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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GOLDFINGER / Ian Fleming
GOLDFINGER / Ian Fleming

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

G O L D F I N G E R

 

                                                                   Um Acontecimento

 

                     Reflexões com uísque duplo

James Bond, com um uísque duplo por dentro, estava sentado na sala de espera de passageiros do Aeroporto de Miami e pensava sobre a vida e a morte.

Era parte de sua profissão matar gente. Nunca havia gostado disso mas, quando tinha que matar, o fazia o melhor que sabia — e se esquecia. Como agente secreto que ostentava o raro prefixo do duplo zero — a licença para matar, no Serviço Secreto — era de seu dever ser frio, sobre a morte, como um cirurgião. O arrependimento seria não-profissional — pior que isso, seria a sombra da morte na alma.

E, contudo, havia qualquer coisa de curiosamente impressionante na morte do mexicano. Não que ele não merecera morrer. Fora um homem cruel, um homem que chamam de "capungo", no México. O "capungo" é um bandido que mata por qualquer coisa, como por 40 pesos, que equivale a algumas centenas de cruzeiros — embora, provavelmente, tenha sido pago melhor, para tentar matar Bond — e, pelo seu aspecto, deveria ter sido, por toda sua vida, um instrumento a serviço da tortura e da crueldade. Sim: certamente já era tempo de ele morrer; mas, quando Bond o matara, menos de 24 horas antes, a vida havia sido expulsa de seu corpo tão depressa, tão inteiramente, que Bond quase pudera vê-la fugir-lhe pela boca, como acontece nas histórias dos primitivos haitianos, na forma de um pássaro.

Que diferença extraordinária existe entre um corpo cheio de vida e um outro vazio! Num instante ali está alguma coisa e, no instante seguinte, nada mais há. Aquilo fora um mexicano com nome e endereço, um cartão de emprego e, provavelmente, até uma licença para dirigir. Então, qualquer coisa tinha saído para fora dele, para fora do envelope de carne e osso e roupas pobres, e deixado apenas o saco de papel vazio, esperando pelo varredor de lixo. E a diferença, a coisa que saíra para fora do bandido mexicano que se afundava, era maior que todo o México.

Bond olhou para a arma com a qual havia matado. A face lateral de sua mão estava vermelha e inchada. Logo começaria a aparecer a equimose. Bond flexionou a mão, alisando-a com a esquerda. Tinha estado a fazer isso, repetidamente, durante a rápida viagem aérea que o trouxera até ali. Era um processo dolorido mas, se mantivesse a circulação ativa, a mão sararia mais depressa. Não se poderia saber quando a arma poderia precisar ser utilizada de novo. Um sorriso cínico assomou às extremidades da boca de Bond.

"Linhas Aéreas Nacionais, as Linhas Aéreas das Estrelas, anunciam a partida de seu vôo NA 106, para o Aeroporto La Guardia, Nova York. Passageiros devem dirigir-se, por favor, ao portão número 7. Todos ao embarque, por obséquio."

O alto-falante foi desligado com um clique que reboou no ambiente. Bond olhou para seu relógio. No mínimo dez minutos, ainda antes que a Transamérica fosse chamada. Ele fez sinal para a garçonete e pediu mais um uísque duplo, com gelo. Quando o copo alto chegou, ele o rodopiou para que o gelo se afundasse e bebeu metade do líquido, num gole. Atirou fora o toco do cigarro e se sentou, com as mãos segurando o queixo e ficou olhando desconsolado, através da vidraça, para onde a última metade do sol gloriosamente escorregava para dentro do golfo.

A morte do mexicano tinha sido o toque final de uma missão ruim, uma das piores — perigosa e sem nenhum objetivo redentor, a não ser o fato de o afastar de seu quartel-general.

Um homem, no México, tinha um campo de papoulas. As flores não se destinavam à decoração. Elas eram colhidas e delas tirado o ópio, que se vendia a preço comparativamente barato, e rapidamente, pelos garçoms, num pequeno café da Cidade do México, chamado "Madre de Cacao". O "Madre de Cacao" contava com bastante proteção. Se alguém precisasse de ópio, entrava no café e pedia o que desejava, com a bebida. Pagava pela bebida na caixa e o homem lhe dizia, então, quanto era o resto. Tratava-se de um tranqüilo comércio, que não era da conta de ninguém, fora do México. Então, lá longe, na Inglaterra, o governo, atendendo a solicitações das Nações Unidas, com respeito à repressão ao contrabando de drogas entorpecentes, anunciara que a heroína seria banida da Grã-Bretanha. Houve alarma no Soho e também entre médicos respeitáveis, que desejavam livrar seus pacientes do sofrimento. A proibição é o estopim do crime. Bem depressa os canais rotineiros do contrabando procedente da China, da Turquia e da Itália quase se esvaziaram, com o armazenamento ilícito da "mercadoria" na Inglaterra. Na Cidade do México, vivia um comerciante de fala macia, que se dedicava à importação e à exportação, chamado Blackwell e que tinha uma irmã na Inglaterra, que era viciada em heroína. Ele a amava e lhe tinha pena. Por isso, quando ela escreveu dizendo que morreria se ninguém a ajudasse, acreditou que lhe dizia a verdade e passou a investigar o tráfico de entorpecentes no México. Através de amigos, e de amigos dos amigos, chegou ao "Madre de Cacao" e, dali, até o grande plantador de papoulas. Durante as investigações, acabou se inteirando dos detalhes econômicos do comércio: e decidiu que, se ao mesmo tempo conseguisse fazer fortuna e aplacar as misérias da humanidade sofredora, teria descoberto o Segredo da Vida. O negócio de Blackwell era de fertilizantes. Era dono dum armazém e duma pequena fábrica. E contava com uma equipe de três, para testes de solo e pesquisas de laboratório. Foi-lhe fácil convencer o mexicano da plantação de papoulas de que, por trás de sua fachada respeitável, a equipe de Blackwell poderia dedicar-se a extrair heroína do ópio. O transporte para a Inglaterra fora arranjado espertamente pelo mexicano. Pelo equivalente a mil libras por viagem, todos os meses, um dos "correios" diplomáticos do Ministério dos Assuntos Exteriores levava uma valise extra a Londres. O preço era razoável. O conteúdo da valise, depois que o funcionário mexicano a depositava no guarda-malas da Estação de Vitória, na capital inglesa, e despachado pelo correio o ticket para um homem chamado Schwab, no endereço Boox-an-Pix Ltd., W.C.l — valia 20 mil libras esterlinas.

Infelizmente, Schwab era um quadrilheiro, sem nenhuma sensibilidade pela humanidade sofredora. Tinha se convencido de que, se os delinqüentes juvenis americanos podiam consumir milhões de dólares de heroína todos os anos, também os seus primos ingleses, os Teddy-boys (e as moças), poderiam fazer a mesma coisa. Em dois quartos, em Pimlico, sua equipe dissolvia a heroína em água, ajuntando bicarbonato, e distribuía tudo pelos salões de baile e locais de diversões.

Schwab já tinha feito uma fortuna, quando o "Esquadrão Fantasma" do Departamento de Entorpecentes da Scotland Yard o pegou. A Scotland Yard tinha decidido deixá-lo continuar ganhando, por algum tempo, mais um pouco de dinheiro, enquanto fazia investigações, para descobrir a fonte de seu suprimento. Puseram-no sob severa vigilância e, no devido tempo, chegaram à Estação de Vitória e ao "correio" mexicano. Nessa altura, como um país estrangeiro entrava na história, o Serviço Secreto tinha que ser chamado e Bond fora convocado para descobrir de onde o "correio" trazia o seu suprimento e destruir a fonte.

Bond fizera o que lhe haviam ordenado. Voou para o México e, rapidamente, chegou ao "Madre de Cacao". Então, fingindo ser um comprador para o tráfico londrino, estabeleceu contato com o mexicano plantador de papoulas. Ele o recebeu amigavelmente e o levou a Blackwell. Bond nada sabia da história da irmã do inglês mas, ao primeiro conta-

to, percebeu que o homem era um amador. Ouviu a revolta' de Blackwell contra o banimento da heroína na Inglaterra e teve impressão de que o outro era sincero no seu ponto de vista. Uma noite, Bond invadiu o armazém de Blackwell e ali deixou uma bomba inflamável. Depois saiu e foi sentar-se no café, para ficar apreciando as chamas, de longe, subindo para cima da linha dos telhados e ouvir a cascata sonora dos sinos da brigada de bombeiros. Na manhã seguinte, telefonou a Blackwell. Botou um lenço no fone e falou através do pano, para disfarçar a voz.

— "Sinto muito que você tenha perdido seu negócio, ontem à noite. Receio que o seguro não vá cobrir aqueles estoques de solo, que você estava pesquisando."

— Quem é você? Quem está falando?

— Sou da Inglaterra. Sua mercadoria tem matado um bom número de gente moça, por lá. E estragou uma porção de outros, também. Santos não voltará mais para a Inglaterra, com sua valise diplomática. Schwab estará na cadeia ainda hoje à noite. E aquele sujeito com quem você tem estado, o tal de Bond, também não vai se safar da rede, não. A polícia já está atrás dele."

Expressões amedrontadas vieram do outro lado do fio.

— Está certo: mas, não caia na mesma, outra vez. Limite-se aos fertilizantes.

Bond desligou.

Blackwell não teria tido esperteza suficiente. Obviamente, tinha sido o mexicano que percebera o jeito de fazer as coisas. Bond tomara a precaução de mudar de hotel mas, nessa noite, quando regressava para casa, depois dum último drinque no "Copacabana", um homem, subitamente, pulara na sua frente. O homem usava um terno de linho branco muito sujo e um boné de chofer muito grande para sua cabeça. Havia sombras escuras sob o queixo asteca. Num dos cantos da boca, estava um palito e, no outro, um cigarro. Os olhos apareciam rebrilhantes pelo efeito de maconha.

— Senor gosta de mulheres? Fazer jigajig?

— Não.

— Garota escurinha?

— Não.

— Fotografias? Quem sabe?

O gesto da mão subindo para o bolso interno do paletó já era tão conhecido de Bond, tão cheio de velhos perigos que, quando a mão voltou, a faca rebrilhando em busca da garganta de Bond, já o encontrou pronto, preparado.

Quase automaticamente, Bond executou o capítulo do livro de defesa pessoal, que tinha por título "Defesa contra ataque a faca". Seu braço direito se interpôs, o corpo girando junto. Os dois antebraços se encontraram a meio do caminho, entre os dois corpos, deslocando a faca do mexicano para longe do alvo, ao mesmo tempo em que lhe abria a guarda, para um golpe curto, com a esquerda. O punho cerrado e duro de Bond não se movera muito, talvez sessenta centímetros, mas, a ponta da palma, com os dedos já distendidos para maior rigidez, já havia subido por baixo do queixo do outro, com força terrível. O golpe quase levantou o homem da calçada. Talvez tivesse sido esse golpe que matara o mexicano, quebrando-lhe o pescoço, mas, enquanto ele descia de novo para o solo, Bond puxou a mão direita e a chicoteou horizontalmente, na direção da garganta exposta. Era a mortal cutelada no pomo de Adão, aplicada com os dedos colados para formar uma lâmina, que tinha sido, na guerra, o golpe usado pelos Comandos. Se o mexicano ainda estivesse vivo, certamente morrera antes de chegar ao solo.

Bond parou um momento, o peito arfando, a olhar para o amontoado de roupas baratas no pó. Espiou a rua para cima e para baixo. Não havia ninguém. Alguns carros passaram. Outros talvez tivessem passado durante a luta, mas os dois tinham estado nas sombras. Bond se ajoelhou ao lado do corpo: não havia sinal de pulsação. E já os olhos, que tinham estado tão brilhantes por causa da maconha, começavam a embaçar. A casa, na qual a vida do mexicano tinha morado, estava vazia. O inquilino tinha saído.

Bond pegou o corpo e o encostou contra a parede, na sombra mais escura. Limpou as mãos na roupa, tocou na gravata para ver se estava no lugar e foi para o hotel.

Ao amanhecer, Bond tinha se levantado, se barbeado e ido até o aeroporto, onde tomou o primeiro avião para fora da Cidade do México. Aconteceu ir para Caracas. Bond voou para Caracas e ficou na sala de espera até que houvesse um avião para Miami, um "Constellation" da Transamérica que o levaria, naquela mesma noite, a Nova York.

De novo, o alto-falante voltou a informar: "A Transamérica sente ter de anunciar um retardamento em seu vôo TR 618 para Nova York, devido a defeitos mecânicos. O novo horário de partida será 8 horas. Os passageiros devem comparecer ao balcão da Transamérica, para acertar detalhes de acomodação de pernoite. Muito obrigado!"

Puxa! Ainda isso? Deveria transferir a passagem para outro vôo ou pernoitar em Miami? Bond tinha se esquecido de sua bebida. Pegou o copo de novo e, jogando a cabeça para trás, engoliu o que restava do uísque dum gole só. O gelo bateu contra seus dentes. Era isso. Isso era uma idéia. Passaria a noite em Miami e tomaria uma bebedeira, se afogaria na bebida de tal forma, que alguém teria que carregá-lo para a cama — qualquer um que o pegasse. Fazia anos que não se embriagava assim. E já era tempo. Essa noite extra, que lhe caía do céu, era uma noite de sobra, uma noite fora dos cálculos. Ele a usaria muito bem. Já era tempo de se relaxar um pouco. Estava muito tenso, muito introspectivo. Que diabo estava fazendo, preocupando-se com esse mexicano, esse "capungo" que tinha sido mandado para matá-lo? Tinha sido matar ou ser morto. De qualquer forma, os homens andavam se matando, a todo o momento, em todas as partes do mundo. Estavam utilizando seus carros, para matar os outros. Carregavam por toda parte moléstias contagiosas, soprando micróbios na cara dos outros, deixando bicos de gás abertos nas cozinhas, injetando monóxido de carbono nas garagens fechadas. Quanta gente, por exemplo, estava colaborando na feitura das bombas H, desde os mineiros que extraíam o urânio, até os acionistas que eram donos das empresas de mineração? Haveria alguém, no mundo inteiro que, pelo menos estatisticamente, não estivesse envolvido no processo de matar seu vizinho?

A última luz do dia tinha sumido. Por baixo do céu azulado, os riscos de reflexo compunham verdes e amarelos na superfície oleosamente rebrilhante do pátio de manobras. Com um ronco ensurdecedor, um DC 7 descia para a pista principal. Os vidros das janelas da estação trepidavam maciamente. Gente se levantou para espiar. Bond tentava ler-lhes a expressão. Será que eles esperavam que o avião caísse — para ter alguma coisa que ver, alguma coisa de que falar, alguma coisa que preenchesse o vazio de suas vidas? Ou será que desejavam felicidades ao avião? Que será que desejavam aos 60 passageiros: que vivessem ou que morressem?

Bond fez um muxoxo: deixa disso! Pare de ser tão mórbido! Tudo isso é apenas o reflexo de uma missão ruim. Você está cansado de ter que ser durão. Você está querendo é um pedaço bom da vida — vida fácil, macia, cômoda. Bond sentiu passos que se aproximavam. Pararam ao seu lado. Ele olhou. Era um homem de meia-idade, limpo, parecendo rico. Sua expressão era embaraçada, de quem pede desculpas:

— Perdoe-me, mas o senhor é Mr. Bond?... Mr. James Bond, não?

 

                                   Vida boa

Bond gostava de passar anonimamente. Sua resposta — "Sim, sou eu" — foi num tom de desconsolo.

— Ora vejam só! Isso é uma bela coincidência! — O homem estendeu a mão. Bond se levantou vagarosamente, apertou a mão estendida e, em seguida, a soltou. A mão era fofa e sem articulação — como se fora uma escultura de barro mole ou uma luva de borracha cheia de ar. — Meu nome é Du Pont. Junius Du Pont. Acho que o senhor não se lembra de mim, mas já nos encontramos antes. Posso me sentar?

O rosto, o nome... Sim, havia alguma coisa familiar. Há muito tempo. Não na América. Bond tentou rebuscar seu arquivo mental, para ver se localizava o homem. Mr. Du Pont andava pelos cinqüenta — vermelho, escanhoado, e vestido na maneira convencional, pela qual a Casa Brook Brothers disfarçava a vergonha dos ricos americanos. Usava um terno de tropical creme e uma camisa de seda branca, com colarinho mole. As pontas do colarinho estavam seguras por um alfinete de pressão, de ouro, que passava por baixo do nó de uma gravata estreita, escura, com listas vermelhas e azuis, quase como uma bandeira. Os punhos da camisa estavam metade para fora dos punhos do paletó e exibiam abotoaduras de cristal, com miniaturas de môscas-iscas para pescar trutas. As meias eram dum cinzento-carvão e os sapatos, velhos, estavam polidos cuidadosamente. O homem tinha na cabeça um chapéu de abas curtas, com fita larga e avermelhada.

Mr. Du Pont sentou-se à frente de Bond e ofereceu cigarros, exibindo um isqueiro Zippo de ouro. Bond notou que ele suava ligeiramente. E teve a impressão de que Mr. Du Pont era o que parecia ser — um americano muito rico, ligeiramente embaraçado. Sabia que o tinha visto anteriormente mas não tinha idéia de quando ou onde.

— Fuma?

— Muito obrigado. — O cigarro era Parliament. Bond fingiu não ter visto o isqueiro que lhe era oferecido. Não gostava de isqueiros estendidos, em oferecimento. Puxou o seu próprio e acendeu o cigarro.

— França, 1951, Royale les Eaux. — Mr. Du Pont olhou esperançoso para Bond. No Cassino Ethel — a Sra. Du Pont — e eu, estávamos próximos do senhor, na mesa, na noite em que o senhor agüentou aquele jogão com o francês.

A memória de Bond regrediu no tempo. Sim, naturalmente. Os Du Pont tinham sido os números 4 e 5 na mesa de bacará. Bond era o número 6. Pareciam gente inocente. Ficara contente, então, por ter tido uma defesa tão sólida à sua esquerda, naquela fantástica noite em que quebrara a banca. Agora, Bond via tudo de novo — a brilhante ilha de luz no pano verde, a mão rosada do outro lado da mesa, sumindo para examinar as cartas. Ele próprio fedia a cigarro e ao seu próprio suor. Aquilo sim tinha sido uma noite e tanto! Bond olhou para Mr. Du Pont e sorriu da lembrança.

— Sim, claro que eu me recordo. Desculpe se demorei a me lembrar. Mas aquilo foi uma noite e tanto e não pensava em nada mais além das cartas...

Mr. Du Pont sorriu em resposta, feliz e aliviado:

— Puxa, Mr. Bond: é claro que eu compreendo isso. E, sinceramente, espero que o senhor me perdoe por ter me intrometido assim. O senhor sabe... — Estalou os dedos para chamar a garçonete — Mas devemos beber alguma coisa, para celebrar. Que é que o senhor prefere?

— Obrigado: uísque e gelo.

— O meu é com água. — A garçonete se afastou.

Mr. Du Pont curvou-se para a frente, atento. Um cheiro de sabonete ou loção de barba atravessou a mesa.

— Eu sabia que era o senhor. Desde que o vi sentado aí. No mesmo instante. Mas, disse prá mim mesmo: Junius, você quase nunca se engana com uma fisionomia, mas, é bom se certificar antes de mais nada. Bem, eu ia voar pela Transamérica, hoje à noite, e quando eles anunciaram o atraso eu fiquei observando o senhor. Vai me perdoar, Mr. Bond, mas, ficou muito claro, pela expressão do seu rosto, que o senhor também era passageiro da Transamérica. — Esperou que Bond assentisse com um menear de cabeça. — Daí, fui até o balcão de passagens e dei uma espiada na lista de passageiros. Naturalmente, havia lá, sim, um "J. Bond".

Mr. Du Pont recostou-se para trás, satisfeito com sua própria esperteza. As bebidas chegaram. Levantou seu copo:

— À sua saúde, senhor. Este é, sem dúvida, meu dia de sorte.

Bond sorriu neutramente e bebeu.

Mr. Du Pont curvou-se para a frente, de novo. Olhou ao redor. Não havia ninguém nas mesas próximas. Mesmo assim, baixou a voz:

— Acho que o senhor estará se dizendo: bem, é agradável ver Junius Du Pont de novo mas e daí? Por que ele tem que estar especialmente contente por me ver esta noite? — Mr. Du Pont ergueu as sobrancelhas, como se estivesse imitando Bond. — Eu espero que o senhor me perdoe, Mr. Bond. Não é do meu feitio me intrometer nos segred... nos assuntos dos outros. Mas, depois daquele jogo no Royale, me disseram não somente que o senhor era um grande jogador como, também, que o senhor era... bem, como é que posso dizer? — que o senhor era uma espécie de investigador. Uma espécie de agente secreto... — A indiscrição de Mr. Du Pont fê-lo ficar com o rosto vermelhíssimo. Recostou-se de novo, puxou o lenço e limpou a testa. Olhava com ansiedade para Bond.

Bond mexeu os ombros. Os olhos cinza-azuis que fixaram bem dentro dos olhos de Du Pont, que se tinham tornado perscrutadores, apesar da ansiedade, sustinham um misto de candura, ironia e autodesprêzo.

— Antigamente, eu me metia nessa espécie de coisas. Herança da guerra. A gente ainda pensava que seria gostoso brincar de índio. Mas, em tempo de paz, não há futuro nisso.

— Certo, certo. — Mr. Du Pont fez um gesto de dispensa com a mão que segurava o cigarro. Seus olhos evitaram Bond, enquanto fazia a outra pergunta e aguardava por outra mentira como resposta. (Bond pensou: essas roupas escondem um lobo, isso sim. Esse é um homem esperto.) — E agora o senhor prefere a calma? — Mr. Du Pont sorriu paternalmente. — E o que é que o senhor escolheu para fazer, se me permite a pergunta?

— Importação e exportação. Estou com a Universal. Talvez o senhor os tenha conhecido.

Mr. Du Pont continuou a brincadeira:

— Humm. Universal. Deixa ver: ah, sim, claro que ouvi falar deles. Não posso dizer que tenha feito algum negócio com eles, mas, acho que nunca é muito tarde. — Riu claramente. — Tenho realmente uma porção de interesses em tudo quanto é lugar. A única coisa que posso honestamente dizer que não estou interessado é em produtos químicos. Talvez seja azar meu, Mr. Bond, mas não sou um dos Du Pont da química.

Bond se convenceu de que o homem estava bastante satisfeito com a marca específica de Du Pont que acontecia ser. Nada comentou, por isso. Olhou para o relógio para obrigar Du Pont a apressar sua jogadinha. Decidiu jogar suas próprias cartas muito cuidadosamente. Mr. Du Pont tinha uma agradável face rosada de bebê e uma generosa, quase feminina boca, curvada para baixo. Parecia tão inocente como qualquer americano de meia-idade, que anda com máquinas fotográficas, do lado de fora do Palácio de Buckingham. Mas, Bond adivinhava muitas qualidades duras e afiadas, por trás daquela fachada de bilu-bilu.

Os olhos sensíveis de Mr. Du Pont surpreenderam a espiada de Bond ao relógio. E ele próprio consultou o seu:

— Puxa vida! Sete horas e eu aqui a falar a falar, sem entrar no assunto de fato. Agora, escute, Mr. Bond: arranjei uma encrenca prá mim mesmo e gostaria muitíssimo, mesmo, que o senhor a analisasse e me desse uma orientação. Se o senhor puder me conceder o tempo e se estiver, mesmo, decidido a permanecer em Miami esta noite, consideraria realmente um favor. Isso se o senhor me permitisse ser seu anfitrião. — Mr. Du Pont levantou a mão: — Bom, penso que posso prometer-lhe que lhe assegurarei uma estada confortável. Acontece que possuo uma parte do Hotel Floridiana. Talvez o senhor tenha ficado sabendo que o inauguramos no último Natal? E estamos fazendo um ótimo movimento, me alegro de dizer. Realmente empurrando prá frente aquela pequena Fountain Blue. — Mr. Du Pont riu indulgentemente. — É como a gente chama Fontainebleau, por aqui. Bem, o que é que o senhor diz, Mr. Bond? Teremos o melhor apartamento — mesmo que isso queira significar botar um bom freguês no meio da rua. E o senhor estaria me fazendo um verdadeiro favor. — Mr. Du Pont olhou implorativamente.

Bond já havia decidido aceitar — no escuro. Qualquer que fosse o problema de Mr. Du Pont — chantagem, gangsters, mulheres — seria uma forma típica de preocupação de homem rico. Por isso, qualquer coisa queria dizer um pedaço de boa vida que Bond estava querendo encontrar. Aceitaria a oferta. Bond começara a dizer qualquer coisa, em tom de ressalva, quando Mr. Du Pont interrompeu: — Oh, por favor, Mr. Bond, por favor! Acredite-me: estou muito grato, realmente agradecido, mesmo!

Estalou os dedos para chamar de novo a garçonete. Quando ela chegou, ele se virou e pagou a conta, escondido de Bond. Como muitos homens muito ricos, considerava que mostrar seu dinheiro, deixar que alguém visse o quanto dava de gorjeta, chegava a constituir uma demonstração indecente. Recolocou o maço de notas no bolso das calças (o bolso de trás não é lugar, entre os ricos), e pegou Bond pelo braço. Sentiu a resistência de Bond ao contato e retirou a mão.

— Agora, vamos somente cuidar de pôr em ordem sua reserva. — Mr. Du Pont se dirigiu até o balcão da Transamérica. Com algumas frases curtas e rápidas, Mr. Du Pont, então, mostrou seu poder e seu prestígio na sua América. — Certo, Mr. Du Pont. Naturalmente, Mr. Du Pont. Eu mesmo me encarregarei disso, Mr. Du Pont. — Era o empregado da empresa, solícito.

Lá fora, um rebrilhante Chrysler Imperial estava parado na saída. Um motorista de aspecto truculento, com um uniforme bege, apressou-se a abrir a porta. Bond entrou e se acomodou no estofamento. O interior do carro estava deliciosamente fresco, quase frio. O empregado da Transamérica veio correndo com a valise de Mr. Du Pont, deu-a ao chofer e, com uma meia mesura, voltou para a estação.

— "Bill da Praia" — ordenou Mr. Du Pont ao chofer e o enorme carro deslizou através do parque de estacionamento para a avenida exterior.

— Espero que o senhor goste de caranguejos, Mr. Bond. Já experimentou?

Bond respondeu que sim, que os havia experimentado e achado deliciosos.

Mr. Du Pont falou sobre o restaurante "Bill da Praia", sobre a relatividade do mérito entre os caranguejos cascudos e os do Alasca, enquanto o Chrysler Imperial corria através de Miami baixa, pelo Boulevard Biscayne, através da Baía de Biscayne, pela avenida Douglas McArthur. Bond respondia com observações apropriadas, deixando-se levar pela doce cascata multiforme da velocidade, conforto e graciosa conversação.

Pararam em frente a uma fachada de estuque e compensado, tudo pintado de branco. Riscos de néon rosado informavam: "Bill da Praia". Enquanto Bond saltava, Mr. Du Pont dava suas ordens ao motorista. Bond ouviu isto: "O apartamento Aloha. E se houver algum problema, diga a Mr. Fairlie que me telefone pra cá, entendeu?"

Subiram os poucos degraus, então. Dentro, o grande salão estava decorado em branco, com drapeados rosas sobre as janelas. Havia luzes rosas nas mesas. O restaurante estava cheio de gente queimada de sol, usando custosas roupas tropicais — camisas brilhantemente estampadas, tilintantes balangandãs de ouro, óculos escuros, com aros enfeitados de jóias, curiosos chapéus de palha. Havia uma confusão de odores. O odor acre dos corpos, que haviam estado o dia inteiro expostos ao sol, podia ser sentido.

Bill, um italiano gorducho, apressou-se a atendê-los.

— Ora, Mr. Du Pont, é um prazer! Um pouco cheio, hoje. Logo lhe arranjo as coisas. Por favor, por aqui. — Segurando sobre a cabeça um enorme cardápio encadernado em couro, o homem furou pelo meio dos que jantavam, até a melhor mesa do local, uma de ponta, para seis pessoas. Puxou duas das cadeiras, estalou os dedos para chamar o "maître" e o garçom dos vinhos, abriu dois cardápios em frente a eles, trocou cumprimentos com Mr. Du Pont e se afastou.

Mr. Du Pont fechou seu cardápio energicamente. E disse a Bond:

— Bem, por que é que não confia isto a mim? Se vier alguma coisa de que o senhor não goste, é só mandar de volta. — E, para o "maître": — Caranguejos cascudos. Nada de congelados: frescos. Manteiga derretida. Torradas grossas. Está certo?

— Muito bem, Mr. Du Pont. — O garçom dos vinhos, esfregando as mãos, assumiu o lugar do "maître", que se afastara.

— Duas garrafas de champanha rosada. A Pommery, 1950. Em jarra de prata. Certo?

— Muito bem, Mr. Du Pont. Um aperitivo, para começar? Mr. Du Pont voltou para Bond. Sorriu e fez a indagação, com um levantar de sobrancelhas. Bond respondeu:

— Martini de vodca, por favor. Com um pedacinho de casca de limão dentro. — Traga dois — disse M. Du Pont — duplos. — O garçom dos vinhos apressou-se a se afastar. Mr. Du Pont recostou para trás e puxou seus cigarros e o isqueiro. Olhou ao redor, pelo salão, respondeu a um ou dois acenos de mão com sorrisos e levantar de braço e espiou as mesas vizinhas. Puxou a cadeira para mais perto de Bond.

— Receio que nada se possa fazer com o barulho — comentou, desculpando-se. Só venho aqui por causa dos caranguejos. São do outro mundo! Espero que o senhor não seja alérgico a eles...? Uma vez eu trouxe uma garota aqui e lhe mandei servi-los. Seus lábios incharam que nem dois pneus de bicicleta.

Bond se divertia com a mudança operada em Mr. Du Pont — a conversa empolada, a petulância com que falava, uma vez convencido de que tinha fisgado Bond para a sua folha de serviço. Já era um homem diferente do embaraçado cavalheiro que se aproximara de Bond, solícito, no aeroporto. O que desejaria Mr. Du Pont de Bond? A proposta deveria vir a qualquer momento, agora.

— Não. Não tenho nenhuma alergia — assegurou Bond.

— Ótimo. Muito bom.

Houve uma pausa. Mr. Du Pont bateu com a tampa do isqueiro várias vezes, para cima e para baixo. Percebeu, então, que estava fazendo um barulhinho irritante e o botou longe, na mesa. Então falou, botando as duas mãos sobre a toalha, à sua frente:

— O senhor já jogou canastra, Mr. Bond?

— É um bom jogo. Eu gosto.

— Canastra a dois? Mano a mano?

— Já joguei. Mas não é muito divertido, não. Se não fizer besteiras — nem um nem outro jogador — a tendência é empatar. A lei das probabilidades, no baralho. Não há chance de grandes diferenças, nesse jogo.

Mr. Du Pont concordou enfaticamente:

— Isso mesmo. É isso que venho dizendo a mim mesmo. Depois de umas cem partidas, ou por aí, dois jogadores equivalentes tendem a empatar. Não é como outros jogos mas, de certa forma, é exatamente isso de que eu gosto nele. Passa o tempo, a gente maneja uma porção de cartas, tem seus altos e baixos mas ninguém sai muito mordido. Certo?

Bond assentiu. Os martinis vieram. Mr. Du Pont disse ao garçom das bebidas:

— Traga mais dois, em dez minutos. — Beberam. Mr. Du Pont voltou-se e encarou Bond. Sua expressão era petulante, seu rosto endurecido. E disse: — O que é que o senhor diria, Mr. Bond, se eu lhe contasse que perdi, numa semana, 25 mil dólares, jogando canastra mano a mano? — — Bond já ia responder, quando Mr. Du Pont o impediu, com um gesto de mão: — E note, Mr. Bond, sou um bom jogador de cartas. Membro do Regency Club. Joguei muito com gente como Charlie Goren, Johnny Crawford — bridge, naturalmente. O que quero dizer é que sei o que faço, numa mesa de baralho. — Mr. Du Pont perscrutou os olhos de Bond.

— Se o senhor jogou com o mesmo homem, sempre, foi roubado.

— Isso mesmo! — Mr. Du Pont bateu na mesa. Endireitou-se para trás. — Isso mes-mo! Isso mesmo que eu disse a mim, depois de vir perdendo — perdi por quatro dias seguidos. Por isso, disse a mim mesmo: esse filho daquilo está me roubando e poxa vida, vou descobrir como é que ele faz. Daí o expulso de Miami. Aí, dobrei as paradas uma vez e dobrei ainda outra vez. Ele ficou muito feliz com isso. Eu fiquei vigiando cada carta que ele jogava, cada movimento que fazia! Nada! Nem um sinal, nem uma pista. As cartas não eram marcadas. Mudava-se de maço de baralho, cada vez que eu desejasse. Minhas próprias cartas: nada. Nunca olhava para as minhas, enquanto eu me sentei ali, à sua frente. Nenhum "sapo" para dar-lhe sinal. E ele continuava ganhando, ganhando sempre. Ganhou de novo, hoje de manhã. E, novamente, esta tarde. Finalmente, fiquei tão maluco com aquele jogo — não demonstrei, saiba o senhor... — Bond poderia pensar que ele não tivera espírito esportivo. — Paguei tudo, direitinho, muito polidamente. Mas, sem dizer nada a esse sujeito, arrumei as malas, fui para o aeroporto e comprei passagem no primeiro avião para Nova York. Imagine só! — Mr. Du Pont ergueu as mãos desconsoladamente. — Eu, fugindo! Mas, 25 mil dólares são 25 mil dólares... Eu podia antevê-los subindo a 50 mil, a 100 mil. Daí, eu não poderia mais tolerar outra partida desse raio de jogo e não poderia tolerar o fato de não ser capaz de pegar esse sujeito no pulo. Por isso, fugi. Que é que o senhor acha? Eu, Junius Du Pont, jogando a toalha, só porque não agüentava perder mais?

Bond grunhiu com simpatia. A segunda rodada dos aperitivos chegara. Bond estava ligeiramente interessado. Sempre se interessara por jogos de cartas. Podia imaginar a cena, os dois homens jogando e jogando, um deles quietamente baralhando, dando as cartas, marcando seus pontos, e o outro sempre jogando suas cartas no meio da mesa, num gesto de controlada irritação. Mr. Du Pont tinha sido obviamente roubado. Mas, como? Bond perguntou:

— Vinte e cinco mil dólares é um bocado de dinheiro. A como vinham jogando?

Mr. Du Pont fez um ar de coitado:

— Primeiro a um quarto, depois a 50 cents e, no fim, a 1 dólar o ponto. Acho que é muito caro, com as partidas chegando geralmente a 2 mil pontos. Mesmo a 1 quarto de dólar, isso dá 500 dólares por partida. A 1 dólar o ponto, se se continua a perder, é de matar.

— O senhor deve ter ganho algumas vezes.

— Claro mas, de alguma forma, quando eu estava pronto para surpreender o filho daquilo com as mãos cheias de cartas, ele dava um jeito de descartar o quanto mais podia. Aliviava da mão os pontos que ia perder. Claro, cheguei a ganhar alguns trocados mas, somente quando ele precisava de 120 para arriar as cartas e eu tinha, na mão, um monte de cartas loucas. Mas, o senhor sabe como é na canastra: tem que descartar direito. Pode-se, naturalmente, aprontar uma cilada, prá fazer com que o outro jogador lhe deixe o monte de descarte. Raio de sujeito! Parecia adivinho! Sempre que eu preparava uma cilada assim, ele "comprava" a mesa inteira e me deixava na mão. E toda a vez que ele preparava uma dessas, eu embarcava nela! Parecia que ele estava sabendo tudo quanto era carta que eu tinha na mão.

— Tem algum espelho, onde vocês jogam?

— Claro que não! A gente joga ao ar livre. Ele disse que queria se queimar ao sol. E, sem dúvida, se queimou mesmo. Está mais vermelho que uma lagosta. E só joga de dia — de manhã e de tarde. Diz que, se jogar à noite, não pode dormir.

— Quem é esse homem, afinal? Qual é o nome dele?

— Goldfinger.

— Primeiro nome?

— Auric. Isso quer dizer dourado, não é? Dourado Dedo de Ouro. E ele é isso mesmo: tem cabelos vermelhos, que nem fogo.

— Nacionalidade?

— Pode não acreditar, mas é britânico. Mora em Nassau. A gente pode ter a impressão de que seria judeu, por causa do nome, mas ele não parece. Nós somos muito exigentes, aqui no Floridiana. Ele não entraria aqui, se fosse judeu. Carrega passaporte de Nassau. Idade, quarenta e dois. Solteiro. Profissão, corretor. Consegui saber tudo isto pelo seu passaporte. Dei uma espiada no documento, via detetive da casa, quando comecei a jogar com ele.

— Que espécie de corretor? Du Pont sorriu sem graça:

— Perguntei e ele me respondeu: — Oh, de qualquer coisa que apareça. — É um sujeito muito evasivo. Sempre dribla se a gente faz uma pergunta direta. Tem uma conversinha muito agradável — mas, nunca diz nada!

— E quanto é que ele vale?

— Ah! — explodiu Mr. Du Pont — Isso que é infernal. O sujeito está cheio. Estufado, mesmo! Pedi ao meu banco que checasse com Nassau. E ele tem dinheiro que não acaba mais. Os milionários são muitíssimos, lá em Nassau, mas ele está colocado no primeiro ou no segundo lugar, entre todos. Parece que conserva sua fortuna em barras de ouro. E as faz viajar um bocado, pelo mundo inteiro, prá tirar proveito das diferenças de câmbio, nos diversos países. Parece o raio dum banco federal, o sujeito. Não confia em dinheiro corrente. Bom, não posso dizer que ele não tenha razão nisso, e a gente vendo que ele é um dos homens mais ricos do mundo, se convence que tem que haver qualquer coisa de bom no sistema dele. Mas, o negócio é o seguinte: se ele é tão rico assim, por que raios vai querer me tomar uma porcaria de 25 mil dólares?

Um movimento de garçons ao redor da mesa, salvou Bond de ter que pensar numa resposta. Cerimoniosamente, uma bandeja de prata enorme, com caranguejos enormes, as garras e a casca abertas, foi colocada no centro da mesa. Uma tigela de fumegante manteiga derretida e uma fieira de fatias de torrada foram colocadas ao lado de cada um dos pratos. A jarra de champanha espumava rosada. Finalmente, com um untuoso sorriso, o "maître" se postou atrás das cadeiras e lhes amarrou, um cada vez, guardanapos de seda, que se estendiam até os joelhos.

Bond se lembrou de Charles Laughton no papel de Henrique VIII, mas nem Mr. Du Pont nem os comensais das mesas próximas pareciam surpreendidos com os esquisitos arranjos. Mr. Du Pont com um aviso guloso de "cada um por si" puxou vários pedaços de caranguejo para seu prato, regou-os generosamente com a manteiga derretida e se lançou à comida. Bond seguiu-lhe o exemplo e começou a comer — melhor, a devorar — a mais deliciosa refeição que já tivera na sua vida inteira.

A carne do caranguejo era a mais tenra e a mais gostosa de todos os crustáceos que já havia experimentado. Casava perfeitamente com a torrada seca e o gosto, ligeiramente queimado, da manteiga derretida. A champanha parecia ter um ligeiro sabor de cerejas. Estava geladíssima. A cada pedaço de caranguejo, a champanha limpava o paladar para o próximo. Eles comeram num ritmo firme, completamente absorvidos, e quase não chegaram a trocar uma palavra, até que os pratos estivessem vazios.

Com um ligeiro arroto, Mr. Du Pont, pela última vez, limpou os lábios e o queixo com a ponta do guardanapo de seda e se recostou para trás. Seu rosto estava corado. Olhou triunfalmente para Bond, dizendo, reverentemente:

— Mr. Bond, duvido que, em todo o mundo, alguém tenha comido um jantar tão bom como este aqui. Que é que o senhor diz?

Bond pensou: eu estava querendo uma boa vida, uma vida de rico. Será que eu gosto? Será que eu gosto de comer como um porco e de ouvir observações como essa? De repente, a possibilidade de ter outra refeição como aquela, ou de qualquer refeição junto de Mr. Du Pont o revoltou. Sentiu-se momentaneamente envergonhado de seu desgosto. Tinha querido aquilo e aquilo lhe tinha sido dado. O que havia de puritano nele é que não aceitava. Tinha pensado num desejo e o desejo lhe fora enfiado pela garganta a dentro. Respondeu, então!

— Bom, disso não sei. Só sei que estava realmente muito bom.

Mr. Du Pont mostrava-se realmente satisfeito. Chamou o café. Bond recusou a oferta de charutos ou licores. Acendeu um cigarro e ficou esperando, com interesse, que o caso se aclarasse. Sabia que tinha que haver um. Era óbvio que tudo aquilo ali fazia parte do envolvimento. Bem, deixa vir.

Mr. Du Pont limpou a garganta:

— E agora, Mr. Bond, tenho uma proposta para lhe fazer. — Olhou para Bond, tentando adivinhar a reação.

— Bem... ?

— Foi certamente providencial encontrar-me com o senhor, assim, no aeroporto. — A voz de Mr. Du Pont era grave, séria. — Nunca irei me esquecer do nosso primeiro encontro no Royale. Lembro-me de todos os detalhes — sua calma, sua coragem, seu jeito de lidar com as cartas. — Bond baixou os olhos para a toalha da mesa. Mas, Mr. Du Pont já se cansara da própria peroração e continuou, apressadamente: — Mr. Bond, eu lhe pagarei dez mil dólares para ficar aqui como meu hóspede, até que descubra como esse Goldfinger me furta nas cartas.

Bond olhou Du Pont nos olhos:

— É uma bela oferta, Mr. Du Pont. Mas preciso voltar a Londres. Preciso estar em Nova York para apanhar meu avião, em 48 horas. Se o senhor jogar suas partidas costumeiras amanhã cedo e amanhã de tarde, eu teria tempo de sobra para encontrar a solução. Mas terei que partir amanhã à noite, quer eu tenha podido ajudar o senhor ou não. Feito?

— Feito! — aceitou Mr. Du Pont.

 

                                         O homem com agorafobia

O ruído das cortinas acordou Bond. Puxou o lençol simples e andou pelo tapete macio e grosso até a janela que cobria toda uma parede. Abriu as cortinas e passou ao alpendre ensolarado.

O piso branco e preto, em forma de tabuleiro de xadrez, estava quente, quase lhe queimando os pés, embora não pudessem ser mais de oito horas. Uma brisa forte soprava do mar, fazendo ondular as bandeiras de todas as nações, hasteadas na enseada dos iates particulares. A brisa era úmida e cheirava fortemente a mar. Bond adivinhou que era uma brisa que os visitantes adoravam e os residentes odiavam. Enferrujaria os metais das casas, enrolaria as páginas dos livros, faria apodrecer o papel de parede e as pinturas e estragaria as roupas. Doze andares abaixo, os jardins pontilhados de palmeiras e canteiros de cores rebrilhantes, eram recortados por alamedas de cascalho cuidadosamente desenhadas. Jardineiros trabalhavam, limpando as passagens e recolhendo as folhas, com movimentos de letárgico vagar. Duas cortadeiras funcionavam e, onde já haviam passado, a água era alegremente borrifada pelos chuveirinhos de jardim.

Diretamente abaixo de Bond, a graciosa curva do Cabana Clube escorria para a praia, — dois andares de quartos para trocar de roupas sob um teto plano, onde se viam cadeiras e mesas e um ou outro guarda-sol de praia, em listas brancas e vermelhas. Perto da curva, estava a piscina olímpica, ilhada, por todos os lados, de espreguiçadeiras, nas quais os hóspedes logo estariam para seus banhos de sol de 50 dólares. Homens de paletó branco se movimentavam entre elas, arrumando as cadeiras simètricamente, virando as almofadas e recolhendo as pontas de cigarros. Mais adiante, a longa e dourada praia e o mar — e mais homens: varriam a areia, abriam os pára-sóis, estendendo as almofadas. Não era à toa que o cartão, por dentro da porta do guarda-roupa do quarto de Bond, informava ser, o preço diário do apartamento, de 200 dólares. Bond fez cálculos rápidos: se tivesse que pagar a conta, levaria apenas três semanas para gastar seu salário do ano inteiro. Sorriu alegremente para si mesmo. Voltou ao quarto, apanhou o telefone e pediu um generoso breakfast, um pacote de cigarros Chesterfield (tamanho grande) e os jornais.

Quando terminou de se barbear e já tomara uma ducha fria, vestiu-se: eram oito horas. Atravessou a elegante sala de estar e encontrou um garçom de casaco branco e cordões dourados a servir a mesa do café, ao lado da enorme janela. Bond olhou o jornal "Miami Herald". A primeira página era devotada inteiramente ao fracasso, no dia anterior, de um foguete em Cabo Canaveral e a incidentes num grande prêmio, no hipódromo de Hialeah.

Sentou-se à mesinha, largou o jornal no chão e, vagarosamente, tomou o café, pensando em Mr. Du Pont e em Mr. Goldfinger. Seus pensamentos não chegaram a nenhuma conclusão. Mr. Du Pont ou era pior jogador do que ele próprio se acreditava (o que parecia improvável, em conseqüência das observações de Bond sobre o seu caráter forte e perspicaz), ou Goldfinger era um malandro. Se Goldfinger furtava no jogo, apesar de não precisar de dinheiro, seria certo que fizera sua fortuna roubando em outros negócios de escala muito maior. Bond estava sempre interessado em grandes ladrões. Também esperava poder inteirar-se do método altamente vitorioso (e altamente misterioso), de Goldfinger embromar Du Pont. Seria, sem dúvida, um dia muito divertido. Bond ficou esperando o momento de entrar em ação.

O plano acertara que deveria encontrar-se com Du Pont, no jardim, às 10 horas. A história seria a de que viera, de avião, de Nova York, para tentar fazer M. Du Pont comprar uma quota de ações, que determinada empresa inglesa possuía, de uma companhia canadense de gás. O assunto era altamente sigiloso e Goldfinger não ousaria inquirir Bond sobre detalhes. Ações, gás natural, Canadá — era tudo de que Bond precisava se lembrar. Iriam todos para o teto do Cabana Clube, onde o jogo se desenvolveria: Bond leda seu jornal e vigiaria. Depois do almoço, durante o qual Bond e Du Pont discutiriam seus "negócios", a rotina se repetiria. Du Pont havia perguntado se alguma coisa mais precisaria ser acertada. Bond solicitara o número do apartamento de Mr. Goldfinger e uma chave-mestra. Explicou que, se Goldfinger fosse um malandro de jogo de qualquer espécie, ou mesmo um amador bem treinado, teria que viajar com o "material" usual: cartas preparadas e marcadas, aparelho para esconder baralho na manga, etc. Du Pont afirmou que daria a chave-mestra a Bond, quando ambos se encontrassem no jardim. Não teria dificuldades em obter uma, do gerente.

Depois do breakfast, Bond espaireceu, olhando o mar. Não estava preocupado com o serviço que tinha nas mãos, mas apenas interessado e divertido. Era exatamente a espécie de serviço de que necessitava, para aliviar-se, depois da missão no México.

Às 9,30 Bond deixou seu apartamento e andou pelos corredores do andar, perdendo-se no caminho para o elevador, com o fito de decorar a disposição da planta do hotel. Então, tendo se encontrado com a mesma camareira duas vezes, perguntou pelo caminho: entrou no elevador, em meio aos outros raros hóspedes que se levantavam cedo. Deu uma espiada pela galeria de lojas, pelo bar, pelo salão do restaurante, pela saleta das crianças, cada um dos quais com seu nome próprio. Daí, saiu decididamente para o jardim. Mr. Du Pont, agora "vestido para a praia" por Abercrombie & Fitch, deu-lhe a chave-mestra para o apartamento de Goldfinger. Dirigiram-se para o Cabana Clube e subiram os dois lances curtos de escada.

A primeira visão que Bond teve de Mr. Goldfinger foi estarrecedora: na extremidade mais distante do teto, logo abaixo da parede do hotel, um homem estava deitado de costas, com os pés numa almofada. Ele não vestia nada além de um biquíni de cetim amarelo, óculos escuros e um par de pequenas asas de metal niquelado em baixo do queixo. As asas, que pareciam se encaixar ao redor de seu pescoço, se estendiam para além dos ombros, ligeiramente curvada nas pontas redondas. Bond perguntou:

— Que diabo ele está usando no pescoço?

— Nunca viu um disso, não? — Mr. Du Pont estava espantado. — É um aparelho para auxiliar a gente se bronzear no sol. Reflete o sol para cima, para baixo do queixo e das orelhas — os lugarzinhos que, normalmente, não pegam sol.

— Ora, veja só! — comentou Bond.

Quando estavam a pouca distância da figura deitada, Du Pont chamou no que pareceu a Bond um grito alto demais:

— Alô! Bom dia! — Goldfinger nem se mexeu. Du Pont explicou em voz normal: — Ele é muito surdo.

Estavam, então, pertinho de Goldfinger e Du Pont repetiu a saudação. Mr. Goldfinger sentou-se vivamente. Tirou os óculos escuros e saudou:

— Ora, ora, alô! — Cuidadosamente retirou as asinhas de redor do pescoço, colocou-as no chão a seu lado e, pesadamente, levantou-se. Olhou para Bond com uns olhos vagarosos e perscrutadores.

— Quero lhe apresentar Mr. Bond, Mr. James Bond, meu amigo de Nova York. Um patrício seu. Veio até aqui, para ver se me convence a topar um pequeno negócio.

Goldfinger estendeu a mão:

— Prazer em conhecê-lo, Mr. Bomb.

Bond apertou-lhe a mão, que era vigorosa e seca. Sentiu-se uma breve pressão e, depois, foi retirada. Por um instante, os olhos de um azul pálido de Goldfinger se abriram muito, para fixar-se em Bond. Pareciam penetrar através de seu crânio, até o pescoço. Então, as pálpebras se baixaram, o diafragma baixou sobre o raio X e Mr. Goldfinger removeu o filme exposto, para escondê-lo lá dentro, no seu sistema de arquivo de memória.

— Então, hoje não tem jogo. — Sua voz era descobrida, plana. Fora mais uma afirmativa, que uma pergunta.

— Que é que quer dizer, não tem jogo? — exclamou Mr. Du Pont sofregamente. — Não está pensando que vou deixá-lo ficar com o meu dinheiro? Tenho que desforrar, senão não vou poder deixar o diabo deste hotel! — Mr. Du Pont tossiu generosamente: — Já vou dizer ao Sam que arranje a mesa. O James aqui diz que não conhece muita coisa sobre baralho mas gostaria de aprender o jogo. Não é isso, James? — Virou-se para Bond: — Você acha que estará a seu gosto, com o jornal e o sol?

— O descanso me fará muito bem — respondeu Bond.

— Tenho viajado muito.

De novo os olhos do homem seminu pousaram em Bond:

— Vou vestir alguma coisa. Tinha planejado tomar uma lição de golfe com Mr. Armour, na Boca Raton. Mas, o baralho tem prioridade, entre os meus divertimentos. Minha tendência para torcer os punhos muito cedo, com os tacos médios, tem que esperar. — O olhar pousou neutro em Bond.

— O senhor joga golfe?

Bond elevou a voz:

— Só de vez em quando, quando estou na Inglaterra.

— E lá, onde o senhor joga?

— Em Huntercombe.

— Ah! Um campinho muito agradável. Recentemente, entrei para o Royal St. Marks. Fica perto de onde tenho negócios. O senhor conhece aquilo?

— Eu já joguei por ali.

— E qual foi o seu placar?

— Nove.

— Ora, isso é uma coincidência: também o meu é isso. Qualquer dia precisamos disputar uma partida. — Mr. Goldfinger se abaixou e pegou suas asinhas. Disse, então, a Mr. Du Pont: — Estarei de volta em cinco minutos. — Saiu, andando vagarosamente em direção às escadas.

Bond estava achando graça: a investigação social sobre ele tinha sido realizada com a exata casualidade do magnata que nem queria saber se Bond estava vivo ou não existia; mas, desde que estava vivo e ali perto, o melhor seria classificá-lo e botá-lo no seu devido lugar.

Mr. Du Pont deu ordens a um empregado de casaco branco. Outros já haviam arrumado a mesa de jogo. Bond se aproximou da amurada de ferro que cercava o teto e ficou espiando o jardim lá embaixo, pensando em Goldfinger.

Estava impressionado. Goldfinger aparentava um dos homens mais à vontade que Bond já havia encontrado. Isso se percebia pela economia com que falava, com que se movimentava, das suas expressões. Mr. Goldfinger não desperdiçava nenhum esforço, ao mesmo tempo em que se adivinhava qualquer coisa de tenso, de comprimido na imobilidade do homem.

Quando Goldfinger se levantara, a primeira coisa que impressionara Bond fora a de que tudo nele estava fora de proporção: Goldfinger era baixo, não mais de 1,60 e, além das pernas serem grossas, grosseiras mesmo, estava plantada como quase diretamente sobre os ombros uma cabeça quase perfeitamente redonda. Parecia que Goldfinger havia sido montado com pedaços de corpos de outras pessoas. Nada parecia pertencer-lhe. Talvez, pensou Bond, seja para disfarçar a feiúra de seu corpo, que Goldfinger tomava tão a sério o queimar-se ao sol. Sem a camuflagem vermelho-marrom, o corpo pálido seria simplesmente grotesco. O rosto, embaixo dos cabelos-de-milho cortados à militar, era da mesma forma espantosa como o corpo, também sem ser tão feia. Tinha a forma de lua, sem parecer-se nada com lua nenhuma. A testa era bela e alta e as sobrancelhas cor de areia se alinhavam acima dos olhos grandes e iluminadamente azuis, emoldurados por pálidos cílios. O nariz, carnudo e aquilino, se plantava entre as maçãs do rosto pronunciadas, mais por músculos que por gordura. A boca era fina e reta mas belamente desenhada. O queixo e as mandíbulas eram firmes e exteriorizavam saúde. Somando-se tudo, pensou Bond, ter-se-ia a face de um pensador, talvez um cientista, que seria cruel, sensual, estóico e duro. Uma estranha combinação.

O que mais poderia adivinhar? Bond nunca chegara a confiar em homens pequenos. Eles crescem, desde a infância, com um complexo de inferioridade. Por toda sua vida lutam e sonham por ser grandes — maior do que os outros que os importunaram e ridicularizaram quando crianças. Napoleão e Hitler foram homenzinhos de pequena estatura. Eram os homens pequenos que sempre causaram as maiores encrencas para o mundo. E o que seria um homenzinho esquisito de cabelos vermelhos e rosto bizarro? Isso poderia resultar numa encrenca formidável. Podia-se certamente sentir que ele se segurava, represava impulsos. Havia uma casa de força zumbindo dentro do tal homem e se poderia ter a impressão de que, se se pusesse uma lâmpada na boca de Goldfinger, ela se acenderia. Bond sorriu ao pensar isso. De que jeito Goldfinger aliviava sua força vital? Lutando pela riqueza? No sexo? Reunindo poder pessoal? Provavelmente, em todos juntos. E qual seria sua história? Hoje, ele se apresentava como britânico. Mas, o que teria nascido? Logicamente, nada de latino, nem qualquer outra coisa mais nessa direção. Nada de eslavo. Talvez alemão — não! Báltico. De lá é que deveria ter vindo. Uma das velhas províncias bálticas. Por certo, fugira, para se livrar dos russos. Goldfinger poderia ter sido avisado ou seus pais, cheirando o perigo, o tiveram botado a salvo. E o que teria acontecido, então? Como teria lutado para se transformar num dos homens mais ricos do mundo? Um dia seria interessante descobrir isso. Por enquanto, já seria bastante descobrir como ele conseguia ganhar sempre no baralho.

— Tudo pronto? — Mr. Du Pont gritou para Goldfinger, que já vinha em direção à mesa de jogo. Inteiramente vestido, usava um confortável terno azul, que lhe assentava perfeitamente, e uma camisa branca, esporte, aberta no colarinho — era uma figura quase passável. Mas não havia disfarce para a grande cabeça redonda, marrom-vermelha. E, certamente, o aparelhinho cor de carne, que aparecia pendurado na orelha esquerda, não constituía melhora nenhuma.

Mr. Du Pont sentou-se de costas para o hotel. Goldfinger tomou o assento fronteiro e cortou as cartas. Du Pont ganhou o corte, empurrou metade do maço para Goldfinger deu um tapinha para mostrar que já estava baralhado e Goldfinger começou a dar as cartas. Bond deu alguns passos e escolheu uma cadeira ao lado de Du Pont. Recostou-se e se pôs à vontade. Fez um barulhão com o jornal, abrindo-o na seção de esportes, e começou a vigiar.

Por alguma razão, Bond esperava aquilo: aquele homem não era um malandro de jogo. Goldfinger dava cartas rápida e eficientemente, mas, sem nenhum detalhe do profissional: aquela posição dos três dedos dobrados por baixo do maço de baralhos e o índex na extremidade superior de fora — o jeito de pegar que indicara estar o jogador pronto a tirar cartas de baixo ou as que estão em segundo lugar. E não havia anel para ver as cartas por baixo, ou esparadrapo para marcá-las.

Mr. Du Pont se virou para Bond, explicando o jogo: — A gente dá 15 cartas para cada um. A gente compra duas e descarta uma. O resto é normal. Nada de misturada com o valor delas, especialmente nada daquelas embrulhadas européias neste jogo. — Du Pont se referia às inovações que apareciam no jogo, pelo mundo afora.

Du Pont pegou suas cartas. Bond notou que ele as arrumava com segurança, sem as manias dos principiantes: botar as cartas pelo valor crescente da esquerda para a direita, e as isoladas bem no canto esquerdo, o que daria uma vantagem ao adversário, que perceberia isso. Mr. Du Pont concentrava suas cartas boas no meio da mão, com as isoladas e seguidas furadas nas pontas, dos dois lados.

O jogo começou. Mr. Du Pont comprou primeiro, um incrível par de cartas loucas. Sua face nada demonstrou. Descartou calmamente. Precisaria somente duas outras compradas, para baixar tudo. Mas teria que ter sorte. Comprar duas cartas cada vez duplica a possibilidade de ficar com cartas loucas, enchendo a mão.

Goldfinger jogava de um jeito mais deliberado, irritantemente vagaroso. Após comprar, ele mexia e remexia nas suas cartas, antes de se decidir qual descartar.

Já na terceira jogada, Du Pont havia melhorado seu jogo ao de, agora, precisar apenas uma (entre cinco cartas), para baixar o jogo, bater e pegar o adversário com a mão cheia de cartas — o que se contaria como pontos perdidos. Como se Goldfinger soubesse o perigo que corria, ele baixou cinqüenta pontos e começou a fazer uma canastra com três cartas loucas e uma quadra de cinco. Também se livrou de algumas cartas inúteis e terminou a jogada com apenas quatro cartas na mão. Em qualquer outra circunstância, seria uma jogada ridiculamente ruim, a sua. Mas, como a situação estava, ele havia feito uns duzentos pontos, ao invés de perder uns cem pois, na outra comprada, Du Pont conseguiu a carta que precisava e bateu. Contudo, o melhor da batida havia sido anulado pela jogada de Goldfinger.

— Quase eu o pegava desta vez, heim? — A voz de Du Pont chegava às raias da exasperação: — Que diabo foi lhe deu, pra baixar assim?

Goldfinger disse simplesmente:

— Cheirei o perigo. — Contou os pontos que fizera, deixou suas cartas na mesa, anunciou o total e ficou esperando que Du Pont fizesse o mesmo. Depois, cortou o baralho, recostou-se na cadeira e olhou para Bond com ligeiro interesse: — O senhor ficará muito tempo por aqui, Mr. Bomb?

James sorriu:

— É Bond, meu nome: — B-o-n-d. Não: tenho que voltar hoje à noite para Nova York.

— Que pena. — A expressão de Goldfinger foi apenas polida. Ele se voltou para as cartas e o jogo continuou. Goldfinger ganhou essa mão e a outra, e mais outra e mais outra. Ganhou a partida. Foi por uma diferença de 1.500 pontos — 1.500 dólares para Goldfinger.

— Olha aí acontecendo de novo! — Era a voz desconsolada de Du Pont. Bond baixou seu jornal e perguntou:

— Ele usualmente ganha?

— Usualmente? Ele ganha sempre! — O desespero em Du Pont era claro. Cortaram de novo e Goldfinger começou a dar cartas. Bond perguntou:

— Vocês não sorteiam lugar? Eu sempre achei que uma mudança de lugar pode mudar a sorte. Inquilinos da fortuna, não é?

Goldfinger interrompeu a dada de cartas. Voltou gravemente seu olhar para Bond:

— Infelizmente, Mr. Bond, isso não é possível, ou eu não jogaria. Como expliquei a Mr. Du Pont, em nosso primeiro jogo, sofro de um complexo — agorafobia — o medo dos espaços abertos. Não agüento olhar para os horizontes infinitos. Preciso me sentar olhando para o hotel. — E continuou a dar cartas.

— Oh, sinto muito! — A voz de Bond era grave e interessada. — É uma doença muito rara. Sempre fui capaz de entender a claustrofobia, mas nunca o exatamente oposto. Como é que isso se deu?

Mr. Goldfinger pegou suas cartas e começou a arrumá-las na mão:

— Não tenho a menor idéia — respondeu, numa entonação neutra.

Bond se levantou:

— Acho que vou esticar as pernas, um pouco. Vou ver o que está acontecendo pela piscina.

— Faça isso mesmo, James. Divirta-se e descanse. A gente vai ter muito tempo para falar de negócios durante o almoço. Vou ver se consigo engolir meu amigo Goldfinger, desta vez, ao invés de ele me engolir sempre. Eu te vejo mais tarde.

Goldfinger não levantou os olhos de suas cartas. Bond seguiu pelo teto, pelo meio de ocasionais corpos expostos ao sol, ao alambrado mais distante, que ficava diretamente sobre a piscina. Por algum tempo ficou ali, a espiar a fieira de nudez rosa, branca ou marrom, disposta lá em baixo, nas cadeiras de navio. O forte odor de óleos bronzeadores subiu até ele. Havia algumas crianças e alguns jovens na piscina. Um homem, obviamente um mergulhador profissional, talvez o instrutor de natação, estava na plataforma mais alta. Ele pulava na ponta dos pés, como um musculoso deus grego, de cabelos de ouro. Balançou-se uma vez, displicente e se atirou para a frente e para baixo, com os braços abertos como asas. Mansamente os braços se juntaram sobre a cabeça, como em seta, para ferir a superfície da água e permitir que o corpo a atravessasse. O impacto deixou apenas uma leve turbulência. O mergulhador reapareceu, num instante, de novo e houve uma onda de aplausos. O homem atravessou mansamente a piscina, a cabeça submersa e os braços se movendo com força displicente. Bond pensou: boa sorte para você! Você não vai poder manter isso por muito tempo, cinco ou seis anos, talvez. Mergulhadores de altitude não podiam agüentai muito a coisa — por causa dos repetidos choques com a cabeça na água. Com os saltos de muito alto, o mergulhador sofria os impactos e, por isso, o esporte tinha vida curta para cada um dos praticantes. Bond mandou mensagem mental ao mergulhador:

— Ande depressa, rapaz! Entre para o cinema, enquanto ainda tenha esses cabelos de ouro!

Bond se voltou e espiou pelo telhado, na direção dos jogadores de canastra, sob o bloco do hotel. Então, Goldfinger gostava de ficar de frente para o hotel! Ou será que o que gostava era que Du Pont ficasse de costas para o prédio? E por que? Bem, qual era mesmo o número do apartamento de Goldfinger? O 200, o "Suíte Hawai". O apartamento de Bond, lá no alto, era o 1.200. Então, se todos os andares fossem iguais, o 200 lhe ficava na mesma direção, por baixo, no segundo andar, uns cinqüenta metros acima do teto do Cabana Clube, uns cinqüenta metros distante da mesa de jogo. Olhando os andares, Bond contou de cima para baixo e examinou, detidamente, a sacada que deveria ser a do quarto de Goldfinger. Nada. Apenas uma sacada aberta, ensolarada. Uma porta aberta para o escuro interior. Bond mediu distância e ângulos. Sim, era assim que poderia estar acontecendo. Isso mesmo é que deve estar havendo. Espertinho, Mr. Goldfinger!

 

                                               A prensa

Depois do almoço — o tradicional coquetel de camarões, castanhas com suco tártaro num copo de papelão, costeletas assadas ao ponto e abacaxi-surprêsa — chegou a hora da sesta, antes do encontro com Goldfinger, marcado para as três horas, para a sessão da tarde.

Mr. Du Pont, que havia perdido uns 10 mil dólares ou mais, confirmou a Bond que Goldfinger tinha uma secretária.

— Eu nunca a vi. Ela fica pelo apartamento. Provavelmente, é só uma bailarina que ele trouxe para cá, para se divertir. — Sorriu. — Quero dizer, divertimento diurno. Por quê? Você já está atrás de alguma coisa?

Bond não prometeu nada:

— Não posso saber, ainda. Provavelmente não descerei, esta tarde. Diga que eu me chateei, espiando só — e fui dar um pulo até a cidade. — Fez uma pausa: — Mas, se o que penso é certo, não se surpreenda com o que possa acontecer. Se Goldfinger começar a se portar estranhamente, fique quieto e o vigie, só. Não estou prometendo nada. Acho que o peguei, mas também posso estar enganado.

Du Pont se entusiasmou:

— Isso é muito bom, rapaz! — explodiu efusivamente. — Nem posso esperar, para ver aquele safado numa prensa!

