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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA CASACA APERTADA / Luigi Pirandello
UMA CASACA APERTADA / Luigi Pirandello

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA CASACA APERTADA

 

Habitualmente, o professor Gori tinha muita paciência com a velha criada, que já o servia há uma vintena de anos. Naquele dia, porém, pela primeira vez na sua vida, precisava de vestir uma casaca, e estava fora de si.

Bastaria o pensamento de que uma coisa assim sem importância pudesse por em alvoroço um espírito como o seu, tão alheado de todas as frivolidades e oprimido por tantos e tão graves cuidados intelectuais, para o irritar. A irritação, depois, crescia nele ao considerar que, com este seu espírito, pudesse submeter-se a vestir aquele trajo prescrito por um uso frívolo para certas cerimónias com as quais a vida tem a ilusão de oferecer a si própria uma festa ou um divertimento.

E depois, meu Deus, com aquele corpanzil de hipopótamo, de animal antediluviano...

E bufava o professor, e fulminava com os olhos a criada, que, pequena e anafada como uma bola, contemplava beatificamente o calmeirão do amo naquele trajo de cerimónia, fora dos hábitos, sem se aperceber - a tonta! - da mortificação que deviam experimentar, em volta os velhos e honestos móveis vulgares e os pobres livros do quarto semi-obscuro e em desordem.

A casaca, escusado será dizê-lo, não pertencia ao professor Gori. Alugara-a. O caixeiro duma loja próxima trouxera-lhe a sua casa uma braçada delas, para ele escolher; e agora, com ares de correcto arbiter elegantiarum, de olhos semicerrados e um sorrisinho condescendente nos lábios, examinava-o, fazia-o voltar dum lado e doutro - pardon, pardon! - e depois concluía, sacudindo a melena que lhe caía para a testa:

- Não serve.

O professor bufava mais uma vez e limpava o suor. Já experimentara oito, nove, até lhes perdera a conta. Cada uma era mais justa que a anterior. E então o colarinho, no qual se sentia enforcado! E o peitilho, que já se lhe escapava do colete, amarfanhado! E o laço brunido, que tinha ainda de pôr e não sabia como!

Por fim, o caixeiro teve a bondade de dizer:

- Esta, esta é que está bem. Acredite, senhor Doutor, não poderíamos encontrar melhor, garanto-lho, Excelência!

O professor Gori tornou primeiro a reduzir a cinzas com um olhar a criada, para a impedir de repetir:

- Fica-lhe que nem uma luva! Nem uma luva!

Depois olhou para a casaca, em consideração da qual, sem dúvida, o caixeiro o tratava por «Excelência». A seguir, voltou-se para o rapaz e disse-lhe:

- Não tem mais nenhuma, aqui?

- Trouxe doze, senhor Doutor!

- E esta é a duodécima?

- A duodécima.

- Nesse caso não há dúvida que serve muito bem!

Ficava-lhe ainda mais apertada do que as outras. O caixeiro, um tanto sentido, concedeu:

- Está um pouco justa, mas pode servir. Se quiser ter a bondade de se ver ao espelho...

- Muito obrigado! - guinchou o professor. - Basta o espectáculo que estou proporcionando ao senhor e à minha excelentíssima criada.

O outro então, cheio de dignidade, apenas curvou a cabeça, e abalou, com as outras onze casacas.

- Mas pode-se acreditar numa coisa destas? - desabafou o professor, com um gemido raivoso, enquanto esforçava por levantar os braços.

Foi examinar um perfumado cartão de convite sobre a cómoda, e bufou mais uma vez. O convite era para as oito, em casa da noiva, na rua de Milão. Vinte minutos de caminho. E já eram sete e um quarto...

A velha criada, que fora acompanhar até à porta o caixeiro, voltou a entrar no quarto.

- Não diga nada! - impôs-lhe logo o professor. - Tente, se for capaz, acabar de me estrangular com este laço.

- Devagar, devagar... o colarinho... - recomendou-lhe a velha.

E, depois de limpar bem com um lenço as mãos trementes, iniciou a tarefa.

