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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DO FUNDO DE SEUS OLHOS / Dean Ray Koontz
DO FUNDO DE SEUS OLHOS / Dean Ray Koontz

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DO FUNDO DE SEUS OLHOS

Parte I

 

BARTHOLOMEW LAMPION ficou cego aos três anos, quando cirurgiões, relutantemente, removeram seus olhos para deter um câncer de disseminação rápida. Porém, ainda que desprovido de globos oculares, aos treze anos Barty recuperou a visão.

Esta ascensão repentina de uma década de escuridão para a glória da luz não foi possibilitada pelas mãos de um curandeiro. Nenhuma trombeta celestial anunciou a restauração da visão de Barty, assim como nenhuma anunciara o seu nascimento.

Uma montanha-russa teve certa relação com a recuperação do rapaz, assim como uma gaivota. E não podemos menosprezar o desejo profundo de Barty em agradar à mãe, antes que ela morresse pela segunda vez.

A primeira vez que ela morreu foi no dia do nascimento de Barty.

6 de janeiro de 1965.

Em Bright Beach, Califórnia, a maioria dos moradores falava com afeto sobre a mãe de Barty — Agnes Lampion, também conhecida como a Moça das Tortas. Ela vivia em benefício dos outros, seu coração sintonizado com a dor e a necessidade de seus semelhantes. Neste mundo materialista, seu altruísmo despertava suspeita nas pessoas cujo sangue era tão rico em cinismo quanto em ferro. Contudo, até essas almas empedernidas admitiam que a Moça das Tortas tinha inúmeros admiradores e nenhum inimigo.

O homem que dilacerou o mundo da família Lampion, na noite do nascimento de Barty, não era um inimigo. Era apenas um estranho, mas a corrente de seu destino compartilhava um elo com o destino dos Lampion.

 

EM 6 DE JANEIRO DE 1965, logo depois das oito da manhã, enquanto assava seis tortas de amoras, Agnes entrou no primeiro estágio do trabalho de parto. Não era mais um alarme falso; as dores se estendiam pelas costas e por toda a barriga, em vez de se limitarem à região inferior do abdómen e da virilha. Os espasmos eram piores quando ela caminhava do que quando ficava sentada ou em pé; outro sinal de que desta vez era para valer.

O desconforto não era forte. As contrações eram regulares mas bem esparsas. Ela recusou ser levada ao hospital antes de completar as tarefas programadas para aquele dia.

Para uma mulher em sua primeira gravidez, este estágio do trabalho de parto dura em média doze horas. Agnes acreditava-se mediana em todos os aspectos, tão confortavelmente comum quanto o conjunto de malha cinza com cintura de elástico que estava usando para acomodar seu físico inflado pelo bebê. Portanto, estava segura de que não entraria no segundo estágio antes das dez da manhã.

Joe, seu marido, queria levá-la ao hospital bem antes do meio-dia. Depois de fazer a mala da esposa e guardá-la no bagageiro do carro, cancelou seus compromissos e se manteve perto de Agnes, embora com o cuidado de estar sempre a um cómodo de distância dela, para que ela não se aborrecesse com a sua preocupação e o expulsasse de casa.

Cada vez que escutava Agnes gemer suavemente ou inspirar com um chiado de dor, Joe tentava cronometrar suas contrações. Passou tanto tempo consultando o relógio de pulso que quando se olhou no espelho do corredor esperou ver o leve reflexo de um ponteiro de segundos girando dentro de seus olhos.

Embora não aparentasse, Joe era o tipo de homem que passava o tempo todo preocupado. Alto e forte, poderia ter sido o próprio Sansão, empurrando pilastras para derrubar o teto sobre os filisteus. Mas era gentil por natureza, e carecia da arrogância e da confiança imprudente de muitos homens do seu tamanho. Embora feliz, achava ter sido abençoado demais com dinheiro, amigos e família. Tinha certeza absoluta de que um dia o destino viria cobrar a conta de tanta felicidade.

Não era rico, mas vivia com conforto. Jamais preocupara-se com a possibilidade de perder seu dinheiro, porque sempre podia ganhar mais através de trabalho duro e dedicação. Não era isso que tirava seu sono em algumas noites, mas o medo silencioso de perder aqueles a quem amava. A vida era como o gelo de um lago no começo do inverno: mais frágil do que aparentava ser, repleto de fraturas ocultas, e com uma escuridão sombria por baixo.

Além disso, para Joe Lampion, Agnes não era de forma alguma mediana, a despeito do que ela pudesse pensar. Era gloriosa, única. Não a colocava num pedestal porque um mero pedestal não iria elevá-la à altura merecida.

Se a perdesse, Joe também perderia a si mesmo.

Durante a manhã inteira Joe Lampion lembrou de cada complicação médica associada ao parto. Meses antes, aprendera mais do que precisava sobre o assunto num livro de referência médica. Muito grosso e detalhista, o livro inspirou em Joe mais medo do que qualquer romance de terror que ele já tinha lido.

Às dez para uma da tarde — incapaz de expulsar da mente as descrições do livro a respeito de hemorragia pré-parto, hemorragia pós-parto e convulsões eclâmpticas violentas — Joe atravessou correndo a porta de vaivém da cozinha e anunciou:

— Chega, Aggie. Já esperamos muito.

À mesa do café, escrevia bilhetes nos cartões que acompanhariam as seis tortas de amora assadas durante a manhã.

— Eu me sinto bem, Joey.

Além de Aggie, ninguém mais o chamava pelo diminutivo "Joey". Tinha l,90m de altura, 104 quilos e um rosto de feições pétreas, salpicado por manchas e buracos, que impunha medo em quem não o conhecia, isso até ele falar com sua voz musical e suave ou a bondade em seus olhos ser notada.

— Vamos para o hospital agora — insistiu, avultando-se sobre a mesa.

— Não, meu amor. Ainda não.

Embora Aggie medisse apenas 1,60m e (descontando os quilos de seu filho ainda não nascido) menos da metade do peso do esposo, não poderia ser levantada da cadeira contra a sua vontade, mesmo que Joey usasse um macaco hidráulico. Nos confrontos com Aggie, Joey era sempre o Sansão careca, jamais o Sansão cabeludo.

Com um olhar que convenceria uma cascavel a desenroscar-se e estender-se reta como uma minhoca, Joey disse:

— Por favor?

— Preciso escrever bilhetes para acompanhar as tortas, para Esaú entregá-las pela manhã.

— Só tem uma entrega que me preocupa.

— Bem, estou preocupada com sete. Seis tortas e um bebê.

— Você e as suas tortas — disse Joe, frustrado.

— Você e a sua mania de se preocupar — retrucou Aggie, brindando-o com aquele sorriso que fazia o coração do marido derreter como manteiga ao sol.

Ele suspirou.

— Os bilhetes, e então vamos.

— Os bilhetes. E então Maria vai chegar para sua aula de inglês. E então nós vamos.

— Você não está em condições de dar aulas de inglês!

— Querido, ensinar inglês não exige levantar peso.

Aggie não parou de escrever os bilhetes enquanto falava com ele, e Joey observou um elegante fluxo de texto sair automaticamente da ponta da esferográfica como se ela fosse meramente a portadora de palavras de um poder superior.

Finalmente, Joey inclinou-se sobre a mesa. Aggie olhou para o seu marido através da ampla sombra lançada por seu corpo, os olhos verdes em sua face. Joey abaixou o rosto de granito bruto até as feições de porcelana da esposa, e como se querendo ser estilhaçada, Aggie levantou a cabeça para encontrá-lo num beijo.

— Eu te amo, só isso — disse ele, constrangido com a fragilidade que deixou transparecer na voz.

— Só isso? — Ela o beijou novamente. — Isso é tudo.

— Então, o que faço para não enlouquecer? A campainha tocou.

— Atenda aporta — sugeriu Aggie.

 

AS FLORESTAS PRIMITIVAS da costa do Oregon erguiam uma grande catedral verde ao longo das colinas, e a terra era tão silenciosa quanto qualquer local de adoração. Acima das copas das árvores, um falcão planava num círculo cada vez mais amplo, um anjo de penas negras com um apetite por sangue.

Aqui, no nível do solo, nenhum animal se mexia, e este dia marcante estava belíssimo. Véus de neblina luminosa pairavam nas ravinas mais profundas, onde tinham sido deixados na noite anterior. Os únicos sons ali eram produzidos pelo esmigalhar do mato verde por pés e a respiração ritmada de andarilhos experientes.

Às nove da manhã, Caim Júnior e sua noiva, Naomi, haviam estacionado seu Chevy Suburban à beira da estrada de terra batida e seguido para o norte a pé, através de trilhas de cervos e outros caminhos naturais, adentrando esta vastidão umbrosa. Mesmo ao meio-dia, o sol penetrava apenas em colunas estreitas que iluminavam a floresta de forma indireta.

Quando estava na frente, Júnior de vez em quando adiantava-se a Naomi para parar e observá-la aproximando-se dele. Seus cabelos dourados sempre reluziam, estivessem ao sol ou à sombra, e seu rosto era aquela perfeição com a qual os meninos adolescentes sonham, e pela qual homens adultos sacrificam honra e fortuna. Ocasionalmente, Naomi ia na frente; seguindo-a, Júnior sentia-se tão cativado por suas formas sinuosas que mal percebia o resto, ignorando as clareiras verdes, os troncos colunares, as samambaias exuberantes, os rododendros em flor.

Embora a beleza natural de Naomi pudesse sozinha capturar seu coração, Júnior ficava igualmente encantado com sua graça, agilidade, força e determinação, agora demonstrada pela conquista da ladeira e do terreno pedregoso. A todas as coisas da vida, Naomi dedicava o mesmo entusiasmo, paixão e inteligência que aplicava às caminhadas ecológicas.

Estavam casados há quatorze meses, mas seu amor por ela ainda crescia a cada dia. Júnior tinha apenas 23 anos, e às vezes achava que um dia seu coração seria pequeno demais para conter seus sentimentos por Naomi.

Outros homens tentaram conquistar Naomi, alguns mais bonitos que Júnior, muitos mais inteligentes, todos mais ricos, praticamente. Mesmo assim Naomi quisera apenas Júnior, não devido ao que ele possuía ou o que poderia adquirir um dia, mas porque ela afirmava ver nele uma "alma reluzente".

Júnior era fisioterapeuta, e dos bons, trabalhando principalmente com vítimas de acidentes e derrames tentando recuperar funções físicas perdidas. Júnior jamais careceria de trabalhos significativos, mas também jamais seria dono de uma mansão no topo de uma colina.

Felizmente, os gostos de Naomi eram simples. Preferia cerveja a champanhe, não gostava de diamantes, e não sonhava em ver Paris algum dia. Amava a natureza, caminhar na chuva, ir à praia, ler bons livros.

Em suas caminhadas ecológicas, Naomi costumava cantar baixinho quando percorria uma trilha fácil. Duas de suas melodias favoritas eram "Somewhere Over the Rainbow" e "What a Wonderful World". Sua voz era pura como água de fonte e cálida como um raio de sol. Júnior frequentemente encorajava-a a cantar, porque no canto de sua esposa ele sentia um amor pela vida e uma alegria contagiante que enlevava o seu espírito.

Como este dia de janeiro estava quente para a época, acima de quinze graus, e como Júnior e Naomi estavam próximos demais à costa para ficar numa zona nevada a qualquer altitude, vestiam bermudas e camisetas. O calor agradável gerado pelo esforço físico, a dor suave nos músculos bem treinados, o ar florestal recendendo a pinho, a firmeza e a graça das pernas nuas de Naomi, a sua voz doce ecoando pela trilha: se o Paraíso existia, devia ser assim.

Como esta era uma caminhada diurna, e como não pretendiam acampar à noite, carregavam mochilas leves — um estojo de primeiros socorros, garrafas de água, almoço — e portanto seguiam num bom ritmo. Logo depois do meio-dia alcançaram uma passagem estreita na floresta e saíram na última curva da estrada sinuosa que chegava a este ponto por uma rota diferente da que haviam percorrido. Era a estrada de terra batida destinada ao percurso dos bombeiros em casos de fogo na mata, e seguiram-na até o cume, onde terminava numa torre de incêndio que no mapa era indicada por um triângulo vermelho.

Construída numa ribanceira larga, a torre — uma estrutura formidável em madeira empapada em creosoto — erguia- se a partir de uma base de doze metros quadrados. Estreitava-se à medida que subia, e tinha no topo um pavimento aberto.

No centro do pavimento havia um posto de observação fechado e dotado de janelas amplas.

O solo aqui era pedregoso e alcalino, de modo que as árvores mais impressionantes tinham apenas trinta metros de altura, um pouco mais de metade do tamanho de muitos dos mastodontes que abundavam nas ladeiras mais baixas. Com seus 45 metros, a torre erguia-se bem acima das árvores.

As escadas em ziguezague ficavam no centro da armação aberta, subindo por dentro da torre ao invés de circulando o exterior. Fora alguns degraus afundados e uns trechos onde faltava o corrimão, a escada estava em boas condições. Ainda assim, Júnior foi tomado por uma inquietação logo depois de subir dois lances de escada. Não foi capaz de identificar a causa de sua preocupação, mas seus instintos avisaram-lhe que ficasse alerta.

Como o outono e o inverno tinham sido chuvosos, o risco de incêndio era pequeno, e no momento não havia ninguém na torre. Além de sua função mais séria, a estrutura também servia como uma plataforma de observação para qualquer pessoa determinada o bastante para alcançá-la.

Os degraus rangeram. Os passos e a respiração do casal ecoaram roucos pelo espaço semi-enclausurado, assim como sua respiração pesada. Nenhum desses sons era motivo para alarme, mas mesmo assim...

Enquanto Júnior ascendia atrás de Naomi, os espaços cuneiformes entre as vigas cruzadas se estreitavam, impedindo a entrada da luz do dia. O espaço debaixo da plataforma da torre ficou sombrio, embora jamais escurecido a ponto de requerer uma lanterna.

O odor penetrante do creosoto agora misturava-se ao aroma de limo ou fungo, nenhum dos quais deveria existir na presença da madeira tratada com um piche tão pungente.

Júnior parou para olhar a escada abaixo deles, através do trançado de sombras, quase esperando descobrir alguém subindo furtivamente atrás deles. Até onde sua vista alcançava, eles não tinham sido seguidos.

Apenas as aranhas faziam-lhes companhia. Ninguém passava por aqui há semanas, se não há meses, e repetidamente eles depararam com teias de desenhos intrincados. Como o ectoplasma frio e frágil de espíritos conjurados, a arquitetura aracnídea premia-se contra seus rostos, e logo havia tanta teia presa às suas roupas que mesmo na penumbra eles começaram a parecer mortos erguendo-se de sepulturas.

À medida que o diâmetro da torre encolheu, os degraus apareceram escarpados e em intervalos mais curtos, finalmente terminando numa plataforma a apenas dois ou três metros acima do piso da plataforma de observação. Dali, uma escada subia até um alçapão aberto.

Júnior seguiu sua esposa ágil até o topo da escada e através do alçapão, e ao entrar na plataforma de observação teria perdido o fôlego com a vista dali, se já não estivesse arfando devido à subida. Dali, quinze andares acima do ponto mais alto da ribanceira e cinco andares sobre as árvores mais altas, o casal divisava um mar verde estendendo-se até sumir no leste enevoado, de onde desceria rumo ao mar verdadeiro, alguns quilómetros a oeste.

— Eno, é espetacular! — exclamou Naomi.

Eno era o apelido pelo qual ela o tratava. Ela não gostava de chamá-lo Júnior, como todo mundo fazia, e ele não permitia que ninguém o chamasse de Enoch, que era o seu verdadeiro nome. Enoch Caim Jr.

Bem, todo mundo carregava uma cruz. Pelo menos não tinha nascido com uma corcunda e um terceiro olho.

Depois de limpar as teias de aranha um do outro e lavar as mãos com a água que traziam nas garrafas, comeram. Sanduíches de queijo e um pouco de frutas secas.

Enquanto comiam, circularam o posto de observação mais de uma vez, desfrutando da vista magnífica. Durante o segundo circuito, Naomi tocou a madeira do corrimão e descobriu que alguns dos suportes estavam podres.

Ela não colocou seu peso sobre o corrimão, e portanto não correu risco de cair. As estacas cederam para fora, uma delas começou a rachar, e Naomi imediatamente recuou da borda da plataforma e alcançou a segurança.

Não obstante, Júnior ficou tão tenso que quis descer da torre imediatamente e terminar o almoço em chão sólido. Estava tremendo, e a secura em sua boca não era causada pelo queijo.

O próprio Júnior estranhou o tremor que ouviu em sua voz:

— Quase perdi você.

— Eno, não foi nem perto.

— Mas perto demais, perto demais.

Ele não transpirara ao subir a torre, mas agora sentia o suor correr pela fronte. Naomi sorriu. Usou seu guardanapo de papel para enxugar a fronte úmida do marido.

— Você é um amor. Também te amo.

Ele a abraçou com força. Era gostoso senti-la nos braços. Era precioso.

— Vamos descer — insistiu.

Soltando-se do abraço do esposo, dando uma mordida em seu sanduíche, conseguindo ser bela mesmo enquanto falava de boca cheia, Naomi disse:

— Bem, não podemos descer até vermos o quanto o problema é ruim. ;?

— Que problema?

— O do corrimão. Talvez essa seja a única seção perigosa, mas talvez a coisa inteira esteja podre. Precisaremos saber a extensão do problema quando voltarmos à civilização e ligarmos para a guarda florestal para relatar isto.

— Por que simplesmente não deixamos que eles chequem o resto? Sorrindo, ela segurou o lóbulo esquerdo da orelha do marido e o puxou.

— Dim-dom! Alguém em casa? Estou fazendo uma pesquisa para saber quem conhece o significado da expressão responsabilidade cívica.

Ele a fitou com uma expressão preocupada e retrucou:

— Talvez apenas o telefonema já seja responsabilidade suficiente.

— Quanto mais informação tivermos, mais credibilidade teremos, e quanto mais credibilidade tivermos, menor será a chance de eles pensarem que somos dois moleques passando um trote.

— Isto é loucura.

— Psicopatia ou esquizofrenia?

— Hein?

— Se é loucura, quero saber de que tipo. — Tendo terminado seu sanduíche, lambeu os dedos. — Pense nisso, Eno. E se alguma família subir aqui com os seus filhos?

Júnior não conseguia negar nada que Naomi quisesse, em parte porque ela raramente queria qualquer coisa para si.

A plataforma em torno do posto de observação fechado tinha cerca de três metros de largura. Parecia sólida e segura de pisar. Os problemas estruturais restringiam-se ao corrimão.

— Muito bem — concordou ele, relutante. — Mas vou checar o corrimão. Você fica encostada na parede, onde é seguro.

Abaixando a voz e falando num grunhido neandertal, ela disse:

— Homem luta com tigre feroz. Mulher assiste.

— É apenas a ordem natural das coisas.

— Homem diz que é ordem natural — disse Naomi, ainda grunhindo. — Para mulher, é apenas entretenimento.

— É sempre uma satisfação diverti-la, madame.

Enquanto Júnior seguia o corrimão, testando-o cuidadosamente, Naomi manteve-se atrás dele, — Cuidado, Eno.

A madeira maltratada pelo clima era áspera. Ele estava mais preocupado com farpas do que em cair. Permaneceu à distância de um braço da borda da plataforma, movendo-se lentamente, balançando repetidamente o corrimão, procurando por suportes soltos ou podres.

Alguns minutos depois, completaram um circuito completo pela plataforma, retornando ao lugar onde Naomi descobrira a madeira podre.

— Satisfeito? — perguntou. — Vamos descer.

— Claro, mas primeiro vamos acabar de almoçar. — Ela havia tirado da sua mochila um saco de damascos secos.

— Acho que devíamos descer — insistiu. Enfiando dois damascos secos na mão dele:

— Ainda não estou saciada com esta vista. Não seja estraga-prazeres, Eno. Agora sabemos que estamos seguros.

— Está bem — rendeu-se. — Mas mesmo assim não se apoie no corrimão.

— Você seria uma mãe maravilhosa para alguém.

— Seria sim, mas a criança ia ter dificuldade de mamar do meu peito.

Circularam novamente a plataforma, parando de vez em quando para observar o panorama espetacular, e a tensão de Júnior rapidamente voltou. Mas, como sempre, a companhia de Naomi foi tranquilizadora.

Ela lhe deu um damasco na boca. Ele lembrou da festa de seu casamento, quando tinham dado fatias de bolo nas bocas um do outro. A vida com Naomi era uma lua-de-mel permanente.

Acabaram retornando à parte do corrimão que quase ruíra sob as mãos de Naomi.

Júnior empurrou sua esposa com tanta força que quase a levantou do chão. Naomi arregalou os olhos e deixou cair da boca aberta um pedaço de damasco. Bateu de costas contra a parte frágil do corrimão.

Por um instante, Júnior pensou que a balaustrada não cederia, mas os suportes partiram, o corrimão rangeu, e Naomi caiu de costas da plataforma de observação, em meio a um crepitar de madeira podre. Ficou tão surpresa que não começou a gritar antes de estar a um terço do percurso de sua longa queda.

Júnior não a ouviu atingir o chão, mas o cessar abrupto do grito confirmou o impacto.

Ele próprio estava surpreso. Não acreditara que seria capaz de assassinato a sangue-frio, especialmente no afã do momento, sem tempo para analisar os riscos e os benefícios potenciais de um ato tão drástico.

Depois de recuperar a respiração e se parabenizar por sua incrível audácia, Júnior atravessou a plataforma até a parte quebrada do corrimão. De uma distância segura, ele se inclinou e olhou para baixo.

Estava tão pequenina, um pontinho pálido em meio ao terreno escuro de mato e pedras. De costas. Uma perna curvada debaixo dela num ângulo impossível. Braço direito paralelo a um lado do corpo, braço esquerdo estendido para cima como se estivesse acenando. Uma nuvem radiante de cabelos dourados envolvendo sua cabeça.

Ele a amava tanto que mal conseguia olhar para ela. Deu as costas para a balaustrada, atravessou a plataforma e se sentou de costas para a parede do posto de observação.

Durante algum tempo chorou descontrolado. Ao perder Naomi, perdera mais do que uma esposa, mais que uma amiga e amante, mais que uma alma gémea. Perdera uma parte de seu próprio ser físico. Estava oco por dentro, como se sua carne e seus ossos tivessem sido arrancados de dentro dele e substituídos por um vácuo negro e frio. Foi trespassado por emoções de horror e desespero, e atormentado por pensamentos de autodestruição.

Mas, de repente, ele se sentia melhor.

Não bem, mas definitivamente melhor.

Naomi deixara cair o saquinho de damascos secos antes de ser arremessada da torre. Engatinhou até o saquinho, extraiu um pedaço de fruta e mastigou lentamente, saboreando a fruta seca. Era doce.

Um pouco mais tarde deitou de bruços e se arrastou até a brecha na balaustrada, de onde olhou diretamente para baixo, na direção de seu amor perdido. Naomi estava precisamente na mesma posição em que a vira pela última vez.

Claro, ele não esperava vê-la dançando. Uma queda de quinze andares certamente esmagaria qualquer vontade de dançar.

Desta altura não conseguia ver sangue. Tinha certeza de que algum sangue devia ter-se esparramado.

O ar estava parado, sem uma brisa sequer. Os pinheiros mantinham-se tão imóveis quanto aquelas cabeças de pedra misteriosas que fitavam o mar na ilha de Páscoa.

Naomi morta. Tão viva há apenas alguns instantes. Inimaginável.

O céu tinha agora o mesmo tom opaco de azul que aquele conjunto de chá que sua mãe havia tido. Nuvens ajuntavam-se a leste, como creme coagulado. Amanteigado, o sol.

Com fome, comeu outro damasco.

Não havia gaviões no céu. Nenhum movimento visível em qualquer parte.

-, Lá embaixo, Naomi permanecia morta.

Como a vida era estranha. Como era frágil. Você jamais sabe que acontecimento extraordinário o espera na próxima esquina.

O choque de Júnior deu lugar a um senso profundo de admiração. Durante a maior parte de sua vida jovem, ele compreendera que o mundo era profundamente misterioso, governado pelo destino. Agora, devido a esta tragédia, compreendia que a mente e o coração do homem não eram menos enigmáticos que o resto da criação.

Quem imaginaria que Caim Júnior seria capaz de um ato tão repentino e violento?

Ninguém. Nem mesmo Naomi.

Na verdade, nem mesmo o próprio Júnior. Como ele amara ardorosamente essa mulher. Como a quisera bem. Pensara que não conseguiria viver sem ela.

Pensara errado. Naomi lá embaixo, ainda muito morta, e ele aqui em cima, vivo. Seu breve impulso suicida havia passado, e agora sabia que de algum modo conseguiria sobrepujar esta tragédia, que a dor acabaria diminuindo, que o sentimento de perda seria suavizado pelo tempo, e que um dia ele amaria outra pessoa.

Ainda assim, a despeito de sua dor e angústia, há muito tempo ele não via o futuro com tanto otimismo, interesse e empolgação. Se ele tinha sido capaz disto, então era diferente do homem que sempre se imaginara ser. Um homem mais complexo, mais dinâmico. Uau.

Suspirou. Por mais tentador que fosse ficar aqui, olhando para Naomi morta, sonhando com um futuro mais ousado e colorido do que aquele que imaginara antes, Júnior tinha muito a fazer antes do final da tarde. Durante algum tempo a sua vida seria trabalhosa.

 

Através do vitral em padrão de rosas na porta da frente, de onde vinha o som da campainha, Joe viu Maria Gonzalez: pintada em vermelho aqui e em verde ali, lisa em alguns locais e rugosa noutros, o rosto um mosaico de desenhos de pétalas e folhas.

Quando Joey abriu a porta, Maria cumprimentou-o com um meneio de cabeça, manteve os olhos baixos e disse:

— Devo ser Maria Gonzalez.

— Sim, Maria, sei quem você é — disse ele, como sempre encantado com a timidez de Maria e com sua luta para dominar a língua inglesa.

Joe deu um passo para trás e manteve a porta aberta, mas Maria permaneceu em pé na varanda.

— Verei a sra. Agnes.

— Sim, é isso mesmo. Por favor, entre.......

Ela ainda hesitava.

— Para o inglês.

— Ela tem muito disso. Tem tanto que às vezes até me deixa zonzo. Maria franziu a testa; ainda não dominava suficientemente a nova linguagem

para entender a piada.

Temendo que ela pensasse que estivesse zombando dela, Joe disse no tom mais honesto possível:

— Maria, entre, por favor. Mi casa es su casa.

Ela olhou para Joe, e então rapidamente desviou o olhar.

Sua timidez apenas em parte se devia à vergonha. Outra parte era cultural. Ela pertencia àquela classe social, no México, que jamais travava contato visual direto com qualquer um a quem considerasse um patrón.

Ele queria dizer-lhe que estavam nos Estados Unidos, onde ninguém precisava abaixar a cabeça para ninguém, onde a classe em que uma pessoa nascia não era uma prisão, mas uma porta aberta, um ponto de partida. Esta era sempre a terra do amanhã.

Considerando o tamanho de Joe, seu rosto rude, e sua tendência a se revoltar ao ver alguma injustiça ou seus efeitos, qualquer coisa que ele dissesse a Maria sobre sua humildade excessiva pareceria um sermão. Ele não queria retornar à cozinha para informar Aggie que havia afugentado a sua aluna.

Durante um momento constrangedor, ele pensou que eles permaneceriam nesse impasse — Maria olhando os próprios pés, Joe olhando para o topo da cabeça de Maria — até que algum anjo soprasse a trombeta do Apocalipse e os mortos se levantassem de suas tumbas para a glória.

Então um cachorro invisível, na forma de um pé-de-vento súbito, atravessou a varanda, atingindo Maria com sua cauda. Farejou o vão da porta e, arfante, adentrou a casa, trazendo a mulherzinha acastanhada atrás de si, como se o segurasse por uma coleira.

— Aggie está na cozinha — disse Joe, fechando a porta.

Maria inspecionou o tapete do corredor tão intensamente quanto examinara o soalho da varanda.

— Pode, por favor, dizer a ela que sou Maria?

— Apenas entre na cozinha. Ela está à espera.

— A cozinha? Sozinha?

— Perdão?

— Entrar sozinha dentro da cozinha?

— Entrar sozinha na cozinha — disse, sorrindo de satisfação por ter entendido o que ela quisera dizer. — Sim, é claro. Você sabe onde fica.

Maria fez que sim com a cabeça, atravessou o corredor até o arco da sala de estar, virou-se e ousou encontrar por um instante os olhos dele.

— Obrigada.

Enquanto observava-a atravessar a sala de estar e desaparecer na sala de jantar, Joe compreendeu o quanto ela estava grata por ele ter confiado que ela não roubaria nada se entrasse desacompanhada.

Evidentemente, ela estava acostumada a ser objeto de suspeita, não por ser indigna de confiança, mas simplesmente por ser Maria Elena Gonzalez, que viajara para o norte vinda de Hermosillo, México, em busca de uma vida melhor.

Embora entristecido pela lembrança do quanto o mundo era estúpido e desprovido de sentido, Joe recusou-se a afundar em pensamentos negativos. Seu primogénito estava a caminho, e dali a alguns anos ele gostaria de lembrar este dia como um tempo maravilhoso, caracterizado inteiramente por uma doce — ainda que tensa — antecipação e pela alegria do nascimento.

Na sala de estar, sentou-se em sua poltrona favorita e tentou ler Com 007 só se vive duas vezes, o último romance com James Bond. Ele não conseguia mergulhar na história. Bond sobrevivera a dez mil ameaças e derrotara centenas de vilões, mas não sabia nada sobre as complicações que poderiam transformar um parto normal numa provação mortal para a mãe e o bebê.

 

Para baixo, para baixo, através das sombras e das teias de aranha estraçalhadas, para baixo através do fedor adstringente de creosoto e do leve cheiro de mofo, Júnior percorreu a escadaria da torre com o máximo de cautela. Se tropeçasse numa tábua solta e caísse e quebrasse uma perna, poderia ficar aqui durante dias, morrendo de sede, infecção, de frio caso a temperatura baixasse, ou atormentado pelos predadores que o encontrassem indefeso à noite.

Caminhar sozinho pela floresta não era uma ideia sensata. Ele sempre confiara no sistema de parceria, compartilhando o risco. Mas a sua parceira tinha sido Naomi, e ele não podia mais contar com ela.

Depois que chegou ao chão, depois que saiu da torre, Júnior correu até a estrada de terra. O carro estava a horas de distância através da rota que eles haviam tomado para chegar aqui, mas talvez a meia hora — no máximo a 45 minutos — se ele retornasse pela estrada de terra.

Depois de uns poucos passos, Júnior parou. Não podia correr o risco de levar as autoridades de volta até o topo daquele desfiladeiro apenas para descobrir que a pobre Naomi, ainda que ferida criticamente, ainda estava viva.

Quarenta e cinco metros de altura, aproximadamente quinze andares, não era uma queda da qual se podia esperar que alguém sobrevivesse. Por outro lado, às vezes milagres aconteciam.

Não milagres no sentido de deuses, anjos e santos metendo-se com os assuntos humanos. Júnior não acreditava nesse tipo de bobagem.

— Mas singularidades surpreendentes acontecem — murmurou, porque ele tinha uma visão incansavelmente científico-matemática da existência, uma visão que aceitava anomalias surpreendentes e mistérios de efeitos mecânicos estarrecedores, mas que não dava espaço para o sobrenatural.

Com mais ansiedade do que parecia razoável, ele circulou a base da torre. O mato alto provocou-lhe cócegas nas panturrilhas nuas. Nesta época do ano não se ouvia o zumbido irritante dos insetos e os mosquitos não tentavam sugar todo o sangue do seu corpo. Lenta, cuidadosamente, ele se aproximou da forma retorcida de sua esposa.

Em quatorze meses de casamento, Naomi jamais levantara a voz para ele, jamais discutira com ele. Ela jamais procurara por uma falha numa pessoa se podia encontrar uma virtude, e era do tipo que podia encontrar virtudes até em pedófilos e em...

Bem, em assassinos.

Ele odiaria descobrir que ela ainda estava viva, porque, pela primeira vez em seu relacionamento, ela certamente estaria magoada com ele. Ela sem dúvida teria palavras duras, talvez amargas. E mesmo se ele pudesse silenciá-la rapidamente, suas lembranças adoráveis daquele casamento estariam manchadas para sempre. Dali em diante, cada vez que ele pensasse em sua dourada Naomi, iria ouvi-la sussurrar acusações, e veria seu rosto belíssimo contorcido e desfigurado pela raiva.

Como seria triste se tantas lembranças felizes fossem estragadas para sempre.

Ele contornou a quina nordeste da torre e viu Naomi caída onde ele esperava que ela estivesse, e não sentada e tirando os pedaços de mato do cabelo, apenas deitada imóvel e distorcida.

Apesar disso, ele parou, relutando aproximar-se mais. Estudou-a a uma distância segura, os olhos, semicerrados devido ao brilho do sol, alertas para o menor movimento. Em meio ao silêncio sem vento, insetos ou vida, ele forçou sua audição, quase esperando que Naomi iniciasse uma de suas canções favoritas — "Somewhere Over the Rainbow" ou "What a Wonderful World" —, mas numa voz fraca, esmagada e atonal, engasgada com sangue e acompanhada por chocalhos de cartilagem quebrada.

Júnior estava se deixando entrar num estado, e sem nenhum motivo razoável. Naomi quase certamente estava morta, mas ele precisava ter certeza, e para ter certeza precisava olhar mais de perto. Não havia como evitar. Ele daria uma olhada rápida e então iria embora, para longe, rumo a um futuro interessante e rico em acontecimentos.

Assim que se aproximou mais, soube por que relutara aproximar-se de Naomi. Ele temera que seu rosto belíssimo estivesse horrendamente desfigurado, rasgado e esmagado.

Júnior era sensível.

Ele não gostava de filmes de guerra ou mistério nos quais as pessoas eram alvejadas por tiros, esfaqueadas ou mesmo discretamente envenenadas, porque o cineasta nunca prosseguia o enredo antes de mostrar o cadáver, como se você não pudesse aceitar a palavra dele de que alguém fora morto. Júnior preferia histórias de amor e comédias.

Certa vez comprara um romance de Mickey Spillane e ficara enojado com a violência incessante. Não teria lido o livro até o fim se não considerasse uma falha de caráter não concluir cada projeto iniciado, mesmo se a tarefa fosse ler um romance repulsivamente sanguinário.

Nos filmes de guerra e suspense, Júnior adorava as cenas de ação. Não era a ação que o incomodava. Ele sentia-se perturbado com as consequências.

Muitos cineastas e romancistas adoravam mostrar as consequências das ações, como se fossem tão importantes quanto as ações em si. Mas a parte divertida era o movimento, a ação, não as consequências. Se você estava acompanhando uma cena de trem desgovernado, não precisava voltar para ver o que acontecera com as freiras desafortunadas, mortas ou vivas; elas tinham perdido toda importância depois que sua porcaria de ônibus havia colidido com o trem. O que importava agora era o trem: não as consequências da ação, mas a ação em si.

Agora, aqui nesta cordilheira ensolarada no Oregon, a quilómetros do trem mais próximo e ainda mais distante de qualquer freira, Júnior aplicou esta visão artística à sua própria situação, superando a sensibilidade e voltando a se concentrar na ação. Ele se aproximou da esposa caída, parou diante dela, fitou seus olhos fixos e disse:

— Naomi?

Júnior não soube por que dissera o nome da esposa, pois bastara olhar seu rosto pela primeira vez para ter certeza de que ela estava morta. Ele detectou um tom melancólico em sua voz, e supôs que já começava a sentir falta dela.

Se os olhos de Naomi tivessem se movimentado em resposta à voz do marido, se ela tivesse piscado em reconhecimento a ele, Júnior talvez não tivesse ficado inteiramente insatisfeito, dependendo das condições de sua esposa. Paralisada do pescoço para baixo e sem impor nenhuma ameaça física, o cérebro danificado a ponto de não poder falar ou escrever, ou comunicar sob qualquer meio à polícia o que acontecera, mas ainda com a maior parte de sua beleza intacta, ela ainda poderia ser capaz de enriquecer a vida de Júnior em muitos aspectos. Sob as circunstâncias certas, com a doce Naomi tão gloriosamente atraente quanto sempre mas incapaz e indefesa como uma boneca, Júnior ficaria feliz em dar-lhe um lar... e carinho.

E por falar de ação sem consequências!

Contudo, ela estava tão morta quanto um sapo esmagado por um caminhão, e agora não lhe despertava mais interesse do que um ônibus cheio de freiras beijadas por um trem.

Incrivelmente, o rosto de Naomi estava tão belo quanto de costume. Tinha aterrissado de costas, de modo que o dano fora causado principalmente à espinha e à nuca. Júnior não queria pensar em como deveria estar a parte posterior do crânio de Naomi; felizmente, seus cabelos dourados abundantes ocultavam a verdade. Suas feições faciais estavam levemente distorcidas, o que sugeria uma ruína maior por trás, mas o resultado não era triste ou grotesco: de fato, a distorção concedia-lhe o sorriso malicioso de uma mulher sedutora, com os lábios entreabertos de quem acabara de dizer alguma coisa maravilhosamente espirituosa.

Júnior esteve intrigado com o fato de que poucos rastros de sangue manchavam o leito de pedra de sua esposa, até compreender que ela morrera instantaneamente com o impacto. Interrompido tão abruptamente, seu coração não bombeara sangue para fora de seus ferimentos.

Ele se ajoelhou ao lado dela e gentilmente tocou seu rosto. Sua pele ainda estava levemente quente.

Sempre o sentimental, Júnior deu-lhe um beijo de adeus. Apenas um. Carinhoso, mas apenas um, e sem nenhum envolvimento de língua.

Então retornou até a trilha de terra e seguiu para o sul a passos lépidos. Quando alcançou a primeira curva da estrada estreita, parou para olhar para trás, na direção do topo da cordilheira.

A torre alta imprimia no céu sua geometria ameaçadoramente negra. A floresta ao redor parecia encolher-se ao redor da torre, como se a natureza tivesse decidido não mais abraçar a estrutura.

Acima e a um lado da torre, três corvos haviam aparecido, como que por geração espontânea. Eles circulavam o local onde Naomi caíra como a Bela Adormecida, beijada mas não despertada.

Corvos são comedores de carniça.

Lembrando a si próprio que era a ação que importava, não as consequências, Caim Júnior retomou sua jornada pela trilha. Agora marchava mais devagar, cantando em voz alta como os fuzileiros faziam enquanto corriam nos grupos de treinamento; mas como não conhecia nenhum cântico dos fuzileiros, resmungava a letra de"Somewhere Over the Rainbow" sem melodia, aproximadamente no mesmo ritmo que suas passadas, a caminho não das montanhas de Montezuma ou das praias de Tripoli, mas de um futuro que agora prometia ser rico em experiências extraordinárias e surpresas infinitas.

 

DESCONTANDO OS EFEITOS da gravidez, Agnes era uma mulher pequena, e Maria Elena Gonzalez era ainda menor. Ainda assim, sentadas frente a frente na mesa da cozinha, as duas jovens mulheres, de mundos muito diferentes mas de personalidades notavelmente semelhantes, discordando quanto ao pagamento pelas lições de inglês, travavam um duelo quase tão monumental quanto o atrito de duas placas tectónicas nas profundezas da costa da Califórnia. Maria estava determinada a pagar em dinheiro ou em serviços. Agnes insistia em que as lições eram um ato de amizade, e nenhuma compensação se fazia necessária.

— Não vou roubar uma amiga — proclamou Maria.

— Você não está tirando vantagem de mim, querida. Eu me divirto tanto ensinando e vendo-a melhorar, que eu, sim, deveria pagar a você.

Maria fechou seus grandes olhos de ébano e respirou fundo, movendo os lábios sem fazer um som, revisando alguma frase importante que ela queria dizer corretamente. Abriu os olhos.

— Estou agradecendo à Virgem Maria e a Jesus por cada noite em que você tem estado em minha vida.

— Isso é muito gentil, Maria.

— Mas estou comprando o inglês — disse ela com firmeza, deslizando três notas de um dólar sobre a mesa.

Três dólares davam para uma dúzia de ovos ou doze pães franceses, e Agnes jamais tiraria comida da boca de uma mulher pobre e suas filhas. Ela empurrou o dinheiro sobre a mesa até Maria.

Mandíbulas cerradas, lábios premidos com força, olhos estreitados, Maria empurrou o dinheiro de volta para Agnes.

Ignorando o pagamento oferecido, Agnes abriu um livro didático.

Maria virou-se de lado em sua cadeira, afastando-se dos três dólares e do livro. Olhando para a nuca da amiga, Agnes disse:

— Você é impossível.

— Errado. Maria Elena Gonzalez é real.

— Não foi isso que eu quis dizer, e você sabe disso.

— Não sei nada. Sou uma mexicana burra.

— Burra é a última coisa que você é.

— Agora eu sou sempre burra, sempre com meu inglês mau.

— Inglês ruim. O seu inglês não é mau, apenas ruim.

— Então você ensina.

— Não por dinheiro.

— Não de grátis.

Durante alguns minutos elas permaneceram sentadas ali sem se mover. Maria de costas para a mesa, Agnes fitando frustrada a nuca de Maria e tentando forçá-la pelo poder do pensamento a virar-se novamente e ser razoável.

Finalmente, Agnes se levantou. Uma leve contração gerou um cinturão de dor em torno de suas costas e barriga, e ela se encostou contra a mesa até o desconforto passar.

Sem dizer uma só palavra, serviu uma xícara de café e a colocou diante de Maria. Ela colocou um biscoito de passas caseiro num prato e o pousou ao lado da xícara de café.

Maria bebericou o café enquanto se mantinha sentada de lado na cadeira, ainda de costas para as três notas gastas de um dólar.

Agnes saiu da cozinha pelo corredor, através da porta de vaivém, em vez de pela sala de jantar, e quando passou pelo arco da sala de estar Joey explodiu de sua poltrona, largando no chão o livro que estivera lendo.

— Ainda não está na hora — disse, caminhando até as escadas.

— E se você estiver errada?

— Confie em mim, Joey, vou ser a primeira a saber. Enquanto Agnes subia, Joey correu atrás dela e perguntou:

— Para onde você está indo?

— Lá pra cima, tolinho.

— O que vai fazer?

— Destruir algumas roupas.

— Ah, sim.

Agnes pegou uma tesoura de unha no banheiro da suite, tirou uma blusa vermelha do armário e sentou-se na beira da cama. Virou a blusa pelo avesso e usou as lâminas pequenas e afiadas para puxar cuidadosamente os fios, desfazendo vários pontos de costura logo abaixo da gola, arruinando todo o franzido da frente.

Do armário de Joey extraiu um velho blazer azul que ele raramente usava. O forro estava caído, puído e meio podre. Ela o arrancou. Com as tesourinhas, abriu as ombreiras e expôs o enchimento.

À crescente pilha de farrapos acrescentou um dos coletes de lã de Joey, depois de arrancar um botão e destacar quase completamente um bolso que já fora costurado. Um par de calças caqui surradas: rapidamente soltou o cós; cortou o canto do bolso da carteira e então arrancou-o com as próprias mãos; desmanchou algumas costuras e soltou toda a bainha da perna esquerda.

Danificou mais coisas de seu marido do que suas, mas apenas porque Joey era um homem grande e meio desajeitado, de modo que era mais fácil acreditar que ele estragava frequentemente suas roupas.

Assim que Agnes pisou no andar térreo, perguntou-se se os danos às calças caqui não haviam sido tão exagerados que causariam suspeitas.

Ao vê-la, Joey saltou novamente de sua poltrona. Desta vez ele conseguiu segurar o seu livro, mas tropeçou na banqueta de apoiar os pés e quase perdeu o equilíbrio.

— Quando você foi atacado pelo cachorro? — perguntou Agnes.

— Cachorro? — perguntou, aturdido. — Que cachorro?

— Foi ontem ou anteontem?

— Não lembro de cachorro nenhum.

Balançando impacientemente as calças caqui na frente do marido, ela disse:

— Então o que causou tanto dano?

Joey fitou tristemente as calças caqui. Embora fossem velhas, elas eram suas preferidas para quando ele fazia consertos gerais na casa durante os fins de semana.

— Ah — disse ele. — Aquele cachorro.

— É um milagre que ele não tenha mordido você.

— Graças a Deus eu estava segurando uma pá — disse Joey.

— Você não acertou o pobre cachorrinho com a pá, acertou?-perguntou Agnes, fingindo decepção.

— Bem, ele estava me atacando, não estava?

— Mas era apenas um filhote de collie. Ele a fitou de testa franzida.

— Pensei que fosse um cachorro grande.

— Não, não, querido. Foi a pequena Muffin, do vizinho do lado. Um cachorro grande certamente teria rasgado as calças e você também. Precisamos de uma história crível.

— A Muffin é uma cadelinha tão fofinha... ., ;

— Mas a raça dela é nervosa, meu bem. Quando a raça do cachorroé nervosa, a gente nunca sabe o que pode fazer.

— Acho que tem razão.

— E apesar de ter atacado você, a pequena Muffin é uma coisinha adorável. O que Maria vai pensar de você se disser que acertou a cachorrinha com uma pá?

— Eu estava lutando pela minha vida, não estava?

— Ela vai pensar que você é cruel.

— Eu não disse que acertei a cadela.

Abrindo um sorriso e inclinando a cabeça para o lado, Agnes fitou-o, aguardando para ver o que ele ia dizer.

Confuso, Joey olhou para o chão, mudou seu peso de um pé para o outro, voltou sua atenção para o teto, e mudou o peso novamente, aparentando ser um urso treinado que não conseguia lembrar como fazer seu truque seguinte. Finalmente, disse:

— E se peguei a pá, cavei um buraco realmente rápido, e enterrei a Muffin até o pescoço... apenas até ela se acalmar?

— Essa é a sua história, hein? .......

— E vou ficar com ela.

— Bem, graças a Deus o inglês da Maria é tão mau.

— Você não poderia simplesmente aceitar o dinheiro? — perguntou ele.

— Claro. Ou talvez eu pudesse dar uma de Rumpelstiltskin e exigir um dos filhos dela como pagamento.

— Eu gostava daquelas calças.

Enquanto lhe dava as costas e seguia pelo corredor na direção da cozinha, Agnes disse:

— Estarão como novas depois que ela as tiver remendado.

— E esse aí é o meu colete cinza? — disse Joey para as costas da esposa. — O que você fez com o meu colete cinza?

— Se você não se acalmar, jogo ele no fogo.

Na cozinha, Maria estava mordiscando biscoito de passas.

Agnes largou as roupas danificadas numa das cadeiras da cozinha.

Depois de limpar os dedos num guardanapo de papel, Maria examinou as roupas com interesse. Ela ganhava a vida como costureira na lavanderia Bright Beach. Ao ver cada costura desfeita, cada botão caído, ela estalava a língua.

— Joey é descuidado com suas roupas — justificou Agnes.

— Homens! — lamentou Maria.

Rico, o marido dela — alcoólatra e jogador inveterado —, fugira com outra mulher, abandonando Maria e as duas filhas pequenas. Sem a menor sombra de dúvida, ele tinha partido usando um conjunto de roupas limpo, perfeitamente passado, impecavelmente costurado.

A costureira levantou a calça caqui e soergueu as sobrancelhas.

Sentando-se numa cadeira à mesa, Agnes explicou:

— Ele foi atacado por um cachorro. Maria arregalou os olhos.

— Pit buli? Pastor alemão?

— Filhote de collie.

— Que cachorro esse?

— Muffin. Você sabe, a cadela do vizinho do lado.

— Aquela cachorrinha Muffin fez isto?

— É uma raça nervosa.

— Qué?

— A Muffin estava mal-humorada.

— Qué?

Agnes estremeceu. Mais uma contração. Leve, mas perto demais da última. Colocou as mãos sobre a barriga imensa e respirou lenta e profundamente até a dor passar.

— Bem, de qualquer modo — disse ela, como se a violência incomum de Muffin tivesse sido explicada adequadamente —, estes reparos devem cobrir mais dez lições.

O rosto de Maria franziu como um pedaço de pano marrom costurado numa série de chuleios.

— Seis lições.

— Dez.

— Seis.

— Nove.

— Sete.

— Nove.

— Oito.

— Combinado — disse Agnes. — Agora guarde os seus três dólares e vamos terminar a lição antes que a minha bolsa de água arrebente.

— Água pode arrebentar? — perguntou Maria, olhando para a torneira da pia. Suspirou. — Meu Deus, ainda tenho que aprender tanta coisa!

 

NUVENS COBRIAM O SOL do fim da tarde, e o céu do Oregon estava com uma cor de safira nos pontos em que ainda aparecia. Policiais aglomeravam-se como corvos de olhos brilhantes à sombra comprida da torre de incêndio.

Como a torre ficava numa ribanceira que marcava a divisa entre o condado e as terras estaduais, a maioria dos agentes da lei ali reunidos era do condado, mas dois policiais estaduais também estavam presentes.

Com os policiais uniformizados estava um homem atarracado, no fim da casa dos quarenta, usando calças pretas e um paletó esportivo. Suas feições pareciam ter sido socadas para dentro, seu primeiro queixo era fraco, seu segundo queixo mais firme que o primeiro, e sua função era ignorada por Júnior. Ele seria o homem com menos chances de ser notado numa convenção de dez mil pessoas sem traços bonitos, não fosse pela marca de nascença que cercava o olho direito, escurecendo a maior parte do osso do nariz, deixando iluminada metade da fronte, e circulando o olho para manchar a parte superior da bochecha.

Entre eles, as autoridades falavam quase sempre em murmúrios. Ou talvez Júnior estivesse distraído demais para ouvi-los claramente.

Ele estava tendo dificuldade em focar sua atenção no problema imediato. Através de sua mente, pensamentos estranhos e desconexos rolavam como as ondas lentas e calmas do olho de um furacão em meio a um mar turbulento.

Algumas horas antes, depois de marchar pela estrada de terra e chegar ofegante ao seu Chevy, Júnior correra até Sprice Hills, a cidade mais próxima, e durante o percurso caíra em espirais rumo à condição estranha na qual se encontrava agora. Ele começara a dirigir tão erraticamente que patrulheiros tentaram detê-lo, mas a essa altura encontrava-se a um quarteirão do hospital, e decidido a só parar lá. Percorrera a via de entrada do hospital sem desacelerar, subira no meio fio, quase se chocando com um carro estacionado, e deslizara até parar numa zona de estacionamento proibido diante da entrada de emergência. Saltara do carro capengando como um bêbado e gritando para o policial trazer uma ambulância, trazer uma ambulância!

No percurso de volta até a cordilheira, sentado no banco da frente de um carro-patrulha ao lado de um policial do condado, com uma ambulância e outros carros de polícia atrás deles, Júnior tremera inconsolavelmente. Quando tentara responder às perguntas do policial sua voz saíra distorcida, e ele fora capaz apenas de grasnar, repetidamente:

— Ó Deus, Deus Todo-poderoso.

Quando a rodovia atravessara uma ravina sem sol, Júnior começara a suar compulsivamente ao ver lampejos da silhueta da torre através das brechas entre as árvores. De vez em quando a sirene gritara para limpar o tráfego à frente, e ele sentira o impulso de gritar com ela, de permitir escapar um uivo de terror, angústia, confusão, perda.

Contudo, reprimira o grito, porque sentira que se desse voz a ele não conseguiria ser capaz de silenciar-se por muito, muito tempo.

Ao sair do carro apinhado de gente para o ar puro, mais gelado do que quando saíra deste lugar, Júnior mantivera-se parado em pé, inquieto, enquanto os policiais e enfermeiros se reuniam ao redor dele. Em seguida eles o conduziram através do mato até Naomi, movendo-se hesitantemente, tropeçando em pedras pequenas que os outros venciam com facilidade.

Durante todo o tempo Júnior tivera a consciência de parecer tão culpado quanto o homem que mordera a primeira maçã no primeiro jardim. O suor, os espasmos de tremores violentos, o tom defensivo que não conseguia afugentar da voz, a incapacidade de olhar qualquer pessoa nos olhos por mais de alguns segundos — indícios que nenhum daqueles profissionais deixaria de notar. Ele tentara desesperadamente manter o autocontrole, mas em vão.

Agora estava mais uma vez diante do corpo de sua esposa.

O livor mortis já havia se instalado, com o sangue sendo drenado para as partes mais baixas de seu corpo, deixando as frentes das pernas nuas, um lado de cada braço e o rosto fantasmagoricamente pálidos.

Surpreendentemente, seus olhos mortos ainda estavam limpos. Era incrível que o impacto não tivesse causado uma hemorragia em cada um dos seus belos olhos azuis-lavanda. Nenhum sangue, apenas surpresa.

Júnior sabia que todos os tiras estavam analisando-o enquanto ele olhava para o cadáver, e tentou imaginar como um marido inocente agiria ou o que diria, mas a sua imaginação não funcionou. Seus pensamentos não podiam ser

organizados.

Sua turbulência interna ficou mais forte, e o reflexo exterior tornou-se ainda mais óbvio. No ar frio do fim da tarde, Júnior transpirava tão profusamente quanto um homem que acabara de ser amarrado à cadeira elétrica. Tremia sem parar, e tinha quase certeza de poder ouvir seus ossos baterem uns nos outros como as cascas de muitos ovos cozidos numa panela pequena.

Como ele imaginara que poderia escapar disto? Ele devia ter surtado, perdido temporariamente a sanidade.

Um dos enfermeiros ajoelhou-se ao lado do cadáver, checando o pulso de Naomi, embora nessas circunstâncias sua ação fosse de uma formalidade que ultrapassava os limites da razão.

Alguém parou ao lado de Júnior e disse:

— Mais uma vez, como foi que aconteceu?

Ele levantou os olhos para fitar o homem atarracado com a marca de nascença. Os olhos dele eram cinzentos, duros como cabeças de prego, mas cristalinos e surpreendentemente belos naquele rosto desafortunado.

A voz do homem ecoou oca nos ouvidos de Júnior, como se estivesse vindo do outro lado de um túnel. Ou do fundo de um corredor da morte, no final da longa caminhada entre a última refeição e a sala de execução.

Júnior inclinou a cabeça para trás e olhou para cima, na direção da plataforma de observação, onde a balaustrada havia arrebentado.

Ele soube que os outros fizeram o mesmo.

Todos estavam calados. O dia estava silente como um necrotério. Os corvos tinham voado para o céu, mas um único gavião pairava bem acima da torre, como a justiça mantendo mira sobre sua presa.

— Ela. Estava comendo. Damascos secos. — Júnior falou quase num sussurro, mas a cordilheira estava tão silenciosa que sem dúvida todos aqueles jurados uniformizados, mas não oficiais, puderam ouvi-lo claramente. — Caminhando. Ao redor da plataforma. Parou. A vista. Ela se debruçou. Caiu.

Abruptamente, Caim Júnior deu as costas para a torre, para o cadáver de seu amor perdido. E, deixando-se cair de joelhos, vomitou. Vomitou mais explosivamente do que nunca, por força do pior enjoo que sentira em toda sua vida. Amargo, grosso, absurdamente desproporcionado em vista do almoço simples que comera, Júnior expeliu um vómito terrivelmente fétido. Não sentia náusea, mas seus músculos abdominais contraíam-se dolorosamente, com tanta força que temeu ser dobrado em dois. E aquilo continuou, continuou sem parar, espasmo após espasmo, até ele começar a expelir um líquido fino e esverdeado pela bile, que certamente era o fim, mas não foi, porque aqui vinha mais bile, tão ácida que suas gengivas arderam ao contato com ela, e depois de uma breve pausa começou a sair — Meu Deus, por favor, não — uma coisa ainda mais terrível.

Seu corpo inteiro estava em convulsão. Engasgou ao aspirar alguma coisa fétida. Apertou os olhos lacrimosos para não ver o líquido que desaguava de sua garganta, mas não conseguiu bloquear o fedor.

Um dos enfermeiros tinha parado ao seu lado para premir uma mão fria contra sua nuca. Agora este homem gritou para alguém:

— Kenny! Temos uma hematêmese aqui!

Passos correndo na direção da ambulância. Aparentemente, Kenny, o segundo enfermeiro.

Para tornar-se um fisioterapeuta, Júnior aprendera mais do que lições de massagem. Assim, ele sabia o que hematêmese significava. Hematêmese: vómito de sangue.

Abrindo os olhos, deixando cair lágrimas enquanto contrações ainda mais agonizantes dobravam o seu abdómen, ele viu fitas vermelhas em meio à gosma esverdeada que saíra dele. Vermelho vivo. Suco gástrico seria preto. Isto devia ser sangue da faringe. A não ser que uma artéria tivesse se rompido em seu estômago, rasgada pela violência incrível desses espasmos intransigentes, caso em que ele estava vomitando a sua vida.

Ele se perguntou se o gavião havia descido num giro constritor, a justiça caindo sobre sua cabeça, mas ele não tinha como levantar a cabeça para ver.

Agora, sem compreender quando acontecera, ele havia sido levantado da posição de joelhos e deitado sobre seu lado direito. A cabeça foi elevada e inclinada por um dos enfermeiros. Assim ele podia expelir a bile, o sangue, em vez de engasgar com tudo.

A dor na barriga era extraordinária e vinha em espasmos mortais. Ondas antiperistálticas atravessavam duodeno, estômago e esôfago, e agora ele arfava desesperadamente por ar entre cada expulsão. Mas sem muito sucesso.

Uma umidade fria logo acima da dobra de seu cotovelo esquerdo. Uma ferroada. Um torniquete de borracha flexível fora amarrado em torno de seu braço esquerdo, para deixar uma veia inchar-se mais visivelmente, e a ferroada que sentira fora a introdução de uma agulha hipodérmica.

Tinham lhe dado uma medicação antináuseas. Era provável que não fosse funcionar suficientemente rápido para salvá-lo.

Pensou ter ouvido o sibilar suave de facas cortando o ar de janeiro. Não ousou olhar para cima. Mais em sua garganta. A agonia.

A escuridão encheu a sua cabeça, como se fosse sangue inundando seu estômago e esôfago.

 

TENDO COMPLETADO SUA LIÇÃO de inglês, Maria Elena Gonzalez foi para casa com um saco de compras de plástico cheio de roupas precisamente danificadas e um saco menor, de papel, contendo bolinhos de framboesa para suas duas filhas.

Quando fechou a porta da frente e se virou para o interior da sala, Agnes esbarrou sua barriga inchada em Joey. Ele soergueu as sobrancelhas e colocou as mãos no abdómen distendido da esposa, como se ela fosse mais frágil do que um ovo de rouxinol e mais valiosa que um ovo Fabergé.

— Agora? — perguntou Joey.

— Gostaria de primeiro limpar a cozinha. Implorando:

— Aggie, não.

Ele a fazia lembrar do Urso Preocupado de um livro que Agnes já comprara para a biblioteca do bebê.

O Urso Preocupado carrega preocupações no bolso da calça. Debaixo do chapéu de palha e numa arca sem alça. Carrega preocupações nas costas e debaixo dos braços. Mas todos concordam: esse é um dos seus mais belos traços.

Como as contrações de Agnes estavam ficando mais frequentes e ligeiramente mais severas, ela disse:

— Muito bem, mas antes me deixe dizer a Esaú e Jacó que estamos saindo.

Esaú e Jacó eram os irmãos mais velhos de Agnes, que moravam em dois apartamentos pequenos em cima da garagem para quatro carros nos fundos da propriedade.

— Eu já disse a eles — retrucou Joey, correndo para abrir a porta do armário do corredor com tanta força que ela achou que as dobradiças iriam quebrar.

Joey tirou o casaco de Agnes do armário como se num passe de mágica. E magicamente Agnes descobriu seus braços dentro das mangas e o colarinho em torno do seu pescoço; isso foi surpreendente porque, considerando o tamanho que ela vestia agora, colocar qualquer coisa que não fosse um chapéu geralmente requeria estratégia e persistência.

Quando se virou novamente para Joey, ele já tinha vestido a jaqueta e arrebatado as chaves do carro da mesinha do corredor. Colocou a mão esquerda debaixo do braço direito de Agnes, como se ela estivesse doente e necessitada de apoio, e a arrastou através da porta, para a varanda da frente.

Joey não parou para trancar a casa. Um morador da Bright Beach de 1965 corria o mesmo risco de ser assaltado que de ser atropelado por uma manada de brontossauros.

A tarde estava chegando ao fim, e o céu parecia estar sendo puxado para baixo pelos fios de luz cinzenta que o amarravam ao horizonte. O aroma do ar prometia chuva.

O Pontiac verde-besouro esperava na frente da casa, com um brilho que tentava a natureza a despejar um pouco de tempo ruim. Joey sempre mantinha seu carro impecável, e provavelmente não teria tempo para trabalhar se vivesse num clima prejudicial ao lustre de um carro, em vez de no sul da Califórnia.

— Você está bem? — perguntou enquanto abria a porta do passageiro e a ajudava a entrar no carro.

— Melhor impossível.

— Tem certeza? "

— Estou bem-bem-bem.

O interior do Pontiac tinha um cheiro gostoso de limão, embora não houvesse no espelho retrovisor um daqueles odorizantes de formato brega. Os assentos, tratados regularmente com sabão para couro, estavam mais macios e lustrosos do que quando o carro saíra da fábrica, e o painel de instrumentos reluzia como novo.

Enquanto abria a porta do motorista e se acomodava ao volante, Joey perguntou:

— Está se sentindo bem?

— Saudável como um filhotinho.

— Você parece pálida.

— Tudo dentro de mim está funcionando como um relógio.

— Você está caçoando de mim, não está?

— Com você pedindo tanto para ser caçoado, como posso negar?

No instante em que Joey bateu a porta, uma contração apertou Agnes. Ela fez uma careta, e sugou ar fortemente entre os dentes cerrados.

— Oh, não — disse o Urso Preocupado. — Oh, não!

— Querido, pelo amor de Deus, relaxe. O que estou sentindo não é uma dor comum. É uma dor feliz. A nossa menininha vai estar conosco antes do fim do dia.

— Nosso menininho.

— Confie na intuição da mãe.

— Um pai também tem alguma. — Ele estava tão nervoso que a chave chocalhou interminavelmente contra a ignição antes de, finalmente, ele conseguir inseri-la. — Vai ser um menino, porque assim você sempre terá um homem na casa.

— Está planejando fugir com alguma loura?

Joey não conseguia ligar o carro, porque não parava de tentar girar a chave na direção errada.

— Você entende o que estou dizendo. Vou ficar por aqui ainda durante um bom tempo, mas as mulheres vivem vários anos mais que os homens. As tabelas atuariais não podem estar erradas.

— Sempre o vendedor de seguros.

— Bem, isso é verdade — disse ele, finalmente girando a chave na direção certa e ligando o motor.

— Vai me vender uma apólice?

— Não vendi nenhuma hoje. Preciso ganhar a vida. Você está bem?

— Com medo.

Em vez de conduzir o carro pelo caminho para a rua, ele colocou uma de suas mãos enormes sobre ambas as mãos da esposa.

— Com medo de alguma coisa estar errada?

— Com medo de você bater numa árvore. Ele pareceu magoado.

— Sou o motorista mais responsável de Bright Beach. O estado do meu carro prova isso.

— Não hoje. Se demorar a engatar a marcha tanto quanto demorou para ligar a ignição, a nossa menininha vai estar sentando e dizendo "dá-dá" antes de chegarmos ao hospital.

— Menininho.

— Apenas fique calmo.

— Eu estou calmo — assegurou ele.

Joey soltou o freio de mão e, ao invés de andar para a frente, colocou o carro em ré, afastando-se da rua e seguindo ao largo da casa. Assustado, ele pisou no freio.

Agnes não disse nada antes de Joey ter respirado profunda e lentamente três vezes. Então, apontou para o pára-brisa.

— O hospital fica naquela direção. Ele olhou humildemente para ela.

— Você está bem?

— A nossa menininha vai caminhar de costas a vida inteira se você dirigir em ré até o hospital.

— Se for uma menininha, ela vai ser exatamente como você. Não sei se consigo aguentar duas de vocês.

— Vamos manter você jovem.

Com grande determinação, Joey mudou a marcha e seguiu o caminho até a rua, onde olhou para a direita e para a esquerda com o olhar desconfiado de um fuzileiro perscrutando um território perigoso. Ele virou para a direita.

— Avise ao Esaú para entregar as tortas amanhã de manhã — relembrou-o Agnes.

— Jacó disse que não se importaria em fazer isso uma vez.

— Jacó assusta as pessoas — disse Agnes. — Ninguém comeria uma torta entregue por Jacó antes de testá-la num laboratório.

Gotas de chuva vararam o ar e rapidamente desenharam padrões prateados no pára-brisa.

Ligando os limpadores, Joey disse:

— Esta é a primeira vez que ouço você admitir que pelo menos um dos seus irmãos é esquisito.

— Eles não são esquisitos, querido. Apenas um pouco excêntricos.

— Como água é um pouco molhada.

— Você não se importa dos dois morarem perto da gente, se importa, Joey? — perguntou Agnes, agora com um ar preocupado. — Eles são excêntricos, mas eu os amo muito.

— Eu também — admitiu. Ele sorriu e balançou a cabeça. — Aqueles dois fazem um vendedor de seguros estressado como eu parecer tão despreocupado quanto uma colegial.

— Você está se saindo um excelente motorista, afinal de contas — disse ela, piscando para ele.

Ele era, de fato, um motorista de primeira, com um prontuário notável para um homem na casa dos trinta: nenhuma multa de trânsito, nenhum acidente.

Contudo, a habilidade de Joey atrás do volante e sua cautela inata não o ajudaram quando uma picape Ford ultrapassou em alta velocidade um sinal vermelho, freou cedo demais e se chocou fortemente contra a porta do motorista do Pontiac.

 

EMBALADO COMO SE NAVEGASSE em águas turbulentas, torturado por um som extraterreno e aflito, Caim Júnior imaginou-se numa gôndola num rio negro, uma carranca de dragão plantada em sua proa, como num livro sobre vikings que tinha lido. Neste caso o gondoleiro não era um viking, mas uma criatura alta e envolta num manto negro, seu rosto oculto por um capuz; ele não impulsionava a gôndola com a vara tradicional, mas com o que parecia um cajado montado com ossos humanos. O curso do rio era inteiramente subterrâneo, com um teto de pedra à guisa de céu, e chamas acesas na margem distante, de onde provinha o uivo, um grito carregado com fúria, angústia, e uma necessidade assustadora.

A verdade, como sempre, não era sobrenatural: abriu os olhos e descobriu que estava na traseira de uma ambulância. Evidentemente, a que fora enviada para resgatar Naomi. Eles agora mandariam um rabecão para pegá-la.

Um paramédico, ao invés de um gondoleiro ou um demónio, cuidava dele. O uivo era uma sirene.

Sua barriga parecia ter sido golpeada impiedosamente por bandidos usando os punhos e canos de chumbo. A cada batida, seu coração parecia chocar-se dolorosamente contra mãos constritoras, e sua garganta parecia em carne viva.

Uma sonda de oxigénio de cano duplo havia sido introduzida em seu septo nasal. O fluxo frio e agradável era bem-vindo. Contudo, ainda podia sentir o gosto do líquido vil do qual havia se livrado, e sua língua e dentes pareciam ter sido cobertos por fungos.

Pelo menos não estava vomitando mais.

Ao pensar em regurgitação, imediatamente sentiu os músculos abdominais contraírem-se como os de um sapo de laboratório trespassado por uma corrente elétrica e, acometido por um horror crescente, percebeu que estava engasgando.

O que está acontecendo comigo?

O enfermeiro puxou o tubo de oxigénio do nariz de Júnior e levantou a cabeça do paciente, posicionando sob sua boca uma toalha para colher o vómito fino.

O corpo de Júnior traiu-o como fizera antes, e também de novas formas que o aterrorizaram e o humilharam, envolvendo cada fluido corporal que ele possuía com exceção do cerebrospinal. Durante algum tempo, dentro daquela ambulância oscilante, ele desejou que realmente estivesse numa gôndola nas águas do rio Estige, o que significaria o fim de seu sofrimento.

O vómito compulsivo passou, e enquanto caía de volta no travesseiro sujo, incomodado com o fedor que subia de suas roupas emporcalhadas, Júnior subitamente foi assaltado por uma ideia que era ou loucura pura ou uma brilhante dedução de detetive:

Naomi, aquela piranha traiçoeira, me envenenou!

O enfermeiro, dedos premidos contra a artéria radial no pulso direito de Júnior, deve ter sentido sua pulsação acelerar como um carro de corrida.

Júnior e Naomi tinham comido damascos secos do mesmo saquinho. Tinham pego os damascos sem olhar. Tinham-nos segurado nas palmas das mãos. Naomi não podia ter controlado quais pedaços de fruta receberia e quais comeria.

Será que ela também planejava envenenar-se? Seria sua intenção matá-lo e cometer suicídio?

Não a alegre, adorável, bem-humorada e carola Naomi. Ela via cada dia de sua vida através de uma névoa dourada que subia do sol em seu coração.

Júnior certa vez falara sobre esse mesmo sentimento para ela. Névoa dourada, sol no coração. As palavras de Júnior tinham-na encantado, lágrimas haviam brotado em seus olhos, e o sexo fora melhor do que nunca.

Era mais provável que o veneno tivesse sido colocado no sanduíche de queijo ou na garrafa d'água dele.

Seu coração rebelou-se contra o pensamento da adorável Naomi cometendo tamanho ato de traição. Uma mulher doce, generosa, honesta e carinhosa como Naomi decerto seria incapaz de matar qualquer pessoa... e muito menos o homem a quem amava.

A não ser que ela não o amasse.

O enfermeiro bombeou a pulseira de expansão do esfigmomanômetro, e provavelmente constatou que a pressão sanguínea de Júnior estava alta o bastante para provocar um ataque cardíaco, decolando para o espaço impulsionada pelo pensamento de que o amor de Naomi fora uma mentira.

Talvez ela tivesse se casado com ele pelo seu... Não, isso era um beco sem saída. Ele não tinha dinheiro. .

Naomi havia amado Júnior. Ela o havia adorado. Venerado não seria uma expressão forte demais.

Contudo, agora que a possibilidade de traição havia ocorrido a Júnior, ele não conseguia livrar-se da suspeita. A boa Naomi, que tinha dado incomensuravel-mente mais do que tomado, para sempre seria envolta por uma sombra de dúvida em sua memória.

Afinal de contas, você jamais podia realmente conhecer alguém, não podia realmente conhecer cada recanto da mente ou do coração de sua pessoa. Nenhum ser humano era perfeito. Até mesmo uma pessoa de hábitos imaculados e comportamento altruísta talvez fosse um monstro em seu coração, cheio de desejos indizíveis, que poderiam ser materializados cedo ou tarde.

Por exemplo, Júnior não tinha certeza se mataria outra esposa. Considerando que seu casamento com Naomi estava agora manchado pela mais terrível das dúvidas, ele não podia imaginar como poderia novamente confiar o bastante em alguém para fazer os votos matrimoniais.

Júnior fechou os olhos cansados e deixou que o enfermeiro limpasse com um pano frio e úmido a sua face suja e os lábios empapados em vómito.

As feições maravilhosas de Naomi afloraram em sua mente, e por um momento ela pareceu uma santa, mas com um brilho de ameaça quase imperceptível reluzindo nos olhos adoráveis.

Perder sua amada esposa era terrível, um ferimento que dificilmente poderia ser curado, mas isto era ainda pior: ter esta imagem brilhante de Naomi manchada pela suspeita. Naomi não mais estava presente para prover conforto e consolo, e agora Júnior nem mesmo tinha mais memórias imaculadas dela para sustentá-lo. Como sempre, não era a ação que o incomodava, eram as consequências.

A mancha na memória de Naomi era uma tristeza tão dolorosa que ele se perguntou se conseguiria suportá-la. Sentiu sua boca tremer e ficar mole, não com o impulso de vomitar novamente, mas com alguma coisa como a dor que não a dor em si. Seus olhos encheram-se de lágrimas.

Talvez o enfermeiro tivesse lhe dado uma injeção, um sedativo. Enquanto a ambulância corria barulhenta através deste dia marcante, Caim Júnior chorou profunda mas silenciosamente — e encontrou a paz temporária num sono sem sonhos.

Quando acordou, estava numa cama de hospital, a parte superior de seu corpo levemente elevada. A única iluminação era proporcionada por uma janela: uma claridade cinzenta débil demais para ser chamada de luz, retalhada em tiras finas pelas lâminas inclinadas de uma veneziana. A maior parte do quarto jazia nas sombras.

Ainda sentia um gosto acre na boca, embora não estivesse mais tão ruim quanto antes. Todos os odores eram maravilhosamente limpos e refrescantes — anti-sépticos, cera de assoalho, lençóis trocados recentemente —, sem um único sinal de fluidos corporais.

Seu corpo estava terrivelmente debilitado. Sentia-se oprimido, como se um grande peso tivesse sido posto sobre ele. Até mesmo manter os olhos abertos era cansativo.

Havia uma haste de sonda intravenosa ao lado de sua cama, gotejando soro em sua veia, substituindo os eletrólitos que ele perdera pelo vómito, muito provavelmente medicando-o também com um antiemético. Seu braço direito estava amarrado a um suporte, para impedi-lo de dobrar o braço e acidentalmente arrancar a agulha.

Este era um quarto com duas camas. A segunda estava vazia.

Júnior achava que estava sozinho, mas no exato momento em que se sentiu capaz de juntar energia para mudar para uma posição mais confortável, ouviu um homem limpar a garganta. O som de catarro veio de trás do pé da cama, do canto direito da sala.

Instintivamente, Júnior soube que qualquer pessoa observando-o no escuro não podia ser alguém com boas intenções. Médicos e enfermeiras não monitoravam seus pacientes com as luzes apagadas.

Ficou aliviado por não ter movido a cabeça ou produzido um som. Queria compreender o máximo possível da situação antes de revelar que estava acordado.

Como a parte superior da cama do hospital ainda estava um pouco levantada, não precisou erguer a cabeça do travesseiro para estudar o canto no qual o fantasma aguardava. Olhou para além da haste da sonda intravenosa, e para além do pé da cama adjacente.

Júnior estava deitado no canto mais escuro da sala, o mais afastado da janela, mas o canto em questão era quase igualmente imerso em escuridão. Fitou o quarto durante um longo tempo até seus olhos começarem a doer, e antes de ser finalmente capaz de discernir as linhas vagas e angulares de uma cadeira de braços. E na cadeira: uma silhueta tão carente de detalhes quanto a do gondoleiro encapuzado do rio Estige.

Estava desconfortável, dolorido, sedento, mas continuava absolutamente imóvel e atento.

Depois de algum tempo, percebeu que a sensação de opressão com que acordara não fora inteiramente um sintoma psicológico. Um objeto pesado estava pousado sobre o seu abdómen. E era frio... na verdade, tão frio que entorpecera o meio de seu corpo até um ponto em que ele não pudera sentir imediatamente o frio que causava.

Um arrepio percorreu o corpo de Júnior. Ele cerrou os dentes para impedi-los de bater e assim alertar o homem na cadeira.

Embora em momento algum tenha desviado os olhos do canto, Júnior agora estava preocupado com o objeto sobre sua barriga, e tentava descobrir o que era. O observador misterioso deixava-o suficientemente nervoso para que não conseguisse ordenar os pensamentos tão bem quanto de costume, e o esforço de impedir que o arrepio o fizesse gemer interferiu com a sua capacidade de raciocínio. Quanto mais tempo Júnior era incapaz de identificar o objeto frígido, mais alarmado ficava.

Júnior quase gritou quando em sua mente aflorou uma imagem do cadáver de Naomi, agora mais do que pálida, cinzenta como a luz ténue que se infiltrava pelas persianas, e levemente esverdeada em alguns lugares. E fria, tendo todo o calor vital abandonado sua carne, que já entrara no processo de decomposição que em breve atrairia novamente vida para si.

Não. Ridículo. Naomi não estava deitada sobre ele. Júnior não estava compartilhando sua cama com um cadáver. Isso parecia coisa das histórias em quadrinhos da E.C. Comics, como as que antigamente eram publicadas na revista Cripta do Terror.

E também não era Naomi quem estava sentada na cadeira. Naomi não viera do necrotério para vingar-se dele. Os mortos não voltavam a viver, nem aqui nem em algum mundo no Além. Isso era pura bobagem.

Mesmo se essas superstições de gente ignorante fossem verdadeiras, o visitante era silencioso e paciente demais para ser o zumbi de uma esposa assassinada. Este era um silêncio predatório, uma esperteza animal, não uma pressa sobrenatural. Esta era a imobilidade elegante de uma pantera num arbusto, a tensão enroscada de uma cobra perigosa demais para produzir um chocalhar de alerta.

Subitamente, Júnior deduziu a identidade do homem na cadeira. Sem sombra de dúvida, tratava-se do policial à paisana, aquele da marca de nascença.

O do cabelo cortado curto. O do rosto feio. O do pescoço grosso.

Júnior repentinamente lembrou do olho flutuando na mancha da cor do vinho, a íris cinzenta como um prego na palma ensanguentada de um homem crucificado.

Deitado sobre a parte média de seu corpo, o terrível peso gelado havia esfriado sua carne; mas agora sua medula também gelou ao pensamento do detetive com a marca de nascença sentado silenciosamente no escuro, observando.

Júnior preferiria lidar com Naomi, renascida dos mortos e puta da vida, do que com este homem perigosamente paciente.

 

COM UM ESTRONDO TÃO ALTO quanto o rachar do céu no Apocalipse, a picape Ford chocou-se contra a lateral do Pontiac. Agnes não conseguiu ouvir a primeira fração de seu próprio grito, e também não muito do resto dele, enquanto o carro deslizava de lado, emborcava e capotava.

A rua lavada pela chuva reluzia debaixo dos pneus como se untada com graxa, e o cruzamento ficava a meio caminho de uma ladeira comprida, de modo que a gravidade havia se aliado ao destino em seu complô contra o casal. O lado do motorista do Pontiac levantou. Do outro lado do pára-brisa, a rua principal de Bright Beach girava enlouquecidamente. O lado do passageiro chocou-se contra o asfalto.

O vidro na porta ao lado de Agnes rachou e se dissolveu. Fragmentos de vidro, brilhantes como a escama de um dragão prateado, passaram sibilando a centímetros do rosto de Agnes.

Antes de sair de casa, Joey fechara seu cinto de segurança, mas, devido à condição de Agnes, ela não havia colocado o seu. Agnes foi jogada contra a porta, a dor se espalhou por seu ombro direito, e ela pensou:

Meu Deus, o bebé!

Fincando os pés contra o soalho do carro, segurando-se ao assento com a mão esquerda, apertando ferozmente a maçaneta da porta com a direita, ela rezou. Rezou para que o bebé estivesse bem, para que ela vivesse ao menos o bastante para trazer sua criança para este mundo maravilhoso, para esta criação grandiosa de beleza infinita, onde ela adoraria continuar vivendo depois do parto.

Agora deitado sobre o seu teto, o Pontiac girava enquanto deslizava pelo asfalto, guinchando alto em seu atrito contra o piso. A despeito do quanto Agnes estava se segurando firme, ela continuava sendo empurrada do assento, na direção do teto invertido e também para trás. Sua fronte se chocou com força contra o estofado fino do teto do carro, e as costas bateram contra o encosto de cabeça.

Ela conseguiu ouvir-se gritando mais uma vez, mas apenas por pouco tempo, porque o carro ou foi acertado novamente pela picape ou atingido por outros veículos em movimento, ou talvez tenha colidido com um veículo estacionado. Mas qualquer que fosse a causa, ela sufocou, e seus gritos tornaram-se arquejos roucos.

Este segundo impacto fez uma meia-volta tornar-se um 360 graus completo. O lado do motorista quicou contra o chão e o Pontiac, finalmente equilibrado sobre os quatro pneus, subiu um meio-fio e esmagou seu pára-lamas dianteiro contra a parede de uma loja de equipamentos de surfe pintada em cores vivas, estilhaçando uma vitrine.

O Urso Preocupado, grande como sempre por trás do volante, virou-se de lado em seu assento, a cabeça inclinada na direção dela, os olhos voltados para um lado e seu olhar fixo na esposa, sangue correndo de seu nariz.

— O bebé? — perguntou.

— Tudo bem, acho, tudo bem — arfou Agnes.

Mas estava morrendo de medo de estar errada, de a criança nascer morta ou entrar defeituosa neste mundo.

O Urso Preocupado não se mexia, deitado naquela posição curiosa e certamente desconfortável, braços caídos para os lados, cabeça pendida sobre um ombro como se estivesse pesada demais para ser erguida.

— Me deixe... ver você... — disse ele.

Ela estava tremendo e assustada, sem conseguir pensar direito, e por um momento não compreendeu o que ele disse, o que ele queria, e então viu que a janela no lado de Joey também estava estilhaçada, e que a porta tinha sido terrivelmente comprimida, torcida em sua moldura. Pior ainda, a lateral do Pontiac explodira para dentro quando a picape se chocara com eles. Com um rosnado de metal e um golpe de seus dentes afiados, a porta mordera Joey profundamente, um tubarão mecânico aflorando do dia chuvoso, esmigalhando as costelas e afundando o coração quente do Urso Preocupado.

Me deixe... ver você.

Joey não podia levantar a cabeça, não podia virar-se mais diretamente para ela... porque sua espinha tinha sido danificada, talvez partida, e ele estava paralisado.

— Oh, Deus do céu — sussurrou ela.

Embora sempre tivesse sido uma mulher forte que pisava numa rocha de fé, que aspirava esperança junto com o ar, Agnes agora estava tão fraca quanto a criança não nascida dentro de seu ventre. E gelada de medo.

Inclinou-se à frente em seu assento e na direção dele, para que Joey pudesse vê-la mais diretamente. Quando Agnes encostou a mão trémula na face do marido, a cabeça de Joey pendeu para a frente sobre músculos do pescoço tão flácidos quanto farrapos, o queixo batendo contra o peito.

Uma chuva fria e carregada pelo vento atravessou as janelas sem vidro, e vozes chegaram da rua enquanto as pessoas corriam na direção do Pontiac. Um trovão soou ao longe. O ar estava carregado com um odor de ozônio trazido pela tempestade, mas nele havia também um cheiro mais sutil e mais assustador, de sangue. Mas nenhum desses detalhes concretos podia fazer o momento parecer real para Agnes, que em seus pesadelos mais terríveis jamais sentira tanto onirismo quanto sentia agora.

Ela segurou o rosto de Joey com ambas as mãos e quase não foi capaz de levantar sua cabeça, por medo do que iria ver.

Os olhos de Joey estavam estranhamente radiantes, como ela jamais os vira, como se o anjo luminoso que iria guiá-lo já tivesse entrado em seu corpo e estivesse com ele para começar a jornada.

Numa voz isenta de dor e medo, ele disse:

— Eu fui... amado por você.

Sem entender, pensando que ele estava inexplicavelmente perguntando se ela o amava, Agnes disse:

— Sim, tolinho, é claro que amo você, meu ursinho bobo.

— Esse foi... o único sonho que importou — disse Joey. —Você... me amar. Foi uma vida boa por causa de você.