Bond tomou o elevador para seu apartamento. Pegou sua bagagem e tirou de lá uma máquina fotográfica Leica M3, o flash, o fotômetro, foi à janela para medir a distância e calcular onde estaria a luz às 3 e meia, botou filme, tirou uma chapa para ver se tudo estava funcionando e botou, de novo, a máquina de lado. Depois, ainda da bagagem, tirou um livro muito grosso, A Bíblia Feita Para Ser Lida Como Literatura, e o abriu. De dentro, da cavidade existente, tirou sua arma, uma Walther PPK, com o coldre especial. Fincou o coldre no cós das calças, no lado esquerdo. Experimentou uma ou duas sacadas rápidas. Tudo satisfatório. Examinou com cuidado a disposição de seu apartamento, partindo de que deveria ser exatamente igual ao "Hawai". Anteviu a cena que, quase com certeza, o receberia no apartamento lá embaixo, quando entrasse pela porta. Experimentou a chave-mestra nas várias fechaduras dali mesmo e treinou abrir as portas sem ruído. Então, colocou uma confortável poltrona em frente à janela e fumou um cigarro, enquanto espairecia olhando para o mar e pensando como arranjaria as coisas para Goldfinger, quando o momento chegasse. Às 3,15 Bond se levantou e foi para a sacada, e cautelosamente olhou para baixo, para as duas diminutas figuras sentadas ao redor do pequeno quadrado verde. Voltou para dentro do quarto e examinou de novo a exposição de luz na Leica. A intensidade da luz era a mesma. Ele botou seu paletó de tropical azul-escuro, arrumou a gravata e pendurou a correia da Leica no pescoço, de forma que a máquina ficava na altura do seu peito. Então, depois de um último olhar ao redor, saiu e se dirigiu para o elevador. Desceu até o andar térreo e passeou espiando as vitrinas das lojas, no "foyer". Quando o elevador havia subido de novo, dirigiu-se para as escadas e, vagarosamente, venceu os dois andares. A geografia do segundo era igual à do décimo-segundo andar. O apartamento 200 estava onde imaginara estar. Não havia ninguém à vista. Tirou do bolso a chave-mestra, abriu a porta silenciosamente, entrou e a fechou atrás de si. Na pequena entrada, uma capa de chuva, um capote de pêlo de camelo e um chapéu de homem estavam pendurados no cabide. Bond segurou a Leica firmemente na sua mão direita, puxou-a para perto do rosto e experimentou a maçaneta da porta da sala de estar. Não estava trancada. Abriu-a maciamente.

Mesmo antes de ver o que esperava encontrar, ouviu a voz. Era uma voz de mulher, baixa, atraente, uma voz inglesa. Estava dizendo: "Comprou cinco e quatro. Completou canastra de cinco, com dois curingas. Descartando quatro. Tem rei, valete, nove e sete desligados."

Bond entrou para o quarto.

A moça estava sentada em duas almofadas, que estavam sobre uma mesa, puxada meio metro para a sacada. Precisara das almofadas, para lhe dar altura. A tarde estava no ápice do calor e ela estava nua, exceto pelos "soutiens" negros e calcinhas também de seda preta. Balançava as pernas, em gestos aborrecidos. Havia terminado, naquele momento, de pintar suas unhas da mão esquerda. Então, estendeu o braço à sua frente, para examinar o efeito. Puxou de novo a mão, para perto dos lábios e assoprou as unhas. A mão direita se moveu para trás e colocou o pincel de volta no vidrinho de esmalte sobre a mesa. A poucos centímetros de seus olhos, estavam os visores de um poderoso binóculo, montado sobre um tripé, que se alongava por entre as pernas queimadas da moça, até o chão. Saindo de baixo do binóculo estava um microfone, cujo fio ia até a uma caixa do tamanho duma vitrola, que se encontrava em baixo da mesa. Outros fios saíam da caixa e se ligavam a uma rebrilhante antena interna que se via armada junto da parede.

As calcinhas se retesaram, quando ela se curvou de novo para a frente e botou os olhos no binóculo.

— "Comprou uma dama e um rei. Fechou o jogo de damas. Pode fechar o de reis, com o valete. Descartando um sete." — Desligou o microfone.

Enquanto ela se concentrava, Bond havia atravessado o quarto e se postara quase atrás dela. Havia ali uma cadeira.

Ele subiu nela, rezando para que não fizesse barulho. Assim, pôde ter a cena inteira em foco. Botou os olhos no visor da máquina: sim, tudo em linha reta, a cabeça da garota, a ponta superior do binóculo e, cinqüenta metros adiante, os homens à mesa, com as cartas de Du Pont expostas. Bond podia distinguir até os negros e os vermelhos dos naipes. Aí, apertou o botão da máquina.

A seca explosão da lâmpada e o cru clarão do flash provocaram um grito espantado da garota. Ela se voltou. Bond desceu da cadeira e disse:

— Muito boa tarde!...

— Quem é você? Que é que você quer? — A mão da moça subira e lhe protegia a boca: seus olhos, arregalados, como que gritavam para Bond.

— Eu já tenho o que desejo. Não se preocupe. Agora, terminou tudo. E... meu nome é Bond, James Bond.

Bond colocou a máquina fotográfica sobre a mesa e se aproximou, para perto de onde lhe podia sentir o perfume. Ela era muito linda. Tinha cabelos loiro-pálido. Cabelos que lhe desciam generosamente pelos ombros, compridos demais para a moda moderna. Seus olhos eram dum azul profundo, incrustados no todo da pele clara, levemente queimada. Os lábios eram orgulhosos e generosos — e sua boca deveria ter um sorriso maravilhoso.

Ela se levantou e tirou a mão da boca. Era alta, talvez um metro e 75, e tinha pernas e braços rijos, como se fora uma nadadora. Seus seios faziam pressão sobre a seda dos "soutiens". Um pouco de seu medo tinha sumido dos olhos. Disse, numa voz muito baixa:

— E o que é que vai fazer?

— Para você, nada. Talvez eu chateie um pouco esse Goldfinger. Agora, mova-se um pouco, como uma boa menina e deixe-me dar uma olhada.

Bond tomou o lugar da moça e botou os olhos no visor do binóculo. Goldfinger não mostrava sinais de que a ligação tinha sido interrompida. O jogo continuava normalmente.

— Ele não se importa de não receber os sinais? Ele não vai parar de jogar?

— Já aconteceu antes, quando um fio se soltara, ou coisa assim — respondeu ela hesitante. — Ele fica esperando que eu volte a falar de novo.

Bond sorriu para a moça:

— Bem, vamos deixar que ele se vire um pouco sozinho. Fume um cigarro e descanse. — Ele lhe estendeu um maço de Chesterfield e ela pegou um: — De qualquer jeito, já é tempo de você esmaltar as unhas da mão direita.

Um sorriso se insinuou nos lábios dela:

— Faz muito tempo que você está aqui dentro? Você me pregou um bruto susto.

— Não muito tempo. E quanto ao susto, sinto muito. Goldfinger anda assustando o pobre do Mr. Du Pont por mais de uma semana.

— Sim... — A resposta dela veio em tom duvidoso. — Acho que isso é realmente cruel. Mas, ele é muito rico, não é?

— Ah, sim! Claro que é. Eu não perderia sono me preocupando com Du Pont. Mas, Goldfinger, um dia, pode escolher alguém que não possa perder tanto... Em todo o caso, ele é um milionaríssimo também, não é? Por que faz isso? Ele tem um caminhão de dinheiro!...

Um pouco de animação aflorou ao rosto da moça.

— Eu sei. Simplesmente não posso entendê-lo. É uma espécie de mania dele essa de fazer dinheiro e mais dinheiro. Não pode deixar disso. Eu já perguntei e ele só responde que, quando as chances são boas, quem não fizer dinheiro é um idiota. E sempre fala da mesma coisa, esse negócio de ter as chances boas. Quando ele me convenceu a fazer isto — ela acenou com o cigarro na direção do binóculo — e eu lhe perguntei por que, diabo, ele iria se preocupar com isso, correr todos esses riscos estüpidamente, a única coisa que ele me respondeu foi isto: Quando as chances não são boas, faça-as ficarem boas.

— Bom, a sorte dele é que eu não sou nenhum dos detetives Pinkerton ou mesmo do Departamento de Polícia de Miami.

A moça deu de ombros:

— Ah, isso não o preocuparia. Ele apenas o compraria. Ele pode comprar qualquer um. Ninguém resiste ao ouro.

— O que é que você quer dizer com isso?

— Ah, ele sempre leva com ele 1 milhão de dólares em dólares, a não ser quando passa pela alfândega. Aí, ele apenas leva uma cinta cheia de moedas de ouro amarrada ao redor da barriga. Em outros casos, põe em fitas grudadas no fundo e nos lados das malas. São realmente malas de ouro, cobertas de couro.

— Isso deve pesar muito.

— Ele sempre viaja de carro, um que tem molas especiais. E o chofer é um sujeito forte: é o chofer quem carrega tudo. Ninguém mais toca nelas.

— Por que ele carrega por toda a parte todo esse ouro?

— Porque, de repente, pode precisar. Ele sabe que o ouro pode lhe comprar qualquer coisa que desejar. E tudo é de 24 quilates. Bem, de qualquer forma, ele ama o ouro, da mesma forma que muita gente ama jóias, selos ou — bem — mulheres. — Ela sorriu.

Bond sorriu-lhe em resposta:

— Ele ama você?

Ela corou e disse, indignada:

— Claro que não! — E, em seguida, mais cordatamente: — Claro, você pode pensar o que quiser. Mas, realmente, ele não me ama. Bem, eu acho que ele gosta que os outros pensem que nós — que eu sou — bem, que entre nós a coisa é questão de amor. Você sabe como é. Ele não é muito possessivo e eu acho que isso é uma questão de — vamos dizer — de vaidade, ou coisa assim.

— Bem, bem, entendo. Quer dizer que você é só uma espécie de secretária?

— Companhia. — Ela o corrigiu. — Não tenho que datilografar, ou nada disso. — De repente ela botou a mão na boca: — Oh, eu não deveria estar lhe dizendo nada disto! Você não vai contar para ele, vai? Ele me demitiria. — O medo assomou aos seus olhos: — Demitir-me-ia ou faria qualquer outra coisa. Não sei o que ele me faria. Ele é dessa espécie de homem que pode fazer qualquer coisa.

— Claro que eu não vou dizer a ele. Mas isto não pode ser uma vida boa para você, pode? Por que você aceita isso?

A resposta veio direta:

— Cem libras por mês e tudo isto aqui, ainda. — Indicou o quarto. — Isso tudo não nasce no jardim. Estou economizando. Quando tiver economizado bastante, largarei.

Bond imaginou se Goldfinger iria deixá-la ir. Será que ela não sabia demais? Olhou o rosto bonito, o inconscientemente belo corpo. Ela poderia nem suspeitar mas, por causa do dinheiro, estava caminhando para grandes encrencas com aquele homem. A moça começou a tremelicar e disse, com uma risada supostamente embaraçada:

— Não acho que estou muito bem vestida, não? Posso ir lá para dentro e botar alguma coisa sobre isto?

Bond não estava certo de poder confiar nela. Afinal, não era ele quem pagava as cem libras semanais. Por isso, falou com leve ironia:

— Você está ótima! Tão respeitável como aquela centena de pessoas ao redor da piscina. De qualquer forma — espreguiçou-se — já é tempo de acender um foguinho embaixo de Mr. Goldfinger.

Tinha estado a espiar pelo binóculo de vez em quando. Parecia que o jogo ia se desenvolvendo normalmente. Bond olhou de novo pelas lentes. Du Pont já aparentava ser um homem completamente diferente, com gestos expansivos, o meio-perfil de sua cara vermelha cheio de animação. Enquanto James olhava, ele apanhou um monte de cartas da mão e as debruçou sobre a mesa — uma canastra real de reis. Bond levantou os binóculos por uma polegada. A grande cara vermelho-queimada estava impassível. Mr. Goldfinger aguardava que as condições se reajustassem, de novo, a seu favor. Enquanto Bond olhava, ele puxou o aparelhinho um pouco, mais firmemente para dentro do ouvido, pronto para ouvir os sinais assim que recomeçassem a chegar. Bond afastou-se:

— Uma belezinha de aparelho. Em que faixa estão transmitindo?

— Ele me disse, mas não posso me lembrar mais. — Ela estreitou a linha dos olhos: — Cento e setenta não sei o quê. Poderia ser mega-qualquer-coisa?

— Megaciclos. Pode ser, mas eu ficaria muito surpreendido se ele não pegasse também uma porção de interferência com a sua voz. Deve estar incrivelmente concentrado. — Bond sorriu: — Bem, é agora. Tudo pronto? Já é tempo de puxar o tapete.

De repente ela botou-lhe a mão no braço. Havia, num dos dedos, um anel de ouro, com duas mãozinhas que apertavam um coraçãozinho de ouro. A voz era chorosa:

— Tem mesmo que fazer isso? Não pode deixá-lo em paz? Não sei o que ele fará comigo. Por favor! — Hesitou um pouco. E começou a corar violentamente. — Eu gosto tanto de você! Já faz tanto tempo que não vejo ninguém como você! Não poderia apenas pôr aqui um pouquinho mais? — Olhou para o chão. — Se você o deixasse em paz eu faria. — O resto das palavras veio de um jato — eu faria qualquer coisa.

Bond afastou a mão da jovem de seu braço e a apertou:

— Sinto muito. Estou sendo pago para fazer este serviço e tenho que fazê-lo. E, de mais a mais — sua voz era decidida — eu quero fazer isto. Já é tempo de alguém botar Mr. Goldfinger no seu devido lugar. Pronta?

Sem esperar por uma resposta, curvou-se para o binóculo que ainda focalizava Mr. Goldfinger. Bond limpou a garganta com um pigarro. Vigiava o rosto cuidadosamente, pelas lentes. Sua mão procurou o botão do microfone e o ligou.

Deve ter havido um sussurro de estática no fone mudo. A expressão de Goldfinger não se alterou, mas ele, vagarosamente, levantou a cara para o céu e a abaixou de novo, como numa prece de agradecimento.

Bond falou macio, ameaçadoramente, ao microfone:

— Agora, ouça bem, Goldfinger. — Fez uma pausa. Nem um pingo de mudança na expressão, mas Goldfinger pendeu a cabeça uma fração, como se estivesse ouvindo. Estudou as cartas intensamente, com as mãos muito firmes. — Quem está falando aqui é James Bond. Lembra de mim? O joguinho terminou e é tempo de pagar o que se deve. Eu tenho uma fotografia de toda a coisa — a loira, o binóculo, você e o seu aparelhinho de ouvido. Esta foto não irá para o FBI nem para a Scotland Yard, se você me obedecer direitinho. Dê um sinal de cabeça, se você estiver ouvindo.

O rosto ainda se conservou inexpressivo mas, a grande e redonda cabeçorra se curvou para a frente e voltou, em seguida.

— Ponha suas cartas na mesa, viradas para cima.

As mãos baixaram. Abriram-se e as cartas escorregaram pelos dedos, caindo na mesa.

— Tire, agora, seu livro de cheques e preencha um cheque ao portador de 50 mil dólares. Isso vai servir para o seguinte: 35 mil você tomou de Mr. Du Pont, 10 mil são para meus honorários, e os 5 mil extras são por ter gasto o precioso tempo de Mr. Du Pont.

Bond ficou vigiando, para ver se sua ordem estava sendo obedecida. Deu uma espiada em Du Pont: ele estava se debruçando na mesa, falando. Goldfinger destacou o cheque do talão e o confirmou, assinando-o no verso.

— Bom, assim. Agora, escreva isto nas costas do seu talão de cheques e tome cuidado para anotar tudo certinho. Reserve-me um compartimento no "Silver Meteor" para Nova York, esta noite. Mande botar uma garrafa de champanha num balde de gelo e bastantes sanduíches de caviar — que sejam servidos no compartimento. O melhor caviar. E se mantenha longe de mim. Nada de besteiras comigo. A fotografia será posta no correio, com um relatório completo, para que seja aberta e utilizada, se eu não aparecer amanhã em Nova York, em muito boa saúde. Meneie a cabeça, se entendeu.

De novo, a cabeçorra baixou e se ergueu. Já havia gotas de suor na testa lisa.

— Bom. Agora, entregue o cheque, pôr sobre a mesa, a Mr. Du Pont e diga: Eu me desculpo humildemente. Eu o tenho estado roubando. Então, pode ir embora.

Bond viu a mão passar por sobre a mesa e deixar cair o cheque à frente de Mr. Du Pont. A boca se abriu e falou. Os olhos eram plácidos, preguiçosos. Goldfinger se relaxara. Fora apenas dinheiro. Comprara sua saída com dinheiro.

— Um momento, Goldfinger. Você ainda não está livre. — Bond olhou para a garota. Ela o fixava com expressão de estranheza. Havia angústia e medo no seu olhar mas, também, submissão e esperança. — Qual é o seu nome?

— Jill Masterton.

Goldfinger tinha se levantado e estava se voltando. Bond falou rispidamente:

— Espere!

Goldfinger parou em meio ao gesto. Agora, seus olhos estavam voltados para a sacada. Estavam bem abertos, como quando Bond o encontrara pela primeira vez. Como um fogo duro e desafiador de raio X, pareciam chegar às lentes do binóculo, atravessá-las, alcançar os olhos de Bond e furar até a nuca. Pareciam dizer: — Eu não me esquecerei disto, Mr. Bond.

James falou maciamente.

— Tinha me esquecido. Uma última coisa: eu levarei um refém, na minha viagem para Nova York. A Sra. Masterton. Providencie para que ela esteja naquele trem, comigo. E, já que me lembro, escolha uma cabina com sala de estar. É só isso.

 

                                       Plantão noturno

Uma semana depois. Bond parou à janela aberta do escritório no sétimo andar do edifício de Regent Park que é o quartel-general do Serviço Secreto. Londres dormia sob uma lua cheia, que se movia maciamente sobre um colar de nuvens diáfanas. O Big Ben deu três horas. Um dos telefones tocou na sala escura. Bond se voltou e foi às pressas até a mesa do central, onde o abajur fazia cair um feixe de luz. Pegou o fone negro, no quarto sinal e falou:

— Oficial de plantão.

— Estação H, senhor.

— Ponha-os na linha.

Houve uma ecoar de zumbidos e ruídos característicos de ligação de rádio com Hong-Kong. Por que deveria sempre haver manchas solares sobre a China?

Uma voz cantante perguntou:

— Exportações Universal?

Uma voz profunda — Londres — interferiu:

— Está ligado com Hong-Kong. Pode falar, por favor. Bond falou impacientemente:

— Saia da linha, por favor! A voz cantante voltou:

— Está ligado, agora. Pode falar!

— Alô, alô! Exportações Universal?

— Sim! Dickson falando. Pode me ouvir?

— Sim!

— Aquele cabograma que mandei para aí, sobre o carregamento de mangas. Frutas. Sabe qual é?

— Sei, sim. Estou com ele aqui. — Bond puxou a gaveta do arquivo para perto. Sabia o que era. Estação H estava querendo algumas minas marítimas para "presentear" três juncos espiões que estavam usando Macau como base, para interceptar cargueiros britânicos, para procurar refugiados chineses.

— Deve haver pagamento no dia 10.

A informação significava que os juncos iriam se retirar, que a vigilância sobre eles seria mais rigorosa, ou outra providência qualquer. Bond disse rapidamente:

— Wilco.

— Obrigado. Adeus.

— Adeus.

Bond recolocou o fone e apanhou o telefone verde. Discou para a Seção Q e falou com o oficial de serviço. Tudo estava certo: haveria um aparelho da B.O.A.C. decolando pela manhã e a Seção Q providenciaria para que a carga estivesse nele.

Bond sentou-se. Puxou um cigarro e o acendeu. Pensou no pequeno escritório, em Hong-Kong, sem ar condicionado, viu as placas de suor na camisa do 279, a quem conhecia muito bem e que, ainda há pouco, dissera chamar-se Dickson. Naquele momento, o 279 provavelmente estaria falando com o seu ajudante!

— Tudo certo. Londres diz que pode. Vamos reexaminar estes planos de novo.

Bond sorriu, num ritus: melhor eles que ele próprio. Nunca amara muito brigar com os chineses. Havia muitos deles, demais. A Estação H poderia estar preparando uma cilada para um besouro, mas M havia decidido que já era tempo de mostrar à oposição que o Serviço, em Hong-Kong, ainda não abrira falência.

Quando, três dias antes, M lhe havia dito que seu nome estava na escala para o plantão noturno, Bond não gostara da idéia. Argumentou que não sabia muito sobre a rotina no serviço das seções, que era muita responsabilidade para entregar a um homem que estivera por seis anos na Seção 00 e que já se havia esquecido tudo o que aprendera sobre o serviço interno nas seções.

— Você logo pega de novo. — M havia dito, sem nenhuma simpatia. — Se você tiver dificuldades, há os oficiais de serviço nas seções, ou o Chefe do Pessoal, ou eu mesmo, por exemplo. — Bond sorria ao pensamento de acordar M no meio da noite, porque alguém no Cairo ou em Tóquio estava numa mancada. — De qualquer forma, já decidi. Quero que todos os oficiais superiores cumpram sua parte na rotina. — M tinha olhado friamente para Bond: — Na verdade, 007, eu tive que enfrentar o Tesouro, outro dia. O contato deles acha que a Seção 00 é redundante. Disse que essa espécie de coisa já está ultrapassada. Eu não pude nem me incomodar com contraditá-lo. Disse-lhe apenas que estava enganado. — Bond podia imaginar a cena. — Entretanto, não fará mal nenhum para você algum servicinho extra, já que você está de volta a Londres. Impede que você se enferruje.

Bond não achara ruim. Já havia cumprido metade de sua semana de serviço e, até ali, só fora uma questão de senso comum, ou passar problemas de rotina às diversas seções. Até que gostava do aposento calmo, saber do segredo de todo mundo e ser servido, de vez em quando, de café e sanduíches pelas garotas bonitinhas da cantina. Na primeira noite, a moça lhe havia trazido chá. Bond a olhou com severidade:

— Eu não bebo chá. Odeio-o. É lama. Mais ainda: é uma das maiores causas da queda do Império Britânico. Seja boazinha e me faça um pouco de café.

A garota riu e saiu depressa, para espalhar as gracinhas de Bond por toda a cantina. Dali por diante, sempre tivera o seu café. A expressão "uma xícara de lama" tinha se espalhado por todo o edifício.

Uma outra razão pela qual Bond gostava do longo vazio do plantão noturno é que lhe dava tempo para se dedicar a um projeto, cuja idéia lhe vinha de mais de um ano: um livro sobre todos os segredos dos combates sem armas. Deveria chamar-se Mantenha-se vivo! Conteria o melhor do que já fora escrito sobre o assunto, pelos Serviços Secretos do mundo inteiro. Bond não disse nada a ninguém sobre o projeto mas esperava que, se pudesse terminá-lo, M deixaria que fosse adicionado à pequena lista de manuais do Serviço Secreto, que encerram os truques e técnicas da espionagem.

Bond pedira emprestados os manuais ou traduções, do Arquivo. A maioria dos livros tinha sido apreendida com o inimigo ou seus agentes. Alguns tinham sido presenteados a M por serviços de países amigos, como o OSS. a C.I.A. e a Deuxième francesa. Bond escolheu um especial, intitulado simplesmente Defesa, editado para os agentes do "Smersh", a organização soviética de vingança e morte.

Nessa noite ele estava pela metade do Capítulo II, cujo título, traduzido livremente, era "Puxadas e Manter Seguro". Ele voltou ao livro e leu por meia hora, passando pelas seções que se referiam aos convencionais de golpes de puxar firmemente pelo pulso, utilizar o braço para prender o inimigo, segurar pela cabeça e uso de pontos de pressão no pescoço.

Depois de meia hora, Bond empurrou para longe o volume datilografado. Levantou-se, foi para a janela e ficou olhando para fora. Havia uma nauseante crueza na prosa russa. Trouxera-lhe outro ataque de náusea e revolta, como o que sofrerá dez dias antes, no Aeroporto de Miami. Que será que estava lhe acontecendo de errado? Será que já não podia mais agüentar essas coisas? Estaria amolecendo ou se cansando? Bond ficou por uns instantes espiando a lua passar, através das nuvens. Então, tremeu os ombros e voltou à escrivaninha. Decidiu que seu caso era estar tão saturado das variações da violência física, como um psiquiatra deveria ficar, com as aberrações mentais de seus pacientes. Bond leu de novo o trecho que o havia revoltado: "Uma mulher embriagada pode também ser normalmente dominada pelo uso do polegar, do indicador, para apertar-lhe o lábio inferior. Puxando-se e torcendo-se com firmeza, a mulher virá junto.

Bond estremeceu. A obscena delicadeza dessa menção "polegar e indicador"! Acendeu um cigarro e ficou olhando para o filamento da lâmpada da mesa, voltando o pensamento para outras coisas, desejando que um sinal viesse ou o telefone tocasse. Outras cinco horas, ainda, antes de levar o relatório ao Chefe de Equipe ou a M, se este viesse cedo. Havia qualquer coisa insistindo na sua mente, qualquer coisa que desejava chegar, quando tivesse tempo. Que o seria? O que teria provocado à memória funcionar de repente? Sim, era isso: "indicador" — dedo. Dedo de Ouro. Goldfinger. Verificaria se no Arquivo havia qualquer coisa sobre o homem.

Pegou no telefone verde e discou para o Arquivo.

— Eu não me lembro desse nome — disse-lhe o encarregado — vou ver e chamo o senhor.

Bond recolocou o fone no gancho.

Tinha sido uma viagem formidável, no trem. Tinham comido sanduíches e bebido o champanha e, então, ao som rítmico dos motores diesel, que filtrava surdamente, tinham se amado, preguiçosamente, na pequena cama da cabina. Fora como se a garota estivesse faminta de amor físico. Ela o havia acordado por mais duas vezes, no meio da noite, com macias carícias tentadoras, mudamente, sem nada dizer — apenas procurando seu corpo firme e magro. No dia seguinte, por duas vezes ela fechara a cortina, para bloquear a luz violenta do sol e o tomara pela mão, pedindo:

— Ama-me, James! — Como se fora uma criança pedindo um doce.

Mesmo agora Bond podia ouvir o poético e argênteo bater dos sinos de cancelas, nos cruzamentos, e o aquietado bulício das estações, quando paravam à espera do reinicio do galopar sensual das rodas.

Jill Masterton contara que Goldfinger tinha se portado com tranqüila indiferença, quanto à sua derrota. Dissera à moça que informasse Bond de que também estaria na Inglaterra dentro de uma semana e gostaria de jogar uma partida de golfe, em Sandwich. Nada mais. Nem ameaças, nem xingações. Dissera, ainda, que esperava que a garota estivesse de volta pelo trem seguinte. Jill dissera a Bond que ela iria voltar. Ele, então, argumentou contra. Mas Jill não tinha medo de Goldfinger: o que poderia fazer-lhe? E, além disso, o emprego era bom.

Bond decidira dar à moça os 10 mil dólares que Mr. Du Pont lhe havia enfiado nas mãos, com uma avalancha de agradecimentos e congratulações. Fê-la ficar com o dinheiro. — Eu não quero isso! — Ele explicara: — Não saberia o que fazer com ele. Fica com você, como reserva, no caso de você querer fugir de repente. Deveria ser 1 milhão: eu nunca mais vou esquecer a noite passada e hoje.

Bond a levara até a estação, dera-lhe um beijo afogueado nos lábios e saíra. Não era amor, mas uma quadrinha veio logo à memória dele, enquanto o táxi corria para longe da estação de Pensilvânia:

 

               Uns amores são de fogo

               Outros de pouca fúria

               Mas o que vale o jogo

               Esse único é a luxúria.

 

Nenhum dos dois se arrependera. Tinham cometido um pecado? Se assim fosse, qual dos dois? Um pecado contra a castidade? Bond sorriu para si próprio. Havia uma citação para isso, também, e de um santo — Santo Agostinho — "Oh, Deus! Dê-me castidade, mas, não m'a dê agora, ainda!"

O telefone verde tocou.

— Tem três Goldfingers por aqui, senhor, mas dois estão mortos. O terceiro é pombo-correio russo em Genebra. Bota as mensagens no bolso esquerdo do "freguês", enquanto lhe escova as roupas. Tem uma casa de cabeleireiro lá. Perdeu uma perna em Estalingrado, durante a guerra. Serve isso, senhor? Tem muita coisa mais sobre ele, aqui.

— Não, obrigado. Esse daí não é o sujeito que procuro.

— A gente poderia tentar identificá-lo através do C.I.D., pela manhã. Tem uma foto dele?

Bond se lembrou, então, do filme que ainda estava na Leica. Nem se preocupara em mandar revelá-lo. Seria mais rápido na Identificação. Por isso, perguntou:

— A Identificação está livre?

— Está, sim senhor. Eu posso operar, se o senhor quiser.

— Obrigado, mas eu vou descer.

Bond disse à telefonista para avisar a todos os chefes de seção do lugar onde se encontraria, saiu e tomou o elevador para a seção de Arquivo, no 1.° andar.

O grande edifício era extraordinariamente silencioso, à noite. Por baixo do silêncio, havia um surdo tremor de máquinas e de vida escondida — o bater abafado duma máquina de escrever, quando Bond passava por uma porta fechada, a estática apressadamente eliminada de um rádio, ao passar por outra, o zumbir do serviço de ventilação. Dava a impressão de estar num navio de guerra, ancorado na baía.

O oficial de serviço na Identificação já estava pronto, com o aparelho de projeção ligado. E disse a Bond, assim que este entrou:

— O senhor não poderia me dar os traços principais da face? Assim já eliminaria os "slides" que sejam dos outros tipos.

Bond fez isso, e se sentou, olhando para a tela iluminada. A máquina se chama "Indentcast": foi construída para ajudar a construir um desenho aproximado da cara do suspeito — ou de alguém que tivesse sido visto somente de passagem, num trem, na rua ou num carro que passasse. Funciona mais ou menos na base da "lanterna mágica": o operador projeta na tela vários desenhos de cabeças. Quando se acha o satisfatório, fica lá. Depois, vários tipos de penteado são superpostos. Até chegar-se ao desejado. Assim se faz com os outros detalhes do rosto: diferentes tipos de sobrancelhas, olhos, orelhas, queixos, narizes, bocas. No fim, ali está, na tela, o desenho integral de um rosto, o mais aproximado possível do que o relator se lembra. Então, é fotografado e arquivado.

Demorou algum tempo para "construir" a extraordinária feição de Goldfinger, mas o resultado final foi uma aproximada parecença em monocrome: Bond ditou algumas anotações sobre detalhes como o queimado de sol, a cor dos cabelos e a expressão dos olhos. Estava completo o retrato.

— Eu não gostaria de encontrar esse sujeito numa madrugada escura — disse o oficial do Arquivo. — Mandarei para o C.I.D., de manhã, quando o pessoal vier. O senhor deverá receber a resposta pela hora do almoço.

Bond voltou ao sétimo andar. No outro lado do mundo era ao redor de meia-noite. As estações do este começavam a encerrar suas transmissões. Houve um dilúvio de sinais com os quais teve que lidar, o relatório noturno e, de repente, eram oito horas. Bond ligou para a cantina e pediu seu breakfast. Nem bem terminara de comer e ouviu o leve ronronar do telefone vermelho. M! Por que, diabo, ele chegara hora e meia mais cedo? Bond levantou o receptor:

— Sim, senhor!

— Venha à minha sala, 007. Quero conversar com você, antes que feche o expediente.

— Certo. — Bond recolocou o fone no gancho. Botou o paletó, passou a mão pelos cabelos, disse à telefonista onde estaria, pegou o relatório do serviço noturno, saiu, tomou o elevador e subiu ao oitavo e último andar. Nem a atraente Miss Moneypenny nem o Chefe do Pessoal estavam de serviço. Bond olhou para a porta da sala de M e entrou:

— Sente-se, 007. — M cumpria o ritual de acender o cachimbo. Estava corado e parecia recém-banhado. As linhas do rosto de marinheiro, acima do colarinho branco e duro, com a gravata borboleta de bolinhas num laço frouxo, estavam quase alegres. Bond sentiu a sombra escura da própria barba crescida e as condições de sua roupa, após uma noite inteira de trabalho. Prestou atenção cuidadosa ao que o homem dizia:

— Foi uma noite agradável? — M começou a chupar o cachimbo. Seus olhos duros e saudáveis fixaram Bond.

— Bem calma, até. A Estação H...

— Deixa isso para depois. Leio no relatório. Pode dar aqui. — M levantou a mão levemente. Bond passou-lhe a pasta do Serviço Secreto, que M pôs de lado, na mesa e sorriu. Era um dos seus raros sorrisos sardônicos, mastigados. — As coisas mudam, 007. Vou tirar você do serviço noturno, por enquanto.

O sorriso em resposta de Bond era tenso. Sentiu o apressar da pulsação, como tantas vezes lhe acontecera naquela sala. M tinha qualquer coisa de novo para ele. Respondeu, comportadamente:

— Eu estava ainda começando,...

— Certo. Terá muita oportunidade, mais tarde. Qualquer coisa apareceu. Velhos problemas. Nada de parecido com a sua linha de ação, exceto por um particular, que M brandiu o cachimbo para o lado, num gesto de jogar fora qualquer coisa — pode até nem ser nada de palpável.

Bond sentou-se mais para trás, sem dizer nada, esperando.

— Jantei ontem com o Governador do Banco. A gente sempre acaba ouvindo coisas novas. Pelo menos, tudo isto é novo, para mim. Ouro — a parte fedida da coisa. Contrabando, falsificação, essas coisas. Não me ocorreu que o Banco da Inglaterra soubesse tanta coisa sobre os delinqüentes. Acho que é porque seja parte do dever do Banco proteger o nosso dinheiro. — M voltou os olhos para o teto. — Sabe alguma coisa sobre ouro?

— Não, senhor.

— Bem, esta tarde você ficará sabendo. Você tem um encontro com um homem chamado Coronel Smithers, no Banco da Inglaterra, às 4 horas. Isso lhe dá bastante tempo para dormir?

— Dá, sim senhor.

— Ótimo. Parece que esse Smithers é o chefe do departamento de investigações do Banco. Pelo que o Governador me disse, trata-se, nada mais, nada menos, de uma rede de espionagem. É a primeira vez que eu fico sabendo que o Banco tem uma coisa dessas. Isso mostra em que espécie de compartimentos estanques a gente trabalha. De qualquer forma, Smithers e seus homens se mantêm alerta para qualquer coisa que soe falsa, no mundo bancário — particularmente sobre a moeda corrente, a reserva-ouro e coisas desse naipe. Já houve aquele caso dos italianos que estavam falsificando soberanos. E os fabricavam de ouro, mesmo, com os quilates certinhos e tudo. Mas, aparentemente, um soberano ou napoleão francês vale mais do que o valor intrínseco do metal. Não sei porque. Smithers pode lhe explicar, se você tiver interessado. Bom: o Banco se lançou contra eles com uma chusma de advogados. Depois de perder o caso nos tribunais italianos, pegou-os na Suíça. Você deve ter lido tudo nos jornais. E também houve aquele negócio com câmbio de dólares, em Beirute. Fez sensação, nos jornais. Eu não consegui entender direito, aquilo. Alguma falha na defesa da nossa moeda. Os rapazes da City encontraram o buraco. Bem, é obrigação do Smithers cheirar essa espécie de negociatas. A razão do Governador do Banco me contar tudo isso é que, por anos seguidos — parece que desde a guerra — Smithers está com a pulga atrás da orelha, por causa duma brecha por onde sai o ouro da Inglaterra. A maior parte do que ele diz é dedução, poucos dados palpáveis. Dedução e um pouco de instinto. Smithers admite que tem muito pouco de concreto para prosseguir, mas impressionou o Governador do Banco de tal forma que este conseguiu a permissão do Primeiro-Ministro para nos chamar. — M olhou interrogativamente para Bond: — "Alguma vez já pensou quem pode ser o homem mais rico da Inglaterra?

— Não, senhor.

— Bom, faça uma tentativa. Melhor, vamos botar a coisa assim: quem é o homem mais rico da Inglaterra?

Bond botou a cabeça a trabalhar. Havia muitos homens que lhe pareciam ricos ou que eram dados como ricos pelas notícias dos jornais. Mas, quem teria, mesmo dinheiro líquido, no banco. Tinha que dizer alguma coisa: e o fez hesitante.

— Bem, tem o Sasson. E aquele sujeito, construtor de navios, que vive sozinho — o Ellerman. Dizem que Lord Cowdray também é muito rico. E há os banqueiros — Rothschild, Berings, Hambros. Havia o Williamson, o sujeito dos diamantes. Oppenheimer, na África do Sul. Alguns dos duques talvez ainda tenham muito dinheiro. — A voz de Bond silenciou.

— Nada mau. Nada mau, de verdade. Mas você pulou o curinga do maço. Homem, eu nunca pensaria nele, que o Governador do Banco não mencionasse. É o mais rico de toda a turma. Um sujeito chamado Auric Goldfinger.

Bond não pôde segurar: riu alto.

— Ué: o que aconteceu? — O tom de voz de M era inquisitivo: — Que diabo há para rir desse jeito?

— Desculpe, senhor. — Bond se controlou. — O negócio é que, ainda esta madrugada, eu estava construindo a cara dele no Identcast. — Olhou para o seu relógio. Sua voz saiu meio estrangulada. — Deve estar a caminho do C.I.D., agora. Arquivo. Pedi uma pista sobre ele. M ia se irritando:

— Que diabo é tudo isto? Pare de se comportar como o raio dum garoto!

Bond respondeu compassadamente:

— Bem... o negócio é o seguinte... — E contou a história inteirinha, não omitindo nenhum detalhe.

A expressão de M se desanuviou. Ouviu com toda a atenção, curvando-se sobre a mesa. Quando Bond terminou o relato, M se recostou na cadeira e grunhiu: — Bom, bom... — Cada repetição veio numa escala decrescente.

Botou as mãos na nuca e ficou olhando, por instantes, para o forro.

Bond podia sentir que a risada lhe brotava novamente. Como o C.I.D. redigiria a censura que receberia ainda naquele dia? Foi trazido de volta à realidade, pelas palavras seguintes de M:

— A propósito: que é que aconteceu com aqueles 10 mil dólares?

— Dei para a garota.

— Realmente? Por que não deu para a Cruz Branca?

O Fundo da Cruz Branca era para as famílias dos elementos — homens e mulheres — do Serviço Secreto, que morriam em serviço.

— Sinto muito: o senhor me desculpe. — Bond não estava preparado para argumentar aquela restrição.

— Humm. — M nunca aprovara o fato de Bond ser mulherengo. Era-lhe um anátema, para a alma vitoriana. Decidiu, contudo, passar por cima daquela.

— Bom: por enquanto é tudo, 007. Você ouvirá tudo sobre o caso do ouro esta tarde. Engraçado sobre o Goldfinger. É um velho conhecido. Vi-o uma ou duas vezes no Blades. Ele joga bridge lá, quando está na Inglaterra. É o sujeito de quem o Banco da Inglaterra está atrás. E, por enquanto, você também. — Olhou mansamente para Bond, através da mesa.

 

                                              Fala do ouro

Bond subiu os degraus e entrou pelos belos portais de bronze, até o imenso saguão, onde os sons ecoavam levemente, no Banco da Inglaterra, e olhou ao redor. Sob seus pés, rebrilhavam as douradas composições dos mosaicos de Boris Anrep. Mais além, em janelas de arco de quase oito metros de altura, vidros verdes e gerânios ornavam o pátio interno. À esquerda e à direita, lambris de magnífica madeira polida. Sobre tudo isso, o cheiro neutro do ar condicionado e a atmosfera grave da riqueza imensa. Um dos contínuos atléticos, fardados de casaca, se aproximou:

— Sim?

— Vim falar com o Coronel Smithers.

— Comandante Bond, senhor? Por aqui, faz favor. — O empregado se dirigiu para a direita, através dos pilares. A porta de bronze do elevador, discretamente escondido, permanecia aberta. O ascensor subiu alguns metros, até o primeiro andar. Ali havia um longo corredor almofadado, que terminava numa janela. O chão era inteiramente atapetado em bege. O empregado bateu na última de uma série de portas de cedro, ricamente esculpida, de tal forma que era muito mais alta e muito mais elegante que qualquer porta comum. Uma mulher de cabelos grisalhos estava sentada à uma escrivaninha e parecia que, antes, tomara um trago duplo. As paredes do aposento se mostravam cobertas inteiramente de arquivos de metal. A mulher estava escrevendo num bloco de papel amarelo. Sorriu com jeito conspiratório, pegou o telefone e discou um número.

— Comandante Bond está aqui. — Recolocou o fone no gancho e se levantou: — O senhor quer vir por aqui? — Atravessou o aposento e se dirigiu a uma porta coberta de baeta verde e a segurou aberta para que Bond entrasse.

O Coronel Smithers tinha se levantado de sua mesa. Disse, gravemente:

— É muito gentil de sua parte ter vindo. Faça o favor de se sentar. — Bond aceitou a cadeira. — Fuma? — O coronel empurrou-lhe para perto uma caixa de prata mas, ele próprio, começou a encher o cachimbo. Bond escolheu um cigarro e o acendeu. O coronel parecia exatamente alguém que se chamasse Coronel Smithers. Teria sido, obviamente, um coronel, provavelmente no serviço ativo e tinha as maneiras polidas, suaves, basicamente sérias que o nome sugeria. A não ser pelos olhos, poderia ser tomado facilmente por eficiente mas, não muito bem nutrido, freqüentador de qualquer corte real. Bond sentiu que o aborrecimento já ia se insinuando no ambiente. Por isso, falou, para encorajar a conversa:

— Parece que o senhor tem que me contar tudo sobre ouro.

— É isso que me disseram. Recebi uma nota do Governador do Banco. Parece que não devo esconder nada do senhor. Naturalmente o senhor compreende que — olhou por cima do ombro direito de Bond — que a maioria das coisas que eu disser, serão inteiramente confidenciais. — Os olhos pularam rápidos para o rosto de Bond. E o encontraram imóvel. O coronel, então, sentiu o peso do silêncio que Bond desejou que ele sentisse. Olhou para cima, notou que tinha cometido um equívoco e tentou remendar:

— Obviamente, eu não deveria nem mencionar esse ponto. Um homem com a sua espécie de treino...

Bond interrompeu:

— Todos nós pensamos que são só os nossos segredos que têm importância. O senhor provavelmente estava certo, ao me recordar. Os segredos de outras pessoas nunca são tão importantes como os nossos próprios. Mas não precisava se preocupar. Não conversarei sobre essas coisas a não ser com meu chefe; com ninguém mais.

— Claro, claro. Foi gentil da sua parte tomar esse caminho. Aqui no Banco a gente se habitua a ser superdiscreto. Agora... — O Coronel Smithers, para autodefender-se, pulou logo para o assunto: — Esse negócio de ouro. Parece-me certo que o senhor nunca se preocupou muito com isso, não é?

— Quando eu souber do assunto, me preocuparei devidamente.

— Ah, sim, claro. A primeira grande coisa que se deve lembrar sobre ouro é a de que é a mais comercial e mais valiosa comodidade do mundo. Pode-se ir a qualquer cidade — mesmo a qualquer vila — do mundo, mostrar um pedaço de ouro e obter coisas ou serviço. Verdade? — A voz do Coronel Smithers tinha assumido tom novo de rigidez. Seus olhos estavam acesos. Ele se satisfazia com o próprio tom professoral. Bond recostou-se. Sempre estava pronto a ouvir quem fosse autoridade no seu próprio assunto. Qualquer assunto. — E a segunda coisa a lembrar — o coronel levantou o cachimbo, em gesto de aviso — é que o ouro é virtualmente impossível de perseguir. Soberanos não têm número, nem série. Se as barras de ouro tiverem qualquer marca estampadas, estas podem ser removidas, as barras podem ser derretidas e outras podem ser fundidas com o mesmo ouro. E isso faz com que seja quase impossível constatar a localização, as origens ou os movimentos do ouro, através do mundo inteiro. Aqui na Inglaterra, nós, do Banco, só podemos contar o ouro de nossos próprios cofres e nos cofres dos outros bancos e fazer um cálculo, por alto, do ouro em poder das joalherias e das casas de penhores.

— Por que vocês estão tão ansiosos para saber quanto ouro há na Inglaterra?

— Porque o ouro e a moeda corrente garantida por ele são os fundamentos do nosso credito internacional. Somente podemos dizer a verdadeira força de nossa libra — e os outros países também — sabendo qual o montante do ouro existente por trás da moeda corrente. E o meu maior dever, Mr. Bond — os olhos brandos do Coronel Smithers tinham se tornado repentinamente duros — é descobrir qualquer brecha que desvie o ouro para fora da Inglaterra — para fora de qualquer das áreas esterlinas. E quando descubro a brecha, uma escapatória do ouro para qualquer país onde possa ser trocado mais lucrativamente do que por nossos preços oficiais de compra, meu dever é chamar o Esquadrão do Ouro do C.I.D. e botá-lo no encalço do ouro fugitivo, trazê-lo de volta, soldar a brecha e prender as pessoas responsáveis. E a dificuldade é Mr. Bond — o coronel deu de ombros — que o ouro atrai os maiores, os mais engenhosos delinqüentes. — E esses são muito difíceis, muito difíceis mesmo, de apanhar.

— Mas, esta não é apenas uma fase temporária? Por que a carência de ouro deve continuar? Parece que estão minerando bem depressa, na África. Não há o suficiente para todo mundo? Não é como qualquer outro mercado negro, quando os suprimentos são escondidos, como o tráfico de penicilina, depois da guerra?

— Acho que não, Mr. Bond. Não tão fácil como parece. A população do mundo inteiro está aumentando numa média de 4.400 pessoas por hora, todos os dias. Uma pequena percentagem dessa gente se transforma em maníacos pelo ouro, gente que tem medo de moeda corrente, que gosta de enterrar soberanos no quintal, ou embaixo da cama. Outra percentagem precisa de ouro para tapar as cáries dos dentes. Outros precisam de aros de ouro para os óculos, jóias, alianças. Toda essa gente nova que aparece estará tirando do mercado, todos os anos, toneladas de ouro. Novas indústrias necessitam de fios de ouro, placas e plaquetas de ouro, amálgamas de ouro. O ouro tem propriedades extraordinárias, que estão sendo usadas para novos fins, todos os dias. É brilhante, maleável, dúctil, quase inalterável e mais denso do que qualquer outro metal comum, exceto a platina. A variação de seus usos não tem fim. Mas tem dois defeitos: primeiro, não é suficientemente duro e se desgasta muito facilmente, ficando nas dobras das roupas e no suor da pele. Todos os anos, o estoque mundial de ouro é invisivelmente diminuído pela fricção. Eu disse que o ouro tem dois defeitos. — O Coronel pareceu tristonho: — O outro defeito, e indubitavelmente o maior dos dois defeitos, é que o ouro significa um talismã contra o medo. O medo, Mr. Bond, retira o ouro de circulação e o esconde contra o mal, todos os dias. Num período histórico em que todo o amanhã pode ser o dia do mal, é lícito dizer que uma larga fatia de todo o ouro desenterrado nos quatro cantos da Terra é imediatamente enterrada em outros cantos. Bond sorriu, em face da eloqüência do Coronel Smithers. Esse homem vivia ouro, pensava ouro, sonhava ouro. Bom: o tema era interessante. Seria, pois, melhor que se lançasse ao assunto. Nos dias em que Bond tivera que correr atrás dos contrabandistas de diamantes, antes de tudo precisara se educar a respeito da fascinação e do mito das pedras preciosas. Disse, então:

— O que mais devo saber, antes da gente começar com o nosso problema imediato?

— O senhor não está aborrecido? Bem, o senhor sugeriu que a produção de ouro é tão vasta, hoje em dia, que deveria bastar a todos esses consumidores. Infelizmente, não é assim que acontece. Ao contrário, as reservas de ouro, na terra, estão se extinguindo. Pode pensar que ainda há vastas áreas do mundo, para serem exploradas e de lá retirado ouro. Estará errado. Falando a grosso modo, restam somente a área embaixo do mar e o próprio mar, que também tem muito ouro. O homem tem arranhado a face da terra por milhares de anos, à procura de ouro. Houve, já, os grandes tesouros egípcios, os de Mecenas, Montezuma e dos Incas. Cresus e Midas esvaziaram o ouro dos territórios do Oriente Próximo. A Europa inteira foi rebuscada: o Vale do Reno, o Vale do Pó, Málaga e as planícies de Granada, Chipre e os Bálcãs, tudo foi sugado. A Índia também apanhou a febre. Formigas, vindas de dentro da terra, carregando pepitas, levaram os indianos aos aluviões. Os romanos trabalharam em busca do ouro em Gales, na Cornuália, em Devon. Na Idade Média, houve a descoberta do México e do Peru. Isso foi seguido pela abertura da Costa do Ouro, então chamada Terra do Negro, e, ainda, depois disso, vieram as Américas. As famosas corridas do ouro, no Yukon e em Eldorado, soaram como os primeiros gritos da moderna Idade Dourada. Enquanto isso, na Áustria, Bendigo e Ballarat tinham iniciado sua produção, e os depósitos russos em Lena e nos Urais estavam transformando a Rússia no maior produtor de ouro do mundo, no meio do Século XIX. Então, começou a segunda moderna Idade Dourada — as descobertas no Witwatersand. Isso tudo foi ajudado pelo novo método de separação do ouro da rocha com cianido e não com mercúrio, como antes. Estamos no limiar da moderna Terceira Idade Média. — O Coronel sorriu, abrindo os braços: — Hoje, o ouro está vertendo da terra. Pois, a produção do Klondike, de Homestake e de Eldorado, que foram um dia as maravilhas do mundo, somente somariam juntas a produção de três anos, só na África! Só para lhe mostrar, de 1500 a 1900, período em que se manteve anotações razoáveis do assunto, o mundo inteiro produziu cerca de 18 mil toneladas de ouro. De 1900 até hoje, foram arrancadas do solo cerca de 41 mil toneladas! Nesse ritmo, Mr. Bond — o coronel vergou-se para a frente — e, por favor, não diga que eu disse, eu não me assustaria se, daqui a 50 anos, não tivermos exaurido completamente as reservas de ouro da terra! Bond, soterrado pelas cataratas da história do ouro, não teve muita dificuldade em manter uma aparência grave, como a do Coronel Smithers. Disse, então:

— O senhor, sem dúvida, construiu uma história fascinante disso tudo. Talvez a situação não seja tão ruim como o senhor acredita. Já estão tirando petróleo do fundo do mar. Talvez encontrem uma forma de tirar o ouro também. — Fez uma pausa — E, agora, sobre esses contrabandos...

O telefone tocou. O coronel puxou o fone do gancho, com impaciência:

— Smithers falando.

Ficou ouvindo, enquanto a irritação crescia no seu rosto.

— Tenho certeza de que lhe mandei um apontamento sobre os compromissos de verão, Miss Philby. O próximo é no sábado, contra as firmas de Descontos. — Ouviu mais um pouco: — Bem, se a senhora Flake não quiser jogar no gol, terá que ficar na reserva. Estou certo de que é a única posição que temos para ela. Todo mundo não pode jogar de centro-avante. Sim, faça isso. Diga que eu ficarei muito grato, por esta vez. Estou certo de que ela ficará boazinha — bom físico e tudo o mais. Obrigado, Miss Philby.

O coronel tirou o lenço e limpou a testa, enquanto desligava o telefone:

— Desculpe-me, por causa disso, Mr. Bond. Esportes e bem-estar se tornaram quase uma feitiçaria, aqui no Banco. Eu mesmo, ainda há pouco, "ganhei" a responsabilidade do time de hóquei das mulheres. Como se eu já não tivesse bastante amolação com a gincana anual, que vem aí... Contudo — o coronel deixou de lado essas pequenas irritações — como o senhor ia dizendo, já é tempo de a gente entrar nessa história de contrabando. Bom: para começar e tomando apenas a Inglaterra e a área de circulação do esterlino, o negócio é muito sério, mesmo. Empregamos três mil sujeitos no Banco, Mr. Bond e, desses, nada menos de mil tratam somente do controle do departamento de câmbio. Desses, menos quinhentos, contando com o meu pequeno grupo, se dedicam ao controle dos movimentos ilícitos de troca, os atentados para contrabandear ou fugir da Regulamentação do Controle de Câmbio.

— É bastante gente — Bond comparou o número com o do Serviço Secreto, onde o pessoal não chegava a dois mil. — Pode me dar um exemplo de contrabando? Em ouro. Não consigo entender essas negociatas com dólares.

— Claro que posso. — O coronel começou a falar, desta vez com voz macia, a voz de um homem ultracalejado pelo trabalho a serviço de seu governo. Era a voz de um especialista, num dos particulares da linha de defesa da lei. Era uma voz que contava que ele sabia muita coisa ligada a essa linha especial e que poderia adivinhar, com muita propriedade, todo o resto. Bond conhecia a espécie de voz. E muito bem: a voz do serventuário público de primeira categoria. Apesar de sua empáfia, Bond estava começando a gostar do Coronel Smithers. — Preste atenção: suponha que o senhor tenha nos bolsos uma barra de ouro do tamanho aproximado de dois maços de baralho. Pesaria mais ou menos 567 gramas. Não nos preocupemos, no momento, sobre onde o senhor o conseguiu — furtou, herdou ou qualquer coisa assim. E ouro de 24 quilates, que a gente chama de mil por cento bom. Bem, a lei diz que o senhor deve vender ao Banco da Inglaterra, ao preço controlado de doze libras e dez, por onça de ouro. Isso daria, mais ou menos, mil libras. Mas, digamos que o senhor seja ganancioso. O senhor tem um amigo do Extremo Oriente. Tudo o que o senhor tem a fazer é cortar a sua barra em fatias muito finas, ou placas de ouro (encontraria logo quem fizesse o serviço para o senhor) e que seriam menores que uma carta de baralho. Depois, costurá-las numa cinta de pano e pagar a seu amigo uma comissão, para usá-la. Poderia, facilmente, despender 100 libras para essa despesa. Seu amigo voa para Bombaim e vai ao primeiro comerciante de ouro, num bazar. E ele receberá, lá, mil e setecentas libras esterlinas pela barra de ouro e o senhor estará mais rico do que antes. E note que — o coronel gesticulou com o cachimbo, irritadamente — que isso é apenas 70% de lucro. Logo depois da guerra, poderia conseguir 3 mil por cento de lucro. Se o senhor tivesse realizado meia dúzia dessas pequenas operações, desde a guerra, poderia se aposentar folgadamente, hoje.

— Mas, por que o preço tão alto, na índia? — Bond, realmente, não desejava saber: mas, M poderia perguntar-lhe.

— Ê uma história comprida. Em resumo, a Índia tem mais carência de ouro, para o comércio de jóias, do que qualquer nação no mundo.

— E qual é a intensidade desse tráfico?

— De assustar. Para lhe dar uma idéia, o Serviço Secreto da Índia e a Alfândega, só no ano de 1955 "apreenderam" 43 mil onças. Duvido que isso represente mais de 1% do tráfico. O ouro chega à Índia de todos os pontos cardeais. A última invenção é levá-lo de avião até Macau e largá-lo de pára-quedas para um comitê de recepção, como se usava na guerra, para levar suprimentos à Resistência. E uma tonelada de cada vez.

— Já entendi. E há mais algum lugar onde eu poderia obter um bom lucro com a minha barra de ouro?

— Poderia conseguir um pequeno lucro em muitos países — Suíça, por exemplo — mas, não valeria a pena todo o trabalho e risco. A Índia é o melhor, até agora.

— Está bem: acho que estou pegando a coisa por inteiro — disse Bond. — E qual é o seu problema, em particular? — Recostou-se confortàvelmente e acendeu um cigarro: estava realmente ansioso para ouvir falar de Auric Goldfinger.

Os olhos do Coronel Smithers se tornaram duros: — Há um homem que veio para a Inglaterra em 1937. Era um refugiado de Riga. Nome: Auric Goldfinger. Tinha apenas 20 anos quando chegou, mas deveria ser um mocinho muito esperto, porque cheirou logo que os russos iam engolir, logo logo, seu país. Era ourives e joalheiro de profissão, como seu pai e seu avô, que tinham refinado ouro para Fabergé. Trazia um pouco de dinheiro e, provavelmente, uma daquelas cintas de pano de que lhe falei. Furtou de seu pai, digo eu. Bem, logo depois que se naturalizou — era uma espécie muito boa de rapaz e, no seu útil trabalho, não teve dificuldades em encontrar ocupação — começou a comprar pequenas casas de penhor, por todo o país. Botava nelas, para dirigir, seus próprios elementos, pagava-os bem e mudou o nome delas para "Goldfinger". Então, fez as lojas começarem a vender pequenas jóias douradas e comprar ouro velho. Naturalmente o senhor conhece essa espécie de casas: "Paga-se o melhor preço por ouro velho — Nada é muito grande, nem muito pequeno. Compra-se tudo." Mas ele imaginou seu próprio slogan: "Compre para ela o anel de noivado com o medalhão da herança". E Goldfinger foi para diante. Sempre escolheu a localização das lojas muito bem: aquela linha divisória entre a classe alta e a médio-baixa. Nunca tocou em coisas furtadas e sempre teve um bom nome com a polícia. Morava em Londres e vistoriava as lojas, todos os meses, para recolher todo o ouro velho comprado. Não estava interessado nas jóias: deixava que seus gerentes se encarregassem dessa parte do negócio. — O coronel olhava inquisidoramente para Bond. — O senhor pode pensar que esses medalhões e velhas cruzes são coisinhas pequenas. Realmente, são: mas, vão se amontoando, quando se tem vinte lojinhas, pelo país todo, a recolhê-las, cada uma comprando meia dúzia delas por semana. Bem, a guerra veio e Goldfinger, como todos os joalheiros, teve que declarar seu estoque de ouro. Examinei a quantidade marcada nos documentos arquivados: era cinqüenta onças para toda a rede de lojas! Somente o suficiente para permitir que as lojas continuassem com o estoque de anéis e coisas assim. O que eles chamam de achados de joalheiro. Naturalmente, foi-lhe permitido ficar com aquilo. Meteu-se numa fábrica de ferramentas, durante a guerra, lá em Gales — bem longe da linha de frente — e manteve em atividades o maior número de lojas que pôde. Mas deve ter feito bom negócio com os soldados americanos, que sempre andam com uma águia dourada ou uma moeda de ouro mexicana, como última reserva. Então, quando veio a paz, Goldfinger reiniciou a caminhada: comprou uma casa, de estilo pretensioso, em Reculver, no estuário do Tâmisa. Também fez investimentos: comprou um barco e um carro Rolls Royce blindado, construído para algum presidente sul-americano, que foi assassinado antes de poder recebê-lo. Instalou uma pequena fábrica, chamada "Thanet Alloy Research", nos terrenos de sua própria casa e as encheu com um metalurgista alemão, prisioneiro de guerra que não desejava voltar à Alemanha, e meia dúzia de estivadores coreanos, que recolhera em Liverpool. Eles não sabiam nada de nenhuma língua civilizada, por isso, não lhe constituíam risco nenhum. Então, por dez anos, tudo o que sabemos é que fazia uma viagem por ano à índia, no seu barco, e umas poucas viagens à Suíça, com o carro. Também montou uma subsidiária de sua empresa em Genebra. Manteve as lojas operando. Deixou, ele próprio, de juntar o ouro velho, passando o serviço a um dos coreanos, a quem ensinara guiar o automóvel. É certo que talvez o senhor Goldfinger não seja um homem muito honesto mas sabe se comportar e se mantém sempre longe da polícia: ainda mais com tanta confusão acontecendo por todo o país, ninguém lhe presta muita atenção.

O coronel fez uma pausa. Olhou, com jeito de desculpa, para Bond:

— Eu o estou aborrecendo? Realmente, desejo que o senhor tenha uma idéia bem completa da espécie de homem que esse daí é. Ele é quieto, cuidadoso, respeitador da lei e com aquela espécie de determinação que todos nos admiramos em outros. Nem mais ouvimos falar dele, até que sofreu um pequeno contratempo: no verão de 1954 seu barco, na viagem de volta da índia, encrencou em Goodwins e ele vendeu o que restava, por uma ninharia, para uma companhia de Dover. Quando essa empresa começou a desmontar o barco e tinha chegado, já, até as garras, encontraram madeira impregnada de um pó que não conseguiram identificar. Mandaram, então, uma amostra a um químico local. Ficaram surpresos, quando o químico os informou de que o tal pó era ouro. Não vou aborrecê-lo com a fórmula mas, saiba que o ouro pode ser dissolvido numa mistura de hidro-clorido e ácidos nítricos. Com um agente redutor — dióxido de sulfura ou ácido oxilático — o ouro se precipita no fundo, como um pó marrom. E esse pó volta a ser lingotes, se for derretido a uma temperatura ao redor de mil graus centígrados. Tem-se que tomar cuidado com o gás clorídrico mas, no resto, é uma operação simples. Alguém da empresa de Dover comentou o negócio com um dos elementos da Alfândega e, logo mais, um relatório acabou vindo às minhas mãos, através do C.I.D. e da polícia: junto, também, veio uma cópia de cada documento que desembaraçara cada uma das cargas das viagens de Goldfinger para a Índia. Todos os papéis davam todas as cargas como areia mineral, básica para fertilizantes. E tudo isso perfeitamente crível, porque todos esses modernos fertilizantes têm vários minerais na sua composição. O diagrama inteiro, então, estava claro como a água. Goldfinger estava refinando seu ouro velho, precipitando-o como pó marrom e o embarcando para a Índia, como fertilizante. Mas será que a gente podia responsabilizá-lo? Claro que não. Ele cuidava muito bem de sua conta bancária e de seus impostos. Tinha 20 mil libras no Barclay, em Ramsgate. Imposto de renda e imposto sobre lucro extraordinário, tudo pago prontamente, todos os anos. As parcelas demonstravam o progresso natural de negócios de joalharia bem conduzidos. Selecionamos alguns agentes do Esquadrão do Ouro e os mandamos bater à porta de Mr. Goldfinger, na fábrica de Reculver: "Com licença, cavalheiro, estamos fazendo uma inspeção de rotina da Seção de Pequena Indústria, do Ministério do Trabalho. Temos que nos certificar de que a Lei das Fábricas está sendo obedecida, no que diz respeito à saúde e à segurança." "Entrem, entrem!" Mr. Goldfinger positivamente os recebeu com prazer. Note que ele poderia ter sido avisado por seu agente bancário ou alguma outra pessoa, mas, aquela fábrica estava inteiramente devotada à produção de metalóides, para as quinquilharias de joalheiros — e, por cima, ainda fazendo experiências nunca tentadas, como, por exemplo, alumínio e estanho, ao invés da fusão comum de níquel, paládium e cobre. Havia vestígios de ouro por lá, naturalmente e, também, fornos para chegar a temperaturas até dois mil graus, mas Goldfinger era um joalheiro e um fundidor — num certo sentido — e tudo isso era perfeitamente normal. A turma do Esquadrão do Ouro se retirou desapontada, nosso departamento legal se convenceu de que o pó marrom não era suficiente para iniciar um processo, sem outras provas, e isso for mais ou menos tudo. Exceto — o Coronel Smithers, devagar, examinou seu cachimbo — o fato de eu ter decidido deixar em aberto o caso e começar a farejar pelos bancos de todo o mundo.

Smithers fez uma pausa. O zumbido da rua chegava até lá em cima, através da janela semi-aberta, atrás de sua cadeira. Bond olhou disfarçadamente para seu relógio: cinco horas. O coronel se levantou da cadeira. Colocou ambas as palmas das mãos na mesa, para curvar-se para a frente:

— Gastei cinco anos, Mr. Bond, para descobrir que Goldfinger, em dinheiro sonante, é o homem mais rico da Inglaterra. Em Zurique, em Nassau, no Panamá, em Nova York, tem 20 milhões de libras esterlinas em barras de ouro, guardadas nos cofres. E essas barras, Mr. Bond, não carregam nenhum carimbo oficial, que lhe denunciem onde foram fundidas. São barras que o próprio Goldfinger fundiu. Eu voei para Nassau e dei uma inspeção nos cinco milhões de barras de ouro, que ele mantém lá, nos cofres do Banco Real do Canadá. Estranhamente, como todos os artistas, ele não pôde refrear o impulso de assinar seu trabalho. Precisa-se de um microscópio para enxergar: mas, em algum lugar, em cada barra de ouro de Goldfinger, há um minúsculo Z riscado. Esse ouro — ou a maior parte dele — Mr. Bond, pertence à Inglaterra. O Banco não pode fazer nada, por isso estamos lhe pedindo que traga Mr. Goldfinger para as malhas da lei, e consiga esse ouro de volta. O senhor sabe da crise de divisas que atravessamos, não sabe? Naturalmente que sabe: bem, a Inglaterra precisa desse ouro, precisa muito mesmo — e quanto mais depressa, melhor.

 

                                           Raciocínios num D.B. III

Bond seguiu o Coronel Smithers até o elevador. Enquanto esperavam, olhou através da grande janela, no fim da passagem. Espiava para baixo, para o fundo poço formado pela parede traseira do Banco. Uma camioneta marrom-chocolate, sem nenhum nome pintado, havia entrado no pátio, através dos triplos portões de ferro. Caixotes quadrados de papelão estavam sendo descarregados e postos na correia móvel, que os fazia sumir, pelo interior do Banco. O Coronel Smithers se aproximou:

— São as notas de cinco. Estão chegando do Departamento de Impressão, em Laughton. O elevador chegou e ambos embarcaram. Bond comentou:

— Não gostei muito das notas novas. Parecem dinheiro de qualquer país. As velhas eram o dinheiro mais bonito do mundo.

Atravessaram o saguão de entrada, agora na penumbra e deserto. Smithers respondeu:

— Para dizer a verdade, concordo com o senhor. O diabo é que a falsificação feita pelos bandos do Reich, durante a guerra, eram muito boas, mesmo. Quando os russos capturaram Berlim, no meio da muamba toda, também confiscaram as placas de impressão. Solicitamos que nos entregassem, mas recusaram. Por isso, o Banco da Inglaterra e o Tesouro julgaram ser muito perigosa a situação. A qualquer momento, se Moscou quisesse, poderia ter lançado uma avalancha de notas inglesas falsas. Tivemos que tirar, por isso, de circulação, as notas velhas de cinco. As novas não são tão bonitas de se ver mas, pelo menos, para serem falsificadas, darão um bruto trabalhão.

O guarda da noite lhes abriu a porta e eles saíram. A rua Threadneedle estava quase deserta. A longa noite da cidade começara. Bond se despediu do Coronel Smithers e caminhou até o subway. Nunca tinha se preocupado muito com o Banco da Inglaterra, mas agora que estivera por dentro das paredes se convencia de que a matrona da rua Threadneedle poderia ser velha, mas ainda tinha alguns dentes na boca.

Tivera ordens para se apresentar a M às seis horas. Fez isso. A face de M já não estava corada e rebrilhante. O longo dia de trabalho tinha apagado tudo isso: tinha repuxado e amassado aquele rosto. Quando Bond entrou e se sentou na cadeira perto da mesa, notou o esforço consciente que o chefe fazia para desanuviar a mente e sintonizar no novo problema que o dia lhe reservava, ainda. M se endireitou na cadeira e apanhou o cachimbo:

— Bem?