Reinou durante cinco minutos o silêncio:             o professor e todo o quarto em volta pareciam como suspensos, na expectativa do juízo universal.

- Conseguiu?

- Ah... - suspirou a mulher.

O professor Gori ergueu-se dum salto, gritando:

- Deixe lá! Experimento eu! Já não posso mais!

Mas, mal se pôs diante do espelho, deu em tamanhas escandescências que a pobre da velhota assustou-se. Fez a si próprio, primeiro, um rasgado cumprimento; mas, ao inclinar-se, vendo as duas abas abrirem-se e logo tornarem a fechar-se, voltou-se como um gato que sinta algum objecto preso à cauda; e, ao virar-se, zzzzs!, a casaca rasgou-se no sovaco.

Tornou-se uma fúria.

- Descoseu-se, descoseu-se apenas! - assegurou-lhe logo, acudindo, a velha criada. - Tire-a, que eu lha coso num instante!

- Mas se não tenho mais tempo! - berrou, exasperado, o professor. - Hei-de ir assim, por castigo! Assim... Quer dizer que não estenderei a mão a ninguém. Deixe-me ir!

Apertou furiosamente o laço; escondeu com o sobretudo a vergonha daquele trajo; e saiu.

 

Afinal, deveria sentir-se satisfeito, c'os diabos! Celebrava-se naquela manhã o casamento duma sua antiga aluna que lhe era muito querida: Cesária Reis, que, por seu intermédio, com aquele enlace, obtinha o prémio de tantos sacrifícios sofridos nos intermináveis anos de estudo.

O professor Gori, durante o caminho, pôs-se a pensar no curioso acaso em virtude do qual aquele casamento se celebrava. Sim, mas como se chamava, afinal, o noivo, o rico viúvo que um dia se apresentara na direcção do seu Instituto para que ele lhe indicasse uma «institutrice» para as suas filhas?

- Grimi? Griti? Não, Mitri! Sim, deve ser isso: Mitri, Mitri decerto.

Assim nascera aquele casamento. A Reis, pobre pequena, órfã de pai desde os quinze anos, tinha heroicamente sustentado a velha mãe, trabalhando como costureira e dando lições particulares: conseguira obter o diploma de professora. Ele, admirado por tamanha constância, por tamanha força de vontade, conseguira para ela um lugar em Roma, nas escolas complementares. Ao pedido daquele senhor Griti...

- Griti, Griti, é isso! Chama-se Griti. Qual Mitri!

...indicara-lhe a Reis. Passados uns dias, viu-o voltar à sua presença, aflito, atrapalhado. Cesária Reis não quisera aceitar a situação de «institutrice», em consideração da sua idade, do seu estado, da velha mãe que não podia abandonar e, principalmente, da fácil má-língua do mundo. E quem sabe com que voz, com que expressão lhe dissera estas coisas, a marota!

Linda rapariga, a Reis, e daquele género de beleza que a ele mais lhe agradava: duma beleza à qual as diuturnas dores (não era em vão que o Dr. Gori era professor de língua italiana: dizia mesmo assim «as diuturnas dores»), duma beleza à qual as diuturnas dores emprestaram a graça duma suave melancolia, uma querida e meiga nobreza.

Decerto aquele senhor Grimi...

- Parece-me que se chama assim: Grimi, agora me lembro.

Decerto aquele senhor Grimi, logo que a vira, apaixonara-se perdidamente. Coisas que acontecem, ao que dizem. E três ou quatro vezes, embora sem esperança, tornara a insistir, mas em vão; por fim, pedira-lhe a ele, ao professor Gori, suplicara-lho até, que se fizesse seu intermediário junto de Cesária, tão formosa, tão modesta e virtuosa, para que ela se tornasse, senão a «institutrice», a segunda mãe das suas pequenas. E por que não? Com muita alegria o professor Gori aceitou a missão e a Reis acedera ao pedido. E agora o casamento ia celebrar-se a despeito dos parentes do senhor... Grimi, ou Griti, ou Mitri, que se opuseram desalmadamente.

