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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RESSURREIÇÃO DOS DEUSES 2 / Dimitri Merejkovski
A RESSURREIÇÃO DOS DEUSES 2 / Dimitri Merejkovski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                 CAPÍTULO X ÁGUAS CALMAS (1499-1500)

"Le onde sonore e luminose sono governate dalle stesse leggi che governano le onde delle acque: 1angolo incidente deve eguagliare                      1angolo rifflettente...

11 duca ha perso lo stato e Ia roba e libertá, e nessuna opera sua si fini per lui."

                               Leonardo de Vinci

 

"As ondas do som e da luz estão sujeitas às mesmas leis de mecânica que as ondas da água: o ângulo de incidência é igual ao ângulo de reflexão...

O Duque perdeu os domínios, a fortuna e a liberdade e não triunfou em nenhum dos seus empreendimentos."

                                       Leonardo de Vinci

 

Na torre nordeste do Palácio Rocchetti havia uma porta chapeada de ferro, ornada com uns frescos incompletos de Vinci representando o deus Mercúrio. Esta porta, que se abria numa grossa muralha de tijolo, dava acesso a uma escada de pedra que conduzia a um subterrâneo abobadado, comprido e estreito, cheio de cofres de carvalho: era a tesouraria do Duque Ludovico. Na noite de 1 de Setembro de 1499, o tesoureiro da corte, Ambrogio de Ferrari, com o director dos rendimentos ducais, Borgonzio Botta, e os seus ajudantes, ocupavam-se em retirar dos cofres o dinheiro, as pérolas e as pedras preciosas, que colhiam às mãos cheias, como se se tratasse dum simples cereal, e iam metendo em sacos de couro que imediatamente eram fechados e selados. Estes sacos eram a seguir transportados através do jardim e carregados em mulas. Duzentos e quarenta sacos foram assim preparados e distribuídos por trinta carregamentos; no entanto, as tochas fumarentas iluminavam ainda montanhas de ducados no fundo dos cofres.

 

 

 

 

O Duque, sentado à porta da tesouraria, diante duma mesa sobrecarregada de livros de contas, contemplava com ar abstracto as chamas das velas, alheio ao que se passava em sua volta.

Desde o dia em que recebera a notícia da fuga do seu capitão-general, o signor Galéas Sanseverino, e da próxima chegada dos Franceses a Milão, caíra num torpor estranho, semelhante à catalepsia.

Quando todos os valores foram retirados do subterrâneo, o tesoureiro perguntou-lhe se desejava deixar, ou levar consigo também, a baixela de oiro e de prata. O Mouro mirou-o, franzindo os sobrolhos, como num esforço para associar as ideias e tentar compreender o que lhe diziam: depois desviou-se, fez um gesto vago com a mão e olhou de novo fixamente para a chama da vela. Quando messer Ambrogio repetiu a pergunta, o Duque nem sequer o ouviu. Os tesoureiros retiraram-se então e o Mouro ficou só.

Alguns instantes depois o velho camarista Pusterla veio anunciar-lhe a chegada do novo comandante da fortaleza, Bernardino de Corte.

Ludovico passou a mão pelo rosto, ergueu-se e disse:

- Sim, sim, com certeza, mandai-o entrar!

Como tinha pouca confiança nos descendentes das famílias ilustres, costumava dar títulos de nobreza a pessoas do povo, fazendo dos últimos os primeiros e dos primeiros os últimos.

Entre a gente da sua corte havia filhos de caldeireiros, de pescadores, de cozinheiros, de condutores de mulas. Bernardino, cujo pai passara de criado de quarto da corte a ecónomo das cozinhas, tinha ele próprio na sua mocidade vestido libré de lacaio.

Ludovico elevara-o às mais altas dignidades e dava-lhe agora a maior prova de estima, entregando-lhe nas mãos a defesa do castelo de Milão, a última fortaleza que lhe restava na Lombardia.

Recebeu o novo comandante com afabilidade, fê-lo sentar e deu-lhe conselhos e explicações sobre a maneira de fortificar e defender o castelo.

- Lembra-te, Bernardino - disse-lhe terminando -, de que tudo foi previsto; tens o necessário, e mais até: dinheiro, pólvora, provisões para o reabastecimento das armas de fogo e três mil mercenários com os soldos já pagos. Sob o teu comando fica uma fortaleza capaz de suportar um cerco de três anos; mas eu peço-te para resistires apenas durante três meses, e, se eu não vier em teu socorro, poderás fazer o que quiseres. E creio que é tudo. Adeus! Que Deus te proteja, meu filho!

Beijou-o e despediu-o.

Assim que o comandante saiu, Ludovico deu ordem ao seu pajem para lhe preparar a cama de campanha: rezou uma prece e deitou-se, mas não conseguiu adormecer. Conservou-se deitado até à meia-noite, depois ergueu-se e começou a passear na sala. Pensava nos sofrimentos que o afligiam, na injustiça do destino e na ingratidão dos homens.

"Que lhes fiz eu? Por que me odeiam? Chamam-me miserável e assassino! Mas, nesse caso, Rómulo, que matou o seu irmão, e César, e Alexandre, todos os heróis da Antiguidade não são também miseráveis assassinos? Quis dar-lhes um novo século de oiro, como os povos não conheciam desde o tempo de Augusto, de Trajano e de António. Se me tivessem dado ainda algum tempo, na Itália unificada sob o meu mando, teriam florescido os antigos loureiros de Apoio e os olivedos de Palias- Ateneia; a idade da paz eterna e das divinas musas teria começado. Eu fui o primeiro soberano que procurou a grandeza, não em explicações sangrentas mas nos frutos de oiro da concórdia e das ciências".

A chama da vela agonizante deu o último lampejo que iluminou as abóbadas da sala e o deus Mercúrio por cima da porta da tesouraria, e depois extinguiu-se. O Duque estremeceu, vendo nisto um mau presságio. Dirigiu-se às apalpadelas para o leito, para não acordar o pajem Ricciardetto, despiu-se, e desta vez conseguiu adormecer rapidamente.

Viu-se, em sonhos, ajoelhado aos pés de madona Beatriz, que acabara de saber dos seus amores com Lucrécia e o esbofeteava e insultava.

Sentia-se triste mas não ofendido.

Oferecendo submissamente o rosto aos golpes das mãos de Beatriz, segurava-as para as beijar; chorava de amor e de ternura por ela. Depois, de repente, já não era Beatriz que tinha diante de si, mas o deus Mercúrio, o mesmo que Leonardo pintara no "fresco", por cima da porta de ferro, e que se assemelhava a um anjo ameaçador. O deus agarrou-o pelos cabelos e gritava: "Estúpido! Estúpido! Por que esperas tu? Julgas que as tuas manhas te livrarão de dificuldades, e que escaparás ao castigo divino?"

Quando o Mouro acordou, os primeiros lampejos da aurora brilhavam nas janelas. Os cavaleiros, os gentis-homens, os militares, os mercenários alemães que o deviam acompanhar à Alemanha, ao todo uns trezentos cavaleiros, aguardavam a saída do Duque espalhados na grande álea do parque e ao longo da estrada que a caminho dos Alpes se dirigia para o norte.

O Duque montou a cavalo e dirigiu-se ao Mosteiro de Santa Maria das Graças, para rezar, pela última vez, junto do túmulo da mulher.

Aos primeiros raios do sol, pôs-se o triste cortejo em marcha para Inspruck; devia passar por Como, Bellaggio, Bormio, Balzano e Brisina.

 

Devido às grandes chuvas outonais, o estado das estradas era desgraçado: a viagem durou mais de duas semanas.

A 18 de Setembro, já pela noite dentro, a expedição aproximava-se do seu termo. O Duque, fatigado e doente, resolveu passar a noite na montanha, numa caverna de pastores. Não teria sido difícil encontrar um abrigo mais confortável e tranquilo; mas escolhera este local selvagem propositadamente, com o desígnio de ali receber o enviado que o imperador Maximiliano mandara ao seu encontro.

O fogo iluminava as estalactites da gruta. O Duque, sentado num banco portátil de correias, estava friorentamente envolvido em coberturas e tinha uma braseira aos pés. Ao seu lado, tranquila e serena como sempre, madona Lucrécia preparava-lhe, como boa enfermeira, uma mistura da sua invenção contra as dores de dentes, composta de vinho, pimenta, cravinho-da-índia e outras especiarias.

Nesta altura chegava o enviado do imperador.

- Vede, messer Odoardo - disse Ludovico, que encontrava na magnitude dos seus sofrimentos uma satisfação secreta que o consolava -, podeis dizer ao Imperador onde e em que circunstâncias encontrastes o soberano legítimo da Lombardia!

Estava num desses acessos de loquacidade súbitos, que se apoderavam muitas vezes dele depois dos períodos de meditação e longo silêncio:

- As raposas têm a sua toca, os corvos o seu ninho, mas eu não tenho na terra nenhum sítio onde descansar a cabeça! Corio - continuou, dirigindo-se ao historiador da corte -, quando fizeres a tua crónica, não te esqueças de mencionar esta noite passada numa caverna de pastores, último refúgio do filho do grande Sforza, o descendente do herói troiano Angulo, companheiro de Eneias!

- Monsenhor, as vossas desditas mereciam ser contadas por um moderno Tácito! - retorquiu Odoardo.

Lucrécia ofereceu ao Duque o gargarejo que estivera preparando e que este lhe agradeceu com um olhar de reconhecida admiração. Pálida e fresca ao reflexo da chama, os cabelos lisos em bandós sobre as orelhas.

e no meio da testa um brilhante preso ao estreito fio da ferronnière.

olhava-o com um sorriso de ternura maternal; os seus olhos atentos e sérios reflectiam um orgulho inocente como o das crianças.

"Querida Lucrécia!", pensou o Duque. "Não será ela que me trairá ou me enganará!"

Ouviram-se à entrada da caverna relinchos de cavalos, piafés e vozes abafadas. O camarista Pusterla entrou correndo e murmurou algumas palavras ao ouvido do secretário-geral, Bartolomeu Calco.

- O que há? - perguntou o Duque.

Todos se calaram e baixaram os olhos.

- Alteza... - disse o secretário, mas a sua voz tremia, e afastou-se sem acabar a frase.

- Monsenhor - disse então o médico Luigi Marliani, aproximando- se de o Mouro. - Deus proteja Vossa Alteza! Preparai-vos para tudo: más notícias...

- Dizei, dizei depressa! - exclamou o Mouro, empalidecendo.

À entrada da caverna, no meio dos soldados e dos servos, divisou um homem calçado de altas botas cobertas de lama. Todos se afastaram silenciosamente. O Duque repeliu messer Luigi e precipitou-se ao encontro do mensageiro. Tirando-lhe das mãos uma carta que trazia, arrancou- lhe os selos, leu-a rapidamente e, soltando um grito, deixou-se cair para o lado. Pusterla e Marliani mal tiveram tempo de o segurar.

Borgonzio Botta informava o Mouro de que, em 17 de Dezembro, dia de S. Sátiro, o traidor Bernardino de Corte entregara o castelo de Milão ao marechal do rei da França, Trivulce.

O Duque costumava desmaiar com frequência e servia-se até dessa faculdade como dum artifício diplomático. Desta vez, porém, o desmaio não foi simulado.

Durante muito tempo não conseguiram reanimá-lo. Quando, enfim, abriu os olhos, soergueu-se e benzendo-se devotamente disse:

- Desde Judas até hoje ainda não apareceu um traidor maior do que este Bernardino de Corte! Foi uma serpente que eu acalentei no meu peito!

E durante o resto da noite não tornou a pronunciar mais uma palavra.

Alguns dias depois, em Inspruck, onde o imperador Maximiliano o tinha gentilmente recebido, Ludovico, encontrando-se só a uma hora adiantada da noite com o seu secretário principal, Bartolomeu Calco, passeava dum lado para o outro num dos aposentos do palácio imperial;

estava a ditar duas cartas credenciais para os embaixadores que secretamente ia enviar a Constantinopla implorando do sultão auxílio contra os Franceses.

Nessa noite o Duque rezou demoradamente, com maior fé e com esperança de que o sultão viesse em seu socorro. Rezou diante da sua imagem favorita, obra de Leonardo de Vinci, que era a Virgem representada sob as feições da sua amante, a condessa Cecília Bergamini.

 

Dez dias depois da rendição da fortaleza, Trivulce, saudado pelos gritos de alegria da população: "França! França!" e pelo repicar dos sinos, entrava em Milão como numa cidade conquistada.

O Rei devia chegar em 6 de Outubro. Os habitantes preparavam-lhe uma recepção triunfal.

Nas vésperas da festa, os síndicos dos mercadores retiraram do tesouro da Catedral dois anjos de oiro, que no tempo da República tinham simbolizado os génios da liberdade. As molas frágeis que punham em movimento as asas doiradas estavam gastas. Os síndicos entregaram-nas ao antigo mecânico da corte, Leonardo de Vinci, para as consertar. Nesta época, Leonardo estava completamente absorvido na construção duma nova máquina voadora.

Numa manhã sombria em que se embrenhava na revisão dos cálculos matemáticos da sua obra, Astro, ao seu lado, consertava as molas quebradas dos anjos da Comuna de Milão. Junto deles jaziam os esqueletos das asas de verga cobertas duma membrana de tafetá, e que lembravam não as asas dum morcego, como nos modelos precedentes, mas sim as duma gigantesca andorinha. Uma delas estava já pronta; fina, pontiaguda, extremamente perfeita, erguia-se do chão até ao tecto.

Desta vez Leonardo resolvera imitar o mais possível a estrutura do corpo dos pássaros, nos quais a Natureza oferecia ao homem o verdadeiro modelo das máquinas de voar.

- Enfim, Deus seja louvado, acabei! - disse Astro, dando corda ao mecanismo consertado.

Os anjos começaram a bater rapidamente as pesadas asas. Uma corrente de ar atravessou o quarto e a asa fina e leve da gigantesca andorinha estremeceu e agitou-se também, como se estivesse viva. E o ferreiro contemplava-a com manifesta ternura.

- Quanto tempo inutilmente perdido com estas bagatelas! - resmungou, mostrando os anjos. - Mas agora, seja ou não da vossa vontade, mestre, já daqui não sairei sem ter acabado as asas. Dai-me o plano da cauda!

- Ainda não está pronto, Astro. Tens de esperar que eu reflicta.

- Como, mestre? Há três dias já que me prometestes...

- Que queres, meu amigo? A cauda do nosso pássaro tem que servir de leme. Bastaria o mais pequeno erro de cálculo para estragar tudo.

- Bem, bem, deveis sabê-lo melhor do que eu. Esperarei; e durante esse tempo a outra asa...

- Astro - disse o mestre -, é preferível não te apressares. Receio ter que fazer ainda algumas modificações.

O ferreiro não respondeu nada. Levantou cuidadosamente o esqueleto de verga e, depois, voltando-se de súbito para Leonardo, disse com voz trémula e surda:

- Mestre, mestre, não vos zangueis comigo, mas se, pelos vossos cálculos, não considerais ainda esta máquina apta a voar, eu tentarei, apesar de tudo; apesar da mecânica e da matemática... hei-de voar, não tenho coragem para esperar mais tempo, porque desta vez...

Não concluiu a frase. Leonardo contemplava com atenção o rude e casmurro ferreiro, em cujo rosto se lia um pensamento único e loucamente obsessivo.

- Mestre - concluiu Astro -, dizei-me francamente: voaremos ou não?

As suas palavras traíam uma tal esperança e um tal receio que Leonardo não teve coragem de lhe dizer a verdade.

- Com certeza - respondeu, baixando os olhos. - Mas não se pode afirmar nada, antes de fazer a experiência. No entanto, creio, Astro, que voaremos!

- Bem, isso me basta - disse o ferreiro, radiante. - Não quero saber mais nada! Se dizeis que voaremos, é porque voaremos!

Via-se que procurava conter o seu entusiasmo, mas que não o conseguia. Soltou uma grande gargalhada infantil.

- Que tens tu? - perguntou Leonardo, surpreendido.

- Desculpai, mestre. Não vos interromperei mais. É esta a última vez. Mas acreditai-me, quando começo a meditar nos Franceses, nos Milaneses, no Duque, no Rei, sinto uma grande vontade de rir; sinto muita pena deles e fico contente; agitam-se esses senhores, combatem e pensam:

"Que grandes pessoas que nós somos, e que grandes coisas fazemos!"

Pobres vermes da terra, que rastejam, pobres animais sem asas! E nenhum deles suspeita o milagre que aqui se prepara! Imaginai, mestre, como abrirão a boca e arregalarão os olhos quando nos virem, com as nossas asas, voando nos céus! Porque não seremos como estes anjos doirados, que agitam inutilmente as suas asas, para recreio da populaça!

Hão-de ver e não hão-de acreditar! "Deuses!", pensarão eles. A mim, por exemplo, é provável que não me tomem por um habitante do céu, mas de preferência por um diabo, mas, quanto a vós, com as asas haveis de parecer um verdadeiro deus. A menos que vos julguem o "Anticristo".

Hão-de ficar aterrorizados; cairão de joelhos, saudar-vos-ão. Ó mestre Leonardo, meu Deus! Meu Deus! Será possível?

Excitava-se como um homem preso do delírio.

"Desgraçado!", pensou Leonardo. "Como ele acredita! É capaz de endoidecer. Como dizer-lhe a verdade?!"

Nesse momento ouviu-se um violento ruído à porta exterior da casa, depois vozes e passos, e, finalmente, o mesmo rumor que se repetia já junto da porta cerrada do atelier.

- Quem diabo será? - resmungou o ferreiro, mal-humorado. Quem está aí? Não se pode falar com o mestre. Não está em Milão.

- Sou eu, Astro, sou eu, Lucas Pacioli. Por amor de Deus, abre depressa!

O ferreiro foi abrir e entrou um frade, velho conhecido de Leonardo.

- Que tendes, Frei Lucas? - perguntou o mestre, ao ver-lhe o rosto transtornado.

- Eu por mim nada, mestre Leonardo, ou melhor talvez; mas isso fica para depois; por agora... ó mestre Leonardo! O vosso colosso... Os besteiros gascões, vi com os meus próprios olhos, destroem o cavalo... vamos, vamos depressa!

- Para quê? - replicou tranquilamente Leonardo, cujo rosto empalidecera ligeiramente. - Que poderemos nós fazer?

- Mas quê? Não podeis ficar aqui de braços cruzados, enquanto estão destruindo uma das vossas maiores obras-primas! Sei como podemos chegar junto de sire de la Trémouille. E preciso pedir-lhe...

- Já não chegaremos a tempo - respondeu o artista.

Sim, chegaremos; podemos atravessar o jardim, mas... o que é preciso é despacharmo-nos!

Leonardo, arrastado pelo frade, saiu de casa, e apressaram-se, quase correndo, a caminho do castelo.

Durante o caminho, Frei Lucas contou-lhe então o seu próprio infortúnio. Na noite anterior, a cave de S. Sulpício fora saqueada pelos lansquenetes, ébrios, que tendo descoberto numa das celas reproduções em cristal de sólidos geométricos, e tomando-as por "invenções diabólicas" e "instrumentos divinatórios", tudo fizeram em pedaços.

- Que mal lhes faziam?! - balbuciou Pacioli, desesperado. - Que mal lhes faziam os meus inocentes cristais!

- Por favor, Frei Lucas, não vos preocupeis mais comigo! - disse então Leonardo. - Ide à vossa vida, que eu me arranjarei como puder, sozinho!

Arregaçando a batina, o ágil frade, com os pés nus metidos em socos de madeira que matraqueavam ruidosamente o solo, abalou, correndo e saltitando.

Leonardo atravessou a ponte levadiça do castelo e entrou no pátio interior, chamado "Campo de Marte".

 

A manhã estava enevoada; as fogueiras do bivaque extinguiam-se. A praça e os edifícios vizinhos estavam transformados numa imensa caserna, com cavalariças e tabernas; por toda a parte canhões, obuses, imundícies, tendas, sacos de aveia, fardos de palha e montes de estrume. No meio de utensílios de cozinha, em redor de tonéis cheios ou vazios, voltados, a servir de mesas de jogo, ouviam-se os risos, os gritos, as pragas lançadas em todas as línguas, as imprecações e os cantos dos borrachos. Por momentos tudo se calava à passagem dos chefes. Depois os tambores rufavam de novo, as cornetas dos lansquenetes normandos e suavos atroavam os ares, e as trompas dos mercenários suíços, oriundos dos cantões de Uri e Unterwald, espalhavam os seus sons selvagens e melancólicos. Ao chegar ao meio da praça, o artista viu ainda o seu Colosso intacto.

O Duque ilustre, o conquistador da Lombardia, Francisco Sforza, com a sua cabeça de calvo, como um imperador romano, e a expressão em que se aliava a força do leão à manha da raposa, lá estava sempre no seu cavalo, que se empinava sobre as patas traseiras e apoiava as dianteiras ao corpo dum guerreiro caído.

Os arcabuzeiros suavos, os frecheiros da Picardia, os alabardeiros gascões, e outros mercenários, agitavam-se em roda da estátua, soltando grande gritaria. Compreendiam-se mal uns aos outros e supriam por ges- tos as palavras que lhes faltavam. Leonardo acabou por compreender que a discussão era motivada por disputa entre dois besteiros, um alemão e outro francês. Desafiavam-se para atirar, cada um por sua vez, a uma distância de cinquenta passos, depois de ter bebido quatro cântaros de vinho forte. Uma marca no pescoço do Colosso serviria de alvo.

A cantineira trouxe o vinho. O alemão esvaziou as quatro vasilhas combinadas, uma após outra, sem tomar o fôlego; depois, colocando-se no lugar marcado, apontou, atirou... e falhou. A frecha, raspando a face, partiu o lóbulo da orelha e não bateu no alvo.

O francês empunhou o arco e preparava-se para atirar quando, de repente, houve um movimento na multidão. Os soldados afastaram-se para deixar passar um cortejo magnífico precedido de arautos e que foi saudado com aclamações.

- Quem é? - perguntou Leonardo ao frecheiro.

- Sire de la Trémouille.

"Então ainda não é tarde!", pensou o artista. "Posso correr atrás dele, pedir-lhe..."

Mas manteve-se no mesmo lugar, experimentando uma tal incapacidade de movimentos, uma indiferença tão invencível, uma tão grande apatia, que se nesse mesmo minuto a sua vida estivesse em jogo não seria capaz, para a salvar, de mexer o dedo meiminho. O terror, a vergonha, a repugnância apossavam-se dele só à ideia de que seria preciso atravessar aquela multidão vil de lacaios e palafreneiros, para correr atrás do poderoso senhor, como propusera Lucas Pacioli.

O gascão tornou a apontar: a flecha silvou e acertou no alvo.

- Bigorre! Bigorre! Montjoye S. Denis! - gritaram os seus camaradas, agitando as boinas. - A França ganhou!

Os frecheiros rodeavam o Colosso e o jogo continuava.

Leonardo desejava sair dali mas estava pregado ao solo; era como se um sono terrífico e estúpido o tivesse invadido; assistia tranquilamente à destruição duma obra em que gastara dezasseis dos melhores anos da sua vida, e que era talvez uma das mais belas obras do génio humano desde Fídias e Praxíteles.

Sob a avalanche das balas, das frechas e das pedras, o barro desfazia-se em fina poeira e caía em pedaços, deixando a nu, semelhante aos ossos, o esqueleto de ferro da estátua.

O Sol saíra das nuvens. No esplendor alegre dos seus raios, a ruína do Colosso parecia ainda mais lamentável, como o corpo do herói mutilado, sobre o cavalo sem pés, os restos do ceptro real na mão que ficara intacta, e a inscrição, no pedestal: Ecce Deus...

Neste momento passou na praça o generalíssimo dos exércitos do rei, o velho marechal Trivulce. Lançando um olhar para o Colosso, parou surpreendido, olhou novamente, abrigando os olhos com a mão, e, depois, dirigindo-se aos que o acompanhavam, perguntou:

- Que quer isto dizer?

- Monsenhor - respondeu timidamente um dos seus ajudantes -, foi o capitão Cockburn que permitiu aos seus besteiros...

- Mas é o monumento a Sforza - exclamou o marechal -, obra de Leonardo de Vinci, que está a servir de alvo aos frecheiros gascões!

Aproximou-se rapidamente da multidão dos soldados, que estavam tão absorvidos no seu torneio que não tinham dado fé do que se passava em redor deles, agarrou pelo pescoço o frecheiro gascão e lançou-o violentamente a terra, insultando-o. O rosto de Trivulce tornara-se roxo, as veias do pescoço inchavam-lhe.

- Monsenhor - balbuciou o soldado, de joelhos, e tremendo medo

- , Monsenhor, nós não sabíamos... O capitão Cockburn...

- Esperai um pouco... canalhas... cachorros - gritava Trivulce. Eu vos darei o capitão Cockburn! Vou mandar-vos enforcar...

Num gesto brusco, Trivulce tinha levantado a espada, tomara balanço e ia lançar o golpe se nesse instante Leonardo, com a sua mão esquerda, não segurasse o punho do marechal, com tanta força que lhe amachucou a pulseira de cobre.

Esforçando-se inutilmente por soltar a mão, o marechal olhava estupefacto para Leonardo.

- Quem és tu? - perguntou-lhe.

- Leonardo de Vinci - respondeu este tranquilamente.

- Como te atreveste? - começou o velho furioso, mas, encontrando o olhar modesto e franco do artista, calou-se. Assim, és tu, Leonardo disse, contemplando-o. - Mas larga-me a mão. Que força! Dobraste-me o bracelete! Digo-te que és um homem corajoso!

- Monsenhor, peço-vos, perdoai-lhes! - disse o artista num tom de súplica respeitosa.

O marechal olhou para ele outra vez mais atentamente, começou a rir e abanou a cabeça.

- Que original! Destruíram a tua obra-prima e ainda pedes por eles!

- Alteza! Se os enforcais, que aproveitaríamos, eu e a minha obra?

Não sabem o que fazem.

O velho marechal concentrou-se uns momentos. Subitamente, todo o rosto se iluminou: nos seus olhos inteligentes passou um clarão de bondade.

- Ouve, messer Leonardo, há uma coisa que eu não compreendo bem!

Como é possível que tenhas assistido a isto, indiferente e sem intervir?

Por que não me mandaste procurar? Por que te não queixaste, a mim, ou ao senhor de la Trémouille? Justamente ele deve ter passado aqui há pouco.

Leonardo baixou os olhos e disse, corando como um culpado:

- Já não tive tempo... Não conheço Sire de la Trémouille...

- É pena, realmente - concluiu o marechal, olhando para os destroços. - Teria dado uma centena dos meus melhores soldados pelo teu Colosso...

Ao voltar para casa, o pintor atravessou a ponte dominada pelo elegante balcão, obra de Bramante e onde Ludovico lhe dera a última audiência, e viu os pajens e os palafreneiros franceses que se entretinham a atirar sobre os cisnes aprisionados, que o Duque tanto estimava. Os malandrins lançavam as flechas sobre as aves aterradas que em vão tentavam escapar. Os corpos ensanguentados nadavam baloiçando-se na água negra, entre tufos de penugem branca e plumas. Um cisne que acabava de ser ferido estendeu o pescoço num grito lamentoso e agudo, e bateu frouxamente as asas numa ânsia de levantar voo antes de morrer.

Leonardo desviou-se e apressou o passo. Parecia-lhe que ele próprio era semelhante àquele cisne.

 

No dia 6 de Outubro, num domingo, o rei de França Luís XII entrou em Milão pela porta do Tessino. Da escolta que o acompanhava fazia parte César Bórgia, duque de Valentinois, o filho do Papa. No momento em que o cortejo desembocava na praça da Catedral, para se dirigir ao Castelo, os anjos da Comuna de Milão desempenharam pontualmente a sua missão, agitando as asas.

Desde o dia em que o Colosso fora destruído, Leonardo nunca mais trabalhara na sua máquina voadora. Astro acabava-a sozinho. O pintor não tivera a coragem de lhe dizer que as asas não estavam ainda capazes. O ferreiro, evitando ostensivamente encontrar-se com o mestre, nunca mais lhe falara da próxima experiência, mas às vezes olhava-o de relance, com o seu olho único, em que brilhava, juntamente com uma silenciosa censura, o fogo da sua ambição insensata.

Na manhã do dia 20 de Outubro, Pacioli apareceu em casa de Leonardo para o prevenir que o Rei o esperava no Castelo. O pintor não se dirigiu para esta entrevista de muito boa vontade. Sentia-se inquieto: as asas da máquina voadora tinham desaparecido havia alguns dias. Leonardo receava que Astro, na ânsia de voar fosse como fosse, fizesse algum disparate e provocasse uma desgraça.

Quando Leonardo entrou nas salas do Palácio Rocchetti, tão suas conhecidas, Luís XII recebia os síndicos e os anciãos da cidade.

o pintor lançou um rápido olhar ao seu futuro soberano, o rei de França.

o aspecto exterior deste não tinha nada de nobre: um corpo magro e frágil, os ombros estreitos, o peito encolhido e o rosto enrugado e denunciando um sofrimento doentio; umas feições vulgares, ordinárias, em que havia mesmo uma expressão de bondade burguesa.

Nos degraus mais elevados do trono estava um homem dos seus vinte anos de idade, envergando um simples gibão preto. Não ostentava nenhuma jóia, salvo as pérolas da orla da sua touca, e uma cadeia de oiro e búzios, da Ordem do Arcanjo S. Miguel; usava os cabelos compridos, e a barba era dum ruivo carregado, ligeiramente apartada ao meio, a tez morena e pálida e os olhos dum azul profundo, inteligentes e cheios de afabilidade.

- Dizei-me, Frei Lucas - murmurou Leonardo ao ouvido do seu companheiro -, quem é aquele gentil-homem?

- O filho de Sua Santidade - respondeu o frade. - César Bórgia, duque de Valentinois.

O pintor ouvira muitas vezes falar dos crimes de César. Se bem que não houvesse deles provas flagrantes, ninguém duvidava de que fora ele o assassino do seu irmão, João Bórgia, por se sentir humilhado na sua situação de filho mais novo, e impaciente por abandonar a púrpura cardinalícia e herdar o posto de comandante ou "gonfaloneiro" da Igreja Romana. Rumores mais abomináveis, porém, corriam ainda a seu respeito: dizia-se que a causa deste assassínio fora a rivalidade existente entre os irmãos, não apenas no que respeitava à munificência paterna mas também relativa à paixão incestuosa que ambos nutriam pela própria irmã, madona Lucrécia.

"Não pode ser verdade!", pensava Leonardo ao examinar o rosto calmo e os olhos risonhos e inocentes de César.

O filho de Sua Santidade, sentindo sem dúvida fixas em si as pupilas investigadoras de Leonardo, olhou-o também; depois, curvando-se para um belo ancião vestido de negro que estava a seu lado, sem dúvida o seu secretário, perguntou-lhe qualquer coisa, designando Leonardo. Ao ouvir a resposta deste, começou a observar o pintor com maior atenção.

Um sorriso astucioso, quase imperceptível, desenhou-se-lhe nos lábios.

E, imediatamente, Leonardo pensou:

"Sim, deve ser verdade, com este homem tudo é possível; deve ter cometido não só os crimes que lhe imputam, mas possivelmente outros ainda piores!"

Acabada a enfadonha leitura dum memorial, o síndico principal aproximou-se do trono, ajoelhou e entregou-o ao Rei. Como Luís deixasse cair o rolo de pergaminho, o síndico quis apanhá-lo, mas César, adiantando-se, num movimento rápido e cheio de destreza, ergueu-o do chão e entregou-o ao Rei, com uma vénia.

- Lacaio! - murmurou um dos gentis-homens franceses, por detrás de Leonardo. - Não podias deixar de te exibir!

- Tendes razão, messer - continuou um outro. - O filho do Papa desempenha conscienciosamente as funções de um escudeiro. Se o pudésseis ver, de manhã, ao vestir o Rei, como ele se multiplica nos mais pequenos cuidados, como lhe aquece a camisa... Julgo que era até capaz, se o mandassem, de ir limpar as cavalariças!

O pintor notara o movimento servil de César, mas considerara-o menos como um gesto de baixeza que como um sinal denunciador de mais perigosos sentimentos. Era como que a hipócrita mansidão duma fera voraz.

Durante este tempo, Pacioli agitava-se enervado e empurrava Leonardo com o cotovelo; ao ver porém que o artista, com a sua timidez habitual, seria capaz de passar o dia inteiro no meio da multidão, sem encontrar um ensejo de atrair a atenção do Rei, resolveu tomar medidas decisivas, e, levando-o pelo braço e inclinando-se profundamente, apresentou-o a

Luís XII, com um fluxo de palavras ininterrupto, em que o emprego dos superlativos ia numa escala ascendente: estupendíssimo, prestantíssimo, invencibilíssimo.

O Rei falou-lhe da Santa Ceia; elogiou os rostos dos apóstolos, mas declarou que era a perspectiva do quadro o que mais o entusiasmara.

Frei Lucas estava à espera, a todo o momento, de ouvir Sua Majestade convidar Leonardo para entrar ao seu serviço; mas antes disso um pajem aproximou-se e entregou ao Rei uma carta que acabava de chegar de França.

O Rei reconheceu a letra de Ana, sua mulher, a "sua bretã bem-amada", anunciando que acabava de dar à luz.

Os gentis-homens acorreram a felicitar Luís. A turba empurrava Leonardo e Pacioli. O Rei mirou-os, lembrou-se de qualquer coisa, quis falar-lhes, mas de novo se esqueceu e convidou amavelmente as damas a beberem à saúde da Delfina recém-nascida. A seguir passaram a outra sala.

Pacioli, tomando o braço do seu companheiro, quis arrastá-lo.

- Vamos, depressa!

- Não, Frei Lucas! - respondeu sossegadamente Leonardo. - Agradeço-vos todos os trabalhos que haveis tido comigo, mas acho preferível não insistir; Sua Majestade tem agora outras preocupações mais importantes.

Saiu do palácio.

Na ponte levadiça de Battiponte, à porta sul do Castelo, foi abordado pelo secretário de César Bórgia, messer Agapito, que lhe propôs, em nome do seu senhor, o lugar de "engenheiro da corte", a mesma função que Leonardo tinha desempenhado junto de o Mouro.

O pintor prometeu dar uma resposta depois de alguns dias de reflexão.

Ao aproximar-se de casa viu de longe, na rua, uma multidão junto da sua porta, e apressou o passo. Sobre uma das grandes asas, enrugada e quebrada, da nova máquina voadora, semelhante à duma gigantesca andorinha, Giovanni, Marco, Salaíno e César transportavam o seu companheiro, o ferreiro Astro de Peretola, com o rosto mortalmente pálido e os fatos rotos e ensanguentados.

O que o mestre receava tinha acontecido; o ferreiro quisera experimentar as asas e tentara levantar voo: aos primeiros movimentos, porém, a máquina caíra e o imprudente teria certamente morrido, se uma das asas não se tivesse prendido e ficado pendurada nos ramos duma árvore.

Leonardo ajudou os discípulos a levar Astro para casa; o doente foi cuidadosamente deitado numa cama. Quando o artista se debruçou sobre ele para examinar as feridas, Astro recuperou os sentidos e, ao reconhecê- lo, murmurou com uma expressão de infinita súplica:

- Mestre! Perdão!

 

Nos primeiros dias de Novembro realizaram-se em Milão festas esplendorosas em honra da princesa recém-nascida. Luís XII, depois de ter obrigado os Milaneses a prestar juramento de fidelidade, nomeou o marechal Trivulce seu lugar-tenente na Lombardia, e regressou a França.

Na Catedral celebrou-se uma missa do Espírito Santo, em acção de graças. A ordem parecia restabelecida na cidade; mas o povo odiava Trivulce, pela sua crueldade e perfídia. Os partidários de Ludovico excitavam os habitantes, distribuindo pasquins injuriosos contra os Franceses.

Aqueles que, ainda há pouco, o perseguiam no seu exílio, crivando-o de invectivas e motejos, falavam agora dele como do melhor dos soberanos.

No fim do mês de Janeiro, a multidão amotinada destruiu, às portas do Tessino, a Recebedoria da Alfândega francesa. Nesse mesmo dia, em Lardirago, perto de Pavia, um soldado atentou contra a honra duma camponesa lombarda. Esta defendeu-se e, com uma vassoura, feriu no rosto o seu agressor, que a ameaçou com um machado. Ao ouvir os gritos da rapariga, o pai desta acorreu em seu socorro, sendo, após curta luta, morto pelo soldado. Os espectadores tomaram o partido da camponesa e abateram o assassino. Isto foi o começo de maiores desordens. Os franceses atacaram os lombardos e massacraram numerosas pessoas, saqueando o burgo. Em Milão, a notícia destes sucessos foi a faísca que lançou fogo ao paiol da pólvora. O povo invadiu as praças, as ruas, os mercados, aos gritos furiosos:

- Abaixo o Rei! Abaixo o lugar-tenente! Morram os Franceses! Viva o Mouro!

Trivulce, que tinha pouca gente para se defender contra a população duma cidade de trezentas mil almas, mandou colocar os canhões na torre que servia de campanário provisório à Catedral, e ordenou que apontassem as peças contra a multidão e fizessem fogo à primeira voz. Entretanto, quis tentar ainda uma última vez a conciliação e saiu ao encontro dos assaltantes. Pouco faltou, porém, para ser massacrado pela populaça, que o perseguiu até a Casa da Câmara, onde teria perecido se um destacamento de mercenários suíços, comandado pelo capitão Coursinge, não saísse da fortaleza para o libertar.

Os revoltados começaram então a matar, a saquear e a torturar todos os franceses que lhes caíam nas mãos, assim como os cidadãos milaneses suspeitos de pactuarem com o inimigo.

Na noite precedente ao primeiro de Fevereiro, Trivulce confiou o comando ao capitão dEspe Codebécar e abandonou secretamente a fortaleza. Nessa mesma noite, Ludovico, o Mouro, regressando da Alemanha, era recebido com entusiasmo pelos habitantes de Como. Os Milaneses aguardavam-no como um libertador.

Leonardo, receando os tiros de peça que já tinham destruído algumas casas vizinhas da sua, instalara-se, durante os últimos dias dos tumultos, na cave onde tornara habitável alguns quartos, construindo tubagens, chaminés, etc. Para esta pequena fortaleza fora transportado tudo quanto havia de precioso na casa: quadros, desenhos, manuscritos, livros e aparelhos científicos.

Foi por esta altura que o artista decidiu, definitivamente, aceitar as propostas do Bórgia. Antes porém de se dirigir à România, onde não devia chegar senão nos meados do Verão de 1500, conforme as cláusulas do tratado com messer Agapito, Leonardo preparou-se para ir para casa do seu velho amigo Girolamo Melzi, na isolada vila de Vaprio, fora de Milão, no intuito de ali passar o período perigoso da guerra e das revoltas.

Na manhã de 2 de Fevereiro, dia da Candelária, Frei Lucas Pacioli acorreu a casa do pintor para lhe anunciar que havia uma inundação no Castelo.

O milanês Luigi da Porta, que estivera ao serviço dos franceses, passara-se para os amotinados e tinha aberto durante a noite as comportas dos canais que serviam para encher os fossos da fortaleza. A água tinha- se espalhado; inundara o moinho do parque junto do Palácio Rocchetti, penetrara nas caves onde estavam armazenadas as provisões e a pólvora, de tal maneira que, se os franceses não conseguissem salvar uma parte destas provisões, teriam de se render pela fome.

Era com isso que contava messer Luigi. No momento da inundação.

os canais vizinhos da fortaleza, nos arrabaldes baixos da Porta de Verceil, tinham saído também do leito, inundando o local alagadiço onde se erguia o Convento de Santa Maria das Graças. Frei Lucas exprimiu ao pintor o receio que o assaltava acerca dos efeitos funestos que a água podia ter sobre a Santa Ceia, e propôs-lhe irem ambos ver se o quadro estava intacto.

Leonardo respondeu, com uma fingida indiferença, que não tinha tempo disponível naquela ocasião, e que de resto não receava nenhum perigo para a Ceia, colocada demasiado alto para poder ser atingida pela água. Porém, assim que Pacioli saiu, o artista correu ao convento.

Ao entrar no refeitório, viu sobre o solo de tijolo as poças de água lamacenta que deixara a inundação. Respirava-se um cheiro de bolor. Um dos frades contou-lhe que a água atingira um quarto de braça.

Leonardo aproximou-se da parede onde estava o "fresco".

As tintas conservavam-se sempre vivas. Chegado junto da parede, o pintor observou a superfície do quadro com uma lente. De repente, descobriu uma pequena racha no canto inferior esquerdo. Sob a toalha da mesa a que estavam sentados os Apóstolos, perto dos pés de Bartolomeu, aparecia um começo de infiltração, do branco aveludado da geada, sobre as cores, levemente desvanecidas.

Leonardo empalideceu, mas, dominando-se em seguida, continuou mais minuciosamente o seu exame.

A primeira camada de argila tinha cedido à influência da humidade e destacara-se da parede, levantando o gesso exterior coberto dum ligeiro reboco; neste iam-se formando fendas ainda invisíveis à vista desarmada, que davam passagem às emanações do salitre, roendo os velhos tijolos porosos.

O futuro da Santa Ceia estava comprometido; se o pintor podia ser poupado ao desgosto de ver desaparecer as tintas, que tinham probabilidades de durar ainda quarenta ou mesmo cinquenta anos, não lhe era dado duvidar da terrível verdade: a maior das suas obras estava condenada.

Antes de sair do refeitório, contemplou pela última vez o rosto de

Cristo, e, como se até ali ainda a não tivesse visto bem, compreendeu quanto aquela obra lhe era querida.

Com o aniquilamento do Colosso e da Ceia, teve a impressão de que se quebravam os laços que o ligavam aos humanos, se não aos seus contemporâneos pelo menos aos seus amigos e admiradores dos séculos futuros; a sua solidão tornava-se mais desesperada.

A poeira de barro do Colosso era levada pelo vento; sobre o muro onde resplandecia o rosto do Senhor, o bolor ia cobrindo duma crosta lívida as tintas que já estalavam, e tudo quanto tinha sido a sua própria vida desaparecia como uma sombra.

Entrou em casa, desceu à cave e ao passar pelo quarto de Astro demorou-se uns momentos. Beltraffio estava preparando para o doente umas compressas de água fria.

- Outra vez com febre? - perguntou o mestre.

- Está a delirar.

Leonardo inclinou-se para examinar as ligaduras e ouviu o murmúrio rápido e sem nexo do ferreiro:

- Mais alto, mais alto! Para o Sol! Contanto que as asas não ardam... Um demoniozinho! Donde vens tu? Como te chamas? Mecânica?

Nunca ouvi dizer que o Diabo se chamasse "mecânica". Por que ranges os dentes? Vamos, acaba com isso! Basta de troça. Queres levar-me, queres levar-me... Não posso mais... Deixa-me respirar... Oh! A morte!

O rosto do doente exprimia um profundo desgosto. A seguir, um grito de terror saiu-lhe do peito. Via-se na iminência de cair num precipício.

Então, começou de novo a falar rapidamente:

- Não, não, não façam pouco dele! A culpa foi minha... Ele bem me tinha dito que as asas não estavam prontas. Cobri o mestre de ridículo...

Ouvis? Quem é? Bem sei que é ele, o mais pequeno mas o mais pesado de todos os demónios: a mecânica!

Leonardo, olhando-o, pensava:

"E é por minha causa que ele vai morrer! Lancei-lhe mau olhado.

Trouxe-lhe a desgraça, involuntariamente, tal-qual como a Giovannni!..."

Pousou a mão na testa ardente de Astro. O doente começou a acalmar-se lentamente e a sossegar.

Leonardo dirigiu-se então à cela subterrânea, acendeu uma vela e embrenhou-se nos seus cálculos. Durante muito tempo trabalhou febrilmente. Os gemidos do doente ouviam-se através da parede.

O pintor abandonou, por fim, o seu trabalho, e, de súbito, a recordação de todos os seus desastres veio-lhe à mente: a destruição estúpida do Colosso, a ruína imprevista da Santa Ceia, a terrível queda de Astro.

"Será possível", pensou, "que todos os meus trabalhos pereçam assim, sem deixar vestígios, nem glória, como tudo quanto tenho tentado?!

Será possível que nunca ninguém oiça a minha voz, que eu permaneça eternamente só, como estou hoje, nesta escuridão, debaixo da terra; que seja enterrado vivo e condenado a sonhar e a ambicionar as impossíveis asas?"

Estes pensamentos, porém, não extinguiram a alegria que lhe criara o trabalho. "Fique só, embora! Permaneça na sombra, no silêncio, no esquecimento! Que nunca ninguém saiba! Que importa, saberei eu!"

Um sentimento de força e de triunfo enchia-lhe a alma, como se as asas, toda a sua vida desejadas, tivessem enfim sido criadas e o librassem no espaço.

O subterrâneo pareceu-lhe excessivamente acanhado, quis ver o céu.

Saiu de casa e dirigiu-se para a praça da Catedral.

 

Era uma noite clara, de luar. Por cima dos tectos flutuava a bruma sangrenta projectada pelos incêndios. Quanto mais se aproximava do centro da cidade, da Praça Broletto, mais a multidão se tornava compacta. Umas vezes, à luz vermelha dos archotes, outras à claridade azulada da Lua, as visões passavam rápidas: rostos transtornados pela cólera, estandartes brancos com a cruz vermelha da Comuna de Milão, paus suspendendo lanternas, arcabuzes, mosquetes, colubrinas, mocas, lanças, fueiros, fouces e forquilhas. Os populares agitavam-se como formigas, ajudando os bois a transportar uma enorme e velha bombarda, formada de aduelas ligadas por arcos de ferro. Os sinos tocavam desesperadamente a rebate. O troar de artilharia era ininterrupto. Os mercenários franceses que estavam na fortaleza faziam convergir o fogo sobre as ruas de Milão. Os assediados gabavam-se que, antes de se renderem, a cidade ficaria destruída. E ao som dos sinos, ao estrondear dos canhões, juntava-se o grito incessante da multidão:

- Morram os Franceses! Abaixo o Rei! Viva o Mouro!

Tudo o que Leonardo via parecia-lhe um pesadelo terrível e incoerente.

Na praça do Mercado de Broletto, ao pé da Porta Oriental, estavam enforcando um tambor picardo, um rapazola de dezasseis anos, que se deixara apanhar. Estava de pé, sobre uma escada encostada à parede. O bordador de oiro Mascarello, sempre alegre e chocarreiro, fazia as vezes do carrasco. Passou-lhe a corda ao pescoço e, tocando-lhe levemente com o dedo na cabeça, pronunciou, com ar solene:

- Escravo de Deus, soldadinho francês, nomeamos-te cavaleiro da

Ordem de Esparto! Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!

- Ámen! - respondeu a turba.

O tambor, evidentemente, compreendia mal o que se passava à sua roda; as pálpebras batiam-lhe apressadamente, como as de uma criança prestes a chorar; enrolou-se sobre si mesmo, arranjando ele próprio o laço da corda em volta do delicado pescoço. Um estranho sorriso brincava-lhe nos lábios. De repente, no último momento, como quem acorda por fim do seu torpor, voltou para a multidão o rosto formoso, assombrado e pálido; tentou falar, pedir qualquer coisa, mas a multidão rugiu.

Então a criança fez um gesto com a mão timidamente, e, com ar submisso, tirou do peito uma cruz de prata presa por uma fita negra. Era sem dúvida uma recordação da mãe ou da irmã; beijou-a rapidamente e benzeuMascarello empurrou-o da escada e exclamou com ar jovial:

- Mui nobre cavaleiro da Ordem de Esparto, mostra-nos agora como em França costumam dançar a gaillarde.

E no meio da hilaridade geral, sob o braço de ferro fixado na parede e destinado a suspender um lampião, o corpo da criança balouçava-se nas convulsões da agonia, como se estivesse efectivamente a dançar.

Alguns passos mais adiante, Leonardo encontrou uma velhota esfarrapada, parada em frente dum casebre que as balas da artilharia começavam a destruir; de pé, no meio dos antigos utensílios da sua casa, da louça da cozinha quebrada em pedaços, no meio dos colchões e travesseiros espalhados em desordem, a velha estendia as mãos ossudas e nuas, gemendo:

- Oh! Oh! Oh! Socorro! Socorro!

- Que tens tu, tiazinha? - perguntou o sapateiro Corbolo. - Por que choras?

- O menino está sufocado! Estava deitado na cama... O sobrado abateu! Quem sabe se ainda estará vivo!... Oh! Oh! Socorro!

Uma nova bala de bronze foi cair, com um silvo, sobre o tecto já meio arrasado da casa. As vigas saltaram. Um turbilhão de poeira ergueu-se. O tecto abateu com grande ruído e a mulher calou-se.

Chegado à Praça de Arrego, Leonardo divisou a floresta dos brancos coruchéus e das torres góticas da Catedral, erguendo-se como estalagmites, e iluminadas alternadamente pela luz azul da Lua e pelos reflexos escarlates dos incêndios.

Diante do palácio do Arcebispo, no meio da multidão que parecia um amontoado de corpos, ouviam-se gemidos.

- Que vem a ser isto? - perguntou o pintor a um velho operário cujo rosto triste e bondoso parecia aterrado.

- Sabe-se lá? Eles próprios não o sabem. Dizem que é um espião, comprado pelos franceses, o vigário do mercado, messer Giacobo Crotto.

Parece que envenenava o povo com os géneros que lhe vendia. E pode ser que não seja ele. Batem no primeiro que lhes cai nas mãos. Que desgraça terrível, Senhor! Apiedai-vos destes pobres pecadores.

Gorgólio, o operário vidreiro, saiu da multidão empunhando como troféu um comprido chuço em cuja extremidade estava espetada uma cabeça ensanguentada.

o malandrim Farfanichio corria atrás dele e, saltando e mostrando a cabeça, gritava:

- O cachorro morreu como um cachorro! À morte os traidores!

o velho benzeu-se devotamente e recitou as palavras da oração:

- A furore populi libera nos, Domine! Livrai-nos Senhor dos furores da turba.

Do lado do Castelo chegavam os sons das trombetas, os rufos dos tambores, os estoiros dos arcabuzes e os gritos dos soldados subindo ao assalto. No mesmo momento, os bastiões da fortaleza lançaram uma tal descarga que a terra tremeu e a cidade inteira pareceu prestes a desmoronar-se. Era a célebre bombarda, o gigantesco monstro de cobre que os franceses chamavam "a Doida Margot" e os alemães "Die tolle Grete".

A granada atingiu uma casa do Borgo Novo, que já ardia. Uma coluna de fogo subiu para o céu sombrio. A praça iluminou-se duma luz vermelha e a claridade plácida da Lua desapareceu.

Um pânico apoderou-se da multidão; na confusão, as pessoas corriam, atropelavam-se cheias de pavor. Leonardo contemplava aquelas sombras humanas. No meio do terror da chusma, o pintor sentia o coração repleto de calma e de paz, apanágio da contemplação; era como a radiação serena do luar flutuando sobre as chamas dos incêndios.

Na manhã de 4 de Fevereiro de 1500 o Mouro entrou em Milão pelo Porta-Nuova.

Na véspera, Leonardo tinha partido para Vaprio, para casa do seu amigo Melzi.