Bond conhecia a falsa beligerância que aquele latido podia insinuar. Por isso, relatou o mais importante de todo o caso, em cinco minutos. Quando terminou, M comentou, pensativamente:

— Acho que a gente tem que aceitar a coisa. Não entendo patavina sobre a libra e esse negócio de depósito-ouro no Banco, mas todo mundo parece que está olhando com muita seriedade para o assunto. Pessoalmente, sempre pensei que a força da libra dependesse de quão duro a gente trabalhasse, e não de quanto ouro a gente pudesse ter. A Alemanha não tinha muito ouro, depois da guerra. Olha até onde chegou, em dez anos. Contudo, isso pode parecer uma resposta muito fácil para os políticos — ou, ao mesmo tempo, muito difícil. Tem alguma idéia de como pescar esse sujeito, o Goldfinger? Alguma de se aproximar dele, oferecer-se para fazer um servicinho qualquer — uma coisa dessas? Bond respondeu pensativamente:

— Acho que não me adiantaria nada me grudar nele, pedir para fazer um serviço qualquer ou alguma coisa desse naipe. Devo dizer que penso que ele é um desses sujeitos que só respeitam os que sejam mais duros e mais espertos que ele próprio. Eu já o acertei uma vez e a única mensagem que me mandou foi de que gostaria de jogar golfe comigo. Talvez seja melhor eu fazer exatamente isso.

— Ótimo jeito para um dos meus homens mais importantes passar o tempo. — O sarcasmo na voz de M era cansado, gasto. — Está certo: faça isso. Mas se o que você diz dele é certo, o melhor é você vencê-lo mesmo. Qual a história que você vai contar para ele, a seu respeito?

Bond fez uma careta:

— Ainda não sei, não. Talvez deva dizer que estou pensando em deixar a Exportações Universais. Lugar sem futuro, etc. E que, enquanto decido, tomo umas férias. Dizer que penso emigrar para o Canadá, que estou cheio daqui. Qualquer coisa assim. Talvez eu deva jogar o joguinho conforme as cartas venham. Não penso que ele seja um sujeito fácil de a gente enganar.

— Está certo. Faça relatórios dos progressos. E não pense que não estou interessado nesse caso. A voz de M tinha mudado, assim como a expressão de seu rosto. Os olhos tinham se tornado exigentes. Agora, vou lhe dar uma informação que o Banco da Inglaterra não lhe deu: acontece que eu sei como as barras de ouro de M. Goldfinger são. Por sinal, eu manuseei uma delas ainda hoje — com o Z arranhado e tudo. Veio com a apreensão que fizemos na semana passada, quando "pegou fogo" o escritório do diretor da Redland Resident, em Tanger. Você viu os sinais: Bem, essa é uma das vinte barras de ouro, com essa marca particular, que vem ao nosso encontro desde a guerra.

Bond interrompeu:

— Mas, essa barra de Tanger veio de dentro do cofre da smersh.

— Exatamente. Todas as outras barras com o Z arranhado foram tomadas de agentes da smersh. — M foz uma pausa, para dizer mansamente: — Sabe duma coisa, 007? Eu não ficaria nada surpreso se Goldfinger vir a ser o banqueiro estrangeiro, o tesoureiro da smersh.

 

James Bond lançou seu carro D.B. III pela última milha da reta e mudou a marcha para a terceira e, depois, para a segunda, a fim de enfrentar a curta subida, antes de se lançar ao tráfego de Rochester. Segura pelas macias garras dos discos dianteiros, a máquina externou seu protesto em "soluços" raivosos, que fluíam pelo escapamento duplo. Bond passou para a terceira, de novo, alcançou a luz verde no pé da colina, e resignadamente se encaminhou para o fim da fila de carros que se arrastaria por uns quinze minutos (se tivesse sorte), pela confusão de Rochester e Chatham.

Engatou a segunda, e deixou o carro à vontade. Esticou o braço para o porta-luvas, procurando a larga cigarreira de Morland, acendeu um com o acendedor do painel.

Havia escolhido a estrada A2 ao invés da A20 para Sandwich porque desejava dar uma espiada pelas terras de Goldfinger. — Reculver e os melancólicos confins do Tâmisa, que ele havia escolhido para instalar sua sede. Cruzaria, então, a ilha de Thanet até Ramsgate, deixaria suas malas em Channel Packet, tomaria um ligeiro lance para, finalmente, seguir até Sandwich.

O carro era do depósito. Haviam oferecido a Bond um Aston Martin ou um Jaguar, 3.4, mas ele preferira ficar com o D.B.III. Qualquer um dos outros dois carros teria serviço para seu disfarce — o de um jovem bem posto na vida, espírito meio aventureiro, com predileção pelas coisas boas e dinâmicas da vida. Mas o D.B.III tinha as vantagens especiais de viagem, uma cor discreta (cinza-chumbo) e recursos extras que poderiam (ou não), ser-lhe útil. Entre estes se incluíam botões para mudar o tipo e a tonalidade das lâmpadas traseiras e fronteiras, se estivesse seguindo alguém, ou sendo seguido à noite, pára-choques de aço reforçado, na frente e atrás, em caso de precisar dar uma batida, um Colt 45 de cano longo, num compartimento disfarçado embaixo do banco do chofer, um radioreceptor ajustado para receber transmissões de um aparato chamado Homer e muito espaço escondido, que enganaria a maioria dos fiscais da Alfândega.

Bond viu uma brecha e ganhou uns cinqüenta metros, embocando num buraco de dez metros deixado por um ônibus familiar que ia devagarinho. O homem ao volante, que tinha a cara infalível do mau chofer, com um chapéu firmemente enterrado bem no centro da cabeça, rosnou raivosamente. Bond, pela janela, mostrou um enigmático punho fechado — e o rosnar terminou.

E, agora, que tal aquela teoria de M? Realmente, fazia sentido. Os russos eram notoriamente incompetentes, no pagamento de seus homens. Seus centros estavam sempre com os recursos esgotados e seus homens sempre se queixando para Moscou, de que não podiam mesmo se arriscar a uma refeição normal. Talvez a smersh não conseguia as divisas, no Ministério da Segurança Nacional. Ou talvez o Ministério não conseguia arrancar o dinheiro do Ministério das Finanças. Mas, em qualquer caso, sempre tinha sido a mesma coisa: intermináveis problemas de dinheiro, que resultaram em chances perdidas, promessas não cumpridas e perda de perigoso tempo pelo rádio. Seria sensato manter um financiador esperto e inteligente, fora da Rússia, que pudesse não só levar o dinheiro aos centros de espionagem, como (no caso presente), conseguir lucros próprios tão grandes, que pudesse financiar os centros da smersh, sem a assistência de Moscou. Não apenas isso. Ao mesmo tempo, Goldfinger ainda estaria danificando apreciàvelmente a base monetária de uma nação inimiga. Se tudo fosse assim mesmo, seria típico da smersh — um esquema brilhante, operado com perfeição por um homem consistente. E isso, pensou Bond, enquanto fazia seu carro voar pela colina, em direção de Chatham, deixando vários carros para trás, explicaria parcialmente a ganância de Goldfinger, por mais e mais dinheiro. Devoção à causa, à smersh e talvez o prêmio de contrapeso de uma Ordem de Lenine seriam o pretexto para recolher 10 ou 20 mil dólares, quando as oportunidades fossem boas, ou quando fosse possível controlá-las e ajustá-las favoravelmente. Os recursos para a Revolução Vermelha, para a disciplina pelo medo, que era a especialidade da smersh, nunca eram suficientemente grandes. Goldfinger não estava fazendo dinheiro para ele próprio. Ele o estava amontoando para a conquista do mundo! O risco menor de ser descoberto, como tinha sido por Bond, não era nada importante. Por quê? Ao que poderia, o Banco de Londres conseguir que o condenassem, se todas as suas anteriores pudessem ser descobertas e denunciadas? Dois anos? Três?

O tráfego era mais leve, nas cercanias de Gillingham. Bond continuou a guiar mas, dali por diante, com calma, não se apressando, seguindo com seu raciocínio, enquanto mãos e pés continuavam com suas reações automáticas.

Então, em 1937, a smersh deve ter mandado Goldfinger viajar, com a cinta de ouro ao redor de sua jovem cintura. Teria demonstrado suas aptidões especiais, durante seu treinamento, na Escola de Espiões de Leningrado. Ter-lhe-iam dito que haveria uma guerra e que ele deveria e precisaria começar a cavar e quietamente, juntar. Goldfinger não deveria nunca sujar as mãos, nunca encontrar-se com nenhum agente, nunca receber ou transmitir nenhuma mensagem. Um jeito qualquer deveria ter sido arrumado. Qualquer coisa assim como "Vaxhall de segunda mão", "Rover Imaculado, 2.000 libras", "Bentley, 5.000", sempre um anúncio de carro, que não atrairia nem atenções nem correspondência. Na coluna de "Precisa-se", do "Times", talvez. E, obedientemente, Goldfinger ia deixando as barras de ouro de mil, dois mil, cinco mil libras esterlinas, nos locais de entrega, que constituíam a longa (longuíssima) série arranjada por Moscou, muito antes de ele partir de lá. Numa determinada ponte, numa árvore, embaixo duma pedra, num regato, em qualquer lugar da Inglaterra. E ele nunca mais, em nenhuma circunstância, voltaria ao mesmo local. Seria problema de Moscou certificar-se de que o agente chegasse ao tesouro escondido. Mais tarde, depois da guerra, quando Goldfinger começou a aparecer, quando ia se tornando um grande homem, o lugar da entrega não mais seriam árvores ou pedras. Agora, ele receberia instruções e números de caixas de segurança para depósitos, depósitos de bagagens, nas estações. Mas ainda deveria prevalecer a regra de que Goldfinger nunca deveria visitar o local, nunca arriscar-se pessoalmente. Talvez receber suas instruções apenas uma vez por ano, num encontro casual em algum jardim, numa carta posta em seu bolso, numa viagem de trem. E sempre seriam barras de ouro, anônimo, impossível de demonstrar a procedência, quando capturado — exceto pelo minúsculo Z, que a sua vaidade havia arranhado para assinar seu trabalho e que um entediado inglês do Banco da Inglaterra, chamado Coronel Smithers encontrara, no desenrolar de suas obrigações.

Bond rodava através dos intermináveis orquidários dos criadores de Faversham. O sol apareceu por trás da neblina de Londres. À sua esquerda, havia o distante reverberar do rio Tâmisa. Havia tráfego, no rio — os barcos-tanques, compridos e brilhantes, os de vendedores, as antediluvianas barcaças holandesas. Bond deixou a estrada de Canterbury e enveredou pela incongruentemente rica auto-estrada que se estende pelo mundo de bangalôs de férias — Whitstable, Herne Bay, Birchington, Margate. Ele ainda se mantinha a 50 milhas por hora, segurando o carro em rédea leve, ouvindo o suave roncar nos escapamentos, ajustando os pedaços de pensamento no quebra-cabeça geral, como havia feito com o rosto de Goldfinger, duas noites antes, no Identcast.

E, continuou a raciocinar Bond, enquanto Goldfinger ia servindo um milhão, dois milhões por ano, à sangrenta boca da smersh, também amontoava suas próprias reservas, trabalhando-as, fazendo-as trabalhar para ele, toda vez que as oportunidades eram favoráveis, estufando os extras para o dia em que as trombetas soassem no Kremlin e todo ouro tivesse que ser mobilizado. E ninguém fora do Kremlin tinha percebido o processo, ninguém suspeitava de que Goldfinger — o joalheiro, o metalúrgico, o residente de Reculver e Nassau, o respeitável membro do Blades e do Royal St. Marks, em Sandwich — era um dos maiores conspiradores de todos os tempos, de que havia financiado o assassínio de centenas, talvez milhares de vítimas da smersh por todo o mundo. Smersh, "Smiert Spionam", "Morte aos espiões" — o aparato homicida a serviço do Presidium Supremo! E apenas M o suspeitara, somente Bond o sabia. Aqui estava Bond lançado contra esse homem por uma série de fatos, uma corrente de circunstâncias, que tinham se iniciado com o defeito num avião, no outro lado do mundo. Bond sorriu alegremente para si próprio. Quão amiúde, na sua profissão, tinha acontecido o mesmo — o pequeno grão de coincidência, que levava à árvore imensa, que obscurecia o céu. E, agora, uma vez mais, ele estava se preparando para a derrubada do mal. Com o quê? Com uma bolsa de tacos de golfe?

Um Ford Popular, repintado de azul celeste, com largos pára-lamas amarelos, deslizava preguiçosamente pelo centro da estrada, à frente. Mecanicamente, Bond deu dois tapinhas polidos na buzina. Não houve reação. O Ford Popular ia nos seus seguros 40 quilômetros. Por que haveria alguém de querer andar mais depressa que essa respeitável velocidade? O Ford, obstinadamente, deu de ombro, e continuou seu curso. Bond deu uma buzinada raivosa, esperando que o outro se afastasse. Mas teve que usar os freios, porque o Ford não se moveu. Raio de homem! Claro: era a figura usual, de mãos tensas segurando, muito no alto, a roda da direção, o chapéu inevitável, desta vez um particular odioso chapéu negro de copa alta, metido retamente na cabeça em forma de bala. Ora, bem, pensou Bond: não eram as suas úlceras... Mudou a marcha, pisou no acelerador e, com desprezo, lançou o D.B.III voando, pelo lado do outro. Palhaço, idiota!

Mais cinco milhas e ele atravessara Herne Bay. Um grupo de três aviões a jato, os Super-Sabres, se dirigia à pista, para pousar. Eles baixaram para além do horizonte, à direita de Bond, como se fossem espatifar de encontro ao solo. Com metade da atenção, Bond ouviu o ronco dos jatos alcançá-los, enquanto aterravam e taxiavam para os hangares. Chegou a uma encruzilhada: à esquerda, a tabuleta dizia "Reculver". Embaixo, havia o sinal antigo para marcar a igreja de Reculver. Bond diminuiu a marcha, mas não parou. Nada de flanar por ali. Guiou serenamente, mantendo os olhos bem abertos. A linha da praia era muito exposta, para que um barco fizesse outra coisa além de ancorar normalmente. Provavelmente, Goldfinger teria usado Ramsgate. Era um pequeno porto, muito quieto. Os fiscais da alfândega e da polícia provavelmente só estariam alerta para ver se descobriam conhaque vindo da França. Havia um denso grupo de árvores entre a estrada e a praia, uma faixa de telhados, e uma chaminé de uma fábrica de tamanho médio, com a sua leve plumagem de fumaça clara, ou vapor. Teria que ser aquela. Logo, abrir-se-ia o portão para uma longa viagem. Um aviso discreto mas, autoritário, dizia: "Thanet Alloys" e, embaixo: "Proibida a entrada, exceto a serviço". Tudo muito respeitável. Bond guiou devagar, para a frente. Nada mais havia para ser visto. Tomou a próxima curva para a direita, através da planície do campo de Manston, para Ramsgate.

Era meio-dia. Bond inspecionou seu quarto, um duplo com banheiro, no alto de Channel Packet, desemalou seus poucos pertences e desceu para o barzinho, onde tomou tônica e vodca, com dois sanduíches de excelente presunto, com muita mostarda. Então, voltou para o carro, e se dirigiu, vagarosamente para o Royal St. Marks, cm Sandwich. Carregou seus tacos de golfe para uma oficina profissional e atravessou-a até o quarto de consertos. Alfred Blacking estava enrolando um novo cabo, num taco.

— Como vai, Alfred?

O profissional olhou para cima, vivamente. Sua face queimada do sol se rasgou num sorriso largo:

— Ora! Vejam se não é Mr. James! — Apertaram-se as mãos. — Puxa, devem fazer quinze ou vinte anos! Que é que traz o senhor aqui? Alguém estava me dizendo, ainda outro dia, que o senhor estava na diplomacia, ou coisa parecida. Sempre no estrangeiro. Bom, eu nunca imaginei!... Ainda tem o mesmo defeito de mandar a bola? — Alfred juntou as mãos e suspirou.

— Receio que sim, Alfred. Nunca tive tempo de me livrar desse defeito. Como é que vai a Sra. Blacking e Cecil?

— Não posso me queixar. Cecil foi muito bem sucedido no Campeonato de Kent, no ano passado. Deve ganhá-lo, este ano, se puder sair mais da loja e treinar mais nos campos.

Bond encostou sua bolsa de tacos na parede. Era bom estar de volta. Tudo estava exatamente igual. Houve uma época, antes dos seus vinte anos, quando jogava duas partidas por dia, em todos os dias da semana, no Sta. Marks. Blacking sempre quisera tomá-lo sob sua direção. "Um pouco de prática, Mr. James, e o senhor estará prontinho. Não é brincadeira, não. O senhor realmente estaria. Por que é que tem de continuar aí, nos seis pontos? O senhor tem duro, a não ser esse golpe seco e querendo mandar a bola para longe demais, quando não há razão nenhuma para isso. E o senhor tem o temperamento necessário. Uns dois anos, talvez apenas um, e eu poderia inscrevê-lo no de Amadores. Mas, alguma coisa dizia a Bond que não haveria muito golfe na sua vida e, se gostava do esporte, seria melhor se esquecer de lições e jogá-lo o mais que pudesse. Sim, seriam uns vinte anos, desde que jogara pela última vez nos campos de St. Marks. Nunca voltara, mesma quando houvera aquele sangrento episódio em Kingsdown, 15 quilômetros mais abaixo, na costa. Talvez tenha sido sentimentalismo. Desde St. Marks, Bond tivera muitos fins de semana com golfe, quando estava parado no quartel-general. Mas sempre nos campos ao redor de Londres — Huntercombe, Swuinley, Sunningdale, Berkshire. A sua média tinha subido até nove. Mas era um nove de verdade — tivera que se manter no esporte que decidira jogar, as 10 libras de Nassau, os sujeitos duros que sempre insistiam numa dupla de tragos de "kümmel", depois do almoço.

— Alguma chance de encontrar parceiro, Alfred?

O profissional olhou pela janela traseira, para os campos abertos.

— Acho que não muita, senhor. Não aparecem muitos jogadores no meio da semana, nesta época do ano.

— E você?

— Desculpe, mas não posso. Tenho compromisso com um membro do clube. É uma coisa rotineira. Todos os dias, às duas horas. E o diabo é que Cecil foi até o Princes, para treinar um pouco para o campeonato. Que massada besta! (Alfred nunca usava nenhuma expressão mais forte que essa). Tinha que acontecer uma coisa assim... Quanto tempo o senhor vai ficar por aqui?

— Pouco tempo. Não se importe, não. Eu jogarei umas bolas com o caddie. Quem é o sujeito com quem você vai jogar?

— Um tal de Mr. Goldfinger. — Alfred tinha uma expressão desiludida.

— Ah, o Goldfinger. Eu conheço o sujeito. Conheci-o outro dia, na América.

— Conheceu, mesmo? — Era evidente que Alfred achava incrível que alguém pudesse conhecer Goldfinger. Ficou vigiando a face de Bond, para descobrir qualquer outra reação mais.

— E ele é bom?

— Mais ou menos. Quase bom pelos nove.

— Ele deve tomar esse negócio muito a sério, se joga com você todos os dias.

— E é isso mesmo, senhor! — A face do profissional tinha a expressão de que Bond se lembrava muito bem. Significava que Blacking tinha uma opinião desfavorável do sócio em questão, mas era um servidor muito bom, para deixar que isso extravasasse.

Bond sorriu. Em seguida, comentou:

— Você não mudou nada, Alfred. Você quer dizer que ninguém jogaria com o sujeito. Lembra-se de Farquharson? O jogador mais lerdo de toda a Inglaterra. Eu me lembro de você sempre atrás dele, voltas e voltas. Vamos, vamos! Que é que há com Goldfinger?

O profissional riu. E disse:

— É o senhor que não mudou, Mr. James. O senhor sempre foi muito perguntador. Deu mais um passo para perto e baixou a voz: — A verdade é que muitos sócios pensam que Mr. Goldfinger é um pouquinho esquentado. O senhor entende: melhora sua bola no chão e coisas assim. — O profissional pegou o taco que tinha estado a segurar, levantou-o na pose de jogar, olhou para um dos buracos imaginários e balançou a cabeça do taco para cima e para baixo, como se estivesse mandando uma bola: — Deixa ver: será esta uma bola para taco de metal, caddie? Que é que você pensa? — Alfred Blacking fungou: — Naturalmente, quando ele termina de cutucar a terra por trás da bola, a bola suspendeu uma polegada — e então será uma bola para bater com o taco de metal. — A expressão de Alfred se fechou de novo. Disse, então, numa expressão neutra: — Mas isso é só falatório, senhor. Eu nunca vi nada. É um cavalheiro quieto. Tem uma propriedade em Reculver. Vinha por aqui muitas vezes. Mas, nos últimos meses, tem vindo à Inglaterra só por umas semanas, cada vez. Telefona e pergunta se tem alguém querendo jogar com ele e, se não há ninguém, escala eu e o Cecil. Telefonou esta manhã e perguntou se havia alguém por aí. Vez em quando, alguém aparece. — Alfred Blacking olhou interrogativamente para Bond: — Será que o senhor não gostaria de jogar com ele, esta tarde? Parece esquisito o senhor estar por aqui, sem parceiro, e conhecendo o homem, por cima. Ele poderá pensar que eu o esteja guardando para mim, ou coisa assim. E isso não ficaria bem.

— Besteira, Alfred. Além do mais, você tem que ganhar a vida. Por que a gente não joga em três?

— Ele não faria isso, não. Diz que é muito vagaroso. E eu também acho. E o senhor não se preocupe com o meu pagamento. Há muito serviço para ser feito aqui na oficina e eu gostaria, mesmo, de uma tarde livre, para me dedicar a isso. — Olhou de relance para seu relógio: — Ele estará chegando a qualquer momento, agora. Arranjo um caddie para o senhor. Lembra-se de Hawker? — Alfred Blacking riu: — O velho Hawker ainda é o mesmo. É um outro que vai ficar contente de vê-lo por aqui, de novo, Mr. Bond.

Bond replicou:

— Muito obrigado, Alfred. Mas eu gostaria de ver como é o jogo desse sujeito. Por que não fazer o seguinte? Você diz que eu passei por aqui, para apanhar um taco, ou consertar um. Sócio velho. Que eu já joguei aqui antes da guerra. De fato, preciso de um novo taco n.° 4. Aquele velho, que você me deu, já está dando o prego. Diga coisas assim, casuais. Não fale que contou que ele estava por aqui. Ficarei pela oficina e assim lhe dou a oportunidade de escolher, sem ofendê-lo. Talvez ele não goste da minha cara, ou qualquer coisa. Certo?

— Tá bom, Mr. James. Deixa comigo. O carro dele está chegando, já. — Blacking apontou pela janela: uns oitocentos metros adiante, um carro amarelo rebrilhante fazia a curva e entrava pela avenida privativa do clube. — Calhambeque esquisito, aquele. Parece com os que se viam, quando eu era criança.

Bond olhou o velho Silver Ghost vencer majestosamente a avenida, em direção à sede do clube. Era uma beleza, de carro! O sol reverberava no radiador niquelado, nas partes laterais do capo e nos caixilhos do vidro da frente. O porta--bagagem no teto da carroçaria estilo "limousine" — tão feio há 20 anos e tão estranhamente belo hoje — era de cobre polido, como o eram os faróis dianteiros, destacados por cima dos pára-lamas, espiando petulantemente para a estrada, ao lado da buzina. O carro inteiro, exceto pela carroçaria e o teto negros, era de um amarelo gritante. Passou pela cabeça de Bond que o tal presidente sul-americano deveria ter copiado o modelo do famoso carro amarelo no qual Lord Lonsdale ia ao Derby e a Ascot.

E agora? No lugar do motorista estava uma figura usando um guarda-pó e boné da cor de café com leite, sua face redonda e grande meio escondida pelos óculos negros de corredor. A seu lado, um homem quadrado, atarracado, vestido de preto, mantinha o chapéu firmemente seguro no centro da cabeça. Os dois olhavam diretamente para a frente, com uma curiosa imobilidade. Era como se, ao invés daquele automóvel, estivessem num carro fúnebre.

O carro se aproximava. Os seis pares de olhos — os olhos dos dois homens e as enormes órbitas gêmeas do veículo — pareciam olhar diretamente através da pequena janela, para os olhos de Bond.

Instintivamente, Bond afastou-se alguns passos para os lados escuros da oficina. Notou o movimento e sorriu para si mesmo. Pegou um descanso de bola de alguém, abaixou-se e, pensativamente, o colocou sobre um nó do assoalho de madeira.

 

                                                                    Coincidência

 

                                   Tudo para jogar

— Boa tarde, Blacking. Tudo pronto? — A voz era casual, autoritária. — Vi um carro ali fora. Não de alguém que queira jogar, será?

— Não estou bem certo, senhor. É um velho sócio, que voltou para mandar consertar um taco. Quer que lhe pergunte, senhor?

— Quem é ele? Como é que se chama?

Bond sorriu, divertido. Abriu bem os ouvidos, pois queria captar toda inflexão:

— Um Mr. Bond, senhor. Houve uma pausa:

— Bond? — A voz não tinha mudado. Era polidamente interessada: — Conheci um sujeito chamado Bond, no outro dia. Qual é o primeiro nome dele?

— James, senhor.

— Ah, sim. — A pausa, desta vez, foi maior. — Ele sabe que eu estou aqui?

Bond podia sentir as antenas de Goldfinger auscultando a situação.

— Ele está ali na oficina. Pode ter visto seu carro chegar. — Bond pensou: Alfred nunca disse uma mentira na vida e não é agora que vai começar.

— É. Pode ser uma idéia. — Agora, a voz de Goldfinger era inquisitiva. Queria alguma informação de Alfred Blacking. — Que espécie de jogo esse sujeito joga? Qual é sua média?

— Era muito bom quando era mocinho, senhor. Não vi mais seu jogo, desde então.

— Humm.

Bond podia sentir o homem pesando a situação toda. E cheirou que a isca poderia ser mordida. Meteu a mão na sua sacola e tirou de lá o taco mais duro, para esfregar o cabo com um bloco de laça. Seria melhor que parecesse ocupado. Uma tábua, na loja, rangeu. Bond se virou para outro lado, muito ocupado com o que fazia e ficou de costas voltadas para a porta aberta.

— Acho que já nos encontramos antes — a voz que veio da porta era baixa, casual.

Bond olhou depressa por sobre os ombros.

— Puxa vida! Você me fez pular de susto. Ora, é... — O reconhecimento foi um pouco difícil —... é Gold, Goldman... Goldfinger. — Rezou para que não estivesse exagerando. E disse, com uma ponta de desconfiança, de desgosto: — De onde é que você apareceu?

— Eu lhe disse que jogava por aqui, se lembra? — Goldfinger o estava olhando com seriedade. Então, seus olhos se abriram bastante. O olhar de raio X atravessou até a nuca de Bond.

— Não.

— Miss Masterton não lhe deu meu recado?

— Não. Qual era?

— Eu lhe disse que viria para cá e que gostaria de jogar uma partida de golfe com o senhor.

— Ora, então! — A voz de Bond era friamente polida. — A gente precisa fazer isso, qualquer dia.

— Eu tenho jogado com o instrutor. Em vez disso, jogarei com o senhor. — Dizia a coisa como quem está comunicando um fato.

Não havia dúvidas de que Goldfinger estava no anzol. Bond precisava, então, fingir-se de difícil.

— Por que não uma outra hora qualquer? Eu vim aqui para encomendar um taco. Depois, estou sem prática. E, provavelmente, não há nenhum caddie. — Bond estava sendo o mais rude que podia. Obviamente, mostrava que a última coisa que desejava era jogar com Goldfinger.

— Eu também faz tempo que não jogo — mentiroso descarado, pensou Bond. — Encomendar um taco não leva mais que um minuto. — Goldfinger foi para dentro da loja. — Blacking, você já pediu um caddie para Mr. Bond?

— Sim, senhor, pedi.

— Então, está tudo arranjado.

Bond recolocou o taco na sua sacola, com um gesto de desânimo.

— Está bem, então. — Pensou numa saída final, para deixar Goldfinger de fora. Disse duramente: — Mas eu aviso: gosto de jogar a dinheiro. Não posso ficar tacando bolas por aí, só pela alegria disso. — Bond estava contente com o tipo que criava para si próprio.

Teria havido um raio de triunfo, rapidamente escondido, nos pálidos olhos de Goldfinger? Ele disse indiferentemente:

— Isso está bom para mim. Sem handicap, naturalmente. Acho que você disse que o seu é nove.

— É isso.

Goldfinger perguntou, cautelosamente:

— Aonde, se posso saber?

— Huntercombe. — Bond também tinha 9 em Sunnindale. Huntercombe era um campo mais fácil. Nove ali não deveria assustar Goldfinger.

— Eu também chego a 9 aqui. Por isso, tem que ser um jogo equilibrado. Certo?

Bond fungou:

— Você será difícil demais para mim.

— Duvido. Contudo — Goldfinger estava sem jeito — eu lhe digo o que vou fazer: lembra-se daquele dinheirinho que o senhor removeu de mim, em Miami? O número inteiro era dez. Eu gosto dum joguinho. Será bom para mim ter que tentar. Jogarei o dobro ou nada, por aquilo.

Bond disse indiferente:

— Isso é muito. — Então, como se tivesse pensado melhor, se tivesse se lembrado de que também poderia ganhar, disse, com uma entonação de voz com a exata percentagem de interesse e relutância, ao mesmo tempo: — Claro que você pode dizer que tinha sido "dinheiro achado" e que eu não sentirei falta, quando ele se for. Bom: está bem. Dinheiro que vem fácil, também vai fácil. Jogo no taco. Dez mil dólares será.

Goldfinger se voltou. E disse com um pouco de doçura na voz:

— Então, está tudo arranjado, Mr. Blacking. Ponha seu pagamento na minha conta. Sinto muito que tenhamos que perder nosso jogo. Agora, deixa eu pagar a parte do caddie.

Alfred Blacking chegou-se até a oficina e pegou a sacola de tacos de Bond. Olhou diretamente para James. Disse, então:

— Lembre-se do que lhe disse, senhor. — Piscou um olho. — Quero dizer, sobre aquela tacada seca sua. Precisa vigilância — sempre.

Bond lhe sorriu. Alfred tinha orelhas compridas. Podia não ter ouvido a quantia, mas sabia que aquela tinha que ser uma partida decisiva.

— Obrigado, Alfred. Não me demorarei mais que um minuto.

Bond atravessou a oficina, saiu e se dirigiu ao seu carro. O homem de chapéu preto estava limpando o Rolls Royce de Goldfinger, com um pano. James sentiu mais do que viu que ele parava, para vigiá-lo tirar a sacola de zíper, de seu carro. Tinha uma cara amarela e quadrada. Um dos tais coreanos? Bond pagou Hampton, o garçom, e entrou no quarto de vestir. Estava exatamente igual. Por que será que era tradição dos mais famosos clubes de golfe da Inglaterra manter um nível higiênico de uma escola particular da era vitoriana? Ali havia o mesmo cheiro de velhos sapatos e meias e do suor do último verão. Bond trocou as meias e vestiu calças apropriadas, as de abotoar nas pernas. Tirou o paletó e vestiu um pulôver velho. Cigarros? Isqueiro? Estava pronto para começar.

Foi vagarosamente para fora, preparando-se mentalmente para o jogo. De propósito, tinha instigado esse homem a entrar numa disputa alta e dura, para que o interesse de Goldfinger sobre ele se aprofundasse e para que a opinião dele sobre Bond — de que Bond era um tipo duro, um aventureiro capaz de ser muito útil para Goldfinger — fosse confirmada. Bond pensara que 100 libras de Nassau fossem suficientes. Mas, dez mil dólares! Provavelmente, nunca houvera jogos simples tão altos, em toda a História — exceto, talvez, na final do Campeonato Americano, ou nos "rapas" amadores de Calcutá, onde eram os "patrões" e não os próprios jogadores que tinham o dinheiro em jogo. A conta particular de Goldfinger deve ter sofrido um rombo feio. Não deve ter gostado disso. Deveria estar se roendo para conseguir seu dinheiro de volta. Quando Bond mencionara preferir jogar com aposta alta, Goldfinger tinha visto sua chance. Que seja. Mas, uma coisa era certa: por mais de cem razões, Bond não poderia dar-se ao luxo de perder.

Entrou na loja e apanhou as bolas e as bases das mãos de Blacking. — Hawker está com os tacos, senhor.

Bond se encaminhou, fora, para as 500 jardas de cascalho que levavam até o primeiro posto de jogo. Goldfinger estava praticando, na relva. Seu caddie se mantinha perto, fornecendo-lhe bolas. Goldfinger estava se dedicando à nova moda: colocando a bola entre as pernas, para chutá-la com o taco em forma de martelo. Bond se sentiu encorajado. Não acreditava na eficácia do sistema. Sabia que não prestava, por ter ele próprio tentado. Sua velha adepta Calamity Jane tivera seus bons e seus maus dias. Não havia mais nada a tentar, sobre aquilo. Sabia também que as pistas de golfe de St. Marks não tinham nenhuma semelhança, no que dizia respeito à velocidade ou textura, com o campo de treinamento.

Bond notou, então, a manquitolante figura de seu caddie, que vinha chegando, fazendo pontaria numa bola imaginária, com um dos tacos de Bond.

— Boa tarde, Hawker.

— Boa tarde, Mr. Bond. — Hawker passou o taco a Bond e botou no chão três bolas usadas. Seu rosto, magro e sardônico, se abriu num amplo sorriso de boas-vindas: — Como é que tem andado o senhor? Jogou muito golfe nos últimos vinte anos? Ainda pode jogar a bola no telhado da cabana do guarda? — Era uma referência ao dia em que Bond, treinando antes duma partida, jogara duas bolas pela janela da cabana do guarda.

— Vamos ver. — Bond pegou o taco e o levantou na mão, medindo a distância. O barulho das bolas, na área de treino, havia terminado. Bond colocou a bola no chão, puxou o taco rapidamente, levantou a cabeça, golpeou e mandou a bola quase em ângulo reto. Tentou de novo. Desta vez, errou. Um tufo de terra voou e a bola foi a 10 jardas. Bond se voltou para Hawker, para lhe ver o olhar sardônico.

— Tudo certo, Hawker. Aquilo foi só para mostrar. Agora, uma para você. Ajustou no chão a terceira bola, levantou o taco devagar, para trás da cabeça e deu a tacada, violentamente. A bola subiu inclinada por uns 35 metros, amainou elegantemente, caiu por uns 25 metros e foi escorrer pelo telhado inclinado do telhado da cabana.

Bond devolveu o taco. Os olhos de Hawker tinham uma expressão pensativa, divertida. Não disse nada. Escolheu outro taco e o entregou a Bond. Andaram lado a lado para a primeira base, conversando sobre a família de Hawker. Goldfinger se reuniu a eles, impassível, calmo. Bond cumprimentou o caddie de Goldfinger, um tipo obsequioso e falador, chamado Foulks, de quem Bond nunca pudera gostar. Bond olhou para os tacos de Goldfinger: eram uma coleção novinha do tipo americano Ben Hogan, a parte de madeira coberta de couro de St. Marks. A sacola era do tipo de couro preto, preferido pelos profissionais americanos. Os tacos tinham, cada um, bolsinhos individuais, para serem retirados com facilidade. Era um aparato pretensioso, ao máximo.

— Vamos sortear pela honra de começar? — Goldfinger atirou uma moedinha para o ar.

— Coroa, para mim.

Deu cara. Goldfinger retirou seu taco para a primeira jogada, desembrulhou uma bola nova. E informou:

— Esta é uma Dunlop 65, n.° 1. Sempre uso a mesma bola. As suas quais são?

— Penfold. Hearts.

Goldfinger olhou perscrutante para Bond:

— Regras rigorosas de golfe?

— Naturalmente.

— Certo.

Goldfinger foi até a base e colocou a bola. Ensaiou um ou dois golpes, cuidadosa, concentradamente. Era o tipo de golpe que Bond conhecia bem — meditado, mecânico, repetido golpe de quem estudara o jogo com enorme cuidado, de quem lera todos os livros, de quem gastara 5 mil libras em aulas com os melhores profissionais. Seria um golpe profícuo, ótimo, que não se enfraqueceria numa situação de tensão. Bond o invejou.

Goldfinger tomou posição, torceu-se elegantemente, levou a cabeça do taco vagarosamente num arco largo e, com os olhos grudados na bola, dobrou os punhos com correção. Trouxe o taco mecanicamente de volta, sem esforço, para baixo e para a bola e o levou a um final artificial, como num livro de instruções. A bola voou reto, por cerca de duzentas jardas, para o campo.

Fora um golpe excelente. Bond sabia que Goldfinger poderia repetir o mesmo golpe com tacos diferentes, quantas vezes quisesse, pelos 18 buracos.

Bond tomou posição, ajustou a bola com cuidado calculado, e com um golpe seco, no balancear de um jogador de tênis, onde talvez houvesse muita pressão dos pulsos, para sentir-se seguro, atirou. Fora um ótimo ataque, que depositou a bola além da de Goldfinger e a fez, ainda, rolar por mais 50 jardas. Mas sofrerá um pequeno desvio e fora assentar--se no início do terreno ruim.

Os dois eram bons atacantes. Enquanto Bond entregava o taco a Hawker e se dirigia para os lados onde já ia o impaciente Goldfinger, podia sentir, cheirar a espécie de jogo de golfe que tinha nas mãos; uma partida dinâmica, quase raivosa, num belíssimo dia de maio, com os pássaros a cantar sobre a melhor cancha do mundo.

O primeiro buraco, no Royal St. Marks, tem a distância de 450 jardas, 450 jardas de pista suave, ondulada, com um "borrão" no meio, para prender a bola, num segundo tiro mal dado e uma cadeia de "borrões", formando verdadeira "guarda de honra" à pista suave. Pode-se deslizar através do primeiro quarto de distância suave, mas a pista sobe para a direita e é sempre possível terminar-se com a primeira "medalha do dia", lá pelo lado ruim. Goldfinger estava muito bem colocado para ter que tentar isso. Bond espiou-o tomar o que poderia parecer uma verdadeira colher, executar seus dois movimentos de ensaio e, então, atirar a bola.

Muitas figuras estranhas jogam golfe, inclusive algumas pessoas cegas, pessoas que só têm um braço, ou mesmo sem pernas e muita gente, comumente, usava roupas bizarras para a prática do esporte. Outros golfistas não os tomam por estranhos, porque não há regras para vestir-se, ou regras de aparência, nesse jogo. E isso constitui um dos prazeres menores desse esporte. Mas Goldfinger tentara mostrar-se bem "no estilo", em golfe, e essa é a única forma incongruente de vestir-se, num campo esportivo. Tudo combinando, numa composição de cores exatas e rebrilhantes, desde o "boné de golfista" até os sapatos lustrosíssimos, no seu amarelo agressivo. A roupa inteira parecia exata demais: até mesmo os calções tinham sido cuidadosamente passados, nos lados. As meias, também, eram de desenhos combinados, com o detalhe da liga ainda no mesmo padrão. Era como se Goldfinger tivesse ido ao seu alfaiate e ordenado:

— Vista-me para o golfe. Sabe como é, do jeito como se vestem na Escócia.

Erros sociais nunca impressionaram Bond e geralmente ele não os notava. Com Goldfinger era diferente. Tudo, no homem, tinha lhe provocado mal-estar, desde o começo, desde o primeiro momento em que o vira. A absoluta correção das roupas era nada mais que parte do malévolo magnetismo animal, que havia afetado Bond desde o princípio.

Goldfinger executou seu golpe mecânico, perfeito. A bola voou mas por pouco não foi pousar nos bolsões ruins e ficou nas beiradas do terreno bom. Cinco tacadas fáceis que um golpe cuidadoso poderia fazer baixar para quatro — mas teria que ser muito bom.

Bond se dirigiu para a sua bola. Estava meio escondida, ligeiramente fora do verde suave. Bond tomou seu taco número quatro e se preparou para mandar a bola num "vôo direto" — um tiro alto, que a faria transpor os bolsões ruins e habilitá-lo a terminar com quatro tacadas. Bond lembrou-se do que diziam os profissionais:

— Nunca é cedo demais para começar a ganhar.

Foi com muito vagar, determinado a não se apressar, para poder executar o tiro confortàvelmente.

Assim que o executou, sentiu que não ia dar. A diferença entre um bom tiro em golfe e um mau é a mesma que entre uma bela mulher e uma mulher sem atrativos — uma questão de milímetros. No seu caso, a cabeça do taco tinha batido apenas alguns centímetros a mais, para baixo da bola. O arco de vôo foi alto e macio demais. Não tinha "fôlego" para a distância. Por que raios, não tirara outro taco da sacola? A bola bateu na encosta da colina e escorreu para trás. Agora, teria que ser um tiro explosivo, para poder alcançar a metade, apenas.

Bond nunca se aborrecera por muito tempo com seus tiros ruins ou estúpidos. Deixava-os para trás e passava a pensar no próximo. Chegou à colina, escolheu o taco apropriado e mediu a distância até o mastro: 20 jardas. A bola dormia bem distante. Que espécie de tacada deveria dar? Deveria optar pela explosiva, com o arco descrito pelo taco por fora? Ou deveria ferir a bola a toda força, chutando areia também? Por segurança, deveria escolher a segunda hipótese. Bond foi para o local. Cabeça baixa e poderia seguir a bola pela distância inteira. O mais fácil em golfe. Tente e a coloque duma vez. O desejo em meio ao gesto, fê-lo hesitar. Atire com decisão, seu idiota! Deu o golpe, mas pegou areia demais. Conseguira safar-se do bolsão ruim, mas a colocara apenas no início do gramado. Goldfinger abaixara e se mantivera assim, cabeça dobrada, até que a sua bola completou metade da viagem. A bola parou três polegadas do buraco. Sem esperar que lhe fosse computado o ponto, deu as costas para Bond e se dirigiu para a segunda etapa. Bond pegou sua bola e entregou o taco a Hawker.

— Quanto é que ele diz que a média dele é? — perguntou o caddie.

— Nove. É um jogo taco a taco. Tenho que fazer melhor que isso, porém. Deveria ter pegado o outro taco, no segundo tiro.

Hawker, porém, foi encorajador:

— Ainda é cedo para desanimar, senhor.

Bond sabia que não era: é sempre cedo demais para começar a perder.

 

                                         A taça e o lábio

Goldfinger já tinha posto a bola no lugar. Bond chegou-se, vagarosamente, por trás dele, seguido de Hawker. Parou e se apoiou num taco:

— Pensei que você dissera que estávamos jogando de acordo com as estritas regras do golfe. Mas, eu lhe reconheço aquele ponto. E isso o faz 1 na frente.

Goldfinger assentiu secamente. Pôs-se a se exercitar, como sempre, e desferiu o mesmo excelente e seguro golpe.

O segundo buraco fica a 370 jardas à esquerda, com fundas estrias cruzadas, desafiando o jogador a tentar alcançar o terreno seguro, entre elas. Mas havia uma brisa leve, para ajudar. Para Goldfinger teria que ser, agora, um taco pesado, para o segundo golpe. Mas Bond decidira experimentar transformar a coisa para um pouco fácil para si próprio e usar uma cunha para alcançar o verde. Puxou a cabeça para trás e atingiu a bola com golpe seco e violento, diretamente para as estrias. A brisa enfiou-se por baixo e foi ajudando a bola flutuar para mais longe. A bola iniciou a curva descendente e desapareceu por trás da encosta, para ficar a pouca distância do gramado verde, suave. Um quatro, com chance para baixar para três.

Goldfinger começou a andar, sem fazer nenhum comentário. Bond apertou o passo e o alcançou.

— E a sua agorafobia? Este largo espaço aberto não o incomoda?

— Não.

Goldfinger se desviou para a direita. Espiou a bandeirinha distante, quase escondida, planejando o segundo tiro. Escolheu o taco n.° 5, de aço, e feriu a bola com um tiro cuidadoso, que apanhou um pouco de grama demais e fez a bola dirigir-se para o gramado espesso, à esquerda. Bond conhecia aquela região. Goldfinger teria muita sorte se pudesse safar--se dali em duas tacadas.

Bond foi até sua bola, utilizou-se da encosta e dirigiu-a para o gramado suave. A bola se impulsionou e foi parar uma jarda além do buraco. Goldfinger também atirou, mas errou por doze pés. Bond ainda tinha duas tacadas para alcançar o buraco, da distância de uma jarda. Não esperou que lhe fosse conferido o ponto, mas acercou-se e deu a tacada: a bola parou a uma polegada. Goldfinger se afastou. Bond chutou a bola para dentro. Tudo empatado.

O terceiro buraco fica a uma distância de 240 jardas, a visão tapada por toda a extensão, uma difícil etapa de três tacadas. Bond escolheu o taco apropriado e executou um belo golpe. A bola deveria ter chegado ao gramado ou ficado perto. A tacada costumeira de Goldfinger foi bem desferida, mas provavelmente não com força suficiente para jogar a bola através da difícil parte final e fazê-la atingir o verde liso da grama, no panelão, lá embaixo. E fora isso mesmo: a bola de Goldfinger ficara logo antes do renque final que protegia o terreno difícil. Tinha nas mãos uma situação dura, com um tufo logo atrás da bola, que lhe atrapalharia a tacada. Goldfinger parou e olhou a situação. Pareceu resolver-se, então. Deu alguns passos para além da bola, a fim de pegar seu taco na sacola. Seu pé esquerdo se plantou exatamente

atrás da bola, rebaixando o tufo. Goldfinger, então, poderia executar seu golpe. Realmente, Goldfinger executou o tiro e mandou a bola para perto do buraco. Ela parou apenas a três pés.

Bond fungou. O único remédio contra ladrão no golfe é não jogar mais com o sujeito. Mas isso não funcionava nessa partida: Bond não tinha, mesmo, nenhuma intenção de jogar contra ele, de novo. E não adiantaria nada começar uma discussão do tipo "eu não fiz isso-fez-não fiz", a não ser que pegasse Goldfinger fazendo qualquer outra coisa mais ultrajante. Bond teria que jogar e vencê-lo, com ou sem roubo.

Agora, o tiro de vinte pés que Bond deveria executar não era nenhuma brincadeira. Não havia jeito de tentar alcançar o buraco. Teria que se concentrar para mandar a bola direta. Geralmente, quando o jogador tenta isso, a bola pára antes do buraco — mais de uma jarda antes. Bond fez isso e sua bola empurrou a de Goldfinger.

Ambos continuavam empatados, daí. O quarto buraco é a quatrocentas e sessenta jardas. Primeiro, há um dos mais fundos valos de toda a Inglaterra, nesse campo de golfe e, em seguida, tem-se que vencer um trecho ondulado e ascendente para, no final, o plano gramado ser defendido por um barranco, que apresenta melhores chances para três tacadas, do que para duas.

Bond venceu suas usuais 50 jardas com o primeiro tiro e Goldfinger desferiu dois de seus respeitáveis tiros, até mandar a bola para os baixos do gramado verde. Bond, determinado a vencer a encosta, escolheu o taco mais duro, ao invés do "colher" e conseguiu chegar ao gramado, quase até a cerca divisória do campo. De lá, foi-lhe fácil terminar com três tacadas.

O quinto buraco estava, também, situado à distância, precisando de tiro longo, que foi logo realizado por Bond, no seu estilo favorito — sobre bolsões ruins e sobre um vale entre altas dunas de areia e a bandeirinha marcadora do buraco, lá adiante. Era um campo para experimentar o jogador e seu segredo estava no primeiro tiro, que deveria sempre ser bem colocado. Bond se botara em posição, bem em cima das dunas de areia, e se imobilizou antes do tiro, enquanto olhava para o distante mar que reverberava e para os afastados rochedos de Pegwell Bay. Então, colocou-se, tomando como referência as longínquas quadras de tênis, onde estava seu alvo. Puxou o taco para trás das costas, tão vagarosamente como pôde, e o endereçou para baixo, para a terrível aceleração antes de ferir a bola. Houve um barulho seco à sua direita. Desesperadamente, Bond focalizou a bola, tentando manter inteiro o golpe. Mas, houve o som cavo da bola mal chutada. Bond levantou vivamente a cabeça: fora um gancho muito fraco. Teria a bola força suficiente? Vamos, vamos! A bola alcançou o alto duma elevação e se balançou ali. Teria chegado ao começo do pedaço limpo do terreno?

Bond se voltou para Goldfinger e para os caddies, os olhos duros. Goldfinger estava se levantando. Encontrou os olhos de Bond com indiferença:

— Desculpe. Derrubei um dos meus tacos. — disse.

— Não faça isso de novo. — Bond respondeu, secamente. Saiu da posição de jogo e entregou seu taco a Hawker. Este balançou a cabeça, com simpatia. Bond tirou um cigarro e o acendeu. Goldfinger executou seu primeiro tiro de forma reta, cobrindo duzentas jardas.

Os dois, então, se moveram colina abaixo, num silêncio que foi, de repente, quebrado por Goldfinger:

— Qual é a firma para a qual o senhor trabalha?

— Exportações Universal.

— E onde é isso?

— Londres. Regent Park,

— O que é que eles exportam?

Bond despertou de suas ruminações irritadas. Ei, presta atenção! Isto é trabalho, não um jogo. Está certo: ele o botou fora de si mas você tem que pensar no seu disfarce. Não o deixe irritá-lo a ponto de fazer besteiras. Complete sua história.

Bond, casualmente, disse:

— Tudo, desde máquinas de costura, até tanques.

James podia sentir os olhos de Goldfinger a vigiá-lo. Disse, então:

— Eu tomo conta da parte de armas leves. Passei a maior parte do meu tempo vendendo ferragens para sheiks e rajás — qualquer um que o Ministério do Exterior decida que não está querendo atirar contra a gente.

— Trabalho interessante — a voz de Goldfinger era monótona, entediada.

— Nem tanto. Estou pensando até em largar isso. Vim para cá, numa semana de férias, para pensar sobre isso. Não há muito futuro em ficar na Inglaterra. Acho que gosto mais do Canadá.

— Verdade?

Já tinham atravessado a parte ruim do campo e Bond verificou, aliviado, que sua bola tinha se instalado à frente da colina, no terreno liso. Essa parte se curvava um pouco para a esquerda e Bond tinha conseguido até ganhar alguma distância sobre a bola de Goldfinger. Era a vez deste jogar. Goldfinger escolheu seu taco, o "colher": não iria tentar alcançar o gramado mas somente vencer os bolsões ruins e o vale.

Bond aguardou o usual tiro seguro do outro. Olhou seu próprio campo: poderia usar o taco mais leve. Foi aí que ouviu o som cavo do tiro mal apanhado. A bola de Goldfinger, apanhada em golpe mal dado, correu pelo chão e foi parar no meio das pedras na pista.

Pela primeira vez, Homer mostrou preocupação — ou, simplesmente, levantou a cabeça. Talvez seu cérebro estivesse meio ocupado com o que Bond lhe dissera. Ótimo, então! Mas ainda Goldfinger poderia valer-se de três tacadas e safar-se. Bond apanhou seu taco mais leve. Não poderia optar pelo "seguro morreu de velho". Planejou a bola, calculando--lhe a trajetória de 88 milímetros de arco sobre o vale e, depois, as duas ou três batidas no solo, que a levariam ao gramado. Agora!

Houve um leve tilintar à sua direita. Bond se afastou da bola. Goldfinger estava de costas, olhando para o mar. Parecia absorto em contemplação, enquanto sua mão brincava "inconscientemente" com as moedas no bolso.

Bond sorriu divertido e disse:

— Você não poderia parar de dedilhar os dobrões, até depois da minha tacada?

Goldfinger não se voltou, nem respondeu. O ruído cessou.

Bond retornou à tacada, tentando desesperadamente desanuviar a mente, de novo. Agora, o taco mais leve seria arriscado demais. Ele o entregou a Hawker e pegou o mais pesado: bateu na bola, num tiro seguro através do vale. Ela avançou bem e parou lá em cima, na fralda do terreno. Precisaria valer-se do taco cinco ou do quatro.

Goldfinger conseguiu safar-se bem da situação e colocou bem a bola. Bond aplicou dois tiros duros e perdeu um. Ainda tudo empatado.

A sexta etapa, apropriadamente chamada "A Virgem", é famosa em todo o mundo do golfe. Um gramado estreito, quase inteiramente cercado de obstáculos, requer para o jogo tacos de todos os tipos, desde o mais leve ao mais pesado, dependendo do vento. Nessa dia, para Bond, seria o taco n.° 7. Jogou uma bola alta, empurrando-a para a direita, para que o vento a trouxesse na direção certa. Ela terminou vinte pés além do pino, numa posição difícil, sobre um morrinho. Deveria usar o taco n.° 3, para a próxima. Goldfinger escolheu seu n.° 5 e atirou reto. A brisa apanhou a bola e a carregou para os rugões da direita. Boas notícias! Iria comer fogo, para tirá-la de lá.

Os dois andaram em silêncio pelo gramado. Bond olhou para o lado ruim: a bola de Goldfinger estava num buraco. Bond foi até sua própria bola e ficou a ouvir os pássaros. Este tiro o poria 1 ponto na frente. Procurou Hawker para segurar o taco, mas o ajudante estava do outro lado do campo, olhando com intensa concentração para Goldfinger, que ia disparar seu tiro. Goldfinger desceu para o local onde estava a bola, com o taco apropriado — o "disparador". Deu um pulinho para dar uma espiada na direção do buraco e se preparou para dar a tacada. Enquanto o taco subia, no movimento de atacar, o coração de Bond ficou em suspenso. O outro ia tentar disparar a bola lá de baixo, numa técnica inócua, daquele lugar rebaixado. A única salvação seria fazê-la explodir para cima. O taco veio para baixo, num arco macio, sem pressa. Quase sem nenhuma areia, a bola surgiu numa curva, para fora da depressão, ganhou a planura, bateu uma vez e se acamou no limpo.

Bond engoliu seco. Diabo! Como, diabo, tinha conseguido Goldfinger aquilo? Agora, de qualquer maneira, Bond tinha que tentar seus dois golpes. Tentou, errou o primeiro, fazendo a bola passar do buraco por uma polegada e para uma boa jarda longe. Diabo, três vezes! Bond se dirigiu devagar para o ponto, tropeçando na bola de Goldfinger, afastando-a. Anda, seu idiota! Mas, o espetro da grande virada — de uma posição quase certa de 1 ponto acima para uma possível fracassada de um ponto abaixo — fez com que Bond, ao invés de um "tapinha" gentil na bola, querer mandá-la direta ao buraco. E a esfera, lançada com indecisão, escorregou na borda. Um abaixo!

Agora Bond estava com raiva de si mesmo. Ele e ele só tinha perdido aquele buraco. Tinha gasto três tacadas, numa distância de 20 pés. Deveria recompor-se e continuar.

No sétimo buraco, que ficava a quinhentas jardas, os dois iniciaram com bons tiros e Goldfinger, no segundo, colocou a bola a 50 jardas do campo verde. Bond escolheu seu taco: seria o "nivelador". Mas deu o golpe partindo muito do alto e a cabeça do taco chegou muito antes das mãos, fazendo com que a bola amaciada se projetasse para o terreno ruim da direita. Nada mau, mas ele precisava trazê-la de volta ao corredor central, na grama. Bond preferiu um taco maleável, muito perigoso e falhou: não conseguiu liberar a bola. Goldfinger optou pelo taco mais seguro: dois pontos. No oitavo buraco, os dois fizeram a curta distância em três tacadas. No nono, Bond, determinado a avançar um a mais, de novo foi pelo caminho errado: e perdeu pontos, num terreno ruim. Goldfinger, contudo, continuou a jogar seguro. Três menos, na volta! Nada estava bom. Bond pediu a Hawker uma nova bola, que este desembrulhou devagar, enquanto esperava que Goldfinger se distanciasse, ao tomar posição para nova tacada. Hawker, então, perguntou baixinho:

— Viu o que ele fez lá na Virgem, senhor?

— Vi, sim, raio dele! Foi uma tacada magistral! Hawker se mostrou surpreso:

— Oh, o senhor não viu o que ele fez na valeta?

— Não. O que foi? Eu estava muito longe.

Os outros dois estavam longe da vista, além da colina. Hawker andou silenciosamente para a depressão lateral do terreno, cavou um buraco com os pés e quase enterrou a bola ali. Então, ficou parado, com os pés levemente abertos, logo atrás da bola meio enterrada.

— Lembra-se de que ele deu um pulinho, para espiar a direção do buraco?

— Sim, lembro.

— Então, olha isto aqui.

Hawker olhou em direção do nono poste e deu um pulo, do jeito que Goldfinger tinha feito, como se tivesse tirando uma linha reta visual. Depois, olhou para Bond de novo e apontou para a bola a seus pés. O duro impacto dos pés logo atrás da bola tinha nivelado o buraco na qual ela quase se escondera e havia empurrado a bola para cima, de tal forma que, agora, estava a descoberto, numa ótima posição para um tiro fácil — exatamente para a espécie de tiro fácil que parecia impossível, mas que Goldfinger tinha executado no trecho chamado de Virgem.

Bond olhou para o caddie em silêncio. Então, disse:

— Obrigado, Hawker. Dê-me o taco e a bola. Alguém vai chegar em segundo, neste jogo, e eu quero ser mico de circo se serei eu.

— Sim, senhor — disse Hawker seriamente. E saiu mancando para o atalho que o levaria mais rapidamente na direção do poste número dez.

Bond subiu devagar o morrinho e outra vez, na outra encosta, na direção da saída do número dez. Quase nem olhou para Goldfinger, que o esperava parado, agitando seu taco impacientemente. Bond ia limpando sua cabeça de tudo — a não ser a fria determinação ofensiva. Pela primeira vez, desde o primeiro instante do jogo, ele se sentia supremamente confiante. Tudo o que necessitava era um sinal dos céus e seu jogo pegaria fogo.

O décimo, no campo do Royal St. Marks, é o mais perigoso de todos os buracos. A segunda tacada, na direção da escorregadia planura com esburacadas valetas à esquerda e à direita, e mais uma íngreme colina lá adiante, já havia causado muito desgosto. Bond se lembrava de que Philip Scrutton, que ficara em quarto, entre os quatro disputantes da Taça de Ouro, se encravara com catorze tacadas, nesse trecho, jogando a bola pingue-pongueada de buraco em buraco, daqui pra lá e de lá pra cá da alameda central. Bond sabia que Goldfinger teria que dar a segunda tacada das fraldas do terreno ruim, ou não longe dali, e ficaria muito feliz se o fizesse em cinco lances. Bond tinha que se lançar, para alcançar quatro.

Os dois deram a primeira tacada muito bem. Aconteceu o previsto: Goldfinger teria que dar a segunda do lugar temido. Possivelmente faria em quatro. Bond tomou o seu taco número sete, analisou bastante a brisa e atirou a bola alta, para os céus. No princípio pensou que tivesse dado muita força, mas a bola começou a flutuar para a esquerda. Ela balanceou e parou na areia soprada na grama do areai da direita. Um tiro duro, de quinze pés. Bond, então, se daria por feliz, se conseguisse meia tacada. Muito seguro, Goldfinger colocou a bola a uma jarda. Com isso, pensou Bond, enquanto acertava o taco para a própria tacada, ele terá que embocar a bola diretamente. Então, deu o golpe com mestria suficiente para que a bola vencesse o trecho de areia e viu, horrorizado, que ela ganhava a grama e corria como um raio, pelo declive. Deus do Céu! Iria colocar a bola, não uma jarda mas duas além do buraco! Mas, de repente, como se atraída por um ímã, a bola fez a curva diretamente para o buraco, bateu nas costas da caçapa de lata, gingou e embocou, com o ratear característico. O sinal dos céus que estava esperando! Bond se aproximou de Hawker, piscou para ele e pegou seu taco mais pesado. Os dois deixaram os caddies e caminharam pela colina, para trás, no início do trecho seguinte. Goldfinger disse friamente:

— Aquele tiro deveria fazer a bola atravessar o gramado. Bond respondeu, tergiversando:

— Sempre dê uma oportunidade ao buraco!

Colocou sua bola na base e executou o melhor tiro inicial de todo o seu dia de jogo. Goldfinger fez sua tacada normal e ambos caminharam juntos. Bond perguntou:

— A propósito: o que aconteceu com a simpática Miss Masterton?

Goldfinger olhou diretamente para a frente:

— Ela deixou o emprego.

Bond pensou: sorte dela! Mas, disse:

— Oh, eu preciso me comunicar com ela de novo. Para onde foi?

— Não saberia dizer.

Goldfinger caminhou para longe de Bond, em direção de sua própria bola. O tiro de Bond tinha levado a bola para longe da vista, para além do barranco que cortava a reta. Não estaria mais longe que 15 jardas do pino marcador. Bond pensou que soubesse o que se passaria na mente de Goldfinger, o que se passa na mente da maioria dos golfistas, quando percebem que um bom projeto de jogo está se esboroando. E teve a certeza de que não se surpreenderia se aquela tacada sempre firme falhasse. E falhou. Goldfinger mandou sua bola para o areai, no lado esquerdo do gramado.

Ali seria o fim do jogo, se Bond fizesse a besteira de deixar o homem safar-se da sinuca. Tinha, ele próprio, um ligeiro declive a vencer, única coisa a atrapalhar uma tacada fácil — mas, em direção ao mais insidioso gramado de todo o campo de golfe. Bond jogou como um homem. A bola parou a seis pés do pino.

Goldfinger executou um bom tiro, tirando a bola do areai mas errou a colocação. Agora Bond estava a somente um ponto menos.

Dividiram o décimo primeiro buraco em inglórios cinco e também o décimo terceiro em cinco tacadas, tendo Goldfinger que embocar um longo e ótimo tiro para consegui-lo.

Nessa altura, uma pequena ruga de concentração tinha aparecido na testa compacta e comumente lisa de Goldfinger. Tomou um gole de água da garrafa, quando estava na plataforma de partida do 14.° buraco. Bond o esperou. Não desejava um barulho de lata da caneca, quando estava justamente com o taco preparado para um tiro longo, em que aproveitasse também a brisa soprante. Bond usou a braçadeira esquerda, para aumentar a força e amenizou o arco descrito pelo taco. O tiro bem para a esquerda, foi bem executado mas, no fim, não chegou a atravessar de todo o terreno ruim. Goldfinger, aparentemente despreocupado com a extensão da área difícil do terreno, executou sua tacada normal. Os dois conseguiram vencer o canal transversal sem danos e, no fim, a etapa resultou numa equivalência, para ambos, de cinco tacadas até o buraco. Ainda um menos e somente quatro para jogar.

A etapa para o 15.° buraco, com suas quatrocentas e sessenta jardas, era talvez a única em que o jogador poderia esperar vencer na segunda tacada, com um tiro direto. Dois golpes firmes poderiam mandar a bola para além da linha do areai que ficava logo antes do gramado final. Goldfinger teve que fazer jogadas curtas, na segunda tacada e nada além de cinco pôde realizar. E coube a Bond executar uma tacada sensacional, no segundo tiro, com um taco nada apropriado — o segundo pesado.

O sol já caminhava para o horizonte e as sombras dos quatro homens começavam a se espichar. Bond havia se preparado calmamente. Era um bom terreno. Conservou o taco mais pesado. Houve silêncio total, enquanto executou seus dois movimentos de preparação. Este vai ser um golpe vital. Lembre-se de parar no topo do arco, baixar calmamente e chicotear a cabeça do taco no último instante. Bond começou a mover o taco para trás. Alguma coisa se movimentou no canto de seu olho direito. Aparecendo do nada, a sombra da cabeçorra de Goldfinger se aproximou da bola, no chão, engoliu-a e continuou. Bond interrompeu o movimento do taco, aos poucos. Então, afastou-se da bola e olhou. Goldfinger continuava a movimentar os pés. Ia olhando, firmemente, o céu.

— Olha a sombra, Goldfinger! — A voz de Bond era furiosamente controlada.

Goldfinger parou e olhou devagar para Bond. As sobrancelhas estavam erguidas, inquisitivamente. Afastou-se e ficou parado, sem dizer nada.

Bond voltou para a bola. Agora, acalme-se! Para o diabo, com Goldfinger. Chute essa bola para o gramado. Pare bem firme e golpeie.

Por um momento, o mundo parou. Depois... depois, sem saber como, Bond arremessou a bola — em uma trajetória baixa que a levou graciosamente até além do terreno difícil. A bola bateu no barranco abaixo do gramado, saltou para cima com o choque e perdeu-se de vista na direção da área ao redor do poste.

Hawker aproximou-se e tomou o taco da mão de Bond. Caminharam juntos. Hawker disse seriamente:

— Essa foi uma das melhores tacadas que vi nos últimos trinta anos.

Abaixando a voz, acrescentou:

— Pensei que ele o tivesse atrapalhado, senhor.

— Quase o conseguiu, Hawker. Foi Alfred Blacking e não eu quem arremessou aquela bola.

Bond tirou seus cigarros, deu um a Hawker e acendeu o seu. Depois disse calmamente:

— Estamos empatados e com três buracos por jogar. Precisamos olhar bem os próximos três buracos. Entende o que eu quero dizer?

— Não se preocupe, senhor. Ficarei de olho nele.

Chegaram ao gramado. Goldfinger deu uma longa tacada no gramado para alcançar o buraco no quarto golpe, mas a bola de Bond estava apenas a poucos centímetros do buraco. Goldfinger apanhou sua bola e saiu do gramado. Dividiram os pontos do curto décimo sexto buraco com três boas tacadas. Agora havia os dois últimos e compridos buracos. Bond deu uma bela tacada pelo centro. Goldfinger lançou sua bola para a direita, fazendo-a cair em terreno ruim. Bond avançou procurando não mostrar-se muito alegre, tentando não contar com a vitória antes do tempo. Se ganhasse nesse buraco, só precisaria de metade dos pontos do décimo oitavo para vencer a partida. Rezou para que a bola de Goldfinger estivesse em condições de não poder ser jogada ou, melhor ainda, que estivesse perdida.

Hawker caminhara na frente. Já pusera sua sacola no chão e estava procurando com interesse — com excessivo interesse no modo de pensar de Bond — a bola de Goldfinger quando eles chegaram perto.

O lugar era ruim mesmo. Terreno coberto de vegetação, com luxuriante capim alto e cerrado, cujas raízes ainda retinham o orvalho da noite anterior. A menos que tivessem muita sorte, não poderiam encontrar a bola. Depois de alguns minutos de busca, Goldfinger e seu caddie afastaram-se ainda mais para o lado, para onde o mato rareava, transformando--se em moitas isoladas. Isso é bom, pensou Bond. Iam ficar completamente fora da linha. De repente pisou em alguma coisa. Que inferno! Devia enterrá-la no chão? Encolheu os ombros, curvou-se e delicadamente descobriu a bola, de modo a não melhorar sua posição. Sim, era uma Dunlop 65. — Está aqui, gritou de mau-humor. Oh, não, sinto muito. Você joga com n.° 1, não é?

— Sim — respondeu impacientemente a voz de Goldfinger.

— Bem, esta é n.° 7.

Bond apanhou a bola e caminhou na direção de Goldfinger.

Depois de lançar à bola um olhar superficial, Goldfinger disse: — Não é minha e continuou procurando entre as moitas com a ponta de seu taco.

