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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RESSURREIÇÃO DOS DEUSES / Dimitri Merejkovski
A RESSURREIÇÃO DOS DEUSES / Dimitri Merejkovski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                           A DIABINHA BRANCA

"Quando os habitantes da cidade de Sienna encontraram numas escavações a estátua da Deusa Vénus, ficaram loucos de alegria e foram instalá-la no centro da grande praça, por cima da FONTE GAIA - "a alegre nascente".

De todos os lados o povo acorria para a admirar; até que um dia, no tempo da guerra com Florença, numa reunião de governadores, um destes ergueu-se e disse: - "Cidadãos, como a Igreja cristã proíbe o culto dos falsos deuses, suspeito que as derrotas que temos sofrido são devidas a esta estátua que, tão levianamente, erguemos no meio da praça; é um castigo de Deus! Conjuro-vos a despedaçá-la e a ir enterrar os destroços na terra dos Florentinos, a fim de atrair sobre eles a cólera divina."

E os cidadãos de Sienna assim fizeram.

               Extraído do Diário de Lourenço Ghiberti

 

 

 

 

Ao lado da igreja de Or-San-Michel, em Florença, estavam instalados os depósitos de mercadorias da corporação dos tintureiros. Eram construções pesadas, com telheiros de saliências irregulares que atingiam quase as casas fronteiras, e com tectos tão próximos uns dos outros que mal se divisava, pelos interstícios, uma estreita nesga do céu. Mesmo em dias de sol, a rua era sempre sombria. Sobre prateleiras, à entrada das lojas, havia amostras de tecidos de lã, vindos de outros países e tintos em Florença, de lilás ou azul-claro. Na valeta, ao meio da rua pavimentada de grandes lajes, corriam, em veios de variegadas cores, os líquidos despejados das cubas dos tintureiros. Por cima das portas dos principais armazéns ou fondachi, viam-se escudos ostentando, em campo vermelho, uma águia sobre um fardo de lã branca, brasão de armas da corporação dos tintureiros pertencentes à Grande Companhia de Galimalal.

Num desses fondachi, sentado a uma mesa carregada de livros de contas e de pesados maços de contratos jurídicos, pontificava o rico mercador florentino messer Cipriano Bonaccorsi, um dos cônsules da nobre arte de Galimala.

Num dia frio de Março, no meio da exalação húmida que subia dos subterrâneos atochados de mercadorias, o velho tiritava, aconchegando-se numa peliça parda, já muito rapada e rota nos cotovelos.

Com uma pena de pato atrás da orelha, Bonaccorsi, simulando indiferença e despreocupação, percorria muito atento, com os seus olhos de míope, a que nada escapava, as folhas de pergaminho do enorme livro de contas dividido em colunas horizontais e verticais, no qual se lia dum lado o "deve" e do outro o "haver". A letra dos registos era redonda e regular. Na primeira página havia, em grandes caracteres, a seguinte inscrição: "Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Virgem Maria, começou a escriturar-se este livro de contas no ano do Senhor de 1494".

Depois de ter recapitulado os últimos lançamentos, messer Cipriano recostou-se fatigado ao espaldar da cadeira e, cerrando os olhos, começou a meditar numa carta de negócios que precisava escrever ao agente principal da feira de panos de Montpellier.

Nesta altura, alguém entrou no armazém. Bonaccorsi abriu os olhos e reconheceu Grillo, um aldeão a quem arrendara a terra de semeadura e as vinhas da sua propriedade de São Gervásio, no vale de Mugnone.

Grillo, que o saudou ao chegar, trazia um cabaz cheio de ovos bem acomodados em palha, e, presos da cintura, amarrados com as patas para o ar, dois pequenos galos vivos.

- Que Vossa Senhoria me permita esta lembrança para a festa da

Páscoa: estes ovos e estes franganotes - disse modestamente, depois dum silêncio. E piscava maliciosamente os olhitos verdes, num jeito que mais vincava em redor das órbitas as rugas da sua epiderme crestada pelo sol e pelo ar livre.

Bonaccorsi, depois de ter agradecido ao velho campónio, e de se ter informado da sua saúde, quis logo saber notícias sobre o trabalho de que o encarregara.

- Então, está tudo em ordem? Julgas que os teus homens acabarão no prazo marcado?

 

1 O comércio de panos estrangeiros na república florentina era exercido por vinte negociantes (cônsules), que constituíam a "Companhia de Galimala".

 

Grillo suspirou fundo e, encostado ao cajado que trazia numa das mãos, ficou-se um momento a reflectir.

- Está tudo a postos, tenho gente suficiente. Contudo, há uma coisa que vos queria dizer, messer: não seria melhor esperar?

- Esperar? Mas tu mesmo eras da opinião de que não havia tempo a perder, não fosse outro ter a mesma ideia...

- Tudo isso é verdade, mas que quereis? Quando penso nisto sinto- me inquieto. Está à porta a Semana Santa, a Quaresma, vamos cometer um grande pecado...

- Com o pecado não te preocupes; esse, tomo-o eu sobre mim. Nada receies que eu não te trairei. O que é necessário é encontrar qualquer coisa. Que te parece?

- Sobre isso não tenhais dúvidas. Há sinais que não falham; já os nossos avós conheciam essa colina que fica atrás da "Caverna Negra", e ainda há tempos, quando lá andavam cavando um poço, viram sair da greda um diabo todo inteirinho.

- Um diabo? Conta-me isso, homem.

- Sim, messer, um diabo de cobre, autêntico, com chifres, com pés de bode, ferrados, e um focinho... um focinho mais folgazão... até parecia rir, dando estalos com os dedos e saltando sobre um dos pés. Tinha o corpo todo coberto de azebre, de velho que era!

- E que lhe fizeram?

- Fundiram com ele um sino para a nova capela do arcanjo S. Miguel.

Nesta altura messer Cipriano não ocultou o seu agastamento:

- Por que não me preveniste, Grillo?

- Estáveis vós em Sienna, a negócios.

- Podias ter-me escrito! Eu teria vindo, ou mandado alguém, e teria dado o que me pedissem. Em vez de um, teria mandado fundir dez sinos. Imbecis! Um fauno bailarino, que era talvez obra do velho Scopas, o grande escultor da Hélade!

- Decerto que são estúpidos, mas não vos zangueis, messer, foram bem castigados; desde que o sino se colocou na torre, vai para dois anos, que entrou o bicho nas maçãs e nas cerejas, matou as flores nos jardins, e a colheita da azeitona tem sido uma desgraça. Além disso, não se pode dizer que tenha lá uma bonita voz, o tal sino.

- Então, o que tem? Não lhe achas bom timbre?

- Não sei como dizer-vos... Não é bem o som que reconforta o coração de um crente, não nos fala ao sentimento! E qualquer coisa que se balouça no ar... insensatamente. Tinha de ser assim. Fazer um sino com um diabo!

E aquela mão de mármore que encontraram o ano passado junto do monte do moleiro?! Quantas desgraças nos tem trazido! Deus se amerceie de nós. Sinto calafrios só de pensar nestas coisas.

- Conta-me, Grillo, como descobriram a mão?

- Olhe, messer, foi na véspera de S. Martinho, à hora da ceia. A ama tinha acabado de pôr a mesa, quando Zaccheo, um dos meus jornaleiros, me entrou de roldão pelo quarto.

"Senhor!", balbuciava ele, pálido e transtornado a bater os dentes de terror.

"Valha-me Deus, homem, o que é isso?”

"Uma coisa extraordinária, senhor; um cadáver que acaba de aparecer no campo, debaixo de um vaso de terra; se não acreditais, vinde ver, e podereis verificar com os vossos olhos!...”

"Pegámos nas lanternas e partimos para o campo. Era já escuro. A Lua assomava por detrás das árvores. Vimos logo o vaso e, ao luar, entre torrões de terra remexida, qualquer coisa que alvejava.

"Abaixei-me e vi a sair da terra uma mão muito branca, como as das meninas da cidade, com os dedos muito afilados. Mergulhei a lanterna para ver melhor, mas eis que a mão começa a mexer e a chamar-me com o dedo.

"Então, senti as pernas a tremer e não me contive, desatei a gritar. E vai daí monna Bonda, a velhota que é bruxa e parteira (e ainda rija, benza-a Deus), que nos diz: "De que tendes medo, patetas, não vedes que esta mão não está viva nem morta, mas que é simplesmente de pedra?" E, segurando-a, puxa por ela e arranca-a da terra como se fosse uma cenoura. "Avozinha, não lhe toques que nos pode vir desgraça.

Enterremo-la outra vez, depressa, depressa..." "Não", disse ela, "vamos levá-la já à igreja para que o senhor cura lhe reze um exorcismo". Mas a maldita enganou-me; em vez de a levar à igreja, foi escondê-la num canto detrás da chaminé, numa caixa onde guarda as pomadas e as ervas.

"Por mais esforços que fizesse, monna Bonda nunca ma quis entregar. Desde então a obstinada velha começou a curar todas as doenças, milagrosamente. Aparece alguém com uma dor de dentes? Toca-lhe na cara com a mão de ídolo e o inchaço desaparece. Curava as febres, as mazelas de estômago, a epilepsia. Se uma vaca tinha dificuldade em dar à luz, batia-lhe no ventre com o talismã, e logo o vitelinho nascia...

"A fama destas maravilhas depressa correu pelos arredores e a velha encheu-se de dinheiro. Mas estava escrito que o negócio tinha de acabar mal. O padre Faustino nunca mais me deixou um momento em sossego;

na igreja repreendia-me durante o sermão; se me via na rua injuriava- me, chamando-me "homem perdido, servo do Demónio". Ameaçava-me com o bispo e de me privar dos Sacramentos. Os garotos corriam atrás de mim, apontavam-me a dedo: "Ali vai o feiticeiro, a avó é bruxa, venderam ambos a alma ao diabo!" Nunca mais dormi sossegado, até em sonhos a maldita me atormentava. Mas um dia pensei: "Isto, para brincadeira, já basta!" Levantei-me cedo, antes da aurora, e enquanto a velha tinha ido ao campo colher as ervas que se devem apanhar ainda rociadas de orvalho, fui ao esconderijo, roubei a mão e vim trazer-vo-la. O ferro- velho Lotto tinha-me oferecido dez soldos e de vós recebi apenas oito;

mas o que não faremos nós por Vossa Senhoria? A própria vida nós daríamos, quanto mais dois soldos! Que Deus vos proteja, a vós, a vossos filhos e netos e à Madona Angélica..."

Messer Cipriano mal escutara toda a narrativa, preocupado pela sua ideia, e voltou a perguntar-lhe:

- Julgas então, Grillo, que encontraremos alguma coisa na colina do moleiro?

- Com certeza, messer, o que é preciso, porém, é que o padre

Faustino não saiba de nada, senão vai impedir as pesquisas e fazer-me a vida negra. É capaz de amotinar o povo e não poderemos acabar o trabalho. Deus tal não permita... Agora, queria também pedir-vos outra coisa, messer Cipriano. É que intercedais por mim junto do juiz de paz!

- Ah! Já sei, por causa dessa terra que o moleiro te quer roubar?

- Sim, meu protector, o moleiro é um miserável, que nunca perde a ocasião de se apropriar das terras dos vizinhos. Eu já dei um bezerro, de presente, ao juiz; mas o moleiro foi mais esperto pois ofereceu-lhe uma vitela, e, como esta já teve descendência, é mais que certo que lhe vai dar razão! Não vos esqueçais de mim, que eu também farei o possível por levar a bom termo as nossas pesquisas. Por mais ninguém eu consentiria em carregar a minha alma com tamanho pecado.

- Fica sossegado, Grillo, o juiz é meu amigo e eu vou pedir-lhe por ti. E, agora, vai-te! Passa pela cozinha, que te dêem de comer e de beber, e ainda esta noite iremos os dois a São Gervásio.

O campónio retirou-se, fazendo muitas mesuras, e messer Cipriano encerrou-se no seu gabinete de trabalho, ao lado do armazém, local onde mais ninguém tinha acesso.

Como num museu, as paredes deste quarto estavam guarnecidas de estatuetas de mármore e de bronze; sobre prateleiras forradas de panos, moedas raras e medalhas antigas faziam um efeito maravilhoso. Também ali havia caixas com fragmentos de estátuas. O mercador florentino, por intermédio dos seus agentes, recebia antiguidades de toda a parte onde era possível encontrá-las: de Atenas, de Esmirna, de Halicarnaso, de Chipre, de Leucósia, de Rodes, do Alto Egipto, da Asia Menor...

Depois de ter estado por algum tempo embebido na contemplação das suas preciosidades, o cônsul de Galimala voltou de novo às suas preocupações comerciais e começou a escrever uma longa carta de negócios ao seu procurador em Montpellier.

 

Ao fundo do armazém, onde as mercadorias se empilhavam até ao tecto, e que era alumiado por uma lâmpada acesa diante da imagem da Madona, discorriam três adolescentes: Doffo, António e Giovanni. Doffo, o caixeiro de messer Bonaccorsi, tinha os cabelos ruivos, o nariz achatado a era de génio alegre e bondoso. António de Vinci, um jovem com ar de velho, de olhos embaciadas como os dos peixes e madeixas de cabelos crespos e negros, media desembaraçadamente uma peça de pano com uma canna, medida de comprimento florentina. Giovanni Beltraffio, estudante de Pintura chegado de Milão, devia ter cerca de dezanove anos. Tímido, com grandes olhos claros, inocentes e tristes, e um ar irresoluto, estava sentado com as pernas cruzadas em cima dum fardo de fazenda.

- Ao que nós chegámos - dizia António em voz baixa, mas num tom ameaçador. - Desenterram os antigos deuses pagãos! Lã parda escocesa: trinta e duas varas, seis palmos, oito polegadas - acrescentou dirigindo-se a Doffo, que ia registando as medidas num livro de contas.

Depois, tendo dobrado convenientemente a peça, atirou-a num gesto de cólera que não prejudicou a certeza com que ela foi cair no seu devido lugar, e, erguendo o índex num ar profético, que pretendia imitar o irmão Girolamo Savonarola, exclamou:

Gladius Dei super terram cito et velociter! S. João teve uma visão em Pathmos: um Anjo prendeu o Dragão, a antiga semente, que não é senão o diabo; carregou-o de fenos e lançou-o num abismo. Depois fechou e selou o abismo, a fim de que o diabo não pudesse enganar o mundo antes que mil anos fossem volvidos. Mas hoje os mil anos vão passados, Satã libertou-se da prisão, e os deuses, os precursores e escravos do Anticristo, quebraram o selo do Anjo e surgem da terra para seduzir as gentes. Infeliz humanidade!... Lã amarela, lisa do Brabante: dezassete varas, quatro palmos e nove polegadas.

- Julgas então que esses indícios pressagiam?... - interrogou timidamente Giovanni.

- Sim, que queres tu que seja? Temos de nos precaver; os dias vêm próximos! E agora já não desenterram apenas os antigos deuses, mas fabricam também outros novos, pelo modelo dos antigos; os escultores e os pintores estão a soldo de Moloch, ou seja do diabo. Transformaram a igreja de Deus em templo de Satanás! Sob a forma de santos e de mártires, os pintores representam os falsos deuses e expõem-nos ao culto:

em lugar de S. João Baptista, Baco; em vez da Santíssima Virgem, Vénus, a impudica. Devíamos queimar esses quadros sacrílegos e deitar as cinzas ao vento!

Uma chama de furor iluminou por um momento os olhos tristes e embaciados do fanático António; Giovanni, sem ousar contrariá-lo, calava-se, franzindo, numa contracção estéril, os sobrolhos finos de adolescente.

- António - disse por fim -, ouvi dizer que o teu primo Leonardo de Vinci recebia alunos no seu atelier. Há muito tempo já que ambiciono...

- Se queres perder a tua alma, podes ir ter com ele - interrompeu

Antonio, de mau humor.

- Porque dizes isso?

- Escuta, se bem que ele seja meu primo, e mais velho que eu dez anos, devo lembrar-te o conselho das Sagradas Escrituras: "Após a primeira e a segunda admoestações, afasta-te do herético!" Leonardo é um herético e um ateu; a sua inteligência está nubilada por um orgulho satânico; pretende, com o auxílio da matemática a da magia negra, desvendar os mistérios profundos da Natureza.

E, erguendo os olhos ao céu, pronunciou as palavras do último sermão de Savonarola:

"A ciência dos nossos dias não é mais do que loucura aos olhos do

Senhor; o inferno espera por todos esses doutores! Tutti vanno a casa del diavolo".

- Ouviste dizer, António - murmurou Giovanni -, que messer Leonardo está em Florença? Dizem que acaba de chegar de Milão.

- Para fazer o quê?

- O Duque enviou-o para se informar da possibilidade de adquirir os quadros que pertenceram a Lourenço, o Magnífico.

- Pouco me importa que ele tenha vindo - interrompeu António, voltando as costas, mal-humorado. E ia principiar a medir uma nova peça de tecido verde, quando os sinos começaram a tocar as vésperas. Doffo espreguiçou-se alegremente e arrojou o livro. O dia de trabalho acabara, fechavam os armazéns.

Giovanni saiu; por entre os telhados molhados divisava-se o céu cinzento com um leve matiz róseo, quase imperceptível.

Uma chuva miúda era como poalha no ar calmo. Duma janela aberta sobre a viela vizinha chegaram as notas de uma canção:

O vaghe montanine pastorelle!...

A voz era fresca e sonora. Giovanni compreendeu, pelo ruído regular que a acompanhava, que era uma tecedeira que cantava, sentada ao seu tear.

Muito tempo ficou imóvel, a escutar, sentindo o coração bater mais apressado, de ternura e melancolia.

Lembrou-se de que tinha chegado a Primavera; e o estribilho embalador ressoava aos seus ouvidos como o som nostálgico e longínquo da flauta dum zagal:

O vaghe montanine pastorelle!...

Depois suspirou e, furtando-se àquele encantamento, entrou na casa do cônsul de Galimala. Pela escada íngreme de corrimão carunchoso e vacilante, chegou à sala grande, que servia de biblioteca, onde Giorgio

Merula, o cronista da corte do Duque de Milão, trabalhava ainda, debruçado sobre a sua escrivaninha.

 

Merula, historiador e erudito, tinha vindo a Florença encarregado pelo seu soberano de comprar as obras preciosas da biblioteca de Lourenço de Médicis. Conforme o seu costume, hospedara-se em casa do seu amigo Cipriano Bonaccorsi, que era, como ele, grande amador de antiguidades.

Por acaso, numa estalagem da estrada de Milão, tinha encontrado

Giovanni Beltraffio, e como se desse a circunstância de precisar dum bom copista, e descobrisse em Giovanni uma letra bela e muito legível, trouxera-o consigo.

No momento em que Giovanni entrou na sala, Merula examinava cuidadosamente um manuscrito de páginas enrugadas, que parecia ser um missal ou um livro de salmos.

- Boa noite, fradinho - disse o velho gracejando; chamava-lhe assim muitas vezes, por causa da sua compostura e modéstia. - Estava com saudades tuas. Já tinha pensado: onde estará ele metido, que não aparece há tanto tempo? Andarás tu de amores com alguma rapariga? As florentinas são bem bonitas! Amar não é um pecado! Eu, por minha parte, não tenho perdido o tempo; estou certo de que nunca viste na tua vida nada mais curioso do que este pergaminho, que estou aqui a estudar e te quero mostrar. Ou melhor, talvez não te mostre; és capaz de ir dar com a língua nos dentes. Comprei-o a um ferro-velho judeu, por uma bagatela; tinha-o misturado com uma porção de ninharias sem valor; vamos, sempre to mostro. - Fez-lhe sinal com o dedo, num ar de mistério: - Chega- te aqui mais para junto da luz!

E tomando o in-fólio que estivera estudando, mostrou-lhe uma folha coberta de caracteres angulosos e esguios, como costumam ser os dos manuscritos eclesiásticos. Eram salmos e orações, com as notas do canto enormes e bastante mal desenhadas.

Abriu depois o livro noutra altura, aproximou-o da luz, ao nível dos olhos, e Giovanni pôde observar que, nos sítios onde Merula raspara os caracteres, outras letras apareciam, formando linhas quase invisíveis, vestígios desbotados de uma escrita anterior. Eram como depressões no pergaminho, fantasmas de letras, pálidas, há muito desaparecidas.

- Estás a observar? - dizia solenemente Merula. - Elas lá estão, meu filho, eu bem te dizia que o caso era divertido.

- Mas, afinal, o que significa isto?

- Ainda não estou muito certo, mas a minha opinião é que estamos em presença dos fragmentos duma velha antologia. Vamos talvez descobrir novos tesouros da poesia grega há muito perdidos e que, sem a minha intervenção, jamais veriam a luz!

E Merula explicou a sua hipótese: um frade, um copista da Idade

Média, na ânsia de aproveitar o precioso pergaminho, tinha raspado as antigas letras pagãs para escrever outras em seu lugar.

Os raios do sol que a custo se filtravam através da chuva espalhavam pelo aposento uma claridade vaga e rosada, e, nesse reflexo, as sombras das antigas letras ressaltavam mais distintamente.

- Vês, meu filho? São os mortos que se erguem do túmulo - exclamou Merula entusiasmado. - Este trecho deve ser um hino aos deuses olímpicos; já se podem ler as primeiras linhas! Vou traduzir-tas:

Glória a Baco, sumptuosamente coroado de pâmpanos,

Glória a ti, Apolo, frecheiro divino e terrível,

Omnipotente Deus, que mataste os filhos de Níobe.

E agora temos aqui também um hino a Vénus, a essa que tanto te assusta! Mas este está mais difícil:

Glória a ti, mãe Afrodite dos pés de oiro,

Alegria dos deuses e dos homens...

Daí por diante, os versos estavam ainda cobertos pelo texto eclesiástico. O reflexo doirado da tarde extinguira-se.

A escuridão começara a invadir o quarto.

Merula foi buscar uma garrafa de cristal cheia de vinho e encheu uma taça.

- Vamos, fradinho, bebe também à minha saúde! - Mas Giovanni recusou. - Nesse caso, beberei eu em teu lugar. Que tens tu hoje, filho, que estás tão triste? Parece que te quiseram deitar à água! Ou seria esse beato, esse cristão do António, que te aterrorizou com as suas profecias?

Vamos, Giovanni, confessa que falaste com ele.

- E certo que estivemos discutindo.

- De quê?

- Do Anticristo e de messer Leonardo de Vinci.

- Ora aí está! Tu não fazes senão sonhar com Leonardo; parece que estás enfeitiçado. Escuta, deixa-te de asneiras, fica como meu secretário e serás alguém. Vou ensinar-te o latim, podes chegar a jurisconsulto, a orador, ser poeta da corte; terás riquezas, glória... Que vem a ser a pintura? O filósofo Séneca já a classificava de "ofício indigno dum homem livre". Basta olhar para os pintores, todos ignorantes, grosseiros...

- Eu creio - replicou Giovanni - que messer Leonardo é um erudito.

- Erudito? Se fosse verdade! Ele nem sequer sabe ler o latim. Quanto ao grego, nem falar nisso. As próprias galinhas lhe dariam lições!

- Dizem - continuou Beltraffio, sem se dar por vencido - que ele inventa máquinas maravilhosas, e que as suas observações sobre a Natureza...

- Máquinas, observações! Mas que significa tudo isso?! Aplicar umas rodinhas engenhosas a qualquer aparelho, ver os pássaros voar no céu e as ervas crescer nos campos, isso não é ciência, isso são brincadeiras infantis. - E o velho, tomando um ar sério, continuou, segurando um braço do seu interlocutor: - Escuta, Giovanni, e lembra-te das minhas palavras: os nossos mestres, os verdadeiros, são os antigos, os gregos e os romanos. Tudo quanto era dado aos homens realizar, já eles o fizeram;

a única coisa que nos resta, é segui-los e imitá-los. Porque está escrito:

"O discípulo não pode ser superior ao mestre".

De novo esvaziou uma grande taça de vinho e, olhando com alegre malícia para Giovanni: - Ah! mocidade, mocidade! Como eu te invejo, fradinho; tu foges das mulheres, tu não bebes, tu és humilde, silencioso...

Mas, no fundo, não passas dum demónio!

- É já noite, messer Giorgio, não seria melhor acender o fogo?

- Espera um pouco, eu gosto de conversar nesta luz do crepúsculo, lembrando-me da minha juventude... - A língua entaramelava-se-lhe e começou a dizer palavras sem nexo.

O quarto estava quase completamente às escuras e Giovanni mal distinguia já as feições de Merula.

Cá fora a chuva começara a cair mais forte, e ouvia-se o ruído das grossas gotas que, do telhado, deslizavam sobre as poças.

- Escuta - disse Merula -, eram gigantes, os antigos. Os reis do mundo!... Sim, gigantes! Mas hoje não há a coragem de o dizer. Vejamos, o nosso duque de Milão, por exemplo, Ludovico, o Mouro! Evidentemente, eu vivo às suas expensas, estou a escrever-lhe a história, uma história à maneira de Tito Lívio, comparo-o a Pompeu e a César; a esse poltrão, a esse vaidoso, a esse insignificante! Mas cá por dentro, Giovanni, cá bem no fundo da minha alma... - Prudentemente, o velho cortesão lançou um olhar desconfiado para a porta, não fosse alguém ouvi-lo, e, inclinando-se para o jovem, murmurou-lhe ao ouvido: - O amor da liberdade não se extinguiu ainda, nem se apagará jamais, no coração do velho Merula... Não o digas a ninguém! Os tempos vão maus; nunca os houve piores! Faz nojo ver estes pigmeus que se atrevem a erguer a cabeça e a comparar-se aos antigos! Queres saber o que um dos meus amigos me escreve da Grécia? Então ouve: "Há algum tempo, umas lavadeiras, dum convento da ilha de Chio, estavam lavando roupa, ao nascer do dia, à beira-mar, quando, de repente, descobriram na praia um deus, um Tritão com cauda de peixe, barbatanas e o corpo todo coberto de escamas. E as pobres criaturas, julgando que era o diabo, tiveram medo e fugiram. Depois, reparando melhor, viram que ele era velho, fraco e talvez doente, visto que jazia inanimado com o rosto enterrado na areia; estava cheio de frio e procurava aquecer ao sol o tronco esverdeado. Tinha a cabeça branca e os olhos inexpressivos como os dos recém-nascidos.

Então, criaram ânimo e, aproximando-se de novo, rodearam-no, começaram a recitar preces cristãs e acabaram por bater-lhe com as pás, em nome da Santíssima Trindade... E assim o mataram, como quem mata um cão, ao Deus antigo, ao neto do Poseidon, o derradeiro, o poderoso

Deus do mar!"

O velho calou-se, baixou tristemente a cabeça e pelas suas faces rolavam as lágrimas da embriaguez, tão enternecido estava, e tal piedade lhe causava a morte do deus marinho, assassinado pelas lavadeiras cristãs.

Um criado entrou trazendo luzes e foi cerrar os postigos das janelas.

E as visões pagãs desapareceram...

Chamaram Merula e Giovanni para a ceia; mas Merula estava tão embriagado que foi necessário levá-lo para o leito.

Nessa noite, Beltraffio, durante muito tempo, não conseguiu adormecer; ouvindo o ressonar tranquilo de messer Giorgio, os seus pensamentos iam todos para aquele cuja lembrança constantemente o dominava: messer

Leonardo de Vinci.

 

Giovanni tinha vindo de Milão para Florença, por ordem de seu tio,

Osvaldo Ingrim, mestre vidreiro, a fim de comprar tintas.

Oriundo de Gratz, Osvaldo Ingrim era um ruagister a vitriatis, e trabalhava nas janelas da sacristia setentrional da Catedral de Milão.

Giovanni era órfão. Filho natural de um irmão de Osvaldo, o marmorista Reinhold Ingrim, herdara o nome de Beltraffio de sua mãe, que era de origem lombarda, e, segundo os dizeres do tio, criatura de costumes tão desordenados que tinha causado a ruína do pai de Giovanni.

Crescera solitário e sempre tímido em casa deste tio sensaborão. A sua inteligência conservara-se muito tempo obscurecida pelos intermináveis e constantes discursos de Osvaldo Ingrim acerca dos demónios, das forças impuras, das bruxas e dos feiticeiros. A criança sentia um terror especial quando lhe contavam uma história trazida para a Itália pagã pelos emigrantes do Norte: a lenda do demónio com cabeça de mulher, a fada com as pestanas e sobrolhos brancos, "a diabinha branca".

Muito novo ainda, quando chorava de noite no berço, já o tio o ameaçava com esta fada como se fosse um papão; a criança acomodava-se imediatamente e escondia a cabeça debaixo do travesseiro; mas, apesar do seu terror, sentia uma espécie de curiosidade, um desejo ardente de ver, pelo menos uma vez, a tal diabinha misteriosa ao pé de si.

Osvaldo mandara-o como aprendiz para casa de frei Benedetto, monge iluminista.

Era este um velho simples e indulgente; ensinava aos seus discípulos que antes de começarem a pintar deviam invocar o auxílio de Deus Todo- Poderoso, de Aquela que intercede pelos pecadores, a Virgem Maria, de S. Lucas Evangelista, o primeiro pintor cristão, e de todos os Santos da corte dos Céus. As suas lições eram minuciosas e intermináveis.

Apesar de todas estas subtilezas, frei Benedetto permanecera sempre um artista duma candura infantil. Preparava-se para trabalhar com jejuns e vigílias. Antes de principiar qualquer obra, ajoelhava para rezar e pedir a Deus as forças e o entendimento necessários. Sempre que pintava o Cristo no Calvário, o seu rosto enchia-se de lágrimas.

Giovanni estimava o frade e durante muito tempo considerara-o como o maior dos mestres. Ultimamente, porém, sentia-se inquieto e perturbado, principalmente desde que frei Benedetto, ao explicar a única regra de anatomia sua conhecida - que o comprimento do corpo do homem é igual a oito comprimentos e dois terços do do rosto -, acrescentara desdenhosamente: "No que se refere ao corpo da mulher, não falemos nisso, não tem proporções possíveis!" Estava tão firmemente convencido desta verdade, como daquela outra que o fazia afirmar serem os peixes, e em geral todos os animais não inteligentes, escuros na cabeça e claros na cauda; ou ainda que o homem tem menos uma costela que a mulher, visto Deus ter criado Eva de uma costela de Adão!

Estas opiniões de frei Benedetto acabaram por provocar uma reacção no espírito de Giovanni; um génio batalhador apossara-se dele, o "demónio da experiência mundana", segundo a expressão do monge; e quando viu pela primeira vez alguns desenhos de Leonardo de Vinci, pouco antes da sua partida de Florença, as dúvidas invadiram o seu espírito com tal violência que julgava não poder resistir-lhes.

Nessa noite, deitado ao lado de messer Giorgio, que roncava tranquilamente, pensava pela milésima vez nestas coisas, e quanto mais tentava profundá-las, mais elas se baralhavam e confundiam no seu espírito, provocando-lhe um estado de ansiedade que lhe não deixava conciliar o sono.

Para se libertar desta angústia, resolveu invocar a ajuda celeste; e, fixando um olhar cheio de esperança num ponto vago perdido na obscuridade impenetrável da noite, recitou a seguinte oração:

"Meu Deus, valei-me, não me abandoneis! Se messer Leonardo é verdadeiramente um ateu, se na sua ciência não há mais do que pecado e sedução, fazei com que eu não pense mais nele e esqueça os seus desenhos! Libertai-me desta tentação, não me deixeis cair no pecado! Mas se for possível honrar-Te e glorificar o Teu Nome pela nobre arte da pintura, se for possível aprender tudo o que frei Benedetto não sabe, e que eu desejo conhecer - a anatomia, a perspectiva e as magníficas leis da luz e das sombras -, então, ó meu Deus!, ilumina a minha alma, dá-me uma vontade forte, liberta-me das dúvidas e faz com que messer Leonardo me acolha como discípulo, e que frei Benedetto me perdoe e compreenda que a minha alma está isenta de pecado!"

Depois desta prece, Giovanni experimentou uma verdadeira alegria e adormeceu tranquilamente. Na manhã seguinte, messer Giorgio, ao acordá-lo, propôs-lhe ir com ele a São Gervásio assistir às pesquisas que iam começar na colina do Moinho.

Giovanni aceitou logo, na esperança de lá encontrar Leonardo de Vinci.

 

Deixara de chover. O vento norte tinha varrido as nuvens. No céu sem lua as estrelas cintilavam como lâmpadas acesas diante das santas imagens.

Os archotes de resina crepitavam, lançando muitas faíscas e fumo.

Atravessaram a Rua Sapienza e passaram diante da torre ameada de S. Marcos. À porta de S. Gallo os guardas injuriaram-nos e questionaram muito tempo sem compreender de que se tratava; estavam meio adormecidos e só depois de uma razoável espórtula consentiram em abrir as portas e deixá-los passar.

O caminho acompanhava o vale apertado e profundo da torrente do Mugnone. Depois de terem atravessado várias aldeias miseráveis, de ruas estreitas, como as de Florença, com casas de pedra, de construção grosseira, semelhantes às velhas fortalezas, os viajantes penetraram nos olivedos da paróquia de São Gervásio.

Deixaram de lado a vinha de messer Cipriano e, caminhando com passo estugado, em breve chegaram à colina do Moinho.

Trabalhadores munidos de pás e enxadas aguardavam-nos ali. Grillo indicou o local onde, na sua opinião, se devia cavar e messer Cipriano deu ordem para principiarem os trabalhos. Os golpes das enxadas ressoaram no solo. Sentia-se o cheiro da terra remexida. Um morcego roçou a face de Giovanni, que estremeceu assustado.

- Não tenhas medo, fradinho, não tenhas medo - disse Merula para o encorajar, dando-lhe uma palmada no ombro. - Não encontraremos nenhum diabo. Graças a Deus, eu já tenho assistido a outras pesquisas!

Por exemplo, em Roma, no tempo do Papa Inocêncio VIII, os calceteiros lombardos, cavando na Via Apia, junto do túmulo de Cecília Metella, encontraram num antigo sarcófago romano, que tinha a inscrição "Júlia, filha de Cláudia", o corpo embalsamado duma criança de quinze anos que parecia dormir tranquilamente. O rosado da vida não abandonara o seu rosto. Parecia respirar ainda. Uma multidão enorme cercava o túmulo.

De países estrangeiros vinha gente para a contemplar, porque Júlia era tão bela que, mesmo que fosse possível descrever a sua beleza, aqueles que a não tivessem visto nunca acreditariam no que se lhes contava.

O Papa, aterrado ao ter conhecimento de que o povo adorava uma morta pagã, mandou enterrá-la outra vez, de noite, secretamente, às portas do Pincio. E aqui tens, meu filho, no que deram as pesquisas.

Merula olhou com desprezo para a cova que rapidamente se ia tornando mais larga e profunda. De repente, a enxada dum dos obreiros retiniu e todos se inclinaram.

- Ossos - disse o jardineiro Strocco. - O cemitério chegava antigamente até aqui.

Um latido triste e prolongado ouviu-se vindo dos lados de São

Gervásio.

"Profanam os túmulos!", pensou Giovanni. "É necessário que eu os deixe. Não quero perder a minha alma".

Nesta ocasião, um gemido de desespero soou vindo do fundo da escavação onde se encontrava Grillo.

- Ai! Ai! Segurem-me, eu caio, afundo-me!

De momento, nada se distinguia na obscuridade porque a lanterna de Grillo tinha-se apagado. Ouvia-se apenas o ruído que ele fazia ao debater-se, a sua respiração angustiada, e gemidos.

Trouxeram, então, outras lanternas e distinguiu-se uma abóbada ainda meio oculta pela terra, semelhante às que cobrem os sepulcros subterrâneos e que tinha aluído sob o peso do corpo de Grillo.

Dois dos cavadores, novos e robustos, deslizaram cautelosamente na escavação para socorrer o rendeiro de messer Cipriano.

Ao fim de algum tempo ouviu-se este soltar um grito de entusiasmo:

- Um ídolo! Um ídolo! Um ídolo maravilhoso!

- Não grites, homem! - resmungou Strocco, suspeitoso. - Se calhar é o esqueleto de algum burro.

- Não, não, apenas a mão está quebrada. Mas os pés, o tronco, o peito, tudo está intacto - disse Grillo, sufocado de alegria.

Giovanni, meio deitado sobre o solo, espreitava, por entre os corpos curvados dos cavadores, para a profundidade da cova, donde saía um cheiro de humidade fria e sepulcral.

Quando a cripta estava quase demolida, messer Cipriano disse:

- Afastem-se, deixem-nos ver. - E Giovanni divisou no fundo do buraco, entre paredes de tijolo, um corpo branco e nu: jazia como um cadáver num túmulo. Não parecia morto, mas vivo, quente e rosado, sob a luz trémula dos archotes.

- Vénus! - murmurou messer Giorgio, num tom cheio de emoção.

- A Vénus de Praxíteles. Parabéns, messer Cipriano. Se vos tivessem dado o ducado de Milão e de Génova, não vos consideraríeis, por certo, mais feliz!

A estátua da deusa subia lentamente, içada pelos operários.

Com o mesmo sorriso calmo que tinha nos lábios, outrora, quando surgia da espuma das ondas, Vénus Anadiómena saía das trevas subterrâneas do túmulo muitas vezes secular.

Merula acolheu-a com os versos:

Glória a ti, Mãe Afrodite, dos pés de oiro,

Alegria dos deuses e dos homens...

As estrelas tinham-se extinguido todas, excepto Vénus, que brilhava como um diamante, no palor da aurora. E a deusa parecia erguer a cabeça e surgir da terra para ir ao seu encontro.

Giovanni, ao divisar-lhe o rosto iluminado pela claridade do dia nascente, pálido de terror, murmurou:

- A diabinha branca!

E no primeiro momento quis fugir. Mas a curiosidade venceu o medo.

E mesmo que lhe tivessem dito então que cometia um pecado mortal e condenava a sua alma às penas eternas, teria sido incapaz de desviar os olhos do corpo esplendoroso e nu da deusa.

Mesmo quando Afrodite fora soberana do mundo, nunca ninguém a contemplara com tal veemência e tão ardente devoção.

 

Quando o sino começou a tocar na igrejinha da aldeia de São Gervásio, todos se entreolharam instintivamente e ficaram atónitos. O som desse sino ecoando na paz da manhã era plangente e semelhante a um grito de desespero.

- Jesus! Piedade! - exclamou Grillo apertando a cabeça entre as mãos. - Foi o nosso cura, o padre Faustino! Já distingo lá em baixo, no atalho, a multidão ululante a gesticular! Não tarda que estejam aqui!

Valha-me Deus, estou perdido, que desgraça a minha!

Pela colina do moinho vinham subindo vários cavaleiros. Eram convidados retardatários, que se tinham transviado e só agora reencontravam o caminho.

Beltraffio, ao encará-los, apesar do embevecimento com que contemplava a estátua da deusa, sentiu-se logo impressionado pelo rosto de um dos recém-vindos e pela expressão de fria e penetrante curiosidade com que o desconhecido começou a examinar a Vénus.

Com os olhos presos na contemplação da estátua, Beltraffio sentia atrás de si a presença desse homem, cujo rosto denotava logo uma personalidade e um carácter fora do comum.

Como a sua serenidade contrastava com a perturbação de Giovanni!

Depois de ter estado a reflectir alguns minutos, messer Cipriano propôs: - A minha casa de campo está a dois passos, a construção é sólida, as portas são fortes e capazes de resistir a todas as investidas. Vamos transportar a estátua para lá, que ficará em segurança e a coberto de qualquer violência.

- Tendes razão - concordou Grillo, satisfeito com a ideia. - Vamos, rapazes, toca a levantá-la! - E, com ternura paternal, começou a dirigir o transporte com todas as cautelas.

Graças aos seus cuidados, a Vénus atravessou a "Caverna Negra" sem incidentes. Tinham acabado de transpor as portas da casa de messer

Cipriano, quando apareceu no cimo da colina a sombra ameaçadora do padre Faustino, erguendo os braços para o céu.

O rés-do-chão estava desabitado; uma enorme quadra, com as paredes e as abóbadas caiadas de branco, servia de arrecadação às alfaias agrícolas. A um canto erguia-se uma meda de palha. Foi sobre esta palha, que constituía um bem humilde e rústico leito para uma deusa, que esta foi cautelosamente deitada.

Mal tinham acabado este trabalho, quando começaram a ouvir os gritos e as invectivas da multidão que batia desesperadamente à porta.

- Abram, abram! - gritava o padre Faustino. - Intimo-vos, em nome de Cristo, a que nos entreguem o ídolo que foram desenterrar no antigo cemitério!

O cônsul de Galimala resolveu servir-se de um ardil de guerra e respondeu com calma e energia:

- Tomem cuidado! Já mandei um emissário a Florença falar ao Capitão da guarda. Antes de duas horas, está aqui um destacamento de Cavalaria. Pela violência ninguém entrará na minha casa!

- Arrombem as portas! - gritava o padre. - Quebrem as trancas!

Nada receiem, que Deus está connosco! - E arrancando um machado das mãos dum velhote de rosto triste e humilde que lhe ficava próximo, começou a vibrar profundos golpes na porta.

No entanto, a multidão não lhe seguia o exemplo. A maioria, receando a chegada da guarda, só pensava em evadir-se, sem que ninguém o percebesse.

- É bem verdade que cada um é senhor da sua casa - diziam alguns.

- A guarda não tarda a chegar! - murmuravam outros.

Durante este tempo, Giovanni não se cansava de admirar a Vénus libertada. Um raio de sol penetrava pela janela; o corpo de mármore, ainda mal limpo da terra, irradiava, e dir-se-ia sentir estranha voluptuosidade em absorver a luz e o calor depois da sua longa permanência na obscuridade fria do túmulo.

Giovanni contemplou de novo o desconhecido que, ajoelhado diante da Vénus, tinha tirado dos bolsos um compasso, um goniómetro, um transferidor e, animado duma curiosidade fria e obstinada, começara a medir as diferentes partes do corpo magnífico, inclinando a cabeça de tal forma que a sua longa barba loira aflorava o mármore.

"Que estará ele a fazer?", perguntava a si mesmo Giovanni, cuja admiração ia progredindo até atingir as raias do assombro, sem perder de vista os dedos que deslizavam com impudente vivacidade sobre o corpo da Vénus, desvendando-lhe todos os segredos de beleza a tacteando e sondando as convexidades do mármore, inacessíveis à vista.

Cá fora, às portas da casa, a multidão dos aldeãos começara a rarear, tendo já debandado muitos.

- Por que fugis, infames miseráveis que traís o nosso Deus? Tendes medo dos guardas da cidade e não receais o Anticristo! - vociferava o padre, gesticulando furioso.

Toda a sua cólera se voltava contra os seus paroquianos.

- Ah! É assim que obedeceis ao vosso pastor! Se eu não rezasse por vós, noite e dia, filhos de Satanás, se me não arruinasse com penitências e jejuns, há muito já que a vossa aldeia teria desaparecido da face do mundo! Mas hoje, tudo acabou; vou deixar-vos entregues ao vosso destino! Maldita seja esta terra, e a água, e o pão, e os rebanhos! Excomungados sejam os vossos filhos e netos! Eu vos renego e amaldiçoo, já não sou mais nem vosso pai, nem vosso pastor! Maldição!

Merula aproximou-se do desconhecido que com uma paciência calma e objectiva ia medindo a estátua estendida na sua cama de palha doirada:

- Procurais a harmonia divina das proporções - perguntou o erudito com um sorriso benévolo de condescendência. - Para vós, sem dúvida, a verdadeira beleza deve derivar das nobres matemáticas!

Mas, absorvido no seu paciente exame, o interpelado nada respondeu, como se nada tivesse ouvido.

As pontas do compasso estendiam-se, desenhando figuras geométricas. Impassivelmente, aplicou o goniómetro sobre os lábios adoráveis de Afrodite, cujo sorriso enchia de pasmo o coração de Giovanni; mediu os graus e inscreveu-os no seu caderno.

- Messer Giorgio - murmurou Giovanni ao ouvido do velho -, quem é este homem?

- Ah! Estavas aqui, fradinho? - disse Merula, voltando-se. - Já me tinha esquecido de ti. Pois não o reconheceste? Mas é o teu idolatrado artista! É messer Leonardo de Vinci!

E apresentou Giovanni ao pintor.

 

Voltaram para Florença. Beltraffio seguia a pé, ao lado de Leonardo, que metera o seu cavalo a passo. Estavam sós.

Entre as raízes negras e húmidas das oliveiras brilhava a erva dum verde-esmeralda, polvilhada, aqui e ali, de lírios azuis, imóveis nas suas hastes delicadas. Uma calma, como só se encontra nos prelúdios da Primavera, ao alvorecer das manhãs, reinava por toda a campina.

"Será possível que eu vá aqui ao seu lado?", pensava Giovanni, observando cheio de interesse os mínimos pormenores da figura e das atitudes do seu companheiro.

O mestre tinha nessa altura cerca de quarenta anos. Quando se calava, embebido nas suas reflexões, os seus olhos pequenos e vivos, dum azul-pálido, tornavam-se frios e penetrantes sob os sobrolhos dum ruivo-doirado. Mas, quando começava a falar, havia logo neles a expressão duma bondade profunda. A longa barba loira e os cabelos também loiros e anelados davam-lhe um aspecto majestoso. O rosto era duma beleza delicada, quase feminina; e a voz, apesar da sua forte estatura e robusta constituição, embora fosse alta e muito agradável, não tinha também um timbre másculo. A mão era pequena e fina, mas Giovanni presumia que ela fosse dotada de grande força dada a forma como conduzia o cavalo. Os dedos eram longos e afilados como os de uma mulher.

Tinham chegado às muralhas da cidade. Os zimbórios da Catedral e as torres do Palazzo Vecchio apareciam através dum ténue véu de bruma.

"Tenho que me decidir", pensou Beltraffio, "e perguntar-lhe se ele me admite no seu atelier! Ou hoje, ou nunca mais!"

Nesta ocasião, Leonardo, tendo parado o cavalo, seguia com os olhos, sem nada perder dos seus movimentos, o voo dum grifo que pairava batendo as asas. O artista abriu o caderno de notas que trazia pendurado à cintura e começou a escrever várias observações, naturalmente acerca do voo do pássaro.

Beltraffio notou que ele segurava o lápis com a mão esquerda, e não com a direita, e pensou: "É canhoto", e lembrou-se dos rumores extravagantes que corriam a seu respeito; dizia-se que Leonardo escrevia com uma letra caprichosa, retorcida, que só se podia ler num espelho e que começava, não como a escrita ordinária, da esquerda para a direita, mas sim em sentido contrário, como a escrita dos Judeus. Havia quem suspeitasse que escrevia assim para melhor esconder aos olhos do mundo os seus pensamentos criminosos e heréticos acerca de Deus e da Natureza.

"Ou agora, ou nunca", repetiu para si, novamente, Giovanni; mas, de repente, vieram-lhe à lembrança os dizeres de António de Vinci:

"Vai ter com ele, se queres perder a tua alma. E um herético e um ateu".

Sentiu o coração confranger-se. Tinham passado as portas e entraram na cidade de Florença.

 

Beltraffio dirigiu-se à Catedral, onde nessa manhã pregava o irmão

Savonarola.

Os últimos acordes do órgão morriam sob as abóbadas de Santa Maria del Fiore, e da multidão emanava um sussurro discreto. Um calor sufocante reinava dentro do templo. Os homens, as mulheres e as crianças estavam separados, uns dos outros, por cortinas; sob a curva das ogivas, uma obscuridade misteriosa, como no interior duma floresta e, em baixo, os raios de sol que se coavam através dos vitrais, caíam aqui e ali, em reflexos irisados, sobre as ondas vivas da multidão e sobre a massa pardacenta das colunas de pedra.

Tinha terminado a missa e o povo esperava o pregador com os olhos fixos no alto púlpito de madeira, com a sua escada em caracol, encostada a um dos pilares da nave central.

Giovanni, de pé no meio da multidão, escutava as conversas em voz baixa dos que lhe ficavam próximos, e que, cheios de impaciência, esperavam o orador, quando, de repente, todo aquele oceano de cabeças se agitou num frémito prolongado, e um murmúrio mais forte correu pela igreja.

- Lá vem, lá vem!...

Giovanni viu então subir a escada do púlpito um homem envergando o hábito preto e branco dos dominicanos, cingido à cintura por uma corda; tinha o rosto macilento, amarelo como a cera, os lábios grossos, o nariz adunco e uma testa estreita. Com um gesto de fadiga, deixou cair sobre o rebordo do púlpito a mão esquerda, enquanto erguia na direita um crucifixo, e percorreu, num lento volver dos olhos ardentes, todo o auditório, sem pronunciar uma palavra. O silêncio era absoluto, cada um poderia ouvir pulsar o próprio coração; os olhos parados do monge tinham uma expressão cada vez mais veemente, brilhando como carvões incandescentes. O pregador conservava sempre o silêncio, e a ansiedade da multidão ia-se tornando insuportável. Mais uns instantes de espera e o povo, incapaz de resistir, soltaria um grito de terror; contudo, a calma era cada vez mais completa e o silêncio mais angustioso...

De repente, ouviram-se uns sons sobre-humanos e lancinantes. Era a voz de Savonarola:

- Ecce ego adduco aquas super terram! - "Eis que faço jorrar a água sobre a terra!"

Um sopro de pavor arrepiou a assistência. Giovanni empalideceu;

parecia-lhe que o solo tremia sob os seus pés, que as colunas oscilavam e que a Catedral ia desmoronar-se. Um mestre caldeireiro, obeso, que estava ao pé de si, batia os dentes e tremia, como um arbusto sob o vento; um pouco atrás, um jovem esbelto, duma grande palidez, encolheu-se transido e enterrou a cabeça entre os ombros, como se lhe tivessem vibrado um golpe no alto do crânio; o rosto de Giovanni contraiu-se numa expressão de sofrimento, cerrou os olhos...

Uma espécie de delírio tinha empolgado aqueles milhares de pessoas e arrastava-as, como o vendaval às folhas secas, num turbilhão.

Giovanni escutava, mal compreendendo as palavras soltas que chegavam até aos seus ouvidos.

"Olhai, o céu está negro e ameaçador! O Sol está vermelho como sangue coalhado! Fugi! Não tarda a cair uma chuva de enxofre e de fogo, e haverá uma saraivada de pedras e de rochas incandescentes. Fuge, o Sion, quae habitas apud filiam Babylonis!...

"Ó Itália, os castigos vão chegar e suceder-se; depois do castigo da Guerra, o castigo da Fome, e depois o da Peste. Castigo após castigo, castigo por toda a parte!... Não haverá vivos suficientes para enterrar os mortos; as casas estarão pejadas de cadáveres, os coveiros irão pelas ruas, gritando: Onde há mais mortos? E hão-de transportá-los em carretas cheias até cima, e depois despejá-los, empilhados uns sobre os outros, aos montes, para serem queimados!...

"Ó Florença, ó Roma, ó Itália, o tempo dos folguedos e das cantigas acabou-se! O mundo está doente, aproxima-se a hora de morrer! Meu Deus! Tu sabes como eu pretendi, com a minha palavra, evitar a ruína e a destruição; mas já não posso mais, faltam-me as forças, nem sei que mais poderia dizer. Só me resta chorar... desfazer-me em lágrimas... Piedade, meu Deus! Piedade! Ó miserável povo, desgraçada Florença..."

Tinha aberto os braços em cruz e, num murmúrio quase imperceptível, deixara cair as últimas palavras, que ficaram flutuando sobre a multidão, até se extinguirem, semelhantes ao ruído do vento na folhagem, como suspiro revelador da infinita piedade do Profeta pelo seu povo.

E oprimindo os lábios exangues sobre o crucifixo, Savonarola, esgotado, caiu de joelhos, numa crise de soluços.

Tinha terminado o sermão; com uma lentidão grave, os sons do órgão elevaram-se solenes, profundos, ameaçadores, como o ruído nocturno do oceano.

Da multidão das mulheres subiu um lamento angustioso: "Misericórdia!", a que respondeu, como um eco, o grito de desespero dos homens, numa súplica de arrependimento: "Misericórdia, misericórdia..."