 

Girolamo Melzi tinha pertencido outrora à corte dos Sforza. Quando em 1490 enviuvou, abandonou o serviço e retirou-se para a sua vila solitária, junto dos Alpes, a cinco horas de viagem de Milão; ali, longe dos ruídos do mundo, vivia como um filósofo, cultivava o seu jardim e dedicava-se à música, arte que adorava. Dizia-se que messer Girolamo também cultivava as artes mágicas a fim de poder evocar a sua esposa desaparecida e bem-amada...

O alquimista Galéotto Sacrobosco e Frei Lucas Pacioli iam frequentemente visitá-lo e passar temporadas em sua casa; os três amigos consumiam as noites a discutir a filosofia de Platão e as leis dos números de Pitágoras, que regem a música das esferas. As visitas de Leonardo, porém, constituíam uma verdadeira alegria para o dono da casa. Enquanto dirigia a construção do canal de Martesana, o pintor vinha muitas vezes à região e apaixonara-se pela encantadora residência.

Vaprio ficava na margem esquerda do Adda. Ali a corrente rápida do tio era contida pelos diques. Ouvia-se o ruído incessante da água, lembrando o quebrar amortecido das ondas à beira-mar. Entre as margens estreitas e abruptas, formadas de calcário amarelo e fluorescente, o Adda tumultuoso, livre, insubmisso à vontade do homem, precipitava as ondas verdes e frias; e, junto dele, corria o canal liso e transparente como um espelho, formado pela água fria e tumultuosa do rio, mas, aqui, tranquila, dócil e sossegada, parecendo mergulhada em profundo sono e deslizando lentamente entre as margens.

Este contraste parecia ao pintor encerrar um sentido profético; comparava e não podia decidir o que era mais belo: se a criação devida à inteligência e à vontade do homem, a sua própria criação, o canal de Martesana, ou se seu irmão, o selvagem e irrequieto Adda. Os dois cursos eram-lhe igualmente queridos; compreendia-os a ambos.

Junto do terraço que dominava os jardins desfrutava-se um panorama magnífico: a planície verde da Lombardia com Bergamo, Trevise, Cremona e Brescia. No Verão, o perfume do feno pairava sobre as vastas pradarias. Nos campos férteis, o centeio e o trigo cresciam até aos ramos das árvores de fruto, de tal maneira que as espigas se enlaçavam aos pomos, às cerejas e às ameixas e toda a planície parecia transformada num grande jardim.

Ao norte, para o lado de Como, as montanhas sombreavam o horizonte; por cima delas erguiam-se em semicírculo os primeiros contrafortes dos Alpes, e, mais alto ainda, entre as nuvens, brilhavam picos nevados, dum róseo doirado.

Entre a planície feliz da Lombardia, com todos os palmos de terreno cultivados, e as extensões imensas dos Alpes, desertas e selvagens, Leonardo sentia o mesmo contraste, cheio de harmonia, que entre o calmo Martesana e o violento e tumultuoso Adda.

Naquela ocasião estavam também na vila Frei Lucas Pacioli e o alquimista Sacrobosco, cuja casa de Milão fora destruída pelos franceses.

Leonardo conservava-se habitualmente afastado, preferindo a solidão. Em breve, porém, começou a procurar a companhia dum filho de Melzi, Francesco, que era ainda um garoto.

Tímido e envergonhado como uma menina, a criança evitou-o durante muito tempo. Uma vez, porém, que foi ao quarto do pintor por ordem de seu pai, Francesco descobriu uma série de vidros de cores com as quais Leonardo estudava as leis da óptica. O pintor deu-lhe licença de lhes mexer e de olhar através deles. Este divertimento agradou-lhe. Os objectos vulgares tomavam um ar fantástico; umas vezes desairoso, outras alegre, umas vezes hostil, outras carinhoso, conforme se olhava através dum vidro amarelo, azul, vermelho, violeta ou verde.

Uma outra invenção de Leonardo também o encantou: a câmara escura. Quando a imagem aparecia sobre a folha de papel branco, parecia viva; viam-se distintamente girar as asas dum moinho, o voo das cegonhas pairando sobre a torre da igreja, o burrinho cinzento do serrador Peppo avançar carregado de maravalhas, na estrada lamacenta, e os ramos dos choupos inclinando-se sob o vento. Francesco, sem se conter, encantado, batia as mãos de contente.

A criança mostrava pouco interesse pelas lições, na escola da aldeia, dirigida pelo velho abade da igreja vizinha. Soletrava com aborrecimento a gramática latina e todo o rosto se lhe sombreava de contrariedade diante do livro de aritmética, verde, todo cheio de nódoas de tinta. A ciência de Leonardo, porém, era uma coisa bem diferente: a Francesco parecia tão curiosa como um conto. Os instrumentos de mecânica, de óptica, de acústica, de hidráulica, exerciam nele uma violenta atracção, e eram como brinquedos animados e fantásticos. Nunca se cansava de ouvir, de manhã até à noite, as narrativas de Leonardo. O pintor era, em geral, reservado com as pessoas crescidas, porque sabia que qualquer imprudente palavra lhe poderia atrair sarcasmos ou provocar suspeitas. Mas, com Francesco, falava com simplicidade e confiança.

Nessa época, estava a escrever o seu Tratado das Estrelas - Trattato sulle stelle.

Durante aquelas noites de Março, em que o ar frio era já cortado pelos primeiros sopros da Primavera, de pé, ao lado de Francesco, no terraço da casa, contemplava a órbita das estrelas e desenhava as manchas da Lua, para as poder comparar mais tarde e saber se elas mudavam ou não de forma. E ia explicando à criança as leis do movimento dos astros.

 

Quando as árvores começaram a florir, Leonardo e Francesco passavam dias inteiros no jardim ou nos bosques vizinhos, a examinar a vida renascente das plantas. As vezes, o pintor copiava uma árvore ou uma or, esforçando-se por fixar, como para um retrato, a semelhança viva, particular, do modelo, e única.

Ia explicando a Francesco os géneros e as espécies das flores, a sua vida e o seu crescimento.

Um dia chegou o poeta Giotto Prestinari que morava em Bergamo, perto de Vaprio. Leonardo molestara-o, não elogiando suficientemente os seus versos, e, ao jantar, o poeta provocou uma discussão para demonstrar que a poesia levava a melhor à pintura. O pintor calava-se, mas a persistência de Giotto acabou por fazê-lo sorrir e começou a responder-lhe em tom de gracejo.

- A pintura - disse entre outras coisas Leonardo - é superior à poesia porque exprime em si o próprio acto divino, e não apenas as invenções humanas, com que se contentam os poetas - os dos nossos dias, pelo menos. Os poetas não realizam, limitam-se a descrever, emprestando-se mutuamente tudo quanto possuem; fazem negócio com as mercadorias doutros; só podem compor apropriando-se dos restos inúteis das diversas ciências; podíamos compará-los a mercadores de objectos roubados...

Frei Lucas, Melzi e Galéotto ripostaram. Leonardo entusiasmou-se a pouco e pouco, até que concluiu, dizendo com muita seriedade:

- A vista dá ao homem um conhecimento da Natureza mais perfeito do que o ouvido. O que se vê merece maior confiança do que o que se ouve. E por isso a pintura, a poesia muda, está mais perto da ciência exacta do que a poesia, a pintura cega. A descrição verbal não é mais que uma série de imagens soltas que se sucedem, enquanto num quadro todos os elementos, todas as cores, aparecem em conjunto, unindo-se como acordes diferentes, o que dá a possibilidade (e o mesmo acontece na música) de atingir um mais alto grau de harmonia do que na literatura.

Tirareis o encanto supremo duma obra se essa não atingir o máximo de harmonia. Perguntai a um apaixonado o que prefere: se o retrato da sua amada, se a descrição que dela puder fazer o melhor dos poetas!

Este argumento fez sorrir todos os ouvintes.

- Quero contar-vos uma coisa que me aconteceu uma vez - continuou Leonardo. - Um jovem florentino de tal forma se apaixonou por um rosto de mulher representado num dos meus quadros que mo comprou com a intenção de fazer desaparecer do mesmo todos os indícios que demonstravam que eu tinha querido reproduzir um motivo religioso.

Decidira isto para poder beijar sem escrúpulo aquela imagem adorada.

A consciência, porém, levou a melhor ao amor. Mandou retirar de casa o quadro porque não podia acalmar-se doutra maneira. Dizei-me agora vós, poetas, se descrevendo a beleza duma mulher conseguiríeis excitar uma tão grande paixão! Sim, meus senhores, não falo de mim, sei o pouco que valho, mas falo de um pintor que tivesse atingido a perfeição na sua arte, que estivesse naquele estádio em que o artista tem tal poder de concepção e de contemplação que deixa de ser um homem. Tudo lhe é acessível: a beleza divina ou a monstruosidade abominável que nos faz chorar de dor. Domina todos os sentimentos, assemelha-se a um deus!

Nos últimos dias de Março chegaram à vila Melzi as piores notícias.

As tropas de Luís XII, comandadas por sire de Ia Trémouille, tinham atravessado os Alpes. O Mouro, suspeitando da lealdade dos seus soldados, evitava travar batalha e, oprimido por supersticiosos pressentimentos, tornava-se "medroso como uma lebre".

Sem se preocupar com o rei de França, nem com o Duque, Leonardo e Francesco vagueavam pelas colinas, pelos vales e pelos bosques vizinhos.

Às vezes subiam o curso do rio até às montanhas cobertas de florestas.

Era aí que Leonardo tinha conduzido trabalhadores para fazer sondagens e pesquisas, na esperança de encontrar conchas antediluvianas e animais ou plantas fósseis.

Foi em Vaprio que Leonardo terminou o quadro que começara em

Florença, havia já alguns anos.

A Mãe divina sentada entre rochedos, no meio duma caverna, aperta com o braço direito, contra os joelhos, João Baptista, menino; com o braço esquerdo protege o Filho, como que unindo no mesmo amor os dois princípios: o homem e o Deus. João com os braços devotamente cruzados ajoelha diante de Jesus, que o abençoa.

Quando se contempla o Menino Jesus, completamente nu, sentado no chão, com uma das pernas gorduchas dobrada sob a outra, e apoiando-se na mãozinha aberta, vê-se logo que Ele ainda não sabe andar, só pode engatinhar. Mas no seu rosto há já traços dessa divina sabedoria, que é, simultaneamente, a simplicidade da criança. Um anjo ajoelhado segura pela mão o Menino, e, apontando João Baptista, volta para os espectadores o rosto iluminado por um sorriso triste e como tocado dum pressentimento doloroso. O sol brilha através do nevoeiro húmido, por cima das montanhas azuis, dentadas e semelhantes a estalagmites, dum aspecto estranho, ultraterrestre. Estes rochedos, que dir-se-iam roídos pela água salgada, lembram o fundo seco dum oceano. E, na caverna, através da sombra densa, como submarina, a vista mal distingue a fonte subterrânea, as folhas redondas e palmiformes das plantas aquáticas e as delicadas e pálidas corolas dos lírios. Parece que se ouvem cair, da abóbada inclinada e negra das rochas de dolomite, as gotas lentas filtrando-se através das raízes das plantas trepadeiras, dos fetos e dos licopódios.

Em todo o quadro, apenas a fisionomia da Madona, meio criança meio mulher, resplandece nas trevas como um fino alabastro iluminado por uma chama interior. Pela primeira vez, no seio da Natureza, a Rainha celeste aparece aos homens como o mistério supremo, nas trevas da gruta subterrânea, que é talvez o asilo do antigo deus Pã ou das ninfas: é a Mãe do Homem-Deus surgindo do seio da Natureza, da Terra - a Mãe de todos nós.

Era a obra dum grande artista e dum grande sábio, simultaneamente.

A combinação da luz e da sombra, a anatomia do corpo humano, a estrutura da terra, as leis da vida vegetativa e da mecânica, as pregas das vestes, os anéis dos cabelos, as leis da incidência e da reflexão - tudo quanto o sábio estudava com uma seriedade persistente, experimentava e media com precisão, dissecava como um cadáver inanimado, todas estas coisas o artista as fundira numa unidade divina, penetrada dum encanto vivo, fazendo delas uma música muda, um hino enigmático à Virgem Mãe de Deus. Com o mesmo amor e a mesma ciência representara as veias delicadas nas pétalas dos lírios, a covinha no cotovelo gordo do Menino, as rugas seculares nas rochas de dolomite, a vibração da água na fonte subterrânea e o arrepio de dor no sorriso do anjo.

Conhecia tudo e tudo amava, porque o grande amor nasce da grande ciência.

 

Alguns dias depois os habitantes de Vaprio receberam a alarmante notícia da aproximação das tropas francesas.

O rei de França, Luís XII, para se vingar da revolta e da traição, abandonava Milão à pilhagem das tropas mercenárias.

Todos os que puderam fugiram para as montanhas, arrastando pelas estradas carros cheios de móveis e utensílios, seguidos pelas mulheres e pelas crianças que choravam. A noite, das janelas da vila viam-se no céu, por cima do vale, os reflexos purpúreos dos incêndios.

Aguardava-se a cada momento a batalha que devia decidir a sorte da Lombardia.

Um dia, Frei Lucas Pacioli, que voltava de Milão, trouxe as últimas notícias.

No dia 10 de Abril de manhã, Ludovico, tendo saído de Novara, dispusera as suas tropas em face do inimigo; mas os mercenários suíços, a sua força principal, estavam subornados pelo marechal Trivulce e recusaram-se a combater. Em vão o Duque, de lágrimas nos olhos, lhes suplicara que o não perdessem, jurando dar-lhes, em caso de vitória, uma parte dos seus bens. Os suíços mantiveram-se irredutíveis. O Mouro, disfarçado com os hábitos de frade, tentou a fuga, mas um suíço de Lucerna, chamado Shattenhalb, conheceu-o e entregou-o aos Franceses.

Luís XII deu ordem para o prisioneiro ser conduzido para França.

Aquele que, na expressão dos poetas da corte, dirigia, "a seguir ao Deus, a roda da fortuna e o leme do Universo", foi metido numa jaula de grades, como um animal feroz apanhado a laço. Contava-se que o Duque pedira aos carcereiros, como um favor especial, licença para levar consigo a Divina Comédia, para estudar, per studiare!

A permanência em Vaprio tornava-se de dia para dia mais perigosa.

Os franceses saqueavam Lomellina, os lansquenetes Seprio, os venezianos a região de Martezana. Bandos de malfeitores vagueavam já nos arredores da vila.

Messer Girolamo, com Francesco e a aia Bonna preparavam-se para partir para Chiavenna.

Era a última noite que Leonardo passava em casa de Melzi. Como habitualmente, notou no seu "diário" tudo quanto vira e ouvira de interessante nesse dia.

"Quando um pássaro", escreveu nessa noite, "tem uma cauda pequena e asas muito largas, agita estas fortemente, colocando-se de maneira que o vento sopre justamente sob as mesmas, e é assim que se eleva.

Foi o que hoje observei no voo dum abutre, por cima de Vaprio, à esquerda da estrada de Bergamo."

Logo a seguir, na mesma página:

"O Mouro perdeu o reino, as riquezas, a liberdade e não levou a bom termo nenhuma das suas empresas."

Nem uma palavra mais nessas notas do dia 14 de Abril de 1500, como se a queda da grande casa dos Sforza, e o perigo que corria o homem junto do qual passara dezasseis anos da sua vida, tivessem para ele uma importância menos imediata e fossem dum interesse menos significativo que o voo solitário duma ave de rapina.

 

                             CAPÍTULO XI - VOARÁ! (1500)

"Piglierá il primo voto il grande ucello sopra del dosso del suo magnio Ceceri, empiendo di sua fama tutte le scritture, e gloria eterna al nido dove nacque."

                             Leonardo de Vinci

"O grande pássaro começará a voar enchendo o mundo de espanto e as folhas dos livros com o seu nome imortal; a glória eterna assinalará o ninho onde ele nasceu."

                         Leonardo de Vinci

 

A aldeia de Vinci, pátria de Leonardo, ficava situada entre Pisa e

Florença, perto da cidade de Empoli e na vertente ocidental dos Montes Albanos, na Toscana.

Terminados os seus negócios em Florença, quis Leonardo, antes de partir para a România a ocupar o seu posto na corte de César Bórgia, visitar esta aldeia onde vivia seu velho tio, messer Francesco de Vinci, um irmão de seu pai que tinha enriquecido no comércio das sedas. Era esta a única pessoa da família que o estimava. O artista ambicionava vê- lo e, se fosse possível, instalar em casa de messer Francesco o mecânico Zoroastro de Peretola, ainda não restabelecido das consequências da terrível queda. O ar da montanha, o silêncio e o repouso da aldeia, o mestre assim o esperava, curariam o doente melhor que todos os remédios.

Sozinho, montado numa mula, Leonardo saiu de Florença e seguiu o curso do Arno. Chegado a Empoli, abandonou a grande estrada que conduzia a Pisa, acompanhando o rio, e tomou por um caminho transversal que serpenteava entre as colinas.

O tempo estava fresco e brumoso. Quando se dissipava o nevoeiro, o Sol aparecia com uma luz branca e difusa, prenúncio de vento norte.

O horizonte alargava-se de ambos os lados do caminho. As colinas subiam em vagas sucessivas, que pareciam fundir-se na atmosfera. Para além, adivinhavam-se as montanhas. Nos prados crescia uma erva de Primavera descorada e pouco compacta. Tudo em redor era fusco, silencioso, dum verde pardo, débil, pobre e lembrando o Norte. Viam-se campos de pálidas espigas, de vinhas intermináveis cercadas de muros de pedras, e, a espaços regulares, as oliveiras de robustos e torcidos troncos nodosos, que projectam na terra as sombras entrelaçadas semelhantes a teias de aranha. Aqui e ali, uma capela solitária, casotas abandonadas, de paredes amarelas e nuas, e janelas de grades irregularmente dispostas com alpendres de tijolo para os instrumentos agrícolas. No horizonte calmo e monótono desenhavam-se as montanhas cinzentas, e renques harmoniosos de ciprestes negros como o carvão, e fuselados, surgiam semelhantes aos que aparecem nos quadros dos pintores florentinos.

A estrada ia ganhando altitude. A respiração tornava-se mais fácil.

O viajante passou por Sant-Ansano, Calistri, Lucardi e pela capela de S. João.

A tarde caía, as nuvens dissipavam-se, as estrelas começavam a brilhar. O vento refrescou; era o vento do norte, agudo e frio, que se anunciava, a lavada e sonora "tramontana".

De repente, depois de uma última volta de estrada, apareceu a aldeia de Vinci. Estava-se já em plena região montanhosa. Numa prega da serra alcandorava-se um pequeno burgo de pedra. A torre negra e elegante da antiga fortaleza erguia-se para o céu crepuscular. As janelas das casas cintilavam aos últimos raios do sol.

Num local da montanha, cruzamento de dois caminhos, uma lâmpada alumiava, numa concavidade do muro, uma estatueta da Virgem que o artista conhecia desde a sua infância. Diante da Madona uma mulher pobremente vestida de escuro, uma aldeã provavelmente, estava ajoelhada e dobrada com o rosto escondido entre as mãos.

- Catarina...

Leonardo murmurou o nome de sua mãe, que fora também uma simples camponesa.

Depois de ter atravessado a ponte lançada sobre a rápida torrente.

tomou à direita por um estreito atalho ladeado de muros; uma haste de roseira debruçada dum destes roçou-lhe levemente o rosto, na obscuridade.

Diante da velha cancela de madeira, apanhou rapidamente uma pedra e bateu com ela sobre a aldraba de ferro. Era esta a casa que outrora pertencera a seu avô, António de Vinci, e que hoje era pertença do seu tio Francesco. Ali passara Leonardo alguns anos da sua infância.

Ninguém respondeu. Ao fundo da ravina, no meio do silêncio, ouvia- se o murmúrio da torrente. Por cima, na aldeia, os cães despertados pelo ruído começaram a uivar. Outro uivo roufenho, denunciando um cão muito velho, respondeu-lhes do pátio.

Finalmente, um ancião enrugado e dobrado saiu com uma lanterna.

Era surdo e durante muito tempo não percebeu quem era Leonardo. Mas assim que o reconheceu começou a chorar de alegria e beijou a mão do patrão, desse patrão que ele trouxera ao colo havia mais de quarenta anos.

E repetia, por entre lágrimas: O signore, signore, Leonardo mio! O velho cão de guarda agitava vagarosamente a cauda, associando-se à alegria do velho João Baptista - que assim se chamava o jardineiro. Este anunciou a Leonardo que messer Francesco partira para a vinha junto de Madona deli lErba e que dali tencionava ir a Marcigliano consultar um velho frade seu conhecido que o devia curar das suas dores de rins, com uma certa infusão. Dentro de dois dias estaria de volta. Leonardo resolveu-se a esperá-lo, tanto mais que Zoroastro e Giovanni Beltraffio deviam chegar na manhã seguinte, vindos de Florença.

O velho conduziu-o a casa, onde nessa ocasião não se encontrava ninguém da família, visto os filhos de Francesco viverem em Florença.

Ao chegar chamou a neta, uma loirinha de dezasseis anos a quem começou a encomendar a ceia; mas Leonardo apenas queria pão, vinho de Vinci e um pouco dessa água de que se vangloriava a propriedade do tio. Messer Francesco, apesar dos seus rendimentos, vivia como tinham vivido o seu pai, o seu avô e bisavô, com uma modéstia que podia parecer pobreza a um homem habituado ao conforto das grandes cidades.

O artista entrou na quadra do rés-do-chão, que lhe era tão familiar.

Servia ao mesmo tempo de sala e de cozinha, com as suas cadeiras grosseiras, os bancos e as arcas de madeira escura torneada, que os anos tinham tornado polidas como espelhos, e o bufete carregado da pesada baixela de estanho. Das traves enegrecidas do tecto pendiam ramos secos de ervas medicinais. As paredes eram nuas e brancas. Havia uma enorme lareira enegrecida pelo fumo e o solo estava coberto de tijolos.

Nada mudara a não ser as janelas em que hoje havia espessos vidros dum verde fosco, em facetas arredondadas como alvéolos. Leonardo recordava-se que, nos tempos da sua infância, as janelas, como todas as das outras casas dos camponeses toscanos, não tinham vidros mas sim uma tela embebida em cera e tão opaca que mesmo de dia fazia escuro dentro de casa. As outras janelas dos quartos de dormir dos andares superiores fechavam apenas com portas de madeira, e muitas vezes de manhã, durante os frios do Inverno, quase sempre áspero nessa região, a água gelava nos jarros.

Com perfumada urze da montanha e alguns ramos de zimbro, o jardineiro fez um belo fogo; a seguir acendeu uma pequena lâmpada de barro suspensa da chaminé por uma cadeia de cobre, e duma configuração semelhante à das que se encontram nos antigos túmulos etruscos. A configuração elegante desta lâmpada sobressaía ainda mais no meio da simplicidade e pobreza do quarto. Era ali, nesse canto meio selvagem da Toscana, no sangue e na linguagem dos seus habitantes, nos seus utensílios domésticos e nos costumes do povo, que se encontravam os vestígios da antiguidade imemorial da raça etrusca.

Enquanto a rapariga se afadigava colocando sobre a mesa um pão redondo, sem fermento, do feitio dum bolo, um prato de salada de alface com vinagre, um canjirão de vinho e figos secos, Leonardo subiu aos quartos superiores pela velha escada que rangia. Ali tudo estava como outrora. No meio do enorme quarto baixo o mesmo imenso leito quadrado, onde cabia toda uma família e onde a boa avozinha, monna Lúcia, a mulher de António Vinci, tinha dormido com o pequeno Leonardo. O velho leito de família, devotamente conservado, coubera em partilhas ao tio Francesco.

À cabeceira lá estava sempre o mesmo crucifixo, uma imagem da

Madona, uma concha para a água-benta, um ramo de erva cinzenta e seca chamada "nevoeiro", nebbia, e um pequeno folheto com uma inscrição latina.

Leonardo tornou a descer e sentando-se junto do fogo bebeu a água e o vinho por uma escudela redonda de madeira, cujo perfume de azeitona lhe recordava também a sua mais longínqua infância. Ao ficar só, depois de João Baptista e da neta se terem ido deitar, permaneceu longo tempo embebido nos seus pensamentos e nas suas queridas recordações.

 

Pensou no pai, o notário Pedro de Vinci, que vira alguns dias atrás em Florença, na casa que este adquirira e onde habitava, na populosa Via Ghibellina. Era um velho de setenta anos, ainda fresco, de figura rubicunda e cabelos crespos. Leonardo nunca encontrara ninguém que mais amasse a vida, com tanta ingenuidade e uma sinceridade que ia às vezes até o impudor. Antigamente o notário sentia especial ternura pelo primeiro filho, não obstante ser um filho natural, mas os outros filhos legítimos, António e Julião, quando cresceram, esforçaram-se por malquistá-lo com Leonardo a fim de que este não recebesse nenhuma parcela da herança.

Ao deixar pela primeira vez a casa, o artista sentiu que se tornara já um estranho para os seus. Tinha corrido a fama do seu ateísmo e isso fora motivo de especial tristeza, principalmente para o irmão Lourenço.

Este, ainda muito novo, mas excessivamente desenvolvido, andara entre os discípulos de Savonarola e fora um "carpidor". Muitas vezes, diante do pai, falara a Leonardo da fé cristã, da necessidade do arrependimento, da humildade, das opiniões heréticas de alguns filósofos contemporâneos e, à despedida, tinha-lhe dado um Tratado da Salvação, da sua própria autoria.

Era o livro que Leonardo agora contemplava, e sentia exalar-se dele o perfume dessa religiosidade burguesa que envolvera os anos da sua infância e que reinava na família, transmitindo-se de geração em geração.

Um século antes da sua nascença, os fundadores da casa Vinci eram já funcionários da Comuna Florentina, honestos, económicos e piedosos como seu pai, messer Pedro. Os arquivos comerciais do ano de 1339 mencionavam um antepassado do artista, o notário Guido Michele de Vinci.

O avô de Leonardo, António, surgia-lhe na memória como se estivesse vivo. A ciência da vida que sempre praticara era exactamente a mesma que influenciara e por que sempre se governara o neto Lourenço.

Ensinava aos filhos que não deviam aspirar às eminências, nem à glória ou honras, nem às funções militares ou civis, nem à excessiva sabedoria ou às riquezas extraordinárias. "Conservar sempre o meio termo, dizia, é a melhor política" Starsi mezzanamente è cosa piu sicura.

Leonardo recordava-se da voz do velho, tranquila e grave, ensinando esta singular norma da vida, "a média em tudo".

"Meus filhos", ensinava, "tomai o exemplo das formigas que se preocupam hoje com o dia de amanhã! Sede cautelosos e moderados! A quem poderei eu comparar o bom educador e o chefe de família? Compará-lo- ei à aranha no meio da enorme teia, sensível ao movimento do mais ténue dos seus fios e prestes a consolidá-los".

Exigia que todos os dias, ao toque das ave-marias, a família estivesse reunida. Ele próprio dava volta a toda a casa, fechando as portas e as cancelas e levando as chaves para o seu quarto de dormir, onde as escondia debaixo do travesseiro. Nenhum pormenor da vida doméstica escapava à sua observação perspicaz; notava tudo, ocupava-se de tudo; mas em nenhum dos seus actos havia qualquer parcela de mesquinhez. Nunca empregava nas suas roupas senão fazendas da melhor qualidade, e o mesmo aconselhava aos filhos, quando era preciso escolher algum tecido: nunca lamentava o dinheiro assim gasto; porque, sendo boa a matéria empregada, a sua duração seria maior. "E- por isso", dizia, "que um fato de bom pano não somente é mais respeitável mas sai mais barato".

A família, na opinião do avô, devia viver sem se separar, debaixo do mesmo tecto, porque era mais prático e mais económico.

Olhava as mulheres com superioridade: "Devem ocupar-se da cozinha e dos filhos, sem se imiscuir nos negócios dos homens; aquele que acredita na inteligência das mulheres é tolo".

A sabedoria de messer António não era desprovida duma fina malícia e de certa velhacaria. "Meus filhos", repetia, "sede misericordiosos, como exige a Santa Madre Igreja; mas preferi os amigos felizes aos desgraçados, os ricos aos pobres! A arte superior da vida consiste em ser mais atilado que o atilado, sem deixar de praticar o bem".

Ensinava-lhes a plantar as árvores de fruto no limite da propriedade, de maneira que a sombra caísse no campo do vizinho. Também lhes ensinava a dar de mão aos que vinham pedir, sem deixar de ser amável.

"Há nisto uma dupla vantagem", acrescentava, "ficais com o vosso dinheiro, rindo-vos à custa de quem vos queria enganar. E se o pretendente for pessoa de espírito, compreender-vos-á e respeitar-vos-á, porque tereis sabido refutar-lhe o pedido, sem faltar às boas conveniências.

O que recebe é esperto e o que dá é tolo. Quanto aos pais, ajudai-os não somente com dinheiro mas com o suor, com o sangue e com a honra, numa palavra, com tudo quanto possuís, sem poupar mesmo a própria vida se disso depender a salvação da raça: porque, lembrai-vos, queridos filhos, o homem adquire maior glória e benefício se faz bem aos seus do que se o faz aos estranhos!"

Depois duma ausência de trinta anos, sentado ao fogo da lareira, Leonardo ouvia o vento gemer e contemplava os tições que se consumiam. Verificava que toda a sua vida não fora mais do que uma permanente negação dessa sabedoria económica, velha como o mundo, dessa sabedoria da aranha e da formiga que fora a do avô; dizia a si próprio que a sua existência tinha transbordado para esse supérfluo desordenado, que na opinião do irmão Lourenço deveria ser cortado pela tesoura da deusa Mediocridade.

 

No dia seguinte, de manhã muito cedo, Leonardo saiu de casa sem despertar o jardineiro e, atravessando a humilde aldeia de Vinci, de velhas e pequenas casas de pedra, com os telhados cobertos duma argila que aderia aos flocos da montanha, começou a subir o caminho íngreme e rude que conduzia ao lugarejo vizinho de Anciano. Como na véspera, brilhava um pálido e triste sol de Inverno. O céu límpido tingia-se no horizonte, mesmo àquela hora matinal, duma turva tinta violeta. A "tramontana" aumentara durante a noite. O vento soprava de norte, em rajadas contínuas, como se caísse directamente do céu, e assobiava impertinente aos ouvidos. Outra vez, também, os mesmos campos desolados e tranquilos, de searas pouco densas, lembrando as regiões do norte; de raquíticas vinhas dispostas em degraus semicirculares; de erva rala e pálida, de papoulas, de oliveiras duma folhagem cinzento empoeirado cujos ramos robustos tinham arrepios mórbidos sob as rajadas.

À entrada de Anciano, Leonardo, não reconhecendo os locais, deteve- se. Lembrou-se de que outrora existiam ali as ruínas dum muito velho castelo, Adimari, tendo instalado numa das suas torres uma pequena estalagem aldeã. Mas nesse mesmo lugar, no sítio chamado Campo delia Torraccia, erguia-se agora, no meio duma vinha, uma casa nova de paredes lisas e caiadas de branco. Por detrás dum muro baixo de pedra, um aldeão trabalhava na vinha. Este explicou ao artista que o proprietário da estalagem morrera e que os herdeiros tinham vendido a terra a um rico negociante de carneiros de Orbianino, que depois de limpar o monte ali plantara a vinha e o olival.

Não era sem motivo que Leonardo se informava da taberna de Anciano: fora ali que ele nascera. Fora ali que, à entrada da humilde aldeia montanhesa, dominando a estrada que através dos Montes Albanos conduz do vale de Nievole a Prato e a Pistóia, no obscuro esqueleto da torre do castelo de Adimari, se alojava, cinquenta anos atrás, uma alegre locanda aldeã, uma osteria. A tabuleta, suspensa de enferrujados e rangentes ganchos, tinha a seguinte inscrição: Bottigleria, loja de bebidas. A porta aberta deixava entrar as filas de tonéis, os púcaros de estanho e os canjirões de bano, bojudos; havia duas pequenas janelas gradeadas, de batentes enegrecidos que pareciam piscar o olho com ar malicioso.

Os degraus da entrada, puídos pelos pés da clientela, conduziam ao átrio fresco engrinaldado pela parreira, brilhando ao sol. Os habitantes das aldeias vizinhas que se dirigiam a São Miniato, à feira, ou a Fucecchio, os caçadores de cabras montesas, os almocreves, os guardas da alfândega florentina e outros personagens modestos, entravam ali a tagarelar um pouco, a beber uma garrafa de vinho acre e barato, ou a jogar ao xadrez, às cartas, aos dados e outros jogos.

A criada da locanda era então uma rapariga de dezasseis anos, órfã, uma pobre coitadinha, oriunda de Vinci e chamada Catarina.

Uma vez, na Primavera de 1451, o jovem notário florentino Pedro António de Vinci, indo de visita a seu pai, a Florença, onde este passava grande parte do tempo, teve necessidade de parar em Anciano para concluir um arrendamento; tratava-se dum contrato a longo prazo relativo à sexta parte dum lagar de azeite. Redigida a escritura, os aldeãos convidaram o notário a regar a convenção na taberna vizinha em Campo delta Torraccia. Messer Pedro, pessoa simples, afável e condescendente, mesmo com os humildes, aceitou de boa vontade. Foi Catarina que o serviu.

O notário confessou mais tarde ter ficado apaixonado por ela desde esse momento. Sob o pretexto de caçar as codornizes, adiou até ao Outono a partida para Florença; e tornando-se um frequentador assíduo da estalagem, começou a fazer a corte a Catarina, que mostrava ser menos fácil e acessível do que ao princípio supusera. Não era porém em vão que messer Pedro passava por um conquistador de corações femininos. Tinha vinte e quatro anos; vestia-se com elegância, era esbelto, ágil e forte e possuía essa eloquência amorosa cheia de segurança que domina as mulheres. Catarina ainda resistiu algum tempo invocando a ajuda e a protecção da divina Virgem Maria, mas acabou por ceder. Quando as codornizes toscanas, gordas pelo sumo dos cachos do Outono, emigram do vale de Nievole, estava grávida.

Os rumores das relações de messer Pedro com uma mísera rapariga, criada duma taberna de Anciano, chegaram aos ouvidos de António de Vinci. Depois de ter ameaçado o filho com a maldição, mandou-o imediatamente para Florença, e nesse mesmo Inverno, a fim de "arrumar o rapaz", conforme a sua própria expressão, casou-o com Madona Albierra Amadori, que, não sendo nem muito jovem nem formosa, tinha um belo dote e pertencia a uma família respeitável. Casou também Catarina com um seu jornaleiro, um pobre aldeão de Vinci chamado Accattabrighe del Vacca, homem de certa idade, macambúzio, de hábitos rudes e que se dizia ter levado à sepultura, com os maus tratos infligidos nos seus acessos de embriaguez, a primeira mulher. Como ambicionava os trinta florins prometidos e a nesga do olival, Accattabrighe não desdenhou de emprestar a sua honra para cobrir os pecados alheios. Catarina, essa submeteu- se sem protestar. Após o parto, porém, esteve prestes a morrer de desgosto. Não tinha leite para alimentar o pequeno Leonardo - fora o nome dado à criança - e houve que arranjar uma cabra montesa. Pedro. apesar do amor sincero que tinha a Catarina, e da mágoa de a ter perdido, submeteu-se também mas pediu ao pai para que recolhesse Leonardo em casa e o educasse. Nessa época, os bastardos não eram motivo de vergonha; criavam-nos quase sempre como filhos legítimos, e muitas vezes até marcando-se por eles uma preferência. O avô consentiu de melhor vontade ainda por o primeiro casamento de seu filho ser estéril; confiou o pequeno aos cuidados da mulher, a boa avó monna Lúcia.

Foi assim que Leonardo, nascido dos amores ilegítimos dum jovem notário florentino e duma moça de estalagem, entrou para o seio da generosa e devota família dos Vinci.

Nos arquivos da cidade de Florença, no recenseamento de 1457, encontra-se a seguinte nota, escrita pelo próprio punho do avô, o notário António de Vinci: Lionardo, figliuolo di detto Ser Piero non legiptimo, nato di lui et delta Catherina, che al presente dona dAccattabrighe del Vacca, da Vinci, danni 5. "Leonardo, filho ilegítimo do dito Pedro, e de Catarina, actualmente mulher de Accattabrighe del Vacca, oriundo de Vinci, de cinco anos de idade".

Leonardo lembrava-se de sua mãe como através dum sonho; do seu sorriso, sobretudo, terno, subtil, cheio de mistério, um pouco malicioso talvez e contrastando com a simplicidade e a compostura triste do seu rosto.

Aqueles que a tinham conhecido na sua mocidade afirmavam que o filho se lhe parecia. Principalmente as mãos compridas e finas, os cabelos louros, macios como a seda, e o sorriso. Do pai herdara a compleição robusta, a saúde e o amor à vida; da mãe a feminil beleza que impregnava todo o seu ser.

A casota em que Catarina vivia com o marido ficava perto da vila de messer António. Ao meio-dia, quando o avô fazia a sesta e Accattabrighe ia para os campos trabalhar com os bois, o rapazinho esgueirava-se pela vinha, saltava o muro e corria para junto da mãe. Esta esperava por ele, sentada à soleira da porta, com o fuso nos dedos. Ao vê-lo de longe, estendia-lhe os braços; e Leonardo corria para a mãe que lhe cobria de beijos os olhos, a boca e o cabelo.

As entrevistas nocturnas, essas então ainda lhe agradavam mais.

Accattabrighe ia para a taberna ou para casa dos camaradas jogar aos dados. Durante a noite Leonardo levantava-se sorrateiramente do enorme leito de família onde dormia ao lado da avó Lúcia; meio vestido, abria sem ruído o guarda-vento, deixava-se escorregar da janela agarrando-se aos ramos da figueira até chegar à terra, e corria para casa de Catarina. Tudo lhe era agradável: o frio da erva coberta de orvalho, o grito das aves nocturnas, a queimadura das ortigas, as pedras agudas que lhe feriam os pés nus, o brilho das estrelas distantes e o receio de que uma noite a avó, ao acordar, se apercebesse da sua falta. Depois eram as carícias da mãe, assim que chegava a casa de Catarina e se abraçava estreitamente a ela, na escuridão e debaixo da roupa.

Monna Lúcia estragava o neto com mimo. Este lembrava-se do vestido castanho-escuro, sempre o mesmo, que usava a avó, da touca branca rodeando o rosto bronzeado e enrugado, das suaves barcarolas que lhe cantava e do perfume delicado das guloseimas caseiras, os berlingozzi que lhe preparava com leite, creme e côdeas de pão.

Com o avô, porém, não se entendia da mesma maneira. Messer António principiara ele próprio a ensinar o neto. O rapazito não aprendia de boa vontade. Aos sete anos entrou para a escola da igreja de Santa Petronilha, ao pé de Vinci. Os seus progressos na gramática latina, no entanto, não eram grandes.

Muitas vezes, de manhã, ao sair de casa, em vez de ir para a escola esgueirava-se pela ravina densa de canaviais e ali, deitado de costas no chão, a cabeça inclinada para trás, contemplava cheio de inveja, durante horas inteiras, o voo dos grous no céu. Outras vezes, desenrolava as pétalas das flores, cautelosamente, sem as arrancar, para não lhes fazer mal, admirava a delicada estrutura dos estames aveludados, embebidos em mel, e das anteras. Quando messer António ia à cidade tratar dos seus negócios, o pequeno Nardo, aproveitando a bondade da avó, evadia-se durante dias inteiros, para a montanha, para o meio dos monólitos suspensos sobre precipícios. Por atalhos desconhecidos de todos, por onde só passavam as cabras, chegava às alturas calvas dos Montes Albanos, donde se distinguiam, a perder de vista, os prados, os bosques e os campos pantanosos de Fusiano, Prate, Florença, as alturas nevadas dos Alpes Apuanos, e em tempo claro a lista estreita dum anil enevoado que ao longe fazia o Mediterrâneo. Voltava para casa cheio de arranhões e de poeira, queimado pelo sol, mas tão contente que monna Lúcia não tinha coragem de o repreender nem de fazer queixas ao avô. A criança passava uma vida solitária. Raras vezes via o tio Francesco que o acariciava ou o pai que lhe trazia guloseimas da cidade: ambos passavam a maior parte do ano em Florença; pouco se juntava também aos seus companheiros de escola.

Os brinquedos destes não o interessavam. Quando os via arrancar as asas duma borboleta para a verem rastejar, encolhia-se confrangido, empalidecia e afastava-se. Uma vez, no pátio do estábulo, viu uma velha criada sangrando um leitão, cevado, para a festa; o animal debatia-se lançando gritos estridentes. Desde esse dia, Leonardo recusou teimosamente. mas sem dizer porquê, comer carne, apesar de toda a insistência e descontentamento de messer António.

Outra vez, capitaneados por um certo Rosso, um garotão atrevido.

inteligente e perverso, cujo pai era cozinheiro dum rico proprietário vizinho, messer Rucellai, protector do avô António, os camaradas agarraram uma toupeira e, depois de a terem feito sofrer toda a casta de barbaridades, amarraram-na, semimorta, por uma pata, para acabar de ser espatifada pelos cães dos pastores. Leonardo precipitou-se sobre eles, deitou três a terra (era forte e destro) e, aproveitando a surpresa dos colegiais, que não esperavam dele uma tal atitude, dada a sua conduta habitualmente tranquila, apoderou-se da toupeira e fugiu a sete pés para o campo. Refeitos da surpresa, os outros lançaram-se em sua perseguição com gritos, risos, assobios e injúrias e começaram a atirar-lhe pedras. O esbelto Rosso, que era cinco anos mais velho que Nardo, agarrou-o pelos cabelos e começaram a lutar. Se João Baptista, o jardineiro do avô, não tivesse chegado a tempo, Nardo teria apanhado uma grande sova. Mas o seu fim estava atingido; no momento em que o tinham agarrado, a toupeira conseguira escapar-se. Estava salva. No calor da refrega, e enquanto se defendia de Rosso, Leonardo vibrara-lhe um soco num olho. O pai do garotão queixou-se ao avô António, que se encolerizou a ponto de querer chibatar o neto. Valeu-lhe a intervenção da avó para evitar o castigo. Foi apenas fechado durante alguns dias no celeiro, debaixo da escada.

Mais tarde, ao recordar esta injustiça, a primeira duma série de outras que viria a sofrer pela vida fora, perguntava no seu Diário:

"Se te encarceraram, sendo ainda menino, e quando tinhas praticado uma boa acção, o que te farão agora, que já és um homem?"

Enquanto estava fechada no celeiro escuro, a criança contemplava uma aranha que devorava uma mosca no meio da sua teia. Um raio de sol que penetrava por uma fenda fazia brilhar na teia as cores do arco-íris.

A vítima debatia-se entre as patas da aranha com um zumbido doce que se ia extinguindo a pouco e pouco. Nardo teria podido salvá-la, como já salvara a toupeira, mas um sentimento vago e invencível detinha-o. Sem impedir a aranha de devorar a sua presa, examinava a avidez do monstruoso insecto com a mesma impassível e inocente curiosidade com que costumava observar os segredos da complicada estrutura das flores.

 

Perto de Vinci, o arquitecto florentino Biaggio da Revenna, discípulo de Alberti, construía uma grande vivenda para messer Rucellai. Leonardo vinha muitas vezes ver o operário erguer as paredes, esquadrar as pedras ctym o goniómetro e elevá-las por meio de guindastes. Uma vez, messer Biaggio, começando a falar com ele, ficou admirado da subtileza do seu espírito. Começou então a ensinar-lhe os primeiros elementos da aritmética, da álgebra, da geometria e da mecânica, ao princípio ligeiramente, depois, a pouco e pouco, com mais profundidade. Ao professor parecia incrível e quase maravilhosa a facilidade com que o colegial aprendia de repente todas as lições, como se fosse coisa já de há muito sabida, sem a ajuda do professor, e de que se estivesse recordando.

O avô, porém, não via com bons olhos os progressos extraordinários do neto. Também lhe causava certo desgosto o facto de ele ser canhoto.

Este defeito era tido como mau presságio. Supunha-se ser inerente às pessoas que mantinham relações com os feiticeiros e nigromantes ou que tinham feito pactos com o Demónio. Este sentimento de hostilidade para com a criança aumentou no espírito de messer António quando uma bruxa de muita fama, que havia em Faltumiano, lhe assegurou que a proprietária da cabra que fora ama de Nardo era uma feiticeira. Não era muito extraordinário supor que os bruxos, para agradar ao Diabo, tivessem enfeitiçado a cabra de Nardo. "As coisas são o que são", pensava o avô.

"De qualquer forma que se alimente o lobo, este terá sempre a ambição de fugir para a floresta. Seja feita a vontade do Senhor! Em todas as famílias tem que haver um monstro!"

O velho aguardava com impaciência que o filho favorito, Pedro, lhe desse a alegria dum neto legítimo, digno da herança, porque Nardo era uma criança encontrada, por assim dizer, um filho do acaso.

Os montanheses falavam com frequência dum fenómeno particular àquela região e que se não via em mais parte nenhuma: muitas plantas e animais tinham a cor branca. As pessoas a quem não tinha sido dado observar o fenómeno com os seus próprios olhos duvidavam destas narrativas, mas os que vagabundeavam pelos prados e pelos bosques de Vinci sabiam bem que era verdade, que ali encontravam muitas vezes violetas brancas, pardais brancos, e, até, nos ninhos dos melros negros, avezinhas brancas. Era por isso, asseguravam os habitantes de Vinci, que toda aquela cordilheira recebera na distante antiguidade o nome de "Branca", "Montes Albanos".

O pequeno Nardo era um dos milagres da Montanha Branca: uni monstro na honesta e burguesa família dos notários florentinos, unia avezinha branca no ninho dos melros negros.

 

Ao fazer treze anos, o pai levou-o para a sua casa de Florença. Desde essa época Leonardo raras vezes voltou à terra natal.

No seu Diário encontra-se esta nota breve e, segundo o seu costume, enigmática, datada de 1494, quando estava ao serviço do duque de Milão:

"Catarina chegou em treze de Julho de 1493."

Poder-se-ia pensar que a referência dizia respeito a qualquer criada entrada ao seu serviço nesta data. Mas, na realidade, tratava-se da própria mãe.

Depois da morte do marido, Accattabrighe dei Vacca, Catarina, sentindo que a sua vida já não seria longa, desejou tornar a ver o filho antes de morrer.

Juntou-se a uma peregrinação de camponeses da Toscana que se dirigia à Lombardia para adorar as relíquias de Santo Ambrósio e o Santo Cravo da Cruz e chegou a Milão. Leonardo recebeu-a com um respeito repassado de ternura.

Ao pé dela parecia-lhe voltar a ser o pequeno Nardo de outrora, que tantas vezes, descalço, no mistério da noite, corria para a ir abraçar, sob as roupas, na calentura do leito.

A pobre mulher, depois de ter visto o filho, quis regressar à sua aldeia, mas este reteve-a, alugou e mobilou-lhe uma tranquila cela num convento de mulheres, vizinho do de Santa Clara, perto da Porta de Verceil. Catarina adoeceu e viu-se na necessidade de permanecer na cama, mas recusou obstinadamente deixar-se transportar para casa do filho a fim de lhe não causar maiores prejuízos ou transtornos. Leonardo fê-la entrar no melhor hospital de Milão, Ospedale Maggiore, obra do duque Francisco Sforza, que parecia um palácio. Era ali que ele ia todos os dias visitá-la, não a abandonando durante todo o tempo da sua doença.

No entanto, nenhum dos seus amigos ou alunos teve nunca notícia da presença de Catarina em Milão. Quase não fala nela nas suas notas diárias. Apenas uma vez menciona Catarina, de passagem, a propósito do rosto curioso duma rapariga que encontrara no mesmo hospital em que estava sua mãe.

A nota dizia assim: Giovannina - viso fantastico - sta asai Catherina, ali ospedale. "Giovannina - rosto fantástico - está ao lado de Catarina, no hospital".

Quando, pela última vez, beijou aquela mão que arrefecia, pareceu- lhe que tudo quanto era o devia a essa pobre aldeã de Vinci, a essa humilde habitante das montanhas. Fez-lhe funerais magníficos, como se Catarina tivesse sido mulher de alta estirpe e não uma modesta criada duma hospedaria de Anciano. Com aquela exactidão herdada do pai, o notário, apontou as despesas do enterro:

Despesas com a morte e enterro de Catarina 27 florins

Dois arráteis de cera 18

Um catafalco 12

Transporte e colocação da cruz 4

do corpo 8

Quatro padres e quatro acólitos 20

Pelo toque dos sinos 2

Aos coveiros 16

Licenças e pagamento aos funcionários 1

Total 108

 

Despesas anteriores:

Ao médico 4

Açúcar e velas 12

Total 124

 

Seis anos mais tarde, em Milão, em 1500, após a queda de o Mouro, uma vez que Leonardo arrumava as suas roupas para se dirigir a Florença, encontrou num dos armários um pacotinho cuidadosamente arrumado.

Eram presentes rústicos que Catarina lhe tinha trazido de Vinci: duas camisas grosseiras de estopa fiada por suas próprias mãos e três pares de meias de pêlo de cabra, igualmente feitas por ela. Leonardo nunca as usara por estar habituado a roupas mais finas e mais caras. Mas agora, ao rever de repente esse pacote, esquecido no meio dos livros de ciências, dos instrumentos de física e de máquinas de todas as espécies, sentia o coração confrangido de amargura.

Sempre, durante as suas peregrinações solitárias, longas e tristes, de país em país e de terra em terra, nunca deixava de levar consigo o modesto embrulhinho inútil que encerrava as meias e as camisas; escondia- o aos olhos de todos, guardando-o cuidadosamente com uma espécie de pudor, no meio das coisas que lhe eram mais queridas.

 

As recordações invadiam a alma de Leonardo enquanto subia a montanha pelo atalho abrupto tão seu conhecido.

Ali nada mudara. Parecia-lhe que ainda na véspera passara por aqueles caminhos. Como quarenta anos atrás, por toda a parte cresciam as violetas brancas. As folhas amarelas e secas dos carvalhos rangiam sob os seus pés; a montanha tinha as mesmas cores azuis, baças, e tudo em redor lembrava o Norte, tão simples e calmo como outrora, talvez mais pobre e mais pálido.

Depois de ter repousado alguns momentos, ergueu-se de novo e continuou a trepar pelo estreito córrego rochoso que subia sempre. À maneira que se elevava, a "tramontana" tornava-se cada vez mais áspera e gelada.

As reminiscências assaltavam-no de novo; agora eram os primeiros anos da sua juventude que lhe acudiam à memória.

Os negócios do notário Pedro de Vinci prosperavam. Tinha a habilidade de viver bem com todos; hábil, alegre e bondoso, era daquelas pessoas a quem tudo corre bem, que sentem o gozo da existência e não prejudicam o caminho dos outros. Entre a gente eclesiástica tinha em especial muitas simpatias; homem de confiança do rico mosteiro de Santa Anunciada e de muitas outras instituições de caridade, messer Pedro arrendondava o seu pecúlio, comprava casas e vinhas nos arrabaldes de Vinci, sem mudar os seus hábitos modestos, segundo os sábios preceitos de messer António. Fazia grandes donativos às igrejas, e, sempre respeitador das tradições e da honra da raça, fizera erigir uma lápide funerária da família Vinci, em Badia de Florença.

