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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RELAÇÕES PROIBIDAS / Jo Beverley
RELAÇÕES PROIBIDAS / Jo Beverley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

RELAÇÕES PROIBIDAS

 

A penumbra povoava de vultos a mente de Anna Featherstone. Deformando as imagens das peças em estilo gótico, tão em voga na cidade de Londres daqueles tempos, a luz insuficiente trazia ao aposento lúgubre as personagens de seu romance favorito: Forbidden Affections.

Deitada na cama, Anna estendeu o braço e tateou a mesinha-de-cabeceira para alcançar o castiçal de ferro de um único bocal.

Esticou as pernas cobertas pela camisola alva e longa de jovem pudica, colocou os pés no chão, levantou-se, aproximou-se do can­deeiro que estava sobre o console da lareira e acendeu a vela.

Ao se virar, foi tomada de espanto.

Em seu delírio quimérico, lamentou a sorte de Dulcinéa, a he­roína de Forbidden Affections. Ela fora isolada em um quarto se­melhante àquele, onde alguns símbolos da morte serviriam para ajudá-la a refletir sobre sua sorte caso persistisse na recusa em ceder às sórdidas paixões de um tio desprezível.

Anna não se deixou impressionar pelo suposto sorriso de um excessivo número de rostos descarnados que pareciam observá-la do entalhe na madeira densa dos poucos móveis daquela câmara.

Na noite anterior, quando chegara a Londres, exausta por causa da viagem, não se apercebera de tantos detalhes.

Correu os dedos pelo papel que revestia a parede.

— Atropa Beladonna! — reconheceu na estamparia a erva ramosa, as flores em formato de campânulas, altamente venenosa. — Nããããão! — gritou assustada, ao tropeçar em uma ampulheta caída no chão. Por felicidade, conseguiu se equilibrar e não der­rubou o castiçal que segurava com a mão esquerda.

A vela acesa iluminou o armário de ébano. Pequenos crânios esculpidos em esferas de marfim serviam de puxadores para as quatro portas.

Exatamente iguais aos que havia no quarto de Dulcinéa, Anna se lembrou.

Quisera-a ter trazido consigo seu livro predileto para que pu­desse confrontar cada uma das coincidências inacreditáveis que a identificavam tão intimamente com a figura central do último lan­çamento de Mrs. Jamison. Forbidden Affections não era, nem de longe, segundo a resenha de alguns dos mais importantes jornais londrinos, a melhor criação da autora. A preferência de grande parte dos críticos literários recaía sobre Cruel Matrimony, a obra mais conhecida.

Anna não havia ainda terminado sua leitura e, portanto, este, sim, estava entre os cinco livros, de sua própria escolha, que o pai a havia autorizado a trazer para Londres. Todos os outros tinham ficado na casa da família, em Derbyshire, no interior da Inglaterra.

—Você terá a oportunidade de comprar os últimos lançamentos nas livrarias da capital — ele lhe prometera.

Quais mistérios encerrariam aquele quarto? Com certeza, fora idealizado por algum leitor abastado que, entusiasmado com a tra­ma de Forbidden Affections, decidira criar ali atmosfera semelhante àquela em que a história contada por mrs. Jamison se desenrolava.

Considerando-se que a primeira edição do livro data de dez anos atrás, Anna concluiu, então... devo acreditar... que o tenha feito recentemente.

Com toda a certeza, a criadagem poderia dar-lhe maiores infor­mações sobre o que teria realmente ocorrido.

Sir Jeffrey Featherstone decidira alugar a casa número nove da Rua Carne Terrace, localizada em um elegante bairro da capital da Inglaterra, para que a família usufruísse a primavera em Londres. Todos tinham ficado exultantes com a idéia até o momento em que ali chegaram e descobriram a existência do estranho quarto onde estava a cama do casal.

— Se quiserem, poderemos nos hospedar em um hotel — de­cepcionado, sir Jeffrey havia sugerido.

— Por nada deste mundo eu dormiria sob esse dossel ornado de tão horrendo lavor.

— Lady Featherstone se indignara. — Não posso entender a concepção artística de um artesão com tendências para o hediondo. E, menos ainda, os motivos que levam uma pes­soa a pagar por esse trabalho.

— Olhem para esses puxadores! — Maria, a filha mais velha, jamais divergia das opiniões da mãe. — Causam-me calafrios!

— Sinto que a um simples sopro de nossa respiração, essas pequenas gárgulas entalhadas na madeira, de um momento para outro, podem se animar e se destacar dali para uma revoada fan­tasmagórica por todos os aposentos da casa. Ao ver que Maria se apoiava em uma das duas cadeiras Chippendalle que ficavam próximas à lareira lady Featherstone per­guntara:

— O que está acontecendo? Parece tão pálida querida!

— Já vai passar mamãe.

— Anna, por favor, peça a uma das criadas que traga os sais. — Ajudando a filha mais velha a se sentar, lady Featherstone a tranqüilizara: — Fique calma, meu bem. Respire fundo.

Diante da fragilidade de Maria, dado que havia apenas três quar­tos na casa e as duas irmãs não estava habituada a compartilhar um mesmo aposento durante a noite, Anna se vira compelida a demonstrar que havia da parte dela forte estima e solidariedade para com a família.

— Não me importo de ficar neste quarto — decidira, rejubilando-se secretamente.

Durante o jantar, Anna se fechara em si mesma, ansiosa, aguar­dando o momento de ter só para si o aposento que evocava aquele em que Dulcinéa, a infeliz heroína, fora aprisionada por negar seus favores a um tio libertino, desprovido dos valores morais reinantes nos lares das famílias de bem.

A luminosidade que incidiu sobre o espelho de corpo inteiro, afastado dois ou três metros do pé da cama, refletiu imagem diversa daquela que Anna fantasiava naquele momento.

Seus longos ca­belos castanhos, encaracolados, não eram os de Dulcinéa: lisos, dourados, sempre puxados para trás e presos em uma trança.

Diante da imagem irrefutável que surgira, sem prévio aviso, para lembrá-la de sua verdadeira identidade, Anna fechou os olhos.

E, ao abri-los, teve a impressão de que suas faces estavam rosadas demais. Teria preferido para si a tez perolada, os traços delicados de Dulcinéa, cuja compleição esguia e graciosa a encantava assim como a todas as mocinhas da época.

Mrs. Jamison as atraía para suas páginas fantásticas, esfera dis­tante da realidade prosaica e cotidiana, onde donzelas ingênuas lutavam pela virtude, contra a entrega, muitas vezes optando por uma recusa voluntária dos prazeres carnais.

Eram amadas pela docilidade com que se submetiam aos ditames de suas consciências e reverenciadas pelo exemplo a ser seguido.

Anna ergueu os olhos e, novamente, contemplou sua imagem refletida no espelho, deplorando a ausência dos encantos que atraíam os admiradores da filha mais velha dos Featherstone.

Lacrimosa, voltou a deitar na cama de casal e se refugiou em conjecturas sobre uma passagem secreta pela qual o conde Nacre, tio de Dulcinéa, esgueirava-se sorrateiro para o quarto onde a man­tinha cativa.

Anna censurava o conformismo da heroína aos desígnios de seu algoz. Dulcinéa, sem dúvida nenhuma, poderia ter encontrado uma maneira de escapar. No entanto, esperou até que Roland, seu amado, adentrasse o calabouço e a libertasse da tirania de seu exe­crável tutor.

As três casas, de números oito, nove e dez da Rua Carne Terrace, haviam sido construídas no mesmo local onde o Castelo Carne, já infestado por ratos e camundongos esfomeados, fora inteiramente destruídos por um terremoto.

Anna olhou para a lareira e se perguntou que arquiteto insen­sível teria projetado uma peça de gosto tão duvidosa. Do lado direito, um esqueleto humano segurava uma lança.

Deve ser uma alavanca, ela deu asas à imaginação.

Não resistiu. Levantou-se da cama, aproximou-se do ornamento macabro e tocou de leve uma de suas vértebras. Era, de fato, real.

Segurou a lança e tentou puxá-la.

Seguiu-se uma expectativa de alguns segundos até que uma engrenagem rotativa fez com que o esqueleto começasse a girar em torno de si mesmo em sincronia com a lenta abertura de uma porta secreta na parede do lado esquerdo da lareira.

Anna recuou dois ou três passos e levou a mão espalmada aos lábios, o coração batendo descompassadamente.

Não pode ser! Exclamou mal acreditando no que via.

Ali estava o acesso ao fantástico, envolto na sombra dos mis­térios a serem desvendados.

— Esta rua chama-se Carne Terrace em homenagem ao primei­ro Conde Carne. Foi ele quem construiu as três casas. A de número dez pertence agora ao quarto Conde Carne

— revelara, no dia anterior, a governanta incumbida de servir lady Featherstone du­rante sua estada em Londres.

— Ele se ausentou da cidade alguns dias após o incidente, e há muitos anos não aparece por aqui — adiantara-se a Sra. Postle, a simpática serviçal, sem que tivesse sido argüida sobre a vida dos vizinhos.

Naquele momento, Martha e Arthur, antigos serviçais da inteira confiança de sir Jeffrey e lady Featherstone, entreolharam-se. E Anna conseguira decifrar a mensagem. Aquele não era o tipo de assunto que devesse ser mencionado na presença de uma mocinha.

Contudo, a curiosidade dela havia sido atiçada. A que incidente estaria se referindo a governanta? Teria, porventura, o senhor con­de cometido alguma falta grave?

Um pecado carnal?, Anna indagava a si mesma.

Estava tudo muito claro! Incidentel Era exatamente aquela a palavra usada pelas senhoras discretas quando falavam de atos ilícitos, contrários à moral e aos bons costumes.

A devassidão, à licenciosidade!, Anna concluiu.

Durante as horas que precederam o jantar, ela não se afastara de perto da criadagem, na tentativa de reunir mais informações sobre o motivo que teria feito com que o senhor conde se ausen­tasse de sua casa durante tanto tempo. Porém, tudo o que Anna ficara sabendo fora que, na ocasião, ele havia deixado a Inglaterra e, desde o desafortunado incidente, nunca mais fora visto no país.

A vida do conde Carne era um enigma que a intrigava sobre­maneira. Porém, na verdade, uma incógnita que não a atormentava. Muito pelo contrário. Teria algo com que se entreter enquanto lady Featherstone e sua filha mais velha estivessem ocupadas com os preparativos para a apresentação de Maria à sociedade londrina.

Naquele ano, seriam muitos os compromissos de sua irmã em casa de jovens da sua idade.

A porta secreta ligava a casa de número nove da Rua Carne Terrace, onde os Featherstone estavam hospedados, à de número dez, residência do quarto conde Carne.

Anna se lembrou de que não havia nada que lady Featherstone mais abominasse do que a bisbilhotice, a alcovitagem e o mexe­rico. Insistia com as filhas para que evitassem tais atitudes.

— A indiscrição não convém a pessoas educadas — repetia sempre.

No entanto, a curiosidade era um dos pontos fracos de Anna. Naquele momento parecia-lhe impossível voltar para a cama e dormir. Com toda a certeza, não conseguiria pregar os olhos. Não podia perder a oportunidade de desvendar os mistérios que tanto a intrigavam. Nenhum ser vivo sobre a face da Terra, por mais bem educado, catequizado ou amestrado que fosse, conseguiria resistir à tentação de atravessar aquela porta. E Anna não tinha a menor intenção de ser o mais exemplar dentre todos eles. Tam­pouco podia se arriscar a ser surpreendida por uma visita do conde Carne, caso ele voltasse de viagem e decidisse invadir seu quarto durante a noite.

Acionou a alavanca uma segunda vez. Um ruído áspero lhe permitiu saber que a porta que servia de passagem para a casa ao lado se abrira, desta vez, por inteiro. A casa de número dez da rua Carne Terrace a convidava a entrar e esquadrinhar suas dependên­cias à procura de respostas para as dúvidas que as palavras da Sra. Postle haviam suscitado em sua mente.

Medo? Hesitação? Ansiedade? Euforia? Receio? Júbilo? Relu­tância? Perplexidade? Como chamaria a força imperativa que á impelia a prosseguir sua busca, ao mesmo tempo em que urgia para que ela corresse ao encontro de seus pais e lhes suplicasse que vedassem aquela porta com ripas de madeira?

Anna titubeou por um instante, e escolheu seguir em frente.

Então... Este é o quarto dele... Do senhor condel, constatou, ao atravessar o limiar do aposento de pé-direito muito alto, com guirlandas de flores lavradas nas sancas de gesso que enfeitavam a transição do plano das paredes para o do teto.

O aposento, bem asseado, exalava âmbares.

Um friso de cobre enquadrava o vão da lareira, simetricamente disposta em linha paralela à do quarto de Anna. Não se lhe igua­lava, no entanto, no mau gosto.

Os babados franzidos da colcha de gorgorão verde-escuro, impecavelmente esticada na cama de casal, caíam sobre o tapete de lã de ovelha.

Em cima de cada um dos criados-mudos havia um abajur com pé de alabastro e cúpula de seda na cor bege. Anna notou que a base de um deles estava rachada.

Uma nódoa no tampo da cômoda de mogno da Austrália, en­costada na parede em frente à cama, destacava-se no polimento uniforme.

A cortina de tafetá vinho, entreaberta, pendia de um varão de ferro torcido e tocava o piso de tábua-corrida.

Era óbvio que havia uma relação entre os dois quartos conju­gados e o incidente a que a Sra. Postle se referira.

A evidente cumplicidade que havia entre os moradores da casa de número nove e a de número dez da rua Carne Terrace assumiu proporções gigantescas na mente de Anna.

Aventou a hipótese de uma paixão proibida: dois amantes in­compreendidos, incompatibilizados com suas respectivas famílias, repudiados pelos amigos, condenados ao ostracismo, obrigados a se refugiarem em seu ninho de amor. Até... que ocorrera o fatídico incidente.

Ciúme? Traição? Outra mulher na vida do conde? Um assassinato? Suicídio? O que teria realmente acontecido?

Anna estremeceu ao pensar na possibilidade de não poder re­tornar ao seu quarto e, precavida, examinou o mecanismo da porta secreta antes de prosseguir a aventura. Nada a demoveria do in­tento de desvendar o enigma.

Com toda certeza, os empregados incumbidos da limpeza da casa já haviam se recolhido aos seus aposentos.

Todavia, não estava descartada a possibilidade de que um deles, ao ouvir qualquer ruído, decidisse verificar se havia alguém no quarto do patrão.

Como Anna justificaria sua presença ali, àquela hora da ma­drugada?

De qualquer forma, uma mocinha de apenas dezesseis anos de idade, que vestia uma camisola de dormir, dificilmente seria to­mada por uma assaltante. O pior que poderia lhe suceder era uma constrangedora reprimenda de seus pais quando fosse reconduzida à casa ao lado por um dos fiéis criados do senhor condessa.

Com cuidado, Anna girou a maçaneta e abriu a porta do quarto que dava para o corredor.

—Nãããã... —Anna assustou-se com uma sombra que tremulou na parede. Recuou alguns passos e, ao se virar, viu que a cortina balançava. Só então notou que ventava forte na noite londrina.

Reiniciou a travessura interrompida, disposta a não mais se inibir diante de qualquer acontecimento inesperado com que se deparasse.

As duas badaladas de um carrilhão indicaram as horas no mo­mento exato em que um temporal desabou sobre a cidade.

Segurando o castiçal com a vela acesa, Anna caminhou pelo corredor, admirando os quadros que adornavam as paredes.

Não era uma grande apreciadora da pintura. As esculturas e a música a sensibilizavam mais. No entanto, por aquela pequena mostra, pôde perceber que o conde tinha em casa uma valiosa pinacoteca.

Anna entrou no segundo quarto, mas não encontrou nada que lhe chamasse a atenção. Os móveis eram tão sóbrios quanto os do aposento do senhor conde, com exceção de uma pele de zebra esticada no chão. Provavelmente trazida de um safári na África.

Foi no boudoir que viu algo muito significativo: o retrato de corpo inteiro de um rapaz talvez um pouco mais velho do que ela. Seus olhos azuis pareciam fitá-la diretamente. Tinha os cabelos castanho-escuros. Trajava-se com muita elegância, apesar de ainda muito jovem. Sobre o colarinho da camisa de seda bege, usava um plastron na mesma cor, no qual, presa em um alfinete, sobressaía uma pérola nacarada, relativamente grande. Os punhos duplos das mangas compridas estavam fechados com abotoaduras de ouro.

A calça preta era justa e moldava seu corpo magro com discri­ção. Anna se surpreendeu ao admitir que, em vários aspectos, aque­le rapaz lembrava seu irmão e os amigos dele. Tinha a mesma malícia no olhar. No entanto, devia ser agora mais velho.

Ela permaneceu diante do retrato por alguns minutos. Os olhos vividos do rapaz pareciam querer lhe transmitir uma mensagem que Anna não conseguia decifrar.

Com um sorriso contrafeito nos lábios, ela saiu do quarto, sen­tindo-se como se o estivesse abandonando.

Dirigiu-se para o alto da escada. Dali, parte do andar inferior da casa era visível.

Dois sofás marrons, Chesterfield, ficavam um de frente para o outro. Na parede, o tema da tela a óleo, a maior de todas, era uma corrida de cavalo.

Duas pequenas arcas serviam de aparador para abajures cujos pés eram de metal. As cúpulas tinham o mesmo tom rosado de umas das listras do tecido de seda que estofava duas bergères.

No centro do conjunto, uma mesa de mogno retangular, sem enfeite algum sobre o tampo.

Não está certo! Não posso descer. Estou invadindo a casa do conde. Se meus pais souberem disso..., Anna reprovou a própria conduta.

No entanto, ainda uma vez, a curiosidade foi mais forte. Seguiu em frente: o primeiro, o segundo, depois o terceiro degrau... E assim por diante, devagarzinho, tentando não fazer ruído, até che­gar ao último...

— Meu Deus! — Deixou escapar um grito ao derrubar o cachopo apoiado no capitel do balaústre que arrematava o corrimão na altura do último degrau da escada. —O que eu fiz?—Lastimou, olhando os cacos de porcelana espalhados pelo chão.

Sem conseguir se mover olhou ao seu redor, aguardando a chegada dos criados. Com toda a certeza, tinham acordado com o baralho e, dentro de poucos minutos, estariam entrando naquela sala para flagrá-la no sopé da escada, paralisada pelo me­do, incapaz de qualquer reação, concentrando toda sua atenção no castiçal que tinha na mão e rezando para que a vela não se apagasse.

Todavia, nenhuma alma viva apareceu na sala iluminada apenas pela claridade que entrava através da clarabóia no alto da parede, em cima da porta principal. As cortinas estavam todas fechadas.

A chuva havia cessado, e o silêncio na casa era sepulcral.

Finalmente, Anna conseguiu controlar o temor. Pensou em re­tornar ao seu quarto e abandonar, de uma vez por todas, a perigosa aventura.

Não!, Ordenou a si mesma. Não vou fazer isso! Cheguei até aqui e não vou desistir.

Suspendeu ligeiramente a camisola longa para não tropeçar e continuou sua busca.

Sem pressa, examinou os demais compartimentos da casa: a sala de jantar, o quartinho de costura, a copa, a cozinha... Bons móveis, vários quadros nas paredes e algumas esculturas valiosas. Aquela moradia pouco se diferenciava de todas as demais habita­das pelas pessoas que pertenciam às classes privilegiadas da so­ciedade londrina.

Quando Anna se virou na direção da escada para voltar a seu quarto, notou que havia uma outra porta que dava para a sala de visitas. Até aquele momento não se apercebera de sua existência.

Aproximou-se dela e girou a maçaneta com cuidado. Não podia excluir a possibilidade de encontrar alguém naquele cômodo.

No entanto, maravilharam-se com uma enorme coleção de livros, dispostos nas prateleiras de uma biblioteca que ocupava uma das paredes do escritório.

Anna adorava ler e sua preferência recaía sobre os romances. Contudo, na falta de algo que a motivasse, era capaz de absorver, com ligeireza e avidez, todo o conteúdo da coluna de esportes do jornal embora, como todas as mulheres, não tivesse o menor inte­resse pelo assunto. Seu pai a encorajava e considerava o amor pela leitura mais uma dentre as tantas qualidades de sua filha mais jovem.

Lady Featherstone tinha maior afinidade com a filha mais velha. Sua atenção era voltada para os assuntos mundanos.

No momento, estava ocupada em ajudar Maria a arranjar um noivo, afinal ela já estava na idade de se casar. Bem verdade que era, reconhecidamente, uma moça bonita e não corria o risco de não achar um pretendente. Lady Featherstone sabia que era função de uma mãe providenciar que o futuro marido de sua filha estivesse à altura dela, pertencesse a uma boa família, fosse rico, bonito.

Enfim, alguém que pudesse despertar inveja em todas as suas amigas. Naturalmente, isso requeria algum esforço, e lady Fea­therstone não se furtava às suas responsabilidades.

Era preciso que Maria estivesse sempre elegantemente vestida. Portanto, uma ou duas visitas à modista cujos preços, muitas vezes, estavam um pouco acima das possibilidades financeiras de sir Jeffrey, tomavam-lhe duas tardes inteiras da semana.

 

Naqueles tempos, as moças que praticavam a religião levavam uma grande vantagem sobre as demais. Por esse motivo, todas as manhãs, em Derbyshire, lady Featherstone acompanhava Maria à igreja para que ela fizesse suas orações, a cabeça sempre coberta com a mantilha de renda que havia pertencido à avó, mãe de sir Jeffrey. As senhoras da cidade se mostravam encantadas com tal devoção e, toda vez que surgia uma oportunidade, manifestavam o desejo de tê-la como nora.

Jamais um convite de lady Featherstone para os saraus em sua casa era recusado. Com freqüência, no final da tarde, alguns jovens ali se reuniam para ouvir música e dançar. E era Maria quem re­cebia os elogios pelos docinhos feitos pela cozinheira.

Anna, sempre envolvida com os problemas das heroínas de seus livros preferidos, não se ressentia com a preferência da mãe pelos assuntos da irmã. Tinha muitos interesses em comum com seu pai.

Imaginou como sir Jeffrey ficaria feliz se visse a biblioteca do conde Carne: obras inteiras de diversos autores, com encadernação em cores diversas, revistas empilhadas na mais perfeita ordem, álbuns de couro e troféus aqui e acolá.

Com a chama de sua vela, Anna acendeu as três outras que estavam no castiçal sobre a escrivaninha e uma quarta que achou na gaveta.

— História da Inglaterra, Viagens ao Novo Mundo, Ciências Naturais, A Família Real, William Shakespeare, O Rei George... — Ela se pôs a examinar os volumes guardados ali. Correu os dedos pelo dorso dos poucos romances apoiados em uma só pra­teleira, tentando descobrir quais eram os autores preferidos do do­no da casa. — Achei! — Anna deixou escapar um grito.

Ali estava Forbiddenaffections, a obra dividida em três tomos encadernados em camurça carmesim.

Alucinada com a idéia de ler a. história de Dulcinéa em um quarto igual ao seu, Anna não atinou de imediato que estaria co­metendo um grave delito se o retirasse da casa.

Moralmente abalada, quis fugir dali, e o nervosismo que a do­minava fez com que apagasse também a sua vela.  

Subiu a escada no escuro, ansiosa por chegar a seu quarto.

Após se certificar de que a porta secreta estava bem fechada, deitou-se na cama, puxou as cobertas, fechou os olhos e se per­guntou se não teria sonhado a incrível façanha.

 

Está na hora de acordar — disse Martha, a governanta das Srtas. Featherstone, senhora de meia-idade, já abrindo as cortinas.

Anna puxou o lençol e protegeu os olhos da claridade do dia. Tinha a sensação de estar despertando de um sonho fantástico. Somente após alguns segundos se deu conta de que, realmente, estivera na casa do conde Carne.

— Não entendo como teve coragem de dormir neste quarto — observou Martha, colocando a bacia de porcelana no suporte e, em seguida, derramando ali a água morna que trouxera da cozinha. — É muito corajosa, sita. Anna!

Eu jamais conseguiria passar uma noite aqui.

— Pois eu não fiquei nem um pouquinho com medo — Anna vangloriou-se.

— Vou ver se Maria está precisando de mim, mas volto já para ajudá-la a se vestir e pentear seus cabelos.

Anna pulou da cama e iniciou sua toalete. Calçou as meias e pôs a anágua. Colocava o espartilho quando Martha retornou.

— Está na hora de trocarmos este cadarço — avaliou, ao notar que estava começando a esgarçar.

Em seguida, pediu a Anna que sentasse no banquinho, de frente para o toucador.

— Vamos fazer sua trança. Não podemos nos demorar.

— Sabe que horas são?

— Já passa das oito horas. Seus pais estão na copa, esperando pela senhorita.

— E Maria? Já desceu?

— Já deve estar lá embaixo. Lady Featherstone a acompanhará à modista após o café da manhã.

— Ela trouxe tantos vestidos de Derbyshire!

— Sua mãe acredita que não serão suficientes para tantos com­promissos sociais que terá aqui em Londres.

Marfha dividiu os cabelos de Anna em três partes e começou a trançá-los.

— Onde guardou sua fita cor-de-rosa? — perguntou.

— Acho que está na cama. Esqueci-me de tirá-la dos cabelos ontem à noite, antes de me deitar.

Marfha revirou os lençóis, porém não a encontrou.

— Não está aqui.

— Então... Devo ter deixado cair em algum lugar. — Anna inquietou-se.

Nem por sombra, Marfha poderia desconfiar que a fita cor-de-rosa estava, naquele momento, caída em algum lugar da casa do vizinho. Anna ficou apreensiva ao imaginar que, certamente, al­gum dos criados do conde Carne a encontraria. O que faria com ela? E, se por acaso, tivesse a idéia de mostrá-la a algum dos em­pregados que serviam à lady Featherstone?

Estou perdida! Anna ficou apavorada.

— Não pode fazer minha trança depois que eu tomar o café da manhã? — sugeriu. — Meus pais devem estar com muita fome e não posso fazer com que Maria se atrase. Como você mesma disse, ela irá à modista com mamãe.

— Não precisa ter tanta pressa. Seu pai está lendo os jornais enquanto lady Featherstone ensina a cozinheira a fazer a sobreme­sa que pretende servir no almoço.

— Ainda assim...

— Aqui está! Podemos colocar esta fita branca. Acho que com­bina melhor com o vestido que você usará. Além do mais, a fita cor-de-rosa deve estar bastante amassada.

— Você... ficou sabendo alguma coisa sobre esta casa?—Anna perguntou.

— Sobre esta casa? — Marfha estranhou a pergunta. — Não entendo o que a senhorita quer saber.

— Sim, sobre esta casa. Ou melhor, sobre este quarto. Há de convir que foge um pouco aos padrões, normais.

— Quem consegue entender o gosto dessa gente da capital! — Martha não gostava de Londres e tinha o hábito de depreciar tudo o que ali havia.

— Os criados não disseram nada sobre esta decoração inusitada?

— Ainda não tivemos tempo para conversar. Ontem à noite, quando chegamos, Arthur trouxe a bagagem para dentro da casa e, após desfazer as malas, eu guardei as roupas nos armários. Lady Featherstone nos apresentou aos empregados e, logo em seguida, o jantar foi servido. Nós dois nos oferecemos para ajudá-los na arrumação da cozinha, mas insistiram para que fôssemos nos dei­tar. Estávamos mesmo muito cansados por causa da viagem.

Os Featherstone ficariam em Londres até o mês de junho, tempo suficiente para que Anna pudesse descobrir o que realmente havia acontecido entre o conde Carne e sua suposta amante.

A única informação que tinha sobre o incidente a que a sra. Postle se referira era que o conde se ausentara de sua residência logo após o ocorrido, e há muitos anos não era visto na Inglaterra.

— Está linda — disse Martha, olhando para a mais jovem das sitas. Featherstone.

— Colocaremos seu vestido e poderá descer. Seus pais devem estar ansiosos para lhe desejar um bom dia.

— Acha mesmo que a fita dos cabelos combina com o laço da cintura? — Anna quis saber.

— Mas é claro, Srta. Anna. O branco e o rosa condizem perfei­tamente.

— Então estou pronta.

— Descerei logo que terminar de arrumar seu quarto e o de Maria.

— Já tomou café, Martha?

— Sim, claro. Arthur e eu acordamos muito cedo.

— Até já.

— Até já, Srta. Anna.

Sir Jeffrey dobrou o jornal que estava lendo e se levantou para abraçar sua filha Anna.

— Bom dia, Pippin.

— Bom dia, papai, dormiu bem?

— Muito bem. E você? Não teve pesadelos naquele seu quarto estranho?

— Não, papai, não tive pesadelos. Pode ficar tranqüilo.

— Então, descansou bastante.

— Descansei, sim — Anna respondeu, sorrindo.

Lady Featherstone, como Martha já havia dito a Anna, estava ensinando a cozinheira a fazer a sobremesa que pretendia servir na hora do almoço.