- Diabo os levem a todos! - concluiu, bufando mais uma vez, o gordo professor.

Convinha, entretanto, levar à noiva um ramo de flores. Ela rogara-lhe tanto que quisesse ser seu padrinho! Mas o professor fizera-lhe ver que, como padrinho, teria depois de lhe oferecer um presente digno da elevada condição do noivo, e não podia: em consciência, não podia. Bem bastava o sacrifício da casaca. Mas um raminho, ao menos, sim. E o professor Gori entrou, muito acanhado e hesitante, numa florista, onde lhe juntaram um grande feixe de verdura, com poucas flores e muita despesa.

Chegado à rua de Milão, viu ao fundo, diante do portão onde morava a Reis, um grupo de curiosos. Supôs que já era tarde; que já no átrio estivessem os trens para o cortejo nupcial, e que aquele povo todo se encontrasse para assistir ao desfile. Apressou o passo. Mas por que o fitariam todos aqueles sujeitos de tal modo? A casaca estava coberta pelo sobretudo. Talvez... as abas? Olhou para trás. Não: não se viam. E então? Que acontecera? Por que estaria entreaberto o portão?

O porteiro, com ar compungido, perguntou-lhe:

- Vem para o casamento, V. Ex.a?

- Sim. Fui convidado.

- Mas... sabe, o casamento já não se realiza.

- O quê?

- A pobre senhora... a mãe...

- Morreu?! - exclamou Gori, pasmado, olhando para o portão.

- Esta noite, de repente.

O professor ficou como que petrificado.

- Será possível! A mãe? A mãe da senhora D. Cesária Reis?

E lançou em volta um olhar aos curiosos agrupados diante do portão, como para ler nos olhos a confirmação da incrível notícia. O ramo de flores caiu-lhe da mão. Curvou-se para o apanhar, mas sentiu o rasgão do sovaco alargar-se mais, e ficou a meio do gesto. Meu Deus! A casaca... é verdade! A casaca para as bodas obrigada assim, agora, a comparecer diante da morte. Que fazer? Ir para cima, daquele modo ataviado? Voltar atrás? Apanhou o ramo; depois, estonteado, estendeu-o ao porteiro.

- Faça o favor: guarde-mo aqui.

E entrou. Experimentou subir aos saltos as escadas; conseguiu-o só até ao primeiro patamar. Ao último, já - maldita barriga! - não tinha mais fôlego.

 

Introduzido na salinha, surpreendeu nos que estavam lá reunidos uma certa atrapalhação, uma confusão logo reprimida, como se alguém, à sua entrada, tivesse fugido; ou como se, de repente, se tivesse cortado urna íntima conversa, muito animada.

Já atrapalhado como estava, o professor Gori parou pouco além do limiar; olhou à sua volta, perplexo; sentiu-se perdido, quase no meio dum campo inimigo. Eram todos grandes senhores, aqueles: parentes e amigos do noivo. A velha, lá no meio, era talvez a mãe; as outras duas, que pareciam solteironas, talvez, as irmãs ou as primas. Cumprimentou timidamente. (Oh, Deus! De novo a casaca...). E, curvo, como que puxado por dentro, deu mais uma olhadela em redor, como para se certificar de que ninguém tinha ouvido o crepitar do mil vezes maldito rasgão do sovaco. Ninguém respondeu ao seu cumprimento, como se o luto e a gravidade daquela hora não consentissem sequer um leve sinal de cabeça. Alguns (talvez íntimos da família) rodeavam com ar consternado um cavalheiro que o professor Gori julgou ser o noivo. Deu um suspiro de alívio e aproximou-se dele, pressuroso.

- Excelentíssimo senhor Grimi...

- Migri, se faz favor.

- É verdade, Migri... Penso no seu nome há uma hora, acredite! Dizia Grimi, Mitri, Griti... e não me lembrei de Migri! Desculpe... Eu sou o doutor Fábio Gori, deve recordar-se de mim... embora me veja agora num...