Era uma boa bola, sem marcas e quase nova. Bond enfiou-a no bolso e reiniciou a busca. Olhou de relance para seu relógio. Os cinco minutos regulamentares estavam quase esgotados. Mais meio minuto e, por Deus, ia reclamar os pontos daquele buraco. Regras estritas de golfe, fora o que Goldfinger estipulara. Muito bem, meu amigo, você vai tê-las!

Goldfinger estava voltando na direção de Bond, procurando diligentemente e remexendo o capim com o taco.

— Acho que o tempo está quase esgotado — disse Bond. Goldfinger resmungou. Começou a dizer alguma coisa quando seu caddie soltou um grito.

— Aqui está, senhor. Dunlop n.° 1.

Bond seguiu Goldfinger até onde estava o caddie, sobre uma pequena área de terreno alto. O caddie apontava para baixo. Bond curvou-se e examinou a bola. Sim, uma Dunlop n.° 1 quase nova e em posição espantosamente boa. Era milagroso — mais que milagroso. Bond olhou firme de Goldfinger para seu caddie.

— Precisa ter tido uma sorte dos diabos — disse suavemente.

O caddie encolheu os ombros. Os olhos de Goldfinger estavam calmos e serenos.

— É o que parece — disse ele, voltando-se depois para seu caddie: — Penso que podemos usar um "spoon" para esta, Foulks.

Bond afastou-se pensativamente e depois se virou para acompanhar a jogada. Foi uma das melhores de Goldfinger. A bola voou alto sobre uma área de terreno difícil em direção ao gramado. Mas ainda poderia cair no terreno acidentado da direita.

Bond caminhou para onde estava Hawker, com uma comprida folha de capim pendendo de seus lábios tortos. Bond sorriu amargamente para ele e perguntou com voz controlada:

— Meu bom amigo está no terreno ruim ou o bastardo está no gramado.

— Gramado, senhor — respondeu Hawker, sem denotar emoção.

Bond foi até sua bola. Agora as coisas estavam novamente duras. Mais uma vez estava lutando por metade do ponto depois de ter tido nas mãos uma vitória certa. Olhou para o poste, medindo a distância. Era uma jogada difícil. Perguntou:

— Cinco ou seis?

— Seis será melhor, senhor. Tacada firme — disse Hawker, entregando-lhe o taco.

Agora, clareie o espírito. Jogue devagar e com firmeza. É uma tacada fácil. Apenas bater com força suficiente para que ela suba o barranco e chegue ao gramado. Fique imóvel e baixe a cabeça. Pleque! A bola, atingida por uma superfície ligeiramente fechada, partiu exatamente na trajetória média que Bond desejava. Caiu abaixo da rampa. Foi perfeita! Não, que inferno! Bateu na rampa em seu segundo salto, parou, hesitou, hesitou e depois rolou para trás, caindo de novo. Que inferno! Não foi Hagen quem disse: "A gente faz o drive por exibição, mas faz putt por dinheiro."? Sair debaixo daquela rampa era um dos mais difíceis putts do campo. Bond tirou seus cigarros e acendeu um, já preparando o espírito para a crucial tacada seguinte a fim de salvar o buraco — desde que aquele bastardo de Goldfinger não acertasse de trinta pés de distância.

Hawker caminhava a seu lado. Bond disse:

— Foi um milagre achar aquela bola.

— Não era a bola dele senhor.

Hawker proclamava um fato.

— Que quer dizer com isso? — perguntou Bond, com voz tensa.

— Passou dinheiro, senhor. Branco, provavelmente de cinco. Foulks deve ter deixado aquela bola cair pela perna da calça.

— Hawker! — exclamou Bond, parando no lugar. Olhou em roda. Goldfinger e seu caddie estavam a cinqüenta metros de distância, andando vagarosamente em direção ao gramado. Bond disse ferozmente: — Jura que é verdade? Como pode ter certeza?

Hawker sorriu de lado, meio envergonhado. Mas havia uma astuciosa beligerância em seus olhos quando respondeu:

— Porque a bola dele estava embaixo de minha sacola de tacos, senhor.

Quando viu a expressão de espanto de Bond, acrescentou pedindo desculpas:

— Sinto muito, senhor. Tinha de fazer isso depois do que ele fez para o senhor. Eu não devia mencionar isso, mas precisava fazer com que o senhor soubesse que ele o enganara de novo.

Bond não pôde deixar de rir. Disse com admiração:

— Bem, você é um número, Hawker. Então, ia ganhar sozinho a partida para mim?

Depois acrescentou rancorosamente:

— Mas, por Deus, aquele homem chega aos extremos. Preciso dar-lhe uma lição. Preciso mesmo. Agora, vamos pensar.

Os dois continuaram caminhando vagarosamente. A mão esquerda de Bond estava no bolso da calça, brincando distraidamente com a bola que ele apanhara no terreno ruim. De repente, a mensagem chegou a seu cérebro. Encontrara! Aproximou-se mais de Hawker. Olhou para os outros. Goldfinger havia parado. Estava de costas para Bond e tirava o putter da sua sacola. Bond cutucou Hawker.

— Escute, pegue isto — disse, enfiando a bola na mão deformada. Depois acrescentou baixinho e em tom urgente: — Não deixe de tirar a bandeira. Quando apanhar as bolas do gramado, seja qual for o resultado do buraco, dê esta a Goldfinger. Entendeu?

Hawker caminhou fleugmaticamente para frente. Sua fisionomia estava impassível.

— Entendi, senhor — disse com sua voz normal. — Vai usar o putter nesta jogada?

— Sim — respondeu Bond, caminhando em direção à sua bola. — Dê-me uma linha, sim?

Hawker subiu ao gramado. Ficou de lado em relação à linha do putt e depois deu a volta até atrás da bandeira, onde se agachou. Levantou-se, dizendo:

— Uma polegada para fora da beirada direita, senhor. Tacada firme. Bandeira, senhor?

— Não. Deixe-a, sim?

Hawker saiu de lado, Goldfinger estava em pé ao lado de sua bola do lado direito do gramado. Seu caddie havia parado no fundo da rampa. Bond curvou-se sobre a bola. Vamos, Calamity Jane! Esta tem de ir direta, senão lhe darei umas palmadas. Fique firme. Agora! A bola, atingida firmemente pelo meio do taco, correu rampa acima e avançou em direção ao buraco. Mas com muita força, maldição! Bata no poste! Obedientemente, a bola curvou-se para dentro, bateu forte no poste e voltou três polegadas, parando depois.

Bond soltou um suspiro e apanhou um cigarro. Olhou para Goldfinger. Agora, você, bastardo. Faça força agora. E, palavra que quero ver você acertar nesse buraco! Mas Goldfinger não podia dar-se ao luxo de tentar. Parou a dois pés de distância.

— Muito bem, muito bem — disse Bond, generosamente. — Tudo empatado e um para jogar.

Era vital que Hawker apanhasse as bolas. Se tivesse deixado para Goldfinger um putt curto, Goldfinger é quem teria tirado a bola do buraco. Fosse como fosse, Bond não queria que Goldfinger perdesse aquele putt. Isso não fazia parte do plano.

Hawker abaixou-se e apanhou as bolas. Rolou uma em direção a Bond e entregou a outra a Goldfinger. Saíram do gramado, com Goldfinger na frente como de hábito. Bond notou que Hawker enfiava a mão no bolso. Agora, desde que Goldfinger não notasse alguma coisa ao preparar a bola para a jogada...

Mas, com tudo empatado e um par para jogar, a gente não examina a bola com cuidado. Os movimentos são mais ou menos automáticos. A gente pensa na maneira de colocar o taco, na conveniência de alcançar ou não o gramado na segunda tacada, na força do vento — no vital número quatro que precisa de qualquer jeito ser conseguido para ganhar ou pelo menos empatar.

Considerando-se a impaciência de Bond por ver Goldfinger segui-lo e arremessar, pelo menos uma vez, aquela traiçoeira Dunlop n.° 7 que se parecia tanto com uma n.° 1, a primeira tacada de Bond nos quatrocentos e cinqüenta metros do décimo oitavo foi digna de elogios. Se quisesse, poderia agora chegar ao gramado — se quisesse!

Agora Goldfinger estava-se preparando. Curvou-se. A bola estava no lugar, com sua face mentirosa voltada para cima. Mas Goldfinger endireitou o corpo, recuou e deu suas duas cuidadosas tacadas de ensaio. Aproximou-se da bola cautelosamente, deliberadamente. Parou sobre ela e balançou o taco, focalizando a bola minuciosamente. Sem dúvida ia ver! Sem dúvida pararia e se curvaria no último minuto para examinar a bola! Aquele balanço não acabaria mais? Agora a cabeça do taco estava recuando, depois descendo, enquanto o joelho esquerdo se dobrava corretamente em direção à bola e o braço direito se estendia reto como uma vareta de fuzil. Pleque! A bola partiu, em um belo "drive", o melhor que Goldfinger conseguira, descendo diretamente para o terreno plano.

O coração de Bond cantou. Apanhei-o, bastardo! Apanhei-o! Alegremente, Bond desceu devagar para o terreno plano, planejando os passos seguintes, que agora poderiam ser tão excêntricos, tão diabólicos quanto desejasse. Goldfinger já estava derrotado — levava sua própria bomba! Agora, era assá-lo, vagarosamente, caprichosamente.

Bond não sentia remorso. Goldfinger enganara-o duas vezes impunemente. Se não fossem suas fraudes na Virgem e no décimo sétimo, sem mencionar a melhora da posição da bola no terceiro e as várias vezes que tentara atrapalhar Bond, Goldfinger já teria sido derrotado. Se precisava haver uma fraude da parte de Bond para retificar a contagem, isso era apenas justiça poética. Ademais, isso era mais que uma partida de golfe. Bond tinha o dever de ganhar. Pela idéia que fazia de Goldfinger, precisava ganhar. Se perdesse, a contagem entre os dois homens ficaria igual. Se ganhasse a partida, como já havia ganho, estaria dois pontos à frente de Goldfinger — estado de coisas insuportável, calculava Bond, para um homem que se considerava todo poderoso. Esse Bond, diria Goldfinger consigo mesmo, tem alguma coisa. Tem qualidades que posso aproveitar. É um aventureiro duro, cheio de espertezas. É a espécie de homem de que preciso para... para quê? Bond não sabia. Talvez nada houvesse para ele. Talvez a idéia que fazia de Goldfinger estivesse errada, mas certamente não havia outro meio de insinuar-se junto ao homem.

Goldfinger apanhou cautelosamente seu "spoon" para a longa segunda tacada sobre o terreno ruim até a estreita entrada do gramado. Deu uma tacada de ensaio a mais que habitualmente e depois fez exatamente o tiro reto e controlado que convinha. Um cinco na certa, provavelmente um quatro. De muito lhe adiantaria!

Bond, depois de dar as maiores mostras de estar procurando caprichar, fez sua jogada, arremessando a bola ao gramado, seis metros adiante do poste. Estava onde queria estar — representando ameaça suficiente para fazer Goldfinger saborear o gosto doce da vitória e suficiente para fazer com que Goldfinger realmente suasse para conseguir seu quarto.

E agora Goldfinger estava realmente suando. Havia em seu rosto uma selvagem expressão de concentração e cobiça quando se curvou para o longo tiro que faria a bola subir a rampa e descer para o buraco. Nem muito forte, nem muito fraco. Bond podia ler todos os ansiosos pensamentos que passavam pela cabeça do homem. Goldfinger endireitou-se de novo e atravessou deliberadamente o gramado até atrás da bandeira para verificar sua linha. Voltou vagarosamente ao lado de sua linha, afastando — cuidadosamente, com as costas da mão — um ou dois punhados de grama e umas partículas de sujeira. Curvou-se de novo e deu uma ou duas tacadas de ensaio. Depois, ficou parado, com as veias saltadas nas têmporas e uma funda ruga de concentração entre os olhos.

Em seguida, desfechou o golpe. Foi uma bela tacada, que levou a bola até quinze centímetros adiante do poste. Agora Goldfinger estava certo de que, a menos que Bond realizasse o difícil feito de acertar no buraco de seis metros de distância, a partida estava ganha para ele!

Bond fez uma longa encenação para preparar sua jogada. Demorou, deixando o "suspense" juntar-se como uma nuvem de tempestade sobre as compridas sombras no lívido e fatídico gramado.

— Tire a bandeira, por favor. Vou meter esta dentro. Bond deu a suas palavras um tom de certeza fatal, ao mesmo tempo que debatia intimamente se errava fazendo a bola passar pela direita do buraco, passar pela esquerda ou parar antes de chegar até ele. Deu a tacada e a bola passou bem à direita do buraco.

— Errei, que diabo!

Bond pôs amargura e raiva na voz. Caminhou até o buraco e apanhou as duas bolas, conservando ambas bem à vista.

Goldfinger aproximou-se. Seu rosto brilhava de satisfação pelo triunfo.

— Bem, obrigado pela partida. Afinal de contas, parece que sou bom demais para você.

— Você é muito bom para um "handicap" de nove — respondeu Bond, com bastante azedume. Olhou para as bolas que tinha na mão a fim de apanhar a de Goldfinger e entregar-lhe. Fez um gesto de surpresa.

— Eh! — exclamou olhando fixamente para Goldfinger. — Você joga com uma Dunlop n.° 1 não é?

— Sim, naturalmente. — Um sexto sentido de desastre fez a expressão de triunfo desaparecer da fisionomia de Goldfinger. Que foi? Que aconteceu?

— Bem — disse Bond, como quem pede desculpas. — Acho que estava jogando com bola errada. Aqui está minha Penfold Hearts e esta é uma Dunlop n.° 7.

Estendeu ambas as bolas para Goldfinger. Goldfinger arrancou as bolas da palma da mão de Bond e examinou-as febrilmente.

Vagarosamente o sangue subiu às faces de Goldfinger. Ficou parado, mexendo a boca, olhando das bolas para Bond e deste para as bolas. Bond disse calmamente:

— É pena estarmos jogando estritamente de acordo com as regras. Acho que isso significa que você perdeu o buraco. E, naturalmente, perdeu a partida.

Os olhos de Bond observaram Goldfinger impassivelmente.

— Mas, mas...

Era isso que Bond estava desejando ver: a taça tirada dos lábios. Ficou esperando, sem dizer nada.

A raiva estourou de repente como uma bomba no rosto geralmente calmo de Goldfinger.

— Foi uma Dunlop 7 que você encontrou no terreno difícil. Foi seu caddie que me deu esta bola. No gramado do décimo sétimo. Ele me deu a bola errada de propósito, aquele maldito trapa...

— Vamos, calma — disse Bond conciliadoramente. — Você acaba sendo processado por calúnia se não tiver cuidado. Hawker, você deu ao Sr. Goldfinger a bola errada por engano ou qualquer coisa?

— Não, senhor. — A fisionomia de Hawker estava impassível. Acrescentou com indiferença: — Se quer minha opinião, senhor, o engano pode ter sido feito no décimo sétimo quando o cavalheiro encontrou sua bola bem longe da linha que todos nós tínhamos marcado. Um Sete parece-se muito com um Um. Eu diria que foi isso que aconteceu, senhor. Seria um milagre a bola do cavalheiro ter ido parar tão longe como o lugar onde foi encontrada.

— Absurdo! — disse Goldfinger, bufando de raiva. Virou-se furiosamente para Bond e afirmou: — Você viu que era n.° 1 a bola encontrada por meu caddie.

Bond sacudiu a cabeça com ar de dúvida.

— Realmente acho que não olhei bem de perto, acho. Contudo — disse Bond, cuja voz se tornou ríspida — é obrigação do jogador verificar se está usando a bola certa, não acha? Não me parece que alguém possa ser culpado se você usou a bola errada e deu três tacadas com ela. Seja como for — acrescentou caminhando para fora do gramado — muito obrigado pela partida. Precisamos jogar outra qualquer dia desses.

Goldfinger, gloriosamente iluminado pelo sol poente, mas com uma comprida sombra preta presa a seus calcanhares, seguiu vagarosamente Bond, com os olhos pensativos fitos nas costas de Bond.

 

                                       Na granja

HÁ homens ricos que usam sua fortuna como um porrete. Tomando regaladamente seu banho, Bond pensava que Goldfinger era um deles. Era da espécie de homem que pensa poder achatar o mundo com seu dinheiro, dando pancadas com sua pesada carteira para afastar aborrecimentos e oposição. Pensara em arrasar os nervos de Bond fazendo-o apostar no jogo dez mil dólares — para ele, uma picada de pulga, mas evidentemente uma pequena fortuna para Bond. Na maioria das circunstâncias, poderia ter conseguido êxito. É preciso nervos de aço para ensaiar uma tacada, conservar a cabeça baixa nos tiros curtos, quando dinheiro grosso depende de cada golpe, em dezoito longas etapas. Os profissionais, que jogam para ganhar o pão com manteiga seu e de suas famílias, sentem na nuca o hálito frio da miséria quando chegam empatados aos décimo oitavo tee. É por isso que levam vidas cuidadosas, sem fumar nem beber, e é por isso que geralmente vence aquele que tem menos imaginação.

No caso de Bond, porém, Goldfinger não podia saber que a alta tensão era o modo de vida natural de seu adversário e que o perigo o deixava calmo. Nem podia saber que Bond desejava apostar com ele a maior quantia possível e que tinha os fundos do Serviço Secreto à sua disposição se perdesse. Goldfinger, tão acostumado a manipular outros, não percebera a manipulação que desta vez estava sendo aplicada contra ele.

Ou teria percebido? Pensativamente, Bond saiu do banho e enxugou-se. Aquele poderoso dínamo dentro da grande cabeça redonda estaria zumbindo nesse momento, pensando em Bond, sabendo que fora logrado, perguntando a si mesmo como Bond caíra do céu duas vezes e duas vezes estragara seus planos. Bond teria jogado certo suas cartas? Teria conseguido dar a impressão de ser um desafio interessante ou o sensível nariz de Goldfinger cheirara uma ameaça? Neste último caso, Goldfinger não o procuraria mais e Bond teria de afastar-se humilhado do caso, deixando a M a tarefa de inventar um novo meio de aproximação. Quando saberia se o grande peixe fora fisgado? Esse peixe ficaria muito tempo cheirando a isca. Seria bom que desse pelo menos uma pequena mordida, para Bond saber que escolhera a isca certa.

Bateram na porta. Bond enrolou-se em uma toalha e atravessou o quarto. Abriu a porta. Era o mensageiro da portaria.

— Que é?

— O Sr. Goldfinger mandou um recado pelo telefone. Desejava cumprimentá-lo e convidá-lo para ir jantar hoje em sua casa. É a Granja, em Reculver, senhor. Às seis e meia para os aperitivos e não precisa vestir-se a rigor.

— Agradeça ao Sr. Goldfinger e diga-lhe que terei muito prazer.

Bond fechou a porta, foi até a janela e ficou olhando o mar calmo da tarde. "Bem, bem! Fala-se no diabo." Bond sorriu consigo mesmo. "E a gente vai jantar com ele!"

Às seis horas, Bond desceu para o bar e tomou uma grande dose de vodca e tônica com uma fatia de casca de limão. No bar havia apenas um grupo de oficiais da Força Aérea Americana vindos de Manston. Estavam bebendo uísque com água e discutindo basebol. Bond ficou pensando se eles não teriam passado o dia carregando uma bomba de hidrogênio nos céus de Kent, sobre os quatro pontinhos nas dunas durante sua partida com Goldfinger. Pensou sombriamente: Não bebam muito desse uísque, primos. Pagou sua bebida e saiu.

Guiou vagarosamente até Reculver, saboreando a tarde, a bebida na barriga e o suave ronco dos dois escapamentos. Ia ser um jantar interessante. Agora era o momento de insinuar-se junto a Goldfinger. Se pisasse em falso, estaria fora do negócio e prejudicaria gravemente a situação de seu sucessor. Estava desarmado... pois seria fatal se Goldfinger tivesse desconfiança. Sentiu um receio momentâneo. As coisas estavam indo muito depressa. Nenhum estado de guerra fora declarado — antes pelo contrário. Quando se separaram no clube de golfe, Godlfinger fora cordial, de maneira forçada e untuosa. Perguntara para onde devia mandar o dinheiro que Bond ganhara e Bond lhe dera o endereço da Universal Export. Perguntara a Bond onde estava hospedado. Bond dera-lhe o nome do hotel e acrescentara que ia ficar apenas alguns dias em Ramsgate, enquanto decidia o que fazer de seu futuro. Goldfinger dissera que esperava ter um dia oportunidade de desforra, mas infelizmente ia partir para a França no dia seguinte e não sabia ao certo quando voltaria. De avião? Sim, ia tomar o avião em Lydd. Bem, obrigado pela partida. Muito obrigado, Sr. Bond. Os olhos haviam dado a Bond um último tratamento de raios X, como se o estivessem registrando pela última vez no sistema de arquivo de Goldfinger. Depois o grande carro amarelo se afastara.

Bond dera uma boa olhada no motorista. Era um japonês atarracado e de cara chata, ou mais provavelmente coreano, com um brilho selvagem, quase insano, em olhos dramaticamente oblíquos, que ficariam melhor em um filme japonês do que em um Rolls-Royce na tarde ensolarada de Kent. Seu lábio superior era saliente, como acontece às vezes com quem tem fenda palatina, mas não falara uma palavra e Bond não tivera oportunidade de saber se seu palpite era certo. Com seu terno preto justo, quase estourando, e seu ridículo chapéu-de-côco, parecia um lutador japonês em dia de folga. Mas não era uma figura que fizesse a gente sorrir. Quem se sentisse inclinado a sorrir mudaria de idéia diante do que havia de sinistro e inexplicável nos sapatos pretos de verniz lustrosos e justos, quase como sapatilhas de bailarino, e nas grossas luvas de couro preto. Para Bond havia algo vagamente familiar na silhueta do homem. Quando o carro se afastou e teve a oportunidade de ver a cabeça por trás é que Bond se lembrou. Eram a cabeça, os ombros e o chapéu-de-côco do motorista do Ford Popular azul celeste que mais ou menos ao meio-dia se agarrara tão obstinadamente ao centro da estrada de Herne Bay. De onde viria ele? Que serviço estaria fazendo? Bond lembrou-se de algo que o Coronel Smithers lhe dissera. Não seria esse o coreano que percorria o país recolhendo o ouro velho da cadeia de joalherias de Goldfinger? O porta-malas do inocente e pouco apressado carrinho estaria cheio de relógios de estimação, anéis de sinete, medalhões e cruzes de ouro comprados durante a semana? Observando a alta silhueta amarelo-pálida do Fantasma Prateado(*) desaparecer na direção de Sandwich, Bond pensou que a resposta devia ser afirmativa.

 

(*) N. do T. — Em inglês, "Silver Ghost", um dos modelos do automóvel marca Rolls Royce.

 

Bond saiu da estrada principal, entrou na alameda e seguiu por ela, entre os altos pinheiros vitorianos, até a área pedregulhada diante da casa, que era exatamente da espécie que merecia ser chamada de Granja — uma feia e pesada mansão do começo do século, com um terraço envidraçado cujo cheiro de sol fechado, plantas e moscas mortas, Bond sentiu com a imaginação antes mesmo de ter desligado o motor. Desceu vagarosamente do carro e ficou olhando a casa. Ela também olhava com seus olhos vazios e caiados. A casa tinha um barulho de fundo, um forte latejar rítmico como um enorme animal com pulsação muito rápida. Bond presumiu que proviesse da fábrica, cuja chaminé se erguia como um gigantesco dedo admonitório entre as altas coníferas à direita, onde normalmente deveriam ficar os estábulos e garagens. A silenciosa e vigilante fachada da casa parecia estar esperando que Bond fizesse alguma coisa, fizesse algum movimento ofensivo ao qual seria dada pronta resposta. Bond encolheu os ombros para aliviar seus pensamentos, subiu os degraus que levavam à porta de painéis de vidro opaco e apertou a campainha. Não ouviu barulho da campainha, mas a porta abriu-se vagarosamente. O motorista coreano ainda estava com seu chapéu-de-côco. Olhou sem interesse para Bond. Permaneceu imóvel, com a mão esquerda no trinco do lado de dentro da porta e a mão direita estendida, apontando como uma flecha indicativa para o hall escuro da casa.

Bond entrou, passando ao lado dele e vencendo o desejo de pisar em seus pés pretos e lustrosos ou dar-lhe um soco bem forte no estômago preto firmemente abotoado. Esse coreano correspondia ao que sempre ouvira dizer dos coreanos e, de qualquer maneira, Bond desejava fazer algo violento com a atmosfera pesada e elétrica da casa.

O sombrio hall era também a principal sala de estar. Um magro fogo bruxuleava por trás da grade da larga lareira. Duas poltronas e um sofá Knole observavam impassivelmente as chamas. Entre eles, sobre um canapé baixo, havia uma bem sortida bandeja de bebidas. Os amplos espaços ao redor dessa centelha de vida estavam cheios de maciças e rothschildianas peças de mobiliário do Segundo Império. Ouropel, tartaruga, bronze e madrepérola cintilavam ricamente sob a luz da pequena fogueira. Por trás desse ordeiro museu, lambris escuros subiam até uma galeria ao nível do primeiro andar, à qual se chegava por uma pesada escada curva do lado esquerdo do hall. O forro era guarnecido com a lúgubre madeira trabalhada da época.

Bond estava em pé absorvendo isso tudo quando o coreano reapareceu silenciosamente. Estendeu a flecha indicativa de seu braço em direção à bandeja de bebidas e às poltronas. Bond acenou com a cabeça e ficou onde estava. O coreano passou a seu lado e desapareceu por uma porta que Bond presumiu conduzir aos alojamentos da criadagem. O silêncio, ajudado pelo vagaroso e metálico tique-taque de um relógio de caixa maciçamente decorado, avolumou-se e tornou--se mais próximo.

Bond avançou para a lareira e ficou de costas para o fogo. Fitou ofensivamente o aposento. Que pocilga! Que lugar horrível para se viver. Como vivia alguém, como podia alguém viver nesse rico e opressivo necrotério entre as coníferas quando a uma centena de metros havia luz, ar e largos horizontes? Bond tirou um cigarro e acendeu-o. Que fazia Goldfinger no referente a distração, prazer e sexo? Talvez não precisasse dessas coisas. Talvez a procura de ouro saciasse todas as suas sedes.

Em algum lugar distante um telefone tocou. A campainha soou agudamente duas vezes e silenciou. Houve um murmúrio de vozes. Depois passos ecoaram em um corredor e uma porta embaixo da escada abriu-se. Goldfinger entrou e fechou a porta sem fazer barulho. Vestia uma jaqueta de jantar, de veludo, cor de ameixa. Avançou vagarosamente pelo soalho de madeira encerada. Não estendeu a mão. Disse, sorrindo só com a boca.

— Foi muita bondade sua ter vindo, convidado com tão pouca antecedência, Sr. Bond. Estava sozinho e eu também. Ocorreu-me então que poderíamos discutir o preço do milho.

Era a espécie de observação que homens ricos fazem entre si. Bond achou divertido ser membro temporário do clube. Respondeu:

— Fiquei encantado em receber o convite. Já estava aborrecido de preocupar-me com meus problemas. Ramsgate não tem muita coisa a oferecer.

— Não. E agora preciso pedir-lhe desculpas. Recebi um telefonema. Um de meus empregados — a propósito, eu emprego coreanos — teve uma pequena dificuldade com a polícia de Margate e eu preciso ir até lá para arrumar as coisas. Soube que foi um incidente no parque de diversões. Essa gente excita-se facilmente. Meu chofer vai levar-me e não demoraremos mais de meia hora. Enquanto isso, acho que preciso deixá-lo sozinho. Por favor, sirva-se de bebidas. Há revistas, para ler. Desculpa-me? Garanto-lhe que não demorarei mais de meia hora.

— Está muito bem — disse Bond, sentindo que havia algo de suspeito naquilo. Mas não conseguia imaginar o que era.

— Bem, então, até a volta — disse Goldfinger, encaminhando-se para a porta da frente. — Mas preciso acender algumas luzes para você. Aqui está realmente muito escuro.

Goldfinger passou a mão por um quadro de interruptores e de repente brilharam luzes em todo o hall — nos abajures de coluna, nas arandelas e em quatro lustres no forro. Agora o aposento estava tão iluminado quanto um estúdio cinematográfico. Era uma transformação extraordinária. Meio aturdido, Bond viu Goldfinger abrir a porta da frente e sair. Um minuto depois, ouviu o barulho de um carro, mas não o Rolls. O carro foi ruidosamente acelerado, mudou de marcha e disparou pela alameda.

Por instinto, Bond chegou até a porta da frente e abriu-a. A alameda estava vazia. À distância, viu as luzes do carro virarem para a esquerda na estrada principal e afastarem-se na direção de Margate. Voltou para dentro da casa e fechou a porta. Ficou imóvel, escutando. O silêncio era completo, a não ser pelo alto tique-taque do relógio. Caminhou até a porta de serviço e abriu-a. Um comprido e escuro corredor desaparecia em direção ao fundo da casa. Bond curvou-se para frente, com todos os sentidos alertas. Silêncio, um silêncio mortal. Fechou a porta e correu pensativamente os olhos pelo hall brilhantemente iluminado. Havia sido deixado sozinho na casa de Goldfinger, sozinho com os segredos da casa. Por quê?

Bond aproximou-se da bandeja de bebidas e serviu-se de uma forte dose de gim com tônica. Não havia dúvida que houvera um telefonema, mas poderia facilmente ter sido uma ligação premeditada feita da fábrica. A história do empregado era plausível e era razoável que Goldfinger fosse pessoalmente pagar a fiança do homem, levando consigo o chofer. Goldfinger mencionara duas vezes que Bond ficaria sozinho durante meia hora. Poderia ter sido uma observação inocente, mas poderia também ter sido um convite para que Bond abrisse o jogo e cometesse alguma indiscrição. Estaria sendo observado por alguém? Quantos desses coreanos existiriam e que estariam eles fazendo? Bond olhou para seu relógio. Já haviam passado cinco minutos. Decidiu-se. Com cilada ou sem cilada, era uma oportunidade boa demais para ser perdida. Poderia dar uma rápida olhada em roda — mas uma olhada inocente, com alguma história preparada para explicar porque saíra do hall. Por onde devia começar? Dar uma olhada na fábrica. E a história? Diria que seu carro apresentara defeito na viagem — provavelmente estava afogando — e que fora ver se havia um mecânico que lhe pudesse dar uma mão. Frágil, mas serviria. Bond tomou a bebida de um gole, encaminhou-se decididamente para a porta de serviço e entrou por ela.

Havia um interruptor na parede. Bond acendeu a luz e avançou rapidamente por um comprido corredor, que terminava em uma parede lisa, com duas portas, à direita e à esquerda. Ficou escutando um instante na porta da esquerda e ouviu barulhos abafados de cozinha. Abriu a porta da direita e encontrou-se, como poderia ter esperado, no pátio pavimentado da garagem. A única coisa estranha é que estava brilhantemente iluminado por lâmpadas elétricas. A longa parede da fábrica estendia-se do outro lado e agora as batidas rítmicas do motor soavam muito alto. Havia uma porta comum de madeira na parede do outro lado. Bond atravessou o pátio, olhando em roda com interesse casual. A porta não estava fechada à chave. Abriu-a discretamente e entrou, deixando-a entreaberta. Viu-se em um pequeno escritório vazio iluminado por uma única lâmpada nua pendente do teto. Havia uma mesa com papéis em cima, um relógio de ponto, um par de armários de arquivo e um telefone. Outra porta ligava o escritório ao salão principal da fábrica e, ao lado da porta, havia uma janela para vigiar os trabalhadores. Devia ser o escritório do capataz. Bond aproximou-se da janela e olhou por ela.

Bond não sabia que havia esperado, mas o que viu parecia ser o equipamento comum de uma pequena indústria metalúrgica. À sua frente havia as bocas abertas de duas fornalhas, agora com o fogo apagado. Ao lado delas estendia--se uma fileira de fornos para metal fundido, do qual havia folhas de tamanhos e cores diferentes encostadas em uma parede próxima. Havia uma mesa de aço polido com serra circular, presumivelmente serra de diamante, para cortar as folhas e, à esquerda, na sombra, um grande motor a óleo ligado a um gerador roncava produzindo energia. À direita, sob lâmpadas elétricas, um grupo de cinco homens de macacão, quatro deles coreanos, trabalhavam — por incrível que parecesse — no Rolls-Royce de Goldfinger. O carro cintilava sob as luzes, impecável salvo quanto à porta direita que fora tirada de suas dobradiças e estava sobre dois bancos próximos sem a chapa externa. Enquanto Bond observava, dois homens apanharam a nova chapa, uma pesada e descolorida folha de metal cor de alumínio, e colocaram-na sobre a armação da porta. Havia dois rebitadores manuais no chão e logo, pensou Bond, os homens rebitariam a chapa no lugar e pintá-la--iam para que combinasse com o resto do carro. Tudo perfeitamente inocente e acima de qualquer suspeita. Goldfinger amassara a porta naquela tarde e mandara fazer um rápido conserto, como preparativo para sua viagem no dia seguinte. Bond deu um rápido e mal-humorado olhar a seu redor, afastou-se da janela, saiu pela porta da fábrica e fechou-a silenciosamente. Diabo! Ali nada havia. E agora que iria dizer? Que não quisera incomodar os homens em seu trabalho... talvez depois do jantar, se um deles estivesse desocupado por um momento.

Bond voltou sem pressa pelo mesmo caminho e chegou ao hall sem contratempos.

Olhou o relógio. Faltavam dez minutos. Agora, o primeiro andar. Os segredos de uma casa estão nos dormitórios e banheiros. São os lugares privados, onde os armários de remédios, a camiseira, as gavetas ao lado da cama revelam as coisas íntimas, as fraquezas. Bond estava com muita dor de cabeça. Ia procurar uma aspirina. Representou para uma platéia invisível. Esfregou as têmporas, olhou para a galeria, atravessou decididamente o hall e subiu a escada. A galeria dava para um corredor brilhantemente iluminado. Bond avançou por ele, abrindo as portas e olhando dentro dos aposentos. Mas eram dormitórios vazios, cujas camas não estavam arrumadas. Tinham cheiro de bolor e de janelas fechadas. Um grande gato amarelo avermelhado apareceu sem que Bond soubesse de onde e seguiu-o, miando e esfregando-se nas pernas de sua calça. O último quarto era o que interessava. Bond entrou e encostou a porta, deixando apenas uma fresta aberta.

Todas as luzes estavam acesas. Talvez um dos empregados estivesse no banheiro. Bond caminhou ousadamente até a porta de comunicação e abriu-a. Mais luzes, mas ninguém. Era uma grande sala de banho, provavelmente um dormitório transformado em banheiro. Além da banheira e da pia, havia vários aparelhos de exercício: uma máquina de remar, uma roda de bicicleta fixa, maças índias e um Cinto de Saúde Ralli. O armário de remédios nada continha além de uma grande variedade de purgativos: vagens de sena, cascara sagrada, Calsalettes, Enos e vários aparelhos destinados ao mesmo fim. Não havia outros remédios e nada de aspirina. Bond voltou ao dormitório e nada viu de suspeito também. Era o dormitório típico de um homem, confortável e com aparência de uso, dotado de numerosos armários embutidos. Tinha até mesmo cheiro neutro. Havia uma pequena estante ao lado da cama na qual todos os livros eram de história ou biografia, todos em inglês. A gaveta da mesa de cabeceira apresentou uma solitária indiscrição, um exemplar de capa amarela de The Hidden Sight of Love (*), Palladium Publications, Paris.

 

(*) N. do T. — "A Visão Oculta do Amor".

 

Bond olhou seu relógio. Mais cinco minutos. Era tempo de voltar. Correu os olhos pelo quarto pela última vez e caminhou em direção à porta. De repente, parou. Que havia observado quase subconscientemente desde que entrara no quarto? Aguçou seus sentidos. Havia uma incongruência em algum lugar. Qual era? Uma cor? Um objeto? Um cheiro? Um som? Era aquilo! De onde estava podia ouvir um zumbido muito fraco, como de um mosquito. Era de uma altura quase imperceptível ao ouvido. De onde vinha? Era produzido por que? Agora havia mais alguma coisa no quarto, alguma coisa que Bond conhecia muito bem: o cheiro de perigo.

Tensamente, aproximou-se do armário embutido ao lado da cama. Abriu-o vagarosamente. Sim, vinha de dentro do armário, de trás de uma fileira de paletós esportes que caíam até a parte superior das três gavetas. Brutalmente, Bond empurrou os paletós para os lados. Cerrou os dentes ao ver o que havia atrás deles.

De três fendas perto do alto do armário, filmes de dezesseis milímetros desciam vagarosamente em três tiras separadas para dentro de uma funda caixa por trás da frente falsa das gavetas. As viscosas cobras de filme enchiam quase metade da caixa. Os olhos de Bond estreitaram-se tensamente, enquanto observava a prova condenatória enrolar-se vagarosamente sobre a pilha. Então era isso: câmaras cinematográficas, três delas, com as lentes escondidas só Deus sabia onde — no hall, no pátio da garagem, naquele quarto — observando todos os seus movimentos desde quando Goldfinger deixara a casa, ligando as câmaras e, naturalmente, acendendo as luzes ofuscantes, ao passar pela porta. Por que Bond não percebera a significação daquelas luzes? Por que não tivera a elementar imaginação de ver a cilada e não só senti-la? Histórias para justificar seus movimentos! De que adiantariam elas agora, depois de ter passado meia hora espionando sem descobrir nada que compensasse seu trabalho? Isso também! Nada descobrira — não desenterrara segredo algum. Fora tudo uma idiota perda de tempo. E agora Goldfinger o tinha em suas mãos. Agora estava liquidado, arrasado sem a menor esperança. Não haveria um meio de salvar alguma coisa do naufrágio? Bond permaneceu imóvel, fitando a lenta catarata de filme.

Vejamos! O espírito de Bond corria, imaginando meios e desculpas, mas eliminando todos eles. Bem, pelo menos ao abrir a porta do armário velara uma parte do filme. Então por que não velar todo o resto? Por que não, mas como? Como poderia explicar que a porta fosse aberta, sem que ele a tivesse aberto? Da fresta da porta do dormitório veio um miado. O gato! Por que não poderia o gato ter feito aquilo tudo? Explicação bem fraca, mas seria pelo menos a sombra de um álibi. Bond abriu a porta. Apanhou o gato nos braços. Voltou com ele em direção ao armário, acariciando-o rudemente. O animal ronronou. Bond debruçou-se sobre a caixa de filme e ergueu punhados dele para que tudo recebesse luz. Depois, quando se convenceu de que devia estar tudo velado, deixou-o cair de novo na caixa e jogou o gato por cima. O gato não seria capaz de sair facilmente. Se tivesse sorte, ele se acomodaria e dormiria. Bond deixou a porta do armário com uma fresta de uns cinco centímetros para velar o filme que continuava rondando. Deixou também a porta do quarto entreaberta e atravessou depressa o corredor. No alto da escada, diminuiu o passo e desceu vagarosamente. O hall vazio bocejou diante de sua representação. Bond caminhou até a lareira, derramou mais bebida em seu copo e apanhou The Field. Abriu-o no comentário de golfe de Bernard Darwin, correu os olhos por ele para ver do que tratava, sentou-se em uma poltrona e acendeu um cigarro.

Que havia encontrado? Que havia do lado positivo? Muito pouco, exceto que Goldfinger sofria de prisão de ventre, tinha uma mentalidade suja e desejaria submeter Bond a uma prova elementar. Sem dúvida fizera isso com habilidade. Não era trabalho de amador. A técnica estava perfeitamente à altura dos padrões do smersh e era certamente a técnica de alguém que tinha muita coisa a esconder. E agora que iria acontecer? Para que o álibi do gato se sustentasse, era preciso que Goldfinger tivesse deixado abertas duas portas, uma delas vital, e que o animal tivesse entrado no quarto e sido atraído pelo zumbido das câmaras. Muito pouco provável, quase incrível. Goldfinger teria noventa por cento de certeza de que fora Bond — mas só noventa por cento. Ainda restariam aqueles dez por cento de incerteza. Ficaria Goldfinger sabendo muito mais do que já sabia — que Bond era um sujeito astucioso e engenhoso, que se mostrara muito curioso e que talvez fosse um ladrão? Perceberia que Bond estivera no dormitório, mas os outros movimentos de Bond, fosse qual fosse seu valor, continuariam sendo um segredo no filme velado.

Bond levantou-se, apanhou um punhado de revistas e jogou-as no chão ao lado de sua poltrona. A única coisa que lhe restava fazer era enfrentar ousadamente a situação e anotar para o futuro — se ia haver futuro — que faria bem em avivar suas idéias e não cometer mais erros. Não haveria no mundo gatos amarelo-avermelhados em quantidade suficiente para ajudá-lo a sair de outra situação tão difícil quanto aquela em que estivera.

Não houve barulho de carro descendo pela alameda, nem o som de uma porta, mas Bond sentiu a brisa da tarde no pescoço e percebeu que Goldfinger havia entrado de novo no aposento.

 

                                             Faz-tudo

Bond pôs de lado The Field e levantou-se. A porta da frente fechou-se barulhentamente. Bond virou-se.

— Alô — disse ele, com delicada expressão de surpresa. — Não o ouvi chegar. Como foi?

A expressão de Goldfinger era igualmente amável. Pareciam velhos amigos, vizinhos no campo, acostumados a ir tomar um gole na casa do outro.

— Oh, tudo se resolveu sozinho. Meu empregado teve uma briga em um bar com alguns homens da Força Aérea Americana que o chamaram de maldito japonês. Expliquei à polícia que os coreanos não gostam de ser chamados de japoneses. Soltaram-no mediante fiança. Sinto terrivelmente ter demorado tanto. Espero que não se tenha aborrecido. Toma mais um trago?

— Obrigado. Parece não ter passado cinco minutos desde que você saiu. Estive lendo o que Darwin diz sobre o taco do décimo quarto buraco. É um ponto de vista interessante...

Bond começou a discorrer minuciosamente sobre o artigo, acrescentando seus próprios comentários a respeito da regra. Goldfinger ouviu pacientemente até o fim. Depois disse:

— Sim, é um negócio complicado. Naturalmente, você joga diferente de mim, com mais técnica. Com minha espécie de tacada, preciso de todos os tacos que posso usar. Bem, vou-me lavar lá em cima e depois jantaremos. Voltarei já.

Bond preparou outro drinque, fazendo bastante barulho, sentou-se e apanhou o Country Life. Observou Goldfinger subir a escada e desaparecer pelo corredor. Podia imaginar todos os seus passos. Viu que estava com a revista de cabeça para baixo. Virou-a e fitou, sem ver, uma bela fotografia do palácio Blenheim.

Em cima, o silêncio era mortal. Depois, houve o barulho distante de uma descarga de lavatório e de uma porta sendo fechada. Bond apanhou sua bebida, tomou um grande gole e pôs o copo ao lado da poltrona. Goldfinger estava descendo a escada. Bond virou as páginas do Country Life e jogou a cinza de seu cigarro na lareira.

Goldfinger atravessava agora a sala em sua direção. Bond baixou o jornal e ergueu os olhos. Goldfinger trazia o gato amarelo-avermelhado descuidadamente enfiado embaixo de um braço. Aproximou-se da lareira, curvou-se para a frente e apertou a campainha.

Virou-se para Bond.

— Gosta de gatos? — perguntou.

Seu olhar era indiferente, sem curiosidade.

— Mais ou menos.

A porta de serviço abriu-se. O chofer parou entre os batentes. Ainda estava com o chapéu-de-côco e as lustrosas luvas pretas. Fitava impassivelmente Goldfinger. Este lhe fez um sinal com o dedo. O chofer aproximou-se e ficou dentro do círculo diante da lareira.

Goldfinger virou-se para Bond. Disse em tom de conversa:

— Este é meu ajudante. — Sorriu pàlidamente. — O que vai ver é uma espécie de brincadeira. Faz-tudo, mostre suas mãos ao Sr. Bond. — Sorriu novamente para Bond. — Chamo-o de Faz-tudo porque isso descreve bem suas funções no meu serviço.

O coreano tirou vagarosamente as luvas, aproximou-se de Bond e estendeu as palmas das mãos para cima. Bond levantou-se e olhou-as. Eram grandes e musculosas. Todos os dedos pareciam do mesmo comprimento, muito chatos nas pontas, que brilhavam como se fossem de osso amarelo.

— Vire-as e mostre os lados ao Sr. Bond.

Não havia unhas. Em seu lugar, havia aquela mesma casca amarelada. O homem virou as mãos de lado. Dos lados das mãos havia uma tira dura da mesma substância óssea.

Bond voltou-se para Goldfinger, erguendo as sobrancelhas.

— Vamos fazer uma demonstração — disse Goldfinger, apontando para o grosso corrimão de carvalho da escada. O corrimão tinha uns quinze por dez centímetros de madeira maciça. O coreano caminhou obedientemente até a escada e subiu alguns degraus. Ficou parado, com as mãos caídas dos lados, olhando para Goldfinger, como um bom cão. Goldfinger fez um aceno rápido com a cabeça. Impassivelmente, o coreano ergueu a mão direita acima da cabeça e deixou-a cair de lado, como um machado, sobre o grosso corrimão polido. Houve um barulho de madeira rachando-se e o corrimão afundou, quebrado no centro. A mão ergueu-se novamente e caiu como um relâmpago. Desta vez, atravessou o corrimão, deixando uma brecha denteada. Caíram lascas no piso do hall. O coreano endireitou-se e ficou em posição de sentido, esperando novas ordens. Não havia rubor de esforço em seu rosto e nem sinal de orgulho por seu feito.

Goldfinger chamou-o com um gesto. O homem voltou para o hall. Goldfinger disse:

— Seus pés são iguais, do lado de fora. Faz-tudo, o consolo da lareira.

Goldfinger apontou para a pesada prateleira de madeira lavrada em cima da lareira. Ficava cerca de dois metros e dez acima do chão — quinze centímetros mais alta que a copa do chapéu-de-côco do coreano.

— Riro o rapéu?

— Sim, tire o paletó e o chapéu — disse Goldfinger, virando-se depois para Bond: — O coitado tem o palato tendido. Acho que, afora eu, não são muitas pessoas que entendem o que ele diz.

Bond pensou como devia ser útil um escravo que só podia comunicar-se com o mundo através de seu intérprete — melhor mesmo que os surdos-mundos dos haréns, mais estreitamente ligado a seu senhor, mais seguro.

Faz-tudo tirou o paletó e o chapéu, colocando-os cuidadosamente no chão. Depois enrolou as pernas das calças até os joelhos e tornou a erguer o corpo, ficando na posição firme do praticante de judô. Dava a impressão de que um elefante investindo sobre ele não o faria perder o equilíbrio.

— É melhor ficar um pouco mais para trás, Sr. Bond. — Os dentes de Goldfinger brilhavam na boca larga. — Este golpe pode quebrar o pescoço de um homem como se fosse o caule de uma flor.

Goldfinger puxou para um lado o canapé baixo com a bandeja de bebidas. Agora o coreano tinha um espaço livre para correr. Mas estava a apenas três longos passos de distância. Como poderia atingir o alto consolo.

Bond observava fascinado. Os olhos oblíquos na máscara lisa e amarela cintilavam com feroz intensidade. Diante de um homem assim, pensou Bond, não se poderia senão cair de joelhos e esperar a morte.

Goldfinger ergueu a mão. As pontas juntas dos sapatos de couro macio e lustroso pareciam presas ao chão. O coreano deu um longo passo, agachando-se e curvando bem os joelhos, depois rodopiou e ergueu-se no ar. No ar, seus pés bateram um no outro, como os de um dançarino de bale, mas muito mais alto do que pode alcançar qualquer dançarino. Em seguida, o corpo inclinou-se para o lado e para baixo, e o pé direito estendeu-se violentamente para fora como um pistão. Houve uma forte pancada. Graciosamente, o corpo descansou de novo sobre as mãos, agora estendidas no chão, os cotovelos curvaram-se para receber o peso, depois se endireitaram bruscamente e jogaram o homem para cima, fazendo-o ficar novamente em pé.

Faz-tudo permaneceu em posição de sentido. Desta vez havia um brilho de triunfo em seus olhos parados, enquanto olhava para o pedaço denteado de sete centímetros que seus pés haviam arrancado do consolo da lareira.

Bond olhou para o homem com profundo respeito. Ainda duas noites antes ele, Bond, estivera estudando seu manual de combate sem armas! Nada existia, absolutamente nada, em tudo quanto lera, em toda sua experiência, que pudesse aproximar-se do que acabara de presenciar. Esse não era um homem de carne e osso. Era um porrete vivo, talvez o mais perigoso animal na face da terra. Bond não podia deixar de prestar homenagem a essa pessoa singularmente espantosa. Estendeu a mão.

— Devagar, Faz-tudo.

A voz de Goldfinger era como o estalar de um chicote.

O coreano curvou a cabeça e tomou a mão de Bond na sua. Conservou os dedos estendidos e apenas curvou o polegar em um ligeiro apertão. Era o mesmo que segurar um pedaço de tábua. Soltou a mão de Bond e dirigiu-se para sua bem arrumada pilha de roupas.

— Desculpe-me, Sr. Bond. Aprecio seu gesto — disse Goldfinger, cuja fisionomia demonstrava aprovação. — Mas Faz-tudo não conhece a própria força, particularmente quando está entusiasmado. E aquelas mãos são como máquinas. Poderia ter esmagado sua mão sem querer.

Faz-tudo vestira-se e estava em pé, respeitosamente em posição de sentido.

— Muito bem, Faz-tudo. Fiquei satisfeito em ver que você está em forma. Tome — disse Goldfinger, tirando o gato debaixo do braço e jogando-o para o coreano, que o apanhou avidamente. — Estou cansado de ver esse animal por aí. Pode ficar com ele para o jantar. — Os olhos do coreano brilharam. — E diga na cozinha que queremos jantar imediatamente.

O coreano inclinou a cabeça bruscamente e virou-se para sair.

Bond escondeu sua repugnância. Percebia que toda aquela exibição era simplesmente uma mensagem dirigida a ele, uma advertência, um tapinha na mão. Queria dizer: "Viu minha força, Sr. Bond. Eu poderia facilmente tê-lo matado ou aleijado. Faz-tudo estava fazendo uma demonstração e o senhor ficou na frente. Eu sem dúvida seria inocente e Faz-tudo receberia uma pena leve. Ao invés disso, o gato vai ser castigado em seu lugar. Azar do gato, naturalmente." Bond perguntou em tom indiferente:

— Por que o homem usa sempre aquele chapéu-de-côco?

— Faz-tudo! — disse Goldfinger, chamando o coreano que já havia chegado à porta de serviço. — O chapéu.

Goldfinger apontou para um painel de madeira perto da lareira.

Ainda segurando o gato embaixo do braço esquerdo, Faz--tudo virou-se e caminhou fleugmaticamente em direção a eles. Quando estava a meio caminho, sem parar ou mirar, levou a mão ao chapéu, segurou-o pela aba e arremessou-o de lado com toda a força. Houve uma ruidosa batida. Por um instante a aba do chapéu-de-côco ficou enterrada no painel que Goldfinger indicara, depois caiu e bateu no chão, com um barulho metálico.

Goldfinger sorriu cortesmente para Bond.

— Uma liga leve, mas muito forte, Sr. Bond. Acho que estragou a capa de feltro, mas Faz-tudo colocará outra. Ele é surpreendentemente rápido com agulha e linha. Como pode imaginar, esse golpe teria amassado o crânio de um homem ou cortado seu pescoço ao meio. Uma arma caseira, mas escondida com muito engenho. Tenho certeza que concordará com isso.

— Sim, não há dúvida — respondeu Bond, sorrindo com igual cortesia. — É um sujeito útil para se ter por perto.

Faz-tudo havia apanhado seu chapéu e desaparecido. Ouviu-se a batida de um gongo.

— Ah, o jantar! Vamos entrar?

Goldfinger tomou a frente em direção a uma porta oculta no lambri à direita da lareira. Apertou um fecho e os dois entraram.

A pequena sala de jantar combinava com a pesada riqueza do hall. Estava brilhantemente iluminada por um candelabro central e por velas sobre uma mesa redonda, na qual cintilavam prataria e cristais. Sentaram-se voltados um para o outro. Dois criados de rosto amarelo com jaquetas brancas trouxeram pratos de um aparador repleto. O primeiro prato foi uma massa com tempero de caril e arroz. Goldfinger notou a hesitação de Bond. Deu uma risadinha seca.

— Pode comer, Sr. Bond. São camarões, não o gato.

— Ah! — fez Bond, com expressão de indiferença.

— Experimente o Moselle, por favor. Espero que seja de seu agrado. É um Piesporter Goldtröpfchen 1953. Sirva-se. Essa gente seria capaz de derramar o vinho em seu prato em lugar do copo.

Havia uma garrafa fina dentro de um balde de gelo à frente de Bond. Este derramou um pouco de vinho no copo e provou-o. Era néctar, e bem gelado. Bond felicitou seu anfitrião. Goldfinger agradeceu com um aceno de cabeça.

— Eu não bebo nem fumo, Sr. Bond. Acho que fumar é a mais ridícula de todas as variedades de comportamento humano e a única inteiramente contrária à natureza. Pode imaginar uma vaca ou qualquer outro animal tomando um punhado de palha fumegante, aspirando a fumaça e soprando-a pelas narinas? Bá! — Goldfinger demonstrava um raro traço de emoção. — É uma coisa nojenta. Quanto a beber, eu me dedico um pouco à química e ainda não encontrei uma bebida desprovida de traços de diversos venenos, alguns deles mortais, como óleo de fusel, ácido acético, etilacetato, acetaideído e furfurol. Quantidade apreciável de alguns desses venenos, tomada pura, mataria uma pessoa. Nas pequenas quantidades em que são encontrados em uma garrafa de bebida, produzem vários efeitos nocivos, a maioria dos quais é levianamente encarada como "uma ressaca". — Goldfinger fez uma pausa, com uma garfada de camarões com caril a meio caminho da boca. — Uma vez que bebe, Sr. Bond, vou dar-lhe um bom conselho. Nunca beba o chamado conhaque Napoleon, particularmente quanto descrito como "envelhecido na madeira". Essa poção contém mais dos venenos que mencionei que qualquer outra bebida por mim analisada. Uísque velho coloca-se logo em seguida.

Goldfinger encerrou suas críticas com uma garfada de camarões.

— Muito obrigado. Eu me lembrarei. Talvez por essas razões, tenho preferido vodca, ultimamente. Disseram-me que o fato de ser filtrado em carvão ativado ajuda um pouco.

Tendo arrancado esse pedaço de conhecimento especializado das vagas lembranças de algo que havia lido, Bond sentiu-se orgulho em ter sido capaz de rebater o poderoso saque de Goldfinger.

Goldfinger fitou-o atentamente.

— O senhor parece conhecer um pouco dessas coisas. Estudou química?

— Apenas superficialmente — respondeu Bond, achando que era tempo de mudar de assunto. — Fiquei muito impressionado por aquele seu chofer. Onde aprendeu essas fantásticas técnicas de luta? De onde provêm elas? É isso que os coreanos usam?

Goldfinger passou o guardanapo pela boca. Estalou os dedos. Dois homens tiraram os pratos e trouxeram pato assado, com uma garrafa de Mouton Rothschild 1947 para Bond. Depois que os dois homens voltaram à sua posição de imobilidade, cada um deles de um dos lados do aparador, Goldfinger disse:

— Já ouviu falar em Karate? Não? Pois bem, aquele é um dos três homens do mundo que conquistaram a Faixa Preta em Karate. Karate é uma ramificação do judô, mas é para o judô o mesmo que um Spandau para um catapulta.

— Isso eu percebi.

— A demonstração foi de natureza elementar, Sr. Bond — disse Goldfinger, erguendo a perna de pato que mastigava.

— Posso garantir-lhe que, se Faz-tudo tivesse aplicado um único golpe adequado em qualquer um de sete pontos de seu corpo, o senhor agora estaria morto.

Goldfinger mordeu com apetite o lado da perna de pato. Bond disse seriamente:

— Isso é muito interessante. Eu só conheço cinco meios de matar Faz-tudo com único golpe.

Goldfinger pareceu não ouvir a observação. Pôs no prato sua perna de pato e tomou um grande gole de água. Acomodou-se na cadeira e falou enquanto Bond continuava saboreando a excelente comida.

— Karatê, Sr. Bond, é baseado na teoria de que o corpo humano tem cinco superfícies ofensivas e trinta e sete pontos vulneráveis — isto é, vulneráveis para um especialista em Karatê, cujas pontas dos dedos, lados das mãos e pés são endurecidos por camadas de calosidade, muito mais forte e mais flexível que o osso. Em todos os dias de sua vida, Sr. Bond, Faz-tudo passa uma hora batendo em sacos de arroz integral ou em um forte poste cuja ponta é coberta com numerosas voltas de grossa corda. Depois passa outra hora dedicado a treinamento físico, muito mais semelhante ao de uma escola de bale que ao de um ginásio.

— Quando pratica arremesso de chapéu-de-côco? — perguntou Bond, que não tinha intenção de sucumbir nessa guerra psicológica.

A interrupção fez Goldfinger franzir a testa.

— Nunca perguntei — respondeu, sem humor. — Creio poder assegurar-lhe, porém, que Faz-tudo cuida muito bem de suas aptidões. Mas, estava perguntando onde se originou o Karatê. Originou-se na China, onde sacerdotes itinerantes budistas se tornaram presa fácil de salteadores e bandidos. Sua religião não lhes permitia usar armas, de modo que desenvolveram sua própria forma de luta desarmada. Os habitantes de Okinawa aperfeiçoaram a arte, dando-lhe sua forma atual, quando os japoneses os proibiram de usar armas. Desenvolveram as cinco superfícies ofensivas do corpo humano — o punho, o lado da mão, a ponta dos dedos, a planta dos pés e os cotovelos — e endureceram-nas até ficarem envoltas em camadas de calosidade. Não há prosseguimento em um golpe de Karatê. O corpo todo é enrijecido no momento do choque, com ênfase nos quadris, e depois se relaxa instantaneamente, de modo que o equilíbrio nunca é perdido. É espantoso o que Faz-tudo pode realizar. Já o vi bater em uma parede de tijolos com toda a força, sem machucar a mão. Pode quebrar três grossas tábuas, empilhadas uma sobre a outra, com um só golpe da mão. Ainda há pouco viu o que ele é capaz de fazer com o pé.

Bond tomou um grande trago do delicioso clarete.

— Tudo isso deve estragar muito sua mobília.

Goldfinger encolheu os ombros.

— Não preciso mais desta casa. Pensei que uma demonstração o divertiria. Espero que concorde que Faz-tudo mereceu seu gato.

Os olhos de raios X cintilaram rapidamente através da mesa.

— Ele treina com gatos?

— Considera-os um grande petisco. Adquiriu esse gosto durante a fome em seu país quando era criança.

Bond pensou que era tempo de mergulhar mais fundo.

— Por que precisa de um homem assim? Não deve ser companhia muito agradável.

— Senhor Bond — disse, Goldfinger, ao mesmo tempo que estalava os dedos para os dois criados — acontece que sou um homem rico, um homem muito rico, e quanto mais rico é o homem mais precisa de proteção. O guarda-costas ou detetive comum é geralmente um policial aposentado. Esses homens são inúteis. Suas reações são lentas, seus métodos antiquados e eles são passíveis de suborno. Além disso, têm respeito pela vida humana. Isso não serve, se eu quiser continuar vivo. Os coreanos não têm desses sentimentos. É por isso que os japoneses os empregam como guardas em seus campos de prisioneiros durante a guerra. São a gente mais cruel e impiedosa do mundo. Meu pessoal foi escolhido a dedo por essas qualidades. Têm-se servido muito bem. Eu não tenho queixas. Nem eles. São bem pagos, bem alimentados e bem alojados. Quando desejam mulheres, mulheres da rua são trazidas de Londres, bem remuneradas e mandadas de volta. As mulheres não têm aparência muito atraente, mas são brancas e isso é tudo quanto os coreanos pedem — submeter a raça branca às maiores indignidades. Às vezes ocorrem acidentes, mas... — os olhos pálidos fitaram vaziamente a mesa — dinheiro é uma mortalha eficaz.

Bond sorriu.

— Gosta do aforisma? É meu.

Foi servido um excelente suflê de queijo, seguido por café. Comeram em silêncio, ambos aparentemente confortáveis e tranqüilizados por essas confidencias. Bond sem dúvida estava. Goldfinger, evidentemente de propósito deixava cair seus cabelos, não muito, não além dos ombros, mas mostrava a Bond uma de suas faces privadas, presumivelmente aquela que, em sua opinião, podia impressionar Bond: a do magnata frio e impiedosamente eficiente. Talvez o fato de Bond ter espionado a casa, o que Goldfinger devia pelo menos presumir, revelara a seu respeito algo que Goldfinger ficara satisfeito em saber — que Bond tinha um lado desonesto, que não era cavalheiro senão na aparência. Agora, haveria mais sondagem e em seguida, se tivesse sorte, seria feita a proposta. Bond acomodou-se na cadeira e acendeu um cigarro. Disse:

— É um belo carro aquele seu. Deve ser um dos últimos da série. Mais ou menos de 1925, não é? Dois blocos de três cilindros com duas velas para cada cilindro, um conjunto inflamado pelo magneto e outro pela bobina, não?

— Exatamente. Em outros aspectos, porém, tive de introduzir algumas modificações. Acrescentei cinco folhas às molas e adaptei freios de disco nas rodas traseiras para aumentar a ação de frenagem. Os freios automáticos das rodas dianteiras não eram suficientes.

— Por que não? A velocidade máxima não pode ser de mais oitenta. A carroçaria não deve ser tão pesada.

Goldfinger ergueu as sobrancelhas.

— Acha que não? Uma tonelada de blindagem e vidro blindado fazem muita diferença.

Bond sorriu.

— Ah! Compreendo. Sem dúvida, cuida muito bem de si próprio. Mas como pode transportá-lo por via aérea através do Canal? O carro não afunda o soalho do avião.

— Freto um avião só para mim. A companhia Silver City conhece o carro. É uma rotina regular, duas vezes por ano.

— Apenas viaja pela Europa?

— Umas férias jogando golfe.

— Grande divertimento. Sempre desejei fazer isso. Goldfinger não engoliu a isca.

— Agora tem recursos para fazê-lo — disse.

— Oh, aqueles dez mil dólares que ganhei — disse Bond, sorrindo. — Mas talvez precise deles, se decidir mudar-me para o Canadá.

— Acha que poderia ganhar dinheiro lá? Deseja ganhar muito dinheiro?

A voz de Bond tinha uma nota de ansiedade, quando respondeu:

— Muito. Não há outra razão para trabalhar.

— Infelizmente, a maioria dos meios de ganhar muito dinheiro exige muito tempo. Quando a gente chega a ganhar o dinheiro, está velha demais para aproveitá-lo.

— Esse é o mal. Sempre estou à procura de atalhos. Aqui a gente não encontra atalhos. Há muitos impostos.

— Demais. E as leis são muito severas.

— Sim. Foi o que verifiquei.

— De fato?

— Cheguei às margens do negócio de heroína. Escapei por pouco de queimar os dedos. Naturalmente, não vai passar isto para a frente.

Goldfinger encolheu os ombros.

— Sr. Bond, alguém disse que a "lei são os preconceitos cristalizados da coletividade". Concordo com essa definição. Aplica-se muito bem ao tráfico de entorpecentes. Ainda que não se aplicasse, não tenho o menor interesse em ajudar a polícia.

— Bem, foi assim... — começou Bond, passando a contar a história do tráfico de entorpecentes no México, mas trocando de papéis com Blackwell. Terminou dizendo: "Tive sorte em escapar impunemente, mas isso não contribuiu para aumentar minha popularidade na Universal Export.

— Acredito que não. Uma história interessante. O senhor parece ter demonstrado habilidade. Não se sentiu tentado a continuar no mesmo ramo de negócios.

— Um pouco arriscado demais — respondeu Bond, encolhendo os ombros. — A julgar por esse mexicano, os grandes homens no negócio não são realmente grandes homens quando as coisas ficam feias. Quando a situação fica difícil, não reagem... senão com a boca.

— Bem, Sr. Bond — disse Goldfinger, levantando-se da mesa, no que foi seguido por Bond. — Foi uma noite interessante. Acho que eu não voltaria à heroína. Há meios mais seguros de ganhar dinheiro grosso. A gente precisa ter certeza de que as probabilidades são boas e depois arriscar tudo. Duplicar o dinheiro que se tem não é fácil e as oportunidades não surgem com freqüência. Gostaria de ouvir outro de meus aforismas?

— Sim.

— Bem, Sr. Bond — prosseguiu Goldfinger, dando aquele sorriso pálido de homem rico. — O meio mais seguro de dobrar seu dinheiro é virá-lo em dois e enfiar no bolso.

Bond, o bancário ouvindo o gerente de banco, sorriu como devia, mas não fez comentários. Aquilo já era bem bom. Estava progredindo. Mas o instinto lhe disse para não pisar no acelerador.

Voltaram ao hall. Bond estendeu a mão, despedindo-se:

— Bem, muito obrigado pelo excelente jantar. É hora eu ir dormir um pouco. Talvez nos encontremos de novo algum dia.

Goldfinger apertou rapidamente a mão de Bond e empurrou-a para longe de si. Era outro maneirismo do milionário subconscientemente temeroso do "contato". Olhou firme para Bond. Depois disse enigmàticamente:

— Isso absolutamente não me causaria admiração, Sr. Bond.

Correndo através da Isle of Thanet sob o luar, Bond virou e revirou a frase em sua imaginação. Despiu-se e deitou-se pensando nela, incapaz de perceber sua significação. Poderia significar que Goldfinger pretendia entrar em contato com ele ou significar que ele devia procurar manter-se em contato com Goldfinger. Cara para o primeiro, coroa para o último. Bond levantou-se da cama, apanhou uma moeda na camiseira e jogou-a para cima. Deu coroa. Cabia a ele, portanto, conservar-se perto de Goldfinger.

Era o que ia fazer. Mas seu disfarce teria de ser terrivelmente bom na próxima vez em que se encontrassem "por acaso". Bond voltou para a cama e adormeceu instantaneamente.

 

                                     Fantasma de rabo comprido

Pontualmente, às nove horas da manhã seguinte, Bond pôs-se em comunicação com o chefe do pessoal: "Aqui é James. Dei uma olhada na propriedade. Percorri toda ela. Jantei ontem à noite com o proprietário. Posso afirmar quase com certeza que a opinião do diretor-gerente está certa. Há algo decididamente errado na propriedade. Não disponho de fatos suficientes para mandar-lhe um relatório de agrimensor. O proprietário vai para o exterior amanhã, levantando vôo de Ferryfield. Gostaria de saber a hora da partida. Gostaria de dar outra olhada em seu Rolls. Acho que vou dar-lhe de presente um aparelho de rádio portátil. Eu partirei um pouco mais tarde, amanhã mesmo. Quer pedir à Srta. Ponsonby que reserve passagens para mim? Por enquanto o destino é desconhecido. Eu me manterei em contato com vocês. Alguma coisa do seu lado? — Como foi a partida de golfe?