Ao ouvir a voz da filha, voltou para a copa e sentou-se à mesa, de frente para o marido. Tinha os cabelos muito claros e já estava elegantemente vestida àquela hora da manhã.

— Às vezes desconfio que lhe falte um pouco de sensibilidade, Anna — ela criticou a filha.

— Se Anna não houvesse se oferecido para ficarem naquele quarto, as meninas precisariam dormir juntas. E sabemos o quanto elas detestam ter que fazer isso

— disse sir Jeffrey.

Ele era um homem forte e tinha o rosto corado. Os traços de Anna eram muito semelhantes aos seus.

— Maria tem um sono muito agitado. Vira-se na cama a noite inteira — Anna justificou.

__Só quando durmo fora de casa. Estranho o colchão e o tra­vesseiro. Esta noite, por exemplo, não consegui pregar o olho. O colchão da minha cama é muito duro.

A noite mal dormida não havia, em absoluto, afetado sua beleza. Como Dulcinéa, já era, por natureza, encantadoramente pálida, o que lhe atribuía um aspecto frágil, bastante feminino. Magra, como a mãe, todos os vestidos lhe caíam muito bem.

Os cuidados exagerados de lady Featherstone com sua saúde eram desnecessários, uma vez que Maria só se mostrava indisposta quando não lhe faziam as vontades. No entanto, sua mãe acreditava piamente que ela não podia ser contrariada.

— Tome mais um pouco de suco, minha filha—lady Feathers­tone insistiu.

— Precisa se alimentar bem.

__E então? — sir Jeffrey perguntou a Anna —, quais são os planos para esta manhã, Pippin?

— Bem...

— Não diga nada. Acho que posso adivinhar. Maria sorriu enquanto se servia de ovos.

— Vejamos... Um ataque às melhores livrarias da capital! — sir Jeffrey brincou.

— E o senhor, com toda a certeza, já preparou uma lista das mais recomendadas, não é verdade, paizinho?

— Preparei, sim. Aqui está, minha filha. Tive o cuidado de anotar também os respectivos endereços.

— O senhor não irá comigo?

— Infelizmente, hoje não posso Pippin. Pedi a Arthur e Martha que a acompanhem.

Sir Jeffrey era um dos membros do parlamento inglês e, como tal, um homem muito ocupado. Lady Featherstone, por sua vez, estava, certamente, mais interessada em comprar tecidos caros e aviamentos originais para os vestidos novos de Maria.

— Obrigada, papai. Dirigindo-se à mãe, Anna perguntou:

— A senhora e Maria irão à modista, não é mesmo, mamãe?

— Sim, queridinha. E, sem dúvida, estaremos em casa para o almoço. Ensinei a cozinheira a fazer a torta de nozes de que você tanto gosta.

—Eu ia mesmo lhe pedir que o fizesse. Muito obrigada, mamãe.

— O almoço será servido ao meio-dia em ponto.

— Não se preocupe — Anna a tranqüilizou. — HÁ essa hora já estaremos de volta.

— Papai, a que a Sra. Postle estava se referindo quando men­cionou um incidente na casa de nosso vizinho?—Anna perguntou, acreditando que seu pai se disporia a esclarecer o enigma.

Todavia, ele não lhe deu a resposta esperada.

— Não preste atenção a esses assuntos. Londres não é como Derbyshire. Aqui, as pessoas não costumam se preocupar com o que acontece na casa dos vizinhos.

— Mas, papai, ele mora na casa ao lado. Acho que deveríamos saber de quem se trata. Pode ser... uma pessoa perigosa! — Anna quis alertá-lo.

Sir Jeffrey e lady Featherstone trocaram um olhar cúmplice.

— Anna — sua mãe achou por bem interferir no diálogo entre a filha e o marido —, caso você venha a encontrar algum de nossos vizinhos, um simples aceno com a cabeça será suficiente para cum­primentá-lo. Apenas poderá dirigir a palavra a qualquer um deles a partir do momento em que for formalmente apresentada à sociedade londrina — lady Featherstone a aconselhou. — O que não acontecerá nesta primavera, pois você ainda não tem dezoito anos. Maria quis mostrar à irmã que já era considerada adulta e revelou:

— Martha me contou que houve um assassinato na casa de número dez, alguns anos atrás. Imaginem! Um assassinato! Fico tremendo só de imaginar que tal atrocidade aconteceu na casa ao lado. Acha mesmo que não estamos correndo perigo, papai?

Lady Featherstone ia fazer urri comentário sobre a imprudência da sra. Postle em ter revelado o fato a Maria, quando seu marido se antecipou:

— Devemos contar tudo a elas, minha querida. É melhor que fiquem sabendo por nós.

Decidido a esclarecer o enigma de uma vez por todas, sir Jeffrey se dirigiu às filhas:

— Anna e Maria, a sra. Postle não está totalmente errada. Uma mulher foi, sim, encontrada morta na casa do conde Carne alguns anos atrás. Porém, não foi assassinada. Suicidou-se nos aposentos dele. — Sir Jeffrey fez uma pausa antes de prosseguir: — Não há motivo algum para se preocuparem. Ainda assim, é preciso que saibam que o conde, apesar de sua posição social, não é pessoa grata em seu próprio meio. Ele não mora mais na Inglaterra. No entanto, se um dia o encontrarem, devem ignorá-lo. Entenderam?

— Ignorar o conde? — Anna surpreendeu-se com o pedido do pai.

— Se ele tiver um mínimo de decência, não se aproximará de vocês. Se o fizer, devem se recusar terminantemente a falar com esse senhor.

Anna não esperava por um julgamento tão radical. Lembrou-se do retrato que vira na casa do conde e achou improvável que aquele fosse o mesmo homem a que sir Jeffrey se referia.

Com certeza, os criados teriam algo mais a dizer a ela. Ou então, Maria, como sempre, pois já era considerada adulta e podia escutar a conversa das pessoas mais velhas. Portanto, tinha maior acesso à informação.        

Logo após o café da manhã, lady Featherstone e Maria saíram a caminho da modista mais requisitada pela alta roda da sociedade londrina. Em seguida, visitariam as lojas de Picadilly Circus e

Oxford Street. Sir Jeffrey fora muito generoso quanto à quantia que lhes dera para gastarem.

Antes de ir para o Parlamento, ele disse a Anna que, sob hipótese alguma, ela deveria se afastar do casal de empregados que serviam à família desde que as meninas eram ainda muito pequenas: Martha e Arthur.

A caminho do centro da cidade, Anna comentou com eles:

— Há tanta gente em Londres. É de admirar que a casa vizinha à nossa esteja há tanto tempo vazia.

— Tem razão, Srta. Anna—Martha concordou. — E realmente um desperdício! Poderia ter sido alugada. Quem não gostaria de morar em uma casa como aquela?

— Há criadagem encarregada da limpeza?

— Um casal, os Murchison, é que os contrata e distribui as tarefas. Não há muito que fazer, pois a casa permanece fechada a maior parte do tempo. As janelas são abertas apenas duas vezes na semana.

Anna esperava que Martha lhe dissesse algo mais. Todavia, ela se calou.

— E desde que o senhor conde viajou, nenhuma outra pessoa morou lá? — Anna insistiu.

— Não, ninguém mais. Parece que a casa está totalmente vazia desde que uma senhora apareceu morta nos aposentos do senhor conde — Arthur respondeu.

— Arthur! — Martha exclamou. — A Srta. Anna ainda é muito jovem para ficar sabendo dessas coisas!

Anna teve vontade de esganar sua governanta. Justamente no momento em que Arthur parecia decidido a lhe contar o que havia acontecido na casa de número dez, ela o interrompera.

— E essa senhora era amante do senhor conde, pelo que pude entender — Anna concluiu. — O que, obviamente, não significa que ele tenha tido alguma participação na morte dela.

— Seu raciocínio está perfeito, Srta. Anna. Nada foi provado contra ele.

Que motivos teriam levado Maria a mentir? Por que havia dito que a amante do senhor conde havia sido assassinada?

Anna entrou na Hatchards e se pôs a selecionar os livros que mais lhe interessavam. Como não estivesse conseguindo encontrar um exemplar de Forbiddenaffections, pediu ao vendedor que con­sultasse o catálogo.

— A senhorita há de nos desculpar, mas não temos nenhum exemplar de Forbidden Affections.

— Como não? É impossível! — Anna estranhou.

— O livro foi publicado há dez anos e não foi reeditado — o funcionário da livraria explicou. — Posso lhe mostrar outros ro­mances. Vários deles acabaram de chegar.

Educadamente, Anna escutou o que ele tinha a dizer sobre as publicações mais recentes e comprou aquelas que mais lhe agra­davam. Martha e Arthur estavam proseando, não muito longe dali.

Mesmo que tivessem ouvido a conversa dela com o vendedor, não entenderiam o porquê de seu interesse pelo romance de Mrs. Jamison.

Anna não queria que ninguém descobrisse seu segredo até que desvendasse todo o mistério em que estava envolvida a casa de número dez. Pretendia descobrir tudo sozinha.

Ela teria ido a outras livrarias se não fosse pelo adiantado da hora. Martha deveria providenciar para que a mesa do almoço fosse arrumada ao gosto de lady Featherstone. E Arthur, inteirar-se das incumbências que sir Jeffrey lhe dera para aquela tarde.

Lamentando não ter encontrado um exemplar de Forbidden Af­fections, Anna decidiu voltar para casa.

— Papai, mamãe e Maria chegarão logo — comentou.

— Com toda a certeza — Martha concordou. — O almoço já deve estar quase pronto, e preciso verificar se tudo está sendo preparado a contento de lady Featherstone e sir Jeffrey.

— Acha que a Sra. Jones conseguiu fazer a torta de nozes que mamãe lhe ensinou?

— Tivemos informações de que é uma excelente cozinheira. Portanto, não precisa se preocupar. Hoje a senhorita poderá se deliciar com sua sobremesa favorita.

Ao chegar em casa, Anna se dirigiu para a sala de visitas, sen­tou-se em uma poltrona e abriu um dos livros que acabara de com­prar. Contudo, não conseguiu se concentrar na leitura. Seu pensa­mento estava voltado para o senhor conde e o que havia ocorrido na casa dele oito anos atrás.

Então, o conde Carne tinha mesmo uma amante! Um amor proi­bido! Ela se pôs a fazer conjeturas sobre os supostos enamorados.

Por volta das onze horas, não conseguiu mais controlar a cu­riosidade e se dirigiu para a cozinha, onde duas criadas ajudavam a Sra. Jones a terminar de preparar o almoço.

— Está com fome, Srta. Anna? — ela perguntou. — As empadinhas já estão prontas. Gostaria de prová-las?

Anna sentou-se à mesa e, depois de experimentar uma, sorriu e elogiou a cozinheira:

— Está deliciosa! — Ela adorava lambiscar, até mesmo antes da hora do almoço.—Eu tinha planos de emagrecer durante minha estada aqui em Londres. Porém, com a senhora por perto, já vi que será impossível.

— Os rapazes não gostam de moças muito magras, Srta. Anna. Preferem as mais gorduchinhas. — Percebendo que Anna sentia enorme prazer em saborear seus quitutes, a sra. Jones ofereceu: — Agora, veja se estes bolinhos de carne estão a seu gosto.

— Não consigo resistir. Vou aceitar um.

— Estão gostosos?

— O proprietário desta casa certamente poderia cobrar uma taxa extra pelos serviços da senhora. Estes bolinhos estão deliciosos.

Envaidecida, a cozinheira se gabou:

— Trabalho aqui há doze anos, Srta. Anna, e jamais alguém reclamou da minha comida.

— A Sra. Jones voltou-se para a aju­dante e, com ares de manda-chuva, ordenou-lhe que parasse de bater as claras e pusesse a chaleira com água no fogo.

Melindrada com o que lhe parecera uma repreensão, a mocinha indolente colocou a tigela sobre a mesa e obedeceu.

Anna sentiu que era o momento apropriado para abordar o as­sunto que a trouxera à cozinha.

— A senhora já estava trabalhando aqui quando o quarto onde estou dormindo foi redecorado, não estava?

A Sra. Jones olhou para Anna.

— O quarto mal-assombrado?

A simples menção daquele aposento fez com que a cozinheira sentisse um calafrio lhe percorrer todo o corpo.

—Mais um dentre os muitos delírios de lady Delabury, a esposa do proprietário desta casa.

— Então, ela era... — Anna não pôde finalizar seu pensamento, pois a Sra. Jones a interrompeu para repreender uma de suas aju­dantes.

— Maggie, sua bisbilhoteira, não está vendo que a água já co­meçou a ferver?

 

Assustada, a jovem criada que se distraíra ouvindo a conversa apanhou um pano e tirou a chaleira do fogo.

— Lady Delabury devia gostar muito de romances — Anna insistiu em sua investigação.

A Sra. Jones se surpreendeu com as palavras dela e, com ar desconfiado, perguntou:

— Como ficou sabendo disso, Srta. Anna?

—Muito fácil! Em quase todos os romances há um quarto como esse. Normalmente em castelos de famílias arruinadas, onde as aranhas cobrem as vigas com suas teias e os ratos perambulam livremente pelo sótão fazendo com que, durante a noite, as crianças gritem apavoradas. — Anna simulou um tom misterioso.

Estarrecidas, as duas jovens ajudantes da cozinheira inter­romperam seu trabalho para escutar o que ela e a cozinheira con­versavam.

— Bem... não há ratos nesta casa. Tampouco teias de aranha. — A Sra. Jones parecia ofendida com as palavras de Anna. — Em todo caso, o que diz faz sentido.

— Como assim? — Anna não entendeu.

— Lady Delabury escrevia romance.

— Ela ES... Crc. Via RO... Mances? — Anna engasgou-se com um bolinho de carne.

— Seu pseudônimo era Mrs. Jamison — A cozinheira enfim revelou.—Maggie, não fique aí pasmada. Ponha logo essa farinha na tigela. Sir Jeffrey, lady Featherstone e Maria podem chegar a qualquer momento, e o almoço já deverá estar pronto.

— Então, o quarto...

— Lady Delabury era uma senhora encantadora—A Sra. Jones prosseguiu relatando.

—Muito parecida com sua irmã Maria, Srta. Anna. Lorde Delabury fazia tudo aquilo que ela queria, era apai­xonado pela esposa. E quando lady Delabury lhe. Pediu que man­dasse redecorar o quarto dela, ele prontamente atendeu seu pedido. Ficou tão desesperado com sua morte! — A Sra. Jones lamentou.

Lady Delabury era como Dulcinéa. Não era de admirar que as personagens de mrs. Jamison fossem tristes, frágeis e muito infe­lizes. Pobre mulher! Anna ficou triste.

Mas afinal, o que significava aquela passagem secreta para a casa de número dez?

Estava tudo muito claro. Lady Delabury, como Dulcinéa, tinha também o seu Roland. Mas por quê? O marido não lhe fazia todas as vontades?

— Como era lorde Delabury? — Anna perguntou à Sra. Jones.

— Um homem realmente muito bonito e, acima de tudo, um bom patrão. Após a morte da esposa, não quis mais morar aqui e mudou-se para sua propriedade no norte da Inglaterra.

Fascinada com o relato, Maggie parecia ter se esquecido de seus afazeres. Sentada à mesa, com o rosto apoiado nas duas mãos, também ouvia a revelação com grande interesse.

—Maggie! — a cozinheira se irritou. — Você ainda não cortou essas cenouras?

— Voltando-se para Anna, disse a ela: — Por favor, Srta. Anna estamos muito ocupadas e não podemos con­versar. Precisamos terminar o almoço. Seus pais já devem estar chegando.

— Vou dar uma volta no jardim — Anna decidiu.

— Tracy, veja se Martha já terminou de arrumar a mesa — pediu a Sra. Postle.

— E pergunte a ela se precisa de ajuda.

— Já estou indo, senhora — prontificou-se a ajudante.

O sol estava quente, e Anna, sentada em um banco embaixo de uma cerejeira, cismava naquele enigma deliciosamente intrigante.

O fato de lady Delabury ter um quarto semelhante ao aposento que idealizara para a personagem de um de seus livros era perfei­tamente compreensível. Contudo, a passagem secreta jamais po­deria ter sido feita sem o consentimento dos respectivos proprie­tários de ambas as casas. Sendo assim, lorde Delabury sabia de sua existência e, por conseguinte, não desconhecia a ligação amo­rosa entre sua esposa e o conde Carne.

Amada por dois homens que lhe faziam todas as vontades, quais os motivos que teriam levado lady Delabury a pôr termo à própria vida?

Anna se levantou e caminhou até o portão. Olhou para a casa de número dez à procura*de respostas para suas indagações.

Todavia, as cortinas bem cerradas impediam a violação dos segredos dos eternos apaixonados.

 

Todos haviam terminado de jantar e os criados já tinham se recolhido a seus aposentos. Sir Jeffrey e lady Featherstone não pareciam cansados. Maria conversava com a mãe sobre a es­colha dos vestidos que estariam à prova na semana seguinte.

— Não ficarão prontos para que eu possa estreá-los aqui em Londres — ela se queixou.

— Poderá usá-los em Derbyshire. Farão um enorme sucesso entre suas amigas — lady Featherstone a consolou.

Alheio às preocupações da esposa e da filha mais velha, sir Jeffrey fumava seu cachimbo enquanto se inteirava dos assuntos a serem discutidos na Câmara dos Lordes, no dia seguinte.

Anna procurava controlar sua inquietação. Ansiava por chegar em seu quarto e voltar à casa do conde. Porém, não podia se retirar tão cedo. Se o fizesse, seus pais, com certeza, pensariam que estava doente, pois era sempre a última a sentir sono.

As reuniões familiares após o jantar costumavam ser muito agradáveis. Muitas vezes, em Derbyshire, sir Jeffrey convidava lady Featherstone-e suas duas filhas para jogar e insistia para que Anna fosse sua parceira, o que muito a envaidecia.

Com o livro aberto nas mãos, ela fingiu estar interessada na leitura. A expectativa de atravessar novamente a passagem secreta a impedia de se concentrar.                  

— Acredito que não haja mais necessidade de se preocuparem com o conde Carne. Corre por aí que ele morreu durante uma de suas viagens à África — sir Jeffrey falou e quebrou o silêncio que havia na sala. — Ao que tudo indica, surgiram alguns problemas de comunicação e a família não foi participada de seu desapare­cimento. E só agora, seu primo e herdeiro deu entrada em um processo para conseguir que ele seja declarado morto.

— Que coisa horrível! — exclamou Anna, lembrando-se do rapaz que vira no retrato de corpo inteiro, dependurado na parede da casa do conde e tendo convicção de que se tratava da mesma pessoa cuja morte seu pai acabara de anunciar.

— A vida tem que continuar Pippin — sir Jeffrey racionalizou. —As pessoas se vão e os herdeiros ficam com seus bens materiais. É seu dever documentá-los devidamente.

Por volta das dez horas, lady Featherstone levantou-se:

— Já é tarde e hoje tivemos um dia cheio. Acredito que estejam cansadas. Digam boa-noite a seu pai e vamos nos recolher, minhas filhas — disse a guisa de despedida.

— Descansem bastante — sir Jeffrey desejou.

— Obrigada — Maria agradeceu. — Não fique acordado até muito tarde.

— Boa noite, papai. — Anna se retirou com o firme propósito de voltar à casa de número dez naquela mesma noite.

Mesmo que o conde estivesse realmente morto, havia um mis­tério a ser desvendado. E ela não teria sossego enquanto não des­cobrisse os motivos que haviam levado lady Delabury a se suicidar.

Em seu quarto, pensou na possibilidade de encontrar alguma notícia nas páginas dos jornais guardados nas prateleiras da biblio­teca do conde Carne. Apanhou o castiçal de uma vela, acionou o mecanismo que abria a porta secreta e se dirigiu para lá.

Apenas alguns minutos se passaram e logo Anna tinha nas mãos um exemplar do Relatório Anual de 1809. Seus olhos se fixaram na notícia do dia 25 de maio. Por uma simples razão: aquela era a data do aniversário de sua melhor amiga, Harriet Northam:

Nesta data, um grande tumulto aconteceu na elegante residência da Rua Carne Terrace, onde uma dama da mais alta sociedade londrina ingeriu uma grande quantidade de láudano, pondo termo à própria vida.

O grande enigma que envolve a tragédia é que a referida senhora, esposa do visconde D******y, não se suicidou em sua casa, mas sim nos aposentos de seu vizinho, o conde

C***. Na ocasião, o senhor conde não se encontrava em Londres, pois já havia viajado há alguns dias para sua pro­priedade em Norfolk.

— Céus! Que infortúnio! — Anna estava perplexa.

O registro do terrível drama não deixava margens a dúvidas: lady Delabury havia sido amante do conde Carne. E dadas as cir­cunstâncias, com certeza, sua morte provocara uma terrível indig­nação em todos os amigos de lorde Delabury, segundo as palavras da Sra. Jones, uma ótima pessoa, além de muito apaixonado pela esposa.

Tal desatino torna-se ainda mais misterioso pelo fato de o herdeiro do conde C***, lorde M******Le, estar, naquela mesma noite, recebendo amigos para uma festa no andar de baixo da casa. Nem eles e tampouco os criados souberam explicar como lady D******y entrara na casa, vestida ape­nas com uma camisola de dormir.

Dr. Dawkins, médico da família D******y, foi imediata­mente chamado e chegou apenas para constatar que a vida de sua paciente já havia se extinguido.

Anna se pôs a refletir sobre os fatos registrados no Relatório Anual de 1809.

Quem seria o quarto conde Carne? O cavalheiro em cujo leito lady Delabury havia se suicidado ou seu herdeiro, lorde Mander-ville, que, naquela noite, divertia-se com seus jovens amigos no andar de baixo da casa?

Uma edição do Burke 's confirmou seu raciocínio: o atual conde Carne, então lorde Manderville, devia estar agora com aproxima­damente trinta anos.

Anna ficou surpresa ao constatar que lorde Manderville havia sido elevado à dignidade de conde em maio de mil oitocentos e nove, apenas alguns dias após a morte de lady Delabury.

Recolocou o Burke 's na prateleira e tentou obter maiores deta­lhes em outras publicações. Estava prestes a desistir de encontrá-los, quando deparou com uma referência ao ocorrido em uma das páginas do Relatório de Londres, praticamente uma repetição do

texto registrado no Relatório Anual de 1809. Com a diferença de que abordava também o inquérito judicial.

...o médico, chamado ao local pelo marido de lady D ******y constatou que certos ferimentos nos braços da vítima sugeriam que ela teria sido coagida a ingerir a subs­tância que causou sua morte.

Além de haver sido constatada a total impossibilidade de qualquer pessoa estranha ter tido acesso a casa sem ser vista, lorde M******Le e seus amigos depuseram uns a favor dos outros, declarando que nenhum deles deixara a sala onde, naquela mesma noite, participavam de uma festa.

O inquérito foi dado por encerrado com a apresentação de uma carta, de próprio punho, na qual lady D******y se despedia do marido, ficando, assim, afastada qualquer sus­peita de assassinato.

Anna fechou o Relatório de Londres sem estar convencido da inocência do então lorde Manderville, atual conde Carne. Era evi­dente que seus amigos tinham prestado um depoimento falso para livrá-lo da condenação da Justiça.

Até aquele momento, não havia registro algum da passagem secreta que ligava o quarto de lady Delabury aos aposentos do conde Carne.

Anna se perguntou o que estaria escrito na carta de despedida endereçada ao marido de lady Delabury. Cometera-a tal desvario movido pelo remorso de ter sido infiel a um homem que tanto a amava? Qual teria sido a participação do então lorde Manderville, atual conde Carne, em toda aquela tragédia?

Anna lembrou-se do retrato na parede. Qualquer mulher teria se apaixonado por aquele rapaz. Por que não lady Delabury?

Sentou-se em uma cadeira, o queixo apoiado nas duas mãos, e se pôs a refletir na hipótese de o rapaz do retrato, lorde Manderville, ter sido o assassino de lady Delabury. Nesse caso, era provável que ela houvesse participado da festa que ele oferecera a amigos.

Uma orgia! Anna já tinha lido alguns livros que falavam sobre os rituais festivos realizados na Antigüidade, geralmente à noite, em honra de Dionísio, o deus grego, espontâneo, natural e instin­tivo, conhecido como Baco entre os romanos.

Ela não achava impossível que pessoas sensatas pudessem ser levadas à extrema insensatez quando dominadas por hábitos ou vícios escravizantes.

Talvez a decisão do atual conde Carne de não mais voltar para sua casa fosse uma tentativa de esquecer o final funesto que tivera a festa que oferecera a seus amigos.

A tíbia chama da vela já ameaçava se extinguir, alertando Anna de que já era hora de retornar ao seu quarto.

 

Recolocou os relatórios exatamente no lugar onde os havia en­contrado e aproximou-se das prateleiras onde estavam os roman­ces. Entre eles, os três tomos de Forbiddenaffections, encaderna­dos em camurça carmesim.

Não! Ela não se atreveria a retirá-los dali. Até mesmo porque os criados poderiam notar a falta deles.

Hesitou por alguns segundos e perguntou a si mesma:

— Por que não? —Afinal, estava decidida a descobrir toda a verdade sobre os motivos que haviam levado lady Delabury a co­meter suicídio.

Levantou o braço e...

Um ruído curto e nítido interrompeu o silêncio da noite.

Um frêmito de pavor lhe percorreu a espinha. Prendeu a respi­ração e não se mexeu, acreditando, sem refletir, que a imobilidade a tornaria invisível.

Contudo, ao ouvir a porta se abrindo atrás de si, virou-se devagarzinho e, atônita, defrontou-se com um homem que fixava o olhar nela. Era o mesmo rapaz retratado no quadro dependurado na parede do boudoir, agora, uns dez ou doze anos mais velho. Os cabelos castanhos estavam impecavelmente penteados, e já não havia a mesma doçura em seus olhos azuis.

Surpreendida em flagrante, só restava a Anna esperar até que ele lhe dissesse algo. Contudo, ficou em silêncio.

Fechou a porta e se aproximou dela.

—Eu não sabia que os Murchison haviam contratado uma nova criada — disse por fim.

— E, com certeza, você já sabe que terei de despedi-la logo que o dia raiar.

Então ele a tomava por uma serviçal que, valendo-se da con­fiança de seus empregados antigos, entrara sorrateiramente na ca­sa, decidida a vasculhar todos os aposentos.

— Eu... Eu não entendi senhor — Anna murmurou, indagando-se se não haveria uma maneira de desaparecer dali antes que o dono da casa ficasse sabendo quem ela era.

Toda aquela situação embaraçosa se tornaria ainda mais cons­trangedora quando sir Jeffrey e lady Featherstone ficassem saben­do o que ela fizera.

O conde aproximou-se dela e atirou o, sobretudo que apoiava no braço em cima de uma cadeira.

Anna não pôde deixar de reconhecer que estava muito elegante em sua jaqueta, seu culote e botas de montaria. No entanto, a ex­pressão do rosto não revelava a ternura que ela vira no semblante do rapaz retratado no quadro. A cicatriz que havia abaixo do canto do olho direito acentuava certa hostilidade que havia em sua fisionomia.

Ela se deu conta de que poderia estar diante de um homem realmente perigoso.

Seria ele um assassino?

Se descobrisse que ela estava investigando os motivos que ha­viam levado lady Delabury a se suicidar, certamente teria ímpetos de matá-la.

O que será de mim? Anna estava apavorada.

O conde sentou-se na poltrona e esticou as pernas enquanto a observava atentamente.

É o dono desta casa. E eu entrei aqui sem sua permissão. Invadi sua propriedade. Tem o direito de fazer comigo o que bem enten­der. Preciso pensar em uma maneira de fugir!

Anna procurou encontrar uma saída.

Pensou em correr na direção da porta. Que absurdo! Sem dúvida alguma, ele a deteria. Era muito mais forte do que ela.

De maneira nenhuma podia deixar que soubesse que a casa ao lado fora alugada para o pai dela. Explicar-se com sir Jeffrey e lady Featherstone seria ainda mais doloroso para Anna do que se desculpar com o conde Carne. Todavia, o que poderia lhe dizer? Como justificaria sua presença na casa dele àquela hora da noite?

Vagarosamente, o conde tirou as luvas de couro sem, no entan­to, desviar os olhos dela.

— Já que está aqui, menina, deve me ser útil. Sirva-me um brandy. — Vendo que ela não se mexia, acrescentou: — É perfei­tamente compreensível que não saiba onde está a garrafa.

— Não sei, não, senhor. — A voz de Anna estava trêmula.

— Está vendo aquela pequena cristaleira perto da janela?

— Estou, sim, senhor.

— Se é que minhas ordens estão realmente sendo cumpridas, deve estar ali, junto com alguns cálices.

Anna apertou os lábios e não hesitou em obedecer-lhe. Estava sozinha com ele e não lhe restava alternativa.

