lhe referiria assim. Se, em vez de dizer "a tua mãe" a Erich, nas suas evocações, preferisse a expressão "a Caroline e eu costumávamos...".

 

A redecoração constituiria um prazer. Quantas vezes Jenny estudara o apartamento e pensara: "Se tivesse dinheiro, fazia isto, aquilo...!"

 

Que sensação de liberdade experimentaria de manhã, ao acordar e descobrir que não necessitava de se apressar para chegar a horas ao emprego! Levantar-se-ia apenas para estar com as filhas, consagrar-lhes tempo, um tempo verdadeiro, e não o período do final do dia em que a exaustão quase não lhe permitia permanecer de pé. Mesmo assim, já perdera a parte melhor dos seus anos de infância.

 

E ser esposa. Tal como nunca fora um pai digno desse nome para as crianças, Kevin também jamais se pudera considerar um verdadeiro marido. Nos próprios momentos de maior intimidade, ela sentia sempre que ele tinha uma imagem mental de si próprio a interpretar o protagonista romântico de uma produção da MGM. E estava convencida de que lhe fora infiel durante o breve período em que tinham vivido juntos.

 

Erich, ao invés, era um homem maduro. Podia ter casado muito antes, mas preferira aguardar. Aceitava as responsabilidades, ao passo que Kevin se lhes esquivava. No entanto, rodeava-se de certas reservas. Fran dizia que o considerava um pouco misterioso e Jenny sabia que o próprio Mr. Hartley não se sentia à vontade na sua presença. Não compreendia que a aparente circunspecção constituía uma capa da sua natureza tímida inata. "Tenho menos dificuldade em pintar os meus sentimentos do que em os exprimir", confessara-lhe. E havia tanto amor expresso em tudo o que pintava...

 

Apercebeu-se da mão dele que a sacudia levemente.

 

Acorda, querida. Estamos a chegar a casa.

 

Hem?... Ah! Jenny soergueu-se. Adormeci?

 

E fizeste muito bem. Mas olha pela janela. O luar é tão intenso que deves poder ver muita coisa sugeriu Erich, com uma ponta de ansiedade. Estamos na estrada secundária vinte e seis. A nossa herdade principia naquela vedação, de ambos os lados. A parte da direita termina no lago Grey, enquanto a outra se perde à distância. Só o arvoredo ocupa uns oitocentos quilómetros quadrados e acaba no vale que comunica com o rio Minnesota. Presta agora atenção, se queres ver as construções exteriores e as instalações onde alimentamos o gado durante o Inverno. A seguir, ficam os celeiros, os estábulos e o velho moinho. Depois da curva, avista-se a ala oeste da casa, situada naquele outeiro.

 

Jenny colou o rosto à vidraça da janela. O que vira de algumas telas dele permitira-lhe inteirar-se de que o exterior da casa era de tijolos vermelhos, mas de uma tonalidade esbatida. Todavia, nada do que observara ou Erich dissera a preparara para o que se lhe deparou.

 

Mesmo vista de lado, não subsistiam dúvidas de que se tratava de uma mansão. Tinha cerca de vinte e cinco metros de comprimento e dois pisos, estando iluminadas as graciosas janelas do rés-do-chão. O luar convertia o telhado e as empenas em tiaras reluzentes, enquanto os campos cobertos de neve brilhavam como camadas de arminho branco, para emoldurar a estrutura e realçar as suas linhas fluidas.

 

Erich!

 

Agrada-te?

 

Se me agrada? Mas é deslumbrante! Acho-a duas, não, cinco vezes maior do que supunha. Porque não me preveniste?

 

Queria surpreender-te. Indiquei ao Clyde que a iluminasse para a tua primeira impressão. Vejo que não se esqueceu.

 

Jenny arregalava os olhos, enquanto tentava absorver todos os pormenores, à medida que o carro rolava na estrada. Um terraço de madeira branco com colunas estreitas principiava na porta lateral e prolongava-se para as traseiras da casa, e ela reconheceu-o como sendo o enquadramento de Recordação de Caroline. A própria cadeira de balouço ainda existia, única peça de mobiliário visível. O vento fazia-a oscilar com suavidade.

 

O carro virou à esquerda e transpôs o portão aberto. Um dístico HERDADE KRUEGER era iluminado por torcheres que encimavam os postes. O veículo seguiu pelo caminho de acesso entre o campo nevado. O arvoredo começava à direita, numa densa floresta de ramos desnudos e esqueléticos ao luar. Por fim, cortou à esquerda e completou o arco, para se imobilizar diante dos largos degraus de pedra.

 

A porta dupla maciça e esculpida era iluminada pelo clarão proveniente da janela mais próxima. Joe apeou-se prontamente, para abrir a portinhola do lado de Jenny, e Erich confiou-lhe Tina, que continuava a dormir, dizendo:

 

Leva as crianças para dentro.

 

Em seguida, pegou na mão de Jenny, conduziu-a ao topo dos degraus e abriu a porta, após o que se deteve e fitou-a nos olhos.

 

Gostava de te poder pintar neste momento. Chamaria ao quadro Regresso ao Lar. O teu longo e adorável cabelo preto, os olhos tão ternos que me contemplam... Amas-me, não é verdade, Jenny?

 

Sim, amo-te, Erich respondeu ela, num murmúrio.

 

Promete que nunca me abandonarás. Jura-o.

 

Como podes sequer pensar uma coisa dessas?

 

Promete-me, por favor. Nunca te abandonarei.

 

Ela rodeou-lhe o pescoço com os braços, reflectindo que a necessidade dele era enorme. Ao longo de todo o mês, estivera preocupada com o aspecto unilateral do seu relacionamento: ele o dador e ela a recipiente. Verificava agora, com gratidão, que a situação não se revestia da simplicidade que supusera.

 

Ele ergueu-a nos braços.

 

Beija-me. Agora sorria e, enquanto a levava para dentro, beijava-lhe os braços, primeiro como que exploratoriamente e depois com emoção crescente. Oh, Jenny!

 

Pousou-a no vestíbulo, onde se viam paredes delicadamente desenhadas, um lustre de cristal e ouro e uma escadaria de corrimão lavrado que conduzia ao primeiro andar. Havia numerosas telas penduradas, com a assinatura de Erich no canto direito. Por um momento, Jenny não conseguia articular uma palavra.

 

Não corram advertiu Joe, que transpunha os degraus da entrada com as crianças.

 

No entanto, a sesta revigorara-as e estavam ansiosas por explorar domínios desconhecidos. Sem as perder de vista, Jenny escutava, enquanto Erich começava a mostrar-lhe a casa. A sala principal encontrava-se à esquerda do vestíbulo. Ela esforçava-se por absorver tudo o que ele lhe descrevia acerca das peças individuais. Como uma criança que mostrava os seus brinquedos, Erich indicou o étagère de mogno, em forma de rim e com base de mármore.

 

É do princípio do século dezoito. Candeeiros de petróleo, agora electrificados, ladeavam um sofá de espaldar elevado. O meu avô mandou fazer este móvel na Áustria. Os candeeiros são da Suíça.

 

Recordação de Caroline achava-se dependurado por cima do sofá. Uma lâmpada que encimava a tela revelava o rosto mais intimamente do que parecia na vitrina da galeria. Afigurava-se a Jenny que, sob aquela luz e naquela sala, a sua parecença com Caroline se acentuava. A mulher do quadro dava a impressão de a olhar directamente.

 

Lembra um ícone murmurou ela. Sinto que os seus olhos me seguem.

 

Convenço-me sempre disso. Julgas possível?

 

Um imenso órgão de pau-rosa atraiu imediatamente a atenção das crianças, que subiram para o banco forrado a veludo, a fim de premirem as teclas. Jenny viu Erich estremecer quando a fivela do sapato de Tina riscou uma das pernas do banco e apressou-se a retirar as filhas de lá, indiferente aos protestos.

 

Ainda não vimos o resto da casa recordou-lhes.

 

A sala de jantar era dominada por uma mesa de banquetes com espaço suficiente para doze cadeiras, em cada um de cujos espaldares estava esculpido um coração.

 

Havia uma colcha na parede mais distante, estendida como se fosse uma tapeçaria. Composta inteiramente de hexágonos em que se viam motivos floridos, conferia um ar mais desanuviado ao aposento austero, se bem que admirável.

 

Foi confeccionada por minha mãe explicou Erich. Tem as suas iniciais.

 

Todas as paredes da espaçosa biblioteca estavam cobertas por estantes de nogueira e cada prateleira continha uma fiada uniforme de volumes.

 

Vejo que me vou divertir! exclamou Jenny, lendo alguns dos títulos. Mais ou menos quantos livros tens?

 

Mil cento e vinte e três.

 

Sabes o número exacto?

 

Com certeza.

 

A cozinha era igualmente grande. A parede do lado esquerdo continha os utensílios. Uma mesa redonda e cadeiras de carvalho encontravam-se precisamente no centro. Na parede oposta, o velho fogão de ferro e cromoníquel parecia capaz de aquecer toda a casa. Um berço de madeira junto dele achava-se cheio de lenha. Um sofá com gravuras coloniais e cadeira a condizer permaneciam em ângulo recto entre si. Ali, como em todos os outros aposentos que ela vira, não se vislumbrava um pormenor insólito.

 

É um pouco diferente do teu apartamento, hem? Ele exprimia-se com inequívoco orgulho. Compreendes agora porque não te descrevi nada antecipadamente. Queria saborear a tua reacção.

 

Pelo menos, é maior admitiu Jenny, sentindo um impulso irresistível para defender o apartamento. Quantas divisões há?

 

Vinte e duas. Vamos dar só uma olhadela superficial aos quartos. Completaremos a inspecção amanhã.

 

Erich colocou o braço em torno dela, enquanto subiam a escada, num gesto reconfortante que contribuiu para aliviar parte do constrangimento que a percorria. "Seja", concedeu para consigo. "É como se efectuasse uma visita guiada: olha, mas não toques em nada."

 

O quarto principal ocupava um largo canto da frente da casa. Mobiliário de mogno escuro brilhava com uma ténue patina de veludo. A imponente cama de quatro colunas estava coberta por uma colcha de brocado cor de morango, que se repetia na canópia. À esquerda da cómoda, via-se uma saboneteira de cristal, que antecedia um conjunto de objectos de uso pessoal que pertencera à bisavó de Erich.

 

Caroline nunca usava perfume, mas adorava o cheiro do pinheiro explicou ele, indicando os sabonetes. São importados da Inglaterra.

 

Sabonete de pinheiro. Era o odor que Jenny detectara no instante em que entrara no quarto tão subtil que se tornava quase impossível distingui-lo.

 

É aqui que eu e a Tina dormimos, mamã? quis saber Beth.

 

Não, tontinha. Erich soltou uma gargalhada. Vocês ficam no quarto do outro lado do corredor. Mas querem ver o meu, primeiro? É ao lado deste.

 

Jenny acompanhou-o, supondo que se lhe deparariam os aposentos de um homem solteiro no lar da família, empenhada em conhecer o gosto pessoal do marido no âmbito da decoração, pois quase tudo o que vira até ali parecia ter-lhe sido deixado.

 

Erich abriu a porta ao lado do quarto principal, cuja luz já se encontrava acesa, como nos anteriores, e ela viu uma cama individual de bordo coberta com uma colcha colorida. Uma escrivaninha, parcialmente aberta, revelava lápis, blocos de papel para desenhar e outros utensílios da mesma natureza. A estante de três prateleiras continha o Livro do Conhecimento. Em cima da cómoda, havia um trofeu desportivo. Uma cadeira de balouço de espaldar elevado ocupava parte do lado esquerdo e um stick de hóquei fora deixado apoiado à parede da direita.

 

Era o quarto de uma criança de dez anos.

 

Não voltei a dormir aqui depois da morte da minha mãe esclareceu Erich. Em criança, gostava de estar deitado e ouvi-la mover-se no quarto. Na noite do acidente, não fui capaz de vir para cá. Para me acalmar, o meu pai e eu mudámo-nos para os dois quartos das traseiras e nunca voltámos para aqui.

 

Queres dizer que ninguém dormiu neste quarto nem no principal durante cerca de vinte e cinco anos?

 

Exacto. Mas não os fechámos. Limitámo-nos a não os utilizar mais. Em todo o caso, espero que, um dia, o nosso filho se instale aqui, querida.

 

Jenny sentiu-se aliviada ao regressar ao piso inferior. Não obstante a atmosfera atraente, havia algo de inquietante no quarto de infância de Erich.

 

Temos fome, mamã lembrou Beth, tocando-lhe no braço.

 

É claro, desculpem. Vamos para a cozinha. Beth começou a atravessar rapidamente o longo corredor, com Tina no encalço. Espera pela tua irmã.

 

Não corram advertiu Erich.

 

E não partam nada! recomendou Jenny, pensando nas delicadas peças de porcelana da sala.

 

Então, que achas? Ele ajudou-a a despir o casaco de marta e pousou-o no braço.

 

A forma de pronunciar a pergunta tinha qualquer coisa de preocupante, como se ansiasse por escutar palavras de aprovação, e ela respondeu como faria a uma interrogação similar de Beth:

 

É tudo perfeito. Adoro-o.

 

O frigorífico estava bem abastecido. Jenny aqueceu leite e fez sanduíches de presunto.

 

Há champanhe expressamente para nós informou Erich, pousando o braço no espaldar da cadeira dela.

 

Estou preparada para o apreciar dentro de instantes. Jenny sorriu-lhe e indicou as crianças com um movimento de cabeça. Assim que elas terminarem.

 

Preparavam-se para abandonar a mesa quando soou a campainha da porta, e a expressão de perplexidade de Erich converteu-se em satisfação no momento em que foi abrir.

 

Mark! Entra, homem!

 

O visitante enchia a entrada. Os cabelos louros quase tocavam na parte superior e o pesado parka não conseguia encobrir por completo os ombros musculosos, enquanto os olhos azuis penetrantes dominavam o rosto voluntarioso.

 

Este é o Mark Garrett, Jenny. Deves lembrar-te de o ter mencionado mais de uma vez.

 

Mark Garrett. Dr. Mark Garrett, o veterinário e melhor amigo de Erich desde a infância.

 

Somos como irmãos acrescentou Erich. Na verdade, se me tivesse acontecido alguma coisa antes de casar, ele herdaria tudo.

 

Jenny estendeu a mão ao recém-chegado e sentiu a dele apertar-lha, fria e vigorosa.

 

Eu sempre disse que tinha bom gosto comentou ele. Bem-vinda ao Minnesota, Jenny.

 

Ela simpatizou com Mark imediatamente.

 

Apesar do pouco que vi, acho isto encantador. Apresentou as filhas, que o cumprimentaram com visível acanhamento, ao mesmo tempo que Beth dizia:

 

És muito alto...

 

Ele recusou o café que lhe ofereciam e voltou-se para Erich.

 

Lamento aparecer numa altura em que devem querer estar sós, mas preferi que te inteirasses por meu intermédio. O Barão torceu um tendão gravemente esta tarde.

 

Referia-se ao cavalo de Erich, que este já mencionara a Jenny, esclarecendo: "É um puro-sangue de reprodução perfeita, embora nervoso e possuidor de mau génio. Podia treiná-lo para as corridas, mas prefiro tê-lo para mim."

 

Fracturou algum osso? perguntou calmamente.

 

Não.

 

Que aconteceu? Mark hesitou.

 

A porta do estábulo estava aberta e ele saiu. Tropeçou quando pretendia saltar a vedação de arame farpado do campo leste.

 

A porta do estábulo estava aberta? As sílabas eram marteladas com precisão. Quem cometeu esse descuido?

 

Joe, o motorista. Não admirava, pois, que se mostrasse tão apreensivo, reflectiu Jenny. Olhou as crianças, sentadas tranquilamente à mesa. Momentos antes, ansiavam por abandoná-la e percorrer a casa, ao passo que agora dir-se-ia que pressentiam a alteração operada na atmosfera a cólera que Erich não se preocupava em dissimular.

 

Recomendei-lhe que não discutisse o assunto contigo antes de eu te falar volveu Mark. O Barão há-de restabelecer-se num par de semanas. Creio que o Joe não fechou a porta convenientemente. Estima muito esse cavalo para não ser cuidadoso.

 

Segundo parece, ninguém da família dele é pouco cuidadoso, deliberadamente retorquiu Erich. Mas conseguem sê-lo. Se o Barão ficar aleijado...

 

Não fica, garanto-te. Aliás, já o tratei. Porque não o vais ver, se tens alguma dúvida?

 

É o melhor, de facto.

 

Abriu o armário da cozinha para puxar da capa, e a expressão que exibia não agourava nada de tranquilizador.

 

Mais uma vez, seja bem-vinda, Jenny disse Mark, preparando-se para o seguir. As minhas desculpas por ser portador de más notícias. Quando a porta se fechou atrás deles, ela ouviu-o proferir com serenidade: Podes crer que não há motivo para alarme, Erich.

 

Só depois de um banho quente e leitura de uma história as crianças começaram a acalmar, e ela retirou-se do quarto em bicos de pés, exausta. Juntara as camas, ficando uma encostada à parede, e impelira uma arca para o lado da outra. O aposento que, uma hora antes, estivera em perfeita ordem constituía agora um exemplo indiscutível de desarrumação. As malas estavam abertas no chão, pois Jenny esquadrinhara-as à procura dos pijamas e cobertor favorito de Tina, mas não perdera tempo a arrumar o resto. Achava-se demasiado cansada e podia ficar tudo para de manhã. Erich preparava-se para entrar quando ela abriu a porta e enrugou levemente a fronte ao aperceber-se do caos que imperava no quarto.

 

Deixemos isso agora, querido murmurou Jenny, em voz fatigada. De facto, o cenário não é atraente, mas arrumarei tudo pela manhã.

 

Pareceu-lhe que ele efectuava um esforço para se exprimir com naturalidade ao replicar:

 

Não era capaz de dormir se não ficasse tudo arrumado. Não necessitou de mais de breves minutos para esvaziar as malas e distribuir o conteúdo pelas gavetas de diferentes móveis. Ela desistiu de o ajudar. Se as filhas acordassem, teriam grande dificuldade em voltar a adormecer, mas sentia-se subitamente sem energias para protestar. Por fim, Erich colocou as duas camas nas posições primitivas e considerou-se satisfeito. Saíram para o corredor e ele enlaçou-a.

 

Compreendo que foi um dia extraordinariamente longo para ti, querida. Deixei a banheira a encher e creio que já deve estar em condições. Entretanto, preparei um tabuleiro para nós. Tenho champanhe no frigorífico e um frasco do melhor caviar que consegui encontrar no Bloomingdale's. Que te parece o programa?

 

Jenny sentiu-se intimamente envergonhada com a leve irritação que lhe acudira e sorriu.

 

És demasiado bondoso para seres real.

 

O banho contribuiu para lhe absorver parte do cansaço. Apercebia-se agora de que Erich se abstivera propositadamente de lhe descrever a casa. Que fora que dissera? Bem, coisas mais ou menos como: "Pouco foi mudado desde a morte de Caroline. Creio que a redecoração se limitou a substituir os cortinados do quarto de hóspedes."

 

Seria porque nada se desgastara ao longo dos anos, ou porventura ele desejava preservar religiosamente intacto tudo o que lhe recordava a presença da mãe? O odor que esta apreciava ainda pairava no quarto principal. As escovas, pentes e limas de unhas permaneciam em cima do toucador.

 

O pai de Erich cometera um erro crasso ao permitir que o quarto de infância deste se conservasse intacto, congelado no tempo, como se o crescimento tivesse parado naquela casa após a morte de Caroline. A ideia provocou-lhe um certo desconforto e tratou de a afastar do espírito. "Pensa antes em Erich e em ti", decidiu. "Esquece o passado. Lembra-te de que agora pertencem um ao outro." E sentiu as pulsações acelerarem-se.

 

Pensou na camisa de dormir e roupão novos que comprara no Bergford Goodman com o dinheiro do último ordenado que recebera. O espelho que encimava o lavatório estava embaciado e ela, que começara a secar-se, fez uma pausa e limpou-o com a toalha. Considerava que, no meio de tanta coisa nova, necessitava de se ver, encontrar a sua própria imagem. Mas não foi os seus olhos azul-esverdeados que viu reflectidos.

 

Era o rosto de Erich, que abrira a porta em silêncio, sem que se apercebesse. Jenny deu meia volta e cobriu o peito instintivamente com a toalha, mas acabou por largá-la.

 

Assustaste-me articulou, procurando manter a voz firme. Não te ouvi entrar.

 

Pensei que quisesses o roupão, querida. Aqui o tens. E estendeu-lhe uma camisa de dormir de cetim água-

 

-marinha, com decote pronunciado à frente e atrás.

 

Mas tenho uma nova. Compraste-a para mim?

 

Não, era de Caroline. Ele passou a ponta da língua pelos lábios, com uma ponta de nervosismo, ao mesmo tempo que exibia um sorriso estranho. Veste-a esta noite, por favor acrescentou, quase em tom de súplica.

 

Jenny conservou os olhos colados à porta da casa de banho, sem saber o que fazer. "Não quero vestir a camisa de dormir de uma mulher que morreu", pensou, num débil protesto. No entanto, o tecido tinha um toque suave e, de certo modo, convidativo.

 

Erich retirara-se quase com brusquidão, depois de lha entregar. Ela perguntou-se se deveria antes vestir a sua e limitar-se a dizer que a preferia.

 

Recordou-se da sua expressão quando lhe oferecera uma peça de vestuário da mãe.

 

Talvez não lhe servisse. Nessa eventualidade, o problema ficaria resolvido por sua natureza. No entanto, quando a provou, viu-se forçada a reconhecer que parecia ter sido feita para si. O decote em V acentuava os seios firmes. Olhou-se ao espelho. A condensação evaporava-se e escorriam pequenos sulcos de água. Devia ser por isso que ela parecia diferente. Ou dar-se-ia o caso de a tonalidade de água-marinha da camisa realçar o verde dos seus olhos?

 

Não podia alegar que não lhe servia, porque, na realidade, até assentava muito bem. "Mas não quero usá-la", persistiu. "Não me sinto como se fosse eu, dentro dela."

 

Preparava-se para a despir, quando soaram leves pancadas na porta. Erich vestia pijama de seda cinzento por baixo de um roupão a condizer. Apagara todas as luzes excepto a da mesa-de-cabeceira, e os seus cabelos dourados constituíam um contraponto do clarão do candeeiro.

 

A colcha de brocado fora retirada da cama e os lençóis encontravam-se puxados para baixo.

 

Ele segurava duas taças de champanhe e entregou uma a Jenny. Em seguida, dirigiram-se para o centro do quarto e declarou:

 

Estive a ler o poema, para decorar a parte que não recordava. É assim: "Jenny beijou-me quando nos encontrámos. Saltando da cadeira em que se sentava; É altura, ladrão que gostas de juntar Doces à tua lista, de acrescentar este: Diz que estás cansado, diz que estás triste, Diz que a saúde e a riqueza te esqueceram, Diz que estás a envelhecer, mas não deixes de dizer "Jenny beijou-me"."

 

Ela sentiu as lágrimas quererem irromper. Era a sua noite de núpcias. Aquele homem que lhe oferecera tanto amor e que ela tanto amava era seu marido. Aquele belo quarto pertencia-lhe. Que importava a camisa de dormir que vestia? O pequeno sacrifício justificava-se plenamente. Por último, quando lhe retirou a taça da mão e a pousou ao lado da sua, abraçaram-se com arrebatamento.

 

Jenny continuava acordada, muito depois de Erich ter adormecido. Estava habituada aos ruídos da cidade que faziam parte integrante da noite de Nova Iorque e agora tinha dificuldade em se adaptar ao silêncio absoluto.

 

O quarto era irrepreensível e extremamente confortável, mas parecia privado de vida.

 

Ele era um amante algo tímido, terno e atencioso. Ela sempre suspeitara da existência de emoções muito mais profundas do que as despertadas por Kevin, e verificava agora que não se equivocara.

 

Antes de Erich adormecer, tinham conversado.

 

Kevin foi o único homem antes de mim?

 

Sim, o único, querido.

 

Para mim, nunca houve ninguém.

 

Quereria dizer que nunca amara ou não dormira com outra? Seria possível?

 

Por fim, o sono começou a dominá-la. A claridade principiava a penetrar no quarto, quando o sentiu mover e deslizar da cama.

 

Erich...

 

Desculpa, não queria acordar-te. Costumo dormir pouco. Dentro de momentos, vou para a cabana pintar. Voltarei cerca do meio-dia.

 

Apercebeu-se vagamente de que a beijava na fronte e tornou a adormecer, depois de murmurar:

 

Amo-te.

 

Quando voltou a acordar, a claridade penetrava a jorros. Levantou-se apressadamente e acercou-se da janela, vendo, surpreendida, que Erich desaparecia no bosque.

 

O cenário parecia extraído de uma tela. As ramagens das árvores continham uma capa de neve congelada, que também cobria o telhado do celeiro mais perto da mansão. Ao longe, nos campos, Jenny avistou algum gado.

 

Volveu os olhos para o relógio de porcelana em cima da mesa-de-cabeceira. Oito horas. As filhas não tardariam a acordar e talvez estranhassem encontrar-se num quarto diferente do habitual.

 

Abriu a porta e começou a atravessar o corredor, descalça. Ao passar diante do antigo quarto de Erich, espreitou e deteve-se. Os lençóis estavam afastados e o travesseiro apresentava a depressão característica de que fora utilizado. Entrou e pousou a mão na cama. Ainda estava morna. Ele levantara-se e fora para ali. Porquê?

 

"Como dorme pouco, provavelmente não quis acordar-me com as voltas que deve dar na cama", reflectiu. "Está habituado a dormir só. Talvez quisesse ler."

 

Mas dissera que não voltara a dormir naquele quarto desde os dez anos.

 

Soaram passos leves no corredor.

 

Mamã... mamã...

 

Jenny apressou-se a sair e abriu os braços. Beth e Tina, de olhos brilhantes após um sono reconfortante, correram para ela.

 

Estávamos à tua procura disse Beth, em tom acusador.

 

Gosto disto declarou Tina.

 

E recebi o teu presente anunciou Beth.

 

Um presente? Que é, querida?

 

Eu também! exclamou Tina. Obrigada, mamã.

 

Estavam nas nossas almofadas. Olha.

 

Jenny arregalou os olhos, ao mesmo tempo que abafava um som de espanto. Cada uma das filhas tinha na mão um pequeno sabonete redondo de pinho.

 

Vestiu as filhas com blusas listradas e fatos-macaco de belbutina, e Beth anunciou com firmeza:

 

Não há escola.

 

Pois não assentiu Jenny, alegremente.

 

Em seguida, dirigiram-se ao rés-do-chão. A empregada da limpeza acabava de chegar uma mulher de ombros e braços possantes, expressão grave, como se nunca sorrisse, e olhar desconfiado.

 

Suponho que é a Elsa. Jenny estendeu-lhe a mão. Eu sou... Desejava dizer "a Jenny", mas recordou-se da contrariedade de Erich com a sua excessiva familiaridade em relação a Joe. Sou Mistress Krueger. E apresentou as filhas.

 

Elsa inclinou a cabeça e articulou, à guisa de justificação:

 

Faço o que posso.

 

Já me dei conta. A casa está impecável.

 

Diga a Mister Krueger que aquela nódoa no papel da sala de jantar não fui eu que a fiz. Talvez ele tivesse tinta na mão.

 

Não dei por nada.

 

Então, eu mostro-lha.

 

Com efeito, havia uma mancha no papel da parede da sala de jantar, perto da janela, e Jenny observou-a com curiosidade.

 

Quase não se vê sem microscópio.

 

A mulher entrou na sala de estar para iniciar a limpeza e Jenny e as crianças tomaram o pequeno-almoço na cozinha. No final, ela foi buscar os livros com gravuras para colorir e os lápis e propôs:

 

Deixem-me tomar uma chávena de café com leite sossegada e depois vamos dar uma volta.

 

Precisava de uma pausa para reflectir. Somente Erich podia ter colocado os sabonetes de pinho na cama das crianças. Em todo o caso, não havia nada de censurável no facto de entrar no quarto para ver se se encontravam bem e apreciar particularmente aquele perfume. Por fim, encolheu os ombros, esvaziou a chávena e preparou as filhas para enfrentar a temperatura decerto baixa.

 

Na verdade, fazia frio, mas sem vento. Erich prevenira-a de que o Inverno do Minnesota podia passar bruscamente de agreste a implacável. "Este ano, os elementos parecem apostados em facilitar-te a vida", dissera. "É apenas ríspido."

 

Jenny hesitou antes de sair. Ele talvez desejasse mostrar-lhe os estábulos e celeiros e apresentá-la ao pessoal.

 

Vamos por aqui terminou por sugerir.

 

Levou Tina e Beth para as traseiras, em direcção aos campos a leste da propriedade, caminhando na neve mole até que a mansão quase desapareceu ao longe. Quando se aproximavam da estrada de piso irregular que constituía o limite da herdade, reparou numa área vedada e compreendeu que se tratava do cemitério da família. Com efeito, descortinou meia dúzia de monumentos de granito por entre as estacas brancas.

 

Que é aquilo, mamã? perguntou Beth.

 

Ela abriu a cancela e entraram, após o que se moveu de uma para outra das sepulturas, ao mesmo tempo que lia as inscrições. Erich Fritz Krueger, 1843-1913, e Gretchen Krueger,

1847-1915. Deviam ser os bisavós de Erich. Duas crianças: Marthea, 1875-77, e Amanda, 1878-90. Os avós, Erich Lars e Olga Krueger, ambos nascidos em 1880; ela falecera em 1941 e ele em 1948. Um bebé, Erich Hans, que vivera oito meses, em

1911. "Tanta dor, tantos desgostos...", cismou Jenny. Duas garotas de tenra idade perdidas numa geração e um bebé na seguinte. Como conseguiriam as pessoas suportar semelhante amargura? No monumento seguinte, encontrava-se Erich John Krueger, 1915-1979, o pai de Erich.

 

Havia uma sepultura a sul do recinto, tão distanciada das restantes quanto o espaço permitia, e ela compreendeu que era a que procurava, ao ler a inscrição: Caroline Bonardi Krueger, 1924-1956.

 

O pai e a mãe de Erich não estavam sepultados juntos. Porquê? Os outros monumentos apresentavam os efeitos da intempérie, enquanto esse dir-se-ia ter sido limpo recentemente. O afecto de Erich pela mãe seria extensivo a um cuidado extraordinário pela sua sepultura? Jenny experimentou uma ponta de ansiedade inexplicável. Por fim, tentou sorrir.

 

Vamos, meninas. A última a chegar é pateta!

 

Com estas palavras e uma risada, começou a correr através do campo, seguida das filhas. Em dada altura, permitiu que a alcançassem e fingiu que se esforçava para permanecer a par delas, até que pararam para recobrar o alento. As crianças, de faces coradas e olhos brilhantes, mostravam-se contentes com o convívio.

 

Vamos até àquele outeiro e depois voltamos para trás indicou Jenny.

 

No entanto, quando chegaram ao topo, descobriu com admiração a existência de uma casa de campo de dimensões apreciáveis no outro lado, e concluiu que devia ser o alojamento do encarregado da herdade.

 

Quem mora ali? perguntou Beth.

 

Pessoas que trabalham para o papá.

 

Naquele momento, a porta abriu-se, para dar passagem a uma mulher, que lhes acenou, numa indicação óbvia que desejava que se aproximassem.

 

Bem, façamos-lhe a vontade disse Jenny, pegando na mão de cada uma das filhas. Parece que vamos conhecer os nossos primeiros vizinhos.

 

Entretanto, afigurava-se-lhe que a mulher as olhava com demasiada curiosidade. Indiferente ao frio, conservava-se à entrada, com a porta bem aberta. A princípio, devido ao seu aspecto frágil e corpo algo encurvado, Jenny julgou que era mais velha. Mas, à medida que se acercava, calculou que devia ter uns cinquenta e cinco anos. Os cabelos castanhos apresentavam várias soluções de continuidade grisalhas e achavam-se puxados para o alto da cabeça, numa espécie de nó despretensioso preso com ganchos. Os óculos sem aros ampliavam os olhos cinzentos de expressão melancólica, e usava uma camisola grossa e longa por cima de calças de ganga, indumentária que acentuava os ombros ossudos e extrema magreza.

 

Não obstante, havia vestígios de beleza no rosto, e a boca, descaída nos cantos, tinha lábios bem desenhados. Quando Jenny se apresentou e às crianças, a mulher continuou a olhá-la com curiosidade.

 

É tal e qual como o Erich me disse proferiu, em voz baixa e algo nervosa. "Rooney quando conhecer a Jenny, pensará que tem a Caroline na sua frente", foram as suas palavras. Mas não queria que eu ventilasse o assunto. E efectuava um esforço visível para se acalmar.

 

Ele também me falou de si. Jenny estendeu-lhe ambas as mãos impulsivamente. Suponho que o seu marido é o encarregado da propriedade? Ainda não o vi.

 

Todavia, a mulher pareceu não a ouvir e perguntou:

 

É de Nova Iorque?

 

Exacto.

 

Que idade tem?

 

Vinte e seis.

 

A nossa filha Arden tem vinte e sete. O Clyde diz que foi para Nova Iorque. Talvez se encontrassem? A pergunta foi formulada quase com ansiedade.

 

Não creio, mas não admira porque Nova Iorque é enorme. A que se dedica? Onde mora?

 

Não sei. Arden saiu de casa há dez anos. Não precisava de fugir. Bastava que dissesse: "Quero ir para Nova Iorque, mãe." Nunca lhe neguei nada, embora o pai fosse um pouco severo com ela. Provavelmente, calculou que não a deixaria partir, por ser tão nova. Nunca imaginei que estava tão desejosa de seguir para lá. Julgava-a feliz connosco.

 

O olhar da mulher fixava-se agora na parede. Dir-se-ia que imergira numa espécie de devaneio, como se tentasse justificar algo que explicara numerosas vezes no passado.

 

Era a nossa única filha acrescentou, após uma pausa. Esperámos muito tempo até que apareceu. Nunca vi um bebé tão bonito e ávido. Compreende o que quero dizer, sem dúvida. Foi sempre muito activa, desde que nasceu. Devido a isso sugeri dar-lhe o nome de Arden, abreviatura de "ardente".

 

Beth e Tina encolhiam-se junto da mãe. Havia qualquer coisa na mulher, no olhar fixo e ligeiro tremor, que as assustava.

 

"Meu Deus...", pensava Jenny. "A única filha, e há dez anos que não sabe dela. Eu enlouquecia."

 

E ela. Rooney indicou uma fotografia emoldurada na parede. Foi tirada duas semanas antes de partir.

 

Jenny observou a foto de uma adolescente sorridente, robusta, com cabelo louro anelado.

 

Talvez casasse e já tenha filhos volveu a mulher. Penso muito nela. Foi por isso que, quando a vi ao longe com as crianças, supus que podia ser a Arden.

 

Lamento...

 

Não tem importância. Mas agradecia-lhe que não dissesse ao Erich que falámos da minha filha. O Clyde não se cansa de repetir que ele deve estar farto de me ouvir repisar os casos da Arden e Caroline. Segundo o meu marido, deveu-se a isso o Erich ter dispensado os meus serviços na mansão, quando o pai morreu. E olhe que eu cuidava da casa como se fosse minha. Nós viemos para cá na altura do casamento de John e Caroline. Ela gostava da minha maneira de trabalhar e, mesmo depois de morrer, continuei a ter tudo preparado, como se pudesse regressar a qualquer momento. Mas venham para a cozinha. Fiz rosquinhas doces e deixei o café a aquecer.

 

Na realidade, Jenny já notara o aroma inconfundível. Sentaram-se em torno da mesa de mármore redonda na acolhedora cozinha, e Tina e Beth não se fizeram rogadas quando convidadas a servirem-se dos doces, que impeliram com leite morno.

 

Lembro-me de quando o Erich tinha a idade delas persistiu Rooney. Fazia rosquinhas destas para ele a cada momento. Eu era a única pessoa a quem Caroline o confiava, quando ia às compras. Cheguei a considerá-lo meu próprio filho. E ainda hoje penso assim, suponho. A Arden só nasceu dez anos após o meu casamento, mas ela teve o Erich logo a seguir ao seu. sCerca de um ano, salvo erro. Nunca vi um rapaz que estimasse tanto a mãe. Sim, você parece-se muito com ela.

 

Fez uma pausa para voltar a encher a chávena de Jenny.

 

E o Erich tem sido muito bondoso para nós. Gastou dez mil dólares com detectives particulares para tentar localizar a Arden.

 

Jenny admitiu para consigo que era um gesto próprio do marido. O relógio na prateleira por cima do lava-loiças deu o meio-dia e ela levantou-se. Erich já devia estar em casa e apetecia-lhe, mais que nunca, achar-se junto dele.

 

Lamento, mas não posso demorar-me mais, Mistress Toomis. Espero que venha visitar-nos em breve.

 

Trate-me por Rooney. Toda a gente o faz. Clyde não quer que eu apareça na mansão, mas eu corto-lhe as voltas. Passo por lá amiúde, para me certificar de que está tudo em ordem. Volte sempre que lhe apetecer. Gosto de ter companhia.

 

O sorriso operou uma transformação notável no semblante da mulher. Por instantes, os sulcos de amargura desapareceram, e Jenny reconheceu que não se equivocara ao imaginar que, outrora, Rooney Toomis fora atraente.

 

Ela insistiu em que levassem um prato de frituras, com o esclarecimento:

 

São óptimas para a merenda. Quando abriu a porta, levantou a gola da camisola. Acho que vou começar a procurar a Arden acrescentou, de novo numa inflexão indefinida.

 

Os raios solares produziam reflexos intensos nos campos nevados e, quando avistou de novo a mansão, que dir-se-ia irradiar um fulgor especial, Jenny pensou: "O meu lar!" Enquanto se aproximava, com as filhas pela mão, perguntava-se se Rooney tencionava percorrer a vasta propriedade à procura de Arden.

 

É uma senhora muito simpática concedeu Beth.

 

De facto assentiu Jenny. Temos de andar mais depressa, que o papá já deve estar à nossa espera.

 

Qual deles? perguntou Beth, com desprendimento.

 

O único.

 

Antes de abrir a porta da cozinha, Jenny sussurrou às crianças:

 

Vamos entrar em bicos de pés, para lhe fazer uma surpresa.

 

Elas concordaram, com os olhos brilhantes de malícia infantil.

 

O primeiro som que lhes acudiu aos ouvidos foi a voz de Erich, proveniente da sala de jantar, cada palavra martelada em tom mais cáustico que a anterior.

 

Como se atreve a dizer que fui eu quem fez essa nódoa? É evidente que deixou o pano sujo tocar na parede, depois de limpar o peitoril da janela. Já pensou que agora vou ter de mandar substituir todo o papel? E sabe como será difícil encontrar igual! Quantas vezes lhe recomendei que tivesse cuidado com os panos do pó sujos?

 

Mas Mister Krueger...

 

No entanto, o débil protesto de Elsa foi cortado com a impetuosidade de um chicote.

 

Quero que peça desculpa do que fez. De contrário, saia desta casa e não volte a aparecer.

 

Seguiu-se um longo silêncio.

 

Mamã.. começou Beth, apreensiva.

 

Caluda... murmurou Jenny.

 

Ao mesmo tempo, ponderava que Erich se preocupava exageradamente com uma simples mancha no papel da parede. Por outro lado, um instinto impreciso recomendava-lhe que não se intrometesse no assunto.

 

No momento em que ouviu a voz desolada de Elsa proferir "Queira desculpar, Mister Krueger", levou as crianças para fora e fechou a porta.

 

Porque é que o papá está zangado? quis saber Tina.

 

Não sei bem, querida. Vamos fingir que não ouvimos nada, combinado?

 

Mas ouvimos objectou Beth, com gravidade.

 

Com certeza, mas não é nada que nos diga respeito. Bom, vamos entrar de novo.

 

Desta vez, Jenny chamou-o antes de abrir a porta e, sem uma pausa para lhe dar tempo a responder, acrescentou:

 

Há algum marido em casa?

 

Querida! Erich surgiu na cozinha, com um sorriso de boas-vindas totalmente descontraído. Estava agora mesmo a perguntar à Elsa se sabia onde tinham ido. Lamento que saísses, pois queria ser eu próprio a mostrar-te a propriedade.

 

Abraçou-a e beijaram-se, enquanto ela se congratulava por não ter visitado os diferentes edifícios.

 

Calculei que desejarias fazer de cicerone, pelo que fomos apenas à parte leste para encher os pulmões de ar puro. Nem imaginas como é maravilhoso poder andar à vontade, sem ter de parar a cada momento à espera que apareça a luz verde.

 

Tenho de te ensinar a evitar a área onde se encontram os touros. Garanto-te que preferirias as luzes dos semáforos, se visses algum a curta distância. Erich apercebeu-se então do prato que Jenny tinha na mão. Que trazes aí?

 

Mistress Toom deu isso à mamã antecipou-se Beth.

 

Mistress Toomis corrigiu Jenny.

 

Mistress Toomis? Ele exalou um suspiro de impaciência. Não me digas que estiveste em casa dela?

 

Convidou-nos a entrar. Era aborrecido se recusasse...

 

Ela convida toda a gente. É precisamente por causa de coisas dessas que devias ter esperado que eu te acompanhasse. Rooney tem o espírito muito perturbado e nunca mais larga quem lhe dá atenção. Acabei por ver-me obrigado a recomendar ao Clyde que a impedisse de aparecer aqui. Lamento a condição em que se encontra, mas deves concordar que não é agradável acordar a meio da noite e ouvi-la atravessar o corredor ou mesmo entrar no meu quarto. Voltou-se para Beth: Vamos despir esse agasalho?

 

Acto contínuo, ergueu-a nos braços e colocou-a no topo do frigorífico.

 

Eu também, eu também! exclamou Tina.

 

Um pouco de paciência, menina. Não é uma maneira prática de descalçar as botas? A altura ideal, hem?

 

Algo apreensiva, Jenny aproximou-se para ter a certeza de que uma delas não se desequilibrava, mas verificou que não corriam perigo. Erich descalçou-as com prontidão e voltou a depositá-las no chão. Antes, porém, perguntou:

 

Como me chamo?

 

Tina olhou a mãe e aventurou:

 

Papá?

 

A mamã disse que és o nosso único papá esclareceuBeth.

 

Ah, disse? Erich virou-se para ela e sorriu. Muito obrigado, mamã.

 

Naquele momento, Elsa entrou na cozinha, corada, com uma expressão de cólera reprimida.

 

Já acabei lá em cima, Mister Krueger. Deseja que faça mais alguma coisa em especial?

 

Lá em cima? perguntou Jenny, surpreendida. Espero que não mandasses separar as camas das pequenas. É que vão agora dormir a sesta.

 

Mandei-a arrumar o quarto.

 

Mas elas não podem dormir naquelas camas tão altas na posição em que estão. Vamos ter de lhes arranjar outras mais baixas. De súbito, acudiu-lhe uma ideia. No fundo, tratava-se de uma cartada, mas pareceria um pedido natural. E se dormissem a sesta no teu antigo quarto? A cama é muito mais baixa.

 

E observou o marido, na expectativa da reacção. Apesar disso, não lhe passou despercebido o olhar malicioso que Elsa lhe dirigiu. "Ela está a divertir-se com a situação", reflectiu Jenny. "Sabe que ele vai recusar."

 

Na verdade, queria precisamente falar-te acerca de as crianças utilizarem esse quarto replicou Erich, de expressão impassível. Julgava que tinha deixado bem claro que ninguém o deve ocupar. Ora, a Elsa disse que encontrou a cama aberta, esta manhã.

 

Jenny abafou uma exclamação de alarme. Não lhe passara pela cabeça a possibilidade de as filhas terem subido para aquela cama antes de ela se levantar.

 

Desculpa, mas não torna a acontecer articulou, embaraçada.

 

Não te preocupes, querida. As faces dele suavizaram-se. Podem dormir a sesta nas camas em que passaram a noite. Entretanto, encomendaremos outras mais apropriadas para elas.

 

Jenny preparou sopa para as crianças e em seguida levou-as para cima.

 

Quando se levantarem, não quero que entrem nos outros quartos, entendido? advertiu, enquanto baixava os estores.

 

Mas costumávamos ir sempre para a tua cama, lá em casa argumentou Beth, pesarosa.

 

Isso é diferente. Refiro-me às outras. Jenny beijou as filhas com ternura. Prometam. Não quero que o papá se zangue.

 

Ele estava a gritar murmurou Tina, de pálpebras quase cerradas. O meu presente?

 

Os sabonetes encontravam-se em cima da mesa-de-cabeceira e ela guardou o seu debaixo da almofada.

 

Obrigada por mo ofereceres, mamã. Nós não fomos para a tua cama.

 

Erich começara a cortar fatias de peru assado para sanduíches e Jenny fechou a porta que isolava a cozinha do resto da casa.

 

Olá. Rodeou a cintura do marido com o braço e sussurrou: Tivemos o jantar de casamento com as pequenas. Ao menos, deixa-me preparar a nossa primeira refeição a sós na herdade Krueger, enquanto serves o champanhe que sobrou de ontem.

 

A noite passada foi maravilhosa para mim. E para ti?

 

Também, incomparável.

 

Quase não trabalhei nada, esta manhã. Só pensava no teu aspecto, quando dormes.

 

Ele acendeu o fogão de ferro fundido e ingeriram as sanduíches e o champanhe, enroscados juntos no sofá diante do lume.

 

Esta manhã, quando percorria a propriedade, apercebi-me da sensação de continuidade que prevalece nela disse Jenny. Desconheço as minhas raízes. Não sei se a família vivia na cidade ou no campo. Ignoro se a minha mãe gostava de pintar ou bordar ou se tinha voz para cantar. Deve ser maravilhoso conhecer tudo acerca dos antepassados. A visita ao cemitério bastou para me convencer disso.

 

Estiveste no cemitério? inquiriu ele, a meia voz.

 

Estive. Fiz mal?

 

Nesse caso, viste a sepultura de Caroline?

 

É verdade.

 

E provavelmente estranhaste que ela e o meu pai não estejam juntos como os outros.

 

Bem, fiquei surpreendida.

 

Não há qualquer segredo ou mistério envolvido. Caroline mandou plantar aqueles pinheiros-noruegueses. Na altura, disse ao meu pai que queria ser sepultada na extremidade sul do cemitério, onde as árvores produziriam uma espécie de abrigo. Embora não concordasse, ele respeitou-lhe o desejo. Pouco antes de morrer, confessou-me que esperava ser depositado na sepultura ao lado dos familiares e considerei  que era o mais apropriado. Caroline sempre ansiou por mais liberdade do que a que ele lhe concedia. Creio que, mais tarde, meu pai se arrependeu da forma como lhe ridicularizava a arte, até que ela deitou fora o caderno de desenhos. Que diferença faria se se dedicasse à pintura em vez de confeccionar colchas artísticas? Estava errado. Errado! Fez uma pausa, com o olhar fixo no lume, como que alheio à presença de Jenny. Mas ela também acrescentou, num murmúrio.

 

Com um tremor de ansiedade, Jenny compreendeu que Erich deixava entrever pela primeira vez que as relações entre os dois tinham conhecido momentos agitados.

 

Ela enveredou por uma rotina quotidiana que achava imensamente satisfatória. Cada dia que passava contribuía para se inteirar melhor do que perdera ao ausentar-se tanto de junto das filhas. Assim, descobriu que a prática e reservada Beth tinha indiscutível inclinação para a música e conseguia reproduzir no órgão da sala as composições menos complicadas, depois de as escutar algumas vezes. Quanto a Tina, depressa se adaptou ao novo ambiente e denotava traços inequívocos de sentido do humor.

 

Erich costumava seguir para a cabana onde tinha o estúdio ao amanhecer e nunca regressava antes do meio-dia. Jenny e as filhas tomavam o pequeno-almoço por volta das oito e, às dez, quando os raios solares começavam a aquecer um pouco, equipavam-se devidamente para enfrentar o frio e passeavam pelas cercanias.

 

As deambulações não tardaram a assumir um itinerário fixo. Primeiro, a capoeira, onde Joe ensinava as crianças a recolher os ovos acabados de pôr. Ele estava persuadido de que a presença de Jenny lhe salvara o emprego, após o acidente com o cavalo.

 

Aposto que, se Mister Krueger não estivesse tão contente por tê-la aqui, tinha-me posto na rua reconheceu. A minha mãe diz que ele não costuma perdoar.

 

Garanto-lhe que não tive a mínima interferência no assunto asseverou ela.

 

O doutor Garrett diz que estou a cuidar bem da perna do Barão. Quando o tempo começar a aquecer e ele puder fazer algum exercício, ficará como novo. E agora, inspecciono a porta do estábulo uma dúzia de vezes por dia.

 

Jenny sabia ao que ele se referia. Inconscientemente, ela habituara-se a verificar pequenas coisas uma segunda vez, coisas em que dantes nunca repararia. Erich, no capítulo da arrumação, podia considerar-se um autêntico perfeccionista. Ela acostumara-se a determinar prontamente por uma leve tensão do rosto e corpo se algo lhe desagradava uma porta de armário deixada aberta, um copo esquecido no lava-loiça.

 

Nas manhãs em que não se dirigia à cabana, ele trabalhava no escritório da herdade, junto do estábulo, com Clyde Toomis, o encarregado da propriedade, um indivíduo corpulento de sessenta anos, faces encarquilhadas, cabelos brancos e modos rudes que se aproximavam da brusquidão.

 

Quando lho apresentou, Erich explicou:

 

Na realidade, é o Clyde quem dirige a herdade. Às vezes, penso que não passo de uma peça de mobiliário.

 

Custa-me a crer! replicou Jenny, sorrindo, mas surpreendeu-se ao ver que o encarregado não efectuava a menor tentativa para protestar.

 

Acha que vai gostar disto? perguntou Clyde.

 

Já estou a gostar corrigiu ela, com novo sorriso.

 

É uma mudança quase radical para uma pessoa habituada à vida da cidade. Espero que não lhe exija um esforço excessivo.

 

Não exige, de certeza.

 

É curioso volveu ele. As moças do campo anseiam pela cidade e as da cidade alegam que adoram o campo. (Jenny julgou detectar-lhe uma ponta de amargura na voz e perguntou-se se estaria a pensar na filha, impressão que viu confirmada pelas palavras seguintes.) A minha mulher está entusiasmadíssima com a sua presença e das suas filhas. Se começar a incomodá-la, agradeço que me previna. Embora não tenha a intenção de se tornar maçadora, às vezes exagera.

 

Afigurava-se a Jenny que havia um tom defensivo na voz do homem, quando se referia a Rooney.

 

Gostei muito de a conhecer declarou, com sinceridade.

 

Os modos bruscos atenuaram-se.

 

Folgo em sabê-lo. Sei que ela anda à procura de tecido para fazer blusas, salvo erro, para as suas filhas. Não vê inconveniente?

 

Pelo contrário, é uma ideia encantadora. Quando abandonaram o escritório, Erich advertiu-a:

 

Evita encorajar a Rooney.

 

Prometo não permitir que exagere, como diz o marido. No entanto, creio que o único mal dela é a solidão.

 

Todas as tardes, enquanto as crianças dormiam a sesta, eles utilizavam os esquis de corta-mato para explorar a herdade. Elsa comprometera-se a olhar por elas durante a ausência deles. Na realidade, fora mesmo ela que o sugerira, e ocorreu a Jenny que a mulher tentava penitenciar-se de ter acusado Erich de manchar o papel da parede da sala de jantar.

 

Não obstante, ponderava se existiria a possibilidade de ter sido de facto dele, pois acontecia com frequência, quando regressava da cabana para almoçar, ter vestígios de tinta ou carvão nas mãos. Se notava alguma coisa fora da normalidade uma cortina em posição deficiente ou um objecto decorativo deslocado, apressava-se a rectificar a situação. E Jenny tivera de intervir no último instante, para evitar que tocasse em algo com as mãos sujas.

 

O papel da parede foi substituído, mas quando o forrador se apresentou para executar o trabalho mostrou-se incrédulo.

 

Não me diga que o seu marido comprou oito rolos duplos ao preço a que estão para ficar tudo como estava!

 

Ele sabe o que quer.

 

No final, a sala apresentava exactamente o mesmo aspecto, com a diferença de que a mancha desaparecera.

 

Ao serão, ela e Erich gostavam de ler, ouvir música ou conversar na biblioteca. Quando ele perguntou a causa da leve cicatriz que tinha na fronte, Jenny explicou:

 

Foi um acidente de automóvel, quando tinha dezasseis anos. O outro carro transpôs a divisória da estrada e chocou connosco.

 

Deves ter apanhado um valente susto, querida.

 

Não me recordo de nada. Ela soltou uma risada. Tinha adormecido e, quando dei por mim, havia três dias que estava internada no hospital. Sofri uma concussão apreciável... suficiente para me provocar amnésia no lapso de tempo correspondente a esses dias. Nana ficou positivamente apavorada, convencida de que tinha alguma lesão cerebral. Na verdade, padeci de insónias por uma temporada e até cheguei a ser sonâmbula por ocasião dos exames finais. Resultados do stress, segundo o médico. Mas desapareceu tudo gradualmente.

 

Primeiro de forma hesitante e depois quase numa torrente de palavras, Erich referiu-se ao acidente da mãe.

 

Caroline e eu acabávamos de entrar nos estábulos para ver o novo bezerro. Estava a ser desmamado e ela levou-lhe a garrafa de leite à boca. A tina do gado (é aquilo que parece uma banheira) estava cheia de água. Ora, havia lama no chão e Caroline escorregou. Numa tentativa desesperada para se equilibrar, agarrou o cordão da gambiarra, que o Joe deixara mal isolado ao prepará-lo, na véspera, resvalou para cima da tina e... Enfim, foi tudo muito rápido e irremediável.

 

Não sabia que estavas com ela nesse momento.

 

Gosto pouco de falar no assunto. Luke Garrett, o pai do Mark, encontrava-se presente e tentou reanimá-la, mas não havia nada a fazer. E eu assistia, estupefacto, segurando o stick de hóquei que Caroline me tinha oferecido nos meus anos...

 

Jenny, sentada na almofada aos pés dele, pegou-lhe nas mãos e levou-as aos lábios. Erich inclinou-se para a frente, levantou-a e apertou-a nos braços.

 

Durante muito tempo, não consegui olhar sequer para o stick, até que passei a encará-lo como o último presente dela. Beijou-lhe as pálpebras. Não estejas tão triste, querida. Ter-te a meu lado compensa-me de tudo. Promete que nunca me abandonarás, por favor.

 

Jenny compreendeu o que ele queria ouvir e, com uma inflexão de ternura, murmurou:

 

Nunca te abandonarei.

 

Uma manhã em que passeava com Tina e Beth, Jenny avistou Rooney debruçada sobre a vedação da extremidade sul do cemitério, como se olhasse a sepultura de Caroline.

 

Estava a pensar nos bons momentos que passámos, quando éramos jovens, o Erich pequeno e nasceu a Arden. Caroline fez um desenho da minha filha. Ficou muito bom, mas confesso que não sei onde foi parar. Desapareceu misteriosamente do meu quarto. O Clyde diz que o levava comigo e perdi. Porque não voltou a visitar-me?

 

Jenny estava preparada para a pergunta, pelo que replicou:

 

Tenho estado muito ocupada a instalar-me. Beth, Tina: não cumprimentam Mistress Toomis?