— Eu ganhei.

Houve uma risadinha do outro lado..

— Foi o que pensei. A aposta foi bem grande, não foi?

— Como soube?

— A Sra. Scotland procurou-me ontem à noite. Disse ter recebido pelo telefone a denúncia de que uma pessoa com seu nome estava de posse de uma grande quantia de dólares não declarados. Queria saber se a pessoa trabalhava para nós e se era verdade. O sujeito não era muito categorizado e nada sabia sobre a Universal. Disse-lhe que falasse com o comissário e hoje de manhã recebemos um pedido de desculpa, mais ou menos no mesmo momento em que sua secretária encontrava em sua correspondência um envelope contendo dez mil dólares! Espertinho o seu homem, não acha?

Bond sorriu. Era típico de Goldfinger ter pensado em um meio de criar-lhe complicações com os dólares. Provavelmente telefonara à Scotland Yard logo depois do jogo. Queria mostrar a Bond que quem desse um soco em Goldfinger receberia pelo menos um espinho na mão. Mas o disfarce da Universal Export parecia ter pegado.

— Que embrulhão! Pode dizer ao diretor-gerente que desta vez vai para a Cruz Branca — disse Bond. — E as outras coisas, você pode arrumar.

— Claro. Eu o chamarei dentro de alguns minutos. Mas tenha cuidado no estrangeiro e avise-nos imediatamente se ficar aborrecido e precisar de companhia. Até logo.

— Até — disse Bond, cortando a ligação. Levantou-se e começou a arrumar sua mala. Podia imaginar a cena na sala do chefe do pessoal, enquanto a conversa era repetida pelo gravador e o chefe do pessoal traduzia o telefonema para a Srta. Monneypenny. "Diz que concorda em que Goldfinger está metido em alguma coisa importante, não pode saber o que é. G. vai partir por via aérea agora de manhã com seu Rolls, embarcando em Ferryfield. 007 quer segui-lo. (Digamos, duas horas depois para dar uma boa dianteira a G do outro lado. Reserve as passagens, sim?) Quer que falemos com a Alfândega para que possa dar uma olhada no Rolls e colocar um Homer no porta-malas. (Providencie isso também, por favor.) Manterá contato conosco através das estações se precisar de auxílio..."

E assim por diante. Era uma máquina eficiente. Bond acabou de arrumar a mala e, quando chegou o chamado de Londres dando-lhe suas várias instruções, desceu, pagou a conta do hotel, saiu rapidamente de Ramsgate e tomou a estrada de Canterbury.

Londres dissera que Goldfinger havia reservado passagem em um vôo especial, com partida marcada para as doze horas. Bond chegou a Ferryfield às onze, apresentou-se ao chefe do Controle de Passaportes e aos funcionários da Alfândega que o aguardavam, fez com que seu carro fosse guardado em um hangar vazio, onde não poderia ser visto, sentou-se, fumou e conversou um pouco com os homens da seção de passaportes. Pensaram que ele fosse da Scotland Yard. Deixou que continuassem pensando. Não, explicou ele, nada havia contra Goldfinger. Era possível que um de seus empregados estivesse tentando contrabandear algo para fora do país. Coisa muito confidencial. Poderiam deixá-lo sozinho com o automóvel durante uns dez minutos? Queria dar uma olhada na caixa de ferramentas. O pessoal da Alfândega poderia fazer uma inspeção cuidadosa no Rolls, para ver se não havia compartimentos secretos? Com a maior satisfação, foi o que lhe responderam.

Às onze e quarenta e cinco, um dos homens da Alfândega pôs a cabeça na porta. Piscou para Bond e disse:

— Está chegando. O chofer está dentro. Vamos pedir que ambos tomem o avião antes de embarcar o carro. Explicaremos que é algo relacionado com a distribuição de peso. Não é tão falso quanto parece. Conhecemos essa velha lata. E blindada. Pesa umas três toneladas. Nós o chamaremos quando tudo estiver pronto.

— Obrigado.

A sala ficou vazia. Bond tirou o pequeno e frágil pacote do bolso. Continha uma pilha ligada a uma pequena válvula. Correu os olhos pelos fios e voltou a pôr o aparelho no bolso do paletó. Depois, ficou esperando.

Às onze e cinqüenta e cinco a porta abriu-se. O funcionário chamou-o.

— Não há dificuldade. Eles estão no avião.

O enorme e cintilante Fantasma Prateado estava estacionado no depósito de Alfândega, onde não podia ser visto do avião. O único outro carro era um conversível cinzento Triumph TR3, com a capota baixada. Bond aproximou-se da traseira do Rolls. Os homens da Alfândega haviam desparafusado o compartimento de ferramentas. Bond tirou para fora a caixa de ferramentas e fingiu examiná-la cuidadosamente. Ajoelhou-se. Fingindo mexer nas partes laterais do compartimento, enfiou a pilha e a válvula no fundo dele. Tornou a pôr a caixa de ferramentas no lugar. Coube tudo direito. Levantou-se e esfregou as mãos.

— Negativo — disse, dirigindo-se ao funcionário da Alfândega.

O funcionário colocou a tampa no lugar e parafusou-a. Levantando-se, disse:

— Nada de suspeito no chassi ou na carroçaria. Há muito espaço no estofamento e dentro da lataria, mas não poderiam os examinar isso sem um serviço grande. Pode ir?

— Sim. E obrigado.

Bond voltou ao escritório. Ouviu o rápido e firme gemido do velho motor de partida. Um minuto depois, o carro saiu do depósito e avançou soberbamente para a rampa de embarque. Bond ficou no fundo do escritório e observou o carro subir vagarosamente pela rampa. As grandes mandíbulas do cargueiro Bristol fecharam-se barulhentamente. Os calços foram retirados e o despachante ergueu um polegar. Os dois motores tossiram ruidosamente, pegaram e arrastaram o grande pássaro prateado em direção à pista.

Quando o avião chegou à pista, Bond voltou para seu carro e sentou-se ao volante. Apertou um botão embaixo do painel. Houve silêncio por um momento e depois um som alto e agudo saiu do alto-falante oculto. Bond virou um botão. O som diminuiu transformando-se em um zumbido surdo. Bond esperou até ouvir o Bristol decolar. Quando o avião levantou vôo e rumou para a costa, o zumbido diminuiu. Cinco minutos depois desapareceu. Bond sintonizou o aparelho e captou-o de novo. Seguiu-o durante cinco minutos, enquanto o avião voava através do canal da Mancha, e depois desligou o aparelho. Levou seu carro até o depósito da Alfândega, disse ao funcionário que voltaria à uma e meia para o vôo das duas horas e seguiu vagarosamente em direção a um bar que conhecia em Rye. Dali para diante, sempre que estivesse a uns cento e cinqüenta quilômetros do Rolls, Homer, o tosco transmissor de rádio que colocara no compartimento de ferramentas, se manteria em contato com o receptor de seu carro. O que tinha a fazer era apenas observar os decibéis e não deixar que o som desaparecesse. Era uma forma simples de determinar direção, que permitia a um carro pôr um "rabo comprido" em outro e segui-lo sem qualquer perigo de ser percebido. Do outro lado do canal da Mancha, Bond teria de descobrir a estrada que Goldfinger tomara ao sair de Le Touquet, aproximar-se o suficiente e chegar mais perto nas proximidades de cidades grande ou onde houvesse cruzamentos ou bifurcações importantes. Às vezes tomaria decisões erradas e precisaria manobrar com muita rapidez para restabelecer o contato. O D.B. III cuidaria disso. Ia ser divertido brincar de esconde-esconde através da Europa. O sol brilhava em um céu claro. Bond sentiu por um momento correr um arrepio por sua espinha. Sorriu consigo mesmo, um sorriso duro, frio, cruel. Pela primeira vez em sua vida, pensou ele, Goldfinger estava em uma enrascada — em uma enrascada difícil.

 

Há sempre um agent cycliste nos cruzamentos perigosos onde a calma N38 de Le Touquet se encontra com a oleosa turbulência da importante NI. Sim, respondeu o guarda, sem dúvida vira o Rolls. Não era possível deixar de reparar nele. Um carro realmente aristocrata. Para a direita, monsieur, na direção de Abbeville. Deve levar uma hora de vantagem, mas com esse seu foguete...!

Assim que regularizara seus papéis no aeroporto, o Homer captara o zumbido do Rolls. Mas era impossível saber se Goldfinger seguia para o norte — para os Países Baixos, Áustria ou Alemanha — ou se rumava para o sul. Para saber ao certo nesses casos eram precisos dois carros com rádio a fim de traçar a direção. Bond acenou com a mão para o guarda e pisou no acelerador. Precisava aproximar-se depressa.

Goldfinger já teria atravessado Abbeville e chegado à importante bifurcação da N1 para Paris e N28 para Rouen. Muito tempo e distância seriam perdidos se Bond tomasse a decisão errada.

Bond disparou ao longo da mal abaulada rodovia. Para não arriscar-se, percorreu os quarenta e três quilômetros até Abbeville cm um quarto de hora. O zumbido do Homer estava alto. Goldfinger não poderia estar mais de trinta quilômetros à frente. Mas que rumo tomara na bifurcação? Seguindo um palpite, Bond tomou a estrada para Paris. Durante certo tempo, houve pouca alteração na voz do Homer. Bond poderia estar certo ou errado. Depois, imperceptivelmente, o zumbido começou a desaparecer. Inferno! Seria melhor voltar ou correr mais, tomar uma das estradas secundárias até Rouen e alcançá-lo lá? Bond odiava voltar. Dez quilômetros antes de Beauveais virou para a direita. Durante certo tempo encontrou estrada ruim, mas depois tomou a rápida N30 e por ela chegou a Rouen, orientado pela voz de seu receptor. Parou nos subúrbios da cidade e ficou escutando, enquanto consultava seu Michelin. Pelo aumento do zumbido, percebeu que estava à frente de Goldfinger. Mas agora havia outra vital bifurcação, que não oferecia muita facilidade de recuperação se Bond tivesse outra vez palpite errado. Goldfinger seguiria a rota Alençon-Le Mans-Tours para o sul ou iria para sudeste, contornando Paris, através de Evreux, Chartres e Orleans. Bond não podia correr o risco de aproximar-se do centro de Rouen, para tentar ver de relance o Rolls e descobrir que caminho seguiria. Precisaria esperar que o som do Homer baixasse e depois seguir seu palpite.

Demorou um quarto de hora para que Bond tivesse certeza de que o Rolls estava bem à frente. Desta vez tomou novamente o braço esquerdo da bifurcação. Pisou no pedal até a tábua e disparou pela estrada. Sim, agora o zumbido estava-se misturando com um assobio. Bond estava na pista. Diminuiu a velocidade para sessenta e cinco, baixou o volume do receptor até ficar só um sussurro e guiou sossegadamente imaginando para onde estaria indo Goldfinger.

Cinco horas, seis, sete. O sol se pôs no espelho retrovisor de Bond e o Rolls ainda continuava correndo. Atravessaram Dreux e Chartres, e entraram na longa reta de oitenta quilômetros que leva a Orleans. Se fosse essa a parada noturna, o Rolls não se saíra mal — mais de quatrocentos quilômetros em pouco mais de seis horas. Goldfinger sem dúvida não era preguiçoso quando se tratava de automóvel. Devia ter mantido o velho Fantasma Prateado no máximo da velocidade fora das cidades. Bond começou a aproximar-se.

Havia luzes traseiras à sua frente — luzes fracas. Bond estava com os faróis de neblina ligados. Acendeu os Marchais. Era um pequeno carro esporte. Bond aproximou-se mais. M. G.? Triumph? Austin Healey Era um Triumph cinza pálido de dois lugares, com a capota erguida. Bond piscou seus faróis e ultrapassou rapidamente. Agora havia luzes de outro carro à frente. Bond baixou a luz dos faróis comuns e acendeu os de neblina. O outro carro estava um quilômetro e meio à frente. Bond aproximou-se mais dele. A uns quatrocentos metros, acendeu e apagou os Marchais para dar uma rápida olhada. Sim, era o Rolls. Bond aumentou a distância para quilômetro e meio, conservando-a assim, ao mesmo tempo que observava vagamente as luzes fracas do RT3 em seu espelho retrovisor. Nos subúrbios de Orleans, Bond entrou na estrada secundária. O Triumph passou roncando indiferente ao seu lado.

Bond jamais gostara de Orleans. Era uma cidade cheia de padres e de mitos, sem encanto ou alegria. Contentava-se em viver às custas de Joana d'Arc e lançar sobre o visitante um olhar duro e virtuoso, ao mesmo tempo que lhe tomava o dinheiro. Bond consultou seu Michelin. Goldfinger hospedar-se-ia em hotéis de primeira categoria, onde comeria fillets de sole e frango assado. Para ele seria o Arcades — ou talvez o Moderne. Bond gostaria de ficar fora da cidade e dormir às margens do Loire no excelente Auberge de la Montespan, com a barriga cheia de quenelles de brochet. Mas teria de conservar-se perto da caça que perseguia. Decidiu hospedar-se no Hotel de Ia Gare e jantar no bufê da estação.

Quando em dúvida, Bond sempre escolhia os hotéis de estação. Eram convenientes e tinham bastante espaço para estacionar o carro. E era mais que provável que a comida do Buffet de la Gare fosse excelente. Além disso, na estação a gente podia ouvir o bater do coração da cidade. Os barulhos noturnos dos trens estavam cheios de suas tragédias e romances.

O zumbido do receptor conservara-se constante durante dez minutos. Bond verificou o caminho que teria de seguir para chegar aos três hotéis e entrou cautelosamente na cidade. Desceu até o rio e rodou ao longo do quais iluminado. Acertara. O Rolls estava parado diante do Arcades. Bond voltou para o centro da cidade e rumou para a estação.

O Hotel de Ia Gare era exatamente como esperava: barato, antiquado e sòlidamente confortável. Bond tomou um banho quente, voltou a seu carro para verificar se o Rolls não saíra do lugar entrou no restaurante da estação e pediu uma de suas refeições preferidas: dois oeufs cocotte à la creme um grande sole meunière (Orleans ficava suficientemente perto do mar. O peixe do Loire tende a ter gosto de lodo) e um Camembert apropriado. Bebeu meio litro bem gelado de Rose d'Anjou e tomou um Hennessy Três Estrelas com o café. Às dez e meia, deixou o restaurante, verificou de novo se o Rolls estava no mesmo lugar e andou durante uma hora pelas virtuosas ruas da cidade. Mais uma verificação no Rolls e cama.

Às seis horas da manhã seguinte, o Rolls continuava no mesmo lugar. Bond pagou sua conta, tomou um café complet — com uma ração dupla de café — na estação, desceu com o carro até o quais e entrou de marcha ré em uma travessa. Desta vez não podia arriscar-se a cometer um erro. Goldfinger atravessaria o rio e seguiria para o sul a fim de entrar na N7 rumo à Riviera ou iria pela margem norte do Loire, talvez igualmente para a Riviera, mas também no caminho da Suíça e Itália. Bond desceu do carro e encostou-se ao parapeito da margens do rio, olhando por entre os troncos das árvores. Às oito e meia, duas pequenas figuras saíram do Arcades. O Rolls pôs-se em movimento e afastou-se. Bond viu-o acompanhar o quais até perder-se de vista. Depois, sentou-se ao volante do Aston Martin e iniciou a perseguição.

Bond guiou confortàvelmente ao longo do Loire sob o sol da manhã de verão. Esse era um de seus cantos preferidos no mundo. Em maio, com as árvores frutíferas todas brancas e o largo e vagaroso rio ainda cheio das chuvas do inverno, o vale estava verde, jovem e vestido para o amor. Pensava nisso quando, antes de Châteauneuf, ouviu o grito agudo de buzina dupla Bosch e o pequeno Triumph passou em disparada. A capota estava baixada. Houve a imagem borrada de um rosto bonito, escondido por óculos brancos de motorista com lentes azuis escuras. Embora tivesse visto apenas de relance um perfil — uma boca vermelha e a ponta esvoaçante de cabelos pretos sob um lenço cor de rosa com pintas brancas, Bond sabia que ela era bonita pela maneira como mantinha a cabeça. Havia a autoridade de alguém acostumado a ser admirado, combinada com o constrangimento de uma moça guiando sozinha e ultrapassando um homem em um carro elegante.

Bond pensou: Logo hoje tinha de acontecer isso! O Loire está vestido exatamente para isso — perseguir essa moça até alcançá-la na hora do almoço, o contato no restaurante vazio à beira do rio, no jardim embaixo das parreiras. A fríture e o Vouvray gelado, a cautelosa sondagem recíproca e depois os carros rodando um atrás do outro até o cair da tarde, bem para o sul, até o lugar que haviam combinado no almoço — oliveiras, grilos cantando, o crepúsculo cor de anil, a descoberta de que se gostavam e que seus destinos podiam esperar. No dia seguinte ("Não, esta noite não. Eu ainda não o conheço bem e, além disso, estou cansada.") deixariam o carro dela na garagem do hotel e sairiam no dele por uma tangente, vagarosamente, sabendo que não havia pressa para coisa alguma, rumando para oeste, para longe das grandes estradas. Qual era aquele lugar a que sempre desejara ir, simplesmente por causa do nome? Sim, Entre Deux Seins, uma aldeia perto de Les Baux. Talvez lá não houvesse sequer uma hospedaria. Bem, então iriam até Le Baux, nas Bouches du Rhône à beira do Camargue. Ficariam em quartos vizinhos (não quarto de casal, pois seria ainda muito cedo para isso) no fabuloso Baumanière, o único hotel-restaurante da França com o supremo galardão do Michelin. Comeriam gratin de langouste e talvez, como era tradicional em uma noite dessas, bebessem champanha. E depois...

Bond sorriu de sua história e das reticências com que terminava. Não hoje. Hoje você está trabalhando. Hoje é para

Goldfinger, não para amor. Hoje o único perfume que você pode cheirar é a cara loção de barba de Goldfinger, não... que usaria ela? As moças inglesas cometem erros em matéria de perfume. Esperava que fosse algo leve e limpo, Vent Vert de Balmain talvez, ou Muguet de Caron. Bond aumentou o volume de seu receptor para tranqüilizar-se, depois abaixou-o de novo e continuou guiando, descansadamente, brincando com seus pensamentos sobre a moça, preenchendo os detalhes. Naturalmente, poderia encontrar-se de novo com ela. Pareciam estar andando muito juntos. Ela devia ter passado a noite em Orleans. Onde? Que desperdício. Mas espere um minuto! De repente, Bond acordou de seu devaneio. A capota baixada fez com que se lembrasse. Já tinha visto antes aquele Triumph. Fora em Ferryfield. Ele devia ter viajado no vôo seguinte ao de Goldfinger. Verdade que não vira a moça, nem reparara no número da placa, mas certamente era o mesmo. Nesse caso, o fato de estar ainda nas pegadas de Goldfinger quinhentos quilômetros depois era mais que coincidência. E na noite anterior ela estava guiando com luzes fracas! Que estaria acontecendo?

Bond pisou no acelerador. Estava-se aproximando de Nevers. De qualquer maneira, teria de chegar mais perto no próximo cruzamento importante. Mataria dois coelhos com uma só cajadada e veria também o que a moça estava tramando. Se a moça se conservasse entre ele e Goldfinger, teria de pensar furiosamente. Seria uma complicação terrível. Já era bastante difícil seguir Goldfinger. Com outro perseguidor imprensado entre os dois, tornar-se-ia infernalmente difícil.

Ela ainda lá estava, talvez dois quilômetros atrás do Rolls. Logo que avistou seu pequeno e cintilante traseiro (como o descrevia consigo mesmo) Bond diminuiu a marcha. Bem, bem! Quem seria ela? Que diabo significava aquilo tudo? Bond continuou guiando, com expressão taciturna e pensativa no rosto.

O pequeno comboio continuou avançando, seguindo ainda a larga faixa preta da N7 que desce como um grande e perigoso nervo através do coração da França. Em Moulins, contudo, Bond quase perdeu a pista. Precisou recuar rapidamente e entrar na N73. Goldfinger virará em ângulo reto e estava agora rumando para Lyons e para a Itália ou para Mâcon e para Genebra. Bond precisou manobrar rapidamente e com muita habilidade. Depois, mal teve tempo de evitar cair numa enrascada. Não estava preocupado com o tom do Homer. Contava com o Triumph para indicar-lhe quando diminuir a velocidade. De repente, percebeu que o zumbido se transformava em assobio. Se não tivesse brecado depressa quando corria a quase cento e cinqüenta, teria alcançado o Rolls. Do jeito que fez, estava rodando muito devagar quando chegou ao alto de uma subida e avistou o grande carro amarelo parado à beira da pista quilômetro e meio adiante. Havia uma bendita estrada de carroça. Bond virou o carro e entrou por ela, parando atrás de uma sebe baixa. Tirou um pequeno binóculo do porta-luvas, desceu do carro e voltou a pé. Maldição! Goldfinger estava sentado embaixo de uma pequena ponte à beira de um córrego. Vestia um guarda-pó branco e capacete de motorista de linho branco no estilo dos turistas alemães. Estava comendo, fazendo um piquenique. Vendo-o, Bond sentiu fome. E seu almoço? Examinou o Rolls. Pela janela traseira pôde ver parte da forma preta do coreano no banco da frente. Não havia sinal do Triumph. Se a moça ainda estivesse perseguindo Goldfinger, teria sido apanhada desprevenida. Teria simplesmente abaixado a cabeça e pisado no acelerador. Agora estaria em um ponto qualquer à frente, escondida, esperando que o Rolls passasse. Ou não estaria? Talvez Bond se tivesse deixado arrastar pela imaginação. Provavelmente, a moça estava a caminho dos lagos italianos, para encontrar uma tia, alguns amigos ou um amante.

Agora Goldfinger estava em pé. Homem asseado. Apanhou os restos de papel e enfiou-os cuidadosamente sob a ponte. Por que não jogá-los no córrego? De repente, Bond cerrou os dentes. Que lhe faziam lembrar aquelas ações de Goldfinger? Estaria romanceando de novo ou a ponte seria uma caixa do correio? Teria Goldfinger recebido instrução para deixar alguma coisa, uma de suas barras, embaixo daquela ponte determinada? França, Suíça e Itália. Era um lugar conveniente para todas elas — para a célula comunista de Lyon, por exemplo, uma das mais fortes da França. O local era muito vantajoso, com clara visão da estrada nas duas direções.

Goldfinger subiu o barranco. Bond voltou a esconder-se. Ouviu o rangido distante do velho motor de partida. Observou cautelosamente o Rolls, até vê-lo desaparecer.

Era uma bela ponte sobre um belo córrego. Tinha um número de identificação inscrito no arco: 79/6, a sexta ponte a partir de alguma cidade na N79. Fácil de achar. Bond desceu rapidamente do carro e deixou-se escorregar pelo barranco. Estava escuro e frio embaixo do arco. Havia sombras de peixes na água vagarosa e clara, que corria sobre pedregulhos. Bond procurou na beirada da parede perto da grama. Exatamente no centro, abaixo da estrada, havia uma moita de capim grosso encostada na parede. Bond abriu o capim. Havia punhados de terra revolvida recentemente. Bond escavou com os dedos.

Encontrou uma só. Era lisa ao toque e com formato de tijolo. Foi preciso um pouco de força para erguê-la. Bond limpou a terra que cobria o metal amarelo baço e embrulhou a pesada barra em seu lenço. Escondeu a barra embaixo do paletó e subiu novamente o barranco para chegar à estrada vazia.

 

                                 "Se me tocar aí..."

Bond sentia-se satisfeito consigo mesmo. Muita gente ia ficar furiosa com Goldfinger. É possível fazer muito trabalho sujo com vinte mil libras. Agora haveria necessidade de alterar planos, adiar conspirações. Talvez até vidas fossem salvas. E, se um dia o smersh fizesse uma investigação, coisa improvável pois é gente realista que sabe perder, só poderia presumir que a barra de ouro fora encontrada por algum vagabundo que se abrigara sob a ponte.

Bond ergueu a tampa secreta embaixo do banco traseiro e guardou a barra dentro. Material perigoso. Teria de entrar em contato com a próxima estação do Serviço e entregar-lhe a barra de ouro. Seria remetida de volta a Londres pela mala diplomática da Embaixada. Bond precisaria comunicar o fato rapidamente. Confirmava muita coisa. M talvez desejasse mesmo avisar o Deuxième, para que vigiassem a ponte e vissem quem ia até lá. Mas Bond esperava que isso não acontecesse. Não queria que fosse dado um alarma exatamente quando estava chegando mais perto de Goldfinger. Queria que o céu sobre Goldfinger continuasse azul e claro.

Bond pôs-se em marcha. Agora havia outras coisas em que pensar. Precisava alcançar o Rolls antes de Mâcon e tomar a estrada certa, para Genebra ou Lyons, no entroncamento seguinte. Precisava resolver o problema da moça e, se possível, tirá-la da estrada. Bonita ou não, estava confundindo a questão. E precisava parar para comer e beber alguma coisa. Era uma hora e o fato de ver Goldfinger comendo dera-lhe fome. Já era tempo também de encher o tanque e verificar a água e o óleo.

O zumbido do Homer tornou-se mais alto. Estava nos subúrbios de Mâcon. Precisava chegar mais perto e correr o risco de ser percebido. O tráfego intenso esconderia seu carro baixo. Era vital saber se o Rolls atravessaria o Saône para tomar a estrada de Bourg ou viraria à direita na ponte para entrar na N6 rumo a Lyons. No fim da Rue Rambuteau vislumbrou algo amarelo, além da ponte ferroviária, do outro lado da pequena praça. A alta caixa amarela continuou avançando em direção ao rio. Bond observou os transeuntes virarem a cabeça para seguir com a vista o cintilante Rolls. O rio. Goldfinger viraria à direita ou atravessaria a ponte? O Rolls seguiu em frente. Então era a Suíça! Bond rumou para o subúrbio de St. Laurent. Agora era procurar um açougue, uma padaria e uma casa de vinhos. Cem metros à frente, a cabeça dourada de uma vaca pendia sobre a calçada. Bond olhou pelo espelho retrovisor. Bem, bem! O pequeno Triumph estava apenas alguns passos atrás dele. Desde quando o vinha seguindo assim? Bond preocupara-se tanto em seguir o Rolls que não olhara para trás desde quando entrara na cidade. Ela devia ter ficado escondida em uma travessa. Bem! Agora a coincidência estava fora de cogitação. Era preciso fazer alguma coisa. Sinto muito, querida. Vou precisar amassar um pouco seu carro. Serei o mais delicado possível. Segure firme. Bond parou bruscamente diante do açougue. Engatou marcha ré. Houve um barulho terrível de lata amassada e vidro quebrado. Bond desligou o motor e desceu.

Caminhou até a traseira do carro. A moça, com a fisionomia tensa de raiva, tinha uma bela perna com meia de seda para fora do carro. Via-se um indiscreto pedaço de coxa branca. A moça tirou os óculos e pôs-se em pé, com as pernas firmes e as mãos nos quadris. A bela boca estava dura de raiva.

O pára-choques traseiro do Aston Martin estava enganchado nos restos dos faróis e da grade do radiador do Triumph. Bond disse amàvelmente:

— Se me tocar aí de novo, terá de casar-se comigo.

As palavras mal haviam saído de sua boca quando a mão aberta estalou em seu rosto. Bond ergueu uma mão e esfregou a face. Agora havia uma verdadeira multidão ao redor. Ouviu-se um murmúrio de aprovação e inconveniências. "Allez y la gosse! Maintenant le knock-out!"

A raiva da moça não se dissipara com o tapa.

— "Maldito estúpido! Que diabo pensa que está fazendo?

Bond pensou: Se as moças bonitas estivessem sempre zangadas seriam muito mais bonitas. Disse:

— Seus freios não devem estar muito bons.

— Meus freios? Que está querendo dizer? Você deu marcha ré em cima de mim.

— A marcha entrou errada. Não sabia que você estava tão perto — desculpou-se Bond, pensando que já era tempo de acalmá-la. — Sinto muito. Pagarei o conserto e tudo o mais. Foi realmente falta de sorte. Vamos ver quais foram os danos. Tente dar marcha ré. Parece que nossos pára-choques não estão presos.

Bond pisou com um pé no pára-choques do Triumph e sacudiu-o.

— Não se atreva a tocar no meu carro! Deixe-o em paz! A moça sentou-se furiosamente no lugar do motorista.

Apertou a partida. O motor funcionou. Houve um barulhão de metal embaixo da tampa do motor. A moça desligou e inclinou a cabeça para fora.

— Está vendo, idiota? Você amassou o ventilador.

Bond esperava que sim. Subiu em seu carro e afastou-o do Triumph. Pedaços do Triumph, soltos pelo pára-choques de Bond, caíram ao chão. Bond desceu novamente. A multidão diminuíra. Havia um homem com macacão de mecânico, que se ofereceu para chamar um carro de socorro e foi chamá-lo. Bond aproximou-se do Triumph. A moça descera e estava esperando por ele. Sua expressão mudara. Estava agora mais calma. Bond observou que os olhos, azuis-escuros, observavam cuidadosamente seu rosto.

— Na realidade, não foi tão ruim — disse. — Provavelmente o ventilador saiu de alinhamento. Colocarão faróis provisórios nos soquetes e endireitarão o cromo. Você poderá partir amanhã cedo. Agora — prosseguiu Bond, tirando a carteira do bolso — isso é terrível para você e eu não tenho dúvida em assumir toda a culpa. Aqui estão cem mil francos, para pagar os prejuízos, suas despesas à noite aqui, telefonemas para amigos e outras coisas. Por favor, aceite e dê o caso por encerrado. Gostaria de ficar aqui e vê-la partir amanhã com tudo em ordem. Mas tenho um encontro esta noite e realmente não posso faltar.

— Não.

A palavra era fria e definida. A moça pôs as mãos atrás das costas e esperou.

— Mas...

Que estaria ela querendo? Chamar a polícia? Acusá-lo de imprudência na direção?

— Também tenho um encontro esta noite. Não posso faltar. Preciso chegar a Genebra. Quer fazer o favor de levar-me até lá? Não é longe. Só uns cento e cinqüenta quilômetros. Podíamos chegar em duas horas naquilo — disse ela, apontando para o D.B.III. — Quer? Por favor.

Havia desesperado tom de urgência em sua vez. Nada de lisonjas, nem ameaças, apenas ardente necessidade.

Pela primeira vez Bond examinou-a como sendo mais que uma moça bonita cuja intenção talvez fosse — eram essas as únicas explicações que Bond encontrara para os fatos — ser apanhada por Goldfinger ou fazer chantagem com ele. Mas ela não parecia capaz de qualquer dessas coisas. Havia muito caráter no rosto, muita sinceridade. E ela não vestia o uniforme de sedutora. Usava uma blusa de pesada seda branca, de corte masculino. Estava aberta no pescoço, mas podia ser abotoada de modo a ficar como um estreito colarinho militar. A blusa tinha mangas largas e compridas presas nos punhos. As unhas da moça não estavam pintadas e a única jóia que usava era um anel de ouro no dedo de noivado (verdadeiro ou falso?). Tinha um cinto de couro preto pespontado, muito largo, com fivela dupla de metal. Erguia-se nas costas de modo a proporcionar um pouco do apoio do corpete de motorista de corrida. Sua saia curta era cinzenta-escura e pregueada. Os sapatos eram sandálias pretas de aparência cara, frescas e confortáveis para dirigir automóvel. O único toque colorido era o lenço cor de rosa, que tirara da cabeça e estava agora pendurado de seu lado junto com os óculos brancos. Tudo parecia muito atraente, mas o conjunto dava a Bond mais a impressão de um equipamento que de roupas de moça. Havia algo ligeiramente masculino e esportivo em todo seu comportamento e aparência. Ela poderia, pensou Bond, ser integrante da equipe inglesa de esqui ou passar muito de seu tempo na Inglaterra caçando ou dando saltos ornamentais.

Embora fosse uma moça muito bonita, era do tipo que deixa sua beleza em paz. Não fizera a menor tentativa de arrumar os cabelos. Em resultado, tinham a aparência que devem ter os cabelos de uma moça — desarrumados, com mechas soltas e uma lista bastante irregular. Proporcionavam o contraste de uma moldura escura, irregular e denteada, à pálida simetria do rosto, cujas principais características eram olhos azuis embaixo de sobrancelhas escuras, uma boca desejável e um ar de determinação e independência que vinha das altas maçãs do rosto e da fina linha do maxilar. Havia em seu corpo o mesmo ar de confiança própria. Expunha seu corpo orgulhosamente — seus belos seios erguidos sem vergonha por baixo da seda apertada. Sua posição, com os pés ligeiramente separados e as mãos atrás das costas, era uma mistura de provocação e desafio.

Todo o quadro parecia dizer: "Pois bem, seu simpático bastardo, não pense que pode tratar-me como uma "mulherzinha". Você me pôs nesta enrascada e juro que vai tirar-me dela! Você pode ser atraente, mas eu tenho de cuidar de minha vida e sei onde quero ir."

Bond considerou o pedido da moça. Até que ponto ela o aborreceria? Quando poderia livrar-se dela e voltar a tratar de seus negócios? Haveria algum risco em matéria de segurança? Compensando as desvantagens, havia sua curiosidade a respeito da moça e do que ela pretendia fazer, a lembrança da fábula que tecera em torno dela e que agora dava seu primeiro passo rumo à concretização e, finalmente, a história da donzela desamparada — qualquer pedido de auxílio de uma mulher.

Bond disse laconicamente:

— Terei prazer em levá-la a Genebra.

Depois abriu o porta-malas do Aston Martin e acrescentou :

— Ponha suas coisas aí dentro. Enquanto vou cuidar do negócio da oficina, aqui está algum dinheiro. Por favor, compre um lanche para nós. Para você, o que quiser. Para mim, quinze centímetros de salsichas de Lyon, um filão de pão, manteiga e meio litro de Mâcon com a rolha tirada.

Seus olhos encontraram-se e trocaram um jorro de sinais masculinos-femininos e senhor-escrava. A moça pegou o dinheiro.

— Obrigada. Comprarei a mesma coisa para mim — disse, enquanto se encaminhava para o porta-malas do Triumph e a abria. — Não, não se incomode. Eu posso cuidar disto.

Ergueu uma sacola de golfe com o zíper fechado e uma mala pequena, de aparência cara. Levou-a até o Aston Martin e, recusando o auxílio de Bond, colocou-as ao lado da mala dele. Observou-o fechar o porta-malas do carro e depois voltou até o Triumph. Apanhou uma larga bolsa de couro preto, com tiras de prender no ombro.

— Que nome e endereço devo dar? — perguntou Bond.

— Quê?

Bond repetiu a pergunta, imaginando se ela iria mentir quanto ao nome, quanto ao endereço ou quanto a ambos.

— Eu vou ficar andando de um lado para outro — respondeu ela, acrescentando sem hesitação: — É melhor indicar o Bergues, em Genebra. O nome é Soames. Srta. Tilly Soames.

Em seguida entrou no açougue.

Um quarto de hora mais tarde estavam a caminho.

A moça sentava-se com o corpo reto e conservava os olhos fitos na estrada. O zumbido do Homer estava fraco. O Rolls devia ter ganho oitenta quilômetros. Bond aumentou a velocidade. Passaram rapidamente por Bourg e atravessaram o rio em Pont d'Ain. Agora estavam nos sopés do Jura e havia as curvas em "S" da N84. Bond entrou nelas como se estivesse competindo nas Provas Alpinas. Depois de ser sido jogada sobre ele duas vezes, a moça segurou com a mão o puxador do painel e passou a acompanhar o movimento do carro como se fosse um motorista sobressalente. Uma vez, depois de uma derrapada particularmente forte, que quase fez o carro sair da pista, Bond olhou de relance o perfil da moça. Seus lábios estavam entreabertos e suas narinas ligeiramente dilatadas. Os olhos estavam brilhantes. Ela sentia prazer.

Chegaram ao alto do passo e depois desceram em direção à fronteira suíça. Agora o Homer emitia um assobio firme. Bond pensou: Preciso ir devagar, senão os alcançarei na Alfândega. Pôs a mão embaixo do painel e abaixou o som. Estacionou à margem da estrada. Sentados no carro, fizeram um delicado, mas quase silencioso piquenique, sem que qualquer dos dois tentasse puxar conversa. Ambos pareciam estar pensando em outras coisas. Depois de dez minutos, Bond pôs-se novamente em marcha. Sentou-se descansadamente, dirigindo com sossego pela estrada sinuosa que descia entre pinheiros novos e sussurrantes.

— Que barulho é esse? — perguntou a moça.

— Zumbido do magneto. Fica pior quando corro. Começou em Orleans. Preciso mandar consertar hoje à noite.

Ela pareceu contentar-se com essa confusa explicação. Perguntou hesitantemente:

— Para onde vai? Espero não tê-lo feito sair muito de seu caminho.

— Absolutamente — respondeu Bond, em tom amistoso. — Para dizer a verdade, eu também vou a Genebra. Mas talvez não passe a noite lá. Talvez precise continuar. Depende de meu encontro. Quanto tempo vai ficar lá?

— Não sei. Vou jogar golfe. Há o Campeonato Aberto para Mulheres, em Divonne. Não sou dessa classe realmente, mas achei que seria bom para mim tentar. Depois vou jogar em alguns dos outros campos.

Bastante razoável. Não havia razão para que não fosse verdade. Mas Bond tinha certeza de que não era toda a verdade. Perguntou:

— Joga muito golfe? Onde joga na Inglaterra?

— Bastante. Em Temple.

Fora uma pergunta óbvia. A resposta teria sido verdadeira ou aquele seria apenas o primeiro campo de golfe que lhe ocorrera?

— Vive perto de lá?

— Tenho uma tia que mora em Henley. Que vai fazer na Suíça? Férias?

— Negócios. Importação e exportação.

— Oh.

Bond sorriu consigo mesmo. Era uma conversa teatral. As vozes tinham a cortês entonação do palco. Podia imaginar a cena, adorada pelo teatro inglês — a sala de visitas, o sol sobre as malvas-rosas do lado de fora da porta envidraçada, o par sentado no sofá, bem na beirada, o chá sendo servido. "Com açúcar?"

Chegaram aos contrafortes da montanha. À frente, havia um comprido trecho de estrada reta e, à distância, o pequeno grupo de edifícios da Alfândega Francesa.

A moça não deu a Bond oportunidade de olhar mesmo de relance seu passaporte. Logo que o carro parou, disse que precisava arrumar qualquer coisa e desapareceu no reservado de senhoras. Bond passou pelo Controle e estava lidando com o tríptico quando ela reapareceu, já com o passaporte carimbado. Na Alfândega Suíça, ela preferiu a desculpa de que precisava ir buscar alguma coisa em sua mala. Bond não teve tempo de ficar por perto para pagar seu blefe.

Bond entrou velozmente em Genebra e parou diante da imponente entrada do Bergues. O baggagiste tomou a mala e os tacos de golfe da moça. Os dois ficaram em pé nos degraus da escada. Ela estendeu a mão.

— Adeus — disse, sem que houvesse ternura nos francos olhos azuis. — E obrigada. Você guia maravilhosamente — acrescentou com um sorriso. — Estou surpreendida por ter engatado a marcha errada em Mâcon. Bond deu de ombros.

— Isso não acontece muitas vezes. Estou contente por tê-lo feito. Se conseguir terminar meu negócio, talvez pudéssemos encontrar-nos de novo.

— Seria ótimo.

O tom da voz dizia que não seria. A moça virou-se e entrou pelas portas giratórias.

Bond desceu correndo para o carro. Ela que fosse para o inferno! Agora era localizar Goldfinger. Depois ir ao pequeno escritório no Quai Wilson. Sintonizou o Homer e esperou uns dois minutos. Goldfinger estava perto, mas rodando. Poderia estar avançando pela margem direita ou pela margem esquerda do lago. Pelo tom do Homer, estava pelo menos quilômetro e meio fora da cidade. De que lado? Do lado esquerdo, na direção de Lausanne? Ou do lado direito, na direção de Evian? O D.B.III já estava no caminho da esquerda. Bond decidiu seguir nessa direção. Pôs-se em marcha.

Bond avistou a silhueta amarela pouco antes de Coppet, a minúscula aldeia à beira do lago que Madame de Stäel tornou famosa. Escondeu-se atrás de um caminhão. Em seu reconhecimento seguinte, o Rolls havia desaparecido. Bond continuou guiando, olhando para a esquerda. Na entrada da aldeia, grandes e sólidos portões de ferro estavam-se fechando em uma alta parede. Havia poeira no ar. Acima da parede via-se modesta tabuleta. Em desbotadas letras amarelas, sobre fundo azul, estava escrito Enterprises auric a. g. A raposa havia entrado na toca.

Bond prosseguiu até encontrar uma rua à esquerda. Seguiu por ela até uma alameda que, através dos vinhedos, levava às matas por trás de Coppet e ao castelo de Madame de Stäel. Bond parou entre as árvores. Agora devia estar diretamente acima das Enterprises Auric. Apanhou seu binóculo, deixou o carro e seguiu por uma trilha que descia em direção à aldeia. Logo encontrou, à direita, uma grade de ferro encimada por pontas aguçadas. Havia arame farpado enrolado por cima da grade. Descendo pelo monte, cem metros abaixo, a grade encontrava-se com um alto muro de pedra.

Bond voltou vagarosamente pela trilha, procurando a entrada secreta que as crianças de Coppet deveriam ter feito para chegar até os castanheiros. Encontrou-a — duas barras da grade alargadas de modo a permitir a passagem de um corpo pequeno. Bond firmou-se com todo seu peso sobre a barra inferior, alargou a brecha mais alguns centímetros e introduziu-se por ela.

Caminhou cautelosamente através das árvores, vigiando cada passo para não pisar em galhos secos. As árvores começaram a rarear. Via de relance através delas um amontoado de edifícios baixos por trás de uma pequena residência. Bond escolheu o grosso tronco de um abeto e colocou-se atrás dele. Agora via os edifícios bem embaixo. O mais próximo ficava a uns cem metros. Havia um pátio descoberto, no meio do qual estava o empoeirado Fantasma Prateado.

Bond apanhou o binóculo e examinou tudo minuciosamente.

A casa era um bem proporcionado bloco quadrado de velhos tijolos vermelhos com telhado de lousa. Tinha dois andares e um sótão. Provavelmente continha quatro dormitórios e duas salas principais. As paredes eram cobertas em parte por glicínias muito velhas inteiramente floridas. Era uma casa muito atraente. Em sua imaginação, Bond podia ver os lambris pintados de branco por dentro. Sentiu o cheiro doce de bolor dos dormitórios. A porta do fundo dava para o largo pátio pavimentado no qual estava o Rolls. O pátio era aberto do lado de Bond, mas fechado dos outros dois lados por barracões térreos de ferro corrugado. Uma alta chaminé de zinco erguia-se no lugar onde se encontravam os dois barracões. A chaminé era encimada por um chapéu de zinco. Por cima do chapéu de zinco via-se a boca quadrada e giratória de algo que pareceu a Bond semelhante à antena de radar Decca que se avista na ponte da maioria dos navios. O aparelho girava sem parar. Bond não podia imaginar para que serviria aquilo no teto dessa pequena fábrica entre as árvores.

De repente, o silêncio e imobilidade da pacífica cena foram rompidos. Foi como se Bond tivesse posto uma moeda na fenda de um diorama no cais de Brighton. Em um lugar qualquer, um relógio bateu cinco horas com som metálico. A esse sinal, a porta do fundo da casa abriu-se e Goldfinger saiu, ainda vestido com seu guarda-pó de linho branco, mas sem o capacete. Seguia-o um homenzinho indefinível e obsequioso com um bigode como escova de dentes e óculos de aros de chifre. Goldfinger parecia satisfeito. Chegou até o Rolls e bateu na tampa do motor. O outro homem riu cortesmente. Tirou um assobio do bolso do colete e soprou-o. Uma porta no barracão da direita abriu-se e quatro homens de macacão azul saíram e dirigiram-se para o carro. Pela porta de onde haviam saído vinha um zumbido. Um pesado motor começou a funcionar e firmou-se na pulsação rítmica que Bond se lembrava de ter ouvido em Reculver.

Os quatro homens dispuseram-se ao redor do carro. A uma ordem do homenzinho, que presumivelmente era o capataz, começaram a desmontar o automóvel.

Depois de terem tirado as quatro portas de suas dobradiças, removido a tampa do motor e começado a trabalhar nos rebites de um dos pára-lamas, tornou-se evidente que estavam retirando a blindagem do carro.

Quase no momento em que Bond chegou a essa conclusão, a figura escura de Faz-tudo, com seu chapéu-de-côco, apareceu na porta do fundo da casa e produziu algum som para chamar a atenção de Goldfinger. Depois de dizer alguma coisa ao capataz, Goldfinger entrou na casa e deixou os trabalhadores sozinhos.

Era tempo de Bond pôr-se a andar. Correu cuidadosamente os olhos em roda pela última vez a fim de fixar na memória a geografia e recuou através das árvores.

 

— Eu sou da Universal Export.

— Oh, sim?

Por trás da mesa havia uma reprodução do retrato da Rainha por Annigoni. Nas outras paredes viam-se anúncios de tratores Ferguson e outras máquinas agrícolas. Pela janela aberta entrava o barulho do tráfego ao longo do Quai Wilson. Um barco apitou. Bond olhou pela janela e observou-o passar a certa distância. Deixava uma fascinante esteira no impecável espelho vespertino do lago. Bond voltou a olhar para os olhos delicadamente inquisidores no rosto afável, neutro e comercial.

— Esperávamos fazer negócio com os senhores.

— Que espécie de negócio?

— Negócio importante.

O rosto do homem abriu-se em um sorriso. Disse alegremente:

— É o 007, não é? Pensei tê-lo reconhecido. Bem, que posso fazer por você?

A voz tornou-se cautelosa, enquanto o homem prosseguia:

— Mas há uma coisa. É melhor dizer depressa e dar o fora. O negócio tem estado muito quente desde o caso Dumont. Estão-me vigiando — os agentes locais e os da Terra Vermelha. Tudo muito pacífico, naturalmente, mas você não vai querer que eles fiquem farejando ao seu redor.

— Já esperava que fosse assim. É só rotina. Tome — disse Bond, desabotoando a camisa e tirando a pesada barra de ouro. — Mande isto de volta, sim? E transmita isto quando tiver oportunidade.

O homem puxou um bloco e escreveu em taquigrafia o que Bond lhe ditou.

Depois de terminar, guardou o bloco no bolso.

— Bem, bem! Negócio perigoso. Meu trabalho de rotina é à meia-noite. Quanto a isto — disse, apontando para o ouro — pode ir para Berna a fim de ser posto na mala. Mais alguma coisa?

— Já ouviu falar nas Enterprises Auric, de Coppet? Sabe o que fazem?

— Sei o que toda firma de engenharia da região sabe. Tenho de saber. No ano passado, tentei vender-lhes alguns rebitadores manuais. Fabricam móveis de metal. Material muito bom. Vendem um pouco para as ferrovias suíças e para companhias de aviação.

— Sabe que companhias?

O homem encolheu os ombros.

— Ouvi dizer que fizeram todo o trabalho para a Mecca, a grande companhia que mantém linhas para a Índia. Seu terminal é em Genebra. É grande concorrente da All-India. A Mecca é de propriedade particular. Para falar a verdade, ouvi dizer que a Auric & Co. tem algum dinheiro investido nela. Não é admirar que tenham obtido o contrato para fornecimento dos bancos.

Um lento e feroz sorriso estampou-se no rosto de Bond. Levantou-se e estendeu a mão, dizendo:

— Você pode não saber, mas acaba de fazer com que todo um quebra-cabeça se resolvesse em um minuto. Muito obrigado. Desejo-lhe muita sorte no negócio de tratores. Espero que nos encontremos de novo algum dia.

Na rua, Bond tomou rapidamente seu carro e seguiu ao longo do cais para o Bergues. Então esse era o quadro! Durante dois dias perseguira um Fantasma Prateado através da Europa. Era um Fantasma Prateado blindado. Vira o último pedaço da blindagem ser rebitado em Kent e toda a blindagem ser retirada em Coppet. Aquelas chapas já estariam nas fornalhas em Coppet, prontas para serem transformadas em setenta poltronas destinadas a um Constellation da Mecca. Dentro de alguns dias, na Índia, as poltronas seriam retiradas do avião e substituídas por outras de alumínio. E Goldfinger teria ganho o que? Meio milhão de libras? Um milhão?

O Fantasma Prateado absolutamente não era de prata. Era um Fantasma Dourado — em todas as duas toneladas de sua carroçaria. Ouro branco maciço, de dezoito quilates.

 

                             Coisas que pulsam dentro da noite

James Bond registrou-se no Hotel des Bergues, tomou um banho e trocou de roupa. Pesou a Walther PPK na mão e ficou pensando se a levaria ou a deixaria. Resolveu deixá-la. Não tinha a intenção de ser visto quando voltasse às Enterprises Auric. Se, por uma terrível falta de sorte, fosse visto, entrar em luta estragaria tudo. Tinha sua história, uma história fraquinha, mas que pelo menos não revelaria seu disfarce. Tinha de confiar nela. Bond escolheu, porém, um par especial de sapatos, bem mais pesado do que se poderia esperar com seu físico.

Na portaria, perguntou se a Srta. Soames estava. Não ficou surpreendido quando o recepcionista disse que nenhuma Srta. Soames se hospedara no hotel. A única dúvida era se deixara o hotel depois de Bond ter-se afastado ou se registrara sob outro nome.

Bond atravessou a bela Pont du Mont Blanc e rodou pelo cais brilhantemente iluminado até o Bavária, modesta brasserie alsaciana que fora ponto de encontro dos grandes nos dias da Liga das Nações. Sentou-se ao lado da janela e bebeu Enzian acompanhado de Löwenbrau clara. Pensou primeiro em Goldfinger. Não havia mais dúvida sobre o que ele fazia. Financiava uma rede de espionagem, provavelmente do smersh, e ganhava fortunas contrabandeando ouro para a Índia, onde podia obter o mais alto ágio. Depois da perda de seu barco pesqueiro Brixham, imaginara esse novo meio. Em primeiro lugar, espalhara que tinha um carro blindado. Isso seria considerado apenas excentricidade. Muitos construtores ingleses de carroçaria exportavam carros assim. Antigamente iam para rajás da Índia; agora iam para xeques enriquecidos com petróleo e presidentes sul-americanos. Goldfinger escolhera um Fantasma Prateado porque, com as modificações que nele introduzira, o chassi era suficientemente forte, o rebitamento já era uma característica da carroçaria e havia a maior área possível de chapas de metal. Talvez Goldfinger tivesse primeiro ido com ele ao exterior uma ou duas vezes para que Ferryfield ficasse acostumado. Depois, na viagem seguinte, tirara as chapas de blindagem em sua oficina de Reculver. Substituíra-as por ouro branco de dezoito quilates. Sua liga de níquel e prata era suficientemente resistente. A cor do metal não o denunciaria se sofresse uma colisão ou raspasse a carroçaria. Então era só voar para a Suíça e ir até a pequena fábrica. Os trabalhadores teriam sido escolhidos com tanto cuidado quanto os de Reculver. Retirariam as chapas e as modelariam como bancos de avião, que seriam estofados e instalados em aviões da companhia Mecca — administrada presumivelmente por um testa-de-ferro de Goldfinger que receberia uma porcentagem de cada "remessa de ouro". Nessas viagens — uma, duas, três por ano? — o avião só aceitaria carga leve e poucos passageiros. Em Bombaim ou Calcutá, o avião precisaria de uma revisão e reequipamento. Iria para o hangar da Mecca, onde receberia bancos novos. Os velhos, os de ouro, iriam para corretores de ouro. Goldfinger teria seus esterlinos creditados em seu nome em Nassau ou outro lugar de sua escolha. Assim, obteria seus cem ou duzentos por cento de lucro e poderia reiniciar todo o ciclo, desde as lojas "Compramos Ouro Velho" na Grã-Bretanha até Reculver, Genebra e Bombaim.

Sim, pensou Bond, fitando os olhos através do cintilante lago iluminado pelas estrelas, devia ser isso — um excelente circuito de contrabando com o mínimo de risco e o máximo de lucro. Como Goldfinger devia sorrir quando apertava a velha buzina em forma de cobra e passava ao lado dos policiais de três países, cheios de admiração! Ele sem dúvida parecia ter encontrado a solução — a pedra filosofal, o dedo de ouro! Se não fosse um homem tão desagradável, se não estivesse fazendo isso tudo para manter o dedo do smersh no gatilho, Bond teria sentido admiração por esse monumental trapaceiro cujas operações eram tão grandes que chegavam a preocupar o próprio Banco da Inglaterra. Como estavam as coisas, Bond só desejava destruir Goldfinger, apreender seu ouro, colocá-lo atrás das grades. A sede de ouro de Goldfinger era forte demais, impiedosa demais, perigosa demais para andar à solta pelo mundo.

Eram oito horas. A Enzian, aguardente destilada de genciana que é responsável pelo alcoolismo crônico da Suíça, estava começando a aquecer o estômago de Bond e derreter suas tensões. Pediu outra dose dupla e com ela um chucrute e uma garrafa de Fondant.

E a moça, aquele bonito e autoritário curinga que entrara repentinamente na parada? Que diabo estaria ela tramando? Que havia de verdade em sua história sobre golfe? Bond levantou-se e foi à cabina telefônica no fundo da sala. Ligou para o "Journal de Genève" e pediu para falar com o redator esportivo. O homem foi muito atencioso, mas ficou surpreendido com a pergunta de Bond. Não. Os vários campeonatos eram naturalmente disputados no verão, depois de encerrados os outros programas nacionais e quando era possível atrair bom número de estrangeiros para a Suíça. O mesmo acontecia em todos os outros países da Europa. Gostavam de atrair o maior número possível de jogadores britânicos e americanos. Isso aumentava a renda da bilheteria. "Pas de quoi, monsieur."

Bond voltou à sua mesa e pôs-se a jantar. Aquilo estava resolvido. Fosse ela quem fosse, era amadora. Nenhum profissional usaria um disfarce capaz de ser desmentido por um telefonema. Bond tivera no fundo da cabeça — relutantemente, porque gostara da moça e se entusiasmara por ela — a idéia de que ela poderia ser agente do smersh enviada para vigiar Goldfinger, ele próprio ou ambos. Ela tinha algumas qualidades de agente secreto, a independência, a força de caráter, a capacidade de andar sozinha. Mas aquela idéia estava fora de cogitação. Ela não tinha prática.

Bond pediu uma fatia de gruyère, pão de centeio e café. Não, ela era um enigma. Bond só rezava para que não tivesse algum plano particular, no qual ele ou Goldfinger estivesse envolvido, pois isso complicaria toda sua operação.

E seu trabalho já estava quase terminado! Agora só precisava ver com seus próprios olhos a prova de que era verdadeira a história que tecera em torno de Goldfinger e do Rolls. Uma olhada nas oficinas de Coppet — um grão de poeira de ouro branco — e poderia ir a Berna naquela mesma noite para entrar em comunicação com a autoridade de plantão através do teletipo da embaixada. Depois, silenciosamente, discretamente, o Banco da Inglaterra congelaria as contas de Goldfinger no mundo inteiro e talvez, já no dia seguinte, o Setor Especial da Polícia Suíça estivesse batendo na porta das Enterprises Auric. Seguir-se-ia a extradição, Goldfinger iria para Brixton, haveria um processo discreto e bastante complicado em um dos tribunais de contrabando, como Maidstone ou Lewes. Goldfinger pegaria alguns anos, sua naturalização seria cancelada e seu ouro, ilegalmente exportado, voltaria aos poucos para os cofres nos subterrâneos do Banco da Inglaterra. O smersh rangeria seus dentes manchados de sangue e juntaria outra página ao grosso zapiska de Bond.

Era tempo de partir para a última etapa. Bond pagou a conta, saiu e tomou seu carro. Atravessou o Rodano e rodou vagarosamente ao longo do cintilante quai através do tráfego noturno. Era uma noite mediana para seu propósito. Havia um claro quarto crescente para ajudá-lo a ver, mas nem um sopro de vento que pudesse revelar sua aproximação da mata em direção à fábrica. Bem, não havia pressa. Provavelmente trabalhariam a noite toda. Teria de fazer tudo com muita calma e cuidado. A geografia do lugar e o caminho que traçara para si próprio desfilavam diante dos olhos de Bond como um filme, enquanto o piloto automático que existe dentro de todo bom motorista conduzia o carro pela larga rodovia branca à margem do lago adormecido.

Bond seguiu o mesmo caminho da tarde anterior. Quando saiu da estrada principal, deixou acesas apenas as lanternas laterais. Conduziu o carro para uma clareira na mata e desligou o motor. Ficou sentado escutando. No pesado silêncio ouvia-se apenas o suave estalar do metal quente embaixo da tampa do motor e o apressado tique-taque do relógio no painel. Bond saiu do carro, fechou a porta silenciosamente e desceu devagar a pequena trilha entre as árvores.

Agora podia ouvir o pulsar baixo e pesado do gerador... tum-tum... tum-tum... tum-tum... Parecia um ruído vigilante, quase ameaçador. Bond chegou à brecha entre as barras de ferro, introduziu-se por ela e parou, apurando seus sentidos para frente através das árvores manchadas pelo luar.

Tum-tum... tum-tum... tum-tum. Os grandes sopros metálicos estavam em cima dela, dentro de seu cérebro. Bond sentiu nas virilhas o arrepiante comichão que data da primeira vez que a gente brinca de esconde-esconde no escuro. Sorriu consigo mesmo ao perceber o sinal animal de perigo. Que corda primitiva fora ferida por esse inocente barulho de motor que vinha da alta chaminé de zinco? O sopro de um dinossauro em sua caverna? Bond retesou os músculos e avançou pé ante pé, afastando cuidadosamente de sua frente pequenos galhos, colocando cada pé no chão tão cautelosamente como se estivesse andando em um campo de minas.

As árvores estavam rareando. Logo chegaria ao grande tronco atrás do qual se escondera antes. Procurou-o com os olhos e ficou gelado, com a pulsação disparada. Embaixo do tronco de sua árvore, estendido no chão, havia um corpo.

Bond abriu bem a boca, respirou fundo e soltou o ar vagarosamente para livrar-se da tensão. Silenciosamente enxugou nas calças as palmas suadas das mãos. Deixou-se cair devagar sobre as mãos e os joelhos, olhando para a frente, com os olhos dilatados como lentes de câmara fotográfica.

O corpo embaixo da árvore moveu-se, mudando cautelosamente de posição. Um sopro de vento sussurrou nas copas das árvores. Os raios de luar dançaram rapidamente sobre o corpo e depois se imobilizaram. Pôde vislumbrar bastos cabelos pretos, um suéter preto, calças pretas estreitas. E mais uma coisa: um brilho de metal no chão. Começava embaixo dos cabelos pretos e entrava na grama além dos troncos das árvores.

Lentamente, Bond curvou a cabeça e olhou para o chão entre suas mãos estendidas. Era a moça, Tilly. Estava vigiando os edifícios embaixo. Tinha um fuzil — um fuzil que devia ter ficado escondido entre os inocentes tacos de golfe — pronto para disparar naquela direção. Maldita cadelinha estúpida!

Bond acalmou-se lentamente. Não importava quem era ela ou que estava tramando. Mediu a distância, planejando cada movimento — a trajetória do salto final, a mão esquerda em direção ao pescoço dela e a direita em direção à arma. Agora!

O peito de Bond escorregou sobre a saliência das nádegas e caiu com uma batida sobre as costas da moça. A batida fez com que ela soltasse o ar dos pulmões com um gemido baixo. Os dedos da mão esquerda de Bond voaram para a garganta e procuraram a artéria carótida. Sua mão direita já estava na coronha do fuzil. Estendeu os dedos, viu que a trava estava presa e jogou o fuzil para um lado.

Bond tirou o peso de seu peito das costas da moça e afastou os dedos da garganta. Apertou a mão suavemente sobre a boca da moça. Embaixo de si, sentiu o corpo arquejar, com os pulmões lutando para respirar. Ela ainda estava sem sentidos. Cuidadosamente Bond juntou as duas mãos da moça nas costas e segurou-as com sua mão direita. Embaixo de seu corpo, as nádegas começaram a contorcer-se. As pernas moveram-se com força. Bond prendeu as pernas ao chão com seu estômago e suas coxas, notando os fortes músculos enfeixados embaixo de sua barriga. Agora a respiração saía raspando através de seus dedos. Dentes morderam sua mão. Bond inclinou-se cuidadosamente para frente sobre a moça. Enfiou a boca entre seus cabelos até alcançar a orelha. Sussurrou urgentemente:

— Tilly, pelo amor de Deus! Fique quieta! Sou eu, Bond.

Sou amigo. Isto é vital. Você não sabe do que se trata. Quer ficar quieta e ouvir?

Os dentes pararam de morder seus dedos. O corpo relaxou-se e ficou mole embaixo do seu. Depois de algum tempo, a cabeça acenou uma vez.

Bond saiu de cima da moça. Ficou ao lado dela, segurando ainda as mãos presas atrás das costas. Sussurrou:

— Tome fôlego. Mas diga-me, você estava atrás de Goldfinger?

O rosto pálido desviou-se de Bond. Falando para o chão, a moça sussurrou ferozmente:

— Eu ia matá-lo.

Alguma moça que Goldfinger seduzira. Bond soltou-lhe as mãos. A moça puxou as mãos e descansou a cabeça sobre elas. Todo seu corpo estremeceu de esgotamento e distensão dos nervos. Os ombros começaram a sacudir molemente. Bond estendeu uma mão e alisou seus cabelos, suavemente, ritmicamente. Seus olhos correram cuidadosamente pela pacífica cena lá embaixo, que não sofrerá alteração. Não sofrerá alteração? Havia algo. A antena de radar no chapéu da chaminé. Não estava mais girando. Havia parado com sua boca oblonga apontando na direção deles. O fato não tinha significação para Bond. Agora a moça não estava mais chorando. Bond chegou a boca perto da orelha dela. Seus cabelos cheiravam a jasmim. Sussurrou:

— Não se preocupe. Eu também estou atrás dele. E vou fazer-lhe mais mal do que você poderia ter feito. Mandaram--me de Londres atrás dele. Querem pegá-lo. Que lhe fez ele?

Ela respondeu em um sussurro, quase falando consigo mesma:

— Matou minha irmã. Você a conheceu... Jill Masterton.

— Que aconteceu? — perguntou Bond ferozmente.

— Ele arranja uma mulher por mês. Jill contou-me isto logo que assumiu o emprego. Ele as hipnotiza. Depois... depois as pinta de ouro.

— Cristo! Por quê?

— Não sei. Jill contou-me que ele é louco por ouro. Acho que ele pensa... que está possuindo o ouro. Você compreende... casando-se com ele. Manda um empregado coreano pintá-las. O homem tem de deixar a espinha dorsal sem pintar. Jill não conseguiu explicar porque. Eu descobri que é para elas não morrerem. Se seus corpos fossem inteiramente cobertos de tinta dourada, os poros da pele não poderiam respirar. Nesse caso, elas morreriam. Depois, são lavadas pelo coreano com resina ou coisa semelhante. Goldfinger dá-lhes mil dólares e manda-as embora.

Bond imaginou o pavoroso Faz-tudo com sua lata de tinta dourada, os olhos de Goldfinger cobiçosamente fitos na estátua cintilante, a furiosa posse.

— Que aconteceu a Jill?

— Ela me chamou por cabograma. Estava na enfermaria de emergência de um hospital em Miami. Goldfinger pusera-a para fora. Estava morrendo. Os médicos não sabiam o que era. Ela me contou o que lhe acontecera — o que ele lhe fizera. Morreu na mesma noite.

A voz da moça era seca... indiferente.

— Quando voltei à Inglaterra, procurei Train, o especialista da pele. Ele me falou nesse negócio sobre os poros da pele. Acontecera com uma moça de cabaré que posara como estátua prateada. Mostrou-me pormenores do caso e da autópsia. Então fiquei sabendo o que acontecera a Jill. Goldfinger mandara pintá-la inteira. Assassinara-a. Deve ter feito isso como vingança por ela... por ela ter andado com você.

Houve uma pausa. Depois a moça continuou apàticamente:

— Ela me falou sobre você. Ela... ela gostava de você. Disse-me que, se um dia o encontrasse, devia entregar-lhe este anel.

Bond fechou bem os olhos, resistindo a uma onda de náusea mental. Mais morte! Mais sangue em suas mãos. Desta vez em resultado de um gesto descuidado, uma bravata que motivara a vinte e quatro horas de êxtase com uma bela garota, despertara seu capricho e, no final, um pouco mais que seu capricho. E esse pequeno golpe contra o ego de Goldfinger fora devolvido por ele com força mil vezes, um milhão de vezes maior. "Ela deixou meu emprego" — as palavras prosaicas ditas sob o sol em Sandwich dois dias antes. Como Goldfinger devia ter sentido prazer em dizer isso! As unhas de Bond enterraram-se nas palmas das mãos. Por Deus, faria Goldfinger pagar por esse crime ainda que fosse o último ato de sua vida. Quanto a si próprio... ? Bond conhecia a resposta. Para esta morte não podia dar a desculpa de que era parte de seu serviço. Esta morte viveria com ele.

A moça estava puxando o dedo — puxando o anel de Claddagh, as mãos entrelaçadas ao redor do coração dourado. Pôs a junta do dedo na boca. O anel saiu. Ergueu-o para que Bond o apanhasse. A minúscula argola de ouro, em silhueta contra o tronco da árvore, brilhava ao luar.

O barulho no ouvido de Bond foi algo entre um sibilo e um assobio agudo. Houve uma batida seca, com um som penetrante. As plumas de alumínio da flecha de aço tremiam como as asas de um beija-flor diante dos olhos de Bond. A haste da flecha endireitou-se. O anel de ouro escorregou tilintando pela haste até encostar na casca da árvore.

Vagarosamente, quase sem curiosidade, Bond virou a cabeça.

A dez metros de distância — meio ao luar e meio na sombra — a figura escura de cabeça de melão estava agachada, com as pernas bem abertas na posição de judô. O braço esquerdo, estendido para a frente contra o cintilante semicírculo do arco, estava reto como o de um esgrimista. A mão direita, segurando as plumas da segunda flecha, encostava-se rígida à face direita. Atrás da cabeça, o teso cotovelo direito projetava-se para trás em gelado suspense. A ponta prateada da segunda flecha voltava-se exatamente para os dois pálidos perfis.