De repente, lembrou-se de que vestia apenas sua camisola de dormir e ficou ainda mais atemorizada.

Que princípios teria aquele senhor? Seriam eles tão austeros quanto os de sua família?

Com certeza, não eram nada rígidos. Naquele momento, Anna poderia estar diante de um assassino.

Ela se apressou em obedecer à ordem do conde. Suas mãos tremiam quando retirou a garrafa da cristaleira e, em seguida, co­locou-a em cima de uma mesinha redonda, de mogno. Faltava ainda apanhar o cálice na cristaleira.

Temerosa de que ele pudesse se embriagar serviu-o da mesma quantidade de brandy que sir Jeffrey costumava beber todas as lardes, em Derbyshire, quando voltava do trabalho.

—Por quem a senhorita me toma?—perguntou o conde irritado. - Por alguma viúva abstêmia? Vamos, encha logo esse cálice.

Vendo-se obrigada a cumprir sua determinação, Anna não he­sitou em encher o cálice até a borda.

Estendeu o braço para entregar o brandy a ele, mas o conde permaneceu impassível, como se quisesse forçá-la a chegar mais perto dele.

Ao fazê-lo, Anna sentiu o joelho tocar sua perna. Entrou em pânico. O que seria dela se ele a agarrasse à força? Não teria como se defender.

Lembrou-se de Dulcinéa e do calvário que lhe fora imposto por seu tio infame.

Dulcinéa, Mrs. Jamison ou lady Delabury. E agora... Era a vez de Anna Featheístone.

Logo que o conde Carne lhe tomou o cálice da mão, ela tentou lugar de perto dele.

— Não faça isso—o conde lhe pediu, puxando-a pela camisola. Diga-me, como se chama?               *'" ,

-— Maggg... gie — Anna usou o nome fia ajudante da Sra. Jones, a cozinheira da casa que seu pai havia alugado.

O conde a trouxe ainda para mais perto de si, antes de repetir seu suposto nome.

— Maggie! — Fez uma pausa e perguntou: — Você estava pretendendo apenas roubar os livros ou... Tinha a intenção de lê-los?

— Eu queria...

— Sabe ler?

— Sei, sim, senhor — Anna respondeu prontamente.

— Meu senhor — ele a corrigiu. — É assim que os criados se dirigem a mim.

— Desculpe-me, mee... Eu senhor — ela murmurou submissa, embora tivesse vontade de estapeá-lo.

Que direito tinha ele de humilhar uma pobre moça da maneira como o fazia, mesmo que a houvesse flagrado invadindo sua bi­blioteca? Estava claro que suas intenções eram as piores possíveis. Anna sabia como as pessoas malvadas agiam.

— Então, já que sabe ler, terá que me dar uma prova disso — o conde a desafiou.

Com um movimento brusco de cabeça, Anna voltou o rosto para ele.

— Provar o quê? — indagou ainda mais apavorada.

— Ora! Que realmente sabe ler. Não foi isso o que a senhorita disse?

— Foi, sim, meu senhor — ela admitiu.

— Escolha um dos enfadonhos romances que estão em uma dessas prateleiras e leia um trecho — o conde ordenou.

Novamente, Anna pensou em fugir, não estava muito longe da porta. Se fosse rápida, poderia pegá-lo desprevenido e... Escaparia dali o mais depressa possível, sem dar a ele tempo para alcançá-la.

Não, Anna!, Uma voz interior a advertiu seria arriscada. O conde ficaria irado e poderia até mesmo... Matá-la.

Sir Jeffrey, lady Featherstone e Maria jamais ficariam sabendo o que acontecera com ela.

Por outro lado, se Anna se mostrasse subserviente, era possível que ele se compadecesse dela e fosse misericordioso, permitindo que saísse da biblioteca. Uma vez fora dali, em poucos minutos, ela estaria de volta o seu quarto, e nunca mais poria os pés na residência do conde Carne.

Enquanto Anna se dirigia para perto da prateleira onde estavam guardados os romances, o conde caminhou para o outro lado da sala e acendeu as velas de um castiçal de vários bocais, apoiado em sua escrivaninha.

—Assim está melhor-— disse ele, ao ver a biblioteca iluminada.

Propositadamente, para não despertar suspeitas, Anna não es­colheu nenhum dos tomos de Forbidden Ajfections. Optou por Cruel Matrimony, considerada a melhor obra de mrs. Jamison.

Ao abrir o livro, notou que nunca havia sido lido, pois algumas páginas estavam ainda coladas. Contudo, Anna não demonstrou sua surpresa.

— "Nenhuma mulher jamais se sentira tão infeliz quanto a bela Melisande de La Fleur ao ser avisada de que deveria se casar com o temível lorde de Breadalbane. Não! Ela não aceitaria tamanho infortúnio!" — leu um trecho em voz alta.

— Basta! — ordenou o conde, após virar na boca o restante do brandy que Anna lhe servira. — Então, a senhorita sabe mesmo ler! E, o que é mais extraordinário, com uma inflexão de voz ad­mirável. — Estava extasiado com ela. — Não entendo por que trabalha como criada em minha casa.

Anna receou que o elogio pudesse se transformar em um perigo maior para ela. Sentiu-se culpada por ter revelado com sua leitura, sem que aquele fosse o seu intuito, que não era uma das criadas da casa.

— Realmente, tive uma boa educação, meu senhor. No entanto, a vida fez com que agora eu tenha que prover meu próprio sustento.

— Vive na penúria!

Por um momento, Anna teve a impressão de que o conde se comovera com o que ela lhe dissera.

— Talvez eu possa fazer algo pela senhorita. Vejamos... Solte o cabelo.

Não, não pode ser... Anna estava apavorada. Ele não se atreveria.

— Por favor, meu senhor, não me maltrate.

— Obedeça!

Embora não houvesse rispidez no tom da voz dele, Anna estre­meceu.

Teve vontade de gritar alto, muito alto. No entanto, quem a ouviria? E se porventura isso viesse a acontecer, se um dos criados escutasse seu pedido de ajuda, certamente não ousaria socorrê-la. O conde Carne era o senhor absoluto daquele lugar, do pensamento

e da vontade daqueles que ali habitavam. Anna bem o sabia. Mais uma vez lamentou a sorte de lady Delabury.

Quem sabe Anna não o fizesse desistir de seus sórdidos propó­sitos se lhe dissesse quem era? Ele não tentaria seduzi-la se sou­besse que se tratava da filha dileta de seu vizinho. Além do mais, Anna não era o tipo de mulher que fazia com que os homens, cegos de paixão, não conseguissem se controlar.

Ela tirou a fita dos cabelos e os ajeitou sobre as costas. O rosto, muito corado, revelava quanto estava envergonhada.

O conde Carne a mediu por inteiro, da cabeça aos pés.

— É muito bonita, sita. Maggie. Qual é sua idade?

— Só tenho dezesseis anos, meee... Eu sen. nhor.

— O auge da juventude! Mas por que a senhorita insiste em imitar a maneira de falar das outras criadas? — O conde sentou-se e apoiou o cálice na mesinha ao lado da poltrona.

— Aproxime-se — ele a chamou.

O tom grave de sua voz deixou Anna alarmada. Ela havia notado que eleja não estava inteiramente sóbrio quando entrara na biblio­teca. E agora, o senhor conde começava a arrastar um pouco as palavras. Arrefeceu-se nela a esperança de que ele agiria com bom senso.

Anna olhou à sua volta à procura de algum objeto com o qual pudesse se defender caso ele tentasse agarrá-la. Em cima da escri­vaninha, próximo ao candelabro de muitas velas, todas acesas na­quele momento, brilhava a lâmina de um cortador de papel.

— Por misericórdia, meu senhor, deixe-me sair daqui — ela implorou.

— Peço-lhe perdão por ter entrado na casa sem sua permissão.

—Já que está aqui, deve me compensar do susto que levei quan­do a vi em minha biblioteca. Tive receio de que fosse uma ladra.

— E como deseja que eu faça isso? — Anna estava começando a perder suas forças.

— Dê-me um beijo.

— Um beijo? Eu... Não posso.

— Apenas um beijo. Eu lhe dou minha palavra de honra que não lhe pedirei nada além de um beijo. Vamos, venha cá.

Anna sentiu suas pernas paralisarem.

-— Não consigo andar.

O conde ergueu as sobrancelhas.

— Eu poderia ameaçá-la, dizendo que a demitirei do emprego logo pela manhã. Contudo, estou certo de que isso não a traria para mais perto de mim.

— Meu senhor...

— Tentarei, então, persuadi-la de outra forma: se me re­cusar esse beijo, eu a tomarei em meus braços e exigirei muito mais de você, minha misteriosa Maggie. Juro que o farei.

Como ela nada dissesse, ele prosseguiu intimidando-a: - Não se iluda. Não me deixarei comover com esse ar inocente em seu rosto, tampouco com seus olhos atemorizados. Muito pelo contrário. Esteja certa de que eles me estimulam ainda mais. — O conde parecia se divertir com o pavor que se apoderava de Anna. — Nós, homens, somos criaturas perversas. Se a senhorita de­monstrar boa vontade, estará facilitando a coisa para si mesma, e eu logo a libertarei. Pode acreditar em mim. Tenha coragem e seja boazinha.

— Eu não... Não sseee... Ei ser cor... Raj... Josa. Tenha piedade, meu seenn... Nhor. — Anna tinha a sensação de que, naquele mo­mento, todas as suas forças a abandonavam.

— Francamente, Srta. Maggie — o conde desabafou. — Estou lhe pedindo apenas um beijo. Por favor, pare de tremer desse jeito. Venha aqui!

O tom autoritário que havia em sua voz fez com que Anna se aproximasse dele sem refletir no que poderia lhe acontecer.

Imediatamente, o conde agarrou sua camisola para impedir que ela fugisse.

Anna se pôs a gritar e a espernear. Contudo, de nada adiantaram seus esforços para se libertar das mãos dele.

O conde Carne tinha um sorriso nos lábios quando a preveniu:

— Se continuar a tentar fugir acabará por rasgar sua roupa e, em pouco tempo, suas pernas estarão tão nuas como no dia em que a senhorita nasceu.

Mesmo contra sua vontade, Anna aquietou-se.

— Agora sim — o conde aplaudiu —, está começando a me entender,                                                            

Ele acariciou sua coxa por cima do tecido dá camisola e teve a impressão de ouvi-la suspirar.

Porém, nada disse de imediato. Fitou seus olhos durante alguns segundos e notou que estava mais calma.

Ela o fitava imóvel.

— E então? Você viu?

 

A terra não estremeceu e tampouco Satanás veio condená-la ao fogo do inferno só porque lhe fiz um carinho — ele brincou. — Tenho certeza de que vai gostar de me beijar. E posso lhe assegurar de que não estará cometendo pecado algum.

— Meu senhor...

— Deve me chamar pelo meu nome: Roland.

—Roland?—A perplexidade tomou o lugar do medo que Afina sentia.

O conde correu os dedos pelo rosto dela.

— Posso saber qual é a razão de todo esse espanto? — ele perguntou.

— É... É que... Não é um nome muito comum, meu senhor. O herói de Charlemagne se chamava assim.

Roland sorriu.

— Minha mãe quis homenagear o irmão de seu pai, um homem muito rico que, posteriormente, legou-me tudo que lhe pertencia. Desejava que eu fosse feliz no amor

— o conde pilheriou.

— Roland, o herói de Charlemagne, tinha um caráter nobre. E seu tio-avô, meu senhor, também devia ser uma ótima pessoa. — Anna recorreu a um último artifício: convencê-lo a honrar o nome que herdara de um antepassado. — N'est CE pas?

— Você fala francês?

— Um pouco.

— Chérie! Não posso deixar que desperdice seus talentos na cozinha — o conde se entusiasmou. — Amanhã mesmo providen­ciarei para que seja promovida para um lugar condigno de sua educação esmerada.

Ele a puxou para perto de si e a beijou.

— Seus lábios têm o sabor das maçãs rosadas, minha querida. Por isso eu a chamarei de Pippin.

Diante da menção do apelido que seu pai lhe dera, Anna ficou envergonhada. Era como se ele estivesse ali, testemunhando aque­le beijo pecaminoso. Era uma afronta à honra de sua família.

Humilhada, começou a chorar. O conde ficou enternecido, mas tentou ocultar a emoção. Contudo, sentindo o quanto Anna estava frágil, não resistiu ao impulso de cingi-la em seus braços.

— O que acontece com você, Pippin? Eu apenas lhe dei um beijo, nada além disso. Não a forçarei a fazer nada que não queira, não sou um infame. Além do mais, teremos muito tempo para nos entendermos.

A serenidade que havia na voz dele fez com que Anna se acal­masse. Mais tranqüila, ela encostou a cabeça em seu peito.

— Assim está melhor — disse o conde, tirando um lenço do bolso da calça para enxugar as lágrimas no rosto dela. — Eu a deixarei sair. Porém, antes vou beijá-la ainda uma vez.

Mais um beijo, e ela estaria livre para nunca mais voltar àquela desafortunada casa.

Quando ele inclinou o rosto e aproximou os lábios dos seus,

Anna sentiu o hálito impregnado de brandy em sua boca, e desviou

instintivamente o rosto.

O conde já esperava aquela reação e, com um movimento brusco, segurou seu queixo, forçando-a a beijá-lo.

Anna tentou afastá-lo, porém ele era mais forte e a dominou sem esforço algum.

Sabendo que ninguém viria socorrê-la, ela sucumbiu à vontade dele.

O que poderia lhe acontecer se seus pais viessem, a saber, no que resultará sua própria insensatez em invadir a casa de um ho­mem reconhecidamente perigoso?

Naquele momento, Anna aprendeu o sentido da palavra solidão.

— Jamais experimentei lábios tão doces quanto os seus, sita. Maggie — ele apreciou.

— Por favor, meu senhor, tenha piedade de mim. Não posso me defender — Anna implorou.

Porém, o conde não deu ouvidos à sua súplica e a beijou com ardor. Novamente, ela tentou opor resistência. No entanto, daquela vez, contra todos os seus princípios, sentiu o imenso prazer que ele podia lhe proporcionar ao introduzir a língua entre seus lábios e movimentá-la vagarosamente em sua boca.

Anna se lembrou da primeira vez que havia comido ostras. No início as detestara, chegando até mesmo a sentir certa repug­nância por aquele molusco mole e mucoso. No entanto, vendo o quanto Maria as apreciava, aprendeu que elas eram realmente de­liciosas. Aceitou a idéia de que deviam ser comidas enquanto vivas e passou a saboreá-las com satisfação.

— Maggie... — o conde murmurou, com ternura.

Anna cedeu à embriaguez daquela sensação confusa de atração e repulsa que a atordoava e sentiu uma pequena vertigem; Os ob­jetos ao seu redor pareciam oscilar à luz das velas que tremeluziam serelepes no candelabro, alumiando discretamente o ambiente.

Ela fechou os olhos e se lembrou da ternura que havia no rosto do rapaz retratado no quadro que vira no boudoir da casa.

— Jamais a magoarei, Pippin, minha doce criatura — Anna escutou o conde sussurrar em seu ouvido.

Colocando a mão por dentro da camisola, ele lhe acariciou o joelho. Anna sentiu todos os músculos de seu corpo se retesarem.

— Não, meu senhor, por favor, não faça isso. Não posso ser sua... Amante! — ela lhe rogou.

Contudo, não conseguiu detê-lo. Ele corria, agora, os dedos por sua coxa, sem dar atenção ao que Anna lhe pedia.

— Você não queria que eu a beijasse. E, depois... Admita que sentisse prazer. Agora, vou lhe mostrar que pode ser ainda mais feliz se for boazinha e...

— Nãããããão! Socooooorrrrrrrrro! — ela usou todo o ar de seus pulmões para pedir ajuda.

O conde tapou-lhe a boca, rindo da reação dela.

Quando Anna começou a lhe chutar as pernas, ele se viu obri­gado a lançar mão de sua força para impedir que ela o machucasse. Descontrolada, ela golpeou sua virilha com o joelho, obrigando-o a soltá-la. Estava livre. Porém, condoída do sofrimento que viu estampado no rosto dele, chegou a pensar em socorrê-lo, quando o ouviu gritar enraivecido:

— Maldita!

De súbito, o cálice de cristal que o conde havia apoiado na mesinha ao lado da poltrona reluziu de modo estranho, chamando a atenção de Anna. Ela esticou o braço e o alcançou, quebrando-o, em seguida, na testa do conde que, cruelmente ferido, uivou sua dor. O sangue descia-lhe pelo rosto enquanto ele imprecava os mais ofensivos absurdos contra Anna, praguejando sem parar.

Mais uma razão para ela fugir dali imediatamente. Não podia permanecer naquele local nem mais um segundo. Com toda a cer­teza, o conde pediria ajuda aos criados e, sem dúvida nenhuma, eles chamariam a polícia.

Anna seria pega em flagrante, e sir Jeffrèy seria chamado à casa de número dez, onde seria informado de que sua filha cometera um crime hediondo.

Anna se pôs a chorar convulsivamente.

Em fração de segundos, ela já estava no corredor, a caminho de seu quarto, o coração batendo descompassado.

Após fechar a porta da passagem secreta atrás de si, ajoelhou-se no chão e rezou orações de agradecimento às divindades protetoras das virgens malucas. E ao lhes pedir que iluminassem seu caminho, lembrou-se de que havia esquecido seu castiçal na biblioteca da casa do conde Carne.

Sentiu que ia desfalecer. Tudo o que queria naquele momento era deitar-se em sua cama, cobrir-se com o lençol e esquecer a tragédia que ela mesma provocara.

Impossível! Antes teria que reaver o castiçal. Do contrário, al­guém poderia usá-lo como prova do crime. Qualquer um dos cria­dos da casa de número nove poderia testemunhar contra ela, di­zendo que o objeto pertencia ao patrão deles.

Àquela hora, o conde já devia estar estirado no chão, vivendo seus últimos momentos neste mundo.

Anna seria enforcada. Contudo, se ele morresse... ninguém a identificaria como a assassina.

Por um segundo, Anna se sentiu aliviada.

Mas o castiçal seria a prova de que alguém da casa de número nove estivera na biblioteca da casa de número dez na noite do crime.

De um salto, Anna se pôs de pé. Iria buscá-lo sem demora.

Contendo o choro, ela acionou o mecanismo que abria a porta secreta. Precisava tomar todo o cuidado para que ninguém escu­tasse barulho algum.

Já estava no alto da escada, pronta para descer, quando ouviu o conde gritar. Estava vivo e chamava pelo sr. Murchison.

Do andar de cima, Anna o viu caminhando na direção da cozi­nha. Com uma toalha, cobria o ferimento na testa.

Anna precisava de toda a sua coragem. Desceu a escada na ponta dos pés e correu para a biblioteca. Agarrou o castiçal e, antes de se retirar, fez o sinal da cruz.

Lá fora, no quintal, o conde Carne ainda gritava o nome de seu criado.

Em seu quarto, encolhida na cama, na posição fetal, Anna se deixou vencer pelo sono.

 

Senhorita Anna, sita. Anna, acorde. Naquela noite, ela tivera um sono agitado e quando, pela manhã, Martha entrou no quarto, teve a impressão de que estava muito inquieta.

— Senhorita Anna, o que está sentindo?—Aflita, a governanta a observava atentamente.

— Estou bem, Martha. Apenas um pouco cansada. Não se preo­cupe — Anna disse num esforço, abrindo os olhos.

— Nesse caso, nada de ficar aí deitada até mais tarde. O dia está lindo! Coisa rara por estas bandas.

— Já vou me levantar.

— Tem certeza de que não está doente? — Martha conhecia muito bem as Srtas. Featherstone, pois cuidava de Anna e Maria desde que elas eram ainda bem pequenas.

— Eu já disse que não tenho nada, Martha. Comecei a ler um de meus livros novos e fiquei acordada até as primeiras horas da madrugada. Foi só isso.

— Sabe que não deve forçar a vista. Olhe para o tamanho de sua vela! Parece ter queimado durante a noite toda. Sir Jeffrey e lady Featherstone ficarão muito aborrecidos se souberem que a senhorita anda lendo até altas horas.

Ao ouvir aquelas palavras, Anna estremeceu.

— Por favor, Martha, não comente nada com eles. Não quero que se aborreçam por minha causa.

— Pode ficar tranqüila, Srta. Anna. Não lhes direi uma só palavra sobre o assunto. Mas prometa que, de agora em diante, pas­sará a dormir mais cedo.

— Prometo, Martha. Prometo, sim. Pode ficar sossegada. Anna se perguntou como estaria o conde Carne. Sem dúvida

alguma, já havia sido medicado. E, com toda a certeza, não des­cansaria enquanto não descobrisse o paradeiro da criada que en­contrara em sua biblioteca. Anna precisava pensar em uma maneira de não se deixar ser vista por ele.

Se ela concordasse que estava mesmo doente, Martha insistiria para que ficasse em seu quarto. Reduto ideal pois, ali, o conde jamais entraria.

Reclinou o corpo sobre o travesseiro, colocou a mão na testa e, com voz melodramática, queixou-se:

— Não conseguirei enganá-la, Martha. Realmente, estou um pouco tonta. Acho que não posso me levantar. Minha cabeça está doendo muito.

— Eu sabia que a senhorita não estava bem — disse a gover­nanta. — Está com uma péssima aparência. — Martha meneava a cabeça de um lado para outro. — Veja seus cabelos como estão amarfanhados! Deve ter tido febre a noite inteira. Onde está sua fita?

Era a segunda vez que Anna deixava cair uma fita de cabelo na casa do conde. Mas enfim... uma fita não seria prova contundente de que ela havia estado lá. Diferentemente do castiçal, poderia muito bem pertencer a uma das criadas ou a qualquer outra pessoa.

— Deve estar por aí, em algum lugar — Anna respondeu mostrando-se desinteressada do assunto.

 

— Depois, com calma, eu a procurarei — disse Martha. — Agora vou lá embaixo preparar seu café da manhã. Cubra-se bem e fique quietinha. Voltarei logo, com a bandeja.

— Martha — Anna a chamou antes que ela saísse do quarto.

— Sim?

— Não deve ser nada sério, não é verdade?

— Acredito que seja apenas uma gripe. Em todo caso, não fique nervosa. Aproveite o tempo para ler os livros que comprou ontem na livraria — a governanta sugeriu.

— Já trago o seu café da ma­nhã. Providenciarei para que seja bastante reforçado.

— Obrigada por tudo, Martha. Ninguém melhor do que você sabe cuidar de mim.

Envaidecida com o elogio, Martha se retirou e desceu para a cozinha.

Sozinha em seu quarto, Anna aproveitou para pensar como agi­ria nas próximas horas.

De forma nenhuma poderia ser vista pelo conde, pois ele a re­conheceria de imediato.

Ficar fechada no quarto por alguns dias seria, certamente, entediante. No entanto ela não poderia correr o risco de deparar com ele nas redondezas.

Estaria o conde decidido a voltar definitivamente para sua casa ou pretendia apenas passar alguns dias em Londres?

Anna esfregou o rosto com as mãos. Deveria ter ponderado sobre o que poderia lhe acontecer antes de entrar na casa do conde Carne. Contudo, como poderia adivinhar que, naquela noite, ele estaria na cidade?

Agora, era impossível prever que terríveis conseqüências po­deriam advir de sua insensatez.

Para uma mocinha criada no interior da Inglaterra, superprotegida pela família e pelos amigos, era difícil acreditar que um en­contro fortuito com um homem de fino trato e boa educação po­deria ter resultado em tamanha desgraça caso ela não houvesse se defendido.

Ele não faria isso! Ela relutava em admitir que o achava atraen­te. No entanto, precisava afastar os maus pensamentos. O padre Lawrence, pároco da igreja que os Featherstone freqüentavam em Derbyshire, costumava enfatizar em seus sermões o quanto os sen­timentos castos e sadios eram importantes para a purificação da alma.

Lady Featherstone, sempre muito precavida, não só já contara às filhas o que era uma relação íntima entre o homem e a mulher como também as havia alertado sobre os apelos da carne. - Anna e Maria deviam estar sempre atentas para não caírem em tentação. Pois se lhes acontecesse o pior, jamais poderiam alegar que não tinham sido avisadas sobre as conseqüências terríveis que enfrentariam caso não se dessem o devido valor.

— Já vi tal infortúnio acontecer algumas vezes — lady Featherstone as advertira. — E posso lhes assegurar que é algo muito triste. Quando uma moça age irrefletidamente, toda a família sofre as conseqüências de sua falta de juízo. Só por obra do Senhor ela conseguirá arranjar um pretendente. Às vezes acontece, mas é mui­to raro. Ainda assim, a sociedade jamais esquece o que ela fez, e fica marcada para o resto da vida. Portanto, meninas, tenham sem­pre em mente que devem se guardar puras e castas para aquele que será o pai de vossos filhos.

Na ocasião em que sua mãe conversara com ela e com Maria, Anna não acreditava que um dia alguém pudesse forçá-la a fazer aquilo que não quisesse. Tampouco imaginava que pudesse se sen­tir atraída por um homem que lhe roubasse um beijo.

Sozinha em seu quarto tentou se lembrar das feições do conde Carne. Era ele, agora, o grande enigma que ela precisava desven­dar. Seria, mesmo, o conde, um homem tão perigoso? Anna não podia acreditar em tal hipótese.

Embora não fosse propriamente bonito, era elegante, tinha um charme incrível e uma maneira toda sua de pedir o que queria.

Apesar de tudo o que acontecera naquela noite, Anna tinha cer­teza de que não se tratava de uma pessoa vil. Era impossível que ele houvesse assassinado lady Delabury. Não, não fora ele. Por alguma razão estranha, Anna sabia que o conde não teria sido capaz de tamanha atrocidade.

Logo que o vira entrando na biblioteca, ela sentira seu coração bater descompassadamente. E agora, ao fazer um retrospecto de tudo o que acontecera consigo, Anna descobriu que, nem sequer por um minuto, sentira medo dele.

No cômputo geral, tudo estava bem. Sua honra permanecia in­tacta e a reputação de sua família não ficaria comprometida só porque sua opinião sobre o conde Carne não era igual à da maioria das pessoas. Por certo que ela não a revelaria a ninguém, e muito menos a lady Featherstone.

Decidiu que, sob o pretexto de não estar se sentindo bem, ficaria cm seu quarto por uns dois ou três dias. Até lá, mais calmo, o conde já teria desistido de encontrar a criada Maggie.

Martha bateu na porta e entrou no quarto com uma bandeja na mão.

— Prontinho — ela anunciou. — Temos aqui tudo o que você mais gosta: chá de cereja, chocolate, croissant, manteiga, presunto, camenbert, torta de nozes...

— Que exagero, Martha! — exclamou Anna, sorrindo. —Acha mesmo que vou comer tudo isso?

— Sirva-se do que quiser. Porém, não esqueça de que deve ficar forte. Assim, terá disposição para passear pelas ruas de Londres.

— Já estou melhor.

— Sabe que não consegue me enganar. Será necessário que fique em repouso.

— Sim, é claro. Não sairei do quarto nos próximos dois ou três dias. Prometo a você.

-— Afinal, não é tanto tempo assim. E quando sarar poderemos ir ao parque. Não acha uma boa idéia, Srta. Anna?

— Eu adoraria.

— Posso entrar? — Era lady Feafherstone, que subira para ver como estava sua filha.

-— Sim, mamãe. Não quer tomar café comigo?

—Obrigada, minha filha. Papai, Maria e eu acabamos de comer. Vim até aqui para vê-la. Martha disse que hoje tomaria café na cama. Não se sente bem?

—Estou com uma leve dor de cabeça, mamãe—Anna retrucou.

Vendo que lady Feafherstone a observava, Anna teve a sensação que sua mãe podia adivinhar cada um de seus segredos.

— Não deve ser nada sério. Talvez a mudança de ares não lhe tenha feito muito bem ou, então, o alvoroço da cidade grande a tenha deixado um pouco nervosa.

— Lady Featherstone colocou a mão na testa da filha e pediu: — Deixe-me ver se está febril.

— Quem sabe não vai ficar resfriada? — Martha manifestou sua opinião.

—Talvez sim. —lady Featherstone não se mostrou muito preo­cupada. — Por que não se muda para o quarto de Maria? Não creio que essas figuras horrendas entalhadas na madeira possam fazer bem a alguém.

-— Não, mamãe. Prefiro ficar aqui.

— Então, descanse. Se não melhorar, acho aconselhável cha­marmos um médico. Ele saberá o que está acontecendo com você.

— Não será preciso, obrigada. Amanhã já estarei bem melhor. —Todos esses livros que você comprou na Harchards lhe farão excelente companhia, não é mesmo, Martha?

— Lady Featherstone brincou.

— Sem dúvida nenhuma, senhora.

— Se precisar de alguma coisa, pode mandar me chamar — disse ela, antes de sair do quarto.

