Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DO FUNDO DE SEUS OLHOS
Parte II
PARA CAIM JÚNIOR o Ano do Cavalo (1966) e o Ano do Bode (1967) ofereceram-lhe muitas oportunidades para progresso e aperfeiçoamento pessoal. Ainda que na véspera do Natal de 1967 Júnior não fosse capaz de caminhar na chuva sem se molhar, este foi um período de grandes conquistas e muito prazer para ele. Também foi uma época perturbadora.
Enquanto o cavalo e em seguida o bode pastaram durante doze meses cada um, uma bomba atômica acidentalmente caiu de um B-52 e se perdeu no oceano, nas proximidades da Espanha, durante dois meses antes de ser localizada. Mao Tsé-tung lançou sua Revolução Cultural, matando trinta milhões de pessoas para aperfeiçoar a sociedade chinesa. James Meredith, ativista pelos direitos civis, foi ferido por um tiroteio durante uma marcha no Mississipi. Em Chicago, Richard Speck matou oito enfermeiras no dormitório de um albergue, e um mês depois Charles Whitman subiu numa torre na Universidade do Texas, da qual matou a tiros doze pessoas. A artrite forçou Sandy Koufax, principal lançador dos Dodgers, a se aposentar. Os astronautas Grissom, White e Chaffee morreram na Terra, numa explosão que destruiu a sua cápsula Apollo durante uma simulação em escala plena. Entre os famosos que trocaram a fama pela eternidade estiveram Walt Disney, Spencer Tracy, o saxofonista John Coltrane, a escritora Carson McCullers, Vivien Leigh e Jayne Mansfield. Júnior comprou o livro O coração é um caçador solitário, de McCullers, e embora não duvidasse de que ela tinha sido uma escritora muito boa, o estilo se revelou estranho demais para o seu gosto. Durante esses dois anos, o mundo foi abalado por terremotos, varrido por furacões e tufões, atormentado por enchentes, secas e políticos, devastado por doenças. E a guerra continuava no Vietnã.
Júnior não estava mais interessado no Vietnã e não se sentiu nem um pouco abalado com essas outras notícias. Esses dois anos foram perturbadores para ele apenas por causa de Thomas Vanadium.
Inquestionavelmente morto, o policial maníaco continuava uma ameaça.
Durante algum tempo, Júnior quase convenceu a si mesmo de que aquela moedinha no seu cheesebúrguer, em dezembro de 1965, tinha sido uma coincidência sem sentido, um acontecimento sem qualquer relação com Vanadium. Sua breve inspeção da cozinha, em busca do perpetrador, dera-lhe todos os motivos para acreditar que os padrões sanitários da lanchonete eram inadequados. Ao lembrar dos homens suados naquele esquadrão da morte culinário, ele tinha certeza de que tivera a sorte de não ter descoberto um roedor morto, partido ao meio sobre o queijo derretido, ou uma meia velha.
Mas em 23 de março de 1966, depois de um encontro infeliz com Frieda Bliss, que colecionava pinturas de Jack Lientery, um importante artista novo, Júnior teve uma experiência que o abalou, acrescentou significância ao episódio na lanchonete, e o fez desejar que ele não tivesse doado seu revólver ao projeto da polícia que derretia armas para fazer ferramentas.
Contudo, durante os três meses que precederam o incidente de março, a vida foi boa.
Do Natal até fevereiro, ele saiu com uma lindíssima analista e investidora de ações chamada Tammy Bean, que era especializada em encontrar valor em companhias que tinham relacionamentos lucrativos com ditadores brutais.
Ela também era uma fanática por gatos, trabalhando com o Kitten Konservatory para salvar felinos abandonados da morte por afogamento no lago da cidade. Ela era a gerente de investimentos da instituição. Num espaço de dez meses, Tammy transformou os vinte mil dólares dos fundos do Konservatory num quarto de milhão. Ela fez isso investindo em ações de uma empresa sul-africana que fazia muito dinheiro vendendo tecnologia de guerra bacteriológica para países como Coréia do Norte, Paquistão, índia e a República da Tanzânia, cujo principal artigo de exportação era o sisal.
Durante algum tempo, Júnior obteve lucros imensos graças aos conselhos de investimento de Tammy. Além disso, o sexo era fantástico. Como um agradecimento pelas comissões gordas que ela ganhara — sem falar de todos os orgasmos —, Tammy deu-lhe um Rolex. Ele não se importava que ela tivesse quatro gatos, nem se importou quando os quatro cresceram para seis, e então para oito.
Lamentavelmente, às duas da manhã de 28 de fevereiro, acordando sozinho na cama de Tammy, Júnior procurou-a e a achou comendo alguma coisa na cozinha.
Preferindo usar os dedos em vez de um garfo, ela estava comendo um alimento para gatos, baseado em carne de cavalo, na própria lata, e engolindo-o com a ajuda de um copo de creme de leite.
Dali em diante, Júnior sentiu nojo de beijar aquela mulher, e seu relacionamento acabou.
Durante esse mesmo período, tendo comprado um passe para a temporada de ópera, Júnior compareceu a uma apresentação de O anel dos Nibelungos, de Wagner.
Empolgado pela música, porém incapaz de entender uma palavra sequer da peça, ele marcou aulas de alemão com um professor particular.
Enquanto isso, tornou-se um meditador magistral. Guiado por Bob Chicane, Júnior progrediu de uma meditação concentradora com semente — a imagem mental de um pino de boliche — para meditação sem semente. Esta forma avançada era muito mais difícil, porque nada era visualizado, e seu único propósito era se concentrar em tornar a mente absolutamente vazia.
Quando realizadas sem supervisão profissional, as meditações sem semente incorriam em risco. Para seu horror, Júnior descobriria alguns dos perigos em setembro.
Mas, primeiro, 23 de março: o encontro infeliz com Frieda Bliss e o que ele descobriu no seu apartamento quando chegou em casa naquela noite.
Tão espetacularmente peituda quanto a ainda não falecida Jayne Mansfield, Frieda jamais usava sutiã. Em 1966. Este estilo livre era raríssimo. Inicialmente, Júnior não compreendeu que a ausência de sutiã era uma declaração da liberação sexual de Frieda; ele pensou que isso significava que ela era uma piranha.
Ele a conhecera num curso de extensão universitária intitulado "Como aumentar a auto-estima através do grito controlado". Os participantes eram ensinados a identificar emoções reprimidas danosas e dissipá-las através de imitações vocais autênticas de uma variedade de animais.
Altamente impressionado com o grito de hiena com o qual Frieda expurgara-se de todos os traumas de infância infligidos por uma avó autoritária, Júnior convidou-a a sair com ele.
Ela possuía uma firma de relações públicas especializada em artistas e durante o jantar falou sobre Jack Lientery. Sua série de pinturas atual — bebês emaciados contra fundos de frutas maduras e outros símbolos de plenitude — tinham levado os críticos ao êxtase.
Deliciado em estar saindo com alguém que vivia mergulhada em cultura até o pescoço — especialmente depois de dois meses com Tammy Bean, a connaiseuse de dinheiro —, Júnior ficou surpreso por não ter conseguido traçar Frieda no primeiro encontro. Ele geralmente era irresistível, até para mulheres que não eram piranhas.
Mas no final do segundo encontro Frieda convidou Júnior ao seu apartamento, para ver sua coleção de Lientery e, sem dúvida, passear no carrossel de êxtase de Caim. Ela possuía sete telas do pintor, recebidas como pagamento parcial por seu trabalho como relações públicas.
As pinturas de Lientery atendiam aos critérios de grande arte, sobre os quais Júnior aprendera nos cursos de história da arte. Elas reduziram o seu senso de realidade, deixaram-no tenso, cheio de angústia e ódio contra a condição humana, e o fizeram querer não ter acabado de jantar.
A cada obra-prima que comentava, Frieda ficava menos coerente. Ela tinha bebido alguns coquetéis, a maior parte de uma garrafa de Cabernet Sauvignon, e dois conhaques depois do jantar.
Júnior gostava de mulheres que bebiam muito. Elas geralmente eram amorosas — ou impunham menos resistência aos avanços masculinos.
Quando chegaram à sétima pintura, a combinação de álcool, a gordurosa cozinha francesa e as pinturas de Jack Lientery foi poderosa demais para Frieda. Ela estremeceu, apoiou-se com uma das mãos diante de uma tela, curvou a cabeça e cometeu um ato de péssimas relações públicas.
Júnior pulou bem a tempo para fora do alcance do jorro.
Isto acabou com todas as esperanças de romance e deixou Júnior desapontado. Um homem com menos controle de si próprio talvez tivesse agarrado o vaso de bronze mais próximo — moldado de modo a parecer um cocô de dinossauro — e batido com ele na cabeça da mulher.
Quando Frieda terminou de vomitar e desmaiou, Júnior deixou-a caída no chão e se pôs imediatamente a explorar os aposentos.
Desde que vasculhara a casa de Vanadium, há mais de quatorze meses, Júnior adquirira um gosto por aprender a respeito de outras pessoas passeando por suas casas quando elas se ausentavam. Como não estava disposto a ser preso por arrombamento, essas explorações eram raras, limitando-se apenas às casas de mulheres com quem saía por tempo suficiente para justificar uma troca de chaves. Felizmente, nesta idade dourada de confiança e relacionamentos liberais, bastava uma semana de sexo quente para chegar ao nível da troca de chaves.
O único problema era que Júnior precisava mudar constantemente as suas fechaduras.
Agora, como não pretendia voltar a sair com esta mulher, ele aproveitou a única chance que teria de aprender os detalhes mais íntimos e excêntricos de sua vida. Ele começou pela cozinha, com o conteúdo da geladeira e dos armários, e concluiu a visita no quarto de dormir.
Das curiosidades que Júnior descobriu, a que mais o interessou foi o interesse de Frieda por armas. Havia armas espalhadas por todo o apartamento: revólveres, pistolas, espingardas. Dezesseis ao todo.
A maioria dessas armas de fogo estava carregada e pronta para ser usada, mas cinco permaneciam em suas caixas originais, no fundo do armário do quarto. A julgar pelos recibos em cada uma das cinco armas nas caixas, ela devia ter adquirido todas as armas legalmente.
Júnior não encontrou nada que explicasse sua paranóia — contudo, para sua surpresa, descobriu seis livros de Caesar Zedd na sua pequena biblioteca. Várias páginas estavam com as bordas dobradas; muitas passagens estavam sublinhadas.
Era evidente que ela não tinha aprendido nada com sua leitura. Nenhum estudante sério de Zedd seria tão desprovido de autocontrole quanto Frieda Bliss.
Júnior pegou em uma das caixas de armas, um revólver, semi-automático de 9mm. Provavelmente passariam meses antes que ela desse por falta da arma no fundo de seu armário, e até lá não teria como saber quem a roubara.
Havia um suprimento de munição alinhado na gaveta do fundo da penteadeira, oculto por calcinhas e sutiãs. Júnior apropriou-se de uma caixa de cartuchos de 9mm.
Deixando Frieda inconsciente e fedendo, condição na qual a sua ausência de sutiã não tinha o poder de excitá-lo, Júnior se retirou.
Vinte minutos depois, em casa, ele se serviu de conhaque com gelo. Bebericando, ficou parado em pé na sala de estar, admirando as suas duas pinturas.
Com uma parte dos lucros obtidos com as dicas de investimento de Tammy Bean, Júnior comprou uma segunda pintura de Sklent. Intitulada No cérebro do bebê reside o parasita do apocalipse, versão 6, era tão belissimamente repulsiva que o gênio do artista não podia mais ser posto em dúvida.
Júnior atravessou o quarto e acabou parado diante da Mulher industrial, em toda sua glória de ferro-velho. Seus seios de lata de sopa lembraram-lhe o busto igualmente generoso de Frieda; infelizmente, a sua boca, aberta num grito silencioso, conjurou a imagem mental do vômito da mesma Frieda.
Sua apreciação da arte foi prejudicada por essas associações, e enquanto Júnior deu as costas para a Mulher industrial, sua atenção foi repentinamente atraída pelas moedinhas. Três moedas de 25 cents jaziam no chão, os pés de engrenagens e dentes de batedores de carne. Elas não haviam estado ali antes.
As mãos metálicas da Mulher industrial ainda estavam cruzadas defensivamente sobre os seios. O artista soldara arruelas hexagonais aos dedos de pontas de ancinho para sugerir os nós das mãos. Equilibrada sobre uma das arruelas estava uma quarta moeda.
Como se ela tivesse treinado enquanto Júnior estava fora de casa.
E como se alguém houvesse estado aqui esta noite para ensinar à Mulher industrial o seu truque com moedas.
O revólver de 9mm e a munição estavam na mesa da ante-sala. Com mãos trêmulas, Júnior abriu as caixas e carregou a arma.
Tentando ignorar o seu dedo fantasma, que coçava furiosamente, ele vasculhou o apartamento. Procedeu com o máximo de cuidado, determinado a não atirar em si mesmo, desta vez de forma realmente acidental.
Vivo ou morto, Vanadium não estava aqui.
Júnior telefonou para um chaveiro 24 horas e pagou a tarifa extra de depois da meia-noite para trocar suas fechaduras duplas.
Na manhã seguinte, cancelou as aulas de alemão. Era uma língua impossível. As palavras eram enormes.
Além disso, ele não podia mais gastar horas e horas aprendendo uma nova língua ou indo à ópera. A sua vida estava cheia demais, deixando-o com tempo insuficiente para a busca por Bartholomew.
Um instinto animal disse a Júnior que a moeda na lanchonete, e agora estas na sala de estar, estavam relacionadas com a sua incapacidade de encontrar Bartholomew, o filho bastardo de Serafina White. Ele não podia explicar logicamente a conexão; mas, como Zedd ensina, o instinto animal é a única verdade pura que podemos conhecer.
Assim, Júnior passou a dedicar um tempo maior por dia aos catálogos telefônicos. Ele tinha obtido catálogos para todos os nove condados que, com a própria cidade, constituíam a Área da Baía.
Alguém chamado Bartholomew adotara o filho de Serafina e batizara-o com o seu próprio nome. Júnior aplicou a paciência aprendida através da meditação à sua tarefa e, instintivamente, logo desenvolveu um mantra motivador que continuamente circulava por sua mente enquanto estudava os catálogos telefônicos: "Encontre o pai, mate o filho."
Em abril, Júnior descobriu três Bartholomews. Investigando esses alvos, preparado para cometer homicídio, ele aprendeu que nenhum tinha um filho chamado Bartholomew ou algum dia adotara uma criança.
Em maio, descobriu mais um Bartholomew. Não o certo.
Não obstante, Júnior mantinha uma ficha sobre cada homem, caso o instinto mais tarde lhe dissesse que um deles, de fato, era o seu inimigo mortal. Poderia ter matado todos eles, apenas para sentir-se seguro, mas matar uma miríade de Bartholomews, mesmo espalhados por várias jurisdições, cedo ou tarde atrairia muita atenção da polícia.
No terceiro dia de junho, encontrou mais um Bartholomew inútil. E no dia 25, um sábado, aconteceram dois eventos profundamente perturbadores. Ele ligou o rádio da cozinha apenas para descobrir que "Paperback Writer", mais uma canção dos Beatles, subira para o topo das paradas, e recebeu um telefonema de uma mulher morta.
Tommy James and the Shondells, bons rapazes americanos, tinham uma música bem mais embaixo nas paradas — "Hanky Panky"—que Júnior considerava melhor que a dos Beatles. A incapacidade de seus compatriotas em apoiar talentos domésticos irritava-o profundamente. A nação parecia ávida em entregar sua cultura a estrangeiros.
O telefone tocou às 3:20 da tarde, logo depois que ele tinha desligado o rádio, repugnado. Sentado diante da mesa da cozinha, o catálogo telefônico de Oakland aberto à sua frente, ele quase disse Encontre o pai, mate o filho, ao invés de "Alô".
— O Bartholomew está? — perguntou uma mulher. Estarrecido, Júnior não encontrou nenhuma resposta.
— Por favor, eu gostaria de falar com o Bartholomew — rogou a mulher, tensa.
A voz da mulher era baixa, quase um mero sussurro, e carregada de ansiedade; mas sob outras circunstâncias, ela teria sido sensual.
— Quem fala? — inquiriu Júnior, embora sua voz tenha sido fina, esganiçada demais para uma indagação.
— Preciso avisar o Bartholomew. Eu preciso.
— Quem fala?
Léguas de silêncio inundaram a linha. Ainda assim, ela estava ouvindo. Ele a sentia do outro lado, embora como se a uma grande profundidade.
Reconhecendo o perigo de dizer a coisa errada, o potencial para se auto-incriminar, Júnior cerrou os dentes e aguardou.
Quando a mulher falou de novo, sua voz soou como se a reinos de distância:
— Pode dizer ao Bartholomew...? Ainda mais distante:
— Pode dizer a ele...?
— Dizer o quê?
— Diga que a Victória ligou para avisar a ele. Clique.
A linha estava muda.
Ele não acreditava em almas penadas. Nem um pouco.
Como fazia muito tempo que ouvira Victória Bressler — e isso acontecera em apenas em duas ocasiões —, e como a mulher do outro lado da linha falara muito baixo, Júnior não podia precisar se as duas vozes eram iguais.
Não, impossível. Ele matara Victória quase um ano e meio antes deste telefonema. Quando a pessoa morre, some para sempre.
Júnior não acreditava em deuses, demônios, Paraíso, Inferno, vida após a morte. Júnior concentrava toda a sua fé em apenas uma coisa: ele próprio.
Ainda assim, durante o verão de 1966, depois do telefonema, Júnior se comportou como um homem assombrado. Uma brisa repentina, ainda que quente, provocava-lhe um arrepio terrível e o fazia andar em círculos, à procura da fonte. No meio da noite, o mais inocente dos sons era motivo para que levantasse da cama e revistasse o apartamento. Ele se assustava com sombras, e se virava para procurar por espectros que imaginara ter visto com o canto do olho.
De vez em quando, enquanto se barbeava ou penteava o cabelo, quando estava olhando no espelho do banheiro ou do corredor, Júnior pensava ver uma presença, sombria e vaporosa, menos substancial que fumaça, parada ou movendo-se às suas costas. Em outros momentos, esta entidade parecia estar dentro do espelho. Ele não conseguia concentrar-se nela, estudá-la, porque no momento em que se apercebia da presença, ela desaparecia.
Meros delírios induzidos pelo estresse, claro.
Cada vez mais, usava a meditação para aliviar a tensão. Tinha-se tornado tão bom em concentração meditativa sem semente — o esvaziamento da mente — que meia hora fazendo isso era tão refrescante quanto uma noite de sono.
No fim da tarde de 19 de setembro, segunda-feira, Júnior retornou cauteloso ao seu apartamento. Vinha de mais uma investigação infrutífera a Bartholomew, uma que o levara a atravessar a baía em Corte Madera. Exaurido por sua busca interminável, deprimido pela falta de sucesso, ele buscava refúgio na meditação.
Em seu quarto, usando nada além de cuecas, sentou-se no chão, sobre um travesseiro de penas de ganso com capa de seda. Com um suspiro, assumiu a posição de lótus: espinha reta, pernas cruzadas, mãos descansando com as palmas para cima.
— Uma hora — anunciou, estabelecendo uma contagem regressiva.
Em sessenta minutos o seu relógio interno o despertaria de um estado meditativo.
Quando fechou os olhos, viu um pino de boliche, uma imagem residual de seus dias "com semente". Em menos de um minuto foi capaz de fazer o pino desmaterializar-se e encheu sua mente com um imóvel, mudo e calmante nada.
Branco. Nada.
Depois de algum tempo, uma voz rompeu o silêncio perfeito. Bob Chicane. O seu instrutor.
Bob gentilmente encorajou-o a retornar em etapas do estado meditativo profundo, retornar, retornar, retornar...
Isto era uma memória, não uma voz real. Mesmo depois que você se tornava um mestre em meditação, a mente resistia a esse grau de vazio, e tentava sabotá-lo com lembranças auditivas e visuais.
Usando todos os seus poderes de concentração, que eram formidáveis, Júnior tentou silenciar o fantasma de Chicane. A princípio, a voz sumiu pouco a pouco, mas logo ficou alta de novo, e mais insistente.
Em seu vazio branco, Júnior sentiu uma pressão nos olhos e então alucinações " visuais, perturbando sua paz interior profunda. Sentiu alguém levantar suas pálpebras, e o rosto preocupado de Bob Chicane — com as feições determinadas de uma raposa, cabelos negros cacheados e bigode felpudo — estava a centímetros do seu.
Ele achou que Chicane não era real.
Logo compreendeu que estava errado, porque quando o instrutor começou a tentar desatá-lo de sua posição de lótus, uma dormência defensiva o abandonou, e ele tomou ciência da dor. Excruciante.
O corpo inteiro tremia, do pescoço às pontas de seus nove dedos dos pés. A pior sensação era nas pernas, que agonizavam uma dor quente.
Chicane não estava só. Sparky Vox, o síndico do prédio, aproximou-se por trás e ficou olhando-o do alto. Já com 72 anos e esperto como um garoto, o jeito de Sparky caminhar lembrava um macaco saltitante.
— Deixei ele entrar porque ele disse que era uma emergência, sr. Caim — justificou Sparky. — Espero que o senhor não se importe.
Depois de tirar Júnior de sua postura meditativa, Chicane o fez deitar-se de costas e se pôs a massagear suas coxas e panturrilhas com vigor, quase com violência.
— Espasmos musculares realmente ruins — explicou.
Júnior percebeu que uma baba grossa escorria do canto direito de sua boca. Trêmulo, levantou a mão para enxugar o rosto.
Aparentemente, ele estava babando há muito tempo. Embora seu pescoço e sua garganta não estivessem pegajosos, uma crosta de saliva seca reluzia sobre sua pele.
— Cara, quando você não atendeu à campainha, saquei logo o que tinha acontecido — disse Chicane a Júnior.
A seguir disse alguma coisa a Sparky, que se retirou do cômodo.
Júnior não conseguia falar ou mesmo gemer de agonia. Toda a saliva tinha escorrido para a frente e para fora de sua boca aberta, por tanto tempo que sua garganta estava seca e arranhada. Ele tinha a impressão de ter mastigado um petisco de lâminas salgadas que agora estava preso em sua faringe. O som que sua garganta produzia lembrava o de uma miríade de escaravelhos andando por cima uns dos outros.
A massagem rude começava a trazer um pouco de alívio às pernas de Júnior quando Sparky retornou com seis bolsas térmicas cheias de gelo.
— Eram todas as que eles tinham lá na farmácia. Chicane empilhou as bolsas de gelo sobre as coxas de Júnior.
— Espasmos severos causam inflamação. Vinte minutos de gelo alternado com vinte minutos de massagem, até o pior passar.
O pior, na verdade, ainda não tinha chegado.
A esta altura Júnior já sabia que estivera preso num transe meditativo durante pelo menos dezoito horas. Ele assumira a posição de lótus às cinco da tarde de segunda — e Bob Chicane aparecera para sua sessão regular de instrução às onze da manhã de terça.
— Você é melhor em meditação concentradora sem semente do que qualquer pessoa que já conheci. É melhor até que eu. É por causa disso que você, especialmente você, nunca deve realizar uma sessão longa sem supervisão — ralhou Chicane. — No mínimo, no mínimo mesmo, deve usar o seu despertador. Não estou vendo ele aqui.
Sentindo-se culpado, Júnior balançou a cabeça.
— Não, não estou vendo o despertador — repetiu Chicane. — Uma maratona de meditação não gera nenhum benefício. Vinte minutos bastam, cara. Meia hora, no máximo. Você confiou no seu relógio interno, não foi?
Envergonhado, Júnior fez que sim com a cabeça.
— E você se programou para uma hora de meditação, não foi?
Antes que Júnior pudesse assentir, o pior aconteceu: contrações paralíticas da bexiga.
Até agora ele sentira-se grato por não ter urinado durante um transe tão longo. Agora ele passaria de bom grado por qualquer quantidade de humilhação para não sofrer estas cólicas horríveis.
— Meu Deus! — exclamou Chicane.
Ele e Sparky ajudaram Júnior a caminhar até o banheiro.
A necessidade por alívio era tremenda, inexprimível, e a urgência de urinar irresistível, mas ainda assim ele não conseguia se soltar. Durante mais de dezoito horas o seu processo urinário natural tinha sido bloqueado pela meditação concentradora. Agora o cofre dourado estava fechado, e ele tinha esquecido a combinação. Cada vez que se esforçava para urinar, era devastado por uma cólica nova e mais terrível. Ele tinha a impressão de ter o lago Mead inteiro dentro de sua bexiga inchada, enquanto a represa Boulder tinha sido erguida em sua uretra.
Nunca, em toda a sua vida, Júnior sofrera tanta dor sem matar alguém antes.
Relutante em partir até ter certeza de que o seu discípulo estava fora de perigo físico, emocional e mental, Bob Chicane permaneceu até as três e meia. Ao sair, deu uma má notícia a Júnior:
— Cara, não posso manter você na minha lista de alunos. Sinto muito, mas você é intenso demais. É intenso em tudo. Com o número de mulheres com quem sai, com o tipo de arte de que gosta, com essa coisa que faz com catálogos de telefone, seja lá o que for. Agora é intenso até com meditação. É intenso demais pro meu gosto. Obsessivo demais. Desculpe. Tenha uma boa vida, cara.
Sozinho, Júnior ficou sentado à mesa da cozinha com um bule de café e um bolo Sara Lee inteiro, sabor chocolate com recheio de baunilha.
Depois que as contrações paralíticas da bexiga tinham passado e Júnior acabara de drenar o lago Mead, Chicane recomendou muita cafeína com açúcar para protegê-lo contra um improvável, mas não impossível, retorno espontâneo ao estado de transe.
— De qualquer maneira, depois de bombear ondas alfa por tanto tempo, como você fez, não vai precisar dormir tão cedo.
Na verdade, embora fraco e dolorido, Júnior sentia-se mentalmente refrescado e maravilhosamente alerta.
Chegara para ele a hora de pensar mais seriamente em sua situação e em seu futuro. O aperfeiçoamento pessoal permanecia um objetivo louvável, mas seus esforços precisavam ser mais concentrados.
Ele tinha a capacidade de ser extraordinário em qualquer coisa à qual se aplicasse. Bob Chicane tivera razão nesse sentido: Júnior era bem mais intenso do que os outros homens, detentor de grandes dons e da energia para usá-los.
Em retrospecto, concluiu que ele não tinha nada a ver com meditação. Meditar era uma atividade passiva, enquanto por natureza ele era um homem de ação. Ele se sentia mais feliz quando estava agindo.
Júnior buscara refúgio na meditação porque se sentira frustrado por seu fracasso contínuo na caça a Bartholomew e perturbado por suas experiências aparentemente paranormais com moedinhas e telefonemas dos mortos. Perturbado de forma mais profunda do que percebera ou que fora capaz de admitir.
O medo do desconhecido é uma fraqueza, porque presume dimensões além do controle do homem. Zedd ensina que nada está além de nosso alcance, que a natureza é apenas uma máquina de moer sem mente própria e sem mais mistérios do que encontramos no suco de maçã.
Outro motivo para o medo do desconhecido ser uma fraqueza é que ele nos torna humildes. A humildade, declara Caesar Zedd, é estritamente para fracassados. Para ascendermos social e financeiramente, devemos fingir humildade — esfregar os pés no tapete antes de entrarmos na casa de alguém, manter a cabeça baixa e fazer comentários autodepreciativos —, porque o fingimento é a moeda corrente da civilização. Mas se chafurdarmos na humildade legítima, não seremos diferentes da massa da humanidade, que Zedd chama de "uma corja sentimental, apaixonada pelo fracasso e pela perspectiva de sua própria ruína".
Engolindo bolo de chocolate e café para se resguardar contra uma queda espontânea na catatonia meditativa, corajosamente admitiu que tinha sido fraco, que reagira ao desconhecido com medo e fuga ao invés de com confrontação ousada. Como cada um de nós não pode acreditar em mais ninguém no mundo além de si próprio, enganar a si mesmo é uma atividade perigosa. Júnior amava tanto a si mesmo que podia ser franco na admissão de suas fraquezas.
Assustado com os eventos recentes, jurou parar de meditar. Jurou também evitar todas as reações passivas aos desafios da vida. Ele precisava explorar o desconhecido em lugar de fugir dele. Além disso, depois de suas explorações, ele provaria que o desconhecido era tão assustador quanto tapioca, suco de maçã, ou qualquer coisa assim.
Ele precisava começar aprendendo o máximo possível sobre fantasmas, assombrações e vingança dos mortos.
Durante o restante de 1966, apenas dois eventos aparentemente sobrenaturais aconteceram na vida de Caim Júnior, o primeiro em 5 de outubro, quarta-feira.
Durante um passeio cultural, checando as obras mais recentes num circuito por suas galerias de arte favoritas, Júnior acabou chegando às vitrines da Galeria Coquin. Exibida proeminentemente aos transeuntes dessa rua movimentada estava a escultura de Wroth Griskin, duas peças grandes, cada uma pesando pelo menos duzentos quilos, e sete esculturas de bronze bem menores, elevadas em pedestais.
Griskin, um ex-presidiário, cumprira onze anos por assassinato em segundo grau antes que os esforços conjuntos de uma coalizão de artistas e escritores lhe conseguisse uma condicional. Ele possuía um talento imenso. Ninguém antes de Griskin conseguira expressar este nível de violência e fúria na mídia do bronze, e Júnior há muito tinha a obra do artista em sua pequena lista de compras.
Nas vitrines da galeria, oito de nove esculturas eram tão perturbadoras que muitos transeuntes, ao vê-las, desviavam o olhar e apertavam o passo. Não é todo mundo que pode ser um apreciador da boa arte.
A nona peça não era arte, decerto não era uma obra de Griskin, e não perturbaria a ninguém tanto quanto a Júnior. Sobre um pedestal negro estava um castiçal de estanho idêntico àquele que rachara o crânio de Thomas Vanadium e acrescentara dimensão ao seu rosto previamente plano.
O castiçal parecia mosqueado com uma substância escura. Talvez cinzas. Como se tivesse sido jogado numa lareira.
No topo do castiçal, o suporte da vela estava marcado por um chuvisco cor de vinho. A cor de manchas de sangue envelhecidas.
Haviam várias fibras presas nesses respingos funestos; elas tinham se grudado ao estanho quando o líquido que formara as manchas ainda estivera fresco. Pareciam cabelos humanos.
O medo congelou as veias de Júnior. Ele ficou parado ali, em meio ao fluxo contínuo de pedestres, como se paralisado por uma embolia, e certo de que a qualquer momento sucumbiria a um ataque cardíaco.
Fechou os olhos. Contou até dez. Abriu os olhos.
O castiçal permanecia no topo do pedestal.
Lembrando-se de que a natureza era meramente uma máquina estúpida, absolutamente desprovida de mistérios, e que o desconhecido sempre se revelaria familiar se você ousasse erguer o seu véu, Júnior descobriu que conseguia se mexer. Cada um de seus pés parecia pesar tanto quanto uma das esculturas de Griskin, mas ele cruzou a calçada e entrou na Galeria Coquin.
Não havia clientes nem funcionários na primeira das três salas amplas. Apenas as galerias mais baratas viviam cheias de curiosos e vendedores insistentes. Num estabelecimento tão fino quanto a Coquin, o zé-povinho não tinha coragem de entrar e ficar babando as obras, enquanto o valor elevado das artes era evidenciado pela aversão quase patológica que o quadro de funcionários nutria pela promoção das mercadorias.
A segunda e a terceira salas também revelaram-se desertas, e tão silenciosas quanto uma funerária, mas havia um escritório enfurnado discretamente nos fundos da última câmara. Quando Júnior atravessou a terceira sala, aparentemente monitorado por câmeras de segurança de circuito fechado, um homem saiu do escritório para saudá-lo.
O marchand era alto, com cabelos prateados, feições cinzeladas e os modos enigmáticos de um ginecologista da realeza. Vestia um terno cinza feito sob medida e seu Rolex de ouro era exatamente o tipo de relógio pelo qual Griskin teria matado nos dias de sua juventude.
— Estou interessado num dos Griskins menores — disse Júnior conseguindo aparentar calma, embora estivesse com a boca ressequida pelo medo e a mente entupida com imagens delirantes do policial maníaco, morto e decomposto, capengando ao redor de San Francisco.
— Sim? — replicou a eminência de cabelos prateados, torcendo o nariz como se suspeitasse de que este cliente iria perguntar se o pedestal de exibição estava incluído no preço.
— Em geral sou cativado mais por pinturas do que por obras dimensionais — explicou Júnior. — De fato, a única escultura que adquiri até hoje foi uma de Poriferan.
A Mulher industrial, que ele adquirira por um pouco mais de nove mil dólares, há menos de dezoito meses e em outra galeria, seria avaliada em pelo menos trinta mil no mercado corrente, tão rápido subira a reputação de Bavol Poriferan.
Diante desta prova de gosto e recursos financeiros, o comportamento gélido do marchand derreteu levemente. Ele sorriu ou torceu o nariz para um odor vago mas desagradável — difícil dizer qual das duas coisas —, e se identificou como o proprietário, Maxim Coquin.
— A peça que me intrigou foi aquela que parece um... um... castiçal — revelou Júnior. — É muito diferente das outras.
Exprimindo surpresa, o marchand caminhou na frente pelos três salões até a vitrine frontal, deslizando sobre o assoalho de bordo polido como se estivesse equilibrado sobre rodas.
O castiçal tinha sumido. O pedestal no qual ele estivera agora ostentava uma escultura de bronze tão devastadoramente genial que um único olhar provocaria pesadelos tanto em freiras quanto em assassinos.
Quando Júnior tentou se explicar, Maxim Coquin conjurou uma expressão não menos desconfiada do que a de um policial ouvindo o álibi de um suspeito com mãos ensangüentadas. Então:
— Tenho certeza de que Wroth Griskin não faz castiçais. Se é isso que o senhor está procurando, recomendo o departamento de utensílios domésticos da Gump.
A um só tempo furioso e pasmo, e ainda por cima aterrorizado, uma colagem multimídia ambulante de emoções, Júnior retirou-se da galeria.
Lá fora, virou-se para olhar a vitrine. Esperou ver o castiçal, sobrenaturalmente etéreo apenas deste lado do vidro, mas ele não estava lá.
Durante o outono, Júnior leu livros e mais livros sobre fantasmas, poltergeists, casas mal-assombradas, navios-fantasmas, sessões espíritas, possessões, manifestações espirituais, exorcismos, viagens astrais, revelações de tabuleiros Ouija e bordados em tela.
Júnior acreditava que toda pessoa que aperfeiçoava a si própria devia se destacar numa habilidade, e o bordado em tela parecia-lhe mais interessante que cerâmica ou colagem. Para cerâmica, ele precisaria de uma roda de olaria e um forno; e colagem fazia muita sujeira, por causa daquela cola toda. Em dezembro, começou o seu primeiro projeto: uma pequena capa de travesseiro onde uma moldura geométrica cercava uma citação de Caesar Zedd: "A humildade é para os fracassados."
Às 3:22 da manhã de 13 de dezembro, depois de um dia atarefado de pesquisa sobre assombrações, busca por Bartholomews num catálogo telefônico e trabalho com seus bordados, Júnior acordou ao som de uma canção. Uma única voz. Nenhum acompanhamento musical. Uma mulher.
Inicialmente, aconchegado por suntuosos lençóis de algodão franjados com seda negra, Júnior considerara encontrar-se numa condição intermediária entre os estados de sono e vigília e que o canto era um fragmento residual de um sonho. Embora subindo e descendo, a voz permanecia tão suave que ele não identificou imediatamente a melodia, mas quando reconheceu "Someone to Watch Over Me", sentou-se na cama e empurrou as cobertas.
Ligando as luzes no percurso, procurou pela fonte da serenata. Carregava a pistola de 9mm, que seria inútil contra um espírito visitante; mas toda a sua leitura sobre fantasmas não o convencera de que eles eram reais. Sua fé na eficácia de balas — e de castiçais de estanho, a propósito — permanecia inabalável.
Embora baixa e pouco ressonante, a voz da mulher era pura, tornando esta versão em capela da canção tão agradável quanto qualquer voz adocicada por uma orquestra. Ainda assim, a canção tinha uma qualidade perturbadora, um tom sinistro de desejo, ansiedade, tristeza cortante. Por falta de palavra melhor, sua voz era assombrosa.
Júnior procurou a voz, mas ela escapou dele. A canção sempre parecia provir do cômodo ao lado, mas quando ele passava pela porta para esse espaço, tinha a impressão de que a voz acabara de sair dali.
Por três vezes, a canção se calou, mas por duas vezes, exatamente quando Júnior acreditou que ela tinha acabado, a voz voltou a soar. Na terceira vez o silêncio perdurou.
Este prédio antiquíssimo, construído com a solidez de um castelo, contava com um bom isolamento acústico; os ruídos dos outros apartamentos raramente penetravam o de Júnior. Nunca antes ele ouvira a voz de um vizinho de forma suficientemente clara para compreender as palavras proferidas... ou, neste caso, cantadas.
Ele duvidava que a cantora fosse Victória Bressler, enfermeira morta, mas acreditava que era a mesma voz que ouvira noelefone, em 25 de junho, quando alguém alegando ser Victória telefonara com um aviso urgente para Bartholomew.
Às 3:31 da manhã, quando nem mesmo o alvorecer prematuro do inverno estava próximo, Júnior voltou para a cama. Embora suave, embora melancólica, jamais ameaçadora, a canção espectral deixara Júnior sentindo-se... ameaçado.
Considerou tomar um banho de chuveiro e começar o dia mais cedo. Mas não conseguia parar de lembrar aquela cena de Psicose, quando Anthony Perkins, travestido de mulher, retalhava sua vítima com uma faca de açougueiro.
O bordado não lhe proporcionou refúgio algum. As mãos de Júnior tremiam tanto que bordar era impossível.
Seu humor desaconselhava ler sobre poltergeists e coisas do tipo. Em vez disso, sentou-se à mesa da cozinha com os seus catálogos telefônicos e voltou à sua busca implacável por Bartholomew. Encontre o pai, mate o filho.
No espaço de apenas nove dias, Júnior foi para a cama com quatro mulheres bonitas: uma na véspera de Natal, a seguinte na noite de Natal, a terceira na véspera do Ano-novo e a quarta no primeiro dia do ano. Pela primeira vez em sua vida—e em todas as quatro ocasiões — seu prazer com o ato sexual foi menos que completo.
Não que tivesse tido um desempenho ruim. Como sempre, ele foi um touro, um garanhão, um sátiro insaciável. Nenhuma de suas amantes queixara-se; nenhuma delas tivera a energia para queixar-se depois que ele havia terminado com elas.
Ainda assim, faltava alguma coisa.
Ele se sentia oco. Incompleto.
Por mais bonitas que elas fossem, nenhuma dessas mulheres o satisfizera tanto quanto Naômi.
Ele se perguntou se a Coisa Que Faltava era o amor.
Com Naômi, o sexo tinha sido glorioso, porque eles eram ligados de diversas formas, todas mais profundas que a física. Tinham sido tão íntimos, tão emocional e intelectualmente entrelaçados, que ao fazer amor com ela fazia amor consigo mesmo; e Júnior jamais experimentaria uma intimidade maior do que isso.
Ele desejava ardentemente encontrar uma nova alma gêmea. Ele era esperto o bastante para saber que nem com todo o desejo do mundo conseguiria transformar a mulher errada na mulher certa. O amor não podia ser encomendado, planejado ou fabricado. O amor sempre chegava como uma surpresa, avançando quando você menos esperava por ele, como Anthony Perkins num vestido.
Ele apenas podia esperar. E manter a esperança.
Foi mais fácil sustentar a esperança quando o final de 1966 e o ano de 1967 trouxeram o maior avanço na moda feminina desde a invenção da agulha de costura: o minivestido, e em seguida a minissaia. Mary Quant — adivinhe só, uma designer britânica — conquistara a Inglaterra e a Europa com sua criação esplêndida; e agora ela tirava os Estados Unidos da idade das trevas do recato psicopatologia).
Por toda parte de San Francisco, panturrilhas, joelhos e coxas bem torneadas estavam à mostra. Isso acendeu o romantismo em Júnior, e mais do que nunca ele desejou desesperadamente a mulher perfeita, a amante ideal, a metade que faltava em seu coração incompleto.
Ainda assim, o relacionamento mais duradouro que tivera o ano inteiro fora com a cantora fantasma.
Na tarde de 18 de fevereiro, Júnior chegou em casa, vindo de uma aula de canalização, e ouviu o canto ao abrir a porta da frente. Aquela mesma voz. E a mesma canção odiosa. Como antes, a voz distante aumentava e abaixava repetidamente.
Pôs-se imediatamente a procurar pela fonte, mas em menos de um minuto, antes de conseguir seguir o rastro da voz, ela sumiu. E ao contrário daquela noite de dezembro, desta vez o canto não recomeçou.
O que mais perturbou Júnior foi o fato do recital misterioso ter acontecido enquanto ele não estava em casa. Sentiu-se violado. Invadido.
Ninguém estivera realmente ali. E ele ainda não acreditava em fantasmas, de modo que não pensava que um espírito estivera vagando por sua casa durante sua ausência.
Apesar disso, sua sensação de violação cresceu à medida que, intrigado e frustrado, ele caminhou pelos cômodos agora silenciosos.
Em 19 de abril, a sonda não-tripulada Surveyor 3, depois de pousar na superfície lunar, começou a transmitir fotos para a Terra, e quando saiu de sua ducha matinal, Júnior começou a ouvir novamente o canto sobrenatural, que agora parecia provir de um lugar mais distante, mais alienígena, que a lua.
Nu, gotejando no chão, correu pelo apartamento. Como na noite de 13 de dezembro, a voz parecia vir do nada: estava à frente dele, em seguida atrás dele, à sua direita, mas agora à sua esquerda.
Contudo, desta vez o canto durou mais do que antes, tempo suficiente para que ele começasse a desconfiar das tubulações do aquecimento. Estes cômodos tinham um pé-direito de três metros, e as tubulações terminavam em respiradouros altos nas paredes.
Usando uma escadinha dobrável, Júnior conseguiu chegar perto o bastante de um dos respiradouros na sala de estar para determinar se ele podia ser a fonte da canção. Nesse exato momento a cantoria parou.
No final do mês, Júnior descobriu, através de Sparky Vox, que cada apartamento do prédio era servido por um sistema isolado de aquecimento de quatro tubos, assessorado por ventiladores. Como nenhum dos apartamentos compartilhava tubulações, não era possível que vozes fossem transmitidas de uma residência para outra.
Durante a primavera, o verão e o outono de 1967, Júnior conheceu novas mulheres, fez amor com algumas, e não teve qualquer dúvida que cada uma de suas conquistas experimentou com ele algo completamente novo. Mesmo assim, ele ainda sofria com um coração oco.
Júnior não tentou manter um relacionamento com nenhuma dessas damas adoráveis depois de alguns encontros. Da mesma forma, nenhuma tentou manter um relacionamento com Júnior depois que ele tinha acabado com elas, embora certamente tenham ficado tristes, se não arrasadas, por perdê-lo.
A cantora espectral não demonstrava a relutância de suas irmãs de carne e osso em perseguir o seu homem.
Numa manhã de julho, Júnior estava visitando a biblioteca pública, folheando os arquivos em busca de livros de ocultismo, quando a voz fantasma surgiu perto dele. Aqui, o canto estava mais baixo que em seu apartamento, pouco mais que um murmúrio, e também oscilante.
Duas funcionárias estavam na mesa da frente, onde ele as vira pela última vez, longe demais para escutarem a melodia. Júnior chegara antes do horário de funcionamento e aguardara que as portas da biblioteca fossem abertas, e até agora não encontrara outros freqüentadores.
Ele não conseguia ver o corredor ao lado através das brechas entre os livros: as estantes tinham fundos sólidos.
Os tomos compunham paredes labirínticas, uma trama de palavras.
Ele começou caminhando de corredor para corredor, mas logo pôs-se a mover-se depressa, convencido de que a cantora seria encontrada depois da esquina seguinte, e então da seguinte. Será que ele vislumbrara a sombra da mulher, deslizando pelo canto às suas costas? Será que estava sentindo seu aroma de mulher pairando no ar depois de sua passagem?
Júnior avançou pelas novas avenidas do labirinto, mas então recuou novamente, refazendo o próprio circuito, coleando pelos corredores, indo de ocultismo para literatura moderna, de história para ciência popular, e aqui mais uma vez no ocultismo, sempre vislumbrando a sombra tão rápida e periféricamente que talvez ela fosse mera obra de sua imaginação, um perfume de mulher sendo detectado e em seguida perdido novamente em meio aos perfumes de papel velho e cola de brochura. Júnior coleou, ziguezagueou, serpenteou entre as estantes até parar de supetão, arfando forte, sua marcha interrompida pelo entendimento de que já há algum tempo não escutava a voz.
No outono de 1967, Júnior correu os olhos por milhares de listas telefônicas, e ocasionalmente localizou um raro Bartholomew. Em San Rafael ou em Marin-wood. Em Greenbrae ou em San Anselmo. Localizou-os, investigou-os e isentou-os de qualquer conexão com o bebê bastardo de Serafina White.
Entre novas mulheres e bordados para almofadas, Júnior participou de sessões espíritas, compareceu a palestras oferecidas por caçadores de fantasmas, visitou casas mal-assombradas e leu mais livros estranhos. Ele até se sentou diante da câmera de uma famosa médium cujas fotografias às vezes revelavam as auras de presenças benignas ou malignas pairando próximas ao indivíduo, embora no caso de Júnior ela não tivesse conseguido discernir nenhum sinal de espírito.
Em 15 de outubro, Júnior adquiriu uma terceira pintura de Sklent: O coração é lar de minhocas e besouros, sempre escavando, sempre voando, versão 3.
Para celebrar, ao sair da galeria, ele foi ao café do Fairmont Hotel, no topo de Nob Hill, determinado a tomar uma cerveja e comer um cheesebúrguer.
Embora comesse em restaurantes a maior parte do tempo, ele não pedia um hambúrguer há 22 meses, desde que encontrara a moedinha enterrada na fatia semiderretida de queijo cheddar, em dezembro de 1965. De fato, desde aquela época, ele jamais arriscara comer qualquer tipo de sanduíche em lanchonetes, limitando sua seleção a alimentos servidos em pratos abertos.
No café do Fairmont, Júnior pediu batatas fritas, um cheesebúrguer e salada com molho. Ele pediu que o alimento fosse servido frito, mas não montado: as metades do pão deviam vir viradas para cima, a carne posicionada separada no prato, cada fatia de tomate e cebola disposta ao lado e a fatia de queijo devia ser servida, não derretida, num prato à parte.
Intrigado com as exigências, mas disposto a agradar seu cliente, o garçom serviu o almoço precisamente de acordo com o pedido.
Júnior levantou o pão com um garfo, não encontrou nenhuma moeda debaixo dele, e colocou a carne numa metade do pão. Ele montou o sanduíche com os ingredientes, acrescentou ketchup e mostarda, e deu uma mordida grande, deliciosa, satisfatória.
Quando reparou numa loura olhando para ele de uma mesa próxima, sorriu e piscou para ela. Embora não fosse atraente o bastante para satisfazer os seus padrões, não havia motivo para ele ser mal-educado.
Provavelmente sentindo como fora avaliada por Júnior, e compreendendo que tinha poucas chances de encantá-lo, ela imediatamente virou o rosto e não mais olhou em sua direção.
Com o término bem-sucedido do sanduíche e com a adição do terceiro Sklent à sua coleção, Júnior foi tomado por uma animação que não sentia há um bom tempo. Contribuindo para o seu humor melhor estava o fato de que não ouvia a cantora fantasma há mais de três meses, desde o incidente em julho, na biblioteca.
Duas noites depois, após um sonho com minhocas e besouros, ele acordou ao som da voz cantando.
Surpreendeu a si próprio ao sentar na cama e gritar:
— Cala a boca, cala a boca, cala a boca!
A voz continuou entoando baixinho "Someone to Watch Over Me".
Júnior deve ter gritado mais cala a boca do que percebera, porque os vizinhos começaram a bater na parede para silenciá-lo.
Nada que ele aprendera sobre o sobrenatural conduzira-o a uma crença em fantasmas e em tudo que os fantasmas implicavam. Sua fé ainda repousava inteiramente em Enoch Caim Júnior, e ele se recusava a abrir espaço em seu altar para qualquer um ou qualquer coisa além de si mesmo.
Ele se enfiou debaixo das cobertas, apertou um travesseiro macio sobre a cabeça para abafar o canto, e cantarolou "Encontre o pai, mate o filho", até finalmente ser vencido pela exaustão e dormir.
De manhã, durante o desjejum, desta perspectiva mais calma, ele repensou em seu ataque no meio da noite e se perguntou se poderia estar sofrendo de algum problema psicológico. Decidiu que não.
Em novembro e dezembro, Júnior estudou textos arcanos sobre o sobrenatural, saiu com mulheres num ritmo prodigioso até para ele, encontrou três Bartholomews, e terminou dez capas de almofadas.
Nada em suas leituras oferecera uma explicação satisfatória para o que lhe estava acontecendo. Nenhuma das mulheres preencheu a lacuna em seu coração, e todos os Bartholomews encontrados eram inofensivos. Apenas os bordados tinham lhe oferecido alguma satisfação, mas embora Júnior se orgulhasse de suas habilidades manuais, ele sabia que um homem adulto não podia encontrar satisfação apenas bordando coisas.
Em 18 de dezembro, enquanto "Helio Goodbye", dos Beatles, subia como um foguete pelas paradas de sucesso, Júnior fervia de frustração com sua incapacidade de encontrar tanto um novo amor quanto o bebê de Serafina. Assim, dirigiu pela ponte Golden Gate até o condado de Marin, e seguiu a estrada até a cidade de Terra Linda, onde matea Bartholomew Prosser.
Prosser — 56 anos, viúvo, contador — tinha uma filha de 30 anos, Zelda, que era advogada em San Francisco. Júnior dirigira até Terra Linda antes, para pesquisar o contador; ele já sabia que Prosser não tinha qualquer relação com a maldita criança de Serafina.
Dos três Bartholomews que localizara recentemente, escolheu Prosser porque, amaldiçoado com o nome Enoch, Júnior sentia simpatia por qualquer menina que tinha sido batizada pelos pais com um nome horroroso como Zelda.
O contador vivia numa casa branca georgiana numa rua margeada por árvores altas e frondosas.
Às oito da noite, Júnior estacionou dois quarteirões depois da casa-alvo. Caminhou de volta até a residência de Prosser, mãos enluvadas nos bolsos do casaco de chuva, gola virada para cima.
Densas, brancas e coleantes massas de neblina pairavam na vizinhança, aromatizadas com a fumaça de madeira provinda de várias lareiras, como se tudo ao norte da fronteira com o Canadá estivesse em chamas.
A respiração de Júnior saía dele em nuvens de fumaça, como se também dentro dele ardesse uma chama. Ele sentiu uma camada de condensação cobrir seu rosto, uma camada fria e revigorante.
Em muitas casas, fios de lâmpadas natalinas desenhavam padrões coloridos nos telhados, nas molduras das janelas e ao longo das balaustradas das varandas, todas borradas pela neblina de uma forma que causou em Júnior a impressão de caminhar por uma paisagem onírica, pontuada por lanternas japonesas.
Fora o latido distante de um cão a uma distância muito grande, a noite estava silenciosa. Grave, bem mais baixa que a canção fantasmagórica que recentemente atormentara Júnior, a voz rude desse cão também conseguiu abalá-lo, falando diretamente a um aspecto essencial de seu coração.
Na casa de Prosser, ele tocou a campainha e esperou.
Pontual como seria de esperar de qualquer contador, Bartholomew Prosser não demorou tempo suficiente para obrigar Júnior a tocar uma segunda vez. A lâmpada da varanda acendeu.
Ao longe, nos limites da noite e da neblina, o cachorro se calou, expectante.
Menos cauteloso que o contador típico, talvez amolecido por esta temporada de paz, Prosser abriu a porta sem hesitar.
— Isto é pela Zelda — anunciou Júnior, avançando contra o pórtico empunhando uma faca.
Uma empolgação selvagem explodiu através dele como uma pirotecnia de fogos de artifício queimando no céu noturno, reminiscente da excitação que acompanhara sua ação ousada na torre de incêndio. Felizmente, Júnior não tinha qualquer ligação emocional com Prosser, como tivera com sua amada Naômi; portanto, a pureza de sua experiência não foi diluída por lamentos ou empatia.
Tão rápida, esta violência findou mal havia começado. Contudo, como não nutria nenhum interesse nas conseqüências de seus atos, Júnior não sofreu qualquer desapontamento com a brevidade da emoção. O passado era passado, e enquanto fechava a porta da frente e contornava o cadáver, ele concentrou-se no futuro.
Agira com ousadia e imprudência, sem checar o território para certificar-se de que Prosser estava sozinho. O contador vivia sozinho, mas um visitante podia estar presente.
Preparado para qualquer contingência, Júnior auscultou a casa até ter certeza de que não precisaria da faca para mais ninguém.
Seguiu direto até a cozinha e pegou um copo de água na pia. Engoliu os dois tabletes antieméticos que trouxera para coibir o vômito.
Mais cedo, antes de sair de casa, ele tomara uma dose preventiva de elixir paregórico. Por enquanto, pelo menos, suas entranhas estavam quietas.
Como sempre, curioso sobre como os outros viviam — ou, neste caso, tinha vivido — Júnior explorou a casa, fuçando gavetas e armários. Para um viúvo, até que Bartholomew Prosser era limpo e bem organizado.
Comparando com os outros passeios por casas alheias, este estava sendo incrivelmente menos interessante que a maioria. O contador parecia não ter uma vida secreta, ou interesses perversos que escondesse do mundo.
A coisa mais vergonhosa que Júnior encontrou foi a "arte" nas paredes. Realismo sentimental. Paisagens brilhantes. Naturezas-mortas de frutas e flores. Até um retrato idealizado de Prosser, sua falecida esposa, e Zelda. Nenhuma pintura falava sobre a sordidez e o terror da condição humana: mera decoração, não arte.
Na sala de estar havia uma árvore de Natal, e debaixo da árvore presentes muito bem embrulhados. Abrir todos foi divertido, mas Júnior não encontrou nada com que quisesse ficar.
Saiu pelos fundos, para não se defrontar com as conseqüências do assassinato, que jaziam diante da porta da frente. Foi envolvido por uma neblina fria e refrescante.
No trajeto até sua casa, Júnior jogou a faca num bueiro em Larkspur. Descartou as luvas numa caçamba de lixo em Corte Madera. De novo na cidade, parou o carro por tempo suficiente para doar a capa de chuva a um mendigo. Esse ser humano patético aceitou alegremente o belo casaco sem reparar que o tecido estava salpicado por manchas estranhas. E assim que vestiu o casaco... xingou o seu benfeitor, cuspiu nele e o ameaçou com um martelo.
Júnior era realista demais para esperar gratidão.
Mais uma vez em seu apartamento, saboreando um conhaque e um punhado de pistaches enquanto a segunda mudava para terça, ele decidiu que devia fazer preparativos para a possibilidade de um dia, apesar de todas as suas precauções, deixar alguma evidência comprometedora. Ele precisava converter uma parte de seus bens em riqueza portátil e anônima, como moedas de ouro e diamantes. E criar duas ou três identidades alternativas, com documentação, também seria sensato.
Durante as últimas horas, Júnior mudara novamente a sua vida, tão dramaticamente quanto a mudara naquele dia na torre de incêndio, há quase três anos.
Empurrara Naômi por um motivo: lucro. Matara Victória e Vanadium em autodefesa. Essas três mortes tinham sido necessárias.
Contudo, ele esfaqueara Prosser meramente para aliviar sua frustração e animar a rotina de uma vida amaldiçoada por uma caçada tediosa a Bartholomew e por sexo sem amor. Para obter mais excitação, ele assumira um risco maior; para mitigar o risco, precisaria de seguro.
Na cama, luzes apagadas, Júnior quase explodia de orgulho por seu espírito destemido. Ele jamais deixava de surpreender a si mesmo.
Não estava sendo atormentado por culpa ou remorso. Bem e mal, certo e errado, ele não ligava para essas coisas. As ações eram eficazes ou ineficazes, sábias ou estúpidas, mas completamente neutras.
Também não se preocupava com sua sanidade, como faria um homem menos aperfeiçoado. Nenhum louco tenta aprimorar seu vocabulário ou aprofundar sua apreciação por cultura.
Mas uma coisa o surpreendia: por que escolhera justamente esta noite para se tornar um aventureiro ainda mais ousado, em vez de alguma noite do mês passado ou do próximo? O instinto deu-lhe a resposta: Júnior sentira a necessidade de testar a si próprio; uma crise estava se aproximando depressa e, para estar preparado, precisava ter certeza de que conseguiria fazer o que fosse preciso quando ocorresse o conflito. Enquanto afundava no sono, Júnior imaginou que Prosser tinha sido mais um treinamento do que uma travessura.
Os preparativos adicionais — a compra de moedas de ouro e diamantes, o estabelecimento de identidades falsas — precisariam ser adiados por causa da ur-ticária. Uma hora antes do amanhecer, Júnior foi acordado por uma coceira feroz, não limitada apenas ao seu dedo fantasma. O seu corpo inteiro, sobre cada plano e dentro de cada reentrância, ardia como se estivesse sendo queimado por uma febre terrível — e coçava.
Tremendo, esfregando-se furiosamente, ele cambaleou até o banheiro. No espelho, confrontou-se com um rosto que quase não reconheceu: inchado e salpicado com caroços vermelhos.
Durante 48 horas ele se entupiu com anti-histamínicos, banhou-se em banheiras cheias até a borda com água fria e untou-se com pomadas. Sofrendo, dominado por uma pena imensa de si mesmo, ele não ousava pensar na pistola de 9mm que roubara de Frieda Bliss.
Na quinta-feira as erupções passaram. Como ele tivera autocontrole suficiente para não arranhar o rosto ou as mãos, estava suficientemente apresentável para passear pela cidade. Mas se as pessoas nas ruas tivessem visto as escaras sangrentas e os arranhões inflamados que tatuavam seu corpo e membros, teriam fugido com a certeza de que a peste negra, ou coisa pior, estava à solta entre eles.
Durante os dez dias seguintes, Júnior sacou dinheiro de diversas contas. Também converteu títulos em dinheiro.
Ele também procurou por um fornecedor confiável de identidades falsas. Isso se revelou mais fácil do que previra.
Um número surpreendente das mulheres que tinham sido suas amantes era usuária recreativa de drogas e, durante os últimos dois anos, ele havia conhecido vários traficantes que as supriam. Do menos agradável desses homens ele comprou cinco mil dólares em cocaína e LSD para estabelecer sua credibilidade. Em seguida, perguntou sobre documentos forjados.
Mediante uma comissão, Júnior foi posto em contato com um forjador de documentos chamado Sapo. Esse não era o seu nome verdadeiro, é claro, mas com seus olhos esbugalhados e lábios inchados, e o pomo-de-adão imenso cravado na garganta, o apelido caía-lhe muito bem.
Como as drogas arruinam todos os esforços de aprimoramento pessoal, Júnior não tinha qualquer utilidade para a cocaína e o ácido. Ele não ousava vendê-los para recuperar seu dinheiro; nem cinco mil dólares valiam o risco de ser preso. Em vez disso, deu as substâncias a um grupo de garotos jogando basquete num pátio de escola, e lhes desejou feliz Natal.
O dia 24 de dezembro a neçou com chuva, mas a tempestade moveu-se para o sul depois do amanhecer. O sol caiu sobre a cidade, e as ruas encheram-se com compradores de última hora.
Júnior juntou-se à turba, embora não tivesse qualquer lista de presentes ou gosto pela época. Ele precisava apenas sair de seu apartamento, porque tinha certeza de que a cantora fantasma apareceria em breve para mais uma serenata.
Ela não cantava desde as primeiras horas de 18 de outubro, e nenhum outro evento paranormal acontecera desde então. A espera entre as manifestações causava mais danos aos nervos de Júnior que as manifestações em si.
Alguma coisa estava para acontecer relacionada com esta assombração longa e peculiar que ele sofria há mais de dois anos, desde que encontrara a moeda de 25 cents no seu sanduíche. Enquanto todas as pessoas ao seu redor na rua sorriam como bobas, Júnior caminhava cabisbaixo e cheio de mau humor, tendo temporariamente esquecido de olhar o lado bom das coisas.
Inevitavelmente, sendo um homem das artes, acabou passando por várias galerias. Na vitrine da quarta galeria que visitou, não um de seus estabelecimentos favoritos, ele viu uma fotografia de 20 x 25cm de Serafina White.
A garota sorria, tão extraordinariamente bonita quanto ele lembrava, mas não mais com quinze anos, como na última vez que a vira. Desde que morrera ao dar à luz, há quase três anos, Serafina amadurecera e ficara mais linda que nunca.
Se Júnior não fosse um homem racional, escolado em lógica e razão pelos livros de Caesar Zedd, teria tido um ataque ali mesmo na rua, diante da fotografia de Serafina; teria começado a tremer, chorar e babar até que o levassem a uma ala psiquiátrica. Mas embora os joelhos que o mantinham em pé estivessem trêmulos como gelatina, eles não se desmancharam sob o seu peso. Júnior não conseguiu respirar por um minuto, sua visão escureceu nos cantos e os ruídos do tráfego de súbito pareceram os gritos agonizantes de pessoas sendo torturadas, mas ele manteve a razão por tempo suficiente para perceber que o nome debaixo da foto, que servia como a peça central de um pôster, dizia Celestina White em letras de imprensa, e não Serafina.
O pôster anunciava uma futura exposição, intitulada "Este Dia Marcante", dos trabalhos da jovem artista Celestina White. As datas da exposição eram de sexta-feira, 12 de janeiro, até sábado, 17 de janeiro.
Júnior reuniu toda a sua coragem e, cauteloso, entrou na galeria para fazer perguntas. Esperava que os funcionários ficassem aturdidos quando mencionasse o nome Celestina White, esperava que o pôster desaparecesse quando ele voltasse à vitrine.
Em vez disso, deram-lhe um pequeno folheto colorido exibindo reproduções da obra da artista. Ele também continha a mesma fotografia de seu rosto sorridente que embelezava a vitrine.
Segundo a curta biografia abaixo da foto, Celestina White era formada no Academy of Art College de San Francisco. Ela nascera e fora criada em Spruce Hills, Oregon, filha de um pastor protestante.
AGNES SEMPRE GOSTAVA de cear com Esaú e Jacó na véspera de Natal, porque até eles temperavam seu pessimismo nesta noite das noites. Se a data tocava os seus corações ou se eles queriam agradar sua irmã ainda mais que o habitual, ela não sabia. Se o gentil Esaú falava sobre tornados assassinos ou se o querido Jacó lembrava de explosões terríveis, seus comentários não se focavam em mortes terríveis, como de costume, mas em feitos de coragem em meio a uma catástrofe terrível, resgates fantásticos e fugas miraculosas.
Com a presença de Barty, as ceias de véspera de Natal tinham se tornado ainda mais aprazíveis, especialmente este ano, quando ele estava com quase três anos. Falava sobre as visitas a amigos que ele, sua mãe e Esaú tinham feito durante o dia, sobre o Padre Brown, como se o clérigo-detetive fosse real, sobre os sapos que ele e sua mãe tinham visto nas poças d'água do jardim ao voltar do cemitério. A conversa do menino era encantadora porque, apesar de ser imbuída com entusiasmo e encanto infantis, era apimentada com observações precoces que deliciavam os adultos.
Desde a sopa de milho, passando pelo presunto assado, até o pudim de ameixas, ele não falou sobre o seu passeio seco na chuva.
Agnes não pedira ao menino que mantivesse a sua estranha façanha em segredo para os tios. Na verdade ela viera para casa num estado mental tão alterado que — mesmo enquanto preparara o jantar com Jacó e ajudara Esaú a pôr a mesa — hesitara dizer-lhes o que acontecera durante a corrida entre a sepultura de Joey e o automóvel. Ela estava flutuando entre uma euforia irresistível e um medo à beira do pânico, e não confiava em si mesma para relatar a experiência até ter mais tempo para absorvê-la.
Naquela noite, no quarto de Barty, após ouvir as preces do filho e em seguida tê-lo preparado para dormir, Agnes sentou-se na ponta de sua cama.
— Querido, será que... Agora que você teve mais tempo para pensar, será que consegue me explicar o que aconteceu?
Ele rolou a cabeça para a frente e para trás sobre o travesseiro.
— Não. Ainda é uma coisa que a gente simplesmente sente.
— Sentir todas as formas que as coisas são.
— Sim.
— Vamos ter de conversar muito sobre isso durante os próximos dias, à medida que tivermos mais tempo para pensar no assunto.
— Imaginei.
Suavizado por uma capa de xantungue sobre sua abóbada, o abajur deitava sobre o rosto liso do menino uma luz dourada, mas um tom safira e esmeralda em seus olhos.
— Você não mencionou isso ao tio Esaú nem ao tio Jacó;
— Achei melhor não.
— Por quê?
— Você ficou assustada, não ficou?
— Sim, fiquei. — Ela não lhe disse que o medo não tinha sido amenizado pelas garantias do menino nem por sua segunda caminhada na chuva.
— E você nunca tem medo de nada — disse Barty.
— Quer dizer... Bem, Esaú e Jacó já têm medo de muita coisa. O menino fez que sim com a cabeça.
— Se eu lhes contasse isso, eles teriam de lavar as cuecas.
— Onde ouviu essa expressão? — inquiriu Agnes, embora não tenha conseguido deixar de achar graça.
Barty abriu um sorriso traquinas.
— Em um dos lugares que visitamos hoje. Uns meninos mais velhos. Eles viram um filme de terror e disseram que precisaram lavar as cuecas depois.
— Meninos mais velhos nem sempre são mais espertos porque são maiores.
— Sim, eu sei.
Ela hesitou antes de dizer:
— Esaú e Jacó tiveram vidas difíceis, Barty.
— Eles trabalharam em minas de carvão?
— Como assim?
— Na tevê disseram que os mineradores de carvão levam vidas difíceis.
— Não apenas os mineradores de carvão. Embora você seja maduro em alguns aspectos, ainda é jovem demais para eu explicar o que aconteceu. Um dia, explico.
— Tá.
— Você deve lembrar de que já conversamos antes sobre as histórias que eles vivem contando.
— Furacão. Galvestoi, Texas, em 1900. Seis mil pessoas mortas.
— Sim, essas histórias, meu bem — disse Agnes, fitando o menino com uma expressão preocupada. — Sabe, os seus tios vivem falando sobre tempestades que sopram as pessoas para longe e explosões que riscam as pessoas do mapa, mas essas não são as coisas mais importantes na vida.
— Mas acontecem — disse o menino.
— Sim. Acontecem.
Não fazia muito tempo, Agnes tentara pensar numa forma de explicar a Barty que os seus tios tinham perdido a esperança, uma forma de expressar também o que significava viver sem esperança — e de algum modo contar tudo isso ao menino sem sobrecarregá-lo, numa idade tão tenra, com os detalhes do que o avô monstruoso dele fizera com ela, Esaú e Jacó. Mas essa tarefa estava além das habilidades de Agnes. O fato de Barty ser um prodígio multiplicado por seis não facilitaria o trabalho de Agnes, porque, para compreendê-la, o menino precisaria não apenas de intelecto, mas também de experiência e maturidade emocional.
Novamente frustrada, ela disse simplesmente:
— Sempre que Jacó e Esaú falarem dessas coisas, quero que você não esqueça de que o mais importante na vida não é a morte, mas viver e ser feliz.
— Eu queria que eles soubessem disso.
Por essas seis palavras Agnes amou-o mais do que nunca.
— Eu também, querido. Deus sabe que eu também. — Beijou a testa do menino. — Ouça, meu bem, apesar do jeito estranho deles, e das histórias que contam, os seus tios são homens bons.
— Claro que são.
— E eles te amam muito.
— Eu também amo os dois, mamãe.
Mais cedo, as nuvens de chuva haviam se esvaziado por completo. Agora, as árvores cujas copas pairavam sobre a casa finalmente tinham parado de deitar gotas sobre o telhado de telhas de madeira de cedro. A noite estava tão silenciosa que Agnes podia ouvir o mar quebrando suavemente na praia a quase um quilômetro dali.
— Com sono? — perguntou Agnes.
— Um pouco.
— Papai Noel não virá enquanto você não dormir.
— Não tenho certeza se ele existe mesmo.
— Por que está dizendo isso?
— Uma coisa que li.
Perceber que a inteligência precoce negaria a Barty esta fantasia de infância, exatamente como o pai amargurado de Agnes tinha-lhe negado, deixou-a subitamente triste.
— Ele existe — garantiu Agnes.
— Você acha?
— Eu não apenas acho. E não apenas sei. Eu sinto, exatamente como você sente todas as formas que as coisas são. Aposto que você também pode sentir.
Ainda que fossem brilhantes o tempo inteiro, os olhos de pedras preciosas de Barty reluziram ainda mais, agora com raios de mágica do pólo Norte.
— Talvez eu sinta.
— Se não sente, então a sua glândula de sentimentos não está trabalhando. Quer que eu leia pra você dormir?
— Tudo bem, não precisa. Vou fechar os olhos e contar uma história pra mim mesmo.
Ela beijou a bochecha do menino, e ele tirou os braços de debaixo das cobertas para abraçá-la. Braços tão pequeninos, mas como apertavam forte! Envolvendo Barty novamente nos cobertores, Agnes disse:
— Barty, acho que você ainda não deve deixar mais ninguém ver como pode caminhar na chuva sem se molhar. Nem Esaú e Jacó, nem mais ninguém. E isso vale para qualquer outra coisa especial que você descubra que pode fazer. Precisamos manter essas coisas em segredo.
— Por quê?
Franzindo o cenho e estreitando os olhos como se estivesse se preparando para passar um sermão em Barty, Agnes lentamente baixou seu rosto até o dele, até seus narizes se tocarem, e sussurrou:
— Por que é mais divertido se for um segredo.
Imitando o sussurro da mãe, deliciando-se com sua conspiração, Barty disse:
— A nossa própria sociedade secreta.
— O que sabe sobre sociedades secretas?
— Apenas o que aprendi nos livros e na tevê.
— Que é...?
Barty arregalou os olhos e engrossou a voz, fingindo medo.
— Elas são sempre... más.
O sussurro de Agnes ficou mais baixo, porém mais rouco:
— Precisamos ser maus?
— Talvez.
— E o que acontece com as pessoas nas sociedades secretas más?
— Elas acabam na prisão — sussurrou solene.
— Então não vamos ser maus.
— Tá.
— Vamos ser uma sociedade secreta boa.
— Precisamos de um aperto de mão secreto.
— Bobagem, toda sociedade secreta tem um aperto de mão secreto — disse Agnes. E estando com o rosto ainda próximo ao do filho, esfregou seu nariz no dele. — Nós vamos fazer isto.
— E uma palavra secreta — disse Barty, contendo um risinho.
— Esquimó.
— E um nome.
— A Sociedade dos Aventureiros Bons do Pólo Norte.
— Que nome bacana!
Agnes esfregou o nariz no dele de novo, beijou-o, e se levantou da beira da cama.
Olhando para ela, Barty disse:
— Você tem uma auréola, mamãe.
— Você é um amor, querido.
— Não, você tem mesmo. Ela desligou o abajur.
— Durma bem, anjinho.
A luz suave do corredor não penetrou a porta aberta. Do quarto semi-escuro, Barty disse:
— Veja, luzes de Natal! Julgando que o menino tinha fechado os olhos e estava falando sozinho, em
algum lugar entre sua história de dormir autonarrada e um sonho, Agnes retirou-se do quarto, apenas encostando a porta atrás de si.
— Boa noite, mamãe.
— Boa noite, Barty — sussurrou.
Ela desligou a luz do corredor e ficou parada diante da porta entreaberta, ouvindo, esperando.
A casa estava mergulhada numa quietude tão intensa que Agnes mal conseguia ouvir os murmúrios de sofrimento do passado.
Embora jamais tivesse visto neve, a não ser em fotos ou em filmes, este silêncio profundo parecia falar de flocos de neve e paisagens nevadas. Agnes não ficaria nem um pouco surpresa se saísse para o quintal e se visse numa paisagem gloriosa de inverno, fria e cristalina, aqui nas colinas e praias da Califórnia.
Seu filho especial, que caminhava por onde não havia chuva, tinha feito todas as coisas parecerem possíveis.
Da escuridão de seu quarto Barty agora falou as palavras pelas quais Agnes estivera esperando, sua voz baixa, mas ainda assim ecoando na casa silenciosa:
— Boa noite, papai.
Em outras noites, ela tinha ouvido isso e se sentido tocada. Mas, nesta véspera de Natal, essas palavras encheram-na de alegria e esperança, porque ela recordou a conversa anterior com o filho, diante da sepultura de Joey:
Eu queria que o seu pai tivesse conhecido você.
Em algum lugar, ele conhece. Papai morreu aqui, mas não morreu em todos os lugares onde eu existo. Estou solitário aqui, mas não estou solitário em todos os lugares.
Relutante, Agnes puxou a porta até quase fechá-la, e desceu até a cozinha; ali, ficou sentada sozinha, bebendo café e pensando em mistérios.
De todos os presentes que Barty abriu na manhã de Natal, o exemplar em capa dura de O monstro do espaço, de Robert Heinlein, foi o seu favorito. Instantaneamente encantado com a promessa de uma divertida criatura alienígena, viagens pelo espaço, um futuro exótico e muitas aventuras, ele aproveitou todas as oportunidades durante aquele dia atarefado para abrir o livro e zarpar de Bright Beach rumo a regiões desconhecidas.
Tão comunicativo quanto os seus tios eram introvertidos, Barty não evitava as festividades. Agnes nunca precisava lembrá-lo de que a família e os convidados tinham precedência, mesmo sobre os personagens mais fascinantes da ficção, e o prazer do menino em estar na companhia de outras pessoas agradava sua mãe e a deixava orgulhosa.
Do final da manhã até o jantar, pessoas chegaram e saíram, ergueram brindes a um feliz Natal e a paz na terra, à saúde e à felicidade, lembraram de Natais passados, comentaram maravilhados o primeiro transplante de coração, realizado naquela manhã na África do Sul, e rezaram para que os soldados do Vietnã voltassem para casa em breve e que Bright Beach não perdesse naquelas selvas distantes nenhum de seus filhos preciosos.
No correr dos anos, as ondas alegres de amigos e vizinhos tinham lavado quase todas as manchas com que a ira negra do pai de Agnes marcara aqueles cômodos. Ela rezava para que os seus irmãos um dia vissem que raiva e ódio eram apenas pedras numa praia, enquanto o amor é a espuma que alisa incessantemente a areia.
Maria Elena Gonzalez — não mais a costureira de uma lavanderia, mas a proprietária da Elena's Fashions, uma lojinha de roupas a um quarteirão da praça central da cidade — juntou-se a Agnes, Barty, Esaú e Jacó na noite de Natal. Ela trouxe suas filhas: Bonita, de sete anos, e Francesca, de seis, que chegaram com suas mais novas bonecas Barbie — a Barbie Cor Mágica, seus amigos Casey e Tutti, sua irmã Skipper e o namorado Ken, mais o Conjunto de Maquiagem da Barbie —, e logo as meninas tinham envolvido Barty num mundo de faz-de-conta muito diferente daquele do romance de Heinlein, no qual o personagem principal, um adolescente, possuía um alienígena extraordinário com oito pernas, o temperamento de um gatinho e um apetite para tudo, de ursos pardos a Buicks.
Mais tarde, quando os sete estavam reunidos à mesa do jantar, os adultos levantaram taças de Chardonnay, as crianças copos de Pepsi, e Maria fez um brinde:
— A Bartholomew, à imagem de seu pai, o homem mais gentil que já conheci. Às minhas queridas Bonita e Francesca, que abrilhantam cada dia de minha vida. A Esaú e Jacó, com que... com quem aprendi muitas coisas que me fizeram pensar sobre a fragilidade da vida e compreender como cada dia é precioso. E a Agnes, a minha amiga mais querida, que me deu tanto, incluindo todas as palavras que estou usando. Deus abençoe a cada um de nós.
— Deus abençoe a cada um de nós repetiu Agnes a sua família estendida. Após um gole de vinho, Agnes arranjou uma desculpa para verificar alguma
coisa na cozinha, onde premiu lágrimas quentes contra um pano de prato frio, levemente molhado, de modo a impedir que os olhos ficassem vermelhos.
Freqüentemente, nesses dias, ela precisava explicar a Barty aspectos da vida que não esperava discutir ainda por anos a fio. Ela se perguntava como conseguiria fazê-lo entender isto: a vida pode ser tão agradável, tão plena, que algumas vezes a felicidade possui a mesma intensidade que o sofrimento, e a pressão que ela exerce no coração quase se torna dor.
Quando acabou de passar a toalha nos olhos, Agnes voltou para a sala de jantar, e embora todos já estivessem jantando, ela pediu outro brinde. Levantando a taça, Agnes disse:
— A Maria, que é mais que minha amiga. É minha irmã. Não posso permitir que fale sobre o que lhe dei sem contar para suas filhas que você me deu de volta muito mais. Você me ensinou que o mundo é tão simples quanto costurar, que aqueles problemas que parecem ser os mais terríveis podem ser costurados, reparados. — Ela levantou um pouco mais a taça. — A primeira galinha já veio com o primeiro ovo dentro dela. Deus abençoe a todos nós.
— Deus abençoe a todos nós — disseram todos.
Maria, depois de um único gole de Chardonnay, correu para a cozinha, ostensivamente para checar o flã de damasco que ela trouxera, mas na verdade para premir um pano de prato frio e ligeiramente úmido nos olhos.
As crianças insistiram em saber o que significava aquela conversa sobre a galinha, e isto conduziu a uma série de piadas de "por que a galinha atravessou a rua", que Esaú e Jacó tinham decorado na infância como um ato de rebelião contra o pai mal-humorado.
Mais tarde, enquanto Bonita e Francesca serviam orgulhosas as porções do flã moldadas individualmente como árvores de Natal, que elas mesmas tinham posto nos pratos, Barty inclinou-se para perto da mãe e, apontando para a mesa na frente deles, disse em voz baixa mas excitada:
— Olhe os arco-íris.
Ela seguiu o dedo estendido do filho, mas não conseguiu ver sobre o que ele estava falando.
— Entre as velas — explicou.
Jantavam à luz de velas. Havia velas com perfume de baunilha pousadas sobre o bufê no outro lado da sala, brilhando sobre castiçais de vidro, mas Barty apontava para cinco velas vermelhas atarracadas, distribuídas no centro do móvel.
— Entre as chamas, veja, arco-íris!
Agnes não viu nenhum ar de cores entre uma vela e outra, e achou que ele estava se referindo aos copos e taças que espelhavam as chamas. Aqui e ali, o efeito prismático do cristal transformava os reflexos das chamas em espectros vermelhos-dourados-amarelos-azuis-violetas que dançavam ao longo das bordas transparentes.
Quando a última porção de flã foi servida e as meninas de Maria assumiram mais uma vez seus lugares, Barty piscou para as velas e disse:
— Sumiram agora.
Mas os espectros pequeníssimos ainda brilhavam nas bordas das taças de cristal. Agora Barty voltou a sua atenção para o flã com tanto entusiasmo que logo sua mãe parou de pensar em arco-íris.
Depois que Maria, Bonita e Francesca tinham ido embora, quando Agnes e seus irmãos juntaram forças para limpar a mesa e lavar os pratos, Barty deu-lhes um beijo de boa-noite e se recolheu para o quarto levando O monstro do espaço.
Já tinham passado duas horas da sua hora de dormir. Nos últimos meses, ele exibira os hábitos erráticos de dormir das crianças mais velhas. Em certas noites, parecia possuir o ritmo circadiano de uma coruja ou um morcego; depois de passar o dia inteiro lendo, Barty ficava subitamente alerta e energético ao anoitecer, e querendo ler até bem depois da meia-noite.
Para orientar-se, Agnes não podia confiar em nenhum dos livros sobre educação infantil em sua coleção. Os dons únicos de Barty brindavam-na com problemas específicos de mãe. Agora, quando ele perguntava se podia ficar acordado até mais tarde, para ler sobre John Thomas Stuart e Lummox, seu bicho de estimação do espaço exterior, Agnes dava-lhe permissão.
Às quinze para a meia-noite, a caminho da cama, Agnes parou no quarto de Barty para encontrá-lo debruçado sobre os travesseiros. O livro não era maior que a média, mas era grande em proporção ao menino. Incapaz de mantê-lo aberto apenas com as mãos, ele repousava seu braço esquerdo inteiro sobre o topo do volume.
— A história está boa? — perguntou Agnes. Ele levantou os olhos para ela.
— Fantástica!
E retomou imediatamente a leitura.
Quando Agnes acordou, à 1:50 da manhã, estava tomada por uma vaga apreensão cuja fonte não conseguia identificar. Luar fracionado na janela.
O grande carvalho no jardim, dormindo na cama silenciosa da noite.
A casa completamente quieta. Nem intrusos nem fantasmas vagavam por ela.
Mesmo assim tensa, Agnes desceu o corredor até o quarto do filho e descobriu que ele dormira sentado, durante a leitura. Retirou delicadamente O monstro do espaço dos braços do menino, marcou a parte em que ele estava com a orelha da sobrecapa e colocou o livro na mesinha-de-cabeceira.
Enquanto Agnes puxava o excesso de travesseiros de debaixo do menino e o acomodava sob as cobertas, Barty, meio adormecido, meio acordado, murmurou alguma coisa sobre a polícia estar caçando o pobre Lummox, que não queria ter causado todos aqueles estragos, tendo apenas se assustado com os tiros, e que quando você pesa seis toneladas e tem oito pernas, às vezes não consegue andar por lugares apertados sem derrubar algumas coisas.
— Está tudo bem — sussurrou Agnes. — Lummox vai ficar bem.
Ele fechou os olhos de novo e pareceu dormir, mas quando ela desligou o abajur, ele murmurou:
— Você está com a sua auréola de novo.
De manhã, depois que tinha tomado banho e se vestido, Agnes desceu para o térreo e descobriu Barty já à mesa da cozinha, comendo uma tigela de cereais enquanto se mantinha grudado no livro. Ao terminar o desjejum, voltou para o seu quarto, lendo durante o percurso.
Na hora do almoço, ele já tinha virado a última página, e estava tão empolgado com a história que não parecia ter tempo para comer. Enquanto a mãe continuava insistindo para que comesse, ele a regalava com detalhes sobre as grandes aventuras de John Thomas Stuart e Lummox, como se cada palavra escrita por Heinlein não fosse ficção científica, porém a mais pura verdade.
Então ele se aboletou numa das poltronas grandes na sala de estar e começou a ler o livro de novo. Era a primeira vez que relia um romance, e por volta da meia-noite havia terminado.
No dia seguinte, quarta-feira, 27 de dezembro, sua mãe o levou de carro até a biblioteca, onde ele retirou mais dois livros de Heinlein recomendados pela bibliotecária: Planeta vermelho e The Rolling Stones. A julgar pela empolgação demonstrada durante o trajeto de volta para casa, a reação anterior do menino aos romances de mistério tinha sido um flerte passageiro, enquanto esta era uma paixão desesperada, eterna.
Agnes descobriu que observar o filho ser completamente consumido por um entusiasmo novo era um deleite incomparável. Através de Barty, ela tinha uma noção de como sua própria infância teria sido se o seu pai lhe tivesse permitido ter uma; e em alguns momentos, ao ouvir o menino relatar as aventuras espaciais da família Stone ou os mistérios de Marte, Agnes descobria que ao menos parte de uma criança ainda vivia dentro dela, intocada pela crueldade e pelo tempo.
Logo depois das três da tarde de quinta-feira, num estado de agitação, Barty correu até a cozinha, onde Agnes estava assando pudins de leite. Segurando Planeta vermelho entre as páginas 104 e 105, ele reclamou que o exemplar da biblioteca estava defeituoso.
— Tem umas manchas na impressão, e umas letras distorcidas, que não deixam ler direito todas as palavras. Será que a gente pode comprar o nosso próprio exemplar, e comprar agora?
Depois de limpar as mãos, Agnes pegou o livro e, examinando-o, não encontrou nada errado. Folheou algumas páginas anteriores, e então algumas seguintes, mas as linhas da impressão estavam limpas e claras.
— Mostre onde estão os defeitos, querido.
O menino não respondeu de imediato, mas quando Agnes levantou os olhos de Planeta vermelho, viu que ele estava olhando estranhamente para ela. Ele franziu a testa, como se intrigado.
— As manchas saltaram da página para o seu rosto, mamãe.