Em volta de Giovanni toda a gente chorava; ele próprio começou também a soluçar. Veio-lhe à memória a sua ambição de abandonar frei Benedetto, de se votar à ciência impiedosa de mestre Leonardo, lembrou- se dessa noite horrível passada na colina do moinho, da Vénus ressuscitada e do seu arrebatamento criminoso diante da "diabinha branca".

Ergueu os braços para o céu e a sua voz desesperada implorou, juntando-se à da multidão:

- Perdoai-me, meu Deus! Misericórdia! Misericórdia!

Nesse mesmo instante, erguendo os olhos enevoados de lágrimas, viu não longe de si a figura imponente e harmoniosa de Leonardo de Vinci, erecto, com o ombro apoiado a uma coluna, desenhando com a mão esquerda no seu inseparável caderno de apontamentos e olhando a espaços para o púlpito, na esperança de divisar, uma vez ainda, o rosto do pregador.

Indiferente a todos, só, no meio da turba abalada pelo terror, Leonardo conservava uma fleuma imperturbável; os seus lábios delgados e os olhos claros e frios apenas revelavam uma expressão de curiosidade; a sua atitude fez morrer a prece nos lábios de Giovanni e secar as lágrimas dos seus olhos.

Ao sair da igreja aproximou-se de Leonardo e pediu-lhe para ver os esboços que ele estivera desenhando. Não era o rosto de Savonarola, mas a cabeça horrível de um demónio velho, com hábito de frade, que se parecia com Savonarola e, como ele, tinha impressos nas feições os sinais das penitências que se infligia sem lograr vencer a concupiscência e o orgulho. A maxila inferior era proeminente, as rugas sulcavam-lhe as faces e o pescoço descarnado e negro como o de uma múmia; as sobrancelhas eriçadas, e o olhar, que nada tinha de humano, estava erguido para os céus numa súplica pertinaz e enraivecida. Tudo o que o rosto de Savonarola tinha de sombrio, de pavoroso e de insensato, estava reproduzido, no desenho, sem cólera nem piedade, com uma lucidez de observação impassível. Giovanni recordou-se das palavras que lhe ouvira, quando voltaram juntos de Florença: "Lingegno dei pittore vuol essere a semilitude delle specchio" - a alma do pintor deve ser semelhante a um espelho, que reflecte todos os objectos, todos os movimentos e todas as cores sem perder a sua lucidez, a sua transparência e a sua imobilidade.

O discípulo de frei Benedetto, ao contemplar nesse momento Leonardo, compreendeu que embora este fosse o verdadeiro enviado de Anticristo, e que ele Giovanni perdesse para sempre a sua alma, já lhe não era possível resistir à força que o impelia para ele; tinha de o seguir até ao fim.

 

Dois dias depois, Grillo chegou a Florença e correu a casa de messer Cipriano Bonaccorsi, para lhe dar uma má notícia. Bonaccorsi, retido em Florença por um extraordinário acréscimo no movimento do seu comércio, não tivera ainda tempo para transportar a estátua de Vénus para a cidade. Grillo contou-lhe como o cura da paróquia, o padre Faustino, saindo de São Gervásio, se dirigira à aldeia vizinha de São Maurício, e, ameaçando a população com as penas do Inferno, tinha conseguido levantar um bando com o qual fora cercar a "vila" de Cipriano. Tinham arrombado as portas, agredido à paulada o jardineiro Strocco e manietado os homens, que estavam encarregados de guardar a estátua. Depois o padre Faustino tinha lido diante da deusa uma antiga oração, Oratio super effigies vasaque in loco antiquo reperta, na qual o oficiante pedia a Deus para purificar de todos os vestígios de paganismo os objectos desenterrados, transformando-os, para maior bem das almas cristãs e glória da Santíssima Trindade consubstanciai: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Em seguida, tinham quebrado a estátua e, depois de lançar os fragmentos ao fogo, tinham-nos calcinado, fabricando, assim, uma pasta com que caiaram o muro novo do cemitério.

Ao ouvir esta narrativa do velho Grillo, que quase chorava, tal era a pena que lhe inspirava a destruição do ídolo, Giovanni sentiu-se cheio de audácia para pôr em prática os seus projectos. Nesse mesmo dia, foi a casa de messer Leonardo e pediu ao pintor para o receber como discípulo, no seu atelier. Leonardo aceitou-o.

Pouco tempo depois chegou a Florença a notícia de que Carlos VIII, o mui cristão Rei de França, partira à frente de um poderoso exército, para vir conquistar Nápoles, a Sicília, e possivelmente Roma e Florença.

Os cidadãos ficaram apavorados, porque viam chegar o dia em que as profecias do irmão Girolamo Savonarola se iriam cumprir. Aproximava- se a hora da expiação e o gládio de Deus ia abater-se sobre a Itália.

 

                         CAPÍTULO II

ECCE DEUS - ECCE HOMO (1494)

"Ecce homo!"

  1. João, XIX V 5

"Ecce Deus!"

Inscrição no monumento de Francisco Sforza.

 

"Se, graças às suas asas, o corpo da águia pode pairar nos ares, se os pesados barcos de velas podem manter-se à superfície das águas, por que não há-de o homem triunfar do vento e elevar-se vitorioso no espaço, sulcando os ares, numa máquina voadora?..."

Leonardo releu estas palavras cheias de esperança, escritas cinco anos antes, num dos seus velhos cadernos. Numa das margens, um desenho representava uma espécie de lança ou timão, ao qual estava fixado, transversalmente, um cilindro de metal suportando um par de asas, accionadas por cordas. Esta máquina parecia-lhe hoje horrenda e disforme, comparada com a que acabava de construir.

O novo aparelho fazia lembrar um morcego. O esqueleto da asa era como o de uma mão, formado por cinco dedos ligados entre si por uma membrana de tafetá, engomado e impermeável, como a pata de um palmípede, que se contraía e distendia; estes dedos eram providos de grande número de articulações susceptíveis de movimento, e ligados ainda por um sistema de correias e fitas de seda, que funcionavam como músculos.

As asas elevavam-se por meio duma haste móvel e de uma biela;

estavam dispostas em cruz, sendo o seu comprimento de cerca de 40 côvados e a sua altura de 8, dobravam-se para trás quando era preciso fazer avançar a máquina e abaixavam-se para a fazer erguer.

O homem que fazia funcionar este engenho ficava de pé, apoiado em estribos, que imprimiam movimento às asas, por meio de cordas, roldanas e alavancas. Um grande leme, ornado de penas, como a cauda de uma ave, permitia dirigir o enorme passarolo.

Quando um pássaro pretende levantar voo, tem de se erguer sobre as patas, a fim de poder executar o primeiro movimento das asas; se colocarmos sobre o solo um gavião, que tem as pernas curtas, este debate-se antes de conseguir elevar-se no ar. Duas pequenas escadas de verga desempenhavam a função das pernas da ave. Leonardo sabia por experiência que a execução perfeita de qualquer obra exigia absolutamente a elegância e as proporções harmoniosas das suas partes componentes; por isso, o aspecto pouco elegante destas escadas, que não conseguia modificar nem dispensar, trazia-o aborrecido. De novo se embrenhou nos cálculos matemáticos, em procura de erros que não era capaz de encontrar. Febrilmente, percorreu uma página cheia de contas e cálculos, em cifras miúdas e muito cerradas, e escreveu à margem: non è vero!

"é falso", e, encolerizado, acrescentou, numa letra convulsa: Satanàsso!

- "Para o diabo!"

Os cálculos, cada vez mais complicados e confusos, não o levavam a um resultado satisfatório. Em Milão, onde residia, depois da sua saída de Florença, Leonardo passara um mês inteiro a trabalhar sem descanso.

O quarto-oficina estava atravancado de aparelhos e instrumentos de astronomia, de física, de química, de mecânica e de anatomia; com rodas, alavancas, parafusos, molas, tubos, arcos e êmbolos... Outras peças de máquinas, de cobre, de aço, de ferro e de vidro, semelhantes a membros de monstros desconhecidos, ou de insectos gigantescos, estavam espalhadas por todos os cantos, acumuladas numa grande desordem e confusão. Havia um sino de mergulhador, um instrumento de óptica, de cristal cintilante, representando um olho de enormes dimensões, um esqueleto de cavalo, um crocodilo empalhado, um frasco de álcool contendo um feto humano, como uma enorme larva esbranquiçada, pás em forma de canoas, utilizadas para navegação; e, ao lado de tudo isto, uma cabeça de barro, representando uma donzela ou um anjo, com um sorriso triste e sedutor, fragmento de qualquer composição, trazido do atelier e que viera parar ali, acidentalmente.

Ao fundo do quarto, pelo orifício negro do forno dos cadinhos, munido de foles de forja, brilhavam ainda restos de carvões acesos, sob a cinza.

E no meio desta acumulação, do sobrado ao tecto, as enormes asas do pássaro, uma ainda nua, a outra já coberta da sua armadura. Entre elas, estendido no chão, estava adormecido, com a cabeça inclinada para trás, um homem, que devia ter caído extenuado pelo trabalho. Tinha ainda na mão direita o cabo de um tubo de cobre, do qual escorria por terra um fio de estanho fundido. Uma das asas da máquina tocava-lhe o peito, com a extremidade inferior do frágil esqueleto de vime, e a respiração do adormecido transmitia pequenas oscilações a toda a asa, que vibrava como um corpo vivo, indo a extremidade superior roçar no tecto, com um ruído insólito. Na claridade indecisa da Lua, e das velas, o aparelho com o homem estendido entre as suas semelhava um gigantesco morcego, prestes a levantar voo.

 

O dia despontava. Um cheiro de legumes e de plantas, de hortelã, funcho, de erva-cidreira, vinha dos jardins que cercavam a casa de Leonardo, no arrabalde de Milão, que vai da fortaleza ao mosteiro de Santa

Maria das Graças. Debaixo das janelas, as andorinhas chilreavam à beira dos ninhos, preparando-se para voar. No charco do pátio vizinho, os patos chapinhavam e salpicavam-se no meio dum estrídulo grasnar.

No atelier, ouviam-se as vozes dos dois discípulos: Giovanni Beltraffio e Andrea Salaino. Giovanni copiava um modelo anatómico, sentado em frente dum instrumento, que servia para estudar a perspectiva: um quadro rectangular de madeira, com uma rede de fios, a que correspondia, no papel do desenhador, uma rede semelhante de linhas cruzadas. Salaino estendia uma camada de gesso sobre uma prancha de madeira de tília, destinada à pintura. Era um adolescente, formoso, de cabelo loiro e anelado, o menino bonito do mestre, que o aproveitava como modelo para os seus anjos.

- Que te parece, Andrea - perguntou Beltraffio -, messer Leonardo levará em breve a sua obra a bom termo?

- Só Deus o sabe - respondeu Salaino, interrompendo uma canção que estava assobiando. - O ano passado, depois de ter trabalhado nela dois meses sem descanso, só conseguiu encher-se de ridículo. Esse urso desajeitado do Zoroastro teimou em fazer uma experiência, e, apesar de todos os esforços de Leonardo para o dissuadir, o brutinho tanto insistiu, que não houve remédio senão deixá-lo. Tu sabes o que aconteceu! O louco rodeou o corpo todo com bexigas de boi e de porco, subiu com a máquina para o telhado e, depois de ter aberto as asas, lançou-se no espaço. Ao princípio, o vento ainda o susteve, mas, de repente, o desastrado, sem se saber porquê, largou tudo e precipitou-se de cabeça sobre um monte de estrume. Felizmente, não lhe aconteceu mal de maior, apenas as bexigas estoiraram. Tinhas que ver o novel ícaro esperneando, com o focinho enterrado no estrume, sem conseguir erguer-se!

Nesta ocasião entrou no atelier um terceiro aluno, César de Sesto.

Era um homem já de meia-idade, com um rosto doentio e bilioso, mas de olhar inteligente, ainda que duro. Trazia numa mão uma fatia de presunto e um naco de pão, e na outra um copo de vinho.

- Puf! Está azedo - disse, cuspindo, mal-humorado. - E o presunto, duro como uma sola. E é com semelhantes porcarias que nos sustentam! Que governo de casa! Uma verdadeira vergonha; e recebe este homem dois mil ducados por ano! Já lá vão dois meses que não conseguimos comer um pouco de presunto fresco. Marco garante que ele está sem dinheiro; a maldita máquina arruína-o, mas nós é que somos as vítimas.

- César - disse Giovanni, para mudar de conversa -, prometeste, há dias, ensinar-me uma regra de perspectiva, lembras-te? Não vale a pena esperar por Leonardo, que está entregue à sua engenharia.

- Que o diabo leve tais trabalhos; podeis ter a certeza de que, dentro em pouco, estaremos todos mortos de fome...

Uma expressão de cólera contraiu o rosto de César e um sorriso mau passou-lhe nos lábios delgados.

- Por que será - disse enraivecido - que Deus dá talento a semelhantes criaturas?!

 

Leonardo trabalhava, sempre debruçado sobre a sua mesa. Uma andorinha entrou pela janela aberta; começou a esvoaçar em volta do quarto, roçando as paredes e o tecto e acabou por se deixar prender na asa da máquina voadora, como numa armadilha, sem lograr soltar as suas asitas vivas do complicado sistema daquela rede de cordas. Leonardo aproximou-se, libertou delicadamente a prisioneira e, tomando-a nas mãos, beijou-lhe a cabecita negra e sedosa, e restituiu-a à liberdade.

A andorinha bateu as asas e lançou-se no espaço, soltando um grito de alegria.

"Como na natureza tudo é simples e fácil!", pensou, acompanhando-a dum olhar cheio de inveja. Depois, com um sentimento de desdém e de tristeza, contemplou o deselegante esqueleto do morcego gigantesco.

O homem que dormia no chão despertou.

Era, simultaneamente, um discípulo e um ajudante de Leonardo, o habilidoso mecânico e mestre ferreiro florentino, Zoroastro, ou Astro Peretola.

Levantou-se, esfregando o seu único olho - o outro levara-lho, um dia, uma faúlha diante de um diabólico fogo da sua forja. Este gigante, desajeitado, com o seu ar bonacheirão e infantil, constantemente coberto de suor e de fuligem, semelhava um ciclope.

- Deixei-me dormir - exclamou o ferreiro, passando com desespero a mão pela cabeça hirsuta. - Diabos me levem! Ah! Mestre, devíeis ter-me acordado. Estou ansioso por acabar ainda esta tarde a asa esquerda, para poder voar amanhã de manhã.

- Não há nada perdido, fizeste bem em dormir - disse Leonardo.

- Estas asas não estão capazes.

- Como? Outra vez? Não, messer, será como quiserdes, mas eu, por mim, não me conformo em recomeçar. Quanto dinheiro gasto, quanto trabalho perdido! E tudo inútil! Vós dizeis que estas asas não estão capazes de sustentar um homem nos ares; pois eu afirmo-vos que elas não só podem sustentar um homem, mas até levantariam um elefante. Vereis, mestre! Deixai-me fazer uma nova experiência, sobre a água, se assim o desejais, de forma a que, em caso de queda, eu me limite a tomar banho; nado como um peixe e não me afogarei. - E juntava as mãos com ar suplicante.

Leonardo abanou a cabeça.

- Tem paciência, Astro. O teu dia há-de chegar; mas, mais tarde...

- Mais tarde! - suspirou o ferreiro quase a chorar, e o seu único olho pestanejou melancolicamente. - E por que não já? Juro-vos que voarei: tão certo como Deus ser Omnipotente, eu hei-de voar...

- Não, Astro, ainda não é desta vez. A matemática...

- Diabos levem as matemáticas! Eu já o receava; são elas que nos entravam. Há quantos anos trabalhamos neste engenho. É de perder a paciência! Qualquer estúpido moscardo, qualquer imunda mosca, que Deus me perdoe, são capazes de voar; só os homens têm de rastejar, como vermes. É revoltante! Por que esperamos? Não, não esperarei mais, está tudo pronto, só me falta recomendar-me a Deus, e partir, agitando estas asas, e voar, voar... dizendo adeus a todos vós, que ficais cá em baixo!...

Leonardo, sem responder, baixou tristemente a cabeça.

Ao fim da manhã, Leonardo chamou Beltraffio e disse-lhe:

- Tu não viste ainda a minha Sagrada Ceia. Vou agora ao convento, queres vir comigo?

O discípulo aceitou cheio de contentamento. Havia alguns dias que se sentia pouco à vontade diante do mestre. Seu tio tinha-se zangado, não lhe enviava mais dinheiro e ele estava sem saber como pagar a Leonardo os seis florins do mês da pensão.

Durante dois meses ainda Frei Benedetto lhe mandara com que poder satisfazer aquele compromisso, mas o frade estava também esgotado de recursos e não podia continuar a ajudá-lo.

Giovanni tentou desculpar-se.

- Mestre - começou timidamente, gaguejando e fazendo-se vermelho -, já estamos a 14 e, segundo as nossas condições, eu devia ter pago no dia 10... Eu sei muito bem... Mas... neste momento só tenho três florins... Queria pedir-vos para esperar; em breve, com certeza arranjarei... Merula prometeu-me uns trabalhos de cópia...

Leonardo olhava-o admirado.

- Que tens tu, Giovanni? Vamos, tu não tens vergonha de me falar assim?

Mas, considerando melhor o rosto ruborizado e cheio de confusão do seu aluno, e reparando no estado miserável dos seus sapatos, muito cerzidos e remendados, e nas vestes velhas e usadas, compreendeu que o estado de finanças de Giovanni era verdadeiramente precário.

Franziu o rosto e começou a falar noutra coisa. Após uns momentos, extraindo da sua bolsa uma moeda de oiro, disse-lhe, num tom alheio e despreocupado:

- Giovanni, vai comprar-me umas vinte folhas de papel azul, para desenho, um pacote de giz vermelho e alguns pincéis! Anda, toma lá esta moeda!

- Mas isto é um ducado, messer. Eu não gastarei em tudo mais do que uns dez soldos, trago-vos o resto...

- Não é preciso trazeres nada, tens muito tempo, depois... Ficas proibido, daqui para o futuro, de te amofinares com faltas de dinheiro. Nem quero que me fales mais nessas bagatelas!...

Afastando-se um pouco, embrenhou-se imediatamente em conselhos e observações acerca do desenho. Falou-lhe da diferença das sombras, que as nuvens projectam sobre as montanhas, no Verão, quando estas estão cobertas de verdura, e no Inverno, quando estão despidas.

Depois, subitamente, disse-lhe:

- Eu sei bem a razão porque tu me julgas avarento. Quando falámos sobre as condições da tua entrada no meu atelier e ajustámos o pagamento mensal, com certeza notaste que ia escrevendo tudo no meu caderno: o teu nome, a tua origem, as importâncias e a data do pagamento.

Mas isso, Giovanni, é um velho hábito, herdado talvez de meu pai, que era o notário Pedro de Vinci, e o mais meticuloso dos homens; isso não significa nada, nem nunca me trouxe qualquer espécie de proveito. Não calculas como às vezes me divirto ao ler em cadernos antigos certas futilidades que notei, e de que já nem sequer me recordava. Se eu quiser, posso saber com exactidão quanto me custaram a pluma e o veludo para a boina nova de Andrea Salaino, e, no entanto, ignoro completamente o fim que levaram muitos milhares de ducados, que voaram sem deixar sombra de registo em nenhum dos meus cadernos. Um hábito estúpido, sem significação nem utilidade... Quando precisares de dinheiro, pede- mo sem rebuço ou acanhamento, como pedirias a teu pai...

E Leonardo contemplou-o com um sorriso impregnado de tanta bondade a simpatia, que produziu em Giovanni um estremecimento de felicidade.

Nestas práticas, tinham chegado ao convento e entraram no refeitório.

 

Era uma comprida sala, de paredes brancas e nuas, com o travejamento do tecto a descoberto. O cheiro enjoativo e quente da comida misturava-se ao perfume do incenso. Uma mesa pequena, reservada ao padre superior, estava arrumada ao tremó, existente à entrada da porta, e a todo o comprimento da estância alinhavam-se duas filas de mesas estreitas, destinadas às refeições dos frades.

O silêncio era tão profundo que se podia ouvir o zumbido das moscas e o ruído que estas faziam ao chocar com os vidros empoeirados e talhados em facetas profundas como os alvéolos dum favo de mel. Da cozinha chegava, às vezes, de mistura com o ruído das vozes, o tinir das caçarolas e pingadeiras.

Ao fundo do refeitório, na parede oposta àquela em que se encontrava a cadeira do prior, erguia-se um andaime de tábuas, junto dum painel coberto por um espesso pano cinzento.

Giovanni logo presumiu que aquela cobertura ocultava a obra em que o mestre trabalhava havia já vinte anos: A Ceia.

Leonardo subiu para as pranchas do andaime, abriu uma caixa onde tinha tintas, pincéis e muitos cartões cheios de desenhos e esboços, e, tirando de lá um pequeno livro latino, enxovalhado e com muitas anotações nas margens, entregou-o ao discípulo, dizendo: "Lê-me o capítulo

XIII do Evangelho de S. João."

E, dizendo isto, descobriu o quadro.

Quando Giovanni levantou os olhos, pareceu-lhe no primeiro momento que tinha diante de si, não o "fresco", mas um espaço novo, cheio de ar e de luz, que atravessava o muro do refeitório; as traves do tecto prolongavam-se na perspectiva do quadro até aos últimos planos do mesmo; a luz do ambiente fundia-se com a tranquila claridade crepuscular, azulada, dos cimos de Sião, que se divisavam pelas três janelas deste novo refeitório, quase tão simples como o dos frades, mas adornado de tapeçarias e duma aparência mais misteriosa e mais hospitaleira.

A longa mesa do quadro era semelhante à do refeitório do mosteiro: a mesma toalha de listas arrendadas e finas, com os cantos amarrados, fazendo pregas desiguais, os mesmos pratos, os mesmos copos, os mesmos vasos para o vinho. E Giovanni começou a ler o Evangelho:

"E antes da solenidade da Páscoa, sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora, para que deste mundo passasse a casa de Seu Pai, como tinha amado os Seus, que estavam neste mundo, assim os amou até o fim.

"Durante a Ceia, já o Diabo tinha metido no coração de Judas

Iscariotes, filho de Simão, o desígnio de O entregar. E Jesus perturbou- se no seu espírito a testificou e disse: Em verdade, em verdade vos digo, que um de vós Me há-de entregar.

"Olhavam pois os discípulos uns para os outros, duvidando de quem Ele falava.

"Ora, um dos Seus discípulos, ao qual amava Jesus, estava recostado à mesa, no regaço de Jesus.

"A este pois acena Simão Pedro com a cabeça, para que perguntasse quem era o de quem isto dizia.

"E esse, tendo-se reclinado sobre o peito de Jesus, diz-lhe: Senhor, quem é esse?

"Responde Jesus: E aquele a quem Eu der o bocado, depois de o molhar. E dá o bocado, depois de o molhar, a Judas Iscariotes, filho de Simão.

"E após o bocado, logo entrou nele Satanás."

Os rostos dos Apóstolos tinham tanta vida que a Giovanni parecia ouvi-los falar e penetrar rnos seus pensamentos mais íntimos; via como aquelas almas estavam perturbadas pela aproximação do irremediável, pela ideia inconcebível da origem do mal, e da expiação das culpas de todos - por um Único - por um Deus!

Judas, João e Pedro impressionaram-no particularmente.

A cabeça de Judas ainda não estava pintada; um esboço incompleto delineava sumariamente a figura: deitado para trás, apertando convulsamente numa mão a bolsa do dinheiro, tinha entornado, num gesto desesperado, o recipiente do sal, que se espalhara sobre a mesa.

Pedro, colérico, erguera-se bruscamente e segurava numa mão uma faca, tendo a outra apoiada sobre o ombro de João, parecendo perguntar ao discípulo favorito de Jesus: "Quem é o traidor?"

A sua cabeça grisalha endireitava-se, nos olhos brilhava-lhe uma chama de amor ardente e essa ânsia de heroísmo que o fazia dizer mais tarde, quando compreendeu que o martírio e a morte de Jesus eram inevitáveis: "Senhor, porque não posso eu acompanhar-Te? Eu daria a minha vida por Ti!"

João estava ao lado de Jesus, os seus cabelos, sedosos e lisos, no alto da cabeça, repartiam-se anelados; as pálpebras meio descidas, como pesadas por uma sonolência, as mãos juntas numa contrita submissão, o oval puro do rosto, tudo nele respirava uma calma e celestial serenidade.

Era o único de todos os discípulos que já não sofria, nem temia, nem se irritava. Nele cumpria-se a vontade do Mestre: "Que todos sejam um, assim como Tu, Pai, estás em Mim, e Eu em Ti!"

Giovanni não se cansava de admirar e pensava:

"Eis como é Leonardo! E pude eu, um momento, duvidar dele, e estive prestes a acreditar em maledicências! O artista que criou esta obra não pode ser um incrédulo; ninguém ama Jesus Cristo com maior devoção!"

Tendo terminado de retocar a cabeça de João, o pintor tomou um bocado de carvão e tentou desenhar o rosto de Jesus. Mas ainda desta vez não o conseguiu!

Depois de ter pensado nesse rosto durante dez anos, era incapaz de reproduzir qualquer feição.

Hoje, como sempre, em frente do espaço branco e vazio em que devia resplandecer a face do Redentor, o mestre sentia a sua incapacidade e duvidava de si próprio. Deitou fora o carvão, apagou com uma esponja os traços que levemente esboçara, e afundou-se numa dessas meditações que, por vezes, o conservavam durante horas inteiras aniquilado diante do quadro.

Giovanni subiu para o andaime, aproximou-se silenciosamente e viu- lhe no rosto envelhecido e sombrio uma expressão de desalento vizinha do desespero.

Ao ver o olhar enlevado e carinhoso de Giovanni, Leonardo disse, com afabilidade:

- Que te parece, meu filho?

- Que posso eu dizer, messer? É belo; é a coisa mais bela que ainda vi neste mundo! Ninguém nunca compreendeu isto, como vós... Mas, mais vale calar-me. Que sei eu; que posso eu dizer?...

A sua voz era repassada de comoção.

Neste momento, entrou César de Sesto, acompanhado de um homem que envergava o vestuário usado pelos operários em exercício na corte do Duque. Tinham-no mandado buscar Leonardo para que fosse reparar a tubagem da sala dos banhos e das cozinhas, que não funcionava.

Leonardo abandonou o quadro e seguiu-o, depois de ter pedido a Giovanni para o esperar à entrada do Castelo.

Uma hora mais tarde, já este estava no local indicado, mas o mestre ainda não chegara.

O jovem aproximou-se da estátua gigantesca, que dominava as casas e as árvores circunjacentes. Chamavam-lhe o Colosso: era da autoria de Leonardo de Vinci e estava colocada à entrada do castelo dos Sforza.

O cavalo, enorme, moldado em barro verde-escuro, projectava a sua sombra, erguido sobre as patas traseiras, e esmagando, com o enorme peso, um guerreiro caído. O cavaleiro erguia o ceptro ducal no braço estendido - era o grande condottière Francisco Sforza, aventureiro, meio soldado, meio bandido, que fizera almoeda do seu sangue. Filho dum humilde cavador, valente como um leão, matreiro como uma raposa, tinha-se elevado ao poder por brilhantes feitos de armas, mas também por muitos crimes e por muita perfídia. E morreu Duque de Milão.

Um raio de sol iluminou o rosto do Colosso.

Nos refegos do seu pescoço rebarbativo, no agudo olhar dos seus olhos minazes, transparecia a segurança da fera saciada.

Sob o pedestal de argila, Giovanni leu o dístico gravado pela própria mão de Leonardo:

Expectant animi molemque futuram

Suscipiciunt; fluat oes; vox erit: Ecce Deus!

Estas últimas palavras impressionaram-no: Ecce Deus! Eis o Deus!

"Deus!", repetiu, contemplando o Colosso de barro e a vítima que o cavalo do tirano Sforza espezinhava! Evocou as imagens do refeitório silencioso, no convento de Santa Maria das Graças, as montanhas azuis do Sião, a divina beleza do rosto de S. João e a solenidade mística da última Ceia de Deus, desse de quem se diz: Ecce homo! Eis o homem!

"Como é possível que o mesmo artista tenha concebido e realizado estas duas obras: a Ceia e a estátua do Colosso?

"De qual das duas, em sua opinião, se deve dizer: Ecce Deus? Ou será possível, como afirma César, que este homem seja um descrente e que nenhum Deus tenha morada no seu coração?!" Estava dominado por estes pensamentos, quando Leonardo apareceu.

Está tudo pronto, acabei a reparação; podemos voltar para casa.

 

Durante a noite, enquanto em casa todos dormiam, Giovanni, que não conseguira conciliar o sono, saiu para o pátio e sentou-se num banco, no alto do terraço abrigado por uma parreira.

O pátio era quadrado, com um poço no meio; o terraço estava encostado à casa e, em frente, erguiam-se as cavalariças. À esquerda, um muro de pedra cujo portão dava para a estrada da Porta Verceil; à direita, a parede dum jardinzinho, ao fundo do qual se divisava uma pequena casa isolada; a estreita porta que dava acesso ao jardim estava sempre fechada à chave, porque o mestre, à excepção de Astro, não deixava entrar lá ninguém e, muitas vezes, ia ali trabalhar na mais absoluta solidão.

A noite estava sossegada, quente, húmida, com um espesso nevoeiro que a claridade leitosa da Lua impregnava.

Alguém bateu ao portão do muro que dava para a estrada.

As persianas de uma das janelas do rés-do-chão entreabriram-se e um homem assomou, perguntando:

- Monda Cassandra?

- Sim, sou eu. Abre!

Astro saiu e veio abrir a porta.

Uma mulher, vestida de branco, que a claridade da Lua fazia parecer vaporosa e envolvia num reflexo glauco, entrou no pátio.

A entrada, disse a meia voz qualquer coisa a Astro; depois passaram diante de Giovanni, sem o ver, porque ele estava oculto pela sombra negra projectada pelo telheiro do terraço e pelos ramos da parreira. A jovem sentou-se sobre o muro baixo do poço.

Tinha um rosto estranho, inexpressivo e parado, como o de uma estátua antiga, a testa baixa, os supercílios direitos, um mento excessivamente pequeno e os olhos duma transparência doirada como o âmbar.

Mas o que mais impressionou Giovanni foram os cabelos; eram finos, flocosos e pareciam ter uma vida própria como as serpentes da Medusa; rodeavam-lhe a cabeça duma aréola negra que fazia parecer a sua tez ainda mais pálida, os lábios mais vermelhos e os olhos mais doirados e mais translúcidos.

- Tu também já ouviste falar no irmão Ângelo? - perguntou a rapariga.

- Sim, morena Cassandra. Dizem que o Papa o enviou para destruir a magia negra e todas as heresias. Faz arrepios ouvir como a pobre gente do povo fala dos padres da Inquisição. Livre-nos Deus de lhes cair nas garras! Vós, Cassandra, deveis tomar muito cuidado! E avisai, também, a vossa tia Sidónia...

- Ela não é minha tia...

- É a mesma coisa; avisai monna Sidónia, é com ela que viveis.

- Ouve lá. Tu pensas que somos feiticeiras?

- Eu não penso nada. Messer Leonardo já me explicou muito bem todas essas coisas, e demonstrou-me que, pelas leis da Natureza, não há nem pode haver feitiçarias. Messer Leonardo tudo sabe e não acredita em nada que...

- Ele não acredita em nada - repetiu monna Cassandra. - Ele não acredita no Diabo. E em Deus?

- Não façais críticas. Messer Leonardo é um justo!

- Acreditas nisso?!... E em que estado está a vossa máquina voadora? - perguntou, de repente, Cassandra. - Já está pronta?

O ferreiro teve um gesto de hesitação.

- Não, não está pronta. Vamos fazer tudo de novo outra vez.

- Ah! Astro, Astro! Como podes tu acreditar nessas histórias! Pois tu não vês que todas essas máquinas só servem para desviar a atenção?

Eu suponho que messer Leonardo já voa há muito tempo...

- Que quereis dizer?

- Quero dizer que ele voa da mesma maneira que eu; eu também voo...

Astro contemplava-a com os olhos espantados; e, juntando as mãos como se fosse fazer uma oração, exclamou:

- Monna Cassandra, sabeis que eu sou um homem digno de confiança. Dizei-me tudo, contai-me o vosso segredo.

- Tudo o quê? Que segredo?

- Explicai-me como é que voais.

- Ah! Interessa-te saber isso? Pois bem, não, não te direi. Aquele que sabe muitas coisas, torna-se velho antes de tempo.

Calou-se e, depois de o ter olhado demoradamente, acrescentou em voz baixa:

- De nada serve falar! É preciso realizar!

- E o que é preciso fazer? - perguntou com voz trémula e empalidecendo.

- Depois de saber a palavra mágica, há que embeber o corpo num certo preparado, num veneno...

- E vós possuís esse veneno?

- Sim.

- E sabeis a palavra mágica?

A rapariga baixou afirmativamente a cabeça.

- E, com isso, eu poderei voar?

- Experimenta, e verás que é mais seguro que a tua mecânica!

O olho único do ferreiro começou a brilhar com o fogo dum desejo insensato.

- Monna Cassandra, dai-me o vosso veneno; eu quero experimentar.

Pouco me importa que seja graças a um milagre ou devido à minha mecânica, contanto que eu voe! Não posso esperar mais tempo...

- Está bem! Que Deus te proteja! Tu fazes-me pena; creio que acabarás por enlouquecer, se não conseguires voar. Seja assim. Eu vou dar-te o veneno e ensinar-te a palavra mágica, com a condição, Astro, de que tu também me farás aquilo que eu te pedir!

- Fá-lo-ei, monna Cassandra, tudo o que vós quiserdes. Falai!

A rapariga apontou-lhe as telhas molhadas do tecto que luzia para lá do muro do jardim, sob a névoa lunar.

- Deixa-me entrar ali!

Astro abanou negativamente a cabeça.

- Não; tudo, menos isso!

- Porquê?

- Eu dei ao mestre a minha palavra de que não deixaria lá entrar ninguém.

- Mas tu já lá tens estado?

- Sim, eu posso lá entrar.

- Então, conta-me. O que há lá dentro?

- Realmente, monna Cassandra, nada de extraordinário, nem de curioso, nenhum segredo: máquinas, instrumentos, livros e manuscritos. Há também algumas flores raras, e plantas e animais... E também uma árvore... venenosa...

- Sim, para experiências. O mestre envenenou-a para estudar o efeito do veneno sobre as plantas.

- Oh! Astro! Conta-me tudo o que sabes a respeito dessa árvore.

- Mas não tem nada que contar. No começo da Primavera, quando a seiva começava a subir, o mestre furou o tronco até à medula, e com uma comprida agulha injectou o líquido venenoso.

- Mas que estranhas experiências! E que árvore é essa?

- Um pessegueiro.

- E os frutos agora serão venenosos?

- Sim. Quando estiverem maduros serão venenosos.

- E há algum sinal exterior pelo qual se reconheça que estão envenenados?

Não. Ninguém o.pode perceber. E é por isso que o mestre não deixa lá entrar ninguém

- Tu tens a chave?

- Tenho.

- Então, dá-ma, Astro.

- Que dizeis, monna Cassandra? Estais louca. Eu jurei...

- Dá-me a chave - repetiu Cassandra. - E ainda esta noite te farei voar, ouve bem, ainda esta noite! Olha, está aqui o veneno.

Tirou do seio um frasquinho de vidro, cheio dum líquido escuro, que brilhava palidamente à claridade da Lua e, aproximando-o do rosto de

Astro, disse-lhe, num tom insinuante:

- De que tens medo, piegas? Tu próprio disseste que não há nenhum segredo. Nós vamos entrar apenas, e ver... Anda, dá-me a chave!

- Deixai-me, deixai-me - disse ele. - Eu não faltarei à minha palavra, guardai o vosso veneno! Ide-vos embora!

- Poltrão! - disse a rapariga com desprezo.

Astro calou-se, aborrecido, e desviou-se. A rapariga aproximou-se dele novamente.

- Está bem, Astro, tens razão... Eu não entrarei lá. Mas entreabre ao menos a porta e deixa-me espreitar...

- Não entrareis?

- Não, abre só para eu ver.

Astro tirou a chave da algibeira e foi abrir.

Giovanni ergueu-se e viu ao fundo do jardinzinho, rodeado de muros, um pessegueiro vulgar, mas que, na claridade pálida e nublada da Lua, tomava um aspecto fantástico e de mau augúrio.

No limiar da porta, a rapariga olhava com os olhos muito abertos, numa curiosidade ávida; depois deu um passo para entrar, mas o ferreiro segurou-a.

Ela lutou, escorregando-lhe das mãos, como uma enguia, mas ele empurrou-a com tal violência que a fez cair.

Cassandra ergueu-se de repente, lívida como uma morta, e os seus olhos tinham uma expressão terrível de maldade; parecia nesse instante ser, na verdade, uma feiticeira.

O ferreiro tornou a fechar a porta do jardim e entrou de novo em casa, sem se despedir de monna Cassandra.

Esta seguiu-o um momento com os olhos. Depois, passando rapidamente diante de Giovanni, atravessou o pátio e saiu.

E o silêncio reinou de novo enquanto o nevoeiro se adensava acabando por fundir todo o cenário numa massa única e impenetrável.

 

                             CAPÍTULO III

OS FRUTOS VENENOSOS (1494)

"E disse a serpente à mulher: Não morrereis ao certo.

Porque sabe Deus que, no dia em que comerdes dele, se abrirão então os vossos olhos, e far-vos-ei como Deuses, conhecendo o Bem e o Mal."

               Génese, 111 - V 4 e 5

"Depois de ter furado o tronco de uma árvore nova, injectai-lhe arsénico, sublimado corrosivo e ácido sulfúrico dissolvidos em álcool e tomareis os frutos venenosos."

                         Leonardo de Vinci

I

A Duquesa Beatriz fazia doirar os cabelos todas as sextas-feiras. Uma vez lavados e tintos, era necessário deixá-los secar ao sol, e para esse efeito (muitas damas italianas tinham adoptado esta moda) construíam- se os altana, espécie de terraços circundados de balaustradas, sobre os telhados das casas.

A Duquesa estava sentada no altana do magnífico palácio que os Sforza possuíam nos arredores de Milão, na margem direita do Tessino, entre as pastagens e os prados luxuriantes e verdes da província de Lomelina, suportando pacientemente o ardente calor do sol, na hora em que os trabalhadores do campo se vêem obrigados a refugiar-se, com as suas juntas de bois, à sombra protectora das árvores.

Estava envolta num amplo penteador, espécie de romeira de seda branca, sem mangas, o schiavinetto, e tinha a cabeça coberta com um chapéu de palha que preservava a sua epiderme da acção corante da luz.

O chapéu tinha a copa quase totalmente cortada, de forma a que, por essa larga abertura, saíssem os cabelos doirados, que ficavam depois estendidos sobre todo o círculo das largas abas.

Uma escrava circassiana, de tez amarelada, ia humedecendo com uma esponja, fixada na extremidade dum cabo, os cabelos que uma outra serva, tártara, de olhos estreitos e oblíquos, ia penteando com um pente de marfim.

As duas escravas estavam alagadas em suor; o próprio cãozinho da Duquesa não sabia onde acolher-se, naquele terraço escaldante; lançava à ama olhares repassados de queixa, a língua pendente, respirando com dificuldade e sem força sequer para rosnar. O macaco, esse sentia-se feliz no meio daquele calor, tal-qual o negrito que segurava um espelho com moldura de nácar, orlada de pérolas.

Se bem que aparentasse sempre o ar de severidade e a atitude imponente e majestosa, que julgava convir à sua jerarquia, Beatriz não conseguia ocultar a sua mocidade de dezanove anos, e ninguém a julgaria já casada há mais de três e mãe de dois filhos. A colegial mimada, autoritária, duma vivacidade sem freio, traía-se na forma infantil das suas bochechas, na finura do pescoço, nos lábios carnudos, caprichosamente contraídos, no queixo muito redondo, nos ombros estreitos, no peito sem relevo, e, enfim, nos seus gestos impetuosos, que lembravam os de um rapaz. E, no entanto, um espírito calculador fazia brilhar os seus olhos pardos cheios de firmeza e transparentes como o vidro.

O mais clarividente dos homens de Estado da época, Marino Sanuto, cônsul de Veneza, assegurava, nas cartas confidenciais ao seu governo, que esta rapariguinha era dotada de grande tacto diplomático, e que a sua habilidade política excedia, em muito, a de seu marido, o Duque Ludovico, que fazia bem em consultá-la em todos os assuntos.

O cachorrito começou a ladrar irritado.

Uma velha, com vestes negras de viúva, apareceu no alto da escada que ligava o altana aos quartos de vestir. Trazia numa mão o rosário e segurava na outra uma muleta, arrastando-se com dificuldade, gemendo e suspirando.

- Oh! Como custa ser velha... Mal posso subir a escada! Deus tenha Vossa Graça em boa saúde! - disse a velha, e, erguendo servilmente a orla do schiavinetto, que rojava por terra, beijou-o.

- Ah, rnonna Sidónia! E então, arranjaste?

A velha tirou dum saco um pequeno frasco de vidro, lacrado, que continha um licor esbranquiçado e turvo, leite de burra e de cabra, misturado com uma infusão de badiana, raízes de espargos e cebolas de lírio branco.

- É melhor deixá-lo descansar um dia ou dois, em estrume de cavalo, bem quente; mas, no entanto, julgo que já pode servir. Filtrai-o primeiro pelo feltro e depois molhai nele um pouco de miolo de pão untado de manteiga e esfregai o vosso ilustre rosto durante o tempo de rezar três Credos. Cinco semanas depois todo o bronzeado da pele terá desaparecido e tereis recuperado a vossa alvura natural. É também um excelente remédio para as borbulhas.

Monna Sidónia inclinou-se depois para a Duquesa e começou a contar-lhe, ao ouvido, os últimos escândalos e intrigas da cidade: Como a jovem esposa do cônsul-geral da Gabela, a linda madona Felisberta, enganava o marido com um gentil-homem espanhol; a razão por que madona Angélica, que ia encalvecendo, adoptara um certo penteado; e muitas outras histórias e mexericos. No caminho para o castelo, dizia ela, tinha atravessado a praça do palácio de Pavia, onde encontrara um grande ajuntamento. Quando madona Isabel aparecera ao balcão, com o filho, o pequeno Francisco, todos agitavam as mãos e os chapéus e muitos choravam. Gritavam: Viva Isabel de Aragão, viva João Galeas, soberano legítimo de Milão, e o seu herdeiro Francisco!

- Mais nada?

- Sim... Mas... Não me atrevo a dizer...

- Vamos, que mais diziam?

A velha baixava os olhos e continuava calada.

- Explica-te! Ordeno-te, fala!

- Gritavam... Senhora... gritavam: "Abaixo os usurpadores do trono!"

Beatriz fez uma careta.

- Então gritavam isso?

- Sim, e pior ainda...

- Que mais? Diz tudo, não tenhas receio!

- Gritavam... a minha boca recusa-se, Senhora... Gritavam: "Morram os ladrões!" - e a velha beijou novamente, num gesto contrito, a fímbria da veste de Beatriz. - Vossa Magnificência! Perdoai-me dizer estas coisas, minha linda estrelinha! Estimo-vos tanto, acreditai - disse chorando -, que rezo sempre por vossa intenção quando cantam o Magnificat nos ofícios de S. Francisco. Há quem me julgue feiticeira, mas mesmo que fosse verdade, mesmo que eu tivesse vendido a minha alma, Deus sabe que só o teria feito para melhor servir Vossa Alteza.

A Duquesa olhava-a em silêncio, cheia de curiosidade.

- Ao atravessar o jardim do palácio, para vir aqui - continuou monna Sidónia, num tom indiferente -, vi um jardineiro colhendo, para um cabaz, uns magníficos pêssegos: é, naturalmente, um presente que ides mandar a messer João Galeas?

E, depois de uma pausa, continuou:

- Nos jardins do mestre florentino Leonardo de Vinci há também uns pêssegos duma beleza surpreendente, mas... são venenosos... Sim, a minha sobrinha, monna Cassandra, já os viu...

A velha começou de novo a cochichar qualquer coisa ao ouvido de

Beatriz.

A Duquesa não respondeu nada. O seu rosto mantinha uma expressão de completa impassibilidade e indiferença. Os cabelos estavam já secos; levantou-se, despojou-se do schiavinetto e desceu para os quartos de vestir. Uma vez ali, escolheu um vestido, que muito lhe agradava, por julgar que disfarçava bem a sua estatura minúscula: o tecido deste era de riscas verticais, em que o brocado de oiro alternava com o veludo verde. As mangas, ligadas por fitas cor de cinza, eram justas, com abertos, à moda francesa, deixando passar o pregueado fino e elegante do linho branco da camisa. Uma rede de oiro, duma finura quase vaporosa, sustinha-lhe os cabelos apartados em bandós. A cabeça estava cercada duma estreita cadeia, também de oiro, a ferronnière, à qual, no meio da testa, estava fixado um escorpião todo de rubis.

Beatriz costumava demorar tanto tempo a vestir-se e a embelezar-se que, segundo a expressão do marido, "poderia, entretanto, equipar-se completamente um navio mercante para as Índias".

 

Ao longe, ressoaram as trompas e ouviu-se o latido dos cães. Beatriz recordou-se de que tinha organizado uma caçada para esse dia e apressou-se. Uma vez pronta, deteve-se, ao passar, no quarto dos seus anões, que, por ironia, costumava designar com o nome de "morada dos gigantes", e que tinha sido construído segundo o modelo dos quartos de brinquedos do palácio de sua irmã Isabel de Este.

As cadeiras, os leitos, os utensílios, as escadinhas de degraus largos e baixos, uma capela mesmo, com um altar microscópico no qual o anão sábio Janacci oficiava, vestido de uma casula e de uma mitra feitas especialmente para ele, tudo era proporcionado à estatura dos pigmeus.

Nesta "morada dos gigantes" havia sempre barulho, risos, choros, gritos muitas vezes terríveis, como numa jaula ou numa casa de doidos: porque ali agitavam-se, nasciam, viviam e morriam, numa promiscuidade imunda e sufocante, macacos, marrecos, papagaios, árabes, loucas, bobos, anões, coelhos e vários animais recreativos, no meio dos quais a Duquesa gostava, muitas vezes, de vir passar o dia e onde se divertia como uma criança.

O seu negrinho Nanino, preto como o alcatrão, e que lhe tinham enviado de Veneza, estava doente, havia já alguns dias. Passara uma má noite e Beatriz receava que ele não se restabelecesse. A Duquesa deu ordem para que o baptizassem o mais depressa possível, não fosse morrer pagão.

Noa patamar da escada encontrou a sua favorita, a pequena Morgantina, uma linda anã, idiota e tão divertida que, dizia Beatriz, era capaz de fazer rir um morto.

Mas, às vezes, essa tão alegre anã tornava-se subitamente triste e sombria, e, então, passava dias inteiros soluçando e gritando que lhe tinham roubado um filhinho, que ela nunca tinha tido.

Com as mãos à roda dos joelhos, Morgantina chorava nessa ocasião copiosamente. A Duquesa fez-lhe uma festa na cabeça:

- Não chores mais, pequerrucha, tem juízo!

A anã ergueu os olhos azuis e infantis para a Duquesa e redobrou o seu choro:

- Oh! Oh!... Que desgraçada que eu sou, roubaram-me o meu querido menino! E porquê, meu Deus, porquê?... Ele não fazia mal a ninguém... Era a minha única alegria...

A Duquesa, deixando-a, dirigiu-se ao pátio onde os caçadores a esperavam.

Rodeada de batedores, de falcoeiros, de palafreneiros, damas de honor e pajens, conservava-se ousada e direita na sela do seu cavalo árabe, baio escuro, de formas esbeltas; Beatriz montava, não como uma mulher mas como um hábil picador. "É a verdadeira rainha das amazonas", pensava o Duque Ludovico, com orgulho, na varanda do palácio, donde assistia à partida de sua mulher.

A Duquesa estava de bom-humor, apetecia-lhe brincar, rir, galopar, mesmo com risco de ser desmontada. Com um sorriso dirigido ao marido, que mal teve tempo de lhe gritar: "Tome cuidado, o cavalo é fogoso!", fez um sinal aos seus companheiros e começou a galopar, esforçando-se por ultrapassá-los, primeiro na estrada, depois através dos campos, por cima de sebes e valados.

Os batedores ficaram para trás. Beatriz tomara a cabeça, com o seu enorme buli-dog preferido, e, ao lado dela, sobre uma égua espanhola, negra, ai mais alegre e a mais audaciosa das suas damas de honor, Lucrécia Crivelli.

Esta Lucrécia trazia já há muito tempo perturbado, pelos seus encantos, o Duque Ludovico. Quando há pouco a vira partir, admirada por todos, ao lado de Beatriz, não sabia dizer ao certo qual das duas mais lhe agradava. Depois, ficara inquieto, receando que sucedesse qualquer desastre a sua mulher. Quando os cavalos saltavam uma vala, fechava os olhos para não ver e sentia-se confrangido.

Ludovico repreendia a Duquesa pelas suas extravagâncias, mas no fundo era incapaz de se zangar a sério. Sentia que a ele próprio faltava aquela audácia física, e orgulhava-se da coragem da mulher.

Os caçadores desapareceram detrás dos vimieiros que cobriam as margens baixas do Tessino, onde abundavam os patos, as narcejas e as garças. O Duque, entrando em casa, dirigiu-se ao seu gabinete de trabalho, studiolo.

O secretário-geral, o dignitário a cargo de quem estavam as embaixadas estrangeiras, messer Bartolomeu Calco, esperava-o para continuarem os trabalhos interrompidos.

 

Sentado numa cadeira de espaldar elevado, o Mouro afagava, com a mão branca e bem tratada, as faces barbeadas e o queixo liso.

O seu rosto conseguia traduzir o aspecto duma franqueza sincera, qualidade que só é dada às pessoas versadas na arte ardilosa da política.

O grande nariz aquilino, com uma pequena bossa, e os lábios delgados e sinuosos davam-lhe uma expressão de hipocrisia que lembrava o grande condottière, seu pai, Francisco Sforza. Mas, enquanto seu pai era, simultaneamente, raposa e leão, segundo a expressão dos poetas, o Mouro só lhe tinha herdado a manha, sem a compensação da bravura do rei das selvas.

Ludovico envergava um trajo simples e elegante de seda azul-pálido, com ramagens, e o seu penteado, liso, à moda, a zazzera, que lhe cobria as orelhas e a testa quase até às sobrancelhas, dava a impressão duma cabeleira muito basta. Uma cadeia de oiro pendia-lhe do peito. O Duque de Milão era sempre duma delicadeza exagerada e igual para todos.

- Haveis recebido já informações exactas, messer Bartolomeu, acerca da partida das tropas francesas de Lião?

- Nenhumas, Alteza. Todas as noites anunciam a saída para a manhã seguinte, e sempre a adiam. O rei está muito ocupado em distracções que nada têm de guerreiras.

- Sabeis como se chama a sua favorita?

- Creio que tem muitas. O génio de Sua Majestade é voluptuoso e adora a variedade.

- Escrevei ao Conde Belgiojoso - disse o Duque - que lhe vou mandar trinta mil... Não, é muito pouco... cinquenta mil ducados, para ele fazer novos presentes. Que não poupe nada! Vamos fazer sair o Rei, de Lião, por meio de cadeias de oiro. E sabeis uma coisa, Bartolomeu, é claro que isto fica entre nós, parecia-me de boa política enviar a Sua

Majestade os retratos de algumas beldades de Milão. Isso actuaria sobre o Rei da mesma forma que o oiro sobre o seu séquito.

Ludovico esfregou uma contra a outra, cheio de satisfação, as suas mãos brancas e finas.