Agnes tentou dizer a Joey que ele iria sobreviver, que os dois ficariam juntos durante um longo tempo, que o universo não era cruel a ponto de reclamá-lo aos trinta anos, com décadas de vida para eles e sua criança à frente. Porém, a verdade estava ali para quem quisesse vê-la, e Agnes não conseguiria mentir para Joey.

Mesmo em pé sobre sua rocha de fé, e respirando toda a esperança que podia, ela não conseguiu ser tão forte para ele quanto queria. Ela sentiu seu rosto desabar, sua boca tremer, e quando tentou reprimir um soluço, ele explodiu dela com a força de uma bala de canhão.

Segurando o rosto precioso do marido em suas mãos, ela o beijou. Encontrou o olhar de Joey e piscou com força para limpar as lágrimas, porque queria ter a visão mais limpa possível ao fitá-lo, para ver Joey, a parte mais verdadeira dele, além daqueles olhos, até o último momento, quando ela não poderia mais vê-lo.

As pessoas estavam nas janelas do carro, fazendo força para abrir as portas amassadas, mas Agnes recusava-se a notá-las.

Retribuindo a atenção feroz de Agnes com uma intensidade repentina, Joey disse:

— Bartholomew.

Eles não conheciam ninguém chamado Bartholomew, e ela não tinha ouvido o nome antes, mas entendeu o que ele queria. Estava falando do filho que jamais iria ver.

— Se for um menino... Bartholomew — prometeu Agnes.

— É um menino — assegurou Joey, como se houvesse tido uma visão. Sangue grosso escorreu de seu lábio inferior, desceu pelo seu queixo. Sangue

brilhante, sangue arterial.

— Querido, não! — implorou Agnes.

Os olhos de Joey não mais focavam Agnes. Ela quis passar através dos olhos dele, como Alice passara através do espelho, e seguir a cintilação belíssima que agora estava se apagando, ir com o esposo através da porta que se abrira para ele e acompanhá-lo para longe daquele dia chuvoso, rumo à eternidade.

Mas aquela era a porta de Joey, não a dela. Agnes não tinha uma passagem para o trem que chegara para pegá-lo. Joey embarcou e o trem partiu, junto com a luz em seus olhos.

Agnes baixou a boca até a de Joey, beijando-o pela última vez. O sabor do sangue de seu marido não foi amargo, foi sagrado.

 

QUANDO AS TIRAS DE LUZ acinzentada lentamente perderam seu brilho pálido, e sombras negras como breu metastatizaram-se em sinistra profusão, o silêncio profundo permaneceu inabalado entre Caim Júnior e o homem com a marca de nascença.

O que poderia ter-se tornado um jogo de duração épica foi terminado quando a porta para o quarto se moveu para dentro, e um médico vestido num jaleco branco emergiu do corredor. Silhuetado pelo brilho das lâmpadas fluorescentes, seu rosto era escuro como um personagem de sonho.

Júnior fechou os olhos prontamente e abriu a boca, respirando através dela para fingir que dormia.

— Acho que você não devia estar aqui — disse baixinho o doutor.

— Eu não o perturbei — garantiu o visitante, mantendo, como o doutor, a voz bem baixa.

— Tenho certeza de que não o perturbou. Mas o meu paciente precisa de silêncio e repouso absolutos.

— Eu também — disse o visitante.

O semblante de Júnior quase franziu quando ele ouviu essa resposta peculiar, imaginando o que o homem com a marca de nascença quisera insinuar com isso.

Os dois homens se apresentaram um ao outro. O médico era o dr. Jim Parkhurst. Seus modos eram calmos e afáveis e sua voz suave, ou por natureza ou por propósito, era tão calmante quanto um bálsamo.

O homem com a marca de nascença identificou-se como o detetive Thomas Vanadium. Ele não usou a forma diminutiva para o seu nome, como fizera o doutor, e sua voz era tão desprovida de modulação quanto o rosto era feio e achatado.

Júnior suspeitou que ninguém além da mãe desse homem chamava-o de Tom. A maioria das pessoas que o conheciam provavelmente chamavam-no "Detetive" ou "Vanadium".

— Qual é o problema com o sr. Caim? — perguntou Vanadium.

— Ele sofreu de um caso anormalmente forte de hematêmese.

— Vómito de sangue. Um dos enfermeiros usou essa palavra. Mas qual foi a causa?

— Bem, como o sangue não era escuro e ácido, não veio do estômago dele. Era vermelho vivo e alcalino. Deve ter emergido do esôfago, porém, mais provavelmente, sua origem foi faringiana.

— Da garganta.

Por dentro, a garganta de Júnior parecia arranhada como se ele tivesse chupado um cacto.

— Correto — disse Parkhurst. — Provavelmente uma ou mais veias sanguíneas foram rompidas devido à violência extrema da êmese.

— Êmese?

— Vómito. Fiquei sabendo que foi um caso emético excepcionalmente violento.

— Ele esguichou como uma mangueira de incêndio — disse Vanadium, sem papas na língua.

— A sua descrição é... bem vívida.

Num tom monótono que conferia um novo significado à expressão "calmo como a morte", o detetive acrescentou:

— Sou o único que estava lá que não vai gastar uma nota na lavanderia.

As vozes continuaram baixas, e nenhum dos homens se aproximou da cama.

Júnior estava satisfeito com a oportunidade de ouvi-los falar, não apenas porque ele queria entender a natureza e a extensão das suspeitas de Vanadium, mas também porque estava curioso — e preocupado — com a causa do episódio nojento e embaraçoso que o trouxera até aqui.

— O sangramento é grave? — inquiriu Vanadium.

— Não. Ele parou. O problema agora é impedir a recorrência da êmese, que poderia gerar mais sangramento. Ele está recebendo medicação antiemética e eletrólitos por via intravenosa. Além disso, colocamos bolsas de gelo sobre sua barriga para reduzir a chance de mais espasmos musculoabdominais e ajudá-lo a controlar a inflamação.

Bolsas de gelo. Não o cadáver de Naomi. Bolsas de gelo. Júnior quase riu da sua tendência à morbidez e ao drama. Nenhum morto-vivo viera pegá-lo: apenas algumas bolsas de borracha cheias de gelo.

— Então o vómito causou o sangramento — disse Vanadium. — Mas o que causou o vómito?

— Faremos novos testes, é claro, mas não até que ele esteja estabilizado há pelo menos doze horas. Pessoalmente, não creio que encontraremos nenhuma causa física. Mais provavelmente a causa foi psicológica. Crise emética nervosa aguda, causada por uma ansiedade muito grave e o choque de perder a esposa, de vê-la morrer.

Exatamente. O choque. A perda devastadora. Júnior sentia isso agora, novamente, e teve medo de se trair com lágrimas. Mas pelo menos não sentia mais tendência a vomitar.

Aprendera muitas coisas sobre si mesmo nesse dia marcante: era mais espontâneo do que imaginara antes, estava disposto a sofrer terríveis sacrifícios de curto prazo para obter lucros a longo prazo, e era ousado e corajoso. Mas talvez a lição mais importante tivesse sido a de que era uma pessoa mais sensível do que imaginara, e que essa sensibilidade, ainda que admirável, poderia causar-lhe momentos inesperados e inconvenientes.

Ao dr. Parkhurst, Vanadium disse:

— No meu trabalho, vejo muitas pessoas que acabaram de perder entes queridos. Nenhuma delas nunca vomitou como o Vesúvio.

— É uma reação incomum — admitiu o médico. — Mas não é tão incomum a ponto de ser rara.

— Ele poderia ter ingerido alguma coisa para provocar o vómito? Parkhurst soou genuinamente perplexo quando perguntou:

— Por que diabos ele faria isso?

— Para forjar a crise emética nervosa aguda.

Ainda fingindo que dormia, Júnior ficou deliciado em perceber que o detetive estava seguindo a trilha de seu crime, mas que seu cão perdigueiro acabara de ser distraído por um outro cheiro.

Vanadium prosseguiu em seu jeito de falar arrastado, um tom que contrastava com as palavras rudes em seu discurso:

— Um homem dá uma olhada no cadáver da esposa, começa a suar mais do que um porco copulando, vomita como um universitário no final de uma festa de arromba e continua pondo tudo pra fora até estar cuspindo sangue. Essa não é a reação de um assassino comum.

 

— Assassinato? Eles disseram que a balaustrada estava podre.

— Estava. Mas talvez a história inteira não seja essa. A gente sabe o quanto esses sujeitos costumam pensar que são inteligentes. Eles acham que os seus planos são brilhantes, mas em geral esses esquemas são tão óbvios que seria melhor para o assassino enfiar o pau numa tomada elétrica e poupar trabalho pra gente. Mas esta é uma abordagem nova. O propósito aqui é fazer você sentir peninha do sujeito.

— O departamento do xerife já não determinou que a morte foi acidental? — indagou Parkhurst.

— Eles são bons homens, bons tiras, cada um deles — disse Vanadium. — E têm mais piedade em seus corações do que eu, o que é uma virtude, não um defeito. Mas agora me diga, o que o sr. Caim poderia fazer para provocar o vómito?

Escutar você falar por muito tempo, pensou Júnior. Parkhurst protestou:

— Mas o departamento do xerife acha que foi um acidente...

— Doutor, o senhor sabe como a gente opera neste estado. A gente não desperdiça energia lutando pela jurisdição. A gente coopera. O xerife pode decidir não colocar muito dos recursos limitados que ele tem neste caso, e ninguém pode culpá-lo por isso. Ele pode determinar que foi um acidente e encerrar o caso, e mesmo assim não se importar se a gente, no nível estadual, continuar xeretando mais um pouco.

Embora o detetive estivesse na pista errada, Júnior começava a se sentir preocupado. Como qualquer cidadão decente, ele estava disposto, até ansioso, por cooperar com policiais responsáveis que conduzem sua investigação certinho como manda a lei. Mas esse Thomas Vanadium, a despeito de sua voz monótona e aparência deplorável, dava todos os sinais de um fanático. Qualquer pessoa razoável concordaria que a linha entre um interrogatório policial e um assédio é fina como um fio de cabelo.

— Não existe uma coisa chamada ipeca? — perguntou Vanadium a Jim Parkhurst.

— Sim. A raiz seca de uma erva brasileira, a ipecacuanha. Ela induz o vómito com muita eficácia. O ingrediente ativo é um alcalóide em forma de pó branco, chamado emetina.

— É uma droga vendida sem receita médica, não é?

— Sim. Na forma de xarope. É bom ter esse xarope no seu armário de remédios, para o caso do seu filho engolir veneno. Com o xarope de ipeca, o garoto irá purgar o veneno bem rápido.

— Bem que eu queria ter tido um frasco disso comigo em novembro passado.

— Você foi envenenado?

Daquele jeito lento e monótono que começava a deixar Júnior impaciente, o detetive Vanadium explicou:

— Todos nós fomos, doutor. Foi outro ano de eleição, lembra? Houve várias ocasiões naquela campanha em que eu gostaria de ter tomado ipeca. O que mais teria ajudado quando eu queria um bom vómito?

— Bem... hidrocloreto de apomorfina.

— Mais difícil de conseguir do que ipeca.

— É verdade. Cloreto de sódio também daria certo. Sal comum. Misture uma dose suficiente dele com água e em geral dará certo.

— Mais difícil de detectar do que ipeca ou hidrocloreto de apomorfina.

— Detectar? — perguntou Parkhurst.

— Na eca.

— Na êmese, você quer dizer?

— Desculpe. Esqueci que estava em companhia educada. Sim, na êmese.

— Bem, o laboratório poderia detectar níveis anormalmente altos de sal, mas isso não teria nenhuma valia num julgamento. Ele poderia alegar que comeu muitos alimentos salgados.

— Em todo caso, água salgada não seria um método muito prático. Ele teria de beber muita água para ficar nauseado, mas estava cercado por policiais com bons motivos pra ficar de olho grudado nele. A ipeca é vendida em forma de cápsula?

— Suponho que qualquer pessoa poderia encher tubinhos vazios com xarope — disse Parkhurst. — Mas...

— O método do "faça você mesmo". Então ele poderia botar algumas cápsulas na palma da mão, engoli-las sem água, e a reação seria retardada talvez apenas por algum tempo até as cápsulas se dissolverem no seu estômago.

Pelo tom do médico, ele finalmente começava a considerar a teoria improvável e o questionamento persistente do detetive por demais tedioso:

— Duvido seriamente que uma dose de ipeca geraria uma reação tão violenta neste caso... e certamente não hemorragia da faringe, pelo amor de Deus. A ipeca é um produto seguro.

— Se ele tomasse o triplo ou o quádruplo da dose usual...

— Não faria diferença — insistiu Parkhurst. — Uma quantidade grande tem praticamente o mesmo efeito que uma pequena. Você não pode tomar uma overdose, porque o que ela faz é induzi-lo a vomitar, e quando vomita, você expurga a ipeca junto com todo o resto.

— Então, mesmo se a dose tiver sido pequena, estará presente na eca... perdão, na êmese.

— Sinto muito, mas se você está esperando que o hospital lhe forneça uma amostra da ejeção....

— Ejeção?

— A eca.

— Doutor, sou um leigo que fica confuso fácil, fácil. Se não podemos nos firmar numa única palavra para a coisa, então vou voltar para o bom e velho vómito.

— Os enfermeiros certamente jogaram fora o conteúdo da bacia de vómito, se é que eles tinham uma. E se o paciente sujou toalhas ou lençóis, eles já estão na lavanderia.

— Não tem problema — disse Vanadium. — Eu coligi um pouco da eca.

— Coligiu?

— Como prova.

Júnior sentiu-se violado. Era ultrajante que o conteúdo indiscutivelmente pessoal, e muito particular, de seu estômago tivesse sido colhido numa sacola plástica de provas, sem sua permissão, sem mesmo o seu conhecimento. O que fariam em seguida? Drogá-lo com morfina para extrair uma amostra de fezes dele enquanto inconsciente? Esta coleta de dejetos decerto era uma violação à Constituição dos Estados Unidos da América, uma contravenção evidente da garantia contra a auto-incriminação, uma bofetada na cara da justiça, uma violação dos direitos humanos.

Obviamente, não havia ingerido ipeca ou qualquer outro emético, de modo que não encontrariam qualquer prova contra ele. Não obstante, por uma questão de princípios, ele ficou furioso.

Talvez o dr. Parkhurst também tenha ficado perturbado com essa coleta fascista e fanática de vómito, porque de repente estava falando com rudeza:

— Tenho compromissos para cumprir. Depois que tiver terminado minhas rondas noturnas, espero encontrar o sr. Caim consciente, mas prefiro que o senhor não o perturbe até amanhã.

Ao invés de atender à exigência do médico, Vanadium disse:

— Só mais uma perguntinha, doutor. Se este foi um caso de crise emética nervosa aguda, como o senhor sugere, poderia ter tido outra causa além da angústia do paciente pela perda traumática da esposa?

— Não consigo imaginar uma fonte mais óbvia para ansiedade extrema.

— Culpa — sugeriu o detetive. — Se ele a matou, não poderia ter sofrido a crise emética nervosa aguda devido a um sentimento de culpa intenso?

— Não posso responder a isso com confiança. Nenhuma das minhas graduações é em psicologia.

— Me divirta com um chute inteligente, doutor.

— Sou um médico, não um advogado. Não tenho o hábito de fazer acusações, especialmente não contra os meus pacientes.

- Eu não sonharia em pedir ao senhor que fizesse disto um hábito. Só esta

vez. Se a angústia pode causar o vómito, por que não a culpa?

O dr. Parkhurst considerou a pergunta, que ele preferiria não responder.

— Bem... sim — disse afinal. — Suponho que sim.

Filho da puta maluco e antiético, pensou amargamente Júnior.

— Acho que vou esperar aqui até que o sr. Caim acorde — disse Vanadium. - Não tenho nada de mais importante a fazer.

Um tom autoritário surgiu na voz de Parkhurst, o tom de imperador-do-universo que provavelmente era ensinado na disciplina eletiva de intimidação da faculdade de medicina, embora ele estivesse empregando essa atitude um pouco tarde demais para que fosse inteiramente eficaz:

— O meu paciente se encontra num estado fragilizado. Ele não deve sofrer qualquer tipo de estresse, detetive. Realmente não quero que o senhor o interrogue até amanhã de manhã.

— Muito bem. Não vou interrogá-lo. Vou apenas... observá-lo.

A julgar pelos sons feitos por Vanadium, Júnior deduziu que o tira havia novamente se aboletado na cadeira.

Júnior torceu para Parkhurst ser mais habilidoso na prática de medicina do que era na de passar sermões.

Depois de uma longa hesitação, o médico disse:

— Você pode ligar a luz do abajur.

— Ficarei bem.

— Isso não vai perturbar o paciente.

— Gosto do escuro — retrucou Vanadium.

— Isto é muito irregular.

— É, é sim — concordou o detetive.

Finalmente, metendo completamente o rabo entre as pernas, Parkhurst saiu do quarto. A porta pesada se fechou com um baque suave, silenciando o guinchar dos sapatos de sola de borracha, o roçar dos jalecos e outros ruídos produzidos no corredor pelas enfermeiras atarefadas.

O filhinho da sra. Caim sentia-se pequeno, fraco, com pena de si próprio, e terrivelmente só. O detetive ainda estava lá, mas a sua presença apenas agravava a sensação de isolamento de Júnior.

Ele sentia falta de Naomi. Ela sempre sabia exatamente a coisa certa para dizer ou fazer quando ele estava deprimido, melhorando o humor dele com apenas algumas palavras ou com seu toque.

 

TROVÕES RIBOMBAVAM como cascos em chão duro, e nuvens cinzentas corriam para leste como cavalos galopando em câmera lenta num sonho. Bright Beach estava manchada e distorcida pela chuva, como se refletida no espelho de uma casa maluca num parque de diversões. Enquanto afundava no crepúsculo, a tarde de janeiro parecia também afundar numa dimensão estranha.

Com Joey morto ao seu lado e o bebé possivelmente morrendo em sua barriga, enclausurada no Pontiac porque as portas tinham sido deformadas, atormentada pela dor causada pela colisão, Agnes recusava-se a se render ao medo ou às lágrimas. Ao invés disso, pôs-se a rezar, pedindo a Deus que lhe desse a sabedoria necessária para entender por que isto estava acontecendo com ela, assim como a força para lidar com a dor e a angústia de sua perda.

Testemunhas, as primeiras na cena, incapazes de abrir qualquer uma das portas do carro, diziam-lhe palavras de encorajamento através das janelas quebradas. Ela conhecia algumas dessas pessoas, mas não outras. Todas eram bem-intencionadas e genuinamente preocupadas, algumas estavam encharcadas porque não vestiam capas de chuva, mas sua curiosidade natural emprestava um brilho especial aos seus olhos que fazia Agnes sentir-se um animal numa jaula, sem dignidade, com sua agonia particular exposta para o entretenimento de estranhos.

Quando o primeiro policial chegou, logo seguido de uma ambulância, eles discutiram a possibilidade de tirar Agnes do carro através do pára-brisas sem vidro. Contudo, considerando que o espaço estava comprimido pelo teto amassado, e à luz da gravidez de Agnes e do iminente segundo estágio do parto, as contorções severas que envolveriam essa extração seriam por demais perigosas.

Um grupo de resgate apareceu com macacos hidráulicos e serras para cortar metal. Civis foram pastoreados até as calçadas.

Os trovões soavam menos distantes agora. Ao redor dela — o crepitar dos rádios de polícia, o clangor das ferramentas sendo preparadas, o uivo do vento cortante. Esses sons deixavam-na tonta. Ela não podia impedir que eles penetrassem seus ouvidos, e quando fechou os olhos, teve a sensação de estar girando.

Não havia nenhum odor de gasolina no ar. Aparentemente, o tanque não havia rompido. Uma imolação súbita parecia improvável — mas, apenas uma hora atrás, uma morte breve para Joey também parecia.

Os homens do grupo de resgate encorajaram-na a se afastar da porta do passageiro, o máximo que pudesse, para que não fosse ferida casualmente enquanto eles estivessem tentando arrombar o veículo. Ela não tinha outro lugar para ir, além de até o seu esposo morto.

Aconchegando-se no cadáver de Joey, a cabeça dele pendendo contra o ombro dela, Agnes estranhamente lembrou de seus primeiros encontros e dos primeiros anos de seu casamento. De vez em quando eles iam ao drive-in e ficavam sentados bem juntinhos, de mãos dadas, assistindo a John Wayne em Rastros de ódio, a David Niven em A volta ao mundo em 80 dias. Eles eram muito jovens naquela época, convictos de que viveriam para sempre, e ainda eram jovens agora, mas para um deles a eternidade havia chegado.

Um dos homens da equipe de resgate instruiu-a a fechar os olhos e virar o rosto na direção oposta à da porta do passageiro. Ele enfiou um cobertor de retalhos pela janela e acomodou-o sobre o lado direito de Agnes, para protegê-la.

Segurando o cobertor, ela pensou nos aventais funerários que ocasionalmente cobriam as pernas dos falecidos em seus caixões. Pensou nisso porque se sentia morta pela metade. Estava com os dois pés neste mundo — mas também estava caminhando ao lado de Joey numa estrada estranha para o Além.

O zumbido, o murmúrio, o chocalhar, o rugido dos motores das máquinas e das ferramentas elétricas. Aço da carroceria e aço da estrutura interna, mais duro, sendo mordidos por uma serra cortadora de metais.

Ao lado dela, a porta do passageiro latiu e ganiu como se viva, como se estivesse sofrendo, e esses sons pareciam estranhamente os gritos de tormento que apenas Agnes podia ouvir nas catacumbas assombradas de seu coração.

O carro estremeceu, metal torcido uivou, e um grito de triunfo se levantou da equipe de resgate.

— Você está bem, nós vamos tirá-la agora.

A voz suave, mas reverberante, do líder da equipe era tão sobrenatural que suas palavras pareciam conduzir uma segurança mais profunda e mais confortadora do que o seu significado superficial.

Este espírito salvador recuou e em seu lugar apareceu um enfermeiro jovem usando uma capa de chuva preta e amarela sobre o jaleco.

— Só quero me certificar se não houve ferimento espinhal antes de mover a senhora. Pode apertar a minha mão?

Apertando conforme a instrução, ela disse:

— O meu bebé pode estar... ferido.

Como se dar voz ao seu pior pesadelo o tornasse realidade, Agnes foi assaltada por uma contração tão dolorosa que gritou e apertou as mãos do enfermeiro com força suficiente para fazê-lo gemer. Ela sentiu um inchamento peculiar no interior de seu corpo, seguido por uma sensação horrível de que tudo lá dentro estava solto, pressão seguida prontamente por liberação.

As calças cinzentas do seu conjunto de malha, pontuadas por gotas da chuva que entrara através do pára-brisas estilhaçado, ficaram subitamente empapadas. A bolsa de água de Agnes havia se rompido.

Mais escura que água, outra mancha se espalhou pelo colo de Agnes e desceu pelas pernas de sua calça. Filtrado pelo tecido cinza do conjunto de malha, o líquido era da cor de vinho do Porto, mas mesmo em seu estado semidelirante soube que não era o veículo para um parto miraculoso; ela não estava parindo um bebé num jorro de vinho, mas de sangue.

Em suas leituras aprendera que o fluido amniótico devia ser claro. Alguns traços de sangue não deviam ser necessariamente alarmantes, mas aqui havia mais do que alguns traços. Aqui havia grossos filetes de líquido vermelho-escuro.

— Meu bebé! — implorou.

Uma nova contração fez o seu corpo estremecer. A dor foi tão intensa que não se limitou à parte inferior de suas costas e ao seu abdómen, mas correu por toda a extensão de sua espinha como uma corrente elétrica saltando de uma vértebra para outra. A cada respiração sentia uma dor aguda, como se os seus pulmões tivessem furado.

O segundo estágio do trabalho de parto costumava durar cinquenta minutos numa mulher tendo seu primeiro filho, podendo descer a vinte se o nascimento não fosse o primeiro, mas ela sentiu que Bartholomew não ia chegar ao mundo segundo as regras.

Os enfermeiros agiram com urgência. O equipamento da equipe de resgate e os pedaços da porta do carro foram arrastados para fora, de modo a abrir caminho para uma maca de rodas. E esta logo foi empurrada através da calçada atulhada com destroços.

Agnes não percebeu claramente quando foi levantada do carro, mas depois lembraria de ter olhado para trás e visto o corpo de Joey largado no interior do carro arruinado, lembraria de ter esticado o braço até ele, ansiando pelo apoio que ele sempre lhe dera, e então estava sobre a maca e se movendo.

A noite chegou, estrangulando o dia, e o céu tempestuoso enegreceu como uma ferida depois de perder o frescor. A iluminação da rua foi acesa. Os faróis de emergência lançaram fachos de luz vermelha pela noite, transmutando alqui-micamente as gotas de chuva em sangue.

A chuva era mais fria do que tinha sido antes, quase tão gelada quanto granizo. Ou talvez ela estivesse mais quente do que antes e sentisse o frio mais agudamente em sua pele fervente. Cada gota parecia ebulir ao contato com a face e com as costas de suas mãos, com as quais ela apertava forte sua barriga inchada como se pudesse negar à Morte o bebé que ela viera reclamar.

Quando um dos enfermeiros correu para a ambulância e se sentou ao volante, Agnes sofreu outra contração tão severa que, durante um momento trémulo, no pico da agonia, ela quase perdeu a consciência.

O segundo enfermeiro empurrou a maca até a traseira da ambulância, chamando um dos policiais para acompanhá-lo ao hospital. Aparentemente, ele precisaria de ajuda se iria trazer o bebé ao mundo e estabilizar Agnes durante o percurso.

Ela quase compreendeu a conversa frenética dos dois, parcialmente porque a capacidade em se concentrar estava sendo sugada dela juntamente com seu sangue vital, mas também porque estava distraída por Joey. Ele não estava mais nos destroços, mas em pé diante da porta aberta da ambulância.

Ele não estava mais rasgado e quebrado. Suas roupas não tinham manchas de sangue.

Na verdade, a chuva de inverno não havia molhado seus cabelos nem suas roupas. A chuva parecia desviar-se dele a um milímetro antes do contato, como se a água e o homem fossem compostos de matéria e antimatéria que repeliam uma à outra ou, ao contato, acionariam um cataclismo que despedaçaria a própria fundação do universo.

Joey estava ao seu jeitão de Urso Preocupado, testa franzida, olhos enrugados nas pontas.

Agnes quis tocá-lo, mas descobriu que não tinha forças para erguer o braço. Também não estava mais segurando sua barriga. Ambas as mãos jaziam ao lado dela, palmas para cima, e até mesmo o simples ato de dobrar os dedos requeria um esforço e uma concentração surpreendentes.

Quando tentou falar com ele, Agnes percebeu que levantar a voz era tão difícil quanto estender a mão para ele.

Um policial embarcou na parte traseira da ambulância.

Quando o enfermeiro empurrou a maca contra o pára-lamas do veículo, suas pernas retráteis se contraíram e Agnes foi empurrada para o fundo da ambulância.

Clique, dique. A maca de rodas encaixou-se no lugar.

Ou operando com base em conhecimentos próprios de primeiros socorros ou seguindo instruções do médico, o policial colocou um travesseiro de espuma debaixo da cabeça de Agnes.

Sem o travesseiro, ela não teria sido capaz de levantar a cabeça para a porta da ambulância.

Joey estava parado de pé do lado de fora, olhando para ela. Seus olhos azuis eram mares nos quais singrava a tristeza.

Ou talvez o sentimento não fosse tristeza, mas saudades prematuras. Ele precisava seguir em frente, mas estava odiando começar esta estranha jornada sem ela.

Assim como a tempestade não conseguia molhar Joey, os fachos de luz vermelhos e brancos dos carros de polícia não o tocavam. As gotas de chuva eram diamantes e rubis, diamantes e rubis, mas Joey não era iluminado pelas luzes deste mundo. Agnes percebeu que ele estava translúcido, sua pele parecia um copo de leite fino através do qual fulgurava uma luz do Além.

O enfermeiro fechou a porta, deixando Joey lá fora na noite, na tempestade, no vento entre mundos.

Com um solavanco, a ambulância começou a andar.

O corpo de Agnes começou a ser apunhalado por pontadas de dor, que por um momento conduziram-na a um mergulho nas trevas.

Quando a luz pálida voltou aos seus olhos, ela escutou o enfermeiro e o policial falando ansiosamente enquanto trabalhavam nela, mas não conseguiu entender o que diziam. Eles pareciam estar falando não apenas uma língua estrangeira, mas uma linguagem ancestral que há milhares de anos não se ouvia na Terra.

Sentiu-se constrangida quando compreendeu que o enfermeiro tinha cortado as calças de seu conjunto de malha. Estava nua da cintura para baixo.

Na mente febril de Agnes adentrou a imagem de uma criança de luz, tão translúcida quanto Joey na porta da ambulância. Temendo que esta visão significasse que sua criança seria uma natimorta, ela disse meu bebé, mas nenhum som saiu dela.

Mais uma vez, dor, mas não mera contração. Uma dor excruciante. Insuportável. As punhaladas voltaram a atingi-la, como se ela estivesse deitada num instrumento de tortura medieval.

Podia ver os dois homens conversando, os rostos molhados pela chuva sérios e franzidos de preocupação, porém não mais conseguia ouvir suas vozes.

Na verdade, não conseguia ouvir nada. Não ouvia a sirene da ambulância, não ouvia o zumbido dos pneus, não ouvia o matraquear do equipamento alojado nas prateleiras e armários à sua direita. Ela estava tão surda quanto os mortos.

Ao invés de cair em mais outra escuridão breve, como esperava, Agnes sen-tiu-se subir. Foi tomada por uma sensação assustadora de imponderabilidade.

Jamais pensara em si mesma como amarrada ao seu corpo, presa aos seus ossos e músculos, mas agora sentia as amarras romperem. Subitamente estava solta, sendo lentamente erguida da maca, até que se viu no teto da ambulância, olhando para baixo, para o seu próprio corpo.

Agnes foi tomada por um terror agudo, uma percepção humilde de que era um constructo frágil, uma coisa menos substancial do que a névoa, pequena, fraca, indefesa. Estava com um medo terrível de ser espalhada como as moléculas de um aroma, dispersada num volume tão grande de ar que cessaria de existir.

Seu medo também era alimentado pela visão do sangue que saturava o acolchoado da maca na qual jazia o seu corpo. Tanto sangue. Oceanos.

Uma voz aflorou em meio ao silêncio etéreo. Não um outro som. Não uma sirene. Nenhum zumbido ou chiado de pneus no asfalto molhado de chuva. Apenas a voz do enfermeiro:

— O coração dela parou.

Abaixo de Agnes, lá na terra dos vivos, um foco de luz reluziu ao longo da seringa hipodérmica na mão do enfermeiro até parar num brilho na ponta da agulha.

O policial tinha abaixado o zíper do casaco de seu conjunto de malha e puxado para cima a camiseta que ela usava por baixo, expondo os seios.

O enfermeiro colocou a seringa de lado, tendo-a usado, e segurou as alças de um desfibrilador.

Agnes quis dizer a eles que todos os seus esforços seriam em vão, que deviam desistir e deixá-la partir. Ela não tinha mais nenhum motivo para ficar aqui. Seguiria adiante com o seu marido morto e o bebé morto, seguiria para um lugar onde não havia dor, onde ninguém era tão pobre quanto Maria Elena Gonzalez, onde ninguém vivia com medo como os seus irmãos Esaú e Jacó, onde todos falavam uma única linguagem e todos tinham todas as tortas de amoras de que precisavam.

Ela abraçou a escuridão.

 

DEPOIS QUE O DR. PARKHURST saiu do quarto, um silêncio pairou no ambiente, mais pesado e mais frio que as bolsas de gelo deitadas sobre a barriga de Júnior.

Passado algum tempo, Júnior ousou entreabrir as pálpebras. Premida contra os seus olhos havia uma escuridão tão densa quanto a conhecida por um cego. Nem um único fantasma de luz assombrava a noite para além da janela, e as estrias da persiana estavam tão escondidas da vista quanto as costelas descarnadas debaixo do manto da Morte.

De sua cadeira no canto, como se pudesse ver tão bem na escuridão que sabia que os olhos de Júnior tinham se aberto, o detetive Thomas Vanadium disse:

— Você ouviu a minha conversa inteira com o dr. Parkhurst?

O coração de Júnior bateu tão forte e rápido que ele não teria ficado surpreso se Vanadium, no canto mais distante do quarto, começasse a tamborilar os pés em compasso com ele.

Embora Júnior não respondesse, Vanadium disse:

— Sim, achei que você tinha ouvido.

Este detetive era diabólico. Ele transpirava insinuações, armadilhas e estratagemas. Era um mestre da guerra psicológica.

Talvez muitos suspeitos ficassem abalados e acabassem desmoronando diante desse tipo de comportamento. Júnior não cairia fácil nas armadilhas de Vanadium. Ele era esperto.

Aplicando a sua inteligência agora, empregou técnicas simples de meditação para se acalmar e retardar o ritmo de seu batimento cardíaco. O tira estava tentando assustá-lo para que ele cometesse um erro, mas homens calmos não se incriminavam.

— Como foi, Enoch? Você olhou nos olhos da sua mulher quando a empurrou? — O tom monótono de Vanadium parecia a voz de uma consciência que preferia uma tortura lenta a uma execução sumária. — Ou um assassino de mulheres covarde como você não tem colhão pra isso?

Filho da puta quase careca, de cara amassada e queixo duplo, pensou Júnior. Não. Atitude errada. Fique calmo. Seja indiferente aos insultos.

— Você esperou até sua mulher estar de costas, porque é tão covarde que nem conseguiu fitar os olhos dela?

Isto era patético. Apenas idiotas cabeças de tacho, desprovidos de educação superior e ignorantes das coisas do mundo, seriam forçados a confessar por táticas rudes como essas.

Júnior era bem instruído. Não era apenas um massagista com um título pomposo. Ele tinha graduação completa em ciências com especialização em terapia de reabilitação. Quando via televisão, o que jamais fazia em excesso, ele raramente sintonizava em programas de auditório ou em comédias de costumes como A ilha dos birutas ou A família Buscapé, ou mesmo Jeannie é um génio. Ele preferia dramas sérios que requeriam envolvimento pessoal: Gunsmoke, Bonanza e O fugitivo. Seu passatempo favorito era fazer palavras cruzadas, porque expandia o vocabulário. Como membro do Clube do Livro, já tinha adquirido quase trinta volumes do melhor da literatura contemporânea, e até agora lera ou passara os olhos em mais de seis deles. Ele teria lido todos se não fosse um homem ocupado com interesses tão variados; suas aspirações culturais eram maiores do que o tempo que ele podia devotar a elas.

— Sabe o que eu sou, Enoch? — perguntou o detetive. Thomas "Bundão" Vanadium.

— Você sabe o que eu sou?

Uma espinha na bunda da humanidade.

— Não — disse Vanadium.—Você apenas pensa que sabe quem sou e o que sou, mas não sabe droga nenhuma. Mas não tem problema. Vai aprender.

O sujeito era esquisito. Júnior estava começando a pensar que o comportamento heterodoxo do detetive não era uma estratégia planejada cuidadosamente, como parecera à primeira vista. Começava a achar que esse Vanadium não batia bem da bola.

Mas não importava se o detetive era doido ou não. Júnior não tinha nada a ganhar conversando com ele, especialmente nesta escuridão desorientante. Estava exausto, dolorido, com a garganta arranhada, e não conseguiria confiar em seu autocontrole em qualquer interrogatório conduzido por este sapo de pescoço grosso e cabelos desgrenhados.

Júnior parou de fazer força para ver a cadeira através da sala escura. Fechou os olhos e tentou mergulhar no sono criando a imagem mental de uma cena monótona de ondas suaves quebrando numa praia enluarada.

Esta era uma técnica de relaxamento que funcionara antes com ele. Ele a aprendera num livro brilhante: Como conquistar uma vida mais saudável através da auto-hipnose.

Caim Júnior era um homem comprometido com o auto-aperfeiçoamento contínuo. Acreditava na necessidade constante em expandir seu conhecimento e seus horizontes para compreender melhor a si mesmo e ao mundo. A qualidade da vida de um indivíduo era responsabilidade exclusiva do próprio indivíduo.

O autor de Como conquistar uma vida mais saudável através da auto-hipnose era o dr. Caesar Zedd, um psicólogo de renome e autor de mais de dez best-sellers de auto-ajuda, todos possuídos por Júnior juntamente com as obras literárias que adquirira pelo Clube do Livro. Ele tinha apenas quatorze anos quando começara a comprar os livros do dr. Zedd em brochura, e quando fez dezoito anos já tinha condições para trocá-los por edições em capa dura. Também possuía todos os livros seguintes do doutor em edições de luxo.

A obra completa de Zedd constituía o guia mais profundo, gratificante e confiável para a vida que podia ser encontrado. Quando Júnior se sentia confuso ou atormentado, recorria a Caesar Zedd e jamais deixava de encontrar iluminação, orientação. Quando sentia-se feliz, encontrava em Zedd a confirmação de que não havia motivo para sentir remorsos por ser bem-sucedido e amar a si próprio.

A morte do dr. Zedd, no último Dia de Ação de Graças, tinha sido um golpe para Júnior, uma perda para a nação, para o mundo inteiro. Ele considerou-a uma tragédia igual ao assassinato de Kennedy, um ano antes.

E como a morte de John Kennedy, o falecimento de Zedd estava envolto em mistério, inspirando suspeitas de conspiração. Umas poucas pessoas acreditavam que ele cometera suicídio, e Júnior certamente não era um desses imbecis que engoliam tudo que diziam. Caesar Zedd, autor de Você tem o direito de ser feliz, jamais teria explodido os miolos com uma espingarda, conforme as autoridades preferiam que o público acreditasse.

— Você fingiria acordar se eu tentasse sufocar você? — perguntou o detetive Vanadium.

A voz não viera da cadeira no canto, mas bem do lado da cama. Caso Júnior não estivesse profundamente relaxado pelas ondas calmantes que quebravam na praia enluarada de sua mente, ele teria gritado de surpresa, talvez tivesse se empertigado na cama, traindo-se e confirmando a suspeita de Vanadium de que estava consciente.

Ele não escutara o tira levantar-se da cadeira e atravessar o quarto escuro. Era difícil acreditar que um homem com uma barriga tão grande e flácida pendendo acima do cinto, com um pescoço grossíssimo apertado por um colarinho apertado demais e com um segundo queixo mais proeminente do que o primeiro poderia ser capaz de um caminhar tão sobrenaturalmente furtivo.

— Eu poderia introduzir uma bolha de ar na sua agulha intravenosa — disse baixinho o detetive.—Poderia matar você por embolia, e eles jamais iriam descobrir.

Lunático. Agora não havia dúvida: Thomas Vanadium era mais pirado do que Charlie Starkweather e Caril Fugate, os adolescentes que haviam assassinado onze pessoas em Nebraska e Wyoming alguns anos atrás.

Ultimamente alguma coisa parecia estar errada nos Estados Unidos. O país não era mais sereno e equilibrado. Estava caindo. Esta sociedade estava caindo lentamente num abismo. Primeiro, assassinos adolescentes matando para se divertir. Agora, tiras maníacos. Coisas piores estavam por vir, não havia dúvida. Uma vez que o declínio se instaurava, interrompê-lo ou recuperar o impulso original era muito difícil, se não impossível.

Tinque.

O som foi estranho, mas Júnior quase conseguiu identificá-lo. Tinque.

Qualquer que fosse a fonte do ruído, certamente Vanadium era a causa. Tinque.

Ah, sim. Agora sabia a fonte. O detetive estava dando petelecos com a unha na garrafa de solução que pendia da haste de sonda intravenosa ao lado da cama. Tinque.

Embora não tivesse qualquer esperança de dormir agora, concentrou-se na imagem mental calmante de ondas suaves espumando na areia enluarada. Era uma técnica de relaxamento, não apenas um auxílio ao sono, e ele precisava desesperadamente permanecer relaxado.

TINQUE! Um peteleco mais forte.

Eram raras as pessoas que encaravam seriamente o auto-aperfeiçoamento. O animal humano nutria um terrível impulso destrutivo que sempre precisava ser contido.

TINQUE!

Quando as pessoas não se dedicam a objetivos positivos, a criar vidas melhores para si mesmas, elas gastam sua energia com coisas más. Então surge gente como Starkweather, matando todas aquelas pessoas sem nenhum objetivo de ganho pessoal. Surgem tiras maníacos e esta nova guerra, no Vietnã.

Tinque: Júnior antecipou o som, mas ele não veio.

Permaneceu imóvel, numa expectativa tensa.

O luar havia sumido e as ondas suaves tinham se afastado do olho de sua mente. Ele se concentrou, tentando forçar o mar fantasmagórico a fluir de volta, mas esta era uma das raras ocasiões em que uma técnica de Zedd lhe falhava.

Ao invés disso, ele imaginou os dedos brutos de Vanadium movendo-se sobre o aparato intravenoso com delicadeza surpreendente, lendo as funções do equipamento como um cego leria Braille com dedos velozes e sensíveis. Imaginou o detetive encontrando o orifício da injeção na sonda, e segurando-o entre o dedão e o indicador. Ele o viu tirar uma injeção da manga como um mágico faria com um lenço. Não havia nada na seringa além de ar mortal. A agulha sendo introduzida no orifício...

Júnior quis gritar por ajuda, mas não ousou fazê-lo.

Agora nem mesmo ousava fingir acordar, gemendo e bocejando, porque o detetive saberia que estava fingindo, que estivera acordado o tempo todo. E se ele estivera fingindo inconsciência, escutando a conversa entre o dr. Parkhurst e Vanadium, e mais tarde recusando-se a responder às acusações diretas do detetive, esta fraude seria inevitavelmente lida como uma admissão de culpa pela morte de sua esposa. Então este detetive pé-de-chinelo iria persegui-lo infatigavelmente.

Enquanto Júnior continuasse fingindo dormir, o tira não teria certeza absoluta de que ele estivera fingindo. Ele poderia suspeitar, mas não poderia saber. Ficaria com pelo menos um fiapo de dúvida sobre a culpa de Júnior.

Depois de um silêncio interminável, o detetive disse:

— Enoch, sabe no que acredito sobre a vida? Alguma coisa bem idiota, tenho certeza.

— Acredito que o universo é como um instrumento musical inima-ginavelmente vasto com um número infinito de cordas.

Isso mesmo, o universo é uma grande, enorme, guitarra havaiana. A voz antes monótona possuía agora um tom sutil, mas inegavelmente apaixonado:

— E cada ser humano, cada ser vivo, é uma corda nesse instrumento.

E Deus possui quatrocentos bilhões de dedos, e Ele toca uma versão realmente fantástica de "Hawaiian Holiday".

— As decisões que cada um de nós toma, os atos que cada um de nós comete, são como vibrações que passam através de uma corda de violão.

No seu caso, um violino, e a melodia é o tema de Psicose.

A paixão quieta na voz de Vanadium era genuína, expressada com razão mas sem fervor, nem um pouco sentimental ou untuosa... o que era ainda mais perturbador.

— As vibrações numa corda enviam vibrações suaves a todas as outras cordas, através do corpo inteiro do instrumento.

Plém!

— Às vezes essas vibrações são muito aparentes, mas muitas vezes são tão sutis que você pode ouvi-las apenas se for incrivelmente perceptivo.

Caramba, me mate logo e me poupe da dor de ouvir essa balela.

— Quando cortou a corda de Naomi, você colocou um fim nos efeitos que a sua música exerceria nas vidas de outras pessoas e na forma do futuro. Gerou um desafino que, embora muito leve, pode ser ouvido até o canto mais distante do universo.

Se você está tentando me levar a outra maratona de vómito, está quase conseguindo.

— Esse desafino gera muitas outras vibrações, algumas das quais voltarão para você das formas que espera... e outras de formas que nem imagina. Das formas que você nem imagina, sou a pior.

A despeito das respostas corajosas no seu lado silencioso da conversa, Júnior estava cada vez mais assustado. Esse policial podia ser um lunático, mas ele era mais do que um mero caso psiquiátrico.

— Já duvidei, como Tomé — disse o detetive, mas agora não mais do lado da cama. Sua voz parecia vir do outro lado do quarto, talvez ao lado da porta, embora não tenha feito nenhum som ao se mover.

A despeito de sua aparência lastimável — e especialmente no escuro, onde a aparência não contava —, Vanadium tinha a aura de um místico. Embora Júnior não acreditasse em místicos ou nos diversos poderes sobrenaturais que eles alegavam possuir, sabia que os místicos que acreditavam em si mesmos eram pessoas extraordinariamente perigosas.

O detetive era empolgado com a sua teoria do instrumento musical, e talvez também tivesse visões ou mesmo ouvisse vozes, como Joana D'Arc. Joana D'Arc sem beleza ou graça, Joana D'Arc com um revólver de serviço e a autoridade para usá-lo. O policial não era uma ameaça ao exército inglês, como Joana havia sido, mas, até onde dizia respeito a Júnior, o maldito definitivamente merecia ser queimado numa fogueira.

— Mas agora não tenho a menor sombra de dúvida — disse Vanadium, sua voz retornando ao arrastado sem flexão que Júnior aprendera a odiar e que agora preferia ao seu leve tom de paixão. — A despeito de qual seja a situação, a despeito de quanto a questão seja complicada, sempre sei o que fazer. E certamente sei o que fazer com você.

Estranho. Estranhíssimo.

— Já coloquei a minha mão no ferimento.

Que ferimento?, Júnior quis perguntar, mas ele reconhecia uma isca quando ouvia uma, e não quis morder.

Depois de um momento de silêncio, Vanadium abriu a porta para o corredor.

Júnior torceu para não ter sido traído pelo brilho de seus olhos na fração de segundo em que entreabriu as pálpebras.

Uma simples silhueta contra o brilho fluorescente, Vanadium saiu para o corredor. A luz brilhante pareceu engolfá-lo. O detetive desapareceu da forma como uma figura de homem em meio à distorção do ar causada pelo calor numa estrada de asfalto parecia caminhar desta para outra dimensão, passando entre as cortinas trémulas que pairavam entre as realidades. A porta se fechou.

 

A SEDE CRUEL INDICAVA que Agnes não estava morta. Não haveria sede no Paraíso.

Obviamente, ela podia estar presumindo erroneamente a sua sentença no Julgamento. A sede provavelmente afligiria as legiões do Inferno, uma sede feroz e incessante, piorada por refeições que consistiam de sal, enxofre e cinzas, não de tortas de amoras. Portanto, talvez ela estivesse realmente morta e para sempre encerrada junto com assassinos, ladrões, canibais e pessoas que corriam acima da velocidade permitida nos perímetros escolares.

Também estava sentindo frio. Como nunca ouvira falara que o Hades tivesse um problema de calefação, talvez ela não tivesse realmente sido condenada à da-nação eterna. Isso seria bom.

Às vezes via pessoas pairando sobre ela. Eram meramente formas, seus rostos desprovidos de detalhes, assim como a visão de Agnes estava borrada. Essas pessoas podiam ser anjos ou demónios, mas Agnes tinha certeza absoluta de que elas eram pessoas comuns, porque uma delas praguejou, algo que um anjo jamais faria, e elas estavam tentando deixá-la à vontade, enquanto um demónio de respeito estaria enfiando fósforos acesos em seu nariz, ou introduzindo agulhas em sua língua, ou atormentando-a de qualquer outra forma que era ensinada na escola de demónios.

Eles também usavam palavras que não se encaixavam nas línguas de anjos ou demónios:

— ... hipodermóclise... oxitocina intravenosa... mantenha assepsia perfeita a cada instante... perfeita, ouviu bem?... algumas administrações orais de cravagem assim que for seguro para ela ingerir qualquer coisa...

Na maior parte do tempo, ela continuava flutuando no escuro ou em sonhos.

Durante algum tempo, esteve em Rastros de ódio. Ela e Joey cavalgavam com um John Wayne profundamente perturbado, enquanto o delicioso David Niven flutuava acima de suas cabeças numa cesta pendurada a um imenso e colorido balão de ar quente.

Acordando de uma noite estrelada no Velho Oeste para um ambiente iluminado por luz elétrica, fitando rostos embaçados e sem chapéus de vaqueiro, Agnes sentiu alguém movendo uma pedra de gelo em círculos lentos sobre a sua barriga nua. Sentindo um arrepio quando a água gelada desceu correndo por sua barriga, Agnes tentou perguntar-lhes por que estavam aplicando-lhe gelo quando já estava gelada até os ossos, mas não encontrou sua voz.

De súbito percebeu que — Deus do céu! — alguém estava com a mão dentro dela, no próprio centro dela, massageando seu útero num padrão muito aproximado ao descrito pela pedra de gelo semiderretida na superfície de sua barriga.

— Vai precisar de outra transfusão.

Essa voz ela reconheceu. Dr. Joshua Nunn. O seu médico.

Ela o ouvira antes, mas não o tinha identificado.

Alguma coisa estava errada com ela. Agnes tentou falar, mas sua voz lhe falhou.

Constrangida, sentindo frio, repentinamente amedrontada, Agnes retornou ao Velho Oeste, onde a noite no deserto estava quente. A fogueira crepitava alegremente. John Wayne colocou um braço no ombro de Agnes e lhe disse: "Aqui não tem maridos nem bebés mortos", e embora John quisesse apenas confortá-la, Agnes sentiu-se profundamente deprimida até Shirley MacLaine chamá-la a um canto para um papo de comadres.

Agnes acordou novamente e não mais sentia frio. Estava febril. Seus lábios estavam rachados, a língua estava seca e áspera.

O quarto de hospital era iluminado suavemente, e sombras pairavam em todos os cantos como um bando de pássaros empoleirados.

Quando Agnes gemeu, uma das sombras abriu as asas, aproximou-se, parou ao lado direito da cama e se metamorfoseou numa enfermeira.

A visão de Agnes havia clareado. A enfermeira era uma jovem muito bonita com cabelos negros e olhos azul-escuros.

— Sede — disse Agnes, a voz rascando na garganta como areia do Saara erodindo uma pedra antiga, o sussurro seco da múmia de um faraó falando consigo mesma numa câmara selada durante três mil anos.

— Você não poderá ingerir nada ainda durante algumas horas — informou a enfermeira. — O risco de náusea é grande demais. E vomitar pode provocar uma nova hemorragia.

— Gelo — disse alguém ao lado esquerdo da cama.

A enfermeira levantou os olhos de Agnes para essa outra pessoa.

— Sim, uma pedra de gelo faria bem a ela.

Quando virou a cabeça e viu Maria Elena Gonzalez, Agnes achou que estava sonhando de novo.

Numa banqueta ao lado da cama, uma garrafa de aço inoxidável estava molhada pela condensação. Maria tirou a tampa da garrafa de água, e com uma colher de cabo longo catou uma pedrinha de gelo. Colocando a mão esquerda em concha debaixo da colher para colher gotas, ela conduziu a pedrinha brilhosa até a boca de Agnes.

O gelo não estava apenas frio e molhado; estava delicioso, e parecia estranhamente doce, como se fosse um naco de chocolate preto. Quando Agnes mastigou o gelo, a enfermeira disse:

— Não, não. Não engula de uma vez. Deixe que derreta. : Esta admoestação, feita com absoluta seriedade, deixou Agnes preocupada. Se

uma quantidade tão pequena de gelo mastigado, engolida de uma vez, pudesse causar-lhe náusea e nova hemorragia, ela devia estar extremamente frágil. Uma das sombras que ainda pairavam no quarto poderia ser a Morte, mantendo uma vigília teimosa.

Ela estava tão quente que o gelo derreteu depressa. Uma gota escorreu devagar por sua garganta, mas não o suficiente para tirar o Saara de sua voz quando ela disse:

— Mais.

— Só uma — concedeu a enfermeira.

Maria pescou outro pedacinho de gelo na garrafa, rejeitou-o e colheu um maior. Ela hesitou, fitando-o por um momento, e então colocou-o com a colher entre os lábios de Agnes.

— Água pode ser arrebentada se primeiro for feita de gelo.

Esta pareceu uma declaração de grande mistério e beleza, e Agnes ainda meditava sobre ela quando o último gelo derreteu em sua língua. Em lugar de mais gelo, ela foi alimentada com sono, tão negro e delicioso quanto uma barra de chocolate.

 

QUANDO O DR. JIM PARKHURST fez a sua ronda noturna, Júnior parou de fingir que dormia e fez perguntas honestas cujas respostas já conhecia por ter escutado a conversa entre o médico e o detetive Vanadium.

Sua garganta ainda parecia em carne viva devido à erupção de vómito, queimada por ácido estomacal, e sua voz, ao mesmo tempo rouca e esganiçada, parecia a de um personagem daquele programa infantil de fantoches que era exibido nas manhãs de sábado. Se não fosse a dor, ele estaria se sentindo ridículo, mas a sensação de ranhura e calor causada por cada palavra através de sua garganta incapacitava-o a sentir qualquer emoção que não fosse pena de si mesmo.

Embora agora tivesse ouvido duas vezes o médico explicar a crise emética nervosa aguda, Júnior ainda não entendia como o choque de perder sua esposa poderia tê-lo feito passar mal de forma tão violenta e repugnante.

— Você não teve episódios anteriores como este? — indagou Parkhurst, em pé ao lado da cama com um prontuário nas mãos, os óculos de meia-taça para leitura posicionados na ponta do nariz.

— Não, nunca.

— Crises eméticas periódicas sem causa aparente podem indicar ataxia loco-motora, mas como você não teve outros sintomas disso, eu não me preocuparia com a possibilidade de acontecer de novo.

Júnior fez uma careta só em pensar na chance de outra cascata de vómito.

— Eliminamos a maioria das outras causas possíveis — relatou Parkhurst. — Você não tem mielite ou meningite aguda. Ou anemia cerebral. Nenhuma concussão. Você não tem outros sintomas de doença de Ménière. Amanhã faremos alguns testes para detectar chances de tumor ou lesão cerebral, mas acredito que nenhuma dessas doenças será a explicação.

— Crise emética nervosa aguda — coaxou Júnior. — Nunca me considerei uma pessoa nervosa.

— Mas isso não significa que você seja nervoso nesse sentido. Neste caso nervoso significa psicologicamente induzido. Enoch, pense bem. Dor, choque e horror... essas coisas exercem efeitos físicos profundos.

— Ah.

O rosto do velho médico desabou em piedade.

— Você amava muito a sua esposa, não a amava?

Idolatrava-a, tentou dizer Júnior, mas a emoção obstruía sua garganta como uma grande bola de catarro. Seu rosto se contorceu com uma dor que ele não precisou fingir e, para sua surpresa, sentiu lágrimas aflorarem em seus olhos.

Alarmado, preocupado com essa reação emocional de seu paciente conduzir a um surto de choro, que por sua vez poderia estimular espasmos abdominais e novo vómito, Parkhurst chamou uma enfermeira e prescreveu uma administração imediata de diazepam.

Quando a enfermeira ministrou a injeção em Júnior, Parkhurst disse:

— Você é um homem extraordinariamente sensível, Enoch. Essa é uma qualidade para ser muito admirada num mundo que frequentemente é insensível. Mas no seu estado atual, a sensibilidade é a sua maior inimiga.

Quando o médico voltou à sua ronda, a enfermeira permaneceu com Júnior até ter certeza de que o tranquilizante iria acalmá-lo e que ele não tinha mais nenhum risco em sucumbir a outro surto de vómito hemorrágico.

O nome dela era Victória Bressler, e ela era uma loura atraente. Ela jamais seria uma concorrente séria para Naomi, mas Naomi, afinal de contas, não existia mais.

Quando Júnior reclamou da sede que sentia, Victória explicou que ele não poderia comer nada até a manhã do dia seguinte. Ele seguiria uma dieta rigorosa de líquidos no desjejum e no almoço. Alimentos macios seriam permitidos na hora do jantar.

Enquanto isso, ela podia oferecer-lhe alguns pedacinhos de gelo, que ele estava proibido de mastigar.

— Deixe que derretam em sua boca.

Com o auxílio de uma colher, Victória pegou na garrafa da mesinha-de-cabeceira pedrinhas ovais transparentes — não cubos, mas discos —, um por vez. Colocou o gelo na boca de Júnior, não com a eficiência profissional de uma enfermeira, mas da forma como uma cortesã desempenharia a tarefa: sorrindo provocativa, um brilho de flerte nos olhos azuis, introduzindo lentamente a colher entre os lábios dele com uma deliberação sensual que lhe fez lembrar a cena da alimentação de As aventuras de Tom Jones.

Júnior estava acostumado a ser seduzido por mulheres. Sua boa aparência era uma bênção da natureza. Seu compromisso em aperfeiçoar a sua mente tornava-o interessante. Mais importante, nos livros de Caesar Zedd ele aprendera como ser irresistivelmente charmoso.

E embora não fosse dado a se gabar disso, tinha confiança na sua capacidade de oferecer às mulheres um serviço mais satisfatório do que elas recebiam de outros homens. Talvez boatos sobre seus dotes físicos e sua perícia tivessem chegado aos ouvidos de Victória; as mulheres conversavam sobre esse tipo de coisa entre elas, talvez mais do que os homens.

Considerando suas diversas dores e sua exaustão, Júnior ficou um tanto surpreso com o fato de que esta linda enfermeira, com sua técnica de alimentação sedutora, fosse capaz de excitá-lo. Embora no momento não estivesse em condições para um romance, ele definitivamente estava interessado num caso futuro.

Ele se perguntou como se encaixaria no protocolo um pequeno flerte recíproco quando sua esposa morta ainda não estava nem mesmo enterrada. Ele não queria parecer um gavião. Queria que Victória o visse com bons olhos. Devia haver uma abordagem charmosa e civilizada que fosse apropriada, até elegante, mas que não deixasse qualquer dúvida na mente dessa enfermeira de que ela o excitava.

Cuidado.

Vanadium iria descobrir. Fosse qual fosse o nível de sutileza e dignidade com que Júnior respondesse a Victória, Thomas Vanadium descobriria a respeito do seu interesse erótico. De alguma forma. De algum jeito. Victória não iria querer testemunhar a respeito da atração erótica imediata e elétrica entre ela e Júnior, não iria querer ajudar as autoridades a colocá-lo na prisão, o que impediria a concretização de sua paixão por ele; mas Vanadium farejaria o segredo de Victória e a convenceria a sentar-se no banco da testemunha.

Júnior não podia dizer nada que pudesse ser citado num tribunal. Ele não podia nem mesmo permitir-se uma única piscadela lasciva ou uma carícia rápida na mão de Victória.

A enfermeira deu-lhe outra colherada carinhosa.

Sem dizer uma palavra sequer, sem ousar encontrar os seus olhos e trocar um olhar significativo, Júnior aceitou o gelo oval no mesmo espírito com o qual essa linda mulher o ofereceu. Ele prendeu a concha da colher na boca por um longo momento, de modo a dificultar sua remoção e, fechando os olhos, gemeu de prazer, como se o gelo fosse um pedaço de ambrósia, o alimento dos deuses, como se fosse uma colherada da própria enfermeira que ele estivesse saboreando. Quando ele finalmente liberou a colher, ele o fez lambendo-a de forma sugestiva. Quando seus lábios estavam livres do metal frio, ele também os lambeu.

Abrindo os olhos, ainda não ousando encontrar o olhar de Victória, Júnior entendeu que ela tinha registrado e interpretado apropriadamente a sua resposta à colherada sedutora. Ela estava congelada, o utensílio imóvel no ar, e sua respiração ficara presa na garganta. Estava excitada.

Nenhum deles precisou conformar sua atração mútua com um aceno ou sorriso adicional. Victória sabia, assim como ele, que o seu momento chegaria, quando a situação desagradável tivesse ficado para trás, quando Vanadium tivesse sido rechaçado, quando todas as suspeitas tivessem sido esquecidas para sempre.

Eles podiam ser pacientes. A abnegação e a antecipação garantiriam que o momento em que fizessem amor, quando finalmente estariam em segurança para desfrutá-lo, seria estilhaçador em sua intensidade, como a cópula de mortais elevados à condição de semideuses por virtude de sua paixão, seu poder e pureza.

Júnior aprendera recentemente a respeito dos semideuses da mitologia clássica numa das seleções do Clube do Livro.

Quando Victória finalmente acalmou o seu coração acelerado, ela devolveu a colher para a mesa-de-cabeceira, fechou a garrafa e disse:

— Isso basta por enquanto, sr. Caim. Na sua condição, até mesmo gelo derretido em excesso poderia provocar mais vómito.

Júnior ficou impressionado e deliciado com a forma como a enfermeira conseguiu manter seu tom de voz e seu comportamento num estilo estritamente profissional, mascarando convincentemente o seu desejo intenso. A doce Victória daria uma excelente cúmplice.

— Obrigado, enfermeira Bressler — disse ele muito solene, combinando o tom de Victória, quase não conseguindo controlar o impulso de olhar para ela, sorrir e dar-lhe outra prévia de sua língua rápida e rosada.

— Mandarei outra enfermeira vir olhá-lo ocasionalmente.

Agora que nenhum deles tinha qualquer dúvida de que o outro compartilhava a mesma necessidade e que um dia teriam de satisfazer um ao outro, Victória estava optando pela discrição. Mulher inteligente.

— Eu compreendo — disse ele.

— Você precisa descansar — aconselhou, dando as costas para a cama.

Sim, ele suspeitava de que precisaria descansar para se preparar para essa beldade. Mesmo em seu uniforme branco folgado e sapatos de sola de borracha, ela era uma figura incomparavelmente erótica. Devia ser uma leoa na cama.

Depois que Victória se retirou, Júnior ficou parado sorrindo para o teto, flutuando em Valium e desejo. E vaidade.

Neste caso, tinha certeza de que a vaidade não era uma falha, não o resultado de um ego inchado, mas meramente auto-estima saudável. O fato de ser irresistível às mulheres não era simplesmente sua opinião tendenciosa, mas um fato observável e inegável, como a gravidade ou a ordem segundo a qual os planetas giravam em torno do sol.

Contudo, precisava admitir que estava surpreso com o fato de a enfermeira Bressler mostrar-se fortemente compelida a entregar-se a ele, ainda que estivesse com seu prontuário na mão e soubesse que ele recentemente havia sido um autêntico gêiser de vómito pútrido, que durante o trajeto na ambulância havia perdido também o controle da bexiga e dos intestinos, e que poderia a qualquer momento sofrer uma recaída explosiva. Este era um testemunho notável do desejo animal que ele inspirava nas mulheres mesmo sem tentar, do magnetismo poderosamente másculo que era tão integrante de seu ser quanto o cabelo louro e espesso.

 

AGNES, DE UM SONHO de perda insuportável, acordou com o rosto banhado em lágrimas mornas.

O hospital estava alagado pelo silêncio abissal que enche os locais de habitação humana apenas durante as últimas horas antes do alvorecer, quando os sentimentos de necessidade, fome e medo de um dia são esquecidos e os do dia seguinte ainda estão por ser descobertos, quando a nossa espécie atormentada aflora por um instante à tona do mar de insensatez no qual tenta nadar desesperadamente.

A extremidade superior da cama estava elevada. Se não estivesse, Agnes não conseguiria ver o quarto, porque se sentia fraca demais para erguer a cabeça acima dos travesseiros.

As sombras ainda cobriam a maior parte do quarto. Elas não mais a faziam lembrar pássaros empoleirados, mas um bando desnudo de penas, com o couro das asas exposto e olhos vermelhos, com um gosto por refeições inomináveis.

A única luz vinha de um abajur de leitura. Um braço ajustável direcionava a luz para uma cadeira.

Agnes estava tão cansada, seus olhos tão doloridos e ardidos, que até essa luz fraca a incomodou. Quase fechou os olhos e se rendeu novamente ao sono, aquele irmão mais novo da Morte, que agora era o seu único consolo. Contudo, o que viu à luz do abajur instigou a sua atenção.

A enfermeira não estava mais ali, porém Maria continuava a postos, sentada numa poltrona de braços de vinil e aço inoxidável, ocupada com alguma tarefa à luz âmbar do abajur.

— Você devia estar com as suas filhas — preocupou-se Agnes. Maria levantou os olhos do que estava fazendo.

— Minhas filhas estão com minha irmã.

— Por que você está aqui?

— Onde mais eu devia estar e por quê? De olho em você.

Quando as lágrimas deixaram os olhos de Agnes, desanuviando-os, ela viu que Maria estava costurando. Uma bolsa de compras estava a um lado da cadeira, e do outro lado, aberto no assoalho, uma caixa continha carretéis de linha, agulhas, uma almofada de alfinetes, um par de tesouras e outras ferramentas de trabalho para uma costureira.

Maria estava reparando à mão algumas das roupas de Joey, aquelas que Agnes danificara meticulosamente no dia anterior.

— Maria?

— Qué?

— Você não precisa.

— Não precisa o quê?

— Não precisa consertar mais essas roupas.

— Eu conserto — insistiu.

— Você sabe sobre... Joey? — perguntou Agnes, sua voz engrossando tanto ao dizer o nome do marido que as duas sílabas quase não saíram de sua garganta.

— Sei...

— Então, por quê?

A agulha dançava nos seus dedos ágeis.

— Não conserto mais pelo inglês. Conserto pelo sr. Lampion apenas.

— Mas... ele se foi.

Maria não disse nada, trabalhando atentamente, mas Agnes reconheceu aquele silêncio especial no qual palavras difíceis são procuradas e laboriosamente costuradas.

Finalmente, com a emoção tão intensa que quase não conseguiu falar, Maria disse:

— É... a única coisa... eu posso fazer agora por ele, por você. Eu sou ninguém, não posso consertar nada importante. Mas conserto isto. Conserto isto.

Agnes não suportaria continuar vendo Maria costurar. A luz não doía mais em seus olhos, mas o seu novo futuro, que estava começando a surgir no horizonte, tão pontiagudo quanto agulhas e alfinetes, era uma tortura para os olhos.

Ela dormiu um pouco, acordando ao ouvir uma oração em espanhol, dita baixa, mas fervorosamente.

Maria estava parada ao lado da cama, um rosário de prata e ônix enrolado com força em torno de suas mãos pequenas e castanhas, embora ela não estivesse contando as contas ou murmurando ave-marias. A oração era pelo bebé de Agnes.

Gradualmente, Agnes compreendeu que essa não era a prece pela alma de uma criança falecida, mas pela sobrevivência de uma que ainda estava viva.

No momento ela era forte como uma rocha, mas apenas no sentido de que se sentia tão imóvel quanto uma. Porém, mesmo assim conseguiu encontrar os recursos para levantar um braço e colocar sua mão esquerda sobre os dedos envoltos por contas.

— Mas o bebé está morto.

— Senora Lampion, não — disse Maria, surpresa. — Muy enfermo mas não morto.

Agnes lembrou do sangue, o horrível sangue vermelho. A dor excruciante e as horríveis torrentes escarlates. Tinha pensado que o bebé havia entrado no mundo natimorto numa onda vermelha, composta por seu próprio sangue e o de sua mãe.

— É um menino?

— Sim, senora. Menino bonito.

— Bartholomew — disse Agnes.

— O que senhora disse? — perguntou Maria.

— O nome dele. — Ela apertou a mão na de Maria. — Quero vê-lo.

— Muy enfermo. Eles estão com ele guardado como ovo de galinha. Como ovo de galinha. Cansada como estava, Agnes não conseguiu decifrar

imediatamente o significado dessas quatro palavras. Então:

— Ah, ele está numa incubadora.

— Que olhos! — disse Maria.

— Qué? — perguntou Agnes.

— Os anjos devem ter olhos bonitos como aqueles.

Soltando as mãos de Maria, abaixando as suas para o seu coração, Agnes disse:

— Quero ver ele.

Depois de fazer o sinal-da-cruz, Maria explicou:

— Médicos manter bebé chocando até ele não ser perigoso. Quando a enfermeira entrar, eu fazer ela dizer quando o bebé seguro. Mas não posso deixar você. Eu vigio você.

A despeito da alegria sentida por Agnes, ela não podia permanecer flutuando no rio de sono do qual acabara de aflorar. Contudo, desta vez afundou em correntes mais profundas com esperança renovada e com este nome mágico, que cintilava em sua mente em ambos os lados da consciência: Bartholomew, enquanto o quarto de hospital e Maria sumiam de sua percepção, e também Bartholomew em seus sonhos. O nome afugentou pesadelos. Bartholomew. O nome a sustentou.

 

SUANDO DE MEDO COMO um porco na rampa do abatedouro, Júnior acordou de um pesadelo do qual não se podia lembrar. Alguma coisa queria alcançá-lo — isso era tudo que ele podia lembrar-se, mãos esticando-se em meio às trevas para pegá-lo —, e então ele estava acordado, arfante.

A noite ainda se premia contra o vidro do outro lado da persiana.

O abajur no canto do quarto estava aceso, mas a cadeira que ficava ao seu lado não se achava mais lá. Tinha sido movida para mais perto da cama de Júnior.

Vanadium estava sentado na cadeira, observando. Com a coordenação perfeita de um mágico, fazia uma moedinha de 25 cents dar cambalhotas sobre os nós dos dedos da mão direita, espalmava-a com o polegar, fazia-a reaparecer no mindinho, e então a moedinha percorria de novo os nós dos dedos, num processo incessante.

O relógio na cabeceira da cama marcava 4:37.

Aparentemente, o detetive jamais dormia.

— Tem uma canção muito bonita do George e do Ira Gershwin chamada "Someone to Watch Over Me"... Alguém para me vigiar. Você já a ouviu, Enoch? Eu sou esse alguém para você, embora não, é claro, num sentido romântico.

— Quem... quem é você? — disse Júnior, a voz saindo rascante.

Ainda estava abalado pelo pesadelo e pela presença de Vanadium, mas graças à rapidez de pensamento conseguiu manter-se no personagem inocente que vinha interpretando.

Em vez de responder à pergunta, implicando que acreditava que Júnior já estava ciente dos fatos, Thomas Vanadium disse:

— Consegui um mandado de busca para revistar sua casa.

Júnior achou que isso podia ser um truque. Não existia nenhuma prova concreta a indicar que Naomi havia morrido por outra causa que não acidental. O palpite de Vanadium — mais acuradamente, a obsessão doentia desse detetive pé-de-chinelo — não era justificativa suficiente para qualquer tribunal emitir um mandado de busca.

Infelizmente, alguns juízes eram facilmente influenciáveis nesses assuntos, para não dizer corruptos. E Vanadium, vendo-se como um anjo vingador, certamente era capaz de mentir à corte para obter um mandado injustificável.

— Eu não... não entendo.

Piscando sonolento, fingindo ainda estar lento devido aos tranquilizantes e outros medicamentos introduzidos em suas veias, Júnior ficou satisfeito com o tom de perplexidade em sua voz rouca, embora soubesse que até mesmo uma atuação merecedora do Oscar não comoveria este crítico.

Um nó de dedo após outro, colhida na rede de carne entre o polegar e o indicador, desaparecendo na palma, secretamente atravessando a mão, reaparecendo, dedo depois de dedo, a moedinha reluzia a cada volta.

— Você tem seguro? — inquiriu Vanadium.

— Claro. Blue Shield — respondeu prontamente Júnior.

Uma risada seca escapou do detetive, uma risada que não trazia nem um pouco do calor que costuma acompanhar o riso das pessoas.

— Você não é ruim, Enoch. Apenas não é tão bom quanto pensa.

— Como disse?

— Não me referi a seguro-saúde. Você tem seguro de vida, Enoch?

— Bem, tenho uma pequena apólice. É um benefício que acompanha o meu trabalho no hospital de reabilitação. Por quê? Que diabos significa tudo isto?

— Uma das coisas que procurei na sua casa foi uma apólice de seguro de vida de sua esposa, tendo você como beneficiário. Não encontrei uma. Não encontrei também nenhum recibo de pagamento das prestações.

Querendo estender um pouco mais a sua pretensa desorientação, Júnior passou a mão no rosto, como se estivesse limpando teias de aranha dele.

— Você disse que esteve na minha casa?

— Sabia que a sua esposa tinha um diário?

— Sim, claro. Um novo a cada ano. Desde que tinha dez anos.

— Alguma vez você o leu?

— Claro que não! — Isso era a mais pura verdade, o que permitiu a Júnior fitar Vanadium com um brilho de indignação nos olhos.

— Por que não?

— Porque seria errado. Um diário é coisa particular.

Ele supunha que para um detetive nada era sagrado, mas ainda assim ficou um pouco chocado com a necessidade de Vanadium em fazer essa pergunta.

Levantando-se da cadeira e se aproximando da cama, o detetive continuou movendo a moeda de 25 cents sobre a mão.

— Ela era uma moça muito boa. Muito romântica. O diário é cheio de rapsódias sobre a vida de casada, sobre você. Ela achava que você era o melhor homem que tinha conhecido e o marido ideal.

Júnior Caim teve a sensação de que o seu coração tinha sido trespassado por uma agulha tão fina que o músculo ainda se contraía rítmica mas dolorosamente em torno dele.

— Ela achava? Ela... ela escreveu isso?

— Às vezes escrevia pequenos parágrafos para Deus, bilhetes de gratidão muito tocantes e humildes, agradecendo a Ele por colocar você na vida dela.

Embora Júnior não compartilhasse das superstições que Naomi, em sua inocência e sentimentalismo, havia nutrido, ele chorou sem fingimento.

Ele estava cheio de remorso por ter suspeitado que Naomi envenenara seu sanduíche de queijo e seus damascos quando, na verdade, ela o havia adorado, como ele sempre acreditara. Ela jamais teria levantado a mão contra ele, jamais. A doce Naomi teria morrido por ele. Na verdade, ela havia.

A moeda parou de dar cambalhotas, e parou deitada entre os nós dos dedos médio e anular da mão direita do detetive. Ele tirou uma caixa de lenços de papel da mesinha-de-cabeceira e a ofereceu ao seu suspeito.

— Tome.

Como o braço direito de Júnior estava estorvado pela tipóia e pela agulha intravenosa, ele tirou uma massa de lenços da caixa com a mão esquerda.

Depois que o detetive havia colocado a caixa de volta na mesinha-de-cabeceira, a moeda voltou a dar cambalhotas.

Enquanto Júnior assoava o nariz e enxugava os olhos, Vanadium comentou:

— Acredito que você realmente a amava de alguma forma estranha.

— Que eu a amava? É claro que eu a amava. Naomi era linda e gentil... e engraçada. Ela foi a melhor... a melhor coisa que já aconteceu comigo.

Vanadium jogou a moeda de 25 cents para o alto, pegou-a na mão esquerda, e continuou movendo-a sobre os nós dos dedos com a mesma rapidez e destreza com que o fizera na mão direita.

Essa demonstração de ambidestria provocou um arrepio em Júnior por motivos que ele não conseguiu analisar completamente. Qualquer mágico amador — de fato, qualquer pessoa que tivesse disponibilidade de praticar por longas horas, mágico ou não — poderia realizar esse truque. Era apenas habilidade, e

não feitiçaria.

— Qual foi o seu motivo, Enoch?

— O meu o quê?

— Você parece não ter tido o motivo. Mas sempre há um, algum interesse egoísta para ser saciado. Se houver uma apólice de seguro, nós iremos rastreá-la e você vai fritar como bacon numa frigideira quente. — Como sempre, a voz do detetive saiu num arrastado monótono; ele não havia feito uma ameaça emocional, mas uma promessa plácida.

— Você é um agente de policial — disse Júnior, arregalando os olhos numa surpresa calculada.

O detetive sorriu. Um sorriso de sucuri, inspirado pela contemplação de um estrangulamento impiedoso.

— Antes de acordar, você estava sonhando. Não estava? Parece que foi um pesadelo.

Esta mudança repentina no interrogatório enervou Júnior. Vanadium tinha um talento para manter um suspeito sem equilíbrio. Uma conversa com ele era como uma cena num filme sobre Robin Hood: uma batalha com varas numa ponte de tronco sobre um rio.

— Sim... Eu ainda estou empapado de suor.

— Com o que você estava sonhando, Enoch? Ninguém podia prendê-lo por causa dos seus sonhos.

— Não consigo lembrar. Esses são os piores... os que você depois não consegue lembrar, não acha? Eles sempre parecem muito bobos quando você consegue lembrar os detalhes. Quando você vê um vazio... eles são ainda mais ameaçadores.

— Você falou um nome enquanto dormia.

Isso provavelmente era uma mentira. O detetive devia estar armando uma armadilha para ele. De repente, Júnior desejou ter negado o seu pesadelo.

— Bartholomew — disse Vanadium.

Júnior piscou e não ousou dizer nada, porque não conhecia ninguém chamado Bartholomew, e agora tinha certeza de que o tira estava tecendo uma teia para pegá-lo. Por que teria falado um nome que não significava nada para ele?

— Quem é Bartholomew? — indagou Vanadium. Júnior balançou a cabeça negativamente.

— Você falou o nome duas vezes.

— Não conheço ninguém chamado Bartholomew. — Ele decidiu que a verdade, neste caso, não podia causar-lhe nenhum mal.

— Você parecia muito nervoso. Parecia ter medo desse tal Bartholomew.

A bola de lenços de papel molhados foi apertada tão forte na mão esquerda de Júnior que se o seu conteúdo de carbono fosse maior, teria sido compactado num diamante. Ele viu Vanadium fitando o seu punho cerrado e seus nós de dedos esbranquiçados. Ele tentou afrouxar o aperto sobre a bola de lenços de papel, mas não conseguiu.

Inexplicavelmente, cada repetição do nome Bartholomew aumentava a ansiedade de Júnior. O nome ressoava não apenas em seu ouvido, mas em seu sangue e ossos, em seu corpo e mente, como se ele fosse um grande sino de bronze e Bartholomew o badalo.

— Talvez ele seja um personagem que vi num filme ou li num romance. Sou membro do Clube do Livro. Estou sempre lendo alguma coisa. Não me lembro de um personagem chamado Bartholomew, mas talvez tenha lido o livro anos atrás.

Júnior percebeu que as palavras estavam saindo dele como balas de uma metralhadora, e fez um esforço para se calar.

Levantando lentamente como o machado nas mãos de um assassino tão frio quanto um contador, os olhos de Thomas Vanadium subiram do punho cerrado de Júnior para o seu rosto.

A marca de nascença cor de vinho parecia mais escura que antes, e com um padrão diferente do que Júnior lembrava.

Se os olhos cinzentos do policial antes haviam sido tão duros quanto cabeças de pregos, agora eram pontos, e atrás deles havia força de vontade suficiente para introduzir cavilhas em pedras.

— Meu Deus, você acha que Naomi foi assassinada, não acha? — disse Júnior, fingindo que a medicação perdera o efeito e que ele agora estava pensando com clareza.

Em vez de iniciar o confronto que vinha forçando desde o começo de sua visita, Vanadium surpreendeu Júnior quebrando o contato visual, dando as costas para ele e cruzando o quarto até a porta.

— É ainda pior — disse Júnior num tom rouco, convencido de que perderia alguma vantagem indefinida se o policial se retirasse agora, não permitindo que o momento transcorresse conforme aconteceria em algum seriado intelectual policial como Perry Mason ou Peter Gunn.

Parando diante da porta sem abri-la, Vanadium virou-se para fitar Júnior, mas não disse nada.

Acrescentando à voz torturada todo o choque e mágoa que conseguiu, como se profundamente ferido pela necessidade de falar essas palavras, Caim Júnior disse:

— Você... você acha que eu matei ela, não acha? Isso é loucura.

O detetive levantou ambas as mãos, palmas voltadas para Júnior, dedos afastados. Depois de uma pausa, ele mostrou as costas das mãos — e então, mais uma vez, as palmas.

Por um momento, Júnior ficou mistificado. Os movimentos de Vanadium tinham a qualidade de um ritual, vagamente reminescentes de um padre erguendo a Eucaristia.

A mistificação lentamente deu lugar ao entendimento. A moeda havia sumido. Júnior não notara quando o detetive tinha parado de fazer a moedinha dar cambalhotas nos nós dos dedos.

— Talvez você possa tirá-la da sua orelha — sugeriu Thomas Vanadium. Júnior realmente levantou sua trémula mão esquerda até a orelha, esperando

encontrar a moeda enfiada em seu canal auditivo, segura entre o trago e o antítrago, esperando ser retirada com um floreio. A orelha estava vazia.

— Mão errada — aconselhou Vanadium.

Amarrado à tipóia, semi-imobilizado para impedir o deslocamento acidental do tubo intravenoso, o braço direito de Júnior estava adormecido, enrijecido devido ao desuso.

A mão suplicante não parecia ser uma parte dele. Tão pálida e exótica quanto uma anêmona-do-mar, os dedos longos dobrados como tentáculos em torno da boca da anémona, posicionados para capturar qualquer caça que passasse por perto.

Como um peixe circular com escamas prateadas, a moedinha jazia na palma de Júnior. Diretamente sobre a sua linha da vida.

Não acreditando em seus olhos, Júnior esticou a mão esquerda sobre o próprio corpo e pegou a moeda. Embora tivesse estado sobre a sua mão direita, ela estava fria. Gelada.

Como milagres não existiam, a materialização da moeda na mão era impossível. Vanadium estivera parado apenas no lado esquerdo da cama. Em nenhum momento ele havia se inclinado sobre Júnior ou esticado o braço sobre ele.

Ainda assim, a moeda era tão real quanto Naomi morta e quebrada na ribanceira de pedra no sopé da torre de incêndio.

Num estado de pasmo absoluto entrelaçado mais com medo do que com deleite, ele levantou os olhos da moeda, procurando extrair uma explicação de Vanadium, esperando ver a sucuri sorrir.

A porta estava fechada. Sem fazer nenhum barulho mais alto do que o dia ao se tornar noite, o detetive havia saído.

 

Serafina Aetionema White não parecia em nada com o seu nome, exceto que tinha um bom coração e uma alma tão generosa quanto a de qualquer um dos arautos do Paraíso. Ela não tinha asas, como os anjos dos quais tomara emprestado os nomes, e não podia cantar tão docemente quanto o Serafim, porque tinha sido abençoada com uma voz rouca e com timidez demais para ser uma cantora. Etionemas eram flores delicadas, rosadas; e embora esta jovem, de apenas dezesseis anos, fosse bela sob qualquer padrão, ela não era delicada; era forte e dificilmente seria arrancada do solo, mesmo pelo vento mais violento.

As pessoas que haviam acabado de conhecê-la e aquelas que ficavam encantadas com sua excentricidade chamavam-na Serafina, seu nome completo. Seus professores, vizinhos e conhecidos ocasionais chamavam-na de Sera. Aqueles que a conheciam melhor e a amavam mais profundamente — como sua irmã, Celestina —, chamavam-na Fimie.

Desde o momento em que a menina foi admitida, na noite de 5 de janeiro, as enfermeiras no Hospital St. Mary em San Francisco também chamaram-na Fimie, não porque a conhecessem bem o bastante para amá-la, mas porque foi o nome que ouviram Celestina usar.

Fimie compartilhou o quarto 724 com uma mulher de 86 anos — Neila Lombardi — que estava em coma profundo induzido por derrame há oito dias, e que fora recentemente removida da UTI quando seu estado se estabilizou. Seus cabelos brancos estavam radiantes, mas o rosto que eles enquadravam era cinzento como rocha, sua pele absolutamente desprovida de brilho.

A sra. Lombardi não tinha visitantes. Ela era sozinha no mundo; seus dois filhos e o marido tinham falecido há muito tempo.