 

Beth proferiu um tímido "olá", enquanto a irmã se aproximava da mulher e erguia o rosto para um beijo. Rooney inclinou-se para ela e afagou-lhe a cabeça.

 

Esta faz-me pensar na Arden. Sempre a saltitar de um lado para o outro. Aposto que o Erich lhe recomendou que me evitasse. No fundo, não o censuro. Às vezes, sou um empecilho. Mas encontrei o modelo que procurava. Posso fazer as blusas para as pequenas?

 

É uma excelente ideia.

 

Jenny reflectiu que o marido teria de se habituar à ideia de que ela estabeleceria relações cordiais com Rooney, pois havia algo de infinitamente atraente na mulher.

 

Ainda não começou a sentir-se só? perguntou esta última, voltando-se de novo para a sepultura.

 

Não. Tudo é diferente, sem dúvida. Estava habituada a um emprego movimentado, que me obrigava a conviver com pessoas constantemente, enquanto soavam telefones a todo o momento e apareciam amigos com frequência no meu apartamento. Disso, em parte, talvez sinta a falta. No resto, porém, congratulo-me por estar aqui.

 

Caroline dizia o mesmo. Pelo menos, por uma temporada. De repente, tudo se modificou. Rooney fixou os olhos na lápide do outro lado da vedação, como se evocasse algo que lhe provocava amargura. Sim, tudo mudou para ela e, após a sua morte, a mudança pareceu propagar-se a todos nós concluiu num murmúrio.

 

Pretendes livrar-te de mim protestou Erich. Não quero sair.

 

Com certeza que quero livrar-me de ti admitiu Jenny. Isto é perfeitamente belo. Pegou num óleo de um metro por um metro e vinte, para o examinar mais minuciosamente. Captaste a bruma que circunda as árvores quando principiam a florescer. E aquela área escura que contorna o gelo no rio indica claramente onde se vai quebrar, que há água em movimento por baixo.

 

És muito observadora. Acertaste em cheio.

 

Não esqueças que trabalhei numa galeria de arte. Mudança de Estação é um título admirável. A mudança é na verdade muito subtil.

 

Erich rodeou-lhe os ombros com o braço e estudou a tela.

 

Não exibirei aquilo que desejares guardar para nós.

 

Acho disparate. É a altura apropriada para reforçares a tua reputação. Podes crer que não me importarei absolutamente nada de ser a esposa do artista mais prestigioso da América. Hão-de apontar-me na rua e dizer: "Que felizarda! Tem um marido famoso e bem-parecido!"

 

Achas que é isso que dirão? Erich puxou-lhe levemente o cabelo.

 

Tenho a certeza absoluta, e com toda a razão.

 

Posso mandar dizer que cancelo a exposição.

 

Não faças isso, por favor. Já prepararam uma recepção em tua honra. Gostava de assistir, mas ainda não me atrevo a deixar as pequenas sós e se as levasse teria de me preocupar constantemente com elas. Fica para a próxima vez.

 

Promete teres saudades minhas rogou ele, começando a embalar as telas.

 

Terei uma montanha delas, querido. Vão ser quatro dias extremamente solitários.

 

Jenny suspirou inconscientemente. Em cerca de três semanas, apenas falara a um punhado de pessoas: Clyde, Joe, Elsa, Rooney e Mark.

 

Elsa era taciturna quase ao extremo do silêncio absoluto. Rooney, Clyde e Joe, por outro lado, revelavam-se tudo menos companheiros. Quanto a Mark, só trocara breves palavras com ele depois daquela vez ao princípio, embora ela soubesse, por intermédio de Erich, que ele vinha observar o Barão com regularidade.

 

Havia cerca de uma semana que se encontrava na herdade, quando se apercebeu de que o telefone nunca tocava.

 

Será que ninguém das redondezas está ao corrente da campanha "Não vá, telefone"? perguntou, sorridente.

 

As chamadas passam todas pelo escritório explicou Erich. Só mando ligar esta extensão à rede se espero alguma em particular. De contrário, quem se encontrar lá na altura previne-me.

 

E se não estiver ninguém no escritório?

 

Nesse caso, o gravador recebe as mensagens.

 

Mas porquê?

 

Se tenho alguma mania é a de que detesto a intrusão da campainha do telefone a cada momento. Evidentemente que, na minha ausência, o Clyde deixará a extensão ligada durante a noite, para eu poder falar contigo.

 

Jenny tinha vontade de protestar, mas decidiu não o fazer. Mais tarde, quando tivesse amigos na comunidade, trataria de convencer o marido a estabelecer o serviço telefónico normal.

 

Ele terminou de separar as telas e voltou-se para ela.

 

Estive a pensar que é altura de te mostrar um pouco ao nosso mundo. Gostavas de ir à missa, no próximo domingo?

 

Parece que me leste o pensamento. Jenny não pôde evitar uma gargalhada. Na verdade, gostava de conhecer alguns dos teus amigos.

 

Sou melhor a conceder donativos monetários do que a assistir a serviços religiosos. E tu?

 

Dantes, não faltava à missa de domingo, mas depois de casar com o Kev desleixei-me um pouco. No entanto, como dizia Nana, a maçã nunca cai muito longe da árvore. Qualquer dia, sou capaz de voltar a frequentar a igreja com regularidade.

 

No domingo seguinte, dirigiram-se ao templo sionista. Era um edifício antigo e não muito grande, na realidade pouco maior do que uma capela. Jenny teve oportunidade de ler os nomes de benfeitores inscritos por baixo dos vitrais: DOADO POR ERICH E GRETCHEN KRUEGER, 1906... DOADO POR ERICH E OLGA KRUEGER, 1930.

 

O que ficava junto do altar, em que se via uma Adoração dos Reis Magos, era particularmente bonito, e ela abafou uma exclamação ao inteirar-se dos dizeres que o acompanhavam: EM SAUDOSA MEMÓRIA DE CAROLINE BONARDI KRUEGER, DOADO POR ERICH KRUEGER.

 

Quando efectuaste aquele donativo? perguntou em voz baixa.

 

O ano passado, quando o santuário foi renovado.

 

Tina e Beth sentavam-se entre eles, gravemente conscientes dos seus casacos e chapéus azuis novos e dos olhares de que eram alvo. Jenny notou que Erich também se apercebia da curiosidade dos outros, mas limitava-se a sorrir e, durante o sermão, conservou a mão dela entre as suas. Em dado momento, sussurrou:

 

És linda, Jenny. Todos olham para ti e para as pequenas.

 

No final do serviço, apresentou-a ao pastor Barstrom, um homem magro de cerca de setenta anos e semblante cordial, que declarou com sinceridade:

 

Alegra-nos contar com a sua presença, Jenny. Baixou os olhos para as crianças. Qual é a Beth e qual a Tina?

 

Sabe como se chamam! exclamou Jenny encantada.

 

Erich elucidou-me, quando passou pelo presbitério. Suponho  que não ignora que tem um marido muito generoso. Graças a ele, o nosso novo centro cívico será muito confortável e bem equipado. Conheço-o desde garoto e congratulamo-nos com a sua fama.

 

Eu não me congratulo menos disse ela, sorrindo.

 

Há uma reunião das mulheres da paróquia, quinta-feira à noite. Quer comparecer? Desejamos conhecê-la melhor.

 

Com todo o gosto.

 

Temos de ir, querida lembrou Erich. Há outras pessoas que pretendem falar com o pastor.

 

Tens razão.

 

O reverendo estendeu-lhe a mão, enquanto observava:

 

Deve ter sido muito penoso para si enviuvar tão jovem, com duas filhas pequenas.

 

Erich puxou-a pelo braço, antes que Jenny tivesse oportunidade de manifestar a perplexidade de forma mais eloquente que uma expressão de assombro. Todavia, no carro, bradou:

 

Disseste-lhe que era viúva?

 

Granite Place não é Nova Iorque, querida redarguiu ele, ligando o motor. Não passa de uma terreola no Médio Oeste. As pessoas ficaram chocadas quando souberam que ia casar contigo um mês depois de te conhecer. Ao menos, uma viúva jovem é uma imagem simpática, enquanto uma divorciada nova-iorquina tem um significado muito diferente, nesta comunidade. Aliás, nunca afirmei exactamente que eras viúva. Limitei-me a dizer ao pastor Barstrom que tinhas perdido o marido. Ele deduziu o resto.

 

Por outras palavras, tu não mentiste. Quem mentiu fui eu, ao abster-me de o corrigir. Não compreendes a posição em que fiquei?

 

Não, querida. E não admitirei que as pessoas daqui pensem que uma nova-iorquina sofisticada se valeu da inexperiência de um camponês.

 

Jenny reflectiu que o marido receava de tal modo tornar-se ridículo que não hesitara em mentir ao clérigo para evitar semelhante possibilidade.

 

Terei de revelar-lhe a verdade, na reunião de quinta-feira.

 

Nessa altura, não estarei cá.

 

Eu sei. É precisamente por isso que gostaria de estar presente. Quero conviver com as pessoas das redondezas.

 

Tencionas deixar as pequenas sós?

 

Evidentemente que não. Suponho que há baby-sitters?

 

Vais confiá-las a uma desconhecida?

 

O pastor Barstrom pode recomendar-me...

 

Calma, Jenny. Não comeces a envolver-te em actividades. E, sobretudo, não lhe digas que és divorciada. Conheço-o o suficiente para prever que não voltará a abordar o assunto, a menos que tu o faças.

 

Mas porque objectas a que vá à reunião?

 

Ele desviou os olhos da estrada por um segundo para a fitar.

 

Porque te amo muito e não estou disposto a partilhar-te com outras pessoas. Não te partilharei com ninguém.

 

Erich partia para Atlanta a 23 de Fevereiro. Dois dias antes, comunicou a Jenny que tinha umas voltas a dar e regressaria tarde para almoçar. Com efeito, passava da uma e meia quando reapareceu.

 

Vamos ao estábulo convidou, sem qualquer preâmbulo. Tenho uma surpresa para ti.

 

Mark Garrett aguardava-os, com um largo sorriso.

 

Apresento-lhe os novos inquilinos.

 

Dois póneis Shetland encontravam-se lado a lado, em compartimentos separados, os corpos cor de cobre reluzentes.

 

O meu presente para as minhas novas filhas anunciou Erich, com orgulho. Penso que lhes vamos chamar Ratinho e Chocalho. Assim, as moças Krueger nunca esquecerão os seus nomes. Em seguida, conduziu-a ao compartimento seguinte. E isto é o teu presente.

 

Privada do uso da fala pelo espanto, Jenny cravou os olhos arregalados numa égua baia Morgan, que lhe devolveu a mirada com cordialidade.

 

É um tesouro exultou ele. Tem quatro anos, de reprodução impecável e mansa. Já conquistou meia dúzia de fitas. Agrada-te?

 

Ela estendeu a mão para a pousar na cabeça do animal e verificou com prazer que não se desviava.

 

Como se chama?

 

O criador deu-lhe o nome de Moça de Fogo. Afirma que tem fogo e coragem, além de uma ascendência irrepreensível. É claro que lhe podes chamar aquilo que quiseres.

 

Fogo e coragem murmurou. É uma combinação admirável. Estou simplesmente encantada com o presente.

 

Não quero que a montes, por enquanto. Ele parecia satisfeito. Os campos ainda estão muito gelados. Mas se tu e as pequenas visitarem os cavalos todos os dias, para que se habituem à vossa presença, no mês que vem poderão começar as lições. E agora, se fôssemos almoçar?

 

Jenny voltou-se impulsivamente para Mark.

 

Quer fazer-nos companhia? Temos apenas carnes frias e salada, já o previno.

 

Apercebeu-se do leve enrugar de cenho de Erich, mas verificou com alívio que se dissipava com prontidão.

 

Espero que não recuses, Mark.

 

Enquanto comiam, ela descobriu que pensava constantemente na égua, até que o marido observou:

 

Estás com uma expressão de criança feliz. É por minha causa ou do meu presente?

 

Fiquei tão deslumbrada que nem me lembrei de te agradecer.

 

Nunca teve um animal de estimação? perguntou Mark.

 

Existia algo de descontraído e franco nele que a fazia sentir-se instantaneamente à vontade na sua presença.

 

Ia tendo. Um vizinho de Nova Iorque possuía um cão-d'agua em miniatura e quis oferecer-mo, mas havia uma cláusula no contrato de arrendamento que proibia animais no apartamento, pelo que não pude aceitar. Na altura, eu tinha onze ou doze anos.

 

E sentiu-se um pouco frustrada deduziu ele.

 

Pelo menos, como se me faltasse alguma coisa.

 

Por fim, tomaram café e Mark impeliu a cadeira para trás, a fim de se levantar.

 

Obrigado, Jenny. Foi uma refeição muito agradável.

 

Venha jantar quando o Erich voltar de Atlanta. Traga companhia.

 

É uma boa ideia aprovou Erich com aparente sinceridade.

 

A Emily, por exemplo. Se bem me recordo, sempre teve um fraco por ti.

 

Sempre teve um fraco, mas foi por ti corrigiu Mark. Sim, tens razão. Hei-de falar-lhe nisso.

 

Antes de partir, Erich beijou Jenny e abraçou-a com ternura.

 

Vou ter muitas saudades tuas. Não te esqueças de trancar as portas à noite.

 

Não te preocupes que tudo correrá bem.

 

As estradas estão escorregadias. Se precisares de alguma coisa da povoação, pede ao Joe que te conduza.

 

Já sou crescidinha protestou ela. Descansa que não me acontece nada de mal.

 

Não posso deixar de me preocupar. Telefono logo.

 

Naquela noite, experimentou uma sensação culposa de liberdade quando se reclinou na cama para ler. A casa mantinha-se silenciosa, à parte o zumbido ocasional da fornalha, quando se ligava ou desligava. Ao mesmo tempo, ela ouvia por vezes a voz de Tina, que falava no sono, e sorriu ao lembrar-se de que já não acordava a chorar.

 

Erich já se devia encontrar em Atlanta e decerto não tardaria a telefonar. Olhou em volta. A porta do armário estava entreaberta e o roupão pousado no espaldar de uma cadeira próxima da cama. O marido decerto se insurgiria por não o ter arrumado convenientemente, mas naquela noite não existia motivo para preocupações nesse sentido.

 

Havia quase uma hora que lia, quando o telefone tocou, e ela estendeu a mão para o auscultador com ansiedade.

 

Olá querido.

 

Confesso que não esperava uma saudação tão terna, Jen.

 

Era Kevin.

 

Kevin! Jenny soergueu-se tão bruscamente que o livro deslizou para o chão. Onde estás?

 

Em Minneapolis. No Guthrie Theater. Vim prestar provas.

 

Mas isso é óptimo articulou, esforçando-se por se exprimir num tom convincente.

 

Veremos o que acontece. Como te correm as coisas?

 

Muitíssimo bem.

 

E as miúdas?

 

Estão óptimas.

 

Vou passar por aí para as ver. As palavras dele revestiam-se de uma inflexão agressiva. Estás em casa, amanhã?

 

Não, por favor.

 

Quero ver as minhas filhas, Jen. Onde pára o Krueger? O instinto advertiu-a a não revelar que Erich estaria ausente quatro dias.

 

De momento, saiu. Julguei que era ele, quando o telefone tocou.

 

Indica-me o caminho para aí. Tenciono pedir um carro emprestado.

 

Não podes fazer isso, Kevin. O meu marido ficaria furioso. Não tens o direito de vir.

 

Tenho todo o direito de ver as minhas filhas. A adopção ainda não se consumou. Posso suspendê-la com um simples estalar de dedos. Quero certificar-me de que elas são felizes aí, e quero também ter a certeza da tua felicidade, Jen. Talvez nos enganássemos ambos e convenha trocarmos impressões sobre o assunto. Indica-me lá o caminho.

 

Não admito que venhas!

 

Granite Place figura no mapa e suponho que todos os habitantes da região sabem onde mora o Casal Alto e Poderoso.

 

Jenny sentiu as palmas das mãos tornarem-se pegajosas de transpiração de pavor. Imaginava sem dificuldade os comentários que circulariam na vila, se Kevin aparecesse lá a pedir indicações para se dirigir à herdade Krueger. Seria próprio dele aproveitar o ensejo para explicar que tinham sido casados. Por outro lado, recordava-se da expressão de Erich, quando o vira à saída do apartamento, no dia do casamento.

 

Não venhas, por favor suplicou, após uma pausa. Vais destruir a nossa felicidade. As pequenas estão muito contentes e sempre me portei decentemente contigo. Alguma vez te recusei dinheiro, mesmo quando quase não me chegava para pagar a renda? Acho que devias tomar isso em consideração.

 

Não nego que foste sempre atenciosa para comigo. A voz de Kevin assumiu o tom paternalista que ela conhecia perfeitamente. Por sinal, atravesso um momento menos desafogado, ao passo que tu nem sabes o que fazer ao dinheiro. Que dizes a dar-me o resto do produto da venda da mobília?

 

Invadiu-a uma sensação de alívio. Afinal, ele pretendia apenas dinheiro, o que facilitaria muito as coisas.

 

Para onde queres que o envie?

 

Eu passo por aí a buscá-lo.

 

Era óbvio que estava decidido a vê-la e não havia qualquer meio de o impedir de a visitar. Jenny estremeceu de pesar, ao pensar no cuidado com que Erich ensinara as pequenas a dizer "Beth Krueger" e "Tina Krueger".

 

Lembrou-se de um pequeno restaurante no centro comercial a trinta quilómetros da herdade, único local que lhe ocorria para sugerir. Por conseguinte, forneceu as indicações necessárias e prometeu comparecer à uma hora da tarde seguinte.

 

Depois de cortar a ligação, reclinou-se pesadamente na almofada. O prazer da descontracção extinguira-se. Agora, temia o telefonema de Erich. Deveria dizer-lhe que ia encontrar-se com Kevin?

 

Quando o telefone tocou, continuava indecisa sobre a maneira de proceder.

 

Sinto a tua falta, querida. A voz do marido parecia tensa. Já estou arrependido de ter vindo. As pequenas perguntaram por mim, esta noite?

 

Com certeza. E a Beth começa a chamar "criaturas" às bonecas.

 

Ainda acabam as duas por falar como o Joe comentou, com uma risada. Não te roubo mais tempo, para que possas dormir.

 

Erich... Ela reconheceu que tinha de lhe dizer.

 

Sim, querida?

 

Tornou a hesitar, ao recordar-se de que Erich se surpreendera quando ela confessara que dera a Kevin metade do dinheiro da venda da mobília, e sugerira que porventura o desejava para custear a passagem de avião para o Minnesota. Na verdade, não podia aludir ao encontro com ele.

 

Amo-te muito, querido. Gostava que estivesses junto de mim, neste momento.

 

Eu também. Boa noite.

 

Todavia, não conseguiu adormecer. O luar penetrava no quarto e reflectia-se na saboneteira de cristal. De repente, pareceu-lhe que esta assumia quase a forma de uma urna e perguntou-se se as cinzas podiam ter o odor a pinho. Mas que ideia tão horrível e sinistra... Caroline encontrava-se sepultada no cemitério da família. Apesar disso, acudia-lhe inquietação suficiente para se levantar e ir espreitar no quarto das filhas. No entanto, viu que dormiam profundamente. Beth tinha a mão sob a face pousada na almofada, enquanto Tina assumira a posição fetal, com o cobertor puxado para o rosto.

 

Beijou-as levemente e enterneceu-se com as suas expressões serenas de felicidade. Ao retirar-se, jurou a si própria que não consentiria que Kevin destruísse a nova vida que acabavam de conhecer.

 

As chaves do Cadillac estavam no escritório, mas Erich tinha duplicados de todos os edifícios e arrecadações da propriedade na biblioteca. Por conseguinte, era natural que também lá se encontrassem as do carro.

 

Jenny descobriu com alívio que não se equivocara. Apressou-se a guardá-las na algibeira das calças de flanela, deu o almoço às filhas um pouco mais cedo e acompanhou-as ao quarto, para dormirem a sesta.

 

Tenho umas voltas a dar, Elsa. Conto regressar cerca das duas horas.

 

A mulher inclinou a cabeça em silêncio. Seria naturalmente tão taciturna? Supunha que não. Às vezes, quando voltava de esquiar com Erich, Tina e Beth já estavam acordadas, e Jenny ouvia Elsa conversar com as garotas, o seu sotaque sueco mais pronunciado do que quando falava depressa. Mas nas ocasiões em que ela e Erich se achavam presentes, mantinha-se tanto quanto possível calada.

 

As estradas secundárias apresentavam algumas áreas cobertas de gelo, porém a rodovia principal estava completamente limpa. Jenny sentia uma satisfação especial por voltar a conduzir e sorria para consigo, ao evocar os passeios de fim-de-semana com Nana no seu Beetle em segunda mão. No entanto, depois de casar com Kevin, tivera de o vender, porque a sua manutenção se tornara demasiado dispendiosa.

 

Qualquer dia, pediria a Erich que lhe comprasse um modelo pequeno.

 

Eram 12.40 quando entrou no restaurante e verificou, surpreendida, que ele já chegara, com uma garrafa de vinho quase vazia na sua frente. Jenny sentou-se à mesa do "reservado" e olhou-o com indiferença

 

Olá, Kev.

 

Afigurava-se-lhe incrível que, em menos de um mês, pudesse parecer mais velho e menos descontraído, de olhos congestionados. Consumiria bebidas alcoólicas em excesso?

 

Tenho sentido a tua falta, Jen articulou ele, pegando-lhe na mão. E das miúdas.

 

Fala-me do Guthrie Theatervolveu ela, recolhendo-a.

 

Tenho quase a certeza de que consigo o papel. Oxalá que sim, porque a Broadway está superlotada. De resto, assim fico mais perto de ti e das garotas. Tentemos de novo, Jen.

 

Deves estar louco.

 

De modo algum. Estás linda. Gosto dessa indumentária. O casaco deve ter custado uma fortuna.

 

Sim, acho que foi dispendioso.

 

Tens classe. Sempre me convenci disso, aliás. Supunha que nunca sairias do meu lado. Ele voltou a pegar-lhe na mão. És feliz?

 

Com certeza. Escuta: o Erich ficava aborrecido se soubesse que me encontrei contigo. Devo dizer-te que não lhe causaste uma impressão muito favorável, a última vez que se viram.

 

Nem ele a mim, quando colocou uma folha de papel na minha frente e comunicou que me movias um processo por não te dar uma mesada e ficavas com todo o dinheiro que eu ganhasse, se não assinasse.

 

Ele disse isso?

 

Ele disse isso. Foi uma artimanha suja, como deves reconhecer. Garanto-te que se me concedessem o papel que pretendia naquela comédia musical do Hal Prince, não tinha assinado coisa alguma e não haveria adopção.

 

Não se tratou apenas disso. Sei que o Erich te entregou dois mil dólares.

 

Foi um mero empréstimo.

 

Jenny sentia-se dividida entre compaixão por Kevin e a certeza persistente de que sempre utilizaria as filhas como base de apoio para se conservar envolvido na vida dela. Por fim, abriu a bolsa e anunciou:

 

Não posso demorar-me mais. Aqui tens os trezentos dólares. Mas, doravante, não voltes a procurar-me, nem tentes ver as pequenas. De contrário, provocarás aborrecimentos: a elas, a ti e a mim.

 

Ele aceitou o dinheiro, moveu os dedos levemente sobre as notas e guardou-as na carteira.

 

Precisas de saber uma coisa, Jen. Tenho um mau pressentimento a teu respeito e das miúdas. É uma impressão que não consigo explicar. Mas estou seguro disso.

 

Ela levantou-se. No instante imediato, Kevin encontrava-se a seu lado e puxava-a para si.

 

Ainda te amo, Jen. O seu beijo era quase brutal e ávido.

 

Jenny compreendeu que não o podia repelir sem provocar uma cena, e escoou-se cerca de um minuto primeiro que sentisse o amplexo abrandar.

 

Deixa-nos em paz murmurou, desprendendo-se. Peço-te, previno-te, que nos deixes em paz.

 

Quase colidiu com a empregada, que se achava atrás dela, preparada para tomar nota do que os clientes pretendiam. Duas mulheres sentadas a uma mesa perto da janela olharam-na com curiosidade.

 

Quando transpunha a porta do restaurante, compreendeu a razão pela qual uma lhe parecera familiar. Cruzara-se com ela na igreja, domingo de manhã.

 

Erich não voltou a telefonar e Jenny tentou racionalizar a sua inquietação. O marido revelava certa aversão aos telefones, mas prometera falar-lhe todas as noites. Deveria ela tentar contactar com ele, no hotel? Estendeu a mão para o aparelho mais de meia dúzia de vezes, para em seguida a recolher.

 

Kevin teria sido contratado pelo Guthrie Theater? Em caso afirmativo, reataria a rotina que empregava em Nova Iorque, procurando-a quando estava sem dinheiro ou se sentia sentimental. Erich nunca suportaria semelhante situação, além de que seria perniciosa para as crianças.

 

Mas porque não telefonaria Erich?

 

Devia regressar no dia vinte e oito e Joe iria buscá-lo ao aeroporto. Conviria que ela também comparecesse? Não, aguardaria na herdade e prepararia um jantar do agrado do marido. Tinha profundas saudades dele, e só agora se dava conta da forma irreversível como ela e as filhas tinham abraçado a sua nova vida nas últimas semanas.

 

Se não fosse a penosa sensação de culpa por se ter encontrado com Kevin, Jenny não se preocuparia com o facto de Erich não telefonar. O ex-marido era o responsável da perturbação que a assolava. E se voltasse a procurá-la, quando os trezentos dólares se lhe acabassem? A situação agravar-se-ia, se Erich se inteirasse do encontro clandestino a que ela não fizera a menor alusão.

 

Jenny lançou-se nos braços do marido, quando abriu a porta. No breve percurso entre o carro e a entrada, o frio da noite propagara-se ao sobretudo e lábios, porém estes aqueceram no momento em que a beijou. "Correra tudo bem", reflectiu ela, reprimindo um soluço.

 

Tive tantas saudades... disseram em uníssono.

 

Em seguida, Erich abraçou as garotas, perguntou se se tinham comportado bem e, após a entusiástica resposta afirmativa, entregou-lhes embrulhos com fitas coloridas, exibindo um sorriso de indulgência ao ver-lhes as expressões encantadas perante as suas novas bonecas.

 

Muito e muito obrigada disse Beth, com ar solene.

 

Obrigada, papá corrigiu Tina.

 

É o que eu queria dizer replicou a irmã, intrigada.

 

Que trouxeste para a mamã? quis saber a outra. Ele sorriu a Jenny.

 

A mamã portou-se bem?

 

Porque seria que as palavras mais inofensivas assumiam um aspecto ominoso quando existia um peso na consciência? Jenny lembrou-se de Nana menear a cabeça acerca de determinada pessoa conhecida: "Não é boa rês. Acho-a capaz de mentir mesmo quando a verdade lhe seria mais vantajosa."

 

Ela fora bem-comportada?

 

Julgo que sim declarou, esforçando-se por parecer divertida.

 

Estás a corar? observou Erich, enrugando a fronte.

 

Deixa-te de rodeios e dá-me o presente retrucou Jenny, com um desprendimento que não sentia.

 

Como gostas de estatuetas Royal Doulton, lembrei-me de te comprar outra em Atlanta informou ele, abrindo a mala. Esta saltou-me praticamente à cara. Chama-se Chávena de Chá.

 

Jenny abriu a caixa e deparou-se-lhe a figura de uma mulher idosa sentada numa cadeira de balouço, com uma chávena de chá na mão e uma expressão de prazer no rosto.

 

Parece-se com Nana murmurou, com um suspiro.

 

Acendera o fogão e havia queijo e uma garrafa de vinho na mesa. Entrelaçando os dedos nos dele, Jenny levou-o para o sofá. Em seguida, verteu vinho no copo e entregou-lho.

 

Bem-vindo ao lar

 

Sentou-se ao lado dele, ligeiramente voltada, pelo que os joelhos de ambos se tocavam. Vestia uma blusa de seda verde proveniente da colecção de Yves St. Laurent e calça de tweed, consciente de que se tratava de uma das indumentárias favoritas dele.

 

És uma mulher linda, Jen proferiu Erich, depois de a contemplar em silêncio por um momento. Porque estás tão aperaltada?

 

Não é todas as noites que o meu marido regressa a casa após uma ausência de quatro dias. Jenny decidiu mudar de assunto. Como te correram as coisas?

 

Um horror. Os donos da galeria passaram o tempo a tentar convencer-me a vender Recordação de Caroline. Tinham duas ou três ofertas avultadas e ansiavam pela comissão resultante da transacção.

 

Aconteceu-te o mesmo em Nova Iorque. Talvez tenhas de deixar de exibir essa tela.

 

Prefiro continuar a mostrá-la ao mundo, porque a considero o meu melhor trabalho replicou ele, quase secamente.

 

Bem, vou acabar de preparar o jantar. Enquanto ela se ocupava da salada, Erich chamou Beth e Tina e, depois de as instalar sobre os joelhos, descreveu-lhes o Hotel Peachtree, em Atlanta, cujos elevadores eram de vidro e estavam situados no exterior do edifício, como um | tapete mágico, prometendo levá-las lá, um dia. E à mamã também? apressou-se Tina a perguntar, i Jenny voltou-se, sorridente, mas a expressão tornou-se grave, quando ouviu o marido dizer: Se ela quiser acompanhar-nos.

 

Ele comeu com aparente apetite a carne assada, porém os dedos tamborilavam com insistência na mesa e respondia a quase tudo o que ela dizia com monossílabos. Por fim, Jenny desistiu e passou a dirigir-se às filhas:

 

Já disseram ao papá que se sentaram em cima dos póneis?

 

Foi muito divertido. Beth pousou o garfo e virou-se para Erich. Eu disse "Arre, macho", mas o Rato não se mexeu.

 

Eu também disse "Arre, macho" anunciou Tina.

 

Onde estavam eles? perguntou Erich.

 

Nos estábulos apressou-se Jenny a informar. O Joe colocou-as lá por um momento.

 

Ele exagera as suas atribuições. Quero estar presente, quando as pequenas se sentam em cima dos póneis, para me certificar de que as vigia atentamente. Quem me garante que não tem um descuido como o imbecil do tio?

 

Isso foi há muito tempo.

 

Não parece que foi há assim tanto que esbarrei com aquele alcoólico. E o Joe diz que ele voltou a aparecer na vila. Ele fez uma pausa e dirigiu-se às crianças. Se já acabaram de comer, podem ir brincar com as novas bonecas.

 

O problema é o tio do Joe, ou trata-se de outra coisa? perguntou Jenny, quando elas se afastaram.

 

Bem, na verdade, o caso é diferente. Tenho a impressão de que o Joe volta a fazer das suas. O conta-quilómetros do carro tem um acréscimo de pelo menos sessenta. Ele nega, claro, mas utilizou-o uma vez no Outono, sem autorização. Suponho que não te levou a qualquer lado?

 

Não... articulou, cerrando o punho do lado oposto ao de Erich. Ao mesmo tempo, sentia que devia dizer algo acerca de Kevin, pois não podia permitir que ele se convencesse de que Joe mentia. Erich... eu...

 

Além disso, há o raio das galerias de arte cortou ele. Fartei-me de dizer àqueles imbecis de Atlanta que Recordação de Caroline não era para vender. Calou-se por uns instantes e quando voltou a falar parecia mais calmo. Vou continuar a pintar. Não te importas? Isso implica encerrar-me na cabana por períodos de três ou quatro dias, mas é necessário.

 

Ela recordou com amargura a lentidão com que os últimos dias se tinham escoado, mas tentou exprimir-se com naturalidade:

 

Se é necessário, que remédio.

 

Quando entrou na biblioteca, depois de deitar as filhas, viu que o marido tinha os olhos arrasados de lágrimas.

 

Que aconteceu, Erich?

 

Desculpa. Ele tentou secá-los com o dorso da mão. Estava muito deprimido, com saudades tuas e o aniversário de minha mãe que é na próxima semana. Nem imaginas como essa data me amargura sempre. Todos os anos parece que o acidente acaba de acontecer, e quando o Joe referiu que o tio tornava a andar pelas redondezas, foi, por assim dizer, o golpe de misericórdia. Por sorte, pouco depois o carro contornou a curva e avistei a casa iluminada, com a certeza de que me aguardavas ansiosamente. Receava tanto ter-te perdido durante a minha ausência...

 

Jenny sentou-se a seu lado e beijaram-se com ternura.

 

Uma vez no quarto, ela preparava-se para vestir uma das suas camisas de dormir novas, mas mudou de ideias e, com certa relutância, abriu a gaveta da cómoda que continha a água-marinha.

 

Mais tarde, antes de adormecer, lembrou-se de que nas únicas vezes que fizera amor com o marido usava aquela camisa.

 

Jenny ouviu Erich mover-se no quarto antes da alvorada e murmurou, ensonada:

 

Vais para a cabana?

 

Sim, querida. A voz dele era quase inaudível.

 

Vens almoçar? À medida que o sono se dissipava, ela recordou-se de que ele se referira a passar lá uns dias.

 

Ainda não sei.

 

Jenny e as filhas deram o passeio habitual, após o pequeno-almoço. Agora, os póneis tinham substituído as galinhas como principal atractivo para Beth e Tina, que corriam à frente da mãe.

 

Mais devagar recomendou ela. Certifiquem-se de que o Barão não está cá fora.

 

Joe já se encontrava no estábulo e acolheu-as com um sorriso cordial.

 

Bom dia, Mistress Krueger. Olá, meninas.

 

Os póneis apresentavam um aspecto imaculado. As crinas e caudas tinham sido escovadas e reluziam.

 

Preparei-os especialmente para as donas acrescentou ele. Trouxeram açúcar? Ergueu-as nos braços, para poderem dar os pequenos cubos aos animais, e perguntou: Querem sentar-se no dorso deles por uns momentos?

 

É melhor não interveio Jenny. O meu marido não aprova isso.

 

Quero sentar-me no Chocalho disse Tina.

 

O papá deixava acudiu Beth. És má, mamã.

 

Beth!

 

A mamã é má corroborou Tina, de lábios trémulos.

 

Não chores, Tina. A irmã voltou-se para Jenny. Por favor, mamã.

 

Joe olhava-a igualmente com curiosidade.

 

Bem... começou Jenny, hesitante.

 

De súbito, porém, lembrou-se da expressão de Erich quando dissera que Joe exagerava as suas atribuições e reconheceu que não podia dar azo a que a acusasse de ignorar os seus desejos.

 

Amanhã declarou, com firmeza. Falarei com o papá para o convencer. Vamos ver as galinhas.

 

Quero montar o meu pónei persistiu Tina. És uma mamã má!

 

Jenny estendeu o braço e, num gesto reflexo, aplicou-lhe um leve açoite.

 

E tu és uma menina muito atrevida.

 

A garota abandonou o estábulo a chorar, com Beth no seu encalço.

 

Jenny seguiu-as e viu que se encaminhavam para o celeiro, de mãos dadas. Quando se aproximava, ouviu Beth proferir em tom conciliador:

 

Deixa lá, Tina. Havemos de fazer queixa da mamã ao papá.

 

Mistress Krueger!

 

Sim,Joe?

 

Jenny voltou-se e aguardou que ele se acercasse, depois de limpar as lágrimas que acabavam de lhe assomar aos olhos. Estava persuadida de que, quando as garotas lhe pedissem, Erich permitiria que montassem os póneis, embora sem saírem do estábulo.

 

Estive a pensar, Mistress Krueger... Joe parecia hesitante. Temos um novo cachorro, lá em casa, a uns oitocentos metros daqui. Talvez as meninas gostassem de ver o Randy. Servia para se esquecerem dos póneis por uns momentos.

 

É uma excelente ideia. Ela chamou as filhas e agachou-se diante de Tina. Desculpa ter-te batido, Chocalho. Estou tão ansiosa por montar a Moça de Fogo como tu o teu pónei, mas temos de esperar que o papá concorde. O Joe convidou-nos para ir ver o seu cachorro. Querem?

 

Enquanto caminhavam, ele apontava os primeiros sinais da Primavera que se aproximava:

 

Reparem como a neve começa a derreter-se. Dentro de algumas semanas, só haverá lama e a relva principiará a romper. Mister Krueger quer que eu construa um cercado para poderem montar os póneis.

 

A mãe de Joe encontrava-se em casa, pois o pai morrera há vários anos. Era uma mulher corpulenta de mais de cinquenta anos e maneiras cordiais, e, com um sorriso afável, convidou Jenny e as garotas a entrarem. A pequena construção era confortável, num estilo modesto. Diversos objectos que não passavam de recordações cobriam as mesas e nas paredes viam-se fotografias da família penduradas indiscriminadamente.

 

Tenho muito gosto em conhecê-la, Mistress Krueger. O Joe fala da senhora a cada momento. Não admira que a ache bonita, porque o é mesmo. E como se parece com Caroline! A propósito, chamo-me Maude Ekers, mas agradeço que me trate apenas por Maude.

 

Onde está o cãozinho do Joe? perguntou Tina.

 

Vamos para a cozinha indicou Maude.

 

As crianças seguiram-na com ansiedade. O cão parecia uma curiosa combinação de pastor-alemão e perdigueiro e apoiava-se em pernas pouco firmes.

 

Encontrámo-lo na estrada explicou Joe. Alguém o deve ter abandonado. Se eu não aparecesse por casualidade, é natural que morresse enregelado.

 

Está constantemente a trazer animais perdidos para casa disse Maude, meneando a cabeça. Tem o coração mais terno que jamais conheci. Nunca mostrou queda para os estudos, mas é um autêntico mago com os animais. Gostava que tivessem visto o seu cão anterior. Era uma autêntica beldade. E inteligente como poucos.

 

Que lhe aconteceu? perguntou Jenny.

 

Não sabemos. Tentávamos mantê-lo dentro da vedação, mas às vezes escapava-se. Gostava de seguir o Joe até à herdade, o que não era do agrado de Mister Krueger.

 

E com toda a razão apressou-se Joe a interpor. Ele possuía uma cadela de sangue puro e não queria que o Tarpy se aproximasse dela. Mas um dia conseguiu cobrir a Juna, e Mister Krueger ficou fulo. Que foi feito dela? Mister Krueger deu-a a alguém. Disse que não lhe serviria para nada se desse à luz uma ninhada de um rafeiro. E o Tarpy? Ignoramos o seu destino. Um dia, tornou a escapar-se e não o tornámos a ver. Em todo o caso, eu tenho as minhas suspeitas admitiu Maude, com uma expressão sombria. Mãe... advertiu Joe. Erich Krueger ameaçou abatê-lo prosseguiu ela. Não o censuro por se ter enfurecido, se o Tarpy lhe destruiu a dispendiosa cadela, mas ao menos podia ter-te dito alguma coisa. Não te esqueças de que te fartaste de o procurar, cheguei a recear que adoecesses de pesar. Entretanto, as duas garotas agachavam-se junto de Randyn e Tina parecia extasiada. |

 

Podemos ter um cão, mamã?

Hei-de perguntar ao papá. | Continuaram a brincar com o cachorro, enquanto Jenny tomava café com Maude, que não perdeu tempo em começar a interrogá-la. Gostava da mansão? Muito elegante e confortável, não era? Devia ser difícil uma pessoa habituada ao ambiente de Nova Iorque adaptar-se a uma herdade. Com extrema paciência e certa resignação, Jenny assegurou-lhe que não receava coisa alguma nesse capítulo. Caroline disse a mesma coisa volveu Maude. - No entanto, o ramo masculino dos Krueger nunca foi muito sociável, o que torna a vida das esposas um pouco dura. Todas as pessoas da região adoravam Caroline. E respeitavam John Krueger, diga-se de passagem, como acontece no caso de Erich. Mas os Krueger não são muito ternos, nem mesmo para com os entes mais próximos. E não perdoam com facilidade. Quando se zangam, continuam zangados. Jenny compreendeu que a mulher se referia ao papel do irmão no acidente que vitimara Caroline. Por fim, terminou de beber o café e levantou-se.

 

Está a fazer-se tarde.

 

A porta da cozinha abriu-se naquele momento e uma voz áspera, como se as cordas vocais estivessem particularmente tensas, proferiu:

 

Quem temos aqui?

 

O homem aparentava cerca de cinquenta e cinco anos, de olhos congestionados de alcoólico, e era extremamente magro, pelo que a cintura das calças se situava algures em torno das coxas.

 

Fitou Jenny por um momento e, de repente, os olhos semicerraram-se, como se tentasse recordar algo.

 

Deve ser a nova Mistress Krueger de quem tanto tenho ouvido falar.

 

Exacto.

 

Sou Josh Brothers, tio do Joe.

 

O electricista responsável pelo acidente. Jenny pressentiu imediatamente que Erich ficaria furioso se se inteirasse do encontro.

 

Estou a ver porque Erich a escolheu articulou Josh, pausadamente. Virou-se para a irmã e observou: Ninguém diria que não é Caroline, hem? Sem aguardar resposta, dirigiu-se de novo a Jenny: Suponho que ouviu falar do acidente?

 

De facto...

 

Inteirou-se da versão Krueger, sem dúvida. Não da minha. Era óbvio que se preparava para descrever um episódio repetido até à exaustão, no passado. Apesar de estarem a divorciar-se, John era louco por Caroline.

 

A divorciar-se? interrompeu Jenny, abismada. Os pais de Erich iam separar-se"?

 

Ele não lhe falou disso? Sim, gosta de fingir que tal não aconteceu. Circularam rumores muito estranhos, quando ela nem sequer tentou obter a custódia do único filho. No dia do acidente, eu estava a trabalhar no estábulo das vacas, quando Caroline e o filho entraram. Ela ia partir para sempre, naquela tarde. Era o aniversário de Erich e não conseguia conter as lágrimas. Ela mandou-me sair, e foi por isso que pendurei a gambiarra no prego. Ainda a ouvi dizer: "Tal como este pequeno bezerro que tem de ser desmamado da mãe..." Fechei a porta atrás de mim, para que pudessem despedir-se à vontade e, no momento imediato, ele começou a gritar. Luke Garrett tentou reanimá-la com respiração boca a boca, mas todos sabíamos que não havia nada a fazer. Quando escorregou e se agarrou ao cordão da gambiarra ao cair na tina, ela electrocutou-se. Sim, não havia nada a fazer.

 

Pára lá com isso advertiu Maude.

 

Entretanto, Jenny olhava-o com perplexidade. Que motivo levaria Erich a ocultar-lhe que os pais estavam a tratar do divórcio e Caroline tencionava abandonar o lar?

 

Por fim, imersa em reflexões agitadas, despediu-se e saiu com as filhas e Joe.

 

A caminho de casa, este último aventurou timidamente:

 

Mister Krueger não ficava contente se soubesse que conheceu o meu tio e ouviu coisas desagradáveis a seu respeito.

 

Não tenciono dizer-lho prometeu ela.

 

"Se eu tivesse uma pessoa amiga aqui, alguém em quem pudesse confiar", meditava. Recordou-se de como conseguia abordar com Nana todos os problemas que se lhe deparavam e trocar confidências com Fran, depois de as crianças estarem deitadas.

 

Parece impressionada, Mistress Krueger volveu Joe. Espero que o meu tio não a tenha enervado. A minha mãe também não costuma referir-se aos Krueger com ternura, mas agradecia que não se ofendesse.

 

Não te preocupes. No entanto, gostava de te pedir um favor.

 

Todos os que desejar.

 

Quando Mister Krueger não estiver presente, trata-me por Jenny, de contrário ainda acabo por esquecer o meu nome.

 

Chamo-lhe Jenny sempre que penso em si.

 

Óptimo.

 

Jenny soltou uma risada e sentiu-se um pouco mais aliviada.^

 

Ao aperceber-se da expressão quase de veneração no rosto dele, reflectiu: "Se alguma vez me olhar assim diante de

 

Erich, vai ser bonito."

 

À medida que se aproximavam da mansão, Jenny julgou descortinar alguém que os observava da janela do escritório da herdade e lembrou-se de que o marido costumava passar por lá no regresso da cabana.

 

Estugou o passo e, uma vez em casa, preparou sanduíches de queijo e cacau quente, sob as vistas de Tina e Beth, ansiosas por satisfazer as exigências do estômago.

 

Que motivo teria levado Caroline a abandonar o filho? Que percentagem de ressentimento haveria mesclado com o afecto de Erich por ela? Jenny tentou imaginar uma circunstância que a impeliria a separar-se das filhas e não conseguiu.

 

Elas estavam cansadas do longo passeio e adormeceram quase instantaneamente, quando as depositou na cama para a sesta. Todavia, Jenny não se retirou do quarto em seguida e sentou-se junto da janela por uns momentos, dominada por uma sensação inexplicável. Porquê?

 

Por fim, vestiu um casaco e dirigiu-se ao escritório. Clyde sentava-se à secretária, concentrado em documentos e facturas, e, tentando exprimir-se com naturalidade, ela observou:

 

O meu marido ainda não apareceu para almoçar e supus que estivesse aqui a tratar de qualquer assunto urgente.

 

De facto, passou por cá no regresso da compra de géneros, mas só por uns momentos. Disse que a senhora sabia que tencionava ficar na cabana.

 

Preparava-se para sair, quando pousou o olhar na cesta da correspondência.

 

Se vier alguma carta para mim durante a ausência dele, agradecia que mandasse alguém entregar-ma.

 

Sem dúvida, Mistress Krueger. O Erich costuma encarregar-se de levar tudo o que é para si.

 

"Tudo o que é para si..." Ao longo do mês desde que chegara à herdade, embora tivesse escrito a Fran e Mr. Hartley, não recebera nem um simples postal.

 

Deve ter-se esquecido proferiu em voz tensa. Veio muita coisa?

 

Uma carta, a semana passada, dois postais... Não sei bem, ao certo.

 

Hum... E quanto a telefonemas?

 

Telefonou alguém da igreja, a semana passada, por causa de uma reunião. Ele não lhe transmitiu o recado?

 

Com os preparativos para a viagem, deve ter-se esquecido murmurou. Bem, obrigada, Clyde.

 

Regressou a casa, imersa em agitadas cogitações. Entretanto, o céu encobrira-se e começara a nevar, além de que se levantara vento agreste, pelo que o piso, que principiara a amolecer, endureceu de novo e a temperatura era sensivelmente mais baixa.

 

Não te partilharei com ninguém... Jenny. Erich falara muito a sério quando pronunciara a advertência. Quem teria telefonado de Nova Iorque? Kevin, para anunciar a vinda ao Minnesota? Nesse caso, que motivo levara o marido a ocultar-lho?

 

Quem escrevera? Mr. Hartley? Fran?

 

"Não posso permitir que isto aconteça", decidiu para consigo. "Tenho de fazer alguma coisa."

 

Jenny! Mark Garrett acabava de sair do celeiro e, em largas passadas, cobriu a distância que os separava em poucos segundos. Há algum tempo que não tinha ensejo de a cumprimentar. Como vão as coisas?

 

Suspeitava de algo? Deveria ela discutir com ele um assunto relacionado com Erich? Não seria justo para este último.

 

No entanto, havia uma maneira de proceder mais ou menos inócua. Assim, com um sorriso que se esforçou por que parecesse natural, replicou:

 

O melhor possível. Ainda bem que o encontro, porque me pode ser útil. Recorda-se de falarmos na sua comparência lá em casa com a sua amiga... Emily, salvo erro... para jantar?

 

Perfeitamente.

 

Que diz ao dia oito de Março? É o aniversário do Erich e quero promover uma pequena festa.

 

Tenho de a prevenir de uma coisa. Mark enrugou a fronte, com uma ponta de apreensão. Ele continua muito sensível a essa data.

 

Eu sei. Jenny fez uma pausa, olhando-o pensativamente. Mas isso foi há vinte e cinco anos. Não será altura de se conformar com a perda da mãe?

 

Proceda com prudência recomendou ele em tom pausado, como se pesasse as palavras. Uma pessoa como o Erich leva o seu tempo a apagar recordações tão pungentes. Esboçou um sorriso. Em todo o caso, creio que não tardará muito a compreender o que possui de bom.

 

Então, posso contar convosco?

 

Sem dúvida. De resto, a Emily está ansiosa por conhecê-la.

 

Também estou ansiosa por conviver com pessoas da região.

 

Despediram-se e Jenny entrou em casa, no momento em que Elsa se preparava para sair.

 

As meninas ainda estão a dormir. Amanhã, posso ir às compras, antes de vir. Já fiz a lista.

 

A lista?

 

Sim, quando se ausentou com as meninas, esta manhã, Mister Krueger apareceu e disse que eu passava a ocupar-me disso.

 

Que disparate! protestou Jenny. O Joe pode levar-me no carro.

 

Mister Krueger também disse que ficava com as chaves.

 

Compreendo. Preocupou-se em evitar que a mulher se apercebesse da sua perplexidade. Está bem, obrigada, Elsa.

 

Quando a porta se fechou atrás da outra, notou que tremia. Erich teria levado as chaves do carro para se certificar de que Joe não o utilizava, ou haveria a possibilidade de suspeitar de que na verdade fora ela? Olhou em redor, na cozinha. No apartamento em que vivera, sempre que se enervava acalmava-se executando alguma tarefa de limpeza da casa. Todavia, a mansão achava-se positivamente imaculada.

 

Fixou os olhos nas caixas metálicas em cima do balcão, que ocupavam muito espaço e raramente eram usadas. Todos os aposentos da casa eram formais, frios e solenes. No entanto, faziam parte do seu novo lar. Erich decerto não se oporia a que imprimisse um pouco da sua personalidade ao ambiente.

 

Transferiu as caixas para uma prateleira da despensa. A mesa redonda e as cadeiras de carvalho estavam situadas exactamente no meio da cozinha. Junto da janela da parede sul, ficariam infinitamente mais utilitárias devido à proximidade do balcão, e, durante as refeições, seria agradável poder contemplar os campos. Por conseguinte, sem se preocupar com o facto de os pés da mesa riscarem o chão, arrastou-a para lá.

 

O tapete que se encontrava no quarto das garotas fora levado para o sótão, e Jenny decidiu que, se o dispusesse nas proximidades do fogão de ferro fundido e agrupasse o sofá, a cadeira e sofá da biblioteca, obteria uma espécie de refúgio aprazível na área da cozinha.

 

Animada de energia nervosa, dirigiu-se à sala, recolheu diversos objectos ornamentais dispersos pelos móveis e guardou-os num armário. Graças a um certo esforço, conseguiu retirar os cortinados bordados que impediam a entrada do sol na sala de jantar. O sofá da sala de estar era excessivamente pesado, mas logrou mudá-lo de lugar, apesar de ter de desenvolver esforços prodigiosos. No final, pareceu-lhe tudo mais arejado e convidativo.

 

Em seguida, percorreu os restantes aposentos do rés-do-chão, ao mesmo tempo que tomava mentalmente nota de ulteriores modificações. Depois, dobrou os cortinados cuidadosamente e levou-os para o sótão, onde não teve dificuldade em descobrir o tapete. Como era pesado, se não conseguisse transferi-lo para baixo sozinha, pediria ajuda a Joe.

 

Verificou, porém, que não se desembaraçaria do empreendimento sem ter de recorrer ao rapaz e olhou em volta com curiosidade.

 

Atraiu-lhe a atenção uma caixa com artigos de toucador que ostentava as iniciais CBK e acercou-se para a examinar. Estaria fechada à chave? Após breve hesitação, levantou os dois fechos e abriu-a sem dificuldade.

 

Havia uma infinidade de artigos de utilidade pessoal numa espécie de tabuleiro. Cremes, produtos de maquilhagem e sabonetes de pinho. Por baixo, viu uma agenda encadernada, cuja data na capa tinha vinte e cinco anos de existência. Folheou-a distraidamente, inteirando-se do conteúdo sem interesse especial. "2 de Janeiro, dez horas da manhã, conferência professor Erich. 8 de Janeiro: jantar, Luke Garrett, os Meier, os Behrend. 10 de Janeiro: devolver livros biblioteca." Abriu-a um pouco mais adiante. "2 de Fevereiro: gabinete juizes, nove da manhã." Tratar-se-ia da audiência relativa ao divórcio? "22 de Fevereiro: encomendar stick hóquei para E." E a última inscrição: "8 de Março: dia anos Erich." Fora traçada a tinta azul-clara. A seguir, com uma caneta diferente: "Sete horas da tarde: voo 241 noroeste, Minneapolis para São Francisco." Um bilhete não utilizado, de ida, apenso a essa página, com uma anotação por baixo.

 

No topo desta última, figurava um nome: "EVERETT BONARDI." O pai de Caroline, sem dúvida. Jenny leu o texto inscrito com letra irregular: "Caroline, querida: A tua mãe e eu não estamos surpreendidos por te separares do John. Preocupamo-nos por causa do Erich, mas depois de lermos a tua carta concordamos que é preferível que fique com o pai. Desconhecíamos por completo as verdadeiras circunstâncias. Não temos passado muito bem de saúde, mas ansiamos por ter-te a nosso lado. Beijos."

 

Dobrou o papel, tornou a guardá-lo na agenda e fechou a caixa. Que quereria Everett Bonardi dizer com "Desconhecíamos por completo as verdadeiras circunstâncias"?

 

Abandonou o sótão e foi espreitar no quarto das filhas, que continuavam a dormir. De súbito, experimentou uma contracção na garganta. Na parte superior de cada almofada, numa posição que parecia constituir um ornamento do cabelo, havia um pequeno sabonete redondo de pinho, cujo odor pairava na atmosfera.

 

Não são uns amores? sussurrou uma voz junto do seu ouvido.

 

Jenny rodou nos calcanhares, demasiado apavorada para conseguir gritar. Um braço magro e ossudo rodeou-lhe a cintura, enquanto a voz suave de Rooney Toomis acrescentava:

 

Gostamos tanto dos nossos bebés, não é verdade, Caroline?

 

Jenny conseguiu, com certo esforço, fazer a mulher sair do quarto sem acordar as filhas. Rooney não opôs resistência, embora não lhe retirasse o braço da cintura, o que tornou a descida da escada um pouco difícil.

 

Que diz a uma chávena de chá? sugeriu Jenny, procurando exprimir-se em tom normal, ao mesmo tempo que se perguntava como teria Rooney conseguido entrar. Provavelmente conservava uma chave da casa.

 

A mulher ingeriu a bebida em silêncio, sem desviar os olhos da janela.

 

A Arden adorava o bosque acabou por murmurar. Apesar de saber que não devia passar da orla, estava sempre a trepar às árvores. Sobretudo àquela apontou para um carvalho enorme, para observar os pássaros. Cheguei a dizer-lhe que foi presidente do clube 4-H durante um ano? Fez uma pausa e volveu o olhar para Jenny. Você não é Caroline articulou, intrigada.

 

Pois não. Chamo-me Jenny.

 

Tem razão, desculpe. Rooney suspirou. Acho que me tinha esquecido. Deu-me uma daquelas coisas periódicas. Julgava que ia chegar atrasada ao trabalho, por ter adormecido. Caroline não se importava, mas Mister Krueger era muito exigente, em termos de pontualidade.

 

E você tinha a chave da casa?

 

Esqueci-me dela. Por sorte, a porta não estava trancada. Mas já não tenho a chave, pois não?

 

Jenny tinha a certeza de que a porta da cozinha se encontrava fechada à chave. Por outro lado... Resolveu não insistir naquele ponto.

 

Fui lá acima para fazer as camas, mas não era preciso. Depois, vi Caroline. Ou antes, vi-a a si.

 

E colocou os sabonetes de pinho nas almofadas das crianças?

 

Não. Deve ter sido Caroline. Era ela que adorava esse perfume.