A apreensão disforme que a acordara às dez para as duas da manhã de terça tinha voltado para ela de tempos em tempos durante os últimos dias. Agora, aqui estava ela novamente, arranhando sua garganta e apertando o seu peito — pelo menos começando a tomar forma.
Barty deu as costas para ela, correu os olhos pela cozinha e disse:
— Ah, sou eu quem está com defeito.
Auréolas e arco-íris avultaram-se na memória de Agnes, ameaçadores como nunca tinham sido.
— Deixe-me dar uma olhada.
Ele a fitou com os olhos semicerrados.
— Pálpebras bem abertas, querido. Ele as abriu.
Safiras e esmeraldas, pedras preciosas deslumbrantes engastadas no branco claríssimo, pupilas negras como ébano no centro. Lindos mistérios, esses olhos, mas, até onde Agnes conseguia discernir, não estavam nem um pouco diferentes do habitual.
Ela poderia ter atribuído o problema de Barty a esforço visual devido a toda a leitura que ele realizara nos últimos dias. Ela poderia ter posto colírio em seus olhos, dito que deixasse os livros de lado por algum tempo, e então mandá-lo brincar no quintal. Ela poderia ter aconselhado a si própria a não ser uma daquelas mães alarmistas que detectavam pneumonia em cada fungada, um tumor cerebral atrás de cada enxaqueca.
Ao invés disso, tentando não expor a Barty a profundidade de sua preocupação, mandou-o pegar seu casaco no armário. Em seguida, pegou seu próprio casaco e, deixando os pudins de leite incompletos, enfiou o menino no carro e o levou até o consultório médico, porque Barty era a sua razão para respirar, o motor de seu coração, sua esperança e alegria, seu último elo com o marido falecido.
O dr. Joshua Nunn tinha apenas 48 anos, mas parecia um vovô desde a primeira vez que Agnes viera até ele como paciente, depois da morte de seu pai, há mais de dez anos. Seus cabelos tinham assumido um tom de branco puro antes mesmo que fizesse trinta anos. Ele aproveitava todas as folgas para ou trabalhar assiduamente em seu barco pesqueiro de 20 pés, o Hipocrático, que ele raspava, pintava, polia e consertava com as próprias mãos, ou passeava pela Bright Bay nele, pescando como se o destino de sua alma dependesse do tamanho do peixe que pegasse; conseqüentemente, passava tanto tempo exposto ao ar salgado e ao sol que seu rosto perpetuamente bronzeado tinha rugas nos cantos de seus olhos e tantas linhas de expressão quanto os melhores avôs. Joshua aplicava à preservação de uma barriga redonda e um segundo queixo a mesma dedicação que aplicava à manutenção de seu barco. Somando tudo isso aos óculos finos, à gravata-borboleta, aos suspensórios e às cotoveleiras amarelas em sua jaqueta, ele parecia ter esculpido intencionalmente a sua aparência física para colocar os pacientes à vontade, e escolhido suas roupas com o mesmo propósito.
Como sempre, o médico foi gentil com Barty, e nesta ocasião provocou no menino mais do que o número usual de sorrisos e risadinhas, enquanto tentava fazê-lo ler a tabela de Snellen que estava na parede. Em seguida, reduziu as luzes da sala de exames para estudar seus olhos com um oftalmômetro e um oftal-moscópio.
Da cadeira no canto, onde Agnes estava sentada, pareceu que Joshua examinou o menino por muito mais tempo que o normal. Ela estava tão preocupada que a minuciosidade usual do médico desta vez pareceu-lhe carregada de um significado funesto.
Ao terminar, Joshua pediu licença e caminhou pelo corredor até o seu escritório. Ficou fora talvez por cinco minutos e, quando voltou, mandou Barty ir até a sala de espera, onde a recepcionista mantinha uma jarra de pirulitos com sabor de laranja e limão.
— Alguns têm o seu nome neles, Bartholomew — disse o médico.
As distorções sutis em sua visão, que distorciam as linhas das letras, não pareciam importunar muito nos outros aspectos. Ele se movia com a mesma rapidez e convicção de sempre, e com sua graça especial.
A sós com Agnes, o médico disse:
— Quero que leve Barty a um especialista em Newport Beach. Franklin Chan. Ele é um oftalmologista e um cirurgião de olhos fabuloso, e no momento não temos ninguém como ele aqui na cidade.
As mãos de Agnes estavam entrelaçadas sobre o seu colo, os dedos tão apertados uns contra os outros que os músculos em seus antebraços doíam.
— O que há de errado?
— Não sou especialista em olhos, Agnes.
— Mas você tem alguma suspeita.
— Não quero preocupá-la sem necessidade se...
— Por favor. Me prepare. Ele fez que sim com a cabeça.
— Sente aqui — disse, dando um tapinha na mesa de exames.
Ela se sentou na ponta da mesa, onde Barty sentara, agora os olhos nivelados com os do médico em pé.
Antes que os dedos de Agnes pudessem se entrelaçar novamente, Joshua estendeu suas mãos bronzeadas e calejadas pelo trabalho. Grata, Agnes apertou as mãos dele.
— Há um ponto branco na pupila direita de Barty... que creio que indique um crescimento — disse o médico. — As distorções em sua visão continuam, embora um pouco diferentes, quando ele fecha o olho direito, de modo que isso indica que também há um problema no esquerdo, embora eu não tenha conseguido ver nada lá. O dr. Chan está com a agenda cheia amanhã, mas como um favor para mim, ele receberá vocês no começo da manhã, antes do horário usual. Vocês precisam começar o mais cedo possível.
Newport Beach ficava a quase uma hora de viagem para o norte, ao longo da costa.
— E é melhor você se preparar para um longo dia — acautelou Joshua. — Tenho certeza de que o dr. Chan vai querer que vocês consultem um oncologista.
— Câncer — sussurrou Agnes e, supersticiosamente, reprovou-se por falar a palavra em voz alta, como se assim estivesse conferindo poder à doença e garantindo sua existência.
— Ainda não temos certeza — disse Joshua. Mas ela tinha.
Barty, alegre como sempre, parecia não estar muito preocupado com o problema com sua visão. Parecia esperar que ele passasse como qualquer gripe ou resfriado.
Ele se importava apenas com Planeta vermelho e o que aconteceria depois da página 103. Levara o livro consigo até o consultório do doutor e no caminho de volta para casa, no carro, ele repetidamente o abriu, forçando a vista para ler o texto, tentando ler ao redor ou através das manchas.
— Jim, Frank e Willis estão enrascados.
Agnes não resistiu à tentação de mimar o menino no jantar: salsichas com queijo e batatas fritas. E em lugar de leite, refrigerante sabor gengibirra.
Ela não ia ser tão franca com Barty quanto insistira que Joshua Nunn fosse com ela, em parte porque estava abalada demais para ser coerente.
Na verdade, não estava conseguindo falar com o filho com a tranqüilidade com que ele estava acostumado. Ela ouvia em sua própria voz uma solenidade que, sabia, se tornaria evidente para o menino, cedo ou tarde.
Temia que sua ansiedade fosse contagiosa, e que se seu medo infectasse o menino, ele ficasse menos capaz de enfrentar a coisa odiosa que tinha se instaurado em seu olho direito.
Robert Heinlein salvou Agnes. Sobre as salsichas e as batatas fritas, ela leu para Barty o Planeta vermelho, começando no topo da página 104. Ele compartilhara com ela a história até ali, de modo que Agnes sentiu-se conectada com a narrativa, e logo estava tão envolvida com a história que conseguiu ocultar a sua angústia.
E então para o quarto, onde sentaram-se lado a lado na cama, um prato de biscoitos de chocolate entre eles. Durante toda a noite, saíram deste planeta e de todos os seus problemas e partiram para um mundo de aventuras, onde amizade, lealdade, coragem e honra eram armas poderosas contra qualquer coisa odiosa.
Depois que Agnes leu as palavras finais da última página, Barty estava inebriado com especulações, tagarelando sobre o que aconteceria em seguida com aqueles personagens que tinham se tornado seus amigos. Ele falou sem parar enquanto vestia o pijama, fazia xixi e escovava os dentes, fazendo Agnes perguntar-se como conseguiria acalmá-lo para que ele dormisse.
No fim, ele acabou se cansando tanto que adormeceu.
Uma das coisas mais difíceis que já tinha feito foi deixá-lo sozinho em seu quarto, com aquela coisa odiosa ainda crescendo silenciosamente em seu olho. Ela queria arrastar a cadeira até a cama e passar a noite a vigiá-lo.
Contudo, se acordasse e a visse de vigília, Barty compreenderia o quanto seu estado podia ser ruim.
E assim Agnes foi sozinha para o seu quarto e ali, como em tantas outras noites, procurou o conforto da pedra que também era sua lâmpada, da lâmpada que também era sua fortaleza, da fortaleza que também era o seu pastor. Ela rogou por misericórdia, e se a misericórdia não viesse, pediu pela sabedoria para compreender o propósito do sofrimento de seu filhinho.
NA MANHÃ DA VÉSPERA de Natal, folheto da galeria na mão, Júnior retornou ao seu apartamento, intrigado com mistérios que não tinham qualquer relação com estrelas-guias e virgens dando à luz.
Através das janelas, a noite invernal caiu lentamente sobre a cidade enquanto Júnior se manteve sentado em sua sala de estar, uma taça de Dry Sack numa das mãos e a foto de Celestina White na outra.
Ele tinha certeza de que Serafina morrera dando à luz. Vira os negros reunidos em seu funeral no cemitério, no mesmo dia do enterro de Naomi. Ouvira a mensagem de Max Bellini na secretária eletrônica do policial maníaco.
Em todo caso, se Serafina ainda estivesse viva, estaria agora com apenas dezenove anos, jovem demais para ter-se formado na Academy of Art College.
A semelhança notável entre esta artista e Serafina, bem como os fatos no resumo biográfico abaixo da foto, argumentava que as duas eram irmãs.
Isso deixou Júnior desnorteado. Até onde podia lembrar, durante as semanas que ele administrara o tratamento fisioterapêutico a Serafina, ela jamais mencionara uma irmã mais velha ou qualquer irmã.
Na verdade, por mais que se esforçasse para recordar suas conversas, Júnior não conseguia lembrar nada que Serafina tivesse dito durante a terapia, como se ele tivesse estado surdo naqueles dias. As únicas coisas que sua mente retinha eram as impressões sensuais: a beleza do rosto, a textura da pele, a firmeza da carne que ele tocara com suas mãos.
Mais uma vez, lançou sua memória em águas lodosas, aproximadamente quatro anos no passado, à noite que compartilhara com Serafina na paróquia. Como antes, não conseguiu lembrar nada do que ela dissera, apenas a beleza do rosto e a perfeição núbil do corpo da menina.
Na casa do pastor, Júnior não vira indícios de uma irmã. Nenhuma foto de família, nenhum retrato de formatura de segundo grau emoldurado orgulhosamente. Evidentemente, ele não nutrira qualquer interesse pela família, porque estivera completamente consumido por Serafina.
Além disso, sendo um homem focado no futuro, que acreditava que o passado era um fardo a ser descartado, ele jamais fazia qualquer esforço para guardar lembranças. Chafurdar sentimentalmente em nostalgia não exercia sobre ele o mesmo fascínio que sobre a maioria das pessoas.
Contudo, este esforço de recordação auxiliado pelo vinho seco resgatou mais uma coisa além das imagens lascivas do corpo nu de Serafina. A voz do pai dela. No gravador. O reverendo falando devagar enquanto Júnior servia-se de sua filha devota no colchão.
Por mais excitante que tivesse sido fazer amor com a garota ao som do sermão do pastor, que Serafina estivera transcrevendo para papel, Júnior não conseguia lembrar nada do que o reverendo dissera, apenas o tom e o timbre de sua voz. Fosse por instinto, tensão nervosa, ou apenas influência da bebida, ele agora estava atormentado pelo pensamento de que houvera algo significativo no conteúdo da fita.
Virou o folheto em suas mãos, para olhar a capa novamente. Pouco a pouco, começou a suspeitar de que poderia ter sido o título da exposição que o fizera lembrar do sermão do pastor.
Este Dia Marcante.
Júnior proferiu as três palavras em voz alta e sentiu uma ressonância estranha entre elas e as lembranças sombrias da voz do reverendo White naquela noite distante. Ainda assim, a ligação, se é que existia alguma, permanecia fugidia.
Reproduzidas no folheto dobrado em três havia amostras das pinturas de Celestina White. Júnior julgou-as extremamente ingênuas, tediosas, insípidas. Ela imbuía seu trabalho com todas as qualidades que os artistas verdadeiros desprezavam: detalhes realistas, histórias, beleza, otimismo e até encantamento.
Não era arte. Eram reproduções banais da vida, meras ilustrações, mais adequadas a pinturas sobre veludo do que sobre tela.
Estudando o catálogo, Júnior sentiu que a sua melhor reação à obra desta artista era ir diretamente ao banheiro, e enfiar um dedo na garganta para induzir vômito. Entretanto, considerando o seu histórico médico, ele não podia se dar ao luxo de ser um crítico tão expressivo.
Quando retornou à cozinha para adicionar gelo e mais bebida à sua taça, procurou por White, Celestina no catálogo telefônico de San Francisco. O número estava listado, mas o endereço não.
Pensou em telefonar para ela, mas não sabia o que dizer se ela atendesse.
Embora não acreditasse em destino ou fatalidade, em nada além de si próprio ou em sua própria habilidade em moldar o futuro, Júnior não podia negar o quanto era extraordinário que esta mulher cruzasse o seu caminho neste momento preciso de sua vida, quando ele estava frustrado ao ponto de uma hemorragia cerebral por sua incapacidade em encontrar Bartholomew, confuso e nervoso sobre a cantora fantasma e outros eventos aparentemente sobrenaturais em sua vida, e mais tenso do que nunca. Aqui estava um elo com Serafina e, através de Serafina, com Bartholomew.
Os registros de adoção certamente tinham sido mantidos em segredo para Celestina, como para todo mundo. Mas talvez ela soubesse alguma coisa sobre o destino do filho bastardo que Júnior não sabia, um pequeno detalhe que seria insignificante para ela mas que poderia colocá-lo finalmente na pista certa.
Precisava ser cuidadoso em sua abordagem a ela. Não podia tomar nenhuma decisão apressada. Precisava pensar em tudo, delinear uma estratégia. Esta oportunidade valiosa não podia ser desperdiçada.
Com sua bebida refrescante, estudando a fotografia de Celestina na brochura, Júnior voltou para a sala de estar. Ela era tão estonteante quanto Serafina, mas, ao contrário de sua pobre irmã, não estava morta e, portanto, era uma perspectiva interessante para um romance. Com ela, ele deveria aprender tudo que pudesse capaz de ajudá-lo na caça a Bartholomew, sem alertá-la a respeito de sua razão. Ao mesmo tempo, não havia razão para que eles não tivessem um caso, um romance, talvez até um futuro sério juntos.
Como seria irônico se Celestina, a tia do filho bastardo de Serafina, se revelasse a alma gêmea com quem Júnior sonhava nos últimos anos de relacionamentos insatisfatórios e sexo casual. Isto parecia improvável, considerando a qualidade insípida de suas pinturas, mas talvez ele conseguisse ajudá-la a crescer e a se desenvolver como artista. Ele era um homem de mente aberta, desprovido de preconceitos, de modo que qualquer coisa poderia acontecer depois que a criança fosse encontrada e assassinada.
As lembranças sensuais de sua noite tórrida com Serafina deixaram Júnior excitado. Infelizmente, a única fêmea nas proximidades era a Mulher industrial, e ele não estava tão desesperado assim.
Fora convidado para uma celebração de véspera de Natal com um tema satânico, mas não tinha pretendido ir. A festa não seria realizada por adoradores de Satã autênticos, o que seria interessante, mas por um grupo de jovens artistas, todos ateus, que compartilhavam de um senso de humor perverso.
Júnior afinal decidiu comparecer às festividades, motivado pela perspectiva de se relacionar com uma mulher mais macia que a escultura de Bavol Poriferan.
Enquanto saía, enfiou o folheto de "Este Dia Marcante" no bolso do casaco. Seria divertido ver um grupo de jovens artistas de vanguarda analisarem as imagens de cartão-postal de Celestina. Além disso, como o Academy of Art College era a principal faculdade de seu tipo na Costa Oeste, alguns dos convidados talvez a conhecessem e pudessem oferecer-lhe informações úteis.
A festa foi realizada num apartamento cavernoso no terceiro — e último — pavimento de um prédio industrial modificado, a residência comunal e estúdio de um grupo de artistas que acreditavam que arte, sexo e política eram os três martelos da revolução violenta, ou algo parecido.
Um que parecia movido a energia nuclear ribombava músicas dos Doors, Jefferson Airplane, Mamas and the Papas, Strawberry Alarm Clock, Country Joe and the Fish, LovinSpoonful, Donovan (infelizmente), Rolling Stones (irritantemente) e Beatles (insultuosamente). Megatons de música colidiam com as paredes de tijolos, faziam as janelas de moldura de metal reverberarem como tambores numa banda militar e criavam simultaneamente uma atmosfera de possibilidades empolgantes e uma sensação de que o Apocalipse estava próximo e iria ser divertido.
Tanto os vinhos brancos quanto os tintos eram vagabundos demais para o gosto de Júnior; assim, tomou cerveja Dos Equis, que o deixou alto quando combinada com a inalação de uma quantidade de fumaça de maconha grande o bastante para defumar toda a produção anual de presuntos do estado de Virgínia. Entre os duzentos ou trezentos convidados, alguns estavam viajando em ácido, outros ligados em anfetaminas, alguns exibiam a excitação e a verborragia típicas dos cocainômanos, mas Júnior não sucumbiu a nenhuma dessas tentações. Tudo que importava para ele era o aperfeiçoamento pessoal e o autocontrole; ele não aprovava nenhuma dessas formas de dependência.
Além disso, notava uma tendência entre os viciados a ficarem deprimidos e a se abrirem com quem estivesse por perto, procurando alcançar a paz através da auto-análise e da confissão. Portanto, se as drogas deixassem Júnior com vontade de se confessar, a conseqüência poderia ser a morte por eletrocução, envenenamento por gás ou injeção letal, dependendo da jurisdição e do ano no qual fosse induzido a expor os segredos que guardava no peito.
Falando em peito, a festa estava cheia de mulheres sem sutiã vestidas com suéteres e minissaias, mulheres sem sutiã com camisas de malha e minissaias, mulheres sem sutiã com blusas de seda e calças jeans, mulheres sem sutiã com blusas de sacha e calças colantes. Muitos homens também se moviam pela multidão, mas Júnior mal os notou.
O único homem que despertou o interesse de Júnior — um grande interesse — foi Sklent, o pintor de um nome cujas três telas constituíam a única arte nas paredes do apartamento de Júnior.
O artista, com cerca de 1,82m e mais de cem quilos, parecia muito mais perigoso em pessoa do que na sua foto publicitária. Ainda na casa dos vinte, tinha cabelos brancos que caíam retos até os ombros. Pele branca como a de um cadáver. Os olhos profundos, tão cinzentos quanto a chuva, com um tom rosado como o de um albino, tinham um brilho predador tão arrepiante quanto os olhos de uma pantera. Cicatrizes horríveis varavam seu rosto e manchas vermelhas cobriam as mãos, como se ele tivesse se defendido com as mãos nuas contra homens armados com espadas.
Mesmo no canto mais distante dos alto-falantes estéreos, as vozes precisavam ser levantadas até nos diálogos mais íntimos. Contudo, o artista que criara No cérebro do bebê reside o parasita do apocalipse, versão 6, possuía uma voz tão profunda, alta e penetrante quanto o seu talento.
Sklent revelou-se zangado, supersticioso, volátil, mas também um homem de imenso poder intelectual. Dotado de uma oratória fascinante e profunda, ele desfiava relatos impressionantes sobre a condição humana, opiniões ousadas mas lógicas sobre arte e conceitos filosóficos revolucionários. Mais tarde, exceto pela parte dos fantasmas, Júnior não conseguiria lembrar uma única palavra dita por Sklent, apenas que seu discurso tinha sido brilhante.
Fantasmas. Sklent era um ateu, mas ainda assim acreditava em espíritos. Era assim que funcionava: Paraíso, Inferno e Deus não existiam, mas os seres humanos são compostos tanto por energia quanto por carne, e quando a carne acaba, a energia continua.
— Somos a espécie mais teimosa, egoísta, violenta, psicótica e má do universo — explicou Sklent. — E alguns de nós simplesmente se recusam a morrer. O espírito é um aglomerado de energia que às vezes se prende a lugares e pessoas que foram importantes para o indivíduo quando estava vivo. É por causa disso que existem casas assombradas, pobres coitados ainda atormentados por suas esposas mortas, e porcarias desse tipo. E às vezes o aglomerado de energia se liga ao embrião de alguma vagabunda que acaba de ser fodida, e é assim que acontecem as reencarnações. Não é preciso um deus para nada disso. É apenas a forma como as coisas são, e somos apenas um bando de macacos sujos e desprezíveis tentando transpor uma série infinita de barreiras.
Durante dois anos, desde que encontrara a moedinha em seu cheesebúrguer, Júnior estivera procurando por uma forma de metafísica que pudesse abraçar, que combinasse com todas as verdades que aprendera com Zedd, e que não exigisse que ele reconhecesse nenhum poder maior do que o seu. Aqui estava ela. Inesperada. Completa. A parte sobre macacos e barreiras não fizera muito sentido, mas ele entendera todo o resto, e agora sentia-se envolto numa espécie de paz.
Júnior gostaria de continuar a aprender questões espirituais com Sklent, mas vários outros convidados queriam sua vez com aquele grande homem. Antes de sair, certo de que faria o artista dar uma boa risada, Júnior tirou o folheto de "Este Dia Marcante" do bolso da jaqueta e, timidamente, pediu a sua opinião sobre as pinturas de Celestina White.
Tomando por base as evidências, talvez Sklent jamais risse, a despeito do quanto a piada fosse boa. Ele fez uma careta ao ver as pinturas no folheto e o devolveu a Júnior.
— Dê um tiro nessa puta — disse Sklent.
Considerando que essa crítica era uma hipérbole divertida, Júnior riu, mas Sklent semicerrou seus olhos virtualmente descoloridos e o riso de Júnior morreu em sua garganta.
— Bem, talvez isso acabe acontecendo — disse Júnior, querendo cair nas boas graças de Sklent, mas arrependendo-se imediatamente por ter proferido essas palavras diante de testemunhas.
Usando o folheto para derreter o gelo, Júnior circulou pela multidão, procurando qualquer um que tivesse cursado o Academy of Art College e pudesse conhecer Celestina White. As críticas às suas pinturas foram uniformemente negativas, freqüentemente hilárias, mas nunca tão sucintas e violentas quanto a de Sklent.
Finalmente, uma loura sem sutiã e com botas reluzentes, tão brancas quanto sua minissaia, e uma camisa de malha cor-de-rosa exibindo um desenho em silkscreen do rosto de Albert Einstein, disse:
— Sim, eu a conheço. Freqüentamos algumas aulas juntas. Não é má pessoa, mas é muito esquisita, especialmente para uma afro-americana. Quero dizer, você já viu algum negro esquisito?
— Nunca. Talvez só o Buckwheat.
— Quem? — gritou ela, embora estivessem empoleirados lado a lado num sofá de couro preto.
Júnior falou ainda mais alto:
— Daqueles filmes antigos dos Batutinhas.
— Não gosto de nada velho. Essa tal White tem um gosto estranho por gente velha, prédios velhos, todo tipo de coisa velha. Ela não entende que é jovem. Dá vontade de agarrar essa mulher, balançar ela e dizer: "Ei, siga em frente."
— O passado é passado.
— É o quê? — gritou.
— Passado!
— Pura verdade.
— Mas a minha falecida esposa gostava dos filmes dos Batutinhas.
— Você foi casado?
— Ela morreu.
— Tão nova?
— Câncer — disse ele, porque era mais trágico e muito menos suspeito que uma queda de uma torre de incêndio no meio da floresta.
Em simpatia, ela pousou uma mão sobre a coxa de Júnior.
— Foram anos difíceis — disse ele. — Perder a minha mulher... e depois sair vivo do Vietnã.
A loura arregalou os olhos.
— Você esteve lá?
Ele achava difícil fazer uma revelação pessoal parecer sincera quando gritada, mas conseguiu umedecer os olhos com lágrimas:
— Perdi parte do meu pé durante um ataque.
— Que droga, bicho. Puxa, como odeio essa guerra.
A mulher estava a fim dele, assim como uma legião de outras mulheres desde que ele chegara, e assim Júnior tentou equilibrar sedução com coleta de informações.
— Conheci o irmão dela lá no Vietnã — disse Júnior, pousando a mão sobre a da loura, que massageava gentilmente sua coxa. — Depois fui ferido e mandado de volta e perdemos o contato. Nunca o encontrei.
Confusa, a loura perguntou:
— Que irmão?
— O de Celestina White.
— Ela tem um irmão?
— Grande sujeito. Se tiver o endereço de Celestina, tentarei entrar em contato com o irmão dela.
— Eu não a conheci bem. Ela não badalava muito... especialmente depois do bebê.
— Então ela está casada — disse Júnior, deduzindo que Celestina talvez não fosse sua alma gêmea, afinal de contas.
— Talvez esteja. Faz um tempo que não a vejo.
— Perguntei porque você disse "bebê".
— Não foi a Celestina que teve bebê. Foi a irmã dela. Mas a irmã morreu.
— Sim, eu sei. Mas...
— Então a Celestina ficou.
— Ficou com o quê?
— Com o bebê.
Júnior esqueceu por completo a sedução.
— Ela fez o quê? Adotou o bebê da irmã?
— Esquisito, não é?
— É um menino chamado Bartholomew? — perguntou.
— Nunca o vi.
— Mas o nome é Bartholomew?
— Pode ser até Mijão, eu não sei.
— O quê?
— Estou dizendo que não sei o nome. — Ela tirou a mão da coxa de Júnior. — Qual é o seu lance com a Celestina, afinal?
— Com licença — disse Júnior.
Saiu da festa e ficou na rua durante algum tempo, respirando lenta e profundamente, deixando o ar frio da noite limpar a fumaça de maconha de seus pulmões. De repente descobriu-se completamente sóbrio, a despeito de toda a cerveja que tinha bebido, e frio como um bife tirado da geladeira, mas não por causa do sereno noturno.
Estava impressionado com o fato dos registros de adoção terem sido selados e guardados com tanto zelo quando a criança havia sido posta sob a guarda de um parente direto, a irmã de sua mãe.
Apenas duas explicações lhe ocorrera. Primeira, a burocracia segue mecanicamente as regras, mesmo quando elas não fazem sentido. Segunda, o Detetive Mais Feio do Mundo, Nolly Wulfstan, era um panaca incompetente.
Júnior não ligava para qual explicação estava correta. Apenas uma coisa importava: a caçada a Bartholomew estava próxima do fim.
Na quarta-feira, 27 de dezembro, Júnior encontrou com Sapo, o forjador de do cumentos, durante uma matinê de Bonnie e Clyde, uma rajada de balas.
Seguindo instruções recebidas por telefone, Júnior comprou uma caixa grande de flocos de arroz e um saquinho de confeitos de chocolate na bonbonnière, e então sentou-se numa das últimas três fileiras do corredor central, comendo os confeitos, ainda irritado por ter pisado em chiclete mastigado ao caminhar até ali. Tudo que podia fazer agora era esperar que Sapo o achasse.
Repleto de conseqüências dos atos dos personagens, o filme era violento demais para o gosto de Júnior. Ele quisera marcar o encontro para uma sessão de Doutor Dolittle ou A primeira noite de um homem. Mas Sapo, tão paranóico quanto um rato de laboratório depois de uma vida cheia de experimentos com ele-trochoque, insistira em escolher o cinema.
Embora se relacionasse bem com o tema de relativismo moral e autonomia pessoal num mundo de valores neutros, Júnior sentia-se apreensivo a cada cena que prometia violência, e fechava os olhos para não ver sangue. Precisou suportar noventa minutos do filme antes de Sapo finalmente sentar-se na poltrona ao seu lado.
Os olhos esbugalhados do falsário refletiam a luz da tela. Ele lambeu seus lábios borrachudos, e seu pomo-de-adão proeminente balançou ao dizer:
— Bem que eu queria afogar o ganso nessa Faye Dunaway! Júnior olhou-o sem conseguir ocultar sua repulsa.
Sapo não compreendeu que ele era um objeto de repulsa. Balançou as sobrancelhas de uma forma que considerava demonstrativa de camaradagem masculina e cutucou Júnior com um cotovelo.
Havia poucos freqüentadores na matinê. Como não havia ninguém sentado perto deles, Júnior e Sapo trocaram abertamente seus pacotes: um envelope de 15xl2cm para Sapo, um de 30 x 12 para Júnior.
O falsário tirou um bolo grosso de notas de cem dólares e forçou a vista para inspecionar o dinheiro à luz tremeluzente da sala.
— Vou sair agora, mas você espera até o filme acabar.
— Por que eu não saio, e você espera?
— Por que se você tentar isso, eu enfio uma faca no teu olho.
— Foi apenas uma pergunta — disse Júnior.
— Ouça bem, se você sair logo depois de mim, tenho um sujeito de vigia que vai enfiar uma bala de calibre trinta e oito na sua bunda.
— É que estou odiando o filme.
— Você é doido. Este filme ainda vai ser considerado um clássico. Ei, comeu os flocos de arroz?
— Eu te disse pelo telefone que não gosto de flocos de arroz.
— Me dá.
Júnior deu a caixa para ele e Sapo saiu do cinema com seu doce e seu dinheiro.
O balé mortal em câmera lenta, durante o qual Bonnie e Clyde são varados por balas, foi a pior cena que Júnior já tinha ouvido num filme. Ele só viu um vislumbre da cena, porque passou o resto do filme de olhos bem fechados.
Nove dias antes, segundo instruções de Sapo, Júnior alugou caixas postais em dois serviços de recebimento de encomendas, usando o nome John Pinchbeck numa, Richard Gammoner na outra, e então deu esses endereços ao falsário. Essas eram as duas identidades para as quais Sapo iria prover documentações detalhadas e convincentes.
Na quinta-feira, 28 de dezembro, usando como identificação carteiras de motorista e cartões de seguro social falsos, Júnior abriu pequenas contas bancárias e também alugou cofres para Pinchbeck e Gammoner em bancos diferentes e com os quais jamais fizera negócios, fornecendo os endereços das caixas postais.
Em cada conta bancária Júnior depositou quinhentos dólares em dinheiro. E em cada cofre, enfiou vinte mil dólares em notas estalando de novas.
Para Gammoner, exatamente como para Pinchbeck, Sapo providenciara: uma carteira de motorista que estava realmente registrada no departamento de veículos automotores da Califórnia e que, portanto, passaria na inspeção de qualquer policial; um cartão do seguro social legítimo; uma certidão de nascimento realmente arquivada no cartório citado e um passaporte autêntico e válido.
Júnior mantinha as duas carteiras de motorista falsas na carteira, além daquela que exibia o seu nome verdadeiro. Guardava todo o resto nos cofres de Pinchbeck e Gammoner, junto com o dinheiro de emergência.
Também concluiu os preparativos para abrir uma conta para Gammoner num banco da ilha Grande Caimã, e uma para Pinchbeck na Suíça.
Não se sentia tão aventureiro desde que chegara do Oregon. Assim, durante o almoço serviu-se de três cálices de um Bordeaux excelente e um filé mignon suculento no saguão do hotel elegante onde jantara em sua primeira noite em San Francisco, quase três anos antes.
A sala deslumbrante parecia inalterada. Até o pianista parecia o mesmo homem que vira tocar naquela época, embora sua camisa amarelo-rosada, e provavelmente também o seu smoking, fossem novos.
Algumas mulheres atraentes estavam aqui sozinhas, prova de que os hábitos sociais tinham mudado dramaticamente em três anos. Júnior percebeu seus olhares sensuais, sua necessidade, e soube que poderia ter qualquer uma delas.
A tensão que sentia no momento não era a mesma que ele freqüentemente aliviava com mulheres. Este era um nervosismo energizante, um enrijecimento não desagradável dos nervos, uma antecipação deliciosa que ele queria desfrutar em sua plenitude — até a recepção na noite em que a exposição de Celestina seria inaugurada, 12 de janeiro. Esta tensão não podia ser aliviada com sexo, mas apenas com o assassinato de Bartholomew, e quando esse momento há tanto aguardado chegasse, Júnior esperava que o alívio fosse mais delicioso que qualquer orgasmo.
Ele tinha considerado descobrir a localização de Celestina — e do bastardo — antes da exposição. Talvez conseguisse seu endereço na secretaria da universidade. Se não, algumas perguntas a mais na comunidades de belas-artes da cidade provavelmente dariam conta do recado.
Entretanto, depois do assassinato de Bartholomew, as pessoas poderiam lembrar do homem que estivera perguntando sobre sua mãe, Celestina. E Júnior não era simplesmente qualquer homem; irresistivelmente bonito, ele deixava uma impressão indelével nas pessoas, especialmente nas mulheres. Inevitavelmente, os policiais iriam bater em sua porta, cedo ou tarde.
Como ele sabia onde Celestina estaria em 12 de janeiro, não havia motivo para assumir riscos ao encontrá-la mais cedo. Ele tinha muito tempo para se preparar para o seu encontro, tempo para saborear a doce antecipação.
Júnior estava calculando a gorjeta e se preparando para assinar o recibo do cartão de crédito quando o pianista iniciou "Someone to Watch Over Me". Embora tenha esperado que isso acontecesse desde que entrara ali, estremeceu ao ouvir a melodia.
Como ele constatara em suas duas primeiras visitas — sua primeira noite na cidade e então duas noites depois —, a canção simplesmente fazia parte do repertório do pianista. Nada sobrenatural aqui.
Não obstante, quando assinou o recibo do cartão, a sua assinatura pareceu tremida.
Júnior não sofria uma experiência paranormal desde as primeiras horas da manhã de 18 de outubro, quando acordara de um sonho desagradável com minhocas e besouros para ouvir a cantora fantasma entoar uma serenata a capela. Ao gritar para que ela se calasse, ele acordara os vizinhos.
Agora, a música odiosa o enervava. Ele estava convencido de que se fosse para casa sozinho a cantora fantasma — fosse o espectro vingativo de Victória Bressler ou alguma outra coisa — cantaria para ele mais uma vez. Afinal de contas ele queria companhia e distração.
Uma mulher excepcionalmente bonita, sozinha no bar, acendeu o desejo de Júnior. Cabelos negros lustrosos: fios do próprio manto da noite, arrancados do céu. Compleição olivácea não menos macia que a seda. Olhos reluzentes como poças de chuva refletindo o brilho da eternidade e das estrelas.
Ela inspirava o poeta nele.
Raras vezes vira uma mulher tão elegante. Um vestido Chanel cor-de-rosa com a saia batendo na altura do joelho, um colar de pérolas no pescoço. Sua silhueta era espetacular, mas ela não a expunha. Estava até mesmo usando sutiã. Nesta época de moda erótica ousada, seu estilo mais recatado era imensamente sedutor.
Sentado na banqueta vazia ao lado desta beldade, Júnior ofereceu-se para pagar-lhe um drinque, e ela aceitou.
Renee Vivi falava com um sotaque sulista aveludado. Vivaz sem ser extravagante, bem-educada e culta mas jamais pretensiosa, direta em sua conversa sem parecer ousada ou petulante, era uma companhia encantadora.
Ela parecia estar no começo da casa dos trinta, talvez seis anos mais velha que Júnior, mas isso não depunha contra ela. Ele não era mais preconceituoso para com pessoas mais velhas do que era contra pessoas de outras raças e origens étnicas.
Matando ou amando, ele jamais era guiado pelo preconceito. Uma piada íntima, mas verdadeira.
Ele se perguntou como seria fazer amor com Renee e matá-la. Ele já tinha matado uma vez sem um bom motivo. E a pessoa tinha sido um dos Bartholomews que tanto o enfureciam. Prosser, em Terra Linda. Um homem. Naquela ocasião, nenhum elemento erótico estivera envolvido. Esta seria a primeira vez.
Caim Júnior definitivamente não era um maníaco sexual louco, não era conduzido ao homicídio por desejos bizarros além de seu controle. Uma única noite de sexo e morte — uma indulgência que jamais seria repetida — não requereria uma auto-análise séria ou uma reconsideração de sua auto-imagem.
Duas vezes indicaria uma mania perigosa. Três vezes seria indefensável. Mas uma vez era uma experimentação saudável. Uma experiência de aprendizado.
Qualquer autêntico aventureiro entenderia.
Quando Renee, docemente alheia ao destino que a aguardava, alegou ter herdado uma fortuna considerável baseada numa indústria de válvulas, Júnior pensou que ela estava inventando a riqueza, ou ao menos exagerando-a, para se tornar mais desejável. Mas quando ele a acompanhou ao lugar em que morava, descobriu um nível de luxo que provava que Renee não era uma moça de classe média com delírios de grandeza.
Levá-la para casa não exigiu nem um passeio de carro nem uma caminhada longa; ela vivia num dos andares superiores do hotel onde Júnior jantara. Os três andares superiores do prédio possuíam imensos apartamentos ocupados por proprietários.
Entrar no apartamento de Renee foi como viajar numa máquina do tempo para outro século, percorrendo também o espaço, até a Europa de Luís XIV. Os cômodos amplos, de pé-direito alto, inundavam os olhos com as cores ricas e as formas pesadas da arte e da mobília do período barroco. Conchas, folhas de acanto, volutas, guirlandas de flores e pergaminhos — vários deles dourados — decoravam móveis que podiam pertencer ao acervo de museus, como baús de Bombaim, cadeiras, mesas, espelhos enormes, armários e étagères antigos.
Ocorreu a Júnior que matar Renee nesta mesma noite seria um desperdício inimaginável. Em vez disso, ele poderia primeiro casar-se com Renee, divertir-se um pouco com ela, e um dia forjar um acidente ou um suicídio que o deixasse com todos os seus bens, ou ao menos uma parte significativa deles.
Este não iria ser um assassinato pela emoção — que, agora que tivera tempo de pensar a respeito, estava abaixo dele, mesmo se a serviço do crescimento pessoal. Este iria ser um assassinato por uma causa boa e justificável.
Durante os últimos anos, ele tinha descoberto que uns poucos milhões podiam comprar até mais liberdade do que pensara ao empurrar Naômi da torre de incêndio. Uma riqueza maior, na faixa de cinqüenta a cem milhões de dólares, compraria não apenas uma liberdade maior, e não apenas a capacidade de realizar aperfeiçoamentos pessoais ainda mais ambiciosos, mas também poder.
A perspectiva do poder intrigava Júnior.
Ele não tinha a menor sombra de dúvida de que conseguiria fazer Renee apaixonar-se e casar-se com ele, a despeito de sua riqueza e sofisticação. Ele podia moldar mulheres segundo o seu desejo com a mesma facilidade com que Sklent podia pintar suas visões brilhantes em tela, com mais facilidade ainda que Worth Griskin podia moldar o bronze em formas de arte perturbadoras.
Além disso, mesmo antes que tivesse empregado todo o seu charme, mesmo antes que tivesse mostrado que um passeio na máquina do amor de Caim Júnior fazia todos os outros homens parecerem inadequados, Renee estava tão atraída por ele que seria uma boa idéia abrir uma garrafa de champanhe para banhá-la quando a combustão espontânea destruísse o seu vestido Chanel.
Na sala de estar, a janela maior e central emoldurava uma vista magnífica, e a janela, por sua vez, era emoldurada por cortinas de seda amarela. Uma espreguiçadeira grande, estofada com um tecido exótico, posava contra esse fundo de cidade e seda. Renee puxou Júnior para a espreguiçadeira, desesperada para ser possuída ali.
Renee tinha a boca tão ávida quanto macia, e seu corpo curvilíneo irradiava calor vulcânico. Mas quando deslizou as mãos por baixo da saia de Renee, a mente fervilhando com pensamentos de sexo, poder e riqueza, Júnior descobriu que a herdeira era um herdeiro, com uma genitália mais adequada a um calção de boxeador que a uma lingerie de seda.
Saltou para longe de Renee rápido como um disparo de rifle. Atordoado, repugnado, humilhado, afastou-se da espreguiçadeira, cuspindo, limpando a boca, xingando.
Incrivelmente, Renee veio até ele, lânguida e sedutora, tentando acalmá-lo e seduzi-lo de volta para um abraço.
Júnior quis matá-la. Matar ele. Mas sentiu que Renee conhecia mais do que um pouco sobre luta suja e que o resultado de um confronto violento não poderia ser predito com facilidade.
Quando Renee compreendeu que esta rejeição era completa e final, ela — ele, qualquer coisa — transformou-se de uma dama sulista encantadora em um réptil peçonhento. Olhos reluzindo com fúria, lábios contorcidos expondo os dentes, ela chamou-o com uma ampla variedade de nomes feios, alinhavando epítetos com tanta facilidade e riqueza que aumentou o vocabulário de Júnior mais do que todos os cursos que ele tinha feito.
— E encare isso, menino bonito, você sabia o que eu era desde o momento em que me ofereceu uma bebida. Você sabia, e você queria, você queria a mim, e perdeu a coragem quando a gente ia pros finalmentes. Perdeu a coragem, menino bonito, mas não perdeu o tesão.
Recuando sem dar as costas para a sua anfitriã, tentando encontrar com o tato o caminho até a ante-sala e a porta da frente, com medo de que se esbarrasse numa cadeira Renee avançasse contra ele como uma águia contra um ratinho, Júnior negou as acusações.
— Como eu podia saber? Olha só para você! Como eu podia saber?
— Eu tenho um pomo-de-adão bem evidente, não tenho? — guinchou Renee. Sim, ela tinha, mas não era dos maiores, e comparado à maçã na garganta de
Sapo, o pomo-de-adão de Renee não era mais do que uma cereja, fácil de ser ignorado, não grande demais para uma mulher.
— E quanto às minhas mãos, menino bonito, as minhas mãos? — rosnou.
As mãos dela eram as mais femininas que Júnior já vira. Finas, macias, mais bonitas que as de Naômi. Ele não tinha a menor idéia do que ela estava falando.
Arriscando tudo, Júnior deu as costas para ela e fugiu, e apesar de suas expectativas em contrário, Renee deixou-o escapar.
Mais tarde, em casa, ele gargarejou até ter drenado metade de uma garrafa de anti-séptico bucal sabor menta, tomou a ducha mais longa de sua vida e então usou a outra metade do anti-séptico bucal.
Jogou fora sua gravata, porque no elevador, enquanto descia da cobertura de Renee — ou Renê —, e mais uma vez na caminhada de volta até o seu apartamento, Júnior esfregara a língua nela. E ao pensar melhor, jogou fora tudo que estivera usando, inclusive os sapatos.
Jurou que também se livraria de todas as memórias desse incidente. No best-seller de Caesar Zedd Como negar o poder do passado, o autor oferece uma série de técnicas para expurgar da mente todas as lembranças dos eventos que nos causaram danos psicológicos, dor, ou mesmo um mero embaraço. Júnior foi para a cama com seu precioso exemplar desse livro e um cálice de conhaque cheio quase até a borda.
Havia uma lição valiosa a ser aprendida com esse encontro com Renee Vivi: muitas coisas nesta vida não são o que aparentam. Contudo, Júnior considerou que não valeria a pena aprender essa lição se para isso tivesse de viver com a memória vívida de sua humilhação.
Graças a Caesar Zedd e Rémy Martin, Júnior acabou sendo levado pelas correntes do sono, e enquanto vagava em suas ondas de veludo, consolou-se com o fato de que, acontecesse o que acontecesse, 29 de dezembro seria um dia melhor do que 28 de dezembro.
Estava completamente errado a esse respeito.
Na última sexta-feira de cada mês, sob sol ou chuva, Júnior rotineiramente fazia uma caminhada pelas seis galerias que eram as suas favoritas, demorando-se em cada uma e conversando com os marchands, com uma pausa de uma hora para almoçar no Hotel St. Francis. Esta era uma tradição para ele e, invariavelmente, no fim de cada um desses dias, ele se sentia deliciosamente extenuado.
Sexta-feira, 29 de dezembro, era um grande dia: fresco mas não frio; nuvens altas e espalhadas ornamentando um céu azul. As ruas estavam agradavelmente movimentadas, mas não cheias como os corredores de uma colmeia, como acontecia às vezes. Os nativos de San Francisco, sempre agradáveis, ainda estavam tomados pelo espírito das festas de fim de ano e, portanto, mais sorridentes e corteses que o usual.
Depois de um almoço esplêndido, tendo acabado de sair da quarta galeria em sua lista e caminhando a passos largos para a quinta, Júnior não viu imediatamente a fonte das moedas. De fato, quando a primeira rajada de três moedas de 25 cents atingiram o lado de seu rosto, ele nem entendeu o que elas eram. Estarrecido, gritou de dor e olhou para baixo enquanto elas quicavam na calçada.
Plaft, plaft, plaft! Mais três moedinhas ricochetearam do lado esquerdo de seu rosto — têmpora, bochecha, queixo.
Enquanto os trocados batiam no concreto aos seus pés, Júnior — plaft, plaft — viu a fonte das duas rajadas seguintes. Eram cuspidas da ranhura vertical de pagamento de uma máquina de venda de jornais. Uma acertou o seu nariz, as outras duas tilintaram em seus dentes.
A máquina, uma numa fileira de quatro, não estava preenchida com jornais comuns, que custavam apenas dez centavos de dólar, mas com um tablóide direcionado a swingers heterossexuais.
A batida no coração de Júnior ressoou tão alta quanto tiros de canhão. Ele andou para trás e para o lado, para longe da linha de fogo da máquina de venda.
Como se uma das moedas tivesse se enfiado em sua orelha e acionasse uma velha canção na jukebox de sua mente, Júnior ouviu a voz de Vanadium no quarto de hospital, em Spruce Hills, na noite do dia em que Naomi morrera:
Quando cortou a corda de Naomi, você colocou um fim nos efeitos que a sua música exerceria nas vidas de outras pessoas e na forma do futuro...
Outra máquina ao lado da primeira, cheia de exemplares de uma publicação sexualmente explícita direcionada a gays, disparou uma moeda que acertou a testa de Júnior.
... Você gerou um desafino que, embora muito leve, pode ser ouvido até o canto mais distante do universo...
Se Júnior estivesse mergulhado até o peito em concreto líquido, teria mais mobilidade do que tinha agora. Não sentia as suas pernas.
Incapaz de correr, levantou os braços defensivamente, cruzando-os na frente de seu rosto, embora o impacto das moedas não fosse doloroso. Mais moedinhas atingiram seus dedos, palmas, pulsos.
... Esse desafino gera muitas outras vibrações, algumas das quais voltarão para você das formas que espera...
As máquinas de venda eram projetadas para aceitar moedas, não para ejetá-las. Elas não davam troco. Mecanicamente, esta função não era possível. ... e outras de formas que você nem imagina...
Dois rapazes adolescentes e uma senhora idosa agacharam-se na calçada para catar as gotas da chuva de moedas. Eles conseguiram pegar umas, mas outras quicaram e correram sobre seus dedos, e então rolaram até cair no esgoto.
... Das formas que você nem imagina, eu sou a pior...
Além desses carniceiros, havia outra presença aqui, uma presença que não podia ser vista, mas podia ser sentida. Essa entidade invisível provocou em Júnior um arrepio que o atravessou até a medula: o teimoso, violento e psicótico aglomerado de energia que já fora Thomas Vanadium, o tira maníaco, insatisfeito em assombrar a casa na qual morrera, ainda não preparado para buscar a reencarnação, mas disposto a perseguir o seu suspeito mesmo depois da morte, agindo como — para citar Sklent — um macaco invisível, sujo e desprezível, fazendo estripulias bem aqui na rua, à luz do dia.
Das formas que você nem imagina, eu sou a pior.
Um dos caçadores de moedas esbarrou em Júnior, libertando-o de sua paralisia, mas quando ele capengou para fora da linha de fogo da segunda máquina de venda, uma terceira disparou moedas contra ele.
Das formas que você nem imagina, eu sou a pior... Eu sou a pior... Eu sou a pior...
Aterrorizado pelo tilintar provocado pelo detetive maníaco ao esvaziar seus bolsos fantasmais, Júnior correu dali.
KATHLEEN À LUZ DAS VELAS, seus olhos castanhos acesos com o reflexo da chama âmbar. Martínis gelados, azeitonas extras num prato branco raso. Através da janela ao lado da mesa, a baía lendária também reluzia, mais escura e fria que os olhos de Kathleen, e nem uma fração tão profunda quanto eles.
Nolly, contando a história de seu dia de trabalho, parou enquanto o garçom entregava os dois antepastos de caranguejo com molho de mostarda.
— Nolly, sra. Wulfstan... bom apetite!
Durante as primeiras mordidas de caranguejo empanado em farinha de milho, Nolly interrompeu a conversa. Que delícia.
Kathleen observou-o, sabendo que ele estava saboreando não apenas o petisco, mas o fato de estar mantendo-a em suspense.
Música de piano entrou no restaurante vinda do bar adjacente, tão suave e ainda assim tão animada que faria o tilintar dos talheres de prata parecerem música, também. Finalmente, Nolly disse:
— E então ali estava o sujeito, mãos na frente do rosto, moedas quicando nele, enquanto crianças e uma senhora ceavam o dinheiro no chão.
— Então o truque funcionou! — exclamou Kathleen, sorrindo. Nolly fez que sim com a cabeça.
— Desta vez Jimmy "Engenhoca" mereceu o dinheiro que lhe paguei.
O técnico que montara as caixas cuspidoras de moedas era James Hunnicolt, mas todos o chamavam de Jimmy "Engenhoca". Era especializado em vigilância eletrônica, e sabia instalar câmeras e gravadores nos objetos mais improváveis. Era capaz de fazer qualquer coisa que exigisse um design mecânico inventivo.
— Umas duas moedas acertaram bem nos dentes dele — disse Nolly.
— Aprovo qualquer coisa que aumente a clientela dos dentistas.
— Queria descrever a cara que ele fez, mas não é possível. O Abominável Homem das Neves não seria tão branco. O furgão de vigilância estava estacionado ali perto, dois espaços ao sul das máquinas de venda...
— Uma vista de camarote.
— Foi tão divertido que me senti culpado por não pagar por aqueles lugares. Quando a terceira máquina começou a cuspir moedas nele, Caim saiu correndo como um menininho fugindo de um cemitério à meia-noite.
A lembrança fez Nolly rir de novo.
— Mais divertido que divórcio, hein?
— Você devia ter visto, Kathleen. Ele esbarrava nos transeuntes, e quando não conseguia contornar as pessoas, empurrava-as para fora do caminho. Por três longos quarteirões, eu e Jimmy observamos o crápula, até ele dobrar a esquina. Foram três quarteirões ladeira acima, e aquela ladeira mataria um atleta olímpico, mas ele não reduziu o passo uma única vez.
— O homem estava com um fantasma na sua cola.
— Acho que ele acreditou.
— Este é um caso muito doido — disse ela, balançando a cabeça.
— Assim que Caim sumiu, arrancamos as nossas máquinas de venda adulteradas e tiramos as verdadeiras do furgão e as instalamos de novo. Rapidez e eficiência. As pessoas ainda estavam catando moedas na calçada quando terminamos. E sabe o mais engraçado? Elas queriam saber onde a câmera estava.
— Não brinca. Eles...
— Sim, eles pensaram que era um programa de pegadinhas da tevê. Assim, Jimmy apontou para o caminhão da United Parcel estacionado do outro lado da rua e disse que as câmeras estavam lá.
Ela bateu palmas de puro deleite.
— Demos partida no furgão e, quando saímos, as pessoas estavam acenando para o caminhão da UPS no outro lado da rua. Quando viu as pessoas acenando, o motorista, que estava de pé diante do caminhão, ficou confuso, mas acenou de volta.
Nolly adorava a gargalhada de Kathleen, tão musical e infantil. Ele podia fazer todo tipo de palhaçada, a qualquer momento, apenas para ouvi-la rir.
— Por que acha que ele está gastando o dinheiro dele com todos esses truques? — perguntou Kathleen, não pela primeira vez.
— Ele disse que tem uma responsabilidade moral.
— Sim, mas já andei pensando nisso. Se ele sente algum tipo de responsabilidade... então por que defendeu o Caim?
— Ele é um advogado, e recebeu a visita de um marido viúvo com um grande caso de ação contra o governo. Ele precisava ganhar a vida, certo?
— Mesmo achando que esse sujeito talvez tivesse empurrado a mulher? Nolly deu de ombros.
— Ele não tinha como ter certeza. Além disso, só desconfiou de Caim depois de ter aceitado o caso.
— Caim ganhou milhões. De quanto foi a comissão de Simon?
— Vinte por cento. Oitocentos e cinqüenta mil pratas.
— Deduzindo o que pagou a você, ele ainda fica com oitenta mil.
— Simon é um bom homem. Agora que praticamente sabe que Caim empurrou a esposa, não se sente bem representando-o só porque o pagamento foi alto. E ele não é o advogado de Caim no caso atual, de modo que não há nenhum conflito de interesses, nenhum dilema ético. Tudo que quer é endireitar um pouco as coisas.
Em janeiro de 1965, Magusson mandara Caim para Nolly como cliente, sem saber ao certo por que o crápula precisava de um detetive particular. O motivo revelou ser o bebê de Serafina White. O aviso de Simon para tomar cuidado com Enoch Caim ajudara a moldar a decisão de Nolly em ocultar a informação sobre o paradeiro da criança.
Dez meses depois, Simon telefonou de novo, também a respeito de Caim, mas desta vez o advogado era o cliente e Caim o alvo. O que Simon queria que Nolly fizesse era estranho, para dizer o mínimo, e poderia ser classificado como assédio, mas não exatamente ilegal. E assim, durante dois anos, começando com a moeda de 25 cents no cheesebúrguer e terminando com as máquinas cuspidoras de moedas, tudo aquilo tinha sido muito divertido.
— Bem, mesmo se o dinheiro não fosse tão bom, ficarei com pena se este caso terminar — disse Kathleen.
— Eu também. Mas não vai acabar até encontrarmos o homem.
— Faltam duas semanas. Não vou perder isso. Já cancelei todos os compromissos para esse dia.
Nolly levantou a taça de martíni num brinde.
— A Kathleen Klerkle Wulfstan, dentista e detetive associada. Ela retribuiu o brinde:
— Ao meu Nolly, marido e, sempre, o melhor namorado do mundo. Deus, como ele a amava.
— Vitela digna de reis — disse seu garçom ao entregar os pratos, e uma única prova confirmou a promessa.
A baía reluzente e as velas bruxuleantes proporcionavam a atmosfera perfeita para a canção que começou a ser tocada no piano do bar.
Embora o piano ficasse a uma certa distância dali e o restaurante estivesse um pouco barulhento, Kathleen reconheceu logo a melodia. Levantou os olhos de sua vitela, olhos cheios de surpresa.
— Foi a pedido — admitiu. — Estava esperando que você cantasse. Mesmo a esta luz suave, Nolly pôde vê-la ruborizar como uma menininha.
Ela olhou em volta para as mesas próximas.
— Considerando que sou o melhor namorado do mundo e esta é a nossa canção.
Ela soergueu as sobrancelhas ao ouvir nossa canção.
— Nunca tivemos realmente uma canção nossa, a despeito do quanto dançamos — disse Nolly. — Acho que esta é merecedora do título. Mas, até agora, você só a cantou para outro homem.
Ela baixou o garfo, olhou ao redor mais uma vez e se inclinou sobre a mesa. Ruborizando ainda mais forte, cantou suavemente as frases iniciais de "Someone to Watch Over Me".
Uma mulher mais velha, sentada na mesa ao lado, disse:
— Você tem uma voz adorável, minha querida. Embaraçada, Kathleen parou de cantar, mas Nolly disse à mulher:
— É mesmo uma voz adorável, não é? Até assombrosa, eu diria.
Rumo ao Norte pela rodovia costeira, seguindo para Newport Beach, Agnes viu maus presságios, quilômetro após quilômetro.
As colinas verdejantes ao leste jaziam como gigantes adormecidos sob lençóis de grama invernal, brilhando ao sol da manhã. Mas quando as sombras das nuvens saíram do mar e se reuniram sobre a terra, as colinas ficaram verde-escuras, tão sinistras quanto mortalhas, e a paisagem que até aqui parecera sonolenta agora parecia morta e fria.
Inicialmente, o Pacífico não podia ser visto além de uma lente opaca de neblina. E mesmo depois, quando a neblina recuou, o mar em si tornou-se um presságio de cegueira: achatado e descolorido à luz da manhã, a água vítrea lem-brando-a os olhos rasos dos cegos, da vacância triste e terrível de onde não existe visão.
Barty acordara apto a ler. Na página, as linhas das letras não mais se contorciam aos seus olhos.
Embora sempre tivesse sido esperançosa, Agnes sabia que uma esperança fácil costumava ser uma esperança falsa, e não se permitiu acreditar, nem mesmo por um segundo, que o problema do menino tinha se resolvido sozinho. Outros sintomas — as auréolas e os arco-íris — tinham desaparecido por algum tempo, apenas para retornar.
Agnes tinha lido a segunda metade de Planeta vermelho para Barty na noite anterior, mas ele havia trazido o livro, para relê-lo.
Embora, aos olhos de Agnes, o mundo natural estivesse fazendo previsões funestas nesta manhã, ela também estava ciente de sua grande beleza. Ela queria que Barty armazenasse cada vista magnífica, cada detalhe de beleza.
Contudo, os meninos jamais se comovem com o cenário, especialmente não quando seus corações estão vivendo aventuras em Marte.
Barty leu em voz alta enquanto Agnes dirigia, porque ela tinha desfrutado o romance apenas a partir da página 104. Ele queria compartilhar com ela as aventuras de Jim, Frank e seu companheiro marciano, Willis.
Embora temesse que a leitura pudesse forçar os seus olhos, piorando sua condição, ela reconhecia a irracionalidade de seu medo. Os músculos não se atrofiam com o uso, nem os olhos desgastam ao ver muito.
Depois de quilômetros de preocupação, beleza natural, profecias imaginadas, e as areias vermelhas de Marte, finalmente chegaram ao consultório de Franklin Chan, em Newport Beach.
Baixo e magro, o dr. Chan era calmo como um monge budista, e confiante e gracioso como um imperador mandarim. Seus modos eram serenos, e com isso ele gerava tranqüilidade.
Durante meia hora estudou os olhos de Barty com diversos mecanismos e instrumentos. Depois, marcou um compromisso imediato com um oncologista, como Joshua Nunn previra.
Quando Agnes pressionou-o por um diagnóstico, o dr. Chan, sempre muito calmo, alegou precisar de mais informações. Depois que Barty tivesse se consultado com o oncologista e realizado mais exames, ele e sua mãe voltariam à tarde para receber um diagnóstico e opções de tratamento.
Agnes estava grata pela velocidade com que esses arranjos estavam sendo feitos, mas também perturbada com isso. A pressa de Chan em cuidar do caso de Barty provinha em parte de sua amizade com Joshua, mas uma urgência se revelara durante seu exame do menino, e uma suspeita de que ele continuava relutante em colocar em palavras.
O dr. Morley Schurr, o oncologista, que tinha consultório num edifício nas proximidades do Hoag Hospital, era um homem alto e corpulento, mas fora isso muito parecido com Franklin Chan: gentil, calmo e confiante.
Ainda assim, Agnes o temeu por motivos semelhantes aos que fariam um primitivo supersticioso tremer na presença de um curandeiro. Embora seu propósito fosse curar, seu conhecimento sombrio dos mistérios do câncer parecia conceder-lhe um poder quase divino; seu julgamento portava a força da fatalidade, e sua voz era a do destino.
Depois de examinar Barty, o dr. Schurr mandou-os para o hospital para mais testes. Ali passaram o resto do dia, exceto por uma pausa de uma hora, durante a qual almoçaram numa lanchonete.
Durante o almoço e, de fato, durante suas horas como paciente ambulatorial no hospital, Barty não deu nenhuma indicação de compreender a gravidade de sua situação. Ele continuou alegre, encantando os médicos e técnicos com sua personalidade serena e sua oratória precoce.
À tarde, o dr. Schurr chegou ao hospital para revisar os resultados dos exames e reexaminar Barty. Quando o crepúsculo de começo de inverno deu lugar à noite, ele mandou Barty de volta para o dr. Chan, e Agnes não pressionou Schurr por uma opinião. Durante o dia inteiro estivera impaciente por um diagnóstico, mas subitamente odiava ter os fatos à sua disposição.
Na curta viagem de volta ao oftalmologista, Agnes chegou a considerar passar direto pelo prédio do dr. Chan e continuar em frente — sempre em frente —, rumo à noite estrelada de dezembro, não apenas de volta a Bright Beach, onde as más notícias chegariam pelo telefone, mas a lugares tão distantes que o diagnóstico jamais poderia alcançá-los, onde a doença permaneceria sem nome e portanto sem nenhum poder sobre Barty.
— Mamãe, você sabia que cada dia em Marte é trinta e sete minutos e vinte e sete segundos mais longo que os nossos?
— É engraçado, mas nenhum dos meus amigos marcianos nunca mencionou isso.
— Adivinhe quantos dias tem um ano marciano.
— Bem, é mais distante do sol...
— Duzentos e vinte e cinco milhões de quilômetros!
— Então... uns quatrocentos dias?
— Muito mais. Seiscentos e oitenta e sete. Eu gostaria de viver em Marte, e você?
— Lá a gente teria de esperar mais tempo pelo Natal — conjeturou Agnes. — E pelos nossos aniversários. Bem, pelo menos eu economizaria muito dinheiro em presentes.
— Você não me engana, mamãe. Eu te conheço. Teríamos Natal duas vezes por ano e festas em todos os meio-aniversários.
— Você acha que tenho um coração de manteiga, não acha?
— Acho. Mas também acho que é uma mãe muito boa.
Como se tivesse sentido a relutância de sua mãe em retornar ao dr. Chan, Barty mantivera-a ocupada com informações sobre o planeta vermelho enquanto se aproximavam do prédio comercial e percorriam a rua e o caminho de acesso à garagem. Ao estacionar o carro, Agnes finalmente abdicou da fantasia de uma viagem infinita pela estrada.
Às quinze para as seis, bem depois do fim do horário comercial, o consultório do dr. Chan estava silencioso.
Rebecca, a recepcionista, ficara depois da hora apenas para fazer companhia a Barty na sala de espera. Enquanto Rebecca sentava numa cadeira ao lado de Barty, o menino perguntou se a moça sabia como era a gravidade em Marte, e quando ela confessou sua ignorância, ele disse:
— Apenas trinta e sete por cento da nossa. Em Marte, você pode pular pra valer!
O dr. Chan conduziu Agnes ao seu escritório, onde fechou discretamente a porta.
As mãos de Agnes tremiam, seu corpo inteiro tremia, e em sua mente ressoava um som trepidante, como o de rodas de um carrinho de montanha-russa correndo sobre trilhos soltos.
Quando o oftalmologista percebeu o sofrimento de Agnes, a sua expressão ficou mais gentil, e a piedade mais palpável.
Nesse instante, ela conheceu a forma medonha do futuro, se não todos os seus detalhes.
Ao invés de sentar-se atrás de sua mesa, ele se acomodou na segunda das duas cadeiras de pacientes, ao lado dela. Isto, também, indicava más notícias.
— Sra. Lampion, a experiência me ensinou que em casos como estes é mais misericordioso ser direto — disse o médico. — O seu filho tem um retinoblastoma. Um tumor maligno da retina.
Embora tivesse sentido uma falta profunda de Joey durante os últimos três anos, Agnes jamais sentira tanta falta dele quanto sentia agora. O casamento é uma expressão de amor, respeito, confiança e fé no futuro, mas a união de marido e esposa também é uma aliança contra as mudanças e as tragédias da vida, uma promessa de que comigo ao seu lado, você jamais estará só.
— O perigo é que o câncer se dissemine do olho para a órbita, e ao longo do nervo ótico até o cérebro — explicou o dr. Chan.
Para não ver a piedade de Franklin Chan, que implicava o quanto a condição de Barty era desesperançada, Agnes fechou os olhos. Mas os abriu imediatamente, porque optar pela escuridão a fez lembrar que Barty iria obtê-la sem desejar.
A compostura de Agnes era ameaçada pelo tremor do corpo. Ela era mãe e pai de Barty, sua única rocha, e precisava ser sempre forte para ele. Num ato de pura força de vontade, cerrou os dentes e firmou o corpo, gradualmente aquietando os tremores.
— Em geral o retinoblastoma é unilateral, ocorrendo em apenas um olho — continuou o dr. Chan. — Bartholomew apresenta tumores em ambos os olhos.
O fato de que Barty via manchas distorcidas fechando um olho ou o outro, preparara Agnes para esta notícia terrível. Ainda assim, a despeito da defesa que o conhecimento prévio lhe proporcionava, os dentes da tristeza morderam fundo.
— Em casos como este, o tumor costuma ser mais avançado num olho que no outro. Se o tamanho do tumor exigir isso, removemos o olho mais maculado e tratamos o olho remanescente com radiação.
Confiei em Vossa misericórdia, Senhor, pensou Agnes desesperadamente, buscando conforto no Salmo 13:5.
— Freqüentemente, os sintomas aparecem cedo o bastante para que a terapia num ou em ambos os olhos, tenha chance de funcionar. Às vezes, a ocorrência de estrabismo, quando um ou ambos os olhos divergem um do outro para dentro, na direção do nariz, ou para fora, na direção da têmpora, funciona como um aviso prematuro. Porém, é mais comum que sejamos alertados quando o paciente reporta problemas de visão.
— Manchas torcidas.
Chan fez que sim com a cabeça.
— Considerando o estágio avançado dos tumores de Bartholomew, ele deveria ter se queixado mais cedo.
— Os sintomas vêm e vão. Hoje ele está conseguindo ler.
— Isso também é incomum, e eu gostaria que a etiologia desta doença, que é muito bem compreendida, nos desse motivos para nutrir esperanças com base na intermitência dos sintomas. Mas ela não dá.
Tende misericórdia, segundo Vossa palavra.
Poucas pessoas passarão a maior parte de sua juventude estudando, lutando para obter o aprendizado necessário a uma especialidade médica, a não ser que tenham uma paixão pela cura. Franklin Chan tinha essa paixão, em particular pela preservação da visão, e Agnes podia ver que a angústia dele, ainda que um reflexo pálido da sua, era real e sentida profundamente.
— A massa desses tumores sugere que eles em breve irão se disseminar, se é que já não se disseminaram, do olho para a órbita. Neste caso, não há nenhuma chance de que a terapia por radiação funcione, e mesmo se houvesse chances, não temos tempo para experimentar isso. Nenhum tempo. O dr. Schurr e eu concordamos que, para salvar a vida de Bartholomew, ambos os olhos devem ser removidos imediatamente.
— Imediatamente — disse Agnes. — O que isso significa?
— Amanhã de manhã.
Agnes olhou para suas mãos entrelaçadas. Mãos feitas para trabalhar, e sempre prontas para assumir qualquer tarefa. Mãos fortes, ágeis e confiáveis, mas agora absolutamente inúteis para ela, incapazes de executar o único milagre que ela precisava.
— O aniversário de Barty será daqui a oito dias. Eu esperava...
Os modos do dr. Chan continuaram profissionais, proporcionando a força de que Agnes precisava, mas sua dor foi evidente quando a voz gentil suavizou ainda
mais:
— Os tumores estão tão avançados que só depois da cirurgia poderemos saber até onde se espalharam. Talvez já seja tarde demais. E, se não for tarde demais, então dispomos de pouco tempo. Pouquíssimo. Oito dias podem significar um risco grande demais.
Fez que sim com a cabeça. E não conseguiu levantar os olhos de suas mãos. Não conseguiu fitar os olhos do médico, receando que a preocupação dele alimentasse a sua, temendo que a visão da sua fizesse com que ela perdesse o controle de suas emoções.
Depois de algum tempo, Franklin Chan perguntou.
— Quer que eu ajude você a contar a ele?
— Acho... acho melhor só eu e ele.
— Aqui no meu escritório?
— Tudo bem.
— Quer ficar algum tempo sozinha antes que eu o traga? Ela fez que sim com a cabeça.
Ele se levantou, abriu a porta.
— Sra. Lampion...
— Sim? — respondeu Agnes sem olhar para cima.
— Ele é um menino maravilhoso, tão inteligente, tão cheio de vida. A cegueira será difícil, mas não será o fim. Ele vai conseguir viver sem a luz. No começo, será difícil, mas este menino... ele ainda vai brilhar.
Ela mordeu o lábio inferior, segurou a respiração, reprimiu o soluço que tentou escapar de sua garganta e disse:
— Eu sei.
O dr. Chan fechou a porta ao sair.
Agnes inclinou-se à frente em sua cadeira: joelhos juntos, mãos pousadas nos joelhos, testa encostada nessas mãos.
Pensou que já soubesse tudo sobre humildade, sobre como ela era necessária, sobre o poder de conceder paz de espírito e curar o coração, mas nos minutos que se seguiram ela aprendeu mais sobre a humildade do que em cada dia anterior de sua vida.
Os tremores retornaram, ficaram mais violentos que antes... e então mais uma vez passaram.
Durante algum tempo ela não conseguiu respirar ar suficiente. Sentia-se sufocada. Arfou forte e seguidamente, e chegou a pensar que jamais conseguiria se acalmar. Mas a calma chegou.
Não querendo assustar Barty com lágrimas, e temendo não conseguir parar depois que começasse a chorar, Agnes fechou com força as suas comportas. A responsabilidade maternal provou-se tão forte quanto o material de que as represas eram feitas.
Levantou-se da cadeira, caminhou até a janela e preferiu levantar a persiana a olhar por entre suas brechas. A noite, as estrelas.
O universo era vasto e Barty era pequeno, mas a alma imortal do menino era tão importante quanto as galáxias, tão importante quanto qualquer coisa na Criação. Agnes acreditava nisso. Ela não conseguiria tolerar a vida sem a convicção de que ela tinha propósito e significado, embora às vezes tivesse a impressão de ser um pardal cuja queda passara despercebida.
Barty sentara-se à beira da mesa do médico, pernas balançando, segurando Planeta vermelho, um dedo inserido entre as páginas marcando o ponto em que a leitura fora interrompida.
Agnes levantara-o da mesa. Agora alisou o cabelo dele, ajeitou sua camisa e amarrou os cadarços soltos dos sapatos, descobrindo que dizer o que precisava ser dito era ainda mais difícil do que ela esperara. Ela pensou que, afinal de contas, devia requisitar a presença do dr. Chan.
Então, subitamente, encontrou as palavras certas. Mais precisamente, elas pareceram vir através dela, porque Agnes não teve consciência de formular as sentenças. A substância de suas palavras e o tom com que foram proferidas foram tão perfeitos que ela quase teve a impressão de que um anjo estava poupando-a dessa tarefa, possuindo-a por tempo suficiente para ajudar Barty a entender o que precisava acontecer e por quê.
Barty possuía um domínio matemático e uma capacidade de leitura maior que a maioria dos jovens de dezoito anos, mas apesar de seu brilhantismo ainda faltavam três dias para que ele completasse seu terceiro aniversário. Prodígios nem sempre eram tão maduros no plano emocional quanto eram no intelectual, mas Barty ouviu com atenção, fez perguntas, e então ficou sentado em silêncio, fitando o livro em suas mãos, sem lágrimas nem medo aparente.
Finalmente, disse:
— Você acha que os médicos têm razão?
— Sim, querido, acho.
Barty pousou o livro ao seu lado na mesa e estendeu os braços para ela.
Agnes puxou-o para seus braços e levantou-o da mesa, abraçando-o com força, com sua cabecinha no ombro dela, e seu rostinho aninhado em seu pescoço, como ela o segurara quando era ainda um bebê.
— Não podemos esperar até segunda? — perguntou o menino.
Ela poupara o filho de duas informações: o câncer já podia ter-se disseminado e o menino talvez morresse mesmo tendo seus olhos removidos — e que se a doença ainda não tivesse se espalhado, em breve iria.
— Por que segunda?
— Estou conseguindo ler agora. As letras não estão mais distorcidas.
— Elas vão voltar.
— Mas durante o fim de semana eu talvez consiga ler uns últimos livros.
— Heinlein, não é?
Ele sabia os títulos que queria: Túnel do céu, Entre planetas, Starman Jones. Carregando-o até a janela, olhando para as estrelas, a lua, ela disse:
— Eu sempre vou ler pra você, Barty.
— Mas isso é diferente.
— Sim, é diferente sim.
Heinlein sonhava com viagens para mundos distantes. Antes de sua morte, John Kennedy prometera que os homens caminhariam na lua antes do final da década. Barty não queria nada tão grandioso, apenas ler algumas histórias, para perder-se no mundo maravilhosamente privado dos livros, porque em breve cada história seria apenas uma experiência auditiva, não mais uma jornada inteiramente íntima.
A respiração do menino bateu quente na garganta de Agnes:
— E quero voltar pra casa para ver alguns rostos.
— Rostos?
— Tio Esaú. Tio Jacó. Tia Maria. Para eu poder lembrar dos rostos depois de... você sabe.
O céu era tão profundo, tão frio.
A lua tremeluziu, as estrelas borraram — mas apenas por um instante, porque a devoção de Agnes a este menino era uma fornalha feroz que temperava o aço de sua espinha e trazia um calor seco aos seus olhos.
Sem a aprovação plena de Franklin Chan, mas com sua compreensão completa, Agnes levou Barty para casa. Na segunda, eles voltariam para o Hoag Hospital, onde Barty seria operado na terça.
A biblioteca de Bright Beach ficava aberta até as nove horas da noite de sexta-feira. Chegando uma hora antes de fechar, eles devolveram os romances de Heinlein que Barty já tinha lido e pegaram os três que ele queria. Num espírito otimista, retiraram um quarto, Podkayne of Mars.
Novamente no carro, a um quarteirão de casa, Barty disse:
— Acho melhor você não contar ao tio Esaú e ao tio Jacó até domingo à noi te. Eles não vão reagir bem, sabe?
— Eu sei — respondeu Agnes.
— Se contar a eles agora, não vamos ter um fim de semana feliz.
Um fim de semana feliz. A atitude do menino surpreendeu-a, e sua força diante da escuridão deu coragem à sua mãe.
Em casa, Agnes não sentiu qualquer apetite, mas fez para Barty um sanduíche de queijo, serviu uma colherada de salada de batatas num prato, acrescentou um saco de batatas fritas e uma Coca-Cola, e serviu este jantar tardio numa bandeja, no quarto dele, onde já estava na cama e lendo Túnel no céu.
Esaú e Jacó chegaram à casa perguntando o que o dr. Chan tinha dito, e Agnes mentiu para eles.
— O doutor só vai receber os resultados dos exames na segunda, mas ele acha que vão ser bons.
Se algum dos dois suspeitou que Agnes estava mentindo, foi Esaú. Ele pareceu intrigado, mas não insistiu no assunto.
Ela pediu a Esaú que ficasse na casa principal, para não deixar Barty sozinho enquanto ela estivesse na casa de Maria Gonzalez, onde permaneceria por uma ou duas horas. Ele ficou feliz em ajudá-la e se sentou diante da tevê para assistir a um documentário sobre vulcões, que prometia incluir histórias sobre a erupção de 1902 do monte Pelee, na Martinica, que matou 28 mil pessoas numa questão de minutos, e outros desastres de proporções colossais.
Agnes sabia que Maria estava em casa, esperando que ela telefonasse para contar sobre Barty.
Chegava-se ao apartamento sobre a loja Elena's Fashions através de um conjunto de escadas externas nos fundos do prédio. A subida jamais deixara Agnes cansada, mas agora roubou seu fôlego e deixou-a com as pernas tremendo ao chegar ao patamar superior.
Maria parecia agitada ao atender à campainha, porque intuíra que uma visita, em vez de um telefonema, significava o pior.
Na cozinha de Maria, ainda poucos dias depois do Natal, Agnes deixou que sua máscara estóica se dissolvesse e finalmente chorou.
Mais tarde, em casa, depois de mandar Esaú de volta para o seu apartamento, abriu uma garrafa de vodca que comprara no caminho ao voltar da casa de Maria. Ela misturou-a com suco de laranja num copo de água.
Sentou-se à mesa da cozinha, fitando o copo. Depois de algum tempo, esvaziou-o na pia sem tomar um único gole.
Serviu-se de leite gelado e bebeu depressa. Enquanto lavava o copo vazio, teve a impressão de que iria vomitar, mas isso não aconteceu.
Durante um longo tempo, sentada sozinha na sala de estar escura, na cadeira de braços que tinha sido a favorita de Joey, pensou em muitas coisas mas freqüentemente recordou quando Barty tinha caminhado na chuva sem se molhar.
Às duas e dez da manhã, subiu ao quarto de Barty e encontrou o menino dormindo profundamente à luz suave do abajur, Túnel no céu ao seu lado.
Ela se enrodilhou na cadeira de braços, observando Barty. Estava faminta por vê-lo. Pensou que não adormeceria, que passaria a noite a observá-lo, mas acabou vencida pela exaustão.
Logo depois das seis da manhã de sábado ela acordou sobressaltada de um pesadelo e viu Barty sentado na cama, lendo.
Durante a noite, ele acordara, vira-a na poltrona, e a cobrira com um cobertor. Sorrindo, puxando o cobertor mais para cima, ela disse:
— Você cuida bem da sua velha mãe, sabia?
— Você faz tortas gostosas.
Pega de surpresa pela piada, ela soltou um riso gostoso.
— Bem, ficou feliz de saber que presto para alguma coisa. Tem alguma torta especial que você quer que eu faça hoje?
— Amendoim. Creme de coco. E musse de chocolate.
— Três tortas, hein? Você vai virar um porquinho gordo.
— Eu divido com vocês — assegurou ele.
Assim começou o primeiro dia do último fim de semana de suas vidas antigas.
Maria visitou-os no sábado. Ficou sentada na cozinha, bordando o colarinho e as mangas de uma blusa, enquanto Agnes assava tortas.
Barty estava sentado à mesa da cozinha, lendo Entre planetas. Vez por outra, Agnes flagrava-o observando Maria trabalhar, ou estudando seu rosto e suas mãos habilidosas.
Ao pôr-do-sol, o menino ficou parado no quintal dos fundos, observando entre os galhos do carvalho gigante o céu laranja escurecer para coral, para vermelho, para púrpura, para azul-escuro.
Ao amanhecer, Barty e sua mãe foram até o mar, ver as ondas, douradas pelo sol matutino, deitarem espuma na praia. Eles admiraram as gaivotas e espalharam pedaços de pão na areia, o que atraiu uma miríade de seres alados para a terra.
No domingo, véspera do Ano-novo,"Esaú e Jacó foram jantar. Depois da sobremesa, quando Barty foi ao seu quarto para continuar lendo Starman Jones, que ele começara no final daquela tarde, Agnes contou aos gêmeos a verdade sobre os olhos do sobrinho deles.
O esforço que os gêmeos fizeram para colocar sua tristeza em lágrimas comoveu Agnes, não tanto pelo sentimento dos dois, mas porque eles não eram capazes de se expressar adequadamente. Sem o alívio proporcionado pela expressão, a angústia dos dois tornara-se corrosiva. Toda uma vida de introversão deixara-os sem habilidades sociais para se abrir ou para prover conforto aos outros. Pior, suas obsessões com a morte, em todos os seus meios e mecanismos, preparara-os para esperar o câncer de Barty, e isso não os deixava chocados nem consolados, mas apenas resignados. No fim, extremamente frustrados, cada um dos gêmeos conseguiu expressar apenas frases fragmentadas, gestos limitados, lágrimas silenciosas — e Agnes tornou-se a única capaz de consolá-los.
Eles queriam subir ao quarto de Barty, mas ela não permitiu, porque não havia nada mais que pudessem fazer pelo menino do que já tinham feito por ela.
— Ele quer terminar de ler Starman Jones, e não vou deixar que vocês atrapalhem. Vamos para Newport Beach às sete da manhã. Se quiserem ver Barty, apareçam para se despedir da gente.
Logo depois das nove da noite, uma hora depois que Esaú e Jacó tinham ido embora, Barty desceu as escadas, livro na mão.
— As manchas contorcidas voltaram.
Agnes serviu uma bola de sorvete de baunilha para cada um deles num copo alto, e depois de vestirem rapidamente os seus pijamas, sentaram-se juntos na cama de Barty e tomaram o sorvete enquanto ela lia em voz alta as últimas sessenta páginas de Starman Jones.
Nenhum fim de semana jamais passou tão rápido, e nenhuma meia-noite jamais trouxe tanto medo.
Naquela noite, Barty dormiu na cama de sua mãe.
Logo depois de desligar a luz, Agnes disse:
— Querido, faz uma semana desde que você caminhou onde não havia chuva, e tenho pensado muito nisso.
— Não precisa ter medo disso — assegurou ele novamente.
— Bem, isso ainda me dá medo. Mas o que estive pensando... quando você fala sobre todos os modos que as coisas são... existe algum lugar onde você não tenha esse problema nos olhos?
— Claro. É assim que funciona com tudo. Tudo que pode acontecer acontece, e cada modo diferente de acontecer forma um lugar completamente novo.
— Não entendi. Ele suspirou.
— Eu sei.
— Você vê esses outros lugares?
— Apenas sinto eles.
— Mesmo quando caminha neles?
— Eu não caminho realmente neles. Eu apenas caminho... na idéia deles.
— Acho que você não consegue esclarecer isso um pouco mais para a sua velha mãe, consegue?
— Talvez algum dia. Agora não.
— Então... esses lugares são muito distantes?
— Estão todos juntos aqui, agora.
— Outros Bartys e outras Agnes em outras casas como esta... todos juntos aqui, agora.
— Isso.
— E em alguns desses lugares o seu pai está vivo.
— Isso.
— E em algum deles eu morri na noite em que você nasceu e você vive sozinho com seu pai.
— Em alguns lugares foi preciso ser assim.
— E em alguns lugares foi preciso que os seus olhos estivessem normais?
— Existem muitos e muitos lugares onde não tenho olhos ruins. E em muitos e muitos lugares eles estão piores ou não estão tão ruins.
Agnes continuava intrigada com essas coisas que Barty dizia, mas uma semana antes, no cemitério açoitado pela chuva, ela descobrira que o discurso do menino tinha substância.
— Querido, estive pensando numa coisa... — disse Agnes depois de hesitar um pouco. — Será que você poderia caminhar por onde não tem olhos ruins, como caminhou por onde não tinha chuva, e deixar os tumores nesse outro lugar? Poderia caminhar por onde tem olhos bons e voltar com eles?
— Não funciona dessa maneira.
— Por que não? Eu não sei.
— Pode pensar sobre isso para mim?
— Claro. É uma boa pergunta. Ela sorriu.
— Obrigada. Eu te amo, querido.
— Também te amo.
— Já fez suas preces silenciosas?
— Vou fazer agora.
Agnes deitou-se ao lado do filho na escuridão, olhando para a janela coberta, onde o brilho fraco da lua atravessava a persiana, sugerindo outro mundo repleto de vidas alienígenas por trás de uma fina membrana de luz.
Quase dormindo, Barty falou com seu pai em todos os lugares onde Joey ainda existia:
— Boa noite, papai.
A fé que Agnes nutria dizia-lhe que o mundo era infinitamente complexo e cheio de mistérios, e de uma forma peculiar tudo que Barty dissera sobre possibilidades infinitas sustentaram sua crença e deram-lhe o conforto do sono.
Na manhã de segunda, primeiro dia do ano, Agnes carregou duas malas até a porta dos fundos, pousou-as no soalho da varanda, e piscou de surpresa ao ver o Ford Country Squire amarelo e branco de Esaú estacionado no caminho de acesso para a garagem. Ele e Jacó estavam colocando suas malas no carro.
Eles caminharam até Agnes e pegaram a bagagem que ela deixara no chão.
— Eu dirijo — disse-lhe Esaú.
— Vou sentado na frente, com Esaú — disse Jacó.—Você vai atrás com Barty. Em todos os seus anos, nenhum dos gêmeos jamais pusera um pé fora dos
limites de Bright Beach. Ambos pareciam nervosos, mas determinados.
Barty saiu da casa com o exemplar da biblioteca de Podkayne ofMars, que sua mãe prometera ler para ele mais tarde, no hospital.
— Vamos todos? — perguntou Barty.
— É o que está parecendo — respondeu Agnes.
— Uau.
— Exatamente.
Apesar da iminência de grandes terremotos, explosões de caminhões carregados com dinamite, tornados formando-se em algum lugar, a possibilidade funesta de que uma grande represa se rompesse ao longo da rota, tempestades de gelo armazenadas nos céus imprevisíveis, aviões e trens desgovernados convergindo para a rodovia costeira e a possibilidade de que uma mudança súbita e violenta no eixo da Terra exterminasse a civilização humana, Esaú e Jacó arriscaram cruzar os limites de Bright Beach e viajar para o norte, rumo a territórios desconhecidos e cheios de perigos.