Sempre que examinava a enorme teia de aranha da sua política, sentia o coração palpitar de contentamento. Em sua consciência não sentia remorsos de ter chamado à Itália os estrangeiros, esses bárbaros do Norte, porque fora forçado a isso pelos seus inimigos; especialmente pelo pior de todos, Isabel de Aragão, a mulher de João Galeas, que o acusava publicamente de ter usurpado o trono que pertencia ao sobrinho. Só quando o pai de Isabel, o Rei de Nápoles, Afonso, ameaçara o Mouro com a guerra e com a perda do poder, para vingar o seu genro e a filha, é que o Duque, abandonado por todos, se dirigira ao Rei de França, Carlos

VIII, a pedir-lhe auxílio.

"Os Teus desígnios são impenetráveis, Senhor!", pensou o Duque enquanto o seu secretário escrevia a carta. "A salvação do meu ducado, da Itália, talvez de toda a Europa, está nas mãos desse lamentável vagabundo, desse menino autoritário e idiota, o mui cristão Rei de França, diante do qual nós, os descendentes dos grandes Sforza, somos obrigados a rastejar e a servir de alcoviteiros!"

Mas, assim é a política! Quando se vive no meio dos lobos é preciso uivar como eles.

Um velho baixo, calvo e marreco, com um grande nariz vermelho, apareceu à entrada do studiolo; o Duque, com um sorriso afável, fez-lhe sinal para esperar.

A porta tornou a fechar-se de manso e o velho desapareceu.

O secretário começara a tratar de outro assunto, mas o Mouro escutava-o distraidamente, lançando olhares furtivos para a porta. Messer Bartolomeu, vendo que o espírito do Duque estava já ausente e ocupado noutra coisa, abreviou as suas considerações e retirou-se.

Olhando, então, cautelosamente para todos os lados, o Duque aproximou-se da porta nas pontas dos pés.

- Bernardo, ó Bernardo, estás aí?

- Sim, Alteza!

E o poeta da corte, Bernardo Bellincioni, entrou rapidamente; os seus gestos eram cheios de mistério e no seu rosto dominava a mais lídima expressão do servilismo; quis ajoelhar para beijar a mão do seu senhor, mas este não consentiu.

- Então, já deu à luz?

- Dignou-se ter o parto esta noite, Alteza.

- Está bem de saúde?

- Graças a Deus!

O Duque benzeu-se.

- Viste a criança? E rapaz ou rapariga?

- Um rapaz. E forte, e barulhento!... Tem uns cabelos loiros que fazem lembrar os da mãe, e os olhos vivos, negros, inteligentes, tal e qual os de Vossa Graça. Vê-se logo que tem sangue real! E um hércules pequenino, no berço. Madona Cecília, que não se cansa de o admirar, encarregou-me de vos perguntar que nome vos seria agradável que o menino tivesse.

- Já tinha pensado nisso - disse o Duque. - Sabes, Bernardo...

Vai chamar-se César. Que te parece?

- César? É um nome soberbo, antigo e que soa bem! Sim, sim, César Sforza, é o verdadeiro nome para um herói!

- E o marido, o que diz?

- O sereníssimo Conde de Bergamini continua, como sempre, amável e encantador.

- E realmente uma excelente criatura - concordou o Duque, convictamente.

A Condessa Cecília Bergamini era amante de o Mouro havia já muito tempo. Beatriz tivera conhecimento daquela ligação logo a seguir ao casamento e, num acesso de ciúme, ameaçara Ludovico de voltar para casa do pai, o Duque de Ferrara, Ercole de Este. Fora necessário a o Mouro jurar solenemente diante dos enviados de Ercole que de futuro respeitaria escrupulosamente a fidelidade conjugal; e para confirmar a promessa casara Cecília com o velho Conde de Bergamini, um fidalgo arruinado, capaz de todas as complacências.

Bellincioni tirou da algibeira um papel que deu ao Duque.

Era um soneto em honra do recém-nascido, um pequeno diálogo no qual o poeta perguntava ao deus Apoio qual a razão por que se cobria de nuvens. E o Sol respondia, com a subserviência dum cortesão, que o fazia por se sentir envergonhado diante do novo astro que despontava: o filho de o Mouro e de Cecilia.

O Duque acolheu favoravelmente o soneto, que recompensou com um ducado de oiro.

- A propósito, Bernardo, espero que não tenhas esquecido que no sábado faz anos a Duquesa?

Bellincioni rebuscou febrilmente na espécie de saco que lhe servia de algibeira, a sua indumentária oscilava entre a do cortesão e a do mendigo.

sacou de lá um rolo de papéis já enxovalhados e começou a procurar os versos pedidos entre as odes grandiloquentes e as elegias em que se deplorava a morte do falcão de madona Angélica e a doença da égua húngara, malhada, da senhora Pallavicini.

- Tenho aqui três à escolha de Vossa Alteza! E por Pégaso vos juro que ficareis contente.

Nesse tempo, os soberanos serviam-se dos poetas da corte como de instrumentos de música, para cantar serenatas não só em louvor das amantes mas, também, das próprias esposas, exigindo, além disso, a moda, que nessas poesias o amor conjugal fosse tratado sob o prisma do mais puro idealismo, como os amores de Laura e Petrarca!

O Mouro leu as obras com curiosidade: tinha-se na conta de um amador consciencioso, poeta nato, a quem não fora dada a faculdade de rimar...

Dois versos o entusiasmaram principalmente, num dos sonetos, quando o marido dizia a sua mulher:

Sputando in terra quivi nascon fiori,

Come di primavera le violei.

Num outro soneto, o poeta comparava madona Beatriz à deusa Diana e asseverava que os javalis e os veados sentiam verdadeira beatitude em receber a morte das mãos duma tão linda caçadora!

O Duque, bem disposto, deu uma palmada nas costas do poeta e prometeu-lhe fazenda vermelha de Florença, para fazer uma peliça no próximo Inverno. Bernardo, com grande choradeira, e asseverando ao Duque que a sua capa estava já muito transparente e esburacada, conseguiu que este alargasse a promessa para mais uma pele de raposa destinada à gola.

- O Inverno passado sofri tanto com o frio e com a falta de lenha que estive a pontos de queimar a própria escada.

O Duque, divertido, prometeu também mandar-lhe um carro de lenha.

- Estás hoje inspirado, Bernardo? Ouve, preciso ainda que me arranjes mais uma poesia.

- Amorosa?

- Sim, e muito apaixonada.

- Para a Duquesa?

- Não, mas toma muito cuidado, é necessário que sejas mudo como um peixe.

Bernardo piscou o olho com um ar de cumplicidade e de malícia.

 

1 Se cospes para o chão fazes nascer as flores como as violetas na Primavera.

 

- Apaixonada? Mas em que sentido? Uma súplica ou agradecimentos?

- Uma súplica.

O poeta tomou uma expressão meditativa, concentrando-se.

- Senhora casada?

- Não, uma donzela.

- Bem! Como se chama?

- Para que precisas saber?

- É indispensável, Alteza; se os versos devem conter uma prece, como fazê-la sem nomear a santa?

- Madona Lucrécia. Não tens nada já pronto, neste género?

- Sim, Monsenhor, tenho, mas realmente gostava mais de fazer qualquer coisa de especial e de novo. Deixai-me recolher uns momentos aqui no quarto ao lado! Já sinto as rimas a borbulhar-me na mente, e não vos farei esperar muito!

Um pajem entrou anunciando:

- Messer Leonardo de Vinci.

Bernardo, tomando à pressa papel e uma pena, fugiu por uma porta, enquanto De Vinci entrava pela outra.

 

Depois das primeiras saudações, o Duque começou a conversar com o pintor acerca do grande canal, o Naviglio Sforzesco, em construção, que devia ligar o Césia com o Tessino, ramificando-se em vários canais mais pequenos, regando e fertilizando os prados e os campos de Lomellina.

Leonardo dirigia estes trabalhos, se bem que não tivesse o título de construtor da corte, nem mesmo o de pintor, mas apenas, e mais modestamente, o de músico, sonatore di lira, que lhe fora conferido noutro tempo por ter inventado um instrumento de música. Este título dava-lhe uma categoria um pouco superior à dos poetas da corte, de Bellincioni, por exemplo.

Depois de ter explicado pormenorizadamente ao Duque vários planos, e contas, o pintor pediu-lhe se dignasse dar as suas ordens relativas ao dinheiro necessário para a continuação dos trabalhos.

- Quanto? - perguntou-lhe o Duque.

- Quinhentos e setenta ducados por légua, ou seja, ao todo, quinze mil cento e oitenta e sete ducados respondeu Leonardo.

O semblante de Ludovico carregou-se, recordando-se dos cinquenta mil ducados que destinara para corromper os fidalgos franceses.

- É caro, messer Leonardo! Tu arruínas-me, na verdade! Só queres coisas impossíveis e jamais vistas. Na realidade, os teus projectos são majestosos! Mas, vê tu: Bramante, que é também um construtor de mérito, nunca me pediu somas tão elevadas!

Leonardo encolheu os ombros.

- Como quiserdes, Monsenhor! Encarregai então Bramante deste trabalho!

- Vamos, vamos, não te zangues! Sabes bem que não tenho intenção de te ofender...

E o Duque começou a regatear.

- Bem, está bem! Amanhã veremos! - arrematou, tentando, segundo o seu costume, adiar uma resolução; e começou a folhear os cadernos de Leonardo, cobertos de esquemas incompletos, de desenhos e de projectos de arquitectura.

pintor teve que fornecer-lhe explicações de tudo, coisa que sempre o aborrecia muito.

Entretanto, Bellincioni, tendo terminado o soneto, entreabriu a porta e lançou um olhar para dentro do quarto.

Duque despediu Leonardo, convidando-o para a ceia dessa noite.

Assim que o pintor saiu, o Mouro chamou o poeta e deu-lhe ordem para ler os versos.

A "salamandra", dizia o soneto, vive no fogo, mas não é ainda mais admirável que no meu coração ardente

Uma beldade habite, fria como o gelo,

Sem nunca conseguir o fogo do amor

Ao gelo virginal um dia derretê-lo.

Ao Duque agradou ainda muito o tom particularmente terno da segunda quadra:

Como o cisne que, um dia, canta e morre logo,

Assim imploro o amor: "Valei-me, eu estou ardendo!"

Mas o deus, assoprando, ateia mais o fogo:

"Apaga-o com os teus prantos", diz ele escarnecendo!

 

O Duque deu uma volta pela casa antes de cear, esperando a Duquesa, que em breve devia voltar da caça. Foi visitar os estábulos, semelhantes a um templo grego, com pórticos, colunas, cerrados, para guardar o gado durante o dia; entrou também numa magnífica queijaria, recentemente instalada, onde provou um giuncata, espécie de requeijão fresco. Passou diante de uma série de celeiros e caves e dirigiu-se à leitaria. Cada pormenor alegrava o seu coração de proprietário: o ruído do leite mugido da teta da sua vaca preferida, um animal de Languedoc, branco e vermelho, o grunhido maternal duma grande porca, semelhante a uma montanha de gordura, que acabava de dar à luz, e a espuma, grossa e doirada, nas cubas de freixo, junto do lagar de azeite, e o perfume de mel que exalavam os celeiros transbordantes de trigo!

Um sorriso de contentamento espelhou-se no rosto do Mouro; a sua casa estava realmente cheia como um ovo. Voltou para o palácio e sentou-se no terraço.

Caía a tarde, mas o Sol estava ainda acima do horizonte. Sentia-se uma frescura aromática que subia das pradarias baixas, regadas pelo Tessino. O Duque percorreu com os olhos o seu imenso domínio: as pastagens, os campos, cuja irrigação se fazia por um sistema de canais e de valas, com pomares de maçãs, de pereiras, de amoreiras, ligados por festões de vinhas.

De Mortaria até Abbiategrasso, e mais longe ainda, até aos limites do horizonte, lá onde brilham na bruma as neves eternas do Monte Rosa, a grande planície lombarda florescia, próspera e rica como um recanto do Paraíso.

- Meu Deus! - suspirou enternecido, erguendo os olhos para o céu. - Graças Te sejam por tudo isto! Que mais falta ainda? Outrora, havia aqui um deserto sem vida. Construí canais, com a ajuda de Leonardo; tornei esta terra fértil; e, agora, cada espiga, cada tufo de verdura, me agradece, e eu por minha vez também Te agradeço, Senhor!

Ouviram-se os gritos dos caçadores, os latidos das matilhas e uma espécie de espantalho vermelho com asas de perdiz, que servia para atrair os falcões, apareceu por cima dos vimieiros do rio.

O Duque e o mordomo principal davam uma última volta de inspecção, em torno da mesa já preparada, a ver se tudo estava em ordem, quando a Duquesa entrou na sala, seguida pelos seus convidados, entre os quais se encontrava Leonardo, que devia cear e passar essa noite no castelo.

Lida uma prece, todos se apressaram em tomar os seus lugares.

Primeiro serviram-se alcachofras frescas, trazidas directamente de

Génova por um correio especial, depois enguias gordas e carpas provenientes dos viveiros de Mântua, uma dádiva de Isabel de Este; a seguir um prato frio constituído por peitos de capão.

Conforme a moda, todos comiam com três dedos e com as facas, visto os garfos serem considerados como um luxo extravagante; apenas oti usavam as damas e na altura das frutas e doçaria e eram em geral de oiro, com os cabos de cristal.

O anfitrião fazia, com solicitude, as honras da ceia. Comia-se e bebia-se bem, mesmo demasiado. As damas e as donzelas mais elegantes não se pejavam de manifestar o seu apetite.

Beatriz estava sentada ao lado de Lucrécia.

O Duque, de novo, se recreou ao admirá-las, ao lado uma da outra.

Era-lhe agradável ver sua mulher ocupando-se da sua adorada, servindo- lhe os melhores bocados, murmurando-lhe segredinhos ao ouvido, apertando-lhe por vezes a mão, num transporte dessa ternura travessa e inesperada que se assemelha um pouco ao amor.

Falava-se da caça. Beatriz contou que um veado com as enormes hastes investira contra o cavalo, ao saírem da floresta, e por pouco a não lançara fora da sela.

Os bobos divertiam toda a sociedade. Os risos tornavam-se cada vez mais ruidosos. Os rostos animavam-se e enrubesciam sob a influência das abundantes libações. Depois da quarta iguaria, as donzelas soltavam, a ocultas, os laços das cinturas, demasiado apertados. Os cavalheiros, sob a toalha, procuravam as mãos das suas damas, já enternecidas.

Os copeiros serviam um vinho branco muito leve, e um vinho de Chipre, vermelho, espesso, aquecido e perfumado com canela e cravos da Índia.

Sempre que Sua Alteza pedia de beber, os fâmulos interrogavam-se solenemente como se tivessem de celebrar um ofício divino. A taça era cheia sobre o bufete, e o grande senescal mergulhava nela por três vezes um talismã do feitio dum chifre, preso a uma cadeia de oiro. Se o vinho estivesse envenenado, o corno devia enegrecer e cobrir-se de sangue.

Outros talismãs preservadores, do mesmo género, uma língua de serpente e de pedra que se encontra na cabeça dos sapos, estavam presos às saladeiras.

O Conde de Bergamini, o marido alcachinado e gotoso de Cecília, instalado pelo Duque no lugar de honra, estava nessa noite extraordinariamente alegre, e até jocoso e brincalhão, apesar da sua idade. Designando o chifre, exclamou:

- Eu suponho, Alteza, que nem o Rei de França tem um deste tamanho! E duma envergadura respeitável!

No fim da ceia chegou um frade muito gordo, chamado Tappone.

Depois de se ter benzido e arregaçado as mangas, sentou-se à mesa e começou a comer, com uma voracidade tal, que excitou a hilaridade de todos.

Os convivas à mesa do Duque riam ruidosamente, e as gargalhadas degeneravam, por vezes, num barulho ensurdecedor. Somente Leonardo, sempre silencioso e alheio a tudo quanto o rodeava, mantinha no rosto uma expressão de aborrecimento respeitoso; estava muito acostumado às expansões escandalosas dos seus protectores e nada já conseguia interessá-lo ou causar-lhe admiração.

No fim do banquete os Duques e os seus convidados desceram para o magnífico jardim, chamado o Paraíso, onde nessa noite se representou um espectáculo de versos seguido de canções e de danças, que se prolongaram pela noite fora.

 

O Mouro viu uma luz que brilhava numa das quatro torres do palácio.

Era o astrólogo geral da corte do Duque de Milão, messer Ambrósio de Rosate, senador e membro do conselho secreto, que acendera a sua lâmpada para escolher os instrumentos de astronomia necessários à observação duma conjunção dos planetas Marte, Júpiter e Saturno, que nessa noite se devia produzir no signo do Aquário e ter grande influência nos destinos dos Sforza.

O Duque, assaltado por uma ideia súbita, despediu-se rapidamente de madona Lucrécia, com a qual estava em mui terno e amoroso colóquio sob um hospitaleiro caramanchão. Entrou no castelo, verificou a hora e esperou o minuto e o segundo fixados pelo astrólogo para tomar as pílulas de ruibarbo e engolir outra droga prescrita; consultou o seu calendário de algibeira, onde estava a nota seguinte: "Em cinco de Agosto, às dez horas e oito da noite, rezar com muita fé e devoção, de joelhos, as mãos postas e o olhar erguido para o céu!"

Ludovico apressou-se em direcção à capela, a fim de não deixar passar o momento propício - senão, a prece astrológica perderia toda a eficácia.

Na capela, meio obscura, brilhava uma lâmpada em face duma imagem que o Duque muito apreciava: Leonardo de Vinci tinha representado Cecília de Bergamini sob a forma de Virgem, abençoando uma rosa.

Contou oito minutos na pequena ampulheta, pôs as mãos, ajoelhou e disse a Confissão.

Durante muito tempo rezou devotamente.

- Oh! Virgem! - murmurou, erguendo os olhos enternecidos para o céu. - Defende-me, protege-me e abençoa-me, assim como ao meu filho Maximiliano, e ao recém-nascido César, à minha amada esposa Beatriz, e madona Cecília e também ao meu sobrinho João Galeas: porque, como Tu muito bem vês, na minha alma, Virgem Santa, eu não lhe desejo mal nenhum! Peço por ele, se bem que a sua morte trouxesse, talvez, não só para o meu ducado mas também para toda a Itália, um benefício incalculável.

Neste momento, o Mouro lembrou-se das razões inventadas pelos jurisconsultos para provar os seus direitos ao trono de Milão: o seu irmão mais velho, o pai de João Galeas, não era o filho do Duque, mas apenas o filho do Comandante Francisco Sforza, visto ter nascido antes de Francisco subir ao trono. Ele, Ludovico, tinha nascido depois do advento de seu pai e era, por consequência, o único herdeiro legítimo.

Mas agora, sob o olhar da Madona, esta prova parecia-lhe bem frágil e duvidosa; e terminou a sua oração:

- Se eu pequei, ou se peco, seja contra quem for, Tu sabes, Rainha dos Céus, que o não faço por mim, mas para o bem do meu povo, para o bem de toda a Itália. Intercede, pois, por mim, diante de Deus, e eu glorificarei o Teu Nome e mandarei concluir para Ti uma magnífica catedral em Milão, e também a Cartuxa de Pavia; e Te farei ainda muitas doações.

Tendo terminado esta prece, tomou uma tocha e dirigiu-se para a câmara de dormir, através das salas obscuras do palácio adormecido.

Numa delas, encontrou Lucrécia: "Esta noite, até o deus do Amor me é favorável!", pensou o Duque.

- Monsenhor!... - disse a jovem, aproximando-se dele, e a sua voz extinguiu-se de emoção. Quis ajoelhar-se-lhe aos pés, mas ele não o consentiu.

- Perdão, Monsenhor!

Lucrécia contou-lhe o que motivava a sua perturbação e angústia;

acabava de saber que seu irmão, Matteo Crivelli, camareiro-mor do Palácio da Moeda, homem de vida desregrada, mas por quem ela nutria fraternal afecto, tinha perdido ao jogo uma quantia grande de dinheiro que pertencia ao Estado.

- Não vos aflijais, madona, eu salvarei o vosso irmão! - E depois dum instante de silêncio, o Duque acrescentou com um profundo susPiro: - Mas, consentireis vós em não prolongar mais a vossa crueldade para comigo?

Ela ergueu para ele os olhos inocentes, tímidos e infantis:

- Que quereis dizer, Monsenhor? Não vos compreendo!

Esta casta surpresa tornava-a ainda mais bela.

- Isto quer dizer, querida - começou apaixonadamente o Duque, enlaçando-a pela cintura, num movimento brusco, quase brutal... - Isto quer dizer... Mas não percebeste ainda que eu te amo, Lucrécia?

- Deixai-me, deixai-me! Oh! Monsenhor, que fazeis? Madona

Beatriz...

- Nada receies, ela nada saberá, eu sei guardar um segredo!

- Não, não, Monsenhor, ela é tão generosa, tão boa para mim!... Por amor de Deus, deixai-me!

- Salvarei o teu irmão, farei tudo por ti, tudo, serei o teu escravo, mas tem piedade!...

E lágrimas meio sinceras tremiam na voz de o Mouro, enquanto lhe murmurava aos ouvidos os versos de Bellincioni:

Como o cisne que, um dia, canta e morre logo,

- Deixai-me, deixai-me - repetia a donzela, cheia de desespero.

O Mouro inclinou-se, sentiu a frescura do seu hálito, o perfume de violeta e de musgo que toda a sua pessoa exalava e, beijando-a avidamente nos lábios, arrastou-a para uma câmara vizinha.

Lucrécia sentia-se desfalecer e abandonou-se às suas carícias...

 

Entrando no seu quarto, o Mouro viu que Beatriz já extinguira a luz e se metera no leito. A enorme cama estava colocada no meio da estância, semelhante a um mausoléu, para o qual se subia por alguns degraus;

o baldaquino era de seda azul e as cortinas bordadas de prata.

Despiu-se e, soerguendo o canto da colcha, sumptuosa como uma casula, tecida de oiro e de pérolas, presente nupcial do Duque de Ferrara, deitou-se ao lado da mulher.

Tomou-a nos braços e beijou-a; não podia, na obscuridade, distinguir- lhe o rosto, e a sua imaginação evocava uns olhos tímidos, inocentes e claros, como os de uma criança, e um perfume de violetas e musgo; tinha a impressão de estar acariciando uma outra mulher, e, amando simultaneamente a ambas, sentia-se criminoso, o que o embriagava.

- Estás, esta noite, bem apaixonado! - murmurou a Duquesa com um secreto orgulho.

- Sim, sim, minha querida. Talvez não acredites, mas cada dia que passa te amo mais e mais!

- Por que zombas? - disse-lhe ela com um riso de mofa. - Tu amas muitas mulheres ao mesmo tempo. Devias ter vergonha, ao menos É preciso que penses mais nos negócios... "Ele" vai melhorando...

- Luís Marliani disse-me, há poucos dias ainda, que "ele" ia morrer. Se está agora melhor, isso não durará muito: morre, com certeza...

E o poder ficará nas nossas mãos.

- Quem sabe? - replicou Beatriz. - Tratam-no com tanto cuidado!

Não seria melhor renunciar de vez ao mando e não tremer de noite e de dia, como ladrões, forçados a rastejar diante do Rei de França e sujeitos à magnanimidade desse Afonso, orgulhoso e impudente? Oh! Como é doloroso ter que mendigar as boas graças dessa "bruxa de Aragão"! E dizem que está novamente grávida! Mais uma serpente no ninho maldito! E será assim toda a vida, Ludovico, pensa bem, toda a vida! Dizes tu ainda que o poder está nas nossas mãos!

- Mas os médicos estão todos de acordo em declarar a doença incurável - disse o Duque. - Cedo ou tarde...

- Eu já não acredito! Há dez anos que o dão como moribundo!

Calaram-se. De repente, ela abraçou-o e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ele estremeceu.

- Beatriz! Que Cristo e a Virgem te defendam! Nunca, ouves bem, nunca mais me fales nisso!...

- Se tens medo, eu mesma me encarregarei sozinha de o fazer, queres?

O Duque não respondeu e depois dum silêncio perguntou:

- Em que pensas?

- Nos pêssegos...

- Sim. Já dei ordem ao jardineiro de lhe levar da minha parte um cesto com os mais maduros.

- Não, não é desses que eu quero falar, mas dos de messer Leonardo de Vinci. Tu ainda não ouviste dizer nada?

- Não, porquê?

- São venenosos...

- Como? Venenosos?

- Sim, envenena-os para uma experiência qualquer: é talvez feitiçaria. Foi Monna Sidónia que mo contou; esses pêssegos, se bem que venenosos, são formosíssimos...

De novo se calaram e ficaram, muito tempo, abraçados, no silêncio calmo da noite, obcecados pelo mesmo pensamento; cada um sentia o coração do outro bater precipitadamente.

Enfim, o Mouro beijou a mulher na testa com ternura paternal e disse-lhe, depois de ter feito sobre ela o sinal da cruz:

- Dorme, meu amor, dorme sob a graça de Deus!

Nessa noite, a Duquesa viu em sonhos uns pêssegos maravilhosos num

Prato de oiro; seduzida pela sua beleza, tomou um e provou-o: era suculento e perfumado. De repente uma voz gritou-lhe ao ouvido: "Têm veneno, têm veneno, veneno". E ela sentia medo, mas era-lhe impossível

Parar; continuou a comer os pêssegos, uns a seguir aos outros, com a sensação de que ia morrer, mas, ao mesmo tempo, o coração enchia-se- lhe de beatitude.

O Duque também teve uma visão extraordinária: passeava na relva, diante da fonte do jardim, quando viu ao longe três donas sentadas e enlaçadas, que pareciam irmãs, com vestidos brancos semelhantes. Aproximando-se, reconheceu, numa delas, madona Beatriz, na outra, madona

Lucrécia e, na terceira, madona Cecilia; e pensou com um cinismo tranquilo: "Deus louvado, Deus louvado; acabaram por entender-se, essas três queridas da minha alma; que pena não o terem feito há mais tempo!"

 

                                   CAPÍTULO IV

O SÁBADO DAS FEITICEIRAS (1494)

O relógio da torre bateu a meia-noite. Tudo dormia no palácio. Sozinha, sobre o telhado da "casa dos gigantes", estava sentada a anã Morgantina, que fugira da mansarda, onde a tinham encenado para a noite. Chorava pelo seu filho imaginário:

- Oh! Oh! Que desgraçada sou! Roubaram-me o meu querido menino! Porquê? Meu Deus, porquê? Não fazia mal a ninguém! E era toda a minha alegria!

A noite estava clara e o ar tão transparente que se distinguia no horizonte o pico gelado do Monte Rosa e os seus enormes cristais.

Durante muito tempo ainda, ressoou, pela casa adormecida, a queixa aguda e angustiada da anã, como o grito de uma ave agoirenta.

Subitamente, suspirou, contemplou o céu e calou-se.

Reinava um silêncio de morte. A anã sorria e as estrelas azuis cintilavam cândidas e incompreensíveis, como os seus olhos.

"O céu, por cima, o céu por baixo,

As estrelas por cima, as estrelas por baixo,

Tudo o que está em cima também está em baixo;

Se puderes compreender, então serás feliz.

Voemos, voemos!..."

                   Tabela Smaragdina

 

Num dos arrabaldes desertos de Milão, perto da Porta de Verceil, erguia-se uma casa isolada, quase em ruínas, e com uma grande chaminé enegrecida, donde saía fumo constantemente. Ao lado, junto do dique e de um abarracamento destinado a serviços da Alfândega, passava o canal.

Esta casa pertencia à velha parteira, monna Sidónia, que alugava o andar superior a um alquimista, messer Galéotto Sacrobosco, residindo ela própria no rés-do-chão com Cassandra, a filha do irmão de Geléotto, o mercador Luís. Viajante incansável, o pai de Cassandra percorrera sem parar a Grécia, as ilhas do Arquipélago, a Síria, a Ásia Menor e o Egipto, em busca de antiguidades; tudo lhe servia: fosse uma bela estátua g1ega ou um pedaço de âmbar no qual uma mosca se deixara enviscar, fosse um falso epitáfio do túmulo de Homero, uma nova tragédia de Eurípedes ou uma clavícula de Demóstenes.

Havia quem o considerasse um louco, outros julgavam-no mesmo um charlatão e um impostor, mas havia também quem o tivesse na conta de grande homem. Uma vez que perdera num naufrágio uma preciosa colecção de manuscritos antigos, sofreu tal comoção e teve tamanho desgosto, que os cabelos lhe embranqueceram de repente e esteve tão gravemente doente que por pouco não morreu. Quando alguém lhe perguntava por que gastava tanto dinheiro, se dava a tantos trabalhos e se expunha a tamanhos perigos, Luís respondia invariavelmente:

- Quero ressuscitar os mortos.

Um dia, no Peloponeso, junto das ruínas desertas de Lacedemónia, nos arredores da cidade de Mistra, encontrou uma rapariga duma excepcional beleza, que se assemelhava a uma estátua da antiga deusa Artemis.

Era filha dum modesto diácono de aldeia, muito dado à bebida. Luís desposou-a e trouxe-a para Itália juntamente com uma nova cópia da Ilíada, os cacos duma Hécate de mármore e algumas ânforas quebradas.

À filha que nasceu desse casamento deu o nome de Cassandra, em honra da heroína de Esquilo, a escrava de Agamémnon, que então o interessava.

Perdendo pouco tempo depois a mulher, ao partir para uma das suas costumadas viagens, confiou a pequena Cassandra ao seu velho amigo, o filósofo Chalcondilas, um erudito grego de Constantinopla, que habitava Milão ao serviço dos Duques Sforza. O grego, velho já de setenta anos, hipócrita, impostor e manhoso, pretendia fazer-se passar por um ardente defensor da igreja cristã, quando, na realidade, não era mais do que um aderente do último dos mestres da sabedoria antiga, o neoplatónico Plotino. Este filósofo, que morrera quarenta anos atrás, na própria cidade de Mistra, construída sobre as ruínas de Lacedemónia, em pleno Peloponeso, donde a mãe de Cassandra era também oriunda, acreditava que a alma do grande Platão descera do Olimpo e se incarnara nele próprio, para ensinar a filosofia. Os eruditos cristãos, porém, asseveravam que ele pretendia restabelecer a heresia do Anticristo, fundada pelo Imperador Juliano, o Apóstata, e o culto dos antigos deuses do

Olimpo, e que era preciso combatê-lo e aos seus discípulos, não com argumentos sérios ou discussões conscienciosas mas com os instrumentos de tortura do Santo Ofício e com as chamas das fogueiras. Citavam até as próprias palavras de Plotino, pouco tempo antes da sua morte: "Os povos hão-de converter-se a uma nova fé que, nas suas linhas gerais.

será semelhante ao paganismo."

A pequena Cassandra foi assim educada, em casa de Chalcondilas.

nas regras duma piedade severa mas hipócrita. A criança não compreendia as subtilezas filosóficas do neoplatonismo, e tudo quanto ouvia era motivo para a fazer sonhar com a ressurreição dos antigos deuses como quem sonha com uma fábula maravilhosa.

Trazia sempre pendurado ao pescoço um talismã contra a febre. Fora um presente de seu pai, e era constituído por uma antiga pedra preciosa.

na qual estava gravada uma imagem do deus Dioniso. Muitas vezes, quando estava só, costumava contemplar furtivamente, contra a luz, o seu amuleto. No brilho violeta da ametista transparente surgia diante dela, como uma visão, o jovem Baco, nu, com um tirso numa mão e um cacho de uvas na outra. Ao lado, uma pantera, saltitante, pretendia comer as uvas. E o coração da criança sentia-se apaixonado por este deus ardente e belo.

Messer Luís, a quem a paixão pelas antiguidades levara à ruína, morreu com uma febre pútrida, entre as ruínas dum templo fenício que acabara de descobrir. Nessa época, o alquimista Galéotto Sacrobosco, voltando a

Milão, depois de ter viajado muitos anos à procura do segredo da pedra filosofal, instalou-se na casa meio arruinada da Porta de Verceil e tomou conta da sobrinha.

 

Messer Galéotto passara toda a sua vida em busca da pedra filosofal.

Depois de ter estudado medicina na Academia de Bolonha, entrara como discípulo para casa do célebre doutor em ciências ocultas, o Conde Bernardo Trevisano. Durante quinze anos procurara o mercúrio transmutador em toda a espécie de substâncias: no sal das cozinhas, no amoníaco; em diferentes metais, no bismuto, no arsénico, no sangue humano; na bílis e nos cabelos; nos animais e nas plantas. Os seis mil ducados que herdara do pai desapareceram com o fumo, pela chaminé do forno dos cadinhos. Depois de ter gasto o seu dinheiro, gastou o dinheiro dos outros; e os credores meteram-no na cadeia. Fugiu e, durante os oito anos que se seguiram, fez mais de vinte mil experiências sobre ovos. A seguir, com o protonotário do Papa, mestre Enrico, dedicou-se a estudar as propriedades do vitríolo e caiu doente, em resultado das emanações venenosas, permanecendo durante catorze meses abandonado de todos, entre a vida e a morte. Cheio de miséria, humilhado, perseguido pela justiça, percorreu vários países, como a Espanha, a França, a Austria, a Holanda, a África do Norte, a Palestina, a Grécia e a Pérsia, vivendo de pequenos misteres ambulantes. Na corte do Rei da Hungria submeteram-no à tortura, esperando arrancar-lhe o segredo da transmutação. De volta, enfim, a Itália, envelhecido, doente, mas não desencorajado, recebeu de Ludovico, o Mouro, o título de alquimista da corte.

Giovanni Beltraffio nunca esquecera o diálogo entre o mecânico

Zoroastro e monna Cassandra, surpreendido uma noite e referente aos frutos venenosos. Tornara a ver a jovem em casa de Chalcondilas que,

Por pedido de Merula, lhe fornecia alguns trabalhos de cópia. Se bem que muita gente lhe dissesse que a jovem se dedicava a práticas de feitiçaria e bruxedos, Giovanni sentia-se atraído pela sua beleza enigmática e estranha.

Quase todas as tardes, depois de acabar o trabalho na oficina de Leonardo, Giovanni dirigia-se à pequena casa solitária da Porta de Verceil, para ver Cassandra. Sentavam-se os dois no alto da colina, que domina o canal, junto das paredes meio arruinadas do mosteiro de Santa

Radegunda, e conversavam. O caminho que conduzia à colina tornava- se quase invisível sob um espesso emaranhamento de bardanas, ortigas e sabugueiros; nunca ninguém por ali passava.

 

A tarde estava sufocante. O vento, de vez em quando, levantava a poeira branca da estrada e assoprava-a sobre as árvores; depois caía bruscamente e o ar tornava-se ainda mais pesado. Ouvia-se apenas, ao longe, o rolar surdo dos trovões, semelhante a um ruído subterrâneo. De mistura com estes barulhos ameaçadores e majestosos, ouviam-se as notas agudas duma cítara e as canções dos aduaneiros que se embriagavam numa taberna vizinha; era um domingo.

Às vezes, um relâmpago iluminava, de repente, tudo. Então, surgia da obscuridade a casa arruinada do alquimista, com a sua chaminé, donde saíam volutas de fumo negro; entrevia-se um diácono, alto e magro personagem, que, de pé sobre o dique, pescava à linha; distinguia-se o canal por onde subiam as barcas de fundo chato que, do Lago Maior, traziam os blocos de mármore destinados à catedral.

E, subitamente, tudo recaía de novo nas trevas; era como uma visão que se desvanecia, para reaparecer daí a pouco outra vez. Apenas uma luz vermelha brilhava na margem oposta, na janela de messer Galéotto, reflectindo-se nas águas escuras do Catarana. Do dique subia um perfume de fetos esmagados, de alcatrão, de lenha apodrecida e de águas paradas.

Giovanni e Cassandra estavam sentados junto do canal, no seu poiso costumado.

- Oh, como eu me aborreço! - dizia a rapariga, espreguiçando-se e juntando atrás da cabeça os dedos brancos e delicados. - Sempre, todos os dias, a mesma coisa! Hoje, como ontem; amanhã será também como hoje: o mesmo diácono, estúpido e magro, pescará no dique e não apanhará nada; o fumo continuará a sair do laboratório de messe.

Galéotto, que procura inutilmente o que deseja; os mesmos barcos continuarão amanhã a subir o canal, rebocados pelas mesmas magras azêmolas, e o alaúde chorará tão tristemente como agora. no interior da taberna! Se ao menos surgisse qualquer coisa de novo! Se os franceses entrassem em Milão e saqueassem a cidade! Ou se o diácono conseguisse, enfim, pescar um peixe, ou o tio descobrisse o segredo de fazer o oiro!...

Mas não, meu Deus! Como tudo é monótono! E como a vida é pesada!

E monna Sidónia constantemente a dizer que é uma desgraçada e que só por caridade e bondade de alma é que nos sustenta a mim e ao meu tio!

- Sim - disse Giovanni -, compreendo-vos, eu também tenho momentos em que a vida me parece insuportável e em que desejaria morrer. Frei Benedetto ensinou-me uma linda oração para escorraçar da nossa alma o demónio do tédio. Quereis que vo-la diga?

A rapariga abanou a cabeça:

- Não, Giovanni. Se bem que o deseje, há muito tempo que não consigo rezar ao vosso Deus!

- Nosso Deus! Mas há algum outro, além do nosso? - perguntou

Giovanni.

O clarão súbito dum relâmpago iluminou o rosto de Cassandra: nunca ele lhe parecera tão belo, tão enigmático e tão triste.

A jovem, passando as mãos pelos cabelos sedosos e negros, começou a falar:

- Escuta, meu amigo! Há já muito tempo que isto aconteceu quando eu era ainda criança e estava na minha pátria. Meu pai levou-me uma vez consigo, numa das suas viagens. Visitávamos as ruínas dum antigo templo, que se elevavam no extremo dum promontório. Estávamos rodeados pelo mar, as gaivotas soltavam gritos lamentosos, as ondas quebravam-se com fragor, sobre as rochas negras, roídas pela humidade salina e aguçadas como navalhas. A espuma levantava-se, tornava a cair sobre as pontas das pedras, com uma espécie de assobio. Meu pai lia uma inscrição meio apagada sobre um fragmento de mármore. Durante muito tempo fiquei sozinha, sentada sobre os degraus do templo, escutando os ruídos do mar e respirando a sua frescura misturada ao aroma acre do absinto. Mas por fim entrei no templo abandonado. Entre as colunas de mármore, castigadas pelo tempo, o céu parecia mais sombrio. Nas fendas, no cimo das paredes, cresciam papoilas. O ar estava calmo; apenas o barulho ensurdecedor das vagas enchia o santo local, como um canto litúrgico. Eu escutava, quando, de repente, o meu coração estremeceu;

caí de joelhos e comecei a implorar a esse deus desconhecido que outrora ali habitara e que os homens tinham ofendido. Beijei as lajes de mármore, e chorei, e amei esse deus que mais ninguém na terra amava lá, e ao qual ninguém rezava, porque estava morto. E desde esse dia, nunca mais rezei a nenhum deus... Este templo era consagrado a Dioniso.

- Cassandra, profanaste as coisas santas! Dioniso nunca existiu!

- Nunca? - repetiu a jovem, com um sorriso desdenhoso. - Por que razão, nesse caso, os doutores da Igreja, em que tu acreditas, ensinam que, no tempo em que Jesus triunfou, os deuses escorraçados se transformaram em poderosos demónios? Por que é que no livro do célebre astrólogo Giorgio de Novare há uma profecia, baseada na observação dos planetas, que diz que a conjunção do planeta Júpiter com Saturno originou a crença de Moisés; com Marte, a fé caldaica; com o Sol, a religião egípcia; com Vénus, o ensinamento de Maomé, e, com Mercúrio, o cristianismo? A próxima conjunção de Júpiter e da Lua anunciará o advento da religião do Anticristo, e, então, os deuses mortos hão-de ressuscitar.

O ruído dos trovões ouvia-se mais perto, os relâmpagos tornavam-se mais brilhantes e iluminavam uma nuvem negra e pesada que deslizava lenta no céu; as notas importunas da cítara ressoavam sempre no meio daquele silêncio chocante e angustioso.

- Oh! Madona! - exclamou Beltraffio, num gesto de prece. Como é possível que vos deixeis assim arrastar pelas tentações diabólicas?!

A donzela, poisando-lhe então ambas as mãos sobre os ombros, murmurou-lhe:

- E a ti, o Demo não te tenta também? Se tu fosses um justo,

Giovanni, não terias abandonado o teu mestre Benedetto para procurar as lições desse ateu Leonardo de Vinci! Diz, por que me procuras tu a mim? Não sabes que sou uma bruxa, e que as bruxas são mais perigosas e malignas que o próprio Satanás? Como não receias perder a tua alma.

na minha companhia?

- Que Deus vos proteja - murmurou ele a tremer.

Cassandra, sem dizer mais nada, trespassou-o até ao fundo da alma, com um olhar dos seus olhos doirados e transparentes como o âmbar.

Um relâmpago, rasgando a nuvem, fez resplandecer o seu rosto, tão pálido como o da deusa de mármore, que na colina do moleiro se tinha levantado do seu túmulo secular, em presença de Giovanni.

"Ela!", pensou, com terror. "Ela outra vez! A diabinha branca!"

Um trovão fez estremecer o céu e a terra e o eco repetiu-se num ribombar majestoso duma alacridade ameaçadora, semelhante ao riso longínquo de invisíveis gigantes, até que morreu lentamente. Nem uma folha bulia nas árvores. A cítara calara-se. E nesse momento preciso ressoou a voz triste e cadenciada do sino do mosteiro, tocando as "Trindades".

Giovanni persignou-se; a rapariga ergueu-se e disse:

- São horas de voltar para casa; é já tarde. Vês aqueles archotes? É o Duque Ludovico que vem a casa de messer Galéotto. Esquecia-me que meu tio deve fazer hoje diante dele uma experiência: a transmutação do chumbo em oiro.

Uma fila de cavaleiros estendia-se ao longo do canal, da Porta de

Verceil até a casa do alquimista, que, aguardando o Duque, terminava no laboratório os últimos preparativos para a experiência.

 

A parte central do laboratório era ocupada por um forno de barro refractário, com muitos compartimentos, portas, foles e cadinhos. Num canto estavam amontoados, sobre uma camada de poeira, escórias e pedaços de sucata queimada, semelhantes a pedaços de lava ressequida.

A mesa de trabalho estava cheia de instrumentos complicados: alambiques, cubos, recipientes para reacções químicas, retortas, funis, pilões, frascos de vidro de colos alongados, tubos enrolados em serpentina, enormes garrafas e minúsculos vasos.

Os sais, os álcalis e os ácidos venenosos espalhavam um cheiro forte.

Havia ali coisas com nomes bárbaros e inquietantes: a lua de cinábrio, o leite de lobo, o Aquiles de cobre, a asterite, a androdame, o anagalis e o aristolóquio. Vermelha como um rubi, brilhava uma preciosa gota de sangue de leão, descoberta depois de muitos anos de laboriosas pesquisas: curava todas as doenças e garantia a perpétua juventude.

O alquimista, sentado à sua mesa de trabalho, pequeno, magro, encarquilhado como um velho cogumelo, conservava, contudo, uma vivacidade infatigável e um alegre optimismo; com a cabeça apoiada nas mãos, observava atentamente o líquido que começava a ferver e a cantar, docemente, sobre a chama azulada e rala do álcool. Era o "óleo de Vénus",

Oleum Veneris, dum verde translúcido, como a esmeralda. Através do recipiente, a lâmpada que ardia ao lado projectava um reflexo de "água marinha" sobre o pergaminho dum in-fólio aberto, a obra do velho alquimista árabe Djabira Abdallah.

Ao ouvir o ruído das vozes e dos passos que se aproximavam, Galéotto ergueu-se, verificou com um olhar se tudo estava em ordem no laboratório, e, fazendo sinal ao fâmulo taciturno para que metesse mais carvão na fornalha, dirigiu-se ao encontro dos visitantes.

A turba dos convidados vinha bem humorada; acabavam de sair de um jantar regado com malvasia. Entre os acompanhantes do Duque vinham Leonardo de Vinci e o médico da corte, Marliani, sábio de nomeada.

As "donas" entraram e a tranquila cela do sábio depressa se encheu de perfumes, de rangidos de seda de vestidos, de ditos fúteis e risos perlados e alegres, como gorjeios de pássaros.

Uma dama, ao aflorar, com a sua manga, uma retorta de vidro, fê-la cair.

- Não tem importância, senhora, não vos preocupeis! - disse

Galéotto solícito. - Eu vou apanhar os destroços, não vá algum ferir os vossos pés minúsculos e mimosos!

Uma outra dama, ao pegar num bocado de sucata de ferro, sujou a luva clara, perfumada de violeta, e logo o seu cavalheiro, galantemente, se esforçou por limpar a nódoa com um lenço de rendas, aproveitando o ensejo para lhe apertar, amorosamente, os dedos.

Diana, uma jovem loira e desinquieta, com um gesto de garotice tímida, entornara, dum frasco, algumas gotas de mercúrio sobre a mesa, e depois, logo que viu o metal rolando em pérolas brilhantes, exclamou encantada:

- Vede, senhores, que maravilha! Prata líquida a correr sozinha, prata viva! - E batia as mãos, de contentamento.

- Será verdade que, quando o chumbo se tomar em oiro, vamos ver o diabo a saltar no fogo do alquimista? - perguntava a linda e hipócrita

Felisberta, mulher do velho cônsul da Gabela, ao seu amante, o fidalgo espanhol Maradés. - Que pensais, messer, não será um pecado assistir a estas experiências?

Felisberta era tão devota que se dizia permitir tudo ao seu amante, excepto a liberdade de a beijar na boca, pois supunha que o mandamento da castidade não era de facto violado enquanto os lábios, que diante do altar tinham jurado a fidelidade, se conservassem inocentes.

o alquimista aproximou-se de Leonardo e murmurou-lhe ao ouvido:

- Messer, acreditai que a visita dum homem como vós é para mim motivo de honra e de orgulho...

E apertou-lhe calorosamente a mão. Leonardo ia responder, mas o velho interrompeu-o, abanando a cabeça:

- Oh! Compreendo, eu compreendo tudo muito bem. Certas coisas são segredos para o povo! Mas nós compreendemo-las sem necessidade de palavras.

Depois, com um sorriso amável, dirigiu-se aos seus hóspedes:

- Com a permissão do meu protector, o sereníssimo Duque, e também com a destas senhoras, as nossas lindas rainhas, vou iniciar a experiência da divina metamorfose! Atenção, signori!

Para que nenhuma dúvida pudesse subsistir sobre a autenticidade da experiência, deu a examinar a todos o cadinho: um vaso de barro refractário de paredes espessas; e pediu que todos o apalpassem e batessem no fundo com os dedos, para se convencerem de que não havia nenhuma fraude. Explicou que, muitas vezes, alquimistas desonestos escondiam o oiro no fundo falso dos cadinhos, para que, quando a parte superior se fundisse pela acção do calor, o oiro aparecesse a descoberto.

Os fragmentos de estanho, os carvões, os foles e os pauzinhos que serviam para escumar o metal em fusão, todos os objectos que eram susceptíveis de se prestar ao dolo, foram observados.

Depois, introduziram-se os pequenos fragmentos de estanho no cadinho, e esse foi colocado à boca do forno, sob os carvões em brasa.

O fâmulo taciturno, de face cadavérica, tão pálido e mal-encarado que uma dama quase desmaiou tomando-o, na obscuridade, pelo próprio

Diabo, começou a dar movimento aos enormes foles. Os carvões reacendiam-se e brilhavam sob a acção ruidosa da corrente de ar.

Galéotto conversava com os seus convidados; despertou a hilaridade geral chamando à alquimia casta meretrix, a cortesã casta, a que tinha muitos admiradores, enganando-os sucessivamente, parecendo acessível a todos, mas que até ali ainda se não abandonara às carícias de nenhum:

in nullos unquam pervenit amplexus.

O médico da corte, Marliani, homem corpulento e desajeitado mas de fisionomia inteligente e cheia de imponência, franziu o sobrolho diante deste discurso; depois, passando um lenço pela testa, não se conteve mais e disse:

- Messer, não vos parece oportuno começar? Já oiço o estanho ferver.

Galéotto tomou um pacote azul que desdobrou cuidadosamente e que continha um pó amarelo-claro, cor de limão, oleoso e brilhante, como vidro pilado, e que espalhou no aposento um cheiro semelhante ao do sal queimado: era a substância sagrada, o tesoiro impagável dos alquimistas, a milagrosa pedra filosofal, lapis philosophorum.

Com a ponta duma faca, tomou uma partícula do tamanho duma pequena semente, pô-la sobre cera de abelha, e, formando uma pequena bola, atirou-a para dentro do estanho em fusão.

- Que poder atribuís a esta mistura? - perguntou Marliani.

- Calculo a percentagem de uma parte para duas mil oitocentas e vinte do metal transformado - respondeu Galéotto. - Evidentemente que não chegámos ainda à solução perfeita, mas espero em breve atingir a proporção de uma unidade para um milhão. Bastará o peso dum grão de milho deste pó, dissolvido numa tonelada de água, e regar depois com essa água uma vinha, para termos os cachos maduros já no mês de Maio!

Se me derem mercúrio suficiente, sou capaz de transformar o mar em oiro!

Marliani encolheu os ombros e afastou-se; as gabarolices de Galéotto irritavam-no; e começou a demonstrar a impossibilidade da transmutação, por deduções escolásticas e silogismos tirados de Aristóteles. O alquimista sorria:

- Aguardai um pouco, domine magister - disse em voz baixa. Não tarda que vos apresente um argumento que vos será difícil refutar.

Lançou sobre os carvões em brasa uma pitada de pó branco. Espessas nuvens de fumo encheram o laboratório, e chamas, umas azuis e verdes, outras vermelhas, cresceram crepitando.

Os espectadores mostravam-se agitados. Mais tarde madona Felisberta contou que vira a figura do Diabo envolto em chamas vermelhas. Com um comprido gancho de ferro, o alquimista levantou a tampa do cadinho, aquecido ao rubro-branco: o estanho rugia, espumava e fervia. Galéotto tapou o cadinho; o fole começou de novo a ranger e a assoprar; e quando, poucos minutos depois, o alquimista introduziu no vaso uma vareta de ferro, todos viram, na extremidade da mesa, brilhar uma gota doirada.

- Pronto, acabámos! - disse Galéotto.

Tirou-se o cadinho da fornalha e, depois de o deixar arrefecer, quebraram-no; uma barra de oiro, escorregadia e brilhante, apareceu aos olhos dos assistentes, mudos de admiração.

Dirigindo-se a Marliani, o alquimista pronunciou solenemente:

- Solve mihi hunc syllogismum! (Resolve-me agora este silogismo!)

- Inaudito... Incrível... Contrário a todas as leis da natureza e da lógica! - murmurou Marliani, confuso e estupefacto.

o rosto de messer Galéotto estava pálido; levantando para o céu os olhos brilhantes de inspiração; disse:

- Laudetur Deus in aeternum, qui partem suae infinitae potenciae nobis, suis abjectissimis creaturis, communicavit. Amen!

o oiro passado à pedra de toque, humedecida com nitrato, deixou um risco amarelado e brilhante; era mais puro que o mais fino metal da

Hungria e da Arábia.

Todos rodearam o velho, felicitando-o e apertando-lhe efusivamente as mãos.

o Mouro chamou-o à parte.

- Serás capaz de me servir sempre, com fidelidade?

- Vossa Graça pode dispor da minha vida - respondeu o alquimista.

- Toma cuidado, Galéotto... Que nenhum outro soberano...

- Vossa Alteza pode mandar que me enforquem como um cão, se um só dentre eles suspeitar de qualquer coisa!

E depois dum instante de silêncio, acrescentou, curvando-se servilmente:

- Queria ainda pedir-vos...

- O quê! Ainda mais?...

- Oh! Juro-vos por Deus, será a última vez!

- Quanto?

- Cinco mil ducados!

O Duque reflectiu, regateou, fez baixar a quantia para quatro mil ducados e acabou por consentir.