Durante o dia seguinte, 6 de janeiro, quando Fimie foi conduzida pelo hospital numa cadeira de rodas para testes em diversos departamentos, Celestina permaneceu no 724, trabalhando no seu portfólio para uma aula de desenho avançado. Ela era caloura na faculdade de artes plásticas.

Ela colocou de lado um retrato quase terminado de Fimie para desenvolver vários de Neila Lombardi.

Apesar dos estragos da doença e da velhice, a beleza permanecia no rosto da velha senhora. Sua estrutura óssea era soberba. Quando jovem, ela devia ter sido deslumbrante.

Celestina pretendia capturar Neila como ela era agora, cabeça deitada no travesseiro daquele que talvez fosse o seu leito de morte, olhos fechados e boca entreaberta, rosto pálido mas sereno. Em seguida iria desenhar mais quatro retratos, usando estrutura óssea e outras evidências fisiológicas para imaginar qual havia sido a aparência da mulher aos sessenta, quarenta, vinte e dez anos.

Em geral, quando Celestina estava tensa, a sua arte era um refúgio perfeito de suas aflições. Quando ela estava planejando, esboçando e finalizando, o tempo não tinha qualquer significado para ela, e a vida não tinha dor.

Mas neste dia marcante o desenho não lhe ofereceu qualquer conforto. De vez em quando as suas mãos tremiam, e ela não conseguia segurar o lápis.

Durante esses momentos em que estava abalada demais para desenhar, ela ficou parada diante da janela, olhando para os prédios da cidade.

A beleza singular de San Francisco e a patina rara de sua história colorida falava ao seu coração e acendia em Celestina uma paixão tão irracional que às vezes ela se perguntava, ao menos meio seriamente, se vivera outras vidas aqui. Muitas vezes as ruas haviam lhe parecido estranhamente familiares desde o primeiro momento em que pisara nelas. Certas casas grandes, datando do final do século XIX e começo do XX, inspiravam-na a imaginar festas elegantes realizadas ali em épocas mais elegantes e douradas, e seus voos de imaginação ocasionalmente adquiriam detalhes tão vívidos que pareciam lembranças.

Desta vez, até San Francisco, sob um céu azul raiado por compridas nuvens prateadas e douradas, não acalmou os nervos de Celestina. Ela não conseguia expulsar da mente o dilema de Fimie, como conseguiria com qualquer um dos seus próprios. Mas isso era compreensível. Ela jamais estivera numa situação tão horrível quanto essa em que sua irmã se encontrava agora.

Nove meses atrás Fimie tinha sido estuprada.

Envergonhada e assustada, não contara a ninguém. Embora uma vítima, ela culpara a si própria, e a perspectiva de ser exposta ao ridículo aterrorizou-a tanto que o desespero expulsou toda a lógica de seu raciocínio.

Quando descobriu que estava grávida, Fimie lidou com esse novo trauma da mesma forma como outras adolescentes de quinze anos haviam feito: tentou evitar o desprezo e a reprovação que imaginava que seria despejada sobre ela por não ter revelado o estupro quando ele acontecera. Sem nenhum pensamento sério com as consequências a longo prazo, concentrando-se apenas no momento, num estado de negação, ela fez planos para ocultar sua condição pelo máximo de tempo possível.

Em sua campanha para manter seu ganho de peso a um mínimo, a anorexia foi sua aliada. Aprendeu a encontrar prazer nas dores da fome.

Quando comia, tocava apenas alimentos nutritivos, uma dieta mais bem balanceada do que ela seguira em qualquer outro momento de sua vida. Ainda que no seu desespero evitasse a contemplação do nascimento que inevitavelmente se aproximava, ela estava se esforçando ao máximo para assegurar a saúde do bebé enquanto permanecia magra o bastante para evitar suspeitas.

Contudo, durante os nove meses de pânico silencioso, Fimie ficou menos racional a cada semana, recorrendo a medidas imprudentes que puseram em risco sua própria saúde e a do bebé, ainda que ela evitasse comida defast-food e tomasse multivitamínicos diariamente. Para ocultar as mudanças em sua psique, ela usava roupas folgadas e envolvia a barriga em bandagens. Mais tarde, passou a usar uma cinta para obter uma compressão mais dramática.

Como sofrera uma lesão na perna seis semanas antes de ser estuprada, sendo submetida a uma cirurgia do tendão, Fimie podia alegar ainda sentir sintomas, obtendo dispensa das aulas de educação física — e evitando assim a descoberta de sua condição — desde o começo do período letivo, em setembro.

Durante a última semana de gravidez, a mulher média já ganhou doze quilos. Tipicamente, três a quatro desses quilos pertencem ao feto. A placenta e o fluido amniótico pesam um quilo e meio. Os cerca de oito quilos restantes devem-se à retenção de água e ao armazenamento de gordura.

Fimie engordou menos de cinco quilos. Sua gravidez não teria sido detectada nem mesmo sem a cinta.

No dia anterior à internação no St. Mary, ela acordou com dor de cabeça, náusea e tonteira. Uma dor abdominal feroz também a afligia, como nada que tivesse conhecido antes, embora não fossem as contrações indicativas do trabalho de parto.

Pior ainda, estava atormentada por problemas de visão assustadores. No começo, a sua visão ficou apenas um pouco anuviada. Em seguida, começou a ver vaga-lumes transparentes dançando na periferia de sua visão. Então uma cegueira repentina, de último minuto, que a deixou absolutamente aterrorizada, ainda que tenha passado depressa.

A despeito desta crise, e embora estivesse ciente de que faltava de uma semana a dez dias para o parto, Fimie ainda não conseguia encontrar coragem suficiente para contar a seus pais.

O reverendo Harrison White, o pai delas, era um batista cumpridor das leis de sua religião e um bom homem, não sendo autoritário ou rígido demais. A mãe, Grace, combinava perfeitamente com o nome.

Quando foi acometida, naquele mesmo dia, por um segundo e mais longo momento de cegueira, ela estava sozinha em casa. Saiu se arrastando do quarto, atravessou o corredor e tateou para encontrar o caminho até o telefone no quarto de seus pais.

Celestina estava em sua pequena quitinete, trabalhando alegremente num auto-retrato cubista, quando sua irmã ligou. A julgar pela histeria e incoerência inicial de Fimie, Celestina pensou que sua mãe e seu pai — ou ambos — tinham morrido.

Ao saber dos fatos reais, Celestina sentiu no coração a mesma dor que teria sentido se houvesse, realmente, perdido um dos pais. O pensamento de sua preciosa irmã sendo violentada deixou-a quase doente de tristeza e raiva.

Horrorizada com os nove meses de isolamento emocional auto-imposto pela garota, bem como com seu sofrimento físico, Celestina estava ansiosa por contatar sua mãe e seu pai. Quando os White juntavam-se como uma família, seu brilho podia clarear até a noite mais densa.

Embora tenha recuperado a visão enquanto falava com a irmã, Fimie não recuperou a razão. Ela rogou a Celestina que não comunicasse o acontecido aos pais em uma ligação interurbana, nem que chamasse um médico; queria apenas que Celestina estivesse com ela quando divulgasse o seu segredo mais terrível.

Temendo arrepender-se, Celestina prometeu fazer o que Fimie queria. Ela confiava nos instintos do coração quase tanto quanto confiava na lógica, e o apelo lacrimoso de uma irmã amada era uma limitação poderosa ao bom senso. Ela não tinha tempo de fazer as malas. Miraculosamente, uma hora depois estava num avião para Spruce Hills, Oregon, através de Eugene.

Três horas depois de receber o telefonema, estava ao lado de sua irmã. Na ante-sala da paróquia, sob os olhares de Jesus e John F. Kennedy, cujos retratos estavam pendurados lado a lado, a menina revelou aos pais o que havia sido feito a ela, e o que, em seu desespero e confusão, fizera a si mesma.

Fimie recebeu o amor envolvente e incondicional de que tanto precisara por nove meses, aquele amor puro que ela, irracionalmente, julgara-se indigna de receber.

Embora o abraço da família e o alívio da revelação tenham tido um efeito calmante, fazendo com que readquirisse um pouco da razão que havia perdido, Fimie recusou-se a revelar a identidade de quem a estuprara. O homem havia ameaçado matá-la e aos seus parentes se ela levantasse testemunho contra ele, e Fimie acreditava que essa ameaça era sincera.

— Criança, ele jamais tocará novamente em você — disse o reverendo. — Eu e o Senhor providenciaremos para que isso não aconteça, e embora nem eu nem o Senhor tenhamos o recurso das armas, a polícia tem.

O estuprador tinha aterrorizado tanto a garota, tinha imprimido tão indelevelmente a ameaça em sua mente, que ela não seria convencida de forma alguma a fazer esta última revelação.

Com persistência gentil, a mãe apelou ao senso de responsabilidade moral da filha. Se esse homem não fosse preso, julgado e condenado, cedo ou tarde ele atacaria outra garota.

Fimie não cedeu.

— Ele é louco. Doente. Ele é mau. — Ela estremeceu num arrepio. — Ele vai cumprir a palavra, vai matar todos nós, e não vai se preocupar com a chance de ser morto num tiroteio com a polícia ou ir para a cadeira elétrica. Se eu contar quem ele é, nenhum de vocês estará seguro.

O consenso, entre Celestina e os seus pais, foi de que Fimie não seria convencida nesse tocante antes que a criança nascesse. Ela estava frágil e ansiosa demais para fazer o que era correto agora, e não havia motivo para pressioná-la neste momento.

O aborto era ilegal, e os pais de Fimie teriam ficado relutantes, devido à sua fé, a considerar isso, até mesmo sob as piores circunstâncias. Além disso, com Fimie tão perto de parir, e considerando os danos físicos que provavelmente causara a si mesma, com a dieta absurda e o uso contínuo da cinta, o aborto era uma opção perigosa.

Ela precisava obter atenção médica imediatamente. A criança seria oferecida para adoção por pessoas capazes de amá-la e que não veriam nela, para sempre, a imagem de seu odiado progenitor.

— Não posso ter o bebé aqui — insistiu Fimie. — Ele vai ficar furioso se descobrir que estou com o bebé dele. Eu sei que vai.

Ela queria ir para San Francisco com Celestina, ter o filho na cidade, onde o pai e, não incidentalmente, os amigos dela e os paroquianos do reverendo White jamais saberiam que tinha dado à luz. Quanto mais seus pais e a irmã argumentavam contra este plano, mais agitada Fimie ficava. Finalmente cederam, preocupados com a possibilidade da saúde física e mental da jovem ser posta em risco se não o fizessem.

Os sintomas que haviam aterrorizado Fimie — a dor de cabeça, a dor abdominal fortíssima, a tonteira, os problemas de visão — tinham sumido por completo. Possivelmente eles tinham sido de natureza mais psicológica que física.

Esperar mais algumas horas antes de colocar Fimie sob cuidados médicos podia ser arriscado. Mas também seria perigoso forçá-la a um hospital local e submetê-la ao constrangimento que queria evitar desesperadamente.

Ao invocar a palavra emergência, Celestina rapidamente conseguiu falar com o seu próprio médico, em San Francisco. Ele concordou tratar Fimie e interná-la no St. Mary assim que chegasse do Oregon.

O reverendo não podia fugir de seus compromissos com a igreja, mas Grace quis ir com as filhas. Fimie, entretanto, implorou para que apenas Celestina a acompanhasse.

Embora a garota fosse incapaz de articular por que preferia não ter a mãe ao seu lado, todos eles entendiam o tumulto em seu coração. Ela não queria sujeitar sua mãe gentil e correta à mesma vergonha que sentia agora, e que presumia que cresceria intoleravelmente nas horas ou dias à frente, até o nascimento, e mesmo depois.

Grace, obviamente, era uma mulher forte para quem a fé era uma armadura resistente a coisas bem piores do que o constrangimento. Celestina sabia que mamãe iria sofrer muito mais permanecendo no Oregon do que ao lado de sua filha, mas Fimie era jovem, inexperiente e assustada demais para entender que nessa questão, como em todas as outras, a sua mãe era uma pilastra, não um junco.

Com a mesma facilidade surpreendente com que conseguira um vôo de San Francisco para o Oregon em apenas uma hora, Celestina reservou dois lugares num dos primeiros voos da noite, como se possuísse um agente de viagens sobrenatural.

No ar, Fimie reclamou de um zumbido nos ouvidos, que podia ter relação com o vôo. Também sofreu de um episódio de visão dupla e, no aeroporto depois do pouso, um sangramento nasal que pareceu relacionado aos sintomas anteriores.

A visão do sangue de sua irmã e a persistência do sangramento deixou Celestina fraca de apreensão. Receava ter feito a coisa errada ao postergar a hospitalização.

Então, a partir do aeroporto internacional de San Francisco, através das ruas envoltas em neblina da cidade, até o Hospital St. Mary, até o quarto 724. E para a descoberta de que a pressão sanguínea de Fimie estava tão alta — 27 por 13 —, que ela estava numa crise de hipertensão, com risco de derrame, insuficiência renal e outras complicações, com risco de vida.

As drogas anti-hipertensivas eram administradas intravenosamente, e Fimie estava confinada à cama, conectada a um monitor cardíaco.

O dr. Leland Daines, o médico de Celestina, chegou diretamente de um jantar no Ritz-Carlton. Embora Daines tivesse cabelos brancos ralos e um rosto marcado por linhas, o tempo havia sido gentil o bastante para deixá-lo com uma aparência mais digna do que velha. Apesar de ter muito tempo de prática, ele não era arrogante e parecia um poço de paciência sem fundo.

Depois de examinar Fimie, que estava nauseada, Daines prescreveu um anti-convulsivante, um antiemético e um sedativo, todos por via intravenosa.

O sedativo era fraco, mas Fimie adormeceu em questão de minutos. Ela estava exausta devido à longa provação e à recente falta de sono.

O dr. Daines falou com Celestina no corredor, diante da porta para o 724. Algumas das enfermeiras que passavam por ali eram freiras vestidas com hábitos completos, deslizando como espíritos pelo corredor.

— Ela teve pré-eclampsia. É uma condição que ocorre em cerca de cinco por cento das gravidezes, virtualmente sempre depois da vigésima quarta semana, e em geral pode ser tratada com sucesso. Mas não vou adoçar a pílula para você, Celestina. No caso da sua irmã a situação é bem mais séria. Ela não teve nenhuma consulta médica, nem qualquer cuidado pré-natal, e está no meio de sua trigésima oitava semana, a cerca de dez dias do parto.

Como eles sabiam a data do estupro, e como o ataque tinha sido a única experiência sexual de Fimie, o dia da impregnação podia ser fixado, e o parto calculado com mais precisão que de costume.

— À medida que se aproxima do termo da gravidez, ela corre mais risco de a pré-eclampsia se desenvolver para uma eclampsia completa.

— O que poderia acontecer então? — perguntou Celestina, temendo a resposta.

— As complicações possíveis incluem hemorragia cerebral, edema pulmonar, insuficiência renal, necrose do fígado e coma... para citar só algumas.

— Eu devia ter levado ela ao hospital lá da nossa cidade. Ele pousou uma mão no ombro dela.

— Não seja tão cruel consigo mesma. Ela já estava nesta situação. E embora eu não conheça o hospital lá no Oregon, duvido que o nível de cuidado seja igual ao que ela receberá aqui.

Agora que esforços estavam sendo feitos para controlar a pré-eclampsia, o dr. Daines havia marcado uma série de testes para o dia seguinte. Ele esperava recomendar uma cesariana assim que a pressão sanguínea de Fimie fosse reduzida e estabilizada, mas não queria arriscar esta cirurgia antes de determinar quais complicações poderiam ter resultado de sua dieta rígida e da compressão do abdómen.

Embora ela já soubesse que a resposta não poderia ser alegremente otimista, Celestina perguntou:

— O bebé pode nascer... normal?

— Espero que nasça normal — disse o médico, mas com ênfase sólida na palavra espero.

No quarto 724, de pé ao lado da cama da irmã, Celestina disse a si mesma que estava reagindo bem. Ela poderia lidar com estas novas complicações sem precisar telefonar para os pais.

Então ela sentiu sua respiração ficar presa no peito várias vezes seguidas, quando sua garganta apertou-se contra o influxo de ar. Uma inalação particularmente difícil dissolveu-se num soluço, e ela chorou.

Ela era quatro anos mais velha do que Fimie. Não tinham se visto muito nos últimos quatro anos, desde que Celestina viera para San Francisco. Embora a distância e o tempo, a pressão de seus estudos e o corre-corre da vida cotidiana não a tivessem feito esquecer que amava Fimie, ela havia esquecido a pureza e o poder desse amor. Redescobrindo-o agora, ficou tão abalada que precisou puxar uma cadeira para o lado da cama e sentar-se.

Ela abaixou a cabeça, cobriu o rosto com as mãos frias e se perguntou como a sua mãe conseguia sustentar sua fé em Deus quando coisas terríveis podiam acontecer a pessoas tão inocentes quanto Fimie.

Por volta da meia-noite retornou ao misto de quitinete e ateliê no qual morava. Luzes desligadas, deitada na cama, fitando o teto, ela não conseguiu dormir.

As persianas estavam levantadas, as janelas expostas. Em geral ela gostava do brilho fumacento, vermelho-dourado da cidade à noite, mas desta vez ele a deixou inquieta.

Ela foi tomada pela sensação estranha de que, caso se levantasse da cama e caminhasse até a janela mais próxima, flagraria os prédios da metrópole escurecidos, cada lâmpada de rua apagada. Na verdade, esta luz sinistra estaria se levantando das grades dos respiradouros do esgoto e dos bueiros abertos nas ruas, vindo não da cidade, mas de um mundo sobrenatural abaixo dela.

O olho interior de uma artista, que jamais se fecha, mesmo quando ela dorme, buscava incessantemente por forma, propósito e significado, como fazia agora no teto acima da cama. Na trama de luz e sombra sobre o gesso moldado à mão, ela viu rostos solenes de bebês — deformados, fitando-a com olhares que clamavam por ajuda — e imagens de morte.

Dezenove horas depois da admissão de Fimie no St. Mary, enquanto a garota era submetida aos testes finais pedidos pelo dr. Daines, o crepúsculo começou a se insinuar no céu de San Francisco, e a cidade mais uma vez foi coberta pelo teto vermelho e dourado que iluminara indiretamente o quitinete-ateliê de Celestina na noite anterior.

Depois de um dia de trabalho, o retrato a lápis de Nella Lombardi estava terminado. A segunda peça da série — uma extrapolação de sua aparência aos sessenta anos — foi iniciada.

Embora Celestina não dormisse há quase 36 horas, a ansiedade estava mantendo os seus pensamentos claros. No momento, suas mãos não tremiam; linhas e sombras fluíam suavemente de seu lápis, como palavras sairiam do lápis de um médium em transe.

Sentada numa cadeira diante da janela, perto da cama de Nella, desenhando numa prancha portátil posta em ângulo, conduzia uma conversa serena e unilateral com a mulher comatosa. Ela recontou histórias sobre como crescera com Fimie... e ficou surpresa com o repertório que possuía.

A garota estava com uma aparência melhor do que Celestina esperara. Embora cansada, ela era toda sorrisos, e seus olhos marrons estavam limpos.

Fimie quis ver o retrato finalizado de Nella e o seu próprio, que estava quase completo.

— Um dia você vai ser famosa, Celie.

— Ninguém é famoso no próximo mundo, nem belo, detentor de títulos ou orgulhoso — disse ela, sorrindo enquanto citava um dos sermões favoritos de seu pai. — Nem poderoso...

— ... nem cruel, raivoso, invejoso ou maligno — recitou Fimie —, porque todas essas coisas são doenças deste vale de lágrimas...

— ... e agora, quando o prato de oferendas passar entre vocês... dê como se você já fosse um cidadão iluminado da próxima vida... e não um habitante hipócrita, desprezível... avarento... e egoísta... deste mundo lastimável. Elas riram e deram-se as mãos. Pela primeira vez desde que Fimie telefonara desesperada do Oregon, Celestina teve a impressão de que tudo ficaria bem novamente.

Minutos depois, mais uma vez numa conferência de corredor com o dr. Daines, ela foi forçada a temperar o seu otimismo.

A pressão de Fimie — teimosamente alta —, a presença de proteína em sua urina e outros sintomas indicavam que sua pré-eclampsia não era um desenvolvimento recente; ela corria um risco maior de eclampsia. Sua hipertensão estava gradualmente ficando sob controle... mas apenas por resultado de uma terapia medicamentosa mais agressiva do que o médico preferia usar.

— Além disso, a pelve dela é pequena, o que representaria problemas de parto mesmo numa gravidez comum — disse o médico. — E os músculos fibrosos no canal central de sua cérvice uterina, que deveriam estar amolecendo em antecipação ao parto, ainda estão duros. Não acredito que a cérvice irá dilatar o bastante para facilitar o parto.

— O bebê?

— Não há evidência clara de defeitos de nascença, mas alguns testes revelaram algumas anomalias preocupantes. Saberemos quando virmos a criança.

Uma punhalada de horror perfurou Celestina quando ela não conseguiu conter uma imagem mental de um monstro de feira de curiosidades, meio dragão, meio inseto, enroscado no útero de sua irmã. Ela odiava o estuprador da irmã, mas desejava o melhor possível para o bebê, que não tinha culpa de nada.

— Se a pressão sangüínea da sua irmã se estabilizar durante a noite, irei submetê-la a uma cesariana às sete da manhã. Eu gostaria de colocar a Fimie sob os cuidados do dr. Aaron Kaltenbach. Ele é um obstetra maravilhoso.

— É claro.

— Mas também estarei presente durante a operação.

— Agradeço muito por isso, e por tudo que o senhor fez.

A própria Celestina era pouco mais do que uma criança, fingindo possuir os ombros fortes e a experiência necessária para suportar este fardo. Ela se sentia arrasada.

— Vá para casa — aconselhou o médico. — Durma. Você não poderá ajudar sua irmã se também acabar virando uma paciente aqui. Ela permaneceu com Fimie durante o jantar.

O apetite da garota era grande, ainda que a comida fosse mole e insossa. Ela não tardou a dormir.

Em casa, depois de telefonar para os pais, Celestina fez um sanduíche de presunto. Comeu um quarto dele. Depois deu duas mordidas num croissant de chocolate. Uma colher de um sorvete de noz-pecã. Nada disso teve o menor sabor, exatamente como a comida de hospital de Fimie.

Completamente vestida, ela se deitou sobre a colcha da cama. Pretendia ouvir um pouco de música clássica antes de escovar os dentes.

Percebeu que não tinha ligado o rádio. Antes de alcançar o botão, ela já estava dormindo.

Quatro e cinquenta da manhã, 7 de janeiro.

No sul da Califórnia, Agnes Lampion sonha com o seu filho recém-nascido. No Oregon, Caim Júnior pronuncia com temor um nome enquanto dorme, e o detetive Vanadium, sentado à sua frente enquanto aguarda para contar ao suspeito a respeito do diário de sua esposa morta, inclina-se para a frente para escutar melhor, enquanto incessantemente faz uma moedinha dar cambalhotas sobre os nós grossos dos dedos de sua mão direita.

Em San Francisco, um telefone toca.

Rolando de lado, tateando na escuridão, Celestina White agarra o telefone ao terceiro toque. O seu alô também foi um bocejo.

— Venha agora — diz uma mulher com voz fraca. Ainda sonolenta, Celestina pergunta:

— O quê?

— Venha agora. Venha depressa.

— Quem fala?

— Neila Lombardi. Venha agora. A sua irmã vai morrer daqui a pouco. Abruptamente alerta, sentando na ponta da cama, Celestina compreendeu que

a pessoa do outro lado da linha não podia ser a velha comatosa, e então disse, com raiva:

— Que merda é essa?

O silêncio no outro lado da linha não foi meramente o de uma pessoa prendendo a respiração. Era abissal e perfeito, como nenhum silêncio de telefone pode ser, sem o menor chiado ou crepitar de estática, sem qualquer sinal de respiração sendo contida.

A profundidade desse vácuo silencioso arrepiou Celestina. Ela não ousou falar de novo porque, súbita e supersticiosamente, temeu que este silêncio fosse uma coisa viva, capaz de chegar até ela através da linha.

Desligou o telefone, pulou da cama, agarrou seu casaco de couro numa das duas cadeiras na pequena mesa de cozinha, pegou as chaves e a bolsa e saiu correndo.

Lá fora, os sons da cidade adormecida — o resmungo de alguns motores de carro nas ruas quase desertas, o clangor metálico de uma tampa de bueiro solta sob pneus de carro, uma sirene distante, os risos de bêbados voltando para casa depois de uma festa de arromba — eram sufocados por uma mortalha de neblina prateada.

Esses eram ruídos familiares, e mesmo para Celestina, a cidade era uma região alienígena, como jamais parecera antes, cheia de ameaça, os prédios avultando-se como grandes criptas ou templos dedicados a deuses desconhecidos e malignos. Os risos alcoolizados soavam estranhos ao ecoar através da neblina, parecendo não sons de alegria, mas de loucura e tormento.

Ela não tinha carro e o hospital ficava a 25 minutos a pé do seu prédio. Rezando para que um táxi cruzasse o seu caminho, ela correu, e embora nenhum táxi tenha aparecido em resposta à prece, Celestina chegou ao St. Mary, ofegante, em pouco mais de quinze minutos.

O elevador subiu rangendo, numa velocidade irritantemente mais lenta do que lembrava. Sua respiração ofegante soava alta naquele espaço claustrofóbico.

No lado escuro do alvorecer, os corredores do sétimo andar estavam silenciosos, desertos. O ar cheirava a desinfetante com odor de pinho.

A porta para o quarto 724 estava aberta. As luzes estavam acesas.

Tanto Fimie quanto Neila não estavam no quarto. Uma arrumadeira praticamente acabava de trocar os lençóis do quarto da velha. As roupas de cama de Fimie estavam desarrumadas.

— Onde está minha irmã? — perguntou Celestina.

A arrumadeira levantou os olhos de seu trabalho, assustada.

Quando a mão tocou seu ombro, Celestina girou sobre os calcanhares para se defrontar com uma freira de faces rubras e olhos azul-cobalto, que desse dia em diante seria para sempre a cor das más notícias.

— Eu não sabia se iam conseguir chamar você a tempo. Faz só dez minutos que começaram a tentar.

Pelo menos vinte minutos haviam passado desde que recebera o telefonema de Neila Lombardi.

— Onde está a Fimie?

— Venha rápido — disse a enfermeira, conduzindo-a ao longo do corredor até os elevadores.

— O que está acontecendo?

Enquanto desciam até o pavimento cirúrgico, a freira explicou a situação.

— Outra crise de hipertensão. A pressão da pobre menina está nas alturas, apesar da medicação. Ela sofreu um ataque violento, convulsões eclâmpticas.

— Meu Deus.

— Está na cirurgia agora. Cesariana.

Celestina esperava ser conduzida a uma sala de espera; ao invés disso, a freira conduziu-a até um quarto de assepsia.

— Sou a irmã Josefina — disse, tirando a bolsa de Celestina do ombro. — Pode deixar isso comigo sem desconfiança — e ajudou-a a despir o casaco.

Uma enfermeira vestida num avental cirúrgico apareceu.

— Enrole as mangas do seu suéter e lave com sabão até os cotovelos. Lave com força. Direi quando você pode parar.

Enquanto a enfermeira punha uma barra de sabão asséptico na mão de Celestina, Josefina abriu a água da pia.

— Tivemos sorte — disse a enfermeira. — O dr. Lipscomb estava no hospital quando aconteceu. Ele tinha acabado de fazer o parto de outro bebé sob condições de emergência.

— Como está Fimie? — perguntou Celestina, esfregando ferozmente as mãos e os antebraços.

— O dr. Lipscomb fez o parto há uns dois minutos. O pós-parto ainda nem foi removido — informou-a a enfermeira.

— O bebé é pequeno mas saudável. Não apresenta nenhuma deformidade — prometeu a irmã Josefina.

A pergunta de Celestina tinha sido sobre Fimie, mas elas lhe haviam contado sobre o bebé e ela ficou alarmada com essa evasiva.

— Basta — disse a enfermeira e a freira enfiou a mão através de nuvens de vapor para desligar a água.

Celestina deu as costas para a pia, levantando as mãos como vira os cirurgiões fazendo nos filmes, e quase conseguiu acreditar que ainda estava em casa, na cama, durante um pesadelo febril.

Enquanto a enfermeira vestia Celestina num avental cirúrgico e o amarrava às suas costas, a irmã Josefina ajoelhou-se diante dela e envolveu seus sapatos de rua com pantufas de pano com elástico nas bordas.

Este convite extraordinário e urgente ao santuário de uma sala de cirurgia dizia mais sobre as condições de Fimie do que todas as palavras que essas duas mulheres podiam falar.

A enfermeira amarrou uma máscara cirúrgica sobre o nariz e a boca de Celestina e acomodou uma touca em seu cabelo.

— Por aqui.

O caminho entre o quarto de assepsia e a sala de operações era curto. Painéis fluorescentes brilhavam intensamente sobre suas cabeças. Botas ganiam no assoalho de vinil.

A enfermeira empurrou uma porta de vaivém, segurou-a para que Celestina passasse, e não a acompanhou até a sala de cirurgia.

O coração de Celestina batia tão forte que as reverberações dele em seus ossos, descendo por suas pernas, ameaçavam desmoronar seus joelhos sob ela.

Aqui, agora, a equipe cirúrgica, cabeças baixas mais como se estivessem rezando do que praticando medicina, e a doce e querida Fimie deitada na mesa de operações, em meio a lençóis empapados em sangue.

Celestina aconselhou a si mesma a não ficar alarmada com o sangue. Um parto era uma coisa sangrenta. Neste sentido, esta cena devia ser comum.

O bebé não estava por perto. Num canto, uma enfermeira gorda estava cuidando de alguma coisa em outra mesa, seu corpanzil bloqueando aquilo que ocupava a sua atenção. Um embrulho de pano branco. Talvez a criança.

Celestina odiou o bebé com tamanha ferocidade que um travo acre se levantou para o fundo de sua boca. Embora não fosse deformada, a criança era um monstro. A maldição de um estuprador. Saudável, mas saudável à custa de Fimie.

A despeito da intensidade e da urgência com que a equipe cirúrgica estava trabalhando na jovem, uma enfermeira alta deu um passo para o lado e gesticulou para Celestina, indicando que ela se encaminhasse para a cabeceira da mesa.

E finalmente, Fimie, Fimie viva mas... tão mudada numa forma que Celestina teve a impressão de que sua caixa torácica estava se fechando como uma ratoeira em torno de seu coração.

O lado direito do rosto da garota parecia estar sendo mais afetado pela gravidade que o esquerdo: flácido e com uma expressão arrasada. A pálpebra esquerda caída. Esse lado de sua boca estava dobrado para baixo, como se tivesse desabado.

Do canto de seus lábios corria um fio de baba. Os olhos estavam arregalados de medo, e pareciam não estar focados em nada nesta sala.

— Hemorragia cerebral — explicou um médico que podia ser Lipscomb.

Para continuar de pé, Celestina precisou apoiar a mão na mesa. As luzes tinham ficado dolorosamente brilhantes, e o ar estava carregado com os odores de anti-sépticos e sangue. Ela precisou se esforçar até para respirar.

Fimie virou a cabeça e seus olhos pareceram acalmar-se um pouco. Ela fixou o olhar na irmã e, pela primeira vez, pareceu saber onde estava.

Tentou levantar a mão direita, mas como não conseguiu controlá-la, esticou o braço esquerdo sobre o corpo. Celestina apertou com força a mão da irmã.

A menina falou, mas suas palavras saíram arrastadas e incoerentes. Ela torceu o rosto empapado em suor no que parecia frustração, fechou os olhos, e tentou de novo, expelindo uma única palavra, mas uma palavra inteligível:

— Bebé.

— Ela está sofrendo apenas afasia expressiva — disse o doutor. — Não consegue se expressar bem, mas entende você perfeitamente.

Com o bebé nos braços, a enfermeira gorda encostou-se em Celestina, que quase recuou de nojo. A enfermeira segurou o bebé de modo que sua mãe pudesse ver seu rosto.

Fimie admirou a criança por um instante e então procurou novamente os olhos de sua irmã. Mais uma palavra, arrastada mas inteligível, graças a muito esforço.

— Anjo. Isto não era um anjo.

A não ser que fosse o anjo da morte.

Muito bem, o bebé tinha mãos e pés pequeninos, e não garras contorcidas e cascos. Este não era um filho do demo. O mal do pai não aparecia refletido em seu pequeno rosto.

Ainda assim, Celestina não queria nada com essa criança, sentia-se ofendida apenas em vê-la, e não conseguia compreender por que Fimie insistia em chamá-la de anjo.

— Anjo — disse Fimie numa voz rouca, vasculhando nos olhos da irmã um sinal de compreensão.

— Não se esforce, querida.

— Anjo — disse Fimie, agoniada. E então, com um esforço que fez uma veia inchar-se em sua têmpora direita: — Nome.

— Quer dar ao bebé o nome Anjo?

A jovem tentou dizer sim, mas como tudo que saiu dela foi "hã-hã", ela meneou a cabeça o mais vigorosamente que conseguiu, e apertou mais forte a mão de Celestina. Talvez ela estivesse afligida com uma mera afasia expressiva, mas devia estar sentindo-se um tanto confusa. Como o bebé seria disponibilizado para adoção, batizá-lo não era tarefa dela.

— Anjo — repetiu Serafina, quase desesperada.

Anjo. Um sinónimo menos exótico para o nome da mãe. O anjo de Serafina. O anjo de um anjo.

— Claro — disse Celestina. — É claro. — Ela não via nenhum mal em brincar um pouco com Fimie. — Anjo. Anjo White. Agora tente se acalmar. Relaxe.

— Anjo.

— Sim.

Quando a enfermeira gorda se retirou com o bebé, o aperto da mão de Fimie -relaxou, mas em seguida ficou firme novamente quando o seu olhar também se tornou mais intenso.

— Amo... você.

— Eu também te amo, querida—disse Celestina, balbuciante. —Amo demais. Os olhos de Fimie se arregalaram, sua mão apertou dolorosamente a da irmã

seu corpo inteiro se contorceu enquanto ela gritava:

— Ummmm, ummmmm, ummmm!

Quando a mão de Serafina ficou flácida, o seu corpo também relaxou. Seus olhos não estavam mais arregalados nem focados em Celestina. Estavam imóveis, assombreados pela morte, enquanto o monitor emitia a nota solitária e contínua que significava parada cardíaca.

Celestina foi conduzida a um canto enquanto a equipe cirúrgica iniciou os procedimentos de ressuscitação. Estupefata, foi conduzida para longe da mesa até ficar de costas com uma parede.

o sul da Califórnia, enquanto o alvorecer deste novo dia marcante surge no horizonte, Agnes Lampion ainda sonha com seu recém-nascido: Bartholomew numa incubadora, vigiado por uma revoada de anjos — serafins e querubins —, voando sobre ele com suas asas brancas.

No Oregon, de pé junto ao leito de Caim Júnior, girando uma moeda de 25 cents nos nós dos dedos da mão esquerda, Thomas Vanadium especula sobre o ome que seu suspeito tinha falado durante um pesadelo.

Em San Francisco, Serafina Aetionema White, na mesa de operações, jaz sem qualquer esperança de ser ressuscitada. Tão bela e com apenas dezesseis anos.

Com uma ternura que surpreende e comove Celestina, a enfermeira alta fecha os olhos da mocinha morta. Ela abre um lençol novo e limpo e o coloca sobre o corpo, dos pés para cima, deixando para cobrir o rosto precioso por último.

E agora o mundo parado volta a girar...

Abaixando a máscara cirúrgica, o dr. Lipscomb caminhou até Celestina, onde ela estava em pé, as costas premidas contra a parede.

O rosto do médico era feio, longo e estreito, como se moldado de acordo com suas responsabilidades. Em outras circunstâncias, contudo, sua boca generosa teria assumido um sorriso encantador; e seus olhos verdes brilhavam com a compaixão de alguém que também já havia conhecido uma grande perda.

— Sinto muito, srta. White.

Ela piscou, fez que sim com a cabeça, mas não conseguiu dizer uma palavra.

— Você terá tempo para... se acomodar a isto — disse ele. — Talvez precise ligar para sua família.

O pai e a mãe de Celestina ainda residiam num mundo onde Fimie estava viva. Tirá-los daquela velha realidade para esta nova seria a segunda pior coisa que Celestina faria na vida.

A pior tinha sido estar neste quarto no exato momento em que Fimie havia morrido. Celestina sabia sem sombra de dúvida que esta seria a pior coisa que passaria em toda a vida, pior ainda do que a sua própria morte, quando ela chegasse.

— E, é claro, você precisará fazer os preparativos para o funeral — disse o dr. Lipscomb.—A irmã Josefina arranjará um quarto, um telefone, privacidade, tudo de que precisar, e por todo tempo necessário.

Ela não o ouvia com atenção. Tonta. Tinha a impressão de ter sido anestesiada. Estava olhando através dele, para o nada, e a voz do médico parecia estar passando por várias camadas de máscaras cirúrgicas, embora ele não estivesse usando nenhuma agora.

— Mas antes de sair do St. Mary eu gostaria de ter uma palavrinha com você — prosseguiu o médico. — É muito importante para mim. Pessoalmente.

Pouco a pouco, ela percebeu que Lipscomb estava mais abalado do que deveria, considerando que ele não tivera qualquer culpa pela morte de sua paciente. Celestina voltou a fitar os olhos do médico e ele disse:

— Vou esperar por você. Quando estiver pronta para ouvir o que tenho a dizer. Leve todo o tempo que precisar. Mas uma coisa... uma coisa extraordinária aconteceu aqui antes de você chegar.

Celestina quase foi mal-educada; quase disse a ele que não tinha o menor interesse em qualquer curiosidade da medicina ou da psicologia que ele pudesse ter testemunhado. O único milagre que teria importado, a sobrevivência de Fimie, não havia acontecido.

Contudo, diante de tanta gentileza, ela não se poderia recusar ao pedido do médico. Fez que sim com a cabeça.

O recém-nascido não estava mais na sala de cirurgia.

Celestina não havia reparado quando tinham levado a criança dali. Queria vê-la mais uma vez, embora se sentisse nauseada só de olhar para ela.

Evidentemente, o rosto de Celestina estava contorcido pelo esforço de lembrar como a criança se parecia, porque o médico disse:

— Sim? Algum problema?

— O bebé...?

— Ela foi levada para a unidade neonatal.

Ela. Portanto, a menina iria se chamar Anja. Até aqui Celestina não havia pensado no sexo do bebé porque, para ela, a criança tinha sido mais uma coisa do que uma pessoa.

— Srta. White? — disse o médico. — Quer que eu a leve até lá? Ela balançou a cabeça negativamente.

— Não. Unidade neonatal. Mais tarde eu encontro.

Esta consequência do estupro, o bebé, era para Celestina menos um bebé do que um câncer, uma malignitude a ser extirpada do corpo de sua irmã, e não uma vida a ser trazida ao mundo. Celestina sentia-se tão compelida a estudar a criança quanto se sentiria a examinar a pele reluzente e contorcida e o corrimento mucoso de um tumor recente.

Um detalhe, e apenas um, assombrava-a.

Como estivera muito nervosa diante de Fimie, Celestina não podia confiar em sua memória. Talvez ela não tivesse visto o que achava que tinha visto.

Um detalhe. Apenas um. Contudo, era um detalhe crucial, um que ela precisava confirmar antes de sair do St. Mary, mesmo se para isso precisasse olhar mais uma vez a criança, essa cria da violência, essa assassina de sua irmã.

 

NOS HOSPITAIS, COMO nas casas de fazenda, o desjejum é feito antes do amanhecer, porque curar e cultivar requer trabalho árduo, e dias longos de labor são necessários para salvar a espécie humana, que passa tanto tempo gerando dor e fome quanto passa tentando escapar delas.

Dois ovos moles, uma fatia de pão sem manteiga, um copo de suco de maçã e um copo de gelatina sabor laranja foram servidos para Agnes Lampion enquanto, nas fazendas do interior, os galos ainda saudavam o alvorecer e galinhas gorduchas cacarejavam contentes sobre suas pilhas de ovos recém-postos.

Embora tivesse dormido bem, e embora sua hemorragia tivesse sido contida com sucesso, Agnes estava fraca demais para conseguir tomar o café da manhã sozinha. Uma simples colher era tão pesada e difícil de manejar quanto uma pá.

Em todo caso, ela não estava com muito apetite. Joey não saía da sua cabeça. O nascimento seguro de uma criança saudável era uma bênção, mas não uma compensação por sua perda. Embora por natureza resistente à depressão, Agnes agora carregava no coração uma sombra que não se apagaria nem com mil ou dez mil amanheceres. Se fosse uma mera enfermeira insistindo para que comesse, Agnes não cederia, mas não podia fazer nada contra a insistência de uma certa costureira.

Maria Elena Gonzalez — uma figura tão imponente a despeito de sua estatura diminuta que até três nomes pareciam insuficientes para identificá-la — ainda estava presente. Embora a crise tivesse passado, ela ainda não estava preparada para confiar em que as enfermeiras e os doutores, sozinhos, conseguiriam oferecer a Agnes os cuidados adequados.

Sentada na borda da cama, Maria salgou os ovos moles e em seguida conduziu colheradas deles até a boca de Agnes.

— As galinhas dão ovos.

— As galinhas põem ovos — corrigiu Agnes.

- Qué?!

Franzindo a testa, Agnes disse:

— Não, isso também não faz qualquer sentido, faz? O que você está tentando dizer, meu bem?

— Esta mulher perguntou sobre galinhas...

— Que mulher?

— Não importa. Mulher boba mexendo com meu inglês, tentando confundir eu. Perguntou se veio antes ovo ou veio antes galinha.

— O que veio primeiro, o ovo ou a galinha?

— Sí! Foi isso mesmo que ela disse.

— Ela não estava caçoando do seu inglês, minha querida. É apenas uma velha charada. — Quando Maria não entendeu a palavra, Agnes soletrou-a e a definiu. — Ninguém consegue responder a essa charada, seja inglês ou não. Essa é a graça da charada.

— Qual é graça de fazer pergunta sem ter resposta? Que sentido faz? — Ela franziu a testa, preocupada. — Você ainda não está boa, sra. Lampion, ainda não está pensando esquerdo.

— Direito. Pensando direito.

— Eu respondo charada.

— E qual é a sua resposta?

— A primeira galinha veio com o primeiro ovo já dentro dela. Agnes engoliu uma colher cheia de gelatina e sorriu.

— Bem, é muito simples, afinal de contas.

— Tudo ser.

— Ser o quê? — perguntou Agnes enquanto sugava o restinho de suco de maçã através de um canudo.

— Simples. Pessoas fazem coisas parecerem complicadas quando não são. O mundo inteiro é simples como costurar.

— Costurar? — Agnes perguntou se, afinal de contas, ela não estava pensando esquerdo.

— Passar fio na agulha. Costurar, costurar, costurar — disse Maria, com toda sinceridade, enquanto removia a bandeja da cama de Agnes. — Amarrar a última costura. E então costurar, costurar, costurar.

Durante toda essa conversa sobre costura entrou uma enfermeira com a notícia de que o bebé Lampion estava fora de perigo e livre da incubadora, e com a simplicidade do repicar que se segue ao balançar de um sino, uma segunda enfermeira apareceu, empurrando um carrinho de bebê.

A primeira enfermeira sorriu para a bacia e colheu nela um tesouro rosado, embrulhado num lençol branco simples.

Antes fraca demais para erguer uma colher, Agnes agora estava com a força de um Hércules e poderia segurar cordas amarradas a duas parelhas de cavalos correndo em direções opostas; portanto, tomar um bebê no colo era sopa no mel.

— Como os olhos dele são bonitos! — disse a enfermeira, que passou o bebê para os braços da mãe.

O menino era bonito em todos os aspectos, seu rosto mais plácido que o da maioria dos recém-nascidos, como se ele tivesse chegado ao mundo com um senso de paz sobre a vida que o aguardava nesse lugar turbulento; e talvez ele tivesse chegado também com uma sabedoria incomum, porque suas feições eram mais definidas que as dos outros bebés, como se já tivessem sido moldadas pelo conhecimento e pela experiência. Ele tinha a cabeça completamente coberta por cabelos tão grossos e castanhos quanto os de Joey.

Os olhos, como Maria dissera a Agnes no meio da noite e conforme a enfermeira acabara de confirmar, eram de uma beleza extraordinária. Ao contrário da maioria dos olhos humanos, que eram de uma única cor com estrias de um tom mais escuro, cada um dos olhos de Bartholomew continha duas cores distintas — verde como os de sua mãe, azul como os de seu pai — e o padrão das estrias era formado pela alternação desses dois pigmentos dentro de cada órbita. Eram jóias magníficas, cristalinas e radiantes.

Quando Agnes encontrou o olhar caloroso e constante de Bartholomew, ficou mesmerizada. Ela se sentiu tomada por uma sensação de surpresa e mistério.

— Meu pequeno Barty — disse baixinho, a forma afetiva do nome saindo automaticamente de seus lábios. — Acho que você vai ter uma vida extraordinária. Sim, você vai, Barty, seu espertinho. As mamães sabem dessas coisas. Muitas coisas vão acontecer para impedir que você chegue lá, mas chegará assim mesmo. Você está aqui com algum objetivo.

A chuva que contribuíra para a morte do pai do menino parara de cair durante a noite. O céu matutino continuava cinza como chumbo, coberto por nuvens coleantes, como uma mortalha gigantesca cobrindo o mundo, mas, até o instante em que Agnes falou, os céus estavam há algum tempo silenciosos como uma placa de ferro.

Como se a palavra objetivo fosse um martelo golpeando essa placa de ferro, um som de trovão ecoou pelo céu, precedendo um lampejo de luz.

O olhar do bebê se desviou da mãe para a janela, mas seu semblante não se franziu de medo.

— Não se preocupe com o barulho feio, Barty—disse-lhe Agnes. — Em meus braços, você sempre estará seguro.

Seguro, como objetivo antes dela, ateou fogo no céu, gerando um crepitar catastrófico que abalou não apenas as janelas como o prédio inteiro.

Trovões no sul da Califórnia são raros, e relâmpagos ainda mais. As tempestades aqui são semitropicais: aguaceiros sem pirotecnias.

O poder do segundo raio tinha provocado um grito de surpresa e alarme nas duas enfermeiras e em Maria.

Um calafrio de medo supersticioso correu Agnes, e ela apertou o filho com força contra o peito e repetiu:

— Seguro.

No instante em que a palavra soou, como uma orquestra sob a batuta de um maestro, a tempestade relampejou e ribombou, mais brilhante e mais alto que antes. O vidro da janela reverberou como couro de tambor, enquanto os pratos na bandeja sobre a cama repicaram como peças de um xilofone ao tocar uns nos outros.

Quando a janela ficou completamente opaca com os reflexos dos relâmpagos, branca como olhos cobertos por película de catarata, Maria fez o sinal-da-cruz.

Tomada pela noção absurda de que este fenómeno climático era uma ameaça direcionada especificamente contra o seu bebê, Agnes teimosamente respondeu ao desafio:

— Seguro.

O raio mais cataclísmico também foi o último, de um fulgor nuclear que pareceu transformar o vidro da janela em metal esbranquiçado por chama, e de um som apocalíptico que vibrou através das obturações nos dentes de Agnes e teria soprado seus ossos como flautas se eles estivessem ocos, desnudos de todo tutano.

As lâmpadas do hospital tremeluziram, e o ar ficou tão carregado com ozônio que pareceu arder nas narinas de Agnes quando ela inalou. Então os fogos de artifício pararam, e as luzes não se extinguiram. Ninguém havia sofrido qualquer mal.

O mais estranho de tudo era a ausência de chuva. Esse tipo de tumulto jamais deixava de trazer torrentes de água, mas nem uma única gota se chocou contra a janela.

A bem da verdade, um silêncio notável dominou a manhã, tão profundo que todos trocaram olhares e, com pêlos eriçados em suas nucas, olharam para o teto na expectativa de algum evento que não podiam definir.

Os raios não apenas não foram os arautos de um aguaceiro, como também, no rastro de sua manifestação furiosa, as nuvens escuras como ferro começaram a abrir-se devagar, como ameias atingidas por canhões, revelando uma paz azul.

Barty não havia chorado ou exibido o menor sinal de angústia durante a tempestade, e agora, levantando os olhos para fitar mais uma vez a mãe, ele a brindou com o seu primeiro sorriso.

 

QUANDO UM COPO DE SUCO de maçã gelado permaneceu em seu estômago, Caim Júnior recebeu permissão para um segundo copo, embora o tivessem aconselhado a bebericar lentamente. Também lhe deram três bolachas.

Ele poderia ter comido uma vaca inteira com chifres, cascos e rabo. Ainda que estivesse fraco, não corria mais o risco de cuspir bílis e sangue como uma baleia arpoada. A crise havia passado.

A consequência imediata de ter matado a esposa havia sido a crise emética nervosa aguda, mas a reação a longo prazo era um apetite voraz e uma alegria de viver tão forte que ele precisava conter a vontade de cantar. Júnior estava com vontade de celebrar.

Uma celebração, é claro, o teria conduzido ao cárcere e talvez à eletrocussão. Com Vanadium, o tira maníaco, provavelmente escondido debaixo de sua cama ou fantasiado de enfermeira para flagrá-lo num momento que estivesse com a guarda baixa, Júnior precisava recuperar-se num ritmo que o seu médico não julgasse miraculoso. O dr. Parkhurst esperava dar-lhe alta no máximo até a manhã seguinte.

Não mais pregado à cama por um soro intravenoso de fluidos e medicamentos, provido com o pijama e um robe de algodão para substituir a camisola sem fundilhos, Júnior foi encorajado a testar as pernas e exercitar-se. Embora esperassem que ele estivesse tonto, não encontrou qualquer dificuldade em manter o equilíbrio e, a despeito da sensação de se sentir um tanto vazio por dentro, não estava tão fraco quanto o médico julgava. Poderia perambular pelo hospital sem ssistência, mas, disposto a atender às expectativas do médico, Júnior usou o andador com rodas.

Vez por outra parava, apoiado no andador como se precisasse descansar. Ocasionalmente, fazia uma careta de dor — convincente, não teatral demais — e respirava com mais força do que o necessário.

Mais de uma vez, uma enfermeira parou para checar se estava tudo bem com ele e aconselhá-lo a não se cansar demais.

Até ali, nenhuma dessas mulheres tinha sido tão calorosa quanto Victória Bressler, a enfermeira servidora de gelo que sentia tesão por ele. Ainda assim, ele continuava procurando e não perdia as esperanças.

Embora Júnior julgasse justo conceder a Victória primazia sobre ele, certamente não lhe devia monogamia. Mais tarde, quando ninguém mais suspeitasse de que havia matado Naomi, ele estaria no clima para um bufe de sobremesas, romanticamente falando, e um único docinho não iria satisfazê-lo.

Sem querer limitar-se a conhecer as enfermeiras de um único pavimento do hospital, Júnior usou os elevadores para subir e descer pelo prédio. Para dar uma geral nos rabos-de-saia.

Finalmente, viu-se sozinho diante de uma enorme vitrine da unidade de cuidados neonatais. Sete recém-nascidos estavam hospedados ali. Em cada berço havia uma placa na qual estava impresso o nome do bebê.

Júnior ficou parado diante da vitrine por um longo tempo, não porque estivesse fingindo descansar, e não porque as enfermeiras dali fossem gatas. Ele estava transfixado, e durante algum tempo não compreendeu por quê.

Não estava sentindo nenhuma inveja paternal. Um bebê era a última coisa que ele queria, fora um câncer. Crianças eram animaizinhos nojentos. Uma criança era um fardo, não uma bênção.

Ainda assim, uma estranha atração por esses recém-nascidos mantinha-o parado diante daquela vitrine, e ele começou a acreditar que estivera vindo para cá inconscientemente desde que começara a se mover em seu andador. Ele fora compelido a vir para cá. Atraído por algum magnetismo misterioso.

Ao chegar à janela do berçário, ele estivera cheio de bom humor. Mas agora, enquanto fitava a cena silenciosa, sentia-se incomodado com alguma coisa.

Bebés.

Apenas bebezinhos inofensivos.

Por mais inofensivos que fossem, a simples visão deles — envoltos em lençóis e quase todos com as cabeças cobertas — começou a causar-lhe incómodo. Pouco a pouco, Júnior foi conduzido, de forma inexplicável, irracional e inegável, às raias do medo cego.

Tinha reparado em todos os sete nomes nos berços, mas os leu novamente. Ele sentia que em seus nomes — ou em um de seus nomes — residia a explicação para esta percepção aparentemente insana de uma ameaça avultando no horizonte.

Enquanto seu olhar corria pelas sete placas, lendo nome a nome, um vazio tão profundo se abriu em seu íntimo que Júnior precisou do apoio do andador, exatamente conforme fingira antes. Teve a impressão de que tinha sido reduzido a uma mera concha de homem, e que a nota correta poderia estilhaçá-lo como uma nota aguda pode quebrar cristal.

Esta não era uma sensação nova. Ele a havia sentido antes. Durante a noite anterior, quando acordara de um sonho do qual não lembrava e vira a moedinha brilhante dançando sobre os dedos de Vanadium.

Não. Não exatamente naquele momento. Não ao ver a moeda ou o detetive. Ele se sentira assim quando Vanadium mencionara o nome que ele, Júnior, supostamente pronunciara em seu pesadelo.

Bartholomew.

Júnior sentiu um arrepio. Vanadium não inventara aquele nome. Ele surtia em Júnior uma ressonância genuína, ainda que inexplicável, que não tinha nenhuma relação com o detetive.

Bartholomew.

Como antes, o nome ecoou através de seu corpo como a nota poderosa de um sino num carrilhão de catedral, badalando à passagem de uma gélida meia-noite.

Bartholomew.

Supusera que nenhum dos bebés nesse berçário tinha o nome Bartholomew, e Júnior se esforçou para compreender a conexão que este lugar tinha com seu sonho não recordado.

A natureza deste pesadelo continuava a escapar dele, mas estava convencido de que existia um bom motivo para o seu medo, que o sonho tinha sido mais do que um sonho. Ele tinha uma nêmesis chamada Bartholomew não apenas em seus sonhos, mas no mundo real, e este Bartholomew tinha alguma relação com... bebés.

Recorrendo a um poço de inspiração mais profundo do que o instinto, Júnior soube que se o seu caminho cruzasse com o de um homem chamado Bartholomew, precisaria estar preparado para lidar com ele com a mesma agressividade com que lidara com Naomi. E sem demora.

Tremendo e suando, deu as costas para a vitrine. Esperou que o medo em seu coração sumisse quando se afastasse do berçário, mas ele ficou mais forte.

Olhou por cima do ombro mais de uma vez. Quando retomou ao quarto, sentiu-se quase esmagado pela ansiedade.

Uma enfermeira se inclinou sobre ele enquanto o ajudava a deitar-se, preocupada com sua palidez e seus tremores. Ela era atenciosa e eficiente, mas nem um pouco atraente, e ele queria que ela o deixasse sozinho.

Porém, assim que se viu sozinho, Júnior desejou que a enfermeira retornasse. Sozinho sentia-se vulnerável, ameaçado.

Em algum lugar do mundo ele tinha um inimigo mortal: Bartholomew, que tinha alguma relação com bebés, um estranho absoluto que mesmo assim seria um adversário implacável.

Se não tivesse sido uma pessoa racional, estável e lógica durante toda a sua vida, Júnior teria achado que estava enlouquecendo.

 

O SOL NASCEU SOBRE AS NUVENS, sobre a neblina, e com o dia cinzento chegou uma chuva prateada. A cidade logo estava sendo espetada por agulhas de água, e os bueiros transbordavam imundice para as ruas.

Como os assistentes sociais do Hospital St. Mary não chegavam cedo, ofereceram a Celestina a privacidade de um de seus escritórios; ali, onde o rosto molhado da manhã se premia contra as janelas, a jovem telefonou aos pais para contar as notícias terríveis. Dali, também, providenciou para que um agente funerário coletasse Fimie na geladeira do necrotério do hospital, embalsamasse seu corpo e o colocasse num avião de volta para o Oregon.

A mãe e o pai choraram muito, mas Celestina manteve a compostura. Ainda tinha muitas decisões para tomar antes de acompanhar o corpo da irmã no vôo para San Francisco. Apenas depois de cumprir todas as suas obrigações ela iria se dar o luxo de sentir toda a dor contra a qual se protegia agora. Fimie merecia dignidade na jornada final para a sua sepultura no norte.

Quando Celestina não tinha mais telefonemas para dar, o dr. Lipscomb apareceu para falar com ela.

Ele não estava mais usando o avental cirúrgico; vestia calças de veludo cinza e um suéter de caxemira azul por cima de uma camisa branca. Rosto macambúzio, parecia não um obstetra habituado a trazer vidas ao mundo, mas um professor de filosofia eternamente envolvido em questões sobre a morte.

Celestina começou a se levantar da cadeira atrás da escrivaninha, mas ele a encorajou a permanecer sentada.

De pé, parado ao lado de uma janela, perfil voltado para Celestina enquanto observava o movimento na rua, o médico, em seu silêncio, buscava palavras para descrever a "coisa extraordinária" que mencionara antes.

Gotas de chuva estouravam no vidro e desciam em filetes de água. Os reflexos desses rastros pareciam lágrimas estigmáticas no rosto comprido do médico.

Quando ele finalmente falou, um pesar autêntico, discreto mas profundo, amaciou sua voz:

— Foi em primeiro de março, há três anos. Minha esposa e meus dois filhos... Danny e Harry, ambos com sete anos, eram gémeos... estavam vindo depois de visitar os pais dela em Nova York. Logo após a decolagem... o avião deles caiu.

Estando tão abalada com uma única morte, Celestina não conseguia imaginar como Lipscomb podia ter sobrevivido à perda de sua família inteira. Uma pena profunda por esse médico apertou seu coração e ressequiu a sua garganta, de modo que ela falou em pouco mais que um sussurro:

— Foi aquele da American Airlines... Ele confirmou com a cabeça.

Misteriosamente, no primeiro dia de verão ensolarado em semanas, o 707 havia caído em Jamaica Bay, Queens, matando todos os passageiros e tripulantes. Agora, em 1965, aquele continuava sendo o pior desastre na história da aviação comercial norte-americana, e devido à cobertura televisiva dramática, o que havia sido uma novidade, o caso era uma cicatriz permanente na memória de Celestina, embora na época estivesse vivendo a um continente de distância.

— Esta manhã, um pouco antes da senhorita chegar à sala de cirurgia, a sua irmã morreu na mesa de operação — continuou o médico, ainda fitando a janela. — Não tínhamos feito ainda o parto do bebê, e talvez não tivéssemos podido fazê-lo por cesariana, a tempo de impedir danos cerebrais. Assim, tanto em benefício da mãe quanto da criança, fizemos esforços hercúleos para trazer Fimie de volta e assegurar a manutenção da circulação para o feto até podermos extraí-lo.

A mudança abrupta de assunto, do acidente de avião para Fimie, confundiu Celestina.

Lipscomb mudou seu olhar da rua lá embaixo para a fonte da chuva.

— Fimie não esteve ausente por muito tempo, talvez por um minuto... no máximo um minuto e dez segundos... e quando ela estava conosco novamente, ficou claro por sua condição que a parada cardíaca provavelmente tinha sido um efeito secundário de um incidente cerebral grave. Ela estava desorientada, paralítica no lado direito... com a distorção dos músculos faciais que você viu. No começo ela falou muito arrastado, mas então uma coisa estranha aconteceu...

Fimie também falara com uma voz arrastada mais tarde, imediatamente depois do nascimento do bebê, quando ela se esforçara para exprimir seu desejo em dar ao bebê o nome Anjo.

Um tom impressionante, mas difícil de definir, na voz do dr. Lipscomb, fez Celestina levantar-se lentamente da cadeira do escritório. Talvez fosse surpresa. Ou medo. Ou reverência. Talvez as três coisas juntas.

— Por um momento a voz dela ficou completamente clara — prosseguiu o dr. Lipscomb. — Ela levantou a cabeça do travesseiro e olhou fixamente para mim, completamente calma. Ela estava tão... intensa. Ela disse... ela disse... "Rowena te ama".

Um arrepio atravessou a espinha de Celestina, porque ela sabia quais seriam as palavras seguintes do médico.

— Rowena era minha esposa — disse ele, confirmando a intuição de Celestina.

Como se uma porta tivesse momentaneamente sido aberta entre este dia sem vento e um outro mundo, uma única rajada de vento se chocou contra as janelas. Lipscomb virou-se para Celestina e disse:

— Antes de cair novamente na semicoerência, a sua irmã disse: "Bizil e Fizil estão seguros com ela", o que pode soar menos coerente para você, mas não para mim.

Ela esperou, ansiosa.

— Esses eram os apelidos carinhosos com que Rowena chamava os meninos quando eram bebés. Eram nomes bobos e absurdos, mas ela disse que eles pareciam dois elfos lindos e deviam ter nomes de elfos.

— Fimie não tinha como saber nada disso.

— Não. Rowena abandonou esses apelidos depois do primeiro ano dos gémeos. Nós éramos os únicos que os usavam. Nossa piadinha particular. Nem os meninos teriam lembrado.

Nos olhos do médico, um desejo de acreditar. Em seu rosto, um toque de ceticismo.

Ele era um homem de medicina e ciência, que fora bem servido pela lógica pura e por um comprometimento inabalável com a razão. Ele não estava preparado para aceitar facilmente a noção de que lógica e razão, enquanto ferramentas essenciais para qualquer pessoa que quisesse levar uma vida plena e feliz, não eram suficientes para descrever nem o mundo físico nem a experiência humana.

Celestina estava mais bem equipada para abraçar esta experiência transcendental pelo que ela aparentava ser. Não era uma daquelas artistas que celebravam o caos e a desordem, ou que encontravam inspiração no pessimismo e no desespero. Onde quer que seus olhos pousassem, ela via ordem, propósito, desígnio, e o brilho pálido ou o fulgor feroz de um evento sobrenatural. Ela percebia o sobrenatural não apenas em casas velhas onde se dizia que fantasmas vagavam, ou em experiências arrepiantes como a descrita por Lipscomb, mas todos os dias, no padrão dos galhos de uma árvore, na brincadeira selvagem de um cão com uma bola de ténis, nos coleios brancos de uma tempestade de neve... em cada aspecto do mundo natural no qual o mistério insolúvel era um componente tão fundamental quanto a luz e a escuridão, a matéria e a energia, o tempo e o espaço.

— A sua irmã teve outras... experiências curiosas? — perguntou Lipscomb.

— Nada assim.

— Ela tinha sorte nas cartas?

— Não mais do que eu.

— Premonições? "

— Não.

— Habilidades psíquicas...

— Ela não tinha nenhuma. "'

— ... podem vir a ser cientificamente verificáveis um dia.

— Ao contrário de vida após a morte? — perguntou ela.

A esperança, com muitas asas, pairava em torno do médico, mas ele tinha medo de deixá-la alçar vôo.

— Fimie não lia mentes — disse Celestina. — Isso é ficção científica, dr. Lipscomb.

Ele fitou os olhos dela. Não tinha resposta para dar-lhe.

— Ela não penetrou nos seus pensamentos e extraiu o nome Rowena. Ou Bizil ou Fizil.

Ainda que assustado com a certeza gentil nos olhos de Celestina, o médico deu as costas para ela e fitou mais uma vez a janela. Ela caminhou até o lado dele.

— Durante um minuto, depois que o coração dela parou pela primeira vez, ela não estava aqui no St. Mary, não é mesmo? O corpo dela, sim, estava aqui, mas Fimie não.

O dr. Lipscomb levou as mãos até o rosto, cobrindo o nariz e a boca da forma como antes os tinha coberto com uma máscara cirúrgica, como se corresse o risco de inalar, junto com o ar, uma ideia que iria mudá-lo para sempre.

Além da janela, por trás das cortinas de chuva e neblina, a metrópole parecia mais enigmática que Stonehenge, mais misteriosa que qualquer cidade em nossos sonhos.

Por trás das mãos dissimuladoras, o médico deixou escapar um som fino, como se estivesse tentando arrancar do coração uma angústia coberta por uma cama de incontáveis ganchos afiados.

Celestina hesitou, sentindo-se estranha, insegura.

Como sempre fazia quando se sentia incerta, perguntou a si mesma o que sua mãe faria naquela situação. Grace, de graça infinita, infalivelmente fazia precisamente a coisa necessária, sabendo exatamente quais as palavras certas para consolar, iluminar, provocar um sorriso na pessoa mais miserável. Contudo, frequentemente a coisa necessária não envolvia palavras, porque em nossa jornada muitas vezes nos sentimos abandonados, e precisamos apenas nos assegurar de que não estamos sós.

Ela pousou a mão direita no ombro dele.

Ao seu toque, sentiu uma tensão escapar do doutor. As mãos desceram de seu rosto e ele se virou para ela, tremendo não de medo, mas com aquilo que podia ser alívio.

Ele tentou falar, e quando não conseguiu, Celestina envolveu-o com seus braços.

Celestina ainda não tinha nem 21 anos e o médico tinha pelo menos o dobro da idade dela, mas ele se debruçou sobre ela como uma criancinha faria. E, como uma mãe, ela o confortou.

 

EM TERNOS ESCUROS DE corte perfeito, com barbas feitas, tão polidos quanto suas valises, os três chegaram ao quarto de hospital de Júnior antes mesmo do horário usual do começo do dia útil, homens sábios que vieram sem camelos, sem trazer presentes, mas desejosos de pagar um preço pela dor e pela perda. Dois advogados e um enviado político de alto nível, eles representavam o condado, o estado e a companhia de seguros na questão da balaustrada na plataforma de observação da torre de incêndio. Uma balaustrada mantida inadequadamente.

Eles não podiam ter sido mais solenes ou mais respeitosos se o cadáver de Naomi — costurado de volta, entupido de fluido embalsamador, pintado com maquiagem, vestido de branco, com suas mãos frias segurando uma Bíblia sobre o busto — estivesse repousando num caixão naquele mesmo quarto, cercado por flores e aguardando a chegada das pessoas que viriam prestar a última homenagem. Eram todos educados, falavam macio e traziam tristeza no olhar, exsudando sentimentos — e cheios de um calculismo tão febril que Júnior não teria ficado surpreso se eles acionassem os espargidores de água fixados no teto.

Apresentaram-se como Knacker, Hisscus e Nork, mas Júnior não se deu ao trabalho de associar nomes com rostos, em parte porque os homens eram tão parecidos em aparência e modos que suas próprias mães teriam dificuldade em decidir qual deles culpar por não telefonar nunca. Além disso, ainda estava cansado devido ao seu passeio pelo hospital... e preocupado com a possibilidade de algum Bartholomew de olhos ameaçadores estar perambulando pelo mundo à procura dele.

Depois de muita comiseração açucarada, muitas palavras hipócritas sobre o fato de Naomi ter ido para um lugar melhor, e papo furado sobre o desejo do governo em sempre assegurar a segurança pública e tratar cada cidadão com compaixão, Knacker ou Hisscus, ou Nork, finalmente começou a tatear a questão da indenização.

Nenhuma palavra tão rude quanto indenização foi usada, é claro. Ressarcimento. Compensação. Restituição apológica, que devia ter sido aprendida numa faculdade de direito onde o inglês era a segunda linguagem. Até reparação.

Júnior deixou-os loucos ao fingir não entender sua intenção enquanto eles circulavam o assunto como aspirantes a tratadores de cobras novatos procurando pelo lugar mais seguro para agarrar uma serpente enroscada.

Estava surpreso por terem aparecido tão cedo, menos de 24 horas depois da tragédia. Isto era particularmente incomum, considerando que um detetive de homicídios estava obcecado com a ideia de que a madeira podre, sozinha, não fora a responsável pela morte de Naomi.

Júnior até suspeitava que estivessem aqui a mando de Vanadium. O tira certamente queria saber o quanto o recém-viúvo ficaria tentado a transformar a esposa morta em dinheiro vivo.

Knacker ou Hisscus, ou Nork, estava falando sobre uma oferenda, como se Naomi fosse uma deusa a quem eles queriam presentear com um tributo de ouro e jóias.

De saco cheio deles, Júnior fingiu que só agora estava entendendo o que queriam. Não fingiu indignação ou revolta, sabendo que exprimir qualquer tipo de reação forte poderia levantar suspeitas.

Ao invés disso, disse, com uma cortesia solene, que não queria qualquer compensação pela morte de sua esposa ou por seu próprio sofrimento.

— Não há quantia que possa substituir a minha esposa. Eu jamais conseguiria gastar esse dinheiro. Nem um único centavo. Acabaria dando tudo aos outros. Então, por que receber?

Depois de um momento de surpresa, Nork ou Knacker, ou Hisscus, disse:

— O seu sentimento é compreensível, sr. Caim, mas nesses assuntos é usual... A garganta de Júnior estava bem menos dolorida que na tarde anterior, mas,

para esses homens, sua voz baixa e rouca deve ter soado não arranhada, mas carregada de emoção.

— Não estou nem aí para o que é usual. Não quero nada. Não culpo ninguém. Essas coisas acontecem. Se tiverem um termo de responsabilidade com vocês, eu irei assiná-lo agora.

Hisscus, Nork e Knacker trocaram olhares tensos. Finalmente, um deles disse:

— Não podemos fazer isso, sr. Caim. Pelo menos não antes do senhor consultar o seu advogado.

— Não quero um advogado. — Fechou os olhos, baixou a cabeça para o travesseiro e suspirou. — Quero apenas... paz.

Knacker, Hisscus e Nork falaram todos ao mesmo tempo; em seguida calaram-se subitamente, como se fossem um único organismo; por fim voltaram a falar, agora interrompendo uns aos outros, enquanto tentavam adiantar os seus negócios.

Embora não tenha feito qualquer esforço para invocá-las, lágrimas vazaram dos olhos fechados de Júnior. Elas não tinham sido causadas por pensamentos sobre a pobre Naomi. Os próximos dias — talvez semanas — seriam tediosos, até que ele pudesse traçar a enfermeira Victória Bressler. Sob as circunstâncias, tinha bons motivos para sentir pena de si mesmo.

Suas lágrimas silenciosas fizeram o que as palavras não conseguiram: Nork, Knacker e Hisscus recuaram, rogando a Júnior que falasse com o seu advogado, prometendo retornar, mais uma vez expressando suas profundas condolências, talvez tão envergonhados quanto os advogados e os enviados políticos conseguiam ficar, mas certamente confusos e inseguros sobre como proceder ao lidar com um homem tão intocado pela cobiça, tão desprovido de raiva, tão cheio de perdão no coração quanto este viúvo Caim.

Tudo estava acontecendo precisamente como Júnior vislumbrara no instante em que Naomi descobrira pela primeira vez a parte podre da balaustrada e quase caíra sem ajuda. O plano inteiro chegara a ele, completamente formado, num piscar de olhos, e durante os dois circuitos que fizeram pela plataforma de observação ele pensara em todos os detalhes, procurando por falhas, mas não encontrando nenhuma.

Até aqui tinham ocorrido apenas dois acontecimentos inesperados, o primeiro sendo seu vómito explosivo. Ele esperava que jamais precisasse passar novamente por um episódio como aquele.

Contudo, o vómito olímpico tinha feito Júnior parecer tanto emocionalmente quanto fisicamente devastado pela perda de sua esposa. Ele não poderia ter calculado nenhum estratagema mais capaz de convencer a maioria das pessoas de que era inocente e, de fato, fisicamente incapaz de um assassinato premeditado.

Júnior descobrira muitas coisas sobre si mesmo durante as últimas dezoito horas, mas, de todas essas qualidades novas, aquela da qual mais se orgulhava era o entendimento de que ele era uma pessoa profundamente sensível. Esta era uma característica de personalidade admirável, mas também podia ser uma cortina por trás da qual poderia cometer os atos de violência que seriam necessários nesta vida nova e perigosa que ele escolhera.

O outro dos dois acontecimentos inesperados era Vanadium, o homem da lei lunático. Tenacidade feita carne. Tenacidade com um péssimo corte de cabelo.

Enquanto as lágrimas secavam em suas faces, Júnior decidiu que provavelmente teria de matar Vanadium para livrar-se dele e ficar completamente seguro. Sem problema. E a despeito de sua estranha sensibilidade, Júnior tinha absoluta certeza de que apagar o detetive não acionaria outro jorro de vómito. Quando muito, ele mijaria nas calças de pura felicidade.

 

Celestina retornou ao quarto 724 para pegar os pertences de Fimie no

pequeno armário e na mesinha-de-cabeceira.

Suas mãos tremeram enquanto ela tentava dobrar as roupas de sua irmã e guardá-las numa mala pequena. O que teria sido uma tarefa simples tornou-se um desafio hercúleo; o tecido pareceu ganhar vida em suas mãos e escorregar entre os seus dedos, resistindo a cada tentativa de organizá-lo. Quando finalmente percebeu que não tinha motivos para ser organizada, jogou as roupas na mala sem qualquer preocupação em amarrotá-las.

No instante em que Celestina fechou a mala e virou para a porta, uma arrumadeira entrou empurrando um carro cheio de toalhas e lençóis de cama.

Era a mesma mulher que estivera desfazendo a segunda cama quando Celestina chegara. Agora estava aqui para desfazer a primeira.

— Sinto muito por sua irmã — disse a arrumadeira.

— Obrigada.

— Ela era linda.

Celestina fez que sim com a cabeça, incapaz de responder à gentileza da mulher. Às vezes uma gentileza pode ferir tanto quanto um insulto.

— Para que quarto a sra. Lombardi foi transferida? — perguntou Celestina. — Eu gostaria de... de vê-la antes de ir embora.

— Querida, você não soube? Sinto muito, mas ela também se foi.

— Se foi? — perguntou Celestina, embora tivesse compreendido.

Subconscientemente, Celestina sabia que Neila havia morrido depois do telefonema às quatro e quinze da manhã. Quando a velha terminara o que precisava dizer, o silêncio na linha havia sido anormalmente perfeito, sem nenhum chiado de estática ou murmúrio eletrônico, diferente de qualquer coisa que Celestina ouvira antes num telefone.

— Ela morreu na noite passada — esclareceu a arrumadeira.

— Você sabe quando? A hora da morte?

— Alguns minutos depois da meia-noite.

— Tem certeza. Digo, sobre a hora?

— Eu tinha acabado de chegar ao serviço. Estou trabalhando um turno e meio hoje. Ela faleceu em coma, sem despertar.

Na mente de Celestina, tão clara como estivera ao telefone às quatro e quinze da manhã, a voz frágil de uma velha alertando sobre a crise de Fimie:

Venha agora. Venha depressa. ... Quem fala?

Neila Lombardi. Venha agora. A sua irmã vai morrer daqui a pouco. Se a pessoa ao telefone realmente havia sido a sra. Lombardi, ela tinha ligado mais de quatro horas depois de morrer.

E se não havia sido a velha senhora, quem tinha se passado por ela? E por quê? Quando Celestina chegara ao hospital, vinte minutos depois, a irmã Josefina expressara surpresa:

Eu não sabia se iam conseguir chamar você a tempo. Faz só dez minutos que começaram a tentar.

O telefonema de Neila Lombardi tinha acontecido antes de Fimie ser acometida pela eclampsia e levada às pressas para a cirurgia. A sua irmã vai morrer daqui apouco. .,

— Está se sentindo bem, querida? — perguntou a arrumadeira. Celestina fez que sim com a cabeça. Engoliu em seco. Uma amargura tinha enchido seu coração quando Fimie morrera, assim como ódio pela criança que estava viva à custa da morte da mãe: sentimentos que Celestina sabia não serem merecedores dela, mas que não era capaz de expurgar. Esses dois fenómenos — a história do dr. Lipscomb e o telefonema de Neila — tinham sido um antídoto para o ódio, um bálsamo para a raiva, mas também haviam-na deixado entorpecida.

— Sim. Obrigada — disse à arrumadeira. — Vou ficar bem. Carregando a mala, ela saiu do Quarto 724.

No corredor ela parou, olhou para a esquerda, olhou para a direita, e não soube para onde ir.

Será que Neila Lombardi, não mais neste lindo mundo, havia atravessado o vácuo para juntar as duas irmãs a tempo de dizerem adeus uma à outra?

E será que Fimie, trazida de volta da morte por procedimentos de ressuscitação da equipe cirúrgica, tinha pago a gentileza de Neila com sua mensagem a Lipscomb?

Desde a infância, Celestina fora encorajada a acreditar que a vida tinha sentido, e quando precisara compartilhar essa crença com o dr. Lipscomb enquanto ele tentava compreender sua experiência na sala de operações, ela o fizera sem hesitar. Estranhamente, ela própria estava sentindo dificuldade em absorver esses dois pequenos milagres.

Embora estivesse ciente de que esses eventos extraordinários moldariam o resto de sua vida, começando com suas ações nas horas em seu futuro imediato, Celestina não conseguia ver claramente o que deveria fazer em seguida. No âmago de sua confusão estava um conflito de mente e coração, razão e fé, mas também uma batalha entre desejo e dever. Até ser capaz de reconciliar essas forças opostas, Celestina ficaria paralisada pela indecisão.

Caminhou pelo corredor até chegar a um quarto com camas vazias. Sem ligar a luz, entrou, pousou a mala no chão e sentou-se numa cadeira perto da janela.

Mesmo enquanto a manhã amadurecia, a neblina e a chuva conspiravam para sufocar quase toda a luz do dia. Sombras abundavam.

Celestina ficou sentada ali, estudando as próprias mãos, tão escuras na escuridão.

Finalmente encontrou dentro de si toda a luz que precisava para encontrar seu caminho através das horas cruciais que a aguardavam. Finalmente ela sabia o que devia fazer, mas não tinha certeza de possuir a energia necessária para fazê-lo.

Suas mãos eram delgadas, os dedos longos e graciosos. Mãos de uma artista. Não eram mãos poderosas.

Ela pensava em si mesma como uma pessoa criativa, uma pessoa capaz, eficiente e compromissada, mas não pensava em si mesma como uma pessoa forte. Ainda assim, ela precisaria de muita força para o que a aguardava.

Era hora de ir. Era hora de fazer o que precisava ser feito.

Ela não conseguia levantar da cadeira.

Faça o que precisa ser feito.

Estava com medo demais para conseguir se mover.

 

ESAÚ E AS TORTAS, NA manhã azul depois da tempestade, tinham um programa para cumprir e fome para satisfazer.

Ele dirigia sua caminhonete Ford Country Squire modelo 1955. Comprara o carro com um pouco do resto do dinheiro que ganhara nos anos em que fora capaz de manter um emprego, antes de seu... problema.

Ele já tinha sido um motorista soberbo, mas durante a última década o seu desempenho por trás do volante havia dependido de seu humor.

Às vezes, apenas o pensamento de entrar no carro e aventurar-se pelo mundo perigoso era intolerável. Então ele se fechava em sua casca e esperava pelo desastre natural que em breve iria raspá-lo da Terra, como se jamais tivesse existido.

Esta manhã, apenas o amor por sua irmã, Agnes, dava-lhe a coragem para dirigir e se tornar o homem da torta.

Seis anos mais velho do que Agnes, Esaú vivia num dos dois apartamentos em cima da garagem grande que ficava separada e atrás da casa principal. Morava ali desde os 25 anos, quando deixara o mundo do trabalho. Tinha agora 36.

O irmão gémeo de Esaú, Jacó, que jamais tivera um trabalho fixo, morava no segundo apartamento. Estava lá desde que se formara na escola secundária.

Agnes, que herdara a propriedade, teria recebido seus irmãos de braços abertos na casa principal. Embora ambos não se importassem em visitá-la para um jantar ocasional ou para sentar-se nas cadeiras de balanço na varanda, numa noite de verão, nenhum dos dois conseguiria viver naquele lugar sinistro.

Havia acontecido muita coisa naqueles aposentos. Estavam manchados com a história de sua família, e quando Esaú ou Jacó adormeciam debaixo do teto da varanda, o passado voltava em seus sonhos.

Esaú sempre ficava impressionado com a capacidade de Agnes em superar o passado e transcender tantos anos de tormento. Ela era capaz de ver a casa simplesmente como um abrigo, enquanto para os seus irmãos ela seria — seria sempre — o lugar onde seus espíritos tinham sido estilhaçados. Até mesmo viver próximo a esse lugar estaria fora de questão... caso eles tivessem emprego e opções.

Esta era uma das muitas coisas em Agnes que maravilhavam Esaú. Se ousasse fazer uma lista de todas as qualidades que admirava em sua irmã, afundaria em desespero ao ver o quanto ela lidava melhor com a adversidade que ele ou Jacó.

Quando Agnes pedira-lhe para entregar as tortas, antes que ela saísse com Joey para o hospital no dia anterior, Esaú sentira vontade de recusar a missão, mas aceitara-a sem hesitar. Estava preparado para sofrer todos os males que a natureza podia despejar sobre ele nesta vida, mas não estava preparado para ver decepção nos olhos da irmã.

Não que Agnes desse qualquer indicação de que seus irmãos eram qualquer coisa além de uma fonte de orgulho para ela. Ela tratava-os com respeito, ternura e amor... como se não conhecesse os seus defeitos.

Ela também tratava os dois igualmente, não favorecendo a nenhum... exceto na questão da entrega de tortas. Nas raras ocasiões em que ela própria não podia fazer essas rondas, e quando não tinha mais ninguém a quem recorrer senão a um de seus irmãos, Agnes sempre pedia a ajuda de Esaú.

Jacó assustava as pessoas. Ele era gémeo idêntico de Esaú, com o mesmo rosto infantil e agradável, com a mesma fala macia, e sempre tão bem barbeado e penteado quanto o irmão. Apesar disso, na mesma missão de misericórdia que Esaú, Jacó deixaria os recebedores das tortas num estado de inquietude profunda, se não de horror. Depois que Jacó passava, as pessoas punham travas nas portas, carregavam suas armas quando as tinham, e passavam uma ou duas noites sem dormir.

Em decorrência disso, Esaú estava à solta na terra com tortas e suprimentos, seguindo uma lista de nomes e endereços oferecida por sua irmã, ainda que acreditasse que um terremoto violento e sem precedentes, o proverbial Gran-dão, começaria antes do jantar, talvez antes do meio-dia. Este era o último dia de sua vida.

A bizarra barreira de relâmpagos, colocando um fim na chuva em lugar de iniciá-la, tinha sido um indício. A forma repentina como o céu havia se aberto — indicando um vento forte em altitudes elevadas, enquanto no nível do solo o ar permanecia parado —, uma queda súbita na umidade e um calor fora de época confirmavam a catástrofe vindoura.

Clima de terremoto. Os californianos do sul tinham muitas definições desse termo, mas Esaú sabia que estava certo desta vez. Os trovões iriam voltar logo, mas desta vez viriam de debaixo de seus pés.

Dirigindo defensivamente — agudamente alerta para a queda de postes telefónicos, desmoronamento de pontes, e não menos para o aparecimento abrupto na estrada de fissuras engolidoras de carros —, Esaú chegou ao primeiro endereço na lista de Agnes.

A modesta casa de madeira não recebia qualquer tipo de manutenção há muito tempo. Prateada por anos de sol insistente, madeira nua aparecia, como ossos escuros, em áreas onde a pintura havia descamado. No final de um caminho de acesso calçado em cascalho, uma maltratada picape Chevy mantinha-se sobre pneus carecas debaixo de um toldo ameaçando cair.