- Folgo muito, mas... - disse o outro, examinando-o com gélida altivez; depois, como lembrando-se: - Ah, Gori... já me lembro. V. Ex.a é o... quero dizer, é o autor... o autor, se quisermos, involuntário do casamento! O meu irmão contou-me...

- Como? Peço desculpa, V. Ex.a, então, é o irmão?

- Carlos Migri, às suas ordens.

- Obrigado, muito obrigado! Extraordinária parecença, palavra de honra! Desculpe, senhor Gri... ah, perdão, Migri, mas... mas esta fatalidade tão inesperada... É como V. Ex.a dizia! Eu, infelizmente... Isto é, infelizmente não, visto não ser culpa nenhuma; digamos, indirectamente, por acaso, contribuí...

Migri interrompeu-o com um gesto da mão, e levantou-se.

- Se me dá licença, quero apresentá-lo à minha mãe.

- Muita honra, muita honra!

Foi conduzido à frente da velha senhora, que cobria com a sua corpulência a metade dum grande divã, vestida de preto, com uma espécie de touca também preta à cabeça, sobre o cabelo lanoso que lhe envolvia o rosto chato, amarelento, quase de pergaminho.

- Mãe, o doutor Gori. Sabe? O que preparou o casamento de Andrea...

A velha senhora levantou as pálpebras pesadas e sonolentas, mostrando, um mais aberto do que o outro, os olhos turvos e ovais, quase sem olhar.

- Na verdade - emendou o Dr. Gori, inclinando-se, desta vez com temerosos cuidados pela sua casaca rasgada, - na verdade, não foi bem assim... Preparar, não: não... não seria a palavra que se me afigure exacta... Eu, simplesmente...

- Queria dar uma «institutrice» às minhas netas - acabou a frase a velha senhora, em voz cavernosa. - Muito bem! Assim, realmente tudo estaria certo.

- Isso mesmo... sim... - murmurou o Dr. Gori. - Conhecendo os méritos, a modéstia da senhora D. Cesária Reis.

- Ah, óptima pequena, ninguém o nega! - concordou logo, tornando a baixar as pálpebras, a velha senhora. - E nós, acredite, estamos hoje muito pesarosos...

- Que fatalidade! Assim de chofre... - exclamou Gori.

- Como se deveras Deus não quisesse - concluiu a velha.

Gori fitou-a.

- Fatalidade cruel...

Depois, circunvagando um olhar pela sala, perguntou:

- E o senhor Andrea?

Respondeu-lhe o irmão, simulando indiferença:

- Mas... não sei, estava aqui, há um instante. Talvez fosse mudar de fato.

- Ah! - exclamou então Gori, serenando de repente. - O casamento, então, sempre se realiza!?

- Não! Que está a dizer! - exclamou a velha dama, espantada e ofendida. - Valha-nos Deus! Com a morta em casa? Que disparate!

- Oooh! - fizeram eco, miando, as duas solteironas, com horror.

- Prepara-se para partir - explicou Migri. - Tinha de partir hoje mesmo para Turim com a esposa. Temos as nossas fábricas de papel, em Valsangone; é lá muito necessária a presença dele.

- E... vai partir... assim? - perguntou Gori.

- Que remédio? Senão hoje, amanhã. Convencemo-lo nós; tivemos de o convencer, coitado. Aqui, deve compreender, já não é prudente nem conveniente que ele fique.

- Com a pequena... sozinha, agora... - acrescentou a mãe com a sua voz cavernosa. - As más línguas...

- É verdade - rematou o irmão. - E os negócios também... Era um casamento...

- Precipitado! - acrescentou uma das solteironas.

- Digamos: irreflectido - procurou abrandar Migri. - Agora, esta grave desgraça dá-se fatalmente, como... sim, para dar tempo, isso mesmo. Um adiamento impõe-se... por causa do luto... e... E assim poderemos pensar, reflectir de parte a parte...