Fazia-se tarde; madona Beatriz devia estar inquieta e o Duque deu ordem para se retirarem. O dono da casa, ao despedir-se dos seus convidados, ofereceu a cada um, como recordação, uma pequena partícula de oiro novo. Leonardo tinha-se deixado ficar para trás.

Quando todos os visitantes abandonaram o laboratório, Galéotto aproximou-se do artista e disse-lhe:

- Mestre, que dizeis à minha experiência?

- O oiro estava dentro das varetas de madeira - respondeu tranquilamente Leonardo.

- Dentro dos pauzinhos? Que quereis dizer, messer?

- Sim, dentro dos pauzinhos, com os quais remexeste o estanho em fusão: eu vi tudo.

- Mas todos examinaram...

- Não. As varetas examinadas foram outras.

- O quê, outras? Mas...

- Eu já vos disse que vi tudo - repetiu Leonardo, sorrindo. - Não negueis, Galéotto. O oiro estava escondido no interior das varetas ocas;

e, quando o fogo consumiu as extremidades da madeira, o metal caiu no cadinho.

O velho tremia; o seu rosto tinha uma expressão miserável e humilde, semelhante à dum ladrão apanhado em flagrante.

Leonardo aproximou-se dele e, pondo-lhe amistosamente a mão sobre o ombro:

- Nada receeis de mim! Asseguro-vos que não vos denunciarei!

Galéotto apertou a mão do artista e murmurou:

- E certo que não direis nada a ninguém?

- Não. Para quê prejudicar-vos? Mas agora, contai-me: por que fazeis isto?

- Oh! messer Leonardo! - exclamou Galéotto, e nos seus olhos, ainda há pouco cheios de desespero, brilhava de novo um clarão de esPerança. - Juro-vos... Parece-vos que eu os engano, mas será já por pouco tempo. Eu faço tudo isto para o bem do Duque, para o triunfo da ciência, e porque, na realidade, encontrei... encontrei a pedra filosofal.

Ou melhor... ainda não a encontrei, mas estou no bom caminho para lá chegar... e isso é o essencial. Ainda três ou quatro experiências, e acabou-se. Que faríeis vós, mestre, no meu lugar? Não vos parece que a descoberta duma verdade tão grande como esta suporta bem o peso de algumas insignificantes mentiras?

Leonardo contemplava-o, interessadamente.

- Quer dizer - disse com um sorriso involuntário -, acreditais sinceramente?...

- Sim, acredito - exclamou Galéotto. - Mesmo que o próprio Deus descesse à terra, e viesse a minha casa dizer-me: "Galéotto, não há pedra filosofal", eu responder-lhe-ia: "Senhor, perdoai-me, mas tão certo como toda a Natureza ser obra da Vossa Criação, há uma e eu encontrei-a".

Leonardo não lhe respondeu nada, mas também não se revoltou e ouviu-o cheio de curiosidade.

Quando a conversação caiu sobre o papel que o Diabo representa nas ciências ocultas, o alquimista afirmou que Satanás era a criatura mais desprezível de toda a natureza e que nada no mundo se podia comparar à sua insignificância. O velho acreditava unicamente na Omnipotência do saber humano, e asseverava que para a ciência nada era impossível.

Depois, de repente, sem nenhuma espécie de transição, como quem se lembra de qualquer coisa de divertido e de agradável, perguntou ao pintor se ele convivia com os espíritos dos elementos; e quando o seu interlocutor lhe confessou que nunca tinha visto nenhum, Galéotto, admirado da resposta, explicou-lhe, minuciosamente, como era a "salamandra", com um corpo de três polegadas de comprimento, alongado, esbelto, rugoso, coberto de manchas; como era o corpo de Sílfide, divindade aérea, azul e transparente como o céu. Falou depois das ninfas, das ondinas, espíritos da água, dos pigmeus e dos gnomos subterrâneos, dos espíritos dos vegetais e dos diabretes que moram nas minas das pedras preciosas.

- Não podeis fazer uma ideia como são belos e benéficos!

- Mas por que é que os espíritos dos elementos não aparecem a toda a gente, e se mostram apenas aos eleitos? - perguntou Leonardo.

- Como poderiam eles aparecer a todos? - retorquiu Galéotto. Receiam as pessoas ordinárias, os depravados, os sábios, os ébrios e os glutões. Mas estimam a simplicidade e a inocência infantis. Apenas se encontram onde não há nem perversão, nem malícia. De contrário, tornam-se tímidos, como as feras das florestas, e refugiam-se no seu elemento natural, longe dos olhares humanos.

O rosto do alquimista iluminava-se com um sorriso sonhador e enternecido.

"Pobre homem!", pensava Leonardo, sem sentir qualquer espécie de indignação pelas extravagâncias e absurdos que povoavam a mente do alquimista.

Separaram-se, como bons amigos; e quando Leonardo saiu, messer Galéotto mergulhou, de novo, nas suas experiências sobre o óleo de Vénus.

 

Enquanto o alquimista, diante da brilhante assembleia composta pelo Duque, pelas damas e pelos cavalheiros que faziam parte do seu séquito, se ocupava na transformação do chumbo em oiro, Cassandra voltara para casa. Monna Sidónia estava instalada diante da enorme lareira, no quarto do rés-do-chão, por baixo do laboratório. A jovem, sem dizer palavra, sentou-se num escabelo.

Um fogo vivo de sarmentos cantava sob a marmita de ferro, onde fervia já o jantar: uma sopa de rábanos e alho. Num movimento monótono dos dedos enrugados, a velha ia torcendo o fio da roca, e o fuso ora se abaixava ora se erguia. Cassandra olhava-a em silêncio: "Sempre a mesma vida! Hoje, como ontem, sempre a mesma monotonia; o grilo canta, o rato rói, o fuso gira, os ramos secos ardem e estalam, e cheira sempre a alho e a rabanete".

E, como sempre, também hoje a velha lhe dirigia as mesmas recriminações; isto dava-lhe a impressão do ruído contínuo e arrepiante duma serra: "Monna Sidónia é uma pobre desgraçada; é um absurdo dizer que ela tem enterrada na vinha uma caixa cheia de dinheiro: é absurdo! O tio e a sobrinha arruínam-na, há tanto tempo a comer à sua custa; e se ela os sustenta é só pelo seu bom coração! Mas Cassandra está já uma mulher e precisa de pensar no futuro".

"Quando um dia o tio morrer, ficará na miséria. Por que não há-de ela aceitar as propostas de casamento do rico alquilador, que há tanto tempo a deseja? Verdade, verdade, ele já não é nenhum menino, mas é uma pessoa razoável, devoto: nem estúrdio nem vadio! É um proprietáno; tem um moinho e um olival. É Deus que envia a Cassandra toda esta felicidade. Que mais quer ela ainda? Por que não o aceita?"

Monna Cassandra ouvia; e uma impressão de repugnância, de nojo intolerável invadia-a, sufocava-a, apertava-lhe as fontes, dando-lhe vontade de chorar, de gritar de angústia e de tédio, como sob a acção duma dor física.

A velha tirou da marmita um rábano fumegante, pelou-o com uma faca, regou-o de sumo de uva espesso e rosado, mascando ruidosamente com a boca desdentada.

Num gesto que lhe era habitual, e que traduzia um desespero resignado, a rapariga espreguiçou-se, juntando atrás da cabeça as suas mãos finas e pálidas.

Acabado o jantar, a fiandeira escabeceou como uma Parca melancólica; os olhos começavam a fechar-se-lhe; a voz rouca ia-se tornando mais arrastada e a sua tagarelice a propósito do cigano tornava-se incoerente.

Cassandra retirou do peito, com cuidado, o amuleto, presente de seu pai, de que nunca se separava; pô-lo em frente dos olhos, contra a chama da lareira e contemplou a imagem de Baco: na transparência violeta da ametista surgiu na sua frente, como um espectro, o deus esbelto e nu, segurando um tirso numa das mãos e um cacho de uvas na outra; e a pantera ao lado prestes a saltar sobre o cacho.

O coração de Cassandra estava repleto de amor pelo deus tão jovem e tão belo. Suspirou profundamente, guardou o talismã e disse com voz tímida:

- Monna Sidónia, esta noite há festa em Barco de Ferrara, em

Benevento! Tia! Minha querida, minha boa tia! Eu não quero sequer dançar. Iremos só espreitar e voltamos logo para casa. Prometo fazer tudo o que vos agradar e até consentirei que o cigano me dê um presente; mas hoje gostaria de voar até lá, a Barco de Ferrara, hoje, agora, já!...

Um desejo ardente, dementado, brilhava-lhe nos olhos. A velha olhou- a, e, subitamente, os lábios azulados e engelhados escancararam-se, deixando ver o único dente, um canino amarelo, e uma careta de alegria satânica contraiu o seu rosto:

- Queres ir, tens muito desejo, tomaste-lhe o gosto?! Oh! A doida!

Queres então ir até lá? Mal chega a noite, ninguém te segura em casa!

Mas lembra-te bem, Cassandra, a culpa é tua, o pecado é só teu! Hoje, nem sequer pensava em tal! E se consinto, é apenas por tua causa e porque sou boa!

Lentamente, a velha inspeccionou a casa, fechando todas as janelas, calafetando todas as frinchas, e deu uma volta à chave. Depois, derramou alguma água nas cinzas da lareira, acendeu uma vela mágica, preta, de sebo, e tirou duma arca um pote de barro contendo uma pomada que exalava um cheiro pestilento. Fazia tudo isto esforçando-se por aparentar calma, mas as mãos tremiam-lhe, como as dum ébrio, e nos seus olhos passavam clarões de loucura. Cassandra tinha trazido para o meio do quarto duas grandes amassadeiras. Terminados estes preparativos, mofina

Sidónia despiu-se completamente, colocou o vaso da pomada entre as duas amassadeiras e, a cavalo num pau de vassoira, começou a friccionar o corpo com a pomada oleosa e esverdeada. Um cheiro penetrante espalhou-se em todo o quarto. O unguento era composto com alface venenosa, agriões, acónito, cepa virgem, raízes de mandrágora, papoilas, beladona, sangue de serpente e gordura de meninos mortos pelas bruxas antes de baptizados. Cassandra desviava a vista para não contemplar a hediondez da velha. Nos últimos momentos, quando a realização do seu desejo estava já prestes, e era inevitável, sentia apossar-se da sua alma um estranho sentimento de repulsa.

- Vamos, despacha-te, por que esperas? - resmungou a velha, curvada sobre a amassadeira. - Ao princípio, tudo são pressas, e agora não te mexes! Despe-te, não quero partir sozinha.

- Bem, vou já. Mas antes, monna Sidónia, deixai-me apagar a luz, que me incomoda!

- Oh! Oh! Que modéstia. Mas lá em cima, na montanha, acabou-se a vergonha...

Apagada a luz, a velha, para ser agradável ao Diabo, fez o sinal-da- cruz sacrílego, com a mão esquerda, gesto adoptado pelas bruxas. A rapariga despiu-se, conservando apenas a camisa e, pondo-se de joelhos dentro da amassadeira, começou a friccionar rapidamente com a pomada.

Na obscuridade, ouviam-se as imprecações entrecortadas e sem nexo, proferidas pela velha:

- Emen Hétan, Emen Hétan, Palande, Baal, Bérith, Astaroth, valei- nos! Agora, agora, Patrica, ajudai-nos!

Cassandra respirava com avidez o cheiro forte da untura mágica. A pele ardia-lhe, a cabeça andava-lhe à roda; um arrepio voluptuoso agitava-a toda. Círculos vermelhos e verdes passavam-lhe diante dos olhos e, de repente, a voz aguda e triunfante da tia Sidónia chegou-lhe como vinda de muito longe:

- Hop, hop! Voemos, voemos!

 

E Cassandra saiu pela chaminé da lareira; cavalgava um bode negro, cujo velo lhe acariciava as pernas nuas. Um êxtase enchia-lhe a alma, e, sufocando de felicidade, lançava gritos agudos como andorinha que mergulha no azul profundo do céu:

- Hop, hop! Voemos, voemos!...

Monstruosa na sua repugnante nudez, inoiina Sidónia cavalgava a seu lado num cabo de vassoira. Atravessavam o espaço com tanta velocidade que sentiam o ar assobiar-lhes aos ouvidos como um furacão.

- Para o norte, para o norte! - gritava a velha, dirigindo a vassoira como se fosse um cavalo dócil.

Sensações maravilhosas embriagavam Cassandra.

"E o nosso mecânico, e o pobre Leonardo de Vinci, com as suas máquinas de voar!", pensou, de repente, e esta ideia ainda mais a alegrou.

Ia sempre subindo, a direito, sempre para cima... Primeiro, atravessou as nuvens negras riscadas de relâmpagos azuis e descobriu o céu claro iluminado pela Lua cheia, resplandecente, redonda como uma mó, e tão próxima que parecia ao alcance da mão. Depois, segurando o bode pelas hastes retorcidas, fê-lo descer, e caíram como uma pedra cai num precipício.

- Onde vais tu, onde vais tu! Tu estás danada, filha de Satanás!

Quebras a cabeça - gritava Sidónia, seguindo-a com dificuldade. Tinham descido tanto, estavam já tão perto da terra, que descobriam as ervas adormecidas, ondulando nos campos; viam os fogos-fátuos a iluminar-lhes o caminho, destroços de madeira podre fosforejando; e as corujas e os mochos que se chamavam mutuamente com pios aflitivos, no interior das florestas sombrias.

Atravessaram os cimos dos Alpes com as suas geleiras transparentes e fulgurantes à claridade da Lua, e desceram para o mar. Ao rasarem as ondas, Cassandra entretinha-se apanhando água na concha da mão e lançando-a depois ao ar para admirar como ela caía numa chuva de gotas de safira.

A cada momento, o voo se ia tornando mais rápido e começavam a encontrar já muitos companheiros que levavam o mesmo destino: um feiticeiro velho, felpudo, acocorado numa selha, um cónego jovial e obeso, de faces rubicundas, de Sileno, a cavalo num ferro de fogão; depois, uma garota de dez anos, loira, de olhos azuis e cândidos, cavalgando uma vassoira; uma bruxa antropófaga, de pele vermelha, completamente nua, conduzindo um grande javali, que grunhia surdamente, e muitos mais.

- Donde vindes, irmãos? - gritava monna Sidónia.

- Da Grécia, da ilha de Cândia.

Outras vezes respondiam:

- De Valença, de Broquino, de Salaguzzi, para baixo de Mirandola, de Benevento. Da Núrsia.

- E aonde ides?

- A Biterna, a Biterna!

- Esta noite casa-se o bode, o grande bode de Biterna! Reuni-vos todos para o festim, voai, voai!

E desapareciam sobre a planície desolada, como enormes bandos de corvos.

 

Através da bruma, a Lua parecia ensanguentada. Ao longe, apareceu uma cruz na torre da igreja duma aldeia. A feiticeira ruiva, a que conduzia o javali, aproximou-se, com um grunhido, da igreja e arrancou da torre o sino grande. Depois arremessou-o para um pântano, onde ele caiu com um som tão lamentoso que a bruxa desatou a rir, num riso que mais parecia um ladrido. A rapariguinha loira, sobre a sua vassoira, batia as mãos numa alegria travessa.

A Lua escondera-se por trás duma nuvem. À luz de tochas de cera verde, cujas chamas ardiam brilhantes e azuladas, sobre uma montanha branca, de greda, rastejavam, corriam, emaranhavam-se e desapareciam sombras enormes, negras como o carvão. Era a ronda das bruxas.

- Hop! Hop! Sabbat! Da direita para a esquerda, da direita para a esquerda!

Em torno do Bode Nocturno, alcandorado no pico da rocha, desfilavam as sombras aos milhares e milhares, como folhas apodrecidas do

Outono, num turbilhão, sem começo e sem fim.

- Glória ao Bode de Biterna! Glória ao Hirco Nocturno! Todas as nossas desgraças acabaram, alegrai-vos!

As gaitas-de-foles, fabricadas com ossos de esqueletos, espalhavam as suas notas roucas; e, sobre tambores feitos com peles de enforcados, um lobo rufava com a cauda, marcando compasso.

Em gigantescas marmitas cozinhava-se o horrível repasto, dum gosto indescritível, insosso, porque o Glorificado detestava o sal.

Nos recantos isolados esboçavam-se amores híbridos: filhas com os próprios pais, irmãos com as irmãs, o grande lobisomem de olhos verdes com a menina obediente, o incubo acéfalo e engelhado, pardo como uma aranha, com uma monja chocarreira.

Por toda a parte se viam conúbios ignóbeis.

Uma bruxa enorme, com um sorriso maternal e uma expressão de idiota, amamentava dois diabinhos recém-nascidos; os dois glutões, apertados contra os seios volumosos, enchiam-se ávida e ruidosamente de leite. Crianças de três anos, que ainda não tomavam parte no Sabbat, apascentavam nos campos um rebanho de sapos cobertos com xairéis, cortados duma veste cardinalícia, e alimentavam-nos com hóstias sagradas.

- Vem, Cassandra, vem depressa dançar! - chamava impaciente a tia Sidónia.

- E se o meu apaixonado alquilador me vê? - dizia a rapariga rindo.

- Diabos levem esse cigano - respondeu a velha.

E entraram ambas na roda, que as arrastou como uma tempestade, no meio dos rugidos, dos uivos e dos risos diabólicos.

- Da direita para a esquerda! Da direita para a esquerda! Hop! Hop!

Uns bigodes, compridos, húmidos e ríspidos, como os bigodes duma foca, que Cassandra não sabia a quem pertenciam, picavam-na e arranhavam-na no pescoço; alguém beliscava-a brutalmente, fazendo-lhe doer;

mordiam-na, sopravam-lhe aos ouvidos as propostas mais obscenas. E ela não resistia: quanto mais monstruosa e horrível era a situação, mais ela se sentia feliz; mas, de súbito, tudo parou como petrificado. Do pico negro em que estava entronizado o Desconhecido, saiu uma voz surda e roufenha, como o ruído dum desmoronamento subterrâneo.

- Recebei as minhas dádivas: aos fracos, a minha força; aos humildes, a minha altivez; aos mentecaptos, a minha sabedoria; aos infelizes, a minha alegria! Recebei as minhas dádivas!

Um velho venerável, de barbas brancas, membro da Santa Inquisição, o Patriarca dos feiticeiros, que ajudava à missa negra, pronunciou, triunfantemente: Sanctificetur nomen tuum per universum mundum et libera nos ab omni maio.

- Saudai, saudai, ó fiéis!

Todos se prosternaram, imitando os cantos da igreja e entoando o coro sacrílego: Credo in Deum patrem Luciferum, qui creavit caelum et terram.

Et in filium ejus Belzebuth.

Quando as últimas palavras foram pronunciadas, e se fez de novo silêncio, ouviu-se outra vez a mesma voz, semelhante ao trovão longínquo dum tremor de terra:

- Tragam-me a noiva bem-amada, a minha pomba casta e pura!

O arcipreste perguntou:

- Como se chama a tua noiva bem-amada, a tua pomba casta e pura?

- Madona Cassandra! Madona Cassandra! - foi a resposta.

Ao ouvir o seu nome, a rapariga sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias e os cabelos eriçarem-se-lhe na cabeça.

- Madona Cassandra! Madona Cassandra! - repetiu a multidão. Onde está ela? Onde está a nossa rainha? Ave, archisponsa Cassandra!

Escondendo o rosto nas mãos, quis fugir; mas já, de todos os lados.

Dedos ossudos, garras, antenas, patas felpudas de aranhas, se erguiam para ela, agarrando-a, rasgando-lhe a camisa e arrastando-a, trémula e nua para o trono.

Um sopro gelado perpassava no ar, misturando-se com o cheiro nauseabundo do Bode.

Cassandra baixou os olhos para não ver, enquanto aquele que estava no trono dizia:

- Vem!

Baixou ainda mais a cabeça e divisou a seus pés uma cruz ardente, brilhando na obscuridade. Fez um derradeiro esforço, vencendo a sua repulsa, avançou um passo e ergueu os olhos para o que estava na sua frente.

E o milagre realizou-se.

A pele do Bode caiu como as escamas duma serpente, na muda; e

Dioniso, o antigo deus do Olimpo, apareceu diante de Cassandra com o sorriso da perene alegria nos lábios, erguendo, alto, numa mão, o tirso e tendo na outra o cacho de uvas, que a pantera gulosa tentava lamber.

E, simultaneamente, o sabbat transformou-se na orgia divina de Baco: as velhas bruxas tornaram-se em ménades; os monstruosos demónios em sátiros caprípedes; onde existiam blocos mortos de greda surgiram colunas de mármore branco, luminosas, por entre as quais se distinguia, ao longe, o azul do mar.

Então, Cassandra viu, nas nuvens, reunida, toda a assembleia esplendorosa dos deuses da Hélade. Os sátiros, as bacantes, tocando os seus saltérios, dilacerando o peito, donde, para taças de oiro, corria o vinho misturado com o próprio sangue, dançando, rodopiando e cantando: Glória!

Glória a Dioniso! Glória aos omnipotentes deuses ressuscitados!

Baco estendeu os braços para Cassandra, e, a sua voz como um trovão, fazia tremer o céu e a terra:

- Vem! Vem, noiva querida! Pomba casta e pura!

E Cassandra deixou-se cair nos braços do deus.

 

Ouviu-se o cantar matinal do galo; um cheiro acre de nevoeiro e de humidade fumarenta envolvia a montanha. De muito longe chegavam os sons dos sinos convocando os fiéis para a Missa.

Foi o sinal do "salve-se quem puder"; as bacantes transformaram-se de novo em horrendas bruxas; os faunos silvanos em demónios abomináveis; e o elegante e formoso Dioniso reencarnou no Bode asqueroso, nu repugnante Hirco Nocturno.

- Para casa! Para casa! Depressa!

- Roubaram-me o cavalo! - urrava com desespero o cónego obeso, gesticulando como um doido, em busca do ferro do fogão.

- Javardo! Javardo! A mim! - gritava, tossindo, a bruxa ruiva e nua, estremecendo na friagem da manhã.

A Lua descia detrás das nuvens, e, no seu clarão purpúreo, passavam rapidamente, uma atrás das outras, as bruxas apavoradas, como negros pássaros fugindo da montanha de greda.

- Hop! Hop! Fujam! Salvem-se!

o Bode Nocturno baliu queixosamente e abismou-se na terra, no meio duma fumarada de enxofre infecta e sufocante.

E o sino que convocava os fiéis à Missa da manhã cada vez se ouvia mais triunfalmente.

 

Quando Cassandra voltou a si, estava estendida no sobrado do quarto da casinha em que morava, junto à Porta de Verceil. Sentia um grande mal-estar, comparável ao de alguém que tivesse bebido demasiado: a cabeça pesada como chumbo, o corpo todo dorido e quebrado de fadiga.

Os sinos do convento de Santa Radegundes continuavam a soar tristes e monótonos. Nesta ocasião, pancadas persistentes, que provavelmente já não eram as primeiras, abalavam a porta exterior da casa. A jovem, aplicando o ouvido, reconheceu a voz do seu pretendente, o mercador de cavalos de Abiategrasso.

- Abri! Abri! Monna Sidónia! Monna Cassandra! Estão surdas?

Abram! Estou encharcado como um cão e não posso voltar para casa debaixo deste aguaceiro do diabo!

Penosamente fez um esforço e ergueu-se; aproximou-se da janela cujos postigos estavam cerrados, retirou a estopa com a qual a tia Sidónia tinha calafetado as frinchas, e a claridade tíbia do dia tempestuoso penetrou no quarto, iluminando a figura da velha bruxa, que dormia com um sono de morta, estendida no sobrado, completamente nua, ao lado da amassadeira voltada.

Cassandra espreitou para fora, através dum orifício.

A chuva caía torrencialmente. Em frente da porta, o alquilador apai- xonado tinha ao lado um burrico de cabeça baixa e compridas orelhas.

atrelado a uma carrocinha, onde mugia um vitelo. O alquilador batia cada vez mais forte, sem se fatigar.

Cassandra perguntava a si mesma como iria tudo aquilo acabar, quando, no andar superior, se abriu uma das janelas do laboratório e o velho alquimista, estremunhado, despenteado e aborrecido, começou a invectivar o causador daquele barulho. Fora arrancado aos seus sonhos, no momento em que começava a compreender que o chumbo não se queria transformar em oiro. E, mal-humorado, rancoroso, gritou:

- Quem faz tanto barulho, aqui? Tu estás doido, bárbaro?! Que todas as desgraças te caiam em cima! Não vês que está tudo a dormir?

Vai-te!

- Messer Galéotto! Não vos zangueis, trago-vos aqui de presente um vitelo e queria falar com a vossa sobrinha dum assunto muito importante!

- Vai para o diabo! - gritou Galéotto, furioso. - Vai para o diabo, vadio, velhaco, tu e mais o vitelo; os dois para o diabo! - e fechou a janela.

O cigano ficou um momento indeciso, mas depressa se ressarciu e começou novamente a bater, com pancadas cada vez mais fortes, como se quisesse arrombar a porta. O burrico baixou ainda mais a cabeça. A chuva corria-lhe ao longo das compridas orelhas que pendiam tristemente, encharcadas.

- Meu Deus! Que aborrecimento! - murmurou a rapariga, fechando os olhos.

Lembrou-se da alegria louca do sabbat, do Bode Nocturno transformado em Dioniso, da ressurreição dos deuses poderosos do Olimpo! E pensou:

"Era um sonho, ou uma realidade?... Com certeza não era senão um sonho!... Depois do sol, vem sempre a sombra, depois da alegria, vem sempre a tristezal...”

- Abri! Abri! - berrava o alquilador, numa voz desesperada, que começava a enrouquecer.

A violenta chuva já formara em frente da casa grandes charcos de água. O vitelo continuava os seus balidos tristes. Os sinos do convento, esses badalavam sempre, indiferentes, nos seus toques solenes e monótonos.

 

                            CAPÍTULO V

SEJA FEITA A VOSSA VONTADE (1495)

"O mirabile giustizia di te Primo Motore: tu non ai voluto mancare a nessuna potenzia lordine et qualità dei suoi necessari effeti! O stupenda necessita."

             Leonardo de Vinci

"... seja feita a Vossa Vontade, assim na Terra como nos

Céus!"

                     Padre-Nosso

 

O cidadão milanês Corbolo, sapateiro de seu ofício, tendo entrado em casa a desoras, e levemente embriagado, recebera da mulher, como de costume, "mais pancadas do que as precisas para conduzir um burro preguiçoso de Milão até Roma": eram estas as suas expressões.

Na manhã seguinte, assim que ela saiu para ir a casa da vizinha adela comer o migliacci, espécie de geleia de sangue de porco, Corbolo, munindo-se de alguns cobres retirados da sua bolsa particular, e deixando a loja entregue a um aprendiz, saiu a passear.

Com as mãos enterradas nas algibeiras das velhas pantalonas, enveredou, com passo pachorrento, por uma rua tortuosa e sombria, e tão estreita que, se nela um cavaleiro se cruzava com um peão, havia fatalmente de roçá-lo com as botas ou com as esporas. Nessa viela cheirava nauseabundamente a ovos podres, vinho azedo, bolor e azeite quente, mal frito.

Assobiando, Corbolo contemplava a estreita faixa de céu, visível entre os altos prédios, e essa mesmo ainda meio mascarada pelos farrapos e andrajos que secavam ao sol da manhã, em cordas estendidas de um lado ao outro da rua. Corbolo consolava-se pensando num privilégio cheio de sabedoria, que ele infelizmente nunca pudera pôr em prática: Mala femina, buona femina, vuol bastone. "Toda a mulher, seja má ou seja boa, merece ser zurzida".

Para encurtar caminho, resolveu atravessar a Catedral. Uma agitação permanente reinava no interior do templo, como um mercado. Apesar da multa de cinco soldos que os arquitectos tinham estabelecido, uma multidão constante circulava entre uma porta e outra; transportavam-se tonéis de vinho, cestos, caixas, tabuleiros, tábuas e barrotes; havia até quem conduzisse os cavalos e as mulas.

Com uma voz roufenha, os padres iam cantando o Te Deum; cochichava-se às portas dos confessionários; as lâmpadas brilhavam nos altares, enquanto os garotos da rua corriam e jogavam a malha, os mendigos esfarrapados esmolavam e os cães latiam perseguindo-se.

Corbolo misturou-se por um momento a toda esta turba, e com um prazer maligno prestou atenção aos seus dizeres e querelas.

Ao sair da Catedral e entrar na praça de Arengo, toda assoalhada, a claridade era tão ofuscante que o obrigou a cerrar os olhos.

Era a praça mais frequentada de Milão; estava cheia de lojas de pequenos comerciantes, vendedores de peixe e de legumes, ferro-velhos; uma enorme quantidade de caixas acumulando-se por toda a parte e de quitandas ao ar livre, mal deixava o espaço necessário para a circulação.

Este cenário tão seu conhecido era sempre para ele motivo de curiosidade e de distracção.

Todos aqueles negociantes se tinham instalado ali desde tempos imemoriais, e não havia leis nem multas que conseguissem escorraçá-los.

"Salada de Valteline, limões, laranjas, alcachofras, espargos, os belos espargos!", gritavam os vendilhões de legumes aos fregueses. As adelas regateavam e cacarejavam umas com as outras como galinhas chocas.

Um burrico que mal se distinguia sob a enorme carga de uvas brancas e pretas, de laranjas, de beringelas, celgas, couves-flores e cebolas, começou a zurrar descompassadamente: hi-ó! hi-ó! Atrás dele o condutor estimulava-o com sonoras pancadas aplicadas sobre as ancas peladas e com um grito imperioso e gutural: Arre! arre!

Alguns cegos apoiados aos seus bordões cantavam um gemebundo "Intemerata"; um charlatão com boné de pele de lontra adornado de dentes, insígnias da profissão, arrancava, com a ligeireza de um prestidigitador, um queixal dum desgraçado, a quem apertava a cabeça entre os joelhos.

Os garotos apupavam um judeu, mostrando-lhe uma orelha de porco, e jogavam o pião por entre as pernas dos transeuntes. Um mais atrevido, meio mulato e de nariz esborrachado, chamado Farfanichio, trouxera uma ratoeira; soltou uma ratazana e começou a persegui-la com uma vassoira, assobiando e gritando com voz aguda: eccola, eccola.

Os cães latiam; rostos curiosos assomavam espreitando às janelas.

Por toda a praça corria uma imensa algazarra, risos, assobios, disputas, vociferações humanas e zurros.

Ao contemplar todo este espectáculo, um sorriso apareceu no rosto do sapateiro, e pensou:

"Como seria bom viver nesta terra, se as mulheres não roessem a paciência dos maridos, como a ferrugem rói o ferro!"

Fazendo um abrigo com a mão, contra o sol, ergueu a cabeça para admirar a parte superior do enorme edifício por acabar, rodeada de andaimes de madeira.

Era a Catedral que o povo de Milão erguia à glória do nascimento da Virgem, Maria Nascente.

Ricos e humildes, todos contribuíam para a construção do templo. A rainha de Chipre mandara patenas incrustadas de oiro. Uma pobre velhota, a trapeira Catarina, depusera no altar-mor a sua oferta à Virgem, sem se preocupar com os rigores do Inverno, o seu único manto, muito esfarrapado, que não valia talvez uma vintena de soldos.

Corbolo, que desde a infância estava acostumado a contemplar esta obra, notou nessa manhã progressos na erecção da nova torre, e isso encheu-o de contentamento.

Os operários azafamavam-se no trabalho. Enormes blocos de mármore branco, brilhante, das pedreiras do lago Maior, chegavam do desembarcadoiro do Laghetto, junto do grande hospital, onde os barcos atracavam.

Os cabrestantes guinchavam, as cadeias entrechocavam-se, as serras mordiam o mármore, enquanto os operários trepavam como formigas ao longo das escadas dos andaimes.

E o enorme edifício ia-se erguendo a pouco e pouco, adornando-se de incontáveis agulhas góticas, semelhantes a estalagmites, de coruchéus e torres de puro mármore branco.

Era como um louvor eterno do povo à Santa Virgem Nascente.

 

Descendo alguns degraus duma escada íngreme, Corbolo entrou na cave abobadada, fresca e cheia de tonéis, do estalajadeiro alemão Tibaldo.

O sapateiro cumprimentou a assistência já abancada e foi sentar-se ao lado dum estanhador, Scarabullo, seu conhecido, encomendando vinho e os pequenos pastéis milaneses, temperados com cominho. Sem se apressar a beber, começou comendo os pastéis e disse:

- Scarabullo, ouve o que te digo: se queres ter juízo, nunca te cases!

- Porquê?

- O casamento, meu amigo - continuou sentenciosamente o sapateiro -, é como a lotaria. Mais vale ter um ataque de gota do que uma mulher!

Numa mesa ao lado, um bordador de oiro, Mascarello, bom orador e amigo de fazer as suas partidas, contava a um vagabundo esfarrapado e faminto as maravilhas do fantástico país de Berlinzona, autêntica terra da Cocanha, onde as vinhas dão salsichas e onde se vende um pato por um soldo dando-se ainda por cima um patinho de brinde; em que o vernaccio, o melhor vinho do mundo, que não contém uma gota de água, corre de graça e à discrição para toda a gente.

Um homenzinho escrofuloso e míope entrou abruptamente na cave; era Gorgolio, um operário vidreiro, homem muito conversador, bisbilhoteiro e alvissareiro.

- Senhores! - anunciou solenemente, tirando o chapéu empoeirado e roto, e limpando o suor do rosto. - Senhores, acabo de deixar os Franceses!

- O quê, Gorgolio? Já cá chegaram?

- Sim... Quer dizer, estão em Pavia... Mas deixai-me tomar fôlego porque estou estafado; vim a acorrer, não chegasse cá alguém primeiro do que eu a dar a novidade!

- Vamos, bebe este copo e conta; como são esses Franceses?

- É um povo guerreiro, meus irmãos, e é preciso evitar questões com eles. São violentos, selvagens, ateus; uma gente extraordinária, semelhantes aos animais; numa palavra, são bárbaros. Trazem arcabuzes, colubrinas de oito côvados, bombas todas de bronze, granadas de pedra, e os cavalos parecem monstros marinhos, indomáveis, com a cauda e as orelhas cortadas.

- E são muitos? - perguntou o alfaiate Maso, um homenzinho ruivo, de rosto alegre e olhos de rato.

- Uma multidão! Cobrem toda a planície, como uma praga de gafanhotos, sem deixar ver o mais pequeno bocado de solo. O Senhor enviou-nos estes demónios do Norte, como castigo dos nossos pecados!

- Não vale a pena injuriá-los, Gorgolio observou Mascarello visto serem nossos amigos e aliados!

- Nossos aliados? Cuidado com as algibeiras! Amigos desta raça são piores que os inimigos.

- Mas, por que julgas os Franceses nossos inimigos? - perguntou

Maso.

- São nossos inimigos porque talam os nossos campos, derrubam as nossas árvores, levam os nossos rebanhos, roubam os nossos camponeses e violam as nossas raparigas. O rei de França é um devasso; corre sem parar atrás de todas as mulheres, se bem que não passe dum insignificante e dum doente; e possui retratos das mais lindas mulheres de

Itália, todas nuas. Os soldados que o acompanham, dizem: "Se Deus quiser, não havemos de deixar uma única donzela intacta de Milão até

Nápoles!”

- Os canalhas! - exclamou Scarabullo, dando na mesa uma tão forte punhada que os copos e as garrafas tilintaram.

- O nosso Duque - continuou Gorgolio - só faz aquilo que ao rei de França agrada. E esses bárbaros não nos consideram como seus semelhantes. "Vós não passais de ladrões e assassinos", dizem eles, "haveis assassinado com veneno o vosso legítimo soberano e deixais morrer de fome uma criança inocente. É por isso que Deus vos castiga e que o vosso território passa para a nossa posse". Nós recebemo-los de braços abertos, mas eles fazem provar primeiro aos cavalos a comida que lhes oferecemos, dizendo: "Quem sabe se aqui não haverá também veneno, como aquele que vocês deram ao Duque?”

- Tu mentes, Gorgolio!

- Que me arranquem os olhos e a língua, se isto não é verdade!

Mas há ainda mais, messeri, de que eles se gabam: "Vamos primeiro conquistar toda a Itália; depois, subjugaremos todos os mares e terras;

faremos prisioneiro o Grande Turco, conquistaremos Constantinopla e, finalmente, ergueremos de novo a cruz sobre o monte das Oliveiras, em

Jerusalém. Só então voltaremos à nossa pátria e Deus nos julgará. Mas se vós tiverdes a veleidade de nos resistir, o vosso nome desaparecerá da face da terra".

- Que tempos terríveis estes, irmãos - disse o bordador de oiro

Mascarello. - Nunca os houve piores, nem semelhantes!

Todos se calaram.

Um frade, o irmão Timóteo, exclamou solenemente, erguendo os braços ao céu:

- Ouvi as palavras de Girolamo Savonarola, grande profeta de Deus:

"O homem que vai submeter a Itália sem desembainhar a espada, não tarda a chegar. Ó Florença! Ó Roma! Ó Milão! O tempo dos folguedos e das canções já passou. Arrependei-vos! O sangue do Duque João Galeas, sangue de Abel derramado por Caim, clama a vingança do Senhor!"

 

No alto da Catedral em construção, um operário subia por uma escada de corda a uma das torres, junto da cúpula principal. Levava uma pequena estátua de Santa Catarina, Mártir, que devia ser colocada no cimo da torre ogival. De roda dele, erguiam-se, como estalagmites, coruchéus de flechas agudas; ele só via arcos, rendas de pedra formando flores, folhas fantásticas, anjos, mártires, profetas sem conta e diabos de faces escarninhas; pássaros monstruosos, sereias, harpias, dragões de asas pontiagudas e goelas escancaradas e gárgulas. E todo esse mundo de mármore puro, duma brancura resplandecente, com sombras azuis leves como o fumo, semelhava uma enorme floresta coberta de geada.

Apenas os gritos das andorinhas, esvoaçando em torno do pedreiro, perturbavam o silêncio que reinava naquelas alturas. O ruído da multidão que formigava na praça chegava lá acima como um fraco murmúrio.

Nos limites da verde Lombardia brilhavam ao longe os cimos nevados dos Alpes, perfilados e brancos, como as flechas da Catedral. Às vezes parecia-lhe ouvir os ecos do órgão, suspiros de piedade vindos do interior do templo, do âmago do seu coração de pedra; e julgava então que aquela imensa nave vivia, respirava, crescia e se projectava para o céu como uma homenagem a Santa Maria Nascente, como um hino de glória, de todos os séculos e de todos os povos, à Sagrada Virgem.

Subitamente, o tumulto aumentou na praça; os sinos tocaram a rebate.

O pedreiro deteve-se e olhou para baixo; sentiu uma vertigem e tudo escureceu diante dos seus olhos: pareceu-lhe que o gigantesco edifício lhe tremia debaixo dos pés e que a torre em que estava suspenso se dobrava como um vime.

"Vou cair!", pensou com terror. "Meu Deus, acode-me!"

Num esforço enorme, agarrou-se à escada de corda, fechou os olhos e rezou:

- Ave Maria, plena di grazia...

A vertigem passou sob a acção duma brisa fresca e, reanimado, tomou fôlego e continuou a ascensão, sem se preocupar mais com os ruídos que chegavam da praça.

E ia repetindo:

- Ave Maria, plena di grazia...

Neste momento, os membros do conselho encarregado da construção.

Consiglio delta Fabbrica, e os arquitectos estrangeiros e italianos, apareceram sobre o largo tecto de mármore da Catedral. Tinham sido convidados pelo Duque para deliberar sobre o projecto do "tibúrio", ou torre principal, que devia ser erguida sobre a cúpula do templo.

Entre estes encontrava-se Leonardo de Vinci. O seu projecto fora rejeitado; consideravam-no demasiado audacioso e contrário às tradições da arquitectura religiosa. Durante algum tempo, discutiram sem conseguir chegar a acordo. Uns pensavam que os pilares exteriores não eram suficientemente sólidos; na opinião de outros, a Catedral tinha uma resistência que desafiava a eternidade.

Leonardo, conforme o seu costume, alheara-se do debate e conservava- se afastado e silencioso.

Um operário aproximou-se dele e entregou-lhe uma carta.

- Messer, um cavalheiro chegado de Pavia espera por vós, em baixo, na praça.

O pintor abriu a carta e leu: "Leonardo. Apressa-te; tenho necessidade urgente de te ver. Duque João Galeas. 14 de Outubro."

O artista despediu-se dos membros do conselho, desceu rapidamente e partiu a cavalo para o castelo de Pavia, que distava poucas horas de

Milão.

 

Os castanheiros e os olmeiros do parque brilhavam ao sol, na sua folhagem amarelecida pelo Outono. As folhas mortas caíam e revoluteavam como borboletas. As fontes estavam secas e a erva crescia nos tanques onde a água não corria. Nos canteiros abandonados murchavam as últimas flores.

Ao aproximar-se do Castelo, Leonardo encontrou um anão. Era um velho bobo de João Galeas, um dos poucos que lhe ficaram fiéis quando todos os outros servidores o tinham abandonado. Ao reconhecer Leonardo, correu para ele, coxeando e saltitando.

- Como está Sua Alteza? - perguntou o pintor.

O anão teve um gesto de desalento. Quando Leonardo pretendia enveredar pela álea principal, o anão impediu-o, dizendo:

- Não, não, por aí não, que podiam ver-nos! Sua Alteza deseja que a vossa visita se conserve secreta... Se a Duquesa descobre a vossa chegada, com certeza vos não deixará entrar... Vamos antes aqui por este atalho desviado... Neste momento devem estar a fazer uma sangria ao Duque...

Subiram uma escada, atravessaram diversas salas, depois o anão abri uma porta e Leonardo entrou num quarto aquecido, onde o ar estava imPregnado do cheiro dos medicamentos.

Era uso praticar a sangria com as janelas todas fechadas e à luz de velas, segundo as boas regras da arte de curar.

O ajudante do barbeiro segurava uma bacia de cobre, para a qual corria o sangue. O doutor, "o físico", dottor fisico, pensativo, com umas grandes lunetas encavalitadas no nariz, estava vestido com o trajo clássico de veludo violeta, orlado de peles; contentava-se em observar o trabalho do barbeiro, sem colaborar nele, porque o médico não podia, sem desdouro para a sua profissão, manejar o escalpelo.

Terminada a operação, o doutor e o barbeiro afastaram-se. O anão compôs os travesseiros e cobriu novamente os pés do doente com a colcha.

Leonardo observava o quarto. Por cima do leito estava suspensa uma gaiola com um papagaio verde. Sobre uma mesa redonda, um baralho de cartas, um jogo de dados e uma piscina de vidro, cheia de água, onde nadavam peixinhos doirados. Um cachorrinho branco dormia enrodilhado aos pés do Duque: eram as últimas distracções que o servo fiel tinha imaginado para distrair o seu Senhor.

- Alteza - disse o anão -, chegou messer Leonardo!

- Já está aí?

Um sorriso de satisfação iluminou o rosto do doente, que fez um esforço para se erguer.

- Mestre! Finalmente! Receei que não viesses.

João Galeas apertou a mão do pintor, e o seu belo rosto, em que a doença não apagara de todo a juventude - tinha apenas vinte e quatro anos -, ruborizou-se ligeiramente.

O anão saiu e foi colocar-se de vigia à porta do quarto.

- Amigo - murmurou o doente -, com certeza já te chegaram aos ouvidos os boatos que correm a teu respeito? Não? Então, vou contar-te e riremos os dois!

Fez uma pausa, fitou-o nos olhos e disse-lhe, com um pálido sorriso:

- Acusam-te de ser o meu assassino!

Leonardo julgou que o doente delirava.

- Sim, sim. É o que dizem! Que te parece semelhante loucura? Tu, o meu assassino! - repetiu o Duque. - Há três semanas, meu tio

Ludovico, o Mouro, e Beatriz, mandaram-me de presente um cesto de pêssegos. Madona Isabel assevera que desde que comi esses frutos. o meu mal se agravou e que morro envenenado, lentamente... Mais, dizem que no teu jardim há uma certa árvore...

- É verdade - disse Leonardo -, há uma árvore envenenada.

- O quê, meu amigo! Será então possível?!

- Não, graças a Deus! Ainda que os pêssegos que vos mandaram viessem do meu jardim, nunca podiam fazer-vos mal algum. Efectivamente, eu estudava o efeito do veneno e fiz algumas experiências num pessegueiro; disse mesmo ao meu aluno Zoroastro Peretola que esses pêssegos eram venenosos. E deve ser essa a origem do boato. Mas as minhas experiências não deram resultado. Os frutos de que falo são absolutamente inofensivos.

- Ah! Eu bem o suspeitava! - exclamou aliviado o Duque. - Ninguém é responsável pela minha morte! Durante este tempo, esses desgraçados, suspeitando-se mutuamente, odeiam-se e tremem. Que pena que não nos possam ouvir neste momento! O meu tio julga-se o meu assassino; mas eu sei que ele é bom, que me ama e que o seu único defeito é ser fraco e tímido. E que interesse teria ele com a minha morte? Estou disposto a entregar-lhe o poder. Não preciso nem desejo nada. De boa vontade os deixaria a todos e me refugiaria em qualquer parte, onde pudesse viver sossegado, na companhia de alguns amigos. Teria sido frade, ou teu aluno, Leonardo! Mas nunca ninguém quis compreender que eu não ambicionava o mando. Outrora, aterrava-me a ideia de morrer cedo. Hoje, Mestre, já compreendi; não desejo nada, nem receio nada.

Sinto a calma e o bem-estar de alguém que, numa tarde escaldante de

Verão, se despoja das vestes empoeiradas para mergulhar na água pura e fresca dum regato. Amigo, não me sei exprimir bem, mas tu percebes o que quero dizer, não é verdade?..

Leonardo apertou-lhe a mão, sem responder.

- Eu bem sabia - continuou o doente, fitando enternecido Leonardo. - Eu bem sabia que só tu eras capaz de compreender... Lembras-te?

Disseste-me uma vez que a compreensão das leis eternas e imutáveis da mecânica concedem ao homem a verdadeira humildade e a perfeita paz da consciência! Então, não te entendi bem, mas agora... mas agora, só, dominado pelo delírio, quantas vezes me tenho lembrado de ti, do teu rosto e de cada uma das tuas palavras, Mestre! Sabes uma coisa, às vezes parece-me que nós chegámos ao mesmo destino, mas por caminhos diferentes; tu, através da vida, eu, pela agonia!

A porta abriu-se e o anão anunciou, aterrado:

- Madona Druda!

Leonardo quis sair, mas o Duque reteve-o.

A velha ama de João Galeas entrou trazendo na mão um pequeno frasco cheio dum líquido turvo e amarelado. Era um unguento de escorpiões com que friccionavam o peito e o ventre do doente. As feiticeiras asseguravam que não havia medicamento melhor, não somente contra o veneno mas também contra os malefícios, encantamentos e sugestões de toda a ordem.

Vendo Leonardo sentado à beira da cama, a velha deteve-se, empalideceu, e as mãos tremeram-lhe tanto que ia deixando cair o frasco.

- Valha-nos a Virgem Nossa Senhora! - E saiu precipitadamente, benzendo-se e murmurando orações. Depois correu o mais depressa que as suas velhas pernas permitiam, até os aposentos de madona Isabel, para lhe anunciar a terrível novidade.

Monna Druda estava convencida de que o infame Ludovico e o seu cúmplice Leonardo se tinham mancomunado para fazer morrer o Duque, ou por envenenamento ou graças a qualquer malefício e conjuração diabólica.

Quando monna Druda procurou a Duquesa, encontrou-a rezando na capela, ajoelhada diante dum altar.

Ao ter conhecimento da chegada de Leonardo, ergueu-se e gritou irritada:

- Como é possível? Quem o deixou entrar?

- Quem? - perguntou a velha, abanando a cabeça. - Eu não sei como esse maldito conseguiu aqui chegar! Não sei se surgiu da terra ou se desceu pela chaminé! Vossa Alteza não me acreditará... Aqui há qualquer coisa de diabólico...

Nesta ocasião entrou na capela um pajem que, dobrando respeitosamente um joelho, anunciou:

- Sereníssima madona, Sua Majestade o mui cristão rei de França pede-vos, e ao vosso esposo, a graça de o receber.

 

Ludovico, o Mouro, tinha instalado sumptuosamente o rei Carlos VIII nos pavimentos térreos do castelo de Pavia.

Carlos, educado por seu pai, Luís XI, numa atmosfera de terror, tivera uma infância triste, solitária, entrecortada por doenças, no desolado castelo de Amboise, alimentando o espírito, já de si fraco, com a constante e perniciosa leitura de romances de cavalaria. Ao subir ao trono.

parecia-lhe ser um dos heróis daquelas fabulosas aventuras, um dos cavaleiros andantes da Távola Redonda.

Aos vinte anos, sem nenhuma experiência da vida, timorato, imprudente, pretendeu pôr em prática o que lera nos livros. "Filho do deus

Marte, descendente de Júlio César", conforme a expressão dos cronistas da corte, partiu à frente dum poderoso exército para conquistar Nápoles.

Sicília e Constantinopla, destronar o Grão-Turco, destruir completamente a heresia de Maomé e libertar o túmulo de Cristo do jugo dos infiéis.

Nesse dia, depois dum copioso jantar, sonhava com as suas futuras conquistas e glórias. Os pensamentos emaranhavam-se-lhe na mente:

sentia a cabeça pesada e uma agonia, consequências da alegre ceia da véspera na companhia das lindas milanesas. Toda a noite vira em sonhos o rosto duma delas, a bela Lucrécia Crivelli.

Carlos VIII era de pequena estatura e feio; tinha as pernas magras e curvas como agulhas de meia; os ombros estreitos, um mais alto que o outro; o peito encolhido, um nariz adunco, duma grandeza desmesurada, e os cabelos ralos e ruivos. Uma penugem amarelada adornava-lhe os lábios e o queixo, num simulacro de barba. Um espasmo nervoso muito desagradável contraía-lhe constantemente o rosto e as mãos. Os lábios grossos, sempre entreabertos como os das crianças, os olhos enormes à flor da pele, esbranquiçados e míopes, davam-lhe uma expressão triste, abstracta e contrafeita, como sucede aos fracos de espírito. As suas falas eram, em geral, bruscas e sem nexo.

Preparou-se para ir visitar o Duque João Galeas, e Isabel, sua mulher.

À frente, partiram os arautos. Quatro pajens sustentavam o magnífico pálio de seda azul, semeado de lírios de prata; o senescal colocou-lhe sobre os ombros um esplêndido manto forrado de arminhos; o veludo escarlate estava bordado de abelhas de oiro e duma divisa de cavalaria:

"o rei das abelhas não tem ferrão". O cortejo atravessou várias salas desertas do castelo de Pavia, antes de chegar ao quarto do moribundo.

Ao passar diante da capela, Carlos viu a princesa Isabel. Tirou respeitosamente a sua carapuça e pretendeu aproximar-se dela, tratando-a por "querida irmã" a fim de a beijar na boca.

Mas a Duquesa, adiantando-se, impediu-o e lançou-se-lhe aos pés.

- Monsenhor - começou, recitando um discurso preparado -, apiedai-vos de nós! Deus vos recompensará. Magnânimo Senhor, defendei os inocentes! Ludovico, o Mouro, tudo nos roubou, usurpou o nosso trono, envenenou o soberano legítimo de Milão, o meu querido esposo João

Galeas. Dentro da nossa própria casa estamos rodeados pelos assassinos.

Carlos mal compreendia, ouvindo distraidamente os seus dizeres.

- Hem? hem? O que foi, o que é? - murmurou, como alguém que acorda dum sonho. E repetia, agitando convulsivamente as mãos: - Não, não pode ser... Não, por favor, querida irmã... Erguei-vos!

Mas ela não se levantava, beijando as mãos do Rei, abraçando-o pelos joelhos e, sem poder conter os prantos, exclamou num desespero sincero:

- Se vós nos abandonais, Monsenhor, eu porei termo à minha vida!

Desta feita o Rei perturbou-se e o rosto contraiu-se-lhe como se estivesse também prestes a chorar.