Aqui, na periferia leste de Bright Beach, no lado das colinas que não ofereciam qualquer vista do mar, o deserto incansável avançava quando os moradores não preveniam isso. Artemísias e vários tipos de moitas ocupavam o quintal dos fundos.

A tempestade recente havia soprado arbustos dos terrenos áridos. Havia uma profusão deles empilhada contra uma parede da casa.

Verde durante a estação de chuvas, o gramado, carecendo de um sistema de espargimento de água, ficaria marrom e seco de abril a novembro. Mesmo nesta fase viçosa, ele tinha tanta erva daninha quanto grama.

Carregando uma das seis tortas de amoras, Esaú atravessou o jardim descuidado e galgou os degraus soltos da varanda da frente.

Esta não era uma casa que ele escolheria ocupar quando o terremoto do século abalasse a costa e aplainasse cidades poderosas. As instruções de Agnes, infelizmente, eram para que Esaú não largasse simplesmente os presentes e saísse correndo; ele precisava prestar a cada um dos destinatários uma pequena visita.

Jolene Klefton atendeu à batida na porta. A senhora de cinquenta e poucos anos vestia uma roupa de andar em casa muito remendada. Seus cabelos desgrenhados eram castanhos e opacos como as areias do Mojave. Contudo, seu rosto era animado por uma profusão de sardas, e a voz era musical e calorosa.

— Esaú, você está tão bonito quanto aquele cantor no programa do Lawrence Welk! Está mesmo! Vamos, entre!

Enquanto Jolene dava um passo para o lado para deixá-lo entrar, Esaú disse:

— Agnes e aquela mania dela de assar tortas. Desta vez fez tantas que a gente não aguenta nem mais o cheiro de torta de amora. Ela disse que você talvez não se importasse em ajudar a gente, ficando com uma.

— Obrigada, Esaú. Onde ela está esta manhã?

Embora estivesse tentando esconder, Jolene estava desapontada — qualquer um ficaria — que fosse Esaú e não Agnes que estava à sua porta. Ele não se sentia ofendido com isso.

— Ela teve o bebê ontem à noite — anunciou Esaú.

Com um grito juvenil de deleite, Jolene berrou para o seu marido, Bill, que não estava ali na sala de estar:

— O bebê da Agnes nasceu!

— Um menino — disse Esaú. — Ela batizou ele de Bartholomew.

— Um menino chamado Bartholomew! — gritou Jolene para Bill, e então ela obrigou Esaú a segui-la para a cozinha.

Do lado de fora, na caminhonete, havia caixas de provisões — um presunto defumado, comida enlatada — para os Kleftons. Esaú daria essas coisas mais tarde, fingindo ter decidido livrar-se delas de repente.

Segundo Agnes, trazer a torta feita em casa primeiro e sentar-se para jogar conversa fora fazia a entrega não parecer um ato de caridade, mas simplesmente uma visita a um amigo.

A cozinha era pequena, com utensílios antiquíssimos, mas era clara e limpa, e o ar recendia a canela e baunilha.

Bill também não estava aqui.

Jolene puxou uma cadeira da mesa da cozinha.

— Senta, senta!

Ela guardou a torta num armário e trouxe três canecas para a mesa.

— Aposto que ele é um menino especial, um menino lindo, não é?

— Ainda não vi o menino. Falei com a Agnes ao telefone hoje de manhã, e ela disse que ele é maravilhoso. E tem a cabeça cheia de cabelos.

— Nasceu cabeludo! — gritou Agnes para o marido enquanto ela enchia as canecas com café quente.

Do fundo da casa um tamborilar rítmico se aproximava: Bill, vindo até a cozinha.

— Ela disse que os olhos dele são especialmente bonitos. Esmeraldas e safiras, ela disse. Chama os olhos dele de "olhos de joalheria".

— O menino tem olhos lindos! — Jolene gritou para Bill.

Enquanto Jolene trazia pratos e um bolo de café para a mesa, Bill chegou, impulsionando seu corpo para a frente com um par de bengalas grossas.

Ele também estava na casa dos cinquenta, mas parecia dez anos mais velho que a esposa. O tempo podia ser o culpado por seus cabelos brancos e ralos, mas seu rosto vermelho e inchado era consequência de doença e medicamentos.

A artrite reumática havia contorcido os seus quadris. Ele já devia ter trocado as bengalas por muletas ou um andador, mas o orgulho o impedia.

O orgulho também o mantivera em seu emprego durante muito tempo até a dor praticamente impedir que trabalhasse. Agora, desempregado há cinco anos, ele estava tentando, com sucesso cada vez menor, viver com a pensão por invalidez.

Bill deixou-se cair na cadeira e enganchou as bengalas nas costas dela. Ele estendeu a mão direita para Esaú.

A mão era contorcida, os nós dos dedos inchados. Esaú apertou-a levemente, com medo de causar dor mesmo com um toque suave.

— Conte sobre o bebê — encorajou Bill. — Onde eles acharam esse nome... Bartholomew?

— Não tenho certeza. — Esaú aceitou um prato com uma fatia de bolo de Jolene. — Até onde sei, não estava na lista de favoritos deles.

Ele não tinha muito o que dizer sobre o bebê, apenas o que Agnes contara. Ele já tinha relatado a maioria dos detalhes a Jolene.

Não obstante, ele contou tudo novamente. Na verdade, embelezou um pouco os fatos, falando devagar para estender o tempo do relato e esquivando-se da pergunta que o forçaria a compartilhar com eles as notícias ruins. „

E aqui veio ela, de Bill:

— E o Joey, estourando de orgulho?

A boca de Esaú estava cheia, de modo que ele foi poupado da necessidade de dar uma resposta imediata. Mastigou até ter a impressão de que sua fatia de bolo estava tão dura quanto cartilagem, e quando percebeu que Jolene fitava-o com curiosidade, ele fez que sim com a cabeça, respondendo à pergunta de Bill.

Ele pagou por essa mentira, o aceno de cabeça, quando tentou engolir o bolo e não conseguiu. Com medo de engasgar, ele pegou sua caneca de café e fez a maçaroca teimosa descer com uma onda de líquido preto.

Ele não podia falar sobre Joey. Dar a notícia seria o mesmo que matar Joey, porque enquanto Esaú não contasse a alguém sobre o acidente, o seu cunhado não estaria realmente morto. As palavras tornavam as coisas reais. Enquanto Esaú não proferisse as palavras, Joey estaria vivo de alguma maneira, pelo menos para Jolene e para Bill.

Este era um pensamento maluco. Irracional. Não obstante, as notícias sobre Joey estavam presas em sua garganta mais teimosamente que aquela maçaroca de bolo.

Ele mudou para um assunto com o qual sentia-se mais confortável: o dia do juízo final.

— Este clima parece de terremoto, não acham? Surpreso, Bill disse:

— É um dia muito bonito, para janeiro.

— O terremoto do ano mil está atrasado — alertou Esaú.

— Ano mil? — disse Jolene, testa franzida.

— A falha de San Andreas deve gerar um terremoto de magnitude oito-ponto-cinco ou maior uma vez a cada mil anos, para aliviar a pressão. Ela está atrasada em centenas de anos.

— Bem, não vai acontecer no dia do nascimento do bebê de Agnes, garanto isso — disse Jolene.

— Ele nasceu ontem, não hoje — disse Esaú. — Quando o terremoto dos mil anos chegar, os arranha-céus virarão panquecas, as pontes cairão, as represas romperão. Em três minutos, um milhão de pessoas vai morrer entre San Diego e Santa Bárbara.

— Então é melhor eu comer mais bolo — disse Bill, empurrando seu prato para Jolene.

— Os oleodutos e os encanamentos de gás natural vão rachar e explodir. Um mar de fogo vai lavar as cidades, matando mais centenas de milhares de pessoas.

— Você está prevendo isso porque a Mãe Natureza nos deu um delicioso dia quente em janeiro?

— A Natureza não tem instintos maternais — disse Esaú baixo, mas com convicção. — Pensar o contrário é, no mínimo, sentimentalismo puro. A natureza é nossa inimiga. Ela é uma assassina violenta.

Jolene começou a encher novamente a caneca de café dele... e então mudou de ideia.

— Talvez você não esteja precisando de mais cafeína, Esaú.

— Você já ouviu falar do terremoto que destruiu setenta por cento de Tóquio e toda Yokohama em primeiro de setembro de mil novecentos e vinte e três?

— E eles ainda tiveram energia suficiente para lutar contra a gente na Segunda Guerra Mundial — comentou Bill.

— Depois do terremoto, quarenta mil pessoas se refugiaram numa área aberta de oitenta hectares, um depósito militar — prosseguiu Esaú. — Um incêndio causado pelo terremoto se espalhou tão rápido pelo lugar que as pessoas morreram em pé, e tão próximas umas às outras que formaram uma massa sólida de cadáveres.

— Bem, nós temos terremotos aqui, mas lá no leste eles têm furacões — argumentou Jolene.

— Nosso teto novo resistiria a um furacão — disse Bill, apontando para cima. .— Um bom trabalho. Diga a Agnes o quanto o trabalho ficou bom.

Depois de conseguir que fizessem o teto novo para eles a preço de custo, Agnes reunira doações de doze indivíduos e um grupo de igreja para pagar tudo, menos duzentos dólares.

— O furacão que atingiu Galveston, no Texas, lá em mil e novecentos, matou seis mil pessoas — disse Esaú. — Praticamente apagou o lugar do mapa.

— Isso foi há sessenta e cinco anos — disse Jolene.

— Há menos de um ano e meio o furacão Flora matou mais de seis mil no Caribe.

— Não viveria no Caribe nem se você me pagasse — disse Bill. — Toda aquela umidade. E os insetos!

— Mas nada se compara à matança causada por um terremoto — concluiu Esaú. — O Grandão em Shaanxi, na China, matou oitocentas e trinta mil pessoas.

Bill não ficou impressionado.

— Eles fazem casas de lama na China. Não é de admirar que elas caiam.

— Isso foi em vinte e quatro de janeiro de mil quinhentos e cinquenta e seis — disse Esaú com autoridade, porque havia decorado dez mil fatos sobre os piores desastres naturais na História.

— Quinhentos e cinquenta e seis? — disse Bill. — Droga, vai ver na época os chineses não tinham nem lama.

Fortificando-se com mais café, Jolene disse:

— Esaú, conta pra gente como o Joey está se sentindo, agora que é pai. Olhando para o seu relógio de pulso com alarme, Esaú pulou em pé.

— Olha só a hora! Agnes me mandou fazer um monte de coisas, e aqui estou eu, falando sobre terremotos e ciclones.

— Furacões — corrigiu Bill. — Eles são diferentes dos ciclones, não são?

— Nem queira que eu comece a falar sobre ciclones.

Esaú saiu apressado da casa e entrou na caminhonete, para pegar as caixas de provisões.

O céu azul acima, agora sem nuvens, era o céu mais ameaçador que Esaú já tinha visto. O ar estava seco demais para logo depois de uma tempestade. E parado. Tenso. Clima de terremoto. Antes que este dia memorável terminasse, grandes tremores e maremotos com ondas de 150 metros de altura iriam abalar e alagar a costa.

 

DOS SETE RECÉM-NASCIDOS, nenhum chorava. Tinham chegado há tão pouco tempo neste mundo que ainda não conheciam os motivos para ter medo.

Uma enfermeira e uma freira levaram Celestina até o berçário atrás da vitrine.

Ela se esforçou para aparentar calma, e deve ter conseguido, porque nenhuma das duas mulheres pareceu perceber que estava assustada quase ao ponto da paralisia. Ela se movia pesadamente, juntas duras, músculos tensos.

A enfermeira levantou o bebê de seu berço. Ela o deu à freira.

Aninhando o bebê nos braços, a enfermeira virou-se para Celestina, dobrando para trás um lençol fino, de modo a presenteá-la com uma boa olhada na menininha.

Sustendo a respiração, Celestina confirmou o que suspeitara sobre a criança desde o vislumbre que tivera dela na sala de cirurgia. A pele da menininha era café-com-leite, com um suave toque de caramelo.

Durante muitas gerações orgulhosas e pelo menos até a extensão dos primos em segundo grau, ninguém no lado da família de Celestina tinha a pele de cor tão pálida. Eles eram, sem exceção, da cor do mogno, muito mais escuros que esta menina.

O estuprador de Fimie devia ter sido um homem branco.

Alguém que ela havia conhecido. Alguém que Celestina também devia conhecer. Ele vivia em Spruce Hills ou nos arredores, porque até morrer Fimie ainda o considerava uma ameaça.

Celestina não tinha qualquer ilusão de que conseguiria bancar a detetive. Ela jamais encontraria o filho da puta, e não tinha coragem de confrontá-lo.

Em todo caso, a coisa que a assustava não era o pai monstruoso desta criança. A coisa assustadora era a decisão que ela tomara há alguns minutos, no quarto vazio no sétimo andar do hospital.

O futuro inteiro de Celestina estaria em jogo se ela agisse conforme havia decidido agir. Aqui, na presença do bebê, dentro de um ou dos minutos, ela poderia mudar de ideia ou se comprometer a uma vida mais difícil e desafiadora do que qualquer uma que visualizara apenas nesta manhã.

— Posso? — perguntou, estendendo os braços.

Sem hesitar, a freira transferiu a criança para Celestina.

O bebê parecia leve demais para ser real. Pesava dois quilos e cinquenta gramas, porém parecia mais leve do que o ar, como se pudesse sair levitando dos braços de sua tia.

Celestina fitou o rosto pequeno e castanho, abrindo-se para a mágoa e o ódio com que tratara esta criança na sala de operação.

Se a freira ou a enfermeira tivessem sabido do ódio que Celestina sentira antes, jamais teriam permitido sua presença no berçário, e muito menos confiado a ela a criança recém-nascida.

Esta cria da violência. Esta assassina de sua irmã.

Ela procurou nos olhos da criança por algum sinal da maldade de seu pai.

As mãozinhas, tão fracas agora, mas que um dia seriam fortes: será que um dia seriam capazes de atos de selvageria, como as de seu pai tinham sido?

Esta filha indesejada. Esta semente de um homem demoníaco a quem a própria Fimie chamara de perverso.

Ainda que dotada agora de uma aparência inocente, que dor ela poderia infligir a outros? Que pecados cometeria nos anos vindouros?

Embora Celestina procurasse intensamente, ela não conseguia encontrar naquela criança um vestígio sequer da maldade do pai.

Em vez disso, ela via Fimie renascida.

Viu também uma criança em perigo. Em algum lugar lá fora havia um estuprador capaz de crueldade e violência extremas, um homem que — se Fimie estava correta — reagiria imprevisivelmente se algum dia viesse a saber sobre a existência de sua filha. Anjo, se esse realmente viesse a ser o seu nome, viveria sob uma ameaça tão certa quanto as das crianças de Belém, que haviam sido chacinadas por decreto do rei Herodes.

O bebê enroscou a mãozinha em torno do dedo indicador de sua tia. Tão pequena, tão frágil, a mão da menina apertava com tenacidade surpreendente.

Faça o que precisa ser feito.

Devolvendo a recém-nascida à freira, Celestina pediu por privacidade e um telefone.

Mais uma vez o escritório da assistente social. A chuva tamborilava suavemente na janela através da qual o dr. Lipscomb fitara intensamente a neblina enquanto tentava aceitar a revelação feita por Fimie, falando com o conhecimento especial dos já-mortos.

Sentada à mesa, Celestina telefonou novamente para seus pais. Ela tremia incontrolavelmente, mas sua voz estava estável.

Sua mãe e seu pai usavam extensões diferentes, ambas em linha com ela.

— Quero que vocês adotem o bebê.—Antes que eles pudessem reagir, acrescentou: — Faltam ainda algumas semanas para eu fazer vinte e um anos, e mesmo depois disso terei dificuldade para adotar a menina, mesmo sendo tia dela, porque sou solteira. Mas se vocês a adotarem, irei criá-la. Prometo que irei. Assumirei responsabilidade total. Vocês não precisam se preocupar, porque não vou me arrepender. Não vou jogar o bebê no colo de vocês e fugir da responsabilidade. A criança será o centro da minha vida daqui em diante. Entendo isso. Aceito isso. Abraço isso.

Ela temia que os pais discutissem com ela e, embora soubesse que tinha certeza de sua decisão, não queria ter sua determinação posta à prova tão cedo. Para surpresa dela, o pai de Celestina perguntou:

— É a emoção falando, Celie, ou é tanto o cérebro quanto o coração?

— Ambos. Cérebro e coração. Mas já pensei bem no assunto, papai. Pensei sobre isso mais do que sobre qualquer outra coisa em minha vida.

— O que você não está nos dizendo? — pressionou a mãe dela, intuindo a existência de uma história maior, se não a natureza sobrenatural dessa história.

Celestina contou-lhes a respeito de Neila Lombardi e da mensagem que Fimie passou ao dr. Lipscomb depois de ressuscitada. ; — Fimie era... especial. Também há alguma coisa especial na filha dela

— Lembre do pai — acautelou Grace. - ; E o pastor acrescentou:

— Isso mesmo, lembre dele. Se a criança for como o pai...

— Não acreditamos que seja, acreditamos, pai? Nós acreditamos que todos nascemos com esperança, sob um manto de misericórdia, não acreditamos?

— Sim — respondeu baixinho o pai. — Nós acreditamos.

Uma sirene na cidade aproximava-se do hospital St. Mary. Uma ambulância. Através de ruas cheias de esperança, sempre este lamento pelos moribundos.

Celestina levantou os olhos do tampo arranhado da mesa para o céu esbranquiçado pela neblina no outro da janela, da realidade para a promessa.

Contou a eles sobre o pedido de Fimie para que o bebê fosse chamado de Anjo.

— Ou Anja, porque é uma menina. Na hora, achei que ela não fosse capaz de pensar claramente por causa do derrame. Se o bebê ia ser adotado, a escolha do nome caberia aos pais adotivos. Mas acho que ela compreendia... ou de algum modo sabia... que eu ia querer fazer isso. Que eu precisaria fazer isso.

— Celie, sinto muito orgulho de você — disse Grace. — Eu a amo demais para querer isto. Mas como você vai conseguir prosseguir os seus estudos, o seu trabalho, e cuidar de um bebê?

Os pais de Celestina não eram abastados. A igreja de seu pai era pequena e humilde. Eles não tinham como pagar as mensalidades da faculdade de arte, mas Celestina trabalhava como garçonete para pagar o aluguel de sua quitinete e outras necessidades.

— Não preciso me formar na primavera do ano que vem. Posso fazer menos matérias e me formar na primavera seguinte. Isso não é problema.

— Oh, Celie... Ela continuou:

— Sou uma das melhores garçonetes que eles têm. Se eu me propuser a trabalhar apenas no turno do jantar, eles irão aceitar. As gorjetas são melhores na hora do jantar. E trabalhando em apenas um turno, de quatro e meia a cinco horas por dia, terei um horário regular.

— Nessas horas, quem vai ficar com o bebê?

— Babás. Amigas, parentes de amigas. Pessoas em quem posso confiar. Com as gorjetas da hora do jantar poderei pagar as babás.

— É melhor que nós a criemos, seu pai e eu.

— Não, mamãe. Isso não vai dar certo. A senhora sabe que não vai dar.

— Acho que está subestimando o meu rebanho, Celestina — disse o pai. — Eles não ficarão escandalizados. Eles abrirão os seus corações.

— Não é só isso, papai. O senhor lembra, quando estávamos todos juntos, anteontem, como Fimie estava com medo desse homem. Não apenas por si mesma... pelo bebê.

Não posso ter o bebê aqui. Ele vai ficar furioso se descobrir que estou com o bebê dele. Sei que vai.

— Ele não faria mal à menininha — argumentou Grace. — Não teria nenhum motivo para isso.

— Se ele é mau e insano, então não precisa de motivo. Acho que Fimie estava convencida de que ele iria matar o bebê. E como não sabemos quem é esse homem, precisamos confiar nos instintos dela.

— Se ele é esse monstro, então se descobrir sobre o bebê talvez você também corra perigo, mesmo aí em San Francisco — disse Grace, a voz carregada de preocupação.

— Ele nunca vai saber. Precisamos garantir que não fique sabendo nunca. Os pais de Celestina mergulharam num silêncio contemplativo.

Do canto da mesa, Celestina pegou uma fotografia emoldurada da assistente social e sua família. Marido, esposa, filha, filho. A menininha sorria tímida em meio aos abraços. O menino tinha cara de arteiro.

Neste retrato, ela via uma coragem indescritível. Criar uma família neste mundo turbulento era um ato de fé, uma aposta de que haverá um futuro, que o amor pode durar, que o coração pode triunfar contra todas as adversidades e mesmo o tempo.

— Grace, o que você quer fazer? — perguntou o pastor.

— Você está assumindo uma responsabilidade muito forte, Celie — alertou a mãe.

— Eu sei.

— Minha querida, uma coisa é amar sua irmã, mas há um mundo de diferença entre isso e ser uma mártir.

— Segurei o bebê de Fimie, mamãe. Segurei a menininha nos meus braços. O que senti não foi sentimentalismo barato.

— Você fala como se estivesse tão segura.

— E quando ela não esteve, desde os três anos de idade? — disse o pastor, a voz carregada de afeto.

— Quero ser a guardiã deste bebê — disse Celestina. — Quero mantê-lo em segurança. Esta menininha é especial. Mas não sou mártir. Terei muitas alegrias com isso, já estou tendo só de pensar. Estou assustada, é claro. Meu Deus, como estou assustada. Mas também estou feliz.

— Cérebro e coração? — perguntou novamente o pai.

— As duas coisas — confirmou.

— Mas vou fazer pé firme numa coisa — disse Grace. — Ficarei aí com você durante alguns meses no começo, para ajudá-la até você estar organizada, até pegar o ritmo da coisa.

Ficou acertado assim. Embora estivesse sentada numa cadeira, Celestina sen-tia-se diante de uma encruzilhada entre sua vida antiga e sua vida nova, entre o que o futuro poderia ser e o que o futuro iria ser.

Ela não estava preparada para criar um bebê, mas iria aprender tudo que era preciso.

Os ancestrais de Celestina tinham sido escravos, e sobre os seus ombros, sobre os ombros de gerações, ela agora era livre. Os sacrifícios que faria por esta criança não poderiam ser chamados de sacrifícios, não à luz dura da História. Em comparação com as coisas que outros tinham sofrido, isto era moleza. Gerações não haviam lutado para que ela fugisse ao dever quando ele se apresentava. Isto dizia respeito a honra e família. Dizia respeito à vida, e todos viviam suas vidas à sombra de alguma obrigação solene.

Da mesma forma, não estava preparada para lidar com um monstro como o pai de Anja, se algum dia ele aparecesse. E ele iria aparecer. Ela sabia disso. Nesses eventos, como em todas as coisas, Celestina White vislumbrava um padrão, complexo e misterioso, e aos olhos de um artista a simetria do desenho requeria que um dia o pai fosse procurar a criança. Não estava preparada para lidar com esse calhorda agora, mas estaria quando ele chegasse.

 

DEPOIS DE PASSAR POR EXAMES para a detecção de tumores cerebrais ou lesões, para aferir se o ataque de vómito poderia ter uma causa física, Júnior retornou ao quarto de hospital um pouco antes do meio-dia.

Mal havia se deitado novamente quando viu, com um arrepio, Thomas Vanadium parado no vão da porta.

— Suco de maçã, gelatina de limão e quatro bolachas — disse o detetive. — Você pode não ter uma consciência que o faça confessar, mas talvez esta dieta quebre a sua força de vontade. Enoch, posso garantir que a bóia em qualquer cadeia do Oregon é bem melhor.

— Qual é o seu problema? — inquiriu Júnior.

Como se não tivesse entendido o caráter insultuoso da pergunta, e o fato de que ela requeria uma resposta, Vanadium caminhou até a janela e levantou a persiana, admitindo uma luz solar tão poderosa que por um instante Júnior não enxergou direito o interior do quarto.

— Está fazendo um tempo tipo "Sunshine Cake"—anunciou Vanadium. — Lembra daquela música, "Sunshine Cake", Enoch? Do James Van Heusen, um puta compositor? Não é a melodia mais famosa dele. Ele também compôs "Ali the Way" e "Cali Me Irresponsible". "Come Fly With Me" também era dele. "Sunshine Cake" é uma música menor, mas muito bonita.

Todo esse papo furado tinha saído no jeito de falar patenteado do detetive. A voz de Vanadium era tão inexpressiva quanto a sua cara achatada.

— Por favor, feche isso — pediu Júnior. — Está claro demais.

Dando as costas para a janela, aproximando-se da cama, Vanadium disse:

— Tenho certeza de que você preferiria a escuridão, mas preciso de um pouco de luz para ver a sua expressão quando lhe contar a novidade.

Embora soubesse que jogar com Vanadium era perigoso, Júnior não resistiu a perguntar:

— Que novidade?

— Vai beber o seu suco de maçã?

— Que novidade?

— O laboratório não encontrou nenhuma ipeca no seu vómito.

— Nenhuma o quê? — perguntou Júnior, porque ele fingira dormir enquanto Vanadium e o dr. Parkhurst haviam falado sobre a ipeca na noite anterior.

— Nenhuma ipeca, nenhum outro emético, e nenhum tipo de veneno.

Agora ele não tinha mais motivos para suspeitar de Naomi. Júnior ficou aliviado em saber que o tempo breve e bonito que eles haviam passado juntos agora não seria obscurecido pela chance de Naomi ter sido uma piranha envenenadora de maridos.

— Sei que você induziu o vómito de alguma maneira — disse o detetive. — Mas parece que agora não vou conseguir provar isso.

— Escute aqui, detetive, essas insinuações doentias de que tive alguma relação com a morte da minha...

Vanadium levantou a mão como se para calá-lo e falou:

— Poupe-me dessa indignação fingida. Além disso, não estou insinuando nada. Estou acusando-o diretamente de assassinato. Você estava comendo outra mulher, Enoch? Essa foi a sua motivação?

— Isto é nojento.

— Para ser honesto... e sou sempre honesto com você... não encontrei nenhum indício de outra mulher. Já falei com muita gente, e todo mundo pensa que você e Naomi eram fiéis um ao outro.

— Eu a amava.

— Sim, você disse isso, e já admiti que até pode ser verdade. O seu suco de maçã está ficando quente.

Segundo Caesar Zedd, ninguém pode ser forte até aprender como sempre ser calmo. A força e o poder provêm do autocontrole perfeito, e o autocontrole perfeito provém da paz interior. A paz interior, segundo Zedd, é principalmente uma questão de respiração profunda e ritmada combinada com um foco determinado não no passado, ou mesmo no presente, mas no futuro.

Em sua cama, Júnior fechou os olhos e respirou lenta, profundamente. Concentrou seus pensamentos em Victória Bressler, a enfermeira que o aguardava ansiosamente para agradá-lo em dias vindouros.

— Na verdade, vim mesmo foi pegar a minha moeda.

Júnior abriu os olhos mas continuou a respirar apropriadamente para manter a calma. Ele tentou imaginar como seriam os seios de Victória quando livres de toda a contenção.

Parado perto da extremidade da cama num terno azul de caimento horroroso, Vanadium parecia a obra de um artista excêntrico que desenhara um troglodita vestido com roupas do século XX.

Com o detetive corpulento avultando sobre ele, Júnior não era capaz de colocar sua imaginação num clima erótico. No olho de sua mente, o busto amplo de Victória permaneceu oculto por trás de um uniforme branco engomado.

— Quando você precisa viver com o que a polícia paga, cada centavo conta — disse Vanadium.

Magicamente, uma moeda de 25 cents apareceu na mão direita dele, entre o dedão e o indicador.

Essa não podia ser a moeda que ele deixara com Júnior na noite anterior. Isso era impossível.

Durante o dia inteiro, por motivos que ele não poderia colocar em palavras, Júnior carregara aquela moeda num bolso de seu roupão de banho. De vez em quando ele havia pego a moeda para examiná-la.

Depois que retornara de seus exames, ele deitara na cama sem despir o robe fino de tecido de hospital. Ainda o usava sobre o pijama.

Vanadium não podia conhecer o paradeiro da moeda. Além disso, mesmo quando colocara a bandeja sobre o colo de Júnior, o detetive não estivera perto o bastante para vasculhar o bolso do robe.

Este era um teste do nível de ingenuidade de Júnior, e ele não daria a Vanadium a satisfação de procurar a moeda no bolso.

— Vou prestar queixa sobre você — prometeu Júnior.

— Na minha próxima visita trago o formulário apropriado.

Vanadium jogou a moeda no ar e imediatamente estendeu os braços, palmas para cima para mostrar que suas mãos estavam vazias.

: Júnior tinha visto a moeda de prata ser propelida pelo dedão do policial e rodopiar no ar. Agora ela tinha sumido, como se houvesse desaparecido em pleno ar.

Por um instante, sua atenção tinha sido distraída pela apresentação das mãos vazias de Vanadium. Não obstante, não havia como o tira pudesse ter agarrado a moeda no ar.

Ainda assim, se não tivesse sido capturada, a moeda teria caído no chão. Júnior teria ouvido o metal tilintar no sinteco. Mas não ouviu.

Rápido como o bote de uma serpente, Vanadium estava muito mais perto da cama do que estivera ao jogar a moeda; agora estava ao lado de Júnior, inclinado sobre a cama.

— Naomi estava grávida de seis semanas.

— O quê?

— Foi essa a novidade que mencionei. A coisa mais interessante no laudo da autópsia.

Júnior pensara que a novidade tinha sido a conclusão do laboratório de que não havia ipeca em seu vómito. Tudo aquilo fora uma distração.

Aqueles olhos afiados e cinzentos como agulhas pregaram Júnior na cama, alfinetando-o para estudo.

Aqui, agora, veio o sorriso de sucuri.

— Vocês brigaram por causa do bebê, Enoch? Talvez ela quisesse e você não. Homens como você... um bebê atrapalharia o seu estilo de vida. Responsabilidade demais.

— Eu... eu não sabia.

— Os testes de sangue revelarão se a criança era sua ou não. Isso também pode explicar toda esta história.

— Eu ia ser pai — disse Júnior, genuinamente perplexo.

— Será que achei o seu motivo, Enoch?

Estarrecido e assustado com a insensibilidade do policial, Júnior disse:

— Você simplesmente joga uma notícia dessas em cima de mim? Eu perdi minha esposa e o meu filho. Minha esposa e o meu filho.

— A sua ilusão de tormento é tão boa quanto a minha ilusão da moeda. Lágrimas esguicharam de Júnior, torrentes ácidas, um mar salgado de dor que

borrou a sua visão e banhou seu rosto em salmoura.

— Saia daqui, seu filho da puta — exigiu, a voz simultaneamente trémula de tristeza e distorcida por raiva pura. — Saia daqui, saia daqui agora

Enquanto caminhava até a porta, o detetive disse:

— Não esqueça do suco de maçã. Você vai precisar de força no julgamento.

Júnior descobriu mais lágrimas do que poderia ter achado em dez mil cebolas. A sua esposa e o seu filho em gestação. Ele estivera disposto a sacrificar a sua amada Naomi, mas talvez tivesse considerado o custo muito alto se tivesse sabido que também estava sacrificando o seu primogénito. Isto era demais. Ele estava arrasado.

Não mais de um minuto após Vanadium ter saído uma enfermeira chegou apressada, decerto enviada pelo maldito policial. Olhando-a através de suas lágrimas, ele não podia saber se ela era gostosa. Talvez tivesse uma cara bonita. Mas o corpo era magro demais.

 

Preocupada com a possibilidade de que o choro compulsivo de Júnior acio-nasse espasmos dos músculos abdominais e, consequentemente, mais um ataque de vómito hemorrágico, a enfermeira trouxera um tranquilizante. Ela mandou que ele engolisse a pílula junto com o suco de maçã.

Júnior teria preferido tomar um béquer inteiro de ácido carbólico do que tocar o suco, porque a bandeja com o almoço fora trazida por Thomas Vanadium. Aquele tira maníaco, determinado a pegar o seu homem por bem ou por mal, seria capaz de recorrer a envenenamento se achasse os instrumentos usuais da lei inadequados para a tarefa.

Por insistência de Júnior, a enfermeira serviu um copo de água da garrafa que ficava na mesinha-de-cabeceira. Em momento algum Vanadium se aproximara da garrafa.

Depois de algum tempo, o tranquilizante e as técnicas de relaxamento ensinadas por Caesar Zedd restauraram o autocontrole de Júnior.

A enfermeira permaneceu com ele até a tempestade de lágrimas passar. Estava claro que ele não iria sucumbir a nenhuma crise emética nervosa aguda.

Ela prometeu trazer suco de maçã fresco depois que ele reclamou que o que lhe fora servido antes estava com um gosto estranho.

Sozinho, calmo novamente, Júnior foi capaz de aplicar o que era basicamente a raiz da filosofia de Zedd: sempre veja o lado bom das coisas.

Qualquer que fosse a severidade de um problema, qualquer que fosse a violência de um golpe, você sempre podia descobrir um lado bom se procurasse com afinco. A chave para a felicidade, o sucesso e a saúde mental era basicamente ignorar a negatividade, negar seu poder sobre você, e encontrar motivos para celebrar cada acontecimento em sua vida, incluindo a catástrofe mais cruel, descobrindo o lado bom até mesmo na hora mais sombria.

Neste caso, o lado bom era danado de bom. Tendo perdido tanto uma mulher belíssima quanto uma criança ainda em gestação, Júnior conquistaria a simpatia — a piedade, o amor — de qualquer júri diante do qual o estado esperasse defender-se contra um processo de assassinato culposo.

Antes ele ficara surpreso com a visita de Knacker, Hisscus e Nork. Ele tinha achado que não veria aquele tipo de gente tão cedo; e então teria esperado não mais do que um único advogado oferecendo uma proposta de acordo modesta.

Agora ele compreendia por que eles tinham estado com tanta pena dele, e tão dispostos a compensá-lo por seu infortúnio. O legista os havia informado, antes da polícia, que Naomi morrera grávida, e eles tinham reconhecido a vulnerabilidade extrema do estado.

A enfermeira retornou com suco de maçã fresco, gelado e doce.

Júnior bebericou lentamente. Quando alcançou o fundo do copo, ele já tinha chegado à conclusão inquestionável de que Naomi estivera escondendo a gravidez.

Nas seis semanas desde a concepção, ela devia ter perdido ao menos um período menstrual. Ela não havia reclamado de enjoo matinal, mas certamente havia sentido. Era altamente improvável que ela não estivesse ciente de sua condição.

Ele nunca havia expressado oposição contra iniciar uma família. Ela não tinha qualquer motivo para temer contar a ele que estava carregando seu filho.

Lamentavelmente, ele não tinha escolha senão concluir que ela não havia se decidido se deveria ter o bebé ou procurar um aborto ilegal sem a aprovação de Júnior. Ela estivera considerando raspar a criança de seu útero sem sequer contar a ele.

Este insulto, este ultraje, esta traição, deixou Júnior estarrecido.

Inevitavelmente, acabou se perguntando se Naomi não estivera mantendo a gravidez em segredo por suspeitar que a criança não fosse de seu marido.

Se os exames de sangue revelassem que Júnior não era o pai, Vanadium teria um motivo. Não seria o motivo certo, porque Júnior realmente não soubera que sua esposa estivera grávida ou que ela talvez estivesse trepando com outro homem. Mas o detetive seria capaz de vender isso a um promotor, e o promotor convenceria pelo menos alguns jurados.

Naomi, sua piranha burra e infiel.

Ele queria ardentemente que não a tivesse matado com uma rapidez tão misericordiosa. Se a tivesse torturado primeiro, agora poderia consolar-se com a memória de seu sofrimento.

Durante algum tempo, procurou o lado bom. Não conseguiu encontrá-lo.

Comeu a gelatina de limão. As bolachas.

Depois de algum tempo, Júnior lembrou da moeda de 25 cents. Enfiou a mão no bolso direito do robe de algodão fino, mas não achou a moeda. Era como se ela jamais tivesse estado lá. O bolso esquerdo também estava vazio.

 

WALTER PANGLO, o único papa-defuntos de Bright Beach, era um homenzinho adorável que gostava de cuidar do jardim quando não se achava plantando gente morta. Ele cultivava rosas de competição e dava-as em grandes buques aos enfermos, aos jovens apaixonados, à bibliotecária em seu aniversário, às balconistas que lhe eram atenciosas.

Sua esposa, Dorotéia, simplesmente o adorava, e não apenas porque ele aceitara a sogra de oitenta anos em sua casa e a tratava como se ela fosse ao mesmo tempo uma duquesa e uma santa. Ele era igualmente generoso com os pobres, enterrando seus mortos a preço de custo, mas com o máximo de dignidade.

Jacó Isaacson — o irmão gémeo de Esaú — não sabia nada negativo a respeito de Panglo, mas não confiava nele. Se o papa-defuntos fosse pego arrancando dentes de ouro dos mortos e entalhando símbolos satânicos em suas nádegas, Jacó diria "faz sentido". Se Panglo tivesse salvo garrafas de sangue contaminado de cadáveres doentes, e se um dia saísse correndo pela cidade, esguichando o líquido nos rostos de cidadãos inocentes, Jacó não teria nem mesmo soerguido a sobrancelha em sinal de surpresa.

Jacó não confiava em ninguém além de Agnes e Esaú. Ele havia confiado também em Joey Lampion, mas apenas depois de anos de observação cautelosa. Agora Joey estava morto, e o seu cadáver se achava na câmara de embalsamamento da Funerária Panglo.

No momento, Jacó estava bem longe da câmara de embalsamamento e pretendia jamais entrar ali, vivo. Tendo Walter Panglo como seu guia, ele estava escolhendo um caixão na sala de planejamento funerário.

Ele queria a caixa mais cara para Joey; mas Joey, um homem modesto e prudente, teria desaprovado isso. Em vez disso, selecionou um caixão bonito, mas sem adornos, apenas um pouco acima do preço mediano.

Profundamente deprimido por estar planejando o funeral de um homem tão jovem quanto Joey Lampion, de quem ele muito gostava e admirava, Panglo parou para expressar seu choque e para murmurar palavras de conforto, mais para si mesmo que para Jacó, cada vez que uma decisão era tomada. Com a mão no caixão escolhido, ele disse:

— É inacreditável. Um acidente de carro, e no mesmo dia em que o filho dele nasceu. Triste. Terrivelmente triste.

— Não é tão inacreditável — disse Jacó. — Quarenta e cinco mil pessoas morrem por ano em acidentes de carro. Carros não são meios de transporte. São máquinas de morte. Dezenas de milhares ficam desfigurados, aleijados até o fim de suas vidas.

Enquanto Esaú temia a ira da natureza, Jacó sabia que a verdadeira mão do destino era a mão da humanidade.

— Não que os trens sejam melhores. Tome por exemplo a colisão em Ba-kersfield, em 1960. O Santa Fe Chief, saído de San Francisco, se chocou com um velho caminhão-tanque. Dezessete pessoas esmagadas, queimadas num rio de fogo.

Jacó temia o que os homens podiam fazer com machetes, facas, revólveres, bombas e com as mãos nuas. Mas o que mais o preocupava eram as mortes acidentais provocadas pela humanidade com seus instrumentos, máquinas e estruturas criados para aumentar a qualidade de vida.

— Cinquenta morreram em Londres em 1957, quando dois trens colidiram. E cento e vinte foram esmagados, rasgados, aleijados em 1952, também na Inglaterra.

Cenho franzido, Panglo olhou para Jacó e disse:

— Você tem razão, é terrível, mas muitas coisas terríveis acontecem. Não sei por que trens...

— É tudo a mesma coisa. Carros, trens, navios, tudo igual — insistiu Jacó. — Lembra do Toya Maru?. Um barco japonês que emborcou em setembro de 1954? Cento e sessenta e oito pessoas mortas. Ou pior ainda, em 1948, na Manchúria, quando a caldeira de um navio mercante chinês explodiu. Meu Deus, seis mil pessoas morreram. Seis mil pessoas, num único navio!

Durante a hora seguinte, enquanto Walter Panglo guiava Jacó através do planejamento do funeral, este recontou os mesmos detalhes sórdidos dos numerosos acidentes de avião, afundamentos de navios, colisões de trens, desastres em minas de carvão, desmoronamentos de represas, incêndios de hotéis, incêndios em clubes noturnos, explosões em oleodutos, explosões em fábricas de munições...

Na hora em que todos os detalhes do funeral finalmente tinham sido acertados, Walter Panglo exibia um tique nervoso na face esquerda. Seus olhos estavam arregalados, como se tivessem se mantido sem piscar durante tanto tempo que as pálpebras paralisaram, travadas num espasmo de surpresa. Suas mãos estavam úmidas; ele as enxugava repetidamente no paletó de seu terno.

Ciente da tensão do papa-defuntos, Jacó estava convencido de que sua desconfiança inicial de Panglo tinha sido justificada. Este sujeitinho parecia esconder alguma coisa. Jacó não precisava ser um policial para reconhecer o nervosismo que nascia da culpa.

 

Na porta da frente da funerária, enquanto Panglo mostrava-lhe a saída, Jacó se aproximou mais dele e disse:

— Joey Lampion não tinha nenhum dente de ouro. Panglo pareceu não entender. Provavelmente estava fingindo.

Em vez de comentar o histórico dentário do falecido, o pequeno papa-defuntos proferiu algumas palavras de conforto, e quando colocou a mão sobre o seu ombro, Jacó estremeceu ao sentir o seu toque.

Confuso, Panglo estendeu a mão direita, mas Jacó disse:

— Desculpe, não quero ofender, mas não aperto a mão de ninguém.

— Bem, certamente eu entendo — disse Panglo, abaixando a mão, embora claramente não entendesse nada.

— É apenas porque a gente nunca sabe onde a mão da outra pessoa esteve recentemente — explicou Jacó. — Aquele banqueiro respeitável no fim da rua pode ter trinta mulheres desmembradas enterradas no quintal dos fundos. A sua vizinha, apesar de ser uma beata muito simpática, pode estar dormindo na mesma cama que o cadáver podre de um amante que tentou lhe dar um belo chute na bunda. A mesma mulher talvez tenha como passatempo fazer jóias com os ossos dos dedos de criancinhas que ela torturou e assassinou.

Panglo julgou que suas mãos estariam mais seguras se ele as enfiasse nos bolsos das calças.

— Tenho centenas de recortes de casos como esses — disse Jacó. — Alguns são bem piores. Se estiver interessado, posso xerocar alguns pra você.

— Bondade sua, mas tenho pouco tempo para ler, muito pouco tempo — balbuciou Panglo.

Ainda que relutante em deixar o corpo de Joey com esse papa-defuntos estranhamente saltitante, Jacó atravessou a varanda da casa funerária em estilo vitoriano e saiu sem olhar para trás. Caminhou um quilómetro e meio até a sua casa, prestando bastante atenção no trânsito, principalmente nos cruzamentos.

O acesso ao seu apartamento, sobre a garagem grande, era através de uma escada exterior. O espaço era dividido em dois quartos. O primeiro era uma combinação de sala de estar e quitinete, com uma mesa de jantar de canto com lugar para duas pessoas. Adiante ficava um quarto pequeno com banheiro adjacente.

A maioria das paredes, em ambos os cómodos, era coberta por prateleiras de livros e armários de arquivo. Ali ele guardava incontáveis casos de acidentes, desastres causados pelo homem, assassinos seriais, assassinos eventuais: provas inegáveis de que a humanidade era uma espécie decadente engajada tanto na destruição não-intencional quanto na destruição calculada de si mesma.

No quarto de dormir muito bem arrumado, Jacó tirou os sapatos. Espregui-çando-se na cama, ele olhou para o teto, sentindo-se inútil.

Agnes enviuvada. Bartholomew nascido sem pai.

Terrível, terrível.

Jacó não sabia como conseguiria olhar para Agnes quando ela voltasse do hospital para casa. A tristeza nos olhos dela vararia o seu coração com a mesma violência que uma faca.

O otimismo constante de Agnes, seu entusiasmo, que ela mantivera miraculosamente durante tantos anos difíceis, não sobreviveria a isto. Ela não mais seria uma rocha de esperança para ele e para Esaú. Não havia nenhuma esperança no futuro deles.

Talvez ele desse sorte. Talvez um avião caísse do céu neste exato instante, bem aqui, obliterando-o num estalar de dedos.

Eles viviam longe demais da rodovia mais próxima. Ele não podia esperar que um trem descarrilado atravessasse a garagem.

Por outro lado, a temperatura no apartamento era mantida alta por um aquecedor a gás. Um vazamento, uma centelha, uma explosão, e ele jamais teria de ver a pobre Agnes em sua dor.

Depois de algum tempo, quando nenhum avião caiu sobre ele, Jacó se levantou e caminhou até a cozinha. Ali ele bateu a massa de um dos doces favoritos de Agnes: biscoitos de chocolate com nozes e passas.

Ele se considerava um homem absolutamente inútil, ocupando espaço num mundo ao qual não contribuía com nada, mas ao menos tinha um talento para cozinhar. Ele podia pegar qualquer receita, até uma de um mestre-cuca de prestígio internacional, e melhorá-la.

 

Quando estava cozinhando, o mundo parecia um lugar menos perigoso. Às vezes, fazendo um bolo, ele esquecia de sentir medo.

O forno a gás poderia explodir em seu rosto, finalmente trazendo-lhe paz, mas se não o fizesse, ele ao menos teria alguns biscoitos para dar a Agnes.

 

UM POUCO ANTES DAS treze horas os Hackachaks chegaram furiosos, olhos cheios de intenção sanguinária, dentes expostos, vozes estridentes.

Júnior aguardava essas criaturas singulares, e ele precisava que elas fossem tão monstruosas quanto sempre tinham sido no passado. Ainda assim, afundou no seu travesseiro quando elas irromperam pela porta do quarto de hospital. Seus rostos eram ferozes como os de canibais pintados antes de um banquete. Eles gesticulavam sinergicamente, cuspindo expletivos junto com pedacinhos de comida desalojados de seus dentes pela força de seus gritos.

Rudy Hackachak — Rudy Grandão para os íntimos — media 1,85m e tinha as feições rudes de uma escultura em madeira esculpida com o machado de um lenha-dor. Num terno de poliéster verde com mangas curtas demais, uma lamentável camisa amarela-mijo e uma gravata que poderia ser a bandeira nacional de um país do Terceiro Mundo famoso apenas por sua carência de senso de moda, ele parecia o monstro do dr. Frankenstein arrumado para uma noite de arromba na Transilvânia.

— Por acaso perdeu a cabeça, seu cabrito alpinista? — perguntou Rudy, agarrando o corrimão da cama como se quisesse arrancá-lo e usá-lo para bater no seu genro.

Se Rudy Grandão era o pai de Naomi, ele não devia ter contribuído com um gene sequer para ela, devendo ter fertilizado o ovo de sua mulher por choque, usando apenas sua voz ribombante num berro orgástico, porque nada em Naomi — nem a aparência nem a personalidade — fazia lembrar dele.

Sheena Hackachak, aos 44 anos, era mais bonita do que qualquer estrela de cinema atual. Ela parecia vinte anos mais jovem do que a sua idade verdadeira, e lembrava tanto a filha falecida que Júnior sentiu-se tomado por uma nostalgia erótica ao vê-la.

As similitudes entre Naomi e sua mãe terminavam com a aparência. Sheena era agitada, grossa, egoísta, e tinha o vocabulário de uma dona de bordel especializada em atender a marujos com a síndrome de Tourette.

Ela caminhou até a cama, espremendo Júnior entre ela e Rudy Grandão. O fluxo de invectivas obscenas saindo de Sheena causou em Júnior a impressão de ter sido atingido pelo jorro de uma mangueira de alta pressão.

Ao pé da cama estava a terceira e última Hackachak: Kaitlin, de 24 anos, a irmã mais velha de Naomi. Kaitlin era a irmã desafortunada, tendo herdado a aparência do pai e a soma das personalidades dos progenitores. Um peculiar tom de cobre avivava seus olhos castanhos; sob um certo tipo de luz, seu olhar raivoso podia lançar um lampejo vermelho como sangue.

Kaitlin tinha a voz estridente e o talento para vitupérios que a marcavam como um membro da tribo Hackachak, mas por ora estava satisfeita em deixar o ataque vocal por conta dos pais. Contudo, o olhar com que ela perfurava Júnior, caso fosse direcionado contra uma formação rochosa proeminente, extrairia óleo da terra numa questão de minutos.

Eles não tinham vindo compartilhar sua dor com Júnior no dia anterior, se é que tinham alguma para compartilhar.

Eles não haviam sido muito íntimos de Naomi, que certa vez dissera que se sentia como Rómulo e Remo, criada por lobos, ou como Tarzan, se ele tivesse caído nas mãos de gorilas maus. Para Júnior, Naomi havia sido a própria Cinderela, boa e adorável, e ele o príncipe encantado que a resgatara.

Os Hackachaks tinham sido trazidos ao hospital pela notícia de que Júnior declarara não querer lucrar com a queda trágica de sua esposa. Eles sabiam que ele havia dispensado Knacker, Hisscus e Nork.

As chances dos pais de Naomi em ser indenizados por sua dor e sofrimento com a morte da filha seriam comprometidas se o genro não responsabilizasse o governo municipal ou estadual. Nesta situação, mais do que em qualquer outra, eles sentiam a necessidade de se manterem unidos como uma família.

No instante em que empurrara Naomi para a balaustrada podre, Júnior previra esta visita de Rudy, Sheena e Kaitlin. Ele sabia que poderia fingir ficar ofendido com a oferta do condado e do estado em atribuir um valor a sua perda, poderia fingir repulsa a isso, poderia resistir de forma convincente... e pouco a pouco, depois de dias ou semanas de luta, relutantemente permitir que os infatigáveis Hackachaks transformassem-no em cúmplice de sua ganância.

Quando a feroz família de sua falecida esposa finalmente conseguisse seu intento, Júnior já teria conquistado a simpatia de Knacker, Hisscus, Nork e todo mundo que ainda tivesse qualquer dúvida sobre o seu papel na morte de Naomi. Talvez até Thomas Vanadium parasse de suspeitar dele.

Gritando como pássaros carniceiros esperando que seu jantar ferido morresse, por duas vezes os Hackachaks receberam alertas severos das enfermeiras, mandando que falassem baixo e respeitassem os pacientes nos quartos vizinhos.

Mais de duas vezes, enfermeiras preocupadas — e até um médico residente

— penetraram no quarto tumultuado para checar o estado de Júnior. Perguntaram se ele realmente estava se sentindo em condições de receber visitas, estas visitas.

— Eles são toda a família que tenho — disse Júnior, com o que ele esperava ser um tom de tristeza e amor sofrido.

A alegação não era verdadeira. O pai de Júnior, artista obscuro e alcoólatra de renome, vivia em Santa Mónica, Califórnia. A mãe de Júnior, divorciada quando ele tinha apenas quatro anos, estava internada num hospício há doze anos. Ele raramente os via. Não tinha contado a Naomi sobre eles. Nenhum de seus pais abrilhantava currículos.

Depois que a última enfermeira preocupada se retirou, Sheena se curvou sobre Júnior. Ela cruelmente apertou a bochecha de Júnior entre o dedão e o indicador, como se quisesse arrancar um naco de carne e comê-lo.

— Você tem merda na cabeça? Vê se entende uma coisa, seu babaca: eu perdi uma filha, uma filha preciosa, minha Naomi, a luz da minha vida.

Kaitlin olhou para a mãe como se tivesse sido traída.

— Há vinte anos a Naomi saiu do meu forno, não do seu — prosseguiu Sheena num sussurro feroz. — Se tem alguém sofrendo aqui sou eu, não você. Quem você é, afinal de contas? Um cretino que estava trepando com ela há uns dois anos, é apenas isso que você é. Eu sou a mãe dela. Você nunca vai conhecer a minha dor. Esta família vai fazer aqueles safados pagarem uma grana alta, e se você não ficar ao nosso lado, eu mesma vou cortar os seus colhões e dar eles pro meu gato comer.

— Você não tem um gato.

— Vou comprar um — prometeu Sheena.

Júnior sabia que ela cumpriria a ameaça. Mesmo se não quisesse o dinheiro

— e ele queria —, Júnior jamais ousaria opor-se a Sheena.

Até Rudy, imenso como o Pé-Grande e amoral como uma hiena, tinha medo dessa mulher.

Aquelas três imitações baratas de seres humanos eram loucas por dinheiro. Rudy era o proprietário de uma loja de carros usados muito bem-sucedida e de — o seu orgulho — uma franquia da Ford na qual vendia veículos novos e usados, em cinco comunidades do Oregon. Mas gostava de viver à larga; ele também visitava Vegas quatro vezes por ano, largando dinheiro por lá com a facilidade de quem esvazia a bexiga. Sheena também adorava Vegas, e era viciada em compras. Kaitlin gostava de homens, homens bonitos, mas como podia ser confundida com o pai num quarto mal iluminado, ela pagava por seus garanhões.

Em dado momento no final da tarde, enquanto os três Hackachaks estavam despejando escárnio e impropérios sobre Júnior, ele notou Vanadium parado no vão da porta, observando. Perfeito. Ele fingiu não ver o tira, e na vez em que arriscou uma olhada, descobriu que Vanadium havia sumido como uma aparição.

Durante o dia e depois de uma pausa para o jantar os Hackachaks persistiram. O hospital jamais havia testemunhado um espetáculo como aquele. Turnos mudaram, e novas enfermeiras vieram cuidar de Júnior em números maiores que o necessário, usando qualquer desculpa para dar uma olhada naquele espetáculo de aberrações.

Quando a família foi convidada a se retirar, protestando, ao fim do horário de visitas, Júnior não havia sucumbido à pressão. Se quisesse que sua conversão fosse convincentemente relutante, ele teria de resistir a eles pelo menos durante mais alguns dias.

 

Finalmente a sós, ele estava exausto. Física, emocional e intelectualmente.

O assassinato em si havia sido fácil, mas os seus efeitos eram mais estressantes do que havia previsto. Embora o acordo com o governo, quando finalmente o fizesse, decerto o deixasse financeiramente seguro para o resto de sua vida, o estresse era tão grande que, em seus piores momentos, ele se perguntava se a recompensa valeria o risco.

Decidiu que jamais mataria novamente de forma tão impetuosa. Jamais. Na verdade, jurou jamais matar novamente, exceto para se defender. Em breve ficaria rico — com muito a perder caso fosse capturado. O homicídio era uma aventura maravilhosa; infelizmente, era um entretenimento pelo qual não mais podia pagar.

Se soubesse que iria quebrar esse juramento solene duas vezes antes do mês terminar — e que nenhuma das vítimas, infelizmente, seria um Hackachak —, Júnior não teria adormecido tão facilmente. E não teria tido um sonho no qual roubava matreiramente centenas de moedinhas dos bolsos de Vanadium, enquanto o detetive procurava-as em vão.

 

NESTA MANHÃ DE SEGUNDA-FEIRA, muito acima do túmulo de Joey Lampion, o céu translucidamente azul da Califórnia derramava uma chuva de luz tão pura e clara que o mundo parecia ter sido lavado de todas as suas manchas.

Uma multidão havia prestado suas últimas homenagens a Lampion durante a missa na igreja de St. Thomas, ficando em pé ombro a ombro no fundo da nave, através da nave e por toda a calçada no lado de fora, e agora todos pareciam ter vindo também ao cemitério.

Assistida por Esaú e Jacó, Agnes — sentada numa cadeira de rodas — era empurrada através da grama, entre as lápides, até o local final de descanso de seu esposo. Embora não corresse mais risco de nova hemorragia, ela estava sob ordens médicas para evitar esforço.

Bartholomew estava em seus braços. O bebé não estava muito coberto, porque o tempo era quente para a época.

Agnes não teria sido capaz de suportar aquela provação sem o bebê. Este pequeno peso em seus braços era uma âncora jogada no mar do futuro, impedindo Agnes de vagar de volta para lembranças de dias passados, tantos dias bons com Joey, lembranças que, neste momento crítico, atingiriam o seu coração como golpes de martelo. Mais tarde eles iriam confortá-la. Não ainda.

O montículo de terra ao lado da sepultura fora disfarçado por pilhas de flores e folhas de samambaia. O caixão suspenso era franjado com pano preto para ocultar a sepultura boquiaberta debaixo dele.

Embora fosse uma mulher religiosa, Agnes no momento não era capaz de espalhar as flores da fé sobre a realidade dura e feia da morte. Ela quase podia ver o esqueleto embuçado da morte ali, espalhando suas sementes entre todos os amigos reunidos de Agnes, para um dia colhê-las.

Empurrando a cadeira de rodas, Esaú e Jacó passavam menos tempo observando o serviço funerário do que estudando o céu. Ambos olhavam preocupados para aquele firmamento azul e sem nuvens como se estivessem vendo relâmpagos.

Agnes supunha que Jacó estivesse tremendo em antecipação à queda de um avião de passageiros ou pelo menos um monoplano. Esaú devia estar calculando as chances de que este lugar sereno — a esta hora específica — fosse o ponto de impacto de um daqueles asteróides matadores de planetas aos quais se atribuía a extinção da maior parte da vida na Terra a intervalos de algumas centenas de milhares de anos.

Depois do serviço fúnebre, entre aqueles que foram falar com Agnes ao lado da sepultura, tentando expressar o inexprimível, estava Paul Damascus, o proprietário da Farmácia Damascus na Ocean Avenue. De família oriunda do Oriente Médio, ele tinha uma compleição olivácea e, incrivelmente, cabelos ruivos. Com suas sobrancelhas, cílios e bigode vermelhos, seu rosto bonito parecia o de uma estátua de bronze com uma patina curiosa.

Paul apoiou-se sobre um joelho ao lado da cadeira de rodas.

— Este dia marcante, Agnes. Este dia marcante, com todos os seus começos. Hum?

Ele disse isso como se tivesse certeza de que Agnes entenderia o significado de suas palavras, como se eles fossem membros de uma sociedade secreta na qual essas três palavras repetidas fossem um código, incorporando um significado complexo além daquele que era aparente aos não-iniciados.

Antes que Agnes fosse capaz de responder, Paul se empertigou e saiu. Outros amigos se ajoelharam, se agacharam, se curvaram para ela, e Agnes perdeu de vista o farmacêutico enquanto ele se movia através da multidão que se dispersava.

Este dia marcante, Agnes. Este dia marcante, com todos os seus começos.

Que coisa estranha para se dizer.

Agnes viu-se tomada por uma sensação de mistério, enervante mas não inteiramente desagradável.

Um arrepio correu o corpo de Agnes, e Esaú, achando que ela sentia frio, despiu o paletó de seu terno e o pousou nos ombros de sua irmã.

Nesta manhã de segunda-feira, o tempo no Oregon estava sombrio, com as barrigas negras das nuvens de chuva vagando baixas sobre o cemitério. Era uma despedida triste para Naomi, mesmo que a chuva ainda não estivesse caindo.

De pé diante da sepultura, Júnior mostrava-se mal-humorado. Estava cansado de fingir luto.

Três dias e meio haviam se passado desde que empurrara sua esposa da torre, e nesse tempo ele não havia realmente se divertido. Era gregário por natureza, o tipo que jamais recusava um convite para uma festa. Ele gostava de rir, de amar, de viver, mas não podia desfrutar a vida quando precisava lembrar a cada segundo que devia aparentar pesar e manter a voz pesada de tristeza.

Pior ainda, para tornar crível a sua dor e evitar suspeitas, ele teria ainda de interpretar o viúvo devastado durante mais algumas semanas, talvez durante até um mês. Como um seguidor dedicado dos conselhos de aperfeiçoamento pessoal do dr. Caesar Zedd, Júnior era impaciente com aqueles que eram regidos pelo sentimentalismo e pelas expectativas da sociedade, e agora precisava fingir ser um deles... e por um período de tempo interminável.

Sendo incrivelmente sensível, ele havia lamentado a perda de Naomi com seu corpo inteiro, com uma crise violenta de vómito, sangramento faríngeo e incontinência. Sua dor havia sido tão profunda que poderia tê-lo matado. Agora já bastava.

Apenas um pequeno grupo de conhecidos havia comparecido a este funeral. Júnior e Naomi tinham sido tão intensamente envolvidos um com o outro que, ao contrário de muitos casais jovens, fizeram poucos amigos.

Os Hackachaks estavam presentes, é claro. Júnior ainda não concordara em se juntar a eles em sua busca por dinheiro sangrento. Eles iriam lhe dar pouca privacidade ou descanso até que obtivessem o que queriam.

O terno azul de Rudy, como sempre, estava apertado contra o seu corpo desengonçado. Aqui no cemitério, ele não parecia ser apenas um homem com um alfaiate ruim, mas um ladrão de sepulturas que roubava as roupas dos mortos.

Tendo o cenário de monumentos de granito às suas costas, Kaitlin parecia uma morta-viva que se levantara de uma caixa podre para vingar-se dos vivos.

Rudy e Kaitlin olhavam frequentemente para Júnior, e Sheena provavelmente também o perfurava com o olhar, mas ele não podia ver seus olhos através do véu negro. Incrivelmente atraente em seu vestido negro apertado, essa mãe enlutada já devia estar arrependida por ter decidido usar o véu; desde que o serviço fúnebre começara a se revelar interminável, ela vinha levantando o pano diante de seus olhos para poder olhar as horas.

Júnior pretendia ceder aos Hackachaks ainda hoje, numa reunião com a família e os amigos. Rudy organizara um bufe no showroom de sua nova concessionária Ford, que ele manteria fechada para negócios até as três da tarde.

As lamentações, o almoço e as reminiscências sobre a falecida seriam compartilhados entre Thunderbirds, Galaxies e Mustangs reluzindo de novos. Esse evento proporcionaria a Júnior as testemunhas de que ele precisava para sua concessão relutante, lacrimosa e até zangada ao materialismo insistente dos Hackachaks.

Em outro lugar no cemitério, a cerca de 140 metros, outro enterro — com um número bem maior de participantes — começara antes deste por Naomi. Agora ele tinha acabado, e as pessoas estavam se dispersando até seus carros.

Com a visão prejudicada pela distância e obstruída por árvores, Júnior não conseguiu descobrir muita coisa sobre o outro funeral, mas tinha certeza absoluta de que a maior parte daquela gente era negra. Assim, concluiu que a pessoa sendo enterrada também devia ser negra.

Isso o surpreendeu. Obviamente, o Oregon não era o interior do Sul. Era um estado progressista. Não obstante, ficou surpreso. O Oregon não era o lar de muitos negros, apenas um punhado em comparação com outros estados, e mesmo assim até agora Júnior supunha que eles tivessem seus próprios cemitérios.

Não tinha nada contra os negros. Não queria mal a eles e nem era preconceituoso. Viva e deixe viver. Ele acreditava que enquanto permanecessem com os seus e seguissem as regras de uma sociedade educada, como todo mundo mais, eles tinham o direito de viver em paz.

Contudo, a sepultura dessa pessoa de cor ficava num terreno mais elevado que a de Naomi. Com o tempo, à medida que o cadáver de lá se decompusesse, seus sucos iriam se misturar com o solo. Quando a chuva saturasse o solo, o escoamento subterrâneo carregaria esses sucos diretamente ladeira abaixo, até que eles penetrassem na sepultura de Naomi e se misturassem aos restos dela. Júnior julgou isso altamente impróprio.

Nada podia fazer quanto a isso agora. Fazer o corpo de Naomi ser removido para outra sepultura, para um cemitério sem negros, causaria muito falatório. Ele não queria atrair mais atenção para si.

Contudo, decidiu consultar um advogado a respeito de um testamento — e logo. Ele queria especificar que deveria ser cremado e que suas cinzas deveriam ser depositadas num daqueles muros memoriais, bem acima do nível do solo, onde nada vazaria para elas.

Apenas um membro do enterro distante não se dispersou na direção da fileira de carros na rua de acesso ao cemitério. Um homem num terno escuro desceu a colina, entre as lápides e os monumentos, diretamente na direção da sepultura de Naomi.

Júnior não conseguia imaginar por que algum negro desconhecido desejaria invadir o seu grupo. Ele torceu para que isso não acabasse em algum tipo de problema.

O pastor tinha terminado. A missa fúnebre estava acabada. Ninguém aproximou-se de Júnior para prestar-lhe condolências, porque iriam revê-lo em breve, no bufe da concessionária Ford.

Agora reconheceu que o homem que vinha do outro enterro não era negro nem desconhecido. O detetive Thomas Vanadium era suficientemente irritante para ser um Hackachak honorário.

Júnior considerou sair antes que Vanadium — ainda a setenta metros de distância — chegasse. Mas decidiu não fazê-lo, por medo de aparentar estar fugindo.

O diretor funerário e seu assistente eram as únicas pessoas, além de Júnior, que continuavam diante da sepultura. Eles perguntaram a Júnior se podiam baixar o caixão ou se deveriam esperar até que ele fosse embora.

Júnior deu sua permissão para que prosseguissem.

Os dois homens soltaram e enrolaram para cima a saia verde que pendia da moldura retangular na qual o caixão estava suspenso. Verde, no lugar de preto, porque Naomi adorava a natureza: Júnior fora bem consciencioso nos detalhes sobre o funeral.

Agora o buraco foi revelado. Paredes de terra úmidas. À sombra do caixão, o fundo da sepultura estava escuro, escondido.

Vanadium chegou e parou ao lado de Júnior. Seu terno preto era barato, mas tinha um caimento melhor do que o de Rudy.

O detetive segurava uma única rosa branca de talo comprido.

Duas manivelas operavam o cabrestante. O papa-defuntos e seu assistente giraram as manivelas em uníssono, e enquanto o mecanismo rangia baixinho, o caixão desceu lentamente para o buraco.

Finalmente Vanadium disse:

— Segundo o laudo do laboratório, o bebé que ela estava carregando era quase certamente seu.

Júnior não disse nada. Ele ainda estava aborrecido com Naomi por ter escondido a gravidez, mas estava deliciado em saber que o bebé teria sido dele. Agora Vanadium não podia alegar que a infidelidade de Naomi e o bastardo resultante tinham sido o motivo para o assassinato.

Embora essas notícias tenham agradado Júnior, também o entristeceram. Ele não estava enterrando apenas uma esposa adorável, mas também o seu primeiro filho. Ele estava enterrando a sua família.

Recusando-se a dar ao tira a satisfação de responder à notícia sobre a paternidade do feto, Júnior manteve-se com o olhar fixo na sepultura enquanto dizia:

— Veio ao funeral de quem?

— Da filha de um amigo. Eles disseram que ela morreu num acidente de trânsito em San Francisco. Ela era ainda mais nova do que Naomi.

— Trágico. Ter a sua corda cortada tão cedo. Ter a sua música interrompida prematuramente — disse Júnior, sentindo-se confiante o bastante para servir um prato da teoria sobre a vida do detetive de volta para ele. — Há um desafino no universo agora, detetive. Ninguém pode saber como as vibrações desse desafino irão afetar a você, a mim, a todos nós.

Contendo um sorriso, fingindo uma solenidade respeitosa, ele ousou olhar para Vanadium, mas o detetive fitava o túmulo de Naomi como se não tivesse ouvido o comentário — ou, tendo ouvido, não tivesse percebido que se tratava de um escárnio.

Então Júnior viu o sangue na manga direita da camisa de Vanadium. Também havia sangue gotejando de sua mão.

Os espinhos não tinham sido cortados do talo longo da rosa branca. Vanadium apertava o talo com tanta força que os espinhos pontudos tinham perfurado a sua palma carnuda. Ele parecia não ter percebido seus ferimentos.

Súbita e seriamente assustado, Júnior quis afastar-se desse caso de hospício. Ao mesmo tempo, estava congelado por um fascínio mórbido.

— Este dia marcante parece cheio de finais terríveis — disse Thomas Vanadium em voz baixa, ainda olhando a sepultura. — Mas, como todo dia, ele está na verdade cheio apenas de começos.

Com um baque sólido, o belo caixão de Naomi atingiu o fundo do buraco. Para Júnior isto parecia um fim, com toda certeza.

— Este dia marcante — murmurou o detetive.

Decidindo que não precisava falar por último, Júnior caminhou até a saída do cemitério e o seu Suburban.

As barrigas pendulares das nuvens intumescidas por chuva não estavam mais escuras do que quando ele entrara no cemitério, porém pareciam mais ameaçadoras agora.

Quando alcançou o Suburban, Júnior olhou para trás, na direção da sepultura. O papa-defuntos e o seu assistente tinham praticamente acabado de desmantelar a moldura do cabrestante. Logo um coveiro viria fechar o buraco.

Enquanto Júnior observava, Vanadium estendeu o braço direito sobre a cova aberta. Ele deixou cair a rosa, que sumiu dentro da terra boquiaberta, caindo sobre o caixão de Naomi.

Nesta noite de segunda-feira, com Fimie e o sol já tendo viajado para a escuridão, Celestina sentou-se para jantar com a mãe e a família na sala de jantar da paróquia.

Os outros membros da família, amigos e paroquianos já tinham ido embora. Um silêncio sobrenatural enchia a casa.

Antes esta casa tinha sido sempre cheia de amor e candura; e ainda era, embora, de tempos em tempos, Celestina sentisse um arrepio que não podia ser atribuído a uma corrente de ar. Antes esta casa jamais parecera vazia, mas agora fora invadida por um vazio profundo... o vácuo deixado por sua irmã morta.

De manhã ela iria retornar a San Francisco com a mãe. E estava relutante em deixar o pai para adaptar-se sozinho a este vazio.

Ainda assim, eles não podiam demorar. O bebé em breve receberia alta do hospital, assim que fosse curado de uma infecção sem gravidade. Agora que Grace e o pastor tinham obtido custódia temporária pendendo à adoção, preparativos precisavam ser feitos para que Celestina pudesse cumprir seu compromisso de criar a criança.

Como de costume, o jantar foi à luz de velas. Os pais de Celestina eram românticos. Além disso, acreditavam que um jantar gracioso exercia um efeito civilizatório nas crianças, mesmo se a refeição consistisse de um simples bolo de carne.

Eles não se incluíam entre os batistas que não bebiam álcool, mas serviam vinho apenas em ocasiões especiais. No primeiro jantar depois de um funeral, depois das orações e das lágrimas, a tradição da família requeria um brinde aos falecidos amados. Uma única taça. Merlot.

Nesta ocasião, as velas bruxuleantes contribuíam não para um clima romântico, não para um mero ambiente civilizado, mas para um silêncio reverente.

Com graça lenta e cerimoniosa, o pai abriu a garrafa e serviu três porções. Suas mãos tremiam.

Reflexos das chamas das velas douravam as formas curvas dos copos de cabo longo.

Eles estavam reunidos a uma extremidade da sala de jantar. O vinho púrpura e escuro brilhou com lampejos rubros quando Celestina ergueu a sua taça.

O pastor fez o primeiro brinde, falando tão baixo que suas palavras trémulas pareceram brotar do coração e da mente de Celestina, em vez de simplesmente cair em seus ouvidos.

— À gentil Fimie, que está com Deus.

— À minha doce Fimie... que nunca morrerá — disse Grace. Agora o brinde ideal ocorreu a Celestina:

— A Fimie, que ficará comigo em memória a cada hora do dia para o resto de minha vida, até que ela esteja de novo realmente comigo. E a... a este dia marcante.

— A este dia marcante — repetiram seu pai e sua mãe.

O vinho parecia amargo, mas Celestina sabia que ele estava doce. A amargura estava nela, não no legado da uva.

Tinha a impressão de que havia falhado para com a irmã. Ela não sabia o que mais poderia ser feito, mas se ela tivesse sido mais inteligente, perceptiva e atenta, com toda certeza esta perda terrível não teria acontecido.

Que bem ela poderia levar aos outros com sua arte, se não havia conseguido sequer salvar sua irmãzinha?

As chamas das velas borraram-se em manchas brilhantes, e os rostos de seus pais agora estavam bruxuleantes como as feições de anjos em sonhos.

— Sei o que está pensando — disse a mãe, esticando o braço sobre a mesa para colocar a mão sobre a de Celestina. — Sei como você se sente inútil, como se sente pequena. Mas precisa lembrar de uma coisa...

O pai de Celestina gentilmente fechou uma de suas mãos grandes sobre as delas.

Grace, provando-se mais uma vez merecedora de seu nome, disse a coisa com mais chances de, com o tempo, oferecer paz verdadeira a Celestina:

— Lembre de Bartholomew.

 

A CHUVA QUE AMEAÇARA lavar o funeral matutino acabara enxaguando a tarde, mas à noite o céu do Oregon estava limpo e seco. De horizonte a horizonte espalhava-se uma infinidade de estrelas geladas e no centro delas pendia uma lua crescente, reluzente como aço.

Logo depois das dez da manhã, Júnior voltou ao cemitério e deixou o seu Suburban onde os negros tinham estacionado durante o dia. O seu veículo era o único na estrada de acesso ao cemitério.

A curiosidade levara-o até ali. Curiosidade e um talento para a autopreservação. Na manhã daquele dia, Vanadium não viera ao enterro da esposa de Júnior para se despedir dela. Ele jamais conhecera Naomi. Vanadium viera como um policial, a negócios. Talvez também tivesse estado no outro funeral a negócios.

Depois de seguir o caminho asfaltado por quinze metros, Júnior continuou colina abaixo através do gramado cortado rente, entre as lápides. Ligou a lanterna e caminhou a passos cautelosos; o solo era irregular e, em alguns lugares, continuava lamacento e escorregadio por causa da chuva.

O silêncio nesta cidade dos mortos era completo. A noite permanecia muda, sem que o vento gerasse sequer um sussurro nos galhos das árvores mantendo vigília atenta sobre gerações de ossos.

Quando ele localizou a sepultura nova, aproximadamente onde calculara que estaria, ficou surpreso em encontrar uma lápide de granito negro já instalada, e não uma placa temporária pintada com o nome da pessoa falecida. Este memorial era modesto, nem grande nem complicado em seu desenho. Ainda assim, em geral os escultores neste ramo terminavam seu trabalho dias depois dos papa-defuntos, porque as pedras às quais eles aplicavam sua arte requeriam mais labor e menos pressa do que os corpos frios que repousavam debaixo delas.

Júnior presumiu que a moça morta viera de uma família proeminente na comunidade negra, o que explicaria o serviço acelerado do escultor. Vanadium, segundo suas próprias palavras, era amigo da família; portanto, o pai provavelmente era agente de polícia.

Júnior aproximou-se da lápide por trás, circulou-a e lançou a luz da lanterna sobre os fatos cinzelados em pedra:

... amada filha e irmã... Serafina Aetionema White

Estarrecido, Júnior desligou a lanterna. Sentia-se nu, exposto, flagrado.

Em meio à escuridão fria, sua respiração saía em baforadas visíveis, realçadas pelo luar. Caso houvesse testemunhas presentes, a rapidez e a profusão de suas exalações radiantes o teriam marcado como culpado.

Ele não havia matado esta, é claro. Um acidente de carro. Não fora isso que Vanadium dissera?

Dez meses antes, após uma cirurgia do tendão devido a uma lesão na perna, Serafina fora uma paciente ambulatorial no hospital de reabilitação no qual Júnior trabalhava. Fazia fisioterapia três dias por semana.

Inicialmente, quando lhe disseram que a sua paciente era negra, Júnior relutara em servi-la como fisioterapeuta. O programa de reabilitação da moça requeria exercícios complexos para restaurar a flexibilidade e ganhar força no membro afetado, mas seria preciso aplicar também um pouco de massagem, o que o deixava desconfortável.

Ele não tinha nada contra homens ou mulheres de cor. Viva e deixe viver. Uma terra, um povo. Todas essas coisas.

Por outro lado, um indivíduo precisava acreditar em alguma coisa. Júnior não queria entupir a cabeça com bobagens supersticiosas ou se permitir ser contido pelas visões de uma sociedade burguesa ou por seus conceitos de certo e errado, bem e mal. Com Zedd, Júnior aprendera que ele era o único mestre de seu próprio universo. A realização pessoal através da auto-estima era a sua doutrina; liberdade total e prazer sem culpa eram as recompensas da adesão fiel aos seus princípios. Aquilo no que acreditava — a única coisa pela qual vivia — era Caim Júnior, e nisto ele era um crente ardoroso, devoto de si mesmo. Consequentemente, conforme Caesar Zedd explicara, quando um homem tinha clareza de pensamento suficiente para expurgar todas as fés falsas e regras inibidoras que confundiam a humanidade, quando esse homem era suficientemente iluminado para acreditar apenas em si próprio, ele seria capaz de confiar em seus instintos, porque estaria livre da visão tóxica da sociedade e garantiria a conquista do sucesso e da felicidade se sempre seguisse esses impulsos.

Instintivamente, Caim Júnior sabia que não devia aplicar massagens em negros. Ele sentia que de algum modo seria física ou moralmente poluído por esse contato.

Não seria fácil recusar essa incumbência. Aguardava-se que no final daquele ano o presidente Lyndon Johnson, com forte apoio tanto dos republicanos quanto dos democratas, assinasse a Lei dos Direitos Civis de 1964. Assim, no momento era perigoso para os crentes na primazia do eu expressarem seus instintos saudáveis, que poderiam ser interpretados equivocadamente como preconceito racial. Ele poderia ser demitido.

Felizmente, quando estava prestes a declarar seus instintos ao seu superior e assim correr o risco de ser demitido, Júnior viu a sua paciente potencial. Aos quinze anos, Serafina era dotada de uma beleza estonteante, ao seu próprio modo tão bela quanto Naomi, e o instinto lhe disse que as chances de ser física ou moralmente poluído por ela eram insignificantes.

Como todas as mulheres que passaram a puberdade deste lado da sepultura, ela se sentiu atraída por ele. Ela jamais lhe disse isso, não em palavras, mas ele detectou essa atração na forma como ela o olhava, no tom que usava quando proferia o seu nome. Durante três semanas de terapia, Serafina revelou várias provas pequenas, mas significativas, de seu desejo.

Durante a última consulta da garota, Júnior descobriu que ela estaria sozinha em casa naquela mesma noite; seus pais tinham um compromisso ao qual ela não precisava comparecer. Ela pareceu revelar isso inadvertidamente, de modo quase inocente; contudo, Júnior era um verdadeiro cão de caça no que dizia respeito a farejar sedução, a despeito da sutileza do odor.

Mais tarde, quando ele apareceu à porta, ela fingiu surpresa e inquietude.

Ele compreendeu que, como tantas mulheres, Serafina queria aquilo, pedia aquilo — mas não possuía em sua auto-imagem espaço para acomodar a verdade de que era agressiva sexualmente. Ela queria pensar em si mesma como tão tímida, recatada, virginal e inocente quanto a filha de um pastor deveria ser — o que significava que para conseguir o que queria ela precisava que Júnior fosse um bruto. E Júnior teria satisfação em atender à sua vontade.

Acabou descobrindo que Serafina era virgem. Isso excitou Júnior. Também se sentiu excitado com a perspectiva de deflorá-la na casa de seus pais — e pelo fato irónico de que a casa era uma paróquia.

Melhor ainda, ele teve a oportunidade de possuir a garota ao acompanhamento da voz de seu pai, o que era ainda mais excitante do que simplesmente fazer isso na paróquia. Quando Júnior tocara a campainha, Serafina estivera em seu quarto, ouvindo uma gravação em fita de um sermão que seu pai estava escrevendo. O bom pastor costumava ditar um primeiro tratamento, que em seguida era transcrito pela filha. Durante três horas, Júnior serviu-se da menina, ao ritmo da voz de seu pai. A "presença" do reverendo era deliciosamente perversa e estimulante ao senso de invenção erótica de Júnior. Quando Júnior acabou, não havia nada sexual que Serafina pudesse aprender com um homem que não tivesse aprendido com ele.

Ela lutou, chorou, fingiu nojo, fez de conta que sentia vergonha, jurou que poria a polícia atrás dele. Outro homem, não um leitor de mulheres tão habilidoso quanto Júnior, poderia ter pensado que a resistência da mocinha era genuína, que suas acusações de estupro eram sinceras. Qualquer outro homem teria recuado, mas Júnior não se sentiu intimidado ou confuso.

Depois de saciada, o que a mocinha desejava era uma razão para se iludir de que não era uma vagabunda, e sim uma vítima. Ela não queria realmente contar a ninguém o que Júnior fizera com ela. Em vez disso, estava lhe pedindo, indireta mas inequivocamente, que lhe desse uma desculpa para manter seu encontro apaixonado em segredo, uma desculpa que lhe permitisse continuar fingindo que ela não lhe implorara para fazer tudo aquilo com ela.

Como genuinamente gostava de mulheres e sempre queria agradá-las, sempre sendo discreto e cavalheiresco, Júnior fez o que ela queria, desfiando um relato vívido da vingança hedionda que realizaria se um dia Serafina contasse a alguém o que ele fizera com ela. Vlad o Empalador, a inspiração histórica para o Drácula de Bram Stoker — obrigado, Clube do Livro —, não teria imaginado torturas e mutilações mais sangrentas ou horríveis que aquelas que Júnior prometeu realizar quando visitasse o reverendo, sua esposa e a própria Serafina. Fingir aterrorizar a garota excitou-o, e ele foi perceptivo o bastante para ver que ela estava igualmente excitada, fingindo terror.

Acrescentou verossimilitude às ameaças concluindo com alguns socos violentos em locais onde as marcas não apareceriam, nos seios e na barriga. Então voltou para casa, para Naomi, com quem na época estava casado há menos de cinco meses.

Para sua surpresa, quando Naomi expressou um interesse em romance, Júnior foi um touro novamente. Ele tinha pensado que havia deixado o melhor de seu material na paróquia do reverendo Harrison White.

Ele amava Naomi, é claro, e jamais podia negar-se a ela. Embora tenha sido especialmente carinhoso com a esposa naquela noite, se tivesse sabido que eles teriam menos de um ano juntos antes que o destino a arrancasse dele, Júnior teria sido ainda mais amoroso.

Parado diante da sepultura de Serafina, a respiração de Júnior saía em baforadas de fumaça, como se ele fosse um dragão. Ele se perguntou se a garota havia falado.

Talvez, relutante em admitir a si mesma que desejara que Júnior fizesse tudo que ele fizera, ela tivesse sido lentamente inflamada pela culpa, até conseguir convencer a si própria de que, de fato, havia sido estuprada. Putinha psicótica.

Será que isto explicava por que Thomas Vanadium era a única pessoa que suspeitava de Júnior?

Se o detetive acreditava que Serafina tinha sido violentada, seu desejo natural por vingar a filha de seu amigo poderia motivá-lo a cometer o assédio implacável que Júnior suportava já há quatro dias.

Mas, pensando melhor... não. Se Serafina tivesse dito a alguém que havia sido estuprada, a polícia teria batido na porta de Júnior numa questão de minutos, com um mandado para a sua prisão. Não importaria se não tivessem provas. Nesta era de simpatia exacerbada pelos previamente oprimidos, a palavra de uma adolescente negra teria mais peso do que a ficha limpa, a boa reputação e as negações sinceras de Júnior.

Vanadium certamente não tinha ciência de nenhuma conexão entre Júnior e Serafina White. E agora a garota jamais conseguiria falar.

Júnior lembrou as palavras que o detetive havia usado:

Eles disseram que ela morreu num acidente trágico.

Eles disseram...