Enquanto o carro viajava pela costa, Agnes começou a ler Podkayne of Mars para Barty:
— "Durante toda a minha vida eu quis ir para a Terra. Não para viver, é claro, mas apenas para conhecê-la. Como todos sabem, a Terra é um lugar maravilhoso para visitar, mas não para viver. Não é um lugar adequado à habitação humana."
No banco da frente, Esaú e Jacó murmuraram suas concordâncias com os sentimentos do narrador.
Na noite de segunda-feira, Esaú e Jacó ocuparam unidades adjacentes num motel perto do hospital. Eles ligaram para o quarto de Barty para dar a Agnes o seu número e reportar que tinham inspecionado dezoito estabelecimentos antes de encontrar um que lhes parecera comparativamente seguro.
Em consideração à idade tenra de Barty, o dr. Franklin providenciara para que Agnes passasse a noite no quarto do seu filho, na segunda cama, que no momento não era necessária para um paciente.
Pela primeira vez em muitos meses, Barty não quis dormir no escuro. Eles deixaram a porta do quarto aberta, admitindo um pouco do brilho fluorescente do corredor.
A noite pareceu mais longa que um mês marciano. Agnes teve um sono agitado, acordando mais de uma vez, suada e trêmula, de um sonho no qual seu filho era-lhe tomado em pedaços: primeiro os olhos, depois as mãos, então as orelhas, as pernas...
O hospital estava mergulhado num silêncio aterrorizante, quebrado apenas pelo guinchado ocasional de sapatos de sola de borracha no assoalho de vinil do corredor.
À primeira luz do dia, uma enfermeira apareceu para executar a preparação cirúrgica preliminar em Barty. Ela puxou os cabelos do menino para trás e capturou-os debaixo de uma touca apertada. Com creme e uma navalha com borda segura, raspou suas sobrancelhas.
Depois que a enfermeira tinha saído, sozinho com sua mãe enquanto esperavam que o enfermeiro trouxesse uma maca de rodas, Barty disse:
— Chegue mais perto.
Ela já estava parada ao lado da cama do menino. Ela se debruçou sobre ele.
— Mais perto.
Ela abaixou seu rosto até o dele. Barty levantou a cabeça e esfregou o nariz no dela.
— Esquimó — disse Barty
— Esquimó — repetiu Agnes.
— A Sociedade dos Aventureiros Bons do Pólo Norte está agora em sessão — sussurrou Barty.
— Todos os membros presentes — proclamou Agnes.
— Eu tenho um segredo.
— Nenhum membro da sociedade jamais violou uma confidência secreta — assegurou-lhe Agnes.
— Estou com medo.
Durante seus 33 anos de vida, Agnes muitas vezes precisara ser forte, mas jamais tanto quanto agora, quando devia conter suas emoções e ser uma rocha para Barty.
— Não tenha medo, querido. Estou aqui. — Envolveu uma das mãos do filho com as suas duas. — Estarei esperando. Sempre estarei com você.
— Você não está com medo?
Se Barty fosse qualquer outro menino de três anos, Agnes teria dito uma mentira gentil. Mas ele era uma criança miraculosa, o seu prodígio, e iria perceber se ela mentisse.
— Sim — admitiu Agnes, rosto próximo ao dele. — Estou com medo. Mas o dr. Chan é um bom cirurgião, e este é um hospital muito bom.
— Quanto tempo vai levar?
— Não muito.
— Vou sentir alguma coisa?
— Vai estar dormindo, meu bem.
— Deus está olhando?
— Sim, sempre.
— Tenho a impressão de que ele não está olhando.
— Ele está aqui tanto quanto eu, Barty. É muito ocupado, com um universo inteiro para governar, com tantas pessoas de quem cuidar, não apenas aqui, mas também em outros planetas, como naqueles sobre os quais você tem lido.
— Eu não tinha pensado nos outros planetas.
— Bem, com tantas responsabilidades sobre os ombros, Ele nem sempre pode cuidar da gente diretamente, com toda a atenção a cada minuto. Mas pelo menos Ele está sempre olhando para a gente com o canto do Seu olho. Você vai ficar bem. Eu sei que vai.
A maca, uma roda guinchando. O enfermeiro jovem por trás dela, todo vestido em branco. E novamente a enfermeira.
— Esquimó — sussurrou Barty.
— Esquimó — respondeu Agnes.
— Esta reunião da Sociedade dos Aventureiros Bons do Pólo Norte está oficialmente encerrada.
Segurou o rosto de Barty com ambas as mãos e beijou cada um dos seus olhos lindos como jóias.
— Está pronto? Um sorriso frágil:
— Não.
— Nem eu — admitiu Agnes.
— Então vamos.
O enfermeiro colocou Barty sobre a maca de rodas.
A enfermeira cobriu-o com um lençol e acomodou um travesseiro debaixo de sua cabeça.
Tendo sobrevivido à noite, Esaú e Jacó aguardavam no corredor. Cada um deles beijou seu sobrinho, mas nenhum dos dois conseguiu falar.
A enfermeira foi na frente, enquanto o enfermeiro empurrava a maca por trás da cabeça de Barty.
Agnes caminhou ao lado do filho, segurando com firmeza sua mão direita.
Esaú e Jacó flanquearam a maca de rodas, cada um segurando um dos pés através do lençol que os cobria, escoltando-os com a mesma determinação pétrea que se vê nos rostos dos agentes do Serviço Secreto que protegem o presidente dos Estados Unidos.
No final do corredor, o enfermeiro sugeriu que Esaú e Jacó tomassem outro elevador e os encontrassem no pavimento cirúrgico.
Esaú mordeu o lábio inferior, balançou a cabeça e continuou a segurar teimosamente o pé esquerdo de Barty.
Segurando com força o pé do menino, Jacó observou que um elevador poderia descer em segurança, mas se eles tomassem dois, um ou outro certamente cairia no fundo do poço, considerando o quanto eram indignas de confiança todas as máquinas feitas pelo homem.
A enfermeira comentou que a capacidade máxima do elevador permitia que todos viajassem juntos, se eles não se importassem de ir um pouco apertados.
Eles não se importaram, e para baixo foram numa descida controlada que, não obstante, pareceu rápida demais para Agnes.
As portas abriram e eles empurraram a maca de Barty de um corredor para o seguinte, passando pelas pias de assepsia, até uma enfermeira que os aguardava paramentada com roupas cirúrgicas: touca, máscara e jaleco verdes. Sozinha, ela efetuou a transferência do menino para a pressão positiva da cirurgia.
Enquanto era empurrado, de cabeça para a frente, até a sala de operação, Barty levantou-se um pouco do travesseiro e fixou o olhar em sua mãe até a porta ser fechada entre eles.
Agnes manteve o sorriso o melhor que conseguiu, querendo que a última visão que Barty tivesse do rosto de sua mãe não fosse uma expressão de desespero.
Com seus irmãos, ela caminhou até a sala adjacente, onde os três sentaram-se para beber o café de uma máquina de venda automática.
Ocorreu a Agnes que o lacaio tinha chegado, conforme a previsão nas cartas naquela noite, há tanto tempo. Ela esperara que o lacaio fosse um homem de olhos cruéis e coração mau, mas a maldição era o câncer, não um homem.
Desde sua conversa com Joshua Nunn na quinta-feira anterior, ela tivera mais de quatro dias para se proteger do pior. Preparou-se para isso tão bem quanto qualquer mãe que ainda detinha controle sobre sua sanidade.
Ainda assim, seu coração não conseguia perder esperanças por um milagre. Este menino extraordinário, um prodígio, um menino que podia andar por onde a chuva não estava, já era ele próprio um milagre, e parecia que qualquer coisa podia acontecer, que o dr. Chan poderia subitamente entrar correndo na sala de espera, máscara cirúrgica pendendo do pescoço, sorriso estampado no rosto, com notícias de uma rejeição espontânea do câncer.
Dali a algum tempo, o cirurgião realmente apareceu, trazendo a boa notícia de que nenhum dos tumores se disseminara para a órbita do nervo ótico, mas ele não tinha nenhum milagre maior a reportar.
Em 2 de janeiro de 1968, quatro dias antes de seu aniversário, Bartholomew Lampion renunciou aos seus olhos para poder continuar vivo, e aceitou uma vida de escuridão, sem nenhuma esperança de ver a luz novamente, até que chegasse a sua hora de partir deste mundo para um melhor.
PAUL DAMASCUS ESTAVA caminhando pela Costa Norte da Califórnia: Point Reyes Station até Tomales; dali, para Bodega Bay; e dali para Stewarts Point, Gualala e Mendocino. Alguns dias ele chegava a fazer dezesseis quilômetros, e em outros ele percorria quase cinqüenta.
Em 3 de janeiro de 1968, Paul estava a menos de 400km de Spruce Hills, Oregon. Contudo, não tinha se apercebido da proximidade da cidade, e no momento não a tinha como seu destino.
Com a determinação de um aventureiro de pulp magazines, Paul caminhou sob sol e chuva. Caminhou no calor e no frio. Ventos nem raios o detinham.
Nos três anos desde a morte de Perri, ele caminhara milhares de quilômetros. Ele não tinha mantido um registro da distância acumulada, porque não estava tentando entrar no Guinness ou provar nada.
Durante os primeiros meses, as jornadas eram de doze ou quinze quilômetros: ao longo da linha da costa ao norte e ao sul de Bright Beach, e pelo interior até o deserto além das colinas. Ele saía de casa e retornava no mesmo dia.
Sua primeira viagem noturna, em junho de 1965, fora para La Jolla, 20 norte de San Diego. Ele carregara uma mochila muito grande e usara calças caqui quando devia ter usado calções devido ao calor do verão.
Essa fora a primeira — e até agora a última — caminhada longa que ele fez com um propósito em mente. Ele fora ver um herói.
Num artigo de revista sobre o herói, fora feita uma menção passageira sobre um restaurante onde ocasionalmente esse grande homem almoçava.
Partindo depois do anoitecer, Paul caminhara para o sul, seguindo a rodovia costeira. No começo foi acompanhado pelo ruído dos carros passando a grande velocidade, mas depois escutou apenas o canto ocasional de uma garça, o sussurro da brisa na grama, o murmúrio das ondas quebrando na areia. Sem se esforçar demais, ele alcançou La Jolla ao amanhecer.
O restaurante não era fino. Uma lanchonete. No ar, um cheiro gostoso de bacon e ovos fritando, o odor acanelado de doces frescos, o aroma inebriante de café forte. Instalações limpas e bem iluminadas.
Paul estava com sorte: o herói estava aqui, tomando o café da manhã. Ele e mais dois homens sentavam-se a uma mesa de canto, absortos em conversa.
Paul sentou-se sozinho, no fundo do restaurante. Pediu suco de laranja e waffles.
A caminhada curta através do salão, até a mesa do herói, parecia mais desafiadora que a jornada que acabara de completar. Paul não era ninguém, apenas um farmacêutico de cidade pequena que a cada mês comparecia menos ao trabalho, confiando que seus funcionários preocupados cuidassem das coisas por ele, e que estava fadado a perder o seu negócio se não recuperasse a autodisciplina. Jamais realizara um grande feito, jamais salvara uma vida. Não tinha nenhum direito de incomodar este homem, e agora descobriu que também não tinha coragem para fazê-lo.
Ainda assim, sem nenhuma lembrança de ter-se levantado da cadeira, descobriu que tinha pendurado sua mochila num ombro e cruzado a sala. Os três homens olharam para ele, curiosos.
A cada passo de sua longa caminhada noturna, Paul pensara no que iria dizer, no que deveria dizer, caso este encontro se concretizasse. Agora todas as palavras decoradas tinham desertado.
Abriu a boca mas continuou mudo. Descolou a mão direita de seu flanco e a levantou. Meneou os dedos no ar, como se as palavras necessárias pudessem ser colhidas do éter. Sentia-se estúpido, ridículo.
Evidentemente, o herói estava acostumado a encontros desta natureza. Ele se levantou e puxou a quarta cadeira, que estava desocupada.
— Por favor, sente conosco.
Esta gentileza não deixou Paul à vontade para falar. Em vez disso, sentiu a garganta apertar, segurando ainda mais forte a sua voz.
Ele queria dizer: Os políticos vaidosos e sedentos por poder que ordenham ovações das multidões ignóbeis, as estrelas dos esportes e os canastrões do cinema que são chamados de heróis e jamais objetam contra isso, deviam encolher-se de vergonha à menção do seu nome A sua visão, a sua luta, os anos de trabalho árduo, a sua fé imorredoura quando todos ao seu redor duvidavam, os riscos que assumiu com sua carreira e reputação... formam uma das grandes histórias da ciência, e eu me sentiria honrado se pudesse apertar sua mão.
Paul não proferiu uma palavra sequer desse discurso decorado, mas sua afonia frustrante talvez tenha sido uma boa coisa. Considerando tudo que sabia sobre este herói, elogios tão efusivos iriam deixá-lo embaraçado.
Em vez disso, enquanto se acomodava na cadeira oferecida, tirou uma foto de Perri da carteira. Era uma velha fotografia em preto e branco dos tempos de escola, ligeiramente amarelada pela idade, tirada em 1933, o ano que ele começara a apaixonar-se por ela, quando ambos tinham apenas treze anos.
Como se já lhe tivessem mostrado muitas outras fotos sob circunstâncias semelhantes, Jonas Salk pegou-a.
— Sua filha?
Paul balançou a cabeça negativamente. Deu-lhe uma segunda foto de Perri, esta tirada no Natal de 1964, menos de um mês antes de sua morte. Estava deitada em sua cama na sala de estar, corpo encolhido, mas rosto ainda belo e vivo.
Quando finalmente encontrou sua voz, a dor a fez sair entrecortada:
— Minha esposa. Perri. Perris Jean.
— É muito bonita.
— Casados... por vinte e três anos.
— Quando ela adoeceu? — perguntou Salk.
— Tinha quase quinze anos... 1935.
— Um ano terrível para o vírus.
Perri ficara aleijada dezessete anos antes que a vacina de Jonas Salk poupasse gerações da maldição da poliomielite.
— Eu queria que você... não sei.... eu apenas queria que você a visse. Eu queria dizer... dizer....
As palavras lhe fugiram novamente e olhou em torno, como se alguém na lanchonete fosse aproximar-se para falar com ele. Percebeu então que as pessoas o olhavam, e o constrangimento amarrou sua língua num nó ainda mais apertado.
— Por que não damos uma caminhada juntos? — perguntou o médico.
— Sinto muito. Eu interrompi. Fiz uma cena.
— Você não fez cena nenhuma — assegurou o dr. Salk. — Preciso falar com você. Se me conceder um pouco do seu tempo...
O verbo precisar, no lugar de querer, impulsionou Paul a seguir o médico através da lanchonete.
Do lado de fora, ele percebeu que não tinha pago por seu suco e waffles. Quando virou-se para a lanchonete, ele viu, através de uma das janelas, um dos amigos de Salk pegar a conta em sua mesa.
Colocando um braço em torno dos ombros de Paul, o dr. Salk caminhou com ele ao longo de uma rua alinhada com eucaliptos e pinheiros, até um parquinho próximo. Sentaram-se num banco ao sol, observando patos andarem à margem do laguinho artificial.
Salk ainda segurava as duas fotografias.
— Me fale de Perri.
— Ela... ela morreu.
— Sinto muito.
— Há cinco meses.
— Eu realmente gostaria de saber sobre ela.
Embora seu desejo em exprimir sua admiração por Salk tivesse deixado Paul confuso, as palavras sobre Perri saíram com facilidade. Sua inteligência, bondade, sabedoria, gentileza, beleza e coragem eram os fios numa trama narrativa que Paul poderia continuar tecendo pelo resto de seus dias. Desde sua morte, não fora capaz de falar sobre ela com nenhum de seus conhecidos, porque os amigos tendiam a focar nele, em seu sofrimento, quando Paul queria apenas que eles compreendessem Perri melhor, para entender que pessoa extraordinária ela tinha sido. Paul queria que ela fosse lembrada depois de sua morte, queria que sua graça e energia fossem recordadas e respeitadas. Perri fora uma mulher boa demais para partir sem deixar uma marca, e o pensamento de que sua memória morreria com o próprio Paul era angustiante.
— Eu posso falar com você — disse a Salk. — Você vai entender. Ela era uma heroína. A única pessoa com uma alma realmente heróica que conheci até encontrar você. Li sobre heróis por toda a minha vida, em pulp magazines e livros de bolso. Mas Perri... ela era uma heroína de verdade. Ela não salvou dezenas de milhares... centenas de milhares... de crianças, como você fez, não mudou o mundo, como você fez, mas enfrentou cada dia sem se queixar e viveu para os outros. Não através dos outros. Para eles. Pessoas visitavam minha esposa para compartilhar seus problemas com ela, e Perri as ouvia, e se importava. E as pessoas também a visitavam para levar boas notícias, porque sabiam que ela ficaria feliz. As pessoas pediam conselhos a Perri, e embora ela fosse inexperiente, carecesse de vivência em tantas coisas, sempre sabia o que dizer, dr. Salk. Sempre dizia a coisa certa. Tinha um grande coração e uma sabedoria natural, e se importava muito com os outros.
Estudando as fotos, Jonas Salk disse:
— Gostaria de tê-la conhecido.
— Era uma heroína, exatamente como você. Eu queria que você... Eu queria que a visse e conhecesse o seu nome. Perri Damascus. Esse foi o nome dela.
— Jamais vou esquecer — prometeu o dr. Salk. Com sua atenção ainda focada nas fotos de Perri, ele acrescentou: — Mas acho que está me dando crédito demais. Não fiz o trabalho sozinho. Muitas pessoas dedicadas estiveram envolvidas.
— Eu sei. Mas todo mundo diz que você...
— E você também está se dando muito pouco crédito — continuou Salk, gentilmente. — Não há a menor dúvida em minha mente de que Perri era uma heroína. Mas ela também foi casada com um herói.
Paul meneou a cabeça.
— Não, não. As pessoas olham o nosso casamento e pensam que abri mão de muita coisa, mas recebi muito mais do que abdiquei.
O dr. Salk devolveu as fotos, pousou uma mão no ombro de Paul e sorriu.
— Mas é sempre assim, você não sabia? Os heróis sempre colhem muito mais do que plantam. O ato de dar assegura o ato de receber.
O médico se levantou, e Paul se levantou com ele.
— Posso lhe dar uma carona para algum lugar? — indagou o herói.
— Não, estou caminhando.
— Estou feliz por você ter me procurado.
Paul não conseguiu imaginar mais nada para dizer.
— Pense no que eu lhe disse — clamou o dr. Salk. — A sua Perri gostaria que você pensasse nisso.
Então o herói entrou num carro com seus amigos e o veículo se afastou rumo ao sol.
Tarde demais, Paul pensou em mais uma coisa que ele gostaria de ter dito. Era tarde, mas disse mesmo assim:
— Deus o abençoe.
Continuou olhando até o carro se tornar um pontinho na distância. E depois que o veículo tinha desaparecido, Paul fitou o local na rua onde ele estivera, e continuou olhando enquanto um vento "animava a paisagem, jogando folhas de eucaliptos aos seus pés; continuou olhando até finalmente se virar e iniciar a longa jornada de volta para casa.
Continuou caminhando desde então, com breves intervalos em Bright Beach.
Admitindo a possibilidade de jamais voltar a se dedicar seriamente à farmácia, Paul vendeu-a a Jim Kessel, há muito tempo seu braço-direito e colega farmacêutico.
Ficou com a casa, porque era um altar dedicado à vida com Perri. Voltava a ela de tempos em tempos, para refrescar o espírito.
Durante o restante desse primeiro ano, caminhou até Palm Springs e voltou, uma viagem circular de mais de trezentos quilômetros, e para o norte até Santa Bárbara.
Na primavera e no verão de 1966, voou para Memphis, Tennessee, permaneceu ali durante alguns dias, e caminhou 463 quilômetros para St. Louis. De St. Louis caminhou 453 quilômetros para Kansas City, Missouri. Em seguida, tomou o sudeste para Wichita. De Wichita até Oklahoma City. De Oklahoma City para leste, rumo a Fort Smith, Arkansas, de onde viajou de volta para Bright Beach numa série de ônibus da companhia Greyhound.
Umas poucas vezes dormia ao relento, passando as noites principalmente em motéis baratos, pensões e albergues da ACM.
Na mochila leve, carregava uma muda de roupas, meias sobressalentes, barras de chocolate, garrafas de água. Planejava suas jornadas de modo a estar numa cidade a cada anoitecer, onde lavava um conjunto de roupas e vestia o outro.
Viajou por pradarias, montanhas e vales, passou por campos ricos em todos os tipos imagináveis de plantações, cruzava florestas amplas e rios largos. Caminhou debaixo de tempestades ferozes quando trovões ressoavam pelo céu e raios o riscavam, caminhou a um vento que espalhava a terra do solo e derrubava galhos de árvores, caminhou também ao sol, em dias em que o céu estava tão claro e limpo quanto nos dias do Jardim do Éden.
Os músculos de suas pernas ficaram tão duros quanto os terrenos nos quais andava. Coxas de granito; panturrilhas de mármore, traçadas por veias.
Apesar dos milhares de horas que Paul caminhou a pé, ele quase não se perguntava por que caminhava. Conheceu pessoas ao longo do caminho que lhe perguntaram isso, e sempre teve respostas para elas, mas jamais soube se alguma dessas respostas era verdadeira.
Às vezes pensava que caminhava por Perri, usando os passos que ela tinha armazenado e jamais usado, concedendo expressão ao seu desejo não concretizado de viajar. Em outros momentos, pensava que caminhava pela solidão que lhe permitia lembrar de sua vida em detalhes minuciosos — ou esquecê-la. Para encontrar a paz — ou buscar aventura. Para obter um entendimento através da contemplação... ou para expurgar todos os pensamentos de sua mente. Para ver o mundo... ou para livrar-se dele. Talvez esperasse que os coiotes o perseguissem através de um crepúsculo sombrio ou que um leão da montanha saltasse sobre ele durante um alvorecer faminto, ou um motorista bêbado o atropelasse.
No fim, a razão para caminhar era o ato em si. Caminhar dava-lhe algo a fazer, um propósito necessário. Movimento tornou-se o mesmo que significado. Movimento tornou-se um remédio para a melancolia, um preventivo para a loucura.
Através de colinas cobertas por neblina e arborizadas com carvalhos, bordos e coníferas variadas, através de fileiras magníficas de sequóias que alcançavam até noventa metros de altura, ele chegou a Weott na tarde de 3 de janeiro de 1968. Passou a noite ali. Se Paul tinha algum objetivo ao norte nesta viagem, era a cidade de Eureka, quase oitenta quilômetros adiante; e ele não tinha motivo nenhum para escolhê-la como alvo, a não ser comer os caranguejos de Humboldt Bay em sua origem, porque essa sempre fora uma das comidas favoritas de Perri.
De seu quarto de hotel, telefonou para Hanna Rey em Bright Beach. Ela ainda cuidava de sua casa em tempo parcial, pagava as contas de um fundo especial enquanto ele viajava e o mantinha informado sobre os eventos em sua cidade. Foi através de Hanna que ele soube que os olhos de Barty Lampion tinham sido perdidos para o câncer.
Paul recordou a carta que escrevera para o reverendo Harrison White algumas semanas depois da morte de Joey Lampion. Ele levara a carta consigo ao voltar da farmácia para casa no dia em que Perri morreu, para pedir a sua opinião. A carta jamais fora remetida.
Ainda guardava de cabeça o parágrafo de abertura, porque o redigira com grande cuidado:
Saudações neste dia marcante. Estou escrevendo a você para falar sobre uma mulher extraordinária, Agnes Lampion, cuja vida você tocou sem saber, e cuja história pode lhe interessar.
Seu raciocínio tinha sido de que o reverendo White poderia encontrar em Agnes, a amada Moça das Tortas de Bright Beach, um assunto para inspirar uma continuação do sermão que tocara profundamente a Paul — que jamais fora nem batista nem religioso praticante — quando ele o ouvira no rádio há mais de três anos.
Contudo, ele agora não estava pensando no que a história de Agnes poderia significar para o reverendo White, mas que o pastor poderia prover ao menos algum conforto a Agnes, que passara toda a sua vida confortando os outros.
Depois de jantar numa lanchonete de beira de estrada, voltou para o seu quarto e estudou um mapa amassado do oeste dos Estados Unidos, o último de vários que ele gastara durante os anos. Dependendo do clima e da inclinação do terreno ele seria capaz de alcançar Spruce Hills, Oregon, em dez dias.
Pela primeira vez desde que caminhara para La Jolla para conhecer Jonas Salk, Paul planejou uma jornada com um propósito específico.
Durante muitas noites, seu sono não tinha sido tão calmo quanto gostaria, porque vivia sonhando que acordava num lugar ermo. Às vezes via-se no meio de uma tempestade de areia, e cercado por formações rochosas contorcidas pela erosão eólica. Às vezes sua pele não era castigada por areia, mas por flocos de neve, e ele não estava cercado por monumentos de rocha, mas por montanhas de gelo. A despeito de qual fosse a paisagem, ele caminhava devagar, embora tivesse o desejo e a energia para mover-se mais depressa. Sua frustração crescia até ficar tão intolerável que ele acordava, agitado e nervoso, chutando os lençóis embolados.
Nesta noite em Weott, com o silêncio solene das florestas de sequóias paradas lá fora e esperando para abraçá-lo pela manhã, Paul dormiu um sono sem sonhos.
DEPOIS DO ENCONTRO com as máquinas cuspidoras de moedas de 25 cents, Júnior sentiu vontade de matar outro Bartholomew, qualquer Bartholomew, mesmo que se para fazê-lo precisasse dirigir até algum subúrbio distante como Terra Linda, mesmo que tivesse de dirigir até mais longe ainda, passar a noite num motel vagabundo e comer num self-service em que a comida estivesse coberta por germes da gripe e cabelos soltos de outros clientes.
Ele teria feito isso, e arriscado estabelecer um padrão que a polícia talvez notasse; mas a voz pequena de Zedd guiava-o agora, como guiara-o tantas vezes antes, e aconselhava calma, aconselhava foco.
Em vez de matar alguém imediatamente, Júnior voltou para o seu apartamento na tarde de 29 de dezembro e se deitou completamente vestido. Para se acalmar. Para pensar em foco.
Foco, ensina Caesar Zedd, é a única qualidade que separa os milionários dos mendigos cobertos de moscas e molhados com urina que moram em caixas de papel e disputam restos de comida com os ratos. Os milionários possuem a capacidade de focar em seus objetivos, os mendigos não. Da mesma forma, nada além da capacidade em focar nos seus objetivos separa um atleta olímpico de um aleijado que perdeu as pernas num acidente de carro. O atleta possui foco, o aleijado não. Afinal, postula Zedd, se o aleijado tivesse a capacidade de focar em seus objetivos, teria sido um motorista melhor, um atleta olímpico e um milionário.
Entre os muitos dons de Júnior, a sua capacidade de focar nos seus objetivos talvez fosse o mais importante. Bob Chicane, seu ex-instrutor de meditação, chamara-o de intenso e até obsessivo, depois do incidente doloroso envolvendo meditação sem semente, mas a intensidade e a obsessão tinham sido acusações injustas. Júnior era simplesmente focado.
Na verdade, era focado o bastante para encontrar Bob Chicane, matar o filho da puta insultuoso e se safar.
Contudo, a experiência lhe ensinara que matar alguém que conhecia, embora ocasionalmente necessário, não aliviava o estresse. Ou, se aliviava brevemente o estresse, então conseqüências imprevistas sempre contribuíam para piorá-lo ainda mais.
Por outro lado, matar um estranho como Bartholomew Prosser deixara-o ainda mais aliviado do que conseguia com sexo. Matar sem propósito relaxava-o tanto quanto meditação sem semente, e provavelmente era menos perigoso.
Ele poderia matar alguém chamado Henry ou Larry, sem o risco de criar um padrão Bartholomew que os detetives de Homicídios da Área da Baía seguiriam como sabujos atrás de um coelho. Mas ele se conteve.
Foco.
Agora ele precisava focar em estar pronto para a noite de 12 de janeiro: a inauguração da exposição de Celestina White. Ela havia adotado o bebê de sua irmã. O pequeno Bartholomew estava sob os seus cuidados; e em breve o menino estaria ao alcance de Júnior.
Se matar o Bartholomew errado tinha arrebentado uma represa em Júnior e aliviado um lago de tensão, matar o Bartholomew certo deixaria escapar um oceano de tensão acumulada, e ele se sentiria livre como não se sentia desde a torre de incêndio. Mais livre do que em toda a sua vida.
Quando matasse o Bartholomew, esta assombração também iria acabar. Na mente de Júnior, Vanadium e Bartholomew estavam inextricavelmente ligados, porque o policial maníaco tinha sido o primeiro a ouvir Júnior chamar por Bartholomew durante o sono. Isso fazia sentido? Bem, fazia mais sentido em alguns momentos que em outros, mas sempre fazia muito mais sentido que qualquer outra coisa. Para livrar-se do detetive morto, mas persistente, Júnior precisava eliminar Bartholomew.
Então a assombração pararia. O tormento pararia. A sensação que Júnior tinha, de vagar sem rumo através dos dias, sumiria, e ele mais uma vez encontraria propósito no aperfeiçoamento pessoal. Ele aprenderia francês e alemão, com toda certeza. Faria um curso de culinária e se tornaria um mestre-cuca. E também aprenderia caratê.
De algum modo, o espírito malévolo de Vanadium era o culpado pela incapacidade de Júnior em encontrar uma nova alma gêmea, apesar de todas as mulheres com quem andava. Com toda certeza, quando Bartholomew estivesse morto e Vanadium desaparecido com ele, o romance e o amor verdadeiro iriam florescer.
Deitado de lado na cama, vestido e calçado, joelhos recolhidos, braços dobrados sobre o peito, mãos premidas sob o queixo, como um feto precoce já completamente paramentado enquanto aguarda seu nascimento, Júnior tentou recordar a corrente de lógica que conduzira a esta longa e difícil perseguição a Bartholomew. Contudo, a corrente levava até três anos no passado, o que para Júnior era uma eternidade, e nem todos os elos estavam em seus lugares.
Não importava. Ele era um homem focado no futuro, e focado em si mesmo. O passado é para os fracassados. Não, espere, a humildade é para os fracassados. "O passado é a teta que alimenta aqueles que são fracos demais para enfrentar o futuro." Sim, essa era a frase de Zedd que Júnior tinha bordado numa capa de almofada.
Focar. Preparar-se para matar Bartholomew e qualquer um que tentar protegê-lo em 12 de janeiro. Preparar para todas as contingências.
Júnior compareceu a uma festa de Ano-novo com um tema de holocausto nuclear. As festividades foram realizadas numa mansão cujas paredes geralmente ostentavam obras de arte de vanguarda, mas nesta noite as pinturas tinham sido substituídas por ampliações em tamanho natural das ruínas de Hiroshima e Nagasaki.
Uma ruiva ultrajantemente sensual deu em cima de Júnior enquanto ele pegava um canapé em forma de bomba numa bandeja segurada por um garçom vestido como um sobrevivente esfarrapado e sujo. Myrtle, a ruiva, preferia ser chamada Scamp, o que Júnior entendia completamente. Ela usava uma minissaia verde, um suéter colante branco e uma boina verde.
Scamp tinha pernas fabulosas, e a ausência de sutiã não deixava qualquer dúvida de que seus seios eram apetitosos e autênticos, mas depois de uma hora de conversa sobre isto ou aquilo, antes de convidá-la a sair da festa com ele, Júnior conduziu-a a um canto razoavelmente privado e, discretamente, enfiou a mão por baixo de sua saia, apenas para conferir se o seu sexo era realmente o feminino.
Passaram uma noite excitante juntos, mas aquilo não foi amor.
A cantora fantasma não cantou.
Quando Júnior abriu uma toranja no café da manhã, não encontrou uma moeda em seu interior.
Em 2 de janeiro, terça-feira, Júnior se encontrou com o traficante de drogas que o apresentara a Google, o falsificador de documentos, e encomendou uma pistola de 9mm com silenciador.
Júnior já tinha a pistola que confiscara da coleção de Frieda Bliss, mas esta não viera com um compressor de som. Júnior estava preparado para todas as contingências. Foco.
Além da arma, encomendou um destravador automático. Essa ferramenta, semelhante a uma pistola e capaz de abrir automaticamente qualquer fechadura com simples apertos em seu gatilho, era vendida estritamente para os departamentos de polícia, e sua distribuição era controlada rigidamente. No mercado negro, alcançava um preço tão alto que Júnior quase poderia ter comprado uma pintura pequena de Sklent com o dinheiro que gastou com ela.
Preparação. Detalhes. Foco.
Acordou várias vezes naquela noite, instantaneamente alerta para uma serenata fantasmagórica, mas não ouviu nenhuma cantora espectral.
Passou a quarta-feira trepando com Scamp. Não era amor, mas havia conforto em estar familiarizado com o equipamento de sua parceira.
Em 4 de janeiro, quinta-feira, usou sua identidade de John Pinchbeck para comprar um novo furgão Ford com um cheque ao portador. Em nome de Pinchbeck, ele alugou uma vaga de garagem perto de Presídio, e guardou o furgão lá.
Naquele mesmo dia, ousou visitar duas galerias. Nenhuma delas tinha um candelabro de estanho à mostra.
Não obstante, o fantasma hostil de Thomas Vanadium, aquele terrível aglomerado de energia teimosa, ainda não desistira de Júnior. Até que Bartholomew estivesse morto, o espírito de macaco sujo e desprezível do policial continuaria voltando e voltando, e certamente ficaria mais violento.
Júnior sabia que era preciso continuar vigilante. Vigilante e concentrado até que 12 de janeiro chegasse e fosse embora. Faltavam oito dias.
A sexta-feira trouxe Scamp de volta, toda a Scamp, o dia todo, de todas as formas, Scamp de fio a pavio, até que no sábado Júnior não teve energia suficiente para fazer mais nada além de tomar uma boa ducha.
No domingo, Júnior livrou-se de Scamp, usando a secretária eletrônica para filtrar seus telefonemas, e trabalhou em suas capas de travesseiros com tanto foco que esqueceu de ir para a cama naquela noite. Ele adormeceu sobre as suas agulhas às dez da manhã de segunda.
Terça-feira, 9 de janeiro, tendo feito vários saques em fundos de investimento nos últimos dez dias, Júnior efetuou uma transferência por telex de um e meio milhão de dólares para a conta de Gammoner no banco de Grande Caimã.
Num banco da igreja velha de Santa Maria, em Chinatown, Júnior recebeu, conforme combinado previamente, o destravador automático e a pistola de 9mm munida com silenciador. A igreja estava deserta às dez da manhã. O interior escuro e as figuras religiosas sinistras causaram arrepios em Júnior.
O garoto de entregas — um rapaz sem polegares e com os olhos frios de um homem morto — entregou a arma numa sacola de comida chinesa. A sacola continha duas caixas de cartolina branca (frango xadrez, arroz primavera), uma caixa cor-de-rosa grande cheia de biscoitos da sorte e — no fundo — uma segunda caixa rosa contendo o Gravador automático, a pistola, o silenciador e um coldre de ombro de couro no qual estava amarrado um cartão de presente com uma mensagem escrita à mão: Com nossos cumprimentos. Foi uma satisfação fazer negócios com você.
Numa loja de armas, Júnior comprou duzentos cartuchos de munição. Mais tarde, essa quantidade de munição pareceu-lhe excessiva. Mais tarde ainda, ele comprou outros duzentos cartuchos.
Comprou facas. E então bainhas para as facas. Adquiriu um conjunto para amolar facas e passou o fim de tarde afiando as lâminas.
Nenhuma moeda. Nenhuma canção. Nenhum telefonema dos mortos.
Manhã de quarta-feira, 10 de janeiro. Ele transferiu por telex um milhão e meio de dólares da conta de Gammoner para Pinchbeck, na Suíça. Em seguida, fechou a conta no banco de Grande Caimã.
Ciente de que sua tensão estava chegando a um nível intolerável, Júnior decidiu que, afinal de contas, precisava de Scamp. Ele passou o restante da quarta, até o amanhecer de quinta, com a ruiva infatigável, cujo quarto continha uma vasta coleção de óleos de massagem em volume suficiente para lubrificar metade dos trilhos de qualquer estrada de ferro que atravessasse o Mississipi.
Scamp deixou-o dolorido em lugares onde ele nunca ficara dolorido antes. Ainda assim, na quinta-feira sentia-se mais estressado do que estivera na quarta.
Scamp era uma mulher de múltiplos talentos, com a pele mais macia que um pêssego depilado, com mais saliências de que Júnior podia catalogar, mas ela não se revelou um remédio para a sua tensão. Apenas Bartholomew, encontrado e destruído, poderia dar-lhe paz.
Ele visitou o banco no qual mantinha um cofre particular sob a identidade de John Pinchbeck. Sacou os vinte mil dólares em dinheiro e retirou da caixa todos os documentos falsos.
Em seu carro — no momento, uma Mercedes —, ele fez três viagens entre seu apartamento e a garagem na qual guardava o furgão Ford sob o nome Pinchbeck. Tomou precauções para não ser seguido.
Guardou no furgão duas malas cheias com roupas e artigos de higiene — mais o conteúdo do cofre de Pinchbeck —, e em seguida acrescentou aqueles objetos preciosos que odiaria perder se o atentado contra Bartholomew desse errado, forçando-o a deixar a sua vida boa em Russian Hill e fugir da polícia. As obras de Caesar Zedd. As três pinturas geniais de Sklent. As capas de almofadas, nas quais bordara a sabedoria de Zedd, consistiam a maior parte de sua coleção de objetos essenciais: 102 almofadas em tamanhos e formatos diversos, que ele completara em apenas treze meses de bordado febril.
Se matasse Bartholomew e conseguisse se safar, como esperava fazer, então subseqüentemente iria devolver ao apartamento tudo que estava no furgão. Estava apenas sendo prudente ao planejar seu futuro, porque o futuro era, afinal de contas, o único lugar no qual vivia.
Ele levaria também a Mulher industrial, mas ela pesava um quarto de tonelada. Era impossível carregá-la sozinho, e ele não podia correr o risco de contratar um ajudante, mesmo um imigrante ilegal, e portanto comprometer o furgão e a identidade de Pinchbeck.
De qualquer modo, a Mulher industrial cada vez lembrava-lhe mais a Scamp. Como várias membranas mucosas inflamadas lembravam-no constantemente, ele já estava saciado da Scamp.
Afinal chegou o dia: sexta-feira, 12 de janeiro.
Cada nervo no corpo de Júnior estava tão retesado quanto a corda de uma armadilha. Se alguém o desarmasse, ele explodiria tão violentamente que acabaria caindo num hospício.
Felizmente, ele reconhecia essa sua vulnerabilidade. Até o lançamento da exposição de Celestina White, à noite, ele passaria cada hora do dia dedicando-se a atividades calmantes, para poder ser frio e eficiente quando chegasse o momento de agir.
Respirações lentas e profundas.
Tornou outro banho demorado, o mais quente que conseguiu tolerar, até seus músculos ficarem macios como manteiga.
No café da manhã, evitou açúcar. Comeu rosbife frio e bebeu leite com uma dose dupla de conhaque.
O tempo estava bom. Saiu para caminhar, embora tenha atravessado a rua várias vezes para evitar passar por máquinas de venda automática de jornais.
Comprar acessórios de roupas relaxava Júnior. Passou algumas horas olhando prendedores de gravata, lenços de seda e cintos exóticos.
Enquanto subia a escada-rolante numa loja de departamentos, entre o segundo e o terceiro pavimento, Júnior viu Vanadium descendo na outra escada, a cinco metros de distância.
Para um espírito, o homem da lei maníaco parecia perturbadoramente sólido. Usava um casaco esportivo de tweed e calças que Júnior julgou serem as mesmas que vestia na noite em que morreu. Aparentemente, até os fantasmas do mundo espiritual ateísta de Sklent passavam à eternidade vestidos nas mesmas roupas nas quais pereceram.
O primeiro lampejo que Júnior teve do rosto de Vanadium foi de perfil. E então, enquanto a escada-rolante descia, Júnior pôde ver apenas a nuca do policial. Ele não via aquele homem há quase três anos, mas ainda assim teve certeza absoluta de que não se tratava de um sósia acidental. Ali estava o espírito do macaco sujo e desprezível.
Ao chegar ao terceiro pavimento, Júnior correu até a entrada da escada-rolante de descida.
O fantasma corpulento saiu da escada-rolante no segundo piso e caminhou até a seção de roupas femininas.
Júnior desceu a escada-rolante dois degraus por vez, não satisfeito em seguir o policial em seu próprio ritmo. Mas ao alcançar o segundo pavimento constatou que o fantasma de Vanadium fizera o que os fantasmas fazem melhor. Tinha desaparecido no ar.
Abandonando sua busca pelo elo perfeito na corrente, mas determinado a se manter calmo, Júnior decidiu almoçar no Hotel St. Francis.
As calçadas estavam cheias de executivos trajando ternos, hippies em vestes extravagantes, grupos de suburbanas fazendo compras no centro com suas melhores roupas e, é claro, os zé-povinhos, vestidos de forma desprezível, alguns sorrindo, alguns sorumbáticos, e alguns falando, mas com olhos tão vazios que podiam ser assassinos ou poetas, ou mesmo milionários excêntricos disfarçados e aberrações de circo que ganhavam a vida arrancando com os dentes as cabeças de galinhas vivas.
Mesmo nos dias bons, quando não era assediado por espíritos de policiais mortos e não se preparava para cometer assassinatos, Júnior às vezes sentia-se desconfortável em meio a essas multidões. Esta tarde, sentia-se especialmente claustrofóbico enquanto abria caminho através da turba e, precisava admitir, um pouco paranóico também.
Observava cauteloso as pessoas à sua volta enquanto caminhava, e de vez em quando olhava sobre o ombro. Numa dessas olhadas para trás, ficou nervoso, mas não surpreso, ao ver o espectro de Vanadium.
O policial fantasma estava doze metros atrás dele, por trás de fileiras de outros pedestres, cada um deles podendo não ter face alguma agora, sendo liso e desprovido de feições da testa ao queixo, porque subitamente Júnior não enxergava outro rosto além daquele do morto-vivo. O rosto fantasmagórico oscilava para cima e para baixo à medida que o espírito avançava, afundando e aflorando, e então afundando de novo em meio a todas as cabeças que subiam e desciam à sua volta.
Júnior apertou o passo, acotovelando as pessoas à sua frente, olhando para trás seguidamente. E embora visse apenas lampejos rápidos do rosto do policial morto, ele podia dizer que havia alguma coisa terrivelmente errada com ele. Embora jamais tivesse sido candidato a ídolo das matinês, Vanadium parecia muito mais feio que antes. A marca de nascença roxa continuava cercando o seu olho direito. Suas feições não estavam apenas achatadas como antes. Elas estavam... distorcidas.
Amassado. O rosto parecia amassado. Amassado por um castiçal de estanho.
Na esquina seguinte, em vez de continuar seguindo para o sul, Júnior angulou agressivamente na frente dos pedestres que vinham contra ele, saiu da calçada e tomou o rumo leste, atravessando a encruzilhada apesar do aviso do sinal de pedestres estar fechado para ele. Buzinas trombetearam, um ônibus quase o achatou no asfalto, mas ele atravessou a rua.
Quando pisou na calçada, o sinal abriu para os pedestres, e quando procurou por seu perseguidor, encontrou-o. Lá vinha Vanadium, que estaria tremendo, necessitado de um sobretudo, caso a sua pele fosse real.
Júnior continuou seguindo para leste, ziguezagueando através da horda, convencido de que podia ouvir os passos do policial fantasma, apesar da barulheira gerada pelos passos das legiões de vivos, apesar dos sons caóticos que se levantavam do tráfego. Ocos, os passos do morto ecoavam não apenas nos ouvidos de Júnior, como também através de seu corpo, ressoando por seus ossos.
Parte dele sabia que esse som eram as batidas de seu coração, não os passos de um perseguidor do Além, mas essa parte de seu ser não estava conseguindo ser dominante no momento. Júnior caminhava rápido, não exatamente correndo, mas em passos apressados de um homem atrasado para um compromisso.
Cada vez que Júnior olhava para trás, Vanadium seguia-o através da turba. Corpulento, mas quase deslizando pela calçada. Sinistro, horrendo... e mais próximo a cada segundo.
Um beco se abriu à esquerda de Júnior. Saiu da turba, adentrou essa rua de serviço sombreada por edifícios altos, e ali caminhou até mais rápido, ainda não correndo exatamente porque continuava a acreditar que possuía a calma e o autocontrole inabaláveis de um homem que aperfeiçoou a si mesmo.
No meio do beco, reduziu o passo e olhou por cima do ombro.
Flanqueado por caçambas e latas de lixo, através do vapor que se levantava das grades do esgoto, passando por caminhões de entrega estacionados, lá vinha o policial morto. Correndo.
Súbito, mesmo no coração de uma grande cidade, o beco parecia tão solitário quanto uma masmorra inglesa, e um lugar nem um pouco adequado a servir de abrigo contra um espírito vingador. Abandonando todas as ilusões de autocontrole, Júnior correu até a rua seguinte, onde a visão de miríades de pessoas, aglomeran-do-se debaixo do sol de inverno, encheram-no não com paranóia ou incômodo, mas com um sentimento de conforto até agora desconhecido.
Das formas que você nem imagina, eu sou a pior.
A mão pesada desceria sobre o seu ombro, ele seria girado sobre os calcanhares contra sua vontade, e então estariam à sua frente aqueles olhos de cabeça de prego, a mancha roxa, os ossos faciais esmagados por um castiçal...
Alcançou o fundo do beco, chocou-se contra o fluxo de pedestres, quase derrubou uma velha chinesa, virou-se e descobriu... nenhum Vanadium.
Sumiu no ar.
As lixeiras e os caminhões de entrega avultavam-se contra as paredes do prédio. Fumaça erguia-se das grades no chão da rua. As sombras não mais eram perturbadas por uma silhueta num casaco de tweed.
Nervoso demais para sentir vontade de almoçar no Hotel St. Francis ou em qualquer outro lugar, Júnior voltou para o apartamento.
Ao chegar em casa, hesitou diante da porta aberta. Esperava encontrar Vanadium lá dentro.
Ninguém o esperava, além da Mulher-industrial.
Nem bordado, meditação ou mesmo sexo seriam suficientes para aliviar a sua tensão. As pinturas de Sklent e as obras de Zedd estavam guardadas no furgão, e portanto ele não podia buscar consolo nelas.
Outro copo de leite com conhaque ajudou, mas não muito.
Enquanto a tarde sumia em meio a uma escuridão portentosa, anunciando que a abertura da exposição de Celestina White não tardava, Júnior preparou suas facas e armas de fogo.
As lâminas e as balas acalmaram um pouco os seus nervos.
Ele precisava desesperadamente encerrar as questões que envolviam a morte de Naômi. Era isso que significava os últimos três anos e todos aqueles eventos sobrenaturais.
Conforme Sklent colocou com tanta inteligência: alguns de nós vivem depois da morte, sobrevivem em espírito, porque somos tão teimosos, egoístas, violentos, psicóticos e maus que não aceitamos a nossa morte. Nenhuma dessas qualidades descrevia a doce Naômi, que tinha sido gentil, amorosa e meiga demais para continuar vivendo em espírito, depois que seu coração parou de bater. Agora una com a terra, Naômi não representava ameaça a Júnior, e o estado tinha pago por negligência em sua morte, e o assunto inteiro deveria estar encerrado. Havia apenas duas barreiras que impediam a resolução plena e final: primeiro, o espírito teimoso, egoísta, violento, psicótico e maligno de Thomas Vanadium; e, segundo, o bebê bastardo de Serafina, o pequeno Bartholomew.
Um exame de sangue poderia provar que Júnior era o pai. Cedo ou tarde acusações seriam levantadas contra ele por familiares amargurados, talvez não com a esperança de trancafiá-lo numa prisão, mas unicamente com o propósito de botar as mãos numa parte considerável de sua fortuna, na forma de pensão familiar.
Então a polícia de Spruce Hills exigiria saber por que tinha trepado com uma negra menor de idade se seu casamento com Naômi era tão perfeito e satisfatório quanto alegara. Por mais injusto que isso parecesse, não havia estatuto de limitações em casos de assassinato. Era possível soprar a poeira de arquivos fechados e reabri-los; investigações podiam ser reiniciadas. E embora as autoridades tivessem poucas chances de condená-lo por assassinato a partir de qualquer prova ínfima que pudesse ser desenterrada, ele ia ser forçado a gastar outra parte significante de sua fortuna em honorários de advogados.
Júnior jamais permitiria que o levassem à falência e o tornassem pobre novamente. Jamais. A sua fortuna fora obtida a um risco imenso, e graças a muita coragem e determinação. Era preciso defendê-la a qualquer preço.
Quando o bebê bastardo de Serafina estivesse morto, a evidência da paternidade morreria com ele — assim como qualquer processo por pensão familiar. Até o espírito teimoso, egoísta, violento, psicótico e mau de Thomas Vanadium teria de reconhecer que todas as esperanças de derrubar Júnior estavam perdidas, e a frustração iria levá-lo a se dissipar ou reencarnar.
O encerramento estava próximo.
Para Caim Júnior, a lógica de tudo isto parecia inacessível. Preparou suas facas e armas de fogo. Lâminas e balas. A sorte favorece os ousados, os aperfeiçoados, os focados.
NOLLY ESTAVA SENTADO atrás de sua mesa, paletó do terno dobrado sobre as costas da cadeira, chapéu de feltro ainda na cabeça, onde permanecia virtualmente em todos os momentos, exceto quando dormia, tomava banho, jantava em restaurantes, ou fazia amor.
Um cigarro aceso — geralmente pendurado do canto de uma boca contorcida num sorriso sarcástico — era um equipamento padrão para os detetives durões, mas Nolly não fumava. Sua incapacidade de desenvolver esse hábito nocivo resultara numa atmosfera menos poluída do que os clientes de um detetive particular esperavam.
Por sorte, a mesa tinha marcas de cigarro, porque já viera com o escritório. Tinha sido a propriedade de um caçador de inadimplentes chamado Otto Zelm, que ganhara um bom dinheiro fazendo o tipo de trabalho que Nolly evitava a todo custo: encontrar caloteiros e confiscar os seus veículos. Durante uma emboscada, Zelm adormecera em seu carro, enquanto fumava, desta forma acionando o pagamento de seus seguros de vida e de acidentes e liberando o aluguel deste espaço mobiliado.
Mesmo sem cigarro pendurado no canto da boca, e sem o hábito de delinear sorrisos sarcásticos, Nolly tinha um jeito durão digno de Sam Spade. Ele devia isso principalmente ao rosto que a natureza lhe dera, um disfarce esplêndido para o boboca sentimental que vivia por trás dele. Com seu pescoço gordo, suas mãos fortes, com as mangas da camisa enroladas para cima de modo a expor os antebraços peludos, ele passava uma impressão apropriadamente intimidadora: como se Humphrey Bogart, Sydney Greenstreet e Peter Lorre tivessem sido enfiados num liqüidificador e então derramados num terno.
Kathleen Klerkle, a sra. Wulfstan, sentada na ponta da mesa de Nolly, olhava de soslaio para o visitante na cadeira do cliente. Na verdade Nolly tinha duas cadeiras para clientes. Kathleen podia ter sentado na segunda, mas esta parecia uma pose mais apropriada para a garota de um detetive. Não que estivesse tentando parecer uma vadia; ela estava pensando em Myrna Loy no papel de Nora Charles em A ceia dos acusados: experiente mas elegante, durona mas divertida.
Até Nolly, a vida de Kathleen tinha sido tão carente de romances quanto uma bolacha de água e sal era carente de sabor. Sua infância e até sua adolescência tinham sido tão ordinárias que ela escolhera a carreira de dentista porque lhe parecera, em comparação com o que conhecia, uma profissão exótica e divertida. Ela saíra com alguns homens, mas todos eram desinteressantes e pouco gentis. As aulas de dança de salão — e mais adiante, as competições — prometiam o romance que a sua profissão e os seus namorados não tinham proporcionado. Contudo, mesmo a dança foi um tanto decepcionante, até o dia em que sua instrutora a apresentou a esse homem careca, de pescoço grosso e rosto irregular, que era um Romeu maravilhoso.
Era impossível saber se o visitante na cadeira do cliente tivera muitos romances em sua vida, mas decerto vivera muitas aventuras e pelo menos uma tragédia. O rosto de Thomas Vanadium era uma paisagem devastada por um terremoto: rachado por cicatrizes brancas como linhas de falha numa camada de granito; as superfícies do semblante, face e queixo mantinham um relacionamento estranho entre si. O hemangioma que cercava o olho direito e descoloria seu rosto estava com ele desde o nascimento, mas o dano terrível à sua estrutura óssea não era obra de Deus, mas de um homem.
Em meio à ruína nobre de seu rosto, os olhos cinzentos de Thomas Vanadium eram impressionantes, ricos de um sentimento belíssimo de... tristeza. Não auto-comiseração. Ele claramente não considerava a si próprio uma vítima. Para Kathleen, esta era a tristeza de um homem que vira muito sofrimento nos outros, que conhecia os males do mundo. Eram olhos que liam as pessoas num relance, que brilhavam com compaixão para os inocentes e que fulguravam com um julgamento inclemente para os culpados.
Vanadium não vira o homem que o acertara por trás, e que esmagara seu rosto com um candelabro de estanho, mas quando proferiu o nome Enoch e Caim, o sentimento em seus olhos não foi compaixão. Nenhuma impressão digital fora deixada, nenhuma evidência nos vestígios do incêndio na casa Bressler ou no Studebaker içado do lago.
— Mas você acha que foi ele — deduziu Nolly.
— Eu sei.
Durante oito meses depois daquela noite, até o final de setembro de 1965, Vanadium esteve em coma, e seus médicos não esperaram que ele recuperasse a consciência. Um motorista encontrara-o caído sobre a rodovia nas proximidades do lago, encharcado e enlameado. Quando, depois de seu longo sono, Vanadium acordou no hospital, extremamente debilitado, não lembrava de nada que acontecera depois de entrar na cozinha de Victória. Tinha apenas uma lembrança vaga, onírica, de estar afundando num carro e sair nadando.
Embora tivesse certeza moral da identidade de seu agressor, intuição sem provas não bastava para induzir as autoridades a agir — não contra um homem a quem o estado pagara 4.250.000 dólares para indenizá-lo da queda mortal de sua esposa. Isso faria as autoridades parecerem incompetentes na investigação da morte de Naomi ou estar usando outro caso para vingar-se de Enoch. Sem pilhas de provas, os riscos políticos de agir segundo os instintos de um policial eram grandes demais.
Simon Magusson — capaz de representar o próprio diabo pelos honorários adequados, mas também capaz de nutrir remorso genuíno — visitou Vanadium no hospital, logo depois de saber que o detetive acordara de um coma. O advogado compartilhava com ele a convicção de que Caim era a parte culpada, e que ele também assassinara a esposa.
Magusson considerava os ataques a Victória e Vanadium crimes hediondos, é claro, mas também os via como afronta à sua própria dignidade e reputação. Ele esperava que um cliente culpado, depois de ser recompensado com quatro milhões e meio ao invés de uma pena de morte, ficasse suficientemente grato para andar na linha.
— Simon é doido varrido — avaliou Vanadium. — Mas gosto muito do Simon e confio nele implicitamente. Ele veio me perguntar o que podia fazer para ajudar. No começo eu não estava falando direito, estava com paralisia parcial no braço esquerdo e tinha perdido dezoito quilos. Eu não ia poder procurar por Caim por um bom tempo, mas o Simon acabou descobrindo onde ele estava.
— Porque Caim tinha ligado para pedir que ele recomendasse um investigador particular aqui em San Francisco — disse Kathleen. — Para descobrir o que aconteceu ao bebê de Serafina White.
O sorriso de Vanadium, naquele rosto tragicamente fraturado, aterrorizaria a maioria das pessoas, mas Kathleen considerou-o encantador devido ao espírito indestrutível que revelava.
— O que me sustentou durante estes últimos dois anos e meio foi saber que eu poderia colocar as mãos no sr. Caim quando finalmente estivesse bem o bastante para fazer alguma coisa com ele.
A carreira de Vanadium como detetive de homicídios ostentava um recorde de 98% de captura e condenação. Uma vez convencido de que encontrara a parte culpada, Vanadium não utilizava apenas técnicas policiais sólidas. Ele somava aos procedimentos e técnicas de investigação a sua própria noção de guerra psicológica — às vezes sutil, às vezes não —, que freqüentemente encorajava o perpetrador a cometer erros que o condenavam.
— A moeda no sanduíche — disse Nolly, porque essa tinha sido a primeira peça que Simon Magusson lhe pagara para pregar.
Num passe de mágica, uma moeda prateada apareceu na mão direita de Thomas Vanadium. Fez a moeda dar cambalhotas do nó de um dedo para o seguinte, desaparecer entre o indicador e o polegar e reaparecer no mindinho, reiniciando a jornada sobre a mão.
— Depois que saí do coma, demorou algumas semanas para que a minha condição se estabilizasse. Então fui transferido para um hospital em Portland, onde precisei sofrer onze cirurgias.
Ou Vanadium detectou a surpresa bem escondida de Nolly e Kathleen, ou considerou que estavam curiosos de como, depois de tantas cirurgias, ele ainda estava com aquela cara de Bóris Karloff. Ele continuou:
— Os médicos precisaram reparar os danos no sino frontal esquerdo, no sino esfenoidal e no sino cavernoso, que foram esmagados parcialmente pelo candelabro de estanho. Os ossos frontal, malar, etmóide, maxilar, esfenóide e palatino foram reconstruídos para conter apropriadamente o meu olho direito, que estava mais ou menos... bem, estava pendurado. Isso era apenas o básico, e depois também precisei de uma reconstituição dentária. Foi opção minha não fazer nenhuma cirurgia cosmética.
Ele parou, dando ao casal uma chance de fazer a pergunta óbvia — e então, diante de sua reticência, sorriu.
— Para início de conversa, nunca fui nenhum Cary Grant — disse Vanadium, ainda rolando incessantemente a moeda sobre os dedos. — Portanto, eu não tinha nenhum apego emocional com a aparência. Uma cirurgia cosmética teria somado mais um ano de recuperação, talvez muito mais, e eu estava ansioso para ir atrás do Caim. Além disso, achei que esta minha cara nova ajudaria a assustar o cretino e fazer com que cometesse um engano incriminador. Ou, quem sabe, confessar.
Kathleen acreditava que isso poderia acontecer. Ela própria não sentira medo da aparência de Thomas Vanadium; mas isso porque se preparara antes de conhecê-lo pessoalmente. E ela não era uma assassina, com medo do castigo, para quem esse rosto específico pareceria a personificação da justiça divina.
— Além disso, ainda vivo segundo o meu juramento até onde posso, embora esteja gozando da dispensa contínua mais longa de que se tem notícia. — Um sorriso naquele rosto arruinado podia ser tocante, mas o olhar irônico que ele esboçou agora provocou um arrepio em Kathleen. — A vaidade é um pecado que tenho mais facilidade em evitar do que alguns outros.
Entre suas cirurgias e durante muitos meses depois, Vanadium devotara suas energias à terapia fonoau iológica e à fisioterapia, mas também ao planejamento de tormentos periódicos para Enoch Caim. A implementação desses tormentos, com intervalos de poucos meses, caberia a Nolly e Kathleen. A idéia não era levar Caim à justiça torturando sua consciência, porque ele a deixara atrofiar há muito tempo, mas mantê-lo abalado e portanto amplificar o impacto de seu primeiro encontro cara-a-cara com Vanadium renascido.
— Confesso que fiquei surpreso como essas peças deixaram o sujeito tão abalado — disse Nolly.
— Ele é um homem oco — disse Vanadium. — Não acredita em nada. Homens ocos são vulneráveis a qualquer um que lhes ofereça alguma coisa para preencher o vácuo e fazer com que se sintam menos vazios. Assim...
A moeda parou de dar cambalhotas sobre a mão de Vanadium e, como se movida por vontade própria, deslizou para a curva apertada de seu indicador curvado. Com um estalar de dedos, ele fez a moeda rodopiar no ar.
— Estou oferecendo a ele misticismo barato e fácil...
No instante em que fez a moeda girar no ar, Vanadium abriu ambas as mãos — palmas para cima, dedos afastados — com um floreio projetado para distrair.
— ... um espírito vingativo incansável, um fantasma vingativo... Vanadium esfregou as mãos.
— ... estou oferecendo a ele medo...
Como se Amélia Earhart, a aviadora há muito desaparecida, tivesse esticado o braço para fora da região além da imaginação na qual vivia e agarrado a moeda, nenhuma moeda brilhava no ar acima da mesa.
— ... doce medo — concluiu Vanadium.
— O que aconteceu? — perguntou Nolly, testa franzida. — Está na sua manga?
— Não, está no bolso da sua camisa — respondeu Vanadium. Estarrecido, Nolly verificou o bolso da camisa e retirou uma moeda de 25 cents.
— Não é a mesma — disse Nolly. Vanadium soergueu as sobrancelhas.
— Você deve ter deixado esta cair no meu bolso quando chegou aqui — deduziu Nolly.
— Então onde está a moeda que acabei de jogar para o alto?
— Medo? — perguntou Kathleen, mais interessada nas palavras que nas prestidigitações de Vanadium.—Você disse que está oferecendo medo a Caim... como se isso fosse alguma coisa que ele quisesse.
— De certo modo, é, sim — disse Vanadium. — Quando você é uma pessoa tão oca quanto Enoch Caim, o vazio dói. Ele precisa desesperadamente preencher esse vazio, mas não tem a paciência ou o compromisso de enchê-lo com qualquer coisa de valor. Amor, caridade, fé, sabedoria... essas e outras virtudes são conquistadas com muito trabalho duro, compromisso e paciência, e nós as adquirimos na base de uma colherada por vez. Caim quer ser enchido depressa. Ele quer o vazio em seu interior cheio até as bordas, e para conseguir isso está disposto a tomar goles grandes de qualquer coisa, e agora.
— Parece com o que muita gente quer ultimamente — disse Nolly.
— Parece, sim — concordou Vanadium. — Assim, um homem como Caim fica obcecado com uma coisa atrás da outra: sexo, dinheiro, comida, poder, drogas, álcool, qualquer coisa que pareça conferir significado aos seus dias, mas isso não requer nenhuma autodescoberta ou auto-sacrifício. Ele se sente completo durante algum tempo. Mas como não existe nenhuma substância naquilo com que se encheu, o que está no seu interior evapora logo, e ele fica oco de novo.
— E está dizendo que o medo pode encher o vazio dele tão bem quanto sexo ou birita? — perguntou Kathleen.
— Melhor. O medo não exige que ele seduza uma mulher ou compre uma garrafa de uísque. Tudo que precisa fazer é se abrir a ele, e logo estará cheio como um copo debaixo de uma torneira. Por mais difícil que possa ser compreender isso, Caim pode preferir ficar mergulhado até o pescoço num poço de terror, tentando desesperadamente permanecer na tona, a sofrer com o seu vazio. O medo pode conferir forma e significado à sua vida, e não pretendo simplesmente enchê-lo com medo. Quero afogá-lo em medo.
Considerando seu rosto amassado e costurado, considerando também sua história trágica e curiosa, Vanadium falava com pouquíssimo drama. Sua voz era calma, quase sem entonação, subindo e descendo quase imperceptivelmente.
Ainda assim, Kathleen ouvia cada palavra dele com um fascínio que não sentia desde que assistira às grandes atuações de Laurence Olivier em Rebecca, a mulher inesquecível e O morro dos ventos uivantes. No tom calmo e contido de Vanadium, ela ouvia convicção e verdade, mas também detectava mais alguma coisa. Apenas gradualmente ela percebeu que poderia ser o seguinte: a ressonância sutil que provinha de um homem bom cuja alma, contendo não apenas uma câmara vazia, estava cheia com aquelas virtudes que eram absorvidas colherada por colherada, e que jamais evaporavam.
Ficaram sentados em silêncio, e o momento que se seguiu foi carregado com uma qualidade tão extraordinária de expectativa que Kathleen não teria ficado surpresa se a moeda desaparecida se materializasse subitamente no ar e caísse no centro da mesa de Nolly, para ali girar em moto-perpétuo, até Vanadium decidir pegá-la.
Nolly finalmente perturbou o silêncio:
— Moço... você é um psicólogo e tanto. Aquele sorriso salvador mais uma vez devolveu a harmonia perdida ao rosto quebrado e cicatrizado.
— Não sou mesmo. Do meu ponto de vista, a psicologia é apenas mais uma daquelas fontes fáceis de significado falso... como sexo, dinheiro e drogas. Mas admito que conheço uma ou duas coisas sobre o mal.
A luz do dia sumira das janelas. A noite invernal, embrulhada em echarpes de neblina, como um mendigo leproso, emitiu um som de exalação, como se estivesse clamando por atenção por trás do vidro.
Varada por um arrepio, Kathleen disse:
— Gostaríamos de saber mais sobre por que fizemos o que fizemos por você. Por que as moedas? Por que a canção?
Vanadium fez que sim com a cabeça e disse:
— E eu gostaria de ouvir mais detalhes sobre as reações de Caim. Li seus relatórios, é claro, e eles foram completos, mas obviamente condensados. Existem muitas sutilezas que só se revelam através de conversas. Muitas vezes, detalhes aparentemente insignificantes são muito importantes para mim quando planejo uma estratégia.
Levantando da cadeira e enrolando para cima as mangas de sua camisa, Nolly disse:
— Se você for nosso convidado para o jantar, suspeito que teremos uma noite fascinante.
Um momento depois, no corredor, enquanto Nolly trancava a porta de seu escritório, Kathleen enroscou o braço direito no esquerdo de Vanadium.
— Chamo você de detetive Vanadium, Irmão ou Pai?
— Por favor, me chame apenas de Tom. Fui afastado à força da Polícia do Estado do Oregon, com aposentadoria por invalidez completa por causa do rosto. Não sou mais detetive. Mas até colocar Enoch Caim Júnior atrás das grades, onde é o lugar dele, continuarei sendo um tira, oficial ou não.
ANJA ESTAVA VESTIDA com tanto vermelho quanto o próprio diabo: sapatos vermelhos brilhantes, meias vermelhas, saia vermelha, suéter vermelho e um casaco vermelho que lhe batia nos joelhos, munido de um capuz igualmente vermelho.
Estava parada de pé diante da porta da frente do apartamento, admirando a si mesma no espelho de corpo, esperando pacientemente por Celestina, que estava guardando bonecas, livros de colorir, massinhas e uma imensa coleção de lápis de cera dentro de uma mochila.
Embora tivesse apenas três anos e uma semana de idade, Anja sempre escolhia suas próprias roupas e se vestia com muito cuidado. Em geral preferia conjuntos monocromáticos, às vezes com uma única cor acentuada, expressa num cinto, chapéu ou echarpe. Quando misturava muitas cores, a impressão inicial que passava era de um caos cromático — mas logo se começava a perceber que essas combinações improváveis eram mais harmoniosas do que tinham parecido à primeira vista.
Durante algum tempo, Celestina estivera preocupada com a menina, considerando-a mais lenta para aprender a caminhar, falar e desenvolver seu vocabulário que as outras crianças. Então, durante os últimos seis meses, Anja alcançara de supetão as suas contemporâneas — embora ainda parecesse caminhar por uma estrada diferente daquela descrita pelos livros sobre desenvolvimento infantil. Sua primeira palavra tinha sido mama, que era completamente comum, mas sua segunda tinha sido azul, que durante algum tempo saíra apenas como "zu". Aos três anos, uma criança média estaria se saindo excepcionalmente bem se identificasse quatro cores; Anja conseguia dar nome a onze, incluindo preto e branco, porque era capaz de diferenciar rosa de vermelho, roxo de azul.
Wally — o dr. Walter Lipscomb, que trouxera Anja ao mundo e se tornara seu padrinho — não ficara preocupado quando a menina parecera desenvolver-se devagar demais. Ele avisara que cada criança era um indivíduo, com seu ritmo de aprendizado específico. A especialidade dupla de Wally — obstetrícia e pediatria — conferia-lhe credibilidade, claro, mas ainda assim Celestina ficara preocupada.
Preocupar-se é o que as mães fazem melhor. Celestina era a mãe da menina no que dizia respeito a Anja, porque ela ainda não estava em idade para ouvir, e entender, que fora abençoada com duas mães: aquela que a pusera no mundo e aquela que a criara.
Recentemente, Wally submetera Anja a uma série de testes de avaliação para crianças de três anos, e os resultados indicavam que ela talvez jamais se tornasse brilhante em matemática ou uma ginasta verbal, mas que podia ser altamente talentosa em outros aspectos. Sua apreciação das cores, seu entendimento inato da derivação de tons secundários a partir das cores primárias, seu senso de relacionamento espacial e seu reconhecimento de formas geométricas básicas a despeito do ângulo em que eram apresentadas estavam muito acima dos exibido por outras crianças de sua idade. Wally disse que a menina era altamente dotada de inteligência visual, e que provavelmente seria precoce em questões artísticas, podendo seguir a carreira de Celestina, e talvez até mesmo revelar-se um prodígio.
— Chapeuzinho Vermelho! — anunciou Anja, estudando-se no espelho. Celestina finalmente fechou o zíper da mochila.
— É melhor tomar cuidado com o lobo mau.
— Eu não. É melhor o lobo se cuidar! — declarou Anja.
— Acha que poderia chutar o traseiro do lobo, hein?
— Bam! — disse Anja, estudando seu reflexo enquanto chutava um lomaginário.
Retirando um casaco do armário, enfiando-se nele, Celestina disse:
— Você devia usar verde, srta. Chapeuzinho. Assim o lobo não ia reconhecer você.
— Hoje não estou me sentindo uma rã.
— Você também não parece uma.
— Você é bonita, mamãe.
— Ora, muito obrigada, docinho.
— Eu sou bonita?
— Não é educado pedir um elogio.
— Mas eu sou?
— Você é deslumbrante.
— Às vezes não tenho certeza disso — comentou Anja, olhando desconfiada para o reflexo no espelho.
— Confie em mim. Você é uma beldade.
Celestina agachou-se diante de Anja, para amarrar o cordão do capuz debaixo do queixo da menina.
— Mamãe, por que os cachorros são peludos?
— De onde vêm os cachorros?
— Eu também queria saber.
— Não — disse Celestina. — Quero dizer, por que estamos falando de cachorros de repente?
— Porque eles parecem lobos.
— Ah, certo. Bem, Deus fez eles assim, peludos.
— Por que Deus não me fez peluda?
— Por que ele não queria que você fosse uma cachorra. — Ela acabou de amarrar um laço no cordão. — Pronto. Você está parecendo um M&M.
— Isso é um doce.
— Bem, você é doce, não é? E você é vermelho brilhante por fora e chocolate ao leite por dentro — disse Celestina, beliscando gentilmente o nariz marrom-claro da menina.
— Eu prefiro ser um sr. Goodbar.
— Então você vai ter que vestir amarelo.
No corredor que servia os apartamentos no térreo, elas encontraram Rena Moller, a mulher Idosa que vivia no apartamento de frente para o delas. Ela estava polindo com óleo de limão a madeira escura de sua porta da frente, um sinal garantido de que seu filho e a família dele vinham jantar.
— Eu sou um M&M — disse Anja orgulhosa para a sua visita, enquanto Celestina fechava a porta.
Rena era alegre, baixa e sólida. Sua cintura devia medir dois terços de sua altura, e ela favorecia vestidos florais que embelezavam sua silhueta. Com sotaque alemão e uma voz que sempre parecia dissolver-se em risos, ela disse:
— Madchen lieb, você me parece mais uma vela de Natal.
— Velas derretem. Não quero derreter.
— M&Ms também derretem — alertou Rena.
— Lobos gostam de doces?
— Talvez. Não entendo nada de lobos, liebling.
— Você parece um jardim de flores, sra. Moller — disse Anja.
— Pareço mesmo, não pareço? — concordou Rena, enquanto alisava com a mão gorducha a saia de seu vestido colorido.
— Um jardim grande.
— Anja! — ralhou Celestina, mortificada. Rena soltou uma gargalhada.
— Oh, mas é verdade! E não só um jardim. Eu sou um campo de flores! — Largou a saia, que se agitou como cascatas de pétalas em queda. — Então esta vai ser uma noite de fama, Celestina.
— Deseje-me sorte, Rena.
— Grande sucesso, venda total, eu prevejo!
— Já ficarei aliviada se vendermos uma pintura.
— Ah, boa como você é, não vai sobrar nenhuma. Eu sei.
— Deus te ouça.
— Não seria a primeira vez — assegurou-lhe Rena. No lado de fora, Celestina segurou a mão de Anja enquanto desciam os degraus da frente até a rua.
Seu apartamento ficava numa casa vitoriana de quatro andares no bairro chique de Pacific Heights. Tinha sido convertida a apartamentos com profundo respeito pela arquitetura, anos antes que Wally a comprasse.
A casa do próprio Wally ficava na vizinhança, a um quarteirão e meio, uma preciosidade vitoriana de três pavimentos que ele ocupava inteiramente.
O final do crepúsculo deitou uma luz violeta no banco de neblina que chegava da baía, conferindo à cidade a aparência de um cabaré abrindo para negócios. A noite, com a suavidade de uma mulher começando a dançar, carregava uma faca de ar frio debaixo de suas saias de seda negra.
Celestina olhou seu relógio de pulso e viu que estava atrasada. Com as perninhas curtas de Anja e camadas de vermelho, não fazia sentindo tentar apressar o passo.
— Para onde foi o azul? — indagou a garota.
— Que azul, fofinha?
— O céu azul.
— Seguiu o sol.
— Para onde o sol foi?
— Para o Havaí.
— Por que o Havaí?
— Ele tem uma casa lá.
— Por que lá?
— Os terrenos são mais baratos no Havaí.
— Não estou engolindo isso.
— E eu mentiria para você?
— Não. Mas você mexeria comigo.
Chegaram à primeira esquina e atravessaram o cruzamento. Suas exalações saíam em plumas frias. Fantasmas de ar, como Anja as chamava.
— Comporte-se esta noite, viu? — disse Celestina.
— Vou ficar com o tio Wally?
— Com a sra. Ornwall.
— Por que ela mora com o tio Wally?
— Você sabe por quê. Ela é a governanta dele.
— Por que você não mora com o tio Wally?
— Não sou a governanta dele, sou?
— O tio Wally não vai ficar em casa esta noite?
— Só um pouquinho. Então ele vai se encontrar comigo na galeria, e depois que a mostra terminar, vamos jantar juntos.
— Vão comer queijo?
— Talvez.
— Vão comer frango?
— Por que está preocupada com o que vamos comer?
— Quero comer queijo.
— Tenho certeza de que se você pedir a sra. Ornwall fará um sanduíche de queijo quente para você.
— Olha nossas sombras. Elas estão na frente, e depois vão para trás.
— Porque estamos passando pelas lâmpadas da rua.
— Elas devem ser sujas, né?
— As lâmpadas da rua?
— Nossas sombras. Estão sempre no chão.
— Tenho certeza de que são imundas.
— Então, para onde vai o preto?
— Que preto?
— O preto do céu. Quando amanhece. Para onde vai, mamãe?
— Não faço a mínima idéia.
— Eu achava que você sabia tudo.
— Eu já soube — disse Celestina com um suspiro. — O meu cérebro não está trabalhando bem agora.
— Coma um pouco de queijo.
— Voltamos a isso?
— É comida para o cérebro.
— Queijo? Quem disse?
— O homem do queijo, na tevê.
— Você não pode acreditar em tudo que dizem na tevê, querida.
— O Capitão Kangaroo não mente.
— Não, ele não mente. Mas o Capitão Kangaroo não é o homem do queijo. A casa de Wally ficava meio quarteirão à frente. Ele estava parado na calçada,
conversando com um motorista de táxi. O táxi de Celestina já tinha chegado.
— Vamos mais rápido, fofinha.
— Eles se conhecem?
— Tio Wally e o motorista de táxi? Acho que não.
— Não. O Capitão Kangaroo e o homem do queijo.
— Devem se conhecer, sim.
— Então o Capitão deve ter dito ao homem do queijo para não mentir.
— Tenho certeza que ele deve ter dito, sim.
— O que é comida para o cérebro?
— Peixe, talvez. Não esqueça de rezar esta noite.
— Eu sempre lembro.
— Lembre de pedir que Deus abençoe a mim, tio Wally, e vovô e vovó...
— Vou rezar também pelo homem do queijo.
— Essa é uma boa idéia.
— Vocês vão comer um pouco de pão?
— Tenho certeza de que iremos.
— Ponha um pouco de peixe nele. Sorrindo, Wally abriu os braços. Anja correu até Wally, que a levantou da calçada.
— Você está parecendo uma pimentinha — disse Wally.
— O homem do queijo é um mentiroso descarado — anunciou Anja. Passando a mochila para Wally, Celestina relatou:
— Bonecas, lápis de cera e a escova de dentes dela. Para Anja, o motorista de táxi disse:
— Ora, ora, você é uma mocinha linda, sabia?
— Deus não quis que eu fosse uma cachorra — disse-lhe Anja.
— Como sabe?
— Ele não me fez peluda.
— Me dá uma beijoca, fofinha — pediu Celestina e a menina plantou um beijo molhado na sua bochecha. — Você vai sonhar com quê?
— Com você — disse Anja, que ocasionalmente tinha pesadelos.
— Que tipo de sonhos vão ser?
— Apenas sonhos bons.
— O que vai fazer se o bicho-papão aparecer no sonho?
— Você vai dar um chute no traseiro peludo dele! — disse Anja.
— Isso.
— É melhor você se apressar — aconselhou Wally, presenteando a outra bochecha de Celestina com um beijo mais seco.
A recepção era das seis às oito e meia. Ela chegaria a tempo apenas se os anjos da guarda deixassem todos os sinais abertos.
Enquanto conduzia o táxi para o tráfego, o motorista disse:
— O moço me disse que a senhora é a estrela da exposição desta noite. Celestina virou-se em seu banco para olhar para Wally e Anja, que estavam acenando.
— Acho que sou.
— Os pintores dizem "merda", como os atores de teatro?
— Não vejo por que não.
— Então merda para você.
— Obrigada.
O táxi dobrou a esquina. Wally e Anja sumiram de vista. Olhando novamente à frente, Celestina riu deliciada. Fitando-a pelo espelho retrovisor, o motorista comentou:
— A senhora está animada mesmo. É sua primeira grande exposição?
— Acho que sim, mas não foi por causa disso que ri. Estava lembrando de uma coisa que a minha filha disse.
Celestina sucumbiu a um acesso de riso. Antes de conseguir controlar-se, usou dois lenços de papel para assoar o nariz e enxugar lágrimas de riso dos olhos.
— Ela parece uma menina muito especial.
— É o que acho. Para mim, ela é maravilhosa. Vivo dizendo para minha filha que ela é o céu e as estrelas também. Devo estar mimando-a demais.
— Bobagem. O amor não estraga ninguém.
Deus, como ela amava sua fofinha, sua pequena M&M. Três anos tinham passado no que parecera um mês, e apesar de todo esforço e tensão, das horas exíguas de cada dia, de menos tempo para a sua arte do que ela teria preferido, e de pouco ou tempo nenhum para si mesma, Celestina não trocaria os problemas da maternidade por nenhuma riqueza no mundo... exceto para ter Fimie de volta. Anja era a lua, o sol, as estrelas e todos os cometas que riscavam as galáxias infinitas: uma luz eterna.
A ajuda de Wally, não apenas com o apartamento, mas com seu tempo e amor, tinham feito uma diferença incalculável.
Celestina freqüentemente pensava na esposa e nos gêmeos de Wally—Rowena, Danny e Harry —, morttnaquela queda de avião há seis anos, e às vezes sentia-se trespassada por um sentimento de perda tão profundo que eles quase pareciam ter sido membros de sua própria família. Lamentava tanto por eles terem perdido Wally quanto lamentava por ele tê-los perdido, e por mais blasfemo que fosse esse pensamento, perguntava-se por que Deus tinha sido tão cruel com uma família tão unida. Rowena, Danny e Harry haviam cruzado todas as águas do sofrimento e agora viviam eternamente no reino de Deus. Um dia iriam se reunir ao marido e pai especial que tinham perdido; mas até a recompensa do céu parecia uma compensação inadequada por lhes terem sido negados tantos anos aqui na Terra com um homem tão bom e gentil, de coração tão grande, quanto Walter Lipscomb.
Walter teria ajudado Celestina ainda mais, se ela tivesse permitido. Celestina continuou trabalhando à noite como garçonete durante dois anos, enquanto completava suas cadeiras no Academy of Art College. Só pediu demissão do emprego quando começou a vender suas pinturas por um preço que se igualava ao salário de garçonete mais gorjetas.
No começo, Helen Greenbaum, da Galeria Greenbaum, comprou três telas, e as vendeu em um mês. Em seguida comprou mais quatro, e então outras três, porque duas mal pararam na galeria. Depois que colocou dez peças de Celestina sob a guarda de colecionadores, Helen decidiu incluir Celestina numa exposição de seis talentos novos. E agora ela já tinha uma exposição exclusiva.
Em seu primeiro ano na faculdade, o sonho mais alto de Celestina era um dia ganhar a vida como ilustradora para revista ou na equipe de arte de uma agência de publicidade. Uma carreira nas belas-artes, evidentemente, era a fantasia de todo pintor, a liberdade absoluta para explorar seu talento; mas ela teria ficado grata com a realização de um sonho muito mais humilde. Agora tinha apenas 23 anos, e o mundo pendia diante dela como um pêssego maduro, e ela parecia capaz de esticar o braço o bastante para colhê-lo do galho.
Às vezes Celestina ficava impressionada ao pensar no quão íntima e inextricavelmente os ramos da tragédia e da alegria estavam entrelaçados na árvore da vida. A tristeza muitas vezes era a raiz de alegrias futuras, e a alegria poderia ser a semente de tristezas vindouras. Os padrões dessa trama de ramos eram tão complexos, tão cativantes em sua riqueza de detalhes, tão assustadores em sua inevitabilidade, que Celestina poderia encher inúmeras telas, durante muitas encarnações como uma artista, lutando para capturar a natureza enigmática da existência em toda sua escuridão e luz, e no fim apenas sugerir a mais pálida sombra de seu mistério.
E a ironia das ironias: com seu talento aprofundando-se a um nível que ela nunca esperara chegar, com colecionadores respondendo à sua visão a um ponto que ela jamais imaginara possível, com seus objetivos já excedidos, e divisando grandes vistas de possibilidades em seu futuro, ela abriria mão de tudo isso — com alguma tristeza, mas nenhum arrependimento — se tivesse de escolher entre sua arte e Anja, porque a menina revelara-se uma bênção maior. Fimie estava morta, mas seu espírito alimentava e regava a vida da irmã, gerando uma grande abundância.
— Chegamos — anunciou o motorista, parando à beira da calçada em frente à galeria.
As mãos de Celestina tremiam enquanto ela pegava em sua carteira o dinheiro para pagar a corrida e a gorjeta.
— Estou morrendo de medo. Talvez seja melhor você me levar de volta para casa.
Virando-se em seu assento, achando graça da forma como Celestina manipulava desajeitadamente o dinheiro, o motorista disse:
— Você não está com medo, não você. Enquanto estava sentada aí atrás, calada quase o tempo todo, você não estava pensando em ser famosa. Estava pensando na sua menininha.
— Estava, sim.
— Eu te conheço, garota. Você vai lidar bem com qualquer resultado. Se a exposição for um sucesso ou um fracasso, se você se tornar famosa ou apenas outra ninguém.
— Deve estar me confundindo com outra pessoa — disse ela, empurrando um bolo de notas na mão dele. — Sou uma geléia de salto alto.
O motorista balançou a cabeça.
— Eu soube de tudo que qualquer um precisaria saber sobre você quando perguntou à sua filha o que aconteceria se o bicho-papão aparecesse no sonho dela.
— Ela tem sonhado com isso, coitadinha.
— E mesmo nos sonhos dela você está determinada a estar lá, ao lado dela. Se aparecesse um bicho-papão, não tenho dúvida de que iria chutar o traseiro peludo dele, e ele não ia aparecer de novo, nunca mais. Então entre logo nessa galeria, impressione todos aqueles metidos, arranque o dinheiro deles e fique famosa.
Talvez porque fosse muito parecida com o pai, cheia de fé na humanidade, Celestina sempre ficava profundamente comovida com a gentileza de estranhos e via nela a forma de uma graça maior.
— A sua esposa sabe que mulher de sorte ela é?