- Vamos, vamos!... Meu Deus... Eu não sei... Briçonnet... diz-lhe...

que...

Mas uma enorme vontade de fugir dominava-o: Isabel não lhe inspirava nenhuma compaixão. Apesar do seu desespero e humilhação, era tão bela e tão altiva que semelhava uma majestosa heroína de tragédia.

- Acalmai-vos, Sereníssima Madona. Sua Majestade fará a vosso favor e por vosso esposo, messer João Galeas, tudo o que for possível disse o cardeal Briçonnet, com afável frieza e uns ressaibos de altivez.

A Duquesa observou-o, e olhou também com atenção para o Rei, calando-se de repente, como se, só nesse momento, compreendesse com quem estava falando.

O Príncipe que estava na sua frente era uma feia, ridícula e insignificante criatura. Os seus beiços grossos, entreabertos, tinham o sorriso estúpido, contrafeito e distante dos idiotas; os olhos enormes rolavam- lhe esbranquiçados e inexpressivos.

"Eu, a neta de Fernando de Aragão, de joelhos aos pés deste fedelho imbecil!"

Ergueu-se ruborizada e cheia de confusão. O Rei sentia a necessidade de sair daquele penoso silêncio. Fez um esforço, ergueu várias vezes os ombros, olhou ansiosamente em roda de si, como que à espera dum socorro estranho, e murmurou simplesmente o seu habitual: "Hem? hem?

O que foi..." Fez um gesto de desalento e calou-se.

A Duquesa contemplava-o com um desprezo mal dissimulado. Carlos baixara a cabeça:

- Vamos, Briçonnet, vamos... Hem?

Os pajens abriram as portas e Carlos entrou no quarto do Duque.

As persianas tinham sido abertas. Os últimos raios dum sol de Outono, prestes a desaparecer por detrás das colinas, entravam pelas janelas.

O Rei aproximou-se do leito do doente, chamou-lhe "querido primo" e perguntou-lhe se estava melhor.

João Galeas respondeu com um sorriso cheio de tanta serenidade e afeição que Carlos se sentiu imediatamente à vontade; a sua perturbação dissipara-se.

- Que Deus proteja Vossa Majestade e lhe conceda a vitória! - disse o Duque. - Quando estiverdes em Jerusalém, junto do túmulo do Senhor, rezai pela minha pobre alma, porque, nesse momento, eu...

- Ah! Não, não, querido primo. Como podeis dizer isso?! - interrompeu o Rei. - Deus é misericordioso. Haveis de curar-vos! E ainda iremos os dois, juntos, numa expedição contra os infiéis!

João Galeas abanou a cabeça.

- Não. Essas coisas não foram feitas para mim!

E olhando o Rei com um olhar perscrutador, acrescentou:

- Quando eu morrer, Senhor, não abandoneis o meu filho Francisco, nem Isabel; ela é muito desgraçada; não tem mais ninguém no mundo!

- Ah! Meu Deus, meu Deus! - exclamou Carlos com emoção súbita e inesperada; os cantos da boca tremiam-lhe numa contracção dolorosa e o seu rosto tomou uma expressão de bondade inusitada, com o reflexo duma luz interior.

Inclinando-se vivamente para o doente, beijou-o com ternura impetuosa, e gaguejou:

- Querido primo... querido primo...

Sorriam um para o outro, como dois desgraçados meninos doentes, e beijavam-se fraternalmente.

Ao sair da câmara do Duque, o Rei chamou o Cardeal:

- Briçonnet, ó Briçonnet... Ouve... sabes? É preciso defendê-los...

Não os posso abandonar, não... Eu sou um cavaleiro... Há que defendê- los, ouviste?... Ordeno-te...

- Sire - respondeu evasivamente o Cardeal -, ele vai morrer com certeza e nós não podemos salvá-lo! Não há nada a fazer por ele!

Ludovico, o Mouro, é nosso aliado, não devemos...

- Ludovico, o Mouro, é um miserável, um assassino!... - exclamou o Rei com energia.

- Não vos amofineis - continuou Briçonnet erguendo os ombros, num sorriso condescendente. - Ludovico, o Mouro, não é nem melhor nem pior do que os outros. É assim a política, Sire! Todos nós somos homens...

Um escudeiro trouxe ao Rei uma taça de vinho que Carlos bebeu com avidez. Esta distracção varreu os seus tristes pensamentos.

Juntamente com o escudeiro tinha entrado um gentil-homem enviado por Ludovico, com a missão de convidar o rei Carlos para a ceia. O Rei recusou e o gentil-homem insistiu, mas vendo que o Rei mantinha a sua recusa, aproximou-se do aio Thibauld e murmurou-lhe umas palavras ao ouvido. Este fez um sinal de aquiescência e de compreensão e, por sua vez, disse ao ouvido do Rei:

- Majestade, madona Lucrécia...

- Hem? O quê!... O que foi?... Lucrécia?...

- A dama com quem Vossa Majestade dançou ontem à noite no baile.

- Ah! sim! Já me lembro... Madona Lucrécia... Muito linda! Dizes então que está hoje na ceia?

- Com certeza estará, e suplica a Vossa Majestade...

Ela suplica... Ah! Está bem! Que fazer, Thibauld? Hem? O quê?..

Eu suponho... Amanhã parto para a guerra... Uma última vez... Agradecei aa Duque, messer - disse ao enviado. - Eu aceito o convite... - E chamando Thibauld de parte:

- Quem vem a ser essa madona Lucrécia?

- É a amante de o Mouro, Majestade!

- A amante de o Mouro, ah! que pena...

- Sire, não tendes mais que dizer uma palavra e tudo se arranjará muito facilmente. Hoje mesmo, se assim o desejardes. E o Mouro até ficará lisonjeado - acrescentou Thibauld.

 

Oito dias mais tarde, o jovem e infeliz duque João Galeas entregava a alma a Deus.

Antes de morrer pediu a sua mulher que chamasse Leonardo; mas esta recusou. Monna Druda tinha asseverado a Isabel que todos os enfeitiçados sentem o desejo invencível e funesto de tornar a ver o autor do malefício. A velha continuava sempre a friccionar o corpo do doente com o unguento de escorpiões, e os médicos, até ao fim, a martirizá-lo com as suas sangrias.

Apesar de tudo, o Duque expirou suavemente.

- Seja feita a Sua Vontade! - foram as suas últimas palavras.

O Mouro ordenou que o corpo fosse transportado para Milão e exposto na Catedral.

Entretanto, os gentis-homens reuniram-se no castelo de Milão.

Ludovico, assegurando que a morte prematura do sobrinho lhe causava vivo pesar, propôs que fosse declarado como legítimo herdeiro do Duque o seu filho Francisco. Todos, porém, se opuseram, alegando os inconvenientes que resultariam de confiar um poder tão vasto a uma criança, e solicitaram a Ludovico, em nome do povo, para aceitar o ceptro ducal.

Depois de ter hipocritamente recusado o convite, o Mouro acabou enfim por aceder, como contra sua vontade, às instâncias dos partidários.

Trouxeram-lhe então um sumptuoso manto de brocado de oiro, com que se vestiu, e, montando a cavalo, dirigiu-se à igreja de Santo António.

Os gritos: viva il Moro, viva il Duca! misturavam-se ao som das charamelas e aos repiques dos sinos.

Mas quem soltava estes gritos eram os amigos e os apaziguados do Duque; o povo, esse mantinha-se silencioso.

Na presença dos síndicos, dos cônsules e dos cidadãos de categoria.

os arautos leram do alto da "Loggia degli Osii", sobre a praça do mercado, ao lado da Câmara Municipal, o "privilégio" conferido ao duque

Ludovico, o Mouro, por Maximiliano, o Chefe perpétuo do Santo Império Romano.

"- Maximilianus divina fovente clementia Romanorum Rex semper

Augustus. Todos os domínios compreendendo as terras, as cidades, as aldeias, os castelos, as fortalezas, as montanhas, as pastagens e as planícies; os bosques, os prados, as charnecas, os rios e os lagos; as caças, as pescas e as minas; todas as propriedades dos vassalos, bem como as dos marqueses, viscondes e barões; os conventos, as igrejas e as paróquias;

de tudo nós te fazemos doação a ti, Ludovico Sforza, e aos teus herdeiros; nomeamos-te Duque de Milão, confirmamos-te todos os teus direitos; elevamos-te ao poder e escolhemos-te, a ti, aos teus filhos, aos teus netos e aos teus bisnetos, como soberanos autocratas da Lombardia, por todos os séculos dos séculos".

Alguns dias mais tarde foi anunciada a trasladação solene, para a

Catedral, da mais sagrada relíquia de Milão: um dos pregos da verdadeira cruz em que expirara o Senhor.

Com esta cerimónia esperava Ludovico, o Mouro, captar as boas graças do povo e consolidar a sua situação ducal.

 

                         CAPÍTULO VI

DIÁRIO DE GIOVANNI BELTRAFFIO (1494-1495)

"O amor é filho do conhecimento. É tanto mais ardente, quanto mais certa for a ciência."

                     Leonardo de Vinci

"... sede prudentes como as serpentes, e inocentes como as pombas."

  1. Mateus, X, 16

 

Entrei para a academia do mestre florentino Leonardo de Vinci no dia vinte e cinco de Março de 1494.

O plano dos estudos é o seguinte: perspectiva, dimensões e proporções do corpo humano; desenhos copiados dos modelos dos mestres consagrados; e desenhos tirados directamente da Natureza.

Hoje, o meu amigo Marco de Oggione entregou-me um livro contendo as regras do mestre a respeito da perspectiva. Este livro começa assim: "A luz do Sol proporciona ao corpo a maior das alegrias; assim, a clareza das verdades matemáticas proporciona a maior alegria ao espírito,”

^ mestre trata-me como se eu fosse um membro da sua família; tendo sabido da minha má situação financeira, recusou-se a aceitar, da minha parte, o pagamento combinado dos cinco florins mensais.

* Mestre disse-me:

"Assim que conheceres o fundo das leis da perspectiva e quando souberes de cor as dimensões do corpo humano, observa com atenção, durante os teus passeios, os movimentos das pessoas; a sua maneira de estar, de andar, de falar, de discutir; como riem e como lutam; as expressões diferentes que nesses momentos tomam as fisionomias dos espectadores que têm a intenção de intervir, e daqueles que se contentam em contemplá-las em silêncio. Observa tudo e faz um esboço a lápis, o mais depressa que te for possível, num caderno que deves sempre trazer contigo. Quando esse caderno estiver cheio, arranja outro, mas põe o primeiro de parte e conserva-o cuidadosamente. Lembra-te que é preciso guardar sempre esses apontamentos, porque os movimentos do corpo são tantos e tão variados, que nenhuma memória de homem é capaz de os reter. Por isso, esses estudos serão os teus melhores professores e guias."

Comprei um dos tais cadernos e todas as tardes inscrevo nele as palavras pronunciadas pelo mestre durante o dia, que me parecem mais dignas de atenção.

Hoje, na viela dos Trapeiros, situada ao pé da Catedral, encontrei meu tio, o mestre vidreiro Osvaldo Ingrim. Declarou que me renegava e que eu tinha perdido a minha alma ao entrar em casa do herege e ateu Leonardo.

Assim, fiquei completamente só; a não ser Leonardo, não tenho ninguém: nem parentes, nem amigos!

E repito a altiva prece de Leonardo: "Que o Senhor, Luz do mundo, me ilumine e me ajude a estudar a perspectiva, que é a ciência da Sua Luz!" Será possível que isto sejam palavras dum ateu?

Nos momentos de maior preocupação e desalento, basta-me contemplar a figura do mestre para que a minha alma se sinta, de súbito, alegre e desanuviada.

Como são maravilhosos os seus olhos, translúcidos, pálidos e frios como o gelo! E a sua voz como é doce e agradável; e o seu sorriso! As pessoas mais obstinadas e perversas não podem resistir à doçura convincente das suas palavras quando ele deseja que digam "sim" ou "não".

Muitas vezes contemplo-o demoradamente, quando está à mesa de trabalho, mergulhado nas suas reflexões, e, num movimento calmo que lhe é habitual, acaricia com os dedos longos a comprida barba frisada e macia, como os caracóis duma adolescente. Quando fala com alguém, semicerra, ordinariamente, os olhos irónicos e zombeteiros, mas cheios, ao mesmo tempo, de bondade; parece então que o seu olhar, filtrando-se através das espessas pestanas, nos penetra até ao fundo da alma.

O mestre veste-se simplesmente; não suporta as cores vivas nos vestuários nem aceita a vaidade das modas novas. Detesta os perfumes. A sua roupa branca é do mais fino linho de Normandia e está sempre imaculada e alva como a neve. Usa uma boina de veludo negro, sem enfeites, medalhas ou plumas. Sobre o casaco negro, que lhe chega quase aos joelhos, uma capa vermelho-escuro de pregas direitas, pitocco rosato, como se usava antigamente em Florença. Os seus movimentos são calmos e iguais; mas, apesar da simplicidade de toda a sua compostura, é impossível, onde quer que ele esteja - entre fidalgos ou no meio da plebe -, que não atraia as atenções, tal a nobreza e a invulgaridade de toda a sua pessoa.

Não há nada que ele não saiba fazer; conhece tudo: atira bem a frecha, éum mestre de esgrima, ao sabre, e um grande nadador.

Uma vez, vi-o competir com homens do povo, num jogo que consistia em lançar uma pequena moeda para o ar, dentro da Catedral, e fazer que ela alcançasse o alto da cúpula. Mestre Leonardo a todos venceu pela agilidade, pelo vigor e pela destreza com que jogava.

E canhoto. Mas a mão esquerda, delicada e fina como a duma linda mulher, é capaz de torcer uma ferradura, de dobrar o badalo de cobre duma campainha, e, simultaneamente, desenhar o rosto belo duma virgem, e esboçar no papel, com o lápis ou o carvão, sombras transparentes e mais ténues que o frémito das asas duma borboleta.

Hoje, depois de jantar, acabou diante de mim um desenho representando a cabeça da Virgem Maria escutando, com atenção, a boa nova da boca do Arcanjo.

Sobre os bandós ornamentados de pérolas ondulavam mechas de cabelo, penteadas segundo a moda das jovens florentinas e arranjadas com a maior arte, embora, na aparência, de forma despretensiosa. A beleza deste penteado cativa-nos como uma música estranha. Os olhos misteriosos parecem brilhar através das pálpebras, na sombra das pestanas, lembrando as flores submarinas que se entrevêem sob as vagas transparentes, sem se poderem atingir.

Subitamente, o criadito Jacopo precipitou-se no atelier saltando de alegria e batendo as mãos.

- Que monstros! Que monstros! - exclamou. - Mestre Leonardo, vinde depressa à cozinha! Trouxe-vos dois soberbos exemplares! Mendigavam no átrio da Igreja de Santo Ambrósio e prometi que vós lhes daríeis de cear se consentissem em se deixar retratar. Ah! Ides ver. Que milagre!

O mestre interrompeu o desenho, dirigiu-se logo à cozinha, onde eu o segui.

Vimos então, sentados sobre um banco, dois velhos que pareciam irmãos; o corpo inchado como o dos hidrópicos, e com os pescoços tumefactos por enormes bócios repugnantes. Esta doença é de resto vulgar na região de Bergamo.

O rosto de Jacopo resplandecia de satisfação.

- Então, eu não vos dizia - murmurou - que vos haviam de agradar?! Já conheço muito bem os vossos desejos!

Leonardo sentou-se ao lado dos monstros, mandou vir vinho e começou a interrogá-los amistosamente e a fazê-los rir contando-lhes histórias.

Em breve, os dois personagens estavam completamente ébrios e manifestavam a mais franca alegria, fazendo horríveis caretas. Incomodado.

desviei a vista e afastei-me para não os ver; mas Leonardo observava-os com uma curiosidade grave e profunda, como um sábio fazendo as suas experiências. Quando a fealdade atingiu as suas mais horríveis expressões, pegou num papel e começou a desenhar os monstros ignóbeis, com o mesmo lápis com que há pouco esboçara o sorriso divino da Virgem Maria.

À tarde mostrou-me uma quantidade de caricaturas de pessoas e de animais grotescos, semelhantes às que os doentes entrevêem nas horas dos seus delírios febris.

As cabeças de animais representavam expressões humanas.

E o mais terrível é que esses monstros parecem ser já nossos conhecidos; têm qualquer coisa de sedutor, que simultaneamente nos atrai e nos repele, como um precipício. Quando os olhamos, sentimo-nos contrafeitos, e apesar disso não temos coragem de desviar a vista. Da mesma forma que, quando contemplamos a cabeça duma linda donzela pintada por Leonardo, assim ficamos também presos e admirados como diante dum milagre.

César de Sesto conta que Leonardo, se encontra na rua qualquer pessoa apresentando uma monstruosidade curiosa, é capaz de a seguir o dia inteiro, passo a passo, a fim de a observar e fixar a sua fisionomia.

"Uma monstruosidade verdadeira", diz ele, "é coisa tão rara como uma maravilha; só o comum é destituído de interesse".

Marco de Oggione é o discípulo mais aplicado e mais consciencioso de Leonardo. Trabalha sem descanso, segue com exactidão todos os preceitos do mestre, mas, a meu ver, quanto mais trabalha menos resultado tira. Marco é excessivamente teimoso; ideia que uma vez se aposse do seu espírito ninguém é capaz de lha arrancar. Convenceu-se de que "a paciência e um trabalho constante vencem tudo". Por isso, não perde nunca a esperança de chegar a vir a ser um dia um ilustre artista. César de Sesto troça dele constantemente:

- Este querido Marco é um verdadeiro mártir da ciência. O seu exemplo prova que as regras tão afamadas, e o processo descoberto pelo mestre

Para reconhecer as almas pelas fisionomias, não valem absolutamente nada. Não basta saber como nascem as crianças, para as ter. Leonardo engana-se, enganando também os outros; diz uma coisa e faz o contrário. Não contente com ser um grande artista, pretende também ser um sábio; quer aliar a arte à ciência, a inspiração às matemáticas. Quem quer correr assim ao mesmo tempo atrás de duas lebres, arrisca-se a não apanhar nenhuma!

Será possível que nas palavras de César haja qualquer parcela de verdade? Por que será que ele detesta assim tanto o nosso mestre?

Leonardo perdoa-lhe tudo, ouve com paciência as suas ironias e os seus discursos cheios de maldade, e parece que estima o seu espírito pois nunca se zanga com ele.

Tenho observado a sua forma de trabalhar no quadro da Ceia. Às vezes, muito cedo, mal nasceu o sol, sai de casa e dirige-se para o refeitório do convento; e, durante todo o dia, até ao crepúsculo, trabalha sem largar os pincéis um só instante, esquecido até de comer e de beber. Em compensação, também é capaz de passar uma semana ou duas sem pegar na paleta para continuar a sua obra. Nessas ocasiões, porém, passa quotidianamente duas ou três horas sobre o andaime em frente do fresco, contemplando e examinando o que já está feito. Acontece também, às vezes, ao meio-dia, quando o sol no zénite escalda, interromper qualquer trabalho começado e dirigir-se ao mosteiro, pelas ruas desertas, sem se incomodar com o calor, como arrastado por uma força invisível; uma vez em frente do quadro, dá duas ou três pinceladas e volta outra vez para casa.

Todos estes dias, Leonardo tem trabalhado na cabeça de S. João. Devia acabá-la hoje. Mas, com grande admiração minha, todo o dia se tem conservado em casa, e desde pela manhã, com o pequeno Jocopo, se tem entretido a observar o voo dos zângãos, das vespas e das moscas. Tão absorvido se mostra no estudo da estrutura do corpo e das asas destes insectos, que se poderia supor que a sorte do mundo está em jogo. Quando descobriu que as patas posteriores das moscas lhes servem de lemes.

rejubilou. Segundo a sua opinião, este pormenor é extremamente importante e útil para a sua máquina de voar; mas, quanto a mim, é realmente lamentável que a cabeça de S. João tivesse sido abandonada por causa das patas das moscas. Jacopo apanha e traz-lhe, constantemente, abelhas.

moscas e aranhas. Curiosa criatura este Jacopo! Selvagem, repelindo toda a gente, não estimando ninguém, vagueia pelas ruas grande parte do dia:

é cruel para os animais, mas tem tal adoração pelo mestre que, creio, seria capaz de dar a vida para satisfazer o mais insignificante dos seus caprichos.

Hoje, novo aborrecimento. As moscas foram também esquecidas, assim como a Ceia. Leonardo tem estado ocupado na invenção dum ornato para o escudo destinado à nova academia de belas-artes de Milão, que ainda não existe, senão num projecto do Duque. Não me contive e atrevi-me a lembrar-lhe a sua intenção de contemplar a cabeça de S. João.

Encolheu os ombros e, sem mesmo levantar os olhos do desenho, murmurou entre os dentes: "Está descansado que ela não fugirá, havemos de ter tempo para tudo!”

Às vezes chego a compreender a maledicência de César.

O duque Ludovico encarregou-o da instalação no seu palácio de uns tubos acústicos ocultos no interior das paredes, a que chama "ouvidos de Denys", e que lhe permitirão escutar num dos quartos o que se diz e passa nos outros. No princípio, Leonardo dedicou-se a este trabalho com entusiasmo; mas em breve o seu ardor esfriou e agora adia constantemente a sua continuação sob os mais variados pretextos.

Em vão o Duque o tem instado e se tem até enfadado. Hoje, muito cedo, vieram por diversas vezes recados do palácio a chamá-lo. Mas um outro assunto mais importante ocupa o mestre nesta ocasião: anda a fazer novas experiências sobre as plantas.

Gosta de todos os animais. Às vezes passa dias inteiros a observar e a desenhar os gatos, estudando os seus hábitos; como brincam, como dormem, como limpam o focinho com as patas, como caçam os ratos e como ouriçam o pêlo contra os cães.

Outras vezes, com o mesmo entusiasmo, olha, através das paredes de vidro dum aquário, os peixes e outros animais aquáticos. E o seu rosto exprime uma profunda e silenciosa alegria quando lutam e se entredevoram.

inacessível, para o que não pode ser realizado por maior que seja o talento do artista. E é por essa razão que nunca termina as suas obras.

Traz sempre entre mãos uma infinidade de obras. Ainda uma não está terminada, já começa a ocupar-se de outra. De resto, cada uma das suas obras é comparável a um brinquedo, e cada brinquedo tratado da mesma forma que um assunto sério.

É extremamente volúvel e caprichoso. César diz que seria mais fácil ver os rios inverter o sentido dos seus cursos que Leonardo dedicar-se a um assunto e levá-lo até ao fim.

Costuma chamar-lhe, a rir, "o maior dos estouvados", e assegura que os seus trabalhos não têm a mais pequena utilidade.

- Leonardo - diz - escreveu já mais de cento e vinte grossos cadernos intitulados "Da Natureza", Delle Cose Naturale. Mas, até este momento, tudo isso não é mais que um amontoado de citações, de observações isoladas, espalhadas por cinco mil folhas, numa tão grande desordem e confusão que ele próprio se perde e não consegue encontrar nunca a passagem que procura.

Novamente o mestre trabalhou dois dias na capela de S. João e voltou a abandoná-la para se ocupar de outros assuntos imprevistos. Diz que o cheiro das tintas e a própria vista da paleta lhe causam náuseas quando está a trabalhar durante muito tempo.

É esta a nossa sorte: vamos seguindo os caprichos do destino, vivendo na maior incerteza a respeito do dia seguinte, confiando-nos à vontade de Deus!

Devemos considerar-nos, no entanto, muito felizes por Leonardo não ter ainda recomeçado a construção da máquina voadora, porque, nesse caso, nem sequer lograríamos vê-lo.

Hoje, um alquilador judeu veio oferecer-lhe cavalos. O mestre deseja comprar um cavalo baio, inteiro. O judeu começou a insistir com ele para que comprasse também uma égua, e tantas coisas disse, tanto suplicou, que Leonardo acabou por transigir e deixar-se convencer a fim de se ver livre dele o mais depressa possível.

Eu assisti a esta cena e custava-me a acreditar no que via.

- De que te admiras? - perguntava, mais tarde, César. - E sempre assim; qualquer pessoa o engana. Não nos podemos fiar nele nunca. É um irresoluto, tudo nele é dúbio: simultaneamente é a favor e contra, diz "sim" e "não" ao mesmo tempo, conforme o lado donde sopra o vento.

Apesar de toda a sua força física e moral, é desprovido de verdadeira coragem, e o seu carácter não tem nenhuma solidez.

César continuou ainda por muito tempo as suas críticas e recriminações, exagerando ao máximo os defeitos de Leonardo e indo até às calúnias. Apesar de tudo, eu sentia que nas suas mentiras havia uma parcela de verdade.

Andrea Salaino adoeceu. O mestre trata dele e passa a noite à sua cabeceira. Não quer ouvir falar em drogas nem em sangrias. Marco de Oggione trouxe-lhe às escondidas umas pílulas. Leonardo, ao descobri- las, lançou-as pela janela, declarando que os doutores e os barbeiros não passavam todos de charlatães e ladrões.

Notei que quando Leonardo retoma o trabalho depois dum longo período de hesitações e dúvidas, o temor domina-o ao pegar nos pincéis.

Nada do que faz o deixa satisfeito. As criações que para os estranhos parecem atingir os limites da perfeição, para ele são sempre inferiores e cheias de defeitos. A sua aspiração é sempre para o mais alto.

Leonardo escreveu hoje várias páginas do livro em que trabalha há muito tempo, Trattato sulla Pittura - que só Deus sabe quando terminará.

Nestes últimos dias tem trabalhado bastante comigo, tem-me dado muitos conselhos e ensinado regras sobre a perspectiva linear e no es- paço, sobre a lei da luz e das sombras, citando constantemente passagens de livros e máximas a respeito da arte.

Que o Senhor o recompense pelo amor e pela sabedoria com que me guia pelos sublimes caminhos desta tão nobre ciência!

O mestre disse: "Tudo quanto no homem há de belo, morre, mas na arte não sucede o mesmo"; Cosa bella mortal passa, e non darte.

Esta tarde vi-o, debaixo de chuva, numa betesga estreita, imunda e mal cheirosa, observando as manchas produzidas pela humidade num muro de pedras, manchas que a meu ver nada tinham de extraordinário.

Este exame durou tanto tempo que já os garotos estavam a apontá-lo e a troçar dele, como se se tratasse de um desassisado. Aproximei-me, então, e perguntei-lhe o que descobrira.

Repara, Giovanni - respondeu -, repara que verdadeiro milagre:

vê esta quimera de fauces escancaradas, e ao lado este anjo mimoso, com os caracóis que esvoaçam, e que pretende fugir à perseguição do monstro. Que conjunto de circunstâncias criou aqui tão estranhas imagens!

Com um dedo ia marcando o contorno das manchas, e eu pude ver, efectivamente, o que me acabara de descrever.

- Talvez muitos achem esta ocupação vã e estúpida; mas eu sei por experiência própria a vantagem que há em estimular constantemente o espírito, forçando-o a novas descobertas.

Hoje fez a comparação entre as rugas do rosto durante o riso e durante o choro. Não há nenhuma diferença nesses momentos, no aspecto geral dos olhos, da boca e das faces. Apenas naquele que chora as sobrancelhas se erguem e se reúnem, as pregas da testa cavam-se e os cantos da boca abaixam-se; enquanto no rosto daquele que ri, os sobrolhos se afastam um do outro ao máximo e os cantos da boca se erguem. E disse como conclusão: Esforça-te por ser um observador atento e consciencioso dos que riem ou choram, dos que amam ou odeiam, daqueles que empalidecem e gritam com dores; olha, estuda, analisa, examina tudo para bem conhecer todas as diversas expressões dos sentimentos humanos!

César contou-me que Leonardo gosta de assistir às execuções capitais, para poder observar no rosto dos condenados todas as gradações da angústia e do terror por que passam. Esta sua curiosidade chega a provocar o espanto e a repulsa dos carrascos ao verem a frieza indiferente e objectiva com que espia atentamente as últimas convulsões dos desgraçados moribundos.

- Tu não podes avaliar, Giovanni, o que é este homem - concluiu

César com um sorriso triunfante. - É capaz de te tirar debaixo dos pés uma pobre lagarta, para evitar que tu a pises, mas, uma vez mergulhado nas suas fantasmagorias, creio bem que, se visse chorar a própria mãe, não deixaria de observar-lhe o movimento dos supercílios e todas as contracções do rosto.

Eis aqui a história da pintura, contada pelo mestre em poucas palavras.

- Depois dos Romanos, quando os pintores começaram a imitar-se uns aos outros, a arte caiu em decadência, durante uns poucos de séculos. Até que apareceu o florentino Giotto, que não se contentou em seguir as lições do seu mestre Cimabue. Oriundo de um país montanhoso e deserto onde não se encontram senão raros rebanhos, sentiu-se atraído pela arte e começou a desenhar nas pedras a imagem das cabras que andava apascentando, e bem assim as sombras de outros animais da região. Enfim, depois de longos estudos, conseguiu ultrapassar não apenas os artistas do seu tempo mas também muitos outros dos séculos precedentes. A seguir a Giotto veio novamente um período de marasmo e mediocridade, porque ninguém criava e todos procuravam apenas reproduzir os modelos já executados. Assim passou todo um século até que

Tomás, o florentino, cognominado o Masaccio, demonstrou, pelas suas obras, até que ponto aqueles que se limitam a copiar perdem o seu tempo, em vez de se inspirarem directamente na Natureza, que é o mestre de todos os mestres.

A primeira obra de arte foi uma linha traçada numa parede, delineando o contorno da sombra de um homem iluminado pelo Sol.

Parece que quanto mais tempo vivemos na sua companhia menos o conhecemos. Ainda hoje assistimos a uma brincadeira de criança executada por ele! Eu estava no meu quarto lendo, antes de adormecer, o meu livro favorito, as Fioretti di San Francesco, quando, de repente, se ouviram uns gritos da nossa velha, a boa Mathurina.

- Fogo! Fogo! Socorro! Está tudo a arder!

Desci precipitadamente as escadas e entrei, aflito, no atelier, que estava cheio de um espesso fumo branco.

Iluminado pelo brilho de chamas azuis, como as dos relâmpagos,

Leonardo estava de pé, envolvido numa nuvem branca, e parecia um antigo mago, com um sorriso alegre e escarninho nos lábios; contemplava a cozinheira Mathurina, que gesticulava, lívida de pavor, enquanto Marco, que chegava com dois baldes cheios de água, para apagar o incêndio, se preparava para os entornar, sem atenção nem piedade, sobre os desenhos do mestre, se este o não impedisse, gritando que tudo aquilo não passava duma brincadeira.

Vimos, então, que toda aquela fumarada e as chamas eram produzidas por um pó branco composto de mirra e colofana que o mestre lançava numa marmita de ferro aquecida ao rubro. Tinha fabricado esta mistura para simular um pequeno incêndio, divertindo-se imenso com a brincadeira.

Não sei, nesta farsa, qual dos dois estava mais entusiasmado: se o seu inseparável companheiro de brinquedos, esse pequeno patife de Jacopo, ou se o próprio Leonardo! Como ele se riu dos baldes salvadores do Marco e do susto da velha Mathurina!

Quem assim consegue divertir-se duma forma tão infantil e isenta de malícia não pode ser certamente um criminoso.

César mente nas suas críticas. Mas, no meio de todo este incidente.

Leonardo não deixou de notar as observações recolhidas na expressão de Mathurina, demonstrando ainda uma vez de que forma a pele se contrai e enruga quando o pavor se manifesta na fisionomia humana.

Nunca fala de mulheres. No entanto, uma vez disse que os homens eram tão injustos com elas como com os animais. César afirma que, durante toda a sua vida, Leonardo tem estado sempre tão ocupado pela mecânica e pela geometria que não tem tido tempo de amar. No entanto,

César não o supõe absolutamente impoluto, porque afirma que Leonardo, que mais não fosse por mera curiosidade científica, havia de ter querido estudar o amor, uma vez pelo menos, com a mesma frieza e atenção que dedica a outros fenómenos da Natureza.

Começo a sentir remorsos das conversas que tenho com César a respeito do mestre. Nós ouvimo-lo e observamo-lo como espiões. César sente uma maldosa alegria sempre que consegue fazer qualquer comentário em seu desabono. Mas que interesse pode ele ter em envenenar assim a minha alma?

Nestes últimos dias temos ido às vezes a uma pequena e muito ordinária taberna, ao lado da alfândega de Cataragne, por trás da Porta de

Verceil. Durante horas inteiras bebendo um vinho barato mas muito azedo, na companhia duns barqueiros que jogam com umas cartas sebentas e que se injuriam constantemente, conspiramos como uns miseráveis traidores.

Hoje compreendo por que Leonardo se afasta das mulheres. Para a realização das suas vastas concepções necessita de ter uma grande liberdade e uma perfeita tranquilidade de espírito.

Andrea Salaino queixa-se às vezes amargamente do tédio da nossa existência, laboriosa, monótona e solitária, asseverando que todos os alunos de outros mestres passam uma vida bastante mais divertida.

Como uma rapariga, Andrea gosta de enfeites e atavios, e aborrece- lhe o facto de não ter a quem os mostrar. Ambicionava festas, músicas, ruídos, o esplendor, e olhares apaixonados...

Hoje, o mestre, ao ouvir as suas queixas e censuras, respondeu-lhe, troçando, e afagando, no seu gesto habitual, a longa barba sedosa:

- Não te amofines, meu filho, que eu prometo levar-te à primeira festa que houver na Catedral. E agora, se queres, vou contar-te uma história.

- Sim, mestre. Há muito tempo que não nos contais nada! - disse

Andrea, regozijando-se como um menino; e, preparando-se para bem ouvir a narrativa do mestre, sentou-se-lhe aos pés.

- Num local elevado, que dominava a estrada - começou Leonardo -, no preciso sítio em que uma paliçada limitava o jardim, estava uma grande pedra rodeada de musgos, de flores, de ervas e de árvores.

Uma vez, tendo descoberto abaixo dela uma multidão de pedras na estrada, pretendeu reunir-se-lhes e disse: "Que prazer poderei eu continuar a ter aqui no meio destas flores frágeis e efémeras? Gostaria bem mais de viver no meio dos meus irmãos e das minhas irmãs, das pedras das estradas que me são semelhantes!" E deixou-se rolar até à estrada, para junto dos seus irmãos e das suas irmãs. Uma vez ali, porém, teve de suportar o peso dos veículos carregados, as ferraduras dos machos e dos burros e as botas ferradas que a raspavam e feriam ao passar. Quando por acaso lhe sucedia erguer-se um pouco para ter a ilusão de poder respirar melhor, era logo maculada pela lama pegajosa ou pela pegada de qualquer animal. Olhava então tristemente para o local onde estivera outrora, no retiro solitário do jardim, e lamentava ter deixado aquele paraíso. É o que acontece, Andrea - concluiu o mestre -, aos que abandonam uma existência calma e laboriosa para mergulhar nos prazeres vãos da turba, prazeres cuja perversidade não tem limites.

O mestre proíbe que se cause qualquer dano aos animais e até às plantas. Zoroastro de Peretola conta-me que Leonardo, desde os seus verdes anos, não come carne, e que preconiza que chegará o momento em que toda a humanidade, assim como ele, se há-de contentar com a alimentação vegetal; considera o assassínio dos animais tão sacrílego e criminoso como o dos homens.

Esta manhã acordei muito cedo; o sol acabara de nascer, toda a gente na casa dormia ainda. Dirigi-me ao pátio para me lavar com a água fria do poço. Tudo estava calmo e sossegado. De muito longe chegavam ruídos de sinos, como zumbidos de abelhas sobre as flores...

De repente ouvi, como num sonho, o rufiar duma multidão de asas.

Ergui os olhos e vi o mestre empoleirado na escada do pombal. Com os seus cabelos ensoalhados, que lhe rodeavam a cabeça como uma auréola, parecia estar no Céu, feliz e solitário. Um bando de pombas arrulhava a seus pés. Outras esvoaçavam de roda dele, pousando-lhe sem receio nos ombros, nas mãos e na cabeça.

E ele ia-as acariciando e dando-lhes de comer, até que, erguendo as mãos, como para as abençoar, as pombas levantaram voo, agitando as brancas asas aveludadas, e subiram, como flocos de neve, a pouco e pouco, fundindo-se no azul do céu. Um sorriso enternecido do mestre acompanhava-as, e pareceu-me ver nesse momento uma semelhança entre Leonardo e S. Francisco, o grande amigo de todos os seres vivos, aquele que chamava ao vento seu irmão, à água a sua irmã e à terra a sua mãe!...

Que Deus me perdoe! Mais uma vez não soube resistir às sugestões de César e de novo fui com ele a essa maldita taberna.

Falei-lhe da bondade do mestre.

- Dizes isso porque ele não come carne e porque se alimenta apenas com as ervas do Senhor?

- E se fosse por isso, César? Eu sei...

- Tu não sabes nada! - interrompeu ele. - O mestre faz isso não por bondade, mas por distracção, como poderia fazer outra coisa; pretende ser original, singularizar-se, e pratica extravagâncias.

- Extravagâncias! Que queres tu dizer?

César teve um riso forçado.

- Bom, bom! Não discutamos mais. Enche-te de paciência, que assim que chegares a casa te mostrarei alguns desenhos do teu bondoso mestre, que te hão-de edificar!

A volta, entrámos, sorrateiramente, como ladrões, no atelier. Não estava ninguém. César rebuscou sobre a mesa e tirou um caderno colocado em cima duma rima de livros, que me entregou, para eu observar os desenhos em questão. Apesar de sentir que estava praticando uma acção condenável, não pude resistir a observá-los com curiosidade.

Eram reproduções de bombas gigantescas, de balas explosivas, de canhões complicados; máquinas de guerra monstruosas, executadas com a mesma delicadeza alada e a mesma lucidez que os rostos das mais lindas madonas. Lembro-me duma bomba enorme, cuja construção César me explicou. Ao lado, numa das margens, estava escrita pelo mestre a seguinte nota: "Esta bomba é duma utilidade muito grande. Inflama-se à saída do canhão, após o lapso de tempo suficiente para rezar uma Ave- Maria.”

- Ave-Maria - repetiu César. - Que dizes a isto, meu amigo? Não te parece um emprego um pouco extraordinário para uma oração cristã?

Ah! Que homem espantoso é este Leonardo! Que coisas que ele inventa!

E a propósito, tu sabes como ele chama à guerra?

- Como é?

- Pazzia bestialissima. "A mais cruel das loucuras". Não achas engraçado que seja o autor desta frase o mesmo que o das máquinas que te mostrei?

Voltando a página, mostrou-me a reprodução de um carro de guerra, armado com enormes foices de ferro; bastava comunicar-lhe um impulso violento e começava a abrir caminho através das fileiras do inimigo. Os formidáveis braços de aço, cortantes como navalhas e semelhantes às patas duma enorme aranha, agitavam-se com um assobio agudo e um rugido estridente, esfacelando corpos e dispersando para todos os lados farrapos de carne e ondas de sangue. De roda, juncando o solo, viam-se pés, mãos, cabeças e troncos despedaçados.

Observámos então outro desenho: no pátio dum arsenal, uma turba de operários, semelhantes a demónios, erguiam um enorme canhão, de goela ameaçadora e escancarada. O terror apossou-se de mim, à vista de todos esses corpos nus e ofegantes. Parecia uma tropa de demónios trabalhando nas forjas do Inferno.

- Então? Não te dizia, Giovanni, que eram curiosos estes desenhos?

Eis aqui o homem divino, que respeita as ervas, que não come carne, que apanha uma lagarta do chão, não vá um viandante esmagá-la! Isto e aquilo, simultaneamente! Hoje, pecador endurecido, amanhã um santo;

Jano de dupla face; uma voltada para Cristo, a outra para o Anticristo! E agora, distingue qual é o falso e qual é o verdadeiro! E faz tudo isto de ânimo leve, a rir, com uma alegria secreta, como se tudo não fosse mais que um passatempo ou uma brincadeira!

Eu ouvia em silêncio e sentia um frio mortal que me penetrava até ao coração.

- Que tens tu, Giovanni? - perguntou César. - Estás desfigurado.

rapaz! Tu tomas tudo muito a sério; tranquiliza-te, com o tempo hás-de habituar-te e já não te admirarás de nada, como me sucede! E agora.

voltemos à Tartaruga Doirada, beber ainda um copo.

Dum vinum potamus...

Te Deum laudamus!

Sem responder, escondi o rosto nas mãos e fugi.

Como pode ser possível esta estranha dualidade!

Que seja o mesmo homem que abençoa as pombas com o sorriso inocente de S. Francisco, aquele que com uma inspiração diabólica inventa o monstro de metal de horrendas patas ensanguentadas? Um único e o mesmo homem!

Não, não é possível. Não se pode admitir semelhante coisa. É preferível ser ateu, que servir simultaneamente a Deus e ao Diabo!

Hoje Marco de Oggione disse:

- Mestre, acusam-te, e também a nós teus alunos, de não ir à igreja e de trabalhar nos dias de guarda.

- Deixai falar os hipócritas - respondeu Leonardo. - E que os vossos corações se não perturbem por isso, meus amigos. Estudar os fenómenos da Natureza é agradar ao Senhor: equivale a uma prece.

Aprendendo a conhecer as leis naturais, honramos, por isso mesmo, o primeiro Criador, o grande artista do Universo; aprendemos a amá-lo, porque o grande amor a Deus é sempre a consequência duma vasta e clara sabedoria. Aquele que sabe pouco não pode amar muito. Se amas a Nosso Senhor somente na esperança das bondades que dEle esperas, és semelhante a um cão, que abana a cauda e lambe a mão do dono, na esperança de receber uma guloseima. Quanto maior não seria o amor do cão pelo seu dono, se lhe compreendesse a alma e o raciocínio! Lembrai- vos, filhos, que o amor é filho da ciência: é tanto mais ardente quanto mais certa esta for. olhai a sabedoria da serpente à simplicidade da pomba!

- Será possível unir - perguntou César - a sabedoria da serpente à simplicidade da pomba? Parece-me que é preciso escolher entre as duas!

- Não! Juntai-as a ambas - afirmou Leonardo. - Juntas! Uma não pode existir sem a outra: a ciência perfeita e o perfeito amor são uma e a mesma coisa!

Ao ler as Epístolas de S. Paulo, encontrei no capítulo VIII da primeira Epístola aos Coríntios as seguintes palavras:

"O saber torna orgulhoso, mas o amor edifica.”

"Se alguém cuida saber alguma coisa, ainda nada conhece, como convém que conheça.”

"Mas se algum ama a Deus, esse é conhecido dele."

O Apóstolo afirma:

"Do amor nasce o saber."

Leonardo diz:

"Do saber nasce o amor."

Quem tem razão? Não consigo resolver este problema e não me é possível continuar a viver nesta incerteza.

Sinto-me perdido nos meandros dum medonho labirinto. Corro sobre mim mesmo, chamo e não vejo chegar nenhum socorro.

Quanto mais ando, buscando uma saída, mais me perco e me enredo.

Onde estou? Que será de mim, se Tu, ó meu Deus, me abandonas?

Oh! Frei Benedetto, como eu gostaria de voltar à tua tranquila cela, contar-te todo o meu sofrimento, cair nos teus braços, a fim de que tu te compadecesses de mim e me aliviasses do fardo que pesa sobre a minha alma! Pai bem-amado, humilde ovelha, tu que realizaste a profecia de

Cristo: "Felizes os pobres de espírito!”

Tivemos conhecimento duma nova desgraça.

O cronista da corte, messer Giovanni Merula, e o seu velho amigo, o poeta Bernardo Bellincioni, conversavam numa sala deserta do palácio, depois de cear. Merula estava ligeiramente embriagado e referiu-se ao duque Ludovico de forma pouco respeitosa, chegando mesmo a acusá-lo de "assassino e envenenador do legítimo soberano João Galeas". Porém.

graças à forma como estão instalados os famosos "ouvidos de Denys". O Duque, que estava num quarto afastado, surpreendeu esta conversação:

deu ordem para prenderem Merula e encarcerá-lo numa masmorra subterrânea, junto do grande fosso que circunda o Castelo.

Que pensará de tudo isto Leonardo, que instalou ele próprio os tubos acústicos sem se preocupar com as suas consequências, boas ou más, e com o fim de pôr em prática curiosas leis e invenções, ou apenas por simples "desfastio e brincadeira", segundo a expressão de César? É de resto assim que ele procede em tudo; quando inventa as monstruosas máquinas de guerra, as bombas destruidoras e as aranhas de ferro, cujas foices podem massacrar meio cento de homens duma só vez.

O rosto do mestre tem por vezes uma tal expressão de serenidade e de inocência, resplandece duma beleza tão virginal, que eu me sinto inclinado a tudo perdoar, e acreditar outra vez nele, e confiar-lhe novamente a minha alma. Mas de repente, nas sinuosidades misteriosas daqueles lábios delgados, parece-me antever um abismo que me apavora, e novamente tenho a impressão de que na sua alma há um segredo, e lembrome duma frase enigmática que ele um dia me disse:

"Os mais caudalosos rios, é debaixo da terra que correm!"

Morreu o duque João Galeas.

Dizem - oh! meu Deus! Tu és testemunha que é com dificuldade que a minha mão escreve estas palavras, em que eu me recuso a acreditar -, dizem que Leonardo é o assassino; teria envenenado o Duque com os frutos da sua árvore venenosa.

Recordo-me de que o mecânico Zoroastro Peretola mostrou uma vez esta árvore maldita a monna Cassandra. Como teria sido melhor para mim não ter assistido a essa cena! Hoje recordo-me dessa noite, e da árvore entrevista através da bruma lunar, com as gotas de veneno perolando sobre as folhas húmidas e com os frutos que, amadurecendo, acalentavam a morte e o terror, e novamente ressoam aos meus ouvidos as palavras do Evangelho: "Não provarás os frutos da árvore da ciência, do bem e do mal, porque, no dia em que o fizeres, morrerás certamente!"

O desgraça, que infelicidade a minha!

Outrora, na calma cela de Frei Benedetto, eu vivia numa santa inocência, como o primeiro homem no Paraíso. Mas pequei, deixei entrar a tentação na minha alma, provei da árvore da ciência e os meus olhos abriram-se; conheci o bem e o mal, a luz e a sombra, Deus e o Diabo:

e então vi também que estava nu, pobre e desamparado e a minha alma morre da verdade!

Do fundo do abismo, ergo a minha voz, para Te endereçar a minha prece e implorar a Tua misericórdia! Como o ladrão sobre a cruz, confesso o Teu Nome: "Lembra-Te de mim, Senhor, quando estiveres no

Teu Reino!”

Assisti na Catedral à festa da Consagração da grande Relíquia: o

Sagrado Prego da Cruz do Senhor.

Apresentaram-no aos fiéis no momento designado pelos astrólogos. A máquina construída por Leonardo para a elevação do Santo Cravo funcionou o melhor possível. Foi um verdadeiro triunfo e um milagre de mecânica.

^ coro cantava:

Confixa Clavis viscera,

Tendens manus vestigia,

Redemptionis gratia

Hic immolata est Hostia.

Leonardo recomeçou a trabalhar na cabeça de Cristo.

Esta noite uma multidão de homens, excitados por alguns que gritavam que o Mouro tinha envenenado o Duque João Galeas com o auxílio de Leonardo, cercaram a nossa casa.

"À morte! À morte o envenenador! O Anticristo!"

Leonardo escutava imperturbável as injúrias da plebe.

Quando Marco de Oggione quis pegar num arcabuz para atirar sobre os assaltantes, não lho consentiu.

O rosto do mestre conservava-se pálido e calmo como de costume.

Então, ajoelhei-me a seus pés e supliquei-lhe que me dissesse que todas aquelas acusações eram falsas e pronunciasse uma única palavra para dissipar as minhas dúvidas. Deus é testemunha de que eu o teria acreditado se ele tivesse respondido. Mas ele não quis ou não pôde dizer-me nada!

O pequeno Jacopo, com risco da própria vida, conseguiu atravessar a multidão exasperada e, depois de ter percorrido algumas ruas, encontrar uma patrulha que trouxe até junto da casa. No momento preciso em que as portas se desmantelavam sobre a pressão dos assaltantes, os soldados.

chegando de improviso, lançaram-se sobre estes e puseram-nos em fuga.

Jacopo ficou ferido na cabeça por uma pedrada e meio morto; mas o rapazito sente-se, apesar de tudo, feliz porque sabe que a sua intervenção salvou a vida do mestre.

E o relicário parou sob a sombria abóbada, por cima do altar-mor da

Catedral, que está perpetuamente iluminado pelas cinco lâmpadas.

^ Arcebispo pronunciou solenemente as palavras:

- O Crux benedicta, quae sola fuisti digna portare Regem caelorum et Dominum. Alleluia!

E o povo de joelhos repetia também: Alleluia! Alleluia!

^ usurpador do trono, o assassino, o Mouro, o rosto banhado de lágrimas, estendia as mãos para a Santa Relíquia.

Depois distribuíram ao povo um bodo: vinho, carne, cinco mil medidas de grão e dois mil quintais de gordura. A multidão, esquecida do

Duque assassinado, comia glutonamente e embriagava-se, gritando: "Viva o Mouro! Viva o Santo Cravo!"

Bellincioni compôs uma ode em hexâmetros na qual se compara o Mouro a Augusto e se anuncia que um novo século de oiro iluminará o mundo.

Ao sair da Catedral, o Duque aproximou-se de Leonardo, abraçou-o e beijou-o nos lábios, chamando-lhe o seu Arquimedes; agradeceu-lhe a maravilhosa invenção da máquina elevatória e prometeu recompensá-lo com uma égua árabe, puro-sangue, das suas próprias coudelarias, e mais dois mil ducados imperiais. Depois, abraçando-o familiarmente, disse- lhe que poderia agora trabalhar de novo na cabeça do Cristo da Sagrada

Ceia, que não o distrairia com novos encargos.

Não posso suportar estas coisas mais tempo. Definho-me e sinto que enlouquecerei à força de repisar tantas vezes os mesmos pensamentos: o equívoco do rosto do Anticristo, transparecendo através do rosto de Cristo.

Senhor, por que me abandonas?!

Renuncio a tudo que não seja a Tua Santa Vontade, a Tua Glória, a Tua Sabedoria, ó Jesus, meu Deus! Ilumina a minha alma com a Tua Luz única, liberta-me dos pensamentos ambíguos que me obcecam, encoraja os meus passos nos Teus Caminhos, a fim de que os meus pés não hesitem, e protege-me com a sombra das Tuas asas. E enquanto eu viver, cantarei a Glória do Senhor meu Deus!

É forçoso fugir antes que seja demasiado tarde...

Esta noite, levantei-me, amarrei num pacote as minhas roupas juntamente com os livros, peguei num bordão de viagem e desci, às apalpadelas, na obscuridade, até ao atelier; deixei sobre a mesa os trinta florins que devia ao mestre, pelos últimos seis meses da pensão. Este dinheiro arranjara-o eu vendendo um anel com uma esmeralda, presente que conservava de minha mãe.

Sem me despedir de ninguém, porque todos dormiam ainda, deixei para sempre a casa de Leonardo.

Frei Benedetto disse-me que, desde que eu o abandonara, todas as noites rezava por mim e que tivera uma visão na qual Deus me guiava de novo para o bom caminho.

Frei Benedetto vai a Florença visitar um Irmão doente, que é dominicano do Convento de S. Marcos, onde é prior Girolamo

Savonarola.

Louvado sejas Tu, meu Deus, que me retiraste das garras do inimigo.

Hoje renego a ciência do mundo, marcada com o selo da serpente, do monstro que se ergue das trevas e que se chama o Anticristo!

Renuncio aos frutos venenosos da árvore do conhecimento, renuncio à vaidade da ciência, essa ciência ímpia que tem por pai o Diabo.

Renuncio a todas as seduções da beleza pagã.

Daqui a dois dias vou a Florença com Frei Benedetto. Encorajado com a bênção do meu pai espiritual, quero entrar como noviço no Convento de S. Marcos, ir para junto do grande eleito do Eterno, o Irmão

Savonarola. Deus salvou-me!