— Não se mova — segredou Bond. Em voz alta, disse: — Alô, Faz-tudo. Tiro infernalmente bom.

Faz-tudo sacudiu a ponta da flecha para cima. Bond levantou-se, protegendo a moça com seu corpo. Disse baixinho pelo canto da boca:

— Ele não deve ver o fuzil.

Voltando-se para Faz-tudo, falou com voz indiferente e pacífica:

— Bela propriedade tem o Sr. Goldfinger ali. Gostaria de falar com ele qualquer hora. Hoje talvez já seja um pouco tarde. Você poderia dizer-lhe que o procurarei amanhã.

Bond virou-se novamente para a moça.

— Vamos, querida. Já demos nosso passeio pela meta. É hora de voltarmos para o hotel.

Deu um passo na direção oposta a Faz-tudo, rumo a grade de ferro.

— Orguem — disse Faz-tudo, sacudindo a cabeça para o lado e para baixo, na direção da casa.

— Oh, acha que ele gostaria de ver-nos agora? Muito bem. Será que não vamos incomodá-lo? Vamos, querida.

Bond tomou a frente, caminhando para a esquerda da árvore, para longe do fuzil que estava caído na grama, à sombra.

Enquanto desciam vagarosamente a encosta, Bond falava baixinho com a moça, dando-lhe instruções:

— Você é minha amiguinha. Trouxe-a da Inglaterra. Mostre-se surpreendida e interessada por nossa pequena aventura. Estamos em situação difícil. Não tente fazer coisa alguma.

Sacudiu a cabeça para trás e acrescentou:

— Esse homem é um assassino. A moça respondeu furiosamente:

— Se você não tivesse interferido.

— O mesmo se aplica a você — disse Bond rispidamente, voltando atrás logo em seguida: — Desculpe-me, Tilly. Não quis dizer isso. Mas acho que você não se teria saído bem.

— Eu tinha meus planos. À meia-noite já estaria do outro lado da fronteira.

Bond não respondeu. Seu olhar fora atraído por alguma coisa. No topo da alta chaminé, a boca oblonga da coisa semelhante a radar estava girando de novo. Fora aquilo que os localizara — que os ouvira. Devia ser alguma espécie de detector de som. Aquele homem conhecia todos os truques! Bond não pretendera subestimar Goldfinger. Teria ele conseguido apanhá-lo — decisivamente? Talvez, se estivesse com sua arma...? Não. Bond sabia que mesmo a rapidez com que puxava a arma não teria vencido o coreano. Não o teria vencido nesse momento. Havia algo de mortalmente perigoso nesse homem. Estivesse Bond armado ou desarmado, seria sempre um homem lutando contra um tanque.

Chegaram ao pátio. Imediatamente a porta do fundo da casa se abriu. Dois outros coreanos, que talvez fossem os criados de Reculver, saíram correndo em direção a eles através do quente jorro de luz elétrica. Tinham nas mãos ameaçadores bastões polidos.

— Parem! — disse um deles.

Os dois homens tinham o sorriso selvagem e vazio que elementos da Estação J, depois de estar em campos de prisioneiros japoneses, haviam descrito a Bond.

— Nós revistar... Não procurar encrenca senão...

O homem que falara cortou o ar com uma assobiante lambada de seu bastão, ao mesmo tempo que gritava:

— Mãos ao alto!

Bond ergueu as mãos vagarosamente. Recomendou à moça:

— Não reaja... façam o que fizerem.

Faz-tudo avançou e ficou parado, ameaçadoramente, observando a revista. A revista foi completada. Bond observava friamente as mãos que corriam pelo corpo da moça e os rostos sorridentes.

— Okay. Vamos!

Foram empurrados através de uma porta e ao longo de um corredor calçado de pedras até o estreito hall de entrada da casa. A casa tinha o cheiro que Bond imaginara: bolorento, fragrante e estivai. Havia portas pintadas de branco. Faz-tudo bateu em uma delas.

— Quem é?

Faz-tudo abriu a porta. Foram empurrados para dentro.

Goldfinger estava sentado a uma grande mesa, coberta de papéis de aparência importante cuidadosamente arrumados. Dos dois lados da mesa havia armários de arquivo de metal cinzento. Ao lado da mesa, ao alcance da mão de Goldfinger, via-se um aparelho de rádio de ondas curtas sobre uma mesa baixa. Havia um teclado de operador e uma máquina que tiquetaqueava sem parar e parecia um barógrafo. Bond calculou que isso tinha alguma relação com o detector que os percebera.

Goldfinger vestia sua jaqueta de veludo roxo sobre uma camisa de seda branca de gola aberta. A gola aberta deixava ver um tufo de cabelos alaranjados no peito. Goldfinger sentava-se muito ereto em uma cadeira de encosto alto. Mal olhou para a moça. Os grandes olhos azuis brilhantes estavam fixos em Bond. Não demonstravam surpresa. Não tinham expressão, salvo uma dureza penetrante.

Bond começou a esbravejar:

— Escute aqui, Goldfinger. Que diabo significa isto tudo? Você pôs a polícia atrás de mim por causa daqueles dez mil dólares e eu saí em suas pegadas com esta minha amiguinha, Srta. Soames. Vim descobrir que diabo você pretendeu com aquilo. Pulamos a grade... sei que é invasão de domicílio, mas eu desejava encontrá-lo antes que se mudasse para outro lugar. Depois este seu macaco apareceu e quase nos matou com arco e flecha. Dois outros de seus malditos coreanos seguraram-nos e revistaram-nos. Que está acontecendo? Se não puder dar-me uma resposta cortês e cheia de desculpas, porei a polícia atrás de você.

O olhar indiferente e duro de Goldfinger não vacilou. Ele dava a impressão de não ter ouvido a explosão de cavalheiro encolerizado que Bond tivera. Os lábios finamente cinzelados abriram-se. Goldfinger disse:

— Sr. Bond, há um ditado em Chicago: "Uma vez é acaso. Duas vezes é coincidência. A terceira vez é ação inimiga." Miami, Sandwich e agora Genebra. Pretendo arrancar a verdade de você.

O olhar de Goldfinger estendera-se vagarosamente para além da cabeça de Bond.

— Faz-tudo — disse ele. — A Sala de Pressão.

 

                                                                           Ação Inimiga

 

                                       A sala de pressão

A reação de Bond foi automática. Não havia raciocínio por trás dela. Deu um rápido passo à frente e jogou-se por cima da mesa em direção a Goldfinger. Seu corpo, lançado em um mergulho baixo, bateu na tampa da mesa e deslizou através da papelada. Houve uma forte batida quando sua cabeça chocou com o ombro de Goldfinger. O impulso da pancada fez Goldfinger virar na cadeira. Bond bateu com os pés para trás na beirada da mesa, conseguiu um ponto de apoio e projetou-se de novo para frente. Quando a cadeira virou para trás e os dois corpos caíram com o barulho de madeira quebrando-se, os dedos de Bond procuraram a garganta de Goldfinger e seus polegares afundaram na base do pescoço com toda força.

Depois, toda a casa caiu sobre Bond, uma viga de madeira atingiu-o na base do crânio e ele rolou inerte de cima de Goldfinger para o chão, onde ficou imóvel.

O vórtice de luz através do qual Bond estava girando achatou-se vagarosamente, transformando-se em um disco, uma lua amarela e depois em um ardente olho de Ciclope. Havia algo escrito em volta do faiscante globo ocular. Era uma mensagem, uma mensagem importante para ele. Precisava lê-la. Cuidadosamente, uma a uma, Bond soletrou as minúsculas letras. A mensagem dizia: societé anonyme mazda. Qual seria sua significação? Um jato de água atingiu Bond no rosto. A água fez arder seus olhos e encheu sua boca. Sentiu desesperada ânsia de vômito e tentou mover-se. Não conseguiu. Seus olhos clarearam, assim como seu cérebro. Sentia uma dor latejante na nuca. Estava olhando para um grande abajur esmaltado com uma única e forte lâmpada. Estava sobre alguma espécie de mesa, com os pulsos e os tornozelos amarrados nas beiradas dela. Tateou com os dedos. Sentiu metal polido.

Uma voz, a voz de Goldfinger, monótona e desinteressada, disse:

— Agora podemos começar.

Bond virou a cabeça na direção da voz. Seus olhos estavam ofuscados pela luz. Apertou-os bem e depois abriu-os. Goldfinger estava sentado em uma cadeira de lona. Tirara sua jaqueta e estava em mangas de camisa. Havia marcas vermelhas em volta da base de seu pescoço. Em uma mesa dobradiça ao seu lado viam-se várias ferramentas, instrumentos de metal e um painel de controle. Do outro lado da mesa, Tilly Masterton estava sentada em uma cadeira. Seus pulsos e tornozelos estavam amarrados na cadeira. Sentava-se com o corpo reto, como se estivesse na escola. Parecia incrivelmente bela, mas traumatizada, distante. Seus olhos olhavam vazios para Bond. Estava narcotizada ou hipnotizada.

Bond virou a cabeça para a direita. A alguns passos de distância estava o coreano. Ainda usava seu chapéu-de-côco, mas estava nu da cintura para cima. A pele amarela de seu enorme tórax brilhava de suor. Nela não havia pelos. Os chatos músculos peitorais eram largos como pratos de jantar e o estômago mostrava-se côncavo abaixo do grande arco das costelas. Os bíceps e os antebraços, também sem pelos, eram grossos como coxas. A superfície oleosa e oblíqua dos olhos parecia contente, sôfrega. Os dentes escuros formavam um esgar oblongo de prelibação.

Bond levantou a cabeça. O rápido olhar em roda causou-lhe dor. Estavam em uma das oficinas da fábrica. Luz branca brilhava em volta das portas de ferro de duas fornalhas elétricas. Havia lâminas azuladas de metal empilhadas em prateleiras de madeira. De um lugar qualquer vinha o zumbido de um gerador. Ouvia-se o barulho distante e abafado de martelos batendo e, por trás do som, o distante pulsar metálico da usina de energia.

Bond olhou para o fundo da mesa em que estava estendido. Deixou a cabeça cair novamente com um suspiro. Havia uma estreita fenda ao longo do centro da mesa de aço polido. Na extremidade da fenda, como uma massa de mira enquadrada no "V" de seus pés separados, viam-se os dentes cintilantes de uma serra circular.

Bond ficou deitado, fitando a pequena mensagem na lâmpada. Goldfinger começou a falar em tom sossegado de conversa. Bond cerrou as cortinas sobre a horrível cena reproduzida em sua imaginação e ouviu.

— Sr. Bond, a palavra "pena" provém do latim poena, que significa "penalidade" — aquilo que precisa ser pago. Você agora precisa pagar pela curiosidade que seu ataque contra mim provou ser, como eu suspeitava, hostil. A curiosidade, como dizem, matou o gato. Desta vez terei de matar dois gatos, pois temo que precisarei considerar essa moça também como inimiga. Ela me disse que estava hospedada no Bergues. Um telefonema provou que isso era mentira. Faz-tudo foi mandado até onde vocês estavam escondidos e encontrou o fuzil dela, assim como um anel que eu reconheci. Sob hipnotismo saiu o resto. Esta moça veio aqui para matar-me. Talvez você também. Ambos falharam. Agora precisam pagar a poena. Sr. Bond — a voz denotava tédio e aborrecimento — já tive muitos inimigos em minha vida. Sou muito bem sucedido e imensamente rico. As riquezas, se me permite aborrecê-lo com outro de meus aforismas, podem não fazer amigos, mas aumentam grandemente a classe e a variedade dos inimigos.

— Diz isso com muita precisão.

Goldfinger ignorou a interrupção.

— Se fosse um homem livre, com seu talento para investigação, seria capaz de encontrar pelo mundo as relíquias daqueles que me quiseram mal ou que tentaram contrariar-me. Houve, como já disse, muitas dessas pessoas e descobriria, Sr. Bond, que seus restos assemelham-se aos de porcos-espinhos esmagados nas rodovias durante o verão.

— Comparação muito poética.

— Acontece, Sr. Bond, que eu sou poeta em atos — não muitas vezes em palavras. Preocupo-me em ordenar minhas ações de acordo com padrões adequados e eficientes. Mas isto é uma digressão. Desejo fazê-lo entender que foi um dia muito ruim para você aquele em que cruzou meu caminho pela primeira vez e, sem dúvida de maneira muito insignificante, contrariou um minúsculo projeto em que eu estava interessado. Naquela ocasião outra pessoa sofreu a poena que devia ter sido aplicada a você. Foi olho por olho, mas não foi seu olho. Você teve sorte e, se tivesse encontrado então um oráculo para consultar, o oráculo ter-lhe-ia dito: "Sr. Bond, teve muita sorte. Conserve-se longe do Sr. Auric Goldfinger. Ele é um homem muito poderoso. Se o Sr. Goldfinger quiser esmagá-lo, não precisa senão virar na cama quando dormindo."

— Você se expressa muito vividamente — disse Bond, virando a cabeça.

A grande cabeça semelhante a uma bola de futebol marrom e alaranjada estava ligeiramente inclinada para a frente. O rosto redondo como a lua era afável, indiferente. Despreocupadamente, uma mão estendeu-se para o painel de controle e baixou uma chave. Um ronco metálico baixo veio da ponta de mesa sobre a qual Bond estava deitado. Transformou-se rapidamente em um zumbido áspero e depois em um assobio alto e agudo que mal se ouvia. Bond virou aborrecido a cabeça para o outro lado. Qual era o tempo mínimo em que poderia morrer? Haveria algum meio pelo qual pudesse apressar a morte? Um amigo seu havia sobrevivido à Gestapo. Descrevera a Bond como tentara suicidar-se prendendo a respiração. Por uma força de vontade sobre-humana, depois de alguns minutos sem respiração, caíra na inconsciência. Com a paralisação dos sentidos, porém, a vontade e a intenção também deixaram o corpo. E uma vez esquecida a razão, o instinto de viver do corpo manejara as bombas e introduzira novamente ar no organismo. Mas Bond poderia experimentar. Não havia outra coisa que pudesse ajudá-lo a atravessar a barreira da dor antes da bênção da morte. A morte era apenas uma saída. Sabia que não poderia contar a verdade a Goldfinger e continuar vivendo consigo mesmo — no caso pouco provável de Goldfinger poder ser comprado pela verdade. Não, precisava sustentar sua débil história e esperar que o outro que o seguisse na pista de Goldfinger tivesse mais sorte. Quem iria M escolher? Provavelmente 008, o segundo dos três homens com licença para matar. Era um bom homem, mais cuidadoso que Bond. M ficaria sabendo que Goldfinger matara Bond e daria a 008 licença para matar em represália. O 258 em Genebra daria ao homem a pista que terminava com a indagação de Bond sobre as Enterprises Auric. Sim, o destino apanharia Goldfinger, se Bond pudesse conservar a boca fechada. Se revelasse o menor indício, Goldfinger escaparia. Nem podia pensar nisso.

— Pois bem, Sr. Bond — disse Goldfinger, com voz ríspida. — Chega de amabilidades. Cante, como dizem meus amigos de Chicago, e morrerá depressa e sem dor. A moça também. Não cante e sua morte será um longo grito. Quanto à moça, darei a Faz-tudo para o jantar, como fiz com o gato. Que vai decidir?

— Não seja bobo, Goldfinger — respondeu Bond. — Informei a meus amigos da Universal para onde ia e porque. Os pais da moça sabem que ela veio comigo. Fiz indagações sobre sua fábrica antes de virmos aqui. Seremos localizados aqui muito facilmente. A Universal é poderosa. A polícia estará atrás de você alguns dias depois de nosso desaparecimento. Posso fazer um negócio com você. Deixa-nos ir embora e não se falará mais no assunto. Eu me responsabilizo pela moça. Você está cometendo um erro estúpido. Nós somos duas pessoas perfeitamente inocentes.

Goldfinger disse com voz entediada:

— Acho que não está compreendendo, Sr. Bond. Tudo quanto descobriu a meu respeito, e suspeito que seja muito pouco, pode ser apenas um grão da verdade. Estou empenhado em empreendimentos gigantescos. Arriscar-me a deixar que qualquer de vocês saísse daqui seria absolutamente ridículo. Isso está fora de cogitação. Quanto a ser incomodado pela polícia, terei o maior prazer em recebê-la se aqui vier. Os meus coreanos que não são capazes de falar não falarão — nem as bocas de minhas fornalhas elétricas que terão transformado vocês dois e todos os seus pertences em vapor à temperatura de dois mil graus centígrados. Não, Sr. Bond, faça sua escolha. Talvez eu possa encorajá-lo — ouviu-se o barulho de uma alavanca movimentando-se sobre dentes de ferro — a serra está agora aproximando-se de seu corpo na velocidade de dois centímetros por minuto. Entrementes — prosseguiu Goldfinger, olhando para Faz-tudo e erguendo um dedo — Faz-tudo aplicará um pouco de massagem. Para começar, só o primeiro grau. O segundo e terceiro graus são ainda mais convincentes.

Bond fechou os olhos. O enjoativo cheiro animal de Faz-tudo envolveu-o. Grandes e irritantes dedos puseram-se a trabalhar cuidadosamente em seu corpo. Uma pressão aqui, combinada com outra pressão lá, um apertão, uma pausa e depois um golpe rápido e forte. As mãos duras eram sempre cirurgicamente precisas. Bond cerrou os dentes até pensar que ia quebrá-los. O suor de dor começou a formar poças nas órbitas de seus olhos fechados. O agudo zumbido da serra tornava-se mais alto. Fazia lembrar a Bond os sons com cheiro de pó de serra das noites de verão de muito tempo antes em seu lar na Inglaterra. Lar! Este era seu lar, este casulo de perigo que escolhera para viver. E ali seria enterrado "em algum canto de um alto-forno estrangeiro onde a temperatura era sempre de dois mil graus centígrados". Deus vos dê repouso, alegres cavalheiros do Serviço Secreto! Que epitáfio poderia fazer para si próprio? Quais deveriam ser suas "famosas últimas palavras"? Que a gente não tem escolha quanto ao próprio nascimento, mas pode escolher a maneira como morre? Sim, isso ficaria bem em uma lápide — não Savoir vivre, mas Savoir mourir.

— Sr. Bond — insistiu a voz de Goldfinger, que tinha agora uma pontinha de urgência. — Isto será realmente necessário? Conte-me simplesmente a verdade. Quem é você? Quem o mandou aqui? Que sabe? Depois será tão fácil. Cada um de vocês dois tomará uma pílula. Não haverá dor. Será o mesmo que tomar um comprimido de sedativo. Caso contrário, será tão atrapalhado — atrapalhado e desagradável. E você não está sendo leal com a moça! Isso é comportamento de um cavalheiro inglês?

O tormento de Faz-tudo havia cessado. Bond virou vagarosamente a cabeça na direção da voz e abriu os olhos. Disse:

— Goldfinger, nada mais tenho a dizer-lhe porque nada mais existe. Se não aceita minha primeira proposta, posso fazer-lhe outra. A moça e eu trabalharemos para você. Que acha? Somos pessoas capazes. Poderia aproveitar bem nossos serviços.

— E receber uma faca, duas facas nas costas? Não, muito obrigado, Sr. Bond.

Bond decidiu que era tempo de parar de falar. Era tempo de começar a dar corda na mola-mestra da força de vontade que não deveria desenrolar-se de novo enquanto não estivesse morto. Cortesmente, Bond disse:

— Então pode ir para a...

Expeliu todo o ar dos pulmões e fechou os olhos.

— Nem eu sou capaz disso, Sr. Bond — disse Goldfinger com bom humor. — E agora, já que escolheu o caminho pedregulhoso em lugar do caminho macio, vou dar o maior interesse possível à sua provação tornando o caminho o mais pedregulhoso possível. Faz-tudo, segundo grau.

A alavanca sobre a mesa movimentou-se sobre os dentes de ferro. Agora Bond podia sentir o vento que a serra fazia entre seus joelhos. As mãos baixaram.

Bond contou a pulsação vagarosamente latejante que dominava completamente seu corpo. Era como a enorme e pulsante usina de energia na outra parte da fábrica, mas, em seu caso, estava-se desacelerando lentamente. Se pelo menos diminuísse mais depressa. Que era essa ridícula vontade de viver que recusava ouvir o cérebro? Que fazia o motor funcionar embora o tanque estivesse vazio de combustível? Mas precisava esvaziar de pensamento sua mente, assim como esvaziar de oxigênio seu corpo. Precisava tornar-se um vácuo, um fundo buraco de inconsciência.

A luz ainda ardia vermelha através de suas pálpebras. Ainda podia sentir a ardente pressão em suas têmporas. O lento tambor da vida ainda batia em seus ouvidos.

Um grito tentou sair à força através dos dentes cerrados.

Morra maldito, morra maldito, morra maldito, morra maldito, morra maldito...

 

                                     O último e o maior

As asas de uma pomba, o coro celestial, "Ouvi Cantar os Anjos Arautos" — que mais precisava lembrar-me a respeito do Paraíso? Era exatamente igual ao que lhe haviam contado quando criança — aquela sensação de estar voando, a escuridão, o som monótono de um milhão de harpas. Precisava realmente tentar lembrar-se das informações sobre o lugar. Vejamos agora, a gente chega aos Portões de Pérola...

Uma voz profundamente paternal disse, quase em seu ouvido: "Quem está falando é vosso comandante. (Bem, bem. Quem seria? São Pedro?) Vamos aterrar agora. Por favor, prendam os cintos e apaguem os cigarros. Muito obrigado."

Devia haver muita gente, subindo junta. Tilly estaria na mesma viagem? Bond sentiu-se embaraçado. Como a apresentaria às outras, a Vésper, por exemplo? E quando precisasse decidir, de qual gostaria mais? Contudo, talvez fosse um grande lugar com países e cidades. Provavelmente não haveria mais razão para encontrar uma de suas antigas amiguinhas do que aqui na terra. Mas, ainda assim havia muita gente que faria melhor em evitar até instalar-se e descobrir a fórmula. Talvez, com tanto amor por toda parte, aquelas coisas não tivessem importância. Talvez a gente amasse todas as mulheres que encontrasse. Hum! Negócio complicado.

Com esses pensamentos indecorosos na cabeça, Bond voltou a cair na inconsciência.

O que percebeu em seguida foi uma delicada sensação de balanço. Abriu os olhos. O sol cegou-os. Fechou-os de novo. Uma voz acima e atrás de sua cabeça disse:

— Cuidado, companheiro. Essa rampa é mais íngreme do que parece.

Quase imediatamente, houve um violento solavanco. Uma voz grosseira à frente disse:

— Jesus, você tinha razão. Por que diabo eles não põem borracha?

Bond pensou colèricamente: Essa é uma bela maneira de falar aqui em cima. Só porque sou novo e pensam que não estou ouvindo.

Ouviu-se a batida de uma porta de vai-vem. Alguém bateu violentamente no cotovelo de Bond. Este gritou: "Eh!" e tentou alcançar o cotovelo para esfregá-lo, mas suas mãos não se mexeram.

— Que foi? Eh, Sam. É melhor chamar o médico. Este já voltou.

— Não diga! Pronto, ponha-o ao lado do outro.

Bond sentiu que baixavam seu corpo. Agora estava mais fresco. Abriu os olhos. Um grande rosto redondo do Brooklyn estava inclinado sobre o seu. Os olhos encontraram-se com os seus e sorriram. Os suportes de metal da maça tocaram o chão. O homem perguntou:

— Como se está sentindo, cavalheiro?

— Onde estou?

Agora havia pânico na voz de Bond. Tentou levantar-se, mas não conseguiu. Sentiu o suor escorrer em seu corpo. Santo Deus! Isso ainda seria parte da velha vida? À essa idéia, uma onda de aflição espalhou-se por seu corpo. Lágrimas queimaram seus olhos e escorreram pelas faces.

— Eh, eh! Calma, cavalheiro. Você está bem. Isto é Idlewild, Nova York. Você agora está nos Estados Unidos. Não há mais complicações, entendeu?

O homem endireitou o corpo. Pensava que Bond fosse refugiado vindo de um lugar qualquer.

— Sam, vamos andando. Este cara está em estado de choque.

— Okay, okay.

As duas vozes distanciaram-se, murmurando ansiosamente.

Bond viu que podia mover a cabeça. Olhou em volta. Estava em uma enfermaria pintada de branco — presumivelmente algo ligado ao departamento de saúde do aeroporto. Havia uma fileira de camas arrumadas. O sol entrava por altas janelas, mas dentro era frio, com ar condicionado. Estava em uma maça sobre o chão. Havia outra perto. Estendeu a cabeça de lado. Era Tilly. Estava inconsciente. Seu rosto pálido, emoldurado pelos cabelos pretos, apontava para o forro.

A porta na extremidade da enfermaria abriu-se com um suspiro. Um médico de avental branco entrou e segurou a porta aberta. Goldfinger, parecendo animado e jovial, caminhou rapidamente entre as camas. Era seguido por Faz-tudo. Bond fechou aborrecidamente os olhos. Cristo! Então era isso.

Juntaram-se pés ao redor de sua maça. Goldfinger disse animadamente:

— Bem, eles não parecem estar em boa forma, não, doutor? Essa é uma das vantagens de ter bastante dinheiro. Quando um amigo ou empregado da gente está doente, a gente pode proporcionar-lhe a melhor assistência médica. Esgotamento nervoso, os dois. E na mesma semana! Não parece incrível, doutor? Mas atribuo a mim mesmo a culpa, por tê-los feito trabalhar demais. Agora é meu dever fazer tudo para que se levantem de novo. O Dr. Foch — é um dos melhores médicos de Genebra, diga-se de passagem — foi perfeitamente claro. Disse: Eles precisam de repouso, Sr. Goldfinger. Repouso, repouso e mais repouso." Deu-lhes um sedativo e agora estão a caminho do Pavilhão Harkness no Hospital Presbiteriano.

Goldfinger riu satisfeito enquanto prosseguia:

— Semeia e colherás, eh, doutor? Quando dei ao Pavilhão Harkness um milhão de dólares em equipamento de raios X, não esperava receber alguma coisa em troca. E agora? Bastou--me dar um telefonema e arranjaram dois belos quartos, que estão à espera deles. Bem, agora (ouviu-se o farfalhar de notas) muito obrigado por todo seu auxílio com a Imigração. Felizmente ambos tinham vistos válidos e penso que a Imigração se convenceu de que o Sr. Auric Goldfinger era garantia suficiente de que nenhum deles deseja derrubar o governo dos Estados Unidos pela força, eh?

— Sim, de fato... e muito obrigado, Sr. Goldfinger. Se eu puder fazer alguma coisa... Soube que tem uma ambulância particular esperando lá fora.

Bond abriu os olhos e olhou para o lado de onde vinha a voz do médico. Viu um moço de aparência agradável e séria, com óculos sem aros e cabelos cortados curtos. Bond disse baixinho e com desesperada sinceridade:

— Doutor, eu não estou sofrendo de coisa alguma e o mesmo acontece com essa moça. Fomos narcotizados e trazidos para cá contra nossa vontade. Nenhum de nós trabalha ou já trabalhou para Goldfinger. Estou avisando-o de que fomos seqüestrados. Exijo que me deixem falar com o chefe da Imigração. Tenho amigos em Washington e Nova York. Eles se responsabilizarão por mim. Peço-lhe que me acredite.

Bond fitou os olhos do homem, desejando que ele acreditasse.

O médico pareceu preocupado. Virou-se para Goldfinger. Goldfinger sacudiu a cabeça — discretamente para que Bond não ficasse ofendido. Disfarçadamente ergueu a mão e bateu na testa, do lado que Bond não via. Erguendo as sobrancelhas na expressão de quem nada pode fazer, disse:

— Está vendo o que quero dizer, doutor? Está assim há dias. Absoluta prostração nervosa combinada com mania de perseguição. O Dr. Foch disse que as duas andam muitas vezes juntas. Talvez precise ficar semanas no Harkness. Mas conseguirei que fique bom, ainda que seja a última coisa que eu faça na vida. É o choque destes ambientes desconhecidos. Talvez uma injeção de sódio...

O médico inclinou-se sobre sua maleta preta.

— Acho que tem razão, Sr. Goldfinger. Uma vez que Harkness vai cuidar do caso.

Ouviu-se o tilintar de instrumentos.

— É terrivelmente triste ver um homem abater-se tão completamente, um homem que foi um dos melhores assistentes meus.

Curvou sobre Bond com um sorriso amável e paternal. Havia uma insinuação em sua voz:

— Você ficará bom, James. Descanse e durma bem. Eu temia que o vôo fosse demais para você. Descanse e deixe tudo por minha conta.

Bond sentiu esfregarem-lhe o braço. Ergueu-se. Contra a vontade, uma chuva de pragas saiu de seus lábios. Depois sentiu a agulha, abriu a boca, gritou e gritou, enquanto o médico se ajoelhava ao seu lado e, delicadamente, pacientemente, enxugava-lhe o suor da testa.

Agora estava em um quartinho pintado de cinzento. Não havia janelas. A luz vinha de um único globo embutido no centro do forro. Em volta da lâmpada viam-se fendas concêntricas no reboco e havia o cheiro neutro e o zumbido fraco de ar condicionado. Bond viu que podia sentar-se. Sentou-se. Sentia-se sonolento, mas bem. De repente percebeu que estava com fome e sede tremendas. Quando havia tomado sua última refeição? Dois, três dias antes? Pôs os pés no chão. Estava nu. Examinou seu corpo. Faz-tudo fora cuidadoso. Não havia marcas, senão os sinais das picadas de agulha em seu antebraço direito. Levantou-se, vencendo a tontura, e deu alguns passos pelo quarto. Estivera deitado em uma tarimba do tipo de navio com gavetas embaixo. Os únicos outros móveis no quarto eram uma mesa simples e uma cadeira de madeira com encosto reto. Tudo era limpo, funcional, espartano. Bond ajoelhou-se diante das gavetas embaixo da tarimba e abriu-as. Continham tudo quanto havia em sua mala, exceto o relógio e a arma. Até mesmo os pesados sapatos que usara em sua expedição às Auric Enterprises estavam lá. Girou um dos saltos e puxou. A larga faca de dois gumes deslizou maciamente para fora de sua bainha na sola do sapato. Com os dedos segurando o salto fechado formava um punhal muito eficiente. Bond verificou que o outro sapato também continha sua faca e ajustou novamente os saltos no lugar. Apanhou algumas roupas e vestiu-as. Encontrou sua cigarreira e seu isqueiro. Acendeu um cigarro. Havia duas portas, uma das quais tinha trinco. Abriu essa. Dava para um pequeno e bem equipado banheiro. Seus objetos de toalete e de barbear estavam cuidadosamente arrumados. Ao lado deles, havia os objetos de uma moça. Bond abriu silenciosamente a outra porta do banheiro. Dava para um quarto semelhante ao seu. Os cabelos pretos de Tilly Masterton apareciam sobre o travesseiro na tarimba. Bond avançou nas pontas dos pés e olhou para baixo. Ela dormia pacificamente, com um meio sorriso na bela boca. Bond voltou ao banheiro, fechou silenciosamente a porta, caminhou até o espelho sobre a pia e olhou sua imagem. A barba preta parecia mais de três dias que de dois. Começou a arrumar-se.

Meia hora depois, estava sentado na beira da tarimba, pensando, quando a porta sem trinco abriu-se abruptamente. Faz-tudo apareceu na entrada. Olhou sem curiosidade para Bond. Seus olhos correram cuidadosamente pelo quarto. Bond disse rispidamente:

— Faz-tudo, quero bastante comida, rapidamente. E uma garrafa de uísque, soda e gelo. Quero também um pacote de Chesterfield, tamanho grande, e meu relógio ou outro tão bom quanto ele. Ordinário, marcha! Um, dois! E diga a Goldfinger que desejo vê-lo, mas só depois de ter comido alguma coisa. Vamos! Ande com isso! Não fique aí com esse ar inescrutável. Estou com fome.

Faz-tudo olhou furiosamente para Bond, como se estivesse pensando que lugar ia quebrar. Abriu a boca, emitiu um ruído que ficava entre um latido furioso e um arroto, fez menção de cuspir no chão e retirou-se, fechando a porta. Quando estava para bater, a porta desacelerou-se bruscamente e fechou-se com um macio e decisivo clique duplo.

O encontro deixou Bond de bom humor. Por alguma razão, Goldfinger decidira não matá-los. Queria-os vivos. Logo Bond ficaria sabendo porque os queria vivos, mas, enquanto quisesse, Bond pretendia continuar vivo de acordo com suas próprias condições. Entre essas condições incluía-se o fato de obrigar Faz-tudo ou qualquer outro coreano a ficar exatamente em seu lugar, que, na opinião de Bond, era bem abaixo do lugar dos macacos na hierarquia dos mamíferos.

Depois que uma excelente refeição junto com tudo o mais que pedira, inclusive seu relógio, foi trazida por um dos criados coreanos, Bond não ficou sabendo mais coisa alguma sobre suas circunstâncias, exceto que seu quarto ficava perto da água e não longe de uma ponte ferroviária. Supondo-se que seu quarto estivesse em Nova York, ficava sobre o Hudson ou sobre o East River. A ferrovia era elétrica e parecia ser um metrô, mas o conhecimento de Bond sobre a geografia de Nova York não era suficiente para permitir-lhe localizá-la. Seu relógio havia parado. Quando perguntou as horas, não obteve resposta.

Bond comera todos os alimentos da bandeja e estava fumando e saboreando um sólido uísque com soda quando a porta se abriu. Goldfinger entrou sozinho. Vestia o traje comum de um homem de negócios e parecia calmo e alegre. Fechou a porta e ficou com as costas voltadas para ela. Olhou inquisitivamente para Bond, que continuou fumando e retribuiu cortesmente o olhar.

— Bom dia, Sr. Bond — disse Goldfinger. — Vejo que está novamente em si. Espero que prefira estar aqui a estar morto. Por isso, para poupar-lhe o trabalho de fazer uma porção de perguntas convencionais, vou dizer-lhe onde está e o que lhe aconteceu. Depois lhe farei uma proposta, para a qual exijo uma resposta inequívoca. É um homem mais razoável que a maioria, por isso só preciso fazer-lhe uma breve advertência. Não tente coisa alguma dramática. Não me ataque com uma faca, um garfo ou aquela garrafa. Se o fizer, eu o alvejarei com isto.

Uma pistola de pequeno calibre saltou como um polegar preto da mão direita de Goldfinger. Tornou a pôr no bolso a mão com a arma.

— Raramente uso estas coisas. Nas vezes em que tive de usar, nunca precisei de mais de uma bala calibre 25 para matar. Atiro no olho direito, Sr. Bond. E nunca erro.

— Não se preocupe — respondeu Bond. — Não tenho pontaria tão boa com uma garrafa de uísque.

Puxou para cima o joelho de sua calça e cruzou as pernas. Ficou sentado sossegadamente.

— Continue — disse.

— Sr. Bond — prosseguiu Goldfinger, cuja voz era amável — eu sou um especialista em muitos outros materiais, além de metais, e aprecio vivamente tudo quanto tem mil de pureza, como dizemos ao falar do ouro mais puro. Em comparação com esse grau de pureza, de valor, o material humano tem realmente grau muito baixo. Às vezes, porém, a gente encontra uma peça desse material que pode pelo menos ser empregada nas formas mais baixas de aplicação. Faz-tudo é um exemplo do que quero dizer — argila simples, não refinada, passível de exploração limitada. No último momento, minha mão hesitou em destruir um utensílio com a durabilidade que observei em você. Talvez tenha cometido um erro ao deter minha mão. Seja como for, tomarei as mais cuidadosas providências para proteger-me contra as conseqüências de meu impulso. O que salvou sua vida foi algo que você disse. Sugeriu que você e a Srta. Masterton poderiam trabalhar para mim. Normalmente, eu não teria emprego para qualquer dos dois, mas acontece que estou às vésperas de certo empreendimento no qual os serviços de ambos poderiam ser de certo auxílio mínimo. Por isso, arrisquei-me. Dei a vocês dois os necessários sedativos. Suas contas foram pagas e suas coisas retiradas do Bergues, onde a Srta. Masterton estava registrada sob seu verdadeiro nome. Mandei um cabograma em seu nome à Universal Export. Disse que lhe haviam oferecido um emprego no Canadá, que você ia voar para lá a fim de examinar as possibilidades, que levava a Srta. Masterton como sua secretária e que escreveria dando mais detalhes. Um cabograma mal amanhado, mas servirá para o curto período em que preciso de seus serviços. (Não servirá, pensou Bond, a menos que tenha incluído no texto uma das inocentes frases que podem mostrar a M a autenticidade do cabograma. A esta hora, o Serviço já sabia que ele estava trabalhando sob controle inimigo. As rodas já estariam girando realmente muito depressa). E, caso pense, Sr. Bond, que minhas precauções foram insuficientes, que seu paradeiro será descoberto, deixe-me dizer-lhe que não estou mais interessado em sua verdadeira identidade, nem na força e nos recursos de seus empregadores. Você e a Srta. Masterton desapareceram completamente, Sr. Bond. O mesmo aconteceu comigo e com todo meu pessoal. Quem fizer indagações no aeroporto será encaminhado ao Pavilhão Harkness do Hospital Presbiteriano. O hospital nunca ouviu falar no Sr. Goldfinger, nem em seus pacientes. O F.B.l. e a C.I.A. não têm prontuário a meu respeito, pois nunca tive antecedentes criminais. Sem dúvida as autoridades de imigração dispõem de pormenores sobre minhas idas e vindas através dos anos, mas isso de nada adiantará. Quanto ao meu atual paradeiro, e ao seu, Sr. Bond, estamos agora no armazém da Hispeed Trucking Corporation, uma firma outrora respeitável que possuo em nome de testas de ferro e que foi equipada, perfeitamente, a fim de servir como quartel-general secreto para o empreendimento de que lhe falei. Você e a Srta. Masterton ficarão confinados nestes aposentos. Aqui viverão, trabalharão e possivelmente, embora pessoalmente eu tenha dúvidas quanto às inclinações da Srta. Masterton nesse sentido, praticarão o amor.

— E em que consistirá nosso trabalho?

— Sr. Bond... — Pela primeira vez desde quando Bond conhecera Goldfinger, o grande e afável rosto, sempre vazio de expressão, demonstrou um traço de vida. Um olhar quase de êxtase iluminou os olhos. Os lábios finamente talhados mostraram uma curva fina e beatífica. — Sr. Bond, toda minha vida tive um amor. Amei o ouro. Amo sua cor, seu brilho, seu peso divino. Amo a consistência do ouro, aquela viscosidade macia que aprendi a medir com o tato com tanta precisão que sou capaz de calcular a pureza de uma barra com margem de erro de um quilate. Amo o quente odor que ele solta quando o derreto para transformá-lo em verdadeiro xarope de ouro. Mas, acima de tudo, Sr. Bond amo o poder que só o ouro pode dar a seu dono — a magia de controlar energia, exigir trabalho, satisfazer todos os desejos e caprichos próprios, e, quando necessário, comprar corpos, mentes e até mesmo almas. Sim, Sr. Bond, trabalhei toda minha vida pelo ouro e, em troca, o ouro trabalhou por mim e pelas empresas a que me dediquei. Pergunto-lhe — disse Goldfinger, fitando sériamente Bond — existe na terra outra substância que proporcione tantas recompensas a seu dono?

— Muita gente tornou-se rica e poderosa sem possuir um grama de ouro. Mas compreendo seu ponto de vista. Quanto conseguiu reunir e o que faz com ele?

— Tenho cerca de vinte milhões de libras esterlinas de ouro, mais ou menos o que possui um país pequeno. Agora está tudo em Nova York. Conservo-o onde preciso dele. Meu tesouro de ouro é como um monte de adubo. Movimento-o de um lado para outro sobre a face da terra e, onde quer que o esparrame, aquele canto floresce e floresce. Colho a safra e vou para outro lugar. Neste momento, estou pretendendo encorajar, forçar, certo empreendimento americano com meu adubo de ouro. Por isso, as barras de ouro estão em Nova York.

— Como escolhe esses empreendimentos? O que o atrai para eles?

— Patrocino qualquer empreendimento que aumente meu estoque de ouro. Invisto, contrabandeio, roubo — disse Goldfinger, que fez um pequeno gesto com as mãos, abrindo-as convincentemente. — Se quer acompanhar a comparação, considere a história como um trem correndo através do tempo. Pássaros e quadrúpedes são perturbados pelo barulho e tumulto da passagem do trem, fogem dele, correm atemorizados ou se agacham, pensando que se escondem. Eu sou como o gavião que segue o trem — você com certeza já viu gaviões fazerem isso, na Grécia, por exemplo — pronto para lançar-se sobre tudo quanto se assusta com a passagem do trem, com a passagem da história. Para dar-lhe um exemplo simples: o progresso da história produz um homem que inventa a penicilina. Ao mesmo tempo, a história cria uma guerra mundial. Muitas pessoas estão morrendo ou com medo de morrer. A penicilina poderá salvá-las. Mediante suborno em certos estabelecimentos militares no continente europeu, obtenho estoques de penicilina. Misturo-a com algum pó ou líquido inofensivo e vendo-a com lucro imenso àqueles que estão ansiosos por obtê-la. Entendeu o que quero dizer, Sr. Bond? A gente precisa esperar a presa, observá-la cuidadosamente e depois saltar em cima. Mas, como disse, eu não procuro esses empreendimentos. Deixo que o trem da história faça-os correr na minha direção.

— Qual é o último? Que temos a ver com ele a Srta. Masterton e eu?

— O último, Sr. Bond, é o derradeiro. É também o maior.

Os olhos de Goldfinger estavam agora vazios, voltados para dentro. Sua voz tornou-se baixa, quase reverente diante do que estava vendo. Prosseguiu:

— O homem escalou o Everest e raspou as profundezas do oceano. Disparou foguetes para o espaço exterior e desintegrou o átomo. Inventou, imaginou, criou em todos os reinos da atividade humana e em toda parte triunfou, bateu recordes, conseguiu milagres. Eu disse todos os reinos, mas existe um que tem sido negligenciado, Sr. Bond. É a atividade humana incorretamente conhecida como crime. As chamadas proezas criminais cometidas por indivíduos humanos — não me refiro naturalmente às suas guerras idiotas, à maneira canhestra como se destroem entre si — são de dimensões miseráveis: pequenos assaltos a bancos, minúsculas fraudes, falsificações insignificantes. E no entanto, ao alcance da mão, a algumas centenas de quilômetros daqui, a oportunidade para o maior crime da história está esperando. O palco está armado. O gigantesco prêmio já foi oferecido. Só faltam os atores. Mas finalmente aqui está o produtor, Sr. Bond — disse Goldfinger, erguendo um dedo e batendo no peito com ele — que já escolheu seu elenco. Ainda hoje à tarde o "script" será lido para os atores principais. Depois começarão os ensaios e, dentro de uma semana, erguer-se-á o pano para a representação única e singular. Depois virá o aplauso, o aplauso para o maior golpe extralegal de todos os tempos. E, Sr. Bond, esse aplauso fará o mundo tremer durante séculos.

Agora um fogo baço ardia nos grandes olhos pálidos de Goldfinger e havia um pouco mais de cor em suas faces marrons avermelhadas. Mas ele ainda estava calmo, tranqüilo, profundamente convencido. Ali, refletiu Bond, não havia traços do louco, do visionário. Goldfinger tinha em mente algum feito fantástico, mas avaliara as probabilidades e sabia que eram favoráveis.

— Bem, vamos ver. Que é e que temos nós com isso?

— É um roubo, Sr. Bond. Um roubo sem oposição, mas que exigirá execução minuciosa. Haverá muito trabalho burocrático, muitos pormenores administrativos a supervisionar. Eu ia fazer isso pessoalmente quando me ofereceu seus serviços. Agora, você o fará, com a Srta. Masterton como sua secretária. Você já foi parcialmente remunerado por esse trabalho com sua vida. Quando a operação estiver concluída com êxito, receberá um milhão de libras em ouro. A Srta. Masterton receberá meio milhão

Bond disse entusiasmado:

— Isso é que é falar. Que vamos fazer? Roubar a ponta do arco-íris?

— Sim — respondeu Goldfinger, acenando com a cabeça. — É precisamente o que vamos fazer. Vamos roubar quinze bilhões de dólares em barras de ouro, aproximadamente metade do estoque de ouro já extraído no mundo. Vamos, Sr. Bond, tomar Fort Knox.

 

                                     Congresso de bandidos

Fort Knox! — exclamou Bond, sacudindo a cabeça seriamente. — Não é tarefa grande demais para dois homens e uma moça?

Goldfinger deu de ombros impacientemente.

— Por favor, deixe de lado seu senso de humor por uma semana, Sr. Bond. Depois, poderá rir quanto quiser. Terei sob meu comando aproximadamente cem homens e mulheres. Essas pessoas serão escolhidas a dedo entre os seis mais poderosos grupos de gangsters dos Estados Unidos. Essa força representará a mais dura e compacta unidade combatente já arregimentada em tempo de paz.

— Muito bem. Quantos homens guardam os cofres subterrâneos de Fort Knox?

Goldfinger sacudiu vagarosamente a cabeça. Bateu uma vez na porta às suas costas. A porta abriu-se. Faz-tudo estava diante dela, agachado, alerta. Quando viu que a reunião ainda era pacífica, endireitou-se e esperou. Goldfinger disse:

— Terá muitas perguntas a fazer, Sr. Bond. Serão respondidas esta tarde. A partir das duas e meia. Agora são exatamente doze horas. (Bond olhou para seu relógio e acertou-o.) Você e a Srta. Masterton comparecerão à reunião na qual a proposta será feita aos chefes das seis organizações que mencionei. Sem dúvida essas pessoas farão as mesmas perguntas que lhe ocorrem. Tudo será explicado. Em seguida, você passará a fazer trabalho minucioso com a Srta. Masterton. Peça o que quiser. Faz-tudo cuidará de seu conforto e estará também permanentemente em guarda. Não provoque barulho, senão será instantaneamente morto. E não perca tempo tentando fugir ou entrar em contato com o mundo exterior. Contratei seus serviços e exigirei até a última gota deles. Está feito?

— Sempre quis ser milionário — respondeu Bond secamente.

Goldfinger não olhou para ele. Olhou para suas unhas. Em seguida, lançou a Bond um último e duro olhar, saiu e fechou a porta depois de passar.

Bond ficou sentado fitando a porta fechada. Bruscamente passou as duas mãos pelos cabelos e pelo rosto. Disse "Bem, bem" em voz alta para o quarto vazio, levantou-se, entrou no banheiro e chegou até a porta do dormitório da moça. Bateu na porta.

— Quem é?

— Sou eu. Está visível?

— Sim. — Não havia entusiasmo na voz. — Entre.

Estava sentada na beira da cama, calçando um sapato. Vestia as roupas com que Bond a vira pela primeira vez. Parecia fria, calma e nada surpreendida com o ambiente. Ergueu os olhos para Bond. Seus olhos eram distantes, desdenhosos. Disse friamente, precisamente:

— Você nos meteu nisto. Agora nos tire.

— Talvez seja capaz — respondeu Bond amàvelmente. — Eu nos tirei de nossos túmulos.

— Depois de nos jogar dentro deles.

Bond olhou pensativamente para a moça. Decidiu que seria falta de cavalheirismo espancá-la com o estômago vazio, por assim dizer. Disse:

— Isso não nos levará a lugar algum. Estamos nisto juntos, gostemos ou não. Que deseja para o desjejum ou almoço? São meio-dia e quinze. Eu já comi. Só há um caminho para sair daqui e Faz-tudo, aquele macaco coreano, o está guardando. E então, desjejum ou almoço?

Ela ergueu um pouco o corpo.

— Obrigada. Ovos mexidos e café, por favor. Torradas e marmelada.

— Cigarros?

— Não, obrigada. Não fumo.

Bond voltou para seu quarto e bateu na porta. A porta abriu-se um pouquinho. Bond disse.

— Está tudo bem, Faz-tudo. Eu ainda não vou matá-lo. A porta abriu-se mais. A fisionomia de Faz-tudo estava impassível. Bond fez o pedido. A porta fechou-se. Bond serviu para si próprio um uísque com soda. Sentou-se na beira da cama e ficou pensando como faria para que a moça ficasse do seu lado. Desde o começo ela se ressentira contra ele. Seria isso apenas por causa de sua irmã? Por que Goldfinger fizera aquela enigmática observação sobre suas "inclinações"? Que havia nela que ele próprio sentia — algo resistente, hostil. Ela era bonita — fisicamente atraente. Mas havia nela um centro frio e duro que Bond não conseguia compreender ou definir. Ora, o principal era fazer com que ela se desse bem com ele. Caso contrário, a vida na prisão seria intolerável.

Bond voltou ao quarto dela. Deixou ambas as portas abertas para poder ouvir. Ela ainda estava sentada na cama enrolada em sua imobilidade. Observou Bond cuidadosamente. Bond encostou-se no batente da porta. Deu um longo gole em seu uísque. Depois disse, olhando-a nos olhos:

— É bom que saiba que eu sou da Scotland Yard. (O eufemismo serviria.) Estamos atrás desse Goldfinger. Ele não se preocupa com isso. Pensa que ninguém poderá encontrar-nos pelo menos por uma semana. Provavelmente tem razão.

Salvou nossas vidas porque deseja que trabalhemos para ele em um crime. É um negócio grande. Bastante maluco. Mas há muito planejamento e trabalho burocrático. Temos de cuidar dessa parte. Sabe datilografia e taquigrafia?

— Sim — disse ela, com voz indiferente. — Qual é o crime?

Bond contou-lhe. Depois disse:

— Naturalmente, tudo isso parece ridículo e ouso dizer que algumas perguntas e respostas mostrarão a esses gangsters, se não mostrarem também, a Goldfinger, que todo o negócio é impossível. Mas não sei, não. Goldfinger é um homem extraordinário. Pelo que sei dele, nunca se move a menos que as probabilidades sejam favoráveis. E não creio que esteja louco, pelo menos não está mais louco que outras espécies de gênios, como cientistas e outros. Não há dúvida que é um gênio em seu terreno.

— E então, o que vai você fazer? Bond abaixou a voz e disse:

— O que vamos nós fazer, é o que quer dizer. Vamos tocar o negócio. E cabalmente. Sem evasivas nem brincadeiras. Vamos mostrar-nos ávidos pelo ouro e vamos prestar-lhe serviço absolutamente perfeito. Além de salvar nossas vidas, que para ele significam menos que nada, essa é a única esperança que temos — ou melhor, que eu tenho, porque esse é o meu dever — de encontrar uma oportunidade de estragar-lhe os planos.

— Como vai conseguir isso?

— Ainda não tenho a menor idéia. Alguma coisa há de aparecer.

— E espera que eu o acompanhe?

— Por que não? Tem alguma outra sugestão a fazer? Ela cerrou os lábios obstinadamente.

— Por que devo fazer o que você diz? Bond suspirou.

— Não adianta ser suffragette nesta questão. É fazer isso ou então ser morta depois do desjejum. Você pode escolher.

A boca virou-se para baixo com repugnância. Ela encolheu os ombros. Disse indelicadamente:

— Oh, então está bem. — De repente, seus olhos, cultuaram. — Mas nunca ponha a mão em mim, senão eu o matarei.

Ouviu-se o clique da porta do quarto de Bond. Bond olhou conciliatòriamente para Tilly Masterton.

— O desafio é tentador. Mas não se preocupe. Não o aceitarei.

Virou-se e saiu vagarosamente do quarto.

Um dos coreanos passou por ele carregando o desjejum da moça. Em seu quarto, outro coreano havia levado uma mesa de máquina, uma cadeira e uma Remington portátil. Arrumou-as em um canto, longe da cama. Faz-tudo estava em pé na porta. Estendeu uma folha de papel. Bond aproximou--se dele e apanhou o papel.

Era uma folha de papel almaço. A letra, escrita com esferográfica, era boa, caprichada, legível, inidentificável. Dizia:

 

Preparar dez cópias desta agenda.

Reunião a realizar-se sob a presidência do Sr. Gold.

 

           Secretários: J. Bond

           Srta. Tilly Masterton

           Presentes:

           Helmut M. Springer, Quadrilha Roxa. Detroit

           Jed Midnight, Sindicato da Sombra. Miami e Havana

           Billy (Risonho) Ring, A Máquina. Chicago

           Jack Strap, Bando Reluzente. Las Vegas

           Sr. Solo, Unione Siciliano

           Srta. Pussy Galore, Misturadoras de Cimento. Harlém e Nova York

           Agenda

           Um projeto com o nome cifrado de

           OPERAÇÃO GRANDE GOLPE

           (Lanche)

 

 

Embaixo disso estava escrito: "Você e a Srta. Masterton serão apanhados às 2h20. Ambos devem estar preparados para tomar notas. Traje a rigor, por favor."

Bond sorriu. Os coreanos saíram do quarto. Sentou-se à mesa, enfiou papel e carbonos na máquina, e pôs-se a trabalhar. Pelo menos mostraria à moça que estava pronto a fazer sua tarefa. Puxa, que turma! Até a Máfia havia entrado. Como Goldfinger os convencera a comparecer? E quem seria a Srta. Pussy Galore?

Bond terminou de fazer as cópias às duas horas. Foi ao quarto da moça e entregou-lhe as cópias, juntamente com um bloco de taquigrafia e lápis. Leu-lhe também o recado de Goldfinger.

— É melhor guardar esses nomes na cabeça — disse. — Provavelmente não será difícil identificá-los. Poderemos perguntar se ficarmos atrapalhados. Agora vou vestir-me a rigor — acrescentou sorrindo para ela. — Faltam vinte minutos.

Ela concordou com um aceno de cabeça.

 

Descendo pelo corredor atrás de Faz-tudo, Bond podia ouvir os ruídos do rio — o bater da água nas estacas embaixo do armazém, o longo e lamentoso apito de uma barca abrindo caminho, o som distante de diesels. Em um lugar qualquer sob seus pés um caminhão começou a funcionar, foi acelerado e depois afastou-se roncando, presumivelmente em direção à West Side Highway. Deviam estar no andar superior de um comprido edifício de dois andares. A tinta cinzenta no corredor tinha cheiro de nova. Não havia portas laterais. A luz vinha de globos no forro. Chegaram ao fim do corredor. Faz-tudo bateu. Ouviu-se o som de uma chave Yale sendo virada e de dois ferrolhos sendo puxados. Atravessaram a porta e entraram em uma grande sala iluminada pelo sol. A sala ficava na extremidade do armazém e um largo vitrô, cobrindo a maior parte da parede, enquadrava o rio e a distante confusão parda de Jersey City. A sala fora preparada para a conferência. Goldfinger estava sentado de costas para a janela diante de uma grande mesa redonda com uma toalha de baeta verde, jarros de água, blocos de papel amarelo e lápis. Havia nove confortáveis poltronas e sobre os blocos de papel diante de seis delas viam-se pequenos pacotes alongados brancos selados com lacre vermelho. À direita, encostado na parede, via-se um comprido aparador coberto de prataria e cristais. Champanha descansava em baldes de prata e havia uma fileira de outras garrafas. Entre os vários alimentos, Bond notou duas latas redondas de cinco libras de caviar Beluga e várias terrinas de foie gras. Na parede do lado oposto ao aparador um quadro-negro pendia sobre uma mesa, em cima da qual havia papéis e um grande pacote alongado.

Goldfinger observou-os avançarem em sua direção sobre o grosso tapete cor de vinho. Apontou a cadeira à sua esquerda para Tilly Masterton e a da direita para Bond. Sentaram-se.

— A agenda? — pediu Goldfinger. Apanhou as cópias, leu a de cima e devolveu-as à moça. Fez um gesto circular com a mão. A moça levantou-se e distribuiu as cópias ao redor da mesa. Goldfinger enfiou a mão embaixo da mesa e tocou uma campainha oculta. A porta do fundo da sala abriu-se. Um dos coreanos entrou e ficou esperando.

— Tudo pronto?

O homem respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça.

— Você sabe que ninguém deve entrar nesta sala, a não ser as pessoas cujos nomes constam de sua lista? Muito bem. Alguns deles, talvez todos, virão acompanhados. As pessoas que os acompanham ficarão na ante-sala. Providencie para que tenham tudo quanto desejarem. As cartas e os dados estão lá? Faz-tudo — chamou Goldfinger, dirigindo-se ao coreano que ficara atrás da poltrona de Bond — vá assumir sua posição. Qual é o sinal?

Faz-tudo ergueu dois dedos.

— Certo — confirmou Goldfinger. — Dois toques da campainha. Pode ir. Providencie para que todo o pessoal faça seu trabalho com perfeição.

Bond perguntou casualmente:

— Quantos empregados tem?

— Vinte. Dez coreanos e dez alemães. São todos homens excelentes, escolhidos a dedo. Neste edifício acontece muita coisa. É como o interior de um navio de guerra.

Goldfinger descansou as mãos abertas sobre a mesa à sua frente e prosseguiu:

— E agora, suas funções. Srta. Masterton, tomará nota de todas as questões práticas que surgirem, tudo quanto tenha probabilidade de exigir ação de minha parte. Não se preocupe com a discussão, a conversa. Entendido?

Bond ficou satisfeito em ver que Tilly Masterton agora parecia brilhante e eficiente. Acenando energicamente com a cabeça, ela respondeu:

— Certamente.

— Sr. Bond, estou interessado em que observe todas as reações que possa notar dos oradores. Conheço muita coisa sobre todas essas pessoas. Em seus próprios territórios, são chefes supremos. Estão aqui só porque os subornei para que viessem. Nada sabem a meu respeito e preciso convencê-los de que sei o que estou falando e posso levá-los ao sucesso. A cobiça fará o resto. Mas talvez haja um ou mais que queiram recuar. Provavelmente se revelarão. Em seus casos, já adotei providências especiais. Contudo, poderá haver alguns duvidosos. Durante a conversa, ficará rabiscando com seu lápis nesta agenda. Casualmente anotará com um sinal de mais ou de menos ao lado dos nomes aqueles que considera a favor ou contra o projeto. Eu poderei ver o sinal que fizer. Suas opiniões talvez sejam úteis. E não se esqueça, Sr. Bond, que um traidor entre eles, um desertor, poderá fazer com que nós próprios acabemos mortos ou na prisão pelo resto da vida.

— Quem é esta Pussy Galore do Harlém?

— É a única mulher que dirige uma quadrilha nos Estados Unidos. É uma quadrilha de mulheres. Precisarei de algumas mulheres para esta operação. Ela é de absoluta confiança. Foi trapezista. Tinha uma equipe, que se chamava "Pussy Galore e suas Acróbatas" — Goldfinger não sorriu. — A equipe não conseguiu sucesso. Por isso, ela treinou as mulheres como ladras. Tornou-se uma quadrilha de extraordinária implacabilidade. É uma organização lésbica que agora se chama "Misturadoras de Cimento". Mesmo as grandes quadrilhas americanas respeitam-nas. Ela é uma mulher notável.

Uma campainha tocou baixinho sob a mesa. Goldfinger endireitou-se. A porta no fundo da sala abriu-se bruscamente e cinco homens entraram. Goldfinger levantou-se da cadeira e inclinou a cabeça em uma saudação, dizendo:

— Meu nome e Gold. Tenham a bondade de sentar-se,

Houve um cuidadoso murmúrio. Silenciosamente, os homens aproximaram-se da mesa, puxaram as poltronas e sentaram-se. Cinco pares de olhos fitavam Goldfinger friamente, cautelosamente. Goldfinger sentou-se e disse serenamente:

— Cavalheiros, nos pacotes à sua frente, cada um dos senhores encontrará uma barra de ouro de vinte e quatro quilates, no valor de quinze mil dólares. Agradeço-lhes a gentileza de seu comparecimento. A agenda explica-se por si própria. Enquanto esperamos a Srta. Galore, eu poderia talvez mencionar seus nomes para informação de meus secretários, Sr. Bond e Sra. Masterton. Não serão feitas anotações sobre esta reunião, exceto quanto a ações que porventura desejem sejam praticadas por mim. Agora, Sr. Bond, à sua direita está o Sr. Jed Midnight, do Sindicato da Sombra, que opera em Miami e Havana.

O Sr. Midnight era um homem grande, aparentemente amante da boa vida, com uma fisionomia jovial, mas olhos vagarosos e cautelosos. Vestia um terno de tropical azul-claro sobre uma camisa de seda branca ornamentada por pequenas palmeiras verdes. O complicado relógio de ouro que tinha no pulso devia pesar quase duzentos e cinqüenta gramas. Sorriu tensamente para Bond e disse:

— Prazer.

— Depois temos o Sr. Billy Ring, que controla a famosa "Máquina" de Chicago.

Bond olhou para o Sr. Billy Ring. Era um rosto saído de um pesadelo e, quando o rosto se voltou para Bond, sabia que era isso e observou a reações de Bond. Era um rosto de bebê, pálido e com formato de pêra, com a pele fofa e uma cabeleira macia de fios cor de palha, mas os olhos, que deviam ser azuis pálidos, eram castanhos amarelados. O branco dos olhos aparecia ao redor de toda a pupila e dava uma qualidade mesmérica ao olhar duro e vigilante, deformado por um tique da pálpebra direita que fazia o olho direito piscar a cada batida do coração. Em alguma fase inicial da carreira do Sr. Ring alguém cortara seu lábio inferior — talvez por ter falado demais — e isso lhe dava um permanente sorriso falso. Tinha uns quarenta anos de idade. Bond classificou-o como um assassino impiedoso. Sorriu jovialmente para o olhar duro do olho esquerdo do Sr. Ring e olhou além dele para o homem que Goldfinger apresentou então como sendo o Sr. Helmut Springer, da Quadrilha Roxa de Detroit.

O Sr. Springer tinha os olhos vidrados de alguém muito rico ou muito morto. Os olhos eram bolinhas de vidro opacas, azuis claras, que reconheceram Bond por um breve momento e depois se voltaram novamente para dentro em completa absorção consigo mesmo. O resto do Sr. Springer era de um "homem distinto" — discreto terno listrado, camisa Hathaway, Aqua-Velva. Dava a impressão de alguém que se encontrava na companhia errada — um portador de passagem de primeira classe em um compartimento de terceira classe, um homem da primeira fila que haviam levado por engano para o balcão.

O Sr. Midnight levou a mão à boca e disse baixinho para Bond:

— Não se deixe impressionar pelo Duque. Meu amigo Helmut foi o homem que pôs a camisa de pique por cima do capuz. A filha dele estuda no Vassar, mas é com dinheiro de extorsão que são pagos pelos seus tacos de hóquei.

Bond agradeceu com um aceno de cabeça.

— E o Sr. Solo, da Unione Siciliano.

O Sr. Solo tinha um rosto escuro e fechado, entristecido pelo conhecimento de muita culpa e muitos pecados. Seus grossos óculos de aros de chifre voltaram-se por um breve momento na direção de Bond e depois se curvaram de novo para acompanhar o trabalho da limpeza das unhas do Sr. Solo com um canivete. Era um homem grande e atarracado, meio boxador, meio garçom. Seria absolutamente impossível dizer que pensamentos havia em sua cabeça ou onde residia sua força. Contudo, só havia um chefe da Máfia nos Estados Unidos e, se o Sr. Solo tinha esse cargo, pensou Bond, obtivera-o pela força extraída do terror. Devia ser pelo exercício dos dois que o conservava.

— Prazer — disse o Sr. Jack Strap, do Bando Reluzente, que tinha o encanto artificial de um testa de ferro dos cassinos de Las Vegas, mas Bond imaginou que ele recebera a herança dos falecidos e pranteados irmãos Sprang graças a outras qualidades. Era um homem expansivo, espalhafatosamente vestido, de uns cinqüenta anos. Estava chegando ao fim de um charuto. Fumava-o como se o estivesse comendo, mastigando-o esfomeadamente. De tempos a tempos, virava a cabeça de lado e discretamente cuspia um pedaço dele sobre o tapete atrás de sua poltrona. Por trás dessas maneira compulsiva de fumar devia haver muita tensão. O Sr. Strap tinha os olhos vivos do conspirador. Parecia saber que seus olhos assustavam as pessoas, pois agora, presumivelmente não desejando assustar Bond, deu-lhes certo encanto enrugando-os nos cantos.

A porta no fundo da sala abriu-se. Uma mulher vestindo um taier preto de corte masculino com um peitilho alto de renda cor de café apareceu na porta. Caminhou vagarosamente, desembaraçadamente, através da sala e colocou-se atrás da poltrona vazia. Goldfinger levantou-se. Ela o examinou cuidadosamente e depois correu os olhos ao redor da mesa. Disse um entediado "Alô" coletivo e sentou-se. O Sr. Strap disse "Alô, Pussy" e os outros, exceto o Sr. Springer que se limitou a fazer uma curvatura, emitiram cautelosos sons de cumprimento.

— Boa tarde, Srta. Galore — disse Goldfinger. — Acabamos de passar pela formalidade de apresentações. A agenda está à sua frente, juntamente com a barra de ouro de quinze mil dólares que lhe pedi para aceitar como compensação pela despesa e pelo incômodo de comparecer a esta reunião.

A Srta. Galore apanhou seu pacote e abriu-o. Pesou na mão o cintilante tijolo de ouro. Lançou sobre Goldfinger um olhar direto e desconfiado.

— Inteirinha? — perguntou.

— Inteirinha.

A Srta. Galore enfrentou o olhar de Goldfinger.

— Desculpe-me perguntar — disse, com o tom de voz ríspido de uma compradora sovina em uma liquidação.

Bond gostou de seu olhar. Sentiu o desafio sexual que todas as lésbias bonitas apresentam aos homens. Divertiu-se com a atitude intransigente que parecia dizer a Goldfinger e a todos os outros presentes: "Todos os homens são bastardos e embrulhões. Não me venham com alguma conversa masculina. Não vou nisso. Pertenço a uma liga separada." Bond achou que ela devia ter trinta e poucos anos. Tinha a aparência boa e pálida de Rupert Brooke com maçãs altas e um belo maxilar. Era a única pessoa de olhos cor de violeta que Bond já vira. Eram da verdadeira cor violeta profunda do amor-perfeito e olhavam candidamente para o mundo por baixo de sobrancelhas pretas e retas. Seus cabelos, pretos como os de Tilly Masterton, eram despenteados como os de um moleque. A boca era um decidido corte de vermelho vivo. Bond achou-a maravilhosa e, como observou, o mesmo pensava Tilly Masterton, que olhava para a Srta. Galore com olhos de adoração e lábios que suspiravam. Bond decidiu que para ele agora estava tudo claro no que se referia a Tilly Masterton.