Como sempre, Vanadium falara num tom monótono, sem colocar nenhuma ênfase especial nessas duas palavras. Ainda assim, Júnior sentia que o detetive nutria dúvidas sobre a explicação da morte da garota.

Talvez toda morte acidental fosse suspeita para Vanadium. Sua perseguição obsessiva a Júnior talvez fosse seu procedimento operacional padrão. Depois de muitos anos investigando homicídios, depois de muita experiência sobre o mal humano, talvez ele tivesse se tornado misantropo e paranóico.

Júnior quase sentia pena desse detetive triste, gordo e atormentado, enlouquecido por anos de serviço público árduo.

Era fácil ver o lado bom. Se a reputação de Vanadium entre os outros policiais e entre os promotores era a de um paranóico, um perseguidor patético de perpetradores fantasmas, sua crença infundada de que Naomi fora assassinada não seria considerada. E se cada morte era suspeita para ele, então rapidamente perderia interesse em Júnior e seguiria um novo entusiasmo, atormentando algum outro pobre coitado.

Supondo que esse novo entusiasmo fosse uma tentativa em descobrir algo sujo no acidente de Serafina, então essa garota prestaria um serviço a Júnior mesmo depois de morta. A Júnior não importava se o tal acidente de tráfego tivesse sido realmente um acidente; ele não tivera nenhuma relação com ele.

Pouco a pouco, Júnior ficou calmo. Suas longas baforadas de respiração diminuíram para nuvenzinhas diáfanas que evaporavam a três centímetros de seus lábios.

Lendo as datas na lápide, ele viu que a filha do pastor morrera em sete de janeiro, um dia depois que Naomi caíra da torre de incêndio. Se algum dia lhe perguntassem, Júnior não teria o menor problema em provar onde estava nesse dia.

Ele desligou a lanterna e por um momento ficou parado de pé, solene, prestando seus respeitos a Serafina. Ela tinha sido tão bonita, tão inocente, tão fresca, tão belissimamente proporcionada.

Cordas de tristeza amarraram seu coração, mas ele não chorou.

Se o relacionamento deles não tivesse sido limitado a uma única noite de paixão, se não pertencessem a mundos diferentes, se ela não tivesse sido menor de idade e portanto uma chave de cadeia, eles podiam ter tido um romance aberto, e então sua morte teria tocado Júnior mais profundamente.

Uma crescente espectral de luz pálida brilhou no granito preto.

Júnior olhou da lápide para a lua. Sobre a sua cabeça, uma cimitarra prateada e afiada suspensa por um filamento mais fino que um fio de cabelo humano.

Embora fosse apenas a lua, ela o enervou.

De repente a noite parecia... ter olhos.

Sem usar sua lanterna, dependendo exclusivamente da lua, ele ascendeu através do cemitério até a estrada de acesso.

Quando alcançou o Suburban e fechou a mão direita em torno da maçaneta na porta do motorista, sentiu uma coisa peculiar contra a sua palma, um objeto pequeno e frio equilibrado ali.

Assustado, recolheu a mão. O objeto caiu, tilintando levemente no pavimento. Ele acendeu a lanterna. Em meio ao facho de luz, sobre o asfalto, um disco prateado. Como uma lua cheia num céu noturno. Uma moeda de 25 cents.

A moeda, certamente. Aquela que não havia estado no bolso do seu robe quando deveria, na sexta-feira passada.

Ele perscrutou a área imediata com a lanterna e sombras giraram com sombras, espíritos dançando no salão de baile da noite.

Nenhum sinal de Vanadium. Alguns dos monumentos mais altos ofereciam esconderijos em ambos os lados da estrada do cemitério, assim como os troncos mais grossos das árvores maiores.

O detetive poderia estar em qualquer lugar lá fora. Ou já ter ido.

Depois de um instante de hesitação, Júnior pegou a moeda.

Quis jogá-la no cemitério, fazê-la mergulhar rodopiando na escuridão.

Entretanto, se Vanadium estava observando, ele interpretaria o arremesso da moeda como um sinal de que sua estratégia bizarra estava funcionando, que os nervos de Júnior estavam próximos ao ponto de ruptura. Com um adversário tão infatigável quanto o tira maluco, você não devia jamais demonstrar fraqueza.

Júnior deixou a moeda cair no bolso de suas calças.

Desligou a luz. Escutou.

Quase esperava ouvir Thomas Vanadium à distância, cantando suavemente "Someone to Watch Over Me".

Depois de um minuto, enfiou a mão no bolso. A moeda de 25 cents ainda estava ali.

Entrou no Suburban, fechou a porta, mas não ligou o motor imediatamente.

Pensando melhor, vir aqui não tinha sido uma estratégia sensata. Evidentemente, o detetive estivera seguindo-o. Agora, Vanadium estava intrigado com seu motivo para este passeio noturno ao cemitério.

Júnior, colocando-se no lugar do detetive, podia pensar em alguns motivos para esta visita à cova de Serafina. Infelizmente, nenhum deles sustentava a sua alegação de que era um homem inocente.

Na pior das hipóteses, Vanadium começaria a pensar que ele talvez tivesse uma ligação com Serafina, encontraria a conexão da fisioterapia, e em sua paranóia poderia concluir equivocadamente que Júnior tinha alguma relação com o acidente de tráfego no qual a moça morrera. Isto era loucura, claro, mas aquele detetive evidentemente não era um homem racional.

Na melhor das hipóteses, Vanadium poderia decidir que Júnior viera aqui descobrir a qual outro funeral o seu inimigo havia comparecido... o que, de fato, havia sido a motivação verdadeira. Mas isto deixaria claro que Júnior tinha medo do policial e estava decidido a ficar um passo à frente dele. Homens inocentes não iam tão longe. Aos olhos do policial maluco, essa atitude de Júnior tinha sido tão comprometedora quanto pintar Eu matei Naomi na testa.

Ele correu dedos nervosos pelo tecido de suas calças, procurando a moeda no bolso. Ainda estava ali.

O luar ebúrneo lançou uma ilusão arqueada sobre o cemitério. O gramado estava prateado como neve à noite, e as lápides projetavam-se do solo como fragmentos de gelo numa vastidão gelada depois de um terremoto.

A estrada de acesso parecia sair do nada, e então desaparecer num vácuo, e Júnior de súbito sentiu-se perigosamente isolado, sozinho como jamais estivera, e vulnerável.

Vanadium não era um policial comum, como ele mesmo dissera. Em sua obsessão, convencido de que Júnior assassinara Naomi e impaciente com a necessidade de encontrar evidências para provar isso, o que deteria o detetive se ele decidisse fazer justiça com as próprias mãos? O que o impediria de caminhar neste exato instante até o Suburban e atirar à queima-roupa em seu suspeito?

Júnior trancou a porta. Ligou o motor e dirigiu para longe do cemitério mais depressa do que era prudente naquela estrada de acesso sinuosa.

No caminho para casa, olhou várias vezes para o espelho retrovisor. Nenhum veículo o seguia.

Ele morava numa casa alugada: um bangalô com dois dormitórios. Cedros imensos com camadas e camadas de galhos curvos cercavam o lugar; geralmente essas árvores pareciam prover proteção, mas agora avultavam sobre a casa, ameaçadoras.

Ao entrar na cozinha vindo da garagem, e ligar a lâmpada do teto, ele estava preparado para encontrar Vanadium sentado à mesa de pinho, desfrutando de uma caneca de café. A cozinha estava deserta.

Quarto por quarto, armário por armário, Júnior conduziu uma busca pelo detetive. O policial não estava ali.

Aliviado mas cauteloso, fez mais uma ronda pela casinha para certificar-se de que todas as portas e janelas estavam trancadas.

Depois de vestir suas roupas de dormir, ficou sentado na beira da cama durante algum tempo, esfregando a moeda de 25 cents entre o polegar e o indicador da mão direita, meditando a respeito de Thomas Vanadium. Ele tentou fazer a moeda rolar pelos nós dos dedos, mas deixou-a cair a cada tentativa.

Acabou colocando a moeda na mesinha, desligou a lâmpada e deitou na cama.

Não conseguia dormir.

Hoje pela manhã havia trocado os lençóis. O aroma de Naomi não estava mais nas roupas de cama.

Ele ainda não se desfizera dos pertences pessoais da esposa. Na escuridão, caminhou até a penteadeira, abriu uma gaveta e encontrou um suéter de algodão que ela usara recentemente.

Na cama, deitou a roupa sobre o seu travesseiro. Deitando-se, premiu o rosto contra o suéter. O delicioso cheiro de Naomi foi tão eficiente quanto uma canção de ninar e logo ele estava dormindo.

Quando acordou de manhã, levantou a cabeça do travesseiro e olhou para o despertador — e viu os 25 cents na sua mesinha-de-cabeceira. Duas moedas de dez e uma de cinco.

Júnior empurrou os lençóis e pulou de pé, mas seus joelhos revelaram-se fracos e ele precisou sentar-se na ponta da cama.

O quarto estava iluminado o bastante para ele confirmar que estava sozinho. O interior da caixa na qual Naomi residia agora não podia estar mais silencioso do que estava a casa.

As moedas estavam dispostas sobre uma carta de baralho, de face para baixo.

Puxou a carta de debaixo do troco, virou-a. Um curinga. Sobre a carta, escrito em letras de imprensa vermelhas, havia um nome: BARTHOLOMEW.

 

DURANTE A MAIOR PARTE de uma semana, sob ordens médicas, Agnes evitou escadas. Tomava banhos de esponja no banheiro de serviço no térreo e dormia num sofá na sala, com Barty num berço perto dela.

Maria Gonzalez trazia-lhe caçarolas de arroz, bolos de carne e réllenos. Todos os dias, Jacó fazia biscoitos e bolinhos, sempre de sabores novos, e num volume tal que os pratos de Maria estavam abarrotados de doces a cada vez que lhe eram devolvidos.

Esaú e Jacó iam jantar com Agnes todas as noites. E embora o passado pesasse sobre eles quando estavam debaixo deste teto, sempre ficavam por tempo suficiente para lavar os pratos antes de voltar correndo para os seus apartamentos sobre a garagem.

No lado de Joey, não havia família para prover ajuda. Sua mãe tinha morrido de leucemia quando ele tinha apenas quatro anos. O pai, dado a bebedeiras e brigas — filho de peixe definitivamente peixinho não era —, morrera numa luta de bar cinco anos depois. Sem parentes próximos dispostos a cuidar dele, Joey foi mandado para um orfanato. Aos nove anos, Joey não era um material de adoção atraente — os casais sem filhos queriam apenas bebés —, e acabou sendo criado na instituição.

Embora houvesse uma escassez de parentes, amigos e vizinhos competiam entre si para ajudar Agnes, e alguns se ofereciam para passar a noite com ela. Ela aceitava ajuda com a limpeza da casa, lavagem de roupas e compras, mas declinava das ofertas de companhia noturna por causa de seus sonhos.

Ela sonhava rotineiramente com Joey. Não pesadelos. Sem sangue, sem reencenação do horror. Em seus sonhos, estava num piquenique com Joey ou num parque de diversões com ele. Caminhando numa praia. Assistindo a um filme. Uma candura permeava essas cenas, uma aura de companheirismo, amor. Exceto que ela sempre acabava desviando os olhos de Joey, e quando olhava novamente ele tinha sumido, e ela sabia que ele não voltaria nunca mais.

Agnes acordava desses sonhos chorando, e não queria testemunhas. Ela não se sentia constrangida com suas lágrimas. Apenas não queria compartilhá-las com ninguém além de Barty.

Numa cadeira de balanço, segurando o filhinho nos braços, Agnes chorava baixinho. Na maior parte do tempo, Barty dormia enquanto ela chorava. Acordado, ele sorria ou contraía o rosto num franzido intrigado.

O sorriso do bebé era tão cativante e seu ar de preocupado tão cómico, que ambas as expressões funcionavam como um bálsamo para a dor de Agnes.

Barty nunca chorava. Na unidade neonatal do hospital, ele havia encantado as enfermeiras, porque enquanto os outros recém-nascidos berravam em coro, Barty mantinha-se infalivelmente sereno.

Na sexta-feira, 14 de janeiro, oito dias depois da morte de Joey, Agnes fechou o sofá-cama, pretendendo dormir no andar superior daquela noite em diante. E pela primeira vez desde que viera para casa, cozinhou o jantar sem recorrer às caçarolas dos amigos ou aos tesouros no seu congelador.

A mãe de Maria, em visita do México, estava cuidando dos netos, de modo que Maria veio sem os filhos, como uma convidada, para juntar-se a Agnes e aos gémeos Isaacson, divertidíssimos cronistas da destruição. Eles comeram na sala de estar, dispensando a mesa da cozinha, com um pano de mesa franjado em seda, a louça boa, taças de cristal e flores.

Servir um jantar formal foi a forma de Agnes declarar — a si própria, mais do que a qualquer pessoa presente ali — que chegara a hora dela continuar com a sua vida, para o bem de Bartholomew, mas também para o seu.

Maria chegou cedo, esperando ajudar com os últimos detalhes na cozinha. Embora honrada em ser uma convidada, não queria ficar parada segurando um cálice de vinho enquanto faltavam preparativos a ser feitos.

Finalmente, Agnes cedeu à insistência de Maria.

— Algum dia você vai ter de aprender a relaxar, Maria.

— Eu sempre gosto de ser útil como um martelo.

— Martelo?

— Martelo, serra, chave de fenda. Eu sempre fico feliz em ser útil do jeito que ferramentas são.

— Bem, por favor, não use um martelo para terminar de arrumar a mesa.

— É uma piada — concluiu Maria, orgulhosa em interpretar Agnes corretamente.

— Não, estou falando sério. Nada de martelo.

— É bom que você faz piadas.

— É bom que eu possa fazer piadas — corrigiu Agnes.

— Foi o que eu disse.

A mesa de jantar podia acomodar seis pessoas, e Agnes instruiu Maria a colocar dois lugares em cada um dos lados longos, deixando as cabeceiras vazias.

— Será mais aconchegante se todos nos sentarmos de frente uns para os outros.

Maria dispôs cinco lugares em lugar de quatro. O quarto — completo com talheres, cálice de vinho, copo de água—ficava na cabeceira da mesa, in memoriam de Joey.

Enquanto lutava para lidar com sua perda, a última coisa de que Agnes precisava era a lembrança imposta por aquela cadeira vazia. Contudo, as intenções de Maria eram boas, e Agnes não queria ferir seus sentimentos.

Durante a sopa de batata e a salada de aspargos, a conversa do jantar partiu para um começo promissor: uma discussão sobre pratos de batata, observações sobre o clima, comentários sobre o México e o Natal.

Mas no fim das contas, é claro, o querido Esaú acabou falando sobre tornados — em particular o infame Tornado Triestadual de 1925, que arrasara porções de Missouri, Illinois e Indiana.

— A maioria dos tornados permanece no solo durante no máximo trinta quilómetros — explicou Esaú. — Mas este manteve seu funil na terra por quatrocentos e sessenta quilómetros! Tudo no seu caminho foi reduzido a escombros. Casas, fábricas, igrejas, escolas... todos esses prédios foram pulverizados. A cidade de Murphysboro, em Illinois, foi varrida do mapa, apagada. Centenas de pessoas foram mortas só naquela cidade.

Maria, olhos arregalados, baixou os talheres e se benzeu.

— O tornado destruiu completamente quatro cidades, que pareceram ter sido atingidas por bombas atómicas, destruiu partes de mais seis cidades, arrasou quinze mil casas. E isso só as casas. A coisa era preta e imensa, preta e horrível, cuspindo raios continuamente. E as testemunhas disseram que o seu rugido parecia o som de cem tempestades soando ao mesmo tempo.

Mais uma vez, Maria se benzeu.

— Seiscentas e noventa e cinco pessoas mortas em três estados. Ventos tão poderosos que alguns dos cadáveres foram arremessados a mais de dois quilómetros dos locais onde eram arrancados do chão.

Aparentemente, Maria desejava ter trazido um rosário para o jantar. Com os dedos da mão direita, ela beliscava os nós dos dedos da esquerda, um depois do outro, como se fossem contas.

— Bem, graças ao Senhor, não temos tornados na Califórnia — disse Agnes.

— Mas temos represas — disse Jacó, gesticulando com o garfo.—A inundação de Johnstown, 1889. Pensilvânia, claro, mas poderia acontecer aqui. E foi uma inundação daquelas, acreditem. A Represa South Fork arrebentou. Uma parede de vinte metros de altura praticamente destruiu a cidade. O seu tornado matou quase setecentas pessoas, mas a minha represa matou duas mil, duzentas e nove. Novecentas famílias inteiras foram varridas da Terra. Novecentas e oitenta crianças perderam os pais.

Maria parou de rezar com seu rosário de nós dos dedos e recorreu a um belo trago de vinho.

— Trezentos e noventa e seis dos mortos eram crianças com menos de dez anos — continuou Jacó. — Um trem de passageiros descarrilou, matando vinte pessoas. Outro trem com carros-tanques foi esmagado, e o óleo que se espalhou pelas águas da enchente pegou fogo. Todas as pessoas que estavam agarradas a destroços foram cercadas pelas chamas, sem chances de escapar. Só podiam escolher entre ser queimadas vivas ou morrer afogadas.

— Sobremesa? — perguntou Agnes.

Sobre fatias generosas de torta Floresta Negra e café, Jacó continuou a falar, agora relatando a explosão de um avião de passageiros francês, levando uma carga de nitrato de amónia, num cais de Texas City, Texas, em 1947. Quinhentas e setenta e seis pessoas haviam morrido.

Reunindo todas as suas habilidades de anfitriã, Agnes pouco a pouco desviou a conversa de explosões desastrosas para fogos de artifício do Quatro de Julho, e então as lembranças de noites de verão quando ela, Joey, Esaú e Jacó tinham jogado cartas — mau-mau, canastra, bridge — a uma mesa nos fundos. Jacó e Esaú, unidos, eram adversários formidáveis em qualquer jogo de cartas, porque suas memórias para números tinham sido afiadas por anos de armazenamento de estatísticas sobre catástrofes.

Quando o assunto mudou para truques de mágica e predição da sorte, Maria confessou praticar adivinhação com cartas de baralho comuns.

Esaú, ansioso por saber precisamente quando uma onda sísmica ou um asteróide cadente traria o seu fim, pegou um maço de cartas numa estante da sala de visitas. Quando Maria explicou que apenas a terceira carta era lida e que uma leitura completa do futuro requeria quatro maços, Esaú voltou para a sala de visitas e pegou mais três.

— Traga quatro! — gritou Jacó para ele. — Só maços novos.

Eles gastavam muitas cartas e mantinham sempre à mão um suprimento generoso de maços.

Para Agnes, Jacó explicou:

— Como a sorte pode ser ensolarada se as cartas não forem novas e reluzentes? Talvez esperando descobrir que trem desgovernado ou explosão de fábrica iria

esmagá-lo contra a paisagem, Jacó pôs de lado o seu prato de sobremesa e embaralhou cada maço separadamente; em seguida embaralhou-os juntos até todos estarem bem misturados. Ele empilhou os dele na frente de Maria.

Ninguém pareceu compreender que predizer o futuro poderia não ser um entretenimento adequado nesta casa, nesta época, considerando que Agnes mal havia sido atraiçoada pelo destino.

A esperança era a dama de companhia de Agnes. Ela sempre se agarrava à crença de que o futuro iria ser maravilhoso, mas neste momento ela hesitava em testar esse otimismo, mesmo numa inofensiva leitura de cartas. Mesmo assim, como ocorrera com o caso do quinto lugar à mesa, Agnes sentiu-se relutante em objetar.

Enquanto Jacó havia embaralhado, Agnes pegara o pequeno Barty no berço. Ficou surpresa e desconcertada ao saber que o primeiro a ter o futuro lido seria o bebé.

Maria virou-se de lado na cadeira e pegou uma carta no topo da pilha de quatro baralhos na mesa diante de Barty.

A primeira carta foi um ás de copas. Esta, Maria disse, era uma carta realmente muito boa. Ela significava que Barty ia ser feliz no amor.

Maria descartou duas cartas antes de virar mais uma. Esta também era um ás de copas.

— Ei, ele vai ser um tremendo Romeu — disse Esaú. Barty murmurou e soprou uma bolha de cuspe.

— Esta carta é também para significar amor de família, e amor de muitos amigos, não apenas amor de beijinho-beijinho — elucidou Maria.

A terceira carta colocada na frente de Barty também foi um ás de copas.

— Ei, quais são as chances disso? — perguntou Jacó.

Embora o ás de copas tivesse apenas significados positivos, e embora, segundo Maria, aparições múltiplas, especialmente em sequência, significassem coisas cada vez mais positivas, ainda assim uma série de arrepios percorreu a espinha de Agnes.

A carta seguinte somou quatro cartas do mesmo tipo.

Enquanto o coração solitário no centro do campo retangular branco inspirava assombro e deleite em seus irmãos e em Maria, Agnes reagiu a ele com medo. Ela fez força para mascarar seus verdadeiros sentimentos com um sorriso tão fino quanto uma carta de baralho.

Em seu inglês medíocre, Maria explicou que este miraculoso ás de copas significava que Barty não apenas iria conhecer a mulher certa e ter uma vida longa merecedora de poesia épica, não só seria banhado por toda a vida com o amor de sua família, não apenas seria querido por um grande número de amigos, mas também seria amado por um incontável número de pessoas que jamais iria conhecê-lo pessoalmente.

— Como ele pode ser amado por pessoas que não o conhecem? — perguntou Jacó, desconfiado.

Sorriso imenso estampado no rosto, Maria respondeu:

— Significa Barty será homem muy famoso um dia.

Agnes queria que o seu filho fosse feliz. Ela não se importava com fama. O instinto dizia-lhe que as duas coisas, fama e felicidade, raramente coexistiam.

Ela estivera embalando o pequeno Barty suavemente nos braços, mas agora apertou-o contra o peito.

A quinta carta foi mais um ás e Agnes engoliu em seco, porque por um instante teve a impressão de ver mais um desenho de coração, significando um impossível quinto ás de copas num baralho de quatro maços. Eganou-se: era um ás de ouros.

Maria explicou que esta também era uma carta muito desejável, que significava que Barty jamais seria pobre. Tê-la em seguida a quatro ases de copas era especialmente significativo.

A sexta carta foi outro ás de ouros.

Todos fitaram-na em silêncio.

Seis ases numa tirada, uma sequência altamente improvável. Agnes não tinha como calcular as probabilidades contra esta sequência, mas sabia que eram espetacularmente altas.

— Significa que ele vai ser melhor do que não pobre, mas até será rico. A sétima carta foi um terceiro ás de ouros.

Sem nenhum comentário, Maria colocou as duas cartas de lado e puxou a oitava. Esta, também, um ás de ouros.

Maria benzeu-se de novo, mas num espírito diferente de quando fizera o si-nal-da-cruz durante o relato de Esaú sobre o Tornado Triestadual de 1925. Naquela hora ela estivera afugentando a má sorte; agora, com um sorriso e uma expressão de assombro, estava agradecendo a graça de Deus, que, segundo as cartas, tinha sido ofertada com generosidade a Bartholomew.

Barty, ela explicou, seria rico de muitas formas. Financeiramente rico, mas também rico em talento, espírito, intelecto. Rico em coragem, em honra. Com uma riqueza de bom senso, sabedoria e sorte.

Qualquer mãe ficaria feliz em ouvir um futuro tão deslumbrante ser predito para a sua criança. Ainda assim, a cada predição gloriosa a temperatura do coração de Agnes caía mais alguns graus.

A nona carta foi um valete de espadas. Maria chamou-o de lacaio de espadas, e ao vê-lo, seu sorriso brilhante apagou-se.

Lacaios significavam inimigos, explicou Maria, tanto os disfarçados quanto os declarados. O lacaio de copas representava ou um rival no amor ou um amante que iria trair você: um inimigo que feriria profundamente o seu coração. O lacaio de ouros era alguém que iria causar-lhe problemas financeiros. O lacaio de paus era alguém que iria feri-lo com palavras: um que o difamava ou que o atacava perniciosamente ou com críticas injustas.

O lacaio, agora revelado, era o valete mais sinistro no baralho. Era um inimigo que iria recorrer à violência.

Com seus cabelos amarelos encaracolados, bigode curvado para cima, e perfil direito irónico, este era um valete que parecia ser um lacaio no pior sentido da palavra. Um homem desprezível, isento de qualquer senso de dignidade.

E agora a décima carta, já na mãozinha marrom de Maria.

Nunca o desenho tão familiar da bicicleta vermelha, a marca da U.S. Playing Card Company, parecera sinistro; agora, era temível, tão estranho quanto qualquer símbolo de vodu ou padrão de conjuração satânico.

A mão de Maria virou, expondo a carta, e outro valete de espadas se revelou sobre a mesa.

Sacados um após o outro, dois valetes de espadas não significavam dois inimigos mortais, mas significava que o inimigo já previsto pela primeira carta seria extraordinariamente poderoso, excepcionalmente perigoso.

Agnes entendeu agora por que este prognóstico a havia assustado mais do que encantado: se você ousava acreditar na sorte predita pelas cartas, então era obrigado a acreditar também no azar.

Em seus braços, o pequeno Barty babava feliz, alheio ao fato de que o destino que lhe era previsto incluía amor épico, riquezas fabulosas e violência.

Ele era tão inocente. Este menino tão doce, esta criança pura e imaculada, não podia ter um inimigo no mundo, e não conseguia imaginar qualquer filho dela fazendo inimigos, não se o criasse bem. Isto era absurdo, apenas um tolo jogo de cartas.

Agnes queria impedir que Maria virasse a décima primeira carta, mas sua curiosidade se equiparava à apreensão.

Quando o terceiro valete de espadas, ou lacaio, como Maria o chamava, apareceu, Esaú disse a Maria:

— Que tipo de inimigo é descrito por três cartas em sequência?

— Monstro. Monstro humano. Jacó, nervoso, limpou a garganta.

— E se forem quatro valetes um depois do outro?

A solenidade de seus irmãos irritou Agnes. Eles pareciam estar levando esta leitura a sério, como se fosse muito mais do que um entretenimento depois do jantar.

Agnes precisava admitir que também estava perturbada pela sequência das cartas. As probabilidades contra esta sequência fenomenal de onze cartas devia ser de muitos milhões para uma, o que parecia conceder validade às predições.

Contudo, nem toda coincidência tinha significado. Jogue uma moeda para o alto um milhão de vezes e você obterá cerca de meio milhão de caras, aproximadamente o mesmo número de coroas. Neste processo, haverá casos em que você obterá cara trinta, quarenta vezes em sequência. Isto não significa que o destino esteja atuando ou que Deus — tendo escolhido deixar de ser misterioso e inescrutável, para variar — esteja avisando sobre o Apocalipse através da média da cara ou coroa; significa que as leis da probabilidade são válidas apenas a longo prazo, e que as anomalias de curto prazo são significativas apenas aos crédulos.

E se forem quatro valetes um depois do outro?

Finalmente Maria respondeu a pergunta de Jacó num murmúrio, fazendo o sinal-da-cruz enquanto falava.

— Nunca vi quatro. Nunca vi nem mesmo três. Mas quatro... é o próprio diabo.

Esta declaração foi recebida com seriedade por Esaú e Jacó, como se o diabo costumasse caminhar pelas ruas de Bright Beach e de tempos em tempos roubasse bebezinhos dos colos de suas mães para comê-los com mostarda.

Até Agnes sentiu-se momentaneamente tensa ao ouvir isso; tão tensa que disse:

— Chega. Isto não está mais divertido.

Concordando, Maria empurrou a pilha de cartas não usadas para o lado, e esfregou as mãos como se quisesse lavá-las por muito tempo com água quente.

— Não, espere! — exclamou Agnes, expurgando o medo irracional de seu íntimo. — Isto é absurdo. É só uma carta. E nós todos estamos curiosos.

— Não — alertou Maria.

— Eu não quero ver a carta — concordou Esaú. ;

— Nem eu — disse Jacó.

Agnes puxou o maço de cartas para si. Ela descartou as duas primeiras, como

Maria havia feito, e virou a terceira.

Aqui estava o último valete de espadas.

Embora uma rajada de frio tenha corrido ao longo da espinha de Agnes, ela sorriu para a carta. Estava determinada a mudar a atmosfera sombria que descera sobre eles.

— Não olhem desse jeito para mim. — Ela virou o valete de espadas para que o bebé pudesse vê-lo. — Ele assusta você, Barty?

Bartholomew aprendera a focar os olhos bem mais cedo do que a média dos bebés. Surpreendentemente, ele já estava envolvido com o mundo ao seu redor. Agora Barty olhou para a carta, estalou os lábios, sorriu e disse:

— Gá!

Com um estalo flatulento do trompete do bumbum, ele sujou a fralda. Todos riram, menos Maria.

Jogando o valete sobre a mesa, Agnes disse:

— Barty não parece muito impressionado com esse diabo.

Maria recolheu os quatro valetes e os rasgou, cada um em três pedaços. Enfiou os doze pedaços no bolso de sua blusa.

— Compro cartas novas, mas vocês não podem usar estas nunca mais.

 

DINHEIRO PARA OS MORTOS. A carne decomposta de uma esposa amada e a de um feto transmutadas numa fortuna eram uma conquista de fazer vergonha ao sonho dos alquimistas em transformar chumbo em ouro.

Na terça-feira, menos de 24 horas depois do funeral de Naomi, Knacker, Hisscus e Nork — representando os governos municipal e estadual — realizaram reuniões preliminares com o advogado de Júnior e com o advogado do enlutado clã Hackachak. Como antes, o trio bem vestido foi conciliador, sensível e disposto a chegar a um acordo que impedisse um processo de assassinato culposo.

Na verdade os advogados dos queixosos potenciais sentiram que Nork, Hisscus e Knacker estavam dispostos demais a chegar a um acordo, e encararam o tom conciliador do trio com desconfiança. Naturalmente, o condado e o estado não queriam defender-se contra um processo envolvendo a morte de uma mulher jovem, linda e recém-casada e o seu bebé em gestação, mas sua disposição em negociar tão cedo, a partir de uma postura tão razoável, implicava que sua posição era ainda mais fraca do que aparentava.

O advogado de Júnior — Simon Magusson — insistiu na exposição completa dos registros de manutenção e advertência relacionadas à torre de incêndio e a outras estruturas do serviço florestal pelas quais o estado e o país detinham responsabilidade exclusiva ou conjunta. Se um processo de assassinato culposo fosse aberto, esta informação obrigatoriamente teria de ser divulgada durante os procedimentos normais que precedem um julgamento, e como os arquivos de manutenção e advertência eram de registro público, Hisscus, Knacker e Nork concordaram em prover o que era pedido.

Na tarde de terça-feira, enquanto os advogados estavam reunidos, Júnior, tendo recebido licença do trabalho, telefonou para um chaveiro para pedir a mudança das fechaduras de sua casa. Como policial, Vanadium poderia ter acesso a uma pistola de destravamento capaz de desmantelar as novas fechaduras tão facilmente quanto as antigas. Portanto, no interior das portas da frente e dos fundos, Júnior acrescentou travas de correr, que não podiam ser abertas por fora.

Ele pagou em dinheiro vivo ao chaveiro, e incluiu no pagamento as duas moedas de dez cents e a de cinco que Vanadium deixara em sua mesinha-de-cabeceira.

Na quarta-feira, com uma rapidez que confirma sua disposição em fechar um acordo, o condado supriu os registros sobre a torre de incêndio. Durante cinco anos, uma porção significativa dos fundos de manutenção havia sido desviada pelos burocratas para outros fins. E durante três anos o supervisor de manutenção arquivou relatórios anuais sobre essa torre específica, requisitando fundos imediatos para reconstrução fundamental; o terceiro desses documentos, submetido onze meses antes da queda de Naomi, era composto numa linguagem de crise e carimbado como urgente.

Sentado no escritório apainelado em mogno de Simon Magusson, lendo o conteúdo desse documento, Júnior estava boquiaberto.

— Eu podia ter morrido!

— É um milagre que vocês dois não tenham caído daquela balaustrada — concordou o advogado.

Magusson era um homem pequeno por trás de uma mesa imensa. A cabeça parecia grande demais para o corpo, mas as orelhas não pareciam maiores que um par de dólares de prata. Olhos grandes e saltados, inchados com argúcia e cobiça fervorosa, marcavam-no como alguém que ficava com fome depois de um banquete de seis horas. Um nariz pequeno e excessivamente arrebitado, um lábio superior grande o bastante para rivalizar com o de um orangotango, e um rasgo à guisa de boca complementavam um retrato capaz de repelir qualquer mulher; mas se você queria um advogado que odiava o mundo por tê-lo amaldiçoado com tanta feiúra, e que conseguia converter essa raiva na energia e na brutalidade de um pit buli no tribunal, ao mesmo tempo usando sua aparência desafortunada para obter a simpatia dos jurados, então Simon Magusson era o advogado certo para você.

— Não era apenas a balaustrada que estava podre — disse Júnior, ainda folheando o relatório, seu ultraje crescendo. — As escadas não eram seguras.

— Delicioso, não é?

— Uma das quatro pernas da torre está perigosamente fraturada no local em que se assenta sobre a fundação...

— Adorável.

— ... e o próprio assoalho da plataforma de observação está instável. A coisa inteira podia ter ruído com nós dois nela!

Do outro lado da vasta extensão da mesa veio uma casquinada de duende, a ideia que Magusson fazia de uma risada.

— E eles nem se deram ao trabalho de colocar um aviso! Na verdade eles têm uma placa lá, mas é uma que convida os andarilhos a apreciarem a vista da plataforma de observação!

— Eu poderia ter morrido! — repetiu Caim Júnior, subitamente tão horrorizado com essa dedução que sua barriga pareceu ficar entupida com gelo, e por um instante ele não foi capaz de sentir as extremidades de seu corpo.

— Este vai ser um acordo imenso — prometeu o advogado. — E ainda temos mais notícias boas. As autoridades governamentais e federais concordaram em fechar o caso sobre a morte de Naomi. Agora é oficialmente um acidente.

Júnior começou a sentir de novo suas mãos e pés.

— Enquanto o caso estava em aberto e você era o único suspeito, eles não podiam negociar com você um acordo fora do tribunal — explicou o advogado. — Mas tinham medo de ficar numa situação ainda pior quando não conseguissem provar que você matou a sua esposa, e o processo por homicídio culposo finalmente fosse apresentado ao júri.

— Por quê?

— Em primeiro lugar, os juízes poderiam concluir que as autoridades jamais suspeitaram realmente de você e tentaram culpá-lo por assassinato para esconder sua falha na falta de manutenção da torre. Além disso, a maioria dos policiais acha que você é inocente.

— Mesmo? Isso é gratificante — disse Júnior com sinceridade.

— Parabéns, sr. Caim. Você deu uma tremenda sorte nesta história. Embora considerasse o rosto de Magusson suficientemente perturbador para

evitar fitá-lo por mais tempo que o necessário, e embora aqueles olhos saltados fossem cheios de amargura e de uma necessidade em inspirar pesadelos, Júnior moveu o olhar das suas mãos meio entorpecidas para a face do advogado.

— Sorte? Eu perdi a minha mulher. E o meu filho que nem mesmo nasceu.

— E agora será apropriadamente compensado por sua perda.

Aquele sapo de olhos esbugalhados sorriu do outro lado de sua mesa pretensiosa.

O relatório sobre a torre forçara Júnior a considerar a sua mortalidade; estava tomado por sentimentos de medo, mágoa e pena de si mesmo. A sua voz tremeu de indignação:

— O senhor por acaso sabe que o que aconteceu com a minha Naomi foi um acidente? Acredita nisso? Porque não vejo... não vejo como eu poderia trabalhar com alguém que pense que fui capaz de...

O monstrengo era tão desproporcionado em relação à mobília de seu escritório que parecia um inseto empoleirado na imensa poltrona executiva em couro, ela própria lembrando uma planta carnívora prestes a engolir um inseto. Ele permitiu que um silêncio tão longo acompanhasse a pergunta de Júnior que, no momento em que finalmente respondeu, suas palavras foram supérfluas.

— Sr. Caim, um advogado de julgamentos, seja ele especializado em crimes ou questões civis, é como um ator. Se quer ser convincente, precisa acreditar profundamente no seu papel, na verdade que defende. Sempre acredito na inocência dos meus clientes para conseguir o melhor acordo possível para eles.

Júnior suspeitou que Magusson jamais tivera qualquer cliente além de si próprio. Ele era motivado por ganância, não por justiça.

Por uma questão de princípios, Júnior considerou despedir imediatamente aquele duende, mas então Magusson disse:

— O detetive Vanadium não deve incomodar mais você. Júnior ficou surpreso.

— Você conhece ele?

— Todo mundo conhece Vanadium. Ele é um cruzado, o autodesignado campeão da verdade, da justiça e do sonho americano. Um babaca, se quer a minha opinião. Agora que o caso está encerrado, ele não vai ter nenhuma autoridade para assediar você.

— Não tenho certeza se ele precisa de autoridade — disse Júnior, tenso.

— Bem, se ele o incomodar de novo, é só me dizer.

— Como eles permitem que um homem como aquele continue usando o distintivo? — perguntou Júnior. — Ele é repugnante, extremamente antiprofissional.

— É bem-sucedido. Resolve a maioria dos casos que designam a ele. Até aqui Júnior achava que a maioria dos outros policiais considerava Vanadium um renegado, um pária. Talvez o contrário fosse a verdade... e se Vanadium era tido em alta conta por seus pares, então era incomensuravelmente mais perigoso do que Júnior pensara a princípio.

— Caim, se Vanadium voltar a importuná-lo, quer que eu dê uma puxada na correia dele?

Ele não conseguia lembrar de sob qual princípio considerara despedir Masson. A despeito de suas falhas, o advogado era extremamente competente.

— Espero ter uma proposta para a sua consideração até o final do expediente de amanhã — disse o advogado.

No final da tarde de quinta-feira, depois de uma sessão de nove horas com Hisscus, Nork e Knacker, Magusson — negociando em conjunto com o advogado dos Hackachak — realmente chegou a termos bem aceitáveis. Kaitlin Hackachak receberia 250 mil dólares pela perda de sua irmã. Para compensar sua dor e sofrimento, Sheena e Rudy receberiam novecentos mil dólares, o que lhes permitiria uma terapia intensiva em Las Vegas. Júnior receberia quatro milhões, 250 mil dólares. Os honorários de Magusson eram de 20% antes do julgamento — 40% se obtivesse um acordo apenas depois do início dos procedimentos jurídicos —, o que deixava Júnior com três milhões e quatrocentos mil dólares. Todos os pagamentos aos queixosos eram isentos de impostos.

Na manhã de sexta-feira, Júnior demitiu-se de seu emprego como fisioterapeuta no hospital de reabilitação. Esperava viver bem com juros e dividendos pelo resto da vida, porque os seus gostos eram modestos.

Desfrutando de um dia glorioso, sem nuvens e mais quente que o usual, dirigiu 112 quilómetros para o norte, através de falanges de árvores que marchavam colina abaixo na direção da costa cénica. Ninguém o seguia.

Parou para almoçar num restaurante com uma vista espetacular do Pacífico, emoldurada por pinheiros imensos.

A garçonete que o serviu era bonitinha. Ela flertou com Júnior, que imediatamente percebeu que poderia tê-la se quisesse.

Ele queria, claro, mas sua intuição alertava-o a manter o recato por mais algum tempo.

Não via Thomas Vanadium desde a segunda-feira, no cemitério, e o detetive não fizera mais nenhum truque desde a noite desse mesmo dia, quando deixara os 25 cents ao lado de sua cama. Quase quatro dias sem ser perturbado pelo detetive sitiante. Contudo, em termos de Vanadium, Júnior sabia que precisava sempre ser cauteloso, prudente.

Sem nenhum trabalho para o qual retornar, demorou-se no almoço. Estava sentindo-se embriagado por um sentimento crescente de liberdade que era tão excitante quanto sexo.

A vida era curta demais para gastá-la trabalhando se você tinha os meios para custear prazeres vitalícios.

Quando voltou para Spruce Hills, a noite já estava começando. A lua crescente e perolada flutuava sobre uma cidade que reluzia misteriosamente entre sua riqueza de árvores, tremeluzindo e bruxuleando como se não fosse uma cidade verdadeira, mas um campo de sonhos onde uma miríade de clãs ciganos reunia-se à luz âmbar de lanternas e fogueiras.

No começo daquela semana, Júnior procurara o nome de Thomas Vanadium no catálogo telefónico. Esperava que o seu número não estivesse listado, mas estava. Mais do que um número, queria um endereço, e também o encontrou.

Agora ousava vasculhar a residência do detetive.

Numa vizinhança bem cuidada de moradias modestas, a casa de Vanadium era tão ordinária quanto as outras à sua volta: uma caixa retangular com apenas um pavimento e sem estilo arquitetônico discernível. Persianas verdes nas janelas. Uma garagem anexada para dois veículos.

Decíduos carvalhos negros ladeavam a rua. Todos estavam sem folhas nesta época do ano, seus membros contorcidos tentando agarrar a lua.

As árvores grandes na propriedade de Vanadium também estavam desnudas, permitindo uma visão relativamente desobstruída da casa. A parte dos fundos da residência estava escura, mas uma luz suave aquecia duas janelas na frente.

Júnior não reduziu a velocidade ao passar pela casa, mas circulou o quarteirão e passou novamente diante do lugar.

Ele não sabia o que estava procurando. Simplesmente sentia-se no direito de ser a pessoa que, para variar, conduzia a vigilância.

Menos de quinze minutos depois, em casa, ele se sentou à sua mesa de cozinha com o catálogo telefónico. O livro incluía não apenas os telefones em Spruce Hills, mas também os do estado inteiro, somando talvez setenta ou oitenta mil.

Cada página abarcava quatro colunas de nomes e números, a maioria com endereços. Aproximadamente cem nomes enchiam cada coluna, quatrocentos para uma página.

Usando a borda reta de uma régua para guiar seu olho na descida por cada coluna, Júnior procurou por Bartholomew, ignorando sobrenomes. Ele já havia checado para ver se alguém no estado tinha Bartholomew como último nome; ninguém neste catálogo tinha.

Algumas listas não incluíam primeiros nomes, apenas iniciais. Cada vez que cruzava com a inicial B, punha uma marca vermelha ao lado com uma caneta hidrocor.

A maioria desses nomes seria Bobs ou Bills. Talvez alguns fossem Bradleys ou Bernards. Barbaras ou Brendas.

No fim, depois que tivesse examinado o catálogo inteiro, caso não tivesse tido sucesso, telefonaria para cada nome marcado em vermelho pedindo para falar com o Bartholomew. Algumas centenas de telefonemas, sem dúvida. Alguns requisitariam chamadas interurbanas, mas agora ele tinha como pagar essas tarifas.

Conseguiu vasculhar cinco páginas numa tacada antes de começar a sentir a cabeça doer. Ele vinha realizando duas sessões por dia, tendo começado na terça-feira passada. Quatrocentos nomes por dia. Um total de 1.600 quando terminou a quinta das páginas desta noite.

Este era um trabalho tedioso que poderia não ser frutífero. Mas ele precisava começar em algum lugar, e o catálogo telefónico era o ponto de partida mais lógico.

Bartholomew podia ser um adolescente vivendo com os pais ou um adulto dependente residindo com sua família; nesse caso, ele não seria revelado nesta busca, porque o catálogo telefónico não listaria o seu nome. Ou talvez o sujeito detestasse o seu primeiro nome e jamais o usasse, exceto em questões jurídicas, optando sempre que possível pelo segundo nome.

Se o catálogo acabasse não ajudando em nada, Júnior em seguida pesquisaria no escritório de registros do tribunal do estado, para revisar as certidões de nascimento, começando, se necessário, desde a virada do século. Mas Bartholomew, obviamente, poderia não ser nascido no estado, podendo ter-se mudado para cá durante a infância ou já adulto. Se ele possuía uma propriedade, então apareceria no arquivo de escrituras. Fosse dono de propriedades ou não, se ele cumpria seu dever cívico a cada dois anos, apareceria nos registros de eleitores.

Júnior não tinha mais um trabalho, mas ele tinha uma missão.

No sábado e no domingo, entre as pesquisas no catálogo, Júnior viajava pelo estado numa série de passeios — testando a teoria de que o tira maníaco não estava mais seguindo-o. Aparentemente, Simon Magusson tinha razão. O caso havia sido encerrado.

Viúvo enlutado, Júnior passava suas noites como todos haviam de esperar: sozinho em casa. No domingo ele dormia sem companhia há oito noites, desde sua alta no hospital.

Ele era um homem viril, desejado por muitas mulheres, e a vida era curta. A pobre Naomi, seu rosto lindo e sua expressão de choque ainda fresca em sua memória, era uma lembrança constante do quão repentinamente o fim poderia chegar. O amanhã não era garantia para ninguém. Era preciso aproveitar o dia.

Caesar Zedd recomendava não apenas aproveitar o dia, mas devorá-lo. Mastigar o dia, alimentar-se dele, engoli-lo inteiro. Farte-se, dizia Zedd, farte-se, tratando a vida como gourmet e glutão, porque aquele que pratica o jejum não se fortalecerá o bastante para resistir quando a fome inevitável chegar.

Na noite de domingo, uma combinação de fatores — um compromisso profundo com a filosofia de Zedd, níveis de testosterona explosivos, tédio, autopiedade, e um desejo de ser mais uma vez um aventureiro sem medo do perigo — motivaram Júnior a borrifar um pouco de Hai Karate atrás de cada orelha e sair à caça. Logo depois do pôr-do-sol, segurando uma rosa vermelha e uma garrafa de Merlot, ele foi à casa de Victória Bressler.

Ligou para ela antes de sair, para certificar-se de que estava em casa. Ela não trabalhava à noite nos fins de semana no hospital; mas talvez ela tivesse saído com amigos. Quando atendeu, ele reconheceu a voz sedutora de Victória e murmurou diabolicamente:

— Desculpe, foi engano.

Sempre o romântico, ele queria surpreendê-la. Voilà! Flores, vinho e moi. Victória o desejava desde a conexão elétrica entre os dois no hospital, mas não devia esperar uma visita ainda por semanas. Ele ansiava ver o rosto de Victória iluminar-se de deleite.

Durante a semana anterior, tentara descobrir tudo que podia a respeito da enfermeira. Trinta anos, divorciada, sem filhos, morando sozinha.

Júnior ficara surpreso com a idade dela. Ela não parecia tão velha. Trintona ou não, Victória era muito atraente.

Encantado com a vulnerabilidade das jovens, ele jamais dormira com uma mulher mais velha. A perspectiva deixou-o fascinado. Ela devia possuir truques em seu repertório que as mulheres mais jovens deviam ser inexperientes demais para conhecer.

Júnior podia imaginar no quanto Victória ficaria lisonjeada em receber as atenções de um garanhão de 23 anos. Lisonjeada e grata. Quando imaginou todas as formas com que ela expressaria essa gratidão, quase não havia espaço atrás do volante do Suburban para ele e a sua virilidade.

Apesar do clamor de seu desejo, ele seguiu uma rota tortuosa até a casa de Victória, curvando-se sobre o volante duas vezes, atento para qualquer vigilância enquanto dirigia. Se estivesse sendo seguido, seu perseguidor era um homem invisível num carro fantasma.

Não obstante, cauteloso mesmo enquanto aproveitava o dia — ou a noite, neste caso —, estacionou a uma pequena distância do seu destino, numa rua paralela. Ele caminhou os últimos três quarteirões.

O ar de janeiro estava fresco, recendendo a pinho e o odor suave do mar distante. Uma lua amarela brilhava como um olho malévolo, espiando Júnior entre nuvens escuras que a cobriam como bandagens num rosto de múmia.

Victória morava na zona nordeste de Spruce Hills, onde as ruas davam lugar a alamedas arborizadas. Aqui as casas tendiam ao rústico, construídas em terrenos maiores do que aquelas próximas ao centro da cidade, e ficavam quase sempre no fundo de quintais amplos.

Durante a caminhada curta de Júnior, a calçada acabou, cedendo lugar a um caminho de acesso calçado em cascalho. Não viu ninguém a pé, e nenhum veículo passou por ele.

Nesta região extrema da cidade, nenhuma lâmpada de rua iluminava o chão. Com apenas o luar para revelá-lo, ele provavelmente não seria reconhecido se alguém por acaso olhasse pela janela.

Se Júnior não era discreto, e se fofocas sobre o viúvo Caim e a enfermeira sexy começassem a circular, Vanadium voltaria ao caso, ainda que estivesse encerrado. O tira era um sujeito doentio, impulsionado por demónios internos insondáveis. Embora no presente momento ele estivesse contido por seus superiores, uma simples fofoca de natureza picante seria desculpa suficiente para que ele abrisse novamente o caso, o que certamente faria sem informar os seus superiores.

Victória vivia numa casa de madeira com um teto pontudo. Um par de janelas verticais imensas, projetando-se num ângulo incomum, avultava sobre a varanda da frente. A casa parecia pertencer a um condomínio de moradias populares, e não a este bairro.

Abajures dourados iluminavam as janelas do primeiro andar. Dali a pouco Júnior estaria sentado com Victória no sofá da sala de estar, bebericando vinho enquanto eles conheciam melhor um ao outro. Ela pediria que ele a chamasse de Vicky, e talvez Júnior a deixasse chamá-lo de Eno, o apelido afetuoso que Naomi dera-lhe por não suportar Enoch. Pouco depois estariam brincando como adolescentes cheios de tesão. Júnior iria despi-la no sofá, acariciaria o seu corpo macio e admiraria a sua pele dourada à luz do abajur. Por fim, iria carregá-la, nua, até o quarto escuro no andar de cima.

Evitando o caminho de acesso calçado em cascalho, no qual decerto arranharia seus sapatos de couro recém-engraxados, ele se aproximou da casa no fundo do gramado, sob os galhos de um grande pinheiro que se fazia inútil para a época de Natal ao se espalhar tão majestoso quanto um carvalho.

Ele supôs que Victória estivesse com uma visita. Talvez um parente ou uma amiga- Não um homem. Não. Ela sabia que ele era o homem de sua vida, e não teria nenhum outro enquanto aguardava a chance de se render a ele e consumar o relacionamento que tinham iniciado dez dias antes, com a colher e o gelo.

Como nada na vida era livre de riscos, ele hesitou apenas um momento nos degraus da varanda antes de galgá-los e bater na porta.

Música tocava lá dentro. Música animada. Certamente um suingue. Não conseguiu identificar a melodia.

Quando Júnior estava prestes a tocar de novo, a porta abriu para dentro, e acima de Sinatra divertindo-se em "When My Sugar Walks Down the Street", Victória disse:

— Você chegou cedo. Não ouvi seu carro...

Ela estava falando enquanto abria a porta, e se calou no meio da frase ao passar pela soleira e ver quem estava de pé à sua frente.

Ela pareceu surpresa; até aí tudo bem, mas sua expressão não foi a que Júnior pintara na tela da sua imaginação. Sua surpresa não carregava qualquer deleite, e ela não abriu um sorriso radioso.

Victória fitava-o de cenho franzido. Júnior demorou um instante para compreender que essa não devia ser uma expressão de preocupação, mas de desejo ardente.

Usando calças compridas pretas e um suéter de algodão verde-maçã que realçava suas formas, Victória Bressler cumpria toda a promessa voluptuosa que Júnior suspeitara haver debaixo do uniforme folgado de enfermeira. O decote em "V" sugeria o abismo sinuoso entre os seios, embora houvesse apenas um pedacinho à mostra; nada nesta beldade podia ser classificado como vulgar.

— O que você quer? — perguntou Victória.

Sua voz estava seca e um tanto agressiva. Outro homem teria interpretado erroneamente o seu tom como de desaprovação, impaciência, até de raiva contida.

Júnior sabia que ela devia estar provocando-o. Era isso, ela adorava brincar. Seus olhos azuis cintilavam com malícia.

Ele estendeu-lhe a rosa vermelha.

— Para você. Não que ela lhe faça jus. Nenhuma flor poderia. Ainda insistindo em fingir rejeição, Victória não tocou a rosa.

— Que tipo de mulher você pensa que eu sou?

— O tipo deslumbrante — respondeu Júnior, satisfeito por ter lido muitos livros sobre a arte da sedução e portanto saber precisamente qual era a coisa certa a dizer.

Com uma expressão ainda mais severa, ela lhe disse: — Contei à polícia sobre a sua tentativa ridícula de sedução com a colher de gelo.

Empurrando de novo a rosa vermelha para Victória, insistentemente pressionando-a contra a sua mão para distraí-la, Júnior brandiu o Merlot, e no instante exato em que Sinatra cantou animadamente a palavra sugar, a garrafa atingiu Victória no centro de sua fronte.

 

A IGREJA DE NOSSA SENHORA das Dores, silenciosa e receptiva em meio à noite de Bright Beach, era humilde em dimensão e desprovida de colunas altas e corredores cavernosos, mas com sua ornamentação espartana, era tão familiar — e confortante — para Maria Elena Gonzalez quanto sua própria casa. Deus estava em toda parte no mundo, mas aqui em particular. Maria sentiu-se mais feliz no instante em que passou pela porta da entrada para o nártex.

A missa beneditina tinha acabado, e os paroquianos haviam voltado para suas casas. O padre e os coroinhas também não estavam mais lá.

Depois de ajustar o grampo de cabelo que prendia sua mantilla de seda, Maria passou do nártex para a nave da igreja. Ela mergulhou dois dedos na água benta que reluzia na fonte de mármore e se benzeu.

O ar estava carregado com incenso e com a fragrância da cera com aroma de limão usada nos bancos de madeira.

Na frente, um spot de luz suave focava no crucifixo em tamanho natural. A única iluminação adicional provinha das lampadazinhas sobre as estações da via-sacra, ao longo de ambas as paredes laterais, e das chamas bruxuleantes dos vasos de vidro na estante de velas votivas.

Caminhou pelo corredor central assombrado, fez genuflexão e se benzeu diante da capela-mor. Em seguida dirigiu-se até a estante de velas votivas.

Maria podia fazer uma doação de apenas 25 cents por vela, mas deu cinquenta, enfiando cinco notas de um dólar e duas moedas de 25 cents na caixa de dízimos.

Depois de acender onze velas, todas em nome de Bartholomew Lampion, tirou do bolso as cartas de baralho rasgadas. Quatro lacaios de espadas. Na noite de sexta-feira ela tinha rasgado cada carta em três, e desde então vinha carregando os doze pedaços consigo, esperando por esta noite calma de domingo.

Sua crença na predição da sorte e no ritual curioso que estava prestes a realizar não contava com a aprovação da Igreja. Misticismo desta natureza era, de fato, considerado um pecado, uma distração da fé e uma perversão.

Entretanto, Maria vivia confortavelmente com o catolicismo e o ocultismo com os quais fora criada. Em Hermosillo, México, o segundo fora tão importante para a vida espiritual de sua família quanto o primeiro.

A Igreja alimentava a alma, enquanto o ocultismo nutria a imaginação. No México, onde os confortos físicos muitas vezes eram escassos e as chances de uma vida melhor neste mundo conquistadas arduamente, tanto a alma quanto a imaginação precisavam ser alimentadas para que o corpo físico pudesse suportar a vida.

Com uma prece para a Mãe de Deus, Maria segurou um terço de um lacaio de espadas na chama da primeira vela. Quando o pedaço de carta pegou fogo, ela deixou o fragmento cair no jarro de vidro. Enquanto ele era consumido, ela disse em voz alta "Para Pedro", referindo-se ao mais proeminente dos doze apóstolos.

Repetiu este ritual mais onze vezes — "Para André, para Paulo, para João" — frequentemente olhando para a nave às suas costas, para ter certeza de que ninguém a observava.

Acendera uma vela para cada um dos onze apóstolos, nenhuma para o décimo segundo, Judas, o traidor. Consequentemente, depois de queimar um fragmento das onze cartas em cada uma das velas votivas, ela ficou com uma carta na mão.

Normalmente teria retornado à primeira das velas e oferecido um segundo fragmento a São Pedro. Contudo, neste caso ela confiou o fragmento ao menos conhecido dos apóstolos, porque tinha certeza de que ele possuía uma significância especial neste caso.

Com todos os doze fragmentos destruídos, a maldição devia ter sido retirada do pequeno Bartholomew: a ameaça do inimigo desconhecido e violento que era representado pelos quatro lacaios. Em algum lugar no mundo, existia um homem mau que um dia mataria Barty, mas agora sua jornada através da vida iria levá-lo a outro lugar. Onze santos tinham assumido doze cotas de responsabilidade em retirar essa maldição.

A crença de Maria na eficácia desse ritual não era tão forte quanto a sua fé na Igreja, mas quase. Enquanto ela se debruçava sobre o jarro votivo, observando o último fragmento dissolver-se em cinzas, sentiu um peso terrível sendo retirado de seus ombros.

 

Alguns minutos depois, ao sair da Igreja de Nossa Senhora das Dores, estava convencida de que o caminho do lacaio de espadas — fosse um monstro humano ou o próprio diabo — jamais cruzaria com o de Barty Lampion.

 

E ASSIM ELA TOMBOU, abrupta e violentamente, deserdada de sua graça natural durante a queda, embora tenha recuperado um pouco quando, depois de um baque surdo no chão, assumiu sua postura de desmaio.

Victória Bressler jazia no assoalho da pequena ante-sala, braço esquerdo acima da cabeça, palma exposta, como se estivesse acenando para o teto; braço direito cruzado sobre o corpo numa forma que a sua mão estava em concha sobre o seio esquerdo. Uma perna estava estendida reta, o outro joelho dobrado. Se estivesse nua, deitada contra um fundo de folhas secas, ou um gramado impecável, ela estaria na posição perfeita para ser a coelhinha da página central da Playboy.

Júnior ficou menos surpreso com seu ataque repentino a Victória do que com o fato de que a garrafa não tinha quebrado. Ele era, afinal de contas, um homem novo desde a sua decisão na torre de incêndio, um homem de ação, que fazia o que era necessário. Mas a garrafa era de vidro, e ele a brandira com força suficiente para chocar-se contra a fronte de Victória com um som parecido com o de um martelo batendo numa bola de críquete. O golpe fora o bastante para fazer com que ela desmaiasse instantaneamente. Talvez tivesse sido forte a ponto de matá-la, mas mesmo assim o Merlot permanecia preparado para ser bebido.

Ele entrou na casa, fechou a porta da frente sem fazer ruído, e examinou a garrafa. O vidro era grosso, especialmente na base, onde o fundo bojudo encorajava os sedimentos a se reunirem mais ao longo da borda do que através do fundo inteiro da garrafa. Esta característica de design foi o fator secundário para a força do recipiente. Era evidente que ele a atingira com o fundo da garrafa, que tinha mais condições de resistir ao impacto.

Um ponto rosado no centro da fronte de Victória marcava o local do choque. Logo ele seria uma contusão muito feia. O osso do crânio não parecia ter sido rachado.

Com a cabeça tão dura quanto o coração, Victória não sofrera nenhum dano cerebral sério, apenas uma concussão.

No aparelho de som na sala de estar, Sinatra cantava "It Was a Very Good Year".

A julgar pelas evidências, a enfermeira estava sozinha em casa, mas Júnior levantou a voz acima da música e gritou: — Olá! Tem alguém aqui?

Embora ninguém tenha respondido, ele vasculhou rapidamente a pequena casa.

Um abajur com uma coberta franjada com seda rendada projetava asas de luz dourada num canto da sala de estar. Na mesinha de centro havia três lâmpadas de querosene decorativas, emitindo uma luz bem baixa.

Na cozinha, o forno exalava um aroma delicioso. Sobre o fogão havia uma panela grande em fogo baixo. Ao lado estava a massa a ser acrescentada quando a água dentro da panela começasse a ferver.

Sala de jantar. Dois lugares postos numa extremidade da mesa. Copos de vinho. Dois castiçais de estanho ornados, velas ainda apagadas.

Júnior agora estava vendo o quadro. Nítido como uma foto polaróide. Victória estava envolvida num relacionamento, e ela o procurara no hospital não porque estivesse procurando por mais ação, mas porque era uma provocadora. Uma dessas mulheres que achavam divertido aquecer os sucos de um homem e então deixá-los cozinhando nele.

Ela também era uma filha da puta traiçoeira. Depois de procurá-lo, depois de provocar uma reação nele, ela saíra correndo para fofocar sobre ele, como se ele tivesse instigado a sedução. Pior ainda, para se sentir importante, tinha contado à polícia a sua versão da história, certamente acrescentando mais detalhes coloridos.

Um banheiro sem chuveiro no andar térreo. Dois quartos e um banheiro completo no andar superior. Todos vazios.

Novamente na ante-sala. Victória não havia se mexido.

Júnior ajoelhou-se ao lado dela e premiu dois dedos na artéria carótida em seu pescoço. Ela tinha pulsação, talvez um pouco irregular, mas forte.

Embora ele agora soubesse que pessoa odiável era a enfermeira, continuava fortemente atraído por ela. Contudo, ele não era o tipo de homem que se aproveitaria de uma mulher inconsciente.

Além disso, ela estava claramente esperando um convidado.

Você chegou cedo. Não ouvi o seu carro, dissera Victória ao atender à batida na porta, antes de ver que a visita era Júnior.

Ele caminhou até a porta da frente, que era ladeada por janelinhas fechadas por cortinas. Ele puxou uma das cortinas e espiou.

A lua mumificada livrara-se de suas bandagens. Seu rosto sardento deitava sua luz sobre os galhos do pinheiro, o jardim e o caminho de acesso à casa.

Nenhum carro.

Na sala de estar, ele removeu uma almofada decorativa do sofá e a carregou até a ante-sala.

Contei à polícia sobre a sua tentativa ridícula de sedução com a colher de gelo.

Ele deduziu que ela não havia telefonado à polícia para fazer uma queixa formal. Por que perder seu tempo indo à delegacia quando Thomas Vanadium estava vagando pelo hospital dia e noite, pronto para alugar um ouvido a qualquer falsidade que fizesse Júnior parecer um escroto e um assassino da própria esposa?

Muito provavelmente, Victória falara diretamente com o detetive maníaco. Ainda que tivesse reportado suas invenções sórdidas a outro policial, este as teria passado para Vanadium, e o tira teria procurado a enfermeira para ouvi-la em primeira mão, quando ela teria aumentado a história até fazer parecer que Júnior tinha agarrado seus peitos e tentado enfiar a língua na sua garganta.

Agora, se Victória reportasse a Vanadium que Júnior havia aparecido na sua porta com uma rosa vermelha, uma garrafa de Merlot e intenções românticas, o detetive demente pegaria no seu pé novamente. Vanadium podia pensar que a enfermeira tinha interpretado erroneamente a coisa da colher com gelo, mas o intento neste caso seria inequívoco, e o policial cruzado jamais desistiria.

Victória grunhiu mas não se mexeu.

As enfermeiras deviam ser anjos de misericórdia. Ela não mostrara nenhuma misericórdia para com ele. E ela certamente não era nenhum anjo.

Ajoelhando-se ao lado dela, Júnior colocou a almofada sobre o rosto adorável de Victória e apertou com firmeza enquanto Frank Sinatra terminava "Hello, Young Lovers" e cantava talvez metade de "Ali or Nothing at Ali". Victória permaneceu inconsciente, sem jamais ter uma chance de se debater.

Depois de checar sua artéria carótida e não encontrar nenhum pulso, Júnior retornou para o sofá na sala de estar. Ele afofou a almofada e a colocou precisamente onde a encontrara.

Não sentia a menor vontade de vomitar.

Ainda assim não se culpava por sua falta de sensibilidade. Ele estivera com esta mulher apenas uma vez antes. Não investira emocionalmente nela como o fizera com a doce Naomi.

Mas ele não era completamente insensível, claro. Uma tristeza forte pesou em seu coração, uma tristeza com o pensamento do amor e da felicidade que ele e a enfermeira poderiam ter tido juntos. Mas, afinal de contas, tinha sido escolha dela provocá-lo sexualmente e trattá-lo com tanta crueldade.

Quando Júnior tentou levantar Victória, a sua voluptuosidade perdeu o apelo. Um peso morto, ela era mais pesada do que ele esperara.

Na cozinha, sentou o cadáver numa cadeira e deixou-o cair para a frente, sobre a mesa. Com os braços dobrados, a cabeça sobre os braços e o corpo voltado para um lado, ela parecia estar descansando.

Coração acelerado, mas lembrando a si mesmo da força e da sabedoria que se elevam de uma mente calma, Júnior ficou parado em pé no centro da cozinha pequena, virando-se lentamente para estudar cada ângulo do cômodo.

Com o convidado da mulher morta a caminho, os minutos eram preciosos. Contudo, a atenção aos detalhes era essencial, a despeito do tempo que fosse necessário para disfarçar um assassinato como um acidente doméstico.

Infelizmente, Caesar Zedd não escrevera um livro de auto-ajuda sobre como cometer suicídio e escapar das suas conseqüências. Como antes, Júnior estava inteiramente sozinho.

Com pressa e uma economia de movimento, ele se pôs a trabalhar.

Primeiro pegou suas toalhas de papel num armário embutido na parede, segurou uma em cada mão, para usá-las como luvas. Estava determinado a não deixar digitais.

A cozinha possuía dois fornos; o jantar estava cozinhando no direito. Júnior ligou o forno esquerdo, ajustando o fogo para médio, e abriu a porta.

Na sala de jantar, pegou os dois pratos de jantar que já estavam postos. Retornou com eles para a cozinha e colocou-os no forno esquerdo, como se ela o estivesse usando como aquecedor de pratos.

Ele deixou a porta do forno aberta.

Na geladeira, encontrou um bastão de manteiga num recipiente com uma tampa de plástico transparente. Levou o recipiente até a mesa de culinária ao lado da pia e o abriu.

Uma faca jazia no balcão ali perto. Usou-a para fatiar quatro pedaços de um centímetro e meio de manteiga amarela e cremosa.

Deixando três pedaços de manteiga no recipiente, colocou cuidadosamente o quarto no assoalho revestido com vulcapiso.

As toalhas de papel estavam manchadas de manteiga. Amassou-as e jogou-as no lixo.

Pretendia empapar a sola do sapato direito de Victória no pedaço de manteiga e deixar uma mancha comprida no chão, como se ela tivesse escorregado e caído na direção dos fornos.

Finalmente, segurando a cabeça de Victória com ambas as mãos, ele teria de golpear sua fronte com força considerável no canto da porta aberta do forno, tomando o cuidado de colocar o ponto do impacto precisamente onde a garrafa a acertara.

Ele supunha que a Divisão de Investigação Científica da Polícia Estadual do Oregon poderia encontrar pelo menos um motivo para suspeitar do cenário trágico que estava criando. Ele não sabia quanta tecnologia a polícia empregaria numa cena criminal, e conhecia muito pouco sobre patologia forense. Estava apenas fazendo o melhor trabalho que podia.

O Departamento de Polícia de Spruce Hills era pequeno demais para possuir uma Divisão de Investigação Científica completa. E se o cenário que lhes fosse apresentado parecesse convincente, eles poderiam aceitar a morte como um acidente bizarro e jamais recorrer à assistência técnica da polícia estadual.

Se a polícia estadual se envolvesse, e até se eles encontrassem evidências de que o acidente fora ensaiado, eles provavelmente apontariam o dedo da culpa para o homem para quem Victória estivera preparando o jantar.

Nada restava a ser feito além de pressionar o sapato de Victória na manteiga e chocar sua cabeça contra a borda da porta do forno.

Estava prestes a levantar o cadáver da cadeira quando ouviu o carro no caminho de acesso. Ele não teria ouvido o motor tão claramente e tão cedo se o aparelho de som não estivesse no processo de trocar de álbuns.

Não havia tempo para preparar o cadáver para ser visto.

Uma crise depois de outra. Este novo homem de ação não era burro.

Nas adversidades residem grandes oportunidades, como ensinara-lhe Caesar Zedd, e como sempre, claro, havia um lado bom mesmo quando você não era capaz de vê-lo imediatamente.

Júnior saiu correndo da cozinha e seguiu o corredor até a porta da frente. Ele correu silenciosamente, apoiando-se nos dedos como um dançarino. Sua graça atlética natural era uma das coisas que atraíam tantas mulheres.

Símbolos tristes de um amor que não estava escrito nas estrelas, a rosa vermelha e a garrafa de vinho no chão da ante-sala. Sem a presença do cadáver, não restava nenhum sinal de violência no local.

Enquanto Sinatra começava a cantar "I'll Be Seeing You", Júnior guiou seus passos de modo a não pisar na rosa nem no Merlot. Ele cautelosamente puxou para trás cinco centímetros da cortina numa das janelinhas ao lado da porta.

Um sedã parara no caminho de acesso, do lado direito da casa, quase fora de vista. Enquanto Júnior observava, os faróis se apagaram. O motor foi desligado. A porta do motorista foi aberta. Um homem saltou do carro, uma figura ameaçadora sob o luar amarelo. O convidado para o jantar.

 

IMPLODIR, explodir para dentro sob pressão. Como o casco de um submarino numa profundidade muito grande.

Júnior aprendera a palavra implodir num livro de auto-ajuda sobre como aperfeiçoar o seu vocabulário e falar bem. Naquela época ele achara que jamais ia usar essa palavra, nem tantas outras nas listas que decorara. Agora era a descrição perfeita para a forma como se sentia: como se estivesse na iminência de implodir.

O convidado do jantar inclinou-se de volta para o carro, como se fosse pegar alguma coisa. Talvez ele, também, fosse educado o bastante para trazer um pequeno presente para a sua anfitriã.

Quando Victória não atendesse à porta, este homem não iria embora simplesmente. Ele havia sido convidado. Era esperado. Havia luzes acesas na casa. A falta de uma resposta à sua batida seria vista como um sinal de que alguma coisa estava errada.

Júnior estava numa profundeza crítica. A pressão psicológica era de pelo menos uma tonelada por centímetro quadrado e crescia a cada segundo. Implosão iminente.

Se fosse deixado parado em pé na varanda, o visitante circularia a casa, espiando nas janelas onde as cortinas não estavam fechadas, experimentando as portas na esperança de encontrar alguma aberta. Com medo de que Victória estivesse doente ou ferida, que talvez tivesse escorregado num naco de manteiga e batido a cabeça contra a borda de uma porta de fogão aberta, ele poderia tentar invadir o lugar, quebrar uma janela. Certamente ele procuraria os vizinhos para chamar a polícia.

Duas toneladas por centímetro quadrado. Quatro. Cinco.

Júnior correu para a sala de jantar e pegou uma das taças de vinho na mesa. Pegou também um dos castiçais de estanho, deixando cair a sua vela.

Novamente na ante-sala, a cerca de um metro e meio da porta da frente, pousou a taça de vinho no chão. Posicionou o Merlot ao lado do vinho, a rosa vermelha ao lado da garrafa.

Como uma pintura de natureza-morta intitulada Romance.

Uma porta de carro foi fechada lá fora.

A entrada da frente não estava trancada. Júnior girou silenciosamente a maçaneta e puxou com gentileza, deixando a porta deslizar para dentro.

Carregando o castiçal, ele correu para a cozinha no final do corredor curto. A porta estava aberta, mas ele precisou entrar na sala para ver Victória sentada numa das duas cadeiras da cozinha, debruçada sobre a mesa.

Ele se escondeu atrás da porta e ergueu o castiçal de estanho sobre a cabeça. Pesando talvez um pouco mais de dois quilos, o objeto funcionaria como uma arma manual formidável, provavelmente tão boa quanto um martelo.

O coração de Júnior batia furioso. Sua respiração estava pesada. Estranhamente, o aroma da comida sendo assada, antes delicioso, agora lhe parecia pungente como sangue.

Respirações lentas e profundas. Por Zedd, respirações lentas e profundas. Qualquer estado de ansiedade, a despeito do quão poderoso, podia ser suavizado ou até dissipado completamente com duas inalações lentas e profundas acompanhadas pela lembrança de que cada um de nós tem o direito de ser feliz, de se sentir realizado, de estar livre do medo.

Sobre o refrão final de "I'll Be Seeing You" veio da ante-sala uma voz masculina num tom intrigado, talvez um pouco surpreso:

— Victória?

Lento e profundo. Lento e profundo. Ele já estava mais calmo. A canção terminou.

Júnior segurou sua respiração, ouvidos atentos.

No breve silêncio entre as faixas do disable ouviu o clinque do cálice de vinho batendo contra a garrafa de Merlot, quando o visitante evidentemente colheu-os no chão.

Ele havia presumido que o convidado para o jantar era amante de Victória, mas repentinamente compreendeu que esse talvez não fosse o caso. O homem poderia não ser mais do que um amigo. Seu pai ou um irmão. Neste caso, o convite ao romance — insinuado pela forma com que o vinho e a rosa haviam estado dispostos diante da porta — seria tão absurdamente inadequado que o visitante saberia que alguma coisa estava errada.

Beócio. Outra palavra aprendida para aprimorar o vocabulário e jamais usada antes. Beócio. Pessoa burra, obtusa, estúpida. Sentia-se repentinamente muito beócio.

No instante em que Sinatra voltou a cantar, Júnior pensou ter ouvido um passo no assoalho de madeira do corredor, e o rangido de uma tábua. A música mascarava os sons do visitante se aproximando se ele, de fato, estava se aproximando.

Erguer o castiçal bem alto. Apesar da música, fazer respirações rasas e através da boca. Permanecer em posição, preparado.

O castiçal de estanho era pesado. Ele ia fazer uma lambança.

Tinha nojo de sangue. Ele se recusava a ver filmes que lidavam com as conseqüências da violência, e tinha ainda menos estômago para sangue na vida real.

Ação. Concentre-se na ação e ignore os seus efeitos repugnantes. Lembre do trem desgovernado e do ônibus cheio de freiras preso nos trilhos. Fique com o trem, não volte para olhar para as freiras esmagadas, apenas continue movendo-se para a frente, e tudo ficará bem.

Um som. Muito perto. O outro lado da porta aberta.

Aqui, agora, o convidado para o jantar, entrando na cozinha. Ele carregava a taça de vinho e a rosa na mão esquerda. O Merlot estava enfiado debaixo do seu braço. Na mão direita ele tinha uma caixa de presente pequena e embrulhada num papel brilhante.

Ao entrar, o visitante estava de costas para Júnior, e ele se moveu até a mesa, onde Victória, morta, estava sentada com a cabeça sobre os braços dobrados. Ela parecia estar simplesmente descansando.

— O que é isto? — perguntou o homem a ela, enquanto a voz de Sinatra deslizava por "Come Fly With Me".

Avançando rápido com o castiçal em riste, Júnior viu o convidado do jantar enrijecer, talvez sentindo perigo ou ao menos movimento, mas era tarde demais. O sujeito nem mesmo teve tempo para virar a cabeça ou se abaixar.

O porrete-castiçal acertou as costas do crânio do homem com um baque sonoro. O escalpo rasgou, sangue jorrou, e o homem caiu tão pesado quanto Victória caíra sob a influência de um bom Merlot. A diferença foi que o homem tombou de bruços, não de rosto para cima, como acontecera com Victória.

Não estando disposto a correr riscos, Júnior brandiu o castiçal de novo, cur-vando-se ao fazer isso. O segundo impacto não foi tão sólido quanto o primeiro, mas foi eficaz.

Ao cair, a taça de vinho se quebrara. Mas a garrafa de Merlot sobrevivera de novo, rolando pelo assoalho de vulcapiso até bater gentilmente contra o pé do armário.

Já esquecido da respiração lenta e profunda, arfando como um banhista se afogando, um suor repentino gotejando de seu semblante, Júnior usou um pé para cutucar o homem caído.

Quando não obteve resposta, ele enfiou a ponta de seu sapato direito debaixo do peito do homem e, com algum esforço, o fez rolar, deixando-o de barriga para cima.

Segurando a rosa vermelha na mão esquerda, a caixa de presente embrulhada em papel brilhante meio esmagada na mão direita, Thomas Vanadium jazia à mercê de Júnior, sem nenhum truque para realizar, sem nenhuma moeda dançando nos nós de seus dedos. Toda a sua magia havia desaparecido.

 

O CREPITAR DE CHAMAS FALSAS, da forma como eram feitas nos tempos das novelas de rádio, nas décadas de 1930 e 1940, quando ele era menino: celofane sendo amassado.

Sentado sozinho na mesa de canto de sua quitinete, Jacó fez mais sons de fogo ao desnudar um segundo baralho novo de cartas de seu celofane transparente; e então um terceiro e um quarto.

Ele possuía arquivos vastos sobre incêndios trágicos, e a maioria deles estava gravada em sua mente. No magnífico Ring Theater de Viena, em 8 de dezembro de 1881, um incêndio clamou 850 vidas. Em 25 de maio de 1887, duzentos mortos na Opera Comique, Paris. Em 28 de novembro de 1942, no clube noturno Coconut Grove em Boston — quando Jacó tinha apenas quatorze anos de idade e já era obcecado com o lamentável talento da humanidade para destruir a si própria por intenção ou inépcia —, 491 pessoas morreram sufocadas e queimadas vivas numa noite que devia ter sido de alegria regada a champanhe.

Agora, depois de remover os quatro baralhos dos maços prensados nos quais eles tinham vindo, Jacó alinhou-os lado a lado no arranhado tampo de bordo de sua mesa.

— Quando o Iroquois Theater em Chicago incendiou em 30 de dezembro — disse em voz alta, testando a sua memória —, durante uma matinê de O barba-azul, seiscentas e duas pessoas morreram, em sua maioria mulheres e crianças.

A consistência infalível do empacotamento possibilita aos mestres em manipulação de cartas—jogadores profissionais e mágicos — embaralharem um novo maço com a certeza de saberem onde cada carta poderá ser encontrada no bolo. Um bom manipulador de cartas com mãos habilidosas e ágeis pode aparentar embaralhar tão completamente que até o observador mais desconfiado ficará satisfeito — e mesmo assim ele ainda saberá exatamente onde cada carta se encontra no maço. Com uma manipulação magistral, ele pode posicionar as cartas na ordem que ele quer, para obter os efeitos que deseja.

— Em 6 de julho de 1944, na cidade de Hartford, Connecticut, um incêndio foi deflagrado na grande tenda do Circo dos Irmãos Ringling, Barnum e Bailey, às duas e quarenta da tarde, enquanto seis mil espectadores assistiam aos Wallendas, uma trupe de equilibristas famosa mundialmente, subirem para começar seu número. Às três da tarde o fogo começou, seguido pelo colapso da tenda em chamas, deixando cento e sessenta e oito pessoas mortas. Outras quinhentas pessoas ficaram feridas gravemente, mas mil animais de circo (incluindo quarenta leões e quarenta elefantes) saíram ilesos.

Uma destreza incomum é essencial a qualquer um que deseje tornar-se um manipulador de cartas altamente habilidoso, mas não é a única exigência. Também é imensamente importante uma capacidade em suportar um tédio terrível enquanto passa milhares de horas treinando. Os melhores manipuladores de cartas também possuem funções de memória complexas de uma amplitude e de uma profundidade que seriam consideradas extraordinárias por qualquer pessoa comum.

— 14 de maio de 1845, Cantão, China. Um incêndio num teatro matou seiscentas e setenta pessoas. Em 8 de dezembro de 1863, um incêndio na igreja de La Compana, em Santiago, Chile, deixou duas mil, quinhentas e uma pessoas mortas. Cento e cinqüenta pereceram num incêndio num bazar de caridade em Paris: 4 de maio de 1897. 30 de junho de 1900: um incêndio nas docas em Hoboken, Nova Jersey, matou trezentas e vinte e seis...

Jacó nascera com a destreza necessária e uma capacidade de memória mais do que suficiente. Seu distúrbio de personalidade — que impedia que ele arranjasse trabalho e garantia que sua vida social jamais envolveria uma série interminável de festas — possibilitava que tivesse tempo livre necessário à prática das técnicas mais difíceis de manipulação de cartas até que as dominasse.

Como, desde a infância, Jacó fora atraído por histórias e imagens apocalípticas, por catástrofes tanto em escala pessoal quanto planetária — de incêndios em teatros à guerra nuclear total —, ele tinha uma imaginação febril e uma vida intelectual plena, ainda que peculiar. Portanto, para ele a parte mais difícil no aprendizado da manipulação de cartas fora suportar o tédio de praticar durante anos, motivado apenas por seu amor e admiração por sua irmã, Agnes.

Agora ele embaralhou o primeiro dos quatro maços tão precisamente quanto os embaralhara na noite de sexta-feira passada, e o colocou de lado.

Para ter o máximo de chances de se tornar um mestre na técnica da manipulação de cartas, qualquer jovem precisa de um mentor. A arte do controle total sobre as cartas não pode ser aprendida inteiramente a partir de livros e experimentos.

O mentor de Jacó tinha sido um homem chamado Obadiah Sepharad. Eles haviam se conhecido quando Jacó estava com dezoito anos, durante um período em que ele estivera confinado numa ala psiquiátrica durante um curto tempo, sua excentricidade tendo sido temporariamente confundida com algo pior.

Ele embaralhou os três maços restantes da forma ensinada por Obadiah.

Agnes e Esaú não sabiam a respeito da grande habilidade de Jacó com as cartas. Ele havia sido discreto sobre o seu aprendizado com Obadiah, e durante quase vinte anos resistira ao impulso de surpreender os irmãos com a sua perícia.

Quando crianças — vivendo numa casa que era conduzida como uma prisão, sufocados pelo governo opressivo de um pai rabugento que acreditava que qualquer forma de entretenimento era uma ofensa contra Deus — eles conduziam partidas secretas de cartas como seu ato básico de rebelião. Um maço de cartas era pequeno o bastante para ser escondido rapidamente e mantido oculto mesmo durante uma das inspeções minuciosas do pai aos seus quartos.

Quando o velho morreu e Agnes herdou a propriedade, os três irmãos jogaram cartas no quintal dos fundos pela primeira vez no dia do funeral do pai; jogaram abertamente, quase eufóricos com sua liberdade. Quando Agnes se apaixonou e se casou, Joey Lampion juntou-se aos seus jogos de cartas, e Jacó e Esaú sentiram-se finalmente membros de uma família.

Jacó tornara-se um manipulador de cartas com um propósito. Não porque fosse um jogador. Não para embasbacar os amigos com truques de cartas. Não porque o desafio o intrigava. Ele queria ser capaz de dar a Agnes cartas vencedoras de vez em quando, se ela estava perdendo com freqüência demais ou estava desanimada. O esforço que ele fizera — os milhares de horas de treinamento — era pago com dividendos a cada vez que Agnes ria de deleite depois de tirar uma mão perfeita.

Se Agnes soubesse que Jacó estivera ajudando-a a jogar, ela provavelmente jamais jogaria cartas com ele novamente. Ela não aprovaria o que ele tinha feito. Conseqüentemente, sua grande habilidade como trapaceiro de cartas seria para sempre o seu segredo.

Ele sentia um pouco de culpa com isto... mas apenas um pouco. Sua irmã fizera muito por ele; mas sem trabalho, guiado por suas obsessões, herdeiro de muito da natureza amarga de seu pai, não havia muita coisa que ele pudesse fazer por ela. Apenas este truque benigno com as cartas.

— 20 de setembro de 1902, Birmingham, Alabama, incêndio em igreja, quinhentos e cinqüenta mortos. 4 de março de 1908, Collinwood, Ohio, incêndio em escola... cento e sessenta e seis mortos.