O professor Gori permaneceu calado. A atrapalhação irritante que nele provocavam aquele assunto e aquela conversa, assim suspensa toda em prudentes reticências, era a mesma que lhe causava a sua casaca apertada e rasgada. Descosidas do mesmo modo se lhe figuraram aquelas frases, e exigiam os mesmos cuidados para o rasgão secreto com que eram pronunciadas. Se se esforçassem um pouco, se as não mantivessem assim compostas e suspensas, com todas as devidas cautelas, correr-se-ia o perigo de (tal como a manga da casaca de se desprender) se abrirem e porem a nu a hipocrisia de todos aqueles senhores.

Experimentou por um momento a necessidade de se abstrair daquela opressão e também do enfado que, no entontecimento em que caíra, lhe causava a fina renda branca que debruava a gola do casaco preto da velha senhora. Todas as vezes que lhe acontecia ver uma renda branca como aquela, voltava-lhe à memória, sabe Deus porquê, a imagem dum tal Pedro Cardella, retroseiro na sua aldeia longínqua, que tinha um enorme tumor na nuca. Sentiu necessidade de bufar; deteve-se a tempo, e suspirou, como um tolo:

- Ah, sim... pobre pequena!

Respondeu um coro de comiserações pela noiva. O professor Gori sentiu-se, de chofre, como que chicoteado por elas, e perguntou, no cúmulo da irritação:

- Onde está ela? Posso vê-la?

Migri indicou-lhe uma porta da salinha:

- Aqui ao lado... Tenha a bondade...

E o professor Gori dirigiu-se para lá, furiosamente.

 

Na pequena cama branca, rigidamente estirado, o cadáver da mãe, com uma enorme touca de abas engomada na cabeça...

Não viu mais nada, no primeiro momento, o professor Gori, ao entrar. Dominado por aquela irritação crescente, de que, no atordoamento e na atrapalhação, não conseguia dar-se bem conta, com as fontes a latejarem-lhe, em lugar de comovido sentiu-se irritado, como por uma coisa realmente absurda: estúpida e cruel partida da sorte que, não, por Deus, não se devia consentir sob condição alguma.

Toda aquela rigidez da morta lhe pareceu simulada, como se a pobre velhinha se tivesse estendido voluntariamente naquela cama, com a enorme touca, para roubar, à traição, a festa preparada para a filha, e quase a tentação de lhe gritar:

- Tenha a bondade de se levantar, minha amável senhora! Não é momento próprio para brincadeiras deste género!

Cesária Reis estava no chão, caída de joelhos e feita como que num molho, agora, ao pé do leito onde jazia o cadáver da mãe; já não chorava, suspensa num atordoamento vão. Por entre o cabelo negro, despenteado, tinha algumas madeixas ainda envolvidas, desde a noite antecedente, em tirinhas de papel, para as encaracolar.

Pois bem, em lugar de piedade, experimentou também por ela despeito, o professor Gori. Cresceu nele, avassaladora, a necessidade de a erguer do chão, de a sacudir daquele entontecimento. Não se devia considerar a partida ganha pelo destino, que favorecia tão iniquamente a hipocrisia de todos aqueles senhores reunidos na outra sala!

Não, não! Tudo estava preparado, tudo em ordem; aqueles senhores ali ao lado estavam como ele de casaca, para as núpcias: ora bem, bastava um acto de vontade da parte de alguém; forçar a pobre rapariga, caída ali aos seus pés, a levantar-se; conduzi-la, arrastá-la, nem que fosse assim, meio atordoada, a concluir aquele casamento para a salvar da ruína.

Mas custava a surgir nele o acto de vontade, que, com incontestável evidência, seria contrário ao desejo de todos os parentes. Como Cesária, porém, sem mexer a cabeça, sem pestanejar, apenas levantou uma das mãos para indicar a mãe ali estendida, dizendo:

- Senhor doutor, está a ver?

O professor teve um arremesso, e:

- Sim, querida, sim! - respondeu-lhe, com uma excitação quase hostil, que impressionou a sua antiga aluna. - Mas tu, levanta-te! Não me faças baixar, porque não posso baixar-me! Levanta-te sozinha! E já, imediatamente! Vamos, faze-me este favor!