Goldfinger disse:

— E agora devo apresentar-me. Meu nome não é Gold. Minhas credenciais são as seguintes. Por meio de variadas operações, em sua maioria ilícitas, juntei uma grande soma de dinheiro em vinte anos. Essa soma alcança hoje sessenta milhões de dólares. (Um respeitoso sussurro correu pela mesa.) Minhas operações, em sua maior parte, limitaram-se à Europa, mas talvez interesse aos senhores saber que eu fundei e posteriormente vendi a empresa "Distribuidores Papoula Dourada", que operava em Hong-Kong. (O Sr. Jack Strap assobiou baixinho). A "Agência de Viagens Feliz Aterragem", que alguns dos senhores talvez tenham empregado em uma emergência, foi de minha organização e propriedade até quando a dissolvi. (O Sr. Helmut Springer colocou um monóculo sem aro em um de seus olhos vidrados para poder examinar Goldfinger mais de perto). Menciono essas pequenas empresas para mostrar-lhes que, embora talvez não me conheçam, creio ter, no passado, trabalhado em muitas mudanças em nome de todos os senhores. ("Bem, quem diria?" murmurou o Sr. Jad Midnight com um tom de respeito na voz). Assim cavalheiros e... hum... senhora, é que os fiquei conhecendo e decidi convidar para comparecer aqui esta noite o que, como aprendi através de minha própria experiência, é, se assim posso dizer, a aristocracia do crime americano."

Bond estava impressionado. Em três minutos marcados no relógio, Goldfinger voltara a reunião a seu favor. Agora todos olhavam em sua direção com profunda atenção. A própria Srta. Pussy Galore tinha os olhos extasiados. Bond nada sabia a respeito dos Distribuidores Papoula Dourada ou da Agência Feliz Aterragem, mas deviam ter funcionado como relógio pela expressão que via no rosto de seus antigos fregueses. Agora todos estavam pendentes das palavras de Goldfinger como se ele fosse Einstein.

A fisionomia de Goldfinger não denotou emoção. Fez com a mão direita um gesto de quem afasta alguma coisa e disse em tom monótono:

— Mencionei dois projetos meus que foram bem sucedidos. Foram pequenos. Houve muitos outros de maior calibre. Nenhum deles falhou e, pelo que eu saiba, em nenhum país meu nome consta dos arquivos policiais. Digo isto para mostrar-lhes que conheço perfeitamente minha... nossa... profissão. E agora, cavalheiros e senhora, proponho-me a oferecer-lhes sociedade em um empreendimento que sem a menor dúvida colocará no tesouro de cada um dos senhores, dentro de uma semana, a importância de um bilhão de dólares.

O Sr. Goldfinger ergueu a mão e acrescentou:

— Na Europa e nos Estados Unidos temos opiniões diferentes sobre o que constitui a expressão aritmética de "um bilhão". (*) Emprego a palavra no sentido de mil milhões. Estou sendo claro?

 

(*) Na numeração francesa e americana, um bilhão (billion) corresponde a mil milhões; na numeração inglesa e alemã, corresponde; a um milhão de milhões.

 

                                       "Crime de la crime"

Um rebocador apitou no rio. Outro respondeu. Uma confusão de barulhos de motores foi-se distanciando.

O Sr. Jed Midnight, à direita de Bond, pigarreou e disse enfaticamente:

— Sr. Gold, ou seja qual for seu nome, não se preocupe com definições. Um bilhão de dólares é um monte de dinheiro, seja qual for a interpretação que lhe queira dar. Continue.

O Sr. Solo ergueu seus vagarosos olhos pretos e olhou para Goldfinger através da mesa.

— Sim, é muito dinheiro — disse. — Qual vai ser sua parte, cavalheiro?

— Cinco bilhões.

Jack Strap, de Las Vegas, soltou uma curta e violenta risada.

— Escutem, companheiros, que importam alguns bilhões entre amigos. Se o Sr.... hum... Sei-lá-quem-é pode levar-me até onde há um bilhão de dólares, terei o maior prazer em escorregar-lhe uma nota ou mesmo uma supernota pelo seu trabalho. Não sejamos mesquinhos nessa questão, eh?

O Sr. Helmut Springer bateu seu monóculo sobre o tijolo de ouro à sua frente. Todos olharam em sua direção.

— Sr.... hum... Gold — era a voz grave do advogado da família. — São cifras muito grandes as que menciona. Pelo que entendi, envolvem o total de uns doze bilhões de dólares.

O Sr. Goldfinger disse com precisão:

— A cifra exata aproximar-se-á de quinze bilhões. Por conveniência, referi-me apenas às quantias que, segundo penso, nós poderíamos carregar.

Uma risadinha aguda e excitada veio do Sr. Billy Ring.

— Perfeitamente, perfeitamente, Sr. Gold — disse o Sr. Springer, voltando a colocar seu monóculo no olho para observar as reações de Goldfinger. — Mas ouro ou papel-moeda nessa quantidade só pode ser encontrado reunido em três depósitos nos Estados Unidos. São eles a Casa Federal da Moeda, em Washington, o Banco Federal de Reserva, em Nova York, e Fort Knox, em Kentucky. Pretende que... hum... "abramos" um desses três? E, em caso afirmativo, qual deles?

— Fort Knox.

No meio do coro de gemidos, o Sr. Midnight disse resignadamente:

— Cavalheiro, nunca encontrei fora de Hollywood quem tivesse o que o senhor tem. É o que se chama de "visão". E visão, cavalheiro, é o talento de tomar manchas diantes dos olhos por projetos fabulosos. O senhor devia ter uma conversa com seu psiquiatra ou tomar um pouco de tranqüilizante.

Sacudindo tristemente a cabeça, o Sr. Midnight concluiu:

— É pena. Aquele bilhão sem dúvida parecia muito bom enquanto foi meu.

A Srta. Pussy Galore disse com voz profunda e entediada:

— Sinto muito, cavalheiro, nenhum de meus grampos de cabelo poderia tirar coisa alguma dessa espécie de cofrinho.

Fez menção de levantar-se. Goldfinger disse amàvelmente.

— Agora, ouçam-me até o fim, cavalheiros e... hum..., senhora. Sua reação não foi inesperada. Permitam-me expor a coisa desta maneira: Fort Knox é um banco como qualquer outro banco. Mas é um banco muito maior e seu aparelha-mento protetor é correspondentemente mais forte e mais engenhoso. Para penetrar nele serão necessárias força e engenhosidade correspondentes. Essa é a única novidade de meu projeto: o fato de ser grande. Nada mais. Fort Knox não é mais inexpugnável que qualquer outra fortaleza. Sem dúvida, todos nós pensávamos que a organização Brink era invencível até quando meia dúzia de homens decididos roubaram um milhão de dólares de um carro blindado da Brink em 1950. É impossível fugir de Sing Sing, mas já houve homens que encontraram meios de escapar de lá. Não, não, cavalheiros. Fort Knox é um mito como todos os outros mitos. Devo continuar expondo o plano?

Billy Ring assobiava entre os dentes, como um japonês, quando falava. Disse rudemente:

— Escute aqui, tira. Talvez não saiba, mas a Terceira Divisão Blindada está aquartelada em Fort Knox. Se isso é um mito, por que os russos não vêm tomar os Estados Unidos na próxima vez em que haja um time deles aqui jogando hóquei no gelo?

Goldfinger sorriu levemente.

— Se me permite corrigi-lo, sem enfraquecer sua argumentação, Sr. Ring, é a seguinte a ordem de batalha das unidades militares atualmente aquarteladas em Fort Knox. Da Terceira Divisão Blindada, há apenas a Ponta de Lança, mas lá se encontram também o 6.° Regimento de Cavalaria Blindada, o 15.° Grupo Blindado, o 160.° Grupo de Engenharia e aproximadamente meia divisão de homens de todas as unidades do Exército dos Estados Unidos, atualmente passando pelo Centro de Treinamento de Reposição Blindada e pela Unidade Militar de Pesquisa Humana N.° 1. Há ainda considerável corpo de homens ligados à Junta Continental de Comando Blindado N.° 2, à Junta de Subsistência do Exército e as várias atividades relacionadas com o Centro Blindado. Além disso, há uma força policial formada por vinte oficiais e cerca de quatrocentos homens. Em suma, de uma população total de cerca de sessenta mil pessoas, aproximadamente vinte mil são tropas combatentes de alguma espécie.

— E quem vai fazer "bu!" para eles? — perguntou sarcasticamente o Sr. Jack Strap através de seu charuto. Sem esperar pela resposta, arrancou revoltado o amassado toco de charuto da boca e esmagou-o no cinzeiro.

A seu lado, a Srta. Pussy Galore chupou os dentes estridentemente com a agressividade de um papagaio cuspindo. Disse:

— Por que não compra uns charutos melhores, Jack? Esse negócio cheira como calção de lutador quando pega fogo.

— Não encha, Puss — disse o Sr. Strap deselegantemente.

A Srta. Galore estava decidida a dizer a última palavra. Disse suavemente:

— Sabe de uma coisa, Jack? Eu seria capaz de cair por um homem macho como você. Para dizer a verdade, escrevi uma canção sobre você outro dia. Quer saber o título? Chamava-se: "Se eu tivesse de fazer tudo de novo, faria tudo em cima de você."

O Sr. Midnight soltou uma gargalhada e o Sr. Ring deu uma risadinha. Goldfinger bateu levemente na mesa para impor ordem. Depois, falou pacientemente:

— Agora, ouçam-me até o fim, por favor, cavalheiros. Levantou-se, foi até o quadro negro e desenrolou um mapa sobre ele. Era uma mapa pormenorizado da cidade de Fort Knox, incluindo o aeródromo Godman, do Exército, e as rodovias e estradas de ferro que entravam na cidade. Os membros da comissão do lado direito da mesa viraram suas poltronas. Goldfinger apontou para o Depósito de Ouro. Estava embaixo, no canto esquerdo, encerrado em um triângulo formado pela Dixie Highway, Bullion Boulevard e Vine Grove Road.

— Vou mostrar-lhes daqui a pouco uma planta detalhada do depósito — disse Goldfinger, fazendo uma pausa antes de acrescentar: — Agora, cavalheiros, permitam-me que lhes aponte os principais acidentes desta cidade bastante simples. Aqui — correu o dedo do meio do mapa, no alto, para baixo, através da cidade e até além do Depósito de Ouro — correm os trilhos da Estrada de Ferro Illinois Central, que vêm de Louisville, 56 quilômetros ao norte, atravessa a cidade e segue até Elizabethtown, 29 quilômetros ao sul. Não estamos interessados na Estação Brandenburg, no centro da cidade, mas neste conjunto de desvios vizinho ao Depósito de Ouro. Este é um dos pontos de carga e descarga do ouro que vem da Casa da Moeda em Washington. Outros meios de transporte até o depósito, que são variados sem rodízio certo por motivos de segurança, são comboios de caminhões que descem a Dixie Highway e aviões de carga que pousam no aeródromo Godman. Como podem ver, o depósito é isolado por essas três rotas e fica sozinho sem qualquer proteção natural no centro de um gramado de aproximadamente cinqüenta acres. Só há um caminho que leva ao depósito, uma estrada de cinqüenta metros que atravessa portões fortemente armados no Bullion Boulevard. Uma vez dentro da estacada blindada, os caminhões seguem por esta estrada circular que dá a volta ao depósito até a entrada traseira, onde o ouro é descarregado. Esta estrada circular, cavalheiros, é feita de lajes ou chapas de aço. Essas chapas estão sobre dobradiças e, em caso de emergência, toda a superfície de aço da estrada pode ser erguida hidraulicamente de modo a criar uma segunda estacada interna de aço. Fato não muito evidente à vista, mas de meu conhecimento, é que um túnel subterrâneo corre por baixo do terreno entre o Bullion Boulevard e a Vine Grove Road. Serve como meio adicional de acesso ao depósito subterrâneo através de portas de aço que levam da parede do túnel até o primeiro andar subterrâneo do depósito.

Goldfinger fez uma pausa e afastou-se do mapa. Correu os olhos ao redor da mesa.

— Muito bem, cavalheiros. Este é o depósito e aquelas são as principais vias de acesso a ele, com exceção de sua porta da frente, que é puramente uma entrada para o salão de recepção e os escritórios. Alguma pergunta?

Não houve perguntas. Todos os olhos estavam fitos em Goldfinger, esperando. Mais uma vez a autoridade de suas palavras prendera a atenção. Esse homem parecia conhecer sobre os segredos de Forte Knox muito mais coisas do que já fora revelado ao mundo.

Goldfinger voltou ao quadro-negro e desenrolou outro mapa sobre o primeiro. Este era uma planta detalhada do Depósito Subterrâneo de Ouro.

— Bem, cavalheiros — disse Goldfinger, podem ver que este é um sólido edifício de dois andares, mais ou menos semelhante a um bolo quadrado de duas camadas. Notem que o teto foi reforçado para proteção contra bombas e observem que há quatro ninhos de metralhadoras no chão, nos quatro cantos. São de aço e ligados ao interior do edifício. As dimensões externas do edifício são 31 por 36 metros. A altura acima do nível do solo é de pouco mais de 12 metros. A construção é de granito de Tennessee, revestido de aço por dentro. As quantidades exatas de material empregado na construção são as seguintes: 450 metros cúbicos de granito, 3.000 metros cúbicos de concreto, setecentas e cinqüenta toneladas de aço de reforço e setecentas e sessenta toneladas de aço estrutural. Certo? Agora, dentro do edifício há um cofre de dois andares, feito de aço e concreto, dividido em compartimentos. A porta do cofre pesa mais de vinte toneladas e a carcaça do cofre é de chapas de aço, vigas de aço e cilindros de aço presos por tiras de aço e embutidos em concreto. O teto é de construção semelhante, sendo independente do teto do edifício. Um corredor circunda o cofre nos dois níveis e dá acesso tanto ao cofre como aos escritórios e aos almoxarifados que ficam do lado de dentro da parede externa do edifício. A nenhuma pessoa é confiada a combinação da porta do cofre. Vários membros categorizados do quadro de funcionários do depósito precisam girar separadamente combinações que só cada um deles conhece. Naturalmente, o edifício é dotado do que há de mais moderno e melhor em matéria de engenhos protetores. Há um forte posto de guarda dentro de edifício e reforços imensamente poderosos estão sempre de prontidão no Centro Blindado, a menos de quilômetro e meio de distância. Estão-me acompanhando? Agora, quanto ao conteúdo efetivo do cofre — atinge, como já disse, cerca de quinze bilhões de dólares em barras de cunhagem padronizada com mil de pureza. Cada barra é duas vezes maior que aquelas à frente dos senhores e contém quatrocentas onças Troy, sendo seu peso "avoirdupois" de aproximadamente vinte e sete libras e meia. (*) Essas barras estão guardadas sem envoltório nos compartimentos do cofre.

 

(*) N. do T. — No sistema Troy, usado pelos joalheiros na Inglaterra e EUA, cada onça corresponde a 31,1035 gramas. No sistema "avoirdupois", que é o mais geralmente usado nos países da língua inglesa, a onça corresponde a 28,349 gramas e a libra a 453,592 gramas.

 

Goldfinger correu os olhos ao redor da mesa e prosseguiu:

— E isso, cavalheiros e senhora, é tudo quanto posso dizer e penso ser tudo quanto precisamos saber sobre a natureza e o conteúdo do Depósito de Fort Knox. A menos que haja alguma pergunta nesta fase, passarei a dar uma breve explicação da maneira como se pode penetrar nesse depósito e apanhar seu conteúdo.

Fez-se silêncio. Os olhos em volta da mesa estavam extasiados, absortos. Nervosamente, o Sr. Jack Strap tirou um charuto de tamanho médio do bolso do paletó e enfiou-o no canto da boca.

— Se acender esse negócio, juro que o ponho nocaute com meu tijolo de ouro — disse severamente Pussy Galore, segurando ameaçadoramente a barra de ouro.

— Calma, menina — falou o Sr. Strap pelo canto da boca.

O Sr. Jed Midnight comentou decisivamente:

— Cavalheiro, se for capaz de assaltar esse armazém, merecerá nota cem com distinção. Continue contando. Isto será uma palhaçada ou o Crime de Ia Crime.

Goldfinger prosseguiu com indiferença:

— Muito bem, cavalheiros. Vão ouvir o plano.

Fez uma pausa e olhou cuidadosamente em volta da mesa, fitando cada par de olhos por sua vez.

— Mas espero — continuou — que compreendam que agora precisa prevalecer segurança total. O que disse até agora, se fosse repetido, seria considerado como delírios de um lunático. O que estou para dizer envolverá todos nós na maior conspiração já havida em tempo de paz na história dos Estados Unidos. Posso ter certeza de que estamos todos presos a compromisso de segredo absoluto.

Quase instintivamente, Bond observou os olhos do Sr. Helmut Springer, de Detroit. Enquanto dos outros vinham afirmativas em vários tons de voz, o Sr. Springer velou seus olhos. Seu imponente "Dou-lhe minha solene palavra" soava oco. Para Bond, a sinceridade era tão falsa quanto a de um vendedor de automóveis usados. Casualmente, fez na agenda um sinal de menos ao lado do nome do Sr. Springer.

— Então, muito bem — disse Goldfinger, voltando a seu lugar na mesa. Sentou-se, apanhou seu lápis e começou a falar com ele em tom de voz pensativo e coloquial: — A primeira, e em certos sentidos a mais difícil, é a questão do carregamento. Um bilhão de dólares em barras de ouro pesa aproximadamente mil toneladas. Para transportar esse peso seriam necessários cem caminhões de dez toneladas ou uns vinte transportes rodoviários da indústria pesada de seis rodas. Recomendo estes últimos veículos. Tenho uma lista das companhias que alugam esse tipo de veículo e recomendo que, se ficarmos sócios, comecem imediatamente depois desta reunião a fazer contratos com as companhias importantes de suas regiões. Por motivos óbvios, todos desejarão empregar seus próprios motoristas e isso deixo ao cuidado dos senhores. Sem dúvida — o Sr. Goldfinger deixou aparecer em seu rosto a sombra de um sorriso — a Teamsters' Union poderá ser uma frutífera fonte de homens dignos de confiança e os senhores talvez queiram considerar a possibilidade de recrutar ex-motoristas do Negro Red Bali Express, que serviu aos exércitos americanos durante a guerra. Todavia, esses são pormenores que exigem planejamento e coordenação exatos. Haverá também um problema de controle de tráfego e sem dúvida os senhores combinarão entre si a maneira de partilhar as estradas disponíveis. Aviões de transporte serão um meio subsidiário de mobilidade e haverá providências para manter aberta a pista norte-sul no aeródromo Godman. O que os senhores farão posteriormente com o ouro será, naturalmente, problema seu. Quanto a mim — Goldfinger olhou friamente em volta da mesa — usarei inicialmente a estrada de ferro e, como tenho um problema de transporte maior, creio que me permitirão reservar para mim esse meio de saída.

Goldfinger não esperou comentários, mas continuou em tom uniforme:

— Em comparação com esse problema de transporte, os outros arranjos serão relativamente simples. Para começar, no

Dia D-l, proponho que toda a população, militar e civil, de Fort Knox seja posta temporariamente fora de ação. Os planos precisos já estão preparados e só aguardam sinal meu para sua execução. Em síntese, a cidade toda é abastecida de água por dois poços e duas estações de tratamento que fornecem pouco menos de 30 milhões de litros por dia. Estão sob a administração de um engenheiro. Esse cavalheiro disse que terá muito prazer em receber a visita do superintendente e vice-superintendente do Departamento de Água da Municipalidade de Tóquio, que desejam estudar o funcionamento de uma instalação desse tamanho para sua adaptação a um novo subúrbio planejado na capital japonesa. O engenheiro ficou muito lisonjeado por esse pedido e proporcionará todas as facilidades aos cavalheiros japoneses. Estes cavalheiros, que são naturalmente empregados meus, levarão consigo quantidades relativamente pequenas de um narcótico altamente concentrado inventado pelos especialistas alemães de guerra química durante o último conflito exatamente para esse propósito. Essa substância espalha-se rapidamente em um volume de água dessa magnitude e, em sua forma assim altamente diluída, tem o efeito de narcotizar instantaneamente, mas temporariamente, toda pessoa que tome meio cálice da água contaminada. Os sintomas são um sono profundo e instantâneo, do qual a vítima desperta muito revigorada aproximadamente três dias depois. Cavalheiros — Goldfinger estendeu uma mão com a palma para cima — no mês de junho, em Kentucky, considero fora de cogitação que um único morador seja capaz de passar vinte e quatro horas sem consumir meio copo de água. No Dia-D talvez haja alguns alcoólatras inveterados em pé, mas prevejo que entraremos em uma cidade na qual virtualmente toda a população caiu em profundo sono no lugar onde se encontrava.

— Qual é mesmo aquela história de fadas? — perguntou a Srta. Galore, cujos olhos brilhavam ao imaginar a cena.

— Gato de Botas — respondeu o Sr. Jack Strap com voz ríspida. — Continue, cavalheiro. Isso é muito bom. Como vamos entrar na cidade.

— Entraremos — explicou Goldfinger — em um trem especial que partirá de Nova York na noite de D-1. Seremos aproximadamente cem pessoas e estaremos vestidos como elementos da Cruz Vermelha. A Srta. Galore, segundo espero, fornecerá o necessário contingente de enfermeiras. É para desempenhar esse pequeno, mas importante papel, que ela foi convidada a comparecer a esta reunião.

— Será maravilhoso! Minhas garotas ficam lindas de uniforme. Que acha, Jack? — disse entusiàsticamente a Srta. Galore, inclinando-se de lado e cutucando com o cotovelo as costas do Sr. Strap.

— Eu diria que elas ficam mais bonitas com capote de cimento — respondeu impacientemente o Sr. Strap. — Por que está-me cutucando? Continue, cavalheiro.

— Em Louisville, a cinqüenta e seis quilômetros de Fort Knox, eu próprio e um auxiliar pediremos permissão para viajar na máquina diesel. Teremos conosco delicados instrumentos. Diremos que será necessário colher amostras do ar nas proximidades de Fort Knox, pois, a essa altura, a notícia do misterioso mal que atacou os habitantes terá chegado ao mundo exterior e provavelmente haverá certo pânico na área circundante e até mesmo no país todo. É de esperar que pouco depois de nossa chegada, de madrugada, aproximem-se aviões de socorro e uma tarefa inicial será guarnecer a torre de controle no aeródromo Godman, declarar a base interditada e desviar todos os aviões para Louisville. Mas, voltando um pouco atrás, pouco depois de deixar Louisville, meu auxiliar e eu eliminaremos o maquinista e seu ajudante pelos métodos mais humanos possíveis (aposto que sim, pensou Bond) e eu pessoalmente levarei o trem — posso assegurar que tenho o necessário conhecimento sobre essas locomotivas — através de Fort Knox até os desvios ao longo do depósito.

Goldfinger fez uma pausa. Correu pelo círculo os olhos vagarosos e graves. Satisfeito com o que viu, continuou no mesmo tom uniforme:

— A essa altura, cavalheiros e senhora, seus comboios de caminhões deverão estar chegando. O controlador do tráfego distribuirá os veículos pelas proximidades do depósito de acordo com um plano preestabelecido, o pessoal incumbido do controle aéreo seguirá de caminhão para o aeródromo Godman a fim de ocupá-lo, e nós entraremos no depósito, sem prestar atenção aos corpos adormecidos com que a paisagem estará... hum... enfeitada. Certo?

Os olhos pretos do Sr. Solo ardiam do outro lado da mesa. Disse baixinho:

— Claro, tudo está certo até agora. Agora, talvez... — encheu as bochechas de ar e deu um rápido e forte sopro na direção de Goldfinger — o senhor faça isto e a porta de vinte toneladas cairá sozinha. É assim?

— Sim — respondeu Goldfinger serenamente. — Quase exatamente assim.

Ergueu-se e foi até uma mesa embaixo do quadro negro, apanhou uma grande e desajeitada caixa, levou-a cuidadosamente de volta e colocou-a sobre a mesa à sua frente. Parecia ser muito pesada. Sentou-se e continuou:

— Enquanto dez de meus auxiliares treinados fazem os preparativos para abrir o cofre, turmas de padioleiros entrarão no depósito e transportarão para lugar seguro o maior número possível de homens que possam ser localizados.

Bond pensou ter notado um traiçoeiro ronronar de satisfação por baixo das palavras seguintes de Goldfinger.

— Estou certo de que todos os senhores, cavalheiros e senhora, concordarão em que deve ser evitada toda perda desnecessária de vida. Até aqui, espero que tenham notado, não houve vítimas com exceção dos dois empregados da Estrada de Ferro Illinois Central que ficaram com uns gaios na cabeça. — Goldfinger não esperou comentários, mas prosseguiu, estendendo a mão e colocando-a sobre a caixa: — Cavalheiros, quando os senhores e seus sócios precisam de armas, além das pequenas armas convencionais, onde as encontram? Nos estabelecimentos militares, cavalheiros. Os senhores compram metralhadoras portáteis e outros equipamentos pesados de almoxarifes da intendência em bases militares próximas. Têm conseguido isso mediante o emprego de pressão, chantagem ou dinheiro. Eu fiz o mesmo. Só uma arma seria suficientemente poderosa para abrir com uma explosão o depósito de ouro de Fort Knox e, depois de muito procurar eu a obtive em certa base militar aliada na Alemanha. Custou-me exatamente um milhão de dólares. Isto, cavalheiros, é uma ogiva atômica, destinada a ser usada com o Projétil Teleguiado "Caporal" de Alcance Intermediário.

— Jesus Cristo! — exclamou Jed Midnight, cujas mãos se estenderam para a beirada da mesa ao lado de Bond e seguraram-na.

Todos os rostos em volta da mesa estavam pálidos. Bond pôde sentir a pele esticada sobre seu próprio maxilar tenso. Para romper essa tensão, tirou os Chesterfields do bolso do paletó e acendeu um. Vagarosamente soprou a chama e tornou a guardar o isqueiro no bolso. Deus Todo-Poderoso! Em que se metera? Bond procurou relembrar seus conhecimentos sobre Goldfinger. O primeiro encontro com o corpo bronzeado e nu sobre o teto do Floridiana Cabana Club. A maneira casual como dera uma lição em Goldfinger. A entrevista com M. A reunião no banco, durante a qual se falara em perseguir um contrabandista de ouro — reconhecidamente grande e que trabalhava para os russos — mas ainda assim apenas um criminoso de estatura humana, alguém que Bond se dera ao trabalho de derrotar no golfe e depois perseguira fria e eficientemente, mas ainda assim apenas mais uma caça como tantas outras. E agora! Não era um coelho que estava na toca do coelho, nem mesmo uma raposa. Era uma cobra rainha — o maior e mais mortal habitante do mundo! Bond suspirou abatido. Mais uma vez à luta, queridos amigos! Desta vez eram realmente São Jorge e o dragão. E São Jorge faria bem em pôr-se em ação e fazer alguma coisa antes que o dragão picasse o ovo do dragãozinho que estava agora chocando tão confiantemente. Bond sorriu tensamente. Fazer o que? Que poderia fazer, Santo Deus?

Goldfinger ergueu a mão.

— Cavalheiros e senhora, podem crer-me, este objeto é uma peça de máquina inteiramente inofensiva. Não está armado. Se eu batesse nele com um martelo, não explodiria. Nada pode fazer com que exploda antes que esteja armado e isso só acontecerá no Dia.

O rosto pálido do Sr. Billy Ring estava brilhante de suor. As palavras tremeram ligeiramente quando foram assobiadas através do falso sorriso:

— Cavalheiro, que... que me diz dessa coisa que chamam... hum... chuva radiativa?

— A chuva radiativa será mínima, Sr. Ring, e extremamente localizada. Este é o último modelo — a chamada bomba atômica "limpa". Apesar disso, trajes protetores serão dados ao esquadrão que entrar primeiro nas ruínas do edifício. Esses homens formarão o primeiro elo da cadeia humana que tirará o ouro e o transportará para os caminhões que estarão esperando.

— E os destroços que voarão, cavalheiro? Pedaços de concreto, aço e outras coisas? — perguntou o Sr. Midnight, cuja voz parecia vir de um lugar qualquer em seu estômago.

— Nós nos abrigaremos por trás da estacada externa de aço do depósito, Sr. Midnight. Todo o pessoal usará tapa-ouvidos. Alguns dos caminhões sofrerão pequenos danos, mas esse risco precisa ser aceito.

— E os caras que estiverem dormindo? — indagou o Sr. Solo, em cujos olhos havia cobiça. — Talvez apenas durmam mais um pouco?

O Sr. Solo evidentemente não se preocupava muito com os caras que estivessem dormindo.

— Levaremos para lugar seguro o maior número possível. Acho que precisamos aceitar a possibilidade de pequenos danos à cidade. Calculo que as baixas entre a população serão aproximadamente iguais ao número de pessoas que morrem em três dias nas ruas e estradas de Fort Knox. Nossa operação servirá simplesmente para manter estável o nível das estatísticas de acidentes de trânsito.

— Será muita bondade nossa — comentou o Sr. Midnight, cujos nervos se haviam recuperado.

— Mais alguma pergunta?

A voz de Goldfinger era suave. Havia lido as cifras e calculado as perspectivas do negócio. Agora era tempo de promover a votação.

— Restam detalhes para ser determinados com exatidão. Nisso, estes meus funcionários — disse Goldfinger, virando-se primeiro para Bond e depois para a Srta. Masterton — me ajudarão. Esta será nossa sala de operações à qual todos os senhores terão acesso a qualquer hora do dia ou da noite. O nome cifrado do projeto é "Operação Grande Golpe", que deverá ser sempre usado quando se fizer referência a ele. Permito-me sugerir que aqueles dos senhores que desejarem participar informem um e apenas um de seus auxiliares de maior confiança. O resto do pessoal pode ser treinado para suas funções como se isto fosse um assalto rotineiro a um banco. No D-l será necessário dar informações um pouco mais amplas ao pessoal. Sei que posso confiar em que os senhores, cavalheiros e senhora, se decidirem participar, tratarão todo este projeto como uma operação de guerra. Ineficiência ou insegurança precisarão, é claro, ser enfrentadas decididamente. E agora, cavalheiros e senhora, peço-lhes que respondam em nome de suas respectivas organizações. Quais dos senhores desejam entrar no páreo? O prêmio é gigantesco. Os riscos são mínimos. Sr. Midnight?

Goldfinger virou a cabeça um centímetro para a direita. Bond viu o olhar de raios X muito aberto devorar seu vizinho.

— Sim?

Houve uma pausa.

— Ou não?

 

                                       Apêndice secreto

—Sr. Gold — proclamou sonoramente Joe Midnight — o senhor é sem dúvida a maior coisa que já apareceu no crime desde quando Caim inventou o homicídio e o aplicou em Abel. — Fez uma pausa e acrescentou enfaticamente: — Considero uma honra estar associado ao senhor neste empreendimento.

— Obrigado, Sr. Midnight. E o Sr. Ring?

Bond tinha dúvidas quanto ao Sr. Billy Ring. Rabiscara sinais de mais ao lado de todos os nomes, exceto Ring e Helmut Springer. Ao Sr. Ring atribuíra um zero e a Springer um sinal de menos. Chegara a essa conclusão observando olhos, bocas e mãos, mas nada fora revelado pelo imutável sorriso falso do Sorridente. O piscar de seu olho direito fora tão estável na pulsação quanto um metrônomo e suas mãos haviam sido sempre conservadas embaixo da mesa.

Agora Billy Ring tirou as mãos de baixo da mesa e formou uma cama de gato com elas sobre a baeta verde à sua frente. Por um momento ficou observando os dois polegares girando, depois ergueu seu rosto de pesadelo para Goldfinger. O tique em seu olho direito cessara. As duas fileiras de dentes começaram o agir como o boneco de um ventríloquo.

— Cavalheiro — tinha dificuldade com o "b", e o "m" e o "p", e pronunciava-os baixando o lábio superior sobre os dentes, como um cavalo faz quando come açúcar nas mãos de uma pessoa — há muito tempo meus amigos e eu voltamos à legalidade. Quero dizer que os velhos tempos em que cadáveres ficavam estendidos por toda a paisagem acabaram com a década de quarenta. Eu e meus sócios vamos indo muito bem com as garotas, a erva e as corridas de cavalos. Quando ficamos meio duros, nossos bons amigos dos sindicatos escorregam-nos a nota que falta. Como vê, cavalheiro — o Sorridente abriu as mãos e depois voltou a formar a cama de gato — achamos que os velhos tempos passaram. Big Jim Colossimo, Johnny Torrio, Dion O'Bannion, Al Capone — onde estão hoje esses caras, eh? Estão dormindo o sono dos justos. Talvez o senhor não estivesse por aqui no tempo que, entre os combates, nos íamos esconder na Little Bohemia, lá no fundo de Milwaukee. Bem, cavalheiro, naquele tempo o pessoal atirava tanto uns nos outros que a gente muitas vezes precisava de um programa para distinguir os atores dos espectadores. Afinal, o pessoal se cansou — aqueles que já não estavam descansando de uma vez, se é que me entende — e, quando chegou a década de cinqüenta e eu tomei conta da turma, foi unânime a opinião de que deveríamos abandonar o negócio de fogos de artifício. E agora, cavalheiro? Agora aparece o senhor propondo que eu e meus amigos o ajudemos a fazer o maior bombardeio da história! Assim, que devo dizer sobre sua proposta, Sr.... hum... Não-se-o-quê? Bem, eu lhe digo, cavalheiro. Toda gente tem seu preço, não é? Por um bilhão de dólares, está feito. Vamos guardar as bolinhas de vidro e apanhar os estilingues. Estamos dentro.

— Sorridente, você leva um tempão dos diabos para dizer — sim — comentou azedamente o Sr. Midnight.

Goldfinger disse cordialmente:

— Obrigado por sua interessantíssima declaração, Sr. Ring. Sinto-me muito feliz em receber a colaboração sua e de seus sócios. Sr. Solo?

Antes de responder, o Sr. Solo enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um barbeador de pilha. Ligou-o. O barulho de abelhas zangadas encheu a sala. O Sr. Solo inclinou a cabeça para trás e começou pensativamente a passar a máquina pelo lado direito do rosto, enquanto seus olhos voltados para cima procuravam a decisão no forro. De repente, desligou o barbeador, colocou-o sobre a mesa à sua frente, jogou a cabeça para baixo e para a frente como uma cobra dando o bote. Seus olhos pretos como bocas de revólver apontaram ameaçadoramente para Goldfinger por cima da mesa e moveram-se vagarosamente de um lugar para outro do grande rosto redondo como a lua. Metade do rosto do Sr. Solo parecia nua. A outra metade estava escura devido ao descontrolado crescimento da barba tipicamente italiano. Bond calculou que ele provavelmente precisava barbear-se cada três ou quatro horas. Agora o Sr. Solo decidira falar. Falou com voz que provocou calafrios na sala. Disse maciamente:

— Cavalheiro, eu o estive observando. O senhor é um homem muito tranqüilo para quem fala em coisas tão grandes. O último homem assim tranqüilo que conheci foi deixado totalmente tranqüilo por uma rajada de metralhadora. Okay, okay.

O Sr. Solo acomodou-se melhor na poltrona. Estendeu as mãos abertas, em relutante rendição.

— Sim, eu entro. Mas — fez uma pausa para dar ênfase às suas palavras — ou conseguimos aquele bilhão ou o senhor morre. Está de acordo?

Os lábios de Goldfinger curvaram-se ironicamente.

— Obrigado, Sr. Solo. Suas condições são perfeitamente aceitáveis. Tenho muita vontade de continuar vivo. Sr. Helmut Springer?

Os olhos do Sr. Springer pareciam mais mortos do que nunca. Disse pomposamente:

— Ainda estou dando ao assunto toda minha consideração. Por favor, consulte meus colegas enquanto delibero.

O Sr. Midnight comentou impacientemente:

— Sempre o mesmo velho Hell. Espera pelo que chama de inspiração. É guiado... mensagens do Todo-Poderoso no comprimento de ondas dos anjos. Acho que há vinte anos não ouve uma voz humana.

— E o Sr. Strap?

O Sr. Jack Strap enrugou os olhos na direção de Goldfinger. Disse serenamente:

— Cavalheiro, acho que o senhor conhece as probabilidades e sem dúvida paga o máximo que já vi, desde quando uma de nossas máquinas em Vegas se descontrolou e deu continuados "jackpots". Acho que, se fornecermos os músculos e as armas, este negócio dará certo. Pode contar comigo.

O Sr. Strap desligou seu encanto. Os olhos, agora novamente assustadores, voltaram-se, com os de Goldfinger, para a Srta. Pussy Galore.

A Srta. Galore velou seus olhos cor de violeta para não precisar olhar qualquer dos dois. Disse indiferentemente para a sala em geral, batendo com suas compridas unhas prateadas sobre a barra de ouro à sua frente:

— Os negócios não estão muito movimentados em meu canto da mata. Não quero dizer, vejam bem, que estou com saldo devedor no banco. Vamos dizer que estou com o depósito um pouco baixo. Sim. Claro que entro. Eu e minhas garotas precisamos comer.

Goldfinger permitiu-se um meio sorriso de simpatia, ao responder:

— A notícia é excelente, Srta. Galore. E agora — virou--se para olhar o outro lado da mesa — Sr. Springer, poderia perguntar-lhe se já se decidiu?

Vagarosamente o Sr. Springer levantou-se. Soltou um controlado bocejo de freqüentador de ópera. Acompanhou o bocejo com um pequeno arroto. Tirou um fino lenço de linho e passou-o pelos lábios. Seus olhos vidrados correram ao redor da mesa e finalmente se fixaram em Goldfinger. Lentamente sua cabeça moveu-se de um lado para outro como se estivesse tentando exercitar fibrosite nos músculos do pescoço. Falou gravemente, como um gerente de banco recusando um empréstimo:

— Sr. Gold, temo que sua proposta não agrade a meus colegas em Detroit. — Fez uma pequena mesura na qual incluía todos os presentes. — Só me resta agradecer-lhe por uma reunião muito interessante. Boa tarde, cavalheiros e senhora.

No silêncio gelado que se seguiu, o Sr. Springer enfiou o lenço cuidadosamente no punho esquerdo de sua imaculada camisa listrada, virou-se, caminhou sossegadamente até a porta e saiu.

A porta fechou-se com um alto clique. Bond notou que a mão de Goldfinger entrava casualmente embaixo da mesa. Calculou que Faz-tudo estava recebendo seu sinal. Sinal para que?

O Sr. Midnight disse maldosamente:

— Estou contente por ele ter ficado de fora. É verdadeiramente um homem de quatro úlceras. Agora — levantou-se bruscamente e voltou-se para Bond — que me diz de uma bebidinha?

Todos se levantaram e reuniram-se em torno do bufê. Bond se viu entre a Srta. Pussy Galore e Tilly Masterton. Ofereceu-lhes champanha. A Srta. Galore olhou friamente para ele e disse:

— Vá andando, Bonitão. Nós, mulheres, queremos falar sobre segredos. Não é, querida?

A Srta. Masterton corou e depois ficou muito pálida. Sussurrou com ar de adoração:

— Oh, sim, Srta. Galore.

Bond sorriu azedamente para Tilly Masterton e pôs-se a andar pela sala.

Joe Midnight observava o contra. Aproximou-se de Bond e disse seriamente:

— Cavalheiro, se essa é sua garota, o melhor é vigiá-la. Pussy agarra as mulheres que quer. Consome-as em cachos — como uvas, se é que me entende. — O Sr. Midnight suspirou aborrecido. — Jesus, como me aborrecem essas cadelinhas! Você vai ver, logo ela fará com que aquela garota esteja penteando seus cabelos diante do espelho.

Bond disse jovialmente:

— Terei cuidado. Mas não posso fazer muita coisa. É uma garota do tipo independente.

— Não diga? — fez o Sr. Midnight com uma centelha de interesse. — Bem, talvez eu possa ajudar a resolver. — Endireitou a gravata. — Eu seria capaz de cair por essa Masterton. Ela tem bastante recursos naturais. Até já.

Sorriu para Bond e afastou-se.

Bond estava tomando calmamente uma boa refeição de caviar com champanha e pensando como Goldfinger havia controlado a reunião, quando a porta do fundo da sala se abriu e um dos coreanos dirigiu-se apressadamente para onde estava Goldfinger. Este inclinou a cabeça para ouvir as palavras sussurradas. Seu rosto assumiu uma expressão grave. Bateu com um garfo em seu copo de Vichy de Saratoga.

— Cavalheiros e senhora — disse ele, olhando com expressão triste para o grupo. — Acabo de receber más notícias. Nosso amigo, Sr. Helmut Springer, sofreu um acidente. Caiu na escada. Morreu instantaneamente.

— Ho, ho! — a risada do Sr. Ring não foi uma risada, foi um buraco no rosto. — E que diz a isso seu guarda-costas, Slappy Hapgood.

— Infelizmente — respondeu Goldfinger em tom grave — o Sr. Hapgood também caiu na escada e não resistiu aos ferimentos.

O Sr. Solo olhou para Goldfinger com novo respeito. Disse baixinho:

— Cavalheiro, é melhor mandar consertar essa escada antes que eu e meu Giulio a usemos.

Goldfinger respondeu seriamente:

— O defeito já foi localizado. O conserto será feito imediatamente. — Seu rosto tornou-se pensativo. — Temo que esses acidentes possam ser mal interpretados em Detroit.

Jed Midnight disse jovialmente:

— Não pense nisso, cavalheiro. Lá em cima eles adoram funerais. E isso tirará um peso da cabeça deles. O velho Hell não poderia mesmo durar muito. Já vinha acendendo a fogueira embaixo dele nestes últimos doze meses. — Apelou ao Sr. Strap, que estava ao seu lado. — Não tenho razão, Jack?

— Claro, Jed — respondeu o Sr. Strap judiciosamente. — Você viu tudo. O Sr. Helmut M. Springer tinha de ser apagado.

 

"Apagar" — sinônimo de assassinar em linguagem de gangster. Quando finalmente se deitou na cama naquela noite, Bond não conseguiu afastar do espírito essa palavra. Faz-tudo recebera o sinal, um toque duplo, e Springer e seu guarda-costas haviam sido "apagados". Bond nada poderia ter feito para evitá-lo — ainda que quisesse. Na verdade, o Sr. Helmut Springer nada significava para ele e provavelmente merecia muito ser "apagado". Mas agora 59 998 outras pessoas iam ser "apagadas" a menos que ele, e só ele, pudesse fazer alguma coisa para impedí-los.

Quando a reunião de chefes supremos do banditismo se dissolveu para que cada um fosse cuidar de suas várias obrigações, Goldfinger dispensou a moça e conservou Bond na sala. Disse a Bond para tomar notas e durante mais de duas horas cuidou da operação até os menores detalhes. Quando chegaram ao envenenamento dos dois reservatórios (Bond tinha de preparar um horário exato para haver certeza de que toda a população de Fort Knox testaria sob a ação da droga na hora certa) Bond pediu detalhes sobre a droga e a rapidez de sua ação.

— Não precisa preocupar-se com isso.

— Por que não? Tudo depende disso.

— Sr. Bond — disse Goldfinger, com um olhar distante e vago. — Vou contar-lhe a verdade porque não terá oportunidade de passá-la adiante. A partir de agora, Faz-tudo não ficará a mais de um metro de você e suas ordens serão estritas e exatas. Por isso posso dizer-lhe que toda a população de Fort Knox estará morta ou incapacitada à meia-noite do D-1. A substância que será introduzida na água, depois da estação de tratamento, será uma forma altamente concentrada de GB.

— Está louco! Quer realmente dizer que vai matar sessenta mil pessoas?

— Por quê? Os motoristas americanos fazem isso cada dois anos.

Bond fitou o rosto de Goldfinger com fascinado horror. Não podia ser verdade! Não podia pretender isso! Perguntou tensamente:

— Que é esse GB?

— GB é o mais potente dos venenos nervosos do grupo Trilone. Foi aperfeiçoado pela Wehrmacht em 1943, mas nunca chegou a ser usado pelo temor de represálias. Com efeito, é um instrumento de destruição mais eficaz que a bomba de hidrogênio. Sua desvantagem reside na dificuldade de aplicá-lo ao povo. Os russos capturaram todos os estoques alemães em Dyhernfurth, na fronteira polonesa. Amigos meus conseguiram fornecer-me as quantidades necessárias. A introdução na rede de abastecimento de água é o método ideal de sua aplicação para uma área densamente povoada.

— Goldfinger — disse Bond — você é um miserável, um maldito filho...

— Não seja infantil. Temos trabalho a realizar.

Mais tarde, quando chegaram ao problema do transporte das toneladas de ouro para fora da cidade, Bond fez uma última tentativa.

— Goldfinger — disse ele — você não vai poder levar esse material. Ninguém conseguirá sair daquele lugar com suas cem toneladas de ouro — quanto mais com quinhentas. Você se veria correndo pela Dixie Highway em um caminhão com algumas barras de ouro carregadas de raios gama e o Exército Americano nas suas pegadas. E vai matar sessenta mil pessoas para isso? O negócio é ridículo. Mesmo que conseguisse levar uma ou duas toneladas, onde diabo pensa que iria escondê-las?

— Sr. Bond — a paciência de Goldfinger era infinita — acontece simplesmente que nessa ocasião um cruzador soviético da classe do "Sverdlovsk" estará visitando Norfolk, na Virgínia, em um cruzeiro de boa vontade. Partirá de Norfolk no D-1. Inicialmente por trem e em seguida por comboio de caminhões, meu ouro chegará a bordo do cruzador à meia--noite do Dia-D. Seguirei para Kronstadt no cruzador. Tudo foi cuidadosamente planejado, todo obstáculo possível foi previsto. Tenho vivido essa operação há cinco anos. Agora chegou o momento da execução. Encerrei minhas atividades na Inglaterra e no Continente Europeu. Os pequenos detritos que sobram de minha vida anterior podem ficar para os abutres que dentro de pouco tempo estarão farejando minha pista. Eu terei partido. Terei emigrado e, Sr. Bond, levarei comigo o coração de ouro dos Estados Unidos. Naturalmente — Goldfinger mostrava-se indulgente — este desempenho único não será perfeito. Não houve tempo suficiente para ensaios. Preciso desses canhestros gangsters com suas armas e seus homens, mas não poderia fazê-los entrar no plano senão no último momento. Eles cometerão erros. É de prever-se que encontrem muita dificuldade para levar seus despojos. Alguns serão presos, outros serão mortos. Isso absolutamente não me importa. Esses homens são amadores que eram necessários, por assim dizer, para as cenas de multidão. São extras, Sr. Bond, tirados das ruas. O que lhes acontecer depois de terminada a peça não tem o menor interesse para mim. E agora, vamos trabalhar. Precisarei de sete cópias disto tudo ao anoitecer. Onde estávamos...

Então, refletia febrilmente Bond, essa não era apenas uma operação de Goldfinger com o smersh no fundo. O smersh pusera em ação até mesmo o Alto Presidium. Era Rússia contra Estados Unidos com Goldfinger como ponta de lança! Um país roubar outro seria ato de guerra? Mas quem saberia que o ouro estava com a Rússia? Ninguém, se o plano fosse executado como Goldfinger pretendia. Nenhum dos gangsters tinha a menor idéia disso. Para os gangsters Goldfinger era simplesmente outro igual a eles, outro gangster, um pouco maior que a estatura humana. E o pessoal de Goldfinger, os motoristas que dirigiriam seu comboio até o litoral? O próprio Bond e Tilly Masterton? Alguns seriam mortos, inclusive ele e a moça. Alguns, os coreanos, por exemplo, sem dúvida embarcariam no cruzador. Não restaria um traço, nenhuma testemunha. Era pirataria moderna com todos os adornos do tempo antigo. Goldfinger ia saquear Fort Knox como o sanguinário Morgan saqueara o Panamá. Não havia diferença, exceto quanto às armas e as técnicas que seriam atualizadas.

E só um homem em todo o mundo poderia impedir isso. Mas como?

No dia seguinte, houve uma ininterrupta torrente de trabalho burocrático. De meia em meia hora chegava um recado da sala de operações de Goldfinger, pedindo planos disto, cópias daquilo, estimativas, horários, listas de materiais. Foram trazidos outra máquina de escrever, mapas, livros de referência — tudo quanto Bond requisitava. Nenhuma vez, porém, Faz-tudo relaxou o extremo cuidado com que abria a porta quando Bond batia, nenhuma vez seus olhos vigilantes se desviaram dos olhos, das mãos e dos pés de Bond, quando ele entrava na sala para trazer refeições, recados ou materiais. Não se podia cogitar que Bond e a moça fossem parte da equipe. Eram escravos perigosos e nada mais.

Tilly Masterton estava igualmente reservada. Trabalhava como uma máquina — rápida, disposta, precisa, mas nada comunicativa. Correspondeu com fria polidez às tentativas iniciais de Bond de fazer amizade, de partilhar seus pensamentos com ela. Ao anoitecer, Bond não ficara sabendo a respeito dela senão que fora uma vitoriosa patinadora amadora no gelo nos intervalos de seu trabalho como secretária da Unilevers. Depois começara a obter papéis de estrela em "shows" sobre o gelo. Seu passatempo era atirar com pistola e fuzil, tendo pertencido a dois clubes de atiradores. Tinha poucos amigos. Nunca amara nem tivera compromissos amorosos. Vivia sozinha em dois aposentos na Earls Court. Tinha vinte e quatro anos. Sim, ela percebia que estava em uma difícil enrascada. Mas aconteceria alguma coisa. Esse negócio do Fort Knox era absurdo. Certamente sairia errado. Achava a Srta. Pussy Galore "divina". Parecia contar com ela para sair daquela embrulhada. As mulheres, disse com desdém, eram muito boas para coisas que exigiam finura. O instinto lhes dizia o que deviam fazer. Bond não precisava preocupar-se com ela. Tudo lhe corria bem.

Bond chegou à conclusão que Tilly Masterton era uma dessas moças cujos hormônios ficaram confusos. Conhecia muito bem esse tipo e achava que ele, assim como seu correspondente masculino, era conseqüência direta da concessão do direito de voto às mulheres e da "igualdade entre os sexos". Em resultado de cinqüenta anos de emancipação, as qualidades femininas estavam-se extinguindo ou transferindo-se para os homens. Por toda parte havia tipos duvidosos de ambos os sexos, ainda não completamente homossexuais, mas confusos, sem saber o que eram. O resultado era um rebanho de infelizes desajustados sexuais — ocos e cheios de frustrações, as mulheres querendo dominar e os homens querendo ser mimados. Sentia pena deles, mas não tinha tempo a perder com eles. Bond sorriu amargamente consigo mesmo ao lembrar-se de suas fantasias sobre essa moça, quando corriam pelo vale do Loire. Entre Deux Seins, veja só!

Ao fim do dia, houve um recado final de Goldfinger:

 

Cinco principais e eu partiremos do aeroporto La Guardia amanhã às 11 horas em avião fretado dirigido por meus pilotos para levantamento aéreo do Grande Golpe. Você acompanhará. Masterton ficará. G.

 

Bond sentou-se na beira de sua cama e ficou olhando para a parede. Depois levantou-se e foi até a máquina de escrever. Trabalhou durante uma hora, datilografando, com espaço simples, em ambos os lados da folha de papel, os pormenores exatos da operação. Dobrou a folha, enrolou-a de modo a fazer com ela um pequeno cilindro mais ou menos do tamanho de seu dedo mínimo e fechou-a cuidadosamente com cola. Em seguida, datilografou em um pedaço de papel.

 

Urgente e vital. Cinco mil dólares de recompensa, sem fazer perguntas, serão dados a quem encontrar e entregar esta mensagem fechada a Felix Leiter, ao cuidado da Agência de Detetives Pinkerton, Rua Nassau, 154, Nova York. Pagamento em dinheiro no ato da entrega.

 

Bond enrolou essa mensagem em volta do cilindro, escreveu 5.000 de recompensa com tinta vermelha do lado de fora e grudou o pequeno volume no meio de dez centímetros de fita adesiva. Depois sentou-se de novo na beira da cama e cuidadosamente colou as pontas livres da fita adesiva do lado de dentro de sua coxa.

 

                                   Jornada para o holocausto

O Controle de Vôo está-nos chamando, senhor. Quer saber quem somos. Diz que isto é espaço interditado.

Goldfinger levantou-se de seu banco e foi até a cabina na frente. Bond viu-o apanhar o microfone manual. Sua voz soou clara por cima do ronco baixo do Beechcraft de dez lugares.

— Bom dia. Aqui é o Sr. Gold da Paramount Pictures Corporation. Estamos fazendo um levantamento autorizado do território para um filme de classe "A" sobre a famosa incursão confederada de 1861, que resultou na captura do general Sherman em Muldraugh Hill. Sim, isso mesmo. Cary Grant e Elizabeth Taylor nos papéis principais. O quê? Licença? Claro que temos licença. Deixe-me ver (Goldfinger não consultou coisa alguma)... sim, aqui está. Assinado pelo Chefe dos Serviços Especiais do Pentágono. Claro, o comandante do Centro Blindado receberá uma cópia. Okay e obrigado. Espero que gostem do filme. Até logo.

Goldfinger apagou a expressão jovial de seu rosto, entregou o microfone e voltou para seu lugar. Esticou as pernas e ficou olhando para seus passageiros.

— Bem, cavalheiros e senhora, acham que já vimos o suficiente? Acho que concordarão em que tudo está perfeitamente claro e de acordo com suas cópias da planta da cidade. Não desejo descer abaixo de dez mil metros. Talvez possamos dar mais uma volta e depois ir embora. Faz-tudo, traga o lanche.

Houve um murmúrio de comentários e perguntas, a que Goldfinger respondeu uma por uma. Faz-tudo levantou-se do lado de Bond e caminhou para o fundo do avião. Bond seguiu-o e, sob seu olhar duro e desconfiado, entrou no pequeno lavatório e fechou a porta.

Sentou-se calmamente e ficou pensando. Não tivera oportunidade no caminho até La Guardia. Ficara sentado com Faz--tudo no banco traseiro de uma discreta limousine Buick. O motorista batera as portas depois de terem entrado e as janelas estavam hermèticamente fechadas. Goldfinger sentara-se na frente, com o vidro fechado atrás dele. Faz-tudo sentara-se meio de lado, com as mãos calejadas de prontidão sobre as coxas, como se fossem pesadas ferramentas. Não tirara os olhos de Bond até o carro dar a volta no "canto dos hangares e ir parar ao lado do avião. Imprensado entre Goldfinger e Faz-tudo, Bond não tivera alternativa senão subir os degraus, entrar no avião e tomar seu lugar, com Faz-tudo ao lado. Dez minutos depois, chegaram os outros. Não houve comunicação com eles, a não ser rápidos cumprimentos. Agora estavam todos diferentes — nada de observações espirituosas, nem conversas desnecessárias. Eram homens que iam para a guerra. Mesmo Pussy Galore, com uma capa de Dacron preto e um cinto de couro preto, parecia uma jovem guarda S.S. No avião, virou-se de uma ou duas vezes para Bond e olhou-o pensativamente. Mas não correspondeu aos sorrisos dele. Talvez simplesmente não conseguisse compreender o que fazia Bond ou quem era ele. Quando voltassem a La Guardia seria a mesma rotina. Tinha de ser agora ou nunca. Mas onde? Entre as folhas de papel higiênico? Mas alguém poderia mexer nelas muito cedo ou não mexer durante semanas. O cinzeiro seria esvaziado? Possivelmente não. Mas uma coisa seria.

Houve uma chacoalhada no trinco da porta. Faz-tudo estava ficando inquieto. Talvez Bond estivesse pondo fogo no avião. Bond gritou: "Já vou sair, macaco." Levantou-se e ergueu a tampa da bacia. Arrancou o pequeno volume do lado de dentro de sua coxa e transferiu-o para o lado de dentro da beirada dianteira da tampa. A tampa precisaria ser erguida para a limpeza da bacia e isso certamente seria feito logo que o avião voltasse ao hangar. A inscrição 5.000 de recompensa voltava-se para ele ousadamente. Nem mesmo o mais apressado faxineiro poderia deixar de vê-la. Desde que ninguém a visse antes do faxineiro. Mas Bond achava que nenhum dos passageiros levantaria a tampa. O pequeno compartimento estava muito atravancado para que alguém pudesse ficar confortàvelmente em pé. Tornou a baixar silenciosamente a tampa, deixou correr um pouco de água na pia, lavou o rosto, alisou os cabelos e saiu.

Faz-tudo estava esperando furioso. Passou, por Bond, entrou no lavatório, olhou tudo cuidadosamente e tornou a sair, fechando a porta. Bond voltou para seu lugar. Agora o SOS estava na garrafa e a garrafa fora lançada ao mar. Quem a encontraria? Quando?

Todos, até o piloto e o co-piloto, foram ao maldito lavatoriozinho antes de voltarem à terra. A cada um que saía, Bond esperava sentir o frio cano de uma arma no pescoço, as duras palavras de desconfiança, o barulho do papel sendo desdobrado. Mas finalmente voltaram ao Buick, correram pela Triborough para ir ao centro de Manhattan, desceram pela margem do rio, chegaram aos bem guardados portões do armazém, entraram e voltaram ao trabalho.

Agora era uma corrida — uma corrida entre a calma, compassada e eficiente máquina de Goldfinger e o minúsculo pavio de pólvora que Bond acendera. Que estaria acontecendo lá fora? Em cada hora dos três dias seguintes, a imaginação de Bond acompanhou o que poderia estar acontecendo — Leiter comunicando-se com seu chefe, a conferência, o rápido vôo até Washington, o F.B-I e Hoover, o Exército, o presidente. Leiter insistindo em que deviam obedecer às condições de Bond, que nenhum movimento suspeito deveria ser feito, nenhum inquérito iniciado, que ninguém devia mover-se a não ser de acordo com um plano-mestre que entraria em execução no dia e apanharia toda a quadrilha, de modo que ninguém escapasse. Aceitariam as condições de Bond ou não ousariam correr o risco? Teriam falado através do Atlântico com M? Teria M insistido em que Bond fosse salvo de alguma maneira? Não, M compreenderia a situação. Concordaria em que a vida de Bond não devia ser levada em consideração. Que nada devia prejudicar a grande limpeza. Precisariam agarrar os dois "japoneses" naturalmente, arrancar deles de alguma maneira a mensagem cifrada que Goldfinger estaria esperando para o D-1.

Seria isso que estava acontecendo ou teria tudo saído errado? Leiter ausente, cumprindo outra missão. "Quem é este 007? Que significa isso? Algum vagabundo maluco. Eh, Smith, quer verificar isto? Vá até o armazém e dê uma olhada. Sinto muito, meu velho, mas não vai receber os cinco mil. Aqui está o dinheiro para voltar de táxi até o La Guardia. Acho que foi vítima de uma brincadeira."

Ou, ainda pior, nenhuma dessas coisas aconteceria? Estaria o avião ainda parado em um canto do campo, sem ser limpado?

Noite e dia, o tormento de pensamentos agitava a cabeça de Bond, enquanto o trabalho era realizado, as horas passavam e a máquina fatal continuava funcionando calmamente. D-l chegou e movimentou-se em uma última febre de atividade. Ao anoitecer, Bond recebeu este recado de Goldfinger:

 

Primeira fase da operação bem sucedida. Embarcamos como foi planejado à meia-noite. Leve cópias de todos os mapas, projetos e ordens de operação. G.

 

Em formação cerrada, com Bond e Tilly Masterton — ele com um avental de médico, ela vestida de enfermeira — fechados no meio, o contingente de Goldfinger marchou rapidamente através da estação Concourse of Pennsylvania quase vazia e desceu para a plataforma onde o trem especial estava esperando. Todos, inclusive Goldfinger, vestiam o convencional uniforme branco e ostentavam braçadeiras de uma força médica de campanha. Na plataforma em penumbra aglomeravam-se as figuras espectrais dos elementos das quadrilhas. O silêncio e a tensão eram apropriados a uma força de emergência que corria para o local de um desastre. As maças e trajes de descontaminação que estavam sendo embarcados nos compartimentos davam mais drama à cena. O superintendente conversava em voz baixa com os médicos-chefes, sob a forma de Midnight, Strap, Solo e Ring. Perto via-se a Srta. Galore com uma dúzia de enfermeiras de rosto pálido, que esperavam de olhos baixos, como se estivessem ao lado de uma sepultura aberta. Sem maquiagem, com seu exótico penteado coberto por gorros azuis escuros da Cruz Vermelha, elas tinham sido bem ensaiadas. Estavam tendo excelente desempenho — zelosas, piedosas, dedicadas ao alívio do sofrimento humano.

Quando viu Goldfinger e seu grupo aproximar-se, o superintendente correu em sua direção.

— Dr. Gold? — perguntou ele, com expressão grave no rosto. — Acho que as notícias que estão chegando não são muito boas. Creio que tudo estará nos jornais hoje à noite. Todos os trens estão sendo retidos em Louisville e não se obtém resposta da estação de Fort Knox. Mas nós os faremos chegar até lá, não há dúvida. Santo Deus, doutor! Que estará acontecendo lá? Pessoas que chegam de Louisville estão falando que os russos lançaram alguma coisa do ar. Naturalmente — o superintendente olhou com ansiedade para Goldfinger — eu não estou acreditando nessas coisas. Mas o que é? Intoxicação alimentar?

O rosto de Goldfinger tinha uma expressão solene. Disse com voz bondosa:

— Meu amigo, isso é o que vamos descobrir. É por isso que estamos correndo para lá. Se quer um palpite meu, mas veja bem que é apenas um palpite, trata-se de uma forma de doença do sono — tripanossomíase, como a chamamos.

— É isso? — exclamou o superintendente, evidentemente impressionado pelo nome da doença. — Bem, creia-me, doutor, estamos todos muito orgulhosos do senhor e de seus auxiliares da Força de Emergência.

Estendeu a mão. Goldfinger apertou-a. O superintendente acrescentou:

— Boa sorte, doutor. E agora, se quiser embarcar com seus homens e as enfermeiras, farei com que este trem se ponha em marcha o mais rápido possível.

— Obrigado, superintendente. Meus colegas e eu não nos esqueceremos de seus serviços.

Goldfinger fez uma rápida mesura. Seu contingente pôs-se em marcha.

— Embarcar!

Bond viu-se em um Pullman com Tilly Masterton do outro lado do corredor. Estavam cercados de coreanos e alemães por todos os lados. Goldfinger estava na frente do carro, conversando jovialmente com seus satrapas. A Srta. Pussy Galore aproximou-se. Ignorou o rosto de Tilly Masterton voltado para cima, mas deu a Bond seu habitual olhar inquisitivo. Ouviu-se o bater de portas que se fechavam. Pussy Galore parou e descansou um braço sobre o encosto do banco à frente de Bond. Olhou para Bond e disse:

— Alô, Bonitão. Faz tempo que não nos vemos. Parece que o titio não deixa você muito solto.

— Alô, Beleza — respondeu Bond. — Esse uniforme lhe cai muito bem. Estou-me sentindo meio doente. Que tal praticar um pouco de enfermagem em mim?

Os profundos olhos cor de violeta examinaram-no cuidadosamente. Ela disse serenamente:

— Sabe de uma coisa, Sr. Bond? Tenho a impressão de que há algo de falso em você. Eu tenho instinto, sabe? Que é que você e aquela boneca — perguntou, sacudindo a cabeça para trás — fazem neste negócio?

— Fazemos todo o trabalho.

O trem começou a mover-se. Pussy Galore endireitou-se e disse:

— Talvez faça. Mas se alguma coisa correr mal nesta aventura, juro por meu dinheiro que o Bonitão é que saberá por que. Entendeu-me?

Não esperou pela resposta de Bond, mas pôs-se a andar e foi juntar-se à reunião do Estado Maior,

Foi uma noite confusa e movimentada. Era preciso manter as aparências diante dos olhos inquisitivos e amáveis dos guardas do trem. As conferências de última hora ao longo do trem tinham de manter a aparência de sérios conclaves médicos — ninguém podia fumar charuto, nem praguejar, nem cuspir. Os ciúmes e rivalidades entre as quadrilhas precisavam ser mantidos sob rígido controle. A fria superioridade da Máfia, particularmente em relação a Jack Strap e sua mole turma do Oeste, amante da boa vida, poderia ter provocado tiroteio se os chefes não estivessem preparados para evitar encrencas e constantemente em guarda contra elas. Todos esses pequenos fatores psicológicos haviam sido previstos por Goldfinger, que adotara providências a respeito deles. Ás mulheres das Misturadoras de Cimento foram cuidadosamente segregadas, não havia bebidas e os chefes de quadrilha mantinham seus homens ocupados com rigorosos treinamentos, exercícios simulados com mapas e prolongadas discussões sobre seus planos de fuga com o ouro. De vez em quando uns espionavam os planos de outros e Goldfinger era freqüentemente chamado para decidir quem ficaria com as rotas para a fronteira mexicana, para o deserto, para o Canadá. Para Bond era espantoso que cem dos mais violentos bandidos dos Estados Unidos, que a excitação e cobiça quase deixavam fora de si, pudessem ser mantidos quietos daquele jeito. Goldfinger é que conseguira esse milagre. Além da calma e perigosa qualidade do homem, a minuciosidade do planejamento e a confiança que dele transpirava acalmavam os nervos de batalha e criavam uma espécie de espírito de equipe entre os bandos rivais.

 medida que o galope metálico do trem se estendeu através das terras planas da Pensilvânia, gradualmente os passageiros caíram em um sono inquieto e agitado. Mas não Goldfinger e Faz-tudo. Estes continuaram despertos e vigilantes. Bond logo abandonou toda idéia que pudesse ter de usar uma de suas facas ocultas em Faz-tudo e tentar conquistar a liberdade quando o trem diminuísse a velocidade em uma estação ou em uma subida.

Bond cochilou agitadamente, pensando, imaginando, decifrando as palavras do superintendente. O superintendente pensava certamente que elas fossem verdadeiras, pois sabia que

Fort Knox estava em emergência. As notícias que recebera de Louisville seriam verdadeiras ou fariam parte de um gigantesco plano de simulação necessário para apanhar todos os participantes da conspiração? Se fosse um plano de simulação, com que minuciosidade fora preparado? Alguém cometeria um engano? Haveria algum fantástico erro que avisasse Goldfinger a tempo? E, se a notícia fosse verdadeira, se o veneno tivesse dado resultado, que mais podia Bond fazer?