Tendo embaralhado todos os quatro maços de cartas, Jacó cortou dois baralhos e misturou as metades, controlando-as exatamente como ele havia controlado na noite de sexta-feira passada. A seguir, as outras duas metades.

— Nova York, 25 de março de 1911, a fábrica Triangle Shirtwaist... cento e quarenta e seis mortos.

Sexta-feira passada, depois do jantar, quando ele ouvira o suficiente sobre o método de leitura de cartas de Maria para saber que eram necessários quatro maços, que apenas a terceira era lida, e que os ases — especialmente os ases vermelhos — eram as cartas mais propícias para serem recebidas, Jacó divertira-se muito preparando para Barty as mais favoráveis primeiras oito cartas que podiam ser tiradas. Este era um presentinho para animar Agnes, que estava com o coração pesado como chumbo depois da morte de Joey.

No começo tudo correra bem. Agnes, Maria e Esaú tinham ficado maravilhados. Todos à mesa estavam sorridentes e esperançosos. Eles estavam encantados com a série de cartas estrondosamente favorável, uma improbabilidade matemática surpreendente.

— 23 de abril de 1940, Natchez, Mississipi, incêndio do salão de danças: cento e noventa e oito mortos. 7 de dezembro de 1946, Atlanta, Geórgia, o incêndio do Hotel Winecoff: cento e noventa mortos.

Agora, na mesa da sua quitinete, duas noites depois da leitura de cartas de Maria, Jacó terminou de integrar os quatro baralhos como fizera na sexta-feira, na mesa de jantar da casa principal. Depois de terminar o trabalho ele se sentou durante algum tempo, fitando o bolo de cartas, hesitando prosseguir.

— 5 de abril de 1949, Effingham, Illinois, um incêndio de hospital matou setenta e sete pessoas.

Em sua voz, ele ouviu um tremor que não tinha nenhuma relação com as mortes hediondas em Effingham, mais de dezesseis anos antes. Primeira carta. Ás de copas. Descarte duas. Segunda carta. Ás de copas.

Ele continuou até quatro ases de copas e quatro ases de ouros estarem na mesa diante dele. Ele havia preparado essas quatro tiradas de cartas, e este efeito era intencional.

Os manipuladores de cartas possuem mãos estáveis, mas as de Jacó tremiam enquanto ele descartava duas cartas e lentamente virava a nova carta. Esta devia ser um quatro de paus, não um valete de espadas. E foi um quatro de paus.

Ele olhou as duas cartas que seguiram o quatro de paus na pilha. Nenhuma dessas também tinha sido um valete de espadas, e ambas tinham sido as que ele antecipara.

Na noite de sexta-feira, Jacó providenciara para que os ases fossem tirados, mas não empilhara as subseqüentes doze cartas para prover a seleção de quatro valetes idênticos a intervalos de três cartas. Ele ficara estarrecido ao ver Maria virá-las.

As probabilidades contra a retirada de um valete de espadas quatro vezes seguidas de quatro baralhos combinados e embaralhados aleatoriamente eram proibitivas. Jacó não tinha o conhecimento necessário para calcular essas probabilidades, mas ele sabia que eram astronômicas.

Obviamente, a possibilidade de sacar quatro valetes idênticos de maços combinados que haviam sido magistralmente manipulados e meticulosamente dispostos por um mestre da manipulação era nula — a não ser que o efeito dos valetes tivesse sido proposital, e neste caso não havia sido. As probabilidades não podiam ser calculadas porque isso não podia acontecer. Não havia qualquer elemento do acaso envolvido aqui. As cartas naquela pilha haviam estado ordenadas de forma tão previsível — para Jacó — quanto as páginas numeradas num livro.

Na noite de sexta-feira, mistificado e atormentado, Jacó não dormira muito, e cada vez que cochilara, tinha sonhado em estar sozinho num bosque, seguido por uma presença sinistra, invisível mas inegável. Este predador andava silenciosamente pelo mato, indistinguível das árvores e arbustos entre os quais deslizava. Era tão fluido e frio quanto o luar, mais escuro que a noite... e estava cada vez mais próximo. Cada vez que sentira que o predador ia pular sobre ele, Jacó acordara, uma vez com o nome de Barty nos lábios, gritando pelo menino como se para avisá-lo, e uma vez com duas palavras:"... o lacaio..."

Na manhã de sábado ele caminhou até um mercadinho na cidade e comprou oito baralhos. Com quatro, passou o dia recriando, de novo e de novo, o que fizera na mesa da sala de estar no dia anterior. Os quatro lacaios jamais apareceram.

Quando ele foi para a cama no sábado à noite, as cartas que tinham sido novas naquela manhã estavam mostrando sinais de desgaste.

Nos bosques sombrios do sonho, ainda a presença: sem rosto, silenciosa, irradiando uma intenção implacável.

Na manhã de domingo, aqui estava ele, abrindo quatro maços novos, como se as cartas novas pudessem permitir que a mágica se repetisse. Ás, ás, ás, ás de copas.

— 10 de dezembro de 1958, Chicago, Illinois, um incêndio numa escola paroquiana matou noventa e cinco pessoas.

Ás, ás, ás, ás de ouros. Quatro de paus.

Se mágica era a explicação para os valetes na noite de sexta-feira, talvez essa fosse a variação sombria da mágica. Talvez ele não devesse estar tentando convocar, mais uma vez, o espírito que tinha sido responsável pelos quatro lacaios.

— 14 de julho de 1960, na Cidade de Guatemala, Guatemala, um incêndio num hospício... duzentos e vinte e cinco mortos.

Curiosamente, recitar esses fatos geralmente costumava acalmá-lo, como se falar de desastres pudesse espantá-los. Contudo, desde a sexta-feira ele não encontrava conforto em suas rotinas usuais.

Relutante, Jacó finalmente colocou as cartas de volta nos maços e admitiu para si mesmo que ele fora tomado pela superstição e não conseguiria livrar-se dela. Em algum lugar no mundo havia um lacaio, um monstro humano — ou até pior, segundo Maria, um homem tão temível quanto o próprio diabo — e por motivos desconhecidos este monstro queria ferir o pequeno Barty, um bebê inocente. Por obra de alguma graça que Jacó não conseguia compreender, eles tinham sido alertados, através das cartas, que o lacaio estava vindo. Eles tinham sido alertados.

 

ESPARRAMADA NO ROSTO ACHATADO, a marca de nascença cor de vinho. No centro da mancha, o olho fechado, tapado por uma pálpebra púrpura, liso e redondo como uma uva.

A visão de Vanadium no chão da cozinha causou em Caim Júnior o maior susto de sua vida. Ele pulou dentro de sua pele, e seu coração bateu, bateu, e ele quase esperou escutar seus ossos martelarem uns contra os outros, como os de um esqueleto pendurado numa casa das bruxas de parque de diversões.

Embora Thomas Vanadium estivesse inconsciente, talvez até morto, e embora os olhos cinzentos como pregos estivessem fechados, Júnior sabia que aqueles olhos estavam observando-o, observando-o através das pálpebras.

Talvez estivesse um pouco maluco. Ele não negaria um estado de loucura breve, transitório.

Ele não percebeu que estava golpeando o castiçal contra o rosto de Vanadium até ver o golpe ferir. E então não resistia a golpeá-lo mais uma vez.

Quando voltou a si, estava à pia da cozinha, fechando a água, que ele não conseguia lembrar de ter aberto. Ele parecia ter lavado o castiçal ensangüentado — o objeto estava limpo — mas não tinha qualquer lembrança de ter cumprido essa tarefa doméstica.

Piscou, e então estava na sala de jantar sem saber como chegara ali.

O castiçal estava seco. Segurando este cassetete de estanho com uma toalha de papel, Júnior recolocou-o na mesa como o havia encontrado. Pegou a vela no chão e a casou com o castiçal.

Piscou, estava na sala de estar. Desligando Sinatra no meio de "It Gets Lonely Early".

A música tinha sido sua aliada, impedindo que sua respiração tensa fosse ouvida por Vanadium, e emprestando uma aura de normalidade à casa. Agora ele queria silêncio, para poder ouvir imediatamente outro carro no instante em que chegasse à casa.

A sala de jantar novamente, mas desta vez ele lembrou como chegara ali: através da sala de estar.

Abriu as portas sólidas no fundo do armário, sem saber o que procurava. Em seguida checou o bar, e ali estava um pequeno suprimento de bebidas. Uísque, gim, vodca. Selecionou uma garrafa de vodca cheia.

No começo não conseguiu reunir a coragem para voltar à cozinha. Tinha uma certeza insana de que em sua ausência o detetive morto havia se levantado e estava à sua espera.

O impulso em fugir da casa era quase irresistível.

Respirando de forma ritmada. Lenta e profundamente, lenta e profundamente. Para Zedd, a rota para a tranqüilidade passa pelos pulmões.

Ele não se permitiu meditar por que Vanadium viera aqui ou que relacionamento poderia ter existido entre o tira e Victória. Tudo isso ficaria para consideração posterior, depois que tivesse lidado com esta maldita lambança.

Acabou aproximando-se da porta entre a sala de jantar e a cozinha. Parou ali, e escutou atentamente.

Silêncio na cozinha que tinha se tornado um abatedouro.

É claro. O policial não fizera nenhum ruído ao fazer aquela moeda de 25 cents se mover pelos nós de seus dedos. E ele deslizara pelo quarto de hospital, no escuro, com passos felinos.

No cineminha de sua mente, Júnior viu a moeda em trânsito pelos dedos gordos, movendo-se mais rápido do que antes porque sua passagem estava lubrificada com sangue.

Tremendo de pavor, ele encostou uma mão na porta e lentamente a abriu.

O detetive maníaco ainda estava no chão onde tinha morrido. A rosa vermelha e a caixa de presente ocupavam suas mãos.

Sobre a marca de nascença havia manchas mais brilhantes. O rosto estava menos achatado, agora perfurado e rasgado numa geografia nova e horrenda.

Em nome de Zedd, respirações lentas e profundas. Concentre-se não no passado, não no presente, mas apenas no futuro. O que aconteceu não é importante. Tudo que importa reside no futuro.

O pior tinha ficado para trás.

Assim, continue avançando. Não se prenda aos efeitos repugnantes. Continue assobiando como um trem desgovernado. Siga depressa, siga adiante.

Fragmentos da taça quebrada estalaram sob os seus sapatos quando ele atravessou a pequena cozinha até a mesa de jantar. Ele abriu a garrafa de vodca e colocou-a sobre a mesa na frente da mulher morta.

Seu plano anterior para criar um cenário — manteiga no chão, porta do fogão aberta — para retratar a morte de Victória como um acidente não era mais adequado. Agora era necessária uma nova estratégia.

Os ferimentos de Vanadium eram graves demais para passarem por machucados acidentais. Ainda que houvesse alguma forma de disfarçá-los através de uma encenação arguta, ninguém acreditaria que Victória tinha morrido numa queda, e que Vanadium, correndo até ela, tropeçara e caíra, também recebendo ferimentos mortais na cabeça.

Muito bem, então orbite esta lua de problemas e encontre o seu lado iluminado, o seu lado bom...

Depois de levar um minuto arregimentando coragem, Júnior agachou-se ao lado do detetive morto.

Não olhou o rosto ferido. Não ousou fitar aqueles olhos fechados temendo que se abrissem de repente, cheios de sangue, e fixassem nele um olhar crucificador.

Muitas agências de polícia requeriam que cada policial carregasse uma arma de fogo mesmo quando não estivesse trabalhando. A polícia do estado do Oregon não tinha essa regra, mas Vanadium provavelmente carregava uma assim mesmo, porque em sua mente desvairada ele jamais era um civil, sempre um policial, sempre o cruzado implacável.

Uma levantada rápida de cada perna de sua calça não revelou nenhum coldre de tornozelo, que era como muitos policiais gostavam de carregar suas armas em horas de folga.

Evitando olhar o rosto de Vanadium, Júnior subiu ainda mais por aquele corpanzil. Dobrou para trás o casaco de tweed para revelar um coldre de ombro.

Júnior não sabia muita coisa sobre armas. Ele não as aprovava; ele jamais tivera uma.

Isto era um revólver. Não havia nele nenhum mecanismo de segurança complicado.

Mexeu no tambor até conseguir abri-lo. Cinco câmaras, uma bala reluzente em cada uma delas.

Fechando o tambor em seu lugar, ele se levantou. Já tinha um novo plano, e o revólver deste tira era a ferramenta mais importante para implementá-lo.

Júnior estava surpreso com sua flexibilidade e audácia. Ele era realmente um novo homem, um aventureiro ousado, e ficava mais formidável a cada dia.

Segundo Zedd, o propósito da vida era a realização pessoal, e Júnior teve certeza de que seu guru ficaria satisfeito em vê-lo frutificar tão rápido o seu potencial.

Empurrando a cadeira de Victória para longe da mesa, virou seu rosto para ele. Ajustou Victória de modo a deixar sua cabeça inclinada para trás e seus braços pendendo ao longo do corpo.

Ela era bonita, tanto em rosto quanto em forma, mesmo com a boca entreaberta e os olhos virados para cima. Como o futuro dela poderia ter sido brilhante, caso não tivesse decidido enganar Júnior. Era essencialmente uma provocadora, sempre prometendo, jamais realizando.

Esse comportamento dificilmente teria conduzido Victória à descoberta e ao aperfeiçoamento de si mesma. À realização plena. Nesta vida, somos nós mesmos que fazemos a nossa dor. Para o bem ou para o mal, somos nós que criamos os nossos futuros.

— Sinto muito por isto — disse Júnior.

Então ele fechou os olhos, segurou o revólver com ambas as mãos e à queima-roupa atirou duas vezes na mulher morta.

O recuo da arma foi pior que ele esperara. O revólver coiceou em suas mãos.

Nas superfícies duras dos armários, da geladeira, dos fornos, os ecos duplos ricochetearam. Os vidros das janelas estremeceram.

Júnior não estava preocupado com a possibilidade dos tiros atraírem atenções indesejadas. As distâncias entre essas propriedades rurais grandes e a forma como a profusão de árvores abafava os sons tornavam improvável que o vizinho mais próximo tivesse ouvido alguma coisa.

Com o segundo tiro, a mulher morta caiu da sua cadeira, e a cadeira tombou de lado.

Júnior abriu os olhos e viu que apenas o segundo dos dois tiros encontrara o alvo desejado. O primeiro atravessara o centro da porta de um armário, certamente estilhaçando os pratos em seu interior.

Victória jazia no chão com o rosto voltado para cima. A enfermeira não era mais linda como tinha sido, e talvez devido ao começo do rigor mortis sua graça, que inicialmente estivera evidente até em sua morte, agora a havia desertado.

— Eu realmente sinto muito — disse Júnior, lamentando a necessidade de negar-lhe o direito de parecer bonita em seu próprio funeral. — É que precisa parecer um crime passional.

De pé sobre o corpo, disparou os três últimos tiros. Ao terminar, detestava armas mais do que nunca.

O ar recendia a pólvora de revólver e a assado de carne.

Com uma toalha de papel, Júnior limpou o revólver. Largou-o no chão ao lado do cadáver da enfermeira.

Não se deu ao trabalho de colocar a mão de Vanadium em torno da arma. De qualquer maneira não haveria muitas evidências a serem analisadas pela Divisão de Investigação Científica quando o fogo finalmente fosse apagado: apenas pistas torradas demais para permitir que chegassem a alguma conclusão.

Dois assassinatos e um incêndio premeditado. Júnior estava sendo um menino ousado esta noite.

Não um menino malvado. Ele não acreditava em bem e mal, certo e errado.

Havia ações eficazes e ações ineficazes, comportamentos socialmente aceitáveis e socialmente inaceitáveis, decisões inteligentes e estúpidas que podiam ser feitas. Mas se você queria alcançar o máximo da realização pessoal, precisava compreender que qualquer escolha que fizesse na sua vida era de valor inteiramente neutro. A moralidade era um conceito primitivo, talvez útil nos estados iniciais da evolução da sociedade, mas sem relevância na era moderna.

Alguns atos também eram repugnantes, como revistar o policial lunático em busca do distintivo e das chaves do carro.

Continuando a evitar olhar o rosto ferido e as pálpebras de tons diferentes, Júnior encontrou as chaves num bolso externo do casaco. As credenciais estavam enfiadas num bolso interior: uma carteira de couro sem repartições, contendo o distintivo brilhante e uma identidade com foto.

Agora sair da cozinha, seguir o corredor, subir as escadas, dois degraus por vez, até o quarto de Victória. Não com a intenção de roubar um suvenir perverso. Meramente para encontrar um cobertor.

Na cozinha novamente, Júnior estendeu o cobertor no chão, num lado do sangue. Ele rolou Vanadium para o cobertor, cujas pontas juntou, improvisando um trenó com o qual arrastaria o detetive para fora da casa.

Com o policial pesando demais para ser carregado a qualquer distância, o cobertor revelou-se eficaz, a decisão de arrastá-lo, sábia, e o processo inteiro, de valor neutro.

Um passeio desconfortável, cheio de solavancos, para o falecido: ao longo do corredor, através da ante-sala, sobre a soleira da porta, pelos degraus da varanda, através de um gramado mosqueado pelas sombras dos pinheiros ao luar amarelo, até o caminho de acesso calçado com cascalho. O morto não reclamou.

Júnior não podia ver as luzes das outras casas mais próximas. Ou essas estruturas estavam cobertas por árvores ou os vizinhos não estavam em casa.

O veículo de Vanadium, obviamente não um sedã oficial da polícia, era um Studebaker Lark Regai azul, de 1961. Carro bruto e desprovido de elegância, parecia ter sido projetado especificamente para complementar o físico avantajado do detetive.

Quando abriu o porta-malas, Júnior descobriu que o equipamento de pesca e os dois estojos com ferramentas de carpinteiro em seu interior não deixavam espaço para um detetive morto. Só conseguiria fazer o corpo caber ali dentro se o desmembrasse primeiro.

Ele era uma alma sensível demais para usar uma serra manual ou mesmo elétrica num cadáver.

Apenas os loucos eram capazes desse tipo de atrocidade. Lunáticos sem cura como Ed Gein, lá de Wisconsin, preso há sete anos, quando Júnior tinha dezesseis. Ed, a inspiração para o filme Psicose, construíra móbiles com narizes e lábios. Ele usara pele humana para fazer coberturas de abajur e estofar mobília. As tigelas de sopa desse homem já tinham sido crânios humanos. Ele comia os corações e selecionava outros órgãos de suas vítimas, usava um cinto ornamentado com mamilos, e ocasionalmente dançava sob a lua mascarado com o escalpo e o rosto de uma mulher que assassinara.

Estremecendo com um arrepio, Júnior fechou o porta-malas e analisou o terreno ao seu redor. Pinheiros negros estendiam braços longos através da noite estrelada, e a lua deitava sua luz amarela que parecia obscurecer mais do que iluminar.

Júnior não era um homem supersticioso. Ele não acreditava em deuses ou demônios, ou qualquer coisa intermediária.

Ainda assim, ao lembrar de Gein imaginou que poderia haver um mal monstruoso espreitando nas proximidades. Observando. Planejando. Movido por uma fome incontrolável. Num século marcado por duas guerras, oprimido por homens como Hitler e Stalin, os monstros não eram mais sobrenaturais, mas humanos, e sua humanidade tornava-os mais assustadores que vampiros e enviados do Inferno.

Júnior não era motivado por necessidades perversas, mas por interesses pessoais lógicos. Conseqüentemente, optou por despejar o corpo do detetive no banco traseiro do Studebaker com todos os membros intactos e a cabeça presa ao pescoço.

Retornou à casa e apagou os três lampiões na mesinha de centro da sala de estar. Também apagou o abajur franjado em seda rendada.

Na cozinha, contornou, enojado, o cadáver de Victória, evitando pisar no sangue, e desligou ambos os fornos. Apagou a chama de gás debaixo da panela de água fervente.

Depois de desligar as luzes da cozinha, a luz do corredor, a luz da ante-sala, fechou a porta da frente, deixando a casa escura e silenciosa às suas costas.

Ainda tinha muito trabalho a fazer aqui. Mas livrar-se adequadamente de Thomas Vanadium era uma tarefa mais urgente.

Um vento frio desceu da luz, trazendo um cheiro suave e estranho, e as copas negras das árvores esvoaçaram e farfalharam como saias de bruxas.

Sentou atrás do volante do Studebaker, ligou o motor, fez uma volta de 180 graus, usando mais o gramado que o caminho de acesso, e gritou de terror quando Vanadium mexeu-se ruidosamente no banco traseiro.

Júnior pisou fundo no freio, puxou o freio de mão, abriu a porta e saltou do carro. Virou sobre os calcanhares para ficar face a face com a ameaça, cascalho solto mexendo-se traiçoeiramente debaixo dos seus pés.

 

BONÉ DE BEISEBOL NAS MÃOS, estava em pé na varanda da frente nesta noite de domingo, um homem grande com jeito de menino tímido.

— Sra. Lampion?

— Sou eu.

A cabeça leonina, as feições ousadas, emolduradas em cabelos dourados, deviam transmitir uma aura de força, mas essa impressão era comprometida por uma franja de cabelos encaracolados sobre a testa, um estilo lamentavelmente reminiscente dos imperadores afetados da Roma antiga.

— Eu vim... — A voz descarrilou.

Considerando o tamanho formidável do homem, as suas roupas deviam ter servido a uma imagem de virilidade masculina: botas, calças jeans, camisa de malha vermelha. Contudo, a cabeça abaixada, a postura curva, os pés voltados para dentro, eram lembretes de que muitos rapazes jovens também se vestiam assim.

— Alguma coisa errada? — encorajou Agnes.

Os olhos do rapaz encontraram os dela, mas imediatamente voltaram-se de novo para o soalho da varanda.

— Vim dizer que sinto... sinto imensamente.

Durante os dez dias desde o falecimento de Joey, muitos haviam transmitido suas condolências a Agnes, mas até então sempre pessoas conhecidas.

— Daria qualquer coisa para fazer com que aquilo não tivesse acontecido — disse com franqueza. E agora, um tom torturado de emoção em sua voz: — Queria ter morrido no lugar dele.

O sentimento do estranho era tão excessivo que deixou Agnes sem voz.

— Eu não estava bêbado. Isso já foi provado. Mas admito ter sido imprudente, ter dirigido rápido demais na chuva. Eles me culparam por isso e por ter atravessado o sinal.

De repente Agnes entendeu.

— Foi você.

Ele fez que sim com a cabeça, o rosto ruborizado de culpa.

— Nicholas Deed.

Na sua língua, o nome parecia tão amargo quanto uma aspirina dissolvida.

— Nico — sugeriu, como se existisse qualquer razão para que ela tratasse pelo apelido o homem que matara o seu marido. — Eu não tinha bebido.

— Você andou bebendo agora — acusou Agnes calmamente.

— Tomei umas, sim. Para ganhar coragem. Para vir aqui pedir desculpas à senhora.

O pedido dele foi recebido por Agnes como uma agressão. Ela quase recuou como se tivesse sido esbofeteada.

— Pode, a senhora pode, me perdoar?

Por natureza, Agnes não conseguia nutrir ressentimentos, não conseguia guardar mágoas, era incapaz de vingança. Perdoara até o seu pai, que a fizera atravessar o inferno por tanto tempo, que estragara as vidas de seus irmãos, que matara a sua mãe. Perdoar não era o mesmo que fechar os olhos para alguma coisa. Perdoar não era o mesmo que esquecer.

— Não consigo dormir nem metade da noite — disse Deed, torcendo o boné de beisebol nas mãos. — Perdi peso e ando nervoso, agitado.

A despeito de sua natureza, desta vez Agnes não podia encontrar perdão em seu coração. Palavras de absolvição entalaram em sua garganta. Ela ficou envergonhada com a amargura que estava sentindo, mas não podia negá-la.

— O seu perdão não faria nada ficar direito — disse o homem. — Mas pelo menos me daria um pouco de paz de espírito.

— Por que eu devo me importar se você tem paz de espírito ou não? — perguntou Agnes, e teve a impressão de estar ouvindo uma mulher estranha falar com sua voz.

— motivo nenhum — balbuciou Deed. — Mas eu nunca quis qualquer mal ao seu marido, sra. Lampion. Nem ao seu bebê, Bartholomew.

À menção do nome de seu filho, Agnes estremeceu. Deed teria diversas formas de descobrir o nome do bebê, mas ainda assim parecia errado que soubesse, e errado que usasse o nome da criança que ele tornara órfã, e a quem quase matara.

O bafo de álcool de Deed envolveu Agnes quando ele perguntou:

— Como vai o Bartholomew? Ele está bem? O rapazinho está saudável? Valetes de espadas, num quarteto, despontaram na mente de Agnes.

Lembrando dos cabelos amarelos encaracolados da figura odiosa nas cartas de baralho, Agnes fixou os olhos nos cachos de Deed, que caíam sobre o seu semblante largo.

— Nada nesta casa é da sua conta — disse ela, recuando da porta para fechá-la.

— Por favor, sra. Lampion.

Uma emoção forte marcava o rosto de Deed. Angústia, talvez. Ou raiva.

Ela era incapaz de interpretar a expressão de Deed, não porque ele fosse um homem difícil de ser lido, mas porque as percepções de Agnes estavam abaladas por um terror súbito e por um jorro de adrenalina em seu sangue. Seu coração parecia girar como uma roda de fiar dentro de seu peito.

— Espere — disse Deed, estendendo uma mão para implorar sua piedade ou bloquear a porta.

Ela bateu a porta com força antes que ele a pudesse detê-la, fosse essa sua intenção ou não, e colocou o ferrolho.

Distorcido, fragmentado e reconfigurado em formas de pétalas e folhas, o rosto de Deed por trás do vitral na porta, aproximando-se para espiar dentro da casa, era a face de um demônio saído de um pesadelo.

Agnes correu para a cozinha, onde estivera trabalhando quando a campainha tocara, embrulhando caixas de mantimentos a serem entregues com as tortas de pêra com mel que ela e Jacó tinham assado esta manhã.

O berço de Barty estava ao lado da mesa.

Ela esperava que ele tivesse desaparecido, raptado por um cúmplice que entrara pelos fundos enquanto Deed a distraíra na porta da frente.

O bebê estava onde ela o deixara, dormindo serenamente.

Para as janelas, então, e abaixar todas as persianas. E ainda assim, ironicamente, ela se sentia vigiada.

Trêmula, sentou-se ao lado do berço e olhou para o bebê com tanto amor que teve a impressão de que a força de seus sentimentos poderia acordá-lo.

Ela esperou que Deed tocasse novamente a campainha. Ele não o fez.

— Imagine que pensei que você tinha sumido — disse ela a Barty. — A sua velha mamãe está pirando. Como nunca fiz um acordo com Rumpelstiltskin, não há nada aqui para ele coletar.

Nem fazendo piadas ela conseguia expurgar o medo.

Nicholas Deed não era o lacaio. Ele já tinha contribuído com toda a ruína que podia trazer às suas vidas.

Mas em algum lugar havia um lacaio, e o dia dele iria chegar.

Para evitar que Maria se sentisse responsável pela mudança de humor abrupta que acontecera quando os ases vermelhos tinham sido seguidos pelos valetes de espadas, Agnes fingira não ligar para a predição do futuro de seu filho pelas cartas, especialmente a parte assustadora dela. Mas na verdade uma frieza envolvia o seu coração.

Ela jamais pusera fé em qualquer forma de prognóstico. Contudo, naquela sucessão de doze cartas ela ouvira a leve voz da verdade, não exatamente uma verdade coerente, não uma mensagem tão clara quanto ela gostaria, mas um murmúrio que não podia ser ignorado.

O pequeno Bartholomew franziu o rosto enquanto dormia.

Sua mãe fez uma prece para ele.

Ela também pediu perdão pela rudeza com que tratara Nicholas Deed. E pediu para ser poupada da visita do lacaio.

 

O DETETIVE MORTO, sorrindo ao luar, um par de moedas de prata reluzindo nas órbitas antes ocupadas por seus olhos.

Esta era a imagem que vagava pela imaginação turbulenta de Caim ao pular pela porta do motorista e girar nos calcanhares para confrontar o Studebaker, seu coração caindo como uma âncora.

Sua língua seca, boca desidratada e garganta em brasa pareciam cobertas de areia, e sua voz jazia enterrada morta lá embaixo.

Mesmo quando não viu nenhum policial morto-vivo, nenhum sorriso fantasmagórico, nenhuma moeda de prata no lugar dos olhos, Júnior não se sentiu imediatamente aliviado. Cautelosamente, circulou o carro, esperando encontrar o detetive acocorado e preparado para atacar.

Nada.

A lâmpada interna do carro se encontrava acesa, porque a porta do motorista estava aberta.

Ele não queria inclinar-se para dentro e espiar sobre o banco da frente. Ele não tinha nenhuma arma. Sentia-se desequilibrado, vulnerável.

Ainda cauteloso, aproximou-se da porta traseira, da janela. O corpo de Vanadium jazia no soalho do carro, embrulhado no cobertor.

Ele não ouvira o homem da lei levantar-se com intentos malévolos, conforme imaginara. O corpo havia simplesmente caído do banco traseiro para o chão durante a curva abrupta de 180 graus.

Por um instante, Júnior sentiu-se humilhado. Ele quis arrastar o detetive para fora do carro e pisotear o seu rosto irônico, morto.

Isso não seria um uso produtivo de seu tempo. Satisfatório, mas não prudente. Zedd nos ensina que o tempo é a coisa mais preciosa que possuímos, porque nascemos com muito pouco dele.

Júnior entrou mais uma vez no carro, bateu a porta e disse:

— Seu babaca quase careca, de cara chata e queixo duplo! Seu... seu coletor de vômitos!

Surpreendentemente, sentiu-se muito gratificado por colocar em palavras o seu insulto, ainda que Vanadium estivesse morto demais para escutá-lo.

— Sua aberração de pescoço gordo, nariz de batata, orelhas de abano, testa de macaco e marca de nascença na cara!

Isto era melhor do que fazer respirações lentas e profundas. Periodicamente, no trajeto até a casa de Vanadium, Júnior cuspiu uma torrente de insultos, pontuados com obscenidades.

Ele teve tempo para pensar em vários, porque dirigiu oito quilômetros abaixo do limite de velocidade. Não podia correr o risco de ser parado por uma violação de trânsito quando Thomas Vanadium, o fardo humano, estava morto e embrulhado no banco de trás.

Durante a semana anterior, Júnior fizera uma pesquisa discreta sobre os antecedentes do prestidigitador com distintivo. O tira era divorciado. Vivia sozinho, de modo que esta visita ousada não apresentava riscos.

Júnior estacionou na garagem para dois carros. Nenhum veículo ocupava o segundo espaço. Numa parede estava pendurado um conjunto impressionante de ferramentas de jardinagem. No canto havia uma bancada de jarros.

Num armário sobre a bancada, Júnior encontrou um par de luvas de jardinagem feitas de algodão. Vestiu-as, e elas serviram-lhe perfeitamente.

Ele teve dificuldade em visualizar o detetive cuidando de seu jardim durante os fins de semana. A não ser que houvesse corpos enterrados debaixo das rosas.

Usando a chave do detetive, entrou na casa.

Enquanto Júnior estivera hospitalizado, Vanadium revistara a sua casa, com e sem um mandado. Era agradável dar-lhe o troco.

Vanadium claramente passava muito tempo na cozinha; era o único aposento na casa que parecia confortável. Vários utensílios culinários. Panelas e frigideiras penduradas num suporte de teto. Uma cesta de cebolas, outra de tomates. Um grupo de garrafas com rótulos coloridos revelou-se uma coleção de azeites de oliva.

O detetive se julgava um mestre-cuca.

Outros aposentos eram mobiliados tão espartanamente quanto um monastério. De fato, a sala de jantar não continha absolutamente nada.

Um sofá e uma poltrona de braços proporcionavam os assentos na sala de estar. Não havia nenhuma mesinha de centro. Uma mesinha ao lado da cadeira. Uma estante abrigava uma boa aparelhagem de som e algumas centenas de discos.

Júnior examinou a coleção de música. O gosto do policial consistia em big bands e vocalistas da era do suingue.

Evidentemente, ou Sinatra era um entusiasmo que Victória e o detetive compartilhavam, ou a enfermeira pegara emprestado alguns dos discos do intérprete expressamente para fazer a atmosfera de seu jantar.

Este não era o momento para ponderar sobre a natureza do relacionamento entre a traiçoeira srta. Bressicr e Vanadium. Júnior tinha um rastro sangrento para cobrir, e seu tempo estava se esgotando.

Além disso, as possibilidades o repugnavam. O simples pensamento de uma mulher de aparência esplêndida como Victória submetendo-se a um homem grotesco como Vanadium teria arrepiado a sua alma, se ele tivesse uma.

O escritório tinha o tamanho de um banheiro. O espaço apertado mal dava para uma velha mesa de pinho, uma cadeira e um arquivo.

A mobília do quarto de dormir, barata e arranhada, podia ter sido comprada num brechó. Uma cama dupla e uma mesinha-de-cabeceira. Uma penteadeira pequena.

Como todo o resto da casa, o quarto estava impecavelmente limpo. O assoalho de madeira reluzia como se tivesse sido polido com a mão. Um lençol branco simples cobria a cama sem um vinco sequer, como se pertencesse a um soldado no quartel.

Não havia quinquilharias e lembranças em lugar nenhum da casa. Não havia nada pendurado nas paredes, com exceção de um calendário na cozinha.

Uma estatueta de bronze, fixada em madeira laqueada, sofria sobre a cama. Este crucifixo, contrastando fortemente com as paredes brancas, reforçava a impressão de uma economia monástica.

Segundo a visão de Júnior, esta não era a forma de uma pessoa normal viver. Esta era a casa de um solitário lunático, um homem perigosamente obsessivo.

Tendo sido um objeto da fixação de Thoni as Vanadium, Júnior sentia-se grato por ter sobrevivido. Sentiu um arrepio.

Um conjunto limitado de roupas não ocupava completamente o espaço disponível dentro do armário. No piso, sapatos dispostos de forma altamente organizada.

A prateleira superior do armário abrigava caixas e duas malas baratas, revestidas em vinil verde. Pegou as malas e colocou-as na cama.

Vanadium possuía tão poucas roupas que as malas tinham capacidade suficiente para acomodar o conteúdo do armário e da penteadeira.

Júnior jogou as roupas no chão e pela cama para criar a impressão de que o detetive fizera as malas com pressa. Depois de ser imprudente o bastante para atirar em Victória Bressler cinco vezes com seu revólver de serviço — talvez movido por ciúmes, ou talvez porque enlouquecera —, Vanadium ficaria frenético em fugir da justiça.

No banheiro, Júnior pegou um barbeador elétrico e itens de higiene. Colocou-os também nas malas.

Depois de colocar as duas bagagens no carro na garagem, retornou ao escritório. Sentou-se à mesa e examinou o conteúdo das gavetas, e então virou-se para o arquivo.

Não tinha certeza do que esperava encontrar. Talvez um envelope ou uma caixa com dinheiro, que um assassino em fuga certamente levaria consigo. A polícia ficaria desconfiada se descobrisse que o dinheiro fora deixado para trás. Talvez um talão de cheques.

 

Na primeira gaveta, ele descobriu uma caderneta de endereços. Logicamente, Vanadium a teria levado consigo, mesmo apressado depois de um assassinato. Assim, Júnior enfiou a caderneta no bolso do casaco do detetive.

Quando tinha praticamente acabado de revistar as gavetas da escrivaninha, o telefone tocou — não o sino estridente usual, mas um zumbido eletrônico baixo. Ele não tinha qualquer intenção de atender.

O segundo toque foi seguido por um clique, e então uma voz arrastada, familiar, disse:

"Olá. Aqui é Thomas Vanadium..."

Como uma cobra de brinquedo saltando de uma caixa de surpresas, Júnior saltou da cadeira, quase derrubando-a. "... mas não estou no momento."

Virando-se para a porta aberta, ele viu que o detetive morto era fiel à sua palavra: ele não estava lá.

A voz continuou, emitida por um dispositivo sobre a escrivaninha, ao lado do telefone.

"Porfavor, não desligue. Esta é uma secretária eletrônica. Deixe uma mensagem depois de ouvir o sinal, e telefonarei de volta mais tarde."

A palavra Ansaphone estava gravada no estojo de plástico preto do aparelho.

O sinal soou, conforme o prometido, e uma voz de homem falou da caixa:

"Aqui é o Max. Você é vidente. Descobri tudo no hospital daqui. A coitada da menina teve uma hemorragia cerebral, gerada por uma crise de hipertensão causada por... eclampsia, acho que o nome é esse. O bebê sobreviveu. Liga pra mim, tá?"

Max desligou. A secretária eletrônica fez uma série de barulhinhos de robô e então ficou silenciosa. Incrível.

Júnior sentiu-se tentado a mexer nos controles. Talvez houvesse outras mensagens gravadas na máquina. Ouvi-las seria delicioso — mesmo se cada uma fosse tão desprovida de sentido para ele quanto a de Max —, algo como folhear o diário de um estranho.

Não encontrando nada mais de interesse no escritório, considerou vasculhar o restante da casa.

Entretanto, o tempo urgia; ele tinha muito a fazer antes que amanhecesse.

Deixe os lampiões acesos, a porta destrancada. Um assassino, desesperado por desaparecer enquanto a vítima permanecesse sem ser descoberta, não ficaria preocupado com o custo da eletricidade ou com proteção contra assaltos.

Júnior ligou o carro e saiu, ousadamente. Zedd aconselhava ousadia.

Como continuasse imaginando os sons furtivos de um assassino morto levantando-se vingativo às suas costas, Júnior ligou o rádio. Sintonizou numa estação apresentando a contagem regressiva das quarenta mais.

O locutor anunciou a canção de número quatro da semana: "She's a Woman", dos Beatles. Os Fab Four encheram o Studebaker com música.

Todo mundo achava que os reis do iê-iê-iê eram a melhor coisa de todos os tempos — de todos os tempos —, mas para Júnior sua música era apenas boazinha. Ele não se sentia empolgado a cantar junto com eles, nem achava suas canções particularmente apropriadas para dançar.

Ele era um cara patriótico, e preferia rock americano à variedade inglesa. Ele não tinha nada contra os ingleses, nenhum preconceito contra pessoas de qualquer nacionalidade. Não obstante, acreditava que as quarenta mais nos Estados Unidos deviam apresentar exclusivamente música norte-americana.

Atravessando Spruce Hills com John, Paul George, Ringo e o morto Thomas, Júnior seguiu de volta para a casa de Victória, onde Sinatra não estava cantando mais.

O número três nas paradas era "Mr. Lonely", de Bobby Vinton, um talento americano de Canonsburg, Pensilvânia. Júnior cantou com ele.

Ele passou pela residência de Bressler sem reduzir a velocidade.

A esta altura Vinton tinha terminado, os comerciais haviam passado e o segundo lugar nas paradas começou: "Come See About Me", pelas Supremes.

Mais música norte-americana de qualidade. As Supremes eram negras, claro, mas Júnior não era racista. Ele até já tinha feito amor apaixonado com uma garota negra.

Harmonizando com Diana Ross, Mary Wilson e Florence Ballard, ele dirigiu até a pedreira a cinco quilômetros depois do limite da cidade.

Uma nova pedreira, operada pela mesma companhia, jazia um quilômetro e meio ao norte. Esta era a velha, abandonada após décadas de cortes em suas rochas.

Anos antes, um rio fora desviado para encher a escavação vasta. Eles tinham colocado peixes ali, principalmente trutas.

Como local de recreação, o Lago da Pedreira podia ser considerado apenas um sucesso parcial. Durante a operação de mineração, as árvores ao redor da escavação tinham sido cortadas, de modo que não havia sombra nas margens do lago durante os dias quentes de verão. Além disso, ao redor do lago havia placas avisando Atenção: águas imediatamente profundas. Nos locais em que o lago encontrava a terra, o fundo jazia a mais de trinta metros de profundidade.

Os Beatles começaram a cantar o primeiro lugar nas paradas, "I Feel Fine", enquanto Júnior saía da rodovia municipal e seguia a estrada do lago para noroeste em torno da água negra como óleo. Eles tinham duas músicas americanas entre as cinco mais. Revoltado, Júnior desligou o rádio.

Em abril último, os rapazes de Liverpool tinham ocupado todas as cinco posições das cinco mais. Os americanos autênticos, como os Beach Boys e os Four Seasons, precisaram contentar-se com números mais baixos. Isso fazia você pensar em quem havia realmente vencido a Guerra da Independência.

Ninguém nos círculos de Júnior parecia importar-se com a crise na música americana. Ele supunha que era mais sensível a injustiças do que a maioria das pessoas.

Nesta noite fria de janeiro, não havia campistas ou pescadores em torno do lago. Como as árvores ficavam longe demais, a praia e a poça negra que ela circulava parecia tão desolada quanto a paisagem de um mundo sem atmosfera.

Longe demais de Spruce Hills para ser um ponto de encontro de casais adolescentes, o Lago da Pedreira também repelia os jovens amantes devido à sua reputação de território assombrado. Durante cinco décadas, quatro operários tinham morrido em acidentes de mineração. O folclore da região incluía histórias de fantasmas vagando nas profundezas da escavação antes dela ser inundada — e subseqüentemente a margem, depois que o lago foi preenchido.

Júnior pretendia acrescentar mais um fantasma parrudo ao grupo. Talvez numa noite de verão, dali a muitos anos, um pescador deitasse a luz de sua lanterna sobre um Vanadium semitransparente fornecendo entretenimento com uma moeda etérea.

Num local em que a água profunda encontrava a margem, Júnior saiu da estrada e seguiu até o lago. Estacionou a seis metros da água, de frente para o lago, e desligou os faróis e o motor.

Inclinando-se sobre o banco da frente, abaixou o vidro da janela de passageiros doze centímetros. Então abaixou igualmente a janela do motorista.

Limpou o volante e cada superfície que poderia ter tocado durante o passeio desde a casa de Victória até a casa do detetive, onde adquirira as luvas de jardinagem que ainda usava. Saiu do carro e, com a porta aberta, limpou a maçaneta externa.

Duvidava que o Studebaker viesse a ser encontrado algum dia, mas os homens de sucesso eram, sem exceção, aqueles que prestavam atenção aos detalhes.

Durante algum tempo ficou ao lado do carro, deixando seus olhos adaptarem-se à escuridão.

A noite prendia novamente a respiração, a brisa anterior agora confinada ao peito das trevas.

Convencido de que estava sozinho e que ninguém o observava, debruçou-se para dentro do carro e soltou o freio de mão.

A margem era inclinada para o lago. Ele fechou a porta e saiu do caminho enquanto o Studebaker avançava, ganhando velocidade.

Com um chapinhar notavelmente suave, o carro entrou na água. Flutuou por alguns instantes, borbulhando perto da margem, inclinado para a frente pelo peso do motor. Enquanto a água do lago entrava pelas fendas de ventilação no chassi, o veículo manteve-se estável... e então afundou rapidamente quando a água alcançou as duas janelas parcialmente abertas.

Esta gôndola construída em Detroit navegaria lépida para o rio Estige sem um gondoleiro de manto negro para impulsioná-la com uma vara.

No momento em que o teto do carro desapareceu debaixo da água, Júnior correu dali, refazendo a pé a rota pela qual havia dirigido. Ele não precisava voltar até a casa de Vanadium, apenas até a casa escurecida onde deixara Victória Bressler. Tinha um encontro com uma mulher morta.

 

SEM A MENOR VONTADE de praticar jardinagem, mas mesmo assim vestindo as luvas apropriadas, Júnior acendeu a luz da ante-sala, a luz da cozinha, e contornou a enfermeira abatida por um porrete de estanho e tiros de revólver, até o fogão, onde ligou o forno direito, no qual um assado começava a esfriar, e o forno esquerdo, no qual os pratos de jantar aguardavam para ser aquecidos. Ligou novamente uma chama debaixo da panela de água que estivera fervendo antes... e olhou faminto para a massa crua que Victória pesara e colocara de lado.

Se os efeitos de seu encontro com Vanadium não fossem tão sujos, Júnior teria parado para jantar antes de voltar para trabalhar aqui. A caminhada de volta desde o Lago da Pedreira levara quase duas horas, em parte porque ele se agachara atrás das árvores e arbustos sempre que ouvira algum veículo aproximar-se. Estava faminto. Porém, a despeito do quanto a comida fosse bem preparada, o ambiente era um fator significativo para desfrutar de qualquer refeição, e uma decoração emporcalhada com sangue não era, a seu ver, apropriada a um jantar civilizado.

Mais cedo, ele havia colocado uma vodca aberta na mesa, na frente de Victória. A enfermeira, não mais na cadeira, estava esparramada no chão como se tivesse esvaziado outra garrafa antes desta.

Júnior derramou metade da garrafa de vodca sobre o cadáver, molhou algumas outras partes da cozinha, e derramou o restante no tampo do fogão, onde escorreu até a boca acesa. Este não era um inflamável ideal, não tão eficaz quanto gasolina, mas enquanto ele punha a garrafa de lado, a bebida encontrava a chama.

Um fogo azul atravessou o tampo do fogão e seguiu as gotas de bebida sobre a superfície de metal esmaltado da frente do aparelho até chegar ao chão. O azul deflagrou para amarelo, e o amarelo escureceu quando a chama encontrou o cadáver.

Brincar com fogo era divertido quando você não precisava tentar ocultar o fato de que estava realizando um incêndio premeditado.

Sobre a mulher morta, a carteira de couro com a identidade de Vanadium pegou fogo. A identificação do detetive queimaria, mas as chances do distintivo derreter eram pequenas. A polícia também identificaria o revólver.

No chão, Júnior pegou a garrafa de vinho que por duas vezes recusara-se a quebrar. O seu Merlot da sorte.

Caminhou de costas até a porta do corredor, observando o fogo espalhar-se. Depois de se demorar até ter certeza de que a casa em breve seria uma pira funerária, ele finalmente avançou pelo corredor a passos largos até a porta da frente.

Sob uma lua declinando, correu discretamente por três quarteirões até o seu Suburban, estacionado numa rua paralela. Não encontrou qualquer tráfego, e no caminho despiu as luvas de jardinagem, descartando-as numa lixeira diante de uma casa em reforma.

Não houve uma vez sequer que ele tenha se virado para ver se o fogo tornara-se um brilho visível no céu. Os eventos na casa de Victória pertenciam ao passado. Aquilo tudo ficara para trás. Júnior era um homem com o pensamento no futuro.

A meio caminho de casa, ouviu sirenes e viu os faróis de veículos de emergência aproximando-se. Ele parou o Suburban no acostamento da estrada e observou dois caminhões de bombeiros passarem, seguidos por uma ambulância.

Sentia-se incrivelmente bem ao chegar em casa: calmo, orgulhoso de seu pensamento rápido e sua ação ousada, agradavelmente cansado. Ele não escolhera matar novamente; esta obrigação lhe havia sido empurrada pelo destino. Ainda assim provara que a ousadia que demonstrara na torre de incêndio, em vez de ser uma força temporária, era uma qualidade com raízes profundas.

Embora não nutrisse qualquer medo de ser apontado como suspeito do assassinato de Victória Bressler, ele pretendia deixar Spruce Hills nesta mesma noite. Nenhum futuro existia para ele naquela cidadezinha modorrenta. Um mundo maior o aguardava, merecia o direito de desfrutar de tudo que ele podia oferecer-lhe.

Telefonou para Kaitlin Hackachak, sua cunhada avara e monstruosa. Pediu-lhe que ela ficasse com as coisas de Naomi, com a mobília deles, e todas as posses pessoais que deixasse para trás. Embora ela tivesse sido premiada com um quarto de milhão no arranjo entre a família e o condado, Kaitlin estaria na casa ao raiar do dia se achasse que ganharia dez dólares vendendo tudo que havia dentro dela.

Júnior planejava fazer uma única mala, deixando a maioria de suas roupas. Ele tinha condições para refazer todo o seu vestuário.

No quarto, enquanto abria uma mala na cama, viu a moeda de 25 cents. Reluzente. Cara para cima. Sobre a mesinha-de-cabeceira.

Se Júnior tivesse a mente suficientemente fraca para sucumbir à loucura, este era o momento em que teria caído num abismo de insanidade. Ele ouviu um crepitar interno, sentiu um dilaceramento terrível em sua mente, mas se manteve inteiro apenas com o poder de sua força de vontade, lembrando de respirar lenta e profundamente.

Reuniu coragem suficiente para aproximar-se da mesinha. Sua mão tremia. Ele quase esperava que a moeda fosse ilusória, que seus dedos a atravessassem. Mas a moeda era real.

Quando ele segurou com força a sua sanidade, o bom senso acabou dizendo-lhe que a moeda devia ter sido deixada muito mais cedo nesta mesma noite, logo depois que ele saíra para a casa de Victória. Na verdade, apesar das novas fechaduras e travas, Vanadium devia ter parado aqui em seu caminho até a casa de Victória, sem saber que iria encontrar a sua morte na cozinha... e pelas mãos do homem a quem estava atormentando.

O medo de Júnior cedeu lugar a uma apreciação pela ironia nesta situação. Pouco a pouco, readquiriu a capacidade de sorrir, jogou a moeda no ar, pegou-a, e deixou-a cair no seu bolso.

Contudo, no instante em que o sorriso terminava de se curvar, uma coisa horrível aconteceu. A humilhação começou com um ronco alto em sua barriga.

Desde que lidara com Victória e o detetive, Júnior orgulhara-se do fato de que ele mantivera seu equilíbrio e, o mais importante, o seu almoço. Nenhuma crise emética nervosa aguda, como ele sofrera depois da morte da pobre Naômi. Na verdade, ele até sentira apetite.

Agora, problemas. Diferente do que vivenciara antes, mas igualmente poderosos e aterrorizantes. Ele não precisava regurgitar, mas tinha urgência em evacuar.

Sua sensibilidade excepcional continuava uma maldição. Fora mais afetado pelas mortes trágicas de Victória e Vanadium do que imaginara. Fora abalado profundamente.

Com um grito de alarme, correu até o banheiro e evacuou assim que se sentou. Pareceu ficar no trono por tempo suficiente para ter testemunhado a ascensão e queda de um império.

Mais tarde, fraco e abalado, quando estava fazendo as malas, foi novamente tomado pela urgência. Ficou estarrecido em descobrir que nada parecia permanecer em sua via intestinal.

Ele mantinha alguns exemplares populares da obra de Caesar Zedd no banheiro, para que o tempo passado na privada não fosse desperdiçado. Algumas das suas inspirações mais profundas sobre a condição humana e suas melhores idéias para o aprimoramento pessoal tinham acontecido neste lugar, onde as palavras luminosas de Zedd pareciam lançar uma luz ainda mais brilhante em sua mente.

Contudo, nesta ocasião, ele não teria se concentrado num livro mesmo se tivesse forças para segurá-lo. Os paroxismos que atormentavam suas entranhas também pareciam ter destruído sua capacidade de se concentrar.

Depois que acabou de guardar sua mala e três caixas de livros — a obra completa de Zedd e seleções do Clube do Livro — no Suburban, Júnior tinha corrido mais duas vezes ao banheiro. As pernas estavam trêmulas, e ele sentia-se oco, frágil, como se tivesse perdido mais do que era aparente, como se a substância essencial de si mesmo tivesse desaparecido.

A palavra diarréia era inadequada para descrever esta aflição. A despeito dos livros que lera para aperfeiçoar o seu vocabulário, Júnior não conseguia lembrar de nenhuma palavra suficientemente descritiva e poderosa para resumir sua angústia e o horror de sua provação.

O pânico se instaurou quando começou a se perguntar se esses espasmos intestinais iriam impedi-lo de deixar Spruce Hills. E se eles exigissem hospitalização?

Um policial com olhos abertos para evidências patológicas, e que estivesse ciente da crise emética nervosa aguda após a morte de Naômi, poderia imaginar uma conexão entre esta diarréia épica e o assassinato de Victória, e o desaparecimento de Vanadium. Essa era uma linha de especulação que ele não queria encorajar.

Precisava sair da cidade enquanto podia. Sua liberdade, sua felicidade, dependiam de uma saída rápida.

Durante os últimos dez dias, ele provara ser inteligente, ousado, com recursos internos excepcionais. Ele precisava de suas reservas de força e resolução agora, mais do que nunca. Ele já chegara longe demais, conquistara coisas demais, para ser derrubado pela biologia.

Ciente dos perigos da desidratação, bebeu uma garrafa de água e colocou duas garrafinhas de Gatorade no Suburban.

Suado, tremendo, com frio, sentindo os joelhos enfraquecidos, chorando de pena de si mesmo, Júnior estendeu um saco plástico de lixo sobre a poltrona do motorista. Entrou no Suburban, girou a chave na ignição, e gemeu quando as vibrações do motor ameaçaram desarranjar o seu intestino.

Com uma pontada muito leve de emoção, dirigiu para longe da casa que fora o seu ninho de amor com Naômi durante quatorze meses abençoados.

Apertou o volante com força com ambas as mãos, rangeu os dentes tão ferozmente que os músculos de sua mandíbula se contorceram, e se concentrou numa determinação teimosa em obter autocontrole. Respirações lentas e profundas. Pensamentos positivos.

A diarréia tinha acabado, terminado, era parte do passado. Há muito tempo ele tinha aprendido a jamais pensar no passado, jamais ficar preocupado demais com os problemas presentes, mas concentrar-se inteiramente no futuro. Ele era um homem do futuro.

Enquanto fazia o carro correr para o futuro, o passado alcançou-o na forma de espasmos intestinais, e depois que tinha dirigido por menos de cinco quilômetros, fez uma parada de emergência num posto de gasolina e, gemendo como um cão doente, correu para o banheiro.

Depois Júnior conseguiu dirigir por sete quilômetros antes de ser forçado a parar em outro posto, quando teve a sensação de que o sofrimento tinha acabado. Contudo, menos de dez minutos mais tarde, precisou recorrer a um ambiente mais rústico, aliviando-se num ajuntamento de arbustos ao longo da rodovia, onde seus gritos de dor assustaram pequenos animais, que fugiram ganindo.

Apenas cinqüenta quilômetros ao sul de Spruce Hills, ele finalmente admitiu que a respiração lenta e profunda, os pensamentos positivos, a auto-estima elevada e uma firme resolução não eram suficientes para dominar suas entranhas traiçoeiras. Precisava encontrar abrigo para a noite. Não se importava se o lugar tivesse piscina, cama de casal, ou um bufê maravilhoso no café da manhã. A única amenidade que importava era uma instalação sanitária.

O motel ordinário chamava-se Sleepie Tyme Inne, mas o atendente magro e grisalho não devia ser o proprietário, não parecendo o tipo de pessoa que se preocuparia em inventar um nome de motel com rima. A julgar por sua aparência, ele era um ex-nazista comandante de campo de concentração que, fugindo do serviço secreto israelense, abrigara-se no Brasil e agora estava se escondendo no Oregon.

Atormentado por cólicas e fraco demais para carregar sua bagagem, Júnior deixou a mala no Suburban. Levou para o quarto apenas as garrafas de Gatorade.

A noite que se seguiu poderia ter sido uma noite no Inferno... embora um Inferno no qual Satã servia bebidas balanceadas eletroliticamente.

 

MANHÃ DE SEGUNDA-FEIRA, 17 de janeiro. O advogado de Agnes, Vinnie Lincoln, chegou à casa com o testamento de Joey e outros documentos que requeriam atenção.

Rotundo de rosto e corpo, Vinnie não caminhava como os outros homens; parecia quicar suavemente para a frente, como se inflado com uma mistura de gases que incluíam hélio suficiente para fazê-lo flutuar, embora não o bastante para que corresse risco de desgarrar-se do solo e desaparecer ao sabor do vento como um balão de festa de aniversário. As faces lisas e os olhos animados emprestavam-lhe uma expressão infantil, mas ele era um advogado competente e astuto.

— Como está Jacó? — indagou Vinnie, hesitante diante da porta aberta.

— Não está aqui — respondeu Agnes.

— É exatamente como eu estava torcendo que ele estivesse.—Aliviado, seguiu Agnes até a sala de estar. — Entenda, Agnes, não tenho nada contra o Jacó, mas...

— Meu Deus, Vinnie, sei disso — assegurou, enquanto se abaixava para o berço e levantava Barty, que não estava muito maior que um saco de açúcar. Ela se sentou com o bebê numa cadeira de balanço.

— É só que... na última vez em que o vi, ele me cercou num canto e me contou uma história horrorosa, com detalhes escabrosos dos quais eu gostaria de ser poupado. Ele falou sobre um homem monstruoso que batia nas pessoas com um martelo até matá-las, bebia seu sangue e depois livrava-se dos cadáveres num tonel de ácido — concluiu com um arrepio.

— Esse deve ser John George Haigh — disse Agnes, checando a fralda de Barty antes de aninhá-lo ternamente na curva de seu braço.

Os olhos do advogado pareciam tão redondos quanto o seu rosto.

— Agnes, por favor, não me diga que você começou a compartilhar dos... entusiasmos... de Jacó?

— Não, não. Mas depois de tanto tempo com ele a gente acaba absorvendo alguns detalhes. Quando fala sobre um assunto que lhe interessa, Jacó é um orador fascinante.

— Ah, claro — concordou Vinnie. — Não fiquei entediado nem por um segundo.

— Sempre achei que Jacó teria dado um bom professor.

— Contanto que as crianças recebessem terapia depois de cada aula.

— Contanto, claro, que ele não tivesse essas obsessões. Extraindo documentos de sua valise, Vinnie disse:

— Bem, não tenho o direito de criticar ninguém. A comida é a minha obsessão. Olhe para mim, tão gordo que pareço estar sendo criado para o abate.

— Você não é gordo — objetou Agnes. — É arredondado.

— Sim, estou me arredondando tanto que vou acabar morrendo cedo — disse, quase alegremente. — E devo admitir que estou me divertindo.

— Você pode estar caminhando para uma sepultura prematura, Vinnie, mas o pobre Jacó foi assassinado na própria alma, e isso é infinitamente pior.

— "Assassinado na própria alma"... uma frase muito interessante.

— A esperança é o alimento da fé, o suporte da vida, não concorda? Aninhado nos braços da mãe, Barty olhou com adoração para ela. Ela continuou:

— Quando não nos permitimos nutrir esperanças, não nos permitimos possuir propósito. Sem propósito, sem significado, a vida é escura. Não temos luz dentro de nós e estamos apenas vivendo para morrer.

Com a mão pequenina, Barty tentou alcançar a da sua mãe. Ela lhe ofereceu o dedo indicador, que o bebê segurou tenazmente.

A despeito de seus outros sucessos ou fracassos como mãe, Agnes tinha o firme propósito de garantir que Barty jamais carecesse de esperança, que significado e propósito corressem através do menino com a mesma constância que o sangue.

— Sei que Esaú e Jacó têm sido um fardo — disse Vinnie. — Você sendo responsável por eles...

— Muito pelo contrário — disse Agnes. Ela sorriu para Barty, que balançou o seu dedo. — Eles sempre foram a minha salvação. Não sei o que teria feito sem eles.

— Acho que está sendo sincera.

— Sempre sou.

— Bem, com o correr dos anos, eles iam se tornar ao menos um problema financeiro. Assim, acho que trago uma pequena surpresa.

Quando levantou os olhos, Agnes viu o advogado com as mãos cheias de documentos.

— Surpresa? Sei o que está no testamento de Joey.

A casa era dela, livre de qualquer hipoteca. Havia duas cadernetas de poupança nas quais Joey tinha feito depósitos semanais durante os nove anos de casamento.

— Seguro de vida — disse Vinnie.

— Sei disso. Uma apólice de cinqüenta mil dólares.

Ela calculava que poderia ficar em casa, dedicando-se a Barty, durante talvez três anos antes de precisar procurar emprego.

— Além dessa apólice, há outra — disse Vinnie. — Ele encheu os pulmões, hesitou, e então exalou o ar e a quantia com um tremor: — Setecentos e cinqüenta mil. Três quartos de um milhão de dólares.

Um pouco de descrença insulou-a contra a surpresa imediata. Ela balançou a cabeça.

— Isso não é possível.

— Era um seguro de prêmio completo em dinheiro, não uma pensão vitalícia.

— Eu quero dizer, Joey não teria comprado isso sem...

— Ele sabia como você ia se sentir tendo um seguro de vida muito alto. Assim, ele não quis contar a você.

A cadeira de balanço parou de guinchar embaixo dela. Ela ouviu a sinceridade na voz de Vinnie, e à medida que sua descrença se dissolvia, ela ficou chocada, imóvel.

— Minha pequena superstição — sussurrou Agnes.

Sob outras circunstâncias, Agnes ficaria ruborizada, mas agora seu medo aparentemente irracional de um seguro de vida muito alto havia se justificado.

— Joey, afinal de contas, era um vendedor de seguros — lembrou-lhe Vinnie. — Ele não ia esquecer de providenciar para deixar a sua família bem.

Agnes sempre acreditara que um seguro de vida excessivo era uma tentação para o destino.

— Uma apólice razoável, sim, tudo bem. Mas uma apólice grande... é como apostar com a morte.

— Agnes, isto é apenas um planejamento prudente.

— Eu acredito em apostar na vida.

— Com este dinheiro, você não terá de diminuir o número de tortas que dá... e todas as outras coisas.

Com "todas as outras coisas" ele se referia aos mantimentos que ela e Joey costumavam enviar junto com as tortas, um ocasional pagamento de hipoteca que eles faziam por alguém que estava numa maré baixa de sorte, e outras filantropias discretas.

— Aggie, encare desta forma: todas as tortas, todas as coisas que você faz... são apostas na vida. E agora você acaba de receber a grande bênção de ser capaz de fazer apostas mais altas.

O mesmo pensamento ocorrera a ela, um consolo que poderia possibilitar a aceitação dessas riquezas. Ainda assim, continuava petrificada pelo pensamento de, em decorrência de uma morte, ter recebido uma quantidade de dinheiro capaz de mudar sua vida.

Ao olhar para Barty, Agnes viu o fantasma de Joey no rosto do bebê, e embora ela quase acreditasse que seu marido estaria vivo agora se algum dia tivesse tentado a morte ao colocar um preço tão alto por sua vida, ela não conseguia encontrar em seu coração nenhuma raiva dele. Ela devia aceitar esta generosidade final de Joey com gratidão... ainda que também sem entusiasmo.

— Muito bem — disse Agnes, e enquanto expressava sua aceitação, foi varada por um medo repentino cuja causa não conseguiu identificar prontamente.

— E há mais — disse Vinnie Lincoln, rotundo como Papai Noel, e com o rosto corado pelo prazer de poder entregar esses presentes. — A apólice continha uma cláusula de dupla indenização em caso de morte por acidente. O prêmio completo, sem impostos, é de um milhão e meio.

Uma causa agora aparente, o medo explicado, Agnes apertou mais o bebê contra o corpo. Tão novo no mundo, ele já parecia escapar dela, capturado pelo turbilhão de um destino exigente.

O ás de ouros. Quatro em sucessão. Ás, ás, ás, ás.

A predição da sorte, que ela vinha se esforçando para considerar um jogo sem conseqüências, estava se tornando verdade.

Segundo as cartas, Barty seria rico não apenas financeiramente, mas também em talento, espírito, intelecto. Rico em coragem e honra, conforme Maria prometera. Com uma riqueza de bom senso, sabedoria e sorte.

Ele iria precisar da coragem e da sorte.

— Alguma coisa errada, Aggie? — perguntou Vinnie.

Ela não podia explicar sua ansiedade a ele, porque ele acreditava na supremacia das leis, na justiça que devia ser realizada nesta vida, numa realidade comparativamente simples. Ele não compreenderia a realidade gloriosa, assustadora, confortadora, estranha e profundamente complexa que Agnes percebia às vezes — em geral periféricamente, ocasionalmente de forma intelectual, mas quase sempre com o seu coração. Este era um mundo no qual o efeito poderia vir antes da causa, no qual o que parecia coincidência era, na verdade, meramente a parte visível de um padrão bem maior que não podia ser visto por inteiro.

Se o ás de ouros, o quarteto, precisava ser levado a sério, então por que não o resto da lei?

Se o pagamento da seguradora não foi mera coincidência, mas a riqueza que havia sido predita pelas cartas, então quanto tempo demoraria para o lacaio chegar? Anos? Meses? Dias?

— Você está com cara de quem viu um fantasma — disse Vinnie.

Agnes queria que o problema fosse tão simples quanto um espírito inquieto, gemendo e arrastando suas correntes, como o Marley, de Dickens, aparecendo para Ebenézer Scrooge na véspera do Natal.

 

O PODER DO VELHO DO SONO não foi suficiente para lançar um feitiço de sonolência em Júnior, que passou a noite inteira dando descargas suficientes para esvaziar um reservatório.

Ao amanhecer, quando os paroxismos intestinais finalmente passaram, este novo homem, este aventureiro ousado, sentia-se achatado e vazio como um animalzinho esmagado na estrada.

Afinal adormecendo, teve sonhos tensos de estar num banheiro público, levado até ali pela força da necessidade, apenas para descobrir que cada cabine estava ocupada por uma pessoa que ele matara, todas vingativamente determinadas a negar-lhe uma chance de se aliviar dignamente.

Acordou ao meio-dia, olhos pesados com remelas de sono. Sentia-se muito mal, mas mantinha o autocontrole e forte o bastante para pegar sua mala no carro, o que fora incapaz de fazer ao chegar.

Lá fora, descobriu que algum criminoso havia arrombado seu Suburban durante a noite. A mala e as seleções do Clube do Livro tinham desaparecido. O filho da puta tinha até afanado a caixa de lenços de papel, o chiclete e as pastilhas no porta-luvas.

Incrivelmente, o bandido deixara os pertences mais valiosos: a coleção de primeiras edições em capa dura da obra completa de Caesar Zedd. A caixa estava aberta, seu conteúdo tendo sido explorado às pressas, mas nem um único volume havia desaparecido.

Felizmente, ele não guardara nem dinheiro nem seu talão de cheques na mala. Com Zedd intacto, suas perdas eram toleráveis.

No escritório do motel, Júnior pagou adiantado por outra noite. Sua preferência por acomodações não incluía tapetes empoeirados, mobílias queimadas por brasas de cigarro e baratas correndo no escuro, mas embora estivesse se sentindo melhor, ele estava cansado e trêmulo demais para dirigir.

O velho nazista fugitivo tinha sido substituído por uma mulher com cabelos louros mal cortados, rosto bruto e braços que desanimariam Charles Atlas a desafiá-la. Ela trocou uma nota de cinco dólares em moedas para as máquinas automáticas e rosnou para ele uma única vez, num inglês de sotaque estranho.

Júnior estava morto de fome, mas não confiava o bastante nas suas tripas para arriscar jantar num restaurante. A aflição parecia ter passado, mas poderia retornar quando tivesse novamente alimentos em seu organismo.

Comprou sanduíches de bolachas cracker, alguns recheados com queijo e outros com manteiga de amendoim, barras de chocolate, amendoins torrados, e Coca-Cola. Embora esta fosse uma refeição nada saudável, queijo, manteiga de amendoim e chocolate compartilhavam uma virtude: eram alimentos que prendiam os intestinos.

Em seu quarto, acomodou-se na cama com seus lanches constipadores e o catálogo telefônico do condado. Como ele tinha empacotado o catálogo junto com a coleção de Zedd, o ladrão não o levara.

Ele já tinha checado 24 mil números de telefone, não encontrando nenhum Bartholomew, colocando marcas vermelhas ao lado dos nomes com a inicial B no lugar do primeiro nome. Uma tira de papel amarelo marcava o lugar em que ele estava.

Abrindo o catálogo de acordo com o marcador, encontrou um cartão enfiado entre as páginas. Um curinga de baralho, com BARTHOLOMEW em letras de imprensa vermelhas.

Este não era o mesmo que ele encontrara em sua mesinha-de-cabeceira, debaixo de duas moedas de dez e uma de cinco centavos de dólar, na noite seguinte ao funeral de Naomi. Ele tinha rasgado aquele e o jogado fora.

Não havia mistério nenhum aqui. Nenhum motivo para pular até o teto e ficar grudado ali de cabeça para baixo, como um gato de desenho animado.

Evidentemente, na noite anterior, antes de comparecer ao jantar com Victória, quando entrara ilegalmente na casa de Júnior para colocar outra moeda de 25 cents na mesinha-de-cabeceira, o detetive vira o catálogo aberto na mesa da cozinha. Deduzindo o significado das marcas vermelhas, ele inseriu esta carta e fechou o catálogo: mais um pequeno ataque na guerra psicológica que ele estava travando.

Júnior cometera um erro ao esmagar o castiçal de estanho no rosto de Vanadium depois que o tira já estava inconsciente. Ele devia ter amarrado o filho da puta e tentado reavivá-lo para um interrogatório.

Aplicando dor suficiente, ele poderia obter colaboração até de Vanadium. O detetive dissera que ouvira Júnior repetir Bartholomew com medo enquanto dormia, o que Júnior acreditava ser verdade, porque o nome realmente parecia dizer-lhe alguma coisa; contudo, não tinha certeza se acreditava na alegação do policial em ignorar a identidade de sua nêmesis.

Agora era tarde demais para um interrogatório, com Vanadium golpeado até alcançar o sono eterno e repousando debaixo de muitas braças de água fria.

Mas... ah, o peso do castiçal em suas mãos, o arco perfeito que delineara, o som que fizera em contato com a cabeça do policial, tinham sido tão imensamente satisfatórios quanto dar a tacada decisiva que ganharia o campeonato de beisebol.

Mastigando uma barra de chocolate com amêndoas, Júnior voltou para o catálogo telefônico, sem nenhuma escolha além de encontrar Bartholomew do jeito difícil.

 

NO DECORRER DESTA segunda-feira, 17 de janeiro, este dia marcante, quando o final de uma coisa é o começo de outra.

Debaixo do céu sombrio de um fim de tarde, nas colinas castigadas pelo inverno, a perua amarela e branca era uma flecha brilhante, disparada não do arco de um caçador, mas do arco de um samaritano.

Esaú dirigia, feliz em poder ajudar Agnes. Ainda estava mais feliz por não precisar entregar as tortas sozinho.

Ele não precisaria torturar-se em busca de conversas agradáveis para tecer com as pessoas a quem visitasse. Agnes era a inventora da conversa agradável.

No banco do passageiro, Barty estava aninhado nos braços da mãe. De vez em quando o menino soltava um gritinho ou gerava algum som molhado com a boca.

Até agora, Esaú não vira o menino chorar ou mesmo choramingar uma vez sequer.

Barty usava pijamas de tamanhos de elfo, tricotados em lã azul, completos com pés, laços brancos na gola e nos punhos, e um capuz igualmente branco. Estava coberto por um lençol branco decorado com coelhinhos azuis e amarelos.

O bebê tinha feito um sucesso monstruoso nas primeiras quatro paradas. Sua presença brilhante e sorridente era uma ponte que ajudava as pessoas a atravessar as águas sombrias da morte de Joey.

Esaú teria julgado este um dia perfeito... não fosse esse clima de terremoto. Estava convencido de que o Grandão iria levar as cidades costeiras à ruína antes do crepúsculo.

Este era um clima de terremoto diferente daquele de dez dias atrás, quando ele entregara as tortas sozinho. Naquele dia: céu azul, calor fora de época, umidade baixa. Hoje: nuvens cinzentas baixas, ar frio, umidade alta.

Um dos aspectos mais enervantes da vida no sul da Califórnia era que havia muitas variedades de clima de terremoto. Na maior parte do tempo você levantava da cama, checava o céu no barómetro e percebia com desânimo que as condições eram indicativas de catástrofe.

Com a terra ainda tenuemente estável debaixo deles, chegaram ao seu primeiro destino, um endereço novo na lista de benfeitorias de Agnes.

Eles estavam nas colinas do leste, a um quilômetro e meio da casa de Jolene e Bill Klefton, onde dez dias antes Esaú entregara a torta de amoras junto com os detalhes sinistros do terremoto de Tóquio-Yokohama de 1923.

Esta casa era parecida com a dos Kleftons. Embora fosse de alvenaria em vez de madeira, ela não via há muito tempo uma boa mão de tinta. Uma rachadura numa das janelas da frente fora selada com fita adesiva.

Agnes acrescentara esta parada em sua rota a pedido do reverendo Tom Collins, o ministro batista local cujos pais deram-lhe, sem querer, o nome de um coquetel. Ela era amiga de todos os sacerdotes de Bright Beach, e suas entregas não favoreciam nenhum credo.

Esaú levava a torta de pêra com passas, e Agnes carregou Barty através do jardim bem cuidado até a porta da frente. O puxão de uma cordinha acionou sinos que tocaram as dez primeiras notas de "That Old Black Magic", que eles escutaram distintamente através do vidro na porta.

Esta casa humilde não ficava onde se esperasse ouvir um sino feito sob encomenda — ou mesmo qualquer tipo de campainha, considerando que batidas na madeira eram a forma mais barata possível de anunciar uma visita.

Esaú olhou para Agnes e disse, tenso:

— Estranho.

— Não. Encantador — discordou Agnes. — Deve haver um significado. Tudo possui um significado, meu bem.

Um negro idoso atendeu à porta. Seus cabelos eram de um branco puro que, em contraste com sua pele escura como ameixa, parecia reluzir como uma nuvem nimbo sobre sua cabeça. Com seu sorriso igualmente radioso, suas feições gentis, e seus olhos negros hipnóticos, ele parecia ter saído de um filme sobre um músico de jazz que, tendo morrido, voltara à Terra para ser o anjo da guarda de alguém.

— Sr. Obadiah? — disse Agnes. — Obadiah Sepharad?

Olhando para a torta gordinha nas mãos de Esaú, o velho respondeu a Agnes num tom musical:

— Você deve ser a moça de quem o reverendo Collins falou.

A voz reforçou a imagem que Esaú fazia de um jazzista celestial. Voltando sua atenção para Barty, Obadiah abriu um sorriso ainda maior, revelando um dente superior de ouro.

— Tem uma coisa aqui mais doce do que essa torta apetitosa. Qual é o nome da criança?

— Bartholomew — respondeu Agnes.

— Bem, claro que é.

Esaú observou Agnes conversar animadamente com o seu anfitrião — indo de senhor Obadiah para apenas Obadiah enquanto eles entravam na sala de estar, a torta era entregue e aceita, e o café oferecido e servido. Ficou impressionado em ver os dois formarem uma amizade no tempo em que Esaú levaria para pensar em alguma coisa interessante para dizer sobre o furacão de Galveston em 1900, no qual seis mil pessoas haviam morrido.

Enquanto Obadiah se sentava numa poltrona de braços puída, ele disse a Esaú:

— Filho, eu não te conheço de algum lugar?

Tendo se acomodado no sofá com Agnes e Barty, preparado para servir confortavelmente no papel de observador silencioso, Esaú ficou alarmado em subitamente tornar-se assunto da conversa. Também ficou alarmado em ser chamado de "filho", porque, em seus 36 anos, a única pessoa que o chamara assim fora o seu pai, morto há uma década e ainda um terror nos sonhos de Esaú.

Balançando a cabeça, a xícara de café tilintando contra o pires, Esaú respondeu:

— N-não, não senhor. Acho que nunca nos encontramos até agora.

— Talvez. Mas você me parece familiar.

— Tenho um desses rostos tão comuns que você vê em qualquer lugar — justificou Esaú e decidiu contar a história do Tornado Triestadual de 1925.

Talvez sua irmã tenha intuído o que estava para dizer, porque não o deixou começar.

De algum modo, Agnes sabia que, em sua juventude, Obadiah havia sido mágico de palco. Com muito tato, ela trouxe outro assunto à baila.

A magia profissional não era um campo no qual muitos negros conseguiam encontrar a estrada para o sucesso. Obadiah pertencia a um tipo raro.

A tradição musical era profundamente enraizada na comunidade negra. Não existia nenhuma tradição similar na música.

— Talvez não quiséssemos ser chamados de bruxos e dar mais uma desculpa para os racistas nos enforcarem — disse Obadiah com um sorriso.

Um pianista ou um saxofonista podia seguir um longo caminho contando apenas com seu talento e disposição em aprender sozinho, mas um candidato a mágico de palco precisava de um mentor para ter acesso aos segredos mais protegidos da ilusão e dominar as técnicas do ilusionismo de nível avançado. Numa profissão praticada quase exclusivamente por homens brancos, um rapaz negro precisava buscar um mentor, especialmente em 1922, quando Obadiah, então com apenas 21 anos, sonhava tornar-se o novo Houdini.

Agora Obadiah fez aparecer um maço de cartas de baralho como se o tivesse tirado do bolso secreto de um casaco invisível.

— Quer ver uma coisinha?

— Sim, por favor — disse Agnes com deleite evidente. Obadiah jogou o maço de cartas para Esaú, dando-lhe um susto.

— Filho, você terá de me ajudar. Não tenho mais precisão nos dedos. Ele ergueu as mãos enrugadas.

Esaú notara-as antes. Agora viu que estavam em condições piores do que imaginara. Nós inchados, dedos não mais alinhados em ângulos naturais uns aos outros. Talvez Obadiah sofresse de artrite reumatóide, como Bill Klefton, embora de uma variedade menos grave.

— Por favor, tire as cartas do baralho e deite-as na mesinha de café — comandou Obadiah.

Esaú fez como ele mandou. E quando lhe foi requerido, cortou o maço em dois bolos aproximadamente iguais.

— Embaralhe uma vez — instruiu o mágico. Esaú embaralhou.

Inclinando-se à frente em sua poltrona de braços, os cabelos brancos radiantes como as asas de um querubim, Obadiah gesticulou uma mão contorcida sobre o baralho, nunca a mais de vinte e cinco centímetros das cartas.

— Agora espalhe as cartas em leque sobre a mesa, com os naipes para baixo. Esaú obedeceu, e no arco dos padrões de bicicletas vermelhas uma carta revelou-se branca demais no canto, porque era a única virada com o naipe para cima.

— Talvez você queira dar uma olhada — sugeriu Obadiah.

Puxando a carta, Esaú viu que era um ás de ouros — o que era notável, à luz da sessão de adivinhação de Maria Gonzalez na noite de sexta passada. Contudo, ele ficou mais estarrecido com o nome escrito em tinta negra diagonalmente sobre a face da carta: BARTHOLOMEW.

O arfar súbito de Agnes fez Esaú levantar os olhos do nome de seu sobrinho. Estava pálida, olhos assombrados como mansões antigas.

 

Com Bright Beach assolada por uma gripe horrorosa e uma variedade incontável de resfriados, os negócios estavam animados nesta manhã na Farmácia Damascus.

Os clientes estavam mal-humorados, a maioria resmungando sobre suas mazelas. Outros reclamavam sobre o tempo horrível, o número crescente de jovens zunindo pelas calçadas naqueles skates que tinham se tornado uma coqueluche entre crianças e adolescentes, os aumentos recentes dos impostos e o salário astronômico de 427 mil dólares que os New York Jets pagariam anualmente a Joe Namath para jogar futebol americano, o que alguns viam como um sinal de que o país estava perdendo a noção dos gastos e indo para o Inferno.

Paul Damascus manteve-se atarefado, atendendo receitas, até as duas e meia da tarde, quando finalmente conseguiu fazer uma pausa para o almoço.

Costumava almoçar sozinho no seu escritório. O aposento era do tamanho de um elevador, mas obviamente não subia ou descia. Contudo ia para os lados, no sentido de que ali dentro Paul era transportado para terras de aventuras maravilhosas, -i

Uma estante do chão ao teto estava entupida com pulp magazines, as revistas de contos e novelas em papel vagabundo publicadas durante as décadas de 20, 30 e 40, antes de serem suplantadas pelos livros de bolso. The All-Story, Mammoth Adventure, Nickel Western, The Black Mask, Detective Fiction Weekly, Spicy Mystery, Weird Tales, Amazing Stories, Astounding Stories, The Shadow, Doe Savage, G-8 and His Battle Aces, Mysterious Wu Fang...

Era apenas uma fração da coleção de Paul. As estantes de sua casa estavam entupidas com milhares de outros exemplares.

As capas das revistas eram coloridas, chocantes, plenas com as sugestões de violência e a sensualidade que tinham marcado uma época mais inocente. Quase todos os dias ele lia uma história enquanto comia as duas frutas que eram o seu almoço, mas às vezes se perdia numa ilustração particularmente vívida, sonhando acordado com lugares distantes e aventuras extraordinárias.

De fato, mesmo a fragrância distinta do papel de polpa de árvore, amarelado com a idade, era suficiente para conduzi-lo à fantasia.

Com sua combinação impressionante de compleição mediterrânea e cabelos ruivos, traços bonitos e físico invejável, Paul tinha a aparência exótica de um herói dos pulp magazines. Em particular, ele gostava de imaginar que poderia passar por um irmão de Doe Savage.

Doe Savage era um de seus favoritos. O grande combatente do crime. Gênio e atleta.

Nesta manhã de segunda-feira, ele queria o escapismo e o conforto de meia hora de aventuras de ficção. Mas decidiu que devia finalmente compor a carta que vinha adiando escrever há pelo menos dez dias.

Depois de cortar uma maçã com uma faca Paul pegou uma folha de papel de carta na gaveta e abriu a tampa de uma esferográfica. Sua caligrafia era antiquada e precisa. Ele escreveu:

Caro reverendo White...

Ele parou, incerto se deveria continuar. Não estava acostumado a escrever cartas para estranhos absolutos.

Finalmente, começou: Saudações neste dia marcante. Escrevo-lhe a respeito de uma mulher notável, Agnes Lampion, cuja vida o senhor tocou sem saber, e cuja história pode lhe interessar.

 

EMBORA OUTROS PUDESSEM ver magia neste mundo, Esaú encantava-se apenas com o mecanismo: a grande máquina destrutiva da natureza moendo e moendo até transformar tudo em pó. Ainda assim, ele se viu repentinamente assombrado ao ver o ás com o nome de seu sobrinho.

Durante a preparação das cartas, Barty adormecera nos braços da mãe, mas com a revelação de seu nome no ás, ele acordara de novo, talvez porque, com sua cabeça repousando no busto da mãe, tenha sido alarmado pelo aceleramento súbito do coração de Agnes.

— Como se faz isso? — perguntou Agnes a Obadiah.

O velho assumiu a expressão solene e sábia de um guardião de mistérios, uma esfinge sem ornamento e juba.

— Minha querida, se eu lhe contar vai deixar de ser mágica. É apenas um truque.

— Mas você não entende. — Ela recontou a extraordinária seqüência de ases durante a predição da sorte na noite de sexta.

Do rosto de esfinge, Obadiah conjurouum sorriso que levantou a ponta de seu bigode branco quando virou a cabeça para olhar para Esaú.

— Ah, faz muito tempo... — murmurou, como se estivesse falando com seus botões. — Faz muito tempo, mas agora eu lembro.

Ele piscou para Esaú.

A piscadela surpreendeu e intrigou Esaú. Estranhamente, ele lembrou do olho misterioso, desincorporado e queimais piscava, flutuando sobre a pirâmide nas costas de qualquer nota de um dólar.

Ao relatar a leitura da sorte, Agnes não contou ao mágico sobre os quatro valetes de espadas, apenas sobre os ases de ouro e copas. Ela jamais deixava que suas preocupações aflorassem à vista de todos; e embora na sexta-feira tenha feito uma piada sobre a aparição do quarto valete, Esaú soube que aquilo a havia deixado profundamente perturbada.