Morta a primeira mulher, depressa se consolou, e aos trinta e oito anos de idade tornou a casar com uma encantadora menina, quase uma criança, Francesca de Lanfredini. Esta segunda união também foi estéril.

Messer Pedro acalentou então a ideia de dar ao primogénito ilegítimo uma boa educação, sem olhar ao dinheiro, de forma a poder talvez mais tarde fazer dele o seu herdeiro e, como todos os primeiros filhos da família dos Vinci, um notário florentino.

Nesta época habitava Florença um célebre naturalista, matemático, físico e astrónomo, Paulo dali Pozzo Toscanelli. Segundo a expressão dos seus contemporâneos, este homem vivia "como um santo", silencioso, desinteressado, abstinente, nunca comendo carne, e, além disso, absolutamente casto. O rosto era mal conformado, quase repelente; apenas os olhos claros e tranquilos, cheios de infantil simplicidade, eram magníficos.

Quando, numa noite de 1470, um adolescente desconhecido lhe bateu à porta da casa, junto do Palácio Pitti, Toscanelli recebeu-o com secura e frieza, suspeitando nele apenas um banal visitante, curioso e desocupado. Logo porém que conversou com Leonardo, ficou, como outrora nesser Biaggia da Ravenna, estupefacto, pelo seu génio matemático.

Tornou-se seu mestre. Pelas claras noites de Verão, ambos subiam a uma das colinas dos arredores de Florença, Poggio del Pino, coberta de urzes, de zimbros perfumados e de negros e resinosos pinheiros. No cimo havia um grande casarão meio arruinado que servia de observatório ao astrónomo. Era ali que ele ensinava ao aluno tudo quanto sabia acerca das leis da Natureza.

Nestas conversações consolidava Leonardo a sua fé na ciência nova e desconhecida dos homens.

Seu pai, deixando-lhe a liberdade de escolha, aconselhava-lhe no entanto uma ocupação lucrativa.

Vendo-o sempre modelando e desenhando, messer Pedro levou um dia alguns dos seus trabalhos ao seu velho amigo ourives, pintor e escultor, Andrea del Verocchio; e foi assim que Leonardo entrou como aprendiz para o atelier deste.

 

Verocchio, filho dum modesto oleiro, nascera em 1435, sendo, por consequência, dezassete anos mais velho que Leonardo. Vivia numa velha e modesta casa à beira do Arno e o seu aspecto era mais o dum comerciante que o dum artista. O rosto, de pouca mobilidade e achatado, terminava por um duplo queixo. Os olhos eram pequenos, mas o olhar agudo e penetrante anunciava um espírito calmo, perscrutador e minuncioso.

Verocchio considerava as matemáticas como a base da arte e das ciências, e dizia que a geometria, sendo uma parte das matemáticas, "mãe de todas as ciências", era ao mesmo tempo "mãe do desenho, pai de todas as artes". A ciência perfeita e a plenitude da beleza eram para ele uma e a mesma coisa. Se encontrava uma cabeça ou qualquer parte do corpo humano que lhe parecia rara, pela beleza ou pela fealdade, logo a estudava e a moldava em gesso.

No dia em que messer Pedro de Vinci lhe trouxe o filho, que tinha então dezoito anos, a sorte de ambos ficou decidida. Andrea tornou-se simultaneamente professor e aluno de Leonardo.

No quadro encomendado a Verocchio pelos frades de Vallombrosa. O Baptismo do Senhor, Leonardo pintou um anjo ajoelhado. Tudo o que Verocchio sentia, tudo quanto ele procurava às apalpadelas, como um cego, já Leonardo tinha visto, compreendido e encarnado na figura do anjo. Mais tarde, contava-se que o mestre, desesperado por se ver ultrapassado pelo jovem discípulo, renunciara à pintura. Mas isso era maledicência. Na realidade, completavam-se um ao outro. Sem invejas nem emulações, muitas vezes eles próprios não sabiam o que um ao outro ficavam devendo.

Verocchio andava então a moldar em bronze um grupo representando Cristo e o Apóstolo Tomé, para a igreja de Or-San-Michel.

No meio das visões paradisíacas de Frei Beato Angélico e dos sonhos de Sandro Botticelli, apareceu então, pela primeira vez, no gesto de Tomé tocando a chaga do Senhor, o que ainda se não tinha visto: a audácia do homem em face de Deus, do espírito experimentador perante o milagre.

 

A primeira obra de Leonardo foi um desenho em cartão, executado em duas cores, a pincel, para a tapeçaria de oiro e seda, tecida na

Flandres, que os cidadãos florentinos queriam oferecer ao rei de Portugal. O desenho representava a queda de Adão e Eva. Os pormenores do tronco nodoso duma das palmeiras eram dados com tal perfeição que, segundo a expressão dum entendedor, "o espírito perturbava-se com a ideia que um homem pudesse possuir tamanha soma de paciência". A serpente tinha um rosto de mulher de sedutora beleza e parecia estar dizendo: "Não, não morrereis, mas sabe Deus que, no dia em que comerdes deste fruto, os olhos se vos abrirão e sereis iguais aos deuses, conhecendo o bem e o mal".

A mulher estendia a mão para a árvore da ciência, com o mesmo sorriso de audaciosa curiosidade que brincava no rosto de Tomé, o Incrédulo, pousando os dedos nas feridas do Crucificado, na obra de Verocchio.

Em 1481, Leonardo recebeu dos frades de São Donato, em Scopeto, a encomenda dum quadro representanto a adoração dos Magos.

No esboço desta obra revelou um tal conhecimento da anatomia e uma tal arte em traduzir os sentimentos humanos nos movimentos do corpo, como nunca até então tinham sido encontrados em nenhum mestre.

Ao fundo do quadro vê-se uma igreja em ruínas; as personagens entregam-se a alegres folguedos e lutas; à sombra das oliveiras, a Mãe de

Deus está sentada com o Menino Jesus e sorri, admirada dos presentes que os Magos lhe trazem. Estes, carregados de anos e de sabedoria, contemplam o milagre da Encarnação de Deus feito homem, e ajoelham diante dAquele que há-de dizer estas palavras: "Em verdade vos digo que, se vos não transformardes em meninos, não entrareis no Reino dos Céus."

Nas suas duas primeiras obras, Leonardo exprimiu por assim dizer toda a gama das suas aspirações. A Queda mostra-nos a sabedoria da serpente na audácia do espírito; a Adoração dos Magos, a simplicidade infantil na humildade da fé.

Este segundo quadro nunca o pintor o terminou; como, no futuro, não acabou quase nenhum dos trabalhos principiados. Na ânsia da inacessível perfeição, criava-se tais dificuldades que o pincel era incapaz de as vencer. "O desejo desmedido", na expressão de Petrarca, "impede a satisfação".

A segunda mulher de messer Pedro, Madona Francesca, morreu ainda nova. Pedro tornou a casar, pela terceira vez, com Margherita di Guglielmo, que lhe trouxe em dote trezentos e sessenta e cinco florins.

A nova madrasta não estimava Leonardo, principalmente depois de terem nascido os seus filhos António e Juliano.

Leonardo era pródigo. Messer Pedro ajudava-o, mas com parcimónia.

Monna Margherita censurava asperamente o marido por este despojar dos seus bens os herdeiros legítimos, em benefício do filho ilegítimo, que bebera o leite duma cabra enfeitiçada.

Entre os camaradas encontrados em casa de Verocchio, e outros ateliers, contava Leonardo muitos inimigos. Um destes, tomando como pretexto a extraordinária amizade que reinava entre o mestre e o discípulo, fizera um relato anónimo em que os acusava de sodomia. A calúnia tinha os seus visos de veracidade no facto de o jovem Leonardo, um dos mais belos rapazes de Florença, viver sempre afastado das mulheres. "Em todo o seu exterior", diz um contemporâneo, "havia uma tal irradiação de beleza que à sua vista a alma mais triste se iluminava).

Nesse mesmo ano abandonou o atelier de Verocchio e instalou-se por sua própria conta. Corriam então rumores acerca das suas opiniões heréticas e do seu ateísmo. A permanência em Florença tornava-se cada vez mais difícil.

Messer Pedro arranjou para o filho uma encomenda lucrativa de Lourenço de Médicis. Leonardo, porém, não logrou satisfazê-lo. Lourenço exigia, sobretudo, de quantos se lhe aproximavam, um respeito servil; não estimava as inteligências ousadas nem os espíritos livres e originais.

O artista quis então abandonar Florença. Sentia que se ali permanecesse mais tempo a vida lhe seria impossível no meio das contínuas complicações que teria de suportar.

O acaso veio em seu auxilio. Inventou um alaúde de prata com o feitio duma cabeça de cavalo e provido de inúmeras cordas. O som e o singular feitio deste instrumento agradaram tanto a Lourenço, o Magníficoque este o encarregou de ir a Milão entregá-lo como presente a Ludovico, o Mouro, duque da Lombardia.

Em 1482, com trinta anos de idade, Leonardo abandonou Florença e dirigiu-se a Milão, não como artista ou como sábio, mas simplesmente como músico da corte, sonatore di lira. Na carta que escreveu a Ludovico, Leonardo propunha-lhe também os seus serviços como construtor de máquinas de guerra, pontes incombustíveis, bombardas, canhões, casas e palácios.

Assim que Leonardo viu pela primeira vez a verde Lombardia dominada pelos picos nevados dos Alpes, sentiu que uma nova vida tinha começado para si e que aquela terra estrangeira se tornaria a sua pátria.

 

Era assim que trepando a montanha Leonardo rememorava o meio século da sua existência.

Estava próximo do cimo. A vereda agora subia a direito sem torcicolos. As montanhas vizinhas, que sob a acção do vento se tingiam dum violeta vago, pareciam selvagens, desertas e terríficas, como se pertencessem a um outro planeta. As rajadas cegavam Leonardo, vergastando- lhe o rosto, picando-o de agulhas geladas. As vezes, os seus passos faziam rolar no abismo uma pedra que se perdia com um rumor surdo.

Ia subindo sempre e uma estranha alegria vinha-lhe do esforço dessa ascensão, como se tivesse vencido a montanha selvagem e abrupta, defendida pelo vento; e a cada passo o seu olhar explorava o horizonte, que se ia alargando cada vez mais.

Ainda não tinha chegado a Primavera: nenhum rebento nas árvores, a erva verdejava apenas. Sentia-se o olor húmido e penetrante dos musgos. E mais alto ainda, para onde ele ia, as rochas e o céu pálido. A planície onde estava Florença não se divisava, mas toda a extensa paisagem do lado de Empoli se lhe desenrolava sob os olhos: primeiro, as montanhas, a seguir as colinas em vagas infinitas prolongando-se de Livorno, por Castellina-Maritima e o Volteranno, até San-Gimignano. Por toda a parte a imensidade, o vácuo, a leveza do ar, como se o estreito atalho lhe fugisse debaixo dos pés. Lentamente, com uma facilidade de que não tinha consciência, parecia-lhe que pairava sustentado por umas gigantescas asas, para além dos longínquos e ondulados horizontes. Essas asas pareciam-lhe já ser naturais, necessárias mesmo, e a sua ausência fazia nascer-lhe na alma a admiração e o temor, como num homem subitamente privado dos pés.

Lembrou-se de como, na sua infância, costumava seguir com a vista o voo dos corvos, como lhe parecia ouvir esse grito, pouco distinto, semelhante a um apelo: "Voemos, voemos!" E ele chorava de raiva. Lem- brou-se ainda de como costumava abrir às escondidas as gaiolas onde o avô prendia os estorninhos e as toutinegras, feliz por poder restituí-las à liberdade. Um dia o frade, seu mestre-escola, contou-lhe a história de Ícaro, filho de Dédalo, que, querendo elevar-se nos ares com umas asas ligadas com cera, caiu e matou-se. Mais tarde, o professor perguntou-lhe qual o herói da Antiguidade que lhe parecia maior e que mais admirava, e ele respondera sem hesitação: "Ícaro, filho de Dédalo". Recordou-se ainda da sua admiração e contentamento quando descobriu pela primeira vez no campanário de Santa Maria del Fiori, entre os baixos-relevos de Giotto, que representavam os diversos graus das ciências e das artes, o mecânico Dédalo coberto de penas, dos pés até à cabeça. Havia ainda uma outra recordação da sua primeira infância, um desses sonhos que parecem talvez ridículos mas que são às vezes cheios dum mistério profético. Era um sonho que ele guardava no mais profundo da sua alma:

"É bem certo que toda a minha vida hei-de procurar um meio de voar", escreve no seu Diário, "pois que me lembro de ter sonhado uma vez, sendo muito menino, e estando no meu berço, que um milhafre real, voando por cima de mim, me abriu a boca e passou por diversas vezes as suas asas sobre os meus lábios, significando assim que toda a minha vida eu me ocuparia dessas asas".

A profecia realizara-se. As asas humanas tinham-se tornado a aspiração principal de toda a sua vida.

E agora mesmo, nessas alturas dos Montes Albanos, lhe parecia, como há quarenta anos, que era uma ofensa insuportável e uma inferioridade os homens não terem asas. "Aquele que tudo sabe, tudo pode", pensava Leonardo. "É preciso pois saber, e as asas virão".

Que o vento parecia, constantemente, querer empolgá-lo e arrojá-lo, como quem arroja uma folha.

Leonardo, ao contemplar a mesquinha figura do discípulo, considerava a sua própria fraqueza, a maldição da impotência que pesava sobre toda a sua vida, os insucessos constantes, a ruína estúpida do Colosso, as desditas de todos que o amavam, a doença de Giovanni, e o terrível, o eterno isolamento. "Asas!", pensou. "Será possível que eu morra sem ver realizada esta minha aspiração?"

Vieram-lhe à ideia palavras que o mecânico Astro murmurava às vezes no seu delírio, a resposta do filho do homem Àquele que o seduzia, mostrando-lhe o horror do abismo, e o êxtase do voo: "Não tentarás o Senhor teu Deus".

O vento transformara-se em furacão, assobiando e gemendo aos ouvidos com rugidos semelhantes aos de uma trovoada ensurdecedora e constante, como se pássaros invisíveis, malfazejos e rápidos, passassem constantemente açoitando o ar com as suas asas formidáveis.

Leonardo, chegado à beira do precipício, deteve-se, debruçou-se e, de repente, mais forte do que nunca, se apoderou dele o sentimento de que o homem tinha uma necessidade natural e imperiosa de voar.

- Terá asas - murmurou -, esse dia há-de chegar! Se não for eu, será um outro que desvendará o segredo, mas o homem voará. O espírito não mentiu, os que tiverem asas serão iguais aos deuses!

Por um momento julgou ser o rei do ar, o vencedor da gravidade e de todas as distâncias; o Filho do homem em toda a sua pujança e sua glória; a águia real, voando com as asas gigantes, brilhantes e brancas como a neve, no azul do céu.

E a sua alma encheu-se duma alegria tal que raiava o pavor!

 

Numa última volta do caminho, sentiu de repente que alguém atrás dele o agarrava pela veste. Voltou-se e viu o seu discípulo Giovanni Beltraffio.

Sobrolhos franzidos, cabeça baixa, segurando o chapéu com a mão, Giovanni lutava contra o vento; aproximou-se enfim e entregou ao artista uma carta em que este logo reconheceu a letra de messer Agapito. o secretário do duque César Bórgia.

- Desce! - disse-lhe ao ver o rosto de Giovanni arroxeado pelo frio. - Sigo-te imediatamente!

Beltraffio começou a descer. O dorso curvado, agarrando-se aos arbustos, escorregando nas pedras. Era tão pequeno, tão magro e tão fraco

Ao descer da montanha, o Sol estava quase a esconder-se. O vento diminuía.

Chegou a Anciano. De repente, numa volta do caminho, em baixo, na Planície profunda e acolhedora, apareceu a aldeia sombria de Vinci, semelhante a um berço, ou a um cortiço, com a torre da fortaleza pontiaguda como um cipreste.

Parou e escreveu no seu caderno de notas o seguinte:

"Da montanha que herdou o nome de vencedor - Vinci vincere significa vencer - o grande pássaro levantará o seu primeiro voo; o hoiuem cavalgando o cisne soberbo encherá o mundo de espanto e todos os livros com o seu nome imortal. A glória eterna marcará o ninho onde ele nasceu."

Olhando a sua aldeia natal, no sopé da Montanha Branca, repetiu: "A glória eterna marcará o ninho onde nasceu o grande cisne."

A carta de messer Agapito exigia a apresentação imediata do novo mecânico no acampamento de César, para montar as máquinas destinadas ao projectado assalto de Faenza.

Dois dias mais tarde, Leonardo deixava Florença para ir apresentar- se a César Bórgia, na România.

 

                   CAPÍTULO XII - OU CÉSAR - OU NADA (1500-1503)

"Aut Caesar aut nihil."

César Bórgia "Um soberano deve ser simultaneamente um herói e um animal feroz."

                 Machiavel

 

"Nós, César Bórgia, pela graça de Deus Duque de România, Príncipe de Andria, soberano de Piombino, etc., etc., porta-estandarte e capitão general da muito Santa Igreja Católica:

"A todos os lugares-tenentes, castelãos, comandantes de exército, condottieres, oficiais, soldados e a todos os nossos vassalos, ordenamos: que recebam com amizade o portador da presente, a ele (e a todos os que o acompanharem), o célebre e amado Leonardo de Vinci, nosso arquitecto e construtor geral; que lhe concedam livre-trânsito; que lhe permitam medir, examinar e estudar tudo o que quiser nos nossos castelos e fortalezas; que lhe forneçam imediatamente quantos homens ele requisitar e que lhe prestem em tudo auxílio e concurso.

"Dado em Pavia, aos 18 de Agosto do ano de 1502 da era cristã, e do segundo ano do nosso reino em România.

                   Caesar Dux Romandiolae.”

 

Tal era o salvo-conduto de Leonardo, destinado à sua inspecção geral às fortalezas da România.

Nessa época, graças às perfídias e às concussões cometidas sob a alta protecção do Pontífice Romano e do mui cristão rei de França, César Bórgia tinha conquistado os antigos domínios da Igreja que os Papas julgavam ter recebido como presente do imperador Constantino. Depois de tomada a cidade de Faenza ao seu legítimo senhor, Astorre Manfredi, jovem de 18 anos, e a cidade de Forli, a Catarina Sforza, lançou a mulher e a criança que tinham confiado na sua honra de cavaleiro nas masmorras do castelo romano de Santo Ângelo. Concluiu um tratado com o duque de Urbino, Guidobaldo di Montefeltro, para mais facilmente poder cair sobre ele, e, encontrando-o desarmado, espoliá-lo, como usam fazer os salteadores de estrada.

No Outono de 1502, decidiu uma expedição contra Bentivoglio, administrador de Bolonha, com o intuito de fazer desta cidade, após a conquista, a capital do seu novo Estado. O terror ia dominando os chefes dos Estados vizinhos, que compreendiam que, cedo ou tarde, se tornariam presas do César ambicioso, que sonhava, indubitavelmente, com a ruína dos seus rivais, para proclamar-se soberano único e autocrata da Itália.

Em 25 de Setembro, os inimigos do duque de Valentinois, o cardeal Pagolo, o duque de Cravina-Orsini, Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo, Jean-Paul Baglioni, governador de Perusa, António de Benaffro, enviado dos Regentes de Siena, e Pandolfo Petracchi, reuniram-se na cidade de Maggione e concluíram um pacto secreto contra César.

Vitellozzo Vitelli fez mesmo com que nessa assembleia fosse pronunciado o juramento de Aníbal: matar, prender ou escorraçar o inimigo comum dentro dum ano.

Logo que a notícia do tratado de Maggione se espalhou, inúmeros personagens que o duque de România tinha ofendido aderiram àquele pacto. O ducado de Urbino revoltou-se e separou-se de César. Nos seus próprios regimentos começaram as traições. O socorro do rei de França tardava; o Duque estava à beira do precipício. Se bem que traído, abandonado e quase desarmado, César não perdera uma parcela da sua ferocidade. Tendo deixado passar, em hesitações e mesquinhas querelas, a boa oportunidade de o vencer, os inimigos acabaram por entrar em negociações com ele e consentir num armistício. Seduzindo-os com ardis, ameaças e promessas, conseguiu ludibriá-los e desuni-los. Depois do que com o profundo sentimento da hipocrisia que lhe era peculiar, encantou com as suas amabilidades os novos amigos, convidando-os a reunir-se a ele em frente da cidade de Sinigaglia, pretendendo mostrar-lhes assim a sua dedicação não só por palavras mas por actos, numa expedição comum.

Leonardo tornou-se um dos principais familiares de César Bórgia.

Por ordem do Duque, embelezava as cidades conquistadas com magníficos monumentos, palácios, escolas, bibliotecas; construía enormes casernas para as tropas de César no local ocupado pela destruída fortaleza de Castel-Bolonese; escavava a entrada de Porto-Cesenatico, o melhor de toda a margem ocidental do Adriático, e reunia-o a Casena por meio dum canal; fundava a formidável fortaleza de Piombino. Planeava máquinas de guerra, desenhava mapas militares; seguindo o Duque por toda a parte, e sempre presente a todas as sangrentas empresas de César, mantinha, como de costume, o seu diário, breve, exacto e imparcial.

Notava tudo quanto encontrava no seu caminho, mas, como se não visse ou não desejasse ver o que se fazia em seu redor, nenhuma palavra deste diário fazia alusão ao duque de România.

Em 9 de Junho de 1502 foram encontrados no Tibre, perto de Roma, os cadáveres do jovem soberano de Faenza, Astorre, e de seu irmão, estrangulados com cordas. Tinham-lhes prendido pedras ao pescoço e deviam ter sido lançados ao Tibre do alto do Castelo de Santo Ângelo.

Os corpos eram tão belos, segundo a opinião dos contemporâneos, que dificilmente teria sido possível encontrar semelhantes entre muitos milhares de outros; conservavam os vestígios das violências sofridas. A opinião pública atribuía este crime a César. Nesta mesma altura, Leonardo escrevia o seguinte no seu jornal: "Empregam-se em România carros de quatro rodas; as rodas da frente são pequenas; as de trás, grandes; esta combinação é absurda, porque segundo as leis da física - veja-se o quinto parágrafo dos meus Elementos - todo o peso incide sobre as rodas da frente."

Era assim que, guardando o silêncio sobre as grandes violações das leis do equilíbrio moral, Leonardo se preocupava com a violação das leis da mecânica, na construção dos carros na România.

 

Na segunda metade do mês de Dezembro do ano de 1502, o duque de Valentinois dirigiu-se, acompanhado por toda a sua corte e pelo seu exército, à cidade de Fano, sobre o Adriático, a vinte milhas de Sinigaglia; era ali que devia realizar-se a entrevista do Bórgia com os antigos conspiradores Oliverotto Fermo, Orsini e Vitelli. No fim desse mesmo mês, Leonardo deixava também a cidade de Pesaro para ir reunir-se a César.

Tendo partido de manhã, pensava chegar ao seu destino na tarde do mesmo dia. Porém, uma tempestade que se desencadeou, enchendo de neve os caminhos e tornando-os intransitáveis, dificultando a marcha das mulas que a cada passo tropeçavam, escorregando nas pedras cobertas de geada, prejudicou os seus cálculos. Em baixo, à esquerda do estreito atalho da montanha, sobranceiro ao precipício, sob o qual cachoavam as ondas negras do Adriático que vinham quebrar-se na praia branca de neve, de repente, com grande terror do guia, a sua montada espantou-se; sentira o cheiro do corpo dum enforcado, que se baloiçava no galho duma árvore solitária.

A noite caía. Os viajantes iam já ao acaso, rédeas lassas, fiados no instinto dos animais. Ao longe viram cintilar uma luz. O guia reconheceu uma hospedaria nos arrabaldes de Novilara, lugarejo perdido na montanha, exactamente a meio caminho entre Pesara e Fano.

Durante muito tempo bateram às enormes portas pregueadas de ferro, semelhantes a portas de fortaleza. Finalmente, um moço de cavalariça, meio estremunhado, apareceu segurando uma lanterna, e a seguir acudiu o próprio hospedeiro, recusando agasalho aos recém-vindos sob o pretexto de ter completamente cheios todos os quartos e cavalariças. Não havia em toda a estalagem, nessa noite, nenhum leito para o qual não estivessem destinadas já três ou quatro pessoas, e muitas até personagens de nobreza ou militares da comitiva do Duque.

Assim, porém, que Leonardo declinou o seu nome e apresentou o salvo-conduto, com o selo e a assinatura de César, o locandeiro desfez- se em desculpas e ofereceu-lhe o seu próprio quarto, que por enquanto estava apenas ocupado por três comandantes dum destacamento francês.

Estes, completamente embriagados, dormiam já com um sono de chumbo. O hospedeiro e a mulher iriam dormir para uma dependência ao lado da forja.

Leonardo entrou para a sala que servia, simultaneamente, de cozinha e de casa de jantar; esta era semelhante a todas as suas congéneres dos albergues da România: sórdida, enfumarada, com as paredes nuas cobertas de nódoas da humidade; as galinhas passeavam nela livremente; das traves do tecto, enegrecidas, pendiam fieiras de presuntos e chouriços.

Um grande fogo chamejava na enorme lareira, no qual um porco estava sendo assado no espeto. Ao reflexo vermelho das chamas, sentados a uma comprida mesa, os hóspedes comiam, questionavam, jogavam aos dados.

ao xadrez e às cartas. Leonardo sentou-se junto do fogo, aguardando a ceia encomendada.

A mesa, onde o artista reconheceu o velho capitão dos lanceiros do Duque, Baldassar Scipione, o tesoureiro principal da corte, Alessandro Spanoccia, e o enviado de Ferrara, Pandolpho Colenuccio, um conviva.

cujo rosto lhe era desconhecido, falava com voz estridente, acompanhando o discurso com uma gesticulação exuberante:

- Posso demonstrar-vos isto, signori, com precisão matemática, baseado nos exemplos colhidos na história antiga e moderna. Lembrai-vos apenas dos Estados que adquiriram glória militar: os Romanos, os Lacedemónios, os Atenienses, os Etolianos, os Aqueus, e muitas outras tribos do lado de lá dos Alpes. Todos os grandes conquistadores formaram os seus exércitos com súbditos da sua própria nação: Nino, entre os Assírios; Ciro, entre os Persas; Alexandre, nos Macedónios. Verdade seja que Pino e Aníbal ganharam as suas vitórias com mercenários; mas aqui tudo dependia do génio extraordinário dos chefes que sabiam insuflar aos soldados estrangeiros a coragem e o valor das milícias nacionais.

Além disso, não esqueçais também que a pedra angular da arte da guerra é a infantaria; é nela que reside a força decisiva dum exército e não na cavalaria nem nas armas de fogo ou na pólvora, essa inepta invenção dos tempos modernos.

- Não vos deixeis arrebatar pelo vosso entusiasmo, messer Niccolo

- respondeu o capitão de lanceiros com um sorriso delicado. - As armas de fogo cada dia que passa adquirem maior importância. Os exércitos actuais estão bem melhor equipados que os antigos. Seja dito, sem ofender Vossa Graça, um esquadrão dos nossos cavaleiros franceses, ou um corpo de artilharia com trinta bombas, repeliria não apenas uma guarda- avançada mas até toda a vossa infantaria romana, fosse ela, embora, firme como um rochedo!

- Sofismas, sofismas! - dizia messer Niccolo, entusiasmando-se.

- Reconheço nas vossas palavras, signori, um erro lamentável, à custa do qual os melhores estrategistas do nosso tempo adulteram a verdade.

Dai tempo ao tempo! Uma horda de bárbaros do Norte há-de vir um dia lutar com os italianos e então estes reconhecerão a mesquinha fraqueza dos mercenários. Convencer-se-ão do pouco que valem a cavalaria e a artilharia, comparadas à força duma massa de infantaria correcta; mas então será demasiado tarde. Como é possível que pessoas de senso discutam assim contrariamente a toda a evidência!

Leonardo olhava com curiosidade para aquele homem que falava de todas estas coisas antigas como se as tivesse visto com os próprios olhos.

O desconhecido envergava uma veste de fazenda vermelho-escuro, dum corte majestoso, em pregas direitas como usavam os altos funcionários da República florentina e os secretários de embaixada. Esses trajos, porém, tinham um ar cansado e sujo, e a fazenda mostrava já o fio nas mangas. A julgar pelo colarinho da camisa, que se via subir por fora do gibão, a roupa branca estava também duma alvura duvidosa. As grandes mãos ossudas, com um calo no terceiro dedo da direita, como costumam ter as pessoas que escrevem muito, estavam manchadas de tinta. Quase nada, no aspecto exterior deste homem, inspirava respeito; não era demasiado velho, mas aproximava-se dos quarenta: era magro, de ombros estreitos e as feições duras do rosto anguloso tinham qualquer coisa de vivo e característico. Os olhos grandes e cinzentos queriam parecer sarcásticos e perversos, mas, apesar disso, passavam neles às vezes uns vislumbres de timidez, de fraqueza e de impotência infantil.

Messer Niccolo continuava a desenvolver as suas teorias sobre a força militar da infantaria, e Leonardo admirava-se da mistura de falso e de verdadeiro, de audácia infinita e de imitação servil dos antigos, que se manifestava nas suas palavras. Não chegou a assistir ao fim da discussão porque o hospedeiro veio buscá-lo para o conduzir ao aposento já preparado.

 

Na manhã seguinte a tempestade redobrou de violência. O guia recusou-se a partir, asseverando que, com tempo semelhante, nem homens nem animais se aguentariam no exterior; e assim o artista viu-se forçado a passar o dia na estalagem. Dirigiu-se à sala onde messer Niccolo explicava a um moço sargento de artilharia francesa, jogador inveterado, uma regra que dizia ter encontrado nas leis das matemáticas puras e pela qual conseguia ganhar sempre ao jogo dos dados, vencendo assim "a sorte inconstante e obscena", segundo a sua própria expressão. Explicava o seu sistema de maneira inteligente e prolixa, mas, cada vez que tentava uma demonstração prática, perdia sempre, com grande espanto seu e gáudio da assistência. Justificava-se, então, dizendo ter cometido um erro na aplicação da regra, de resto absolutamente exacta e infalível. O jogo terminou, contudo, de forma imprevista e pouco agradável para messer Niccolo: na altura da liquidação das contas, verificou-se que a sua bolsa estava completamente vazia e não tinha com que pagar.

Noite adiantada, chegou uma célebre cortesã veneziana, conhecida pelo apodo de "a grande pecadora", Lena Griffa, que se fazia acompanhar de enorme quantidade de bagagem, inúmeros criados, pajens, moços de cavalariça, bobos, negros e variadíssimos animais recreativos. Esta dama conseguira outrora, em Florença, escapar milagrosamente dos ataques do Santo Exército dos Pequenos Inquisidores, organizado pelo Irmão Girolamo Savonarola, devido às suas altas protecções.

Dois anos antes, seguindo o exemplo de muitas das suas amigas.

monna Lena dissera adeus ao mundo, e transformada em Madalena arrependida tomara o véu de freira. Mas a pouco convicta crisálida monacal em breve deixara voar uma brilhante borboleta metamorfoseada. Lena Griffa fez então rápida e afortunada carreira: segundo o costume das cortesãs de alto coturno, a mammola, a hetera veneziana, arquitectara uma muito completa árvore genealógica que provava ser filha ilegítima de Ascânio Sforza, irmão do duque de Milão. Tornou-se então a concubina principal dum velho cardeal, meio idiota e extremamente rico. Era para encontrar-se com ele em Fano que Lena Griffa partira de Veneza e empreendera esta viagem.

O dono da hospedaria encontrava-se numa situação difícil: por um lado, não se atrevia a recusar alojamento a uma dama tão célebre, "Sua Reverência", amiga dum cardeal; e, por outro, não tinha quartos livres.

Após várias diligências, conseguiu entender-se com um comerciante de Ancona, que transigiu, mediante um grande abatimento no ajuste combinado, em abandonar o seu vasto quarto de dormir à comitiva da cortesã.

Para alojar pessoalmente a dama, pediu a messer Niccolo e aos seus companheiros de quarto, os cavaleiros franceses dYves dAllegre, que fossem fazer companhia ao comerciante, dormindo todos essa noite na forja.

Niccolo encolerizou-se e começava a irritar-se, perguntando ao proprietário se estava em seu juízo, se sabia com quem estava tratando, para permitir-se semelhantes inconveniências com pessoas de categoria, e tudo isto por causa duma aventureira. Aqui, porém, interveio a mulher do estalajadeiro, criatura de humor tempestuoso e sem papas na língua, que fez notar a Niccolo que, em vez de fazer barulho, mais valeria que pagasse o que devia pela sua alimentação, e pelo serviço, sem falar já em quatro ducados que seu marido lhe emprestara, por pura bondade, a semana precedente.

Havia, com certeza, uma grande parte de verdade nestas acusações, porque Niccolo calou-se de repente e, baixando os olhos sob o olhar acusador da hospedeira, começou a reflectir na maneira mais airosa de sair daquele passo. "Messer", disse-lhe então Leonardo, tirando a sua touca e dirigindo-se-lhe com um sorriso amável, "se quereis partilhar comigo o asilo que me coube, considerarei uma grande honra prestar esse pequeno serviço a Vossa Graça".

Niccolo voltou-se para ele sem disfarçar certa admiração e acanhamento, mas a seguir aceitou e agradeceu com dignidade.

Dirigiram-se então para o quarto de Leonardo e o artista começou a preparar o melhor lugar para o seu novo companheiro.

Quanto mais o examinava, mais esse homem lhe parecia curioso e atraente. Este declinou então o seu nome e atributos. "Niccolo Machiavel, secretário do Conselho dos Dez da República de Florença".

Três meses antes a Senhoria, astuta e prudente, tinha enviado Machiavel a negociar com César Bórgia, a quem esperava ludibriar, respondendo às suas proposições de aliança contra os inimigos comuns Oliverotto, Orsini e Vitelli, com declarações de dedicação platónicas e ambíguas. Na realidade, a República temia o Duque, mas não o desejava ter nem como amigo nem como inimigo. Messer Niccolo, sem credenciais de poderes particulares, estava simplesmente encarregado de negociar as cláusulas do livre-trânsito das mercadorias florentinas através dos territórios do Duque, ao longo do Adriático, assunto, de resto, bem importante para o comércio, essa "mola real da República", como se exprimiam as cartas que acreditavam o seu representante.

Leonardo deu-se também a conhecer, nomeando o título do seu cargo na corte do duque de Valentinois. Conversaram depois com essa facili- dade e confiança próprias das criaturas meditativas e solitárias, e de opiniões fortemente enraizadas.

- Messer - confessou imediatamente Niccolo, e esta franqueza agradou a Leonardo -, tenho ouvido muitas vezes falar de vós como de um grande artista, mas devo confessar que não entendo nada de pintura, que é arte que me interessa pouco; no entanto, tenho também ouvido dizer que o duque de Valentinois vos considera um grande sábio, versado nas ciências políticas e militares, e, nesse capítulo, muito gostaria de conversar um dia com Vossa Graça. Sempre me pareceu ser esse um tema importante e digno de atenção; considero-o como o meu cavalo de batalha, e dele não descerei senão quando vós me ordenardes que me cale.

Os nossos Magníficos Senhores não pretendem saber coisa nenhuma além dos preços da venda de lã e da seda; e eu - acrescentou com um sorriso cheio de altivez e amargura -, e eu, a quem o destino tanto tem castigado, como não sei discutir acerca de lucros e perdas, nem do que se refira ao comércio, tenho de escolher entre estas duas coisas: ou calar-me ou falar de política. Quero estudar a natureza desses grandes organismos chamados Repúblicas ou Monarquias, sem paixão, sem louvor nem vitupério, como matemático que estuda a natureza dos números. Sei que é perigoso e difícil, porque é na política que mais se teme a verdade, que ela é o campo das maiores vinganças; mas apesar de tudo hei- de dizer-lhe a verdade, embora venha a perecer numa fogueira como o Irmão Girolamo Savonarola.

Leonardo estudava com um sorriso involuntário, no rosto de Machiavel, as diversas expressões que neste deslizavam: a aura profética, a frivolidade, a audácia escolástica e certo estouvamento, ao passo que nos olhos estranhos e brilhantes do secretário florentino, se acendia por vezes um clarão de loucura.

E o artista pensava: "Com que emoção fala de tranquilidade e com que paixão fala de impassibilidade!”

 

Conversaram durante muito tempo. Leonardo perguntou-lhe, entre muitas outras coisas, como pudera ele, no decorrer da discussão do dia anterior, com o capitão dos lanceiros, negar a importância das fortalezas, da pólvora e das armas de fogo; não estivera a brincar?

- Os antigos Romanos e os Espartanos - respondeu Niccolo -, esses mestres infalíveis na arte da guerra, não faziam a mínima ideia da pólvora!

- Mas a experiência e o estudo da Natureza, cada dia que passa, nos trazem coisas novas com que os antigos nem sequer sonhavam! exclamou o artista.

Machiavel mantinha-se na sua opinião:

- Eu penso - afirmou - que, no que diz respeito aos negócios civis e à arte militar, os povos modernos caem em erro sempre que se afastam dos exemplos antigos.

- E julgais possível essa imitação, messer Niccolo?

- E por que não? A humanidade e os elementos, o céu e a terra, mudaram porventura de movimento, de estrutura ou de forças, são diferentes do que eram na Antiguidade?

Nenhum raciocínio logrou convencê-lo. Leonardo via o seu interlocutor, audacioso até à temeridade em certos assuntos, tornar-se de repente tímido e supersticioso como um escolástico enfatuado assim que se falava na Antiguidade.

"Este homem tem grandes desígnios, mas como conseguirá ele realizá- los?", perguntava-se Leonardo, ao lembrar involuntariamente a partida de dados durante a qual Machiavel expunha com tanta inteligência princípios abstractos, que o não impediam de perder, assim que passava à prática.

Era já tarde. Todos dormiam havia muito tempo. Na estalagem tudo estava tranquilo; apenas um grilo cantava a um canto e através da divisória de madeira ouviam-se às vezes passos no quarto vizinho.

Leonardo deitou-se depois de ter desejado a boa-noite ao seu companheiro; não conseguiu, porém, adormecer, contemplava Machiavel sentado à mesa de trabalho e escrevendo com uma velha pena de pato. Redigia, para os magníficos senhores de Florença, um relatório sobre os projectos e acções do duque de Valentinois, que, apesar do tom frívolo e jocoso empregado, não era isento de profunda sabedoria política.

A sua sombra, projectada sobre a pedra nua, parecia enorme à luz do coto de vela que se consumia.

A cabeça desenhava-se em traços angulosos e duros; o lábio inferior pendente e excessivamente comprido, o pescoço estreito e o nariz adunco como um bico de pássaro. Terminado o relatório sobre a política de César, Machiavel subscritou-o e lacrou-o, ajuntando ao endereço a nota habitual para as cartas urgentes: Cito, citissime, celerissime, "Depressa, mais depressa, o mais depressa possível", e abriu um volume de Tito Lívio, mergulhando no seu trabalho preferido já de muitos anos: os comentários que seriam mais tarde conhecidos sob o título de Discursos sobre as Décadas.

Leonardo seguia com o olhar a estranha sombra negra projectada na parede, à luz moribunda da vela. Enquanto a sombra se agitava e oscilava em convulsões irónicas, o rosto do secretário da República florentina mantinha uma calma solene e grave, um reflexo da grandeza da antiga Roma. Apenas na profundidade dos seus olhos, e às vezes nas comissuras dos lábios sinuosos, passava uma expressão de malícia equívoca, amarga e displicente, quase cínica.

 

Na manhã seguinte, a tempestade amainou. Através dos vidros gelados, dum verde turvo, o sol cintilava como através de pálidas esmeraldas. Os campos e as colinas debaixo dos flocos de neve brilhavam com ofuscante esplendor sob o céu desanuviado.

Quando Leonardo acordou, o seu companheiro já saíra do quarto. o artista desceu à cozinha, onde ardia um grande fogo, e deu ordem ao guia para aparelhar as mulas. Depois sentou-se à mesa a fim de restaurar as forças e preparar-se para a viagem. Ao seu lado, messer Niccolo, extraordinariamente agitado, conversava com dois recém-vindos. Um deles era um correio de Florença; o outro, um homem novo ainda, vestido com impecável elegância, mas duma figura banal semelhante às que se encontram a cada passo: era um certo messer Lúcio, sobrinho, conforme Leonardo soube mais tarde, de Francisco Vettori, cidadão importante e bem relacionado que protegia Machiavel. Este jovem, que era também aparentado com o gonfaloneiro de Florença, Pedro Soderini, dirigia-se a Ancona a tratar de assuntos particulares e encarregara-se de procurar Niccolo na România e entregar-lhe uma carta dos seus amigos florentinos.

Chegara juntamente com o correio.

- Não tendes razão para vos preocupar, messer Niccolo! – dizia Lúcio. - Meu tio Francisco garante-vos que o dinheiro será em breve expedido. Quinta-feira passada ainda os Senhores lhe prometeram...

- Messer - interrompeu Machiavel com voz irritada -, tenho comigo dois criados e três cavalos a quem não posso sustentar com a promessa dos Magníficos Senhores. Em Imola recebi sessenta ducados e já devia setenta. Se pessoas generosas se não tivessem compadecido de mim, o secretário da República de Florença teria morrido de fome. E é assim que os Senhores defendem como convém a honra da cidade, obrigando o seu homem de confiança a pedir emprestados ducados, aos três e aos quatro, em países estrangeiros!

Bem sabia ele que as suas queixas eram vãs. Mas isso era-lhe indiferente, contanto que pudesse desabafar a amargura que lhe enchia o coração. Não havia quase ninguém na cozinha; podia-se falar livremente.

- O nosso concidadão, messer Leonardo de Vinci, o gonfaloneiro deve conhecê-lo - continuou Machiavel, designando o artista, e Lúcio saudou-o delicadamente. - Messer Leonardo foi ainda ontem testemunha dos insultos a que eu ando exposto. Exijo, ouvi bem, não peço, exijo a minha demissão! - concluiu, excitando-se cada vez mais e julgando ver na sua frente, na pessoa do jovem florentino, toda a Magnífica Senhoria. - Sou pobre! Toda a minha vida está desordenada! E, para mais, sinto-me doente! Se as coisas continuarem assim, regressarei ao meu país dentro dum caixão! Além disso, já fiz tudo quanto podia fazer com os escassos poderes que me atribuíram e não vale a pena prolongar mais esta situação. Já escrevi também ao vosso tio...

- Meu tio - retorquiu Lúcio - fará por vós, messer, tudo que estiver em seu poder; mas, e isto é o pior, o Conselho dos Dez considera os vossos relatórios tão indispensáveis à prosperidade da República, que não quer ouvir falar na vossa demissão. "Este homem é único e insubstituível, dizem, é a vista e o ouvido da nossa República". Posso assegurar-vos, mestre Niccolo, que as vossas cartas têm em Florença um grande sucesso. Todos estão maravilhados da elegância e da fluência do vosso estilo. E então quando escreveis em tom humorístico, conseguis despertar uma alegria geral.

- Sim, senhor, magnífico! - exclamou Machiavel, cujo rosto se alterou de repente. - Agora sim, que eu compreendo tudo. As minhas cartas são do agrado desses Senhores. Deus seja louvado! Messer Niccolo serve ao menos para alguma coisa. A satisfação é geral, dignai-vos notar, apreciam a elegância do meu estilo, enquanto eu vivo aqui como um cão, gelado, morrendo de fome e tiritando de febre, e sofro toda a casta de humilhações, debatendo-me como um peixe no meio do gelo; e tudo isto para a prosperidade da República, que os diabos levem, mais o seu gonfaloneiro!

Uma cólera impotente apossava-se dele de tal maneira, à ideia dos seus chefes desprezados, que se deixou arrastar até às injúrias soezes.

Desejando mudar de conversação, Lúcio entregou-lhe então uma carta da mulher, a jovem monna Marietta.

Machiavel leu rapidamente as primeiras linhas traçadas numa escrita infantil e desajeitada:

"Ouvi contar", escrevia entre outras coisas Marietta, "que as febres e outras moléstias grassam nas terras por onde andais. Calculai, por isso, a inquietação em que vivo. Constantemente, de dia e de noite, os meus pensamentos vos acompanham. O menino, graças a Deus, está bem.

Começa a assemelhar-se-vos duma maneira extraordinária, e por isso me parece tão bonito! É esperto e alegre como o era há já um ano. Peço-vos insistentemente que volteis depressa, e não vos esqueçais de nós! Por Deus vos peço! Que Deus, a Santa Virgem Maria e o todo-poderoso Santo António (a quem eu rezo todos os dias para vos dar saúde) vos protejam."

Leonardo notou que, enquanto Machiavel lia esta carta, o rosto se lhe iluminava dum sorriso terno e bom, que pelo imprevisto espantava, nas suas feições secas e angulosas. Mas esse sorriso depressa desapareceu; erguendo os ombros com desprezo, amarrotou a carta, que meteu na algibeira, e murmurou irritado:

- Quem seria que teve a ideia ou sentiu a necessidade de espalhar boatos alarmantes acerca da minha saúde?

- Era impossível guardar segredo - respondeu Lúcio. – Monna Marietta ia todos os dias a casa dum dos vossos amigos, ou de algum membro do Conselho dos Dez; perguntava e tentava saber onde estáveis e tudo quanto vos acontecia...

- Ah! sim, não preciso que mo conteis, não tive sorte com ela! Fez um gesto de impaciência com a mão e acrescentou: - As comissões públicas e os negócios de Estado deviam ser apenas confiados aos celibatários! É preciso escolher: ou a mulher ou a política! - E, afastando-se um pouco, continuou com voz aguda e animada: - Não tendes intenção de vos casar, meu jovem amigo?

- Por enquanto, não, messer Niccolo - respodeu Lúcio.

- Aconselho-vos a não fazer nunca semelhante disparate! Deus vos preserve! O casar, messer, equivale a procurar uma enguia num saco cheio de serpentes. A vida conjugal é um fardo feito para as espáduas de Atlas, e não para as dum simples mortal. Não é verdade, messer Leonardo.

Leonardo olhava-o e comprendia que Machiavel nutria por monna Marietta uma profunda ternura, mas que tinha pudor desse sentimento e que pretendia dissimulá-lo sob a capa do cinismo.

A hospedaria esvaziava-se. Os viajantes tinham-se erguido muito cedo e partido para os seus destinos. Leonardo preparava-se também para a marcha, e convidou Machiavel a acompanhá-lo. Este, porém, abanou tristemente a cabeça e manifestou-lhe a necessidade em que se encontrava de aguardar o dinheiro de Florença, a fim de satisfazer as suas dívidas e poder alugar os cavalos. O artista pediu-lhe então insistentemente que aceitasse, como empréstimo, algum dinheiro; e Machiavel consentiu, depois de alguma hesitação, em receber trinta ducados.

 

Partiram. A manhã estava calma e agradável, duma tepidez primaveril ao sol e duma frescura perfumada e gelada à sombra. A neve espessa, de reflexos azuis, estalava sob as ferraduras dos cavalos e das mulas.

Entre as colinas brancas cintilava um mar de Inverno, dum verde pálido, onde passavam velas doiradas semelhantes a asas de borboletas.

Niccolo gracejava, tagarelava e ria. Os pormenores da paisagem, os encontros fortuitos, tudo lhe servia de pretexto para reflexões, umas vezes alegres outras melancólicas.

Ao meio-dia chegaram às portas da cidade de Fano. Todas as casas estavam cheias de soldados, de capitães, de gentis-homens do partido de César. Graças à sua qualidade de arquitecto da corte, Leonardo conseguiu obter dois quartos com janelas sobre a praça, ao lado do palácio.

Ofereceu um ao seu companheiro de viagem, a quem seria difícil encontrar alojamento noutro sítio.

Machiavel saiu logo em busca de novidades e voltou dentro em pouco com uma terrível notícia: o lugar-tenente principal do duque, Dom Ramiro de Lorqua, fora executado. Na manhã do dia de Natal, o povo encontrara na Piazzetta, entre o Castelo e a Rocca Cesena, o seu corpo decapitado, num mar de sangue: ao lado, um machado e a cabeça cortada espetada numa lança enterrada no solo.

- Ninguém conhece as causas da execução - dizia Niccolo. Porém, em toda a cidade, não se fala noutra coisa; e as opiniões são muito curiosas. Voltei a casa no intuito de vos convidar a dar um passeio para ouvirmos o que se diz!

Diante da antiga Catedral de S. Fortunato, a multidão aguardava a passagem do Duque, que devia dirigir-se ao campo onde se realizava uma revista de tropas. Todos falavam na execução do lugar-tenente e Leonardo e Machiavel misturaram-se com a multidão.

- Explicai-me, amigos - dizia um moço artífice de aspecto bonacheirão e estúpido -, por que razão se diz que César preferia o seu lugar-tenente a todos os outros gentis-homens?

- Foi por muito o estimar que o castigou - afirmou sentenciosamente um imponente comerciante de aspecto respeitável, envolto numa peliça de petit-gris. - Dom Ramiro enganava-o, oprimia o povo em seu nome, fez morrer muita gente por meio da tortura, e, nas prisões, praticou todas as violências! Diante do Duque, porém, fazia-se passar por um inofensivo cordeiro. Esperava que nunca ninguém conhecesse os seus crimes; mas não sucedeu assim. Chegou um dia em que a longanimidade do soberano se esgotou; e não concedeu o perdão ao seu primeiro gentil-homem quando se tratava da felicidade do povo. Haveis de ver agora que todos os que têm a consciência intranquila e pesada vão baixar receosos a cabeça. Compreenderão que a cólera do Duque é terrível, mas as suas sanções justiceiras. Agracia os humildes e abate os orgulhosos!

Um frade citou então as palavras do Apocalipse: "Apascentá-los-ás com um ceptro de ferro".

- Sim, é preciso castigá-los com um ceptro de ferro, aos cachorros, aos tiranos do povo!

- Sabe punir e sabe perdoar.

- Não podíamos ter um príncipe melhor.

- Na verdade - disse um camponês -, é evidente que o Senhor tomou a România sob a Sua protecção. Antigamente, esfolavam-nos, mortos ou vivos; os impostos e as contribuições arruinavam-nos. Apenas sob a regência do duque de Valentinois, que Deus conserve por muitos anos, conseguimos respirar um pouco.

- Protege os órfãos e consola as viúvas - acrescentou o frade.

- É um verdadeiro amigo do povo e não faz mal a ninguém!

- Meu Deus, meu Deus! - tartamudeou uma velha mendiga, enferma, chorando de enternecimento -, tu és o nosso benfeitor, o nosso pai bem-amado; que a Rainha dos Céus te proteja, ó Claro Sol!

- Ouvis, ouvis? - ciciou Machiavel ao ouvido do seu companheiro.

- A voz do povo é a voz de Deus. Eu sempre o disse: para ver a montanha é preciso estar na planície; para conhecer o soberano é preciso descer até junto do povo.

Ouviam-se as trombetas. A multidão agitava-se.