— Se eu tivesse uma esposa, ela não ia se achar tão sortuda. Não sou do tipo que quer uma esposa, meu bem.
— Então há um homem em sua vida?
— O mesmo há dezoito anos.
— Dezoito anos. Então ele deve saber o quanto é sortudo.
— Lembro isso a ele pelo menos duas vezes por dia.
Ela saiu do táxi e ficou de pé na calçada, diante da galeria, as pernas trêmulas como as de um novilho recém-nascido.
O cartaz da exposição parecia grande, imenso, muito maior do que ela lem brava. Absurdamente grande. Seu tamanho instigava os críticos a serem cruéis, e desafiava o destino a celebrar o triunfo de Celestina reduzindo a cidade a ruínas neste momento, no terremoto do século. Desejou que Helen Greenbaum tivesse optado por algumas linhas datilografadas num cartão de arquivo preso com fita adesiva no vidro.
Ao ver sua fotografia, sentiu-se corar. Torceu para que nenhum dos pedestres passando entre ela e a galeria olhasse da foto para o seu rosto e a reconhecesse. Onde estava com a cabeça? A coroa da fama era pesada demais para ela. Era uma filha de pastor, lá de Spruce Hills, Oregon, e se sentia mais confortável com um boné de beisebol.
Duas de suas pinturas maiores e melhores estavam nas vitrines, iluminadas dramaticamente. Eram ofuscantes. Eram horrendas. Eram bonitas. Eram ridículas.
Esta exposição era desastrosa, estúpida, dolorosa, linda, maravilhosa, gloriosa, agradável.
A única coisa que tornaria a noite melhor seria a presença de seus pais. Eles tinham planejado pegar um avião para San Francisco esta manhã, mas no final da noite de ontem um membro da comunidade, muito amigo deles, tinha morrido. Um pastor e sua esposa às vezes tinham deveres para com seu rebanho que suplantavam todo o resto.
Ela leu em voz alta o nome da exposição: "Este Dia Marcante".
Respirou fundo. Levantou a cabeça, empertigou os ombros, entrou. Lá dentro, uma vida nova a aguardava.
CAIM JÚNIOR CAMINHAVA entre os filisteus, na terra cinzenta da conformidade, procurando por um — apenas um! — quadro revigorantemente repulsivo, mas encontrando apenas imagens agradáveis e até encantadoras. Sedento por arte verdadeira e pelo redemoinho emocional de desespero e desprazer por ela evocado, Júnior deparava-se apenas com retratos de esperança e felicidade, e se via cercado por pessoas que pareciam gostar de tudo, das pinturas, dos canapés e até do tempo frio da noite de janeiro, pessoas que provavelmente não dedicaram sequer um dia de suas vidas a pensar na inevitabilidade da aniquilação nuclear antes do final desta década, pessoas que sorriam demais para serem intelectuais genuínos. Júnior sentia-se mais sozinho e ameaçado do que Sansão cego e acorrentado em Gaza.
Inicialmente ele não pretendera entrar na galeria. Nenhum freqüentador de seus círculos habituais compareceria a esta exposição, a não ser num estado tão quimicamente alterado que não conseguisse recordar do evento na manhã seguinte. Portanto, Júnior não corria o menor risco de ser reconhecido ou recordado. Ainda assim, parecia-lhe insensato correr o risco de que o identificassem como uma das pessoas na exposição, caso o pequeno Bartholomew de Celestina White e talvez a própria artista fossem assassinados mais tarde. A polícia, em sua paranóia costumeira, poderia suspeitar de um elo entre este evento e os assassinatos, o que iria motivá-los a procurar e interrogar cada convidado.
Além disso, ele não estava na lista de clientes da Galeria Greenbaum e não tinha um convite.
Nas galerias de arte de vanguarda, a cujas recepções Júnior comparecia, ninguém entrava sem um convite impresso. E mesmo com o papel autêntico na mão, você ainda poderia ter a sua entrada recusada se não fosse julgado "maneiro". A exigência de maneirice também se aplicava nos clubes de dança mais badalados do momento e, na verdade, os leões-de-chácara que controlavam o ingresso às galerias de arte moderna mais refinadas eram os mesmos que trabalhavam nos clubes.
Júnior estivera caminhando ao longo das vitrines grandes, estudando as duas pinturas de White expostas aos convidados embasbacados com sua beleza, quando subitamente a porta se abrira e um funcionário da galeria o convidara a entrar. Não era preciso um convite impresso, não havia teste de maneirice, nem leões-de-chácara guardando a entrada. Tamanha acessibilidade servia como prova, se você precisasse, de que isto não era arte verdadeira.
Cautela descartada, Júnior havia entrado, pelo mesmo motivo que levaria um apreciador de óperas a comparecer a um concerto de música country uma vez por década: confirmar a superioridade de seu gosto e divertir-se com aquilo que se passava por música entre os ignorantes. Certas pessoas chamariam isso de entrar na favela.
Celestina White era o centro das atenções, sempre cercada por burgueses bebericando champanhe e entupindo-se com canapés, que estariam comprando pinturas em veludo se tivessem menos dinheiro.
Para ser justo, com sua beleza extraordinária, Celestina teria sido o centro das atenções mesmo num evento freqüentado por autênticos apreciadores de arte. Júnior tinha pouca chance de matar o bastardo de Serafina sem passar por esta mulher e matá-la também; mas se tivesse sorte e eliminasse Bartholomew sem que Celestina soubesse quem fizera isso, então talvez tivesse uma chance de descobrir se ela era tão lúbrica quanto fora sua irmã e se era a sua alma gêmea.
Após ter visto toda a exposição, conseguindo não expressar seu asco com caretas, tentou se misturar aos convidados a uma distância de Celestina White que lhe permitisse ouvir o que ela dizia.
Escutou-a explicar que o título da exposição fora inspirado por um dos sermões de seu pai, que fora transmitido num programa de rádio de âmbito nacional há mais de três anos. Apesar de não ser religioso, o programa tinha como tema o sentido da vida; ele costumava transmitir entrevistas com filósofos contemporâneos e também discursos deles, mas de vez em quando apresentava um clérigo. O sermão do pai de Celestina recebera uma reação dos ouvintes melhor que a de qualquer outra coisa apresentada no programa em vinte anos e, três semanas depois, foi reprisado por exigência popular.
Recordando como o título da exibição ressoara em sua mente na primeira vez em que vira o catálogo da galeria, Júnior sentiu agora que a gravação em fita desse sermão tinha sido a "música" excitante que acompanhara sua noite de paixão com Serafina. Não conseguia lembrar uma palavra sequer do sermão, quanto mais qualquer elemento que pudesse ter comovido profundamente uma platéia nacional de rádio, mas isso não significava que fosse raso ou incapaz de ser tocado por especulações filosóficas. Estivera tão distraído pela perfeição erótica do corpo jovem de Serafina, e tão ocupado metendo nela, que também não lembraria uma única palavra se o próprio Zedd estivesse sentado na cama, discursando sobre a condição humana com seu brilhantismo habitual.
Mas era bem provável que as palavras do reverendo White fossem tão besuntadas de sentimentalismo e otimismo irracional quanto as pinturas de sua filha; portanto, Júnior não sentiu a menor vontade de descobrir o nome do programa de rádio ou escrever para a emissora pedindo uma transcrição do sermão.
Ele estava prestes a sair em busca de canapés quando ouviu um dos convidados mencionar Bartholomew à filha do reverendo. Apenas o nome ressoou em seus ouvidos, não as palavras que o cercavam.
— Ah, sim, todo dia — respondeu Celestina White. — No momento estou envolvida numa série inteira de obras inspiradas por Bartholomew.
Decerto tratava-se de uma série de retratos sentimentais do bastardinho, com olhos impossivelmente grandes e límpidos, posando junto a cachorrinhos e gatinhos, retratos mais adequados a calendários baratos do que a paredes de galerias, e nocivos à saúde dos diabéticos.
Não obstante, Júnior ficou empolgado ao ouvir o nome Bartholomew, e sabendo que o menino de quem Celestina falava era o Bartholomew dos Bar-tholomews, a presença ameaçadora em seu sonho esquecido, a ameaça à sua fortuna e ao seu futuro que precisava ser eliminada.
Quando se aproximou mais, para ouvir melhor a conversa, percebeu que alguém o fitava. Levantou a cabeça para fitar olhos de carvão ardente, fixos como os de uma ave de rapina, dispostos no rosto fino de um homem de trinta e poucos anos, mais magro que um corvo faminto no inverno.
Quatro metros e meio os separavam, com convidados entre os dois. Ainda assim, a atenção desse estranho não poderia ser mais perturbadora a Júnior se os dois estivessem sozinhos naquela sala e a meio metro um do outro.
Mais alarmante ainda, ele subitamente compreendeu que aquele homem não lhe era desconhecido. O rosto parecia familiar, e ele sentia que o vira antes num contexto desagradável, embora a identidade do homem lhe escapasse.
Com um meneio nervoso de sua cabeça de ave e um olhar intrigado, o observador interrompeu o contato visual e desapareceu entre a turba, tão rápido quanto uma garça esguia voando através de uma revoada de gaivotas gordas.
No instante em que o homem dera-lhe as costas, Júnior vira um lampejo do que ele usava debaixo de um sobretudo mais apropriado ao inverno londrino. Entre as fraldas do sobretudo: camisa branca com colarinho em V, gravata preta, a sugestão de lapelas de seda preta, como as de um smoking.
Uma mão fantasmagórica tocou uma melodia num piano na mente de Júnior: "Someone to Watch Over Me". O observador com olhos de gavião era o pianista no saguão elegante do hotel onde Júnior jantara em sua primeira noite em San Francisco, e mais duas vezes depois.
Claramente, o músico reconhecera-o, o que parecia improvável, até extraordinário, considerando que jamais tinham falado um com o outro, e considerando que Júnior devia ser um dos milhares de clientes que tinham passado por aquele saguão nos últimos três anos.
Mais estranho ainda, o pianista estudara-o com um interesse agudo completamente inexplicável, considerando que os dois eram essencialmente estranhos. No instante em que fora flagrado fitando-o, ele parecera abalado, dando as costas rapidamente para Júnior, ansioso por evitar mais contato.
Júnior esperava não ser reconhecido por ninguém neste evento. Lamentou não ter seguido à risca o plano original, mantendo vigilância da galeria de seu carro estacionado.
O comportamento do músico requeria explicação. Depois de perambular pela multidão, Júnior localizou o homem diante de uma pintura tão egregiamente linda que qualquer apreciador de arte autêntica mal resistiria ao ímpeto de retalhar a tela em tiras.
— Gostei da sua música — disse Júnior.
Surpreso, o pianista virou-se para olhá-lo — e recuou um passo como se o seu espaço pessoal tivesse sido invadido.
— Ah, sim, obrigado. Muita gentileza sua. Eu amo meu trabalho. Na verdade ele é tão divertido que quase tenho vergonha de chamá-lo de trabalho. Toco piano desde os seis anos e nunca fui uma daquelas crianças que reclamam das aulas. Simplesmente não conseguia esperar a hora da próxima.
Ou esse tagarela era um bocó de tempo integral ou Júnior deixara-o desconcertado.
— O que está achando da exposição? — perguntou Júnior, dando um passo na direção do músico.
Esforçando-se para parecer casual, mas obviamente tenso, o homem com corpo de lápis recuou novamente.
— As pinturas são lindas, maravilhosas. Estou imensamente impressionado. Sou amigo da artista, sabe? Ela já foi minha inquilina. Ela morou num dos meus apartamentos quando estava no começo da faculdade, antes do bebê. Uma mocinha adorável. Sempre soube que ela ia ser um sucesso, isso era evidente até em seus primeiros trabalhos. Eu precisava comparecer esta noite e pedi a um amigo que cobrisse dois dos meus quatro números. Eu não podia perder isto.
Más notícias. Ser identificado por outro convidado punha Júnior em risco de mais tarde ser associado ao assassinato; ser reconhecido por um amigo pessoal de Celestina White era ainda pior. Agora era imperativo saber por que o pianista o estivera observando do outro lado da sala com tanta intensidade.
Mais uma vez aproximando-se de sua presa, Júnior comentou:
— Fiquei impressionado quando vi que você me reconheceu, mesmo não sendo um freqüentador assíduo do hotel.
O músico não tinha o melhor talento para a dissimulação. Seus olhos de garnisé bicaram a pintura mais próxima, os outros convidados, o assoalho, toda parte, menos diretamente Júnior, e um nervo se dilatou em sua face esquerda.
— Bem, sou muito bom fisionomista, você sabe, nunca esqueço de um rosto, não sei por quê. Deus sabe que no resto a minha memória é uma porcaria.
Estendendo a mão, observando o pianista de perto, Júnior disse:
— Meu nome é Richard Gammoner.
Os olhos do músico encontraram os de Júnior por um instante, arregalando-se de surpresa. Obviamente ele sabia que Gammoner era uma mentira. Ele devia estar ciente da identidade verdadeira de Júnior.
Júnior disse ao músico:
— Eu devia lembrar do seu nome do cartaz no saguão, mas sou tão ruim com nomes quanto você é com rostos.
Hesitante, o dedilhador de marfim apertou a mão de Júnior.
— Sou... bem... sou Ned Gnathic. Todo mundo me chama de Neddy. Neddy cumprimentava rápido, com dois apertos curtos, mas Júnior continuou
segurando a mão dele depois que o aperto de mão tinha acabado. Ele não esmagou os nós dos dedos do músico, nada tão violento, apenas continuou segurando sua mão com firmeza. Sua intenção era confundir e enervar ainda mais o homem, para tirar vantagem de seu desgosto óbvio por ter seu espaço pessoal invadido, na esperança de que Neddy revelasse por que estivera observando Júnior com tanta intensidade através da sala.
— Eu sempre quis aprender piano — alegou Júnior. — Mas acho que realmente é preciso começar cedo.
— Não, não, nunca é tarde demais.
Visivelmente abalado pela recusa de Júnior em terminar o cumprimento, Neddy não queria ser rude e puxar a mão, ou fazer uma cena, por menor que fosse, mas Júnior, sorrindo e fingindo ser socialmente inapto, não respondeu a um puxão educado. Assim, Neddy aguardou, permitindo que sua mão continuasse sendo apertada, e seu rosto, anteriormente branco como teclas de piano, ganhou um tom avermelhado que combinou com o cravo em sua lapela.
— Você dá aulas? — inquiriu Júnior.
— Eu? Não, na verdade, não.
— Dinheiro não é problema. Posso pagar o quanto quiser cobrar. E eu seria um estudante muito aplicado.
— Tenho certeza de que você seria, sim, mas acho que não teria paciência para ensinar. Sou um intérprete, não um instrutor. Mas posso lhe dar o nome de um bom professor.
Embora o rosto de Neddy estivesse avermelhado, Júnior ainda segurava sua mão, aproximando-se ainda mais dele, abaixando o rosto até quase encostar no do músico.
— Se recomendar um professor, terei certeza de estar em boas mãos, Neddy. Eu realmente gostaria que reconsiderasse...
Paciência esgotada, o pianista puxou a mão do aperto de Júnior. Ele olhou em torno, nervoso, certo de que deviam ser o centro das atenções. Mas, obviamente, os convidados estavam imersos em suas conversas burras, ou então babando as pinturas sentimentais; ninguém estava ciente deste pequeno drama.
Olhos esbugalhados, rosto vermelho, baixando a voz para quase um sussurro, Neddy disse:
— Sinto muito, mas você me entendeu mal. Não sou como Renee e você. Durante um momento a mente de Júnior não encontrou nenhum registro de
uma Renee. Relutante, escavou o passado e desenterrou a lembrança dolorosa: o travesti deslumbrante no vestido Chanel,jierdeiro ou herdeira de uma fortuna da indústria de válvulas.
— Não estou dizendo que haja qualquer coisa errada com isso, você entende? — sussurrou Neddy num tom levemente agressivo. — Mas não sou gay, e não estou interessado em ensinar piano a você nem a mais ninguém. Além disso, depois das histórias que Renee contou a seu respeito, não consigo imaginar por que imaginaria que qualquer amigo dele... dela, chegaria perto de você. Você precisa de ajuda. Renee é o que é, mas não é má pessoa. Ela é generosa e muito boa. Ela não merece ser espancada, abusada e... e todas as coisas horríveis que você fez. Com licença.
Num coleio de seu sobretudo londrino, Neddy deu as costas para Júnior e atravessou a multidão ruidosa.
Como se o rubor fosse transmitido por um vírus, Júnior pegou o tom avermelhado do pianista.
Como Renee Vivi morava no hotel, ela provavelmente considerava o saguão como seu campo de caça pessoal. Naturalmente, as pessoas que trabalhavam no saguão a conheciam, e eram amigas dela. Elas lembrariam de qualquer homem que tivesse acompanhado a herdeira até a sua cobertura.
Pior ainda, a piranha vingativa — melhor seria xingá-la de veado, mesmo — tinha inventado uma série de histórias maldosas sobre ele, que em noites de pouco movimento compartilhara com Neddy, com o barman, com qualquer um disposto a ouvir. Os funcionários do saguão acreditavam que Júnior era um sádico perigoso. Sem dúvida alguma, Renee inventara outras histórias lúridas, acusando-o de tudo, desde um interesse degenerado em excrementos até automutilação da genitália.
Mas que maravilha. Então Neddy, um amigo de Celestina, sabia que Júnior, conhecido como um sádico violento, comparecera a esta recepção sob um nome falso. Se Júnior realmente era um pervertido com gostos bizarros a ponto de ser desprezado até pela escória do mundo, então certamente também era capaz de matar.
Ao ouvir sobre a morte de Bartholomew — e/ou de Celestina —, Neddy telefonaria para a polícia e incriminaria Júnior em doze segundos. Talvez quatorze.
Júnior seguiu discretamente o músico através da sala da frente, mas num arco indireto, usando os burgueses balbuciantes como cobertura.
Neddy cooperou não se rebaixando a olhar para trás. Ele parou um rapaz que, a julgar pelo crachá em seu blazer, era um funcionário da galeria. Eles juntaram as cabeças para conversar, e então o músico atravessou uma passagem em arco até a segunda sala de exposição.
Curioso para saber o que Neddy dissera, Júnior abordou o mesmo funcionário.
— Desculpe, mas estou procurando um amigo meu há um tempão, e quando finalmente o vi, ele estava conversando com você. Era o sujeito usando um sobretudo por cima de um smoking. Agora eu o perdi de novo. Ele disse que estava indo embora? Quero pedir a ele uma carona até a minha casa.
O rapaz levantou a voz para ser ouvida acima do barulho gerado pelos convidados.
— Não, senhor. Ele só perguntou onde era o banheiro masculino.
— E onde é?
— No fundo da segunda galeria, à esquerda, tem um corredor. Os banheiros ficam no fundo, depois dos escritórios.
Quando Júnior passou pelos três escritórios e encontrou o banheiro masculino, Neddy ocupara-o. A porta estava fechada, o que devia significar que só tinha lugar para um usuário por vez.
Júnior se encostou na moldura da porta.
O corredor estava inserto. Então uma mulher saiu de um dos escritórios e caminhou até a galeria, sem olhar para ele.
A pistola de 9mm descansava no coldre de ombro, debaixo do casaco de couro de Júnior. Mas o silenciador não tinha sido anexado; estava num dos bolsos do casaco. O cano estendido, longo demais para ficar encostado em seu flanco sem incomodá-lo, provavelmente ficaria preso no coldre quando fosse puxado.
Ele não queria correr o risco de casar arma e silenciador aqui no corredor, onde podia ser visto. Além disso, a situação poderia ficar complicada se ficasse todo sujo com o sangue de Neddy. A conseqüência não apenas era repelente, como também altamente incriminadora. Pela mesma razão, ele não queria usar uma faca.
Lá dentro, um som de descarga.
Durante os últimos dois dias, Júnior comera apenas alimentos que prendiam o intestino, e no final desta tarde ele também tomara uma dose preventiva de elixir paregórico.
Através da porta chegou o som de água corrente caindo numa pia. Neddy lavando as mãos.
As dobradiças não ficavam no lado de fora. A porta abriria para dentro.
A água parou, Júnior ouviu o som mecânico de um dispensador de papel-toalha.
Ninguém no corredor.
Era vital aproveitar a oportunidade.
Júnior não estava mais encostado casualmente na moldura; estava com ambas as mãos espalmadas contra a porta.
Quando ouviu o clique da fechadura sendo destravada, arremeteu-se para o interior do banheiro masculino.
Num farfalhar de sobretudo, Neddy Gnathic cambaleou, desequilibrado e surpreso.
Antes que o pianista gritasse, Júnior empurrou-o entre a privada e a pia, jogan-do-o contra a parede com força suficiente para que ele perdesse a respiração e a água balançasse no interior do tanque de descarga.
Atrás deles, a porta ricocheteou de um calço com ponta de borracha e fechou com um baque.
Neddy possuía todo o talento musical, mas Júnior tinha os músculos. Espetado na parede, garganta comprimida pelas mãos de Júnior, Neddy precisava de um milagre se quisesse tocar outro glissando num teclado.
As mãos, brancas como pombas, voaram para cima, adejando como se tentassem escapar das mangas de seu sobretudo, como se ele fosse um mágico e não um músico.
Mantendo uma pressão de estrangulamento brutal, Júnior virou a cabeça para o lado, para proteger os olhos. Ele atingiu a virilha de Neddy com o joelho, de modo a esmagar a vontade de lutar que restava nele.
As mãos-pombas, moribundas, baixaram até os braços de Júnior, batendo-se débilmente contra seu casaco de couro, e finalmente caíram límpidas nas laterais do corpo de Neddy.
O olhar de pássaro do músico estava vítreo. Sua língua rosa estava caída da boca, como uma minhoca comida pela metade.
Júnior largou Neddy e, deixando-o escorregar pela parede até o piso, voltou até a porta para trancá-la. Ao esticar o braço até a maçaneta, repentinamente esperou que a porta se abrisse violentamente, revelando Thomas Vanadium, renascido dos mortos. O fantasma não apareceu, mas Júnior ficou abalado apenas em pensar num confronto sobrenatural durante uma crise como aquela.
Da porta até a pia, pescando nervosamente um frasco plástico de farmácia num dos bolsos do casaco, Júnior aconselhou-se a permanecer calmo. Respirações lentas e profundas. O que está feito, está feito. Viva no futuro. Aja, não reaja. Mantenha o foco. Olhe sempre o lado bom.
Ele ainda não tinha tomado um antiemético nem um anti-histamínico para evitar vômitos ou urticária, porque queria medicar-se contra essas condições o mais perto que fosse possível do ato de violência, de modo a assegurar proteção máxima. Seu plano inicial era medicar-se apenas depois de seguir Celestina da galeria até a sua casa, e ter certeza absoluta de que localizara o covil de Bartholomew.
Tremia tanto que não conseguiu remover a tampa da garrafa. Sentia orgulho de ser mais sensível que a maioria das pessoas, de ser tão cheio de sentimentos, mas às vezes a sensibilidade era uma praga.
Lá se foi a tampa. Cápsulas amarelas na garrafa, azuis também. Conseguiu fazer cair uma de cada cor na palma da mão esquerda sem esparramar o resto no chão.
O final de sua busca estava próximo, próximo demais, com o Bartholomew certo quase ao alcance de uma bala. Júnior estava furioso com Neddy Gnathic por possivelmente ter estragado tudo.
Fechou a garrafa, enfiou-a no bolso, e então chutou o morto, chutou de novo, cuspiu nele.
Respirações lentas e profundas. Foco.
Talvez o lado bom fosse que o músico não tinha molhado nem sujado as calças ao morrer. Às vezes, durante uma morte comparativamente mais lenta, como por estrangulamento, a vítima perdia o controle de todas as funções corporais. Júnior lera isso num romance, algum que comprara através do Clube do Livro, e portanto uma obra enriquecedora e confiável. Provavelmente não Eudora Welty, mas Norman Mailer. Em todo caso, o banheiro masculino não cheirava tão bem quanto uma floricultura, mas também não fedia.
Contudo, se esse era o lado bom, era uma merda de lado bom (sem trocadilhos), porque Júnior ainda estava encurralado neste banheiro masculino com um cadáver, e não podia permanecer aqui pelo resto de sua vida, sobrevivendo à base de água de bica e sanduíches de papel higiênico, mas não podia deixar o cadáver para ser encontrado, também, porque a polícia chegaria à galeria antes do final da recepção, e antes que ele tivesse uma chance de seguir Celestina até sua casa.
Outro pensamento: o jovem funcionário da galeria lembraria que Júnior perguntara por Neddy e o seguira até o banheiro dos homens. Daria uma descrição à polícia, e sendo um apreciador das artes, e portanto visualmente orientado, provavelmente daria uma descrição boa. Assim, o artista da polícia não ia desenhar uma visão cubista ao estilo de Picasso, ou uma pintura impressionista de cores borradas, mas um retrato cheio com detalhes vívidos e realistas, como uma pintura de Norman Rockwell, que garantiria a prisão de Júnior.
Olhando para o lado bom, Júnior deparara-se com um lado muito, muito ruim.
Quando sentiu o estômago embrulhar e o couro cabeludo pinicar, Júnior foi tomado por pânico, certo de que iria sofrer tanto um ataque de vômito quanto uma urticária severa, colocando tudo que comera para fora e se coçando ao mesmo tempo. Enfiou as cápsulas na boca, mas como não gerou saliva suficiente para engoli-las, abriu a bica, encheu as mãos em concha com água e bebeu, molhando a frente do casaco e do suéter.
Olhando para o espelho sobre a pia, não viu o reflexo do homem auto-aper-feiçoado e plenamente realizado que ele se esforçara tanto para se tornar, mas o menininho pálido, de olhos arregalados, que se escondera de sua mãe quando ela chegara ao extremo mais profundo e sombrio de uma de suas alterações de comportamento induzidas por cocaína e temperadas com anfetaminas, antes de ser removida da realidade fria para o aconchego do asilo. Como se um turbilhão de tempo o conduzisse de volta para o seu passado terrível, Júnior sentiu suas defesas, erguidas à custa de muito suor, serem derrubadas.
Como era injusto que tudo acabasse aqui, depois de tanto sofrimento: a busca pela agulha Bartholomew no palheiro, urticárias, ataques de vômito e diarréia, a perda de um dedo do pé, a perda de uma esposa amada, a peregrinação solitária por um mundo frio e hostil sem uma alma gêmea a seu lado, a humilhação nas mãos de um travesti, a assombração de espíritos vingativos, ser intenso demais para desfrutar dos benefícios da meditação, Zedd morto, a perspectiva da prisão sempre avultando por um motivo ou por outro, a incapacidade de encontrar a paz em seus bordados ou no sexo.
Júnior precisava de alguma coisa em sua vida, um elemento que faltava e sem o qual jamais seria completo, alguma coisa mais do que uma alma gêmea, mais do que alemão ou francês, ou caratê, e pensando melhor agora, percebeu que desde sempre procurava por essa substância misteriosa, esse objeto enigmático, essa habilidade, essa sei-lá-o-quê, essa força ou pessoa, essa idéia, mas o problema era que não sabia o que estava procurando e freqüentemente, quando achava tê-la encontrado, descobria que não a encontrara, e portanto preocupava-se se, caso encontrasse essa coisa um dia, iria jogá-la fora por não saber que ela era, de fato, a sei-lá-o-quê que ele procurava desde a infância.
Zedd aprova a autocomiseração, mas apenas se você aprender a usá-la como uma plataforma de lançamento para a raiva, porque a raiva — como o ódio — pode ser uma emoção saudável quando canalizada apropriadamente. A raiva pode motivar você a alturas de conquistas que de outras maneiras jamais alcançaria, mesmo a determinação simples e furiosa de provar que os filhos da puta que escarneciam de você estavam errados, de esfregar o seu sucesso na cara deles. A raiva e o ódio foram os motivadores de todos os grandes líderes políticos, como Hitler, Stalin e Mao, que talharam seus nomes indelevelmente no rosto da História, e que foram — cada um deles ao seu próprio modo — corroídos pela autocomiseração quando jovens.
Fitando o espelho, que poderia estar embaçado não apenas com vapor, mas também com autocomiseração, Caim Júnior procurou por sua raiva e a encontrou. Era uma raiva negra, amarga, tão venenosa quanto uma cascavel; com pouca dificuldade, seu coração estava destilando-a em ódio em sua forma mais pura.
Salvo do desespero por esta fúria empolgante, Júnior deu as costas para o espelho, mais uma vez olhando para o lado bom. Talvez ele fosse a janela do banheiro.
ENQUANTO OS WULFSTANS e seu convidado estavam sentados a uma mesa com janela, massas coleantes de névoa densa pairavam sobre a água negra, como se a baía houvesse acordado e, levantando-se de sua cama, tivesse empurrado montes de lençóis e cobertores.
Para o garçom, Nolly era Nolly, Kathleen era a sra. Wulfstan e Tom Vanadium era senhor — embora não o senhor superficialmente polido, mas um senhor com ênfase diferenciada. Tom não era conhecido do garçom, mas seu rosto estraçalhado concedia-lhe respeitabilidade; além disso, ele possuía uma qualidade, completamente distinta de comportamento ou porte, uma inefável alguma coisa, que inspirava respeito e até confiança.
Todos pediram martínis. Ninguém ali observava um juramento de sobriedade absoluta.
Tom chamou menos atenção no restaurante do que Kathleen esperara. Outros fregueses repararam nele, é claro, mas depois de um ou dois olhares de choque ou piedade eles pareceram indiferentes, ainda que sem dúvida estivessem fingindo a indiferença. A mesma qualidadje nele que evocava tratamento diferenciado da parte do garçom aparentemente garantia que os outros fossem corteses o bastante para respeitar sua privacidade.
— Andei pensando numa coisa — disse Nolly. — Se você não é mais agente da lei, em que condição está perseguindo Caim?
Tom Vanadium meramente arqueou uma sobrancelha, não precisando expressar mais do que isso para responder à pergunta.
— Acho que você não deveria agir como um vigilante — disse Nolly.
— E não vou. Vou ser apenas a consciência sem a qual Enoch Caim parece ter nascido.
— Está armado? — perguntou Nolly.
— Não vou mentir para você.
— Está. Legal? Tom não disse nada. Nolly suspirou.
— Bem, acho que se você fosse apenas meter uma azeitona nele, já podia ter feito isso desde que chegou à cidade.
— Eu não conseguiria simplesmente dar um teco em alguém, nem mesmo num balde de vermes como Caim, assim como não seria capaz de cometer suicídio. Não esqueça, eu acredito em conseqüências eternas.
Para Nolly, Kathleen disse:
— Foi por causa disso que casei com você. Para ouvir esse tipo de coisa.
— "Conseqüências eternas"?
— Não, "dar um teco".
O garçom movia-se com tanta suavidade que os três martínis sobre uma bandeja de mogno pareceram flutuar através da sala à sua frente, e então pairar ao lado da mesa enquanto ele servia primeiro coquetéis para a dama, em seguida para o convidado e por fim para o anfitrião.
Depois que o garçom saiu, Tom disse:
— Vocês não precisam ficar preocupados, que não vão ser cúmplices de um crime. Não hesitaria em apagar o Caim para proteger alguém, mas jamais agirei como juiz e júri.
Cutucando Nolly com o cotovelo, Kathleen comentou:
— "Apagar". Que maravilha. Nolly levantou sua taça.
— À justiça, seja ela bruta ou suave. Kathleen saboreou seu martíni.
— Hummmm... frio como o coração de um assassino, encorpado como sangue escorrendo de uma jugular!
Isto encorajou Tom a levantar as sobrancelhas.
— Ela lê muitas histórias de detetives — disse Nolly. — E ultimamente tem falado em escrever as suas próprias.
— Aposto que conseguiria escrever e aposto que arranjaria quem comprasse — disse ela. — Posso não ser tão boa com as palavras quanto sou com dentes, mas tenho certeza de que minhas histórias seriam melhores que algumas que já li.
— Suspeito que em qualquer trabalho ao qual se dedicar você vai ser tão boa quanto é como dentista.
— Não duvido nem um pouco — concordou Nolly.
— Tom, acho que sei porque você se tornou tira — disse Kathleen. — O Orfanato de Santo Anselmo... os assassinatos daquelas crianças.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Depois daquilo eu me tornei um São Tomé.
— Esse tipo de coisa faz a gente pensar: por que Deus permite que os inocentes sofram?
— Duvidei mais de mim mesmo do que de Deus, embora tenha duvidado Dele, também. Eu tinha o sangue daqueles meninos nas minhas mãos. Era meu dever protegê-los, e falhei.
— Você é jovem demais para ter administrado um orfanato naquela época.
— Eu tinha vinte e três anos. No Orfanato de Santo Anselmo, eu era o monitor de um pavimento do dormitório. O pavimento onde todos os assassinatos aconteceram. Depois disso... decidi que talvez eu conseguisse proteger melhor os inocentes se fosse tira. Durante algum tempo, a lei me deu mais no que me apoiar do que a fé.
— É fácil ver você como um tira — disse Kathleen. — Expressões como "apagar", "dar um teco" e "balde de vermes" deslizam fácil pela sua língua, por assim dizer. Mas é preciso fazer algum esforço para lembrar que você também é um padre.
— Fui um padre — corrigiu. — Posso voltar a ser. A meu pedido, estou sob dispensa dos votos e suspensão dos deveres há vinte e sete anos. Desde que aqueles meninos foram mortos.
— Mas por que você escolheu essa vida? — perguntou Kathleen. — Deve ter ingressado no seminário quando era jovem demais.
— Quatorze anos. Em geral a família está por trás de uma expressão do chamado a alguém tão jovem, mas em meu caso tive de convencer os meus pais.
Ele olhou para os fantasmas de névoa, multidões brancas que obscureciam inteiramente a baía, como se todos os marinheiros que tinham morrido no oceano houvessem se reunido aqui, e estivessem com os rostos premidos contra a janela, formas sem olhos que ainda assim viam tudo.
— Mesmo quando eu era criança, eu via o mundo de uma forma diferente que outras pessoas. Não estou dizendo que eu era mais inteligente. Talvez eu tivesse um Q.I. um pouquinho acima da média, mas nada de que pudesse me gabar. Fui reprovado em geografia duas vezes e em história, uma. Ninguém jamais me confundiria com o Einstein. Era apenas que eu sentia... tanta complexidade e mistério e mistério, que outras pessoas não apreciavam, tantas camadas de beleza, camadas sobre camadas, como massa de lasanha, cada nova camada mais surpreendente que a anterior. Não posso explicar isso a vocês sem parecer um idiota, mas mesmo sendo um menino, eu queria servir ao Deus que tinha criado tantas maravilhas, apesar do quanto Ele pudesse ser estranho e talvez até além de todo o entendimento.
Kathleen jamais ouvira um chamado religioso ser descrito com palavras tão estranhas como essas, e ficou realmente surpresa em ouvir um padre referir-se a Deus como "estranho".
Desviando a atenção da janela, Tom encontrou o olhar de Kathleen. Seus olhos cinzentos pareciam gélidos, como se os fantasmas de névoa tivessem atravessado o vidro da janela e o possuído. Mas então uma rajada de vento aumentou subitamente a chama da vela na mesa. A luz dourada derreteu o frio nos olhos de Tom, e ela voltou a ver a candura e a tristeza bonita que a impressionara antes.
— Sou um tipo menos filosófico que Kathleen — disse Nolly. — O que eu gostaria de saber é onde você aprendeu os truques com a moeda. Como é que você é padre, tira... e mágico amador?
— Bem, tinha um mágico...
Tom apontou para o martíni quase terminado que estava à sua frente na mesa. Equilibrada na borda do vidro — de forma impossível, precária: uma moeda.
— ... que se autodenominava Rei Obadias, Faraó do Fantástico. Ele viajava pelo país inteiro se apresentando em clubes noturnos...
Tom tirou a moeda de cima da taça, encerrou-a dentro de seu punho direito, e então imediatamente abriu sua mão, que agora estava vazia.
— ... e para onde quer que fosse, aproveitava os intervalos entre os seus espetáculos para fazer shows em hospitais, escolas de surdos...
Kathleen e Nolly voltaram sua atenção para a mão esquerda de Tom, que estava cerrada, embora a moeda não pudesse ter viajado de um punho para o outro.
— ... e sempre que o bom Faraó estava aqui em San Francisco, algumas vezes por ano, ele parava no Orfanato de Santo Anselmo para divertir os meninos...
Em vez de abrir o punho esquerdo, Tom levantou o martíni com o direito, e no pano da mesa, debaixo do vidro, estava a moeda.
— ... e um dia consegui convencê-lo a me ensinar alguns truques simples. Finalmente sua mão esquerda se abriu, palma para cima, revelando duas
moedas de dez e uma de cinco cents.
— Simples o cacete — disse Nolly. Tom sorriu.
— Pratiquei muito com o passar dos anos.
Ele fechou a mão por um instante em torno das três moedas, e então, com um meneio de seu pulso, jogou-as contra Nolly, que levantou a mão para se proteger. Mas ou as moedas nunca foram jogadas ou desapareceram no ar... e sua mão estava vazia.
Kathleen não notara Tom recolocar sua taça na mesa, sobre a moeda. Quando levantou a taça para tomar o resto de seu martíni, duas moedas de dez e uma de cinco reluziam sobre o pano da mesa, onde antes estivera a moeda de 25 cents.
Depois de fitar as moedas por um longo momento:
— Não lembro de nenhum escritor de romances de mistério que tenha feito uma série sobre um padre-detetive que também é um mágico.
Levantando seu martíni, gesticulando teatralmente para o pano da mesa onde a taça estivera, como se a ausência de moedas provasse que ele, também, tinha poderes de feitiçaria, Nolly disse:
— Mais uma rodada desta bebida mágica?
Todos concordaram, e o pedido foi feito quando o garçom trouxe os petiscos: patas de caranguejo para Nolly, camarões para Kathleen e lulas para Tom.
— Sabem de uma coisa? — disse Tom quando a segunda rodada de bebidas chegou. — Por incrível que pareça, alguns lugares nunca ouviram falar de martínis.
Nolly estremeceu.
— As florestas do Oregon. Não pretendo jamais ir até lá antes que o lugar seja civilizado.
— Não só o Oregon. Até alguns lugares de San Francisco.
— Deus nos proteja de vizinhanças impuras como essas — disse Nolly. Fizeram tintim com suas taças.
NECESSITADA DE ÓLEO, a maçaneta rangeu, mas as metades compridas da janela de caixilho se separaram e abriram para o beco lá fora.
Contatos de alarme brilhavam nas extremidades do batente, mas o sistema não estava ativado no momento.
O peitoril ficava a cerca de 1,40m acima do piso do lavatório. Apoiando-se em ambas as mãos, Júnior elevou-se até ele.
Como as folhas da janela aberta não encostavam completamente na parede externa, elas bloqueavam sua visão. Júnior precisou arremessar a si mesmo através da abertura, até ficar com o peito sobre a soleira, antes de poder ver a rua inteira, em cujo meio aproximado situava-se a galeria.
Uma neblina densa distorcia todo o sentido de tempo e espaço. Em cada extremidade do quarteirão, manchas de luz perolada marcavam cruzamentos com ruas principais, mas não chegavam a iluminar o local. Algumas lâmpadas de segurança — nuas debaixo de proteções em forma de pratos invertidos ou engaioladas em arame — indicavam as entradas de serviço de algumas lojas.
A névoa abafava os sons da cidade quase tanto quanto a obscurecia, e o beco estava surpreendentemente silencioso. Muitas das lojas estavam fechadas, e até onde Júnior podia discernir, não havia caminhões de entregas ou outros veículos estacionados ao longo da rua.
Completamente cônscio de que alguém com mais necessidade que paciência em breve poderia bater na porta trancada, Júnior caiu de volta para o banheiro masculino.
Neddy, vestido para o trabalho, mas bem arrumado demais para o próprio funeral, estava encostado contra a parede, cabeça baixa, queixo no peito. Suas mãos pálidas estavam espalmadas no chão, como se confundisse os ladrilhos do solo com teclas de piano.
Júnior arrastou o músico entre a privada e a pia.
— Seu veado esquelético e tagarela! — sibilou Júnior, ainda tão furioso com Neddy que sentia vontade de bater a cabeça do pianista na privada, embora estivesse morto.
Ou melhor ainda: mergulhar a cabeça dele dentro da privada e dar a descarga.
Para ser útil, a raiva precisa ser canalizada, conforme Zedd explica com uma prosa poética em A beleza da fúria: canalize a sua raiva e seja um vencedor. A situação presente de Júnior apenas iria piorar se ele tivesse de telefonar para o Roto-Rooter para extrair um músico do encanamento.
Ao pensar nisso, se pôs a rir. Infelizmente, sua risada saiu aguda e trêmula, e o deixou morrendo de medo.
Canalizando sua fúria bela, Júnior ergueu o cadáver para a soleira e o empurrou de cabeça para a frente, para o beco. A neblina o recebeu com um som que lembrou um monstro engolindo sua comida.
Ele seguiu o homem morto através da janela, para o beco, conseguindo não pisar nele.
Nenhuma voz inquisidora ecoou pelas paredes do beco, nenhum grito acusador. Estava sozinho com o cadáver nesse momento enevoado da noite metropolitana. Mas talvez não por muito tempo.
Outro cadáver teria exigido que Júnior o arrastasse; mas Neddy não devia pesar muito mais que uma bisnaga de pão de 1,67m. Júnior levantou o cadáver do chão e o jogou sobre um ombro, como faria um bombeiro.
Havia várias caçambas de lixo no beco, retângulos escuros menos vistos que sugeridos em meio à névoa coleante, como formas num sonho, ameaçadoras como capelas mortuárias, cada uma tão adequada a receber a carcaça de um músico como qualquer uma das outras.
Um problema preocupante: Neddy podia ser encontrado na lixeira antes que fosse rebocada para um depósito de lixo, local que seria mais vantajoso para servir como descanso temporário do músico. Se o seu cadáver fosse descoberto aqui, precisava ser longe de qualquer lixeira usada pela galeria. Quanto menores fossem as chances dos tiras associarem Neddy à fábrica de salsichas artísticas Greenbaum, menores as chances deles associarem o assassinato a Júnior.
Curvado como um macaco, Júnior carregou o músico para o norte através do beco. O pavimento original em paralelepípedos era coberto com asfalto, mas em certos locais o material moderno tinha rachado e puído, proporcionando uma superfície irregular que se tornava ainda mais traiçoeira graças a uma camada de umidade deitada pela neblina. Júnior tropeçou e escorregou várias vezes, mas usou sua raiva para manter o equilíbrio e ser um vencedor, até encontrar uma lixeira a uma distância razoável.
O contêiner — seu topo ao nível dos olhos e amassado, enferrujado e úmido com a condensação — era maior que a maioria dos outros no beco, mas com uma tampa bifurcada. Ambas as metades da tampa já estavam levantadas.
Sem cerimônia ou prece, embora com uma raiva fanática, Júnior ergueu o músico morto sobre a tampa da lixeira. Durante um momento terrível o braço esquerdo de Júnior se emaranhou no cinto frouxo do sobretudo do músico. Deixando escapar um gemido de ansiedade através dos dentes cerrados, Júnior se soltou e largou o cadáver.
O som produzido pelo corpo ao cair na lixeira indicou que havia um colchão de lixo sobre o fundo da lixeira, e também que ela estava cheia até não mais que a metade. Isso aumentava as chances de que Neddy não fosse descoberto até que um caminhão de lixo o derramasse num depósito — e mesmo então talvez olhos humanos não o notassem, apenas os dos ratos famintos.
Siga em frente, sempre em frente, como um trem desgovernado, deixando as freiras mortas — ou pelo menos um músico morto — para trás.
Até a janela do banheiro, para o interior do banheiro masculino. Ainda ardendo de raiva. Fechando furiosamente as persianas gêmeas enquanto preguiçosas línguas de névoa lambiam a brecha estreita.
Para o caso de alguém estar esperando no corredor, ele deu a descarga para criar autencidade, embora os alimentos que comera para prender o intestino e o elixir paregórico ainda lhe mantivessem as entranhas resistentes como as de qualquer soldado corajoso em batalha.
Quando ousou olhar-se no espelho sobre a pia, esperou ver um rosto exausto e olhos fundos, mas a experiência sinistra não deixou nenhuma marca visível. Rapidamente penteou os cabelos. Na verdade parecia tão bem que as mulheres não deixariam de lançar-lhe, como sempre, olhares sequiosos quando caminhasse novamente pela galeria.
Examinou as roupas o melhor que pôde. Estavam menos amassadas do que esperara, e não apresentavam nenhuma mancha notável.
Lavou vigorosamente as mãos.
Tomou mais remédios, apenas para sentir-se seguro. Uma cápsula amarela, uma azul.
Um exame rápido do assoalho do lavabo. O músico não deixara nada para trás, nem um botão caído nem pétalas de seu cravo.
Júnior destrancou a porta e encontrou o corredor deserto.
A recepção ainda retumbava nos salões de exposição da galeria. Legiões de incultos, dotados de gosto duvidoso sob qualquer aspecto menos em sua apreciação de canapés, matraqueavam sobre arte e engoliam as opiniões ridículas uns dos outros com o auxílio de champanhe medíocre.
De saco cheio destas pessoas e desta exposição, Júnior quase desejou sofrer um ataque de vômito. Mesmo em seu sofrimento, adoraria borrifar com o resíduo de suas entranhas essas telas insistentemente belas: crítica da mais pungente natureza.
Na sala principal, enquanto caminhava até a porta da frente, Júnior viu Celestina White cercada por ovelhas adoradoras, imbecis tagarelas, retardados balbuciantes, boçais, débeis mentais. Ainda era tão linda quanto suas pinturas desavergonhadamente belas. Se a oportunidade se apresentasse, Júnior teria mais uso para ela do que para a sua assim chamada arte.
As ruas na frente da galeria estavam tão inundadas por um mar de neblina quanto o beco no fundo. Os faróis dos carros em trânsito varavam a escuridão como fachos de submersíveis de salvamento operando nas profundezas do mar.
Ele tinha subornado um manobreiro para cuidar de sua Mercedes estacionada diante de um restaurante próximo, para que ela estivesse disponível instantaneamente quando fosse necessário. Ele também podia largar o carro e seguir Celestina a pé, se escolhesse caminhar daqui.
Determinado a manter a fachada da galeria sob vigilância por trás do volante de sua Mercedes, Júnior checou as horas enquanto caminhava até o carro. Seu pulso estava nu, seu Rolex desaparecera.
Ele parou perto do carro, transfixado pela percepção da chegada do apocalipse.
A pulseira de ouro feita sob medida se mantinha segura no pulso por um fecho que, quando aberto, permitia ao relógio escorregar com facilidade. Júnior compreendeu instantaneamente que o fecho abrira quando seu braço se emaranhara com o sobretudo de Neddy. O cadáver caíra na lixeira, levando o relógio de Júnior junto.
Embora o Rolex fosse caro, Júnior não estava preocupado com a perda monetária. Ele podia comprar uma pilha de Rolex, e usá-los todos ao mesmo tempo, do pulso até o ombro.
A possibilidade de que tivesse deixado uma digital no cristal do relógio devia ser remota. E a pulseira era porosa demais para que tivesse deixado uma impressão útil para a polícia.
Contudo, nas costas do estojo do relógio estavam as palavras incriminadoras de uma gravação comemorativa: Para Eenie/Atnor/Tammy Bean.
Tammy — a analista de ações, corretora e fetichista de felinos e comida para gatos —, com quem ele saíra do Natal de 1965 até fevereiro de 1966, dera-lhe o relógio em agradecimento a todas as comissões e orgasmos que ele lhe proporcionara.
Júnior ficou chocado ao ver a piranha de volta à sua vida, para arruiná-lo, quase dois anos depois. Zedd ensina que o presente é apenas um instante entre passado e futuro, o que realmente nos deixa com apenas duas escolhas: viver no passado ou no futuro; o passado, estando morto e enterrado, não gerava nenhuma conseqüência, a não ser que insistíssemos em conceder-lhe poder demais não vivendo inteiramente no futuro. Júnior sempre se esforçava para viver no futuro, e acreditava ser bem-sucedido nesta luta, mas obviamente não tinha aprendido ainda a aplicar a sabedoria de Zedd ao máximo do efeito, porque o passado continuava a alcançá-lo. Desejou fervorosamente que em vez de ter rompido com Tammy, a tivesse estrangulado, levado seu cadáver até o Oregon e o jogado de uma torre de incêndio e o golpeado com um candelabro de estanho e o mergulhado no fundo do Lago da Pedreira com o Rolex enfiado na boca.
Ele podia não ter dominado completamente a coisa de viver no futuro, mas era absolutamente magnífico com a raiva.
Talvez o relógio não fosse descoberto com o cadáver. Talvez fosse soterrado pelos refugos e não fosse encontrado até daqui a dois mil anos, quando arqueólogos do futuro escavassem aquele depósito de lixo.
"Talvezes" são para crianças, ensinou-nos Zedd em Aja agora, pense depois: aprendendo a confiar em seus instintos.
Podia dar um tiro em Tammy Bean depois de matar Bartholomew, eliminá-la antes do alvorecer, antes da polícia encontrá-la, para que ela não pudesse identificar "Eenie". Ou podia retornar para o beco, escalar a lixeira e resgatar o Rolex.
Como se a névoa fosse um gás paralisante, Júnior ficou parado no meio da calçada. Ele realmente não queria escalar aquela lixeira.
Sendo impiedosamente honesto consigo mesmo, como sempre, admitiu que matar Tammy não resolveria seu problema. Ela podia ter contado a amigos e colegas, assim como certamente contara às amigas os detalhes mais apetitosos sobre a perícia incomparável de Júnior no amor. Durante os dois meses que ele e aquela mulher-gato tinham saído, outros ouviram-na chamá-lo de Eenie. Júnior não podia matar Tammy e todas as suas amigas e colegas, pelo menos não rápido o bastante para obstruir o trabalho da polícia.
Um estojo de emergências na mala de seu carro continha uma lanterna. Ele a pegou e deu o suborno ao guardador.
De volta ao beco. Desta vez não através da galeria apinhada de gente. Ao redor do quarteirão a passos lépidos.
Se não encontrasse o Rolex e voltasse para o carro antes do final da recepção, estragaria sua melhor chance de seguir Celestina até Bartholomew.
Ao longe, o repicar do sino de um bonde. Alto e claro, apesar da neblina aba-fadora.
Júnior lembrou de uma cena num filme antigo que Naômi quisera assistir, uma história de amor ambientada durante a Peste Negra: uma carroça puxada a cavalos percorrendo as ruas medievais de Londres ou Paris, o condutor tocando um sino de mão e gritando: "Tragam os seus mortos, tragam os seus mortos!" Se a San Francisco contemporânea oferecesse um serviço tão conveniente quanto esse, ele não precisaria ter jogado Neddy Gnathic na lixeira.
Paralelepípedos molhados e asfalto rachado. Depressa, depressa. Passando diante da janela do banheiro masculino da galeria.
Havia tantas lixeiras que Júnior temia não identificar a certa. Ainda assim ele não ligou a lanterna, suspeitando que seria capaz de encontrar melhor seu caminho se as condições de escuridão e neblina fossem exatamente as que houvera antes. Essa logo se provou uma decisão acertada; ele reconheceu instantaneamente a lixeira enorme ao vê-la.
Depois de enfiar a lanterna debaixo de seu cinto, segurou a tampa da lixeira com ambas as mãos. O metal estava sujo, frio e úmido.
Um bom carpinteiro pode manejar um martelo com a mesma economia de movimentos e precisão elegante de um maestro conduzindo uma orquestra com uma batuta. Um policial dirigindo o tráfego pode desempenhar sua função com a graça de um bailarino. Contudo, dentre todas as tarefas humildes que homens e mulheres podem transformar em poesia visual mediante a aplicação de agilidade atlética e graça, escalar uma lixeira fica em último lugar.
Júnior subiu na tampa, curvou-se sobre a abertura e pulou na lixeira profunda, com toda a intenção de pousar em pé. Mas ele bateu o ombro contra a parede do fundo do contêiner, caiu de joelhos e bateu de cara no lixo.
Tendo usado seu corpo como um badalo no sino da lixeira, Júnior emitiu uma nota alta e reverberante. O som pareceu provir de um sino de catedral mal forjado, ecoando solenemente nas paredes dos edifícios circundantes, para a frente e para trás pela noite enevoada.
Permaneceu parado, aguardando que o silêncio voltasse, para poder ouvir se o plém alto atraíra pessoas ao beco.
A falta de odores ofensivos indicava que ele não tinha aterrissado num contêiner cheio de lixo orgânico. Em meio à escuridão, julgando apenas pelo tato, decidiu que quase tudo ali estava em sacos de lixo plástico, cujo conteúdo era relativamente macio — provavelmente refugos de papel.
Contudo, seu lado direito descansava contra um objeto mais duro que papel ensacado, uma massa angulosa. Ao passo que o plém de furar os tímpanos diminuiu, permitindo-lhe pensar mais claramente, Júnior percebeu que alguma coisa desagradável, úmida e vagamente quente estava premida contra a sua face direita.
Se a massa angular era Neddy, a alguma coisa úmida e vagamente quente devia ser a língua estendida do homem estrangulado, pendendo para fora de sua boca.
Com um gemido de nojo, Júnior afastou-se da coisa, fosse o que fosse, retirou a lanterna do cinto e prestou atenção aos sons da noite, em busca de ruídos no beco. Nada de vozes. Nada de passos. Apenas ruídos de tráfego distantes, abafados como gemidos e rosnados de animais foragidos, predadores perambulando ocultos pela névoa urbana.
Afinal ele ligou a lâmpada, e iluminou Neddy. Relaxado e silencioso na morte como nunca estivera em vida, estava deitado de costas, cabeça caída para a direita, língua inchada e estendida obscenamente.
Júnior esfregou vigorosamente com a mão sua bochecha lambida por cadáver. Em seguida esfregou a mão contra o casaco do músico.
Ele estava contente por ter tomado a dose dupla de antieméticos. Apesar da provocação, seu estômago parecia tão sólido e seguro quanto um cofre de banco.
O rosto de Neddy não parecia tão pálido quanto antes. Um semitom cinza, talvez azul, escurecia-lhe a pele.
O Rolex. Como a maior parte dos refugos na lixeira enorme estavam ensacados, encontrar o relógio seria mais fácil do que Júnior previra.
Então tudo bem.
Tudo certo.
Precisava manter-se em movimento, conduzir a busca, encontrar o relógio e dar o fora dali, mas não conseguia parar de fitar o músico. Alguma coisa no cadáver deixava-o nervoso — fora o fato de que estava morto e nojento, e que ser pego com ele significaria uma passagem de ida para a câmara de gás.
Este não era o primeiro encontro de Júnior com um corpo morto. Durante os últimos anos, aprendera a se sentir tão confortável na companhia dos falecidos quanto um papa-defuntos. Os mortos eram tão normais para ele quanto cavacas para um padeiro.
Ainda assim, seu coração batia forte contra as costelas que o prendiam, e o medo arrepiava os pêlos de seu pescoço.
Sua atenção, tão mórbida quanto um abutre voando em círculos, repousava na mão direita do pianista. A esquerda estava aberta, palma para baixo. Mas a direita estava cerrada, palma para cima.
Estendeu o braço até a mão fechada do morto, mas não conseguiu encontrar coragem para tocá-la. Temia que se abrisse os dedos rígidos do cadáver encontraria uma moeda de 25 cents por baixo.
Ridículo. Impossível.
Mas, e se isso acontecesse?
Então não olhe.
Foco. Foque no Rolex.
Em vez disso, focou na mão iluminada pela lanterna: quatro dedos longos e finos, brancos como giz, curvados na direção do calcanhar; dedão voltado para cima, como se Neddy esperasse conseguir uma carona para fora da lixeira, para fora da morte, e de volta ao seu piano no saguão de coquetéis do Nob Hill.
Foco. Não podia permitir que o medo deslocasse a sua raiva.
Lembre a beleza da ira. Canalize a raiva e seja um vencedor. Aja agora, pense depois. Num movimento de ação repentino e desesperado, Júnior segurou a mão fechada do cadáver, abriu a armadilha de dedos e palma... e não achou a moeda de 25 cents. E nem duas de dez e uma de cinco. Ou cinco de cinco. Nada. Zero.
Quase riu sozinho, mas lembrou da gargalhada desconcertante que há pouco escapara dele no banheiro dos homens, quando pensara em enfiar Neddy Gnathic na privada. Agora ele mordeu a própria língua com força suficiente para tirar sangue, esperando com isso impedir que aquele som agudo e trêmulo fugisse dele novamente.
O Rolex.
Primeiro, ele vasculhou o local ao redor do morto, acreditando que o relógio talvez ainda estivesse preso ao cinto do sobretudo ou a uma das fivelas das mangas. Não teve sorte.
Ele fez Neddy rolar para um lado, mas não encontrando nenhum relógio de ouro embaixo dele, deixou o músico deitar de costas novamente. Agora aqui estava uma coisa, pior que o pensamento de uma moeda na mão fechada: os olhos de Neddy pareciam seguir Júnior enquanto ele escavava entre os sacos de lixo.
Sabia que o único movimento naqueles olhos fixos e cegos eram o reflexo inquieto do facho da lanterna com o qual ele estava sondando o lixo. Sabia que estava sendo irracional, mas mesmo assim relutava em dar as costas para o cadáver. Repetidamente, no meio da busca, ele levantou a cabeça, voltando sua atenção para Neddy, certo de que, com o canto do olho, tinha visto o olhar morto segui-lo.
Então ele pensou ouvir passos aproximando-se no beco.
Desligou a luz e se manteve acocorado e imóvel em meio ao escuro absoluto, encostado contra uma parede da lixeira para se equilibrar, porque seus pés estavam plantados sobre camadas escorregadias de sacos plásticos de lixo umedeci-dos pela névoa.
Se realmente tinham havido passos, eles silenciaram no momento em que Júnior concentrou-se para ouvi-los. Mesmo sobre o tamborilar forte de seu coração, ele teria ouvido ruídos. A neblina parecia abafar os sons no beco com mais eficácia que nunca.
Quanto mais ele ficava agachado ali, cabeça pendida para o lado, respirando silenciosamente pela boca aberta, mais convencido ficava de que ouvira um homem aproximar-se. De fato, crescia dentro de si a convicção terrível de que alguém estava parado em pé imediatamente à frente da lixeira, cabeça inclinada para o lado, também respirando pela boca aberta, procurando ouvir Júnior assim como Júnior procurava ouvi-lo.
E se...
Não. Ele não iria afundar num pânico induzido por conjecturas. Sim, mas e se...
"Talvezes" são para crianças, mas Caesar Zedd não conseguira prover uma profundidade com a qual Júnior pudesse rechaçar os "e ses" com a mesma facilidade que os "talvezes".
E se o espírito teimoso, egoísta, violento, psicótico e maligno de Thomas Vanadium, que já o perseguira através de outro beco em plena luz do dia, tinha-o seguido a este, nesta hora da noite mais apropriada a fantasmas, e se tivesse fechado a tampa bifurcada e passado uma trava através dos ferrolhos, e se Júnior estivesse encerrado aqui com o cadáver completamente estrangulado de Neddy Gnathic, e se a lanterna falhasse quando tentasse ligá-la de novo, e se então, em meio ao breu absoluto, ouvisse Neddy dizer: "Alguém tem um pedido especial?"
PARA OS MARINHEIROS, céu vermelho pela manhã é motivo de medo, céu vermelho à noite é motivo de festa.
Neste crepúsculo de janeiro, enquanto Maria Elena Gonzalez conduzia o carro ao longo da costa, de Newport Beach para o sul, todos os homens do mar pegavam garrafas de rum para celebrar o céu com cor de salada de frutas: cerejas maduras a oeste, laranjas no alto, uvas rosadas no leste.
Esta visão que inspirava celebração entre os marujos era negada a Barty, que estava no banco traseiro com Agnes. Não podia ver o céu vermelho admirando seu rosto no espelho do oceano, ou as ondas pintadas com tinta vermelha, ou o véu da noite devolvendo lentamente modéstia aos céus.
Agnes pensou em descrever o pôr-do-sol ao menino cego, mas não teve coragem, e quando as estrelas saíram, não disse uma palavra sobre o esplendoroso ato final do dia. Por um lado, temia que sua descrição não fizesse jus à realidade e que, com suas palavras inaptas, anuviasse as lembranças preciosas de Barty dos crepúsculos que ele vira. Mas o motivo principal de sua relutância em comentar o espetáculo era o temor de lembrá-lo de tudo que ele perdera.
Esses últimos dez dias tinham sido os mais difíceis da vida de Agnes, mais difíceis até que aqueles que tinham seguido a morte de Joey. Naquela época, embora tivesse perdido de uma só vez um marido, um amante gentil e seu melhor amigo, Agnes retinha sua fé inabalável, bem como seu filho recém-nascido e toda a promessa de seu futuro. Ela ainda tinha seu menino precioso, mas o futuro dele estava maculado. Ela também ainda tinha a sua fé, porém reduzida e oferecendo menos consolo que antes.
A alta de Barty tinha sido retardada por uma infecção, e depois ele passara três dias num hospital de reabilitação na área de Newport. A reabilitação consistira principalmente de orientação ao seu novo mundo escuro, porque sua função perdida não podia ser recuperada por exercícios diligentes ou terapia.
Em geral, uma criança de três anos era jovem demais para aprender a usar uma bengala de cego, mas Barty não era uma criança comum. Como não havia bengala disponível para uma criança tão pequena, Barty começou a treinar com um cabo de vassoura serrado para 66 centímetros. No seu último dia na reabilitação, deram-lhe uma bengala feita sob medida, branca com ponta preta. Ver a bengala e tudo que ela implicava arrancou lágrimas de Agnes, quando já achava que seu coração estava suficientemente enrijecido para as obrigações que a aguardavam.
Aulas de Braille não eram recomendadas para crianças de três anos, mas uma exceção foi aberta em seu caso. Agnes providenciou para que Barty recebesse uma série de lições, embora suspeitasse que ele absorveria o sistema e aprenderia a usá-lo em uma ou duas sessões.
Olhos artificiais eram feitos sob encomenda. Em breve o menino teria de voltar a Newport para um terceiro ajustamento antes do implante. Não eram de vidro, como as pessoas achavam, mas conchas de plástico finas que se encaixavam perfeitamente atrás das pálpebras nas cavidades depois da cirurgia. Na superfície interior da córnea transparente artificial, a íris artificial era pintada a mão cuidadosamente, e o movimento da prótese ocular seria obtido mediante a ligação dos músculos que moviam os olhos à conjuntiva.
Por mais impressionada que tivesse ficado ao ver as amostras de olhos artificiais, Agnes não se permitia nutrir esperanças de que a beleza singular dos olhos de esmeraldas e safiras de Barty pudesse ser replicada. Por mais detalhado que pudesse ser a obra do artista, essas íris seriam pintadas por mãos humanas, não pelas mãos de Deus.
Com suas cavidades oculares fechadas por pálpebras não sustentadas, Barty voltava para casa com os olhos tampados por gaze e cobertos por óculos de sol, sua bengala encostada contra o banco a seu lado, como se estivesse fantasiado para um papel numa peça repleta de sofrimentos infantis que fariam inveja a Charles Dickens.
No dia anterior, Esaú e Jacó tinham voltado de carro até Bright Beach, para preparar a chegada de Barty. Agora eles desciam correndo os degraus da varanda dos fundos e através do gramado, enquanto Maria percorria o caminho diante da casa e estacionava perto da garagem separada no fundo da propriedade ampla.
Jacó pretendia carregar a bagagem e Esaú anunciou que iria carregar Barty. Mas o menino insistiu em caminhar até a casa.
— Mas Barty, está escuro — disse Esaú, preocupado.
— Claro que está — retrucou Barry. Quando apenas um silêncio mortificado seguiu seu comentário, ele acrescentou: — Puxa, achei que era uma piada engraçada.
Com sua mãe, seus tios, e Maria pairando a dois passos atrás dele, Barty seguiu o caminho, sem se preocupar com a bengala, mantendo o pé direito no concreto, o pé esquerdo no gramado, até chegar a uma reentrância no pavimento, que aparentemente estivera procurando. Ele parou virado para o norte, pensou por um momento, e então apontou para oeste:
— O carvalho fica ali.
— Está certo — confirmou Agnes.
Com a grande árvore situada noventa graus à sua esquerda, foi capaz de localizar os degraus da varanda dos fundos a 45 graus. Apontou-a com a bengala, que não estava usando para mais nada.
— A varanda?
— Perfeito — encorajou Agnes.
Jamais hesitante ou imprudente, o menino atravessou o gramado na direção dos degraus da varanda. Manteve uma linha mais reta do que Agnes teria sido capaz de delinear com os olhos fechados.
Ao lado dela, Jacó perguntou:
— O que devemos fazer?
— Apenas deixar que ele seja quem ele é — aconselhou Agnes. — Apenas deixar que ele seja Barty.
Lá adiante, debaixo dos galhos negros estendidos da árvore imensa, recebendo comunicados de encorajamento nos murmúrios contínuos em linguagem verde das folhas sopradas pela brisa, Barty era Barty, determinado e resoluto.
Quando julgou que estava perto dos degraus da varanda, sondou com sua bengala. Dois passos depois, a ponta roçou no degrau inferior.
Ele sentiu a balaustrada. Agarrou o ar vazio por um único instante. Encontrou o corrimão. Subiu até a varanda.
A porta da cozinha estava aberta e cheia de luz, mas ele a errou por sessenta centímetros. Ele tateou pela parede dos fundos da casa, descobriu a moldura da porta e então a abertura, usou a bengala para sondar onde estava a soleira, e entrou na casa.
Virando-se para ficar de frente para as pessoas que o seguiam, todas ombro a ombro e com os pescoços duros de tensão, Barty disse:
— O que tem pro jantar?
Jacó passara quase dois dias inteiros assando as tortas, bolos e biscoitos que Barty mais gostava, e preparara também uma bela refeição. Como as filhas de Maria estavam esta noite na casa de sua irmã, ela ficou para o jantar. Esaú serviu vinho para todos, menos para Barty, refrigerante sabor gengibirra para o convidado de honra, e embora isto não pudesse ser chamado de celebração, o ânimo de Agnes foi levantado por uma sensação de normalidade, esperança, família.
Depois que o jantar tinha terminado, a limpeza dos pratos acabado, e Maria e os tios saído, Agnes e Barty enfrentaram a escada juntos. Ela o seguiu, segurando a bengala dele — que ele disse preferir não usar dentro da casa —, preparada para segurá-lo caso ele tropeçasse.
Uma das mãos na balaustrada, galgou lentamente os primeiros três degraus. Parando em cada um deles, deslizou o pé para a frente e para trás sobre o tapete para julgar a profundidade do passo relativa ao seu pé pequeno. Antes de cada passo, correu o dedo do pé direito para cima e para baixo pelo degrau, avaliando a altura.
Barty lidou com a subida da escada como um problema de matemática, calculando o movimento preciso de cada perna e o posicionamento de cada pé de modo a sobrepujar com sucesso o obstáculo. Procedeu menos lentamente nos três degraus seguintes do que nos primeiros três, e depois ascendeu com confiança crescente, movimentando as pernas com precisão mecânica.
Agnes quase podia visualizar o modelo geométrico tridimensional que seu pequeno prodígio criara na mente, no qual agora confiava para alcançar o assoalho superior sem tropeçar. Orgulho, fascínio e tristeza empurravam seu coração em direções diferentes.
Refletindo sobre como seu filho se adaptava ao escuro de forma inteligente e dedicada, e sem reclamar, ela se arrependeu de não ter descrito o pôr-do-sol deslumbrante sob o qual tinham feito sua jornada para casa. Ainda que as palavras de sua mãe soassem inadequadas ao espetáculo, ele as teria elaborado de modo a criar um quadro mental; com sua perícia criativa, o mundo que ele perdera com sua visão poderia ser perfeito em igual esplendor na imaginação.
Agnes torceu para que o menino passasse uma noite ou duas no quarto dela, até que ele fosse reorientado para a casa. Mas Barty queria dormir em sua própria cama.
Temia que ele precisasse ir ao banheiro durante a noite e que, sonolento, tomasse a direção errada, na direção das escadas, e caísse. Por três vezes eles percorreram a rota do quarto do menino até o banheiro do corredor. Ela teria caminhado uma centena de vezes e ainda assim não se sentira satisfeita, mas Barty disse:
— Tudo bem, eu já sei ir.
Durante a hospitalização de Barty, o menino tinha se passado dos romances para adolescentes de Robert Heinlein para alguns dos livros de ficção científica do mesmo autor, voltados para leitores de todas as idades. Agora, paramentado com seu pijama e deitado na cama, com os óculos de sol na mesinha-de-cabeceira, mas com as gazes ainda sobre os olhos, Barty ouvia, extasiado, ao começo de Estrela dupla.
Não mais capaz de julgar o nível de sonolência do menino por seus olhos, ela dependia de que ele lhe dissesse quando parar de ler. Ao seu pedido, ela fechou o livro depois de 47 páginas, no final do Capítulo 2.
Agnes curvou-se sobre Barty e lhe deu um beijo de boa-noite.
— Mãe, se eu pedir uma coisa, você faz?
— Claro, meu bem. Não faço sempre?
Ele empurrou os lençóis e se sentou na cama, encostado contra os travesseiros e a cabeceira.
— Talvez seja difícil pra você fazer isso, mamãe, mas é realmente importante. Sentada na borda da cama, segurando a mão de Barty, ela fitou o arco delicado da boca do menino, quando antes teria fitado seus olhos.
— Diga o que é.
— Não fique triste. Tá?
Agnes acreditara que durante todo este tormento ela havia conseguido poupar o filho de perceber o quanto sua dor era profunda. Contudo, nesta, como em tantas outras circunstâncias, o menino provou ser mais perceptivo e mais maduro do que imaginava. Agora ela compreendeu que tinha falhado, e esse fracasso doeu como um ferimento.
— Você é a Moça das Tortas — disse ele.
— Já fui.
— Vai ser. E a Moça das Tortas... Nunca fica triste.
— Às vezes até a Moça das Tortas fica triste.
— Você sempre faz as pessoas se sentirem bem, como Papai Noel.
Ela apertou gentilmente a mão do menino, mas não conseguiu dizer nada.
— Estava lá até enquanto você lia para mim. O sentimento de tristeza, quero dizer. Ele muda a história, faz com que ela não fique tão boa, porque não posso fingir que não escuto o quanto você está triste.
Com esforço, ela conseguiu dizer:
— Sinto muito, meu bem — mas sua voz saiu tão distorcida pela angústia que, até para si mesma, ela soou como uma estranha.
Depois de um momento de silêncio, Barty perguntou:
— Mamãe, você sempre acredita em mim, não acredita?
— Sempre — disse ela, porque jamais conseguia mentir para o filho.
— Está olhando para mim?
— Sim — assegurou, embora seu olhar tivesse descido da boca para a mão, tão pequena, que ela segurava dentro da sua.
— Mamãe, eu pareço triste?
Por força do hábito, ela voltou sua atenção para os olhos dele, porque embora os tipos científicos insistissem que eles são incapazes de expressão, Agnes concordava com os poetas: para ver a condição do coração humano, você deve olhar primeiro onde os cientistas jamais admitirão olhar.
Os curativos brancos sobre os olhos repeliram Agnes, e ela percebeu até onde a extirpação dupla sofrida pelo menino afetaria a forma como ela lia seu humor e conhecia sua mente. Aqui estava uma perda menor até agora obscurecida pela destruição maior. Carente da evidência daqueles olhos, Agnes precisaria aprender a notar e interpretar melhor as nuanças da linguagem corporal — também alterada pela cegueira — e da voz de Barty, porque não haveria uma alma revelada pelos implantes plásticos pintados à mão.
— Eu pareço triste? — repetiu o menino.
Naquele instante, a luz suave do abajur pareceu forte demais para Agnes e, enquanto a desligava, ela disse:
— Chega pra lá.
O menino abriu espaço para ela.
Agnes chutou seus sapatos para fora dos pés e se sentou ao lado dele na cama, com as costas apoiadas na cabeceira, ainda segurando-lhe a mão. Embora esta escuridão não fosse tão profunda quanto a de Barty, Agnes descobriu que conseguia controlar melhor suas emoções se não pudesse vê-lo.
— Imagino que esteja triste, querido. Você esconde muito bem, mas deve estar.
— Mas não estou.
— A vida parece um cocô, como eles dizem.
— Não é o que eles dizem! — retrucou o menino com uma risadinha, porque suas leituras tinham-no apresentado a palavras que ele e ela concordaram que ele não devia usar.
— Eles podem não dizer "cocô", mas é o pior que nós dizemos. Na verdade, nesta casa preferimos "caca".
— "A vida é uma caca". Sei não, falta força.
— As pessoas valorizam demais a força.
— Mamãe, não estou realmente triste. Não estou. Não gosto de estar cego. É... difícil. — Sua voz pequena, musical como as vozes da maioria das crianças, tocante em sua inocência, tecia uma trama de melodia no escuro, e parecia doce demais para falar sobre essas coisas amargas. — Difícil mesmo. Mas estar triste não ajuda. Estar triste não vai me fazer enxergar de novo.
— Não, não vai.
— Além disso, estou cego aqui, mas não estou cego em todos os lugares onde existo.
Isto de novo.
Enigmático como sempre neste assunto, ele prosseguiu:
— Provavelmente não estou cego na maioria dos lugares em que estou. Sim, claro, eu preferia ser eu num dos outros lugares onde meus olhos são bons, mas é neste lugar que existo. E você sabe de uma coisa?
— O quê?
— Existe um motivo para eu ser cego neste lugar mas não em todos os lugares onde existo.
— Que motivo?
— Deve haver alguma coisa importante que devo fazer aqui mas que não preciso fazer em todos os lugares onde existo, talvez alguma coisa que farei melhor se for cego.
— Como o quê?
— Não sei. — Calou-se por um instante. — É isso que vai ser interessante. Ela pagou silêncio com silêncio. Então:
— Querido, ainda estou completamente confusa com essa história.
— Eu sei, mamãe. Um dia vou entender isso melhor e explicar tudo para você.
— Esperarei ansiosamente. Acho.
— E eu não estou falando caca.
— Eu não achei que estivesse. - E sabeide uma coisa?
— O quê?
— Acredito em você.
— Sobre a tristeza?
— Sobre a tristeza. Você realmente não está triste, e isso... isso apenas me deixa confusa, meu bem.
— Estou frustrado — admitiu. — Tentando aprender a fazer coisas no escuro... estou pulo da vida, mamãe.
— Não é bem assim que eles dizem — brincou Agnes.
— É assim que nós dizemos.
— Na verdade, se tivermos de dizer isso, é melhor dizer que estamos fulos da vida.
— Isso não tem força, mamãe. Se estou cego, acho que devemos dizer que estamos pulos da vida.
— Você deve ter razão — concedeu Agnes.
— Estou pulo da vida, e sinto muita falta de algumas coisas, mas não estou triste. E você também não precisa ficar, porque isso estragaria tudo.
— Prometo tentar. E sabe de uma coisa?
— O quê?
— Talvez eu não precise tentar tanto quanto acho, porque você facilita muito as coisas para mim, Barty.
Durante mais de duas semanas o coração de Agnes estivera equilibrado na beira de um abismo, pesado com emoções fortes e amargas, mas agora ele se encheu com um novo tipo de paz, uma paz que, se fosse mantida, um dia poderia abrir espaço novamente para a alegria.
— Posso tocar o seu rosto? — pediu Barty.
— O rosto da sua velha mãe?
— Você não é velha.
— Você leu sobre as pirâmides. Eu já estava aqui antes.
— Não diga caca.
Em meio à escuridão, ele encontrou o rosto dela com ambas as mãos. Correu os dedos por seu semblante. Sentiu os olhos com as pontas dos dedos. O nariz, os lábios, as bochechas de Agnes.
— Passaram lágrimas por aqui — avaliou Barty.
— Passaram, sim — admitiu Agnes.
— Mas não tem nenhuma agora. Está seco. É tão gostoso tocar quanto ver você, mamãe.
Ela tomou as mãozinhas de Barty nas suas e as beijou.
— Sempre vou conhecer o seu rosto — prometeu Barty. — Mesmo se você tiver de ir embora e sumir por mil anos, sempre lembrarei como você se parece, como é tocar você.
— Não vou para lugar algum — argumentou Agnes. Ela percebeu que a voz do menino estava cada vez mais sonolenta. — Mas é hora de você ir passear na terra dos sonhos.
Agnes levantou-se da cama, ligou o abajur e cobriu Barty de novo.
— Faça suas preces silenciosas.
— Estou fazendo agora — garantiu numa voz arrastada.
Agnes calçou os sapatos e ficou de pé por um momento, observando os lábios de Barty enquanto ele agradecia pelas bênçãos recebidas e pedia que essas bênçãos fossem dadas a outros que precisavam delas.
Ela encontrou o comutador e desligou o abajur de novo.
— Boa noite, jovem príncipe.
— Boa noite, rainha mãe. Ela começou a caminhar até a porta, parou e se virou para ele em meio à escuridão.
— Filho meu?
— Hummmm?
— Já te disse o que o seu nome significa?
— Meu nome... Bartholomew? — perguntou sonolento.
— Não. Lampion. Um dia, os antepassados franceses do seu pai devem ter sido fabricantes de lâmpadas. Lampion é lampião em francês. Um lampião, você sabe, é uma lâmpada a óleo com uma cobertura aberta de vidro pintado. Entre outras coisas, naqueles tempos muito remotos, os lampiões eram usados nas carruagens.
Sorrindo no escuro sem ameaças, ela ouviu a respiração ritmada de um menino adormecido.
Então ela sussurrou:
— Você é o meu lampiãozinho, Barty. Você ilumina o caminho para mim. Há muito tempo Agnes não dormia tão bem quanto dormiu naquela noite.
Dormiu profundamente, sem sonhos com crianças sofrendo ou com uma batida de carros numa rua molhada pela chuva. Não teve sonho nenhum, nem mesmo com milhares de folhas mortas sopradas pelo vento numa rua deserta, com cada folha sendo, na verdade, um valete de espadas.
Um dia marcante para Celestina, uma noite das noites, e um novo alvorecer no horizonte: aqui começava a vida com a qual ela sonhava desde que era menina.
A uma ou duas pessoas por vez, a multidão festiva acabou se desfazendo, mas para Celestina a empolgação continuou na atmosfera que pairava na galeria depois de uma exposição.
Nas mesas, as bandejas de canapés guardavam apenas guardanapos manchados, migalhas e taças plásticas de champanhe vazias.
Ela estivera nervosa demais para comer alguma coisa. Segurara a mesma taça de champanhe durante toda a noite, segurando-a como se fosse uma âncora que a impedia de ser arrastada do porto por uma tempestade.
Agora sua âncora era Wally Lipscomb — obstetra, pediatra, senhorio e melhor amigo —, que chegou na metade da recepção. Enquanto ouvia o relatório de vendas de Helen Greenbaum, Celestina segurou a mão de Wally com tanta força que, se fosse uma taça plástica de champanhe, teria rachado.
Segundo Helen, mais da metade das pinturas tinha sido vendida até o encerramento da recepção, um recorde para a galeria. Com a exposição programada para ser mantida durante duas semanas inteiras, ela tinha certeza absoluta de que acabariam por vender todos os quadros ou algo muito próximo a isso.
— De vez em quando vão escrever sobre você — alertou Helen. — Esteja preparada para um ou dois críticos furiosos com o seu otimismo.
— Meu pai já me armou contra eles — assegurou-lhe Celestina. — Ele disse que a arte permanece, mas que os críticos são os insetos incômodos de um único dia de verão.
Sua vida estava tão abençoada que ela conseguiria lidar com um enxame de gafanhotos, quanto mais alguns mosquitos.
A pedido de Thomas Vanadium, o táxi deixou-o a um quarteirão de sua casa nova — e temporária —, um pouco antes das dez da noite.
Embora a neblina mumificante envolvesse com mistérios brancos até os objetos mais ordinários, e ocultasse cada cidadão num manto de anonímia, Vanadium preferiu dirigir-se ao edifício com o máximo de discrição. Qualquer que fosse a duração de sua permanência neste lugar, jamais chegaria ou sairia pela porta da frente, ou mesmo através da garagem do porão — até, talvez, o seu último di aqui.
À sua esquerda, a porta conduzia até uma escadaria dos fundos, acessível com a chave especial que já estava em sua mão. À direita: um elevador de serviço operado por chave, para o qual ele já tinha provido uma chave separada.
Ele subiu até o terceiro dos cinco andares no elevador de serviço, que os outros inquilinos tinham permissão de usar apenas quando entravam ou saíam, ou quando recebiam entregas de mobílias grandes. O outro elevador, na frente do edifício, era público demais para atender aos seus propósitos.
O apartamento do terceiro andar diretamente sobre a unidade de Enoch Caim tinha sido alugado por Simon Magusson, através de sua corporação, desde que se tornara disponível em março de 1966, 22 meses atrás.
Quando esta operação fosse concluída e o sulfúreo sr. Caim fosse levado a algum tipo de justiça, Simon teria gasto uns 25% dos honorários que coletara com a indenização provida pelo governo devido à morte de Naômi Caim. O advogado atribuía um valor substancial à sua dignidade e reputação.
E por mais que negasse isso, por mais que brincasse dizendo que consciência era um estorvo para um advogado, Simon possuía uma bússola moral. Quando percorria um trajeto longo demais pela trilha errada, aquela agulha magnetizada em sua alma o conduzia de volta da terra dos perdidos.
O apartamento fora mobiliado apenas com duas cadeiras dobráveis estofadas e um colchão vazio na sala de estar. O colchão estava agora no assoalho, sem o benefício de cama ou caixas de molas.
Na cozinha havia rádio, torradeira, cafeteira, um conjunto de talheres baratos, um jogo de pratos, tigelas e canecas comprados em lojas variadas e que não combinavam perfeitamente, e um freezer cheio de comida congelada e bolinhos ingleses.
Essas acomodações espartanas eram boas o bastante para Vanadium. Ele chegara do Oregon na noite anterior com três malas cheias com suas roupas e objetos pessoais. Esperava que sua combinação exclusiva de trabalho policial com guerra psicológica o ajudasse a prender Caim em um mês, antes que este lugar começasse a parecer austero demais até para alguém que considerava barroca qualquer coisa mais luxuosa que a cela de um monge.
Prever um mês para o trabalho parecia otimista. Em contrapartida, ele tivera muito tempo para aperfeiçoar uma estratégia.
Usando este apartamento como base, Nolly e Kathleen tinham realizado alguns pequenos ataques na primeira fase da guerra, incluindo as serenatas fantasmagóricas. Eles haviam deixado o lugar bem arrumado. A bem da verdade, o único sinal de que tinham estado aqui era uma caixinha de fio dental esquecida sobre o peitoril de uma das janelas da sala de estar.
O telefone funcionava, e Vanadium discou o número de Sparky Vox, o síndico do prédio. Sparky tinha um apartamento no térreo, em cima dos dois andares subterrâneos, adjacente à entrada da garagem.
Na casa dos setenta, mas vigoroso e animado, Sparky gostava de vez em quando de dar um pulinho em Reno, para tentar a sorte nos caça-níqueis e jogar algumas mãos de vinte-e-um. Os cheques mensais, isentos de impostos, enviados por Simon, eram recebidos de bom grado, assegurando a cooperação do velho na conspiração.
Sparky não era um mau sujeito, não se vendia fácil, e se lhe tivesse sido pedido para trair qualquer inquilino que não fosse Caim, ele provavelmente não o teria feito a nenhum preço. Mas ele não suportava Caim, a quem considerava "esquisito e sinistro como um macaco com sífilis".
Tom Vanadium julgou bizarra a comparação de Caim com um macaco sifilítico, mas ela acabou se revelando um julgamento sóbrio, baseado em experiência pessoal. Quando tinha cerca de cinqüenta anos, Sparky trabalhara como chefe da manutenção de um laboratório de pesquisas médicas, onde — entre outros projetos — macacos tinham sido infectados intencionalmente com sífilis e em seguida observados durante seu período de vida. Nos estágios terminais, alguns dos primatas adotaram um comportamento tão intenso que tinham preparado Sparky para seu encontro com Enoch Caim.
Na noite passada, no apartamento térreo do síndico, enquanto compartilhavam uma garrafa de vinho, Sparky contara a Vanadium várias histórias estranhas sobre Caim: A Noite em que Arrancou o Dedão com um Tiro, O Dia em que Foi Salvo de um Transe Meditativo e uma Paralisia da Bexiga, O Dia em que uma namorada Psicótica Trouxe um Porco ao Apartamento de Caim Enquanto ele Estava Fora e o Alimentou com Laxantes e o Prendeu no seu Quarto...