— Agora, vamos tratar de comer para ficar forte. — Martha apoiou a bandeja na cama de maneira que Anna pudesse tomar seu café confortavelmente.

— Quando terminar daremos um jeito nesses seus cabelos e, em seguida, eu a ajudarei a se trocar.

— Obrigada, Martha. Não pretendo mesmo ficar na cama o dia todo. Vou me sentar em uma cadeira perto da janela e apreciar o movimento na rua.

—Teve uma boa idéia. Assim, a senhorita não se entediará. Fique tranqüila. Dois dias passam depressa — Martha quis animá-la.

Por sua vez, Anna imaginava o quanto seria divertido espionar a casa do conde sem que ele soubesse que estava sendo observado. Quando terminou de tomar seu café, Martha retirou a bandeja e esperou que Anna se sentasse no banquinho do toucador. Desem­baraçou seus cabelos e fez a trança, como fazia todas as manhãs.

Terminou de ajudá-la a se vestir, pegou a bandeja e foi para a cozinha. Havia prometido a Sra. Jones que descascaria os legumes.

Sozinha em seu quarto, Anna se dirigiu para perto da janela e se pôs a espiar o jardim da casa de número dez. Antes, no entanto, cuidou de ajeitar a cortina de modo que ninguém pudesse ver que ela estava ali.

Concentrado em sua tarefa, o criado do senhor conde podava um arbusto que ficava no centro de um dos canteiros, todos muito bem cuidados.

Dois cavalheiros elegantemente trajados, levando seus guarda-chuvas, pararam em frente ao portão. O jardineiro andou até eles e ouviu o que tinham a dizer. Em seguida, entrou na casa, de onde retornou depois de alguns minutos e os convidou a entrar.

Nenhum deles parecia ser médico e era evidente que o conde Carne iria recebê-los. Portanto, não se encontrava gravemente enfermo.

Anna se alegrou. Era grande a possibilidade de que, muito em breve, o conde decidisse partir para outra viagem ou voltar para sua propriedade em Norfolk.

A visita não se prolongou por muito tempo. Muito antes da hora do almoço, os dois homens se retiraram e pareciam animados.

Em seguida, foi a vez de duas carruagens. O jardineiro largou o que estava fazendo e ajudou os cocheiros a levarem várias caixas para o interior da casa.

Não! Não pode ser! Ele decidiu ficar em Londres. Alarmada, Anna voltou os olhos para a lareira e se apressou em arrastar um baú para perto da porta secreta. A peça não impediria a entrada de alguém em seu quarto. No entanto, ofereceria uma certa resistência e, caso ouvisse algum barulho, Anna teria tempo de pedir socorro aos pais.

Quando Martha subiu para lhe trazer o almoço, ela comentou:

— Parece que a casa ao lado não está mais vazia? Sabe se foi alugada?

Martha colocou a bandeja sobre a mesa e enquanto servia a comida, confidenciou:

— Acredite ou não, senhorita, o conde Carne está de volta. Chegou ontem à noite, sem ter avisado aos criados que iria chegar. — A governanta chegou bem perto de Anna e sussurrou em seu ouvido: — Está completamente louco.

— Louco? — Anna não pôde conter um grito. — Você quer dizer fora de seu juízo normal?

Martha olhou à sua volta, como se quisesse ter a certeza de que, realmente, não havia mais ninguém por perto e murmurou:

— Infelizmente, sim, Srta. Anna. Hoje de manhã, entrou pelo portão do quintal e veio bater na porta da cozinha.

— O conde Carne? — Anna entrou em pânico e sentiu que ia desfalecer.

Então, ele sabia quem ela era! Mas como teria descoberto?

— Ele mesmo. Em pessoa. — Martha tinha os olhos arregala­dos. — E sabe-se lá o que já andou fazendo. O fato é que tinha um ferimento horrível em uma das têmporas. Seu rosto estava bastante inchado.

Anna não conseguiu dizer uma só palavra.

— Todas nós ficamos morrendo de medo. Quando o viu ali em pé, na soleira da porta, Tracy começou a gritar. Sentiu-se mal e quase desmaiou.

Anna se muniu de toda a sua coragem e perguntou:

— E, afinal, o que ele queria?

— A senhorita não vai acreditar.

— Diga logo, Martha, já estou começando a ficar apavorada.

— Ele queria... Maggie, Srta. Anna, ele queria Maggie.

— Ah, não! Não pode ser Martha.

— Imagine a senhorita! Ele queria justamente Maggie, a mais doce de todas as criaturas.

— A governanta dos Featherstone es­tava desolada. — A bem da verdade, Maggie é mesmo um pouco preguiçosa, mas não faz mal a ninguém, a pobrezinha.

Paralisada de medo, Anna olhava para Martha, que a chamou:

— Venha almoçar antes que a comida esfrie.

— Não estou com fome.

— Precisa se alimentar. Do contrário, não vai sarar nunca.

— Acho que preciso me deitar um pouco — disse Anna, com a voz debilitada.

— Primeiro venha comer. A senhorita terá a tarde toda para descansar.

Sem forças para reagir, Anna sentou-se à mesa e pegou os ta­lheres.

— Tome um pouco de suco de maçã. Ajuda na digestão.

— E o que aconteceu depois, Martha? — Anna insistiu.

— Assustado com o descontrole de Tracy, o conde Carne se desculpou pelo tumulto que causara e se retirou.

— Papai e mamãe não ouviram a gritaria?

— Haviam saído. Sir Jeffrey tinha ido para o Parlamento e lady Featherstone, à igreja, com Maria.

— Já estão de volta?

— Ainda não. Todavia, devem chegar a qualquer momento.

— Pobre Maggie! — Anna se compadeceu da criada.

— A Sra. Postle disse que o conde era um rapaz encantador antes de... Antes de... Bem... A senhorita sabe ao que estou me referindo. — Martha preferiu não repetir o que a cozinheira havia dito. — É aconselhável que esteja de sobreaviso, srta. Anna, e se mantenha bem longe desse senhor. Eu imagino o quanto sir Jeffrey e lady Featherstone ficarão alarmados quando souberem que o conde Carne está de volta a Londres.

— Terei todo o cuidado para não deixar que ele se aproxime de mim, Martha. Pode estar certa.

 

Naquela noite, Anna decidiu descer para jantar. Todos já estavam à mesa, quando lady Featherstone decidiu prevenir as filhas:

— O conde Carne está em sua residência, na casa ao lado. É preciso tomar muito cuidado, meninas, muito cuidado. Esse senhor já mostrou quem realmente é, e pode nos causar sérios problemas.

Como eia não dissesse mais nada, Anna insistiu no assunto, ansiosa por obter mais alguma informação sobre o conde.

— Está dizendo isso porque ele apareceu na porta da cozinha, com o rosto todo ensangüentado, e perguntou por Maggie, mamãe?

— Anna quis saber.

Maria, que não estava a par do que havia acontecido naquela manhã, empalideceu, pôs a mão no coração e manifestou seu de­sespero:

—O que acontecerá conosco? Estamos todos correndo um sério perigo.

— Não vamos exagerar. — Sir Jeffrey tentou acalmar as filhas.

— Estou certo de que ele foi bastante educado quando bateu na porta da cozinha e perguntou pela criada.

— Bastante educado? — Maria se opôs à opinião do pai. — Então o senhor acha educado invadir a cozinha do vizinho e per­guntar pela copeira? O conde deve estar completamente transtor­nado. Quem sabe não está planejando matar todos nós?

— Não diga uma coisa dessas, minha filha — sir Jeffrey pediu.

— O que diz não tem lógica alguma. Lady Delabury ingeriu uma dose exagerada de láudano. Além do mais, isso já aconteceu há muito tempo. Quanto ao que houve na cozinha hoje pela manhã, posso lhes garantir que o conde não teve nenhuma atitude reprovável.

— Como sabe disso? — lady Featherstone indagou.

— Senti-me na obrigação de lhe pedir que viesse aqui para me dar uma explicação, e ele atendeu prontamente ao meu chamado.

— E o que disse? — Maria estava ansiosa para saber.

— Imaginem que esta noite, ao chegar de viagem, o conde Carne surpreendeu uma jovem em sua biblioteca. Ela lhe disse que se chamava Maggie e, quando o conde tentou segurá-la, ela lhe desferiu um golpe na testa. De manhã, seus criados lhe informaram que uma das empregadas que trabalham aqui se chama Maggie e, naturalmente, o conde concluiu que se tratava da mesma pessoa.

— Um homem ponderado teria chamado a polícia — lady Fea­therstone analisou.

— O conde Carne é um cavalheiro, minha querida. Por certo não quis submeter a criada a um vexame dessa natureza. Até mes­mo por uma questão de caridade.

— Quem será essa criada? — Lady Featherstone expressava certa desconfiança no olhar.

— Francamente, não sei — sir Jeffrey respondeu. — O conde admitiu que a amedrontasse e, só por esse motivo, ela o agrediu. Teve a impressão de que a criada não estava no seu estado normal e se compadeceu da pobre moça.

Naquele momento, Anna engasgou com o pedaço de frango que tinha na boca.

— Cuidado, minha filha. — Lady Featherstone se assustou. — Levante os braços.

— Isso sempre acontece quando as pessoas não mastigam di­reito — Maria a criticou.'

Anna não retrucou. Estava mais preocupada com o que acon­teceria com ela, caso o conde descobrisse quem era a pobre moça.

—Então, continuando o nosso assunto—sir Jeffrey prosseguiu —, o conde decidiu procurar a tal criada. E, assim que a encon­trasse, daria uma explicação a seu patrão sobre o que aconteceu em sua casa esta noite. Uma vez que não se tratava de nossa copeira, não havia motivo para que ele falasse comigo.

— Deveria ter falado consigo antes de invadir nossa cozinha.

— Lady Featherstone mostrou-se irritada.

— Pareceu-me um homem bastante sensato — sir Jeffrey ava­liou. — Devo confessar que me surpreendeu. Contou-me que pas­sou os últimos anos no sul da Europa e é capaz de falar com muita desenvoltura sobre os problemas daquela região. Foi designado por Sua Majestade para resolver algumas questões importantes em alguns dos países da costa do Mediterrâneo.

— Ouvi dizer que, quando jovem, costumava convidar os ami­gos para grandes noitadas em sua casa — Lady Featherstone re­velou ao marido e às filhas.

— Convenhamos que se trata de um hábito muito comum entre os rapazes — sir Jeffrey argumentou.

— Muito me admira que o senhor meu marido possa encontrar desculpas para a delinqüência juvenil quando, o senhor mesmo, foi sempre um jovem responsável, cumpridor de suas obrigações religiosas.

—Os costumes na capital são diferentes daqueles a que estamos habituados no interior, mais precisamente em Derbyshire, onde sempre morei.

— Está querendo dizer que em Londres os assassinos são bem aceitos pela sociedade?

—- lady Featherstone ironizou.

— Absolutamente, não. Quanto ao incidente que ocorreu na casa do conde, eu gostaria de esclarecer que ele foi absolvido pela Justiça da Inglaterra, o que não quer dizer pouca coisa, dada a credibilidade que essa instituição vem mantendo há algumas cen­tenas de anos.

Anna não se convenceu de que o conde havia se compadecido da suposta criada. Por certo, ele pretendia se vingar dela. Ou en­tão... Forçá-la a se tornar sua amante. Iria chantageá-la até que ela se desse por vencida e se submetesse à vontade dele.

— O conde Carne pretende fixar residência em Londres, papai?

— Anna quis saber.

— Parece-me que sim, minha querida. Seu primo estava toman­do providências para que ele fosse declarado morto, e o conde Carne foi obrigado a voltar a Londres para impedir que ele o fizesse.

—A sua volta à capital fará ressurgir comentários que acabarão por nos prejudicar.

— Lady Featherstone se preocupou.

— O que temos a ver com isso? — Sir Jeffrey não entendeu.

— Não podemos esquecer que há uma ligação entre a casa dele e esta aqui — lady Delabury explicou.

Anna estremeceu. O que estaria sua mãe querendo dizer com aquelas palavras?

— Muito pelo contrário. A presença do conde aqui em Londres garantirá um maior comparecimento à festa que pretendemos ofe­recer à sociedade londrina. As pessoas hão de querer saber o que está realmente acontecendo aqui na rua Carne Terrace.

E foi exatamente isso que ocorreu alguns dias mais tarde, quan­do um grupo seleto, ligado ao primeiro ministro da Inglaterra, recebeu convite para um sarau na casa de número nove da rua Carne Terrace, onde sir Jeffrey Featherstone, um dos membros de nosso Parlamento, e sua senhora passam a primavera na compa­nhia de suas encantadoras filhas. Retornam à sua residência, em Derbyshire, no início de junho, para a tristeza de toda a sociedade londrina. Assim terminava a notícia publicada em uma das colunas mais lidas de um jornal de grande circulação na capital inglesa.

— Terei licença para participar, mamãe? — Anna perguntou lady Featherstone.

—Considerando seu grande interesse pela música, poderá, sim, ficar na sala. Porém, lembre-se de que não tem ainda dezoito anos. Martha a acompanhará a seu quarto quando o carrilhão soar onze horas.

— Muito obrigada. É muito generosa.

Na noite da reunião musical, Anna se vestiu e desceu para se juntar aos convidados. Discreta, sentou-se em uma poltrona ao lado de um casal idoso e se entreteve conversando com eles.

Em um dado momento, ouviu o que duas senhoras diziam uma a outra e teve a impressão de que falavam sobre o conde Carne:

— A irmã de meu marido ficou sabendo por fontes fidedignas que ele leva uma vida dissoluta — disse uma delas.

 

— Corre por toda a Londres que, no Continente, foi gravemente ferido por um fidalgo espanhol que se aborreceu quando soube que havia desrespeitado sua mulher, uma condessa,italiana.

— Ouvi, mesmo, qualquer coisa sobre isso. E agora tem uma cicatriz embaixo do olho direito.

—Não tenha dúvidas de que, muito em breve, seu passado será devidamente esquecido e ele será recebido em nosso meio. É sol­teiro e tem uma bela fortuna.

— E, por falar nisso, a vizinha de lady Wordsworth parece estar com alguma dificuldade para encontrar um pretendente para sua filha mais velha.

— Pobre lady Wordsworth, a menina é mesmo tão feinha e já está ficando...

Desinteressada do destino da filha mais velha de lady Wordsworth, - Anna desviou a atenção da conversa e perguntou ao casal de idosos se queriam que ela lhes servisse uma bebida.

Maria fazia as honras da casa para um grupo de jovens, enquan­to sir Jeffrey e lady Featherstone, em pé, perto da porta de entrada, recebiam os amigos.

— E quando chegaram? — uma das senhoras, acompanhada do marido, perguntou lady Featherstone.

— Na semana passada.

— Faço questão de recepcioná-los em minha casa. Terei muito gosto em apresentar Maria a meu filho Edward, se é que não se importam.

— Teremos imenso prazer que ela o conheça, lady Spencer.

— Forma-se médico este ano.

— Deve estar muito orgulhosa.

— Com certeza, lady Featherstone.

— Entrem, por favor, e fiquem à vontade.

— Obrigada — lady Spencer agradeceu já se dirigindo para a sala onde os pianistas se apresentariam.

Os anfitriões esperaram até que todos os convidados se acomo­dassem, e lady Featherstone pediu a Edgar Augustine Woolf que fosse o primeiro a tocar.

Gentilmente, Anna se ofereceu para virar as páginas da partitura da peça de Mozart que o rapaz havia escolhido para executar na­quele sarau.

— É muito delicada, sita. Anna. — Edgar aceitou a gentileza. No final da apresentação, o artista recebeu os aplausos calorosos

dos amigos e, após falar com alguns dos presentes, juntou-se ao grupo de jovens que conversava descontraidamente com Maria.

Sir Jeffrey pediu a um dos empregados que lhe servisse uma bebida.

— Senhorita Anna Featherstone, acredito eu? — Um rapaz in­clinou a cabeça para cumprimentar Anna.

Ela sorriu para ele e confirmou sua identidade. Com os olhos, Anna procurou a mãe, temendo sua desaprovação. Lady Feathers­tone a havia autorizado a descer sob a condição de que se manti­vesse afastada dos rapazes, dado que não tinha ainda idade para ser formalmente apresentada a eles.

— Não quero parecer inconveniente, mas gostaria de me apre­sentar. Meu nome é Liddell, David Liddell, e fui convidado por sir Jeffrey e lady Featherstone para assistir às apresentações desta noite.

— É bem-vindo em nossa casa, Sr. Liddell. Não creio que me desrespeitaria na casa de meus pais. Portanto, não me sinto descon­fortável conversando consigo. —Anna surpreendeu David Liddell com suas palavras.

Após um instante de constrangimento, ele riu e ironizou!

— É uma pena que não será apresentada formalmente à socie­dade este ano, Srta. Anna. Com toda a certeza, encantaria toda a sociedade londrina com sua maneira gentil de falar com as pessoas.

Anna o olhou de relance e respondeu à crítica com sagacidade:

— É justamente esse o receio de meus pais.

— Desculpe-me se lhe pareci indelicado Srta. Anna. Na ver­dade, eu gostaria de falar consigo sobre sua irmã.

— Ah! — Anna já estava acostumada a ser abordada pelos admiradores de Maria, que lhe pediam ajuda para conseguirem conquistá-la. — É a primeira vez que vem à nossa casa e já se apaixonou por ela?

— Eu a vi algumas vezes na igreja com sua mãe e confesso que fiquei admirado com sua beleza discreta. Gostaria de conhecê-la melhor.

— Por que não diz isso a ela?

— Acredito que será mais fácil se antes a senhorita puder me contar quais são os assuntos pelos quais sua irmã mais se interessa.

Anna o analisou atentamente e achou que Maria não o des­prezaria.                                                                  

— Não deve se mostrar inibido. As mulheres não gostam de homens inseguros — Anna o aconselhou.

—Normalmente, não me intimido diante de uma moça. Porém, de certa forma, sua irmã me deixa acanhado.

— Deixe-me ver... Maria se interessa pela moda... E muito vai­dosa, como minha mãe.

— Anna se predispôs a ajudá-lo. — Gosta das poesias de Keat...

— E quanto às questões sociais?

— E radicalmente contra a escravidão.

— Por certo que tem um bom caráter.

— Devo no entanto preveni-lo de que, em alguns aspectos, é bastante realista. Jamais se casará com alguém pensando somente em sua fortuna ou posição social. Contudo, posso lhe assegurar que jamais se sujeitará a uma vida menos confortável do que aquela que usufrui em casa de meus pais. Assim sendo, espero que o senhor tenha condições de lhe proporcionar tudo aquilo a que está acostumada. Do contrário...

David contraiu ligeiramente os músculos do rosto, e Anna teve a impressão de tê-lo melindrado com sua franqueza.

— Tenho algumas expectativas para o futuro — ele disse en­quanto se levantava.

— Gostaria de agradecê-la por sua boa von­tade, e espero um dia poder conhecê-la melhor.

 

Anna o viu andar na direção de Maria e se indagou se ele real­mente teria alguma chance de conquistá-la. Era um rapaz inteli­gente e agradável. Todavia, Anna não intuía que sua condição financeira fosse condizente com o futuro que sua irmã almejava para si.

— Sobre o que conversavam você e aquele cavalheiro, minha filha? — perguntou lady Featherstone.

— Não pude deixar de lhe dar atenção, mamãe. Ele se apresen­tou e disse que havia sido convidado por vocês para assistir à apresentação dos pianistas.

— Um cavalheiro não se apresenta a uma moça de família. Anna sorriu e disse:

— Ah, apresentam-se sim! Principalmente quando querem sa­ber como conquistar o coração de Maria.

Lady Featherstone se virou para o canto da sala onde a filha mais velha conversava com David e apreciou:

— Ela olha para ele com simpatia. No entanto, não vejo possi­bilidade alguma de Maria se interessar por David Liddell.

— E por que não? O que há de errado com ele?

— É um Liddell. E isso significa que é parente do conde Carne, o que, na verdade, não é nenhuma lisonja.

Anna tomou-se de espanto.

— Então... quer dizer que ele é primo do conde Carne? O herdeiro?

— Sim, ele mesmo.

— E isso significa que o sr. Liddell, atualmente, dispõe de par­cos recursos financeiros.

— Ao que tudo indica, bastante limitados.

— É uma pena.

— David Liddell é seu único herdeiro — Lady Featherstone retomou a palavra.

— Se o conde houvesse realmente falecido na África, como todos pensavam, David seria seu legatário universal. Teria direito não só a toda a sua fortuna como também a seu título.

— E se Maria gostar dele, mamãe?

— Não forçarei nenhuma de minhas filhas a se casar contra sua vontade. Por outro lado, não permitirei que vocês se unam a um cavalheiro que não lhes possa oferecer uma vida condigna. Tenho certeza de que não será difícil casá-las com um cidadão respeitável que esteja à altura de nossa posição social.

Lady Featherstone olhou ao seu redor para se certificar de que todos os convidados estavam sendo condignamente servidos.

Em alguns minutos, o segundo pianista executaria uma sonata de Beethoven.

— Agora vá para seu quarto, Anna. Já é tarde. Peça a Martha que a acompanhe. Se ainda estiver tão pálida amanhã, chamarei o médico.

— Já estou bem melhor, não se preocupe.

Antes de se retirar, Anna observou David Liddell ainda uma vez. Não se parecia em nada com o tio, embora fosse também muito elegante.

Embora não haja razão alguma para tal, tenho que admitir que esteja muito feliz pelo fato de o conde Carne estar vivo. Ele não é um homem libertino, e sua cicatriz... até mesmo lhe confere um certo charme.

Anna lembrou-se do prazer que sentiu aconchegada nos braços do conde quando ele enxugou suas lágrimas com seu lenço. O conde Carne a chamara de Pippin. Sem saber que aquele era o apelido que sir Jeffrey lhe dera.

Ele me beijou, ela rememorou com carinho. Anna se virou para trás, deparou com sua mãe olhando para ela e mais uma vez teve a impressão de que ela podia ler seus pensamentos.

Sentindo que a filha estava tristonha, lady Featherstone lhe assoprou um beijo.

— Vamos, Anna, eu lhe ajudarei a vestir a camisola — Martha se ofereceu.

— Vou me despedir de papai.

— Sir Jeffrey se entretém conversando com seus amigos do Parlamento. Não prefere lhe dar um beijo amanhã de manhã? — Martha sugeriu.

— É verdade. Não devo mesmo importuná-lo.

Em seu quarto, Anna resistiu à tentação de abrir a porta da passagem secreta e ir ao encontro do perverso conde Carne.

Capítulo VI

 

Na manhã seguinte, Anna decidiu sair de casa. Se ficasse mais um S dia em seu quarto, lady Featherstone insistira em cha­mar o médico. E, sem dúvida nenhuma, para justificar seus hono­rários ele lhe diria que Anna estava muito fraca.

Ela teria de ingerir tônicos, poções e fortificantes durante varias semanas. Ou, quem sabe, até mesmo recomendaria um exame de sangue.

Anna ansiava por encontrar um exemplar de Forbidden affections em alguma das livrarias que não havia ainda visitado.

No entanto, estava apreensiva diante da possibilidade de se deparar com o conde Carne nas redondezas. P Não os cavalheiros mais jovens, de alta estirpe, não andavam pelas ruas àquela hora do dia. Anna encontraria apenas senhoras, senhores e as babás que, orgulhosas, estariam empurrando carrinhos de bebê sofisticados e se sentariam nos bancos dos par­ques pia conversar com as amigas, enquanto as crianças, muito coradas, tomassem um pouco de sol.      

Podemos ir Arthur?-Anna perguntou. -Onde esta Martha?

No quarto Srta. Maria, ajudando-a a se vestir. Disse que descera em seguida.

A que horas o conde estaria habituado a sair de casa? Pelas roupas que ele usava na noite em que a encontrara em sua biblioteca. Anna deduziu que praticava equitação. Portanto, era provável que costumasse montar de manhã.

Ela olhou para o chapéu que tinha na mão e, aproximando-se do espelho, colocou-o na cabeça, puxando, em seguida, a aba in­teiriça para baixo de forma que lhe cobrisse parte do rosto. Assim, o conde não a reconheceria caso ela tivesse a infelicidade de en­contrá-lo no portão no momento em que estivesse saindo de casa.

— Está pronta, Srta. Anna? — Era a voz de Martha, que descia a escada.

— Estou, sim, Martha.

— Não quer levar uma sombrinha para se proteger do sol?

— Coloquei este chapéu.

— Deixe-me ver — pediu Martha.

— Estou bem?

— Esconde todo esse seu lindo rostinho. — Sem se dar conta, Martha respondeu justamente o que Anna estava querendo saber.

A precaução foi desnecessária. Quem estava no portão da casa de número dez era apenas o jardineiro.

— Como está Sr. Doolittle? — Martha cumprimentou-o.

— Muito bem, e a senhora? — ele respondeu, inclinando um pouco o corpo.

— Vou bem, obrigada. Lindo dia, não é verdade?

— E verdade. Este ano o tempo nos surpreendeu. Está bem mais quente do que na primavera do ano passado.

— Suas flores estão verdadeiramente lindas, Sr. Doolittle — Martha elogiou.

— O conde Carne trouxe outro tipo de adubo para fertilizar a terra.

— Fez bem — Martha aprovou. — Vamos andando, então. Recomendações à sra. Doolittle.

— Obrigado, Martha, e até logo. — Dizendo isso, o jardineiro entrou na casa, apanhou o gadanho e se pôs a revolver a terra.

O brilho da manhã resplandecia e acentuava os diversos tons de verde da folhagem que encantava os olhos dos transeuntes. As flores coloridas desabrochavam faceiras, como que a desafiar o gris da arquitetura local. No lago, cisnes e patos deslizavam pela água tranqüila, indiferentes às crianças que, agachadas nas mar­gens, brincavam com seus barquinhos.

— Victoria, tenha cuidado você pode cair — preocupou-se a mãe que tinha um livro aberto nas mãos.

— O senhor conde decidiu voltar definitivamente para Londres—dizia Arthur, enquanto andava pelo parque ao lado de Anna e Martha. — Contratou mais alguns criados. Os Murchison são de sua inteira confiança, mas já estão um pouco cansados.

__Por falar nisso, descobriram algo sobre a criada que entrou

na biblioteca da casa durante a noite? — Martha perguntou.

— Ah, sim! Jack Murchison me contou tudo, e ele não mente

__Arthur afirmou. — No início achou que o conde Carne havia se

excedido um pouco na bebida e imaginara tudo aquilo. Ele pediu socorro no meio da noite, pois tinha um ferimento bastante sério em uma das têmporas. No dia seguinte, a Sra. Murchison encontrou uma fita de cabelo caída no chão. E ficou claro que havia sido mesmo vítima de um golpe que lhe foi desferido pela suposta criada.

— Céus! — Anna mostrou-se perplexa.

Então, sua fita de cabelo... Se não fosse por causa dela, todos teriam pensado que o conde havia tido uma alucinação e, com certeza, não lhe dariam ouvidos.

— E a quem pertencia essa fita? — ela insistiu.

— Até agora, ninguém sabe — disse Arthur.

— O senhor conde suspeita de alguém?

__Não acredita que a moça seja uma simples criada. E está

desconfiado de que não foi a primeira vez que entrou em sua casa. Comentou com o Sr. Murchison que ela parecia muito à vontade enquanto mexia em seus livros na biblioteca.

Anna ergueu os olhos e não acreditou no que via. Ninguém menos do que o conde Carne, em pessoa, caminhava agora na sua direção.

Ela sentiu um frêmito de pavor. Não podia deixar que ele a visse. Virou imediatamente o rosto e distraiu a atenção de Arthur e Martha, apontando para um pássaro que sobrevoava o lago.

— Olhem ali, ali. Não é um Martim pescador? — perguntou. Martha ergueu os olhos, protegendo-os do sol com a mão.

— Um Martim pescador? — admirou-se.

— O Martim pescador tem o bico muito grande e o pescoço curto — Arthur esclareceu.                            

__Imaginem! Eu poderia jurar que era um Martim pescador.

Eles também se alimentam de peixes..—Anna simulou um engano.

— Certa vez eu... — Martha quis contar algo, porém, ansiosa, Anna a interrompeu:

— Acha, então, que pode ser um periquito?

— Francamente, não sei, senhorita — disse Arthur.

Anna manteve o diálogo, mostrando-se interessada nos pássa­ros que poderiam ser vistos em Londres naquela época do ano até que o conde passasse por eles e se afastasse, a caminho de sua casa.

Àquela hora, todos os homens de bem estavam trabalhando. Não teria o conde Carne algo para fazer? Um negócio? Uma de­cisão para tomar? Um esporte que gostasse de praticar?

Afinal, era um desocupado?

— Sita. Anna? — Ao senti-la inquieta, Martha perguntou: — A senhorita não está bem?