Ou Obadiah intuiu o medo de Agnes ou foi motivado por sua gentileza em revelar o seu método, afinal de contas.

— Fico embaraçado em dizer que o que vocês viram não foi realmente um trabalho de mágico. Foi fraude pura. Escolhi o ás de ouro exatamente por representar a fortuna na predição da sorte, de modo que é uma carta positiva à qual as pessoas respondem bem. O ás com o nome do seu filho foi preparado antecipadamente, inserido com a face para cima no fundo do baralho, de modo que não seria revelado por um corte no meio.

— Mas você não sabia o nome do meu Barty quando chegamos aqui.

— Ah, eu sabia. Quando o reverendo Collins me ligou, contou tudo sobre a senhora e Bartholomew. Quando recebi vocês e perguntei o nome do menino, eu já sabia qual era, e estava apenas preparando este truquezinho.

Agnes sorriu.

— Inteligente.

Sorrindo, Obadiah contradisse Agnes:

— Inteligente, não. Rude. Antes que minhas mãos ficassem contorcidas deste jeito, eu teria maravilhado vocês.

Em sua juventude, ele tinha se apresentado primeiro em clubes noturnos de negros e em teatros como o Apollo, do Harlem. Durante a Segunda Guerra Mundial, havia integrado uma parte da USO dedicada a entreter soldados por todo o Pacífico, mais tarde na África do Norte e depois do Dia D, na Europa.

— Depois da guerra, durante algum tempo, consegui continuar me apresentando para platéias gerais. As coisas estavam mudando... racialmente. Mas eu também estava envelhecendo, e o ramo do entretenimento sempre está procurando por pessoas jovens, novas. Assim, jamais consegui estourar na minha área. Deus, nunca obtive nem um sucesso mediano. E em meados dos anos cinqüenta o meu agente tinha cada vez mais dificuldade em conseguir trabalho em bons clubes e datas.

Além de entregar uma torta de pêra com mel, Agnes viera oferecer um ano de trabalho a Obadiah Sepharad — não realizando mágicas, mas falando sobre elas.

Graças aos esforços de Agnes, a biblioteca pública de Bright Beach estava realizando um projeto ambicioso de história oral financiado por fundações particulares e pelo festival anual do morango. Os aposentados locais estavam sendo arregimentados para registrar as histórias de suas vidas, de modo que suas experiências, idéias e conhecimentos não se perdessem para as futuras gerações.

Não incidentalmente, o projeto servia como um veículo para que alguns cidadãos idosos, em crise financeira, recebessem dinheiro de uma forma que poupasse sua dignidade, lhes desse esperança e reparasse sua auto-estima danificada. Agnes pediu a Obadiah que enriquecesse o projeto aceitando um salário com duração de um ano para que registrasse a história de sua vida com a ajuda da bibliotecária-chefe.

Claramente tocado e intrigado, o mágico ainda assim circundou a oferta em busca de motivos para não aceitá-la, antes de finalmente balançar a cabeça com tristeza.

— Duvido que eu pertença ao nível de pessoa que a senhora está procurando. Eu não seria inteiramente digno do seu projeto.

— Bobagem. De que diabos você está falando?

Olhando para suas mãos contorcidas, os nós inchados dos dedos voltados para Agnes, Obadiah disse:

— Como a senhora acha que elas ficaram assim?

— Artrite? — palpitou.

— Pôquer. — Mantendo as mãos elevadas, como um penitente confessando um pecado num encontro de grupo e pedindo a Deus que o perdoasse, Obadiah disse: — A minha especialidade era mágica com jogos de azar. Claro que de vez em quando eu tirava coelhos da cartola, lenços de seda do ar, pombas de lenços de seda. Mas a mágica com jogos de azar era a minha paixão. Moedas e principalmente... cartas.

Ao dizer cartas, o mágico voltou a olhar para Esaú, extraindo dele uma resposta em forma de expressão intrigada.

— Mas eu tinha uma facilidade com as cartas bem maior que a maioria dos mágicos. Treinei com Moisés Moon, o maior manipulador de cartas da sua geração.

Em manipulador ele novamente olhou significativamente para Esaú, que sentiu que uma resposta era esperada. Quando abriu a boca, ele não pensou em nada para dizer, exceto que em Sanriku, Japão, em 15 de junho de 1896, uma onda de 34 metros de altura, acionada por um terremoto subaquático, matou 27.100 pessoas, a maioria enquanto rezava no festival xintoísta. Até para Esaú, esse pareceu um comentário inadequado, e ele não disse nada.

— A senhora sabe o que um manipulador de cartas faz, sra. Lampion?

— Chame-me só de Agnes. E presumo que ele manipula as cartas. Girando lentamente as mãos erguidas diante de seus olhos, como se as visse

jovens e separadas nos ângulos corretos, o mágico descreveu as manipulações surpreendentes que um mestre em manipulação de cartas podia realizar. Embora falasse sem afetação, fez esses truques de habilidade soarem mais fantásticos que coelhos saídos de cartola, pombos de lenços e louras cortadas ao meio por serras.

Esaú ouviu com a atenção de um homem cujo ato mais ousado fora comprar uma caminhonete Ford County Squire.

— Quando não consegui mais trabalho como mágico em clubes noturnos e teatros... recorri ao jogo.

Sentado inclinado à frente em sua poltrona de braços, Obadiah abaixou as mãos até os joelhos, e num silêncio pensativo olhou para elas. Então:

— Viajei de cidade em cidade, procurando apostas altas em jogos de pôquer. Eles são ilegais, mas não são difíceis de achar. Fiz da trapaça profissão.

Ele jamais ganhava demais num único jogo. Era um ladrão discreto, encantando suas vítimas com conversas agradáveis. Como era tão simpático e parecia gozar de uma sorte apenas mediana, ninguém questionava quando ele ganhava. Não demorou muito a fazer mais dinheiro do que em seus tempos de mágico.

— Passei a viver bem. Quando não estava na estrada, morava aqui em Bright Beach, não neste barraco alugado em que estou agora, mas numa bela casa com vista para o mar. Você pode adivinhar o que deu errado.

Ganância. Era fácil demais tirar dinheiro dos otários. Logo, ao invés de ganhar um pouco em cada jogo de cartas, ele passou a procurar apostas mais altas.

— Atraí atenção. Levantei suspeitas. Certa noite, em St. Louis, um caipira me reconheceu de meus dias como mágico, embora eu tivesse mudado de aparência. Era um jogo de apostas altas, mas os jogadores não eram de nível alto. Eles me deram uma surra e depois esmagaram minhas mãos, um dedo por vez, com uma viga de ferro.

Esaú sentiu um arrepio.

— Pelo menos o maremoto em Sanriku foi rápido.

— Faz cinco anos que aconteceu isso. Depois de mais cirurgias do que quero lembrar, fiquei com as mãos assim. — Levantou de novo as mãos de bicho-papão. — Elas doem quando o tempo fica úmido, e um pouco menos no tempo seco. Posso cuidar de mim mesmo, mas jamais serei um manipulador de cartas de novo... ou um mágico.

Durante um momento, nenhum deles falou. O silêncio foi tão perfeito quanto o silêncio sobrenatural que se acreditava preceder os maiores terremotos. Até Barty parecia transfixado. Então Agnes disse:

— Bem, está claro para mim que você não será capaz de falar sobre a sua vida em um ano. Vamos tentar um salário de dois anos.

Obadiah olhou intrigado para ela.

— Sou um ladrão.

— Foi um ladrão. E sofreu terrivelmente.

— Não sofri por vontade própria, acredite.

— Mas sente remorso — disse Agnes. — Eu posso ver isso. E não é só por causa do que aconteceu com as suas mãos.

— Mais do que remorso, — disse o mágico. — Vergonha. Vim de uma família boa. Não me criaram para ser um trapaceiro. Às vezes, quando tento entender o que aconteceu de errado, acho que não foi a necessidade de dinheiro que me arruinou. Pelo menos não apenas isso. A necessidade de dinheiro nem foi o motivo principal. Foi o orgulho de minha habilidade com as cartas, orgulho frustrado porque não estava conseguindo trabalho em clubes noturnos suficientes para me mostrar tanto quanto queria.

— Há uma lição valiosa nisso — disse Agnes. — Outras pessoas poderão aprender essa lição, se você a compartilhar. Mas se quiser registrar a sua vida apenas até parar de trabalhar como mágico profissional, poderá fazer isso. Mesmo se você só chegar até aí, será uma jornada fascinante, uma história que não merece se perder depois da sua morte. As bibliotecas estão atulhadas com biografias de estrelas de cinema e políticos, a maioria incapaz da mesma honestidade e auto-análise que você. Não precisamos saber mais sobre as vidas das celebridades, Obadiah. O que pode nos ajudar, o que pode até nos salvar, é saber mais sobre as vidas de pessoas reais que nunca se tornaram famosas mas que sabem de onde vieram e por quê.

Esaú, que também jamais fora grande, ou médio, ou mesmo pequeno, observou a imagem da irmã embaçar diante de seus olhos. Ele lutou para manter o calor da luz difusa em seus olhos. Seu amor não era pela mágica, e seu orgulho não residia em nenhuma habilidade que possuísse, porque ele nada possuía digno de nota. O seu amor era por sua irmã bondosa; ela era o seu orgulho, também, e ele sentia que sua vida pequena tinha um significado precioso contanto que fosse capaz de levá-la de carro em dias como este, carregar suas tortas e ocasionalmente fazê-la sorrir.

— Agnes, é melhor você começar a encontrar com aquele bibliotecário para registrar a sua própria vida — disse o mágico. — Se esperar quarenta anos para começar, até lá precisará de uma década inteira para colocar tudo por escrito.

Em toda situação social, qualquer que fosse a sua natureza, chegava um momento em que Esaú precisava levantar-se abruptamente, e este era o momento, não por estar perdido em busca de palavras, não por estar receoso de dizer a coisa errada ou de deixar cair sua xícara de café, ou de correr algum outro risco de se revelar desajeitado ou estúpido; mas porque neste instante ele não queria trazer suas lágrimas ao dia de Agnes. Recentemente, ela tivera lágrimas demais em sua vida, e embora as lágrimas agora não fossem de sofrimento, fossem lágrimas de amor, ele não queria perturbá-la com elas.

Ele se levantou abruptamente do sofá, dizendo alto demais:

— Enlatados de presunto!

Mas imediatamente percebeu que isso não fazia sentido nenhum e buscou desesperadamente por algo coerente para dizer, como "Batatas, batatas fritas", o que era igualmente ridículo. Agora Obadiah estava fitando-o com a expressão de alarme que você vê nos rostos das pessoas que observam um epilético num surto descontrolado. Assim, Esaú atravessou a sala a passos largos, na direção da porta da frente, tentando encontrar uma forma de se explicar enquanto caminhava:

— Trouxemos alguns, temos alguns, vou pegar alguns, se você não se importar em ficar com alguns, temos caixas no carro, vou trazer as caixas, caixas de caixas, bem, não caixas de caixas, claro que não, você sabe, coisas que a gente trouxe em caixas.

Abrindo a porta da frente, tropeçando através do pórtico para a varanda, ele pensou finalmente na palavra que precisava, e gritou por sobre o ombro "Mantimentos!" com triunfo e alívio.

Atrás da caminhonete, onde não podia ser visto nem por Obadiah nem por Agnes, Esaú inclinou-se contra o Ford, olhando boquiaberto o belo céu cinzento, e chorou. Essas foram lágrimas de gratidão por ter Agnes em sua vidinha, mas, para sua surpresa, ele descobriu em seu coração que também eram lágrimas por sua mãe assassinada, que tinha possuído a compaixão de Agnes, muito pouco de sua força e humildade e nem uma gota de sua fé imorredoura.

Um bando de gaivotas gritou no céu vasto. A princípio Esaú seguiu-as por suas vozes animadas, até a visão clarear, e então observou suas asas, como lâminas brancas, cortarem as nuvens cinzentas. Mais cedo do que esperava, ele foi capaz de carregar os mantimentos para a casa.

 

NED — "ME CHAME DE NEDDY" — Gnathic era magro como uma flauta, com uma quantidade de buracos de flauta na cabeça pelos quais seu pensamento podia escapar antes que a pressão que exercia criasse uma música desagradável dentro do seu crânio. Sua voz era sempre suave e harmônica, mas freqüentemente ele falava em allegro, às vezes até em prestissimo, e a despeito do seu tom suave, Neddy no andamento máximo era tão irritante ao ouvido quanto gaitas de fole soprando o Bolero de Ravel, se tal coisa fosse possível.

Sua profissão era tocar piano em bares e festas, embora não precisasse ganhar a vida com isso. Ele herdara uma bela casa de quatro pavimentos num bairro de classe em San Francisco e recebia uma pensão suficientemente boa para atender às necessidades se evitasse extravagâncias. Apesar disso, trabalhava cinco noites por semana no salão elegante de um dos grandes hotéis antigos de Nob Hill, tocando melodias refinadas para turistas, empresários de fora da cidade, gays que teimavam em acreditar em romance numa época que valorizava a aparência sobre a substância, e casais heterossexuais não casados que estranhamente pareciam querer colocar os seus adultérios em evidência.

Neddy ocupava todo o quarto andar espaçoso da casa. O terceiro e o segundo pavimentos eram divididos em dois apartamentos, e o andar térreo em quatro quitinetes, todos os quais haviam sido alugados.

Um pouco depois das quatro horas, aqui estava Neddy, já paramentado para o trabalho num smoking preto, com camisa branca cuidadosamente gomada, em pé diante da porta aberta para a quitinete de Celestina White, explicando em detalhes tediosos os motivos segundo os quais ela estava cometendo uma infração fragrante de seu contrato, o que a obrigava a mudar-se até o fim do mês. O problema era Anja, o único bebê num prédio sem crianças. Seu choro (embora raro), suas brincadeiras ruidosas (embora Anja ainda não fosse forte o bastante para balançar um chocalho) e o potencial que ela representava para danos às instalações (embora ainda não fosse capaz de sair do berço sozinha, quanto mais com uma marreta).

Celestina não conseguia fazer com que ele visse a razão, e até mesmo a sua mãe, Grace, que estava morando aqui temporariamente, e que sempre trazia calmaria às piores tempestades, não conseguiu aplacar a fúria de Neddy Gnathic. Ele descobrira a respeito do bebê há cinco dias, e desde então sua indignação vinha crescendo em força, como uma depressão tropical aspirando à condição de furacão.

O mercado de aluguéis em San Francisco naquele momento estava muito difícil, com mais demanda que oferta. Agora, como vinha fazendo há cinco dias, Celestina tentou explicar que precisaria de pelo menos trinta dias, e preferencialmente até o fim de fevereiro, para encontrar acomodações adequadas e de acordo com suas condições financeiras. Ela estudava na Academy of Art College durante o dia, trabalhava como garçonete seis noites por semana, e não podia deixar a pequena Anja inteiramente aos cuidados de Grace, nem mesmo em caráter temporário.

Neddy falou quando Celestina parou para respirar, e continuou falando quando ela retomou seu discurso, escutando apenas a sua própria voz adocicada e ficando satisfeito em conduzir ambos os lados da conversa, desgastando Celestina como as tempestades de areia haviam diminuído as pirâmides do faraó, embora bem mais rápido. Falou durante o primeiro "com licença" educado do homem alto que apareceu no vão da porta aberta atrás dele, durante o segundo e o terceiro, e então, com uma rapidez que pareceu tão miraculosa quanto qualquer cura no santuário de Lourdes, calou-se quando o visitante colocou a mão no seu ombro, empurrou-o gentilmente para o lado, e entrou no apartamento.

Os dedos de dr. Walter Lipscomb eram mais longos e flexíveis que os do pianista, e ele tinha a presença de um regente de orquestra sinfônico para quem uma batuta erguida era supérflua e concentrava as atenções de todos meramente com a sua entrada. Uma torre de autoridade e autocontrole, ele disse para Neddy:

— Sou o médico da criança. Ela nasceu abaixo do peso e foi mantida no hospital para curar uma infecção auricular. Ouvindo a sua voz, tenho a impressão de que você tem um caso incipiente de bronquite que irá se manifestar em vinte e quatro horas, e tenho certeza de que não desejará ser responsabilizado por ter submetido este bebê a uma infecção virótica.

Piscando como se tivesse sido esbofeteado, Neddy disse:

— Segundo o contrato de locação...

O dr. Lipscomb inclinou a cabeça na direção do pianista, como um tutor severo faria antes de enfatizar uma lição apertando a orelha de seu pupilo.

— A srta. White e a menina deixarão este lugar até o final da semana... a não ser que você insista em continuar a incomodá-las com a sua voz. Para cada minuto que você continuar a importunar a srta. White e a criança, a saída delas será prorrogada em um dia.

Embora o dr. Lipscomb tenha falado numa voz quase tão macia quanto o pianista de grande fôlego, e embora o rosto estreito do médico fosse muito comum e desprovido de qualquer resíduo de temperamento violento, Neddy Gnathic recuou e se retirou através do pórtico, até o corredor.

— Tenha um bom dia — disse Lipscomb, fechando a porta na cara de Neddy, possivelmente comprimindo seu nariz.

Anja estava deitada numa toalha do sofá-cama, onde Grace acabara de mudar sua fralda.

Enquanto Lipscomb levantava o bebê limpinho, Grace disse:

— O senhor lidou muito bem com ele. Tão bem quanto uma esposa de pastor lidando com um paroquiano impossível... na verdade, melhor.

— O seu trabalho é mais difícil que o meu — disse Lipscomb a Grace, acalentando Anja enquanto falava. — Não tenho a menor dúvida.

Celestina, surpresa com a chegada de Lipscomb, ainda estava mentalmente entorpecida com o falatório de Neddy.

— Doutor, eu não sabia que o senhor vinha.

— Eu mesmo não sabia até perceber que estava no seu bairro. Calculei que a sua mãe e Anja estariam aqui e torci que estivessem. Se estou importunando...

— Não, não. Eu apenas não...

— Eu queria que vocês soubessem que estou deixando a medicina.

— Por causa do bebê? — indagou Grace, seu rosto tricotando um franzido de preocupação.

Segurando Anja inteiramente em suas mãos grandes, sorrindo para Grace, ele respondeu:

— Oh, não, sra. White. Esta parece uma mocinha muito saudável para mim. Ela não precisa de cuidados médicos.

Anja, como se nas mãos do próprio Deus, fitou o médico com olhos grandes e cheios de assombro.

— Estou querendo dizer que estou vendendo a minha licença e colocando um fim na minha carreira médica — disse o dr. Lipscomb. — Eu queria que vocês soubessem.

— Está se aposentando?—disse Celestina.—Mas você ainda é jovem demais.

— Gostaria de um pouco de chá e uma fatia de bolo? — perguntou Grace, tão natural quanto se aquela fosse a resposta que o Grande Manual de Etiqueta das Mulheres de Pastores indicasse para o anúncio de um abandono abrupto de carreira.

— Na verdade, sra. White, esta é uma ocasião para champanhe, se vocês não tiverem nada contra álcool.

— Alguns batistas são contrários ao consumo de álcool, doutor, mas somos da variedade corrompida. Ainda bebemos no máximo uma garrafa de Chardonnay.

— Estamos a apenas dois quarteirões e meio do melhor restaurante armênio da cidade — disse Lipscomb. — Se concordarem, darei um pulinho lá e trarei um champanhe efervescente e um jantar prematuro.

— Se você não fizer isso, estamos condenadas a restos de bolo de carne. Para Celestina, Lipscomb disse:

— Se você não estiver ocupada, é claro.

— Esta é a noite de folga dela — disse Grace.

— Vai abandonar a medicina? — perguntou Celestina, estarrecida com a declaração de Lipscomb e sua animação.

— Portanto, devemos celebrar... o fim da minha carreira e a sua mudança. Subitamente lembrando da garantia do médico a Neddy de que elas estariam

fora do prédio até o final da semana, Celestina disse:

— Mas não temos lugar algum para ir. Passando Anja para Grace, Lipscomb respondeu:

— Tenho algumas propriedades. Um investimento que fiz. Numa delas tenho uma unidade de sala e dois quartos.

Balançando a cabeça, Celestina disse: só posso pagar por uma quitinete, alguma coisa bem pequena.

— Você vai pagar lá exatamente o que estiver pagando aqui, seja lá quanto for — garantiu Lipscomb.

Celestina e sua mãe trocaram um olhar significativo. O médico viu a troca de olhares e a compreendeu. Um rubor apareceu em seu rosto comprido e pálido.

— Celestina, você é muito bonita, e tenho certeza de que sua mãe lhe ensinou a tomar cuidado com homens, mas juro que minhas intenções são inteiramente honradas.

— Oh, não pensei...

— Sim, você pensou, e tenho certeza de que foi exatamente isso que a experiência ensinou-lhe a pensar. Mas tenho quarenta e sete e você vinte...

— Quase vinte e um.

— ... e somos de mundos diferentes, o que respeito. Respeito você e a sua família maravilhosa. Respeito a forma como vocês são seguros e determinados. Quero fazer isto apenas porque devo a vocês.

— Por que você me deveria alguma coisa?

— Bem, na verdade, devo a Fimie. Foi o que ela disse entre as duas vezes em que morreu na mesa de operação que mudou a minha vida.

Rowena te ama, dissera-lhe Fimie, reprimindo temporariamente os efeitos de seu derrame e falando com clareza. Bizil e Fizil estão a salvo com ela. Mensagens de sua esposa e filhos mortos, de onde aguardavam por ele além desta vida.

Carinhosamente, mas sem nenhuma intenção de intimidade, ele tomou as mãos de Celestina nas suas.

— Durante anos, como obstetra, eu trouxe vida ao mundo, mas não sabia o que a vida era, não absorvia o significado dela, nem sabia que tinha significado. Antes de Rowena, Harry e Danny caírem naquele avião, eu já estava... vazio. Depois de perdê-los, fiquei ainda mais vazio. Celestina, eu estava morto por dentro. Fimie me devolveu a esperança. Não posso pagar a ela o que lhe devo, mas posso fazer alguma coisa pela filha dela e por você, se permitir.

As mãos de Celestina tremeram dentro das dele, e seu aperto de mão também. Quando ela não aceitou imediatamente a generosidade dele, o médico disse:

— Toda a minha vida vivi apenas para sobreviver ao dia. Primeiro a sobrevivência. Depois conquistas, aquisições. Casas, investimentos, antigüidades... Não há nada errado com isso. Mas isso não preenche o vazio. Talvez um dia eu retorne à medicina. Mas essa é uma existência agitada, e no momento quero paz, calma, tempo para refletir. O que eu encontrar daqui em diante... Quero que a minha vida tenha um nível de propósito que jamais teve antes. Você pode entender?

— Fui criada para entender isso — disse Celestina, e quando olhou para o outro lado da sala, viu que suas palavras também tinham comovido sua mãe.

— Se quiserem, podem sair daqui amanhã — sugeriu Lipscomb.

— Tenho aula amanhã e quarta-feira, mas nenhuma na quinta.

— Então será quinta-feira — disse ele, claramente deliciado por estar recebendo apenas um terço do preço de mercado do aluguel de seu apartamento.

— Obrigada, dr. Lipscomb. Vou anotar exatamente quanto você vai perder a cada mês, e algum dia pagarei.

— Discutiremos isso quando o momento chegar. E... por favor, me chame de Wally.

O rosto longo e estreito do médico, suas feições humildes, ideal para transmitir notícias de grande pesar, não era o rosto de um Wally. Você esperava que um Wally fosse travesso, gorducho e sardento.

— Wally — disse Celestina sem hesitação, porque subitamente ela viu algo de um Wally nos seus olhos verdes, que nunca transmitiram mais animação.

E então, champanhe e duas bolsas de compras abarrotadas com comida armênia. Sou beurek, mujadereh, biryani de arroz e frango, folhas de uva recheadas, costeleta de carneiro com arroz e verduras, orouk, manti, e muito mais. Depois de uma oração batista de graças (dita por Grace), Wally e as três mulheres White, uma quarta presente em espírito, sentaram-se em torno da mesa com tampo de fórmica e comeram, riram e falaram sobre arte, medicina, cuidados com bebês, o passado e o futuro, enquanto no bairro de Nob Hill, Neddy Gnathic, vestido num smoking, estava sentado a um piano laqueado em negro, espalhando notas cristalinas como diamantes por um salão luxuoso.

 

AINDA USANDO SEU JALECO branco de farmacêutico sobre uma camisa branca e calças pretas, caminhando determinado pelas ruas de Bright Beach, debaixo de um crepúsculo cinzento e maligno, digno de uma capa da Weird Tales, e ao som de um ritmo sinistro providenciado pelo vento soprando as folhas das palmeiras altas, Paul Damascus voltava para casa.

Caminhar fazia parte de um regime de boa forma que seguia seriamente. Ele jamais seria convocado para salvar o mundo, como os heróis dos pulp magazines que adorava; contudo, tinha responsabilidades solenes que estava determinado a cumprir, e para fazê-lo precisava manter uma boa saúde.

Num bolso de seu jaleco estava a carta para o reverendo Harrison White. Ele não havia selado o envelope, porque pretendia ler o que escrevera para Perri, sua esposa, e incluir as correções que ela sugerisse. Nisto, como em todas as coisas, Paul valorizava a opinião de sua esposa.

O ponto alto do seu dia era ir para casa e rever Perri. Eles se conheceram quando tinham treze anos, casando-se aos 22. Em maio iriam celebrar 23 anos de casados.

Não tinham filhos. O destino quisera assim. A bem da verdade, Paul não sentia qualquer arrependimento por estar perdendo a experiência de ser pai. Como uma família de dois, eram mais íntimos do que poderiam ser se o destino tivesse lhes permitido ter filhos, e ele valorizava muito o seu relacionamento.

Suas noites juntos eram maravilhosas, embora geralmente apenas vissem televisão juntos, ou ele lia para ela. Ela gostava de ouvir o marido lendo, principalmente romances históricos ou livros de mistério.

Perri em geral dormia rápido, por volta das nove e meia, raramente depois das dez horas, enquanto Paul jamais se deitava antes da meia-noite ou uma da manhã. Nesse meio-tempo ele voltava às suas aventuras nos pulp magazines, à trilha sonora da respiração sussurrante da esposa adormecida.

Esta era uma noite boa na televisão. To Tell the Truth, às sete e meia, seguido por I've Got a Secret, The Lucy Show e The Andy Griffith Show. O novo seriado da Lucille Ball não era tão bom quanto o anterior; Paul e Perri sentiam falta de Desi Arnaz e William Frawley.

Quando dobrou a esquina da Jasmine Way, sentiu seu coração levitar em expectativa à visão de sua casa. Não era uma residência grandiosa — uma casa típica de uma rua principal americana — porém era mais esplêndida para Paul do que Paris, Londres e Roma combinadas, cidades que ele jamais iria ver e que jamais lamentaria não conhecer.

Sua expectativa feliz metamorfoseou-se em medo quando viu a ambulância parada diante da casa. E no caminho de acesso à casa estava o Buick que pertencia a Joshua Nunn, seu médico de família.

A porta da frente estava aberta. Paul entrou apressado.

Na ante-sala, Hanna Rey e Nellie Oatis estavam sentadas lado a lado na escadaria. Hanna, a governanta, era grisalha e roliça. Nellie, a acompanhante de Perri, podia passar por irmã de Hanna.

Hanna estava emocionada demais para ficar de pé.

Nellie encontrou força para se levantar, mas ao fazê-lo se viu incapaz de falar. Sua boca formou palavras, mas a voz a desertou.

Congelado pelo significado inconfundível das expressões nos rostos dessas mulheres, Paul ficou grato por Nellie estar emudecida. Ele não acreditava que teria forças para receber as notícias que ela estava tentando comunicar.

A bênção do silêncio de Nellie durou apenas até que Hanna, amaldiçoada com a capacidade de falar mas não suficientemente forte para se manter em pé, disse:

— Tentamos falar com o senhor, mas já tinha saído da farmácia.

As portas de correr na sala de estar estavam entreabertas. As pessoas do outro lado atraíram Paul contra a sua vontade.

Espaçosa, a sala de estar era mobiliada com dois propósitos: como um local onde receber amigos em visita, mas também com duas camas, porque aqui Paul e Perri dormiam todas as noites.

Jeff Dooley, um paramédico, estava em pé do outro lado das portas de correr. Ele agarrou o ombro de Paul e o conduziu para dentro do cômodo.

Até a cama de Perri, uma jornada de uns poucos passos, contudo mais distante que a Paris que ele não tinha visto, mais distante do que a Roma que ele não queria conhecer. O tapete parecia puxar os seus pés, grudando como lama debaixo de seus sapatos. O ar, espesso como líquido em seus pulmões, resistente ao seu progresso.

Ao lado da cama, Joshua Nunn, amigo e médico, olhou para cima quando Paul aproximou-se. Levantou como se espetado por um alfinete.

A cabeceira da cama de hospital estava elevada e Perri deitada nela, olhos fechados.

Durante a crise, o poste que sustentava sua garrafa de oxigênio tinha sido empurrado até a cama. A máscara de respiração jazia no travesseiro ao lado de Perri.

Ela raramente precisava do oxigênio. Hoje, quando precisara, ele não tinha ajudado.

O respirador de peito, que Joshua havia evidentemente aplicado, jazia descartado nas roupas de cama ao seu lado. Ela raramente requeria este aparato para ajudá-la a respirar, e quando isso acontecia, era apenas à noite.

Durante o primeiro ano de sua doença, Perri havia lentamente abdicado do pulmão de ferro. Até seus dezessete anos, ela precisara do respirador de peito, mas aos poucos ganhara força para respirar sem ajuda.

— Foi o coração — disse Joshua Nunn.

Ela sempre tivera um coração generoso. Depois que a doença emagrecera Perri, deixando-a muito frágil, seu grande coração, não diminuído por seu sofrimento, parecera maior que o corpo que o continha.

A poliomielite, em geral uma aflição das crianças pequenas, a acometera duas semanas antes de seu 15° aniversário. Trinta anos atrás.

Ao cuidar de Perri, Joshua dobrara para baixo os lençóis. O tecido do pijama amarelo-claro não podia disfarçar o quanto suas pernas eram terrivelmente magras: dois palitos.

Seu caso de poliomielite fora tão severo que braçadeiras e muletas jamais tinham sido opção. A reabilitação muscular fora ineficaz.

As mangas do topo de seu pijama estavam enroladas para cima, revelando mais do trabalho violento da doença. Os músculos do braço esquerdo inútil tinham atrofiado; a mão, um dia graciosa, curvara-se para dentro, como se segurando um objeto invisível, talvez a esperança que ela jamais abandonara.

Como ela desfrutara de um uso limitado do braço direito, ele estava menos prejudicado que o esquerdo, embora sua aparência não fosse normal. Paul baixou essa manga do pijama.

Gentilmente, levantou os lençóis para cobrir o corpo arruinado de sua esposa, até os seus ombros finos, mas dispôs o braço direito sobre os lençóis. Ajeitou e alisou a ponta superior do lençol.

A doença não corrompera seu coração, e também não tocara seu rosto. Ela continuava tão linda como sempre fora.

Sentou na ponta da cama e segurou a mão direita da esposa. Ela morrera há tão pouco tempo que sua pele ainda estava morna.

Sem uma palavra, Joshua Nunn e o paramédico saíram para a ante-sala. As portas de correr foram fechadas depois que eles passaram.

Tantos anos juntos e mesmo assim tão pouco tempo...

Paul não conseguia lembrar quando começara a amá-la. Não fora à primeira vista. Mas fora antes que ela contraísse pólio. O amor viera gradualmente, e quando a doença surgiu, os dois já estavam apaixonados.

Ele conseguia lembrar claramente quando soubera que iria casar-se com ela: durante o primeiro ano de faculdade, quando ele retornara para casa para o feriado de Natal. Longe, na faculdade, ele sentira falta dela a cada dia, e no momento em que a vira, uma tensão constante deixara-o, e ele se sentira em paz pela primeira vez em meses.

Naquela época Perri vivia com os pais. Eles haviam convertido a sua sala de jantar num quarto para ela.

Quando Paul chegou com um presente de Natal, Perri estava na cama, usando pijama vermelho, lendo Jane Austen. Um dispositivo bem bolado, que consistia em tiras de couro, alavancas e contrapesos, ajudava-a a mover o braço direito com mais fluidez do que seria possível de outra forma. O livro estava sobre um suporte de pé, mas ela conseguia virar suas páginas.

Ele passou a tarde com ela e ficou para jantar. Comeu ao lado da cama, alimentando tanto a si próprio quanto a ela, equilibrando o progresso de sua refeição com a dela, de modo que terminaram juntos. Paul jamais dera de comer a Perri antes, mas mesmo assim não se sentiu constrangido, nem ela. E mais tarde o que ele lembraria do jantar seria a conversa, não a logística.

Em abril do ano seguinte, quando Paul pediu Perri em casamento, ela não quis aceitar.

— Você é maravilhoso, Paul, mas não posso permitir que você jogue a sua vida fora por minha causa. Você é este... este navio lindo que está destinado a singrar para longe, para lugares fascinantes, e eu seria apenas a sua âncora.

— Um navio sem âncora jamais descansa — respondeu Paul. — Ele fica à mercê do mar.

Ela protestou que seu corpo arruinado não teria nenhum conforto a oferecer a um homem, nem a força para fazer dela uma noiva.

— A sua mente está tão fascinante quanto sempre foi — disse ele. — A sua alma é linda. Ouça, Per, desde que tínhamos treze anos, nunca me interessei principalmente pelo seu corpo. Você está se iludindo se pensa que ele era tão especial assim, mesmo depois da pólio.

Ela gostava de franqueza e comentários duros, porque pessoas demais tratavam-na como se o seu espírito fosse tão frágil quanto os seus membros. Ela riu com deleite... mas ainda assim recusou o pedido de Paul.

Dez meses depois, ele finalmente a venceu pelo cansaço. Ela aceitou sua proposta e o casal marcou uma data para o matrimônio.

Entre lágrimas, Perri lhe perguntou se ele não estava assustado com o compromisso que estava fazendo.

Na verdade, ele estava aterrorizado. Embora sua necessidade pela companhia de Perri fosse tão profunda que parecesse sair da medula de seus ossos, uma parte de Paul sempre se perguntara se estava tomando a atitude certa.

Ainda assim, nessa noite, quando ela aceitou sua proposta e perguntou se ele não estava aterrorizado, Paul respondeu:

— Não mais.

O terror que ele escondia dela desapareceu com o recital dos votos. Desde seu primeiro beijo como marido e mulher ele soube que este era o seu destino. Que grande aventura eles haviam tido juntos nesse últimos 23 anos, uma aventura que até Doe Savage, o Homem de Bronze, teria invejado.

Cuidar dela, em todos os sentidos, fizera-o um homem muito mais feliz do que ele poderia ter sido — e um homem bem melhor.

E agora ela não precisava mais dele. Fitou o rosto de Perri, segurou sua mão, agora esfriando; sua âncora estava se afastando dele, deixando-o ao léu.

 

DEPOIS DE UMA SEGUNDA NOITE na Sleepie Tyme Inne, acordando ao alvorecer, Júnior sentia-se descansado, refrescado... e no controle de seu intestino.

Ele não sabia exatamente o que causara seu desconforto, recente.

Os sintomas de envenenamento alimentar costumavam aparecer cerca de duas horas depois da refeição. Os espasmos intestinais horrendos que o atormentaram tinham começado pelo menos seis horas depois de ter comido. Além disso, se o culpado fosse o envenenamento alimentar, ele teria vomitado; mas não sentia nenhum impulso de vomitar.

Ele suspeitava que a culpa cabia à sua extraordinária sensibilidade à violência, morte e perda. Antes ela se manifestara como um esvaziamento explosivo de seu estômago, desta vez como um afrouxamento de seus reinos inferiores.

Na manhã de terça-feira, enquanto banhava-se na água morna do chuveiro, junto com uma barata tão exuberante quanto um golden retriever, Júnior jurou jamais matar novamente. Exceto em autodefesa.

Ele fizera esse juramento antes. Podia-se argumentar que o quebrara.

Não havia dúvida de que se não tivesse se livrado de Vanadium, o tira maníaco o teria matado. Portanto, ele matara Vanadium em autodefesa.

Contudo, apenas um homem desonesto ou louco poderia justificar o assassinato de Victória como autodefesa. Até certo ponto, ele fora motivado pela raiva e pela paixão, e Júnior era suficientemente honesto para admitir isso.

Conforme Zedd ensinara, neste mundo onde a desonestidade era o passaporte para a aceitação social e o sucesso financeiro, você precisa praticar algumas trapaças para seguir na vida, mas jamais deve mentir para si mesmo, ou não terá mais ninguém em quem acreditar.

Desta vez, ele jurou jamais matar de novo, exceto em autodefesa, a despeito da provocação. Esta condição mais difícil o agradou. Ninguém alcançava um aperfeiçoamento pessoal significativo estabelecendo padrões baixos para si mesmo.

Quando abriu a cortina do chuveiro, deixou a barata na banheira molhada, viva e intocada.

Antes de sair do motel, júnior correu os olhos por mais quatro mil nomes no catálogo telefônico, procurando Bartholomew. No dia anterior, confinado neste quarto, ele procurara seu inimigo através de doze mil nomes. Cumulativamente, Júnior examinara os nomes de quarenta mil assinantes.

Novamente na estrada, sem bagagem além da caixa com as obras de Caesar Zedd, Júnior dirigiu para o sul na direção de San Francisco. Estava empolgado com a perspectiva da vida na cidade.

Seus anos na sonolenta Spruce Hills tinham sido ricos em romance, um casamento feliz e sucesso financeiro. Mas aquela cidadezinha carecia de estímulo intelectual. Para estar completamente vivo, ele precisava vivenciar não apenas prazeres físicos em abundância, não apenas gozar de uma vida emocional satisfatória, mas também de uma vida intelectual.

Escolheu uma rota que o conduziu através do condado de Marin e pela ponte Golden Gate. A metrópole, que ele nunca visitara, erguia-se no esplendor de suas colinas sobre a baía cintilante.

Durante uma hora gloriosa, Júnior seguiu uma rota aleatória e impetuosa pela cidade, admirando a arquitetura, as paisagens estonteantes, o sobe e desce empolgante das ruas. Logo Júnior estava mais entorpecido com San Francisco do que já ficara com vinho.

Aqui, as atividades intelectuais e as possibilidades de aperfeiçoamento pessoal eram ilimitadas. Grandes museus, galerias de arte, universidades, salões de concertos, livrarias, bibliotecas, o observatório "Monte Hamilton...

Menos de um ano atrás, uma tendência moderníssima tinha nascido aqui, quando as primeiras dançarinas topless tinham subido aos palcos de San Francisco. Agora esta manifestação artística empolgante era praticada em muitas grandes cidades, que tinham acompanhado a ousadia de San Francisco, e Júnior estava ansioso por iluminar-se comparecendo a uma apresentação bem aqui, onde a inovação em dança do século havia nascido.

Às três da tarde, ele se registrou num hotel famoso em Nob Hill. Seu quarto oferecia uma vista panorâmica.

No sagão de uma loja de modas masculinas, Júnior comprou várias roupas para substituir aquelas que tinham sido roubadas. Os ajustes foram feitos e tudo foi entregue em seu quarto às seis da tarde.

Às sete ele estava saboreando um coquetel no salão elegante do hotel. Um pianista vestido num smoking tocava música romântica com um estilo refinado.

Várias mulheres bonitas, na companhia de outros homens, flertaram subrepticiamente com Júnior. Ele estava acostumado a ser um objeto de desejo. Contudo, nesta noite a única dama para a qual tinha olhos era a própria San Francisco, e ele queria estar a sós com ela.

Era possível jantar no saguão. Júnior desfrutou de um filé mignon soberbo com uma dose de um excelente Cabernet Sauvignon.

O único momento ruim da noite aconteceu quando o pianista tocou "Someone to Watch Over Me".

Em sua mente, Júnior viu uma moeda passar de um nó de dedo para outro, e escutou a voz arrastada do tira maníaco:

Tem uma canção muito bonita do George e do Ira Gershwin chamada "Someone to Watch Over Me"... Alguém para me Vigiar. Você já a ouviu, Enoch? Eu sou esse alguém para você, embora não, é claro, num sentido romântico.

Júnior quase deixou cair o garfo ao reconhecer a melodia. Seu coração acelerou. Suas mãos ficaram repentinamente úmidas.

De vez em quando os clientes atravessavam o saguão para deixar cair dinheiro numa caixinha sobre o piano: gorjetas para o músico. Algumas dessas pessoas pediam suas músicas favoritas.

Júnior não prestara atenção a todos os que tinham visitado o pianista... embora certamente não tivesse notado nenhum corpanzil coberto por um terno vagabundo.

O policial maluco não estava em nenhuma das mesas. Júnior tinha certeza disso, porque correra os olhos pelo lugar várias vezes, para apreciar as mulheres bonitas.

Ele não tinha prestado atenção aos clientes sentados atrás dele. Agora ele se virou em sua cadeira para estudá-los.

Uma mulher masculinizada. Vários homens efeminados. Mas nenhuma figura alta e gorda que pudesse ser o policial doido disfarçado.

Respirar lenta e profundamente. Lenta. Profundamente. Um gole de vinho.

Vanadium estava morto. Golpeado com estanho e afundado numa pedreira inundada. Tinha ido para sempre.

O detetive não era a única pessoa no mundo que gostava de "Someone to Watch Over Me". Qualquer pessoa naquele saguão poderia ter requisitado a canção. Ou talvez este número fosse parte do repertório usual do pianista.

Depois da conclusão da música, Júnior sentiu-se melhor. Seus batimentos cardíacos voltaram depressa ao normal. As palmas úmidas de suas mãos ficaram secas.

Enquanto comia o crème brûlée que pedira para a sobremesa, já conseguia rir de si mesmo. Ele tinha esperado ver um fantasma sentado no bar, tomando um coquetel e comendo castanhas de caju de cortesia?

 

QUARTA-FEIRA, DOIS DIAS inteiros depois de entregar tortas de pêra com mel junto com Agnes, Esaú reuniu coragem para visitar Jacó.

Embora seus apartamentos ficassem em cima da garagem, de costas um para o outro, cada um era servido por uma escadaria externa separada. A julgar pela freqüência com que entravam nos domínios do outro, eles podiam viver a centenas de quilômetros de distância.

Quando juntos em companhia de Agnes, Esaú e Jacó eram irmãos, confortáveis na companhia um do outro. Mas juntos apenas os dois, sem Agnes, ficavam mais desconfortáveis do que com estranhos, porque estranhos não tinham um passado conjunto para superar.

Esaú bateu, Jacó atendeu.

Jacó recuou da soleira da porta, Esaú entrou.

Ficaram em pé, sem olhar diretamente um para o outro. A porta do apartamento continuou aberta.

Esaú sentia-se desconfortável neste reino de um deus estranho. O deus que o irmão dele temia era a humanidade, as suas compulsões obscuras, a sua arrogância. Esaú, por outro lado, temia a Natureza, cuja ira era tão grande que um dia destruiria todas as coisas, quando o universo se comprimisse numa bolinha de matéria superdensa, do tamanho de uma ervilha.

Para Esaú, a humanidade obviamente não era a maior dessas duas forças destrutivas. Homens e mulheres faziam parte da natureza, não estavam acima dela, e sua maldade, portanto, era apenas mais um exemplo da intenção maligna da natureza. Eles debatiam esse assunto há anos, mas jamais tinham convencido um ao outro de seus dogmas.

Sucintamente, Esaú contou a Jacó sobre a visita a Obadiah, o mágico das mãos contorcidas. E então:

— Quando saímos, Obadiah me segurou e disse: "O seu segredo está seguro comigo."

— Que segredo? — perguntou Jacó, olhando preocupado para os sapatos de Esaú.

— Eu estava esperando que você soubesse — disse Esaú, estudando o colarinho da camisa de malha verde de Jacó.

— Como eu iria saber?

— Ocorreu-me que talvez Obadiah tenha pensado que eu era você.

— Por que ele pensaria isso? — disse Jacó, agora fitando o bolso da camisa de Esaú.

— A gente se parece um pouco — disse Esaú, movendo sua atenção para a orelha esquerda de Jacó.

— Somos gêmeos idênticos, mas eu não sou você, sou?

— Isso é óbvio para nós, mas nem sempre para os outros. Além disso, deve ter acontecido anos atrás.

— O que deve ter acontecido anos atrás?

— Você conhecer Obadiah.

— Ele disse que eu o conhecia? — perguntou Jacó, correndo os olhos por cima de Esaú para o sol brilhante na porta aberta.

— Como eu disse, ele pode ter pensado que eu era você — disse Esaú, fitando os livros bem arrumados nas estantes.

— Ele está caduco ou algo assim?

— Não, ele está muito bem da cabeça.

— Supondo que ele esteja senil, não seria possível que ele pensasse que você era o irmão que ele perdeu há muito tempo ou alguma outra pessoa?

— Ele não está senil.

— Se você falou sem parar sobre terremotos, tornados, vulcões em erupção e coisas do tipo, como ele foi confundi-lo comigo?

— Não falei nada. A Agnes conversou com ele o tempo todo. Voltando a atenção para os seus próprios sapatos, Jacó disse:

— Então... o que devo fazer sobre isto?

— Você conhece ele? — perguntou Esaú, olhando agora para a porta aberta, para a qual Jacó tinha se virado. — Obadiah Sepharad?

— Tendo passado a maior parte dos últimos vinte anos neste apartamento, sem ter um carro, como você. Como eu poderia ter conhecido um mágico negro?

— Muito bem, então.

Enquanto Esaú atravessava o pórtico, saindo para o patamar no topo da escadaria, Jacó seguiu-o, proclamando sua fé:

— Véspera de Natal de 1940, Orfanato de Santo Anselmo, San Francisco. Josef Krepp matou onze meninos, entre seis e onze anos. Assassinou as crianças enquanto dormiam e cortou um pedaço de cada uma como troféu... um olho aqui, uma língua ali.

— Onze? — disse Esaú; não estava impressionado.

— De 1604 a 1610, Erzebet Bathory, irmã do rei polonês, com a ajuda de seus servos, torturou e matou seiscentas meninas. Ela mordia as crianças, bebia seu sangue, rasgava seus rostos com facas, mutilava suas partes íntimas e escarnecia de seus gritos.

Descendo as escadas, Esaú disse:

— Em 18 de setembro de 1906, um furacão devastou Hong Kong. Mais de dez mil pessoas morreram. O vento soprava com uma velocidade tão incrível que centenas de pessoas foram mortas por pedaços afiados de destroços... farpas de madeira, pontas de cercas afiadas como flechas, pregos, vidro... movidos contra elas com a velocidade de balas. Um homem foi atingido por um fragmento soprado pelo vento de um jarro funerário da Dinastia Han, que furou seu rosto, atravessou o crânio e se instalou no cérebro.

Enquanto Esaú alcançava o fundo da escadaria, ouviu a porta fechar atrás dele.

Jacó estava escondendo alguma coisa. Até falar sobre Joseph Krepp, cada resposta dele tinha sido formada como uma pergunta, que sempre fora a sua forma favorita de se proteger quando a conversa envolvia alguma coisa que o fazia sentir-se desconfortável.

Ao voltar para o seu apartamento, Esaú precisou passar debaixo dos galhos de um carvalho majestoso que dominava o vasto jardim entre a casa e a garagem.

Cabeça baixa, como se sua visita a Jacó fosse um peso que o mantivesse curvado, sua atenção estava no chão. Não fosse por isso, talvez não tivesse notado o padrão belíssimo que as sombras causadas pela luz do sol formavam por onde ele estava caminhando.

Este era um carvalho vivo da Califórnia, verde até no inverno, embora estivesse agora com menos folhas que nas estações mais quentes. A estrutura intrincada dos galhos, refletida ao redor dele, era um labirinto bonito e harmônico sobre um mosaico de grama verde iluminada pelo sol, e alguma coisa nesses padrões subitamente tocou e comoveu Esaú, absorvendo a sua imaginação. Ele teve a impressão de estar à beira de uma inspiração maravilhosa.

Então olhou para cima, para os galhos imensos sobre a sua cabeça, e seu humor mudou: a sensação de inspiração iminente deu lugar ao medo de que um daqueles galhos se partisse naquele preciso momento, esmagando-o debaixo de uma tonelada de madeira, ou que o Grandão, atacando agora, derrubasse o carvalho inteiro.

Esaú correu de volta para seu apartamento.

 

DEPOIS DE PASSAR A quarta-feira como um turista, Júnior começou a procurar por um apartamento adequado na quinta. A despeito de sua fortuna recém-adquirida, ele não pretendia pagar diárias de quartos de hotel por muito tempo.

No momento estava muito difícil encontrar um apartamento para alugar em San Francisco. O primeiro dia de sua busca resultou apenas na descoberta de que ele teria de pagar mais do que esperava, mesmo por acomodações modestas.

Na noite de quinta-feira, a terceira no hotel, ele retornou ao saguão para tomar coquetéis e comer mais um filé. O entretenimento era proporcionado pelo mesmo pianista vestido num smoking.

Júnior estava vigilante. Ele prestou atenção em todos os que se aproximaram do piano, tenham ou não deixado dinheiro na caixinha.

Quando começou a tocar "Someone to Watch Over Me", o pianista não pareceu estar respondendo a um pedido, considerando que alguns outros números tinham sido tocados desde a gorjeta mais recente. A melodia, afinal de contas, pertencia ao seu repertório usual.

Uma tensão residual abandonou Júnior. Ficou um pouco surpreso por ainda estar preocupado com a canção.

Durante o restante de seu jantar, concentrou-se inteiramente no futuro, o passado afastado de sua mente. Até...

Enquanto Júnior desfrutava de um conhaque depois do jantar, o pianista fez uma pausa, e a conversa entre os clientes parou. Quando o telefone do bar tocou, ainda que baixo, ele o ouviu de sua mesa.

O zumbido eletrônico era parecido com o som do telefone no apartamentinho de Vanadium, na noite de domingo. Júnior foi transportado de volta àquele lugar, àquele momento no tempo.

A secretária eletrônica.

Em sua mente, ele viu a secretária com uma nitidez extraordinária. Aquele aparelho curioso. Em cima da mesa de pinho.

Na realidade, aquilo era um mero dispositivo doméstico. Em sua memória, a secretária eletrônica parecia ameaçadora, carregada com a força maligna de uma bomba nuclear.

Ele ouvira a mensagen e a considerara incompreensível e desmerecedora de atenção. Subitamente, uma intuição tardia disse-lhe que a mensagem não podia ter sido mais importante para ele se tivesse sido Naômi ligando da tumba para deixar um testemunho para o detetive.

Naquela noite atarefada, com o cadáver de Vanadium no Studebaker e com o corpo de Victória esperando na casa por uma pira funerária, Júnior estivera distraído demais para reconhecer a pertinência da mensagem. Agora ela o torturava de um recanto sombrio em seu subconsciente.

Caesar Zedd ensina que cada experiência em nossas vidas, incluindo o menor momento e o mais simples ato, é preservada na memória, inclusive cada conversa estúpida que travamos com os mais ignóbeis com quem encontramos. Por esse motivo, ele escreveu um livro sobre por que não devemos jamais nos submeter a indivíduos tediosos e burros, e sobre como podemos nos livrar deles, oferecendo centenas de estratégias para expurgá-los de nossas vidas, incluindo homicídio, que ele afirma favorecer, ainda que apenas de brincadeira.

Embora Zedd aconselhe viver no futuro, ele reconhece a necessidade de termos recordações plenas do passado quando isso for absolutamente necessário. Uma das melhores técnicas sugeridas por Zedd para pescar memórias no subconsciente era tomar uma ducha muito fria enquanto se pressionava uma pedra de gelo nos genitais, até que você recordasse os fatos desejados ou fosse acometido por uma hipotermia.

Estando no saguão glamouroso deste hotel fino, Júnior foi obrigado a usar outra das técnicas de Zedd — e mais conhaque — para liberar de seu subconsciente o nome da pessoa que deixara o recado na secretária. A pessoa dissera... Aqui é o Max.

Agora a mensagem... Alguma coisa sobre um hospital. Alguém morrendo. Uma hemorragia cerebral.

Enquanto Júnior lutava para resgatar detalhes de sua memória, o pianista voltou. A primeira canção de seu novo número era "I Want to Hold Your Hands", dos Beatles, arranjada num andamento tão lento que parecia uma canção de ninar para narcolépticos. A invasão do pop britânico, ainda que disfarçado, parecia um sinal de que Júnior deveria se retirar.

Mais uma vez neste quarto de hotel, Júnior consultou a caderneta de endereços de Vanadium, que ele não destruíra. Encontrou um Max. Max Bellini. O endereço era em San Francisco.

Isto não era bom. Ele tinha pensado que tudo a respeito de Thomas Vanadium fazia parte do passado. Agora aqui estava um elo inesperado com San Francisco, onde Júnior planejava erigir o seu futuro.

Havia dois números de telefones listados debaixo do endereço de Bellini. O primeiro estava rotulado trabalho, o segundo, casa.

Júnior olhou as horas no seu relógio de pulso. Nove da noite.

Qualquer que fosse a linha de trabalho de Bellini, ele provavelmente não estaria no trabalho a essa hora.

Ainda assim, Júnior decidiu discar primeiro o número do emprego, com a esperança de pegar uma mensagem gravada sobre suas horas de trabalho. Se ele pudesse descobrir o nome da firma que empregava Bellini, isso seria útil e poderia sugerir a ocupação do homem. Quanto mais Júnior soubesse sobre Bellini antes de ligar para a casa dele, melhor.

O telefone foi atendido no terceiro toque. Uma voz masculina, rouca, disse:

— Homicídios.

Por um instante, Júnior pensou que era uma acusação.

— Alô? — disse o homem no outro lado da linha.

— De onde... de onde fala? — inquiriu Júnior.

— Departamento de Polícia de San Francisco, homicídios.

— Desculpe. Foi engano.

Desligou e afastou a mão do telefone como se ele o tivesse queimado. Departamento de Polícia de San Francisco.

Era quase certo que Bellini fosse um detetive de homicídios, exatamente como Vanadium. Ligar para a sua casa não seria uma boa idéia.

Agora era imperativo que Júnior lembrasse de cada palavra da mensagem que Bellini deixara para o seu colega distante no Oregon. Ainda assim, o restante da mensagem continuava enterrado em sua memória.

Convenientemente, todas as manhãs, quando a camareira do hotel trocava os lençóis da cama e colocava um odorizante mentolado no travesseiro, ela também enchia o balde de gelo. Como uma careta de antecipação à provação que o aguardava, Júnior carregou o balde até o banheiro.

Despiu-se, ligou a água gelada e entrou no chuveiro. Ficou parado ali em pé algum tempo, torcendo que a água gelada fosse suficiente para libertar as lembranças de que precisava. Não deu sorte.

Hesitante, mas com a confiança que qualquer acólito teria em sua fé, Júnior pegou um punhado de cubos de gelo e pressionou-os contra os dois locais mais quentes de sua anatomia.

Um número terrível de minutos depois, tremendo violentamente e chorando por pena de si mesmo, mas ainda longe de uma hipotermia, ele recordou as últimas coisas essenciais na mensagem da secretária eletrônica.

A coitada da menina... hemorragia cerebral... o bebê sobreviveu...

Júnior fechou a água, saiu do boxe do chuveiro, enxugou-se vigorosamente, vestiu dois pares de cuecas novas, foi para a cama, puxou as cobertas até o queixo. E matutou.

Vanadium no cemitério, segurando uma rosa branca. Caminhando entre as lápides para se colocar ao lado de Júnior, diante da sepultura de Naômi.

Júnior perguntara-lhe a que funeral ele acabara de comparecer.

Da filha de um amigo. Eles disseram que ela morreu num acidente de trânsito em San Francisco. Ela era ainda mais nova do que Naômi.

O amigo tinha sido o reverendo White. Sua filha... Serafina.

Suspeitando que a causa da morte poderia não ter sido um acidente de trânsito, era evidente que Vanadium pedira a Max Bellini que investigasse em San Francisco.

Serafina tinha morrido... mas o bebê sobrevivera.

O mais simples dos cálculos revelou que a gravidez de Serafina datava daquela noite de amor tórrido que eles tinham compartilhado na paróquia, ao acompanhamento da voz do pai da moça esboçando um sermão.

A boa Naômi perecera grávida do filho de Júnior, e Serafina morrera enquanto dava à luz outro filho dele.

O orgulho aqueceu os colhões enregelados de Júnior. Ele era um homem viril, e sua semente era definitivamente fértil. Isso não o surpreendia, mas uma confirmação tão espetacular não deixava de ser gratificante.

Sua euforia foi temperada pela compressão de que o sangue proporcionava um espectro de prova admissível no tribunal. As autoridades tinham conseguido identificá-lo como o pai do bebê que morrera com Naômi. Se a suspeita levasse os policiais a perseguir a questão, eles seriam capazes de associar a paternidade do bebê Serafina também a ele.

Aparentemente, a filha do pastor não mencionara o nome de Júnior nem fizera acusações de estupro antes de sucumbir. Se isso tivesse acontecido, Júnior agora estaria numa cela. E com a mocinha morta, mesmo se os testes laboratoriais revelassem que Júnior era o pai de seu bebê, nenhum processo crível poderia ser estabelecido.

Para Júnior, a ameaça residia em outro lugar.

Um pouco mais de reflexão logo trouxe o entendimento.

Há quase duas semanas, no hospital de Spruce Hills, Júnior tinha sido atraído por algum magnetismo estranho para a vitrine da unidade neonatal. Ali, transfixado pelos recém-nascidos, ele afundara num medo terrível que ameaçara devastá-lo completamente. Através de algum tipo de sexto sentido, ele compreendera que o misterioso Bartholomew tinha alguma relação com bebês.

Agora Júnior empurrou as cobertas e saltou da cama. Tenso, pôs-se a perambular pelo quarto do hotel.

Talvez ele não tivesse percorrido esta cadeia de raciocínio se não fosse um admirador de Caesar Zedd, porque Zedd ensina que muito freqüentemente a sociedade nos encoraja a ignorar certas idéias, tachando-as como ilógicas, até paranóicas, quando na verdade elas provêm de um instinto animal e constituem a coisa mais próxima da verdade à qual podemos chegar.

Bartholomew não tinha apenas alguma relação com bebês. Bartholomew era um bebê.

Serafina White viera para a Califórnia para dar à luz a fim de poupar seus pais — e sua congregação — do embaraço.

Ao deixar Spruce Hills, Júnior julgara colocar distância entre ele e o seu inimigo enigmático, ganhando tempo para estudar o catálogo telefônico e planejar sua busca contínua, caso essa rota de investigação não surtisse sucesso. Em vez disso, ele caminhara direto para o covil do seu adversário.

Bebês de mães solteiras — especialmente de mães solteiras mortas, e especialmente de mães solteiras mortas cujos pais eram pastores incapazes de suportar a mortificação pública — costumavam ser disponibilizados à adoção. Como Serafina dera à luz aqui, o bebê seria — indubitavelmente já tinha sido — adotado por uma família da área de San Francisco.

Enquanto Júnior dava voltas pelo quarto de hotel, o medo em seu peito cedeu lugar à raiva. Tudo que ele queria era paz, uma chance de crescer como pessoa, uma oportunidade de se aperfeiçoar. E agora isto. Ele estava chocado com o quanto isso tudo era injusto. Sentia-se perseguido.

Júnior não era imune à lógica tradicional, mas neste caso ele reconhecia a sabedoria superior da filosofia de Zedd. Seu medo de Bartholomew e sua animosidade profunda contra uma criança com quem jamais se encontrara desafiava toda a razão e excedia uma simples paranóia; portanto, devia tratar-se do mais puro, do mais infalível, instinto animal.

O pequeno Bartholomew estava aqui em San Francisco. Era preciso encontrá-lo. Era preciso eliminá-lo.

Depois que finalmente havia delineado um plano de ação para localizar a criança, Júnior estava com tanta raiva que suava, e assim tirou um dos dois pares de cuecas que estava usando.

 

DEFINHADO PELA POLIOMIELITE, o corpo de Perri não foi um teste para a força das pessoas que carregaram o seu caixão. O pastor rezou por sua alma, os amigos choraram por perdê-la e a terra a recebeu.

Paul Damascus recebera inúmeros convites para jantar. Ninguém achava que ele deveria ficar sozinho nesta noite difícil.

A solidão, contudo, era a sua preferência. Ele considerava a simpatia de seus amigos insuportável, uma lembrança constante de que Perri não existia mais.

Tendo sido conduzido da igreja para o cemitério em companhia de Hanna, sua governanta, Paul preferira voltar do cemitério para casa a pé. A distância entre a cama nova de Perri e sua cama velha era de apenas cinco quilômetros, e a tarde estava com uma temperatura agradável.

Ele não tinha mais qualquer motivo para seguir um regime de exercícios. Durante 23 anos, ele precisara manter uma boa saúde para cumprir as suas responsabilidades, mas agora todas as responsabilidades que tinham importado para ele haviam sido tiradas de seus ombros.

Caminhar em vez de dirigir era agora nada mais do que uma questão de hábito. E caminhando ele poderia retardar sua chegada a uma casa que tinha se tornado uma estranha para ele, uma casa em que cada som que ele fazia, desde a segunda-feira, parecia ecoar como se através de cavernas vastas.

Quando notou que o crepúsculo tinha chegado e ido embora, compreendeu também que caminhara através de Bright Beach, ao longo da rodovia Pacific Coast, e para o sul, rumo à cidade vizinha. Ele havia andado talvez uns quinze quilômetros.

Ele tinha apenas algumas lembranças muito vagas da jornada.

Isto não lhe pareceu estranho. Entre as muitas coisas que não mais lhe diziam nada estavam os conceitos de distância e tempo.

Virou-se, caminhou de volta para Bright Beach e foi para casa.

A casa estava vazia, silente. Hanna ficava apenas durante o dia. Nellie Oatis, a acompanhante de Perri, não trabalhava mais aqui.

A sala de estar não mais era usada também como dormitório. A cama de hospital de Perri havia sido retirada. A cama de Paul tinha sido movida para um quarto no andar de cima, onde durante as últimas três noites ele tentara dormir.

Subiu para tirar seu terno azul-escuro e seus sapatos pretos mal cuidados.

Na sua mesinha-de-cabeceira encontrou um envelope evidentemente colocado ali por Hanna, depois que o tirara do seu jaleco de farmacêutico, que ele lhe dera para lavar. O envelope continha a carta sobre Agnes Lampion que Paul escrevera para o reverendo White, no Oregon.

Ele jamais tivera oportunidade de ler a carta para Perri ou beneficiar-se de sua opinião. Agora, ao correr os olhos pelo texto escrito de punho, suas palavras pareceram bobas, inadequadas, confusas.

Embora tenha considerado rasgar a carta e jogá-la fora, sabia que suas percepções estavam anuviadas pela dor e o que ele escrevera pareceria bom se ele o revisasse num estado mental menos confuso. Recolocou a carta no envelope e a colocou na gaveta de sua mesinha-de-cabeceira.

Na gaveta também havia um revólver que ele guardava para proteger a casa. Ele o fitou, tentando decidir entre descer para fazer um sanduíche ou se matar.

Retirou o revólver da gaveta. Em suas mãos, a arma não ia acomodar-se com a mesma facilidade com que sempre parecia ficar nas mãos dos heróis dos pulp magazines.

Paul temia que o suicídio fosse um passaporte para o Inferno, e sabia que Perri, que jamais pecara na vida, não o esperava nos reinos inferiores.

Agarrando-se à esperança desesperada de reunir-se à sua esposa no Além, Paul guardou a arma e desceu para a cozinha, onde fez um bom sanduíche de queijo quente: cheddar com pedacinhos de picles.

 

NOLLY WULFSTAN, detetive particular, tinha os dentes de um deus, mas o seu rosto lamentável era um argumento convincente contra a existência de uma divindade benigna.

Brancos como um inverno viking, esses magníficos trituradores de comida eram retos como as fileiras de pratos na mesa de banquete de Odin. Soberbas superfícies oclusórias. Belíssimas bordas incisivas. Bicúspides de formato clássico, aninhadas em alinhamento perfeito entre os molares e os caninos.

Antes de tornar-se fisioterapeuta, Júnior considerara estudar odontologia. Mas uma baixa tolerância ao fedor da halitose gerada pelas doenças das gengivas fora um fator decisivo para que desistisse dessa carreira. Porém, ainda gostava de ver uma arcada dentária tão admirável como essa.

As gengivas de Nolly também estavam em excelente estado: firmes, róseas, sem sinal de recessos, envolvendo carinhosamente a base de cada dente.

Esta boca maravilhosa não era simplesmente obra da natureza. Com o que Nolly devia ter gasto para obter esse sorriso, algum dentista sortudo pagara as jóias de sua amante durante os seus anos mais núbeis.

Lamentavelmente, o sorriso radiante meramente enfatizava, por contraste, as feições horrendas do rosto no qual ficava. Irregular, pontuado de manchas e verrugas, e escurecido por uma sombra permanente de barca, este rosto estava além dos poderes de redenção do melhor cirurgião plástico do mundo, o que sem dúvida era o motivo para Nolly aplicar seus recursos estritamente nos cuidados com os dentes.

Cinco dias atrás, raciocinando que um advogado inescrupuloso saberia como encontrar um detetive particular inescrupuloso, mesmo de outra cidade, Júnior telefonara para Simon Magusson, em Spruce Hills, para pedir uma recomendação confidencial. Aparentemente, também existia uma fraternidade dos feios terminais, e seus membros indicavam-se profissionalmente uns aos outros. Magusson

— aquele da cabeça grande, orelhas pequenas, olhos protuberantes — indicara Nolly Wulfstan a Júnior.

Curvado sobre a sua mesa, inclinado conspiratoriamente para a frente, olhos reluzindo como os de um bicho-papão falando sobre a sua receita favorita para cozinhar crianças, Nolly d. se:

— Confirmei as suas suspeitas.

Júnior procurara o detetive há quatro dias, trazendo-lhe uma missão que teria constrangido um investigador mais ético. Ele precisava descobrir se Serafina White dera à luz num hospital de San Francisco no começo do mês, e onde o bebê poderia ser encontrado. Como não estava preparado para revelar seu relacionamento com Serafina, e como qualquer história que inventasse levantaria a suspeita de um detetive competente, o seu interesse nesse bebê inevitavelmente pareceu sinistro.

— A srta. White foi admitida no St. Mary em cinco de janeiro — disse Nolly.

— Estava acometida por uma hipertensão perigosa e uma complicação de gravidez.

No momento em que vira o prédio no qual Nolly mantinha um escritório — uma velha estrutura de três andares no distrito de North Beach —, Júnior soubera que havia encontrado o tipo de investigador de que precisava. O escritório do detetive ficava no topo de seis lances de escadas estreitas — sem elevador —, no fim de um corredor sombrio com linóleo gasto e paredes salpicadas por manchas de uma origem que era melhor não considerar. O ar fedia a desinfetante vagabundo, fumaça de cigarro, cerveja choca e esperanças mortas.

— A srta. White morreu ao dar à luz, como você tinha deduzido, nas primeiras horas de sete de janeiro — disse o detetive.

A suíte do investigador — uma sala de espera minúscula e um escritório apertado — carecia de uma secretária, mas certamente era rico em todas as formas de pestes.

Sentado na cadeira dos clientes, separado de Nolly por uma mesa salpicada de queimaduras de cigarro, Júnior ouviu, ou imaginou ter ouvido, um pequeno roedor passar correndo atrás dele, e alguma coisa mastigando papel dentro de um par de arquivos enferrujados. Repetidamente, esfregou as costas de seu pescoço ou se curvou para coçar os tornozelos, convencido de que havia insetos andando sobre sua pele.

— O bebê da jovem foi disponibilizado para adoção na Associação das Famílias Católicas.

— Ela era batista.

— Sim, mas o hospital é católico, e oferece essa opção a todas as mães solteiras... a despeito de qual seja a sua religião.

— Então, onde está o menino agora?

Quando Nolly suspirou e franziu a testa, seu rosto feio pareceu em perigo de escorregar de seu crânio, como aveia escorrendo de uma colher.

— Sr. Caim, por mais que eu lamente isso, acho que vou precisar devolver metade do adiantamento que me deu.

— Hein? Por quê?

— A lei exige que os registros de adoção sejam guardados com tanto segredo que seria mais fácil conseguir uma lista completa dos agentes da CIA infiltrados no crime organizado do que encontrar esse bebê.

— Mas você obviamente consultou os registros do hospital...

— Não. A informação que lhe dei veio do Instituto Médico Legal, que emitiu o certificado de óbito. Mas mesmo se eu tivesse acesso aos registros do St. Mary, não encontraria uma única pista de onde a Associação das Famílias Católicas colocou esse bebê.

Tendo antecipado que teria algum tipo de problema, Júnior retirou de um bolso interno do casaco um maço de notas novinhas de cem dólares. O maço ainda estava amarrado com a fita do banco, e nela estava impresso o valor somado das notas: dez mil dólares.

Júnior pousou o dinheiro na mesa.

— Então entre nos arquivos da Associação de Famílias Católicas.

O detetive olhou boquiaberto para o dinheiro, com o desejo de um glutão faminto olhando uma torta de maçã, ou de um sátiro babando por uma loura nua.

— Impossível. O sistema deles é íntegro demais. Eu teria mais chances se você me pedisse para entrar no Palácio de Buckingham e roubasse um par de calcinhas da rainha.

Júnior inclinou-se à frente e deslizou o maço de dinheiro sobre a mesa, na direção do detetive.

— Tem mais de onde estas vieram.

Nolly balançou a cabeça, fazendo uma profusão de manchas e verrugas bailarem por suas faces flácidas.

— Pergunte a qualquer adotado que depois de adulto tentou descobrir os nomes dos seus pais de verdade. É mais fácil arrastar um trem de carga montanha acima com os dentes.

Com os dentes, você conseguiria, pensou Júnior, mas se conteve de dizer isso.

— Isto não pode ser um beco sem saída.

— Mas é. — De uma gaveta na mesa Nolly retirou um envelope e o colocou em cima do dinheiro oferecido. — Estou devolvendo quinhentos dólares do seu adiantamento — disse, empurrando tudo na direção de Júnior.

— Por que você não disse antes que era impossível? O detetive deu de ombros.

— A menina podia ter tido o bebê num hospital de quinta, um sem controle sobre as fichas dos pacientes e uma equipe menos profissional. Ou o bebê poderia ter sido disponibilizado para adoção através de alguma corretagem de bebês, estritamente pelo dinheiro. Então teríamos chances de descobrir alguma coisa. Mas assim que soube que o parto tinha sido no St. Mary, vi que estávamos perdidos.

— Se existem registros, eles podem ser adquiridos.

— Sr. Caim, não sou um ladrão. Nenhum cliente tem dinheiro suficiente pra me fazer correr o risco de acabar no xilindró. Além disso, mesmo se conseguisse os arquivos deles, provavelmente descobriria que as identidades dos bebês estão codificadas, e sem o código o senhor estaria no mato sem cachorro.

— Isto é um estorvo — disse Júnior, lembrando, sem precisar de passar gelo nas genitais, da palavra aprendida num curso de aperfeiçoamento de vocabulário.

— É o quê? — perguntou o detetive, que, exceto por seus dentes, não era um indivíduo auto-aperfeiçoado.

— Um embaraço, um obstáculo — disse Júnior.

— Entendo o que quer dizer. Eu jamais daria as costas para tanto dinheiro se pudesse fazer qualquer coisa para merecê-lo.

A despeito dos dentes brilhantes, o sorriso do detetive foi melancólico, prova de que ele fora sincero ao dizer que o bebê de Serafina estava fora de seu alcance.

Quando caminhou pelo corredor de linóleo rachado e desceu os seis lances de escadas até a rua, Júnior descobriu que uma garoa fina estava caindo, A tarde ficou ainda mais escura quando ele virou o rosto para o céu e a cidade fria, que em algum lugar protegia Bartholomew em suas entranhas de concreto, não parecia mais um pináculo da cultura e da sofisticação, mas um império ameaçador.

Em comparação com o resto da cidade, o clube de striptease — com sua fachada iluminada em néon, com luzes de teatro piscando — parecia mais aconchegante e convidativo.

O letreiro prometia dançarinas com os peitos de fora. Embora estivesse em San Francisco há uma semana, Júnior ainda não experimentara esta forma de arte de avant-garde.

Sentiu-se tentado a entrar.

Um problema: Nolly Wulfstan, um Quasímodo sem corcunda, provavelmente vinha a esse clube noturno depois do trabalho, para entornar algumas cervejas, porque isto certamente era o mais perto que ele conseguia chegar de uma mulher atraente. O detetive pensaria que ele e Júnior estavam ali pela mesma razão — olhar beldades nuas e guardar imagens suficientes de peitões para uma diversão solitária antes de dormir — e não compreenderia que para Júnior a atração era a dança, a emoção intelectual de experimentar um novo fenômeno cultural.

Frustrado em muitos níveis, Júnior correu até um estacionamento a um quarteirão de distância do escritório do detetive, onde deixara seu Chevrolet Impala conversível. Molhado de chuva, o carro vermelho-sangue era ainda mais bonito do que parecera, polido e em condições imaculadas, na vitrine da concessionária.

Contudo, apesar de sua beleza, potência e conforto, o carro não foi capaz de levantar o moral de Júnior enquanto ele subia e descia as colinas da cidade. Em algum lugar ao longo dessas ruas reluzentes, nessas casas e prédios altos, estava abrigado um menino meio negro, meio branco, mas uma ameaça completa para Caim Júnior.

 

NOLLY SENTIA-SE UM pouco ridículo caminhando pelas ruas sinuosas de North Beach debaixo de um guarda-chuva branco com bolotas vermelhas. Contudo, ele o mantinha seco, e com Nolly as considerações práticas sempre triunfavam sobre as questões de imagem e estilo.

Uma cliente distraída deixara o guarda-chuva no escritório há seis meses. Se não fosse por isso, Nolly não teria nenhum guarda-chuva.

Ele era um detetive muito bom, mas no que dizia respeito às minúcias da vida cotidiana não era tão organizado quanto gostaria. Ele jamais lembrava de separar suas meias esburacadas para serem cerzidas; e certa vez ele usara um chapéu com um buraco de bala por quase um ano antes de pensar em comprar um novo.

Hoje em dia poucos homens usavam chapéus. Desde sua adolescência, Nolly gostava de um modelo de abas ligeiramente curvas. Freqüentemente fazia frio em San Francisco, e ele começara a perder os cabelos ainda muito jovem.

A bala tinha sido disparada por um tira renegado que era tão ruim de mira quanto era corrupto. Ele estivera mirando na virilha de Nolly.

Isso acontecera há dez anos, a primeira e a última vez em que alguém atirara em Nolly. O trabalho verdadeiro de um detetive particular não tinha nada em comum com a vida colorida retratada na televisão e nos livros. Esta era uma profissão de poucos riscos e muita rotina, contanto que você escolhesse seus casos com cuidado — o que significava manter-se longe de clientes como Enoch Caim.

A quatro quarteirões de seu escritório, numa rua mais requintada que a sua, Nolly chegou ao Edifício Tollman. Construído na década de 1930, tinha um ar art deco. As áreas públicas possuíam pisos de travertino e um mural futurista, exaltando as maravilhas da era das máquinas, abrilhantava uma parede do saguão.

No quarto pavimento, na suíte da dra. Klerkle, a porta do corredor estava aberta. Depois da horário comercial, a pequena sala de visitas ficava deserta.

Três acomodações igualmente modestas davam para esta sala. Duas abrigavam consultórios dentários e a terceira era o espaço apertado compartilhado pela recepcionista e pela dentista.

Se Kathleen Klerkle fosse um homem, ela teria um espaço maior num edifício mais novo numa parte melhor da cidade. Ela era mais gentil e respeitosa para com o conforto de seus pacientes que qualquer homem dentista que ele já tinha conhecido, mas o preconceito prejudicava as mulheres de sua profissão.

Enquanto Nolly pendurava sua capa de chuva e seu chapéu de feltro num cabideiro ao lado da porta, Kathleen Klerkle apareceu na entrada para a mais próxima das duas salas de tratamento.

— Está preparado para sofrer?

— Nasci humano, não nasci?

Ele se acomodou na cadeira sem tremer.

— Vou usar uma quantidade muito pequena de novocaína, para a sua boca não estar entorpecida na hora do jantar.

— Como se sente sendo parte de um momento histórico como este?

— Lindbergh pousando na França não foi nada em comparação com isto. Ela removeu uma jaqueta temporária da segunda bicúspide no lado inferior

esquerdo e substituiu-a por uma de porcelana que o laboratório tinha entregue naquela manhã.

Nolly gostava de observar as mãos de Kathleen enquanto ela trabalhava. Delgadas, graciosas, mãos de menina adolescente.

Ele também gostava de seu rosto. Ela não usava maquiagem e mantinha os cabelos presos num coque. Alguns homens diziam que ela parecia uma ratinha, mas a única coisa nela que lhe lembrava um rato era um jeito engraçadinho de torcer o nariz de vez em quando.

Ao terminar, ela lhe deu um espelho, para que ele pudesse admirar sua nova jaqueta bicúspide. Depois de cinco anos de tratamento, espaçado para não sobrecarregar a tolerância de Nolly, Kathleen melhorara o serviço da natureza, dando-lhe uma mordedura perfeita e um sorriso sobrenatural. A última jaqueta era a parte final da reconstrução.

Ela soltou o cabelo e o penteou, e Nolly levou-a para jantar no seu local favorito, que tinha uma decoração classuda e uma vista para a baía adequada para a mesa de Deus. Eles vinham aqui com tanta freqüência que o maître cumprimentou-os por seus nomes, como também fez o garçom.

Nolly, como sempre, era "Nolly" para todos, mas aqui Kathleen era a "sra. Wulfstan".

Pediram martínis, e quando Kathleen, correndo os olhos pelo cardápio, perguntou ao seu marido o que achava adequado para o jantar, ele sugeriu:

— Ostras?

— Sim, você vai precisar delas. — Seu sorriso não pareceu nem um pouco com o de uma ratinha.

Enquanto saboreavam seus martínis gelados, ela perguntou sobre o cliente e Nolly respondeu:

— Ele engoliu a história. Não vai dar as caras de novo.

Os registros de adoção do bebê de Serafina White não tinham sido selados pela lei, porque a custódia da criança permaneceria com a família.

— E se ele descobrir a verdade? — perguntou Kathleen, preocupada.

— Vai pensar apenas que sou um detetive incompetente. E se aparecer querendo suas quinhentas pratas de volta, vou dar a ele.

Uma vela de mesa brilhava num copo âmbar. Para Nolly, a esta luz bruxuleante, o rosto de Kathleen estava mais radiante que a chama.

Eles haviam se conhecido graças a um interesse mútuo por dança de salão, quando cada um deles precisara de um novo parceiro para uma competição de fox-trote e suingue. Nolly começara a freqüentar aulas de dança cinco anos antes de conhecer Kathleen.

— Afinal de contas, aquele escroto disse por que quer achar o bebê? — perguntou Kathleen.

— Não. Mas tenho certeza que será melhor para o bebê não ser descoberto por gente como ele.

— Por que ele tem tanta certeza de que é um menino?

— Sei lá. Mas não contei a verdade para ele. Quanto menos ele souber, melhor. Ainda não sei qual é a motivação dele, mas se você quisesse seguir o rastro desse sujeito, teria de procurar por pegadas de cascos fendidos.

— Tome cuidado, Sherlock.

— Ele não me assusta — disse Nolly.

— Ninguém te assusta. Mas um bom chapéu de feltro não é barato.

— Ele me ofereceu dez mil pratas para roubar a Associação das Famílias Católicas.

— Então disse a ele que para fazer isso você cobrava vinte?

Mais tarde, em casa na cama, depois que Nolly tinha provado o valor das ostras, ele e Kathleen ficaram deitados de mãos dadas. Depois de um silêncio muito longo, ele disse:

É um mistério.

O que é um mistério?

Porque você está comigo.

Gentileza, cavalheirismo, humildade, força.

Isso basta?

Bobinho.

O Caim parece um astro de cinema. Ele tem dentes bonitos? São bons. Não são perfeitos. Então me beija, Sr. Perfeito.

 

Toda mãe acredita que o seu bebê é o mais bonito do mundo. Ela continuará inabalavelmente convencida disso mesmo se viver para ser uma centenária e seu bebê tiver sido devastado por oito décadas árduas de gravidade e experiência.

Toda mãe também acredita que o seu bebê é mais esperto que os outros. Infelizmente, o tempo e as opções da criança geralmente exigem que ela ajuste sua opinião, o que ela jamais fará na questão da beleza física.

Mês a mês, durante o primeiro ano de seu filho, Agnes viu o desenvolvimento de Barty confirmar a sua crença de que ele possuía uma inteligência extraordinária. No final do segundo mês de vida, a maioria dos bebês sorri em resposta a um sorriso, e é capaz de sorrir espontaneamente no quarto mês. Barty já sorria freqüentemente em sua segunda semana. No terceiro mês, muitos bebês riem alto, mas a primeira gargalhada de Barty apareceu em sua sexta semana.

No começo de seu terceiro mês, em vez de no fim de seu quinto, ele estava combinando vogais com consoantes: "Ba-ba-ba, ga-ga-ga, la-la-la, ca-ca-ca."

No fim de seu quarto mês, em vez de em seu sétimo, ele disse "Mamã" e deixou claro que entendia o significado da palavra. Ele a repetia quando queria a atenção de Agnes.

Foi capaz de brincar de esconder a cara em seu quinto mês, em vez de em seu oitavo, e a ficar em pé segurando-se em algo em seu sexto mês, em vez de no oitavo.

Durante onze meses seu vocabulário se expandiu para dezenove palavras, segundo as contas de Agnes: uma idade em que até uma criança precoce costuma falar três ou quatro no máximo.

Sua primeira palavra depois de mamã foi papá, que ela ensinou mostrando-lhe fotos de Joey. Sua terceira palavra: torta.

Ele chamava Esaú de E-zu. Maria tornou-se Ma-ia.

A primeira vez que Bartholomew disse "Ba-bó" e estendeu a mão na direção de seu tio, Jacó surpreendeu Agnes ao chorar de felicidade.

Barty começou a engatinhar aos dez meses e a caminhar aos onze.

Aos doze meses sabia fazer suas necessidades sozinho, e sempre que precisava usar seu troninho colorido ele anunciava orgulhoso para todos:

— Barty qué cocô!

Em 10 de janeiro de 1966, cinco dias antes do primeiro aniversário de Barty, Agnes descobriu-o, em seu cercadinho, divertindo-se com uma brincadeira incomum com os dedos. Ele não estava simplesmente coçando ou puxando aleatoriamente os dedos do pé. Entre o polegar e o indicador, ele puxou com firmeza o dedo médio do pé esquerdo e em seguida puxou os dedos, um a um, até o dedo maior. Sua atenção mudou para o pé esquerdo, onde ele puxou primeiro o dedo maior, antes de seguir sistematicamente até o menor.

Durante esse procedimento, Barty pareceu solene e pensativo. Quando espremeu o décimo dedo, olhou para ele, testa franzida.

Ele segurou um dedo na frente do seu rosto, estudando os dedos. A outra mão.