É com estas palavras que termina o Diário de Giovanni Beltraffio.

 

                           CAPÍTULO VII

O AUTO-DE-FÉ DAS "VAIDADES”

(1496)

"Quanto mais fortes são os sentimentos, mais forte é a dor."

Leonardo de Vinci "O homem de ânimo dobrado é inconstante em todos os seus caminhos."

                 Epístola de Santiago, Apóstolo, Cap. 1 - V. 8.

 

Mais de um ano era passado desde que Beltraffio entrara como noviço no Convento de S. Marcos.

Uma tarde, nos fins do Carnaval do ano de 1496, Girolamo

Savonarola, sentado à mesa de trabalho da sua cela, registava uma visão que tivera poucos dias antes. Deus tinha-lhe mostrado duas cruzes erguidas sobre a cidade de Roma: uma negra, num torvelinho assassino, com a inscrição: "A cruz da cólera de Deus", e a outra, num azul brilhante, ostentando a legenda: "A cruz da misericórdia divina".

O sol pálido de Fevereiro entrava através da janela gradeada, até meio da cela. Encostado à parede branca e nua havia um grande crucifixo, e, sobre prateleiras, grossos livros, com antigas encadernações de pele. De

Vez em quando, ouviam-se os alacres gritos das andorinhas, perseguindo-se no céu azul.

Savonarola sentia uma grande fadiga e arrepios de febre. Descansando a Pena, deixou cair a cabeça sobre o braço e começou a rememorar o que tinha ouvido essa manhã mesmo acerca da vida do papa Alexandre VI, narrado pelo humilde Frei Pagolo, que fora enviado especialmente a Roma para fazer um inquérito e que acabara de regressar a Florença.

Semelhantes a visões do Apocalipse, passavam diante dos olhos de Savonarola as mais monstruosas imagens. Primeiro, o escudo dos Bórgias, com o seu boi vermelho, sugestão do antigo boi Ápis dos Egípcios; o velo de oiro, em vez do doce cordeiro das Escrituras; a seguir, os espectáculos obscenos representados de noite, depois da ceia, nas salas do Vaticano, diante do Muito Santo Padre, da sua muito amada filha e da multidão dos Cardeais; era ainda a formosa Júlia Farnese, a jovem concubina do Papa, que servia de modelo a todos os pintores de Roma para os rostos das suas Virgens. Finalmente, eram os dois filhos mais velhos de Alexandre, César, duque de Valentinoisl, e João, duque de Gândia, porta- estandarte da Igreja Romana; ambos possuídos duma paixão impura por sua irmã Lucrécia, paixão que levara um deles, num ódio brutal, como Caim, até ao fratricídio.

E Savonarola estremecia, só de recordar a monstruosidade que Frei Pagolo mal ousara murmurar-lhe ao ouvido: o amor incestuoso do pai pela própria filha, do velho Papa por Madona Lucrécia.

"Não, não, Deus vê bem que eu não acredito nisto, que não deve passar duma odiosa calúnia! Não é possível!", repetia, mas, no seu íntimo, sentia que não havia nenhum crime que não pudesse ser cometido por esses terríveis membros da casa dos Bórgias.

Um suor frio corria sobre a fronte do monge, que se ajoelhou diante do crucifixo.

Alguém bateu ligeiramente à porta da cela.

- Quem está aí?

- Sou eu, meu pai!

Savonarola reconheceu a voz do seu dedicado amigo e assessor, o Irmão Domenico Buonviccini.

- O mui digno Ricardo Becchi, legado de Sua Santidade, pede licença para te falar.

- Bem, diz-lhe que espere um pouco e vai buscar-me Frei Silvestre.

Silvestre Marufi era um frade, pobre de espírito e sujeito a crises epilépticas. Savonarola considerava-o como bafejado por todas as graças divinas; amava-o, temia-o e estudava os sonhos de Silvestre, segundo as regras duma escolástica especiosa, encontrando sempre um sentido profético no que os outros não viam mais do que balbucios idiotas. Marufi não manifestava o menor respeito pelo seu superior: amiúde o difamava.

Valentinois, pequeno país da antiga França, no Delfinado, erigido por Luís XII em ducado.

 

Que doou a favor de César Bórgia (N. do T.).

 

Injuriava-o publicamente e chegava até a bater-lhe. Savonarola suportava todas estas ofensas com humildade e obedecia-lhe em tudo. Se o povo de Florença estava dominado por Savonarola, este, por sua vez, estava entre as mãos do imbecil Marufi.

Ao entrar na cela, Frei Silvestre foi sentar-se no chão a um canto e começou a coçar a sola dos crestados pés nus, assobiando uma canção monótona. O seu rosto sardento tinha uma expressão triste e estúpida; o nariz era pequeno e pontiagudo como uma sovela, o lábio inferior pendente e os olhos lacrimejantes, com reflexos glaucos.

- Irmão - explicou Savonarola -, acaba de chegar de Roma um legado secreto do Papa. Diz-me se o devo receber e que lhe hei-de responder? Não terás tu tido já alguma visão, ou ouvido algumas vozes?

Marufi fez uma careta divertida; começou a ladrar como um cão e depois a grunhir como um porco; uma das suas habilidades era imitar com perfeição as vozes de muitos animais.

- Meu querido Irmão - insistiu Savonarola -, sede bom, respondei- me! A minha alma está em grande transe e aflição. Pede a Deus que faça baixar sobre ti o espírito profético!

O monstro fez nova careta, deitando a língua de fora; o seu rosto estava descomposto.

- Vejamos. Quando acabarás tu de maçar-me? Maldito choramingas, estúpida aventesma, cabeça de carneiro! - gritou-lhe, num acesso de cólera inesperado. - Quem as arma, que as desarme; não sou nem teu profeta nem teu conselheiro!

E olhando de soslaio para Savonarola, suspirou e continuou já num outro tom de voz, mais doce e acariciante:

- Tu fazes-me pena, Irmão, tu fazes-me pena, pobre pateta... Como podes saber se as minhas visões procedem de Deus ou do Diabo?

Silvestre calou-se, fechou os olhos e o rosto imobilizou-se-lhe, como o de um morto. Savonarola, julgando-o já em transe profético, esperava, cheio de fé.

Mas Marufi abriu os olhos, voltou lentamente a cabeça e, como quem está escutando qualquer coisa, olhou pela janela para o exterior e disse, com um sorriso calmo, bom, quase de pessoa ajuizada:

- Os passarinhos, ouves os passarinhos? O campo deve estar cheio de florinhas amarelas. Ah! Irmão Girolamo! Já tens feito muito dano por aqui, dado largo pasto ao teu orgulho, e assaz contentando o Demónio.

E tempo de acabar! É preciso também pensar um pouco em Deus. Deixemos este mundo em que campeia o escândalo e procuremos um refúgio no deserto.

E começou a cantar, baixinho, passeando na cela, dum lado para o outro:

Vamos para os verdes bosques,

Para um asilo escondido,

Onde brotem frescas águas

E cantem os tentilhões!...

De repente, levantou-se bruscamente, fazendo ouvir as cadeias de ferro que sempre trazia para se mortificar e, correndo para Savonarola, agar- rou-lhe a mão e murmurou numa voz abafada pela cólera:

- Já vi, sim, já vi!... Ah! Maldito filho do Diabo, cabeça de burro...

vi, vi!...

- Fala, Irmão, anda, diz depressa!

- Fogo! Fogo! - disse Marufi.

- E depois?

- Fogo de fogueira - continuou Silvestre - e um homem lá dentro!

- Quem? - perguntou Savonarola.

Marufi levantou a cabeça mas não respondeu de seguida; fitou primeiro, com os seus olhos pequenos e esverdeados, os olhos de Savonarola, e começou a rir, mansamente, como um doido; depois, inclinou-se para ele e disse baixinho:

- Tu!

Girolamo estremeceu e empalideceu de pavor.

Marufi afastou-se, saiu da cela, arrastando as cadeias e cantarolando:

Vamos para os verdes bosques,

Para um asilo escondido,

Onde brotem frescas águas

E cantem os tentilhões!...

Recuperada a serenidade, Savonarola deu ordem de introduzir o legado pontifical, Ricardo Becchio.

 

O secretário da muito santa chancelaria apostólica entrou na cela de Savonarola envergando um longo hábito de seda roçagante, semelhante a uma sotaina, com mangas venezianas orladas de raposa azul; todo ele exalava um perfume de âmbar e de musgo. Messer Ricardo Becchio tinha essa unção característica dos gentis-homens da Cúria Romana, que e revelava em todas as suas atitudes e movimentos, no sorriso inteligente.

cheio de imponência benévola, nos olhos claros, quase inocentes, e nas covas risonhas da face rósea e bem barbeada.

Pediu a bênção ao frade, inclinando-se com uma flexibilidade quase cortesã, beijou-lhe a mão e começou a falar em latim, com rodeios de frases, duma elegância ciceroniana, em longos períodos de construção erudita.

Começou pelo que se chama nos cânones da boa arte oratória "a pesca da simpatia", lembrando a glória do profeta florentino. Depois, abordou o verdadeiro assunto da sua missão: o Pontífice, justamente agastado pela teimosia com que o Irmão Girolamo se recusava a ir a Roma, mas ao mesmo tempo ardendo em zelo pela prosperidade da Igreja, e pela completa união de todos os crentes em Cristo, e desejando não a morte mas a salvação de todos os pecadores, estava resolvido a conceder a Savonarola o perdão fraternal se ele se mostrasse arrependido da sua desobediência.

O monge ergueu os olhos e disse:

- Messer, dizei-me francamente, o Papa acredita em Deus?

Ricardo não respondeu, como se não tivesse compreendido ou não quisesse responder a uma pergunta importuna; retomou o fio do seu discurso, dando a entender que o mais alto grau da hierarquia espiritual, o chapéu cardinalício, estava ao alcance de Girolamo, se ele se submetesse, e, inclinando-se para o frade, afagou-lhe a mão com os dedos e acrescentou com um sorriso insinuante:

- Bastará da vossa parte uma simples palavra, Irmão Girolamo, e o chapéu vermelho será vosso!

Savonarola fixou o seu interlocutor com um olhar duro e impassível e disse lentamente:

- E o que acontecerá, messer, se eu não me submeter nem me calar? Que acontecerá se o frade imprudente repelir a honra da púrpura romana, e, sem se deixar seduzir pelo vosso chapéu vermelho, continuar a guardar a vinha do Senhor e a ladrar como um cão de guarda, que se não deixa intimidar?

Ricardo observou-o com curiosidade; depois, franzindo o rosto, contemplou com ar distraído as unhas lisas e ovais como amêndoas e ajeitou os anéis. Num movimento lento, tirou da algibeira um papel e estendeu-o ao frade: era a excomunhão do Irmão Girolamo Savonarola, à qual apenas faltava a assinatura do Papa e o selo de chumbo dos Pontífices.

Savonarola era nesta bula apelidado pelo Papa de "filho de perdição”e de "o mais desprezível dos insectos", nequissimus omnipedwn.

- Esperais a minha resposta? - disse o frade depois de ter lido o

Papel.

O secretário inclinou afirmativamente a cabeça, sem responder.

Savonarola ergueu-se e, arremessando a bula pontifical, amarrotada, aos pés do legado, exclamou:

- Eis a minha resposta! Ide a Roma, dizei que aceito o desafio do

Papa, do Anticristo. Vamos ver se é ele que me excomunga, ou se serei eu que sairei vencedor deste pleito!

Nesta ocasião, a porta da cela entreabriu-se mansamente e Frei

Domenico espreitou. Ouvira a voz sonora do prior e tinha vindo ver o que se passava. Atrás dele, os frades acorriam pressurosos.

Ricardo, várias vezes já, lançara para a porta olhares inquietos; friamente, delicadamente, observou:

- Permito-me lembrar-vos, Irmão Girolamo, que a nossa entrevista é estritamente secreta...

Então, Savonarola levantou-se, aproximou-se da porta, que escancarou, e disse em voz alta:

- Escutai! Ouvi todos, porque não é apenas a vós, meus Irmãos, mas a todo o povo de Florença, que eu quero desmascarar o infame suborno: propõem-me escolher entre a púrpura cardinalícia e a excomunhão!

Os seus olhos encovados brilhavam como carbúnculos, a sua maxila inferior, disforme, de prognata, avançava ainda mais, numa expressão de raiva e de orgulho imenso que a fazia tremer.

- Chegou finalmente a hora! Vou levantar-me contra vós, cardeais e prelados romanos, como me tenho levantado contra os pagãos! Vou dar a volta à chave dessa fechadura, e hei-de abrir o cofre abominável da vossa Roma vil e orgulhosa: e o fétido que se vai exalar será tal que o povo morrerá envenenado! Hei-de dizer-vos palavras que vos farão perder a cor; o mundo oscilará nos seus alicerces, e a Igreja de Deus, que vós assassinastes, ressuscitará do meio dos mortos. Não preciso nem das mitras nem dos chapéus cardinalícios! O Senhor! Concedei-me o único chapéu que eu ambiciono, a gorra escarlate da morte, a coroa ensanguentada dos mártires!

Caiu de joelhos, soluçando, e estendeu as mãos exangues para o crucifixo.

Ricardo, aproveitando o momento de confusão geral, esgueirou-se sub- repticiamente para fora da cela e afastou-se apressado.

 

Entre os frades que escutavam Frei Girolamo estava o noviço Giovanni Beltraffio. Quando todos se dispersaram para voltar às suas ocupações, desceu juntamente com eles a escadaria até à entrada principal do convento e procurou um local seu favorito, no claustro, sempre sossegado e deserto àquela hora do dia.

No pátio cresciam loureiros, ciprestes e havia maciços de rosas de

Damasco, a cuja sombra Savonarola gostava muitas vezes de pregar: uma lenda corria de que os próprios anjos vinham de noite regar essas roseiras.

O noviço abriu a Epístola de S. Paulo aos Coríntios e leu: "Não podeis beber o cálix do Senhor, e o cálix dos demónios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor, e da mesa dos demónios."

Levantou-se, começou a passear no claustro, rememorando todas as ideias e sensações que tinham ocupado o seu espírito durante o ano decorrido, desde a sua entrada para o convento.

Ao princípio, sentiu uma grande doçura espiritual só ao pensar que se encontrava entre os discípulos de Savonarola. As vezes, de manhã,

Frei Girolamo levava-os de passeio para fora dos muros da cidade. Por um estreito caminho, abrupto, que parecia conduzir ao céu, atingiam as alturas de Fiesole, donde se entrevia Florença, na planície do Arno. O prior sentava-se no chão, na relva florida de violetas e lírios. Ciprestes ainda novos, aquecidos pelo sol, deixavam escorrer a sua resina, cujo aroma embalsamava o ambiente. Os frades deitavam-se aos pés do prior;

uns, entrançavam coroas, conversavam, dançavam ou brincavam como crianças; outros, tocavam violino ou viola, assim como os anjos representados por Fra Angélico nos seus frescos.

Savonarola nem lhes dava lições, nem prédicas, simplesmente lhes dizia palavras carinhosas e amigas e chegava mesmo a brincar e a rir com eles. Giovanni, ao contemplar o sorriso que lhe iluminava o rosto nessas ocasiões, parecia-lhe que, nesse bosque deserto, cheio de música e canções, nessa altura de Fiesole envolvida pelo céu azul, ele e os seus companheiros eram como os eleitos de Deus no Paraíso.

Do alto da colina, Savonarola contemplava com enternecimento a cidade que a manhã revestia duma ténue neblina, tal uma mãe cobrindo o filho adormecido. Os carrilhões dos sinos distantes ressoavam doces como as frases entrecortadas duma criança mal desperta. E durante as noites de Verão, quando os pirilampos cintilavam como velas levadas por anjos invisíveis, Savonarola, sentado à sombra perfumada das rosas de

Damasco, no pátio de S. Marcos, falava aos frades desse amor imenso e divino que deixara estigmas de sangue e abrira feridas semelhantes às chagas do Senhor, perfumadas por rosas, sobre o corpo de Catarina de Siena.

Deixai-me inebriar da dor das feridas,

E regozijar-me de divina paixão,

Da paixão do Teu filho sobre a Cruz!

cantavam os frades. E Giovanni teria querido que o milagre a que se referia Savonarola se realizasse na sua pessoa, e que os raios de fogo caídos do cálix das Santas Hóstias marcassem sobre o seu corpo, como um ferro em brasa, a forma de uma Cruz.

- Gesú, Gesú, mio amore! - suspirava ele num êxtase de ternura.

Um dia, Savonarola, como fazia muitas vezes com outros noviços, enviou-o a tratar dum doente à vila Carreggi, a duas léguas de Florença, na vertente meridional das colinas Uccellato. Fora ali que habitara, durante muito tempo, Lourenço de Médicis. Numa das salas do castelo, deserto e silencioso, iluminado de fraca luz sepulcral, Giovanni viu um quadro de Botticelli, o nascimento de Vénus. Branca e nua como um lírio aquático, parecia exalar a frescura salina do mar, deslizando sobre as águas, de pé, numa concha de nácar. A pesada cabeleira loira caía, envolvendo-lhe o corpo, como se as madeixas aneladas fossem serpentes. Com um gesto pudico, tentava envolver-se nelas, para encobrir a nudez. O magnífico corpo respirava a sedução do pecado, ao passo que os lábios inocentes e os olhos infantis pareciam velados por uma estranha tristeza.

O rosto da deusa pareceu a Giovanni ser já seu conhecido. Contemplou-a muito tempo; lembrou-se então que aqueles olhos de criança que pareciam ter chorado, que aqueles lábios virginais com uma expressão de sobre-humana angústia, ele já os tinha visto num outro quadro de Botticelli, que representava a Virgem Maria. Baixou os olhos e abandonou a vila.

Ao entrar em Florença, por uma estreita ruela, viu no recôncavo duma parede um velho crucifixo e ajoelhou para rezar e afastar as tentações.

Do jardim, do outro lado do muro, sob um roseiral, que devia formar como que um berço sombreado e perfumado, vinham os sons duma mandolina, e alguém soltou um grito assustado:

- Não, não, deixa-me...

- Meu amor - respondia outra voz. - Minha querida! Mio amore!

A mandolina caiu, sem dúvida, porque se ouviram as cordas vibrando; depois, ouviu-se o ruído dum beijo.

Giovanni ergueu-se bruscamente, repetindo: "Gesú, Gesú!”

"Até aqui", pensou. "Até aqui... Sob o olhar da Madona, no meio do perfume das rosas, que dão sombra ao crucifixo... sempre, por toda a parte, "lamore", por toda a parte..."

Tapou o rosto com as mãos e afastou-se como quem procura escapar a uma obsessão perturbadora.

Chegado ao mosteiro, Giovanni contou a Savonarola tudo o que lhe tinha acontecido. O prior aconselhou-lhe, como fazia sempre em casos semelhantes, a combater Satanás por meio de jejuns e orações. O noviço tentou explicar-lhe que não era o demónio da concupiscência carnal que o tentava, mas sim o da beleza pagã e espiritual. O frade, admirado, não o compreendia. Com voz severa, observou-lhe que, nos falsos deuses, não há mais do que orgulho e luxúria, e que a beleza consiste unicamente e reside apenas nas virtudes cristãs.

Giovanni deixou-o com o espírito ainda perturbado. Nesse dia, o demónio da tristeza e da inquietação tomou posse dele.

Outra vez, Savonarola falara-lhe de pintura; só a compreendia como meio de edificação e não a admitia senão quando dava origem a pensamentos salutares. Por isso considerava como uma obra agradável a Deus a destruição de todos os quadros profanos que existiam em Florença.

Savonarola tinha ideias análogas a respeito da ciência. "Aquele que pensa que a lógica e a filosofia confirmam a verdade da fé, é estúpido e ignaro. A luz brilhante não precisa da ajuda das luzinhas! A sabedoria de Deus não se preocupa com a do homem! Os apóstolos e os mártires nunca conheceram nem a lógica nem a gramática. Uma velha analfabeta, rezando com fé diante de uma sagrada imagem, está mais perto de Deus que todos os sábios e eruditos."

Ao ouvir o frade amaldiçoar as seduções da arte e da ciência, Giovanni pensava nas palavras do seu antigo mestre: "Quem sabe pouco, não pode amar muito. Um grande amor é filho de um grande conhecimento." Lembrava-se da conversa espiritual de Leonardo, do seu rosto tranquilo, dos seus olhos frios e do sorriso impregnado duma atraente sedução.

Não se esquecera dos frutos terríveis da árvore envenenada, nem da aranha de ferro, nem da máquina que produzira a ascensão do Santo Cravo, nem dos ouvidos de "Denys", nem do rosto do Anticristo, transparecendo por baixo do de Cristo. Mas também pensava que, possivelmente, era ele que não lograra encontrar o núcleo inicial donde partem todos os fios e em que se resolvem todas as contradições.

Era assim que Giovanni pensava durante o ano que tinha passado em S. Marcos. Enquanto passeava sob a arcada do claustro, a noite caíra e tudo escurecera. Um fraco toque das ave-marias chamou os frades, que se dirigiram para a igreja, numa longa fila silenciosa.

Ao voltar à sua cela, Giovanni deitou-se.

De manhã, teve um sonho; viu-se sentado, ao lado de monna

Cassandra, sobre um bode negro que fendia os ares. "Vamos ao sabbat das feiticeiras", dizia ela, aproximando do seu o rosto branco como o mármore. Via-lhe os lábios vermelhos como o sangue e os olhos transparentes como o âmbar. Reconheceu nela a diabinha branca. O plenilúnio iluminava-lhe o corpo nu, que rescendia com tão doce aroma que os dentes de Giovanni se entrechocavam. Tomou Cassandra entre os braços e aproximou-a do coração. "Amore! Amore mio!", suspirava ela, rindo; e o velo negro do bode estendia-se por baixo deles como um leito ardente e macio. Parecia-lhe que a pouco e pouco ia mergulhando no abismo da morte.

 

O sol, o repicar dos sinos e um ruído de vozes juvenis, acordaram Giovanni. Desceu ao pátio e viu uma turba de crianças, vestidas de branco, empunhando ramos de oliveira e pequenas cruzes vermelhas. Eram os filiados do Santo Exército dos Inquisidores, criado por Savonarola para manter a pureza dos costumes em Florença.

Rapazes e meninas, dos sete aos catorze anos, vinham alistar-se espontaneamente, quando não eram requisitados aos pais. Formavam diversos destacamentos; deviam apreender tudo o que vissem de suspeito ou culpável nas habitações; denunciar aqueles que jogassem aos dados e blasfemassem ou não rezassem. Deviam além disso indicar os locais onde estivessem escondidos quadros profanos ou livros proibidos. Apoderavam-se de todos esses objectos ímpios, destruíam as estátuas, rasgavam os livros e transportavam para o mosteiro todos esses destroços, a fim de serem queimados. O comandante deste Santo Exército era um rapaz de catorze anos, pálido e magro, chamado Federici. A troupe percorria as ruas guiada pelos frades e protegida pela polícia da cidade.

Quando Giovanni chegou, as fileiras romperam-se e inúmeras mãozinhas começaram a agitar as cruzes e os ramos de oliveira; vozes agudas entoaram um cântico em honra de Savonarola, que nesse momento fazia também a sua aparição no pátio.

- Lumen ad revelationem gentium et gloriam plebis Israel.

As raparigas rodeavam o frade lançando-lhe flores primaveris e violetas; ajoelharam-se e beijaram-lhe os pés.

Aos raios do sol matinal, o frade silencioso e sorridente abençoava-as:

- Viva Cristo, Rei de Florença! Viva a Virgem Maria, a nossa Rainha! - gritavam as crianças.

- Em forma! Avançar! - ordenaram os pequenos comandantes. A música tocou, os estandartes desfraldaram-se e os regimentos puseram- se em marcha.

O "Auto-de-Fé das Vaidades" - Bruciamento delle vanità - devia realizar-se esse dia, na praça da Senhoria, em frente de Palazzo Vecchio.

O Santo Exército ia pela última vez percorrer Florença e reunir objeclo sacrílegos, "as vaidades", para serem queimados.

 

Quando todos partiram, Giovanni viu chegar messer Cipriano

Bonnaccorsi, o cônsul de Galimala. Foi ao seu encontro e durante alguns momentos estiveram conversando. Messer Cipriano contou-lhe que Leonardo de Vinci tinha sido encarregado pelo duque de Milão de vir a Florença, para comprar as obras de arte dos palácios saqueados pelo Santo Exército. Também acabava de chegar, com o mesmo fim, Giorgio Merula, que, depois de ter passado dois meses na prisão, fora agraciado pelo Duque, devido às diligências de Leonardo.

O mercador pediu a Giovanni para o acompanhar até junto de Savonarola e dirigiram-se os dois à cela do prior.

Entre portas, Beltraffio escutou a conversação que se entabulou entre eles.

Primeiramente, messer Cipriano ofereceu vinte e dois mil florins de oiro por todos os livros, estátuas, quadros e outros tesouros artísticos, que deviam nesse dia ser lançados à fogueira.

O frade recusou.

O mercador reflectiu demoradamente e ofereceu mais oito mil florins.

O prior nem sequer respondeu; o seu rosto mantinha-se severo e impassível.

Então, Cipriano, depois de ter engolido várias vezes em seco, tapou os joelhos com as abas da sua velha peliça de raposa, e, piscando os olhos, disse mansamente, numa voz que se esforçava por tornar agradável:

- Irmão Girolamo, vou arruinar-me e ofereço-vos tudo quanto possuo, quarenta mil florins!

Savonarola ergueu então os olhos para ele e perguntou-lhe:

- Se realmente vos arruinais neste negócio, sem mira em nenhum interesse, porque o tomais tão a peito?

- Nasci em Florença e tenho amor a esta terra - respondeu o mercador com simplicidade -, não gostaria que estrangeiros pudessem um dia dizer que nós, semelhantes aos bárbaros, destruímos as obras inofensivas dos artistas e dos sábios.

O monge olhou-o com espanto e disse:

- O meu filho, que pena tenho que não ames a tua pátria celeste como dizes que amas a tua pátria terrenal... Mas consola-te; o que hoje vai ser lançado à fogueira merece bem esse destino, porque as coisas más e criminosas nunca podem ser belas, são os próprios sábios que o dizem.

- Tendes a certeza, meu pai - redarguiu Cipriano -, de que as crianças possam com infalibilidade distinguir o bem do mal, nas produções da arte e da ciência?

- A verdade sai das bocas das crianças - replicou o frade. - Se vos não converteis e vos não tornais como elas, não podereis entrar no

Reino dos Céus. O Senhor disse: "Hei-de destruir a sabedoria dos sábios e repelirei a razão dos pensadores." Rezo de dia e de noite por esses inocentes, a fim de que lhes seja revelado, por dom do Espírito Santo, aquilo que a inteligência não compreenda, no que respeita às vaidades da arte e da ciência.

- Peço-vos encarecidamente que reflitais! - concluiu o cônsul, erguendo-se. - Talvez uma parcela deste dinheiro...

- Não gasteis em vão mais palavras, messer - interrompeu Frei

Girolamo -, a minha decisão é irrevogável.

Cipriano mordeu de novo os lábios descorados e murmurou algumas palavras entre os dentes, de que Savonarola só ouviu a última:

- Loucura!

- Loucura! - repetiu, e os seus olhos fuzilaram. - E o Velo de

Oiro dos Bórgias, que aparece nas festas ímpias do Vaticano, não é uma loucura? E o Sagrado Cravo, erguido por meio de uma máquina diabólica, para a glória de Deus, pelo usurpador do trono, Ludovico, o assassino, não é uma loucura? Loucura é a vida impura que se leva hoje!

Loucura e sacrilégio são o vosso culto pela beleza pagã!

 

Ao sair da cela de Savonarola, Giovanni dirigiu-se à praça da Senhoria. Os membros do Santo Exército percorriam as ruas gritando:

- Abaixo as vaidades, os objectos sacrílegos, os adornos profanos!

Detinham as mulheres vestidas com elegância e obrigavam-nas a despojar-se das suas riquezas e adereços.

Nesse dia, um dos destacamentos, sob a direcção do pequeno Dolfo, um jovem de treze anos, dirigiu-se ao palácio dos Médicis, a fim de executar a sentença de Deus sobre as seduções da ciência e das artes.

Rebuscavam por toda a parte as "vaidades" ajudados pelo Espírito Santo.

Em baixo, na rua, estacionava uma carroça para onde eram lançados todos os artigos condenados: quadros de mestres, retratos, estátuas. esculturas, livros preciosamente encadernados, enfim, tudo quanto lhes caía na mão.

Giovanni contemplava cheio de tristeza este vandalismo que se encarniçava sobre tão grandes preciosidades, sobre o que a arte e a ciência tinham criado de mais belo!

 

Em frente da torre elegante e severa do Palazzo Vecchio, ao lado da galeria de Orcagna, estava preparada a pira para o auto-de-fé. Tinha a forma duma pirâmide octaédrica, rodeada por quinze degraus; a altura era de trinta côvados e media mais de cem de largura.

No primeiro degrau estavam amontoados e misturados os mais variados acessórios carnavalescos: máscaras de histriões, fatos, cabeleiras, barbas postiças, etc.; nos três degraus seguintes, os livros sacrílegos ou demasiado ousados, a começar por Anacreonte e Ovídio, e a acabar no Decameron, de Boccacio, e no Morganti, de Pulci; por cima, acumulavam-se os artigos de elegância e arrebique, como os cremes, os perfumes, as borlas, as limas de unhas, as pinças de epilar e os ferros de frisar; mais alto ainda, os cadernos de música e os saltérios, as mandolinas, os baralhos de cartas, os tabuleiros de xadrez, as bolas e toda a casta de divertimentos e frivolidades de que o Demónio se serve para franquear passagem no coração fraco dos homens. Apareciam ainda mais acima os quadros libertinos, os desenhos e retratos de lindas mulheres e ainda bustos de cera e de madeira dos deuses do paganismo, dos heróis e dos filósofos. Coroando tudo, como um enorme espantalho, uma figura representava o Diabo, o primeiro progenitor das "vaidades" e "sacrilégios", cheio de enxofre e de pólvora, horrendamente pintado, felpudo, com os pés de bode e pretendendo assemelhar-se ao antigo deus Pan.

A tarde caía; o ar estava frio, seco e dir-se-ia sonoro; no céu brilhavam as primeiras estrelas. Na praça, a multidão agitava-se e sussurrava devotamente, como na igreja.

No crepúsculo, os frades iam e vinham, semelhantes a sombras, ocupando-se dos últimos preparativos. O Irmão Domenico Buonvicini, ordenador-geral, viu aproximar-se um homem ainda novo, com muletas, provavelmente atacado de paralisia. As mãos e as pernas tremiam-lhe, tinha as pálpebras descidas, e uma convulsão, semelhante ao bater de asas dum pássaro ferido, contraía-lhe por vezes o rosto. Entregou ao monge um grande rolo de papéis.

- O que é? - perguntou Domenico. - Mais desenhos?

- Anatomias de corpos nus, que acabo de encontrar no sótão duma casa vizinha.

O frade pegou no rolo e disse com um sorriso quase jovial:

- Devem arder muito bem na nossa fogueira!

O homem das muletas contemplou a pirâmide dos "sacrilégios" e das "vaidades" e suspirou:

- Ó meu Deus, meu Deus! Perdoai aos pecadores. Sem a intervenção do padre Girolamo, morreríamos todos em pecado de impureza. E quem sabe se ainda chegaremos a tempo, e se as nossas preces conseguirão resgatar os nossos pecados?!

Benzeu-se e começou a murmurar ladainhas, desfiando um rosário.

O sofrimento de Giovanni, ao ver e ao ouvir tudo isto, ia-se tornando cada vez mais intenso.

Na obscuridade, os filiados do Exército dosoInquisidores avançavam silenciosos, vestidos de compridas túnicas brancas e empunhando cada um uma figura representando Jesus, que mostrava com uma mão a coroa de espinhos e ia com a outra abençoando o povo. Atrás seguiam os frades, a cleresia, os gonfaloneiros, os membros do Conselho dos Oitenta; os cónegos, os professores e os doutores em teologia; os cavaleiros, os trombeteiros e os alabardeiros.

Um silêncio de morte, como o que precede as execuções, reinava entre a multidão.

Na praça, em frente do velho palácio, apareceu Savonarola, elevando bem alto um crucifixo, e pronunciou com voz solene e sonora:

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, acendei a fogueira!

Quatro frades aproximaram-se da pirâmide com archotes de resina inflamados e puxaram-lhe fogo.

A chama crepitou, desenvolvendo primeiro uma fumarada cinzenta e depois negra. As trombetas ressoaram. Os monges entoaram Te Deum Laudamus. As vozes frescas das crianças responderam:

- Lumen ad revelationem gentium et gloriam plebis Israel.

Ouviram-se os sinos da torre do Castelo e, a seguir, como respondendo a este chamamento, repicaram também os de todas as igrejas de Florença.

As chamas avivavam-se. As antigas folhas de pergaminhos encarquilhavam-se e iam-se consumindo lentamente, como se uma vida misteriosa as animasse até ao fim. Do primeiro degrau, onde se amontoavam os artigos de Carnaval, voou uma barba, como um floco ardente. A multidão soltava invectivas.

Uns rezavam, outros choravam; estes riam, saltavam, agitavam as mãos e os chapéus; aqueles profetizavam.

- Cantai um novo hino ao Senhor! - exclamou um sapateiro coxo, com olhar de louco. - Tudo se desmorona, Irmão, tudo arderá, tudo se consumirá completamente, como estas "vaidades", e todas estas impurezas, no fogo purificador; tudo, tudo, a Igreja, as leis, as potências. os reinos, as artes, as ciências, e não ficará nada até que seja de novo criado um novo Céu e uma nova Terra! Então, Deus secará todos os prantos dos nossos olhos, não mais haverá morte, nem choros, nem penas, nem doenças! Oh! Suplico-Te, vem, Senhor Jesus!

Uma mulher nova, grávida, com rosto pálido de mártir, sem dúvida mulher dum pobre operário, caiu de joelhos e, estendendo as mãos para a fogueira, onde o Cristo lhe aparecia na sua glória, rompeu em soluços, como uma possessa e gritou:

- Vem, Senhor Jesus! Vem! Ámen, ámen.

 

Giovanni viu um quadro que a fogueira iluminava mas que ainda não atingira; era uma obra de Leonardo de Vinci.

Junto das águas sombrias dum lago, na montanha, um cisne gigantesco envolvia com as suas asas uma branca Leda. Com a cabeça levantada, enchia o Céu deserto e a Terra do seu grito de amor triunfante; aos pés de Leda, no meio das plantas, dos animais e dos insectos aquáticos, rodeados de larvas e de sementes, numa obscuridade tépida e húmida, vagiam os gémeos recém-nascidos, Castor e Pólux, acabados de sair da casca dum enorme ovo. Leda, no esplendor da sua nudez, e lançando um olhar de admiração aos filhos, apertava o pescoço do cisne com um sorriso simultaneamente apaixonado e cândido.

Giovanni via as chamas avançar sempre em direcção ao quadro e o seu coração apertava-se de terror.

Nesta ocasião, os frades levantaram no meio da praça uma grande cruz negra. Depois, dando-se as mãos, dispuseram-se em três filas, em honra da Santíssima Trindade e, para celebrar a alegria espiritual dos fiéis, em face da fogueira das "vaidades", começaram a andar de roda da cruz, primeiro devagar, depois acelerando os movimentos, até correrem a toda a velocidade, cantando:

Humilhai-vos ao Senhor,

Dançai, dançai, sem vergonha,

Como dançou o Rei David!...

Erguendo as nossas sotainas,

Dancemos sem ter parança

Esta dança.

Inebriados de amor

Pelo sangue do Senhor,

Que está escorrendo da Cruz,

Numa loucura ruidosa,

Dancemos, doidos, dancemos,

Glorificando a Jesus!

Uma vertigem apossou-se dos espectadores; os pés e as mãos de todos começaram a agitar-se espontaneamente, e de súbito, saindo dos seus lugares, crianças, velhos e mulheres, todos se precipitaram para a roda enraivecida. Um velho frade, calvo e vermelhusco, ao dar um passo em falso, escorregou, caiu e. quebrou a cabeça; o sangue correu. A custo, conseguiram retirá-lo de baixo dos pés da multidão, que inconscientemente o ia esmagando.

O reflexo escarlate da fogueira ao morrer iluminava os rostos desfigurados dos assistentes. O crucifixo, centro imóvel daquele louco rodopio, projectava uma sombra imensa, sinistra.

Agitando as nossas cruzes,

Dancemos, dancemos sempre;

Como o Rei David dançou.

Sempre à roda, sempre à roda,

Nesta dança sem igual,

Celebrando o Carnaval!

As chamas tinham, finalmente, atingido a "Leda", lambido com as línguas vermelhas o seu branco corpo, e esse reflexo ardente emprestava-lhe uma nova vida que a tornava mais misteriosa e mais bela.

Giovanni estava pálido e trémulo.

O grande espantalho com a figura do Diabo, suspenso por cima da fogueira, ardia também. O ventre cheio de pólvora explodiu com um estrondo ensurdecedor. Um ramalhete de faíscas subia para o céu. O monstro baloiçou lentamente por cima do braseiro, inclinou-se e caiu por fim, dispersando-se em carvões que se consumiram sem chama.

Novamente as trombetas e os címbalos ressoaram. E os sinos ouviram-se outra vez. A multidão começou a soltar gritos furiosos de triunfo como se o próprio Satanás tivesse morrido sobre a fogueira sagrada, e com ele toda a dor, todo o pecado e toda a iniquidade do mundo.

Giovanni, horrorizado, escondeu o rosto entre as mãos e quis fugir.

mas nessa ocasião alguém o reteve: uma mão pousara-lhe no ombro. e, ao voltar-se, encontrou-se frente a frente com o rosto calmo do seu antigo mestre.

Leonardo tomou-lhe o braço e conduziu-o para fora da multidão.

 

Ao saírem da praça, coberta de espessa fumarada sufocante e iluminada ainda pelas últimas claridades da fogueira moribunda, enveredaram por uma escura viela que conduzia ao Amo. Ali reinava a paz e a solidão; apenas se ouvia o marulhar das águas. O crescente da Lua iluminava as colinas prateadas pela geada. As estrelas cintilavam distantes e melancólicas.

- Por que me deixaste, Giovanni? - perguntou Leonardo.

O jovem ergueu a cabeça, quis responder qualquer coisa, mas os lábios tremeram, a voz sumiu-se e começou a chorar.

- Perdoai-me, mestre...

- Realmente tu não tens culpa - retorquiu Leonardo.

- Eu não sabia o que fazia - disse então Beltraffio. - Como pude eu, meu Deus, como pude eu deixar-vos?

A sua vontade era contar ao mestre as suas intoleráveis inquietações a respeito do cálix do Senhor e do cálix do Demónio, a respeito do Cristo e do Anticristo, mas suspeitava que Leonardo o não compreenderia; e, assim, limitou-se a contemplá-lo com uma expressão de súplica desesperada. Os olhos de Leonardo, serenos como sempre, davam a impressão de estar distantes como as estrelas.

O mestre não o interrogou, pousou-lhe simplesmente a mão sobre a cabeça e disse-lhe com um sorriso repassado de bondade:

- Que Deus te proteja, meu filho! Tu sabes que eu sempre te estimei como filho. Se queres vir novamente comigo e tomar a ser meu aluno, receber-te-ei com alegria!

E, como se falasse consigo mesmo, naquele laconismo enigmático e confuso que lhe era habitual, quando exprimia os seus pensamentos mais íntimos, acrescentou, numa voz quase indistinta:

- Quanto mais forte é o sentimento, maior é a dor!

O som dos sinos, o canto dos frades, os gritos delirantes da multidão, ouviam-se ainda ao longe, mas não perturbavam já o silêncio e a calma espiritual que envolviam o mestre e o discípulo.

 

               CAPÍTULO VIII

IDADE DE OIRO (1496-1497)

"Tornerá létà delloro

Cantiam tutti: viva il Moro!"

           Bellincioni

 

No fim do ano de 1496, a duquesa de Milão, Beatriz, escrevia uma carta a sua irmã Isabel, mulher do marquês Francisco Gonzaga, o vencedor de Mântua. A carta dizia assim:

"Ilustríssima Madona, e irmã muito querida: meu marido e Senhor,

Luís, e eu desejamo-vos boa saúde, bem como a vosso ilustre esposo

Francisco.

"Satisfazendo o vosso pedido, envio-vos o retrato do meu filho

Maximiliano. Peço-vos apenas que o não julgueis tão pequeno como o retrato. Pensámos primeiro enviar a Vossa Senhoria o retrato em tamanho natural, mas a ama advertiu-nos que isso podia impedir o seu crescimento. Ele cresce realmente duma maneira tão notável, que, se estou alguns dias sem o ver, encontro tais progressos que me envaidecem.

"Tivemos ultimamente um grande desgosto: Nanino morreu. Vós, que igualmente o conhecestes e o amastes, compreendereis toda a minha dor, pois que, se eu tivesse perdido qualquer coisa que se pudesse substituir, facilmente me consolaria, mas a Natureza não faz outra vez um ser equivalente ao nosso Nanino.

"O poeta Bellincioni, na sua elegia, disse que, se a sua alma foi para o Céu, fará rir todo o Paraíso, mas, se foi para o Inferno, "Cerbero" não diz nada, não ri, mas está divertido. Enterrámo-lo na cripta de Santa Maria das Graças, ao lado do nosso querido falcão e da nossa inolvidável cachorra Fontina, para que depois da morte estas queridas criaturas não estejam longe de nós. Chorei durante duas noites e o meu senhor Ludovico, para me consolar, prometeu dar-me, como presente de Natal, uma linda cadeira de prata maciça coberta de oiro, para alívio do corpo.

Ludovico queria que o artista florentino Leonardo de Vinci adaptasse a esta cadeira uma caixa de música, mas Leonardo recusou, pretextando estar muito ocupado na execução de outros trabalhos.

"Perguntais-me, querida irmã, se vos poderia ceder este artista durante algum tempo. Com prazer satisfaria o vosso desejo, e vo-lo enviaria até definitivamente. Mas, não sei porquê, messer Ludovico afeiçoou- se-lhe de tal maneira que por coisa nenhuma neste mundo consentiria em separar-se dele. Não vos desgosteis muito por isto; Leonardo dedica- se demasiado à alquimia, à magia, à mecânica e a outras fantasias, além da pintura; e é de tal maneira moroso na satisfação do que se lhe encomenda, que faz perder a paciência a um anjo.

"Além disso, é, segundo dizem, ateu e herege.

"Ultimamente, tivemos uma caçada aos lobos. Mas eu não pude ir, pois já me proíbem de montar a cavalo, devido ao estado da minha gravidez.

"Presentemente, divertimo-nos como podemos. Jogamos às cartas, patinamos; esta última distracção foi-nos ensinada por um jovem fidalgo flamengo. O Inverno tem sido muito rigoroso: não só os poços mas até os rios estão gelados.

"No parque do palácio, Leonardo esculpiu, na neve branca e dura como o mármore, uma soberba "Leda" com o seu cisne. Que lástima que tão linda obra se derreta na Primavera!

"E vós, querida irmã, como passais? Conseguistes apurar a raça de gatos de pêlo comprido? Se tiverdes algum gatinho ruivo de olhos azuis, enviai-mo com a pretinha prometida! Da minha parte, mandar-vos-ei as crias da minha cadela sedosa.

"Peço-vos muito que não vos esqueçais de me enviar o molde do gibão de cetim azul! Já vo-lo pedi na minha carta anterior. Fazei por remetê-lo o mais breve possível: amanhã, se houver um correio especial.

"Enviai-me, pelo menos, o frasco do vosso preparado tão eficaz contra as borboletas, e também um pouco da madeira exótica para polir as unhas.

"O nosso astrólogo prediz para breve uma guerra e vaticina um Verão muito quente; haverá muitos cães danados e os soberanos não se entenderão. E o que diz o vosso? Em geral, acreditamos mais nos astrólogos alheios do que no próprio.

"Aqui junto encontrareis para o vosso glorioso esposo e Senhor Francisco, a receita do doutor Luís Marliani, contra o "mal francês". Dizem que é muito eficaz; é necessário fazer as fricções mercuriais, pela manhã, em jejum, nos dias ímpares a seguir à lua nova.

"Ouvi dizer que esta doença se contrai no momento da conjunção doentia dos planetas Vénus e Mercúrio.

"Eu e meu esposo Ludovico recomendamo-nos à vossa benévola estima, minha querida irmã, assim como à do vosso mui ilustre marido, o marquês Francisco.

Beatriz Sforza.”

 

Esta missiva, na sua aparente simplicidade, estava cheia de política e de simulação. A Duquesa ocultava à irmã os seus desgostos íntimos. A paz e a harmonia que, segundo a carta, pareciam reinar entre os esposos, não existiam de facto. Beatriz detestava Leonardo, não pela sua heresia e ateísmo, mas porque outrora tinha pintado, por ordem do Duque, o retrato de Cecília Bergamini, a célebre amante de o Mouro, e a sua rival mais detestada.

Havia já tempo que tivera também conhecimento da nova paixão do marido por uma das suas donzelas da corte, Lucrécia Crivelli, e isso enchia-a de furor. O duque de Milão atingia então o apogeu do seu poderio. Filho do soldado-bandido Francisco Sforza, antigo mercenário românico, Ludovico sonhava tornar-se soberano autocrata de toda a Itália unificada.

- O Papa - dizia vaidosamente o Mouro - é o meu confessor; o Imperador, o meu general em chefe; a cidade de Veneza, o meu erário;

e o rei dos Franceses, o meu postilhão.

Assinava-se Ludovicus Maria Sfortzia Anglus dux Mediolani, fazendo assim subir a sua ascendência até ao nobre herói troiano, companheiro de Eneias.

O Colosso, esse monumento erigido à memória de seu pai, obra-prima de Leonardo, de que Ludovico se orgulhava com razão, tinha a legenda "Ecce Deus!", atestando assim a divindade dos Sforza.

No entanto, a felicidade de Ludovico era muitas vezes perturbada por secretos alarmes. Sabia bem que o povo não o amava, considerando-o como um usurpador.

 

1 A România era a província dos antigos Estados romanos que tinha por capital Ravena.

Um dia, a multidão, tendo entrevisto de longe a viúva do falecido duque João Galeas com o primogénito Francisco, gritara: "Viva Francisco, o Duque legítimo!" Este tinha então oito anos, mas era já notável a viveza do seu espírito e a sua extraordinária beleza. O povo desejava veementemente tê-lo um dia como soberano.

Beatriz e o Mouro verificavam assim que a morte de Galeas não correspondera às suas esperanças, e que a sombra do defunto se erguia do túmulo, na pessoa dessa criança.

Havia já algum tempo que Beatriz perdera aquele encanto e petulância infantis que tanto agradavam ao Duque. A aproximação do novo parto era para ela motivo dos mais sinistros pressentimentos.

 

No primeiro do ano de 1497 realizava-se no castelo dos Sforza um grande baile.

Os preparativos duravam havia três meses, tendo colaborado neles

Bramante e Leonardo de Vinci.

As cinco horas da tarde, começaram a chegar os convidados, que eram mais de dois mil.

A tempestade varria estradas e caminhos. Sob o céu nublado, as muralhas ameadas, as torres, os abrigos dos canhões, os bastiões da fortaleza, tudo estava coberto de neve. No pátio, brilhavam fogueiras, em roda das quais os palafreneiros, os batedores, os portadores de cadeirinhas, se aqueciam galhofando alegremente.

A entrada do palácio ducal e até às balaustradas de ferro forjado que rodeavam o pátio interior do pequeno Palácio Rocchetti enfileiravam-se os grandes coches doirados, de onde desciam damas e cavalheiros envoltos em sumptuosas peliças russas. Os vidros gelados das janelas resplandeciam.

No vestíbulo, os convidados passavam entre as duas filas da guarda pessoal do Duque: mamelucos, turcos, estradiotas gregos, besteiros escoceses e lansquenetes suíços, perfilados e empunhando pesadas alabardas.

A frente destes, os pajens, elegantes e esbeltos como donzelas, ostentavam a libré de duas cores, enfeitada de penas de cisne: uma das metades da libré era em veludo cor-de-rosa, outra em cetim azul, com o brasão dos Sforza-Visconti bordado no peito. Empunhavam castiçais com velas de cera vermelha e amarela, semelhantes a círios.

A medida que os convivas penetravam na sala de recepção, um arauto anunciava-os. O enorme palácio resplandecia; a sala vermelha de pavimento marchetado de pombas brancas, a sala doirada com os quadros das caçadas ducais, a sala púrpura revestida de alto a baixo de cetim.

Num pequeno mas elegante quarto negro, que servia de vestiário às senhoras, viam-se "frescos" ainda incompletos de Leonardo.

A multidão rumorejava como um enxame de abelhas. Os fatos distinguiam-se pela vivacidade e diversidade das cores e por uma riqueza muitas vezes acompanhada de acentuado mau gosto. Os tecidos que usavam as senhoras, dispostos em pregas direitas, não vergavam sequer sob a profusão de oiro e de pedras preciosas de que estavam cobertos e assemelhavam-se às vestes eclesiásticas. Eram tão sólidos e duradouros que se transmitiam de geração em geração. As damas ostentavam vastos decotes. Os cabelos, encerrados à frente numa rede de oiro, eram enrolados à moda lombarda, numa longa trança que descia até ao chão, muitas vezes à custa de postiços e fitas. A moda exigia que as sobrancelhas fossem apenas perceptíveis; e as damas que as tinham espessas epilavam- nas com pinças de aço especiais.

Deixar de empoar o rosto e de o avermelhar com cremes e pomadas era considerado como uma inconveniência. Usavam-se os perfumes mais violentos e penetrantes: o musgo, o âmbar, a verbena, o pó de Chipre, que tornavam capitosa a atmosfera.

Entre os convidados havia donzelas e damas de rara beleza, como se não encontra senão na Lombardia, caracterizada por essas sombras aladas, que se fundem como um vapor sobre a pele branca e pálida, e esse delicioso oval dos rostos, que Leonardo reproduzia nas suas telas.

A senhora Violante Borromeo, com os seus lindos olhos e os negros cabelos, e com o encanto irresistível de toda a sua pessoa, era a rainha do baile. Sobre a veste de veludo púrpura, estavam bordadas - aviso aos apaixonados - borboletazinhas queimando as asas numa chama.

E no entanto não era a senhora Violante quem mais atraía as atenções dos convidados, mas sim Diana Pallavicini, com os olhos frios e transparentes, com os cabelos cinerários, com o sorriso altivo e indife- rente, e a sua pronúncia arrastada como o som dum violino... Estava vestida com a maior simplicidade, de damasco verde-mar e longas fitas de seda. No esplendor da festa, perpassava vaga e alheia a tudo, só e triste, como essas pálidas flores aquáticas que dormem à superfície dos tanques, sob os raios da Lua.

As trombetas soaram e os convidados dirigiram-se para o salão de jogo da péla, sala per il giuoco delia palia.

Sob a cúpula azul, em forma de abóbada e semeada de estrelas de oiro, ardiam velas de cera dispostas em cruz. Tapetes de seda, com grinaldas de loureiro, de hera e de zimbro, ornamentavam o terraço onde estava a orquestra. À hora precisa, marcada pelos astrólogos (o Duque, segundo dizia um embaixador, não era capaz de mudar de gibão, nem de beijar a mulher, sem primeiro consultar os astros), Ludovico e Beatriz, envoltos nos mantos reais bordados a oiro, cuja longa cauda era também moda para os barões e camaristas, entraram na sala. Sobre o peito do Duque brilhava, encastoado num broche, o enorme rubi que pertencera a João Galeas.

A beleza de Beatriz ia-se desvanecendo; emagrecera, o estado avançado da sua gravidez contrastava com o seu aspecto de adolescente, anémica, e com os seus gestos bruscos de rapaz.

A um sinal de o Mouro, o grande senescal ergueu o ceptro, dando assim o sinal à música para principiar.