— Estou sim — Anna respondeu. — De qualquer forma, acho que seria bom se nos apressássemos. Preciso passar na livraria e, daqui a pouco, papai, mamãe e Maria já estarão em casa para almoçar.

Ao chegar a sua casa, ela estava muito nervosa. Talvez fosse melhor contar tudo a Sr Jeffrey e lady Featherstone e terminar logo com aquela tortura.

Seus pais ficariam muito decepcionados quando soubessem que ela tivera a coragem de invadir a casa de número dez.

O que Anna lhes diria? Obviamente, nada sobre o beijo que o conde a forçara a lhe dar. Contudo, como justificaria o ferimento que lhe causara na testa?

A idéia de revelar tudo aos pais foi logo esquecida.

Se Anna fizesse seus passeios pela manhã, não correria o risco de encontrar o conde Carne.

No entanto, segundo ela mesma pôde constatar da janela de seu quarto, embora ele retornasse à casa tarde da noite, iniciava seus passeios matinais por volta das nove horas.

E, coincidentemente ou não, toda vez que Anna estava pronta para sair de casa, o conde aparecia no portão. E, naturalmente, ela entrava correndo.

— Que tanto você sai e entra em casa, tira e põe esse chapéu na cabeça, Anna? — lady Featherstone perguntara certa vez. — Vai acabar fazendo com que Martha tenha um ataque de nervos, minha filha.

— Eu pretendia ir até o parque, mas desisti, mamãe. Está muito quente lá fora, não acha? O sol pode me fazer mal. — Anna logo encontrara uma desculpa.

Anna foi para seu quarto e se pôs a espionar a casa de número dez.

No início, estava convencida de que queria apenas espreitar o inimigo. Custou-lhe admitir para si mesma que ficava muito feliz toda vez que o conde Carne aparecia no jardim.

Não era bonito, no entanto havia nele algo de encantador. Es­condida atrás da cortina, Anna admirava seus traços, que lhe pa­reciam perfeitos para um homem: o rosto oval, os lábios grandes, porém não muito carnudos, o nariz afilado, e os olhos muito azuis formavam um conjunto bastante harmônico. A cicatriz, abaixo do olho direito, dava-lhe um certo ar de quem tinha muita experiência de vida. A fisionomia era agradável, embora estivesse sempre sé­rio. Os cabelos castanho-escuros já mostravam alguns fios brancos nas têmporas.

Apesar de magro, dava a impressão de ser forte. Discreto, falava e gesticulava com desenvoltura. Conversava muito com os criados, que pareciam sentir-se à vontade na presença do patrão.

O sr. Doolittle freqüentemente lhe mostrava as plantas, e Anna pôde perceber que o conde sempre lhe dava algumas sugestões.

Ela se lembrou da emoção que sentira quando o conde Carne a beijara. Como desejaria viver novamente aqueles momentos em que ficara sozinha com ele em sua casa! Embora ele a houvesse assustado, Anna não podia acreditar que o conde Carne teria sido capaz de lhe fazer algum mal.

Ao reler Forbiddenaffections, que ela havia adquirido em uma livraria de Londres no dia em que o vira no parque, não teve mais dúvidas.

Roland e o conde Carne, ou lorde Manderville, como se cha­mava na época, eram a mesma pessoa. Lady Delabury usara o nome de seu amante para o personagem do livro: Roland!

Anna ficou desolada. Precisava lutar contra a atração que sentia pelo conde Carne, pois fora ele quem induzira lady Delabury a pôr termo em sua própria vida.                                        

No livro, nada havia que pudesse elucidar em que circunstâncias ela se suicidara. Todas as heroínas de mrs. Jamison tinham características semelhantes, os mesmos traços da personalidade de lady Delabury, Srta. Skelton quando solteira.

Por sua vez, os heróis eram pouco convincentes, bastante su­perficiais. Cultuavam excessivamente a ingenuidade feminina e, quando se apaixonavam, não ousavam nem ao menos tocar as mãos da amada antes de fazerem dela sua esposa.

Tais considerações levaram Anna a se lembrar de um cavalheiro que não sufocava suas próprias paixões. E tampouco parecia se martirizar por tê-las alimentado.

Ela correu os dedos por seus lábios e fechou os olhos.

Nada a deteria quando chegasse o momento de dizer ao conde Carne:

— Por favor, beije-me novamente.

Nem sempre lady Featherstone tinha razão. Muitas vezes, as moças de família não temiam a desonra.

As incertezas quanto ao verdadeiro caráter do conde Carne, as diversas interpretações de seu passado e os sentimentos ambíguos que Anna nutria por ele a estavam deixando exaurida.

 

Certo dia, quando voltava de uma visita ao British Museum, deparou-se com ele. E, desta vez, Anna não desviou o rosto e tampouco entrou correndo em casa. Altiva, ergueu a cabeça e o encarou, como se o desafiasse.

Surpreso, ele ergueu as sobrancelhas. Em seguida, sorriu para ela, cumprimentou-a com um aceno de cabeça e continuou a andar.

Pasma com a coragem que tivera para enfrentá-lo, Anna não acreditava que aquele encontro realmente acontecera.

Então... Ele sabia!

Pelo modo como agira, ela percebeu que o conde já havia des­coberto que Maggie era a filha mais nova de seus vizinhos, sir Jeffrey e de sua esposa lady Featherstone.

Ao mesmo tempo em que se sentiu aliviada por não mais ter que passar seus dias escondendo-se do conde Carne, estava profunda­mente humilhada.

Ela aventou a possibilidade de o conde estar elaborando um plano de ação para se vingar dela. Porém, logo descartou a idéia. Ele, definitivamente, não era um homem mesquinho. O próprio sir Jeffrey já reconhecera que tinha certa simpatia por ele. E, para Anna, não havia neste mundo ninguém que tivesse maior discernimento para avaliar as pessoas com clareza e bom senso do que seu próprio pai. O conde não podia ser um calhorda. Ela tirou o chapéu da cabeça e se olhou no espelho.

— Por que fez isso, Anna? — perguntou a si mesma. — Que razões tão fortes a levaram a se preocupar mais com os motivos que fizeram com que lady Delabury se suicidasse do que cornos riscos a que você estaria se expondo ao invadir a casa do conde. Jamais poderia ter cometido tal leviandade!

Tirou o chapéu da cabeça, arrancou a roupa do corpo e se atirou na cama. Estava profundamente decepcionada consigo mesma.

O sorriso que vira em seus lábios quando Anna o olhara de frente revelava o desdém que sentia por toda aquela situação ridícula.

Era evidente que não estava nem um pouco preocupado!

O grande drama da vida de Anna acabara por se transformar em simples... Bolhas de sabão.                                                  

Mortificada, abraçou o travesseiro e deixou que as lagrimas corressem soltas por seu rosto.

Anna desejou que sir Jeffrey e lady Featherstone antecipassem sua volta para Derbyshire. No entanto, sabia que não o fariam.

Maria estava na idade de se casar e, dentro em breve, escolhera seu futuro marido. Era importante para ela que a família ficasse em Londres durante toda a temporada.

David Liddell continuava a lhe fazer a corte, contudo suas chan­ces de vir a conquistá-la não eram muitas. O conde Carne estava vivo e seu primo, e herdeiro, nada tinha além de uma razoável posição social, parcos recursos financeiros e um emprego publico bem remunerado. Estava, portanto, muito aquém das ambições de Maria.

Anna resolveu colocar um ponto final no suplício que a ator­mentava já havia algumas semanas.

Retomaria o domínio de suas emoções e faria tranqüilos passeios pela cidade na companhia de Arthur e Martha. Havia em Londres tantos lugares para conhecer, lugares esses que o conde, provavel­mente não costumava freqüentar. Suas pragas eram outras.

Naquele momento, os Featherstone empenhavam seus esforços no futuro de Maria, em cuidar para que ela tomasse uma decisão acertada na hora de escolher um marido.

Lady Featherstone estava muito feliz vendo sua filha mais velha sendo bastante requisitada por rapazes que pertenciam às melhores famílias da capital da Inglaterra.

— Tenho reservas em relação ao conde Carne — ela dissera certo dia. — Por mais que sua conduta seja irrepreensível, não posso esquecer seu passado.

— O tempo cura todos os males — contestou sir Jeffrey. — Além do mais, como eu já disse, nada ficou provado contra ele. Acredito que devemos julgá-lo por suas atitudes atuais. O que acha disso, Maria?

— Eu gostaria muito de poder ser mais condescendente em relação ao conde, papai. Porém, não consigo esquecer o que ele foi capaz de fazer. O Sr. Liddell me contou que ele...

— O conde Carne deve saber o que faz — Anna a interrompeu.

— Às vezes, os motivos de cada pessoa justificam sua maneira de agir — disse Maria, visivelmente irritada. — Todavia, ele teve vínculos reprováveis com a senhora que se suicidou em seu quarto. Hão de convir que não possa ser indulgentes em relação a esse tipo de comportamento.

— Maria, já pensou em entrar para um convento? — Anna ironizou.

— Anna! Minha filha! — Lady Featherstone a repreendeu. — Vá para seu quarto imediatamente! E leia o sermão do bispo de Stortford que fala sobre pensamentos impuros.

— Sim, mamãe. Peço desculpas por ter sido indelicada com Maria — ela disse, fazendo uma mesura e já se retirando.

O que a teria feito dizer tal absurdo?

Ciúme!

Anna não podia nem mesmo aventar a possibilidade de o conde vir um dia a se interessar por Maria. Ela o queria para si.

Riu de si mesma. Criancice absurda! Sua irmã nunca manifes­tara alguma afeição pelo conde Carne que pudesse justificar aquele sentimento mesquinho. Ademais, Anna lamentava a perda de al­guém que na verdade nunca tivera.

Maria e o conde não tinham interesses em comum. Portanto, Anna não tinha motivos para se sentir enciumada. Não encontrava na irmã nenhum defeito grave. Muito pelo contrário, achava-a bastante virtuosa. Porém, não era o tipo de esposa que o conde Carne haveria de estar procurando. Maria era muito diferente dele!

Em breve, sir Jeffrey o convidaria para vir à sua casa. Já dera a entender que tinha uma certa simpatia por ele.

E se o conde se encantasse com Maria e lhe fizesse a corte? Para o seu próprio bem, era melhor que Anna começasse a consi­derar aquela hipótese.

Passados dois dias, lady Featherstone ofereceu um chá em sua casa e, em dado momento, Anna viu o conde Carne entrando na sala.

Não havia dúvidas de que estava ali a convite de seus pais.

— Sua Majestade, o rei George. E, imediatamente foram to­madas medidas contra a contravenção nas áreas onde a caça e a pesca são proibidas. A rainha Charlotte...

Anna não pôde mais ouvir o que dizia lorde Threpton, com quem conversava.

Quando viu o conde, seu pensamento se voltou para a noite em que ele a beijara na biblioteca de sua casa. Anna sentiu o sangue afluir para o rosto.

Notando que ela estava alheia ao que lhe dizia lorde Threpton, um dos amigos de sir Jeffrey, desculpou-se:

— Perdoe-me, Srta. Anna, eu não tive a intenção de aborrecê-la com assuntos políticos. Compreendo que, em geral, as mulheres não se interessam pelos problemas da cidade, principalmente quando têm a sua idade.

— Tudo o que diz é muito interessante, lorde Threpton. — Ela se recompôs e justificou sua desatenção. —Apenas achei que gos­taria de beber algo e estava tentando chamar a criada para vir lhe servir um drinque.

— É muito delicada Srta. Anna. Verdadeiramente encantadora. Com toda a certeza, fará muito feliz o homem com quem vier a se casar—lorde Threpton lhe elogiou a amabilidade e, em seguida, pediu: — Se puder fazer a gentileza de me servir,, eu gostaria de comer mais uma tortinha de morango. Estão muito gostosas.

Não podendo, de forma alguma, negar-se a fazer o que o con­vidado de seus pais lhe pedia, Anna se viu obrigada a ir buscar o doce, Para isso precisou atravessar a sala e...

— Venha até aqui, Anna — lady Featherstone a chamou. — Quero apresentá-la ao conde Carne, nosso vizinho.

A dona da casa segurou a mão da filha e se dirigiu a ele com um sorriso nos lábios.

— Esta é minha filha Anna, a mais nova. Só tem dezesseis anos e, por essa razão, não pode ainda ser formalmente apresentada à sociedade.

—Encantado, Srta. Anna—ele a cumprimentou com elegância, curvando ligeiramente a cabeça em sinal de respeito.

Anna ficou magoada, pois o conde agira como se ela fosse uma estranha, como se jamais a houvesse visto. Ela quis desviar o olhar, mas não pôde.

— Espero que esteja gostando da temporada — ele disse. Nada no rosto do conde denotava algum constrangimento. Ao contrário, parecia sentir-se totalmente à vontade.

Ele era, sem dúvida nenhuma, muito agradável. E, naquela noi­te, parecia-se mais com o rapaz do retrato do que com o homem que a havia surpreendido na biblioteca.

Mas... Haveria mesmo aquele meio-sorriso nos lábios dele?

Sinceramente, Anna desejou estar enganada. Não queria que ele a olhasse daquele modo. Tocava-lhe o coração, fazendo com que ela relembrasse seus beijos.

Ao se dar conta de que estava ali parada, imóvel, sem dizer uma só palavra, já havia alguns minutos, Anna fez uma mesura e se dirigiu à mesa de doces para pegar a tortinha que lorde Threpton lhe pedira.

— Acabou de fazer uma coisa horrível, Anna — disse Maria, aproximando-se da irmã.

— Não deve olhar para o conde Carne como se estivesse com medo de que ele a coma viva! Não se esqueça de que está em nossa casa e devemos ser gentis com ele.

Afinal, não era você que insistia em defendê-lo?

— Está enganada. Eu nunca o defendi — respondeu Anna, sem se lembrar de que o fizera havia apenas alguns dias.

— Então, anda mesmo meio esquecida! — Maria observou. — Pois eu lhe asseguro que o defendeu várias vezes. De qualquer forma, não pode demonstrar aos convidados que não tem fraquejo social, que não está acostumada a conviver com pessoas impor­tantes. Não fica bem para o papai. — Com ar de superioridade, prosseguiu: — Todavia, não precisa se preocupar. O conde Carne não há de esperar grande coisa de uma criança como você!

Maria deu de ombros e, virando as costas para a irmã, caminhou ao encontro de suas amigas. Anna se apressou em pegar a bandeja de tortinhas para servir lorde Threpton.

Estaria Maria querendo competir com ela? Ou era Anna quem temia que o conde se interessasse por sua irmã mais velha?

Indo ao encontro de lorde Threpton, olhou de soslaio para o conde Carne e intimidou-se quando o conde, discretamente, piscou para ela.

Se não estiver enganada... ele está... Flertando comigo, pensou alegre. Anna constatou que havia mesmo um sorriso nos lábios do conde. Apressou o passo e levou as tortinhas para lorde Threpton.

A represália! Sim, o conde estava querendo se vingar dela, fa­zendo-a sentir-se desconfortável e constrangida em sua própria casa, devolvendo assim, na mesma moeda, o que Anna lhe fizera. Porém ele estava ali porque havia sido convidado por sir Jeffrey e lady Featherstone, ao passo que Anna entrara em sua casa sem ter permissão.

O conde Carne estava sendo cruel. Sob hipótese nenhuma, ela se daria por vencida. Contudo, não podia deixar que ele notasse que seu orgulho estava mortalmente ferido.

Pediu licença a lorde Threpton e se pôs a servir as tortinhas para os demais convidados. Em seguida, trocou a bandeja vazia por um prato com doces variados.

Aproximou-se do grupo de cavalheiros com quem o conde Car­ne conversava e o encarou.

— Por favor, sirvam-se. Estão deliciosos — ofereceu, sentindo suas pernas tremerem.

— Muito obrigada — ele agradeceu, sorrindo. — Qual deles a senhorita recomendaria?

Anna foi tomada de surpresa. Ela não esperava que ele lhe di­rigisse a palavra. Imaginava que, se o enfrentasse, ele ficaria encabulado. Doce ilusão! Nada parecia perturba-*!©. O conde jamais se alterava.

— Os camafeus de nozes — ela foi lacônica. Receava que ele percebesse o quanto estava nervosa.

— Parecem realmente especiais. Foi a senhorita quem os fez? Mais uma provocação! Então, o conde não sabia que as moças

de sua posição social não trabalhavam na cozinha?

— A sra. Postle é uma excelente cozinheira e tem duas ótimas ajudantes: Tracy e Magg...

— Calou-se a tempo de não pronunciar o nome da criada.

— Estou certo de que todas fazem muito bem seu trabalho — o conde tomou a palavra.

— Bem, peço desculpas, mas preciso me retirar — disse lorde Pickering. — Tenho outro compromisso.

— É uma pena — Anna foi gentil.

— Certamente gostaríamos de ter sua companhia por mais tempo.

— Obrigado, sita. Anna — ele agradeceu as palavras dela e, virando-se para o conde Carne, perguntou: — Você não vem?

— Vou ficar mais um pouco.

— O conde também irá ao coquetel? — perguntou outro cavalheiro.

— Não, não vou. No entanto, não devo me demorar. Esta noite espero uma visita.

— Alguém especial? — Lorde Pickering se sentiu no direito de perguntar, dada a grande intimidade que havia entre os dois amigos.

—Bastante especial — o conde Carne respondeu, olhando para Anna.

Que audácia! Ela se irritou, pois ele fizera questão de fazê-la entender a quem estava se referindo.

— E estes doces aqui, são tâmaras recheadas de.:.

— Fios de ovos, meu senh... Senhor conde — Anna se adiantou.

— Vamos, então, provar um.

— Lembro-me daquele delicioso creme de morango que nos serviu quando estivemos em sua casa em Norfolk — um dos ami­gos lembrou.

— Ah, sim! É a minha sobremesa favorita — disse o conde Carne.

— Infelizmente, hoje não temos creme de morango — Anna se desculpou.

— Prometo que quando a senhorita puder ir a Norfolk...

— Senhorita Anna... — lady Boxsington, uma velha amiga de lady Featherstone, sentada em uma poltrona próxima ao grupo, interferiu —, é ainda muito jovem para participar da conversa de cavalheiros.

Lady Featherstone passava por ali e perguntou:

— Está sendo bem servido, conde Carne?

— Sim, obrigado. Estávamos falando de doces e sobremesas. Comentava que o creme de morango é minha sobremesa favorita.

— Se soubesse teria pedido a Maggie que fizesse creme de morango.

— Obrigado, não se preocupe, por favor. A torta de chocolate estava uma delícia. Em uma próxima oportunidade poderei expe­rimentar o creme de morango de Maggie — disse o conde Carne, sorrindo.

— Peço desculpas por Anna, mas agora ela terá que dar atenção aos outros convidados. Está sendo requisitada por um grupo de amigas. —Lady Featherstone tomou as providências que lhe eram devidas.

Enquanto se afastava, Anna ouviu o conde Carne comentar com o cavalheiro a seu lado:

— A sita. Featherstone é realmente muito bonita. Descontente com o comportamento da filha, lady Featherstone chamou sua atenção por ela ter alongado o assunto com o conde Carne.

—Eu estava observando de longe e a achei muito ousada, Anna. Não é aconselhável que se exponha dessa forma, conversando em uma roda de cavalheiros durante tanto tempo. Mais tarde, isso poderá lhe trazer conseqüências muito ruins. Os bons rapazes se afastarão de você, e não conseguirá fazer um bom casamento. Deve se mostrar mais recatada, mesmo estando em nossa casa.

A dis­crição nunca é demais em uma moça. Entendeu o que eu disse?

— Sim, mamãe.

— E agora, preste bem atenção no que vou dizer, pois não vou repetir. Sinto que há qualquer coisa estranha com o conde Carne i- exijo que se mantenha longe dele. Não permitirei que o conde se aproxime de nenhuma de minhas filhas. Se não me obedecer, serei obrigada a pedir que seu pai tome sérias providências a esse respeito. Ouviu bem?

— Ouvi, sim, mamãe — Anna aceitou a reprimenda.

— Então, estamos entendidas! Agora, por favor, pegue uma bandeja de doces e sirva as senhoras que estão sentadas na outra sala.

— Pois não, mamãe.

Anna atendeu prontamente o pedido de lady Featherstone. No entanto, seu pensamento estava longe e ela não soube responder às perguntas que as amigas de sua mãe lhe fizeram.

O conde Carne havia deixado claro que não a reprovava por ela ter invadido sua casa. E, segundo Anna havia entendido, ele ficaria feliz se voltasse lá outra vez.

Na sala onde estava a mesa de doces, Anna olhou disfarçada-mente para o conde e ele sorriu para ela.

Não, ela não se enganara. O conde Carne estava realmente in­teressado em Anna Featherstone, a filha mais nova de sir Jeffrey e lady Featherstone.

 

Ao entrar em seu quarto, Anna ainda não havia decidido o que faria naquela noite.

Estava convencida de que o conde Carne não lhe faria mal al­gum se ela aparecesse em sua casa. Teriam um encontro romântico, e ele provavelmente a beijaria como o fizera na noite em que a vira em sua biblioteca.

Porém, desta vez, tudo seria diferente, pois agora ele sabia que ela se chamava Anna Featherstone.

Ainda assim, Anna sentia-se insegura, tinha medo. Não do con­de Carne, mas de si mesma, da forte atração que sentia por ele.

Lady Featherstone estava firme em seu propósito de não per­mitir que o conde se aproximasse de nenhuma de suas filhas.

Portanto, se Anna não fosse à casa dele naquela noite, talvez estivesse perdendo sua última oportunidade de conhecê-lo melhor.

— Fustian! — Anna se lembrou. Era esse o seu nome do herói daquela cena.

Estava decidida a ir se encontrar com o conde Carne. Colocou o vestido no corpo e amaldiçoou a fileira de botões que deveria prender com as alcinhas de tecido.

— Impossível! — desistiu, colocando o casaco por cima da roupa. — Não conseguirei abotoar este corpete sozinha.

Olhou-se no espelho e não gostou do que viu. De qualquer for­ma, estava vestida decentemente. Precisava deixar bem claro para o conde que havia decidido ir à sua casa apenas para conhecê-lo melhor.

Não com o intuito de provocá-lo e deixá-lo enlouquecido, como faziam as... pecadoras.

Ao ouvir soar meia-noite, disse a si mesma:

— Se é isso que realmente quer, Anna Featherstone, então, vamos lá! — Afastou com cuidado a arca que havia colocado na frente da porta secreta para impedir que o conde entrasse em seu quarto e, sentindo-se forte, contou: — Um dois e três. — Acionou o mecanismo, e a porta se abriu.

— Ah! — exclamou o conde Carne ao vê-la em seu quarto. — Finalmente descobri onde fica essa porta! Tinha uma vaga noção, mas jamais soube como poderia abri-la.

Anna se aproximou dele apreensiva, afinal era um estranho. E ela estava sozinha com ele, em seu quarto.

— Você... está com medo de mim? — o conde perguntou.

— Absolutamente, não. Não há razão para isso. — Ela tentou demonstrar calma.

— Pode ter certeza de que não lhe farei mal algum. No entanto, teremos que ficar aqui mesmo no meu quarto. Se descermos para a sala, os criados poderão notar que há mais gente na casa e virem a descobrir que se trata da filha de nosso vizinho. Nunca se sabe o que eles podem comentar por aí.

Anna colocou seu castiçal em cima da cômoda.

— Se não estivesse aqui, eu teria que andar pela casa toda à sua procura, me... meu sennnnh... Senhor.

O conde riu ao perceber que ela não sabia como se dirigir a ele. Ele indicou a cadeira colocada em frente à lareira, ao lado da sua, e convidou:

— Por que não senta?

— Obrigada — Anna agradeceu.

— Estas cadeiras são bastante desconfortáveis — comentou. — Vou pedir a Sra. Murchison que providencie outras.

Enquanto ele falava, Anna tentava se acalmar, porém era quase impossível.

— Não se sente confortável? — ele perguntou.

— Confesso que não me sinto muito tranqüila. Pretende contar tudo a meus pais?

O conde Carne se surpreendeu com a pergunta.

— Contar o quê? Que a senhorita entrou em minha casa, se fez passar por uma criada e eu a forcei a me beijar? Não, eu hão faria isso. Jamais!

— Então... devo entender que não haverá chantagens.

— Acha mesmo que o faria? — Ele pareceu decepcionado. — Para ser franco, não esperava que pensasse tal coisa de mim. Pode ter a certeza de que eu não seria capaz de uma atitude tão mesqui­nha. Não deveria ler tantos livros de mrs. Jamison, Pippin.

— Gostaria de lhe pedir para não me chamar de Pippin. E o apelido carinhoso que meu pai me deu.

— Desculpe-me, eu não sabia. Apenas achei que combinava muito com você. E como aprecio muito as maçãs suculentas... Achei que estaria lhe fazendo um elogio.

Encabulada, Anna ruborizou-se.

— Por acaso está tentando me seduzir, senhor conde? — ela perguntou de forma direta.

— Não creio que essa seria uma atitude muito correta. Since­ramente, não

— o conde respondeu, sem hesitar. — A verdadeira razão pela qual dei a entender que a estaria esperando esta noite é que a senhorita parece ter certas informações que me podem ser úteis, como pude concluir na noite em que veio aqui pela primei­ra vez.

— Como assim? — Anna não entendeu de imediato.

— Só havia uma maneira de a senhorita ter entrado nesta casa: pela passagem secreta. Estou certo?

— Sim, está certo.

Deveria ela revelar seu segredo a ele? Anna hesitou por alguns segundos e, enfim, disse:

—Está tudo muito claro em um dos romances de Mrs. Jamison: Forbidden Affections.

— Tudo muito claro em um dos romances dela? — O conde ficou pasmo. — Para que todas as pessoas pudessem ler?

— Exatamente. Dulcinéa é enclausurada em um quarto como o meu, quero dizer, igual ao da casa que papai alugou aqui em Londres, e Roland...                                                    

O conde Carne estremeceu.

— Está dizendo que essa senhora maquiavélica teve a audácia de usar o meu nome para um de seus personagens?

Anna se surpreendeu com a maneira como ele se referiu a Mrs. Jamison.

— Roland of Toulaine é o nome do redentor de Dulcinéa, seu único amor.

— Foi por esse motivo que a senhorita reagiu da forma como o fez quando eu lhe disse meu nome? — o conde concluiu. — Só agora posso entender. Mas, diga-me, como é esse personagem?

— Bem... Eu diria que se assemelha muito ao senhor conde. Porém, como era na época em que seu retrato foi pintado.

O conde não se conteve:

— Pelo que posso entender a senhorita andou mesmo espio­nando a casa inteira.

Anna sentiu-se humilhada.

— Admito que cometi uma ofensa imperdoável. Ainda assim, peço-lhe que me perdoe.

— Não foi tão grave. — Ele tentou abrandar a inquietação que parecia ter tomado conta de Anna.

— Está apenas querendo ser gentil. — Ela entendeu qual era a intenção dele.

— A verdade é que não consegui resistir à ten­tação de...

— Qual é a sua idade?

— Dezesseis anos, senhor conde.

— Ah, sim! Agora me lembro. E... Há no livro de Mrs. Jamison outros fatos que tenham relação com minha casa?

— Como posso saber? Não sei nada sobre sua vida.

— Talvez tenha ouvido algum comentário.

— Não ouvi senhor. Em todo caso, por que não lê o romance o senhor mesmo. Os três tomos estão em sua biblioteca. Pode encontrar alguma coisa que lhe interesse.

— A tal senhora os deu a minha mãe, que os aceitou porque era educada demais para recusá-los. No entanto, ela não os leu.

— Por que não?                                                                

— Jamais leu um romance em toda a sua vida.

— Isso é muito triste — Anna lamentou.

— Acha que eles enfraquecem as mulheres, e elas se põem a desfalecer sem que tenham motivo para isso — o conde disse, com um leve sorriso nos lábios.

— Ela mora em Londres?

— Não, reside em Bath. Contudo, há muitos anos sua saúde está um pouco debilitada.

— O conde Carne tinha uma expressão triste no olhar.

— Lamento muito pelo senhor.

— Por que motivo se recusa a me contar mais detalhes de Forbidden Affectionsl

— Não entendo por que está tão interessado em que eu o faça.

— Perdoe-me, mas às vezes me parece um pouco insolente, Srta. Anna — o conde Carne a analisou. — Estou apenas lhe pe­dindo para me ajudar, e tenho uma razão muito forte para isso. Ainda hoje suspeitam que eu tenha assassinado lady Delabury. Não acreditam que ela possa ter entrado aqui em casa, vestida com uma camisola exuberante, sem que eu a tenha visto. E o fato de meus amigos terem deposto a meu favor os deixou em uma posição muito desconfortável. Ao menos por eles, tenho o dever de des­cobrir o que na verdade aconteceu naquela noite.

— Depois de tantos anos...