- É ele... É ele... Vem aí... Olhai...

Todos se erguiam nas pontas dos pés e estendiam o pescoço. Cabeças curiosas assomavam às janelas. Raparigas e lindas mulheres de olhares amorosos acorriam aos balcões e às loggias para ver passar o herói, "o César loiro e belo". Não podiam perder aquela ocasião, porque o Duque raras vezes se mostrava em público.

À frente, vinham os músicos fazendo um barulho ensurdecedor com os címbalos. A seguir, a guarda românica dos alabardeiros do Duque, escolhida entre os mais belos mancebos, com elmos e couraças de ferro e vestidos duma túnica, amarela do lado direito e vermelha do esquerdo.

Niccolo não se cansava de admirar a harmonia, realmente digna de Roma antiga, deste corpo criado por César. A seguir à guarda vinham os pajens, com gibões de brocado de oiro e romeiras de veludo papoula, ornadas de folhas de feto bordadas também a oiro; as bainhas das espadas e dos cinturões eram de escamas de serpente com fechos representando sete cabeças de víboras com os estiletes venenosos enristados para o céu: era este o escudo do Duque.

A palavra "César" enchia os peitos, bordada a prata sobre seda negra. No fim, vinha a guarda pessoal do Duque, os estradiotas albaneses, com turbantes verdes e amarelos e recurvados iatagãs.

O maestro del campo Bartolomeu Catranica empunhava alto o gládio nu de alferes da Igreja Romana. Atrás dele, num puro-sangue árabe, negro, vinha enfim o soberano da România: César Bórgia, duque de Valentinois, envolto num manto de seda azul pálido, bordado de lírios brancos e realçados por pérolas finas: os lírios da França. A couraça de bronze, polida como um espelho, tinha gravada uma cabeça de leão; o capacete representava uma espécie de monstro marinho ou de dragão de asas pontiagudas.

O rosto de César, que tinha então vinte e seis anos, emagrecera desde a época em que Leonardo o vira em Milão, pela primeira vez, na corte de Luís XII. As suas feições tinham adquirido uma maior dureza. Os olhos, dum azul profundo, brilhantes como o aço, dardejavam olhares reais firmes e impenetráveis. Os cabelos loiros, sempre bastos, e a barba apartada ao meio, iam escurecendo. O nariz alongado lembrava o bico duma ave de rapina. Uma serenidade perfeita reinava, como outrora, nesta fisionomia impassível, aliada a uma expressão de audácia ainda mais impetuosa, e assustadora como uma espada afiada e nua.

Depois, vinham a artilharia, a melhor de toda a Itália, e as máquinas de guerra, puxadas por bois, rolando com um barulho surdo e inquietante que se misturava ao som das trombetas e dos címbalos. Aos raios escarlates do sol poente, os canhões, as couraças, os elmos e as lanças.

Dardejavam faíscas; e parecia que César marchava direito como um herói, envolto na púrpura real desse crepúsculo de Inverno, para o astro enorme e ensanguentado.

A multidão contemplava silenciosa, sustendo a respiração, sem ousar aclamá-lo, mergulhada numa veneração semelhante ao terror. As lágrimas corriam pelas faces da velha mendiga.

- Anjos do Céu!... Mãe de Deus - murmurava, fazendo o sinal da cruz. - Não quis o Senhor que eu morresse antes de ver a sua luminosa figura...

A espada faiscante, entregue pelo Papa a César, para a defesa da Igreja, parecia-lhe ser o gládio de fogo do próprio Arcanjo S. Miguel...

Leonardo sorriu involuntariamente ao notar que nos rostos de Niccolo e da velha mendiga passava a mesma expressão de arrebatado êxtase.

- Quereis saber a minha opinião acerca da execução de Dom Ramiro? - disse Machiavel assim que chegaram a casa. Antes de o Duque a ter conquistado, a România, como muito bem sabeis, sofrera a opressão duma série de tiranos; fora presa de todas as revoltas, pilhagens e violências.

Para pôr termo a esta situação e restabelecer rapidamente a ordem, César nomeou lugar-tenente principal o seu dedicado servidor Dom Ramiro de Lorqua, que dominou todas as revoltas, violentamente, por meio de execuções ferozes. Assim que o soberano atingiu o seu fim, mandou prender o lugar-tenente sob o pretexto de corrupção e fê-lo decapitar, expondo o seu corpo na praça pública. Este horrível espectáculo satisfez o povo e aterrorizou-o ao mesmo tempo. O Duque conseguiu três vantagens: primeiro, desenraizou o germe das dissenções; depois, colheu os frutos da crueldade do seu lugar-tenente, lançando sobre ele toda a responsabilidade e lavando as mãos das atrocidades cometidas supostamente contra a sua vontade; finalmente, sacrificando ao povo o seu auxiliar preferido, deu um exemplo de alta e incorruptível justiça.

 

Muito cedo, na manhã seguinte, chegou um camarista do palácio a convidar Leonardo para visitar Sua Alteza nesse dia, e, ao mesmo tempo, para se informar se o arquitecto do Duque estava satisfeito nos seus alojamentos. Com os cumprimentos de César, este emissário entregou- lhe também um presente composto, segundo o costume hospitaleiro da época, de várias provisões: um saco de farinha, um pequeno barril de vinho, um carneiro, oito galos e oito galinhas, dois grandes archotes. três pacotes de velas de cera e duas caixas de bolos. Ao ver as atenções de César por Leonardo, messer Niccolo pediu a intervenção deste junto do Duque para lhe obter uma audiência.

As onze horas da noite, hora da recepção habitual do Príncipe. Leonardo dirigiu-se ao palácio.

A maneira de viver de César era extravagante. Quando os embaixadores de Ferrara se queixaram ao Papa por não conseguirem ser recebidos, Sua Santidade respondeu-lhes que ele próprio estava descontente com a conduta do filho, que mudava o dia em noite e adiava durante dois e três meses as audiências de negócios.

O seu tempo estava assim dividido: tanto no Inverno como no Verão, deitava-se às quatro ou cinco horas da manhã; para ele a aurora não começava a despontar senão às três horas da tarde e o Sol não nascia senão às quatro; às cinco levantava-se, jantava a seguir, quase sempre deitado no leito e recebendo e despachando durante o jantar. Toda a sua vida estava envolta num mistério impenetrável, não apenas pelo hábito de dissimular mas também por cálculo.

Raras vezes saía do palácio, e em geral mascarado. Só se mostrava ao povo nos dias de grande solenidade e às tropas nos momentos decisivos das batalhas; por isso sempre as suas aparições chocavam e impressionavam como as de um semideus. Realizava admiravelmente o seu desígnio de espantar e maravilhar o povo.

Acerca da sua generosidade, corriam os mais incríveis rumores. Para a manutenção do capitão-geral da Igreja era pouco todo o oiro que da Cristandade corria para o tesouro de S. Pedro. Os enviados que o visitavam diziam aos seus soberanos que este príncipe gastava pelo menos mil e oitocentos ducados por dia. Quando César passava pelas ruas da cidade, a multidão corria atrás dele sabendo que os cavalos eram ferrados de prata e que as ferraduras mal pregadas caíam facilmente para se perderem, com o desígnio de servirem de presente ao povo.

Contavam-se maravilhas acerca da sua força física; uma vez, dizia- se, durante um combate de touros, em Roma, o moço César, então car(leal de Valence, fendera num único golpe de espada a cabeça do animal.

Havia alguns anos, porém, que o "mal francês" abalara a sua saúde.

César era um cavaleiro consumado e gostava particularmente de lançar e espalhar todas as modas novas. Uma noite, durante as festas do casamento de sua irmã Lucrécia, abandonando o cerco duma fortaleza, chegou inopinadamente ao palácio do noivo, Afonso de Este, duque de Ferrara. Vestido de veludo negro e mascarado, atravessou a multidão dos convidados sem ser reconhecido, e, a seguir, assim que lhe fizeram lugar, começou a dançar sozinho ao som da música e deu algumas voltas à sala com tal elegância e ligeireza que imediatamente todos o reconheceram. "César, César, é ele, o único César!" Estas palavras corriam num murmúrio arrebatado, no meio da assistência. Sem se preocupar, nem com os convidados nem com o noivo da irmã, tomou esta de parte e inclinando-se para ela começou a falar-lhe ao ouvido. Lucrécia baixou os olhos, ruborizou-se, depois empalideceu, tornando-se ainda mais bela, mais delicada, mais branca, tal uma pérola de preço. Possivelmente estaria inocente, mas era fraca e de tal maneira submissa à vontade do irmão que a sua fraqueza, dizia-se, a levava até ao incesto.

César apenas se preocupava com uma coisa: evitar o flagrante delito.

Não se sabia se os boatos exageravam os crimes do Duque ou se, pelo contrário, ficavam ainda aquém das realidades. Em todo o caso, sabia como ninguém destruir todas as provas comprometedoras.

A velha Casa da Câmara da gótica cidade de Fano servia de palácio do Duque.

Depois de ter atravessado uma vasta antecâmara, triste e fria, onde aguardavam a recepção os visitantes de menos categoria, Leonardo entrou numa sala inferior, mais pequena, onde se encontravam vários membros da corte ducal. Falava-se a meia voz: a proximidade do soberano sentia-se mesmo através das paredes.

Um velho calvo, o mal-afortunado representante de Rimini, que havia três meses aguardava audiência, dormitava a um canto, fatigado sem dúvida por muitas noites passadas em claro.

Às vezes uma porta entreabria-se, o secretário Agapito passava a cabeça com um ar inquieto, as lunetas na ponta do nariz e a pena atrás da orelha, e convidava a entrar nos aposentos de Sua Alteza algum dos presentes.

A cada uma destas aparições o enviado de Rimini estremecia e soerguia-se; após o que, vendo que não era ainda a sua vez, suspirava profundamente e recaía no sono interrompido. Leonardo não esperou muito tempo; apenas uma hora.

Pela porta entreaberta apareceu a cabeça do secretário, que fez um aceno ao artista.

Atravessando um longo corredor escuro, ocupado pela guarda pessoal dos soldados albaneses, Leonardo chegou ao quarto de dormir do Duque; este aposento, muito aprazível, tinha duas das paredes cobertas de tapeçarias de seda representando uma caçada ao unicórnio. No tecto, altos- relevos de talha doirada reproduziam os amores da rainha Pasifaé com o touro. O animal heráldico da família dos Bórgias repetia-se em todos os motivos ornamentais do quarto, alternando com as tiaras de três coroas e com as chaves de S. Pedro.

O quarto estava sobreaquecido; na chaminé de mármore ardiam ramos de zimbro e o azeite das lâmpadas estava misturado com essência de violetas: César gostava de perfumes.

Segundo o seu costume, estava deitado, completamente vestido, sobre um leito baixo, sem cortinas, colocado no meio do quarto. As duas posições do corpo suas preferidas eram: deitado ou a cavalo. Imóvel, impassível, encostado a uma almofada, seguia com atenção uma partida de xadrez que dois cortesãos estavam jogando ao pé do leito, sobre uma pequena mesa de jaspe, e simultaneamente ouvia um relatório do secretário: possuía a faculdade de aplicar a atenção a diversos assuntos ao mesmo tempo. Perdido numa íntima meditação, passava duma mão para a outra, com um movimento distraído e monótono, a pequena esfera de oiro cheia de perfumes que, como o seu punhal de aço de Damasco, não abandonava nunca.

 

Acolheu Leonardo com a amabilidade cativante que lhe era própria.

Não consentiu que ele se curvasse, estendendo-lhe amistosamente a mão e fazendo-o sentar numa poltrona.

Chamara-o para o consultar acerca dos projectos de Bramante para o novo convento da cidade de Imola, que viria a chamar-se "Mosteiro de Valentinois", para uma rica capela, um hospital e um asilo. O Duque desejava erguer estas magníficas instituições de caridade como uma recordação duradoira dos seus sentimentos cristãos.

Agapito apresentou ao soberano uma colecção de odes lisonjeiras da autoria do poeta da corte, Francesco Uberti. Sua Alteza recebeu-as com agrado e deu ordem para recompensar generosamente o poeta.

A seguir, como ele exigia sempre que lhe mostrassem não só as obras lisonjeiras mas também as sátiras, o secretário entregou-lhe um epigrama do poeta napolitano Mancioni, que fora preso em Roma e encerrado no Castelo de Santo Ângelo; era um soneto repleto de injúrias, em que César era apelidado de "rebento duma meretriz e dum Papa, de turco, de incestuoso, de fratricida e ímpio".

- Que ordena Vossa Alteza que se faça a este biltre? – perguntou Agapito.

- Deixa isso por minha conta - disse docemente o Duque -; quando voltar o castigarei pessoalmente e lhe ensinarei as regras da delicadeza!

A forma como César "ensinava a delicadeza" aos escritores que o ofendiam, era cortar-lhes as mãos e atravessar-lhes a língua com um ferro em brasa.

Terminado o relatório, o secretário afastou-se.

Chegou então o astrólogo da corte, Valguglio, que vinha trazer um novo horoscópio. O Duque ouviu-o com uma atenção quase respeitosa, pois acreditava na infalibilidade dos augúrios e na influência dos astros.

Despedindo-o, depois, com um aceno, voltou-se para o seu arquitecto.

Leonardo desenrolou na sua frente as plantas militares e os mapas. Estas obras não eram apenas as observações do sábio, explicando a estrutura do solo, a divisão das águas e as nascentes dos rios; eram também a obra dum grande artista. César mergulhou na observação das plantas, pedindo muitas vezes explicações. O seu rosto exprimia satisfação e ao erguer enfim os olhos para Leonardo, estendeu-lhe a mão com um sorriso cheio de amizade e sedução.

- Obrigado, Leonardo, serve-me sempre como até aqui, que saberei recompensar-te! Estás satisfeito? - acrescentou solícito. - Os teus honorários são suficientes? Tens alguma coisa a pedir? Sentir-me-ia feliz em satisfazer-te qualquer pretensão.

Leonardo aproveitou então a ocasião para apresentar o pedido de messer Niccolo.

César encolheu os ombros com um sorriso.

- Extraordinária criatura esse Niccolo! Solicita uma audiência e depois quando o recebo não me fala de nada. Não sei com que fim me enviaram esse original! A propósito, ouvi dizer que ele estava a escrever um livro acerca da política e dos negócios de Estado?.. Enfim! Talvez o receba... Daqui a algum tempo...

Fazia-se tarde, iam soar as três horas. Trouxeram então ao Duque uma refeição composta dum prato de legumes, fruta e um pouco de vinho branco; como verdadeiro espanhol, César distinguia-se por uma grande sobriedade.

O artista despediu-se. O Duque agradeceu-lhe mais uma vez as plantas militares, com uma amabilidade cativante, e deu ordem a três pajens para o reconduzirem a casa, com archotes, em sinal de consideração.

Leonardo descreveu a Machiavel a forma como decorrera a audiência.

Quando este soube que o artista levantara para o Duque a planta dos arredores de Florença, ficou aterrado.

- Como? Vós, um cidadão da República, fazeis isso ao pior inimigo da vossa pátria?!

- Eu supunha - retorquiu Leonardo - que César era considerado um nosso aliado!

- Aliado! - exclamou o secretário de Florença, e nos seus olhos passou uma chama de indignação. - Ignorais assim, messer, que se este caso chega a ser conhecido pelos Magníficos Senhores, podereis ser acusado de traição?

- Será possível? disse ingenuamente Leonardo. - Asseguro-os.

não julgueis... Niccolo, eu não sei nada de política... Nesses assuntos sou como um cego...

Fitaram-se demoradamente, em silêncio. E, de repente, compreenderam que em tal campo eram dissemelhantes até ao mais profundo das suas almas, e que seriam sempre irreconciliavelmente estranhos um ao outro; para um, a Pátria, por assim dizer, não existia; o outro, amava-a, segundo a sua própria expressão, "mais que a própria alma".

 

Nessa mesma noite, Niccolo ausentou-se sem dizer porquê nem para onde.

Regressou na tarde do dia seguinte, cansado e transido de frio, entrou no quarto de Leonardo e, fechando cautelosamente a porta, declarou-lhe que havia muito tempo desejava inteirá-lo dum assunto que requeria o mais profundo segredo. Eis o que ele lhe contou:

Uma vez, havia já três anos, num local deserto da România, entre Cérvia e Porto Cesenático, alguns cavaleiros mascarados e armados tinham atacado, pela escuridão da noite, um destacamento de cavalaria que conduzia, de Urbino para Veneza, Madona Doroteia, mulher de Baptista Caracciolo, capitão de infantaria da Sereníssima República. Tinham-na raptado, bem como a uma sua prima que a acompanhava, Maria, donzela de quinze anos, noviça num convento de Urbino; fizeram-nas montar a cavalo e tinham-nas levado. A partir desse dia Doroteia e Maria desapareceram e nunca mais ninguém ouvira falar nelas.

O Conselho e o Senado de Veneza dirigiram a Luís XII, ao rei de Espanha e ao Papa, queixas contra o duque da România, acusando-o do rapto de Doroteia. Não havia, porém, provas e César afirmou ser completamente estranho àquele caso.

Dizia-se que Madona Doroteia depressa se consolara e conformara, e que seguia o Duque em todas as suas expedições, sem mostrar muitas saudades do marido.

Maria tinha um irmão, messer Dionísio, moço capitão dum regimento ao serviço de Florença, nessa ocasião acampado em Pisa. Este dirigiu-se à România e, apresentando-se ao Duque com um nome suposto, conseguiu ganhar a sua confiança e penetrar na fortaleza de Cesena, donde fugiu com Maria disfarçada em rapaz. Imediatamente perseguidos, foram presos na fronteira dos Estados de Perúsia. O irmão foi executado e Maria de novo encerrada na fortaleza.

Machiavel, na sua qualidade de secretário da República florentina, tinha tratado deste caso. Messer Dionísio torna-se seu amigo, tinha-lhe confiado o segredo da sua audaciosa empresa e contara-lhe tudo o que a irmã lhe dissera acerca dos carcereiros, que a consideravam como uma santa.

César, assim que se fatigou de Doroteia, dirigiu as suas vistas para

Maria. O célebre conquistador de mulheres não duvidava de que o seu amor fosse rapidamente partilhado.

Enganava-se, porém; a sua vontade encontrou no coração daquela criança uma resistência invencível. Contava-se que o Duque, nos últimos tempos, ia muitas vezes visitar a prisioneira na cela e tinha com ela longas entrevistas; mas o que nelas se passava era um segredo para todos.

Ao concluir a sua narrativa, Niccolo expôs-lhe a resolução que tomara de salvar Maria, e pediu o auxílio de Leonardo, que logo lho concedeu. Entre ambos estabeleceram um plano de evasão. A data da fuga de Maria foi marcada para o dia 30 de Dezembro, dia em que o Duque devia ausentar-se de Fano.

Dois dias antes, um dos carcereiros, que fora previamente subornado, veio informá-los, já noite alta, que corriam o perigo duma denúncia; mas Niccolo recusou-se a ligar importância a estes receios, dizendo não haver motivo para inquietações. Estava outra vez sem dinheiro, de mau humor e queixando-se de tudo.

- Que vida miserável! - repetia. - Se Deus não se amerceia de mim, creio que vou abandonar tudo: os negócios, monna Marietta e o meu filho, para os quais não sou mais do que um tropeço; que todos julguem que eu morri, e entretanto esconder-me-ei num buraco qualquer, no fim do mundo, onde ninguém me conheça. Empregar-me-ei como secretário ou serei professor de meninos, numa escola de aldeia, para não morrer de fome, até embrutecer completamente e perder a consciência da minha situação; porque não há nada mais terrível do que uma pessoa sentir-se com aptidões para fazer qualquer coisa de grande e não conseguir mais do que ir morrendo a pouco e pouco, estupidamente, um dia após outro dia!

Na véspera da data fixada, Niccolo dirigiu-se a uma aldeia vizinha onde deviam ser feitos os últimos preparativos para a fuga de Maria.

Leonardo deveria reunir-se-lhe na manhã do próprio dia.

Ficando só, este esperava a cada momento receber uma má notícia, convicto como estava de que a aventura terminaria por um fracasso, como uma garotice de colegiais.

Um pálido dia de Inverno despontava; bateram à porta. O artista foi abrir e Niccolo entrou, transtornado.

- Acabou-se - disse, deixando-se cair inclinado numa cadeira. Esta manhã, antes da aurora, encontraram Maria morta, no solo da prisão, com as goelas cortadas...

- Quem é o assassino? - perguntou Leonardo, apavorado.

- Ninguém sabe; mas, a julgar pelo aspecto das feridas, não é o

Duque. Tudo leva a crer que foi ela que se matou.

- É impossível! Uma rapariga como ela!

- Tudo é possível - respondeu Niccolo. - Não conheceis ainda suficientemente o Duque... - Calou-se, empalideceu, mas continuou logo num assomo: - Esse homem é capaz de tudo! Até de ter levado essa santa a tentar contra a própria vida... Ao princípio, quando ela não era ainda tão vigiada, vi-a duas vezes. Era fina e débil como uma haste de roseira. Um rosto de criança. Os cabelos loiros como o linho. Não se podia chamar bonita. Não se percebe como o Duque se deixou seduzir por ela. Oh! Messer Leonardo, se soubésseis como essa criança era adorável e digna de piedade!

Niccolo voltou-se e ao artista pareceu ver as lágrimas brilharem nos seus olhos.

 

A 30 de Dezembro, ao romper da aurora, as principais forças do duque de Valentinois, cerca de dez mil infantes e dois mil cavaleiros, saíram de Fano e acamparam na margem do rio Metauro, no caminho para Sinigaglia, aguardando o Duque que, devia reunir-se-lhes no dia seguinte, 31, dia escolhido pelo astrólogo Valguglio, em quem César tinha toda a confiança.

Concluída a paz com o Duque, os conspiradores de Maggione, de acordo com ele, prepararam uma expedição comum contra Sinigaglia. A cidade capitulou; no entanto, o governador declarou que só abriria as portas ao Duque e a mais ninguém. Os antigos inimigos deste, seus actuais aliados, pressentindo no último momento qualquer coisa de funesto, pretenderam esquivar-se a uma entrevista. César, porém, com tal arte se houve, "encantando-os com lisonjas", que mais uma vez os enganou. Machiavel dizia mais tarde que o Duque era semelhante ao basilisco que fascina com a vista as suas vítimas.

Niccolo, ardendo em curiosidade, preparou-se para seguir imediatamente o Duque, sem esperar por Leonardo, que partiu só, algumas horas mais tarde.

A estrada seguia para o sul, e desde Pesaro passava à beira-mar. À direita erguiam-se as montanhas, às vezes tão próximas da costa que mal restava uma estreita passagem.

O dia estava plúmbeo e pesado. O mar, cinzento também, liso como o céu. O ar imóvel parecia dormitar. O crocitar dos corvos anunciava o degelo. Um crepúsculo precoce tombava e, ao mesmo tempo, começou a cair uma chuva tão fria que não se sabia se era chuva gelada ou neve fundida.

Apareceram as torres de Sinigaglia, em tijolos vermelho-escuro.

A cidade estava apertada entre a água e as montanhas. Ao chegar à margem do rio Misa, o caminho voltava bruscamente para a esquerda e, aí, uma ponte lançada obliquamente sobre o rio conduzia às portas da cidade. Diante destas, os casebres baixos do arrabalde formavam uma pequena praça, rodeada em parte por armazéns pertencentes a mercadores venezianos.

Nessa época, Sinigaglia era um importante mercado meio oriental, onde os negociantes de Itália trocavam as suas mercadorias pelas dos turcos, dos arménios, dos gregos, dos persas, dos eslavos do Montenegro e da Albânia. Mas, nesse dia, até mesmo as ruas mais frequentadas estavam desertas. Leonardo não encontrou ninguém a não ser os soldados.

Por toda a parte, sinais de pilhagem: os vidros das janelas quebrados, as fechaduras e os fechos arrancados, as portas arrombadas, os fardos de mercadorias rebentados, espalhados por toda a parte. Cheirava a queimado. As casas incendiadas fumegavam ainda, e às portas dos palácios viam-se, pendurados de grossas argolas, os corpos dos enforcados.

Fazia já escuro quando Leonardo divisou, à luz dos archotes, César no meio das suas tropas, na praça principal da cidade.

Estava julgando os soldados acusados de pilhagem. Messer Agapito lia a sentença, César fazia um sinal e os condenados eram levados para a forca.

No momento em que o artista procurava entre os cortesãos alguém a quem pudesse pedir informações do que se passara, descobriu o secretário florentino.

- Já sabeis?.. Já vos contaram?.. - disse Niccolo, dirigindo-se-lhe.

- Não, não sei nada e estimo ter-vos encontrado. Dizei-me o que se passou.

- O quê, em verdade, ainda não sabeis? - disse solenemente. Então ouvi! Um acontecimento extraordinário e memorável! César vingou-se dos inimigos. Os conspiradores foram presos. Oliverotto, Orsini e Vitelli aguardam apenas a sentença de morte!

Eis o que se tinha passado:

Tendo chegado de manhã cedo ao acampamento das margens do

Metauro, César enviou como guarda-avançada um destacamento de duzentos cavaleiros; a seguir fez avançar toda a infantaria, e atrás desta avançou ele próprio com o resto da cavalaria. Ao chegar às portas de Sinigaglia, no local em que a estrada, cortando à esquerda, segue as margens do Misa, ordenou à cavalaria para fazer alto, dispô-la em dois corpos, um com as costas voltadas para o rio, o outro para os campos, deixando entre ambos espaço para uma passagem, por onde, sem se deter, a infantaria avançou, e ele atravessou a ponte e entrou na cidade.

Os aliados Oliverotto, Vitelli, Gravina e Paulo Orsini vieram ao seu encontro montados em mulas e acompanhados de numerosos cavaleiros.

Apressaram-se a descobrir-se e saudar o Duque. Este desceu igualmente do cavalo, apertou primeiro a mão a cada um, depois abraçou-os e beijou-os com uma encantadora afabilidade, tratando-os por "queridos irmãos".

Entretanto, os capitães de César, como fora previamente combinado, cercaram os aliados de maneira que cada um destes se encontrou de repente rodeado por dois familiares do Duque. Ao chegarem ao vestíbulo do palácio, Oliverotto e os seus amigos pretenderam despedir-se; o Duque, porém, sempre sedutor, reteve-os e convidou-os a entrar com ele.

Assim que entraram na sala de recepção, as portas fecharam-se subitamente e oito homens armados lançaram-se sobre eles. Eram dois contra um; agarraram-nos, desarmaram-nos e manietaram-nos. O espanto dos desgraçados foi tão grande que não tentaram sequer defender-se.

Corria o boato de que o Duque decidira acabar com os seus inimigos nessa mesma noite, fazendo-os estrangular nas masmorras subterrâneas do palácio.

- Oh! Messer Leonardo - comentou Niccolo -, se tivésseis visto como ele os estreitava nos braços e como os cobria de beijos! O mais ligeiro descuido, o mais imprudente olhar e estaria perdido; mas havia uma tal sinceridade no seu rosto e na sua voz, que, embora não o acrediteis, eu próprio até ao último minuto não suspeitei de nada; teria apostado a minha vida pela sua absoluta sinceridade. Suponho que de todos os embustes realizados no mundo, desde que existe a política, este é de todos o mais belo!

Leonardo sorriu.

- Não se pode negar - disse ele - que o Duque possua em alto grau a audácia e a astúcia; mas, no entanto, confesso-vos, Niccolo, sou pouco versado na política e não compreendo bem a razão por que vos extasiais de tal maneira perante esta traição!

- Traição? - interrompeu Machiavel. - Quando se trata dos interesses da Pátria, não há traição nem fidelidade, não há bem nem mal, não há crueldade nem misericórdia; todos os meios são bons, contanto que se atinja o fim!

- Que vem fazer aqui o interesse da Pátria? Estou convencido,

Niccolo, de que o Duque pensou apenas nos seus interesses próprios!

- O quê? Não compreendeis então?! Pois é claro como o dia! César é o futuro unificador e autocrata da Itália. Nunca houve nenhum momento mais favorável do que este para o advento dum herói. A Itália nunca esteve numa situação mais desgraçada do que esta. Semimorta, aguarda quem venha pôr um bálsamo às suas feridas, quem acabe com as violências na Lombardia, com o saque e a corrupção em Nápoles e na Toscana, quem cure as chagas repugnantes da sua decrepitude carunchosa. Dia e noite, a Itália invoca Deus pedindo-Lhe um libertador, e esse libertador é César!

- Quem viver verá, Niccolo! - disse Leonardo. - Apenas desejava perguntar-vos uma coisa: por que é que apenas hoje vos mostrais, por assim dizer, seguro da eleição divina de César? Seria a emboscada de Sinigaglia que logrou convencer-vos, mais que todas as anteriores acções do Duque, de que ele é um herói? Ainda não há muito que o consideráveis como um monstro!

- Sim - respondeu Niccolo, já senhor de si e sem prestar atenção às últimas palavras de Leonardo. - A perfeição desta perfídia, mais que todos os outros actos do Duque, revela nele a união, tão rara nos humanos, das qualidades opostas. Notai que não o louvo nem o condeno; limito-me a observar. Todos os soberanos devem reunir em si duas naturezas: uma feroz, outra divina. As pessoas ordinárias, depois de terem cometido um crime, sucumbem sob o peso dos remorsos. Apenas o Herói, eleito pelo destino, tem força para tudo suportar, para violar as leis, sem medo nem arrependimento, conservando-se inocente depois do mal, da mesma forma que os animais ferozes e os deuses! Foi hoje que pela primeira vez eu vi esse aspecto da personalidade de César; é o selo da escolha divina, é ele o eleito!... O semideus!

- Quando os homens possuírem a ciência perfeita - disse Leonardo pensativo, depois de alguns instantes de silêncio - hão-de inventar as asas; criarão uma máquina que lhes permitirá voar, e serão como os deuses. Tenho pensado muito nisso. Talvez não resulte nada; possivelmente não serei eu quem resolva o problema, mas outro o resolverá. e os homens hão-de ter asas! E quando chegar esse dia, a face do mundo mudará.

- Bem! Bem! Parabéns! disse rindo Niccolo. - Eis-nos outra vez a contas com os homens voadores. O meu príncipe fará uma bonita figura, meio Deus, meio fera, e com asas de pássaro. Vamos, deixemos essas quimeras!

Como começassem a soar horas numa torre vizinha, ergueu-se bruscamente. Não podia demorar-se se queria chegar ao castelo a tempo de assistir aos preparativos da próxima execução dos conjurados.

Todos os príncipes italianos felicitaram César pelo seu dolo, bellissimo inganno. Luís XII, ao ter conhecimento da emboscada de Sinigaglia, classificou-a como acção digna dum capitão da Roma antiga. A marquesa de Mântua, Isabel de Gonzaga, enviou, como presente, a César, um cento de mascarilhas de seda, de diversas cores, para o Carnaval que se aproximava.

 

No começo de Março de 1503, César regressou a Roma.

O Papa tinha proposto aos cardeais recompensar o herói com a dádiva da mais alta distinção que a Igreja podia conferir aos seus defensores, a "Rosa de Oiro". Obtida a aprovação dos cardeais, a cerimónia fora fixada para dois dias mais tarde.

No primeiro andar do Vaticano, na sala dos Pontífices, cujas janelas davam para o pátio do Belvedere, tinham-se reunido a Cúria Romana e os delegados das grandes potências.

Brilhante de pedrarias e tendo na cabeça a tiara, rodeado de leques de penas de pavão que lhe agitavam em volta, um ancião gordo, de setenta anos, ainda robusto e de aspecto belo e majestoso, o papa Alexandre VI subiu os degraus do trono.

As trombetas dos arautos ressoaram e a um sinal do alemão Johann Burkhard, mestre de cerimónias, entraram na sala os gentis-homens, os pajens, os batedores, os oficiais da guarda do Duque e o comandante Bartolomeu Capranica erguendo alto no ar o gládio nu de alferes da Igreja Romana.

O terço inferior da espada era doirado e artisticamente tauxiado; via- se nele a deusa Fidelidade, num altar, com a seguinte inscrição: "A Fidelidade é mais forte que uma espada"; via-se também Júlio César, triunfador, avançando num carro cuja divisa era: "Ou César ou nada", e ainda uma cena de sacrifício do toiro, o boi Ápis da família Bórgia, em redor do qual sacerdotes nus queimavam o tomilho sobre os restos duma vítima humana que fora imolada. O altar estava encimado pelas seguintes palavras: Deo optimo maximo Hostia, "A Deus Omnipotente e misericordioso, a vítima". E por baixo: Ia nomen Caesaris omen, "O nome de César é um feliz augúrio".

A seguir apareceu o herói, coroado da coroa ducal encimada pela pomba do Espírito Santo adornada de pérolas.

Retirando a coroa, aproximou-se do Papa, ajoelhou-se e beijou a cruz de rubis que ornamentava a pantufa do Pontífice.

o cardeal Monreale entregou então a Sua Santidade a Rosa de Oiro, que era uma autêntica maravilha de ourivesaria.

o Papa ergueu-se e começou a falar com uma voz que a comoção tornava trémula:

"Recebe, filho bem-amado, esta Rosa, símbolo da alegria das duas

Jerusaléns, a terrestre e a celeste; da Igreja guerreira e triunfante; da beatitude dos justos, da beleza das coroas imorredoiras; para que as tuas virtudes floresçam em Cristo, como floresce a Rosa mística. Ámen!..."

César recebeu das mãos paternas a Rosa misteriosa. O Papa, porém, não conseguiu dominar a sua emoção; segundo a expressão duma testemunha, "a voz da carne vencera-o". Violando o protocolo com grande desapontamento do meticuloso Burkhard, curvou-se, estendeu para o filho as mãos que tremiam e o rosto contraiu-se-lhe; todo o seu pesado corpo estremeceu. Com os grossos lábios a tremer, numa comoção infantil, gaguejou:

- Meu filho... César... César!...

o Duque teve que entregar a Rosa ao cardeal de Saint-Clément, que estava ao seu lado, e o Papa beijou-o convulsivamente, estreitando-o contra o peito, rindo e chorando ao mesmo tempo.

De novo ressoaram as trombetas dos arautos e os sinos da Catedral de S. Pedro começaram a tocar. Responderam-lhe os sinos de todas as igrejas de Roma e uma salva do Castelo de Santo Ângelo.

- Viva César! - gritou a guarda romana no pátio do Belvedere.

o Duque assomou ao balcão para se mostrar ao exército.

Ao esplendor do sol matinal, sob um céu de profundo anil, imperialmente revestido de púrpura e de oiro, com a pomba do Espírito Santo na cabeça, e a Rosa mística - a alegria das duas Jerusaléns - nas mãos, apresentava-se à multidão, não como um homem mas como um Deus.

 

Nessa tarde organizou-se um magnífico cortejo, com uma mascarada que reproduzia o desenho damasquinado na espada e representando o triunfo de Júlio César.

Num carro, no qual se lia a inscrição "o divino César", ia sentado o duque de România com uma palma na mão e a cabeça coroada de loiros. O carro ia rodeado de soldados vestidos de legionários da antiga Roma com as águias de ferro e os fáscios das lanças. Tudo fora reproduzido com minuciosa exactidão, de acordo com os documentos fornecidos pelos livros, os monumentos, os baixos-relevos e as medalhas.

À frente do carro marchava um homem envergando a longa túnica branca dos hierofantes egípcios; segurava um estandarte sagrado em que sobressaía em oiro vermelho o Boi heráldico da família Bórgia, o Ápis escarlate, o deus protector de Alexandre VI. Crianças com túnicas bordadas de prata faziam soar os címbalos e cantavam:

- Viva o Boi! Viva o Boi! Viva o Bórgia!

E, bem alto, sobre a multidão, destacando-se no céu estrelado, iluminado pelo revérbero dos archotes, baloiçava-se o ídolo, a Besta, dum vermelho de fogo, como o sol nascente.

Entre a multidão encontrava-se o discípulo de Leonardo, Giovanni Beltraffio, que acabava de chegar de Florença a reunir-se ao seu mestre.

Ao contemplar o deus purpúreo, recordou-se das palavras do Apocalipse: "E eles adoraram a Besta dizendo: Quem é semelhante à Besta? E quem poderá combatê-la?

"E vi uma mulher sentada sobre uma Besta escarlate, cheia dos nomes das blasfémias, com sete cabeças e dez cornos.

"Sobre a sua testa estavam gravadas as palavras: Mistério e Babilónia, a Grande-Mãe das lubricidades e das abominações da Terra."

E da mesma maneira que aquele que escrevera outrora estas palavras, Giovanni, ao contemplar a Besta, foi tomado "duma grande admiração".

 

                           CAPÍTULO XIII - A FERA ESCARLATE (1503)

"A Besta que sobe do abismo."

                   Apocalipse, XI, v. 7

 

Leonardo ocupava-se em trabalhos de anatomia, em Roma, no Hospital do Espírito Santo.

Beltraffio ajudava-o. Notando a tristeza contínua de Giovanni e no intuito de o distrair, o mestre convidou-o um dia a acompanhá-lo numa visita ao palácio do Papa.

Nessa época os espanhóis e os portugueses tinham recorrido a Alexandre VI, para que este resolvesse as questões religiosas que surgiam acerca da propriedade das terras e das ilhas descobertas havia pouco por Cristóvão Colombo. O Papa devia definitivamente sancionar o limite que dividia o globo terrestre e que fora marcado dez anos antes da primeira notícia da descoberta da América. Leonardo tinha sido convidado a ir ao Vaticano, assim como outros sábios que o Papa desejava consultar.

Giovanni recusou primeiramente aceder ao convite do mestre; mas a seguir a curiosidade dominou-o: tal era o desejo de conhecer esse Papa de quem tanto ouvia falar.

Na manhã seguinte, dirigiram-se ambos ao Vaticano e, depois de terem atravessado a sala dos Pontífices, onde havia pouco Alexandre VI entregara a César a Rosa de Oiro, penetraram nos aposentos interiores: primeiro na sala de audiência chamada "Sala de Cristo e da Virgem", seguir, no gabinete do Papa. As abóbadas, os hemiciclos, os painéis dos tremós entre os arcos, estavam ornados com "frescos" de Pinturicchio, descrevendo diversas cenas do Novo Testamento e da vida dos Santos.

No tecto da mesma sala, o pintor representara mistérios pagãos: o filho de Júpiter, Osíris, deus do Sol, descendo do céu para se unir à deusa Ísis e para ensinar aos homens a arte de cultivar a terra, de colher os frutos e de plantar a vinha. Os homens matam-no; mas ele ressuscita e reaparece sob a forma de boi branco, o Ápis imaculado.

Parecia contraditório ver, lado a lado, nos aposentos do Pontífice

Romano, estas cenas religiosas e a deificação do Boi de Oiro da família Bórgia sob a forma do boi Ápis; mas todas estas pinturas respiravam a mesma alegria. Nas ornamentações das salas, entre as grinaldas de flores, no meio dos anjos segurando cruzes e turíbulos, e os faunos caprípedes que dançavam empunhando tirsos e açafates de frutas, aparecia o boi misterioso, a fera escarlate.

Esse deus, diante do qual os homens ajoelhavam, cantavam louvores, e pelo qual queimavam o tomilho sobre os altares, esse boi heráldico dos Bórgias, esse velo de oiro transformado, não era mais que o próprio Pontífice Romano divinizado pelos poetas:

Caesare magna fuit, nunc Roma est maxima. Sextus

Regnat Alexander. Ille vir, iste Deus.

"Roma era grande sob o império de César, mas hoje é maior ainda.

Alexandre reina; aquele era um homem, este é um Deus."

Esta reconciliação de Deus com a Besta era para Giovanni a mais terrível das contradições.

Ao mesmo tempo que examinava as pinturas, ia prestando atenção às conversas dos gentis-homens e dos prelados que enchiam as salas e esperavam o Papa. Interessava-lhe particularmente ouvir o que diziam, porque, entre o povo, começavam já a alcunhar o Papa de Anticristo e a infamá-lo de todas as maneiras.

- Donde vindes, Beltrando? - perguntou o cardeal Arboria ao enviado de Ferrara.

- Da catedral, Monsenhor.

- E então, o que há de novo? Como está Sua Santidade? Não está cansado?

- Absolutamente nada. Cantou tão bem a missa que era impossível desejar melhor. A sua voz tem uma grandeza, uma pureza e uma beleza semelhantes às dos anjos. Parecia-me não estar na Terra mas no Céu. no meio dos santos! Não era eu o único a chorar quando o Papa ergueu o cálice...

- De que doença morreu o cardeal Miguel? - perguntou com curiosidade o enviado francês que acabava de chegar.

- Deve ter provado qualquer iguaria ou bebida que lhe foi funesta

- murmurou a meia voz um dos cortesãos, Dom Juan Lopez, espanhol de origem, como a maioria dos oficiais da corte de Alexandre VI.

- Diz-se - retorquiu Beltrando - que na sexta-feira, no dia seguinte mesmo à morte do cardeal Miguel, Sua Santidade recusou receber o embaixador de Espanha, que, entretanto, esperava impacientemente havia dias; e isto por causa das preocupações e desgostos que lhe causavam a morte do cardeal.

Todos se entreolharam.

O sentido oculto desta conversação não escapava a ninguém. Todos sabiam que os cuidados e a falta de tempo causados ao Papa pela morte do cardeal Miguel só provinham da sua impaciência em contar o dinheiro do defunto, tarefa em que passara todo o dia. A iguaria "funesta”

saboreada por Sua Reverência não era mais que o célebre veneno dos Bórgias: um pó branco açucarado, que matava lentamente, num prazo fácil de prever; ou ainda uma infusão de cantáridas secas e pulverizadas.

O Papa inventara este processo prático e fácil de arranjar dinheiro. Conhecendo sempre exactamente os rendimentos dos seus cardeais, quando a necessidade se fazia sentir, enviava para o outro mundo um que lhe parecia já suficientemente rico, e declarava-se seu herdeiro. Engordava- os como quem engorda porcos para a matança. O alemão Johann Burkhard, o mestre de cerimónias, inscrevia às vezes no seu "diário", entre as descrições de serviços da Igreja, uma nota breve e significativa a propósito da morte súbita de algum prelado: "esvaziou a taça", Biberat calicem.

- Será verdade, Monsenhores - perguntou o camarista Pedro Caranza, também espanhol -, será verdade que o cardeal Monreale também adoeceu esta noite?

- Não é possível! - exclamou Arboria aterrado. - Que tem ele?

- Não se sabe ao certo. Dizem que tem náuseas, vómitos...

- Oh! Meu Deus! Meu Deus! - suspirou profundamente Arboria, e começou a contar pelos dedos: - os cardeais Orsini, Ferrari, Miguel, Monreale...

- Pode ser que os ares de Roma, ou talvez a água do Tibre, sejam fatais à saúde de Suas Reverências - insinuou hipocritamente Beltrando.

- Um atrás do outro! Um atrás do outro! - murmurou Arboria empalidecendo. - Hoje vivo e amanhã...

Todos se calaram.

Uma nova multidão de gentis-homens, de cavaleiros e de soldados da sua guarda pessoal, sob o comando de Dom Rodriguez Bórgia, sobrinho do Papa, com camaristas e outros dignitários da Cúria Romana, precipitou-se nos aposentos. Um murmúrio respeitoso ergueu-se e depois extinguiu-se: o Santo Padre! Todos recuaram, fazendo alas, as portas abriram-se e o papa Alexandre VI entrou na sala de recepção.

 

Na sua juventude fora belo. Dizia-se que bastava ele fitar uma mulher para acender imediatamente nela a chama da paixão, como se os seus olhares possuíssem a força atractiva dum íman. As feições conservavam ainda uma beleza majestosa, se bem que um pouco desvanecida pela excessiva gordura do Papa. Tinha uma tez bronzeada, o crânio calvo, com alguns raros cabelos grisalhos na nuca, um enorme nariz como um bico de águia, o queixo fugidio, os olhos pequenos, vivos, cheios duma animação extraordinária, os lábios carnudos e gulosos, distendidos numa expressão de voluptuosidade e de malícia misturada a uma espécie de candura infantil.

Em vão Giovanni procurava, no aspecto deste velho de setenta anos, qualquer coisa de terrível ou cruel. Alexandre Bórgia possuía no mais alto grau um tacto requintado e uma elegância inata. Fosse o que fosse que dissesse ou fizesse, parecia proceder sempre da melhor forma, e que teria sido impossível actuar de outra maneira.

Os Bórgias pretendiam descender de mouros castelhanos, emigrados de África; e, com efeito, a julgar pela cor morena, os lábios carnudos e o olhar de fogo de Alexandre VI, devia correr-lhe nas veias sangue africano. Apesar dos seus setenta anos, Bórgia, cheio de saúde e robusto como um boi, conservava-se como um verdadeiro rebento da besta heráldica do toiro vermelho, deus do Sol, da alegria, da fecundidade e da voluptuosidade.

Alexandre VI entrou na sala conversando com o ourives judeu

Salomão de Cesso. Este ganhara a estima particular de Sua Santidade por ter gravado uma Vénus Calipígia numa esmeralda lisa que imitava os camafeus antigos; tanto esta obra agradara ao Papa que mandara encastoar a pedra na cruz com que abençoava o povo em dias de cerimónias solenes na Catedral de S. Pedro; desta maneira, ao beijar o crucifixo, beijava também a bela divindade.

Entretanto, o Papa não era ímpio. Não somente cumpria todas as cerimónias exteriores do culto, mas no fundo do seu coração habitava uma espécie de devoção. Honrava em especial a Virgem Maria; considerava-a como tendo o direito de intercessão suprema e não duvidava que Ela pedisse sempre ardentemente por ele a Deus.

O lampadário que encomendava naquele momento ao judeu Salomão era uma promessa a Santa Maria del Popolo pelo restabelecimento de Madona Lucrécia.

Sentado junto da janela, o Papa examinava as pedras preciosas. Amava-as até à loucura. Com os seus dedos delgados, apalpava-as e escolhia-as, estendendo os grossos lábios numa expressão de voluptuosidade e gulodice.

Um grande crisópraso, mais escuro que uma esmeralda, de misteriosos lampejos de oiro e púrpura, agradou-lhe especialmente.

Deu ordem então para lhe trazerem, do seu próprio tesoiro, o cofre das pérolas.

Cada vez que o abria, pensava na filha bem-amada, nessa Lucrécia que tinha também o encanto e a palidez duma pérola fina. Depois de ter procurado com os olhos entre a multidão dos gentis-homens o enviado do seu genro, o duque de Ferrara, Afonso de Este, o Papa fez-lhe sinal para se aproximar.

- Eis aqui, Beltrando, um pequeno presente para Madona Lucrécia!

Não me parecia bem que regressasses à sua corte com as mãos vazias, sem um presente de seu tio!

Intitulava-se "tio", porque nos documentos oficiais Madona Lucrécia era sempre designada como sobrinha e não como filha de Sua Santidade: o Pontífice Romano não podia ter filhos legítimos.

Rebuscou no cofre e tirou uma enorme pérola da Índia, oval, dum reflexo róseo e do tamanho duma noz; era uma jóia sem preço; colocou- a contra a luz para melhor a admirar.

Beltrando - disse de novo ao enviado -, assim que vires a Duquesa recomenda-lhe da Nossa parte que cuide da sua preciosa saúde e que reze com devoção a Nossa Senhora. Nós, como vedes, graças a Deus e à Virgem Santa, que intercede sempre em Nosso favor, estamos com saúde e bem dispostos e enviamos-lhe a Nossa Bênção Apostólica. Entregar-lhe-ás em Nosso Nome - e deu-lhe a pérola - este pequeno presente.

Mergulhando as mãos nas pérolas e fazendo-as escorregar entre os dedos, deliciava-se voluptuosamente ouvindo-as cair com um ruído surdo e lançando os seus pálidos reflexos.

- Tudo, tudo para ela, para a nossa querida filha - repetia com uma alegria infantil. - Quero que por minha morte a minha Lucrécia tenha os mais belos brilhantes e as mais finas pérolas de Itália.

E, de repente, nos seus olhos passou um fulgor que enregelou de espanto o coração de Giovanni e lhe recordou os rumores que corriam acerca da monstruosa lubricidade do velho Bórgia nas relações com a própria filha.

Anunciaram o duque César.

O Papa mandara chamar o filho para um assunto importante: o rei de França exprimira, por intermédio do seu embaixador na corte do Vaticano, o seu desagrado pelos projectos hostis do duque de Valentinois contra a República florentina, então sob a alta protecção da França, e acusava Alexandre VI de secundar o filho nos seus desígnios.

Assim que lhe anunciaram a chegada do Duque, o Papa olhou furtivamente para o embaixador francês, aproximou-se dele e, tomando-o pelo braço, disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e conduziu-o, como que inadvertidamente, para junto da sala onde César o aguardava. A seguir, entrou nessa sala deixando a porta entreaberta, como por descuido, de forma a que os que se encontravam perto, e entre eles o enviado francês, pudessem ouvir o que se dizia.

Uma vez junto de César, o Papa começou a expandir as mais veementes censuras.

César respondeu primeiro com calma e respeito. Mas a cólera de Sua Santidade não diminuiu; em certa altura, começou a bater com o pé e a gritar enfurecido:

- Afasta-te da minha vista! Maldito! Cachorro!

- Ah! Meu Deus! Ouvis? - murmurou o enviado francês ao seu vizinho, loratore veneziano António Justiniani. - Vão lutar; o Papa vai- lhe bater!

Justiniani limitou-se a encolher os ombros; sabia bem que era mais fácil o filho bater no pai do que o pai atrever-se a tocar no filho. Desde o assassínio do irmão de César, o duque de Gândia, o Papa tremia diante dele, se bem que o amasse com uma ternura ainda maior, em que o orgulho paternal se misturava a um terror supersticioso. Ninguém tinha ainda também esquecido a forma como César apunhalara o jovem camarista Perotto, que julgara encontrar um refúgio seguro nos braços do Papa; o sangue da vítima espirrara para o rosto do Pontífice.

Justiniani adivinhava que a questão não era mais que uma finta, pela qual o Papa, de cumplicidade com o filho, pretendia desarmar definitivamente o enviado francês, provando-lhe que, mesmo que o Duque tivesse projectos hostis à República, ele, o Papa, não o coadjuvava.

Depois de ameaçar o Duque com a maldição paterna e com a excomunhão, o Santo Padre voltou à sala de audiência, trémulo de raiva, sufocado e limpando o suor que lhe corria pelo rosto congestionado. No fundo dos seus olhos, entretanto, brilhava uma chama de malícia esperta e alegre.

Aproximou-se do enviado francês e, tornando-o de novo pelo braço arrastou-o para o vão duma porta que dava para o pátio do Belvedcrc.

- Vossa Santidade... - disse delicadamente o francês -, eu não pretendia ser o causador da cólera...

- Ouvistes então qualquer coisa? - perguntou o Papa, ingenuamente.

E sem lhe dar tempo a reflectir, fez-lhe no queixo uma festa carinhosa e paternal e começou a falar com uma volubilidade irresistível da sua dedicação ao Rei e da pureza das intenções do Duque.