Depois de tudo que tinha sofrido nas mãos de Caim, Tom Vanadium surpreendeu-se ao rir desses relatos sobre as desventuras de um homem que matara a própria esposa. Na verdade os risos pareciam desrespeitosos para com as memórias de Victória Bressler e Naomi, e Vanadium sentira-se dividido entre um desejo de ouvir mais e a impressão de que extrair qualquer diversão de um homem como Caim deixaria em sua alma uma mancha que não seria apagada nem se a esfregasse por cem anos.
Sparky Vox — com menos treino em teologia e filosofia que o seu convidado, mas com uma compreensão espiritual que qualquer jesuíta supererudito iria admirar, ainda que a contragosto — aplacara a consciência atormentada de Vanadium.
— O problema com os filmes e os livros é que eles sempre fazem o mal parecer glamouroso e empolgante, quando isso não existe. O mal é tedioso, é deprimente, é estúpido. Os criminosos estão sempre atrás de emoções baratas e dinheiro fácil, e quando conseguem, tudo que querem é mais do mesmo, de novo e de novo. São pessoas rasas, vazias e tediosas que não conseguiriam lhe dar cinco minutos de conversa interessante se você tivesse o azar de encontrar com elas numa festa. Talvez alguns possuam uma inteligência no nível dos macacos durante parte do tempo, mas isso não significa que sejam realmente espertos. Tenho certeza de que Deus quer que a gente ria desses palhaços, porque, quando não rimos deles, nós lhes concedemos respeito. Se você não caçoa de um filho da mãe como Caim, se sente muito medo dele, ou mesmo se olha para ele com solenidade, então está lhe prestando mais respeito do que ele merece. Quer mais um pouco de vinho?
Agora, 24 horas depois, quando Sparky atendeu o telefone e ouviu Tom Vanadium, ele disse:
— Quer um pouco de companhia? Tenho outra garrafa de Merlot de onde veio aquela.
— Obrigado, Sparky, mas esta noite não. Estou pensando em dar uma olhada lá embaixo, para ver se o velho Nove Dedos não está preso em casa esta noite com um caso de paralisia da bexiga.
— Na última vez que olhei, o carro dele não estava na garagem. Espere um pouquinho que vou verificar. — Sparky pousou o telefone e foi dar uma olhada na garagem. Quando voltou, disse: — Neca. Ainda está fora. Quando ele sai pra gandaia, costuma voltar tarde.
— Você vai ouvir quando ele chegar?
— Sim, se eu quiser.
— Se ele voltar dentro da próxima hora, telefone para mim lá no apartamento dele, para eu poder picar a mula.
— Vou fazer isso. Preste atenção nas pinturas que ele coleciona. As pessoas pagam grana alta por elas, até pessoas que nunca estiveram num hospício.
Wally e Celestina saíram para jantar no restaurante armênio onde ele comprara um almoço para viagem no dia de 1965 quando resgatara ela e Anja das garras de Neddy Gnathic. Panos de mesa vermelhos, pratos brancos, revestimentos de madeira escura nas paredes, um punhado de velas em copos vermelhos em cada mesa, ar recendendo a alho, pimenta tostada e soujouk frito — mais funcionários simpáticos, na maioria familiares do dono — criavam uma atmosfera tão adequada para celebrações quanto para conversas íntimas, e Celestina esperava que ambos se divertissem, porque este prometia ser um dia marcante em mais de uma forma.
Os últimos três anos também tinham dado a Wally muito para celebrar. Depois de vender seu consultório e fazer um hiato de oito meses das semanas de sessenta horas de trabalho que mantivera por tanto tempo, Wally começara a ceder 24 horas de serviço gratuito a uma clínica pediátrica por semana, provendo cuidados aos necessitados. Ele trabalhara duro durante toda sua vida e poupara o máximo; agora era capaz de se concentrar apenas naquelas atividades que lhe davam o máximo de satisfação.
Wally tinha sido uma dádiva de Deus para Celestina por causa de seu amor por crianças e de uma nova forma de diversão que descobrira enquanto cuidava de Anja. Ele era Tio Wally. Wally, o Cavalinho, Leão-marinho Wally, Lobisomem Wally, Wally Com Sotaques Tão Engraçados, Wally Das Orelhas Que Se Mexem Sozinhas, Wally Assobiador, Wally Caubói. Era Wally, o Bom Amigo de Todas as Horas. Anja o adorava, adorava mesmo, e ele não podia amar mais a menina nem se ela fosse um dos filhos que perdera. Sobrecarregada com suas aulas, o trabalho como garçonete, as pinturas, Celestina sempre podia contar com Wally para ajudá-la a cuidar de Anja. Ele não era apenas o tio honorário de Anja, mas seu pai em todos os aspectos, exceto o legal e o biológico; não era apenas seu doutor, mas um anjo da guarda que ficava em pânico quando ela contraía uma febre leve e preocupado com todas as formas com que o mundo poderia ferir uma criança.
— Hoje eu pago — insistiu Celestina quando se sentaram.—Agora sou uma artista de sucesso, com uma legião de críticos apenas esperando para me destroçar.
Wally pegou a carta de vinhos antes que ela conseguisse fazê-lo.
— Se está pagando, então vou pedir o que custar mais caro, não importa q seja o gosto.
— Parece razoável.
— Chateau Le Grana, 1886. Podemos beber uma garrafa disso ou você pode comprar um carro novo, e pessoalmente acredito que a sede é mais important que o transporte.
— Você viu Neddy Gnathic? — perguntou ela.
— Onde? — Olhou à sua volta no restaurante.
— Não, na recepção.
— Não acredito que ele tenha ido!
— Do jeito como se comportou, você poderia jurar que ele deu abrigo a mi e a Anja durante a tempestade, ao invés de expulsar a gente de casa para congelar na neve.
Achando graça, Wally comentou:
— Vocês artistas adoram um drama, né? Ou será que esqueci da tempestade de neve que varreu San Francisco em 1965?
— Como você pode ter esquecido dos esquiadores deslizando pela Lombard Street?
— Ah, sim, estou lembrando. Ursos polares comendo turistas na Unio Square, matilhas de lobos perambulando pelo bairro de Heights.
O rosto de Wally Lipscomb, longo e estreito como sempre, não estampava mais a expressão de um homem amargurado e insatisfeito, lembrando mais a cara de um palhaço de circo que podia fazer você rir ao contorcer as feições numa careta de tristeza ou num ar bobo. Celestina via espírito onde antes houvera indiferença espiritual, vulnerabilidade onde antes houvera um coração blindado, grandes expectativas onde antes vira esperanças ressequidas; via gentileza e bondade onde elas sempre haviam estado, mas agora numa medida mais generosa. Ela amava esse rosto feio, longo e estreito, e amava o homem que o usava.
Muita coisa argumentava contra a idéia de que poderiam ser bem-sucedidos como um casal. Nesta época a barreira entre as raças supostamente tinha sido derrubada, mas às vezes ela parecia estar se reerguendo um pouco a cada ano. A diferença de idades também tinha peso e, aos cinqüenta anos, Wally era 26 ano mais velho que Celestina, velho o bastante para ser seu pai, conforme o pai dela certamente comentaria com educação e gentileza — muitas e muitas vezes! Wally tinha uma cultura elevadíssima, com diversos diplomas em medicina, e Celestina tinha freqüentado uma escola de artes plásticas.
Porém, mesmo se os obstáculos fossem duas vezes mais altos, chegara a hora de colocar em palavras o que eles sentiam um pelo outro e decidir o que pretendiam fazer quanto a isso. Celestina sabia que em profundidade e intensidade, assim como em promessa de paixão, o amor de Wally por ela igualava-se ao dela por ele. Devido ao respeito que nutria por Celestina, e talvez porque esse homem adorável duvidasse de seus atrativos, Wally tentava esconder a verdadeira força de seus sentimentos e realmente acreditava conseguir isso, apesar de estar radiante de amor. Os beijos fraternos que ele lhe dava nas faces, seus toques e olhares de admiração ainda eram castos, mas a passagem do tempo tornava-os cada vez mais ternos. E quando ele segurava sua mão — como nesta noite, na galeria —, fosse como uma demonstração de apoio ou simplesmente para mantê-la em segurança ao seu lado ao atravessar a rua ou percorrer uma calçada movimentada, o querido Wally era tomado por um jeito sonhador que Celestina lembrava vividamente dos seus tempos de escola, quando os meninos de treze anos, olhares transbordando com adoração pura, ficavam bobos e mudos pelo conflito entre desejo e inexperiência. Em três ocasiões recentes, Wally parecera prestes a revelar seus sentimentos, que ele esperava causar-lhe surpresa ou talvez até choque, mas o momento nunca lhe parecera completamente certo.
Para Celestina, o suspense que aumentou durante o jantar não teve relação com o fato de se Wally teria ou não coragem de tocar no assunto, porque se não o fizesse desta vez, ela pretendia tomar a iniciativa. Celestina estava mais preocupada em saber se Wally esperava ou não que uma expressão calorosa de compromisso seria suficiente para induzi-la a dormir com ele.
Celestina tinha duas visões a respeito disso. Ela o queria, queria ser abraçada e acariciada, queria satisfazer e ser satisfeita. Mas ela era filha de pastor: o conceito de pecado e conseqüências talvez fosse menos profundamente entranhado em algumas filhas de bancários ou padeiros do que na filha de um pastor batista. Celestina era um anacronismo nesta época de sexo fácil, uma virgem por opção, não por falta de oportunidades. Embora recentemente tivesse lido um artigo numa revista alegando que mesmo nesta era de sexo livre 49% das noivas chegavam virgens à noite de núpcias, Celestina não acreditara nisso e achara ter-se deparado com uma publicação caída através de uma fenda de realidades entre este mundo e um mais pudico que lhe era paralelo. Ela não era puritana, mas também não era uma meretriz, e sua honra era um tesouro que ela não jogaria fora sem reflexão. Honra! Ela soava como uma dama de outrora, presa numa torre de castelo, esperando por seu Sir Lancelot. Eu não sou apenas uma virgem, sou uma aberração! Mas mesmo colocando de lado por um momento a idéia de pecado, considerando que a honra das damas era tão démodé quanto as saias pregueadas, ela ainda preferia esperar, para saborear o pensamento de intimidade, para permitir que a expectativa crescesse, e iniciar sua vida conjugal juntos sem a menor possibilidade de arrependimento. Não obstante, Celestina tinha decidido que se Wally estava pronto para o compromisso que ela acreditava tê-lo visto quase propor três vezes, então poria de lado todas as apreensões em nome de amor e iria deitar-se com ele, e abraçá-lo, e se entregar com todo o seu coração.
Duas vezes durante o jantar Wally pareceu chegar perto do Assunto, mas então circundou-o e saiu voando, cada vez para reportar notícias de pouca relevância ou recontar alguma coisa engraçada que Anja tinha dito.
Os dois chegaram ao último gole de vinho e estudavam o cardápio de sobremesas quando Celestina começou a se questionar se, a despeito dos seus instintos e de todos os indícios, ela estaria enganada sobre o estado do coração de Wally. Os sinais pareciam claros, e se sua radiância não era amor, então ele devia ser perigosamente radioativo. Mesmo assim, poderia estar enganada. Era uma mulher de certa visão, muito sofisticada em diversos aspectos, com as percepções à flor da pele de uma artista. Contudo, em questões de romance, era inocente, talvez mais vergonhosamente ingênua do que imaginara. Enquanto corria os olhos pela lista de bolos, tortas e sorvetes caseiros, permitiu que a dúvida se derramasse sobre ela, e enquanto sentia crescer a suspeita de que Wally talvez não a amasse dessa forma, Celestina flagrou-se desesperada em saber, em pôr um ponto final no suspense, porque se ela não significava para ele o que ele significava para ela, então papai teria de aceitar sua conversão de batista para católica, porque ela e Anja teriam de passar um bom tempo curando seus corações num convento.
Entre a descrição de uma linha do baklava e as palavras mais efusivas sobre os mamouls de nozes, o suspense se tornou tão grande, a dor tão insidiosa, que Celestina tirou os olhos do cardápio e disse, com uma angústia mais infantil na voz do que gostaria:
— Talvez este não seja o lugar, talvez este não seja o momento, talvez este seja o momento mas não o lugar, ou o lugar mas não o momento, ou talvez o momento e o lugar estejam certos mas o clima esteja errado, sei lá, mas... Ai, Deus, ouça só como estou falando! Mas realmente preciso saber se você pode, se você está, o que você sente, se você sente, quero dizer, se você achar que poderia sentir...
Ao invés de fitá-la embasbacado, crente de que Celestina tinha sido possuída por um demônio tagarela, Wally sacou apressadamente uma caixinha do bolso do casaco e disse:
— Quer casar comigo?
Ele atingiu Celestina com a grande pergunta, a imensa pergunta, no instante em que ela parou de parolear para respirar fundo, para melhor vomitar mais absurdos, só que esta inalação aterrorizada ficou em seu peito, presa tão teimosamente que teve certeza de que precisaria de atenção médica para voltar a respirar, mas então Wally abriu a caixinha, revelando um lindo anel de noivado, e vê-lo fez o ar preso explodir por suas narinas, e então voltou a respirar direito, ainda que fungando e chorando e absolutamente descontrolada.
— Wally, eu te amo.
Sorrindo, mas com um tom estranho de preocupação na expressão que Celestina conseguiu ver mesmo através de suas lágrimas, Wally disse:
— Isso significa que... você aceita?
— Está perguntando se vou te amar amanhã, e depois de amanhã, e para todo o sempre? É claro, para sempre, Wally, para sempre.
— Perguntei se aceita casar comigo.
O coração de Celestina caiu e sua confusão alçou vôo.
— Não foi isso que você perguntou?
— E foi isso que você respondeu?
— Oh! — Enxugou os olhos com as palmas das mãos. — Espere! Me dê uma segunda chance. Posso fazer isto melhor, tenho certeza.
— Eu também. — Ele fechou a caixa do anel. Respirou fundo. Abriu a caixa de novo. — Celestina, quando conheci você, meu coração estava batendo, mas eu estava morto. Ele estava frio dentro de mim. Eu achava que meu coração jamais estaria quente de novo, mas graças a você ele está. Você me devolveu a minha vida, e agora quero dar minha vida a você. Quer casar comigo?
Celestina estendeu a mão esquerda, que tremia tanto que ela quase derrubou as taças de vinho.
— Quero.
Nenhum deles notou que seu drama pessoal, em toda sua glória e falta de jeito, atraíra a atenção de cada pessoa no restaurante. A ovação que se seguiu à aceitação de Celestina a fez estremecer de susto e ela derrubou o anel da mão de Wally quando ele tentou colocá-lo em seu dedo. O anel quicou pela mesa, os dois tentaram pegá-lo, Wally conseguiu, e agora Celestina e Wally selaram apropriadamente o seu noivado, sob aplausos e risos.
A sobremesa foi por conta da casa. O garçom levou-lhes os quatro melhores itens do cardápio, para poupar-lhes a necessidade de tomar duas pequenas decisões depois de terem tomado uma tão grande...
Depois que o café foi servido, quando Celestina e Wally não eram mais o centro da atenção, ele indicou a fileira de sobremesas com o garfo, sorriu e disse:
— Celie, quero que você saiba que comer doces como estes vai ser o único prazer que compartilharemos juntos até o casamento.
Ela ficou estarrecida e comovida.
— Devo ser a última representante do século XIX. Como adivinhou o que eu tinha em mente?
— Estava no seu coração, e tudo que está no seu coração está ali para todos verem. O seu pai vai casar a gente?
— Assim que ele recuperar a consciência.
— Teremos um grande casamento.
— Não precisa ser grande — disse ela, e acrescentou com um sorriso sedutor: — Mas se vamos esperar, é melhor que o casamento seja logo.
Tom Vanadium pegara emprestado com Sparky uma chave mestra com a qual podia abrir a porta da frente do apartamento de Caim, mas preferia não usá-la enquanto pudesse entrar por uma rota pelos fundos. Quanto menos usasse os corredores freqüentados pelos moradores, maiores seriam as chances de manter sua presença em carne-e-osso ignorada por Caim, e assim assegurar sua reputação fantasmagórica. Se muitos moradores vissem seu rosto memorável, ele logo iria se tornar um assunto de conversas entre os vizinhos e o assassino da esposa poderia topar com a verdade.
Levantou a janela da cozinha e passou por ela, pousando no patamar da saída de incêndio. Sentindo-se como o primo pobre do Fantasma da Ópera, portando cicatrizes igualmente horrendas mas não o amor irrestrito por uma soprano, Vanadium desceu através da noite enevoada, pelos degraus de ferro da escada de incêndio, até a cozinha no apartamento de Caim.
Todas as janelas que abriam para a saída de incêndio eram como um sanduíche de vidro laminado e recheado com uma malha de arame para impedir o acesso fácil dos bandidos. Tom Vanadium conhecia os melhores truques dos gatunos profissionais, mas não precisava arrombar a janela para entrar.
Durante os procedimentos de limpeza, instalação de carpete novo e pintura que tinham seguido a remoção do porco com diarréia deixado por uma das namoradas enfurecidas de Caim, o assassino da esposa passara algumas noites num hotel. Nolly aproveitou a oportunidade para levar seu associado James Hunnicolt — Jimmy Engenhoca — até o local para instalar um ferrolho externo de liberação de janela absolutamente imperceptível.
Conforme fora instruído, Vanadium tateou o lado direito da moldura da janela até localizar um pino de aço com 63 milímetros de diâmetro, que se projetava dois centímetros e meio para fora. O pino tinha ranhuras para facilitar que fosse segurado. Foi preciso um puxão insistente e firme, mas, conforme o prometido, a trave interna foi desarmada.
Ele levantou o caixilho inferior da janela alta e deslizou silenciosamente para a cozinha escura. Como a janela também servia como saída de emergência e não ficava sobre um armário, foi fácil entrar.
Como este cômodo não dava para a rua pela qual Caim se aproximaria do prédio, Vanadium acendeu as luzes. Passou quinze minutos examinando o conteúdo ordinário dos armários de cozinha, procurando por nada em particular, apenas obtendo uma idéia de como o suspeito vivia — e, precisava confessar, torcendo para achar alguma coisa tão favorável a uma condenação quanto uma cabeça cortada dentro da geladeira ou um quilo de maconha embrulhado em plástico no congelador.
Não achando nada especialmente gratificante, desligou as luzes e passou para a sala de estar. Se Caim estivesse voltando para casa, ele olharia da rua e veria as luzes acesas aqui; assim, Vanadium recorreu a uma pequena lanterna, sempre tendo o cuidado de tampar as lentes com uma das mãos.
Nolly, Kathleen e Sparky tinham-no preparado para a Mulher industrial, mas quando o facho de luz reluziu em seu rosto de garfos e hélice de ventilador, Vanadium sentiu um arrepio. Sem perceber exatamente o que estava fazendo, ele se benzeu.
O Buick branco varava a neblina como um navio fantasma singrando um mar espectral.
Wally dirigia lenta e cuidadosamente, com toda a responsabilidade que condizia a um obstetra, pediatra, e agora noivo. A viagem para casa até Pacific Heights durou o dobro do tempo esperado para uma noite clara e sem uma nuvem de chuva no céu.
Ele queria que Celestina ficasse sentada e usasse seu cinto abdominal, mas ela insistiu em ficar agarradinha com ele, como se fosse uma adolescente e ele seu par para o baile de formatura.
Embora esta talvez fosse a noite mais feliz da vida de Celestina, uma nota de melancolia vibrava em seu coração. Ela não podia evitar pensar em Fimie.
A felicidade podia florescer com tanto vigor a partir de uma tragédia que produzia flores deslumbrantes e galhos frondosos. Essa noção servira para Celestina como uma inspiração básica para a sua pintura, e como prova de que este mundo sempre nos oferece promessas de grande alegria.
Da humilhação, do terror, do sofrimento e da morte de Fimie surgira Anja, a quem Celestina inicialmente tinha odiado, mas agora ela a amava ainda mais do que amava Wally, ainda mais do que amava a si mesma ou à própria vida. Fimie, através de Anja, concedera a Celestina e a Wally uma compreensão plena do significado das palavras do seu pai quando ele falara sobre este dia marcante, uma compreensão que concedia força à sua pintura e tocava profundamente as pessoas que viam e compravam sua arte.
Conforme o pai de Celestina ensinara, nenhum dia na vida de uma pessoa é um dia sem eventos importantes; nenhum dia é desprovido de significados profundos, não importando o quanto ele possa ter parecido bobo ou tedioso, não importando se você é uma costureira ou uma rainha, um engraxate ou uma estrela de cinema, um filósofo famoso ou uma criança com síndrome de Down. Porque em cada dia da sua vida existem oportunidades para realizar pequenas boas ações para os outros, tanto através de atos conscientes quanto por exemplos inconscientes. Cada pequeno ato de bondade — mesmo simples palavras de esperança para os necessitados, a lembrança de um aniversário, um cumprimento que gere um sorriso — reverbera através de grandes distâncias de tempo e espaço, afetando vidas desconhecidas à pessoa cujo espírito generoso foi a fonte do eco bom, porque a bondade é passada adiante e cresce a cada vez que é passada, até que uma simples cortesia se torne um ato de coragem altruísta dali a muitos anos, e num lugar muito distante. Da mesma forma, cada pequeno ato de maldade, cada expressão inconsciente de ódio, cgda manifestação de inveja e rancor, a despeito do quão pequena, pode inspirar outras, e é portanto a semente que gerará um fruto maligno, envenenando pessoas que você nunca conheceu e jamais conhecerá. Todos os seres humanos — os vivos, os mortos, as gerações vindouras — são entrelaçados de forma tão profunda e intrincada que o destino de todos é o destino de cada um, e a esperança da humanidade repousa em cada coração e em cada par de mãos. Portanto, depois de um fracasso, somos instigados a lutar novamente pelo sucesso, e quando nos defrontamos com o fim de uma coisa, precisamos construir algo novo e melhor a partir de suas cinzas, assim como da dor e da mágoa devemos tecer esperança, porque cada um de nós é um fio vital para a malha — e a sobrevivência — da tapeçaria humana. Cada hora em cada vida contém tanto potencial oculto para afetar o mundo que os grandes dias pelos quais nós, em nossa insatisfação, tanto ansiamos, na verdade já estão conosco; todos os grandes dias e possibilidades empolgantes estão sempre combinados neste dia marcante.
Ou, como o pai de Celestina dissera tantas vezes, caçoando alegremente de sua própria eloqüência retórica:
— Ilumine o canto onde você está e você iluminará o mundo.
— Bartolomeu, hein? — perguntou Wally enquanto pilotava através de uma massa de neblina.
Assustada, Celestina disse:
— Caramba, você é assustador. Como adivinhou o que eu estava pensando?
— Eu já te disse. Qualquer coisa no seu coração é tão fácil de ler quanto uma página aberta num livro.
No sermão que lhe valeu um momento de fama — com a qual, aliás, ele se sentiu incomodado —, papai usou a vida do apóstolo Bartolomeu para ilustrar seu ponto de vista de que cada dia em cada vida é da mais profunda importância. Bartolomeu é considerado o mais obscuro dos doze apóstolos. Alguns dizem que Simão é menos conhecido, outros apontam Tomé, o descrente. Mas Bartolomeu certamente lança uma sombra muito mais curta que as de Pedro, Mateus, Tiago, João e Filipe. O propósito do pastor White em proclamar Bartolomeu o mais obscuro dos doze foi imaginar em detalhes vívidos como as ações desse apóstolo, aparentemente de pouca conseqüência na época, tinham ressoado através da história, através de centenas de milhões de vidas — e em seguida conjecturar que a vida de cada empregada doméstica que estava ouvindo o seu sermão, a vida de cada mecânico de carro, professor, motorista de caminhão, garçonete e zelador, era tão importante quanto a vida ressonante de Bartolomeu, embora cada um estivesse atrás da lâmpada da fama e laborasse sem o aplauso das multidões.
No final do famoso sermão, o pai de Celestina desejou a todas as pessoas de boa índole que suas vidas fossem banhadas com uma chuva de efeitos benignos gerada pelas ações altruístas de uma miríade de Bartolomeus a quem jamais conheceriam. E assegurou aos egoístas, invejosos e inclementes, ou àqueles que de fato cometeram atos de grande malignidade, que suas ações retornariam para eles, multiplicadas por um número além de sua imaginação, porque eles estavam em guerra com o propósito da vida. Se o espírito de Bartolomeu não puder entrar em seus corações e mudá-los, então irá encontrá-los e proferir o julgamento terrível que eles merecem.
— Eu sabia que você estava pensando em Fimie — disse Wally, freando para um sinal vermelho. — E sabia que pensar nela devia ter conduzido às palavras do seu pai, porque, por mais curta que a vida de Fimie tenha sido, ela foi uma Bartolomeu. Ela deixou sua marca.
Fimie agora devia ser honrada com risos, não com lágrimas, porque sua vida deixara Celestina com muitas lembranças de alegria, e com alegria personificada em Anja. Para conter as lágrimas, ela disse:
— Escute aqui, Clark Kent, nós mulheres precisamos dos nossos segredinhos, nossos pensamentos íntimos. Se pode mesmo ler meu coração com tanta facilidade, acho que vou começar a usar sutiãs de chumbo.
— Parece desconfortável.
— Não se preocupe, querido. Vou providenciar para as alças serem construídas de modo a deixar que você o tire de mim com facilidade.
— Ah, está na cara que você também consegue ler os meus pensamentos. Talvez exista uma linha tênue entre a filha de um pastor e uma bruxa.
— Talvez. Portanto, nunca me provoque. O sinal de trânsito ficou verde. Agora direto para casa.
Rolex recuperado e brilhando no pulso, Caim Júnior dirigiu sua Mercedes sabendo que precisava de mais autocontrole do que era capaz, mesmo com a orientação de Zedd.
Estava tão cheio de ressentimentos que queria correr como um foguete pelas ladeiras da cidade, ignorando todos os sinais de trânsito e placas de "pare", mantendo a agulha do velocímetro na sua marca mais alta, como se alcançando uma grande velocidade conseguisse resfriar a cabeça. Queria atropelar pedestres desavisados, rachar seus ossos e jogá-los para o alto.
Ardia com tanta raiva, que por transmissão térmica direta de suas mãos ao volante seu carro estaria reluzindo em vermelho se não estivesse atravessando nuvens de neblina fria. Rancor, virulência, acrimônia, veemência: todas as palavras aprendidas com o propósito de aperfeiçoamento pessoal eram-lhe inúteis agora, porque nenhuma conduzia adequadamente o mínimo de sua raiva, vasta e ígnea como o sol, muito mais formidável que seu vocabulário aperfeiçoado com tanto zelo.
Felizmente, a neblina fria não estava sendo evaporada pela Mercedes, considerando que ela facilitava a caça a Celestina. A névoa envolvia o Buick branco no qual ela estava, aumentando as chances de Júnior perder sua pista, mas também envolvia a Mercedes e assegurava que ela e seu amigo não percebessem que o par de faróis atrás deles era sempre do mesmo veículo.
Júnior não fazia a menor idéia de quem era o motorista do Buick, mas odiava aquele veado alto e magro porque tinha certeza de que ele estava comendo a Celestina, que jamais aceitaria ser comida por qualquer outro homem além de Júnior se o tivesse conhecido primeiro, porque, como sua irmã, como todas as mulheres, iria considerá-lo irresistível. Acreditava ter direito anterior sobre Celestina devido ao seu relacionamento com a família; afinal de contas era o pai do filho bastardo de sua irmã, o que fazia dele um parente.
Em sua obra-prima A beleza da fúria: canalize a sua raiva e seja um vencedor, Zedd explica que todo homem plenamente evoluído é capaz de sentir raiva de uma pessoa ou coisa e instantaneamente redirecioná-la para qualquer nova pessoa ou coisa, usando-a para conquistar dominância, controle, ou qualquer objetivo que busque. A raiva não deve ser uma emoção que cresça gradualmente a cada nova causa justificável; ela deve ser guardada no coração e nutrida, mantida sob controle mas nutrida, de modo que seu poder pleno, branco de tão quente, possa ser direcionado instantaneamente quando for necessário, tenha ou não havido provocação.
Foi com grande satisfação que Júnior redirecionou sua raiva contra Celestina e o homem com ela. Esses dois, afinal de contas, eram os guardiães do verdadeiro Bartholomew, e portanto inimigos de Júnior.
Uma lixeira e um músico morto tinham humilhado Júnior como ele nunca fora humilhado antes, tão completamente quanto o vômito nervoso e a diarréia vulcânica o tinham humilhado, e ele odiava ser humilhado. A humilhação torna as pessoas humildes, e a humildade é para os fracassados.
Na lixeira escura, atormentado por torrentes incessantes de "e ses", convencido de que o espírito de Vanadium ia bater na tampa e trancá-lo nela com um cadáver ressuscitado, Júnior durante algum tempo vira-se reduzido à condição de uma criança indefesa. Paralisado pelo medo, recolhido ao canto da lixeira mais distante do pianista putrefato, acocorado sobre o lixo, Júnior tremera com tanta violência que seus dentes tinham soado um ritmo flamenco, ao qual seus ossos pareceram responder, como calçados de sapateado numa pista de dança. Júnior ouviu-se gemer, mas não conseguiu parar; sentiu lágrimas de vergonha queimarem suas faces, mas nada pôde fazer para deter o fluxo; sentiu sua bexiga cheia pronta a estourar diante da agulha do terror, mas com um esforço heróico conseguiu não molhar as calças.
Durante algum tempo ele tinha pensado que o medo só acabaria quando morresse de medo. Contudo, o medo acabou sumindo, e em seu lugar uma catarata de autocomiseração se derramou sobre Júnior. A autocomiseração, é claro, é um excelente combustível para a raiva. E era por isso que, enquanto perseguia o Buick através da névoa, subindo em direção a Pacific Heights, Júnior transbordava de fúria assassina.
Ao chegar no quarto de Caim, Vanadium reconheceu que a decoração austera do apartamento provavelmente fora inspirada pelo minimalismo que o assassino da esposa notara na casa do próprio detetive, em Spruce Hills. Foi uma descoberta estranha, que perturbou o detetive por motivos que ele não conseguiu definir completamente, mas ele permaneceu convencido de que sua percepção era correta.
A casa de Caim em Spruce Hills, que ele compartilhara com Naômi, não era mobiliada desta forma. A diferença entre esta e aquela casa — e a semelhança com as moradas de Vanadium — não podia ser explicada nem pela aquisição de riqueza nem por uma mudança de gosto em relação à experiência da vida urbana.
As paredes vazias, a mobília em madeira escura contrastando fortemente com o branco das paredes, a exclusão absoluta de bricabraques e lembranças: o efeito resultava na atmosfera mais próxima à de uma verdadeira cela monástica que podia ser obtida fora de um monastério. A única qualidade do apartamento que o identificava como uma residência mundana era o seu tamanho confortável, mas se a Mulher industrial fosse trocada por um crucifixo, até o tamanho teria sido insuficiente para determinar se a residência não era de algum frei abastado.
Assim. Dois monges eram eles: um a serviço da luz imortal; o outro a serviço das trevas eternas.
Antes de vasculhar o quarto, Vanadium caminhou a passos largos através dos aposentos que já inspecionara, subitamente lembrando das três pinturas bizarras sobre as quais Nolly, Kathleen e Sparky tinham falado, e se perguntando como poderia não tê-las visto. Elas não estavam aqui. Contudo, ela foi capaz de localizar os locais nas paredes onde as obras de arte estiveram penduradas, porque pregos ainda reluziam no gesso branco e havia ganchos pendurados nos pregos.
A intuição disse a Tom Vanadium que a remoção das pinturas significava alguma coisa, mas ele não era um Sherlock suficientemente talentoso para compreender de imediato o mutivo da ausência.
Mais uma vez no quarto, antes de vasculhar os conteúdos das gavetas da mesinha-de-cabeceira, do guarda-roupas e do closet, Vanadium examinou o banheiro adjacente, acendendo a luz porque ali não havia janela — e encontrou Bartholomew numa parede, retalhado e perfurado, desfigurado por centenas de ferimentos.
Wally estacionou o Buick no meio-fio diante da casa na qual morava, e quando Celestina deslizou sobre o assento do carro até a porta do passageiro, ele lhe disse:
— Não, espere aqui. Vou pegar a Anja e deixar vocês duas em casa.
— Que é isso, Wally? A gente pode caminhar até lá.
— Está frio, a neblina está densa e é tarde. E pode haver vilões à solta a esta hora. — E acrescentou, fingindo solenidade: — Vocês duas agora são mulheres da família Lipscomb, ou vão ser em breve, e as mulheres da família Lipscomb jamais passeiam desacompanhadas pela perigosa noite urbana.
— Hummm... Estou me sentindo mimada.
O beijo foi delicioso, longo e tranqüilo, carregado da paixão contida que prometia noites ardorosas na cama matrimonial.
— Eu te amo, Celie.
— Eu te amo, Wally. Nunca fui tão feliz na minha vida.
Deixando o motor funcionando e o aquecedor ligado, Wally saltou do carro e, curvando-se para a janela, disse à noiva:
— É melhor trancar a porta enquanto eu não estiver com você. E fechou a porta.
Embora Celestina se sentisse um pouco paranóica, tendo sua segurança tão preservada numa vizinhança segura como aquela, ainda assim procurou pelo controle mestre e travou as portas.
As mulheres da família Lipscomb obedecem de bom grado aos desejos dos homens da família Lipscomb — a não ser que elas discordem deles, é claro, ou não discordem, mas apenas não queiram dar o braço a torcer.
O assoalho do banheiro amplo era calçado com azulejos de mármore bege e preenchimentos de granito preto em forma de diamante. O mármore do tampo da pia e do boxe combinavam com o do assoalho, assim como o usado nos lambris.
Sobre os lambris, as paredes eram cobertas por placas de madeira compensada, em vez do gesso que se via no resto do apartamento. Numa das placas, Enoch Caim gravara o nome Bartholomew três vezes.
Havia uma grande fúria aparente na forma como as letras de imprensa vermelhas tinham sido desenhadas na parede em talhos rudes. Mas a caligrafia parecia obra de uma mente calma e racional, em comparação com o que fora feito depois que os três nomes Bartholomew haviam sido gravados.
Com algum instrumento afiado, provavelmente uma faca, Caim tinha esfaqueado e estriado as letras vermelhas, trabalhando na parede com tamanha fúria que dois dos nomes Bartholomew já quase não podiam mais ser lidos. O compensado estava marcado por centenas de riscos e perfurações.
A julgar pelo modo como as letras estavam borradas, e pelo fato de que algumas tinham escorrido antes de secar, o instrumento de escrita não tinha sido um hidrocor de ponta de feltro, como Vanadium pensara inicialmente. As gotas vermelhas salpicadas na tampa fechada da privada e no piso de mármore bege, todas secas agora, aumentaram a sua suspeita.
Cuspiu no dedão direito, esfregou-o numa das gotas secas no assoalho, esfregou o dedão e o indicador um no outro, e aproximou a matéria reidratada do nariz. Sentiu cheiro de sangue.
Mas sangue de quem?
Outras crianças de três anos, acordadas do sono depois das onze da noite, costumavam ficar birrentas, e quase sempre tontas e incapazes de se comunicar. Quando Anja acordava, acordava completamente, com um bom humor maravilhoso, e atenta para todos os detalhes da Criação, concedendo peso à predição de que ela seria um prodígio das artes.
Saltando pela porta entreaberta para-o colo de Celestina, a menina disse:
— Tio Wally me deu um bombom.
— Você o guardou no sapato?
— Por que no sapato?
— Está debaixo do seu capuz?
— Está na minha barriga!
— Então você não pode comer.
— Eu comi.
— Então ele se foi para sempre. Como isso é triste.
— Ele não é o único bombom do mundo, mamãe. Esta é a neblina mais densa de todos os tempos?
— É praticamente a mais densa que já vi.
Enquanto Wally sentava atrás do volante e fechava a porta, Anja disse:
— Mamãe, de onde a neblina vem? E não diga que vem do Havaí!
— De Nova Jersey.
— Antes que ela me dedure, eu lhe dei um bombom.
— Ela já dedurou.
— Mamãe achou que eu tinha guardado no sapato.
— Foi preciso suborná-la para que ela entrasse nos sapatos e no casaco antes de segunda-feira — disse Wally.
— O que é neblina? — perguntou Anja.
— Nuvens — replicou Celestina.
— O que as nuvens estão fazendo aqui embaixo?
— Elas foram para a cama. Estavam cansadas — disse-lhe Wally enquanto ligava o carro e soltava o freio de mão. — Você não está?
— Posso comer outro bombom?
— Eles não dão em árvores, sabia? — disse Wally.
— Eu tenho uma nuvem dentro de mim agora? Celestina perguntou:
— Por que acha isso, meu docinho?
— Porque estou exalando a neblina.
— É melhor segurar ela com força — alertou Wally, parando o carro no cruzamento. — Ela pode sair flutuando, e então teremos de chamar os bombeiros para trazê-la para baixo.
— Onde eles dão? — perguntou Anja.
— Em flores — respondeu Wally. E Celestina acrescentou:
— Os bombons são as pétalas.
— Onde nascem as flores de bombons? — perguntou Anja, desconfiada.
— Havaí — respondeu Wally.
— Foi o que pensei — disse Anja, contorcendo o rosto numa expressão incrédula. — A sra. Ornwall fez queijo pra mim.
— A sra. Ornwall é uma grande fabricante de queijos — disse Wally.
— Num sanduíche — esclareceu Anja. — Por que ela mora com você, tio Wally?
— Ela é a minha governanta.
— A mamãe não podia ser a sua governanta?
— A sua mãe é uma artista. Além disso, você não quer que a sra. Orn perca o emprego, quer?
— Todo mundo precisa de queijo — disse Anja, o que aparentemente si ficava que jamais faltaria trabalho para a sra. Ornwall. — Mamãe, você está errada. — Errada sobre o quê, querida? — perguntou Celestina enquanto Wally estacionava rente ao meio-fio.
— O bombom não se foi para sempre.
— Então está mesmo no seu sapato? Virando-se no colo de Celestina, Anja disse:
— Cheira — e colocou o dedo indicador da mão direita debaixo do nariz mãe.
— Isso não é educado, mas devo admitir que cheira bem.
— É o bombom. Depois que comi, o bombom foi se arrastando por dentro de mim até o meu dedo.
— Se sempre vão parar aí, então você vai acabar com um dedo bem gordo. Wally desligou o motor e apagou os faróis.
— Lar, onde está o coração.
— Que coração? — perguntou Anja. Wally abriu a boca, não conseguiu pensar numa resposta. Rindo, Celestina disse para ele:
— Nem sempre dá para ganhar, sabia?
— Talvez não seja onde está o coração, mas onde corre o búfalo.
No balcão ao lado da pia do banheiro estava uma caixa aberta de Band-Aids de tamanhos variados, uma garrafa de álcool e uma garrafa de iodo.
Tom Vanadium checou a pequena cesta de lixo ao lado da pia e encontrou um bolo de lenços de papel ensangüentados. E as embalagens amassadas de dois Band-Aids.
Evidentemente, o sangue era de Caim.
Se o assassino da esposa tinha se cortado por acidente, o fato de que escreve com o próprio sangue na parede indicava um temperamento explosivo e um reservatório profundo de raiva há muito acumulada.
Se ele tinha se cortado intencionalmente com o propósito expresso de escrever o nome em sangue, então o reservatório de raiva era ainda mais fundo, e contido por uma imensa represa de obsessão.
Em qualquer dos casos, escrever o nome em sangue tinha sido um ato ritualístico, e rituais desta natureza eram sintomas inconfundíveis de uma mente seriamente desequilibrada. Vanadium agora teve certeza de que fazer o assassino da esposa perder o controle seria mais fácil do que esperava, porque ele já tinha pouco controle sobre si mesmo.
Este não era o mesmo Enoch Caim que Vanadium conhecera três anos antes em Spruce Hills. Aquele tinha sido um homem cruel, mas não um animal selvagem. Friamente determinado, sim; obsessivo, não. Aquele Caim tinha sido calculista e controlado demais para sucumbir ao frenesi emocional exigido para pichar esta parede com sangue e usar uma faca para mutilar Bartholomew simbolicamente.
Enquanto estudava novamente a parede manchada e cortada, um arrepio, coleante como uma lacraia, desceu do escalpo de Tom Vanadium até a base do pescoço, mergulhou em seu sangue e se aninhou nos seus ossos. Ele teve a sensação terrível de que não estava mais lidando com uma força conhecida, nem com o homem perturbado que acreditara compreender, mas com um novo, e ainda mais monstruoso, Enoch Caim Júnior.
Carregando a mochila cheia com as bonecas e os livros de colorir de Anja, Wally atravessou a calçada na frente de Celestina e subiu os degraus da frente. Ela o acompanhou com Anja nos braços.
A menina estava sugando as nuvens com toda a capacidade de seus pulmões.
— Melhor me segurar com força, mamãe, eu vou flutuar.
— Não cheia de queijo e bombons.
— Por que aquele carro está seguindo a gente?
— Que carro? — perguntou Celestina, parando na base dos degraus e se virando para olhar.
Anja apontou para um Mercedes parado a cerca de doze metros atrás do Buick, também com os faróis apagados.
— Ele não está seguindo a gente, docinho. Deve ser um vizinho.
— Posso comer um bombom? Subindo os degraus, Celestina disse:
— Você já comeu um.
— E uma barra de chocolate?
— Sem barras de chocolate.
— Posso comer confetes de chocolate?
— Não é um tipo específico de chocolate que você não pode comer, querida. Você não pode comer nenhum chocolate.
Wally abriu a porta da frente e entrou.
— Posso comer uns wafers de baunilha?
Celestina passou apressada pela porta aberta com Anja.
— Não, não pode. Não quero você acordada a noite toda com uma overdose de açúcar.
Enquanto Wally as acompanhava até a sala da frente, Anja disse:
— Posso ter um carro?
— Um carro?
— Posso?
— Você não sabe dirigir — lembrou-a Celestina.
— Eu ensino a ela — disse Wally passando por elas na direção da porta do apartamento, pescando um chaveiro no bolso do casaco.
— Ele me ensina! — disse Anja triunfante à mãe.
— Então acho que teremos de arranjar um carro para você.
— Quero um que voe.
— Não fabricam carros voadores.
— Claro que fabricam — disse Wally enquanto destrancava as duas fechaduras da porta. — Mas você precisa ter vinte e um anos para conseguir uma licença para voar num deles.
— Eu tenho três.
— Então terá de esperar dezoito anos — disse ele, abrindo a porta do apartamento e mais uma vez dando um passo para o lado, permitindo que Celestina entrasse na frente.
Quando Wally entrou atrás das duas, Celestina sorriu para ele.
— Do carro até a sala de estar, tudo está correndo tão bem quanto um balé bem ensaiado — disse ela. — Nós vamos começar essa história de casamento com uma vantagem.
— Preciso fazer xixi — disse Anja.
— Isso não é uma coisa que se brade aos quatro ventos — ralhou Celestina.
— É quando a gente precisa muito fazer xixi.
— Nem mesmo quando a gente precisa muito.
— Me dê uma beijoca primeiro — pediu Wally. A menina beijou-o na bochecha.
— Ei, primeiro eu — disse Celestina. — Beijar o noivo é primazia da noiva,
sabia?
Embora Celestina ainda estivesse segurando Anja, Wally beijou-a, e mais uma vez foi delicioso, embora mais breve que antes, e Anja disse:
— Que beijo molhado.
— Que tal eu passar às oito para tomarmos o café juntos? — sugeriu Wally. — Precisamos marcar a data.
— Daqui a duas semanas é cedo demais?
— Preciso fazer xixi antes disso — declarou Anja.
— Eu te amo — disse Wally e Celestina repetiu isso, e ele disse: — Vou esperar no corredor até ouvir você trancar as fechaduras.
Celestina colocou Anja no chão, e a menina correu até o banheiro enquanto Wally saía para o corredor do edifício e fechava a porta do apartamento atrás de si.
Uma fechadura. Duas.
Celestina ficou parada diante da porta, prestando atenção, até ouvir Wally abrir a porta da rua e em seguida fechá-la.
Por um momento ficou encostada contra a porta do apartamento, seguran-do-se na maçaneta e na chave ainda introduzida na segunda fechadura, como se estivesse convencida de que se as soltasse iria desgrudar do chão e flutuar como uma menininha cheia de nuvens.
Com casaco e capuz vermelhos, Bartholomew apareceu primeiro nos braços do homem alto e magro, o sósia de Ichabod Crane, que também estava com uma mochila pendurada no ombro.
O homem parecia vulnerável, os braços ocupados com a criança e a mochila. Júnior considerou sair correndo da Mercedes, correr direto até o filho da puta que comia a Celestina e lhe dar um tiro à queima-roupa na cara. Atingido no cérebro, cairia mais rápido do que se o Cavaleiro Sem Cabeça o tivesse trespassado com um machado, e a criança cairia com ele, porque Júnior atiraria no menino bastardo em seguida, acertando três vezes na sua cabeça, quatro para garantir.
O problema era Celestina dentro do Buick, porque quando visse o que estava acontecendo, ela iria deslizar para o volante e pisar fundo no acelerador. O motor estava funcionando, fumaça branca subindo do capô e se misturando com a neblina, de modo que ela poderia fugir se pensasse rápido.
Correr atrás dela a pé. Atirar contra o carro. Talvez. Ele teria mais cinco balas se usasse uma no homem, quatro em Bartholomew.
Mas com o silenciador anexado, a pistola era útil apenas para trabalhos próximos. Depois de passar através de um supressor de som, a bala sairia do cano a uma velocidade inferior à usual, talvez com uma oscilação adicional, e a precisão cairia drasticamente com a distância.
Júnior fora alertado sobre esse problema de precisão pelo rapaz sem polegar que lhe entregara a arma dentro de uma sacola de comida chinesa, na igreja velha de Santa Maria. Júnior acreditava no aviso por presumir que o bandidinho de oito dedos fora privado dos polegares como punição por esquecer de passar essa mensagem, ou uma igualmente importante, a um cliente no passado, o que garantia sua atual atenção a detalhes.
Mas, é claro, ele também podia ter arrancado os próprios polegares como uma garantia dupla de que não seria recrutado e mandado para o Vietnã.
Em todo caso, se Celestina escapasse, haveria uma testemunha, e não faria diferença para o júri que ela fosse uma piranha sem talento que fazia pinturas kitsch. Ela teria visto Júnior saltar do Mercedes e, apesar da neblina, seria capaz de prover uma descrição razoável do carro. Júnior ainda esperava acabar este negócio sem ter que abrir mão de sua vida boa em Russian Hill.
Mas ele não era um perito em tiro. Não conseguia acertar nada que não fosse à queima-roupa.
Ichabod passou Bartholomew através da porta aberta até Celestina no banco do passageiro, contornou o Buick, pendurou a mochila nas costas, e se sentou de novo atrás do volante.
Se tivesse adivinhado que eles iriam percorrer apenas um quarteirão e meio, Júnior não os teria seguido na Mercedes. Teria feito o resto do caminho a pé. Quando parou novamente no meio-fio, a alguns espaços de carro atrás do Buick, perguntou-se se tinha sido visto.
Agora, aqui, todos os três na rua e vulneráveis ao mesmo tempo: o homem, Celestina, o menino bastardo.
Com três assassinatos de uma vez, as conseqüências seriam numerosas, especialmente se Júnior apagasse os três com tiros nas cabeças. Mas como estava entupido com antieméticos, antidiarréicos e anti-histamínicos, sentia-se adequadamente protegido contra seu traiçoeiro lado sensível. Na verdade desta vez queria ver uma quantidade significativa de conseqüências, porque precisava ter certeza de que o menino estava morto e que todo seu tormento finalmente chegara ao fim.
Contudo, Júnior temia ter sido visto ao parar no meio-fío, e que eles estivessem de olho nele, preparados para correr se saltasse do carro; nesse caso, todos os três conseguiriam entrar antes que Júnior pudesse abatê-los.
Se suspeitaram dele, não demostraram nenhum alarme óbvio. Os três entraram sem pressa, e a julgar por seu comportamento Júnior decidiu que não tinha sido visto, afinal.
Luzes foram acesas nas janelas do andar térreo, à direita da porta da frente.
Espere aqui no carro. Dê-lhes tempo para se acomodarem. A esta hora, colocarão primeiro o menino na cama. Depois Ichabod e Celestina subirão para o quarto e se despirão para a noite.
Se Júnior tivesse paciência, poderia entrar sorrateiro na casa, encontrar Bartholomew, matar o menino na cama, apagar Ichabod em seguida, e ainda ter uma chance de fazer amor com Celestina.
Não nutria mais esperanças de que os dois pudessem ter um futuro juntos. Depois de provar da máquina do prazer de Caim Júnior, Celestina iria querer mais, como as mulheres sempre queriam, mas o momento para um romance significativo teria passado. Porém, depois de tanto sofrimento, Júnior merecia o consolo de ter seu corpo macio ao menos uma vez. Uma pequena compensação. Toma lá, dá cá.
Se não fosse pela irmã vadia de Celestina, Bartholomew não existiria. Não haveria ameaça. A vida de Júnior seria diferente, melhor.
Celestina decidira abrigar o menino bastardo e, ao fazê-lo, declarara-se inimiga de Júnior, embora ele jamais tivesse feito nada contra ela, absolutamente nada. Na verdade ela não o merecia, não merecia nem mesmo uma rapidinha antes de morrer. Talvez depois que matasse Ichabod, Celestina implorasse a Caim para que ele a possuísse, e ele negasse.
Um caminhão passou em alta velocidade, agitando a neblina, e uma nuvem branca e coleante cobriu as janelas do carro, desorientando Júnior.
Júnior sentia-se tonto. Sentia-se estranho. Torceu para não ter contraído uma gripe.
O dedo médio de sua mão direita latejava debaixo do par de Band-Aids. Júnior cortara-se enquanto usava o amolador elétrico para preparar as facas e agravara o ferimento ao estrangular Neddy Gnathic. Jamais teria se cortado se não fosse a necessidade de estar bem armado e preparado para Bartholomew e seus guardiães.
Durante os últimos três anos, Júnior sofrera muito por causa dessas irmãs, incluindo a recentíssima humilhação na lixeira com o músico morto, o amigo de pescoço de lápis de Celestina com uma propensão por lambidas post mortem. A lembrança desse horror ardia tão vívida—cada detalhe grotesco concentrado num lampejo intenso e devastador — que a bexiga de Júnior subitamente ficou inchada e cheia, embora tivesse dado uma mijada longa e satisfatória no beco em frente ao restaurante onde a pintora de cartões-postais jantara com Ichabod.
Havia mais uma coisa. Júnior não tinha almoçado, porque o espírito de Vanadium quase o alcançara enquanto ele procurava por prendedores de gravata e lenços de seda antes do almoço. Em seguida também deixou de jantar, porque precisara manter Celestina sob vigilância quando ela não foi direto para casa. Estava com fome. Morrendo de fome. Mais um sofrimento que Celestina tinha lhe causado. Aquela piranha.
Mais carros passaram por ele, e mais uma vez a névoa grossa coleou, coleou.
Os seus atos... retornarão para você, multiplicados por um número além da sua imaginação... o espírito de Bartholomew... irá encontrá-lo... e proferirá o julgamento terrível que você merece.
Essas palavras, numa espiral vertiginosa, gravadas nas fitas de memória na mente de Júnior, soaram tão nítidas e alarmantes quanto o lampejo de recordação do tormento na lixeira. Ele não podia lembrar de onde as ouvira, quem as proferira, mas a reverberação ecoava por sua mente.
Antes que pudesse colocar as palavras para tocar novamente, de modo a analisá-las, Júnior viu Ichabod sair da casa. O homem voltou ao Buick, parecendo flutuar através da névoa, como um fantasma numa masmorra. Ele ligou o motor, fez uma curva em U na rua e dirigiu colina acima, na direção da casa na qual Bartholomew estivera antes.
No quarto de Caim, a lanterna coberta pela mão em concha de Tom Vanadium revelou uma estante de 1,80m de altura que acolhia cerca de cem livros. A gaveta superior estava vazia, assim como a maior parte da segunda.
Lembrou da coleção de livros de auto-ajuda de Caesar Zedd que ocupara um lugar de honra na residência anterior do assassino da esposa em Spruce Hills. Caim possuía uma edição em capa-dura e uma edição popular de cada livro de Zedd. As edições mais caras haviam estado em condições impecáveis, como se tivessem sido manipuladas apenas com luvas; mas o texto nas edições populares estava muito sublinhado, e os cantos de várias páginas tinham sido dobrados para marcar passagens favoritas.
Uma olhada rápida na estante revelou que a preciosa coleção de Zedd não estava lá.
O closet, que Vanadium explorou em seguida, continha menos roupas do que esperara. Apenas metade do espaço no closet estava sendo usado. Muitos cabides vazios estavam pendurados, encostados uns contra os outros.
Numa prateleira acima da vara de pendurar roupas havia uma única mala Mark Cross, muito cara, muito elegante, encostada num dos cantos da prateleira alta, encostada sem necessidade, porque o resto da prateleira alta estava vazia — com espaço suficiente para mais três malas.
Depois de dar a descarga, Anja subiu num banquinho e bochechou com água da pia.
— Escove os dentes, também — disse Celestina, encostando-se no umbral na porta aberta.
— Já fiz isso.
— Fez antes do bombom.
— Ele não sujou meus dentes! — protestou Anja.
— Como isso é possível?
— Não mastiguei.
— Então você inalou o bombom pelo nariz.
— Engoli inteiro.
— O que acontece com gente que conta lorota? Olhos arregalados:
— Não tô contando lorota, mamãe.
— Então o que está fazendo?
— Eu...
— Sim?
— Estou só dizendo...
— Sim?
— Vou escovar os dentes — decidiu Anja.
— Boa menina. Vou pegar o seu pijama.
Júnior na neblina. Tentando, tentando com tanta força, viver no futuro, onde viviam os vencedores. Mas sendo implacavelmente sugado de volta para o passado inútil.
Girando, girando, girando, o misterioso aviso em sua mente: o espírito de Bartolomeu... irá encontrá-lo... e proferirá o julgamento terrível que você merece.
Pôs as palavras para tocar de novo, escutou-as atentamente, mas ainda assim a fonte da ameaça continuava lhe escapando. Estava ouvindo-as com sua própria voz, como se as tivesse lido antes num livro, mas suspeitava que alguém as falara para ele e que...
Um carro-patrulha da polícia de San Francisco passou por ele, sirene silenciosa, o farol de emergência piscando no teto.
Assustado, Júnior empertigou-se na poltrona, segurando com força a pistola com silenciador, mas o carro-patrulha não freou abruptamente nem parou no meio-fio diante da Mercedes, conforme ele esperou.
A névoa cobriu as janelas do Mercedes de Júnior, e os fachos de luz giratórios do farol do carro-patrulha afastaram-se, parecendo pairar em meio à neblina, como se fossem espíritos desencarnados procurando alguém para possuir.
Quando Júnior olhou seu Rolex, percebeu que não sabia há quanto tempo estava sentado ali desde que Ichabod saíra no Buick. Talvez um minuto, talvez dez.
Uma lâmpada ainda brilhava por trás das janelas da frente no andar térreo da casa, à direita.
Ele preferia aventurar-se ao interior da casa enquanto alguma lâmpada ainda estivesse ligada. Não queria ser obrigado a perambular sorrateiramente no escuro através de cômodos estranhos: só de pensar nisso sentia arrepios percorrerem suas tripas.
Pegou um par de luvas de látex finas. Flexionou as mãos. Tudo bem.
Fora do carro, ao longo da calçada, através dos degraus da varanda, do Mercedes para a névoa, para o assassinato. Destravador automático, que parecia uma pistola, na mão esquerda; pistola de verdade na mão direita; três facas em bainhas amarradas ao corpo.
A porta da frente estava aberta. Esta não era mais uma única casa; fora convertida num prédio de apartamentos.
Do corredor público no andar térreo, as escadas levavam aos três andares superiores. Ele seria capaz de ouvir qualquer pessoa que descesse bem antes que ela chegasse.
Não havia elevador. Ele não precisava preocupar-se que portas se abrissem com um simples dingue por aviso, admitindo testemunhas ao corredor.
Um apartamento à direita, um à esquerda. Júnior foi ao da direita, ao Apartamento 1, onde ele tinha visto luzes por trás de janelas cobertas por cortinas.
Wally Lipscomb estacionou em sua garagem, desligou o motor e começou a sair do Buick antes de ver que Celestina tinha deixado sua bolsa no carro.
Empolgados com a promessa do noivado, ainda animados com o sucesso na galeria, com Anja completamente acordada apesar da hora e energizada pelo bombom, Wally estava surpreso por eles terem realizado a transferência do furacão-zinho vermelho de uma casa para o Buick e para outra casa sem ter esquecido mais nada além de uma bolsa. Celie chamava isso de balé, mas Wally pensava que era apenas ordem momentânea no caos, o caos desafiador-alegre-frustrante-deli-cioso-vibrante de uma vida de amor, esperança e crianças, que ele não trocaria por calma ou riquezas.
Sem suspiro ou queixa, decidiu que caminharia de volta até a casa de Celestina para levar a bolsa. O passeio não seria problema. Na verdade, devolver a bolsa dar-lhe-ia uma chance de conseguir outro beijo de boa-noite.
Uma mesinha-de-cabeceira, duas gavetas.
Na gaveta superior, além dos objetos esperados, Tom Vanadium encontrou um folheto de galeria para uma exposição de arte. Sob a luz filtrada pela mão em concha, o nome Celestina White pareceu destacar-se do papel lustroso como se estivesse impresso em tinta reflexiva.
Em janeiro de 1965, enquanto Vanadium vivia o primeiro do que se revelaria um coma de oito meses, Enoch Caim Júnior procurara a assistência de Nolly numa busca pelo filho recém-nascido de Serafina. Quando soube disso por Magusson, muito depois do evento, Vanadium considerou que Caim tinha ouvido a mensagem de Max Bellini na sua secretária eletrônica, feito a conexão com a morte de Serafina num "acidente" em San Francisco, e decidira procurar pela criança porque ela era dele. Paternidade era a única razão imaginável para o seu interesse pelo bebê.
Mais tarde, no começo de 1966, ao sair do coma e suficientemente recuperado para receber visitas, Vanadium passara uma hora muito difícil com seu velho amigo Harrison White. Por respeito à memória de sua filha morta, e não tanto por preocupação com sua imagem como pastor, o reverendo recusara-se a reconhecer que Serafina morrera grávida ou tinha sido estuprada — embora Max Bellini já tivesse confirmado a gravidez e acreditasse, tendo por base seu instinto de tira, que ela acontecera como decorrência de estupro. A julgar por sua atitude, Harrison parecia considerar que como Fimie estava morta, não se podia ganhar nada abrindo esta ferida, e mesmo se houvesse um vilão envolvido, a atitude cristã seria perdoar, se não esquecer e confiar na justiça divina.
Harrison era batista, Vanadium era católico, e embora abordassem a mesma por ângulos diferentes, estavam abordando-a de planetas diferentes, que era o sentimento que tomara Vanadium depois de sua conversa. Era verdade que Enoch Caí talvez jamais fosse levado a julgamento pelo estupro de Fimie, depois da morte jovem e na ausência de seu testemunho. E também havia a certeza incómoda de q explorar a possibilidade de Caim ser o estuprador abriria os ferimentos nos corações de todos os membros da família White, sem nenhum propósito útil. Não obstante, confiar apenas na justiça divina parecia ingênuo, se não moralmente questionável.
Vanadium compreendia a profundidade da dor de seu velho amigo, e com sabia que a angústia pela perda de um filho podia fazer os melhores homens agirem movidos pela emoção e não pelo raciocínio, aceitou a preferência de Harriso em deixar o assunto descansar. Depois que a passagem do tempo favoreceu a reflexão, Vanadium decidiu que Harrison era muito mais confiante na fé batista do que ele na católica. Vanadium sentia-se mais confortável por trás de um distintivo do que dentro de uma batina, e talvez assim continuasse pelo resto de sua vida.
No dia em que compareceu ao funeral de Serafina e depois parou diante da sepultura de Naomi para alfinetar Caim, Vanadium suspeitou que Fimie não morrera num acidente de carro, conforme era alegado, mas nem por um momento pensou que o assassino da esposa estava ligado de alguma forma a esse outro crime. Agora, encontrar o folheto da galeria na mesinha-de-cabeceira pareceu-lhe mais uma prova circunstancial da culpa de Caim.
A presença do folheto também perturbou Vanadium por outro motivo. Depois que Nolly dissera a Caim que tinha chegado a um beco sem saída, o assassino da esposa descobrira que Celestina assumira a custódia do bebê. Por algum motivo, a maravilha de nove dedos originalmente acreditara que a criança era menino, mas se agora seguira Celestina, ele sabia da verdade.
Por que Caim, mesmo se fosse o pai, estaria interessado na menininha, é um mistério completo para Tom Vanadium. Esse homem sinistramente oco, que acreditava apenas nos mandamentos de um mestre da auto-ajuda, não tinha respeito por nada; a paternidade, portanto, não exerceria nenhum apelo sobre ele que decerto também não sentiria nenhum tipo de obrigação para com a criança que resultara de seu ataque a Fimie.
Talvez o motivo de sua insistência no assunto fosse mera curiosidade, o de saber como uma filha dele pareceria; contudo, se havia mais alguma coisa por trás de seu interesse, certamente não era uma coisa benigna. Quaisquer que fossem os intentos de Caim, ele provavelmente iria ser pelo menos um incômodo para Celestina e a menina — e possivelmente um perigo.
Como Harrison, com a melhor das intenções, não quisera abrir ferimentos, Caim podia caminhar até Celestina em qualquer lugar, a qualquer momento, e ela não saberia que ele tinha sido o estuprador de sua irmã. Para ela, Caim seria um estranho como qualquer outro.
E agora Caim sabia a respeito de Celestina, e estava interessado nela. Informado sobre esse desenvolvimento, Harrison certamente reconsideraria a sua posição.
Carregando o folheto, Vanadium retornou ao banheiro e acendeu a luz superior. Ele olhou a parede pichada, o nome vermelho e arranhado.
O instinto, talvez até a razão, dizia-lhe que havia alguma conexão entre esta pessoa, este Bartholomew, e Celestina. O nome tinha aterrorizado Caim num pesadelo, na mesma noite do dia em que ele matara Naômi, e Vanadium portanto incorporara-o à sua estratégia de guerra psicológica sem conhecer a significância para o seu suspeito. Por mais que sentisse a conexão, não conseguia encontrar o elo. Ele carecia de alguma informação crucial.
Sob esta luz mais forte, ele examinou melhor o folheto e descobriu a fotografia de Celestina. Ela e a irmã não podiam passar por gêmeas, mas a semelhança entre as duas era impressionante.
Se Caim sentira-se atraído por uma mulher por sua aparência, certamente iria se sentir atraído por outra. E talvez as irmãs compartilhassem uma qualidade além da beleza que atraía Caim com um poder ainda maior. Inocência, talvez, ou bondade: ambas as coisas, alimentos para um demônio.
O título da exposição era "Este Dia Marcante".
Como se ele fosse o lar de uma espécie de cupim que preferia o sabor de homens ao de madeira, Vanadium sentiu um formigamento em sua medula.
Ele conhecia o sermão, é claro. O exemplo de Bartolomeu. O tema da reação em cadeia nas vidas humanas. A observação de que um pequeno ato de bondade podia inspirar outros atos de bondade cada vez maiores, e sobre os quais jamais saberíamos, em vidas distantes tanto no tempo quanto no espaço.
Ele jamais associara o temido Bartholomew de Enoch ao apóstolo no sermão de Harrison White, que tinha sido transmitido uma vez em dezembro de 1964, o mês anterior à morte de Naômi, e mais uma vez em janeiro de 1965. Mesmo agora, com o Bartholomew escrito em sangue e arranhado e esfaqueado na parede, e com Este Dia Marcante à sua frente no folheto, Tom Vanadium não conseguiu fazer completamente a conexão. Ele fez força para juntar os elos partidos nesta corrente de evidências, mas eles continuavam separados por um elo perdido.
O que viu em seguida no folheto não foi o elo que procurava, mas o alarmou tanto que o papel dobrado em três estremeceu em suas mãos. A recepção para a exposição de Celestina tinha sido esta noite, tendo terminado há mais de três horas.
Coincidência. Nada mais. Coincidência.
Mas a Igreja e os físicos quânticos concordavam que coincidências não existem. Uma coincidência é o resultado de um planejamento misterioso e significativo — ou é a ordem estranha sob a aparência do caos. Faça a sua escolha. Ou, se preferir, sinta-se livre para acreditar que as duas opções são a mesma coisa.
Portanto, não era coincidência.
Todos esses arranhões na parede. Perfurações. Retalhos. Era necessário muita fúria para realizá-los.
Malas pareciam estar faltando. Algumas roupas, também. Isso podia significar um passeio de fim de semana.
Você escreve nomes nas paredes com o seu próprio sangue, brinca de Psicose usando uma placa de madeira compensada no lugar de Janet Leigh — e então voa para o Reno para passar o fim de semana jogando vinte-e-um, assistindo a shows e almoçando em bufês do tipo coma-tudo-o-que-puder. Não era provável.
Correu até o quarto e acendeu o abajur na mesinha-de-cabeceira, sem se preocupar com a possibilidade da luz poder ser vista da rua.
As pinturas desaparecidas. A coleção desaparecida dos livros de Zedd. Você não leva coisas desse tipo para um fim de semana em Reno. Você leva essas coisas se acha que talvez não vá voltar nunca.
Apesar de já ser tarde da noite, discou o número da casa de Max Bellini.
Ele e o detetive da homicídios eram amigos há quase trinta anos, desde que Vanadium era um jovem padre recém-designado para o Orfanato de Santo Anselmo aqui na cidade. Antes de escolher a vida como policial, Max contemplara a vida como padre, e talvez naquela época ele sentira o policial que havia em Tom Vanadium.
Quando Max atendeu, Vanadium deixou sua respiração escapar num fuuuu de alívio e começou a falar junto com a inalação:
— Sou eu, Tom, e talvez eu esteja apenas com um caso de paranóia aguda, mas tem uma coisa que acho melhor você fazer, e acho bom fazer agora.
— Você não sofre de paranóia aguda, você causa essa doença — disse Max. — Me conte qual é o problema.
Duas fechaduras de alta qualidade. Proteção suficiente contra um intruso médio, mas inadequada para manter um homem auto-aperfeiçoado e cheio de raiva canalizada.
Júnior estava com a pistola de 9mm munida de silenciador debaixo do braço esquerdo, apertada contra a costela, deixando ambas as mãos livres para usar o destravador automático.
Sentia-se tonto novamente. Mas desta vez sabia o motivo. Não era gripe. Estava lutando contra o casulo de sua vida, trabalhando para nascer numa forma nova e melhor. Júnior tinha sido uma pupa, aprisionada numa crisálida de medo e confusão, mas agora era uma imago, uma borboleta completamente evoluída, porque tinha usado o poder de sua ira belíssima para se auto-aperfei-çoar. Quando Bartholomew estivesse morto, Caim Júnior finalmente iria abrir as asas e voar.
Pressionou o ouvido esquerdo na porta, segurou a respiração, não ouviu nada e cuidou primeiro da fechadura superior. Silenciosamente, introduziu a língua fina e metálica do destravador automático no canal da chave, debaixo dos pinos internos da fechadura.
Agora um risco pequeno, mas real, de ser ouvido lá dentro; ele apertou o gatilho. A mola no interior do destravador automático impeliu a língua metálica à frente, obrigando alguns dos pinos a se alojarem em seus orifícios. O ruído metálico do tambor contra a mola e o clique da língua metálica contra os pinos da fechadura foram sons baixos, mas qualquer pessoa que estivesse perto do outro lado da porta seria capaz de ouvi-los; contudo, se a pessoa estivesse a um cômodo de distância, o ruído não iria alcançá-la.
Nem todos os pinos eram empurrados para dentro de seus orifícios com um simples aperto no gatilho. Era preciso apertar o gatilho no mínimo três vezes, às vezes até seis, dependendo da fechadura.
Decidiu usar a ferramenta apenas três vezes em cada fechadura antes de tentar abrir a porta. Quanto menos barulho, melhor. Talvez a sorte estivesse ao seu lado.
Clique, clique, clique. Clique, clique, clique.
Girou a maçaneta. A porta se moveu para dentro, mas ele a empurrou apenas uma fração de centímetro.
Segundo Zedd, o homem plenamente evoluído jamais confia nos deuses da sorte, porque ele faz a sua sorte com tanta confiabilidade que pode cuspir impunemente nos rostos dos deuses.
Júnior enfiou o destravador automático num bolso de sua jaqueta de couro.
Novamente em sua mão direita, a pistola de verdade, carregada com dez balas de ponta oca, parecia vibrar com poder sobrenatural: estava para Bartholomew como o crucifixo para Drácula, a água benta para um demônio, a kriptonita para o Super-Homem.
Tanto quanto tinha sido vermelha para o passeio noturno, Anja estava amarela para seu retiro para a cama em sua própria casa. Pijama amarelo de duas peças. Meias amarelas. A pedido da menina, Celestina amarrara um laço amarelo em sua massa de cabelos enrolados.
Essa coisa de laço começara há alguns meses. Anja dizia que queria ficar bonita enquanto dormia, caso encontrasse um lindo príncipe em seus sonhos.
— Amarelo, amarelo, amarelo, amarelo — disse Anja com satisfação enquanto se examinava na porta espelhada do closet.
— Ainda a minha pequena M&M.
— Vou sonhar com meus pintinhos — disse Anja. — E se eu estiver toda de amarelo, eles vão pensar que sou um também.
— Você também pode sonhar com bananas — sugeriu Celestina enquanto dobrava os panos da cama.
— Não quero ser uma banana.
Devido aos seus pesadelos ocasionais, Anja gostava de dormir de vez em quando na cama da mãe e não na sua própria, e esta era uma dessas noites.
— Por que você quer ser uma pintinha?
— Porque nunca fui uma. Mamãe, você e tio Wally são casados agora? Surpresa, Celestina disse:
— De onde você tirou essa idéia?
— Você ganhou um anel como o da sra. Moller do fundo do corredor. Dotada com poderes incomuns de observação visual, a menina notava com
rapidez as mudanças mais sutis em seu mundo. O anel brilhante na mão esquerda de Celestina não lhe escapara.
— Ele deu um beijo molhado em você — acrescentou Anja. — Como os beijos nojentos nos filmes.
— Você é uma detetivezinha e tanto.
— Vamos mudar de nome?
— Talvez.
— Vou ser Anja Wally?
— Anja Lipscomb, embora não soe tão bem quanto White, não acha?
— Quero me chamar Wally.
— Não vai acontecer. Agora, venha pra cama.
Anja pulou-voou-flutuou até a cama da mãe, rápido como uma pintinha.
Bartholomew estava morto mas ainda não sabia. Pistola na mão, casulo retalhado, pronto para abrir suas asas de borboleta, Júnior empurrou a porta para o apartamento, viu uma sala de estar deserta, iluminada suavemente e mobiliada com bom gosto, e estava prestes a cruzar o umbral quando a porta da rua abriu e no corredor entrou Ichabod.
O homem estava carregando uma bolsa, fosse lá o que isso significasse, e quando passou pela porta estava com uma expressão boba no rosto, que mudou no instante em que viu Júnior.
Aqui estava ele novamente, o maldito passado, voltando quando Júnior pensava ter-se livrado dele. Este filho da puta alto, magro, comedor de Celestina, guardião de Bartholomew, fora de carro para sua casa, mas não pudera permanecer no passado, onde pertencia, e estava abrindo a boca para dizer Quem é você ou talvez gritar um alarme, quando Júnior atirou nele três vezes.
Embrulhando Anja nas cobertas, Celestina disse:
— Quer que tio Wally seja o seu papai?
— Isso seria maravilhoso.
— Também acho.
— Nunca tive um papai, você sabe.
— Acha que valeu a pena esperar pelo Wally, hein?
— Vamos nos mudar para a casa do tio Wally?
— É assim que costuma funcionar.
— A sra. Ornwall vai embora?
— Todas essas coisas precisam ser planejadas.
— Se ela for embora, você vai ter que fazer o queijo.
O supressor de som não deixava a pistola completamente silenciosa, mas os três disparos, cada um como uma tosse baixa abafada pela mão, provavelmente não seriam ouvidos fora do corredor.
O tiro um acertou Ichabod na coxa direita, porque Júnior disparou enquanto levantava a arma de seu lado, mas as duas balas seguintes acertaram solidamente no torso. Isso não era um resultado ruim para um amador, ainda que a distância até o alvo fosse quase curta o bastante para definir seu encontro como um combate mano-a-mano, e Júnior decidiu que se a deformação em seu pé esquerdo não o tivesse impedido de combater no Vietnã, ele teria se saído excepcionalmente bem na guerra.
Segurando a bolsa como se estivesse determinado a não ser assaltado, mesmo na morte, o homem caiu, esticou braços e pernas, tremeu e ficou imóvel. Tombara sem nenhum grito de alarme, sem nenhum berro de dor mortal, com tão pouco barulho que Júnior sentiu vontade de beijá-lo, só que ele não beijava homens, vivos ou mortos, embora um homem vestido de mulher já o tivesse enganado, e embora um pianista morto certa vez tivesse lhe dado uma lambida no escuro.
Voz tão brilhante quanto sua roupa de dormir, irmã espiritual dos pintinhos em algum lugar, a Anja amarela levantou a cabeça do travesseiro e disse:
— Vai ter um casamento?
— Um casamento maravilhoso — prometeu-lhe Celestina, pegando um par de pijamas numa gaveta da cômoda.
Anja finalmente bocejou.
— Bolo?
— Sempre tem bolo em casamentos.
— Eu gosto de bolo. Gosto de cachorrinhos. Desabotoando a blusa, Celestina disse:
— Tradicionalmente, cachorrinhos não exercem um papel em casamento O telefone tocou.
— Não vendemos pizza — disse Anja, porque recentemente haviam recebido alguns telefonemas para uma pizzaria nova que tinha um número de telefone com um dígito diferente do deles.
Pegando o telefone antes do segundo toque, Celestina disse:
— Alô?
— Srta. White?
— Sim?
— Aqui é o detetive Bellini, do Departamento de Polícia de San Francisco. Está tudo bem aí?
— Tudo bem? Sim, claro. O que...
— Alguém está com você?
— Minha filhinha — disse ela e tardiamente imaginou que esse homem podia não ser um policial, mas alguém tentando determinar se ela e Anja estavam a sós no apartamento.
— Por favor, tente não ficar alarmada, srta. White, mas estou mandando um carro-patrulha até o seu endereço.
E subitamente Celestina acreditou que Bellini era realmente um tira, não porque sua voz contivesse muita autoridade, mas porque seu coração lhe disse que a hora havia chegado, que o perigo há muito antecipado finalmente se concretizara: o advento sombrio sobre o qual Fimie a alertara há quase três anos.
— Temos motivos para acreditar que o homem que violentou a sua irmã está vigiando você.
Ele vinha. Ela sabia disso. Sempre soubera disso, mas tinha quase esquecido. Havia alguma coisa especial em Anja, e devido a essa coisa especial ela vivia sob uma ameaça tão certa quanto os recém-nascidos de Belém sob o decreto de morte do rei Herodes. Muito tempo atrás, Celestina vislumbrara um padrão misterioso e complexo nisto, e aos olhos de uma artista, a simetria do desenho requeria que o pai aparecesse, mais cedo ou mais tarde.
— As suas portas estão trancadas? — perguntou Bellini.
— Apenas a da frente. Sim, trancada.
— Onde vocês estão agora?
— No meu quarto.
— Onde está a sua filha?
— Aqui.
Anja estava sentada na cama, tão alerta quanto amarela.
— A porta do quarto tem tranca? — perguntou Bellini.
— Não é grande coisa.
— Tranque-a assim mesmo. E não desligue. Permaneça na linha até os policiais chegarem.
Júnior não podia deixar o homem morto no corredor e desfrutar de algum tempo de qualidade com Celestina.
As conseqüências gostavam de ser descobertas, geralmente nos piores momentos possíveis, o que ele aprendera nos filmes, nas matérias criminais veiculadas pela mídia e até a partir de experiências pessoais. A descoberta sempre trazia os policiais a toda velocidade, soando suas sirenes e cheios de entusiasmo, porque esses filhos da puta eram os fracassados mais focados no passado na face da Terra, absolutamente consumidos por seu interesse pelas conseqüências.
Ele enfiou sua pistola de 9mm no cinto, segurou Ichabod pelos pés e o puxou rápido até a porta do Apartamento 1. A passagem do corpo deixou rastros de sangue brilhante no assoalho fosco de pedra calcária.
Não eram lagos de sangue, apenas manchas, e assim Júnior poderia limpá-las rapidamente, depois que tivesse tirado o cadáver do corredor, mas vê-las o deixou furioso. Ele estava aqui para colocar um ponto final em todas as questões deixadas em aberto em Spruce Hills, para livrar-se de espíritos vingativos, para melhorar sua vida e mergulhar de cabeça num futuro inteiramente novo. Diabos, ele não estava aqui para cuidar da manutenção do prédiol
Como o fio não era bastante longo para que pudesse levar o telefone consigo, Celestina pousou-o na mesinha-de-cabeceira, ao lado da lâmpada.
— O que está acontecendo? — perguntou Anja.
— Fique quietinha, meu bem — disse Celestina, cruzando o quarto até a porta, que estava entreaberta.
Todas as janelas estavam trancadas. Era conscienciosa em relação a elas.
Sabia também que a porta da frente estava trancada, porque Wally esperara para ouvir as fechaduras serem trancadas. Não obstante, entrou no corredor, onde a luz não estava acesa, passou rapidamente pelo quarto de Anja, chegou à entrada da sala de estar iluminada por um abajur... e viu um homem entrando de costas pela porta, arrastando alguma coisa grande, escura e pesada, arrastando um...
Deus misericordioso, não
Ele quase tinha passado com Ichabod pelo portal quando ouviu alguém dizer: — Não.
Júnior olhou sobre o ombro a tempo de ver Celestina virar-se e fugir. Teve apenas um vislumbre da mulher desaparecendo no corredor interno.
Foco. Acabar de puxar Ichabod para dentro. Agir agora, pensar depois. Não, não, um foco apropriado requer um entendimento da necessidade dos três ar.
perscrutar, analisar, priorizar. Pegue a piranha, pegue a piranha! Respirações lentas e profundas. Canalize a ira belíssima. Um homem plenamente evoluído é auto-controlado, é calmo. Mova-se, mova-se, mova-se!
Subitamente, tantas grandes máximas de Zedd, que antes formavam uma filosofia confiável e um guia para o sucesso, pareciam contradizer umas às outras.
Uma porta bateu, e depois de um breve debate interno entre empregar os três ar ou agir, Júnior deixou Ichabod estatelado sobre o limiar da porta. Precisava chegar a Celestina antes que ela alcançasse um telefone, e então poderia voltar e acabar de mover o corpo.
Celestina bateu a porta, pressionou o botão de trava na maçaneta, empurrou balançou arrastou o armário para a frente da porta, impressionada com sua própria força, e ouviu Anja falar ao telefone:
— Mamãe está movendo os móveis. Arrancou o fone da mão de Anja e disse a Bellini:
— Ele está aqui.
Jogou o telefone na cama, disse a Anja:
— Fique junto de mim.
Correu até as janelas, puxou as cortinas para desobstruir o caminho.
Compromisso e comando. Não importa muito se o curso de ação ao qual você se compromete é prudente ou impulsivo, não importa nem um pouco se a sociedade em geral acredita que aquilo que você está fazendo é uma coisa "boa" ou uma coisa "ruim". Contanto que você se comprometa sem reservas, você inevitavelmente comandará, porque sempre há tão poucas pessoas dispostas a se comprometer com alguma coisa, certa ou errada, sensata ou insensata, que aqueles que mergulham de cabeça têm mais chances de ser bem-sucedidos do que aqueles que não o fazem, mesmo quando suas ações são imprudentes e sua causa é estúpida.
Longe de ser estúpida, a causa de Júnior era sua sobrevivência e salvação, e ele estava compromissado a realizá-la com cada fibra de seu corpo, com toda a sua mente e todo o seu coração.
Três portas no corredor escuro: uma à direita, aberta; duas à esquerda, ambas fechadas.
A da direita, primeiro. Abrir a porta com um chute, simultaneamente disparando dois tiros, talvez porque este fosse o quarto de Celestina, onde ela guardava uma arma. Espelhos estilhaçaram: um tilintar de vidro caindo sobre porcelana, vidro sobre azulejos de cerâmica, muito mais barulho do que os tiros em si.
Percebeu que destroçara um banheiro deserto.
Barulho demais, chamando atenção. Agora não sobraria tempo para romance, não haveria tempo para desfrutar a experiência de ter provado duas irmãs. Apenas matar Celestina, matar Bartholomew, e ir embora, embora.
Primeiro quarto à esquerda. Chutar a porta. A sensação de um espaço mais amplo à frente. Desta vez sem banheiro, e mais escuro. Apontar a pistola para a frente, segurando-a com ambas as mãos. Dois disparos rápidos: tosse abafada, tosse abafada.
Comutador de luz à esquerda. Piscando por causa da luminosidade.
Quarto de criança. Quarto de Bartholomew. Mobília em cores primárias alegres. Pôsteres do Ursinho Pooh na parede.
Surpreendentemente, bonecas. Muitas bonecas. Aparentemente, o pequeno bastardo era afeminado, uma qualidade que com toda certeza não tinha sido herdada de seu pai.
Ninguém aqui.
A não ser embaixo da cama, no armário?
Perda de tempo para checar esses lugares. Mais provavelmente, a mulher e o menino estavam escondidos no último quarto.
Rápida e amarela, Anja voou até onde sua mãe estava e se agarrou a uma das cortinas como se pudesse esconder-se por trás dela.
Era uma janela no estilo francês, com Vidraças muito pequenas, de modo que Celestina não podia quebrar o vidro e pular para fora.
Duas vidraças de batente. Dois ferrolhos no lado direito, um em cima, um embaixo. Manivela destacada pousada na base do peitoril de trinta centímetros. Encaixe de mecanismo na base da moldura.
Celestina introduziu o cabo da manivela no encaixe do mecanismo. Não encaixou. Suas mãos tremiam. As arestas de metal no cabo da manivela precisavam ser alinhadas com as estrias no encaixe do mecanismo. Ela falhou, e falhou de novo.
Senhor, por favor, ajude-me com isto O maníaco chutou a porta.
Há apenas um momento ele arrombara o quarto de Anja e fizera muito barulho, mas agora o barulho foi ainda maior, trovejante a ponto de acordar a todos no prédio.
A manivela encaixou. Girar, girar.
Onde estava o carro-patrulha? Por que não ouvia uma sirene?
O mecanismo da janela rangeu, as duas vidraças de batente começaram a abrir para fora, mas devagar demais, e a noite fria e branca exalou uma pluma gelada para dentro do quarto.
O maníaco chutou mais uma vez, mas, devido ao guarda-roupa, a porta não cedeu. Assim, ele chutou mais forte, novamente sem sucesso.
— Rápido — sussurrou Anja.
Júnior deu um passo para trás e apertou o gatilho duas vezes, apontando para a fechadura. Um tiro arrancou um naco da ombreira, mas o outro atravessou a porta, estilhaçando mais do que madeira, e a maçaneta de bronze estremeceu e quase caiu.
Júnior empurrou a porta, mas ela ainda resistia, e ele se surpreendeu ao deixar escapar um grito de frustração que expressava exatamente o oposto do autocontrole, embora ninguém que o ouvisse fosse ter a menor dúvida quanto à sua determinação em se comprometer e comandar.
Mais uma vez disparou contra a fechadura, apertou o gatilho uma segunda vez e descobriu que não havia mais nenhuma bala no tambor. Havia cartuchos extras distribuídos em seus bolsos.
Ele jamais pararia para recarregar neste desesperado penúltimo momento, quando o sucesso ou o fracasso podia ser decidido numa questão de segundos. Essa seria a escolha de um homem que pensava primeiro e agia depois, o comportamento de um fracassado nato.
Um pedaço grande da porta tinha sido estourado pelos tiros. Graças à luz brilhando através do quarto no outro lado, Júnior conseguiu ver que nenhuma parte da fechadura permanecia intacta. Ao olhar através do buraco da porta e ver o fundo de um móvel empurrado contra ela, a natureza do problema ficou clara.
Ele dobrou o braço esquerdo e se arremeteu contra a porta. A mobília obstrutora era pesada, mas ela se moveu um centímetro. Se tinha se movido um centímetro, iria ser mover dois, de modo que não era irremovível. Júnior estava quase lá.
Celestina não escutou os dois tiros, mas jamais teria confundido as balas com qualquer outra coisa quando elas vararam a porta.