— Não importa quanto tempo levará para que tudo seja escla­recido. Para mim, é uma questão de honra.

Anna ficou preocupada.

— Posso lhe parecer extremamente egoísta, porém, como ex­plicará tudo isso às pessoas sem me envolver nessa história?

O rosto do conde Carne estava impassível quando ele disse:

— Não a colocarei em nenhuma situação embaraçosa. Pode confiar em mim.

Ele não me beijará. Ela ficou decepcionada e sentiu seus sonhos caírem por terra.

— Anna? — o conde a chamou pelo primeiro nome.

Anna sentiu o coração disparar em seu peito. Então, não estava tudo perdido.

Ela ainda, tinha uma chance de conquistá-lo, ainda que fosse muito pequena.

— Sim? — respondeu.

— Diga-me o que sabe sobre esse livro, por favor — o conde insistiu.                                                                  

Apesar de se sentir constrangida por ter que lhe contar uma história que ele mesmo achava enfadonha, Anna decidiu relatar o que havia lido.

— Está bem. Se isso poderá, de alguma forma, ajudá-lo...

— Irá me ajudar bastante. É minha obrigação esclarecer todo esse mal-entendido. Como já lhe disse, trata-se de uma dívida que devo resgatar em nome do respeito que tributo a meus amigos.

— Deixe-me ver por onde posso começar... Pois bem, vamos lá. Dulcinéa é raptada nas vésperas de seu casamento com Roland of Toulaine e enclausurada em uma torre por um tio, o conde Nacre, cujos valores morais são os piores possíveis, se é que en­tende o que quero dizer.

— Entendo, sim. Por favor, prossiga.

— O conde Nacre quer forçá-la a se casar com ele e, por isso, ele a tortura. Toda noite vem vê-la na torre com a intenção de... De... — Anna não sabia como dizer que o conde Nacre queria que a sobrinha se entregasse a ele. — O conde Nacre quer que Dulcinéa seja só sua. No entanto, toda vez que tenta forçá-la a se submeter à vontade dele, acontece algo que o impede de conseguir seu in­tento. — Anna finalmente conseguiu encontrar uma maneira de contar ao conde o enredo do romance de Mrs. Jamison.

— De certa forma, Dulcinéa contribui para o próprio sacrifício, uma vez que não faz o menor esforço para mudar seu destino. É muito fraca, chora muito e, ocasionalmente, desmaia.

— Diferentemente de você, devo acreditar. Anna sentiu seu rosto enrubescer.

—Eu... Chorei. Não se lembra? — ela perguntou, lembrando-se das lágrimas que havia derramado quando o conde a obrigara a beijá-lo.

— E como me lembro! Não imagina o susto que levei quando me agrediu...

— O conde Carne ia mencionar o golpe que ela lhe desferira com o joelho, mas decidiu apenas fazer alusão ao feri­mento na testa. — Acha que Dulcinéa poderia tê-lo detido se hou­vesse um cálice de cristal na torre onde estava cativa?

Anna fingiu não ter percebido a ironia da pergunta.

—No lugar dela, eu teria me escondido atrás da porta e atacado o conde Nacre quando ele entrasse em meu quarto. — Anna fez uma pequena pausa antes de prosseguir.

— Pensando bem, nem isso teria sido necessário, pois ela não saiu daquele quarto porque não quis. Na verdade, não havia nada que a impedisse de abrir a porta no momento que bem entendesse. — Anna hesitou por al­guns segundos, e então se lembrou: — Bem... A não ser... Os ratos.

Ao ouvir aquilo, o conde Carne não conteve o riso.

— Burlesco!

— Dulcinéa tem medo de ratos — Anna argumentou.

— E você? Tem medo deles? — o conde quis saber.

__Para ser franca, não gosto deles. Contudo, no lugar dela, eu

os teria enfrentado.

— Não duvido nem um pouco disso. No entanto, ela espera ate que seu amado apareça, montado em seu cavalo branco, para sal­vá-la das garras do malvado tio, não é isso?

__Não haveria uma maneira de fazer o cavalo chegar à torre,

  1. Conde.

__É verdade. E o que acontece no final?

—Roland desafia o conde Nacre para um duelo. Porém nenhum dos dois consegue vencer o embate.

— Por quê?

— O conde pertence à Cavalaria de Sua Majestade, o rei.

— Uma pessoa com esse caráter? — o conde Carne estranhou.

__Trata-se apenas de um romance, Sr conde.

__Então, vejamos o que acontece no final? Roland e o conde

Nacre lutam até a exaustão.

— Certamente que não.

__Já sei. Dulcinéa os impede de continuar o duelo — o conde

Carne ironizou.

— Sabe que não é isso.

— Como posso saber se não li o livro?

—- No final da história, o conde Nacre cai em si e reconhece que foi perverso. Então se atira sobre a espada de Roland.

__Que fiasco! — exclamou o conde, sarcástico.

__Roland corre para a torre para libertar Dulcinéa.

— Apesar de ferido?

__Os heróis jamais são feridos. Ao menos, não seriamente.

__Assim sendo, não vejo neles nada de muito heróico. Não são humanos!

— O senhor conde já foi ferido? — Após ter feito a pergunta, Anna olhou para a cicatriz no rosto do conde e se deu conta do quanto havia sido inoportuna.

— Não sou um herói, Anna.

__O senhor conde não respondeu à minha pergunta.

— Os vilões também são feridos. Prossiga a história ou lhe mostrarei as outras cicatrizes que tenho no corpo. O que certamente a deixará bastante constrangida, Srta. Featherstone.

— Não me lembro de onde parei — Anna se desconcertou.

— Seu herói, a despeito de todos os ferimentos e de todas as dores musculares, sobe correndo a escadaria que o conduz à torre onde sua amada está enclausurada e, provavelmente, ele a toma em seus braços.

— Ela fica radiante, e Roland lhe conta tudo sobre o duelo com o conde Nacre.

— Tenho certeza de que, no lugar de Dulcinéa, a senhorita teria cuidado dos ferimentos de seu amado, não teria?

— Senhor conde, eu já lhe disse que Roland não é ferido no duelo.

— E como Dulcinéa pode saber? Por acaso, a roupa de Roland não está toda suja do sangue do conde Nacre?

Anna refletiu e não pôde negar que ele tinha razão.

— É verdade. — Como sempre, ela fez questão de dar a última palavra:

— O senhor conde não me ouviu dizer que era um bom romance, ouviu?

— Eu teria ficado muito decepcionado se a senhorita tivesse dito tal absurdo. — O conde Carne foi franco. — E então o grande herói, Roland of Toulaine, desce a escada helicoidal do castelo, carregando sua amada nos braços. Naturalmente, tendo que fazer um esforço sobre-humano!

— Não. Não é isso que acontece no final do romance de Mrs. Jamison.

— Então, o que é?

— Nesse momento, um terremoto abala a cidade.

— Um terremoto? — O conde Carne jamais podia imaginar que aquele fosse o final do romance. — Nesse caso, devo concluir que os céus protestam contra a morte do conde Nacre. Portanto, ao contrário do que todos acreditam, o conde Nacre é o herói e não Roland, o infame Roland of Toulaine, um estróina, um assas­sino — o conde Carne provocou Anna.

— O que o senhor conde está dizendo não faz sentido. Roland é o herói da história. É ele quem salva Dulcinéa de seu martírio.

— E o terremoto? — O conde Carne fez um esforço para não rir do final que Mrs. Jamison tinha dado para o romance.

— As pedras começam a cair sobre eles e quebram toda a es­cadaria do castelo.

— Conseqüentemente, Dulcinéa desmaia, e para fazer com que ela recupere os sentidos, Roland a esbofeteia. Com todo o carinho, é evidente. Ela, então, desperta e os dois correm à procura de um abrigo.

— Não! Ele não a esbofeteia. Ela acorda sozinha.

— Graças a Deus!

— Mas... Existem ratos por toda parte e...

— E ela desmaia de novo!

— Por favor, senhor conde. — Anna ria até as lágrimas.

— Assim eu não conseguirei terminar a história.

— Ainda não acabou? — O conde Carne se divertia com as próprias observações.

— A história não pode terminar assim.

— Roland e Dulcinéa morrem sob os escombros e são enterra­dos juntos

— o conde Carne continuou a brincar. — E sobre o túmulo deles é edificado um monumento à tolice.

— Isso não tem sentido. Os heróis não podem morrer — Anna contestou.

— Eles conseguem sobreviver e fogem para os jardins do castelo.

— Com todos os ratos correndo atrás deles!

— Não, senhor conde. Os ratos não aparecem nessa cena do livro. Para surpresa de todos, quem chega ao local é Sua Majestade, o Rei...

— O rei George III? — o conde indagou perplexo.

— Novamente, está enganado. É o rei Rudolph of...

— Anna não se lembrava onde reinava o rei Rudolph. — Esqueci o nome do país.

— A senhorita me deixa perplexo.

— Posso saber por quê?

— Não entendo como pôde ler esse romance.

— É apenas uma história, como qualquer outra.

— Mas... Vamos lá. Como é que termina essa história?

— O rei Rudolph descobre que o .conde Nacre é um impostor e que o traiu.

— Porém... Como o conde Nacre está morto...

— O conde Nacre não está morto. Está apenas ferido.

— Não acredito! — o conde Carne exclamou. — Não havia dito que ele se atirou sobre a espada de Roland?

— Contudo, isso não quer dizer que tenha morrido.

— E pensar que Mrs. Jamison teve a coragem de dar esse livro para minha mãe!

— o conde Carne desabafou.

— Muito provavelmente ela achava que era uma boa história.

— Imagino que sim! — o conde ironizou. — Enfim, como é que termina essa história?

— Sua Majestade manda executar o conde que lhe fora desleal e Roland é elevado à dignidade de conde e passa a ser chamado de Roland, conde de Nacre.

— E Dulcinéa rompe o compromisso com ele, pois se recusa a viver em um castelo infestado de ratos, estou certo?

— Não há ratos no castelo, Sr. conde.

— Coitadinhos! Foram todos desalojados! — o conde Carne ironizou. — E para onde a senhorita acha que foram todos esses ratos?

Anna pôs-se a rir até as lágrimas.

— Ah, meu caro conde Carne. Tudo isso é tão... Tão tonto, não é verdade?

O conde Carne inclinou o corpo para frente e entregou seu lenço a ela.

—Não entendo como alguém pode escrever uma história como essa Srta. Anna! Há de convir que essa senhora não tivesses o menor talento para escrever.

— Suas primeiras histórias são bem melhores, embora todas as suas heroínas sejam muito melindrosas. Imagine, desmaiam sem­pre que são contrariadas!

— Pelo pouco que sei sobre mrs. Jamison, posso lhe dizer que ela era exatamente assim.

Anna não entendeu como o conde Carne podia falar daquela maneira sobre uma mulher que, supostamente, havia sido sua aman­te. Havia ali duas hipóteses: ou ele era muito cínico ou, realmente, não tivera mesmo nenhuma participação na morte de lady Delabury.

Restava ainda uma dúvida. Por que ela cometera suicídio no quarto dele.

— Eu esperava poder encontrar uma resposta que pudesse so­lucionar esse enigma de uma vez por todas. No entanto, ao que tudo indica, não há nada nesse romance que possa explicar por que Mrs. Jamison se matou justamente neste quarto,

— Quem sabe não quis castigar a si mesma por haver escrito Forbidden Affections!

— Influenciada pelo conde Carne, Anna mudara sua opinião sobre o romance que havia sido durante tanto tempo o seu favorito. — Que falta de caridade! Eu não devia ter dito isso.

— Posso lhe assegurar que ela não se incomodaria nem um pouco com a sua opinião, pois acreditava piamente que era uma grande escritora. — O conde procurou tranqüilizá-la.

— Além de tudo, não dava o menor valor para o Sr. Delabury, com quem se casou. Ele era perdidamente apaixonado por ela.

— Que desencontro!

— O sr. Delabury é uma excelente pessoa. — O conde Carne tinha uma expressão triste no olhar.—Ela tinha tudo para ser feliz, no entanto, não soube aproveitar o que a vida lhe deu. Por livre e espontânea vontade, destruiu a si mesma.

Anna não entendeu o profundo pesar que podia ver no rosto do conde Carne. Era impossível chegar a uma conclusão sobre que tipo de relacionamento teria realmente havido entre ele e lady Delabury.

— O que estava escrito na carta de despedida que ela deixou para o marido? — perguntou.

— Uma bobagem qualquer. Ela dizia estar desesperada por não ser capaz de conquistar o amor de lorde Delabury.

— Ele a traía? — Anna pensou ter descoberto um novo fato.

— Muito provavelmente, não. Como já disse, era apaixonado por ela, a ponto de me acusar de ter sido amante de lady Delabury. Estava cego! Chegou até mesmo a pensar em me desafiar para um duelo.

— Que coisa horrível! — Anna não se conteve.

— Foi então que meus amigos me convenceram a sair de Lon­dres, para assim evitar maiores problemas.

— Lorde Delabury já conseguiu se recuperar da tristeza de ter perdido sua esposa em circunstâncias tão trágicas?

— Espero que já tenha encontrado um novo amor e esteja ten­tando ser feliz.

— Pelo que posso entender — concluiu Anna —, o senhor não corre mais o risco de se transformar em outra vítima dessa terrível tragédia.

— Parece que ele ainda não desistiu da idéia do duelo.

— Não pode ser verdade! —- Anna tentou não deixar transpa­recer que, ao ouvir aquelas palavras, ficara muito aflita.

— De minha parte, prefiro resolver esse assunto conseguindo decifrar o mistério e provando que nada tenho a ver com essa história maluca.

— Gostaria muito de poder ajudá-lo, Sr conde. Contudo, já lhe contei tudo aquilo que sei.

— Eu lhe agradeço.

O conde se levantou antes de dizer:

— Acredite, gostei muito deste nosso encontro.

Anna sentia-se perfeitamente à vontade ao lado dele. Enfim, descobrira que o conde Carne não era o monstro que ela pensa­va ser.

— Eu também me diverti bastante — retribuiu a gentileza dele. Por um momento, achou que ele queria lhe dizer algo. Porém,

o conde virou-se para ela e a surpreendeu, perguntando:

— A senhorita me permitiria ver o seu quarto?

— Sim, é claro, senhor conde. Como lhe poderia negar esse pedido quando já conheço praticamente toda a sua casa?

— Quero que saiba que não estou exigindo que me retribua nada — ele esclareceu.

—Não recebi suas palavras dessa forma. Terei o máximo prazer em lhe mostrar o quarto e ajudá-lo no que for possível.

Enquanto Anna abria a porta da passagem secreta, o conde esclareceu:

— Precisa entender que em circunstâncias normais, eu jamais entraria no quarto de uma moça como a senhorita. E muito menos à noite.

— Eu... Confio no senhor.

— Devo adverti-la de que não deve confiar nos homens. Jamais dê permissão a um deles para entrar em seu quarto.

— Acha mesmo que eu estaria correndo o risco de levar um cavalheiro a perder a cabeça se deixasse que ele visse a cama onde durmo?

—Algo parecido com o que está dizendo poderia lhe acontecer.

Quando a porta se abriu e o conde Carne pôde ver o quarto que havia sido de lady Delabury, exclamou:

— Meu Deus! Ela era mesmo completamente insana!

— O quarto...

— Isso prova que lady Delabury não era uma pessoa normal — o conde Carne afirmou.

— Veja só estas gárgulas. — O conde tocou o entalhe de um baú. —Não entendo como alguém consegue dormir em um ambiente tão lúgubre!

— Eu lhe pediria que não se demorasse muito aqui, senhor conde. Meus pais podem ouvir sua voz e... eles jamais me perdoa­riam por haver permitido que entrasse em meu quarto.

— Não quero nem pensar nisso. Posso imaginar como se sen­tiriam.

— Estou certa de que seria a maior decepção de suas vidas. Repentinamente, uma idéia invadiu a mente de Anna e a deixou

sobressaltada. Talvez lady Delabury houvesse se suicidado após seu marido tê-la flagrado com o conde em um dos respectivos quartos?

— Adeus, Anna — o conde se despediu.

— Não nos encontraremos mais? — ela perguntou.

— É melhor assim. Seria bastante constrangedor para mim se...

— Ninguém precisa saber — Anna insistiu.

— Um... segredo só entre nós dois, você quer dizer?

—Eu gosto do senhor—Anna confessou, apertando as próprias mãos.

—Também gosto muito de você—o conde Carne a surpreendeu.

— Bem... — Anna quis saber sobre um suposto interesse por sua irmã. — Talvez, se o senhor conde desposar Maria, nós pu­déssemos nos encontrar nas reuniões de família.

— Não tenho a menor intenção de me casar com sua irmã, srta. Anna — ele não hesitou em esclarecer. — Vim à casa de seus pais ontem à noite com o propósito de encontrar Maggie.

— Entendo. Pretendia fazer com que ela lhe contasse onde fi­cava a passagem secreta?

— Exatamente — o conde foi claro.

Anna não podia aceitar que, após aqueles momentos mágicos que haviam passado juntos no quarto dele, o conde não sentisse nada por ela a não ser, talvez, gratidão. Afinal, fora ela quem lhe revelara onde ficava a porta secreta. Reuniu toda sua coragem para então lhe dizer:

— Sendo assim, acredito ter o direito de lhe pedir algo em troca.

— Certamente que sim — ele assentiu.

—Se está agradecido por eu lhe ter feito esse favor... Eu gostaria que, antes de sair do meu quarto, o senhor conde me beijasse no­vamente. Porém, desta vez, com bastante carinho.

— Desta vez, com bastante carinho? — Ele estranhou. — Por acaso não a beijei com carinho na biblioteca de minha casa?

— Com toda a franqueza, eu não saberia lhe dizer, pois estava nervosa demais.

— Talvez não possa me responder, mas... Acha que seus senti­mentos em relação a mim não são os mesmos que os daquela noite?

Anna ponderou antes de responder.

— Eu confio no senhor.

— Se realmente fosse digno de sua confiança, eu sairia de seu quarto agora mesmo.

Mas ele não se retirou.

Estendeu sua mão para Anna e ela, imediatamente, segurou-a.

O conde era um homem decidido e, naquele momento, seus olhos tinham um brilho todo especial.

Anna não sabia o que poderia lhe acontecer ali, em seu quarto, sozinha com um homem que, praticamente, não conhecia.

Quem era ele? O amante da falecida lady Delabury? Roland, o herói de Forbidden Ajfections, o amor de Dulcinéa? Um execrável sedutor de mulheres indefesas? Ou apenas um homem pelo qual Anna se sentia irresistivelmente atraída?

O conde a puxou para perto de si, e ela se abraçou a ele.

— Isso não está certo — Anna murmurou.

— O que não está certo?

— Eu não deveria me comportar assim. É errado.

— Assim como?

— Como pode ser julgada uma moça de boa família que deixa um homem entrar em seu quarto? Meus pais ficariam terrivelmente decepcionados se soubessem que eu fui capaz de... Tenho a sen­sação de que sou eu quem o está seduzindo, sr. conde.

— Há certas coisas que não podem ser evitadas, Anna. — O conde Carne beijou ligeiramente os lábios dela.

Anna ficou decepcionada. Não era assim que esperava que ele a beijasse. Queria que a fizesse se sentir mulher atraente e irresis­tível. Como se pudesse ler seus pensamentos, ele aproximou o rosto dos lábios dela e lhe mostrou que nada havia de fraternal em seus sentimentos.

Porém, temendo não poder se controlar, ele se afastou e se di­rigiu para a porta secreta.

— Por favor, senhor conde, não faça isso.

Percebendo que Anna não estava convencida de que deveria recusá-lo, tomou-a nos braços e, apertando-a contra o peito, deixou que ela sentisse todo o calor de seu corpo.

Temerosa, Anna quis afastá-lo. Tinha plena consciência de que, se algo de mal lhe acontecesse naquele momento, à culpa seria apenas sua.

Ele afastou a mecha de cabelo que cobria o rosto de Anna e lamentou a idade dela.

— Quisera você não tivesse apenas dezesseis anos, Anna. É praticamente uma criança.

Dizendo isso, andou ligeiro na direção da porta secreta, sem ao menos olhar para trás.

— Certamente que envelhecerei — Anna disse para si mesma. — Ao seu lado.

Ela esperou que a porta se fechasse, lentamente, e começou a tirar o vestido. Seu corpo ardia de desejo por aquele homem que não a podia ter.

Anna deitou-se em seu leito virginal e chorou. Era a mais soli­tária dentre todas as mulheres.

 

Nos dias que se seguiram àquele encontro, Anna sentiu-se pou­co à vontade na presença de seus pais e de Maria. Felizmente, estavam todos muito ocupados. Perdidamente apaixonada, Anna sonhava de olhos abertos. De­senhava o rosto do conde Carne e escrevia seu nome em todas as folhas de seus livros.

— Não quer dar uma volta? — Martha sugeria.

— Faz muito calor lá fora — Anna se desculpava, preferindo ficar em seu quarto, espionando a casa do conde.

Sorria feliz quando, ao entrar em casa, ele olhava para sua ja­nela. Anna se escondia atrás da cortina para que ele não a visse.

No entanto, o terrível destino que tivera lady Delabury não lhe permitia se entregar totalmente a seus devaneios.

Seria mesmo o conde inocente? Ou estaria apenas querendo con­vencê-la de que não tivera participação na morte de sua vizinha?

Envolvida com seus pensamentos, Anna não viu Maria entrar na sala, carregando vários pacotes nos braços.

— Trouxe um presente para você — ela disse, sorrindo.

— Ah, sim! Obrigada por ter se lembrado de mim — Anna agradeceu, mas nem sequer levantou para o presente.

— Confesso que ando um pouco exausta por causa de tantos compromissos sociais

— Maria se queixou. — Encontramos as mesmas pessoas em toda parte. E elas sempre dizem exatamente as mesmas coisas.

— Deve ser mesmo muito enfadonho — Anna concordou com a irmã.

— Todavia, para encontrar o marido ideal, terá que conti­nuar a freqüentá-los.

— O que você entende por marido ideal? — Maria a provocou.

— Não é possível encontrar todas as qualidades em uma só pessoa. Um é rico, o outro é bonito, este é mais esperto, aquele é mais educado...

— Não encontrou nenhum rapaz por quem possa se apaixonar?

— Anna estava curiosa para saber como pensava sua irmã mais velha.

— Ah, o amor! — Maria riu da ingenuidade da caçula da fa­mília.

— Como você é romântica, minha irmã!

— Não há nem um rapaz em quem esteja interessada, Maria?

— Talvez... Acho o sr. Liddell muito atraente. Porém, agora que ficou provado que seu primo, o conde Carne, está vivo e goza de perfeitas condições de saúde, terei que reconsiderar minha de­cisão. David Liddell tão cedo não herdará sua fortuna.

Maria viu que Anna tinha lápis e papel na mão.

— O que está escrevendo? — perguntou.

— Um romance. — Anna deu a primeira resposta que lhe veio à cabeça.

— Deixe-me ver isso.

Anna teve ímpetos de impedi-la, todavia não o fez. Maria sus­peitaria que ela estivesse lhe escondendo algo e não descansaria en­quanto não descobrisse do que se tratava.

Além do mais, nada havia naquela folha que pudesse levar sua irmã a desconfiar que Anna estivesse apaixonada pelo conde Carne.

— Estou tentando fazer o esboço de um romance que pretendo escrever

— disse Anna à irmã.

 

Maria não tinha o hábito de ler. Deu uma olhada no que Anna havia escrito e logo lhe entregou a folha de papel.

— O nome de seu herói, conde Nacre, não viria a ser um anagrama de Carne? Conde Nacre, o conde Carne.

— Pode ser. — Anna tentou se mostrar desinteressada.

— Dada a aversão que temos por esse homem, espero que, no final de seu romance, você lhe dê um castigo bem grande. Mamãe ficará muito feliz. — Dizendo isso, Maria virou as costas e foi para seu quarto.

Anna se perguntou qual seria a reação de sua família se o conde

Nacre, agora personagem de um livro seu, no final da história, se casasse com uma moça bonita e fosse feliz para sempre.

Certa noite, Anna se recolheu mais cedo do que de costume. E em seu quarto, se pôs a meditar sobre a vida de lady Delabury.

Em determinado momento, pensou em uma possibilidade que, até aquele dia, não havia considerado: o amante de lady Delabury fora o pai do quarto conde Carne, o homem por quem Anna se apaixonara.

Na manhã seguinte, ela se levantou bem cedo, vestiu-se e foi para a cozinha conversar com a sra. Postle.

— Como chegou a essa conclusão, Srta. Anna? — perguntou a cozinheira.

— Estava sem sono e comecei a pensar sobre o assunto. Ocor­reu-me, então a idéia de que talvez o pai do conde Carne houvesse sido o verdadeiro amante de lady Delabury.

— Já que a senhorita descobriu, tenho que admitir a verdade. O pai do atual conde Carne e lady Delabury eram realmente amantes.

Ao voltar para o quarto, Anna sentiu uma ligeira vertigem. Quem seria Roland of Toulaine, o verdadeiro amor de Dulcinéa, senão o atual conde?

A rivalidade que teria havido entre pai e filho na vida real fora transportada por mrs. Jamison para seu livro. Com uma única di­ferença: no romance, não havia parentesco entre Roland of Tou­laine e o conde Nacre.

Estava tudo muito claro.

Lady Delabury fora amante do pai do atual conde e então se apaixonara por seu filho. Daí a razão do desespero que a levara a cometer suicídio. Ali estava o verdadeiro enigma de toda aquela história.

Lady Delabury, provavelmente, escrevera Forbidden Affections para se vingar.

Mas... para se vingar de quem? Do conde ou de seu filho? Ou então... de seu marido, lorde Delabury.

Por que razão lady Delabury jamais mandara fechar aquela por­ta secreta?

Na verdade, ela mesma permitia que o conde tivesse livre acesso a seu quarto. Exatamente como Dulcinéa, que nada fez para im­pedir a entrada do conde Nacre em seu quarto na torre do castelo.

O próprio Roland, no encontro que tivera com Anna em seu quarto, reconhecera que o conde Nacre não era o vilão da história. Mas sim, o herói.

Por certo, naquele momento, estava pensando em seu pai.

Anna estava exausta e se deixou vencer pelo sono.

Anna precisava conversar com o conde Carne a fim de saber se suas conclusões eram acertadas. A noite, esperaria até que seus pais e sua irmã saíssem e, em seu quarto, aguardaria o conde chegar em casa.

Naquele dia, após o almoço, a família se reuniu na sala de visitas.

— Já estamos em junho, Maria — sir Jeffrey alertou a filha mais velha.

— E logo estaremos voltando para Derbyshire. Já não seria tempo de você indicar qual dentre os seus pretendentes es­colherá para se casar?

Maria enrubesceu.

— Ainda estou indecisa, papai. Não sei ao certo o que decidir.

— Deve ser mesmo muito difícil escolher um entre tantos ad­miradores.

— Featherstone! — A mãe de Maria não gostou da observação do marido.

— Isso é coisa que se diga à nossa filha?

— Perdoe-me se a ofendi, minha cara esposa. Contudo, não creio ter dito algo desrespeitoso a Maria.

— Maria não deve pensar que todos esses rapazes ficarão eter­namente apaixonados por ela

—lady Featherstone advertiu a filha.

— Se demorar muito para se decidir, provavelmente eles voltarão os olhos para outras moças. Há muitas famílias aqui na capital querendo casar suas filhas.

— Se podem me esquecer tão depressa, é porque, na realidade, não me amam.

Embora Anna concordasse com a irmã, achou que ela estava sendo um pouco pretensiosa.

Maria era mesmo assim. Estava acostumada a ser cortejada por Iodos os rapazes e não tinha pressa de se casar. Sabia que de forma nenhuma corria o perigo de ficar para titia. Era bonita, graciosa, verdadeiramente encantadora.

A preocupação de lady Featherstone era diferente daquelas de suas amigas cujas filhas também estavam em idade de se casar.

Ela notava que Maria sentia-se perfeitamente bem em casa dos

pais e retardaria, o quanto pudesse, o momento de se mudar para a casa de seu marido.

Tinha a ilusão de que sua juventude seria eterna e que, por onde passasse, seria cortejada por todos os rapazes do lugar. Para todo o sempre. Anna sabia que não era bonita como sua irmã mais velha.

— Precisa entender que tem apenas dezesseis anos — justifi­cava a mãe.

Sir Jeffrey não queria pressionar Maria para que ela decidisse logo com quem pretendia se casar. No entanto, sabia que, se não a encorajasse, ela acabaria voltando para Derbyshire sem escolher um dentre seus pretendentes.

E, se isso viesse a acontecer, lady Featherstone o atormentaria com sua choradeira durante mais um longo ano de espera.

Anna percebeu que a irmã estava um pouco agitada.

— De forma nenhuma queremos que tome uma decisão apres­sada, minha filha

— disse lady Featherstone. — No entanto, seria bom se nos desse alguma idéia de quem pretende escolher. De qual deles gosta mais?