O enviado ouvia desconcertado, estupefacto, e, se bem que tivesse provas irrefutáveis da traição, estava de tal forma impressionado pela voz persuasiva e pela expressão dos olhos e do rosto do Papa, que começava a perguntar-se se não seria ele que se enganava. As mentiras do velho Bórgia tinham sempre qualquer coisa de natural e espontâneo; nunca as preparava, corriam-lhe dos lábios tão inocente e involuntariamente quase como os ternos galanteios que costumava dirigir às mulheres ao falar- lhes de amor.

 

Chegara o Verão. Na cidade grassava a "malária", a febre pútrida do Pontino. Nos fins de Julho e no começo de Agosto não passou dia nenhum sem que morresse algum dos cortesãos do Papa.

Havia já muito tempo que o Pontífice manifestava uma declarada inquietação e tristeza. Não era no entanto o receio da morte que o atormentava. O que o oprimia era o vácuo causado pela ausência da filha, Madona Lucrécia. Já por outras vezes tinha sido vítima desses desejos furiosos, cegos e surdos, semelhantes à loucura, e tinha medo deles: parecia-lhe que, se os não satisfizesse imediatamente, seriam eles que o matariam.

Escreveu a Lucrécia suplicando-lhe que voltasse, ainda que não fosse senão por poucos dias. Esperava a seguir poder retê-la pela violência.

A filha respondeu-lhe que o marido não a deixava partir. O velho Bórgia não teria recuado diante de nenhum crime para se desembaraçar do genro actual, que odiava mortalmente. Já tinha provado suficientemente, fazendo perecer os anteriores maridos de Lucrécia, que nada o detinha quando se tratava de saciar as suas paixões. Não lhe era porém possível lutar com o duque de Ferrara, que possuía então a melhor artilharia de toda a Itália.

Em 5 de Agosto, o Papa passou o dia na "vila" do cardeal Adriano.

Apesar das recomendações do médico, não se privou, à ceia, de alguns pratos muito condimentados, seus favoritos, bebeu também vinho forte da Sicília, e conservou-se muito tempo ao ar livre, exposto à frescura da noite, tão perigosa em Roma.

Nessa noite começou a sentir náuseas e vómitos.

Os médicos não eram unânimes na classificação da sua doença: uns diziam que era a febre pútrida, outros opinavam por um derramamento de bílis e os terceiros por uma congestão. Na cidade corriam boatos de envenenamento.

o Papa ia enfraquecendo gradualmente. Em 16 de Agosto decidiu-se ensaiar um método supremo: um remédio composto de pedras preciosas pulverizadas. O doente piorou.

Uma vez, durante a noite, recuperando a consciência, começou a rebuscar febrilmente qualquer coisa sobre o peito. Durante muitos anos, Alexandre VI usara sempre sobre si um minúsculo relicário de oiro, um pequeno cibório do feitio duma esfera que continha uma partícula do corpo e do sangue de Jesus. Os astrólogos tinham-lhe garantido que não morreria enquanto o conservasse consigo. Tê-lo-ia perdido? Algum dos seus familiares, desejando a sua morte, lho teria roubado? Não o sabia.

Mas ao ter conhecimento de que a relíquia não aparecia em parte nenhuma, o Papa fechou os olhos e, com um misto de submissão e desespero, murmurou: "Vou morrer. Está tudo acabado".

Na manhã do dia 17 sentiu uma fraqueza mortal. Deu ordem a todos para saírem do quarto e mandou chamar o seu médico preferido, o bispo Vanossa. Lembrou a este a tentativa feita por um judeu, médico de Inocêncio VII, para prolongar a vida do Papa moribundo: a transfusão, nas veias, do sangue de três crianças.

- Vossa Santidade - respondeu o Bispo - sabe também como essa experiência terminou?

- Sei, sei - exclamou o Papa. - Mas talvez não tivesse dado resultado porque as crianças escolhidas tinham já sete ou oito anos; parece que é preciso empregar crianças de mama...

o Bispo não respondeu. Uma névoa velou os olhos do doente. Começou a delirar:

- Sim, sim, muito pequeninos... Muito brancos... O seu sangue é puro, vermelho... Como eu gosto das crianças! Deixai-as vir. Sinite parvulos venire ad me.

o delírio do moribundo, que era o representante de Deus na terra, horrorizava o impassível Bispo, de resto habituado aos mais terríveis espectáculos.

Com um movimento monótono, impotente, febril e convulsivo, como o de um afogado, a mão do Papa rebuscava sempre no peito, procurando o cibório com o sangue e o corpo de Cristo e que tinha desaparecido.

Durante toda a sua doença, o Papa não se lembrou uma única vez dos filhos e foi com a maior indiferença que recebeu a notícia de César estar também no leito da morte. Quando lhe perguntaram se desejava que as suas últimas vontades fossem transmitidas ao filho ou à filha, voltou o rosto sem responder, como se aqueles que toda a vida amara com um amor insensato já não existissem para ele.

A 18 de Agosto, uma sexta-feira, pela manhã, confessou-se ao seu capelão, o bispo de Carinola, Pedro Gamboa, e recebeu os Santos Sacramentos.

Rezadas as "completas", seguiram-se as orações dos agonizantes. O moribundo fez várias vezes sinal, com a mão, de que queria dizer qualquer coisa. O cardeal Herda inclinou-se para ele e conseguiu perceber as fracas e entrecortadas palavras que saíam dos lábios do Pontífice:

- Depressa, depressa, a oração à Virgem...

Se bem que, pelo ritual, não fosse uso ler essa prece à cabeceira dum agonizante, Herda acedeu ao desejo do seu amigo e leu o Stabat Mater

Dolorosa:

Junto à Cruz dolorosa estava a Mãe constante,

Vendo pendente o Filho agonizante,

Sua alma enternecida

Gemia traspassada

Da penetrante dor da aguda espada.

Do Unigénito Filho,

Oh! que triste, e que aflita,

A morte vendo estava a Mãe bendita!

 

Preclara Virgem pura,

Um mar seja meu peito de amargura.

Nele de Cristo a morte se imprima amargamente,

Sentindo o que vossalma agora sente.

Por compassivo afecto dessas chagas ferido,

Imerso em puro amor perca o sentido.

Pra que assim abrasado, lá no terrível dia,

Alcance a vossa dor por grã valia.

Fazei que, defendido pela cruz, logre a ventura,

Que o tormento de Cristo me assegura.

E quando esta se acabe, duração transitória,

Do Paraíso possa ter a glória.

Assim seja.

Um brilho estranho e inexprimível passou no olhar de Alexandre VI, como se visse já diante de si Aquela a quem sempre rezara e pedira para interceder por ele. Fez um derradeiro esforço para se erguer, estendeu os braços num tremor, murmurando com voz apagada:

- Não me repilas, ó Virgem!... - e caiu sobre as almofadas e expirou.

César, pela sua parte, estava também entre a vida e a morte.

O seu médico, o bispo Gaspar Torella, submeteu-o a um tratamento extraordinário: mandou abrir o ventre duma mula e colocar o doente, trémulo de febre, no meio das entranhas sangrentas e fumegantes do animal. Retiraram-no em seguida para o mergulhar num banho de água gelada. Este estranho remédio, ou talvez a incrível força de vontade de César, fizeram com que triunfasse da doença.

Durante esses dias terríveis, conservou sempre uma serenidade absoluta e um perfeito domínio de si próprio. Seguiu constantemente os acontecimentos exteriores, ouviu os relatórios, ditou cartas e deu ordens. Ao ter conhecimento da morte do Papa, fez-se transportar, por um caminho subterrâneo, do Vaticano para o Castelo de Santo Ângelo.

Na cidade corriam muitas lendas acerca da morte de Alexandre VI.

O enviado veneziano, Marino Sanuto, num relatório ao seu governo, contava que o Papa moribundo tinha visto um macaco, que o escarnecia, e que, quando os cardeais se propunham agarrá-lo, o Papa, aterrorizado, gritara: "Deixem-no, deixem-no! E o Diabo!" Lassolo, lassolo, ché il diavolo! Outros contavam ter ele dito diversas vezes: "Já vou, espera- me um pouco!", e explicavam assim estas palavras: Quando estava reunido o Conclave que devia eleger o sucessor de Inocêncio VIII, Rodrigo Bórgia, o futuro Alexandre VI, que dele fazia parte, tinha concluído um pacto com o Demónio e vendera-lhe a alma em troca dos doze anos de pontificado. Asseguravam também que, imediatamente a seguir à morte do Papa, tinham aparecido à sua beira sete demónios, que o seu corpo entrara imediatamente em decomposição, que o sangue tinha começado a ferver e a espuma lhe corria sem cessar da boca. Segundo o costume, era necessário, antes de enterrar o Pontífice Romano, celebrar missas pelo repouso da sua alma, durante dez dias seguidos. Porém, o horror inspirado pelo cadáver do Pontífice era tal que não se encontrava oficiante.

Em roda do corpo não havia nem círios nem lâmpadas, nem incenso nem leitores, nem guardas, nem ninguém a rezar. Durante muito tempo, andou-se em busca dos coveiros. Finalmente, encontraram-se seis malandrins, destas criaturas capazes de tudo em troca dum copo de vinho. O esquife era demasiado pequeno; tiraram-lhe então da cabeça a tiara das três coroas. A guisa de mortalha, cobriram-no com um tapete esburacado, e o corpo foi violentamente calcado a pés, para caber no caixão, curto e estreito.

A calma não se restabeleceu, porém, mesmo depois do enterro cio

Papa: um terror supersticioso continuava a dominar o povo. Havia muita gente convencida de que Alexandre VI não morrera de morte natural e que ia ressuscitar para subir de novo ao trono e começar então o reinado do Anticristo.

 

Nessa época, Leonardo trabalhava tranquilamente, longe do mundo, num quadro começado há muito tempo, que lhe fora encomendado pelos frades servitas, para a Igreja de Santa Maria da Anunciada, em Florença.

Trabalhara nele com a sua lentidão habitual, enquanto estivera ao serviço de César Bórgia. O assunto representava Santa Ana e a Virgem Maria.

No meio duma pastagem montanhosa e deserta, numa atitude de que se viam os picos agudos e azuis das montanhas longínquas e os lagos calmos, a Virgem Maria tinha o Menino Jesus sobre os joelhos, segundo o uso antigo. Jesus agarrava o cordeiro pelas orelhas e forçava-o a inclinar a cabeça para o chão, ao mesmo tempo que erguia a perninha, com uma alegre vivacidade, como quem tenta encavalitar-se-lhe no dorso. Santa

Ana era semelhante à sibila eternamente jovem. A expressão risonha dos olhos baixos, o sorriso dos lábios delgados e móveis, esse sorriso fugitivo, cheio de sabedoria, de sedução e de mistério, como uma água transparente e profunda, lembrava a Giovanni o sorriso do próprio Leonardo.

Ao lado de Santa Ana, o rosto infantil da Virgem Maria respirava uma simplicidade de pomba. Maria era o perfeito amor, Ana, a ciência perfeita. Maria sabia porque amava, Ana amava porque sabia. E ao contemplá-las, Giovanni compreendeu pela primeira vez as palavras do mestre: "O grande amor é filho do perfeito conhecimento".

Enquanto trabalhava nesse quadro, Leonardo desenhava também diversas máquinas da sua invenção.

 

A morte do Papa, influenciando a sorte de César, ia, por contrapartida, afectar a vida de Leonardo. Apesar do sangue-frio e da audácia que mantinha aquele a quem Machiavel chamava "o grande conhecedor dos destinos", este sentia que o destino ia mudar para ele. Ao anúncio da morte do Pontífice e da doença do Duque, os inimigos dos Bórgias tinham-se conluiado e tomaram conta da campina romana. O Conclave reunido para eleger o novo Papa exigia que o Duque fosse afastado de

Roma. Tudo ia mudar; não subsistiria nada do que fora até ali. Aqueles que havia pouco tremiam diante de César, já troçavam dele e prediziam a sua queda. A seu respeito corriam por toda a parte os epigramas.

 

No Outono de 1503, Pedro Soderini, gonfaloneiro perpétuo da República de Florença, convidou Leonardo a entrar no seu serviço; e, assim que ele aceitou, resolveu enviá-lo ao acampamento de Pisa, como engenheiro militar, para ali construir máquinas de guerra.

O pintor poucos dias se devia conservar em Roma.

Uma tarde subiu em passeio ao Monte Palatino. No local onde se erguiam outrora os palácios dos Imperadores Augusto, Calígula e Séptimo Severo, não restavam mais que ruínas, através das quais soprava o vento; sob os olivais grisalhos, os carneiros faziam ouvir os seus balidos a que se misturava o canto dos grilos. Ao ver a quantidade de destroços de mármore branco dispersos pelo solo, adivinhava-se que deuses duma beleza ignorada repousavam ali, como mortos esperando a ressurreição.

A tarde estava calma. A massa dos arcos, das paredes, cujos tijolos luziam ao sol, brilhando com um vermelho vivo, contrastava com o azul profundo do céu. O oiro e a púrpura do Outono tinham qualquer coisa de mais imperial que o oiro e a púrpura que adornaram outrora os palácios dos imperadores romanos.

Na vertente norte da colina, junto dos jardins da Capranica, Leonardo, ajoelhado, afastava as ervas e examinava com cuidado uma ruína de mármore na qual se distinguia ainda um delicado desenho.

Um homem, saindo de dentro dos arbustos, avançou pelo estreito atalho. Leonardo ergueu-se, mirou-o e, aproximando-se dele, exclamou:

- Vós, messer Niccolo?! - e sem esperar resposta, abraçou-o e beijou-o como a um irmão.

As vestes do secretário de Florença pareciam ainda mais usadas e puídas do que as que usava na România. Via-se que os governadores da República se não ocupavam dele mais generosamente do que naquele tempo. Tinha emagrecido, as rugas do rosto mais fundas, mais cavadas; o delgado pescoço alongara-se mais, e o nariz, em bico de pato, parecia ainda mais proeminente. Os olhos luziam-lhe com um brilho febril.

Contou a Leonardo que, durante o tempo que se não tinham visto, trabalhara muito, e tinha quase pronta a sua obra sobre a política. Como sempre, queixava-se da pobreza e da tristeza da sua situação.

Conversando, desceram a colina e, pela estreita e lamacenta Rua delta Consolazine, chegaram junto do Capitólio, ao pé das ruínas do templo de Saturno, na praça onde se erguia outrora o Forum Romano.

Dos dois lados da antiga Via-Sacra, desde o arco de Séptimo Severo até ao anfiteatro dos Flavianos, erguiam-se pequenos casebres arruinados. Dizia-se que os alicerces de muitos destes tinham sido feitos de destroços de estátuas preciosas e de membros de deuses olímpicos. Durante um século, o Forum tinha servido de pedreira. As igrejas cristãs, ainda tímidas e pobres, procuravam asilo entre os vestígios dos templos pagãos.

Niccolo mostrou ao seu companheiro o local do antigo Senado romano, da Cúria, da Assembleia popular. Tinham construído ali um mercado de gados. As colunas de mármore quebradas, as lápides com inscrições meio apagadas, que os animais cobriam de imundícies, enterravam-se numa lama negra e líquida. Ao Arco de Triunfo de Tito Vespasiano, encostavase uma velha torre que servira outrora de covil aos bandidos do barão de Frangipani. Actualmente, mesmo em frente do Arco, erguia-se uma estalagem destinada aos camponeses que vinham ao mercado. Pelas janelas abertas chegavam os gritos das mulheres, questionando, e um olor de gorduras rançosas e de peixe frito. Suspensos duma corda, secavam andrajos; um velho mendigo, minado de febre, estava sentado numa pedra e enrolava em farrapos a perna inchada e doente.

As duas faces interiores do Arco eram adornadas de baixos-relevos; dum lado, um representava o imperador Tito Vespasiano, conquistador de Jerusalém; ia sentado num carro atrelado a quatro bois e seguido dum cortejo triunfal; no outro, o artista representara escravos judeus arrastando ferros e conduzindo os troféus do vencedor: o altar para os sacrifícios a Jeová, os pães do ofertório e os candelabros de sete braços do templo de Salomão. Ao centro do Arco, uma águia com as asas abertas conduzia para o Olimpo o César divinizado. No frontão do pórtico, Niccolo leu a seguinte inscrição, ainda intacta: Senatus populusque Romanus divo Tito divi Vespasiani filio Vespasiano Augusto.

Os raios do sol que desciam em direcção ao Capitólio, penetraram sob o Arco e iluminaram o triunfo do imperador. Os últimos reflexos escarlates filtravam-se através do fumo vulgar que subia das cozinhas, tomando-o semelhante a uma nuvem de incenso.

Entraram no Coliseu.

- É bem certo - disse Niccolo contemplando os gigantescos blocos de pedra que formavam os muros do anfiteatro -, é bem certo que não nos podemos comparar àqueles que construíram semelhantes edifícios.

E aqui, é somente em Roma, que se sente a diferença entre nós e os antigos!

- Parece-me - replicou lentamente Leonardo, fazendo um esforço como quem sai dum sonho -, parece-me, Niccolo, que não tendes raIão. Os homens de hoje não são inferiores aos antigos... são apenas diferentes...

- Será talvez a humildade cristã?

- Sim, a humildade, entre outras...

- Talvez - disse friamente Niccolo.

Sentaram-se a descansar no degrau inferior, meio destruído, do anfiteatro.

- Eu por mim - continuou Niccolo com um entusiasmo súbito e irresistível - penso que os homens deveriam aceitar ou renegar a religião de Cristo. Não temos feito nem uma nem outra coisa. Nem somos cristãos, nem somos já pagãos. Não escolhemos entre as duas crenças; rejeitámos uma sem nos prendermos a outra. Não temos a coragem de ser bons e temos medo de ser maus. À força de mentir, de hesitar entre Cristo e Satã, não sabemos nós próprios o que queremos, nem para onde vamos. Os antigos, ao menos, sabiam e eram lógicos e coerentes. Mas desde o tempo em que os homens se convenceram que deviam sofrer todas as injustiças e violências na vida terrena, para alcançar a bem- aventurança, abriu-se um fértil e imenso campo aos incrédulos. E não foi senão a nova crença que enfraqueceu o mundo e o colocou à mercê dos miseráveis!

A voz tremia-lhe, os olhos brilhavam-lhe com um furor quase insensato, as feições alteravam-se-lhe como se estivesse sob o domínio dum intolerável sofrimento íntimo.

Leonardo calava-se. A sua alma enchia-se de pensamentos lúcidos, infantis, tão simples que os não podia exprimir por palavras. Contemplava o céu azul que brilhava através das brechas dos muros do Coliseu e sonhava que em nenhuma outra parte o céu é tão eternamente e triunfalmente jovem, como visto através das ruínas dos velhos edifícios.

Ao saírem do Coliseu, anoitecia. Uma Lua enorme e doirada erguia- se por detrás dos negros arcos da Basílica de Constantino, trespassando as nuvens transparentes e nacaradas.

Flocos de bruma azul iam desde o Arco de Tito Vespasiano até ao

Capitólio, as três brancas colunas solitárias erguidas em frente da Igreja de Santa Maria Libertadora surgiam mais belas ao clarão da Lua e semelhantes a uma visão de sonho. Um sino soou tristemente, anunciando o "Angelus" da tarde, como uma lamentação fúnebre que ficou pairando sobre o Fortim Romano.

 

               CAPÍTULO XIV - MONA LISA GIOCONDA (1503-1506)

"Dentro da caverna a solidão era profunda. Passado um certo tempo, nasceram em mim dois sentimentos antagónicos:

o medo e a curiosidade; o medo perante a exploração da sombria caverna, e a curiosidade de saber se ela não conteria qualquer segredo maravilhoso."

                       Leonardo de Vinci

 

Em Florença, Leonardo instalou um amplo e claro atelier na Rua

Martelli. O proprietário da casa, messer Piero di Barto, era um cidadão florentino de categoria, amador das matemáticas; pessoa muito inteligente que nutria por Leonardo uma grande amizade.

Era um dia quente, calmo e enevoado, dos fins da Primavera de 1505.

O Sol atravessava o véu húmido das nuvens, espalhando uma luz vaporosa, como submarina, com sombras leves, esparsas, semelhantes ao fumo: a luz predilecta de Leonardo, e que, segundo dizia, nimbava de especial beleza os rostos femininos.

"Será possível que não venha?" Pensava naquela cujo retrato pintava, havia quase três anos, com uma persistência e um interesse nele sem precedentes.

Preparou o atelier para a receber. Giovanni Beltrafio seguia-o com os olhos disfarçadamente, e admirava-se da expectativa inquieta que era quase impaciência, estado de alma extraordinário no mestre, habitualmente calmo.

Leonardo pôs em ordem os pincéis, as paletas e as tintas; descobriu a tela do retrato colocado num cavalete de três pés e abriu as águas da fonte, situada no meio do pátio, que construíra para a distrair, a ela. Em volta da fonte abriam-se as suas flores predilectas, os lírios plantados e tratados por sua mão; trouxe num açafate pedaços de pão, já cortados.

para a corça domesticada que circulava no pátio e que ela costumava alimentar. Finalmente arranjou, diante da poltrona, um fofo tapete. Um gato branco, duma raça oriental muito rara, comprado também para seu regalo, estava já enrolado sobre a alfombra, no seu lugar preferido, e ronronava suavemente.

Andrea Salaino dispôs os cadernos de música e começou a afinar o violino. Atalante, outro músico, chegou também. Leonardo tinha-o encontrado em Milão, na corte de o Mouro. Tinha um talento especial para a cítara de prata, esse instrumento em forma de cabeça de cavalo da invenção de Leonardo.

O pintor convidava os melhores músicos, cantores e poetas, a fim de a distrair e evitar o aborrecimento especial que transparece na expressão das pessoas que posam para um retrato. Leonardo estudava-lhe no rosto a evolução das ideias e dos sentimentos que a conversação, as recitações e a música faziam nascer.

Estas reuniões iam-se tornando, no entanto, cada vez mais raras. Sabia que elas já não eram necessárias, que monna Lisa não se aborreceria mesmo sem essas distracções. Somente a música continuou; esta ajudava-os a ambos. A retratada interessava-se tanto pelos progressos da obra que se podia dizer tomar ela própria parte na sua execução.

Tudo estava preparado e ela não tinha ainda chegado.

"Será possível que não venha?", pensava. "Hoje, que a luz e as sombras eram tão favoráveis! Terei que mandá-la buscar? Ela bem sabe que eu a espero. Deve vir!"

Giovanni via crescer a sua ansiedade.

De repente, um leve sopro de vento fez curvar o repuxo da fonte e as pétalas dos lírios brancos tremeram sob as gotas de água. Leonardo prestou atenção. E Giovanni, se bem que não tivesse ouvido nada, compreendeu, ao ver a expressão do mestre, que era "ela".

Entrou primeiro a irmã Camila, que saudou modestamente. Era uma "conversa" que vivia em sua casa e a acompanhava sempre que vinha ao atelier do pintor.

Atrás de Camila vinha aquela que todos esperavam; era uma mulher de trinta anos, envergando um vestido escuro, com a cabeça envolta num véu de gaze transparente que lhe descia até meio do rosto: monna Lisa Gioconda.

Beltraffio sabia que ela era napolitana e que pertencia a uma antiga família; era filha dum gentil-homem, António Gerardini, que perdera toda a sua fortuna na época da invasão francesa de 1495; casara com o cidadão florentino Francesco del Giocondo, já duas vezes viúvo.

Leonardo, quando começou o retrato, passava já dos cinquenta anos e o marido de Lisa, messer Giocondo, tinha então quarenta e cinco. Fora escolhido como um dos doze representantes da República e seria em breve prior. Era um homem vulgar, nem muito mau nem muito bom, económico, extraordinariamente activo e sempre absorvido pela política e pela agronomia. A elegância da esposa parecia-lhe ser um útil ornamento para a sua vida e para a sua casa. Porém, a beleza de monna Lisa interessava- o menos que a qualidade duma nova raça de toiros sicilianos, ou o rendimento da tarifa cobrada sobre as peles frescas de carneiro. Dizia-se que ela se casara, não por amor, mas para satisfazer a vontade paterna e que o seu primeiro noivo, desesperado, procurara voluntariamente a morte numa batalha. Rumores, maldosos decerto, corriam a respeito dos seus adoradores, apaixonados e persistentes, mas sempre repelidos. De resto, as más-línguas, e havia muitas em Florença, não podiam dizer nada de mal acerca de Gioconda. Tranquila, modesta, devota, seguindo escrupulosamente todas as cerimónias da Igreja, caridosa com os pobres, era uma esposa fiel, uma boa dona de casa e uma carinhosa madrasta para a pequena Dianora, criança de doze anos.

Era tudo quanto Giovanni sabia dela. Mas a monna Lisa que vinha ao atelier de Leonardo parecia-lhe ser uma criatura diferente.

Durante três anos, o tempo não enfraquecera, antes pelo contrário, exagerara essa estranha impressão. A cada uma das suas aparições, experimentava uma admiração semelhante ao temor, como diante de qualquer coisa de sobrenatural e de quimérico. Explicava estes sentimentos pelo facto de que, estando habituado a ver-lhe o rosto no retrato, e sendo a arte do pintor infinita, a monna Lisa viva parecia-lhe menos real do que a pintura. Mas havia qualquer coisa ainda de mais misterioso.

Sabia que Leonardo apenas a via na ocasião do trabalho, em presença de outras pessoas, às vezes no meio de numerosos convidados, outras vezes apenas com a inseparável Camila, mas nunca só; e, no entanto, Giovanni pressentia que havia entre eles um segredo que os aproximava e unia. Sabia também que esse segredo não era um segredo de amor, ou, pelo menos, do que vulgarmente se chama "amor".

Ouvira dizer muitas vezes a Leonardo que todos os artistas têm uma tendência para recordar as próprias feições no corpo ou nos rostos dos retratados. O mestre considerava como causa dessa tendência o facto de que, sendo a alma humana a criadora do seu invólucro carnal, sempre que tem de representar um novo corpo, esforça-se por repetir no desenho aquilo que já ela própria tinha criado; e esta predisposição é tão forte que, às vezes mesmo, nos retratos, através da semelhança exterior do original, desponta, senão o rosto, pelo menos a alma do próprio pintor.

O que se passava diante dos olhos de Giovanni era ainda mais flagrante; parecia-lhe que não somente a que estava pintada na tela, mas a própria monna Lisa viva, se tornava cada vez mais semelhante a Leonardo, como acontece às pessoas que viveram juntas durante muitos anos.

A característica principal dessa semelhança crescente não residia apenas nas próprias feições, se bem que a houvesse a ponto de causar admiração, mas na expressão dos olhos e no sorriso. Lembrava-se, com indizível surpresa, já ter visto o mesmo sorriso na figura de Eva, a mãe do género humano, de pé diante da árvore da ciência, no primeiro quadro do mestre. O anjo da Virgem nos Rochedos, a Leda com o Cisne e muitas outras cabeças de mulher pintadas por Leonardo, antes de conhecer monna Lisa, tinham igualmente o mesmo sorriso. Dir-se-ia que Leonardo passara toda a sua vida a procurar, através de todas as suas criações, o reflexo da própria beleza e que o tinha enfim encontrado no rosto de Gioconda.

Às vezes, quando Giovanni observava durante muito tempo esse sorriso, que era comum a ambos, um sentimento de inquietação, de terror mesmo, invadia-o como se estivesse em presença dum milagre: a realidade parecia tornar-se sonho, e o sonho realidade: tinha a impressão de que monna Lisa não era uma criatura real, nem a mulher do cidadão florentino messer Giocondo, o mais banal dos homens, mas um ente de sonho, evocado pela vontade do mestre, o double feminino do próprio Leonardo.

O pintor começou a trabalhar. Mas, de repente, deixando cair o pincel, olhou atentamente o rosto de Lisa: a mais ligeira sombra, a mais pequena mudança na fisionomia, não escapavam à sua observação.

- Madona, há hoje qualquer coisa que vos inquieta.

Lisa ergueu para Leonardo o seu tranquilo olhar.

- Sim, um pouco - respondeu. - Dinora está adoentada. Não dormiu nada em toda a noite.

- Se estais fatigada e vos aborrece hoje a sessão - disse o pintor - podemos adiá-la para outro dia.

- Não, de maneira nenhuma. Não teríeis pena de perder um dia semelhante? Vede que sombras delicadas, que luz difusa; foi um dia feito de propósito para mim! - E após um instante de silêncio, acrescentou:

- Sabia que estáveis à minha espera. Gostaria de ter chegado mais cedo, mas retiveram-me; Madona Sofonisba, aquela tagarela...

- Ah! É essa a razão! Não foi a indisposição de Dianora mas sim a conversa dessa gralha que vos perturbou! É extraordinário! Já ha eis reparado, Madona, quanto essas enfadonhas frioleiras que nos não interessam e com que os estranhos muitas vezes nos afligem conseguem obscurecer e perturbar a nossa alma, às vezes mais do que os próprios desgostos?

Ela inclinou silenciosamente a cabeça; via-se que eles estavam há muito tempo habituados a compreender-se mutuamente, quase sem palavras: bastava uma alusão ou um olhar.

O pintor tentou novamente recomeçar o trabalho.

- Contai-me qualquer coisa! - disse monna Lisa.

- O quê?

Depois de ter reflectido um instante, ela disse-lhe:

- A história do reino de Vénus.

Havia um certo número de narrativas que ela preferia a todas as outras: eram as que se referiam a recordações pessoais de Leonardo, às suas viagens, às suas observações sobre a Natureza, aos projectos dos seus quadros. O artista contava-as sempre, quase com as mesmas palavras simples, meio infantis, enquanto a música tocava em surdina.

A um sinal de Leonardo, Andrea Salaino pegou no violino, Atalante na cítara de prata, e começaram a tocar, enquanto De Vinci contava, com a sua voz dum timbre quase feminino: era como uma barcarola ou um velho conto.

"Os mestres dos barcos, que vivem nas costas da Sicília, asseguram que aqueles cuja sorte é morrer no meio das vagas, divisam às vezes, durante as mais terríveis tempestades, a ilha de Cípris, o reino da deusa do Amor. Em roda, rugem as águas furiosas e os vendavais, e muitos marinheiros atraídos pela beleza da ilha vão despedaçar os seus navios contra os rochedos escarpados, no meio daquelas águas perigosas. Oh!

Quantos navios têm naufragado, precipitados no abismo! Na costa vêem- se ainda os míseros esqueletos, meio enterrados na areia e cobertos de algas; uns têm a popa para o ar, outros a proa; uns deixam a nu os cavernames esburacados, semelhantes a esqueletos negros de cadáveres meio apodrecidos; de outros não há mais do que destroços. E há tantos, que dir-se-ia o dia da Ressurreição, quando o mar há-de restituir todos os barcos que tragou. Sobre a própria ilha, o céu é eternamente azul e o

Sol esplende sobre as colinas floridas; o ar é maravilhosamente calmo, e a longa chama das caçoilas, ardendo nos degraus do templo, eleva-se para o ar tão direita e imóvel como as colunas de mármore branco e como os gigantescos ciprestes negros que se reflectem no lago, semelhante a um espelho. Apenas os repuxos, caindo dum tanque de pórfiro para outro, murmuram docemente. Do mar, os náufragos vêem o lago tranquilo, tão próximo e que eles nunca conseguirão atingir; o vento traz- lhes o aroma dos bosques de murta, e quanto mais terrível é a tempestade, mais o sossego é profundo no reino de Cípris".

Calou-se. As cordas do violino e da cítara murmuraram os últimos acordes; foi o momento daquele silêncio que é mais belo que todos os outros. O silêncio que sucede à música. Não se ouvia mais que o jorrar da água na fonte.

E, como que embalada pela música e separada da vida real pelo silêncio, serena, alheia a tudo, excepto à vontade do artista, monna Lisa olhava-o nos olhos, com um sorriso cheio de mistério, qual uma água tranquila, perfeitamente límpida, mas de que o olhar não consegue distinguir o fundo.

Pareceu a Giovanni que nesse momento Leonardo e monna Lisa eram como dois espelhos que se permutavam a mesma imagem, reflectindo-se um no outro até ao infinito.

 

Na manhã seguinte, no Palazzo Vecchio, o pintor trabalhou na Batalha dAnghiari, quadro encomendado pela Senhoria da República.

Ao regressar a casa, Leonardo deteve-se na Praça, diante do David de Miguel Ângelo.

Parecia estar de sentinela às portas da Casa da Câmara de Florença, esse gigante de mármore branco que se destacava sobre o fundo negro da torre, harmoniosa e severa.

O corpo nu do adolescente era magro. A mão direita, armada com a funda, abaixava-se, o que fazia sobressair os tendões; a esquerda, erguida ao nível do peito, segurava uma pedra. As sobrancelhas estavam franzidas e o olhar fixo à distância como o de alguém que faz uma pontaria.

Era obra de Miguel Angelo, que nunca deixava de manifestar a sua antipatia pelo pintor, se bem que este estivesse sempre disposto a ajudá- lo de todas as formas. Leonardo sentia no autor dessa estátua uma alma porventura tão grande como a sua, mas oposta, como a acção é contrária à meditação, a paixão à frieza, a tempestade à bondade. Uma força estranha atraía-o, despertava nele a curiosidade, o desejo de se aproximar e de o estudar a fundo.

Outrora, nas pedreiras da construção da Catedral de Florença, jazia um enorme bloco de mármore branco, estragado por um escultor desastrado. Os peritos tinham-no recusado, declarando que já não podia ser aproveitado.

Quando Leonardo chegou a Florença, ofereceram-lho. Mas enquanto ele reflectia, media, calculava e hesitava, com a sua lentidão habitual, um outro artista, vinte e três anos mais novo, Miguel Ângelo Buonarotti, interceptou a encomenda, e trabalhando com incrível rapidez, não só de dia mas de noite, à claridade do fogo, acabou o gigante em vinte e cinco meses. Leonardo levara dezasseis anos a acabar o monumento ao Sforza, esse colosso de argila, e não ousava sequer sonhar no tempo que lhe teria sido necessário para um mármore do tamanho do David.

Os Florentinos tinham então considerado Miguel Ângelo como um rival de Leonardo na arte da escultura.

Agora, porém, esse rival, que raramente pegara num pincel, começara a pintar um quadro, representando uma cena guerreira, para a Sala do Conselho, e transportava assim o seu desafio a Leonardo para o terreno da pintura, com uma audácia que parecia insensata.

Quanto mais benignidade e benevolência Buonarotti encontrava no seu rival, maior e mais cruel era a raiva que sentia por ele. O sangue-frio de Leonardo, considerava-o como desprezo. Com uma desconfiança mórbida, dava ouvidos a todas as calúnias, procurando sempre pretextos para disputas e aproveitando todas as ocasiões que se apresentavam para magoar Leonardo, que odiava talvez por o considerar superior a si.

 

Por essa altura, um assunto importante obrigou Leonardo a abandonar Florença, e partiu acompanhado de Machiavel.

Desde tempos imemoriais a República estava em guerra com a vizinha cidade de Pisa e esta luta interminável e impiedosa esgotava ambas as cidades.

O Conselho dos Dez ordenou a Leonardo a execução de um projecto, que consistia em desviar as águas do Amo, a montante de Pisa, e a conduzi-las por meio dum canal até aos pântanos de Livorno, a fim de cortar as comunicações da cidade assediada com o mar e impedir o seu reabastecimento, obrigando-a a render-se.

Ao princípio, o trabalho parecia correr bem. O nível das águas do rio baixara. Em breve, no entanto, surgiram dificuldades que originaram despesas cada vez maiores, e os ecónomos da Senhoria começaram a regatear cada florim que era preciso desembolsar.

No Verão de 1505, o rio, saindo do leito depois dumas chuvas torrenciais de tempestade, destruiu uma parte do dique.

Leonardo, chamado para reparar este desastre, teve de dirigir-se ao local dos trabalhos. Na véspera da partida, regressara das margens do Arno onde tratara com Machiavel da ruptura do dique, e, ao voltar para casa, atravessou a ponte da Santíssima Trindade, na direcção da Rua Tornabuoni.

Àquela hora tardia, eram raros os transeuntes. O silêncio era apenas interrompido pelo marulhar da água contra o dique do moinho. O dia fora quente, mas pela tarde umas chuvas tinham refrescado o ar. Na ponte, sentia-se o relento morno da água estival. Sobre a colina de São Miniato erguia-se a Lua. À direita, no cais da Ponte Vecchio, pequenas casas arruinadas, assentes sobre pilares arredondados de madeira, reflectiam-se como num espelho, na água dum verde turvo. A esquerda, por cima dos contrafortes dos Montes Albanos, dum violeta pálido, luzia uma estrela solitária.

O perfil de Florença desenhava-se no céu puro, semelhante a um frontispício gravado no oiro descorado de velhos pergaminhos, perfil único no mundo, familiar e atraente, como a figura viva duma pessoa querida. Toda a Florença, à luz dupla do crepúsculo e da Lua, desabrochava como uma enorme flor de prata.

Leonardo notara que cada cidade, da mesma forma que cada pessoa, tem o seu perfume especial. Parecia-lhe que o perfume de Florença era como o duma poeira húmida, semelhante ao pólen dos lírios, misturado ao aroma fresco e indefinível dos vernizes e das tintas dos quadros muito antigos.

Pensou em Gioconda. Sabia da sua vida quase tão pouco como

Giovanni. Admirava-se de que ela tivesse um marido como messer

Francesco, magro e alto, com uma verruga na face direita e sobrolhos espessos; um homem positivo que só gostava de falar de política e de negócios. Havia momentos em que Leonardo sentia prazer ao contemplar a beleza de sonho de monna Lisa, essa beleza rara, longínqua, sobrenatural e contudo mais real que a própria realidade. Mas havia também outros minutos em que era sensível aos seus encantos puramente humanos.

Monna Lisa não era dessas mulheres que se designavam então por "madonas letradas", dotte crome. Nunca ela lhe falara dos seus conhecimentos literários. Apenas, por acaso, soubera que lia o latim e o grego.

A sua compostura era sempre simples, os seus propósitos inteligentes.

Dizia às vezes coisas que a aproximavam de si mais que todas as outras pessoas que ele conhecia; tornava-se então a amiga, a irmã única e eterna.

Nesses momentos, teria querido transpor o círculo mágico que separa a meditação da vida. Mas imediatamente abafava esse desejo, e, cada vez que conseguia aniquilar o sentimento da beleza real de morna Lisa. a imagem de sonho que criara dela, sobre a tela do quadro, tomava-se mais humana e mais dominadora.

Parecia-lhe que ela o sabia, que se submetia e o ajudava a sacrificá- la ao seu próprio fantasma; que lhe dava a sua alma e se sentia feliz.

Seria o amor que os unia assim?

Leonardo era alheio ao que a maioria dos homens chama o "amor físico".

Assim como não comia carne, porque isso lhe parecia, não uma coisa proibida mas repugnante, da mesma forma se privava das mulheres, porque toda a possessão carnal, quer na vida conjugal quer no adultério, lhe parecia não criminosa mas grosseira.

Mas, mesmo que ele sentisse por ela amor, teria podido desejar uma união mais perfeita com a bem-amada do que aquela que encontrava nessas carícias misteriosas e profundas, na criação da imagem imortal dum ser novo que era sua concepção e que nascia deles como a criança nasce do pai e da mãe, e que era a conjunção de ambos?

Entretanto, sentia que mesmo nessa comunhão tão casta havia um perigo, maior talvez que nos laços ordinários do amor carnal. Marchavam ambos à beira dum precipício, sobre um terreno onde ninguém ainda os precedera, e triunfavam da sedução e da atracção do abismo. Mas muitas vezes perguntava a si próprio se teria o direito de sondar aquela alma viva, a única verdadeiramente afim da sua, a alma da amiga, da irmã eterna, com a mesma curiosidade impassível com que estudava as leis da mecânica ou das matemáticas, a vida das plantas venenosas ou a anatomia dum cadáver.

Não se revoltaria ela um dia, a querida amiga, e não o repeliria com raiva e desprezo, como o faria qualquer mulher?

Parecia-lhe às vezes estar a assassiná-la lentamente, e a sua submissão sem outros limites, além da curiosidade dele, insaciável e impiedosa, fazia-lhe horror.

Apenas nos últimos tempos compreendera que, cedo ou tarde, deveria decidir se ela era para ele uma criatura em carne e osso ou apenas uma visão: o reflexo da sua própria alma no espelho da beleza feminina.

Tivera ainda uma esperança: que a separação adiaria por algum tempo a necessidade dessa decisão. Mas agora, que tinha de sair de Florença e a hora da decisão se aproximava, compreendia que se tinha enganado e que a sua partida não prolongaria mas sim encurtaria o prazo que se tinha marcado para tomar um partido.

Perdido nestes pensamentos, nem reparou que tinha entrado numa escura viela, e quando voltou a si não soube imediatamente onde se encontrava. A julgar pelo campanário de mármore de Giotto, que se erguia por cima dos telhados, devia estar cerca da Catedral. Um dos lados da comprida e estreita viela estava mergulhado em impenetrável escuridão, o outro banhado pela luz viva e branca do luar. Ao longe brilhava uma luz; à esquina duma casa divisou um balcão coberto por um baldaquino de declive suave, apoiado num hemiciclo de arcas sustentadas em harmoniosos pilares; debaixo desta loggia florentina, num grupo, alguns mascarados, embrulhados em longas capas negras, cantavam uma serenata ao som das cítaras. Leonardo pôs-se a escutar.

Era uma velha canção de amor, composta outrora por Lourenço de

Médicis, o Magnífico, para acompanhar o cortejo de Baco e de Ariana, no Carnaval; um canto de amor alternadamente triste e alegre. Leonardo gostava de o ouvir, porque se recordava de já o conhecer desde os tempos da sua juventude.

Quanté belfa giovenezza,

Che se fugge tuttavia,

Chi vuol esser lieto, sia:

Di doman non cé certezza.

Oh! A bela mocidade fugitiva!

Como corre ligeira e desaparece...

Não a deixeis passar - a sorte é esquiva,

E o dia de amanhã ninguém conhece.

O último verso despertou-lhe um negro pressentimento. Não era certo ter-lhe o destino enviado, no limiar da velhice, no meio da sua tristeza e solidão, uma alma gémea da sua? Deveria repeli-la, e renunciar, como já o fizera tantas vezes, preferindo a meditação à acção? Deveria sacrificar de novo o presente ao futuro e o real ao imaginário? Quem escolheria, a

Gioconda viva ou a criatura imortal? Sabia que preferindo uma, perdia a outra, e ambas lhe eram igualmente queridas. Sabia que era necessário decidir-se e que não podia prolongar por mais tempo o suplício de Lisa.

Mas a sua vontade era impotente. Não queria nem podia tomar partido: nem sacrificar a viva à imorredoura, nem a imortal à viva; a que existia, àquela que existiria perpetuamente sobre a tela do quadro.

Depois de ter vagueado ainda por algumas ruas, chegou à porta da casa da Rua Martelli.

Estava tudo fechado, as luzes apagadas. Ergueu o martelo pendente duma cadeia e percutiu com ele o florão de bronze. O porteiro não respondeu. Dormia provavelmente, ou talvez tivesse saído. As pancadas ressoando nas abóbadas sonoras da escadaria acabaram por extinguir-se.

O silêncio reinou de novo. Parecia que o luar o tornava ainda mais profundo.

De repente, ouviram-se badaladas lentas, pesadas e harmoniosas; eram horas numa torre vizinha. A voz de bronze do sino falava do voo ameaçador do tempo, da triste velhice solitária, do passado irrecuperável...

Durante algum tempo ainda, o eco das últimas badaladas vibrou, ora mais fraco, ora mais forte, prolongando-se, como que a repetir no silêncio da noite o ritmo da balada:

Di doman non cé certezza.

 

No dia seguinte, monna Lisa chegou ao atelier de Leonardo à hora habitual, mas, pela primeira vez, sozinha, sem a sua eterna dama de companhia, a irmã Camila. Gioconda sabia que era esta a última entrevista.

O atelier estava inundado de sol, duma claridade ofuscante. Leonardo correu uma cortina e a quadra de paredes escuras recaiu numa luz crepuscular, transparente como uma sombra submarina e que realçava a beleza do rosto de monna Lisa.

Estavam sós. Leonardo trabalhava silenciosamente, concentrado, a sua alma numa tranquilidade perfeita, esquecido dos pensamentos que na véspera o tinham atormentado, receando a separação iminente e a escolha indispensável. Era como se não houvesse para ele nem passado nem futuro, e a marcha do tempo estivesse suspensa; como se a jovem Madona tivesse sempre estado sentada na sua frente, e que assim devesse permanecer para sempre, aureolada pelo seu raro e calmo sorriso.

O que não podia realizar materialmente, realizava-o em sonho, em meditação: fundia as duas imagens numa, unindo a realidade e o reflexo, a morte e a vida. E isto dava-lhe o alívio duma grande libertação. Os seus terrores tinham desaparecido, já não tinha pena dela...

Sabia que monna Lisa lhe seria obediente até ao fim, que suportaria tudo, que aceitaria tudo, que morreria sem um gesto de revolta. E contemplava-a com a mesma curiosidade com que costumava espiar nos condenados à morte, que acompanhava até ao suplício, os últimos frémitos da agonia.

De repente, pareceu-lhe que a sombra dum pensamento intruso, que ele não inspirara nem compreendia, brincava no rosto do seu modelo, como o sinal dum hálito na superfície dum espelho. A fim de reconduzir Lisa, e de a trazer de novo para o âmbito do seu sonho, afastando a importuna sombra, começou a contar-lhe, com aquela voz imperativa e cantante que os magos empregam nas suas encantações, uma dessas narrativas misteriosas como enigmas, que escrevia às vezes no seu diário:

- Não tinha força - disse - de resistir à tentação de ver as imagens novas, desconhecidas dos mortais, e criadas pela arte da Natureza; e, tendo caminhado muito tempo por entre rochas nuas e desoladas, cheguei enfim à caverna; à entrada detive-me hesitante e perplexo. Decidindo-me enfim, baixei a cabeça e encostei a palma da mão para me acostumar à obscuridade. Entrei e dei alguns passos. Com o rosto contraído e os olhos semicerrados, a fim de dar maior agudeza à visão, mudei várias vezes de caminho e vagueei às apalpadelas no meio das trevas. A escuridão, porém, era demasiado profunda. Passado um certo tempo, dois sentimentos despertaram em mim e se digladiaram: o medo e a curiosidade; o medo, perante a exploração da escura caverna, e a curiosidade de conhecer qual era o segredo misterioso que ela encerrava.

Calou-se. A sombra importuna e enigmática pairava sempre no rosto de Gioconda.

- E qual dos dois sentimentos triunfou? - perguntou ela.

- A curiosidade.

- E qual era o segredo da caverna?

- Só soube o que era possível saber.

- Estais disposto a revelá-lo?

- Não poderia dizer tudo, porque o não saberia. O meu desejo seria inspirar aos homens uma tal força de curiosidade que vencesse sempre neles o temor.

- E se a curiosidade não fosse suficiente, messer Leonardo? - perguntou Gioconda com um olhar inusitado e brilhante: - Se fosse necessário qualquer outro sentimento, diferente e maior, para penetrar os derradeiros e porventura os mais maravilhosos segredos da caverna?

Olhou-o fixamente nos olhos, com um sorriso como ele nunca lhe tinha visto.

- Que mais seria preciso? - perguntou ele.

Ela calou-se.

Neste momento, um raio de sol indiscreto e vivo penetrou através duma abertura da cortina. A semiobscuridade submarina iluminou-se. Do rosto de monna Lisa desapareceu o encantamento do claro-escuro e das sombras delicadas e suaves como uma música longínqua.

Sempre partis amanhã? - perguntou Gioconda.

- Não, esta noite.

- Eu parto também brevemente!

O pintor fixou-a. Quis dizer qualquer coisa, mas não conseguiu: calou-se. Adivinhou que ela partia para não permanecer em Florença durante a sua ausência.

Messer Francesco, meu marido - continuou ela -, vai passar três meses na Calábria, a tratar dos seus negócios. Pedi-lhe que me levasse consigo.

Leonardo desviou-se, o rosto carregado, e olhou aborrecido para o raio de sol que invadira, brutal e sincero, o ambiente crepuscular do atelier. Até ali, o repuxo da fonte tinha-se mantido duma brancura transparente; agora, atravessado por esse raio refractor, repartia-se nas cores do arco-íris, as cores da vida.

Leonardo sentiu de repente que recaíra na realidade, fraco, cheio de piedade e digno também de dó.

- Não faz mal - disse monna Lisa. - Arranjai a cortina, que é ainda muito cedo e eu não estou fatigada. Podemos continuar.

- Não. É suficiente! - disse ele, arrojando o pincel.

- Não terminareis nunca o retrato?

- Por que mo perguntais? - disse vivamente o pintor, apreensivo.

- Não voltareis a minha casa no vosso regresso?

- Certamente, voltarei. Mas talvez me transforme nestes três meses de tal maneira que vós me não reconheçais! Tenho-vos ouvido dizer muita vez que o rosto humano, principalmente o das mulheres, muda tão rapidamente!...

- Gostaria de acabar - disse ele lentamente e como se falasse consigo mesmo. - Mas não sei. Parece-me às vezes que desejo o impossível.

- O impossível? - disse ela admirada. - Parece com efeito que nunca acabais as vossas obras porque aspirais ao irrealizável.

Nestas palavras, Leonardo julgou perceber uma censura tímida, repassada de infinita bondade. "Será realmente assim?", pensou angustiado.

Ela ergueu-se e disse simplesmente, com a palidez habitual:

- São horas. Adeus, messer Leonardo. Boa viagem.

Novamente ergueu os olhos para ela e outra vez divisou no seu rosto a sombra duma censura desesperada ou duma prece.

Sabia que, para ambos, aquele instante era sem remissão e eterno como a morte. Sabia que não se devia calar. No entanto, apesar de toda a sua concentração mental no sentido de tomar uma resolução e de encontrar palavras para a exprimir, cada vez sentia mais profunda a sua incapacidade e adivinhava o abismo impossível de transpor que se cavava entre ambos. E monna Lisa sorria com o seu habitual sorriso; sereno, calmo e enigmático. Mas a expressão desse sorriso, na sua serenidade e na sua calma, parecia-lhe ser semelhante à do sorriso dos mortos.

O seu coração foi traspassado por uma mágoa infinita, uma piedade intolerável, que o tornou ainda mais fraco.

Monna Lisa estendeu-lhe a mão e, silenciosamente, ele beijou-lha, pela primeira vez desde que se conheciam. Nesse momento, sentiu que ela, curvando-se rapidamente, tinha aflorado os seus cabelos com os lábios.

- Que Deus vos acompanhe - disse ela com a sua habitual simplicidade.

Quando Leonardo recuperou a noção das coisas, já monna Lisa ia longe. Em roda, reinava o silêncio pesado da tarde de Verão, mais terrível que o silêncio das mais profundas e sombrias trevas.

E como na noite anterior, mas mais ameaçadores e mais solenes ainda, ressoaram os sons cadenciados e lentos das horas no campanário vizinho. A voz do sino falava do voo formidável do tempo, da triste e solitária velhice, e do passado que não volta mais.

Muito tempo ainda, ficou vibrando, até morrer nas trevas; e parecia repetir:

Di doman non cé certezza.