O armário que estava bloqueando a porta, que também fazia as vezes de penteadeira, tinha frente de espelho. Uma bala atravessou as costas de madeira, desenhou um quebra-cabeça em forma de teia no vidro, e ao se alojar na parede acima da cama — plaque! — fez descer uma chuva de cacos de gesso.
Quando as duas vidraças verticais da janela ainda estavam afastadas em menos de dezessete centímetros, elas travaram. O mecanismo gerou um som que pareceu pronunciar guturalmente o problema em si, c-c-c-corrosão, e empacou.
Até Anja, um espirro de querubim, não conseguiria passar por uma abertura de dezessete centímetros.
No corredor, o maníaco rugiu de frustração.
A maldita janela. A maldita janela emperrada. Celestina aplicou todas as suas forças na manivela, e sentiu-a ceder um pouco. Então, a manivela saltou do encaixe e raspou na parede.
Desta vez ela não ouviu um tiro, mas o som de madeira estilhaçada atestou a passagem de pelo menos mais duas balas.
Dando as costas para a janela, Celestina agarrou a menina e a empurrou na direção da cama, sussurrando:
— Embaixo da cama.
Anja não queria ir, talvez porque o bicho-papão ficasse embaixo da cama em alguns de seus pesadelos.
— Vai! — insistiu Celestina.
Finalmente Anja se agachou e sumiu debaixo da cama, com um adejo final de meias amarelas.
Três anos atrás, no Hospital St. Mary, com o alerta de Fimie vivo em sua mente, Celestina jurou que estaria preparada quando a besta chegasse, mas aqui estava ela, e Celestina não estava tão preparada quanto possível. O tempo passa, a percepção de uma ameaça esvanece, a vida fica mais atarefada, você trabalha que nem uma cachorra como garçonete, você se forma na faculdade, a sua menininha se torna tão vital, tão vívida, tão viva que você acha que ela vai viver para sempre, e além do mais, é filha de um pastor, acredita no poder da compaixão, no Príncipe da Paz, e confia que os humildes herdarão a Terra, de modo que se passaram três longos anos e você não comprou uma arma, não fez um curso de defesa pessoal, e de algum modo esqueceu que os humildes que herdarão a Terra são aqueles que sofreram agressões, mas não são aqueles tão pateticamente humildes que nem tentam se defender, porque não resistir ao mal é um pecado, e a recusa voluntária em defender a sua vida é um pecado mortal de suicídio passivo, e o fracasso em proteger uma menininha M&M amarelinha certamente irá lhe comprar uma passagem de ida para o Inferno no mesmo trem expresso no qual os traficantes de escravos viajaram para a sua própria servidão eterna, onde os mestres de Dachau e o velho Stalin viajaram do poder para a punição, de modo que aqui, agora, enquanto a besta se joga contra a porta, enquanto derruba a barricada, você deve aproveitar o tempo parco e precioso que lhe resta e lutar.
Júnior arremeteu-se através da porta bloqueada, para dentro do quarto, e a piranha o acertou com uma cadeira. Uma cadeira pequena, com um assento estofado. Ela a girou como um bastão de beisebol, e devia haver algum sangue de Jackie Robinson na família White, porque ela teria força suficiente para rebater uma bola do Brooklyn para o Bronx.
Se tivesse acertado o flanco esquerdo de Júnior, como pretendera, ela teria quebrado seu braço ou rachado algumas costelas. Mas ele viu a cadeira chegando e, ágil como um corredor de base protegendo-se do ataque de um interbase, ele deu as costas para ela, recebendo o golpe nas costas.
Este golpe sujo não tinha sido nada esportivo, parecendo com as coisas que aconteciam no Vietnã nas histórias que Júnior às vezes contava para as mulheres. Como se atingido por uma explosão de granada, perdeu o equilíbrio e caiu no chão, recebendo o impacto bem no queixo, o que fez seus dentes fecharem-se com tanta força que teriam guilhotinado sua língua caso ela estivesse entre eles.
Sabendo que a mulher não ia simplesmente recuar para calcular sua vantagem, rolou no chão para fora do caminho dela, imensamente aliviado por poder mover-se, porque, a julgar pela dor que se espalhava por suas costas, não ficaria surpreso se ela tivesse quebrado sua espinha e o paralisado. A cadeira desceu novamente, colidindo exatamente com o local em que Júnior estivera estatelado um instante antes.
A piranha golpeou com tanta ferocidade que a força do impacto com o chão, redundando através dela, deve ter entorpecido os seus braços. Ela cambaleou para trás arrastando a cadeira, temporariamente incapaz de levantá-la.
Ao entrar no quarto, Júnior pretendia guardar a pistola e sacar uma faca. Mas ele não estava mais com saco para trabalhar corpo a corpo. Felizmente, conseguira continuar segurando a pistola.
Seu corpo doía demais para ele conseguir recuperar-se rápido e tomar vantagem da vulnerabilidade momentânea da mulher. Cambaleando enquanto se levantava, recuou e pescou cartuchos sobressalentes no bolso.
Ela tinha escondido Bartholomew em algum lugar.
Provavelmente no armário.
Apagar a pintora, matar a criança.
Ele era um homem com um plano, focado, compromissado, pronto para agir e em seguida pensar, assim que fosse capaz de agir. Um espasmo de dor enfraqueceu sua mão. Cartuchos escapuliram entre seus dedos, caíram no chão.
Os seus atos... retornarão para você, multiplicados por um número além da sua imaginação.
Novamente essas palavras funestas, um eco ricocheteando nas paredes de sua memória. Desta vez realmente as escutou sendo proferidas. A voz atraiu a atenção de Júnior com um timbre mais profundo e uma dicção mais perfeita que a dele.
Ejetou o pente de balas da coronha da pistola. Quase o deixou cair.
Celestina circulou-o, meio carregando, mas também meio arrastando a cadeira, ou porque os músculos dela ainda estavam vibrando e seus braços estavam fracos, ou porque estava fingindo fraqueza na esperança de induzi-lo a uma reação imprudente. Júnior a contornou enquanto ela fazia o mesmo, tentando freneticamente lidar com a pistola sem desgrudar os olhos da adversária.
Sirenes.
O espírito de Bartholomew... irá encontrá-lo... e proferirá o julgamento terrível que você merece.
A voz do reverendo White, teatral, mas mesmo assim sincera, ergueu-se do passado para proferir claramente a ameaça que ecoava na mente de Júnior desde a noite em que a ouvira de um gravador, enquanto dançava um tango horizon com Serafina no quarto na paróquia.
A ameaça do pastor tinha sido esquecida, reprimida. Na época em que Júnior ouvira essas palavras, elas haviam funcionado apenas como uma melodia de fundo perversamente excitante para o amor carnal, e ele não considerara seriamente se significado, a mensagem de vingança implícita. Agora, neste momento de perigo extremo, a bolha de memória reprimida explodiu sob a pressão e Júnior ficou chocado, estarrecido, ao perceber que o pastor tinha rogado uma praga contra ele!
Sirenes uivando.
Cartuchos caídos reluziam sobre o tapete. Agachar-se para pegá-los? Não. Isso seria pedir por um golpe de rachar o crânio.
Celestina, a batista batedora de volta à ação, atacou novamente. Com uma perna quebrada, outra rachada, e o encosto solto, a cadeira não era mais uma arma tão formidável quanto antes. Ela brandiu a cadeira, Júnior se protegeu com um braço, ela o acertou de novo, Júnior tentou pegá-la, e ela conseguiu se esquivar, arfante.
A vagabunda estava ficando cansada, mas Júnior ainda não apreciava suas chances num confronto mano-a-mano. Ela estava com os cabelos despenteados. Os olhos reluziam com tanta ferocidade que ele tinha quase certeza de ter visto pupilas elípticas, como nos olhos de um grande felino.
Contorcidos num esgar, os lábios desnudavam os dentes.
Ela parecia tão insana quanto a mãe de Júnior.
Muito próximas, essas sirenes.
Outro bolso. Mais cartuchos. Tentando espremer apenas dois deles dentro do pente de balas, mas as mãos tremiam e estavam escorregadias por causa do suor.
A cadeira. Um golpe rápido, que não causou danos, empurrando-o de costas até a janela.
As sirenes estavam bem aqui.
Tiras na porta da frente do prédio, a puta lunática com a cadeira, a maldição do pastor: todas essas coisas juntas eram pesadas demais até mesmo para um homem compromissado carregar. Saia do presente, parta para o futuro.
Largou a pistola, o pente de balas, os cartuchos.
Quando a puta iniciou seu novo golpe, Júnior agarrou a cadeira. Não tentou puxar a cadeira de suas mãos, mas usou-a para empurrar Celestina o mais forte que pôde.
Ela tropeçou numa perna caída da cadeira, perdeu o equilíbrio e caiu de costas contra a lateral da cama.
Ágil como um gato geriátrico, gritando de dor, Júnior saltou contra a soleira da janela, tentando passar entre as vidraças do batente. Elas já estavam parcialmente abertas... mas também estavam emperradas.
Deitado no chão, preso na brecha entre as vidraças do batente, mãos segurando a moldura da janela, o maníaco usava não apenas força, mas todo o peso do seu corpo para tentar escapar do quarto.
Apesar dos batimentos ensurdecedores de seu coração e do arfar alto de sua respiração, Celestina ouviu madeira rachar, uma vidraça pequena explodir e metal contorcer-se com um uivo. O desgraçado ia escapar.
A janela não dava para a rua. Ela dava para uma passagem de um metro e meio de largura entre esta casa e a seguinte. A polícia talvez não o visse fugir.
Ela podia acertá-lo com a cadeira mais uma vez, mas estava se desmantelando. Em vez disso, abandonou a mobília pela promessa de uma arma de fogo, caída diante de seus joelhos, e pegou o pente de balas descartado no chão.
O ganido das sirenes gemeu até silenciar. A polícia devia ter parado diante da calçada.
Celestina catou no chão uma bala bronzeada.
Outra vidraça pequena explodiu. Um crepitar de madeira desanimador. De costas para ela, o maníaco atacava a janela com a ferocidade de uma fera enjaulada.
Não tinha experiência com armas, mas tendo-o visto tentar inserir balas no pente, sabia como carregar. Introduziu um cartucho. Então um segundo. Era suficiente.
O mecanismo de operação estava começando a ceder, assim com as dobradiças, e a janela vergou para fora.
Do fundo do apartamento, homens gritaram:
— Polícia!
Enquanto empurrava o pente de balas contra a coronha da pistola, Celestina gritou:
— Aqui! Aqui dentro!
Ainda ajoelhada, ela levantou a arma e compreendeu que ia atirar nas costas do maníaco, mas não tinha outra escolha, porque sua experiência não permitia que ela mirasse numa perna ou num braço. Estava mergulhada num dilema moral, mas também numa imagem de Fimie morta, deitada em lençóis ensangüentados na mesa de operação. Apertou o gatilho e foi empurrada para trás pelo coice. A janela cedeu um instante antes deCelestina disparar. O homem caiu fora de vista. Ela não sabia se o havia acertado.
Até a janela. O quarto quente sugou da noite uma neblina fria e coleante, se debruçou sobre a soleira e mergulhou a cabeça na névoa.
A janela ficava a um metro e meio acima da passagem de serviço estreita, o maníaco esbarrou em latas de lixo enquanto fugia, mas não tropeçou no refugo.
Da neblina e da escuridão chegou a Celestina um som de passos correndo sobre um piso de tijolos.
Ele estava correndo até os fundos da casa.
— Larga a arma!
Celestina soltou a arma antes mesmo de se virar, e enquanto dois policiais entravam no quarto, ela gritou: — Ele está fugindo!
Da passagem de serviço para o beco, do beco para a rua e dali para a cidade, a neblina e a noite, Júnior correu do Caim passado para o Pinchbeck futuro.
Durante o curso desse dia marcante, ele tinha empregado técnicas ensinadas por Zedd para canalizar sua raiva numa fúria vermelha. Agora, sem nenhum esforço de sua parte, a fúria cresceu para uma ira, uma ira branca de tão quente.
Como se espíritos vingativos já não fossem um problema grande o bastante, há três anos lutava, sem saber, contra o poder terrível da maldição do pastor, uma maldição batista negra que transformara sua vida num verdadeiro inferno. Agora ele sabia por que tinha sido atormentado por um ataque de vômito, uma diarréia épica e urticárias horríveis e desfiguradoras. O fracasso em encontrar uma alma gêmea, a humilhação com Renee Vivi, os dois casos graves de gonorréia, a catatonia causada pela meditação, a incapacidade de aprender francês e alemão, a solidão, o vazio, as tentativas frustradas em achar e matar o menino bastardo nascido do ventre de Fimie. Todas essas coisas e mais, muito mais, tinham sido conseqüências odiosas da maldição vingativa daquele cristão hipócrita. Na condição de homem auto-aperfeiçoado, plenamente evoluído, compromissado, que se sentia confortável com seus instintos primitivos, Júnior deveria estar singrando pela vida em mares calmos, debaixo de céus perpetuamente ensolarados, com suas velas sempre infladas com vento, mas ao invés disso enfrentava tempestades em noites escuras, não devido a falhas de mente ou coração, ou caráter, mas por causa de magia negra.
NO HOSPITAL ST. MARY, onde há três anos trouxera Anja ao mundo, Wally agora lutava por sua vida, por uma chance de ver a menina crescer e ser o pai de quem ela precisava. Ele já tinha sido levado para a sala de cirurgia quando Celestina e Anja chegaram, alguns minutos depois da ambulância.
Foram levados ao St. Mary pelo detetive Bellini num carro da polícia. Tom Vanadium — um amigo do pai de Celestina, com quem ela se encontrara algumas vezes em Spruce Hills, mas a quem não conhecia bem — viajou literalmente com o dedo no gatilho, olhando para os lados e para trás, atento aos ocupantes dos outros veículos, como se um deles certamente fosse o maníaco.
Até onde Celestina sabia, Tom era um detetive da polícia estadual do Oregon, e ela não entendia o que ele estava fazendo ali.
Assim como ela não conseguia nem mesmo imaginar a natureza do desastre que lhe acontecera, deixando seu rosto parecendo um quebra-cabeças mal encaixado. A última vez em que o vira fora no funeral de Fimie. Alguns minutos atrás, na porta de sua casa, ela o reconhecera apenas devido à sua marca de nascença roxa.
Como o pai de Celestina respeitava e admirava Tom, ela estava grata por sua presença. E qualquer um que conseguisse sobreviver à catástrofe que o deixara com este rosto cubista era um homem que ela queria ao seu lado num momento de crise.
Sentada no banco traseiro do carro, abraçada firme com a assustada Anja, Celestina estava surpresa com sua própria coragem no combate e com a calma inabalável que lhe servia tão bem agora. Não se sentia abalada com o pensamento do que poderia ter acontecido com ela, e com sua filha, porque sua mente e seu coração estavam aqui com Wally — e porque, tendo sido nutrida com esperança por toda a vida, ela tinha uma reserva profunda à qual recorrer em momentos de seca.
Bellini assegurou a Celestina que eles não esperavam que Enoch Caim fosse ousado a ponto de seguir carros de polícia e renovar seu ataque a ela no St. Mary. Não obstante, ele destacou um policial uniformizado para ficar de guarda na sala de espera destinada aos amigos e à família dos pacientes na unidade de tratamento intensivo. E a julgar pelo elevado nível de vigilância do guarda, Bellini não descartara inteiramente a possibilidade de que Caim pudesse aparecer agora para terminar o que tinha começado em Pacific Heights.
Como em todas as salas de espera de UTIs, nas quais a Morte ficava sentada pacientemente, sorrindo por antecipação, esta era limpa e sóbria, com mobílias espartanas, como se cores mais brilhantes e conforto pudessem perturbar a velha Ceifadora e motivá-la a cortar mais vidas do que deveria.
Mesmo depois da meia-noite a sala costumava estar cheia de entes queridos preocupados, como a qualquer outra hora do dia. Contudo, nesta madrugada a única vida sob a ameaça da ceifa parecia ser a de Wally; a única vigília era por ele.
Traumatizada pela violência no quarto da mãe, não completamente ciente do que acontecera com Wally, Anja estava lacrimosa e tensa. Um médico prestativo deu-lhe um copo de suco de laranja pulverizado com uma dose pequena de sedativo, e uma enfermeira trouxera travesseiros. Deitada em duas cadeiras estofadas, usando um robe cor-de-rosa sobre os pijamas amarelos, ela se entregou ao sono tão completamente quanto sempre, com sedativo ou não, que era tão plenamente quanto ela se entregava à vida quando estava acordada.
Depois de tomar um depoimento preliminar de Celestina, Bellini saiu para seduzir um juiz a se levantar da cama e obter um mandado de busca para a residência de Enoch Caim, tendo já ordenado uma tocaia do apartamento em Russian Hill. A descrição de Celestina de seu atacante combinava perfeitamente com a de Caim. Ademais, a Mercedes do suspeito tinha sido abandonada na casa dela. Bellini parecia confiante de que iriam encontrar e prender o homem muito em breve.
Tom Vanadium, em contrapartida, tinha certeza de que Caim, tendo se preparado para a possibilidade de que alguma coisa saísse errada durante seu ataque a Celestina, não seria fácil de localizar ou prender. Sob o ponto de vista de Vanadium, o maníaco ou tinha um esconderijo em algum lugar da cidade ou já estava fora da jurisdição da polícia de San Francisco.
— Bem, talvez tenha razão, mas você teve a vantagem de uma busca ilegal, enquanto eu tenho os braços atados por detalhes como mandados — disse Bellini, num tom um pouco ácido, antes de sair.
Celestina sentiu uma camaradagem antiga entre esses dois, mas também uma tensão talvez relacionada à referência de uma busca ilegal.
Depois que Bellini saiu, Tom questionou Celestina longamente, com uma ênfase no estupro de Fimie. Embora o assunto fosse doloroso, ela sentiu-se grata pelas perguntas. Sem esta distração, apesar de seu poço de esperança, ela poderia permitir que sua imaginação tecesse um terror atrás do outro, até Wally ter morrido uma centena de vezes em sua mente.
— O seu pai nega que o estupro aconteceu, aparentemente devido ao que eu chamaria de uma disposição equivocada em confiar na justiça divina.
— Em parte é isso — concordou Celestina.—Mas originalmente papai queria que Fimie contasse, para que o homem pudesse ser julgado e condenado. Embora ele seja um bom batista, não lhe falta uma sede por vingança.
— Que bom ouvir isso — disse Tom. Seu sorriso fino poderia ter sido irónico, embora não fosse fácil interpretar o significado de qualquer expressão sutil neste rosto desmanchado.
— E depois que Fimie se foi... ele ainda esperava descobrir o nome do estuprador e colocá-lo na prisão. Mas então alguma coisa o fez mudar de ideia. Isso deve ter sido talvez há uns dois anos. De repente, ele queria esquecer o assunto, deixar o julgamento para Deus. Disse que se o estuprador era tão louco quanto Fimie alegara, então Anja e eu poderíamos correr perigo se descobríssemos seu nome e fôssemos à polícia. Não mexa em casa de maribondo, não arrume sarna para se coçar, tudo isso. Não sei o que o fez mudar de ideia.
— Eu sei — disse Tom. — Agora. Graças a você. O que o fez mudar de ideia fui eu... este rosto. Caim fez isto comigo. Passei a maior parte de 1965 em coma. Depois que acordei e me recuperei o bastante para ter visitantes, pedi para ver o seu pai. Há cerca de dois anos... como você disse. Através de Max Bellini, eu soube que Fimie tinha morrido ao dar à luz, não num acidente, e os instintos de Max disseram que tinha sido um estupro. Expliquei ao seu pai por que Caim era o homem. Eu queria todas as informações que ele pudesse ter. Mas acho que... sentado ali, .olhando o meu rosto, ele decidiu que Caim é realmente o maior ninho de marimbondo que já existiu, e ele não queria colocar sua filha e sua neta em mais risco do que era necessário.
— E agora isto.
— E agora isto. Mas mesmo se o seu pai tivesse cooperado comigo, nada teria mudado. Como Fimie nunca revelou o nome dele, eu ainda não poderia ter usado isso contra Caim.
Na cama de duas cadeiras ao lado de sua mãe, Anja emitiu gritos de angústia enquanto dormia. Quaisquer que fossem as presenças que a cercavam no sonho, não eram pintinhos.
Murmurando palavras de conforto, Celestina pousou uma mão na cabeça da menina e acariciou sua fronte, seu cabelo, até seu toque adocicar o sonho amargo.
Ainda procurando por algum fato que faltasse, alguma ideia que poderia ajudá-lo a compreender a obsessão do maníaco por Bartholomew, Tom fez mais perguntas até Celestina subitamente compreender e revelar o que talvez fosse a informação que ele buscava; a insistência perversa de Caim em tocar a gravação com o esboço do discurso "Este Dia Marcante" durante o longo estupro de Fimie.
— Fimie disse que o crápula achou que o discurso era engraçado, mas usar a voz de papai como música de fundo também... bem, também o excitou, talvez porque isso a humilhasse mais e talvez porque sabia que isso humilharia o nosso pai. Mas nunca contamos a papai essa parte do estupro. Nem Fimie nem eu achamos que havia motivo para contar a ele.
Durante algum tempo, inclinado para a frente em sua cadeira e fitando o assoalho com uma intensidade e uma expressão que não podia ser inspirada pelos insípidos ladrilhos de vinil, Tom meditou sobre o que ela tinha lhe dito. Então:
— A conexão é essa, mas ainda não está inteiramente clara para mim. Então ele obteve um prazer perverso em violentar Fimie com o sermão do seu pai como música de fundo... e talvez sem perceber a mensagem do reverendo tenha penetrado fundo na sua cabeça. Eu não imaginaria que esse covarde, esse assassino da própria esposa, seria capaz de sentir culpa... a não ser que, talvez, seu pai tenha realizado uma espécie de milagre e plantado a semente dessa culpa.
— Mamãe sempre disse que os porcos voariam se papai os convencesse de que eles têm asas.
— Mas em "Este Dia Marcante" o apóstolo é apenas o discípulo, a figura histórica, e também é uma metáfora para as consequências imprevisíveis de nossas ações, incluindo as mais banais.
— E daí?
— Ele não é uma pessoa contemporânea real, nem ninguém de quem Caim precise ter medo. Então como ele desenvolveu esta obsessão em encontrar alguém chamado Bartholomew? — Fitou os olhos de Celestina, como se ela pudesse ter respostas para ele. — Existe um Bartholomew de verdade? E como isto se encaixa neste ataque a você? Ou será que simplesmente não se encaixa?
— Acho que se tentássemos entender a lógica distorcida de Caim acabaríamos tão loucos quanto ele.
Vanadium meneou a cabeça.
— Acho que ele é maligno, e não maluco. E estúpido, da forma como o mal frequentemente é. Arrogante e fútil demais para compreender sua estupidez. É por causa disso que sempre está preso em armadilhas criadas por ele mesmo. Mas, ainda assim, perigoso por ser estúpido. Na verdade, muito mais perigoso que um homem sábio com um senso para as consequências.
A voz de Tom Vanadium, desprovida de inflexão, mas curiosamente hipnótica, seu jeito pensativo, seus olhos cinzentos, tão bonitos naquele rosto fraturado, seu ar de melancolia controlada, e sua inteligência evidente, concediam-lhe uma presença que era sólida como uma grande massa de granito e ao mesmo tempo sobrenatural.
— Todos os policiais são filosóficos como você? — perguntou Celestina. Ele sorriu.
— Bom, falando por aqueles de nós que foram padres primeiro, sim, nós gostamos de questionar as coisas da vida. Quanto aos outros... bem, nem todos são filosóficos, mas provavelmente são mais do que você imagina.
Passos no corredor atraíram a atenção deles para a porta aberta, onde um cirurgião apareceu num jaleco verde folgado.
Celestina se levantou, o coração subitamente martelando no peito, como passos apressados fugindo do portador das más notícias, mas ela própria não correu, conseguiu apenas ficar de pé, enraizada em sua esperança — e escutar em sua mente seis versões de um prognóstico funesto nos dois segundos antes do médico falar.
— Ele resistiu bem à cirurgia. Vai ficar no pós-operatório durante algum tempo e depois será trazido para a UTI. Sua condição é crítica, mas existem vários níveis de condições críticas, e acredito que vamos conseguir promovê-lo para uma condição séria antes do final do dia. Ele vai sobreviver.
Este dia marcante. Em cada final, novos começos. Mas, graças a Deus, nenhum final aqui.
Liberta por um instante da necessidade de ser forte por sua Anja adormecida ou por Wally, Celestina virou-se para Tom Vanadium, viu nos seus olhos cinzentos a tristeza do mundo e uma esperança equivalente à sua, viu no rosto arruinado a promessa de triunfo sobre o mal e, debruçando-se para apoiar-se nele, finalmente chorou.
Em seu furgão Ford, abarrotado com bordados, Sklent e Zedd, Caim Júnior — Pinchbeck para o mundo — saiu da Área da Baía por uma porta dos fundos. Pegou a rodovia estadual 24 para Walnut Creek, ou "corredeira das nozes", onde poderia ou não haver nozes, mas decerto havia uma montanha e um parque estadual batizado em homenagem ao diabo: Monte Diablo. A rodovia estadual 4 para Antioch levou-o a uma travessia do delta do rio a oeste de Bethel Island. Bethel, como sabiam aqueles que tinham feito bons cursos de aperfeiçoamento vocabular, significava "lugar sagrado"
Do diabo para o sagrado e então para além, Júnior dirigiu rumo norte pela rodovia estadual 160, que era orgulhosamente marcada como rota cénica, embora nestas horas antes do amanhecer tudo estivesse escuro e sinistro. Seguindo o curso serpenteante do rio Sacramento, a rodovia 160 amarrava uma série de cidades pequenas e separadas esparsamente.
Entre Isleton e Locke, Júnior começou a perceber vários pontos de dor em seu rosto. Não conseguia sentir nenhum inchaço, corte ou arranhão, e o espelho retrovisor revelava apenas as feições elegantes que tinham feito os corações de muitas mulheres correrem mais do que todas as anfetaminas já fabricadas.
O corpo também doía, especialmente as costas, por causa de todas as pancadas que levara. Lembrou-se de ter batido com o queixo no chão ao cair, e supunha que fora acertado no rosto mais do que tinha percebido ou sentido. Nesse caso, logo estaria com o rosto coberto por contusões, mas com o tempo elas desapareceriam; nesse ínterim, elas poderiam torná-lo ainda mais atraente para as mulheres, que iriam querer consolá-lo e mitigar sua dor com beijos — especialmente depois que soubessem que ele tinha sofrido seus ferimentos numa luta brutal, enquanto salvava uma vizinha de um estuprador.
Não obstante, quando os pontos de dor em sua fronte e face pioraram gradualmente, ele parou num posto de gasolina perto de Courtland, comprou uma garrafa de Pepsi numa máquina de venda automática e engoliu mais uma cápsula de anti-histamínicos. Também tomou outro antiemético, quatro aspirinas e — embora não sentisse nenhum tremor nas entranhas — mais uma dose de elixir paregórico.
Assim protegido, finalmente chegou à cidade de Sacramento, uma hora antes do amanhecer. Sacramento autodenomina-se Capital Mundial das Camélias, e promove um festival de dez dias dessa flor no começo de março — já anunciado em outdoors agora, em meados de janeiro. A camélia, arbusto e flor, ganhou esse nome em honra a G. J. Camellus, um missionário jesuíta que a trouxe da Ásia para a Europa no século XVIII.
Montanhas do diabo, ilhas sagradas, rios e cidades sacramentados, jesuítas: essas referências espirituais a cada curva incomodaram Júnior. Esta era uma noite assombrada, não havia dúvida quanto a isso. Não ficaria surpreso se olhasse o espelho retrovisor e visse o Studebaker Lark Regai azul de Thomas Vanadium se-guindo-o de perto, não o carro verdadeiro aflorado do Lago da Pedreira, mas uma versão espectral, com o espírito de macaco sujo e desprezível do policial ao volante, uma Naomi ectoplásmica ao seu lado, Victoria Bressler, Ichabod, Bartholomew Prosser e Neddy Gnathic no banco de trás: o Studebaker cheio de espíritos, como um carro entupido com palhaços rodando pelo picadeiro de um circo, embora nada engraçado pudesse acontecer quando as portas do veículo se abrissem e esses fantasmas vingativos saltassem.
Depois que tinha chegado ao aeroporto, localizado uma companhia de voos particulares, descoberto quem era o proprietário através de um segurança notur-no e arranjado um vôo imediato para Eugene, Oregon, a bordo de um Cessna de motores gémeos, os pontos de dor no rosto de Júnior começaram a latejar.
O proprietário, também o piloto nesta viagem, ficou satisfeito em ser pago em dinheiro e antecipadamente, em notas novas de cem dólares, e não em cheque ou cartão de crédito. Contudo, aceitou o pagamento com certa hesitação, e com uma careta, como se estivesse com medo de contrair uma doença através do dinheiro.
— O que há de errado com o seu rosto? — perguntou.
Ao longo da linha do cabelo de Júnior, sobre sua face, no queixo, e em seu lábio superior, uma fileira dupla de pontinhos duros tinha aparecido, vermelhos e quentes ao toque. Tendo anteriormente sofrido de um caso particularmente violento de urticária, Júnior compreendeu que era alguma coisa nova... e pior.
— Reação alérgica — respondeu ao piloto.
Alguns minutos depois do amanhecer, num tempo excelente, eles decolaram de Sacramento, rumo a Eugene. Júnior teria apreciado a paisagem se o seu rosto não parecesse apertado por uma série de pinças quentes nas mãos dos mesmos duendes malvados que povoavam os contos de fadas narrados por sua mãe quando ele era pequeno.
Logo depois das nove e meia da manhã eles aterrissaram em Eugene, e o motorista de táxi que levou Júnior até o maior shopping-center da cidade passou mais tempo fitando seu passageiro aflito no espelho retrovisor do que olhando a rua. Júnior saltou do táxi e pagou o taxista através da janela aberta. O motorista nem esperou seu passageiro de rosto inflamado dar-lhe completamente as costas antes de se benzer.
A agonia de Júnior poderia fazê-lo uivar como um cão gangrenoso ou até cair de joelhos, se ele não estivesse usando a dor para alimentar a sua raiva. Sua face calosa estava tão sensível que a brisa suave açoitou-lhe a pele tão cruelmente quanto se o tivesse feito com arame farpado. Fortalecido por uma ira ainda mais bonita do que suas feições estavam monstruosas, Júnior atravessou o estacionamento, olhando através das janelas dos carros na esperança de ver alguma chave esquecida na ignição.
Em vez disso, encontrou uma mulher idosa saltando de um Pontiac vermelho com uma cauda de raposa amarrada à antena do rádio. Uma olhada rápida à sua volta confirmou que não estavam sendo observados; com a coronha de sua pistola de 9mm, Júnior golpeou a cabeça da velha.
Estava com vontade de atirar nela, mas esta arma não estava munida de silenciador. Ele deixara aquela pistola no quarto de Celestina. Esta era a pistola confiscada da coleção de Frieda Bliss, e era tão cheia de som quanto Frieda fora cheia de vómito.
A velha tombou com um som farfalhante de papel, como se fosse uma complicadíssima dobradura de origami. Ficaria inconsciente durante algum tempo e, depois que acordasse, provavelmente não lembraria nem quem era, quanto menos que marca de carro estivera dirigindo, até Júnior estar bem longe de Eugene.
As portas de uma picape estacionada ao lado do Pontiac estavam destrancadas Júnior levantou a vovó e a deixou cair no banco da frente da picape. Era tão leve, desagradavelmente angulosa e farfalhava tanto que poderia ser uma nova espécie de inseto mutante gigante que mimetizava a aparência humana. No fim das contas, estava feliz por não tê-la matado: o espírito farfalhante da vovó poderia ser tão difícil de erradicar quanto uma infestação de baratas. Com um arrepio, jogou a bolsa da velha sobre ela e bateu a porta do caminhão.
Pegou as chaves do carro da mulher na calçada, sentou-se atrás do volante do Pontiac e dirigiu para encontrar uma farmácia, a única parada que pretendia fazer até chegar a Spruce Hills.
WALLY NÃO TINHA IDO para casa com a Morte, mas eles com certeza haviam dançado juntos.
Quando entrou no cubículo da UTI, Celestina levou um susto ao ver o rosto de Wally. Apesar das garantias do médico, Wally estava com a pele acinzentada e as faces fundas, como se este fosse o século XVIII e os cirurgiões lhe tivessem aplicado tantas sanguessugas medicinais que sua substância essencial fora sugada.
Estava inconsciente, plugado a um monitor cardíaco, perfurado por uma sonda intravenosa. Introduzido em seu septo nasal, um tubo de oxigénio chiava levemente, e de sua boca aberta saía um som quase inaudível de respiração.
Durante um longo tempo Celestina ficou parada em pé, ao lado da cama, segurando a mão dele, confiante de que em algum nível ele estava ciente de sua presença, embora não desse qualquer indicação de saber que ela estava lá.
Poderia sentar-se na cadeira. Mas sentada não conseguiria ver o rosto dele.
Algum tempo depois a mão de Wally apertou levemente a sua. E depois desse sinal de esperança as pálpebras dele piscaram, e abriram.
No começo pareceu confuso, olhando para o monitor cardíaco e o poste intravenoso que se avultava sobre ele. Quando seus olhos encontraram os de Celestina, sua visão clareou. E o sorriso esboçado pelos lábios de Wally brindou o coração de Celestina com tanta luz quanto o anel que pusera em seu dedo algumas horas antes.
De repente o sorriso apagou, a testa franziu e ele disse, numa voz debilitada:
— Anja...?
— Está bem. Ele não tocou num fio de cabelo dela.
Uma enfermeira matronal chegou, alertada a respeito do retorno do paciente à consciência pelo dispositivo de telemetria associado ao monitor cardíaco. Examinou Wally e tomou sua temperatura. Com uma colher, conduziu duas lascas de gelo à sua boca ressequida. Ao sair, dirigiu um olhar significativo a Celestina e mostrou seu relógio de pulso.
Novamente a sós com Wally, Celestina disse:
— Eles me disseram que depois que você recuperasse a consciência eu só poderia visitá-lo dez minutos por vez, e não com muita frequência.
Fazendo que sim com a cabeça, Wally disse:
— Cansado.
— Os médicos me disseram que você vai se recuperar completamente. Sorrindo de novo, falando numa voz um pouco mais alta que um sussurro,
ele disse:
— Tenho uma data de casamento para cumprir.
Ela se inclinou sobre ele, beijou-o na bochecha, no olho direito, no esquerdo, na testa, nos lábios rachados.
— Eu te amo muito. Quis morrer quando achei que você não estava mais comigo.
— Nunca diga "morrer" — admoestou. Enxugando os olhos num lenço de papel, ela disse:
— Certo. Nunca.
— Era o... pai de Anja?
Ela ficou surpresa com a intuição dele. Três anos antes, quando se mudara para Pacific Heights, Celestina compartilhara com Wally o seu medo de que a besta algum dia encontrasse a ela e Anja, mas não falava sobre essa possibilidade há pelo menos dois anos e meio.
Ela balançou a cabeça, negativamente.
— Não. Não era o pai de Celestina. Você é o pai dela. Ele era apenas o filho da puta que estuprou a Fimie.
— Pegaram ele?
— Eu quase peguei. Com a arma do próprio cretino. Wally arqueou as sobrancelhas.
— E acertei ele com uma cadeira — acrescentou Celestina. — Isso deve ter doído um pouco.
— Uau.
— Não sabia que ia casar com uma amazona, sabia? — disse ela.
— Ora, é claro que eu sabia.
— Ele fugiu no instante em que a polícia chegou. E eles acham que ele é psicótico, doido o bastante para tentar de novo se não o encontrarem logo.
— Também acho — disse Wally, preocupado.
— Não querem que eu volte para o apartamento.
— Faça o que eles mandarem.
— E estão até preocupados por eu passar tanto tempo aqui no St. Mary, porque ele espera que eu esteja aqui com você.
— Ficarei bem. Tenho um monte de amigos aqui.
— Você vai sair da UTI amanhã, tenho certeza. Você vai ter um telefone no quarto. Eu ligo. E virei assim que puder.
Encontrou energia para apertar a mão de Celestina mais forte que antes.
— Fique segura. Mantenha Anja segura. Ela o beijou novamente.
— Duas semanas — lembrou a ele. Ele abriu um sorriso melancólico.
— Até lá devo estar preparado para um casamento, mas não para uma lua-de-mel.
— Temos o resto das nossas vidas para a lua-de-mel.
QUANDO ALCANÇOU A PARÓQUIA, no fim da tarde de sexta-feira, 12 de janeiro, Paul Damascus chegou a pé, como ultimamente chegava a todos os lugares.
Um vento frio emitia um gemido assombroso enquanto coleava no interior do sino de bronze na torre da igreja, derrubava folhas dos pinheiros e resistia ao avanço de Paul com o que parecia um intento malicioso. Quilómetros atrás, entre as cidades de Brookings e Pistol River, Paul decidira jamais caminhar novamente até tão longe ao norte nesta época do ano, ainda que os verbetes sobre a região nos guias turísticos alegassem que no inverno a costa do Oregon gozava de um clima comparativamente ameno.
Embora fosse um desconhecido, chegando sem aviso, e excêntrico segundo a definição de qualquer pessoa, Paul foi recebido por Grace e Harrison White com carinho e amizade. Diante de sua casa, levantando a voz para competir com o vento uivante, Paul resumiu a sua missão, temendo que sua presença trazida pelo vento fizesse o casal fugir assustado, caso ele não se explicasse logo:
— Vim caminhando de Bright Beach, Califórnia, para falar com vocês sobre uma mulher extraordinária cuja vida ecoará através das vidas de inúmeras outras, mesmo depois que ela tiver partido deste mundo. O marido dela morreu na noite em que seu filho nasceu, mas não antes de dar ao menino o nome Bartholomew, porque tinha ficado impressionado com o sermão "Este Dia Marcante". E agora o menino está cego, e espero que vocês consigam prover algum conforto à mãe dele.
Os White não fugiram assustados, nem mesmo estremeceram diante daquele relato lamentavelmente explosivo. Ao invés disso, convidaram Paul a entrar em sua casa, mais tarde convidaram-no a jantar, e mais tarde ainda pediram que passasse a noite em seu quarto de hóspedes.
Eram as pessoas mais gentis que Paul já tinha encontrado, mas também pareciam genuinamente interessadas em sua história. Não ficou surpreso ao ver que a história de Agnes Lampion deixou-os encantados; afinal, o significado de sua vida era muito claro. Mas ficou surpreso ao ver que também pareciam interessados na sua história. Talvez estivessem apenas sendo gentis, mas foi com aparente fascínio que o fizeram desfiar detalhes sobre suas caminhadas longas, sobre os lugares onde tinha ido e seus motivos para ir até esses lugares, e sobre sua vida com Perri.
Desde o dia em que caminhara da farmácia até sua casa para deparar-se com Joshua Nunn e o paramédico em silêncio solene ao lado da cama de Perri, Paul não dormiu tão profundamente quanto na noite de sexta-feira. Não sonhou que caminhava por um deserto, nem por salinas ou planícies nevadas, e quando acordou pela manhã sentia-se descansado em corpo, mente e alma.
Harrison e Grace tinham-no recebido apesar de terem perdido um amigo e pároco na quinta-feira, deixando ambos enlutados e com obrigações para com a comunidade.
— A sua chegada foi uma bênção de Deus — assegurou Grace a Paul durante o desjejum de sábado. — Com todas as suas histórias, você levantou nossos corações quando mais precisávamos.
O funeral foi às duas da tarde, depois que a família e os amigos do falecido se reuniram na paróquia para um encontro social, para partir o pão juntos e compartilhar as lembranças do ente querido a quem tinham perdido.
Na manhã de sábado, Paul se fez útil ao ajudar Grace a preparar a comida e a colocar os pratos, talheres e copos na mesa de jantar.
Paul estava na cozinha às 11:20, deitando glacê sobre um grande bolo de chocolate enquanto o pastor terminava o serviço polvilhando coco.
Grace, tendo acabado de lavar todos os pratos que entupiam uma pia, estava de pé, monitorando a aplicação da cobertura e enxugando as mãos, quando o telefone tocou. Ela atendeu, e no instante em que disse "Alô", a frente da casa explodiu.
Um grande bum. Uma concussão abalou o assoalho, estremeceu as paredes e fez as tábuas do teto rangerem como se milhares de morcegos escondidos tivessem decolado, batendo asas no mesmo instante.
Grace soltou o telefone. Harrison deixou a colher com o pó de coco escorregar de seus dedos.
Através da cacofonia de vidro partindo, madeira estilhaçando, argamassa rachando, Paul escutou o rumor alto de um motor, o toque de uma buzina, e imaginou o que tinha acontecido. Algum bêbado ou motorista imprudente tinha colidido em alta velocidade contra a paróquia.
Tendo chegado a essa mesma conclusão estarrecedora, mas não obstante óbvia, Harrison disse:
- Alguém deve ter se machucado.
Ele saiu correndo da cozinha e atravessou a sala de estar, Paul logo atrás dele.
Na parede da frente da sala de estar, onde antes ficava uma janela panorâmica, a paróquia agora estava aberta para o dia ensolarado. Arbustos arrancados do chão e trazidos de fora marcavam a trilha de destruição. No meio da sala, encostado contra um sofá virado e uma pilha de móveis quebrados, um Pontiac vermelho estava afundado para a esquerda sobre amortecedores quebrados e pneus furados. Uma parte do pára-brisas tinha quebrado e caído para dentro, enquanto colunas de fumaça levantavam-se chiando do capô amassado.
Embora tivessem esperado a causa da explosão, tanto Paul quanto Harrison ficaram imóveis pelo choque de ver toda aquela ruína. Eles tinham esperado ver o carro batido contra a parede da casa, mas jamais tão dentro da sala. A velocidade necessária para penetrar a casa até esta distância desafiou a habilidade de cálculo de Paul e o fez questionar se mesmo imprudência e álcool seriam suficientes para gerar tamanha catástrofe.
A porta do motorista abriu, empurrando para o lado uma mesinha de café danificada. Um homem saiu do Pontiac.
Havia duas coisas notáveis nele, começando por sua face. Ele tinha a cabeça embrulhada em ataduras como Claude Rains em O homem invisível ou Humphrey Bogart naquele filme sobre um criminoso fugitivo que fez cirurgia plástica para enganar a polícia e começar uma vida nova com Lauren Bacall. Tufos de cabelos louros saltavam do topo da cabeça, através de brechas nas ataduras. Apenas seus olhos, narinas e lábios estavam descobertos.
A segunda coisa notável era a arma em sua mão.
A visão daquele rosto coberto de ataduras aparentemente pressionou todos os botões de compaixão no reverendo, porque ele saiu do seu choque paralítico e começou a caminhar à frente — antes de perceber a arma.
Para um motorista que acabara de fazer de seu carro um aríete, o homem mumificado estava firme em pé e não parecia nem um pouco hesitante. Ele se virou para Harrison White e disparou dois tiros no seu peito.
Paul não tinha percebido que Grace os havia seguido para a sala de estar até o momento em que ela gritou. Ela começou a passar por ele, correndo na direção de seu marido enquanto Harrison ainda tombava.
Segurando o revólver, estendendo completamente o braço direito ao estilo de um executor, o pistoleiro caminhou até o pastor caído.
Grace White era pequena, e Paul não era. Não fosse isso, ele não teria conseguido impedi-la de correr até o seu marido, talvez nem a tivesse levantado do chão e corrido com ela nos braços para um lugar seguro.
A paróquia era uma casa limpa, respeitável e até encantadora, mas não podia ser chamada de grandiosa. Nenhuma escada alta e ampla permitiria uma entrada triunfal para Scarlett o'Hara. Muito pelo contrário, as escadas eram fechadas, acessíveis através de uma porta num canto da sala de estar.
Paul estava mais perto desse canto quando deteve Grace em sua corrida rumo à morte certa. Antes de compreender completamente o que estava fazendo, descobriu que tinha corrido através da porta aberta e galgado metade dos degraus, com passos tão seguros quanto os de Doe Savage, O Santo, O Sombra, ou qualquer outro herói de pulp fiction cujas aventuras há tanto tempo ele vivia lendo em segunda mão.
Atrás dele dois tiros soaram, e Paul compreendeu que o reverendo não estava mais neste mundo.
Grace também compreendeu isso, porque de repente parou de se debater nos braços dele com angústia.
Ainda assim, quando Paul chegou ao corredor no andar de cima e a soltou delicadamente de seus braços, ela gritou por seu marido.
— Harry! — e tentou correr mais uma vez até a escadaria estreita.
Paul puxou-a para trás. Gentil mas firmemente, ele a puxou através da porta aberta do quarto de hóspedes onde passara a noite.
— Fique aqui e espere.
No pé da cama: um baú de cedro. Um metro e vinte de comprimento, sessenta centímetros de largura, talvez noventa centímetros de altura. Alças de bronze.
A julgar pela expressão de Grace quando Paul levantou o baú do chão, ele calculou que o objeto devia ser pesado. Ele não tinha como saber ao certo, porque estava num estado estranho, tão saturado com adrenalina que seu coração esguichava sangue através de suas artérias com uma velocidade que Zeus não teria igualado com o raio mais veloz em sua aljava. O baú não parecia mais pesado que um travesseiro, o que era impossível, mesmo se estivesse vazio.
Sem compreender claramente que tinha saído do quarto de hóspedes, Paul baixou os olhos para a escada fechada.
O homem mumificado subia correndo das ruínas da sala de estar, ataduras adejando em torno dos lábios enquanto suas exalações fortes pareciam provar que ele não era um faraó morto há milhares de anos, reanimado para punir o arqueólogo imprudente que ignorara todos os avisos e violara sua tumba. Portanto, esta
não era uma ficção saída das páginas da Weird Tales. Paul jogou o baú pela escadaria. Um tiro. Cedro estilhaçando.
Atingido em cheio, o assassino foi jogado para trás pelo baú, num tilintar de alças de bronze.
Paul novamente no quarto de hóspedes. Jogando um abajur no chão, levantando a mesinha-de-cabeceira.
Então mais uma vez no topo da escadaria.
Lá embaixo, o assassino tinha empurrado o baú de cedro para o lado e se levantara, cambaleante. Através de suas bandagens de faraó mumificado, o assassino fitou Paul e disparou sem fazer mira, como se não tivesse colocado seu coração nisso. Em seguida, desapareceu na sala de estar.
Paul colocou a mesinha-de-cabeceira no chão e esperou, preparado para jogar móveis pela escadaria caso o atirador enfaixado ousasse retornar.
No térreo, dois tiros foram disparados, e um instante depois do segundo uma explosão abalou a paróquia como se o Apocalipse, prometido há tanto tempo, finalmente tivesse chegado. Esta foi uma explosão de verdade, não o impacto de outro Pontiac desgovernado.
Um clarão alaranjado floresceu na sala de estar, uma onda de calor engolfou Paul, e imediatamente atrás do calor veio uma massa de fumaça negra coleante, passando pelo corredor como se fosse uma chaminé.
O quarto de hóspedes. Levar Grace até a janela. Soltar a trava. Não soltou. Torcida ou travada por uma mão de tinta. Vidraças pequenas, molduras sólidas, muito difíceis de serem quebradas.
— Prenda a respiração e corra — urgiu Paul, arrastando-a com ele para o corredor.
Fuligem cegante, fumaça sufocadora. Um calor calcinante informou a Paul que uma chama ardente seguira a fumaça escadaria acima e agora espreitava na escuridão, perigosamente perto deles.
Para a frente da casa, através de um corredor subitamente escuro como um túnel, rumo a uma luz vaga em meio à escuridão fervente. E ali estava uma janela, no fundo do corredor.
Esta abriu com facilidade. Ar frio e fresco, a luz do dia, muitíssimo bem-vinda.
Do lado de fora, chamas dançavam à esquerda e à direita da abertura. A frente da casa estava em chamas.
Não havia como voltar. Em meio à escuridão fumarenta, eles ficariam desorientados numa questão de segundos, cairiam e morreriam sufocados antes de terem seus corpos queimados. Além disso, a janela aberta, provendo uma corrente de vento, atrairia o fogo rapidamente pelo corredor atrás deles.
— Rápido, muito rápido — alertou Paul, ajudando Grace a passar através da janela emoldurada em chamas para o teto da varanda.
Tossindo, cuspindo saliva mais amarga que produtos químicos tóxicos, Paul seguiu-a, batendo freneticamente nas suas roupas quando o fogo chamuscou sua camisa.
Como uma planta trepadeira avermelhada pelo outono, videiras de fogo escalavam a casa. A varanda debaixo deles também estava em chamas. Telhas de madeira ardiam sob seus pés e línguas de fogo despontavam nas bordas do teto em cima do qual estavam.
Grace caminhou até a beira.
Paul gritou, mandando que parasse.
Embora a distância até o chão fosse de apenas três metros, ela estaria se arriscando demais se corresse às cegas e saltasse sobre a franja de fogo na beira do telhado. Um pouso no gramado terminaria bem. Mas se caísse no caminho de concreto, poderia quebrar uma perna ou as costas, dependendo do ângulo do impacto.
Ela estava novamente nos braços de Paul, como se por mágica, e ele correu enquanto o fogo se espalhava pelas telhas e o teto tremia debaixo deles. No ar através da fumaça densa. Através de chamas que acariciaram brevemente as solas de seus sapatos.
Paul tentou virar de costas durante a queda, na esperança de cair debaixo de Grace, proporcionando-lhe um amortecimento para o caso de tombarem não na grama, mas no concreto.
A julgar pelas aparências, Paul não conseguiu se virar o suficiente; ele pousou em pé sobre o gramado ralo do inverno. O choque fez seu corpo ceder, e ele caiu de joelhos. Ainda com Grace nos braços, abaixou-a até o chão tão gentilmente quanto sempre abaixara a frágil Perri na cama — como se tivesse planejado proceder desta forma.
Levantou-se com a rapidez de um boneco de molas, ou talvez tenha se erguido cambaleante, dependendo de se a imagem que fazia de si mesmo agora era de um super-herói ou real, e correu os olhos à sua volta, procurando pelo homem das ataduras. Alguns vizinhos atravessaram o gramado até Grace e outros aproximaram-se ao longo da rua. Mas o assassino tinha sumido.
As sirenes uivaram tão alto que ele sentiu uma vibração em suas obturações dentárias, e com um grito agudo de freios um caminhão vermelho dobrou a esquina, imediatamente acompanhado por um segundo.
Tarde demais. A paróquia estava completamente tomada pelo fogo. Com sorte, eles salvariam a igreja.
Apenas agora, ao passo que a maré de adrenalina começava a baixar, Paul perguntou-se quem desejaria matar um homem de paz e de Deus, um homem tão bom quanto Harrison White.
Este dia marcante, pensou Paul, e estremeceu com terror súbito diante da inevitabilidade de novos começos.
A VERBA GENEROSA para gastos, provida por Simon Magusson, pagou por uma suite com três quartos num hotel confortável. Um quarto para Tom Vanadium, um para Celestina e Anja.
Tendo reservado a suite para três noites, Tom esperava passar bem menos horas acordado a altas horas nesta cama do que sentado em vigília na sala de estar compartilhada.
Às sete e meia da manhã de sábado, tendo acabado de se instalar no hotel depois de chegar do St. Mary, eles estavam esperando que a polícia de San Francisco entregasse malas de roupas e artigos de higiene que Rena Moller, vizinha de Celestina, empacotara segundo suas instruções. Enquanto esperavam, os três almoçaram cedo — ou tomaram café da manhã tarde — numa mesa de serviço de quarto na sala de estar.
Durante os próximos dias, eles fariam todas as suas refeições na suite. Era bem provável que Caim tivesse saído de San Francisco. E mesmo se o assassino não tinha voado daqui, esta era uma grande cidade, onde um encontro casual com ele era improvável. Mas tendo assumido o papel de guardião, Tom Vanadium tinha tolerância zero para riscos, porque o inimitável sr. Caim já se provara um mestre do improvável.
Tom não atribuía poderes sobrenaturais a este assassino. Enoch Caim era mortal, não era onisciente nem onipotente. Entretanto, o mal e a estupidez frequentemente andavam de mãos dadas, e a arrogância é o fruto de seu casamento, conforme Tom já dissera a Celestina. Um homem arrogante, nem a metade tão esperto quanto pensa, sem nenhum senso de certo e errado, sem nenhuma capacidade para o remorso, às vezes pode ser tão imprudente que, ironicamente, a imprudência se torna a sua maior força. Como é capaz de qualquer coisa, de assumir riscos que não seriam considerados por pessoas comuns, seus adversários jamais podem predizer seus atos, e a surpresa lhe serve bem. Se também possui argúcia animal, uma espécie de inteligência intuitiva profunda, pode reagir mais rápido às consequências negativas de sua imprudência — e realmente pode parecer mais que humano.
A prudência exigia que eles montassem suas estratégias como se Enoch Caim fosse o próprio Satã, como se cada mosca, besouro e rato fossem os olhos e os ouvidos do assassino, como se precauções ordinárias não fossem suficientes para ele.
Além de pensar em estratégias, Tom passou muito tempo meditando sobre culpa: a sua, não a de Caim. Ao se apoderar do nome que ouvira Caim dizer num sonho, ao usá-lo nesta guerra psicológica, fora ele o arquiteto da obsessão do assassino com Bartholomew, ou se não o arquiteto, então ao menos um desenhista assistente? Se essa direção não lhe tivesse sido apontada, Caim teria seguido uma trilha diferente que o teria conduzido para longe de Celestina e Anja?
O assassino da esposa era mau; e sua malignidade seria expressada de uma forma ou de outra, a despeito das forças que afetassem suas ações. Se ele não tivesse matado Naomi na torre, a teria matado em outro lugar, quando outra oportunidade de enriquecimento tivesse se apresentado. Se Victória não se tivesse tornado uma vítima, alguma outra mulher teria morrido em seu lugar. Se não tivesse ficado obcecado com a estranha convicção de que alguém chamado Bartholomew seria o causador de sua morte, Caim teria enchido o seu coração vazio com uma obsessão igualmente estranha que poderia tê-lo conduzido, mesmo assim, a Celestina. E se Celestina não fosse a vítima, certamente outra pessoa seria.
Tom agira segundo a melhor das intenções — mas também com inteligência e com o bom julgamento que Deus tinha lhe dado e que ele passara a vida inteira afiando. As boas intenções podiam ser os tijolos que calçavam a estrada para o Inferno. Contudo, as boas intenções, formadas a partir de muitos dilemas e meditações, e guiadas pela sabedoria adquirida com a experiência — como eram as de Tom —, são tudo que pode ser esperado de nós. Ele sabia que as consequências indesejadas que poderíamos ter previsto são a matéria da danação, mas aquelas que não poderíamos ter previsto fazem parte de algum propósito pelo qual não podemos ser responsabilizados, ou pelo menos era o que ele esperava.
Ainda assim, ele meditou até mesmo durante o desjejum, a despeito do consolo provido por morangos com creme, cereais e manteiga de canela. Em mundos melhores, os Tom Vanadiuns mais sábios tinham escolhido táticas diferentes que resultaram em menos dor, numa condução mais ágil de Enoch Caim aos braços da justiça. Mas ele não era nenhum desses Tom Vanadiuns. Era apenas este Tom, cheio de falhas e defeitos, e não podia confortar-se com o fato de que em algum lugar provara ser um homem melhor.
Empoleirada numa cadeira com dois travesseiros gordinhos para elevá-la, Anja extraiu uma tira de bacon de seu sanduíche e perguntou a Tom:
— De onde vem o bacon?
— Você sabe de onde ele vem — disse a mãe com um bocejo que traía sua exaustão depois de uma noite sem sono e com muito drama.
— Sim, mas eu quero saber se ele sabe — explicou a menina. Revigorada depois de um sono auxiliado por sedativos, que não terminara
até eles estarem no táxi entre o hospital e o hotel, Anja provara-se resiliente como apenas as crianças podiam ser enquanto ainda retivessem a sua inocência. Ela não entendia o quão seriamente Wally estava ferido, é claro, mas se o ataque de Caim a havia aterrorizado enquanto ela assistira debaixo da cama da mãe, não parecia em risco de ficar traumatizada permanentemente.
— Você sabe de onde vem o bacon? — perguntou novamente a Tom.
— Do supermercado — foi a resposta de Tom.
— E onde o supermercado consegue ele?
— Com os fazendeiros.
— E onde os fazendeiros conseguem? - "
— Eles colhem nos pés de bacon. A garota soltou uma risadinha.
— É o que você acha?
— Eu já vi os pés de bacon — assegurou Tom.— Minha querida, nunca vi uma árvore com um cheiro tão bom.
— Bobeira! — julgou Anja.
— Bem, e de onde você acha que o bacon vem?
— Porcos!
— Mesmo? Acha mesmo isso? — perguntou na sua voz monótona, que às vezes queria que fosse mais musical, mas que ele sabia prestar um tom de convicção sóbria a tudo que dizia. — Acha que uma coisa tão deliciosa podia vir de um porco gordo, fedorento e sujo?
Franzindo a testa, Anja estudou a tira de carne saborosa presa entre seus dedos, reavaliando tudo que sabia sobre a fonte do bacon.
— Quem lhe contou sobre os porcos? — perguntou.
— A mamãe.
— Ah, então tudo bem. Mamãe não mente nunca.
— Não, ela não mente. — E olhando desconfiada para Celestina: — Mas às vezes ela mexe comigo.
Celestina sorriu, distraída. Desde que chegara ao hotel, uma hora atrás, ela estava hesitando entre ligar para os seus pais em Spruce Hills ou esperar até o final da tarde, quando poderia informar não apenas que tinha um noivo, e que esse noivo tinha sido alvejado e quase morto, mas também que sua condição melhorara de crítica para séria. Conforme ela explicara a Tom, além de preocupá-los com as notícias sobre Caim, ela iria atordoá-los com a declaração de que iria se casar com um homem branco com o dobro da sua idade.
— Meus pais não têm uma gota de preconceito nos corpos, mas possuem ideias muito firmes sobre o que é e o que não é apropriado.
E isto iria soar o grande sino no topo da Escala do Inapropriado da Família White. Além disso, eles estavam se preparando para o funeral de um membro da comunidade, e Celestina sabia, por experiência própria, que o dia deles ia ser cheio. Não obstante, às onze e dez, depois de beliscar seu café da manhã, ela finalmente decidiu ligar para eles.
Enquanto Celestina se acomodava no sofá com o telefone no colo, hesitando ligar até reunir um pouco mais de coragem, Anja perguntou a Tom:
— E então, o que aconteceu com a sua cara?
— Anja! — admoestou sua mãe do outro lado da sala. — Isto é falta de educação.
— Eu sei, mas como vou saber se não perguntar?
— Você não precisa saber nada.
— Preciso, sim — objetou Anja.
— Fui atropelado por um rinoceronte — revelou Tom. Anja piscou, aturdida.
— Aquele bicho grande e feio?
— Ele mesmo.
— Com olhos maus e um chifre enorme no nariz.
— Exatamente.
Anja fez uma careta.
- Não gosto de rinocerontes.
- Eu também não.
— Por que ele atropelou você?
— Porque eu estava no caminho dele.
— Por que estava no caminho dele?
— Porque atravessei a rua sem olhar.
— Não me deixam atravessar a rua sozinha.
— Agora você vê por quê? — perguntou Tom.
— Você está triste?
— Por que deveria estar?
— Porque a sua cara parece toda amassada.
— Ai, meu Deus! — disse Celestina, envergonhada.
— Está tudo bem — assegurou-lhe Tom. Para Anja, ele disse: —- Não, não estou triste. E sabe por quê?
— Porquê?
— Vê isto?
Ele colocou o pimenteiro na frente da menina, sobre a mesa de serviço de quarto, e manteve o saleiro escondido na mão.
— Pimenteiro.
— Mas vamos fingir que sou eu, tá? Então aqui estou, saindo da calçada sem olhar para os dois lados...
Ele moveu o pimenteiro através do pano de mesa, balançando-o para um lado e para o outro para transmitir que era o caminhante mais descuidado do mundo.
— ... e bam! O rinoceronte me atropela e nem pensa em parar e me pedir desculpas...
Ele fez o pimenteiro cair de lado e então, com um gemido, colocou-o em pé novamente.
— ... e quando saio da rua, minhas roupas estão rasgadas, e estou com este rosto.
— Você devia processar.
— Sim, eu devia. Mas o problema é que... — Com a agilidade de um mágico, ele permitiu ao saleiro sair de seu esconderijo em sua palma, ficar ao lado do pimenteiro. — Este também sou eu.
— Não, este é você — disse Anja, cutucando o pimenteiro.
— Bem, entenda, esta é a coisa engraçada em todas as escolhas importantes que fazemos. Se fazemos uma escolha muito errada, se tomamos uma atitude terrível, ganhamos outra chance de continuar no caminho certo. Assim, no exato momento em que saí estupidamente da calçada sem olhar, criei um outro mundo, onde olhei para os dois lados e vi o rinoceronte vindo. E também...
Segurando o saleiro numa mão e o pimenteiro na outra, Tom os fez caminhar para a frente, fazendo com que se separassem levemente no começo, e em seguida movendo-os em paralelo exato um com o outro.
— ... embora este Tom agora tenha um rosto beijado por rinoceronte, este outro Tom, em seu próprio mundo, tem um rosto comum. Pobrezinho dele, tão comum!
Inclinando-se para estudar de perto o saleiro, Anja perguntou:
— Onde fica o mundo dele?
— Exatamente aqui com o nosso. Mas não podemos vê-lo. Ela olhou à sua volta.
— Ele é invisível, como o gato de Alice no país das maravilhas?
— O mundo dele é tão real quanto o nosso, mas não podemos vê-lo, e as pessoas no mundo dele não podem nos ver. Existem milhões e milhões de mundos, todos aqui no mesmo lugar e invisíveis uns aos outros, onde continuamos tendo uma chance depois da outra de levar uma boa vida e fazer a coisa certa.
Pessoas como Enoch Caim, é claro, jamais escolhem entre a coisa certa e a errada, mas entre duas maldades. Elas criam para si mesmas mundos e mais mundos de desespero. Para as outras pessoas, criam mundos de dor.
— Então, entende por que não estou triste? — disse ele.
Anja desviou sua atenção do saleiro para o rosto de Tom, estudando suas cicatrizes por um momento, e disse:
— Não.
— Não estou triste porque, embora tenha este rosto aqui neste mundo, sei que existe outro de mim, na verdade, muitos outros Tons, que não têm este rosto. Em algum lugar estou muito bem, obrigado.
Depois de pensar um pouco nisso, a menina disse:
— Eu estaria triste. Você gosta de cachorros?
— Quem não gosta?
— Eu quero um cachorrinho. Você já teve um?
— Quando eu era menino.
No sofá, Celestina finalmente reuniu a coragem para discar o número de seus pais em Spruce Hills.
— Acha que os cachorros sabem falar? — perguntou Anja.
— Sabe que nunca pensei nisso? — disse Tom.
— Eu vi um cavalo falante na TV.
— Bem, se um cavalo pode falar, por que não um cachorro?
— É o que acho.
Quando a conexão foi estabelecida, Celestina disse:
— Oi, mãe, sou eu.
— E quanto a gatos? — perguntou Anja.
— Mamãe? — disse Celestina.
— Se os cachorros podem, por que os gatos não?
— Mamãe, o que está acontecendo? — perguntou Celestina, a voz subitamente cheia de preocupação.
— É o que acho — disse Anja.
Tom empurrou sua cadeira para longe da mesa, levantou-se, caminhou até Celestina.
Levantando-se do sofá, Celestina virou-se para Tom, seu rosto desabando numa expressão chocada.
— Mamãe, você está aí?
— Eu quero um cachorro falante — disse Anja. Quando Tom alcançou Celestina, ela disse:
— Tiros. Tiros de revólver.
Ela segurou o fone numa mão e puxou o cabelo com a outra, como se com a administração de um pouco de dor pudesse acordar deste pesadelo.
— Ele está no Oregon — disse Celestina.
O inimitável Sr. Caim. O mágico das surpresas. O mestre do improvável.
— BOLHAS.
Caim Júnior tinha fugido de Spruce Hills num Dodge Charger 440 Magnum preto roubado, na trajetória mais reta para Eugene permitida pelas estradas sinuosas do sul do Oregon, permanecendo fora da Interstate 5, onde o policiamento era mais agressivo.
— Carbúnculos, para ser mais preciso.
Durante o percurso, ele alternara surtos de risadas deliciadas e choros causados pela dor e pela autocomiseração. O batista feiticeiro estava morto, a maldição rompida com a morte daquele que a lançara. Ainda assim, Júnior precisava suportar esta última praga devastadora.
— Uma bolha é um folículo de cabelo ou poro inflamado e cheio de pus. Numa rua a quase um quilómetro do aeroporto em Eugene, sentou-se no
Dodge estacionado por tempo bastante para desenrolar gentilmente as bandagens e usar um lenço para enxugar a salva pungente mas inútil que comprara numa farmácia. Embora tenha pressionado o lenço de papel no rosto tão levemente que a pressão não romperia a tensão de superfície numa poça d'água, a agonia do toque foi tão grande que quase desmaiou. O espelho retrovisor revelou fileiras de caroços feios, grandes e vermelhos, com pontas amarelas reluzentes, e ao ver a si mesmo Júnior realmente desmaiou por um ou dois minutos, apenas o tempo exato para sonhar que era uma criatura grotesca mas incompreendida perseguida durante uma noite tempestuosa por uma multidão de aldeões zangados com tochas e ancinhos, mas então foi revivido pela dor latejante.
— Carbúnculos são fileiras de bolhas interligadas.
Júnior estava arrependido de ter tirado as ataduras do rosto, mas não tivera escolha. Temendo que as ondas de rádio já estivessem carregando as notícias do homem com rosto coberto por ataduras que matou um pastor em Spruce Hills, Júnior abandonara o Dodge e caminhava de volta até o terminal de serviço particular, onde o piloto de Sacramento esperava. Ao ver seu passageiro, o piloto deu um pulo para trás e disse Reação alérgica a O QUÊ?E Júnior respondeu, camélias, porque Sacramento era a Capital Mundial das Camélias, e tudo que ele queria era voltar para lá, onde deixara seu furgão Ford novo com seus Sklents, sua coleção de Zedd e tudo que ele precisava para viver no futuro. O piloto ocultou sua repulsa intensa e Júnior compreendeu que teria sido abandonado se não tivesse pago a tarifa de vôo adiantada.
— Em geral, eu recomendaria que você aplicasse compressas quentes a cada duas horas para aliviar o desconforto e apressar a supuração, e o mandaria para casa com uma receita para um antibiótico.
Agora, aqui, deitado numa cama da sala de emergência do hospital de Sacramento, numa tarde de sábado a apenas seis semanas do festival das camélias, Júnior sofria sob os cuidados de um médico residente que era jovem a ponto de levantar a desconfiança de que era um ator fazendo-se passar por médico.
— Mas nunca vi um caso como este. Em geral, as bolhas aparecem na nuca. E em áreas úmidas como axilas e virilha. Nunca tanto no rosto. E jamais numa quantidade como esta. Juro por Deus, nunca vi nada parecido.
Claro que nunca viu nada parecido, seu adolescente inútil. Você não tem idade nem pra trepar, seu Dr. Kildare de meia tigela. E mesmo que fosse mais velho que o seu avô, não teria visto nada parecido com isto, porque este é um caso autêntico de bolhas de feitiçaria batista, e eles são raros!
— Nem sei o que é mais incomum... o local da erupção, o número de bolhas ou o tamanho delas.
Enquanto você está tentando decidir, me passa uma faca para eu cortar a tua jugular, seu acéfalo desistente da faculdade de medicina!
— Vou recomendar que fique internado durante a noite para tratarmos disso sob condições hospitalares. Usaremos uma agulha esterilizada em algumas delas, mas num número tão grande elas vão exigir uma faca cirúrgica e provavelmente a remoção da casca dos carbúnculos. Geralmente isto é feito com uma anestesia local, mas neste caso, embora eu não ache que uma anestesia geral seja necessária, provavelmente iremos sedar você, ou seja, colocá-lo num sono intermediário.
Eu vou botar você num sono intermediário, seu cretino. Onde você arranjou o seu diploma em medicina, seu retardado? Em Botswana? No Reino de Tonga?
— Eles o trouxeram direto para cá ou você acertou a questão do plano de saúde na recepção, sr. Pinchbeck?
— Dinheiro vivo — disse Júnior. — Pagarei em dinheiro vivo, qualquer seja a quantia de depósito requerida.
— Então cuidarei de tudo imediatamente — disse o doutor, estendendo a mão até a cortina que cercava a cama da sala de emergência.
— Pelo amor de Deus, você não pode me dar alguma coisa para a dor? — rogou Júnior.
O menino-prodígio virou-se novamente para Júnior e assumiu uma expressão de compaixão tão falsa que se estivesse interpretando um médico na novela diurna mais vagabunda do mundo teria tido sua carteira do sindicato dos atores confiscada, e possivelmente seria chicoteado num especial de televisão ao vivo.
— Como vamos fazer a operação esta tarde, não quero lhe dar nada para a dor antes da anestesia e da sedação. Mas não se preocupe, Sr. Pinchbeck. Depois que tivermos perfurado essas bolhas, quando você acordar, noventa por cento da dor terá sumido.
Sentindo uma dor miserável, Júnior ficou deitado, esperando para entrar na faca, mais ansioso por ser cortado do que poderia achar possível algumas horas antes. A mera promessa desta cirurgia animava-o mais do que todo o sexo que ele tinha desfrutado entre os seus treze anos e a quinta-feira passada.
O médico púbere retornou com três colegas, se acotovelando por trás da cortina para proclamar que nenhum deles jamais tinha visto nenhum caso remotamente parecido com este. O mais velho — míope e careca — insistiu em fazer a Júnior perguntas íntimas sobre seu estado matrimonial, seus relacionamentos familiares, seus sonhos, sua auto-estima. O sujeito claramente era um psiquiatra clínico especulando abertamente sobre a possibilidade de um componente psicossomático.
O idiota.
Finalmente: o humilhante avental sem fundilhos, as drogas preciosas, até uma enfermeira bonita que pareceu gostar dele, e então o limbo.
Noite de segunda, 15 de janeiro: Paul Damascus chegou com Grace White ao hotel em San Francisco. Ele a mantivera sob vigilância em Spruce Hills por mais de dois dias, dormindo no chão do corredor diante de seu quarto em ambas as noites, permanecendo perto dela quando em público. Eles ficaram com amigos dela até o funeral de Harrison nesta manhã, e então voaram para o sul para uma reunião entre mãe e filha.
Tom Vanadium gostou imediatamente do homem. O instinto de tira lhe disse que Damascus era honesto e confiável. A visão sacerdotal sugeriu qualidades ainda mais impressionantes.
— Estávamos para pedir um jantar ao serviço de quarto — disse Tom, passando o cardápio para Paul.
Grace recusou a comida, mas Tom pediu por ela assim mesmo, selecionando as coisas que a esta altura ele sabia que Celestina gostava, presumindo que o gosto da mãe moldara o da filha.
As duas mulheres enlutadas ficaram juntas num canto da sala de estar, lacrimosas, conversando em voz baixa, perguntando-se mutuamente se havia alguma coisa que cada uma delas pudesse fazer para preencher este vazio profundo e terrível que aparecera subitamente em suas vidas.
Celestina quisera ir ao Oregon para o funeral, mas Tom, Max Bellini, a polícia de Spruce Hills e Wally Lipscomb — com quem, no domingo, ela conversara praticamente uma hora ao telefone — haviam todos aconselhado vigorosamente contra fazer a viagem. Um homem tão louco e imprevisível quanto Enoch Caim, esperando encontrá-la na casa funerária ou no cemitério, podia não se intimidar por uma guarda policial, fosse qual fosse o seu tamanho.
Anja não estava com as mulheres de luto; preferia ficar sentada no chão diante da tevê, mudando de canal entre Gunsmoke e Os Monkees. Nova demais para sentir-se genuinamente envolvida com qualquer um dos programas, ainda assim ela ocasionalmente fazia sons de tiros quando o xerife Dillon entrava na batalha ou inventava suas próprias canções para cantar com os Monkees.
Uma vez ela saiu de frente da tevê e caminhou até Tom, onde ele estava sentado conversando com Paul.
— É como Gunsmoke e Os Monkees estão um ao lado do outro na TV, ambos ao mesmo tempo. Mas os Monkees não podem ver os caubóis e os caubóis não podem ver os Monkees.
Embora para Paul isso tenha parecido simples conversa infantil, Tom compreendeu imediatamente que a garota estava se referindo à sua explicação por não se sentir triste sobre seu rosto danificado: o saleiro e o pimenteiro representando dois Toms, o atropelado pelo rinoceronte e o não atropelado, os dois mundos diferentes num mesmo lugar.
— Sim, Anja. É mais ou menos isso que eu estava falando. Ela voltou para a televisão.
— Essa é uma menininha especial — disse Tom, pensativo.
— É uma gracinha — concordou Paul.
Graciosidade não era a qualidade que Tom tinha em mente.
— Como ela está lidando com a morte do avô? — perguntou Paul.
— Bem.
Às vezes Anja parecia atormentada pelo que lhe fora dito sobre seu avô, e nesses momentos ela parecia triste, cabisbaixa. Mas, afinal de contas, ela só tinha três anos, jovem demais para compreender a permanência da morte. Ela provavelmente não ficaria surpresa se Harrison White entrasse pela porta dali a pouco, durante O agente da U.N.C.L.E ou O show da Lucy.
Enquanto aguardavam o garçom do serviço de quarto chegar, Tom pegou com Paul um relatório detalhado sobre o ataque de Enoch Caim à paróquia. Ele tinha ouvido a maior parte com amigos na divisão de homicídios da polícia estadual, que estava assistindo as autoridades de Spruce Hills. Mas o relato de Paul foi mais vívido. A ferocidade do ataque convenceu Tom de que quaisquer que fossem os motivos distorcidos do assassino, Celestina e sua mãe — sem contar com Anja — corriam perigo enquanto Caim continuasse solto. Talvez enquanto ele vivesse.
O jantar chegou e Tom persuadiu Celestina e Grace a jantarem à mesa para o bem de Anja, mesmo se não estivessem com fome. Depois de tanto caos e confusão, a criança precisava de estabilidade e rotina sempre que fosse possível. Nada conferia mais senso de ordem e normalidade a um dia desordenado e estressante do que a reunião de amigos e familiares em torno de uma mesa de jantar.
Embora, por acordo silencioso, todos tenham evitado falar sobre perda e morte, a atmosfera permaneceu triste. Anja ficou sentada calada, pensativa, empurrando a comida pelo prato mais do que comendo. Seu comportamento intrigou Tom e ele notou que a mãe, que extraía daquilo uma interpretação diferente da dele, também estava preocupada.
Ele deslizou seu prato para o lado. De um bolso, retirou uma moeda de 25 cents, que sempre servia-lhe tão bem com crianças quanto com assassinos.
O rosto de Anja se iluminou quando viu a moedinha dando cambalhotas sobre os nós dos dedos de Tom.
— Acho que consigo aprender a fazer isso! — exclamou a menina.
— Quando suas mãos estiverem maiores, tenho certeza de que conseguirá aprender — disse Tom. — Vamos combinar o seguinte: um dia ensinarei a você.
Encerrando a moeda com a mão direita, meneando a mão esquerda sobre a direita, ele entoou:
— Abracadabra, pé de cabra!
E abrindo a mão direita, revelou que a moedinha havia desaparecido. Anja inclinou a cabeça para o lado e estudou a sua mão esquerda, que ele fechara ao abrir a direita. Ela comentou:
— Está ali.
— Sinto muito, mas você está errada.
Ao abrir a mão esquerda, a palma estava tão vazia quanto a de um mendigo cego numa terra de ladrões. Enquanto isso, sua mão direita tinha se fechado novamente num punho.
— Para onde ela foi? — perguntou Grace à neta, fazendo o máximo de esforço que podia para melhorar o clima em benefício da menina.
Olhando a mão cerrada de Tom com suspeita, Anja disse:
— Não está ali.
— A princesa está correta — reconheceu Tom, revelando que sua mão ainda estava vazia. Então ele esticou o braço até a menina e tirou a moeda de sua orelha.
— Isso não é mágica! — declarou Anja.
— Com toda certeza pareceu mágica para mim — disse Celestina.
— Para mim também — concordou Paul. Anja estava reticente:
— Neca. Eu posso aprender isso. Como aprendi a me vestir e dizer obrigada.
— Você pode aprender, sim — concordou Tom.
Com o dedão curvado contra o gancho formado por seu dedo indicador, ele lançou a moeda ao ar. Enquanto a moeda saltava da unha e começava a girar no ar, Tom abriu ambas as mãos, dedos estendidos para mostrá-las vazias e distrair. Quando todos olharam para cima de novo, a moeda não estava mais no ar, não estava girando diante de seus olhos estarrecidos. Desaparecera como se tivesse entrado na ranhura de pagamento de uma máquina de venda automática invisível que dispensava mistérios em troca de moedas.
Ao redor da mesa de jantar, os adultos aplaudiram, mas a espectadora mais durona olhou para o teto, na direção de onde ela acreditava que a moeda tinha arqueado, e então para a mesa, onde ela devia ter caído entre os copos de água ou em seu cereal. Finalmente, ela olhou para Tom e disse:
— Não é mágica.
Graça, Celestina e Paul riram, impressionados com o comentário crítico de Anja.
Convicta, Anja insistiu:
— Não é mágica. Mas talvez eu nunca consiga aprender a fazer esse aí. Como se atingidos por eletricidade estática, os pêlos finos nas costas das mãos
de Tom eriçaram-se e uma corrente de expectativa atravessou o seu corpo.
Desde a infância ele tinha esperado por este momento — se era mesmo O Momento — e quase tinha perdido as esperanças de que o tão desejado encontro jamais acontecesse. Ele tinha esperado encontrar outros com suas percepções entre físicos ou matemáticos, entre monges ou místicos, mas nunca na forma de uma menina de três anos vestida completamente em azul-escuro, exceto por um cinto vermelho e dois aros de cabelo vermelhos.
A boca de Tom estava seca quando ele disse a Anja:
— Bem, parece completamente mágico para mim... esse truque de jogar a moeda para o ar.
— Mágica é como as coisas que ninguém sabe como acontecem.
— E você sabe o que aconteceu com a moedinha?
— Claro.
Não conseguiu reunir saliva suficiente para impedir que sua voz saísse rascante:
— Então você pode aprender a fazer.
Ela meneou a cabeça, e os aros vermelhos balançaram.
— Não. Porque você simplesmente não moveu ela para outro lado.
— Para outro lado?
— De uma mão para a outra, ou para algum lugar.
— Então, o que fiz com ela?
— Você a jogou para Gunsmoke — disse Anja.
— Para onde? — perguntou Grace.
Coração acelerado, Tom tirou outra moeda de um bolso das calças. Em benefício dos adultos, executou a preparação adequada — os tapinhas e os meneios dos dez dedos — porque na mágica, como na fabricação de jóias, cada diamante precisava ser lapidado corretamente para que o seu brilho impressionasse.
Na execução, ele foi igualmente escrupuloso, porque não queria que os adultos vissem o que Anja via; ele preferia que acreditassem que se tratava de um truque manual — ou mágica. Depois dos movimentos usuais, fechou rapidamente a mão direita em torno da moeda, e então, com um movimento rápido do pulso, lançou-a para Anja, simultaneamente distraindo sua plateia com uma profusão de meneios.
Os três adultos exclamaram ao presenciar o desaparecimento da moeda, aplaudiram novamente, e olharam para as mãos de Tom, que tinham fechado à conclusão repentina de todos os floreios.
Anja, entretanto, focou num ponto no ar acima da mesa. Rugas suaves marcaram sua fronte por um momento, mas então seu rosto foi iluminado por um sorriso.
— Essa também foi para Gunsmoke? — perguntou Tom numa voz rouca.
— Talvez — disse Anja. — Ou talvez para Os Monkees... ou talvez para onde você não foi atropelado pelo rinoceronte.
Tom abriu as mãos vazias e então encheu uma delas com seu copo d'água. O tilintar dos cubos de gelo dentro do copo contrariaram a calma expressa em seu rosto.
A Paul Damascus, Anja perguntou:
— Você sabe de onde vem o bacon?
— Dos porcos — disse Paul.
— Nãoooooooooo — disse Anja, rindo da ignorância dele.
Celestina olhou com curiosidade para Tom Vanadium. Ela havia testemunhado o efeito do desaparecimento, embora não tivesse realmente visto a moeda desaparecer em pleno ar. Ainda assim, parecia sentir que alguma coisa além de um mero truque manual acabara de transpirar ou que o truque tinha um significado que ela não entendia.
Antes que Celestina o sondasse e talvez tocasse num ponto dolorido, Tom começou a contar a história de Rei Obadias, Faraó do Fantástico, que o ensinara tudo que sabia sobre truques com as mãos.
Mais tarde, depois que eles tinham acabado de comer mas estavam sentados à mesa tomando café, a conversa ficou solene, embora agora o assunto não fosse o falecido Harrison White. Por quanto tempo as duas mulheres e a menina precisavam ser mantidas escondidas, quando e onde seriam capazes de continuar suas vidas da forma mais normal possível para elas: esses eram os assuntos do momento.
Por quanto mais tempo lhe fosse pedido que ficasse escondida, maior seria a chance de que Celestina pusesse as precauções de lado e retornasse a Pacific Heights. Tom já a conhecia bem o bastante para ter certeza de que ela era uma lutadora, não uma fugitiva. Ficar escondida deixava-a frustrada. Dia a dia, hora a hora, sem nenhuma data prevista para retomar uma vida normal, ela perderia rápido a paciência. E então seria compelida por sua dignidade e senso de justiça a agir — talvez mais movida pela emoção que pela razão.
Para ganhar o máximo de tempo possível enquanto o ataque de Enoch Caim ainda estava fresco na mente de Celestina, Tom propôs que permanecessem escondidas por mais duas semanas, a não ser que o assassino fosse pego antes.
— Então, se você for daqui para a casa de Wally, deve instalar o melhor sistema de alarme que conseguir, e levar uma vida restrita durante algum tempo, até mesmo contratar seguranças se tiver condições financeiras para isso. A coisa mais inteligente a fazer seria mudar de San Francisco assim que Wally se recuperar. Ele se aposentou cedo, certo? E um pintor pode pintar em qualquer lugar. Venda as propriedades aqui, comece de novo em algum outro lugar e faça a mudança de uma forma que não consigam segui-la facilmente. Eu posso ajudá-la a fazer isso.
— A situação é tão ruim assim? — perguntou Celestina, embora já soubesse a resposta. — Eu amo San Francisco. A cidade inspira o meu trabalho. Construí uma vida aqui. É realmente tão ruim assim?
— É tão ruim assim e ainda pior — disse Grace com firmeza. — Mesmo se eles conseguirem pegá-lo, você vai ter de viver com o medo de que um dia ele escape. Enquanto souber que ele pode encontrá-la, você jamais estará completamente em paz. E se você ama esta cidade a ponto de colocar Anja em perigo... então a quem você esteve ouvindo todos esses anos, menina? Porque não foi a mim.
Já tinha sido tomada a decisão de que Grace se mudaria para a casa de Celestina e então — depois do casamento — com Celestina e Wally. Em Spruce Hills, ela tinha amigos queridos de quem sentiria falta, mas não havia nada mais no Oregon para mantê-la por lá, além do jazigo estreito ao lado do de Harrison, onde ela esperava ser enterrada um dia. O incêndio da paróquia destruíra todos os seus em competições gramaticais no primário, até a última fotografia preciosa. Ela queria apenas estar perto de sua filha remanescente e sua neta, ser parte da vida nova que elas iriam construir com Wally Lipscomb. Aceitando o conselho da mãe, Celestina suspirou.
— Muito bem. Vamos apenas rezar para que peguem ele. Mas se não pegarem em... duas semanas, então iniciaremos o resto do plano, do jeito que você falou. Exceto que não consigo tolerar duas semanas trancada num hotel, com medo de sair para a rua, sem sol, sem ar fresco.
— Venham comigo — disse Paul Damascus imediatamente. — Para Bright Beach. Fica longe de San Francisco e ele jamais pensará em procurar por vocês lá. Por que pensaria? Vocês não têm ligação nenhuma com aquele lugar. Eu tenho uma casa com espaço de sobra. Vocês serão bem-vindas. E não estarão entre estranhos.
Celestina praticamente não conhecia Paul, e embora ele tivesse salvado a vida de sua mãe, sua oferta provocou um olhar de desconfiança da sua parte. Nenhuma hesitação precedeu a resposta de Grace.
— É muito generoso da sua parte, Paul. E, por mim, eu aceitaria. É a casa na qual você viveu com a sua Perri?