Sem querer, forçada por aquela excitação, a rapariga saiu do seu desânimo e fitou, quase espavorida, o professor.

- Porquê? - perguntou-lhe.

- Porque, minha filha... Mas levanta-te, primeiro! Digo-te que não me posso baixar, valha-me Deus! - respondeu-lhe o professor Gori.

Cesária levantou-se. Ao ver, porém, na pequena cama, o cadáver da mãe, cobriu o rosto com as mãos e desatou a soluçar com violência. Não esperava sentir-se agarrada pelos braços e sacudida aos gritos peIo velho mestre, cada vez mais excitado:

- Não! não! não! Não chores mais, agora! Tem paciência, filha! Ouve o que te digo!

Tornou a fitá-lo, quase aterrada, agora, com o pranto parado nos olhos, e disse:

- Mas como quer que não chore!

- Não deves chorar, porque não é este o momento de chorar, para ti! - cortou cerce o professor. - Tu ficaste sozinha, minha filha, e tens que te dirigir sozinha. Compreendes bem? Tens que te dirigir sozinha! Agora, sim, agora mesmo! Juntar toda a tua coragem; apertar os dentes e fazer tudo o que eu te vou dizer!

- Que é, senhor doutor?

- Nada. Tirar, primeiro, esses papelotes do cabelo.

- Meu Deus! - gemeu a rapariga, lembrando-se e levando as mãos trementes ao cabelo.

- Bravo, assim mesmo! - acossou o professor. - Depois ires para o teu quarto vestir o teu casaco da escola; pôr o chapéu e seguir-me!

- Para onde? Que está a dizer?

- Para o Registo Civil, filha!

- Professor, mas que está a dizer?

- Digo para o Registo Civil, e depois para a igreja! Porque o teu casamento tem de fazer-se, tem de fazer-se ainda hoje ou tu estás perdida! Então não vês como eu me ataviei por ti? De casaca! E um dos padrinhos serei eu, como tu desejavas! Deixa aqui a tua pobre mãezinha; esquece-te dela por um momento, e não te pareça isto um sacrilégio! Ela própria, a tua mãe, o quer! Ouve o que te digo: vai vestir-te! Eu disponho tudo, aqui ao lado, para a cerimónia: mas tem de ser já, já!

- Não... não... como poderia eu? - gritou Cesária, curvando-se cada vez mais sobre a cama da mãe e afundando a cabeça entre os braços, desesperadamente. - Impossível, senhor doutor! Para mim, tudo acabou, bem sei! Ele vai partir, nunca mais voltará, abandonar-me-á... mas eu não posso... não posso...

Gori não se deu por vencido; curvou-se para a fazer levantar e arrancá-la daquela cama; mas, mal estendeu os braços, bateu raivosamente um pé, gritando:

- Não me importo já! Se for preciso serei teu padrinho com uma só manga, mas este casamento, hoje, tem de ser feito! Compreendes tu... Olha bem para os meus olhos! Compreendes que, se deixas passar este momento, estás perdida, não é verdade? Como ficarás já sem lugar e sem mais ninguém? Queres culpar a tua mãe da tua ruína? Não desejou tanto, pobre senhora, este teu casamento? E queres tu, agora, que vá por água abaixo, por sua causa? Que fazes tu de mal? Ânimo, Cesária! Eu estou aqui: deixa-me a mim a responsabilidade do que vais fazer! Vai, vai vestir-te, filhinha, sem perder mais tempo...

E, assim dizendo, acompanhou a pequena até a porta do seu quarto, amparando-a pelos ombros. Depois tornou a atravessar o quarto mortuário, fechou a porta e entrou de novo na salinha, como um guerreiro que enfrenta a batalha.

 

- Ainda não chegou o noivo?

Os parentes e os convidados voltaram-se para o fitar, surpreendidos pelo tom imperioso da voz, e Migri perguntou com simulada aflição:

- A senhora D. Cesária sente-se mal?