 

Dois meses mais tarde, Leonardo teve notícia da morte de Gioconda.

Um velho comerciante chegado de Florença deu-lhe a nova nestes termos:

- Ah! Meu Deus! É verdade, vós viveis aqui e não sabeis! Calculai que desgraça! Pobre messer Giocondo! Novamente viúvo! Monna Lisa morreu há um mês. Seja feita a vontade de Deus!

Leonardo sentiu que tudo escurecia em sua volta. Por instantes julgou que ia cair.

Mas fez um esforço prodigioso para se dominar, e o seu rosto, que tinha levemente empalidecido, recuperou a tranquilidade. Pelo menos, o comerciante não se apercebeu de nada.

A primeira ideia de Leonardo foi que o seu visitante, que era um velho indiscreto e coscuvilheiro, tinha mentido e inventara a notícia propositadamente para ver a impressão que ela lhe causava, e ir em seguida, lá fora, divulgar o incidente, dando assim novo alento aos rumores. que havia tempo corriam, duma intriga de amor entre Leonardo e Gioconda.

A realidade dessa morte, como acontece sempre no primeiro minuto parecia-lhe impossível.

Mas nessa tarde soube tudo; ao regressar de Calábria, onde messe Giocondo tinha arranjado a seu contento os negócios que ali o levavam entre outros o da importação em Florença de peles frescas de carneiro na pequena cidade de Lagonera, monna Lisa morrera de febres palustres, na opinião de uns, de uma infecção na garganta, segundo outros.

 

As obras do canal, destinadas a desviar o Arno do seu curso, terminaram por um completo desastre.

Quando das cheias do Outono, a inundação destruíra os trabalhos começados e transformara as terras baixas, outrora florescentes, num lamaçal infecto onde se operários morriam de epidemias. O dinheiro, um trabalho imenso e as vidas humanas, tudo ali se enterrara em vão.

Os construtores dos trabalhos hidráulicos de Ferrara lançaram toda a responsabilidade sobre Leonardo e Machiavel. Os amigos destes desviavam-se deles quando se cruzavam na rua e nem sequer os saudavam.

Niccolo adoeceu de vergonha e de desgosto.

Dois anos antes, o pai de Leonardo tinha também morrido.

"No dia 9 de Julho de 1504, quarta-feira, às sete horas da tarde", notou ele no seu diário, com o seu laconismo habitual, "morreu meu pai, messer Pedro de Vinci, notário do Podestat de Florença. Tinha oitenta anos. Deixou dez filhos do sexo masculino e dois do feminino".

Messer Pedro tinha, por diversas vezes, diante de testemunhas, manifestado a sua vontade de legar ao seu primogénito ilegítimo Leonardo uma parte dos seus bens igual à dos outros filhos. Teria mudado de ideia antes de morrer, ou os filhos não quereriam cumprir as suas últimas vontades? O facto é que estes declararam que, na sua qualidade de filho natural, Leonardo não tinha nenhum direito à herança. O pintor, instigado pelos seus credores, lançou-se num processo (que devia durar seis anos) para se habilitar ao quinhão na partilha, que ascendia a trezentos florins.

Além das dificuldades financeiras, todos os desgostos e contrariedades o acabrunhavam. Por não ter terminado nas datas fixadas os trabalhos encomendados, concitara a animosidade dos Senhores da República, que o censuravam por receber adiantadamente os seus honorários e não cumprir as suas promessas.

Numa noite de Inverno, Leonardo estava sentado sozinho no seu gabinete de trabalho.

Cá fora rugia a tempestade. As paredes da casa estremeciam sob os assaltos furiosos do vento; a chama da candeia oscilava; um esqueleto de pássaro, de asas roídas pelas traças, baloiçava-se, suspenso, como se quisesse levantar voo; num canto, por cima duma prateleira de livros, onde estavam as obras de Plínio, o Naturalista, uma aranha corria inquieta sobre a teia. A chuva ou a neve fundida açoitava as janelas, como se alguém estivesse batendo nas vidraças.

Depois de um dia de apoquentações, Leonardo sentia-se cansado, quebrado, como após uma noite de febre e de delírio. Tentara trabalhar, ler, mas sem o conseguir.

Olhou a rima dos livros empoeirados, as retortas, os quadrantes de cobre, os globos, os instrumentos de mecânica, de astronomia, de física e de anatomia, e uma repugnância indizível encheu-lhe a alma.

Não seria ele semelhante àquela aranha no sombrio canto, por cima da bafienta acumulação dos livros, dos ossos dos esqueletos humanos e dos membros mortos das máquinas mortas? Que lhe restava mais na vida, que o separava ainda da morte, a não ser algumas folhas de papel que cobria de algarismos e de caracteres incompreensíveis para todos?

Recordou-se como era feliz, sem nada saber nem pensar, na sua infância, quando subia aos montes e ouvia os apelos dos corvos, quando aspirava o perfume das plantas aromáticas e contemplava o perfil transparente e violeta de Florença, através da gaze luminosa do sol.

Seria possível que todo o trabalho da sua vida fosse apenas um erro e que o grande amor não nascesse da grande ciência?

Pôs-se a escutar o rumor da tempestade. Palavras de Machiavel acudiram-lhe à memória: "O que há de terrível na vida, não são os cuidados, nem a pobreza, nem os desgostos, nem a doença, nem a própria morte - é o tédio".

Também as vozes sobre-humanas falavam dessas angústias familiares à alma dos homens: o tédio e a morte, a derradeira solidão nas trevas cegas, no seio do antigo Caos, o criador de tudo o que é criado.

Leonardo levantou-se, tomou a candeia, abriu a porta do quarto vizinho e entrou.

Aproximou-se dum quadro colocado sobre um cavalete de três pés e coberto dum pano de pesadas pregas semelhante a uma mortalha.

Era o retrato de monna Lisa Gioconda.

Não o tinha visto desde o dia em que nele trabalhara durante a última sessão. Sentiu uma tal intensidade de vida irradiar daquele rosto que foi tomado duma estranha angústia em frente da sua própria criação.

Lembrou-se de narrativas supersticiosas referentes a retratos enfeitiçados, que, ao serem trespassados por uma agulha, provocam a morte do retratado. Neste caso, pensou ele, sucedeu o contrário; fora ele que tirara a vida da viva para a dar à morta.

Tudo nela era lúcido e perfeito, até a mais leve prega do vestido, até as cruzinhas do delicado enfeite arrendado que enquadrava o decote do corpete escuro, sobre o branco pescoço.

Parecia, ao mirá-la atentamente, ver o peito soerguer-se, palpitante, o sangue correr sob a pele e a expressão do rosto transformar-se.

Ao mesmo tempo, era transparente, longínqua, enigmática, mais antiga na sua juventude imutável que os blocos primitivos de rochas de basalto que se desenhavam no fundo do quadro, e as montanhas azuladas, e semelhantes a estalagmites, pertencendo a um mundo estranho há muito desaparecido. O contorno das torrentes que corriam entre os rochedos lembrava a sinuosidade dos seus lábios, em que pairava o eterno sorriso.

As ondas dos cabelos, sob o véu sombrio e transparente, caíam segundo as mesmas leis de mecânica divina que regem o movimento das águas.

Somente, agora, como se a morta lho tivesse revelado, compreendeu que a beleza de monna Lisa era tudo quanto ele sempre procurara na Natureza, com insaciável curiosidade; compreendeu que o segredo do mundo era o segredo de monna Gioconda.

E ele não o tinha adivinhado, esse segredo! Era ela que o guardava ainda. Que significava o olhar daqueles olhos que reflectiam a sua alma, a dele?

Estaria ela dizendo o que não quisera precisar na sua última entrevista: que é preciso alguma coisa mais que a simples curiosidade para profundar os segredos maravilhosos da caverna?

Ou seria o seu sorriso, o dos mortos contemplando os vivos?

Sabia que a sua morte não fora devida ao acaso, e que ele a teria podido salvar, se tivesse querido. Nunca até ali, parecia-lhe, tinha visto tão perto e tão directamente a face da morta. Sob o olhar frio e carinhoso de Gioconda, um terror insuportável gelou-lhe a alma.

Pela primeira vez na sua vida, recuou diante do abismo, sem ousar profundá-lo; não quis saber.

Num gesto precipitado, como um ladrão, deixou recair sobre aquele rosto a cobertura das pesadas pregas que pareciam um sudário.

Na Primavera, a pedido do lugar-tenente do reino de França, Charles dAmboise, governando em nome do Rei, Leonardo obteve permissão de sair de Florença, por três meses, e partiu para Milão.

Mantinha-se o mesmo exilado dos antigos tempos; sentia-se tão feliz ao sair da sua pátria como havia vinte anos quando vira os picos nevados dos Alpes dominando as verdes planícies da Lombardia.

 

                 CAPÍTULO XV - PARA RESSUSCITAR OS MORTOS (1506-1513)

"Conhecei toda a gente, mas fazei por que ninguém vos conheça."

                             Basílio, o Gnóstico

 

No ano seguinte, em 1507, o pintor conseguiu da Senhoria uma licença ilimitada e entrou definitivamente ao serviço de Luís XII. Instalou-se em Milão e não voltou a Florença senão raramente, quando os seus negócios a isso o obrigavam.

Assim decorreram quatro anos.

No fim de 1511, Giovanni Beltraffio, já então um mestre de renome, trabalhava nos "frescos" da nova Igreja de S. Maurício que pertencia a um convento de mulheres, o Mosteiro Maior, construído sobre as ruínas dum antigo circo romano e do templo de Júpiter. Ao lado, por detrás do alto muro que dava para a Rua delia Vigna, existia um jardim abandonado em roda do palácio Carmagnola, outrora magnífico, mas desabitado havia muito e num desgraçado estado de ruína. As freiras alugaram esta casa e o terreno adjacente ao alquimista Galeotto Sacrobosco e a sua sobrinha, monna Cassandra, que tinham regressado de Milão havia pouco.

Depois das primeiras invasões francesas e do saque da casa de monna Sidónia, tio e sobrinha tinham abandonado a Lombardia e viajado, durante dez anos, no Oriente. Rumores extraordinários corriam a seu respeito; dizia-se que o alquimista encontrara a pedra filosofal que transforma o estanho em ouro; que monna Cassandra espoliara um velho e rico mercador de Esmirna, em Constantinopla; e dizia-se também que o alquimista, tendo obtido do governador da Síria avultadas quantias para fazer experiências, fugira com o dinheiro. Um facto, porém, era inegável: tendo partido de Milão sem recursos, regressavam com uma grande fortuna.

A antiga feiticeira, a discípula da velha Sidónia, Cassandra, era, ou fingia ter-se tornado, uma rapariga devota; cumpria todos os ritos e jejuns, ia frequentemente à missa e dava muito dinheiro à Igreja. As freiras do convento estimavam-na, e o próprio bispo de Milão manifestava- lhe o seu interesse. Contudo, as más-línguas espalhavam que tudo isto não passava de comédia, que Cassandra continuava a ser pagã, que fugira de Roma com o tio para não cair nas mãos da Santa Inquisição, que os procurava, e que cedo ou tarde os queimaria vivos.

Messer Galeotto não se esquecera de Leonardo, a quem testemunhava a antiga amizade, e emprestava-lhe muitas vezes livros raros que trouxera das suas viagens. Era Giovanni que vinha buscá-los; e, em pouco tempo, as suas visitas a Galeotto tornaram-se frequentes. Vinha sempre com diversos pretextos, mas na realidade para ver Cassandra.

Ao princípio, esta, desconfiada, manifestava uma atitude reservada; apresentava-se sempre sob o aspecto de pecadora arrependida e falava da sua intenção de professar; a pouco e pouco, porém, vendo que nada tinha a recear, tornou-se mais confiante.

Rememoraram as antigas conversações, quando ambos eram quase crianças e se encontravam na colina deserta, junto do Convento de Santa Radegundes; evocaram as noites de tempestade com o céu iluminado pelos relâmpagos do calor, quando a atmosfera era sufocante e se ouvia o ruído surdo e longínquo do trovão; recordaram-se finalmente que ela lhe predissera a ressurreição dos deuses olímpicos.

Cassandra raras vezes saía; estava frequentemente doente, ou pretendia fazê-lo acreditar, e conservava-se reclusa no seu quarto, onde não deixava entrar ninguém e cujo mobiliário lembrava simultaneamente um museu e uma biblioteca.

Falava a Giovanni das suas viagens, das maravilhas que tinha visto, da majestade dos templos vazios, cujo mármore branco se elevava sobre os rochedos negros, roídos pelas águas do mar Jónio; das ondas eternamente azuis, impregnadas do odor salino; contava-lhe as dificuldades e os perigos por que passara. Quando um dia ele lhe perguntou o que procurava ela nessas viagens, por que tinha coleccionado tantas coisas e suportado tantos sofrimentos, ela respondeu com as palavras do seu pai, o falecido messer Luigi Sacrobosco: Para ressuscitar os mortos.

E nos seus olhos brilhou uma chama que trouxe à memória de Giovanni a antiga Cassandra, a feiticeira.

Tinha mudado pouco: o mesmo rosto pálido onde não transpareciam nem os pesares nem as alegrias, imóvel como a máscara duma estátua; uma testa larga e baixa, lábios delgados sempre cerrados, sem um sorriso, e olhos doirados e transparentes como o âmbar. Agora, talvez devido à doença, ou a qualquer pensamento que a obcecava insistentemente, o rosto exprimia uma tranquila serenidade, associada a uma timidez infantil. Mais ainda do que dez anos atrás quando a conhecera, o encanto da jovem atraía Giovanni, despertando nele a curiosidade, o temor e a piedade.

Na sua viagem à Grécia, Cassandra visitara a pátria de sua mãe, a pequena e triste cidade de Mistra, junto das ruínas de Lacedemónia, nas colinas desertas do Peloponeso, onde meio século antes morrera Plotino, o derradeiro mestre da sabedoria helénica. Recolhera fragmentos dos seus livros, das suas cartas, e as lendas espalhadas pelos seus discípulos que acreditavam que a alma de Platão tinha ainda uma vez abandonado o Olimpo, para se encarnar na pessoa de Plotino. Contando a Giovanni esta visita, Cassandra repetiu a profecia que ele pronunciara três anos antes de morrer: "Alguns anos depois da minha morte, todos os povos do mundo terão a mesma religião". E quando lhe perguntaram se essa religião seria a de Cristo ou a de Maomé, respondera: "Nem uma nem outra, mas uma religião nova que será muito semelhante ao antigo paganismo".

Enquanto conversavam, Cassandra fixava nele, continuamente, os seus olhos doirados e translúcidos.

- Giovanni - perguntou-lhe ela uma vez -, ouviste já falar do homem que há mais de dez séculos sonhou, como o filósofo Plotino, com a ressurreição dos deuses mortos, o imperador Flávio Cláudio

Juliano?

- Juliano, o Apóstata?

- Sim, esse que se considerava ele próprio como um apóstata, e a quem os seus inimigos, os galileus, designavam por esse epíteto!

Giovanni respondeu-lhe que tinha visto uma vez em Florença um "mistério", composto por Lourenço de Médicis, representando o martírio de dois adolescentes que, pela sua fé, Juliano mandara conduzir ao suplício. Recordava-se de alguns versos desse "mistério", em que um episódio especialmente o impressionara: a cena que representava Juliano, moribundo, traspassado pelo sabre de S. Mercúrio, exclamando: "Venceste, Galileu!" O Cristo Golileo, tu hai pur visto!

- Ouve, Giovanni - disse Cassandra -, no destino estranho e triste desse homem há um grande segredo. Nenhum dos dois, nem o imperador Juliano nem o sábio Plotino, tinha razão, porque nenhum deles possuía mais que meia verdade, a qual, sem a outra metade, não passa de mentira. Tinham esquecido a profecia que diz que os deuses só ressuscitarão quando tudo mudar, quando a terra se juntar com o céu e quando tudo o que existe se integrar na unidade. Não compreenderam isto e o seu sacrifício pelos deuses olímpicos foi vão.

Deteve-se, como se lhe custasse continuar, e acrescentou em voz baixa:

- Se eu pudesse dizia-te tudo... mas é ainda cedo. Só acrescentarei uma coisa: há um Deus entre os deuses olímpicos que está mais próximo dos seus irmãos da terra; um deus radiante e sombrio, ao mesmo tempo caridoso e cruel. Não me peças que te diga mais. Um dia, mais tarde, te explicarei o resto.

Giovanni, embora não compreendesse, sentia que nem a fé de Benedetto, nem a ciência de Leonardo, o satisfaziam já. Nas profecias obscuras e enigmáticas de Cassandra, parecia-lhe entrever um pálido raio da verdade; esperava no futuro decifrar estes enigmas e agarrava-se a essa esperança como um náufrago se agarra à tábua que supõe poder salvar- lhe a vida.

A sua intimidade com Cassandra crescia de dia para dia.

 

Foi nessa altura que chegou a Milão o célebre doutor em Teologia, o inquisidor Frei Giorgio Casale, enviado do Papa Júlio II, a fim de acabar com as práticas de feitiçaria que cada vez se espalhavam mais por toda a Lombardia. As freiras do Mosteiro Maior e os protectores que tinha no palácio episcopal preveniram monna Cassandra do perigo iminente, tendo esta resolvido fugir para França ou Inglaterra.

Na noite da projectada partida marcara uma entrevista a Giovanni.

Tinha intenção, desta vez, de lhe revelar o segredo dos seus ambíguos e misteriosos discursos, explicando-lhe o que ele até ali não compreendera.

À hora marcada, Giovanni encontrava-se junto da porta do jardim que rodeava o palácio Carmagnola.

A porta estava cerrada. Bateu durante muito tempo e ninguém acudiu. Aproximou-se da entrada do convento e aí o porteiro deu-lhe a terrível notícia: o inquisidor Giorgio Casale chegara a Milão mais cedo do que se esperava, e, apenas chegado, ordenara a prisão de Galeotto Sacrobosco e da sobrinha, como suspeitos de práticas de magia negra.

Galeotto, porém, tinha conseguido fugir, mas Cassandra fora detida e encerrada nos cárceres da Santa Inquisição.

Ao saber deste acontecimento, Leonardo dirigiu-se aos seus amigos: o tesoureiro principal de Luís XII e o embaixador do rei de França em Milão, Charles dAmboise, pedindo a sua intervenção a favor da desgraçada rapariga. Giovanni, pelo seu lado, empreendeu também diversas diligências; era portador das cartas do mestre e ia frequentemente ao tribunal da Inquisição.

Foi aí que travou conhecimento com o primeiro secretário de Frei Giorgio, o doutor em Teologia, Frei Michele Valdera, que se mostrava duma grande amabilidade com Beltraffio, fingindo interessar-se pela sorte de Cassandra, enquanto tratava de fazer falar o seu interlocutor, pedindo-lhe informações sobre a vida de Leonardo sobre os seus pensamentos e as suas actividades. Giovanni, no entanto, desconfiado, mantinha-se numa prudente reserva.

Frei Michele contava-lhe coisas interessantes sobre os aspectos dos poderes satânicos; por exemplo, os sinais que denunciam facilmente os filhos dum diabo e duma feiticeira: estas crianças conservam-se muito pequenas, são mais pesadas que as outras e choram constantemente com fome. Com uma precisão matemática, este sábio fixava o número dos soberanos principais do Inferno: eram quinhentos e setenta e dois; quanto aos governadores, aos diabos de ordem inferior e aos simples súbditos, eram ao todo sete milhões quatrocentos e cinco mil novecentos e vinte e seis.

O que porém impressionava mais Giovanni eram os pormenores sobre os íncubos e os súcubos, os demónios andróginos que, alternadamente, se apresentam debaixo do aspecto de homem ou de mulher, para melhor poderem realizar a sua obra de sedução.

Às vezes, Frei Michele convidava-o a ir ao tribunal para assistir aos julgamentos. Giovanni acedia, se bem que sofresse horrivelmente com estas visitas em que muitas vezes assistia à aplicação da tortura aos acusados. Mas esperava vir a conhecer a sorte de Cassandra, ou no próprio tribunal ou pelas informações do inquisidor. Tinha aprendido coisas verdadeiramente inauditas, nas quais o ridículo se misturava ao horrível. Uma feiticeira, por exemplo, ainda jovem, que se arrependera e convertera à religião da Igreja, invocara a bênção divina para os seus carrascos por estes a terem salvo das penas do Inferno; suportara o suplício com uma paciência e uma resignação infinitas, e marchara para a morte, cheia de contentamento por julgar que o fogo temporal a salvava das fogueiras eternas que a esperavam. Tinha suplicado aos juízes que lhe extraíssem duma mão o diabo que nela entrara sob a forma dum aguçado fuso.

Os santos padres consultaram um célebre cirurgião; mas este, apesar das grandes quantias de dinheiro oferecidas, recusou tentar qualquer esforço para a extracção do fuso, receando que no meio da operação o diabo se soltasse e, caindo sobre ele, lhe quebrasse a cabeça.

Uma outra feiticeira, viúva dum padeiro, mulher forte e formosa, era acusada de ter dado à luz diversos lobisomens, frutos das suas relações com um demónio, durante dezoito anos.

Enquanto a sujeitavam aos mais terríveis suplícios, a desgraçada rezava, ladrava como um cão e acabava por cair numa espécie de torpor que a fazia perder os sentidos. Esta morreu durante as torturas.

A tia de Cassandra, monna Sidónia, fora igualmente presa. Para escapar ao suplício, puxou fogo durante a noite à enxerga em que estava deitada e morreu asfixiada pelo fumo.

Uma velha louca era acusada de passear todas as noites às cavalitas da filha, rapariga que os demónios tinham ferrado, deixando-lhe os pés e as mãos estropiados.

Com olhares maliciosos e condescendentes para os juízes, como se estes fossem cúmplices numa combinada mistificação, a velha confessava todos os crimes que lhe imputavam e estava de acordo com todas as acusações.

Era muito friorenta e, quando a conduziram à fogueira onde devia ser queimada, exclamou alegremente, batendo as mãos: "Fogo! Fogo!... Deus vos abençoe, meus queridos e bons senhores, vou finalmente aquecer- me!"

Uma outra, rapariga duns dezasseis anos, duma extraordinária beleza, inspirou a Giovanni um terror inolvidável.

As perguntas e às instâncias dos juízes, dava sempre como única resposta o mesmo grito terrível e suplicante: "Matai-me, matai-me!"

Pretendia que o diabo "passeava no seu corpo como na própria casa".

Não queria que lhe falassem em penitência ou em perdão, porque se julgava grávida dum demónio. Implorava aos juízes que a queimassem antes que o monstro viesse ao mundo. Como era órfã e muito rica, pela sua morte os seus bens deviam ir parar às mãos dum velho parente afastado, um grande avarento. Os padres sabiam que se a desgraçada conservasse a vida legaria todas as suas riquezas à Inquisição e faziam diligência por salvá-la. Era, porém, tudo em vão; ela gritava incessantemente:

"Sei bem que Deus nunca me perdoará! Queimai-me, queimai-me. antes que eu me mate!"

O principal inquisidor, Frei Giorgio Casale, era um velho alcachinado. de rosto magro, pálido, meigo e bondoso, fazendo lembrar S. Francisco.

Segundo o juízo dos que o conheciam pessoalmente, era o homem mais bondoso da terra, desinteressado, casto, cumpridor dos jejuns e levando uma vida de asceta. Quando Giovanni o observava com atenção. pare- cia-lhe, efectivamente, que não havia no seu rosto nem maldade nem malícia, que sofria mais que as próprias vítimas e que se as atormentava e queimava era com piedade delas e por estar convencido de que as não podia salvar doutra maneira das penas do Inferno. Mas às vezes, e sobretudo no meio das mais requintadas torturas, ao escutar as confissões mais monstruosas, passava nos olhos de Frei Giorgio uma expressão tal que Giovanni se perguntava quem era mais louco e mais desrazoável: se o juiz se os acusados. A demência que reinava nos quartos de tortura, no meio das vítimas e dos carrascos, espalhava-se por toda a cidade. Criaturas sensatas começavam a acreditar em coisas de que, no tempo ordinário, se teriam rido como de fábulas. As denúncias multiplicavam-se: os criados acusavam os patrões, as mulheres os maridos, os filhos os próprios pais.

Foi queimada uma velha por ter dito: "Que o Diabo me ajude, se Deus o não puder fazer!"

Por ter contado às vizinhas que a sua vaca dava três vezes mais leite que qualquer outra, uma pobre criatura foi declarada feiticeira e condenada. O mais odioso, porém, era o facto de o crescente zelo dos padres inquisidores não fazer cessar os manejos diabólicos; pelo contrário, fazia-os continuar com maior ardor; dir-se-ia até que os incitava.

Já nada admirava, tudo era possível. Corria a notícia de Frei Giorgio ter descoberto na Lombardia uma conspiração de doze mil feiticeiras e feiticeiros, cujo fim era atrair sobre a Itália três anos de esterilidade tal que as pessoas esfomeadas se comessem umas às outras como animais.

O principal inquisidor sentia-se aterrorizado da violência crescente e do furor combativo das legiões satânicas.

- Não sei como isto acabará! disse uma vez Frei Michele a Giovanni, num momento de confidência. - Quantos mais queimamos, mais nascem das próprias cinzas!

As torturas habituais, tais como as botas de Espanha, o torniquete de ferro que se apertava com um parafuso até os ossos das vítimas estalarem, o suplício das unhas cortadas com tesoiras em brasa, não passavam de jogos infantis em comparação com as torturas requintadas da invenção de Frei Giorgio, "o homem mais meigo do mundo". Assim, entre outras coisas, o tormentum insomniae, o suplício da insónia, que consistia em fazer andar os acusados de dia e de noite ao longo dos corredores, sem os deixar descansar, de tal forma que os pés se enchiam de feridas e os desgraçados acabavam por endoidecer.

Em breve, Frei Giorgio anunciou ao povo uma esplêndida festa a fim de aterrorizar os inimigos da Igreja e inundar de alegria os corações fiéis aos seus ensinamentos: um auto-de-fé de cento e trinta e nove feiticeiros e feiticeiras, na Praça do Broletto.

Quando Frei Michele deu esta notícia a Giovanni, este empalideceu e exclamou: "E monna Cassandra?"

Até ali, apesar da franqueza aparente do frade, Beltraffio não conseguira saber nada a respeito da sua amiga.

Monna Cassandra foi condenada como os outros, se bem que merecesse um suplício ainda maior. Frei Giorgio julga ser ela a maior de todas as feiticeiras que ainda conheceu; o sortilégio que a torna insensível à tortura é tal que, sem falar já de confissão ou arrependimento, não temos podido obter dela uma única palavra, nem sequer um gemido; não ouvimos ainda o som da sua voz.

Dizia isto olhando fixamente para Giovanni, como quem espera qualquer esclarecimento. Beltraffio teve a tentação de acabar, por uma vez, de se denunciar, de se declarar cúmplice de Cassandra, a fim de morrer com ela. No entanto, conservou o silêncio, não por cobardia mas porque uma estranha indiferença se apossara dele havia alguns dias, uma indiferença semelhante ao malefício que protegia a rapariga quando a submetiam à tortura. Tornara-se insensível como um ser cuja vida estivesse em suspenso.

 

No dia seguinte, Beltraffio não saiu do quarto. Desde pela manhã que se sentia doente. Conservou-se na cama até à noite, sem ideias, como mergulhado numa espécie de letargia.

Ao cair da noite, ouviram-se por toda a cidade os sons dos sinos. As suas vozes não eram nem fúnebres nem alegres; um cheiro vago, mas repugnante, a queimado, espalhava-se por todas as ruas. Este odor aumentou ainda o sofrimento de Giovanni; começou a sentir náuseas.

Levantou-se e saiu.

O ar estava sufocante, húmido e quente, como o de uma sala de banhos; era a atmosfera habitual dos dias de Verão ou de Outono na Lombardia, quando sopra o sirocco. Não chovia, mas umas gotas miúdas escorriam dos telhados e das árvores. Os pavimentos das ruas estavam lustrosos. O estranho odor era, cá fora, mais intenso, no meio do nevoeiro cerrado, amarelo e pegajoso.

Apesar da hora avançada, as ruas estavam apinhadas. Todos os passeantes vinham do mesmo sítio, da Praça do Broletto. Ao examiná- los, parecia-lhe que também vinham mergulhados no mesmo entorpecimento que o dominava. A multidão fazia um ruído surdo, abafado, confuso. Algumas conversações entrecortadas chegavam-lhe aos ouvidos: e compreendeu a causa daquele cheiro repugnante que o impressionava.

Era o relento que se desprendia dos corpos humanos carborizados. Apressou o passo, correu quase, sem saber para onde ia, atropelando as pessoas, cambaleando como um ébrio e tiritando de febre. Sentia as emanações infectas persegui-lo, envolvê-lo, sufocá-lo, penetrando-o até aos pulmões e comprimindo-lhe as fontes, com uma dor que lhe causava vertigens.

Mais tarde, não se lembrou como tinha chegado ao Convento de S. Francisco, nem como entrara na cela de Frei Benedetto. Os frades deixaram-no passar, mas Frei Benedetto não estava; tinha partido para Bergamo. Giovanni fechou a porta, acendeu uma candeia e deixou-se cair, exausto, sobre o catre.

Nesta cela que lhe era tão familiar, tudo estava impregnado de paz e santidade. Ali não chegara ainda o terrível cheiro; respirava-se esse perfume característico dos conventos, que parecia ser composto de incenso, de azeite, de cera, de verniz fresco ainda, e do olor dessas tintas ingénuas de que o frade, na sua ignorância dos progressos da arte, se servia para pintar as Madonas de rostos infantis, os Santos e os Anjos de asas transparentes, com caracóis doirados e túnicas azul-celeste.

À cabeceira do leito, um crucifixo estava pregado na parede branca e nua.

Giovanni ergueu para ele os olhos. O Salvador estava ali sempre, com os braços pregados na cruz, prodigalizando, num apelo, a paz ao coração dos homens. "Vinde a mim, vós todos que sentis a alma fatigada e pesada de culpa". "Não seria esta a verdade, única e perfeita?", pensou Giovanni. "Não devo eu prosternar-me e exclamar: "Senhor, ajuda-me a crer"?"

A prece, porém, gelava nos seus lábios. Sentia que mesmo que a perdição eterna o ameaçasse, não seria capaz de mentir, nem esquecer tudo o que sabia; sentia que lhe era impossível repelir ou conciliar as duas verdades que se digladiavam na sua alma.

Como sempre, com o mesmo desespero silencioso, desviou-se do crucifixo - e nesse momento pareceu-lhe que o nevoeiro viscoso penetrara já naquele derradeiro asilo, trazendo consigo as nauseabundas emanações.

Cobriu o rosto com as mãos.

Continuava a sentir vertigens. Tinha a garganta seca; a sede atormentava-o. Lembrou-se de que a um canto da cela havia um cântaro com água e arrastou-se até lá, agarrado às paredes; bebeu alguns golos, humedeceu a fronte, e ia de novo deitar-se quando, de repente, sentiu uma presença estranha. Voltou-se e viu, por baixo do crucifixo, um vulto confuso, embrulhado num hábito de frade, com o capuz encobrindo-lhe o rosto. Giovanni admirou-se, porque se lembrava de ter fechado a porta à chave, mas não se atemorizou. Sentiu antes uma espécie de alívio, como se tivesse logrado acordar depois de persistentes esforços; a cabeça doía- lhe menos.

Aproximou-se do intruso misterioso, para o ver melhor. O desconhecido ergueu-se, deixou cair o capuz e Giovanni viu um rosto branco como o mármore, impassível, os lábios dum vermelho de sangue, os olhos doirados como o âmbar e aureolado por uns cabelos pretos, que dir-se- iam mais vivos e expressivos que o próprio rosto, semelhantes às serpentes que Leonardo pintara na cabeça da Medusa.

Lentamente, solenemente, com um gesto de maldição, Cassandra, por- que era ela, ergueu os braços.

O hábito negro caiu-lhe aos pés e ele viu a brancura resplandecente do seu corpo, esbelto como o corpo de Afrodite, saindo do túmulo ao fim de dez séculos.

Olhou uma derradeira vez para o crucifixo, e um último pensamento de terror atravessou-lhe o cérebro como um relâmpago:

"A diabinha branca!" E foi como se o véu da vida se rasgasse na sua frente, desvendando-lhe o último segredo da união suprema.

Cassandra aproximou-se, prendeu-o nos seus braços e apertou-o contra o coração.

Caíram sobre o humilde leito do frade; Giovanni sentiu o frio virginal do seu corpo; sensação ao mesmo tempo agradável e terrível como a morte.

No dia seguinte de manhã, o frade encontrou-o estendido e inanimado.

 

Uma noite de Inverno, Leonardo estava sentado no seu quarto e ouvia os rugidos da tempestade. Pensava em monna Lisa.

Pensava também na morte; e este pensamento, que o assediava cada vez com mais frequência, confundia-se com a recordação de Gioconda.

De repente, alguém bateu à porta. Ergueu-se e abriu. Um jovem desconhecido, de cerca de dezanove anos, de olhos bondosos e alegres, com as faces rosadas pelo frio e flocos de neve ainda a derreterem-se nos anéis dos cabelos castanhos, entrou no quarto.

Messer Leonardo! - exclamou. - Não me reconheceis?

Leonardo mirou-o com atenção e lembrou-se, de repente, do seu amiguinho Francesco Melzi, que conhecera menino, com sete anos de idade e com quem passeara pelos bosques de Vaprio. Beijou-o com paternal ternura.

Francesco chegava de Bolonha, onde seu pai se fixara depois da invasão dos franceses em 1500, não tendo querido assistir à desonra e aos desastres da sua pátria. Ali, o ancião contraíra uma grave doença que devia durar muitos anos. Quando enfim morreu, Melzi apressara-se a correr em busca de Leonardo, cuja promessa ainda não tinha esquecido.

- Que promessa? - perguntou o mestre.

- O quê? Nos vos recordais? E eu que esperava... Foi alguns dias antes da nossa separação, na aldeia de Mandello, junto ao lago de Lecco, no sopé da montanha. Tínhamos descido a uma mina, e vós, receando que eu caísse, tomastes-me nos braços. Quando eu soube que partíeis para a România, a fim de entrar ao serviço de César Bórgia, comecei a chorar e quis sair de casa para vos seguir. Dissuadindo-me do intento, destes-me então a vossa palavra de que, quando eu fosse crescido...

- Ah! Sim! Sim! Já me lembro! - interrompeu Leonardo alegremente.

- Até que enfim! Bem sei, messer, que não precisais de mim para nada. Mas eu não vos estorvarei. Não me mandeis embora! De resto, isso é-me indiferente porque eu não vos deixarei de maneira nenhuma; fazei de mim o que quiserdes, mas eu não vos abandonarei nunca mais!

Quero ser vosso discípulo.

- Querido filho! - disse Leonardo, comovido.

Beijou-o novamente e Francesco fez-se pequenino contra o seu peito com a mesma confiada ternura como quando era menino e De Vinci lhe pegava ao colo.

 

Desde que Leonardo deixara Florença em 1507 e fora nomeado "pintor da corte ao serviço do rei de França Luís XII", nunca mais recebera os seus honorários, não podendo contar senão com algumas magras e fortuitas receitas. Tinham-no esquecido completamente, e ele não sabia tornar-se lembrado, com quadros entregues no momento oportuno, porque, com a idade, trabalhava cada vez menos e mais devagar. Como antigamente, estava sempre em precária situação e o seu orçamento cada vez mais embrulhado. Pedia emprestado a toda a gente susceptível de lhe poder valer e até aos próprios discípulos; nunca pagava as dívidas antigas, nem cessava de contrair outras novas.

Esperava pacientemente a sua vez nas antecâmaras dos senhores, no meio dos outros pretendentes, e, à medida que a velhice se aproximava, "o pão do exilado parecia-lhe cada vez mais amargo e as escadas dos amos e protectores mais difíceis de subir". Enquanto Rafael, aproveitando a generosidade do Papa, se tornara um opulento patrício romano, enquanto

Miguel Ângelo amealhava economias para possíveis dias difíceis, Leonardo conservava-se como sempre fora, sem lar nem fortuna, e esperava a morte cheio de desalento.

Resolveu então deixar Milão e passar ao serviço dos Médicis. Morto Papa Júlio II, sucedeu-lhe Giovanni de Médicis, com o nome de Leão X.

O novo Papa nomeara seu irmão Juliano, grande capitão e porta-estandarte da Igreja Romana, cargos exercidos outrora por César Bórgia.

Juliano partiu para Roma e Leonardo acompanhou-o. Preparou-se para prestar ao novo senhor os serviços que já prestara a Ludovico, quando abandonou Lourenço, a César quando abandonou o Mouro, a Soderini quando deixou aquele e finalmente a Luís XII, com a mesma docilidade melancólica, peregrino eterno, continuando sempre a mesma viagem.

"Em 23 de Setembro de 1513", notou no seu diário com o habitual laconismo, "parti de Milão para Roma acompanhado de Francesco Melzi, Salaíno, César, Astro e Giovanni".

 

                                 CAPÍTULO XVI

LEONARDO DE VINCI, MIGUEL ÂNGELO E RAFAEL (1513-1515)

"Aos ultrajes opõe a paciência; esta é semelhante aos agasalhos que protegem o friorento. Quanto mais forte é o frio, mais quentes devem ser as tuas vestes: assim o frio não te afligirá. Faz o mesmo quando te ofenderem. Quanto mais dolorosa for a injúria, maior deve ser a tua paciência; e a afronta não te magoará."

                           Leonardo de Vinci

 

Fiel às tradições da sua família, o Papa Leão X soube fazer-se passar por um grande protector das artes e das ciências. Ao receber a notícia da sua eleição, dissera a seu irmão Juliano de Médicis:

- Gozemos o poderio pontifical, visto ser essa a vontade de Deus!

E o seu bobo favorito, Frei Mariano, acrescentou com uma seriedade filosófica:

- Comecemos, Santo Padre, por viver exclusivamente para os nossos prazeres, pois tudo o mais não passa de loucura!

o Papa rodeou-se de poetas, de músicos, de pintores e de sábios.

Qualquer medíocre artista, mas de inspiração fácil e fluente, podia contar junto dele com um bom lugar e uma proveitosa recompensa. Assim começou "o século de oiro" dos literatos, imitadores dos antigos, para quem a perfeição absoluta, quer dizer, a prosa de Cícero e a elegância de Virgílio, eram artigos de fé e objectos de culto.

"Pensar que os poetas modernos poderiam ultrapassar os antigos, é uma irreverência e uma impiedade!", diziam eles.

Os padres não se referiam a Jesus Cristo pelo seu nome, visto esse nome não se encontrar nos discursos de Cícero; as freiras tornaram-se Vestais, e o Espírito Santo era o sopro de Júpiter Olímpico. Pediram ao Papa para contar Platão como um dos seus Santos.

O Papa estimava muito os seus sábios e os seus artistas, mas preferia-lhes os bobos. Fez presente duma coroa de loiros a Coerno, o célebre poetastro, ébrio e glutão, e encheu-o de tantas benesses como as que conferia a Rafael Sanzio. Gastou enormes quantias em festins sumptuosos que oferecia àqueles que tinham conseguido captar-lhe as graças, mas ele próprio distinguia-se por uma grande sobriedade, visto a sua saúde não lhe permitir nenhum excesso. Uma doença incurável, uma fístula, minava o corpo deste epicurista. Uma chaga secreta, o tédio, roía-lhe a alma.

Para o seu jardim zoológico, mandava vir de países longínquos os animais mais raros; para a sua colecção de bobos, procurava os seres mais disformes, os monstros de aberrações mais cómicas, os loucos saídos dos hospícios. Mas nem as pessoas nem os animais conseguiam distraí-lo.

As festas e os ágapes deixavam-no indiferente; os divertimentos mais alegres não logravam animá-lo; nunca o seu rosto perdia a habitual expressão de fadiga e de tédio. A política era o único campo em que o seu carácter se manifestava verdadeiramente; era frio, cruel e perjuro, tanto como o próprio Bórgia.

No seu leito de morte, Leão X foi abandonado por todos, excepto pelo bobo favorito, Frei Mariano, homem bom e piedoso, o único que até ao fim lhe foi fiel. Foi ele que, ao ver o Papa morrer como um pagão, lhe implorou, com os olhos rasos de lágrimas: "Pensai em Deus, Santo Padre, pensai em Deus!" Era um sarcasmo involuntário, mas o mais cruel com certeza que jamais atingiu o eterno zombador.

Alguns dias depois da sua chegada a Roma, na antecâmara do Papa, Leonardo esperava a sua altura para se apresentar ao Pontífice. Não era a primeira vez que vinha, porque, mesmo para aqueles que Sua Santidade tinha prazer em receber, era muito difícil obter dEle uma audiência.

Depois de três horas duma espera improfícua, Leonardo retirou-se cheio de mágoa. Sabia que nesse mesmo dia o Papa conversara demoradamente com o seu rival Miguel Angelo.

 

Havia algum tempo que Leonardo sentia estranhos pressentimentos que, no entanto, parecia-lhe, não assentavam em nenhuma base sólida.

Os cuidados da sua vida, os insucessos na corte de Leão X e de Juliano de Médicis, não o perturbavam: tinha-se habituado. E, contudo, os seus alarmes aumentavam; durante essa esplendorosa tarde de Outono, sobretudo, ao voltar do Vaticano, sentia-se invadido por uma espécie de angústia, de temor duma desgraça iminente.

Nessa época, o artista morava, como no tempo de Alexandre VI, a poucos passos do Vaticano, por detrás da Basílica de S. Pedro, numa das dependências do Palácio da Moeda. O edifício, que dava para uma estreita passagem, era velho e sombrio. Depois da partida de Leonardo para Florença conservara-se muitos anos desabitado; a humidade tinha-o invadido e o seu aspecto era cada vez mais triste.

Leonardo entrou numa grande sala, de tecto abobadado e paredes gretadas. As janelas abriam-se em frente do muro da casa vizinha, tão próximo que, apesar da hora pouco adiantada da tarde, a quadra estava já escura.

A um canto, com as pernas cruzadas sob o corpo, estava sentado o entrevado mecânico, Astro. Aplainava umas tabuinhas e, como habitualmente, baloiçando o corpo, trauteava, entre os dentes, a sua canção monótona:

Crrroá, crrroá,

Voam os corvos,

Voam as águias,

Nos raios de sol,

Crrroá, crrroá...

Leonardo sentiu-se confrangido.

- Que tens tu, Astro? - perguntou carinhosamente, passando a mão pela cabeça do estropiado.

- Nada - respondeu este, contemplando o mestre com o seu olho único onde parecia brilhar um clarão de malícia. - Eu, nada, mas

Giovanni... Ah! Foi melhor assim. Voou...

- O que dizes, Astro? Onde está Giovanni?

O artista sentiu de repente que os seus pressentimentos e angústias se referiam a Beltraffio.

Sem prestar mais atenção a Leonardo, o doente recomeçara a aplainar.

- Astro - disse o artista, segurando-lhe na mão. - Astro, amigo, vê se te lembras do que me querias dizer, vamos. Onde está Giovanni?

Ouviste, Astro, quero vê-lo imediatamente!... Onde está ele? Que lhe aconteceu?

- Então ainda não sabeis? - perguntou o enfermo. - Está lá em cima... Muito longe... Muito longe... Vai voando...

Parecia procurar as palavras e não as encontrava. Mas isso acontecia- lhe muitas vezes. Embrulhava as frases, misturava os termos...

- Então não sabeis? - repetiu tranquilamente. - Bem, vamos! Vou mostrar-vos. Mas não vos atemorizeis, foi melhor assim!

Ergueu-se custosamente e, coxeando, dirigiu-se para a escada cujos degraus rangiam sob os pés. Subiram ao sótão.

O calor ali era sufocante. A palha e os detritos dos pássaros espalhavam um cheiro desagradável. Pela trapeira passava um raio de sol vermelho e empoeirado; quando entraram, um bando de pombos ergueu voo, num sussurro de asas.

- Ali - disse Astro, apontando tranquilamente para o fundo do sótão já escuro.

Leonardo divisou, sob uma das traves transversais, Giovanni, hirto, imóvel, os membros inteiriçados, os olhos desmesuradamente abertos que pareciam olhar com fixidez.

- Giovanni! - gritou Leonardo, com voz angustiada.

Precipitando-se para ele, viu o rosto do seu discípulo horrivelmente congestionado. Tocou-lhe na mão... estava gelada. O corpo oscilava, suspenso por uma forte corda de seda, das que o mestre empregava nos engenhos de voar. Esta fora passada numa argola de ferro, evidentemente colocada ali há pouco tempo. Ao lado do suicida via-se um bocado de sabão que lhe servira certamente para friccionar a argola.

Astro, recaído na sua inconsciência, aproximou-se da trapeira e olhou para fora.

A casa estava construída numa colina donde a vista se estendia sobre os tectos de telhas, as torres e os campanários, sobre a planície da campina romana, duma tonalidade esverdeada, ondulando como o mar, aos raios do sol poente. Os arcos negros dos aquedutos irrompiam aqui e ali, por entre a linha contínua das montanhas: Albano, Frascati e Rocca di

Papa. No céu puro perseguiam-se as andorinhas.

Astro contemplava com os olhos cerrados e um sorriso luminoso nos lábios, baloiçando o corpo e imitando com os braços os movimentos das asas:

Crrroá, crrroá,

Voam os corvos,

Voam as águias,

Nos raios de sol,

Crrroá, crrroá...

Leonardo quis fugir, chamar por socorro, mas não podia fazer um movimento. Conservou-se muito tempo imóvel, num torpor de pânico entre os dois discípulos, um morto, o outro demente...

Alguns dias depois, arrumando os papéis de Beltraffio, o mestre encontrou um diário que leu atentamente. Na última página, datada do próprio dia do suicídio, havia a seguinte nota:

"Cassandra, a diabinha branca... vejo-a por toda a parte... sempre.

Maldita seja! Cristo e o Anticristo reunidos... Mais vale morrer! Entrego a minha alma nas Tuas mãos, Senhor! Julga-me!”

 

Depois da morte de Giovanni, a permanência em Roma tornou-se-lhe insuportável.

A incerteza, a expectativa, a inactividade, tudo o irritava. As suas ocupações habituais, leituras, experiências, a mecânica, a pintura, só conseguiam inspirar-lhe repugnância. Não suportava as longas noites de Outono, encerrado em casa, só, na companhia do pobre Zoroastro e da sombra de Giovanni, e ia muitas vezes a casa do embaixador de França, que se correspondia com Niccolo Machiavel e lhe dava notícias deste.

O pobre Machiavel continuava sempre desafortunado: nenhum dos seus empreendimentos chegava a resultado profícuo; o insucesso era constante e completo. Vivia na maior miséria e as suas cartas vinham cheias de lamentações a propósito de tudo e de todos.

Ao ler essas cartas, Leonardo compreendeu quanto Niccolo, apesar do contraste das naturezas de ambos, lhe era querido. Lembrou-se de Machiavel ter profetizado que os seus destinos seriam sempre semelhantes, que toda a vida errariam sem lar nem fortuna, e que neste mundo só havia "lugar para a plebe". Com efeito, a vida de Leonardo em Roma decorria sem glória, como a de Machiavel: o mesmo tédio, a mesma solidão, a mesma inacção forçada e torturante, a mesma consciência do génio e da impotência.

Leão X, sempre ocupado com os seus poetas e com os seus bobos, não arranjara ainda oportunidade para receber Leonardo. Para se desembaraçar dele, encarregou-o de aperfeiçoar a máquina que servia para a cunhagem da moeda papal. O artista, que não desdenhava qualquer trabalho, por mais modesto que fosse, desempenhou-se com êxito deste encargo e inventou uma máquina donde as moedas saíam, não irregulares e franjadas como dantes, mas irrepreensivelmente redondas.

Os negócios iam de mal a pior, as antigas dívidas embaraçavam-no cada vez mais, e a maior parte dos seus ganhos era devorada pelo pagamento dos juros. Sem a intervenção de Francesco Melzi, que herdara do pai e o ajudava constantemente, Leonardo passaria fome.

No Verão de 1514 adoeceu com a malária. Era a primeira vez que uma enfermidade grave o afligia. Não quis chamar médico nem tomar remédios. Apenas Francesco o tratava e Leonardo dedicava-se-lhe cheio de reconhecimento. Parecia-lhe que Deus lhe enviara aquela criança para que fosse o seu último amigo, o seu anjo-da-guarda, o amparo da sua desolada velhice. O artista sentia-se esquecido pelos grandes do mundo, e, de tempos a tempos, tentava ainda fazer-se lembrar, tendo escrito, durante a doença, a Juliano de Médicis, por diversas vezes, a pedir-lhe trabalho.

Só no Outono se viu livre das febres, mas sentia-se ainda muito alquebrado. Uns poucos de meses tinham já decorrido sobre a morte de Giovanni, mas Leonardo, cada vez mais abatido, não o podia esquecer parecia ter envelhecido uns poucos de anos! Um estado de angústia e uma fadiga mortal apossavam-se dele. Às vezes, com um resto de ardor, tentava qualquer ocupação - antes predilecta -, as matemáticas, a anatomia, a pintura, ou retomava os seus estudos da máquina voadora; depressa porém se cansava e punha tudo de lado, para principiar outro trabalho que a seguir abandonava por sua vez, cheio de tédio. Nesses momentos, os mais tristes, procurava distrair-se fabricando brinquedos, objectos de cera, lagartos com asas, e outros prodígios.

Um dia, ouviu por acaso César de Sesto que dizia, ao reconduzir uns visitantes:

- E a isto chegámos... Agora, diverte-se fabricando brinquedos. O velho perdeu o siso, temos de reconhecer que o desgraçado caiu na segunda infância! Começou pelas asas humanas e acaba nos bonecos de cera!

A montanha deu à luz um rato!

E acrescentou com um riso maligno:

- Não compreendo Sua Santidade: dizem que os bobos são o seu forte, e messer Leonardo seria para Ele um verdadeiro tesouro. Nasceram um para o outro. Na verdade, devíeis fazer diligências, senhores, para que ele chamasse a si o meu mestre! Estou certo de que este ficaria encantado.

Este gracejo estava mais perto da verdade do que parecia. Quando a notícia das engenhosas invenções de Leonardo chegou aos ouvidos do Papa, Leão X sentiu tal desejo de as conhecer, que se declarou pronto a desculpar o ateísmo de Leonardo e a afrontar o receio que ele lhe causava. Os cortesãos faziam compreender ao pintor que tinha chegado o momento oportuno, e que se apresentava finalmente a ocasião de poder fazer concorrência a Miguel Ângelo e a Rafael. Mas, como muitas vezes acontece, Leonardo desprezou esse conselho de sabedoria e não soube ou não quis, aproveitar a ocasião e agarrar a Fortuna pelos cabelos.

Adivinhando instintivamente que César de Sesto era desleal com o mestre, Francesco advertia-o constantemente. Leonardo, porém, não queria acreditar.

- Deixa-o, não fales mais dele! - dizia, tomando o partido de César.

- Tu não sabes como ele me estima, embora aparente detestar-me. É um desgraçado; mais desgraçado mesmo que...

Não acabou a frase, mas Melzi compreendeu o que ele queria dizer: "mais desgraçado do que Giovanni Beltraffio".