— É, sim — confirmou.
Tom não fazia a menor ideia de quem era Perri, mas alguma coisa na forma como Grace formulou a pergunta e olhou para Paul sugeriu que ela sabia algo a respeito de Perri que tinha conquistado seu respeito e sua admiração.
— Muito bem — concedeu Celestina, parecendo aliviada. — Muito obrigada, Paul. Você não apenas é um homem excepcionalmente corajoso, é muito gentil também.
A compleição mediterrânea de Paul não exibia um rubor fácil de detectar, mas Tom achou que a cor de seu rosto ficou um ou dois tons mais próxima do vermelho dos cabelos. Seus olhos, geralmente tão diretos, desviaram-se de Celestina.
— Não sou herói — insistiu Paul. — Apenas tirei a sua mãe de lá no processo de me salvar.
— Um processo e tanto — disse Grace, escarnecendo gentilmente de sua modéstia.
Anja, que estivera atarefada com um biscoito durante a maior parte da conversa, lambeu migalhas dos lábios e perguntou a Paul:
— Você tem um cachorrinho?
— Não tenho não, sinto muito.
— Tem um bode?
— A sua decisão de me visitar seria afetada se eu tivesse?
— Depende.
— Do quê?
— O bode vive dentro ou fora de casa?
— Na verdade eu não tenho um bode.
— Bom. Você tem queijo?
Com um gesto, Celestina indicou que queria conversar com Tom a sós.
Enquanto Anja prosseguia seu interrogatório inclemente a Paul Damascus, Tom juntou-se à mãe dela diante da janela grande no canto mais distante da mesa de jantar.
Flutuando sobre a cidade, o barco da noite tinha jogado suas redes de pesca e colhido milhões de luzes, como peixes luminosos entre suas tramas negras.
Celestina olhou para fora por um momento, e então virou a cabeça para olhar para Tom, tanto com a escuridão da noite quanto com o brilho da metrópole ainda capturados em seus olhos.
— Do que vocês estavam falando?
Por um instante ele pensou em se fazer de bobo, mas sabia que ela era inteligente demais para isso.
— Você está falando sobre Gunsmoke, certo? Ouça, sei que você fará qualquer coisa que seja necessária para manter Anja em segurança, porque você a ama muito. O amor irá lhe dar mais força e determinação do que qualquer outro motivo. Mas precisa saber de uma coisa: você tem de mantê-la em segurança por outro motivo. Ela é especial. Não quero explicar por que ela é especial ou como sei que ela é, porque este não é o momento ou o lugar, nem com seu pai morto e Wally no hospital, e com você ainda trémula por causa do ataque.
— Mas preciso saber.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Sim, precisa. Mas não agora. Mais tarde, quando estiver mais calma e pensando melhor. É uma coisa importante demais para sobrecarregá-la com isso agora.
— Wally me mostrou os resultados dos testes dela. Ela tem um entendimento extraordinário de cores, percepção espacial e formas geométricas para uma criança de sua idade. Ela pode ser um prodígio visual.
— Ah, eu sei que ela é — disse ele. — Sei o quanto ela vê nitidamente. Olho a olho com Tom, Celestina também conseguiu vê-lo com nitidez.
— Você também é especial, em muitas formas óbvias. Mas, como Anja, você é especial de alguma forma secreta... não é?
— Sou muito pouco dotado, mas o dom de que estou falando é incomum — admitiu. — Não é nada que abale o mundo. É, digamos assim, uma percepção especial com a qual fui agraciado. O dom de Anja parece ser diferente do meu, mas relacionado. Em cinquenta anos, ela é a primeira pessoa que conheci que é um pouco parecida comigo. Ainda estou tremendo por dentro devido ao choque de tê-la encontrado. Mas, por favor, vamos reservar isto para Bright Beach e uma noite melhor. Você vai para lá amanhã com Paul, não vai? Eu vou ficar aqui e cuidar de Wally. Quando ele estiver em condições de viajar, irei levá-lo comigo. Sei que você vai querer que ele ouça o que tenho a dizer, também. Trato feito?
Dividida entre a curiosidade e a exaustão emocional, Celestina olhou fixamente para ele, pensou e finalmente disse:
— Trato feito.
Tom olhou para as profundezas oceânicas da cidade, através dos recifes de prédios, até cardumes de carros-peixes.
— Vou contar-lhe uma coisa sobre o seu pai que pode confortá-la, mas você não pode me perguntar mais do que estou pronto para dizer agora. É uma parte do que vou falar com vocês em Bright Beach.
Ela não disse nada.
Assumindo seu silêncio como uma resposta positiva, Tom continuou:
— O seu pai partiu daqui, foi para sempre, mas ele ainda vive em outros mundos. O que estou dizendo não é apenas uma declaração de fé. Se Albert Einstein ainda estivesse vivo e em pé aqui, ele lhe diria que é verdade. O seu pai está com você em muitos lugares, e Fimie também. Em muitos lugares, ela não morreu ao dar à luz. Em alguns lugares, ela jamais foi estuprada, sua vida jamais foi maculada. Mas há uma ironia nisso, concorda? Por que nesses mundos, Anja não existe, mas ela é um milagre e uma bênção. — Ele levantou os olhos da cidade para a mulher. — Então, quando você estiver deitada na cama esta noite, acordada pela dor da perda, não pense apenas no que perdeu com seu pai e Fimie. Pense sobre o que você tem neste mundo que você não tem nos outros: Anja. Seja Deus católico, batista, judeu, muçulmano ou físico quântico, Ele nos dá uma compensação por nossas dores, uma compensação aqui e agora neste mundo, não apenas nos mundos paralelos a ele e não apenas em alguma vida depois da morte. Sempre há uma compensação pela morte... se nós a reconhecemos ao vê-la.
Os olhos de Celestina, poças lustrosas, estavam alagados com a necessidade de saber, mas ela respeitou o acordo.
— Entendo apenas parte do que está dizendo, e nem sei que parte, mas de alguma forma estranha, parece verdade. Obrigada. Eu vou pensar nisso à noite, quando não conseguir dormir. — Ela deu um passo para a frente e o beijou na bochecha. — Quem é você, Tom Vanadium?
Ele sorriu e deu de ombros.
— Já fui um pescador de homens. Agora caço eles. Um em particular.
NO FIM DA TARDE DE TERÇA em Bright Beach, enquanto um azul-escuro e uma maré iridescente rolavam sobre o céu, gaivotas planavam rumo aos seus portos de segurança, e na terra lá embaixo as silhuetas que tinham estado em pé o dia inteiro, trabalhando, agora estavam deitadas, estendidas, preparando-se para a noite.
Do sul de San Francisco até o aeroporto do condado de Orange num avião lotado, e então para ainda mais ao sul ao longo da costa num carro alugado, Paul Damascus levava Grace, Celestina e Anja até a casa dos Lampion.
— Antes de irmos até minha casa, tem uma pessoa que gostaria muito que vocês conhecessem. Ela não está nos esperando, mas tenho certeza de que não haverá problema.
Com uma mancha de farinha numa bochecha, limpando as mãos numa toalha de prato vermelha e branca, Agnes atendeu à porta, viu o carro no caminho de acesso e exclamou:
— Paul! Você não está andando?
— Eu não podia carregar essas três damas nos braços — disse ele. — Por mais esbeltas que sejam, pesam juntas muito mais que minha mochila.
Apresentações rápidas foram feitas durante o processo de se mover da varanda até a ante-sala, e Agnes disse:
— Venham comigo até a cozinha. Estou assando tortas.
O aroma no ar teria derrotado a vontade do monge mais devoto num jejum de penitência.
— Que cheiro maravilhoso é esse? — perguntou Grace.
— Tortas de pêssego, passas e nozes, com base crocante e cobertura de chocolate — disse Agnes.
— Esta é a oficina do diabo! — declarou Celestina.
Na cozinha, Barty estava sentado à mesa e Paul sentiu uma pontada no coração ao ver o menino com as órbitas dos olhos cobertas por gazes.
— Você deve ser Barty — disse Grace. — Ouvi falar muito de você.
— Sentem, sentem — insistiu Agnes. — Posso oferecer café agora e torta daqui a pouquinho.
Celestina teve uma reação retardada ao nome de Barty. Seu rosto estampou uma expressão estranha.
— Barty? É apelido para... Bartholomew?
— Sou eu — disse Barty.
— Paul nos contou na noite em que chegou à paróquia. Também falou tudo sobre sua falecida esposa, Perri. Tenho a impressão de que já conheço Bright Beach.
— Então vocês têm uma grande vantagem, e precisam nos contar tudo sobre vocês — disse Agnes. — Vou fazer o café... a não ser que queiram me ajudar.
Grace e Celestina sintonizaram-se prontamente no ritmo do trabalho naquela cozinha, não apenas fazendo o café, mas também ajudando Agnes com as tortas.
Seis cadeiras altas circundavam uma mesa grande e redonda, uma para cada um deles, incluindo Agnes, mas apenas Paul e Barty permaneceram sentados.
Fascinada com este reino novo e estranho, Anja retornou periodicamente a sua cadeira, entre explorações, para bebericar suco de maçã e revelar suas descobertas mais recentes.
— Eles têm papel de prateleira amarelo. Eles têm batatas numa gaveta. Eles têm quatro tipos diferentes de picles na geladeira. Eles têm uma torradeira debaixo de uma meia com desenhos de pássaros nela.
— Não é uma meia — explicou Barty. — É um abafador.
— Um o quê? — perguntou Anja.
— Um abafador de torradeira.
— Por que têm pássaros nela? Pássaros gostam de torrada?
— Claro que gostam — disse Barty. — Mas acho que Maria bordou os pássaros só porque eles são bonitos.
— Vocês têm um bode?
— Espero que não — disse Barty.
— Eu também — disse Anja e em seguida saiu para explorar de novo. Agnes, Celestina e Grace logo estavam trabalhando juntas em harmonia com
a poesia da cozinha. Paul tinha notado que a maioria das mulheres pareciam gostar ou não gostar umas das outras no minuto de seu primeiro encontro, e quando se sentiam à vontade entre si, eram tão abertas umas com as outras como se fossem amigas de longa data. Em meia hora essas três pareciam ser da mesma idade, e inseparáveis desde a infância. Paul não via Grace ou Celestina livres do desespero desde o assassinato do reverendo, mas aqui elas eram capazes de pela primeira vez abafar sua dor com o corre-corre do assar das tortas e o prazer de fazer uma nova amiga.
— Legal — disse Barty, como se fosse capaz de ler a mente de Paul.
— Sim, legal mesmo — concordou Paul.
Ele fechou os olhos para conhecer a cozinha como Barty a percebia. Os aromas deliciosos, o tilintar musical das colheres, o matraquear das panelas, o jorro da água caindo na pia, o calor dos fornos, as vozes das mulheres. Pouco a pouco, negando a si próprio a visão, ele percebeu que seus outros sentidos se aguçavam.
— Também é legal — disse Paul, mas abriu os olhos. Anja retornou à mesa para pegar suco de maçã e anunciar:
— Eles têm uma jarra de biscoitos em forma de Jesus Cristo!
— Maria trouxe essa do México — disse Barty. — Ela achou que a jarra era muito engraçada. Eu também. E mamãe disse que a jarra não é realmente blasfema, porque as pessoas que a fizeram não queriam que ela fosse e porque Jesus gosta que a gente coma biscoitos. Além disso, a jarra nos faz lembrar que devemos ser gratos por todas as coisas boas que temos.
— A sua mãe é sábia — disse Paul.
— Mais que todas as corujas do mundo — concordou o menino.
— Por que está usando abafadores sobre os olhos? — perguntou Anja. Barty riu.
— Não são abafadores!
— Bem, também não são meias.
— São tapa-olhos — explicou. — Sou cego... Anja olhou de perto, desconfiada, para as ataduras.
— Mesmo?
— Estou cego há quinze dias.
— Por quê?
Barty deu de ombros.
— Uma coisa nova para fazer.
Os dois eram da mesma idade, mas ouvi-los era como ouvir Anja dizer coisas infantis engraçadinhas a um adulto dotado de muita paciência, senso de humor e uma consciência dos contrastes irónicos entre as gerações.
— O que é aquilo na mesa? — perguntou Anja.
Pousando uma mão no objeto ao qual ela se referira, Barty disse:
— Mamãe e eu estávamos ouvindo um livro quando vocês chegaram. É um livro falante.
— Livros falam? — perguntou Anja com um tom de assombro.
— Eles falam se você for cego como um morcego e souber onde comprá-los.
— Você acha que cães falam? — perguntou.
— Se falassem, um deles já seria presidente a esta altura. Todo mundo gosta de cachorro.
— Cavalos falam.
— Apenas na televisão.
— Eu vou ter um cachorrinho que fale.
— Se alguém pode ter um, você vai ter — disse Barty.
Agnes convidou todos a ficarem para o jantar. As tortas mal tinham sido terminadas quando panelas grandes, frigideiras, formas e outras artilharias pesadas foram requisitadas ao arsenal culinário da família Lampion.
— Maria está vindo com Francesca e Bonita — disse Agnes. — Acho que vamos precisar montar as extensões da mesa. Barty, ligue para o tio Jacó e o tio Esaú e os convide para jantar.
Paul observou Barty saltar da cadeira e atravessar a cozinha cheia de gente numa linha reta até o telefone de parede, sem um movimento hesitante sequer.
Anja seguiu Barty e observou-o escalar uma banqueta e tirar o telefone do gancho. Ele discou com pouca pausa entre os dígitos e falou com cada um dos tios.
Do telefone, Barty seguiu direto até a geladeira. Abriu a porta, pegou uma lata de refrigerante sabor laranja e voltou sem hesitação até sua cadeira.
Anja acompanhou-o a dois passos, e quando ela parou ao lado da cadeira, observando-o abrir o refrigerante, Barty perguntou:
— Por que estava me seguindo?
— Como sabe que te segui?
— Eu sei. — A Paul, ele perguntou: — Ela me seguiu, não seguiu?
— Para todo lugar que você foi — confirmou Paul.
— Eu queria ver você cair — disse Anja.
— Eu não caio. Bem, não muito.
Maria Gonzalez chegou com suas filhas e embora fosse natural para Anja ser atraída para a companhia das meninas mais velhas, ela não tinha interesse em ninguém além de Barty.
— Por que os tapa-olhos?
— Porque ainda não estou com meus olhos novos.
— Onde você vai conseguir olhos novos?
— No supermercado.
— Não brinque comigo — disse Anja. — Você não é um deles.
— Eles quem?
— Adultos. Não tem problema quando eles fazem isso. Mas se você faz isso, é apenas maldade.
— Muito bem. Vou conseguir meus olhos novos com um médico. Não são olhos de verdade, apenas de plástico, para preencher o lugar onde meus olhos estavam.
— Por quê?
— Para sustentar minhas pálpebras. E porque, sem nada nas órbitas, eu ficaria assustador. As pessoas vomitariam. As velhinhas desmaiariam. Menininhas como você iriam mijar nas calças e sair correndo, gritando.
— Mostra pra mim — pediu Anja.
— Trouxe calças limpas?
— Está com medo de me mostrar?
Como os tapa-olhos eram sustentados pelas mesmas duas tiras de elástico, Barty puxou ambos ao mesmo tempo.
Piratas sanguinários, espiões traiçoeiros, alienígenas vindos de galáxias distantes para devorar cérebros, supervilões determinados a conquistar o mundo, vampiros sedentos de sangue, lobisomens de rostos peludos, torturadores da Gestapo, cientistas malucos, adoradores do Diabo, aberrações de parques de diversões, membros da Ku Klux Klan, assassinos seriais e robôs invasores do espaço exterior tinham estripado, esfaqueado, calcinado, despelado, sufocado, rasgado, desancado, esmagado, pisoteado, enforcado, mordido, eviscerado, decapitado, en-venenado, afogado, contaminado com radiação, explodido, supliciado, desmembrado e torturado um número incontável de vítimas nos pulp magazines que Paul lia desde a infância. Mesmo assim, nem uma única cena naquelas centenas de centenas de exemplares de histórias vívidas gelou um canto de sua alma como fez um vislumbre das órbitas vazias no rosto de Barty. A visão não foi nem um pouco gosmenta, ou mesmo repugnante. Paul estremeceu e desviou o olhar apenas porque a evidência da mutilação do menino fez com que visse claramente a vulnerabilidade terrível dos inocentes deitados sobre os trilhos de trem da natureza, e ameaçou arrancar a casca fina que ele tinha criado sobre a ferida de sofrimento deixada pela morte de Perri.
Ao invés de fitar Barty diretamente, Paul observou Anja estudar o menino sem olhos. Ela não exibiu nenhum horror diante da frouxidão côncava das pálpebras fechadas, e quando uma pálpebra se levantou para revelar a órbita vazia negra, ela não demonstrou qualquer sinal de repulsa. Agora aproximou-se da cadeira de Barty, e quando tocou a face dele, logo abaixo da órbita vazia esquerda, o menino não estremeceu de surpresa.
— Você teve medo? — perguntou Anja.
— Muito.
— Doeu?
— Não muito.
— Está com medo agora?
— Na maior parte do tempo, não.
— Mas de vez em quando?
— De vez em quando.
Paul percebeu que a cozinha ficara silenciosa de repente, que as mulheres tinham se virado para as duas crianças e agora estavam de pé, imóveis como figuras de cera sobre os pedestais de um museu.
— Lembra das coisas? — indagou a menina, as pontas dos dedos ainda pressionadas levemente sobre a face de Barty.
— Quer dizer, como elas se parecem?
— Isso.
— Claro que lembro. Estou cego há apenas quinze dias.
— Você vai esquecer?
— Não tenho certeza. Talvez.
De pé ao lado de Agnes, Celestina envolveu-lhe a cintura com um braço, como talvez tivesse feito com sua irmã, caso Serafina estivesse viva.
Anja moveu a mão até o olho direito de Barty. Mais uma vez, ele não estremeceu com surpresa quando os dedos dela tocaram levemente a sua pálpebra fechada e afundada.
— Não vou deixar você esquecer.
— Como isso funciona?
— Eu posso ver. E posso falar, como o seu livro falante.
— Você pode falar, com certeza — concordou Barty.
— Então eu sou os seus olhos falantes. — Abaixando a mão do rosto dele, Anja disse: — Sabe de onde vem o bacon?
— Dos porcos.
— Como uma coisa tão deliciosa pode vir de um porco gordo, fedorento e sujo?
Barty deu de ombros.
— Um limão amarelo e reluzente parece doce.
— Então você acha que vem dos porcos? — perguntou Anja. -!
— De onde mais?
— Tem certeza de que vem dos porcos?
— Claro. Bacon vem dos porcos.
— Também acho. Posso tomar um refrigerante de laranja?
— Vou pegar um pra você — disse Barty.
— Já vi onde está.
Ela pegou uma lata de refrigerante, voltou à mesa e se sentou como se tivesse terminado suas explorações.
— Barty, você é legal.
— Você também.
Esaú e Jacó chegaram, o jantar foi servido, e embora a comida estivesse maravilhosa, a conversa foi ainda melhor — embora os gémeos ocasionalmente compartilhassem seu vasto conhecimento sobre acidentes de trem e erupções vulcânicas mortais. Paul não contribuiu muito para a conversa, porque preferiu saborear o que estava ouvindo. Se não conhecesse nenhuma dessas pessoas, se tivesse entrado neste cómodo enquanto elas estavam no meio do jantar, teria pensado que elas compunham uma família, porque o carinho e a intimidade — e no caso dos gémeos, a excentricidade — da conversa não era a que se esperava de amigos recentes. Não havia fingimento, falsidade, e não se evitava assuntos inconvenientes, o que significou que às vezes houve lágrimas, porque a morte do reverendo White ainda era uma ferida muito nova nos corações daqueles que o tinham amado. Mas com o poder de cura feminino — que continuava misterioso para Paul, mesmo enquanto observava-o agir —, lágrimas eram seguidas por lembranças que causavam sorrisos, e a esperança sempre florescia de cada semente de desespero.
Quando Agnes se mostrou surpresa ao descobrir que o nome de Barty tinha sido inspirado pelo sermão famoso do pastor, Paul ficou estarrecido. Ele tinha ouvido "Este Dia Marcante" em sua primeira radiotransmissão, e quando descobriu que seria reprisado três semanas depois por exigência do público, ele instigou Joey a escutar. Joey o ouvira no domingo, 2 de janeiro de 1965 — apenas quatro dias antes do nascimento de seu filho.
— Ele deve ter ouvido no rádio do carro — disse Agnes, escavando os dias cobertos por camadas e camadas de memórias. — Estava tentando adiantar seu trabalho, para poder ficar muito em casa durante a semana após o nascimento do bebê. Assim, marcou uma reunião com alguns clientes potenciais no domingo mesmo. Ele estava trabalhando muito e tentava entregar minhas tortas e cumprir minhas outras obrigações antes do grande dia. Não tínhamos tanto tempo juntos quanto de costume e, por mais impressionado que ele tenha ficado com o sermão, jamais teve uma oportunidade de me contar a respeito. A penúltima coisa que ele disse foi... "Bartholomew". Ele queria que eu batizasse o bebé como Bartholomew.
Este elo entre as famílias Lampion e White, que Grace já soubera através de Paul, foi uma surpresa tão grande para Celestina quanto para Agnes. E inspirou mais reminiscências sobre esposos falecidos e o desejo de que Joey e Harrison tivessem se conhecido.
— Eu também queria que meu Rico tivesse conhecido o seu Harrison — disse Maria, referindo-se ao marido que a abandonara. — Talvez o pastor tivesse conseguido fazer com palavras o que eu não consegui fazer com o meu pé no trasero de Rico.
Barty explicou:
— Isso é "bunda" em espanhol.
Anja achou isso hilário e Agnes disse, num tom de quem já tinha sofrido muito com esse tipo de coisa:
— Obrigado pela lição de línguas, Mestre Lampion.
O que não foi surpresa para Paul foi a determinação de que os Whites, durante o período em que precisariam ficar escondidos, deveriam ficar com ela e Barty.
— Paul, você tem uma casa adorável, mas Celestina e Grace são trabalhadoras — disse Agnes. — Elas precisam ficar ocupadas. Vão ficar malucas se não tiverem alguma coisa que as mantenha ocupadas. Estou certa, senhoras?
Elas concordaram, mas insistiram que não queriam incomodar.
— Bobagem, não vão incomodar ninguém — garantiu Agnes. — Vocês vão ajudar muito com minhas tortas, as entregas, e todo o trabalho que deixei de lado durante a cirurgia e a recuperação de Barty. Ou vai ser divertido ou vocês vão ficar cansadas até os ossos, mas, de uma forma ou de outra, não vão ficar entediadas. Tenho mais dois quartos extras. Um para Celie e Anja, e um para Grace. Quando o seu Wally chegar, podemos deixar Anja com Grace, ou ela pode ficar comigo.
A amizade, o trabalho e, não menos importante, a sensação de estar num lar, que todos sentiam segundos depois de passar pela porta de Agnes: essas coisas encantaram Celestina e Grace. Mas elas não queriam que Paul achasse que sua hospitalidade não era apreciada.
Ele levantou a mão para cessar o debate gentil.
— O principal motivo que me fez parar aqui primeiro, antes de levar vocês para a minha casa, é que não teria de trazer suas malas de volta depois que Agnes as convencesse a ficar. É aqui que vocês serão mais felizes, embora sempre bem-vindas se ela tentar matá-las de tanto trabalhar.
Durante toda a noite Barty e Anja — sentados lado a lado e de frente para Paul no outro lado da mesa — ouviram os adultos de vez em quando e, ocasionalmente, se juntaram à conversa maior, mas principalmente conversaram entre si. Quando as cabeças das crianças não estavam juntas conspiratoriamente, Paul podia ouvi-los conversar e, dependendo do que mais estava sendo discutido ao redor da mesa, ele geralmente se sintonizava no assunto. Ele escutou a palavra rinoceronte, sintonizou, dessintonizou, mas alguns minutos depois ligou-se de novo quando percebeu que Celestina, sentada a dois lugares de distância dele, levantara da cadeira e estava olhando espantada para as crianças.
Barty disse, enquanto Anja ouvia intensamente e meneava a sua cabeça:
— Então o lugar onde ele jogou a moeda não foi realmente em Gunsmoke, porque esse não é um lugar, é apenas um seriado. Entenda, talvez ele tenha jogado a moeda num lugar onde não sou cego, ou num lugar onde ele não tem aquele rosto arruinado, ou num lugar onde por algum motivo você nunca veio aqui hoje. Existem muitos lugares que ninguém seria capaz de contar, nem mesmo eu, e sou capaz de contar muito bem. É isso o que você sente, certo? Todas as formas como as coisas são?
— Eu vejo. Às vezes. Bem rapidinho. Como se numa piscadela. Como quando você fica entre dois espelhos. Sabe como é?
— Sim — disse Barty.
— Entre dois espelhos, você se vê de novo e de novo, eternamente.
— Você vê coisas assim?
— Numa piscadela. Às vezes. Existe um lugar onde Wally não levou um tiro?
— Wally é o cara que vai ser o seu pai?
— Sim, é ele.
— Claro. Existem muitos lugares onde ele não levou um tiro, mas existem lugares onde ele levou o tiro e morreu, também.
— Não gosto desses lugares.
Embora tivesse visto o truque de Thomas Vanadium com a moeda, Paul não entendeu o resto da conversa das crianças e considerou que era igualmente impenetrável para todos — exceto, talvez, para a mãe de Anja. Mas, imitando Celestina, que estava de pé, todos estavam igualmente silenciosos.
Alheia ao fato de que ela e Barty tinham-se tornado o centro da atenção, Anja disse:
— Será que ele consegue as moedas de volta?
— Provavelmente não.
— Ele deve ser rico. Joga fora muitas moedas.
— Vinte e cinco cents não é muito dinheiro.
— É muitol — insistiu Anja. — Wally me deu um bombom na última vez que o vi. Você gosta de bombons?
— São gostosos.
— Você conseguiria jogar um bombom num lugar onde nâo fosse cego ou talvez onde Wally não tenha levado um tiro?
— Acho que sefòr possível jogar uma moeda deve ser possível jogar um bombom.
— Pode jogar um porco?
— Talvez ele possa, se for capaz de levantá-lo, mas eu não conseguiria jogar um porco ou um bombom ou qualquer outra coisa em qualquer outro lugar. Não é uma coisa que eu saiba fazer.
— Nem eu.
— Mas posso caminhar na chuva e não me molhar — disse Barty.
No fundo da mesa, Agnes levantara abruptamente da cadeira assim que ouvira o filho dizer chuva-, e quando ele disse e não me molhar, ela falou num tom de alerta:
— Barty!
Anja olhou para ela, e ficou surpresa ao ver que todos a fitavam. Voltando seus olhos cobertos na direção geral da sua mãe, Barty exprimiu:
— Epa!
Todos confrontaram Agnes com expressões de curiosidade e expectativa, e ela olhou para cada um deles. Paul. Maria. Francesca. Bonita. Grace. Esaú. Jacó. Finalmente, Celestina.
As duas mulheres olharam uma para a outra, e finalmente Celestina disse:
— Meu Deus, o que está acontecendo aqui?
NA TARDE DA TERÇA-FEIRA seguinte em Bright Beach, contra um céu negro como um caldeirão de bruxa, gaivotas voavam para o seus abrigos, fugindo de um vento sobrenatural; em terra, sombras úmidas da tempestade iminente reu-niam-se como se conjuradas por uma maldição criada a partir de uma receita de olho de salamandra, dedo de sapo, asa de morcego e língua de cachorro.
Tendo vindo por ar de San Francisco para o aeroporto do condado de Orange, e então, obedecendo a direções oferecidas por Paul Damascus, seguido para mais ao sul ao longo da costa num carro alugado, uma semana depois de Paul e suas três protegidas, Tom Vanadium finalmente chegava à casa dos Lampion, trazendo Wally Lipscomb.
Onze dias haviam se passado desde que Wally detivera o curso de três balas. Ainda estava com uma fraqueza residual nos braços, sentia-se cansado com mais facilidade do que antes de se ver no lado errado de um revólver, queixava-se de rigidez muscular e usava uma bengala para não colocar seu peso sobre a perna ferida. O restante dos cuidados médicos de que necessitava, assim como a reabilitação física, poderia ser obtido tão bem em Bright Beach quanto em San Francisco. Até março deveria estar de volta ao normal, considerando que a definição de normal incluía grandes cicatrizes e um espaço interno oco onde antes estivera o seu baço.
Celestina recebeu-os na porta da frente e correu para abraçar Wally. Ele deixou cair a bengala — Tom pegou-a — e retribuiu o abraço com tanta força, bei-jou-a com tamanho ardor, que evidentemente a fraqueza residual não era mais um problema.
Tom também recebeu um abraço forte e um beijo fraternal, e ficou agradecido por essas demonstrações de afeto. Era um solitário há tanto tempo, como um caçador de homens precisava ser durante uma longa jornada de recuperação e então numa missão de vingança, mesmo se a chamasse de missão de justiça. Durante os poucos dias que passara protegendo Celestina, Grace e Anja na cidade e, subsequentemente, durante a semana com Wally, Tom tivera a impressão de ser parte de uma família, ainda que fosse apenas uma família de amigos, e ele tinha ficado surpreso ao ver como precisava desse sentimento.
— Todo mundo está esperando — disse Celestina.
Tom ficou ciente de que alguma coisa tinha acontecido aqui durante a última semana, um desenvolvimento importante que Celestina mencionara ao telefone mas sobre o qual não estava inclinada a falar. Ele não nutria nenhuma expectativa do que iria encontrar quando Celestina escoltasse a ele e Wally até a sala de jantar dos Lampion, mas se tentasse imaginar a cena que o aguardava, não teria visualizado uma sessão espírita.
E foi exatamente isso que pareceu à primeira vista. Oito pessoas reunidas ao redor da mesa de jantar, que estava completamente vazia. Sobre ela não havia comida, ou bebidas, ou algum objeto decorativo. Todos tinham os olhos reluzentes de pessoas aguardando as revelações de um médium: parte tensão, parte esperança.
Tom conhecia apenas três das oito pessoas. Grace White, Anja e Paul Damascus. As outras foram apresentadas rapidamente por Celestina: Agnes Lampion, a dona da casa. Esaú e Jacó Isaacson, irmãos de Agnes. Maria Gonzalez, a melhor amiga de Agnes. E Barty.
Por telefone, ele tinha sido preparado para este menino. Por mais estranho que fosse encontrar um Bartholomew em suas vidas, considerando a obsessão peculiar de Enoch Caim, Tom ainda assim concordou com Celestina que o assassino da esposa não tinha como saber qualquer coisa a respeito desta criança — e decerto não tinha qualquer motivo lógico para temê-la. A única coisa que eles tinham em comum era o sermão de Harrison White, que inspirara o nome do menino e que deveria ter plantado a semente da culpa na mente de Caim.
— Tom, Wally, sinto muito pelas apresentações bruscas — desculpou-se Agnes Lampion. — Teremos muitas chances de conhecer uns aos outros durante o jantar. Mas as pessoas nesta sala esperaram uma semana inteira para ouvir você, Tom. Não vamos conseguir esperar mais um único instante.
— Me ouvir?
Celestina indicou a Tom que ele deveria sentar-se a uma cabeceira da mesa, de frente para Agnes, que estava sentada à outra. Enquanto Wally abaixava-se para a cadeira vazia à esquerda de Tom, Celestina pegou dois objetos no bufete e colocou-os diante de Tom, antes de sentar-se à sua direita.
Um saleiro e um pimenteiro.
Do outro lado da mesa, Agnes disse:
— Para início de conversa, Tom, todos gostaríamos de ouvir sobre o rinoceronte e o outro você.
Ele hesitou, porque até aquelas explicações limitadas que dera a Celestina em San Francisco jamais falara sobre sua percepção especial com ninguém, exceto dois padres conselheiros no seminário. No começo sentiu-se incomodado em falar sobre essas coisas com estranhos — como se estivesse fazendo uma confissão a laicos que não tinham autoridade em prover absolvição —, mas à medida que falou a este grupo ávido e concentrado, suas dúvidas esvaneceram e a revelação pareceu tão natural quanto falar sobre o tempo.
Com o saleiro e a pimenteira, Tom conduziu o grupo através da explicação de porque-eu-não-me-sinto-triste-com-o-meu-rosto que dera dez dias antes a Anja.
No fim, com o Tom saleiro e o Tom pimenteiro parados lado a lado em seus mundos diferentes mas paralelos, Maria disse:
— Parece ficção científica.
— Ciência. Mecânica quântica. Que é uma teoria... da física. Mas por teoria não quero dizer especulação desvairada. A mecânica quântica funciona. Ela está por trás da invenção da televisão. Antes do final deste século, talvez mesmo durante os anos oitenta, a tecnologia baseada na mecânica quântica irá nos dar computadores poderosos e baratos em nossas casas, computadores tão pequenos quanto maletas, tão pequenos quanto uma carteira, um relógio de pulso, que poderão efetuar processamento de dados com muito mais rapidez que qualquer um dos computadores gigantescos que conhecemos hoje. Computadores do tamanho de um selo de carta. Teremos telefones sem fio que poderão ser carregados para qualquer parte. Com o tempo, será possível construir computadores de poder imenso do tamanho de uma molécula, e então a tecnologia... ou melhor, toda a sociedade humana... mudará quase além da compreensão, e para melhor.
Ele olhou para a sua plateia em busca de olhares pasmos e de descrença.
— Não se preocupe — disse Celestina. — Depois do que vimos nesta última semana, estamos todos com você.
Até Barty parecia estar atento, mas Anja logo estava pintando um livro de colorir com lápis de cera enquanto cantarolava baixinho para si mesma.
Tom acreditava que a menina tinha uma compreensão intuitiva da verdadeira complexidade do mundo, mas ela estava com apenas três anos, afinal de contas, e não era preparada nem capaz de absorver a teoria científica que sustentava sua intuição.
— Muito bem — disse Tom. — Os jesuítas são encorajados a se educar em qualquer assunto que seja do seu interesse, não apenas teologia. Eu estava profundamente interessado em física.
— Por causa de uma certa percepção que você tinha desde a infância — disse Celestina, recordando o que ele lhe dissera em San Francisco.
— Sim. Falo mais sobre isso mais tarde. Preciso deixar claro que um interesse em física não faz de mim um físico. Mesmo se eu fosse, não poderia explicar a mecânica quântica em uma hora ou em um ano. Há quem diga que a teoria quântica é tão bizarra que ninguém pode compreender completamente todas as suas implicações. Algumas coisas provadas em experimentos quânticos parecem desafiar a razão, e vou contar algumas para vocês, só para lhes dar um gosto da coisa. Primeiro, no nível subatômico, o efeito às vezes vem antes da causa. Em outras palavras, um evento pode acontecer antes que a razão para ele ocorra. Igualmente estranho... num experimento com um observador humano, partículas subatômicas comportam-se de forma diferente de como se comportam quando o experimento não é observado enquanto em progresso e os resultados são examinados depois do fato... o que pode sugerir que a força de vontade humana, mesmo quando expressa subconscientemente, molda a realidade.
Ele estava simplificando e combinando conceitos, mas não conhecia nenhuma outra forma de transmitir rapidamente para eles uma sensação do encanto, do mistério, da estranheza pura do mundo revelado pela mecânica quântica.
— E que tal isto? — prosseguiu. — Cada ponto no universo é conectado diretamente a todos os outros pontos, a despeito da distância, de modo que qualquer ponto em Marte está, de alguma forma misteriosa, tão perto de mim quanto está de qualquer um de vocês. O que significa que é possível que informação, objetos, até pessoas, possam mover-se instantaneamente entre aqui e Londres sem fios ou transmissão de microondas. Na verdade, entre aqui e uma estrela distante, instantaneamente. Apenas não descobrimos como isso acontece. De fato, num nível estrutural profundo, cada ponto no universo é o mesmo ponto. Esta inter-conectividade é tão completa que um grande bando de pássaros levantando vôo em Tóquio, perturbando o ar com suas asas, contribui para mudanças climáticas em Chicago.
Anja levantou os olhos do seu livro de colorir.
— E quanto aos porcos?
— O que tem eles? — perguntou Tom.
— Você pode jogar um porco onde jogou a moedinha?
— Vou chegar nisso — prometeu.
— Uau! — disse ela.
— Ele não quis dizer que vai jogar um porco — disse-lhe Barty.
— Ele vai, aposto que vai — disse Anja, voltando aos seus lápis de cera.
— Uma das coisas fundamentais que a mecânica quântica sugere é que um número infinito de realidades existe, outros mundos paralelos ao nosso, que não podemos ver. Por exemplo, mundos nos quais, devido a decisões específicas e ações de certas pessoas nos dois lados, a Alemanha ganhou a última grande guerra. E outros mundos nos quais a União perdeu a Guerra Civil. E mundos onde uma guerra nuclear já foi travada entre os Estados Unidos e a União Soviética.
— Mundos em que aquele caminhão-tanque nunca parou sobre os trilhos de trem em Bakersfíeld, em 1960 — especulou Jacó. — Assim, o trem nunca colidiu com o caminhão e aquelas dezessete pessoas nunca morreram.
O comentário deixou Tom perplexo. Ele só podia imaginar que Jacó conhecera alguém que morrera naquela colisão — embora o tom de voz do gémeo e sua expressão parecessem sugerir que um mundo sem o desastre de trem de Bakersfield seria um lugar menos agradável que um que o incluísse.
Sem tecer nenhum comentário, Tom prosseguiu:
— E mundos exatamente como os nossos... só que meus pais jamais se conheceram, e eu nunca nasci. Mundos nos quais Wally jamais recebeu um tiro porque era inseguro demais ou apenas estúpido demais para levar Celestina para jantar naquela noite ou pedi-la em casamento.
A esta altura, todos ali conheciam Celestina bem o bastante para que o último exemplo de Tom provocasse no grupo uma gargalhada carinhosa.
— Mesmo num número infinito de mundos, não existe local em que eu possa ser tão estúpido — objetou Wally.
Tom prosseguiu:
— Agora vou acrescentar um toque humano e um ângulo espiritual em tudo isto. Quando cada um de nós chega a um ponto onde precisa tomar uma decisão moral significativa que afete o desenvolvimento de sua personalidade e as vidas de outras pessoas, e cada vez que faça a escolha menos sábia, é aí que acredito que um mundo novo é gerado. Quando faço uma escolha imoral ou simplesmente imbecil, outro mundo é criado no qual fiz a coisa certa, e nesse mundo sou compensado durante algum tempo e recebo uma chance de me tornar uma pessoa melhor que o Tom Vanadium que mora no outro mundo da escolha errada. Existem tantos mundos com Tom Vanadiuns imperfeitos, mas sempre existe algum lugar... algum lugar onde estou me movendo continuamente rumo a um estado de graça.
Nesse momento, Barty Lampion disse:
— Cada vida é como o nosso carvalho no quintal dos fundos, mas muito maior. Primeiro um tronco, depois todos os galhos, milhões de galhos, e cada galho é a mesma vida indo numa direção nova.
Surpreso, Tom curvou-se à frente para olhar mais diretamente para o menino cego. Ao telefone, Celestina mencionara apenas que Barty era um prodígio, o que não podia explicar completamente a precisão da metáfora do carvalho.
— E talvez, quando a sua vida chega a um fim em todos esses galhos — disse Agnes, pegando carona na especulação do filho —, você seja julgado pela forma e pela beleza da árvore.
— Tomar muitas escolhas erradas produz galhos demais — disse Grace White. — A árvore cresce desordenada, distorcida, feia.
— E tomar poucas escolhas erradas — disse Maria — pode significar que você realizou um número admiravelmente pequeno de erros morais, mas também que deixou de correr riscos razoáveis e não fez uso pleno do dom da vida.
— Essa doeu! — disse Esaú, o que lhe valeu sorrisos amorosos de Maria, Agnes e Barty.
Tom não entendeu o comentário de Esaú ou os sorrisos que provocou. Fora isso, estava impressionado com a facilidade com que essas pessoas tinham absorvido o que dissera e com a imaginação com que tinham começado a expandir sua especulação. Era quase como se conhecessem há muito tempo a forma do que Tom lhes dizia, e tudo que ele estava fazendo era fornecer os detalhes.
— Tom, alguns minutos atrás a Celestina mencionou que você possui uma "certa percepção" — disse Agnes. — O que é isso, exatamente?
— Desde que eu era criança, sempre tive esta... percepção, esta consciência de uma realidade infinitamente mais complexa que aquela que os cinco sentidos básicos revelam. Um vidente afirma prever o futuro. Não sou vidente. Seja lá o que eu for... eu sou capaz de sentir muitas outras possibilidades inerentes a qualquer situação, de saber que elas existem simultaneamente com a minha realidade, lado a lado, cada mundo tão real quanto o meu. Nos meus ossos, no meu sangue...
— Você sente todas as formas como as coisas são — definiu Barty.
— Sim, Barty — disse Tom. — Eu sinto uma profundidade na vida, camadas por baixo de camadas. As vezes isso é... assustador. Na maior parte das vezes isso me inspira. Não posso ver outros mundos, não posso me mover entre eles. Mas com esta moedinha posso provar que o que sinto não é minha imaginação. — Pegou no bolso uma moeda de 25 cents e segurou-a entre o polegar e o indicador, para que todos, exceto Barty, pudessem ver. — Anja?
A menina levantou os olhos do seu livro de colorir.
— Você gosta de queijo? — perguntou Tom.
— Peixe é comida para o cérebro, mas queijo tem um gosto bem melhor.
— Já comeu queijo suíço?
— O melhor da Velveeta.
— Qual é a primeira coisa que vem na sua mente quando pensa em queijo SUÍÇO?
— Relógios cuco. ?
— Que mais?
— Sanduíches.
— Que mais?
— Velveeta.
— Barty — chamou Tom. — Me dê uma ajudinha aqui.
— Buracos — disse Barty.
— Ah, claro, buracos — concordou Anja.
— Esqueçam a árvore de Barty por um segundo e imaginem que todos esses muitos mundos são como fatias empilhadas de queijo suíço. Por alguns buracos, você pode ver apenas a fatia seguinte. Por outros, você vê através de três ou cinco fatias antes dos buracos pararem de se sobrepor. Também há buraquinhos entre os mundos empilhados, mas eles nunca param de se mover, segundo a segundo. E não posso realmente ver entre eles, mas, de uma forma muito estranha, posso senti-los. Prestem atenção.
Desta vez ele não jogou a moeda diretamente no ar. Ele curvou a mão, e com seu polegar lançou a moeda na direção de Agnes.
No meio da mesa, diretamente debaixo do candelabro, o disco prateado girou através do ar, virou, virou, virou deste mundo para outro.
Alguns arfados e exclamações. Um risinho musical e aplausos de Anja. As reações foram surpreendentemente mornas.
— Em geral, eu digo uns abracadabras e faço uns floreios para distrair as pessoas, para que não percebam que o que viram foi real. Elas acham que o desaparecimento em pleno ar é apenas um truque.
Todos dirigiram a Tom olhares de expectativa, como se fosse haver mais mágicas, como se jogar uma moeda para outra realidade fosse alguma coisa que se vê uma ou duas vezes por semana no Ed Sullivan Show, entre os acrobatas e os malabaristas capazes de manter no ar dez pratos girando sobre dez varas compridas simultaneamente.
— Bem, as pessoas que pensam que é apenas um truque costumam ficar mais impressionadas do que vocês — disse Tom. — E vocês sabem que é real.
— O que mais você pode fazer? — indagou Maria, surpreendendo ainda mais a Tom.
Abruptamente, sem uma saraivada de sons de trovão, sem o relampejar de raios, a tempestade começou. Barulhenta como exércitos em marcha, a chuva posse a pisotear o teto.
Como um só, todos ao redor da mesa levantaram os olhos para o teto e sorriram para o som da chuvarada. Barty, com tapa-olhos sobre as órbitas vazias, também olhou para cima com um sorriso.
Perplexo com este comportamento peculiar, até mesmo levemente enervado, Tom respondeu à pergunta de Maria.
— Sinto dizer, mas não sei fazer mais nada... mais nada de uma natureza mais fantástica.
— O que você fez foi muito bom, Tom, muito bom mesmo — disse Agnes num tom consolador que ela poderia ter usado com um menino cuja atuação, num recital de piano, tinha sido esforçada mas nada brilhante. — Todos nós ficamos muito impressionados.
Ela empurrou a cadeira para longe da mesa e se levantou. Todos seguiram seu exemplo.
Levantando, Celestina disse a Tom:
— Na noite de terça-feira tivemos de nos contentar com os aspersores do gramado. Isto vai ser muito melhor.
Olhando para a janela mais próxima, onde a noite molhada beijava o vidro, Tom disse:
— Aspersores do gramado?
A expectativa com que Tom fora recebido ao chegar era rarefeita como o ar nas alturas do Himalaia, quando comparada com a atmosfera de antecipação que pairava agora naquela sala.
De mãos dadas, Barty e Anja conduziram os adultos pela cozinha, até a porta dos fundos. Esta procissão teve uma qualidade cerimonial que intrigou Tom, e quando saíram para a varanda, ele estava impaciente demais para saber por que todos — com exceção dele e Wally—estavam elevados emocionalmente, um grau de altitude acima da euforia.
Quando todos estavam reunidos na varanda, enfileirados lado a lado de frente para os degraus, em meio ao ar úmido e frio recendendo suavemente a ozônio e menos suavemente a jasmim, Barty disse:
— Sr. Vanadium, o seu truque com a moeda é muito bacana. Mas aqui está uma coisa digna de uma história de Robert Heinlein.
Deslizando a mão suavemente ao longo do corrimão, o menino desceu rapidamente o lance curto de degraus e pisou no gramado empapado, expondo-se à chuva.
A mãe de Barty, empurrando gentilmente Tom para o ponto de observação mais privilegiado na frente dos degraus, não parecia preocupada com o fato de que seu filho estava caminhando debaixo de uma tempestade.
Impressionado com a segurança e a rapidez com que o menino cego galgou os degraus, Tom inicialmente não notou nada incomum em seu passeio através do dilúvio.
A lâmpada na varanda não estava acesa. Nenhum poste de luz clareava o quintal. Barty era uma sombra cinza movendo-se na penumbra e debaixo da chuva. Ao lado de Tom, Esaú disse:
— Chuva pesada...
— E como!
— Agosto de 1931. Ao longo do rio Huang He, na China. Três milhões e setecentas mil pessoas morreram numa grande inundação — disse Esaú.
Como não sabia o que fazer com esse tipo de informação, Tom disse:
— Isso é muita gente.
Barty caminhou numa linha reta da varanda até o grande carvalho.
— 13 de setembro de 1928. Lago Okeechobee, Flórida. Duas mil pessoas morreram numa inundação.
— Duas mil, é? Nada mal — Tom ouviu a si mesmo dizer, como um retardado. — Quero dizer, em comparação com os quase quatro milhões.
A um pouco menos de um metro e meio do carvalho, Barty saiu de sua linha reta e começou a circular a árvore.
Depois de apenas 21 dias, a adaptação do menino à cegueira era extraordinária, mas claro que aquela plateia estava reunida para ver algo mais notável do que o seu incrível senso de direção.
— 27 de setembro de 1962. Barcelona, Espanha. Uma inundação matou quarenta e cinco pessoas.
Tom teria se movido para a direita, para longe de Esaú, se Jacó não estivesse em seu caminho. Ele lembrou do comentário estranho que o mais amargo dos gémeos fizera sobre o desastre de trem de Bakersfield.
A copa enorme do carvalho não cobria o gramado abaixo dela. As folhas colhiam chuva do ar, para em seguida deixá-la cair em filetes em lugar de gota a gota.
Barty contornou a árvore e retornou até a varanda. Ele subiu os degraus e parou diante de Tom.
Apesar de estar escuro, a realização miraculosa do menino era evidente: suas roupas e seus cabelos estavam secos como se ele tivesse usado um casaco e um capuz.
Pasmo, acocorando-se apoiado num joelho diante de Barty, Tom segurou a barra da camisa do menino.
— Eu caminhei por onde a chuva não estava — disse Barty.
Em cinquenta anos, até Anja, Tom não encontrara ninguém como ele — e agora tinha encontrado dois em pouco mais de uma semana.
— Não posso fazer o que você fez.
— E eu não posso fazer o que você fez com a moeda — disse Barty. — Talvez possamos ensinar um ao outro.
— Talvez — disse Tom.
Na verdade Tom não acreditava que nada disso jamais pudesse ser aprendido mesmo por um iniciado tomando instruções de outro iniciado. Eles tinham nascido com a mesma percepção especial, mas com habilidades diferentes e estritamente limitadas para interagir com a multiplicidade de mundos que podiam detectar. Ele não era capaz de explicar nem para si mesmo como podia enviar uma moeda ou outro objeto pequeno para Outro Lugar. Isso era uma coisa que ele simplesmente sentia, e cada vez que a moeda desaparecia, a autencidade da sensação era provada. Ele suspeitou que, quando caminhava onde a chuva não estava, Barty não empregava técnicas conscientes; simplesmente decidia caminhar num mundo seco e permanecer sob todos os outros aspectos neste molhado — e então fazia. Magos vergonhosamente incompletos, feiticeiros com apenas um ou dois truques cada um, eles não tinham nenhum volume secreto de encantamentos e feitiços para ensinar a um aprendiz.
Tom Vanadium se levantou e, com a mão sobre o ombro de Barty, observou os rostos das pessoas reunidas no portão. Ele tinha conhecido essas pessoas tão recentemente que todas eram praticamente estranhas para ele. Não obstante, pela primeira vez desde os seus dias no Orfanato de Santo Anselmo tinha encontrado um lugar ao qual pertencia. Tinha a impressão de que este era o seu lar.
Dando um passo à frente, Agnes disse:
— Quando Barty segura a minha mão e caminha comigo pela chuva, eu me molho enquanto ele permanece seco. O mesmo vale para todos nós aqui... menos Anja.
A menina já tinha segurado a mão de Barty. As duas crianças desceram da varanda e se expuseram à chuva. Elas não circularam o carvalho; apenas pararam no sopé dos degraus e se viraram de frente para a casa.
Agora que Tom sabia o que procurar, a penumbra não escondeu dele a verdade extraordinária.
Eles estavam na chuva, o aguaceiro pesado, sólido, barulhento, exatamente como o que caíra sobre Gene Kelly enquanto ele dançara, cantara e brincara numa rua molhada naquele filme, mas enquanto o ator ficara encharcado no final do número musical, essas duas crianças permaneciam secas. Tom forçou os olhos para resolver o paradoxo, ainda que soubesse que todos os milagres desafiavam a resolução.
— Muito bem, meus duendezinhos — disse Celestina. — Hora do Segundo Ato.
Barty soltou a mão da menina, e embora tenha permanecido seco, a tempestade imediatamente achou onde Anja estivera escondida nas dobras prateadas e escuras de suas cortinas.
Vestida inteiramente num tom de rosa que escurecia para vermelho-ruge quando molhado, Anja soltou um gritinho e desertou Barty. Com as roupas molhadas, lágrimas falsas nas faces e uma coroa reluzente de gotas de chuva no cabelo, subiu correndo os degraus como se fosse uma princesa abandonada por seu cocheiro, e se permitiu ser colhida pelos braços da avó.
— Vai pegar uma pneumonia — disse Grace em tom desaprovador.
— E que maravilhas Anja pode executar? — perguntou Tom a Celestina.
— Nenhuma que já não tenhamos visto.
— Ela simplesmente é ciente da forma como todas as coisas são — acrescentou Maria. — Como você e Barty.
Quando Barty subiu os degraus para a varanda sem usar o corrimão e segurou a mão direita dele, Paul Damascus disse:
— Tom, estamos curiosos para saber se Barty pode estender a você a proteção que ele confere a Anja na chuva. Talvez ele possa... porque vocês três compartilham essa... essa consciência, esse dom, ou seja lá como você queira chamar isso. Mas ele não vai saber até você tentar.
Tom deu a mão para o garoto — uma mão tão pequena, mas ainda assim apertando com determinação —, mas não precisaram descer todo o caminho até o gramado antes que soubessem que o manto invisível do menino-prodígio não iria acomodá-lo como fizera com a menina. Uma chuva fria molhou Tom imediatamente, e ele levantou Barty dos degraus, tomando-o em seus braços como Grace fizera com Anja, e retornou à varanda com o menino.
Agnes encontrou-os, puxando Grace e Anja para o seu lado. Os seus olhos reluziam com excitação.
— Tom, você é um homem de fé, ainda que já tenha tido problemas com ela. Diga o que você conclui de tudo isto.
Tom sabia o que ela concluía de tudo isto, e ele podia ver que os outros na varanda também sabiam. Da mesma forma, podia ver que todos queriam ouvi-lo confirmar a conclusão à qual Agnes já chegara muito antes que ele entrasse na casa com Wally esta noite. Mesmo na sala de estar, antes da prova na chuva, Tom tinha reconhecido o elo especial que havia entre o menino cego e esta menininha alegre. Na verdade, ele não poderia ter chegado a nenhuma conclusão diferente da de Agnes, porque, como ela, acreditava que os eventos de todos os dias revelavam propósitos misteriosos se você estivesse disposto a vê-los, que toda vida tinha um propósito profundo.
Tom disse a Agnes:
— De todas as coisas que quero fazer com a minha vida, acho que nada importará mais que o pequeno papel que desempenhei na união dessas duas crianças.
Embora a única luz na varanda dos fundos viesse de fachos pálidos filtrados através das cortinas nas janelas da cozinha, todos esses rostos pareciam luminosos, de forma quase sobrenatural, como as feições reluzentes de santos numa igreja escura, iluminados apenas pelas chamas de velas votivas. Tendo a chuva como música e o jasmim como incenso, o momento parecia sagrado.
Fitando alternadamente cada um de seus companheiros, Tom disse:
— Quando penso em tudo que precisou acontecer para nos trazer até aqui esta noite, as tragédias e também as viradas felizes da sorte, quando penso nas muitas formas como as coisas poderiam ter acontecido, com todos nós acabando separados e alguns jamais se conhecendo, sei que nós pertencemos a este lugar, porque chegamos aqui contra todas as chances em contrário.
O senso de camaradagem que nasce em situações extraordinárias fez todos se aproximarem, abraçarem e tocarem, para compartilhar aquele momento miraculoso. Durante um longo momento, mesmo à sinfonia da tempestade, a despeito do plique-tique-plaft-craque-chuá emitido por cada obra do homem e da natureza açoitada pela chuva, eles pareceram estar parados ali em meio ao silêncio mais profundo que Tom já tinha ouvido.
Então Anja disse:
— Você vai jogar o porco agora?
A MANHÃ EM QUE aconteceu foi brilhante e azul, em março, dois meses depois que Barty levou Anja para um passeio seco na chuva molhada, sete semanas depois que Celestina casou com Wally e cinco semanas depois que os alegres recém-casados efetuaram a compra da casa dos Galloway, ao lado do lar da família Lampion. Selma Galloway, estando aposentada do magistério há alguns anos, vendeu sua casa para comprar um chalé de condomínio na praia, nas proximidades de Carlsbad.
Celestina olhou pela janela e viu Agnes no caminho de acesso dos Lampion, onde a caravana de três veículos tinha se reunido. Ela estava carregando a sua perua.
Depois de mover tudo que estava num raio de nove metros, Celestina e Wally — com Grace morrendo de medo que alguém se machucasse — tinham derrubado a cerca de tábuas muito alta que havia entre as propriedades, porque a sua família tornara-se uma só com muitos nomes: Lampion, White, Lipscomb, Isaacson. Quando os quintais dos fundos foram unidos e um caminho de concreto foi deitado entre eles, os passeios de Barty de casa a casa foram imensamente simplificados, e as visitas regulares dos ramos Gonzalez, Damascus e Vanadium do clã também foram facilitadas.
— Agnes está vindo, mamãe.
À porta aberta da cozinha, braços carregados com quatro caixas de tortas empilhadas, Grace disse:
— Pode pegar as últimas quatro tortas para mim na mesa? E não deixe elas caírem, querida.
— Ah, claro — disse Celestina. — Estou na lista do FBI de criminosos mais procurados por deixarem cair tortas.
— Bem, você devia estar — disse Grace, levando as tortas para o Suburban que Wally comprara exclusivamente para esta função.
Tentando não ser uma mão furada, Celestina seguiu-a.
Repleta com o canto das andorinhas que evidentemente preferiam esta região aos endereços mais famosos de San Juan Capristano, esta amena manhã de março era perfeita para entregar tortas. Agnes e Grace tinham realizado uma produção de tortas de amêndoas e de café digna de uma confeitaria.
Sob a orientação de Celestina, os homens — Wally, Esaú, Jacó, Paul, Tom — tinham enchido caixas de papelão de mantimentos enlatados e desidratados, mais diversas caixas de roupas novas para as crianças em sua rota. Todos esses itens tinham sido carregados nos veículos na noite anterior.
Ainda faltavam algumas semanas para a Páscoa, mas Celestina já tinha começado a decorar mais de uma centena de cestas, para que nada precisasse ser feito no último minuto, exceto acrescentar os doces. Sua sala de estar era um depósito de cestas e acessórios decorativos como fitas, arcos, flores de papel, tiras de celofane verde, vermelho, amarelo e rosa, e coelhinhos e pintinhos de pelúcia.
A bem da verdade, o tempo gasto ajudando Agnes dera-lhe um número incontável de assuntos para pintar e começara a conferir ao seu trabalho uma nova profundeza que a empolgava.
Agnes dissera-lhe certa vez:
— Quando você tira o que tem nos seus bolsos e coloca nos bolsos dos outros, você apenas acorda de manhã mais rico do que era antes.
Enquanto Celestina e sua mãe colocavam as últimas tortas nas caixas térmicas que estavam no Suburban, Paul e Agnes voltaram de sua perua na frente da caravana.
— Prontos para zarpar? — perguntou Agnes.
Como se considerava o guia da caravana, Paul checou a traseira do Suburban. Ele queria ter certeza de que os mantimentos estavam armazenados de forma que os impossibilitasse de escorregar ou serem danificados.
— Tudo está bem seguro. Acho que estamos prontos — declarou e fechou a porta traseira.
De sua Kombi no meio da fila, Maria juntou-se a eles.
— Agnes, se a gente se separar, eu não tenho um itinerário.
— Onde está o Wally? — perguntou Maria.
Em resposta, Wally chegou correndo com sua mala médica pesada, porque agora era o médico de algumas pessoas na rota da torta.
— O tempo estava melhor do que eu esperava e voltei para botar roupas mais leves.
Mesmo um dia frio na rota da torta poderia gerar um bom suor no fim da jornada, porque com a adição dos homens a este projeto ambicioso eles agora não apenas faziam entregas como também executavam alguns serviços que não podiam ser feitos pelos velhos ou deficientes.
— Vamos partir! — disse Paul e voltou à perua para viajar ao lado de Agnes. No Suburban com Wally e Grace, enquanto aguardavam para botar o pé na
estrada, Celestina disse:
— Terça-feira à noite ele a levou de novo ao cinema.
— Quem, Paul? — perguntou Wally.
— Quem mais? Acho que há romance no ar. Já viu o ar de bobo dele quando olha para ela? Ela podia derrubá-lo com uma piscadela.
— Parem de fofocar! — repreendeu Grace, que estava sentada no banco traseiro.
— Olha só quem fala — disse Celestina. — Quem foi que disse pra gente que viu os dois sentados de mãos dadas no balanço da varanda da frente?
— Aquilo não foi fofoca — insistiu Grace. — Eu só estava dizendo a vocês que Paul consertou o balanço.
— E quando você saiu com Agnes para fazer compras e ela comprou para ele aquela camisa esporte sem nenhum motivo, só porque achou que ele ia ficar bonito nela?
— Só falei sobre isso porque era uma camisa muito bonita, e achei que você talvez quisesse comprar uma para o Wally — defendeu-se novamente Grace.
— Wally, estou preocupada. Estou muito, muito preocupada. Minha mamãe vai comprar uma passagem de primeira classe para o poço ardente se não parar com esses fuxicos.
— Dou no máximo três meses para ele fazer o pedido — disse Grace. Virando-se no banco da frente, sorrindo para a mãe, Celestina disse:
— Um mês.
— Se ele e Agnes fossem da sua idade, eu concordaria. Mas ela tem dez anos a mais que você, e ele tem vinte, e nenhuma geração anterior foi tão ousada quanto a sua.
— Casando com homens brancos e coisas do género — provocou Wally.
— Exatamente — replicou Grace.
— Cinco semanas, no mínimo — disse Celestina, revisando para cima a sua previsão.
— Dez semanas — disse Grace.
— O que eu ganho se estiver certa? — perguntou Celestina.
— Farei os seus serviços de casa por um mês. Se eu estiver mais perto da data, você limpará toda a sujeira que as tortas deixam na cozinha por um mês. As formas, as panelas, as batedeiras, tudo.
— Feito.
Na frente da fila, Paul acenou um lenço vermelho pela janela da perua. Dando a partida no Suburban, Wally comentou:
— Não sabia que batistas faziam apostas.
— Isto não foi uma aposta — declarou Grace.
— Exatamente — disse Celestina a Wally. — Não foi uma aposta. O que tem de errado com você?
— Se não foi uma aposta, o que foi então? — perguntou Wally.
— Ora, confraternização de mãe e filha — disse Grace.
— Sim, confraternização — concordou Celestina.
A perua começou a andar, a Kombi a seguiu e Wally engatou a primeira marcha.
— Carroças, avante! — anunciou.
Na manhã em que aconteceu, Barty tomou o café da manhã na cozinha dos
Lampion com Anja, tio Jacó e dois amigos sem cérebros.
Jacó serviu pão de milho, omeletes com queijo e batatas chips com uma pitada de sal de alho.
A mesa redonda dava para seis pessoas, mas eles precisavam de apenas três cadeiras, porque os dois amigos sem cérebros eram um par de bonecas de Anja.
Enquanto comia, Jacó folheava um novo livro sobre desastres de represas. Ele falava mais para si mesmo que para Barty e Anja, enquanto lia em voz alta partes do texto e olhava as figuras. "Meu Deus!", dizia num tom solene. Ou com tristeza: "Que coisa horrível." Ou ainda, com indignação: "Um crime. Um crime que tenham construído tão mal essa represa." Algumas vezes ele estalava a língua, suspirava, ou gemia de pena.
Estar cego tinha poucas consolações, mas Barty descobrira que não ser capaz de ver os arquivos e livros de seus tios era uma delas. No passado, ele nunca quisera, de coração, ver aquelas fotos de pessoas mortas assadas em incêndios em teatros e corpos afogados flutuando em ruas inundadas, mas algumas vezes tinha espiado. Sua mãe teria ficado envergonhada dele se tivesse descoberto sua transgressão. Mas o mistério da morte tinha uma atração inegável, e às vezes uma boa história de detetives do Padre Brown não era suficiente para satisfazer sua curiosidade. Ele sempre se arrependia de olhar essas fotos e ler os relatos sórdidos de desastres, e agora a cegueira poupava-o desse arrependimento.
Quando tomava o café da manhã com Anja, em vez de apenas com tio Jacó, Barty ao menos tinha alguém com quem falar, mesmo se ela insistisse em falar mais através de suas bonecas do que diretamente com ele. Aparentemente, as bonecas estavam na mesa, mantidas em pé por arcos de cabelo. A primeira, srta. Pixie Lee, tinha uma voz alta e esganiçada. A segunda, srta. Velveeta Queijo, expressava-se segundo a ideia de uma menina de três anos de como falava uma mulher sofisticada, de voz rouca, embora aos ouvidos de Barty a sonoridade era mais adequada a um ursinho de pelúcia.
— Você está muito, muito bonito esta manhã, sr. Barty — cacarejou Pixie Lee, que adorava flertar com ele. — Está parecendo um ator de cinema.
— Está gostando do seu café, Pixie Lee?
— Gostaria que tivéssemos Kix ou Cheerios com leite achocolatado.
— Bem, o tio Jacó não entende crianças. Mesmo assim, isto está muito gostoso. Jacó grunhiu, mas provavelmente não porque ouvira o que fora dito sobre
ele; era mais provável que tivesse virado uma página e encontrado uma foto de gado morto empilhado como lenha de fogueira contra o Salão da Legião Americana em alguma cidade castigada por uma enchente no Arkansas.
Lá fora motores começaram a funcionar, e a caravana das tortas saiu do caminho de acesso.
— Em minha casa na Geórgia, comemosfroot Loops com leite achocolatado no jantar.
— Todo mundo na sua casa deve ter caganeira.
— O que é caganeira?
— Diarreia.
— O que é dia... esse negócio que você disse?
— Uma vontade ininterrupta e incontrolável de fazer cocô.
— Você é nojento, sr. Barty. Ninguém tem caganeira na Geórgia. Anteriormente, a srta. Pixie Lee fora oriunda do Texas, mas recentemente Anja
ouvira dizer que a Geórgia era famosa por seus pêssegos, o que imediatamente capturara sua imaginação. Agora Pixie Lee tinha uma nova vida numa mansão da Geórgia esculpida num pêssego gigante.
— Eu sempre como cavijar no café da manhã — disse Veveeta Queijo com sua voz de ursinho de pelúcia.
— É caviar.
— NÃO ME DIGA COMO FALAR AS PALAVRAS, SR. BARTY.
— Certo, mas então você vai ser uma cabeça de queijo ignorante.
— E Eu BEBO CHAMPANHE O DIA INTEIRO — disse a srta. Queijo, pronunciando "chum-pã-heim".
— Eu também ficaria bêbado o tempo todo, se o meu nome fosse Velveeta Queijo.
— Está muito bonito com os seus olhos novos, sr. Barty — comentou Pixie Lee. Barty estava com os olhos artificiais há quase um mês. Fora submetido a uma
cirurgia para ter os músculos oculares anexados à conjuntiva, e todo mundo lhe disse que a aparência e o movimento eram absolutamente reais. Na verdade disseram-lhe isso com tanta frequência na primeira ou na segunda semana, que chegara a desconfiar que seus olhos estavam totalmente fora de controle e girando como ioiôs.
— PODEMOS OUVIR UM LIVRO FALANTE DEPOIS DO CAFÉ DA MANHÃ? — perguntou a srta. Velveeta Queijo.
— Não sei se é boa ideia — disse Barty. — Vou começar a ouvir agora O médico e o monstro, que talvez seja assustador demais.
— NÓS NÃO FICAMOS ASSUSTADAS.
— Ah, não? Lembra da aranha, na semana passada?
— Eu não fiquei com medo de uma aranha velha e boba — insistiu Anja com sua própria voz.
— Então que gritaria toda foi aquela?
— Eu queria que todo mundo viesse ver a aranha, só isso — argumentou Anja. — Era um inseto nojento muito interessante.
— Você ficou com tanto medo que teve caganeira.
— Se um dia eu tiver caganeira, você vai saber — disse Anja. E então, na voz de Queijo: — PODEMOS OUVIR O LIVRO FALAR NO SEU QUARTO?
O quarto de Barty ficava no segundo andar. Anja gostava de ficar empoleirada na poltrona diante da janela do quarto, com um bloco de desenho no colo, olhando de cima para o carvalho, fazendo desenhos inspirados em coisas que ouvira no livro que ele estava escutando no momento. Todos diziam que ela era uma artista muito boa para uma menina de três anos e Barty queria poder ver o quanto ela era boa. Também queria poder ver Anja, apenas uma vez.
— Estou falando sério, Anja — disse Barty, com preocupação genuína. — Pode ser assustador. Mas tenho outro que podemos ouvir, se você quiser.
— Queremos o assustador, especialmente se tiver aranhas — disse Pixie Lee, a
voz esganiçada carregada de desafio.
— Tá bom, o assustador.
— ÀS VEZES Eu ATÉ COMO ARANHAS COM O MEU CAVIAR.
— E depois eu é que sou nojento.
Na manhã em que aconteceu, Esaú acordou mais cedo, despertado por um pesadelo com rosas.
No sonho ele tem dezesseis anos, mas é acometido pelo equivalente a trinta anos de dor. O quintal dos fundos. Verão. Dia quente, o ar parado e pesado como água num lago sereno, carregado com fragrância de jasmim. Debaixo do carvalho imenso. Grama reluzindo como se besuntada pelo sol amanteigado, e verde-escuro onde as sombras dos galhos e das folhas deitam sobre ela. Corvos gordos, negros como resíduos da noite que resistiram ao alvorecer, voam para fora e para dentro da árvore, de galho em galho, grasnando excitados. Os únicos outros sons são os baques surdos de punhos golpeando com muita força, e a respiração pesada de seu pai enquanto administra a punição. Esaú está deitado com o rosto encostado na grama, calado porque está quase inconsciente, espancado demais para protestar ou rogar misericórdia, mas também porque até gritar de dor será um convite a uma disciplina mais violenta do que o espancamento que já sofreu. O pai está montado sobre Esaú, desferindo com seus punhos grandes socos brutais nas costas e nas costelas do filho. Sendo a propriedade enclausurada por cercas altas e sebes vivas, os vizinhos não podem ver, mas alguns sabem, sempre souberam, e nutrem menos interesse naquilo que os corvos. Caído na grama, em fragmentos: o troféu quebrado pela rosa premiada, símbolo de seu orgulho pecaminoso, o seu único momento brilhante mas também seu maior pecado. Primeiro golpeado com o troféu, depois com os punhos. E agora, aqui, depois que o pai o vira de barriga para cima, rosas empurradas contra o seu rosto, esmagadas e esfregadas no seu rosto, espinhos rasgando sua pele, perfurando os lábios. Seu pai, alheio aos ferimentos que ele próprio recebeu, tentando forçar Esaú a abrir a boca. "Coma o seu pecado, menino, coma o seu pecado!" Esaú resiste a comer o seu pecado, mas sente medo, terror, por seus olhos. Os espinhos estão tão perto de seus olhos, pontos verdes penteando seus cílios. Está fraco demais para resistir, desarmado pela ferocidade do espancamento e pelos anos de medo e humilhação. Assim abre a boca, só para pôr fim àquilo, apenas para que chegue logo o fim, abre a boca, deixa as rosas serem enfiadas nela, o sabor verde amargo do suco expurgado dos talos, espinhos contra sua língua. Agnes no quintal, gritando "Pára com isso, pára com isso.". Agnes, apenas dez anos de idade, magra e trémula, mas ardente de indignação, até agora retransida por seu próprio medo, pela lembrança de todos os espancamentos que ela mesma sofrera. Ela grita com seu pai e o golpeia com um livro que trouxe da casa. A Bíblia. Ela enfrenta o pai com a Bíblia, da qual ela leu para eles cada noite de suas vidas. Ele larga as rosas, arranca o livro sagrado das mãos de Agnes, arremessa-o através do quintal. Pega um punhado de rosas esmigalhadas, determinado a fazer o filho prosseguir seu jantar de pecado, mas aqui vem Agnes mais uma vez, Bíblia recuperada, brandindo-a contra ele, e agora ela diz o que todos eles sabem ser a verdade, mas que nenhum deles jamais ousou dizer, o que até a própria Agnes jamais ousará dizer novamente depois deste dia, não enquanto o velho viver, mas ela ousa dizer agora, brandindo a Bíblia para que o pai possa ver a cruz dourada na capa de imitação de couro. "Assassino", diz Agnes. "Assassino." E Esaú sabe que agora eles podem se considerar mortos, que o pai, possuído pela fúria, irá chaciná-los bem aqui, neste minuto. "Assassino", repete Agnes, acusadora, por trás do escudo da Bíblia, e ela não quer dizer que ele esteja matando Esaú, mas que matou a mãe deles, que eles o ouviram na noite, três anos antes, quando ouviram a luta curta mas violenta, e sabem que o que aconteceu não foi acidente. Rosas caem das mãos laceradas do pai, uma cortina de pétalas amarelas e pétalas vermelhas. Ele levanta e dá um passo na direção de Agnes, os punhos avermelhados gotejando o seu próprio sangue e o de Esaú. Agnes não recua, mas golpeia-o com o livro, e raios de sol cintilantes acariciam a cruz. Em vez de arrancar o livro novamente das mãos da menina, o pai recua, caminha até a casa, certamente para voltar com um porrete ou um cutelo... mas eles não o verão mais neste dia. Então Agnes — com pinças para os espinhos, com uma bacia cheia de água quente e pano limpo, com iodo, Neosporin e ataduras — ajoelha-se ao lado de Esaú no jardim. Jacó também chega, saindo de detrás do varal de roupas na varanda, de onde testemunhara tudo, oculto por um pano de mesa. Ele treme, chora, abalado pelo constrangimento de não ter intervindo, embora tenha sido sensato esconder-se, porque o espancamento disciplinar de um gémeo invariavelmente conduz ao espancamento despropositado do outro. Agnes gradualmente acalma Jacó envolvendo-o no tratamento dos ferimentos do seu irmão, e a Esaú ela diz, como fará muitas vezes depois: "Eu amo as suas rosas, Esaú. Amo as suas rosas. Deus ama as suas rosas, Esaú." Acima de suas cabeças, asas afoitas aquietam-se para um adejar suave, e os corvos se calam. O ar fica parado e pesado como a água numa lagoa oculta dentro de uma clareira secreta, no jardim perfeito dos que não caíram...
Beirando os quarenta anos de idade, Esaú ainda sonhava com aquela funesta tarde de verão, embora não tão frequentemente quanto no passado. Quando ela atormentava o seu sono era como um pesadelo que gradualmente se metamorfoseava num sonho de ternura e esperança. Até alguns anos atrás, ele sempre acordara quando as rosas eram enfiadas em sua boca ou quando os espinhos roçavam seus cílios, ou quando Agnes começava a atacar o pai com a Bíblia, desta forma parecendo assegurar uma punição pior. Este ato adicional, esta transição do horror para a esperança antes de acordar, fora acrescentada quando Agnes estava grávida de Barty. Esaú não sabia por que isso tinha acontecido, e não tentara analisar o fenómeno. Simplesmente estava agradecido pela mudança, porque agora ele acordava num estado de paz, jamais sentindo nada pior que um arrepio, não mais com um grito rouco de agonia.
Nesta manhã de março, minutos depois da caravana da torta ter partido, Esaú tirou seu Ford Country Squire da garagem e dirigiu até a floricultura, que abria cedo. A primavera estava próxima, e seria preciso trabalhar muito para fazer o adubo do rosário que Joey encorajara-o a restaurar. Ele contemplava alegremente horas manuseando plantas, ferramentas e suprimentos de jardinagem.
Na manhã em que aconteceu, Tom Vanadium acordou mais tarde que de costume, barbeou-se, tomou banho e em seguida usou o telefone no escritório do andar térreo da casa de Paul para telefonar para Max Bellini em San Francisco e para falar também com autoridades nos departamentos de polícia do Oregon e de Spruce Hills.
Ele estava inquieto, o que era incomum. Sua natureza estóica, sua filosofia há muito aprendida com os jesuítas a respeito da aceitação dos eventos à medida que se desenrolavam, e a paciência desenvolvida por um detetive de homicídios, eram insuficientes para impedir que a frustração fincasse raízes nele. Nos mais de dois meses desde que Enoch Caim havia desaparecido, após o assassinato do reverendo White, nenhum rastro do assassino tinha sido encontrado. Semana a semana, a semente de frustração tinha crescido para uma árvore e então para uma floresta, até um ponto em que Tom iniciasse cada manhã olhando através de um emaranhado de ramos de impaciência.
Devido aos eventos relacionados a Barty e a Anja em janeiro, Celestina, Grace e Wally não eram mais pessoas sem lar aguardando para retornar a San Francisco. Eles tinham começado vida nova aqui em Bright Beach e, a julgar por todos os indícios, ficariam tão felizes e ocupados com trabalho útil quanto era possível estar neste lado atribulado da sepultura.
O próprio Tom decidira construir uma vida nova aqui, ajudando Agnes com seu mundo continuamente em expansão. Ainda não tinha certeza se isso incluiria a rededicação aos votos e uma volta à batina, ou se passaria o resto de seus dias em trajes civis. Estava postergando essa decisão até que o caso Caim fosse resolvido.
Ele não podia mais se aproveitar da hospitalidade de Paul Damascus. Desde que trouxera Wally para a cidade, Tom estivera acomodado no quarto de hóspedes de Paul. Ele sabia que era bem-vindo indefinidamente, e o senso familiar que encontrara com estas pessoas apenas tinha crescido desde janeiro; mesmo assim, sentia que estava abusando.
Os telefonemas para Bellini em San Francisco e para outros no Oregon foram feitos com preces por notícias, mas elas não foram atendidas. Caim não tinha sido visto, ouvido, farejado, intuído ou localizado pelos pretensos clarividentes que haviam sido convocados para o caso sensacional.
Aumentando ainda mais o terreno da sua floresta de frustração, Tom levantou-se da escrivaninha do escritório, pegou o jornal deixado na porta da frente e foi até a cozinha fazer seu café matutino. Ele ferveu uma chaleira de líquido forte e sentou-se à mesa de pinho nodoso com uma caneca de café fumegante sem açúcar.
Ele quase abriu o jornal sobre a moeda de 25 cents antes de vê-la. Reluzente. A palavra liberdade curvada sobre o topo da moeda, em cima da cabeça do patriota, e debaixo do queixo do patriota estavam cunhadas as palavras da frase Em Deus confiamos.
Tom Vanadium não era alarmista, e a explicação mais lógica ocorreu-lhe primeiro. Paul quisera aprender a fazer uma moeda rolar sobre os nós de seus dedos e, apesar de ter uma péssima coordenação motora, ele praticava de vez em quando. Decerto Paul sentara-se à mesa esta manhã — ou mesmo na noite passada, antes de ir para a cama —, deixando a moeda cair de novo e de novo, até perder a paciência.
Wally desfizera-se de suas propriedades em San Francisco sob a supervisão atenta de Tom. Qualquer tentativa em seguir seu rastro de San Francisco até Bright Beach fracassaria. Os veículos de Wally tinham sido comprados através de uma corporação e sua casa nova fora comprada através de um fundo em nome da falecida esposa.
Celestina, Grace, até o próprio Tom, haviam tomado medidas extraordinárias para não deixar o menor rastro. Aquelas pouquíssimas autoridades que sabiam como chegar a Tom e — através dele — aos outros, sabiam muito bem que seu paradeiro e número de telefone deviam ser guardados.
A moeda, prateada. Debaixo do pescoço do patriota, a data: 1965. Por coincidência, o ano em que Naomi fora assassinada. O ano em que Tom conhecera Caim. O ano em que tudo isto havia começado.
Quando Paul praticava o truque com a moeda, ele geralmente o fazia no sofá ou numa poltrona, e sempre num aposento atapetado, porque quando a deixava cair numa superfície dura, a moeda rolava e exigia uma busca intensa.
De um armário de utensílios culinários Tom retirou uma faca. A lâmina maior e mais afiada na pequena coleção.
Ele deixara seu revólver no andar superior, numa mesa-de-cabeceira.
Mesmo convicto de estar exagerando em sua reação, Tom saiu da cozinha como faria um tira, não um padre: mantendo o corpo curvado, faca empunhada à frente, passando rápido através da moldura da porta.
Da cozinha para a sala de jantar, da sala de jantar para o corredor, mantendo-se de costas para a parede, e então para a ante-sala. Esperou ali em silêncio, atento para qualquer som.
Tom estava sozinho. O lugar devia estar silencioso. Hanna Rey, a governanta, não devia chegar até as dez horas.
Um silêncio profundo de tempestade, o momento antes do trovão, a casa imersa em silêncio absoluto.
A busca por Caim era secundária. Pegar o revólver era a prioridade. Recuperar a arma e em seguida percorrer de uma sala assombrada para a seguinte. Caçando-o, se ele estava aqui. E se Caim não o caçasse primeiro.
Tom subiu a escada.
Tio Jacó, cozinheiro, babá e connoisseur de mortes na água, limpou a mesa e lavou os pratos enquanto Barty dedicava-se pacientemente a uma conversa pós-prandial com Pixie Lee e a srta. Velveeta Queijo, cujo nome não era um título honorário obtido num concurso de beleza patrocinado pela Kraft Foods, conforme ele pensara inicialmente, mas que, segundo Anja, era a irmã "boa" do mentiroso homem do queijo nos comerciais de televisão.
Pratos lavados e guardados, Barty e Anja subiram para o quarto do menino, onde o livro que falava os esperava pacientemente, em silêncio. Com seus lápis coloridos e um bloco grande de papel de desenho, Anja escalou a poltrona diante da janela. Barty sentou-se na cama e ligou o toca-fitas que ficava na mesinha-de-cabeceira.
As palavras de Robert Louis Stevenson, bem lidas, chegaram de outro tempo e espaço até este quarto com a suavidade de limonada vertendo de uma jarra para um copo.
Uma hora depois, quando decidiu que queria um refrigerante, Barty desligou o livro e perguntou a Anja se ela queria beber alguma coisa.
— A coisa de laranja — disse ela. — Deixa que eu pego.
Às vezes Barty podia ser feroz em sua independência — sua mãe já lhe dissera isso —, e agora respondeu asperamente a Anja.
— Não quero que me sirvam. Não sou inútil, você sabe. Eu mesmo posso pegar os refrigerantes. — Quando alcançou a porta, já estava arrependido por seu tom e olhou para trás, na direção da poltrona onde a menina devia estar. — Anja?
— Queé?
— Desculpe, eu fui grosso.
— E bota grosso nisso.
— Não, estou dizendo que fui grosso agora.
— Mas não foi só agora.
— Quando mais?
— Com a srta. Pixie e a srta. Velveeta.
— Desculpe por isso também.
— Tudo bem — disse a menina.
Enquanto Barty passava pela porta para o corredor superior da casa, a srta. Pixie Lee comentou:
— Você é uma gracinha, Barty. Ele suspirou.
— QUER SER O MEU NAMORADO?—perguntou a srta. Velveeta, que até agora não tinha demonstrado inclinações românticas.
— Vou pensar no assunto — prometeu Barty.
No corredor, cada passo medido, permaneceu perto da parede mais distante da escadaria.
Em sua mente, ele carregava um mapa da casa desenhado com mais precisão do que qualquer coisa que pudesse ter sido preparada por um arquiteto. Ele conhecia cada centímetro do lugar e ajustava seu ritmo e todos os seus cálculos mentais mensalmente para compensar seu crescimento estável. Tantos passos daqui até ali. Cada volta e cada peculiaridade no assoalho guardada indelevelmente na memória. Uma jornada como esta era um problema matemático complexo, mas sendo um prodígio matemático ele se movia por sua casa com quase a mesma facilidade de quando desfrutara da visão.
Barty não confiava em sons para ajudá-lo a encontrar seu caminho, embora aqui e ali algum servisse como marco de seu progresso. A vinte passos de seu quarto, uma tábua guinchou quase inaudivelmente sob o tapete do corredor. Ele não precisava desse rangido abafado para saber precisamente onde estava, mas isso sempre o reconfortava.
Seis passos depois da tábua solta no assoalho Barty teve a estranha sensação de que alguém estava no corredor com ele.
Também não confiava no sexto sentido, que alguns cegos alegavam possuir, para detectar obstáculos ou espaços abertos. De vez em quando, o instinto dizia-lhe que em seu caminho havia um objeto que normalmente não deveria estar ali; mas na maioria das vezes essas coisas não eram detectadas, e a não ser que ele estivesse usando a sua bengala, ele tropeçava nelas. O sexto sentido era uma coisa superestimada.
Se havia alguém com ele aqui no corredor, não podia ser Anja, porque ela estaria matraqueando numa voz ou noutra. Tio Jacó jamais brincaria com ele deste jeito, e não havia mais ninguém na casa.
Mesmo assim, afastou-se da parede e, com as mãos estendidas até o comprimento total do braço, ele se virou, sentindo o mundo escuro ao seu redor. Nada. Ninguém.
Procurando livrar-se deste caso incomum de medo despropositado, Barty caminhou até a escada. No instante em que alcançou o pilar central da escada em espiral, escutou a tábua solta ranger baixinho atrás dele.
Virou-se, piscando os olhos de plástico, e disse:
— Olá?
Ninguém respondeu.
Casas faziam ruídos estranhos o tempo todo. Era por causa disso que ele não podia confiar muito nos sons para guiá-lo através da escuridão. Um ruído que ele pensasse ter sido feito pelo peso de seu corpo ao dar um passo poderia muito bem ter sido gerado pela casa enquanto se ajustava às condições atmosféricas ou à idade.
— Olá? — repetiu Barty e mais uma vez ninguém respondeu. Convencido de que a casa estava pregando peças nele, Barty desceu a escada,
passo a passo, até a sala no térreo.
Enquanto passava pelo arco na sala de estar, disse:
— Cuidado com as enchentes, tio Jacó.
Cativado pelas catástrofes causadas por represas, tão absorto por seu livro que talvez tivesse entrado magicamente nele e fechado a capa, tio Jacó não respondeu.