 

Não merecia a pena insistir. A mente da mulher achava-se imersa numa confusão demasiado densa para poder separar a imaginação da realidade.

 

Costuma ir à igreja ou a reuniões, Rooney? Nunca a visitam pessoas amigas?

 

A interpelada abanou a cabeça e explicou:

 

Ia a todas as actividades com a Arden: à 4-H, às peças teatrais do liceu, aos concertos... Mas agora já não. O olhar começou a apresentar uma expressão mais desanuviada. Eu não devia estar aqui. Erich não vai gostar. As faces contraíram-se, como se a dominasse medo repentino. Promete não lhe dizer, nem ao Clyde?

 

Com certeza que não digo.

 

É como Caroline: bonita, amável e terna. Oxalá não lhe aconteça nada. Era uma pena, se acontecesse. Perto do fim, ela ansiava por abandonar isto. Recordo-me de a ouvir dizer: "Tenho o pressentimento de que me vai acontecer alguma coisa horrível. Estou completamente desamparada." Com estas palavras, Rooney levantou-se para sair.

 

Não trouxe casaco?

 

Devo ter-me esquecido.

 

Um momento. Jenny foi buscar o seu casaco térmico ao armário. Vista isto. Repare, assenta-lhe perfeitamente. Abotoe a gola, que faz muito frio.

 

Erich não lhe dissera quase a mesma coisa, no primeiro almoço juntos no salão de chá em Nova Iorque? Teriam passado apenas dois meses?

 

Rooney olhou em volta, indecisa.

 

Se quiser, ajudo-a a pôr a mesa no seu lugar, antes que Erich chegue!

 

Agora, passa a ficar onde está.

 

Caroline também a levou para o pé da janela, mas John acusou-a de se querer exibir aos homens da herdade.

 

Que respondeu ela?

 

Nada. Enfiou a capa verde e foi sentar-se na cadeira de balouço, lá fora. Como no quadro. Uma ocasião, disse-me que gostava de se sentar lá fora voltada para oeste, porque os pais viviam para aqueles lados. Tinha muitas saudades deles.

 

Nunca vinham visitá-la?

 

Nunca. No entanto, Caroline gostava da herdade. Tinha crescido na cidade, mas dizia com frequência: "O campo é muito bonito, muito especial no efeito que exerce em mim."

 

Mas acabou por querer abandoná-lo?

 

Aconteceu uma coisa e decidiu partir.

 

O quê?

 

Não sei. Rooney baixou os olhos. Este casaco é muito bonito.

 

Então, pode ficar com ele. Quase nunca o visto.

 

E posso fazer as blusas para as suas meninas?

 

Sem dúvida. Gostava de ser sua amiga, Rooney. Jenny conservou-se à porta da cozinha, enquanto a mulher se afastava, encolhida para enfrentar o vento agreste.

 

Era a expectativa que a atormentava mais. Estaria Erich zangado? Ter-se-ia apenas concentrado de tal modo na pintura que não queria interromper a inspiração com a comparência em casa? Deveria Jenny aventurar-se no bosque, tentar localizar a cabana e enfrentá-lo?

 

Não, afigurava-se-lhe desaconselhável.

 

Os dias pareciam-lhe intermináveis. As próprias filhas começaram a impacientar-se. "Onde está o papá?", era a pergunta que faziam a cada momento. Naquele breve lapso de tempo, Erich tornara-se imensamente importante para elas.

 

"Oxalá que Kevin não volte a procurar-me", pensava com insistência. "Queira Deus que nos deixe em paz."

 

Passava os dias a preocupar-se com a casa, modificando a decoração, umas vezes radicalmente e outras apenas num pormenor quase insignificante. Elsa ajudou-a a retirar os pesados cortinados que restavam, não sem nítida relutância, até que Jenny julgou conveniente adverti-la com firmeza:

 

Já disse que os quero todos fora, e escusa de supor que consultarei Mister Krueger previamente.

 

Fora, a herdade apresentava-se cinzenta e deprimente. Enquanto a neve a cobrira, tivera uma beleza especial, e ela estava convencida de que, quando chegasse a Primavera, a paisagem voltaria a ser deslumbrante. Agora, porém, a lama congelada, os campos castanhos, as árvores sombrias e o céu encoberto contribuíam para a entristecer.

 

Erich regressaria a casa antes do seu aniversário? Dissera-lhe que se encontrava sempre presente na herdade, naquela data. Deveria cancelar o jantar que planeara?

 

Os serões sem ele eram infinitos. Em Nova Iorque, depois de as filhas se deitarem, ela costumava ler na cama, com uma chávena de chá ao seu alcance, na mesa-de-cabeceira. A biblioteca da mansão achava-se excelentemente abastecida, mas os volumes que continha não convidavam a uma leitura despreocupada. Estavam dispostos em secções uniformes, mais em conformidade com o tamanho e cor do que por autores e temas. Para Jenny, exerciam o mesmo efeito que o mobiliário com cobertura de plástico, e detestava tocar-lhes. O seu problema foi solucionado quando, numa das visitas ao sótão, descobriu um caixote com a indicação "LIVROS-CBK", do qual retirou com alegria duas obras conhecidas do seu agrado.

 

. Mas embora a leitura se prolongasse, cada vez lhe era mais difícil adormecer. Toda a vida bastara-lhe fechar os olhos para mergulhar em sono profundo durante horas. Agora, acordava com frequência de sonhos indefinidos e, não obstante, assustadores, em que se moviam personagens sombrias.

 

A 17 de Março, na sequência de uma noite particularmente agitada, tomou uma decisão. Necessitava de mais exercício. Após o almoço, procurou Joe e foi encontrá-lo no escritório.

 

Quero aprender a montar, a partir de hoje anunciou com firmeza.

 

Vinte minutos mais tarde, equilibrava-se no dorso da égua e tentava obedecer às indicações de Joe para se manter erecta.

 

Descobriu que experimentava um prazer profundo. Esqueceu-se do frio, do vento agreste, do facto de os músculos começarem a ficar doridos e das marcas das rédeas nos dedos.

 

Tu, ao menos, concede-me uma oportunidade segredava a Moça de Fogo. É provável que cometa erros, mas sou novata na matéria.

 

Transcorrida uma hora, principiou a sincronizar os movimentos do corpo com os da montada. Em dado momento, viu que Mark a observava e acenou-lhe.

 

Está com uma figura impecável declarou ele. É a primeira vez que monta?

 

A primeiríssima. Jenny preparou-se para desmontar e ele apressou-se a segurar a brida.

 

É pelo outro lado que se desce advertiu.

 

Tem razão. Ela saltou para o chão com facilidade.

 

Foi muito bem aprovou Joe.

 

Obrigada. A próxima lição pode ser na segunda-feira. De acordo?

 

Quando quiser.

 

Mark acompanhou-a a casa.

 

O Joe tornou-se um seu admirador. Haveria uma sugestão de aviso na voz?

 

É bom instrutor e penso que o Erich ficará contente quando souber que aprendo a montar replicou Jenny, com um desprendimento forçado. Pelo menos, há-de surpreender-se.

 

Duvido. Esteve a observá-la por um bocado.

 

A observar-me?

 

Sim, durante quase meia hora, do bosque. Supus que não se aproximava para não a enervar.

 

Onde está agora?

 

Entrou em casa por uns momentos e depois regressou à cabana.

 

Ele esteve em casa? estranhou, consciente da estupefacção que se transmitia à voz.

 

Mark deteve-se, segurou-lhe o braço e voltou-a para si.

 

Que se passa, Jenny?

 

Encontravam-se quase à entrada, e ela proferiu numa inflexão tensa:

 

Tem estado na cabana desde que voltou de Atlanta e confesso que me sinto só. Habituada a um meio movimentado, a solidão e isolamento perturbam-me, por vezes.

 

Esperemos que esse estado de espírito não se agrave até amanhã. De qualquer modo, tentaremos animá-la. A propósito: tem a certeza de que quer que venhamos jantar?

 

A certeza, não tenho, porque nem sequer sei se o Erich estará em casa. E se o transferíssemos para o dia treze? Assim, celebrava-se o aniversário à parte. Se ainda não tiver regressado nessa altura, telefonarei e vocês decidirão se querem vir ou preferem ir divertir-se para outro lado.

 

Viremos, esteja o Erich em casa ou não. Ele segurou-lhe ambas as mãos. Aqui para nós, ele costuma implicar comigo, quando lhe acodem estas fases. No entanto, ao livrar-se delas, revela todas as suas boas facetas: inteligência, generosidade, talento, bondade.

 

Com um leve sorriso, apertou-lhas e afastou-se. Jenny entrou em casa, com um suspiro de resignação. Elsa preparava-se para sair e Tina e Beth sentavam-se no chão, entretidas com lápis de cor.

 

O papá trouxe-nos mais livros para colorir informou Beth. Não são bonitos?

 

Mister Krueger deixou um bilhete para a senhora. Elsa indicou um sobrescrito fechado em cima da mesa.

 

Jenny leu-lhe a curiosidade nos olhos e guardou-o na algibeira, limitando-se a murmurar:

 

Obrigada.

 

Aguardou que a mulher saísse e voltou a pegar nele para o abrir. A folha de papel coberta de caracteres enormes continha uma única frase: "Devias ter esperado para aprender a montar comigo."

 

Mamã, mamã! Beth puxava-lhe a manga do casaco. Pareces agoniada.

 

Tentando sorrir, Jenny baixou os olhos para as filhas e viu que Tina franzia os lábios, prestes a chorar.

 

Não é nada, meus amores articulou, amarrotando o bilhete e fazendo-o desaparecer na algibeira. Foi uma tontura passageira.

 

Na verdade, acudira-lhe uma espécie de náusea ao ler as palavras glaciais e ominosas, traçadas na letra inconfundível do marido. "Isto não pode ser verdade", reflectia. "Não quer que vá às reuniões da paróquia. Não me deixa utilizar o carro.

 

Agora, nem posso aprender a montar, enquanto se refugia no bosque para pintar."

 

"Não estragues o nosso sonho, Erich", suplicou para consigo. "É impossível teres tudo. Não podes ocultar-te para pintar e esperar que fique imóvel numa cadeira à tua espera. Não acredito que sejas ciumento ao ponto de me impedires de proceder com sinceridade para contigo."

 

Olhou em volta, quase desesperada. Devia recolher as suas coisas e regressar a Nova Iorque com as filhas? Se subsistia alguma esperança de evitar a destruição irreversível do seu relacionamento, impunha-se que ele se aconselhasse com alguém para dominar a atitude de proprietário que assumia.

 

Mas para onde iria? E com que dinheiro?

 

Não dispunha de um único dólar na carteira. Por conseguinte, não possuía fundos, nem lugar aonde se acolher ou emprego. E, sobretudo, não queria abandonar o marido.

 

De súbito, receou desmaiar e subiu à casa de banho, onde passou água fria pelo rosto, ao mesmo tempo que observava a expressão lívida no espelho.

 

Mamã. Mamã!

 

Tina e Beth tinham-na seguido e encontravam-se no corredor. Jenny ajoelhou junto delas e abraçou-as com fervor.

 

Magoas-me, mamã! protestou Tina.

 

Desculpa, Chocalho. O contacto com os pequenos corpos reanimou-a. Arranjaram uma mãe brilhante, não haja dúvida...

 

A tarde escoou-se com lentidão. Para passar o tempo, Jenny sentou-se com as garotas ao órgão e começou a ensinar-lhes a localizar as notas. Sem os pesados cortinados, era possível olhar pela janela da sala e contemplar o pôr do Sol. As nuvens tinham-se afastado e o céu apresentava-se friamente belo, nas tonalidades malva, laranja, ouro e rosa.

 

Por fim, deixou as filhas a martelar o teclado e encaminhou-se para a porta da cozinha que comunicava com o terraço a poente. Ignorando o frio, saiu para admirar os derradeiros clarões do dia, até que começou a escurecer.

 

Um movimento no bosque despertou-lhe a atenção e ela semicerrou as pálpebras, para tentar ver melhor. Alguém a observava, um vulto na sombra, quase totalmente encoberto pelo tronco do carvalho a que Arden costumava trepar.

 

Quem está aí? perguntou com rispidez.

 

O vulto retrocedeu para o arvoredo, como se não quisesse ser identificado.

 

Quem está aí? repetiu ela, e, unicamente consciente da intrusão na sua intimidade, desceu os degraus do terraço em direcção ao bosque.

 

Erich emergiu da sombra e começou a correr para ela, de braços estendidos.

 

Mas foi uma simples brincadeira, querida. Como podes ter imaginado outra coisa? Ele ergueu os olhos do bilhete amarfanhado que Jenny acabava de lhe mostrar e atirou-o ao lume. Pronto, desapareceu.

 

Entretanto, ela olhava-o com estranheza. Não deixava transparecer o mínimo nervosismo e sorria com naturalidade.

 

Custa-me a crer que o tomasses a sério acrescentou ele. Na verdade, até pensei que ficarias enaltecida por fingir que tinha ciúmes.

 

Erich! No entanto, enlaçou-a e pousou a face na dela.

 

Huum, que contacto tão delicioso!

 

Nem uma palavra acerca do facto de não se terem visto ao longo de uma semana. E o bilhete não fora uma simples brincadeira.

 

Por um momento, conservou-se frígida. Prometera a si própria esclarecer a situação de uma vez por todas; as ausências, o ciúme, o desaparecimento do correio, mas custava-lhe provocar uma discussão, pois na realidade tivera saudades dele. De repente, a casa parecia readquirir vida.

 

As garotas tinham ouvido vozes e irromperam na sala.

 

Papá, papá!

 

Ouvi-as tocar, suas mariolas. Erich ergueu-as nos braços. Em breve, terão de começar a aprender a sério.

 

"Mark tem razão", cogitava Jenny. "Preciso de me munir de uma boa dose de paciência e dar tempo ao tempo."

 

O jantar revestiu-se de um clima festivo. Ela preparara uma ementa apetitosa e ele foi buscar uma garrafa de Chablis à adega.

 

Cada vez é mais difícil trabalhar na cabana queixou-se. Em especial, quando penso que perco refeições como esta. Beliscou levemente a face de Tina. Não é divertido permanecer longe da família.

 

E do lar. Jenny julgou o momento apropriado para aludir às alterações que introduzira. Não te pronunciaste sobre as minhas mudanças.

 

Sou de compreensão lenta. Deixa-me assimilá-las a pouco e pouco.

 

Reagia melhor do que ela previra. Com um leve suspiro de alívio, levantou-se, contornou a mesa e rodeou-lhe o pescoço com os braços.

 

Tinha tanto medo de que ficasses aborrecido... Beth, que acabava de abandonar a mesa, reapareceu para perguntar:

 

Mamã gostas mais deste papá que do outro?

 

Jenny deplorou que a filha se lembrasse de abordar aquele tópico num momento tão pouco oportuno e tentou desesperadamente encontrar uma resposta conveniente. No entanto, só lhe ocorreu a verdade.

 

Gostava do outro quase apenas por tua causa e da Tina. Porque queres saber? Virou-se para Erich. Há semanas que não falavam no Kevin.

 

Beth apressou-se a apontar para ele e informar:

 

Porque este papá me perguntou se gostava mais dele que do outro.

 

Não me parece próprio discutir isso com as crianças, Erich.

 

Concordo contigo admitiu ele, algo embaraçado. Creio que estava ansioso por ver se a recordação dele começava a atenuar-se. Pôs-se de pé e abraçou-a. E a tua recordação, querida?

 

Jenny levou mais tempo do que o habitual a dar banho às filhas. Afigurava-se-lhe calmante observar o seu prazer destituído de complicações, enquanto chapinhavam na banheira. Por fim, envolveu-as em espessas toalhas e friccionou os pequenos corpos. Quando lhes abotoava o pijama, reparou que os dedos tremiam. "Estou a ficar numa pilha de nervos", reconheceu para consigo. "Sinto-me tão perturbada que me acode uma noção de culpa à minha observação do Erich. Maldito Kevin..." Em seguida, as garotas iniciaram as orações habituais.

 

Deus proteja a mamã e o papá entoou Tina. Fez uma pausa e perguntou: Pedimos que proteja também o outro papá?

 

Jenny mordeu os lábios. Fora Erich que principiara aquilo. Agora, ela via-se impossibilitada de dizer às filhas que não incluíssem Kevin nas suas orações. Em todo o caso...

 

Porque não Lhe pedem que proteja todos? sugeriu. Enquanto lhes aconchegava a roupa da cama, reflectia que cada noite que passava sentia mais relutância em voltar lá para baixo. Quando estava só, a casa parecia demasiado grande e silenciosa. Nos dias ventosos, registavam-se uivos ameaçadores no arvoredo que cortavam a quietude.

 

E agora que Erich voltara, ela não sabia o que devia esperar. Ficaria ou regressaria à cabana?

 

Quando entrou na cozinha, viu que ele fizera café.

 

Elas deviam parecer-te muito sujas, para lhes consagrares tanto tempo.

 

Jenny decidira pedir-lhe as chaves do carro, todavia ele não lhe concedeu a oportunidade. Pegou no tabuleiro com o serviço de café e propôs:

 

Sentemo-nos na sala da frente, para eu absorver as tuas alterações.

 

Jenny descreveu a operação a que se dedicara, salientando que se limitara a mudar de lugar alguns móveis e retirar os objectos menos interessantes, para permitir um melhor realce das peças mais valiosas.

 

Onde guardaste tudo?

 

Os cortinados levei-os para o sótão e os objectos pequenos coloquei-os numa prateleira da despensa. Não achas preferível a mesa de mogno por baixo de Recordação de Caroline?

 

O estofo do sofá sempre me pareceu dissonante, tão perto do quadro.

 

É possível.

 

Ela não conseguia determinar a natureza da reacção e, com certo nervosismo, procurou preencher o silêncio que se estabelecera com comentários banais.

 

Não te parece que, com a luz a incidir desta maneira, o rapaz se vê melhor? Da outra, o rosto ficava na sombra.

 

Isso é mais impressão tua que outra coisa. O rosto da criança não figura em primeiro plano. Devias sabê-lo, como antiga funcionária de uma galeria de arte proeminente. E Erich fez seguir as últimas palavras de uma leve risada.

 

Pretenderia incutir-lhes um aspecto humorístico? Jenny pegou na chávena e apercebeu-se de que a mão tremia. No instante imediato soltou-se-lhe dos dedos e o café verteu-se no sofá e na carpeta oriental.

 

Porque estás tão nervosa, querida? O semblante dele contraiu-se com sulcos de apreensão, enquanto principiava a absorver o líquido com o guardanapo.

 

Não esfregues advertiu ela, correndo para a cozinha, a fim de se munir de um pano e um frasco de tira-nódoas, que começou a aplicar.

 

Passados uns minutos, soltou um suspiro de alívio.

 

Creio que desapareceu quase tudo declarou, endireitando-se com lentidão. Desculpa.

 

Não te preocupes com isso. Gostava era de saber porque estás enervada. Sim, porque não restam dúvidas a esse respeito. Tomemos o caso do bilhete, por exemplo. Umas semanas atrás, terias compreendido que não passava de uma brincadeira da minha parte. O sentido do humor constitui uma das facetas mais encantadoras da tua personalidade. Não o percas, por favor.

 

Lamento... Reconheceu que ele tinha razão e resolveu mencionar o encontro com Kevin. O verdadeiro motivo do meu...

 

A campainha do telefone interrompeu-a.

 

Atende tu, por favor, Jenny.

 

Não deve ser para mim.

 

Nunca se sabe. O Clyde diz que, a semana passada, cortaram a ligação várias vezes, por não quererem deixar um recado gravado.- Foi por isso que lhe pedi que não o desligasse, esta noite.

 

Ela precedeu-o em direcção à cozinha, percorrida por uma sensação de fatalidade, convencida de que era Kevin.

 

Até que enfim que oiço a tua voz e não aquela maldita máquina de gravar! O tom dele denunciava descontracção absoluta. Como estás?

 

Bem, obrigada, Kev. Jenny sentia os olhos de Erich cravados no seu rosto, além de que se inclinava para o aparelho, a fim de escutar as palavras proferidas do outro lado do fio. Que pretendes?

 

Que partilhes da boa nova. Pertenço oficialmente ao elenco da companhia do Guthrie Theater.

 

Parabéns replicou friamente. Mas não quero que me telefones. Proíbo-te mesmo que o faças. Erich tem razão a esse respeito e contraria-o que contactes comigo.

 

Telefono as vezes que me apetecer. Comunica-lhe que pode rasgar os documentos de adopção, porque vou levar o assunto aos tribunais para a suspender. Não me oponho a que as miúdas fiquem contigo e pagarei uma pensão, mas continuarão a usar o nome de MacPartland. Quem sabe? É possível que, um dia, a Tina e eu interpretemos um sketch de Tatum e Ryan ONeal. Está ali uma grande actriz em embrião. Bem, não te tomo mais tempo. Voltarei a dar notícias. Adeusinho.

 

Ele pode suspender a adopção? murmurou ela, pousando o auscultador num gesto automático.

 

Pelo menos, pode tentar, mas duvido que seja bem sucedido. Erich exprimia-se em tom glacial e os olhos exibiam uma expressão acerada.

 

Um sketch de Tatum e Ryan O'Neal, santo Deus! Eu quase o admiraria, se acreditasse que estima as filhas sinceramente. Mas isso!---

 

Eu predisse que cometias um erro ao deixá-lo sugar-te dinheiro. Se lhe movesses um processo por não te pagar a pensão, tinhas-te livrado dele há dois anos.

 

Como sempre, tinha razão. De súbito, Jenny sentiu-se infinitamente cansada e a náusea que experimentara antes reapareceu.

 

Vou-me deitar anunciou repentinamente. Ficas em casa, esta noite?

 

Ainda não sei.

 

Muito bem.

 

Começou a encaminhar-se para a escada, mas ele alcançou-a antes de acabar de cruzar o vestíbulo.

 

Jenny...

 

Voltou-se lentamente.

 

Sim, Erich?

 

Eu sei que não tens culpa de MacPartland te importunar. Os olhos dele revelavam ternura. Não devia aborrecer-me contigo.

 

Dificultas tudo muito mais, quando tal acontece.

 

Havemos de superar esta fase. Deixa passar os próximos dias e estarei então em condições de arrepiar caminho. Tenta compreender. Talvez seja porque a minha mãe prometeu estar sempre presente no meu aniversário. A depressão que me acode nesta altura resulta sem dúvida disso. Sinto a sua proximidade... a sua perda. Procura perdoar-me, quando te magoo. Não o faço voluntariamente. Amo-te.

 

Abraçaram-se com arrebatamento e, após um silêncio, Jenny suplicou:

 

Que seja o último ano que reages assim. Por favor... Vinte e cinco anos. Um quarto de século. Caroline teria agora cinquenta e sete e continuas a vê-la como uma jovem que morreu em circunstâncias trágicas. Foi, de facto, uma tragédia, mas pertence ao passado. Regressa à vida, Erich. Deixa-me partilhar a tua vida, mas realmente. Recebe os teus amigos. Mostra-me o teu estúdio. Compra-me um carro pequeno para as minhas voltas, ir a uma galeria de arte ou levar as pequenas ao cinema, quando estás a pintar.

 

Queres poder encontrar-te com Kevin, hem?

 

Oh, meu Deus! Desprendeu-se com um movimento brusco. Deixa-me ir para a cama. Na verdade, não me sinto bem.

 

Ele não a seguiu ao quarto. Antes, porém, ela visitou o das filhas, que dormiam profundamente.

 

Quando entrou no quarto principal, o odor a pinho acudiu-lhe imediatamente às narinas, e parecia mais intenso que habitualmente. Seria porque se sentia indisposta? Pousou os olhos na saboneteira de cristal e decidiu transferi-la para o quarto de hóspedes, no dia seguinte. Desejava ardentemente que Erich passasse a noite em casa. E se Kevin começasse a importuná-los com telefonemas constantes e suspendesse a adopção? Se, por outro lado, o tribunal lhe concedesse o direito de visitar as filhas periodicamente, a situação tornar-se-ia insustentável para Erich e o casamento acabaria por naufragar.

 

Meteu-se na cama e abriu o livro, mas não conseguia concentrar-se. Sentia as pálpebras pesadas e o corpo doía-lhe em lugares pouco usuais. Joe prevenira-a de que a lição de equitação produziria algumas mazelas. "Há-de ter dores em músculos que nem sabia que possuía", afirmou.

 

Por fim, apagou a luz. Pouco depois, ouviu passos no corredor. Erich? Soergueu-se, todavia o som continuou em direcção ao sótão. Alguns minutos mais tarde, notou que ele descia, com ruídos surdos, como se arrastasse um corpo pesado.

 

Preparava-se para se levantar, a fim de averiguar o que ocorria, quando detectou sons em baixo, como se móveis fossem mudados de lugar.

 

Fez-se-lhe luz no espírito. O marido fora ao sótão buscar a caixa que continha os cortinados e agora colocava a mobília nos sítios anteriores.

 

De manhã, quando desceu, Jenny viu-os de novo pendurados, enquanto tudo o resto reocupara as posições do passado e as plantas haviam desaparecido. Mais tarde, descobriu-as no contentor do lixo, atrás do celeiro.

 

Jenny percorreu lentamente os aposentos do rés-do-chão pela segunda vez. O marido não cometera a mínima omissão ao repor os objectos nos lugares primitivos, incluindo uma hedionda escultura que representava um mocho, e ela guardara num armário pouco utilizado, junto do fogão.

 

Embora calculasse o que devia esperar, a rejeição absoluta dos seus desejos e gosto chocava-a. Por último, fez café e voltou para a cama. Tremendo, puxou os cobertores para o peito e reclinou-se na almofada. Seria mais um dia frio e tenebroso. O céu estava encoberto e formara-se neblina intensa, o que não impedia que soprasse vento forte.

 

Era o dia oito de Março, trigésimo quinto aniversário de Erich e vigésimo quinto da morte de Caroline. Porventura, naquela última manhã, ela acordara amargurada por ter de se separar do seu único filho? Ou, ao invés, entretivera-se a contar as horas que faltavam para poder abandonar aquela casa?

 

Passou os dedos pela fronte, dominada por uma dor surda. O sono revelara-se mais uma vez desprovido de repouso. Sonhara com Erich, sempre com a mesma expressão no rosto, uma expressão que ela não conseguia entender. Quando regressasse a casa teriam uma conversa clara. Pedir-lhe-ia que a acompanhasse a alguém que os pudesse aconselhar. Se ele recusasse, ponderaria a possibilidade de partir para Nova Iorque com as filhas.

 

Onde se instalariam?

 

Talvez o seu antigo emprego estivesse disponível e Kevin lhe emprestasse dinheiro para as passagens de avião. Emprestasse! Devia-lhe centenas de dólares. Fran deixá-las-ia instalarem-se no seu apartamento durante uma temporada. Era penoso fazer semelhante pedido a alguém, mas a amiga concordaria sem relutância.

 

"Não tenho um cêntimo, mas não é isso que me preocupa", reflectiu. "Não quero abandonar o Erich. Amo-o. Desejo passar o resto da minha vida com ele."

 

Continuava com frio e decidiu que um banho de chuveiro quente o atenuaria. Depois, vestiria a camisola de argyll que guardara no armário.

 

Quando o abriu, compreendeu o que a preocupara subconscientemente.

 

Ao levantar-se, retirara de lá o roupão. Contudo, na véspera, deixara-o no banco do toucador, agora no lugar usual, meticulosamente direito.

 

Não admirava que tivesse sonhado com o rosto de Erich. Decerto se apercebera subconscientemente da sua presença no quarto. Porque não ficara? Jenny estremeceu. Sentia a pele arrepiada, mas não era de frio. Tinha medo. De Erich, seu próprio marido? "Evidentemente que não", disse a si mesma. "Receio a sua rejeição. Veio ter comigo e depois abandonou-me." Teria regressado à cabana durante a noite, ou dormira em casa?

 

Enfiou o roupão, calçou os chinelos e saiu para o corredor. A porta do quarto da juventude dele encontrava-se fechada. Apurou os ouvidos, mas não detectou o menor som. Por fim fez rodar o puxador e espreitou.

 

Erich estava encolhido na cama, envolto na colcha de desenhos alegres, achando-se visível apenas a parte esquerda da cabeça até à orelha. Jenny entrou com lentidão e apercebeu-se de um leve odor familiar. Inclinou-se para o marido, que mergulhava o rosto na camisa de dormir água-marinha.

 

Ela e as crianças estavam quase a terminar o pequeno-almoço quando Erich apareceu. Nem o café quis tomar. Já vestira um pesado parka e segurava uma espingarda de caça aparentemente dispendiosa, que Jenny olhou com nervosismo.

 

Não sei se volto esta noite anunciou ele. Ainda não decidi o que farei. Passarei por aí o dia, na propriedade.

 

Está bem.

 

Não voltes a mudar os lugares dos móveis. A maneira como os tinhas colocado não me agradou.

 

Já tinha dado por isso redarguiu Jenny, em voz átona.

 

É o dia dos meus anos. O tom dele era agudo, jovem, como a voz de um rapaz. Não me dás os parabéns?

 

Prefiro esperar por sexta-feira à noite. O Mark e a Emily vêm cá jantar e comemoraremos então a data. Não preferes assim?

 

É possível. Erich aproximou-se, e o aço frio da arma contactou com o braço dela. Amas-me, Jen?

 

Sim.

 

E nunca me abandonarás?

 

Não gostaria de ter de o fazer.

 

Foi exactamente o que Caroline disse. Assumiu uma expressão pensativa.

 

Beth, que até então se mantivera silenciosa, assim como a irmã, perguntou:

 

Posso ir contigo, papá?

 

Hoje, não. Diz-me como te chamas.

 

Beth Crueger.

 

E tu, Tina?

 

Tina, Crueger.

 

Muito bem. Hei-de trazer presentes para as duas. Beijou-as e voltou-se de novo para Jenny. Em seguida, apoiou a espingarda no fogão, pegou-lhe nas mãos e fê-las deslizar pelo seu cabelo. Gostas? murmurou.

 

Fitava-a com intensidade, como durante o sonho. Com uma ponta de ternura, ela começou a acariciar-lhe a cabeça, reflectindo que tinha um aspecto muito vulnerável e, na véspera, não conseguira reconfortá-la.

 

É óptimo proferiu Erich, sorrindo. Obrigado. Tornou a pegar na espingarda e dirigiu-se para a porta. Adeus, meninas. Voltou a sorrir a Jenny, hesitou e disse:

 

Tive uma ideia, querida. Vamos jantar fora, esta noite, só os dois. Peço à Rooney e ao Clyde que tomem conta das pequenas.

 

Eu adorava, Erich! exclamou ela, reflectindo que se o marido começava a partilhar com ela aquela data, era um bom sinal, porventura um presságio de melhores dias.

 

Vou telefonar para reservar mesa para as oito horas no Groveland Inn, sem dúvida o melhor restaurante das redondezas.

 

"O Groveland Inn, onde se encontrara com Kevin!" Jenny sentiu-se dominada por um nervosismo difícil de dissimular.

 

Joe esperava-as, quando Jenny e as filhas chegaram ao estábulo. No entanto, o habitual sorriso de boas-vindas achava-se ausente e o rosto apresentava traços de apreensão.

 

O tio Josh apareceu aí, esta manhã, bêbado como um cacho, e a minha mãe correu com ele. Quando saiu, deixou a porta aberta e o Randy escapou-se. Oxalá não lhe aconteça nada, porque não está habituado aos carros.

 

Vai procurá-lo indicou ela.

 

Mister Krueger não aprovaria...

 

Não te preocupes, Joe. Tratarei de o informar da situação. As meninas ficavam inconsoláveis se acontecesse alguma coisa ao Randy. Fez uma pausa, enquanto ele se afastava. Bem, vamos ao nosso passeio. Visitarão os póneis mais tarde.

 

Elas correram à frente da mãe nos campos, as botas de borracha produzindo sons suaves ao pisarem a neve, que começava a derreter-se, e Jenny cogitou que, afinal, talvez a Primavera se antecipasse um pouco. Tentou imaginar os campos verdejantes e as ramagens das árvores, de momento desnudas, repletas de folhagem.

 

O próprio vento perdera parte da agressividade. Nas pastagens a sul, as reses baixavam a cabeça, como que à espreita dos primeiros rebentos para se alimentarem.

 

"Gostava de cultivar um jardim", admitiu para consigo. "Não entendo nada de jardinagem, mas posso aprender." Talvez fosse por necessitar de exercício que se sentia praticamente extenuada. Não se tratava apenas de nervos. A antiga sensação de incerteza e apreensão reaparecera. Todavia, a par disso, existia algo, um semiaturdimento, que lhe provocava uma suspeita de natureza diferente. Seria possível que?...

 

Sem dúvida que era.

 

Engravidara.

 

Os sintomas eram inconfundíveis e irrefutáveis. Que notícia maravilhosa para transmitir a Erich, naquela noite! Ele desejava um filho para herdar a propriedade. Por outro lado, o pessoal de serviço no restaurante decerto não seria o mesmo de durante o dia. Tudo correria bem. O filho de Erich...

 

Olha o Randy, mamã! gritou Tina.

 

Ainda bem disse Jenny. O Joe estava tão preocupado. Vem cá, Randy!

 

O cachorro devia ter vindo através do pomar e, ao ouvi-la, deteve-se e olhou-a, enquanto Beth e Tina corriam para ele, e, com um latido de alegria, indiferente aos gritos de Jenny, começou a correr em direcção aos campos. "Deus queira que Erich não o oiça", reflectia ela. Com efeito, ele ficaria furioso se Randy assustasse as vacas.

 

No entanto, ele não se dirigia para a área de pasto, pois alterou subitamente o rumo e seguiu para o limite leste da propriedade.

 

O cemitério. Dirigia-se directamente para lá, e Jenny recordou-se de Joe referir que o cachorro gostava de escavar o chão em volta da casa. "Parece empenhado em chegar à China por aí", salientara, numa ocasião. "Se descobre um palmo de terra onde a neve principia a derreter-se, começa a trabalhar com as patas."

 

Se decidisse fazer o mesmo nas sepulturas...

 

Ela ultrapassou as filhas na perseguição do animal, ao mesmo tempo que o chamava, mas não tardou a calar-se, com receio de que Erich a ouvisse. Respirando pesadamente, contornou a fiada de pinheiros noruegueses que antecediam o cemitério e penetrou na clareira. O portão encontrava-se aberto e o cão saltitava com entusiasmo entre as sepulturas. No seu canto isolado, a de Caroline encontrava-se coberta com um tapete de rosas recentes, que ele não hesitou em começar a pisar.

 

Quando descortinou o brilho metálico entre as árvores, Jenny compreendeu imediatamente de que se tratava.

 

Não, por favor gritou, alarmada. Não dispares, Erich!

 

Ele emergiu do arvoredo e apontou a espingarda cautelosamente.

 

A denotação espantou alguns pardais entre as ramagens, enquanto o cachorro, com um latido de dor, caía pesadamente e o pequeno corpo afundava-se nas rosas. Ante a expressão horrorizada, Erich puxou o gatilho segunda vez, pondo termo ao som plangente.

 

Mais tarde, Jenny recordou-se das horas subsequentes como se não tivessem passado de um pesadelo. Conservava bem nítida na memória a preocupação com que impedira que as filhas se inteirassem do sucedido.

 

Temos de voltar para casa indicou, pegando-lhes na mão.

 

Mas queremos brincar com o Randy.

 

Esperem aqui ordenou, deixando-as em casa. Não voltem a sair.

 

Erich, em mangas de camisa, transportava o corpo imóvel de Randy, com o parka em que o envolvera coberto de sangue.

 

Julguei que era um cão vadio, Joe. Como sabes, muitos deles estão raivosos. Se me tivesse apercebido...

 

Não o devia ter embrulhado no seu parka novo, Mister Krueger articulou o rapaz, esforçando-se por dominar as lágrimas.

 

Porque foste tão cruel, Erich? Disparaste duas vezes. Alvejaste-o depois de eu te chamar!

 

Não havia outra solução, querida. A primeira bala partiu-lhe a coluna. Supunhas-me capaz de o deixar assim? Fiquei apavorado, quando vi as pequenas atrás de um cão vadio. Uma criança esteve às portas da morte, o ano passado, por ter sido mordida por um deles.

 

Clyde, que transferia o peso do corpo de um pé para o outro, visivelmente pouco à vontade, observou:

 

Não se podem ter animais de estimação numa herdade, Mistress Krueger.

 

Lamento ter-lhe dado tanto trabalho, Mister Krueger murmurou Joe, em tom de desculpa.

 

A cólera de Jenny dissipou-se em confusão, enquanto o marido prometia:

 

Hei-de substituir o cachorro por um bom caçador, Joe.

 

Não é necessário, Mister Krueger. No entanto, a voz do rapaz continha uma intonação de esperança.

 

Joe pegou no corpo do cão, a fim de o enterrar nas proximidades de sua casa. De regresso à mansão, Erich insistiu em que Jenny repousasse no sofá, após o que lhe foi buscar uma chávena de chá fumegante.

 

Às vezes, esqueço-me de que a minha mulherzinha é uma moça da cidade declarou, com um leve sorriso, e retirou-se.

 

Vão ter de comer depressa anunciou Jenny às filhas. O papá e eu vamos sair.

 

Também quero ir apressou-se Tina a informar.

 

Fica para outra vez.

 

Ao mesmo tempo que pronunciava estas palavras, ela não se surpreendia de que as garotas quisessem acompanhá-los, pois as escassas saídas verificadas envolviam sempre a presença obrigatória delas, por desejo expresso por Erich. Quantos padrastos se mostrariam tão atenciosos?

 

Dedicou profundo cuidado aos seus preparativos. Após um banho quente prolongado, que perfumou com pinho, não sem hesitação prévia lavou o cabelo e escolheu um penteado totalmente diferente do que usara no encontro com Kevin, preocupação que tornou extensiva ao vestuário.

 

Erich entrou no quarto, no momento em que ela apertava o fecho do medalhão, e murmurou:

 

Vestiste-te especialmente para mim, Jen. O verde fica-te muito bem.

 

Visto-me sempre especialmente para ti afirmou ela, rodeando-lhe o rosto com as mãos. Sempre o fiz e continuarei a fazer.

 

Por incrível que pareça, consegui terminar o trabalho esta tarde acrescentou ele, mostrando a tela de que se fazia acompanhar.

 

Representava uma cena primaveril, com um vitelo recém-nascido semioculto numa depressão do terreno e a mãe ao lado, vigilante, com o olhar fixo nas outras reses, como que para as desencorajar de se aproximarem. Os raios solares filtravam-se por entre os troncos de pinheiros e o sol era uma estrela de cinco pontas. O conjunto tinha a aura de um quadro da Natividade.

 

Jenny olhou-a demoradamente e apercebeu-se de que todos os seus sentidos reagiam à profunda beleza do que tinha na sua frente.

 

É extraordinário admitiu, por fim, num murmúrio. Irradia tanta ternura...

 

Há pouco, chamaste-me cruel.

 

Cometi um erro estúpido e indesculpável. Tencionas levar esta tela à próxima exposição?

 

Não, querida. É uma oferta para ti.

 

Jenny puxou a gola do casaco para o rosto, quando entraram no restaurante. Na visita anterior, estivera tão ansiosa por se retirar com prontidão que quase não se apercebera dos pormenores do local. Agora, verificava que, com as alcatifas vermelhas, mobiliário de pinho, iluminação difusa, cortinados coloniais e lareira acolhedora, o ambiente era deveras atraente, e os seus olhos desviaram-se involuntariamente para o "reservado" que ocupara com Kevin.

 

No instante imediato, descobriu que a empregada os conduzia naquela direcção, e Jenny conteve o alento, porém a rapariga prosseguiu em frente e acabou por lhes indicar uma mesa junto da janela, ao lado da qual, em cima de um banco, se via uma garrafa de champanhe num balde prateado.

 

Depois de cheias as taças, ela ergueu a sua e proferiu:

 

Feliz aniversário, querido.

 

Obrigado.

 

Sorveram a bebida e conservaram-se silenciosos por um momento.

 

Erich, de casaco de tweed cinzento-escuro, gravata estreita preta e calça de flanela da mesma cor, exibia um ar pensativo. Por fim, estendeu a mão, para a pousar na de Jenny, e murmurou:

 

Gosto de te levar a lugares que visitas pela primeira vez.

 

Agrada-me estar em toda a parte... em qualquer parte, contigo replicou ela, consciente da tensão na voz.

 

Creio que foi por isso que te deixei aquele bilhete. Tinhas razão. Não o fiz por brincadeira, mas com ciúmes do Joe por te ensinar a montar. Queria partilhar dos teus primeiros momentos com a Moça de Fogo. No fundo, é como se te tivesse oferecido uma jóia e a usasses para agradar a outro homem.

 

Pensei apenas em não te importunar com o á-bê-cê da equitação.

 

Passa-se algo do género com a casa. Quatro semanas depois de chegares, pretendes transformar um tesouro histórico num estúdio de Nova Iorque, com janelas vazias de cortinados e tudo. Posso sugerir uma prenda de anos para mim, querida? Gasta algum tempo a averiguar quem sou... quem nós somos. Acusaste-me de crueldade por abater um animal que supus capaz de atacar as nossas filhas. Se me permites a imagem, de uma maneira diferente, fizeste fogo à queima-roupa sem justificação. E devo acrescentar o seguinte: tens a distinção de ser a primeira mulher da família Krueger, em quatro gerações, que provoca uma cena diante do pessoal. Caroline desmaiava imediatamente, se a alternativa consistisse em criticar o meu pai publicamente.

 

Não sou Caroline lembrou Jenny, a meia voz.

 

Tenta compreender que não sou cruel para os animais, nem inconscientemente rígido. Naquela primeira noite no teu apartamento, vi que não entendias porque me surpreendia que desses dinheiro a MacPartland, e aconteceu o mesmo no dia do nosso casamento. Mas a situação começa a assediar-nos com frequência, hem?

 

"Se soubesses até que ponto...", reflectiu, amargurada.

 

O chefe de mesa aproximou-se com a ementa e um sorriso profissional.

 

E agora, querida, consideremos que desanuviámos um pouco a atmosfera acrescentou Erich. Apreciemos o jantar, que sem dúvida será excelente, e lembra-te que prefiro estar aqui contigo neste momento do que com qualquer outra pessoa do mundo.

 

Quando regressaram a casa, Jenny vestiu propositadamente a camisa de dormir água-marinha. A refeição chegara ao fim sem que revelasse a gravidez ao marido, por estar demasiado abalada pela verdade contida nas suas observações. Dir-lho-ia na cama, quando a apertasse nos braços.

 

No entanto, Erich não dormiu com ela.

 

Preciso de estar absolutamente só. Voltarei na quinta-feira.

 

Jenny não se atreveu a protestar.

 

Não mergulhes noutra fase de criatividade que te leve a esquecer o jantar de sexta-feira, com Mark e Emily.

 

Não me esquecerei prometeu ele, olhando-a por um momento, quando já se encontrava deitada.

 

Em seguida, retirou-se sem a beijar e ela viu-se mais uma vez só no quarto cavernoso, para imergir na nova fase de sono agitado repleto de sonhos que começava a constituir um modo de vida.

 

Apesar de tudo, os preparativos do jantar com convidados representou uma diversão agradável. Jenny desejava encarregar-se pessoalmente das compras, mas não quis provocar nova situação tensa pedindo a Erich que lhe entregasse as chaves do carro. Assim, limitou-se a elaborar uma longa lista para Elsa.

 

Amêijoas à Saint-Jacques comunicou o marido, quando chegou a casa, sexta-feira de manhã. A minha receita é irresistível. E dizes que o Mark aprecia a carne assada?

 

Continuou a falar, disposta a superar a perceptível frieza dele, convencida de que desapareceria quando lhe anunciasse a gravidez.

 

Entretanto, Kevin não voltara a telefonar. Era possível que tivesse conhecido alguma mulher, porventura uma figura do elenco como ele, com a qual se envolvera. Nessa eventualidade, não daria sinais de vida durante algum tempo. Se necessário, quando a adopção fosse tornada legal, tomariam| medidas legais adequadas para que não tornasse a importuná-los. Ou, se procurasse bloquear os trâmites usuais, Erich trataria, como último recurso, de o subornar. E, para consigo, Jenny rogava: "Deus permita que as pequenas tenham um lar, uma verdadeira família. Oxalá as minhas relações com Erich voltem ao clima normal."

 

Na noite do jantar, decidiu utilizar a loiça de Limoges. Mark e Emily deviam chegar às oito, e Jenny descobriu que estava ansiosa por conhecer esta última. Após o nascimento de Beth e Tina, perdera quase todos os contactos com as amigas, em virtude do tempo que as filhas lhe absorviam. Por conseguinte, acalentava a veemente esperança de manter excelentes relações com Emily.

 

Quando o revelou a Erich, surpreendeu-se com a resposta dele:

 

Duvido. Houve uma altura em que os Hanover encararam com entusiasmo a perspectiva de me ter como genro. Roger Hanover é presidente do banco de Granite Place, pelo que faz uma ideia muito concreta do meu valor financeiro.

 

Saías com ela?

 

Uma vez por outra, mas não estava interessado, nem desejava envolver-me numa situação que poderia revelar-se desconfortável. Estava à espera da mulher perfeita, como sabes.

 

As tuas expectativas acabaram por se tornar realidade ironizou Jenny.

 

Espero bem que sim, querida.

 

Ele beijou-a e ela estremeceu levemente, tentando persuadir-se de que não falava a sério.

 

Depois de levar as filhas para a cama, vestiu uma blusa de seda branca com punhos rendados e saia alongada de várias cores. Quando se observou ao espelho, descobriu que apresentava uma palidez mortal, pelo que aplicou um pouco de rouge.

 

Erich, que levara o tabuleiro do chá para a sala, contemplou-a com curiosidade e, depois, aprovação, no momento em que entrou.

 

Gosto desse conjunto, Jen.

 

Ainda bem, porque pagaste uma quantia elevada por ele.

 

Julgava que não te agradava, pois nunca o tinhas vestido.

 

Parecia-me demasiado elegante para andar por casa. Ele aproximou-se e perguntou:

 

Isso que tens na manga é uma nódoa?

 

Isto aqui? Trata-se apenas de uma pequena marca de pó. Já vinha assim da loja.

 

Então, ainda não o tinhas usado?

 

A que se deveria aquele interrogatório? Seria apenas a reacção natural de uma pessoa demasiado sensível por lhe ocultarem uma coisa?

 

É a primeira vez, palavra de honra.

 

O carrilhão da porta constituiu uma interrupção acolhida com satisfação, pois Jenny começava a sentir a garganta seca. "As coisas chegaram a um ponto que tenho sempre medo de me denunciar, quando falo com ele, mesmo que não exista o mínimo motivo para tal", reconheceu para consigo.

 

Mark trajava com elegância e a mulher que o acompanhava aparentava uns trinta anos, de estatura mediana, olhos curiosos e cabelo louro-escuro que roçava a gola do impecável vestido de veludo castanho. Jenny decidiu para consigo que Emily nunca experimentara um instante de falta de confiança em si própria e não tentou sequer dissimular a inspecção a que submeteu a dona da casa.

 

Como deve calcular, tenho de a descrever a todas as pessoas da vila, pois reina uma curiosidade avassaladora. A minha mãe entregou-me a lista das vinte perguntas que lhe devo fazer com a necessária discrição. Até agora, não se pode dizer que tenha estado muito disponível para a comunidade.

 

Antes que pudesse responder, Jenny sentiu o braço de Erich rodear-lhe a cintura.

 

Se nos ausentássemos em lua-de-mel durante dois meses, ninguém ficava a magicar interpôs ele. No entanto, como a Jenny diz, uma vez que decidimos passá-la em casa, Granite Place em peso indigna-se por até agora não ter vindo acampar para a nossa sala.

 

"Eu nunca disse isso!", indignou-se Jenny, intimamente, enquanto via Emily semicerrar as pálpebras.

 

Quando tomavam cocktails, Mark aguardou que Erich e Emily imergissem em diálogo separado e comentou:

 

Acho-a pálida. Tem passado mal de saúde?

 

Pelo contrário. Jenny esforçou-se por revelar desprendimento. Sinto-me óptima.

 

O Joe falou-me do cachorro. Ao que parece, ficou muito impressionada.

 

Tenho de me habituar a compreender que as coisas são diferentes, aqui. Em Nova Iorque, desfazemo-nos em lágrimas se um cão vadio é capturado e abatido. E, se alguém se oferece para o adoptar, erguemo-lo em triunfo.

 

Suponho que não mudou nada? disse Emily, olhando em volta. Não sei se o Erich lhe falou disso, mas sou decoradora de interiores e, no seu lugar, livrava-me destes cortinados. Não nego que são bonitos, mas encobrem as linhas harmoniosas da janela.

 

Jenny aguardou que ele a defendesse.

 

Tudo indica que a Jen não concorda contigo proferiu com suavidade e um sorriso condescendente.

 

"Isso é injusto!", reflectiu ela. Deveria contradizê-lo? "... a primeira mulher da família Krueger, em quatro gerações, que provoca uma cena diante do pessoal." E se fosse uma cena diante dos amigos? Mas que dizia Emily?

 

... e também nunca estou em paz com a minha consciência se não mudo as coisas de lugar, embora talvez não seja esse o seu interesse. Constou-me que é igualmente artista.

 

O mau momento passara. Era demasiado tarde para corrigir a impressão que Erich produzira.

 

Não sou propriamente artista esclareceu Jenny. Tirei o curso de Belas-Artes e trabalhei numa galeria em Nova Iorque. Foi aí que conheci o Erich.

 

Também me inteirei disso. O vosso romance-relâmpago criou um verdadeiro rebuliço, nestas paragens. Que pensa da nossa vida rural, em comparação com o Big Apple?

 

Ela escolheu as palavras meticulosamente. Tinha de dissipar a impressão que, em sua opinião, Erich insuflara nas mentes dos convidados, atribuindo-lhe desdém pelos habitantes locais.

 

Tenho saudades dos meus amigos, sem dúvida, com as nossas conversas aparentemente banais, sempre que nos encontrávamos. Gosto de conviver e faço amizades com facilidade. Uma vez terminada oficialmente a lua-de-mel: concluiu com um olhar fugaz ao marido, espero tornar-me activa na comunidade.

 

Não te esqueças de contar isto à tua mãe, Emily sugeriu Mark.

 

Esta soltou uma risada sem alegria.

 

A avaliar pelo que oiço, tem pelo menos um amigo para a distrair.

 

Decerto se referia ao encontro com Kevin. A mulher da igreja devia ter emitido comentários. Jenny sentiu o olhar interrogativo de Erich pousado nela e tratou de o evitar.

 

Ao invés, murmurou algo relacionado com a preparação do jantar e dirigiu-se à cozinha. As mãos tremiam-lhe tanto que quase não conseguia abrir a portinhola do forno. E se Emily prosseguisse nas suas insinuações? Julgava-a viúva, e a revelação da verdade converteria Erich em mentiroso. E quanto a Mark? A pergunta não fora levantada, mas decerto também supunha que enviuvara.

 

Por fim, entrou na sala de jantar, acendeu as velas e chamou os outros para a mesa. "Ao menos, sou boa cozinheira", cogitou, com um leve sorriso de amargura. "Emily que diga isso também à mãe."

 

É de uma das nossas reses informou Erich, enquanto trinchava o assado. Tens a certeza de que isso não te repugna, Jenny?

 

Era óbvio que pretendia irritá-la, mas impunha-se que conservasse a cabeça fria.

 

Pensa só nisto continuou ele, o bezerro pelo qual mostraste interesse no campo, o mês passado, vai ser comido por ti.

 

Ela sentiu a garganta contrair-se e receou sufocar. "Não permitas que me descontrole, meu Deus", suplicou para consigo.

 

És mesmo cruel. Emily emitiu nova risada seca. Lembras-te de implicar com a Arden com coisas dessas e deixá-la lavada em lágrimas?

 

Arden? ecoou, Jenny, estendendo a mão para o copo de água, que contribuiu para dissolver o nó na garganta.

 

Sim, era uma moça muito simpática. Absolutamente louca pelos animais. Aos dezasseis anos, recusava-se a comer carne. Dizia que o abate de reses e frangos era uma prática bárbara e havia de ser vegetariana. No entanto, acho que mudou de ideias. Eu estava na faculdade, quando ela desapareceu.

 

Rooney continua a acreditar que há-de voltar comentou Mark. O instinto maternal é incrível. Observa-se desde os primeiros momentos da vinda ao mundo. O animal mais obtuso conhece a sua cria e protege-a até à morte.

 

Não estás a comer a carne, querida observou Erich. Um lampejo de cólera permitiu que Jenny erguesse os ombros e o olhasse com firmeza.

 

Nem tu os legumes, querido.

 

Ele piscou-lhe o olho. Era brincadeira.

 

Touché. admitiu, com um sorriso.

 

O carrilhão da entrada sobressaltou-os, e ele enrugou a fronte.

 

Quem poderá?... começou, mas interrompeu-se ao olhar Jenny.

 

Esta compreendeu o que o marido pensava e desejou ardentemente que não fosse Kevin. E, enquanto impelia a cadeira para trás, compreendeu que passara o serão a implorar freneticamente que se verificasse uma intervenção divina para que tal não acontecesse.

 

Quando abriu a porta, deparou-se-lhe um homem de cerca de sessenta anos e ombros possantes, que vestia um casaco de cabedal. O seu carro achava-se estacionado diante da entrada um veículo oficial, com o farol rotativo regulamentar.

 

Mistress Krueger?

 

Exacto. O alívio fez com que ela se exprimisse em voz débil. Qualquer que fosse a missão daquele homem, pelo menos não se tratava de Kevin.

 

Sou Wendell Gunderson, xerife do condado de Granite. Posso entrar?

 

Com certeza. Vou chamar o meu marido.

 

No entanto, Erich já se aproximava, e ela apercebeu-se da expressão de respeito que assomou ao rosto do recém-chegado.

 

Desculpe incomodá-lo, Erich, mas precisava de fazer umas perguntas a sua esposa.

 

Fazer-me perguntas? Contudo, ao mesmo tempo que pronunciava estas palavras, Jenny tinha a certeza de que a visita se relacionava com Kevin.

 

Sim, minha senhora. A voz de Mark, na sala de jantar, ouvia-se distintamente. Podemos ir para um sítio mais sossegado?

 

Porque não vem tomar café connosco? sugeriu Erich.

 

Talvez a sua esposa prefira responder às perguntas sem a presença de estranhos.

 

Ela sentiu a transpiração aflorar à fronte e notou que as palmas das mãos também se achavam húmidas. A perturbação era tão intensa que necessitou de comprimir os lábios com firmeza.

 

Não vejo motivo para não conversarmos à mesa declarou a meia voz.

 

Encaminharam-se para a sala de jantar, onde Emily saudou o xerife com cordialidade, enquanto Mark se empertigava na cadeira, atitude que Jenny se habituara a interpretar com a tentativa de diagnóstico de uma situação. Erich ofereceu ao xerife uma bebida, que este recusou por "estar de serviço", ao mesmo tempo que Jenny dispunha as chávenas na mesa.

 

Conhece um homem chamado Kevin MacPartland, Mistress Krueger?

 

Conheço. A interpelada notou com clareza o tremor na voz. Envolveu-se em algum acidente?

 

Quando o viu pela última vez?

 

Esforçou-se por não cerrar os punhos de desespero. Reconhecia que, mais cedo ou mais tarde, a verdade teria de vir a lume, mas porquê em semelhantes circunstâncias? Esforçando-se por evitar o olhar de curiosidade do marido, respondeu:

 

A vinte e quatro de Fevereiro, no Centro Comercial de Raleigh.