Os convidados sentaram-se às mesas do festim.

 

Houve, então, um incidente inesperado e cómico. O embaixador do grande príncipe moscovita, Danilo Marmirof, recusou sentar-se abaixo do embaixador da República de Veneza. Em vão tentaram convencê-lo.

O teimoso velho a nada atendia e repetia sempre a mesma frase: "Não me sentarei, porque isso me desonraria!"

Todos o olhavam, ou irritados ou trocistas.

- Que vem a ser isto? Outra vez incidentes com os russos? Que bárbaros! Não podem ir a parte nenhuma estes selvagens!

O intérprete, o ágil e azougado Boccalino, chegou junto de Marmirof.

- Messer Daniel, messer Daniel - balbuciou em mau russo, fazendo muitas caretas e cumprimentos. - Não pode ser, é impossível! Tendes de sentar-vos, é o uso de Milão e não podeis exigir outra coisa! O Duque vai, decerto, zangar-se.

Um jovem que acompanhava Marmirof e fazia parte da embaixada,

Nikita Karatcharoff, aproximou-se por sua vez.

- Danilo Kousmitch, paizinho, não vos revolteis! Não podemos impor os nossos costumes em país estrangeiro. Ninguém os compreenderia! E depois, que mal há? É preciso ceder, não vão forçar-nos a cobrir- nos de ridículo!

- Cala-te, Nikita, cala-te! És ainda muito novo para me dares lições!

Sei muito bem o que faço. Tenho que manter a categoria que sempre ocupei! Não me assentarei abaixo do embaixador de Veneza, não posso desonrar a nossa embaixada. Está escrito: "cada embaixador representa o rosto e pronuncia as palavras do seu soberano". E nós estamos aqui representando o imperador autocrata e ortodoxo de todas as Rússias.

- Messer Daniel, messer Daniel - suplicava o intérprete Boccalino.

- Deixa-me em paz! Que estás para aí a rosnar, com esse focinho de macaco? Já disse que não me sentarei, e não me sentarei!

Sob as espessas sobrancelhas, os olhos de urso de Marmirof brilhavam de cólera, de altivez e de obstinação. A alta bengala com castão de brilhantes tremia-lhe entre os dedos convulsos. Toda a gente percebia que era impossível obrigar o irascível velho a transigir.

O Mouro chamou então o embaixador de Veneza, e com aquela amabilidade melíflua em que era mestre, prometendo-lhe a sua protecção especial, pediu-lhe como um favor particular para ceder o seu lugar ao moscovita, sanando assim a questão e evitando mais discussões. Assegurou-lhe que ninguém entre a assistência ligava importância ao amor-próprio imbecil desses selvagens. A verdade, porém, é que Ludovico tinha necessidade de conservar as boas graças e protecção do Grão-Duque de todas as Rússias, gran ducce di Rossia, pois esperava o seu concurso para concluir uma aliança vantajosa com o Sultão.

O veneziano contemplou Marmirof com um sorriso irónico e, erguendo desdenhosamente os ombros, concordou que Sua Alteza tinha razão, e que discussões desta natureza a propósito de primazias eram indignas de pessoas civilizadas; e foi sentar-se no lugar que lhe indicavam.

Danilo Kousmitch não compreendera o discurso do seu rival. Mas, se o tivesse compreendido, não se teria perturbado e continuaria a julgar-se no seu direito; ele não ignorava que dez anos atrás, em 1487, quando da saída triunfal do Papa Inocêncio VIII, os embaixadores da Moscóvia,

Dmitri e Manuel Ralew, tinham ocupado nos degraus do trono apostólico os lugares mais em evidência a seguir aos senadores romanos, representantes da antiga cidade que governava o mundo.

Sem se importar com os olhares ameaçadores que lhe lançavam,

Danilo, compondo o cinturão sobre o desmesurado ventre e erguendo o seu manto de arminho e de veludo escarlate, dirigiu-se para o lugar conquistado.

Um sentimento obscuro, alegre e inebriante como o hidromel, enchia a sua alma.

Nikita e o intérprete Boccalino sentaram-se juntos, no fim da mesa, ao lado de Leonardo de Vinci.

O intérprete gabarola descrevia as maravilhas que vira na Moscóvia, misturando a verdade a muitas fantasias. Leonardo, sempre desejoso de obter informações e de aumentar os seus conhecimentos, interrogava Karatcharoff acerca desse longínquo país que tanto excitava a sua curiosidade, como tudo o que é grandioso. Interrogava-o sobre os frios rigorosos, sobre os vales infindáveis, sobre os rios caudalosos e sobre as florestas incomensuráveis da Rússia.

Nesse momento, Nikita, embasbacado de admiração, contemplava um espectáculo que jamais tinha visto. Era um enorme prato representando Andrómeda nua; o corpo da heroína era constituído por delicados peitos de aves; estava amarrada a um rochedo formado por uma pasta de queijo com o seu libertador Perseu, feito de carne assada, à sua beira.

O serviço para as carnes era todo em baixelas de oiro e de prata doirada, e, para os peixes, em prata, metal que melhor corresponde ao elemento aquático. Havia limões prateados para a salada e, enfim, dominando os esturjões e as lampreias, apareceu a deusa Anfitrite, amassada dum fino puré de enguias; deslizava na sua concha de nácar sobre uma geleia verde que figurava o mar, puxada por golfinhos. A seguir vieram as sobremesas incontáveis, monumentos de maçapão, de nozes, de amêndoas, de açúcar queimado, executados segundo desenhos de Bramante e de Leonardo, e representando Hércules colhendo os pomos doirados do jardim das Hespérides, a fábula de Hipólito e de Fédora, de Baco e Ariana, de Júpiter e de Danai, enfim, de todo o Olimpo ressuscitado.

Nikita contemplava todas estas maravilhas com uma curiosidade infantil, enquanto Danilo Kousmitch, perdendo toda a vontade de comer ao ver a nudez impudica das deusas, murmurava entre os dentes:

- Idolatrias pagãs! Atentados contra a Igreja!

 

O baile começou.

Danças antigas, como "Vénus e Júpiter", "O cruel destino", "Cupido", distinguiam-se pela lentidão, pois as vestes das damas eram tão compridas e pesadas que não permitiam nenhum movimento rápido. Donas e cavalheiros aproximavam-se e afastavam-se, numa compostura cerimoniosa, trocando cumprimentos, sorrisos e suspiros.

As damas deviam mover as caudas como os pavões e deslizar como os cisnes, de forma que os minúsculos pés, segundo a expressão dum poeta, "não andassem depressa de mais". A música era lânguida, suave, como adormecida, cheia duma ardência oprimida que lembrava a poesia de Petrarca.

Toda a gente dançava, todos se distraíam e divertiam. A Duquesa. a única pessoa que estava aborrecida, saiu do salão de baile e entrou numa sala vizinha. Aí, um ilustre poeta, chegado de Roma, recitava versos; era Serafim de Áquila, cognominado o Único, figura fisicamente insignificante, completamente glabro, mas que desfrutava dum enorme sucesso principalmente junto das damas. Desde que chegara, tinha eclipsado a aura do poeta da corte, Bellincioni.

Beatriz, tendo entrevisto Lucrécia Crivelli entre as pessoas que rodeavam o poeta, perturbou-se, empalideceu, mas depressa se recompôs e, avançando para a sua rival, beijou-a com as habituais demonstrações de carinho.

O poeta declamava um soneto da sua lavra, onde se descrevia como, durante o incêndio da casa da sua bem-amada, não fora possível apagar o fogo, porque todos os que chegavam eram obrigados a empregar a água para apagar os próprios corações, inflamados pelos ardentes olhares da bela. Estes versos entusiasmavam o auditório feminino, provocando aplausos frenéticos entre as admiradoras do poeta. Umas exclamavam:

- É um génio! O seu nome há-de resplandecer com um brilho igual ao de Dante!

- O Único é maior do que Dante! - respondiam outras.

Beatriz não pôde suportar esta cena mais tempo e retirou-se.

Ao voltar para o salão principal, deu ordem ao seu pajem Ricciardetto, que a amava, para que a fosse esperar com luzes à entrada dos aposentos do Duque, e atravessando, precipitadamente, as salas brilhantemente iluminadas e cheias de gente, alcançou uma galeria distante e abandonada, onde alguns guardas solitários dormitavam apoiados às lanças; abriu uma porta de ferro, subiu uma escura escada em caracol e entrou na grande sala abobadada, que era o quarto de dormir do Duque. Beatriz aproximou-se dum pequeno armário de carvalho incrustado na espessura da parede, onde o Duque costumava guardar os documentos importantes e secretos; introduziu na fechadura a chave que tinha roubado ao marido e tentou abrir; mas notou que a fechadura estava quebrada e, ao abrir-se o armário, verificou que todos os compartimentos estavam vazios. O Mouro, ao dar pela falta da chave, tinha decerto guardado as cartas noutro esconderijo.

Deteve-se perplexa.

Nas janelas, os flocos de neve voejavam, como fantasmas, o vento assobiava, uivava e chorava. E as vozes das rajadas nocturnas despertavam na alma da Duquesa ideias obscuras, mas familiares, muito antigas e terríveis...

De repente, um pensamento atravessou o espírito da Duquesa:

"Bellincioni! Como é possível que eu não tivesse ainda pensado nele!

Sim, é o caminho! É por ele que eu saberei tudo... Mas como poderei falar-lhe sem que ninguém o note? Vão certamente procurar-me. Tanto pior! Tenho necessidade absoluta e urgente de saber... não posso suportar mais tempo estas mentiras!"

Lembrou-se de que Bellincioni, dizendo-se doente, não viera ao baile; e, pensando que a essa hora com certeza devia estar em casa, chamou o pajem Ricciardetto, que ficara no limiar da porta.

- Ordena a dois portadores que me esperem com uma cadeirinha, em baixo, no pátio, junto da poterna. Se me queres ser agradável, toma todas as precauções precisas, de forma que ninguém suspeite da minha saída, ouviste? Ninguém!

Deu-lhe a mão a beijar e o pajem correu a desempenhar a sua missão.

Beatriz entrou no seu quarto de dormir, deitou sobre os ombros uma capa de zibelina, pôs uma máscara de seda negra e, alguns minutos depois, estava instalada na cadeirinha, que se dirigia para a casa de Bellincioni.

 

O poeta chamava à sua casa, arruinada e miserável, "um buraco de rãs".

Recebia muitos presentes, mas a sua vida desordenada, de ébrio e jogador, trazia-o constantemente nos maiores apuros e nas situações mais precárias. A pobreza, conforme ele dizia, perseguia-o, como "algumas mulheres fiéis, mas detestadas".

Deitado numa cama miserável, coxa e coberta com um delgado e roto colchão, Bellincioni esgotava a terceira garrafa dum detestável vinho, enquanto compunha um epitáfio para o chorado cãozinho de madona Cecília. O poeta via os últimos pedaços de carvão consumindo-se na lareira e tentava inutilmente aquecer-se, cobrindo as pernas magras, como patas de cegonha, com uma pele de esquilo meio devorada pelas traças.

Ouvia o ruído da tempestade e conjecturava o frio que devia reinar no exterior. No baile da corte devia ser lida essa noite uma alegoria por ele composta em honra do Duque, intitulada "O Paraíso". Se bem que já há muito tempo andasse doente, não fora isso que o levara a não assistir à festa. A verdadeira causa da sua ausência era a inveja; preferia gelar no seu tugúrio a ter que assistir ao triunfo do rival, esse miserável, esse patife incontestado, o Unico, que com os seus versos idiotas conseguia dar volta às cabeças loucas de todas as mulheres.

Só de pensar nele, Bellincioni sentia o sangue ferver-lhe nas veias.

Cerrou os punhos e levantou-se do leito. Fazia tanto frio no quarto que imediatamente, se tornou a deitar, a tremer, com um ataque de tosse.

- Canalhas! - exclamou. - Ter que fazer quatro sonetos com um frio destes!

Uma rajada entrou pela janela mal fechada e embrenhou-se pela chaminé_ chorando e rindo como uma bruxa.

Tomando uma resolução desesperada, o poeta tirou debaixo da cama um taco de madeira que substituía um dos pés e, rachando-o em pequenos bocados, atirou-os ao fogo. A chama irrompeu, iluminando o triste aposento. Bellincioni sentou-se sobre os calcanhares e estendeu as mãos arroxeadas para o fogo, esse último amigo dos poetas solitários.

"Maldita vida!", pensou. "E porquê? Será possível que eu seja pior do que os outros?" Com um amargo sorriso, deixou pender a cabeça, entregue aos seus tristes pensamentos.

Alguém batera em baixo, à porta da casa. Uma voz meio adormecida respondeu com uma praga; era a única criada da habitação, uma velha rabugenta que não gostava que a incomodassem. O matraquear dos tamancos ouviu-se pela escada abaixo.

"Com mil raios!", pensou Bellincioni. "É ainda esse infame judeu Samuel que me vem reclamar os juros! Infiéis malditos! Nem de noite me deixam descansar!"

A velha introduzira alguém na habitação. Os degraus da escada ran- geram. A porta abriu-se e no quarto entrou uma mulher embuçada numa peliça de zibelina, o rosto oculto por uma máscara de seda negra.

Bellincioni, sobressaltado, olhava-a fixamente.

A recém-chegada aproximou-se, em silêncio, da única cadeira que havia no aposento.

- Tomai cuidado, madona, o espaldar está quebrado! - E num tom de galantaria, rematou: - A que génio bom devo agradecer a ventura de receber na minha humilde choça uma tão ilustre madona? Com certeza, alguma encomenda; algum madrigal amoroso!

Generosamente, deitou para o fogo as últimas achas de madeira. Nesta altura, a dama tirou a máscara.

- Sou eu, Bernardo!

O pasmo do poeta foi tal que recuou e teve de se apoiar à parede para não cair.

- Jesus! Virgem Puríssima! - balbuciou, arregalando os olhos. Vossa Senhoria... A ilustríssima Duquesa...

- Bernardo, tu vais prestar-me um grande serviço - disse Beatriz;

e olhando em volta, perguntou: - Ninguém nos ouve?

- Podeis estar sossegada, Alteza, ninguém, a não ser os ratos...

- Escuta - continuou lentamente Beatriz, fixando-o com um olhar perscrutador. - Sei que compuseste, para madona Lucrécia, muitos versos amorosos. Deves ter cartas do Duque com essas encomendas e encargos.

Bellincioni olhava-a em silêncio, os olhos dilatados de estupefacção.

- Nada receies - acrescentou ela -, que ninguém o saberá. E dou- te a minha palavra de que serei generosa contigo, se fizeres o que te peço. Ficarás rico, Bernardo!

- Alteza - articulou este com esforço, como se a língua se lhe embrulhasse -, não acrediteis... São tudo calúnias... Não tenho carta nenhuma... Juro... por Deus!

Os olhos de Beatriz fuzilavam de cólera; ergueu-se lentamente e, sem deixar de o fitar, aproximou-se dele.

- Não mintas. Sei tudo. Entrega-me as cartas do Duque, se tens amor à vida! Ouviste? Dá-mas! Acautela-te, Bernardo, não vim aqui para brincar contigo! Lá em baixo esperam as minhas ordens alguns homens decididos!

Bellincioni caiu de joelhos.

- Seja feita a vossa vontade, signorina! Não tenho carta nenhuma...

- Não tens? - repetiu ela curvando-se para ele e olhando-o sempre fixamente nos olhos. - Não tens, insistes?

- Não tenho nenhumas...

Então a raiva apoderou-se dela.

- Espera um pouco, alcoviteiro maldito, hei-de forçar-te a dizer a verdade! Vou estrangular-te com as minhas próprias mãos, bandido!... gritou Beatriz; e, com efeito, lançou-lhe as mãos à garganta e apertou com tal força que o sufocava e as veias do pescoço já lhe latejavam tumefactas. Não se defendia, mas as pálpebras batiam com movimentos rápidos e desesperados; naquela ocasião, mais do que nunca, parecia um desgraçado pássaro doente.

"Vai matar-me, tão certo como Deus ser Deus, vai matar-me!", pensou Bernardo. "Seja! Não trairei o Duque".

Bellincioni fora toda a sua vida um histrião da corte, um vagabundo descarado, sem vergonha, um mercenário de rimas, mas não era um traidor.

A Duquesa voltou a si. Com um gesto de nojo, deixou cair as mãos, repeliu o poeta, aproximou-se da mesa e, pegando num pequeno castiçal de estanho, dirigiu-se para o quarto vizinho que conjecturava ser o gabinete de trabalho do vate.

Bernardo ergueu-se de repente e, metendo-se de permeio, quis impedir-lhe o passo. Mas a Duquesa, silenciosamente, fulminou-o com um tal olhar que ele se encolheu e se desviou para a deixar passar.

Penetrou então no antro da mísera musa. Cheirava a bafio; nas paredes nuas, caiadas de branco, alastravam nódoas de humidade. Nas janelas, muitas das vidraças partidas estavam substituídas por farrapos. Sobre uma prancheta inclinada, que servia de escrivaninha, suja de nódoas e de tinta e com penas de pato marcadas pelas mordidelas do poeta, nas esperas de rimas tardias, estavam espalhados papéis que deviam ser rascunhos de versos.

Pousando a vela sobre a prancheta, sem se preocupar mais com

Bernardo, Beatriz começou a rebuscar no meio de toda aquela papelada; sonetos dirigidos aos tesoureiros do palácio, aos carcereiros, aos dignitários da corte, aos copeiros; queixas irónicas, pedidos de dinheiro, de vinho, de agasalhos, de mantimentos e de lenha. De repente descobriu, no meio de tudo isto, um cofrezinho de madeira preta. Abriu-o e retirou dele um pacote de cartas, cuidadosamente amarrado.

Bernardo, que a observava, ergueu as mãos, aterrado. A Duquesa observou-o, depois olhou para as cartas, leu o nome de Lucrécia, reconheceu a letra de o Mouro, e compreendeu que tinha finalmente encontrado aquilo que procurava - as cartas do Duque e os rascunhos das poesias amorosas, por ele encomendadas para madona Lucrécia.

Escondeu o pequeno embrulho no seio do corpete, e, sem pronunciar uma palavra, atirou ao poeta, como quem atira um osso a um cão, a bolsa cheia de ducados, e saiu.

Bellincioni ouviu-a descer a escada, fechar cuidadosamente a porta, e, durante muito tempo, ficou no meio do quarto, como fulminado; o soalho oscilava debaixo dos seus pés, como as tábuas dum navio durante a tempestade.

Enfim, extenuado, deixou-se cair sobre o leito e adormeceu profundamente.

 

A Duquesa voltou ao castelo.

Os convidados já tinham notado a sua ausência e murmuravam entre si, na curiosidade de saber o que se passava. O Duque começava a inquietar-se.

Ao entrar na sala de baile, Beatriz aproximou-se do marido, ligeiramente pálida, e contou-lhe que, sentindo-se um pouco fatigada depois do festim, se tinha retirado uns momentos para repousar.

- Bice - murmurou o Duque, pegando-lhe na mão fria e trémula - , se te sentes mal, diz-mo, por piedade! Não te esqueças do teu estado! Se queres, podemos dar a festa por terminada e deixar o resto para amanhã! Todo este programa foi apenas organizado para ti, por tua intenção, para te ser agradável, minha querida!

- Não, não é necessário - disse Beatriz. - Não te inquietes, suplico-te, Vico. Já há muito tempo que não me sinto tão bem como hoje, tão feliz! Não desisto de ver O Paraíso. E ainda quero esta noite dançar.

- Deus seja louvado, minha querida! - disse o Duque tranquilizado e beijando com respeitosa ternura a mão da mulher.

Os convidados voltaram de novo à sala do jogo da péla, onde o mecânico do palácio, Leonardo de Vinci, tinha instalado as diversas máquinas para a representação da peça de Bellincioni. Quando todos estavam sentados, e se apagaram as luzes, ouviu-se Leonardo gritar: "Atenção!"

Uma mecha carregada de pólvora inflamou-se e na escuridão brilharam, como astros transparentes, esferas de cristal, cheias de água, dispostas em círculo e iluminadas interiormente por uma multidão de chamas brilhantes formando arco-íris.

No mesmo momento, todos estes astros começaram a girar em torno do eixo da máquina, com um acompanhamento de estranhos e suaves acordes, como se o choque das esferas umas com as outras produzisse essa música divina e misteriosa, de que falam os pitagóricos. Na realidade, eram martelos que percutiam pequenos sinos de vidro, invenção de Leonardo, que produziam tão estranhas harmonias.

Toda a assistência admirava o inesperado espectáculo.

Os planetas pararam; e por cima de cada um deles apareceram, sucessivamente, os deuses que os representavam: Júpiter, Apoio, Mercúrio, Marte, Diana, Vénus, Saturno, e todos endereçavam a Beatriz cumprimentos de boas-vindas.

No fim deste número, os convidados passaram a uma nova sala, onde outro espectáculo os esperava: um desfile de carros de triunfo, puxados por negros, por leopardos, por grifos, por centauros e por dragões. Nesses carros, em grupos alegóricos, iam: Numa, Pompeu, César, Augusto, Trajano, que todos eram heróicos antepassados de Ludovico, conforme diziam as inscrições. A fechar o desfile, uma espécie de apoteose: um carro tirado por licórnios e conduzindo um enorme globo terrestre, no qual estava deitado um guerreiro com uma cota de malha de aço, enferrujada. Uma estátua de oiro, representando uma criança com um ramo de amoreiral na mão, saía por um buraco da armadura, o que significava a morte do velho século de ferro e a nascença do século de oiro, acontecimento motivado pela sábia administração de Ludovico. Com espanto de todos, a estátua de oiro era uma autêntica criança que os parentes tinham alugado por alguns ducados. O pobrezito, com o corpo todo coberto de um verniz doirado, sentia-se mal. Nos seus olhos apavorados brilhavam as lágrimas. Com voz trémula e lacrimosa, começou a recitar um cumprimento dirigido ao Duque, que rematava pelo seguinte refrém:

Em breve, muito breve com certeza,

Por mandado do Moiro,

Sem mágoas - só coroado de beleza

Raiará para vós o "século de oiro".

 

1 Em italiano: Moro.

 

O baile começou em redor do carro, que transportava a "idade de oiro".

A repetição interminável do estribilho enfastiava toda a gente. Já ninguém o ouvia. A criança, debruçada no alto do grupo alegórico, continuava a balbuciar, com os lábios dormentes, numa monotonia desesperante:

Sem mágoas - só coroado de beleza Raiará para vós o "século de oiro".

Beatriz dançava com Gaspar Visconti. De tempos a tempos, um riso espasmódico que parecia um soluço comprimia-lhe a garganta; sentia uma dor lancinante, o sangue latejava-lhe nas fontes, os olhos enevoavam-se- lhe. Mas procurava conservar a tranquilidade; sorria.

Acabada a dança, a Duquesa, esquivando-se por entre a alegre multidão, retirou-se sem que ninguém o percebesse.

 

Dirigiu-se à torre isolada da "Tesouraria". Ali ninguém entrava a não ser ela e o Duque. Tomando uma vela das mãos do pajem Ricciardetto, deu-lhe ordem para a esperar e entrou na enorme e lúgubre sala, fria e escura como um túmulo. Sentou-se, tirou do seio o maço das cartas, e, desamarrando-o, espalhou-as sobre a mesa e começava a ler, quando de súbito o vento, engolfando-se pela chaminé com uma queixa angustiosa, um silvo agudo que correu todo o castelo, por pouco não apagou a luz, deixando-a mergulhada nas trevas. A seguir, fez-se profundo silêncio e parecia à Duquesa distinguir os longínquos ecos da música do baile, e também, como um ruído de vozes apagadas, sons de cornetas arrastadas vindos dos subterrâneos da torre onde eram as prisões.

E então teve a percepção de uma presença estranha atrás de si. Um pavor já seu conhecido apossou-se dela. Sabia que não devia olhar, mas não pôde resistir e voltou-se.

Num canto da sala estava alguém, que ela já tinha visto uma vez, um personagem alto, magro, negro, mais negro do que as trevas, a cabeça envolta num capuz de frade, tão descido sobre os olhos que lhe escondia as feições. Quis gritar, chamar Ricciardetto, mas a voz quebrou-se- lhe na garganta. Quis levantar-se para fugir, mas as pernas vacilaram e recusaram-se. Caiu de joelhos:

Tu!... Tu, outra vez!...

O espectro ergueu lentamente a cabeça, deixando cair o capuz.

Era o falecido duque João Galeas.

Beatriz ouviu uma voz surda que murmurava: "Desgraçadal... Desgraçadal...”

- Perdoa-me... perdoa-me... - disse, cheia de angústia.

E ao vê-lo avançar, transida de terror, gelada, soltou um grito lancinante, sobre-humano, e caiu sem sentidos.

Ricciardetto, ao ouvir este grito, acorreu, e, vendo-a inerte sobre o solo, precipitou-se através das galerias escuras, onde de longe em longe agonizavam as lanternas das sentinelas adormecidas e chegou às salas cheias de gente e brilhantemente iluminadas, começando a procurar o Duque.

Soava a meia-noite. O baile estava em todo o seu esplendor.

o Duque acabava nesse instante de passar sob um arco de triunfo ao som duns melodiosos acordes, mais suaves que o canto das rolas ou que as flautas dos pastores.

Ricciardetto, ofegante, ao vê-lo, gritou num tom de voz desesperado:

- Socorro! Socorro!

- O quê! O que há? - perguntou Ludovico.

- Alteza, a Duquesa está muito mal... Depressa! Depressal... Socorro.

- Sentiu-se mal? Outra vez!... - O Duque levou as mãos à cabeça.

- Mas aonde? Explica-te!

- Na torre da "Tesouraria".

o Mouro começou a correr tão precipitadamente que a sua zazzera, negra e crespa, se deslocou e ia caindo, e a grossa cadeia de oiro cinzelado, que trazia ao pescoço, batia-lhe sobre o peito. Muitos começaram a correr atrás dele, enquanto outros, aterrados, se precipitavam para as portas de saída, como um rebanho de carneiros, gritando:

- Fogo! Fogo!

- A Duquesa morreu!

- Deu à luz! - diziam algumas damas.

Pouco depois, Ricciardetto, ao entrar numa das salas do andar superior, ouviu através duma das portas dum quarto vizinho um grito tão terrível que parou perplexo e, aproximando-se duma das muitas mulheres que passavam com açafates de roupas, braseiras e vasilhas de água quente, perguntou:

- O que foi?

Mas ninguém lhe respondeu.

Uma mulher já velha, que devia ser talvez a parteira, olhou-o com severidade e disse:

- Vai com Deus! Estás a empecer o caminho! Incomodas toda a gente. Isto não é lugar para crianças, vai-te embora!

A porta entreabriu-se um instante e Ricciardetto viu, ao fundo do quarto, sobre o leito, numa desordem de roupas e de vestidos rasgados.

aquela que ele amava com o desespero dum amor infantil. Tinha o rosto vermelho, coberto de suor, as madeixas de cabelo coladas à fronte, e da boca entreaberta saía um lamento contínuo. O rapazito empalideceu e fugiu.

o Duque saía do quarto e deixava-se cair sobre uma cadeira, torcendo as mãos e soltando suspiros desesperados:

- Meu Deus! Meu Deus! Não posso mais... Bice, Bice!... A culpa é só minha! Oh! Maldito!

Lembrou-se de que a Duquesa, mal o vira, tinha gritado num acesso de cólera frenética: "Vai-te embora! Volta para a tua Lucrécia!"

Do quarto da doente saiu então o médico principal da corte, Luís

Marliani, na companhia de outros médicos.

o duque correu para eles.

- E então? Como está?...

Todos se calaram.

- Alteza - disse enfim Marliani -, tudo quanto podíamos fazer, foi feito. Resta-nos esperar a misericórdia do Senhor!...

o Duque pegou-lhe nas mãos.

- Não! Não, há-de haver ainda um meio. Por piedade! É preciso tentar ainda qualquer coisa!

- Acalme-se Vossa Alteza, posso assegurar que todos os recursos da ciência...

- Diabos levem a ciência - exclamou de repente o Duque sem se conter e crescendo para ele com os punhos cerrados. - Ela morre, ouvis!

Morre! Miseráveis! E vós não tendes meio de a salvar! Merecíeis ser todos enforcados!

E numa ansiedade mortal, marchava dum lado para o outro, com grandes passos, ouvindo sempre o grito ininterrupto, quando, de súbito, viu rnesser Leonardo. Tomou-o de parte.

- Ouve - murmurou em delírio, e era flagrante que não tinha a consciência do que dizia -, ouve, Leonardo, tu vales para mim mais do que todos eles. Salva-a, suplico-te!

Leonardo quis responder mas já o Duque se afastara, esquecido da sua presença; acabavam de chegar o capelão e os frades.

- Deus seja louvado! O que trazeis?

- Algumas relíquias de Santo Ambrósio, o cinto de Santa Margarida, que alivia as mulheres nestes transes, e o muito venerado dente de

  1. Cristóvão. Trazemos um cabelo da Virgem Maria...

- Está bem, está bem, ide e rezai.

O Mouro quis também entrar com eles no quarto da doente; mas, nesse instante, o grito transformou-se num gemido tão angustioso que ele, tapando as orelhas, se evadiu. Depois de percorrer algumas salas, deteve-se na capela, debilmente alumiada pelas lâmpadas, e caiu de joelhos diante da imagem da Imaculada.

- Mãe de Deus, Virgem Puríssima, pequei, pequei, maldito seja eu!

Sacrifiquei um inocente, o meu soberano legítimo João Galeas. Mas Tu, Mãe de Misericórdia e minha protectora, ouve a minha prece e perdoa.

Tudo, dou tudo, em troca da sua vida; mas salva-a! Leva-me a mim em seu lugar.

Farrapos de pensamentos desconexos, delirantes, passavam-lhe na mente e impediam-no de rezar. Lembrou-se duma narrativa que ainda recentemente o divertira: a história dum marinheiro que, prestes a morrer numa tempestade, prometera à Virgem um círio mais alto que o mastro dum navio, e que, a um camarada que lhe notara a impossibilidade de conseguir uma tão grande quantidade de cera, respondera: "Cala-te, que, uma vez salvos, teremos tempo de reconsiderar! De resto, é possível que a Madona se contente com um círio mais pequeno.”

- Oh! Que tenho eu? Meu Deus! - exclamou o Duque. - Eu endoideço!

E num esforço imenso para associar as ideias, começou a rezar.

Mas na sua cabeça passavam em turbilhão, semelhantes a sóis de cristal transparente, as esferas ardentes de Leonardo, e uma música melodiosa acompanhava o fastidiento refrém do menino representando a idade de oiro:

Sem mágoas - só coroado de beleza Raiará para vós o "século de oiro".

Depois tudo desapareceu. Quando o Duque voltou a si, e lhe parecia terem decorrido dois ou três minutos, viu através dos vitrais gelados da capela o dealbar triste da manhã de Inverno.

 

O Mouro entrou nas salas do Palácio Rocchetti, onde reinava a maior tranquilidade. Uma aia, que transportava um cofre e algumas roupas de criança, dirigiu-se para ele:

- Houve por bem dar à luz.

- Viva? - perguntou o Duque, empalidecendo.

- Sim, mas a criança morreu. Está extremamente fraca. Chama por vós. Vinde!

Entrou no quarto e viu, enterrado nas almofadas, um rosto miúdo como o de uma criança, com os olhos muito encovados e que pareciam nublados por um véu; esses olhos parados eram para o Duque, simultaneamente, familiares e estranhos. Aproximou-se e inclinou-se para ela.

- Manda chamar Isabel... Que venha depressa - murmurou em voz baixa.

o Duque deu a ordem. Ao fim de alguns minutos, uma mulher alta, esbelta, de feições altivas e melancólicas, a duquesa Isabel de Aragão, viúva de João Galeas, entrou na câmara e aproximou-se da moribunda.

Todos se afastaram, excepto o Duque e a enfermeira, que se conservaram próximos.

Durante um certo tempo, ambas conversaram em voz baixa. A seguir, Isabel beijou Beatriz, como para lhe provar que lhe tinha perdoado, e, ajoelhando, escondeu o rosto nas mãos e começou a rezar.

Beatriz chamou de novo o marido para o pé de si.

- Vico, perdoa-me! Não chores! Lembra-te... Eu sempre fui para ti...

Sei que tu também só a mim...

Não pôde terminar. Mas ele compreendeu que ela queria dizer: "Sei que tu não amaste mais ninguém." Olhou-o profundamente, com o olhar já longínquo, e murmurou:

- Beija-me!

o Mouro beijou-a levemente na testa; ela quis dizer ainda qualquer coisa que não conseguiu, e, num suspiro, ciciou:

- Beija-me na boca!

Um frade começou a recitar as orações dos agonizantes. As pessoas da corte da Duquesa reentraram no quarto.

o Duque, sem poder separar os seus lábios dos de sua mulher, sentia estes arrefecerem a pouco e pouco; e, nesse beijo derradeiro, recolheu o último suspiro de Beatriz.

- A senhora Duquesa morreu! - anunciou o doutor Marliani.

Todos se benzeram e caíram de joelhos. O Mouro ergueu-se lentamente. O seu rosto conservava-se imóvel, não exprimindo sofrimento mas sim uma ansiedade terrível, extraordinária.

Respirava com dificuldade, ofegante, como um homem que acaba de subir uma montanha. De repente, agitando os braços, gritou com voz estranha: "Bice", e caiu redondo.

De toda a assistência, Leonardo era a única pessoa que conservava o sangue-frio.

Com um olhar perfeitamente calmo e lúcido, observava o Duque.

Em ocasiões destas, a curiosidade do artista sobrelevava qualquer outro sentimento. A exteriorização dos sentimentos, a expressão dos enormes sofrimentos que se manifestam às vezes nos rostos e que se traduzem por gestos e movimentos de corpos, considerava-as como um fenómeno perfeitamente natural e digno de estudo. Observando o Duque, à sua atenção não escapava o mais pequeno estremecimento dos músculos daquele rosto. O seu desejo era esboçar imediatamente no seu caderno a figura de o Mouro, transtornado pela dor.

Dirigiu-se apressadamente para os quartos térreos do palácio, então desertos.

Aproximou-se da chaminé sem fogo, olhou em redor para se certificar da sua solidão e começava a desenhar, quando de repente divisou a um canto da lareira o garoto que tinha personificado a "idade de oiro".

Dormia, trémulo de frio, enrolado sobre si próprio, com a cabeça pousada nos joelhos, que rodeava com as mãos. As cinzas já extintas não podiam comunicar nenhum calor àquele corpinho nu e doirado. Leonardo tocou-lhe levemente no ombro; a criança ergueu a cabeça e suspirou. O artista pegou-lhe ao colo, bafejando-a com o seu hálito para a aquecer.

- Como te chamas? - perguntou-lhe.

- Lippo! Lippo! - respondeu a criança, ainda ensonada. - Dói-me muito... quero ir para casa.

- Onde é que tu moras?

- Ai! Dói muito... dói muito... Para casa... - balbuciou a criança, e numa agitação ia dizendo, como num sonho:

Por mandado do Moiro,

Sem mágoas - só coroado de beleza Raiará para vós o "século de oiro"...

Leonardo embrulhou-o na capa e dirigiu-se para a saída.

O garoto tiritava nos seus braços.

"O nosso século de oiro", pensou o artista, com um sorriso cheio de melancolia.

- Pobre passarito! - comentou com infinita piedade; e embrulhou- o bem, estreitou-o contra o peito, com tanta delicadeza e tanta ternura que o pobre doentinho sonhou que a mãe voltava novamente ao mundo para o embalar e para o acalentar.

 

A Duquesa morrera numa terça-feira, 2 de Janeiro de 1497, às seis horas da manhã. O Duque passou mais de vinte e quatro horas junto do corpo da mulher, sem atender ninguém, recusando-se a dormir e a comer. Houve receio que endoidecesse.

Na quinta-feira de manhã pediu papel e tinta e escreveu a Isabel de Este, irmã da falecida Duquesa, uma carta anunciando a morte de Beatriz, na qual se encontravam estas linhas: "Teríamos mil vezes preferido que a morte nos tivesse escolhido a nós! Pedimos-vos que nos não envieis ninguém para nos consolar, porque isso só conseguiria reavivar o nosso tormento."

Nesse mesmo dia, cedendo enfim aos rogos dos seus próximos, consentiu finalmente em tomar algum alimento. Não quis porém sentar-se à mesa e comeu de pé, num tabuleiro, que Ricciardetto sustentava na sua frente.

Os funerais foram duma riqueza e duma magnificência nunca vistas.

Logo após a cerimónia, o Duque encerrou-se num quarto, sem luz nem ar, forrado de crepes negros, com todas as persianas corridas e iluminado por tochas funerárias.

Durante alguns dias recusou-se a sair desta cela macabra.

Uma tarde, que conversava com Leonardo acerca da Ceia que devia ser colocada junto do túmulo de Beatriz, acrescentou:

- Leonardo, disseram-me que tomaste conta do menino que representava o nascimento do "século de oiro", naquela noite funesta. Como está ele?

- Alteza, morreu no próprio dia dos funerais da Duquesa.

- Morto! - exclamou o Duque, com ar de surpresa e de satisfação.

- Morto! Que curioso!

Deixou pender a cabeça e suspirou.

- As coisas passaram-se como era justo e natural! O "século de oiro”

morreu juntamente com o meu tesouro idolatrado. Enterrámo-lo ao mesmo tempo que enterrámos Beatriz, porque ele não queria, nem poderia sobreviver. Não é assim, querido amigo? Que extraordinária coincidência e que formosa alegoria!

 

Tinha decorrido um ano do mais rigoroso luto. O Duque, sempre de negro, afectava uma compostura desmazelada, como sinal de anojamento.

Nunca se sentava à mesa, contentando-se em comer de pé, sobre um tabuleiro que os criados seguravam na sua frente.

"Desde a morte da Duquesa", escrevia nas suas memórias o embaixador de Veneza, Marino Sanuto, "o Mouro tornou-se devoto; assiste a todas as cerimónias religiosas, pratica os jejuns, leva uma vida casta, segundo se diz, e orienta os seus pensamentos pelo temor de Deus."

Ia frequentemente visitar o túmulo de sua mulher, onde rezava durante muito tempo; mas, muitas vezes também, ao voltar destas peregrinações, dirigia-se a casa de Cecília ou de Lucrécia, para espalhar o tédio que começava a pesar-lhe.

A despeito do "temor divino" e das saudades que sentia por Beatriz, não somente conservou as suas amantes mas até se lhes dedicou com maior interesse. Madona Lucrécia e a condessa Cecília tinham acabado por se aproximar e harmonizar.

Cecília, criatura bondosa e ingénua, resolvera associar o seu amor ao da sua jovem rival, para consolar o Duque. Lucrécia, ao princípio, desconfiada e ciumenta, resistira a estes projectos, mas Cecília acabou por desarmá-la pela bondade e pela insistência. E assim, Lucrécia não teve outro remédio senão abandonar-se a tão estranha amizade.

Durante o ano de 1497, Lucrécia teve, de Ludovico, um filho. A condessa Cecília desejou ser a madrinha e, com uma ternura exagerada, se bem que ela tivesse também filhos do Duque, começou a dedicar-se ao recém-nascido, a quem tratava sempre por "sobrinho". E assim se realizavam os desejos secretos de o Mouro: as suas amantes eram as melhores amigas. Encomendou ao poeta da corte um soneto em que Lucrécia e Cecília eram comparadas, uma à Aurora, a outra ao Crepúsculo, enquanto ele próprio, viúvo inconsolável, entre as duas divindades radiantes, estava condenado, como a escura noite, a permanecer sempre distante do Sol, distante da sua Beatriz.

 

Dia frio e enevoado, uma semana antes do aniversário da morte de

Beatriz. Toda a noite sonhara com sua mulher. Pela manhã, fora ao Convento de Santa Maria das Graças e devotamente rezara sobre o túmulo da Duquesa.

A seguir, partilhara a refeição do prior e longamente discutira com ele sobre o assunto que trazia apaixonados todos os teólogos da época: o dogma da Imaculada Conceição.

Ao deixar o convento dirigiu-se para casa de Lucrécia Crivelli.

Numa das salas, tão hospitaleiras, do palácio, viu Lucrécia e Cecília sentadas uma junto da outra, perto da chaminé. Como todas as damas da corte, estavam vestidas do mais rigoroso luto.

- Como está Vossa Alteza? - disse-lhe Cecília, "o crepúsculo", muito diferente de Lucrécia, "a aurora", mas bela também, com a sua epiderme branca e pálida, os cabelos dum ruivo ardente e os olhos meigos, glaucos e transparentes, como a ondulação calma dum lago da montanha.

Havia algum tempo que o Duque costumava sempre queixar-se da saúde. Nessa tarde não se sentia pior do que o costume. Mas, segundo o hábito, apresentava um ar de fadiga e, suspirando fundo, disse:

- Podeis fazer ideia, madona: como poderei passar? Não tenho outra ambição senão descer o mais depressa possível para o túmulo, a fim de me reunir à minha querida morta!

- Ah! Não, Alteza, não deveis dizer isso - exclamou Cecilia, juntando as mãos. - É até um pecado! Se madona Beatriz vos ouvisse... Toda a dor nos vem de Deus e temos obrigação de a aceitar com reconhecimento...

- Evidentemente! - concordou Ludovico. - Eu não murmuro, Deus me livre! Sei que o Senhor toma mais cuidado em nós do que nós próprios. Felizes os que choram, porque, está dito, serão consolados!

E apertando as mãos das amigas, ergueu os olhos para o tecto:

- Que Deus vos recompense, minhas queridas, pela vossa dedicação a este desgraçado viúvo!

Limpou os olhos e tirou dos bolsos da sua veste de luto dois documentos. Um, era um acto de doação feito pelo Duque ao convento de Santa Maria das Graças, de Pavia, das enormes propriedades dos Sforza junto de Viggevano.

- Alteza - disse a condessa admirada -, julgava que tínheis grande estimação a essas terras!

- Essas terras! Essas terras! - replicou amargamente o Duque. Oh! Madona, não são só esses bens que eu alieno. De resto, para que precisa um homem de tão grandes territórios?

Adivinhando que ele ia falar novamente da morta, a condessa tapou- lhe os lábios com a mimosa mão, num gesto de carinhosa reprimenda.

- E o que vem a ser o outro documento? - perguntou com curiosidade.

O sorriso doutrora, malicioso e alegre, iluminou o rosto do Duque.

Fez então leitura do segundo documento, que enumerava as terras, os

Prados, os bosques, as aldeias, as coutadas, os viveiros, as granjas e outras dependências, que o Duque doava a madona Lucrécia Crivelli e ao filho ilegítimo João Paulo. Era o domínio preferido de Beatriz, a vila Cusnago, celebre pelas suas lindas lagoas.

Num tom de voz comovida, o Mouro chegou às últimas palavras da doação: "Esta mulher tem sido sempre duma dedicação tão perfeita, nas relações divinas e preciosas do amor tem manifestado sentimentos tão nobres, que a sua convivência tem sido para nós um grande reconforto moral e um grande lenitivo no meio dos nossos desgostos."

Cecília aplaudiu com entusiasmo e abraçou a sua amiga, chorando enternecidamente.

- Vês, querida irmã, como eu tinha razão: o Duque tem um coração de oiro! Agora, o meu querido sobrinho Paulo é o mais rico herdeiro de Milão!

- Que dia é hoje? - perguntou o Duque.

- 28 de Dezembro, Alteza! - respondeu Cecília.

Ao ouvir tal, o Duque e Lucrécia olharam-se admirados e trémulos.

Tinham completamente esquecido esta data.

Havia exactamente um ano, contado dia por dia, hora por hora, que a falecida Duquesa, atormentada pelos ciúmes, chegara ao Palácio Crivelli, na esperança de surpreender o marido na companhia de Lucrécia. Tinha- os salvo a presença de espírito desta, escondendo o Mouro num dos seus guarda-vestidos. O Duque lembrava-se agora do susto passado, encerrado no armário, do suor frio que lhe corria pelo rosto, só de pensar que Beatriz o podia surpreender naquela situação e, finalmente, a alegria indescritível que sentira quando ela se retirara. Amava-a verdadeiramente e daria tudo por tornar a passar um tão angustioso transe, por ouvi-la de novo a bater à porta da casa, e por ver entrar a aia, aterrada, gritando: "Madona Beatriz!". Teria também ficado outra vez uns instantes imóvel, depois ter-se-ia escondido, como um ladrão apanhado em flagrante, e teria ouvido a voz dela, ameaçadora, a voz da sua mulher, da sua querida Beatriz!

Ah! Mas essas coisas já não se podiam repetir!

Olhou em volta. Na sala, nada tinha sido mudado: era hoje tão hospitaleira e tão alegre como nesse dia; o vento do Inverno soprava na chaminé, um fogo vivo ardia no fogão, por cima do qual corria um friso representando um grupo de cupidos nus, dançando e brincando com os instrumentos da Paixão do Senhor. Sobre uma mesinha redonda, coberta por um tapete verde, estava o mesmo vaso antigo de bronze, a mesma mandolina e os mesmos cadernos de música. As portas da alcova estavam abertas e, para lá desta, entrevia-se o quarto de vestir e o grande armário onde ele estivera encerrado.

O Mouro deixou pender a cabeça sobre o peito e lágrimas duma sincera dor corriam-lhe pelas faces.

- Ah! Meu Deus! Vês como ele chora! - exclamou a condessa Cecília. - Vamos, acarinha-o, beija-o, consola-o! Não tens vergonha de permanecer fria diante da sua dor? - E empurrou suavemente a rival para os braços do amante.

Havia já algum tempo que Lucrécia experimentava uma sensação de náusea perante esta exagerada amizade da condessa. Era como a impressão que produzem alguns perfumes excessivamente langorosos. Quis levantar-se e sair; mas o Duque apertava-lhe as mãos, sorrindo para ela através das lágrimas.

Cecilia pegou na mandolina e começou a cantar os versos de Petrarca, celebrando a celestial aparição de Laura:

Meus pensamentos partem pra mansão daquela

Que em vão tento encontrar aqui na Terra;

Do Céu, no terço ciclo, entre os eleitos,

Mais bela, e sem orgulho, já a vejo.

Pegando-me na mão, me diz: "Tu nesta esfera

Junto a mim ficarás eternamente.

Eu sou a mesma por quem tu tanto sofrias,

Acabei o meu dia, antes do sol morrer."

O Duque tornou a chorar. Repetiu diversas vezes o último verso, soluçando, os braços estendidos para uma visão fugitiva:

Acabei o meu dia, antes do sol morrer.

- Sim, minha pomba! Sim, minha alma, antes do sol morrer.

- Sabes uma coisa, madona? Parece-me que ela nos contempla lá do Céu e nos abençoa aos três... Oh! Bice!...

Enternecido, apoiou o rosto molhado pelas lágrimas ao ombro de

Lucrécia, e, enlaçando-a pela cintura, atraiu-a a si. Lucrécia, contrafeita e envergonhada, resistia. O Duque, furtivamente, beijou-a no pescoço. O olhar vigilante e maternal de Cecilia surpreendeu este beijo; a condessa ergueu-se e, indicando o Mouro a Lucrécia, como uma irmã que confia o irmão doente a uma amiga, saiu na ponta dos pés para a sala oposta à alcova e fechou a porta. O crepúsculo não tinha ciúmes da aurora porque uma longa experiência ensinara-lhe que, depois dos cabelos negros, o Duque encontraria mais encantos nos seus cabelos ruivos e ardentes.

Ludovico olhou em volta e, rapidamente, num movimento brusco, sentou Lucrécia nos joelhos.

Ainda não estavam secas as lágrimas pela defunta esposa e já um sorriso de desejo e voluptuosidade se lhe desenhava nos lábios delgados e sinuosos.

- Pareces uma freira, toda de negro - disse-lhe rindo e beijando- lhe o rosto. - Um vestido tão simples... e como te fica bem! O negro realça ainda mais a tua brancura.

Soltou um dos colchetes de ágata do vestido de Lucrécia e a carne nua do colo brilhou mais tentadora, por entre as pregas negras da roupa...

Por cima da chaminé onde o fogo crepitava alegremente, os pequenos deuses de barro de Caradosso, os cupidinhos nus e os anjos dançavam sempre a sua roda, brincando com os instrumentos da Paixão: o prego, o martelo, as tenazes e a lança. Dir-se-ia que ao reflexo róseo das chamas se entreolhavam cheios de malícia e cochichavam baixinho, lançando através das cepas de Baco olhadelas furtivas para o amoroso par.

As suas faces redondas, bochechudas, pareciam rir às gargalhadas.

De longe, chegavam os sons lânguidos da mandolina, e a condessa

Cecília cantava sempre:

Do Céu, no terço ciclo, entre os eleitos,

Mais bela, e sem orgulho, já a vejo.

E ao ouvir estes versos de Petrarca, celebrando o novo e celestial amor, os pequenos deuses antigos riam como doidos!

 

                         CAPÍTULO IX

OS CISNES (1498-1499)

"I sensi sono terrestri, Ia ragione stá fuor di quelli quando contempla.”

"Os sentidos pertencem à terra; mas a razão paira acima deles quando contempla."

                   Leonardo de Vinci

 

Leonardo trabalhara toda a noite no seu gabinete. Não tinha sequer notado que as estrelas se apagavam e que o dia começava a despontar.

Uma claridade rosada iluminava os tectos das velhas casas de tijolo.

Ouviam-se na rua os passos e as falas dos transeuntes. Bateram à porta.

Giovanni entrou e recordou ao mestre que era, nesse dia, véspera do Domingo de Ramos, que se devia realizar "o duelo do fogo".

- Que duelo? - perguntou Leonardo.

- Frei Domenico por Savonarola, e Frei Juliano Rondinelli pelos inimigos do Irmão Girolamo: ambos passarão através das chamas, aquele que o fogo não tocar será considerado justo à face do Senhor! - explicou Beltraffio.

- Vai, Giovanni! Tenho a certeza de que o espectáculo te há-de interessar.

- Por que não vindes também?

- Não posso. Tu bem vês como estou ocupado.

O discípulo ia a afastar-se, mas, dominando a sua timidez, fez ainda nova tentativa:

- No caminho para aqui encontrei messer Paulo Lomenzi, que prometeu arranjar-nos lugares donde pudéssemos ver tudo bem. É pena que não possais acompanhar-nos. Eu tinha pensado... talvez... Ouvi, mestre...

O duelo começará ao meio-dia. Se até lá conseguirdes acabar o vosso trabalho, creio que chegaríamos ainda a tempo.

Leonardo sorriu.

- Parece que desejas muito que eu assista a esse milagre!?

Giovanni, confuso, baixou os olhos.

- Está bem. Far-te-ei companhia, para te ser agradável.

Beltraffio voltou, como prometera, à hora fixada, na companhia de

Paulo Lomenzi, criatura extremamente activa, que uma permanente agitação dominava sempre. Parecia ter azougue nas veias; passava por ser o principal espião florentino do duque Ludovico e o pior inimigo de Savonarola.

- Será possível, messer Leonardo, que não desejeis acompanhar-nos?

- disse Lomenzi com a sua voz desagradável e aguda, fazendo mil contorções e caretas. - Como podereis ser indiferente, vós, um tão grande amador das ciências naturais, a um espectáculo que é uma verdadeira experiência de física?

- Mas deixá-los-ão, realmente, entrar na fogueira? - disse Leonardo.

- Não sei que dizer-vos! Se as coisas chegarem até esse ponto, Frei Domenico decerto não recuará. E não somente ele, mas duas mil e quinhentas pessoas, cidadãos ricos e pobres, letrados e ignorantes, mulheres e crianças, declararam ontem no Mosteiro de S. Marcos que tinham intenção de tomar parte nessa luta. Tudo isto é duma tal estupidez que causa vertigens às pessoas sensatas. Os filósofos e os espíritos fortes começam já a ter receio: e se um dos frades não ardesse?! Oh, messer, imaginai as caras desses devotos choramingas quando virem os dois em torresmoso

- Não é possível que Savonarola acredite nessas coisas! – disse Leonardo, pensativo, como se falasse consigo próprio.