Maria abaixou os olhos e não disse nada.

— Parece-me que ela tem uma queda por Sr. Liddell, não é mesmo, minha irmã? — Anna decidiu quebrar o silêncio.

— Ah, não! — exclamou lady Featherstone. — Por favor, mi­nha filha, diga-me que isso não é verdade.

— Sente afeição por esse rapaz, Maria?—sir Jeffrey quis saber.

— Na verdade, não sei exatamente o que sinto por ele, papai. Porém... sei que não me interesso por nenhum dos outros. São todos excelentes rapazes, mas...

— Francamente, minha filha — reagiu lady Featherstone. — Jamais pensei que fosse tão indecisa. Eu já lhe ensinei que uma moça ajuizada procura conduzir suas emoções de forma que possa assegurar um bom futuro para si mesma. E você foi se encantar logo com David Liddell! Que lástima! — ela desabafou. — O que acha que esse moço poderá lhe oferecer? Você terá que renunciar a todo o conforto a que está acostumada. Para seu próprio bem, eu a proíbo de falar com esse cavalheiro. Escutou o que eu disse Ma­ria? Está terminantemente proibida de se aproximar do Sr. Liddell.

Aos prantos, Maria se levantou.

— Como pode ser tão cruel, mamãe? Se o primo dele, o conde Carne, tivesse realmente morrido, a senhora não estaria falando assim. Muito pelo contrário, ficaria feliz em me ver casada com David Liddell. Por quê? Por que, mamãe? Diga-me por que tem que ser assim? Qual é a diferença?

— São as oitenta mil libras anuais que você receberia minha filha, além do título de condessa. Essa seria a diferença — Lady Featherstone respondeu.

— Acredite-me, Maria, por favor, você não nasceu para morar em uma pequena casinha com um jardinzinho na frente. E tampouco para lavar sua própria roupa. Seria muito infeliz se casasse com David Liddell.

— Sua mãe está dizendo a verdade, Maria — sir Jeffrey apoiou a esposa.

— A renda anual de David não chega a mil libras.

— Isso não importa, papai.

— Infelizmente, importa, sim, minha querida.

—Está zangado comigo, papai? — magoada, Maria quis saber. —Para ser franco, fiquei triste porque escondeu seus sentimen­tos de sua família.

— Perdoe-me, papai. Apenas achei que o senhor e mamãe pu­dessem ter uma preferência por lorde Whelksham... Ou, então, por lorde Harlowe e não quis decepcioná-los. — Maria abaixou os olhos. — Para dizer a verdade, só agora pude sentir o quanto gosto de David Liddell.

Sir Jeffrey se levantou para abraçar sua filha mais velha.

— Foi muito bom ter-nos contado sobre seus sentimentos em relação a ele.

— Posso ter alguma esperança que o senhor e mamãe venham a mudar de idéia em relação ao meu casamento com David Liddell?

— Como sua mãe, tenho também os meus receios em relação a David. Contudo, por enquanto, não quero lhe dar minha palavra final. Prometo que pensaremos sobre o assunto com muita calma.

Os olhos de Maria estavam vermelhos de tanto chorar.

— Hoje não sairemos de casa. Apresentaremos nossas descul­pas sir Lawrence e lady Windsor e ficaremos em casa — sir Jeffrey decidiu. — Você e Anna podem subir. Pedirei a Martha que leve o jantar no quarto para vocês.

— Descansem bastante, meninas — desejou lady Featherstone. - Amanhã será um novo dia.

— Boa noite, mamãe. Boa noite, papai — as duas irmãs se despediram.

Sir Jeffrey olhou para Anna e fez um sinal para que tentasse acalmar Maria e conversasse bastante com ela. Ele sempre confiara no bom senso de sua filha mais nova.

No quarto de Anna, Maria se atirou sobre uma poltrona.

— Ah, minha irmã! O que será de mim? — choramingou.

— Você se casará com o Sr. Liddell se realmente quer assim.

— Não ouviu o que papai e mamãe disseram?

—Nada podem impedir que duas pessoas fiquem juntas quando elas se amam de verdade.

— Você ainda é muito criança, Anna. Não entende nada da vida. Quando tiver a minha idade compreenderá o que é sofrer por amor.

— Já pensou que, ao lado de David, não terá o mesmo conforto que papai pode lhe dar?

— Eu o amo, Anna! E isso me basta — Maria foi categórica.

— Você sempre quis ter uma casa bem bonita no campo.

— Um dia, David poderá me dar uma.

— Como, Maria? De que forma? Ele não tem dinheiro para comprá-la.

Maria se enfureceu com a insistência de Anna.

— Seu primo, o conde Carne, um dia vai morrer. E David é seu único herdeiro, você entende?

Anna sentiu o coração apertado.

— O conde Carne tem muita saúde.

— As pessoas saudáveis também morrem. Em duelos, por exemplo. Pode ser que alguém o desafie para ufn duelo.

Chocada com as palavras da irmã, Anna se afastou dela.

— Maria! Como pode desejar a morte de uma pessoa? Não deve ser tão má.

— O conde Carne já devia ter morrido! É um assassino! — Maria sentenciou, olhando bem dentro dos olhos da irmã.

— Não diga bobagem. Você não sabe de nada.

— E você? Por que o defende tanto? Por acaso ele lhe deu algum presente?

— Há muitos rumores, muito exagero no que as pessoas dizem sobre o incidente que aconteceu na casa dele. Não podemos acre­ditar em tudo o que falam. — Anna falava com tranqüilidade. — Se quer mesmo se casar com o Sr. Liddell, Maria, procure aceitá-lo como ele é, com as possibilidades que tem. Afinal, é uma pessoa bastante agradável e inteligente. Tenho certeza de que um dia terá uma situação confortável. Quem sabe, até mesmo possa conseguir um título para si!

— Isso poderia levar anos. Deixe-me em paz! — Maria parecia fora de si. — Você acha que sabe tudo, mas não passa de uma boba. Não conhece nada do mundo. Ouviu? Nada!

Anna olhou para a irmã enquanto ela saía de seu quarto e sentiu pena dela. Não era seu intuito transformar aquela conversa em um discurso interminável. Decidiu não dizer mais nada. Levantou-se e caminhou até a janela.

Precisava conversar com o conde Carne. Anna temia que a vida dele pudesse estar em perigo.

Na noite em que ela estivera em seu quarto, o conde lhe dissera que lorde Delabury pretendia vingar a morte da esposa, desafiando-o para um duelo.

— As pessoas saudáveis também morrem. Em duelos, por exemplo. — As palavras de Maria ressoavam na mente de Anna.

Estaria o Sr. Liddell por detrás de um complô contra seu primo? Afinal, tinha interesse em sua morte, uma vez que era o único herdeiro de seu título e de toda a sua fortuna.

Anna olhou através da vidraça justamente na hora em que o conde Carne saía de casa na companhia de um amigo.

Os dois homens ficaram em pé na calçada, supostamente à es­pera de uma carruagem de aluguel.

Pelo horário, Anna concluiu que iriam ao teatro. Mais tarde se divertiriam em alguma festa para a qual teriam sido convidados.

Anna suspirou e desejou ter dezoito anos. Poderia, então, ro­dopiar entre os casais nas festas, nos braços do conde.

—- Quem é aquela mocinha que está dançando com Roland? — perguntaria uma das comadres à amiga.

— Anna Featherstone, de Derbyshire, filha de sir Jeffrey e lady Featherstone.

— É muito bonita — comentaria a primeira.

—Casam-se aqui em Londres ainda este ano-diria a segunda. Anna ergueu os olhos à procura do conde Carne e de seu amigo, porém eles já não estavam mais ali.

 

Com licença. — Era Martha que entrava no quarto com uma bandeja nas mãos.

— Prontinho! Aqui está o seu jantar.

— Obrigada — Anna agradeceu.

— Volto depois para buscar os pratos e levá-los lá para baixo.

— A governanta lhe desejou bom apetite.

— Está bem, Martha.

Com toda a certeza, o conde demoraria a regressar a casa, e Anna teria tempo para jantar sossegada.

Depois do jantar, quando todos já estivessem dormindo, poderia atravessar a porta secreta e conversar com o conde sem que nin­guém notasse sua ausência.

Já era de madrugada quando ele chegou em casa.

— Boa noite, sr. conde — na rua, uma voz masculina se des­pediu.

Anna ouviu a carruagem se afastando. Atirou o livro que estava lendo em cima da cama e correu para a janela. Tarde demais! O conde já havia entrado em casa.

Chegara a hora de se encontrar com ele. Não esperava uma recepção esfuziante. O conde deixara muito claro que não era acon­selhável que se encontrassem novamente. Ademais, após uma lon­ga noitada, ele devia estar bastante cansado.

Ainda assim, Anna não poderia deixar de lhe falar. Mesmo que fosse pela última vez.

Abriu o guarda-roupa, escolheu um vestido, calçou as meias e os sapatos, olhou-se no espelho e ajeitou os cabelos.

Acionou o mecanismo para abrir a porta secreta, mas... ela per­maneceu fechada.

O que estaria acontecendo?

Anna tentou a segunda vez. Nada.

Decidiu empurrá-la e então sentiu um obstáculo se movendo atrás da porta.

O conde Carne não queria que ela entrasse em sua casa nova­mente! Anna empurrou a porta com força e, enfim, conseguiu.

Ficou imóvel por alguns segundos. Precisava certificar-se de que, ao arrastar a cadeira no assoalho do quarto do conde, não acordara ninguém. Seguiu-se um silêncio absoluto.

Como o conde Carne não estivesse em seu aposento, ela teria que procurá-lo pela casa toda. Amedrontada, pensou em recuar. Seria muito arriscado prosseguir. Aguardaria até que o conde se recolhesse ao seu quarto e conversaria com ele ali.

Ponderou e concluiu que não era uma idéia plausível, dado que não podia garantir que ele não fosse sair outra vez.

Decidida a seguir em frente, ela abriu a porta que dava para o corredor. A apreensão era grande.

Anna desceu a escada e olhou à sua volta. A sala estava bem diferente: as cortinas semi-abertas, os enfeites tinham sido reco­locados em seus devidos lugares e havia flores viçosas nos vasos.

Alguém usara o cálice de conhaque apoiado sobre a mesinha do lado do sofá.

Onde estaria o dono da casa?

Ela decidiu procurá-lo na biblioteca. Algo a fazia acreditar que era ali o refúgio do conde Carne.

Naquele momento, outro cálice de cristal chamou a atenção de Anna. Surpresa, ela notou que continha ainda um pouco de conhaque.

O conde não estava sozinho!

Virou-se na direção da escada, decidida a voltar para seu quarto. Nada mais tinha a fazer ali. Não estava em sua casa e aquela não era a sua história.

Anna encontraria um novo caminho para si mesma. Dentro em breve toda a família estaria voltando para Derbyshire e ela reto­maria sua rotina diária.

— Quem está aí? Anna ficou paralisada.

O conde abriu a porta da biblioteca e deparou com ela subindo a escada devagarzinho.

— O que está fazendo aqui?

Ela se assustou ao ver que ele estava nu da cintura para cima.

Ele virou as costas e entrou novamente na biblioteca. Voltou após alguns segundos, vestido com a camisa de seu pijama de seda azul-marinho.

O conde deixou evidente que não ficara feliz com a presença de Anna em sua casa.

— Eu... eu andei pensando sobre lady Delabury, em seus ro­mances e tudo o mais...

— Sim? — ele respondeu nada entusiasmado. E, antes que ela continuasse a falar, desabafou:

—Você vem aqui a essa hora da noite? Não percebe que alguém em sua casa pode notar sua ausência?

— Fique tranqüilo. Estão todos dormindo.

— Como pode estar certa disso?

— Bem...

— Espero mesmo que não descubram que está aqui. Eu não saberia o que dizer a seu pai caso ele viesse procurá-la em minha casa.

Ele a pegou pelo braço e a levou para o andar de cima.

— Por favor, largue-me. Está me machucando — ela se queixou.

— Fique quieta. Vou levá-la de volta para seu quarto. Provavelmente, no dia seguinte, o conde mandaria lacrar a porta

secreta para que nunca mais Anna entrasse em sua casa por ali. Estava bastante nervoso.

Contudo, ao constatar que não havia ninguém no quarto dela, o conde Carne se acalmou.

Já bem mais tranqüilo, ele disse a Anna:

— Desculpe-me. — O conde foi cortês. — A verdade é que não quero ser envolvido em outro escândalo.

— Vim à sua casa porque preciso realmente lhe falar.

— Pois diga o que tem a dizer. — O tom da voz dele revelava impaciência.

— Porém, fique alerta. Se perceber que alguém se aproxima, entre em seu quarto e feche a porta o mais depressa que puder—ele a instruiu. —Caso descubram que há uma interligação entre os dois quartos, mostre-se surpresa. Diga-lhes que só hoje veio, a saber, da existência da passagem secreta.

— Entendi. — Anna aceitou a orientação.

Embora estivesse profundamente magoada, admitiu que o con­de estivesse sendo sensato.

— E agora fale. O que quer de mim?

— Descobri que Nacre, o nome do vilão do romance, é um anagrama de Carne.

— Evidente — o conde respondeu de imediato.

— Já havia pensado nisso?

— Claro que sim.

— E por que não disse nada? — Anna estranhou.

— Não achei que fosse importante.

Anna percebeu que o conde não se sentia à vontade para falar sobre aquele assunto. Porém, não se deixou intimidar.

— Talvez não queira que as pessoas se dêem conta da transpo­sição das letras.

— Está enganada. Não me importo com isso.

Anna reuniu toda a sua coragem e, fitando-o nos olhos, falou sem rodeios:

— Seu pai foi amante de lady Delabury.

O conde Carne não se desconcertou com o atrevimento dela.

— Se assim fosse, lady Delabury não lhe teria dado o papel de vilão da história.

— O romance entre os dois já devia ter terminado, e lady De­labury quis se vingar de seu pai. Através do romance, lorde Dela­bury viria a descobrir a relação que havia entre seu pai e ela.

— E por que não fez dele o herói de Forbidden Affectionsl

— Como o conde Nacre, seu pai já não era tão jovem. Não tinha mais idade para ser o herói.

— Ainda não consegui entender que relação pode haver entre o conde Nacre e meu pai. Os dois nada têm em comum a não ser que o nome do personagem é um anagrama de Carne.

—Lady Delabury amava seu pai. Por sua vez, Dulcinéa também não parecia rejeitar totalmente o conde Nacre, ela não fez o menor esforço para fugir dele.

— Como conseguiu entender toda essa trama?

— Leio muito.

— E um grande erro deixar que as mulheres leiam muito — o conde a provocou, sorrindo.

— Foi seu pai quem a matou?

— Já ficou provado que não. No dia em que ela se suicidou, ele estava em Norfolk.

— É verdade — Anna se lembrou de ter lido em um dos rela­tórios que o vizinho de lady Delabury estava fora de Londres quan­do ela se suicidou no quarto dele.

— Ela deixou uma carta de despedida para o marido, não é mesmo?

— Não estou bem certo, mas parece-me que sim.

— Que tipo de pessoa era ela? — Anna quis saber.

— Uma mulher dramática, dada a crises de nervos. Tomava sedativos com muita freqüência. Todavia, jamais pensei que fos­se capaz de se suicidar. Era altiva, orgulhosa e se achava muito importante.

— Ninguém pode prever essas coisas.

— Não quero que fique aborrecida, Anna, mas gostaria de lhe pedir para não tocar mais nesse assunto.

— Estou muito preocupada com o senhor.

— Comigo?

— Sim.

— E posso saber por quê?

— O senhor mesmo me disse que lorde Delabury pretendia desafiá-lo para um duelo.

— Esta noite, no White's, ele me atirou um copo de vinho.

— Não posso acreditar! E o que é que o senhor fez?

— Conversei com ele.

— Sobre o duelo?

— Também. Havíamos escolhido nossos padrinhos e eles já tinham fechado o acordo quanto às condições do embate. Precisá­vamos apenas marcar a data e o local.

— E então?

—Tivemos uma conversa civilizada, e lorde Delabury entendeu que não havia motivo para o desagravo.

— Graças a Deus! — Anna ficou aliviada. — O senhor lhe contou sobre seu pai e lady Delabury?

— Ele relutou muito em aceitar a idéia. Mas, na verdade, já sabia que sua esposa não lhe era fiel. Todavia, não acreditava que ela pudesse ter escolhido um homem tão mais velho. Daí sua sus­peita de que eu era o amante dela. Até mesmo porque os heróis de seus romances eram todos muito jovens.

— E o senhor conseguiu convencê-lo de que nada tinha a ver com toda essa história.

— Ele já estava convencido disso. No entanto, talvez achasse que me desafiando para um duelo estaria, de certa forma, vingando-se de meu pai.

— Então não é um homem bom — Anna o julgou.

— É muito romântico e até hoje defende a esposa.

— Seu pai era um homem atraente?

—Para algumas mulheres, sim. Era muito alegre, montava mui­to bem e, infelizmente, gostava muito de beber.

— Acredita mesmo que lady Delabury tenha sido muito apai­xonada por ele?

— Anna quis saber.

— Lorde Delabury encontrou o diário dela. Ali, lady Delabury dizia que grande parte do charme de meu pai residia em seus modos rudes e em sua personalidade autoritária.

— Que estranho!

— Por que estranho?

— Lorde Delabury nunca havia percebido que essas não são características suas?

— As pessoas normalmente acreditam naquilo que querem acreditar, minha menina.

— Acho que posso entender — Anna respondeu.

—- Eu só gostaria de saber por que ela escolheu se matar no quarto de meu pai.

— Queria chantageá-lo, fazer com que ele voltasse para ela. Ou então, testá-lo, saber o quanto ele a amava.

— Não poderia testá-lo depois de morta.

— Como sabe que ela queria mesmo morrer? Ninguém pode garantir que essa era mesmo sua intenção.

— Ela ingeriu uma grande quantidade de láudano — o conde insistiu. — Não poderia ter sobrevivido.

— Talvez tenha acreditado que não seria suficiente para matá-la.

— Enfim... Seja lá o que for lorde Delabury parece, finalmente, estar convencido de que eu não tive mesmo nada a ver com isso.

— Posso fazer uma pergunta indiscreta?

— Sim, claro. Faça-a, Anna.

— Lady Delabury nunca... Flertou com o senhor?

— Algumas vezes tentou dar a entender a amigos de meu pai que tínhamos um affair.

— Mas que audaciosa! — Anna não se controlou.

— E foi isso o que mais aborreceu minha mãe que, na ocasião, já não estava muito bem de saúde. — O conde parecia ter um grande respeito por sua mãe.

— Qual foi a reação de seu pai?

— Ficou muito preocupado com mamãe. Afinal, era casado com ela há mais de vinte anos.

— Lady Delabury tinha ciúme de sua mãe?

—Não posso afirmar com segurança. Porém, tenho a impressão de que não suportava o fato de meus pais se darem muito bem, apesar de tudo. Quando minha mãe adoeceu, meu pai terminou o relacionamento com lady Delabury. Logo em seguida, ela se matou.

— Na cama dele!

— Foi isso o que aconteceu. Papai estava sendo esperado aqui em Londres naquele dia, contudo, adoeceu e não pôde voltar. Mi­nha mãe viajou sozinha. — A expressão do conde Carne era de tristeza. — Foi ela que encontrou o corpo.

Anna sentiu um frêmito percorrer sua espinha. Perplexa, arregalou os olhos e se manteve em silêncio. Jamais diria ao conde o que lhe passou pela mente naquele momento.

— Obrigado por me compreender — ele agradeceu.

Ela se lembrou do rapaz alegre e jovial que vira no retrato e teve vontade de chorar.

— O senhor ficou muito tempo fora do país, não é verdade?

— Confesso que não foi sacrifício — o conde foi sincero. — Deixei a Inglaterra para que lorde Delabury não me prejudicasse. Estava tão desesperado que, naquele momento, seria capaz de co­meter uma loucura da qual pudesse vir a se arrepender depois.

—E, se ele lhe fizesse algum mal, com toda a certeza, sua mãe...

— Acabou, Anna. Jamais alguém saberá o que aconteceu na­quela noite.

— Todavia, a sociedade jamais esquecerá.

— Para ser franco, dou pouca importância para isso.

O conde se levantou, dando a entender a ela que já estava na hora de ele se recolher.

— Posso lhe fazer mais uma pergunta?

— Só não posso prometer que responderei.

— Seu pai faleceu alguns dias após a morte de lady Delabury. O que realmente aconteceu com ele?

— Talvez estivesse mais doente do que imaginávamos.

— Acredita mesmo nisso?

— Não, não acredito Anna. — Ao olhar para ele, ela se com­padeceu de sua dor.

— Ele quis voltar para Londres tão logo soube da morte de lady Delabury. No caminho... o coração não agüentou.

— Não consigo entender lady Delabury. Tinha um marido jo­vem, bonito e que a amava. Por que se apaixonou por seu pai, que tinha o dobro da idade dela!

— Fico contente em saber que certas atitudes a deixam per­plexa, Anna. Na época, meu pai era um homem de cinqüenta anos. Você pode pensar que era um velho, contudo, posso lhe garan­tir que isso não é verdade. Era alegre, jovial, uma pessoa muito interessante.

—Lady Delabury não deveria ter se casado com lorde Delabury se não o amava.

— Ela queria uma posição, um título. Quando solteira, morava com os pais e, quando conheceu lorde Delabury, achou que ele era seu herói. Como aqueles que idealizava para seus romances. No entanto, decepcionou-se. Quando conheceu meu pai, encan­tou-se por ele.

— Tinha tudo para ser feliz com o marido.

— Meu pai sabia como estimular uma mulher.

— Tudo isso é tão estranho...

Diante da inocência de Anna, o conde sorriu.

— Ainda é muito jovem, Anna. Provavelmente, sonha com jo­vens bonitos e elegantes, que tenham sentimentos puros e as mais nobres intenções.

— Suponho que sim.                                            

— Agora já sabe como tudo aconteceu.

Anna se levantou e apontou para a porta secreta.

— E esta porta, como pôde ter sido feita sem que ninguém desconfiasse de nada?

— Lorde Delabury, até hoje, nada sabe sobre ela. — O conde meneou a cabeça, provavelmente se divertindo ao se lembrar das peripécias de seu velho pai.

— Quando lady Delabury lhe pediu que mandasse redecorar seu quarto, ele concordou e permitiu que ela determinasse qual empresa deveria executar o trabalho.

— Queria que tudo ficasse a seu gosto.

— Não foi bem por isso. O fato é que papai tinha negócios com essa firma. Portanto, não teria dificuldade em pedir aos emprega­dos que fizessem uma passagem secreta. E, sem dúvida nenhuma, que mantivessem sigilo absoluto sobre a existência dela.

— Quem lhe contou tudo isso?

— O funcionário encarregado da obra, que ainda trabalha para nós. Faz todo o serviço de manutenção da casa: pinta as paredes, conserta as torneiras e as válvulas, pendura os quadros... Enfim, é o homem dos sete instrumentos, se é que entende o que quero dizer.

— Naturalmente. Em Derbyshire, temos um empregado que só cuida da conservação da casa. Não gostei do final dessa história — Anna comentou.

— O que esperava? Que lady Delabury não houvesse morrido e o herdeiro de seu amante começasse a visitar seu quarto durante a noite?

— Não.

— Que final então, você daria para ela?

— Deveria haver um vilão responsável pelo sofrimento de tan­tas pessoas.

— Não se trata de um romance, Anna. Isso tudo aconteceu na vida real.

Anna não soube o que dizer.

— Eu não gostaria de ter que mandar lacrar essa porta, Anna. Porém, se continuar insistindo em vir à minha casa, não terei alternativa. Pedirei ao pedreiro que venha fechá-la.

Ao sentir que aquela poderia ser a última vez que falava com o conde, Anna reuniu toda a sua coragem e abriu seu coração.

— O senhor já deve ter percebido que eu... o amo. O conde foi tomado de surpresa.

— Eu preferia não ter ouvido o que disse. Pelo que posso en­tender o que sente é apenas...

— Paixão — Anna se adiantou. — Acha que uma menina da minha idade não é capaz de amar. Estou certa?

— Shhh! Fale mais baixo. Seus pais podem escutar — o conde a alertou, colocando a mão sobre os lábios dela. — "Ou será que isso faz parte de seus planos?

— Como se atreve a dizer tal coisa? — Anna se exaltou.

— Eu jamais me prestaria a esse papel.

— Sei que não seria capaz disso. — O conde parecia arrepen­dido do que havia dito. — Por favor, desculpe-me.

— Estranho muito que tenha pensado tal coisa de mim.

— Há de concordar que a sociedade londrina ficaria escanda­lizada se nos casássemos. Sou catorze anos mais velho do que você.

— Incomoda-se tanto assim com a opinião das pessoas?

— Em absoluto — o conde foi categórico. — Porém, tenho a certeza de que seu pai não ficaria nem um pouco satisfeito.

— Está querendo dizer que se casaria comigo se meu pai con­sentisse?

— Não foi isso que eu disse. Nossos encontros foram muito agradáveis, porém, entenda, jamais poderemos nos casar. Quando for mais velha, entenderá que o amor que sente por mim não passa de uma simples ilusão. Não tenho dúvidas de que encontrará al­guém que a fará muito feliz.

Anna não disse nada. Seu orgulho estava profundamente ferido. Levantou-se, foi para seu quarto e fechou a porta atrás de si. Pro­meteu a si mesma que, daquela vez, não choraria. Com o tempo conseguiria esquecê-lo.

Anna tinha grandes possibilidades de ser feliz. Enquanto o con­de Carne... Pobre homem! Depois de tudo o que lhe acontecera... A reputação de sua família havia sido abalada, a mãe estava invá­lida, provavelmente por causa da culpa que sentia por haver co­metido... Coitadinha! Seu marido e lady Delabury a tinham feito sofrer tanto!

— O que é isso? — Anna se perguntou ao ouvir uma gritaria na parte de baixo da casa.

— Uma das criadas deve estar passando mal — concluiu.

Abriu a porta do quarto e desceu correndo as escadas.

Ao ver Maria com o rosto todo machucado, com as roupas rasgadas, perguntou:

— O que houve com você?

Sir Jeffrey e lady Featherstone estavam ao lado dela.

— Minha filhinha, conte-nos o que aconteceu? — aflita, a mãe perguntou.

— Foi ele, mamãe, foi ele. Veja o que fez comigo. Ele me bateu

— ela disse, entre soluços.

— Tome este brandy para se acalmar, Maria — sir Jeffrey ofe­receu.

— Onde você estava? Quem lhe fez isso? Conte-nos tudo.

— O que lhe fizeram meu bem?

Maria olhou para lady Featherstone como se não quisesse lhe contar o que houvera com ela.

— Quem fez isso, Maria? Por favor, diga logo — insistiu sua mãe.

— Foi o conde Carne — finalmente ela respondeu. E caiu em prantos.

— Como assim? — sir Jeffrey quis saber.

— Eu saí um pouco no jardim...

— A essa hora da noite? — Lady Featherstone estranhou.

— Precisava tomar um pouco de ar fresco — Maria justificou.

— E ele estava lá. Ele quis... Quis... — Muito nervosa, ela não conseguia falar.

— Ele quis o que, Maria? Sou sua mãe. Tenho o direito de saber.

Anna viu quando as criadas se entreolharam. Maria suspirou várias vezes antes de dizer:

— Ele quis... Agarrar-me. — As lágrimas desciam livres por seu rosto. — Tentei fugir, mas ele me segurou... Com força.

Ao ouvir aquelas palavras, Anna ficou perplexa. Todavia, logo em seguida, entendeu que se tratava de uma mentira.

Maria pegou o cálice da mão de seu pai e bebeu um pouco de brandy, engasgando-se com a bebida. Anna não conseguia achar uma justificativa para toda aquela encenação.

— Beba esta água, minha filha. Vai lhe fazer bem — pediu Lady Featherstone, enxugando as lágrimas no rosto da filha. Es­perou que ela a tomasse e, em seguida, insistiu:

— Agora que já está mais calma, deve nos contar exatamente tudo o que aconteceu.

Exausta de tanto chorar, Maria atendeu ao pedido da mãe.

— Ele me agrediu.

— Lorde Carne? — Anna estava estupefata. Maria meneava a cabeça de um lado para outro.

— A que horas aconteceu isso?

— Agora mesmo, por volta de meia hora atrás.

Anna se calou. Tinha pouco tempo para decidir se revelava ou não toda a verdade. Caso se calasse, estaria, de certa forma, com­pactuando com a irmã.

— Nesse caso, não foi o conde Carne que a agrediu — ela decidiu falar.

— Fique quieta, Anna — ordenou lady Featherstone. — Você não sabe de nada.

— Sei, sim. O conde estava comigo. Portanto, não podia estar com Maria.