 

Kevin MacPartland é o pai dos seus filhos, Mistress Krueger?

 

É o meu antigo marido e pai dos meus filhos admitiu, não sem deixar de ouvir a exclamação abafada de Emily.

 

Quando falou com ele pela última vez?

 

Telefonou na noite de sete de Março, por volta das nove horas. Diga-me, por favor. Aconteceu-lhe alguma coisa?

 

As pálpebras do xerife semicerraram-se, antes de explicar:

 

Na tarde de segunda-feira, nove de Março, Kevin MacPartland recebeu um telefonema durante um ensaio no Guthrie Theater, após o qual revelou que a ex-esposa desejava falar-lhe acerca dos filhos. A seguir, pediu o carro emprestado a um dos outros actores e ausentou-se cerca de trinta minutos depois, por volta das quatro e meia, prometendo voltar na manhã seguinte. Ora, isto passou-se há quatro dias e não tornou a saber-se nada dele. O carro tinha sido comprado apenas seis semanas antes, e o dono acha-se naturalmente preocupado. Afirma, pois, que não lhe pediu para se encontrar consigo?

 

Sem dúvida que não.

 

Posso perguntar porque se tem mantido em contacto com o seu ex-marido? Constava por aí que era viúva.

 

Kevin queria ver as filhas e referiu-se a suspender os trâmites da adopção.

 

Jenny surpreendia-se com a ausência de vida que a sua voz deixava transparecer. Conseguia ver Kevin, como se estivesse presente naquele momento: o dispendioso fato de esquiar, o cachecol com uma das pontas para trás do ombro esquerdo, o cabelo ruivo penteado imaculadamente, as atitudes e poses afectadas... Teria porventura simulado o seu próprio desaparecimento para a embaraçar? Ela prevenira-o de que Erich estava aborrecido com a situação. Desejaria destruir o casamento antes que houvesse uma possibilidade de triunfar?

 

Que respondeu a senhora?

 

Quando nos encontrámos e, mais tarde, telefonou, adverti-o de que nos deixasse em paz. A voz principiava a tornar-se aguda.

 

Estava ao corrente desse encontro ou do telefonema a sete de Março, Erich?

 

Do telefonema estava, pois verificou-se numa altura em que me encontrava em casa. Quanto ao encontro, ignorava-o por completo. No entanto, compreendo-o. Jenny conhecia a minha posição acerca de Kevin.

 

Estava em casa, na noite de nove de Março?

 

Não. Passei-a na cabana, para completar um quadro.

 

Ela sabia que tencionava dormir fora?

 

Seguiu-se um longo silêncio, quebrado finalmente por Jenny:

 

Decerto que sabia.

 

Que fez nessa noite, Mistress Krueger?

 

Estava muito cansada, pelo que me deitei pouco depois de deixar as minhas filhas no seu quarto.

 

Falou com alguém ao telefone?

 

Não. Adormeci quase imediatamente.

 

Hum... E tem a certeza absoluta de que não convidou o seu ex-marido a visitá-la durante a ausência de Erich?

 

Na verdade, não convidei. Nunca o faria, de resto asseverou, plenamente consciente de que nenhum dos presentes acreditava nas suas palavras.

 

O seu prato, intacto, encontrava-se diante dela. A gordura solidificara em torno da carne, que apresentava um núcleo central avermelhado. Pensou no corpo do cachorro Randy a tornar-se vermelho no tapete de rosas e no cabelo ruivo de Kevin.

 

De súbito, o prato começou a oscilar em frente aos seus olhos. Jenny necessitava de encher os pulmões de ar fresco. Por último, impeliu a cadeira para trás e tentou levantar-se. A última imagem consciente foi a expressão de Erich de apreensão ou aborrecimento?, antes de a cadeira embater no aparador atrás dela.

 

Quando recuperou o conhecimento, encontrava-se deitada no sofá da sala e alguém lhe aplicava uma compressa fria à fronte, com uma sensação quase aprazível. A cabeça doía-lhe com intensidade, e havia algo em que não desejava pensar.

 

Kevin.

 

Estou bem murmurou, descerrando as pálpebras. Desculpem.

 

Mark debruçava-se sobre ela, com uma expressão profundamente preocupada, o que resultava um pouco reconfortante.

 

Tenha calma recomendou, a meia voz.

 

Quer que lhe vá buscar alguma coisa, Jenny?

 

Havia uma tonalidade de excitação subjacente nas palavras de Emily, e Jenny compreendeu que se divertia intimamente com a situação. Era do género de pessoas que gostava de se achar ao corrente dos problemas dos outros.

 

Querida! A inflexão de Erich era de solicitude, no momento em que se acercou para lhe pegar nas mãos.

 

Não te aproximes muito recomendou Mark. Deixa-a respirar à vontade.

 

A mente de Jenny começou a desanuviar-se e ela principiou a soerguer-se com lentidão, enquanto Mark lhe colocava almofadas atrás das costas.

 

Posso continuar a responder às suas perguntas, xerife. Perdoe a interrupção. Confesso que não compreendo o que me aconteceu, mas nos últimos dias não me tenho sentido muito bem.

 

Tentarei ser breve, Mistress Krueger. Os olhos dele pareciam agora mais brilhantes e abertos, como se pretendessem vê-la melhor. Não telefonou ao seu ex-marido na noite de nove de Março para marcar um encontro, nem ele esteve cá nessa data?

 

Exacto.

 

Como explica que informasse os colegas de que tinha recebido um telefonema seu? Com que intenção mentiria?

 

A única explicação que me ocorre é a de que costumava dizer que me visitava e às filhas, quando pretendia livrar-se de outros compromissos. Se desejava trocar de amiguinha, recorria a esse tipo de desculpa.

 

Nesse caso, pode saber-se porque está tão preocupada com o seu desaparecimento, se acha que se trata unicamente de mais uma das suas aventuras?

 

Os lábios de Jenny estavam tão rígidos que tinham extrema dificuldade em formar as palavras. Assim, exprimindo-se com lentidão, como uma professora a soletrar perante alunos das primeiras letras, replicou:

 

Deve compreender que há algo de terrivelmente errado. Ele tinha sido aceite para integrar o elenco do Guthrie Theater. Suponho que isto corresponde à verdade?

 

Sem dúvida.

 

Tem de tentar localizá-lo, pois nunca comprometeria uma oportunidade dessas. Actuar no palco é a aspiração mais importante da sua vida.

 

Retiraram-se todos, transcorridos poucos minutos. Ela imaginava sem dificuldade o género de conversa que se estabeleceria, quando Emily comunicasse os últimos sucessos à mãe. "Afinal, ela não é viúva... Foi o marido que beijou no restaurante... Agora, ele desapareceu... É óbvio que o xerife pensa que ela mente... Coitado do Erich..."

 

Tratarei do assunto como sendo um caso de desaparecimento... Porei a circular avisos com a fotografia dele... Voltarei a procurá-la, Mistress Krueger.

 

Obrigada, xerife.

 

Deve ir para a cama, Jenny. Mark começou a vestir o sobretudo. Ainda não está totalmente no estado normal.

 

Obrigado por terem vindo agradeceu Erich. Lamento que o serão não terminasse da melhor maneira. Rodeou a cintura de Jenny com o braço e beijou-lhe a face. É o que acontece a quem casa com uma mulher possuidora de um passado.

 

Exprimia-se em tom jocoso e soltou uma gargalhada, secundada por Emily, mas Mark não deixava transparecer a menor emoção. Quando a porta se fechou atrás deles, Jenny começou a subir a escada imediatamente, sem pronunciar nem mais uma palavra, apenas interessada em se enfiar na cama.

 

Contudo, a voz de Erich, que denunciava incredulidade, obrigou-a a deter-se.

 

Suponho que não tencionas deixar a casa neste estado, até amanhã?

 

Rooney entrou quando Jenny ingeria a segunda chávena de chá, após o pequeno-almoço, e o estalido da porta obrigou-a a voltar-se, sobressaltada.

 

Ah, é você!

 

Assustei-a?

 

A mulher parecia satisfeita com o efeito produzido. No entanto, os olhos continham uma expressão vaga e o cabelo, agitado pelo vento, emoldurava-lhe o rosto incaracterístico.

 

Mas a porta estava trancada. Se a memória não me atraiçoa, disse que não tinha a chave.

 

Devo tê-la encontrado.

 

Onde? Perdi a minha.

 

A que encontrei é a sua?

 

"É claro", reflectiu Jenny. "Estava na algibeira do casaco que lhe dei. Graças a Deus que não confessei a Erich que a tinha perdido."

 

Importa-se de ma entregar? aventurou, estendendo a mão.

 

Não sabia que havia uma chave no seu casaco. Rooney parecia intrigada. Nós devolvemos-lho.

 

Acho que não.

 

O Clyde obrigou-me. Ele próprio o fez. Vi-a usá-lo.

 

Não está no armário. "No fundo, que importa?", reflectiu Jenny, que tentou uma abordagem diferente. Mostra-me a sua chave?

 

A mulher puxou de um pesado chaveiro, com todas as chaves que continha identificadas individualmente: casa, celeiro, escritório...

 

Essas chaves não são de Clyde?

 

Julgo que sim.

 

Tem de as devolver. Ele zanga-se, se souber que se apoderou delas.

 

Diz que não o devo fazer.

 

Fora, pois, por aquele meio que Rooney se introduzira na mansão. "Hei-de recomendar a Clyde que as guarde em lugar seguro", advertiu-se Jenny. "Ele tem um chilique, se souber que ela as pode ir buscar e utilizar."

 

Olhou a mulher com certa compaixão. Nas três semanas decorridas desde a visita do xerife, não a vira uma única vez e, na realidade, até procurara evitá-la.

 

Sente-se e deixe-me servir-lhe uma chávena de chá. Apercebeu-se pela primeira vez de que Rooney tinha um embrulho debaixo do braço. Que é isso?

 

A senhora disse que eu podia fazer as blusas para as meninas.

 

É verdade. Mostre-mas.

 

Com certa hesitação, a mulher abriu o embrulho de papel pardo e retirou duas blusas de belbutina azuis do envoltório de celofane. A confecção era impecável e as algibeiras em forma de morango estavam bordadas a vermelho e verde. Jenny viu que o tamanho era o apropriado para as filhas e disse:

 

São de facto lindas. Costura maravilhosamente, Rooney.

 

Ainda bem que lhe agradam. Fiz uma saia para a Arden com este tecido e pareceu-me que o que sobrou dava para as blusas. Por sorte, não me enganei. Também tencionava fazer-lhe um casaco, mas desapareceu antes disso. Não acha o tom de azul muito bonito?

 

Sem dúvida. Condiz com a cor do cabelo.

 

Queria que visse o tecido antes de começar, mas na noite em que vim a senhora ia a sair e não a quis incomodar.

 

Ia a sair? Jenny reflectiu que era pouco provável, mas não tentou esclarecer o pormenor. De qualquer modo, congratulava-se com a visita de Rooney, pois as últimas semanas tinham-se arrastado pesadamente. Não parava de pensar em Kevin. Que lhe acontecera? Era um condutor algo imprudente e utilizara um carro que sem dúvida não conhecia bem, além de que, naquele dia, havia gelo nas estradas. Teria sido vítima de um acidente que, embora não o deixasse maltratado, destruíra o automóvel emprestado e lhe provocara o pânico suficiente para se afastar do Minnesota? Por mais que se cansasse a conceber hipóteses, voltava sempre ao único facto irrefutável: ele nunca abandonaria o elenco do Guthrie Theater.

 

Jenny sentia-se desorientada. Tinha de informar Erich da gravidez. Por outro lado, convinha que consultasse o médico.

 

Mas não por enquanto. Só depois de resolver o problema relativo a Kevin. A revelação da gravidez devia verificar-se em ambiente calmo, agradável, e não quando pairava uma certa tensão e mesmo hostilidade.

 

Na noite do jantar, Erich insistira em que as pratas fossem areadas e a loiça especial lavada meticulosamente, antes de regressarem ao armário.

 

E, na altura de se deitarem, comentara:

 

Acho-te enervada, Jenny. Não sabia que MacPartland significava tanto para ti. Perdão, vou corrigir o que acabo de dizer. Talvez eu pressentisse algo do género e não esteja surpreendido com esse vosso encontro clandestino.

 

Ela tentara esclarecer a situação, porém as palavras que pronunciara afiguravam-se débeis e até inaceitáveis aos seus próprios ouvidos. Finalmente, sentira-se demasiado fatigada e perturbada para continuar a discutir o assunto e, quando começava a mergulhar no sono, notou o braço dele em torno dos ombros e as palavras:

 

Sou o teu marido, Jenny. Aconteça o que acontecer, estarei do teu lado, desde que fales verdade.

 

... como disse, não a quis incomodar repetia Rooney.

 

Desculpe, estava distraída. Ela apercebeu-se de que não lhe prestara atenção. De súbito, assolada por uma inspiração, aventurou: Sempre desejei aprender a costurar. Quer ensinar-me?

 

Oh, adorava! Posso ensinar-lhe a coser e tricotar, se quiser.

 

A mulher retirou-se pouco depois, com a promessa:

 

Vou reunir os artigos necessários e voltarei amanhã à tarde. Será como nos velhos tempos. Caroline também não sabia coser e fui eu que lhe ensinei. Talvez a senhora consiga fazer uma bela colcha, antes que lhe aconteça alguma coisa.

 

Olá, Jenny proferiu Joe, jovialmente.

 

"Valha-me Deus!", pensou ela. Erich encontrava-se poucos passos atrás de si com as garotas, mas ainda não surgira na esquina do estábulo.

 

Como estás, Joe? replicou, com nervosismo. Algo na voz dela obrigou o outro a assumir uma atitude defensiva e, ao avistar Erich, corou.

 

Bom dia, Mister Krueger. Não o esperava a esta hora.

 

Acredito. O tom glacial de Erich fez com que a vermelhidão nas faces se acentuasse. Quero observar os progressos das minhas filhas com os póneis.

 

Sim, senhor. Vou aparelhá-los imediatamente. E o rapaz afastou-se com prontidão.

 

Ele costuma tratar-te por Jenny? inquiriu Erich, com aparente indiferença.

 

A culpa é minha admitiu ela, que se perguntou quantas vezes pronunciara aquelas palavras, ou outras equivalentes, nas últimas semanas.

 

Joe reapareceu com as selas, que colocou nos póneis, enquanto Beth e Tina batiam as palmas com impaciência.

 

Cada um de nós vai acompanhar o seu pónei determinou Erich.

 

Não quer montar hoje, Mistress Krueger?

 

Prefiro aguardar mais uns dias.

 

Não tens montado? quis saber Erich.

 

Não. Sinto uma pontada nas costas.

 

Não me disseste nada.

 

Isto passa. Não é nada de importante.

 

Jenny reflectiu que ainda não lhe podia falar da gravidez. Haviam-se escoado quase quatro semanas desde que o xerife Gunderson aparecera na mansão, assunto que não voltara a ser ventilado.

 

A Primavera estava iminente. As árvores começavam a apresentar uma espécie de bruma avermelhada em volta, e Joe explicou que o facto ocorria pouco antes de a nova folhagem irromper. As galinhas principiavam a afastar-se da capoeira para explorar o território em volta, e uma escolhera um recanto ao ar livre para pôr os ovos.

 

Desde quando tens essa dor? O tom de Erich era quase terno e apreensivo. Queres que chame o médico?

 

Para já, não. É natural que passe. Aliás, não se trata da primeira vez.

 

Com efeito, Jenny sentira um incómodo similar durante cada gravidez anterior.

 

Naquele momento, Mark reuniu-se-lhes, e ela não o via desde a noite do jantar.

 

Vivam! articulou com desprendimento, sem deixar transparecer minimamente que recordava o que então sucedera.

 

Já agora, fica uns minutos para veres as minhas garotas equilibradas em cima dos póneis sugeriu Erich.

 

Entretanto, Beth e Tina tinham efectuado rápidos progressos nas últimas semanas. Jenny sorriu inconscientemente ao observar as expressões de prazer no rosto das filhas, que seguravam as rédeas com grave concentração.

 

Serão excelentes amazonas profetizou Mark.

 

Pelo menos, adoram os animais declarou Erich, que se afastou para acompanhar um dos póneis.

 

Nunca o vi tão satisfeito comentou Mark. A outra noite, mostrou a fotografia das pequenas a toda a gente, em casa dos Hanover. A Emily ficou aborrecida por você não comparecer.

 

Não comparecer onde?

 

Na recepção dos Hanover. O Erich disse que se sentia indisposta. Ainda não foi ao médico? Desculpe, mas ouvi a vossa conversa de há pouco. E o desmaio daquela noite? Não foi pouco vulgar? Costuma acontecer-lhe?

 

Não. Nunca tinha desmaiado. Mas tenciono ir ao médico em breve.

 

Jenny sentiu mais do que viu o olhar de estranheza dele, mas não ficou contrariada. Conquanto ignorasse a que conclusão chegara sobre a possível visita de Kevin e a suposta viuvez, ele não a condenara.

 

Deveria informá-lo de que desconhecia por completo que a família de Emily promovera uma recepção? Que lucraria com isso? "Erich deixou-nos sós, por supor que Mark abordaria o assunto", reflectiu. "Quer que eu me inteire disso. Porquê?" Tratar-se-ia de mais uma maneira de a magoar, castigar, em virtude dos comentários que decerto circulavam acerca do nome dos Krueger? Até que ponto estariam elucidados os habitantes da comunidade? Ela não tinha a menor dúvida de que Emily revelara a visita do xerife à família e pessoas amigas.

 

Se Erich supusesse que os outros consideravam que cometera um erro e se compadeciam dele, ficaria furioso. Jenny ainda não se esquecera da cólera que o assolara quando Elsa sugerira que produzira a nódoa na parede.

 

Sim, porque Erich era um perfeccionista.

 

Quando Mark começava a afastar-se, ele voltou-se e, de longe, advertiu:

 

Até logo à noite, hem?

 

"Logo à noite?", estranhou Jenny, para consigo. Haveria nova recepção? Algum assunto relacionado com a herdade? As garotas correram para ela, quando desmontaram.

 

O papá vai montar o Barão connosco, em breve anunciou Beth. Não queres vir também, mamã?

 

Vamos, querida. Erich pegou-lhe no braço. As minhas princezinhas não se portaram admiravelmente?

 

As minhas princezinhas. As minhas filhas. As minhas pequenas. Nunca as nossas. Quando principiara aquilo? Jenny reconheceu que a emoção que experimentava consistia em ciúme puro e simples. "Oxalá não comece também a preocupar-me com isso. A única coisa boa da minha vida neste momento é a felicidade das pequenas."

 

Estavam quase a chegar a casa, quando surgiu um carro com um farol rotativo no tejadilho. Era o xerife Gunderson.

 

Traria novidades acerca de Kevin? Jenny esforçou-se por não estugar o passo ou denunciar ansiedade. No momento em que o xerife se apeou, Erich, que pegava na mão de Tina, enfiou o outro braço no dela, enquanto Beth corria à sua frente. "O marido dedicado, disposto a defender a esposa numa situação de apuro." O recém-chegado não poderia ficar com outra impressão.

 

No entanto, Wendell Gunderson exibia uma expressão grave e saudou Erich com uma formalidade quase excessiva, após o que anunciou a intenção de falar com Jenny a sós.

 

Encerraram-se na biblioteca, sala que, nas primeiras semanas, fora o local favorito dela. O encontro com Kevin alterara tudo. O xerife ignorou o sofá e sentou-se numa cadeira, antes de informar:

 

Continua a não haver o menor indício sobre o seu ex-marido, Mistress Krueger, e a polícia de Minneapolis encara o desaparecimento como um possível homicídio. Não existe qualquer sinal de que ele tencionava ausentar-se. Foram encontrados duzentos dólares numa gaveta, e levou consigo apenas um saco de lona. Todos os colegas do Guthrie Theater concordam que não abandonaria uma oportunidade daquelas. Reconheço que tudo se teria desenrolado mais facilmente se eu insistisse em conversar consigo a sós, na minha primeira visita. Agradeço que diga a verdade porque tudo acabará por se saber, ao longo das investigações. Telefonou a Kevin MacPartland, na tarde de segunda-feira, nove de Março?

 

Não.

 

Encontrou-se com ele na noite da mesma data?

 

Não.

 

Sabemos que partiu de Minneapolis por volta das cinco e meia da tarde. Se viesse directamente, deveria chegar aqui cerca das nove. Vamos admitir que efectuou uma paragem pelo caminho para jantar. Por conseguinte, onde estava entre as nove e meia e as dez da noite daquela segunda-feira, Mistress Krueger?

 

Na cama. Apaguei a luz antes das nove. Sentia-me muito cansada.

 

Insiste em que não se encontrou com ele?

 

Sem dúvida.

 

O telefonista do Guthrie Theater confirmou que recebeu uma chamada de uma mulher. Ocorre-lhe alguma capaz de o fazer em seu nome? Uma amiga íntima.

 

Não tenho amigas íntimas nestas paragens. Nem amigos salientou Jenny, levantando-se. Creia que ninguém deseja mais do que eu que Kevin MacPartland seja localizado, xerife. No fundo, é o pai das minhas filhas. Nunca houve o menor vislumbre de animosidade entre nós. Ficar-lhe-ia, pois, grata se me explicasse aonde pretende chegar. Sugere, porventura, que o convidei a visitar-me, durante a ausência do meu marido? E, se pensa isso, insinua que intervim de algum modo no seu desaparecimento? Não sugiro nem insinuo nada, Mistress Krueger. Limito-me a pedir-lhe que revele tudo o que sabe. Se MacPar tland seguia para aqui e não apareceu, dispomos de um ponto de partida para as investigações. Por outro lado, se esteve cá e soubermos a que horas se retirou, orientaremos as diligências noutro sentido. Creio que compreende a minha verdadeira intenção. Embora reconheça que as ilações daí resultantes sejam embaraçosas para si...

 

Penso que não temos mais nada a discutir.

 

Deu meia volta e abandonou a biblioteca. Erich encontrava-se na cozinha com as garotas, a contas com sanduíches de presunto e queijo. Jenny viu que não havia lugar reservado para ela e disse:

 

Creio que o xerife vai retirar-se, Erich. Não sei se pretendes acompanhá-lo à porta.

 

Mamã... Beth exibia uma expressão de ansiedade. "Essa tua antena, Ratinho...", reflectiu Jenny, que tentou sorrir ao declarar:

 

Vocês foram extraordinárias, hoje. E dirigiu-se ao frigorífico para encher um copo de leite.

 

Não sabias, mamã? volveu a filha.

 

Não sabia o quê? Jenny pegou em Tina, sentou-se na cadeira dela e instalou-a sobre os joelhos.

 

O papá disse ao Joe que, mesmo que tu não soubesses, ele tinha obrigação de saber que devia tratar-te por "Mistress Krueger".

 

O papá disse isso?

 

Disse asseverou Beth. E sabes que disse mais?

 

Não, que foi?

 

Que, quando o Joe fosse almoçar, encontraria outro cãozinho em casa, comprado pelo papá, porque o Randy fugiu. Podemos ir vê-lo, mamã?

 

Com certeza. Iremos depois de dormirem a sesta. Com que então, Randy "fugira"... Era essa a versão oficial do que acontecera ao infortunado cachorro.

 

O novo cachorro era um espécime de caça de pêlo dourado, e a própria Jenny, apesar de pouco experiente na matéria, calculou que pertencia a uma raça escolhida.

 

A velha colcha espessa no chão da cozinha era a mesma em que Randy costumava enroscar-se e a pequena bacia de água também exibia o seu nome, pintado a vermelho por Joe.

 

A mãe deste último parecia igualmente impressionada com a oferta.

 

Erich Krueger é um homem íntegro admitiu a Jenny. Parece que o julguei mal quando o acusei de ter abatido o cão do Joe, o ano passado. Se o fizesse, não hesitava em confessá-lo.

 

"Só que, desta vez, eu estava presente", cogitou Jenny, mas, no instante imediato, sentiu que era injusta para com o marido.

 

É preciso muito cuidado, por ser tão pequenino advertiu Beth, gravemente, voltando-se para a irmã. Podes magoá-lo.

 

São umas meninas tão bonitas... disse Maude Ekers. Parecem-se consigo, excepto no cabelo.

 

Jenny tinha a impressão de que a atitude da mulher se alterara em relação à visita anterior. A recepção revelara constrangimento, e hesitara antes de as convidar a entrar.

 

embora não aceitasse, se lhe fosse oferecido café do filtro que parecia estar sempre aquecido, Maude abstivera-se de tocar no assunto.

 

Como se chama o cãozinho? perguntou Beth.

 

O Joe decidiu que é um novo Randy informou a mulher. Deu-lhe, portanto, o mesmo nome.

 

É natural comentou Jenny. Calculei que ele não esqueceria o outro facilmente.

 

Estavam sentadas à mesa da cozinha, e ela sorriu à dona da casa. No entanto, ante a sua perplexidade, o rosto de Maude deixava transparecer uma espécie de hostilidade apreensiva.

 

Deixe o meu rapaz sossegado, Mistress Krueger! advertiu subitamente. É um simples moço de lavoura, e bastam-me as preocupações provocadas pelo meu inútil irmão, que pretende arrastá-lo para os bares. O meu filho passa a vida a penar pela senhora. Talvez não me compita dizê-lo, mas é casada com o homem mais importante da comunidade e deve ter plena consciência da sua posição.

 

Jenny impeliu a cadeira para trás e levantou-se.

 

Que quer dizer com isso?

 

Julgo que compreendeu. Com uma mulher como a senhora, acaba sempre por haver complicações. A vida do meu irmão foi destruída por aquele acidente no estábulo do gado. Como lhe deve ter constado, John Krueger acusou-o de descurar as medidas de segurança na instalação da gambiarra devido à sua admiração secreta por Caroline. O Joe é tudo o que tenho no mundo. Não quero, pois, que se envolva em acidentes ou outros problemas.

 

Agora que a mulher resolvera dar livre curso à torrente de palavras, parecia disposta a desabafar por completo. Beth e Tina pararam de brincar com o cachorro e assumiram expressões de expectativa.

 

E digo-lhe mais uma coisa. Embora não seja de minha conta, faz mal em deixar o seu ex-marido rondar-lhe a casa, quando toda a gente sabe que Erich está na cabana a pintar.

 

Que história é essa?

 

Uma noite da semana passada, esse actor com o qual esteve casada apareceu para pedir indicações. Apresentou-se, disse que a senhora o tinha convidado, intitulou-se membro do elenco do Guthrie... Em suma, falou pelos cotovelos. Expliquei-lhe o caminho mais curto para a propriedade, mas creia que o fiz mais para me livrar dele do que para lhe ser agradável.

 

Tem de telefonar imediatamente ao xerife Gunderson e comunicar-lhe o que acaba de dizer advertiu Jenny, em voz tão firme quanto possível. Kevin não esteve em nossa casa, naquela noite, e as autoridades deram-no como desaparecido.

 

Não esteve lá? A maneira de Maude de se exprimir, normalmente intensa, acentuou-se de assombro.

 

Não. Telefone já ao xerife, por favor. Obrigada por nos deixar ver o cachorro.

 

Kevin batera à porta da mulher!

 

E dissera especificamente que Jenny lhe tinha telefonado.

 

Maude indicara-lhe o caminho mais curto para a mansão, a uns três minutos de carro.

 

E Kevin não aparecera lá.

 

Se o xerife Gunderson fora quase insolente com as suas insinuações, como procederia agora?

 

Estás a magoar-me a mão, mamã! protestou Beth.

 

Desculpa, meu amor. Foi sem querer.

 

Impunha-se que partisse. Mas não, era impossível. Não podia fazê-lo até se inteirar do que acontecera a Kevin.

 

E, no fundo, nem assim. Transportava no ventre o microcosmo de um ser humano que iniciara a quinta geração dos Krueger, pertencente àquele lugar e herdeiro de tudo.

 

Mais tarde, Jenny considerou aquela noite de 7 de Abril como a ponta final da calmaria que antecede a tempestade. Erich não se encontrava em casa quando ela e as crianças chegaram.

 

"Ainda bem", reflectiu. "Ao menos, não preciso de estar com simulações. A próxima vez que o vir, hei-de repetir-lhe o que Maude acaba de dizer."

 

Era natural que a mulher já tivesse telefonado ao xerife. Este procurá-la-ia, naquela noite? Afigurava-se-lhe pouco provável, mas porque se preocuparia Kevin em revelar aos outros que ela lhe telefonara? E, sobretudo, que lhe acontecera?

 

Que preferem para o jantar, minhas senhoras? perguntou, por fim.

 

Hamburgers anunciou Beth, sem hesitar.

 

E leite-creme acudiu Tina, com uma expressão de expectativa.

 

Boa ideia.

 

Jenny tinha a vaga e inexplicável sensação de que as filhas se distanciavam dela ultimamente e estava disposta a contribuir para que tal não acontecesse.

 

Embora reconhecesse a temeridade envolvida, permitiu que levassem os pratos para o sofá, pois a TV "dava" O Feiticeiro de Oz, que as garotas viram com interesse, devorando os hamburgers e impelindo-os com coca-cola.

 

No final da transmissão, Tina adormecera no regaço da mãe e a cabeça de Beth persistia em se inclinar para o peito, pelo que Jenny as levou para o quarto.

 

Tinham-se escoado mais de três meses desde aquela tarde agreste em que as fora buscar a casa da mulher que ficava com elas durante o dia e se havia encontrado com Erich. Mas não merecia a pena pensar nisso. Ele decerto voltaria a dormir na cabana. De qualquer modo, Jenny não queria passar a noite no quarto principal.

 

Despiu as filhas, abotoou-lhes o pijama, aqueceu-lhes o rosto e mãos com uma toalha morna e instalou-as na cama. Notou que lhe doíam as costas e tomou mentalmente nota para não tornar a levá-las em braços. O peso e a tensão exercida eram excessivos. Por último, dirigiu-se à cozinha para se ocupar da loiça suja e em seguida foi inspeccionar o sofá em busca de possíveis sinais de que fora cenário de uma refeição.

 

Recordou-se das noites no apartamento de Nova Iorque, em que, se estava muito cansada, deixava os pratos a escorrer no suporte do lava-loiça e metia-se na cama, com uma chávena de chá e um bom livro. "Nunca reconheci quanto me encontrava bem", admitiu para consigo. Todavia, acudiram-lhe igualmente outros pormenores, como as infiltrações no tecto, a correria ao Centro Diurno para deixar as filhas, as preocupações constantes para que o dinheiro chegasse até ao fim do mês e a persistente solidão.

 

Quando acabou de arrumar tudo, ainda não eram nove horas. Percorreu os aposentos do rés-do-chão, para se certificar de que não ficara qualquer luz acesa e, na sala de jantar, deteve-se diante da colcha confeccionada por Caroline. Pretendera pintar e fora ridicularizada e obrigada a renunciar à arte.

 

Tinham sido necessários onze anos para que decidisse afastar-se. Porventura experimentara igualmente a sensação de ser uma intrusa que não pertencia àquele ambiente?

 

Enquanto subia a escada lentamente, Jenny sentia uma afinidade curiosa com a mulher que vivera naquela casa e perguntava-se se entrara no quarto principal com a mesma impressão de se achar imobilizada numa ratoeira que ela sentia naquele momento.

 

O xerife Gunderson reapareceu a meio da manhã. Jenny fora mais uma vez assolada por sonhos agitados, em que percorria o bosque e notava o odor activo a pinho. Estaria à procura da cabana?

 

Quando acordou, acudiu-lhe forte indisposição. Que percentagem das náuseas teria a ver com a faceta física da gravidez e com o resultado da ansiedade pelo desaparecimento de Kevin?

 

Elsa apareceu às nove da manhã, como habitualmente circunspecta, silenciosa, para desaparecer com prontidão no primeiro andar, a contas com o pano de pó e o aspirador.

 

Jenny lia uma história às filhas quando Wendell Gunderson chegou. Ela ainda não se vestira, mas usava um roupão de lã por cima da camisa de dormir, o que a levou a interrogar-se sobre se Erich objectaria a que recebesse o xerife com semelhante indumentária. Decerto que não, pois o roupão podia ser abotoado até ao pescoço.

 

Sabia que estava pálida, mas procurou exibir uma expressão serena.

 

Mistress Krueger... começou ele, com uma ponta de excitação na voz. Mistress Krueger... repetiu em inflexão grave. Ontem à noite, recebi um telefonema de Maude Ekers.

 

Fui eu que lhe pedi que o fizesse.

 

Sim, ela disse-me. Não passei por cá imediatamente, porque decidi tentar determinar que rumo Kevin MacPartland tomaria, se não passasse por cá.

 

Existiria a possibilidade de o xerife acreditar na versão dela? Mas não. O rosto inexpressivo lembrava o de um jogador de póquer prestes a jogar a carta vencedora.

 

Cheguei à conclusão de que um estranho poderia não localizar o portão da herdade, se cortasse pelo desvio que conduz à margem do rio acrescentou ele.

 

A margem do rio. Jenny sentiu-se alarmada. E se Kevin, que gostava de conduzir velozmente, tivesse caído à água? Na verdade, a estrada era muito escura.

 

Por conseguinte, investigámos e lamento ter de anunciar que foi precisamente isso que aconteceu. Encontrámos um Buick branco de fabrico recente na água, perto da margem. Estava coberto de gelo, o que, juntamente com a vegetação espessa em volta, impedia que se visse das cercanias. Por conseguinte, içámo-lo para terra.

 

E Kevin?...

 

Ela pressentiu a revelação que se seguiria. O rosto do ex-marido surgiu-lhe repentinamente no espírito.

 

Havia um homem dentro, Mistress Krueger. Apesar de se achar parcialmente decomposto, o aspecto geral coincide com os sinais do desaparecido Kevin MacPartland, incluindo a indumentária que usava, quando foi visto pela última vez. E a carta de condução encontrada na algibeira exibe o nome dele. Gunderson fez uma pausa. Necessitaremos da sua colaboração para que o identifique, o mais depressa possível.

 

Jenny tinha vontade de protestar com veemência. Kevin, que tanto se preocupava com a apresentação, fora encontrado em decomposição!

 

Talvez não fosse má ideia procurar um advogado, Mistress Krueger.

 

Porquê?

 

Porque haverá um inquérito às causas da morte, durante o qual serão formuladas algumas perguntas duras. Não precisa de dizer mais nada, neste momento.

 

Estou disposta a responder a todas as que quiser.

 

Muito bem. Vou principiar por uma que já lhe fiz. Kevin MacPartland esteve aqui, na noite de segunda-feira, nove de Março?

 

Já disse que não.

 

Possui um casaco térmico comprido castanho?

 

É verdade. Ou, melhor, possuía, pois dei-o. Porquê?

 

Recorda-se onde o comprou?

 

Na Casa Macy's, em Nova Iorque.

 

Então, receio que tenha de proceder a muitas explicações. Foi encontrado um casaco de senhora no banco ao lado do corpo. Um casaco térmico comprido castanho, com a etiqueta da Macy's. Necessitamos que o veja e diga se é o mesmo que ofereceu.

 

O inquérito efectuou-se uma semana mais tarde e, para Jenny, aqueles sete dias constituíram uma mancha imprecisa de dor surda.

 

Na morgue, o rosto de Kevin, apesar de mutilado, era reconhecível, e, enquanto o contemplava, ela recordava inexplicavelmente o dia do casamento em Santa Mónica. "Eu, Jennifer, aceito-te, Kevin... até que a morte nos separe." Nunca a sua vida estivera tão ligada à dele como naquele momento. Porque a seguira até ali?

 

Mistress Krueger? A voz do xerife Gunderson lembrou-lhe o objectivo fundamental da visita ao local.

 

Jenny sentiu a garganta contrair-se. De manhã, nem o chá conseguira ingerir.

 

Sim proferiu num murmúrio. É o meu marido. Ouviu uma risada áspera, sarcástica, atrás de si, e voltou-se. Desculpa, Erich... Não era minha intenção...

 

No entanto, ele desaparecera, deixando os passos apressados a ecoar na sala. Quando ela subiu para o carro, foi encontrá-lo sentado, de expressão granítica, e não pronunciou uma única palavra durante o percurso.

 

Ao longo do inquérito, foram feitas as mesmas perguntas de dezenas de maneiras diferentes.

 

Mistress Krueger, Kevin MacPartland disse a várias pessoas que o tinha convidado a passar pela mansão, na ausência do seu marido.

 

Não é verdade.

 

Qual é o número do telefone de sua casa? Jenny indicou-o.

 

Sabe o do Guthrie Theater?

 

Não.

 

Permita-me que a elucide, ou porventura refresque a memória. É cinco cinco cinco dois oito dois quatro. Reconhece-o?

 

Não.

 

Mistress Krueger, tenho aqui uma fotocópia da factura do telefone da herdade, correspondente ao mês de Março. Figura nela uma chamada para o Guthrie Theater, com a data de nove. Continua a negar que a fez?

 

Decerto.

 

Este casaco é seu, Mistress Krueger?

 

É, mas dei-o.

 

Tem a chave da residência Krueger?

 

Perdi-a.

 

"A chave", reflectiu. "Encontrava-se na algibeira do casaco." E explicou-o ao promotor.

 

Este pegou numa chave, a que Erich lhe confiara, cujo aro continha as suas iniciais: J. K.

 

É esta?

 

Parece.

 

Deu-a a alguém? Diga a verdade, por favor.

 

Não, não dei.

 

Foi encontrada na mão de Kevin MacPartland.

 

É impossível!

 

Chamada a depor, Maude repetiu, com aparente relutância, aquilo que revelara a Jenny.

 

Ele disse que a ex-esposa o mandara chamar e eu indiquei-lhe o caminho. Tenho a certeza absoluta da data, porque foi na noite após a morte do cão que pertencia ao meu filho.

 

Por seu turno, Clyde Toomis mostrou-se embaraçado e parco de palavras, mas indiscutivelmente sincero.

 

Disse a minha mulher que tinha um casaco de Inverno quase novo e recriminei-a por aceitar o outro. Tornei a colocá-lo no armário do corredor que dá para a cozinha da mansão, no mesmo dia em que ela se atreveu a vesti-lo em casa.

 

Mister Krueger estava ao corrente disso?

 

Não creio que o facto lhe pudesse passar despercebido. Pendurei-o ao lado do casaco de esquiar que usa constantemente.

 

Jenny reflectiu que não o vira, mas reconheceu a possibilidade de não ter prestado atenção.

 

Seguiu-se Erich. As perguntas foram breves, em tom respeitoso.

 

Mister Krueger, encontrava-se em casa na noite de segunda-feira, nove de Março.

 

Divulgou os seus planos para passar essa noite na sua cabana?

 

Sabia que sua esposa tinha entrado em contacto com o ex-marido?

 

As respostas foram proferidas com o mesmo desprendimento e indiferença do que se se tratasse de uma desconhecida.

 

Jenny observava-o com curiosidade e reparou que não moveu a cabeça uma única vez para a olhar. Erich, que detestava falar ao telefone; Erich, uma das pessoas mais reservadas que ela jamais conhecera, irritado com a esposa em virtude do telefonema de Kevin e encontro subsequente.

 

O inquérito chegou finalmente ao termo. Quando procedeu ao resumo de encerramento, o coroner esclareceu que a profunda escoriação existente na região temporal direita da vítima podia ter ocorrido durante o impacte do carro no rio ou sido infligida antes do acidente.

 

O veredicto oficial inclinou-se para a morte por afogamento.

 

No entanto, quando abandonava o edifício, Jenny não acalentava a mínima dúvida quanto ao veredicto que a comunidade lavrara. Na melhor das hipóteses, considerava-a uma mulher que se encontrava clandestinamente com o ex-marido.

 

Na pior, assassinara-o.

 

Nas três semanas que se seguiram ao inquérito, os jantares a que Erich compareceu obedeceram a uma rotina uniforme.

 

Nunca falava com ela directamente, apenas com as garotas, no género de "Pede à mamã que me passe o pão, Chocalho". O tom era sempre atencioso, e só ouvidos particularmente sensíveis detectariam a tensão existente entre ambos.

 

Quando levava as filhas para a cama, Jenny nunca sabia se ainda o encontraria em casa, quando regressasse à sala. Ao mesmo tempo, perguntava-se aonde iria. À cabana? Visitar amigos? Não se atrevia a perguntar-lhe. Se ele ficava em casa, instalava-se no quarto das traseiras que o pai utilizara durante muitos anos. Ela não tinha ninguém com quem conversar. No entanto, algo no íntimo lhe segredava que o marido superaria] aquela fase. Havia ocasiões em que o surpreendia a olhá-la com tanta ternura que tinha de se esforçar para não lhe lançar os braços ao pescoço e implorar que acreditasse nela.

 

Entretanto, perguntava-se como aparecera o seu casaco no carro de Kevin.

 

Uma noite, foi encontrar Erich a tomar café na cozinha e, antes que pudesse pronunciar uma sílaba, ele disse:

 

Precisamos de conversar, Jenny.

 

Ela sentou-se, sem conseguir determinar com segurança se o que sentia era alívio ou ansiedade. Depois de deitar as crianças, tomara banho de chuveiro e vestira o roupão que Nana lhe oferecera, por cima da camisa de dormir. Agora, Erich observava-a com certo interesse.

 

Esse tom de vermelho condiz perfeitamente com a cor do cabelo. Uma nuvem obscura no escarlate. Simbólico, não achas? Como segredos sombrios de uma mulher escarlate. É por isso que o usas?

 

Vesti este roupão porque tinha frio replicou Jenny, reflectindo com amargura que afinal era daquilo que precisavam de "conversar".

 

Fica-te bem. Esperas alguém, por acaso? Entretanto, estranhava que, no meio de tudo aquilo,

 

ainda conseguisse compadecer-se dele. O que teria sido pior: a morte de Caroline ou o facto de ela tencionar sair de casa?

 

Não, não espero ninguém. Se duvidas, fica em casa, para te certificares. Fez uma pausa e, com um suspiro de resignação, acrescentou: Lamento tudo isto, Erich. Sei que circulam comentários desagradáveis, e deves estar agastado. Não me acode qualquer explicação lógica para o que aconteceu.

 

O teu casaco.

 

Não sei como foi parar àquele carro.

 

Esperas que acredite?

 

Eu acreditava, se os papéis se invertessem.

 

Queria acreditar, mas não consigo. Admito, porém, uma coisa. Se concordaste com a vinda de MacPartland, talvez pretendesses preveni-lo de que não nos importunasse. Isso, não tenho rebuço em aceitar. No entanto, não posso viver na mentira. Confessa que o chamaste e encerraremos o assunto. Imagino o que se passou. Não querias que ele passasse por cá e sugeriste que seguisse para a margem do rio, um local perfeitamente solitário. Aí, disseste-lhe o que pretendias, e é possível que tentasse beijar-te ou algo do género. Talvez lutassem e, ao saíres do carro, desembaraçaste-te do casaco. Depois, ao fazer a inversão de marcha para retroceder, ele errou a mudança de velocidade e o carro precipitou-se na água. É uma situação perfeitamente compreensível. Mas confessa, em vez de me olhares com esse ar inocente. Reconhece que mentiste, e prometo não tornar a abordar o caso. O nosso amor mantém-se intacto e ainda podemos viver em felicidade absoluta.

 

Ao menos, era totalmente honesto. Jenny tinha a impressão de que se sentava no topo de uma montanha e contemplava um vale, observando o que se passava como uma espectadora desinteressada.

 

Seria quase mais fácil proceder como desejas ponderou, após breve pausa. Mas, curiosamente, somos a soma total das nossas vidas. Nana desprezava os mentirosos. Abominava a própria mentira social. "Nunca recorras a evasivas, Jen", costumava dizer. "Se não queres sair com uma pessoa, agradece e recusa o convite, em vez de alegares uma enxaqueca ou o excesso de trabalho. A verdade serve melhor os interesses de todos."

 

Não estamos a falar de excessos de trabalho.

 

Vou-me deitar. Reconheceu a inutilidade de prosseguir o diálogo. Boa noite.

 

Erich não replicou, apesar de ela subir a escada com lentidão, a fim de lhe proporcionar o ensejo de dizer algo.

 

Adormeceu com prontidão, dominada pela exaustão, e mergulhou num mundo de sonhos agitados. Estava no carro e lutava com Kevin, que pretendia apoderar-se da chave...

 

Em seguida, encontrou-se no bosque e movia-se entre as árvores, como se procurasse alguma coisa. Em dado momento, estendeu o braço para afastar os ramos mais próximos e sentiu o contacto de um corpo.

 

Os dedos percorreram uma fronte, a membrana suave de uma pálpebra. Cabelos compridos roçaram-lhe a face.

 

Mordendo os lábios para evitar o grito que tentava irromper da garganta, soergueu-se e tacteou à procura do interruptor do candeeiro da mesa-de-cabeceira. Por fim, premiu-o e olhou em volta com ansiedade. Não havia ninguém no quarto. Encontrava-se só.

 

Voltou a afundar-se na almofada, o corpo dominado por um tremor indomável. Até os músculos faciais se contraíam.

 

"Estou a enlouquecer", reflectiu, alarmada. "Estou a perder a noção da realidade." Deixou o candeeiro aceso, e os primeiros clarões do dia começavam a empalidecer os vidros da janela quando finalmente adormeceu.

 

Acordou quando os raios solares penetravam no quarto, e recordou-se imediatamente do que acontecera. Um sonho mau, um pesadelo. Embaraçada, apagou o candeeiro e levantou-se.

 

O tempo começava finalmente a melhorar, e ela permaneceu na janela, com o olhar fixo no bosque. Em seguida, abriu-a e os sons familiares da actividade da herdade acudiram-lhe aos ouvidos.

 

Fora, sem dúvida, um pesadelo. Apesar disso, a recordação vívida provocava-lhe transpiração fria, pegajosa. A sensação do contacto da mão com um rosto fora impressionantemente real. Dar-se-ia o caso de sofrer de alucinações?

 

E o sonho de se encontrar no carro com Kevin, com o qual lutava... Seria possível que lhe tivesse de facto telefonado?

 

A concussão do acidente... O médico recomendara-lhe que encarasse as futuras dores de cabeça com a preocupação que mereciam.

 

E ultimamente elas não haviam faltado.

 

Por fim, tomou banho, puxou o cabelo para o topo da cabeça, onde o atou com uma fita, e enfiou uma pesada camisola de lã e calças de ganga. As filhas ainda não tinham acordado, pelo que, se conservasse a calma, talvez conseguisse tomar o pequeno-almoço em paz. Supôs que perdera uns cinco quilogramas nos últimos três meses, o que poderia resultar prejudicial para o bebé.

 

Quando colocava a chaleira ao lume, vislumbrou a cabeça de Rooney que se deslocava diante da janela. Desta vez, a mulher bateu à porta.

 

Preciso falar consigo anunciou, com uma expressão grave.

 

Sente-se. Toma café ou chá?

 

Jenny! A recém-chegada parecia ter perdido o ar vago usual. Magoei-a, mas tentarei reabilitar-me aos seus olhos.

 

Não vejo como me podia magoar.

 

Tenho-me sentido muito melhor, consigo aqui afirmou, de olhos marejados. Uma moça bonita, à qual posso ensinar a costurar. A ideia encheu-me de alegria. E não a censuro por se encontrar com ele. Os homens da família Krueger não são fáceis de aturar. Caroline descobriu-o à sua própria custa. Por conseguinte, compreendo-a. E não tencionava ventilar o assunto. Nunca.

 

Qual assunto? Não acredito que mereça essa sua preocupação.

 

Merece, sim, Jenny. Ontem à noite, tive um daqueles acessos e disse ao Clyde que lhe mostrei a belbutina azul, na noite de segunda-feira após o aniversário de Caroline, para ver se gostava da cor. Era tarde. Cerca das dez horas. No entanto, devido à proximidade do aniversário, estava enervada. Lembrei-me de espreitar para verificar se a luz da sua cozinha estava acesa e vi-a entrar para o carro branco. Depois, afastou-se com ele em direcção à estrada que vai dar à margem do rio, mas juro que não queria dizer nada a ninguém, para não a prejudicar.

 

Eu sei que não o fez conscientemente admitiu Jenny, rodeando os ombros trémulos da mulher com o braço.

 

"Afinal, fui com Kevin", reflectia. "Saí com ele. Mas não, é impossível. Não posso convencer-me disso."

 

E o Clyde disse que tinha o dever de comunicar tudo a Erich e ao xerife soluçou Rooney. Esta manhã, tentei convencê-lo de que não passava de invenção minha, mas lembra-se de ter acordado, naquela noite. Eu acabava de entrar com o tecido debaixo do braço e ficou furioso por ter saído. Garantiu que falaria com Erich e o xerife. Vou mentir por si, Jenny. Talvez assim lhe evite mais aborrecimentos.

 

Tente compreender volveu Jenny, em tom pausado. Penso que se engana. Eu estava deitada, nessa noite. Não pedi a Kevin que me visitasse. Não mentirá se declarar que fez confusão.

 

A outra suspirou.

 

Sempre aceito o café. Gosto de si, Jenny. Às vezes, chego a acreditar que a Arden nunca voltará e acabarei por me conformar.

 

Naquela manhã, eles entraram juntos: o xerife, Erich e Mark. Para quê, também Mark?

 

Sabe porque nos encontramos aqui, Mistress Krueger. Ela escutou atentamente. Eles falavam de outra pessoa,

 

alguém que não conhecia e se metera num carro. Erich já não se mostrava irritado, apenas pesaroso.

 

Ao que parece, Rooney tenta retirar o que declarou, mas não podíamos ocultar uma informação tão importante ao xerife Gunderson. Aproximou-se de Jenny, pousou-lhe as mãos nas faces e acariciou-lhe o cabelo.

 

Ela esforçava-se por compreender a razão pela qual se lhe afigurava que a desnudavam em público.

 

Estás entre amigos, querida acrescentou o marido. Diz a verdade.

 

Jenny ergueu os braços, pegou nas mãos dele e afastou-as do rosto, de contrário sufocaria.

 

Disse a verdade como a conheço articulou calmamente.

 

Alguma vez teve falhas de memória? A voz do xerife não era destituída de cordialidade.

 

Sofri uma concussão, em tempos.

 

Ela descreveu abreviadamente o acidente, consciente de que os olhos de Mark Garrett a observavam, provavelmente persuadido de que se tratava de pura invenção.

 

Ainda amava Kevin MacPartland, Mistress Krueger? Que pergunta horrível para fazer diante de Erich! Tudo aquilo se tornava profundamente humilhante para ele. Se, ao menos, ela pudesse partir. Levar as crianças e deixá-lo entregue à vida que sempre conhecera.

 

No entanto, transportava o filho dele no ventre. Erich adorá-lo-ia. Seria um rapaz. Jenny estava absolutamente segura disso.

 

Não da maneira que presumo que tem em mente respondeu, após um silêncio.

 

Não é verdade que manifestou afecto por ele em público, ao ponto de as empregadas e duas clientes do Groveland Inn ficarem chocadas?

 

Por um momento, teve vontade de rir.

 

Devem chocar-se com muita facilidade. Kevin beijou-me, à despedida, carícia que não retribuí.

 

Não estava preocupada com a possibilidade de o seu marido aparecer? MacPartland não constituía uma ameaça ao seu casamento?

 

Não compreendo.

 

A princípio, a senhora revelou a Mister Krueger que era viúva. Ele é um homem abastado e pretende adoptar as duas crianças. Ora, MacPartland podia deitar por terra os seus maravilhosos projectos, Mistress Krueger.

 

Jenny desviou os olhos para Erich. Preparava-se para revelar que os documentos de adopção provariam que Kevin os assinara e Erich conhecia a existência deste antes de casarem, mas mudou de ideias. De que serviria? A situação já era suficientemente penosa para o marido e agravar-se-ia se os amigos e conhecidos se inteirassem de que lhes mentira deliberadamente. Por conseguinte, esquivou-se a uma resposta directa.

 

O meu marido e eu estávamos de acordo em todos os aspectos. Não queríamos que Kevin aparecesse cá em casa e estabelecesse a confusão nas crianças.

 

Mas a empregada ouviu-o dizer que não renunciaria aos seus direitos e impediria que a adopção se consumasse. E também não lhe passaram despercebidas as palavras ameaçadoras com que a senhora replicou. Ele representava, portanto, uma ameaça ao seu casamento.

 

Porque seria que Erich não acudia em seu auxílio? Olhou-o e apercebeu-se da expressão de cólera que lhe dominava o rosto.

 

Creio que isto já foi longe de mais, xerife declarou, em voz firme. Nada poderia ameaçar o nosso casamento, e muito menos Kevin MacPartland, vivo ou morto. Todos sabemos que Rooney padece de perturbações mentais. A minha mulher nega ter subido para aquele carro. Tenciona acusá-la formalmente de alguma coisa? Em caso negativo, exijo que pare de a importunar!

 

Muito bem, Erich. Gunderson inclinou a cabeça. Mas devo adverti-lo de que existem fortes possibilidades de o inquérito ser reaberto.

 

Se tal acontecer, enfrentaremos a situação.

 

Ele defendera-a, até certo ponto. Jenny notou que se sentia surpreendida com a atitude algo desprendida do marido. Estaria a resignar-se à notoriedade?

 

Não garanto que isso sucederá, evidentemente. Ignoro se o testemunho de Rooney pode alterar alguma coisa. Até que Mistress Krueger comece a recordar-se com exactidão do que se passou, pouco ou nada avançaremos nas investigações. Duvido que subsistissem grandes dúvidas nas mentes dos jurados da presença dela no carro.

 

Erich acompanhou o xerife à viatura oficial, onde conversaram durante alguns minutos. Mark, que não os seguira, disse:

 

Gostava de lhe marcar consulta num médico, Jenny. Denunciava profunda preocupação. Seria por ela ou por Erich?

 

Suponho que se refere a um psiquiatra?

 

Não, ao tradicional médico de família. Conheço um de confiança, em Waverly. Está com mau aspecto, Jenny, o que não admira, em virtude da tensão quase constante em que vive.

 

Acho que ainda aguento um pouco mais, mas agradeço a atenção.

 

Ela decidiu para consigo que necessitava de sair, pelo que subiu ao quarto das filhas e anunciou:

 

Vamos dar uma volta.

 

Podemos montar? perguntou Tina.

 

Agora, não acudiu Beth. O papá disse que nos levava.

 

Quero dar açúcar ao Chocalho.

 

Pois sim. Vamos ao estábulo concordou Jenny. Por um momento, permitiu-se um devaneio. Não seria maravilhoso se Erich selasse o Barão e ela montasse a Moça de Fogo para percorrerem a propriedade num dia primaveril como aquele?

 

Joe acolheu-as com uma expressão sombria. Desde que se dera conta de que o marido se irritara com os termos da sua amizade com o rapaz, ela passara a evitá-lo na medida do possível.

 

Como está o Randy segundo?

 

Bem murmurou ele. Eu e ele passámos a viver na vila, com o meu tio. Arranjámos um apartamento por cima dos Correios. Passe por lá, um dia.

 

Abandonaste a casa de tua mãe?

 

Com certeza.

 

Porquê?