- Talvez de facto não acredite - respondeu Lomenzi - ou pelo menos não acredite completamente. Mas já não lhe é possível desdizer- se; fez crescer a água na boca a toda a gente, e agora todos se babam: é preciso a todo o custo mostrar-lhes um milagre. Porque, em tudo isto.

há uma matemática que não é menos concludente que a vossa, mestre: se há realmente Deus, por que não fará Ele um milagre quando os crentes o imploram? Por que não permitirá que dois e dois, em vez de quatro, sejam cinco, para envergonhar os tais espíritos fortes e os descrentes como eu próprio e como vós?

- Bem! Vamos, creio que são horas! disse Leonardo, olhando Lomenzi com mal dissimulada repugnância.

- São horas, são horas! - respondeu este, na sua constante agitação.

Saíram. A multidão enchia as ruas. Em todos os rostos se lia a mesma expressão de febril ansiedade que Leonardo já notara em Giovanni.

Na rua dos Calzaioli, em frente da igreja de S. Michele, havia um aperto terrível. Era ali que no recanto duma parede estava erguido o grupo de bronze de Verocchio, que representava o apóstolo S. Tomé tocando as chagas do Senhor. Uns soletravam, outros ouviam ler e discutiam as oito teses teológicas escritas em grandes letras vermelhas.

O "duelo do fogo" devia proclamar a verdade ou a mentira destas proposições:

I - A Igreja de Deus deve reformar-se;

II - Deus há-de castigá-la;

III - Deus há-de reformá-la;

IV - Depois do castigo, Florença reformar-se-á também e elevar- se-á acima de todos os outros povos;

V - Os ateus converter-se-ão;

VI - Tudo isto acontecerá imediatamente;

VII - A excomunhão de Savonarola proferida pelo Papa Alexandre VI não é válida;

VIII - Os que não respeitam esta excomunhão não são pecadores.

Acotovelados e oprimidos pela multidão, Leonardo, Giovanni e Lomenzi detiveram-se e escutavam as conversações.

- Aconteça o que acontecer, concordai, irmãos, que tudo isto é terrível - dizia um velho operário. - Contando que não haja pecado!

- Que pecado pode haver, Filipe? - replicou um jovem contramestre, num sorriso cheio de segurança. - Estou certo de que não há aqui maldade nenhuma, nenhum pecado...

- Há uma tentação, amigo! - continuou Filipe. - Nós esperamos um milagre, mas seremos dignos dele? Porque foi dito: "tu não tentarás o Senhor teu Deus!”

- Cala-te, velho! Não rosnes mais! "Aquele que tiver fé, seja ela mais pequena que um grão de areia, se disser a uma montanha que se mova, será obedecido". Deus não deixará de fazer o milagre para nós acreditarmos nEle.

- Qual dos dois entrará primeiro no fogo, Frei Domenico ou Frei Girolamo?

- Os dois ao mesmo tempo.

- Não, Frei Girolamo rezará apenas, não entrará.

- Não entrará, porquê? Quem há-de entrar senão ele? Primeiro Domenico, a seguir Girolamo, e depois todos aqueles pecadores, como nós, que se inscreveram ontem no Convento de S. Marcos, serão dignos de participar.

- Diz-se que Frei Girolamo vai ressuscitar um morto! Será verdade?

- Claro que é verdade. Primeiro o milagre do fogo e a seguir a ressurreição dum morto. Já li a carta que ele escreveu ao Papa, onde diz:

"Escolham-me um rival, que nós os dois desceremos a um túmulo, e cada um por sua vez dirá: "Levanta-te!" Aquele cuja ordem for obedecida e que conseguir chamar à vida o morto, será o profeta, o outro o impostor.”

- Esperai, irmãos, há-de haver muitas outras coisas! Se tendes fé, vereis descer das nuvens o Filho do Homem reincarnado. E haverá auspícios e milagres tais, como nunca foram vistos.

- Ámen! Ámen! - bradavam muitas vozes. Os rostos empalideciam e os olhos denunciavam a febre e o delírio que perturbava toda a assistência.

A multidão avançava, arrastando Leonardo e os seus companheiros.

Giovanni voltou-se, olhou ainda uma vez para a estátua de Verocchio e contemplou o sorriso de Leonardo que lhe parecia semelhante ao sorriso terno, subtil e interrogador de Tomé, o incrédulo, tocando as feridas do Senhor.

 

Ao chegarem à praça da Senhoria foram violentamente empurrados pela populaça.

A Giovanni parecia nunca ter visto, na sua vida, uma multidão assim.

Não era somente a praça, mas os balcões, as torres, as janelas, os telhados das casas, tudo estava coalhado de gente. Lutava-se para conseguir ver qualquer coisa. Um homem caiu dum telhado e morreu.

As ruas estavam vedadas por cadeias, com excepção apenas de três.

a cujas embocaduras estavam postados guardas que não deixavam passar ninguém que trouxesse armas.

Lomenzi apontou e explicava aos seus companheiros a construção da "máquina", destinada ao duelo. Entre o Riogliera, onde campeava o leão de bronze, heráldico, de Florença, o Marzocco, e o telheiro chamado "Tecto dos Pisanos", estava disposta a pira, estreita e comprida, embebida de alcatrão misturado com pólvora, através da qual passava o estreito caminho pavimentado de pedras, barro e areia: era por ali que deviam seguir os frades, entre as duas muralhas de fogo.

Os franciscanos, inimigos de Savonarola, chegaram, vindos da Rua Vecherechia. Frei Girolamo, envolto numa sotaina de seda branca, transportando nas mãos um cálix que resplandecia ao sol, e Frei Domenico, com hábito de veludo escarlate, fechavam a procissão.

- Dai graças a Deus! - cantavam os dominicanos. - À sua grandeza sobre o povo de Israel e ao seu poderio nos Céus! Tu és terrível, Senhor, na Tua sagrada mansão!

E, retomando o cântico dos frades, a multidão respondia com um comovedor:

- Hosana! Hosana! Bendito seja o que vem em nome do Senhor!

Os inimigos de Savonarola ocuparam metade da galeria vizinha à Casa da Câmara; a outra metade, separada da primeira por uma divisória, era reservada aos discípulos do frade.

Estava tudo pronto, só faltava acender a fogueira. A multidão agitava-se cada vez que os comissários organizadores do duelo saíam do Palazzo Vecchio. Mas, ainda desta vez, depois de se terem aproximado de Frei Domenico e de lhe terem segredado qualquer coisa, tornaram a desaparecer. Frei Rondinelli, o adversário de Savonarola, continuava oculto.

A incerteza e a ansiedade cresciam; uns erguiam-se nas pontas dos pés e estendiam o pescoço para ver melhor; outros benziam-se ou desfiavam o rosário, repetindo numa ingenuidade infantil: "Faz o milagre, Senhor, faz o milagre!"

O ar estava pesado e sufocante. Os trovões surdos e longínquos que se ouviam, desde pela manhã, aproximavam-se; o sol escaldava.

- Por que se espera? - perguntou um personagem, sentado nos lugares reservados aos cônsules e aos cidadãos de categoria. - Se eles têm tanta pressa de arder, é melhor deixá-los ir quanto antes e acabar com isto!

- Mas, considerai, isto é um verdadeiro crime!

- Que idiotice! Julgais então uma grande desgraça que haja dois imbecis a menos sobre a face do mundo?

- Dizeis que eles arderão! Mas é preciso que ardam segundo todas as regras da Igreja, segundo os cânones, e aí está o ponto capital da questão! Tudo isto é duma grande delicadeza teológica!

- Se se trata de teologia, é melhor consultar o Papa.

- Que tem o Papa que ver com isto? Nós devemos apenas pensar no Povo, senhor. Se com isto que se vai passar se consegue restabelecer e consolidar a ordem na cidade, valeria a pena enviar, não só para o fogo, mas também para a água, para os ares e para o interior da terra todos os clérigos e todos os frades!

- Bastaria atirá-los para a água! E aí está o que eu aconselharia:

deitai os dois frades para dentro dum tanque repleto de água até aos bordos e aquele que conseguir sair enxuto será esse o justo. Esta variante será pelo menos mais humana!

Os comissários continuavam nas suas idas e vindas entre a Casa da Câmara e a galeria. Parecia que as negociações nunca mais acabavam.

Os franciscanos asseguravam que Savonarola tinha enfeitiçado a sotaina de Frei Domenico. Este último foi obrigado a despi-la. Depois, como podia haver ainda encantamento nas suas roupas interiores, obrigaram- no a despir-se completamente e a envergar as vestes doutro frade. Foi- lhe proibido aproximar-se de novo de Savonarola, a fim de evitar que este pudesse praticar novo sortilégio. Forçaram-no também a largar a cruz que tinha nas mãos. Domenico consentiu, mas declarou que não entraria no fogo se o não deixassem ser portador das hóstias sagradas.

Começou então uma discussão escolástica interminável.

Rumores de toda a ordem elevavam-se da multidão; e nesse mesmo momento o céu cobriu-se de nuvens.

De repente, um rugido surdo e prolongado ouviu-se vindo da Via de Leoni, detrás do Palazzo Vecchio.

Era aí, numa fossa de pedra, que estavam encerrados os leões cuja imagem figurava nas armas de Florença. Naturalmente, na confusão e agitação dos preparativos para o duelo, as feras tinham sido esquecidas e reclamavam o seu repasto habitual.

A multidão respondeu a estes rugidos com outro, mais terrível e mais esfomeado.

- Depressa, depressa! Fogo com eles! Frei Girolamo! O milagre, o milagre...

Savonarola, que rezava diante do cálix contendo as sagradas partículas, voltou a si, aproximou-se da galeria e com o seu gesto autoritário ergueu um braço para impor o silêncio à multidão. Mas o povo não conseguia calar-se.

Dum dos grupos estacionados debaixo do Tecto dos Pisanos, uma voz ergueu-se dominando todas as outras:

- Tem medo!

E este grito fez, por um momento, cessar o tumulto.

Um destacamento de cavalaria tentava romper através das últimas filas dos populares. Os cavaleiros pretendiam chegar até junto de Savonarola e cair sobre ele. matando-o na confusão.

Carregai, carregai. sobre os malditos beatos! gritavam vozes furiosas.

Diante de Giovanni passavam rostos com expressões verdadeiramente selvagens. Fechou os olhos para não ver, pensando que iam agarrar Savonarola e fazê-lo em pedaços.

Nesse momento ribombou um enorme trovão, um raio atravessou o céu e uma chuva diluviana, como havia muitos anos se não via em Florença, começou a cair.

A tempestade não durou muito tempo, mas não se podia pensar mais no "duelo do fogo": uma verdadeira torrente corria na passagem destinada aos frades, ao longo das muralhas da lenha.

- Bravo, bravo! - gritava-se na multidão. - Os frades queriam o fogo e encontraram a água. Eis aqui o milagre!

Um destacamento de soldados acompanhou Savonarola através da populaça excitada.

A borrasca passou mas o céu continuava ameaçador.

O coração de Beltraffio confrangeu-se ao ver Frei Girolamo curvado sob a chuva, cambaleante e apressado, o capuz descido para os olhos e as vestes salpicadas de lama. Leonardo contemplou o rosto pálido de Giovanni e, tomando-o pela mão, como na noite do auto-de-fé, levou-o para longe da multidão.

 

Na tarde seguinte, Giovanni foi visitar Leonardo para lhe dar conta dos últimos acontecimentos.

A seguir ao "duelo do fogo", a hostilidade que já reinava em Florença contra Savonarola tinha aumentado de violência.

A Senhoria ordenara aos Irmãos Girolamo e Domenico que abandonassem a cidade. Ao saber porém que eles procuravam ganhar tempo, os mais enraivecidos dos seus adversários, armados de espingardas e canhões, e seguidos por enorme multidão, cercaram o Convento de S. Marcos e invadiram a igreja onde os frades assistiam aos ofícios. Estes defenderam-se com as tochas acesas e com os crucifixos de madeira e de cobre.

Envoltos nos turbilhões do fumo da pólvora, e nos reflexos abrasados do incêndio, pareciam ridículos como galos coléricos e terríveis como demónios. Um marinhara para o tecto da igreja donde atirava pedras, outro saltou para o altar e, sob o crucifixo, dava tiros de arcabuz, gritando a seguir a cada descarga: "Viva Cristo!"

O convento foi tomado de assalto. Os frades não conseguiram convencer Savonarola a fugir. Este e o Irmão Domenico entregaram-se nas mãos dos inimigos que os conduziram para a prisão.

Em vão os guardas da Senhoria defendiam, ou fingiam defender, Savonarola dos insultos da populaça.

Uns esbofeteavam-no, gritando: "Adivinha, homem de Deus, adivinha quem te bateu... outros, arremedavam a maneira de cantar dos "carpidores" nas cerimónias da Igreja.

Também havia os que se punham de gatas em frente dele, como se procurassem qualquer coisa no chão e que rosnavam: "A chavinha!

A chavinha! Ninguém viu para aí a chave de Frei Girolamo?", fazendo assim alusão à chave tantas vezes citada pelo frade nos seus sermões, e que devia abrir o cofre misterioso das iniquidades romanas.

As crianças, aquelas mesmas que tinham sido "soldados do Santo

Exército dos Pequenos Inquisidores", atiravam-lhe com maçãs sorvadas e ovos podres.

Alguns, que não tinham conseguido aproximar-se, gritavam de longe, desesperadamente, até não poderem mais, repetindo ininterruptamente as mesmas invectivas, como se nunca estivessem saciados:

- Cobarde! Cobarde! Sodomita! Judas! Bruxo! Traidor! Anticristo!

Giovanni tinha-o acompanhado até às portas da prisão do Palazzo

Vecchio.

Na manhã seguinte, Leonardo e o seu discípulo saíram de Florença.

Assim que chegou a Milão, o pintor dedicou-se com toda a sua alma à obra que havia mais de oito anos adiava de dia para dia: o rosto de Cristo no quadro da Ceia.

 

Naquele mesmo dia que estivera marcado para o "duelo do fogo", véspera de domingo de Ramos, 7 de Abril de 1498, morria subitamente Carlos VIII, rei de França.

A notícia deste acontecimento aterrorizou o Mouro, porque o pior dos inimigos dos Sforza, o duque de Orleães, devia suceder-lhe no trono, sob o nome de Luís XII. Neto de Valentina Visconti, filho do primeiro duque de Milão, considerava-se como único herdeiro legítimo do trono da Lombardia e estava disposto a conquistá-la, destruindo completamente aquilo que chamava "o ninho dos bandidos Sforza".

Pouco antes da morte de Carlos VIII, o Duque organizara, na sua corte de Milão, um "duelo científico", scientifico duello, e tanto este lhe agradara que resolveu repeti-lo dois meses mais tarde. Todos supunham que as perspectivas da guerra o forçassem a adiar a execução do novo torneio oratório. Mas Ludovico considerava vantajoso aparentar uma completa indiferença em face dos inimigos, e simultaneamente demonstrar”

que no propício reinado dos Sforza, mais que em nenhuma outra época, floresciam na Lombardia as artes e as ciências, "esses frutos de oiro da árvore da paz", e que o seu trono se mantinha e era defendido, não apenas pelas armas mas também pela glória do protector das musas, o mais ilustrado de todos os soberanos de Itália.

 

Leonardo assistiu a esse segundo duelo, no qual tivera mesmo de participar, e que, durante muitas horas, se prolongou em intermináveis e estéreis discussões escolásticas. Ao sair do palácio, enveredou por uma rua silenciosa do arrabalde da Porta de Verceil, ao fim da qual as cabras pastavam no campo. Um rapazote, tostado pelo sol, vestido de farrapos, conduzia um bando de patos com um galho de árvore, seco. A noite estava clara. Apenas ao norte, por cima dos Alpes invisíveis, se acumulavam grandes massas de nuvens raiadas de oiro, pesadas como se fossem de pedra, enquanto, numa estreita nesga de céu límpido que deixavam entre elas, brilhava uma estrela solitária.

Rememorando os dois duelos de que fora testemunha, o duelo do milagre de Florença e o duelo da ciência de Milão, Leonardo pensava que, na sua aparente diversidade, os dois eram realmente semelhantes como dois sósias.

Nos degraus duma escada exterior, encostada a uma velha casa, uma garota de seis anos comia uma broa de centeio com cebola cozida. Leonardo parou e chamou-a.

A pequena mirou-o, timidamente, depois, tranquilizada pelo sorriso, sorriu também e desceu, pousando levemente os pezinhos trigueiros e sujos nos degraus cobertos de imundícies, cascas de ovos e restos de camarões. O artista tirou da algibeira uma laranja de doce, doirada e artisticamente envolvida num fino papel: era uma das muitas guloseimas que habitualmente ofereciam aos convidados do palácio. Leonardo costumava muitas vezes guardar algumas nas algibeiras para as distribuir depois pelos pequenos da rua, durante os seus passeios.

- Uma bola de oiro! - murmurou a criança. - Uma bola de oiro!

- Não, não é uma bola, é uma laranja! Prova e verás que bom que é.

Sem se atrever a mordê-la, a pequenita mirava o fruto desconhecido com uma silenciosa admiração.

- Como te chamas? - perguntou Leonardo.

- Maia.

- E tu sabes, Maia, a história do galo, do burro e do chibo que foram os três à pesca?

- Não, não sei.

- Então, vou contar-te essa história.

Com a sua mão macia e delicada, afagou os cabelos emaranhados da rapariguinha.

- Bem. Onde é que nos sentamos? Espera, trazia também uns bolos de anis; estou a ver que não queres comer a laranja de oiro, Maia!

Começou a procurar nas algibeiras.

Uma mulher ainda nova apareceu à porta da casa. Contemplou Leonardo e Maia, acenou amigavelmente com a cabeça e sentou-se a fiar.

Atrás dela, porém, uma outra mulher, já velha e corcovada, saiu também de casa. Tinha uns olhos claros como os de Maia: era a avó, provavelmente.

Olhou para Leonardo e, de repente, como se o tivesse reconhecido, juntou as mãos e, curvando-se para a fiandeira, murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido; esta ergueu-se e gritou:

- Maia! Maia! Vem depressa...

A pequena não se mexia.

- Mas anda, despacha-te, preguiçosa! Espera, que eu te arranjo...

Maia, assustada, correu para elas. A velha arrancou-lhe das mãos o fruto de oiro e atirou-o para um quintal vizinho, onde refocilavam os porcos. A petiza começou a chorar. A velha disse-lhe qualquer coisa apontando-lhe Leonardo e Maia serenou imediatamente, olhando-o com os olhos arregalados e medrosos.

Leonardo voltou-se, baixou a cabeça e afastou-se rapidamente, sem dizer palavra. Compreendeu que a velha o conhecia de vista; a sua reputação de feiticeiro chegara já até aos mais afastados arrabaldes, e a avó receava que o seu mau olhado desse quebranto à menina.

Fugindo quase, ia tão perturbado que continuava a rebuscar, nas algibeiras, os já agora inúteis bolos de anis, e sorria sem saber bem de quê.

Ao recordar-se dos olhos inocentes e assustados da criança sentiu-se mais isolado ainda do que diante da multidão que o quisera matar como herético, ou do que no meio da assembleia ilustre à qual acabava de assistir e onde a verdade tinha sido chasqueada como os propósitos dos loucos. Parecia-lhe estar tão afastado dos homens como a estrela solitária que cintilava no céu infinito e límpido.

De volta a casa, encerrou-se no seu quarto de trabalho, que lhe pareceu mais soturno que uma prisão, com os livros e instrumentos de física cobertos de poeira; sentou-se à mesa, acendeu uma vela, pegou num caderno e mergulhou no estudo, há pouco começado, relativo ao "movimento dos sólidos em planos inclinados".

A matemática, assim como a música, tinham o condão de o acalmar.

Nessa tarde, como sempre, ela realizava a sua missão, proporcionando- lhe uma grande alegria espiritual.

A luz alumiava frouxamente. O gato, único companheiro das suas vigílias, saltou para cima da mesa e veio roçar-se por ele, ronronando. A estrela solitária, que se divisava através dos vidros empoeirados, parecia-lhe mais longínqua e mais melancólica que nunca. Ao contemplá-la, lembrou-se dos olhos de Maia, fitando-o, assustados, mas essa recordação já lhe não causava nenhuma mágoa: sentia-se de novo em plena posse de toda a serenidade e de toda a impassibilidade, filhas do isolamento.

Porém, no fundo do seu coração, num recesso ignorado dele próprio, fervilhava uma amargura misteriosa, como duma nascente que procura em vão romper a crosta de gelo que a aprisiona: uma amargura que era como uma censura e lhe despertava o sentimento desagradável de ser realmente um criminoso em relação a Maia, e de haver qualquer coisa de que quereria redimir-se sem nunca o conseguir.

 

Na manhã seguinte Leonardo preparava-se para ir ao Convento de

Santa Maria das Graças, no intuito de terminar o rosto do Cristo.

O mecânico Astro esperava-o à saída da porta com os cadernos, os pincéis e as caixas de tintas. No pátio, Leonardo viu o palafreneiro

Nastasio que almofaçava cuidadosamente, debaixo do telheiro, uma égua picarça.

- Como está "Giannino"? - perguntou Leonardo.

Era um dos seus cavalos preferidos.

- Está bem - respondeu distraidamente o rapaz. - Mas o cavalo malhado, esse está coxo.

- Coxo? - disse Leonardo, aborrecido. - E há muito tempo já?

- Há quatro dias.

Sem se atrever a olhar para o patrão, Nastasio, calado e indolente, continuava a esfregar as ancas do cavalo com tanta força que este se sustinha, alternadamente, ora num pé ora noutro.

Quando Giovanni Beltraffio chegou ao pátio, para se lavar na água fria do poço, ouviu a voz aguda e esganiçada, como a duma mulher, que era frequente em Leonardo, quando se zangava.

Os acessos de cólera do mestre, porém, nem duravam muito nem assustavam o seu pessoal.

- Quem te autorizou, grande borracho e imbecil, quem te autorizou a mandar vir o veterinário para este cavalo?

- Dizei-me, messer, o que se há-de fazer quando um cavalo adoece?

- Vai para o diabo mais os teus remédios! Como pode esse ignorante, esse magarefe, ter a pretensão de curar, ele que não tem a mínima ideia da estrutura dos corpos ou da sua anatomia!

Nastasio ergueu os olhos preguiçosos e como que enterrados na gordura da sua face papuda, e, olhando de soslaio para o patrão, disse com um ar de profundo desprezo:

- A anatomia!

- Miserável! Já para o meio da rua! Desaparece quanto antes da minha vista!

o moço da cavalariça nem se mexeu; sabia por experiência própria que a cólera do mestre era momentânea, e que, passada ela, este lhe pediria para continuar ao seu serviço, porque o apreciava pelo muito que entendia de cavalos.

- Precisamente, já tinha intenção de me ir embora. Vossa Graça deve- me três meses de salário. Quanto ao feno, a culpa não é minha. Marcos não me tem dado dinheiro para o comprar.

- Que vem a ser isso? Como pode ele desobedecer às minhas ordens?

O palafreneiro encolheu os ombros e afastou-se para mostrar que não desejava prolongar por mais tempo a conversação. Pôs-se a andar de um lado para o outro, muito açodado, e recomeçou a escovar o cavalo com tal energia que dava a ideia de querer vingar-se no animal.

Giovanni ouvia toda esta cena com um sorriso maldoso e divertido, enquanto ia com uma toalha esfregando o rosto avermelhado pela água fria.

- Então, mestre? Vamo-nos embora? - perguntou Astro, impaciente.

- Espera! - disse Leonardo. - Quero interrogar Marcos acerca do feno e saber se este velhaco falou verdade...

E entrou em casa, onde Giovanni o seguiu.

Marcos trabalhava no atelier. Como sempre, era com uma exactidão matemática que seguia as indicações do mestre, preparando as tintas pretas para as sombras, calculando-lhe as quantidades com uma minúscula colher de chumbo e consultando às vezes uma tabela coberta de números.

Gotas de suor aljofravam-lhe a testa, as veias do pescoço estavam tumefactas e respirava penosamente.

- Ah! Messer Leonardo! Ainda bem que vos vejo. Creio que me enganei aqui num cálculo. Quereis verificar?...

- Bom, Marcos! Isso fica para depois! Agora vim apenas para te perguntar o seguinte: é verdade que não dás dinheiro para comprar a ração dos cavalos?

- Sim, é verdade; não dou.

- Mas porquê, amigo? Estou farto de te dizer - continuou Leonardo, contemplando o rosto sério do seu aluno com um olhar que se ia tornando cada vez mais tímido e indeciso -, estou farto de te dizer que é preciso dar dinheiro para as rações. Ou não te lembras?

- Lembro-me, sim, mestre, mas... não tenho dinheiro.

- Ora aí está! Eu bem o dizia. Já gastaste o dinheiro todo! Mas, vejamos, Marcos, tu pensas que os cavalos podem passar sem comer?

Marcos não respondeu e atirou com o pincel num gesto furioso.

Giovanni observava as diferenças sobrevindas nas atitudes de ambos: o mestre tinha tomado o lugar do aluno, e o aluno a posição do mestre.

- Ouvi, messer - disse Marcos. - Quando vós me distribuístes estes encargos domésticos, foi com a condição de que nunca mais vos importunaria com semelhantes coisas. Por que vindes agora com isto?

- Marcos! - exclamou Leonardo com ar de censura. - Marcos, ainda há bem poucos dias te dei trinta florins! Já os gastaste?

- Trinta florins! Vamos lá fazer as contas! Dois florins emprestados a Lucas Pacioli, outros dois a esse pedinchão de Galeotto, Sacrobosco, cinco ao carrasco que vos arranja os corpos dos enforcados para a vossa anatomia, três no conserto dos vidros e do forno da estufa dos peixes e dos répteis e seis florins de oiro para esse demónio às riscas, a girafa.

Para poder alimentar esse maldito bicho, temos nós de passar muita fome!

Mas, apesar de tudo isso, creio bem que ela não se aguenta e há-de estoirar!

- Isso não me incomoda muito, Marcos - disse mansamente Leonardo. - Se morrer, disseco-a, estudar-lhe-ei as curiosas vértebras do pescoço.

- Curiosas vértebras! Ah! Mestre, mestre! Se não fossem todas essas fantasias, os cavalos, os cadáveres, as girafas, os peixes e tudo o mais, nós passaríamos bem a nossa vida com fartura e sem pedir nada a ninguém! O pão de todos os dias não vale mais...

- Pão! Eu por mim não preciso de mais nada! Mas já percebi, Marcos, que tu ficarias muito contente se todos estes animais, que eu adquiro às vezes com tanta dificuldade e que me custam tanto dinheiro, morressem. Não compreendes quanto interesse eu lhes dedico!

A voz do mestre começava a tremer. Estava magoado, evidentemente; a impressão vaga duma ofensa que considerava injusta entristecia-o e sentia como que um vácuo em seu redor.

O aluno calou-se, aborrecido, baixando a voz.

- E agora? - perguntou Leonardo. - Que fazer, Marcos? Nem temos feno! Isto não é brincadeira nenhuma! E eis ao que estamos reduzidos! Nunca pensei que chegássemos a este ponto!

- Sempre assim aconteceu e parece que assim continuará a ser para o futuro - replicou Marcos. - Há mais de um ano que não recebemos do Duque um "soldo" sequer. Ambrogio Ferrari repete sempre: "Amanhã pagarei", mas creio que se está a divertir à nossa custa, pois nunca nos dá nada.

- A divertir-se! - exclamou Leonardo. - Hei-de ensinar-lhe a brincar comigo! Vou queixar-me ao Duque e obrigarei esse bandido a pagar o que me deve. E até lá, que Deus lhe dê umas Páscoas desgraçadas!

Marcos contentou-se em sacudir as mãos, num gesto que pretendia significar que não era certamente Leonardo que meteria na ordem o tesoureiro do Duque.

- Deixemos isso, messer - disse, ao passo que uma expressão de ternura protectora lhe iluminou subitamente o rosto habitualmente severo e duro. - Deus é grande! - continuou. - Havemos de nos arranjar de qualquer maneira! Vou fazer a diligência e certamente conseguirei comprar o feno para os cavalos!

Bem sabia ele que para conseguir isso não teria mais remédio senão sacrificar um pouco do próprio dinheiro, desse que costumava enviar à sua pobre mãe doente.

- E se fosse só isso! - disse Leonardo deixando-se cair, desalentado, numa cadeira. - Ouve, Marcos - continuou. - Ainda te não disse nada, mas, para o mês que vem, tenho que arranjar, dê por onde der, oitenta ducados, que pedi emprestados... Ah! escusas de me olhar com esses olhos!

- Emprestados, a quem?

- Ao cambista Arnoldo.

O aluno, desesperado, juntou as mãos, e as madeixas dos seus longos cabelos ruivos caíram-lhe na testa.

- Ao cambista Amoldo! Dou-vos os parabéns! Não há nada a dizer, haveis batido a boa porta! Mas então ignorais de que raça é esse patife, celerado, pior que o mais sórdido judeu ou mouro! Ah! Mestre, mestre!

O que haveis feito!?... Por que me não falastes primeiro?...

Leonardo deixou pender a cabeça.

- Marcos, tinha tanta falta de dinheiro! Não te zangues... - E uns instantes depois acrescentou, lamentosamente, com ar tímido: - Traz- me o livro das contas! Vamos ver o que se pode arranjar.

Marcos estava absolutamente convencido de que não havia nada a fazer; mas, como era o único meio de o acalmar, foi buscar o livro.

Ao vê-lo, o rosto de Leonardo sombreou-se novamente, e contemplou o grosso caderno, encadernado de verde, com a expressão dum homem que olha para uma própria ferida incurável.

Mergulharam nos números. Leonardo, como grande matemático que era, enganava-se a cada passo nas adições e subtracções. De repente, lembrou-se de uma factura de muitos milhares de ducados, extraviada.

Procurou-a febrilmente, rebuscando nos armários, nas caixas, nos maços de documentos empoeirados. Inutilmente; só descobria papéis e facturas sem importância, cuidadosamente copiados com a sua própria letra, como por exemplo a que dizia respeito à capa do aluno Salaíno:

Brocado da prata 15 libras e 4 soldos

Veludo vermelho para a guarnição 9 libras

Cordões 9 soldos

Botões 12 soldos

Furioso, rasgou esses papeluchos e atirou-os para debaixo da mesa.

Giovanni olhava-o atentamente e observava que o grande homem era sujeito também às fraquezas humanas. Lembrou-se das palavras dum dos admiradores de Vinci: "O novo deus Hermes Trimegisto, e o novo titã

Prometeu reuniram-se na mesma pessoa".

"Não", pensou enternecido, "não é nem um deus, nem um gigante, mas apenas um homem como os outros. Por que me intimida, então?

Oh? Desgraçado e querido mestre!”

 

Dois dias passados, aconteceu tudo quanto Marcos previra. Leonardo tinha esquecido completamente a sua conversação e os seus cuidados. Já mesmo no dia imediato pedira três florins para comprar um fóssil antediluviano, e isto com tal entusiasmo que o discípulo não teve coragem de o entristecer com uma recusa; deu-lhe os três florins do dinheiro que já tinha reservado para sua mãe.

Apesar das reclamações de Leonardo, o tesoureiro nunca mais pagava os vencimentos atrasados. Nesse momento o Duque tinha grande falta de todos os fundos que pudesse obter para fazer face aos grandes preparativos da guerra com a França.

Leonardo pedia dinheiro emprestado a toda a gente; até aos próprios alunos.

O Mouro não o deixava acabar o monumento ao Sforza, se bem que tudo já estivesse pronto: a estátua de barro, o molde, o esqueleto de ferro, o tanque para fundir o metal, fornos, cadinhos, tudo enfim. Mas, quando o pintor apresentava o orçamento para a compra do bronze, o Mouro, atemorizado, zangava-se e despedia-o.

No dia 20 de Novembro de 1498, o artista, nos últimos apuros, escreveu uma carta ao Duque. O rascunho desta, encontrado nos papéis de Leonardo, está cheio de frases violentas mas sem seguimento; são as hesitações de um homem que sente pudor e relutância em pedir, mesmo aquilo que lhe é devido:

"Monsenhor, se bem que saiba que Vossa Alteza está ocupado por assuntos muito mais importantes, mas receando também que o meu silêncio possa dar motivo ao enfado do Meu Muito Gracioso Protector, tomo a liberdade de vos lembrar as grandes dificuldades em que me encontro, e notar-vos que as artes estão condenadas a um período de suspensão...

Há já dois anos que não recebo vencimentos...

Outras pessoas que estão ao serviço de Vossa Alteza podem esperar, visto terem outros recursos; mas eu vivo exclusivamente da minha arte, que, de resto, fazia talvez bem em abandonar por outra ocupação mais lucrativa...

"...Sempre dediquei a minha vida ao serviço de Vossa Alteza, e continuo disposto a obedecer-lhe constantemente...

"...A respeito do monumento, não direi nada, porque compreendo que os dias...

"...E extremamente penoso ver-me coagido, pela necessidade de ganhar a vida, a interromper o meu trabalho, para me ocupar de ninharias.

Durante trinta e seis meses tive de sustentar seis pessoas, possuindo para tanto apenas cinquenta ducados.

"...Não sei já bem em que devo aplicar as minhas forças...

"... Terei que escolher entre a glória e o pão de todos os dias?!...”

 

Nos princípios de Março de 1499 Leonardo recebeu enfim, num belo dia, da tesouraria ducal, os dois anos de ordenados em atraso.

Corria então, com muita insistência, o rumor de que o Mouro, aterrado com a nova tríplice aliança contra ele formada por Veneza, o Papa e o rei de França, tinha a intenção de fugir para a Alemanha, para junto do Imperador, assim que as tropas francesas fizessem a sua irrupção na Lombardia. No desejo de consolidar e manter a fidelidade dos súbditos durante a sua ausência, o Duque aliviou muito os impostos e contribuições, pagou dívidas e encheu os cortesãos de presentes.

Pouco tempo depois, Leonardo recebeu também um testemunho cio favor e da munificência ducal:

"Ludovico Maria Sforza, Duque de Milão, dá a messer Leonardo de

Venci, de Florença, pintor ilustre, dezasseis jeiras de terra com uma vinha, compradas aos frades de S. Vítor, e situadas junto da Porta de Verceil": tais eram os termos do acto de doação.

O pintor foi agradecer ao Duque. Marcaram-lhe uma audiência para essa mesma tarde. Leonardo, porém, teve de esperar até de noite, de tal maneira o Mouro estava sobrecarregado de trabalho.

Terminadas as suas audiências, o Duque dirigiu-se ao terraço de Bra- mante, sobranceiro a um dos fossos do castelo. A noite estava calma; de tempos a tempos ressoavam os toques de trombeta, os gritos prolongados das sentinelas, e ouvia-se o ranger das cadeias enferrujadas da ponte levadiça.

O pajem Ricciardetto trouxe duas tochas que colocou nas argolas de bronze fixas à parede, e estendeu ao Duque um prato de oiro cheio de migalhas de pão. Cisnes brancos, atraídos pela luz, aproximaram-se, deslizando sobre o espelho sombrio das águas do fosso. Encostado à balaustrada, o Duque começou a atirar-lhes pão e a admirar a elegância com que avançavam fendendo silenciosamente a água com o peito.

Tinha sido a marquesa Isabel de Este, irmã da falecida Beatriz, que lhe mandara esses cisnes de Mântua. Ludovico sempre gostara muito deles, mas havia algum tempo que se lhes dedicara ainda mais, e todas as tardes era ele próprio quem se entretinha a alimentá-los; era o único momento de descanso para o seu espírito, constantemente alucinado pelas angustiosas reflexões da guerra, dos negócios, da política e das traições - das suas e das dos outros! Os cisnes recordavam-lhe a meninice, quando também dava de comer a outros semelhantes nas lagoas adormecidas, no meio da luxuriante vegetação de Viggevano.

Aqui, porém, pareciam-lhe mais belos ainda, mais puros e mais alvos, no nevoeiro azulado e argênteo da Lua, deslizando nas águas dos fossos do seu castelo de Milão, ao pé dos sombrios torreões, com as suas batarias, paióis, pirâmides de balas e as bocas ameaçadoras das peças.

Atrás do Duque entreabriu-se uma portinha, que deu passagem ao camarista Pusterla. Inclinando-se respeitosamente, aproximou-se de o Mouro e disse-lhe:

- Chegou messer Leonardo.

- Ah, sim, Leonardo! Por que me não disseram há mais tempo?

Manda-o entrar! - E voltando-se de novo para os cisnes, pensou: "Leonardo não me incomoda".

Um sorriso excepcionalmente bondoso iluminou-lhe o rosto amarelado e emurchecido e os lábios finos em que costumava perpassar o ricto da maldade e do ardil.

Quando o artista chegou junto dele, o Mouro continuava atirando o pão para a água e fitou-o com o mesmo sorriso que dirigia aos cisnes.

Leonardo quis dobrar o joelho mas o Duque deteve-o e beijou-o na testa.

- Eu te saúdo! Há muito já que nos não víamos. Como tens passado, meu amigo?

- Eu vinha agradecer a Vossa Alteza...

- Deixemos isso. Tais presentes não chegam a ser dignos de ti. Concede-me ainda algum tempo e verás que saberei recompensar-te de acordo com os teus méritos...

Interrogou então Leonardo acerca dos seus últimos trabalhos; as invenções, os projectos, escolhendo de preferência aqueles que lhe pareciam mais fantásticos e impraticáveis: o sino de mergulhador, as asas humanas, etc.

Quando, porém, Leonardo se referiu a assuntos mais sérios, tais como a fortificação do castelo, o canal de Martesana, a fundição do monumento, o Duque imediatamente mudou de conversa, com um ar de desdém e de aborrecimento.

De repente, Ludovico afundou-se numa profunda meditação, como havia já alguns meses lhe acontecia frequentemente; calou-se, baixou a cabeça e dir-se-ia ter esquecido a presença do seu interlocutor. Leonardo quis retirar-se.

- Bem, adeus! - disse o Duque, erguendo distraidamente o rosto.

Assim porém que Leonardo chegou à porta, tornou a chamá-lo, aproximou-se dele, pousou-lhe as duas mãos nos ombros e fitou-o com um longo olhar cheio de tristeza.

- Adeus - repetiu com voz trémula. - Adeus, querido Leonardo!

Quem sabe se nos tornaremos a ver!

- Vossa Alteza vai deixar-nos?

O Mouro suspirou e não respondeu.

- É assim a vida, meu amigo - disse, depois dum instante de silêncio. - Durante dezasseis anos viveste junto de mim e sempre procedeste bem; pela minha parte também espero não te ter nunca ofendido. Digam o que disserem, mas nos séculos futuros, quando alguém evocar o nome de Leonardo, há-de lembrar também o nome de Ludovico, para o louvar!

O pintor não apreciava demasiado este género de efusões sentimentais e limitou-se a pronunciar as palavras que costumava dizer em ocasiões semelhantes, e que eram toda a sua eloquência de cortesão:

- Monsenhor, desejaria ter à minha disposição muitas existências.

para dedicá-las todas ao serviço de Vossa Alteza!

- Acredito na tua sinceridade - disse o Duque. - Talvez mais tarde, quando te lembrares de mim, tenhas saudades...

Não acabou a frase, começou a soluçar e, abraçando o pintor, beijou- o nos lábios:

- Que Deus te proteja, que Deus te proteja!

Quando Leonardo se afastou, Ludovico ficou ainda durante algum tempo sentado no terraço de Bramante, admirando os cisnes; a sua alma estava cheia de sentimentos que ele não podia facilmente exprimir por palavras. Parecia-lhe que na sua vida, talvez criminosa e sombria, Leonardo passara semelhante a esses pássaros que deslizavam sobre a água dos fossos, de roda da fortaleza de Milão, entre as batarias ameaçadoras, os fortins, os paióis, os montes de granadas e as peças, tão inútil e belo, tão puro e virginal como os cisnes brancos.

No silêncio da noite só se ouvia o ruído da queda lenta das gotas de cera que caíam das tochas quase consumidas. A claridade rósea que estas projectavam fundia-se com o luar e, semelhantes a uma visão, sobre o espelho negro das águas, os cisnes, mergulhados em misterioso sonho, perpassavam majestosamente sob o céu coberto de estrelas.

 

Ao deixar o Duque, Leonardo dirigiu-se, apesar da hora tardia, ao Convento de S. Francisco, onde estava internado o seu discípulo Giovanni Beltraffio, que havia quatro meses fora atacado duma febre cerebral.

Fora no dia 20 de Dezembro de 1498. Nesse dia, Giovanni, na visita que fazia ao seu amigo, mestre Frei Benedetto, encontrou em casa deste um frade dominicano, o Irmão Pagolo, chegado de Florença. A pedido de Benedetto e de Giovanni, este contou o que sabia acerca da morte de Savonarola.

A execução fora marcada para 23 de Maio de 1498, às nove horas da noite, na praça da Senhoria, em frente do Palazzo Vecchio, no mesmo local em que se tinham realizado o "Auto-de-Fé das Vaidades" e o "Duelo do Fogo".

Na extremidade duma estreita e comprida ponte estava disposta a lenha para a fogueira, sobre a qual se erguia a forca, formada por um grosseiro e forte barrote enterrado no solo e encimado por uma prancha transversal a que estavam presos três laços corredios de corda e as cadeias de ferro. Apesar de todas as diligências dos artífices que tinham trabalhado na construção do cadafalso, já prolongando, já encurtando as dimensões da prancha transversal, esta mantinha sempre a forma duma cruz.

Uma multidão tão numerosa, como a que assistira ao "Duelo do Fogo", agitava-se na praça e apinhava-se nas janelas, nos balcões e nos telhados das casas.

Os condenados, Girolamo Savonarola, Domenico Buonvicini e Silvestre Marufi, saíram do Palácio.

Em frente da tribuna onde estava o bispo de Vasona, enviado do papa Alexandre VI, fizeram a primeira paragem. O Bispo ergueu-se, tomou Frei Girolamo pelo braço e leu-lhe o texto da bula de excomunhão, com uma voz hesitante e sem ousar erguer os olhos.

Ao pronunciar, num tom de voz quase imperceptível, as últimas palavras:

- Separo te ab Ecclesia militante atque triumphante. Separo-te da

Igreja militante e triunfante.

- Militante, non triumphante; hoc enim tuum non esta Militante, podes tu dizer; mas triunfante não, a tanto não chegam as tuas atribuições!

- corrigiu Savonarola.

Despojaram os excomungados das vestes, não lhes deixando mais que a camisa, e estes continuaram o seu caminho, detendo-se ainda diante da tribuna dos comissários apostólicos, que leram a sentença do tribunal eclesiástico, e diante da tribuna dos "Oito da República Florentina" que os condenaram à morte em nome do povo.

Nesta última parte do trajecto, Frei Silvestre tropeçou e ia caindo.

A Domenico e a Savonarola aconteceu-lhes o mesmo; descobriu-se mais tarde que garotos da cidade, antigos membros do "Santo Exército dos Pequenos Inquisidores", se tinham ocultado por baixo das pranchas da ponte e colocado espinhos entre estas a fim de ferir os condenados.

Frei Silvestre Marufi devia ser o primeiro supliciado. Subiu os degraus da forca conservando o ar de estúpida apatia que lhe era habitual, como se ainda não tivesse compreendido o que se passava. Porém, quando o carrasco lhe passou o baraço ao pescoço, ergueu os olhos ao céu e exclamou:

- Entrego a minha alma nas Tuas mãos, Senhor.

Depois, saltou da escada sem esperar o auxílio do carrasco, num movimento cheio de audácia, e nessa ocasião o seu rosto tomou uma expressão de beatitude e de inteligência sobrenaturais.

Frei Domenico mantinha-se ora num pé ora noutro, esperando a sua vez com uma impaciência cheia de alegria; e, quando lhe fizeram sinal para se aproximar, dirigiu-se para a forca com um sorriso de felicidade, semelhante ao que teria se partisse para o Céu.

Os corpos de Silvestre e de Domenico pendiam nas duas extremidades da trave. O lugar do meio era destinado a Savonarola.

Ao subir para o suplício, este deteve-se e baixou os olhos para a multidão.

Umd silêncio semelhante ao que precedia as primeiras palavras dos seus sermões, quando pregava na Catedral de Santa Maria del Fiore, fez-se em toda a praça. Quando lhe passaram ao pescoço o laço da corda, alguém gritou:

- Faz o milagre, faz o milagre, profeta!

Ninguém saberia dizer se era o grito dum crente ou se era um sarcasmo.

O carrasco sacudiu-o da escada.

Assim que Frei Girolamo foi enforcado, um velho operário, de feições bondosas e piedosas, que há muitas horas já se mantinha em expectativa no seu posto, benzeu-se rapidamente e, com um archote inflamado, acendeu a fogueira, pronunciando as mesmas palavras que Savonarola dissera ao acender o "Auto-de-Fé das Vaidades":

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!

Uma chama irrompeu, mas o vento abateu-a sobre o solo. A multidão agitou-se, todos se acotovelavam e apertavam ou corriam cheios de terror. Ouviram-se gritos:

- Um milagre! Um milagre! Um milagre! Não ardem!

O vento acalmou-se. A chama ergueu-se de novo e começou a lamber os cadáveres. As cordas que prendiam as mãos de Savonarola começaram a arder, desprenderam-se e caíram; nesta ocasião, as mãos pareceram mover-se no meio das chamas, e a muitos dos espectadores deram a impressão de que o frade abençoava o povo pela última vez.

Quando a fogueira se extinguiu, e não restaram mais do que os ossos carbonizados e alguns farrapos de carne agarrados às correntes de ferro, os discípulos de Savonarola rodearam o cadafalso na ânsia de reunir os restos mortais dos mártires.

Os guardas sacudiram-nos e recolheram as cinzas numa carreta para as irem deitar ao rio, dos parapeitos da Ponte Vecchio. No caminho, porém, alguns "carpidores" conseguiram roubar uns punhados de cinzas, e o coração de Savonarola que, segundo se dizia, ficara intacto.

 

Ao terminar a sua narrativa, o Irmão Pagolo mostrou aos auditores um saquinho cheio dessas cinzas. Frei Benedetto longamente o beijou, regando-o com as suas lágrimas.

 

Os dois frades dirigiram-se depois à igreja para os ofícios da tarde, deixando Giovanni só.

Quando voltaram, encontraram-no estendido no solo, sem sentidos, junto do crucifixo; tinha nos dedos crispados o saquinho das cinzas de Savonarola.

Durante três meses esteve entre a vida e a morte. Frei Benedetto não o deixou um só momento. Muitas vezes, no silêncio da noite, à cabeceira do doente, escutava as frases que a Giovanni escapavam no delírio, e que o aterravam.

O doente via Savonarola, Leonardo de Vinci e a Virgem Santa, que, desenhando com o dedo figuras geométricas sobre a areia do deserto, ensinavam ao Menino Jesus as leis imutáveis do Universo.

- Que imploras Tu nas Tuas orações, ó Cristo? - repetia Giovanni numa dor inarrável. - Tu não sabes que não há milagres, e que o cálix se não pode afastar dos Teus lábios, da mesma maneira que a linha recta nunca poderá deixar de ser o caminho mais curto entre dois pontos?!

Giovanni salvou-se graças aos cuidados e à dedicação de Frei Benedetto. Nos princípios de Junho de 1499, assim que as forças lhe permitiram erguer-se e andar, voltou para o atelier de Leonardo, a despeito de todas as exortações e súplicas do frade.

No fim de Julho desse mesmo ano o exército do rei de França, Luís XII, comandado por DAubigné, Luís de Luxemburgo e João Jacques Trivulce, atravessou os Alpes e invadiu a Lombardia.

 

 

                                                               CONTINUA

 

 

                                 CAPÍTULO X ÁGUAS CALMAS (1499-1500)

"Le onde sonore e luminose sono governate dalle stesse leggi che governano le onde delle acque: 1angolo incidente deve eguagliare                      1angolo rifflettente...

11 duca ha perso lo stato e Ia roba e libertá, e nessuna opera sua si fini per lui."

                               Leonardo de Vinci

 

"As ondas do som e da luz estão sujeitas às mesmas leis de mecânica que as ondas da água: o ângulo de incidência é igual ao ângulo de reflexão...

O Duque perdeu os domínios, a fortuna e a liberdade e não triunfou em nenhum dos seus empreendimentos."

                                        Leonardo de Vinci

 

Na torre nordeste do Palácio Rocchetti havia uma porta chapeada de ferro, ornada com uns frescos incompletos de Vinci representando o deus Mercúrio. Esta porta, que se abria numa grossa muralha de tijolo, dava acesso a uma escada de pedra que conduzia a um subterrâneo abobadado, comprido e estreito, cheio de cofres de carvalho: era a tesouraria do Duque Ludovico. Na noite de 1 de Setembro de 1499, o tesoureiro da corte, Ambrogio de Ferrari, com o director dos rendimentos ducais, Borgonzio Botta, e os seus ajudantes, ocupavam-se em retirar dos cofres o dinheiro, as pérolas e as pedras preciosas, que colhiam às mãos cheias, como se se tratasse dum simples cereal, e iam metendo em sacos de couro que imediatamente eram fechados e selados. Estes sacos eram a seguir transportados através do jardim e carregados em mulas. Duzentos e quarenta sacos foram assim preparados e distribuídos por trinta carregamentos; no entanto, as tochas fumarentas iluminavam ainda montanhas de ducados no fundo dos cofres.

 

 

 

 

O Duque, sentado à porta da tesouraria, diante duma mesa sobrecarregada de livros de contas, contemplava com ar abstracto as chamas das velas, alheio ao que se passava em sua volta.

Desde o dia em que recebera a notícia da fuga do seu capitão-general, o signor Galéas Sanseverino, e da próxima chegada dos Franceses a Milão, caíra num torpor estranho, semelhante à catalepsia.

Quando todos os valores foram retirados do subterrâneo, o tesoureiro perguntou-lhe se desejava deixar, ou levar consigo também, a baixela de oiro e de prata. O Mouro mirou-o, franzindo os sobrolhos, como num esforço para associar as ideias e tentar compreender o que lhe diziam: depois desviou-se, fez um gesto vago com a mão e olhou de novo fixamente para a chama da vela. Quando messer Ambrogio repetiu a pergunta, o Duque nem sequer o ouviu. Os tesoureiros retiraram-se então e o Mouro ficou só.

Alguns instantes depois o velho camarista Pusterla veio anunciar-lhe a chegada do novo comandante da fortaleza, Bernardino de Corte.

Ludovico passou a mão pelo rosto, ergueu-se e disse:

- Sim, sim, com certeza, mandai-o entrar!

Como tinha pouca confiança nos descendentes das famílias ilustres, costumava dar títulos de nobreza a pessoas do povo, fazendo dos últimos os primeiros e dos primeiros os últimos.

Entre a gente da sua corte havia filhos de caldeireiros, de pescadores, de cozinheiros, de condutores de mulas. Bernardino, cujo pai passara de criado de quarto da corte a ecónomo das cozinhas, tinha ele próprio na sua mocidade vestido libré de lacaio.

Ludovico elevara-o às mais altas dignidades e dava-lhe agora a maior prova de estima, entregando-lhe nas mãos a defesa do castelo de Milão, a última fortaleza que lhe restava na Lombardia.

Recebeu o novo comandante com afabilidade, fê-lo sentar e deu-lhe conselhos e explicações sobre a maneira de fortificar e defender o castelo.

- Lembra-te, Bernardino - disse-lhe terminando -, de que tudo foi previsto; tens o necessário, e mais até: dinheiro, pólvora, provisões para o reabastecimento das armas de fogo e três mil mercenários com os soldos já pagos. Sob o teu comando fica uma fortaleza capaz de suportar um cerco de três anos; mas eu peço-te para resistires apenas durante três meses, e, se eu não vier em teu socorro, poderás fazer o que quiseres. E creio que é tudo. Adeus! Que Deus te proteja, meu filho!... 

 

                                                                                Dimitri Merejkovski  

 

 

                      

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