Barty seguiu do corredor no térreo para a cozinha, pensando no médico Dr. Jekyll e no monstro Sr. Hyde.
MÃO ESQUERDA NO corrimão, mão direita segurando a faca de cozinha e recolhida contra a lateral do corpo, preparada para desferir uma punhalada, Tom Vanadium galgou cautelosa mas rapidamente os degraus até o andar superior, olhando sobre o ombro duas vezes, para ter certeza de que Caim não o seguia.
Ao longo do corredor até este quarto. Rápido e abaixado através do pórtico. Atento para a porta do armário, entreaberta em cinco centímetros.
No caminho inteiro até a mesinha-de-cabeceira, esperou descobrir que o revólver tinha sido tirado da gaveta. Mas aqui ele estava. Carregado.
Largou a faca e pegou a arma de fogo.
Separado dos tempos de seminarista por uma distância de quase trinta anos — ou até mais, se medisse em graus de inocência perdida ou em quilómetros de experiência violenta —, Tom Vanadium saiu para matar um homem. Se tivesse uma chance de desarmar Caim, se tivesse uma oportunidade de simplesmente feri-lo, ele ainda assim tentaria acertar sua cabeça ou seu coração, agir como júri e executor, brincar de Deus, e deixar a Deus o julgamento de sua alma maculada.
De um cómodo para o outro através do andar superior. Checando armários. Atrás de móveis. Banheiros. Nos espaços privados de Paul. Nada de Caim.
Descendo as escadas, chegou ao andar térreo com rapidez e silêncio, a respiração contida o tempo inteiro, atento para sons emitidos por outra pessoa, atento para um guinchar suave dos sapatos de sola de borracha, embora não fosse se surpreender com o trotar de cascos fendidos e um cheiro de enxofre. Finalmente saiu para a cozinha, onde delineou uma volta completa em torno da moeda reluzente sobre a mesa de café. Nada de Caim.
Ele provavelmente estaria se sentindo um idiota seja não tivesse uma experiência tão grande com Enoch Caim. Este era um alarme falso, mas, considerando a natureza do inimigo, não seria má ideia treinar de vez em quando.
Pousando o revólver sobre o jornal, deixou-se desabar na cadeira. Pegou seu café. A busca pela casa tinha sido conduzida com tanta urgência que a porcelana ainda estava agradavelmente quente.
Segurando a caneca na mão direita, Tom pegou a moeda e a fez rolar pelos nós dos dedos de sua mão esquerda. A moedinha era de Paul, afinal de contas. Uma tentação barata para o pânico.
Tão bem-dotado com coordenação motora quanto era com beleza máscula, Júnior moveu-se até o quarto com graça felina e parou no pórtico, encostando-se à moldura da porta.
No fundo do quarto, a menina sentada à janela não demonstrou qualquer consciência de sua chegada. Estava sentada de lado para ele, com suas costas contra uma parede, joelhos dobrados, um grande bloco de desenho apoiado sobre suas coxas, trabalhando intensamente com seus lápis de cor.
Através da janela grande às suas costas, os galhos do carvalho imenso formavam uma cama-de-gato contra o céu, suas folhas tremendo levemente, como se a própria natureza temesse o que Caim Júnior era capaz de fazer.
Na verdade, a árvore o inspirou. Depois de atirar na menina, ele abriria a janela e jogaria seu corpo no carvalho. Deixaria que Celestina a encontrasse ali, estatelada sobre galhos numa versão livre da crucificação.
A sua filha, sua aflição, sua mesa de tortura, neta do batista feiticeiro provocador de bolhas...
Depois que um cirurgião perfurou 54 bolhas e cortou as 31 mais intratáveis (raspando a cabeça do paciente para chegar às doze que infestavam seu escalpo), depois de três dias de hospitalização para protegê-lo de uma infecção de estafilococos, e depois que foi mandado de volta para o mundo tão careca quanto Pinduca e com uma promessa de cicatrizes permanentes, Júnior visitou a biblioteca de Reno para se colocar em dia com os acontecimentos.
O assassinato do reverendo White recebera cobertura significativa em toda a nação, especialmente nos jornais da Costa Oeste, devido à possibilidade de motivação racial e ao incêndio da paróquia.
A polícia identificou Júnior como o principal suspeito, e os jornais estamparam sua fotografia na maioria das matérias. Eles se referiram a ele como "bonito", "deslumbrante", "um homem com a beleza de um astro de cinema". Dizia-se que ele era bem conhecido entre a comunidade de arte de vanguarda de San Francisco.
Júnior ficou emocionado quando descobriu que Sklent foi citado como tendo-o descrito como "uma figura carismática, um pensador profundo, um homem com excelente gosto artístico... tão inteligente que poderia matar e fugir com a facilidade com que uma pessoa comum se safaria após estacionar em lugar proibido". "São pessoas como ele", continuou Sklent, "que confirmam a visão do mundo que informa a minha pintura."
Júnior considerou a aclamação gratificante, mas a ampla divulgação de sua fotografia era um preço alto a pagar pelo reconhecimento de sua contribuição à arte. Felizmente, com sua cabeça raspada e rosto esburacado, ele não mais se parecia com o Enoch Caim que as autoridades estavam procurando. E acreditavam que as ataduras em seu rosto, na igreja, tinham sido meramente um disfarce exótico. Um psicólogo até mesmo especulara que as ataduras tinham sido uma expressão da culpa e da vergonha que ele sentia num nível subconsciente. Sim, claro.
Para Júnior, 1968 — o Ano Chinês do Macaco — seria o Ano do Cirurgião Plástico. Ele precisaria de um longo tratamento de dermabrasão para recuperar a lisura e o tom de sua pele, para voltar a ser tão irresistivelmente beijável como antes. E, durante o processo, precisaria de cirurgias para realizar mudanças sutis em suas feições. Seria um procedimento arriscado. Ele não queria abdicar da perfeição para obter o anonimato. Precisava cuidar para que sua aparência pós-cirúrgica — depois que os cabelos tivessem crescido e ele talvez os tivesse pintado — fosse tão atraente às mulheres quanto a anterior.
Segundo os jornais, a polícia também creditava a ele os assassinatos de Naomi, Victoria Bressler e Ned Gnathic (que eles tinham conectado a Celestina). Ele também era procurado pela tentativa de assassinato do dr. Walter Lipscomb (evidentemente, Ichabod), pela tentativa de assassinato de Grace White e pelo ataque com intenção assassina a Celestina White e sua filha, Anja, e pelo ataque a Lenora Kickmule (cujo Pontiac com cauda de raposa amarrada na antena tinha sido roubado em Eugene, Oregon).
Júnior visitara a biblioteca para confirmar que Harrison White estava inquestionavelmente morto. Ele tinha atirado no homem quatro vezes. Duas balas no tanque de combustível do Pontiac roubado haviam destruído a paróquia e deviam ter incinerado o pastor. Mas quando se lida com magia negra, cautela nunca é demais.
Depois de ler um número de reportagens sensacionalistas suficientemente grande para convencê-lo de que o pastor lançador de pragas estava inegavelmente morto, Júnior obteve quatro peças de informação surpreendentes. Três eram de importância vital para ele.
Primeira: Victoria Bressler estava listada como uma de suas vítimas, embora até onde soubesse as autoridades ainda tivessem todos os motivos para atribuir a ela o assassinato de Vanadium.
Segunda: Thomas Vanadium não tinha recebido qualquer menção; portanto, seu corpo não fora achado no lago. Ele ainda devia estar sob suspeita no caso Bressler. E se novas provas tinham-no livrado das suspeitas, então seu desaparecimento deveria ter sido mencionado, e ele deveria ter sido listado como outra vítima possível da Múmia Assassina, do Monstro Mascarado, como os tablóides tinham alcunhado Júnior.
Terceira: Celestina tinha uma filha. Não um menino chamado Bartholomew. Serafina havia parido uma menina. Chamada Anja. Isso deixou Júnior tão confuso quanto surpreso.
Bressler mas não Vanadium. Uma menina chamada Anja. Alguma coisa estava errada aqui. Havia alguma coisa de podre neste reino.
Quarta e última peça de informação: Júnior ficou surpreso em saber que Kickmule era um sobrenome legítimo. Esta informação não era de importância para ele, mas se um dia suas identidades Gammoner e Pinchbeck fossem comprometidas e ele precisasse de uma identidade falsa num novo nome, Júnior batizaria a si mesmo como Eric Kickmule. Ou possivelmente Wolfgang Kickmule. Isso daria a ele um ar de durão. Quem ia bancar o esperto com um homem cujo nome insinuava que ele chutava mulas?
Quanto à perturbadora questão da filha de Serafina, Júnior inicialmente decidiu voltar a San Francisco e torturar Nolly Wulfstan para arrancar dele a verdade. Mas então compreendeu que tinha sido indicado a Wulfstan pelo mesmo homem que lhe dissera que Thomas Vanadium estava desaparecido e que era tido como o assassino de Victoria Bressler.
Portanto, depois de esperar dois meses para que o caso superquente de Harrison White esfriasse, Júnior voltou a Spruce Hills, viajando careca e com a cara esburacada e se passando por Pinchbeck, sob a cobertura da noite.
Depois seguiu de carro de Spruce Hills para Eugene; de Eugene até o aeroporto do condado de Orange num avião alugado; de Orange para Bright Beach num Oldsmobile 1968 roubado, enquanto a vantagem da surpresa continuava com ele. Portando uma recém-adquirida pistola de 9mm com silenciador, cartuchos de munição sobressalentes, três facas afiadas, um destravador automático policial, e uma bagagem gelada, Júnior chegou no final da noite anterior.
Ele tinha entrado silenciosamente na casa de Damascus, onde passara a noite.
Poderia ter matado Vanadium enquanto o policial dormia; contudo, isso teria sido bem menos satisfatório do que realizar uma pequena guerra psicológica e deixar o maldito bastardo vivo para sofrer remorso quando duas crianças morressem sob sua guarda.
Além disso, Júnior estava relutante em matar Vanadium, para valer desta vez, e correr o risco de que o seu espírito de macaco sujo realmente viesse assombrá-lo.
Os fantasmas de duas crianças não o preocupavam. No máximo, seriam umas mosquinhas espirituais.
Esta manhã, Damascus saíra da casa cedo, antes de Vanadium descer para o térreo, o que era perfeito para os propósitos de Júnior. Enquanto o tira maníaco terminava de se barbear e tomar banho, Júnior subira até o andar de cima para checar o seu quarto. Descobrira o revólver no segundo dos três lugares em que esperava encontrá-lo, fez seu trabalho e devolveu a arma à mesinha-de-cabeceira na mesma posição em que a achara. Depois de quase cruzar com Vanadium no corredor, retornara ao térreo. Depois de procurar durante algum tempo o local mais eficaz, ele deixou a moeda e a bagagem — no instante exato em que Vanadium, o tronco vivo, descia ruidosamente as escadas. Júnior fora submetido a um atraso inesperado quando o detetive passara meia hora dando telefonemas do escritório, mas então Vanadium fora para a cozinha, deixando-o sair da casa e completar seu serviço.
Então Júnior viera diretamente para cá.
Anja, na poltrona diante da janela, usava apenas roupas brancas. Ténis e meias brancas. Calças brancas. Camisa de malha branca. Dois arcos brancos nos cabelos.
Para parecer inteiramente como o seu nome sugeria, ela precisava apenas de asas brancas. Ele iria dar-lhe suas asas: um vôo curto pela janela, para o carvalho.
— Você veio ouvir o livro que fala? — indagou a menina.
Anja não tinha levantado os olhos de seu desenho. Embora Júnior até agora pensasse que ela não o vira, a menina aparentemente estivera ciente dele o tempo inteiro.
Desencostando do pórtico e entrando no quarto, Júnior perguntou:
— E que livro é esse?
— Ele agora está falando sobre um médico maluco.
Em suas feições, a menina lembrava inteiramente a mãe. Ela não tinha qualquer semelhança com Júnior. Apenas o tom castanho-claro de sua pele evidenciava que ela não tinha derivado de Serafina por partenogênese.
— Não gosto desse médico maluco — sentenciou Anja, ainda desenhando. — Eu preferia que a história fosse sobre coelhinhos viajando pelo mundo... ou talvez sobre um sapo que aprende a dirigir um carro e vive aventuras.
— Onde a sua mãe está esta manhã? — indagou.
Júnior achara que para chegar às duas crianças teria de matar muito mais do que apenas um adulto. Mas a casa dos Lipscomb revelara-se vazia, e a sorte dera-lhe de bandeja o menino e a menina juntos, com apenas um guardião.
— Ela está levando as tortas pra passear de carro — disse Anja. — Qual é o seu nome?
— Wolfgang Kickmule.
— Que nome bobo.
— Não é bobo, não.
— O meu nome é Pixie Lee.
Júnior caminhou até a poltrona e baixou os olhos para olhar a menina.
— Acho que isso não é verdade.
— É mais verdade que a verdade — insistiu Anja.
— O seu nome não é Pixie Lee, sua garotinha mentirosa.
— Bem, com certeza não é Velveeta Queijo. E não seja grosso.
Os diversos sabores de refrigerante em lata sempre eram guardados na mesma ordem, permitindo a Barty escolher qual ele queria sem erro. Ele pegou sabor laranja para Anja, gengibirra para si mesmo, e fechou a geladeira.
Refazendo a sua trilha através da cozinha, sentiu um cheiro leve de jasmim vindo do quintal dos fundos. Engraçado isso, cheiro de jasmim aqui dentro. Dois passos depois, sentiu um pé-de-vento.
Parou, fez um cálculo rápido, virou-se e caminhou até onde a porta dos fundos devia estar. Encontrou-a aberta até a metade.
Devido aos ratos e à poeira, as portas na casa dos Lampion jamais eram deixadas entreabertas, quanto mais tão abertas assim.
Segurando a maçaneta, Barty inclinou-se através do pórtico, ouvindo o dia. Pássaros. O farfalhar das folhas ao vento. Ninguém na varanda. Mesmo quando tentavam fazer silêncio, as pessoas sempre faziam um pouco de barulho.
— Tio Jacó? Nenhuma resposta.
Depois de fechar a porta com o ombro, Barty pegou os refrigerantes na cozinha e seguiu ao longo do corredor. Parando no arco da sala de estar, repetiu:
— Tio Jacó?
Nenhuma resposta. Nenhum barulho. O seu tio não estava aqui.
Evidentemente, Jacó tinha ido dar um pulo rápido no seu apartamento em cima da garagem e, sem preocupar-se com ratos e poeira, não fechara a porta dos fundos ao passar.
Júnior disse:
— Você me causou um monte de problemas, sabia? — Júnior tinha construído uma ira belíssima durante a noite, pensando em tudo que lhe acontecera desde que sucumbira à sedução da mãe da menina, a quem via tão claramente nesta piranha em miniatura. — Muitos problemas.
— O que você acha sobre cachorros?
— O que está desenhando aí? — perguntou Júnior.
— Eles falam ou não falam?
— Eu perguntei o que você está desenhando aí.
— Uma coisa que vi esta manhã.
Ainda avultando-se sobre a criança, ele tomou o bloco das mãos dela e examinou o esboço.
— Onde você viu isto?
Anja recusou-se a olhar para Júnior, da forma como sua mãe recusara-se a olhar para ele enquanto faziam amor na paróquia. Ela começou a girar um lápis vermelho num apontador, cuidando para que as lascas caíssem numa latinha com esse propósito.
— Eu vi isso ali.
— Pare de falar merda — disse Júnior, jogando o lápis no chão.
— Nesta casa nós falamos "cocó".
Esta criança era esquisita. Ela provocava arrepios nele. Toda de branco, com seu falatório incompreensível sobre livros e cachorros falantes e sua mãe levando tortas para passear de carro, e fazendo um desenho muito estranho para uma menininha.
— Olhe pra mim, Anja. Girando, girando, girando o lápis.
— Mandei olhar pra mim.
Júnior bateu nas mãos da garota, fazendo com que ela largasse o lápis e o apontador, que se chocaram contra a janela e caíram no estofado da poltrona.
Como Anja ainda não estava olhando para ele, Júnior segurou-a pelo queixo e inclinou a cabeça da menina para trás.
Terror em seus olhos. E reconhecimento.
Surpreso, ele disse:
— Você me conhece, não conhece? Ela não disse nada.
— Você me conhece — insistiu Júnior. — Sim, você me conhece. Diga quem eu sou, Pixie Lee.
Depois de um instante de hesitação, Anja disse:
— Você é o bicho-papão, só que quando eu te vi, era eu que estava escondida debaixo da cama, e não você.
— Como você me reconheceu? Sem cabelo, com esta cara.
— Eu vejo.
— Vê o quê? — inquiriu Júnior, apertando o queixo da menina com força suficiente para machucá-la.
Como os dedos de Júnior deformavam o formato da boca de Anja, a voz da menina saiu distorcida:
— Vejo todas as formas que você é.
Depois de seu surto paranóico com Caim, Tom Vanadium estava tenso demais para voltar a ficar interessado no jornal. O café preto forte, antes soberbo, agora parecia amargo.
Carregou a caneca até a pia, derramou a bebida no ralo — e viu a caixa térmica no canto. Ele não a tinha visto antes. Uma caixa plástica de tamanho médio, com interior de isopor, o tipo que você enchia com gelo e levava para piqueniques.
Paul devia ter esquecido alguma coisa que devia ter levado na caravana de tortas.
A tampa da caixa térmica não estava fechada com a firmeza que deveria. De uma das bordas escapava uma coluna fina e sinuosa de fumaça. Alguma coisa estava queimando.
Quando chegou à caixa térmica, pôde ver que não era fumaça, afinal de contas. A coluna tinha se dissipado depressa demais. Sentiu frio ao tocar a superfície da caixa. Frio saindo de uma caixa térmica cheia de gelo.
Tom removeu a tampa. Sem cervejas, uma cabeça. A cabeça cortada de Simon Magusson estava deitada de rosto para cima sobre o gelo, boca aberta como se estivesse de pé na corte para objetar contra a linha de interrogatório do advogado de acusação.
Não havia tempo para horror ou nojo. Agora cada segundo importava, e cada minuto poderia custar mais uma vida.
Até o telefone, ligar para a polícia. Sem sinal de ligação. Inútil balançar o fio, porque não era mau contato. O fio tinha sido cortado.
Os vizinhos não deviam estar em casa. E bater na porta, pedir para usar o telefone, discar... era perder tempo demais.
Pensar, pensar. Três minutos de carro até a casa dos Lampion. Talvez dois minutos, atravessando os sinais de trânsito, entrando na contramão por ruas de mão única.
Tom pegou o revólver na mesa, as chaves do carro e abriu a porta, deixando-a bater com força atrás dele com violência suficiente para quebrar o vidro, e atravessou a varanda Ver a beleza do dia foi como levar um soco na barriga. Estava azul demais, iluminado demais, bonito demais para um cenário de mortes; e assim mesmo era isso que ele era, um cenário de nascimento e também de morte, alfa e ômega, construído numa forma que desafiava a compreensão. Este dia era um soco, um soco forte, brutal em sua beleza, em suas promessas simultâneas de transcendência e perda.
O carro estava parado no caminho de acesso. Tão morto quanto o telefone.
Deus, ajude-me aqui. Me dê este, apenas este, e depois seguirei a Ti. Eu sempre serei o Vosso instrumento, mas por favor, por favor, ME DÊ ESTE FILHO DA PUTA MALUCO E MALIGNO!
Três minutos de carro, talvez dois sem parar nos sinais. Ele podia correr quase tão rápido quanto se dirigisse. Estava pouco barrigudo. Não era o homem que costumava ser. Ironicamente, depois do coma e da reabilitação, não era mais tão gordo quanto antes de ser jogado por Caim no Lago da Pedreira.
Eu vejo todas as formas que você é.
A menina era esquisita, não havia dúvida, e Júnior sentia agora precisamente o que tinha sentido na noite da exposição de Celestina na Galeria Greensbaum, quando ele saíra para o beco depois que tinha descartado Neddy Gnathic na lixeira e olhado as horas apenas para encontrar seu pulso vazio. Também aqui estava faltando alguma coisa, mas não era meramente um Rolex, não era nenhum tipo de objeto, mas uma noção, uma verdade profunda.
Soltou o queixo da menina, e ela imediatamente se acocorou na poltrona, o mais distante dele que conseguiu. O olhar dessa menina, o olhar de quem sabia alguma coisa, não era o olhar de uma criança comum, não era o olhar de nenhum tipo de criança. Também não era imaginação de Júnior. Havia terror no olhar da criança, mas também desafio, e essa expressão de quem sabia alguma coisa, como se ela pudesse ver direto através dele, como se soubesse coisas sobre ele que não tinha como saber.
Júnior pescou o silenciador no bolso do casaco, sacou a pistola de seu coldre de ombro e começou a enroscar o primeiro objeto no segundo. Inicialmente não conseguiu, porque suas mãos tinham começado a tremer.
Pensou em Sklent, talvez por causa do desenho estranho no bloco da menina. Sklent naquela festa de Natal, poucos meses atrás, mas poucos meses que pareciam uma vida inteira. A teoria da vida espiritual depois da morte sem a necessidade de um Deus. Resíduos espirituais obstinados. Alguns continuam por aqui, assombrando por pura teimosia. Alguns esvanecem no ar. Outros reencarnam.
A preciosa esposa de Júnior tinha caído da torre e morrido apenas algumas horas antes do nascimento desta menina. Esta menina... este veículo.
Lembrou de estar no cemitério, na base da colina onde ficava a sepultura de Serafina — embora naquele momento soubesse apenas que um negro estava sendo enterrado, não que se tratava de sua ex-amante —, e de pensar que com o tempo as chuvas poderiam transportar os sucos do cadáver em decomposição do negro para a sepultura mais abaixo, que continha os restos de Naomi. Será que esse tinha sido um momento quase psíquico da sua parte, uma consciência difusa de que outra conexão, mais perigosa, entre a Naomi morta e a Serafina morta já tinha se formado?
Quando o silenciador estava apropriadamente anexado na pistola, Caim Júnior abaixou-se para ficar mais perto da garota, olhou bem fundo nos olhos dela e sussurrou:
— Naomi, você está aí dentro?
Perto do topo das escadas, Barty achou ter ouvido vozes no seu quarto. Baixas, indistintas. Quando parou para escutar, as vozes se calaram, ou talvez ele apenas as tenha imaginado.
Obviamente, Anja devia estar brincando com o livro falante. Ou, mesmo tendo deixado as bonecas no andar térreo, ela talvez, para matar o tempo até a volta de Barty, estivesse batendo um papo animado com as senhoritas Pixie e Velveeta. Ela tinha outras vozes, para outras bonecas, e uma para um fantoche de meia chamado Fedorento.
Mesmo considerando que ele tinha menos de quatro anos, Barty nunca havia conhecido alguém com uma imaginação mais febril que Anja. Ele pretendia casar-se com ela dentro de... uns vinte anos, talvez.
Nem os prodígios se casavam aos três anos.
Nesse meio-tempo, antes que precisassem planejar o casamento, havia tempo para refrigerantes de laranja e gengibirra, e mais um pouco de O médico e o monstro. Alcançou o topo da escadaria e caminhou até o seu quarto.
Depois de dois anos de reabilitação, fora decretado que Tom estava gozando de uma forma física excelente, um milagre da medicina moderna e da força de vontade do ser humano. Mas neste momento ele tinha a impressão de ter sido recomposto com cuspe, barbante e fita adesiva. Braços movendo-se para a frente e para trás, pernas esticando-se ao máximo, ele sentia cada um daqueles oito meses de coma em seus músculos atrofiados e reconstituídos, em seus ossos desprovidos de cálcio e reconstituídos.
Corria arfante, rezando, os pés batendo ruidosamente a calçada de concreto, fazendo pássaros alçarem vôo do brilho púrpura dos jacarandás em flor, fazendo um esquilo aterrorizado buscar abrigo no buraco de uma palmeira. As poucas pessoas que encontrou desviaram-se de seu caminho. Freios guincharam enquanto ele atravessava cruzamentos sem olhar para ambos os lados, correndo o risco de ser atropelado por carros, caminhões e rinocerontes.
Em alguns momentos, em sua mente, Tom não estava correndo ao longo das ruas residenciais de Bright Beach, mas ao longo do corredor da ala do orfanato em que servira como monitor. Ele tinha sido lançado de volta no tempo, rumo àquela noite terrível. Um som o acorda. Um grito frágil. Mesmo pensando tratar-se de uma voz em seu sonho, ele se levanta da cama, pega uma lanterna e vai checar os meninos sob a sua responsabilidade. Lâmpadas de emergência de voltagem baixa suavizam a escuridão no corredor. Os aposentos estão escuros, as portas abertas como ditam as regras, para impossibilitar que uma fechadura travada impedisse uma fuga no caso de um incêndio. Ele ouve atentamente. Nada. Então entra no primeiro quarto... e no Inferno na Terra. Dois menininhos em cada quarto, fácil e silenciosamente dominados por um homem adulto e dotado da força da loucura. No foco da luz de sua lanterna: os olhos mortos, os rostos distorcidos, o sangue. Outro quarto, o facho da lanterna tremendo, pulando, revelando uma carnificina ainda pior. Então novamente o corredor, um movimento nas sombras. Josef Krepp capturado pelo facho da lanterna. Josef Krepp, o zelador calado, meigo a julgar pelas aparências, contratado há seis meses para trabalhar no Orfanato de Santo Anselmo. Josef Krepp, cujo currículo portara apenas comentários abonadores sobre seus serviços. Josef Krepp, aqui no corredor no passado, sorrindo e cabriolando na luz, usando um colar de suvenires que goteja sangue.
No presente, muito depois da execução de Josef Krepp, meio quarteirão adiante, estava a casa dos Lipscomb. Depois dela, o lar dos Lampion.
Um gato branco apareceu ao lado de Tom, correndo, emparelhando com ele. Gatos eram parentes das bruxas. Este aqui trazia sorte ou azar?
Aqui, agora, a casa da Moça das Tortas, o campo de batalha.
— Naomi, você está aí? — sussurrou Júnior novamente, espiando as janelas da alma da menina.
Ela não respondeu, mas Júnior julgou seu silêncio tão afirmativo quanto seria uma confissão, ou na verdade até uma negação. Os olhos arregalados da menina também confirmaram as suspeitas de Júnior, e sua boca trémula também. Naomi retornara para estar com ele, e podia-se argumentar que Serafina, de certo modo, também havia voltado, porque esta menina era carne da carne de Serafina, nascida de sua morte.
Júnior sentia-se lisonjeado, realmente se sentia. As mulheres não conseguiam esquecê-lo. Era a história da sua vida. Elas jamais conseguiam retirar-se graciosamente. Ele era querido, necessitado, adorado, idolatrado. As mulheres continuavam telefonando para ele depois que lhes dizia adeus, insistiam em mandar-lhe bilhetes e presentes mesmo depois que lhes dizia que tudo estava terminado. Portanto, não surpreendia a Júnior que as mulheres retornassem dos mortos para estar com ele, assim como não estava surpreso que as mulheres que tinha matado tentassem encontrar uma rota de volta para ele do Além, sem malícia, sem vingança em seus corações, apenas querendo estar com ele novamente, apenas para abraçá-lo e satisfazer suas necessidades. Por mais gratificado que se sentisse com este tributo ao desejo que despertava nas mulheres, Júnior simplesmente não nutria mais nenhum sentimento romântico por Naomi e Serafina. Elas eram o passado, e ele odiava o passado, e se elas não o deixassem em paz, ele jamais seria capaz de viver no futuro.
Júnior encostou o cano da arma na fronte da menina e disse:
— Naomi, Serafina, vocês foram amantes belíssimas, mas precisam ser realistas. Não é possível termos uma vida juntos.
— Ei, quem está aí? — disse o menino cego, que Júnior praticamente havia esquecido.
Ele deu as costas para a menina acuada e estudou o menino, que estava em pé a alguns passos dentro do quarto, segurando uma lata de refrigerante em cada mão. Os olhos artificiais eram convincentes, mas eles não possuíam o olhar conhecedor que tanto o atormentara na menina estranha.
Júnior apontou a pistola para o menino.
— Simon diz que o seu nome é Bartholomew.
— Simon quem?
— Você não me parece muito ameaçador, menino cego.
O menino não respondeu.
— O seu nome é Bartholomew?
— Sim... Júnior deu dois passos até ele, mirando a arma em seu rosto.
— Por que eu deveria ter medo de um menino cego e trôpego, menor que um anão?
— Não sou trôpego. Bem, não muito. — Para a menina, Bartholomew disse: — Anja, você está bem?
— Vou ter caganeira — disse ela.
— Por que eu deveria ter medo de um menino cego e trôpego? — perguntou Júnior de novo. Mas desta vez as palavras foram emitidas dele num tom de voz diferente, porque subitamente ele sentiu que esse garoto passava a sensação de saber alguma coisa; mas diferente da menina, ele não passava essa sensação com os olhos, que não eram de verdade, mas com a sua atitude.
— Porque sou um prodígio — disse Bartholomew, e arremessou contra Júnior a lata de cerveja sabor gengibirra.
Antes que Júnior pudesse se abaixar, a lata bateu em cheio em seu rosto, quebrando o seu nariz.
Furioso, Júnior apertou o gatilho duas vezes.
Passando pelo arco na sala, Tom viu Jacó na poltrona, debaixo do abajur de leitura, caído para a frente como se tivesse adormecido enquanto lia. Mas a sua baba vermelha confirmava que ele não estava apenas dormindo.
Atraído por vozes no segundo andar, Tom galgou as escadas, a dois degraus por vez. Um homem e um menino. Barty e Caim. À esquerda no corredor, e então a um quarto à direita.
Desobedecendo às regras de procedimento policial padrão, Tom seguiu direto para o corredor, atravessou o portal e viu Barty lançar uma lata de refrigerante na cabeça raspada e no rosto esburacado de um transformado Enoch Caim Júnior.
O menino caiu e rolou no chão enquanto lançava a lata, antecipando os tiros disparados por Caim, que se alojaram na moldura da porta a centímetros dos joelhos de Tom.
Levantando o revólver, Tom disparou dois tiros, mas as balas não saíram.
— Pino de disparo congelado — disse Caim. Seu sorriso era venenoso. — Mexi nele. Estava torcendo que você chegasse a tempo de ver as consequências dos seus jogos idiotas.
Caim apontou a pistola para Barty, mas quando Tom avançou à frente, Caim voltou a pistola mais uma vez na sua direção. O tiro que disparou teria aleijado Tom, talvez o matado, se Anja não tivesse se lançado da poltrona atrás de Caim e o empurrado com força, estragando sua mira. O assassino tropeçou e então tremeluziu.
Sumira no ar.
Desaparecera através de algum buraco, alguma fenda, algum rasgo maior do que qualquer coisa através da qual Tom lançava suas moedinhas. Barty não podia ver, mas de alguma forma ele sabia.
— Booooooooooa, Anja!
— Mandei ele para algum lugar onde nós não estamos — explicou a menina. — Ele era muito grosso.
Tom estava estarrecido.
— Então... quando você descobriu que podia fazer isso?
— Agora mesmo. — Embora Anja tentasse fazer sua voz soar firme, seu corpo estava tremendo. — Não tenho certeza se consigo fazer de novo.
— Até você ter certeza... tome cuidado.
— Tá.
— Ele vai voltar? ;
Ela fez que não com a cabeça.
— Não tem caminho de volta. — Ela apontou para o bloco de desenho no chão. — Empurrei ele pra lá.
Olhou para o desenho da menina — muito bom para uma criança de sua idade, grosseiro em estilo, mas com detalhes convincentes —, e se ele pudesse se arrastar, a de Tom teria se movido âo redor de seu corpo inteiro duas ou três vezes antes de se assentar novamente onde era seu lugar.
— Essas coisas são...?
— Insetos grandes — disse a menina.
— Muitos.
— Sim. É um lugar ruim. Levantando, Barty disse:
— Ei,Anja.
— Que é?
— Você mesma conseguiu jogar o porco.
— É, consegui.
Tremendo com um medo que não tinha nenhuma relação com Caim Júnior e balas voadoras, ou mesmo com lembranças de Josef Krepp e seu colar horrendo, Tom Vanadium fechou o caderno de desenho e o colocou na poltrona. Ele abriu a janela, deixando entrar o sussurro de folhas de carvalho sopradas pelo vento.
Tomou Anja em seus braços, e em seguida fez o mesmo com Barty.
— Segurem com força, tá?
Carregou-os para fora do quarto, desceu as escadas e saiu da casa, até o jardim debaixo da árvore grande, onde iriam esperar a polícia, e onde as crianças não poderiam ver o corpo de Jacó quando o legista o removesse pela porta da frente.
A história que eles contariam? A arma de Caim tinha engasgado no instante em que Tom entrara no quarto de Barty. Covarde demais para lutar corpo-a-corpo com Tom, o Monstro Mascarado tinha pulado pela janela aberta. Estava mais uma vez à solta no mundo.
A última parte era verdade. Ele apenas não estava mais à solta neste mundo. E no mundo para onde tinha ido, ele não encontraria vítimas fáceis.
Deixando as crianças debaixo da árvore, Tom voltou para a casa. Precisava telefonar para a polícia.
Segundo o seu relógio de pulso, eram nove e cinco da manhã deste dia marcante.
POR MAIS SIGNIFICATIVA que a morte de Jacó pudesse ter sido dentro do mundo pequeno de sua família, Agnes Lampion jamais perdeu de vista o fato de que houve mortes mais ressonantes no mundo até o final do ano de 1968 e no Ano do Galo, que o seguiu. No dia 4 de abril, James Earl Ray abateu Martin Luther King com um tiro de uma sacada de motel em Memphis, mas as esperanças do assassino foram frustradas quando, devido a este assassinato, a liberdade floresceu com mais vigor graças aos nutrientes no sangue de um mártir. No dia 10 de junho, Helen Keller morreu pacificamente aos 87 anos. Cega e surda desde os primeiros anos de sua infância, muda até sua adolescência, a srta. Keller teve uma vida de conquistas notáveis; ela aprendeu a falar, a cavalgar, a valsar; ela se formou com honras em Radcliffe, uma inspiração para milhões e um testamento ao potencial mesmo nas vidas mais maculadas. Em 5 de junho, o senador Robert F. Kennedy foi assassinado na cozinha do Ambassador Hotel em Los Angeles. Um número não estimado de pessoas morreu quando tanques soviéticos invadiram a Tchecos-lováquia e centenas de milhares pereceram nos últimos dias da Revolução Cultural na China, muitos comidos em atos de canibalismo sancionado por Mao como uma ação política aceitável. John Steinbeck, romancista, e Tallulah Bankhead, atriz, chegaram aos fins de suas jornadas neste mundo, ainda que não em todos os outros. Mas James Lowell, William Anders e Frank Borman — os primeiros homens a orbitarem a Lua — viajaram 402 mil quilómetros no espaço e voltaram vivos.
De todas as bondades que podemos fazer uns pelos outros, não está em nosso poder ofertar o mais precioso dos presentes: o tempo. Tendo isso em mente, Agnes fez o melhor que pôde para guiar sua família estendida através da dor da perda de Harrison e Jacó até dias mais felizes. Era preciso homenagear os falecidos e guardar suas lembranças mais preciosas, mas também era preciso tocar a vida.
Em julho, ela saiu para caminhar numa praia com Paul Damascus, esperando catar conchas na praia e ver o passeio cómico dos caranguejos. Contudo, em algum momento entre as conchas e os crustáceos, Paul perguntou-lhe se ela poderia amá-lo um dia.
Paul era um homem adorável, diferente de Joey em aparência mas também em coração. Ela o chocou insistindo que fossem imediatamente até a casa dele, para o seu quarto. Corado de vergonha como nenhum herói de pulp magazines jamais ficaria, Paul gaguejou dizendo que não esperava intimidades com ela tão cedo, e Agnes assegurou-lhe que não haveria nada assim tão cedo.
A sós com Paul, enquanto ele continuava envergonhado, ela removeu a blusa e o sutiã e, com os braços cruzados sobre os seios, revelou a ele as cicatrizes em suas costas. Enquanto seu pai tinha usado tapas com a mão aberta e socos com punhos cerrados para ensinar as lições de Deus aos filhos gémeos, ele preferia bengalas e chicotes como instrumento de educação para a filha, por acreditar que seu contato direto poderia convidar ao pecado. Cicatrizes desfiguravam Agnes dos ombros às nádegas, algumas brancas, outras escuras, todas cruzando-se num padrão caótico.
— Alguns homens não conseguiriam manter o desejo quando suas mãos tocassem as minhas costas — disse Agnes. — Vou entender se você for um deles. Não é bonito aos olhos, e é áspero como casca de carvalho ao toque. Foi por causa disso que pedi para virmos aqui, para que você possa considerar para onde quer ir de.... de onde estamos agora.
O homem adorável chorou e beijou as cicatrizes de Agnes, e disse que ela era tão bonita quanto qualquer outra mulher. Ficaram parados em pé durante algum tempo, abraçados, as mãos dele nas costas dela, os seios de Agnes encostados no peito de Paul. Por duas vezes eles se beijaram, mas quase castamente, antes que ela vestisse novamente a blusa.
— A minha cicatriz é a inexperiência — confessou Paul. — Para um homem da minha idade, Agnes, sob alguns aspectos sou inacreditavelmente inocente. Eu não trocaria os anos que passei com Perri por nada ou ninguém, mas por mais intenso que tenha sido, o nosso amor não incluiu... Bem, quero dizer, você pode me julgar inadequado.
— Considero você mais do que adequado em todos os aspectos que contam. Além disso, Joey era generoso e um bom amante. O que ele me ensinou, posso compartilhar com você. — Ela sorriu. — Você vai ver que eu sou uma professora danada de boa, e tenho a impressão de que você vai ser um aluno brilhante.
Casaram-se em setembro daquele ano, muito depois até da data apostada por Grace White. Mas como o palpite de Grace foi muito mais próximo que o de sua filha, Celestina pagou com um mês de serviço na cozinha.
Quando retornaram de sua lua-de-mel em Carmel, Agnes e Paul descobriram que Esaú finalmente havia esvaziado o apartamento de Jacó. Ele doou a imensa quantidade de recortes de jornais e livros acumulados pelo irmão à biblioteca de uma faculdade, que estava iniciando uma coleção para satisfazer o crescente interesse profissional e académico em estudos sobre o Apocalipse e filosofia paranóica.
Surpreendendo a si próprio mais do que a qualquer outra pessoa, Esaú também presenteou a sua coleção à universidade. Xô, tornados, furacões, maremotos, terremotos e vulcões; que venham as rosas. Ele rapidamente renovou o seu pequeno apartamento, pintando-o com cores mais brilhantes, e durante o outono encheu suas estantes com livros sobre horticultura, enquanto planejava uma expansão substancial do roseiral para a próxima primavera.
Ele estava com quase quarenta anos, e uma vida dedicada a temer a natureza não podia transformar-se facilmente num romance com ela. Em algumas noites ele ainda olhava para o teto, incapaz de dormir, esperando o Grandão, e temia caminhar na praia em respeito aos maremotos. De tempos em tempos, visitava a sepultura do irmão e sentava-se na grama ao lado da lápide, recitando em voz alta os detalhes sórdidos de tempestades mortais e eventos geológicos catastróficos, mas ele descobriu que também tinha absorvido de Jacó algumas das estatísticas relacionadas a assassinos seriais e a fracassos desastrosos de estruturas e máquinas feitas pelo homem. Essas visitas eram agradavelmente nostálgicas, mas ele também vinha com rosas, e trazia notícias sobre Barty, Anja e outros membros da família.
Quando Paul vendeu sua propriedade para mudar-se para a casa de Agnes, Tom Vanadium instalou-se no apartamento que pertencera a Jacó. Tom agora era um policial completamente aposentado, mas ainda não se sentia pronto para vestir novamente a batina. Tom assumiu as funções administrativas das atividades comunitárias da família, cada vez maiores, e supervisionou o estabelecimento de uma fundação filantrópica com benefícios fiscais. Agnes fez uma lista de nomes bonitos e significativos para a organização, mas foi vencida pelos votos da maioria, que rejeitou todas as suas sugestões e, apesar de seu constrangimento, decidiu por Fundação Moça das Tortas.
Simon Magusson, que não tinha família, deixara suas propriedades para Tom. Isto tinha sido uma surpresa total. A quantia era tão considerável que ainda que estivesse dispensado de seus votos, o que incluía o voto de pobreza, Tom sentiu-se desconfortável com sua fortuna. Seu conforto foi rapidamente restaurado ao doar a herança inteira à Fundação Moça das Tortas.
Eles tinham sido unidos por duas crianças extraordinárias, pela convicção de que Barty e Anja eram parte de algum desígnio de consequências imensas. Porém, na maioria das vezes, Deus fia tramas que só se tornam perceptíveis para nós depois de um longo período de tempo, quando muito. Depois dos três últimos anos, ricos em eventos, agora não havia mais milagres semanais, nenhum sinal na terra ou no céu, nenhuma revelação de arbustos em chamas ou de formas mais mundanas de comunicação. Nem Barty nem Anja revelaram novos talentos extraordinários, e na verdade eles eram tão comuns quanto dois jovens prodígios poderiam ser, exceto que ele era cego e que ela servia como seus olhos para o mundo.
A família não existia em antecipação a acontecimentos com Barty e Anja, não colocava o par no centro de seu mundo. Em vez disso, faziam seus trabalhos filantrópicos, compartilhavam as satisfações que extraíam diariamente de sua participação na Fundação Moça das Tortas, e seguiam em frente.
Aconteceram coisas.
Celestina pintou mais deslumbrante do que nunca—e engravidou em outubro.
Em novembro, Esaú convidou Maria Gonzalez para jantar e ir ao cinema. Embora ele fosse apenas seis anos mais velho que Maria, ambos concordaram que aquele seria um encontro entre amigos, e não realmente uma coisa de menino e menina.
Também em novembro, Grace encontrou um caroço no seio. Ele se revelou benigno.
Tom comprou um novo terno para ocasiões especiais. Era idêntico ao antigo.
O jantar de Ação de Graças foi um evento muito agradável, e o Natal ainda melhor. Na véspera de Natal, Wally bebeu demais e mais de uma vez se ofereceu para realizar uma cirurgia em qualquer membro da família, de graça, "aqui e agora", contanto que o procedimento fosse dentro de sua especialidade.
No dia de Natal, a cidade descobriu que tinha perdido seu primeiro filho no Vietnã. Agnes conhecia os pais do rapaz desde que ele era criança e ficou desesperada com o fato de que mesmo com sua disposição em ajudar, com todas as suas boas intenções, não havia nada que pudesse fazer para amenizar a dor deles. Ela lembrou de sua angústia enquanto esperara para saber se os tumores de Barty tinham se espalhado ao longo de nervo ótico até o cérebro. Pensar na perda sofrida por seus vizinhos a fez virar-se para Paul naquela noite.
— Apenas me abrace — murmurou.
Em breve Barty e Anja fariam quatro anos de idade.
De 1969 a 1973: o Ano do Galo, seguido pelo Ano do Cachorro, que deu lugar rapidamente ao Porco, mais rápido ainda ao Rato, com o Boi passando veloz como se estivesse atrasado para um estouro de manada. Eisenhower morto. Armstrong, Collins e Aldrin na Lua: um passo gigantesco em solo não tocado pela guerra. Calças boca-de-sino, sequestros de aviões, arte psicodélica. Sharon Tate e amigos assassinados pelas mulheres de Manson sete dias antes de Woodstock, a Era de Aquário natimorta, embora sua morte fosse demorar a ser reconhecida. McCartney sai do grupo e os Beatles acabam. Terremoto em Los Angeles, Truman morto, Vietnã em caos, distúrbios na Irlanda, uma nova guerra no Oriente Médio, Watergate.
Celestina deu à luz Serafina em 1969, viu sua pintura na capa da American Artist em 1970 e deu à luz Harrison em 1972.
Em 1971, com o patrocínio financeiro de sua irmã, Esaú comprou uma floricultura, depois de certificar-se de que a galeria na qual a loja estava localizada fora construída com mais solidez do que o exigido no estatuto dos terremotos, que não se situava em terreno com tendência a deslizamentos, que não ficaria submersa em caso de enchente e que na verdade a altitude acima do nível do mar assegurava sua sobrevivência a tudo menos uma onda sísmica de tamanha enormidade que só poderia ser causada por um impacto de asteróide no Pacífico. Em 1973 ele casou com Maria Elena (era uma coisa de menino e menina, afinal de contas), o que a tornou cunhada, e portanto quase irmã, de Agnes, embora fosse uma irmã completa de coração. Eles compraram a casa no outro lado do lar original dos Lampion, e mais uma cerca foi derrubada.
Tom provou ser mais útil do que um tira ou um padre para a Fundação Moça das Tortas, quando descobriu um talento administrativo que protegeu seus fundos de uma inflação de 20% e de fato valeu à organização um belo retorno financeiro real.
Então veio 1974, o Ano do Tigre. Crise do combustível, filas de quilómetros e quilómetros nos postos de gasolina. Patty Hearst sequestrada. Nixon em desgraça. Hank Aaron batendo o antiquíssimo recorde de home-run de Babe Ruth, a inflação chegando a 15% e o lendário Muhammad Ali derrotando George Foreman para recuperar seu título de campeão dos pesos pesados.
Contudo, numa determinada rua de Bright Beach, o evento mais significativo do ano aconteceu numa tarde muito agradável no começo de abril, quando Barty, agora com nove anos de idade, escalou até o topo do grande carvalho e se empoleirou lá em cima em triunfo, rei da árvore e mestre de sua cegueira.
Agnes voltou para casa depois de uma ronda de entrega de tortas com a equipe costumeira — aumentada para cinco veículos, incluindo funcionários contratados — para encontrar um grupo reunido no quintal e Barty a meio caminho no carvalho.
Coração pulando como o coração de um coelho acuado por uma raposa, ela correu do caminho de acesso para o quintal. Ela teria gritado se sua garganta não estivesse apertada com o terror de ver seu menino a uma altura da qual seria possível enforcar um condenado. Quando finalmente recuperou a voz, compreendeu que um grito, ou mesmo o som inesperado de sua voz agoniada poderia assustar o menino, roubar-lhe o equilíbrio e fazer com que ele caísse, galho depois de galho, até o chão, onde arrebentaria todos os ossos.
Entre os presentes antes do retorno da caravana estavam alguns que deveriam ter impedido aquela loucura. Tom Vanadium. Esaú. Maria. Eles olhavam para o menino, tensos e solenes, e Agnes só podia supor que eles, também, tinham chegado depois do fato, com o menino já alto demais para ser resgatado facilmente.
O corpo de bombeiros. Os bombeiros podiam vir sem suas sirenes, silenciosamente com suas escadas, para não romper a concentração de Barty.
— Ele está bem, tia Aggie — assegurou Anja. — Ele realmente queria fazer isto.
— O que nós queremos fazer e o que devemos fazer são duas coisas bem diferentes — ralhou Agnes. — Os seus pais certamente lhe ensinaram isso, querida. Ou vai fingir que foi criada por uma matilha de lobos por nove anos?
— Estamos planejando isso há muito tempo — assegurou-lhe Anja. — Eu já escalei a árvore cem vezes, talvez duzentas, mapeei ela inteira, descrevia tudo com detalhes a Barty, centímetro por centímetro, o tronco e suas quatro divisões, todos os galhos grandes e pequenos, a espessura de cada um, o grau de resistência, os ângulos e as interseções, os nós e as fissuras, todos os ramos, incluindo os mais finos. Ele está encarando isso com frieza, tia Aggie. Para ele tudo isso é matemática agora.
Eram inseparáveis, seu filho e esta menina adorável, como tinham sido virtualmente desde o momento em que se haviam conhecido, mais de seis anos atrás. A percepção especial que compartilhavam — todas as formas que as coisas são — era em parte responsável por essa intimidade, mas apenas em parte. O elo entre eles era tão profundo que desafiava o entendimento, tão misterioso quanto o conceito da Santa Trindade, três deuses em um.
Devido à sua cegueira e seus dons intelectuais, Barty tinha sido educado em casa; além disso, nenhum professor era páreo para as suas habilidades autodidatas, nem ninguém poderia inspirar nele uma sede maior por conhecimento do que aquela com a qual nascera. Anja frequentava essa mesma sala de aula informal, e seu único colega de estudos era também o seu professor. Eles passavam com nota máxima em todos os testes periódicos de equivalência requeridos pela lei. Eles pareciam passar o tempo todo se divertindo, mas na verdade aprendiam muito, também.
Assim, eles tinham desenvolvido este projeto, matemática e escalada, geometria de galhos e ramos, ciência arbórea e proeza infantil, um teste de estratégia, força e habilidade — e dos limites da coragem de um jovem de nove anos.
Embora soubesse como, e embora soubesse o quanto era inútil perguntar o porquê, Agnes perguntou:
— Por quê? Oh, meu Deus, por que um menino cego precisa escalar uma árvore?
— Ele é cego, sim, mas também é um menino — disse Anja. — E árvores são coisas que os meninos devem escalar.
Todos os membros da caravana das tortas tinham se reunido debaixo do carvalho. A família inteira, em seus muitos nomes, adultos e crianças, cabeças curvadas para trás, mãos protegendo os olhos do sol da tarde, observando o progresso de Barty em silêncio absoluto.
— Nós mapeamos três rotas até o topo, e cada uma oferece desafios diferentes — relatou Anja. — Barty vai subir todos eles, mas está começando pelo mais difícil.
— Bem, é claro que está — disse Agnes, exasperada. Anja sorriu.
— Esse é o Barty, hein?
E lá ia ele, para cima e para cima, do tronco para um galho, de um galho para um ramo, de um ramo para um galho, para outro galho, para o tronco. Mão sobre mão nas partes verticais, prendendo-se com os joelhos, depois pondo-se em pé como um trapezista de corda bamba caminhando por galhos horizontais ao solo, pulando através do ar vazio para transferir-se de um caminho de madeira para outro, sempre para cima até a copa, diminuindo como se estivesse rejuvenescendo durante a ascensão, tornando-se um menino cada vez menor. Dez metros, quinze metros, já mais alto que a casa, lutando para alcançar a cidadela verde no topo.
Enquanto moviam-se na base do carvalho de um ponto de observação para outro, as pessoas paravam para confortar Agnes, embora nunca abrissem a boca para falar, como se temessem que as palavras agourassem a escalada de Barty e o fizessem cair. Maria pousou uma mão no braço de Agnes e o apertou gentilmente. Celestina massageou um pouco a base do pescoço da mãe aflita. Esaú deu-lhe um abraço rápido. Por um momento, Grace envolveu sua cintura com um braço. Wally com um sorriso e um sinal positivo de dedão para cima. Tom Vanadium, polegar e indicador unidos num OK confiante. Está tudo correndo bem. Se segura aí. Sinais e gestos, talvez por que não quisessem que ela ouvisse o tremor de suas vozes.
Paul permaneceu com ela, às vezes baixando os olhos para o chão como se o perigo estivesse ali, e não lá em cima — o que, de certa forma, era verdade, porque o que mata é o impacto e não a queda —, e em outros momentos colocando seus braços em torno dela, olhando para o menino no alto. Mas ele também estava silencioso.
Apenas Anja falava, a voz não exibindo o menor tremor, plenamente confiante em seu Barty.
— Qualquer coisa que ele possa me ensinar, eu posso aprender, e qualquer coisa que eu possa ver, ele pode conhecer. Qualquer coisa, tia Aggie.
À medida que Barty subia mais e mais, o medo de Agnes ficou mais puro, mas ao mesmo tempo ela também estava cheia com uma empolgação maravilhosa, irracional. O fato de que isto podia ser realizado, que a escuridão podia ser suplantada, tirou música das cordas em sua alma. De vez em quando o menino parava, talvez para descansar ou para rever o mapa tridimensional em sua mente incrível, e todas as vezes em que voltava a subir, ele punha as mãos exatamente no local certo, o que fazia Agnes dizer para si própria um silencioso isso! O coração de Agnes estava com Barty lá em cima da árvore, seu coração dentro do dele, como quando ele estivera dentro dela, seguro em seu útero, naquele crepúsculo chuvoso que fizera o seu carro girar e a tornara viúva.
Finalmente, enquanto sol se punha lentamente, ele chegou ao galho mais alto, e acima dele havia apenas ramos jovens e fracos demais para suportar seu peso. Contra um céu vermelho o bastante para deliciar o mais ranzinza dos marinheiros, Barty se empertigou, colocando-se em pé numa última forquilha de galhos, pressionando a mão esquerda contra um galho vacilante e mantendo a direita plantada na cintura. Era senhor de seu domínio, tendo derrotado a escuridão e a expulsado de seu reino.
Uma ovação explodiu da família e dos amigos de Barty, e Agnes pôde apenas imaginar qual era a sensação de ser Barty, a um só tempo cego e abençoado, seu coração tão rico em coragem quanto em bondade.
Anja disse a ela:
— Agora você sabe que não precisa se preocupar com o que acontecerá com ele no dia em que você se for, tia Aggie. Se ele pode fazer isto, ele pode fazer qualquer coisa, e você pode descansar em paz.
Agnes tinha apenas 39 anos, cheia de planos e energia, de modo que as palavras de Anja pareceram-lhe prematuras. Ainda assim, dali a poucos anos ela teria motivos para se perguntar se essas crianças dotadas tinham previsto, inconscientemente, que ela precisaria do conforto de haver testemunhado esta escalada.
— Vou subir — declarou Anja.
Com uma agilidade e uma alacridade que um lêmure teria admirado, a menina ascendeu para o primeiro galho.
— Querida, espere — disse Agnes. — Diga a ele para descer agora, antes que escureça.
Na árvore, a menina sorriu.
— Mesmo se ele ficar lá em cima até o amanhecer, ele ainda vai descer no escuro, não vai? Ele vai ficar bem, tia Aggie.
Testando os nervos de Celestina tanto quanto Barty testara os de sua mãe, Anja escalou a árvore com uma rapidez felina, alcançando o menino quando faixas vermelhas ainda animavam um céu repintando-se de púrpura. Ela ficou em pé na forquilha ao lado dele, e sua risada de deleite ecoou pela catedral frondosa.
1975 até 1978: o Coelho fugiu do Dragão, a Serpente fugiu do Cavalo, e 1978 chegou com ritmo porque a onda era a discoteca. Os renascidos Bee Gees dominavam as ondas de rádio. John Travolta ditava a aparência. Rebeldes rodesianos, correndo os riscos inerentes a qualquer batalha entre iguais, tiveram a coragem máscula de chacinar mulheres missionárias e meninas de escola desarmadas. Spinks ganhou o título de Ali, e Ali o ganhou de volta de Spinks.
Na manhã de agosto em que Agnes voltou do consultório do dr. Joshua com os resultados dos exames e com um diagnóstico de leucemia aguda dos mie-loblastos, ela pediu que todos armassem a caravana para partir não para entregar tortas, mas para visitar um parque de diversões. Ela queria andar de roda-gigante, rodar no carrossel, e principalmente ver as crianças rirem. Ela queria armazenar a memória da gargalhada de Barty assim como ele armazenara a visão de seu rosto antes da cirurgia que removera seus olhos.
Ela não escondeu o diagnóstico da família, mas postergou contar-lhes o prognóstico, que era terrível. Seus ossos já estavam mais frágeis, entupidos de células brancas mutantes imaturas que impediam a produção de células brancas normais, células vermelhas e plaquetas.
Barty, treze anos de idade, mas ouvindo livros de nível de pós-graduação universitária, certamente estudara a leucemia enquanto eles aguardavam os resultados dos testes, para preparar-se para compreender plenamente o diagnóstico quando o recebesse. Ele tentou não parecer abalado quando ouviu leucemia aguda dos mieloblastos, que era a pior forma da doença, mas ficou mais assustado do que se tivesse revelado sua compreensão. Se os seus olhos não fossem artificiais, sua expressão de firmeza teria parecido absolutamente falsa.
Antes de saírem para o parque de diversões, Agnes chamou-o a um canto, abraçou-o com força e disse:
— Ouça, cria minha, eu não vou desistir. Não pense que vou. Vamos nos divertir hoje. Esta noite, você, eu e Anja faremos uma reunião da Sociedade dos Aventureiros Bons do Pólo Norte — anos antes, a menina tornara-se o terceiro membro —, e todas as verdades serão ditas e todos os segredos conhecidos.
— Aquela coisa boba — disse ele, com um tom quase enojado na voz.
— Jamais diga isso. A sociedade não é uma coisa boba, especialmente agora. Ela é nós, ela é o que nós éramos e como nós somos, e eu amo muito tudo que é nós.
No parque, voando na montanha-russa, Barty teve uma experiência, uma reação a mais do que as viradas rápidas e os mergulhos escarpados. Ele ficou empolgado de uma forma muito parecida com a que Agnes tinha-o visto ficar quando compreendia uma teoria matemática nova e arcana. No final do passeio, ele quis voltar imediatamente, e assim fizeram. Não havia esperas longas para cegos em parques de diversão: eles sempre eram conduzidos para a frente da fila. Agnes andou de montanha-russa mais duas vezes com ele. Em seguida, Paul andou com ele, duas vezes. Finalmente, Anja acompanhou-o três vezes. A obsessão com a montanha-russa não dizia respeito a emoções ou mesmo a diversão. A empolgação inicial de Barty deu lugar a um silêncio pensativo, especialmente depois que, na penúltima curva do percurso, uma gaivota passou voando a centímetros de seu rosto, penas tremendo, dando-lhe um susto. Depois disso, o parque passou a interessar-lhe pouco, e tudo que ele dizia era que tinha pensado numa nova forma de sentir as coisas — ou seja, todas as formas que as coisas são —, um ângulo novo de abordagem a esse mistério.
Depois do parque de diversões, nada de hospital para a Moça das Tortas. Com Wally por perto, ela tinha um médico só para ela, capaz de administrar-lhe as drogas anticâncer e as transfusões de que precisava. Embora a radioterapia fosse prescrita para a leucemia aguda dos linfoblastos, ela era muito menos útil no tratamento da sua doença. Assim, decidiu-se que Agnes não seria submetida à radioterapia, o que facilitava ainda mais o tratamento doméstico.
Nas primeiras duas semanas, quando não estava nas caravanas das tortas, Agnes recebeu convidados em números que a deixaram cansada. Mas havia muitas pessoas que ela queria ver uma última vez. Ela estava lutando com valentia contra a doença, e se agarrando à esperança com todas as forças que tinha, mas assim mesmo recebeu os visitantes, só para garantir.
Pior que a fragilidade dos ossos, o sangramento das gengivas, as dores de cabeça, as feridas feias, pior que o cansaço relacionado com a anemia e os surtos de falta de ar, era o sofrimento que a sua batalha causava àqueles a quem ela amava. À medida que os dias passavam, eles perdiam sua capacidade de esconder a preocupação e a tristeza que sentiam. Ela segurava as mãos deles quando eles tremiam. Pedia-lhes que rezassem com ela quando exprimiam sua raiva por isto estar acontecendo — dentre todas pessoas, a ela —, e Agnes não os deixava ir até que tinham sufocado a raiva. Mais de uma vez, ela puxou a doce Anja para o seu colo, cofiou seu cabelo e a acalmou com conversas sobre todos os bons tempos compartilhados em dias melhores. E sempre Barty, cuidando dela apesar de sua cegueira, ciente de que ela não estava à morte em todos os lugares em que estava, mas não obtendo qualquer consolo do fato de que ela continuaria a existir em outros mundos onde ele jamais poderia tê-la novamente a seu lado.
Por mais terrível que a situação fosse para Barty, Agnes sabia que era igualmente difícil para Paul. Tudo que ela podia fazer era abraçá-lo com força à noite, e se deixar ser abraçada. E mais de uma vez, ela lhe disse:
— Se o pior acontecer, não vá sair andando por aí de novo.
— Certo — concordou ele, talvez com facilidade demais.
— Estou falando sério. Você tem muitas responsabilidades aqui. Barty. A Fundação Moça das Tortas. Pessoas dependem de você. Amigos amam você. Meu amigo, quando juntou seus trapinhos comigo, você ganhou muito mais do que pode levar caminhando por aí.
— Eu prometo, Aggie. Mas você não vai para lugar algum. Na terceira semana de outubro ela estava acamada.
No dia 10 de novembro eles mudaram a cama da mãe para a sala de estar, para que ela pudesse permanecer no centro das coisas, onde ela sempre estivera, embora agora não recebessem mais visitas, apenas membros de sua família com todos os seus muitos nomes.
Na manhã de 3 de novembro Barty pediu a Maria que perguntasse a Agnes o que ela gostaria que fosse lido para ela.
— Então, quando ela responder, saia da sala. Vou assumir a partir dali.
— Assumir o quê, a partir dali? — perguntou Maria.
— Planejei uma brincadeirinha.
Havia uma pilha de livros alta numa mesa próxima, romances favoritos e livros de poemas, todos os quais Agnes lera antes. Com tão pouco tempo disponível, ela preferia o conforto familiar à possibilidade de que novos escritores e novas histórias não conseguissem agradá-la. Paul lia para ela frequentemente, e Anja também. Tom Vanadium também sentava-se com ela para ler, assim como Celestina e Grace.
Esta manhã, com Barty parado a um lado ouvindo, sua mãe pediu a Maria poemas de Emily Dickinson.
Maria, intrigada mas cooperativa, deixou a sala conforme as instruções de Barty e o rapaz removeu o livro correto da pilha, sem a orientação de ninguém. Ele se sentou na poltrona ao lado da cama da mãe e pôs-se a ler:
“Jamais vi o mar;
uva
Jamais vi um urzal, Mas sei o que é uma urze E a aparência de uma nau? ?
Sentando-se na cama, olhando para ele desconfiada, Agnes disse:
— Você deve ter decorado a velha Emily.
— Não. Estou lendo a página neste momento — assegurou Barty.
"Jamais conversei com Deus Jamais visitei Sua morada. Mas creio no Paraíso como se dele tivesse cada coordenada?
— Barty? — disse Agnes, admirada.
Emocionado por ter inspirado esse assombro nela, Barty fechou o livro.
— Lembra daquilo que conversamos muito tempo atrás? Considerando que eu posso andar onde a chuva não está, você me perguntou se...
— ... você não poderia andar onde os seus olhos eram saudáveis e deixar os tumores lá — lembrou Agnes.
— Eu disse que isso não funcionava dessa maneira. Mesmo assim... não ando realmente no outros mundos para evitar a chuva, mas meio que ando na ideia desses mundos...
— Pura mecânica quântica — disse ela. — Você já me falou isso antes. Ele fez que sim com a cabeça.
— O efeito não apenas vem antes de uma causa neste caso, mas completamente sem uma causa. O efeito é permanecer seco na chuva, mas a causa, que supostamente é caminhar num mundo mais seco, jamais ocorre. Apenas a ideia dela.
— Parece mais estranho ainda do que se o próprio Tom Vanadium tivesse dito.
— Em todo caso, tive um estalo lá na montanha-russa, e obtive um novo ângulo de abordagem para o problema. Descobri como posso caminhar na ideia da visão, que é meio como compartilhar a visão de outro eu, em outra realidade, sem realmente estar lá. — Ele sorriu do pasmo no rosto da mãe. — E então, o que me diz disso?
Ela queria tanto acreditar, ver seu filho inteiro novamente, e a coisa engraçada era que ela podia acreditar, e sem nenhum risco emocional, porque era verdade.
Para provar o que estava dizendo, ele leu um pouco de Dickens quando ela pediu, uma passagem de Grandes esperanças. E em seguida um trecho de Mark Twain.
Ela perguntou quantos dedos estava mostrando e ele disse quatro, e eram quatro. Depois dois dedos. Depois sete. As mãos dela muito pálidas, ambas as palmas machucadas.
Como suas glândulas e dutos lacrimais estavam intactos, Barty podia chorar com seus olhos plásticos. Consequentemente, não pareceu demasiado incrível que ele estivesse vendo com eles.
Este truque, contudo, era bem mais difícil do que caminhar onde a chuva não estava. Sustentar a visão exigia dele um esforço mental e físico.
A alegria de sua mãe valia o preço que ele pagava para vê-la.
Por mais exigente e cansativo que fosse manter esta visão emprestada, a coisa mais difícil era olhar novamente o rosto de sua mãe, depois de tantos anos de cegueira, apenas para vê-la tão magra e pálida. A mulher vigorosa e adorável, cuja imagem Barty guardara tão vigilantemente na memória, daqui em diante seria substituída por esta versão depauperada.
— Se esta coisa maravilhosa pode acontecer, Barty... o que mais?
— Talvez isto seja o bastante.
— Oh, certamente é! Certamente é o bastante. Mas... eu não lamento muita coisa, você sabe. Mas lamento não estar aqui para ver por que você e sua Anja foram unidos. Eu sei que será alguma coisa bonita, Barty. Alguma coisa boa.
Eles tiveram alguns dias para uma celebração discreta desta recuperação extraordinária de visão, e nesse tempo todo jamais se cansou de vê-lo ler para ela. Ele achava que ela nem mesmo estava ouvindo com atenção. Era o fato de vê-lo inteiro de novo que enlevava o espírito de Agnes, não as palavras de uma história que alguém tinha escrito.
Na tarde de 9 de novembro, quando Paul e Barty estavam com ela, recordando momentos, e Anja estava na cozinha, pegando bebidas para eles, Agnes tossiu e enrijeceu o corpo. Sem conseguir respirar, Agnes ficou pálida como giz e, quando conseguiu respirar novamente, ela disse:
— Chamem a Anja. Não dá tempo de trazer os outros.
Os três, reunidos apressadamente, aconchegaram-se em torno de Agnes, como se quisessem escondê-la da Morte. Para Paul, ela disse:
— Como amei a sua inocência... e como amei lhe dar experiência.
— Aggie, não — rogou Paul.
— Não comece a caminhar de novo — lembrou-o.
A voz de Agnes estava mais fina quando ela falou com Anja, mas nesta nova fragilidade, Barty ouviu tanto amor que estremeceu diante de seu poder.
— Deus está em você, Anja. É por isso que você brilha tão forte.
Incapaz de falar, a menina beijou-a e então pousou a cabeça no peito de Agnes, capturando para sempre na memória o som puro de seu coração.
— Menino-maravilha — disse Agnes a Barty.
— Supermãe.
— Deus me deu uma vida maravilhosa. Lembre disso. Era preciso ser forte por ela.
— Vou lembrar.
Ela fechou os olhos e Barty pensou que ela tinha se ido, mas então ela os abriu de novo.
— Há um lugar além de todas as formas que as coisas são.
— Eu espero — disse ele.
— A sua velha mãe não ia mentir pra você, ia?
— Não a minha velha mãe.
— Precioso...
Ele disse a ela que a amava, e Agnes deslizou para longe de suas palavras. Enquanto ela partia, o olhar exaurido do paciente leucêmico terminal sumiu de seu rosto, e antes que a máscara cinzenta da morte o substituísse, Barty viu a beleza que ele preservara na memória quando tinha três anos, antes que seus olhos fossem retirados; viu muito de relance, como se alguma coisa em transformação tivesse vertido dela, uma luz perfeita, sua essência.
Por respeito à mãe, Barty se esforçou para manter sua segunda visão sem olhos, vivendo na ideia de um mundo onde ele ainda tinha visão, até que Agnes tivesse recebido as honras que merecia e estivesse repousando ao lado de seu pai. Naquele dia ele usou seu terno azul-escuro.
Ele fingiu cegueira, segurando o braço de Anja, mas não perdeu nada, e estocou cada detalhe em sua memória, ainda que não fosse precisar deles na escuridão que o aguardava.
Ela tinha 43 anos, jovem demais para ter deixado uma marca tão grande no mundo. Ainda assim, mais de duas mil pessoas compareceram ao seu funeral — que foi conduzido por sacerdotes de sete denominações —, e a subsequente procissão ao cemitério foi tão longa que algumas pessoas tiveram de estacionar a um quilómetro e meio dali e caminhar. Durante muito tempo as pessoas se acomodaram pelas colinas gramadas e entre as lápides, mas o pastor presidindo o serviço não começou a missa até que todos haviam se reunido. Ninguém demonstrou impaciência com o atraso. De fato, quando a última oração foi dita e o caixão abaixado, a multidão hesitou em partir, permanecendo no local, o que era muito incomum, até Barty compreender que, como ele próprio, eles quase esperavam um milagre de ressurreição e ascensão, porque entre eles recentemente caminhara esta que não tinha mácula.
Agnes Lampion. A Moça das Tortas.
Novamente em casa, na segurança da família, Barty desmaiou de exaustão devido ao esforço sustentado em ver com olhos que não possuía. Acamado por dez dias, febril, afligido com vertigem e enxaquecas terríveis, nauseado, perdeu três quilos e meio antes de se recuperar por completo.
Barty não tinha mentido para a mãe. Ela acreditou que por alguma magia quântica ele havia recuperado sua visão permanentemente, e que isto acontecia sem custo. Barty apenas permitiu que ela descansasse com o conforto de saber que seu filho estava livre das trevas.
Agora ele retornou à cegueira por cinco anos, até 1983.
Em cada dia marcante o trabalho foi feito em memória de sua mãe. Na Fundação Moça das Tortas, eles sempre procuravam novas receitas e novas formas de iluminar o canto onde estavam.
O génio matemático de Barty provou ter uma aplicação prática. Mesmo em sua cegueira, ele percebia padrões que passavam despercebidos àqueles com visão. Trabalhando com Tom Vanadium, Barty esboçou estratégias de investimento baseadas nas sutilezas do desempenho histórico do mercado de ações. Na década de oitenta, o lucro anual dos investimentos da fundação era de 26%: excelente à luz do fato de que a inflação descontrolada dos anos setenta tinha sido refreada.
Durante os cinco anos que se seguiram à morte de Agnes, a família de muitos nomes prosperou. Barty e Anja tinham mantido todos juntos neste lugar nos quinze anos anteriores, mas o destino sobre o qual Tom falara na varanda dos fundos, naquela noite de chuva, não parecia com pressa de se manifestar. Como não conseguia encontrar nenhuma forma indolor de sustentar a visão emprestada, Barty vivia sem a luz. Anja não teve mais nenhum motivo para empurrar alguém para o mundo dos insetos grandes, para onde empurrara Caim. Os únicos milagres de suas vidas eram os milagres do amor e da amizade, mas a família permanecia convencida de maravilhas futuras, mesmo enquanto cuidava de suas vidas um dia por vez.
Ninguém ficou surpreso com a proposta que ele fez, com o fato dela ter aceitado, ou com o casamento. Barty e Anja tinham ambos dezoito anos quando casaram em junho de 1983.
Durante apenas uma hora, que não era cansativo demais, Barty caminhou na ideia de um mundo onde ele tinha olhos saudáveis, e compartilhou a visão de outros Bartys em outros lugares, de modo que pôde ver sua noiva caminhar através da nave da igreja e, ao seu lado, fazer os votos com ele, e quando ela estendeu sua mão para receber o anel.
Em todas as muitas formas como as coisas são, através da infinidade de mundos e toda a criação, Barty acreditava que não existia nenhuma mulher cuja beleza excedesse a de Anja ou cujo coração fosse mais cheio de bondade.
Quando a cerimónia terminou, ele abriu mão de sua visão emprestada. Ele viveria na escuridão até a Páscoa de 1986, embora cada minuto do dia fosse iluminado por sua esposa.
A recepção de casamento — grande, barulhenta, alegre — espalhou-se pelas três propriedades sem cercas. O nome da mãe de Barty foi mencionado muitas vezes, sua presença sentida tão fortemente em todas as vidas que tinha tocado que às vezes parecia estar realmente com eles.
Pela manhã, depois de sua primeira noite juntos, sem que nenhum deles sugerisse o que precisava ser feito, Barty e Anja caminharam silenciosamente para o jardim dos fundos e, juntos, escalaram o carvalho, para, do seu galho mais alto, ver o sol nascer.
Três anos depois, no domingo de Páscoa de 1986, o coelhinho da fábula trouxe-lhes um presente: Anja deu à luz Mary.
— É hora de um nome absolutamente comum nesta família—declarou Anja.
Para ver sua filhinha recém-nascida, Barty compartilhou a visão de outros Bartys, e ele adorou tanto a pequena e enrugada Mary que susteve sua visão durante o dia inteiro, até que uma enxaqueca trovejante tornou-se difícil de suportar e uma assustadora incapacidade de falar com clareza o fez recuar para o conforto da cegueira.
Alguns minutos depois, ele estava falando normalmente, mas suspeitou que um esforço em manter esta visão emprestada por muito tempo poderia resultar num ataque ou pior.
Manteve a cegueira até uma tarde de maio de 1993. Quando finalmente o milagre aconteceu, e o significado do que Tom Vanadium tinha previsto há muito tempo começou a se manifestar.
Quando Anja foi procurar Barty, ofegando de empolgação, ele estava matraqueando com Tom Vanadium no escritório da fundação, em cima das garagens. Anos antes, os dois apartamentos tinham sido combinados e expandidos quando a garagem debaixo deles foi duplicada em tamanho, fornecendo melhores acomodações e espaço de trabalho para Tom.
Embora estivesse com 76 anos, Tom ainda trabalhava para a Fundação Moça das Tortas. Eles não tinham estabelecido uma idade de aposentadoria para os funcionários, e padre Tom esperava morrer trabalhando.
— E se for dia de uma caravana de tortas, apenas deixem a minha velha carcaça onde eu tiver caído até que vocês terminem de fazer todas as entregas. Não quero ser responsável por alguém não receber uma torta prometida.
Ele era novamente o padre Tom, tendo refeito seus votos três anos antes. A seu pedido, a Igreja tinha-o designado capelão da Fundação Moça das Tortas.
Assim, Barty e Tom estavam conversando sobre um físico quântico que tinham visto num programa de televisão, um documentário sobre a ressonância estranha entre a crença num universo criado e algumas descobertas recentes em mecânica quântica e biologia molecular. O físico afirmara que alguns de seus colegas — embora nem de longe a maioria — acreditavam que o aprofundamento da compreensão do nível quântico da realidade geraria uma reaproximação surpreendente entre ciência e fé.
Anja interrompeu-os, entrando esbaforida na sala, arfando.
— Venham rápido! É incrível. É maravilhoso. Vocês precisam ver isso. E você, Barty, você precisa ver isso.
— Certo.
— Estou dizendo que você precisa ver isso.
— O que ela está dizendo? — perguntou ele a Tom.
— Há alguma coisa que ela quer que você ouça.
Enquanto se levantava de sua cadeira, Barty começou a reconciliar-se com o sentimento de todas as formas que as coisas são, começou a curvar sua mente em torno das curvas e dobras de realidade que percebera na montanha-russa naquele dia, e quando seguia Anja e Tom até a base da escada e até o jardim assombreado pelo carvalho atrás da casa, o dia se mostrou a ele.
Mary estava brincando aqui, e vê-la, depois de total cegueira por sete anos, quase fez Barty cair de joelhos. Mary era a imagem da mãe dela, e Barty sabia que devia ser um pouquinho assim que Anja se parecera quando, em 1968, chegara a esta casa com a idade de três anos, explorara a cozinha naquele primeiro dia e encontrara a torradeira debaixo de uma meia.
Se ver sua filha quase o fez.cair de joelhos, ver sua esposa, também pela primeira vez em sete anos, fê-lo levitar até que ele estava virtualmente flutuando sobre o gramado.
No jardim, sua cadela Koko, uma golden retriever de quatro anos, estava deitada de costas, todas as patas no ar, presenteando sua barriga à jovem Mestra Mary, que a acariciava delicadamente.
— Querida, mostra pra gente aquela brincadeira que você estava fazendo com a Koko — disse Anja. — Mostra pra gente, meu bem. Vamos. Mostra pra gente. Mostra.
Para Barty, Mary disse:
— Mamãe ficou toda animada com isto.
— Você conhece a mamãe — disse Barty, sugando quase desesperadamente o rosto de sua menininha e entalhando sua imagem na memória, para sustentá-lo durante sua próxima escuridão longa.
— Você realmente está podendo ver agora, papai?
— Estou.
— Gosta dos meus sapatos?
— São sapatos bonitos.
— Gosta do jeito que o meu cabelo...
— Mostra pra gente, mostra, mostra! — urgiu Anja.
— Tááááááá bom! — disse Mary. — Koko, vamos brincar.
A cadela rolou para o lado e se pôs sobre as quatro patas, rabo balançando, pronta para brincar.
Mary estava com uma bola de vinil amarelo do tipo que Koko podia caçar alegremente o dia inteiro e, se lhe permitissem, mastigar a noite toda, mantendo a casa acordada com o barulho.
— Quer isto? — perguntou Mary a Koko.
É claro que Koko queria, precisava, absolutamente necessitava daquela bola, e saltou para a ação quando Mary fingiu lançá-la.
Depois de correr alguns passos, quando a cadela compreendeu que Mary não tinha jogado a bola, ela deu meia-volta e correu até a menina.
— Me pega se puder! — gritou a menina, esquivando-se da cadela e saindo a correr.
Koko mudou de direção num ângulo incrivelmente fechado e correu atrás da menina.
Mary mudou de direção também, virando agudamente para a esquerda... ... e desapareceu.
— Ai, meu Deus — disse Tom Vanadium.
Um momento, menina e bola de vinil amarelo. No momento seguinte, as duas pareciam jamais ter estado ali.
Koko parou de repente, perplexa. Olhou para a esquerda, olhou para a direita, suas orelhas levantadas para captar qualquer som produzido pela Mestra Mary.
Atrás da cadela, Mary apareceu caminhando de lugar nenhum, bola na mão. Koko se virou, surpresa, e a caçada recomeçou.
Três vezes Mary desapareceu, e três vezes reapareceu, antes de conduzir a perplexa Koko até sua mãe e seu pai.
— Bacana, né?
— Quando você descobriu que podia fazer isso? — perguntou Tom.
— Ainda há pouco — disse a menina. — Estava sentada na varanda, chupando um picolé, e descobri.
Barty olhou para Anja, e Anja olhou para Barty, e ambos se ajoelharam na grama diante de sua filha. Os dois estavam sorrindo... e então seus sorrisos se apagaram um pouco.
Sem qualquer sombra de dúvida pensando na terra dos insetos grandes, para a qual ela tinha empurrado Enoch Caim, que era exatamente no que Barty tinha pensado subitamente, Anja disse:
— Querida, isto é incrível, é maravilhoso, mas você precisa tomar cuidado.
— Não é assustador — disse Mary. — Eu só dou um passo para outro lugar durante algum tempo, e então volto. É como passar de uma sala para outra. Não posso ficar presa lá ou qualquer coisa assim. — Ela olhou para Barty. — Você sabe como é, papai.
— Mais ou menos. Mas o que a sua mãe está dizendo...
— Talvez alguns desses lugares sejam ruins — alertou Anja.
— Ah, sei disso — disse Mary. — Mas quando é um lugar ruim, você sente antes de entrar. Então você contorna ele e vai até o lugar seguinte, que não é ruim. Não é nada demais.
Nada demais.
Barty queria abraçá-la. Então ele a abraçou. E também abraçou Anja. Ele abraçou Tom Vanadium.
— Preciso de um trago — disse padre Tom.
Mary Lampion, a pequena luz, foi educada em casa como seu pai e sua mãe tinham sido. Mas ela não estudou apenas leitura, redação e aritmética. Pouco a pouco ela desenvolveu uma série de talentos fascinantes que não são ensinados em nenhuma escola, e partiu para explorar um grande número das muitas formas que as coisas são, viajando a mundos bem aqui, mas invisíveis.
Em sua cegueira, Barty ouvia os relatos da filha e, através dela, viu muito mais do que poderia ver se nunca tivesse perdido os olhos.
Na véspera do Natal de 1996 a família reuniu-se no meio das três casas para jantar. A mobília da sala de estar tinha sido movida para as paredes, e três mesas tinham sido dispostas de um canto a outro, cobrindo toda a extensão da sala, de modo a acomodar todos.
Quando a mesa longa estava cheia de comida e vinho era entornado nos copos, quando todos menos Mary estavam acomodados em cadeiras, Anja disse:
— Minha filha me disse que quer fazer uma pequena apresentação antes que eu faça a prece de agradecimento. Não sei o que é, mas ela me garantiu que não envolve canto, dança ou leitura de suas poesias.
Barty, na cabeceira da mesa, sentiu Mary aproximar-se apenas quando ela estava quase prestes a tocá-lo. Ela colocou uma mão no braço dele e disse:
— Papai, pode afastar a sua cadeira da mesa e me deixar sentar no seu colo?
— Se é uma apresentação, acho que sou o presenteado — disse ele, virando sua cadeira de lado para a mesa e aceitando-a em seu colo. — Mas não se esqueça, eu nunca uso gravatas.
— Eu te amo, papai — disse ela, e colocou as palmas das mãos nas têmporas dele.
Na escuridão de Barty entrou uma luz que ele não tinha procurado. Ele viu sua sorridente Mary em seu colo enquanto ela abaixava as mãos de suas têmporas, via os rostos de sua família, a mesa decorada com enfeites de Natal e muitas velas bruxuleando.
— Isto vai ficar com você — disse Mary. — É visão compartilhada de todos os outros você em todos os outros lugares, mas você não terá de fazer nenhum esforço para mantê-la. Nenhuma dor de cabeça. Nenhum problema, nunca. Feliz Natal, papai.
E assim, aos 31 anos de idade, depois de mais de 28 anos de cegueira com algumas suspensões curtas de seu tormento, Barty Lampion recebeu de sua filha de dez anos o dom da visão.
De 1996 até 2000: dia após dia o trabalho foi feito em memória de Agnes Lampion, Joey Lampion, Harrison White, Serafina White, Jacó Isaacson, Simon Magusson, Tom Vanadium, Grace White, e mais recentemente Wally Lipscomb, em memória de todos que tinham dado tanto e, embora talvez ainda estivessem vivos em outros lugares, haviam partido deste.
No jantar de Ação de Graças, novamente nas três mesas dispostas de canto a canto, no ano do zero triplo, Mary Lampion, agora com quatorze anos de idade, fez um pronunciamento interessante sobre a torta de abóbora. Em suas viagens aonde ninguém, a não ser ela, podia ir, depois de sete anos fascinantes explorando uma fração de todos os mundos infinitos, ela disse que sentia sem sombra de dúvida que, como a mãe de Barty tinha lhe dito em seu leito de morte, existe um lugar especial além de todas as formas que as coisas são, um lugar iluminado.
— E se vocês me derem tempo o bastante, eu vou encontrar uma forma de entrar nesse lugar e vê-lo.
Alarmada, sua mãe disse:
— Sem morrer antes!
— Bem, claro, sem morrer antes — disse Mary. — Essa seria a maneira fácil de entrar lá. Eu sou uma Lampion, não sou? Nós fazemos as coisas do jeito fácil, se pudermos evitar? Papai escolheu o caminho mais fácil para subir naquele carvalho?
Barty estabeleceu outra regra:
— Sem morrer antes... e tendo certeza de que você pode voltar.
— Se eu conseguir entrar lá, vou conseguir sair — prometeu à família reunida. — Imagine quanta coisa todos nós teremos para conversar. Talvez eu até consiga algumas novas receitas de tortas Lá.
2000, o Ano do Dragão, cede lugar sem um só rugido ao Ano da Serpente, e depois da Serpente vem o Cavalo. Dia a dia o trabalho é feito, em memória daqueles que foram antes de nós, e incumbida de um trabalho só seu a jovem Mary está lá fora entre vocês. Por enquanto, apenas sua família sabe o quanto ela é especial. Num dia marcante, isso vai mudar.
Nota do Autor
Para obter certos efeitos narrativos, alterei um pouco a planta e a aparência do interior do Hospital St. Mary em San Francisco. Nesta história, os personagens que trabalham no St. Mary são fictícios e não são baseados em ninguém na equipe dessa instituição extraordinária, no passado ou no presente.
Não sou o primeiro a observar que aquilo que a mecânica quântica revela sobre a natureza da realidade é estranhamente compatível com a fé, especificamente com o conceito de um universo criado. Vários bons físicos escreveram sobre isso antes de mim. Porém, até onde tenho ciência, a noção contida neste livro, de que os relacionamentos humanos refletem a mecânica quântica, é nova. Cada vida humana é intrincadamente conectada com todas as outras num nível tão profundo quanto o nível subatômico no mundo físico; debaixo de todo caos aparente existe uma ordem estranha; e "efeitos bizarros à distância", como os estudiosos de física quântica colocam, são tão facilmente observáveis na sociedade humana quanto nos sistemas atómicos, nos sistemas moleculares e em outros sistemas físicos. Nesta história, Tom Vanadium precisa simplificar e condensar aspectos complexos de mecânica quântica em algumas frases num único capítulo, porque embora não esteja ciente de que é um personagem fictício, ele é que tem a obrigação de entreter. Espero que qualquer físico que esteja lendo isto tenha piedade dele.
Dean Ray Koontz
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