 

Porque ela só serve para arranjar sarilhos às pessoas. Fiquei enojado, Mistress Krueger... Jenny, com as coisas que afirmou a seu respeito. Garanti-lhe que se disse que não viu esse tal Kevin naquela noite foi por conveniência própria. De resto, estou-lhe muito grato. Mister Krueger punha-me na rua, quando o Barão fugiu, se a senhora não interviesse. Se a minha mãe não metesse o nariz onde não deve, não tinha havido todo este rebuliço. Não é a primeira vez que um carro mete por essa estrada e cai à água. As pessoas limitavam-se a dizer "Que pena..." e protestavam por não haver uma sinalização adequada. Assim, todos tecem comentários desagradáveis a seu respeito e de Mister Krueger e chamam-lhe "pesquisadora de ouro" de Nova Iorque.

 

Por favor, Joe. Ela pousou-lhe a mão no braço. Já te causei demasiados aborrecimentos. A tua mãe deve estar apoquentada contigo. Volta para casa.

 

Nem pensar. Quando quiser montar a Moça de Fogo ou as meninas desejarem ver o Randy, terei muito gosto em ser-lhes útil nas minhas horas livres. Basta uma palavra sua.

 

Esse género de conversa não serve para melhorar a tua situação. Gesticulou para a porta aberta. Podem ouvir-te.

 

Quero lá saber! A expressão dele desanuviou-se. Faria tudo por si, Jenny.

 

Vamos, mamã. Beth puxou a manga dela.

 

No entanto, Joe dissera algo que lhe ficara gravado no subconsciente... De súbito, recordou-se e perguntou:

 

Porque disseste à tua mãe que foi por conveniência própria que neguei ter visto Kevin naquela noite?

 

As faces do rapaz avermelharam-se e enfiou as mãos nos bolsos, ao mesmo tempo que se voltava ligeiramente, para não a encarar.

 

Não precisa de fingir comigo proferiu a meia voz. Eu estava presente. Receava não ter fechado o Barão convenientemente e atravessava o pomar quando avistei Rooney, prestes a alcançar a mansão. Parei, porque não queria perder tempo a conversar com ela. Naquele momento, apareceu o Buick branco, cuja porta se abriu, e a senhora saiu de casa a correr. Vi-a entrar para o carro, Jenny, mas juro por Deus que nunca direi nada a ninguém. Eu... amo-a, Jenny.

 

Algo receosamente, retirou a mão da algibeira e pousou-a no braço dela.

 

Erich regressou quando o Sol começava a dardejar raios oblíquos sobre os campos. Entretanto, Jenny decidira falar-lhe da gravidez, independentemente do clima que de momento se vivia na herdade.

 

Ele facilitou-lhe inesperadamente a tarefa. Fazia-se acompanhar de algumas telas da cabana que tencionava exibir em São Francisco.

 

Que te parecem? Não havia nada na sua voz ou atitude que sugerisse a troca de palavras com o xerife daquela manhã.

 

São admiráveis. admitiu ela.

 

"Devo repetirrlhe o que o Joe disse? Convirá antes aguardar melhor oportunidade? Quando consultar o médico, talvez fique a saber se podem ocorrer fases de amnésia às mulheres" grávidas."

 

Ele olhava-a com curiosidade e, de súbito, perguntou:

 

Queres vir comigo a São Francisco?

 

Falamos disso durante o jantar.

 

Não tenhas medo, querida. Rodeou-lhe a cintura com os braços. Cuidarei de ti. Esta manhã, quando Gunderson te crivava de perguntas, compreendi que, não obstante o que aconteceu naquela noite, representas toda a minha vida. Necessito de ti.

 

Estou tão confusa, Erich.

 

Porquê?

 

Não me recordo de ter saído com Kevin, mas Rooney não mentiria.

 

Não te preocupes. Ela não é uma testemunha idónea. E ainda bem, pois Gunderson disse-me que reabriria o inquérito, se fosse.

 

Nesse caso, se aparecesse outra pessoa a afirmar que me viu entrar para aquele carro, o reabria e acusava-me de homicídio?

 

Escusamos de nos apoquentar com isso, visto não haver outra testemunha.

 

"Mas há", pensou Jenny. Existiria a possibilidade de alguém ter ouvido Joe? A mãe começava a recear que, à semelhança do tio, manifestasse tendência para as bebidas alcoólicas. E se, numa das suas visitas ao bar, confidenciasse a um companheiro de libação que a vira entrar para o carro com Kevin?

 

Será possível que me tenha esquecido de que saí? perguntou ao marido.

 

Seria uma experiência chocante. Tinhas despido o casaco e a chave foi encontrada na mão dele. É possível que, como sugeri o outro dia, tentasse beijar-te e se apoderasse dela nessa altura. Talvez lhe resistisses, o carro começou a mover-se e saltaste para fora antes de se precipitar no rio.

 

Não sei... Custa-me a crer.

 

Mais tarde, quando eram horas de recolher ao quarto, Erich indicou:

 

Veste a camisa de dormir água-marinha.

 

Não posso.

 

Porquê?

 

Está-me pequena. Espero bebé.

 

Kevin reagira com desolação, a primeira vez que lhe anunciara a gravidez, e desabafara: "Com mil diabos, Jen! Não podemos permitir-nos esse luxo. Livra-te da criança."

 

Agora, ao invés, Erich explodia de alegria:

 

Meu amor! Então é por isso que tens estado tão abatida! Achas que será um rapaz?

 

Tenho a certeza disso.

 

Jenny soltou uma risada e saboreou a momentânea libertação da ansiedadde.

 

Bem, tens de ir ao médico sem demora. O meu filho... Importas-te que se chame Erich? É tradição na família.

 

Concordo em absoluto.

 

Temos atravessado uma fase horrível, Jen. Ele abraçou-a no sofá, com toda a desconfiança entre ambos esquecida. Atiraremos todos os problemas para trás das costas. Quando eu regressar de São Francisco, promoveremos uma festa especial. De facto, não convém que viajes, se te tens sentido mal. Enfrentaremos a comunidade sem vacilar. Seremos uma verdadeira família. Os trâmites da adopção hão-de completar-se até ao Verão. Lamento o sucedido a MacPartland, mas ao menos deixou de constituir uma ameaça.

 

"Deixou de constituir uma ameaça..." Jenny perguntou-se se deveria referir-se ao que Joe lhe revelara. Não, a noite achava-se consagrada ao novo filho.

 

Por fim, subiram ao quarto, e Erich já estava deitado quando ela saiu da casa de banho.

 

Tinha saudades de dormir contigo declarou ele. Senti-me muito só.

 

Eu também. A intensa afinidade física entre ambos, acentuada e incendiada pela separação, ajudou-a a esquecer as semanas de sofrimento.

 

Amo-te, Jenny. Nem imaginas quanto...

 

Julgava que enlouquecia, ao sentir-te tão distante.

 

Calculo... Jen?

 

Sim, querido?

 

Estou ansioso por ver com quem o bebé se parece.

 

Contigo, espero.

 

Também acalento essa esperança. A respiração de Erich pareceu acelerar-se um pouco.

 

Ela começava a imergir no sono, mas as últimas palavras fizeram-na regressar à realidade. Ele duvidaria, porventura, de que era o pai da criança? Decerto que não. Os nervos que ainda a dominavam induziam-na a traçar conclusões injustificadas. No entanto, a forma como construíra a frase...

 

De manhã, Erich disse:

 

Ouvi-te chorar no sono, querida.

 

Não dei por isso.

 

Amo-te, Jenny.

 

Amar é confiar, Erich. Recorda-te, por favor, querido, de que o amor e a confiança andam de mãos dadas.

 

Três dias mais tarde, ele levou-a ao ginecologista de Granite Place. Jenny simpatizou à primeira vista com o Dr. Elmendorf, cuja idade se podia situar em qualquer ponto entre os cinquenta e sessenta e cinco anos, baixo e calvo, de olhar perscrutador.

 

Emagreceu tanto no princípio das duas gravidezes anteriores?

 

Não.

 

Foi sempre anémica?

 

Também não.

 

Houve complicações no seu nascimento?

 

Não sei, porque fui adoptada. No entanto, a minha avó nunca mencionou nada do género. Nasci em Nova Iorque, e a isso se presume praticamente o que sei dos meus antecedentes.

 

Hum... Teremos de improvisar. Sei que tem estado sob forte tensão.

 

"É uma maneira optimista de pôr a questão", reflectiu ela.

 

Bem, vamos principiar um tratamento à base de vitaminas. Fica desde já proibida de levantar ou empurrar pesos e procure repousar o mais possível.

 

Providenciarei nesse sentido interpôs Erich, pegando na mão dela.

 

Os olhos perscrutadores fixaram-se nele por uns instantes.

 

Julgo aconselhável absterem-se de relações maritais durante um mês, pelo menos e, possivelmente, ao longo de toda a gravidez, se as manchas no corpo persistirem. Será uma prescrição demasiado drástica?

 

Não haverá inconveniente, desde que se destine a contribuir para que ela tenha um filho saudável afirmou Erich.

 

"Mas haverá", pensou Jenny, desolada. "As nossas relações maritais proporcionam-nos a única área em que somos simplesmente duas pessoas que se amam e desejam e conseguimos fechar a porta ao ciúme, suspeita a pressões exteriores."

 

A parte final da Primavera revelava-se cálida, com aguaceiros à tarde que contribuíam para tornar a terra mais fértil e verdejante.

 

O gado afastava-se com mais confiança para pastar e aventurava-se até ao declive que antecedia a margem do rio.

 

Para Jenny, a mudança de tempo era extremamente agradável. O calor do sol primaveril dir-se-ia penetrar o frio constante do seu corpo. A fragrância das flores dispersas pela mansão quase conseguia dominar o odor persistente do pinho. De manhã, ela podia levantar-se, abrir a janela, e depois reclinar-se nas almofadas para apreciar a brisa suave.

 

Os comprimidos para o enjoo matinal não se revelavam eficientes, pois acordava sempre com náuseas. Erich insistia em que ficasse na cama, levava-lhe chá e bolachas e, passado algum tempo, a indisposição atenuava-se.

 

Agora, dormia em casa todas as noites.

 

Não quero que fiques só e já tenho tudo pronto para a exposição em São Francisco. Decidira partir a vinte e três de Maio. Segundo o doutor Elmendorf, nessa altura estarás sensivelmente melhor.

 

Oxalá que sim. Não estás mesmo a atrasar o teu trabalho?

 

Não, garanto-te. Ao mesmo tempo, posso dedicar-me mais às garotas. Com Clyde a ocupar-se da contabilidade, o capataz na herdade e o pai de Emily no banco, disponho de muitas horas livres.

 

Com efeito, era ele que levava as crianças ao estábulo todas as manhãs, e vigiava-as, enquanto montavam os póneis. Entretanto, Rooney aparecia com regularidade. A camisola que Jenny fazia progredia satisfatoriamente, e a mulher já a iniciara nos segredos da confecção de uma colcha.

 

Jenny continuava a não conseguir explicar como o seu casaco fora encontrado no carro de Kevin. E se ele tivesse visitado a herdade e entrado pela porta da ala oeste, porventura deixada fechada apenas no trinco? O armário dos agasalhos situava-se perto. Entrara e, de súbito, deixara-se dominar pelo pânico, pois, no fundo, não sabia se havia uma governanta que dormisse na casa. Talvez se tivesse apoderado do casaco, com a ideia de provar que se avistara com ela, afastado no carro e enveredado pelo caminho errado. A seguir enfiara a mão na algibeira, esperançado em encontrar dinheiro, pegara na chave e nesse momento o Buick precipitara-se no rio.

 

Mas o telefonema continuava por explicar.

 

Após a sesta, as crianças gostavam de brincar nas cercanias da mansão. Jenny sentava-se no terraço da ala oeste, de onde as podia observar enquanto trabalhava na camisola de lã ou na colcha. Rooney conseguira descobrir o tecido no sótão, sobras de vestidos de um passado distante, e explicara:

 

John comprou o tecido azul para fazer cortinados para o quarto das traseiras, quando resolveu mudar-se para lá, apesar de eu o prevenir de que era muito escuro. Na altura, não quis dar o braço a torcer, mas mais tarde mandou-me retirar os cortinados e substituí-los pelos que se encontram lá agora, também confeccionados por mim.

 

Jenny não lograva criar ânimo suficiente para se sentar na cadeira de balouço de Caroline, preferindo outra de verga, com espaldar elevado e as almofadas necessárias a um mínimo de conforto.

 

Já não sentia falta de companhia e recusava as sugestões de Erich para jantarem num restaurante das proximidades.

 

Ainda é cedo, querido. Nem sequer me atrai o cheiro da comida.

 

Ele começou a levar as garotas consigo, quando necessitava de se ausentar pelas redondezas, e elas regressavam entusiasmadas com as pessoas que haviam conhecido e os lugares que tinham visitado o tempo suficiente para tomarem leite com biscoitos caseiros.

 

Por outro lado, Erich passara a dormir no quarto das traseiras.

 

Assim, é mais fácil, Jen. Não conseguiria deitar-me a teu lado, noite após noite, sem te tocar. De resto, fartas-te de dar voltas na cama e dormes melhor sozinha.

 

Ela devia sentir-se grata, mas tal não acontecia. Os pesadelos repetiam-se com regularidade e a sensação de que tocava num rosto ou cabelos em contacto com a face. No entanto, não se atrevia a informar o marido, com receio de que a julgasse louca.

 

Na véspera da partida para São Francisco, Erich sugeriu que o acompanhasse ao estábulo, numa altura em que as náuseas matinais estavam ausentes havia mais de quarenta e oito horas.

 

Prefiro que estejas presente, quando as pequenas montam os póneis. Não me agrada nada o que se passa com o Joe.

 

De que se trata? perguntou Jenny, com uma ponta de apreensão.

 

Constou-me que é companheiro habitual do tio nas libações. O Josh Brothers pode exercer nele uma influência perniciosa. Por conseguinte, se o vires aparecer com uma ressaca evita que saia com elas. Se continuar assim, talvez me veja forçado a despedi-lo.

 

Mark encontrava-se no estábulo, e a voz, normalmente calma, achava-se elevada e glacial.

 

Não sabes que é perigoso deixar veneno para os ratos a menos de dois metros da provisão de aveia? Supõe que contamina as rações. Que se passa contigo ultimamente, Joe? Fica ciente do seguinte: se isto torna a acontecer, peço a Mister Krueger que te despeça.

 

Erich soltou o braço de Jenny e adiantou-se.

 

Que aconteceu?

 

Deixei a caixa do veneno aqui, quando começou a chover, e não voltei a lembrar-me disso admitiu o rapaz, vermelho como um pimentão e prestes a desfazer-se em lágrimas.

 

Estás despedido.

 

Joe volveu o olhar para Jenny. Haveria algo de significativo na sua expressão, ou tratar-se-ia de uma mera súplica? Era difícil de determinar.

 

Após breve hesitação, ela aproximou-se do marido e pegou-lhe na mão.

 

Por favor, Erich. O Joe tem sido admirável com as pequenas. É muito paciente ao ensiná-las a montar. Elas sentiriam horrivelmente a sua falta.

 

Ele olhou-a em silêncio por um momento e replicou secamente:

 

Está bem, se isso representa tanto para ti. Virou-se para Joe. Ao menor erro, ao mínimo erro (a porta do estábulo deixada aberta, um cão vadio a percorrer a propriedade, etc.), já sabes o que te espera. Entendido?

 

Sim, senhor balbuciou o rapaz. Obrigado, Mister Krueger. Muito obrigado, Mistress Krueger.

 

E não te esqueças de que é sempre Mistress Krueger que deves dizer, hem? Não quero que as pequenas tornem a montar até ao meu regresso, Jenny. De acordo?

 

Com certeza assentiu ela, notando que Joe parecia adoentado e apresentava uma equimose na fronte.

 

Mark abandonou o estábulo com eles.

 

Tens mais um bezerro, Erich. Foi por isso que vim. Não percas o Joe de vista. Envolveu-se em mais uma briga, ontem à noite.

 

Mas por que carga de água anda constantemente à pancada?

 

Um copo a mais, para quem não está habituado a beber, e não é preciso mais nada.

 

Vem almoçar connosco convidou Erich. Temos-te visto pouco, ultimamente.

 

Apareça, por favor murmurou Jenny.

 

Vão entrando indicou Erich, quando se encontraram diante da mansão. Prepara bebidas para nós, Mark, enquanto vou buscar a correspondência ao escritório.

 

Fixe. Mark aguardou que o amigo se distanciasse e disse apressadamente: Duas coisas, Jenny. Chegou-me aos ouvidos a boa nova sobre a gravidez. Parabéns. Como se sente?

 

Muito melhor do que ao princípio.

 

Quero dar-lhe um conselho. Teve um gesto nobre ao interceder pelo Joe, mas receio seja inútil. Envolve-se em brigas devido à facilidade com que divulga o afecto por si. Venera-a literalmente, e os fulanos que frequentam os bares à noite desfrutam-no. Seria muito melhor para ele que se afastasse da herdade.

 

E para mim?

 

Exacto.

 

Quando se preparava para partir para São Francisco, Erich decidiu conduzir o Cadillac até ao aeroporto e deixá-lo no parque de estacionamento.

 

A menos que o queiras utilizar, querida.

 

Haveria um segundo sentido na sugestão? A última vez que o marido se ausentara, Jenny servira-se do carro para comparecer ao encontro com Kevin.

 

Obrigada, mas não necessito. Elsa pode encarregar-se de ir às compras.

 

Tens vitaminas que cheguem?

 

Montes delas.

 

Se não te sentires bem, o Clyde leva-te ao médico. Encontravam-se junto da porta, e ela chamou as filhas.

 

Venham despedir-se do papá. Correram para ele, e Beth pediu:

 

Traz-me um presente.

 

Para mim, também! apressou-se Tina a exclamar.

 

Antes de saíres, diz-lhes que não queres que montem os póneis até regressares.

 

Mas papá!... protestaram as garotas.

 

Bem, o Joe pediu-me desculpa e disse reconhecer que tinha pisado o risco. Prometeu mesmo voltar para casa da mãe. Acho que não há inconveniente em que acompanhe as pequenas. Procura estar presente nessas ocasiões, Jen.

 

Prefiro não assistir disse ela, em voz átona.

 

Por alguma razão em especial? Erich arqueou as sobrancelhas.

 

Jenny recordou-se do que Mark lhe revelara, mas não vislumbrava uma maneira de o discutir com o marido.

 

Está bem, se te parece que não há inconveniente acabou por conceder.

 

Acompanhou-o ao carro, que Clyde fora buscar à garagem e ao qual Joe dava os últimos retoques com o pano do pó. A um lado, Rooney aguardava para entrar e costurar com Jenny, e Mark acercava-se para se despedir.

 

Telefono-te assim que chegar ao hotel disse Erich a Jenny. Deverá ser por volta das dez, hora daqui.

 

Naquela noite, ela deitou-se e ficou a aguardar o telefonema. "A casa é demasiado grande", reflectia. "Qualquer pessoa pode entrar por uma das várias portas sem que me aperceba." As chaves estavam penduradas no escritório, que ficava trancado àquela hora, mas não durante o dia, em que por vezes se achava deserto. Havia, pois, a possibilidade de alguém se apoderar de uma, mandar fazer um duplicado e repô-la no seu lugar.

 

"Porque estarei a preocupar-me com isso numa altura destas?"

 

Devia-se, sem dúvida, ao sonho, àquele sonho persistente, em que tocava num rosto. Sempre o mesmo, sem a mínima alteração. O odor intenso a pinho, a sensação de uma presença, o contacto dos dedos com um corpo humano e depois um som ténue semelhante a um suspiro. E, quando acendia a luz, não vislumbrava nada de invulgar no quarto.

 

Se pudesse trocar impressões com alguém sobre o assunto... Mas quem? O Dr. Elmendorf sugeriria que consultasse um psiquiatra. Não tinha a mínima dúvida a esse respeito. Seria o toque final para activar as más-línguas de Granite Place. "A mulher de Krueger sofre de perturbações mentais."

 

Ainda não eram dez horas quando o telefone tocou, e ela apressou-se a levantar o auscultador.

 

Estou...

 

A linha estava inerte... Mas não, conseguia detectar algo. Não uma respiração qualquer coisa de indefinível.

 

Sim?... Começou a tremer de angústia.

 

Jenny... A voz não passava de um sussurro.

 

Quem fala?

 

Está só?

 

Quem é?

 

Já tem aí consigo outro amiguinho de Nova Iorque? Ele gosta de nadar?

 

Que está para aí a dizer?

 

No instante imediato, a voz assumiu uma inflexão aguda, uma mescla de grito, gargalhada e soluço, irreconhecível:

 

Prostituta! Assassina! Sai da cama de Caroline. Abandona-a, já!

 

Jenny pousou o auscultador quase com violência e levou as mãos ao rosto, sentindo um tique nervoso junto da vista esquerda.

 

O telefone voltou a soar. "Não atendo", decidiu para consigo. "Que continue a tocar."

 

O som repetiu-se quatro vezes, cinco, seis. Em seguida, registou-se uma pausa e o retinir recomeçou. Passava das dez horas, ela pegou no auscultador.

 

Há alguma novidade, Jenny? A voz de Erich deixava transparecer preocupação. Liguei há momentos e dava sinal de impedido. Depois, ouvi tocar e ninguém atendeu. Sentes-te mal? Quem telefonou?

 

Não sei. Era apenas uma voz. Jenny desenvolvia esforços prodigiosos para dominar a histeria.

 

Pareces enervada. Que disseram?

 

Não... não consegui compreender.

 

Bem... Uma longa pausa, e ele acrescentou em tom resignado: Discutiremos isso noutra ocasião.

 

Qual outra ocasião? Chocada, ela notou que se exprimia em pouco menos que um grito. Quero discuti-lo agora. Sabes o que disseram? Repetiu os insultos quase através de soluços. Quem me pode dirigir acusações dessas? Quem me odiará a esse ponto?

 

Acalma-te, por favor, querida.

 

Mas quem, Erich?

 

Raciocina. Rooney, sem dúvida.

 

Mas porquê"? Ela simpatiza comigo.

 

Pode simpatizar contigo, mas adorava Caroline. Quer que ela volte e, nos momentos de alucinação, considera-te uma intrusa. Eu preveni-te contra ela, querida. Não te apoquentes que tudo se resolverá pelo melhor. Cuidarei de ti. Cuidarei sempre.

 

As cãibras principiaram durante a noite longa e sem sono. Primeiro, eram dores agudas no abdómen. Depois, estabilizaram numa sequência uniforme. Por fim, às oito da manhã, Jenny telefonou ao Dr. Elmendorf, que decidiu:

 

É melhor passar por cá.

 

Clyde partira cedo para visitar uma feira de gado e levara Rooney consigo. Por outro lado, ela não se atrevia a pedir a Joe que a acompanhasse. Havia outros homens na herdade, porém Erich recomendara que não lhes "desse confiança".

 

Acabou por telefonar a Mark e explicar a situação, após o que aventurou:

 

Por acaso, você?...

 

Ele não a deixou completar a frase.

 

Estou à sua inteira disposição, se não se importa de aguardar até ao final das horas de consulta para regressar. Ou melhor: o meu pai pode encarregar-se disso. Chegou ontem da Florida e passará o Verão comigo.

 

O pai, Luke Garrett. Jenny ansiava por conhecê-lo.

 

Mark foi buscá-la às nove e um quarto. Não soprava a mínima aragem e havia bruma, prenúncios inequívocos de um dia quente. Ela abriu o armário para procurar roupa adequada ao tempo que fazia e descobriu que toda a que Erich lhe comprara se destinava a enfrentar as baixas temperaturas, pelo que teve de optar por um vestido de algodão que adquirira no ano anterior em Nova Iorque.

 

O carro de Mark era uma station wagon Chrysler de quatro anos. No banco de trás, havia uma mala e, ao lado, um monte de livros. Na realidade, o interior do veículo inspirava a sensação de uma desarrumação confortável.

 

Era a primeira vez que Jenny se encontrava verdadeiramente a sós com ele. "Aposto que até os animais sabem instintivamente que se sentirão melhor, só com a sua presença", reflectiu ela, e disse-lho.

 

Gostava de me convencer disso admitiu ele, com um leve sorriso. E espero que Elmendorf exerça o mesmo efeito em você. É um bom médico. Pode confiar nele.

 

E confio.

 

Seguiram pela estrada de piso irregular que se estendia ao longo da herdade em direcção a Granite Place. "Hectare após hectare de terras dos Krueger", cismava Jenny. "E eu que esperava encontrar uma pequena casa de campo, com um terreno cultivado em volta!"

 

Não sei se já lhe disseram que o Joe decidiu regressar a casa da mãe observou Mark.

 

O Erich falou-me nisso.

 

É a melhor solução possível. Maude tem pulso suficientemente firme para o manter na ordem. O alcoolismo constitui um elemento persistente na família.

 

Julguei que o irmão tivesse começado a beber após o acidente.

 

Duvido. Ouvi o meu pai e John Krueger trocarem impressões sobre o assunto. John sempre afirmou que o homem tinha passado o dia a beber. Talvez que o acidente fosse o seu pretexto para tornar público o vício.

 

Erich conseguirá jamais perdoar-me a existência de tantos comentários desagradáveis? Se a situação se mantiver, o nosso casamento correrá perigo.

 

Jenny não tencionava tocar no assunto. Na verdade, brotara-lhe dos lábios espontaneamente. Deveria aludir também ao telefonema e reacção que provocara em Erich?

 

Após um longo silêncio, Mark declarou:

 

Não encontro palavras para descrever a mudança operada nele, desde que a conheceu. Foi sempre um indivíduo solitário, habituado a passar muito tempo na cabana. Agora, compreende-se porquê. Duvido que John Krueger costumasse beijá-lo, mesmo em criança. Caroline, por outro lado, era uma mulher muito expansiva, ao contrário dos habitantes da região. Somos uma fauna pouco expressiva, reservada, circunspecta. Ela descendia em parte de italianos, como sabe. Lembro-me de o meu pai dirigir comentários jocosos à sua comunicabilidade latina. Tente imaginar os efeitos emocionais em Erich, quando ouviu a mãe anunciar a intenção de partir. Não surpreende, pois, que estivesse tão apreensivo por causa do seu ex-marido, Jenny. No entanto, dê tempo ao tempo. As más-línguas acabarão por se cansar e calar. Dentro de um mês, terão outro tema mais excitante para se entreter.

 

Exposta dessa maneira, a situação parece muito fácil de resolver.

 

Fácil, talvez não, mas não é tão grave como pensa. Acompanhou-a ao consultório e informou: Vou ficar no carro a ler, enquanto o médico a examina.

 

Este não perdeu tempo com rodeios:

 

Teve um princípio de falso trabalho de parto, o que não nos convém de modo algum, nesta altura. Suponho que não se dedicou a esforços físicos exagerados?

 

Decerto que não.

 

De qualquer modo, perdeu mais peso.

 

Não consigo comer.

 

Tem de tentar. Quanto mais não seja, em atenção ao bebé. Leite achocolatado, gelados e coisas do género, se não consegue reter no estômago alimentos mais sólidos. E conserve-se sentada, na medida do possível. Tem alguma preocupação especial?

 

"Tenho", queria ela responder. "Estou preocupada, porque não sei quem me telefona na ausência do meu marido. Rooney sofrerá realmente de perturbações mentais que a levam a cometer actos de semelhante natureza? E Maude? Detesta os Krueger e, em particular, a minha pessoa. Quem mais costuma inteirar-se dos momentos em que Erich se ausenta?"

 

Tem alguma preocupação especial? insistiu o Dr. EImendorf.

 

Não.

 

No final da consulta, Jenny explicou a Mark o que o médico dissera. Ao mesmo tempo, admirava-lhe a serenidade, confiança em si próprio que irradiava, e não conseguia imaginá-lo dominado por um acesso de cólera. Estivera a ler, mas atirou o livro para o banco de trás e ligou o motor.

 

Não tem uma amiga ou familiar que pudesse vir passar uns meses consigo? A presença de alguém para conversar ajudaria a tranquilizá-la.

 

Jenny pensou em Fran e nos serões divertidos que tinham passado juntas. No entanto, Erich antipatizava solenemente com ela e quase a obrigara a prometer que não os visitaria. Tentou recordar-se de outra amiga, porém não lhe ocorreu nenhuma que pudesse despender cerca de quatrocentos dólares na passagem de avião para uma visita de fim-de-semana.

 

Confesso que não me lembro de ninguém acabou por replicar.

 

A herdade dos Garrett situava-se na parte norte de Granite Place.

 

Somos insignificantes, em comparação com Erich reconheceu Mark. Tenho a clínica instalada na propriedade.

 

A casa parecia-se com a que Jenny imaginara que o marido possuiria. Grande, pintada de branco, com estores pretos e um longo terraço.

 

A sala continha várias estantes de livros, e o pai de Mark lia, instalado numa poltrona. Ergueu os olhos quando eles entraram e Jenny notou-lhe uma expressão de perplexidade.

 

Era alto, de compleição atlética, como o filho, cabelos brancos e olhos azuis aguados, enquanto os de Mark eram escuros.

 

Suponho que é Jenny Krueger.

 

A própria assentiu ela, simpatizando com ele à primeira vista.

 

Não admira que o Erich... Luke Garrett interrompeu-se e iniciou nova frase: Estava ansioso por conhecê-la e lamentei que a oportunidade não se proporcionasse, quando estive cá, em Fevereiro.

 

Em Fevereiro? Jenny voltou-se para Mark. Por que não levou o seu pai lá a casa?

 

O interpelado encolheu os ombros.

 

Erich tornou bem claro que vocês se dedicavam a uma lua-de-mel doméstica. Disponho de dez minutos antes da abertura da clínica. Que prefere: chá ou café?

 

Desapareceu na cozinha e Jenny ficou só com Luke Garrett, sentindo-se como que observada pelo inspector escolar, que perguntaria a todo o momento: "Gosta das aulas? Está satisfeita com os professores?

 

Quando lho revelou, ele sorriu.

 

Talvez estivesse de facto a analisá-la. Como lhe têm corrido as coisas?

 

Até que ponto se inteirou da situação?

 

Sei do acidente, do inquérito...

 

Então, está ao corrente do principal. Não censuro as pessoas por pensarem o pior. O meu casaco foi encontrado no carro sinistrado. Uma mulher telefonou ao Guthrie Theater de nossa casa, naquela tarde.

 

Estou convencido de que existe uma explicação razoável para tudo. Depois de encontrada, a vida voltará a desenrolar-se normalmente.

 

Ela hesitou, mas resolveu não abordar o papel desempenhado por Rooney. De resto, se ela tivesse efectuado o telefonema daquela noite, numa fase de alucinação, decerto não se recordaria. Por outro lado, Jenny não queria repetir o que essa pessoa lhe dissera.

 

Mark reapareceu, seguido de uma mulher atarracada, com um tabuleiro. O aroma da bebida fumegante recordou a Jenny um dos grandes êxitos de culinária de Nana o bolo de café e invadiu-a uma onda de nostalgia.

 

Não é muito feliz aqui, hem? perguntou Luke.

 

Esperava ser respondeu ela, com sinceridade. Podia ser.

 

Foi exactamente o que Caroline disse volveu ele, a meia voz. Lembras-te de eu lhe arrumar as malas no carro, naquela última tarde, Mark?

 

Este seguiu para a clínica pouco depois e o pai levou Jenny a casa. Parecia pensativo e, após uma ou duas tentativas frustradas para entabular conversa, ela não insistiu.

 

Quando o carro transpôs o portão da propriedade, em direcção à entrada da ala oeste, Jenny viu Luke olhar por instantes para a cadeira de balouço do terraço.

 

O problema consiste em que isto nunca muda comentou ele, subitamente. Uma fotografia actual desta casa não contém a mínima diferença de outra tirada há trinta anos. Nada foi acrescentado, renovado ou alterado. Talvez seja por isso que todos têm a mesma sensação da presença dela, como se a porta pudesse abrir-se a todo o instante para a vermos surgir, acolhedora como sempre, e convidar-nos para ficar para jantar. Depois de me divorciar, Caroline trazia o Mark para cá com frequência. Foi como uma segunda mãe para ele.

 

E no seu caso? aventurou Jenny. Que representou ela para si?

 

Luke olhou-a com uma expressão repentinamente angustiada.

 

Tudo o que jamais desejei numa mulher. Aclarou a voz com brusquidão, como se receasse ter revelado demasiado de si próprio.

 

Jenny apeou-se e disse:

 

Quando o Erich regressar, espero que venha jantar com o Mark.

 

Com o maior prazer. Tem a certeza de que não precisa de nada?

 

Absoluta. Começou a dirigir-se para a entrada.

 

Jenny. Voltou-se e viu o rosto dele dominado pela mágoa. Perdoe-me, mas é que se parece muitíssimo com Caroline. Na verdade, chega a ser assustador. Tenha cautela, Jenny. Acautele-se com os acidentes.

 

Erich, que devia regressar a três de Junho, telefonou na noite anterior.

 

Tenho estado angustiado, Jen. Dava tudo para te aliviar as preocupações.

 

Ela sentiu o nó de tensão aliviar-se. Afinal, era como Mark dissera: as más-línguas procurariam outro assunto para se entreter. Se, ao menos, conseguisse apegar-se firmemente a essa ideia...

 

Havemos de superar tudo isto replicou em voz débil.

 

Como te sentes?

 

Bem.

 

Comes melhor?

 

Esforço-me por isso. Como correu a exposição?

 

Optimamente. O Gramercy Trust comprou três óleos por preços elevados. As críticas também não podiam ser mais encomiásticas.

 

Estupendo. A que horas chega o teu avião?

 

Por volta das onze. Conto estar em casa entre as duas e as três. Amo-te tanto, Jen...

 

Naquela noite, o quarto pareceu menos ameaçador, e Jenny admitiu a possibilidade de o período de tensão caminhar para o fim. Dormiu sem sonhos pela primeira vez em várias semanas.

 

Encontrava-se sentada à mesa do pequeno-almoço, com Tina e Beth, quando os gritos principiaram uma hedionda cacofonia de relinchos e sons frenéticos de dor humana.

 

Mamã! Beth saltou da cadeira e precipitou-se para a porta,

 

Não saiam daqui! ordenou Jenny.

 

Correu na direcção do pandemónio, que parecia provir do estábulo, enquanto Clyde irrompia do escritório, de espingarda em punho.

 

Não se aproxime, Mistress Krueger, não se aproxime! No entanto, ela não podia obedecer, pois era Joe quem gritava.

 

O rapaz achava-se no fundo do estábulo, encolhido junto da parede, enquanto tentava esquivar-se aos cascos agressivos. O Barão empinava-se apoiado nas patas traseiras, e as perigosas ferraduras cortavam o ar. Joe sangrava da cabeça e um dos braços pendia inerte. Naquele momento, tombou de costas, e as patas dianteiras do cavalo pisaram-lhe o peito.

 

Meu Deus! Jenny quase não reconheceu a sua própria voz.

 

Todavia, foi afastada por um braço possante, enquanto Clyde indicava:

 

Sai da frente dele, Joe, que vou fazer fogo!

 

Apontou a espingarda no instante em que o Barão se preparava para nova arremetida, e registou-se um estampido seco. O animal permaneceu imóvel por uma fracção de segundo, como uma estátua, e caiu pesadamente.

 

Joe conseguiu afastar-se para não ser esmagado e em seguida conservou-se como que petrificado. Clyde largou a espingarda e correu para ele.

 

Não o mova! advertiu Jenny. Chame uma ambulância. Depressa!

 

Procurando evitar o corpo do Barão, ajoelhou ao lado do rapaz e passou-lhe a mão pela fronte. Entretanto, acudia pessoal dos campos, e ela ouviu uma mulher soluçar. Maude, sem dúvida:

 

Joey, Joey...

 

Mãe...

 

Joey...

 

A ambulância chegou finalmente e, quando os maqueiros transportavam Joe, Jenny ouviu um dizer:

 

Desconfio que está a apagar-se. Maude Ekers soltou um grito agudo.

 

O rapaz descerrou as pálpebras e fixou os olhos em Jenny, para articular com clareza:

 

Eu nunca diria a ninguém que a vi subir para o carro, naquela noite.

 

Maude voltou-se para ela, antes de entrar na ambulância ao lado do filho.

 

Se o meu rapaz morrer, a culpa será sua, Jenny Krueger! vociferou. Amaldiçoo o dia em que chegou aqui! Que Deus castigue as mulheres Krueger pelo mal que fizeram à minha família! Maldito seja o bebé que tem no ventre, pertença a quem pertencer!

 

A ambulância partiu e a sirena cortou a calma manhã estival.

 

Erich chegou poucas horas mais tarde. Fretou um avião para transportar um cirurgião da Clínica Mayo e telefonou a requisitar enfermeiras particulares. Por fim, entrou no estábulo e ajoelhou junto do Barão, para acariciar a admirável cabeça do animal morto.

 

Mark, que já analisara o balde da ração, apressou-se a divulgar o veredicto: estricnina misturada na aveia.

 

Mais tarde, o xerife Gunderson apareceu no veículo que começava a tornar-se uma presença regular na herdade.

 

Meia dúzia de pessoas ouviu o Joe dizer que não teria revelado que a viu entrar para o carro, naquela noite, Mistress Krueger. Importa-se de esclarecer o significado dessas palavras.

 

Não faço a menor ideia do que ele tinha em mente.

 

A senhora estava presente, há pouco tempo, quando o doutor Garrett repreendeu o Joe por ter deixado o veneno para ratos perto da ração dos cavalos. Sabia o efeito que isso exerceria no Barão. Também ouviu o doutor Garrett adverti-lo de que a estricnina enlouqueceria o animal.

 

Foi o doutor Garrett que lhe disse isso?

 

Disse-me que o Joe cometera um descuido com o veneno para ratos e a senhora e Erich estavam presentes, quando o admoestou.

 

Onde pretende chegar?

 

A parte alguma em especial, de momento. O Joe alega que confundiu os recipientes, mas não acredito. Ninguém acredita, de resto.

 

Ele salvar-se-á?

 

Ainda é cedo para fazer um prognóstico. Mas mesmo que não morra, levará muito tempo a recompor-se por completo. Se ainda viver dentro de três dias, será transferido para a Clínica Mayo. O xerife começou a encaminhar-se para o carro. Como a mãe dele disse, aí não correrá perigo.

 

Dominada pelo ritmo da gravidez, Jenny começou a contar os dias e semanas que faltavam para o parto. Dentro de doze, onze ou dez semanas, Erich teria um filho. Regressaria ao quarto comum e tudo voltaria a desenrolar-se com normalidade. Por outro lado, os comentários virulentos que circulavam extinguir-se-iam por falta de combustível. O bebé parecer-se-ia irrefutavelmente com Erich.

 

A intervenção cirúrgica fora coroada de êxito e Joe achava-se livre de perigo, embora tivesse de permanecer na Clínica Mayo até fins de Agosto. Maude instalara-se num apartamento mobilado das proximidades, e Jenny sabia que o marido se encarregava de pagar todas as despesas envolvidas. Agora, Erich montava a Moça de Fogo, quando acompanhava as garotas nos seus póneis. Entretanto, nunca se referia ao Barão. Jenny inteirara-se, por intermédio de Mark, de que Joe persistia na versão de que misturara o veneno na ração inadvertidamente e não fazia a menor ideia do que quisera dizer quando se referira a tê-la visto naquela noite.

 

No entanto, Jenny sabia perfeitamente que ninguém acreditava. Erich passara a trabalhar menos na cabana e mais na herdade com Clyde e o pessoal. Numa ocasião em que ela comentou o facto, replicou:

 

Não consigo concentrar-me o suficiente para pintar.

 

Mostrava-se atencioso, embora algo distante. Na realidade, Jenny tinha a impressão de que ele a vigiava sempre. Ao serão, instalavam-se na sala de estar e liam, quase sem trocar uma única palavra. No entanto, ela surpreendia-o com frequência a olhá-la, em ocasiões em que supunha que não se apercebia.

 

O xerife Gunderson aparecia uma vez por semana, aparentemente apenas para conversar. "Voltemos, mais uma vez, à noite em que Kevin MacPartland esteve cá, Mistress Krueger", proferia, a determinada altura. Ou então especulava: "O Joe tem uma espécie de paixoneta pela senhora, hem? Suficiente para tentar protegê-la. Quer comentar o facto?"

 

A sensação da presença de alguém no quarto durante a noite era constante. A situação nunca variava. Ela começava a sonhar que estava no bosque e algo se aproximava, para pairar no espaço. Se estendia o braço, notava o contacto de cabelo comprido cabelo de mulher. Seguia-se o som semelhante a um suspiro. Não obstante, quando acendia a luz, o quarto encontrava-se deserto.

 

Por fim, decidiu informar o Dr. Elmendorf, que perguntou:

 

Como explica isso?

 

Não sei... Jenny hesitou. Não é bem assim. Penso sempre que se relaciona de algum modo com Caroline. E referiu-se ao facto de numerosas pessoas terem a sensação da presença desta última.

 

Eu diria que se deixa arrastar pela imaginação.

 

É possível.

 

Passou a dormir com a luz acesa, mas por pouco tempo, voltando a apagá-la. A cama situava-se à direita da porta, com a maciça cabeceira junto da parede norte e um dos lados perto da leste. Perguntou-se se Erich não se importaria de a mudar de lugar, para que ficasse entre as janelas da parede sul, onde penetrava mais luar, pois o local onde se achava agora era quase totalmente escuro.

 

No entanto, reconheceu que a mais elementar prudência desencorajava um pedido dessa natureza.

 

Certa manhã, Beth perguntou:

 

Porque não falaste comigo, quando estiveste no nosso quarto, ontem à noite, mamã?

 

Mas eu não estive no vosso quarto.

 

Isso é que estiveste!

 

Começaria também a tornar-se sonâmbula?

 

Os leves movimentos que sentia no ventre não se comparavam aos pontapés surdos de Beth e Tina, e Jenny implorava a Deus que o bebé fosse saudável.

 

As tardes escaldantes de Agosto dissolviam-se em noites frescas e o bosque apresentava as primeiras tonalidades douradas.

 

Vamos ter um Outono prematuro profetizou Rooney. A sua colcha estará pronta quando as folhas tiverem caído. Também poderá pendurá-la na sala de jantar.

 

Entretanto, Jenny evitava Mark na medida do possível, abstendo-se de sair de casa, quando avistava a carrinha estacionada nas proximidades do escritório. Estaria também convencido de que ela misturara o veneno na ração do Barão! Afigurava-se-lhe que não resistiria, se pressentisse uma acusação daquela proveniência.

 

Nos primeiros dias de Setembro, Erich convidou Mark e Luke Garrett para jantar e explicou a Jenny, com naturalidade:

 

Luke vai regressar à Florida e tivemos poucas oportunidades de conversar. Emily também vem. Elsa encarrega-se de cozinhar.

 

Não. Isso é uma das coisas que ainda posso fazer.

 

A primeira reunião social desde a noite em que o xerife Gunderson aparecera para anunciar o desaparecimento de Kevin. Ela descobriu que ansiava por tornar a ver Luke. Sabia que Erich visitava a herdade dos Garrett com regularidade, e levara Beth e Tina por diversas vezes. Agora, nunca a convidava para sair, limitando-se a anunciar: "Vou livrar-te da presença das pequenas por toda a tarde. Aproveita para descansar, Jen."

 

No fundo, não estava particularmente interessada em o acompanhar, pois receava cruzar-se com alguém da vila. Como a tratariam? Sorrir-lhe-iam na cara e trocariam comentários cáusticos nas suas costas?

 

Quando o marido se ausentava com as filhas, ela efectuava longos passeios na herdade. Percorria a área nas imediações do rio e esforçava-se por não pensar no carro de Kevin mergulhado na água. Ao passar pelo cemitério, viu que a sepultura de Caroline estava coberta de flores de Verão.

 

Apetecia-lhe internar-se no bosque e tentar localizar a cabana de Erich. Certa vez, aventurou-se uns cinquenta metros. As ramagens densas impediam a passagem dos raios solares. Uma raposa roçou-lhe as pernas, em perseguição de um coelho. Por fim, impressionada com a solidão e silêncio, retrocedeu. Aves alojadas nas copas das árvores emitiram um coro de protestos à sua passagem.

 

Entretanto, encomendara algumas roupas de maternidade de um catálogo que mandara pedir. "Vou no sétimo mês de gravidez e os vestidos não me estão muito apertados", cogitava.

 

Na noite do jantar, vestiu um conjunto de seda verde-esmeralda de duas peças, consciente de que Erich preferia essa cor.

 

Os Garrett e Emily chegaram juntos, e Jenny julgou detectar um novo grau de intimidade entre a jovem e Mark. Sentaram-se lado a lado no sofá e, em dado momento, a mão de Emily pousou no braço dele. "Talvez estejam noivos", reflectiu Jenny, possibilidade que lhe produziu uma ponta de pesar, embora não soubesse explicar o motivo.

 

Emily efectuava um esforço visível para ser agradável, mas tornava-se difícil encontrar um terreno comum. Em dado momento, referiu-se à feira da região:

 

Apesar de pirosa, nunca a perco. E toda a gente falava das suas adoráveis filhas, Jenny.

 

Das nossas adoráveis filhas corrigiu Erich. A propósito: tenho o prazer de anunciar que os trâmites da adopção estão concluídos. As duas moças são legal e irrefutavelmente membros da família Krueger.

 

Embora esperasse ouvir a notícia, mais cedo ou mais tarde, Jenny perguntava-se desde quando seria do conhecimento dele. Algumas semanas atrás, deixara de lhe perguntar se se importava que levasse as garotas a dar uma volta. Seria essa a razão: por serem "legal e irrefutavelmente" membros da família Krueger?

 

Luke Garrett mostrava-se pouco comunicativo. Preferira sentar-se numa poltrona um pouco afastada e, passados uns minutos, Jenny compreendeu porquê. Proporcionava uma visão mais perfeita do retrato de Caroline, do qual raramente desviava os olhos. Qual teria sido a sua verdadeira intenção ao adverti-la para que se acautelasse com os acidentes?

 

O jantar decorreu em ambiente agradável. Ela escolhera uma sopa de marisco, cuja receita encontrara num velho livro de culinária, e, ao prová-la, Luke arqueou as sobrancelhas.

 

Ou muito me engano, Erich, ou era esta sopa que a sua avó fazia, na minha infância. Simplesmente excelente, Jenny. Como se pretendesse compensar o silêncio anterior, começou a recordar a juventude. O seu pai e eu éramos tão amigos como você e o Mark.

 

Retiraram-se às dez horas, após o que Erich a ajudou a levantar a mesa, parecendo satisfeito com a forma como o serão decorrera.

 

Palpita-me que o Mark e a Emily, se não estão noivos pouco falta. O Luke ficaria aliviado, pois ansiava por que ele se arrumasse.

 

Também tive essa impressão admitiu Jenny. Tentou mostrar-se encantada com a ideia, mas reconheceu que o esforço não era coroado de êxito.

 

Em Outubro, a temperatura desceu bruscamente. Ventos cortantes despiram as árvores da maior parte das folhas, começou a formar-se geada pela madrugada e a chuva tornou-se glacial. Todas as manhãs, Erich acendia o lume do fogão de aquecimento da cozinha e Beth e Tina desciam para tomar o pequeno-almoço prudentemente agasalhadas, aguardando com ansiedade o primeiro nevão.

 

Jenny raramente saía de casa. Os longos passeios resultavam muito cansativos e o Dr. Elmendorf desaconselhara-os. De resto, ela tinha frequentes cãibras nas pernas e receava sofrer uma queda. Rooney visitava-a todas as tardes e contribuía para a confecção do enxoval do bebé.

 

Foi ela que mostrou a Jenny o canto do sótão onde se encontrava, coberto de lençóis, o berço dos Krueger e prometeu confeccionar uma nova decoração para ele.

 

Hei-de levá-lo para o antigo quarto de Erich anunciou Jenny. Não quero transferir as minhas filhas para outro aposento e os restantes estão muito afastados. Recearia não ouvir o bebé chorar durante a noite.

 

Foi mais ou menos o que Caroline disse informou Rooney. O quarto de Erich fazia parte do principal, uma espécie de nicho dele. Ela colocou aí o berço e a cómoda do bebé, porque John não queria o filho no seu quarto. Foi então que construíram a divisória.

 

Qual divisória?

 

Erich não lhe disse? A vossa cama ficava junto da parede sul. Por detrás do lugar onde agora está a cabeceira, encontra-se a parede de correr.

 

Importa-se de ma mostrar?

 

Dirigiram-se ao antigo quarto de Erich, onde Rooney explicou:

 

É claro que não a pode abrir do seu lado, por causa da cabeceira da cama. Desviou uma cadeira de espaldar elevado e indicou um manipulo disfarçado no papel que forrava a parede. Repare na facilidade com que funciona.

 

A divisória deslizou sem produzir o menor ruído, e ela prosseguiu:

 

Caroline mandou construí-la assim para poder isolar os dois quartos, quando Erich crescesse. O Clyde encarregou-se disso, ajudado por Josh. Executaram um bom trabalho, hem? Quem desconhecer a sua existência, não se apercebe de nada.

 

Jenny avançou para a abertura e verificou que se achava atrás da cabeceira da sua cama. Fora por isso que sentira uma presença e, estendendo o braço, tocara num rosto. Recordou-se da sensação constante de cabelo comprido. Na verdade, o de Rooney, uma vez desfeito e volumoso carrapito que usava, devia ter um comprimento apreciável.

 

Alguma vez entrou aqui e afastou a divisória, durante a noite? perguntou, com simulada indiferença. Talvez para me observar?

 

Não creio... Uma coisa, Jenny... A interpelada olhou em volta e baixou a voz. Não diga nada ao Clyde, senão julga-me louca. Às vezes, mete-me medo. Fala em me mandar internar, para o meu bem. Mas garanto-lhe uma coisa, e que isto fique entre nós. Vi Caroline percorrer a herdade durante a noite, nestes últimos meses. Uma vez, segui-a e vi-a subir a escada das traseiras. É por isso que penso que, se ela conseguiu voltar, talvez a Arden também apareça, um dia.

 

Desta vez, não se tratava de rebate falso. Jenny, deitada na cama, começou a contar as contracções. De dez minutos de intervalo durante duas horas, aceleraram-se subitamente para um lapso de cinco.

 

O Dr. Elmendorf mostrara-se moderadamente satisfeito, na última consulta.

 

O bebé deve pesar cerca de dois quilos e meio diagnosticou. Convinha que fosse um pouco maior, mas trata-se de um peso razoável em todo o caso. Aqui para nós, estava convencido que se nos depararia um parto prematuro. Após determinados exames, declarou: As suas esperanças vão concretizar-se, Mistress Krueger. Pode contar com um rapaz.

 

Jenny saiu para o corredor, a fim de chamar Erich. A porta do quarto dele estava fechada e ela hesitou antes de bater.

 

Erich... proferiu a meia voz.

 

Não obteve resposta. Teria partido para a cabana, durante a noite? Embora tivesse recomeçado a pintar, aparecia sempre em casa para jantar, mesmo que depois voltasse para lá.

 

Quando lhe falara da divisória que separava o seu antigo quarto do principal, dera uma palmada na fronte e exclamara:

 

Com a breca, já não me lembrava disso! Mas por que pensas que alguém a afastou, ultimamente? Só se foi Rooney, que está sempre a entrar e sair. Eu preveni-te de que não lhe desses muita confiança.

 

Jenny não se atrevera a revelar-lhe que a mulher alegava ter visto Caroline recentemente.

 

Agora, abriu a porta do quarto que o marido utilizava nos últimos tempos e acendeu a luz. A cama estava intacta e Erich não se achava visível.

 

Ela necessitava de seguir para o hospital, mas eram apenas quatro horas da madrugada e não haveria ninguém a pé antes das sete. A menos que...

 

Movendo-se no corredor sem ruído, pois estava descalça, passou diante das portas fechadas dos outros quartos. Ele decerto não utilizaria qualquer desses, mas...

 

Abriu cautelosamente a dos seus antigos aposentos. Viu um trofeu desportivo que reflectia o luar, em cima da cómoda e, ao lado da cama, o berço.

 

Erich dormia profundamente, o corpo encolhido na sua posição fetal favorita. A mão estendia-se sobre o berço, como se tivesse adormecido quando o balouçava. Acudiram à mente de Jenny determinadas palavras proferidas por Rooney: "Parece que estou a ver Caroline a balouçar o berço que continha Erich. Mais tarde, eu disse-lhe que tinha muita sorte, com uma mãe tão paciente."

 

Erich... chamou, tocando-lhe no ombro.

 

Ele abriu os olhos com prontidão e soergueu-se quase num salto.

 

Que se passa, Jenny?

 

Julgo conveniente ir para o hospital. Levantou-se apressadamente e enlaçou-a.

 

Um pressentimento obrigou-me a ficar hoje em casa e adormeci a pensar como será maravilhoso, quando o nosso bebé estiver neste berço.

 

Havia semanas que não tocava nela e Jenny não se dera conta de como ansiava por sentir-lhe os braços em volta do corpo. De repente, estremeceu e Erich apressou-se a perguntar:

 

Que tens, querida? Sentes-te mal?

 

Não compreendo porquê, mas, por instantes, senti um medo terrível. Até parece que é o meu primeiro filho...

 

A luz da sala de partos era muito intensa e magoava-lhe os olhos. Jenny perdia o conhecimento e reanimava-se intermitentemente. Erich, de bata branca e rosto protegido como os médicos e enfermeiras, observava-a com apreensão. Porque a olharia com tanta insistência?

 

Surgiu um derradeiro espasmo de dor mais prolongado, e ela pensou: "É agora." O Dr. Elmendorf segurou um corpo pequeno e inerte, sobre o qual todos se debruçaram.

 

Oxigénio.

 

O bebé tinha de ser perfeito.

 

"Dêem-mo", quis Jenny dizer, mas os lábios recusavam-se a formar as palavras e permaneciam imóveis.

 

Deixem-mo ver pediu Erich, que parecia ansioso, nervoso. No instante imediato, ela ouviu-o articular entre dentes, com desalento: Tem o cabelo como o das garotas, ruivo-escuro!

 

Quando Jenny voltou a abrir os olhos, o quarto achava-se imerso na escuridão e havia uma enfermeira sentada junto da cama.

 

O bebé?...

 

Está óptimo. Pregou-nos um susto, e nada mais. Procure dormir.

 

O meu marido?...

 

Foi para casa.

 

Que dissera Erich, na sala de partos? Ela não conseguia recordar-se.

 

Após um sono algo agitado e intermitente, de manhã surgiu um pediatra.

 

Sou o doutor Bovitch. Os pulmões do bebé não estão totalmente desenvolvidos e, de momento, encontra-se em apuros, por assim dizer, mas havemos de superar esta fase. Posso garantir-lho. No entanto, como sabemos que é católica romana, considerámos conveniente baptizá-lo, ontem à noite.

 

Está assim tão mal? Quero vê-lo.

 

Visitará a secção do infantário, dentro de pouco tempo.

 

Para já, não o podemos retirar da tenda de oxigénio. O Kevin é um lindo bebé, Mistress Krueger.

 

Kevin?!

 

Sim. Quando o padre perguntou ao seu marido que nome tencionavam dar-lhe, ele disse "Kevin". Kevin MacPartland Krueger.

 

Erich entrou no quarto, com um enorme ramo de rosas vermelhas.

 

Eles dizem que se salva! Confesso que passei a noite a chorar, porque julgava que não havia nada a fazer.

 

Por que disseste ao padre que queríamos chamar-lhe Kevin MacPartland?

 

Como todos pensavam que não sobreviveria mais do que meia dúzia de horas, considerei preferível reservar o nome de Erich para um filho com mais possibilidades de viver. Na altura, foi o único que me ocorreu. Julgava que ficarias satisfeita.

 

Muda-o.