- Sente-se muitíssimo bem! - respondeu-lhe o professor, fitando-o com os olhos muito abertos. - Tenho, pelo contrário, a alegria de anunciar a V.as Ex.as que se me proporcionou a felicidade de a convencer a dominar-se por um momento, e a sufocar dentro de si a angústia. Cá estamos todos; tudo está preparado; bastará - deixem-me falar! - bastará que um dos senhores... V. Ex.a, por exemplo, terá esta amabilidade (acrescentou, dirigindo-se a um dos convidados): far-me-á a subida fineza de ir numa carruagem até ao registo Civil, prevenir o oficial de que...

Um coro de vivos protestos interrompeu nesta altura o discurso do professor. Escândalo, pasmo, horror, indignação!

- Deixem-me explicar! - gritou o Dr. Gori, que dominava todos com a sua estatura. - Por que razão não se havia de realizar este casamento? Pelo luto da noiva, não é assim? Ora, se a própria noiva...

- Mas eu nunca permitirei - gritou mais alto que ele, cortando-lhe a palavra, a velha senhora, - nunca permitirei que o meu filho...

- Cumpra o seu dever e pratique uma obra de bem? - perguntou, rápido, o professor Gori, acabando ele a frase, desta vez.

- O senhor meta-se na sua vida! - veio dizer-lhe, pálido e vibrante de ira, Carlos Migri, em defesa da mãe.

- Desculpe! Imiscuo-me nisto - retorquiu logo o Dr. Gori - porque sei que V. Ex.a é homem de bem, senhor Grimi...

- Migri, por favor!

- Migri, Migri, e compreenderá que não é nem lícito nem honesto subtrair-se às extremas exigências duma situação como esta. É preciso sermos mais fortes do que a desgraça que atinge uma pobre rapariga, e salvá-la! Pode porventura ficar sozinha, assim, sem ajuda, sem amparo e sem situação alguma, já? Diga-o V. Ex.a! Não: este casamento deve fazer-se apesar da desgraça e apesar da... tenham paciência!

Interrompeu-se, enfurecido e a bufar: enfiou uma das mãos sob a manga do sobretudo; agarrou a manga da casaca e, com um arranco violento, puxou-a para fora e atirou-a ao ar. Todos riram, sem querer, àquele inesperado foguete, de novo género, enquanto o professor, com um grande suspiro de alívio, continuava:

- E apesar desta manga, que me atormentou até agora!

- V. Ex.a está a brincar! - disse, recompondo-se, Carlos Migri.

- Não senhor, não estou a brincar: descosera-se de verdade.

- Está a brincar, sim! Isto é uma violência!

- A que o caso pede!

- Ou o interesse! Digo-lhe que não é possível, nestas condições...

Por felicidade sobreveio o noivo.

- Não! Não! Andrea, não! - gritaram-lhe logo as vozes, dum lado e doutro.

Mas o professor Gori dominou-as, avançando para Andrea Migri.

- Resolva o senhor! Deixem-me falar! Trata-se do seguinte: convenci a senhora D. Cesária Reis a dominar-se, a vencer-se, considerando a gravidade da situação em que V. Ex.a, meu caro senhor, a pôs e a deixaria. Se V. Ex.a concordar, podia-se, sem ar de festividade algum, caladinhos, num carro fechado, correr para o Registo Civil, e celebrar imediatamente o casamento... Tenho a esperança de que V. Ex.a não quererá recusar-se. Mas diga, diga...

Andrea Migri, apanhado assim de improviso, fitou primeiro o professor Gori, depois os outros, e por fim respondeu, um tanto hesitante:

- Mas... eu cá por mim, se Cesária estiver disposta...

- Está disposta, está! - gritou Gori, dominando com o seu vozeirão a desaprovação dos outros. - Eis uma palavra que sai do coração! Venha, portanto, venha comigo, corramos para o Registo Civil, meu caro senhor!