Com aquelas palavras, Anna surpreendeu não somente sua fa­mília, como também a criadagem.

— Não é hora para contos de fada, Anna — sir Jeffrey chamou a atenção da filha.

— Estou falando a verdade — Anna insistiu. — O conde Carne e eu estávamos juntos.

— Exatamente onde?

— Até aquele momento, sir Jeffrey não havia se dado conta de que ela não estava usando roupas de dormir.

Ao olhar para a expressão das criadas, Anna percebeu que po­deria estar cometendo um erro terrível.

Sir Jeffrey apressou-se em pedir que elas se retirassem e fechou a porta da cozinha.

— Agora, diga-me, minha filha, onde estavam você e o conde Carne?

— No quarto dele — ela respondeu baixinho. Antecipando que sua mulher logo faria uma de suas cenas pre­diletas, sir Jeffrey a impediu de antemão.

— Esqueça os seus sais, lady Featherstone. As criadas já se retiraram. E, por favor, acalme-se. No entanto, ela não se controlou.

— Está mentindo, Anna! Como conseguiu entrar no quarto do conde? Pela j anela?

—-Há uma porta secreta interligando o meu quarto com o dele.

— Anna, minha filha, se continuar a mentir, serei obrigado a proibi-la de comprar livros.

— Estou dizendo a verdade, papai. Se quiser subir agora, eu a mostrarei ao senhor. Quanto ao conde Carne, não precisa se preo­cupar. Não fizemos nada errado. Apenas conversamos sobre o mistério que envolve a morte de lady Delabury.

— Conversaram sobre o mistério que envolve a morte de... — Atônito sir Jeffrey se levantou, decidido a ir até o quarto dela. — Muito bem, quero ver essa porta secreta.

— Pobre Anna! — Lady Featherstone lamentou ao entrar no quarto da filha. —Este quarto deve ter perturbado seu juízo. Jamais deveríamos ter consentido que dormisse aqui.

— Meu juízo está normal, mamãe — Anna contestou. — Este quarto é uma réplica do aposento de Dulcinéa, a personagem prin­cipal de Forbidden Affections, um romance de Mrs. Jamison ou... Lady Delabury.

—Vamos deixá-la sozinha, Featherstone — sugeriu ao marido.

— Não está mais falando coisa com coisa.

— Foi justamente lendo o livro que descobri que havia uma passagem secreta entre os dois quartos — Anna continuou. — O quarto de Dulcinéa tinha interligação com o de seu tio.

— E você concluiu que... — disse Maria.

— Procurei e acabei achando a porta — Anna afirmou.

— Abra-a, então, para nós — sir Jeffrey estava ansioso. Anna puxou a lança e a porta se abriu.

Lady Featherstone mal podia acreditar no que via.

— Meu Deus! — exclamou. — É verdade.

— Eu lhes disse que não estava mentindo. Esse é o quarto onde Lady Delabury se suicidou.

—Há quanto tempo sabe da interligação?—Lady Featherstone quis saber.

— Desde o dia em que chegamos aqui.

— E, desde então, você e o conde se encontram todas as noites

— Lady Featherstone concluiu. — Você é mesmo maluca!

— Virando-se para o marido, ela disse: — Isso quer dizer que ele poderia ter matado todos nós enquanto dormíamos.

— O conde não é um assassino — Anna o defendeu.

— Minha pobre menina! — Lady Featherstone exclamou.

—Imagino o que ele deve ter dito a você para que o defenda dessa maneira.

— Devem ter acontecido coisas horríveis, mamãe — Maria a fustigou.

— Anna já deve estar até desonrada.

— Creio que nos deve uma explicação, Anna — disse-lhe o pai.

— O conde nem mesmo sabia da existência dessa porta.

— Não acredito em uma só palavra que está dizendo — Maria a interrompeu.

— Havia me pedido que não voltasse a casa dele.

— Se isso é verdade, mostra que o conde tem bom senso.

— Chegou até mesmo a colocar uma poltrona atrás da porta para que eu não conseguisse abri-la.

— Mas estou certa de que conseguiu. — Lady Featherstone conhecia muito bem a filha.

— Sim, consegui. Esta noite entrei no quarto dele, pois queria lhe falar sobre a morte de lady Delabury.

— E o conde concordou em conversar com você sobre um as­sunto familiar?

— Concordou, sim.

— Tenho que admitir que não possa culpá-lo de nada. Em todo caso, melhor teria feito se tivesse me procurado e me contado sobre essa sua infantilidade, Anna. E, quanto a você, Maria, o que tem a dizer?

— Acho que Anna é uma desajuizada e está apaixonada pelo conde Carne. Tudo o que disser será para defendê-lo. E ainda quer nos convencer de que não aconteceu nada.

— Não vai se defender, Anna? — Lady Featherstone queria uma resposta.

— Não tenho do que me defender, mamãe. Sei que não agi certo, contudo, não resisti. Queria saber como era o quarto onde lady Delabury se suicidou.

— Quando entrou na casa do conde pela primeira vez? — sir Jeffrey quis saber.

— Na noite em que chegamos aqui em Londres. Achei que a casa estivesse vazia. — Anna fez uma pausa. —- Na segunda vez, o conde me surpreendeu em sua biblioteca e eu o agredi.

— Maggie! — Naquele momento, sir Jeffrey entendeu por que o conde viera até a porta da cozinha e perguntara pela criada Maggie.

— Espero que não tenha mais novidade, Anna — Lady Featherstone ironizou. — Ao menos, por esta noite.

Havia chegado a hora. Por nada deste mundo seus pais poderiam saber por que ela tivera de se defender do conde, não suportariam a idéia de o conde Carne ter forçado sua filha mais nova a beijá-lo.

— Qual foi o motivo da agressão, Anna? — Foi Lady Featherstone quem fez a pergunta.

Não houve tempo para que Anna pensasse em uma resposta convincente que pudesse lhes satisfazer a curiosidade.

— Ele... Ele me tomou por uma criada e... Ficou um pouco... Animado... e tentou... Beijar-me.

— Estão vendo? Foi ela quem disse — Maria exultou. — O conde costuma seduzir mulheres indefesas. Exatamente o que fez comigo.

— Você sabe muito bem que o conde não estava no jardim esta noite, Maria.

— Anna não se conformava com o cinismo da irmã.

— Devia estar bêbado — Maria continuou a falar. — Senti cheiro de brandy em sua boca.

— Parem de discutir, meninas — sir Jeffrey pediu. — Preciso saber a verdade.

— Ela está me provocando, papai — Anna se queixou.

— E depois de tudo isso, você ainda voltou a casa dele, Anna, minha filha?

— Sir Jeffrey queria que a filha lhe contasse tudo o que houvera entre ela e o conde Carne.

Ela enrubesceu e não soube o que dizer.

— Vamos, Anna, fale de uma vez — Lady Featherstone se impacientou.

Anna sentiu as pernas tremerem e sentou-se em uma cadeira.

— Ele me convidou para ir à sua casa — disse finalmente.

— E quando fez isso? — perguntou Lady Featherstone.

— Na noite em que esteve aqui em casa.

— Que atrevido! Como teve a coragem de permitir que esse... Essa pessoa ignóbil lhe dirigisse a palavra?

Anna já entendera que não podia contar com o apoio de sua mãe. No entanto, seu pai parecia ter certa simpatia pelo conde Carne.

— E como ele se comportou quando você estava na casa dele?

— Como um cavalheiro.

— E o que disse?

— Queria que eu o ajudasse.

— Não estou entendendo — disse sir Jeffrey. — Como poderia ajudá-lo?

— No dia que ele me surpreendeu em sua biblioteca, ele con­cluiu que só haveria uma maneira de eu ter entrado em sua casa: pela passagem secreta — Anna contou.

— Como jamais ficara sabendo onde estava a porta, pediu-me para que fosse à sua casa, pois só eu poderia ajudá-lo a descobrir o que queria.

— Foi só isso que lhe pediu?

Anna não disse nada. Porém, quando ela abaixou os olhos, sir Featherstone sentiu que estava lhe escondendo algo.

— Anna? — ele insistiu.

— O conde Carne me beijou.

— Por favor, não diga mais nada — lady Featherstone se des­controlou.

— Fui eu quem lhe pedi que me beijasse.

— Conte-nos tudo, minha filha. Somos a sua família e estamos aqui para protegê-la. Não esconda nada. — Sir Jeffrey a encorajou a falar.

— Não há nada mais a dizer, papai. Sir Jeffrey meneou a cabeça.

— Eu acredito em você. Apesar de não ter se comportado como deveria, a culpa foi toda do conde Carne. Um cavalheiro não age dessa forma.

Anna não concordava com o pensamento do pai. No entanto, achou por bem não dizer nada.

— Eu lhes contei tudo isso apenas para que entendessem que Maria não estava dizendo a verdade.

— Que motivos a teria para mentir? — Lady Featherstone tomou a defesa de Maria.

— Não está vendo o estado em que estão suas roupas?                                                  

Anna não teve alternativa a não ser revelar aos pais os segredos da irmã.

— Deve ser algo relacionado com o Sr. Liddell.

Maria empalideceu. Abaixou a cabeça e ficou em silêncio por alguns segundos.

— Maria? — sua mãe perguntou. — Foi o Sr. Liddell quem a machucou?

—Já disse que foi o conde Carne. Por que não querem acreditar em mim? Foi ele, sim.

— E, novamente, caiu em prantos. Lady Featherstone se levantou e tirou Maria do quarto.

— Vamos sair daqui, minha filha. Essas figuras macabras de­vem estar lhe fazendo mal.

— Posso prever que teremos problemas, Pippin — sir Jeffrey antecipou.

— Sinto muito, papai. Não gostaria que viesse a ter aborreci­mentos por minha causa.

— Se pudesse voltar atrás, Anna, iria à casa do conde nova­mente?

Anna pensou um pouco e suspirou antes de responder:

— Se quer a verdade... Sim, eu iria, papai.

— Então acredito que esteja realmente apaixonada por ele.

— Acontece que o conde acha que sou ainda muito criança.

— Se pensasse assim, teria vindo falar comigo.

Sir Jeffrey já ia se retirando do quarto, quando percebeu que Anna queria lhe falar.

— Papai, o senhor não vai dizer nada a ele, vai? A culpa foi toda minha.

— O conde não precisa de sua proteção. Este é um assunto entre homens. — Sir Jeffrey fez uma pausa antes de preveni-la: — Terei que conversar com ele. A criadagem ouviu o que você disse e não sabemos como tudo o que disse pode chegar aos ouvidos do conde Carne.

— Obrigada, papai. Eu também acredito que será melhor assim — Anna concordou.

— Quanto a Sr. Liddell, tive uma boa impres­são dele no dia em que esteve aqui em casa. Não sei como...

— Eu sei. Maria consegue manipular até mesmo as pessoas mais sensatas.

Antes de sair do quarto, sir Jeffrey advertiu a filha:

— Não abra mais essa porta secreta. Nem mesmo para prevenir o conde Carne da iminente visita de um pai irado. Entendeu?

— Sim senhor, papai — respondeu Anna, sorrindo.

Os dois, pai e filha, sabiam perfeitamente que a conversa entre sir Jeffrey e o conde Carne poderia resultar em uma amizade du­radoura. Anna correu e se atirou nos braços do pai.

— Eu o amo muito. Obrigado por acreditar em mim — ela agradeceu.

— Conheço minha filha, Pippin. Sei que é forte o suficiente para se impor em qualquer situação.

— O senhor gosta do conde Carne, não é verdade?

— Confesso que sim. No entanto, não alimente ilusões. Não é um homem com que deva se casar. Acredite em seu velho pai.

— Está bem — Anna achou melhor concordar com sir Jeffrey. No dia seguinte, a casa de número dez amanheceu tristonha.

Após sua visita ao conde Carne, sir Jeffrey se recolheu ao es­critório.

Em seu quarto, Anna procurava acalmar a ansiedade lendo um livro. Levantou-se algumas vezes e caminhou até a janela na es­perança de ver o conde no jardim.

Diante da expectativa frustrada, decidiu ir conversar com o pai.

— Posso entrar? — pediu licença.

-— Bom dia, querida. Descansou bastante? — sir Jeffrey quis saber.

— Consegui dormir um pouco.

— Veio aqui para saber o que eu e o conde conversamos, estou certo?

— É verdade, papai. Pode me contar?

— Naturalmente, Anna—ele se predispôs. — O conde admitiu que não devesse tê-la encorajado a usar a interligação entre os quartos. E ficou muito decepcionado quando lhe falei sobre as supostas intenções de seu primo, Sr. Liddell.

— Que providências pretende tomar?

— Não disse nada a respeito desse assunto. Tampouco eu lhe perguntei o que pretendia fazer—sir Jeffrey revelou. — Contudo, não se preocupe. O conde Carne saberá como agir.

— Pobre Maria! — Anna se compadeceu4da irmã.

— Com o tempo entenderá que se livrou de um mal maior. Teria sido bem pior se já estivesse casada com David Liddell.

— Tem razão, papai.

— Mas... Sente-se aqui perto de mim, minha filha.

Anna pressentiu que sir Jeffrey tinha algo importante a lhe dizer.

— Eu disse à criadagem que, nesta noite, você e Maria resol­veram se aventurar pela estrebaria, onde ela tropeçou em uma pe­dra e caiu. O senhor conde estava lá para examinar seu cavalo, que tinha um problema na pata, e correu para ajudá-la a se levantar.

— Com certeza, o senhor o preveniu que lhes havia dito isso.

— Sim. E ele concordou em dar a mesma explicação caso um de seus criados viesse lhe contar o que aconteceu aqui em casa ontem à noite.

— Peço perdão por lhe ter causado tanto transtorno — Anna se desculpou.

— Na verdade, poderia ter esperado até que estivéssemos só em família.

— Quando cheguei lá embaixo, Maria já havia começado a representar toda a cena

—Anna se justificou. — Fiquei com medo que a criadagem acreditasse no que dizia.

— A reputação do conde Carne não ficará comprometida se mantivermos um bom relacionamento com ele.

—De qualquer forma, não poderíamos ter deixado que ele fosse vítima de calúnia.

— Até mesmo porque ele me parece ser um homem de bem. Se assim não fosse, teria se aproveitado de sua insistência em ir à casa dele e abusado de sua ingenuidade.

— Eu ficaria muito feliz se pudéssemos evitar que o sr. Liddell venha a prejudicá-lo.

— O conde saberá se defender.

— O senhor Liddell é uma pessoa inteligente e, à primeira vista, muito agradável.

— Se assim não fosse, não teria conseguido conquistar Maria.

—Quanto ao conde, ocorre justamente o contrário. A princípio,

tem-se a impressão de que é um tanto egocêntrico e não está ha­bituado a respeitar as pessoas.

— Guarde suas impressões sobre o conde para si. Não a acon­selho a falar muito sobre esse assunto.

Anna enrubesceu.

-— Gostaria de conhecer as intenções do Sr. Liddell em relação a seu primo.

— É apenas uma questão de tempo, Srta. Curiosidade. Agora que o conde Carne já sabe quem ele é, será mais difícil para Sr. Liddell ocultá-las.

— Espero que seja desmascarado muito em breve.

—Antes que me esqueça, Anna, o conde expressou sua vontade de conversar com você.

Anna rejubilou com a notícia.

— Não vejo mal algum em convidá-lo para vir aqui. — Sir Jeffrey a surpreendeu.

— Você gostaria que lhe enviasse uma mensagem, pedindo-lhe que venha agora?

— Eu ficaria muito feliz em lhe poder falar.

Sir Jeffrey pegou sua caneta e uma folha de papel timbrado. Após ter escrito algumas palavras, pediu a uma das criadas que o entregasse em sua casa.

Dentro de poucos minutos, o conde chegou à casa de número nove e pediu ao mordomo que anunciasse sua presença.

Ao vê-lo chegar ao escritório e sorrir para ela, Anna procurou esconder sua emoção.

— Posso entrar sir Jeffrey?

— o conde pediu licença.

— Por favor, Senhor conde Carne. Sente-se e fique à vontade. Na­turalmente, já conhece minha filha, Anna.

— Como vai, Srta. Anna? É um grande prazer revê-la. Em pri­meiro lugar, gostaria de lhe agradecer por ter defendido a minha honra.

Anna olhou para o pai antes de se dirigir a ele.

— Espero não ter lhe causado algum aborrecimento.

— Absolutamente. Considerando as circunstâncias, sir Jeffrey foi bastante complacente comigo.

— Permita-me dizer, meu caro conde, que confio no bom senso de minha filha Anna.

— No que concordo com o senhor. É muito ponderada apesar de sua pouca idade.

— Posso concluir que ficou muito decepcionado com seu pri­mo, Sr. Liddell

— disse Anna.

— Para ser franco, eu já sabia quem ele verdadeiramente é.

— Tem alguma idéia de como Maria aceitou participar de seu plano para destruí-lo, sr. conde? — Anna quis saber.

— David está muito apaixonado por Maria e achou que só conseguiria se casar com ela se tivesse meu título e minha fortuna. Como deve saber, é meu único herdeiro — o conde respondeu.

— Estava certo de que meu pai o desafiaria para um duelo

— Anna concluiu.

O plano de David era fazer com que lorde Delabury, imaginan­do que cometi um ato tão covarde, repensasse sua conclusão sobre a morte de lady Delabury e viesse a me atribuir culpa em sua morte.

— E então, ele o desafiaria para um duelo.

— Sim. Caso eu viesse a morrer, David herdaria meu título e toda a minha fortuna

— dizendo isso, o conde se levantou.

— Quando o verei novamente? — Anna quis saber.

— Sir Jeffrey me disse que voltam amanhã para Derbyshire. Surpresa, Anna olhou para seu pai.

— Você e Maria precisam retornar à paz do campo — ele disse. Anna conteve as lágrimas. Era chegada a hora da separação e,

talvez, ela jamais voltasse a ver o conde.

— Assim sendo, só me resta lhe dizer adeus, sr. conde. Ele tomou uma de suas mãos e a beijou.

—Tenha uma boa viagem, Srta. Anna. Estou certo de que, quan­do chegar o momento, encontrará seu príncipe encantado. E ele a fará muito feliz.

— Em seguida, o conde cumprimentou sir Jeffrey e se retirou.

Na manhã seguinte, quando os Featherstone deixaram a casa, Anna não quis olhar para trás.

Todavia, se permitiu sonhar que o conde, da janela de seu quar­to, observava a carruagem se afastar, a caminho de Derbyshire.

 

No interior da Inglaterra, a rotina diária era bem diversa da agitação da capital. Ali, a primavera se mostrava mais exuberante e, naquele ano, as flores estavam especialmente viçosas.

A família foi recebida com os abraços esfuziantes dos amigos, ansiosos por saberem as novidades de Londres.

— Conte-me tudo — Harriet Northam, companheira insepará­vel da filha caçula dos Featherstone, quis saber. — Deve ter se divertido muito — ela concluiu.

— Foi realmente muito bom. — Anna não conseguiu esconder um ar de tristeza.

Ela não disse a Harriet nada sobre o conde Carne. Revelou apenas que a casa onde haviam ficado hospedados pertencera a mrs. Jamison, autora de Forbidden Ajfections.

— Que excitante! — exclamou Harriet. — E quem dormiu no quarto que foi dela? Você?

— Por acaso, papai o designou para mim. — Anna preferiu não prolongar o assunto para não ter que lembrar os momentos em que ficara sozinha com o conde Carne na casa dele.

Os filhos de sir Jeffrey e lady Featherstone costumavam passar o mês de julho na casa dos pais. Haviam chegado alguns dias atrás e, como só voltariam a Derbyshire por ocasião do Natal, era natural que todas as atenções da família se voltassem para os dois rapazes.

— Espero que todos estejam em Oxford no ano que vem para assistirem à minha formatura — disse Andrew, o mais velho.

— Não há dúvida alguma, meu rapaz — assentiu sir Jeffrey, orgulhoso do primogênito que, no ano seguinte, terminaria seu curso de bacharel em Direito naquela renomada universidade da Inglaterra.

— Com certeza, já está pensando em marcar seu casamento com Margareth Spencer

— disse sua mãe.

— Papai falará com o pai dela na última semana deste mês.

— Lady Spencer convidará todos nós para um jantar em sua casa — sir Jeffrey lhes contou.

— É muito gentil. Fico muito feliz com a união de nossas fa­mílias — elogiou lady Featherstone. — Será uma ótima oportuni­dade para Maria usar um dos vestidos que trouxe de Londres.

— Escolherei o mais bonito de todos. Preciso estar mais bonita do que Margareth.

Antes que algum de seus filhos reprovassem a atitude de Maria, sua mãe sugeriu:

— Já é tarde, meninas, vamos nos recolher. Amanhã, tenho que levantar muito cedo para acompanhar Maria à igreja. Lady Whelksham nos convidou para tomar chá em sua casa após as orações. Quer que Maria conheça seu filho, lorde Whelksham. Ele está passando suas férias na casa da mãe.

— Boa noite, papai — Anna se despediu.

— Tenha bons sonhos, minha filha.

Anna acreditava que já havia se recobrado da tristeza de não poder se casar com o conde Carne quando, certa manhã, sir Jeffrey lhe pediu que viesse falar com ele no escritório.

— Sim, papai? — ela atendeu prontamente. — Mandou me chamar?

 

Sir Jeffrey, que estava em pé, de frente para a janela, virou-se para a filha e anunciou:

— Temos visita.

Como não visse ninguém estranho na casa, Anna não entendeu a quem o pai se referia.

— Visita? De quem se trata?

— O conde Carne chegou em Derbyshire bem cedinho, hoje pela manhã.

— O conde Carne? — Ela não pôde acreditar no que ouvia.

— Sim, ele mesmo.

— E onde está?

— No jardim.

Em poucos segundos, Anna sentiu todos os seus esforços para tentar esquecê-lo serem destruídos.

— Sabe o que ele quer? — ela perguntou, controlando seu im­pulso de se atirar sobre o sofá.

Sir Jeffrey sorriu.

— Estava muito confuso quando entrou aqui e não conseguia se expressar com clareza. Disse estar apenas de passagem e pediu licença para lhe falar.

— Comigo?

— Sim, por acaso não se chama Srta. Anna? — Sir Jeffrey brincou com a filha.

— O que devo fazer?

— Vá até o jardim — disse sir Jeffrey. — E não tenha receio. Ele não lhe fará mal algum.

Anna lastimou que seus cabelos estivessem presos em uma tran­ça o que, certamente, atribuía-lhe um ar infantil. Contudo, não haveria tempo para soltá-lo. Sua única alternativa era ir ao encontro do conde sem se preocupar com sua aparência.

— Não saberei o que lhe dizer, papai. — Anna estava bastante aflita.

— Apenas o cumprimente e ouça o que ele tem para lhe falar.

— Diga-me, papai, o que acha que o conde quer de mim?

— Não sei exatamente. Em todo caso, se lhe propuser casa­mento, saiba que não me oporei à união de vocês.

— Casamento? — Anna sentiu seu coração disparar.

— Desde que chegamos de Londres, você tem tido uma atitude bastante madura em relação ao que sente pelo conde Carne — sir Jeffrey louvou o comportamento da filha.

— Apesar de muito jovem, é mais sensata do que sua irmã.

Anna sentiu enrubescer.

— Sei que existem fortes laços afetivos entre você e o conde Carne. Em todo caso, a decisão de se casar ou não bom ele é apenas sua — sir Jeffrey reconheceu.

— De qualquer forma, pode ser que eu esteja enganado e o conde Carne queira lhe dizer algo comple­tamente diferente. Ou então, tenha passado por aqui apenas para revê-la. Se assim for, sabe que deverá esquecê-lo. Para sempre.

— Entendo o que quer dizer, papai — Anna assentiu.

— Agora vá até o jardim.

Anna saiu do escritório e caminhou na direção do jardim. Não estava preparada para aquele encontro. Nem ao menos tinha a cer­teza de que queria se casar com o conde Carne. Tudo não passara de um sonho. E, naquele momento, ela temia que ele lhe pedisse para tomar uma decisão que mudaria toda a sua vida. Era tão mais velho do que ela...

Anna estava completamente insegura. Seu coração ansiava para que o conde a tomasse em seus braços e a beijasse, exatamente como o fizera em Londres, em seu quarto. Por outro lado, receava que ele lhe pedisse para assumir um compromisso de noivado.

O conde ainda não a vira. Estava de costas e admirava o hori­zonte. O que estaria pensando? Que planos teria para sua vida?

Anna sentiu-se desencorajada para se aproximar dele.

Repentinamente, ele se virou e deparou com ela, ali, parada, sem saber o que dizer.

Anna teve vontade de correr e se atirar em seus braços, contudo, conteve-se e disse apenas:

— Bom dia, senhor. Foi muito gentil em ter vindo nos ver.

— Senti sua falta e achei que, talvez, também ficasse contente em me ver.

— Certamente que sim. E um prazer revê-lo.

— Está um dia lindo, não é verdade?

— Sim, a primavera este ano irrompeu esplendorosa.

Anna olhou para o conde e discordou de sir Jeffrey. Ele não parecia nada confuso. Ao contrário, dava a impressão de estar bastante confiante em si.

— Podemos nos sentar naquele banco embaixo da árvore? — sugeriu o conde.

— É uma ótima idéia — Anna concordou. — Para não deixá-lo esperando, não fui até meu quarto apanhar um chapéu.

— Como sempre, é muito delicada, Srta. Anna.

— Seu primo, sr. Liddell, já viajou para Marrocos? -—Embarcará em agosto.

— Como reagiu quando o senhor lhe participou sua decisão de mandá-lo para lá?

— Ficou agradecido por eu estar lhe dando uma nova oportu­nidade.

— Disse por que fez aquilo?

— Estava muito apaixonado por Maria e achou que ela se ca­saria com ele, caso seu plano fosse bem-sucedido.

— E sua mãe, como está?

— Ainda sofre muito. Não fosse pelo que fez, talvez ainda tivesse meu pai a seu lado.

— Havia muita tristeza no rosto do conde Carne.

— Acha que ele veio a falecer por que...

—Com certeza, não agüentou perder lady Delabury de maneira tão trágica.                                                          

— O senhor visita sua mãe freqüentemente, não é verdade.

— Está enganada, Anna. Jamais nos demos muito bem. Ela sempre é uma pessoa muito egoísta, o tempo todo voltada para si mesma. Deixou que todos acreditassem que havia sido eu quem induzira lady Delabury a pôr termo à própria vida.

— Sinto muito pelo senhor.

__Uma mãe egocêntrica e um pai namorador. Acho que não

tive muita sorte com minha família.

__Devo confessar que o acho uma pessoa admirável, Sr conde.

— Tenho pensado muito sobre o que me disse em Londres, em relação a seus sentimentos por mim — o conde Carne encontrou coragem para se declarar.

— Entanto, acredito não ter o direito de privá-la das alegrias que poderá compartilhar com jovens da sua idade, antes de pensar em formar uma família, tem ainda que se divertir bastante, ir a festas, dançar, flertar com seus pretendentes, só depois, escolher o homem com quem quer se casar.

__Eu não... —Anna tentou interrompê-lo.

— Só tem dezesseis anos, Anna. E eu sou catorze anos mais velho do que você.

Anna mordeu o lábio. Como explicar a ele que nada daquilo a interessava se não o tivesse a seu lado?

— Está querendo dizer que não tenho idade para me casar com o senhor?

— Suponho que sim.

— Pois saiba que, provavelmente, vou chorar muito se tiver que viver ao lado de outro homem. E passarei minha vida pensando em como poderia ter sido feliz se houvesse me casado com o senhor.

— Tem certeza do que está dizendo?

— Estou plenamente convencida do terrível destino que me espera se o senhor não tiver a coragem de se casar comigo só porque é catorze anos mais velho do que eu.

— Quando eu tiver cinqüenta anos, Anna, você estará com ape­nas trinta e seis, no auge...

— Da minha tristeza se o senhor não estiver ao meu lado.

O conde a trouxe para perto de si e beijou seus lábios com ardor.

—Prometo que farei exercícios físicos, comerei moderadamen­te, observarei as horas necessárias de sono...

— E me amará muito pelo resto de seus dias.

— Juro que a farei a mais feliz dentre todas as mulheres, Anna. Quero lhe mostrar o mundo inteiro: Paris, Grécia, Espanha e todos os outros países onde já estive. Só depois pensaremos em formar nossa família.

Anna ficou surpresa.

— Eu não sabia... Que é possível planejar... O conde colocou os dedos em seus lábios.

— Eu lhe ensinarei muitas coisas que ainda não sabe.

— Quer dizer que... Estamos noivos?

O conde sorriu. Era maravilhoso ver tanta felicidade no rosto de sua amada.

— Precisamos ainda pedir o consentimento de sir Jeffrey e lady Featherstone.

Anna sabia perfeitamente que seus pais jamais lhe negariam o direito de ser feliz.

 

                                                                                Jo Beverley  

 

 

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