 

Com certeza, querida. Será Erich Krueger Quinto, no seu certificado de nascimento.

 

Na semana que passou no hospital, Jenny esforçou-se por comer, recuperar as energias e repelir a depressão que lhe sugava o vigor. No quarto dia, o bebé foi retirado da tenda de oxigénio e levado à presença da mãe, que o segurou com enlevo.

 

Ela teve alta do hospital no quinto dia de vida do filho, e, nas três semanas imediatas, voltou lá a intervalos de quatro horas durante o dia, para lhe dar o peito. Umas vezes, era Erich que a levava, enquanto noutras lhe confiava o carro.

 

Tudo pelo nosso filho, querida.

 

As crianças habituaram-se ao abandono periódico. A princípio, protestaram, mas depois resignaram-se.

 

Não faz mal disse Beth a Tina. O papá fica a tomar conta de nós e divertimo-nos com ele.

 

Finalmente, a seguir ao Dia de Acção de Graças, Jenny

 

1 Feriado celebrado na última quinta-feira de Novembro. (N. do T.)

 

foi autorizada a levar o bebé para a casa e vestiu-o com carinho e cuidado para enfrentar o frio intenso, pois o mês de Novembro trouxera consigo uma série de nevões quase constantes, enquanto o vento soprava com intensidade.

 

Beth e Tina ficaram extasiadas com o novo irmão e insistiam em que as deixassem pegar nele. Por último, sentada ao lado delas no sofá, a mãe permitiu que o fizessem.

 

Mas com cuidado, porque é muito pequeno e frágil. Mark e Emily apareceram para o ver, e ela declarou:

 

É um amor. O Erich mostra a fotografia a toda a gente.

 

Obrigada pelas flores disse Jenny. Telefonei a sua mãe para agradecer, mas parece que não estava em casa.

 

O "parece" foi introduzido na frase propositadamente, pois achava-se convencida de que Mrs. Hanover se encontrava lá na altura.

 

Espero que a situação sirva de inspiração a alguém volveu Emily, com um olhar significativo a Mark, que lhe dirigiu um sorriso, mas não se pronunciou.

 

Entretanto, Jenny reflectia que uma mulher não emitia comentários daquela natureza, a menos que estivesse muito segura de si.

 

Qual é a sua opinião profissional sobre o meu filho, doutor Garrett? perguntou, numa tentativa para quebrar o silêncio que se estabelecera. Acha-o capaz de ganhar um trofeu, na próxima feira do distrito?

 

É um puro-sangue, sem margem para dúvidas assentiu ele.

 

Haveria uma ponta de apreensão na voz? De compaixão? Veria, como ela, um ser muito frágil deitado no berço? Tinha quase a certeza disso.

 

Rooney era uma ama nata e adorava dar o biberão de leite suplementar ao bebé, após a refeição natural do peito materno. Noutras ocasiões, lia histórias a Beth e Tina, quando o recém-nascido dormia.

 

Jenny sentia-se grata pela ajuda. No entanto, o filho preocupava-a. Dormia de mais e estava excessivamente pálido. Entretanto, os olhos começavam a focar-se nas pessoas e objectos.

 

Erich mudou a cama de quatro colunas para a parede sul do quarto principal, deixando aberta a divisória que comunicava com o outro. O berço ficava aí de noite e Jenny podia ouvir qualquer som que o bebé produzisse.

 

Todavia, o marido ainda não regressara aos aposentos comuns.

 

Precisas de descansar mais algum tempo, querida.

 

Não vejo inconveniente em que durmas comigo. Na verdade, agradava-me muito que o fizesses.

 

Ainda é cedo.

 

De súbito, ela descobriu que ficava aliviada com a decisão dele. O filho consumia-lhe todos os pensamentos. No final do primeiro mês, perdera cento e vinte gramas, e o pediatra assumiu uma expressão grave.

 

Vamos reforçar a fórmula do biberão suplementar. Receio que o seu leite não seja suficientemente rico para ele, Mistress Krueger. Tem comido com apetite? Preocupa-a alguma coisa? Lembre-se de que uma mãe descontraída tem um filho mais feliz.

 

Jenny esforçava-se por se alimentar o melhor possível. A determinada altura, apercebeu-se de que o bebé começava a mamar com avidez, para em seguida se cansar e adormecer.

 

É melhor procedermos a alguns testes decidiu o médico, quando foi informado.

 

Assim, a criança recolheu ao hospital durante três dias, e ela dormiu num quarto perto do infantário.

 

Não te apoquentes com as nossas filhas, Jenny. Cuidarei delas.

 

Eu sei, Erich.

 

Jenny ansiava pelos momentos em que podia pegar no bebé.

 

Uma das metades do coração revelou-se deficiente, e o médico informou:

 

Teremos de o operar, mas não por enquanto. Seria muito arriscado.

 

Ela recordou-se da maldição de Maude Ekers acerca do filho que transportava no ventre e apertou os braços em torno do bebé adormecido.

 

É uma operação perigosa?

 

Todas as intervenções cirúrgicas contêm um risco potencial, mas a maioria dos bebés suportam-no vitoriosamente.

 

Regressou a casa com o filho, mais uma vez. A penugem inicial começou a cair, substituída por finos cabelos dourados.

 

Terá a cor do teu, Erich.

 

Creio que será ruivo como o das pequenas.

 

Surgiu o mês de Dezembro e Beth e Tina principiaram a preocupar-se com a longa lista de pedidos para o Pai Natal, enquanto Erich montava uma frondosa árvore a um canto, perto do fogão, auxiliado pelas garotas, e Jenny os observava, com a criança nos braços, pois custava-lhe pousá-lo.

 

Dorme melhor assim explicou ao marido. Está sempre tão frio... A circulação é deficiente.

 

Chego a pensar que só te preocupas com ele comentou Erich. Devo comunicar-te que eu e Beth e Tina nos sentimos abandonados.

 

Levou-as a um centro comercial das proximidades em cuja entrada havia um Pai Natal e, mais tarde, confidenciou a Jenny:

 

Era uma lista interminável, pois tive de anotar tudo o que elas escolhiam. Os objectos maiores que pediram são berços e bonecas-bebés.

 

Luke regressara ao Minnesota para a quadra festiva, e apareceu na tarde de Natal, com Mark e Emily. Esta última mostrava-se deprimida e fazia-se acompanhar de uma dispendiosa carteira de pele.

 

Foi o presente do Mark. Não a acham admirável? Jenny não pôde deixar de se perguntar se esperaria antes um anel de noivado. Luke pediu para pegar no bebé e observou:

 

É uma pequena beldade.

 

Aumentou duzentas gramas anunciou Jenny. Não é verdade, meu rebento?

 

Trata-o sempre assim? perguntou Emily.

 

Talvez seja patetice da minha parte, mas Erich parece-me um nome muito pomposo para um ser tão pequeno.

 

Olhou o marido, sorridente, todavia ele mantinha uma expressão impassível, enquanto Mark, Luke e Emily se entreolhavam, com perplexidade. Provavelmente tinham visto a notícia do nascimento do bebé no jornal do dia seguinte, em que figurava o nome de Kevin. Mas Erich não os elucidara?

 

Emily tomou a iniciativa de quebrar o silêncio embaraçoso.

 

Creio que a cor do cabelo será a mesma do das irmãs declarou, debruçando-se sobre o bebé.

 

Pois eu penso que será louro como o do Erich contrapôs Jenny, com um sorriso. Veremos, dentro de uns seis meses.

 

Foi o que eu disse desde o princípio interpôs o marido.

 

Ela sentiu o sorriso que esboçara congelar-se nos lábios. Ele quereria dizer o que supunha? Olhou com ansiedade de rosto para rosto. Emily mostrava-se profundamente embaraçada. Luke fitava um ponto vago na sua frente. Mark exibia uma expressão impenetrável. Por seu turno, Erich sorria ternamente ao bebé.

 

Jenny sabia, sem margem para dúvidas, que ele não alterara o nome na certidão de nascimento.

 

Naquele momento, o bebé começou a chorar e ela levantou-se.

 

Desculpem, mas tenho... Fez uma pausa e concluiu a meia voz:... tenho de mudar as fraldas ao Kevin.

 

Conservou-se sentada junto do berço, depois de o bebé adormecer, enquanto ouvia Erich acompanhar as crianças ao quarto.

 

Não acordem o vosso irmão recomendou ele, quase num murmúrio. Eu depois dou um beijo à mamã em vosso nome. Foi um Natal maravilhoso, hem?

 

"Não posso continuar a viver assim", decidiu Jenny para consigo.

 

Por fim, regressou à sala. Erich fechara as caixas dos presentes e colocara-as meticulosamente em redor da árvore. Ao vê-la entrar, disse:

 

Estou muito contente com a minha prenda, Jen. Espero que a tua também te agradasse. Sem aguardar resposta, rectificou a posição de algumas caixas, enquanto continuava: As pequenas gostaram dos berços, hem? Quase não prestaram atenção ao resto. E o bebé não tarda a poder brincar com os animais de pelúcia que lhe demos.

 

Onde está a certidão de nascimento dele, Erich?

 

Arquivada na repartição competente. Porquê?

 

Que nome ficou registado?

 

O dele. Kevin.

 

Mas disseste que o mudavas.

 

Cheguei à conclusão de que seria um erro grave.

 

Como assim?

 

Não achas que já se falou demasiado a nosso respeito? Que pensas que as pessoas diriam se alterássemos o nome do nosso filho? Ficavam com material para mexericos para os próximos dez anos. Não esqueças que ainda não havia bem nove meses que tínhamos casado quando ele nasceu.

 

Mas Kevin. Chamaste-lhe Kevin.

 

Expliquei-te o motivo. Os comentários sobre o acidente começam a reduzir-se e já ninguém menciona o nome dele. Referem-se ao primeiro marido de Jenny Krueger, o fulano que a seguiu ao Minnesota e se precipitou no rio. Mas posso garantir-te uma coisa. Se mudássemos o nome neste momento, as más-línguas passariam os próximos cinquenta anos a ventilar hipóteses sobre o motivo. E então todos aludiriam a Kevin MacPartland.

 

Não haverá uma razão mais profunda por não o teres mudado? Estará o bebé mais gravemente doente do que eu julgo? Será porque reservas o teu nome para um filho que venha a ter uma vida normal? Ocultas-me alguma coisa?

 

Não, de modo algum. Ele aproximou-se, com uma expressão de ternura no olhar. Tudo se desenrolará da melhor maneira, verás. Pára de te preocupares. O bebé reage de forma normal.

 

Havia, porém, outro assunto que ela necessitava de abordar.

 

Na sala de partos, disseste que ele tinha cabelos ruivo-escuros, como as pequenas. Ora, os de Kevin também eram dessa cor. Jura-me que não sugeres que ele era o pai. Não acredito que possas admitir uma enormidade dessas!

 

Com certeza que não. Porque havia de pensar assim?

 

Por causa do que disseste sobre o cabelo dele. Notou que a voz começava a fraquejar. O bebé será a tua imagem. Espera e verás. O cabelo que lhe está a nascer é louro.

 

Ele olhou-a em silêncio por um momento. O veludo azul do casaco que vestia conferia uma qualidade quase lustrosa aos cabelos louros. Por fim, os músculos faciais tornaram-se tensos, enquanto replicava:

 

A tua incompreensão das minhas atitudes não terá fim? Fui bondoso para contigo. Retirei-te e às crianças de um apartamento miserável para esta casa confortável. Dei-te jóias, roupas e peles. Podias obter tudo o que quisesses e, apesar disso, permitiste que Kevin MacPartland contactasse contigo e provocasse um escândalo. Tenho a certeza de que não existe um lar nesta comunidade onde não sejamos o tema obrigatório de conversa durante o jantar. Perdoei-te, mas não te assiste o direito de estar zangada comigo e pôr em causa todas as palavras que me brotam da boca. Fez uma breve pausa. Bem, vamos para cima. É altura de eu regressar ao nosso quarto.

 

Estamos fatigados, Erich murmurou Jenny, confusa. Encontramo-nos sob forte tensão há muito tempo. Penso que devias recomeçar a pintar. Já reparaste no escasso número de vezes que visitaste a cabana desde que o bebé nasceu? Dorme no teu quarto, esta noite, e parte para lá de manhã. Mas agasalha-te bem, porque é muito fria.

 

Como o sabes? redarguiu ele, desconfiado. Quando foste lá?

 

Não ignoras que nunca estive na cabana.

 

Então, quem te?...

 

Interrompeu-se no momento em que soaram gemidos provenientes do primeiro andar.

 

É o bebé!

 

Ela precipitou-se para a escada, com Erich no seu encalço. A criança agitava os braços e as pernas e tinha o rosto molhado. De súbito, principiou a chupar o punho cerrado.

 

Está a chorar lágrimas verdadeiras! Jenny inclinou-se para o berço e pegou no bebé com ternura. Pronto, pronto, meu rebento! Eu sei que tens fome, amorzinho. Ele está mais forte, Erich!

 

Ouviu a porta fechar-se atrás dela. O marido acabava de abandonar o quarto.

 

Jenny sonhou com um pombo, que parecia terrivelmente ominoso. Voava através da casa, e ela tinha de o capturar. Não podia permitir que ficasse lá dentro. Quando se dirigiu para o quarto das filhas, apressou-se a segui-lo, mas escapou-se-lhe e entrou no do bebé, para pousar no berço.

 

Acordou lavada em lágrimas e levantou-se imediatamente, para espreitar no outro quarto. O filho dormia tranquilamente.

 

Erich deixara um bilhete na mesa da cozinha: "Resolvi seguir o teu conselho. Ficarei uns dias na cabana, para pintar."

 

Durante o pequeno-almoço, Tina pousou a colher com que comia os flocos de aveia e perguntou:

 

Mamã, porque não me falaste quando entraste no meu quarto, esta noite?

 

Naquela tarde, Rooney apareceu em mais uma das suas frequentes visitas e foi a primeira pessoa a notar que o bebé tinha febre.

 

Informou que, no dia de Natal, jantara com Clyde, Maude e Joe e acrescentou:

 

O Joe agora está a portar-se bem. A temporada na Florida, quando teve alta do hospital, fez-lhe muito bem e à mãe. Ele deve retirar o aparelho no mês que vem.

 

Ainda bem.

 

A Maude diz que Erich foi muito generoso para com eles, mas suponho que a senhora já sabia. Pagou todas as despesas do hospital e entregou-lhes um cheque de cinco mil dólares, numa carta em que se considerava responsável do sucedido.

 

Responsável? ecoou Jenny, erguendo os olhos da colcha que confeccionava, quase concluída.

 

Confesso que não percebi ao que se referia. A Maude está deprimida por causa de coisas horríveis que disse acerca do bebé, e como ele não tem passado bem de saúde...

 

Na verdade, lembrava-se perfeitamente das "coisas horríveis" que a mulher dissera.

 

Acho que o Joe reconheceu que estava com uma ressaca enorme, naquela manhã, e deve de facto ter misturado o veneno com a ração de aveia acrescentou Rooney.

 

Ele disse isso?

 

Disse. De qualquer modo, penso que a Maude queria que lhe transmitisse o seu pedido de desculpas. Sei que, quando regressaram, a semana passada, o Joe procurou o xerife, preocupado com os rumores que circulam sobre o seu acidente. Sobretudo, devido àquilo que disse a seu respeito, Jenny. Agora, alega que não compreende porque o fez.

 

"Coitado do Joe", reflectiu Jenny. "Tenta desfazer um mal irreparável e agrava a situação ao voltar a abordá-lo."

 

Mas agora reparo que tem a colcha quase pronta! Ficou muito linda. Isso exige muita paciência.

 

Tive muito gosto em fazê-la.

 

Vai pendurá-la na sala de jantar, junto da de Caroline?

 

Ainda não pensei nisso.

 

Na realidade, ainda não pensara em nada especial naquele dia, excepto na possibilidade de se ter tornado sonâmbula e tentado expulsar um pombo do quarto das filhas, durante o sono. Mas estivera lá na verdade?

 

Nos últimos meses, tinham ocorrido numerosos episódios como aquele. Na próxima vez que fosse à consulta do Dr. Elmendorf, falar-lhe-ia nisso.

 

Por outro lado, começava a duvidar de que Erich lhe perdoasse a notoriedade que causara. Por muito que ambos se esforçassem, a sua vida em comum jamais regressaria à normalidade.

 

E, por muito que ele afirmasse o contrário, Jenny estava convencida de que, subconscientemente, não tinha a certeza de que o filho era seu. Ora, ela não conseguiria levar uma existência tranquila com semelhante dúvida entre ambos.

 

No entanto, o bebé era um Krueger e merecia os melhores cuidados médicos que a fortuna de Erich lhe pudesse proporcionar. Após a operação do filho, se as coisas não melhorassem consideravelmente, ela partiria. Tentou imaginar-se a viver em Nova Iorque, a trabalhar de novo na galeria de arte, levar e recolher as filhas do Centro Diurno e regressar a casa apressadamente para tratar do jantar. Não seria uma readaptação fácil, mas nada era fácil no mundo, e muitas mulheres conseguiam resistir a situações ainda mais penosas. E tudo resultaria preferível àquela horrível sensação de isolamento, de perder o contacto com a realidade.

 

Pesadelos. Sonambulismo. Amnésia. Mas seria possível a amnésia? Nunca conhecera problemas do género, no apartamento em Nova Iorque. Encontrava-se extenuada no final do dia, mas dormia sempre bem. Outrora, dispunha de pouco tempo para consagrar às filhas, porém agora parecia que não tinha nenhum. Preocupava-se inteiramente com o bebé, e Erich levava-as a dar passeios em que Jenny não podia ou não queria participar.

 

"Quero ir para casa", cogitava. A casa, no sentido do lar, não era um lugar, porventura nem sequer um apartamento, mas um local em que uma pessoa podia fechar a porta e encontrar-se em paz.

 

Aquela região. Mesmo naquele momento, com a neve a cair e o vento a uivar. Ela gostava da selvajaria do Inverno, e imaginou a mansão como começara a decorá-la. Os pesados cortinados retirados, a mesa perto da janela, as amizades que esperara fazer, as festas que teria promovido nas datas festivas.

 

Parece tão triste, Jenny disse Rooney, subitamente. Ela tentou sorrir.

 

É apenas que... Não conseguiu completar a frase.

 

Eu não tinha um Natal tão feliz desde que a Arden partiu. Só de ver as pequenas tão contentes e poder ajudá-la com o bebé...

 

Apercebeu-se repentinamente de que a mulher nunca aludia à criança pelo nome.

 

Ei-la proferiu, levantando a colcha nas mãos. Está pronta.

 

As filhas entretinham-se com um puzzle, e Beth ergueu a cabeça.

 

Que bonita! Coses muito bem, mamã.

 

Gosto mais dessa do que da que está na parede declarou Tina. O papá disse que a tua não havia de ser bonita, mas engana-se.

 

"Tenho-lhes dedicado tão pouco tempo, desde que o bebé nasceu...", pensou Jenny, olhando-as com ternura.

 

Sabem uma coisa? Vamos trazer o mano cá para baixo, por uns minutos. Se lavarem as mãos, deixo-as pegar nele.

 

Quer que o vá buscar? perguntou Rooney.

 

Pois sim. Entretanto, prepararei a papa.

 

A mulher reapareceu pouco depois, com o bebé envolto num cobertor.

 

Acho que está com febre anunciou apreensiva.

 

O Dr. Bovitch apareceu às cinco da tarde e decidiu:

 

É melhor levá-lo para o hospital.

 

Não, por favor. Jenny esforçava-se por evitar que a voz tremesse.

 

Podíamos aguardar até de manhã. O médico hesitou por um momento. O pior é que, quando se trata de recém-nascidos, a febre aumenta muito rapidamente. Por outro lado, a perspectiva de o expor ao frio que faz não me atrai. Bom, veremos como se encontra amanhã.

 

Rooney ofereceu-se para tratar do jantar. Jenny deu uma aspirina triturada ao bebé e notou que a percorria um frio invulgar. Estaria a chocar um resfriado, ou seriam efeitos da ansiedade?

 

Passe-me o xaile, por favor, Rooney

 

Colocou-o em torno dos ombros e da criança, que conservava nos braços.

 

Meu Deus... balbuciou a mulher, empalidecendo.

 

Que foi?

 

Por instantes, ao olhá-la com o xaile, pareceu-me ver o retrato de Caroline e senti uma impressão estranha.

 

Clyde ficara de aparecer às sete e meia, para a acompanhar a casa.

 

Não quer que ande por aí sozinha, à noite, explicou ela. Desagradam-lhe as minhas palavras irreflectidas em público.

 

Que palavras irreflectidas? perguntou Jenny, distraidamente, pois o bebé adormecera e respirava com certa dificuldade.

 

Bem... Rooney fez uma pausa e olhou em volta. Certa ocasião, numa dessas minhas fases, disse ao Clyde que via Caroline por aí com frequência, e ele enfureceu-se.

 

Jenny estremeceu. A mulher parecera atravessar um período de acalmia e não se referira a ter visto Caroline desde o nascimento do bebé.

 

Soou uma pancada enérgica na porta e Clyde fez a sua aparição.

 

Vamos, Rooney. Quero jantar a horas.

 

Tem de acreditar que ela está aqui, Jenny sussurrou a mulher. Caroline voltou. Aliás, compreende-se porquê. Quer ver o neto.

 

Nas quatro noites seguintes, Jenny manteve o berço ao lado da cama. Um vaporizador fazia circular ar quente e húmido e a lâmpada de fraca intensidade que permanecia acesa permitia-lhe verificar se o bebé estava devidamente coberto e respirava com facilidade.

 

Entretanto, o médico comparecia todas as manhãs.

 

Tenho de o vigiar para detectar uma possível pneumonia aos primeiros indícios esclareceu. Num recém-nascido, um simples resfriado pode propagar-se aos pulmões em poucas horas.

 

Erich não reapareceu da cabana. Durante o dia, Jenny levava o filho para o rés-do-chão e colocava-o no berço perto do fogão. Assim, podia vigiá-lo sempre e fazer companhia a Beth e Tina.

 

A possibilidade de ser sonâmbula não lhe abandonava o pensamento. Dar-se-ia o caso de vaguear pela herdade, durante a noite? De longe, poderiam tomá-la por Caroline, em particular se usasse o xaile.

 

Se tal acontecesse, explicar-se-iam a convicção de Rooney de ter visto a mãe de Erich, a estranheza de Tina por não lhe falar quando visitava o seu quarto durante a noite e a certeza absoluta de Joe de que subira para o carro de Kevin.

 

No último dia do ano, o sorriso do médico era sincero, ao anunciar:

 

Creio que o pior já lá vai. É uma boa enfermeira, Jenny. Agora, tem de descansar. Leve o bebé para o seu quarto e, se não exigir que o amamente durante a noite, não o acorde.

 

Após a última mamada, às dez da noite, ela impeliu o berço para o quarto contíguo, ao mesmo tempo que murmurava:

 

Vou sentir a tua falta, meu amor, mas estou muito contente por te teres livrado da constipação.

 

Depois de se certificar de que ficava em segurança, deixou a divisória quase completamente fechada e deitou-se. O novo ano principiaria dentro de um par de horas. No anterior, Fran e alguns outros vizinhos foram fazer-lhe companhia, por se tratar da primeira passagem de ano sem a presença de Nana.

 

Será um bom ano para ti, Jen! asseverava Fran. Sinto-o, sem margem para dúvidas.

 

Um bom ano! Quando regressasse a Nova Iorque diria à amiga o que pensava das suas predições.

 

Mas, e o bebé? Sim, compensava-a de tudo o resto de desagradável que sucedera. "Rectifico o juízo que fiz", admitiu para consigo. "Foi de facto um bom ano."

 

Quando acordou, o sol inundava o quarto e a frígida paisagem no exterior. O pequeno relógio de porcelana em cima da mesa-de-cabeceira indicava que faltavam cinco minutos para as oito.

 

O bebé dormira ininterruptamente toda a noite. Jenny saltou da cama, afastou a divisória e aproximou-se do berço.

 

Os braços da criança estavam estendidos sobre a cabeça, com as pequenas mãos abertas e dedos afastados.

 

Ela debruçou-se e arregalou os olhos de terror. O filho não respirava.

 

Mais tarde, recordou-se de ter gritado e corrido com o bebé nos braços, descalça, em camisa de dormir, no solo nevado em direcção ao escritório, onde se encontravam Erich, Clyde, Luke e Mark. Este último apressou-se a pegar na criança e tentar reanimá-la pelo método de respiração boca a boca.

 

Não há nada a fazer, Mistress Krueger declarou, mais tarde, o Dr. Bovitch. Era uma criança muito doente e duvido que sobrevivesse à operação. Assim, foi mais fácil para ela.

 

Oh, não, não, não!... entoava Rooney, com uma expressão de pesar.

 

O nosso rapazinho... gemia Erich.

 

"O meu rapazinho", reflectia Jenny. "Negaste-lhe o teu nome."

 

Porque foi que Deus levou o bebé para o céu? perguntavam Beth e Tina.

 

Sim, porquê?

 

Gostava de o sepultar junto de tua mãe, Erich disse Jenny. Ficava com a impressão de que o deixava menos só.

 

Lamento, querida, mas não posso modificar o terreno em volta da sepultura de Caroline.

 

Após a celebração da missa, Kevin MacPartland Krueger foi enterrado ao lado dos três bebés falecidos em gerações anteriores. De olhos secos, Jenny observava a pequena urna baixada à cova. Naquela primeira manhã em que visitara o cemitério, contemplara as sepulturas e perguntara como poderia alguém resistir à dor da perda de um filho.

 

Agora, a dor pertencia-lhe.

 

Por fim, começou a chorar. Erich rodeou-lhe a cintura com o braço, mas ela repeliu-o.

 

Terminada a cerimónia, seguiram todos para casa: Mark, Luke, Clyde, Emily, Rooney, Erich e Jenny. Elsa, que os aguardava, preparara sanduíches e tinha os olhos vermelhos. "Afinal, também tem sentimentos humanos", cogitou Jenny, com amargura, mas arrependeu-se imediatamente do pensamento.

 

Erich conduziu-os à sala de estar e Mark acercou-se dela com um copo na mão.

 

Beba isto, Jenny, para aquecer um pouco.

 

O brande queimou-lhe a garganta, e ela recordou-se de que não voltara a ingerir bebidas alcoólicas desde que engravidara. Agora, podia fazê-lo sem preocupações.

 

Sentou-se e sorveu o líquido com dificuldade, como se existisse uma obstrução invisível.

 

Está a tremer observou Mark. Rooney ouviu e disse:

 

Vou buscar o xaile.

 

"Mas não o verde", reflectiu ela. "Não aquele em que envolvia o bebé." No entanto, a mulher já lho colocava nos ombros.

 

Os olhos de Luke não se desviavam de Jenny, que pressentia porquê, e tentou desembaraçar-se do xaile.

 

Erich autorizara Beth e Tina a levarem os seus berços para a sala, para poderem estar com a família, e elas mostravam-se assustadas.

 

Olha, mamã disse Beth. É assim que Deus vai cobrir o nosso bebé no céu. E ajeitou o cobertor em torno da boneca que tinha no berço.

 

Seguiu-se um longo silêncio, cortado finalmente por Tina:

 

E foi assim que aquela senhora apontou para o quadro cobriu o bebé, na noite em que Deus o levou para o céu.

 

Lenta e deliberadamente, abriu as palmas das mãos e exerceu pressão no rosto da boneca.

 

Jenny ouviu uma exclamação abafada. Teria brotado dos seus próprios lábios? Todos os olhares se concentravam no quadro e, de súbito, como que em obediência a uma ordem, fixaram-se nela com expressões interrogativas.

 

Oh, não, não, não!... articulou Rooney. Caroline nunca faria mal ao bebé. Acercou-se de Tina. Costumava colocar as mãos em volta da cara de Erich, quando era pequeno. Assim. Exemplificou com a boneca. E ria-se e dizia "Caro, caro", que quer dizer "querido". Olhou em volta. É como eu referi, Jenny. Ela voltou. Talvez soubesse que o bebé estava doente e quisesse ajudar.

 

Leve-a daqui, Clyde indicou Erich, a meia voz.

 

Vamos. O outro pegou no braço da mulher. E está calada.

 

No entanto, ela soltou-se.

 

Explique-lhes como tenho visto Caroline, Jenny. Repita-lhes o que contei. Diga-lhes que não estou louca.

 

Jenny tentou levantar-se, ao ver que Clyde magoava Rooney. Os seus dedos cravavam-se no braço magro, quase com crueldade.

 

Por fim, foi Luke quem interveio.

 

Deixe-a, homem. Não vê que ficou impressionada com o que ocorreu? Virou-se para ela, conciliador. Porque não vai para casa e descansa? Foi um dia terrível para si.

 

Todavia, a mulher parecia não ouvir.

 

Fartei-me de a ver. Às vezes, depois de o Clyde adormecer, saio de casa, porque quero falar com ela. Aposto que sabe onde a Arden está. E vejo-a entrar aqui. Uma ocasião, assomou à janela do quarto do bebé. O luar iluminava-lhe a cara como se fosse de dia. Lamento que nunca me fale. Talvez pense que tenho medo dela. Mas porque havia de ter? Se Caroline se encontra aqui, isso significa que a Arden, mesmo que tenha morrido, pode voltar. Não é verdade? Afastou-se de Clyde e acercou-se de Jenny, que abraçou. E o bebé também. Não era maravilhoso, se tal acontecesse? Deixa-me pegar nele, quando voltar?

 

Eram quase duas horas e Jenny tinha os seios cheios de leite, o que lhe provocava dores, mas aceitava-as com satisfação, porque contrabalançavam a agonia da mágoa.

 

O bebé nunca voltará, Rooney murmurou. Caroline e a Arden, tão-pouco. Tina estava a sonhar.

 

Com certeza acudiu Mark, em tom brusco.

 

Ela precisa de um sedativo disse Luke, cuja expressão deixava transparecer forte tensão. Vou levá-la ao hospital.

 

Emily e Mark ficaram mais alguns minutos, e ela tentou despertar a atenção de Erich, referindo-se à pintura.

 

Tenho uma exposição em Houston, em Fevereiro informou ele. Levarei a Jenny e as pequenas. A mudança de ambiente far-nos-á bem.

 

Quando, por fim, se retiraram todos, Jenny conseguiu reunir energias suficientes para se ocupar do jantar. Terminada a refeição, acompanhou as filhas ao quarto, após o que regressou ao rés-do-chão, onde o marido a aguardava com um cálice de brande.

 

Bebe isto, para te descontrair um pouco. Puxou-a para o seu lado, no sofá, e acariciou-lhe o cabelo, antes de prosseguir: Como ouviste o médico dizer, o bebé dificilmente resistiria à operação. Estava muito mais doente do que pensavas.

 

Jenny escutava, aguardando que o aturdimento se dissipasse. "Não tentes facilitar as coisas, Erich", reflectia. "Nada do que disseres influirá na situação."

 

Estou preocupado, querida. Cuidarei de ti, mas a Emily é uma mexeriqueira. O que a Tina disse não tardará a circular de boca em boca. Por sorte, Rooney não merece crédito e a garota é muito pequena. De contrário...

 

Ela tentou desprender-se, porém ele segurava-a com firmeza e exprimia-se com uma suavidade e cadência hipnóticas.

 

Tenho muito medo por ti. Todos notaram como te pareces com Caroline e depois de o que a Tina disse se propagar... Não compreendes o que concluirão?

 

Jenny sabia que acordaria a todo o momento, para se descobrir no apartamento de Nova Iorque, onde Nana estaria presente, para observar: "Voltaste a falar no sono, Jen. Tiveste um pesadelo, sem dúvida. Preocupas-te com demasiadas coisas."

 

Mas não se encontrava no apartamento. Continuava na sala fria e solene da mansão, onde alguém emitia a incrível sugestão de que as pessoas pensariam que matara o seu próprio filho.

 

O pior é que sofres de sonambulismo, Jen volveu ele. Quantas vezes te perguntaram as pequenas porque não lhes falas quando entras no seu quarto durante a noite? É muito possível que estivesses no do bebé e lhe acariciasses o rosto, Tina não compreendeu bem o que viu. Tu própria confessaste ao doutor Elmendorf que tinhas alucinações. Ele telefonou-me a esse respeito.

 

Telefonou-te?

 

Sim, muito preocupado. Disse que te recusavas a consultar um psiquiatra.

 

Ela desviou os olhos para os cortinados, cujas rendas pareciam uma teia. Uma ocasião, retirara-os, numa tentativa para alterar a atmosfera sufocante da casa, mas Erich voltara a colocá-los.

 

Agora, dir-se-ia que ameaçavam envolvê-la para a asfixiar.

 

Asfixiar. Fechou os olhos para obliterar a imagem das pequenas mãos de Tina a cobrirem o rosto da boneca.

 

Alucinações... Teria julgado sentir o contacto do cabelo comprido suspenso sobre o berço? Deixara-se dominar por um produto da imaginação ao longo de tantas noites?

 

Estou tão confusa, Erich... Já não distingo a realidade da fantasia. Tenho de partir, com as pequenas.

 

Impossível. Estás demasiado perturbada. No teu próprio interesse e delas, não deves permanecer só. E não esqueças um pormenor importante. Beth e Tina são tanto minhas filhas como tuas.

 

Sou a sua mãe. A mãe natural e protectora.

 

Presta atenção a isto. Aos olhos da lei, tenho tanto o direito a elas como tu. E podes crer que, se tentasses abandonar-me, os tribunais haviam de mas confiar. Supões que alguma autoridade tas entregaria, com a reputação que criaste nesta comunidade?

 

Mas são minhas! O bebé era teu e recusaste dar-lhe o nome. As pequenas pertencem-me e reclama-las. Porquê?

 

Porque te quero a meu lado, independentemente do que possas ter feito e da gravidade da tua doença. Caroline estava decidida a partir, mas eu conheço-te, Jen. Nunca abandonarias as tuas filhas. É por esse motivo que nos conservaremos sempre juntos. Vamos começar tudo de novo, a partir deste momento. Mudo-me para o quarto principal contigo, esta noite.

 

Não.

 

Que remédio. Esqueceremos o passado. Não voltarei a mencionar o bebé. Estarei presente para te acudir, se sofreres novo ataque de sonambulismo. Proteger-te-ei em tudo. Se investigarem a morte do bebé, contratarei um advogado.

 

Ela não resistiu a que ele a levantasse e conduzisse em direcção à escada.

 

Amanhã, restituiremos o quarto à sua forma primitiva acrescentou ele. Imaginaremos que o bebé nunca existiu.

 

Jenny reflectiu que necessitava de simular concordância, até que pudesse conceber um plano. Uma vez no quarto, Erich abriu a gaveta de baixo da cómoda, e ela calculou o que procurava. A camisa de dormir água-marinha.

 

Veste-a, Jen. Há muito tempo que não o fazes.

 

Não posso.

 

Estava assustada. O marido exibia uma expressão estranha no olhar. Ela não conhecia aquele homem, capaz de lhe dizer que as pessoas a julgavam assassina e devia esquecer o filho sepultado poucas horas antes.

 

Podes, sim. Já não tens problemas de cintura. Recuperaste as formas esbeltas.

 

Jenny aceitou a camisa e entrou na casa de banho, para a vestir. Quando se viu ao espelho, compreendeu porque afirmavam que se parecia com Caroline.

 

Os olhos tinham a mesma expressão melancólica e aterrorizada da mulher do quadro.

 

De manhã, Erich abandonou a cama cautelosamente e começou a mover-se no quarto em bicos dos pés.

 

Estou acordada informou Jenny.

 

Eram seis horas, altura de dar o peito ao bebé.

 

Tenta voltar a dormir, querida aconselhou ele, enfiando a pesada camisola de esquiar. Vou para a cabana, pois tenho de terminar umas telas para a exposição de Houston. Iremos juntos: nós os dois e as pequenas. Verás que nos divertiremos. Sentou-se na borda da cama. Amo-te tanto, Jen... Fez uma pausa, enquanto ela o olhava com perplexidade. Diz que também me amas.

 

Amo-te, Erich proferiu Jenny, quase automaticamente.

 

Fazia um tempo pouco convidativo. Mesmo depois de as garotas tomarem o pequeno-almoço, o Sol continuava invisível e as nuvens anunciavam borrasca iminente.

 

Jenny vestiu as filhas para darem uma volta pelas imediações. Elsa começou a retirar as decorações da árvore de Natal e ela arrancou alguns pequenos ramos.

 

Que vais fazer com eles, mamã? perguntou Beth.

 

Colocá-los na sepultura do bebé.

 

A terra endurecera durante a noite, devido à geada, e as luminosas agulhas de pinheiro atenuavam o aspecto sombrio do pequeno monte.

 

Não estejas tão triste, mamã disse Beth.

 

Vou fazer o possível, meu amor.

 

Quando regressavam, Jenny avistou Clyde, que conduzia o carro em direcção ao caminho de acesso à herdade, e aguardou para se inteirar do estado de saúde de Rooney.

 

Não a deixam voltar para casa, por uns tempos informou ele. Tencionam submetê-la a uma infinidade de testes e aconselharam-me a interná-la num hospital especial, durante uma temporada, mas recusei. Ela melhorou muito desde que veio viver connosco, Mistress Krueger. Acho que nunca me apercebi de como se sentia só. Receia sempre abandonar a herdade por muito tempo, para o caso de a Arden telefonar ou regressar. Mas ultimamente piorou, como deve ter observado.

 

Pestanejou, numa tentativa para reprimir as lágrimas, e continuou:

 

Outra coisa, Mistress Krueger. Aquilo que Tina disse tornou-se conhecido. O xerife procurou a Rooney, munido de uma boneca, e pediu-lhe que explicasse como Caroline costumava acariciar o rosto do bebé. Confesso que não sei o que tem em mente.

 

"Mas sei eu", pensou Jenny. "O Erich tinha razão. A Emily não perdeu tempo em divulgar as notícias mais recentes."

 

O xerife Gunderson apareceu três dias mais tarde.

 

Devo preveni-la de que circulam comentários pouco agradáveis a seu respeito, Mistress Krueger. Recebi ordem para mandar proceder à exumação do corpo do bebé, a fim de ser autopsiado.

 

Ela imaginou subitamente as pás aguçadas que profanavam a sepultura, para retirar a pequena urna e transferi-la para a morgue.

 

Por fim, apercebeu-se de alguém a seu lado e viu que era Mark.

 

Porque se tortura, Jenny? Não devia assistir a isto. Na verdade, não se tratava de um produto da sua imaginação, pois encontrava-se no cemitério.

 

Que procuram?

 

Querem certificar-se de que não há escoriações ou marcas de pressão nos lábios do bebé.

 

Acudiu-lhe a vaga ideia de ter vislumbrado uma espécie de vaso sanguíneo azulado junto do nariz de que não se apercebera antes.

 

Você notou-lhe alguma coisa do género? perguntou, consciente de que ele estabeleceria a devida distinção entre uma escoriação e um vaso sanguíneo.

 

Quando tentei a reanimação boca a boca, exerci forte pressão no rosto. Por conseguinte, posso ter produzido alguma marca.

 

Disse-o ao xerife?

 

Sem dúvida.

 

Fê-lo para me proteger. Jenny olhou-o com intensidade. Não era necessário.

 

Limitei-me a dizer a verdade. A viatura que transportava a urna pôs-se em marcha, e Mark declarou: Vou acompanhá-la a casa.

 

Ela tentou analisar o que sentia, enquanto percorriam o caminho coberto de neve, caída recentemente. Mark era muito alto e reconheceu que se habituara à estatura relativamente pequena de Erich. Kevin, que também era alto, media mais de um metro e oitenta. E Mark? Talvez um e noventa, pelo menos.

 

Doía-lhe a cabeça e sentia um ardor surdo nos seios. Porque não pararia o leite de afluir? Notou que a blusa se humedecia. Se Erich estivesse em casa, ficaria contrariado, porque detestava o desmazelo. Na verdade, era um homem muito metódico. E reservado. Se não tivesse casado com ela, o nome dos Krueger não seria arrastado na lama.

 

O marido considerava que ela lhe escandalizava o nome e, apesar disso, pretendia amá-la. Gostava que se parecesse com a mãe dele. Era por isso que insistia em que usasse a camisa de dormir água-marinha. Provavelmente ela esforçava-se por se parecer com Caroline, nas fases de sonambulismo.

 

Acho que me tenho esforçado articulou, e estremeceu ao descobrir que exprimira um pensamento em voz alta.

 

Que disse, Jenny? Jenny!

 

Começara a cair, não conseguia evitar a queda. No entanto, algo a susteve no instante em que o cabelo roçava a neve.

 

Jenny! Mark levava-a em braços. Arde de febre!

 

Talvez fosse por esse motivo que ela não lograva raciocinar com coerência. Não se tratava apenas da casa. E, por Deus, como a detestava!

 

Viajava num carro. Erich amparava-a. Ela recordava-se daquele veículo. Era a carrinha de Mark. Havia livros a um lado do banco de trás.

 

Choque, febre do leite diagnosticou o Dr. Elmendorf. Vamos conservá-la aqui.

 

Era tão agradável flutuar no espaço, vestir uma das pesadas camisas hospitalares... Jenny detestava a água-marinha. Erich entrava e saía do quarto com frequência.

 

Beth e Tina estão óptimas e mandam-te beijos.

 

Por último, Mark foi portador da mensagem por que Jenny ansiava:

 

O bebé encontra-se de novo no cemitério e não voltarão a perturbar-lhe o repouso.

 

Obrigada.

 

Naquela noite, ela conseguiu tragar uma torrada e duas chávenas de chá.

 

Alegra-me ver que se sente melhor, Mistress Krueger. A enfermeira era sinceramente atenciosa. Porque seria que a bondade lhe provocava vontade de chorar? Costumava tomar como ponto assente o facto de as pessoas simpatizarem com ela.

 

A febre, embora baixa, persistia, pelo que o Dr. Elmendorf anunciou:

 

Não sai daqui até a eliminarmos por completo.

 

Jenny chorava com frequência. Acontecia deixar-se dominar pelo sono em pleno dia e acordar com as faces cobertas de lágrimas.

 

Gostava que o doutor Philstrom a observasse disse Elmendorf, referindo-se ao psiquiatra do hospital.

 

Este, um indivíduo de ares meticulosos que lembrava um escriturário, sentou-se na borda da cama e começou:

 

Dizem-me que teve uma série de pesadelos.

 

Já não os tenho replicou ela, reflectindo que todos pareciam empenhados em provar que enlouquecera.

 

E era verdade. Desde que se achava no hospital, dormia de um só sono, todas as noites e, à medida que os dias se sucediam, sentia-se mais forte e até gracejava com a enfermeira.

 

A tarde era o período mais difícil. Não desejava ver Erich, e o som dos seus passos no corredor fazia-lhe acudir uma transpiração pegajosa às palmas das mãos.

 

Ele trouxe as garotas para a verem. Não estavam autorizadas  a entrar no hospital, todavia Jenny aproximou-se da janela e acenou-lhes.

 

Naquela noite, tragou um jantar completo, consciente de que necessitava de recuperar todo o vigor. Já nada a prendia à herdade, pois não havia qualquer possibilidade de ela e o marido reconquistarem a atmosfera de amor, cordialidade e confiança de outrora. Assim, podia planear a maneira de partir, e julgava tê-la encontrado. Durante a viagem a Houston. No momento oportuno, afastar-se-ia de Erich com as filhas e tomariam o avião. Ele talvez conseguisse que os tribunais do Minnesota lhe confiassem as pequenas, porém os de Nova Iorque decidiriam o contrário.

 

Poderia vender o medalhão de Nana, para obter algum dinheiro. Um joalheiro oferecera-lhe mil e cem dólares, poucos anos atrás. Se Jenny conseguisse uma quantia aproximada, bastaria para adquirir passagens de avião e sustentar-se e às filhas até que arranjasse trabalho.

 

Longe da casa de Caroline, do retrato de Caroline, da cama de Caroline, da camisa de dormir de Caroline e do filho de Caroline, voltaria a ser ela própria, capaz de raciocinar calmamente e tentar capturar todos os horríveis pensamentos que persistiam em lhe aflorar à mente, para em seguida se distanciarem. Eram em número excessivo, um estendal de impressões que pareciam esquivar-se-lhe.

 

Por fim, adormeceu, com uma sugestão de sorriso nos lábios e aface pousada na mão.

 

No dia seguinte, telefonou a Fran. Oh, abençoada liberdade, ciente de que ninguém utilizaria a extensão para escutar a conversa no escritório:

 

Não respondeste às minhas cartas, Jenny! Julgava que me tinhas despachado para o espaço exterior.

 

Ela não perdeu tempo a explicar que não lhe tinham chegado às mãos. Ao invés, anunciou:

 

Preciso de ti, Fran. E, o mais rapidamente possível, explicou: Tenho de sair daqui. Esclareceria tudo mais tarde.

 

Passa-se algo de desagradável. Noto-o na tua voz.

 

Sim, agradável não tem sido.

 

Confia em mim. Telefonarei mais tarde.

 

Depois das oito. É a hora a que terminam as visitas. A amiga acabou por ligar às 19.10 do dia seguinte e, no instante em que o telefone tocou, Jenny compreendeu o que acontecera. Fran não contara com a diferença de horas. Com efeito, eram oito e dez em Nova Iorque. Erich sentava-se junto da cama e arqueou as sobrancelhas, quando lhe passou o auscultador.

 

Tenho planos estupendos! A voz de Fran era vibrante e aguda.

 

Não esperava ouvir-te, neste momento. Jenny voltou-se para o marido. É a Fran. Queres cumprimentá-la?

 

A amiga abarcou prontamente a situação e proferiu:

 

Como está, Erich? Lamento que a Jenny não se tenha sentido bem.

 

Quando a ligação foi cortada, ele formulou a inevitável pergunta:

 

Quais planos, Jen?

 

Jenny regressou a casa no último dia de Janeiro. Beth e Tina pareciam estranhas, invulgarmente silenciosas e petulantes.

 

Estás sempre ausente, mamã.

 

Com efeito, passava mais tempo com elas nos serões e fins-de-semana em Nova Iorque do que ali, nos últimos meses.

 

Entretanto, ela perguntava-se até que ponto Erich suspeitaria dos telefonemas de Fran, pois mostrara-se evasiva ante a sua curiosidade.

 

Lembrei-me de repente de que não falava com ela desde longa data e resolvi telefonar-lhe. Foi muito atenciosa em ligar para cá, mais tarde.

 

Naquela noite, depois de o marido se retirar, Jenny contactou de novo com Fran, que informara, entusiasmada:

 

Tenho uma amiga que possuí uma escola infantil perto de Red Bank, Nova Jérsia. Expliquei-lhe que podias ensinar música e arte e concordou em te admitir. Entretanto, prometeu procurar-te um apartamento.

 

A partir de então, Jenny preparou-se para o momento crucial. Erich começara a transferir telas da cabana para a mansão, destinadas à exposição de Houston.

 

Chamei a esta O Provedor revelou, indicando uma em que predominavam os tons azuis e verdes.

 

Entre as ramagens de uma árvore elevada, via-se um ninho,  enquanto uma ave voava na sua direcção, com uma minhoca no bico. A folhagem dissimulava-o parcialmente, pelo que os pássaros de tenra idade não se viam, embora o observador pudesse pressentir-lhes a presença.

 

A ideia acudiu-me naquela noite na Segunda Avenida, em que te encontrei com as pequenas nos braços. Tinhas uma expressão voluntariosa no rosto, e via-se claramente que ansiavas por chegar a casa e dar-lhes de comer. Exprimia-se em tom afectuoso e colocou o braço em torno da cintura dela. Que te parece?

 

É excelente.

 

Os únicos momentos em que não se sentia nervosa diante dele eram os da natureza do actual, quando admirava os seus trabalhos. Era aquele o homem pelo qual se apaixonara, o artista cujo talento maravilhoso conseguia captar simultaneamente a simplicidade da vida quotidiana e as emoções complexas que a proporcionavam.

 

Reconheceu nas árvores, em segundo plano, os pinheiros-noruegueses existentes perto do cemitério.

 

Terminaste esta tela agora?

 

Sim, querida.

 

Mas esta árvore desapareceu argumentou, apontando. Mandaste abater a maior parte dos ulmeiros dessa área, por causa da praga que os atacou, na Primavera passada.

 

Iniciei um quadro utilizando essa árvore em segundo plano, mas não consegui que exprimisse o que eu pretendia. Até que, um dia, vi uma ave a voar com comida para os filhotes e pensei em ti. Inspiras tudo o que faço, Jenny.

 

Nos primeiros tempos, uma confissão como aquela derreter-lhe-ia o coração. Agora, porém, apenas conseguia alarmá-la. Era invariavelmente seguida de uma observação que a reduzia a um feixe de nervos para o resto do dia.

 

E, na verdade, não tardou.

 

Vou apresentar trinta telas acrescentou Erich, cobrindo o quadro. Virão buscá-las de manhã. Estarás em casa, para haver a certeza de que não esquecem nenhuma?

 

Sem dúvida. Onde havia de estar?

 

Deixa-te de dissimulações. Pensei que o Mark tentaria encontrar-se contigo, antes de partir.

 

Não compreendo.

 

O pai sofreu um ataque cardíaco, pouco depois de regressar à Florida. Mas isso não lhe dá o direito de procurar destruir o nosso casamento.

 

De que estás a falar?

 

O Luke telefonou-me, quinta-feira passada. Encontra-se no hospital e sugeriu que tu e as pequenas o visitassem na Florida. O Mark parte hoje, para passarem o fím-de-semana juntos, e o pai teve o desplante de supor que viajarias com ele.

 

Foi muito atencioso murmurou Jenny, consciente de que a oferta fora recusada.

 

Discordo. O Luke pretendia apenas separar-te de mim, e não hesitei em dizer-lho.

 

Erich!

 

Não te surpreendas. Porque julgas que o Mark e a Emily deixaram de se ver?

 

Deixaram de se ver?

 

Porque és sempre tão cega? Ele disse-lhe que chegara à conclusão que não estava interessado em casar com ela e considerava impróprio fazer-lhe perder mais tempo.

 

Essa é inteiramente nova para mim.

 

Um homem não procede assim, a menos que tenha outra mulher em mente.

 

Não forçosamente.

 

O Mark está louco por ti, Jenny. Se não interviesse, o xerife tinha ordenado um inquérito à morte do bebé. Também não sabias?

 

Decerto que não. A calma que adquirira no hospital começava a abandoná-la. Tinha a garganta seca e as mãos húmidas de transpiração, além de que a percorria um tremor irresistível. Aonde queres chegar?

 

Ao seguinte: havia uma escoriação junto da narina direita do bebé. O coroner declarou que provavelmente precedera a morte, mas o Mark insistiu em que usara de certa aspereza ao tentar reanimá-lo. Erich acercou-se dela e, a meia voz, concluiu: Ele sabe. Tu sabes. Eu sei. O bebé sofreu uma escoriação.

 

Que pretendes dizer-me?

 

Nada de especial, querida. Apenas prevenir-te. Ambos sabemos como a pele do bebé era delicada. Na última noite, ao sacudir os punhos cerrados, provavelmente arranhou-se. Mas o Mark mentiu. É como o pai. Ninguém ignora o que o Luke sentia por Caroline. Apesar de passado tanto tempo, quando nos visita senta-se numa poltrona afastada para poder olhar o retrato. Devia conduzi-la ao aeroporto, no dia do acidente. Bastava que ela fizesse estalar os dedos para ele acudir. E agora, o filho julga que pode fazer o mesmo. Contactei com Lars Ivanson, veterinário em Hennepin Grove, para que passasse a ocupar-se do gado. Mark Garrett não voltará a pôr os pés nesta herdade.

 

Não acredito que fales a sério, Erich.

 

Podes convencer-te disso. Embora admita que não o fizeste propositadamente, encorajaste-o. Observei-o, sem margem para dúvidas. Quantas vezes te foi ver ao hospital?

 

Duas. Uma para me dizer que o bebé estava de novo na sepultura e a outra para levar fruta que o pai mandara vir da Florida. Deixas-te arrastar pela imaginação, querido. Se isto continua assim, não sei o que será de nós.

 

Sem aguardar que ele replicasse, Jenny afastou-se e abriu a porta do terraço da ala oeste. O vento fazia a cadeira de balouço de Caroline oscilar. Não surpreendia que costumasse sentar-se ali. Também fora obrigada a abandonar a casa.

 

Naquela noite, Erich entrou no quarto pouco depois de Jenny. Esta conservou-se rígida, empenhada em não se aproximar dele, que no entanto se voltou para o outro lado e não tardou a adormecer.

 

Ela prometeu a si própria não tornar a ver Mark. De resto, quando ele regressasse da Florida, já se encontraria em Nova Jérsia. Erich teria razão? Tê-lo-ia encorajado, ainda que involuntariamente? Ou porventura Mark e Emily haviam simplesmente chegado à conclusão de que não tinham nascido um para o outro?

 

Não obstante, Jenny admitia a possibilidade de o marido, por uma vez, ter feito uma leitura acertada da situação.

 

Na manhã seguinte, ela elaborou a lista das coisas que necessitava para a viagem. Calculava que Erich se oporia quando lhe solicitasse a utilização do carro, todavia ele mostrou-se inesperadamente indiferente.

 

Mas deixa as pequenas com a Elsa limitou-se a recomendar.

 

Depois de o marido partir para a cabana, Jenny tomou nota do endereço de uma ourivesaria da página dos anúncios do jornal, que pagava "os preços mais elevados pelas suas jóias", situada num centro comercial da região. Quando telefonou e descreveu o medalhão, obteve a resposta de que poderiam estar interessados em comprá-lo. A seguir, ligou a Fran, mas não estava em casa e ela deixou a mensagem gravada: "Estaremos em Nova Iorque a sete ou oito. Não telefones para aqui."

 

E, enquanto as filhas dormiam a sesta, visitou a ourivesaria.

 

Ofereceram-lhe oitocentos dólares pelo medalhão. Não era muito, mas viu-se obrigada a aceitá-los, por não poder nem querer perder tempo a dirigir-se a outros estabelecimentos do género.

 

Comprou alguma roupa interior e produtos de beleza com o cartão de crédito que Erich lhe dera e tomou mentalmente nota para não se esquecer de lhos mostrar.

 

O primeiro aniversário do casamento era a três de Fevereiro, e ele sugeriu:

 

Porque não comemoramos em Houston? Ofereço-te o presente aí.

 

É uma boa ideia.

 

Jenny não se considerava uma actriz suficientemente boa para manter a farsa de celebrar um casamento daquela natureza, mas, se Deus permitisse, em breve tudo teria terminado. A antecipação incutiu-lhe um brilho no olhar que se mantinha ausente desde longa data. Tina e Beth reagiram positivamente ao facto, depois de um período de retraimento prolongado.

 

Lembram-se daquela estupenda viagem de avião que fizemos? Vamos voar de novo, em direcção a uma grande cidade.

 

Erich, que entrou naquele momento, perguntou:

 

Que estás para aí a dizer?

 

Falo-lhes da nossa viagem a Houston.

 

Estás a sorrir. Sabes quando foi a última vez que te vi contente?

 

Há muito tempo, sem dúvida.

 

Venham com o papá, meninas. Vou comprar-lhes gelados.

 

No entanto, Beth pousou a mão no braço de Jenny.

 

Quero ficar com a mamã.

 

Eu também acudiu prontamente Tina.

 

Então, já não vou decidiu ele.

 

Dir-se-ia sentir relutância em deixar Jenny só com as crianças.