Puxou todos os dedos na mesma ordem que antes.

E em seguida puxou-os novamente em ordem.

Agnes teve a impressão louca de que Barty estava contando os dedos, quando em sua idade, é claro, ele não poderia ter nenhuma noção de números.

— O que está fazendo, meu bem? — disse Agnes, agachando-se para olhar para ele entre as barras verticais do cercadinho.

Ele sorriu e levantou um pé.

— Esses são os dedos do seu pé.

— Dedos! — repetiu imediatamente na sua voz doce e aguda. Esta era uma palavra nova para ele.

Esticando o braço entre as barras do cercadinho, Agnes fez cócegas nos na sola rosada do pé esquerdo de Barty.

— Dedos.

Barty soltou uma risada gostosa e disse:

— Dedos.

— Você é um bom menino, Barty esperto. Ele apontou para os pés.

— Dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos.

— Um bom menino, mas um pouco repetitivo. Levantando a mão, ele disse:

— Dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos, dedos.

— Que foi que eu disse?

Cinco dias depois, na manhã do aniversário de Barty, quando Agnes e Esaú estavam na cozinha, cuidando dos preparativos para as visitas que tinham lhe concedido o título afetuoso de Moça das Tortas, Barty estava em sua cadeira alta, comendo um wafer de baunilha empapado com leite. Cada vez que um pedaço do biscoito caía, o menino tirava-o da bandeja e o punha cuidadosamente sobre a língua.

Alinhadas sobre a mesa da cozinha estavam tortas de maçãs e uvas verdes. Seus domos crocantes eram reluzentes como moedas de ouro.

Barty apontou para a mesa.

— Torta, torta, torta, torta, torta, torta, torta, torta.

— Não são suas — disse Agnes. — A nossa está na geladeira.

— Torta, torta, torta, torta, torta, torta, torta, torta — repetiu Barty, com o mesmo tom eufórico que usava ao anunciar "Barty qué cocô".

— Ninguém começa o dia com torta — disse Agnes. — Torta se come depois do jantar.

Apontando o dedo para a mesa a cada repetição da palavra, Barty insistiu alegremente:

— Torta, torta, torta, torta, torta, torta, torta, torta.

Esaú dera as costas para a caixa de mantimentos que estivera empacotando. Fitando as tortas, ele disse:

— Você não acha... Agnes olhou para o irmão.

— Acha o quê?

— Não pode ser — disse Esaú.

— Torta, torta, torta, torta, torta, torta, torta, torta.

Esaú removeu duas tortas da mesa e colocou-as no balcão perto dos fornos. Depois de seguir os movimentos do tio, Barty olhou novamente para a mesa.

— Torta, torta, torta, torta, torta, torta.

Esaú transferiu mais duas tortas da mesa para o balcão. Apontando quatro vezes para a mesa, Barty disse:

— Torta, torta, torta, torta.

Embora suas mãos estivessem tremendo e os joelhos parecessem a ponto de desabar, Agnes levantou duas tortas da mesa.

Balançando o dedo indicador para cada um dos petiscos remanescentes, Barty disse:

— Torta, torta.

Agnes colocou de volta na mesa as duas tortas que tinha levantado.

— Torta, torta, torta, torta — disse Barty, sorrindo para ela.

Surpresa, Agnes olhou para o bebê. Não conseguia dizer uma palavra sequer, em parte por orgulho, em parte por assombro e em parte por medo, embora não tivesse compreendido imediatamente por que essa precocidade maravilhosa deveria assustá-la.

— Uma, duas, três, quatro. — Esaú retirou todas as tortas remanescentes. Ele apontou para Barty e em seguida para a mesa vazia.

Barty suspirou como se estivesse desapontado.

— Sem torta.

— Meu Deus — disse Agnes.

— Mais um ano e ele vai levar você de carro no meu lugar — disse Esaú. Seu medo, Agnes compreendeu subitamente, provinha da convicção de seu

pai — que em vida ele havia expressado freqüentemente — de que uma tentativa em superar os outros em qualquer coisa era um pecado que um dia seria punido. Todas as formas de diversão eram pecaminosas, segundo a forma de pensar de seu pai, e todas as pessoas que procuravam mesmo os entretenimentos mais simples eram almas perdidas; contudo, os piores pecadores eram aqueles que divertiam os outros, porque eram orgulhosos e ambicionavam tornarem-se falsos deuses, para serem adorados como apenas Deus deveria ser. Os atores, músicos, cantores e escritores estavam condenados ao Inferno por seus próprios atos de criação que, em sua egomania, viam como equivalente à obra do Criador. Lutar para superar a média das pessoas em qualquer coisa era um sinal de corrupção da alma, fosse a intenção ser reconhecido como um carpinteiro, um mecânico ou um cultivador de rosas melhor que os outros. Aos olhos do pai de Agnes, o talento não era um presente de Deus, mas do diabo, e seu propósito era distrair-nos da oração, da penitência, do dever.

É claro que sem a excelência não haveria civilização, progresso, ou alegria; e Agnes sentia-se surpresa em encontrar esse fragmento da filosofia de seu pai ecoando no subconsciente, preocupando-a sem necessidade. Ela até agora tinha achado que estava completamente livre da influência dele.

Se o seu lindo filho ia ser algum tipo de prodígio, ela agradeceria a Deus por seu talento e faria qualquer coisa que pudesse para ajudá-lo a alcançar o seu destino.

Ela se aproximou da mesa da cozinha e correu a mão sobre ela, para enfatizar seu vazio.

Barty seguiu o movimento da mãe de Agnes, levantou os olhos até os dela, hesitou, e então perguntou:

— Sem torta?

— Exatamente — disse Agnes, sorrindo para ele. Animado com o sorriso da mãe, o menino exclamou:

— Sem torta!

— Sem torta! — concordou Agnes.

Agnes usou suas mãos para colocar a cabeça do menino entre parênteses e pontuou com beijos o seu lindo rostinho.

 

PARA OS AMERICANOS de descendência chinesa — e San Francisco tinha uma grande população chinesa — 1965 fora o Ano da Cobra. Para Caim Júnior, tinha sido o Ano da Arma, embora não tenha começado dessa forma.

Seu primeiro ano em San Francisco tinha sido rico em eventos para a nação e para o mundo. Winston Churchill, reconhecidamente o maior homem do século até aqui, tinha morrido. Os Estados Unidos lançaram os primeiros ataques aéreos contra o Vietnã do Norte e Lyndon Johnson aumentou o número de soldados para 150 mil nesse conflito. Um cosmonauta soviético tinha sido o primeiro a andar no espaço fora de uma cápsula orbital. Distúrbios raciais abalaram Watts durante cinco dias de fúria. A Lei dos Direitos de Voto de 1965 foi promulgada. Sandy Koufax, lançador dos Dodgers de Los Angeles, fez uma tacada perfeita, na qual nenhum batedor alcançou a primeira base. T. S. Eliot morreu e Júnior comprou um dos livros do poeta através do Clube do Livro. Outras pessoas famosas faleceram: Stan Laurel, Nat King Cole, Le Corbusier, Albert Schweitzer, Somerset Maugham... Indira Ghandi tornou-se a primeira mulher primeira-ministra da índia, e o sucesso inexplicável e irritante dos Beatles continuou e continuou.

Além de comprar o livro de T. S. Eliot, que ele não encontrara tempo para ler, Júnior estivera apenas marginalmente cônscio dos eventos correntes, porque eles eram, afinal de contas, correntes, enquanto tentava concentrar-se no futuro. As notícias do dia eram apenas mera música de fundo para ele, como uma canção no rádio do apartamento de outra pessoa.

Estava morando em Russian Hill, num prédio de fachada de pedra com detalhes vitorianos. Seu apartamento de um banheiro incluía uma cozinha espaçosa com bancada de café e uma sala de estar ampla com janelas com vista para a sinuosa Lombard Street.

A lembrança da decoração espartana da casa de Thomas Vanadium permanecia com Júnior, e ele decorara sua morada tendo o estilo do detetive em mente. Instalara um mínimo de mobília, embora todos os móveis fossem novos, de qualidade superior ao lixo na residência de Vanadium: peças em nogueira envernizada com estofados eram da cor de mel.

As paredes eram vazias. A única arte nas paredes era uma única escultura. Júnior estava fazendo cursos de extensão em história da arte na universidade, e quase diariamente vagava pelas incontáveis galerias da cidade, aprofundando e refinando constantemente o seu conhecimento. Ele pretendia não iniciar uma coleção antes de conhecer tanto sobre arte quanto qualquer diretor de qualquer museu desta cidade.

A única peça que comprara era de um jovem artista da Área da Baía, Bavol Poriferan, sobre quem os críticos de arte do país inteiro estavam em acordo: ele estava destinado a uma carreira longa e significativa. A escultura custara nove mil dólares, uma extravagância para um homem tentando viver de renda a partir da fortuna que ganhara à custa de tanto esforço, e que agora estava investida com extrema prudência. Contudo, a presença dessa obra de arte em sua sala de estar imediatamente identificava-o, aos doutos, como uma pessoa de sensibilidade e gostos refinados.

A estátua de 1,80m de altura era de uma mulher nua, feita de metal de ferro-velho, parte dele enferrujado. Os pés eram compostos por engrenagens de tamanhos variados e pontas de batedores de carne quebrados. Pistons, canos e extensões de arame farpado formavam suas pernas. Ela era peituda: latas de sopa amassadas como seios, parafusos como mamilos. Mãos de ancinho cruzadas defensivamente sobre o peito deformado. Num rosto esculpido com garfos torcidos e lâminas de ventilador, órbitas oculares negras e vazias arregalavam-se num sofrimento hediondo, e uma boca aberta acusava o mundo com um grito

de horror silencioso.

Ocasionalmente, quando Júnior voltava para casa de um dia de peregrinação por galerias ou uma noite num restaurante, a Mulher industrial — o título do artista — assustava o seu bom humor. Mais de uma vez ele gritara de alarme antes de perceber que estava apenas vendo o seu caríssimo Poriferan.

Às vezes, ao acordar de um pesadelo, ele pensava ter ouvido passos metálicos. O guinchado de juntas de metal enferrujado. O som metálico de dedos de pontas de ancinho batendo uns contra os outros.

Geralmente ele permanecia imóvel, tenso, escutando, até que uma quantidade suficiente de silêncio o convencesse de que os sons que ouvira tinham sido do sonho, não do mundo real. Se o silêncio não o acalmasse, ele ia até a sala de estar, para certificar-se de que a Mulher industrial estava onde ele a deixara, seu rosto de garfos e lâminas de ventilador contorcidos num grito mudo.

Este, obviamente, é o propósito da arte: perturbar você, deixá-lo incomodado consigo mesmo e com o mundo, para minimizar o seu senso de realidade de modo a fazê-lo reconsiderar tudo que você pensava que sabia. As melhores obras de arte devem abalá-lo emocionalmente, devastá-lo intelectualmente, deixá-lo fisicamente doente, e enchê-lo com ódio pelas tradições culturais que nos cegam e nos prendem e nos afogam num mar de conformismo. Júnior já aprendera tudo isso no seu curso de história da arte.

No começo de maio, ele buscou o aperfeiçoamento pessoal fazendo um curso de francês. A linguagem do amor.

Em junho, ele comprou um revólver.

Não pretendia usá-lo para matar alguém.

De fato, Júnior passaria o resto de 1965 sem recorrer a outro homicídio. Os disparos não fatais em setembro seriam lamentáveis, sujos, dolorosos... mas necessários, e calculados para causar o mínimo de dano possível.

Mas primeiro, no começo de julho, parou de estudar francês. Era uma linguagem impossível. Difícil de pronunciar. Construções frasais ridículas. Além do mais, nenhuma das mulheres bonitas que ele conhecia falava francês ou se importava se ele falava.

Em agosto, desenvolveu um interesse em meditação. Começou com meditação de concentração — a forma conhecida como meditação "com semente" —, na qual você deve fechar os olhos, focar mentalmente num objeto visualizado e afastar todo o resto de sua mente.

Seu instrutor, Bob Chicane — que o visitava duas vezes por semana durante uma hora — aconselhava-o a imaginar uma fruta perfeita como o objeto de sua meditação. Uma maçã, uma uva, uma laranja... qualquer fruta.

No fim, ele conseguiu uma imagem mental de um pino de boliche como sua "semente". Um objeto liso, de formato elegante, que o convidava a uma contemplação lânguida, mas não provocava a sua libido.

Na noite de terça-feira, 7 de setembro, depois de meia hora na posição de lótus, pensando em nada mais além de um pino de boliche branco com suas mãos negras em seu pescoço e o número 1 pintado em sua cabeça, Júnior foi para a cama às onze da noite e ajustou o alarme do despertador para as três da manhã, quando pretendia atirar em si mesmo.

Dormiu bem, acordou revigorado e empurrou as cobertas.

Numa mesinha-de-cabeceira aguardava-o um copo de água e uma garrafa de farmácia contendo várias cápsulas de um analgésico potente.

Este analgésico estava entre as várias substâncias que roubara, com o tempo, do armário de remédios no hospital de reabilitação onde trabalhara. Algumas substâncias ele havia vendido; estas, ele guardara.

Engoliu uma cápsula e a fez descer com água. Devolveu o frasco à mesinha-de-cabeceira.

Sentado na cama, dedicou algum tempo à sua leitura favorita, passagens marcadas do livro Você é o mundo, de Zedd. O livro apresentava um argumento brilhante de que o egoísmo era a mais incompreendida, moral, racional e corajosa de todas as motivações humanas.

O analgésico não era baseado em morfina, e não sinalizava a sua presença no organismo induzindo sonolência ou mesmo um leve distúrbio nos sentidos. Contudo, depois de quarenta minutos, teve certeza de que ele seria eficiente, e colocou o livro de lado.

O revólver estava na mesinha-de-cabeceira, completamente carregado.

Descalço, vestido num pijama azul-escuro, caminhou através dos aposentos acendendo as luzes num determinado padrão que ele havia estabelecido depois de muita consideração e planejamento.

Na cozinha, pegou um pano de pratos numa gaveta, carregou-o até a mesinha com tampo de granito na sala e sentou-se diante do telefone. Antes havia se sentado várias vezes aqui com um lápis, fazendo listas de compras. Agora, em lugar de um lápis, estava com o revólver calibre 22 de fabricação italiana.

Depois de repassar mentalmente o que precisava dizer, depois de ensaiar uma tensão nervosa, discou o número de emergência do departamento de polícia de San Francisco.

Quando a telefonista da polícia atendeu, Júnior gritou:

— Levei um tiro! Meu Deus! Levei um tiro! Me ajuda, manda uma ambulância... ai, merda. Depressa!

A telefonista tentou acalmá-lo, mas ele permaneceu histérico, entre arfados e gritos de dor fingida, recitou trêmulo seu nome, endereço e número de telefone.

A telefonista instruiu Júnior a permanecer na linha, acontecesse o que acontecesse, e disse-lhe que continuasse conversando com ela, e ele desligou.

Ele deslizou de lado em sua poltrona até a mesinha, e se inclinou para a frente segurando a arma com ambas as mãos.

Dez, vinte, quase trinta segundos depois, o telefone tocou.

No terceiro toque, Júnior arrancou com um tiro o dedão de seu pé esquerdo.

Uau.

O tiro foi mais alto — e a dor inicialmente menor — do que ele esperava. A explosão ecoou para a frente e para trás pelo apartamento de pé-direito alto.

Largou a arma. No sétimo toque, ele pegou o telefone.

Certo de que a pessoa ligando era a telefonista da polícia, Júnior gritou como que em agonia, perguntando-se se os seus gritos soavam genuínos, porque não tivera oportunidade de ensaiar. E então, apesar do analgésico, seus gritos subitamente eram genuínos.

Chorando desesperadamente, deixou o fone cair na mesinha, agarrou o pano de prato. Amarrou o pano com força em torno do coto, aplicando pressão para diminuir o sangramento.

Seu dedo decepado estava caído do outro lado da sala, sobre o assoalho de ladrilhos brancos. Estava com a ponta para o alto, a unha reluzindo, como se o chão fosse de neve o dedo fosse a única extremidade exposta de um corpo enterrado por uma avalanche.

Teve a impressão de que iria desmaiar.

Durante mais de 23 anos ele dera a esse dedão pouca consideração, tomando-o como certo, tratando-o com negligência vergonhosa. Agora este dedo inferior parecia precioso, um pedaço de carne comparativamente pequeno, mas tão importante para a sua imagem de si mesmo quanto o seu nariz ou seus olhos.

A escuridão começou a envolver as fronteiras de sua visão.

Tonto, caiu para a frente da cadeira, e se esparramou no chão.

Tentou manter a toalha em torno do seu pé, mas ela ficou tingida de vermelho vivo e repugnantemente pegajosa.

Ele não podia desmaiar. Ele não ousava desmaiar.

A conseqüência não era importante. A única coisa que importava era a ação. Esqueça o ônibus cheio de freiras esmagado nos trilhos e fique com o trem desgovernado. Continue em movimento, olhando para a frente, sempre à frente.

Esta filosofia funcionara com ele anteriormente, mas esquecer os efeitos era mais difícil quando a conseqüência era o seu pobre e decepado dedão do pé. O seu pobre e decepado dedão do pé era infinitamente mais difícil de ignorar do que um ônibus cheio de freiras mortas.

Esforçando-se para manter a consciência, Júnior disse a si mesmo que se concentrasse no futuro, que vivesse no futuro, livre do passado inútil e do presente difícil, mas ele não podia avançar no futuro o bastante para chegar a um momento no tempo quando a dor não estaria mais com ele.

Ele pensou ouvir o repicar-tilintar-arrastar da Mulher industrial caminhando. Na sala de estar. Agora no vestíbulo. Aproximando-se.

Incapaz de segurar sua respiração ou silenciar seu choro incontrolável, Júnior não conseguia escutar suficientemente claro para discernir se os sons da escultura eram reais ou imaginários. Ele sabia que tinham de ser imaginários, mas eles pareciam reais.

Arrastou-se freneticamente pelo assoalho até estar de frente para a entrada da cozinha. Através de suas lágrimas de dor, ele esperava ver uma sombra fran-kensteiniana avultando-se no corredor, e então a criatura em si, seus dentes de garfos rangendo, seus mamilos de parafuso apontando para a frente.

A campainha tocou.

A polícia. Mas como eram imbecis! Tocando a campainha quando sabiam que ele tinha levado um tiro. Tocando a porra da campainha quando ele estava aqui, indefeso, a Mulher industrial vindo em sua direção, o dedo do seu pé caído no outro lado da cozinha. Tocando a campainha quando ele estava perdendo sangue suficiente para oferecer transfusões a uma ala inteira de hemofílicos feridos. Os imbecis provavelmente estavam esperando que ele lhes servisse chá e um prato de biscoitos amanteigados, com florezinhas de papel enfeitando cada pires.

— Arrombem a merda da porta! — gritou.

Júnior deixara a porta da frente fechada, porque se a tivesse deixado destrancada pareceria que ele desejara facilitar a entrada da polícia, o que atrairia desconfiança para a situação inteira.

— Arrombem a merda da porta!

Depois que leram um jornal ou fumaram alguns cigarros, os imbecis finalmente arrombaram a porta. O som da madeira sendo partida foi satisfatoriamente dramático.

Aqui estavam eles finalmente, revólveres em punho, cautelosos. Seus uniformes eram diferentes, mas ainda assim lembrávam-no os tiras do Oregon, reunidos à sombra da torre de incêndio. Os mesmos rostos: olhares severos e desconfiados.

Se Vanadium aparecesse entre esses homens, Júnior não apenas vomitaria o conteúdo de seu estômago, como também poria para fora os órgãos internos — todos, até o último —, e cuspiria os seus ossos, até seu corpo ser reduzido a um saco de pele.

— Achei que tinha ouvido um ladrão — gemeu Júnior, mas ele sabia que não devia contar sua história inteira imediatamente; fazer isso pareceria o recitar de um roteiro decorado.

Os policiais permitiram a entrada dos enfermeiros, que se espalharam pelo apartamento, e Júnior diminuiu a força com que apertava o pano de pratos.

Dali a um ou dois minutos um dos policiais voltou, acocorando-se perto de onde os enfermeiros trabalhavam.

— Não há intruso nenhum — disse ele.

— Eu achei que tinha um — argumentou Júnior.

— Não há sinal de arrombamento.

Júnior pressionou a palavra através de uma careta de dor:

— Acidente.

O policial tinha coletado o revólver calibre 22 passando um lápis pelo gatilho, de modo a prevenir a destruição das digitais.

— É meu — disse Júnior, apontando com a cabeça para o revólver. Um soerguer de sobrancelhas pontuou a pergunta:

— O senhor atirou em si mesmo?

— Achei que tinha ouvido alguma coisa — disse Júnior, esforçando-se por parecer apropriadamente mortificado. — Vasculhem o apartamento.

— O senhor atirou no próprio pé?

— Sim — disse Júnior, e se esforçou para não acrescentar seu débil mental.

— Como aconteceu, senhor?

— Nervoso — disse ele, e uivou quando um dos enfermeiros revelou-se um sádico mascarado como anjo de misericórdia.

Mais dois policiais uniformizados entraram na cozinha, tendo terminado de vasculhar o apartamento. Eles pareciam achar graça de tudo aquilo. Júnior sentiu vontade de atirar em todos eles, mas disse:

— Tire isso de perto de mim. Fique com essa coisa.

— O seu revólver? — perguntou o oficial acocorado.

— Nunca mais quero ver essa porcaria. Detesto armas. Meu Deus, como dói! Em seguida, um passeio de ambulância até o hospital, uma corrida até a sala

de cirurgia e, durante algum tempo, a bênção da inconsciência.

Os enfermeiros preservaram o dedão cortado com violência num frasco de plástico que encontraram na cozinha de Júnior. Ele jamais usaria de novo esse tipo de frasco para guardar restos de sopa.

O dedão fora decepado com extrema violência, e a equipe cirúrgica, embora altamente gabaritada, foi incapaz de religá-lo ao pé de Júnior. O dano aos tecidos fora grave demais para permitir o reparo delicado de ossos, nervos e veias sangüíneas.

O coto foi capeado na extremidade do osso cuneiforme interno, privando Júnior de tudo desde o metatarso até a ponta do dedão. Ele ficou deliciado com este resultado, porque uma religação bem-sucedida poderia ter sido uma calamidade.

Na manhã de 10 de setembro, uma sexta-feira, pouco mais de 48 horas depois do tiro, ele se sentia bem e de bom humor.

Assinou alegremente um documento policial, abrindo mão da propriedade do revólver que comprara em junho último. A cidade operava um programa para derreter armas doadas e confiscadas para moldá-las em pás, xilofones, ou canos de água.

Em 23 de setembro, quinta-feira, devido ao acidente e à cirurgia de Júnior, a junta de destacamento — que tinha restaurado sua condição de reservista depois que ele perdera a isenção que acompanhava seu trabalho como fisioterapeuta — concordou em marcar um novo exame médico para dezembro.

Considerando a proteção que isso iria lhe proporcionar num mundo cheio de guerras, Júnior considerou a perda do dedão, ainda que trágica, um desfiguramento necessário. Aos seus médicos e enfermeiras, Júnior fez piadas sobre desmembramento e em geral posou de corajoso, atitude pela qual foi muito admirado.

Assim, por mais traumático que tivesse sido, o disparo não foi a pior coisa que aconteceu a Júnior naquele ano.

Enquanto convalescia, Júnior teve tempo de sobra para praticar meditação. Tornou-se tão eficaz em focar num pino de boliche imaginário que conseguia não pensar em mais nada. Um toque de telefone estridente não conseguia penetrar o seu transe. Até mesmo Bob Chicane, o instrutor de Júnior, que conhecia todos os truques, não conseguia fazer sua voz ser ouvida quando Júnior estava uno com o pino.

Além disso, também teve tempo de sobra para procurar Bartholomew.

Em janeiro, quando recebeu o relatório desapontador de Nolly Wulfstan, Júnior consultou várias organizações de adoções de crianças, assim como várias agências estaduais e federais. Ele descobriu que a história de Wulfstan era verdadeira: os registros de adoção estavam selados pela lei para a proteção dos progenitores verdadeiros. Obter esses registros era impossível.

Enquanto aguardava que a inspiração o presenteasse com uma estratégia melhor, Júnior voltou ao catálogo telefônico em busca do Bartholomew certo. Não o catálogo de Spruce Hills e do condado que a cercava, mas de toda San Francisco.

A cidade tinha menos de doze quilômetros num lado, apenas 120 quilômetros quadrados, mas ainda assim Júnior se via diante de uma tarefa ousada. Centenas de milhares de pessoas residiam dentro dos limites da cidade.

Pior, as pessoas que tinham adotado o bebê de Serafina podiam viver em qualquer lugar na área da baía, que consistia de nove condados. Milhões de números telefônicos para examinar.

Lembrando a si próprio que a sorte favorecia os persistentes e que sempre devia olhar o lado bom das coisas, Júnior começou com a cidade em si e com aqueles cujo sobrenome era Bartholomew. Esse era um número manejável.

Fazendo-se passar por conselheiro da Associação das Famílias Católicas, ele telefonou para cada pessoa listada com esse nome, com uma pergunta relacionada à sua adoção recente. As pessoas que se mostravam aturdidas e que afirmavam não ter adotado uma criança, geralmente eram riscadas da lista.

Às vezes, apesar de negarem tudo, certas pessoas deixavam Júnior com a pulga atrás da orelha. Júnior localizava as residências dessas pessoas, via-as com seus próprios olhos e fazia perguntas novas — e sutis — aos seus vizinhos, até sentir certeza de que sua presa estava em outro lugar.

Em meados de março, ele havia exaurido as possibilidades de Bartholomew tratar-se de um sobrenome. Na época em que atirara no próprio pé, em setembro, Júnior já tinha examinado o primeiro quarto de milhão de números de telefone no catálogo, em busca de pessoas cujos primeiros nomes eram Bartholomew.

Era evidente que o filho de Serafina não teria um telefone. Ele era apenas um bebê, perigoso para Júnior de uma forma que ainda não lhe estava clara, mas, não obstante, um bebê.

Contudo, Bartholomew era um nome incomum, e a lógica dizia que se o bebê agora era chamado Bartholomew, herdara esse nome de seu pai adotivo. Portanto, uma busca nos números de telefone poderia ser frutífera.

Embora ainda se sentisse ameaçado, e continuasse a acreditar em seus instintos nesta questão, Júnior não devotava à caça cada uma das horas em que ficava acordado. Afinal de contas, tinha uma vida para desfrutar. Aperfeiçoamento pessoal para realizar, galerias para explorar, mulheres para conquistar.

Era bem provável que cruzasse com a trilha de Bartholomew quando menos esperasse, não como conseqüência de sua busca, mas no curso normal de um dia. Se isso acontecesse, ele precisava estar preparado para eliminar a ameaça imediatamente, segundo quaisquer meios que lhe fossem disponíveis.

Portanto, depois do disparo, a caçada a Bartholomew prosseguiu, e também a boa vida.

Depois de um mês de recuperação e cuidados médicos pós-operatórios, Júnior pôde retomar suas aulas bissemanais em história da arte. Também voltou a fazer suas peregrinações diárias pelas melhores galerias e museus de belas-artes da cidade.

De borracha firme mas maleável, formado sob medida para o seu pé desfigurado, uma inserção de sapato enchia o vácuo deixado por seu dedo decepado. Esse recurso simples possibilitou que ele caminhasse de forma praticamente confortável, e em novembro Júnior já não mancava.

Mas quando se apresentou para uma reavaliação de sua classificação de reservista, em 14 de dezembro, quarta-feira, Júnior deixou o preenchimento em seu sapato; ele caminhava como o velho ator Walter Brennan passeando pelo rancho no seriado Os McCoys.

O médico da Seleção de Serviços logo declarou Júnior aleijado e inadequado ao serviço militar. Discreta mas ardorosamente, Júnior rogou por uma chance para provar seu valor às forças armadas, mas o examinador não se comoveu com tanto patriotismo, estando interessado apenas em escolher homens saudáveis na fila de gado que passava num ritmo regular à sua frente.

Para celebrar, Júnior foi a uma galeria e comprou a segunda obra de arte de sua coleção. Desta vez não uma escultura, mas uma pintura.

Embora não tão jovem quanto Bavol Poriferan, o artista era igualmente adorado pelos críticos e considerado amplamente como um gênio. Ele assinava com um nome solitário e misterioso, Sklent, e na foto de divulgação exibida na galeria ele parecia perigoso.

A obra-prima que Júnior comprou era uma tela pequena, de 103 cm2, mas seu custo foi de 2.700 dólares. O quadro inteiro — intitulado O câncer espreita invisível, versão 1 — era completamente preto, exceto por uma pequena massa contorcida, verde-bilis e amarelo-pus, no quadrante superior direito. Valia cada centavo gasto.

Júnior sentia-se feliz. Estava se aperfeiçoando a cada dia, a vida ia cada vez melhor — mas então aconteceu algo pior do que o tiro no pé. Uma coisa que arruinou o seu dia, a sua semana, o resto do ano.

Depois de mandar a galeria entregar em casa a aquisição, Júnior parou num restaurante nas proximidades para almoçar. O lugar era especializado na magnífica culinária norte-americana: bolo de carne, galinha frita, macarrão com queijo.

Sentado numa banqueta num canto do balcão, Júnior pediu um cheesebúr-guer, salada com molho, batatas fritas e uma Cherry Coke.

Outro dos projetos de aperfeiçoamento pessoal de Júnior, desde que se mudara para a Califórnia, era tornar-se um gourmet e um connoisseur de vinhos. San Francisco era a universidade perfeita para esta educação, porque oferecia incontáveis restaurantes de classe mundial em todas as variedades étnicas concebíveis.

Porém, de vez em quando ele revertia às suas raízes, para a comida que lhe proporcionava conforto. Portanto, o cheesebúrguer e seus companheiros decadentes.

Recebeu tudo que pediu, e mais. Quando levantou o topo do pão para jogar mostarda sobre o conteúdo, descobriu uma reluzente moedinha de 25 cents premida contra o queijo semiderretido.

Girando na banqueta, o topo do pão numa mão e o frasco de mostarda apertado na outra, Júnior perscrutou a lanchonete comprida. Procurando pelo tira maníaco. O tira maníaco morto. Ele quase esperava ver Thomas Vanadium: cabeça empapada em sangue, rosto reduzido a uma polpa, corpo coberto por lodo de pedreira e completamente molhado, como se tivesse saído do seu Studebaker há poucos minutos.

Embora apenas metade das banquetas no balcão estivesse ocupada, e nenhuma delas perto de Júnior, os clientes ocupavam a maior parte das mesas. Alguns estavam de costas para Júnior, e três tinham aproximadamente o tamanho de Vanadium.

Ele correu ao longo da lanchonete, empurrando as garçonetes e checando todas as três possibilidades. Mas, é claro, nenhum daqueles homens era o detetive morto — ou qualquer pessoa que Júnior tivesse visto antes. Ele estava procurando por — o quê? — um fantasma? Mas fantasmas vingativos não paravam num restaurante assombrado para degustar um bolo de carne.

Além do mais, Júnior não acreditava em fantasmas. Acreditava em carne e ossos, pedra e estuco, dinheiro e poder, nele próprio e na natureza.

Não se tratava de um fantasma. Não se tratava de um morto-vivo. Era alguma outra coisa, mas até que ele soubesse o que era, a única pessoa por quem ele podia procurar era Vanadium.

Com cada pessoa na lanchonete agora olhando para ele, com cada cabeça voltada em sua direção, e com cada olho cauteloso a segui-lo, Júnior jogou a tampa do pão e o frasco de mostarda no chão. Passando pela porta de vaivém no fundo do balcão da lanchonete, ele entrou na estreita área de trabalho atrás dela.

Empurrou com o ombro duas garçonetes, passou pelo cozinheiro velho e baixinho que estava fritando ovos, bacon e carnes de hambúrguer na grelha elétrica. Qualquer que fosse a expressão em seu rosto, devia ser intimidadora, porque os empregados deixaram-no passar, sem levantar um protesto sequer.

Júnior perdera o controle no momento em que girara na banqueta. Segundo a segundo, tempestades gêmeas de raiva e medo giravam mais fortes dentro dele.

Ele sabia que precisava se controlar. Mas não podia manter sua respiração lenta e profunda; não conseguia lembrar de nenhum dos outros métodos à prova de falhas de Zedd para manter o autocontrole, não conseguia recordar uma única técnica de meditação útil.

Quando passou por seu próprio prato no balcão e viu novamente a moeda brilhando no queijo, vociferou um impropério.

E aqui, agora, estava entrando na cozinha através de uma porta com uma escotilha no centro. Através de nuvens de fumaça de cebola frita e do aroma de frango e batata mergulhados em frigideiras enormes.

Funcionários da cozinha. Todos homens. Alguns olharam-no com surpresa; outros nem perceberam que ele havia entrado. Caminhou pelos corredores apertados da cozinha, olhos cheios de água devido à fumaça e ao calor, procurando por Vanadium, por uma resposta.

 

Júnior não encontrou qualquer resposta antes do dono da lanchonete impedi-lo de sair da cozinha para a despensa e a porta dos fundos. Simultaneamente suando e sentindo frio, Júnior xingou o homem, e o confronto ficou feio.

A atitude do proprietário suavizou um pouco quando Júnior comentou sobre a moedinha, e suavizou ainda mais quando voltaram juntos ao balcão para ver a prova no queijo. O dono da lanchonete passou de furioso a apologético.

Júnior não queria uma desculpa. A oferta de um almoço grátis — ou de uma semana inteira de almoços grátis — não provocou nele um sorriso sequer.

Ele queria uma explicação, mas ninguém podia dar-lhe a explicação de que precisava, porque ninguém além dele mesmo conhecia o significado e a simbologia da moeda.

Com fome e nenhuma iluminação, ele se retirou da lanchonete.

Enquanto se afastava, percebeu os muitos rostos nas janelas, todos tão estúpidos quanto os de vacas mascando grama. Ele lhes dera alguma coisa para conversar quando voltassem para as suas lojas e escritórios. Ele se reduzira a um objeto de diversão para estranhos. Ingressara momentaneamente no exército de excêntricos na cidade.

Ficou chocado com o seu comportamento.

Durante o caminho de volta para casa: respirando lenta e profundamente, lenta e profundamente, movendo-se não a passos lépidos, mas numa marcha lenta, procurando permitir que a tensão se esvaísse, esforçando-se para se concentrar em coisas boas, como a sua dispensa plena do serviço militar e sua compra da pintura de Sklent.

O humor de San Francisco às vésperas do Natal o deserdara. O brilho e a alegria da época deram lugar a um clima tão sombrio e agourento quanto O câncer espreita invisível, versão 1.

Quando chegou ao seu apartamento, Júnior já conseguia pensar melhor. Assim, telefonou para Simon Magusson, seu advogado em Spruce Hills.

Usou o telefone da cozinha, no armário de canto. O sangue que estivera ali obviamente fora limpado há muito tempo, e os danos mínimos do ricochete da bala tinham sido reparados.

Estranhamente, como às vezes acontecia neste aposento, Júnior sentiu seu dedo desaparecido coçar. Não havia qualquer motivo para remover o sapato e a meia e coçar o coto, porque isso simplesmente não proporcionaria o menor alívio. Curiosamente, a coceira era no fantasma do dedão, que obviamente jamais podia ser coçado.

Quando finalmente atendeu, o advogado pareceu aborrecido, como se Júnior fosse o equivalente a um dedo problemático que precisava ser estourado com uma bala de revólver.

Tendo lucrado 850 mil dólares com a morte de Naômi, o rábula de cabeça grande, olhos saltados e boca fina podia ao menos oferecer uma pequena informação. Mas mesmo assim ele provavelmente cobraria por seu tempo.

Considerando suas ações naquela última noite em Spruce Hills, onze meses atrás, Júnior precisava ser cauteloso. Sem incriminar-se, fingindo ignorância, estava ansioso por descobrir se o cenário que ele montara meticulosamente — para inocentá-lo da morte de Victória e do desaparecimento repentino de Vanadium — convencera as autoridades, ou se alguma coisa saíra errada, algo que pudesse explicar a moeda de 25 cents no seu sanduíche.

— Magusson, você disse uma vez que se o detetive Vanadium me importunasse de novo teria como puxar a sua coleira. Bem, acho que precisa falar com alguém a respeito disso.

Magusson ficou estarrecido.

— Está dizendo que ele entrou em contato com você?

— Bem, tem alguém me importunando...

— Vanadium?

— Suspeito que ele...

— Você o viu? — inquiriu Magusson.

— Não, mas eu...

— Falou com ele?

— Não, não. Mas ultimamente...

— Você sabe o que aconteceu lá em cima, em relação a Vanadium?

— Como assim? Acho que não — mentiu Júnior.

— Quando você ligou no começo do ano, para pedir a referência de um investigador particular aí, a mulher tinha acabado de aparecer morta e Vanadium havia desaparecido, mas no começo ninguém ligou os dois.

— Que mulher?

— Ou se a polícia sabia da verdade na época, não divulgou isso ao público. Eu não tinha qualquer motivo para comentar isso com você na época. Nem sabia que Vanadium tinha desaparecido.

— Do que está falando?

— As provas sugerem que Vanadium matou uma mulher aqui, uma enfermeira do hospital. É provável que tenha sido um crime passional. Vanadium incendiou a casa com o cadáver dentro, para cobrir o seu rastro. Mas deve ter deduzido que ainda assim poderia ser incriminado, e deu no pé.

— Deu no pé para onde?

— Ninguém sabe. Ninguém viu nada. Até agora.

— Mas não vi o Vanadium — lembrou Júnior ao advogado. — Apenas considerei, quando comecei a ser assediado aqui...

— Você deve ligar para a polícia de San Francisco e mandar que coloquem a sua casa sob vigilância. Os policiais prenderão Vanadium se ele aparecer.

Como os policiais acreditavam que Júnior havia acidentalmente atirado no próprio pé enquanto procurava por um ladrão inexistente, ele já devia estar anotado no livrinho deles como um idiota. Se tentasse explicar como Vanadium o atormentara com a moedinha, e como uma moedinha aparecera dentro do seu cheesebúrguer, eles iriam tomá-lo por um histérico incurável.

Além disso, não queria que os tiras de San Francisco soubessem que ao menos um colega deles tinha suspeitado de que ele assassinara a sua esposa no Oregon. E se um dos policiais daqui ficasse curioso a ponto de requerer uma pasta sobre o caso da morte de Naomi, e se nesse arquivo Vanadium tivesse feito alguma referência ao fato de Júnior ter acordado de um pesadelo gritando com medo o nome Bartholomew! E se no futuro Júnior localizasse o Bartholomew verdadeiro e eliminasse o bastardinho, será que o policial local que lera a pasta do caso relacionaria um Bartholomew ao outro e começaria a fazer perguntas? Ele precisava admitir que esse raciocínio chegava às raias da paranóia. Não obstante, esperava sumir da vista do Departamento de Polícia de San Francisco assim que fosse possível, e viver longe de seu território.

— Você quer que eu ligue para confirmar como Vanadium estava assediando você aqui? — perguntou Magusson.

— Ligar para quem?

— Para o agente de plantão da polícia de San Francisco. Para confirmar sua história.

— Não, isso não é necessário — disse Júnior, tentando soar casual. — Considerando o que você me contou, tenho certeza de que quem anda me assediando não pode ser o Vanadium. Se ele está fugindo da polícia, e cheio de problemas, a última coisa que faria era me seguir até aqui para mexer com a minha cabeça.

— Nunca se sabe com esses obsessivos — acautelou Magusson.

— Não, quanto mais penso no assunto, mais tenho a impressão de que foi obra de algum moleque. Crianças brincando comigo, apenas isso. Acho que Vanadium me deixou mais traumatizado do que eu pensava. Quando aconteceu esta coisa, não consegui pensar direito.

— Bem, se mudar de idéia, basta me ligar.

— Obrigado, mas tenho certeza de que foi apenas brincadeira de moleques.

— Não está surpreso? — perguntou Magusson.

— Hein? Surpreso com o quê?

— Com Vanadium ter matado a enfermeira e picado a mula. Todo mundo aqui ficou atônito.

— Francamente, sempre achei que ele fosse desequilibrado mental. Eu lhe disse isso, sentado bem aí no seu escritório.

— Você disse, de fato — reconheceu Magusson. — E julguei que ele fosse apenas um cruzado bem-intencionado, um panaca metido a herói. Parece que você compreendeu ele melhor do que eu, Caim.

A atitude do advogado surpreendeu Júnior. Provavelmente isso era o mais perto que Magusson podia chegar de dizer: Afinal de contas, talvez você não tenha matado a sua mulher, mas como ele era teimoso por natureza, até mesmo um pedido de desculpas disfarçado era mais do que Júnior esperara receber.

— Como vai a vida aí na Cidade da Baía? — perguntou o advogado. Júnior não cometeu o erro de julgar que o novo tom conciliatório de Magusson

significava que eles eram amigos, que segredos podiam ser compartilhados entre os dois. O único amigo verdadeiro desse sapo faminto por dinheiro era aquele que ele via no espelho. Se descobrisse que Júnior estava se divertindo a valer depois da morte de Naômi, Magusson guardaria essa informação até encontrar uma forma de usá-la em benefício próprio.

— Solitária — disse Júnior. — Eu sinto tanta... saudade.

— Dizem que o primeiro ano é o pior. Ficará mais fácil depois.

— Faz quase um ano e me sinto cada vez pior — mentiu.

Depois de desligar, Júnior olhou para o telefone, profundamente perturbado.

Ele não descobrira muita coisa com o telefonema além do fato de que Vana-dium e seu Studebaker não tinham sido encontrados no fundo do Lago da Pedreira.

Desde que descobrira a moedinha no seu cheesebúrguer, Júnior estava convencido de que o tira maiuaco havia sobrevivido aos golpes com o castiçal. A despeito de seus ferimentos graves, talvez Vanadium tivesse nadado por trinta metros de água lodosa, deixando de se afogar por pouco.

Contudo, depois da conversa com Magusson, Júnior compreendeu que esse medo era irracional. Se o detetive havia escapado milagrosamente das águas frias do lago, teria precisado de um tratamento médico de emergência. Ele teria cambaleado ou se arrastado pela rodovia em busca de ajuda, sem saber que Júnior o incriminara pelo assassinato de Victória, ferido demais para pensar em qualquer coisa além de atenção médica.

Se Vanadium continuava desaparecido, ele ainda estava morto dentro de seu caixão de oito cilindros.

O que deixava em aberto a questão da moedinha.

No cheesebúrguer.

Alguém a colocara ali.

Se não Vanadium, quem?

 

BARTY ENGATINHOU, Barty caminhou e Barty finalmente carregou uma torta para a sua mãe num dos dias de entrega, ciente de seu equilíbrio e de sua responsabilidade.

Ele se mudou de um berço para uma cama com grades, meses antes da média das crianças. Uma semana depois, requisitou que as grades fossem retiradas.

Durante as oito noites seguintes, Agnes cobriu o assoalho com cobertores dobrados em ambos os lados da cama do menino, uma segurança para o caso dele rolar durante o sono. Na nona noite, ela descobriu que Barty havia colocado os cobertores de volta no armário de onde os tirara. Eles não estavam embolados dentro das prateleiras — a evidência clara do trabalho de uma criança — mas dobrados e empilhados com a mesma competência que a própria Agnes teria aplicado.

O menino não mencionou o que tinha feito, e a mãe deixou de se preocupar com a possibilidade de que ele caísse da cama.

De seu primeiro ao seu terceiro aniversário, Barty tornou inúteis todos os livros sobre cuidados com crianças e desenvolvimento infantil com os quais uma mãe de primeira viagem contava para saber o que, e quando, esperar de sua cria. Barty crescia, aprendia e se harmonizava com o ambiente segundo o seu próprio relógio.

A diferença do menino era definida não apenas pelo que ele fazia, mas também pelo que ele não fazia. Por exemplo, ele não cumpriu as expectativas dos Terríveis Dois Anos, o período de rebeldia da criança que geralmente esfrangalhava os nervos dos pais mais pacientes. O filho da Moça das Tortas não fazia birra, não queria mandar nos adultos, não fazia peraltices.

Anormalmente saudável, nunca ficava resfriado nem sofria com gripes, sinusites ou a maioria das mazelas às quais as outras crianças eram vulneráveis.

Freqüentemente as pessoas diziam a Agnes que ela devia encontrar um agente para Barty, porque ele era maravilhosamente fotogénico. O menino, segundo essas pessoas, conquistaria fácil, fácil, uma carreira como modelo ou ator infantil. Embora seu filho fosse realmente um rapazinho bonito, Agnes sabia que ele não era tão excepcionalmente belo quanto muitos o consideravam. Mais do que sua aparência, o que tornava Barty tão encantador, o que o fazia parecer extraordinariamente bonito, e outras qualidades: uma graça incomum para uma criança; uma facilidade física incrível em todos os movimentos e posturas, dando a impressão de que algum relacionamento pessoal com o tempo proporcionara-lhe vinte anos para se tornar uma criança de três; um temperamento infalivelmente afável e um sorriso rápido que possuía seu rosto inteiro, inclusive os hipnóticos olhos verde-azulados. Talvez a sua característica mais contagiante, a boa saúde, fosse expressada num brilho lustroso de seus fios de cabelos grossos, no luzir de dourado para rosa de sua pele tocada pelo verão, em cada aspecto físico, o que fazia com que em alguns momentos Barty parecesse radiante.

Em julho de 1967, aos dois anos e meio, Barty finalmente contraiu sua primeira gripe, um vírus extemporâneo e particularmente pernicioso. O menino ficou com a garganta inflamada, mas não fazia birra nem mesmo se queixava. Ele engoliu seus remédios sem resistir, e embora descansasse ocasionalmente, manuseava brinquedos e folheava livros ilustrados com o mesmo prazer de sempre.

Na segunda manhã da doença de Barty, Agnes desceu e encontrou-o à mesa da cozinha, em seu pijama, aplicando alegremente tons anticonvencionais a uma cena em seu livro de colorir.

Quando o cumprimentou por ser um soldado tão bonzinho, lidando com seu resfriado sem se queixar, Barty deu de ombros. Sem desviar os olhos de seu livro de colorir, ele disse:

— Está apenas aqui.

— O que está apenas aqui, querido?

— O meu resfriado.

— O seu resfriado está apenas aqui?

— Não está em toda parte.

Agnes sempre se deliciava com suas conversas. Barty estava muito adiante da curva de aprendizado lingüístico para sua idade, mas ainda era uma criança, e suas observações eram repletas de inocência e charme.

— Você está dizendo que o seu resfriado está apenas no seu nariz mas não nos seus pés?

— Não, mamãe. Resfriados não ficam no pé de ninguém.

— Pés.

— Sim — confirmou o menino, aplicando um lápis de cera azul a uma coelhinha sorridente que estava dançando com um esquilo.

— Quer dizer que está com você na cozinha, mas não se você for para a sala? O seu resfriado tem vontade própria?

— Isso é muito bobo.

— Foi você quem disse que o seu resfriado está apenas aqui. Talvez ele fique na cozinha, torcendo para conseguir uma fatia de torta.

— Meu resfriado está apenas aqui, não em todos os lugares onde eu existo — expandiu o menino.

— Então... você não está apenas aqui, na cozinha com o seu resfriado?

— Não.

— Onde mais você está, mestre Lampion? Brincando no jardim?

— Em algum lugar, sim.

— Na sala, lendo?

— Em algum lugar, sim.

— Em todos os lugares ao mesmo tempo, hein?

A língua de Barty estalava entre seus dentes enquanto ele se concentrava em manter o lápis de cera azul dentro das linhas do coelho.

— Sim — respondeu Barty, meneando a cabeça.

O telefone tocou, pondo um fim na conversa, mas Agnes lembraria da substância desse diálogo no final do ano, no dia anterior ao Natal, quando Barty caminhou na chuva e mudou para sempre o entendimento de sua mãe sobre o mundo e sua própria existência.

Ao contrário da maioria das crianças pequenas, Barty sentia-se perfeitamente à vontade com cada mudança. Da mamadeira ao copo, do berço à cama aberta, das comidas favoritas aos alimentos novos, ele sempre sentia-se deliciado com o novo. Embora Agnes costumasse permanecer por perto, Barty gostava de ficar temporariamente sob os cuidados de Maria Gonzalez ou de Esaú e sorria para o seu tio Jacó com a mesma alegria com que sorria para todos.

Ele nunca passou por uma fase durante a qual tenha ficado avesso a abraços ou beijos. Era um menino para quem as demonstrações de afeto vinham fácil, fácil.

As correntes de medo irracional, que trazem turbulências periódicas a virtualmente todas as infâncias, não perturbaram o rio fluente dos primeiros três anos de Barty. Ele nunca sentia medo de adormecer, e depois de dormir aparentava ter apenas sonhos agradáveis.

A escuridão, a única fonte de medo infantil que a maioria dos adultos nunca supera, não causava terror algum em Barty. Embora durante algum tempo Agnes tenha mantido no quarto do menino um abajur noturno do Mickey, não o pusera ali para acalmar Barty, mas sim a ela própria, que temia que o filho andasse sozinho no escuro.

Talvez essa preocupação específica não fosse uma preocupação materna comum. Se existe um sexto sentido em funcionamento dentro de todos nós, talvez, subconscientemente, Agnes estivesse cônscia da tragédia que estava por vir: os tumores, a cirurgia, a cegueira.

A semente de suspeita de Agnes, de que Barty fosse um menino-prodígio, germinara na manhã de seu primeiro aniversário, quando sentado em sua cadeira alta ele contara tortas de maçã e uvas verdes. Durante os dois anos seguintes, uma ampla gama de provas de inteligência alta e talentos maravilhosos transformou em convicção as suspeitas de Agnes.

Não foi fácil deduzir precisamente o tipo de prodígio que Barty poderia ser. Ele revelou muitos talentos e não apenas um.

Ao ganhar uma gaita de tamanho infantil, ele improvisou versões simplificadas de canções que ouvia no rádio. "Ali You Need Is Love", dos Beatles; "The Letter", dos Box Tops'; "I Was Made to Love Her", de Steve Wonder. Depois de ouvir a melodia uma vez, Barty conseguia tocar uma versão reconhecível.

Embora a gaitinha de lata e plástico fosse, mais um brinquedo que um instrumento genuíno, o menino conseguia soprar músicas completas nela. E até onde Agnes conseguia perceber, ele jamais desafinava.

Um dos presentes de que ele mais gostou no Natal de 1967 foi uma gaita cromada de doze orifícios com 48 palhetas, proporcionando um alcance pleno de três oitavas. Mesmo em suas mãos pequeninas, e com as limitações de sua boca pequena, este instrumento mais sofisticado possibilitava-lhe produzir versões completas de qualquer música da qual gostasse.

Ele também tinha um talento para línguas.

Desde uma idade muito tenra, Barty adorava ouvir sua mãe ler para ele, e não exibia nem um pouco do alcance de atenção curto da maioria das crianças. Ele expressava uma preferência de ficar sentado ao lado da mãe, e pedia que ela corresse um dedo sobre cada linha de texto, para poder ver precisamente a palavra que ela estava falando. Dessa forma, ele ensinou a si próprio a ler no começo do seu terceiro ano.

Ele trocou os livros ilustrados por noveletas para leitores mais avançados, e logo progrediu para livros destinados a adolescentes. As aventuras de Tom Swift e os mistérios de Nancy Drew cativaram-no durante o verão e o começo do outono.

A capacidade de escrever chegou junto com a de ler, e ele começou a usar um caderninho para fazer anotações de pontos de interesse nas histórias das quais gostava. Seu Diário de um leitor, como ele o intitulava, fascinava Agnes, que o lia com sua permissão; essas anotações para si mesmo eram entusiásticas, honestas e encantadoras. Contudo — literalmente mês a mês —, Agnes notava que elas se tornavam menos ingênuas, mais complexas, mais contemplativas.

Tendo sido professora voluntária de inglês para vinte alunos adultos durante os últimos anos, tendo ensinado Maria Elena Gonzalez a falar um inglês impecável sem sotaque evidente, Agnes era pouco necessária como professora para o seu próprio filho. Ainda mais que as outras crianças, ele perguntava por que com uma regularidade atordoante, por que isto e por que aquilo, mas nunca a mesma pergunta duas vezes; e freqüentemente já sabia a resposta e estava apenas confirmando a precisão de sua dedução. Era um autodidata tão eficaz que ensinava a si próprio melhor do que qualquer junta de professores que poderia ter-lhe sido designada.

Agnes considerou essa surpresa do destino surpreendente, divertida, irônica — e um pouco triste. Ela teria adorado ensinar o menino a ler e escrever, a ver o seu conhecimento e sua competência florescer lentamente sob os seus cuidados. Embora apoiasse completamente que Barty explorasse seus dons, e embora se orgulhasse de suas conquistas notáveis, achava que esse avanço rápido estava lhe furtando um pouco da alegria compartilhada da infância do filho, ainda que em muitos aspectos ele continuasse uma criança.

A julgar por seu grande prazer em aprender, Barty não se sentia furtado de nada. Para ele, o mundo era uma laranja de camadas infinitas, que ele descascava e saboreava com um deleite cada vez maior.

Em novembro de 1967 as histórias de detetive do Padre Brown, escritas por G. K. Chesterton para adultos fãs de mistérios, empolgavam Barty. Essa série de livros continuaria a ocupar um lugar especial em seu coração pelo restante de sua vida — assim como o romance de ficção científica O monstro do espaço, de Robert Heinlein, que figurara entre seus presentes de Natal desse ano.

Ainda assim, apesar de todo o seu amor pela leitura e pela música, os acontecimentos sugeriam que a matemática ainda era a sua maior aptidão.

Antes de aprender sozinho a ler livros, também aprendeu sozinho a ler números, e em seguida a como ver as horas. A significância do tempo exercia sobre ele um impacto muito profundo, que Agnes não conseguia entender; talvez porque a maioria de nós precise esperar até o começo da vida adulta, se não mais, para adquirir uma consciência da natureza finita do universo e da natureza finita da vida humana — e compreender plenamente as implicações deste conhecimento, enquanto para Barty as vastas glórias do universo e a natureza comparativamente humilde da existência humana foram reconhecidas, contempladas e absorvidas numa questão de semanas.

Durante algum tempo ele gostou de ser desafiado a adivinhar o número de segundos passados a partir de um evento histórico específico. Recebendo a data, ele fazia os cálculos de cabeça, proporcionando uma resposta correta em até um mínimo de vinte segundos, raramente levando mais de um minuto.

Apenas duas vezes Agnes contestou a resposta.

Na primeira vez ela precisou de lápis, papel e nove minutos para calcular o número de segundos que tinham passado desde um evento ocorrido há 125 anos, seis meses e oito dias. A resposta de Agnes diferiu da dele, mas ao comparar os números ela percebeu que tinha esquecido de considerar os anos bissextos.

Na segunda vez, armada com o fato previamente calculado de que cada ano normal continha três milhões e 153 mil e 600 segundos, e que um ano bissexto continha mais 86.400 segundos, negou a resposta de Barty em apenas quatro minutos. Daí em diante, ela passou a aceitar os números do filho sem verificá-los.

Em sua cabeça, sem esforço aparente, Barty mantinha um cômputo total do número de segundos em que estava vivo, e do número de palavras em cada livro que tinha lido. Agnes jamais checou o total de palavras para um volume inteiro; contudo, quando citava qualquer página num livro que ele acabara de ler, Barty sabia o número de palavras nela contidos.

As habilidades musicais de Barty provavelmente eram uma variante de seus talentos extraordinários para a matemática. Ele dizia que música eram números, e parecia querer dizer que podia traduzir instantaneamente as notas de qualquer canção num código numérico pessoal, retê-las, e repetir a canção mediante a repetição da seqüência decorada do código. Quando lia partituras musicais, ele via arranjos de números.

Ao ler sobre prodígios infantis, Agnes descobriu que a maioria, se não todos, os mágicos da matemática também possuíam talento musical. A um grau menor, mas ainda impressionante, muitos jovens gênios do mundo da música também tinham se destacado em matemática.

As habilidades de ler e escrever pareciam também relacionadas ao talento para a matemática. Para ele, a linguagem era primeiro fonética, uma espécie de música que simbolizava objetos e idéias, e esta música era em seguida traduzida para sílabas escritas usando o alfabeto — que ele via como um sistema de matemática que empregava 26 dígitos em vez de dez.

Agnes descobriu, a partir de sua pesquisa, que entre os prodígios infantis Barty não era uma maravilha das maravilhas. Alguns gênios matemáticos eram absorvidos pela álgebra e até pela geometria antes de completarem três anos de idade. Jascha Heifetz tornou-se um violinista rematado aos três anos, e aos seis ele tocava os concertos de Mendelssohn e Tchaikovski; Ida Haendel já se apresentava aos cinco anos.

Agnes acabou suspeitando que, apesar de sua aptidão com números e de todo o prazer que o menino extraía da matemática, o maior dom e a paixão mais profunda de Barty residia em outro lugar. Ele estava encontrando seu caminho rumo a um destino a um só tempo mais estarrecedor e estranho do que as vidas de muitos prodígios sobre quem ela havia lido.

O gênio de Bartholomew poderia ser intimidante, até assustador, se ele não fosse tanto uma criança comum quanto era uma criança genial. Da mesma forma, ele seria irritante se fosse impressionado com os seus talentos.

Contudo, apesar de todo o seu brilhantismo, ainda era um menino que adorava correr e pular. Que se divertia com um balanço de pneu-e-corda pendurado no carvalho no jardim. Que ficou empolgadíssimo ao ganhar um velocípede. Que ria de deleite ao ver seu tio Jacó rolar uma moedinha de 25 cents sobre os nós dos dedos e executar outros truques simples com moedas.

E embora não fosse tímido, Barty também não era exibido. Ele não buscava elogios por suas realizações e, de fato, elas eram pouco conhecidas fora do círculo familiar. Sua satisfação provinha inteiramente de aprender, explorar, crescer.

E, à medida que crescia, o menino parecia satisfeito com a sua própria companhia, e a de sua mãe e seus tios. Ainda assim, Agnes estava preocupada com o fato de não haver crianças de sua idade na vizinhança. Ela achava que ele seria mais feliz se tivesse um ou dois companheiros de folguedos.

— Em algum lugar eu tenho — assegurou-lhe certa noite, enquanto Agnes o punha para dormir.

— É? E onde você os guarda? No fundo do seu armário?

— Não, o monstro vive lá — disse Barty, o que era uma piada, porque ele jamais sentira medo à noite de coisas desse — ou de qualquer tipo.

— Puxa vida, eu tenho o meu próprio Red Skeltonzinho! — disse Agnes, despenteando o cabelo do menino.

Barty não via muita televisão. Ele já ficara acordado até tarde o bastante para ver Red Skelton apenas algumas vezes, mas o comediante sempre arrancava gargalhadas dele.

— Em algum lugar, há crianças na casa ao lado — disse ele.

— Na última vez que olhei, a srta. Galloway vivia ao sul da gente. Aposentada. Nunca se casou. Sem filhos.

— Sim, mas em algum lugar ela é uma senhora casada e com netos.

— Ela tem duas vidas, hein?

— Mais de duas.

— Centenas!

— Muito mais.

— A misteriosa Selma Galloway, espiã!

— Poderia ser, algumas vezes.

— Professora aposentada de dia, espiã russa à noite. -— Talvez espiã ela não seja em nenhum lugar.

No começo dessa noite, sentada na cama de seu filho, Agnes começara a sentir vagamente que certas dessas conversas com Barty talvez não fossem tão fantasiosas quanto pareciam, que de alguma forma infantil ele estava expressando alguma verdade que ela considerava fantasia.

— E ao norte da gente, Janey Cárter partiu para a faculdade no ano passado, e ela é a única filha deles.

— Nem sempre os Carters vivem ali — disse Barty.

— É? Eles alugam a casa deles para piratas com criancinhas piratas, e palhaços com criancinhas palhaças?

Barty soltou uma risadinha.

— Você é Red Skelton.

— E você tem uma tremenda imaginação.

— Na verdade, não. Eu te amo, mamãe.

Ele bocejou e mergulhou no sono com aquela rapidez que sempre surpreendia Agnes.

E então tudo mudou num momento atordoante. Mudou profundamente e para sempre.

A véspera de Natal, ao longo da costa da Califórnia. Embora o sol brilhasse na manhã, nuvens ajuntavam-se na tarde, mas nenhuma neve cobriria esses telhados.

Bolos de noz-pecã, tortas de canela fechadas em caixas térmicas, presentes embrulhados com papel brilhante e laços reluzentes: Agnes Lampion fazia entregas para os amigos que estavam em sua lista de necessitados, mas também a amigos que eram abençoados com fartura. A visão de cada rosto amado, cada abraço, beijo e sorriso, cada "Feliz Natal" proferido com alegria, em cada uma das paradas programadas de Agnes, fortificava seu coração para a tarefa triste que a aguardava depois que todos os presentes tivessem sido ofertados.

Barty ia com sua mãe no Chevrolet. Como os bolos, tortas e presentes eram numerosos demais para serem contidos num único veículo, Esaú seguia-os em sua camioneta Ford Country Squire amarela.

Agnes chamava sua parada de dois carros de "caravana de Natal", o que apelava ao senso de mágica e aventura de Barty. Repetidamente ele se virou em seu assento e se ajoelhou sobre o estofado a fim de olhar para trás, para o seu tio Esaú, acenando vigorosamente.

Tantas paradas, tão pouco tempo em cada uma, uma sucessão de árvores de Natal, cada uma decorada segundo um gosto diferente, ofertas de biscoitos amanteigados e chocolate quente ou gemada, conversas matinais em cozinhas mergulhadas em maravilhosos odores culinários e — na tarde mais fria — felicitações trocadas diante de lareiras, presentes aceitos e oferecidos, biscoitos recebidos em troca dos bolos de noz-pecã, tudo isso ao som de "Silver Bells", "Hark How the Bells" e "Jingle-Bell Rock" tocando no rádio. Às três da tarde da véspera de Natal suas entregas estavam completadas antes mesmo de Papai Noel ter começado.

Com o Country Squire carregado com biscoitos, bolos de ameixa, pipocas amanteigadas com cobertura de amêndoas e presentes, Esaú estava indo para casa, direto do endereço de Obadiah Sepharad, que tinha sido sua parada final. Ele corria pela estrada como se estivesse fugindo de tornados e ondas sísmicas.

Para Agnes e Barty, restava uma parada, onde parte da alegria do Natal sempre estaria enterrada com o marido de quem ela ainda sentia saudades todos os dias, e o pai que o garoto jamais iria conhecer.

Ciprestes ladeavam o caminho de acesso ao cemitério. Altas e solenes, as árvores mantinham guarda, como se posicionadas ali para impedir que espíritos inquietos vagassem pela terra dos vivos.

Joey repousava não sob a vigília severa dos ciprestes, mas próximo a um pimenteiro californiano. Com seus galhos grandes e frondosos, ele parecia estar meditando ou orando.

O ar estava fresco, mas ainda não frio. Uma brisa suave perfumava o mar além da colina.

Chegaram à sepultura com rosas vermelhas e brancas. Agnes carregava as vermelhas, Barty as brancas.

Na primavera, verão e outono, eles enfeitavam a sepultura com as rosas que Esaú cultivava no jardim lateral. Nesta estação menos favorável a rosas, esses buquês de Natal tinham sido comprados numa floricultura.

Desde o começo de sua adolescência Esaú tinha sido atraído para a jardinagem, extraindo um prazer especial do cultivo de rosas híbridas. Ele tinha apenas dezesseis anos quando uma de suas rosas ganhara o primeiro lugar num concurso de flores. Quando seu pai descobrira a respeito da competição, ele considerara a busca de Esaú pelo prêmio um sinal grave de orgulho pecaminoso. A punição deixara Esaú de cama por três dias, e quando ele finalmente conseguiu descer, descobriu que o seu pai tinha arrancado todas as roseiras.

Onze anos depois, alguns meses após se casar com Agnes, Joey misteriosamente convidou Esaú para acompanhá-lo a um "passeiozinho", e levou seu apalermado cunhado a uma loja de jardinagem. Eles voltaram para casa com sacos de adubo especial, fertilizantes e uma profusão de novas ferramentas. Juntos, limparam o terreno do jardim lateral, reviraram o solo e prepararam a terra para a rica variedade de plantas híbridas iniciais que seriam entregues na semana seguinte.

Este rosário era o único relacionamento de Esaú com a natureza que não lhe inspirava terror. Agnes acreditava que o entusiasmo de Joey pela restauração do jardim tinha sido, em parte, o motivo pelo qual Esaú não se voltara para dentro como Jacó, e porque ele continuava mais apto que seu gêmeo a funcionar para além das paredes de seu apartamento.

As rosas que enchiam os canteirinhos nos cantos da sepultura de Joey não haviam sido cultivadas por Esaú, mas tinham sido compradas por ele. Ele visitara o florista e selecionara pessoalmente cada rosa do estoque; mas não tivera coragem de acompanhar Agnes e Barty à sepultura.

— O papai gosta de Natal? — perguntou Barty, sentado na grama diante da lápide.

— O seu pai não gostava simplesmente de Natal, ele amava o Natal. Ele começava a planejar o Natal em junho. Se já não houvesse um Papai Noel, o seu pai teria ocupado a sua vaga.

Usando uma flanela que eles tinham trazido para polir a lápide, Barty disse:

— Ele é bom com números, como eu?

— Bem, ele era um vendedor de seguros, e os números são importantes nessa linha de trabalho. E ele também era um bom investidor. Não era brilhante com números como você, mas tenho certeza de que você herdou um pouco de talento dele.

— Ele lê os mistérios do Padre Brown?

Acocorando-se ao lado do menino enquanto ele esfregava o granito, Agnes disse:

— Barty, por que você está...?

Ele parou de polir a pedra e fitou os olhos da mãe.

— O quê?

Embora ela se sentisse ridícula fraseando esta pergunta para qualquer menino de três anos, não existia forma melhor de perguntar ao seu filho especial:

— Querido... você sabe que está falando sobre o seu pai usando os verbos no presente?

Barty jamais fora instruído nas regras gramaticais, mas as absorvia como as rosas de Esaú absorviam nutrientes.

— Claro. Estou perguntando se o papai gosta de Natal e coisas assim.

— Porquê?

O menino deu com os ombros.

A grama do cemitério tinha sido aparada para o feriado. O aroma de grama recém-cortada tornava-se mais intenso a cada segundo que Agnes passava fitando os radiantes olhos verde-azulados de seu filho, até um ponto em que a fragrância tornou-se maravilhosamente adocicada.

— Meu bem, você entende... é claro que entende... que o seu pai se foi.

— Claro. No dia em que nasci.

— Isso mesmo.

Graças a sua inteligência e personalidade, a presença de Barty era tão poderosa para a sua idade que Agnes tendia a pensar nele como sendo fisicamente maior e mais forte do que realmente era. Enquanto o aroma da grama ficava mais forte, quase inebriante, ela começou a ver seu filho mais nitidamente do que o via há um bom tempo: muito pequeno; órfão de pai, mas corajoso; portador de um dom que era uma bênção mas que poderia impossibilitar uma infância normal; forçado a crescer num ritmo mais acelerado do que qualquer criança deveria ser obrigada. Barty era dolorosamente delicado, tão vulnerável que quando Agnes olhava para ele sentia um pouco .aquela sensação horrível de impotência que atormentava Esaú e Jacó.

— Eu queria que seu pai tivesse conhecido você — disse Agnes.

— Em algum lugar, ele conhece.

No começo, ela pensou que Barty quisera dizer que seu pai o observava do céu, e suas palavras tocaram uma ternura em Agnes, sobrepondo um arco de dor sobre a curva de seu sorriso.

Então o menino acrescentou significados novos e intrigantes às suas palavras, acrescentando:

— O papai morreu aqui, mas não morreu em todos os lugares onde eu existo. A frase que Barty proferira lá atrás, em julho, chegou a Agnes:

Meu resfriado está apenas aqui, não em todos os lugares onde eu existo.

O pimenteiro estivera sussurrando ao sabor da brisa, as rosas meneando suas cabeças reluzentes. Agora uma calma absoluta dominou o cemitério, como erguendo-se de sob a grama, da cidade dos perdidos.

— Está solitário para mim aqui — disse Barty. — Mas não está solitário para mim em todos os lugares.

De uma conversa antes de dormir em setembro: Em algum lugar, há crianças na casa ao lado.

E em algum lugar Selma Galloway, sua vizinha, não era uma solteirona, mas uma mulher casada e com netos.

Uma fraqueza repentina e estranha, un medo amorfo, fez Agnes cair de sua posição de cócoras, ajoelhando-se ao lado do menino.

— Algumas vezes é triste aqui, mamãe. Mas não é triste em todos os lugares onde você existe. Em muitos lugares, papai está com você e comigo, e nós estamos mais felizes, e tudo está bem.

Aqui estavam novamente aquelas construções gramaticais peculiares, que ocasionalmente ela considerara simples erros que até mesmo um menino-prodígio podia cometer, e que às vezes ela interpretara como expressões de especulações fantasiosas, mas que recentemente ela vinha suspeitando serem de uma natureza mais complexa — e talvez mais sombria. Agora seu medo assumiu uma forma, e ela pensou que os distúrbios de personalidade que tinham moldado as vidas de seus irmãos podiam não ter raízes apenas no abuso que eles tinham sofrido de seu pai, mas também um legado genético que poderia manifestar-se novamente em seu filho. A despeito de seus grandes dons, Barty poderia estar destinado a uma vida limitada por um problema psicológico de natureza única — ou ao menos diferente —, sugerida inicialmente por essas conversas ocasionais que não pareciam completamente coerentes.

— E em muitos lugares as coisas estão piores para nós do que aqui — disse Barty. — Em alguns lugares, você também morreu quando nasci, e então também não conheci você.

Essas declarações soaram tão absurdas aos ouvidos de Agnes que nutriram ainda mais o medo crescente de que Barty sofresse de uma instabilidade mental.

— Por favor, querido... por favor, não...

Agnes quis dizer ao menino que não falasse essas coisas estranhas, não se expressasse dessa maneira, mas não conseguiu. Quando Barty lhe perguntasse por quê, como inevitavelmente faria, Agnes teria de dizer que estava preocupada com a possibilidade de haver alguma coisa terrivelmente errada com ele, mas não poderia revelar esse medo ao filho, jamais. Barty era o alicerce do coração de Agnes, as paredes de sua alma, e se ele fracassasse devido à falta de confiança de sua mãe, ela própria desabaria em ruínas.

Uma chuva chegou sem aviso, poupando Agnes de terminar a frase. Gotas pesadas chocaram-se contra seus rostos, e enquanto eles se levantavam, o tamborilar suave da chuva foi abafado por trovoadas muito fortes.

— Depressa, querido.

Tendo chegado segurando rosas, eles não haviam se dado ao trabalho de trazer guarda-chuvas. Além disso, embora o céu estivesse carregado há algum tempo, a meteorologia não previra precipitação.

Aqui, a chuva, mas em algum lugar estamos caminhando ao sol.

Este pensamento assustou Agnes, perturbou-a, mas ao mesmo tempo, inexplicavelmente, derramou uma medida de conforto morno em seu coração frio.

O carro estava no caminho de acesso ao cemitério, a pelo menos noventa metros da sepultura. Sem vento para perturbar as gotas, a chuva caía reta como contas de colares partidos, e além de seu véu perolado, o carro parecia uma miragem.

Monitorando Barty com o canto dos olhos, Agnes manteve seu caminhar no ritmo lento das pernas curtas do menino, de modo que ela tremia de frio ao chegar ao automóvel.

Enquanto Agnes abria a porta do motorista e se sentava atrás do volante, Barty acomodava-se no banco ao seu lado. Resfolegando, ele puxou a porta com ambas as mãos enquanto ela girava a chave na ignição.

Ela estava ensopada, trêmula. Água escorria de seus cabelos, corria pelo rosto, enquanto ela enxugava os cílios com a mão molhada.

Enquanto as fragrâncias do veludo e do jeans molhados levantavam-se de suas roupas, Agnes ligou o aquecedor e angulou as ventilações do meio do painel na direção de Barty.

— Querido, vire a outra ventilação para você.

— Estou bem.

— Você vai pegar pneumonia — alertou Agnes, esticando o braço para virar a ventilação no lado do passageiro para ele.

— Você precisa do calor, mamãe. Eu não.

E quando finalmente olhou para ele e piscou os olhos, os cílios espargindo uma nuvem de gotinhas, Agnes viu que Barty estava seco. Nenhuma gota de chuva reluzia nos cabelos negros e grossos, nas faces lisas de seu rosto. A camisa e o suéter estavam secos como se tivessem acabado de sair do cabide do armário. Algumas gotas escureciam as pernas das calças caqui do menino — mas Agnes compreendeu que elas tinham caído de seu braço ao estendê-lo para ajustar a ventilação.

— Eu corri onde a chuva não estava — disse Barty.

Criada por um pai que considerava blasfema qualquer forma de diversão, Agnes só tinha visto um show de mágica aos dezenove anos, quando Joey Lampion, então seu noivo, levara-a a um espetáculo. Coelhos tirados de cartolas, pombas conjuradas de nuvens de fumaça súbitas, assistentes serradas ao meio e emendadas para caminhar de novo; cada ilusão que tinha sido velha mesmo nos tempos de Houdini deixara-a de queixo caído naquela noite. Agora ela lembrava um truque no qual o mágico derramara uma garrafa de leite num funil feito com algumas páginas de jornal, fazendo o leite desaparecer quando o funil, ainda seco, foi desenrolado para revelar reles notícias impressas. As emoções que a tinham animado naquela noite mediam um ponto na escala Richter quando comparadas com o assombro de dez pontos completos que a abalavam agora, diante da visão de Barty tão seco quanto se houvesse passado a tarde inteira aquecendo-se diante da lareira.

Embora estivesse com a pele coberta com água de chuva, os pêlos finos no pescoço de Agnes se eriçaram. O arrepio em seus braços não tinha nenhuma relação com suas roupas frias, molhadas.

Quando tentou perguntar como, o dom de falar lhe fugiu e ela ficou sentada ali, muda, como uma pessoa que jamais proferira uma palavra sequer em toda a sua vida.

Tentando desesperadamente manter um raciocínio claro, Agnes olhou para o cemitério, cujas árvores contorcidas em prece e monumentos funéreos estavam nublados pela água descendo pelo pára-brisa. Cada forma distorcida, cada cor borrada, cada luz filtrada resistia às tentativas de Agnes de relacioná-las com o mundo que conhecia, como se, tremendo à sua frente, estivesse a paisagem de um sonho.

Ela ligou os limpadores de pára-brisa. Repetidamente, no arco de vidro limpo, o cemitério foi revelado em detalhes nítidos, e mesmo assim o lugar permanecia menos que completamente familiar a ela. Seu mundo inteiro tinha sido alterado quando Barty caminhara na chuva sem se molhar.

— Isso é apenas uma... piada velha — Agnes ouviu a si mesma dizer, de muito longe. — Não dá para caminhar entre as gotas.

O risinho animado do menino soou como o repicar de sinos de trenó, seu espírito de Natal também completamente seco.

— Não entre as gotas, mamãe. Ninguém pode fazer isso. Eu só corri onde a chuva não estava.

Ela ousou olhar para ele novamente.

Ele ainda era o seu filho. Como sempre, o seu filho. Bartholomew. Barty. Seu fofinho. Seu bebezinho.

Mas ele era mais do que ela jamais imaginara que o filho seria, mais do que um mero prodígio.

— Como, Barty? Meu Deus, como?

— Você não sente?

A cabeça, inclinada para o lado. O olhar, inquisidor. Os olhos, tão belos quanto o seu espírito.

— Sinto o quê? — perguntou Agnes.

— As formas como as coisas são. Você não sente... todas as formas como as coisas são?

— Formas? Não sei o que você quer dizer.

— Puxa, você não consegue sentir nem um pouco?

Ela sentia o banco do carro debaixo de sua bunda, as roupas molhadas coladas em seu corpo e a umidade no ar. Sentia também um terror do desconhecido, como um grande vácuo sem luz à beira do qual ela flutuava, mas não sentia aquilo sobre o que o menino estava falando, porque a coisa que ele sentia fazia-o sorrir.

Sua voz era a única coisa em seu corpo que estava seca, e ela temeu que uma nuvem de pó saísse de sua boca quando ela disse:

— Sentir o quê? Explica pra mim.

Ele era tão jovem e despreocupado com a vida que sua testa não franziu quando olhou intrigado para a mãe.

— Puxa, não tenho as palavras certas — disse ele.

Embora o vocabulário de Barty fosse bem maior que o de um menino comum de três anos, e embora ele estivesse lendo e escrevendo como uma criança no final do curso primário, Agnes podia entender por que as palavras lhe falhavam. Apesar de possuir um vocabulário muito mais amplo, ela tinha ficado muda diante da façanha do menino.

— Querido, você já tinha feito isso antes? Ele balançou a cabeça.

— Nunca soube que podia.

— Você nunca soube que podia... caminhar onde a chuva não estava?

— Não. Só precisei agora.

O ar quente saindo do painel não aqueceu os ossos enregelados de Agnes. Empurrando um emaranhado de cabelos molhados para longe de seu rosto, ela percebeu que suas mãos estavam trêmulas.

— Alguma coisa errada? — perguntou Barty.

— Eu estou um pouco... estou um pouco preocupada, Barty. A surpresa levantou as sobrancelhas e a voz do menino:

— Por que, mamãe?

Porque você pode caminhar na chuva sem se molhar, porque você caminha em ALGUM OUTRO LUGAR, e sabe lá Deus onde esse lugar fica ou se VOCÊ PODE FICAR PRESO LÁ, encalhado de alguma forma, E NUNCA VOLTAR, e se você pode fazer isso, certamente também pode fazer outras coisas impossíveis, e por mais esperto que seja, não conhece os riscos de fazer essas coisas — ninguém conhece —, e também há pessoas que ficariam interessadas em você se soubessem que pode fazer essas coisas, cientistas que iriam examiná-lo e, pior que os cientistas, GENTE PERIGOSA que diria que a segurança nacional vem antes dos direitos de uma mãe sobre o seu filho, gente que poderia roubar você e jamais deixar que eu o visse de novo, o que para mim seria o mesmo que morrer, porque quero que você tenha uma vida normal, feliz, boa, e quero protegê-lo e vê-lo crescer para se tornar o homem bom que sei que será, PORQUE eu TE AMO MAIS DO QUE QUALQUER COISA, E VOCÊ AINDA NÃO CONHECE A VIDA, E NÃO SABE COMO COISAS HORRÍVEIS PODEM ACONTECER DE REPENTE.

Ela pensou em tudo isso, mas cerrou os olhos e disse:

— Vou ficar bem. Me dá um segundinho, tá?

— Você não tem nenhum motivo pra ficar assustada — assegurou-lhe Barty. Ela ouviu a porta, e quando abriu os olhos ele já tinha saído do carro, e estava

novamente na chuva. Ela o chamou de volta, mas ele continuava andando.

— Mamãe, veja! — Ele se virou em meio ao aguaceiro, braços estendidos para ambos os lados. — Não tenho medo!

Respiração presa na garganta, coração martelando, Agnes viu seu filho através da porta aberta do carro.

Girando em círculos, ele curvava a cabeça para trás, apresentando o rosto para o céu chuvoso, rindo.

Agnes agora enxergava o que não vira ao correr junto com Barty pelo cemitério, porque não estivera olhando diretamente para ele. Ainda assim, mesmo vendo com os seus próprios olhos, ela sentia dificuldade em acreditar.

Barty estava na chuva, cercado pela chuva, golpeado pela chuva, com a chuva. Grama empapada em água chiava debaixo de seus tênis. As gotas, em seus milhões, não mudavam de rota magicamente, contornando as formas de Barty, não sobrevoavam a um milímetro acima de sua pele. Ainda assim, ele permanecia tão seco quanto Moisés quando bebê, flutuando no rio na cesta de juncos feita por sua mãe.

Na noite do nascimento de Barty, quando Joey jazia morto no Pontiac atingido pela picape, enquanto um paramédico empurrava a maca de Agnes para a porta traseira da ambulância, ela tinha visto o seu marido parado ali, intocado pela chuva, exatamente como seu filho agora estava intocado por esta. Mas Joey-seco-na-chuva tinha sido um fantasma ou uma ilusão gerada pelo choque e pela perda de sangue.

A luz tênue do fim da tarde, nesta véspera de Natal, Barty não era um fantasma, não era uma ilusão.

Movendo-se em torno da frente do carro, acenando, divertindo-se com o espanto de Agnes, Barty gritou:

— Não tenho medo!

Assustada, mas ao mesmo tempo maravilhada, Agnes pulou para a frente, forçando os olhos para ver através do movimento dos limpadores de pára-brisa.

Passando pelo pára-lama dianteiro esquerdo, ele veio em sua direção, saltitando alegremente como se num pula-pula, e ainda acenando para ela.

O menino não estava translúcido, como o fantasma de seu pai estivera naquela noite chuvosa de janeiro, cerca de três anos atrás. A mesma luz afogada em água desta tarde cinzenta, que revelava as lápides e as árvores encharcadas, também revelava Barty, e nenhuma refulgência sobrenatural brilhava através dele, como brilhara através de Joey-morto-e-ascendido.

À janela da porta do motorista Barty chegou fazendo troça de sua mãe com um repertório de caretas, usando um dedo para empinar o nariz exageradamente, como se estivesse abrindo as narinas para catar melecas.

— Não tenho medo, mãe!

Em reação a uma sensação horrível de imponderabilidade, as mãos de Agnes apertaram o volante com tanta força que doeram. Ela se segurou ao volante com todas as suas forças, como se corresse risco real de sair flutuando do carro e subir até a fonte das gotas cadentes de chuva.

Do outro lado da janela Barty não fez nenhuma das coisas que Agnes esperaria de um menino que não pertencesse suficientemente ao dia para compartilhar sua chuva: ele não tremeluzia como uma imagem numa tela de tevê mal sintonizada; ele não se contorcia como uma miragem em meio ao calor do Saara ou num reflexo num espelho embaçado por vapor.

Ele era tão sólido quanto qualquer menino. Ele estava no dia, mas não na chuva. Ele estava se movendo na direção da traseira do carro.

Virando-se em seu banco, esticando o pescoço, Agnes tentou manter o menino em seu campo de visão.

Ela o perdeu de vista. O medo bateu e bateu na porta de seu coração, porque ela teve certeza de que ele desaparecera da forma como os navios supostamente desapareciam no Triângulo das Bermudas.

Então o viu aproximando-se pelo lado do passageiro.

A sensação horrível de imponderabilidade tornou-se uma coisa muito melhor, uma impressão de estar boiando, uma leveza de espírito extraordinária. O medo permanecia — medo por Barty, medo do futuro, medo da complexidade estranha da Criação que ela acabara de vislumbrar —, mas agora esse medo estava acompanhado por uma esperança profunda e uma crença em milagres.

Ele chegou à porta aberta, sorrindo. Não era um sorriso do gato de Alice, flutuando sem corpo no ar, dentes sem lábios. Era um sorriso cheio de Barty.

Entrou no carro. Um menino. Pequeno. Frágil. Seco.

  

                                                                                            CONTINUA  

 

                      

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