Agarrou pelo braço o tal convidado a quem se dirigira da primeira vez; acompanhou-o até à porta. Na salinha de entrada viu uma quantidade de magníficos cestos de flores chegados como presente para o casamento, e debruçou-se da porta da sala para chamar o noivo e livrá-lo dos parentes peçonhentos, que já o circundavam.

- Senhor Migri, senhor Andrea Migri, tenha a bondade! Venha cá...

O noivo acorreu.

- Interpretemos o sentimento da pobre pequena. Todas estas flores, para a morta... ajude-me!

Pegou em dois cestos e tornou a entrar assim na salinha, segurando-os triunfalmente, rumo ao quarto fúnebre. O noivo seguia-o, compungido, com mais dois cestos. Foi uma subitânea mudança da festa. Numerosos convidados correram para a salinha, a buscar mais cestos, e a levá-los em procissão.

- As flores, para a morta; muito bem, as flores são para a morta!

Pouco depois, Cesária entrou na sala, muitíssimo pálida, com o modesto casaco preto que usava para ir para a escola, o cabelo ligeiramente penteado, tremendo no esforço que fazia sobre si própria para conter-se.

Logo o noivo correu ao seu encontro e a acolheu nos braços, piedosamente. Todos permaneciam calados. O professor Gori, com os olhos rasos de lágrimas, pediu a três daqueles cavalheiros que seguissem com ele e os noivos, para serem padrinhos do casamento, e puseram-se todos a caminho, em silêncio.

A mãe, o irmão, as solteironas, os convidados que tinham ficado na salinha, recomeçaram imediatamente a desabafar a sua indignação, travada por um momento, à aparição de Cesária. Felizmente que a bondosa mãe, no quarto ao lado, no meio das flores, já não podia vir esta boa gente, que se declarava justamente indignada por tamanha irreverência diante da sua morte!

Mas o professor Gori, durante o caminho, pensando no que, sem dúvida alguma, naquele momento, se dizia a respeito dele na salinha, ficou como que aparvalhado e chegou ao Registo Civil, como um bêbado: tanto que, não se lembrando da manga da casaca que arrancara, tirou, como os outros, o sobretudo.

- Senhor doutor!

- Ah, sim, é verdade! Valha-me Nossa Senhora! - exclamou e tornou a enfiá-lo, apressadamente.

Até a própria Cesária sorriu. Mas o doutor Gori, se tinha, de certo modo, reanimado, dizendo a si próprio que, afinal, nunca mais voltaria a achar-se no meio daquelas pessoas, não pode rir-se com aquilo. Tinha de voltar lá, forçosamente, agora, por causa daquela manga, que era necessário devolver, mais a casaca, ao lojista onde a alugara.

A assinatura? Que assinatura? Tem razão, sim! Tinha de pôr a sua assinatura, como testemunha. Onde?

Despachada apressadamente a outra função na igreja, os noivos e os padrinhos voltaram para casa.

Foram acolhidos com o mesmo silêncio glacial.

O professor Gori, tentando fazer-se o mais pequeno possível, olhou em redor, pela salinha e, dirigindo-se a um dos convidados, com o dedo sobre os lábios, rogou:

- Baixo, falemos baixo!... Não me saberia dizer V. Ex.a, por grande favor, onde teria ido parar a tal manga da minha casaca, que atirei fora há pouco?

E, envolvendo-a, pouco depois, num jornal e esgueirando-se para fora de casa sem se despedir de ninguém, às escondidas, pôs-se a considerar que, afinal, ele devia só à manga da casaca apertada a bela vitória que conseguira naquele dia sobre o destino, porque, se aquela casaca, com a manga descosida no sovaco, não tivesse despertado nele tamanha irritação, ele, na habitual comodidade dos seus fatos de todos os dias, largos e puídos, diante da desventura daquela morte súbita, ter-se-ia afrouxado e abandonado sem mais, como um parvo, à comoção, a uma inerte piedade pela sorte infeliz da sua pobre aluna. Enfurecido por causa daquela casaca tão apertada, pelo contrário, encontrara, na irritação, a coragem de se revoltar e de triunfar.

 

                                                                                Luigi Pirandello  

 

                      

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