 

Ela fez as malas na noite de cinco, guardando apenas aquilo que parecia razoável para três dias.

 

Que agasalho levo? perguntou ao marido. O casaco comprido ou o curto?

 

O curto deve bastar. Porque estás tão nervosa?

 

Não estou nervosa. É que já perdi o hábito de viajar. Precisarei de vestidos de noite?

 

Talvez um. Aproveita para usar o medalhão. Haveria uma ponta de desafio na voz dele, ou tratar-se-ia apenas de um produto da imaginação dela? Esforçou-se por falar com naturalidade, ao replicar:

 

É uma boa ideia.

 

A viagem de avião duraria cerca de duas horas, e Erich informou:

 

Pedi ao Joe que nos levasse ao aeroporto.

 

O Joe?!

 

Sim, já está em condições de voltar a trabalhar. Vou readmiti-lo.

 

Mas depois do que aconteceu...

 

Prometemos esquecer tudo isso.

 

Tencionas readmiti-lo, apesar dos comentários viperinos que circularam?

 

Jenny mordeu os lábios e não insistiu. No fundo, que diferença lhe faria quem ficava na herdade? Rooney devia regressar do hospital por volta de meados do mês, e eles tinham convencido Clyde a deixá-la permanecer em casa umas seis semanas. Jenny lamentava não poder despedir-se dela, mas talvez lhe escrevesse, mais tarde.

 

Surgiu finalmente o momento da partida. As garotas vestiam casaco de veludo com chapéus a condizer. Da janela do quarto, Jenny avistava um canto do cemitério, e prometeu a si própria passar por lá, a fim de se despedir do bebé, após o pequeno-almoço.

 

Por último, Erich terminou de arrumar a bagagem no carro e anunciou:

 

Vou chamar o Joe. Venham comigo, meninas. Deixem a mamã acabar de se vestir descansada.

 

Já acabei disse Jenny. Espera um momento, que também vou.

 

No entanto, ele pareceu não ouvir e começou a afastar-se com Beth e Tina. Jenny encolheu os ombros com indiferença. Talvez fosse preferível assim, a fim de dispor de uma derradeira oportunidade para verificar se esquecia alguma coisa. O dinheiro do medalhão encontrava-se no bolso interior do casaco do fato que guardara numa das malas.

 

Quando atravessava o corredor, lançou uma olhadela ao quarto das filhas, que Elsa já arrumara. Apresentava um ar impessoal, como se adivinhasse que as pequenas ocupantes não voltariam.

 

Teria Erich experimentado a mesma sensação?

 

Subitamente perturbada, desceu a escada quase a correr, enquanto vestia o casaco, pois o marido não tardaria.

 

Dez minutos mais tarde, assomou ao terraço, estranhando que ainda não tivesse reaparecido, pois costumava dirigir-se ao aeroporto com larga antecedência.

 

Transcorrida meia hora, telefonou a casa dos Ekers e notou que os dedos tremiam quando marcavam o número, vendo-se forçada a interromper a operação por duas vezes e iniciá-la de novo.

 

Porque pergunta se ainda aqui estão? estranhou Maude. Vi Erich passar com as pequenas no carro, há mais de quarenta minutos... O Joe? Mas ele não os vai levar ao aeroporto. Quem lhe disse isso?

 

Erich partira sem ela. Pegara em Beth e Tina e partira sem ela. O dinheiro encontrava-se na bagagem já arrumada no carro. Era óbvio que se inteirara ou pressentira os seus planos. Ligou ao hotel de Houston e indicou:

 

Quero deixar um recado para Erich Krueger. Diga-lhe que telefone à esposa, assim que chegar.

 

A voz do recepcionista, dominada pelo sotaque do Texas, transmitiu a tenebrosa informação:

 

Deve haver engano. Os aposentos reservados por Mister Krueger foram cancelados há cerca de duas semanas.

 

Às duas horas, Elsa procurou-a para se despedir:

 

Adeus, Mistress Krueger.

 

Jenny, que se encontrava na sala, com o olhar fixo no retrato de Caroline, limitou-se a responder, sem se voltar:

 

Adeus, Elsa.

 

Todavia, esta não se retirou imediatamente.

 

Tenho pena de a deixar.

 

Deixar? Jenny emergiu de letargia e pôs-se de pé com prontidão. Que quer dizer com isso?

 

Mister Krueger disse que partia com as meninas e avisaria quando regressasse.

 

Quando foi isso?

 

Esta manhã, quando subia para o carro. Vai ficar aqui sozinha?

 

Havia uma curiosa mistura de emoção no rosto habitualmente impávido. Desde a morte do bebé, Jenny descobrira nela uma compaixão de que nunca suspeitara.

 

Parece que sim respondeu a meia voz.

 

Quatro horas depois de Elsa sair, Jenny continuava no salão à espera. De quê? De um telefonema. Erich não deixaria de o fazer. Estava absolutamente convencida disso. Para onde teria levado Beth e Tina?

 

Começou a escurecer. Convinha que acendesse a luz, porém o esforço envolvido afigurava-se-lhe excessivo para as energias que possuía. Despontou a lua, cujo clarão se infiltrou através das rendas dos cortinados, para projectar uma espécie de teia na tela.

 

Por fim, dirigiu-se à cozinha, fez café e sentou-se junto da extensão telefónica. A campainha do aparelho começou a tocar às nove. A mão tremia-lhe de tal modo que receou que o auscultador se soltasse dos dedos.

 

Estou... Exprimia-se em voz tão baixa que se perguntou se a ouviriam do outro lado do fio.

 

Mamã! Beth parecia muito distante. Porque não quiseste vir connosco? Tinhas prometido.

 

Onde estás?

 

Seguiram-se sons abafados e o protesto da garota:

 

Mas ainda não acabei de falar com a mamã! Foi a vez de Tina dizer:

 

Mamã, não andámos de avião e tu disseste que havíamos de andar!

 

Onde estás, Tina?

 

Olá, querida.

 

A voz de Erich era quase terna, enquanto as garotas barafustavam em segundo plano.

 

Onde estás, Erich? Porque fizeste isso?

 

Porque fiz o quê, querida? Evitar que me arrebatasses as filhas? Impedir que corressem perigo?

 

Perigo? Que estás para aí a dizer?

 

Prometi cuidar de ti, Jenny, e fá-lo-ei. Mas não permitirei que me abandones e leves as pequenas.

 

Nunca foi minha intenção. Trá-las para casa, por favor.

 

Isso não chega. Senta-te à secretária e pega em papel e caneta. Eu aguardo.

 

As garotas continuavam a protestar, mas ela conseguia detectar algo mais. Sons de tráfego. O motor de um veículo pesado nas proximidades. Ele decerto telefonava de uma cabina na estrada.

 

Onde estás, Erich?

 

Arranja papel e uma caneta, para escreveres o que te vou ditar. Despacha-te.

 

Reconhecendo a inutilidade de continuar a instá-lo, Jenny correu para a biblioteca, procurou papel e uma caneta e levantou o auscultador da extensão.

 

Estou preparada, Erich.

 

É uma carta para mim. Erich querido...

 

Ela escreveu as duas palavras e aguardou.

 

"Reconheço que estou muito doente. Tenho ataques de sonambulismo constantes. Creio que faço coisas horríveis de que não consigo recordar-me. Menti quando disse que não entrei para o carro de Kevin. Pedi-lhe que viesse, para o convencer a partirmos juntos. Não era minha intenção agredi-lo com tanta força."

 

Continuava a escrever mecanicamente, ansiosa por evitar que ele se irritasse. Contudo, o sentido das palavras obrigou-a a protestar:

 

Não posso escrever isso. Não corresponde à verdade.

 

Deixa-me acabar. "Joe ameaçava dizer que me tinha visto no carro e eu não podia consentir que o fizesse. Sonhei que misturava veneno com a aveia, mas sei que não foi um sonho. Pensei que aceitarias o bebé, mas pressentiste que não era teu. Por conseguinte, julguei preferível para o nosso casamento que ele não vivesse, porque me absorvia toda a atenção. Tina viu-me pousar-lhe as mãos no rosto para o sufocar. Promete não me deixares nunca só com as minhas filhas, Erich, pois não sou responsável dos meus actos."

 

A caneta soltou-se-lhe da mão.

 

Não!

 

Voltarei depois de assinares essa declaração. Guardá-la-ei no cofre e ninguém saberá que existe.

 

Por favor, Erich... Não podes estar a falar a sério.

 

Posso manter-me ausente meses ou anos, se for necessário. Voltarei a telefonar dentro de uma ou duas semanas. Entretanto, pensa bem no assunto.

 

Já pensei. Não concordo.

 

Sei o que fizeste, Jenny. A voz dele assumiu certa ternura. Nós amamo-nos, querida, mas não quero correr o risco de te perder, nem que as pequenas fiquem em perigo junto de ti.

 

A ligação foi cortada bruscamente. Após um momento de alheamento, ela pousou o auscultador e amarfanhou o papel com nervosismo.

 

Acode-me, por favor, meu Deus... Não sei o que fazer.

 

Telefonou a Fran e anunciou:

 

Já não vamos.

 

Porquê, Jenny? Que aconteceu?

 

A ligação era deficiente e a voz da amiga, normalmente forte, parecia remota.

 

O Erich foi viajar e levou as pequenas. Não sei ao certo quando voltarão.

 

Queres que eu vá aí? Tenho quatro dias de folga.

 

Jenny reflectiu que Erich ficaria furioso, se Fran a visitasse, pois fora o telefonema desta para o hospital que o induzira a inteirar-se dos seus planos.

 

É melhor não vires. Não telefones, sequer. Basta que rezes por mim. Por favor.

 

Não podia dormir no quarto principal. Na realidade, não podia fazê-lo em qualquer dos aposentos do primeiro andar.

 

Ao invés, deitou-se no sofá perto do fogão e cobriu-se com o xaile que Rooney confeccionara. O aquecimento foi desligado automaticamente às dez e ela decidiu acender o lume da lareira.

 

Não podia escrever a carta. Na próxima vez que tivesse um acesso de ciúmes, Erich poderia decidir mostrá-la ao xerife. Quanto tempo se manteria ausente?

 

Ouviu o relógio bater uma hora... duas., três... Em seguida, adormeceu, mas não tardou a ser acordada por um som. Apurou os ouvidos e distinguiu passos que se encaminhavam para o primeiro andar.

 

Tinha de se certificar de que se tratava. Lentamente, degrau a degrau, conseguiu subir a escada, apertando o xaile em torno dos ombros, para neutralizar o frio. O corredor estava deserto. Fez uma pausa para criar coragem, transpôs a porta do quarto principal e acendeu a luz. Não havia ninguém.

 

O antigo quarto de Erich. A porta achava-se entreaberta. Não a deixara fechada? Entrou, e a luz revelou-lhe que também estava deserto.

 

Não obstante, existia algo, a sensação de uma presença. Que seria? O odor a pinho. Ter-se-ia intensificado? Era difícil de dizer.

 

Aproximou-se da janela. Necessitava de a abrir, para respirar ar fresco. Pousou as mãos no peitoril e olhou para baixo.

 

Havia um vulto no pátio um homem que contemplava a casa. O luar permitiu-lhe ver que era Clyde. Que pretenderia àquela hora?

 

Quando ela lhe acenou, deu meia volta e afastou-se a correr.

 

Jenny passou o resto da noite deitada no sofá, à escuta.

 

Por vezes, parecia-lhe ouvir sons, passos, o fechar de uma porta. Imaginação, sem dúvida.

 

Às seis, levantou-se e descobriu que não se despira. O vestido de seda que escolhera para a viagem achava-se repleto de rugas. "Não admira que não conseguisse dormir", reflectiu.

 

O banho de chuveiro quente e prolongado eliminou parte da fadiga entorpecedora. Em seguida, envolta na pesada toalha, entrou no quarto e abriu uma gaveta da cómoda. Continha um par de jeans desbotados que usava em Nova Iorque. Resolveu vesti-los e continuou a procurar até que encontrou uma camisola de malha. Erich pretendera desfazer-se de toda a sua roupa antiga, porém ela conservara alguma. Revestia-se de importância vestir algo que fosse apenas seu.

 

Chegara à mansão com o medalhão que pertencera a Nana e as filhas. Agora, ficara sem a jóia e o marido levara Beth e Tina.

 

De súbito, fixou o olhar no chão, onde brilhava algo, junto do móvel. Agachou-se e levantou-o. Era um pedaço de pele de marta. Abriu a porta do armário e viu o casaco parcialmente fora do cabide. Uma das mangas pendia em farrapos. Preparava-se para o restituir à posição normal, quando verificou que fora totalmente recortado.

 

Às dez horas, dirigiu-se ao escritório, onde Clyde estava sentado atrás da secretária em regra ocupada por Erich.

 

Trabalho sempre aqui, quando ele se ausenta. É mais confortável.

 

Parecia ter envelhecido. Os sulcos em torno dos olhos apresentavam-se mais pronunciados. Jenny aguardou que explicasse o motivo da visita às proximidades da mansão a meio da noite, todavia ele absteve-se de abordar o assunto.

 

Quanto tempo pensa o Erich estar ausente? acabou ela por perguntar.

 

Não indicou uma data precisa.

 

Era você que rondava a casa, esta noite?

 

Viu-me?

 

Com certeza.

 

Então, também a viu?

 

A quem?

 

Talvez Rooney não esteja louca, Mistress Krueger. Como sabe, afirma constantemente que viu Caroline. Esta noite, não conseguia dormir e resolvi dar uma volta. Da nossa janela, avista-se uma parte do cemitério e, ao descortinar lá um movimento, fui investigar. O semblante do homem tornou-se intensamente pálido. Foi então que vi Caroline. Tal como Rooney costuma dizer. Dirigia-se do cemitério para a mansão, e decidi segui-la. O cabelo e a capa que sempre usava são inconfundíveis. Entrou pela porta das traseiras. Tentei fazer o mesmo, mas encontrei-a trancada. Em face disso, dei a volta e aguardei. Pouco depois, acendeu-se a luz do quarto principal e a seguir a do antigo de Erich. Por fim, ela assomou à janela e acenou-me.

 

Mas era eu, Clyde! Fui eu que lhe acenei.

 

Meu Deus... murmurou. Rooney afirma que viu Caroline. Tina fala da senhora do quadro. Eu penso que sigo Caroline. Afinal, era a senhora, como Erich dizia!

 

Não era eu protestou Jenny. Fui lá acima, porque ouvi alguém subir a escada e...

 

Interrompeu-se, irritada com a expressão de incredulidade dele, e regressou à mansão. Seria possível que Clyde tivesse razão e ela voltasse a ser acometida de sonambulismo? Na verdade, sonhara com o bebé e, naquela manhã, ponderara que detestava a roupa que Erich lhe comprara. Teria igualmente sonhado isso e depois destruído o casaco de peles? Talvez até nem tivesse ouvido ninguém.

 

Devia ser a senhora do quadro que Tina vira!

 

Fez café e tomou-o quase escaldante. Não comia desde a manhã anterior, pelo que torrou uma fatia de pão e esforçou-se por tragá-la.

 

Clyde informaria o médico de que vira a mulher que supunha ser Caroline. Explicaria que a seguira até à mansão e Jenny admitira ter-lhe acenado.

 

Erich regressaria, para cuidar dela. Jenny assinaria a declaração que ele ditara, e o marido ocupar-se-ia do seu bem-estar. Conservou-se sentada demoradamente à mesa da cozinha, após o que foi buscar papel para escrever. Em seguida, tentou recordar as palavras exactas que Erich pronunciara, decidindo referir-se igualmente aos factos recentes:

 

"Ontem à noite, devo ter sido atacada de sonambulismo, mais uma vez. Clyde viu-me. Dirigi-me ao cemitério e suponho que visitei a sepultura do bebé. Acordei no quarto, avistei Clyde da janela e acenei-lhe."

 

Ele encontrava-se diante da casa, de pé no solo coberto de neve endurecida.

 

A neve.

 

Ela achava-se descalça. Se tivesse saído, teria os pés molhados. As botas que tencionava calçar para a viagem estavam junto do sofá, ainda imaculadamente engraxadas. Não haviam sido usadas lá fora.

 

Podia perfeitamente ter imaginado os passos e esquecido a possibilidade do sonambulismo. No entanto, se tivesse saído descalça, os pés apresentariam vestígios inequívocos do facto.

 

Rasgou a declaração em numerosos pedaços, lentamente. Pela primeira vez desde que Erich se ausentara, a sensação de desespero começava a dissipar-se.

 

Ela não saíra. Mas Rooney vira Caroline. Assim como Tina. E Clyde. Ela própria a ouvira no primeiro andar, na noite anterior. Fora Caroline quem destruíra o casaco de peles. Talvez estivesse furiosa com Jenny por provocar tantos aborrecimentos ao filho. Era possível que ainda se encontrasse lá em cima. Resolvera regressar.

 

Caroline! chamou, repentinamente, levantando-se. Caroline!

 

Provavelmente, não conseguia ouvi-la. Encaminhou-se para a escada e começou a subir, degrau a degrau. O quarto principal achava-se deserto, com o odor a pinho sempre presente. Se Jenny deixasse um ou dois sabonetes na saboneteira, talvez Caroline se sentisse mais em sua casa. Assim fez e retirou-se.

 

O sótão. Existia uma possibilidade de ela estar lá. Decerto se refugiara aí, na visita da véspera.

 

Caroline! voltou a chamar, esforçando-se por empregar um tom conciliador. Não tenha medo de mim. Tem de me ajudar a encontrar as minhas filhas.

 

O sótão estava imerso em escuridão quase total, e Jenny percorreu-o com prudência. Viu o estojo de produtos de beleza e a agenda. E o resto da bagagem? Porque persistia Caroline em visitar a casa, quando se mostrara tão ansiosa em a abandonar?

 

Caroline! persistiu, em tom mais suave. Diga alguma coisa.

 

O berço achava-se a um canto, de novo coberto com um lençol. Aproximou-se dele, pousou-lhe a mão com ternura e começou a balouçá-lo.

 

Meu amorzinho... sussurrou. Oh, o meu amorzinho...

 

Algo principiou a deslizar ao longo do lençol, um objecto que se acercava da mão. O medalhão que fora de Nana!

 

Nana!

 

Pronunciar o nome em voz alta exerceu o efeito de um balde de água fria. Que pensaria Nana dela, se a visse tentar estabelecer comunicação com uma mulher morta?

 

O sótão pareceu-lhe de súbito intoleravelmente sufocante. Segurando o medalhão com firmeza, desceu ao rés-do-chão e entrou na cozinha. "Estou a enlouquecer", pensou, alarmada.

 

Tentou recordar o que Nana lhe aconselharia numa situação daquela natureza.

 

Tudo assume um aspecto menos tenebroso após uma chávena de chá. Acto contínuo, levou a chaleira ao lume.

 

Que comeste hoje, Jen? O hábito de omitir as refeições não é dos mais aconselháveis.

 

Abriu o frigorífico e procurou os ingredientes para sanduíches. Depois, enquanto comia, tentou imaginar-se a referir os últimos acontecimentos a Nana.

 

"Clyde diz que me viu, mas eu não tinha os pés molhados. Poderia ser Caroline?"

 

Quase conseguiu ouvir a reacção dela: Os fantasmas não existem, Jen. Quando uma pessoa morre, acabou-se.

 

"Então, como foi o medalhão parar lá acima?"

 

Tenta descobrir.

 

Foi buscar a lista telefónica e procurou o número que pretendia na secção de COMPRA E VENDA DE JÓIAS das páginas amarelas, que assinalara com um lápis de feltro azul.

 

Marcou-o, pediu para falar com o gerente e explicou apressadamente:

 

Sou Mistress Krueger. A semana passada, vendi-lhes um medalhão que gostaria de readquirir.

 

Agradecia que não me fizesse perder mais tempo, minha senhora. O seu marido procurou-me para advertir de que não tinha o direito de vender uma jóia de família e entreguei-lho pelo preço que paguei.

 

O meu marido?!

 

Exacto. Apareceu cerca de vinte minutos depois de eu ter feito negócio com a senhora.

 

A ligação foi cortada bruscamente.

 

Jenny pousou o auscultador e conservou o olhar fixo nele. Erich suspeitara dela e seguira-a, naquela tarde, provavelmente numa das viaturas da herdade. Mas como fora o medalhão parar ao sótão?

 

Dirigiu-se à secretária e pegou num bloco de papel pautado. Uma hora antes, preparara-se para redigir a declaração que o marido pretendia. Agora, havia outra coisa que necessitava de escrever.

 

Regressou à mesa da cozinha e, na primeira linha da folha, inscreveu: Os fantasmas não existem. E na segunda: Eu não podia ter saído, ontem à noite. A terceira foi escrita com maiúsculas: NÃO sou UMA PESSOA VIOLENTA.

 

"Começa pelo princípio", advertiu-se. Escreve tudo. "A situação alterou-se, para pior, com o primeiro telefonema de Kevin..."

 

Clyde não voltou a aproximar-se da mansão e, no terceiro dia, Jenny visitou o escritório. Ele falava com um cliente pelo telefone e ela observou-o, enquanto aguardava. Quando Erich se achava presente, o homem tendia para se conservar em segundo plano. No entanto, na ausência dele, a voz assumia uma inflexão autoritária. Naquele momento, combinava a venda de um touro de dois anos por cem mil dólares.

 

Quando desligou, olhou-a com desconfiança. Era óbvio que recordava a natureza da sua última conversa.

 

Não precisa de consultar Erich, antes de vender um touro por uma quantia tão elevada? perguntou Jenny.

 

Quando ele está cá, interfere nos negócios à sua vontade. Mas a verdade é que nunca manifestou grande interesse em assumir o comando das operações.

 

Compreendo. Fez uma pausa. Estive a reflectir maduramente e gostava de esclarecer umas dúvidas. Onde se encontrava Rooney quarta-feira à noite, quando você julgou ver Caroline?

 

Que quer dizer com isso, Mistress Krueger?

 

Exactamente o que ouviu. Telefonei ao hospital e falei com o doutor Philstrom, o psiquiatra que me examinou.

 

Sei de quem se trata. Também é médico de Rooney.

 

Exacto. Não me tinha dito que ela foi autorizada a ausentar-se, quarta-feira à noite.

 

Rooney passou essa noite no hospital.

 

Não, não passou. Ficou em casa de Maude Ekers, que fazia anos. Você tinha de ir a um leilão de gado e pediu a Maude que fosse buscá-la. Rooney julgava-o em Saint-Cloud.

 

Estive lá, de facto, e voltei cerca da meia-noite. Esqueci-me de que ela tinha ficado em casa de Maude.

 

Não seria possível que saísse dissimuladamente e visitasse a herdade?

 

Creio que não.

 

Ela costuma vaguear por aí durante a noite. Sabe-o perfeitamente, Clyde. Não lhe parece provável tê-la visto, envolta num cobertor, que, de longe, confundiu com uma capa? Pense em Rooney com o cabelo solto.

 

Ela não desmancha aquele carrapito há mais de vinte anos. Excepto, é claro... Ele hesitou.

 

Excepto?...

 

À noite, quando se vai deitar.

 

Não compreende aonde quero chegar? Só mais uma pergunta. Erich guardou um medalhão no cofre ou confiou-lho para o colocar lá?

 

Ele próprio o fez. Disse que a senhora estava sempre a esquecer-se dele e não queria que se extraviasse.

 

Falou nisso a Rooney?

 

É possível, não tenho a certeza, a talhe de foice, numa conversa banal para passar o tempo.

 

Suponho que ela conhece o segredo do cofre?

 

É possível repetiu, enrugando a fronte.

 

E o hospital autoriza-a a vir a casa mais vezes do que você admitiu?

 

Bem, tem aparecido com certa frequência.

 

E também não é impossível que andasse por aí, quarta-feira à noite. Abra o cofre e mostre-me o medalhão.

 

Clyde obedeceu em silêncio e os dedos tremiam-lhe, enquanto formava o número do segredo da fechadura. Por fim, a porta do cofre abriu-se e ele introduziu a mão, para retirar uma pequena caixa de aço, cuja tampa levantou. Após uma longa pausa, balbuciou:

 

Desapareceu!

 

Erich telefonou duas noites mais tarde.

 

Jenny! A voz possuía uma inflexão estranha, quase de provocação.

 

Erich! Erich!

 

Onde estás?

 

No sofá da biblioteca. Ela olhou o relógio, que indicava onze horas, e compreendeu que adormecera. Porquê? Lá em cima, sinto-me mais só. Ansiava por lhe revelar o que pensava acerca de Rooney.

 

Jenny! A intonação de cólera despertou-a por completo. Quero-te no lugar a que pertences, o nosso quarto, e que vistas a camisa de dormir especial. Entendido?

 

Por favor, Erich... Como estão Tina e Beth?

 

Óptimas. Lê-me a carta.

 

Descobri uma coisa, Erich. Talvez estejas equivocado. Ela tentou rectificar as palavras demasiado tarde. Quero dizer... É possível que compreendêssemos mal...

 

Escreveste-a?

 

Comecei... Mas o que pensas não corresponde à verdade. Agora, tenho a certeza disso.

 

A ligação foi cortada.

 

Jenny tocou a campainha da porta da cozinha de Maude Ekers. Quantos meses tinham decorrido desde que a visitara? Desde que ela a aconselhara a deixar Joe em paz.

 

Preparava-se para tocar de novo, quando a porta se abriu. Joe emagrecera e o semblante juvenil amadurecera com vincos de cansaço em torno dos olhos.

 

Joe!

 

Ele estendeu as mãos e, cedendo a um impulso, Jenny segurou-as entre as suas. Em seguida, dominada por um acesso de ternura, beijou-lhe a face.

 

Jenny... digo, Mistress Krueger... Ele desviou-se, com embaraço, para a deixar passar.

 

A tua mãe está?

 

Foi trabalhar.

 

Ainda bem, porque preciso falar contigo. Há muito que desejava fazê-lo, mas apareceram outras coisas...

 

Eu sei. Causei-lhe muitas preocupações. Apetece-me pedir-lhe perdão de joelhos pelo que disse na manhã do acidente. Todos devem ter pensado que afirmava que a senhora... Bem, tinha-me ofendido. Julgava que ia morrer e apoquentava-me por lhe ter dito que a vira, naquela noite.

 

Queres dizer que pensas que não me viste? perguntou Jenny, sentando-se à mesa da cozinha, diante dele.

 

Como expliquei ao xerife e a Mister Krueger, a semana passada, havia uma coisa acerca daquela noite que me preocupava.

 

Preocupava?

 

Era a sua maneira de andar, graciosa e elegante. Quem vi naquela noite caminhava de um modo diferente. Não sei como explicar. E inclinava-se um pouco para a frente, pelo que o cabelo quase lhe cobria a cara. A senhora anda sempre tão empertigada...

 

Julgas possível ter visto Rooney, com o meu casaco?

 

Como? Joe parecia intrigado. Encontrava-me ali, porque tinha visto Rooney na passagem e não queria esbarrar nela. Quem subiu para o carro era outra pessoa.

 

Jenny passou a mão pela fronte. Nos últimos dias, chegara a convencer-se de que Rooney era a chave de tudo o que acontecera. Com efeito, a mulher podia entrar e sair da mansão quase sem ser pressentida e tê-la ouvido conversar com Erich a respeito de Kevin. Por outro lado, podia ter efectuado o telefonema, e conhecia a existência da divisória no quarto principal. Todas as peças do puzzle se ajustariam nos seus lugares, se Rooney, vestindo o casaco que Jenny lhe dera, se tivesse encontrado com Kevin, naquela noite.

 

Nesse caso, quem vestia aquele casaco? E quem preparara o encontro?

 

Ela não fazia a menor ideia.

 

Todavia, certificara-se pelo menos de que Joe não a julgava essa pessoa.

 

Por fim, levantou-se para sair. Não convinha que Maude a encontrasse ali, pois ficaria horrorizada.

 

Gostei muito de te ver. Já tínhamos saudades tuas. Alegra-me saber que voltarás a trabalhar para nós.

 

Fiquei muito contente, quando Mister Krueger me ofereceu o antigo lugar. Aproveitei a oportunidade para lhe contar o que acaba de ouvir.

 

Que disse?

 

Recomendou-me que não ventilasse o assunto, para evitar mais aborrecimentos. Prometi guardar segredo, mas é claro que ele não se referia à senhora.

 

Jenny calçou as luvas com lentidão exagerada, para não deixar transparecer a perturbação. Erich exigira-lhe que assinasse a declaração em que confessava ter entrado para o carro de Kevin, apesar de Joe admitir previamente que devia tratar-se de outra pessoa com o casaco dela.

 

Precisava de reflectir, antes de tomar uma decisão definitiva.

 

Receio que tivesse uma espécie de paixão por si, Jenny. Não sei se isso influiu nas suas relações com Mister Krueger...

 

Não te apoquentes.

 

Mas tinha de lhe dizer. Como referi a minha mãe, a senhora será a pessoa ideal para me aconselhar, quando me apaixonar por uma moça. Ela preocupava-se porque pensava que o meu tio teria uma vida muito diferente, sem aquele episódio com Caroline. No entanto, acho que as coisas se estão a compor. Ele deixou de beber desde o meu acidente e voltaram a dar-se bem.

 

Quem é que voltou a dar-se bem?

 

O meu tio tinha uma pequena com quem tencionava casar, na altura do acidente. -Quando John Krueger disse a toda a gente que o tio Josh não tomara as precauções necessárias com a instalação da gambiarra porque fazia rapapés a Caroline, a rapariga ficou tão indignada que deixou de lhe falar, e ele passou a beber. Mas agora, decorridos tantos anos, reataram as relações.

 

Quem é ela?

 

A Jenny conhece-a. A sua governanta, Elsa.

 

Elsa estivera para casar com Josh Brothers e ficara solteira. Até que ponto teria criado rancor aos Krueger ao longo dos anos? Porque aceitara trabalho na mansão? Erich tratava-a quase com desprezo. Na verdade, ela podia ter retirado o casaco do armário e escutado a conversa dele com Jenny. Talvez até sondasse as garotas para obter pormenores acerca de Kevin.

 

Mas porquê?

 

Impunha-se que trocasse impressões com alguém, que confiasse em alguém.

 

Deteve-se, a caminho de casa. Havia uma pessoa merecedora de confiança, cujo rosto lhe ocupava de momento todo o campo visual.

 

Podia confiar em Mark, que decerto já regressara da Florida.

 

Mal entrou em casa, procurou o número da clínica dele na lista telefónica e marcou-o. O Dr. Garrett era esperado a todo o momento. Quem falava?

 

Jenny não queria identificar-se, pelo que replicou com outra pergunta:

 

Qual é a hora mais provável de o encontrar aí?

 

Ele dá consultas das cinco às sete da tarde. Decidiu ligar para casa, mais tarde.

 

Dirigiu-se ao escritório e viu que Clyde fechava as gavetas da secretária para sair.

 

Como está Rooney? perguntou ela, consciente de uma certa tensão na atitude do homem.

 

Vou trazê-la para casa difinitivamente, amanhã. Já agora, queria fazer-lhe um pedido, Mistress Krueger. Agradecia que não a procurasse. Ou seja, não a convide para ir a sua casa, nem a visite. Assumiu uma expressão grave. O doutor Philstrom diz que, se ela se envolvesse noutra situação confusa, podia ter uma recaída.

 

Essa situação confusa sou eu?

 

A única coisa que sei é que Rooney não tem visto Caroline a rondar o hospital.

 

Preciso que me dê algum dinheiro, Clyde. O meu marido partiu tão precipitadamente que me deixou quase sem fundos e tenho de comprar umas coisas. A propósito, empresta-me o seu carro para ir à vila?

 

No entanto, ele fechou a última gaveta e guardou a chave na algibeira.

 

Erich foi bem claro a esse respeito. Não quer que utilize carros emprestados e pediu-me que lhe fornecesse tudo o que necessitasse. Salientou, sobretudo, que não lhe desse dinheiro algum. Ameaçou despedir-me, se não acatasse as suas ordens. Fez uma pausa e, em tom mais cordial, acrescentou: A senhora não conhece privações. Se lhe faz falta alguma coisa, basta dizer-me.

 

Necessito...

 

Ela mordeu os lábios e retirou-se, batendo com a porta e esforçando-se por dominar as lágrimas de frustração.

 

Às 19.10, estendeu a mão para o telefone, a fim de falar com Mark, todavia a campainha começou a tocar antes que pudesse levantar o auscultador.

 

Sim?... proferiu para o bocal.

 

Devias estar sentada aí ao pé. Esperas algum telefonema importante? A voz de Erich continha uma ponta de impertinência.

 

Ela sentiu as palmas das mãos humedecerem-se, e os dedos apertaram o auscultador instintivamente.

 

Estava à espera de notícias tuas. Conseguiria exprimir-se com naturalidade? Deixaria transparecer o nervosismo que lhe acudira de repente? Como estão as pequenas?

 

Óptimas, evidentemente. Que fizeste hoje?

 

Nada de especial. Agora que a Elsa não vem, tenho um pouco mais com que me entreter. No fundo, agrada-me assim. Fechou os olhos e tentou escolher as palavras com prudência, ao acrescentar com desprendimento: Vi o Joe. Está muito contente por o teres readmitido.

 

Suponho que te revelou o resto da conversa que tive com ele?

 

Não sei a que te referes.

 

À história insensata de que te vira entrar para o carro, para depois se desdizer. Não me disseste que ele te tinha falado nisso. Estava convencido de que fora apenas Rooney que te vira.

 

Mas o Joe disse que te falou da sua convicção de que se tratava de outra pessoa com o meu casaco.

 

Assinaste a declaração?

 

Não compreendes que existe uma testemunha que jura?...

 

Queres tu dizer que existe uma testemunha consciente de que te viu e, para conquistar as minhas boas graças e recuperar o emprego, alterou a sua versão inicial. Pára de tentares evitar a verdade, Jenny. Ou tens a declaração preparada para me ler quando eu voltar a telefonar ou não penses tornar a ver as pequenas até à idade adulta.

 

Não podes fazer isso! São minhas filhas. Não podes fugir com elas.

 

São tanto minhas como tuas. Limitei-me a levá-las em viagem de recreio. Garanto-te que nenhum magistrado tas concederá. Disponho de numerosas testemunhas prontas a jurar que sou um pai maravilhoso. Proporciono-te uma oportunidade de viver com elas. Não ponhas a minha paciência demasiado à prova. Voltarei a telefonar em breve. Adeus.

 

Ela fixou o olhar no auscultador silencioso. A ténue confiança que começara a criar desvaneceu-se. "Cede", recomendava uma voz íntima. "Escreve a confissão. Lê-lha, quando tornar a telefonar. Põe termo a isto, de uma vez por todas."

 

Não! E, comprimindo os lábios numa expressão voluntariosa, marcou o número de Mark.

 

Ele atendeu ao primeiro toque.

 

Doutor Garrett.

 

Mark... Por que seria que a voz grave e quente lhe fazia acudir as lágrimas?

 

Jenny! Há alguma novidade? Onde está?

 

Mark, eu... Pode?... Tenho de falar consigo. Ela fez uma breve pausa. Mas não convém que o vejam aqui. Pode ir buscar-me à periferia do campo oeste? É claro que, se tem outros planos...

 

Espere junto do moinho. Estarei lá dentro de quinze minutos.

 

Subiu ao quarto principal e acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Em seguida, fez o mesmo à luz da cozinha e da sala, consciente de que Clyde poderia querer investigar a causa, se visse a casa completamente às escuras.

 

Teria de confiar em que Erich não telefonasse nas próximas horas.

 

Transcorridos menos de dez minutos depois de chegar ao moinho, ouviu o ruído surdo de um carro que se aproximava. Mark conduzia-o com os "mínimos" acesos, e Jenny emergiu da sombra e acenou. Ele travou, inclinou-se para o lado e abriu a porta para que ela entrasse.

 

Pareceu compreender que Jenny desejava afastar-se dali rapidamente, pois pôs o veículo em marcha sem demora e só falou quando alcançaram a auto-estrada.

 

Julgava-a em Houston com o Erich.

 

Não fomos.

 

Ele sabe que me telefonou?

 

Partiu e levou as crianças.

 

Era o que o meu pai...

 

Mark assobiou em surdina, e Jenny reconheceu intimamente, não sem uma ponta de embaraço, que se sentia sempre calma e confiante a seu lado, efeito contrário do que se verificava na presença de Erich.

 

Tinham passado meses desde a única vez que estivera em casa dele. À noite, infundia a mesma sensação de acolhimento que ela recordava.

 

A vida na herdade não a fez engordar comentou Mark, quando a ajudava a despir o casaco. Já jantou?

 

Não.

 

Bem me pareceu. Verteu xerez em dois cálices. É o dia de folga da governanta e preparava-me para fritar um hamburger, quando telefonou. Volto já.

 

Jenny sentou-se no sofá e em seguida, num gesto instintivo, descalçou as botas e puxou as pernas para debaixo do corpo. Mark não tardou a reaparecer com um tabuleiro.

 

O prato forte do Minnesota anunciou, jovialmente. Hamburgers com batatas fritas e salada de tomate e alface.

 

Apesar da sua simplicidade, a comida exalava um cheiro apetitoso e ela descobriu que estava praticamente faminta. Entretanto, sabia que ele aguardava que tomasse a iniciativa de explicar o motivo do telefonema. Como lhe deveria revelar a verdade? Ficaria horrorizado ao inteirar-se do que Erich pensava dela?

 

De súbito, reparou que não perguntara por Luke e apressou-se a corrigir a omissão.

 

Como está o seu pai?

 

Vai-se recompondo, mas confesso que me pregou um susto. Já não se sentia bem antes de regressar à Florida e depois surgiu o ataque cardíaco. Mas creio que o pior passou. Contínua interessado em que o vá visitar, Jenny.

 

Alegra-me que esteja melhor.

 

Agora, fale-me do que a preocupa sugeriu ele, inclinando-se para a frente.

 

Ela contou-lhe tudo, ao mesmo tempo que observava a reacção produzida, a qual se suavizou, quando se referiu ao bebé em voz entrecortada.

 

Compreendo a razão pela qual o Erich acreditava que eu tinha feito aquilo, mas agora estou convencida de que não existe nada de comum entre mim e os factos estranhos que se desenrolaram. Por conseguinte, há uma mulher empenhada em se fazer passar por mim. Tinha quase a certeza de que era Rooney, mas começo a duvidar. Tratar-se-á da Elsa? Acho incrível que acalentasse rancor durante vinte e cinco anos... Nessa altura, o Erich não passava de uma criança.

 

Mark conservou-se silencioso, com uma expressão pensativa, e, após uma pausa, ela aventurou:

 

Julga-me capaz de fazer tudo aquilo? Pensará como o Erich? Supõe?...

 

Interrompeu-se e cobriu o rosto com as mãos, dominada pelo desespero, enquanto o corpo tremia irresistivelmente.

 

Jenny, por favor... Ele enlaçou-a e pousou-lhe a cabeça no ombro.

 

Não fiz mal a ninguém... Não posso assinar uma declaração a confessar o contrário.

 

O Erich está... inseguro...

 

Escoaram-se longos minutos antes de o tremor se atenuar e extinguir. Com um leve movimento instintivo, Jenny desprendeu-se e olharam-se sem proferir palavra.

 

Creio que precisamos ambos de café disse Mark. Enquanto ele se encontrava na cozinha, ela fixava o olhar na lareira acesa. Sentia-se subitamente exausta, mas tratava-se de um tipo de fadiga diferente, de descontracção, como as que sobrevêm após uma corrida.

 

Ao confiar os seus problemas a Mark, afigurava-se-lhe que retirara um peso enorme dos ombros. Assim, quando ele reapareceu com o café, pôde entregar-se a declarações práticas que contribuíram para desanuviar a atmosfera carregada emocionalmente.

 

O Erich sabe que não continuarei a viver com ele. Assim que me restituir as crianças, partirei.

 

Tem a certeza de que o quer abandonar?

 

O mais depressa possível. Mas primeiro quero obrigá-lo a entregar-mas. São minhas filhas.

 

Ele tem razão quando diz que, como pai adoptivo, lhe assiste o mesmo direito a elas que à Jenny. Além disso, pode manter-se ausente indefinidamente. Deixe-me consultar determinadas pessoas. Um advogado meu amigo é perito em casos desse género. Entretanto, evite antagonizá-lo quando telefonar e, sobretudo, não lhe diga que falou comigo. Promete?

 

Com certeza.

 

Por fim, ele conduziu-a no carro até junto do moinho e insistiu em acompanhá-la a pé através dos campos desertos.

 

Quero certificar-me de que chega a casa sem problemas. Suba ao primeiro andar e, se estiver tudo normal, baixe o estore do seu quarto.

 

Se estiver tudo normal?

 

Se o Erich decidisse regressar esta noite e desse pela sua ausência, poderiam surgir complicações. Telefonarei amanhã, depois de conversar com certas pessoas.

 

Não, é melhor telefonar-lhe eu. O Clyde toma conhecimento de todas as-chamadas que recebo.

 

Uma vez nas proximidades do celeiro, Mark disse:

 

Fico a aguardar aqui. Procure não se preocupar demasiado.

 

Farei o possível. A única coisa que não me apoquenta é a segurança das minhas filhas, pois o Erich adora-as. Resta-me ao menos essa consolação.

 

Ele apertou-lhe a mão, mas não emitiu qualquer comentário. Jenny encaminhou-se apressadamente para a porta da ala oeste, entrou na cozinha e olhou em volta. A chávena e pires que deixara a escorrer no lava-loiça continuavam lá, o que lhe fez assomar um sorriso de amargura. Se Erich tivesse regressado, não deixaria de os colocar no seu lugar.

 

Em seguida, subiu ao quarto principal e começou a baixar os estores. De uma das janelas, viu o vulto alto de Mark desaparecer nas sombras.

 

Quinze minutos depois, estava deitada. Aquele período era o mais penoso, porque não podia dirigir-se ao quarto das filhas e aconchegar-lhes a roupa da cama. Tentou imaginar todas as maneiras que Erich descobriria para as divertir. Elas tinham gostado de o acompanhar à feira regional, no Verão, e ele levara-as várias vezes ao parque de atracções. Na verdade, revelava-se infinitamente paciente com Beth e Tina.

 

Não obstante, pareciam inquietas quando as deixara falar com ela pelo telefone, na primeira noite.

 

No entanto, já se deviam ter habituado à ausência da mãe, como acontecera quando estivera internada no hospital.

 

Como referira a Mark, restava-lhe a consolação de não ter de se preocupar com a segurança das filhas.

 

Recordou-se da forma como ele lhe apertara a mão, quando pronunciara essas palavras.

 

Porquê?

 

Permaneceu acordada toda a noite. Se não era Rooney, nem Elsa, quem?...

 

Levantou-se ao romper do dia. Não podia aguardar que Erich decidisse reaparecer. Ao mesmo tempo, tentava dominar o temor crescente resultante das horríveis possibilidades que lhe haviam ocorrido durante a noite.

 

A cabana. Tinha de a encontrar. Todos os seus instintos lhe indicavam que devia começar a procurar aí.

 

Jenny começou a procurar a cabana ao amanhecer. Às quatro horas, ligara a rádio para ouvir o boletim meteorológico. A temperatura devia continuar a descer e soprava vento moderado do Canadá, estando previstos nevões ao longo do dia. Todavia, o auge da tempestade deveria atingir a área de Granite Place ao fim da tarde seguinte.

 

Encheu uma garrafa-termos de café e vestiu uma camisola grossa por baixo do fato de esquiar. Sabia que a cabana se situava a uns vinte minutos de caminho da orla do bosque. Ela principiaria no ponto onde Erich costumava desaparecer no arvoredo e efectuaria diversas tentativas a partir daí. Era-lhe indiferente que a operação se prolongasse por todo o dia.

 

Às onze horas, voltou a casa, aqueceu a sopa, mudou de meias, para eliminar a sensação desagradável da humidade nos pés, esforçou-se por ignorar as pontadas na fronte e mãos e tornou a sair.

 

Às cinco, quando as sombras começavam a alongar-se, preparava-se por dar as pesquisas por terminadas naquele dia, mas decidiu transpor mais um dos pequenos outeiros. Foi então que a avistou a cabana de toros, pequena, de telhado baixo, construída pelo bisavô de Erich, em 1869. Apresentava um ar de abandono, mas que esperara? Que se desprendesse fumo da chaminé, estivesse a luz acesa e?...

 

Sim, atrevera-se a esperar que Beth e Tina se encontrassem aí com Erich.

 

Desembaraçou-se dos esquis, partiu um vidro e transpôs o peitoril baixo para se introduzir na cabana. Pestanejando para habituar os olhos à penumbra, dirigiu-se às outras janelas, levantou os estores e olhou em volta.

 

Deparou-se-lhe uma única sala com cerca de sete metros de lado. Um fogão Franklin junto da parede norte tinha lenha empilhada ao lado. Uma carpeta oriental descolorida cobria a maior parte do sobrado de pinho. Um sofá de espaldar alto e cadeiras a condizer estavam dispostas em torno do fogão. Perto das janelas da frente, viam-se uma mesa de carvalho, longa, e respectivos bancos.

 

Parecia que cada metro quadrado da parede estava coberto por um exemplo da arte de Erich. A claridade, apesar de escassa, permitia admirar o impacte e beleza dos seus trabalhos. Como sempre, a percepção do génio do marido acalmou-a. Os temores que acalentara durante a noite afiguraram-se-lhe repentinamente absurdos.

 

Aproximou-se de uma prateleira cheia de telas, e algo na da frente lhe captou a atenção. Inspeccionou apressadamente as outras e viu que a assinatura não diferia. Em vez da letra descuidada e quase ilegível de Erich, o nome de Caroline Bonardi, traçado com extremo cuidado, figurava em todas.

 

Passou a inspeccionar as da parede. As emolduradas apresentavam a assinatura de Erich Krueger e as outras a de Caroline Bonardi.

 

No entanto, ele dissera que a mãe tinha pouco talento...

 

Os seus olhos moveram-se alternadamente de um quadro assinado por Erich para outro, sem moldura, da autoria de Caroline. A mesma utilização da luz difusa, o mesmo pinheiro crónico em segundo plano, a mesma fusão de cores. Erich copiava os trabalhos de Caroline.

 

Não podia ser...

 

As telas emolduradas eram as que ele tencionava exibir a seguir. Assinara-as, mas não as pintara. Provinham todas da paleta da mesma artista. Ele assinava abusivamente as obras produzidas pela mãe. Fora por esse motivo que se mostrara tão perturbado, quando Jenny observara que o ulmeiro de uma das telas fora cortado vários meses antes.

 

Despertou-lhe a atenção um desenho a carvão, denominado Auto-retrato. Tratava-se de uma miniatura de Recordação de Caroline, provavelmente o esboço que ela executara antes de iniciar o trabalho que constituía a sua obra-prima.

 

Tudo, meu Deus!... Todas as emoções que atribuíra a Erich através das suas obras não passavam de uma enorme falsidade.

 

Nesse caso, porque se isolava na cabana com tanta frequência? Que fazia ali? Avistou a escada e correu para lá. O sótão apresentava uma inclinação para acompanhar a curvatura do tecto, e ela necessitou de se agachar no topo dos degraus antes de entrar.

 

Ao endireitar-se, uma explosão de cor de pesadelo, proveniente da parede do fundo, assaltou-lhe a visão. Chocada, contemplou a sua própria imagem. Um espelho?

 

Não. O rosto pintado não se moveu, quando ela começou a aproximar-se. A luz do crepúsculo que penetrava pela estreita janela incidia na tela e produzia-lhe colunas pálidas, como dedos que apontassem acusadoramente.

 

Um conjunto de cenas: cenas violentas pintadas com cores agressivas. A figura central, ela própria, com a boca crispada de mágoa e os olhos fixos em corpos estendidos no chão. Beth e Tina jaziam numa confusão de braços e pernas, de olhar arregalado e língua pendente. O rosto de Erich espreitava por detrás do pesado cortinado de uma janela, com uma expressão de satisfação sádica. E, por toda a tela, em tonalidades verdes e negras, um vulto de brilho viscoso, parte mulher, parte serpente, com o rosto de Caroline, a capa em volta como a pele escamosa de um réptil. A figura de Caroline debruçava-se sobre um berço surrealista, suspenso de uma abertura do céu, as mãos da mulher, grotescas, disformes como barbatanas de baleia, cobrindo o rosto do bebé, que estendia as mãos sobre a cabeça, de dedos tensos e separados.

 

A figura de Caroline de casaco castanho, reflectida no pára-brisas de um carro; outro rosto atrás do dela. O de Kevin, exagerado, de olhos arregalados, ridículo, assustado, a escoriação na região temporal realçada horrivelmente. A figura de Caroline, a capa solta à sua volta, segurando os cascos de um cavalo selvagem e orientando-os para pousarem no corpo de cabelos louros no chão, Joe, que se encolhia para evitar as ferraduras letais.

 

Jenny ouviu o som emitido pela sua garganta, o gemido de pavor, os gritos de protesto. Não era Caroline a metade mulher, metade serpente. Era o rosto de Erich o semblante que espreitava entre os cabelos pretos e compridos, os olhos dele que a fitavam da tela.

 

Não! Não! Não! Aquelas revelações distorcidas, torturadas, aquela arte a encarnação do mal, num realce que, a seu lado, a elegância do talento de Caroline se reduzia à insignificância.

 

Erich não pintara os quadros que intitulava seus, mas os que eram realmente de sua autoria representavam o génio de uma mente perturbada. Eram chocantes, aterradores no seu impacte, hediondos... e alucinados!

 

Ela contemplou a sua própria imagem e os rostos das crianças, de olhares suplicantes, à medida que a corda lhes apertava o frágil pescoço.

 

Por fim, conseguiu reunir coragem suficiente para arrancar a tela da parede, os dedos relutantes flectindo-se, como se rodeassem os fogos do Inferno.

 

Em seguida, voltou a calçar os esquis e abandonou a cabana. A noite tombava rapidamente e a visibilidade reduzia-se. A tela reagia ao vento como uma vela e desviava-a do caminho, fazendo-a colidir com as árvores. Em dado momento, descobriu que se perdera e voltava a avistar a cabana.

 

Receou morrer de frio no bosque antes de conseguir encontrar alguém que impedisse Erich de concretizar os tenebrosos desígnios, se porventura não era já demasiado tarde. Perdeu a noção do tempo, limitando-se a deslizar na neve sem rumo definido, ao mesmo tempo que soltava repetidos gritos para que alguém lhe acudisse.

 

Por último, vislumbrou um ténue clarão entre as árvores e compreendeu que se tratava da orla do bosque. Pouco depois, descobria que o produzia o luar que incidia na lápide de granito da sepultura de Caroline.

 

A partir daí, avançou mais facilmente através dos campos. A mansão achava-se totalmente imersa na escuridão e somente o luar revelava os seus contornos. Mas havia luz na janela do escritório, e Jenny dirigiu-se para lá.

 

Já não conseguia gritar, não havia qualquer som, além dos gemidos guturais que notava na garganta, enquanto os lábios se limitavam a tentar formar as palavras de desespero: "Acudam-me... acudam-me..."

 

Tentou abrir a porta do escritório com as mãos geladas, porém o esforço resultou baldado. Por fim, bateu com os punhos, até que se abriu e ela cambaleou para a frente e caiu nos braços de Mark.

 

Jenny!

 

Acalme-se, Mistress Krueger.

 

Alguém tentava retirar-lhe os esquis e Jenny verificou vagamente que era o xerife Gunderson.

 

Entretanto, Mark procurava separar a tela dos dedos enregelados, até que o conseguiu e desenrolou-a.

 

Meu Deus! articulou, assombrado.

 

Erich... Ela tinha dificuldade em reconhecer a sua própria voz. Foi ele que pintou isto... e matou o meu bebé. Veste-se como Caroline... Beth... Tina... Provavelmente, também as matou...

 

Erich pintou isto? A incredulidade do xerife era indisfarçável.

 

Encontrou as minhas filhas? Jenny virou-se para ele, com uma expressão esgazeada. Porque está aqui? Elas morreram?

 

Jenny... Mark segurava-a com firmeza e pousou-lhe a mão na boca, para cortar a torrente de palavras. Fui eu que o chamei, porque não consegui contactar consigo. Onde encontrou esta tela?

 

Na cabana... Está cheia delas. Mas não são dele. Foi Caroline quem as pintou.

 

Mistress Krueger...

 

Continua a duvidar de mim? vociferou, indignada.

 

O xerife não tem culpa do sucedido interpôs Mark. Eu devia ter-me apercebido da verdade. O meu pai começara a suspeitar...

 

Gunderson examinava a tela com estupefacção crescente, o olhar fixo no canto superior direito, onde se viam o berço suspenso de uma abertura no céu e a figura grotesca de Caroline debruçada sobre ele.

 

Erich procurou-me, Mistress Krueger. Disse que lhe constara que circulavam comentários sobre a morte do bebé e exigiu a autópsia.

 

A porta abriu-se de rompante, mas não se tratava de Erich, como Jenny esperava. Clyde, de expressão apreensiva e desaprovadora, perguntou em tom brusco:

 

Que diabo se passa aqui?

 

Pousou os olhos na tela e empalideceu profundamente.

 

Quem está aí, Clyde? A voz de Rooney soou nas proximidades e, no momento imediato, assomou à entrada, mas não antes de ele guardar a tela no armário.

 

Ela olhou em volta e, ao avistar Jenny, acercou-se para a abraçar.

 

Tinha saudades suas.

 

Também senti a sua falta replicou Jenny, num murmúrio, reflectindo que chegara a culpar a mulher de tudo o que acontecera e atribuíra as suas palavras ao produto de uma mente enferma.

 

Onde estão as meninas? Posso ir dar-lhes um beijo? A pergunta constituía uma bofetada sem mão.

 

Erich ausentou-se e levou-as.

 

Deixa as visitas para amanhã interveio Clyde. Vamos para casa. O médico recomendou que fosses directamente para a cama. Pegou-lhe no braço e conduziu-a para a porta, acrescentando por cima do ombro: Volto já.

 

Enquanto aguardavam, Jenny conseguiu reunir energias suficientes para referir o que a levara a procurar a cabana.

 

Foi você o responsável, Mark. Ontem à noite, quando eu disse que as pequenas estavam em segurança com Erich, não emitiu qualquer comentário. Mais tarde, na cama, compreendi que se preocupava com alguma coisa. E pus-me a pensar que, se a culpada não era Rooney, Elsa ou eu e você receava que acontecesse algo às crianças, só podia ser o Erich.

 

"Na primeira noite, insistiu em que vestisse a camisa de dormir de Caroline. Queria que eu fosse Caroline. Até decidiu ficar na sua cama de outrora. O aparecimento dos sabonetes de pinho no quarto de Beth e Tina também foi obra dele. Quanto a Kevin, Erich devia saber que nos tínhamos encontrado, pois aludiu ao valor que o conta-quilómetros do carro indicava e decerto lhe chegaram aos ouvidos os comentários das mulheres que nos viram.

 

Jenny...

 

Deixem-me continuar. Não foi por acaso que me levou a jantar ao mesmo restaurante. Quando Kevin ameaçou cancelar a adopção, convidou-o a passar por cá para discutirem o assunto. Explica-se assim o facto de o telefonema partir da nossa linha. Erich e eu somos sensivelmente da mesma altura, quando uso saltos. Com o meu casaco e uma peruca preta, podia fazer-se passar por mim até entrar no carro. Suponho que o agrediu em seguida e provocou a morte por afogamento. No caso de Joe, tinha ciúmes dele e serviu-se do pretexto do veneno misturado na ração do cavalo para atentar contra a sua vida. E o bebé... Odiava-o devido ao cabelo ruivo, e penso que tencionava matá-lo desde o princípio, quando lhe deu o nome de Kevin.