Bond decidiu-se quanto a um ponto. De uma maneira qualquer, na excitação da Hora-H, aproximar-se-ia de Goldfinger e cortar-lhe-ia a garganta com uma de suas facas ocultas. De que adiantaria isso, além de representar um ato de vingança particular? O pessoal de Goldfinger aceitaria a ordem de outro homem para armar a ogiva atômica e detoná-la? Quem seria suficientemente forte, suficiente frio para assumir o comando? O Sr. Solo? Provavelmente. A operação talvez tivesse êxito parcial, talvez eles conseguissem escapar com muito ouro — exceto os homens de Goldfinger que ficariam desorientados sem ele para dirigi-los. E nesse meio tempo, por mais que Bond pudesse fazer, sessenta mil pessoas já teriam morrido? Havia alguma coisa que pudesse ter feito para impedir isso? Chegara a ter oportunidade de matar Goldfinger? Teria adiantado alguma coisa fazer um escândalo na estação Pensilvânia? Bond fitou seu reflexo escuro na janela, ouviu o suave tilintar das campainhas das passagens de nível e o gemido da buzina abrindo caminho para o trem, e dilacerou seus nervos com dúvidas, indagações e censuras.

 

                                 O homem mais rico da história

Vagarosamente a madrugada vermelha estendeu-se sobre a interminável planície de capim preto que foi sendo gradualmente substituída pelo famoso azul de Kentucky à medida que o sol expulsava as sombras. Às seis horas, o trem começou a diminuir a velocidade e logo deslizou suavemente através dos subúrbios de Louisville, que então despertavam, para ir parar com um suspiro hidráulico na ecoante estação quase deserta.

Um pequeno e respeitoso grupo estava esperando. Goldfinger, com fundas olheiras por não ter dormido, chamou um dos alemães, apanhou sua respeitável maleta preta e desceu para a plataforma. Houve uma breve e séria conferência, na qual o superintendente de Louisville falou, enquanto Goldfinger introduziu algumas perguntas e acenava gravemente com a cabeça ao ouvir as respostas. Goldfinger voltou para o trem com aparência deprimida. O Sr. Solo fora indicado para receber seu relatório. Estava na porta aberta na ponta do Pullman. Bond ouviu Goldfinger dizer com ar pesaroso:

— Acho, doutor, que a situação é tão má quanto temíamos. Irei agora para a diesel da frente com isto — mostrou a maleta — e entraremos vagarosamente na área infectada. Quer fazer o favor de dizer ao pessoal que se prepare para pôr as máscaras? Levo máscaras para o maquinista e foguista. Todos os outros empregados da estrada de ferro devem desembarcar aqui.

— Muito bem, professor — disse o Sr. Solo, inclinando a cabeça solenemente. Depois fechou a porta, enquanto Goldfinger caminhava pela plataforma seguido por seu guarda-costas alemão e pelo respeitoso grupo que sacudia a cabeça.

Houve uma breve pausa e depois, silenciosamente, quase reverentemente, o comprido trem saiu da estação, deixando o pequeno grupo de autoridades, agora reforçado pelos quatro guardas do trem quase envergonhados, com as mãos erguidas em um gesto de bênção.

Cinqüenta e seis quilômetros, meia hora de viagem! As enfermeiras serviram café com bolinhos e (Goldfinger pensava em tudo), para aqueles cujos nervos precisavam disso, dois comprimidos de dexedrina. As enfermeiras estavam pálidas e silenciosas. Ninguém fazia piadas, nem observações espirituosas. A tensão criava uma atmosfera elétrica no trem.

Dez minutos depois, houve uma diminuição de velocidade e um agudo assobio dos freios. Café entornou no chão. O trem quase parou. Depois, houve um solavanco e o trem novamente ganhou velocidade. Uma nova mão tomara os controles da mão do homem morto.

Alguns minutos depois, o Sr. Strap apareceu correndo através do trem.

— Faltam dez minutos! Preparem-se, rapazes! As esquadras A, B e C devem apanhar seu equipamento. Tudo está correndo bem. Fiquem calmos. Lembrem-se de seus deveres.

Correu para o compartimento vizinho e Bond ouviu a voz repetindo a mensagem.

Bond virou-se para Faz-tudo.

— Escute, seu macaco. Vou ao lavatório e provavelmente a Srta. Masterton também irá. — Virou-se para a moça e perguntou: — Que diz, Tilly?

— Sim — respondeu ela indiferentemente. — Acho que é melhor eu ir.

—. Então, vá na frente — disse Bond. O coreano ao lado da moça olhou interrogativamente para Faz-tudo. Este assentiu com a cabeça. Bond disse:

— Se não a deixar em paz, eu começo uma briga. Goldfinger não vai gostar disso. — Virou-se para a moça. — Pode ir, Tilly. Eu cuido destes macacos.

Faz-tudo emitiu uma série de latidos e rosnidos que o outro coreano pareceu entender. O guarda levantou-se e disse:

— Okay, mas não feche a porta.

Seguiu a moça até a extremidade do Pullman e ficou esperando que ela saísse.

Faz-tudo executou a mesma rotina com Bond. Dentro do lavatório, Bond tirou seu sapato direito, escorregou a faca para fora e enfiou-a na cintura da calça. Um de seus sapatos agora não teria salto, mas ninguém ia notar o fato essa manhã. Bond lavou o rosto. A fisionomia que viu no espelho estava pálida e os olhos cinzentos-azulados escuros de tensão. Saiu e voltou para seu banco.

Via-se agora uma distante luz bruxuleante à direita e uma sugestão de edifícios baixos erguendo-se como uma miragem no nevoeiro da madrugada. Definiram-se vagarosamente como hangares e uma torre de controle baixa e larga. Aeródromo Godman! O suave uivo do trem diminuiu. Algumas casas modernas e elegantes, parte de um novo conjunto residencial, passaram diante das janelas. Pareciam estar vazias. Agora, à esquerda, aparecia a longa fita da rua da estação de Brandenburg. Bond espichou o pescoço. A cintilante e moderna Fort Knox parecia quase úmida sob o nevoeiro leve. Acima de sua silhueta denteada o ar estava claro como cristal — sem um traço de fumaça, sem sinal de que alguém estivesse cozinhando o desjejum!

O trem reduziu a velocidade. Na rua da estação ocorrera um feio acidente de trânsito. Dois carros pareciam ter colidido de frente. O corpo de um homem estava meio caído para fora da porta amassada. O outro carro estava de costas como um besouro morto. O coração de Bond bateu forte. A principal cabina de sinalização apareceu e desapareceu. Sobre as alavancas estendia-se uma coisa branca. Era uma camisa de homem. Dentro da camisa o corpo pendia para baixo, com a cabeça abaixo do nível da janela. Uma fileira de bangalôs modernos. Um corpo vestido de camiseta e calça caído de braços no meio de um bem cuidado gramado. As linhas da grama podada eram muito precisas, menos perto do homem, onde o cortador de grama fizera um feio floreio e parará a seu lado na terra recém-revolvida da beirada. Um varal que se partira quando a mulher o agarrara. A mulher estava caída sobre uma pilha branca na ponta do varal bambo onde se viam roupas de baixo, toalhas de mesa e roupas de banho. Agora o trem entrava vagarosamente na cidade e em toda parte, em toda rua, em toda calçada, havia figuras caídas — sozinhas, em grupos, em cadeiras de balanço nos terraços, no meio dos cruzamentos onde as luzes dos semáforos ainda mudavam sem pressa seus sinais coloridos, em automóveis que haviam parado e em outros que haviam batido em vitrinas. Morte! Gente morta por toda parte. Nenhum movimento, nenhum som, salvo o ruído dos pés de ferro do assassino, cujo trem deslizava através do cemitério.

Agora havia agitação nos vagões. Billy Ring apareceu com um largo sorriso. Parou ao lado do banco de Bond.

— Oba! — exclamou encantado. — O velho Goldie deu-lhes realmente uma bebida forte. É pena que algumas pessoas estivessem passeando quando foram atingidas. Mas você sabe o que dizem da omelete: não é possível prepará-la sem quebrar alguns ovos, não acha?

Bond sorriu tensamente.

— É isso mesmo — disse.

Billy Ring soltou sua silenciosa risada em forma de "O" e continuou seu caminho.

O trem passou pela estação de Brandenburg. Agora havia dezenas de corpos — homens, mulheres, crianças, soldados. A plataforma estava cheia deles, com o rosto para cima na direção do teto, caídos na poeira, virados de lado. Bond procurou um movimento, um olho inquisitivo, uma mão contorcendo-se. Nada! Espere! que era aquilo? Vagamente através da janela fechada veio um choro baixinho. Três carrinhos de bebê estavam encostados à bilheteria, com as mães caídas ao lado deles. Naturalmente! Os bebês nos carrinhos teriam bebido leite, não a água envenenada.

Faz-tudo levantou-se. O mesmo fez toda a turma de Goldfinger. Os rostos dos coreanos eram indiferentes, impassíveis. Só seus olhos piscavam constantemente como os de animais nervosos. Os alemães estavam pálidos e sombrios. Ninguém olhava para ninguém. Silenciosamente encaminharam-se para a saída e fizeram fila esperando.

Tilly Masterton tocou a manga do paletó de Bond. Sua voz tremia:

— Tem certeza que estão apenas adormecidos? Acho que vi uma espécie de... uma espécie de espuma nos lábios de alguns.

Bond também vira a mesma coisa. A espuma era cor de rosa.

— Acredito que alguns deles estivessem comendo doces ou outras coisas quando caíram no sono — disse. — Você sabe como são esses americanos. Estão sempre mastigando alguma coisa. — Abaixou bem a voz para dizer as palavras seguintes. — Fique longe de mim. Talvez haja tiroteio.

Olhou firme para ela a fim de ver se entendera. Ela assentiu silenciosamente com a cabeça, sem olhar para Bond. Depois, sussurrou pelo canto da boca:

— Vou ficar perto de Pussy. Ela cuidará de mim. Bond deu-lhe um sorriso e disse encorajadoramente:

— Ótimo.

O trem estalou vagarosamente sobre alguns pontos dos trilhos e parou. A buzina da diesel tocou uma vez. As portas abriram-se e os diferentes grupos aglomeraram-se na plataforma do desvio do Depósito de Ouro.

Agora tudo se desenvolvia com precisão militar. As várias esquadras adotaram sua formação de batalha — primeiro um grupo de assalto com metralhadoras portáteis, depois os padioleiros para retirar a guarda e outros funcionários do depósito (refinamento agora sem dúvida desnecessário, pensou Bond), depois a turma de demolição de Goldfinger — dez homens com seu volumoso pacote coberto por encerado — em seguida um grupo misto de motoristas substitutos e elementos do controle de tráfego, e finalmente o grupo de enfermeiras, agora todas armadas com pistolas, que devia ficar na retaguarda com um grupo de reserva fortemente armado incumbido de enfrentar qualquer interferência inesperada partida de alguém que, como disse Goldfinger, "pudesse acordar".

Bond e a moça estavam incluídos no Grupo de Comando, formado por Goldfinger, Faz-tudo e os cinco chefes de quadrilhas. Deviam ficar nos tetos das duas locomotivas diesel, que estavam agora paradas, como fora planejado, adiante dos edifícios do desvio e com plena visão do objetivo e seus acessos. Bond e a moça deviam cuidar dos mapas, dos horários e do cronômetro. Bond devia ficar à espreita de complicações e demoras, chamando para elas imediatamente a atenção de Goldfinger a fim de serem corrigidas por meio de rádios transmissores-receptores ligados com os chefes de esquadras. Quando chegasse o momento de ser detonada a bomba, todos se abrigariam por trás das diesels.

Ouviu-se um toque duplo da buzina e, quando Bond e a moça subiam para o teto da primeira diesel, a esquadra de assalto, seguida pelas outras seções, avançou através dos vinte metros de terreno aberto entre a linha férrea e o Bullion Boulevard. Bond aproximou-se o mais que pôde de Goldfinger. Goldfinger tinha o binóculo nos olhos. Sua boca estava próxima do microfone preso no peito. Faz-tudo permanecia, porém, entre os dois, como uma sólida montanha de carne, e seus olhos, sem demonstrar interesse pelo drama do assalto, nunca se desviavam de Bond e da moça.

Bond, fingindo examinar sua caixa plástica de mapas e mantendo-se de olho no cronômetro, media centímetros e ângulos. Olhou para o grupo próximo, formado dos quatro homens e a mulher. Fitavam, com gelada atenção, a cena diante de seus olhos. Jack Strap disse excitadamente:

— Estão atravessando os primeiros portões.

Bond, fazendo metade de sua mente trabalhar em seu próprio plano, lançou um rápido olhar ao campo de batalha.

Era uma cena extraordinária. No centro ficava o enorme mausoléu chato, com o sol cintilando no granito polido de suas paredes. Fora do grande campo aberto em que ele se situava, as estradas — Dixie Highway, Vine Grove e Bullion Boulevard — estavam cobertas de caminhões e transportes em fila dupla, com as bandeiras indicativas das quadrilhas hasteadas no primeiro e último veículo de cada comboio. Seus motoristas aglomeravam-se do lado de fora do abrigo da parede que cercava o depósito, enquanto, através do portão principal, entrava a onda de disciplinadas esquadras que vinham do trem. Fora desse mundo de movimento havia absoluta imobilidade e silêncio, como se o resto dos Estados Unidos estivesse prendendo a respiração diante da execução desse crime gigantesco. E do lado de fora jaziam os corpos dos soldados, estendidos onde haviam caído — as sentinelas ao lado de seus ninhos de metralhadoras, ainda segurando nas mãos as pistolas automáticas, e, dentro da parede protetora, duas desorganizadas esquadras de soldados em uniforme de batalha. Formavam vagas e confusas pilhas, com alguns corpos atravessados ou caídos por cima de seus vizinhos. Entre Bullion Boulevard e o portão principal, dois carros blindados haviam colidido e estavam agora enganchados, com suas metralhadoras pesadas apontando, uma para o chão e a outra para o céu. O corpo de um motorista pendia para fora da torreta de um dos veículos.

Desesperadamente Bond procurou um sinal de vida, um sinal de movimento, uma insinuação de que tudo isso era cuidadosa emboscada. Nada! Nenhum gato se movia, nenhum som vinha dos edifícios aglomerados que formavam o fundo da cena. Só as esquadras corriam para executar suas tarefas e agora aguardavam em suas disposições planejadas.

Goldfinger falou calmamente ao microfone:

— A última maça saiu. A esquadra da bomba está pronta. Preparem-se para abrigar-se.

Agora as tropas de cobertura e os padioleiros corriam para a saída, abaixando-se sobre a proteção da parede. Haveria uma demora de cinco minutos para limpar a área antes que entrasse a esquadra da bomba, agora esperando aglomerada no portão principal.

Bond disse eficientemente:

— Estão um minuto adiantados.

Goldfinger olhou sobre o ombro de Faz-tudo. Os olhos pálidos estavam em chamas. Fitaram os olhos de Bond. A boca de Goldfinger contorceu-se em um rude esgar. Disse entre dentes:

— Está vendo, Sr. Bond? Estava errado e eu tinha razão. Mais dez minutos e serei o homem mais rico do mundo, o homem mais rico da história! Que diz a isso?

Sua boca cuspia as palavras. Bond respondeu calmamente:

— Eu lhe direi depois de passarem esses dez minutos.

— Dirá? — falou Goldfinger. — Talvez.

Olhou para seu relógio e falou rapidamente ao microfone. A esquadra de Goldfinger avançava vagarosamente através do portão principal, com sua pesada carga pendendo de quatro ombros sobre uma tira de lona.

Goldfinger olhou além de Bond, para o grupo no teto da segunda diesel. Gritou triunfantemente:

— Mais cinco minutos, cavalheiros, e depois precisaremos abrigar-nos. — Voltou os olhos para Bond e acrescentou suavemente: — E então nos despediremos. E agradecer-lhe-emos a assistência que você e a moça prestaram.

Pelo canto dos olhos, Bond viu algo se movendo — algo se movendo no céu. Era um turbilhonante pontinho preto. Chegou ao alto de sua trajetória e parou. Ouviu-se então o forte estrondo de um foguete de sinalização.

O coração de Bond saltou. Um rápido olhar mostrou-lhe a fileira de soldados mortos voltando instantaneamente à vida, as metralhadoras dos carros blindados enganchados girando para cobrir os portões. Um alto-falante gritou em um lugar qualquer: "Fiquem onde estão. Deponham as armas." Mas houve um fútil estampido de um tiro disparado por alguém do grupo que cobria a retaguarda e depois o inferno ficou solto.

Bond agarrou a moça pela cintura e saltou com ela. Era uma queda de três metros até a plataforma. Bond amaciou a queda com a mão esquerda e ergueu a moça com um empurrão de seus quadris. Quando começou a correr, perto do trem para ficar abrigado, ouviu Goldfinger gritar: "Agarre-os e mate-os." Uma chuva de chumbo da automática de Goldfinger caiu sobre o cimento à sua esquerda. Mas Goldfinger precisava atirar com a mão esquerda. Era Faz-tudo que Bond temia. Agora, quando disparava pela plataforma com a mão da moça na sua, Bond ouviu as batidas leves dos pés que corriam.

A mão da moça puxava-o. Ela gritava furiosamente:

— Não, não. Pare! Quero ficar perto de Pussy. Com ela estarei segura.

Bond também gritou:

— Cale a boca, bobinha! Corra como o diabo!

Mas agora ela o estava segurando, contendo sua velocidade. De repente, soltou a mão e correu para entrar na porta aberta de um Pullman. Cristo, pensou Bond, isso estragou tudo! Sacou a faca da cinta e virou-se para enfrentar Faz-tudo.

A dez metros de distância, Faz-tudo mal parou em sua corrida. Uma mão arrancou da cabeça seu ridículo e mortal chapéu. Um olhar para fazer mira e a meia lua preta de aço cantou através do ar. Sua aba apanhou a moça exatamente na nuca. Sem fazer um som, ela caiu para trás sobre a plataforma no caminho de Faz-tudo. O obstáculo foi suficiente para atrapalhar o alto pontapé que Faz-tudo começara a dar em direção à cabeça de Bond. Ele transformou o pontapé em um salto, com a mão esquerda cortando o ar na direção de Bond como uma espada. Bond mergulhou e lançou sua faca para cima e para o lado. Acertou em algum lugar perto das costelas, mas o impulso do corpo voando arrancou-lhe a faca da mão. A faca retiniu ao cair sobre a plataforma. Agora, Faz-tudo voltava a investir contra Bond, aparentemente desarmado, com as mãos estendidas e os pés desdobrados para trás prontos para outro salto ou pontapé. Seu sangue fervia. Os olhos estavam vermelhos e havia um pouco de saliva na boca aberta e ofegante.

Fazendo-se ouvir acima do trovejar e matraquear das armas fora da estação, a buzina da diesel deu três toques. Faz--tudo rosnou furiosamente e saltou. Bond mergulhou completamente de lado. Alguma coisa deu-lhe uma gigantesca batida no ombro e jogou-o estendido no chão. Agora, pensou ao atingir o chão, agora o golpe mortal! Levantou-se vacilante, com o pescoço enterrado nos ombros para atenuar o choque. Mas nenhum golpe veio e os olhos ofuscados de Bond viram a figura de Faz-tudo afastar-se dele, correndo pela plataforma.

A diesel da frente já estava em movimento. Faz-tudo alcançou-a e saltou para o estribo. Por um momento, ficou pendurado com as pernas procurando apoio. Depois desapareceu na cabina e a enorme locomotiva aerodinâmica ganhou velocidade.

Atrás de Bond a porta-escritório do oficial de comunicações abriu-se bruscamente. Houve um martelar de pés correndo e um grito: "Santiago!" O grito de guerra de Cortez que Leiter certa vez atribuíra por brincadeira a Bond.

Bond virou-se. O texano de cabelos de palha, vestido em seu uniforme de fuzileiro naval do tempo da guerra, corria pela plataforma seguido por uma dúzia de homens em uniforme caqui. Carregava uma bazuca individual pelo gancho de aço que usava como mão direita. Bond correu para encontrar-se com ele. "Não atire em minha raposa, seu bastardo. Dê-me isso", disse, arrancando a bazuca da mão de Leiter e jogando-se na plataforma, com as pernas esticadas. Agora a diesel estava a duzentos metros de distância e preparava-se para atravessar a ponte sobre a Dixie Highway. Gritando "Afastem-se!" para fazer os homens saírem da frente, Bond soltou a trava e mirou cuidadosamente. A bazuca estremeceu ligeiramente e um foguete de dez libras capaz de perfurar blindagem pôs-se a caminho. Houve um relâmpago e uma nuvem de fumaça azul. Pedaços de metal voaram da traseira da locomotiva em movimento. Mas depois ela cruzou a ponte, fez a curva e desapareceu.

"Nada mau para um principiante", comentou Leiter. "Talvez ponha fora de ação o diesel traseiro, mas essa máquina tem dois motores e pode continuar com o dianteiro."

Bond levantou-se. Sorriu calorosamente para os vivos olhos verde-acinzentados.

— E você, paspalho inútil — disse sarcàsticamente — por que não bloqueou aquela linha?

— Escute, tira. Se tem alguma queixa sobre a montagem da peça pode fazê-la ao presidente. Ele assumiu pessoalmente o comando desta operação e está uma uva. Há um avião lá em cima agora. Localizará a diesel e ao meio-dia o velho cabecinha de ouro já estará na cadeia. Como poderíamos saber que ele ia permanecer no trem?

Mudando de assunto, deu um forte tapa no ombro de Bond.

— Diabo, estou contente em vê-lo. Estes homens e eu fomos destacados para dar-lhe proteção. Estivemos andando por aí à sua procura e recebendo tiros dos dois lados em troca de nosso esforço. — Virou-se para os soldados — Não é mesmo, rapazes?

— Claro, capitão — responderam eles, rindo.

Bond olhou afetuosamente para o texano com quem partilhara de tantas aventuras. Disse seriamente:

— Muito obrigado, Felix. Você sempre foi bom para salvar-me a vida. Desta vez quase chegou atrasado. Acho que Tilly Masterton pegou o dela.

Caminhou ao longo do trem com Felix nos calcanhares. A pequena figura ainda estava estendida no lugar onde caíra. Bond ajoelhou-se ao lado dela. O ângulo da cabeça, como a de uma boneca quebrada, foi o bastante. Bond tomou o pulso. Depois levantou-se e disse baixinho:

— Pobre bichinha. Ela não ligava muito para homem. — Olhou defensivamente para Leiter. — Felix, eu poderia tê-la salvo se ela me tivesse seguido.

Leiter não compreendeu. Pôs a mão sobre o braço de Bond e disse:

— Claro, rapaz. Calma. — Virou-se para seus homens. — Dois de vocês levem a moça para o escritório do oficial de comunicações. 0'Brien, vá buscar a ambulância. Depois de fazer isso, passe pelo posto de comando e relate os fatos. Diga que encontramos o comandante Bond e que vou levá-lo diretamente.

Bond ficou parado olhando para o pequeno monte vazio de roupas e membros. Viu a brilhante e orgulhosa garota com o lenço pintado enrolado na cabeça guiando o veloz TR3. Agora não existia mais.

Bem alto, sobre sua cabeça, um pontinho turbilhonante subia no céu. Chegou ao mais alto de seu vôo e parou. Ouviu-se o forte estampido do foguete. Era o sinal de cessar fogo.

 

                                                   O último truque

Foi dois dias depois, Felix costurava velozmente com o Studillac preto através das pistas do preguiçoso tráfego na ponte Triborough. Havia muito tempo para apanhar o avião de Bond, o Monarch, noturno da B.Ò.A. para Londres, mas Leiter gostava de abalar a má opinião que Bond fazia dos carros americanos. O gancho de aço que usava como mão direita engatou o câmbio em segunda e o baixo carro preto saltou por um estreito espaço entre um gigantesco caminhão refrigerado e um vagaroso Oldmosbile cuja janela traseira estava quase tapada por etiquetas de estâncias de férias.

O corpo de Bond saltou para trás com o impulso dos 300 b.h.p. e seus dentes fecharam-se com uma batida. Quando foi completada a manobra e os irados toques de buzina ficaram para trás, Bond disse maciamente:

— Já é tempo de você abandonar os carrinhos de menino e comprar um veículo rápido. Você precisa progredir. Este negócio de pedalar envelhece a gente. Qualquer dia desses você para completamente de movimentar-se e quando a gente para de movimentar-se começa a morrer.

Leiter riu ao responder:

— Está vendo aquele farol verde lá na frente? Aposto como chego lá antes de mudar para vermelho.

O carro saltou para a frente como se tivesse levado um pontapé. Houve um breve hiato na vida de Bond, uma impressão de vôo e de uma parede metálica de carros que se abriu milagrosamente diante do toque da buzina tripla de Leiter, cem metros em que o velocímetro marcou 150. Depois cruzaram o farol e avançaram suavemente pela pista do centro.

Bond disse calmamente:

— Se você encontrar um guarda de trânsito enfezado, aquele seu cartão da Pinkerton de nada lhe adiantara, Não é tanto por guiar devagar que vão multá-lo. É porque você amarra os carros de trás. O carro de que você precisa é um belo e velho Rolls-Royce Fantasma Prateado, com grandes janelas de vidro plano para poder apreciar as belezas da natureza — prosseguiu Bond, fazendo um gesto em direção a um enorme monte de automóveis velhos à direita. — A velocidade máxima é oitenta, e você pode parar e até mesmo andar para trás se quiser. Buzina de bola. Vai bem com seu estilo calmo. Por falar nisso, deve haver agora um à venda... o de Goldfinger. E também por falar nisso, que diabo aconteceu com Goldfinger? Não o agarraram ainda?

Leiter olhou para seu relógio e levou o carro para a pista de fora. Reduziu a velocidade para 65. Disse em tom sério:

— Para dizer a verdade, todos nós estamos um pouco preocupados. Os jornais investindo como o diabo contra nós, ou melhor, contra o pessoal de Edgar Hoover. Em primeiro lugar, ficaram furiosos com o silêncio de segurança que impusemos em torno de você. Não poderíamos dizer-lhes que não era culpa nossa e que alguém em Londres, um velho inglês chamado M, insistira nisso. Agora, estão-se desforrando. Dizem que estamos arrastando os pés e assim por diante. E vou dizer-lhe uma coisa, James — a voz de Leiter era triste e humilde — simplesmente não temos a menor pista. Apanharam a diesel. Goldfinger regulou os controles na velocidade de 50 quilômetros e deixou-a correr pela linha. Em algum lugar ele e o coreano saltaram. Provavelmente o mesmo fizeram aquela mulher chamada Galore e os quatro bandidos, pois eles também desapareceram. Naturalmente encontramos seu comboio de caminhões, esperando na estrada que vai de Elizabethville para leste. Mas nenhum motorista. Provavelmente se dispersaram, mas em algum lugar está Goldfinger escondido com uma turma bem dura. Não chegaram ao cruzador "Sverdlovsk" em Norfolk. Espalhamos pelo cais guardas à paisana, os quais informaram que o barco partiu na hora marcada sem que estranhos tivessem subido a bordo. Perto daquele armazém no East River não apareceu nem um gato e ninguém se apresentou em Idlewild ou nas fronteiras — do México e do Canadá. Juro por meu dinheiro que Jed Midnight levou-os de algum jeito para Cuba. Se tomaram dois ou três caminhões do comboio e guiaram como loucos, podem ter chegado à Flórida, em algum lugar como Daytona Beach, às primeiras horas do D-1. E Midnight está muito bem organizado lá. A Guarda Costa e a Força Aérea empregaram todos os seus recursos, mas até agora nada apareceu. É possível, porém, que se tenham escondido durante o dia e seguido para Cuba à noite. Isso deixou todo o mundo preocupado como o diabo e não ajuda muito o fato de o presidente estar louco da vida.

Bond passara o dia anterior em Washington sendo alvo das mais lisonjeiras homenagens. Houvera discursos no Departamento da Casa da Moeda, um grande almoço no Pentágono, um embaraçoso quarto de hora com o presidente e o resto do dia fora trabalho árduo com uma turma de estenógrafos no conjunto de salas de Edgar Hoover, com a presença de um colega de Bond da Estação A. Depois disso tudo, houvera uma animada conversa de quinze minutos com M através do teletipo transatlântico da Embaixada. M lhe contara o que estava acontecendo no lado europeu do caso. Como Bond esperava, o cabograma de Goldfinger à Universal Export fora tratado como emergência. As fábricas de Reculver e Coppet haviam sido vasculhadas, tendo sido encontradas novas provas do contrabando de ouro. O governo indiano fora avisado quanto ao avião da Mecca que já se encontrava a caminho de Bombaim e aquele lado da operação já estava sendo liquidado. A Brigada Especial Suíça encontrara rapidamente o carro de Bond e descobrira a rota pela qual Bond e a moça haviam sido levados para os Estados Unidos, mas lá, em Idlewild, o FBI perdera a pista. M parecia satisfeito com a maneira como Bond lidara a Operação Grande Golpe, mas disse que o Banco da Inglaterra o estava aborrecendo por causa dos vinte milhões de libras de ouro de Goldfinger. Goldfinger guardara todo o ouro na Paragon Safe Deposit Co. em Nova York, mas tornara a retirar no D-1. Ele e seus homens haviam levado o ouro em um caminhão fechado. O Banco da Inglaterra preparara uma ordem para apreender o ouro quando fosse encontrado e seria então preciso provar que havia sido contrabandeado da Inglaterra ou pelo menos que fora originariamente ouro contrabandeado cujo valor aumentara por vários meios suspeitos. Mas quem estava cuidando disso agora era o Tesouro dos Estados e o FBI Como M não tinha jurisdição nos Estados Unidos, o melhor que Bond tinha a fazer era voltar imediatamente para casa e ajudar a esclarecer as coisas. Oh, sim — no fim da conversa a voz de M tornou-se ríspida — fora dirigido ao primeiro-ministro um pedido muito amável para que permitisse a Bond aceitar a Medalha Americana de Mérito. Naturalmente, M fora obrigado a explicar, através do primeiro-ministro, que o Serviço não admitia essas coisas — particularmente partindo de países estrangeiros, por mais amigos que fossem. Era pena, mas M sabia que Bond já esperaria por isso. Conhecia as regras. Bond disse que sim, naturalmente, que estava muito agradecido e que tomaria o primeiro avião para a Inglaterra.

Agora, enquanto rodavam calmamente pela Van Wyck Expressway, Bond sentia-se vagamente descontente. Não gostava de deixar rabos em um caso. Nenhum dos grandes gangsters fora preso e ele falhara nas duas tarefas que lhe haviam sido confiadas: agarrar Goldfinger e agarrar o ouro de Goldfinger. Não fora senão por milagre que tinham anulado a Operação Grande Golpe. Só dois dias antes é que o Beechcraft fora limpado e o limpador que encontrara o recado só chegara à Pinkerton trinta minutos antes da hora em que Leiter devia partir para a Costa, onde ocorrera um grande escândalo nas corridas de cavalos. Mas então Leiter pusera-se realmente em ação. Falara com seu chefe, depois com o FBI e em seguida com o Pentágono. O conhecimento que o FBI tinha dos antecedentes de Bond, aliado a um contato com M através da Agência Central de Inteligência, fora suficiente para que se levasse todo o caso ao conhecimento do presidente dentro de uma hora. Depois disso, fora apenas uma questão de organizar o gigantesco blefe do qual todos os habitantes de Fort Knox participaram, de uma maneira ou outra. Os dois "japoneses" haviam sido apanhados facilmente e a Guerra Química confirmara que o litro e meio de GB que eles levavam como gim em suas pastas teriam sido suficientes para matar toda a população de Fort Knox. Os dois homens haviam sido rápida e vigorosamente forçados a explicar a fórmula do cabograma que passariam a Goldfinger para dizer que tudo estava pronto. O cabograma fora remetido. Depois o Exército declarara o estado de emergência. Todo o tráfego rodoviário, ferroviário e aéreo fora desviado de Fort Knox, com exceção dos comboios dos gangsters que não foram incomodados. O resto fora representação, inclusive a espuma cor de rosa e os bebês chorões, que, segundo pensaram, dariam belos toque de verossimilhança à cena.

Sim, tudo fora muito satisfatório no que se referia a Washington, mas que dizer do lado inglês? Quem nos Estados Unidos se preocupava com o ouro do Banco da Inglaterra? Quem se preocupava com o fato de duas moças inglesas terem sido assassinadas no decorrer daquele caso? Quem realmente se importava com o fato de Goldfinger estar ainda em liberdade, agora que o ouro dos Estados Unidos se encontrava novamente em segurança?

Rodaram preguiçosamente pela monótona planície de Idlewild, passaram pelos esqueletos de aço e concreto de dez milhões de dólares de custo que um dia se tornariam um aeroporto adulto e pararam diante da improvisada confusão de caixões de concreto que Bond conhecia tão bem. As corteses vozes metálicas já chegavam até eles. "A Pan American World Airways anuncia a partida de seu Vôo Presidente PA 100". "Transworld Airways chamando capitão Murphy. Capitão Murphy, por favor." As vogais com forma de pêra e a maviosa dicção da B.O.A.C. "B.O.A.C. anuncia a chegada de seu Vôo BA 491 das Bermudas. Os passageiros vão desembarcar pelo portão número nove."

Bond tomou sua mala e despediu-se de Leiter dizendo:

— Bem, obrigado por tudo. Escreva-me diariamente. Leiter segurou firme sua mão. Disse:

— Certamente, rapaz. E tenha calma. Diga àquele velho bastardo M que o mande de volta logo. Na próxima visita tiraremos algum tempo de folga. Já é tempo de você conhecer meu Estado natal. Gostaria que conhecesse meu poço de petróleo. Agora, até a vista.

Leiter entrou no carro e afastou-se acelerando firme. Bond ergueu a mão. O Studillac derrapou na curva da pista. O brilho do gancho de aço fora da janela foi a resposta de Leiter, que depois desapareceu.

Bond suspirou. Apanhou sua mala, entrou e encaminhou--se para o balcão de passagens da B.O.A.C.

Bond não se aborrecia em aeroportos, desde que ficasse sozinho. Tinha meia hora de espera e contentou-se em vaguear entre a multidão, tomar um uísque com soda no restaurante e passar algum tempo escolhendo algo para ler na banca de jornais. Comprou "Modem Fundamentais of Golf", de Ben Hogan, e o último livro de Raymond Chandler. Em seguida, dirigiu-se à Loja de Souvenirs a fim de ver se encontrava alguma coisa curiosa para levar à sua secretária.

Uma voz de homem falava pelo sistema de anúncio da B.O.A.C. Leu uma longa lista de passageiros do Monarch que eram chamados ao balcão de passagens. Dez minutos depois, Bond estava pagando uma das mais modernas e mais caras esferográficas quando ouviu seu nome sendo chamado. "Pedimos ao Sr. James Bond, passageiro do Monarch da B.O.A.C, vôo N.° 510 para Gander e Londres, o favor de comparecer ao balcão de passagens da B.O.A.C. Sr. James Bond, por favor." Era evidentemente aquele maldito formulário de imposto para mostrar quanto ganhara durante sua permanência nos Estados Unidos. Por princípio, Bond nunca ia ao Escritório de Rendas Internas, em Nova York, para obter certidão negativa e só uma vez precisara discutir a questão em Idlewild. Saiu da banca de jornais e foi até o balcão da B.O.A.C. O funcionário disse delicadamente:

— Quer deixar-me ver seu certificado de saúde, por favor, Sr. Bond.

Bond tirou o papel de seu passaporte e entregou-o. O homem olhou-o cuidadosamente e depois disse:

— Sinto muito, cavalheiro, mas houve um caso de febre tifóide em Gander e eles insistem em que sejam vacinados todos os passageiros em trânsito que não receberam vacina nos últimos seis meses. É muito aborrecido, cavalheiro, mas o pessoal de Gander é muito melindroso nessas coisas. É pena não termos podido organizar um vôo direto, mas há um forte vento de frente.

Bond odiava vacina. Disse irritadamente:

— Mas, escute aqui. Estou cheio de vacinas de uma ou outra espécie. Faz vinte anos que venho tomando vacinas para uma ou outra dessas malditas coisas! — Olhou em volta. A área perto do portão de partida da B.O.A.C. parecia curiosamente deserta. — E os outros passageiros? Onde estão?

— Todos concordaram, cavalheiro. Estão recebendo a vacina agora. Não demora mais que um minuto, cavalheiro, se vier por aqui.

— Oh, está bem — disse Bond, encolhendo os ombros impacientemente. Seguiu o homem atrás do balcão e entrou por uma porta que levava à sala do gerente do escritório da B.O.A.C. Havia o costumeiro médico com avental branco e uma máscara cobrindo a parte inferior do rosto.

— É o último? — perguntou ele ao funcionário da B.O.A.C.

— Sim, doutor.

— Okay. Tire o paletó e arregace a manga, por favor. É desagradável que sejam sensíveis em Gander.

— Muito desagradável — concordou Bond. — Mas que temem eles? Uma epidemia de peste negra?

Sentiu o cheiro forte de álcool e a picada da agulha.

— Obrigado — disse Bond rapidamente. Abaixou a manga da camisa e tentou apanhar o paletó que estava sobre o encosto da cadeira. Sua mão desceu em direção a ele, errou, continuou descendo, descendo em direção ao chão. Seu corpo seguiu a mão, caindo, caindo...

 

Todas as luzes estavam acesas no avião. Parecia haver muitos lugares vazios. Por que precisava ele ficar grudado a um passageiro, cujo braço ocupava o encosto central. Bond fez menção de levantar-se para trocar de lugar. Sentiu uma onda de enjôo. Fechou os olhos e esperou. Que extraordinário! Nunca tivera enjôo em avião. Sentiu suor frio no rosto. Lenço. Enxugar o suor. Abriu novamente os olhos e olhou para seus braços. Os pulsos estavam presos aos braços da poltrona. Que acontecera? Tomara a vacina e desmaiara ou coisa semelhante. Teria ficado violento?.Que diabo era tudo isso? Olhou para a direita e depois firmou os olhos, estupefato. Faz-tudo estava sentado ali. Faz-tudo com uniforme da B.O.A.C!

Faz-tudo olhou sem curiosidade para ele e estendeu a mão para a campainha a fim de chamar a aeromoça. Bond ouviu o agradável dingue-dongue na copa. Houve um ruge--ruge de saia a seu lado. Ergueu os olhos. Era Pussy Galore, muito bem arrumada no uniforme de aeromoça! "Alô, Bonitão", disse ela, lançando-lhe o profundo e inquisitivo olhar de que ele se lembrava tão bem desde quando? De séculos atrás, de outra vida.

— Pelo amor de Deus — disse Bond — que está acontecendo? Que é que você faz aqui?

A mulher sorriu alegremente.

— Como caviar e bebo champanha. Vocês, britânicos, sem dúvida levam uma vida de lorde quando estão a seis mil metros de altitude. Nem sinal de couve de Bruxelas e, se há chá, ainda não consegui encontrá-lo. Agora, tenha calma. Titio quer falar com você.

Afastou-se saltitante pelo corredor, balançando os quadris, e desapareceu através da porta da cabina de comando.

Agora nada mais poderia surpreender Bond. Goldfinger, vestindo um uniforme de capitão da B.O.A.C. que era grande demais para ele, com o quépi bem no centro da cabeça, fechou a porta da cabina depois de passar e avançou pelo corredor. Parou e olhou sombriamente para Bond.

— Bem, Sr. Bond. Então o Destino quis que jogássemos a última cartada. Mas desta vez, Sr. Bond, não poderá haver carta escondida na manga de seu paletó. Ah, ah, ah! — A risada estridente era uma mistura de cólera, estoicismo e respeito. — Você sem dúvida se tornou uma cobra em meu quintal. — A grande cabeça sacudiu-se vagarosamente. — Por que o conservei vivo? Por que não o esmaguei como um besouro? Você e a moça me foram úteis. Sim, quanto a isso eu estava certo. Mas estava louco quando me arrisquei. Sim. louco. — A voz baixou e continuou devagar. — Agora, diga--me uma coisa, Sr. Bond. Como conseguiu? Como se comunicou?

Bond respondeu tranqüilamente:

— Teremos uma conversa, Goldfinger. E eu lhe direi certais coisas. Mas só depois que soltar estas tiras e trouxer--me uma garrafa de uísque, com gelo e soda, e um maço de Chesterfields. Então, quando me disser o que deseja saber, decidirei o que vou contar-lhe. Como disse, minha situação não é favorável ou, pelo menos, parece não ser favorável. Por isso, nada tenho a perder e, se quiser obter alguma coisa de mim, será dentro de minhas condições.

Goldfinger baixou gravemente os olhos.

— Não tenho objeções às suas condições. Por respeito às suas aptidões como adversário, passará confortàvelmente sua última viagem. Faz-tudo... — A voz era ríspida. — Toque a campainha para chamar a Srta. Galore e solte estas tiras. Sente-se no banco da frente. Ele nada poderá fazer de mal no fundo do avião, mas não deve aproximar-se da porta da cabina. Se for preciso, mate-o imediatamente, mas prefiro levá-lo vivo a nosso destino. Compreendeu?

— Arrr.

Cinco minutos depois Bond tinha o que desejava. A bandeja foi colocada à sua frente e sobre ela estava seu uísque e cigarros. Goldfinger estava sentado na poltrona do outro lado do corredor, esperando. Bond apanhou a bebida e encostou-a nos lábios. Ia dar um grande gole quando viu alguma coisa. Baixou o copo cuidadosamente sem tirar do lugar o pequeno pratinho de papel que ficara preso no fundo. Acendeu um cigarro, apanhou novamente a bebida, retirou os cubos de gelo e tornou a colocá-los no balde. Bebeu o uísque quase até o fundo do copo. Agora podia ler as palavras através do fundo do copo. Cuidadosamente pôs o copo sobre a bandeja sem mexer no pratinho. A mensagem dizia: "Estou com você. XXX. P."

Bond virou-se a acomodou-se melhor na poltrona.

— Pois bem, Goldfinger — disse. — Antes de mais nada, que está acontecendo, como arranjou este avião e para onde estamos indo?

Goldfinger cruzou uma perna sobre a outra. Desviou os olhos de Bond e olhou ao longo do corredor. Disse em tom calmo de conversa:

— Tomei três caminhões e atravessei o país até as vizinhanças do cabo Hatteras. Um dos caminhos continha meu tesouro pessoal de ouro. Os outros dois levavam meus motoristas, o pessoal substituto e aqueles gangsters. Não precisava de nenhum deles, a não ser da Srta. Galore. Conservei um núcleo de pessoal, do qual ia precisar, paguei os outros com enormes importâncias e dispersei-os gradualmente ao longo da estrada. No litoral, tive uma reunião com os quatro chefes de quadrilhas em um lugar deserto, tendo deixado a Srta. Galore com os caminhões graças a um pretexto qualquer, Atirei nos quatro homens à minha maneira habitual — um tiro em cada um. Voltei aos caminhões e expliquei que os quatro haviam preferido dinheiro e ação independente. Restavam-me então seis homens, a moça e o ouro. Contratei um avião e voei para Newark, em Nova Jersey, tendo os caixões de ouro passado como chumbo para chapas de raios X. De lá segui sozinho para certo endereço em Nova York, de onde falei com Moscou pelo rádio e expliquei o malogro da Operação Grande Golpe. No decorrer da conversa, mencionei seu nome. Meus amigos, que você conhece, segundo creio, — Goldfinger olhou duramente para Bond — usam o nome genérico de smersh. Reconheceram o nome de Bond e contaram--me quem era você. Compreendi imediatamente muita coisa que antes estivera escondida de mim. O smersh disse que gostaria muito de entrevistá-lo. Pensei no assunto. No devido tempo, concebi o plano que você agora vê em execução. Fingindo-me de amigo seu, não tive dificuldade em descobrir para que vôo reservara passagens. Três de meus homens eram ex-elementos da Luftwaffe. Asseguraram-me que não havia dificuldade para pilotar este avião. O resto era simples detalhe. Por meio de frio blefe, falsa identidade e um pouco de força, todo o pessoal da B.O.A.C. em Idlewild, a tripulação deste aparelho e os passageiros receberam as necessárias injeções de cujo efeito devem estar agora recuperando-se. Trocamos de roupa com os tripulantes inconscientes, o ouro foi embarcado, você foi apanhado e levado em uma maça, e no devido tempo a tripulação da B.O.A.C. com sua aeromoça, tomou o avião e levantamos vôo.

Goldfinger fez uma pausa. Ergueu a mão resignadamente.

— Naturalmente, houve pequenas falhas. Disseram-nos para "seguir o caminho Alpha até a pista quatro" e só o conseguimos seguindo um avião da KLM. A rota de Idlewild não era fácil de fazer e provavelmente demos a impressão de certa falta de habilidade e experiência, mas, Sr. Bond, com firmeza, nervos fortes e maneiras rudes e intimidativas nunca é difícil vencer a mentalidade burocrática daqueles que, afinal de contas não passam de pequenos empregados. Fiquei sabendo pelo telegrafista que este avião está sendo procurado. Já nos estavam interrogando antes de sairmos do alcance do VHF de Nantucket. Depois o sistema de Distant Early Warning interpelou-nos em alta freqüência. Isso não me preocupou. Temos combustível suficiente. Já recebemos autorização de Moscou para pouso em Berlim Oriental, Kiev e Murmansk. Seguiremos a rota que as condições do tempo aconselhar. Não haverá complicações. Se houver, eu darei um jeito falando pelo rádio. Ninguém vai abater um valioso avião da B.O.A.C. O mistério e a confusão proteger-nos-ão até estarmos dentro de território soviético. Depois, naturalmente, teremos desaparecido sem deixar traços.

Para Bond, nada mais parecia fantástico, nada parecia impossível nas coisas de Goldfinger, desde que ouvira os pormenores da Operação Grande Golpe. O roubo de um Stratocruizer, como Goldfinger explicara, era absurdo, não mais absurdo, porém, que seu método de contrabandear ouro e sua compra de uma ogiva atômica. Quando examinadas de perto, embora tivessem um toque de magia, de gênio mesmo, essas coisas eram exercícios lógicos. Eram bizarras apenas em sua magnitude. Até mesmo a insignificante manobra de enganar o Sr. Du Pont fora brilhantemente concebida. Não havia dúvida que Goldfinger era um artista — um cientista do crime, tão grande em sua especialidade quanto Cellini ou Einstein nas deles.

— E agora, Sr. Bond, do Serviço Secreto Britânico, fizemos uma troca. Que tem para contar-me? Quem o pôs na minha pista? De que suspeitavam? Como conseguiu interferir com meus planos?

Goldfinger reclinou-se para trás, pôs as mãos sobre a barriga e olhou para o teto.

Bond deu a Goldfinger uma versão censurada da verdade. Nada disse sobre o smersh ou sobre a localização da caixa de correio embaixo da ponte, nem falou sobre os segredos do Homer, engenho que talvez fosse novidade para os russos. Concluiu:

— Como vê, Goldfinger, você escapou por pouco. Se não fosse a interferência de Tilly Masterton em Genebra, você agora estaria na cadeia. Estaria palitando os dentes sentado em uma prisão suíça à espera de ser mandado para a Inglaterra. Você subestima os ingleses. Eles podem ser vagarosos, mas chegam onde pretendem chegar. Pensa que estará muito seguro na Rússia? Eu não me sentiria tão certo disso. Já tiramos gente mesmo de lá. Vou dar-lhe um último aforisma para seu livro, Goldfinger: "Nunca jogue contra a Inglaterra".

 

                                 Tratamento de t.c.a.

O avião avançava pulsando, bem acima das intempéries, sobre a grande paisagem iluminado pelo luar. As luzes haviam sido apagadas. Bond, sentado quieto na escuridão, suava de medo do que ia fazer.

Uma hora antes, a moça trouxera-lhe o jantar. Havia um lápis escondido no guardanapo. Ela fez algumas observações rudes para que Faz-tudo ouvisse e retirou-se. Bond comeu um pouco e bebeu bastante uísque, enquanto sua imaginação passeava pelo avião pensando no que poderia fazer para forçar um pouso de emergência em Gander ou algum outro lugar da Nova Escócia. Como último recurso, poderia pôr fogo no avião? Brincou com essa idéia e com a possibilidade de abrir à força a porta de entrada. Ambas as idéias pareciam impraticáveis e suicidas. Para poupar-lhe o trabalho de pensar nelas, o homem que Bond vira antes no balcão de passagens da B.O.A.C., um dos alemães, aproximou-se e parou ao lado de sua poltrona.

Sorriu para Bond, dizendo:

— A B.O.A.C. está tratando-o bem, não está? O Sr. Goldfinger pensa que você poderia ter idéias tolas. Vou ficar vigiando o fundo do avião. Por isso, fique sentado e aproveite o passeio, sim?

Não obtendo resposta de Bond, o homem encaminhou-se para a parte de trás do avião.

Algo martelava o espírito de Bond, algo relacionado com seus pensamentos anteriores. Aquele negócio de forçar a porta de entrada. Que acontecera mesmo com aquele avião que voava sobre a Pérsia em 1957? Bond ficou imóvel por algum tempo, com os olhos muito abertos fitando sem ver as costas da poltrona à sua frente. Poderia dar resultado! Era bem possível que desse!

Bond escreveu na parte de dentro do guardanapo:: "Farei o possível. Amarre seu cinto. XXX. J."

Quando a moça voltou para levar a bandeja, Bond deixou cair o guardanapo, depois o apanhou e lhe entregou. Ergueu a mão e sorriu para os olhos interrogativos. Ela se curvou para apanhar a bandeja. Beijou-o rapidamente na face. Endireitou novamente o corpo e disse rudemente:

— Eu o verei em meus sonhos, Bonitão. Depois se afastou em direção à copa.

E agora Bond já havia decidido. Calculara exatamente o que precisava ser feito. Os centímetros tinham sido medidos, a faca do salto do sapato estava embaixo de seu paletó e Bond enrolou a ponta mais comprida do cinto do banco no pulso esquerdo. Agora só precisava de um sinal de que o corpo de Faz-tudo se virará para o lado oposto à janela. Seria muito esperar que Faz-tudo dormisse, mas ele poderia pelo menos acomodar-se confortàvelmente. Os olhos de Bond não se afastavam do vago perfil que podia ver refletido no Perpex oval da janela do banco da frente, mas Faz-tudo continuava sentado imperturbàvelmente sob a luz de leitura que prudentemente conservara acesa, com os olhos fitos no teto, a boca ligeiramente aberta e as mãos descansando sobre os braços da poltrona, mas prontas para entrar em ação.

Uma hora, duas horas. Bond começou a roncar, ritmicamente. Agora as mãos de Faz-tudo descansavam sobre seu colo. A cabeça inclinou-se uma vez e endireitou-se de novo, mudou para uma posição mais confortável, afastou-se da penetrante luz que vinha da parede, descansou sobre a face esquerda para o lado oposto à janela.

Bond manteve seu ronco exatamente uniforme. Passar pela guarda do coreano seria tão difícil quanto passar ao lado de um mastim esfomeado. Vagarosamente, centímetro a centímetro, agachou-se para frente sobre as pontas dos pés e estendeu a mão com a faca entre a parede e o banco de Faz-tudo. Agora sua mão já estava lá. A ponta-aguçada do punhal apontava para o centro da janela de Perpex. Bond segurou firmemente com a mão a ponta do cinto de seu banco, recuou a faca uns cinco centímetros e golpeou.

Bond não tinha a menor idéia do que aconteceria quando quebrasse a janela. Só sabia, pelas notícias dos jornais sobre o caso ocorrido na Pérsia, que a sucção de dentro para fora da cabina pressurizada arrastara o passageiro próximo da janela através dela e para o espaço. Agora, quando puxou seu punhal para trás, houve um uivo fantástico, quase um grito de ar, e Bond foi sugado violentamente contra as costas do banco de Faz-tudo com uma força que arrancou a ponta do cinto de sua mão. Por cima do encosto do banco presenciou um milagre. O corpo de Faz-tudo pareceu alongar-se em direção à ululante abertura preta. Houve uma batida quando sua cabeça passou pela abertura e seus ombros se chocaram com a armação. Depois, como se fosse pasta de dente, o corpo do coreano foi vagarosamente sugado através da abertura com um terrível ruído sibilante. Agora Faz-tudo estava até a cintura para fora. As enormes nádegas ficaram presas e a pasta humana movia-se apenas centímetro a centímetro. Em seguida, com um alto estrondo, as nádegas passaram e as pernas desapareceram como se tivessem sido disparadas por um canhão.

Depois sobreveio o fim do mundo. Com um barulho espantoso de louça quebrada na copa, o enorme avião virou o nariz para baixo e mergulhou. A última coisa que Bond percebeu antes de perder os sentidos foi o alto grito dos motores através da janela aberta e uma visão fugidia de travesseiros e tapetes voando para o espaço diante de seus olhos. Depois, com um último e desesperado abraço no banco da frente, o corpo de Bond, faminto de oxigênio, caiu com dilacerante dor nos pulmões.

A primeira coisa que Bond sentiu em seguida foi um forte pontapé nas costelas. Sentiu gosto de sangue na boca. Gemeu. O pé bateu de novo em seu corpo. Penosamente se ajoelhou entre os bancos e olhou para cima através de um filme vermelho. Todas as luzes estavam acesas. Havia um tênue nevoeiro na cabina. A brusca despressurização fizera o ar dentro da cabina descer abaixo do ponto de condensação. O barulho dos motores através da janela aberta era gigantesco. Um vento gelado queimou-o. Goldfinger estava em pé sobre ele, com o rosto diabólico sob a luz amarela. Sua mão segurava firmemente uma pequena automática. Goldfinger recuou o pé e golpeou de novo. Bond foi dominado por uma onda de quente raiva. Apanhou o pé e torceu-o vigorosamente, quase quebrando o tornozelo. Ouviu-se um grito de Goldfinger e uma pancada que abalou o avião. Bond saltou para o corredor e jogou-se de lado sobre o corpo caído. Houve uma explosão que queimou sua face. Mas depois seu joelho atingiu as virilhas de Goldfinger e sua mão esquerda avançou sobre a arma.

Pela primeira vez em sua vida, Bond ficou cego de fúria. Com os punhos e os joelhos martelou o corpo que resistia, enquanto batia repetidamente com a testa no rosto brilhante. A arma voltou-se de novo tremendo em sua direção. Quase indiferentemente, Bond jogou-a longe com o lado da mão e ouviu o bater do metal entre os bancos. Agora as mãos de Goldfinger estavam em sua garganta e as suas na garganta de Goldfinger. Os polegares de Bond afundaram--se cada vez mais nas artérias. Lançou todo seu peso para a frente, arquejando para respirar. Perderia os sentidos antes que o outro homem morresse? Poderia resistir à pressão das fortes mãos de Goldfinger? O brilhante rosto de lua estava mudando. Roxo profundo aparecia por baixo da pele bronzeada. Os olhos começaram a tremer. A pressão das mãos sobre a garganta de Bond diminuiu. As mãos desprenderam--se. Agora a língua saiu e ficou pendendo da boca aberta. Do fundo dos pulmões veio um terrível estertor. Bond sentou--se sobre o peito silencioso e vagarosamente desprendeu seus dedos rígidos, um a um.

Bond soltou um profundo suspiro, ajoelhou-se e depois se levantou vagarosamente. Atordoado, olhou de um lado para outro do avião. Ao lado da copa, Pussy Galore estava amarrada em seu banco como uma trouxa de roupa suja. Mais adiante, no meio do corredor, o guarda estava estendido, com um braço e a cabeça em posições ridículas. Sem cinto para segurá-lo quando o avião mergulhara, devia ter sido jogado para o teto como uma boneca de trapo.

Bond esfregou as mãos sobre o rosto. Agora sentia as queimaduras na palma da mão e nas faces. Exausto, ajoelhou--se de novo e procurou a pequena arma. Era uma automática Colt 25. Tirou o pente. Restavam três balas, além de uma na câmara. Cambaleando, Bond desceu pelo corredor até o lugar onde estava a mulher. Desabotoou a túnica e encostou a mão no peito quente. O coração tremia como um pombo embaixo de sua mão. Desamarrou o cinto, pôs a mulher de bruços no chão e ajoelhou-se por cima dela. Durante cinco minutos bombeou ritmicamente em seus pulmões. Quando ela começou a gemer, levantou-se, deixou-a, avançou pelo corredor e tirou uma Luger completamente carregada do coldre do guarda morto. Na volta, ao passar diante da confusão reinante na copa, viu uma garrafa de uísque rolando delicadamente de um lado para outro entre os destroços. Apanhou-a, tirou a rolha e virou-a na boca aberta. A bebida queimou como desinfetante. Tapou novamente a garrafa com a rolha e seguiu para a frente. Parou um minuto diante da porta da cabina de comando, pensando. Depois, com uma arma em cada mão, baixou a alavanca e entrou.

Os cinco rostos, azuis sob as luzes dos instrumentos, voltaram-se em sua direção. As bocas formaram buracos pretos e os olhos mostraram um brilho branco. Ali o barulho dos motores era menor. Havia um cheiro de suor e fumaça de cigarros. Bond ficou parado com as pernas abertas, apontando as armas com mãos firmes.

— Goldfinger está morto — disse ele. — Se alguém se mover ou desobedecer uma ordem, eu o mato. Piloto, qual é sua posição, rota, altura e velocidade?

O piloto engoliu em seco. Precisou juntar saliva para poder falar. Disse:

— Estamos cerca de oitocentos quilômetros a leste de Goose Bay, senhor. O Sr. Goldfinger disse que devíamos pousar o avião o mais perto possível da costa, ao norte de Goose Bay. Iríamos depois reunir-nos em Montreal e o Sr. Goldfinger disse que voltaríamos para salvar o ouro. Nossa velocidade é de quatrocentos quilômetros por hora e nossa altitude é de seiscentos metros.

— Quanto tempo pode ainda voar nessa altitude? Deve estar consumindo bastante combustível.

— Sim, senhor. Calculo que podemos ainda continuar durante duas horas nesta altitude e velocidade.

— Dê-me um sinal das horas.

O navegador respondeu rapidamente:

— Acabo de captar um de Washington, senhor. Cinco minutos para cinco horas. O amanhecer neste nível será mais ou menos dentro de uma hora.

— Onde está o navio meteorológico Charlie?

— Cerca de cinqüenta quilômetros a nordeste, senhor.

— Piloto, acha que podemos chegar a Goose Bay?

— Não, senhor. Faltarão uns cento e cinqüenta quilômetros. O mais que podemos fazer é chegar à costa ao norte de lá.

— Certo. Altere a rota para a direção do navio meteorológico Charlie. Telegrafista, chame-o e dê-me o microfone.

Enquanto o avião executava uma larga curva, Bond ouvia a estática e os trechos interrompidos de vozes que saíam do amplificador acima de sua cabeça.

A voz do telegrafista chegou baixinha até ele.

— Estação Oceânica Charlie. Aqui é Speedbird 510. g-algy chamando C de Charlie. g-algy chamando Charlie. g-algy...

Uma voz áspera interferiu, "g-algy dê sua posição. g-algy dê sua posição. Aqui é o Controle de Gander. Emergência, g-algy..."

Londres entrou fracamente. Uma voz excitada começou a tagarelar. Agora chegavam vozes de todas as direções. Bond podia imaginar a posição sendo coordenada em todas as estações de controle de vôo, os homens atarefados embaixo das lâmpadas trabalhando sobre o grande mapa, telefones sendo tirados dos ganchos, vozes urgentes falando umas com as outras através do mundo. O forte sinal do Controle de Gander abafou todas as outras transmissões. "Localizamos g-algy. Encontramo-lo mais ou menos em 50 N por 70 E. Todas as estações deixem de transmitir. Prioridade. Repito, temos um elemento para determinar a posição de g-algy..."

De repente a voz calma de C de Charles entrou. "Aqui é Estação Oceânica Charlie chamando Speedbird 510. Charlie chamando g-algy. Está-se ouvindo? Entre, Speedbird 510."

Bond guardou a pequena automática no bolso e apanhou o microfone que lhe era oferecido. Apertou a chave do transmissor e falou calmamente, observando a tripulação por cima do oval de plástico.

— C de Charlie aqui é o Speedbird g-algy roubado ontem à noite de Idlewild. Matei o homem responsável e inutilizei em parte o avião despressurizando a cabina. Mantenho a tripulação sob ameaça de armas de fogo. Não temos combustível suficiente para chegar a Goose. Por isso pretendo pousar o mais próximo possível de vocês. Por favor, faça uma linha de sinais luminosos.

Uma outra voz, uma voz com autoridade, talvez a do capitão, veio em auxílio da primeira. "Speedbird aqui é C de Charlie. Sua mensagem foi ouvida e entendida. Identifique quem está falando. Repito, identifique quem está falando.

Sorrindo ao imaginar a sensação que suas palavras iam causar, Bond respondeu:

— Speedbird para C de Charlie. Aqui é o agente Número 007 do Serviço Secreto Britânico, repito, Número 007. A Rádio de Whitehall confirmará. Repito, peçam confirmação à Rádio de Whitehall.

Houve uma pausa de espanto. Vozes de todos os quadrantes do mundo tentaram interferir. Algum controle, presumivelmente Gander, tirou-as do ar. C de Charlie voltou. "Speedbird aqui é C de Charlie também chamado Anjo Gabriel falando. Okay. Pedirei confirmação a Whitehall e acenderei as luzes, mas Londres e Gander querem mais detalhes... Bond interrompeu-o, dizendo:

— Sinto muito, C de Charlie, mas não posso ficar olhando cinco homens e conversando socialmente enquanto isso. Dê-me as condições do mar, sim? Depois, vou sair do ar até termos pousado.

— Okay, Speedbird. Compreendo seu ponto de vista. A força do vento aqui é de dois, condições do mar são de ondas compridas e lisas, sem vagalhões. Poderá pousar bem. Okay. Logo o apanharemos no radar e manteremos constante escuta em seu comprimento de onda. Teremos à espera uísque para um e ferros para cinco. Boa Sorte. Câmbio.

Bond disse:

— Obrigado C de Charlie. Prepare também uma xícara de chá, sim? Tenho uma bela garota a bordo. Aqui é Speedbird desligando.

Bond soltou a chave e devolveu o microfone ao telegrafista.

— Piloto — disse ele — vão acender luzes e manter constante escuta em nosso comprimento de onda. A força do vento é de dois e há ondas compridas e lisas sem vagalhões. Agora, calma e vamos tentar sair vivos daqui. Logo que tocarmos a água eu abrirei a porta da cabina. Até lá, se alguém atravessar a porta da cabina, recebe bala. Entendido?

A voz da mulher soou na porta atrás de Bond.

— Eu ia juntar-me ao grupo, mas não vou mais. Receber bala não me agrada. Mas você poderia chamar de novo aquele homem e mandar preparar dois uísques. Chá me dá soluço.

— Pussy, volte para sua cesta (*) — disse Bond, correndo os olhos pela última vez em volta da cabina de comando e recuando depois através da porta.

 

(*) N. do T. — "Pussy" quer dizer "gatinho", que na Inglaterra geralmente dorme dentro da cesta.

 

Duas horas, dois anos, depois Bond estava deitado na quente cabina do navio meteorológico Charlie, ouvindo sonhadoramente um programa matutino de rádio transmitido do Canadá. Várias partes de seu corpo doíam. Tinha ido para a parte traseira do avião e feito a moça ajoelhar-se com a cabeça aninhada nos braços sobre o assento de uma poltrona. Depois, colocara-se por trás e por cima dela, apertando os braços em torno de seu corpo vestido com o colete salva--vidas e firmando as costas no encosto do banco de trás.

Ela fizera nervosamente observações jocosas sobre a indelicadeza dessa posição, até quando a barriga do Stratocruiser batera na primeira montanha de água a cento e cinqüenta quilômetros por hora. O enorme avião deslizara uma vez e depois batera de nariz em uma parede de água. O impacto quebrara a espinha do aparelho. O enorme peso do ouro no compartimento de bagagem partira o avião em dois pedaços, arremessando para fora Bond e a mulher, que caíram na água gelada, avermelhada pela linha de sinais luminosos. Lá ficaram boiando, meio atordoados, em seus coletes salva-vidas amarelos, até serem alcançados pelo barco salva-vidas. A essa altura, restavam apenas alguns pedaços do avião na superfície e a tripulação, com três toneladas de ouro amarradas ao pescoço, afundava em direção ao leito do Atlântico. O barco procurou durante uns dez minutos, mas vendo que não subiam corpos à superfície, desistiu da busca e voltou roncando sob a luz do holofote em direção ao abençoado costado de ferro da velha fragata.

Foram tratados como mistura de realeza e gente de Marte. Bond respondeu às primeiras e mais urgentes perguntas. Depois, de repente, tudo pareceu demais para sua mente. Agora estava deitado regaladamente na paz e no calor do uísque, pensando em Pussy Galore e na razão pela qual ela preferira abrigar-se sob sua asa e não sob a asa de Goldfinger.

A porta de ligação com a cabina vizinha abriu-se e a moça entrou. Não vestia senão um suéter cinzento de pescador que com mais uns dois centímetros ficaria decente. As mangas estavam arregaçadas. Ela parecia uma pintura de Vertes. Disse:

— Continuam insistindo em perguntar-me se não quero que me esfreguem com álcool e continuo dizendo que, se alguém vai esfregar-me, é você e se vou ser esfregada com alguma coisa é com você que quero ser esfregada. — Concluiu desajeitadamente: — Por isso, aqui estou.

Bond disse firmemente:

— Feche aquela porta, Pussy, tire esse suéter e venha para a cama. Senão vai apanhar um resfriado.

Ela fez o que lhe foi dito, como uma criança obediente.

Deitou-se sobre a dobra do braço de Bond e ergueu os olhos para ele. Disse, não com voz de gangster nem de lésbia, mas com voz de mulher:

— Você vai escrever-me para Sing Sing?

Bond olhou dentro dos profundos olhos cor de violeta azulada que não eram mais duros nem imperiosos. Curvou-se e beijou-os levemente. Depois disse:

— Disseram-me que você gostava de mulher.

— Nunca havia conhecido um homem — respondeu ela, com voz novamente dura. — Eu vim do Sul. Sabe qual a definição de virgem lá embaixo? Bem, é a moça que corre mais que seu irmão. No meu caso, não consegui correr mais que meu tio. Eu tinha doze anos. Não é muito bom, James. Você devia ter adivinhado isso.

Bond sorriu para o rosto pálido e bonito, dizendo:

— Você só precisa de um curso de T.C.A.

— Que é T.C.A.?

— Abreviação de tratamento de Terno Cuidado Amoroso. É o que escrevem na maioria dos documentos quando uma criança abandonada é levada a uma clínica infantil.

— Vou gostar disso.

Pussy olhou para a boca apaixonada, quase cruel, que esperava por cima dela. Ergueu a cabeça e alisou para trás a mecha de cabelos pretos que caíra sobre sua sobrancelha direita. Olhou para os olhos cinzentos que eram duas fendas ardentes e perguntou:

— Quando vai começar?

A mão direita de Bond subiu vagarosamente pelas coxas firmes e musculosas, passou sobre a lisa e macia planície do estômago para chegar até o seio direito. O mamilo estava duro de desejo.

— Já — disse ele baixinho. Sua boca desceu implacavelmente sobre a dela.

 

                                                                                Ian Fleming  

 

                      

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