- Não me compete a mim julgá-lo. Quem sabe se o culpado não serei eu?

- Vós? Com César? - perguntou Francesco admirado.

- Sim, amigo. Tu não podes compreender. Eu julgo às vezes ter comigo um malefício e fazer a desgraça dos que de mim se aproximam.

Parece-me que tenho "mau olhado".

E a seguir, depois dum momento de reflexão, acrescentou:

- Não te preocupes com ele, Francesco, nem receies nada! Ele não me trairá nem me deixará nunca. A sua revolta e a sua luta são anseios da sua alma, que aspira à liberdade, que se procura e força por encontrar-se. Deixemo-lo! Que o Senhor o ajude! Sei bem que, quando ele conseguir a vitória, voltará para mim, me perdoará e compreenderá como o estimo; e então lhe darei tudo o que possuo e lhe revelarei todos os segredos da arte e da ciência, para que ele os transmita ao mundo depois da minha morte!

Já durante o Verão, enquanto Leonardo estivera doente, César desaparecia com frequência, semanas inteiras. No Outono, saiu um belo dia e não tornou mais a voltar.

Tendo notado a sua ausência, Leonardo interrogou Francesco. Este, confuso, baixou os olhos e respondeu que César partira para Siena, onde o chamara um negócio urgente. Francesco receava que o mestre quisesse também saber a razão por que César partira sem se despedir. Mas, fingindo acreditar na mentira, o mestre falou noutra coisa. Apenas os cantos da boca lhe estremeceram e se abaixaram nessa expressão de amargura desdenhosa que, cada vez mais frequentemente, lhe toldava o semblante.

Algumas semanas mais tarde, indo Leonardo e Francesco de passeio para os lados da ponte de Santo Ângelo, foram forçados a afastar-se para deixar passar um cortejo composto por meia centena de peões e cavaleiros, aparatosamente vestidos, que enveredavam pela estreita rua do Borgo Nuovo.

Leonardo olhou-os distraidamente, pensando que se tratava do séquito de qualquer grande senhor romano, cardeal ou enviado estrangeiro. Mas um dos jovens componentes do grupo atraiu-lhe a atenção. O seu trajo era mais rico que o dos companheiros e montava um soberbo cavalo branco, árabe, cujo bridão estava cravejado de pedras preciosas.

Pareceu ao artista ter já visto aquele rosto noutro sítio. De repente, lembrou-se dum adolescente franzino e pálido, vestido com um fato negro, poído, roto nos cotovelos, enodoado de verniz, que encontrara oito anos antes, em Florença, no claustro de Santa Maria Nuova, quando ali estivera exposto o seu quadro Batalha dAnghiari. Lembrava-se de esse jovem se ter aproximado dele e lhe ter dito com um entusiasmo tímido:

"Vós sois o maior mestre do mundo, messer Leonardo! Miguel Ângelo não é digno sequer de vos amarrar os sapatos!" E agora, esse principiante tinha-se tomado o rival feliz de Leonardo e de Miguel Angelo: o "deus da pintura", Rafael Sanzio.

O seu rosto, então infantil, ingénuo e inexpressivo, tornara-se um pouco mais forte, flácido e pesado.

Saía do seu palácio do Borgo e dirigia-se ao Vaticano, a uma audiência do Papa, rodeado, como de costume, de amigos, de discípulos e de admiradores. Nunca saía de casa sem uma escolta de honra, constituída por meio cento de homens, de tal maneira que cada uma das suas deslocações parecia uma marcha triunfal. Rafael reconheceu Leonardo, corou, e, com um respeito quase exagerado, descobriu-se e saudou-o.

Alguns dos seus discípulos que não conheciam De Vinci, voltaram-se admirados para contemplar esse velho, vestido mais que modestamente, que se afastava para lhes dar lugar e que o "divino" saudava com tal respeito.

Sem se preocupar com mais ninguém, Leonardo contemplava estupefacto - não querendo acreditar nos seus olhos - um homem que seguia ao lado de Rafael no meio dos seus discípulos mais solícitos: César de Sesto.

Subitamente, compreendeu então a ausência de César, a mentira ingénua de Francesco e os seus receios. Este último discípulo em quem depositara as suas esperanças acabara por traí-lo.

 

O Papa, acedendo às instâncias de seu irmão Juliano, encomendou a Leonardo um pequeno quadro.

Segundo o seu costume, o artista não se apressou, adiando de dia para dia a execução do trabalho. Fazia experiências preliminares, ocupava-se do aperfeiçoamento das tintas e da invenção duma nova laca para esta obra.

Ao conhecer esta notícia, Leão X exclamou com fingido desespero:

- Nunca faremos nada com este original! Preocupa-se com o acabamento do trabalho, antes de o ter principiado!

Os cortesãos ouviram este gracejo e espalharam-no por toda a cidade.

A sorte de Leonardo estava comprometida. Leão X, grande conhecedor de coisas de arte, pronunciara a sua sentença. Daí para o futuro, Pedro Bembo, Rafael, o anão Baraballo e Miguel Ângelo podiam dormir sobre os seus louros: o seu rival deixara de existir. E todos, como se se tivessem conluiado entre si, desviaram-se dele e riscaram-no da sua memória como quem olvida um morto. Esta sentença do Papa chegou aos ouvidos de Leonardo; ouviu-a, porém, com a mesma indiferença que se a tivesse previsto.

Leonardo mudara muito nos últimos tempos. As suas feições mostravam-se fatigadas e envelhecidas. Os cabelos, já grisalhos, com tonalidades amareladas, tomavam-se raros no alto da cabeça, descobrindo uma fronte austera, sulcada de profundas rugas. Na nuca eram ainda espessos e sedosos e juntavam-se sob a face, numa longa barba ondulada e também grisalha.

Os olhos azuis, encovados sob as espessas sobrancelhas, conservavam a sua expressão penetrante; o olhar era ainda vivo e agudo. Mas não era já uma energia indomável, uma vontade sobre-humana que se reflectia naquela nobre fisionomia: era um abatimento profundo, uma fadiga infinita. Nas pregas das faces cavadas, no lábio inferior um pouco proeminente, nos cantos rebaixados da boca fina, traía-se uma amargura desdenhosa, uma invencível repugnância. Era ainda Prometeu, mas um Prometeu resignado, velho, quase caduco.

Francesco observava-o muitas vezes, e um sentimento de piedade e de mágoa invadia todo o seu ser.

 

No primeiro de Janeiro de 1515 morreu o rei de França, Luís XII.

Não tendo filhos, tinha designado como herdeiro o seu mais próximo parente, Francisco de Valois, que tomou o nome de Francisco I.

Logo após a sua coroação, o jovem monarca decidiu empreender a conquista da Lombardia. Com uma rapidez incrível, atravessou os Alpes, apareceu de repente na Itália, e depois da vitória de Marignan entrou triunfalmente em Milão.

Pouco mais ou menos nessa época, Juliano de Médicis partiu para a Sabóia. Vendo que nada lhe restava já fazer em Roma, Leonardo resolveu tentar fortuna junto do novo Rei, e no Outono desse ano partiu para Pavia, onde se encontrava a corte de Francisco I.

Os vencidos organizavam festas em honra dos vencedores. Leonardo foi convidado para fazer parte da comissão que organizava esses festejos e admitido, na qualidade de mecânico, graças à recordação, que perdurava na Lombardia, dos seus êxitos na corte de Ludovico.

Construiu um leão automático, que numa dessas festas devia atravessar toda a sala, parar diante do Rei, erguer-se nas patas traseiras e, abrindo o peito, deixar cair aos pés de Sua Majestade um feixe de lírios de França.

Este brinquedo foi mais decisivo para a sorte de Leonardo que todas as suas outras obras, invenções e descobertas.

Francisco 1 atraía à sua corte os sábios e os pintores italianos, e, como o Papa não deixasse sair nem Rafael nem Miguel Ângelo, o Rei convidou Leonardo, oferecendo-lhe setecentos "escudos" por ano e o pequeno castelo de Cloux, na Touraine, ao pé de Amboise.

O artista aceitou, e, com sessenta e quatro anos, o eterno exilado deixou novamente a sua pátria, desta vez sem esperança de regresso, mas sem saudades. Levou consigo o seu velho servidor Villanico, a criada Mathurina, Francesco Melzi e Zoroastro de Peretola.

 

Naquela época do ano era muito difícil viajar no Piemonte. A estrada seguia o vale dum afluente do Pó e atravessava a seguir um desfiladeiro estreito entre o Monte Thabor e o Monte Cenis.

Os viajantes saíram da aldeia de Bordonecchia, de manhã muito cedo, a fim de chegarem a esta passagem ainda de dia.

As mulas de tiro e de sela subiam o estreito atalho que ladeia o precipício, batendo o solo com as ferraduras e fazendo tilintar os guizos.

Em baixo, nas planícies voltadas ao sul, anunciava-se já a Primavera, enquanto nas alturas reinava ainda o Inverno. Mas naquela atmosfera seca, rarefeita e calma, o frio não era desagradável. Ao fundo, emoldurados no céu pálido, brilhavam os picos nevados dos Alpes.

Numa das voltas do caminho, Leonardo, no desejo de ver de perto as montanhas, afastou-se só com Francesco e começou a subir a uma altura vizinha, donde melhor podia ver os cumes resplandecentes.

O som dos guizos perdeu-se, a pouco e pouco, na distância. No meio do profundo silêncio da montanha, os viajantes não ouviam mais que o ruído do próprio coração, e às vezes o estrondo surdo e prolongado dum desabamento, semelhante a um trovão, repetido pelos ecos das montanhas.

Iam subindo sempre, Leonardo apoiado ao braço de Francesco.

- Olhai, olhai, messer Leonardo! - exclamou Melzi, apontando o abismo que se lhe abria aos pés. - Lá está outra vez a planície de Doria- Riparia! E naturalmente a última vez que a vemos. Quando formos atravessando o desfiladeiro, temos que dizer-lhe adeus para sempre.

- Além, é a Lombardia, a Itália! - acrescentou com voz comovida.

Os olhos brilhavam-lhe de emoção e de tristeza.

Repetiu ainda mais baixo:

- Pela última vez!...

O mestre voltou-se para o lado que Francesco lhe indicava, para o lado da sua pátria, mas o seu rosto conservou-se indiferente. Mantinha- se hirto, silencioso, o olhar cravado nas neves eternas do Monte Thabor, do Monte Cenis e da Rocchia Melone.

No céu claro, as alturas nevadas brilhavam e erguiam-se como uma muralha gigantesca que Deus tivesse construído para separar os dois mundos.

O rosto pálido de Leonardo iluminava-se ao seu reflexo, sorria como elas. Contemplava essas massas luminosas e o céu límpido, pensava em

Gioconda e na morte, dois pensamentos entre os quais, habitualmente, não fazia distinção.

 

                             CAPÍTULO XVII

A MORTE - O PRECURSOR ALADO (1516-1519)

"As tuas asas são semelhantes às dos anjos!"

Inscrição num ícone de S. João Baptista "Há-de ter asas!"

                     Leonardo de Vinci

 

Em pleno coração da França, nas margens do Loire, erguia-se o castelo real de Amboise. À tarde, quando os últimos reflexos do Sol se extinguiam no rio deserto, as muralhas construídas de pedra da Touraine, dum branco doirado, tomavam ao crepúsculo as tonalidades pálidas da alga marinha, e todo o castelo se esfumava no ar, leve como uma visão, aéreo como uma nuvem.

Em roda das suas torres aglomeravam-se os telhados pontiagudos de Amboise, cobertos de ardósias negras, lisas e brilhantes, com altas chaminés de tijolo. As ruas tortuosas, estreitas e sombrias, tinham um aspecto medieval; as cornijas, as gárgulas, os cantos das janelas estavam cheios de esculturas representando ventrudos frades folgazões, calçados de botas altas, com cabaças e rosários; clérigos, juízes, graves doutores em Teologia e burgueses cautelosos e desconfiados, oprimindo contra o peito as escarcelas repletas. Personagens em tudo semelhantes a estas esculturas passavam nas ruas da cidade; tudo respirava a fartura duma burguesia limpa, fria, devota e praticando uma economia vizinha da avareza.

Quando o Rei chegava a Amboise para caçar, a pequena cidade animava-se, ouviam-se os ladridos dos cães, o tropear dos cavalos, os ruídos das trompas; as vestes dos cortesãos cintilavam; à noite, o castelo resplandecia de luzes.

Depois, partido o Rei, Amboise recaía no seu marasmo; apenas aos domingos, as burguesas, com coifas de renda branca, se dirigiam à missa.

Durante a semana a cidade parecia morta: nenhum passo humano, nenhuma voz ressoava na rua; apenas o grito das andorinhas, pairando sobre a torre do castelo, ou no fundo de escura oficina o murmúrio da roda na banca dum torneiro, perturbavam esta quietação. Nas tardes de Primavera, quando a frescura dos plátanos enche os jardins dos arrabaldes, os rapazes e as raparigas brincavam com a seriedade e a compostura de pessoas crescidas; davam-se as mãos e dançavam bailes de roda ao som duma velha canção a S. Dinis, protector da França.

A sudeste do castelo e a cerca de dez minutos de marcha deste, no caminho para o moinho de São Tomás, seguia-se um outro castelo mais pequeno, o castelo de Cloux, que pertencera outrora a um gentil-homem da corte de Luís XI.

Uma alta muralha dum lado, uma ribeira do outro, limitavam este domínio. Diante da casa, um prado húmido estendia-se até à beira; à direita erguia-se o pombal; os olmeiros e as nogueiras entrelaçavam os seus ramos, e, na sombra que deles caía, a água, apesar do seu rápido curso, parecia imóvel e estagnada como a água dum poço ou dum pântano.

Através da folhagem dos olmeiros e dos castanheiros desenhavam-se os muros do castelo, construído em tijolos róseos, com uma orla ameada em pedra de Touraine, que enquadrava os ângulos das fachadas, as janelas em ogiva e as portas. A pequena edificação, restaurada quarenta anos antes, parecia nova, vista do exterior, e tinha um aspecto alegre e hospitaleiro.

Foi neste castelo que Francisco 1 instalou Leonardo de Vinci.

 

O Rei acolhia sempre Leonardo com ternura, conversava muito tempo com ele acerca dos seus trabalhos passados e futuros e tratava-o respeitosamente por "mestre" e "pai".

Leonardo propôs-lhe reconstruir o castelo de Amboise e cavar um enorme canal que iria transformar a província vizinha, a pantanosa

Sologne deserta, estéril e insalubre, num jardim florido. Este canal devia reunir as águas do Loire e do Saône em Mácon, e unir, pela província de Lião, o coração da França, a Touraine, com a Itália, abrindo um novo caminho desde a Europa setentrional até às costas do Mediterrâneo.

Era assim que Leonardo sonhava prodigalizar a um país estrangeiro os benefícios duma ciência que a sua pátria lhe desprezara.

Uma vez, percorrendo a região, entrou em Loches, cidadezinha nas margens do Indre, rodeada de férteis pastagens e de magníficos bosques.

Fora ali que, no torreão dum velho castelo real, Ludovico, o Mouro, duque da Lombardia, estivera recluso durante oito anos e onde acabara por morrer. Um velho carcereiro contou a Leonardo como o Mouro tentara uma vez fugir, escondendo-se numa carroça, debaixo duns feixes de palha de centeio; por não conhecer o caminho, porém, perdera-se num bosque vizinho, e, perseguido, fora na manhã seguinte descoberto e recapturado.

O duque de Milão passou os últimos anos da sua vida em meditações devotas, em preces e nas leituras de Dante, o único livro que lhe fora permitido trazer de Itália. Aos cinquenta anos parecia um velho caduco.

Raras vezes, quando até ele chegavam os rumores dos sucessos e das convulsões políticas da sua pátria, os olhos brilhavam-lhe com o fogo de outrora. Em 17 de Maio de 1508, após uma curta doença, extinguiu-se suavemente.

Segundo as narrativas do carcereiro, o Mouro inventara, alguns meses antes de morrer, uma estranha distracção: pedira pincéis e tintas e tinha começado a pintar as paredes e as abóbadas da prisão. Leonardo encontrou numa muralha a seguinte inscrição composta pelo Duque num péssimo francês:

Je porte en prison pour devise que je marme de patience par force de peines que lon me fait porter.

Uma outra inscrição ocupava todo o tecto; começava por enormes letras góticas de três côvados de altura: "CELUI QUI"

Depois, como o espaço lhe faltasse, continuou em letras mais pequenas e muito apertadas: "Net pas contan..."

Ao meditar na sorte do infeliz Duque, Leonardo recordou-se do que, outrora, um viajante regressado de Espanha lhe tinha contado acerca da ruína dum outro seu protector, César Bórgia.

Por traição do Papa Júlio II, sucessor de Alexandre VI, César caíra em poder dos inimigos. Levado para Castela, fora encerrado na torre de Medina del Campo, donde conseguira fugir com risco da vida.

Chegara a Pamplona, à corte do seu cunhado, o rei de Navarra, e ficara ao serviço deste como condottière. Assim que em Roma se teve notícia da fuga de César, o terror espalhou-se por toda a Itália. O Papa tremia.

A cabeça de César foi posta a prémio, dez mil ducados.

Uma tarde de Inverno de 1507, numa escaramuça com os mercenários franceses de Beaumont, junto das muralhas de Viana, César, precipitando- se no meio das fileiras inimigas, viu-se abandonado dos seus e caiu traspassado de golpes. Os mercenários, seduzidos pela elegância das suas vestes e da sua armadura, arrancaram-lhas e abandonaram o cadáver completamente nu no fundo duma ravina.

Durante a noite, os Navarros saíram da fortaleza e descobriram o corpo. O rosto do morto, voltado para o céu, tinha um aspecto soberbo; via-se que aquele homem morrera da mesma maneira que tinha vivido sem medo nem remorsos.

A duquesa de Ferrara, Lucrécia Bórgia, chorou o irmão durante toda a sua vida. Quando morreu encontraram-lhe no corpo um cilício.

A jovem viúva de César, a princesa Charlotte dAlbret, que, durante os poucos dias que viveram juntos se lhe tinha dedicado completamente, votou-lhe até à morte um amor fiel. Encenou-se voluntariamente numa reclusão perpétua, no castelo de La Motte-Feuilly, não abandonando os aposentos forrados de veludo negro senão para percorrer os lugares vizinhos dando esmolas e pedindo aos pobres que rezassem pela alma de César.

Os vassalos do duque de România, pastores meio selvagens das gargantas dos Apeninos, conservaram durante muito tempo uma lembrança reconhecida do seu príncipe; fizeram dele um deus, o restaurador da justiça na terra. Os músicos mendigos iam pelas vilas e aldeias repetindo a "triste endecha do duque de Valentinois" onde havia este verso:

Fe cose estreme, ma senza misura.

As vidas destes dois homens, César e o Mouro, cheias de feitos tão brilhantes, passaram como uma sombra sem deixar vestígios. Leonardo, ao compará-las com a sua própria, considerava-a menos estéril e isso servia de lenitivo às suas amarguras.

 

A reconstrução do castelo de Amboise e o projecto do canal da Sologne terminaram como quase todas as empresas deste género.

Convencido, pelos seus conselheiros, da impossibilidade de executar os tão arrojados projectos de Leonardo, o Rei esfriou a pouco e pouco nos entusiasmos que estes a princípio lhe causaram e acabou por se esquecer deles completamente.

O artista compreendeu que não devia contar demasiado com a boa vontade de Francisco Tal-qual o Mouro, César, Lourenço de Médicis e Leão X, também este o abandonava no meio dos seus empreendimentos.

A sua derradeira esperança de ser enfim compreendido e poder dar ao mundo uma parte, ainda que pequena, de tudo quanto durante a sua vida acumulara em si de conhecimentos e de poder realizador, mostrava-se mais uma vez ilusória; resolveu abandonar a partida, refugiar-se para sempre no isolamento e abster-se definitivamente de toda e qualquer acção.

Na Primavera de 1517, Leonardo voltou ao castelo de Cloux, doente e combalido pelas febres contraídas nos pântanos da Sologne. No Verão melhorou; nunca, porém, a partir dessa época, recuperou verdadeiramente a saúde.

A célebre floresta de Amboise vinha quase até junto das muralhas do castelo, na outra margem do rio.

No Verão, todos os dias, depois da refeição, Leonardo saía apoiado ao braço de Francesco Melzi, pois que se encontrava ainda muito fraco; por um estreito atalho, deserto, penetravam no bosque e sentavam-se nuns rochedos. O discípulo deitava-se na relva, junto do mestre, e lia-lhe Dante, a Bíblia ou qualquer filósofo da antiguidade.

Em roda, tudo estava tranquilo e silencioso; apenas algum pássaro soltava às vezes a sua queixa melancólica.

Um dia, o discípulo, erguendo os olhos, viu o mestre mergulhado numa estranha imobilidade: parecia escutar o silêncio, olhava o céu, as folhas, as pedras, as ervas, os musgos, como a dizer-lhes o último adeus antes da separação eterna.

Pouco a pouco, o torpor que, como um sortilégio, emanava do silêncio, apoderou-se também de Francesco e este sentiu-se confrangido.

Contemplou Leonardo; um pressentimento doloroso e uma grande piedade invadiram-no. Timidamente, sem pronunciar uma palavra, apoiou os lábios sobre a mão do artista.

O mestre acariciou-lhe enternecidamente a cabeça, como o faria a uma criança assustada, e essa carícia era tão melancólica que Francesco se sentiu ainda mais comovido.

Nesse dia, o pintor começou um quadro extraordinário representando o deus Baco, quadro que nunca terminou; abandonou-o por um outro ainda mais extravagante: João, o Precursor.

Trabalhou nele com tal obstinação e febre que dir-se-ia pressentir a aproximação do fim e recear que as forças, que sentia diminuir quotidianamente, o não deixassem terminar essa última criação onde tentava exprimir o segredo mais íntimo da sua vida, aquele que até ali escondera não só aos homens como a ele próprio.

O fundo do quadro lembrava a obscuridade daquela Caverna onde nasciam o medo e a curiosidade e de que ele falara outrora a monna Lisa Gioconda. Mas essa obscuridade que ao princípio parecia impenetrável, ia-se tornando tão transparente, à medida que o olhar nela penetrava, que as mais negras sombras se fundiam por fim numa espécie de claridade. E, por um milagre de arte, o rosto e o corpo nu do Adolescente, duma rara beleza, talvez feminina, ou semelhante a uma ilusão, surgia dessas trevas.

 

Na Primavera de 1517 realizaram-se em Amboise solenes festividades pelo nascimento dum filho de Francisco I. O Papa, convidado para padrinho, enviara para o representar seu sobrinho Lourenço de Médicis, duque de Urbino, irmão de Juliano e noivo duma princesa de França, Madalena, filha do duque de Bourbon.

Entre os convidados de diversas potências europeias era esperado para estas cerimónias o embaixador da Rússia, Nikita Karatcharoff, que devia vir de Roma, onde se encontrava representando o Grão-Duque na corte de Sua Santidade.

Havia muito tempo já que Leão X entabulara relações com o soberano de Moscovo, Vassili Ivanovitch; contava fazer dele um poderoso aliado na Liga dos Estados europeus contra o sultão Selim que, engrandecido pela conquista do Egipto, sonhava com a invasão da Europa. O Papa acalentava além disso um outro projecto: a união das Igrejas; e, se bem que o Grão-Duque nada tivesse feito ainda para justificar esta esperança, Leão X enviara como seus legados a Moscovo dois dominicanos, os Irmãos Schomberg. O Pontífice Romano comprometia-se a respeitar as cerimónias e os dogmas da Igreja oriental, se Moscovo concordasse em reconhecer a supremacia espiritual de Roma; prometia confirmar um Patriarca russo independente, conferir ao Grão-Duque uma coroa real, e, se Constantinopla fosse conquistada, ceder-lhe esta cidade. O Grão-Duque, reconhecendo as vantagens de estar nas boas graças do Papa, enviara-lhe por sua vez dois embaixadores, Dmitri Gerassimoff, um erudito e diplomata de grande valor, e Nikita Karatcharoff, aquele mesmo que vinte anos antes tinha assistido, em Milão, na companhia de Danilo Marmiroff, às festas do século de oiro, e conversara com Leonardo a respeito da Rússia.

A missão principal da embaixada russa a Roma vinha indicada nas instruções do Grão-Duque, da seguinte forma: "Enviar a Moscovo um homem competente para a exploração de minas, alguns arquitectos, um perito no manejo de artilharia, um pedreiro apto a construir palácios, um bom ourives cinzelador, um médico e um organista".

O escriba principal de Karatcharoff era o empregado da chancelaria, Ilia Copila, um velho de sessenta anos, que tinha às suas ordens dois escribas menores, Eustáquio Gagar e o seu sobrinho, Fédor Roudometoff, "Fedka", como familiarmente lhe chamava.

Unia-os aos três um comum amor pela arte da imaginária: Fédor e

Eustáquio eram nela dois mestres reputados e Ilia Copila um erudito conhecedor.

Filho duma pobre viúva que confeccionava as hóstias para a Igreja da Anunciação de Ouglitch, Eustáquio fora recolhido, quando por morte de sua mãe ficara órfão, em casa dumas almas caridosas que o tinham mandado como aprendiz para uma oficina de iluminista. Tendo passado por todos os graus da iniciação, a começar pelo humilde lugar de moço que levava a água aos compositores das tintas, chegara enfim a desenhador e, graças à sua vocação natural, alcançara uma tal segurança nesta arte que fora convidado para ir a Moscovo decorar o palácio do Patriarca.

Fora ali que travara relações de amizade com Fédor Roudometoff, outro jovem pintor imaginário, que trabalhava no palácio.

Um rico senhor de Moscovo, espírito liberal e civilizado, que vira trabalhar estes artistas, testemunhou-lhes o seu apreço e interesse, e, persuadido de que uma viagem ao estrangeiro lhes seria de grande proveito, arranjara-lhes os empregos na Embaixada.

Ainda em Moscovo, em casa do seu protector, no meio dos objectos preciosos vindos de além-mar, entre os livros proibidos e as conversações heréticas acerca das doutrinas judaizantes, a crença de Fédor sentira-se abalada. No estrangeiro, as maravilhas vistas nas cidades italianas de Veneza, de Milão, de Roma e, finalmente, de Florença, tinham acabado por lhe dar volta à cabeça e vivia num estado de constante deslumbramento. Visitava com o mesmo interesse as baiucas dos jogadores, as bibliotecas, as antigas catedrais e os antros mal-afamados. Chegara a um tal estado de heresia que, não se contentando já com a "sofística estrangeira", professava ainda as mais avançadas teorias dos filósofos russos; por exemplo, as dos partidários dos heréticos que pretendiam que Jesus Cristo ainda não tinha nascido e que, quando tal sucedesse, o Filho do Homem não o seria por virtude da própria substância, mas sim por efeito da graça divina. Professava, igualmente, "que se não devem adorar as imagens, a cruz e o cálice".

A vida e os costumes dos países estrangeiros eram para Eustáquio

Gagar motivos da mesma curiosidade e admiração que para o seu companheiro Fédor. Às opiniões heréticas deste não atribuía demasiada importância, antes as considerava mais como sinais de atrevimento e de orgulho do que como impiedades verdadeiras.

Eustáquio pedia a Deus forças e raciocínio suficientes para "separar o joio do trigo, o bem do mal, e encontrar o caminho da verdadeira filosofia", sem se afastar da crença dos seus pais, como Fédor, mas também sem rejeitar sistematicamente tudo quanto era estrangeiro, como Ilia Copila. E, apesar das terríveis dificuldades desta tarefa, uma voz secreta dizia-lhe que ela era santa e que Deus o ajudaria a realizá-la.

Um dos embaixadores russos que se encontravam em Roma, Nikita Karatcharoff, partiu para Amboise a fim de assistir ao baptismo do Delfim recém-nascido. Era portador dos presentes do Grã-Duque ao Rei Francisco 1: uma peliça de cetim vermelho bordada a oiro e forrada de arminho, uma outra peliça forrada de castor, uma terceira, de marta, seiscentas peles de martas zibelinas e raposas azuis e uma infinidade de pássaros raros.

Entre os escribas e secretários de embaixada iam Nikita, llia Copila, Fédor Roudometoff e Eustáquio Gagar.

 

No fim de Abril de 1517, uma manhã muito cedo, o guarda florestal do Rei viu, na estrada real que atravessa a floresta de Amboise, alguns cavaleiros tão extravagantemente vestidos e falando uma língua tão rara, que se deteve e os ficou seguindo muito tempo com os olhos, sem lograr compreender se seriam turcos, enviados do Grão-Mogol, ou do próprio Prestes João, que vivia lá no fim do mundo, nas regiões em que o céu se junta com a terra.

Mas não eram nem turcos nem delegados do Grão-Mogol ou do Prestes João. Eram representantes dessa raça feroz, "de la gent bestiale", como dizia Contarini, oriundos duma região mais bárbara que o fantástico país de Gog e de Magog: os russos da embaixada de Nikita Karatcharoff. Os fatos que tanta admiração tinham causado ao guarda florestal eram as vestes de cerimónia, ordinariamente usadas nas festas russas: os casacos de escarlate, os cintos, as botas de marroquim vermelho, chegando até acima dos joelhos e com as biqueiras reviradas à moda tártara, os turbantes duma altura desmesurada, bordados a pérolas e forrados de marta zibelina.

Um comboio de pesados carroções, com a criadagem da embaixada e os presentes destinados ao Rei, fora enviado à frente. Fédor acompanhava- o, montado num fogoso cavalo picarço.

Era tão alto que os transeuntes na rua o olhavam com espanto. Tinha um rosto de maçãs largas, achatado e bronzeado, cabelos negros como o azeviche, olhos dum azul pálido e um olhar indolente e ao mesmo tempo cheio de insaciável curiosidade; essa expressão contraditória e instável, peculiar aos eslavos, mistura de timidez e de insolência, de simplicidade e de malícia, de tristeza e atrevimento.

Fédor escutava a conversa de dois companheiros, também ao serviço da embaixada, que discreteavam acerca dos hábitos da vida no estrangeiro.

Adiante, a uma certa distância dos carroções, seguiam, também a cavalo, Ilia Copila e Eustáquio Gagar.

O rosto de Ilia era carrancudo, severo, com a barba e os cabelos brancos; tudo nele respirava uma gravidade calma, mas, nos olhos pequenos, esverdeados e lacrimosos, brilhava às vezes a malícia irónica e certo espírito de intriga.

Eustáquio era homem duns trinta anos, mas tão débil e franzino que de longe dir-se-ia um adolescente. Usava uma barbicha talhada em bico.

O rosto era incaracterístico, insignificante, um desses rostos que se não fixam. Muito raramente, quando se animava, a expressão dum sentimento profundo parecia iluminar os seus olhitos pardos.

Por algumas palavras soltas que lhe chegaram aos ouvidos, pareceu a Fédor que Gagar e Copila, que iam à sua frente, falavam acerca da pintura de imagens; esporeou o cavalo para os alcançar e ouvir o que diziam.

- Hoje em dia - dissertava Ilia Copila - imprimem as imagens dos santos em folhas de papel e copiam sem vergonha as pinturas latinas da decadência. Com modelos dessa ordem, os iluministas pintam a Santa Mãe de Deus com a cabeça descoberta e os cabelos frisados...

- E por que não, paizinho? - replicou Fédor, com uma entonação de fingido respeito e depois de se ter refrescado com alguns golos da sua cabaça. E acrescentou, dissimulando uma intenção provocante: Não pretenderás, com certeza, que apenas os russos saibam pintar imagens! Com que direito podemos nós condenar a arte estrangeira, se esta nos apresenta obras tão santas e tão belas como os modelos?

- Não compreendes nada! - interrompeu Copila, franzindo os sobrolhos. - Estás a dizer coisas proibidas e cheias de maldade.

- Proibidas porquê, paizinho? - Fédor mostrava-se ofendido.

- Porque é preciso não transgredir os limites eternos! Aquele que louva e respeita uma crença estrangeira ofende implicitamente a sua própria.

- Mas quem fala aqui em crença, paizinho?

Começou então um arrazoado em que pretendia demonstrar que as imagens feitas na Rússia eram diferentes de cidade para cidade, da mesma maneira que os originais dos antigos pintores diferiam uns dos outros.

Onde estaria então a verdade? Por outro lado, nem todos os santos são semelhantes: uns são magros, outros gordos. Onde procurar os modelos?

Não, o pintor não deve limitar-se a copiar cegamente, mas ter sensibilidade e respeitar a sua inspiração!

Fédor falava com uma eloquência um pouco presumida mas ao mesmo tempo com o entusiasmo dum sentimento sincero.

Eustáquio calava-se. O brilho dos seus olhos denunciava a atenção e a avidez com que escutava.

- A tradição dos Santos Padres - continuou Ilia em tom solene diz que, segundo Deus, o que é santo é também belo...

- E o que é belo é também santo - retorquiu Fédor -, o que vem a dar na mesma, paizinho.

- Não, não é a mesma coisa! - exclamou o velho, agastado. - Há uma beleza que é de origem demoníaca.

Voltou-se para o sobrinho e olhou-o com ferocidade; sentia vontade de o desancar com um bastão nodoso que era habitualmente o seu supremo argumento. Mas Fédor susteve-lhe o olhar sem baixar os olhos, e então Copila ergueu o braço direito e, como quem pronuncia uma maldição contra o Espírito impuro, exclamou:

- Que o Céu te confunda, maldito! Morras tu, e as tuas astúcias, contigo! Cristo é o meu Salvador, a minha luz, a minha alegria e força indestrutível!

Os cavaleiros estavam chegados à orla do bosque. Deixando à esquerda a muralha do castelo de Cloux, entraram na cidade de Amboise.

 

A embaixada russa ficou alojada em casa do notário real, mestre Guilherme Borreau, perto da torre do relógio; era esta a única casa ainda devoluta na cidade, já completamente cheia de estrangeiros.

Eustáquio e os camaradas tiveram de se contentar com um pequeno quarto, uma espécie de sótão. Aí, no vão da trapeira, o jovem imaginário instalou uma pequena banca, pregou uma prateleira na parede onde colocou as pranchetas de iluminar, os frascos da cola transparente e os cadinhos de barro, cheios de oiro líquido, arranjou uma armação de madeira coberta de feltro, que lhe servia de leito, e suspendeu à cabeceira a imagem da Virgem de Ouglitch.

O aposento não era espaçoso, mas era claro e alegre. Da janela, por entre os tectos e as chaminés, a vista espalhava-se sobre o Loire, verde, sobre os prados distantes e os cimos azulados das florestas.

Uma tarde, alguns dias após a sua chegada a Amboise, Eustáquio estava sentado, sozinho, à sua banca; os seus companheiros tinham ido ao castelo assistir a um torneio dado em honra do duque de Urbino.

Tudo estava tranquilo, ouvia-se apenas, cá fora, sob a janela, o arrulhar dos pombos, o murmúrio sedoso das suas asas, e, às vezes, um carrilhão discreto dar as horas na torre vizinha.

Eustáquio lia o seu livro preferido, livro sabido já de cor: o Manual do Imaginário, código de sucintas formas, dispostas pela ordem dos dias e dos meses, acerca da maneira de representar os santos.

A discussão entre Fédor e Ilia, ouvida durante a travessia do bosque, despertara nele um sentimento inquietante há muito oculto no seu subconsciente e que tudo quanto vira no estrangeiro mais reforçara. Procurava uma solução nas páginas do seu manual. Leu a passagem referente ao martírio de Santa Catarina e de S. Filareto que, nos limites da senectude, ainda eram belos e tinham "as faces rosadas como maçãs".

Parecia a Eustáquio que Fédor tinha razão, que os rostos dos santos deviam ser luminosos e jucundos, "porque Deus está nimbado de beleza" e tudo quanto é belo vem de Deus.

Voltou algumas páginas e então leu o seguinte:

"O dia 9 de Novembro é consagrado à memória de Santa Theoctiste de Lesbos: um caçador encontrou-a no deserto e ofereceu-lhe a capa para lhe cobrir a nudez. A santa estava de pé, na sua frente, terrível, sem nenhuma aparência humana; os olhos perdidos no fundo das órbitas davam ao seu rosto a expressão duma morta há muito tempo enterrada; respirava a custo e mal se lhe ouvia a voz. Nada nela denunciava a beleza humana.”

"Portanto", pensou Eustáquio, "nem tudo quanto é santo é belo; sob uma forma horrenda pode ocultar-se uma alma angelical".

Pôs de lado o livro e pegou noutro; era um antigo livro de salmos, escrito em Ouglitch, em 1485. Fora neste manuscrito que ele aprendera a ler e sempre sentira profunda admiração por aquelas imagens simples e mal gravadas que comentavam os salmos.

Desde a sua saída de Moscovo que o não folheava. Agora, depois de ter visto as variadíssimas esculturas antigas dos palácios e das praças de Florença, de Roma e de Veneza, estas imagens tão conhecidas desde a meninice tomavam aos seus olhos um sentido novo e imprevisto: compreendia que aquele homem vestido de azul, vazando a água da sua ânfora inclinada, era o deus dos rios; a mulher deitada no chão, no meio das ervas, era Ceres, a deusa das searas; o adolescente, cingido duma coroa real e entronizado num carro atrelado a fogosos cavalos ruivos, era Apolo; e o velho barbudo a cavalo num monstro verde, ao lado da mulher nua, era Neptuno com uma Nereida.

Por que milagre, por quantas vicissitudes e transformações teriam passado os deuses expulsos do Olimpo e refugiados em qualquer antigo manuscrito de Bizâncio, antes de chegarem a Ouglitch e serem recolhidos pelo velho artista russo?

Deformados por um desenhador bárbaro, pareciam atónitos e comprometidos na sua nudez. No meio dos profetas austeros e dos ascetas, davam a impressão de estar meio gelados, com os corpos nus entorpecidos pelo frio da noite boreal. E apesar disso, aqui e ali, na curva dum cotovelo, no desenho duma espádua, no torneado duma perna, brilhava o reflexo distante da sua beleza eterna.

E Eustáquio sentia-se confuso e aterrorizado ao reconhecer nas imagens dos livros dos salmos de Ouglitch, que lhe pareciam santas e lhe eram familiares desde a meninice, a sedução da impureza helénica.

À memória acudiam-lhe outras imagens profanas, as lendas dos "epítomes russos", as pálidas sombras da antiguidade pagã; a Gorgona, com rosto humano, pés de cavalo e uma cauda; o rei Centauro, com cabeça de homem e pés de burro; os sátiros que habitavam nos bosques com os animais.

Eustáquio estremeceu e, tornando a si, persignou-se devotamente e murmurou o apotegma dum erudito russo, que ouvira uma vez citar Ilia Copila:

- São tudo falsidades, não há Centauros, nem Gorgonas, nem criaturas cobertas de pêlos, tudo isso são criações dos filósofos gregos. Os Santos Padres e os Apóstolos proíbem a beleza.

E a seguir pensou:

"Será verdadeiramente assim? Tudo isto será falso e mentiroso?"

Ergueu-se e foi buscar a uma das prateleiras a prancheta com um desenho, por ele começado, representando uma composição com o seguinte tema: "Toda a criatura ergue os seus louvores para o Altíssimo".

Os diversos personagens do quadro estavam tão delicada e minuciosamente desenhados que só podiam ser bem observados com o auxílio duma lente.

Nos céus estava o Todo-Poderoso num trono; a seus pés, as sete esferas celestes, o Sol, a Lua e as estrelas, com a inscrição: "Louvai o Senhor, Céu dos céus, louvai-O; estrelas e luz, Sol e Lua, louvai-O!"

Por cima, pairava um bando de pássaros; ao longe o granizo, a neve, as árvores, as montanhas e as chamas saindo da terra; as feras mais diversas e os répteis; um abismo hiante como uma caverna com a legenda:

"Louvai-O, vós, árvores férteis, louvai o Senhor!" Aos lados do quadro, rostos de anjos, de santos, de juízes, de reis, de príncipes, e multidões humanas: "Louvai-O, vós todos, louvai-O, filhos de Israel e vós, todas as raças e povos da terra!"

Durante este trabalho, e não sabendo como exprimir por outra forma os sentimentos que lhe enchiam a alma, Eustáquio acrescentara, por sua própria inspiração, a estes rostos habituais, o martírio de S. Cristóforo, com cabeça de cão, e o Centauro, o deus-fera.

Sabia estar a violar a tradição do manual mas não tinha dúvidas da sua absoluta sinceridade: parecia-lhe sentir uma mão invisível a guiá-lo.

E, juntamente com o Céu e o Inferno, com o fogo e o espírito divino, com as colinas, as árvores e os animais, os répteis, os homens e as forças imateriais, com o S. Cristóforo e o Centauro cristianizado, a alma de Eustáquio cantava também: "Que todas as criaturas louvem o Senhor!”

 

Francisco I era um grande amoroso. Gostava de todas as mulheres e para ele não havia feias. Costumava dizer que até a mulher mais destituída de beleza possuía sempre qualquer encanto que faltava às outras.

Quando partia para a guerra levava consigo, além dos ministros, bobos, anões, astrólogos, cozinheiros, padres e negros, uma numerosa corte de "sacerdotisas de Eros", capitaneadas pela venerável matrona Jehanne Linière. Estavam presentes em todas as festas e divertimentos, comparecendo até nas procissões religiosas. Em viagem, a corte misturava-se de tal maneira a estas alegres pecadoras que era difícil marcar uma linha de separação entre elas e as damas. As "flores do pecado" eram de certo modo também damas da corte, e as damas, pelos seus galantes passatempos, regalavam aos maridos as comendas doiradas da Ordem de S. Miguel Arcanjo.

A prodigalidade do Rei com as mulheres era ilimitada. As contribuições e os tributos aumentavam constantemente, mas apesar disso nunca havia dinheiro. Quando o povo já não tinha mais nada para dar, Francisco I confiscava as baixelas dos grandes senhores; uma vez, mesmo, deu ordem para fundir e amoedar a grade de prata que cercava o túmulo do grande S. Martinho de Tours. Isto não representava porém heresia, mas sim falta de dinheiro, pois o Rei proclamava-se "o filho dilecto da Igreja

Romana" e perseguia toda a espécie de heresias e de ateísmos, como se fossem ofensas pessoais.

No tempo de S. Luís, uma lenda espalhada entre o povo atribuía aos reis de França a virtude de curar certas mazelas com o contacto das mãos.

Pela Páscoa, Natal, Santíssima Trindade e ainda outras festas, os escrofulosos em busca de alívio afluíam de todos os cantos da França, e até da Itália, Espanha e da Sabóia.

Durante as festas do baptizado do Delfim vieram a Amboise muitos doentes. No dia marcado, deixaram-nos entrar no pátio do palácio real, onde Francisco I cumpria as formalidades habituais. Antigamente, no tempo em que a Fé era mais sólida, Sua Majestade, passando por diante dos doentes, fazia um sinal da cruz sobre cada um e, tocando-lhes com o dedo, dizia: "O Rei te tocou, Deus te curará". Com o tempo, porém, a fé decresceu, as curas tornavam-se mais raras, e agora a frase consagrada revestia a forma dum voto: "Que Deus te cure, visto o Rei já te ter tocado".

No fim da cerimónia trouxeram ao Rei uma bacia e três toalhas molhadas, uma em vinagre, outra em água simples e a terceira em essência de laranja. Francisco I lavou as mãos, o rosto e o pescoço.

O espectáculo de tanta miséria humana, de tantas disformidades e chagas, trouxe ao Rei o desejo de retemperar a alma e repousar os olhos, proporcionando-lhes uma diversão agradável.

Lembrou-se do projecto, já várias vezes adiado, de ir com alguns membros da sua corte ao atelier de Leonardo, e dirigiu-se ao castelo de Cloux.

Durante todo o dia, apesar da fraqueza que ainda o afligia, o pintor tinha trabalhado aturadamente no quadro de S. João Baptista.

Os raios oblíquos do sol poente entravam pelas janelas semiogivais do atelier, grande aposento rectangular, forrado de tijolos e cujo tecto era atravessado por traves de castanho. Aproveitando a última claridade do dia, Leonardo tentava acabar a mão direita do Santo, que mostrava a cruz.

Ouviram-se debaixo das janelas ruídos de pessoas e vozes.

- Não deixes entrar ninguém! - disse o mestre voltando-se para

Francesco Melzi. - Ninguém, ouviste? Diz que estou doente!

o discípulo saiu para o corredor, no intuito de despedir as visitas importunas, mas, ao reconhecer o Rei, inclinou-se respeitosamente e escancarou a porta. Leonardo mal teve tempo de encobrir o retrato de Gioconda, que se encontrava ao lado de S. João Baptista: escondia-a sempre porque não queria que estranhos a vissem.

O Rei entrou no atelier.

Vinha vestido com uma riqueza de acentuado mau gosto, de cores berrantes; o tecido das vestes, cheio de bordados, de oiro e de pedrarias, uns calções justos, de veludo negro, um gibão muito curto, do mesmo tecido entremeado de brocado de oiro, com as mangas largas e entufadas e uma gorra achatada, ornamentada com uma pluma branca de avestruz.

O gibão, decotado em quadrado, descobria o pescoço delgado e branco como marfim; de toda a sua pessoa se exalava um intenso perfume.

Contava então vinte e quatro anos; os seus admiradores pretendiam que o seu rosto exprimia tal majestade que mesmo quem não o conhecesse adquiria imediatamente a certeza de estar em frente do Rei. Tinha efectivamente uma figura nobre, esbelta, cheia dum vigor pouco comum; sabia encantar pelas atitudes cheias de sedução; o seu rosto, porém, dum oval estreito, muito branco, cercado duma barba crespa e negra como o alcatrão, a testa estreita, o nariz comprido e pontiagudo, os olhos maliciosos, ora frios ora ardentes, os lábios delgados, vermelhos e húmidos, tudo isto tinha uma expressão desagradável de sensualidade, qualquer coisa de faunesco, que fazia lembrar o bode e o macaco.

Leonardo, conforme a etiqueta, preparava-se para dobrar o joelho diante de Francisco I, mas o Rei deteve-o, curvou-se para ele e beijou- o respeitosamente.

- Há muito tempo que nos não vimos, mestre Leonardo! - disse o

Rei, amavelmente. - Como tens passado, tens trabalhado muito? Tens qualquer quadro?

- Tenho estado doente, Majestade! - respondeu o pintor e pegou no retrato de Gioconda, para o pôr de lado.

- O que tens aí? - perguntou o Rei, indicando o retrato.

- É um antigo retrato, Sire, que vós já conheceis.

- E o mesmo, mostra-mo outra vez! Os teus quadros, quanto mais a gente os vê, mais nos agradam!

Como o pintor hesitasse, um dos cortesãos aproximou-se e descobriu o retrato.

Leonardo ficou contrariado; o Rei sentou-se numa poltrona e durante muito tempo contemplou o quadro em silêncio.

- É maravilhoso! - exclamou, finalmente, saindo do seu embevecimento. - É a mulher mais bela que os meus olhos ainda viram! Quem é?

- É Madona Lisa, mulher de Giocondo, cidadão florentino.

- Há muito tempo que a pintaste?

- Há dez anos.

- E ainda é tão bela?

- Já morreu, Sire!

- Mestre Leonardo de Vinci - disse Saint-Gelais, o poeta da corte

- trabalhou neste quadro durante cinco anos e ainda o não terminou: pelo menos, é o que ele diz.

- Não o terminou? - disse o Rei admirado. - Não, não acredito!

Parece estar viva, só lhe falta falar! Na verdade - acrescentou, voltando-se para o pintor - é caso para te invejarmos, mestre Leonardo! Cinco anos junto duma mulher como esta; não tens de que te queixar do destino! E que fez o marido durante esses cinco anos? Se ela não tivesse morrido, creio que continuarias a tua obra indefinidamente!

E ria maliciosamente, piscando os olhos ardentes; mais do que nunca, tinha o aspecto dum fauno; a ideia da honestidade de monna Lisa e da fidelidade ao marido não lhe passava sequer pelo espírito.

- Amigo Leonardo - acrescentou sorrindo -, tens bom gosto para as escolher! Que ombros, que pescoço! E o que não se vê deve ser ainda mais belo...

Contemplou-a com um olhar irreverente e cheio de sensualidade.

Leonardo calou-se, empalideceu e baixou os olhos.

- Para realizar uma obra semelhante - disse o Rei - não basta ser um grande pintor, é preciso penetrar todos os mistérios do coração feminino, esse labirinto de Dédalo, essa meada que nem o próprio Diabo é capaz de desempecer! Julgais, às vezes, uma mulher meiga, tímida, humilde; junta as mãos como uma freira, parece não ser capaz de fazer mal a uma mosca; mas experimentai confiar nela, tentai adivinhar o que se passa na sua alma...

Leonardo afastou-se um pouco, com o pretexto de colocar em melhor posição um cavalete de outro quadro.

- Não sei se será verdade, Sire - disse Saint-Gelais, em voz baixa, ao ouvido do Rei, de maneira que Leonardo não pudesse perceber -, asseveraram-me que este original não só não amou monna Lisa, mas que nunca em sua vida amou qualquer mulher, e que é absolutamente casto.

E, mais baixo ainda, com um sorriso significativo, acrescentou qualquer coisa de muito indiscreto, talvez sobre os amores de Sócrates, sobre a beleza de alguns discípulos de Leonardo e sobre os hábitos licenciosos dos mestres florentinos. Francisco I admirou-se, mas, a seguir, encolheu os ombros com o sorriso complacente dum homem compreensivo e mundano, sem preconceitos, aproveitando ele próprio a vida como pode e não impedindo que os outros façam o mesmo. A sua atenção foi depois atraída por um esboço que se encontrava ao seu lado.

- E este quem é?

- A julgar pelos cachos de uvas, deve ser um Baco! - sugeriu o poeta.

- E aquilo? - disse o Rei, mostrando outro quadro.

- É outro Baco! - respondeu Saint-Gelais depois duma curta hesitação.

- É curioso! - notou Francisco - Os cabelos, o peito, o rosto, parecem duma mulher. A cabeça é semelhante à de monna Lisa: é o mesmo sorriso.

- Talvez seja andrógino! - notou o poeta.

E quando o Rei, que não era demasiado culto, lhe perguntou o que significava esse nome, Saint-Gelais contou-lhe a antiga fábula de Platão acerca dos seres com dois sexos, homens-mulheres, mais perfeitos e mais belos que os homens, filhos do Sol e da Terra e reunido em si princípios dos dois sexos: tão fortes e orgulhosos que, como os titãs, tinham projectado marchar contra os deuses e escorraçá-los do Olimpo. Júpiter reprimira a rebelião, mas não querendo aniquilá-los completamente para se não privar das suas preces e oferendas, com um dos seus raios separou- lhes os corpos em duas partes. E desde esse tempo, os homens e as mulheres, cheios de angústia, perseguem-se uns aos outros, atormentados pelo insaciável desejo que se chama o amor e que atesta à humanidade a reunião primitiva dos dois sexos no mesmo indivíduo.

- Talvez - acrescentou o poeta - mestre Leonardo nesta concepção tentasse ressuscitar o que já não existe na Natureza, procurando reunir o que os deuses separaram: o princípio masculino e o feminino!