 

Os soluços secos e ásperos proviriam da sua garganta? No entanto, não podia parar de falar. Necessitava de desabafar até ao fim.

 

Nas ocasiões em que me parecia que alguém se debruçava sobre mim, era ele que afastava a divisória do quarto e usava a peruca. Na noite em que tive o bebé, fui acordá-lo e pareceu-me notar-lhe algo de estranho nas pestanas, mas a agitação do momento impediu-me de voltar a pensar no assunto. Agora... tem as minhas filhas em seu poder... tem as minhas filhas...

 

Acha que consegue dar com o caminho para a cabana, Mistress Krueger? O tom do xerife deixava transparecer urgência.

 

Creio que sim. Se partirmos do cemitério...

 

Não está em condições protestou Mark. Iremos nós, seguindo as marcas que produziu na neve.

 

Mas Jenny não estava disposta a deixá-los ir sem ela e o percurso desenrolou-se com relativa facilidade. Uma vez na cabana, eles acenderam candeeiros, olharam com assombro a assinatura "Caroline Bonardi" e iniciaram uma busca minuciosa. Todavia, não descobriram documentos pessoais.

 

Ele tem de guardar os apetrechos algures asseverou Mark.

 

Mas no sótão só estão as telas, e é muito pequeno.

 

Não pode ser assim tão pequeno objectou Clyde. Deve ter o mesmo tamanho da cabana. Talvez exista uma divisória.

 

Havia de facto uma área de arrecadação com metade das dimensões do sótão, acessível através de uma porta ao canto do lado direito, que Jenny não notara devido à iluminação deficiente. Encontraram nela pilhas de cestas de escritório, que continham dezenas de outras telas de Caroline, um cavalete, um armário com apetrechos para pintar e duas malas de viagem que condiziam com o estojo de artigos de beleza que Jenny vira no sótão da mansão. Em cima de uma delas, meticulosamente dobrada, via-se uma longa capa verde, ao lado de uma peruca preta.

 

A capa de Caroline proferiu Mark, a meia voz. No entanto, não existia o menor indício do local em que Erich se encontrava naquele momento.

 

Clyde, que esquadrinhava as telas, soltou de repente uma exclamação de horror. Acabava de desenrolar uma que representava uma composição surrealista, na qual predominavam, em tonalidades verdes, Erich em criança e Caroline. A um canto, ele empunhava um stick de hóquei, enquanto ela se debruçava sobre um bezerro; noutro, achava-se caída numa tina e olhava-o com surpresa, pois Erich tinha as mãos estendidas, como se acabasse de a empurrar; noutro ainda, o stick puxava o cordão de uma gambiarra e ele exibia um esgar demoníaco.

 

Foi ele quem matou Caroline balbuciou Clyde. Aos dez anos de idade, matou a própria mãe!

 

Que disseste?

 

Voltaram-se todos para a porta, onde acabava de aparecer Rooney, de olhos arregalados, sem vislumbres da calma que costumava aparentar.

 

Julgavam que não era capaz de suspeitar de que havia alguma coisa de errado? acrescentou.

 

Concentrava-se, não na tela que Clyde segurava, mas na outra que ele expusera. Apesar das distorções, Jenny reconheceu o rosto de Arden, que assomava à janela da cabana uma figura de cabelos louros e capa em torno dos ombros, com o semblante de Erich atrás dela. Como se tratava igualmente de uma composição, noutro espaço da tela, rodeava-lhe o pescoço com as mãos e noutro ainda a rapariga jazia numa sepultura em cima de um caixão, cuja lápide ostentava o nome de CAROLINE BONARDI KRUEGER. E, ao canto, a assinatura inconfundível: Erich Krueger.

 

Ele matou a minha filha... gemeu Rooney.

 

Por fim, abandonaram a cabana. A mão de Mark segurava a de Jenny com firmeza um Mark silencioso, que não tentava oferecer palavras de conforto inúteis.

 

Na mansão, o xerife Gunderson apressou-se a utilizar o telefone.

 

Subsiste a esperança de que tudo o que vimos se limite à fantasia de um espírito doentio. Existe uma maneira de nos certificarmos, e não podemos perder um único momento.

 

O cemitério foi violado, mais uma vez. Projectores conferiam às lápides um aspecto irreal, enquanto o pessoal escavava a terra dura que cobria a sepultura de Caroline, sob as vistas de Rooney, surpreendentemente calma.

 

Em dado momento, surgiram pedaços de lã azul misturados com a terra, e um dos escavadores anunciou:

 

Ela está de facto aqui. Afastem a mãe, por favor. Clyde segurou o braço de Rooney e obrigou-a a abandonar o cemitério.

 

Ao menos, ficámos a saber articulou ele, num murmúrio.

 

Regressaram à mansão, quando começava a amanhecer. Mark fez café e Jenny perguntou-lhe quando começara a suspeitar de que as filhas corriam perigo.

 

A outra noite, depois de a acompanhar a casa, telefonei a meu pai, pois eu sabia que tinha ficado muito impressionado com o que Tina dissera acerca da senhora do quadro que cobrira o bebé. Ele admitiu estar ao corrente de que Erich era um psicopata desde criança, porque Caroline lhe revelara a obsessão do filho por ela. Surpreendera-o a observá-la deitada, guardava o seu roupão debaixo do travesseiro e envolvia-se na sua capa. Chegou a levá-lo a um especialista, mas John Krueger não permitiu que o tratassem. Alegou que nenhum membro da família tivera jamais problemas mentais e não passava tudo dos efeitos dos mimos de Caroline.

 

"Entretanto, ela estava à beira de um colapso nervoso e tomou a única decisão possível. Prescindiu da custódia de Erich, com a condição de John o mandar para um colégio interno, esperançada em que a mudança de ambiente exercesse efeitos benéficos. No entanto, após a morte de Caroline, ele não cumpriu a promessa e o filho nunca teve qualquer espécie de tratamento. Quando o meu pai ouviu as palavras de Tina acerca da senhora do quadro e a afirmação de Rooney de que vira Caroline, começou a suspeitar do que se passava. Penso mesmo que foi essa a causa do ataque cardíaco. Lamento que não confiasse em mim antes disso. Bem sei que não dispunha de provas, mas creio que se deveu a esse facto a insistência em que Erich a deixasse visitá-lo, com as crianças.

 

Mistress Krueger. A voz do xerife continha uma nota de hesitação. Recearia que ela continuasse a atribuir-lhe a culpa do sucedido? O doutor Philstrom encontra-se aqui. Pedimos-lhe que examinasse o conteúdo da cabana e precisa falar-lhe.

 

Pode repetir com exactidão as palavras de Erich, a última vez que telefonou? perguntou o psiquiatra.

 

Bem, enfureceu-se porque tentei convencê-lo de que estava equivocado a meu respeito.

 

Mencionou as crianças?

 

Disse que estavam óptimas.

 

Quanto tempo havia que as tinha deixado falar consigo?

 

Nove dias.

 

Hum... Vou ser-lhe franco. Tudo indica que ele pintou a última tela antes de desaparecer com elas. Encontrámos na cabana uma tesoura com vestígios de pele de um casaco. De qualquer modo, subsistem poucas dúvidas de que a tela data de antes do desaparecimento.

 

Quer dizer que elas podem estar ainda vivas?

 

Não pretendo encorajá-la excessivamente, mas raciocinemos. Erich continua convencido de que viverá consigo e a dominará por completo, a partir do momento em que dispuser da confissão assinada. Ora, sabe perfeitamente que, sem as crianças, não teria o menor poder sobre a senhora. Por conseguinte, enquanto não chegar à conclusão de que a reunião é impossível, subsiste uma possibilidade, algo remota, decerto...

 

Jenny pôs-se de pé com firmeza. Tina. Beth. Estava persuadida de que se tivessem morrido o pressentiria, tal como adivinhara que Nana não sobreviveria àquela última noite. E como receara que aconteceria algo ao bebé.

 

Mas Rooney desconhecera a verdade. Ao longo de dez anos, acalentara a esperança de que Arden regressaria a casa, quando, afinal, o seu corpo achava-se sepultado num local visível da janela de casa da mãe.

 

Jenny vira-a numerosas vezes diante da sepultura de Caroline. Algum pressentimento a impeliria a fazê-lo? Algo existente num recanto do subconsciente segredar-lhe-ia que a filha também se encontrava aí sepultada?

 

Interrogou o Dr. Philstrom a esse respeito, porém ele replicou:

 

Não sei se é possível. Penso que ela suspeitava instintivamente de que Arden não partiria por sua própria vontade, pois conhecia-a bem.

 

Quero as minhas filhas disse Jenny. Quero-as já. Erich odiar-me-á ao ponto de as molestar?

 

Trata-se de um indivíduo totalmente irracional. Um homem que a desejava porque se parecia com a mãe e, ao mesmo tempo, a detestava por a substituir.

 

Vamos pôr a circular folhetos, Mistress Krueger anunciou o xerife. As fotografias dos três percorrerão todas as localidades do Minnesota e estados adjacentes e emissoras de televisão. Alguém os deve ter visto. Clyde vai examinar a documentação do escritório, para determinar todas as propriedades que Erich possui. De resto, sabemos que esteve cá uma vez, e apenas cinco horas depois de lhe telefonar. Para já, concentramo-nos num raio abrangido pelo percurso desse lapso de tempo de automóvel.

 

A campainha do telefone provocou um sobressalto geral, e ele estendeu a mão para o auscultador, porém um instinto irresistível obrigou Jenny a antecipar-se.

 

Estou... proferiu em voz trémula.

 

Olá, mamã! Era Beth.

 

Beth!

 

Jenny cerrou as pálpebras e levou os nós dos dedos à boca. A filha ainda vivia! Os planos tenebrosos dele ainda não se haviam concretizado. Sentiu as mãos fortes de Mark pousadas nos ombros e afastou um pouco o auscultador do ouvido, para que também pudesse ouvir.

 

Òlá querida proferiu, esforçando-se por deixar transparecer desprendimento. Têm-se divertido muito com o papá?

 

És má, mamã. Estiveste no nosso quarto, ontem à noite, e não nos disseste nada. E puxaste o cobertor da Tina até à cabeça.

 

A voz plangente da garota era suficientemente elevada para chegar aos ouvidos de Mark. Jenny viu a angústia espelhada no seu olhar e pressentiu que se achava reflectida no dela. Puxara o cobertor até à cabeça... Não, por favor!... Primeiro, o bebé. Agora, Tina.

 

Ela chorou tanto...

 

Deixa-me falar com ela. Tentou repelir as vagas de aturdimento. Impunha-se, sobretudo, que não desmaiasse. Adoro-te, meu amor.

 

Eu também gosto muito de ti, mamã! Beth começou a chorar. Vem depressa...

 

Mamã? Tina ainda soluçava. Magoaste-me. Tapaste-me a cara com o cobertor.

 

Desculpa, querida, foi sem querer.

 

Seguiu-se uma pausa e surgiu uma terceira voz na linha.

 

Porque estás tão preocupada, Jenny? As pequenas sonharam. É porque sentem tanto a tua falta como eu.

 

Erich! Ela descobriu que gritava. Onde estás? Prometo assinar a confissão. Assino tudo o que tu quiseres, mas, por favor, preciso da companhia das minhas filhas. Apercebeu-se da pressão de advertência no ombro. Isto é, preciso da companhia da minha família. Podemos ser muito felizes. Não sei porque faço essas coisas estranhas durante o sono, mas prometeste cuidar de mim. Estou certa de que hei-de melhorar.

 

Tencionavas abandonar-me. Limitavas-te a fingir que me amavas.

 

Volta para casa e falaremos. Ou deixa-me enviar-te a declaração. Dá-me o endereço.

 

Falaste com alguém a nosso respeito?

 

Ela consultou Mark com o olhar e viu-o abanar a cabeça.

 

Porque havia de falar?

 

Liguei para aí três vezes, ontem à tarde, e ninguém respondeu.

 

Fui dar uma volta, porque havia muito tempo que não saía. Anseio por voltar a esquiar contigo. Lembras-te do que nos divertíamos?

 

Depois, liguei para o consultório e para casa do Mark e também não o encontrei. Estavas com ele?

 

Bem sabes que não me interesso por qualquer outro homem.

 

Tina soltava agora gritos agudos e, ao fundo, soavam ruídos de tráfego, como o produzido por veículos pesados que procediam a mudança de velocidade numa ladeira. Seria possível que Erich tivesse estado na herdade, na véspera? Em caso afirmativo, visitara a cabana? Não, porque se o fizesse e visse o vidro da janela partido, descobriria que estivera lá alguém e não telefonaria naquele momento.

 

Vou pensar em regressar. Entretanto, não saias de casa. Quando menos o esperares, abrirei a porta e tornaremos a ser uma família feliz. Prometes não sair?

 

Sim, Erich. Prometo tudo o que quiseres, repito.

 

Quero falar com a mamã! fez a voz suplicante de Beth. Por favor...

 

Soou um estalido abrupto e a ligação foi cortada. Jenny escutou distraidamente, enquanto Mark repetia o diálogo, e apenas interveio quando o xerife perguntou:

 

Mas porque pensaram as crianças que era Mistress Krueger?

 

Porque, como levou a minha bagagem, deve ter posto um dos meus vestidos. Além disso, suponho que dispõe de uma peruca preta. Que fará ele agora, doutor Philstrom?

 

Tudo é possível. Não o posso negar. No entanto, creio que enquanto supuser que a tem sob o seu domínio, as pequenas estarão relativamente seguras.

 

Mas aquilo com a Tina, ontem à noite...

 

Ele próprio o explicou, indirectamente. Tentou telefonar-lhe e não a encontrou em casa. Ora, como também não conseguiu contactar com Mark, o instinto indicou-lhe que estavam juntos. A sensação de frustração levou-o a quase molestar a garota.

 

E se aparecer de um momento para o outro? Esta noite mesmo, por exemplo. Pode deslocar-se num carro que ninguém daqui conheça ou vir a pé da margem do rio. Se vir cá um ou mais estranhos, será o fim de tudo. Têm de se retirar. Suponha que descobre que a sepultura de Caroline foi escavada? Nessa eventualidade, saberá que o corpo de Arden apareceu. Por outro lado, xerife, não pode pôr a circular os folhetos de que falou, nem mandar ventilar o assunto pela rádio ou televisão. Além disso, se ele visita a cabana e vê a vidraça partida e os pedaços de pano que prendi aos troncos das árvores para me orientar... Ela meneou a cabeça, exasperada, sem forças para prosseguir.

 

Gunderson consultou Mark e o psiquiatra com o olhar e disse:

 

É óbvio que estão de acordo. Muito bem. Mark, peça a Rooney e Clyde que cheguem aqui. Contactarei com o pessoal do gabinete do coroner. Suponho que ainda não completou o trabalho no cemitério.

 

Rooney apresentava-se surpreendentemente serena e apressou-se a abraçar Jenny com ternura.

 

A minha pobre amiga!...

 

Clyde, por seu turno, parecia ter envelhecido dez anos, nas últimas horas.

 

Ainda não terminei de inventariar os bens de Erich, mas espero completar a lista em breve.

 

Temos de levar a tela de novo para a cabana lembrou Jenny. Estava junto da parede mais longa do sótão.

 

Guardei-a no armário do material de escritório informou o Dr. Philstrom. Julgo preferível que Mistress Toomis regresse ao hospital até que isto se resolva.

 

Quero estar ao lado de Clyde anunciou Rooney. E de Jenny. Sei que me encontro bem.

 

Ela fica comigo decidiu Clyde, com firmeza. O xerife aproximou-se da janela.

 

O local está cheio de pegadas e marcas de pneus. Precisávamos de um bom nevão para as apagar. Esperemos que as previsões oficiais de um para esta noite se confirmem.

 

Com efeito, a neve começou a tombar ao princípio da noite, não tardando a cobrir a mansão e construções adjacentes, acompanhada de vento forte.

 

Na manhã seguinte, profundamente grata à Providência, Jenny contemplou o extenso manto branco. A sepultura violada recuperara o aspecto normal e as pegadas que conduziam à cabana decerto haviam desaparecido. Se aparecesse, Erich não suspeitaria de nada, mau grado o seu faro excepcional para detectar prontamente um objecto deslocado do lugar habitual, ainda que por escassos centímetros.

 

O xerife Gunderson e dois ajudantes tinham voltado durante a noite e, enquanto um montava um dispositivo de escuta de chamadas telefónicas e entregava um walkie-talkie a Jenny, com instruções sobre a maneira de o utilizar, o outro copiava o conteúdo dos documentos que Clyde ia retirando dos ficheiros, a fim de investigar possíveis esconderijos.

 

No entanto, Jenny recusou terminantemente a permanência de um polícia na mansão.

 

Erich pode entrar a qualquer momento e, se descobre a presença de um estranho, cometer um acto irreflectido.

 

Passou a aperceber-se da passagem dos dias com a minúcia dos segundos que se convertiam em minutos e estes, com arreliadora lentidão, em horas. Localizara a cabana a 15. Na manhã de 16, a sepultura fora aberta e Erich telefonara. A tempestade de neve terminara a 18, e seguira-se o início das limpezas das estradas e ruas em todo o Minnesota. As comunicações telefónicas mantiveram-se interrompidas durante todo o dia 17 e a maior parte de 18. E se ele tentasse ligar nesse lapso de tempo? Compreenderia que não era por culpa dela que não o conseguia? A área de Granite Place em que a herdade se situava fora mais flagelada pela inclemência dos elementos que o resto da região.

 

"Deus queira que não se zangue e descarregue a ira sobre as crianças!", suplicava para consigo.

 

Na manhã de 19, viu Clyde encaminhar-se para a mansão. A postura empertigada da cabeça e peito havia desaparecido e os ombros curvavam-se sob um peso invisível.

 

Ele acaba de telefonar anunciou, batendo com os pés no chão da cozinha para restabelecer a circulação.

 

Porque não ligou para aqui? Porque não me deixou falar-lhe?

 

Não queria falar consigo. Desejava apenas saber se as comunicações estiveram cortadas ontem à noite. Em seguida, perguntou se tinha saído, Mistress Krueger. Disse que o outro dia... Recorda-se de que telefonou pouco depois de encontrarmos o corpo de Arden?

 

Sim.

 

Disse que esteve a pensar nisso e eu devia encontrar-me no escritório a essa hora, pelo que a chamada tinha de ser atendida daí em primeiro lugar. Dá a impressão de que nos vigia. Parece ao corrente de todos os nossos movimentos.

 

Que respondeu?

 

Que tinha ido buscar Rooney ao hospital e, em virtude disso, o telefone estava ligado para aqui. A seguir, quis saber se Mark continuava a foçar (foi o termo exacto que empregou) por estas paragens.

 

Que lhe disse?

 

Que o doutor Ivanson viera inspeccionar o gado, pois Mark não tinha voltado a aparecer.

 

Ele referiu-se às crianças?

 

Não. Disse apenas para lhe comunicar que continuaria a telefonar e queria encontrá-la sempre em casa. Tentei entretê-lo, para que localizassem a chamada, mas falava muito depressa e desligou antes que isso fosse possível.

 

Entretanto, Mark telefonava todos os dias.

 

Preciso vê-la, Jenny.

 

Clyde tem razão. O Erich é imprevisível e pode cometer um acto irreparável a todo o momento. Perguntou por si em particular, pelo que julgo preferível não aparecer por cá até isto se resolver.

 

Joe bateu à porta da mansão na tarde de 25.

 

Mister Krueger encontra-se bem, Mistress Krueger?

 

Porque perguntas?

 

Telefonou para saber como me sentia e quis saber se eu a tinha visto, ultimamente. Respondi que só nos encontráramos uma vez e por acaso. A seguir, preveniu-me de que, se me aproximasse de si ou a tratasse por Jenny, havia de me abater com a mesma espingarda que utilizava para matar os meus cães. Disse mesmo cães, o que significa que também matou o outro. Parecia louco, pela maneira de falar. Desconfio que a minha presença na herdade pode prejudicar-nos. Que me aconselha a fazer?

 

Parecia louco... Erich decidira ameaçar o rapaz abertamente. O desespero anestesiava o terror de Jenny, que perguntou:

 

Falaste nisto a alguém? A tua mãe, por exemplo?

 

Não. Não quero que ela recomece com as suas manias.

 

Peço-te encarecidamente que não menciones esse telefonema a ninguém. Se ele voltar a falar contigo, tenta mostrar-te calmo e não o contraries. Sobretudo, não lhe digas que voltaste a ver-me.

 

As coisas estão feias, hem?

 

Estão assentiu, reconhecendo a inutilidade de ocultar a verdade.

 

Onde está ele, com as meninas?

 

Não sei.

 

Compreendo. Juro por Deus que pode confiar em mim.

 

Não duvido. Se tornar a telefonar, previne-me imediatamente.

 

Com certeza.

 

E se aparecer na herdade, tenho de me inteirar sem demora.

 

Pode contar comigo. A Elsa esteve lá em casa com o tio Josh, para jantar, e disse que a senhora era uma pessoa encantadora.

 

Nunca pareceu simpatizar comigo.

 

Tinha medo de Mister Krueger, que a mandou conservar-se no seu lugar e limitar-se a olhar pela arrumação e limpeza da casa.

 

Nunca compreendi porque continuava a trabalhar cá, com a maneira como ele a tratava.

 

Por causa do dinheiro que lhe pagava. Ela dizia que por um salário desses até trabalharia para o Diabo. Joe pousou a mão no puxador da porta para se retirar. Afinal, tudo indica que era o que acontecia...

 

Jenny reflectia que Fevereiro não era o mês mais curto do ano. Com efeito, parecia-lhe uma eternidade. Dia após dia. Minuto após minuto. A terrível expectativa de cada noite, deitada na cama, à escuta dos sons da casa, que se lhe afiguravam sinistros. Usava o roupão de Caroline e conservava um sabonete de pinho debaixo do travesseiro.

 

Se Erich surgisse a meio da noite, silenciosa, furtivamente, o odor poderia induzi-lo no erro de que imperava uma atmosfera de segurança.

 

Quando conseguia dormir, Jenny sonhava incessantemente com as filhas, que saltavam para a cama e a abraçavam, mas acordava no momento em que tentava retribuir-lhes a manifestação de afecto.

 

Nunca sonhava com o bebé. Dir-se-ia que o mesmo envolvimento total que concedera à preservação do pequeno lampejo de vida no minúsculo corpo pertencia agora a Tina e Beth.

 

Memorizara o texto da confissão que lhe acudia constantemente ao espírito: "Não sou responsável..."

 

Durante o dia, nunca se afastava muito do telefone e, para passar o tempo, consagrava a maior parte das manhãs à limpeza da casa, abstendo-se, porém, de utilizar o aspirador, com receio de que o ruído a impedisse de ouvir a campainha.

 

Rooney visitava-a quase todas as tardes uma Rooney diferente, para quem o período de expectativa terminara.

 

Podíamos começar a fazer colchas para as camas das meninas sugeriu. Enquanto continuar convencido de que pode reatar a vida familiar aqui, Erich não lhes fará mal. Mas entretanto, tem de ocupar as mãos com alguma coisa, Jenny, de contrário enlouquece.

 

Subiu ao sótão para procurar o saco que continha restos de tecido e principiaram a coser. Jenny tinha a impressão de que o termo da esperança privara a mulher do incentivo para viver, e tudo o que dizia continha o mesmo tom monocórdio.

 

Depois de localizarem Erich, faremos um verdadeiro funeral à Arden. O mais difícil para mim agora é recordar-me de que ele me encorajou a acreditar que ela ainda vivia. O Clyde afirmou sempre que nunca fugiria de casa. Eu devia ter-me convencido disso. Erich foi extremamente cruel, e uma pessoa dessas não merece viver.

 

Não fale assim, por favor.

 

Desculpe.

 

O xerife Gunderson telefonava todas as noites.

 

Já elaborámos a lista completa das propriedades que Erich possui e fornecemos fotografias dele às Polícias das respectivas áreas, com a recomendação de evitarem a publicidade e, se o virem, não o prenderem. Tentou animá-la. Convém não desesperar, Mistress Krueger. Neste momento, as crianças são capazes de estar a bronzear-se numa praia da Florida.

 

Prouvera a Deus que fosse verdade. No entanto, ela não acreditava.

 

Mark também telefonava com regularidade, mas não ocupava a linha por muito tempo.

 

Nada, Jen?

 

Nada.

 

Bem, vou desligar, para o caso de ele querer telefonar. Ela não conseguia conservar-se na cama para além do romper do dia e evitava sair de casa. Um programa matinal da televisão incluía uma sessão de ioga, e Jenny sentava-se fielmente diante do aparelho às seis e meia, para executar os exercícios indicados.

 

Às sete, surgia a rubrica diária Bom Dia, América, com noticiário e entrevistas, que ela escutava distraidamente. Uma ocasião, apareceram no pequeno écran fotografias de crianças desaparecidas, algumas há vários anos. Amy... Roger... Tommy.., Linda... José... uma após outra. Cada uma representava um desgosto profundo. Um dia, incluiriam igualmente as de Elizabeth e Christine, mais conhecidas pelos diminutivos de Beth e Tina. "O pai adoptivo ausentou-se com elas a seis de Fevereiro, há três anos. Se alguém as vir ou possuir alguma informação..."

 

Os serões também obedeciam a um ritual. Ela sentava-se na secção da família da cozinha e lia ou tentava concentrar-se no televisor, assistindo, impávida, a comédias, encontros de hóquei ou películas antigas. Se experimentava ler, não tardava a pousar o livro por lhe ser impossível fixar uma única frase.

 

Na última noite de Fevereiro, sentia-se particularmente enervada.

 

Afigurava-se-lhe existir uma imobilidade na casa que resultava extremamente perturbadora. De súbito, o telefone tocou.

 

Levantou o auscultador, sem esperança, como acontecia ultimamente e proferiu:

 

Estou...

 

Fala o pastor Barstrom, da igreja sionista. Como tem passado?

 

Muito bem, obrigada.

 

Suponho que Erich lhe transmitiu as nossas condolências pela perda do bebé? Eu queria visitá-la, mas ele desencorajou-me. Encontra-se aí, neste momento?

 

Não. Partiu em viagem, mas não sei quando regressa.

 

Hum... Importa-se de lhe recordar que o nosso centro de cidadãos mais antigos está quase concluído? Quero que não se esqueça, na sua qualidade de doador mais importante, de que a data da inauguração é a dez de Março. Tem um marido muito generoso, Jenny.

 

Pois tenho. Dir-lhe-ei que telefonou. Boa noite.

 

O telefone voltou a tocar às duas menos um quarto da madrugada, quando ela estava deitada, com uma pilha de livros ao lado, esperançada em que ao menos um a ajudasse a passar a noite.

 

Jenny?

 

Sim. Seria Erich? A voz era diferente, aguda, tensa.

 

Com quem estiveste a falar ao telefone, por volta das oito? Sorrias durante a conversa.

 

Por volta das oito? Tentou fingir que reflectia, desenvolvendo esforços desesperados para não gritar: "Onde estão Beth e Tina?" Deixa-me pensar... Não se atrevia a mencionar o xerife ou Mark. Já sei. Era o pastor Barstrom. Queria falar contigo, para te convidar a inaugurar o centro dos cidadãos, ou coisa que o valha. Convinha que o mantivesse na linha, para poderem localizar a origem da chamada.

 

Tens a certeza de que era ele?

 

Sem dúvida. Porque havia de inventar uma coisa dessas? Mordeu os lábios. Como estão as pequenas?

 

Óptimas.

 

Deixa-me falar com elas.

 

Estavam muito cansadas e meti-as na cama. Gosto do teu aspecto desta noite.

 

Gosto do teu aspecto desta noite! Sentiu que começava a tremer irresistivelmente.

 

Sim, estive aí acrescentou ele. Espreitei pela janela. Devias ter pressentido a minha presença, se me amas como dizes.

 

Porque não entraste?

 

Não quis. Pretendi apenas certificar-me de que continuavas à minha espera.

 

Sim, estou à tua espera e das crianças. Se não queres vir, deixa-me ir ter convosco.

 

Não... por enquanto. Estás deitada?

 

Com certeza.

 

Que camisa de dormir vestiste?

 

Aquela de que gostas. Uso-a com frequência.

 

Talvez eu devesse ter ficado.

 

Sim, talvez. Gostava que o tivesses feito.

 

Seguiu-se uma pausa e Jenny ouviu sons de tráfego, à distância. Ele decerto telefonava sempre do mesmo aparelho. E espreitara pela janela!

 

Suponho que não disseste ao pastor Barstrom que estou fulo contigo?

 

Claro que não. Ele sabe como nos amamos.

 

Tentei telefonar ao Mark, mas a linha estava interrompida. Falaste com ele?

 

Não.

 

Foi mesmo com o pastor Barstrom que falaste?

 

Porque não lhe telefonas e perguntas?

 

Não merece a pena. Acredito em ti. Voltarei a tentar falar com o Mark. Tem um livro meu que quero que me devolva. Pertence à terceira prateleira da biblioteca, o quarto a contar da direita. Quase sem transição de tom, Erich inquiriu: Ele é o teu novo amiguinho? Gosta de nadar? Prostituta! Sai da cama de Caroline, imediatamente!

 

Seguiu-se um estalido e silêncio, antes do habitual zumbido da linha livre.

 

O xerife Gunderson telefonou vinte minutos mais tarde:

 

A companhia dos telefones localizou parcialmente a chamada. Conhecemos a área de onde ele falou. É nas proximidades de Duluth.

 

Duluth? A parte mais setentrional do estado, a cerca de seis horas de automóvel da herdade. Isso significava que, se se instalara naquela região, partira a meio da tarde, para espreitar pela janela às oito da noite.

 

Quem ficara com as crianças, na sua ausência? Ou tê-las-ia deixado sós? Ou... já não viveriam? Jenny não falava com elas desde o dia 16, cerca de duas semanas atrás.

 

Pelo tom da voz, pareceu-me mais perturbado declarou numa inflexão átona.

 

É muito provável. O xerife não tentou recorrer a palavras animadoras.

 

Que podem as autoridades fazer?

 

Quer que divulguemos o assunto, através da televisão, rádio e imprensa?

 

Isso não, meu Deus! Equivaleria a assinar a sentença de morte das minhas filhas.

 

Nesse caso, incumbiremos uma brigada especial de passar a área de Duluth a pente fino. E convém colocar um detective aí, Mistress Krueger. A sua vida pode correr perigo.

 

Nem pensar. Ele havia de se inteirar.

 

Era quase meia-noite. O dia 28 de Fevereiro converter-se-ia em 1 de Março. Jenny recordou-se de uma sua superstição da infância. Se adormecesse a dizer "lebre, lebre" na última noite do mês e acordasse na manhã seguinte com as palavras "coelho, coelho" nos lábios, veria o seu desejo satisfeito.

 

Lebre, lebre! gritou subitamente no silêncio do quarto. Lebre, lebre, quero as minhas filhas! Dominada por soluços, mergulhou a cabeça no travesseiro. Quero a Beth, quero a Tina!

 

De manhã, tinha os olhos tão inchados que quase não conseguia ver. Não sem certa dificuldade, vestiu-se, desceu à cozinha, fez café e no final lavou a chávena e o pires. A ideia de comida bastava para lhe provocar náuseas e não merecia a pena ocupar a máquina de lavar loiça apenas com as duas pequenas peças.

 

Em seguida, enfiou o casaco de esquiar e contornou a casa até à janela da ala sul que dava para a área da família da cozinha. Havia, com efeito, pegadas nesse espaço, provenientes do bosque, aonde tinham depois regressado. Não subsistiam dúvidas de que Erich se entretivera a observá-la através da vidraça, sem que ela se desse conta.

 

O xerife telefonou mais uma vez, ao meio-dia:

 

O doutor Philstrom ouviu a gravação da conversa e aconselha a correr o risco de tornar as buscas públicas. No entanto, a decisão final pertence-lhe, Mistress Krueger.

 

Preciso de pensar um pouco replicou Jenny, disposta a consultar Mark.

 

Rooney apareceu às duas e sugeriu:

 

Quer coser um pouco, para se distrair?

 

Pois sim.

 

Puxou placidamente uma cadeira para as proximidades do fogão e pegou na colcha em que trabalhava.

 

Não tardaremos a vê-lo declarou com desprendimento.

 

A quem?

 

A Erich, claro. Como sabe, Caroline prometeu estar sempre presente no aniversário dele. Desde que ela morreu, há vinte e seis anos, Erich não tem faltado uma única vez nessa data. Põe-se às voltas por aí, como se procurasse alguma coisa.

 

E crê que este ano também virá?

 

Seria o primeiro em que faltaria.

 

Agradecia que não falasse disso a ninguém. Nem mesmo a Clyde.

 

Jenny nem a Mark quis confiar a informação, e quando ele a aconselhou a deixar o xerife divulgar o assunto, recusou. Todavia, ante a insistência dele, transigiu parcialmente:

 

Aguardemos mais uma semana.

 

Assim, o prazo expiraria a 9 de Março. E o aniversário de Erich era no dia anterior.

 

Ele não faltaria, a 8 de Março. Jenny estava convencida disso. Se o xerife e Mark suspeitassem da sua vinda, decerto insistiriam em ocultar polícias na herdade e Erich inteirar-se-ia.

 

Se Beth e Tina ainda viviam, seria a última oportunidade para as recuperar, pois ele estava a afastar-se, decisiva e irremediavelmente, da realidade.

 

Na semana seguinte, Jenny viveu numa espécie de transe, com todos os pensamentos concentrados numa prece contínua, para o que recorreu ao rosário que pertencera a Nana.

 

Os dias sucediam-se. O segundo... o terceiro... o quarto... o quinto... o sexto... Oxalá não voltasse a nevar. Se as estradas ficassem intransitáveis... O sétimo... O telefone tocou naquela manhã. Era Hartley, de Nova Iorque.

 

Há muito que não tinha notícias suas, Jenny. Como estão as pequenas?

 

Óptimas.

 

Lamento incomodá-la, mas surgiu-nos um problema complicado. Lembra-se do Wellington Trust, que comprou A Safra no Minnesota e Primavera na Herdade, por quantias substanciais?

 

Perfeitamente.

 

Quando procediam à limpeza das telas, descobriram o nome de Caroline Bonardi por baixo do de Erich. Trata-se, pois, de falsificação de assinatura e vai rebentar um escândalo terrível. A administração do Wellington Trust reúne-se de emergência amanhã à tarde e convocámos uma conferência de imprensa a seguir. Receio que, à noite, os jornais publiquem notícias pouco satisfatórias para o seu marido.

 

Tem de evitar que tal aconteça!

 

Mas como? A falsificação de objectos de arte é um delito extremamente grave. Quando se pagam somas quase astronómicas a um novo artista, que, graças a isso, atinge notoriedade a nível nacional, é impossível guardar segredo. Tenho muita pena, mas o assunto encontra-se fora das minhas mãos. Para já, desenrolam-se investigações para averiguar quem é essa Caroline Bonardi.

 

Bem, informarei Erich. Obrigada, Mister Hartley. Jenny conservou o olhar fixo no auscultador por um longo momento. De facto, não havia a menor possibilidade de impedir que a falsificação fosse divulgada publicamente. Os repórteres acudiriam à herdade para entrevistar Erich, e não seria necessário empregar grandes esforços para descobrir que Caroline Bonardi era filha do pintor Everett Bonardi e mãe de Erich Krueger. E, após um exame minucioso às telas, apurariam que todas tinham mais de vinte e cinco anos de existência.

 

Deitou-se cedo, esperançada em que Erich preferisse aparecer durante a noite. Tomou banho como na primeira vez na mansão, com a diferença de que agora verteu uma quantidade apreciável de sais de pinho na banheira, e a fragrância inundou o quarto. Em seguida, vestiu a camisa de dormir água-marinha e olhou em volta. Não devia haver nada fora do seu lugar, para não perturbar a sensação de ordem que predominava na mente do marido.

 

Por fim, deitou-se. O walkie-talkie que o xerife lhe fornecera e ela costumava guardar na algibeira das calças jeans produzia um certo vulto no travesseiro, pelo que o transferiu para a gaveta da mesa-de-cabeceira.

 

Conservava os ouvidos apurados, enquanto o relógio ia assinalando a sucessão das horas. Se ele entrasse na mansão, o odor de pinho não deixaria de o atrair ao quarto.

 

No entanto, quando surgiram os primeiros clarões do novo dia continuava a não haver sinais da sua presença. Jenny manteve-se na cama até às oito horas. O despontar do dia apenas conseguiu aumentar-lhe o terror. Na verdade, persuadira-se de que ouviria os passos dele durante a noite, a porta do quarto começaria a abrir-se e Erich surgiria à procura dela à procura de Caroline.

 

Agora restavam-lhe unicamente as horas até ao noticiário da noite.

 

O céu apresentava-se encoberto, porém a rádio não anunciou neve prevista para aquele dia. Jenny não sabia o que devia vestir, pois Erich tornara-se particularmente desconfiado. Se se lhe apresentasse numa indumentária diferente da camisola de lã e calça de ganga, acusá-la-ia de estar à espera de outro homem.

 

Quase perdera o hábito de se ver ao espelho. Todavia, naquela manhã, observou-se atentamente e viu, alarmada, os malares proeminentes, olhos esgazeados e cabelos descuidados. Decidiu corrigir um pouco o seu aspecto geral, após o que se dirigiu ao piso térreo, a fim de inspeccionar todos os aposentos.

 

Por volta do meio-dia, as nuvens tornaram-se ainda mais ameaçadoras e o vento aumentou de intensidade, produzindo silvos ominosos. Ela movia-se de janela para janela, para observar o bosque e a estrada que conduzia à margem do rio, mas não vislumbrava vivalma.

 

Às quatro, o pessoal começou a suspender o trabalho e retirar-se.

 

Às cinco, Jenny ligou a telefonia para ouvir o noticiário. A voz incisiva do jornalista de serviço anunciou novos cortes no orçamento nacional, mais uma cimeira em Genebra e a tentativa de assassínio do novo presidente do Irão.

 

"Vamos agora ler uma notícia acabada de chegar à nossa redacção. O Wellington Trust revelou uma espectacular falsificação no campo da arte. O conhecido pintor do Minnesota, Erich Krueger, considerado o mais importante artista americano da sua especialidade depois de Andrew Wyeth, intitulou-se indevidamente autor das obras que expôs. Na realidade, foram executadas por Caroline Bonardi, filha do conhecido pintor Everett Bonardi e mãe do próprio Erich Krueger."

 

Apressou-se a desligar o aparelho. O telefone não tardaria a tocar e, dentro de poucas horas, os repórteres acudiriam, ansiosos por averiguar pormenores. Erich vê-los-ia, talvez ouvisse o noticiário e poria termo a tudo, vingando-se de Jenny da maneira que sabia ser a mais excruciante, se porventura não o fizera já.

 

Invadiu-a um desespero irresistível. Que medidas podia tomar para o evitar? Sem saber concretamente o que fazia, entrou na sala e fixou o olhar no retrato de Caroline, para, em obediência a um instinto indefinido, o observar com curiosidade: Caroline sentada no terraço, com a capa verde sobre os ombros, umas pequenas madeixas suspensas sobre a fronte, o garoto, Erich, que corria para ela...

 

O garoto que corria para ela...

 

Erich encontrava-se algures no bosque. Jenny tinha a certeza absoluta disso. E havia apenas uma maneira de o obrigar a sair de lá.

 

O xaile que Rooney confeccionara e lhe oferecera... Na verdade, não era suficientemente grande, mas se lhe juntasse algo... Recordou-se de ter visto numa arca um cobertor da tropa que pertencera a John Krueger e era quase da mesma cor da capa.

 

Subiu a escada apressadamente em direcção ao sótão e encontrou-o sem dificuldade. Tornou a descer, muniu-se de uma tesoura para recortar uma abertura circular no meio do cobertor, a fim de enfiar a cabeça, e ajeitou-o em volta do corpo, após o que colocou o xaile sobre os ombros.

 

O cabelo... Agora, era mais comprido que o de Caroline, porém no retrato esta tinha-o reunido com um nó na nuca, pelo que tratou de introduzir as alterações necessárias no seu.

 

Por último, postou-se junto da porta oeste do terraço. "Agora, sou Caroline", asseverou a si própria. "Caminharei e sentar-me-ei como ela, para contemplar o pôr do Sol, como era seu hábito. Vou aguardar a chegada do meu filho, que correrá para mim."

 

Fechou a porta atrás de si e estremeceu levemente ao contacto com o vento glacial. Em seguida, rectificou a posição da cadeira de balouço e sentou-se.

 

Depois de se certificar de que todos os pormenores correspondiam aos da tela, começou a balouçar-se lentamente.

 

Após longos e intermináveis minutos, ouviu uma espécie de gemido, que foi aumentando de intensidade, até se converter num grito agudo:

 

Afasta-te, demónio da sepultura!... Foge!... Desaparece!...

 

Um vulto emergia do bosque. Um vulto que segurava uma espingarda, envolto numa capa verde-escura, de cabelo preto comprido sacudido pelo vento um vulto de olhar arregalado e rosto dominado por um esgar de medo...

 

Jenny levantou-se com prontidão. Acto contínuo, o vulto estacou e apontou a espingarda.

 

Não dispares, Erich!

 

Ela correu para a porta e tentou abri-la, mas não conseguiu. O fecho trancara-se automaticamente por dentro. Levantando um pouco a capa para não tropeçar, principiou a correr em ziguezague através do campo, ao mesmo tempo que detectava passos no seu encalço e, quase imediatamente, detonações. Notou um ardor súbito no ombro e um líquido morno deslizou pelo braço.

 

Entretanto, o uivo perseguia-a:

 

Demónio da sepultura!... Demónio!...

 

Avistou a porta do estábulo do gado à sua direita, onde Erich não voltara a entrar desde a morte de Caroline. Freneticamente, actuando quase apenas por efeito do instinto, abriu-a e achou-se na antecâmara onde se armazenavam as tinas do leite.

 

Ele achava-se cada vez mais perto e Jenny transpôs a antecâmara e passou à área principal, mais espaçosa. As vacas já haviam regressado da pastagem e sido ordenhadas, limitando-se agora a comer a palha deixada nas gamelas.

 

Ela continuou a correr cegamente em direcção à extremidade oposta, onde se situava a tina maior e instalações para os novos bezerros. Reconhecendo que chegara o momento da verdade, voltou-se para enfrentar Erich.

 

Ele encontrava-se a menos de três metros e deteve-se, para começar a rir. Em seguida, ergueu a espingarda e apontou-a com o mesmo cuidado que revelara no dia em que abatera o cachorro pertencente a Joe. Olharam-se em silêncio por instantes imagens idênticas, de capa verde e cabelo preto comprido.

 

Demónio!... Demónio!...

 

Meu Deus!... Jenny fechou os olhos.

 

Ouviu a arma explodir e um grito rouco que se converteu num gemido. Mas não brotara dos seus lábios. Descerrou as pálpebras. Era Erich que cambaleava e acabou por cair pesadamente, sangrando do nariz e boca, a peruca empapada em sangue.

 

Isto é pela Arden disse Rooney, atrás dele, baixando a espingarda.

 

Jenny ajoelhou junto do marido.

 

Erich... As pequenas estão vivas?

 

Os olhos dele estavam enevoados, mas inclinou levemente a cabeça.

 

Estão...

 

Deixaste-as com alguém?

 

Não... sós...

 

Onde?

 

Os lábios do moribundo tentaram formar palavras.

 

Estão... Pegou na mão dela debilmente. Lamento, mamã... Tenho muita pena, mamã... Não... queria... fazer-te... mal...

 

Cerrou as pálpebras para sempre. O corpo sofreu uma derradeira convulsão, e Jenny sentiu os dedos largarem-lhe a mão.

 

A casa estava cheia de gente, mas ela via todas as pessoas como sombras numa tela. O xerife Gunderson, o pessoal do gabinete do coroner, que acabava de marcar a giz a posição do corpo no chão e o removia, os repórteres que haviam acudido para "cobrir" uma simples falsificação de quadros e terminavam por recolher elementos de uma história muito mais sensacional. Fora-lhes permitido fotografar Erich, ainda com o disfarce, e as admiráveis obras de Caroline, juntamente com os quadros produzidos pela mente torturada do filho.

 

Quanto maior a urgência que imprimirmos às pesquisas mais elevado o número de pessoas que tentarão colaborar lembrou o xerife.

 

Mark também estava presente. Foi ele que rasgou o cobertor e a blusa de Jenny, para desinfectar e aplicar uma compressa no ferimento do ombro.

 

Chega, para as primeiras impressões. A bala atingiu-a apenas de raspão.

 

Encontraram o carro em que Erich se transportara num dos caminhos da herdade em regra utilizados pelos tractores. Fora alugado em Duluth, umas seis horas antes, e ele separara-se das garotas havia pelo menos treze. Mas onde as deixara?

 

Mais tarde, compareceram Joe e Maude Ekers, a qual se acercou de Jenny e murmurou simplesmente:

 

Lastimo imenso.

 

Minutos depois, ela ouviu-a em actividade na cozinha e, em seguida, notou o odor activo de café.

 

O pastor Barstrom, que também apareceu para apresentar condolências, comentou:

 

Joe Krueger preocupava-se muito com o filho, mas nunca explicou o motivo. De resto, à medida que crescia, Erich parecia comportar-se sem margem para reparos.

 

O último boletim meteorológico anunciava a aproximação de uma tempestade no Minnesota e Dacota. Uma tempestade... As filhas estariam devidamente protegidas?

 

Tem de me ajudar, Mistress Krueger solicitou Clyde. Eles falam de voltar a internar Rooney.

 

Ela salvou-me a vida. Jenny emergiu finalmente da letargia. Se não abatesse Erich, ele matava-me, sem margem para dúvidas.

 

Declarou a um dos repórteres que o fez pela Arden. Se tornam a interná-la, não resiste. Ela precisa de mim. E eu dela.

 

Levantou-se, fez uma pausa para se apoiar à parede e procurou o xerife, que de momento estava ao telefone.

 

Imprimam mais folhetos. Afixem-nos em todos os supermercados e gasolineiras. Mesmo do outro lado da fronteira, no Canadá.

 

Quando desligou, ela perguntou:

 

Tencionam voltar a internar Rooney?

 

Tente compreender, por favor. Ela matou Erich premeditadamente. Aguardava-o com uma espingarda.

 

Queria proteger-me. Sabia o perigo que eu corria. Salvou-me a vida.

 

Está bem. Verei o que posso fazer.

 

Sem proferir palavra, Jenny pousou o braço em torno dos ombros da mulher. Sabia que Rooney amara Erich desde o momento em que nascera. Apesar do que afirmara, não o matara por causa de Arden. Fizera-o para lhe salvar a vida. "Eu não conseguiria abatê-lo a sangue-frio", reconhecia intimamente. "E ela tão-pouco."

 

A noite escoava-se com lentidão, enquanto todas as propriedades eram revistadas mais uma vez. Dúzias de informações chegavam a cada momento e começara a nevar.

 

Maude fez sanduíches, mas Jenny não conseguia tragar qualquer espécie de alimento. Por último, não sem esforço, ingeriu um pouco de consommé. À meia-noite, Clyde foi levar Rooney a casa. Pouco depois, Maude e Joe retiraram-se igualmente.

 

Vou estar no meu gabinete toda a noite anunciou o xerife. Se houver alguma novidade, telefono.

 

Por fim, apenas ficou Mark.

 

Deve estar extenuado observou Jenny. Vá descansar.

 

Todavia, ele não respondeu. Ao invés, foi buscar cobertores e almofadas e obrigou-a a deitar-se no sofá junto do fogão, cujo lume espevitou, após o que se acomodou numa poltrona.

 

A uma hora indeterminada da noite, ela adormeceu, porém o latejar do ferimento não tardou a acordá-la e descobriu que Mark a rodeava com o braço e lhe apoiara a cabeça ao ombro.

 

Havia algo que a preocupava, embora não conseguisse definir de que se tratava. Qualquer coisa no subconsciente tentava surgir à superfície, uma coisa desesperadamente importante que persistia em se lhe escapar. Relacionava-se com a tela em que Erich a observava da janela.

 

Às sete horas, Mark anunciou:

 

Vou fazer café e torradas.

 

Ela aproveitou para subir ao quarto e reanimar-se um pouco debaixo do chuveiro, vendo-se obrigada a cerrar os dentes de dor, se a água atingia o ferimento do ombro.

 

Quando voltou a descer, Rooney e Clyde acabavam de chegar e tomaram café juntos, enquanto a televisão emitia o noticiário matinal. As fotografias de Beth e Tina apareceriam nos programas Hoje e Bom Dia, América.

 

Quer coser um pouco, Jenny? perguntou Rooney.

 

Desculpe, mas não seria capaz.

 

Estamos a fazer colchas para as camas das pequenas explicou a Mark. Estou certa de que não tardarão a encontrá-las.

 

Por favor, Rooney! Clyde tentou acalmá-la.

 

E as colchas vão ficar admiráveis... Ah, aí vêm as notícias!

 

"A falsificação de quadros que, ontem, revolucionou o mundo da arte, não passa, afinal, de uma pequena parte de uma história mais dramática. Erich Krueger..."

 

O rosto dele surgiu no écran. Tratava-se da mesma fotografia da brochura distribuída na galeria de arte e seguiram-se imagens da herdade e do corpo transferido para a ambulância.

 

Depois, apareceram os semblantes sorridentes de Beth e Tina.

 

"Hoje de manhã, estas duas crianças continuam em parte incerta. Pouco antes de morrer, Erich Krueger disse à esposa que ainda viviam, embora a polícia manifeste reservas quanto ao grau de credibilidade que essas palavras merecem. Com efeito, a última tela que ele pintou parece sugerir que elas morreram."

 

Todo o pequeno écran foi ocupado pelo derradeiro trabalho de Erich. Jenny olhou os pequenos corpos inertes, a sua própria imagem de expressão angustiada e Erich a espreitar da janela, com um esgar sádico, enquanto desviava o cortinado.

 

Mark levantou-se para desligar o aparelho.

 

Recomendei a Gunderson que não os deixasse tirar fotografias na cabana.

 

Deviam ter-me mostrado a tela! bradou Rooney, que também se pusera de pé. Não estão a compreender? Os cortinados... Os cortinados azuis!

 

Os cortinados! Era isso que se agitava num recanto do espírito de Jenny. Rooney a depositar na mesa da cozinha os restos de tecido que encontrara no sótão.

 

Onde os pôs, Rooney?

 

Todos formulavam a mesma pergunta. Onde? A mulher, porém, totalmente consciente da preciosa informação que possuía, puxava o braço de Mark com insistência.

 

Você sabe! Erich costumava ir consigo à cabana de pesca do seu pai, Mark. O quarto de hóspedes não tinha cortinados e ele queixava-se de que entrava muita luz. Eu ofereci-lhe esses.

 

Elas poderão estar lá? balbuciou Jenny.

 

É possível. Há mais de um ano que eu e o meu pai não a visitamos. Erich tinha uma chave.

 

Onde é?

 

Na área de Duluth, numa pequena ilha... Sim, deve ser isso... faz sentido... O pior...

 

O pior, quê? inquiriu, apercebendo-se da neve que começara a cair com intensidade.

 

Não tem aquecimento central.

 

Clyde deu forma ao receio que dominava todas as mentes:

 

A cabana não tem aquecimento central e há a possibilidade de as pobres crianças se encontrarem lá?

 

Mark precipitou-se para o telefone.

 

Trinta minutos mais tarde, o chefe da Polícia de Hathaway informava:

 

Já estão connosco.

 

Angustiada, Jenny ouviu, como num sonho, Mark perguntar:

 

Encontram-se bem?

 

Sim, mas escaparam por um triz. Krueger ameaçara castigá-las, se tentassem sair da cabana. Mas como havia muito tempo que tinha partido e fazia frio intenso, a garota mais velha resolveu arriscar-se. Conseguiu abrir a porta, e acabavam de a transpor quando chegámos. Mais meia hora, e não resistiriam, com esta tempestade. Um momento...

 

Jenny ouviu passar o auscultador a alguém e, no instante imediato, duas vozes trémulas proferiam:

 

Olá, mamã!

 

Os braços de Mark cingiram-na com firmeza, enquanto os soluços a dominavam.

 

Adoro-as, meus amores... adoro-as...

 

O mês de Abril irrompeu no Minnesota como uma divindade da abundância. A leve bruma avermelhada envolvia as árvores, em que começavam a surgir minúsculos rebentos, para ulteriormente florescerem. Um ou outro veado atravessava o bosque, enquanto faisões sobrevoavam as estradas e o gado podia permanecer mais longamente nas pastagens, pois a neve derretia-se, embora com lentidão, para permitir que a colheita da Primavera não se atrasasse.

 

Beth e Tina reataram as lições de equitação a primeira empertigada e cautelosa, enquanto a irmã estava sempre preparada para acelerar o andamento da montada. Jenny seguia ao lado de Beth na Moça de Fogo e Joe ao lado de Tina.

 

Jenny não se cansava de estar junto das filhas, para as abraçar ou escutar as confidências, ainda com uma réstia de medo.

 

O papá assustou-nos tanto... Punha as mãos na nossa cara, assim, com um olhar muito esquisito.

 

Não o fazia por mal. Era uma coisa que não podia evitar.

 

Ansiava por regressar a Nova Iorque e abandonar aquele lugar, mas o Dr. Philstrom discordou, salientando:

 

Os póneis são a melhor terapia para as suas filhas.

 

Não posso passar nem mais uma noite nesta casa.

 

No entanto, Mark apresentou a solução ideal: a antiga escola, na extermidade oeste da propriedade, que, anos atrás, ele convertera em sua habitação.

 

- Quando o meu pai se mudou para a Florida, instalei-me na residência dele e aluguei a outra casa, mas está desocupada há mais de seis meses.

 

Na verdade, era confortável, com dois quartos, uma cozinha espaçosa, uma sala acolhedora e um corredor suficientemente curto para que Jenny pudesse acudir sem demora às filhas, quando acordassem a chorar a meio da noite, devido a sonhos menos agradáveis.

 

Revelou os seus projectos para entregar a herdade à Sociedade de História, mas Mark recomendou-lhe:

 

- Pense bem, primeiro. A propriedade vale uma fortuna e você merece o direito de ficar com ela.

 

- Resta-me o suficiente, mesmo sem ela. De qualquer modo, não conseguiria continuar a viver aqui.

 

Fechou os olhos e reviu o berço no sótão, a divisória atrás da cabeceira da cama e o retrato de Caroline.

 

Rooney visitava-a com frequência, conduzindo com orgulho o carro que Clyde lhe comprara - uma Rooney resignada, que já não necessitava de permanecer em casa à espera de Arden.

 

- Uma pessoa pode aceitar tudo, se for preciso - admitia. - A pior tortura é a incerteza.

 

Entretanto, habitantes de Granite Place principiavam a aparecer. "É mais que tempo de lhe darmos as boas-vindas, Jenny." A maioria acrescentava: "Lamentamos profundamente o sucedido."

 

E levavam-lhe sementes de plantas de jardim, que ela depois embebia na terra mole e húmida.

 

O som da confortável carrinha no caminho de acesso à mansão. As filhas correndo ao encontro do "tio" Mark. A agradável percepção de que, à semelhança da terra, também se achava preparada para uma nova estação, um novo começo.

 

                                                                                            Mary Higgins Clark  

 

                      

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