Durante esta explicação o Rei contemplava o retrato com o mesmo olhar impudente e cínico que tivera instantes antes para a monna Lisa.

- Resolve o problema, mestre! - disse, voltando-se para Leonardo.

- É Baco ou o Andrógino?

- Nem um, nem outro, Sire! - respondeu Leonardo, corando como um criminoso. - É João Baptista.

- S. João Baptista? Não é possível!

Então, fixando atentamente o quadro, o Rei descobriu na sua sombria profundidade uma fina cruz de junco. Perplexo, abanou a cabeça. Esta mistura do sagrado e do profano parecia-lhe uma zombaria, mas ao mesmo tempo agradava-lhe. E, assim, admitiu logo que lhe não devia atribuir uma demasiada importância: era uma excentricidade, como outra qualquer, do génio de Leonardo.

- Mestre Leonardo, compro-te os dois quadros! Quanto queres por eles?

- Sire - respondeu timidamente o pintor -, ainda não estão acabados, precisava antes...

- Não falas a sério! - interrompeu Francisco 1. - O S. João podes acabá-lo, se assim o desejas, esperarei. Mas, quanto à Gioconda, proíbo- te que lhe toques mais! Não conseguirias aperfeiçoá-la; e quero tê-la em minha casa, quanto antes, amanhã, ouviste? Diz quanto queres, sem receio, que eu não discutirei.

Leonardo via a necessidade de descobrir uma desculpa, um pretexto qualquer para recusar. Mas que poderia ele dizer a um homem que transformava tudo aquilo a que se referia em trivialidade, ridículo e indecência? Como explicar-lhe o que representava para ele a Gioconda, e por que razão não consentiria em separar-se dela por dinheiro nenhum?

O Rei pensava que Leonardo reflectia com receio de vender muito barato.

- Bem, se não queres fixar tu o preço, fixo-o eu!

Admirou a monna Lisa e disse:

- Três mil "escudos". Não achas suficiente? Três mil e quinhentos!

- Sire - murmurou de novo o pintor com voz trémula -, asseguro- vos... - Deteve-se: o seu rosto empalideceu.

- Vamos, quatro mil, mestre Leonardo! Parece-me que é bem pago!

Um murmúrio de admiração espalhou-se entre os cortesãos: nunca nenhum Mecenas, nem mesmo Lourenço de Médicis, dera uma tal quantia por um quadro.

Leonardo ergueu os olhos para Francisco I, com uma angústia inenarrável. Estava prestes a cair-lhe aos pés para lhe suplicar, como se se tratasse da própria vida, que lhe não arrebatasse a Gioconda. Julgando ver na sua emoção um sinal de reconhecimento, o Rei ergueu-se para partir e beijou novamente o pintor.

- Fica então combinado? Quatro mil. Terás o dinheiro quando quiseres, e amanhã mandarei buscar a Gioconda. Fica sossegado, destino- lhe um bom lugar, ficarás contente! Conheço bem o valor da tua obra e quero conservá-la para a posteridade.

Quando o Rei saiu, Leonardo deixou-se cair aniquilado numa poltrona.

Contemplou o retrato com um olhar triste, desolado, não querendo ainda acreditar o que acabava de acontecer. Projectos absurdos e pueris acudiam-lhe ao espírito: escondê-la em qualquer parte para que o Rei a não pudesse encontrar, e não a entregar nunca, mesmo que o ameaçassem de morte, ou então mandá-la para Itália com Francesco Melzi e a seguir fugir ele próprio.

A noite caía. Francesco veio diversas vezes ao atelier espreitar o mestre, sem se atrever a perturbá-lo. Leonardo estava sempre na mesma posição em frente do retrato: na obscuridade, o seu rosto parecia imóvel e pálido, como o dum cadáver.

Durante a noite, o artista foi ao quarto de Francesco, que já estava deitado mas que ainda não conseguira adormecer.

- Levanta-te, vamos a Amboise! Desejo falar ao Rei.

- Mestre, é já muito tarde! Estais fatigado, atormentado e poderíeis recair. Será melhor deixar essa visita para amanhã.

- Não, não, já, imediatamente! Acende uma lanterna e vem comigo!

Se não queres, irei sozinho.

Sem discutir mais, Francesco ergueu-se, vestiu-se e partiram ambos.

 

Do castelo de Cloux a Amboise eram dez minutos de caminho; trilho áspero, íngreme, mal calçado; Leonardo avançava penosamente, encostado ao braço do discípulo.

A noite estava negra, sem estrelas. O vento soprava rijo. Os ramos das árvores agitavam-se como sacudidos por um arrepio mórbido. Lá em cima, através das folhagens, brilhavam as janelas iluminadas do castelo.

Ouvia-se o som da música. O Rei ceava na companhia dum pequeno grupo dos membros mais escolhidos da corte e divertia-se com um dos seus passatempos favoritos: fazer beber por uma grande taça de prata, cujos preciosos cinzelados representavam as mais escabrosas cenas de devassidão, todos as donzelas e damas da corte. Recreava-se em observar-lhes as diferentes atitudes: umas riam, outras choravam de vergonha, outras ainda zangavam-se; havia as que fechavam os olhos para não ver e as que fingiam ver sem compreender.

Entre as damas encontrava-se a própria irmã do Rei, a princesa Margarida, a "pérola das pérolas", como a apelidavam. Era célebre pela sua beleza e erudição. A arte de seduzir era o seu forte. Encantadora para todos que dela se aproximavam, a todos se conservava indiferente, excepto ao irmão. Amava-o com um amor ilimitado e singular: as suas fraquezas pareciam-lhe perfeições; os defeitos, virtudes; e a sua máscara de fauno, um rosto de Apolo. Confiadamente, cegamente, por ele daria tudo: alma e corpo. A maledicência da corte exagerava talvez o amor de Margarida.

Em todo o caso, Francisco 1 abusava desse sentimento: punha constantemente à prova a dedicação da irmã, não somente nos seus trabalhos, doenças, ou nos perigos que o ameaçavam, mas também nas suas aventuras galantes.

Vieram-lhe anunciar mestre Leonardo; o Rei deu ordem de o receber e, acompanhado de Margarida, dirigiu-se ao seu encontro.

Quando o pintor, perturbado, com os olhos baixos, atravessou as salas iluminadas, por entre duas filas de damas e cavaleiros, olhares admirados e trocistas fixaram-se nesse velho alto, de compridos cabelos brancos, de aspecto sombrio e atemorizado.

- Mestre Leonardo! - disse o Rei saudando-o e beijando-o respeitosamente, como costumava. - Sede bem-vindo! Que te posso oferecer?

Tu não comes carnes, mas talvez uns legumes, uns frutos?... - , Ac

- Agradeço-vos, Sire... Perdoai-me, desejo falar convosco!

O Rei contemplou-o fixamente.

- Que tens tu, querido amigo? Estás doente?

Afastou-se um pouco com ele e perguntou-lhe, indicando a irmã:

- Não te incomoda que ela assista?

- Oh! não, de maneira nenhuma - respondeu o pintor, curvando-se diante de Margarida. - Ouso até esperar que Sua Alteza intercederá por mim junto de Vossa Majestade.

- Fala! Sabes que eu estou sempre disposto a ser-te agradável.

- É ainda o mesmo assunto, Sire. Trata-se do quadro que desejais comprar, o retrato de monna Lisa.

- O quê? Ainda? Por que o não disseste logo? És um original! Pensava que tínhamos chegado a um acordo no preço.

- Não se trata de dinheiro, Sire.

- O que é então?

Perante o olhar indiferente do Rei, Leonardo sentiu de novo a impossibilidade de lhe falar de Gioconda.

- Sire - começou timidamente o pintor, fazendo um esforço para dominar a vergonha que o paralisava. - Sire, sede misericordioso e não me priveis desse quadro! De todas as maneiras ele será vosso e eu não tenho necessidade de dinheiro: deixai-mo somente por algum tempo ainda, até que eu já não exista!

Calou-se, incapaz de acrescentar mais uma palavra; e, numa súplica desesperada, os seus olhos voltaram-se para Margarida.

- Sire - disse a irmã -, acedei à súplica de messer Leonardo! Ele é bem digno dela, sede magnânimo!

- Também vós, Madame Margarida, tomais o seu partido? Mas então isto é uma verdadeira conspiração!

Ela pousou a mão sobre o ombro do irmão e segredou-lhe ao ouvido:

- Não haveis compreendido nada? Ele ainda a ama!

- Mas ela já morreu!

- Que importa! Os mortos também se amam! Não me haveis dito que ela vivia ainda, no retrato? Fazei-lhe a vontade, meu irmão, não atormenteis o pobre velho!

Uma recordação vaga atravessou o espírito de Francisco I: reminiscência meio apagada, um pouco infantil, de ter lido qualquer coisa acerca da união eterna das almas, do amor para além da vida, da fidelidade cavalheiresca. Quis ser generoso.

- Seja, mestre Leonardo - disse o Rei sorrindo. - Fazes de mim tudo o que queres! E soubeste escolher uma eloquente protectora. Podes ficar sossegado, concedo o que me pedes! Não te esqueças, porém, que o retrato me pertence e que o dinheiro vai ser pago adiantadamente.

No olhar de Leonardo passou um lampejo de alegria tão pueril e tão digna de simpatia que o Rei sorriu cheio de benevolência e, batendo-lhe amigavelmente no ombro, acrescentou:

- Não receies nada, querido Leonardo, dou-te a minha palavra de que ninguém te roubará a tua Lisa!

As lágrimas assomaram aos olhos de Margarida: com um terno sorriso estendeu a mão ao pintor, que lha beijou silenciosamente.

A música começou: tinha principiado o baile. Os pares começaram a dançar e mais ninguém falou nessa visita extraordinária que tinha atravessado a festa como uma sombra, para desaparecer de novo nas trevas da noite sem estrelas.

 

Francesco Melzi, que ia entrar na posse duma pequena herança, necessitava de certos documentos que se encontravam em casa do notário real, mestre Guilherme Borreau, em Amboise. Mestre Borreau era uma pessoa instruída, agradável e que nutria grande amizade por Leonardo.

Conversando uma vez com Francesco acerca dos trabalhos do mestre, contou-lhe, sorridente, que um pintor maravilhoso, oriundo das terras do Norte, estava hospedado em sua casa. Como Francesco o interrogasse a esse respeito, fê-lo subir ao sótão e aí, ao fundo do mesmo, junto do pombal e no vão duma mansarda, mostrou-lhe o atelier, em miniatura, do pintor de imagens santas, Eustáquio Gagar.

No seu regresso, para distrair o mestre, que, havia muito tempo, vivia sempre absorvido pelos seus pensamentos, Francesco contou-lhe que descobrira uma autêntica curiosidade, o atelier dum pintor bárbaro, e incitou Leonardo a ir ele próprio visitá-lo.

De Vinci lembrou-se então da conversa que tivera em Milão, no palácio de o Mouro, com o embaixador russo Nikita Karatcharoff, acerca da longínqua Moscóvia, e sentiu desejos de conhecer esse pintor que vinha de regiões quase fabulosas. Uma tarde, alguns dias depois da visita do Rei, dirigiram-se à casa de mestre Guilherme. Os camaradas de Eustáquio tinham ido todos a um baile de máscaras que havia no castelo, mas Eustáquio, a quem as mulheres decotadas assustavam, que receava as orgias, a música e as canções diabólicas, ficara sozinho em casa, a trabalhar na sua obra: "Todas as criaturas louvam o Senhor".

Estava completamente absorvido no trabalho quando, de repente, ouviu um ligeiro ruído e um sussurro de asas. Eustáquio sabia que a vizinha, a jovem mulher do velho padeiro, costumava dar de comer aos pombos.

Muitas vezes a espreitava às escondidas. Naquela ocasião, lá estava ela no vão sombrio da janela aberta, por cima do muro, rodeada de ramos de lilases; um corpete decotado descobria-lhe o pescoço branco; tinha um rosto aprazível, pintalgado por algumas sardas quase imperceptíveis, e os cabelos loiros.

Olhou-a, correspondeu mesmo ao seu sorriso com outro sorriso involuntário, mas dominou-se em seguida, reflectindo que toda a mulher é um agente do Inferno, que é preciso evitar a sua beleza, sendo mil vezes preferível refrear a febre do desejo a possuir uma dessas criaturas, porque a febre, depois dos seus estragos, sempre nos abandona, enquanto a mulher, essa não nos larga mais em toda a vida.

Entregou-se ao trabalho e começou a pintar uma mártir de cabelos de oiro, como os da linda padeirinha. Ouviram-se então vozes na escada; Blaise, o velho intérprete da embaixada, entrou acompanhado pelo proprietário, mestre Borreau, por Leonardo e Francesco Melzi.

Quando Blaise explicou a Eustáquio que os recém-vindos desejavam visitar o atelier, este sentiu tal confusão e vergonha que, assustado e silencioso, se conservou de pé, sem ousar erguer os olhos, a não ser para contemplar Leonardo. O rosto do velho mestre parecia a Eustáquio ser- lhe já familiar: descobriu-lhe uma semelhança flagrante com o rosto do profeta Elias, que vinha representado no Manual do Imaginário.

Depois de examinar os utensílios do pequeno atelier, sobretudo os pincéis, como nunca vira outros iguais, a atenção de Leonardo foi atraída para a iluminura com a legenda: "Todas as criaturas louvam o Senhor".

Apesar das confusas e dificultosas explicações de Blaise, o pintor compreendeu imediatamente o assunto, e espantou-se que um bárbaro, filho duma raça selvagem, estivesse assim tão iniciado na ciência profunda da humanidade.

Folheou a seguir, cheio de curiosidade, o Manual do Imaginário. Era um enorme manuscrito, com as margens delicadamente ornadas de desenhos a lápis e a tinta vermelha.

Leonardo sentia que aquilo não era a verdadeira pintura, mas que, apesar da imperfeição do desenho, da má distribuição da luz e das sombras, da falsa perspectiva e da errada anatomia, havia ali, como nos velhos mosaicos bizantinos, esse poder que nasce da fé e uma exaltada compreensão da beleza.

O que sobretudo o impressionou foram as duas reproduções de S. João Baptista Alado: um, segurava na mão esquerda um cálice de oiro em que estava o Menino Jesus, para o qual ele apontava com a mão direita; o outro, contra todas as leis da Natureza, possuía duas cabeças: uma viva sobre os ombros, a outra morta num prato que segurava nas mãos. Ambas tinham expressões estranhas e terríveis: os olhos desmesuradamente abertos, a barba e os cabelos em desalinho. O hábito sacerdotal, de pêlo de camelo, abria-se alado; os ossos das mãos e dos pés ressequidos, só cobertos pela pele, pareciam leves, feitos para voar, como os ossos e as cartilagens dos pássaros; atrás das espáduas, umas asas enormes, como as dum cisne ou dum desses grandes passarolos - grandi uccelli, com que Leonardo sonhara durante toda a vida. À lembrança de Leonardo acudiram as palavras do profeta Malaquias, que tinha, uma vez, lido no diário de Giovanni Beltraffio:

"Aguardai, vou enviar o meu mensageiro! Ele preparará o caminho à minha frente! E, de súbito, entrará no seu templo o Senhor que procurais e o mensageiro da aliança que desejais. Ei-lo que chega!”

 

Mal o Rei saiu de Amboise, o silêncio e a tranquilidade habituais caíram de novo sobre a cidade. Ouvia-se apenas o tocar monótono dos carrilhões da torre do Relógio, e, à tarde, o grito dos cisnes, nos mouchões arenosos do Loire.

Leonardo trabalhava no S. João Baptista. Mas cada vez trabalhava com mais dificuldade e mais lentamente. Parecia às vezes a Francesco que o mestre desejava o impossível.

Certas tardes, ao crepúsculo, o ancião erguia o pano que tapava a

Gioconda e contemplava-a demoradamente. Nessas ocasiões, Francesco julgava descobrir - ou seria efeito da desigual distribuição da luz e da sombra - que a expressão de Lisa e a do Adolescente mudavam nos dois quadros; dir-se-ia que se animavam tornando-se vivos.

A saúde do mestre decaía gradualmente. Em vão Melzi lhe suplicava que deixasse o trabalho, que repousasse; a nada ele atendia.

Num dia de Outono, em 1518, estando a pintar, vacilou de repente e caiu; Francesco, que se encontrava no outro extremo do atelier, correu, chamou por socorro e transportaram-no para o quarto.

Conforme o seu costume, não quis chamar o médico e recusou todo o tratamento; conservou-se na cama durante seis semanas. O lado direito do corpo ficou paralítico; a mão direita completamente tolhida. O restabelecimento operou-se com grande dificuldade e muito lentamente.

Durante toda a vida, Leonardo servira-se das duas mãos com quase igual habilidade: ambas lhe eram úteis para o trabalho, pintando com a direita e desenhando com a esquerda. Desta faculdade resultava, segundo diziam, a sua superioridade sobre os outros pintores. Ao sentir os dedos da mão direita, por efeito da paralisia, entorpecidos e inúteis, Leonardo sofria pela perspectiva de nunca mais poder pintar.

Nos princípios de Dezembro pôde enfim levantar-se, mas sem ainda sair do quarto.

Uma tarde, quando todos dormiam, depois da refeição, Francesco, precisando falar ao mestre e não o tendo encontrado nos seus aposentos, desceu ao atelier, abriu a porta e olhou cautelosamente. Havia já tempo que Leonardo, cada vez mais misantropo e irritável, proibira que alguém entrasse sem ser chamado, como se receasse ser vigiado ou interrompido.

Pela porta entreaberta, Francesco viu o mestre, de pé, em frente do S. João: tentava pintar com a mão doente; o rosto estava desfigurado, numa convulsão de desespero, os lábios crispados, as sobrancelhas franzidas e as madeixas brancas dos cabelos coladas à testa, empastadas de suor. Os dedos rígidos recusavam-se a obedecer; o pincel tremia na mão do grande artista como na mão dum principiante inexperiente. Transido de terror, não ousando mexer-se, sustendo a respiração, Francesco contemplou esta derradeira luta do espírito ainda vivo com a carne agonizante.

 

O Inverno nesse ano foi rude: as pontes foram destruídas pelos blo- cos de gelo que o Loire arrastava; nos caminhos os homens morriam de frio e os lobos vinham até às portas da cidade; o velho jardineiro assegurava mesmo tê-los visto, uma noite, sob as janelas do castelo; ninguém se atrevia a sair sem armas; as aves migradoras caíam geladas.

Uma manhã, ao sair de casa, Francesco encontrou, caída na neve, uma andorinha semimorta e levou-a ao mestre. Este reanimou-a com o seu sopro e construiu-lhe um ninho, num canto da chaminé, tencionando libertá-la na Primavera.

Já não tentava trabalhar; tinha retirado para o fundo do atelier o S. João, por acabar, outros quadros e desenhos, e os pincéis e as tintas. Os dias decorriam tristemente. Às vezes, de tarde, chegavam o notário, mestre Guilherme e um frade, confessor de Francesco, um velhote agradável e bem humorado. Ficavam horas inteiras a jogar às cartas e às damas.

Naquela época do ano anoitecia cedo. Depois de os amigos saírem, Leonardo ficava, durante muito tempo, a passear no quarto, dum lado para o outro, olhando de vez em quando para o pobre Zoroastro. Mais do que nunca, a presença do impotente era para ele um remorso vivo, uma ironia lançada ao esforço maior de toda a sua vida: dar asas aos homens. O desgraçado passava os dias acocorado a um canto, carpinteirando e cantando, baixinho, sempre a mesma cantiga. A sua melancólica canção parecia tornar o atelier ainda mais enervante e monótono, e a luz fria do crepúsculo mais desoladora. Finalmente, a noite caía de todo, e um silêncio de morte pairava em toda a casa. Lá fora, o vento uivava, levantando turbilhões de neve; os ramos nus das velhas árvores rumorejavam; dir-se-iam gigantes malfazejos ralhando e questionando entre si.

Às vozes do vento juntavam-se outras mais lamentosas: eram os lobos que uivavam na orla do bosque. Francesco acendia então o fogo e Leonardo sentava-se junto do lar. Melzi tocava razoavelmente a cítara, tinha uma voz agradável e, às vezes, para dissipar as ideias negras do mestre, tocava e cantava. Um dia cantou-lhe a velha canção composta por Lourenço de Médicis para acompanhar a marcha triunfal de Baco e Ariana, essa canção de amor simultaneamente triste e alegre:

Quantè bella giovinezza!

Che se fugge tuttavia!

Chi vuol esser lieto, sia:

Di doman no cè certezza.

Com a cabeça caída, Leonardo ouvia, recordando a noite de Estio, as sombras negras como o pez, a luz da Lua opalina, quase branca, a rua deserta e os sons da cítara em frente da loggia de mármore, na mesma canção de amor. Então acudia-lhe ao pensamento a monna Lisa.

Os últimos acordes tremulavam e morriam misturados com os ruídos surdos do vendaval. Francesco, sentado aos pés do mestre, erguia então os olhos e via as lágrimas correrem pelas faces de Leonardo.

 

Quando relia o seu diário, De Vinci anotava-o com novos pensamentos acerca da única coisa em que pensava: a morte.

Uma vez teve um estranho pesadelo: que o tinham enterrado vivo e que, sufocado e num esforço enorme de pavor, tentava despedaçar o caixão. No dia seguinte, relembrou a Francesco o seu desejo de que o não enterrassem sem que os primeiros sintomas da decomposição se tivessem declarado.

Naquelas longas noites de Inverno, evocava os anos da sua longínqua infância na aldeia de Vinci; frequentemente recordava as suas descobertas e invenções, e as máquinas com que pretendera dar à humanidade o domínio total da Natureza.

Quando, às vezes, Francesco lhe lia o Evangelho, ouvia-o com agrado.

 

Pela manhã, ao levantar-se, contemplava através dos vidros gelados os montículos de neve, o céu pardacento, as árvores cobertas de geada, e parecia-lhe que aquele Inverno não acabaria nunca.

Nos começos de Fevereiro o tempo melhorou. No espaço exposto ao sol os blocos de neve suspensos nos beirais dos telhados derretiam-se e caíam em gotas de água clara; os pardais chilreavam, o gelo fundido fazia círculos aos pés das árvores e através das nuvens entremostrava-se um céu pálido e azul. Quando pela manhã os raios oblíquos do sol entravam no atelier, Francesco instalava ali o mestre, numa poltrona; o velho conservava-se sentado muitas horas, a cabeça descaída, as mãos magras cruzadas sobre os joelhos. Nas mãos inertes e nos olhos semicerrados havia uma expressão de abandono total e de fadiga infinita.

A andorinha estivera presa todo o Inverno no atelier: Leonardo domesticara-a; pousava-lhe na mão, no ombro, voejava em torno do quarto e deixava-se agarrar e beijar na cabeça. Ao observar-lhe os voos, de novo nascia no seu espírito a ideia das asas humanas.

Uma vez, abrindo a grande arca que estava a um canto dum quarto, rebuscou nos papéis e cadernos acumulados, misturados a desenhos de máquinas, as diversas notas que reunira para os duzentos Livros sobre a Vida e a Natureza, que pretendera escrever.

Toda a sua vida tencionara arrumar e coordenar aquele caos, de forma a reunir os elementos para a sua grande obra, mas sempre acabara por adiar para o dia seguinte esse enfadonho trabalho. Sabia que um tal livro seria duma utilidade extraordinária para os homens, e que as suas descobertas influiriam decisivamente nos seus destinos. Mas sabia também que isso seria um trabalho gigantesco para as suas forças, que nunca lograria acabar e que tudo morreria tão inutilmente como tantas outras coisas que perecem neste mundo. Encontrou um pequeno caderno amarelecido pelo tempo, intitulado Os Pássaros, e começou a lê-lo. Nos últimos anos abandonara completamente os seus estudos e planos sobre a máquina de voar, sem deixar contudo de pensar nela constantemente.

Agora, no fim da vida, resolveu tentar um supremo esforço e começou a trabalhar com a mesma persistência e febril entusiasmo que dedicara ao S. João, sem pensar na morte, dominando a fraqueza da doença e esquecendo-se até de dormir e de se alimentar. Passava as noites completas embrenhado nos cálculos e desenhos.

Assim decorreu uma semana. Francesco não o abandonava um momento, não dormia de noite, vigiando e espiando, temeroso e triste, o rosto do mestre, desfigurado pelo esforço duma vontade furiosa e pelo desejo veemente de chegar ao fim. Extenuado pelas vigílias, uma noite o discípulo adormeceu de fadiga, numa cadeira, junto do lar apagado.

A madrugada despontava; a andorinha, desperta, chilreava, e Leonardo, com a pena na mão, continuava curvado sobre a mesa de trabalho, coberta de papéis cheios de cálculos.

De repente, a cabeça descaiu-lhe, a pena rolou no chão e um grito quase indistinto expirou-lhe nos lábios; o peso do seu corpo, caído sobre a mesa, fê-la tombar e o mestre escorregou, ficando estendido no soalho. Francesco precipitou-se e chamou o criado; ergueram-no e transportaram-no para o leito.

Era um segundo ataque de paralisia.

O doente conservou-se alguns dias sem conhecimento, continuando, no delírio, os seus cálculos matemáticos. Assim que recuperou a razão, pediu que lhe trouxessem os desenhos da máquina de voar, e nem as súplicas de Francesco o fizeram desistir do seu intento. Quando lhe entregaram o caderno, pegou nele e escondeu-o debaixo do travesseiro.

Melhorava lentamente e durante muito tempo não se pôde levantar.

Francesco, que o não desamparava dia e noite, adormecia esgotado pela fadiga. Uma noite, ao despertar - tendo dormido talvez cerca de uma hora -, verificou com terror que Leonardo se tinha levantado. Angustiado, desceu e pela porta entreaberta do atelier viu o mestre sentado à banca de trabalho, com a cabeça entre as mãos. De repente, pegou na pena e começou a riscar páginas inteiras cheias de cálculos, e, ao voltar- se e dar pela presença do discípulo, ergueu-se cambaleante.

Francesco correu ao seu encontro para o segurar.

- Eu bem te prevenira, Francesco, que havia de acabar com tudo isto - murmurou com um sorriso calmo e enigmático. - Pois bem, foi agora! Acabou-se! Fica tranquilo que não recomeçarei! Estou farto! Sinto-me velho e tornei-me estúpido; já não sei nada, do pouco que sabia esqueci-me. Faltam-me as forças para prosseguir. Que o diabo leve a máquina de voar! - concluiu cheio de raiva.

Agarrando as folhas e os cadernos, amarrotou-os e rasgou-os. A partir de então, o seu estado agravou-se rapidamente e o discípulo viu bem que Leonardo já se não levantaria. Ficava às vezes dias inteiros mergulhado numa letargia semelhante ao desmaio.

Francesco era devoto e acreditava com simplicidade nos mandamentos da Igreja. Neste capítulo Leonardo não conseguira exercer sobre ele nenhuma influência. Por seu lado, Francesco sabia que o mestre não cumpria os seus deveres religiosos, mas adivinhava que apesar de tudo não era um ateu. Isto lhe bastava e proporcionava-lhe uma certa consolação.

Agora, porém, o pensamento de que Leonardo pudesse morrer impenitente, aterrava-o, e daria de boa vontade a sua alma para salvar a do mestre. Contudo, não se atrevia a falar.

Uma tarde, sentado à cabeceira do doente, contemplava-o, sempre obcecado por esse terrível pensamento: a morte sem Sacramentos.

- Em que pensas? - perguntou-lhe Leonardo.

- O Irmão Guglielmo esteve cá esta manhã - respondeu Francesco, hesitante -, pretendia ver-vos, mas eu disse-lhe que não era permitido.

o mestre fitou demoradamente o discípulo e viu no seu olhar uma súplica cheia de temor e de esperança.

- Não é bem isso que tu pensas, Francesco! Por que não me dizes a verdade? - o discípulo calava-se, com os olhos baixos.

Então Leonardo compreendeu tudo e voltou o rosto, franzido de contrariedade. Sempre desejara morrer como tinha vivido, na liberdade e na verdade, mas tinha dó de Francesco. Valeria a pena, naquele momento, quando sentia que a sua vida estava terminada, perturbar aquela humilde fé, contristar o amorável coração do seu último discípulo, que o amava tão profunda e sinceramente?

Olhou-o, acariciou-lhe a mão com a sua e disse-lhe, num sorriso cheio de bondade:

- Filho, manda chamar o Irmão Guglielmo, que venha amanhã ver- me! Quero confessar-me e comungar. Pede também ao notário para vir!

Francesco não respondeu nada e beijou a mão de Leonardo, comovido e cheio de gratidão.

 

No dia seguinte, 23 de Abril, era sábado de Aleluia. Quando, pela manhã, chegou o notário, mestre Borreau, Leonardo ditou-lhe as suas últimas vontades: deixava, como testemunho de reconciliação, a seus irmãos com quem andava em demanda, quatrocentos florins; ao discípulo Francesco Melzi legava os livros, os aparelhos científicos, os manuscritos e o resto dos honorários a receber do erário real; ao criado Baptista o mobiliário do castelo de Cloux e metade de uma vinha que possuía em Milão; a outra metade deixava-a ao discípulo Andréa Salaino, e finalmente um vestido preto de bom pano com uma coifa de peles e dois ducados em prata à velha criada Mathurine.

Sobre as cerimónias fúnebres e tudo que dizia respeito à sucessão, confiava os cuidados a Francesco Melzi, a quem designava como testamenteiro.

Francesco e mestre Guilherme resolveram logo fazer funerais que persuadissem toda a gente de que Leonardo, em contrário dos rumores correntes, morrera como um crente e um filho submisso da Igreja Católica.

O artista aprovou tudo e, para mostrar ao discípulo como concordava de boamente com os seus projectos, fez mais um legado de dez libras destinado às velas das missas que se celebrariam pelo repouso de sua alma, e mais também setenta soldos a distribuir por esmolas aos pobres.

A seguir, entrou no quarto do doente, com os Santos Óleos, Frei

Guglielmo, e nessa ocasião todos se afastaram.

Quando saiu, o frade tranquilizou Francesco, asseverando-lhe que seu mestre cumprira com humildade todos os ritos exigidos pela Igreja e se mostrara obediente à vontade de Deus.

- Diga o mundo o que disser - concluiu -, justificar-se-á com as palavras do Senhor: "Felizes os que têm a alma pura, porque esses verão a Deus!"

Durante a noite, o doente sentiu sufocações. Francesco receava a todo o momento que ele lhe morresse nos braços. Porém, na manhã seguinte, Domingo de Páscoa, sentiu-se melhor. As sufocações, contudo, não tinham passado completamente e o discípulo abriu a janela. No céu azul voavam as pombas brancas e o murmúrio das suas asas misturava-se ao som festivo dos sinos que tocavam pela Páscoa. Mas o moribundo já não podia ver nem ouvir nada.

Parecia-lhe que um peso enorme, como o de um bloco de pedra que tivesse caído sobre ele, o esmagava. Tentava erguer-se para se libertar desse peso mas não lhe era possível fazer qualquer movimento. As vezes, com um esforço desesperado, conseguia libertar-se e voar sustentado por umas asas gigantes; mas de novo os pesos caíam sobre ele e a luta começava até poder vencer outra vez e voar para muito longe...

Assim viveu alguns dias sem recuperar completamente a consciência, exânime, quase morto. Até que na manhã de 2 de Maio o frade e o discípulo verificaram que a respiração se tornava cada vez mais fraca e Frei Guglielmo leu então a prece dos agonizantes.

Uma hora depois, Francesco, ao colocar-lhe a mão sobre o coração, notou que este já não batia e cerrou-lhe piedosamente os olhos.

Quando Francesco e os velhos criados lavaram o corpo, abriram-se todas as janelas e portas.

A andorinha aprisionada, que ficara em baixo no atelier e da qual naqueles dias ninguém se lembrara, ao ver-se livre, voou pelas escadas até ao quarto do morto.

Voejando por cima dele, por entre os círios fúnebres que brilhavam, com uma chama trémula, à claridade matinal do Sol, veio pousar, segundo o seu costume, sobre as mãos de Leonardo. Depois, subitamente, bateu as asas, ergueu-se ao alto e pela janela aberta voou para o céu, soltando um grito de alegria. Francesco pensou que pela última vez o seu mestre querido realizava uma daquelas acções que tanto prazer lhe causavam:

dar a liberdade a uma ave.

Conforme os desejos do defunto, o corpo conservou-se no quarto durante três dias.

Os funerais fizeram-se segundo o estabelecido; frades, vigários, capelães, acompanharam o féretro com sessenta mendigos, levando cada um a sua vela; rezaram-se numerosas missas nas quatro igrejas de Amboise e distribuíram-se aos pobres os setenta soldos. As almas cristãs podiam concluir que tinham acompanhado ao último repouso um filho obediente da Santa Igreja Católica.

Ficou enterrado na Igreja de S. Florentino; mas o seu túmulo, depressa esquecido, confundiu-se com o solo que o rodeava e a própria recordação desapareceu em Amboise. O lugar onde tinha sido enterrado Leonardo ficou desconhecido para a posteridade.

Ao escrever aos irmãos do artista, anunciando-lhes a sua morte, Francesco dizia:

"Não consigo exprimir a dor que sinto pela morte daquele que foi para mim mais do que um pai. Enquanto eu viver hei-de chorá-lo porque ele me tratou sempre com um grande e enternecido amor. Penso que é dever de todos chorar a perda de um homem semelhante; a Natureza não criará nunca um outro igual. Que Deus, Todo-Poderoso, o tenha em sua Santa glória".

 

No dia da morte de Leonardo, Francisco I andava caçando na floresta de Saint-Germain. Ao ter conhecimento do fim do artista, deu ordem para colocarem os selos no atelier, até à sua chegada a Amboise, pois desejava escolher para si os melhores quadros.

Francisco I tinha, no entanto, nessa época, cuidados bem mais importantes. Cinco meses antes, em 12 de Fevereiro de 1519, morrera o imperador Maximiliano. Três reis, o de França, o de Espanha e o de Inglaterra, disputavam a coroa do Santo Império, com todos os ardis e intrigas de que eram capazes. Francisco I sonhava já que, se conseguisse reunir nas suas mãos os ceptros dos reis de França e o dos imperadores romanos fundaria uma monarquia sem precedentes na Europa. Estava disposto a gastar três milhões para corromper os eleitores, e procurava a aliança do

Papa, prometendo-lhe fazer uma cruzada contra os Turcos, para libertar o Santo Sepulcro. Jurava que três meses depois de eleito entraria vencedor em Constantinopla e ergueria de novo a cruz sobre a cúpula de Santa Sofia.

Leão X, conforme os seus hábitos, embaía-os a todos com promessas e passava dum rival a outro sem dizer sim nem não.

Um dos embaixadores russos, Dmitri Gérassimoff, voltara nessa altura para Moscovo; o outro, Nikita Karatcharoff, conservava-se em Roma.

Este último, ao ter conhecimento da próxima eleição do Imperador e das negociações entabuladas a esse respeito entre Francisco 1 e o pior inimigo do seu soberano, o rei Segismundo, dirigiu-se a França, acompanhado do legado do Papa, a fim de obter informações mais exactas e minuciosas. Como na sua primeira viagem, acompanhavam-no o velho escriba da chancelaria, Ilia Copila, o intérprete Blaise e os dois jovens escriturários, Fédor Roudometoff e Eustáquio Gagar.

Eustáquio, como então faziam todos os viajantes russos, tinha um diário de viagem onde notava tudo quanto via e ouvia de mais notável.

Assim, entre outras impressões, escrevia a respeito de Florença:

"A cidade de Florença é grande e formosa, nunca vi outra semelhante.

As igrejas são magníficas; os palácios de mármore branco, altos e soberbos; há também na cidade um grande templo de mármore branco e preto.

Arrumado ao templo, um campanário de mármore branco. Há coisas que eu não posso compreender. Subimos ao alto desta torre e contámos os degraus: quatrocentos e cinquenta. O que o meu espírito pôde apreender, descrevo-o eu tal qual o vi; mas não posso contar o que para mim é incompreensível".

Assim terminava a descrição de Eustáquio.

Efectivamente, ele não soube descrever aquilo que mais o impressionara. Entre os baixos-relevos hexaedros de Giotto que ornamentam o andar inferior da gigantesca torre sineira, a "Campanile" da Catedral de Santa Maria del Fiore, e que representam os estágios sucessivos da evolução humana: a criação do gado, a agricultura, o ensino dos cavalos, a invenção dos navios e do tear, a exploração dos metais, o desenho, a música, a astronomia, vira também o hábil mecânico Dédalo experimentando as enormes asas de cera da sua invenção: o corpo coberto de penas, as asas ligadas ao tronco por correias, segurando com as mãos as alavancas interiores que as accionavam, e tentando levantar voo.

Fora este mesmo baixo-relevo que inspirara outrora ao jovem Leonardo, recém-chegado a Florença, ao sair da aldeia natal, a primeira ideia da máquina voadora e do homem-pássaro.

Esta imagem enigmática do Homem alado impressionou tanto mais

Eustáquio quanto lhe recordava a imagem que andava desenhando para o ícone do Precursor. Com uma vaga emoção que lhe parecia profética, sentia o contraste existente entre as asas materiais do mecânico Dédalo, construídas decerto por meio de qualquer ardil diabólico, e as asas espiritualizadas do anjo incarnado, João, o Precursor.

Francisco I saiu de Saint-Germain para ir caçar nas florestas de Fontainebleau e só voltou depois a Amboise. Foi aí que se lhe reuniu, nos primeiros dias de Junho de 1519, o enviado russo, Nikita Karatcharoff.

A casa do notário real, mestre Guilherme Borreau, na rua principal, junto da torre do Relógio, serviu-lhe ainda, desta vez, de alojamento.

Assim que chegou, o Rei foi visitar o atelier de Leonardo. Na tarde do mesmo dia a princesa Margarida, acompanhada do Príncipe eleitor de Brandeburgo e doutros gentis-homens estrangeiros, entre os quais Nikita Karatcharoff, dirigiu-se também para o castelo de Cloux.

Fédor aconselhou seu tio Ilia e Eustáquio Gagar a irem com ele igualmente a casa de Leonardo, asseverando-lhes que ali encontrariam muitas e curiosas coisas para admirar.

O intérprete Blaise agregou-se-lhes e partiram todos para o castelo.

Quando chegavam, Margarida de Valois e os outros convidados tinham já acabado a visita e dispunham-se a partir. Apesar disso, Francesco Melzi recebeu-os com a mesma afabilidade que dispensava a todos os visitantes estrangeiros, sem preocupações de categoria ou qualidade: conduziu-os ao atelier e começou a mostrar-lhes tudo que nele se encontrava.

Com uma admiração tímida contemplavam as máquinas desconhecidas, as esferas astronómicas, os globos terrestres, os quadrantes, um enorme olho humano de cristal destinado aos estudos de óptica, instrumentos de música demonstrativos das leis da acústica, desenhos anatómicos e esboços de terríficas máquinas de guerra. Tudo isto arrebatava Fédor e lhe parecia a demonstração da mais elevada ciência, no campo da "astrologia e da alquimia superior". Ilia Copila franzia os sobrolhos e desviava-se, benzendo-se devotamente. Eustáquio ficou particularmente impressionado pelo velho esqueleto duma asa quebrada, semelhante à duma gigantesca andorinha. Quando Francesco Melzi lhe explicou sucintamente, por intermédio de Blaise, que era uma parte da máquina voadora em que o mestre trabalhara toda a sua vida, Eustáquio recordou- se de Dédalo, o homem alado do campanário de mármore de Florença, e os mais estranhos e pungentes sentimentos despertaram em si com redobrada força.

Ao contemplar os quadros, deteve-se perplexo em frente de João, o Precursor; pareceu-lhe primeiro uma mulher, e não podia crer nas palavras de Blaise, que lhe asseverava, segundo os dizeres de Francesco, que era o S. João Baptista; mas, ao observá-lo mais atentamente, viu o cajado encimado por uma cruz, semelhante à que os pintores de imagens russos costumam pintar sobre o ícone de João. Sentia-se perturbado, mas, apesar de toda a diferença que havia entre aquele Áptero e o Alado, que lhe era familiar, quanto mais o olhava mais o impressionava a rara beleza que irradiava do adolescente, semelhante a uma mulher, e do sorriso misterioso com que ele apontava a cruz do Gólgota.

Ficou em frente do quadro numa espécie de encantamento, como enfeitiçado, sem ter consciência de nada, sem conseguir fixar os seus pensamentos, sentindo apenas o coração bater-lhe mais apressado, sob a influência duma emoção inexprimível.

Ilia Copila não se podia conter; cuspiu para o chão, furioso, e exclamou:

- Impureza satânica! Inconveniência vergonhosa! Pois quê? Este devasso ou esta rameira nua, sem barbas nem bigode, pode por acaso ser o Precursor?! Se é o Precursor, será do Anticristo, que não do Cristo. Vamos, Estáquio, partamos daqui quanto antes, para não macular os nossos olhos; ortodoxos como nós não devem sequer olhar estas imagens diabólicas! Malditas sejam elas!

E agarrando Eustáquio pelo braço, arrastou-o quase à força para longe do quadro. Muito tempo depois de ter saído de casa de Leonardo, não conseguira ainda acalmar-se e continuava as suas imprecações contra os sofismas e as irreverências impiedosas dos pintores latinos.

Eustáquio, mergulhado nos seus próprios pensamentos, ouvia-o sem lhe prestar atenção. Cismava noutra coisa: na imagem satânica. Tentava esquecê-la mas não podia; a figura misteriosa do Áptero, de rosto feminil, erguia-se na sua frente, terrífica e atraente ao mesmo tempo, perseguindo-o como uma obsessão.

 

Nesta segunda viagem de Karatcharoff a Amboise, como a afluência de estrangeiros fosse menor, o notário pudera instalar a embaixada russa em local mais vasto e mais cómodo, no andar inferior da casa. Mas estivera dois anos antes, sob o tecto, ao lado do pombal; e, como então, arranjou o seu minúsculo atelier no vão da trapeira.

Ao sair do castelo de Cloux dirigiu-se a casa e, ansioso de afastar a tentação, começou a trabalhar numa imagem já quase terminada: esse João, o Precursor, de duas cabeças e com duas asas gigantescas que, em pleno céu azul, se mantinha erecto sobre a montanha de areia.

Faltava-lhe apenas terminar o doirado da parte inferior das asas e encetou essa tarefa com o maior ardor.

O trabalho, porém, não lhe proporcionava a ambicionada paz de espírito; as asas do Precursor ora lembravam as do mecânico Dédalo ora as da máquina voadora de Leonardo. A cabeça do Áptero, o misterioso adolescente, erguia-se sempre na sua frente e, apagando o rosto do Alado, seduzia-o e aterrava-o alternadamente.

Sentia-se angustiado e opresso, o pincel caiu-lhe das mãos e reconheceu que lhe era impossível trabalhar. Saiu e vagueou por muito tempo, primeiro pelas ruas da cidade, depois pelas margens do Loire. O sol já se escondera; o céu-verde pálido e a estrela Vénus reflectiam-se no rio, unido e liso como um espelho. No horizonte subia uma nuvem; relâmpagos de calor fuzilavam como asas de fogo gigantes, agitando-se convulsivamente no ar calmo e pesado. No meio do silêncio, o coração de Eustáquio confrangia-se ainda mais, cheio de dor e de inquietação.

Voltou novamente a casa, acendeu uma lâmpada diante da imagem da Virgem de Ouglitch, e rezou durante muito tempo; a seguir, estendeu a peça de feltro sobre a estreita caixa que lhe servia de leito, despiu-se e deitou-se. Foi em vão, porém, que tentou conciliar o sono.

As horas sucediam-se; tão depressa sentia calor como tiritava de frio.

Na obscuridade atravessada pelo clarão dos relâmpagos, conservava-se estendido, os olhos abertos, escutando o silêncio no qual lhe parecia ouvir estranhos rumores, murmúrios de vozes apagadas e sons indistintos e quase imperceptíveis. Pensamentos sem nexo atravessavam-lhe o espírito; lendas maravilhosas acudiam-lhe à memória: via a terrível fera Indrika, que "passeia na terra como o Sol no céu", o monstruoso pássaro Stratina que vive no fim do oceano, agita as vagas e faz naufragar os navios;

depois, era o irmão do Rei Salomão, esse Centauro, que de dia reina sobre os homens e de noite, transformado em animal, vagueia pela terra; eram os seres que jamais morrem e caminham sobre os precipícios, tão altos e tão magros que se desfazem ao sopro do vento como uma teia de aranha, pairando no eterno turbilhão, por cima dos abismos. Os galos cantaram então pela segunda vez e isto fez-lhe lembrar uma antiga lenda no fim da noite, os anjos vão buscar o Sol ao trono de Deus e levam-no para o Oriente; os querubins agitam-se, os pássaros todos tremem de alegria e então o galo, levantando a cabeça, acorda, bate as asas e canta anunciando a luz ao mundo.

E todos estes pensamentos incoerentes se sucediam no seu espírito, sobrepondo-se uns aos outros e enovelando-se como fios, tal-qual num delírio. Susteve a respiração e rezou uma prece, mas sem resultado; as visões tornavam-se cada vez mais indistintas e importunas.

Subitamente, o rosto feminino de S. João surgiu da sombra e ergueu- se na sua frente cheio de vida e nimbado de uma beleza diabólica. Com um sorriso terno e irónico, contemplava fixamente Eustáquio; e o seu olhar era tão agudo e sedutor, que o iluminista se sentiu gelado de pânico e um suor frio cobriu-lhe a fronte.

Acendeu, então, a candeia, decidido a velar o resto da noite e foi buscar um velho livro de lendas russas, que principiou a ler.

Até que finalmente adormeceu com um sono agitado.

 

Eis o que ele sonhou: uma mulher de rosto e asas de fogo, vestida de uma casula ofuscante, estava sentada sobre o crescente da Lua no meio das nuvens. Por cima dela erguia-se um tabernáculo com sete pilares e tendo no frontispício esta inscrição: "A Sabedoria construindo a sua casa".

Profetas, bispos, velhos e anjos portadores de hóstias, os arcanjos, os domínios, os tronos, os reinos e as potências, rodeavam-na; e entre a multidão dos profetas, ao lado da Sabedoria, estava João, o Precursor, com os pés e as mãos emagrecidos e espalmados como patas de cegonha, e asas imensas e brancas, como as que tinha o ícone.

A cabeça, porém, era diferente; na fronte calva, nas rugas obstinadas, nos sobrolhos hirsutos, na longa barba e cabelos grisalhos, Eustáquio reconheceu um rosto que se lhe tinha gravado na memória, o do ancião parecido com o profeta Elias, que dois anos antes tinha vindo ao seu atelier: o rosto de Leonardo de Vinci, o inventor das asas humanas. Por baixo, as nuvens em que pairava a mulher chamejavam no azul do céu, iluminando as cúpulas doiradas e as torres dos templos; mais em baixo ainda, viam-se campos negros recém-lavrados, florestas azuis, rios de águas claras e no horizonte uma planície indefinida que Eustáquio reconheceu ser a terra russa.

Então os sinos começaram a repicar: os eleitos entoaram um coro triunfal: "Aleluia"; os que tinham seis asas, cheios de terror, taparam o rosto e começaram também a cantar: "Que toda a carne humana se acalme e aguarde no meio do pavor e da angústia!" Sete arcanjos agitaram as asas, enquanto se fazia ouvir o ribombar de sete trovões. Por cima da mulher com rosto de fogo, a Santa Sofia, que é a sabedoria de Deus, o céu abriu-se e qualquer coisa de branco apareceu, coisa terrível como um sol. Eustáquio compreendeu que era o "Capuz Branco", cuja história lera essa noite no repositório das antigas lendas russas. Era a coroa de Cristo que predizia a grandeza terrestre e celeste da terra da Moscóvia.

o pergaminho que o Precursor trazia nas mãos desenrolou-se e Eustáquio pôde ler o que ele continha: "Aguardai, vou enviar à minha frente o meu mensageiro a preparar o caminho, e subitamente entrará no seu Templo o Senhor que procurais, e o mensageiro da aliança que desejais. Olhai, eis que está a chegar!”

o ribombar dos trovões, os frémitos das asas, a aleluia triunfal e o repicar dos sinos misturavam-se num coro único de louvores à santa Sabedoria.

E campo e bosques e rios e montanhas, e todos os infinitos longes da terra russa, respondiam a esse canto.

Eustáquio despertou. Era ainda muito cedo, mal despontava a aurora.

Ergueu-se, abriu a janela e aspirou o odor fresco e perfumado das folhas das ervas molhadas que chegava até ele; tinha chovido durante a noite. Na extremidade do céu, no sítio onde ia nascer o Sol, as nuvens acumuladas purpureavam-se e doiravam-se. As ruas da cidade dormiam ainda naquele anúncio da aurora; apenas o esbelto e branco campanário da capela de Saint-Hubert se iluminava duma claridade verde-pálido. O silêncio era perfeito e cheio de majestosa expectativa. Sobre os bancos de areia do Loire deserto ouvia-se apenas o grito dos cisnes selvagens.

o pintor de ícones sentou-se à pequena banca no vão da trapeira, em frente da prancheta inclinada onde desenhava e na qual estava incrustado, num dos lados, um tinteiro de osso; aparou uma pena de pato e abriu um grande caderno. Era um novo Manual do Imaginário, obra de grande fôlego que andava preparando.

"Qual foi o princípio do ícone? Não provém do homem, mas do próprio Deus Padre, que engendrou o Filho; é a sua Palavra, a sua Imagem viva": tais eram as últimas palavras que Eustáquio escrevera na véspera.

Molhou a pena e acrescentou: "Eu, pecador, tendo recebido de Deus o privilégio do talento, não o quis esconder debaixo da terra, quis trabalhar para o bem de todos. Vós, meus irmãos, para quem faço os meus trabalhos, suplico-vos que dirijais ao Senhor uma prece ardente, para que eu, que desenhei a sua face e as dos seus servidores, os Santos, possa ver a sua imagem divina e as dos eleitos, lá no Reino dos Céus, onde a sua glória e grandeza são exaltadas por todos os espíritos, hoje e perpetuamente, pelos séculos dos séculos, ámen!"

Enquanto ele escrevia, o disco do Sol, como um trovão incandescente, apareceu sobre o negrume da floresta. No beiral do telhado, os pombos, num frémito de asas, levantavam voo.

Um raio de sol entrou pela janela e caiu sobre a banca de Eustáquio, onde estava o ícone de João, o Precursor, iluminando-lhe as asas, cuja face interior era de oiro vermelho como o fogo, e a exterior branca como a neve. Todas abertas no azul do céu, por cima da terra amarela e do negro oceano, eram semelhantes às asas dum cisne gigante; cintilavam na púrpura do sol como se, subitamente, tivessem sido animadas duma vida sobrenatural.

Eustáquio lembrou-se então do sonho; pegou num pincel e, mergulhando-o em tinta vermelha, escreveu sobre o pergaminho branco do Precursor alado:

"Aguardai, vou enviar o meu mensageiro a fim de preparar o caminho à minha frente, e subitamente o Senhor que vós procurais entrará no seu Templo, e com ele o mensageiro da aliança que desejais. Eis que se aproxima!” 

 

                                                                                Dimitri Merejkovski

 

 

                      

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